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CARLOS TORRES PASTORINO

Diplomado em Filosofia e Teologia pelo Colégio Internacional S. A. M. Zacarias, em Roma – Professor


Catedrático no Colégio Militar do Rio de Janeiro e Docente no Colégio Pedro II do R. de Janeiro

SABEDORIA DO
EVANGELHO

1..º Volume

Publicação da revista mensa1.

SABEDORIA

RIO DE JANEIRO, 1964


C. TORRES PASTORINO

INTRODUÇÃO

Antes de penetrarmos no comentário dos Evangelhos, há necessidade de serem explicados certos ter-
mos técnicos e de fazer-se ligeiro apanhado histórico, para boa compreensão do que se vai ler .

EVANGELHO
A palavra grega Euaggélion significa “BOA NOTICIA” , e já era empregada nesse sentido pelos auto-
res clássicos, desde Homero. Jesus a utiliza pessoalmente, segundo os testemunhos de Mateus (24: 14
e 26: 13) e de Marcos (1:15; 8:35; 10:29; 13:10; 14:9 e 16:15), Além dessas passagens, a palavra
“Evangelho” aparece mais 68 vezes em o Novo Testamento.

TESTAMENTO
A palavra “Testamento”, em grego diathéke, apresenta dois sentidos: 1.0 o “testamento” em que al-
guém designa seus herdeiros; 2.0 a “aliança” que define os termos de um contrato, a que se obrigam as
partes que se aliam. Neste sentido de “aliança entre Deus e os homens” é empregado, dividindo-se em
duas partes: o VELHO ou ANTIGO TESTAMENTO, escrito antes da vinda de Jesus; e o NOVO,
onde se reúnem os escritos a respeito de Jesus.
Essa distinção foi feita por Jesus: “este cálice é o NOVO TESTAMENTO em meu sangue, que é der-
ramado por vós” (Lc.22:20) ; c Paulo também opõe o Novo ao Velho: “fez-nos ministros idôneos do
NOVO TESTAMENTO” (2 Cor.3:6) e adiante: “até o dia de hoje, na leitura do VELHO TESTA-
MENTO, permanece o mesmo véu” (2 Cor. 3:14).

CÂNONE
A palavra cânone significa “regra “, e designa o exemplar perfeito e completo das Escrituras. O cânone
do Novo Testamento é constituído de 27 obras, assim divididas:

A) Livros históricos:
1. Evangelho segundo Mateus (Mt)
2. Evangelho segundo Marcos (Mr)
3. Evangelho segundo Lucas (Lc)
4. Evangelho segundo João (Jo)
5. Atos dos Apóstolos (At)

B) Epístolas Paulinas (de Paulo de Tarso) :


6. Aos Romanos (Rm)
7. Aos Coríntios 1.1\ (1 Cor)
8. Aos Coríntios 2.1\ (2 Cor)

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9. Aos Gálatas (Gal)
10. Aos Efesios (Ef)
11. Aos Filipenses (Fp)
12. Aos Colossenses (Co)
13. Aos Tessalonicenses 1.11 ( 1 Tes)
14. Aos Tessalonicenses 2.a (2 Tes)
15. A Timóteo 1.a ( 1 Tim)
16. A Timóteo 2.a (2 Tiro)
17. A Tito (Tt)
18. A Filemon (Fm)
19. Aos Hebreus (autoria discutida)

C) Epístolas Universais:
20. De Tiago (Ti)
21. De Pedro 1.a (1 Pe)
22. De Pedro 2.a (2 Pe)
23. De João l.ª (1 Jo)
24. De João 2.a (2 Jo)
25. De João 3.a (3 Jo)
26. De Judas (Ju)

D) Livro Profético
27. Apocalipse

MANUSCRITOS
Os primeiros exemplares do Novo Testamento eram copiados em papiros (espécie de papel) , material
frágil e facilmente deteriorável. Mais tarde passaram a ser escritos em pergaminho (pele de carneiro) ,
tornando-se mais resistentes e duradouros.
Os manuscritos eram grafados em letras “capitais” ou “unciais” (ou seja, maiúsculas) . Só a partir do
8.0 século passaram a ser escritos em “cursivo”, ou letras minúsculas.

ROLOS
As cópias eram feitas em folhas coladas umas às outras, formando uma tira enorme, que era enrolada
em “rolos'. ou “volumes”.

CÓDICES
Quando as páginas permaneciam separadas e eram costuradas como os nossos livros atuais, por uma
das margens, tinham o nome de “códices”.

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COPISTAS
Os encarregados de copiar os manuscritos chamavam-se “copistas” ou “escribas”. Mas nem sempre
conheciam bem a língua, sendo apenas bons desenhistas das letras. Pior ainda se tinham conhecimento
da língua, porque então se arvoravam a “emendar” o texto, para conformá-lo a seus conhecimentos.
Não havia sinais gráficos para separação de orações, e as próprias palavras eram copiadas de seguida,
sem intervalo, para poupar o pergaminho que era muito caro. Dai os recursos empregados, como:

ABREVIATURAS
ou reunião de várias letras numa SIGLA, por exemplo: pq, para exprimir porque. Algumas abreviatu-
ras eram perigosas, como: OC, que significa “aquele que”. Mas se houvesse um pequenino sinal no
meio do O, fazendo dele um “theta”, passaria a significar “Deus”, (cfr. I Tim. 3:16).

COLAÇÃO
A colação de códices é a comparação que se faz entre dois ou mais códices, escolhendo-se a melhor
“lição” para cada “passo”.

CUSTOS LINEARUM
A expressão latina “custos linearum” (guarda das linhas) era empregada para designar uma letra que se
escrevia no fim das linhas, para “encher” um espaço que ficasse vazio. Por vezes o “custos” era inter-
pretado como uma abreviatura. ,e entrava como uma “interpolação”; doutras vezes era realmente uma
abreviatura, e era interpretada como 'custos”, não se copiando.

HAPAX LEGÓMENA
São duas palavras gregas que indicam uma palavra usada por um só autor, isto é, um neologismo cria-
do pelo autor e desconhecido antes dele, e que vem empregado uma só vez na obra, como por exemplo
a palavra “epiousion” em Mt. 6;)1, que não foi traduzida na Vulgata.

HARMONIZAÇÃO
Tentativa que faziam os copistas para “harmonizar” o texto de um livro com o de outro, acrescentando
ou tirando palavras.

INTERPOLAÇÃO
Quando um leitor anotava, na entrelinha ou na margem, um comentário seu, e o copista, julgando-o um
“esquecimento” do copista “ anterior, introduzia esse comentário como parte do texto.

LIÇÃO
Diz-se da maneira especifica de dizer uma frase, Isto é, da forma exata pela qual está escrita.

PASSO
É o “trecho” citado de um autor, por exemplo: “este passo de Mateus está diferente do de Marcos”.

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SALTO
Quando o copista pula uma letra, uma silaba, uma palavra ou até uma linha, por distração ou confusão.

SIGLAS
Abreviações usadas para poupar espaço e tempo.

VARIANTE
Quando existe uma diferença entre dois códices, diz-se que há uma “variante”.

PRINCIPAIS MANUSCRITOS
Os códices gregos unciais (ao todo, pouco mais de cem existem) , são bastante antigos. Os principais
são:
A - (alef) ou Sinaítico, no Museu Britânico (séc. IV)
A - Alexandrino, no Museu Britânico (séc. V)
B - Vaticano, no Museu Vaticano, (Séc. IV)
C - É irem, na Biblioteca Nacional de Paris (séc. V)
D - Beza, na Universidade de Cambridge, (séc. VI)
D2 - Claromontano, na Bibl. Nac. de Paris (séc. VI)

Dos códices gregos cursivos ainda existem 1.825 cópias.


Os principais códices latinos, com o texto da “vetus latina”, isto é, da primitiva tradução anterior a
Jerônimo, são:
a - Vercellensis (séc. IV) na catedral de Vercelli
b - Veronensis (séc. V) na Biblioteca de Verona
c - Colbertinus (séc V) na Bibl. Nac. de Paris
d - Beza (séc. V) na Univ. de Cambridge
e - Palatinus (séc. V) na Bibl. Nac. de Viena
f - Brescianus (séc. VI) na Bibl. de Brescia
h - Claromontanus (séc. IV/V) na Bibl. Vaticana n.o 7.223.

Quanto aos códices da Vulgata, existem mais de 2.500, remontando os mais antigos aos séculos VI e
VU.

OS TEXTOS
Já no século II escrevia Orígenes: “Presentemente é manifeste que grandes foram os desvios sofridos
pelas cópias, quer pelo descuido de certos escribas, quer pela audácia perversa de diversos corretores,
quer pelas adições ou supressões arbitrárias” (Patrologia Grega, Migne, vol. 13, col. 1.293).
Quanto mais se avançava no tempo, mais crescia o número de cópias e de variantes, aumentando sem-
pre mais o desejo de possuir-se um texto fixo e autorizado. Chegávamos ao 4.0 século. Constantino
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estabeleceu que o Bispo de Roma devia ser o primaz da Cristandade. O imperador Teodósio deu mão
forte aos cristãos romanos, declarando o cristianismo “religião do Estado”, e firmando, desse modo a
autoridade do Bispo de Roma. Ocupava o Bispado o então Papa Dâmaso (português de nascimento) ,
devendo anotar-se que, naquela época, todos os Bispos eram denominados “papas”. Desejando atender
ao clamor geral, Dâmaso encarregou Jerônimo de estabelecer o TEXTO DEFINITIVO das Escrituras.
A tarefa era ingente, e Jerônimo tinha capacidade para desempenhá-la, pois conhecia bem o hebraico,
o grego e o latim. Ele devia re-traduzir para o latim todas as Escrituras, já que as versões antigas (vetus
latina) eram variadíssimas.

VULGATA
A tradução latina de Jerônimo é conhecida com o nome de Vulgata, ou seja, edição para o vulgo, e tem
caráter dogmático para os católicos romanos.

LÍNGUA ORIGINAL
A língua original do Novo Testamento é o grego denominado Koiné, ou seja, comum, popular, falado
pelo povo. Não é o grego clássico.
O grego do Novo Testamento apresenta um colorido francamente hebraista, e bem se compreende a
razão: todos os autores eram judeus, com exceção de Lucas, que era grego.

OS EVANGELISTAS
MATEUS (nome grego, Matháios, que significa “dom de Deus”, o mesmo que Teodoro). Seu nome
em hebraico era LEVI.
Diz Papias que “Mateus reuniu os “Logía” de Jesus (ou seja os discursos) , e cada um os traduziu
como pôde do hebraico em que tinham sido escritos”.
Todavia, jamais foi encontrada nenhuma citação de Mateus em hebraico, nem mesmo em aramaico.
Com efeito, em hebraico é que não escreveu ele, já que desde 400 anos antes de Cristo o hebraico não
era mais falado, e sim o aramaico, que é uma mistura de hebraico com siríaco. Parece, pois, que Papias
não tinha informação segura.
Um argumento em favor do hebraico ou aramaico de Mateus original são seus numerosíssimos he-
braismos. Entretanto, qualquer tradutor teria o cuidado de expurgar a obra dos hebraísmos. Se eles
aparecem em abundância, é mais lógico supor-se que o autor era judeu, e escrevia numa língua que ele
não conhecia bem, e por isso deixava escapar muitos barbarismos.
Supõe-se que Mateus haja escrito entre os anos 54 e 62.
Dirige-se claramente aos judeus (basta observar as numerosas citações do Velho Testamento e o esfor-
ço para provar que Jesus era o Messias prometido aos judeus pelos antigos Profetas) . Mateus mostra-
se até irritado contra seus antigos correligionários.
MARCOS, ou melhor, JOÃO MARCOS, era sobrinho de Pedro. O nome João era hebraico, mas o
segundo nome Marcos era puramente latino. Não deve admirar-nos esse hibridismo, sabendo-se que os
romanos dominavam a Palestina desde 70 anos antes de Cristo, introduzindo entre o povo não apenas a
língua grega, como os nomes latinos e gregos. (Os romanos impuseram a língua latina às conquistas do
ocidente e a grega às do oriente, daí o fato de falar-se grego na palestina desde 70 anos antes de Cristo,
por coação dos dominadores) .
Marcos escreveu entre 62 e 66, e parece que se dirigia aos romanos, tanto que não vemos nele citações
de profecias; apenas uma vez (e duvidosa) cita o Velho Testamento. Mais: se aparece algo de típico

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dos costumes judaicos, Marcos apressa-se a esclarecer, explicando com pormenores o de que se trata,
como estando consciente de que seus leitores, normalmente, não no perceberiam.
LUCAS, abreviatura grega do nome latino Lucianus, não tinha sangue judeu: era grego puro, de nas-
cimento e de raça. Escreveu em linguagem correta, entre 66 e 70, interpretando o pensamento de Paulo
a quem acompanhava nas viagens apostólicas, talvez para prestar-lhe assistência médica, pois o pró-
prio Paulo o chama “médico querido” (cfr. 2.a Cor. 12:7) .
Todo o plano de sua obra é organizado, demonstrando hábito de estudo e leitura e de pesquisa.
JOÃO, chamado também “o discípulo amado”, e mais tarde “o presbítero”, isto é, o “velho”. Filho de
Zebedeu, e portanto primo irmão de Jesus, acompanhou o Mestre no pequeno grupo iniciático, com
seu irmão Tiago e com Pedro.
Clemente de Alexandria diz ter João escrito o “Evangelho Pneumático”. Sabemos que “pneuma” signi-
fica “Espírito”. Então, é o Evangelho espiritual. Em que sentido? Escrito por um Espírito? “Pneumo-
grafado”? Tal como hoje dizemos “psicografado”?
João escreveu entre 70 e 100, tendo desencarnado em 104.
Seu estilo é altaneiro, condoreiro e seu Evangelho está. repleto de simbolismos iniciáticos, tendo dado
origem a uma teologia.
Linguisticamente, Lucas é o mais correto e Marcos o mais vulgar testando Mateus e João escritos
numa linguagem intermediária.

OS SINÓPTICOS
Mateus, Marcos e Lucas seguem, de tal forma, o mesmo plano e desenvolvimento, que podem ser
abarcados num só olhar (ópticos) de conjunto (sin) . Verifica-se com facilidade que Mateus foi o pri-
meiro a publicar o seu, tendo Marcos resumido a seguir. Muitos outros seguiram o exemplo desses
dois, tendo aparecido talvez uma centena de resenhas dos atos do Mestre. Foi quando Lucas resolveu,
conforme declara, “organizar” uma narração escoimada de falhas.

A INSPIRAÇÃO
Aceitamos que a Bíblia, e de modo particular o Novo Testamento, tenham sido inspirados, direta e
sensivelmente, por espíritos, se bem que nem todos com a mesma elevação.
Pedro, com toda a sua autoridade de Chefe do Colégio Apostólico, afirma categoricamente, referindo-
se aos escritores do Velho Testamento: “homens que falaram da parte de Deus, e que foram movidos
por algum espírito santo” (2 Pe. 1 :21) . E ainda: “o Espírito de Cristo, que estava neles, testificou”
(1 Pe. 1: 11) .
E no discurso de Estêvão, narrado em Atos 7:53, o proto-mártir afirma: .'vós que recebestes a Lei por
ministério de anjos”, isto é, por intermédio de espíritos.
Tudo isso é normal e comum até nossos dias. Mas, desconhecendo a técnica, cientificamente estudada
e experimentada por sábios e pesquisadores espiritualistas, a partir de Allan Kardec, os comentadores
se perdem em divagações cerebrinas. Ao invés de admitir a psicografia (direta, mecânica ou semi-
mecânica) e a psicofonia (total ou parcial), a audiência evidência, ficam a conjeturar “como” pode ter-
se dado o fato, chegando a afirmar que “as pedras da Lei foram realmente escritas pelo dedo de Deus”
(Dr. Tregelles, Introdução ao N.T.).
Mais modernamente, Joseph Angus (Hist. Doutr. e Interpr. da Bíblia), escreve: “notam-se, nas diversas
partes da Bíblia, no conteúdo e no tom, diferenças evidentes; têm sido feitas distinções entre “inspira-
ção de direção” e “inspiração de sugestão” (?) ; entre a iluminação e o ditado; entre “influência dinâ-

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mica” e “influência mecânica”. Vê-se que já se está aproximando da realidade, mas o desconhecimento
dos estudos modernos o faz ainda titubear.
Ainda a respeito da inspiração, perguntam os teólogos se a inspiração da Bíblia deve ser considerada
VERBAL (isto é, que todas as suas PALAVRAS tenham sido inspiradas diretamente por Deus - natu-
ralmente no original hebraico ou grego) , ou se será apenas IDEOLÓGICA. Faz-se então a aplicação:
em Tobias, 11:9, é dito “então o cão que os vinha seguindo pelo caminho, correu adiante, e como que
trazendo a notícia, mostrava seu contentamento abanando a cauda”. Pergunta-se: é de fé que “o cão
abane a cauda quando está alegre”? E respondem: “não, mas é de fé Que. naquele momento, um cão
abanou a cauda...
Não era assim que pensava Jesus, quando dizia que “o espírito vivifica, a carne para nada aproveita”
(30. 6:63) ; nem Paulo, quando afirmava: “não somos ministros da letra (escravos da letra) , mas do
espírito, pois a letra mata, mas o espírito vivifica” (2 Cor. 3:6). E aos Romanos: “de sorte que sirvamos
na novidade do espírito, e não na velhice da letra” (Rum. 7:6.). E mais ainda: quando, em o Novo
Testamento se cita o Velho, a citação é sempre feita ad sensum (isto é, pelo sentido) , e não ad lítte-
ram (literalmente) , e quase sempre pela tradução dos Setenta, e não pelo original hebraico, embora
fossem judeus.

INTERPRETAÇÃO
Para interpretar com segurança um trecho da Escritura, é mister
a) isenção de preconceitos
b) mente livre, não subordinada a dogmas
c) inteligência humilde, para entender o que realmente está escrito, e não querer impor ao escrito o
que se tem em mente.
d) raciocínio perquiridor e sagaz
e) cultura ampla e polimorfa mas sobretudo:
f) CORAÇAO DESPRENDIDO (PURO) E UNIDO A DEUS.

Os quatro primeiros itens são pessoais, geralmente inatos, mas podem ser adquiridos por qualquer pes-
soa. O item e requer conhecimento profundo de hebraico, grego e latim, assim como de idiomas cor-
relatos (árabe, sírio, caldaico. arameu. copto. egípcio. etc.) , Contato com obras de autores profanos da
literatura greco-latina, dos “Pais” da igreja, etc. Noções seguras de história, geografia, etnografia, ci-
ências naturais, astronomia. cronologias e calendários. assim como de mitologias e obras de outros
povos antigos.
Mas há necessidade, ainda, de obedecer a determinadas regras:
1.ª regra - estudar o trecho e cada palavra gramaticalmente, dentro das regras léxicas, sintáticas e
etimológicas, assim como do uso tradicional dos termos e das expressões.
Por exemplo, a título de ilustração:
a - existem freqüentes hendíades (isto é, emprego de duas palavras unidas pela preposição, em lugar de
um substantivo e um adjetivo) , como: “obras de fé” por “obras fiéis”; “trabalho de caridade”, por
“trabalho caridoso”; “paciência de esperança” por “paciência esperançosa”; “espírito da promessa” por
“espírito prometido”. Ou então, duas palavras unidas pela conjunção “e”, ao invés de o serem pela
preposição, como: “ressurreição E vida” por “ressurreição DA vida”; “caminho, verdade e vida”, por
“caminho DA verdade e DA VIDA “, etc. Isto porque, em hebraico, eram colocados dois substantivos,
um ao lado do outro, e isto bastava para relacioná-los;

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b - a expressão “filho de” exprime o possuidor de uma qualidade (positiva ou negativa) : filho da paz
significa “pacífico”; filho da luz quer dizer “iluminado” (cfr. Lc. 10:6 e Ef. 5:8) ;
c - expressões típicas, como “se alguém não aborrecer. . . “ (Lc. 14:26) , exprimindo: “se alguém não
amar menos. . .”;

d - os números possuem sentido muito simbólico, assim:


10 - diversos
40 – muitos
7 - grande número
70 - todos, sempre
Então, não devem ser tomados à risca.

e - os nomes de cidade e de pessoas precisam ser observados com “atenção. Basta recordar que “Cé-
sar”, em Lc. 2:1 refere-se a Tibério, mas em At. 25:21 refere-se a Nero.

2.ª regra - Interpretar o texto de acordo com o contexto. Por exemplo, “obras” pode significar “boas
ações”, como em Rom. 2:6, em Mt. 16:27; ou pode exprimir apenas “ritos, liturgia”, como em Rom.
3:20, 28, etc.
Neste campo, podemos explicar o texto segundo o contexto, quer por analogia, quer por antítese; ou
então, por paralelismo com outros passos.
Não perder de vista, no contexto, que:
a - as palavras podem ser compreendidas em sentido mais, ou menos, amplo, do que o sentido ordiná-
rio;
b - as palavras podem exprimir o contrário (por ironia) , como em Jo. 6:68;
c - não havendo sinais diacríticos nem pontuação nos manuscritos e códices, temos que estudar a loca-
lização exata das vírgulas e demais sinais, especialmente dos parênteses;
d - podem aparecer diálogos retóricos, como em Rom. cap. 3.

3.ª regra - Quando há dificuldade, consideremos o objetivo do livro ou do trecho, e interpretemos o


“pequeno” dentro do “grande”, o pormenor dentro do geral, a frase dentro do período. Por exemplo,
em Romanos (14:5) Paulo permite aos judeus a observância de datas, enquanto aos Gálatas (4:10-11)
proíbe que o façam; isto porque, entre estes, os judeus queriam obrigar os gentios à observância das
datas judaicas.

4.ª regra - Comparar Escritura com Escritura, é melhor que fazê-lo com obras profanas.
Por exemplo, a expressão “revestir0 o Cristo” (Gál. 3:27) é explicada em Rom. 13:14 e é descrita em
pormenores em Col. 3:10.

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DIVERSOS SENTIDOS
Cada Escritura pode apresentar diversas interpretações, no mesmo trecho. A vantagem disso é que, de
acordo com a escala evolutiva em que se acha a criatura que lê, pode a interpretação ser menos ou mais
profunda.
Os principiantes compreendem, de modo geral, a “letra” e a ela se apegam. Mas, além do sentido lite-
ral. temos o alegórico, o simbólico e o espiritual ou místico.
O sentido alegórico faz extrair numerosas significações de cada representação, compreendendo, por
exemplo, a história de Abraão como uma alegoria das relações entre a matéria e o espírito.
A interpretação simbólica é mais elevada: dá-nos a revelação de uma verdade que se torna, digamos
assim, “transparente” e visível, através de um texto que a recobre totalmente; basta-nos recordar a
CRUZ, para os cristãos: é um símbolo muito mais profundo, que os dois pedaços de madeira super-
postos.
A interpretação espiritual é aquela que dificilmente poderá ser expressa em palavras, mas é sentida e
vivida em nosso eu mais profundo, levando-nos, através de certas palavras e expressões, à união místi-
ca com a Divindade que reside dentro de nós. Quase sempre, a compreensão espiritual ou mística da
Escritura leva ao êxtase, e portanto à Convivência com o Todo.
Dadas estas notas introdutórias, iniciaremos um comentário dos Evangelhos, a começar pelo de João,
pois procuraremos interpretar os Evangelhos num todo único, afim de evitar repetições. Fizemos, pois,
uma “harmonia” dos quatro evangelistas, e iremos dando os textos para logo a seguir comentá-los.

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ESQUEMA ETERNO DA MISSÃO DE JESUS

JOÃO, 1:1-18
1. No princípio era o Verbo e o Verbo .estava em Deus e o Verbo era. Deus.
2. Ele estava no princípio em Deus.
3. Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada foi feito.
4. O que foi feito nele, era. a Vida e a Vida era a Luz dos homens;
5. e a Luz resplandece nas trevas e as trevas não prevaleceram contra ela.
6. Houve um homem, chamado João, enviado por Deus.
7. Veio ele como testemunha, para dar testemunho da Luz, a fim de que por meio dele
todos os homens cressem.
8. Ele não era a luz, mas veio para dar testemunho da Luz.
9. Havia. a Luz Verdadeira que ilumina a todo homem que vem ao mundo.
10. Ele estava no mundo, e o mundo foi feito por ele, e o mundo não o conheceu.
11. Veio entre os seus, e os seus não o receberam.
12. Mas deu o poder de tornar-se filhos de Deus a todos os que o receberam, aos que
acreditaram em seu nome,
13. que não nasceram nem do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do ho-
mem, mas de Deus.
14. E o Verbo se fez carne e construiu seu tabernáculo dentro de nós, cheio de graça e
Verdade, e nós contemplamos sua glória, glória. igual à do Filho Unigênito do Pai.
15. João dá testemunho e exclama: ..Eis aquele de quem eu dizia : O que vem depois de
mim é maior do que eu, porque existia antes de mim”.
16. De sua plenitude todos nós recebemos, e graça por graça,
17. porque a Lei foi dada por Moisés, mas a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo.
18. Ninguém jamais viu Deus: o Filho Unigênito que está no seio do Pai é que O revelou.

Neste preâmbulo do Evangelho de João, o mais altaneiro e Inspirado, temos revelada, em poucas mas
profundas palavras, a teologia que Jesus ensinou a discípulos.
Não temos um tratado completo, mas as noções básicas para. que a humanidade possa compreender o
assunto.
O evangelista define, desde o início, o que pretende: falar de Deus através de suas manifestações. Não
só do ABSOLUTO (no sentido que os hindus emprestam à palavra BRAHMAN) .
A única idéia que nossa imperfeição pode fazer de Deus, é que o Absoluto, sem princípio nem fim,
sem limitação alguma. Não uma pessoa, mas uma Força Infinita, uma Razão Ilimitada, a Mente Uni-
versal. Falando a respeito dessa Força (de Deus) , Jesus assim se expressa (Jo.4:24) : “Deus é ESPÍRI-
TO”. Então, ESPÍRITO é a palavra que pode exprimir essa Inteligência Divina, essa Inteligência Uni-

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versal, essa Força Cósmica, que está em toda parte, permeando e impregnando tudo: o Absoluto, o
TODO inteligente, que faz brotar as plantas e impele ao nascimento os seres, e ao mesmo tempo, que
regula o movimento dos astros nos espaços infinitos.
Mas, desde o princípio (e poderíamos dizer, desde o principio sem princípio) , esse ESPÍRITO era
ATIVO. Ora, a atividade fundamental da Inteligência é o pensamento, ou a PALAVRA (em grego
Logos, em latim Verbo) .
Então, a primeira manifestação da Divindade é a PALAVRA, ou seja, o PODER CRIADOR, o PAI.
Mas, toda palavra produz seu efeito, toda criação produz o ser no qual o criador se transforma. E isto
está dito no versículo 14: “o Verbo se tornou carne”, isto é, produziu seu efeito, e apareceu o FILHO.
Eis, portanto, esboçada a teologia joanina, que, sem dúvida, devia representar a que Jesus lhe ensinou:
DEUS, o Absoluto, junto ao qual e no qual se encontrava a própria manifestação que é sua PALA-
VRA, e logo a seguir o efeito dessa palavra, o FILHO. Daí a concepção da Trindade como DEUS ou
ESPÍRITO - o VERBO ou PAI – o FILHQ ou CRISTO.
Em outras palavras, poderíamos dizer:
DEUS - o Amor.
O PAI - o Amante.
O FILHO - o Amado.

Por causa da aproximação do versículo 1 com o 14, houve confusão, e acreditou-se que o Verbo era o
Filho, não se reparando na contradição dos termos: Verbo é palavra ativa, ao passo que Filho é palavra
passiva. Verbo é o Criador, Filho é o Criado.
Então, o Filho é o resultado do Verbo, o produto do Pai, embora esteja perfeitamente certo dizer-se que
o “Verbo se tornou carne”. Isto - porque em Deus não há “pessoas” nem divisões possíveis: é o Abso-
luto, o Infinito, o Todo. Quer o denominemos Espírito, Pai ou Filho, tudo constitui o UM, o único.
Desde O princípio incriado existe em Deus o Poder Criador, o Verbo.
Por isso tem razão o evangelista quando diz: “no princípio havia o Verbo, ou Pai, que estava em Deus
e que era o próprio Deus”. Esse Verbo, ao ser emitido, produziu o som, o seu efeito, a manifestação
divina, que é o Espírito Divino (o Espírito Santo) em todos os Universos, ao qual chamamos o CRIS-
TO, o FILHO UNIGÊNITO DE DEUS.
O homem, feito à imagem e semelhança de Deus, tem em si as mesmas propriedades: ele, o homem, a
“centelha divina”, o “raio de luz que emanou da Fonte da Luz”, possui em si a Palavra Criadora” o
Pensamento, que constitui a individualidade perene; mas esta, ao produzir seu efeito, torna-se a perso-
nalidade que busca a matéria para aperfeiçoar-se, surgindo então a personalidade, que é o Filho.
Deus é a Fonte da Luz, O ESPÍRITO; sua emissão é o VERBO ou PAI CRIADOR, que ilumina os
raios luminosos que da Fonte partem constituem o Filho, o CRISTO, O Filho Unigênito do Pai. Então,
CRISTO é a manifestação sensível de Deus, é a Força Divina que impregna tudo.
Tudo provém de Deus, tudo está EM Deus, e Deus está EM tudo, por sua manifestação cristônica. No
entanto, erram os panteístas, quando afirmam que todas as coisas reunidas e somadas formariam Deus.
Jamais poderia isto ocorrer. Mas tem razão o Monismo quando afirma que Deus está em todos e em
tudo, conforme diz Paulo em Ef. 4:5 e em 1 Cor. 14:28. Deus é o substractum, a substância última de
todas as coisas, de tudo o que existe, porque tudo o que existe, existe em Deus.
No versículo 3 esta dito: “tudo foi feito por ele”. Logicamente, tudo promana do Verbo, do Pai Cria-
dor, que é o Pai “nosso”, cujo poder é emprestado ao homem, imagem de Deus e centelha divina.
“Nele estava a Vida”, porque a Vida é Deus, a Vida é a manifestação da Divindade.

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SABEDORIA DO EVANGELHO
A Luz resplandece nas trevas, e contra ela as trevas não prevaleceram”. O sentido literal é de absoluta
clareza”; por maiores que sejam as trevas, elas não prevalecem nem mesmo contra um pequenino pa-
lito de fósforo que se acenda. Entretanto, observamos que há outro sentido, que pode deduzir-se das
palavras anteriores. No versículo 4 está explicado: “A Vida é a Luz dos homens”. Se a Vida é a Luz
dos homens, então as trevas exprimem a morte. Compreendemos, pois: a morte não prevalece contra a
vida. Tudo o que nos parece morte, é apenas o desfazimento dos veículos materiais de que está reves-
tido o espírito.
Nos versículos 6 a 8, encontramos uma pequena intromissão, falando a respeito de João Batista: “hou-
ve um homem, chamado João, ENVIADO por Deus”. A dedução lógica é evidente: se ele foi ENVI-
ADO, é porque já existia. Com efeito, o evangelista não diz: houve um homem CRIADO por DEUS”
mas ENVIADO por Deus... Observe-se: bem o sentido certo das palavras. Se foi enviado, é porque
existia antes de nascer, e não apenas existia, como devia sei um espírito de rara inteligência, de grande
elevação moral e de muito adiantamento espiritual, com profundo conhecimento da Luz, da qual devia
dar testemunho. Deus o ENVIOU para que ele dissesse aos homens aquilo que ele conhecia, que havia
visto, que podia testemunhar por experiência própria e direta.
Não estranhemos o modo de expressar-se do evangelista: quase a cada passo do Novo Testamento,
encontramos uma referência clara ou velada à vida do espírito anterior ao nascimento na Terra, ao que
chamamos reencarnação.
João Batista conhecia a Luz ANTES DE NASCER NA TERRA, porque tinha existência plenamente
consciente, era dotado de inteligência, e podia testificar aquilo que vira. Podia, pois, afirmar: “eu sei,
eu vi”. E os outros podiam crer nas palavras dele. Mas o evangelista não deixa de chamar a atenção
dos leitores: “ele NÃO ERA a Luz”, apenas a conhecia.
Depois de falar nisso, o evangelista alça-se a falar na Luz Verdadeira, na Verdadeira Vida, que vivifica
toda criatura, Vida que é uma das manifestações da Divindade nos seres criados. Essa manifestação
divina está no mundo, mas o mundo não a reconhece, embora tire dela sua própria origem.
E dessa Luz, passa logo a falar na Luz que se materializou na Terra: a figura ímpar de Jesus, aquele de
quem justamente João viera para dar testemunho. E o apóstolo diz que Jesus era “a verdadeira Luz que
ilumina todos os homens que vêm à Terra”. E Jesus estava no mundo, e o mundo foi feito por ele, ele
estava entre “os seus” e “os seus não o reconheceram”...
Precisamos distinguir aqui entre JESUS, o homem, e o CRISTO, a força divina que impregna todas as
coisas, todos os seres.
JESUS é um espírito humano, com uma evolução incalculável à nossa dianteira. Foi ele quem criou
este globo terráqueo (senão todo o sistema solar). Ele mesmo, Jesus - habitante elevadíssimo de algum
planeta divino - (“na casa de meu Pai há muitas moradas”, Jo. 14:2) teve o encargo de criar mais um
planeta no Universo infinito.
Assim como determinamos a uma criança que, de um pedaço de madeira, faça uma espátula; ou encar-
regamos a um mestre de obras a construção de uma casa; ou solicitamos de um engenheiro a constru-
ção de uma máquina eletrônica; assim Jesus foi o encarregado de construir um planeta. E ele o fez.
Não num abrir e fechar d'olhos, como num passe de mágica; nem sozinho, mas com auxiliares diretos
seus arquitetos divinos e de força transcendente. A Bíblia, no Gênesis, confirma isso, quando diz que o
mundo (a Terra) foi feita pelos “elohim”. A palavra hebraica “elohim” é o plural de “elohá”, e exprime
os espíritos. Todos os “elohim” estavam sob a direção de um Espírito-Chefe, que o Velho Testamento
chama “Jeová” (YHVH).
Esse espírito Jeová foi o construtor ou criador da Terra; ele agora estava na Terra, a Terra foi feita por
ele, e “os seus” não o reconheceram”... Vemos uma semelhança entre Jeová e Jesus; Jeová, o Espírito
diretor das atividades da Terra, tomou o nome de Jesus quando reencarnou em nosso (melhor, em SEU
planeta). Leia-se o que está escrito em Isaías, quando esse profeta fala ao povo israelita: “EM TI
NASCERÁ JEOVÁ” (Is.60:2). Além disso, se dividirmos ao meio o tetragrama sagrado (YHVH) , e

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C. TORRES PASTORINO
no centro acrescentarmos um schin, a leitura será exatamente o nome YEH-SH-UAH, ou seja, JESUS
em hebraico: ‫׳תות‬-‫׳תשות‬.
“Ele veio entre os seus, e os seus não o receberam”. Realmente, todos nós, na Terra, pertencemos a ele,
que nos veio trazendo desde o início da evolução, acompanhando nossos passos com carinho e amor.
E o apóstolo prossegue: “deu o poder de tornar-se filhos de Deus a todos os que o receberam e acre-
ditaram em seu nome”. Não por causa de privilégios, mas por evolução própria, veremos mais abaixo.
A expressão “filho de”, muitíssimo usada na Bíblia, é um hebraísmo que exprime o ser, que possui a
qualidade do substantivo que se lhe segue. Por exemplo: “filho da paz” é o pacifico; “filho da luz” é o
iluminado; então, “filho de Deus” é o ser que se divinizou, que se tornou participante da Divindade,
que conseguiu ser “um com o Pai”. E todos os que nele acreditam e obedecem a seus preceitos, tor-
nam-se divinos: “eu e o Pai viremos e NELE faremos morada” (Jo. 14:23).
Aí reside o segredo de a criatura tornar-se divina.
Mas esses seres que se divinizaram, “não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da von-
tade do homem, mas de Deus”. São três expressões claras: o sangue, a carne, o homem. Desses três
não depende o tornar-se divino. O sangue exprime a alma, ou corpo astral, ou perispírito, conforme se
lê “a alma da carne é o sangue” (Lev. 17:11); a carne representa o corpo físico, a matéria densa, acom-
panhada logicamente do duplo etérico; o homem simboliza o intelecto. Essas são as partes constituin-
tes da PERSONALIDADE. E realmente não depende da personalidade o encontro com Deus, e sim da
INDIVIDUALIDADE SUPERIOR. Tornam-se unidos a Deus aqueles que já vivem na individualida-
de, embora ainda encarcerados na matéria, presos à personalidade inferior e transitória da carne.
Continua o evangelista a explanar o mesmo assunto: “o Verbo se fez carne e construiu seu taberná-
culo dentro de nós (verifique-se o sentido do original grego: έσиήуωσЄу ‘EN ήµτу . Precisa-
mente o grande mistério revelado: o CRISTO, em que se transformou o Verbo, reside DENTRO de
cada um de nós, dentro de nossa matéria, de nossa carne: o Verbo se tornou carne. E espera que vamos
ao encontro dele, que nele acreditemos, porque ele aí está, “cheio de graça e de verdade”, ou seja,
cheio da verdadeira graça que é a benevolência ( хαρις ) e o amor.
A glória do CRISTO dentro de cada um de nós ainda não se manifesta exteriormente, por causa de
nossa imperfeição: somos como lâmpadas poderosíssimas e acesas, mas revestidas de grossa camada
de lama, que não deixa transparecer a luz que existe internamente. Em Jesus, não: a limpeza era abso-
luta, sua transparência era mais límpida que a do mais puro cristal imaginável, e a luz interna do
CRISTO era totalmente visível, a tal ponto que Paulo pôde escrever: “nele habitava TODA A PLENI-
TUDE DA DIVINDADE” (Col. 2:9) . Por isso foi Jesus chamado “O CRISTO”, e dele disse o evan-
gelista: “nós contemplamos a sua glória, glória IGUAL A DO FILHO UNIGÊNITO DO PAI”, ou seja,
a glória de Jesus era igual à glória do Cristo Eterno, Filho de Deus, terceiro aspecto da Divindade.
Não podemos, pois, condenar aqueles que, durante tantos séculos, adoraram e adoram a Jesus como
Deus: sim, Jesus é a manifestação plena da Divindade. Em todas as criaturas reside Deus no mesmo
grau, mas em nós, imperfeitos, Deus se acha encoberto por nossa personalidade vaidosa; em Jesus,
todavia, perfeitíssimo como era, o Cristo Eterno transparecia com assombrosa pureza. E todos os que
“tinham olhos de ver”, reconheceram essa manifestação cristônica.
Não viram Deus EM SI, ou seja, o ESPÍRITO ABSOLUTO. O próprio evangelista esclarece: “Nin-
guém jamais viu Deus”. Mas “o Filho Unigênito (o Cristo) , que está no seio do Pai” o revelou, mani-
festando-se em Jesus. E está conclamando todos os homens para que o revelem. Paulo o descreve com
palavras sentidas: “o Espirito vem em auxílio de nossa fraqueza... e intercede por nós com gemidos
indizíveis” (Rom. 8:26) .
João Batista reconhecia que Jesus era maior e anterior a ele, Mas assim como em Jesus .'habitava toda
a plenitude da Divindade”. assim também NÓS TODOS recebemos de sua plenitude. Deus não faz
acepção de pessoas. Dá tudo a todos igualmente. Mas cada um recebe de acordo com sua capacidade
receptiva, com sua evolução.
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SABEDORIA DO EVANGELHO
Isto também afirma o evangelista: “De sua plenitude TODOS NÓS recebemos, e GRAÇA POR GRA-
ÇA”. Sem dúvida, a cada passo que damos, aumentamos nossa capacidade evolutiva, ao que corres-
ponde um acréscimo da manifestação divina em nós: a cada aumento do recipiente corresponde um
pouco mais de conteúdo. Assim conosco: “todos nós recebemos DE SUA PLENITUDE, mas GRAÇA
POR GRAÇA”.
Chegando ao fim desse intróito sublime, o evangelista acrescenta mais uma pérola: “porque a Lei foi
dada por Moisés, mas a Graça e a Verdade vieram por Jesus, o Cristo”. Não percamos de mira que
Graça (em grego charis ... ) exprime o sentido de “benevolência, boa vontade”. Nem nos esqueçamos
de que a construção grega “graça e verdade” pode formar uma hendíades. Então, o sentido que, legiti-
mamente, pode deduzir-se daí é o seguinte: “A LEI foi revelada por Moisés” (a Lei de Causa e Efeito
= dente por dente), mas a VERDADEIRA BENEVOLÊNCIA veio com Jesus o Cristo”, que nos ensi-
nou a “misericórdia, isto é, o segredo para libertar-nos dessa Lei.
Realmente, Moisés foi o Legislador para a personalidade humana, estabelecendo numerosas restrições
e proibições. Jesus foi o Legislador divino para a individualidade eterna, estabelecendo as bases para o
contato do homem insignificante com o Cristo, da criatura com o Criador, na “gloriosa liberdade dos
Filhos de Deus” (Rom. 8: 21) , porque 'onde há o Espirito de Deus, aí há liberdade” (2 Cor. 3:17).
Em todos os capítulos, em todas as palavras dos Evangelhos, encontramos chamamentos angustiosos
do Cristo, para que o homem siga seu caminho infinito ao encontro do Pai.
E além das palavras, encontramos o magnífico exemplo de Jesus, nosso irmão primogênito, que segue
à nossa frente, indicando-nos o caminho com sua própria vida, com seus atos, com seu amor, ensinan-
do-nos que só no AMOR, semelhante ao dele, podemos encontrar a rota definitiva: “um novo manda-
mento vos dou, que vos ameis uns aos outros TANTO, QUANTO eu vos amei” (Jo. 34:13).
Como fecho sublime do intróito, a frase lapidar: “Ninguém jamais viu a Deus: O Filho Unigênito, que
está no seio do Pai, esse o revelou.” Na realidade. Deus, o Pensamento ou Mente Universal, é invisí-
vel: é uma Força, é a Vida, é o Amor, é a Substância e a Essência de todas as coisas que existem. Nin-
guém pode vê-lo no sentido do verbo grego oráo (...), ou seja, “contemplar com os olhos”.
O “Filho Unigênito é o CRISTO, o terceiro aspecto da Divindade, o “produto do pensamento divino,
que se encontra em todas as coisas”. O evangelista esclarece: “que está no seio do Pai”, o que é lógico:
assim como o Pai (o Verbo) está com Deus, está em Deus e é Deus (vers, 1), assim também o Filho
(Cristo) está com o Pai, está no Pai, e é o Pai (cfr.: “eu e o Pai SOMOS UM”, Jo. 10:30; e “Eu estou
NO Pai e o Pai está EM mim”, Jo. 14:11). São apenas ASPECTOS (não “pessoas”) de UM SÓ DEUS,
de UMA SÓ FORÇA CÓSMICA.
Então, o FILHO ou CRISTO, que está em todos e em tudo, é que revela, “ensina, explica” (grego ex-
egésato, ...) o que seja DEUS. Sua Manifestação, por intermédio de Jesus, veio trazer-nos a verdadeira
benevolência “ de Deus em relação a nós, seus filhos, para convidar-nos a voltar a ser UM com Ele.

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O PRÓLOGO DE LUCAS
Luc. 1:1-4
1. Tendo muitos empreendido fazer uma narração coordenada dos fatos que el1tre nós
se realizaram,
2. como nô-las transmitiram os que foram dele! testemunhas oculares desde o princípio
e ministros da palavra,
3. também a mim - depois de haver investigado tudo cuidadosamente desde o começo -
pareceu-me bem, excelentíssimo Teófilo, dar-te por escrito uma narração em ordem,
4. para que conheças a verdade das coisas em que foste instruído.

Por este prólogo, ficamos sabendo que muitos haviam tentando escrever a história da vida de Jesus.
Mas as obras eram desorganizadas, já que os autores não possuíam cultura. Lucas, por ser médico,
estava acostumado ao estudo sistemático, tendo por isso competência para traçar um quadro numa or-
dem que era mais lógica que cronológica.
É o que ele tenta fazer. Habituado, porém, à pesquisa científica, antes de fazê-lo empreende a busca de
pessoas que haviam conhecido de perto o Mestre e acompanhado Sua vida, já que o médico grego não
chegara a encontrar-se pessoalmente com Jesus.
Pelo que narra, e por suas viagens ao lado de Paulo, passando por Éfeso, chegamos à conclusão de que
uma das pessoas ouvidas foi Maria, a mãe de Jesus, que passou os últimos anos de sua vida nessa ci-
dade, em companhia de João (o Evangelista).
Lucas deseja começar “desde o princípio” ( άνοθεν). Esse advérbio grego pode ter dois sentidos prin-
cipais: “do alto” (donde o sentido de “desde o começo”, isto é, “do ponto mais alto no tempo”), e tam-
bém o sentido de “de novo”. Ambos podem caber aqui: “depois de haver investigado tudo cuidado-
samente de novo”, ou seja, sem fiar-se ao que apenas lera nos muitos escritos anteriores.
A obra é dedicada a Teófilo, palavra grega θεόφιλος que significa “amigo de Deus”. De modo geral,
afirmam os comentadores tratar-se de uma personagem real e viva àquela época, por causa do título
“excelentíssimo” que lhe é anteposto. E deduzem ser o “Teófilo” convertido por Pedro em Antióquia,
e do qual fala a obra Recognitiones (Patrologia Grega, vol. 1, col. 1453) , dizendo-se “o mais elevado
entre todos os poderosos da cidade”.
Entretanto, parece-nos dirigir-se Lucas aos cristãos que realmente fossem “amigos de Deus no mais
sublime ou excelente sentido”. Não confundamos o sentido atual do título “excelentíssimo”, aplicado
habitualmente às pessoas de condição social elevada, com o sentido etimológico da palavra, ainda usa-
do por nós, quando dizemos: “esta pintura está excelente”. A época de Lucas, não nos consta ser cor-
rente o título honorífico; mas é indubitável que o sentido etimológico existia.
Compreendamos, então: “ó amigo excelente de Deus”.
O mesmo tipo de prólogo lemos no início dos “Atos dos Apóstolos”, obra também do mesmo autor
Lucas, e que serviria de continuação natural ao Evangelho que ele escrevera. Nos Atos lemos: “em
minha primeira narrativa, ó Teófilo, contei”...
Se pois, os cristãos, a quem se dirigia Lucas, eram “excelentes”, no mais elevado grau (excelentíssi-
mos), o evangelista tinha a intenção de dedicar-lhes uma obra com revelações profundas, alegóricas e

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simbólicas, que pudessem trazer algo mais didático quanto à espiritualização; e não apenas o relato
“histórico e cronológico”.
Queixam-se os comentadores profanos de que não há datas nos, Evangelhos, e que portanto os fatos
não podem ser situados “cronologicamente na História”. Mas eles não escreveram para a personalidade
transitória: trouxeram ensinos para a individualidade eterna, transitoriamente de passagem pela Terra
(“enquanto estou nesta TENDA DE VIAGEM”, 2 Pe. 1:13). E por isso, o essencial era o sentido pro-
fundo, que se escondia nas entrelinhas, e que hoje precisa ser lido mais com o coração do que com o
intelecto.

RESUMO DA TEORIA DA ORIGEM E DO DESTINO DO ESPÍRITO


Os cristãos, pelo menos os que eram, “excelentíssimos amigos de Deus”, deviam ter conhecimento do
sentido profundo (digamos “oculto”) que havia nos ensinos e nas palavras de Jesus, assim como nos de
toda a Antiga Escritura (da qual dizia Paulo que, àquela época, “ainda não fora levantado o véu”, 2
Cor. 3:14) com referência à origem e destino da criatura humana.
Cada ensinamento e cada fato constituem, por si mesmos, uma alusão, clara ou velada, à orientação
que Jesus deu à Humanidade, para que pudesse jornadear com segurança pela Terra.
Afastados de Deus, da Fonte de Luz (não por distância física, mas por freqüência vibratória muito mais
baixa) , o Espírito tinha a finalidade de tornar a elevar sua freqüência, para novamente aproximar-se do
Grande Foco de Luz Incriada.
Note-se bem que, estando Deus em toda parte e em tudo (Ef. 4:6} e em todos (1 Cor. 15:28), ninguém
e nada pode jamais “separar-se” de Deus, donde tudo provém e no Qual se encontram todas as coisas,
já que Deus é a substância última, a essência REAL de tudo e de todos. Tudo o que “existe”, EST EX,
ou seja, está de fora, exteriorizado, mas não “fora” de Deus, e sim DENTRO DELE.
Assim, a centelha divina, o “Raio de Luz”, afastando-se do Foco - não por distanciamento físico, mas -
por abaixamento de suas vibrações, chegou ao ponto ínfimo de vibrações por segundo, caindo no frio
da matéria (de 1 a 16 vibrações por segundo). Daí terá novamente que elevar sua freqüência vibratória
até o ponto de energia e, continuando sua elevação, até o espírito, e mais além ainda, onde nosso inte-
lecto não alcança.
A criatura humana, pois, no estágio atual - a quem Jesus trouxe Seus ensinamentos - é uma Centelha-
Divina, porque provém de Deus (At. 17:28, “Dele também somos geração”). Mas está lançada numa
peregrinação pela Terra, numa jornada árdua para o Infinito. Na criatura, então, a essência fundamental
é a Centelha-Divina, a Mônada: isso constitui nosso EU PROFUNDO ou EU SUPREMO, também
denominado CRISTO INTERNO, que é a manifestação da Divindade.
Entretanto, um raio-de-sol, por mais que se afaste de sua fonte, nunca pode ser dela separado, nunca
pode “destacar-se” dela (quem jamais conseguiu “isolar” um raio-de-sol de sua fonte? qualquer tenta-
tiva de interceptá-lo, fá-lo retirar-se para trás, e só permanecemos com a sombra e as trevas) . Assim o
ser humano, o EU profundo, jamais poderá ser “destacado” nem “separado” de sua Fonte, que é Deus;
poderá afastar-se aparentemente, por esfriamento, devido à baixa freqüência vibratória que assumiu.
Ora, acontece que esse Raio-de-Sol (a Centelha-Divina) se torna o que chamamos um “Espírito”, ao
assumir uma individualidade. Esse espírito apresenta tríplice manifestação (“à imagem e semelhança
dos elohim”, Gên. 1:26):
1 - a Centelha-Divina - o EU, o AMOR;
2 - a Mente Criadora - o Verbo, o AMANTE
3 - o Espírito Individualizado - o Filho, o AMADO, que é sua manifestação no
tempo e no espaço.

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Encontramos, pois, o ser humano constituído, fundamental e profundamente, pela Centelha-Divina,
que é o EU profundo (o “atma” dos hindus); a mente criadora e inspiradora, que reside no coração (há
86 passagens no Evangelho que o afirmam categoricamente), e a individualização, que constitui o Es-
pírito, iluminado pela Centelha (hindu: “búdico”) , com sua expressão “causal”, porque é a causa de
toda evolução.
Essa trípice manifestação da Mônada é chamada a INDIVIDUALIDADE ou o TRIÂNGULO SUPE-
RIOR do ser humano atual.
Entretanto, ao baixar mais suas vibrações, esse conjunto desce à matéria (“torna-se carne”, Jo. I: 14),
manifestando-se no tempo e no espaço, e constituindo a PERSONALIDADE ou o QUATERNARIO
INFERIOR, para onde passa sua consciência, enquanto se encontra “crucificada” no corpo físico.
É chamado “quaternário” porque se subdivide em quatro partes:
1 - o Intelecto (também denominado mente concreta, porque age no cérebro fí-
sico e através dele);
2 - o astral, plano em que vibram os sentimentos e emoções;
3 - o duplo etérico, em que vibram as sensações e instintos;
4 - o corpo físico ou denso, que é a materialização de nossos pensamentos, isto
é, dos pensamentos e desejos do Espírito, acumulando em si e exteriorizan-
do na Terra, todos os efeitos produzidos pelas ações passadas do próprio
Espirito.
Entre a Individualidade e a Personalidade, existe uma PONTE de ligação, através da qual a consciên-
cia “pequena” da Personalidade (única ativa e consciente no estágio atual das grandes massas huma-
nas), pode comunicar-se com a consciência “superior” da Individualidade (que os cientistas começam
a entrever e denominam, ora “superconsciente”, ora “inconsciente profundo”) . Essa ponte de ligação é
chamada INTUIÇÃO.
Temos, então, no processo mental, três aspectos:
1 - o Pensamento criador, produzido pela Mente Inspiradora;
2 - o Raciocínio, produzido pelo cérebro físico, e que é puramente discursivo;
3 - a ligação entre os dois, que se realiza pela Intuição.
Podemos portanto definir a INTUIÇÃO como “o contato que se estabelece entre a mente espiritual
(individualidade) e o intelecto (personalidade)”.
Em outras palavras: “é o afloramento do superconsciente no consciente atual”.

Todas essas explicações são indispensáveis para a compreensão dos símbolos e alegorias que se en-
contram nos fatos evangélicos, nos ensinamentos de Jesus, assim como no de todos os demais mestres
da Humanidade.
Como toda Escritura “divinamente revelada “, isto é, trazida à Humanidade para ajudá-la a encami-
nhar-se na senda evolutiva, o Evangelho .apresenta DOIS sentidos principais:
1 - um sentido para a personalidade (sentido literal, único que pode ser percebido por aqueles que só
trabalham com raciocínio, e não realizaram ainda, por meio da intuição, sua ligação com a consciência
profunda);
2 – um sentido para a individualidade (que é o alegórico, o simbólico, e o místico ou espiritual).
Ambos são REAIS e produzem seus efeitos, cada qual em sua escala própria na fase evolutiva em que
se encontra o leitor.

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Quando aprendemos a descobrir, num FATO, o sentido simbólico, ou quando vemos que uma PER-
SONAGEM representa um simbolismo, isto NÃO significa que o fato não se tenha realizado, nem que
a personagem não tenha tido existência REAL. Não. Há que atentar continuamente para isto: os FA-
TOS REALIZARAM-SE; as PERSONALIDADES EXISTIRAM.
Desses fatos, porém, e dessas personagens (que AMBOS tiveram existência REAL) , deduzimos e
compreendemos um sentido profundo alegórico, simbólico ou místico, um ensinamento oculto, que só
pode aparecer a quem tenha “olhos de ver, ouvidos de ouvir e coração de entender” (cfr. Mr. 8:17-18,
“não compreendes ainda nem entendeis ? tendes vosso coração endurecido? tendo olhos não vedes,
tendo ouvidos não ouvis?” e também Deut. 29:4, “Mas YHWH não vos deu até hoje coração para en-
tender, nem olhos para ver, nem ouvidos para ouvir”) .
Uma coisa, porém, é essencial: NÃO PERDE O EQUILÍBRIO. Nada de exageros, nem para um lado
(vendo só a parte e o sentido literal), nem para o outro (interpretando o Evangelho apenas como sim-
bolismo e negando o sentido literal) . Os dois TÊM que ser levados em conta. AMBOS são REAIS e
instrutivos.
Assim, verificamos que todas as personagens citadas são reais, físicas, existentes na matéria, mas
constituem, além disso, TAMBÉM, um símbolo para esclarecer a caminhada evolutiva do Espírito
através de suas numerosas vidas sucessivas, iniciadas no infinito da eternidade e que terminarão na
eternidade do infinito, embora, no momento presente, estejam jornadeando através do tempo finito e
do espaço limitado.
A fim de dar um pequeno e rápido exemplo, num relancear d'olhos, daremos em esquema os símbolos
mais acentuados das personagens evangélicas. A pouco e pouco chamaremos a atenção de nossos lei-
tores sobre outras personalidades e fatos que forem ocorrendo.

O que é O que faz


Centelha-Divina, Atma, Mônada, Envolve-se e desenvolve, sem já mais errar
na muitas vezes até total libertação
DUALIDADE eterna, que reencar-

através das experiências de prazer e


de todos os desejos, conquistada
TRÍADE SUPERIOR ou INDIVI-

EU profundo - CRISTO INTERNO. nem sofrer, porque é perfeita e onisciente,


como emanação da Divindade.
Mente-espiritual (Manas) Vibra no Criador de Idéias e inspirador, que trans-
plano mental, criando idéias e for- mite os impulsos e chamados do EU pro-
mas e individualizando o Espírito, fundo, forçando a evoluir. Mas, desligado
lançando-o à personalidade para da personalidade pela supremacia do inte-
fazê-lo evoluir . lecto, com ele só se comunica por lampe-
jos, pela intuição.
Espírito - Vibra no plano causal, Involui e evolui, errando e aprendendo,
registro das causas e experiências e através da dor e das experiências adquiri-
dor.

impulsionador dos efeitos. das em sua imensa jornada evolutiva.

INTUIÇÃO - ponte de ligação entre a mente e o intelecto, ou seja, entre a indivi-


dualidade e a personalidade.

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Intelecto ou mente concreta Manipula as idéias que se transformam em

nome e tendo consciência (menor) apenas desse nome da exis-


QUATERNÁRIO INFERIOR ou PERSONALIDADE transitó-

homem foi ordenado que morra uma só vez”, Heb. 9:27). A


ria que se renova a cada nova encarnação, assumindo novo

continua após desencarnação, até o renascimento seguinte,


tência “em ato”, que permanece durante sua vida na Terra e

quando outra personalidade e outro nome são adquiridos (“ao


pensamentos e raciocínios discursivos;
necessita desenvolver-se a cada novo nas-
cimento, porque O cérebro físico é novo;
filtra as idéias da mente de acordo com a
capacidade do cérebro. Se nem isso conse-
gue, limita-se a receber idéias alheias atra-
vés de livros e mestres, até aprender a li-
gar-se à mente pela intuição.
Corpo astral. Sede dos sentimentos e emoções, desejos e
personalidade, pois, é “O HOMEM”.

ambições, prazeres e dores morais.


Duplo etérico Sede das sensações chamadas “físicas”
(dor, calor, prazer etc.), que criam os im-
sempre ligado ao
pulsos, os quais, tornando-se habituais,
formam os instintos.
Corpo físico ou denso. Condensação do corpo astral na matéria
densa, onde repercutem todos os pensa-
mentos, pois o corpo físico é apenas a ma-
terialização do pensamento do Espírito que
ainda busca sensações e alimenta desejos
(de qualquer espécie).

Figuras que são ou simbolizam as diversas escalas evolu- PAI NOSSO que estás nos céus (na individualidade).
tivas.
Santificado seja Teu Nome (Tua essência, existente em
todas as coisas criadas) .
CRISTO, o Filho Unigênito de Deus, manifestado em toda a
Criação (veja explicação abaixo). Venha a nós o Teu reino (é o que pede a Mente, que se
afastou da Fonte, e que está ansiosa a voltar a ela a reunifi-
car-se).
JESUS, o Espírito humano em seu estágio de maior evolu- Seja feita a Tua vontade {do Pai através do Cristo), na Terra
ção (pelo menos relativamente à Terra). (na personalidade) assim como no céu (na Individualidade) .

MARIA DE NAZARÉ.
ISABEL, mãe de João Batista.

JOSÉ DE NAZARÉ. O pão nosso sobressubstancial (não apenas o do corpo, nem


só o do conhecimento intelectual livresco e externo. mas o
ZACAIUAS, pai de João Batista.
que provém do Cristo interno) dá-nos hoje (agora, não no
futuro remoto).
MARIA MADALENA. Perdoa nossas dívidas (cármicas) como perdoamos aos nos-
sos devedores.
PEDRO O APÓSTOLO.
Não nos induzas em tentação (ou seja, não nos submetas a
provações e experiências fortes demais).
HERODES.
JUDAS ISCARIOTES. Mas liberta-nos do Mal (isto é, liberta-nos da ma-
téria que nos prende e asfixia).

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SABEDORIA DO EVANGELHO
O CRISTO
CRISTO, a terceira manifestação de Deus, o Filho Unigênito do Pai (ou Verbo), está integralmente
em todas as coisas criadas, embora nenhuma coisa criada seja O CRISTO senão quando souber anular-
se totalmente, para deixar que o Cristo se manifeste nela.
Há exemplos que poderão esclarecer esta verdade.
Apanhe um espelho grande: ele refletirá o sol. Quebre esse espelho num milhão de pedacinhos: cada
pedacinho de per si refletirá o sol. Já reparou nisso? Se o desenho estivesse NO espelho, e ele se par-
tisse, cada pedacinho ficaria com uma parte minúscula de um só desenho grande. Mas com o sol não é
isso que se dá: cada pedacinho do espelho refletirá o sol todinho.
Ora. embora não possamos dizer que o pedaço de espelho SEJA o sol, teremos que confessar que ali
ESTÁ o sol, todo inteiro, com seu calor e sua luz. E quanto mais puro, perfeito e sem jaça for o espe-
lho, melhor refletirá o sol. E as manchas que o espelho tiver, tornando defeituosa e manchada a ima-
gem do sol, deverão ser imputadas ao espelho, e não ao sol que continua perfeito. O reflexo dependerá
da qualidade do espelho; assim a manifestação Crística nas criaturas dependerá de sua evolução e pu-
reza, e em nada diminuirão a perfeição do Cristo.
Outra comparação pode ser feita: um aparelho de televisão. A cena representada no estúdio é uma só,
mas as imagens e o som poderão multiplicar-se aos milhares, sem que nada perca de si mesma a cena
do estúdio. E no entanto, em cada aparelho receptor entrará a imagem TOTAL e INTEGRAL. Se al-
gum defeito houver no aparelho receptor, a culpa será da deficiência do aparelho, e não da imagem
projetada. E podemos dizer que a cena ESTÁ toda no aparelho receptor, embora esse aparelho NÃO
SEJA a cena. Assim o Cristo ESTÁ em todas as criaturas, INTEGRALMENTE, não obstante cada
criatura só manifestá-lo conforme seu estágio evolutivo, isto é, com a imagem distorcida pelas defici-
ências DA CRIATURA que o manifesta, e NÃO do Cristo, cuja projeção é perfeita.
O rádio é outro exemplo, e muito outros poderiam ser trazidos.
Da mesma forma que, quanto melhor o espelho, a televisão ou o aparelho de rádio, tanto melhor pode-
rão manifestar o sol, a imagem e o som, assim ocorre com a manifestação da força cristônica em cada
criatura.
Por isso é que JESUS, a criatura mais perfeita e pura (pelo menos em relação à Terra), pode integral-
mente e sem Jaça. E por faze-lo. justamente, é que foi denominado Jesus, o CRISTO.
E porque o Cristo é a manifestação integral de DEUS, foi com razão que a Humanidade o confundiu
com o próprio Deus. Tanto mais que, em se tratando da encarnação de Jeová (YHWH), conforme pre-
dissera Isaías (60:2), e sendo Jeová considerado como Deus, mais do que justo era que Jesus fosse
considerado Deus; não Deus O ABSOLUTO, o Pai, mas o FILHO DE DEUS, Sua manifestação entre
os homens, “aquele que é” (YHWH = Jeová) , como Jesus mesmo se definiu: “antes que Abraão fosse
feito, EU SOU” (Jo. 8:58). Ora, “EU SOU” é exatamente o sentido de YHWH (YAHWEH ou Jeová).
Então o próprio Jesus confirmou que Ele era Jeová, a encarnação de Jeová.
Na realidade, em relação a nós tão pequenos e imperfeitos, a manifestação divina em Jesus foi total, e
bem pode Ele ser dito Deus (embora não em sentido absoluto); da mesma forma que podemos dizer
que o reflexo do sol num espelho de cristal puríssimo seja O SOL; ou que a música reproduzida por
ótimo aparelho de rádio ou de vitrola, seja A ORQUESTRA. Nesse sentido, Jesus é indubitavelmente
Deus, porque “Nele reside a PLENITUDE DA DIVINDADE” (Col. 2:9). Entretanto, TODAS AS
CRIATURAS também têm em si essa mesma plenitude (“da PLENITUDE DELE TODOS NÓS RE-
CEBEMOS”, Jo. 1:16), apesar de não na manifestarem por causa das próprias deficiências e defeitos.
Foi nesse sentido que Jesus pode confirmar o Salmista (Ps. 81:6) e dizer: “vós SOIS deuses” (Jo.
10:35), da mesma forma que podemos afirmar que cada pequenino reflexo do sol num espelho é o sol;
embora em sentido relativo, já que o sol, em sentido absoluto, é UM só; e também DEUS, em sentido
absoluto, é UM só, se bem que esteja manifestado integral e plenamente em TODOS (1 Cor. 15:28) e
em TUDO (Ef. 4:6).

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C. TORRES PASTORINO
MANIFESTAÇÃO CRÍSTICA
Aproveitando o assunto que ventilamos, procuremos dizer de modo sumário e sucinto, simplificando
ao máximo (para poder ser compreendidos por todos), COMO essa Manifestação Divina ESTA em
todas as coisas e COMO, através da evolução, as criaturas irão manifestando cada vez mais e melhor o
CRISTO INTERNO.
Comparemos o fato ainda ao sol (O ser que melhor representa, para nós da Terra, a Divindade - e que
por isso foi apresentado antigamente como a maior manifestação divina). Um raio-de-sol, sempre liga-
do à sua fonte, afasta-se, no espaço e no tempo, de seu foco. Após caminhar durante oito minutos,
atravessando 150 milhões de quilômetros, chega a nós, sofrendo várias refrações ao entrar na atmosfe-
ra terrestre. Sua luminosidade é diminuída e seu calor abrandado, por causa desse afastamento. No
entanto o raio-de-sol, que perdeu luz e calor, não perdeu sua essência íntima.
Da mesma forma, a Centelha-Divina, sem jamais separar-se nem destacar-se de seu Foco, afasta-se
dele, não espacial nem temporalmente, mas VIBRACIONALMENTE, isto é, baixando suas vibra-
ções, envolvendo-se em si mesma, concentrando-se, contraindo-se, e chega ao ponto mais baixo que
conhecemos, solidificando-se na matéria. Proveniente da vibração mais alta que possamos imaginar, o
raio luminoso que partiu da Fonte de Luz Incriada vai gradativamente baixando o número de suas vi-
brações e diminuindo a freqüência por segundo, de acordo com o princípio já comprovado pela ciência
da física. No entanto, jamais chega a zero (ao nada) , porque a energia jamais se destrói.
Esse fato científico de que a energia não pode ser criada nem destruída, mas apenas “transformada”, é
perfeitamente certo. A mesma quantidade de energia que existia, neste globo, há milhões ou bilhões de
anos, continua a mesma, sem crescer nem diminuir. Perfeito: porque essa energia é exatamente a mani-
festação divina; e sendo infinito Deus, nada pode ser-lhe acrescentado nem tirado: o infinito não pode
sofrer aumento nem diminuição de qualquer espécie.
Então, o FOCO-DE-LUZ-INCRIADA é Deus, que irradia por Sua própria natureza, assim como o sol.
Sendo luz, TEM que iluminar; sendo calor, TEM que aquecer; sendo energia, TEM que irradiá-la, e
tudo por NECESSIDADE INTRÍNSECA E INEVITAVEL.
Mas à medida que sua irradiação se afasta, vai baixando sua frequência vibratória, segundo o “efeito
de Compton” que diz: “quando uma radiação de frequência elevada encontra um elétron livre, sua fre-
quência diminui” (além de outras consequências, que não vêm ao caso no momento).
Portanto, à proporção que se afasta do Foco (sem dele destacar-se jamais), sua frequência espiritual
baixa para ENERGIA, e daí desce mais para a MATÉRIA. (Consulte-se, a propósito, a “Grande Sínte-
se” de Pietro Ubaldi). Entretanto, permanecera sempre a vibrar, porque, no Universo, tudo o que existe
é vibração e tem movimento. A frequência vibratória pode chegar ao mínimo, mas nunca atingirá o
zero (o nada) , segundo a “teoria dos limites”: por mais que aumente o divisor ou denominador
(1/10n+1), mesmo aproximando-se do infinitamente pequeno, jamais chegará a zero.
Ora, quando o Raio Espiritual, dotado de Mente Inteligente - o que é natural, por causa da Fonte de
onde proveio que é a Inteligência Universal - parte de seu Foco, automaticamente esse Raio baixa suas
vibrações e se torna INDIVIDUAL (ESPÍRITO) .
Esse Espírito, pelo movimento inicial da partida (Lei de Inércia) vai descendo suas vibrações até o
ponto máximo, sendo então a Centelha-Divina envolvida pela matéria, na qual o Espírito se transfor-
ma, ou melhor, da qual o Espírito se reveste. O Raio-de-Luz se concentra, contrai, condensa e cristali-
za, solidificando-se.
O processo é claro: o Raio-Divino tem EM SI, potencialmente, a matéria (já que o MAIS contém o
MENOS) e a vibração mais elevada contém em si, potencialmente, a vibração mais baixa. Não haven-
do diferença outra, entre espírito e matéria, senão a da escala vibratória, se o espírito baixa demais suas
vibrações, ele chega à materialização, ou seja, congela-se, na expressão de Albert Einstein. Mas o
oposto é também verdadeiro: a matéria contém EM SI, potencialmente, o espírito: bastar-lhe-á fazer
elevar-se sua frequência vibratória, para retornar a ser espírito puro.
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SABEDORIA DO EVANGELHO
A essa descida vibratória do raio-de-luz, chamaram outrora os teólogos, por falta de melhor expressão,
de QUEDA DOS ANJOS. E a prova de que tinham noção do que estavam dizendo, é que chamaram ao
pólo oposto do espírito (a matéria) de “adversário” do espírito (ou seja, DIABO, que em grego signifi-
ca “opositor” ou “adversário”); e mais ainda: o “guia e chefe” do adversário era chamado LUCIFER,
palavra latina que significa “portador da luz”. Observe-se bem: se a matéria era o opositor do espírito
(porque em pólos opostos), e se o “chefe” personificado era “Lúcifer” (portador da luz) , isto demons-
tra que, pelo menos inconscientemente, se sabia que a MATÉRIA TINHA A LUZ EM SI, era “porta-
dora da luz”, isto é, do espírito-divino.

OBJEÇÕES
Antes de prosseguir, vamos responder a algumas objeções:
1.ª - Se O Raio-de-Luz possui MENTE DIVINA (portanto consciente e onisciente e perfeita), como se
torna capaz de erros?
R. - O Raio-de-Luz, a Centelha-Divina, jamais erra, nem sofre, nem involui: sua tarefa é envolver-se,
concentrar-se, contrair-se, para impulsionar à evolução a individualização que dele mesmo surgiu.
Essa individualização, ou Espírito, é um NOVO SER, que surge “simples e ignorante” (resposta n.º
115 de “O Livro dos Espírito” de Allan Kardec). E o próprio espírito que responde, esclarece: “igno-
rante no sentido de não saber”, de não ter colhido ainda experiências.
Há, pois, uma diferença fundamental entre a Centelha-Divina e o Espírito.
O Espírito é criado pela (por ocasião da) individualização da Centelha. Como se dá isso?
A Centelha é a irradiação da Divindade, do Princípio Inteligente Universal e Incriado; é Sua manifes-
tação, com a Mente própria de origem divina. Mas o Espírito é a individualização que nasce dessa
Centelha, e por isso é “obra de Deus, filho de Deus”. (resposta n...º 77, idem ibidem) .
O Espírito, portanto, pelo menos logicamente tem um princípio, embora a Centelha, por ser emanação
direta de Deus, seja ETERNA quanto o próprio Deus.
Mas, como a irradiação é uma NECESSIDADE INTRÍNSECA da Divindade, assim também a indivi-
dualização da Centelha é uma NECESSIDADE INTRÍNSECA dessa mesma Centelha. Toda Centelha
que parte do Foco Divino inexoravelmente se individualiza. Donde pode afirmar-se que o Espírito
não tem princípio, porque é o resultado necessário e inevitável da própria essência da Divindade. Allan
Kardec recebeu na resposta 78 quase que essas mesmas palavras: “podemos dizer que não temos prin-
cipio, significando que, sendo eterno, Deus há de ter criado sempre, ininterruptamente”. E na resposta
79, vem a definição clara e insofismável de tudo o que asseveramos acima, confirmando a nossa tese:
“os Espíritos são a individualização do Princípio Inteligente”; é esse “Princípio Inteligente” que
chamamos DEUS, que se manifesta necessária e inevitavelmente pelas Centelhas-Divinas que Dele se
irradiam, pelos Raios-de-Luz que Dele partem.
Então a Centelha-Divina (que tem a mesma essência do Princípio Inteligente) jamais erra nem sofre
nem involui, porque, tal como sua Fonte-Incriada (DEUS) é inatingível a qualquer força finita, tempo-
ral ou espacial, e isto por sua própria natureza, que é divina. E como tudo o Que é de essência divina é
REAL, sua individualização é REAL e constitui UM ESPÍRITO REAL. Mas esse Espírito, como indi-
vidualidade, ainda é “simples e ignorante”. Então a Centelha-Divina, que o anima, impulsiona-o a des-
cer até a matéria, e permanece dentro dele através de todos os passos de seu aprendizado experimental,
ou seja, de sua evolução, a fim de que, individualizado como está, conquiste conhecimento e sabedo-
ria, através das experiências por ele mesmo vividas, e finalmente atinja POR SI, o estado de perfeição
em que foi criado, mas já então PERFEITO E SÁBIO. A Centelha-Divina jamais o abandona. DE
DENTRO DELE impulsiona-o evoluir, dirigindo-lhe, todos os movimentos e aspirações, mas sem for-
çá-lo nem coagi-lo: é uma força natural e constante que o atrai a si, à sua própria perfeição intrínseca e
divina.

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Resumindo: por que é da natureza da Centelha a individualização de um Espírito? Porque NÃO PODE
DEIXAIR DE FAZÊ-LO. Sendo a Centelha um Raio-de-Luz que parte do Foco-Incriado, que é Deus,
o Princípio Inteligente, e portanto, possuindo ela também a ESSÊNCIA DIVINA, ela tem, EM SI
MESMA, como NECESSIDADE INTRÍNSECA E INEXORÁVEL, a objetividade concreta, a reali-
dade objetiva. Em consequência, essa Centelha é UM EU, um ser objetivo e real, e NÃO PODE deixar
de produzir um SER OBJETIVO. E como o Princípio Inteligente ou Foco-de-Luz-Incriado irradia
“sempre e ininterruptamente”, assim “Deus há de ter criado sempre e ininterruptamente” e continua
criando até hoje: “meu Pai até agora trabalha (produz com seu trabalho = έργαςεгαι) como ensinou
Jesus em Jo. 5:17) .
A Centelha, então, É NOSSO VERDADEIRO “EU”, que apenas se envolve e desenvolve, se contrai e
descontrai, impelindo nosso Espírito à evolução. O Espírito, aprisionado na matéria (involuído) é que
terá que evoluir, pelo impulso da Centelha (nosso EU) que está INCLUÍDO e em nosso Espírito.
Firmemos ainda o fato de que a Centelha possui MENTE SÁBIA E PERFEITA, mas o Espírito recebe
o influxo desse atributo como uma potencialidade, e ele deverá desenvolver-se (evoluir) aprendendo
a custa própria, até chegar a sintonia total, à união absoluta com o CRISTO INTERNO (que é a Cen-
telha-Divina, nosso verdadeiro EU). Só nesse ponto pode a MENTE de nosso EU agir livremente atra-
vés do nosso Espírito. Recordemos as palavras do CRISTO (o EU profundo) de Jesus: “Eu e o PAI
somos UM” (Jo. 10:30); e referindo-se a seus discípulos, acrescenta: “para que como Tu, Pai, és em
mim (Cristo), e eu em TI, também sejam eles em nós” (Jo. 17:21); e ainda: “para que sejam UM, assim
como nós SOMOS UM, eu (Cristo) neles (Espíritos) e Tu (Pai) em mim (Cristo)” (Jo. 17:22-23).
A sabedoria da Centelha, do Cristo-Interno, ou seja, de nosso EU, é total e plena, mas só pode ser re-
cebida por nosso Espírito gradativamente, aos poucos, de acordo com a capacidade que nosso espírito
for conquistando através de seu esforço próprio. Assim, à proporção que o Espírito evolui, a Mente de
nosso EU poderá expressar-se com maior amplitude.
Recordemos, ainda, que o Espírito, à medida que se vai aperfeiçoando, vai “construindo para si” veí-
culos materiais cada vez mais aperfeiçoados. Começou na escala mais baixa da matéria - o MINERAL
- e Jesus ensinou: “meu Pai pode suscitar destas pedras filhos de Abraão” (Mat. 3:9 e Luc. 3:8), coisa
que já fora explicada no Gênesis (2:7) quando está dito que a origem do homem é o pó da terra, isto é,
o MINERAL. Mas o EU irá forçando o aperfeiçoamento dos veículos, fazendo aparecerem qualidades
maiores, com o desenvolvimento do DUPLO ETÉRICO, passando a manifestar-se no reino-vegetal;
depois desenvolverá o CORPO ASTRAL, e penetrará o reino-animal. Em outras palavras poderíamos
dizer: o mineral desenvolve a sensação física, quando então atinge o reino-vegetal (e hoje está cientifi-
camente comprovado que os vegetais “sentem”); e o faz enviando seus átomos, em serviço, para ajudar
a formar o corpo dos vegetais, animais e homens, em conta to com os quais os átomos minerais adqui-
rem experiência. Continuando a evolução, desenvolver-se-á a sensibilidade, como a têm os animais.
Até aí, a Mente da Centelha (do EU profundo) age sem embaraços, e por isso vemos que a LEI funcio-
na sem distorções nesses reinos, e o vegetal e o animal não “erram” nem são responsabilizados.
Quando entretanto surge a racionalização do intelecto, que começou a desenvolver-se no reino-
animal, o Espírito passa a servir-se dos veículos do reino-hominal, com cérebro muito mais evoluído.
Começa a verificar-se a “independização” do Espírito, que se desliga do Mental (do EU profundo) para
poder aprender a discernir, a decidir-se e a escolher POR SI a estrada que deverá percorrer em seu
progresso lento mas infalível. A Mente (o EU profundo) limita-se a dirigir os veículos inferiores (as
células, os órgãos, o metabolismo etc.) e deixa ao Espírito a tarefa de dirigir-se externamente, por meio
do raciocínio, a fim de adquirir experiência própria, com sua responsabilidade pessoal. Aí sentem-se
melhor as dualidades da Individualidade e da Personalidade.
O Espírito, nesse ponto, julga que é o verdadeiro eu, e CRESCE, abafando a voz do EU REAL, que só
quer agir por lampejos, através da voz silenciosa das intuições, para deixar ao Espírito inteira liberdade
e total responsabilidade.

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Nesse ponto é que o Espírito “expulso do paraíso” (Gên. 3:24), penetra o mundo da responsabilidade,
“comendo com o suor de seu rosto” (Gên. 3:19) e “conhecendo o bem e o mal” (Gên. 13:22). O inte-
lecto, “mente concreta” da personalidade, e que já evoluiu após tantos milênios de milênios de jorna-
das pela Terra nos planos inferiores, assume a liderança, para DECIDIR POR SI, tendo pois a respon-
sabilidade total de todos os seus atos, suas palavras e seus pensamentos.

2.ª - Sendo onisciente a Força Cósmica ou Princípio Inteligente, por que lança seus raios divinos
para que atravessem, com o Espirito, uma evolução longa e trabalhosa, de afastamento e re-
aproximação? Não lhe seria mais fácil dar, de imediato, o conhecimento e a sabedoria a to-
dos os Espíritos que surgem de seus Raios divinos, sem fazê-los percorrer tão árdua jornada?
R - A radiação da Luz é LEI. Ninguém poderá conceber um Foco de Luz que não irradie luz. A
individualização desse raio num Espírito é NECESSIDADE inexorável. A realidade objetiva
é inevitável, por ser divina a essência.
Comecemos, então, por não imaginar Deus como UMA PESSOA semelhante a um homem (embora
em proporções infinitas), que faça caprichosamente isto ou aquilo e que tenha preferências e predile-
ções pessoais. NÃO! Deus é A FÔRÇA CÓSMICA, é a INTELIGÊNCIA (ou o Princípio Inteligente)
UNIVERSAL, é a MENTE RACIONAL INFINITA E INCRIADA. Mas também é tão NATURAL
quanto a Natureza toda, que é a manifestação Dele. Deus é A LEI, igual em todos os tempos e lugares,
e igual mesmo fora do tempo e do espaço, e vibra em todos os planos: espiritual, moral, mental e físi-
co.
Consideremos ainda que Deus é A LIBERDADE, embora Deus NÃO SEJA LIVRE. Um homem pode
escolher entre O bem e o mal. Deus não pode fazê-lo: por sua própria natureza essencial, SÓ PODE
FAZER O BEM E O CERTO. A Onipotência divina só existe na direção do BEM e do AMOR, porque
a Força Cósmica é IMPLACAVELMENTE BOA E AMOROSA.
Ora, a LEI estabeleceu que tudo o que surgisse de si passasse pelos mesmos passos de aprendizado,
SEM PRIVILÉGIOS. E é isso O que ocorre.
Ninguém pode saciar sua fome se outra pessoa comer por ele. Ninguém aprenderá uma língua, se outra
pessoa estudar por ele. Donde deduzimos que todo aprendizado tem que ser PESSOAL. Qualquer ex-
periência é, pois, um aprendizado INTRANSFERÍVEL.
Desta maneira, o Espírito que se individualiza é “simples e ignorante”, isto é, AINDA nada sabe. E
terá que aprender. Como o fará? Através das experiências vividas por ele mesmo. Eis a razão da neces-
sidade dessa evolução árdua, trabalhosa e de duração infinita.
Mas então, argumenta-se, POR QUE esse Espírito, que NASCE DA Centelha-Divina perfeita e onisci-
ente, não é desde logo perfeito e onisciente? Um filho é sempre da mesma natureza, família, gênero e
espécie que seu pai e sua mãe...
Não há dúvida que sim. Como não há dúvida de que o Espírito é da MESMA NATUREZA E ES-
SÊNCIA do Raio-de-Luz. No entanto, pela lei que vige nos planos que conhecemos, nós deduzimos as
Leis dos Planos desconhecidos. Assim como o que nasce da planta é uma SEMENTE que terá que
desenvolver-se e não uma árvore já grande; assim como de um animal adulto nasce um filhote minús-
culo, que terá que crescer; assim como do homem nasce uma criancinha pequenina, que terá que des-
envolver-se e aprender (e não outra criatura adulta), assim também (a LEI é a mesma em todos os pla-
nos), compreende-se que foi estabelecido que o Espírito fosse criado “simples e ignorante” para então,
por si mesmo, desenvolver-se.
Agora se nos perguntarem “POR QUE Deus fez assim e não diferente”? - responderemos: NAO SA-
BEMOS. Mas quem somos nós para tomar satisfações de Deus (Rom. 9:21) ? Se assim é, é porque
assim é o MELHOR. Quando evoluirmos mais, compreenderemos. Tenhamos paciência. No curso
primário, não podemos pretender o conhecimento de demonstrações abstrusas próprias do curso uni-
versitário. Aceitemos o que a professora nos diz: tensão se escreve com S, e atenção com ç. O aluno
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pode perguntar: “por quê?” Ela responderá: “porque vem do latim”, e nada mais. No ginásio, o aluno
aprenderá que a primeira palavra provém de tenSionem, com S, e a segunda de attenTionem, com T,
que passa ao português para C ou ç. Mas só quando o aluno chegar à Faculdade, é que poderá desco-
brir O PORQUÊ de uma ser assim e outra diferente no próprio latim, quando estudar a etimologia da
língua latina e penetrar os segredos do etrusco e do sânscrito. Até lá, terá que contentar-se com ACEI-
TAR sem discutir, sabendo que deve haver para isso razões que ele desconhece AINDA, mas que um
dia conhecerá. Assim nós. Se não podemos penetrar todos os SEGREDOS, aceitemos, por enquanto.
Mais tarde, se evoluirmos bastante, nós o compreenderemos.

A CURVA INVOLUÇÃO-EVOLUÇÃO
Podemos tentar apresentar graficamente esse imenso ciclo de involução-evolução. Representaremos
aparte espiritual (tríade superior), ou seja, a Centelha-Divina, a Mente e o Espírito, por um triângulo.
Representaremos o quaternário inferior por um quadrado, sendo: o traço horizontal inferior, a matéria
densa; o traço vertical à esquerda de quem olha, o duplo etérico; o traço vertical à direita de quem
olha, o corpo astral. E o traço horizontal por cima dessas linhas verticais, o intelecto. Temos aí a per-
sonalidade completa.
Vejamos, então, o triângulo, que tem, incluso em si, potencialmente, o quadrado, isto é, uma futura
personalidade. O quadrado está representado em preto, porque o espírito ainda se encontra nas “trevas”
da Ignorância (do não-saber) :

Numa projeção linear, esse triângulo torna-se achatado, formando uma linha horizontal: dentro dela,
porém, está contida, “incluída” ou “envolvida”, a Centelha-Divina, o EU profundo, acompanhado de
Sua mente e do Espírito recém-individualizado. Essa linha, portanto, que contém a Centelha-Divina, é
Lúcifer, é “portadora da Luz”; é o pólo oposto do Espírito, é o adversário (ou diabo) que teremos que
vencer pela evolução, e que tantas vezes foi “personificado” nos Evangelhos. A Centelha-Divina, o EU
profundo, comandará toda a evolução do Espírito, através desse e de todos os demais veículos materi-
ais que forem sendo paulatinamente formados por ele, para poder expressar-se cada vez melhor.
Representemos assim essa projeção:

Por aí compreendemos que, tendo baixado suas vibrações até o átomo material, daí se iniciará a subi-
da, através do reino-mineral, do reino-vegetal, do reino-animal, do reino-hominal, até voltar ao reino-
divino ou, como dizia Jesus, ao “Reino-de-Deus”, embora passando, acima do homem, por outros rei-
nos, que desconhecemos em virtude de nossa pequenez e atraso (como reino-angélico, reino-
arcangélico, reino-seráfico etc.) .
Verifica-se, assim, a realidade palpável do ensino de Jesus, quando dizia: “O REINO DE DEUS ESTÁ
DENTRO DE VÓS” (ίϊ βαοιλει α τοϋ θεού έуτός ΰµώυ έστιυ, Luc. 17:21).
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Essa Verdade pode ser dita a qualquer das fases evolutivas, porque dentro de TODAS e de CADA
UMA DELAS, está, REAL e ESSENCIALMENTE, o Reino-de-Deus, potencialmente contido. Fir-
memos mais uma vez: Reino-de-Deus tem o mesmo sentido de nossas expressões: reino-vegetal ou
reino-animal. E por isso pôde Jesus afirmar (Jo.10:34) , sublinhando o Salmista (Ps. 81:6) : “Vós SOIS
deuses”.
Da mesma maneira, dirigindo-nos a uma semente, poderíamos dizer: “a árvore ESTA dentro de ti”. E
falando a um vegetal, poderíamos repetir: “o REINO-ANIMAL ESTA dentro de ti”.
Comprovamos, assim, que Reino-de-Deus (ou reino-dos-céus, isto é, reino-da-individualidade), não é
um paraíso EXTERNO, onde ficaríamos a gozar de algo EXTERIOR a nós; mas, ao contrário, reino-
de-Deus é UMA EVOLUÇAO NOSSA, à qual DEVEMOS CHEGAR, por força natural de nosso pro-
gresso interno.
E quando para lá não formos espontaneamente, iremos obrigados pela dor e pelo sofrimento, que nos
impelem para a frente e para o alto, qual aguilhão que açoda bois vagarosos. Todavia, a dor não é in-
dispensável: dentro de cada ser está o impulso para a evolução, dado pela Centelha-Divina ou EU pro-
fundo, e o Espírito poderá escolher caminhos de perfeição espontaneamente, sem precisar ser aguilho-
ado. Com efeito, todos os seres querem “progredir”. Mas enquanto não compreendem o verdadeiro
sentido da evolução CERTA, buscam o progresso em atalhos enganosos (riquezas, prazeres, poder,
gozos etc.) e por isso vem a dor para corrigir o Espírito, até que ele, mais amadurecido e experiente,
aprenda POR SI quão falsas são essas estradas largas, que só levam ao desgosto, ao tédio e à dor. Vol-
ta-se, então, de modo geral, para a busca ansiosa de outros progressos (nobreza, posição, cultura, inte-
lectualismo, religião), até descobrir que NÃO É nenhum desses caminhos externos, por mais nobre e
elevado que seja, que constitui o Reino-de-Deus: este só pode ser encontrado, como disse Jesus, DEN-
TRO DE SI MESMO (έυτός ύµωυ έστιυ).
No gráfico representativo desta teoria, procuraremos esclarecer o pensamento.
Partindo do ponto em que a Centelha-Divina, o Eu profundo, está no SEIO de Deus, apenas iniciado o
afastamento vibratório do FOCO INCRIADO, com a matéria potencialmente contida dentro de si, ve-
mos que dai a Centelha parte, natural e necessariamente (inexoravelmente), por efeito da irradiação
inevitável do Foco de Luz, e por força da Lei de Inércia, dirigindo-se ao pólo oposto, e congelando-se
na matéria.
Dai então, a Centelha ou EU profundo, faz que a matéria vá desenvolvendo através dos milênios, o
duplo-etérico, o corpo-astral, e o intelecto, até constituir a personalidade completa e desenvolvida. Já
pode, então, a Mente Divina do EU profundo, por meio da INTUIÇAO, agir sobre o intelecto, até que
obtenha o predomínio da MENTE DIVINA (isto é, da individualidade). Continua, então, a caminhada:
a individualidade ABSORVERÁ a PERSONALIDADE em si, e o Espírito voltará ao estado primitivo,
mas JÁ COM EXPERIÊNCIA E SABEDORIA, conquistadas por si mesmo através da longa linha
evolutiva. Por isso o quadrado interno (que representa a personalidade) já é apresentado, no fim do
ciclo, não mais em preto (“trevas” da ignorância), mas branco, exprimindo a Luz da Sabedoria.
Aí está a RAZÃO de toda nossa evolução, e o PORQUÊ, de nossa , existência.
Resumindo tudo: partindo a Centelha do Foco de Luz (por necessidade intrínseca), esta, também por
necessidade intrínseca (ou seja, porque é de essência divina, sua existência é uma essência real e obje-
tiva, um EU real), causa a individualização de um Espírito, de um SER com existência também real e
objetiva, e participante da Essência Divina.
Em outras palavras: ao afastar-se do Foco de Luz, que a irradia por necessidade intrínseca, a Centelha
Divina (EU profundo) causa a individualização de um Espírito. também por necessidade intrínseca.
Isto é, sendo de ESSÊNCIA DIVINA, a existência do EU é uma essência real e objetiva, que SE RE-
VESTE de um Espírito, individualizando-o e fazendo-o copartícipe de sua Mente. Mas, atuando por
meio de um Espírito ainda “simples e ignorante'. (não-sábio), o EU profundo PRECISA fazê-lo evolu-
ir, para poder expressar-se por seu intermédio. Começa então a evolução a partir do átomo, para fazê-
lo chegar ao ponto máximo, ao estado crístico (“até que TODOS cheguemos ... à medida da estatura da
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plenitude DE CRISTO”, Ef. 4: 13). E a confirmação: “tudo se encadeia em a natureza desde o átomo
primitivo até o arcanjo, que também começou por ser átomo” (resposta 540 de “O , Livro dos Espíri-
tos”, de Allan Kardec).
Ao chegar à “medida da estatura da plenitude de Cristo”, o Espírito já evoluiu o bastante, para permitir
ao EU profundo ou Cristo Interno, a manifestação plena da Divindade, tal como ocorreu a JESUS,
(“Nele habita TODA A PLENITUDE DA DIVINDADE”. Col. 2:9), embora “DA PLENITUDE
DELE TODOS NÓS recebamos (Jo. 1:16).
Entre o estado inicial (“simples e ignorante”) do Espírito e seu estado final (perfeito e sábio), a distân-
cia é inimaginável. No estágio último, o Espírito já conquistou SABEDORIA e AMOR. Então a Cen-
telha-Divina, o EU profundo, já POSSUI UM VEÍCULO pelo qual pode manifestar-se total e comple-
tamente: chegou ao fim de sua evolução (qual a podemos conceber em nossa pequenez e atraso), em-
bora esse final jamais atinja o fim, porque, por mais que evolua, JAMAIS ALCANÇARA O INFINI-
TO, que é sua meta. Quem conhece matemática, compare esta nossa afirmativa à assíntota da hipérbo-
le, e verá que estamos com a razão. (Por aí entrevemos que a Ciência - e a matemática, que é a ciência-
exata por excelência - é a PESQUISA DA DIVINDADE que está contida em todas as coisas. E por
isso, a Ciência constitui a verdadeira e única RELIGIÂO, para levar a criatura - dentro do limite dos
possíveis - ao conhecimento de Deus.) Paulo, o grande Apóstolo, ao comentar o versículo 18 do Salmo
68, “subindo às alturas, levou cativo o cativeiro”, escreve, resumindo todo esse processo: “que signifi-
ca subiu, senão que também desceu às regiões (vibrações) mais baixas da Terra? aquele que desceu é o
mesmo que subiu muito além de todos os céus, para encher todas as coisas” (E!. 4:9-10). O Salmista
revela-nos que o Espírito, ao subir, leva cativa a matéria, que fora o seu cativeiro, durante tantos milê-
nios. Para uma idéia muito pálida, observe-se o gráfico, na página seguinte.

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VEGETAL ANIMAL HOMINAL ACIMA...

MINERAL

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ZACARIAS E ISABEL
Luc. 1:5-7
5. Nos dias de Herodes, rei da Judéia, houve um sacerdote, chamado Zacarias, da turma
de Abia; sua mulher era descendente de Arão, e chamava-se Isabel;
6. Ambos eram justos perante Deus, andando irrepreensíveis em todos os mandamentos
e preceitos do Senhor.
7. E não tinham filhos, porquanto Isabel era estéril, e ambos (estavam) em idade avan-
çada.

Temos um fato REAL, que se passou logo antes da chegada de Jesus a este planeta: o nascimento do
precursor João, denominado “o Batista”, cuja ocorrência havia sido predita por vários médiuns (profe-
tas) , com muita antecedência.
Lucas situa o fato historicamente, apresentando ao leitor a época do acontecimento, o pai de João, seu
nome, idade e profissão, e a mãe, dando-lhes inclusive a filiação. Temos, pois, que Herodes era rei da
Judéia (nomeado pelo Senado em 40 AC, tomou Jerusalém em 37 AC e morreu no ano 4 antes da era
cristã), quando o sacerdote Zacarias teve a revelação do nascimento de um filho, embora já fora das
possibilidades humanas.
Os fatos são claros e não necessitam de explicação.
Muitos ensinamentos, todavia, transparecem dessa narrativa singela. Estudemo-los.
Herodes, o Grande (como toda sua linhagem), não era israelita de raça: era idumeu, convertido à
religião judaica. Não fazia parte, pelo sangue, do povo hebreu.
Herodes representa o homem ainda animalizado, a força material, despótica, que apenas busca con-
forto (reino mineral) , as sensações físicas (reino vegetal) e as emoções (reino animal), preocupando-
se somente com a matéria terrena transitória, para ele a única realidade, porque é palpável aos senti-
dos físicos.
Diz o evangelista que Herodes era “rei da Judéia”.
Observemos: Judéia significa “louvor a YHWH”, fase típica da personalidade, ainda sujeita a ritos e
liturgia exteriores da religião. Notemos ainda que em O Novo Testamento aparece com frequência a
oposição entre as duas localidades: Judéia e Galiléia. Galiléia significa “região cercada”; exprime,
pois, o ambiente da individualidade, o “horto florido”, ou seja, a região inacessível ao vulgo, “cerca-
da” para que os profanos nela não possam penetrar .
Logicamente, Herodes só podia ser rei (dominador, déspota) da Judéia, isto é, da personalidade infe-
rior, já que só as coisas terrenas e materiais constituíam seu domínio absoluto.
A expressão “nos dias de Herodes” demonstra-nos que o simbolismo que nos vai ser apresentado sob
a capa dos fatos (que se realizaram), deve ser procurado na época em que a humanidade era prepon-
derantemente materialista, cogitando tão só dos interesses dos carpos físico, sensitivo e emocional.
Nessa época e nesse ambiente, viveu na Terra. um sacerdote - por mais baixas que sejam as condições
ambientais, pode elevar-se o espírito, tal como o lírio que pode florescer, num pântano - A palavra
sacerdote, tradução latina do grego ίερέυς, exprime o homem que “se dedica.” (dos, dotis = dote, do-
ação) às coisas sagradas (sacer, sacra, sacrum). Sacerdote é, portanto, a criatura dedicada e devota-
da a Deus, a Ele consagrada.
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Zacarias (cujo nome significa “lembrança” ou “recordação” de YHWH) é o protótipo do INTELEC-
TO que, neste caso, já está voltado para as coisas espirituais e divinas, pois “se lembra de Deus”,
tanto que “se dedicou” às coisas sagradas.
E, uma das provas de que tinha Deus, conscientemente, como Pai, é a notícia que dele nos chegou:
segundo Lucas, ele era filho de Abia (Abijah, cfr. 2 Crôn., 24:10), que significa “Deus é meu Pai”.
Com essas características tinha, forçosamente, que procurar ouvir a INTUIÇÃO, representada por
Isabel. Em hebraico, o nome é Elisheba, isto é, “adoradora de Deus”, ou “obra de YHWH”. Com
efeito, a intuição está “ligada” ao EU Superior e Divino de cada criatura.
Escreveu o evangelista que Isabel “era descendente de Arão”. Ora, mesmo em nossos dias (com re-
gistros de nascimento) raramente conhecemos nossos ascendentes além da 3.ª geração (pais, avós,
bisavós). Só excepcionalmente chegamos à 6.ª ou 7.ª geração, ou seja, a. 200 ou 300 anos para trás.
No entanto, o tempo transcorrido entre Arão e Isabel era de 1.500 anos! Que diríamos, atualmente, de
um homem moderno, que afirmasse ser descendente de uma personagem do ano 500 depois de Cristo?
... Se isto hoje é impossível na prática, que não seria - dadas as proporções - naquela recuada época?
Como poderia ser feito o controle? Donde concluímos que, no caso, existe em tudo isso uma alegoria,
um símbolo. Arão significa “o iluminado”. Quer dizer que Isabel (a intuição) já se encontrava “ilu-
minada” pela luz do Eu Supremo, da Centelha Divina; mas não se havia ainda unido a ela. A tentati-
va, entretanto, estava sendo feita: Zacarias (o intelecto) já se unira em matrimônio a Isabel (a intui-
ção) na busca. intensa dessa união com o Eu Superior.
Prossegue o evangelista: “ambos eram justos perante Deus, andando irrepreensíveis em todos os
mandamentos e preceitos do Senhor” - excluindo, por omissão, os preceitos “dos homens”, exprimin-
do assim que viviam mais na individualidade do que na personalidade. E a “justiça” neles exaltada, é
aquela que vige perante Deus, não perante os homens.
Vem a seguir um versículo interessante: “e não tinham filhos, porque Isabel era estéril e ambos (esta-
vam) em idade avançada”. Humanamente, um fato natural, embora tivesse que ser dividido em duas
partes:

a) a esterilidade feminina (porque “dela” e não dele? );


b) a idade avançada.

A primeira, compreendemos, justifica a falta de filhos nas idades juvenis e na madureza. A segunda
apenas comprova que, na idade já avançada, nada mais podia esperar-se.
Dai ser imprescindível, para o fato “material”, algo que fugisse ao normal. Para a personalidade
aparece a intervenção divina, e portando o “milagre”, e tudo pára aí.
Na interpretação mais profunda aparecem as razões claras.
Apesar de estar iluminada a intuição (Isabel descendente de Arão) e apesar de voltado para Deus o
intelecto (Zacarias sacerdote), e apesar de os dois se haverem unido para o encontro supremo, os dois
ainda não tinham conseguido essa união: “não tinham filhos”, ou seja, não haviam chegado a um
resultado. As razões procedem: a intuição era “estéril” porque ao intelecto faltava o elemento fecun-
dador, e isto não obstante estarem buscando há muito tempo - “ambos” estavam “em idade avança-
da”.
Nesse momento, entra em campo novo elemento de ação, ou seja, aparece um “guru”, um mestre
(porque o discípulo estava preparado), e dá-se o acontecimento tão desejado: nasce um filho, chega-
se à união total.
Ve-lo-emos no trecho seguinte.

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PREDIÇÃO DO NASCIMENTO DE JOÃO


Luc.1:8-25
8. Estando Zacarias a exercer diante de Deus as funções sacerdotais na ordem de sua
turma, coube-lhe por sorte,
9. segundo o costume, entrar no santuário do Senhor e queimar o incenso.

As turmas sacerdotais de serviço, cada semana - em número de 24 - eram sorteados segundo a Lei Mo-
saica. A de Zacarias era a oitava, de Abijah (cfr. 1 Crôn., 24:3-18). A cerimônia realizava-se pela ma-
nhã, antes do “sacrifício”, no santuário, ou seja, no “Santo” (sala que antecedia o “Santo dos Santos”,
onde só o Sumo Sacerdote penetrava uma vez por ano) . Consistia em renovar o braseiro, deitando-lhe
em seguida Incenso e óleos perfumados.
Observamos que Zacarias (o intelecto) ainda se encontrava agindo na personalidade, a praticar ritos
externas (queimar incenso, proferir orações verbais, observar liturgias, etc.), e isso no recinto anteri-
or ao Santo dos Santos (que é o santuário mais íntimo, o “coração”, ande só os “Sumos Sacerdotes”,
ou seres realizados, podem penetrar).

10. E toda a multidão estava orando da parte de fora, à hora do incenso.

Quando o sacerdote começava o rito, tocavam as trombetas do Templo, e o povo, que se achava espa-
lhado no ádrio dos homens e das mulheres, se recolhia em prece.
O evangelista alerta-nos para o fato de que a “massa popular” (a multidão do povo) ainda não atin-
giu nem sequer esse primeiro santuário: está “do lado de fora”, no momento da prece. É o que geral-
mente se denomina “reza” (derivado de “recitar”), ou seja, a prece recitada com os lábios, repetindo-
se 50 ou mais vezes as mesmas fórmulas decoradas. São os “profanos”.

11. E apareceu a Zararias um anjo do Senhor, em pé, à direita do altar do Incenso,


12. Zacarias, vendo-o, ficou perturbado e o temor o assaltou,
13. Mas o anjo disse-lhe: “Não temas, Zacarias, porque tua oração foi ouvida, e Isabel,
tua mulher te dará à luz um filho, a quem chamarás João,
14. e terás gozo e alegria, e muitos se regozijarão por causa do seu nascimento,
15. porque ele será grande diante do Senhor e não beberá vinho nem bebida forte; já
desde o ventre de sua mãe será cheio de um espírito santo,
16. e convertera muitos dos filhos de Israel ao Senhor Deus deles.
17. Ele irá diante do Senhor com o espírito e o poder de Elias, para converter os corações
dos pais aos filhos, e converter os desobedientes, de maneira que andem na prudência
dos justos, a fim de preparar para o Senhor um povo dedicado”.

Na interpretação literal, temos que chamar a atenção para diversos fatos.

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SABEDORIA DO EVANGELHO
A Zacarias aparece um anjo. Que é “anjo”? A palavra grega άγγελος significa, simplesmente, “noticia-
dor, arauto, mensageiro, anunciador”. O termo era empregado para designar qualquer mensageiro, en-
carnado ou desencarnado, que transmitia um recado. Na Bíblia a palavra refere-se quase sempre a um
espírito desencarnado, quando traz alguma mensagem. Esse espírito é um ser humano, pois é sempre
descrito como um homem (sentado, de pé, vestido de branco, etc. etc.), o que também ocorre neste
caso. Não era um ser “etéreo”, mas tinha forma e volume, igual à de um homem, e falava.
Para que um espírito desencarnado se torne visível, uma de duas condições são indispensáveis: a pri-
meira depende da criatura encarnada: precisa ela ser “médium” vidente ou audiente (em hebraico
Ro'éh ou Hôzêh, tendo também o poder de “interpretar”, ou seja, Nâbi', que significa profeta ou mé-
dium; com efeito, profeta, do grego лροφητεύω “falar por meio de”, e médium palavra latina que si-
gnifica “intermediário” entre o desencarnado e o encarnado). A segunda condição depende do desen-
carnado, quando a criatura encarnada não é médium: precisa o espírito “materializar-se”, tomando
forma fluídica, para aparecer ao não-vidente. Uma das provas de que o anjo que apareceu a Zacarias
era um espírito desencarnado de homem, é o nome que ele tem: Gabriel, que significa “HOMEM DE
DEUS”.
Apareceu do lado mais nobre do altar, o direito, que ficava na direção sul, onde estava o candelabro de
sete velas, símbolo místico da luz.
Zacarias assusta-se ao vê-lo, e depois permanece temeroso diante do acontecimento. Mas o mensageiro
o tranqüiliza, dando o recado de que fora incumbido: “tua prece foi ouvida”, e Zacarias verá o nasci-
mento de um filho, ao qual imporá o nome de JOAO.
João, em hebraico YEHOHANAM, significa “Iahô foi favorável”.
A forma “Iahô”, abreviatura de YHWH (YHayWeH) é a mesma que deu origem ao vocábulo JÚPI-
TER (Iahô-pater) e a que entra na formação da palavra DEUS (D-YAO-S), com o sentido de LUZ,
cujo feminino formou a palavra DIA.
O nascimento de João trará alegria ao casal, pelo término da esterilidade (considerada “castigo” entre
os judeus), mas essa felicidade se estenderá a muito mais gente. Isto porque João será grande aos olhos
de Deus.
Não beberá jamais vinho nem bebidas fortes (fermentadas), o que revela que João será NAZIREU (ou
nazareno). E, embora nada se diga no Evangelho, também não poderá cortar os cabelos. Eram estas as
condições do nazireato (veja o capítulo 6 do Livro “Números”). O nazireu era o homem que fazia um
voto especial, consagrando-se a Deus, e esse voto foi criado por YHWH, por intermédio de Moisés.
Firmemos mais uma vez o princípio, de que YHWH era o mesmo espírito que encarnou com o nome
de JESUS (cfr . pág. 4). E mais uma prova pode ser dada aqui. Quando se trata de DEUS O ABSO-
LUTO, sem forma, jamais criatura alguma poderá “vê-lo”, como está escrito em Êxodo (33: 20): “não
poderás ver minha face, porque o homem não poderá ver minha face e viver”. Mas com YHWH é dife-
rente. Falando a Moisés, Aarão e Miriam, YHWH diz-lhes: “se entre vós houver profeta (médium), eu,
YHWH, a ele me faço conhecer em visão, falo com ele em sonhos. Não é assim com meu servo Moi-
sés: ele é fiel em toda a minha casa (a Terra). Boca a boca falo com ele, claramente e não em imagens,
e ele contempla a forma de YHWH” (Números, 12:6-8). Como uma espécie de retribuição, quando
YHWH estava encarnado, Moisés também chega ao encontro de seu Mestre e Senhor, de seu “Deus”,
e lhe aparece, na transfiguração (Mat. 17: 3), ao lado de seu precursor João Batista (Elias).
Prosseguindo em nosso trecho, verificamos que o anjo ou espírito de Gabriel afirma a Zacarias que
João é um “espírito já santificado”, mesmo antes de nascer. Após dar-se a concepção, ainda no ventre
materno, ele (o homem) estará cheio (vivificado) por um espírito que é santo. Note-se que no original
grego não há artigo, o que demonstra a indeterminação: “UM espírito santo”, e não “O” Espírito Santo.
Então, esse espírito santo que sé encarnará em Isabel terá gloriosa missão: preparar as criaturas para a
“conversão”. As palavras usadas no Evangelho de Lucas repetem as da profecia de Malaquias (note-se
que a palavra Malaquias, em hebraico, significa exatamente .'mensageiro” ou “anjo”...). Malaquias

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escreveu (3:23) “Eis que vou enviar Elias o profeta antes que chegue o dia de YHWH (JESUS) , gran-
de e terrível, e ele (Elias) converterá o coração dos pais aos filhos”, etc. As expressões de Gabriel
constituem uma citação evidente do antigo profeta israelita.
A frase seguinte é digna de nota: “converterá muitos dos filhos de Israel ao Senhor Deus DÊLES”, isto
é, ao Deus PARTICULAR do povo israelita, que era YHWH (o mesmo espírito que Jesus). YHWH se
definia, de fato, como o DEUS PARTICULAR dos hebreus: “Eu sou YHWH, o Deus de Abraão, de
Isaac e de Jacó”. Não se refere o evangelista, portanto, ao DEUS ABSOLUTO, mas ao Deus DELES,
a Jesus.
No sentido literal, não há sofisma que permita escapar da conclusão de que João era a reencarnação de
Elias. Leiam-se os trechos nacionalista) Van Hoonacker, em sua obra “LES Petis Prophètes”, página
741, escreve: “pela grandeza de sua missão, deveria tratar-se de qualquer maneira de uma nova encar-
nação do espírito e do poder de Elias”.
Mais ainda: a expressão grega έν πνεύµατι хαί δυνάµει нλίου, revela isso mesmo. O emprego da pre-
posição en, com o sentido da preposição hebraica be ( ‫) בּ‬, que se encontra, por exemplo, em Marcos
5:2, quando diz “um homem NO espírito imundo”, significando o reverso: “um espírito imundo NO
homem”, era comum. O jesuíta M. Zerwick (in “Graecitas Biblica”, 4.ª edição, Roma, 1960, números
116 a 118) estuda a questão do EN grego com o sentido associativo ou de companhia. que será sempre
melhor traduzir por “com”, ao invés de por “em”. Assim, segundo o estudioso jesuíta, é melhor dizer-
se: “ele (João) iria diante do Senhor COM o espírito e poder de Elias”. E isso confirma a tese da reen-
carnação de Elias na personalidade de João Batista, coisa que Jesus afirmará categoricamente, o que
estudaremos a seu tempo.
Várias lições aprenderemos aqui.
Quando o intelecto está preparado e unido à intuição (Zacarias - e Isabel “casados” ), aparece o
Mestre, para revelar-lhe o segredo da obtenção dos frutos (do nascimento do “filho”). Esse Mestre
pode ter o aspecto de um espírito desencarnado (Guia, Mentor) ou de um ser encarnado. Não importa.
Sua tarefa, porém, e apenas a de revelar o caminho, e jamais de provocar milagres ou de evoluir “em
lugar” do homem. Trata-se pois, rigorosamente, de um “anjo”, de um “mensageiro”, que anuncia
alguma coisa, que abre uma porta e mostra os passos que se têm que dar para obter o fruto ambicio-
nado (o filho).
Esse filho que nascerá, há de chegar ao intelecto por intermédio da intuição: “Isabel te dará a luz um
filho”.
O fruto da união com Deus, o “filho” em sentido alegórico, será - chamado João, isto é, “ Iahô foi
favorável”. Sabemos todos que a criatura tem que iniciar e persistir na busca do Eu Supremo. Mas o
encontro só se dará quando vier, do próprio EU Supremo ou Cristo Interno, a resposta (a descida da
graça), ou seja, quando “Deus for favorável”. Assim nascerá o fruto (o filho) no encontro da criatura
com o Criador que vive dentro dela: a subida do ser humano e a descida do ser divino.
A alegria e a felicidade serão totais, não só para o próprio, quanto para todas as criaturas, mormente
para aquelas que, embora ainda em estado celular, constituem nosso veículo denso.
Depois de nascido o filho, depois de “realizada” a criatura, depois de terminado o “segundo nasci-
mento” e surgido o “homem novo”, que substitua o “homem velho”, o ser não buscará mais coisas
terrenas físicas, nem as do mundo astral (vinho e bebidas forte, isto é, emoções e sensações).
No entanto, desde o primeiro momento, desde o primeiro contato com o Cristo Interno, a criatura fica
na plenitude da graça, “cheia de um espírito santificado”, e bastará sua presença para atuar sobre
as outras criaturas, promovendo a paz e a harmonia em todos. Então mesmo aqueles que não pude-
ram alcançar a altitude do encontro, mesmo eles se converterão aos seus “deuses particulares”, nos
diversos ramos religiosos “humanos”, com seus pequenos deuses antropomórficos que se combatem
uns aos outros, apelidando-se mutuamente de “diabos”. Mas é esse, exatamente, o início da caminha-

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da: compreender que “existe” um caminho espiritual, por mais primitivo que seja. E é assim que “o
povo que está de fora” se tornará aos poucos “dedicado ao Senhor”.

18. Perguntou Zacarias ao anjo: “Como terei certeza disso? porque eu sou velho e minha
mulher já é de idade avançada”.
19. Respondeu-lhe o anjo: “Eu sou Gabriel, que assisto diante de Deus, e fui enviado a
falar-te e trazer-te estas boas notícias;
20. e tu ficarás mudo e não poderás falar até o dia em que essas coisas acontecerem, por-
que não deste crédito às minhas palavras, que a seu tempo se. cumprirão”.
21. O povo estava esperando Zacarias e maravilhava-se enquanto ele demorava no san-
tuário.
22. Quando ele saiu, não lhes podia falar, e perceberam que tivera uma visão no santuá-
rio: e ele lhes fazia acenos e continuava mudo.
23. Cumpridos os dias de seu ministério, retirou-se para sua casa.
24. Depois desses dias, Isabel, sua mulher, concebeu e ocultou-se por cinco meses, dizen-
do:
25. “Assim me fez o Senhor nos dias, em que pôs os olhos sobre mim. para acabar com
meu opróbrio entre os homens”.

Eram tão grandes as promessas feitas a Zacarias, que ele pede ao anjo um sinal, uma prova, de sua
veracidade. Já outros profetas anteriormente tinham agido assim: Abraão (Gên. 15:8), Gedeão (Juízes,
6:36-37), Moisés (.tx. 3:12), Ezequias (2.0 Reis, 20:8), e, tal como ocorreu com Zacarias, foram todos
atendidos.
Em resposta, o anjo “apresenta suas credenciais”, dando o nome de Gabriel (o HOMEM de Deus) e
dizendo que faz parte dos sete que assistem diante do trono de Deus (cfr. Tob. 12:15 e Dan. 9:21), ou
seja, do trono de YHWH.
Depois, como segunda. prova, fá-lo emudecer, embora temporariamente. E essa mudez não foi como a
de Daniel (10: 15) que emudeceu pelo susto produzido pela aparição, mas sim como resposta à prova
pedida. E além de perder a fala, perdeu o sentido da audição, pois é “por sinais” (Luc., 1 :62) que lhe
perguntarão, mais tarde, qual o nome que porão no menino que nasceu.
O povo admira-se da demora exagerada de Zacarias no santuário; e ao sair, vendo que não proferia as
palavras rituais de hábito, de bênção aos fiéis, compreende, pelos gestos do sacerdote, que ele tivera
uma visão.
Orígenes (“Patrologia Graeca”, vol 13, col. 1812) e Ambrósio (“Patrologia Latina”, vol, 15, col. 1550)
comentam que o mutismo de Zacarias era um símbolo do mutismo em que ficaria a religião mosaica
ao ser promulgado O Evangelho.
Ao terminar suas funções sacerdotais, Zacarias se recolhe à sua residência, na localidade de ‘Ain-
Karim.
Depois disso, dá-se a concepção de Isabel, a qual permanece oculta do público durante cinco meses,
louvando a Deus por haver-lhe concedido a bênção de um filho.
Admirável é todo o simbolismo deste trecho.
O intelecto (Zacarias} tem como função precípua a dúvida (Descartes) , a indagação por experiênci-
as. O objetivo primordial do intelecto é o raciocínio discursivo, plano, que só caminha por meio de
dúvidas e provas, para ter base para suas conclusões. A intuição “vê” diretamente, num átimo, e não

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pergunta razões nem pede provas: SABE. O intelecto indaga, procura, pesquisa, pondera, discerne,
julga e só depois é que deduz e conclui.
Era pois inevitável e justo segundo sua natureza que, diante do aparecimento de uma visão espiritual,
o intelecto não se conformasse de imediato, e iniciasse o estudo objetivo da questão.
Verificado, porém, pelas palavras do mestre que lhe surge à frente em pessoa, que o grande objetivo
de sua busca se aproxima, o intelecto resolve obedecer submisso.
O anjo diz-lhe, em primeiro lugar, que é de origem divina, que já obteve o contato com o Deus Inter-
no, e que já se tornou, por isso, um “homem de DEUS” (Gabriel), um homem “divinizado” (filho de
Deus).
Mas acrescenta que, para Zacarias (o intelecto) consegui-lo, ele deverá emudecer em meditação, nada
ouvindo e nada falando, profundamente recolhido em si mesmo.
Zacarias primeiro termina seu mandato sacerdotal, como homem reto e justo, e depois se afasta, não
dando mais atenção ao bulício do mundo, ao “povo que estava de fora”. O povo admira-se de sua
demora: ainda hoje, quando qualquer criatura se afasta dentro de si mesma em oração, mais tempo
do que a “obrigação de uma vez por semana”, o “povo” se admira e não entende.
Superada essa fase, “vai para sua casa”, isto é, recolhe-se a seu íntimo. Lá encontra-se com a intui-
ção (Isabel) , une-se a ela intimamente, e ela concebe a idéia que o intelecto lhe transmite, e também
“se oculta”, para que possa dar-se o nascimento do filho, ou seja, o contato com o Eu Supremo, pelo
qual nascerá uma nova criatura, o “homem novo”.
Ambos (intelecto e intuição - Zacarias e Isabel) , recolhidos durante cinco meses em louvor a Deus
(Judéia), ocultos a todas as vozes e chamamentos do mundo, mudos e surdos a tudo o que é da Terra,
preparam-se para o grande evento.
Não há outro caminho que conduza ao Cristo Interno (nós o veremos em outros passos à frente) senão
o da meditação solitária, que poderá, quando muito, receber a visita do Mestre.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

ANÚNCIO A MARIA
LUC.1:26-38
26. No sexto mês, foi enviado da parte de Deus o anjo Gabriel a uma cidade da Galiléia,
chamada Nazaré.
27. a uma virgem prometida a. um homem que se chamava José, da casa do David, e o
nome da. virgem era Maria.

A comunicação do anjo a Maria ocorre seis meses após a concepção de Isabel. O mensageiro é o mes-
mo que falou a Zacarias, isto é, Gabriel. No entanto, o fato não mais ocorre em Jerusalém, sim numa
cidadezinha desconhecida da Galiléia, Nazaré, onde morava uma mocinha que estava noiva.
A cidade de Nazaré só nos é conhecida através das citações dos Evangelhos. Nem no Velho Testa-
mento, nem em nenhum autor profano aparece esse nome. Também não o temos escrito em hebraico,
mas apenas sua transcrição para o grego, e com seis variantes: Nazaré, Nazaret, Nazareth, Nazará, Na-
zarat e Nazarath.
Lucas frisa com insistência que Maria não estava ainda casada: era noiva, ou seja, “prometida” (em
grego έµνηστευµένη, particípio aoristo 2..º do verbo µνεστεύω, que tem o sentido de “prometer em
casamento” ou “contratar matrimônio”). O matrimônio só se completava quando, a noiva ia morar na
casa do noivo, que então se tornava marido. Tanto que Lucas só dá a José o título de “pai', quando fala
da apresentação de Jesus ao Templo (Luc. 2:33,41,43 e 48).
Entre os judeus, porém, desde que se contratava o casamento, a noiva era considerada ligada ao noivo
de tal forma, que um erro dela era catalogado como adultério (Deut. 22:23).
Todo o nosso sistema terráqueo está constituído na base setenária. Não se trata de misticismo nem de
cabalismo, é uma verificação fácil de fazer-se. Conhecendo os antigos esse fato, todos os aconteci-
mentos e o simbolismo eram baseados no número sete.
Como o sete era a etapa final, o penúltimo passo representava-se pelo número seis. Daí lermos “no
sexto mês. Isto significa que o símbolo que vai ser dado aos leitores, exprime a penúltima etapa dessa
fase do desenvolvimento.
Nessa penúltima do etapa, o discípulo acha-se preparado e o mestre aparece, o “homem de Deus”,
Gabriel, a fim de anunciar-lhe a última etapa.
O aparecimento do “anjo” ou “anunciador” dá-se na Galiléia, a “região cercada” do íntimo da cri-
atura. A cidade tinha o nome de Nazaré. Que o nome constitui um símbolo, compreendemo-lo por não
constar ter havido, na época, nenhuma cidade real com esse nome. A palavra “Nazaré” parece deri-
var-se do radical hebraico Nâzir, que significa “separado, consagrado”, ligando-se ao nazireano
instituído por Moisés (Núm. cap. 6..º).
Vemos, pois, que o “mestre” aparece no lugar separado da região cercada”, ou seja, no CORAÇÃO,
falando através da voz silenciosa.
Anota o evangelista que a aparição se deu “a uma virgem”, e que ela estava “prometida a um ho-
mem”. A intuição está sempre ligada ao intelecto. E, mormente quando no caminho espiritual, quase
sempre se filia a uma pessoa humana, que a guia, intelectualmente, pela estrada da evolução.
O sentido da palavra José “(Deus) acrescenta”, ou seja, “Deus dá por acréscimo de misericórdia”,
coincide com o título “filho de David”, já que David significa “o Amado”.

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C. TORRES PASTORINO
Daí compreendermos que o intelecto, quando se dedica às coisas divinas, aos estudos das realidades
espirituais, se torna “amado”, e a ele “Deus acrescenta” sabedoria. Isto, não por privilégios, mas por
simples efeito de sintonia vibratória: se um rádio é sintonizado com uma estação transmissora, rece-
be-lhe as ondas não por “predileção” da estação, mas porque as condições de sintonia favoreceram a
receptividade. Deus' dá igualmente (infinitamente) a todos, mas cada um recebe segundo sua capaci-
dade. No oceano divino vogam o pequeno caíque e o grande transatlântico, mas cada um mergulhan-
do de acordo com o calado de sua quilha.
A conversa de Gabriel com Maria difere da havida com Zacarias. Com este, temos a representação do
“mestre” que fala ao intelecto, suscitando dúvidas (segundo a característica própria do intelecto).
Com Maria, temos a representação do “mestre” que se dirige à intuição, e é aceito, porque a intuição
“sente” a verdade da manifestação.

28. Aproximando-se dela, disse-lhe: “Alegra-te, altamente favorecida, o Senhor é conti-


go”.
29. Ela, porém, ao ouvir essas palavras, perturbou-se muito e pôs-se a pensar que sauda-
ção seria essa.

FIGURA “Anúncio a Maria”

A saudação do anjo a Maria é concisa. A fórmula grega Χαίρε significa “alegra-te”, Observe-se: que,
na saudação, os gregos auguravam alegria, enquanto os orientais desejavam paz (shalôm) e os latinos
faziam votos de saúde (salve, ave, vale) .

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SABEDORIA DO EVANGELHO
O perfeito grego κεχαριτωµένη indica a posse permanente (não transitória) de graça, de perfeição, de
beleza, tanto física quanto moral. Usado na saudação de Gabriel, em tom de vocativo, esse perfeito
assume quase o papel de um adjetivo substantivo: “ó perfeitíssima”, “ó altamente favorecida”, que a
vulgata interpretou “cheia de graça”.
A seguir uma afirmativa: “o Senhor está contigo”. Não se trata, como em Rute (2:4) do desejo de que
“o Senhor esteja contigo”, mas de uma afirmação categórica a respeito de um fato conhecido por Ga-
briel.
Maria perturba-se não tanto pela presença de um homem jovem a seu lado (e Gabriel devia apresentar
extraordinária beleza física), mas pelas palavras de saudação proferidas; por ele, por aquele elogio
inesperado da parte de um estranho.
A mente transmite sempre com imensa alegria, quando anuncia a presença divina dentro da criatura:
“o Senhor está (é) contigo”, vive dentro de ti, habita em ti, é a vida que pulsa em ti. Quando o homem
ouve essas palavras silenciosas dentro do coração, invariavelmente se perturba: que palavras estra-
nhas são essas, dirigidas a criaturas tão cheias ainda de defeitos?
A voz íntima, no entanto, diz a todos: “alegra-te, filho de Deus, és altamente favorecido pela divinda-
de, pois Deus habita em ti” !
30. Disse-lhe o anjo: “Não temas, Maria., pois conquistaste benevolência da parte de
Deus,
31. e conceberás em teu ventre e darás à luz um filho a quem chamarás JESUS.
32. Este será grande e será chamado Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono
de seu pai David,
33. e ele reinará no futuro sobre a casa de Jacob, e seu reino não terá fim.

Gabriel exorta Maria a não temer porque ela “conquistou a benevolência de Deus”.
O anjo não se apresenta a Maria dando nome e posição como o fez com Zacarias. Ao evangelista basta
revelar que o mensageiro foi o mesmo nos dois casos.
Conquistar benevolência é expressão já muito usada no Velho Testamento, com as palavras “achar
graça” (cfr. Gên. 6:8; X;x. 33:12; Juízes, 6: 17)
O anúncio da próxima maternidade de Maria é feito com expressões semelhantes às que foram ditas
por outros espíritos, para anunciar o nascimento de Ismael (Gen. 16:11) e de Sansão (Juízes, 13: 3-5).
O nome que o anjo impõe é JESUS (em hebraico IEHOSHUA' γωιπ que se Abrevia Ўιΰ ou ιωι , mas
que também pode transliterar-se ... , com o sentido de “Iahô salva”. Na previsão de Isaias, era-lhe dado
o nome de HIMMANU-EL, isto é, “Deus conosco”.
“Jesus”, diz o anjo “será grande, será chamado de Filho do Altíssimo”, título que era dado aos reis na
antiguidade (cfr. 2..º Reis, 7:14 e 1 Crôn. 22: lC).
O menino receberá o “reino de David”, que ele ocupará “no futuro”, (είς τους αίωνας) e seu reino “não
terá fim”. A palavra αίών tem o mesmo sentido que seu derivado latino “aevum” (em português “evo”,
ou seja século, uma “vida”) e era empregado no sentido lato de futuro, e não no de “eterno”. Eterno é o
que não tem princípio nem fim. Além disso, a segunda parte do versículo esclarece bem a idéia, quan-
do diz “e seu reino não terá fim”, Se a palavra “aiónas” tivesse o sentido de “eterno”, não havia razão
para a segunda parte do versículo, nem mesmo invocando-se a técnica da repetição, na poesia hebraica.
Com Zacarias, o anjo se apresenta, porque o intelecto quer saber de tudo, pede “credenciais”; ao passo
que a intuição não repara no intermediário: sente a verdade em suas palavras, não lhe interessando
quem a diz, mas sim o que diz.

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A resposta do “mestre” à indagação aflita da criatura que, humildemente, se julga indigna de receber
tão grande graça - embora não duvide da própria graça - vem trazer maior certeza da realidade: “con-
quistaste benevolência da parte de Deus”. Não é, propriamente, o “merecimento”, no sentido de haver
a criatura dado algo mais do que devia, com isto merecendo uma recompensa, ou “comprando” a be-
nevolência. Não. Trata-se da sintonia natural da criatura, que lhe possibilita receber as emissões (a
benevolência) divinas, dadas a todos indistintamente: bons e maus, sábios e ignorantes, santos e crimi-
nosos. E essa sintonia é obtida pelo que a criatura É (não pelo que sabe, nem pelo que faz).
Tendo conseguido essa sintonia, a criatura pode “conceber em seu ventre” (recebe em seu coração) um
“filho”, que é sua “salvação”: JESUS, isto é, Iahô salva. Esse “nascimento” é uma expressão que usa-
mos por falta de outro vocábulo mais exato. Assim como, ao nascer, a criança aparece, é vista, tocada
e sentida (embora não tenha começado a existir nesse momento, pois inclusive seu corpo já existia no
ventre EU Supremo consiste apenas na verificação de nossa parte de que ele existe. Realmente ele já
existia dentro de nós, mas ainda oculto e não sentido. Ao revelar-se, ao tornar-se “sensível”, nós dize-
mos que ele “nasceu”: isto é, que se manifestou; quando nós o DESCOBRIMOS, dizemos que ELE
NACEU ...
Esse EU Supremo será grande e é o Filho do Altíssimo porque é a Centelha que emanou Dele (do Foco
Incriado); e terá, por todo o resto de sua existência o “trono de seu Pai” o AMADO (David).
Vimos (pág. 2) que Deus (o AMOR) se manifesta como o Verbo Criador (o AMANTE) e como o Cri-
ador, o Filho (o AMADO). Ora, o EU Supremo, que é a individualização de um Raio-Divino, isto é, o
“Filho do Cristo” (o AMADO), pode ser, por isso, chamado “filho do Amado” ou “filho de David”.
Seu reino não terá fim sobre a casa de Jacob. Jacob significa “o que suplanta” (ou “o que segura pelo
calcanhar”). Exprime, então, a personalidade, que durante milênios “suplanta” a individualidade aba-
fando-a totalmente. Quando JESUS surge, ele assume o trono de David, e reina sobre a “casa de Ja-
cob” sem fim isto é nunca mais a individualidade sofrerá o domínio da personalidade.

34. Então Maria perguntou ao anjo: “como será isso, uma vez que não conheço homem”?
35. Respondeu-lhe o anjo: “um espírito santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo te en-
volverá. com sua sombra; e por isso o nascituro será chamado santo, Filho de Deus.
36. Isabel, tua parenta, também ela concebeu um filho na sua velhice, e já está no sexto
mês aquela que era chamada estéril,
37. porque, vindo de Deus nada será impossível”.
38. Disse Maria: “Eis aqui a escrava do Senhor: faça-se em mim segundo a tua palavra”.
E o anjo retirou-se.

A pergunta de Maria difere da de Zacarias. O sacerdote pergunta: “como saberei que isto é verdade”?,
o que exprime dúvida a respeito das, afirmativas de Gabriel. Maria indaga: “Como se dará isso, se não
conheço homem”? O que constitui um pedido de explicação: ela crê verdadeiras as palavras, mas de-
seja saber o modo de agir para resolver o caso.
“Conhecer homem ou mulher” é eufemismo usado entre os judeus para designar as relações sexual,
empregando-se o vocábulo γτι . Maria, jovem noiva, não tinha ainda (por isso usa o presente do indi-
cativo: “não tenho”) comércio sexual. E Gabriel parece esclarecer que a concepção se deverá dar de
imediato, sem esperar que o casamento se realize.
O anjo explica que ela conceberá um espírito santo (já santificado). Em grego, aqui também não apare-
ce o artigo, denotando a indeterminação: UM, espírito santo. Esse espírito santificado descerá sobre ela
(έπελεύσεται do verbo έπέρхοµαι) e acrescenta que “a força ou poder do Altíssimo a envolverá com
sua sombra”. Parece uma alusão clara à shekinah da mística judaica. Nesses casos, qualquer contato

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SABEDORIA DO EVANGELHO
sexual, mesmo fora do casamento, será abençoado. Deus não está sujeito às leis “humanas”, nem das
sociedades nem dos Estados. O casamento é um ato instituído pelos homens, a fim de evitar abusos e
manter organizada a humanidade. Mas Deus simplesmente criou as plantas, animais e homens dotados
de sexo para que se unissem, produzindo filhos, a fim de que Sua obra não perecesse: Qualquer restri-
ção é humana e não divina. No caso em apreço, isso está claro. Tanto assim que, mesmo fora do casa-
mento Maria receberá, em seu ventre, um espírito santo, que será chamado Filho de Deus
E logo a seguir acrescenta, a título de comprovação, que Isabel, parenta de Maria (não se sabe qual o
grau de parentesco) também terá um filho, apesar da idade e de ter sido estéril, já estando no sexto mês
de gravidez.
E aduz: “vindo de Deus, nada é impossível”. A expressão do texto original: “nenhuma palavra”
(πάνρήµα) é o equivalente do hebraico dàbâr (‫)דכד‬, que tem muitas vezes (cfr. Gên. 18:14) o sentido de
“coisa”. Ora, “nenhuma coisa” é o mesmo que “nada”.
A resposta de Maria é uma aceitação plena, uma conformação total: “eis a escrava (δουλη) ao Senhor”.
E mais: faça-se em mim conforme dizes”. A expressão “faça-se” (γένοιτο) é muito mais forte que o
γευηθήτο usado no “Pai Nosso” (Mat. 6:10). Neste, exprime-se o desejo de que “se faça”, mas deixan-
do livre quanto à época em que se realize. No caso presente, o “faça-se” de Maria expressa o desejo e
quase a ordem de que se faça já.
Cumprida a missão, o anjo retirou-se.
A própria intuição, sobretudo levada pelo intelecto, supõe e deseja que alguém lhe dê a iniciação.
Espera o milagre, certa de que o grande encontro se realizará por meio de uma palavra mágica ou de
um gesto cabalístico, com um rito exótico. Essa é a estranheza manifestada por “Maria (simbolizando
a intuição) quando diz que “não conhece homem”, que não está em contato com um iniciado ou
adepto.
O “homem de Deus” (Gabriel) esclarece (por omissão) que não é disso que se trata: que não há ho-
mem que possa resolver esse caso. O Espírito Santo que está dentro dela (“o Senhor é contigo”), é
que se manifestará, e ela será envolvida por sua sombra. Trata-se da “shekinah”, tão conhecida pela
mística judaica.
Todas as experiências do encontro com o EU Supremo (segundo o testemunho dos que o conseguiram,
em qualquer das correntes religiosas), tem um ponto em comum: a criatura se sente envolvida por
intensa luminosidade, que é comparada a um relâmpago, a um incêndio, enquanto ela mesma se ex-
pande ao infinito, mergulhando e desfazendo-se na luz. O mergulho na luz é a descida da “shekinah”.
Por essa razão, o “homem novo” que daí nasce é chamado “Santo, Filho de Deus”.
Para incentivá-la a dar o último passo, Gabriel cita-lhe o exemplo de Isabel, sua parenta (ou seja, de
todos os seres, parentes nossos, que atingiram o grau de “adoradores de Deus” - Elisheba), que se
encontra no mesmo ponto evolutivo, no penúltimo degrau, “no sexto mês”, aguardando a iluminação,
embora desta ninguém mais esperasse nada, pois não era julgada capaz de consegui-lo, após tantos
anos de tentativas infrutíferas (esterilidade). E como coroamento, conclui: “nada é impossível a
Deus”.
Vencida e convencida, Maria submete-se com máxima humildade à vontade divina, A humildade real,
na qual a criatura se entrega qual escrava para obedecer em tudo e sempre, sem reconhecer nenhum
direito para si, é o caminho único que leva ao encontro com o EU profundo.
Mas essa humildade precisa querer que se realize o ato, precisa entregar-se total e plenamente, sem
condições nem reservas. Isto porque, embora sendo, como é, a causa de tudo, Deus é a humildade
máxima: jamais se mostra, jamais assina Suas obras, jamais pede retribuição de nenhum dos benefí-
cios prestados, e Sua vida toda se resume em SERVIR a todos, dando tudo de graça, sem distinção
alguma de pessoas.

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Por isso, quando a criatura atinge o grau de perfeita humildade, encontra Deus em si, por sintonia
vibratória, e passa a viver UM com DEUS.
Isso mesmo ocorreu com Maria: no momento em que se conformou plenamente com a vontade do Pai,
aniquilando a sua vontade pequenina, anulando sua personalidade, nesse momento concebeu JESUS,
encontrou DENTRO DE SI (em seu coração) o Filho de Deus, o CRISTO, que nasceu virginalmente,
ou seja, sem obra nem intervenção de homem.
Esse o sublime simbolismo que aprendemos desse trecho de Lucas, deduzindo-o dos fatos reais, que
ocorreram na Palestina há quase dois mil anos. Lições de inestimável valor para nosso aprendizado.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

VISITA A ISABEL
Luc. 1:39-56
39. Naqueles dias, levantando-se Maria foi apressadamente à região montanhosa, a uma
cidade de Judá,
40. e entrou na casa de Zacarias e saudou Isabel.
41. Apenas Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança deu saltos no ventre dela, e Isa-
bel ficou cheia de um espírito santo,
42. e exclamou em alta voz: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu
ventre!
43. Como é que me vem visitar a mãe de meu Senhor?
44. Pois logo que a voz de tua saudação chegou aos meus ouvidos, a criança deu saltos de
alegria em meu ventre;
45. bem-aventurada aquela que creu que se hão de cumprir as palavras que lhe foram di-
tas da parte do Senhor”.

A expressão “levantando-se” é usada por Lucas (Evangelhos e Atos) sessenta Vezes. Portanto, locução
típica do autor.
Maria parte para visitar sua parenta, movida não pela curiosidade de verificar as palavras de Gabriel (o
que estaria em contradição com a fé que nelas depositara espontaneamente), mas por espírito de huma-
nidade: ir em sua ajuda.
Qual a cidade de Judá ? Diz uma tradição do século V que foi Ai'n-Karim, a sete quilômetros de Jeru-
salém. A viagem de Nazaré a Ai'n-Karim levava de quatro a cinco dias. Como teria feito a viagem?
Sozinha? Nada é revelado.
Após a saudação natural da visitante, Isabel sente que o filho em seu ventre “dá saltos de alegria”. Re-
beca (Gên. 25: 22) interpretou como mau presságio a “luta dos gêmeos” em seu ventre.
Logo fica “cheia de um espírito santo”. Novamente sem artigo. Repisamos: a língua grega não possuía
artigos indefinidos. Quando a palavra era determinada, empregava-se o artigo definido “ho, he, to”.
Quando era indeterminada (caso em que nós empregamos o artigo indefinido), o grego deixava a pala-
vra sem artigo. Então quando não aparece em grego o artigo, temos que colocar, em português, o arti-
go indefinido: UM espírito santo, e nunca traduzir com o definido: O espírito santo.
Cheia, em grego έπλήσθη, aoristo passivo do verbo do πίµπληµι. Sendo passivo, significa que o “en-
cher-se” não dependeu dela (seria então empregado a voz média), mas sim de um elemento externo;
esse agente da passiva está expresso: um espírito. Todavia esclarece-se que era bom, era santo. Entre
espiritistas, interpretamos com um vocábulo moderno: incorporou um bom espírito.
Então levanta a voz gritando, o que evidencia não ser ela mesma quem fala; se o fora, falaria com sua
voz normal.
Que espírito se incorporaria mais naturalmente em Isabel nessa circunstância? Dada a grande evolução
espiritual de Elias, era-lhe possível manter a consciência desperta mesmo durante a formação de seu
corpo físico no ventre de Isabel. E incorporar-se nela não lhe trazia nenhuma dificuldade, pois ela já
lhe estava servindo de médium de materialização de seu veículo físico denso.

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Ora, o espírito de Elias sabia de tudo o que estava ocorrendo, e tinha visão espiritual ampla, ao passo
que Isabel não podia, humanamente, descobrir a gravidez de Maria, que não tinha nem um mês, e por-
tanto não aparecia externamente. Segundo o princípio teológico, uma explicação simples e natural
deve sempre ser preferida a outra complicada e milagrosa, ou seja, jamais deve recorrer-se a um “mi-
lagre”, nos casos em que pode dar-se uma explicação natural. Ora, é mais simples e natural a explica-
ção da incorporação de Elias (confessada pelo evangelista, quando diz “ficou cheia de um espírito
santo”), do que termos que recorrer a revelações divinas excepcionais e a milagres.
Falamos aqui em espírito de “Elias”, e não de “João Batista” porque, na realidade, esse espírito ainda
não assumira a nova personalidade de João, pelo novo nascimento: e Gabriel, ao falar a Zacarias, diz
claramente: “irá COM o espírito DE ELIAS” (vers. 17).
Esta explicação da consciência do espírito ainda no seio materno é dada por Tertuliano, por Orígenes,
por Irineu, por Ambrósio, e o teólogo Suarez (in III, q, XXVII, disp. IV, sect. VII, n. 7) diz mesmo
que, desde esse momento, o espírito tinha o “uso da razão”. Isso tudo é mais lógico e natural do que
recorrer a uma “intervenção” divina, como faz Agostinho .
O espírito de Elias, conhecedor dos fatos, saúda Maria como “bendita entre as mulheres”, e acrescenta:
“bendito é o fruto que está em teu ventre” . Depois, numa exclamação de suprema alegria, reconhe-
cendo o espírito de Yahweh, encarnado no ventre de Maria, tem aquela pergunta que revela sua humil-
dade, e também o reconhecimento do “Deus de Israel”: “como é que me vem visitar a mãe de meu
Senhor”?
Isabel, consciente das palavras que tinham sido ditas por sua boca, comenta o fato, dizendo que, logo
que ouviu a voz de Maria, a criança deu saltos de alegria em seu ventre. E conclui abençoando Maria,
porque nela se cumpriram as promessas antigas de Yahweh, e também porque ela deu crédito ao anjo
que lhe participara a noticia.
Depois de recebido o aviso do próximo encontro com a Divindade, a criatura se afasta precipitada-
mente de seu “hábitat” normal: vai às montanhas, para ficar em meditação silenciosa, ou seja, sobe
ao nível mais alto de vibrações que lhe seja possível, esquecendo tudo o que é “de baixo”, da Terra,
da planície. Nesse nível extra-material, encontra espíritos de igual elevação, e com eles se comunica
em palavras de louvor a Deus.
Observemos desde já que, todas as vezes que as Escrituras querem assinalar uma elevação de vibra-
ções, por meio da prece ou da meditação, elas o fazem com a expressão “subiu a um monte”. Exata-
mente o que se faz aqui: foi para a região montanhosa de Judá. E como a Judéia representa a persona-
lidade (assim como a Galiléia exprime a individualidade, já o vimos) , compreendemos que a criatura
“esquece” os corpos físico, .sensitivo e emocional, jogando apenas com a parte mais elevada, o inte-
lecto.
Ao encontrar-se com outro espírito, este lhe manifesta a alegria, por ver que dentro de si está Deus, o
Cristo Vivo que em todos nós habita.

46. E disse Maria: “Minha alma engrandece o Senhor


47. pois meu espírito alegrou-se em Deus meu Salvador,
48. porque pôs os olhos na pequenez de sua escrava. Pois de ora em diante todas as gera-
ções me chamarão de bem-aventurada;
49. porque o Poderoso me fez grandes coisas. Santo é Seu nome.
50. e Sua misericórdia se estende de geração em geração sobre os que O temem.
51. Manifestou poder com seu braço, dissipou os que tinham pensamentos soberbos no
coração,
52. depôs os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes.
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53. encheu de bens os famintos e despediu vazios os ricos.
54. Socorreu Israel, seu servo. lembrando-se da misericórdia.
55. (como falou a nossos pais) para. com Abraão e sua posteridade para sempre”.
56. E Maria ficou cerca de três meses com ela, depois voltou para sua casa.

Em resposta a Isabel,. Maria entoa um cântico maravilhoso, que muito nos ensina. Conhecidíssimo em
toda a cristandade por sua primeira palavra latina, o “Magníficat”.
Todo o cântico reproduz pensamentos do Velho Testamento, sobretudo dos Salmos .
Logo no primeiro versículo temos preciosa lição: “Minha ALMA engrandece o Senhor, pois meu ES-
PÍRITO alegrou-se em Deus meu Salvador”.
Temos, portanto, nítida distinção entre alma (psyché = φυхή) e espírito (pneuma = πυεΰµα), que Paulo
também distingue, de acordo com a filosofia platônica. Por exemplo, em 1.ª Tess. 5:23, quando supli-
ca a Deus que “nos santifique o espírito (pneuma) , a alma (psiché) e o corpo (soma)”. Na filosofia
paulina, a psyché é o princípio das emoções sensíveis (o que hoje chamamos “corpo astral” ou “peris-
pírito”, isto é, o princípio agente ou “eu” da personalidade); e pneuma é o elemento espiritual (ou “eu”
consciencial da individualidade). Em Hebreus (4:12) também lemos que “a palavra de Deus é viva e
eficaz e mais cortante que qualquer espada de dois gumes, e penetra dividindo até os nervos e as liga-
ções da alma com o espírito, discernindo as disposições e os pensamentos do coração”.
Há ainda outros passos escriturísticos que confirmam esse ponto de vista: “Louvai-O espírito e almas
dos justos” (Dan. 3:86); “Em sua mão está a alma de todos os vivos e o espírito de todos os homens”
(Job, 12:10) . “Se há o corpo psíquico (de alma), ... o há também o corpo espiritual (de espírito)”, (1
Cor. 15 :44); “O homem de alma e o de espírito (1 Cor. 2: 14-15); “Estes são os que se separam a si
mesmos, que têm alma, mas não têm espírito” (Judas, 19).
Maria, pois com toda a clareza filosófica (podia não ter cultura, mas era sábia) , emprega corretamente
os tempos dos verbos e afirma: “Minha alma (personalidade) engrandece (no presente do indicativo,
µεγαλύνει) o Senhor, porque meu espírito (individualidade) se alegrou (no aeristo, ήγαλλίασευ) em
Deus meu Salvador”.
A razão da alegria é o prêmio recebido da descida do Grande Espírito em seu ventre; manifestação
espontânea de humildade verdadeira. Maria transfere toda a benevolência à Graça divina, que “baixou
seus olhos à pequenez de sua escrava”, e de tal forma a exaltou “que todas as gerações a denominarão
bem-aventurada”. Ela mesma, porém. não se diz humilde (quem se julga humilde, revela o orgulho ou
a vaidade de se julgar virtuoso), mas apenas pequena, sem-valia (ταπεινωσις); cfr. o Salmo 31:7 que
diz: “vibrarei de alegria e gozo por causa de tua bondade, pois olhaste minha miséria”.
“Porque o Poderoso (δ ∆υνατός) me fez grandes coisas “:era habitual ser designada a divindade por
um de Seus atributos.
Outro motivo de louvor: Deus exerce Sua misericórdia nas sucessivas encarnações dos que O temem,
ou seja, dos que são fiéis à Sua lei e O servem. Leia-se, por exemplo, o Salmo 103:17 ou melhor,
Deuteronômio 7:9, onde está: “Yahweh ... mantém Sua misericórdia aos que O amam e Lhe cumprem
Seus mandamentos, até mil gerações”; claramente entendemos que se trata de “mil” (no sentido de
muitas) encarnações do próprio, e não se refere absolutamente a filhos, netos, etc. Tanto assim que, no
versículo seguinte, se acrescenta: “retribui diretamente aos que O odeiam, não retardará o pago ao que
O odeia, retribuir-lhe-á diretamente”. Logo, só pode tratar-se de mil re-nascimentos da própria criatura
que O ama (O teme) e Lhe cumpre os mandamentos.
Continua Maria: Deus “dispersa pela força de Seu braço (repetição do eufemismo do Salmo 119:16) os
que têm pensamentos soberbos no coração” . Conforme verificamos (mais uma vez, o coração é a sede
dos pensamentos. Realmente, sendo Deus a humildade máxima, os orgulhosos jamais podem sintoni-

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zar com Suas vibrações. Daí dizer-se mediante uma imagem: “Deus não ama os orgulhosos” (Cfr. 1.0
Reis 2:3 e Job, 38:15).
E prossegue: fez descer os poderosos de seus tronos e exaltou os :humildes” (Cfr 1.0 Reis 2:5-7; Ecli.
10:14, Salmo 148:6; e Job 5:11; 12: 19 e 22: 9); encheu de bens os famintos e despediu vazios os ri-
cos” (Cfr. Salmos 34:10-11 e 107:9).
Queremos uma vez mais chamar a atenção para a afirmação clara, embora implícita, das vidas sucessi-
vas ou reencarnações. Raciocinando diante dos fatos, verificamos que, numa mesma existência, os
poderosos raramente perdem seus tronos e os humildes não são exaltados; da mesma forma que os
famintos muito dificilmente enriquecem e pouquíssimos são os ricos que perdem a fortuna. Ora, as
afirmativas de Maria e dos demais textos supra-citados do Velho Testamento apresentam esses fatos
como normais e habituais. Então concluímos que se referem às vidas sucessivas: quem teve um trono
numa existência, regressará à Terra na vida seguinte em posição humilde e vice-versa; quem transcor-
reu uma existência a lutar contra a fome, voltará na seguinte cheio de bens, mas os ricos “serão despe-
didos” da vida espiritual para a Terra “vazios” de bens. Esta é a única interpretação que podemos dar
às palavras citadas; se o não fizermos, verificaremos que os fatos reais que observamos todos os dias
desmentem as afirmativas categóricas das Sagradas Escrituras.
Maria cita a seguir a manifestação da misericórdia de Yahweh para com Jacob (Israel), segundo a
promessa feita a Abraão. Anotemos que a esposa de Abraão era Sara e, a seu respeito, diz a Cabala:
“Fica sabendo que Sara, Hannah a Sunamita e a viúva de Sarepta, cada uma delas possuiu por seu tur-
no a alma de Eva” (Yalkut Reubeni, n. 8).
E o Evangelista encerra o episódio com a notícia de que Maria ficou “cerca de três meses” com Isabel,
regressando depois para sua casa. Embora Lucas narre o episódio do nascimento de João após ter dado
notícia do regresso de Maria, é de supor-se que ela tenha permanecido ao lado da parenta até depois do
nascimento de João; quando lá chegou já estava no sexto mês, e lá ficou cerca de três meses, certa-
mente não sairia às véspera do grande evento. Mas o procedimento é típico desse evangelista: terminar
um episódio antes de começar outro (por exemplo, falará da prisão de João Batista, em 13:19-20, antes
de começar a narrativa do batismo em 13:21-22).
Note-se que Maria regressou para sua casa, e não para a casa de José. Isto porque, a essa época ainda
não estava casada.
Sob o aspecto profundo, aprendemos que a intuição (Maria) glorifica o Senhor pela descida da graça,
convicta da pequenez de sua realidade subjetiva, diante da magnificência divina em atender às criatu-
ras. Inspirada pelo Eu Supremo, canta a alegria da próxima Unificação com o Cristo interno, a Ma-
nifestação cósmica da Divindade. Estende seu louvor pelos benefícios recebidos em vidas anteriores,
assim como pela felicidade que fruirá nas porvindouras . Relembra que só os humildes e pequenos
receberão a ventura do Grande Encontro, pois os ricos (cujo deus é o dinheiro) e os soberbos (cujo
deus é o próprio “eu” pequenino e transitório) , não conseguem penetrar no recinto humilde e oculto
do coração, o que só pode ser feito quando há renúncia total a tudo, inclusive ao “eu” personalístico.
Maria permanece com Isabel, ajudando-a com sua presença a realizar o mergulho, e depois nova-
mente se recolhe em seu íntimo (regressa a sua casa), para, em meditação profunda, aguardar o Su-
premo Acontecimento.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

NASCIMENTO DE JOÃO
LUC. 1:57-80
57. Chegado o tempo de dar à luz, Isabel teve um filho.
58. Seus vizinhos e parentes, sabendo da grande misericórdia que o Senhor manifestava
para com ela, participavam de seu regozijo.
59. No oitavo dia vieram circuncidar o menino, e iam dar-lhe o nome de seu pai: Zacari-
as.
60. Sua. mãe, porém. disse: “Não, mas será chamado João”.
61. Disseram-lhe: “Ninguém há entre teus parentes que tenha esse nome”.
62. E perguntavam por acenos ao pai que nome queria que lhe pusessem.
63. Ele, pedindo uma tabuinha, escreveu: “João é seu nome”. E todos se maravilharam.
64. Imediatamente lhe foi aberta a boca e solta a língua, e começou a falar, bendizendo a
Deus.
65. O temor apoderou-se de todos os seus vizinhos e divulgou-se a notícia de todas essas
coisas por toda a região montanhosa da Judéia;
66. e todos os que delas souberam, as guardavam no coração dizendo: “Que virá a ser en-
tão, esse menino”? Pois na verdade a mão do Senhor estava com ele.

A expressão “chegado o tempo de dar à luz” é repetição de Gên. 25:24, e a atribuição do fato à miseri-
córdia divina reproduz Gên. 19:19. O acontecimento causou grande alegria e alvoroço entre a parentela
e a vizinhança .
O evangelista passa então a narrar a cena da circuncisão, de acordo com a lei (Gên. 17:12; 21:4 e Lev.
12:3) . O rito da circuncisão não era atribuição sacerdotal: qualquer israelita podia desempenhá-lo,
mesmo na residência dos pais; em todas as localidades havia (e ainda hoje existe) o MOHEL, pessoa
habilitada para essa delicada operação no recém-nascido.
O fato de Lucas citar a presença de Isabel demonstra que a operação se realizou em sua residência,
pois a mulher que dava à luz só podia sair de casa quarenta dias depois do parto.
No ato da circuncisão, rito pelo qual o menino era oficialmente incluído no povo israelita, era-lhe im-
posto o nome. Causa estranheza o fato de quererem colocar no filho, o nome do pai, o que contrariava
o costume israelita. Mas, em vista da idade provecta do pai, não haveria futuramente possibilidade de
confusão entre os dois.
Nesse ponto intervém Isabel, que quer dar ao menino o nome de João. Os parentes não aceitam a su-
gestão porque fugia aos hábitos judeus não só ser o nome escolhido pela mãe, como ainda que se im-
puser se um nome que já não houvesse na família. Por isso interrogam Zacarias “por acenos” (de-
monstrando sua surdez temporária). Este pede uma tabuinha recoberta de cera e com um estilete escre-
ve o nome de João, confirmando o que dissera Isabel. O evangelista anota a admiração de todos e a
divulgação que teve a notícia nas redondezas.
A expressão “guardar no coração” é típica do hebraico (Cfr. 1.0 Reis, 21:12 e Iso 57:1) e exprime re-
fletir, tomar em grande consideração. Outra expressão idiomática aparece em “a mão do Senhor”, si-
gnificando a proteção divina (Cfr. Atos 11:21 e 13:11).

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C. TORRES PASTORINO
Logo que o Sublime Encontro se verifica, nascendo o Homem-Novo temos a passagem direta da Luz
do mental, que não necessita mais da mediania da intuição, chegando em cheio ao intelecto e tornan-
do-o iluminado ( Buddha). A intuição (Isabel), ponte entre os dois, uma vez que apresentou ao inte-
lecto (Zacarias) o resultado da busca (o filho), se retraio O intelecto, ao verificar a Verdade e a Rea-
lidade, digamos ('palpável”, explodirá em palavras de alegria incontida e de elevação espiritual (cujo
exemplo o evangelista nos dará no “Cântico de Zacarias”, logo a seguir).
Temos, pois, que o intelecto saiu da contemplação, da meditação silenciosa (da surdez e mudez de
vários meses) e quase não acha palavras para agradecer o prodígio. Descendo dessas alturas, voltará
a “sentir” os veículos físicos, que estavam esquecidos durante a meditação.
Não admite (como a intuição já sugerira) que produto tão divino seja chamado simplesmente “lem-
brança de YHWH”; não: o nome só pode corresponder à realidade do ocorrido: “YHWH foi favorá-
vel”.
Ao retomar contato com seus veículos de manifestação, trazendo consigo o “filho”, há uma alegria
indescritível entre todos os “parentes e vizinhos”, ou seja, em todas as células e órgãos, tanto os do
corpo perispiritual ou astral, como de suas correlatas no físico denso: todas vibram de intenso rego-
zijo, eliminando males e mazelas e participando plenamente da Vida.
A circuncisão simboliza o corte de todos as prazeres emocionais, que daí por diante não terão mais
expressão nem atrativo para ele. E o “temor que se apodera de todos os vizinhos” exprime o choque
traumático, produzido em todos os órgãos e células, que se sentem aniquiladas, quando o espírito
imerge no infinito. Esse choque e o respectivo temor se estendem por “toda a região montanhosa da
Judéia”, isto é, por toda a personalidade. A anotação “região montanhosa” refere-se à personalidade
em sua parte mais elevada, em sua manifestação mais alta, que é o intelecto, o qual se sente minús-
culo, pequeno, insignificante, perante a grandeza e infinitude do fenômeno experimentado.
Todas essas sensações, entretanto, são “guardadas no coração”, isto é, são mantidas secretas, e não
contadas a todos indiscretamente. Apenas a criatura se pergunta a si mesma: “que me ocorrerá ago-
ra”? Porque, realmente, ela sabe e sente que “o Senhor, o Cristo Cósmico, Está com ela”.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

O CÂNTICO DE ZACARIAS
LUC. 1:67-80
67. Zacarias. seu pai, ficou cheio de um espírito santo e profetizou dizendo:
68. “Bendito seja o Senhor Deus de Israel, porque veio visitar e trazer resgate a seu povo,
69. e nos suscitou um Libertador poderoso na. casa de David seu servo,
70. (como anunciara. desde tempos imemoriais pela boca de seus santos profetas),
71. para nos livrar de nossos inimigos e da mão de todos os que nos odeiam;
72. para usar de misericórdia com nossos pais e lembrar-se de sua santa aliança,
73. do juramento que fez a Abraão nosso pai
74. de conceder-nos que, livres da mão de nossos inimigos, o servíssemos sem temor,
75. em santidade e justiça, diante dele, por todos os nossos dias.
76. Sim, e tu, menino. serás chamado profeta do Altíssimo, porque irás ante a face do Se-
nhor preparando os seus caminhos;
77. para dar a seu povo o conhecimento da salvação, que consiste na rejeição de seus er-
ros,
78. devido ao amor misericordioso de nosso Deus, pelo qual nos visitam o Sol do Alto,
79. para iluminar os que estão sentados nas trevas e na sombra. da morte, para dirigir
nossos passos no caminho da paz”.
80. Ora, o menino crescia e se fortificava em espírito, e habitava nos desertos, até o dia de
sua manifestação a Israel.

Aqui de novo aparece a expressão “cheio de um espírito santo”, ou seja, incorporado por um bom espí-
rito (em grego sem artigo). E mais se acentua a incorporação, por causa do verbo utilizado em grego:
έπροφήτευσεν (de προφητεύω), que significa “profetizou”, isto é, falou como intermediário, como
médium (em grego profeta).
Divide-se o cântico em duas partes: 1.ª) louvor a Deus pela era messiânica iniciada (68-75); 2.ª) o pa-
pel do precursor (76-79) .
As primeiras palavras repetem a doxologja que se encontra no final de três, dos livros dos Salmos:
41:13; 72:13 e 106:48, isto é: “Bendito seja o Senhor DEUS DE ISRAEL. Logo após cita as razões:
“porque veio visitar seu povo”. O sentido do verbo έπεσиεψατο (aoristo médio de έπισиέπτοµαι) é
exatamente “ir visitar, ir examinar” (um amigo, um doente) , donde “levar socorro” (cfr. Salmo 106:4).
Temos, pois, mais uma confirmação da visita de YHWH (Yahweh) na pessoa de Jesus. E o objetivo da
visita é “trazer resgate para seu povo”, ou seja., libertá-lo. Para isso, faz surgir um “libertador podero-
so”: é a interpretação do grego иέρας que, literalmente, significa “chifre, promontório, ala de exército,
braço de rio”, enfim, qualquer coisa que se projete à frente. Essa expressão é empregada em relação a
YHWH no Salmo 18:3 (Cfr. também Salmo 132:17 e Ezeq. 29:21).
O parêntese do versículo 70 fala do anúncio à os profetas άπ̉αίώνος, ou seja, desde muito tempo, senti-
do que é mister gravar para a palavra (αίών) que, já o vimos, não significa “eterno”, mas sim “de longa
duração”, isto é, a duração de um evo. O anúncio é feito “pela boca dos profetas”, porque não são eles

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C. TORRES PASTORINO
que falam, mas é por meio deles que são ditadas as palavras, que é o significado técnico do verbo do
verbo προφητεύω. Por isso salientamos que profeta tem sua tradução exata na palavra moderna “mé-
dium”, neologismo criado por Allan Kardec.
O juramento feito a Abraão foi de dar-lhe numerosa posteridade, na qual seriam abençoadas todas as
nações da Terra (Gên. 22: 16-18; 24:7; e Hebr. 6:13).
Na segunda parte, Zacarias dirige-se a seu filho, apostrofando-o e afirmando que ele será chamado
“profeta do Altíssimo”. Repete, então, resumindo-as, as palavras de Malaquias (3: 1): “eis que vos
envio meu mensageiro, que aplainará o caminho diante DE MIM (é Yahweh quem fala!)” e de Isaías
(40:3) “uma voz grita: abri, no deserto, o caminho de Yahweh “.
Realmente, está tudo certo. Jesus é a encarnação de Yahweh e João a reencarnação de Elias, como es-
clarece o mesmo Malaquias (4:5) : “eis que eu vos enviarei o profeta Elias, antes que venha o grande e
terrível dia de Yahweh” .
O precursor dará ao povo o conhecimento da salvação, que consiste “έν άφέσι άµαρτιών αύτών”, isto
é, “na rejeição dos erros deles”.
Examinemos a frase, geralmente traduzida como “o conhecimento da salvação na remissão de seus
pecados”. Conhecimento (γνώσις) é a palavra que exprime “saber profundo”, ou “conhecimento real”.
Salvação corresponde ao grego σωτηερία que apresenta os dois sentidos (como em latim salus, salutis
e em francês salut) e tanto se refere à parte física “saúde”, como à parte espiritual “salvação”. A pre-
posição en tem aqui função instrumental “salvação que se obtém por meio de”, ou “que consiste em”.
O dativo άφέσει (regido pela preposição) exprime o ato de “jogar fora, mandar embora, despedir”;
portanto rejeição, expulsão. O genitivo άµαρτιών αύτών significa “dos erros deles”, erros que, no
campo teológico, são denominados “pecados ou quedas” . Mas o vocábulo grego exprime idéia mais
ampla: todo e qualquer erro.
A “salvação” ou libertação da criatura da constante descida à matéria, ou seja, do ciclo reencarnatório,
é obtida pela “rejeição dos erros”, e não apenas pela remissão dos pecados”, isto é, por meio de fór-
mulas ritualísticas ou palavras mágicas. Também não é conseguida mediante atos de outra pessoa, por
mais categorizada que seja: depende única e exclusivamente de cada um. Só se “salvará” quem rejeitar
seus erros, mudando o rumo de sua vida e renovando-se interiormente.
Tudo isso pode realizar-se “pelo coração ou pelo amor misericordioso de nosso Deus (Yahweh, o Deus
dos Israelitas), pelo qual amor nos visitará o Sol do Alto. Aqui Jesus é comparado ao Sol Sublime, que
do Alto vem a nós para iluminar “os que estão sentados nas trevas e nas sombras da morte”, ou seja, os
que estão encarnados no cárcere da carne, nas trevas da matéria, sujeitos à sombra triste da morte ine-
xorável. E é esse Sol, já tão cultuado em outros povos como a manifestação da natureza que melhor
nos revela os atributos divinos, e ele que “dirigirá nossos passos no caminho da paz”.
Lucas encerra o episódio numa penada simples, em que nos mostra o menino a crescer e fortalecer-se
“em espírito”, permanecendo nos desertos, até o momento do início de sua missão de precursor.
No sentido esotérico aprendemos muito.
O intelecto compreendeu finalmente a realidade da Vida Maior. Após o Encontro achou-se repleto do
Espírito Santo, do Cristo Cósmico que lhe permeou todas as células até o âmago do ser, e enalteceu
os acontecimentos percebidos durante o “mergulho” (batismo) na profundidade abismal do Infinito
Eterno.
Reconhece, então, que Deus o veio visitar, a ele e “a todo o seu povo”, a todos aqueles seres que
constituem seu corpo astral (perispírito) e sua contraparte física, e que, embora em estado inicial de
vida, formam “um povo” que futuramente constituirá os seres de um planeta ou de um sistema plane-
tário.
Meditemos a esse respeito.

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SABEDORIA DO EVANGELHO
Cada criatura humana é constituída de trilhões de células. Cada célula é um ser espiritual, individua-
lizado da Centelha Divina, e que já ultrapassou os estágios mineral e vegetal, iniciando-se na fase
animal. Compreendamos bem que, nesse estágio, a célula é um vórtice energético animado por um ser
espiritual, que se reveste de matéria física para constituir o corpo denso da criatura. Repisemos: o
corpo astral ou perispírito, no ventre materno, não “se materializa” em bloco: sua materialização é o
resultado da materialização parcelada de cada uma de suas células.
Avancemos. Cada ser, ao sair do estado monocelular, vai crescendo pela lei das Unidades Coletivas
(Pietro Ubaldi, em a “Grande Síntese”), e vai necessitando de “auxiliares” para desempenhar suas
funções que se multiplicam. Vai então agregando a si outros seres monocelulares, que o acompanha-
rão durante todo o curso evolutivo.
Ao chegar ao estado humano, o número de suas células está mais ou menos fixado, e a criatura se vai
elevando na escala servido sempre pelas células servis, como auxiliadoras preciosas de sua evolução.
As células são AS MESMAS vida após vida, embora o envoltório físico dessas células varie de vida
para vida e até dentro de uma mesma existência da criatura, elas “morrem” e “renascem”, isto é,
perdem a matéria física e retomam outra. A prova de que a parte espiritual das células é a mesma, e
de que só seu “corpo” ,se refaz, é que as cicatrizes profundas da infância se mantêm até a velhice,
embora a ciência tenha confirmado que, após cada sete anos, todas as células se renovam (menos as
nervosas, que pertencem ao corpo etérico e não ao físico). Então, elas se renovam, sim, mas só no
corpo físico, que é a contrapartida, a materialização de seu corpo perispiritual ou astral. E as cicatri-
zes profundas afetam o corpo astral das células, e por isso não desaparecem, pois atingem o vórtice
energético. No entanto, as pequenas e leves cicatrizes, que só atingiram o corpo físico das células,
essas desaparecem quando as células tomam outro corpo físico.
Ora, essas células, seres espirituais com mente própria (tanto que “sabem” sua função específica e a
executam a rigor) evoluirão também. Enquanto permanecem no corpo humano, possuem a chamada
“alma grupo”, constituída por nosso próprio espírito, e são governadas por nossa mente subconsci-
ente. Tanto assim que, se nos desequilibra e aparecem os distúrbios e enfermidades.
Mas, ascendendo lentissimamente pela escala animal, atingirão após milênios de milênios, a escala
humana. A esse ponto, a criatura humana que foi servida por essas células (hoje criaturas humanas)
já atingiu grau evolutivo elevadíssimo e terá sob sua responsabilidade todo esse conglomerado huma-
no, que constituirá “o seu povo”.
Aqui temos uma explicação do grande motivo que impeliu Yahweh (Jesus) a criar o planeta (ou todo o
sistema planetário), para acolher-nos em nossa evolução: esta humanidade, que aqui vive, é constituí-
da das antigas células que, em épocas imemoriais, formaram os corpos de Jesus durante sua passa-
gem pela escala hominal em outros planetas. Ajudamo-lo em Sua evolução hominal e Ele agora ama-
nos entranhadamente, até o sacrifício, e veio entre nós “o que era Seu”, para ajudar-nos a libertar-
nos do jugo da matéria. (Esclareçamos, todavia, que não nos referimos ao corpo de Jesus materiali-
zado em sua última passagem pela Terra há dois mil anos. Não. O que dizemos ocorreu há bilhões de
anos atrás) .
Como é maravilhoso e sublime o encadeamento de todos os seres do Universo, nessa sucessão cons-
tante para a Divindade, através do Serviço e do Amor!
Zacarias, pois, o intelecto que compreendia essas verdades, bendiz o Senhor Deus de Israel, pois re-
almente para nós, as antigas células de Seu corpo, Jesus é um Deus, é “o nosso Deus”.
Percebendo isto ao “mergulhar” no Profundo de si mesmo unindo-se ao Cristo Interno, o intelecto vê
que surgiu para ele o Libertador da “casa de David”, ou seja, do plano do AMADO. Relembremos
que Deus, o Absoluto (o AMOR), quando se manifesta é o Pai ou Verbo (o AMANTE), e Sua manifes-
tação é o Filho ou Cristo (o AMADO) que nos liberta. É pois “da casa do AMADO” (significado do
nome “David”) que surge o Libertador.
Todo esse sistema de penetração no âmago, para encontrar o Cristo Interno ou EU Supremo, foi
anunciado desde a mais remota antiguidade por todos os profetas, que eram apenas “intermediários”
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C. TORRES PASTORINO
de Yahweh, não apenas junto aos israelitas, mas a todos os povos, pois todos têm a mesma origem e
filiação divinas. A cada povo, a manifestação esteve de acordo com sua capacidade, dando-nos a
idéia de que cada raça constitui um órgão diferente do mesmo corpo (Cfr. Paulo, Rom. 12:4-5 “pois
assim como temos muitos membros em um só corpo (e todos os membros não têm a mesma função),
assim nós, sendo muitos, SOMOS UM SÓ CORPO EM CRISTO, mas individualmente somos membros
um dos outros”, e mais: “não sabeis que Vossos corpos são MEMBROS DE CRISTO”? (1 Cor. 6:15);
e ainda: “assim como o corpo é um e tem muitos membros, e todos os membros do corpo, embora
muitos, constituem um só corpo, ASSIM TAMBÉM É CRI.S'TO” (1 Cor.12:12); e adiante: “ora, vós
sais CORPO DE CRISTO, e individualmente UM DE SEUS MEMBROS” (1 Cor. 12:27); e em outro
passo: “porque SOMOS MEMBROS DE SEU CORPO”, de Cristo (Ef. 5:30) . E que todas as raças
formam esse corpo, também é afirmado por Paulo (1 Cor.12:13) ; “em um só Espírito (de Cristo) fo-
mos todos mergulhados em um só corpo - quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer livres – e a
todos nós foi dado de beber dum só Espírito: também o corpo não é um só membro, mas muitos”).
Depois de acenar à liberdade que obterá com esse mergulho no infinito, o intelecto se dirige ao ho-
mem-Novo que nasceu, e o apostrofa, prevendo que, de ora em diante, será ele o precursor da União
Definitiva da Unificação, conseguida pelo Amor Misericordioso.
Também nessa Aventura Santa o intelecto viu que a “salvação” consiste na rejeição total de seus er-
ros, ou seja, na convicção absoluta de que o “eu” não é o corpo físico, nem as sensações, nem as
emoções, nem os pensamentos, nem o chamado “espírito”, mas é na realidade o EU Supremo, o
Cristo Interno. compreendeu que tudo o que e externo a ele” é transitório, e portanto ilusão dos senti-
dos, e só Deus, a única realidade Objetiva, é Eterno, e esse está DENTRO DÊLE (Cfr. ('Não sabeis
que VOSSO CORPO é santuário do Espírito Santo QUE HABITA EM VÓIS”? 1 Cor, 6:19). Compre-
endeu que tempo e espaço são criações mentais, e que só o Infinito e o Eterno são realidades. Com-
preendeu finalmente que, quando a União for conseguida, ele será UM com Cristo, assim como Cristo
é UM com Deus(Cfr. Jo. 17:23) porque “aquele que SE UNE ao Senhor, é UM ESPÍRITO COM ELE
(1 Cor. 6.17).
Tantas coisas percebeu, quando penetrou na Luz Incriada do Sol do Alto, que se sente totalmente ani-
quilado em sua personalidade, iluminado plenamente, embora “ainda sentado nas trevas e na sombra
da morte”, ou seja, ainda mergulhado na matéria do corpo físico. Mas agora confia no Sol Divino:
seus passos seguirão invariavelmente a estrada da PAZ.
E o evangelista tem o cuidado de alertar-nos para o fato de que o Grande Acontecimento não parou
aí, mas prosseguiu desenvolvendo-se, crescendo “em Espírito” e fortalecendo-se pelo exercício conti-
nuado, não no meio das multidões citadinas, mas no deserto silencioso da meditação solitária, até
que, bem amadurecido, pudesse manifestar-se.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

REVELAÇÃO A JOSÉ
Mat. 1:18-25
18. Ora, a. concepção de Jesus Cristo ocorreu desta maneira: sendo Maria, sua mãe, noi-
va de José, antes que se ajuntassem ela rol achada. grávida de um espírito santo.
19. E José, seu noivo, sendo reto e não querendo infamá-la. resolveu deixá-la secretamen-
te.
20. Tendo, porém, meditado nessas coisas, eis que um anjo do Senhor lhe apareceu em
sonhos dizendo: “José, filho de David, não temas receber em casa Maria como tua
mulher, pois o que nela. foi gerado é de um espírito;
21. ela dará à luz um filho a. quem chamarás JESUS, porque ele salvará seu povo dos pe-
cados deles”.
22. Ora. tudo isso aconteceu para que se cumprisse o que dissera o Senhor pelo profeta:
23. “eis que a Virgem conceberá e dará à luz um filho e ele será chamado Emanuel, que
quer, dizer Deus conosco”.
24. Tendo José despertado do sono, fez como o anjo do Senhor lhe ordenara e recebeu
sua mulher.
25. e não a conheceu enquanto ela não deu à luz um filho, a quem pôs o nome de JESUS.

Encontramos duas narrativas a respeito do mesmo fato, em Mateus (1:18-25) e em Lucas (2:1-20).
Havendo diferença entre os dois textos, comentá-los-emos em separado.
Após a genealogia (que estudaremos depois), Mateus inicia: “ora, a concepção (ή γένεσις) de Jesus
Cristo Ocorreu desta maneira”. E passa a narrar.
Sendo Maria noiva (µνηστευθείσες; particípio aoristo passivo, noiva, prometida em casamento) de
José, antes que se ajuntassem, ela se achou grávida de um espírito santo”.
Os judeus distinguiam nitidamente o noivado e o casamento (Deut. 20:7), que o original grego distin-
gue também com os verbos µνηστεύω (noivar), comprometer-se) e παραλαµβάνειν (receber em sua
casa), o que tinha como resultado o “coabitar, morar juntos”: σνυέρХοµαι.
Então, ainda durante o noivado, José verificou a gravidez (εύ-ρέθη έν γαστρι έХουσα). O fato só pode
ter ocorrido depois que Maria regressou da casa de Isabel Ai'n-Karim, para sua aldeia de Nazaré. Ma-
teus silencia a esse respeito, fazendo que o leitor suponha que eles normalmente habitavam em Belém.
Tanto que, mais tarde (2:23) diz que, quando José regressava do Egito para sua casa (Belém) , ao saber
que Arquelau, filho de Herodes, é que lá reinava, resolveu ir morar na Galiléia, a conselho do anjo, na
cidade de Nazaré, “para que o menino pudesse realizar a profecia e ser chamado nazareno”. Portanto,
para Mateus, Nazaré era um lugar ainda desconhecido de José e de Maria, ao passo que, par Lucas,
Nazaré era a residência normal dos dois.
Mateus não fala da viagem de Maria. Mas José só podia “descobrir” a gravidez quando desta apareces-
sem sinais externos, o que só ocorre no 4..º ou 5..º mês, isto é, exatamente quando do regresso de Ma-
ria da casa de Isabel.
José é dito άνήρ de Maria. Essa palavra (tal como o latim vir) tem o sentido de “varão”, em oposição a
γυνη (latim mulier). O termo άνθρωπος, correspondente ao latim homo) , exprime genericamente o ser
humano, macho ou fêmea indistintamente. José, pois, era o “homem” (que podia ser o noivo ou mari-
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do) de Maria. Aqui trata-se evidentemente de noivo, pois ainda não se tinham casado, já que José não
na havia levado para sua casa e não coabitara com ela.
Sendo bom, José não quis infamá-la. Os direitos dos noivos eram equiparados aos dos já casados, tanto
que: a) a noiva infiel devia ser apedrejada, como se já fora esposa (Deut. 22:20-27); b) a noiva podia
ser despedida com uma “carta de divórcio”; c) a criança nascida na época do noivado era considerada
legítima; e d) se o noivo morria, ela era tratada como viúva, devendo, pela lei do “levirato” coabitar
com o irmão do noivo, para que tivesse filhos dele.
Diz Mateus que José, na dúvida entre acusá-la perante o Sinédrio, difamando-a, ou repudiá-la com
uma “carta de divórcio”, optou pela segunda hipótese, pois para isso bastava uma carta assinada por
ele diante de duas testemunhas, o que não provocava escândalo.
Tendo meditado nessas coisas e tomado sua resolução, deitou-se para dormir. Foi quando, em sonhos,
recebeu a visita de um “anjo do Senhor” ou, na linguagem moderna, um “espírito bom”. Aparece aqui
a mediunidade “onírica' ou de sonhos, confirmada como existente em José, logo a seguir, em mais
quatro passos (2:12, 13, 19 e 22) . Parece que José só possuía esse tipo de sensibilidade psíquica. Ma-
teus não revela o nome do espírito, em nenhum dos cinco trechos.
Nossa tradução do versículo 20 difere das traduções correntes, porque seguimos o texto original grego.
Assim: 1) em lugar de “pensava”, colocamos “tendo meditado”, tradução melhor para o particípio do
aoristo ένθυµηθέντος; 2) “receber em casa” que exprime o ato do casamento, traduzindo παραλαβεϊν;
3) “receber Maria como tua mulher”, porque se trata da construção de “duplo acusativo” (por exemplo,
receber alguém como hóspede); 4) “o que foi gerado nela é de um espírito”, porque em grego não há
artigo, (logo é indefinido) e nem sequer aparece o adjetivo “santo”, que só foi introduzido no texto
latino da Vulgata.

FIGURA “Revelação a José”

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Ao aceitar Maria sua noiva, embora já grávida de vários meses, como sua esposa, José assumia auto-
maticamente a paternidade legal o nascituro.
O espírito que fala a José, no sonho, repete-lhe as palavras que Gabriel dissera a Maria, quanto ao me-
nino, impondo-lhe o mesmo nome. E Mateus traz, em apoio, uma citação do profeta Isaías (7:14).
A formula empregada por Mateus: “o que disse o Senhor pelo profeta”, ou seja, “o que falou o espírito
pelo órgão” ( ‫ ) ץם״ך״‬do profeta (em grego διά , em latim per) vem confirmar a tese da mediunidade,
demonstrando que o “profeta”, como intermediário ou médium, apenas serve de aparelho ou órgão de
um espírito.
A profecia de Isaías afirma que “uma virgem conceberá e dará à luz um filho”. O termo “virgem” me-
rece estudado.
Em hebraico há duas palavras: betulân, que especificava a virgindade como certa; e almâh que expri-
mia uma oposição, sem garanti-la. Ora, Isaías escreve exatamente almáh. E verificamos que, em Deut.
22:23, a noiva, e mesmo a esposa recém-casada era chamada ne'arah betulâh.
Em grego a palavra παρθένος exprime o mesmo: virgem, mas em sentido genérico tanto que as moças
noivas e também as recém-casadas eram assim chamadas, e isso na própria Bíblia (cfr. Deut. 22:23; 1
Reis 1:2; Ester 2:3). Em todas essas passagens, a palavra virgem designa a moça que e dada a alguém
para deitar-se com ele, supondo-se que se trata de uma virgem, isto é, de moça ainda não ligada pelo
casamento a um homem.
A mesma designação é atribuída a Maria, demonstrando que, ao lhe ser dada como noiva, era virgem,
o que é natural e normal. No entanto, em nenhum local dos Evangelhos se diz, nem se supõe, que Ma-
ria continuou Virgem depois. Ela era virgem quando concebeu, o que de modo geral ocorre com todas
as moças.
Esses nossos esclarecimentos não visam a diminuir o respeito e a veneração que todos temos pela Mãe
Santíssima de Jesus, pois o fato da virgindade nenhuma importância apresenta diante da espiritualida-
de.
A IMPOSIÇÃO DIVINA do uso do sexo para manutenção e multiplicação de Sua criação, nos diver-
sos estágios evolutivos (plantas, animais e homens) vem provar que o sexo é SANTO. Não podemos
admitir que Deus, Sábio e Bom, tivesse imposto obrigatoriamente as Suas criaturas uma condição que,
ao cumpri-la, as tornasse imperfeitas. Se no ato sexual houvesse uma leve imperfeição sequer, ou um
sina1 de atraso espiritual, esse Deus seria monstruosamente mau, pois teria obrigado Sua criação a ser
imperfeita e atrasada, afim de manter e multiplicar Suas obras. Portanto, compreendendo o ato sexual
em si e a maternidade como perfeições altamente espiritualizantes (porque são o cumprimento de uma
Lei Divina), achamos que Maria se engrandece perante Deus com a maternidade normal, porque assim
dá demonstração de ser fiel e obediente cumpridora da Vontade Divina. Compreendendo bem esse
problema, o jesuíta padre Teilhard de Chardin atribui à sexualidade um sentido cósmico e afirma que
“o mundo não se diviniza por supressões, mas por sublimação”, e ainda: “que o homem e a mulher
tanto mais se unirão a Deus, quanto mais se amarem”, não vendo apenas “o objetivo admirável mas
transitório da reprodução”, mas “o de dar plena expansão à quantidade do amor, liberado do dever da
reprodução”. E diz claramente, sem subterfúgios: “a mulher é, para o homem, o termo susceptível de
impulsionar esse progresso para a frente. Pela mulher, e só pela mulher, pode o homem escapar ao
isolamento, no qual sua própria perfeição se arriscaria prendê-lo” (L'énergie humaine”, édition Seujl,
pág. 93 a 96). Realmente a união sexual dentro do amor é a imagem mais fiel da união do homem com
a Divindade, e por isso os místicos denominam essa unificação do homem com Deus de “Esponsalí-
cio”.
Na profecia de Isaías, o menino seria chamado ‫ץמוד אב‬. Himmanu-El, que significa “Deus conosco”,
exprimindo a grande verdade de que Deus ESTA REALMENTE DENTRO DE NÓS, está CONOS-
CO.

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C. TORRES PASTORINO
Despertando de seu sono, José recebe Maria em sua casa, na qualidade de sua esposa, mas, atesta o
evangelista, “não a conheceu até que ela deu à luz um filho”. Nada pode deduzir-se, com segurança, do
que ocorreu posteriormente ao nascimento do filho. A frase não no autoriza. As expressões latina do-
nec, grega έώς ού , e hebraica 'ad ki, negam a ação até aquele momento, mas não obrigam a supor-se o
contrário daí por diante. Por exemplo: “O corvo não regressou à arca até que as águas secassem” (Gên.
8:7) não obriga a acreditar que ele aí tenha regressado depois que se secaram. Então, o que ocorre de-
pois não é afirmado.
Sob a figura dos fatos que narra, revela-nos Mateus o que normalmente ocorre com o intelecto (José)
quando recebe o impacto da revelação por parte da intuição (Maria;): assusta-se, raciocina, pequire,
medita, e não consegue ter outra saída senão a de recusar o que lhe traz a intuição.
Muito bem apresentado o fato, para descrever a luta intelectual das criaturas e sua resolução final:
repudiar as “loucuras” da intuição. Na realidade, vemos, pela narrativa dos “fatos”, que a intuição
recebeu a revelação do espírito (Eu interno), ANTES de unir-se ao intelecto: foi ela a primeira a
“conceber” a idéia. E a “concebeu” virginalmente, por obra do Espírito (Eu interno) e não por in-
termédio de outro qualquer homem.
No entanto, quando há real sinceridade intelectual (sendo “justo”), aparece um auxílio, e por vezes de
modo imprevisto. Com José deu-se o fato fora do corpo denso. Quando à noite se achava o intelecto
desprendido do cárcere da caixa craniana no cérebro, e portanto estando ampliada sua visão com-
preensiva, ele intelecto vê, e aceita, porque compreende que a intuição foi iluminada e concebeu “pelo
espírito”, e não por divagações traiçoeiras. Ao verificar esse fato de suma importância, o intelecto
aceita unir-se à intuição, aceitá-la “como esposa” isto é, na maior intimidade e fusão de dois em um,
até que possa nascer o fruto anunciado.
Todavia a união não é ainda total e perfeita. Só o será quando aparecer a realidade do filho; por isso
diz o evangelista: “não a conheceu enquanto não lhe nasceu o filho”. Só aí é que o intelecto se unifica
à intuição, para que ambos usufruam da felicidade incomensurável da presença de “DEUS CONOS-
CO”, do Cristo interno manifestado às criaturas.
Não há negar que os segredos revelados pelos Evangelhos, como por todos os livros sagrados da Hu-
manidade, são feitos através de fatos reais e de narrativas maravilhosas. As palavras são escritas de
tal forma, os pormenores descritos com tal cuidado, que o leitor desprevenido apenas lê e compreende
o que está realmente escrito, e não avança para o sentido profundo e místico que essas palavras que-
rem ensinar. Por isso Jesus ensinava “em parábolas”, e seus discípulos lhe seguiram fielmente os
ensinamentos, para que a profundidade dos conhecimentos não atordoasse nem atordoasse aqueles
que “não podiam suportar” (João, 16:12), e pura que só fossem revelados quando “os tempos fossem
chegados” (Mat. 24:33). Mas é mister não perder de vista que as palavras dele “são espírito e vida”
(Jo. 6:63).

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SABEDORIA DO EVANGELHO

NASCIMENTO DE JESUS
Luc. 2:1-20
1. Naqueles dias foi expedido um decreto de César Augusto, para que todo o mundo fos-
se recenseado.
2. Este recenseamento foi primeiro (antes) do que se fez no tempo em que Quirino era
governador da Síria.
3. E todos iam alistar-se, cada um à sua própria cidade.
4. José também subiu da Galiléia, da cidade de Nazaré, à Judéia, à cidade de Nazaré, à
Judéia; à cidade de David, chamada Belém, por ser ele da casa e família de David,
5. para alistar-se, acompanhado de Maria, sua noiva, que estava grávida.
6. Estando eles ali, completaram-se os dias de dar à luz,
7. e teve um filho primogênito, e o enfaixou e o deitou em uma mangedoura, porque não
havia lugar para eles na hospedaria.

Voltemos ao episódio, que comentamos em Mateus, observando as divergências do texto de Lucas.


Este começa por situar historicamente o fato: estávamos sob o reinado de Herodes, que faleceu no ano
4 A.C., ou seja, no ano 750 de Roma (A.U.C.) conforme narram Josefo (Antiquit. Jud., 17,8,1 e 17,
9,213 e Bellum Jud. 1,33,1 e 8; e 2.6.4) isto é, nos primeiros meses do ano 4 A.C. Pois sabemos que
faleceu dias após um eclipse da lua {Antiq. Jud. 17.6.4 § 187), que ocorreu entre 12 e 13 de março de
4 AC. (cfr. Scheirer, l.c. pág. 416). Estaríamos, portanto, à época da narração de Lucas, no máximo no
ano 5 A. C. ou 749 de Roma. Precisaremos mais a data, verificando tratar-se do ano 7 A.C. (ou 747 de
Roma).
Outra referência histórica é o recenseamento ordenado por um edito de César Augusto (Otávio) que se
iniciou no Egito no ano 10-9 A.C. (cfr. Grenfell & Hunt, Oxyril/,Chus papyri, tomo 2, pág. 207-214),
continuado na Gália (cfr. Dion 53, 22, 5) e na Síria, por Quirino {cfr. Corpus Inscript. Lat. 3, 6687) no
ano 7 depois de Cristo. Trata-se, pois, aqui, de outro recenseamento anterior, realizado por Sentius
Saturninus, Legado imperial na Palestina, de 8 a 6 A.C. {cfr. Tertuliano, Patrol. Lat. vol. 2, col. 405, e
Schurer, Geschichte des judischen Volkes, tomo 1, pág. 321). Isto fortalece a hipótese do ano 7 A.C.
para o nascimento de Jesus.
Diz Lucas que “todos iam alistar-se, cada um à sua cidade”, e por isso José e Maria seguiram viagem
para Belém de Judá, cidade de David. Esse princípio não vigorava do Direito Romano, embora Gaius
Valeri us Máximus, em 103 (depois de Cristo) tivesse ordenado no Egito (cfr. Pap. Lond. 3, pág. 125),
que os cidadãos “se dirigissem para a sede do município a fim de alistar-se”. Mas é diferente: é a sede
do município, e não a cidade de origem. Ora, não era esse o caso de José, porque Belém não era a sede
do município de Nazaré.
O fato de ter-se feito acompanhar de Maria (ainda noiva, segundo Lucas, já sua esposa, segundo Ma-
teus) pode explicar-se por ser ela também da “casa e família” de David.
Em Belém completa-se o tempo de Maria, tendo-lhe nascido o filho primogênito. A notificação de que
Jesus é o primogênito não implica na necessidade de que posteriormente viesse a ter outros filhos. A
expressão é autônoma e tem em mira salientar que Jesus era o bekor, que pertencia a Deus, devendo-
lhe ser consagrado desde o nascimento (cfr. Êx. 13:2 e 34:19).

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O evangelista diz que o menino “foi colocado em uma mangedoura, porque não havia lugar para eles
na hospedaria”. A hospedaria, ou kân, era um abrigo rústico para os viajantes.
O termo φάτνη (mangedoura) refere-se à mangedoura fixa, que podia estar instalada numa gruta (se-
gundo a tradição oral e o “proto-evangelho” de Tiago, n.º 18), ou o estábulo interno da habitação,
onde, no rigor do inverno, se guardavam os animais; consistia num quarto construído em continuação
da casa, numa “puxada”, em que podiam abrigar-se também pessoas com relativo conforto; e real-
mente isso ocorria, quando os lugares da casa já estavam todos tomados.
A tradição (por falar-se em estábulo e mangedoura) enriqueceu a narrativa de Lucas com o pormenor
lendário de que Jesus foi colocado entre um boi e um jumento. Inspirou-se a tradição também em Isaí-
as (1:3) e em Habacuc (3:2), de acordo com o texto dos Septuaginta e da Ítala: “serás conhecido no
meio de dois animais”, (cfr. Orígenes, Patrol. Graeca, vol. 13, col. 1832 e Jerônimo, Patrol. Lat. vol.
22, cal. 884).
De acordo com os comentários acima, não era praxe romana a exigência de que os cidadãos se loco-
movessem para ser recenseados na cidade de seu nascimento. Eminentemente práticos, desejando
sempre eficiência e rapidez nos resultados, não podiam ficar sujeitos a grandes movimentações de
massas populares, que retardariam os negócios. Pequenos comerciantes e agricultores não poderiam
abandonar seus campos e suas lojas para transladar-se (com que recursos?) a localidades por vezes
distantes, para simplesmente submeter-se a um censo. Seria uma exigência impraticável até mesmo na
época moderna, com a facilidade de transportes. Imaginemos uma ordem dessas em nossos dias: qua-
se a totalidade dos brasileiros teria que transladar-se para a Europa ou a África, para serem recense-
ados... Não seriam os juristas (e que juristas!) romanos que determinariam esse absurdo, há dois mi-
lênios. José teria que viajar três dias a pé, abandonando seus afazeres, e isso só porque um de seus
ascendentes nascera em Belém, havia mais de MIL ANOS! E por que não teria de ir a Ur, na Caldéia,
onde nascera seu ascendente Abraão?
De tudo isso, deduzimos que o fato narrado pela frase do evangelista oculta um símbolo altamente
místico e expressivo.
Com efeito, na cidade de Belém havia uma escola iniciática de grande elevação espiritual, mantida
pelos essênios, e tradicional no profetismo judaico. Era Belém, de acordo com o significado etimoló-
gico da palavra, a “Casa do Pão”, mas do Pão Espiritual, que o candidato a união com Deus devia
frequentar antes do Encontro Sublime. Para essa escola dirigiu-se o intelecto (José) acompanhado da
intuição (Maria), que já estava “grávida” do espírito, pejada de idéias e sensações espirituais a fim
de preparar-se devidamente em Belém para que se desse o “nascimento do menino”.
Notemos que o nascimento se dá pela intuição, só mais tarde atingindo o intelecto.
Belém de Judá, diz o evangelista, era a cidade de David, ou seja, traduzindo o sentido das palavras:
“a casa do pão (espiritual) de louvor a Yahweh, era a cidade do “Bem-Amado” (David), o Santuário
do Amor feito homem.
Observemos, entretanto, que a “ida de José a Belém”, cidade dos antepassados, exprime uma reme-
moração das vidas anteriores, uma visão de conjunto de todo o caminho evolutivo já percorrido pelo
espírito, que, antes do passo final, deve remontar às suas origens mais remotas a partir do momento
em que penetrou o reino-hominal. Essa interpretação será confirmada pouco mais adiante, quando o
falarmos da genealogia de Jesus.
Estando, então, José e Maria (o intelecto e a intuição) no ambiente propício, dá-se finalmente o pri-
meiro encontro com Deus dentro de nós (Emanuel = Deus conosco). Mas notemos que eles estavam
sós, pois não haviam encontrado lugar nas estalagens. Para dizer que ninguém, nenhum agrupamento
humano, pode ajudar à eclosão de união mística. Somente no isolamento da solidão consegue a cria-
tura unir-se ao Criador. Por isso, o intelecto e a intuição se afastam de todos, penetram no santuário
do Pão Espiritual, e se recolhem aí num ambiente simples: a um estábulo. Por que “estábulo”? Exa-
tamente aí reside outra lição. O estábulo é local próprio de animais. E o encontro se dá quando o es-

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SABEDORIA DO EVANGELHO
pírito se encontra no corpo animal, isto é, o corpo denso, constituído de células, que são verdadeiros
“animais” para o espírito, para o Eu Profundo.
Quando se dá a união, quando nasce o menino (o “homem novo”), a intuição o deita na “mangedou-
ra”, ou seja, coloca-o no lugar em que os animais se alimentam. E onde se alimentam de compreensão
os animais-homens, senão no cérebro, sede do intelecto? É O cérebro de fibras nervosas que alimenta
de idéias o homem, ainda animalizado, até que ele atinja as culminâncias da mente, através da intui-
ção.
A intuição, pois, deita o menino no intelecto (Maria entrega o filho a José), e a criatura vê descer até
sua pequenez o Infinito de Deus.
Símbolos maravilhosamente descritos, com sublime transcendência e objetividade singela, jamais al-
cançados em qualquer livro simbolista da literatura mundial.
Por causa desse simbolismo, compreendemos a ânsia das igrejas tradicionais em defender a tese da
virgindade de Maria. O que de início se queria demonstrar, porque é a realidade, é que o encontro
com Deus só pode dar-se virginalmente, isto é, sem interferência de quem quer que seja. Nenhum
mestre pode produzir no discípulo o encontro místico: só a Centelha Divina, só o Espírito da própria
criatura, é que realiza o nascimento. Então, a concepção é realmente “virginal” e produto de “um
espírito”, não por obra de homem. Para defender essa idéia real e sublime, e fazê-la permanecer lím-
pida e clara através dos séculos, as igrejas (mesmo que tivessem perdido a percepção do sentido ínti-
mo) tinham que forçar o simbolismo através dos fatos, para deixar bem cristalino para as gerações
futuras o ensinamento contido no Livro Santo. Em vista disso, “carregaram” as cores do quadro, para
que O ensinamento se não perdesse nem maculasse através dos séculos. E dessa forma, todos os que
tivessem “olhos de ver , ouvidos de ouvir e coração de entender” pudessem ser esclarecidos: não adi-
antaria buscar “fecundação” em nenhum mestre, porque o nascimento é virginal (“quando vos disse-
rem eis aqui o Cristo ou ei-lo ali, não acrediteis”, Mat. 24:33-26).
Evidentemente, o nascimento só poderá dar-se “quando se completarem os dias”, isto é, quando o
amadurecimento tiver chegado a termo; e o “filho” é sempre o “primogênito”, já que, realizado numa
existência, permanecerá o mesmo durante toda a eternidade (seu reino não terá fim. Luc. 1:33).

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ANJOS E PASTORES
Luc.2:8-14
8. Naquela região havia pastores que viviam nos campos e guardavam seus rebanhos
durante as vigílias da noite.
9. Um anjo do Senhor apareceu-lhes e a glória do Senhor brilhou ao redor deles, e en-
cheram-se de grande temor.
10. Disse-lhes o anjo: “não temais, pois vos trago uma boa notícia de grande alegria, que
o será para todo o povo,
11. e é que hoje vos nasceu. na cidade de David, um Salvador, que é Cristo Senhor;
12. e eis para vós o sinal: encontrareis uma criança envolta em faixas e deitada numa
mangedoura”.
13. De repente apareceu com o anjo uma multidão da milícia celeste, louvando a Deus e
dizendo:
14. “Glória a Deus nas maiores alturas e paz na Terra aos homens de boa vontade”.

Diz o evangelista que os pastores estavam “no campo”, onde “viviam”. Realmente, em torno da cidade
de Belém havia numerosas pastagens, onde era hábito viverem os pastores em tendas, a cuidar dos
rebanhos. Todavia, após as grandes chuvas de novembro e no rigor do inverno, já nos fins de dezem-
bro, não era provável que lá permanecessem: já deviam ter recolhido os rebanhos aos currais desde
novembro. Daí deduz-se que o nascimento de Jesus não deve ter ocorrido em dezembro.
Sabemos, com efeito, que só muito mais tarde, em Roma, para “aproveitar” a festa de Mitra (natalis
invicti solis”, nascimento do Sol invicto (ou seja, a entrada do sol no solstício do inverno) festejado em
25 de dezembro, é que a igreja de Roma, por volta de 354 A.D. vulgarizou essa data a toda a cristan-
dade, contrariando muitas outras tradições locais que festejavam o natal em datas diferentes. (Cf. Ca-
lendarius Philocalus, publicado por Theodor Mommsen, no Abhandlungen d Sachs Alcad. d. Wis-
sensch em 1850). Nessa época os bispos da Síria e da Armênia acusaram os romanos de “admiradores
do sol” e “idólatras”.
O anunciador é chamado “anjo”, e o verbo empregado por Lucas έφίστηµι, é muito usado nos autores
profanos para exprimir a aparição dos espíritos (a que eles chamavam “divindades” ou “deuses”, tal
como o sânscrito os chama “devas”, da mesma raiz).
O anjo dá-lhes uma “boa notícia”, o que corresponde ao verbo grego εύαγγελίτοµαι , frequentemente
usado por Paulo e por Lucas, mas que só aparece uma vez em Mateus (11:5) numa citação dos LXX.
Aí também apresenta o mesmo sentido (cfr. 2 Sam. 1:20; 1 Crôn. 10:9.Isaías, 40:9; 52:7; 60:1).
Também a palavra Salvador Σωτήρ é a primeira vez que aparece em o Novo Testamento. Mateus e
Marcos não na empregam. Lucas emprega-a aqui e em Atos (5:31 e 13:23) e João em 4:42. Entretanto
é muito frequente em Paulo. No Velho Testamento a palavra se refere sempre a Yahweh.
Aparece, a seguir , aos pastores, um grande grupo (“milícia”) de anjos, que cantam o célebre versículo,
sobre o qual se estabelecem discussões.
Trata-se de um dístico em cuja primeira parte se celebra a glória de Deus nas maiores alturas, e na se-
gunda parte a paz, na Terra, aos homens de boa-vontade. A polêmica nasceu de uma variante dos códi-
ces, pois o Sinaítico, o Alexandrino, o Vaticano, o de Beza, e as versões latinas e góticas trazem o ge-
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nitivo εύδοиιας, ao passo que o Régio, o de Wolfenbuttel, o de Tischendorf, o Sangalense, o de Oxford
e muitas versões orientais trazem o nominativo εύδοиια. Os que seguem a segunda lição, lêem: “Paz
na Terra e Boa Vontade aos homens”. Mas essa leitura quebraria o ritmo do dístico, além do que seria
indispensável, no grego, a partícula иαί (et), antes do terceiro membro do já então tríptico. Preferível,
então, a lição tradicional, mesmo porque Deus tem boa-vontade para com todas as Suas criaturas, pois
“não tem acepção de pessoas”; mas só lhe podem recebera paz, aqueles que têm boa-vontade e se vol-
tam para Ele. É o exemplo que tantas vezes demos: a água jorra indistintamente para todos, mas o copo
que estiver emborcado jamais se encherá, ao passo que se o virarmos de boca para cima, ele se encherá
da água. Deus dá a todos igualmente, mas só recebem aqueles que “se colocarem em posição de rece-
ber”. A Lei Divina é a mesma em todos os planos e não tem exceções.
O ensinamento é de grande profundidade.
Verificado o Encontro, que se realiza no mais oculto do coração, embora este ainda esteja mergulha-
do no corpo animal de carne (na estrebaria), o recém-nascido é colocado no intelecto, que alimenta
de luzes o corpo animal (na mangedoura), e daí expande suas luzes para todo o corpo. Nessa “regi-
ão” há pastores que guardam o rebanho, isto é, há o sangue (“o sangue é a vida”, Deut. 12:23); com
efeito, é o sangue que guarda e alimenta todo o metabolismo e a vida no microcosmo, como um “bom
pastor” que custodia seu rebanho (as células do corpo físico). Ao sangue aparece, por meio do siste-
ma. nervoso, o “anúncio” do extraordinário e divino fato. No primeiro momento, o sangue se retraí
aterrorizado (a criatura empalidece), mas depois que recebe o aviso, se acalma, porque vem a saber
que na Casa do Amado (na “cidade de David”) - o coração - nasceu o Cristo que é o Salvador , e que
lá se encontra sob a forma de uma criança envolta em faixas. Realmente, o Encontro se dá na “célula-
mônada” que está fixa no ventrículo esquerdo do coração (exatamente no nó de Kait-Flake e His).
Ora, o sangue poderá dar-se conta desse nascimento, ao encontrar o “menino” espiritual, envolto em
faixas (envolto em matéria), cercado do intelecto (José) e da intuição (Maria), que descem ao cora-
ção, na meditação profunda, mergulhando em si mesmo. Só quando a mente desce ao coração pode
encontrar o Eu Profundo, a Centelha Divina, que lá permanece em estado latente, mas que nascerá
um dia.
Ao entrar nesse local sagrado, depois de percorrer outros caminhos, e já purificado pela hematose
nos pulmões, o sangue se regozija com o louvor a Deus, que ali jaz “aniquilado em forma humana”, o
infinito dentro de uma célula, o Verbo feito carne, e que se manifesta aos homens, que visita “seu
povo”. Aqueles que experimentaram o “Encontro Supremo” percebem, com iniludível clareza que sua
circulação sanguínea se acelera e “responde” ao apelo de louvar a Deus. De modo geral, é nessas
circunstâncias que percebemos a diferença entre um corpo comum e o corpo de um asceta, totalmente
espiritualizado, embora ainda sujeito a todas as vicissitudes e necessidades carnais. De qualquer for-
ma, no entanto, o próprio corpo do místico irradia, através da carne, a espiritualização interna.
Por isso o fato tem também repercussão externa. Qualquer pessoa que tenha a intuição desenvolvida,
mesmo que não seja no grau máximo, percebe, sente, que aquela criatura teve o encontro, vive em
união com Deus. E a criatura que experimentou essa felicidade não precisa convocar discípulos,
adeptos e sequazes: todos a procuram espontaneamente, porque a intuição lhes avisa: “os anjos do
Senhor” lhes revelam, sobretudo “durante as vigílias da noite”, isto é, nas horas penumbrosas da
meditação, e enquanto eles “guardam os rebanhos”, ou seja, enquanto pacificamente cuidam de seus
afazeres. Avisa-os intuitivamente. Os “pastores” inicialmente temem que possa tratar-se de um equí-
voco. Mas a insistência e a clareza do aviso os alerta de tal forma que eles resolvem abandonar, nem
que seja por curtas horas, os negócios terrenos, para ir também em busca do recém-nascido, do ho-
mem novo que surgiu na Terra, Luz para o mundo, Salvação para todos.
Entoa-se, então, o hino místico da Glória a Deus que nasce nas criaturas, e de Paz às criaturas que
foram visitadas pelo “nascimento” de Deus em seus corações.
Convém aqui salientar que esse “nascimento” corresponde, simplesmente a um DESPERTAMENTO.
O Cristo interno, a Mônada Divina, existe em tudo e em todos, no mineral, no vegetal, no animal, no
homem, mas em estado latente, impulsionando-o à evolução, mas sem ser percebido pela própria cri-
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atura. Quando esta descobre o caminho e “entra” no “reino-de-Deus” DENTRO de seu coração, aí
descobre a Mônada Divina, e a ela se unifica no Encontro Sublime. Diz-se que “nasceu” o Cristo in-
terno, secretamente, oculto aos olhos da multidão, colocado num estábulo que é o corpo de carne, e
depois deitado na mangedoura, que é o intelecto, alimentador par excelência do homem-animal.

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A VISITA DOS PASTORES


Luc. 2: 15-20
15. Quando os anjos se haviam retirado deles para o céu, diziam os pastores uns aos ou-
tros: “vamos até Belém e vejamos o que aconteceu. o que o Senhor nos deu a conhe-
cer”.
16. E foram a toda pressa e acharam Maria e José e a criança deitada numa mangedou-
ra;
17. e vendo isso, divulgaram o que se lhes havia dito a respeito desse menino.
18. Todos os que o souberam admiravam-se das coisas que lhes referiam os pastores.
19. Maria, porém, guardava todas essas coisas, meditando-as em seu coração.
20. Os pastores voltaram glorificando e louvando a Deus, por tudo quanto tinham ouvido
e visto, como lhes fora anunciado.

Logo que a visão desaparece de seus olhos - uma verdadeira sessão espírita de materialização coletiva
em pleno campo aberto - os pastores, fortemente impressionados, confabulam entre si, resolvendo ir à
procura do menino, a fim de confirmar as palavras dos anjos.
Não o encontram logo: procuraram mas acabaram encontrando o casal a cuidar do recém-nascido, se-
gundo a descrição que lhes fora feita.
Digno de notar-se a palavra céu (ούρανσς) que exprime o mesmo sentido de nossa palavra atual “céu”
quando queremos exprimir a atmosfera, o ar. Os anjos se retiram “para o céu”, isto é, suas formas ma-
terializadas se dissolvem no ar .
A narração do que ocorrera com eles maravilhou a todos. Maria, impressionada com esses fatos (ρήµα-
τα no sentido de ‫ דכך‬os fixava na memória profunda, conservando-os em seu coração (έντή хαρδία
αύτής). Ainda uma vez verificamos que a sede da mente superior e da memória superconsciente (da
individualidade) reside no coração, porque são atributos do Eu Interno, do Cristo de Deus. Um dia a
própria ciência profana o descobrirá.
Depois do impacto do encontro, todos os glóbulos sanguíneos, os “pastores”, apressam-se a ir a Be-
lém (a Casa do Pão Espiritual), isto é, ao Coração, para visitar a Mônada Divina, o Eu Real que ali
reside no Ventrículo Esquerdo, e que se expande em manifestações de Luz. E todo o sangue se apressa
e em poucas horas, passa por esse ventrículo, homenageando o novo residente que se manifestou, e
que antes estava adormecido no ventre (ventrículo) materno, e que agora despertou para a atividade
viva, que NASCEU na luz da ação do homem novo.
No ardor da visita, após o encontro, o sangue, que primeiro se retirara aterrorizado, começa a agitar-
se. As pulsações se aceleram e aparece a taquicardia típica que, no entanto, não incomoda: é a mes-
ma que se experimenta nos grandes momentos da união sexual, que é a imagem mais aproximada e
semelhante da união divina.
Logo após a passagem pelo coração (no estábulo), o sangue vai ao cérebro (a mangedoura) e lá en-
contra o homem-novo”, as novas idéias que lá fervilham. O sangue se maravilha da transformação da
criatura, de. sua “conversão” e apressa-se a “contar a novidade” a todos os órgãos, a todas as célu-
las do corpo; e estas se admiram do que lhes traz o sangue, das novidades que são anunciadas em
ondas de alegria e vibrações harmônicas de paz, confirmando a palavra do anjo: “uma grande ale-
gria, que o será para todo o povo” (vers. 10).
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Em linguagem científica moderna diríamos que as vibrações das células sanguíneas, ao modificar
suas próprias vibrações em contato com o coração, que se transformou pelos novos pensamentos sur-
gidos, vai elevar as vibrações de todas as demais células, fazendo que estas se modifiquem para me-
lhor, sintonizando com o Homem-Novo, expulsando as aflições e mazelas do corpo físico.
A intuição, porém, (Maria) guarda ciosamente todas essas coisas no âmago de si mesma, e nunca ja-
mais se esquecerá das experiências vividas, e frequentemente medita sobre elas.

FIGURA “OS PASTORES COM JESUS” - Pintura de Guido Reni, gravura de H.B.Hall

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SABEDORIA DO EVANGELHO

GENEALOGIA DE JESUS
Mat. 1:1-17
1. Livro da genealogia de Jesus Cristo, filho de David, filho de Abraão.
2. Abraão gerou a Isaac; Isaac gerou a Jacob; Jacob gerou a Judá e seus irmãos;
3. Judá gerou de Tamar a Farés e a Zará; Farés gerou a Esrom; Esrom gerou a Arão;
4. Arão gerou a Aminadab; Aminadab gerou a Naasson; Naasson gerou a Salmon;
5. Salmon gerou de Raab a Booz; Booz gerou de Ruth a Jobed; Jobed gerou a Jessé;
6. e Jessé gerou ao rei David; David gerou a Salomão, daquela que fora mulher de Uri-
as;
7. Salomão gerou a Roboão; Roboão gerou a Abia; Abia gerou a Asá;
8. Asá gerou a Josafá; Josafá gerou a Jorão; Jorão gerou a Ozias;
9. Ozias gerou a Joatão; Joatão gerou a Acaz; Acaz gerou a Ezequias;
10. Ezequias gerou a Manassés; Manassés gerou a Amon ;Amon gerou a Josias,
11. e Josias gerou a Jeconias e a seus irmãos, no tempo do exílio da Babilônia.
12. Depois do exílio da Babilônia, Jeconias gerou a Salatiel; Salatiel gerou a Zorobabel;
13. Zorobabel gerou a Abiud; Abiud gerou a Eliaquim; Eliaquim gerou a Azor;
14. Azor gerou a Sadoc; Sadoc gerou a Aquim; Aquim gerou a Eliud ;
15. Eliud gerou a Eleazar; Eleazar gerou a Matan; Matan gerou a Jacob,
16. e Jacob gerou a José. esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, o chamado Cristo.
17. Assim todas as gerações desde Abraão até David são catorze; também desde David
até o exílio de Babilônia, são quatorze gerações; e desde o exílio em Babilônia até o
Cristo, catorze gerações.

Luc. 3:23-38
23. [Ora. o mesmo Jesus, ao começar seu ministério, tinha cerca de trinta anos] sendo fi-
lho, como e pensava, de José, filho de Heli,
24. de Matat, de Levi, de Meiqui, de Janal, de José,
25. de Matatias, de Amos, de Naum, de Esli, de Nagal,
26. de Maath. de Matatias, de Semei, de Josee, de Jodá,
27. de Joanan, de Résa, de Zorobabel, de Salatiel, de Neri,
28. de Melqui, de Adi, de Cosam, de Elmadan, de Er,
29. de Jesus, de Eliezer, de Jorim, de Matat, e Levi,
30. de Simeão. de Judá, de José, de Jonam, de Eliaquim,
31. de Melca, de Mená, de Matata, de Natan, de David,
32. de Jessé, de Jobed, de Booz, de Sala, de Naasson,

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33. de Aminadab, de Admim, de Arni, e Esrom, de Farés, de Judá,
34. de Jacób, de Isaac, de Abraão, de Tará, de Nacor,
35. de Seruc, de Ragaú, de Falec, de Eber, de Sala,
36. de Cainam, de Arfaxad, de Sem, de Noé, de Lamec,
37. de Matusalém, de Enoc, de Jared, de Maleleel de Cainam,
38. de Enos, de Seth, de Adão, de Deus.

Conforme observamos, não é só a ordem inversa que faz diferir as duas genealogias. Os nomes variam.
Para termos uma idéia real, vamos alinhar em colunas as genealogias, dando primeiro a de Lucas, e ao
lado a de Mateus:
Deus, - Mená Abia
Adão - Meleá Asá
Seth - Eliaquim Josafá
Enos - Jonam Jorão
Cainam - José Osias
Maleleel - Judá Joatão
Jared - Simeão Acaz
Enoc - Levi Ezequias
Matusalém - Matat Manassés
Lamec - Jorim Amon
Noé - Eliezer Josias
Sem - Jesus Jeconias
Arfaxad - Er
Cainam - Elmadan
Sala - Coram
Eber - Adi
Falec - Melqui
Ragaú - Neri
Seruc - Salatiel Salatiel
Nacor - Zorobabel Zarobabel
Tara - Aminadab Aminadab
Abrão Abraão Naasson Naasson
Isaac Isaac Sala Salmon
Jacob Jacob Booz Booz
Judá Judá Jobed Jobed
Farés Farés Jessé Jessé
Ersom Ersom David David
Arni Arão Natan Salomão
Admim - Matata Roboão
Résa Abiud Naum -
Joanan Eliaquim Amós -
Jodâ Azor Matatias -
Josec Sadoc José -
Semei Aquim Janai -
Matatias Eliud Melqui -
Maat Eleazar Levi -
Nagai Mathan Mathat Jacob
Esli - Heli José
JESUS
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SABEDORIA DO EVANGELHO

Na lista genealógica de Mateus encontramos a divisão em três séries, salientadas pelo próprio autor, de
14 nomes cada uma (embora a terceira só chegue ao número 14 se contarmos na série o nome de Ma-
ria). Isso forma o total de 42 gerações, ou seja, 6 X 7 (Note-se que as letras hebraicas do nome de Da-
vid somam 4 + 6 + 4 = 14) .
Na lista de Lucas (cuja primeira parte do versículo 23 será comentada mais tarde) há grande divergên-
cia de nomes, chegando-se a um total de 76 nomes (entre Abraão e Jesus, Lucas nos dá 56 nomes isto
é, mais 14 do que Mateus). É verdade que dois desses nomes, Matat e Levi, são repetidos duas vezes
na mesma ordem, nos versículos 24 e 29, podendo tratar-se de engano de copista, Tanto assim que
Júlio Africano (Patrol. Graeca vol. 20 col. 93) Eusébio (Patrol. Graeca, vol. 22 col. 896) e Ambrósio
(Patrol. Lat. vol., 15 col. 1594) assim como o manuscrito C, não trazem essa repetição.
Por que essa divergência entre os dois evangelistas? Explicam alguns exegetas que Lucas reproduziu a
genealogia de Maria, pois desde o início é dito: “Jesus, filho como se pensava de José, (era) filho de
Reli” ... por intermédio de Maria; embora seja, neste caso, estranho que não tivesse o evangelista cita-
do o nome da mãe de Jesus.
É de notar-se que, de Abraão (1921 A.C.) a David (1078 A.C.) passaram-se 843 anos, o que corres-
ponde a cerca de 28 gerações, e não 14; de David (1078 A.C.) ao cativeiro de Babilônia (606 A.C.)
passaram-se 472 anos, isto é, cerca de 15 gerações, e não 14; e do cativeiro de Babilônia (606 A.C.) até
Jesus passaram-se 600 anos, ou seja, cerca de 20 gerações, e não 14. Qual a razão dessa divisão “caba-
lística” de Mateus?
Observamos, ainda, que Mateus suprimiu diversos nomes que constavam das “listas oficiais” dos Ra-
binos e mesmo do texto bíblico. Por que?
O estudo que acabamos de fazer, e que nos deixa tantas perguntas sem resposta lógica nem histórica,
leva-nos a conclusões mais profundas.
Antes de atingir o grau de elevação indispensável ao Grande Encontro Interno, a criatura humana
necessita haver passado par numerosas experiências terrenas, em vidas sucessivas sem conta.
De qualquer forma, o número 42, para o qual Mateus chama nossa , atenção, e que nada em de histó-
rico, revela-nos a divisão de 3 séries de 14, ou seja, de 6 séries de 7, divididas de dois em dois. Pode-
mos interpretar como a evolução (depois que atingimos o reino-hominal) dos dois primeiros graus
(corpo físico e duplo etérico), em sete períodos cada um; dois dos segundos graus (corpo astral ou de
emoções e intelecto), cada um com sete períodos; e dois dos terceiros graus (corpo mental e causal)
com sete períodos cada um. Depois que tudo está em ponto, é que pode a criatura atingir o grau su-
premo, o sétimo, no qual ainda permanecerá por mais sete estágios, completando a série mística de 49
(7 X 7) para passar ao grau superior de libertação final das encarnações no mundo animal de prova-
ções evolutivas.
De qualquer modo são numerosas e variadas as vidas que PRECISAM ser vividas.
O mais interessante é o versículo final da série, na qual está resumida a fase final da evolução:

Jacob o homem comum


gerou a José o intelecto
esposo de Maria ligado à intuição
da qual nasceu Jesus a Individualidade,
o chamado Cristo o Eu Interno

Com essa explicação, não queremos dizer, em absoluto, que Jesus tenha encarnado nesses elementos
que são citados como seus ascendentes. Nada disso. O que aí está é apenas um simbolismo para nós, a
fim de compreendermos que um espírito imaturo, não desenvolvido ainda, não poderá penetrar o pór-
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C. TORRES PASTORINO
tico do encontro; antes disso DEVE passar por toda a escala evolutiva humana. Daí o cuidado de to-
dos os mestres, inclusive de Jesus, de “não dar aos cães o que é santo, nem pérolas aos porcos” (
Mat. 7:6) , e de “revelar estas coisas aos pequeninos ( humildes ) escondendo-as dos “sábios” (Mat.
11:25). Quem julga saber tudo ou saber muito, está tão inchado de vaidade que não consegue perce-
ber a voz de Deus, o Espelho e Exemplo da Humildade Máxima que possamos conceber.
Nessas vidas que vivemos, experimentamos todas as situações dentro do nosso Raio específico, da
riqueza à pobreza, da posição elevada à humildade, da atuação virtuosa às quedas que ensinam a
humildade, passando, por vezes, a corpos masculinos e femininos. Por isso, nos ascendentes de Jesus,
encontramos todas as castas: reis e mendigos, mulheres virtuosas e meretrizes, senhores e escravos. A
experiência tem que ser completa. Seria possível, mas nos alongaríamos demais, aprofundar o estudo,
examinando e analisando o significado de cada um dos nomes citados e suas posições históricas.
Vejamos apenas alguns.
Mateus cuidou de sublinhar as divisões com nomes extraídos da história. Assim, dá-nos o ponto de
partida, ou seja, os primeiros passos da Centelha Divina no homem, em ABRAHM, primitivo nome
que significa “pai da exaltação”, mas que posteriormente foi mudado para ABRAHAM, isto é, “pai da
multidão”. (Observe-se, em A-BRAHM o radical de BRAHMA, no induísmo; e se dividirmos AB-
RHAM, o significado de PAI RAHM, o conhecido RA dos Egípcios).
Pai da multidão, ou seja, a origem da matéria que se multiplica na separatividade, onde se inicia a
evolução, desenvolvendo-se o corpo físico e o duplo etérico (o mineral e o vegetal).
O segundo grupo é iniciado com DAVID, cujo nome significa “o bem-amado”: é o princípio e o des-
envolvimento do corpo astral (animal), sede das emoções (do amor) e do intelecto (homem), fazendo
chegar ao clímax as emoções e o raciocínio. Recordemo-nos do início da vida de David, que foi como
PASTOR, amando os animais e vivendo entre eles, e a final de sua vida como REI da criação (Homem
intelectualizado), autor lírico dos Salmos, em que canta intelectivamente a glória de Yahweh.
O terceiro período retrata o espírito nos dois últimos passos, quando, desejando libertar-se, ainda se
vê preso no “Cativeiro de Babilônia” ... Babel significa “confusão”. São os estados de dúvida, de
inquietação, de hesitação do intelecto, que sente não ter capacidade de compreender nem de explicar
o que é divino,. quando descobre que tudo aquilo em que acreditou há milênios como sólida e dura-
douro na matéria, é, de fato, ilusório e passageiro...
O “cativeiro da Babilônia” só chega no final da “era de David”, isto é, quando, estando bem desen-
volvidas as emoções e o intelecto, o espírito pode descobrir que se acha “em cativeiro”. Até então
“adorava” sua gaiola dourada, seu corpo físico, sua intelectualidade ... Mas, feita essa descoberta
fundamental, passa a “sentir” a prisão e a querer libertar-se dela. O espírito volta, então, a viver na
Terra Prometida, e, embora ainda prisioneiro do corpo e das sensações físicas, sabe que pode escapar
de seus domínios, abandonando conscientemente os veículos inferiores, e vivendo na luz gloriosa dos
veículos da individualidade. Começa, aí, sua preparação mais minuciosa para o Encontro e a Liber-
tação Final. Atingido esse grau (a mente e o corpo causal), que é o sexto, já estará a criatura apta
para o passo definitivo, para o nascimento de Jesus, o chamado CRISTO, podendo dizer finalmente:
“Eu e o Pai somos Um”.
Passemos a Lucas. Dá-nos ele 76 gerações, de Adão a Heli.
Recordemos que a palavra Adão (em hebraico ADAM) tem simplesmente o sentido do substantivo co-
mum HOMEM. Não é nome próprio.
Então, diz-nos Lucas que, assim que a criatura sai do reino-animal para o reino-hominal, atingindo a
fase humana (adâmica), ele se encontra na contingência de ter que subir a escala evolutiva, superan-
do sete graus de 11 passos. São os mesmos sete passos de Mateus, apenas fazendo-nos notar que, cada
um desses sete passos compreende MUITAS (10) encarnações e mais uma ... Inclusive o sétimo grau,
que Mateus ensina desenvolver-se após o encontro, e que Lucas diz só se dar após mais dez (muitas)
encarnações, com buscas intensivas.
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De tudo isso, que pode parecer cabalístico, mas que corresponde à realidade interna de nosso compli-
cado microcosmo, deduzimos que o Caminho a seguir é exatamente o que JESUS veio ensinar-nos
com Seu exemplo, e que tão bem foi interpretado e ensinado a nós, sob o véu da letra, nos livros sa-
grados. Logicamente os caminhos são muitos (“quem pode marcar o caminho da águia no céu”?,
Prov. 30:19), e assim também as lições variam ligeiramente de autor a autor. Isso, porém, não signifi-
ca contradição a não ser para aqueles que, não conseguindo alçar vôo, permanecem agarrados à le-
tra como a tábuas de “salvação”. Adverte-nos Paulo que “até o dia de hoje, na leitura do Antigo
Testamento, permanece o mesmo véu, não lhes sendo revelado que em Cristo ele é tirado: contudo, até
hoje, sempre que lêem a Moisés, está posto um véu sobre o coração deles; mas todas as vezes que al-
gum deles se “converter” ao Senhor, o véu lhe é tirado (2 Cor. 3:14-16). E isso porque somos “mi-
nistros não da letra, mas do espírito, pois a letra mata, mas o espírito vivifica” (2 Cor. 3:6). Isto ten-
tamos fazer, agora, para o grande público: levantar uma ponta do véu da letra, que encobre tantas
belezas que estavam ocultas sob os hierogramas dos primeiros discípulos de JESUS, o Mestre por
excelência, o CRISTO manifestado, o Filho de DEUS em forma humana. E assim esperamos que esse
mesmo CRISTO desperte de seu sono milenar em cada um de nós, fazendo-nos Seus instrumentos fiéis,
para que O manifestemos entre os homens, quais “cartas de Cristo, escritas nas tábuas de carne de
nossos corações” (2 Cor. 3:3).

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CIRCUNCISÃO
Luc. 2:21
21. Completados os oitos dias para ser circuncidado o menino, deram-lhe o nome de
Jesus, como fora chamado pelo anjo antes de ser concebido no ventre de sua mãe.

Interessante observar que Lucas não afirma ter sido Jesus circuncidado: aproveita-se da citação da lei
da circuncisão no oitavo dia (Gên. 17:12; 21:4; Lev. 12:3), para dizer que, nessa época foi dado ao
menino o nome de JESUS, de acordo com a anterior indicação do anjo.
Essa é uma das provas irrefutáveis da preexistência dos espíritos, e, por conseguinte, da reencarnação:
“antes de ser concebido no ventre de sua mãe”, já existia, já tinha nome. Essa existência anterior é
qualidade inerente a todas as criaturas, pois Jesus é apenas nosso irmão mais velho, “o primogênito
entre muitos irmãos” (Rom. 8:29).
Todos aqueles que penetraram em seu âmago e tiveram contato com a realidade, precisam “circunci-
dar-se”, ou seja, “cortar em redor” de si todas as excrescências, todo APÊGO às coisas passageiras
e ilusórias, a “mayâ” temporária. Essa circuncisão, que corta o APÊGO e a preocupação, não tira,
entretanto, o contato e o interesse pelas outras criaturas de Deus - racionais, irracionais, vegetais e
minerais - mas elimina apenas a cobiça e o agarramento invigilantes a pessoas, animais e coisas.
Mister a renúncia ao mundo material. Não com a fuga cenobítica para o isolamento. Mas ter, como se
não tivesse; possuir, sem ser possuído; usar, como de empréstimo; gerir, como em mordomia; utili-
zar, como administrador que prestará contas; recordando-se sempre que tudo deixaremos aqui e de
que “nada o trouxemos para este mundo e, sem dúvida, nada dele podemos levar” (1 Tim. 6:7). Re-
núncia de coração, destacando-nos das coisas, embora continuando a servir-nos delas; desapegando-
nos das criaturas, embora continuando a amá-las e a servir a elas.

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APRESENTAÇÃO
Luc. 2:22-39
22. Quando se completaram os dias da purificação segundo a lei de Moisés, levaram-no &
Jerusalém para apresentá-lo ao Senhor,
23. (como está escrito na lei do Senhor: “Todo primogênito macho será consagrado ao
Senhor”) ,
24. e para oferecer um sacrifício, segundo o que está dito na lei do Senhor: “um casal de
rolas ou dois , pombinhos”. ,

Segundo a Lei (Lev. 12:2-5), todas as mães que tivessem seu primeiro filho macho deviam apresentar-
se ao templo, no quadragésimo dia após o parto. Por outra lei, quando esse filho era o primogênito
(bekor), a mãe o deveria levar ao templo pessoalmente, para apresentá-lo e consagrá-lo a Deus (Êx. 13:
2 e 12). Entretanto, como os da tribo de Levi é que tinham como função oficial o sacerdócio judaico
(Núm. 3: 12-13), os primogênitos das outras tribos eram “resgatados” com a oferta de cinco “ciclos”
de prata (Núm. 18:15-16) . Sendo Jesus da tribo de Judá, fez Maria a oferta legal por ele, isentando-o
do sacerdócio oficial.
Em vista disso, Lucas não distingue as duas cerimônias: a purificação de Maria e a consagração de
Jesus, mas engloba-as numa só palavra: o resgate deles.
Segundo a citação feita por Lucas de Êx. 13:2 e 12, onde se lê textualmente: “todo macho que abrir a
vulva será chamado santo para o Senhor”, há uma declaração bastante clara de que o nascimento de
Jesus foi normal, não havendo a “virgindade durante nem pois do parto”, como desejam alguns. Se
realmente os fatos tivessem sido anormais, estaria a Mãe de Jesus dispensada da lei.
Para sua purificação, Maria devia oferecer também um sacrifício Lev. 12:8), que consistia em um casal
de rolinhas ou de dois pombos jovens (borrachos). Essa oferta era uma concessão aos pobres, para
substituir o cordeiro, prescrito aos que tinham posses para comprá-lo.
Após o “corte em redor' de si (circuncisão), há necessidade de na “purificação”, de uma limpeza, em
que o iniciante se livra de todas as impurezas de seu passado milenar, de todos os fluídos pesados que
lhe ficaram aderidos à aura durante as vidas anteriores. E é então que a nova personalidade recém-
nascida poderá ser “apresentada” ao Senhor e a Ele consagrada, como o “primogênito” da individu-
alidade.
Realmente, tendo vivido milhares (ou milhões) de vidas em veículos materiais, a individualidade está
carregada de fluídos materiais densos gestando como que o feto do futuro “Filho do Homem”. E ao
obter o “nascimento do filho”, consegue fazer vir à luz o seu primogênito, e deve “consagrá-lo a
Deus”, como “nazireu”. Daí em diante será chamado “santo”, ou seja, “purificado”, dedicado a
Deus.
Essa apresentação é acompanhada de uma oferta simbólica: um cordeiro, ou para os pobres, um ca-
sal de pombos ou de rolas. Demonstra que aquele que obtém a graça do “Encontro” deverá oferecer
a Deus em sacrifício a “parte animal” do homem, seus corpos da personalidade, como sacrifício ao
Espírito.
Uma vez purificados os veículos físicos (material, etérico, astral e intelectual), são eles apresentados
ao templo interno, como oferenda agradável a Deus. Pois não se conceberia que o novo ser, o Ho-
mem-Novo, desprezasse e abandonasse esses veículos que o serviram durante milênios sem conta.

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Terminada a tarefa deles, de ajuda à evolução do Espírito, nada mais justo que eles sejam oferecidos
a Deus e consagrados como recompensa pelo bem que prestaram. Daí por diante, só o espírito vale; e
a criatura espiritualizada passará a viver no corpo, mas não para o corpo. Viverá no corpo como em
um hotel ou um barraco temporário. Já dizia Cícero (De Senectute, XXIII:84) “saio desta vida como
de uma hospedaria, e não como de minha casa, porque a natureza nos dá um abrigo de passagem, e
não um domicílio” . E Paulo: “enquanto estamos nesta tenda de viagem, gememos aflitos” (2
Cor.5:4) . E Pedro: “É justo, enquanto estou nesta tenda de viagem, despertar-vos com recordações”
( 2 Ped. 1:13) .
Essa “hospedaria”, o veículo animal, é ofertado a Deus, continuando o Homem-Novo a tratá-lo bem e
com gratidão, embora esteja vivendo no espírito, pelo espírito e para o espírito.

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CÂNTICO DE SIMEÃO

25. Havia em Jerusalém um homem chamado Simeão, homem esse justo e piedoso, que
esperava a consolação de Israel, e estava sobre ele um espírito santo,
26. pelo qual espírito santo lhe fora revelado que não morreria antes de ver o Cristo do
Senhor.
27. E com o espírito foi ao templo; e quando os pais trouxeram o menino Jesus, para fa-
zer por este o que a lei ordenava,
28. Simeão tomou-o nos seus braços e louvou a Deus dizendo:
29. “Agora tu, Senhor, despedes em paz teu escravo, segundo tua palavra,
30. porque meus olhos já viram a salvação
31. que preparaste ante a face de todos os povos:
32. luz para revelação aos gentios, e glória de teu povo de Israel”.
33. Seu pai e sua mãe maravilharam-se do que dele se dizia.
34. E Simeão os abençoou e disse a Maria, mãe do menino: “Este é posto para queda e
para levantamento de muitos em Israel. e para sinal de contradição,
35. (e também uma espada traspassará tua própria alma), para que os pensamentos de
muitos corações sejam revelados”.

Limita-se o evangelista a dizer que Simeão era “um homem justo e piedoso”, nada mais esclarecendo a
seu respeito. Entretanto, o “Evangelho de Nicodemos” (apócrifo) o chama “grande sacerdote” e a trai-
ção o situa como “muito idoso', embora dizendo que é filho de Hillel (70 A.C. a 10 A.D.) e pai de Ga-
maliel, o que contradiria a tradição a idade provecta. Se aceitássemos essa versão, à época do nasci-
mento e Jesus, Simeão teria de 40 a 50 anos, no máximo.
No versículo 25, Lucas assinala que Simeão aguardava a παρά-λεσιν, isto é, a “consolação” de Israel,
como seus compatriotas . Todavia, sobre ele estava um espírito santo ou bom (em grego, sem artigo) o
qual lhe revelou (observe que, na repetição, aparece o artigo, como se disséssemos em português: “vi
UM- menino; O menino corria” ...) que não desencarnaria sem ver o Cristo de Deus.
Continua Lucas: “e com o espírito foi ao templo”: иαί ήλθεν τώ πνεύµατι είς το ίερόν.
A expressão grega “no espírito” - já o vimos quando comentávamos Luc. 1:17 (veja pág., 32, 2.º pará-
grafo) - tem o sentido associativo ou de companhia. Devemos pois entender “ele foi COM O espírito”
ou “o espírito foi NELE para o templo”.
Em sua outra obra importantíssima (“Analysis Philologica Novi Testamenti Graeci”, editada pelo
Pontifício Instituto Bíblico, Roma, 1960) , o mesmo sacerdote jesuíta Zerwick diz que, neste passo, o
en é causal, isto é: “foi ao templo por causa de um espírito”, ou seja, “impelido por um espírito” .
De qualquer modo, quer consideremos o en “associativo” (foi com um espírito) quer o aceitemos “cau-
sal” (foi impelido por um espírito), o sentido é o mesmo: trata-se de um fenômeno psíquico (mediu-
nismo) em que se manifesta um espírito desencarnado a agir sobre Simeão, revelando-lhe o momento
em que José e Maria levariam o menino Jesus ao templo, para que lá os encontrasse.

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Prossegue Lucas (vers. 27): “ao levarem os pais o menino Jesus” confirmando que, a essa altura, já
estavam casados, e portanto José reconhecera legalmente o filho como seu .
Para que fique bem claro o pensamento do jesuíta padre Maximiliano Zenwick, com o qual concorda-
mos, porque esclarece o texto bíblico de acordo com nossa teoria citamos suas palavras originais, com
a tradução ao lado:
117. Res alicius momenti est volentibus nobis intellegere, É coisa de certa importância para nós compreender como
quomodo Paulus modo dicat nos in Christo (vel in Spiritu) Paulo ora diga estarmos nós em Cristo (no Espírito) ora
esse, modo Christum (vel Spiritum) in nobis esse. De facto Cristo (ou o Espírito) estar em nós. De fato parece ser pe-
tam parva, ne dicam tam nulla, videtur ex mente Pauli dis- quena, para não dizer tão nula, a distinção na mente de Paulo
tinctio esse inter otrumque modum dicendi, ut unum altero entre um e outro modo de dizer, que explica um pelo outro e
explicet et quasi definiat: R 8,9 “vos autem in carne non quase defina: “vós não estais na carne, mas no espírito, se é
estis, sed in spiritu, si tamen spiritus Dei habitat in vobis”. que o espírito de Deus habita em vós” (Rom. 8:9). Então “no
Ergo, “in spiritu” est ille, in quo spiritus est, vel etiam - sicut espírito” está aquele em quem o espírito está, ou também -
Apostolus prosequitur – ille qui “spiritum habet”: “si quis como prossegue o Apóstolo - aquele que “tem o espírito “se
autem spiritus Christi non habet, hie non est eius”. Etiam alguém, todavia, não tem o espírito o Cristo, esse não é dele”
apud Io Dei (Christi) in nobis et nostra in Dei (Christo) per- Também em João a permanência de Deus (Cristo) são dois
mansio sunt ejusdem rei duo aspectus correlativi et insepa- aspectos correlativos e inseparáveis da mesma coisa. Cfr. I
rabiles ef I Io 10 4, 13, 15, 16; Io 6, 56; 15, 4, 5; Io 8, 44b João 4:13, 14, 16; João 6:5, 15:4, 5; João 8:44b diz-se de
de santana dicitur “in veritate non est, quia non est veritas in satanás: “não nele”. Assim esse en (não sem influxo simita)
eo”. Ita illud en (non sine influxu semitico) reducitur fere ad reduz-se quase à idéia geral de associação ou companhia que
ideam generalem associationis vel comitatus, quam latine melhor traduzimos em latim (em português) pela preposição
potius redimus pet praepositionem “cum”: “homo cum spi- “com”: “homem com espírito imundo”, “mulher com fluxo
ritu immundo”, “mulier cum fluxu sanguinis”, (Graecitas de sangue”.
Biblica, edita a Pontificio Instituto Bíblico, Romae, 1960).

Simeão segura o menino em seus braços e entoa o “cântico” que é um dos mais belos. Dizendo-se “es-
cravo” ( δούλος ), ele se dirige a Deus, dando-lhe o título de “Senhor dos escravos”, ou seja, ∆έσποτα,
e diz-lhe que “agora pode libertá-lo, despedi-lo em paz, porque seus olhos contemplaram a salvação,
preparada diante de todo o povo; e dá a Jesus o título de LUZ para a revelação ( άποиάλυψις = levan-
tamento de um véu) dos gentios e glória de Israel”.
No versículo 33, Lucas dá a José, taxativamente, o título de PAI, revelando sua admiração, e a de Ma-
ria, diante do que estavam ouvindo.
Simeão (vers. 34), voltando-se para eles, os abençoa; e dirigindo-se a Maria, revela-lhe o que ocorrerá
com o menino: “ele foi colocado (cfr. Fil. 1:16 e 1 Tess. 3:3) para queda e levantamento (ressurreição)
de muitos, provocando discussões e formando partidos pró e contra (cfr. Is. 8:14-15), e que lhes revela-
ra o “coração”, isto é, o pensamento íntimo. Acrescenta a seguir que “uma espada de dor traspassará o
coração de Maria”: a dor de ver que seu filho seria recusado, não se lhe reconhecendo a missão divina,
e depois caluniado, perseguido, surrado e assassinado.
Todas as vezes que uma criatura se alçou a essa elevação espiritual, encontra irmãos que lhe perce-
bem a grandeza de alma, a profundidade do mergulho (batismo), a seriedade do contato. Homens ou
mulheres, geralmente já bastante evoluídos (“de idade provecta” ) SENTEM e se tornam felizes por
encontrar o novo Homem. Tomam o menino em seus braços - lindo eufemismo para exprimir a intimi-
dade do amplexo - e louvam a misericórdia divina .
Sabem, também, e muitas vezes o dizem, que o espírito da criatura que teve o Sublime Encontro será
“traspassado por uma espada de dor”, atacado pelos que ainda vivem para a matéria, sem sequer
conhecerem que existe o Espírito, ou mesmo pelos que, teoricamente crendo na imortalidade, vivem
enclausurados no dogmatismo estreito, julgando-se donos absolutos da verdade total, e perseguem os
que “não lêem pela mesma cartilha”. Maria sofreu, por parte do clero de sua época, ao ver seu filho
assassinado; outros sofrerão a mesma coisa em tempos posteriores, porque os homens são os mesmo
fanatizados, enquanto não descobrem a liberdade dos filhos de Deus. Ainda não aprenderam que “o
Senhor é Espírito, e onde está o Espírito do Senhor, aí HÁ LIBERDADE” (2 Cor. 3:17).

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SABEDORIA DO EVANGELHO
As perseguições vêm, não há duvidar. E a dor daquele que já viu, sentiu, “apalpou” a Realidade é
imensa, ao verificar que os “cegos” que se debatem na angústia das ilusões não conseguem perceber
e, por isso, não aceitam a palavra e o testemunho dos que “sabem”.
Daí o silêncio de que se rodeiam os que têm esse contato: os capazes sabem, sem que ninguém lhos
diga; aos outros, não adianta dizer: “não se dão pérolas a porcos nem coisas santas aos cães” (Mat.
7:6) O exemplo de Simeão e Ana é típico, para mostrar que os “capazes” sentem a verdade, ou por
intuição própria ou pela revelação de espíritos amigos.

36. Havia também uma profetisa, de nome Ana, filha de Fanuel, da tribo de Aser (era ela
de idade avançada, tendo vivido com seu marido sete anos, desde a sua virgindade)
37. viúva de oitenta e quatro anos, que não deixava o templo, mas adorava noite e dia em
jejuns e orações.
38. Esta, chegando na mesma hora deu graças a Deus e falou a respeito do menino a to-
dos os que esperavam o resgate de Jerusalém.
39. Quando se tinham cumprido todos os preceitos de acordo com a lei do Senhor, re-
gressaram para a Galiléia, para a sua cidade de Nazaré.

Aparece agora em cena outra figura, da qual o evangelista procura dar os traços mais característico.
Ana, filha de Fanuel, viúva de oitenta e quatro anos, que estivera casada apenas sete anos, e que per-
manecia no templo em jejuns e orações, como era hábito das pessoas piedosas, quando de idade pro-
vecta ( cfr, 1 Tim, 5: 5). Ana era médium (profetisa) e percebeu a identidade de quem ali se achava.
Dirigiu-se ao pequeno grupo que louvava a Deus e depois saiu a narrar a todos o aparecimento do
Messias, tão ansiosamente aguardado.
Cumpridas as leis Mosaicas, a família regressa à sua cidade de Nazaré, na Galiléia .

O caso de Ana chama-nos a atenção para a dedicação que, depois à e certa idade, as criaturas fazem
de suas vidas a Deus. Embora durante a juventude vivam a “vida do mundo”, depois de algum tempo,
sentindo-lhe o vazio, se dedicam à vida de “orações e jejuns”, aguardando o Messias. Todo o simbo-
lismo da vinda do Messias é assim compreendido: é o nascimento do Cristo Interno (do Cristo de
Deus) que vem resgatar “o povo de Israel”, isto é, as criaturas que, mesmo pertencendo a Deus, estilo
mergulhadas na matéria “combatendo a Deus” (sentido etimológico da palavra “Israel”). Aspiração
comum a toda a humanidade, é mais sentida e mais forte depois que chegaram as desilusões da vida
terrena, com o afastamento de tudo o que se tem de mais caro: bens, riquezas, situações, amores, mo-
cidade, cultura. Quando tudo aparece realmente como é - ilusório - então o espírito se volta para
Deus e fica ansiosamente aguardando o aparecimento do Messias DENTRO DE SI MESMO.

*
* *

Essa narração discorda da de Mateus que veremos a seguir. O que há de comum entre ambas é o nas-
cimento em Belém e a posterior moradia em Nazaré, embora Lucas a coloque de imediato e Mateus a
situe bem mais tarde.
No entanto, observamos que:
a) Mateus ignora a homenagem dos pastores:

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C. TORRES PASTORINO
a circuncisão,
a purificação,
a apresentação ao templo,
o encontro com os dois profetas;
b) Lucas desconhece a homenagem dos magos:
o massacre das crianças,
a fuga para o Egito.
A que atribuir essas divergências? à diversidade das fontes? Se a fonte de Lucas foi Maria, como ad-
mitir a omissão de fatos tão importantes?
E quando se terão realizado esses acontecimentos narrados por Mateus? Não há dúvida de que só de-
pois da apresentação, porque nos quarenta dias entre esse fato e o nascimento, não haveria tempo, dado
que Maria não poderia ter saído de casa.
Como conciliar o regresso a Nazaré, que em Lucas aparece natural (regressaram “para sua casa”) e em
Mateus como a ida a um lugar desconhecido, por indicação de um anjo?
As explicações simbólicas dar-nos-ão as razões.
O Eu Profundo ou Cristo Interno é o mesmo Cristo de Deus em todas as criaturas. Entretanto o cami-
nho para alcançá-lo varia de pessoa a pessoa.
A experiência de um pode ilustrar o que com ele ocorreu, mas não pode ser tomada qual modelo a
imitar, porque as estradas da periferia ao centro são tantas, quantos os raios possíveis dentro de um
círculo.
Cada individualidade se plasmou através de milênios, na constituição dos próprios hábitos, diferentes
dos demais. E a evolução conduzirá cada um por seu caminho especial. Não é de admirar, pois, que,
escrevendo sobre o mesmo assunto, Lucas divirja de Mateus nos fatos, que, para o Espírito, pouca ou
nenhuma importância têm. Não são livros “históricos” que estamos lendo, mas obras que ensinam,
através dos fatos, realidades concretas e objetivas do modo pelo qual poderá alguém atingir Deus
dentro de si.
Assim, Mateus escolhe fatos e narra acontecimentos que esclarecerão certos pormenores da árdua e
longa busca do abismo do Eu, enquanto Lucas prefere outros que, embora levando ao mesmo objetivo,
perlustram outras sendas.
Mais acidentado, porque mais externo e glorioso, em Mateus; mais sereno, porque mais interno e sin-
gelo, em Lucas. Mais “terreno” e “ativo” no primeiro (magos, massacre, fuga); mais “celestial” e
“místico” no segundo (anjos, lei, templo, profetas).
Para o sentido esotérico e profundo, simbólico e místico, nada importam essas divergências superfici-
ais de personalidade, e sim o significado oculto que se depreende das palavras veladas.
Verificamos, pois, que aquele que se aventura na estrada abismal que leva às profundidades altíssi-
mas do Eu Supremo, pode trilhar várias sendas.
Uma (ensinada por Mateus) se dirige através do movimento personalístico, atraindo a atenção de
magnatas e dignitários que se assustam com a novidade e começam a mover perseguições e a buscar
a eliminação da nova força que, na sua humildade (a palha do presépio) ameaça a segurança dos
tronos e os privilégios dos potentados. Há necessidade, então, de buscar-se um refúgio no silêncio da
solidão, exilando-se para outros ambientes.
A outra (revelada por Lucas) caminha pelo lado mais ascético, menos mundano, e encontra na oração
(anjos do Senhor , templo, profetismo ou psiquismo) a sua máxima expansão. Aí não há perseguições
nem necessidade de fuga. A jornada é mais tranquila pelos atalhos do espírito, cortando-se logo o
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SABEDORIA DO EVANGELHO
apego à matéria (circuncisão) e consagrando-se a vida a Deus (apresentação) onde se encontram os
“arautos do céu” (médiuns ou profetas) que lhe apresentam palavras de conforto e de advertência.

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C. TORRES PASTORINO

VISITA DOS MAGOS


Mat. 2:1-12
1. Tendo Jesus nascido em Belém da Judéia. no tempo do rei Herodes, vieram do oriente
alguns magos a Jerusalém,
2. perguntando: “onde está o recém-nascido Rei dos Judeus? porque vimos seu astro no
oriente e viemos adorá-lo”.
3. O rei Herodes, ouvindo isto, perturbou-se, e com ele toda Jerusalém.
4. E convocando todos os principais sacerdotes, os escribas (e os anciãos} do povo, per-
guntava-lhes onde havia de nascer o Cristo.
5. E eles lhe disseram: “em Belém da. Judéia, porque assim está escrito pelo profeta :
6. “E tu Belém, terra de Judá, não és de modo algum o melhor entre os lugares princi-
pais de Judá, porque de ti sairá um condutor que há de pastorear meu povo de Is-
rael”.
7. Então Herodes chamou secretamente os magos e deles indagou com precisão o tempo
em que o astro havia aparecido.
8. E enviando-os a Belém disse-lhes: “Ide informar-vos, cuidadosamente acerca do me-
nino, e quando o tiverdes encontrado, avisai-me para que eu também vá adorá-lo”.
9. Os magos, depois de ouvirem o rei, partiram; e que o astro que viram no oriente os
guiou até que vindo, parou sobre o lugar onde estava o menino.
10. Ao avistarem o astro, ficaram grandemente alegres.
11. E entrando na casa, viram o menino com Maria, sua mãe; e prostrando-se o adora-
ram; e abrindo se cofres, fizeram-lhe ofertas de ouro, incenso e mirra
12. E recebendo (eles) a resposta no sono, que não voltassem a Herodes, seguiram por ou-
tro caminho para sua terra.

Para Mateus, Jesus nasceu em Belém e aí ficou até posterior “fuga” para o Egito. Tanto que a ligação é
direta. Não houve a viagem Jesus com seus pais a Jerusalém, para apresentação ao templo, acordo com
a lei mosaica.
Mas, examinemos os pormenores.
Jesus nasceu “no tempo do rei Herodes”, o qual (já vimos) faleceu no inicio do ano 4 A.C. Então, o
nascimento ocorreu, no mínimo, no ano 5 A.C. (749 de Roma). Mais abaixo continuaremos o raciocí-
nio ao falarmos do “astro”.
Trata-se de um aceno histórico (raro em Mateus) que só se preocupa com o registro dos fatos que sir-
vam de apoio às profecias do Velho Testamento - já que a finalidade exotérica de seu evangelho é pro-
var aos israelitas que, em Jesus, se cumpriram as predições, e, portanto, que ELE é o Messias espera-
do.
Jesus nasceu em Belém (beith-léhem == a casa do pão), cidade já citada desde a época de Josué, loca-
lizada entre Thecua, Etam, Karem, Baither (cfr, Josué 15:59, segundo os LXX). Era bastante conheci-
da popularmente por causa do idílio entre Ruth e Booz, e pelo nascimento de David que lá ocorreram.

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SABEDORIA DO EVANGELHO
Chamada Belém “de Judá” para distinguí-la de Belém “da Galiléia”, na tribo de Zábulon (Jos. 19:15) e
que ainda hoje existe.
A seguir vem a notícia dos magos, que a tradição popular elevou à categoria de “reis”. Dividamos o
estudo em itens:
1 - QUEM ERAM. Os historiadores gregos Herodoto e Xenofonte dizem-nos que os “magos” consti-
tuíam uma casta sacerdotal muito conceituada entre Medos e Persas, ocupando-se sobretudo de medi-
cina., astronomia (astrologia) e ciências divinatórias. A palavra é atestada no grego (µάγος e µέγας): no
latim: magus e magnus; no hebraico magh, no pehlvi mogh; e no sânscrito mahat “grande” (cfr.
Mahatma “ = grande alma) .
Por intermédio de Jeremias (39:13) sabemos que Nabuzardan, oficial superior de Nabucodonozor, era
rab magh, isto é, chefe dos magos. São citados em Daniel (1:20; 2:2, 10, 17 etc.). Nos Atos dos Após-
tolos há dois magos: Simão (8:9) e Elymas (13:8), que mais parece terem sido “mágicos”.
Mateus deixa entrever neles personagens estrangeiras de importância, como sábios a quem honrava o
título de magos. Interessante notar que nas pinturas cristãs dos primeiros séculos (Santa Priscila, em
Roma, 2.º século, e o mosaico frontal da Basílica de Belém, 4.º século) os magos são representados
com bonés frígios, quais sacerdotes persas.
2 - DONDE VIERAM. O fato do serem “magos” os sacerdotes persas, faz supor que tenham vindo da
Pérsia. Mas, por serem astrólogos, supõe-se que eram da Caldéia. No entanto, para a Palestina, o Ori-
ente” era a Arábia, ao passo que a Mesopotâmia (Pérsia e Caldéia) ficava antes ao norte. Tanto que em
Joel (2:20) o inimigo tradicional assírio era chamado “o nortista”.
Os presentes trazidos também falam a favor da Arábia: Isaías (10:10) cita o ouro e o incenso de Sabá;
Jeremias (6:20) do incenso da Arábia; a rainha de Sabá traz ouro em quantidade (1 Reis, 10:2) os navi-
os de Salomão trazem ouro de Ofir (1 Reis, 9:28). A mitra, isto é, a resina do Balsamodendron, provi-
nha da Arábia. De lá os supunham Justino, Orígenes e Epifânio, que viveram na Palestina, embora
outros pais da igreja digam terem eles vindo da Pérsia .

Figura “OS REIS MAGOS” - Pintura de Doré, gravura de Pannemaker

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3 - NOMES E NÚMERO. São desconhecidos. Beda (escritor inglês nascido em 673 e desencarnado
em 735) é que os batizou de Gaspar, Melchior e Baltazar. Também não sabemos quantos eram: a tradi-
ção da igreja latina os limita a três, por causa dos presentes; mas nas igrejas sírias e armênias julga-se
que eram doze. Tudo no terreno das conjecturas.

4 - ÉPOCA DA CHEGADA. Também é incerta. A pergunta a respeito de um “recém-nascido” faz


supor que se trata de menos de um ano a partir do nascimento de Jesus. O mesmo se deduz da ordem
de Herodes, mandando sacrificar todas as crianças de dois anos para baixo (aumentando o limite da
idade, para estar certo de que apanharia na rede a criança visada) .

5 - O ASTRO. Os magos dirigiram-se a Jerusalém para indagar do nascimento do Messias, por causa
do “astro” que haviam visto no “oriente”. Que espécie de “astro”? Supõem alguns ter-se tratado de um
cometa. Improvável, porque os cometas não desaparecem para aparecer mais tarde.
Em 1603, o grande astrônomo Kepler observou uma conjunção de Júpiter e Saturno no mês de dezem-
bro. Na primavera seguinte, Marte aproximou-se desses dois planetas e, no outono, surgiu entre os três
uma “estrela nova” de grande brilho. Kepler supôs que assim devia ter ocorrido na época do nasci-
mento de Jesus. Fez os cálculos matemáticos e concluiu que no ano 747 de Roma (7 A.C.) Júpiter e
Saturno se reuniram na constelação de Peixes (lembremo-nos de que, nessa época, a Terra estava a sair
da constelação de Aries para entrar na de Peixes, tal como agora sai da de Peixes para entrar na de
Aquário, recuando sempre de um signo a cada dois mil anos. Recordemos ainda que o símbolo da épo-
ca de Abraão a Jesus era o CORDEIRO, e, na época de Jesus começou a ser o peixe, utilizado pelos
cristãos como emblema para identificar-se).
Na constelação de Peixes, a Júpiter e Saturno uniu-se Marte na primavera de 748 de Roma (6 A.C.).
Para um estudo mais minucioso, veja-se: Kepler, Opera Omnia, Frankfurt, 1858, tomo 4, pág. 346 e
seguintes.
Ora, os caldeus eram bons astrônomos e sobre eles escreveu Cícero De Divinatione, I, 19): “Os cal-
deus observam os sinais do céu, anotam os cursos das estrelas com seus números e movimentos ... e
possuem em seus registos observações seguidas durante 470.000 (é isso mesmo: quatrocentos e setenta
mil) anos”. E Diodoro de Sicília (II, ) atesta que esses registros tinham 473.000 anos seguidos.
Daí deverem saber os magos que essa conjunção revelava, segundo as predições proféticas, a primeira
vinda do Messias, não lhes sendo difícil localizar seu nascimento na Palestina, porque Peixes era o
signo peculiar desse pais .
Ora, verificamos que houve tríplice conjunção de Júpiter e Saturno: em maio, agosto e dezembro do
ano 747 de Roma (7 A.C.), segundo nossas atuais tábuas astronômicas. Alertados pela primeira con-
junção (maio de 747) prepararam-se para a longa viagem até a Palestina, devendo ter chegado a Jeru-
salém nos primeiros meses de 748. E exatamente de março a maio desse ano aos dois planetas Júpiter e
Saturno uniram-se Marte, Vênus, Mercúrio e o Sol, o que fez os magos “reencontrarem” o “astro do
Messias” ao saírem de Jerusalém.
Fica então, como época mais provável para o nascimento de Jesus, o ano 747 de Roma, ou seja, o ano
7 A.C.
Quanto à data, a primeira vez que, com certeza histórica se fala em 25 de dezembro, é no Calendário
Philocalus (do ano 354 A.D.), que foi publicado por Theodor Mommsen no “Abhandlungen der
sãchsichen Akademie der Wissenschaft”, em 1850.
Clemente de Alexandria (200 A.D.) menciona várias especulações em torno da data do nascimento de
Jesus: 19 ou 20 de abril, 20 de maio, 28 de agosto (estas duas últimas coincidem com as conjunções
1..ª e 2..ª) e 17 de novembro. Até então (3.º século) não se falava em dezembro. Quando em Roma se
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SABEDORIA DO EVANGELHO
transferiu o Natal para 25 de dezembro, festa oficial de Mitra (divindade persa), ou Natalis Invicti So-
lis (nascimento do Sol invicto, isto é, entrada do Sol no solstício do inverno) os Sírios e armênios acu-
saram os romanos de “idólatras adoradores do sol”. Entretanto, a data se foi aos poucos fixando e con-
quistando mais adeptos de tal forma que, já no século 7.º, todo o ocidente aceitava o dia 25 de dezem-
bro como a data oficial do nascimento de Jesus.
Ao saber da notícia da chegada a Jerusalém dos magos orientais, em busca de novo rei dos judeus,
Herodes, o velho idumeu, perturbou-se: não queria concorrência ao trono. Já assassinara muitos com-
petidores e ainda cinco dias antes de sua morte mandou executar seu próprio filho Antípater, por temer
que lhe roubasse o título. Convocou, então, às pressas as autoridades e os sábios, isto é, o SINÉDRIO,
para saber onde deveria nascer o Messias de acordo com os textos bíblicos.
O Sinédrio de Jerusalém ou Consistório (também chamado Conselho), era a autoridade mais alta, tanto
civil quanto religiosamente. Compunha-se de 71 membros, ou seja, um presidente (NASI) geralmente
sumo-sacerdote, e setenta conselheiros assim divididos :
a) os principais (grandes) sacerdotes que eram o próprio sumo-sacerdote e os ex-ocupantes do cargo,
bem como os chefes das 24 classes sacerdotais;
b) os escribas ou doutores da lei (sopherim), a classe mais culta, que passava seus dias a transcrever a
Torah, a ensinar, dissertar e discutir;
c) os anciãos do povo (isto é, presbíteros) que eram os leigos notáveis, escolhidos entre as principais
famílias.

A convocação do Sinédrio foi total, havendo no texto a omissão de uma palavra, por “salto” do copis-
ta: em vez de escribas do povo, cargo que não existia, deve ler-se: escribas e anciãos do povo.
O Sinédrio respondeu prontamente, sem hesitação, citando o versículo de Miquéas (5:1): “E tu, Belém
de Efrata, pequena quanto à tua situação entre as clãs de Judá, de ti virá um que será soberano em Is-
rael e suas origens serão antigas, da longínquo passado”. Mateus cita apenas o sentido, modificando o
texto, coisa habitual entre os evangelistas. São Jerônimo (Patrologia Latina, vol. 22, col. 576) diz que
eles “procuravam o sentido, não as palavras” (sensum quaesisse, non verba), e “não cuidavam da or-
dem e das palavras, quando as coisas eram compreensíveis” (nec magnópere de ordinatione sermoni-
busque curasse, cum intellectui res paterent).
De posse do fato e do local, Herodes interroga sobre a época do aparecimento do astro, dizendo-lhes
que continuassem a pesquisa, porque “também ele” desejava adorar o novo Messias. Cuidava ser-lhe
fácil suprimir no berço o recém-nascido, sem provocar protestos.
A viagem de Jerusalém a Belém podia consumir mais ou menos duas horas, na direção sul. Sua locali-
zação não foi descoberta até hoje nas buscas arqueológicas.
Tem trazido discussões a frase: “o astro os guiou” (grego: προή-γεν αύτούς), que geralmente é traduzi-
do “caminhou à frente deles”, com o sentido dado ao emprego intransitivo. Mas aqui está empregado
transitivamente (cfr. Dict. Grec-Français de A. Bailly, in verbo). A idéia de que os astros “guiam” os
navegantes é antiga e comum. No entanto ninguém jamais supôs que os astros, para guiarem os nave-
gantes, precisavam “caminhar à frente deles”. Ao chegarem à porta de Jerusalém, viram novamente a
conjunção no lado sul, e compreenderam que estavam certos. Naturalmente, por mais que caminhas-
sem, jamais o “astro” lhes ficaria ao norte. Se alguém caminha na direção da lua, esta parecerá também
avançar à frente na mesma direção, como que “guiando”. Mas quando a criatura pára, o astro pára
também. E foi o que ocorreu ao encontrarem a casa em que Jesus estava.
Há muita discussão a respeito da “casa” ou “gruta” em que se acharia Jesus, na visita dos magos. O
texto fala explicitamente em “casa”. Lógico que, mesmo admitindo-se a idéia do nascimento na gruta,
José não deixaria a esposa e o filho em local tão impróprio, e providenciaria acomodações. José não é
citado nesse passo.

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Segundo o hábito oriental, a saudação aos soberanos era feita mediante o prostrar-se até o chão. Foi o
que eles fizeram diante do menino.
Após a homenagem das pessoas, a oferta dos bens materiais: abrindo seus cofres, deram-lhe ouro, in-
censo e mirra .
De acordo com a interpretação usual, o ouro exprime a confissão , reconhecimento da realeza de Jesus,
o incenso de sua divindade e a mirra de sua humanidade .
Terminada a cerimônia, recolheram-se e consultaram os oráculos (em linguagem moderna, realizaram
uma sessão mediúnica). É o que se depreende dos vers. 12: иαί иρηµατισθέντες , “e recebendo a res-
posta” do espírito a quem haviam interrogado, иατ̀όναρ = no sono (ou no transe?) para não voltar a
Herodes. Resolveram, então, regressar à sua terra por outro caminho. A vinda a Jerusalém deve ter
sido o normal das caravanas: de Ma'an e Petra, atingindo, pela plataforma de Moab o vale do Jordão, e
subindo de Jericó a Jerusalém. O regresso “por outro caminho” supõe as escalas Hebron, Ziph e Maon,
o uádi Zueira, o djeb-el Usdum ou então, com maior segurança, a pista vizinha do deserto por Thecua,
Bir Allah, a garganta de Engadi e a margem ocidental do Mar Morto, até chegar aos altiplanos de Mo-
ab e as seguras estradas da Arábia.

O estudo deste trecho é bastante fértil para nosso aprendizado.


No vers. 1, lemos que Jesus nasceu “em Belém”. Já sabemos que em Belém, a duas horas de Jerusa-
lém pouco mais ou menos, funcionava uma “escola iniciática de profetismo” (isto é, um centro de
desenvolvimento das faculdades psíquicas). Aqueles que se aproximavam da meta, para lá se dirigiam,
colocando-se sob a direção dos essênios para darem o “mergulho” (Batismo) em si mesmos. Nada de
estranho, pois, que o evangelista nos advirta que “Jesus nasceu em Belém”. É no centro de desenvol-
vimento que se consegue apurar a sensibilidade, sob a orientação de pessoas experimentadas.
Os essênios habitavam realmente em grutas nos arredores da cidade (como ainda há poucos anos
ficou confirmado com as descobertas dos manuscritos de QUMRAN ou do Mar Morto). Se, historica-
mente, não nos importa saber “onde” nasceu, simbolicamente o ensinamento é de alcance enorme:
para o Encontro Sublime a retirada a um lugar apropriado é, senão essencial, pelo menos de incal-
culável ajuda.
Continua o esclarecimento, de que o nascimento místico ocorreu “no tempo do rei Herodes”, o que
exprime que os fatos a nós ocultamente ensinados se passaram durante a permanência do Eu no arca-
bouço de carne. Herodes representa o domínio (é o “rei”) da matéria: é o materialismo egoísta e inte-
resseiro, que só visa ao ganho e se preocupa com a “realidade” menor e transitória, isto é, pelo que
cai sob os sentidos físicos. Trata-se do homem “que tem alma, mas não tem espirito” (Judas, 19), e
que busca apenas posições sociais, riquezas, prazeres e domínio.
Logo que uma criatura se apresta para o Encontro e este se dá, sua luz espiritual se irradia e é perce-
bida por aqueles que “podem” vê-la. Os “mestres” (adeptos) estão neste caso. E a luz do novo feli-
zardo é observada “no oriente”, ou seja, no momento de surgir (a palavra “oriente” é o particípio
presente do verbo latino orior, e se traduz “o que nasce”). Os mestres dirigem-se então ao encontro
do Homem-Novo recém-nascido, a fim de ajudá-lo a desenvolver-se.
Os Mestres (magos = grandes) podem comunicar-se psíquica ou espiritualmente, ou por outro qual-
quer meio. Se a tarefa ou missão do Novo Homem for pública (como era o caso de Jesus) talvez seja
dada preferência à publicidade. Por isso, utilizando-se de seus veículos carnais, empreenderam a via-
gem, indo diretamente à autoridade dominante (matéria) e referindo os fatos às criaturas.
Os materialistas reagem imediatamente. Perturbam-se todos ( ... “e como ele toda Jerusalém” ...). A
verdade que lhes é trazida - em que dizem não acreditar - os deixa de tal modo transtornados (porque
ecoam no seu “inconsciente” ou Eu Profundo, que lhes segreda ao coração que são verdades “cer-
tas”) que eles buscam destruí-las e aniquilar os veículos por que elas se manifestam: nada deve atra-
palhar-lhes a posse pacifica de seus bens e de suas posições.
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SABEDORIA DO EVANGELHO
Neste caso, há “saídas” estratégicas. Eles, que não dão a menor importância ao clero organizado, a
ele recorrem pressurosos, ansiando por um desmentido ou por um esclarecimento que lhes faça voltar
à paz. Nessas situações é-lhes essencial demonstrar humildade e boas intenções, revelando submissão
e até subserviência hipócritas, que lhes mascarem os desígnios recônditos. Como eles não vêem o es-
pírito, julgam ter capacidade de ludibriá-lo com esperteza matreira. (Jesus assim os classifica, em
Luc. 13:32, quando lhe dizem que Herodes (descendente do outro) queria matá-lo; Jesus responde:
“ide dizer àquele raposo” ...). Se o Poder lhes fora deixado nas mãos, conseguiriam destruir; mas
como só possuem o poder material, só atingem os que o merecem; aos verdadeiros, nada fazem, a não
ser na hora preestabelecida .
Essa a razão pela qual os mestres reais não se deixam engodar por promessas de auxílio e ajudas
políticas ou financeiras de poderes constituídos. No caso de dúvida consultam os céus pela prece e
obtêm resposta à sua sinceridade.
No vers. 6 fala-se no “povo de Israel”. O nome foi imposto a Jacob pelo anjo que com ele lutou (Gên.
32:28). Jacob significa “sagaz”. Após a luta com um espírito materializado, já pela madrugada, o
“anjo” não conseguia libertar-se das mãos de Jacob. Tocou-o então no tendão femural (que o fez fi-
car coxo) e deu-lhe o nome de “Israel”, formado do verbo shrebet que significa “surrar”, introduzin-
do duas modificações: no início um iod, e no fim a palavra El, completando a idéia: “o homem” (ish)
“que luta” (shra) “com Deus” (el). Se observarmos sob outro prima, a palavra Israel contém em si a
idéia do Deus único sob três formas: a Mãe Divina, IS (de Isis); o Pai Supremo, RA (venerado ambos
no Egito); e o Espírito Criado, Deus: EL, adorado entre os judeus.
Após a consulta, os magos recebem a resposta de que não mais devem avistar-se com Herodes (a ma-
téria), isto é, não mais contatos com o mundo e suas ilusões transitórias. Mas regressam “por outro
caminho” a vida espiritual. Mas já aí a notícia do Homem-Novo fora dada a público.
Segundo o entendimento mais profundo, o ouro representa a Luz, e, portanto, a Sabedoria; o incenso é
a devoção, que espalha o “bom odor” do espírito às criaturas; e a mirra é o consumir-se para benefi-
ciar. No entanto, a sabedoria consagrada a Deus e consumida em benefício dos homens, traz sofri-
mento porque obriga a criatura a permanecer no cárcere da matéria; a mirra sugere o sacrifício e a
renúncia total de todos os bens, inclusive do próprio eu personalístico.
Então, temos o simbolismo:
ouro - Luz e Sabedoria
incenso - Devoção pessoal a Deus e aos homens
mirra - sacrifício e renúncia ao próprio eu

Essas as características do Homem Novo, dos Missionários que estando em contato com o Eu Profun-
do ou Cristo Interno, deverão renunciar a tudo o que seja transitório, devotando-se integralmente a
Deus e servindo às criaturas, para conseguir a iluminação final da verdadeira sabedoria irradiada
pelo Foco de Luz Incriada.

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C. TORRES PASTORINO

FUGA PARA O EGITO


Mat. 2:13-15
13. Depois de haverem partido, eis que um anjo do Senhor apareceu em sonhos a José,
dizendo: “levanta-te, toma contigo o menino e sua mãe, e foge para o Egito, e fica ai
até que eu te chame; pois Herodes há de procurar o menino para matá-lo”.
14. José levantou-se, tomou de noite o menino e sua mãe e partiu para o Egito,
15. e ali ficou ate a morte de Herodes, para que se cumprisse o que dissera o Senhor pelo
profeta: “Do Egito chamei a meu filho”.

Novamente José é advertido em sonhos por um espirito (anjo do Senhor), ordenando-lhe este a fuga
para o Egito. Nesse país havia duas grandes e florescentes colônias israelitas, em Alexandria e em He-
liópolis.
O Egito distava cerca de seis dias de viagem (perto de 250 milhas, a maioria das quais através de terras
desertas). Era, porém, local seguro e lá também se refugiaram Jeroboatão (pretendente ao trono de Sa-
lomão), o profeta Jeremias, Onias IV fundador do Templo Israelita de Leontópolis e outros.
Mateus não dá pormenores da viagem, que aparecem numerosos nos evangelhos apócrifos (Pseudo-
Mateus, 18 a 24; Pseudo-Tomé, texto latino, cap. 1; evangelho árabe da infância, 10 a 25).
Não se sabe o local em que ficou a família de Jesus. Uma tradição antiga copta indica o Cairo. Nada de
certo, porém.
Aí ficaram os três até a morte de Herodes. Sabemos que este faleceu sete dias antes da Páscoa, em
março-abril do ano 4 A. C., ou seja, 750 de Roma.
Nascido em 747 (7 A.C.), Jesus teria então permanecido cerca de 3 anos no Egito, o que coincide com
os dados de certos apócrifos (Pseudo-Mateus cap. 26; Pseudo-Tomé, texto latino, cap. 4; evangelho
árabe da infância cap. 25 e 26).
A frase “Do Egito chamei meu filho” está no texto hebraico de Oséas (11:1).

Diversas anotações podem ser feitas em torno da viagem de Jesus ao Egito.


A “fuga” se dá à noite. O intelecto (José), iluminado pelo Alto (anjo) leva consigo a intuição (Maria)
e o recém-nascido Homem-Novo (Jesus) e adentra-se pela noite do isolamento, a fim de favorecer o
crescimento da “criança”. Esta, enquanto nova e indefesa, não deve, não pode, permanecer no bulício
das cidades: tal como a semente, que para germinar mergulha na noite do solo, assim o recém-
manifestado Cristo necessita da solidão e do silêncio para desenvolver-se. Era mister fugir do “mun-
do” (Herodes) que desejava matá-lo, para que não fosse sufocada a plantinha ainda tenra e frágil.
Outra interpretação: todos os espíritos, na senda evolutiva, necessitam passar alguma (ou “algu-
mas”) fases na Terra, enclausurados, longe do bulício, treinando a meditação e o mergulho em si
mesmos. Daí a existência de eremitérios e mosteiros, mantidos pelas religiões, para ajudar a esses que
se encontram nessa fase. Sob esse aspecto, a viagem de Jesus pode ter significado a necessidade de
isolamento entre irmãos que não fossem do próprio sangue (exatamente o que ocorre nos mosteiros e
conventos). Essa reclusão temporária (relativamente à vida eterna do espírito) serve para educá-lo a
sair do egoísmo familiar (consanguíneo) exercitando-se no amor aos não consanguíneos. (Não nos

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referimos, aqui, à pessoa de Jesus: estamos falando que o exemplo de Jesus ao fugir para o Egito,
pode representar a fuga de nossos espíritos para longe da família carnal).

FIGURA “A FUGA PARA O EGITO” - Pintura de Bida, gravura de Braequemond


Há outro ensinamento.
Após a permanência na escola de profetismo de Belém (mediunismo), o espírito precisa ir além, para
sintonizar não mais com outros espíritos (sobretudo do plano astral), mas para vibrar em uníssono
com as noúres divinas.
Então, depois da estada em Belém, e de ter passado pelo exame dos “magos”, e de ter sofrido perse-
guição da matéria e do mundanismo (Herodes), o espírito, vitorioso nessas provas, dá um passo além
e segue, promovido, para outro santuário mais avançado.
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Exatamente na cidade de Heliópolis havia outro templo iniciático, onde os candidatos de “envergadu-
ra” se exercitavam no espiritualismo mais profundo.
O novo ser, nascido do Encontro Deslumbrante, é ainda dirigido pelo intelecto (José) que recebe as
ordens do Alto. A intuição (Maria), embora desenvolvida, ainda é fraca (mulher) e não chega ao
ponto de poder agir sozinha. E o Homem-Novo, recém-nascido, é muito criança para poder andar por
si. O intelecto (o órgão mais desenvolvido na anterior evolução, no estágio “homem”) é que recebe o
encargo de levá-los e dirigí-los até que, “morto Herodes” (isto é, liquidados os carmas materiais)
possa ele caminhar pelos próprios pés e governar-se; e isso ele o fará já na qualidade de “Filho do
Homem”. Verificamos que é assim, porque o primeiro a desaparecer da cena do Evangelho é José o
intelecto - e também a intuição é deixada de lado e admoestada quando quer intervir. Então, o Filho
do Homem, agindo por si, manifesta o Cristo em toda a Sua plenitude e assombra o mundo.
Esse trajeto tem que ser seguido por todas as criaturas, através de suas vidas sucessivas. Jesus foi o
EXEMPLO e o MODÊLO, e Sua vida na Palestina é um resumo vivo do que são, e do que serão, nos
futuros milênios , as nossas vidas.
Assim como o homem revive, em cada vida, todas as suas anteriores etapas evolutivas, para só então
recomeçar um novo passo na jornada do aperfeiçoamento, assim a última vida de Jesus nos apresen-
ta, em uma só encarnação, o modelo de todas as nossas presentes e futuras etapas evolutivas.

EVOLUÇÃO ANIMAL-HOMINAL
Com efeito, quando o homem desce ao plano da matéria para nova experiência reencarnatória, sua
ligação primeira se faz no óvulo, ainda na trompa ou Canal de Falópio. Note-se, porém, que o espírito
NÃO ENTRA no óvulo: apenas SE LIGA, permanecendo de fora, a ele preso apenas pelo “cordão de
prata” (Ecle. 12:16).
Do óvulo, ele irradia suas vibrações que vão atrair o espermatozóide: e exatamente AQUELE esper-
matozóide que é portador dos genes que sintonizam vibratoriamente com o espírito, e que portanto lhe
poderá fornecer um corpo especificamente apropriado a essa etapa evolutiva desse espírito: com as
qualidades e deficiências requeridas pelo estado evolutivo do espírito. Dizemos ATRAI, no mesmo
sentido em que poderíamos afirmar que um aparelho de rádio, sintonizado nos 800 kilociclos, atrai as
ondas hertzianas da Rádio Ministério da Educação e Cultura. “Atrai”, pois, tem o sentido preciso de
“sintonizar e receber”.
Mas o espermatozóide, “alimentado” por essas vibrações sintônicas, recebe as energias indispensá-
veis para progredir em sua viagem, até o óvulo, passando à frente de seus concorrentes.
Dizíamos que o espírito “se liga” ao óvulo e, desde esse momento, passa a relembrar, ou melhor, a
“refazer” todas as fases evolutivas por que haja passado desde seu ingresso na fase animal.
Começa como célula simples (protozoário unicelular = óvulo) e se vai desenvolvendo na mesma or-
dem sucessiva que há seguido durante milhões e milhões de anos. Logicamente sua evolução foi aqu-
ática, e por isso ele a revive mergulhado no líquido amniótico.
Mas essa revivescência, embora nos pareça lenta, é relativamente relampejante: o espírito revive em
cada segundo de vida intra-uterina, milênios de vidas remotas, enquanto atravessava as fases animais,
sem fixar, no entanto, exatamente as diversas formas da espécie.
Na fase correspondente à sua entrada na família dos sáurios, surge no feto o “olho pineal”, como fase
inicial da futura glândula do mesmo nome, e que lhe assinala a caracterização como individualidade
personificada.
Terminada a “revisão” de toda a sua evolução animal, a criança rompe as barreiras da animalidade
pura e passa ao estado hominal: nesse ponto preciso ocorre o nascimento.

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Surge o novo Adão (ADAM = homem) que é “expulso do paraíso” da irresponsabilidade animal (veja
pág. 19, último parágrafo) e começa a ter que “comer o pão com o suor de seu rosto”: respiração e
alimentação não são mais “aproveitadas” da mãe. A criança é que tem que “esforçar-se” por si
mesma. Vimos que, quando no estágio animal, o espírito era ainda irresponsável, agindo em perfeita
harmonia com a Mente Cósmica Universal, porque o intelecto não intervinha para atrapalhar. Na
“revisão” dessa fase, o feto vive em perfeita simbiose com a mãe, da qual tira tudo.
“Expulso desse paraíso” animal, o recém-nascido chega ao reino hominal. Mas ainda não ao estado
atual de “homo sapiens”: vai antes reviver todo o desenvolvimento, desde o plano de homóide, ao
homúnculo, ao “pithecânthropus erectus” (quando passa do engatinhar ao caminhar erecto), até che-
gar ao “homo sapiens” e às últimas vivências na Terra.
Quando atinge os sete anos, mais ou menos - a idade da razão - é que, então, recordada toda a escala
evolutiva, o espírito penetra integralmente o novo corpo e inicia a nova jornada que se lhe abre ante o
horizonte. Até então, o espírito permanece fora do corpo, comandando através do “cordão de prata”
todo o desenvolvimento de seu veículo físico. Por esse motivo é que a criança manifesta as caracterís-
ticas de primitivismo: egoísmo, destrutibilidade, etc.
Uma comprovação de tudo isso é o que se passa com espíritos mais evoluídos.
Realmente, quanto mais adiantado o espírito na escala, mais rapidamente percorre as etapas anterio-
res. E se, em suas recentes vivências na Terra esses espíritos revelaram desenvolvimento de geniali-
dade em qualquer ramo, aparecem as “crianças-prodígio”, revivescência clara da última ou das últi-
mas encarnações. Daí verificarmos que esses “prodígios” se revelam sempre antes do uso da razão.
Ao atingirem essa idade, em que se inicia a fase “atual”, pode o espírito fazer florescer e progredir
suas qualidades, e até desenvolvê-las mais ainda. No entanto, pode dar-se que a atual existência não
apresente possibilidades de evolução maior. E vemos que, com frequência, a criança prodígio não
atinge, em sua vida posterior, o que dela se esperava: não conseguiu adiantar-se com o mesmo ritmo.
E na idade madura é pessoa “comum”. Quebrou o ritmo ascensional, quer por cansaço, quer por
falta de ambiente propício, quer por motivos cármicos. Não houve, porém, regresso, mas diminuição
ou afrouxamento (“rallentissement”) na caminhada.
Compreendendo assim as coisas, descobrimos que a vida de Jesus em Sua última romagem terrena,
foi o modelo que teremos que seguir, no estado posterior de “Filhos do Homem”, verdade que já foi
revelada por Paulo ao Efésios (4:13) “até que TODOS CHEGUEMOS à plenitude da estatura de
Cristo”.

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MASSACRE DOS INOCENTES


Mat .2:16-18
16. Herodes, vendo-se iludido pelos magos, ficou irado, e mandou matar todos os meninos
em Belém e em todo o seu termo, de dois anos para baixo, conforme o tempo que ti-
nha com precisão indagado dos magos.
17. Então cumpriu-se o que foi dito pelo profeta Jeremias:
18. “Ouviu-se um clamor em Ramá, choro e grande lamento: Raquel chorando a seus fi-
lhos, e não querendo ser consolada porque eles se foram”.

Irritado, por não poder por suas mãos em Jesus, Herodes manda degolar todos os meninos de menos de
dois anos. Não se limitou a Belém, mas foi a todo o território adjacente, embora não seja provável que
tivesse atingido a outras aldeias circunvizinhas.
Quantas crianças? Os melhores cálculos estatísticos asseguram que não devem ter sido muito mais do
que 20 (vinte) crianças. Que era isso, para quem já mandara assassinar seu genro, seus filhos Alexan-
dre e Aristóbulo, sua esposa Mariana, e que, pouco depois, mandaria matar o outro filho Antipater,
tendo ordenado que, à sua morte, fossem assassinados no anfiteatro de Jericó os homens notáveis da
cidade, afim de que houvesse lágrimas em seus funerais?
Esses meninos, segundo revelações espirituais modernas, seriam a reencarnação dos homens que, sob
as ordens de Elias (o futuro João Batista, que também morreria à espada) haviam degolado os 450 sa-
cerdotes de Baal junto à torre de Kishon (1 Reis, 18:40 e 19:1). Elias, o responsável, morreria adulto,
para sentir o peso de seu erro, ao passo que os que lhe obedeceram pereceram também à espada, mas
ainda crianças, sem terem consciência “atual” do que estava a ocorrer e, portanto, com sofrimento
muito menor. A Lei de Causa e Efeito é de funcionamento rigoroso e justiceiro, conforme a descreve
Moisés: “vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por quei-
madura, ferida por ferida, golpe por golpe” (Êx. 21:23-25).
A frase de Jeremias (31:15) constitui uma figura de retórica {prosopopéia), em que o profeta evoca a
lembrança de Raquel, mãe de José e de Benjamin, a chorar quando os israelitas, séculos depois, esta-
vam prisioneiros de Nabucodonozor, na cidade de Ramá, (da tribo de Benjamin) a cerca de 10 quilô-
metros ao norte de Jerusalém. Jeremias a imagina a chorar pelos filhos, tendo em vista que a tradição
colocava ali o túmulo de Raquel.
O fato nada tem que ver com o massacre dos pequenos betlemitas, não sendo propriamente uma profe-
cia. Simples coincidência que ele aproveita, pela semelhança dos fatos.
A matança das crianças de menos de dois anos pode demonstrar-nos que, quando o espírito não se
encontra suficientemente fortalecido, pode sucumbir diante das tentações e perseguições da matéria
(Herodes). Muitos dos que ingressaram entusiasticamente na senda evolutiva, são tentados pelo mun-
do ilusório de mayá e perdem o rumo ou se demoram nos portais da espiritualidade em busca de cu-
riosidades que lhes retêm os passos e lhes cortam a caminhada.
Há muitos obstáculos na senda.
Ora são os ritos externos que distraem a criatura levando-a “para fora”, quando o caminho certo
seria para dentro de si mesma. Mas a pompa ritualística termina por envolver o homem, que perde a
direção: não está ainda maduro.

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SABEDORIA DO EVANGELHO
Ora são as buscas intelectuais, os “sentidos” das palavras, a hermenêutica, a teologia ou teosofia, e o
espírito se perde em cerebrinas elucubrações personalísticas, distanciando-se do rumo certo no pro-
fundo do próprio coração e exteriorizando-se para a periferia intelectual da personalidade transitó-
ria.
Ora são as comunicações com espíritos desencarnados, sobretudo do mundo astral (muitos mais atra-
sados que nós), que passam a governar (a “guiar”) a criatura; e esta acaba julgando “fim” o que
apenas constitui um meio de progresso, e se desvia da rota, exteriorizando-se em direção a outras
criaturas (embora desencarnadas) ao invés de darem o mergulho em busca do Cristo Interno.
Ora são os exercícios de desenvolvimento e domínio do corpo perecível, por meio dos quais espera a
obtenção da estrada certa: quer atingir o espírito pela matéria, quer subir ao céu através da terra, e o
corpo físico se torna a preocupação máxima, desviando a atenção do centro do espírito, que é o cora-
ção.
Todos esses óbices aparecem com objetivo certo: não deixar entrar aqueles que não estejam maduros.
Por isso, há tantas tentações no portal da espiritualidade, a fim de experimentar a “maturidade espi-
ritual” de cada ser. Se a criatura ainda se encontra imatura para o salto em profundidade, ela se de-
tém nesses umbrais e se encanta com ritos, com intelectualismo, com palavras de “guias”, com exer-
cícios para a saúde do corpo, com atos de magia, e aí permanece o tempo indispensável para que pos-
sa amadurecer o próprio espírito.
Se ao invés está madura (ou mesmo, quando consegue amadurecer), abandona todas as ilusões exter-
nas e avança intimorata para as profundezas abismais do próprio coração. Liberta-se de todas as
peias, foge de Herodes e entra, de noite, no Egito do isolamento, onde encontrará a CIDADE DO SOL
(Heliópolis) e lá desfaz a personalidade na Imortalidade infinita da Luz Eterna e Criadora.
Todos aqueles são os “inocentes” (crianças) que são “massacrados”, pelo mundo, pelas vaidades,
pelas ambições ou paixões, pelo intelectualismo ou pelas riquezas e até mesmo pelo próprio espiritu-
alismo mal dirigido.

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REGRESSO DO EGITO
Mat. 2:19-23
19. Mas, tendo morrido Herodes, eis que um anjo do Senhor apareceu em sonhos a José,
no Egito,
20. dizendo: “Levanta-te, toma contigo o menino e sua mãe e vai para a terra de Israel,
pois já morreram os que procuravam tirar a vida do menino”.
21. Levantando-se tomou o menino e sua mãe e voltou para a terra de Israel.
22. Tendo ouvido porém que Arquelau reinava na Judéia, em lugar de seu pai Herodes,
temeu ir para lá; e avisado em sonhos, retirou-se para os lados da Galiléia,
23. e foi morar numa cidade chamada Nazaré, para cumprir o que foi dito pelos profetas:
“ele será chamado nazoreu”.

Após a morte de Herodes, novamente funciona a mediunidade onírica de José: em sonhos um “anjo”
manda-o regressar à “terra de Israel”, como ainda hoje se diz: ςκ‫ מפץׁישך‬José obedeceu de imediato e
(segundo Mateus) dispunha-se a regressar a Belém, quando “ouve dizer” que lá governava Arquelau,
filho de Herodes. Instala-se nele o medo. Realmente, à morte de Herodes (4 A. C. ) Arquelau tinha 18
anos; mas como os judeus se opuseram a seu reinado, revoltando-se por não ter sido deposto o sumo-
sacerdote Joasar, ele mandou matar 3.000 judeus (Josefo, Ant. Jud. XVII, 9, 1). Mas à noite, outro so-
nho esclarece-o, indicando-lhe que se dirija à Galiléia, “a uma cidade chamada Nazaré”. Como esta-
mos vendo, essa cidade constituía para Mateus uma “novidade” absoluta. Parece que José e Maria nem
a conheciam. Como conciliar com as palavras de Lucas, de que eles eram da cidade de Nazaré, isto é,
que lá tinham nascido e residiam normalmente? Teria sido mais fácil dizer que do Egito regressaram à
sua cidade de Nazaré ... pois lá eles possuíam casa, a oficina de carpinteiro de José, os parentes e ami-
gos. Entretanto, Mateus desconhece tudo isso, mostra-o desejoso de ir para Belém (fazer o quê?) e só o
aviso “em sonho” o faz dirigir-se para Nazaré, como se fora um local que eles pisassem pela primeira
vez. E ainda explica: “para que se cumprisse a profecia, que o chama NAZOREU”. Nem é “nazare-
no”...
Esse gentilício é usado quatro vezes por Marcos e duas vezes por Lucas. Mas o próprio Mateus empre-
ga duas vezes nazoreu, que é utilizado uma vez por Lucas, três vezes por João, e sete vezes por Atos.
Eram assim chamados (nazoreus) os cristãos por volta do ano 60 (At. 24:5). O Talmud denomina Jesus
o NOZRI, e chama os cristãos NOZRIM.
Notemos que não há profecia alguma que diga dever o Messias ser chamado “nazareno” nem “nazo-
reu”. A única frase que poderia ser aplicada seria a de Isaías (11:1) quando diz que “do tronco de Jessé
sairá um rebento, e de suas raízes sairá um renovo (= nezêr) que frutificará. E o Espírito de YHWH se
deterá nele”. Tendo Mateus apresentado Jesus como o último rebento (o renovo) na genealogia, pode
ter feito mentalmente uma aproximação, embora forçada.
Depois de viver algum tempo no isolamento da meditação, fora de seus consanguíneos e amigos, o
Homem-Novo galgou mais alguns passos no aprendizado espiritual, e precisa voltar à atividade entre
o povo, a fim de aproveitar o que aprendeu, ensinando-o e exemplificando-o.
No entanto, o regresso à multidão ignara e materialista, viciada e incompreensiva, ainda não é acon-
selhável a quem não esteja suficientemente amadurecido e firme nos novos rumos. É-nos isso ilustrado
com os fatos ocorridos com Jesus.

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Iluminado pelo Alto (avisado pelo anjo) o intelecto (José) resolve ir para o meio religioso do próprio
povo (Judéia = louvor a Deus). Mas percebe que lá ainda domina a intransigência religiosa, talvez
perseguidora. Já não é mais aquele materialismo cego e perverso que procurava sufocar e matar o
espiritualismo puro: já é “filho”; isto é, já avançou um pouco e está acima do vulgo (Arquelau = ar-
ché + laós = “chefe do povo”), mas assim mesmo constitui perigo para o iniciante porque, mesmo no
ambiente religioso, conserva as características da intolerância e do fanatismo estreito, que não pode
perceber as luzes intensas da espiritualidade crística, mas apenas vê o lado externo e popular do espí-
rito da religião.
Entra o intelecto novamente em oração e, ainda uma vez, recebe a inspiração de não afrontar o ofici-
alismo religioso com sua presença. Resolve, pois, refugiar-se nas “regiões fechadas” (Galiléia), entre
aqueles que praticam o espiritualismo não oficial, e vai estabelecer sua morada na cidade de Nazaré,
isto é, na dedicação a Deus (nazireato), para que se realize o que é predito por todos os conhecedores
“será chamado nazoreu ou nazireu”, ou seja, homem consagrado a Deus, de corpo e alma, vivendo no
mundo e em prol do mundo, mas sem ligar-se ao mundo.

Figura “A VOLTA DO EGITO” - Pintura de Bidu, Gravura de Edouard Girardot

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VISITA AO TEMPLO
Luc. 2:40-52
40. E o menino crescia e fortificava-se, enchendo-se de sabedoria, e a benevolência de
Deus estava sobre ele.
41. Seus pais iam anualmente a Jerusalém, pela festa da Páscoa.
42. Quando o menino tinha doze anos, subiram eles, conforme o costume da festa;
43. e findos os dias da festa, ao regressarem, ficou o menino Jesus em Jerusalém. sem que
o soubessem seus pais.
44. Mas estes, julgando que ele estivesse entre os companheiros de viagem, andaram ca-
minho de um dia, procurando-o entre os parentes e conhecidos;
45. e não no achando, regressaram a Jerusalém à procura dele.
46. Três dias depois o encontraram no Templo, sentado no meio dos doutores, ouvindo-os
e interrogando-os;
47. e todos os que o ouviam, muito se admiravam de sua inteligência e de suas respostas.
48. Logo que seus pais o viram, ficaram surpreendidos, e sua mãe perguntou-lhe: “Filho,
por que procedeste assim conosco? Teu pai e eu te procuramos aflitos”.
49. Ele lhes respondeu: “Por que me procuráveis? Não sabíeis que eu devia estar no que é
de meu Pai”?
50. Eles porém não compreenderam as palavras que ele dizia.
51. Então desceu com eles e foi para Nazaré e estava-lhes sujeito. Mas sua mãe guardava
todas estas coisas em seu coração.
52. E Jesus progredia em sabedoria, em maturidade e em benevolência (amor) diante de
Deus e dos homens.

Lucas coloca o regresso a Nazaré logo após a apresentação ao Templo, ignorando por completo qual-
quer outro acontecimento. Diz-nos ele que o menino crescia e fortificava-se (na parte física) enchendo-
se de sabedoria (na parte intelectual). Alguns manuscritos acrescentam “fortificava-se em espírito”. O
interessante a notar é que o evangelista salienta que o desenvolvimento da personalidade de Jesus se
processava normalmente: não possuía a sabedoria total infusa, mas a adquiria aos poucos. Essa opinião
é acatada por certos autores, como Cirilo de Jerusalém (Patrol. Graeca, vol. 75, col. 1332) e Tomás de
Aquino (Summa Theologica, III, q. XII, a. 2). Explicam que, como “homem” (como personalidade)
Jesus progrediu segundo as leis naturais, crescendo seu conhecimento concomitantemente com o cor-
po.
A lei mosaica ordenava que todos os homens que chegassem à idade da puberdade deveriam visitar o
Templo de Jerusalém três vezes por ano: na Páscoa, no Pentecostes e na festa dos Tabernáculos (Ex.
23:14-17; 34:23 e Deut. 16:16), preceito que não incluía as mulheres. A ida de Jesus aos doze anos não
era ainda obrigatória, de vez que só aos quinze o homem se tornava realmente “israelita” ou “filho do
preceito” (bar misheváh).
A festa da Páscoa durava sete dias, finalizando com grande solenidade (Ex. 12:15 ss; Lev. 23:5 ss; e
Deut. 16:1 ss). O menino, com doze anos e muita inteligência, não era vigiado. Assim, ao organizar-se
o primeiro acampamento à noite, na viagem de regresso, José e Maria deram por falta dele. Não o
acharam entre os parentes e amigos.
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No dia seguinte regressaram a Jerusalém, observando outros grupos que saíam da cidade e não no en-
contraram durante todo aquele dia, nem mesmo na casa de conhecidos. No terceiro dia, resolveram ir
ao Templo, e lá o descobriram, sentado entre os doutores (ou melhor, entre os “mestres” - didáskaloi).
As perguntas que lhes fazia, e as respostas que lhes dava, encheram os velhos mestres de admiração e
estupor, em vista da sabedoria muito acima de sua idade, que ele revelava.
Os pais também ficaram atônitos, tanto pela cena que presenciavam, como pelo modo de agir com
eles. Vem a frase de repreensão de Maria, que, falando a Jesus a respeito de José (única vez que isto
acontece) lhe dá o título de “pai”: “teu pai e eu”.
Jesus responde. São as primeiras palavras Suas que este Evangelho reporta.
A resposta é incisiva e esclarecedora: ele precisava estar no que era de Seu pai. Há três interpretações
da expressão grega έν τοϊς τοΰ πατρός . 1.ª) no que é de meu Pai; 2.ª) na cas8. de meu Pai; 3.ª) nos ne-
gócios de meu Pai.
Ao regressar a Nazaré, Jesus estava sujeito a seus pais (obediência), desenvolvendo-se gradativamente
na parte intelectual (sabedoria), na parte psíquica e emocional (maturidade) e na parte moral e espiritu-
al (benevolência ou amor) .
A anotação de Lucas (prescindindo das particularidades narradas por Mateus) ensina-nos que o Ho-
mem-Novo se recolhe à Galiléia (“jardim fechado”) consagrando-se ao Senhor. Nesse ambiente, o
espírito, embora “menino”, cresce e se fortifica, enchendo-se de Sabedoria e aprofundando-se cada
vez mais em seu coração, conquistando (“tomando de assalto”, Mat. 11:12) o Reino de Deus, e imer-
gindo na benevolência divina que o envolve.
Ao completar doze anos de consagração íntima a Deus, e preparação pessoal, o menino vai pela vez
primeira enfrentar o grande centro religioso.
Por que aos “doze anos”? O arcano 12 tem profundo significado: no plano superior simboliza os
messias ou enviados; no plano humano exprime o holocausto, o sacrifício de si mesmo em benefício
da coletividade. O sacrifício é sempre feito no plano da matéria (os 12 signos zodiacais), que é espe-
cializado para a experimentação e provação dos espíritos, único plano cm que estes recebem o impul-
so indispensável para a subida.
O evangelista anota que Jesus SUBIU para Jerusalém (que significa “visão da paz”). Se é verdade
que Jerusalém estava construída no alto de um monte, não o é menos que para “ver-se a paz” verda-
deira é mister subir vibracionalmente ao plano do espírito.
Seus pais José e Maria (isto é, os que conseguiram o “nascimento do menino”, o intelecto e a intui-
ção) são chamados aos seus afazeres, e DESCEM de Jerusalém para o mundo de lutas (plano adver-
sário, ou diabólico). Repentinamente, “dão por falta” do Cristo, de quem perderam o contato. Aí co-
meça ansiosa busca entre parentes e conhecido (talvez voltando ao antigo hábito de orações a santos
e guias). Mas não no encontram.
São então forçados a voltar a Jerusalém, a reingressar na “visão da paz”, e só depois de algum tempo
(três dias) de permanência nesse estado de meditação, é que o surpreendem novamente “no Templo”,
ou seja, no local sagrado onde habita a Centelha Divina: o coração, “templo de Deus”, “Tabernáculo
do Espírito Santo”.
O intelecto e a intuição alegram-se ao reencontrá-lo, e o recriminam por haver desaparecido. A res-
posta é exata: “onde me encontraríeis, senão neste templo interior do coração, senão no que é de meu
Pai”? Então, para que procurar? Já sabemos todos onde encontrá-lo.
Depois, mais firmes na fé, unidos mais do que nunca ao Cristo Interno, compreendem que deverão
voltar ao “mundo” levando-o consigo, sem distrair-se com “parentes e conhecidos”. Lidando no
mundo sem perder contato com Deus em nossos corações. E é isso o que faz a intuição, que tudo per-
cebeu, e “guardou tudo o que ocorreu em seu coração”, em seu registro íntimo.

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C. TORRES PASTORINO
E no versículo final está resumida toda a ascensão sublime: Jesus progredia no tríplice aspecto: da
individualidade (sabedoria), da personalidade (maturidade) e da divindade (benevolência = amor),
não só em relação a Deus, como em relação aos homens. É o progresso que temos que perlustrar:
avançar sempre, conquistando cada vez mais nos três campos.

SIMBOLISMO CÓSMICO
Acenamos (Visita dos Magos, 5 – O Astro) que O nascimento de Jesus passou a ser comemorado a 25
de dezembro, para conformar-se à data do “nascimento” do sol no solstício do inverno. Aprofundemos
as observações - atentos a que estamos sempre referindo-nos ao hemisfério NORTE.
Jesus e comparado ao SOL (que exprime fogo, produzido pela fricção da madeira - era filho de um
“carpinteiro” - e, qual o fogo, produz Luz). Eis algumas das datas escolhidas além dessa citada e seu
cotejo com os fatos astronômicos:
1. - A concepção de Maria (Virgem) é colocada a 8 de dezembro, quando a constelação Virgo surge
nos céus do hemisfério boreal, antes do solstício de inverno.
2. - Nove meses após, o nascimento de Mana é comemorado a 8 de setembro (signo de Virgo), quan-
do a lua surge nessa constelação.
3. - A 25 de março, signo de Aries (Carneiro), festeja-se a anunciação (à concepção de Jesus), exata-
mente no início da primavera, estação da fecundação geral na Terra, quando em Roma se celebrava
à festa de Anna Perenna (recordemos que, pela tradição a mãe de Maria era chamada Ana) ; Anna
Perenna era representada pela lua, que se renovava todos os meses. No mês de março também eram
comemoradas as concepções em Devanaguy (mãe de Krishna) e em Isis (mãe de Hórus).
4. - Três meses após, recorda-se a visita de Maria a Isabel, a 2 de julho, época em que Maria se ocul-
ta, para só reaparecer no nascimento de Jesus. Aí exatamente, no signo de Câncer (Carangueijo) a
constelação de Virgo se oculta anualmente sob o horizonte do hemisfério norte, não sendo vista.
5. - A 25 de dezembro, signo de Capricórnio, após haver chegado ao horizonte a constelação de Virgo
a 8 de dezembro, comemora-se o nascimento de Jesus (assim como o de Krishna, de Hórus e de
Apolo), correspondendo a data à entrada do Sol no solstício do inverno (natalis Solis invicti). O
hemisfério boreal celeste apresenta, nessa época, a seguinte configuração: aos pés de Virgo, a ca-
beça da constelação da Serpente (“a mulher te ferirá na cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar”. Gên.
3:15). A oeste a constelação do Touro e de Orion, com suas três estrelas em fila, em direção a Vir-
go, representando os “três reis magos”. Completa o quadro a constelação do Carneiro, que lembra a
homenagem dos “pastores”. E justamente o sol inicia sua nova eclíptica na constelação de Virgo
(daí Jesus filho da Virgem Maria).
6. - O mês de maio era consagrado, entre os egípcios, a Isis, mãe de Hórus. e entre os romanos a Maia
(donde tirou o nome) a deusa da fecundação primaveril do planeta, senão, por isso, entre eles, o
mês preferido para os casamentos.
7. - Quando a Terra ingressou no signo de Aries, 2.000 anos antes de Cristo, o sacrifício religioso
típico era o do cordeiro, salientado também na festa da Páscoa. Na época de Jesus ingressou a Ter-
ra no signo de Peixes. A palavra “peixe”, em grego ІΧΟΥΣ , contém as iniciais da frase “Jesus
Cristo, filho de Deus. Salvador” ( Іησους Χριστος θεου Υιος Σωτηρ ). E a figura do “peixe” sim-
bolizou Jesus entre os primitivos cristãos. Com Sua vinda, cessaram também os sacrifícios cruen-
tos de cordeiros: pedia-se aos que acreditavam Nele, que se sacrificassem, corrigindo seus vícios. E
o ritual para indicar a mudança de vida, a passagem do “homem-velho” (signo de Aries) ao “ho-
mem-novo, signo de Peixes), era exatamente imitar a vida dos peixes, mergulhando dentro d'água
(batismo). Aos apóstolos diz Jesus que os fará “pescadores de homens” Mat. 4:19, Marc. 1:17). E o
batismo permaneceu na Terra durante toda a era dos Peixes, oficialmente, como símbolo de admis-
são na “barca” de Pedro.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

MINISTÉRIO DO PRECURSOR

Luc. 3:1-6 Mat. 3:1-6 Marc.1:1-6

1. No décimo quinto ano do 1. Naqueles dias apareceu 1. Princípio da Boa Nova de


reinado de Tibério César, João Batista pregando no Jesus Cristo.
sendo Pôncio Pilatos go- deserto da Judéia: 2. Conforme está escrito no
vernador da Judéia. Hero- 2. “Reformai vosso pensa- profeta Isaías: “Eis aí envio
des tetrarca da Galiléia, seu mento, porque se aproxima eu meti anjo ante a tua
irmão Felipe tetrarca da de vós o reino dos céus”. face, que há de preparar o
região da Ituréia e Traconi- teu caminho;
tes, e Lisânias tetrarca de 3. Porque é a João que se re-
Abilene, fere o que foi dito pelo pro- 3. Voz do que clama no deser-
feta Isaías: “Voz do que to: preparai o caminho do
2. sendo sumos sacerdotes clama no deserto: preparai Senhor, endireitai suas ve-
Anãs e Caifás, veio a pala- o caminho do Senhor, endi- redas”,
vra de Deus a João, filho de reitai suas veredas”.
Zacarias, no deserto. 4. apareceu João Batista no
4. Ora, o mesmo João usava deserto, pregando o mer-
3. E ele percorreu toda a cir- uma veste de pelo de ca- gulho da reforma mental
cunvizinhança do Jordão, melo e uma correia em vol- para a rejeição dos erros.
pregando o mergulho da ta da cintura; e alimentava-
reforma mental para a re- 5. E saíam a ter com ele toda
se de gafanhotos e mel sil- a terra da Judéia e todos os
jeição dos erros, vestre. moradores de Jerusalém. e
4. como está escrito no livro 5. Então ia ter com ele o povo eram por ele mergulhados
das palavras de Isaías: de Jerusalém, de toda a Ju- no rio Jordão, confessando
“Voz do que clama no de- déia e de toda a circunvizi- seus erros.
serto: preparai o caminho nhança do Jordão.
do Senhor, endireitai suas I 6. Ora João usava uma veste
veredas; 6. E eram por ele mergulha- de pelo de camelo e uma
dos no rio Jordão, confes- correia em volta. da cintu-
5. todo o vale será aterrado e sando seus erros. ra, e comia gafanhotos e
todo monte e cuteiro será mel silvestre.
arrasado, os caminhos tor-
tos far-se-ão direitos e os
escabrosos, planos,
6. e todo homem verá a salva-
ção de Deus”.
Depois de adiantado o trabalho, já no capítulo 3.º, Lucas dá-nos finalmente apontamentos mais preci-
sos para estabelecermos uma cronologia da vida de Jesus. Estudemos os vários dados históricos forne-
cidos.

1.º - “No 15.º ano do reinado de Tibério César”


Tibério sucedeu a Augusto, à morte deste, no dia 19 de agosto de 767 de Roma, 14 de nossa era (Dion,
56, 31). Nessa ocasião, assumiu o título de “César”, e começou de fato a “reinar”.

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C. TORRES PASTORINO
Segundo essa cronologia, o 15.º ano de seu reinado, na qualidade de César, ocorre de 19-8-28 a 19-8-
29 de nossa era (781 a 782 de Roma). O início da pregação de João ter-se-ia dado nesse ano de 28; o
mergulho de Jesus (que contaria então 35 anos) teria ocorrido antes da Páscoa de 29, e sua morte na
Páscoa (14 de nisan) do ano 31 de nossa era (784 de Roma) contando Jesus 37 anos de idade.
Há duas variantes na interpretação dessa data:
a) diz-se que, de fato, Tibério foi “associado” ao governo de Augusto no ano 11 (764 de Roma).
No entanto, não usava o título de César, nem tampouco assumiu as rédeas do governo, porque não
permaneceu em Roma. Com efeito, no ano 7 Tibério partiu para a Dalmácia, levando reforço de
tropas a Germânico (Dion, 55, 31); no fim do ano 8 regressa a Roma (Dion, 56: 11) aonde chega no
início do ano 9, assistindo aos jogos triunfais em sua homenagem (Dion, 56, 1). Na primavera
(maio), volta à Dalmácia (Suet., Tib., 16) dirigindo-se, no outono (outubro-novembro) ao Reno
(Germânia). No ano 10 Tibério está novamente em Roma, e no dia 10 de janeiro faz a dedicação do
Templo da Concórdia (Mommsen, Hist. Rom., 10, pág. 60). Logo após segue para o Reno, assu-
mindo o comando das tropas romanas e passa nessa região todo esse ano e o ano 11 (Mommsen,
Hist. Rom. 9, pág. 61) assim como o ano 12 (Hermann Shulz, Quaestiones Ovidianae, pág. 55). No
ano 13 (Schulz, ibidem), em Roma, celebra a 16 de janeiro o triunfo pela guerra da Panonia, rece-
bendo de Augusto, novamente, o poder tribunício sem limite de tempo (Dion, 65, 28). Nessa época
e no início do ano 14, Augusto faz o recenseamento ajudado por Tibério (Suet., Oct. 27). A 19 de
agosto de 14 Tibério assume o governo, começa a reinar no lugar de Augusto (Dion, 56, 29-31 e
Suet., OCt., 100).
Nem para Roma, nem mesmo para as províncias, poderiam ser consideradas essas atividades de Ti-
bério, sobretudo extra urbem, como “reinado de Tibério César”.
Esta 2.ª interpretação anteciparia todas as datas do Evangelho de dois anos, ou seja: a pregação de
João e o mergulho de Jesus (que contaria 33 anos) seriam no ano 27, e sua morte no ano 29, tendo
Jesus 35 anos (Cfr. Hieron., De Viris, 5; Catálogo Filocaliano e Libri Paschales do 5.º século, in
Patrizi, De Evange1is, III, pág. 515).
Essa interpretação foi aceita pelo catolicismo romano, pois em 1929 comemorou com um “Ano
Santo” o 19.º centenário da morte de Jesus.
b) Ponderam alguns estudiosos que o ano, na Síria, é computado a partir de 1.º de outubro. E racioci-
nam que talvez fosse considerado o primeiro ano do reinado o período de 19-8-14 a 1-10-14 (um
mês e meio), sendo o período de 1-10-14 a 1-10-15 considerado como o segundo ano de reinado.
Essa interpretação daria um resultado intermediário às datas evangélicas, fixando-se a pregação de
João e o mergulho de Jesus (que teria 34 anos) no ano 28, e Sua morte do ano 30 (tendo Jesus 36
anos). Cfr. Fouard, Vie de Jésus, II, pág. 445-448; Wieseler, Chronologische Synopse, pág. 334 e
Cáspari, Einleitung, pág. 44; Pirot, Saint Jean Baptiste, pág. 123-127.
Difícil, porém, que um rápido período de pouco mais de um mês tivesse sido considerado como o
“Primeiro ano”.
2.º - “Sendo Pôncio Pilatos Governador da Judéia”
Pôncio Pilatos foi nomeado “procurador” da Judéia, em substituição a Valério Grato, no ano 26 (Jose-
fo, Ant. Jud., 18, 4, 2). No ano 36, Lúcio Vitélio, legado imperial na Síria, enviou Pilatos a Roma, por
causa de acusações, cuja defesa não foi aceita por Calígula (Josefo, Ant. Jud., 18, 6, 10), que nomeou
Marulo para substituí-lo. A cidade de residência dos procuradores romanos era Cesaréia de Filipe.
3.º - “Herodes, tetrarca da Galiléia,
seu irmão Filipe, tetrarca da região de Ituréia e Traconites,
e Lisânias , tetrarca de Abilene”

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SABEDORIA DO EVANGELHO
O título de “tetrarca” havia muito não designava mais o governador de um reino dividido em quatro,
tanto que Antônio conferiu esse título, em 41 A.C., a Herodes o Grande, governador único da Palesti-
na. Todavia, à morte deste (4 A.C.), a região resultou mesmo dividida em quatro partes, sendo seus
governantes:
I - Arquelau, filho de Herodes o Grande e da samaritana Maltace. Recebeu, com o título de “etnarca”,
a Judéia, a Iduméia e a Samaria. que ele governou só dez anos: em vista de sua crueldade, foi exilado
no ano 6 de nossa era para a cidade de Viena nas Gálias. Por seu afastamento, seu território passou a
ser governado pelo procurador romano.
II - Herodes Antipas (ou Antípater), irmão do precedente, foi feito herdeiro por seu pai, com o título de
tetrarca da Galiléia e da Peréia, que governou até cerca do ano 39, quando foi exilado com sua esposa
Herodíades, por Calígula, para Lyon, nas Gálias, tendo falecido na Espanha (Josefo, Ant. Jud., 18,7,2).
III - Herodes Felipe, filho de Herodes o Grande com Cleópatra de Jerusalém, foi, de 4 A.C. até 32
A.D., tetrarca da Batanéia, Traconites, Auranítides, Gaulanítides e Panéias, cidade que ele reconstruiu
com o nome de Casaréia de Felipe. Lucas cita apenas as duas regiões extremas.
IV - Lisânias, filho de Lisânias I, que reconquistou sua tetrarquia à morte de Herodes o Grande, gover-
nando Abilene, no Anti-Líbano, a oeste de Damasco, limite extremo-norte do ministério de Jesus.

4.º - “Sendo sumos sacerdotes Anás e Caifás”


Anás (Hannah ou Ananus) era sumo-sacerdote desde o ano 6 A.C. e foi deposto em 15 A.D. por Valé-
rio Grato, governador da Judéia, que nomeou em seu lugar Ismael, filho de Fabi; em 16, Eleazer, filho
de Anás, sucede a Ismael; em 17 é sumo sacerdote Simon, filho de Kamit; e em 18 sucede-lhe José,
chamado Caifás, genro de Anás. Caifás manteve o cargo ininterruptamente, até 36, quando foi deposto
por Vitélio. Como sogro de Caifás, Anás ter-se-lhe-ia agregado, exercendo grande influência sobre ele,
a ponto de Lucas citar os dois como Pontífices Supremos, quando, por lei, deveria haver um.
Entramos, agora, nos textos equivalentes dos sinópticos, com pequeníssimas variantes.
“Veio a João a palavra de Deus”, ou seja, chegou-lhe a inspiração do Alto. O deserto de Judá (Juízes
1:16) estendia-se ao sul de Arad, a leste de Bersabé. Mas o deserto da Judéia era a planície de Jericó.
João vivera retirado, entre os essênios, dos quais guarda as características, inclusive o hábito da purifi-
cação pela água.
Havia três tipos de “ablução” entre os judeus: l.ª) as prescritas pela Lei Mosaica em Lev.14:1-32 (em
caso de lepra), em Lev. 15:1-33 (após as relações sexuais) e em Lev. 11:24-27 (após tocar um cadá-
ver).
2.ª) os “batismos” (mergulhos) essênios, para iniciação de novos membros, que se tornavam “inicia-
dos” ou “purificados” (catharói),
3.ª) O “batismo” dos prosélitos judeus, que vinham do paganismo, e que conhecemos através de uma
discussão entre as escolas de Hillel e de Chamai, e que parece ter sido um rito bem firmado já um sé-
culo antes de nossa era. No 1.º século de nossa era, por influencia da escola de Hillel, tornou-se o rito
de iniciação por excelência.
João não permanece parado, mas percorre toda a circunvizinhança do Jordão, pregando “o mergulho
da reforma mental”.
A palavra “batismo” significa realmente “mergulho”, e o verbo “batizar” tem o sentido exato de “mer-
gulhar”. Não é possível outra interpretação, da letra que é bastante clara.
O termo vulgarmente traduzido por “arrependimento” (metánoia) tem o sentido preciso de “reforma
mental” (metá e noús). Não é, pois, um arrependimento no sentido de “chorar o mal que praticou”, mas
sim a modificação radical dos pensamentos, da mente, e do comportamento: a reforma mental.

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C. TORRES PASTORINO
A expressão είς άφεσιν άµαρτιώυ , geralmente traduzida “para remissão dos pecados”, tem, na realida-
de, o sentido de “'para rejeição dos erros”, Com efeito άφεσις é rejeição, repúdio, afastamento; e
άµαρτιών tem o significado muito mais vasto que pecados”: é o erro em geral, qualquer erro. Pelos
demais textos do Novo Testamento, verificamos que esse é o melhor sentido para essa expressão.
Interessante observar que Mateus emprega constantemente (31 vezes) “reino dos céus”, que nos de-
mais evangelistas aparece como “reino de Deus” (que Mateus só usa 4 vezes). Ambas se equivalem.
Como o nome Inefável não devia ser pronunciado, a ele se substituía a palavra Céus, no plural (no he-
braico, shamaim e no aramaico shemata só havia a forma do plural). Mateus, mais arraigadamente
judeu, evitava o emprego do tetragrama, escrúpulo abandonado pelos outros escritores.
O texto é de Isaías (40: 3), extraído dos Septuaginta, e em Lucas aparece mais completo (40:3-5). Isaí-
as referia-se literalmente à intervenção de Ciro, com seu edito de 538 A.C., considerado um messias,
por haver salvo os israelitas do cativeiro da Babilônia. Mas Lucas emite a primeira parte do versículo
5, que, completo, diz: “e a Glória de Yahweh se manifestará e toda carne (todo homem) juntamente o
verá”.
Marcos, sob o nome de Isaías cita no versículo 2 o texto de Malaquias (3:1), com o qual emenda a ci-
tação de Isaías.
O que diz Malaquias confirma que João Batista é a reencarnação de Elias. E as palavras de Isaías refe-
rem o que se costumava fazer para preparar o caminho dos reis que iam visitar as cidades de seu reino:
tornar mais retas as veredas, aterrar os vales, aplainar os montes e outeiros, tirar as pedras do caminho,
etc. Tudo isso pode ser interpretado moralmente, no sentido de preparar os homens para receber as
verdades que Jesus viria pregar.
Mateus e Marcos dão-nos a descrição física do arauto. Usava uma veste de “pelo de camelo”. A pala-
vra veste compreende as duas peças principais, a túnica e o manto. A túnica era presa aos rins por um
cinto de couro.
Esse era exatamente o trajo de Elias, que trazia um cinto de couro para. prender a túnica de pelo de
camelo (2.º Reis, 1:7-8) e além disso levam-nos a confirmar a crença de que João era realmente essê-
nio.
Quanto à alimentação, fala-se em gafanhotos e mel silvestre. Os beduínos e nômades de Amman e de
Petra ainda hoje utilizam esse alimento casualmente: tiram a cabeça, as patas e as asas, assam o gafa-
nhoto sobre brasas, e dizem que não é desagradável ao paladar.
Mateus afirma que muitos eram mergulhados, “confessando seus erros”, coisa que se explica pela
exaltação religiosa, não rara em movimentos de alto teor místico.

O estudo do simbolismo leva-nos a várias conclusões.


Em primeiro lugar verificamos que as anotações de datas e cronologias são dadas em relação a João,
e não a Jesus. Com efeito, João representa a personalidade, que ainda está sujeita a tempo e espaço,
ao passo que Jesus, a individualidade, transcende tudo isso e vive na eternidade sem datas e sem
pontos de referência.
Anotemos de passagem o simbolismo de alguns dos nomes citados. Além de João (Yohânan = Yahweh
é favorável), temos uma descrição rápida do ambiente em que João começou o ministério da prega-
ção. O governador supremo o “César”, era a figuração de Roma, representada pelo Rio Tibre (Tiber
- Tibérius) e seu representante, lançado como uma ponte (Pontius) armada (Pilatus = armado de
“pila”, uma arma romana), dominava a religião (Judéia = louvor a Deus); Herodes, o idumeu (edom
= vermelho, sangue), domina a região fechada (coração, Galiléia) e o amigo dos cavalos (Felipe) na
região rude e árida (Traconites); mas aquele que dissipa a mágoa (Lisânias) governa a planície ver-
dejante (Abilene). Como superiores religiosos oficiais a graça (Anás) dominado pelo opressor (Cai-
fás). Esse o painel confuso da Terra, quando a grande personalidade de João inicia sua missão de
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SABEDORIA DO EVANGELHO
Precursor: uns poucos bem intencionados, mas a maioria vivendo, por ignorância, na maldade e no
materialismo.
Nessa situação, vem ao arauto a “palavra de Deus (não se trata do Lagos, palavra ativa, principio
criador, mas de REMA, palavra discursiva, articulada, que dá ordens), incitando-o a dar início à
ação.
A personalidade não é influenciada pelo Logos, que apenas atua na individualidade (coração).
João (a personalidade) falava ainda no deserto de individualidades, exortando as criaturas ainda no
lano animalizado à reforma mental, a fim de renunciarem à inferioridade e renascerem pela água, em
nova personalidade (da mesma forma que o renascimento do corpo se efetua através do mergulho no
líquido amniótico do ventre materno). O “mergulho”, pois é um renascer simbólico, como se a criatu-
ra entrasse no ventre materno da Mãe Terra e de lá saísse purificado dos erros das existências anteri-
ores, nova criança, homem renovado.
Todas as arestas precisam ser aparadas, os excessos amputados, as deficiências preenchidas, retifica-
das as veredas das intenções, afastadas as pedras, embotados os espinhos, para que a personalidade
possa elevar-se, vendo a salvação que vem de Deus e atingindo assim, através do ingresso no “reino
dos céus”, isto é, do viver na individualidade, a capacidade de aprender os ensinos de Jesus.
Todos os que já estavam no plano do “louvor a Deus” (Judéia) e na “visão da paz” (Jerusalém) ouvi-
am a voz a clamar e iam em busca do mergulho para o novo nascimento. Só quando a criatura atinge
determinado grau de maturidade e que pode ouvir o apelo divino; porque toda reforma e toda melho-
ria em que vir de dentro para fora: o chamado deve ecoar no coração, para que este possa responder
com honesta sinceridade.

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INSTRUÇÕES DE JOÃO BATISTA

Mat. 3:7-10 Luc. 3:7-14

7. Mas vendo João que muitos fariseus e sadu- 7. Dizia então às multidões que saiam para ser
ceus vinham ao seu mergulho, disse-lhes: mergulhadas por ele: “geração de víboras,
geração de víboras, quem vos recomendou quem vos recomendou que fugísseis da ira
que fugísseis da ira vindoura ? vindoura.
8. Dai pois frutos dignos de vossa reforma 8. Dai pois frutos dignos de vossa reforma
mental. mental e não comeceis a dizer dentro de
vós: Temos como pai a Abraão: porque vos
9. E não queirais dizer dentro de vós mesmos:
declaro que destas pedras Deus pode susci-
Temos como pai a Abraão; porque vos de-
tar filhos à Abraão.
claro que destas pedras Deus pode suscitar
filhos a Abraão. 9. O machado já está posto à raiz das árvores:
toda árvore, pois, que não dá bom fruto é
10. O machado já está posto à raiz das árvores;
cortada e lançada ao fogo.
toda a árvore, pois, que não dá bom fruto, é
cortada e lançada ao fogo”. 10. Perguntava-lhe o povo: “Que havemos en-
tão de fazer”?
11. Respondeu-lhes: “Aquele que tem duas tú-
nicas dê uma ao que não na tem; e aquele
que tem comida, faça. mesmo”.
12. Foram também publicanos para serem
mergulhados e perguntaram-lhe: “Mestre,
que havemos de fazer”!
13. Respondeu ele: “não cobreis mais do que
aquilo que vos está prescrito”.
14. Perguntaram-lhe também uns soldados: “E
nós. que havemos de fazer”? Respondeu-
lhes: “A ninguém façais violência, nem deis
denúncia falsa: contentai-vos com o vosso
soldo”.

Aqui entram em cena os fariseus e o saduceus. Estudemos quem eram.


FARISEUS - O que sabemos deles é tirado de Josefo (Bell. Jud.2, 8, 14; e Ant. Jud. 13, 5. 9 e 13, 10,
5-6: 17, 2, 4 e 18, 1, 2 e 4), e da Mishna (cfr. Schtirer Gestichte des Jüdischen Volkes, 2, págs. 384-
388, Leipzig, 1898, onde estão os textos da Mishna).
Na época de Jesus eram cerca de seis mil. Seu nome primitivo parece ter sido hassidim (os piedosos),
mas entre si se tratavam como haberim (os companheiros). Os adversários os chamavam depreciati-
vamente “fariseus” (pherusin) que significa “os separados”. Tratava-se da separação das coisas e pes-
soas “impuras” (ou seja, dos pagãos e dos judeus infiéis, que não davam muita importância às obser-
vâncias legais).

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SABEDORIA DO EVANGELHO
Além de obedecer rigorosamente à Torah, seguiam à risca a Mishna (tradição selecionada pelos escri-
bas, compreendendo tanto a tradição jurídica (halacha) quanto à histórica (hagada).
Quanto às crenças acreditavam:
a) na sobrevivência dos espíritos após a morte, tanto dos bons quanto dos maus;
b) na ressurreição (ou seja, na reencarnação) dos justos, segundo as idéias de Platão; mas só os bons
reencarnavam em novos corpos, conforme lemos em Josefo (Bell. Jud., 2, 8, 14) que era fariseu:
“as almas são imortais; as almas dos justos passam, depois desta vida, em outros corpos, e as dos
maus sofrem tormentos que duram sempre”.
c) no livre arbítrio, embora não total, mas limitado pelo “destino” em certos pontos.
A separação, levada ao exagero, tornou os fariseus um grupo antipatizado. Além disso, tendo perdido a
sinceridade inicial e cedendo às fraquezas humanas levavam a observância às coisas externas, muito
atentos a que fossem vistos e aplaudidos pelos homens. Daí terem passado à história como protótipos
dos que dão valor apenas às exterioridades, sem nenhum aprofundamento, e como sinônimo de hipó-
critas (a palavra hipócrita significa literalmente “ator”, ou seja, aquele que representa uma peça de tea-
tro “escondido” (crites) “debaixo”{hipo) de uma personalidade diferente da sua personalidade real).
Com efeito, além das 613 prescrições do código “mosaico”, havia numerosas outras tradições que es-
cravizavam os fariseus. Vários tratados do Talmud e o 6.º seder, assim como o último, intitulado Teha-
rôth da Mishna, compreendendo 12 tratados, enumeram as “infrações” possíveis. O receio de errar
paralisava-lhes o espírito, e a religião tornava-se mesquinho formalismo. O homem passava a julgar-se
um justo por suas próprias forças, obra de suas mãos, porque jejuava às segundas e quintas feiras e
cumpria a lei ... Isso o levava a presunção, ao amor próprio, ao orgulho, fomentando de fato a hipocri-
sia, por se julgarem muito melhores e superiores aos outros.

SADUCEUS - Seu nome é provavelmente originário de Sadoc, sumo sacerdote da época de David (2.º
Sam. 8: 17). Mais partido político do que grupo religioso, era constituído de personagens importantes
influentes e não muito numerosos, que organizaram, em 200 A.C., um senado (gerousía), que tinha
autoridade sobre toda a nação. Um século depois, sob Alexandre (77 - 68 A.C.), os fariseus consegui-
ram introduzir-se nesse conselho, que passou a denominar-se Sinédrio. Os fariseus opunham-se aos
saduceus porque estes acatavam com subserviência as dominações estrangeiras, desde que não perdes-
sem sua influência política; porque só aceitavam a lei escrita, recusando as tradições; porque não ad-
mitiam a sobrevivência do espírito, nem os anjos, ensinando que a alma morria com o corpo (Josefo,
Bell. Jud., 2, 8, 14 e Ant. Jud. 18, 1, 4); porque ridicularizavam os rituais tão queridos aos fariseus,
embora fossem mais rigorosos que eles nos julgamentos, exigindo pena do talião, para mostrar-se in-
flexíveis no cumprimento da lei.
Lucas, que é mais preciso nos pormenores, coloca na boca de João, como dirigida à multidão, a repri-
menda que Mateus esclarece ter sido específica para os fariseus e saduceus, que tinham ido procurá-lo
à margem do Jordão.
Chama-os englobadamente “geração (filhos) de uma víbora”, serpente muito comum às margens do
Mar Morto. A víbora é cheia de astúcia e veneno; ao invés de abrigar-se sob as areias, como alhures,
fugia às enchentes imprevisíveis do Jordão vivendo sobre as árvores. A isso alude João, quando indaga
quem lhes havia ensinado a fugir da “ira vindoura”, isto é, da ação do carma, que lhes era devido por
seus erros e enganos. E pede-lhes não palavras e confissões (simples “arrependimento”), mas frutos,
isto é, obras que lhes comprovem a reforma mental.
Depois, desilude-os quanto à esperança de obter vantagens só por seus títulos de “filhos de Abraão”.
Vem isto esclarecer que não basta estar filiado a esta ou aquela doutrina religiosa, não bastam os pri-
vilégios de raça, mas só o merecimento é que vale, o merecimento pessoal, individual.
Alude a seguir às pedras, das quais Deus pode suscitar filhos a Abraão. A frase, para os que conhecem
as leis da evolução, nada tem de absurda: todos os seres humanos já passaram, na fieira dos milênios,
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C. TORRES PASTORINO
pelo estágio do mineral, das “pedras”, e chegamos ao estado atual. E a evolução prossegue sempre. Os
pagãos conheciam essa transformação, e a expressaram na “história de Deucalião e Pirra” (Deucalião
era casado com Pirra. Julgando Zeus que os homens da idade de bronze estavam viciados, resolveu
inundar a Terra com um dilúvio. Dele só escapariam os dois justos Deucalião e Pirra. A conselho de
Prometeu, construíram uma “arca”, onde passaram nove dias sobre as águas, desembarcaram nas
montanhas da Tessália. Chegou a eles Hermes, da parte de Zeus, oferecendo que escolhessem o que
quisessem. Pediram que lhes dessem companheiros. Receberam a ordem de jogar por cima de suas
costas “os ossos de sua mãe”. Pirra julgou isso uma impiedade, mas Deucalião compreendeu que se
tratava de “pedras”, que são os ossos da “mãe” Terra. As pedras que Deucalião lançava tornavam-se
homens e as que Pirra lançava tornavam-se mulheres. Ovídio, Metamorfoses, I, 125-415).
Continuando, aparece em frase vigorosa e imagem de rara felicidade literária, a figura do lenhador,
com o machado já em posição de derrubada, para desarraigar as árvores que não produzem bons frutos,
a fim de transformá-las em lenha. Não há tempo a perder: é hora de apressar-se, para que não seja tar-
de demais.
Lucas prossegue, exemplificando os ensinamentos de João, dando-nos três respostas típicas :

a) ao povo - ajudar e servir, distribuindo o que for supérfluo, com os que necessitam. Para que duas
túnicas, se só vestimos uma de cada vez? e tendo uma guardada em casa, veremos sem remorsos
alguém que está nu a nosso lado? e tendo comida, deixaremos o nosso próprio eu em outro corpo a
morrer à míngua?
b) aos publicanos (cobradores de impostos) - não cobrar mais do que está prescrito, isto é, limitar-se à
justiça .
c) aos soldados - não fazer violência nem dar denúncia falsa, assim como satisfazer-se com o que
ganha.

São, como vemos, ações externas, da personalidade, o mínimo que se pode exigir de quem deseje pro-
gredir. Embora nada disso constitua ascensão espiritual, todavia é a preparação para ela: o andaime
não é a casa, mas sem aquele, esta não se ergueria do chão.
O que João pede é: a) divisão fraterna dos bens; b) justiça nas cobranças; c) energia sem violência; d)
não caluniar ninguém; e) conformar-se sem ganância.
Aos humildes (povo, pecadores, soldados) dirige-se com brandura, bem diversa das invetivas contra os
poderosos (saduceus) e os vaidosos (fariseus). Apresenta os conceitos de dever, sem exagerar nos di-
reitos, sem prejudicar ninguém, sem abusos. Em resumo: caridade e justiça, como pregava Isaías: “di-
vidir o pão com o faminto, abrigar os pobres sem teto, vestir os nus, não furtar-se aos deveres diante
dos irmãos” (Is.58:7).

Há muita gente que procura iludir aos outros e a si mesmos, no caminho do progresso e da evolução
espiritual. Os hipócritas (fariseus), em sua espiritualidade formalista externa, de rituais complicados
e minuciosos, julgando-se superiores, correm pressurosos para serem os primeiros a usufruir as van-
tagens religiosas, a fim de receber os elogios do povo. E os que estão em posição de proeminência
(saduceus), embora materialistas de convicção, ambicionam ser tidos como rigorosos no cumprimento
da lei, para não perderem suas posições de mando e influência.
Ambas essas classes são severamente repreendidos por João, a quem não interessa “agradar”, mas
sim pregar a Verdade prestes a chegar. Sua tarefa de Precursor estava acima das conveniências hu-
manas. Não lhe importava angariar adeptos e bajuladores, nem número de criaturas nem a elevada
posição social, ou religiosa, dos discípulos: sua missão era despertar os amadurecidos que aguarda-
vam, no imo do coração, a voz de comando. O Arauto não se deixava levar de “respeitos humanos”,
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SABEDORIA DO EVANGELHO
mas falava abertamente, embora soubesse que estava sujeito a ser abandonado, e depois combatido e
perseguido pelos grandes do mundo e da religião. Mas a Verdade tinha que ser proclamada desas-
sombradamente, apesar das dolorosas consequências terrenas que pudessem advir daí.
O momento crucial estava à porta: o machado que derrubaria as vaidades ilusórias já estava à raiz
das árvores, e se não houvesse sinceridade nos grandes, os pequeninos, humildes e ignorantes perante
o mundo viriam tomar-lhes o lugar: embora “pedras”, ainda presas da letra, se transformariam em
“filhos de Abraão”, em eleitos no “reino dos céus”. Os rebeldes e fingidos seriam lançado no fogo do
carma da “ira vindoura”.
Mas todos os que demonstram real arrependimento e boa vontade eficiente de trilhar a nova senda,
esforçando-se de alma e corpo, esses serão aproveitados, desde que substituam os erros do egoísmo
pela caridade, da usura pela generosidade, do abuso pela benevolência, da violência pela cordialida-
de, da crítica acerba pela compreensão, da ambição desmedida pela conformação resignada.

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C. TORRES PASTORINO

ANÚNCIO DO MESSIAS

Luc.3:15-18 Mat. 3:11-12 Marc.1:'7-8

15. Estando o povo na expecta- 11. “Eu na verdade vos mer- 7. E ele pregava: “Depois de
tiva e discorrendo todos em gulho em água para a re- mim vem aquele que é mais
seus corações a respeito de forma mental; mas aquele poderoso que eu, diante do
João, se porventura não se- que há de vir depois de qual não sou digno de abai-
ria ele o Cristo, mim é mais poderoso do xar-me para desatar-lhe a
que eu, e não sou digno de correia das sandálias.
16. disse João a todos “eu na
levar-lhe as sandálias; ele 8. Eu vos mergulhei na água,
verdade vos mergulho em
vos mergulhará no Espírito
água, mas vem aquele que é mas ele vos mergulhará no
santo e no fogo;
mais poderoso que eu, e espírito santo”.
não sou digno de desatar- 12. a sua pá ele a tem na sua
lhe as correias das sandá- mão e limpará bem a sua
lias: ele vos mergulhará no eira; e recolherá seu trigo
Espirito santo e no fogo: no celeiro, mas queimará a
palha em fogo inextinguí-
17. a sua pá ele a tem na sua
vel”.
mão para limpar sua eira e
recolher o trigo no seu ce-
leiro, mas queimará a pa-
lha em fogo inextinguível”.
18. Assim, pois, com muitas
outras exortações, anuncia-
va a Boa Nova ao povo.

Lucas esclarece a razão das explicações dadas por João: o povo aguardava ansioso o Messias, para
libertá-lo do jugo romano. E crescia a desconfiança a respeito de João: não seria ele o messias?
O precursor explica singelamente que sua tarefa é apenas preceder o Messias, preparar-lhe o caminho,
mergulhar na água simbolizando a purificação, para que depois venha a reforma mental. Nada mais . O
que virá depois, o “outro”, é mais forte, mais poderoso que ele, e os mergulhará num espírito santo e
no fogo.
Claramente elucida João que ele fala para a personalidade e que “outro”, mais elevado, falará para a
individualidade. E dá suas características: ele se satisfaz com a mudança do pensamento, com a “re-
forma mental” (setenta anos antes, exclamava Cícero para Catilina: “muta jam istam mentem”, muda
logo essa mentalidade”!). Na personalidade, isso constitui o essencial. Mais tarde, quando já no rumo
certo, depois de “rejeitados os erros”, então poderá chegar “outro” para ensinar o progresso “de den-
tro”. Só depois de arrasada a velha casa pelos demolidores, poderá vir o construtor para erguer o novo
prédio.
O “outro” mergulhará a individualidade “num espírito santo”, fazendo-a sintonizar com os bons espí-
ritos, e a fará penetrar “no fogo” da purificação (cfr. Is. 1:25; 4:4; Zac. 13:9; Mal. 3:2) que lhes quei-
mará todas as impurezas; fogo do remorso que limpa, fogo da dor que resgata, fogo dos sofrimentos
que corrige, fogo das provações que tempera, fogo do amor divino que purifica.
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SABEDORIA DO EVANGELHO
Tão grande é esse “outro”, que João se confessa indigno de “desatar-lhe as correias das sandálias”,
revelando com isso o conhecimento de sua pequenez diante da grandeza de Jesus (embora fossem pri-
mos); e confirmando a exultação e o gáudio que ele, João, experimentou ainda no ventre materno,
quando recebeu a visita de Jesus no ventre de Maria: era o velho profeta Elias, diante de Yahweh, um
“homem” diante de seu “deus”. Jesus o classificaria, mais tarde, como “o maior ser” da personalidade
(dentre os nascidos de mulher), embora o menor da individualidade (do “reino dos céus”) lhe fosse
superior.
Com uma imagem, João prefigura Jesus: “tem a pá na sua mão”: é o Senhor, o Dono da Terra, compa-
rada a uma eira (área de terreno liso e duro, onde se põem a secar os cereais para debulhá-los e limpá-
los; realmente, este planeta é uma “eira” para provação e seleção de nossos espíritos) . Prosseguindo na
imagem, João mostra que o trigo (as criaturas humanas) de boa qualidade serão recolhidas ao celeiro,
os frutos serão aproveitados; mas a palha (as personalidades transitórias, os corpos físicos, que só pas-
sageiramente revestem o “trigo” para depois serem abandonados) essa será queimada num “fogo inex-
tinguível” . Com efeito, o fogo purificador do amor divino é eterno e inextinguível em todos os univer-
sos, destruindo tudo o que é inútil, transitório e portanto prejudicial: é a palha dos defeitos, dos vícios,
dos maus hábitos, da vaidade e do orgulho, do personalismo enfatuado e separador. Enquanto os grãos
de trigo, moídos pela dor, irão constituir uma só farinha, formando um todo coletivo maior.
E Lucas conclui dizendo que essas, que ele exemplificou, eram as pregações de João, ao anunciar à
humanidade a Boa Notícia de que o Reino dos Céus (a era da individualidade) estava próxima, já ia
começar com a chegada de Jesus à Terra na missão divina, com o advento do Senhor à Sua eira .

O esclarecimento de João é taxativo e indiscutível: ele se dirige à personalidade exterior, aos planos
do quaternário transitório (corpo físico, etérico, astral e intelecto), pedindo nova direção para este
último e mergulhando na água o corpo físico, para que dela renasça a nova criatura. Mas o “outro”,
o Messias real, agiria na individualidade eterna, no trio superior, que ele mergulharia no espírito
santificado e no fogo do Eu Supremo, colocando-o em contato com o Cristo Interno, com o Deus resi-
dente em cada um.
Jesus viria com a pá em sua mão: ao celeiro divino do Cristo recolheria os “maduros”, ao passo que
os imaturos seriam lançados ao fogo inextinguível de novas encarnações expiatórias, até que atingis-
sem pleno amadurecimento.
Vemos, pois, duas qualidades de fogo, embora sejam ambas o mesmo fogo”. Se aquele que mergulha
no fogo divino está preparado, ficara inflamado pelo fogo do amor; se não no está, é consumido de
dores e purificado dos carmas, queimando as impurezas. O mesmo se passa com o trigo: enquanto a
palha e devorada pelo fogo, transformando-se em cinza, o grão moído, preparado e temperado é cozi-
nhado pelo mesmo fogo, produzindo o saboroso e nutritivo pão que doura nossas mesas. O fogo é o
mesmo: o efeito diferente depende da diversidade dos materiais que nele são colocados. Num provoca
a destruição, noutro a criação de novas virtudes; num consome ilusões inúteis e vãs, no outro salienta
as qualidades; num aniquila o mal que prejudica e atrasa, no outro prepara o alimento que sustenta e
que, bem aproveitado, será assimilado ao Cristo (como o pão o é ao corpo), passando a constituir UM
com Cristo, assim como Cristo é UM com Deus; ou seja, é recolhido ao celeiro”.
E João, como personalidade, SABE que por maior que seja, jamais poderá chegar aos pés da indivi-
dualidade: e a expressão “desatar-lhe as correias de suas sandálias” exprime bem a idéia: por mais
alto que esteja pela cultura e pelo conhecimento teórico nunca chegará ao limiar da individualidade,
se não realizar o encontro íntimo, por meio do Cristo.

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C. TORRES PASTORINO

RESPOSTAS DE JOÃO
João, 1:19-28
19. Este é o testemunho de João, quando os judeus lhe enviaram de Jerusalém sacerdotes
e levitas, para perguntar-lhe: “Quem és tu?”
20. Ele confessou e não negou, e confessou: “Eu não sou o Cristo”.
21. Perguntaram-lhe eles: “Quem és então? És tu Elias?” Ele respondeu: “Não sou”. “És
tu o Profeta?” Respondeu: “Não”.
22. Disseram-lhe pois: “Quem és? Para que possamos dar resposta aos que nos enviaram.
Que pensas de ti mesmo?”
23. Ele replicou: “Eu sou a voz do que clama no deserto: endireitai o caminho do Se-
nhor”, como disse o profeta Isaías.
24. Ora, eles tinham sido enviados pelos fariseus.
25. Perguntaram-lhe também: “Por que então mergulhas se tu não és o Cristo, nem Elias,
nem o Profeta?”
26. Respondeu-lhes João: “Eu mergulho na água; no meio de vós está quem “Vós não co-
nheceis,
27. aquele que vem depois de mim, ao qual não sou digno de desatar a correia das sandá-
lias”.
28. Isto passou-se em Betânia, além do Jordão, onde João estava mergulhando.

O mesmo episódio anteriormente narrado pelos sinópticos é trazido com variantes pelo evangelista
João, com a autoridade que lhe conferia o fato de ter sido discípulo do Batista, e portanto de haver as-
sistido às cenas. Ele traz seu testemunho ocular do interrogatório “oficial” por parte do Sinédrio, por
intermédio de emissários credenciados. A delegação era constituída de sacerdotes (saduceus, que re-
presentavam a autoridade) e de levitas (o clero encarregado da polícia do Templo de Jerusalém).
A pergunta “quem és tu”? subentendia o acréscimo “és o Cristo”? E o evangelista coloca enfatica-
mente a resposta de João “confessou e não negou, mas confessou: não sou o Cristo”, ou seja não sou o
Messias esperado. Falou a verdade sem rebuços, não se fazendo passar, por quem não era.
Eles insistiram, perguntando-lhe se “era Elias”. A vinda do Messias estava condicionada à vinda de
Elias, que o devia proceder, segundo as palavras do Antigo Testamento, em Malaquias “eis que envio
meu mensageiro, ele há de preparar o caminho diante de mim (Yahweh)” (3:1), e “eis que vos enviarei
o profeta Elias, antes que venha o grande e terrível dia de Yahweh; ele converterá o coração dos pais
aos filhos, e o coração dos filhos a seus pais” (4:5-6). Os judeus o aguardavam no sentido literal (Cfr.
Mateus, 16:14 e 17:10-13; Marcos, 9:12 e 15:35-36; Lucas, 1:17). Jesus diz claramente, falando de
João Batista: “se quereis compreendê-lo, ele mesmo é Elias que tinha que vir” (Mat. 11:14); e mais:
“declaro-vos que Elias já veio ... e os discípulos entenderam que lhes falara a respeito de João Batista”
(Mat. 17:11-13; cfr. Marcos, 9:13). De fato, o Batista viveu longo tempo no deserto, como Elias; vestia
um manto de pelo de camelo, como Elias; usava um cinto de couro, como Elias.
Por que então diz João que “não é Elias”? Porque de fato João Batista não era Elias; ele FORA Elias
em vida anterior, mas na atual não mais o era; era, sim, João Batista. A personalidade muda, de encar-
nação para encarnação: quando o ser (individualidade) reencarna, abandona por completo a personali-
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SABEDORIA DO EVANGELHO
dade anterior que morre (“uma só vez”, Hebr., 9:27) e assume nova personalidade (embora a possa
“reassumir”, quando novamente libertado de seu corpo físico, como ocorreu com João Batista que,
depois de desencarnar, reassumiu a personalidade de Elias e conversou com Jesus no Tabor, Mat. 17:3
e Marc. 9:4). Então, João Batista FOI outrora Elias, mas NÃO É MAIS Elias, é João. O comentador
católico Monsenhor Louis Pirot, de quem muito nos servimos nestes comentários, escreve uma frase
preciosa ao esclarecer a resposta do Batista: “mas enfim, tratava-se de Elias em pessoa e, nesse senti-
do, João Batista só podia responder negativamente” (“La Sainte Bible”, vol. 10, pág. 321). Embora
desconhecendo a técnica da reencarnação, e por isso negando-a, Pirot acertou: a PESSOA (personali-
dade) de Elias era uma; a PESSOA (personalidade) de João Batista era outra, totalmente diferente.
Todavia, a INDIVIDUALIDADE, o SER, ou o ESPÍRITO (não a alma!) de ambos era UM SÓ. Duas
contas de um rosário são duas contas diferentes, mas o fio que as liga faz que elas sejam “um rosário”
e “um fio” só. Outro exemplo: cada membro de nosso corpo é independente - o braço não é a perna -
mas o que faz que eles formem parte de UM SER apenas, é nosso ESPÍRITO que os unifica num só
corpo.
Aliás, são Gregório Magno (Homilia VII in Evangelium, Patr. Lat. t. 76 col. 1100) escreve: “Em outro
local (Mat. 11:13-14) , sendo o Senhor interrogado pelos discípulos quanto à vinda de Elias, respon-
deu: Elias já veio, e se quereis sabê-lo é João que é Elias. João, interrogado, diz o contrário: eu não sou
Elias ... É que João era Elias pelo espírito que o animava, mas ele não era Elias em pessoa. O que o
Senhor diz do espírito de Elias, João o nega da pessoa”. Conforme vemos, exatamente nosso ponto de
vista, concordando plenamente com a tese reencarnacionista.
Vem a terceira pergunta, baseada na promessa de Moisés: “Yahweh, teu deus, suscitar-te-á do meio de
ti (povo), dentre teus irmãos, um Profeta igual a mim: escutai-o” (Deut. 18:15). Seria João esse Profe-
ta? Essa profecia foi aplicada a Jesus por Pedro (Atas, 3:22), por Estêvão (Atos, 7:37) e pelo povo ju-
daico (João, 6:14 e 7:40). O Batista mais uma vez nega ser esse Profeta predito por Moisés.
A missão do sinédrio era “oficial”. Tinha, pois, o direito de argüir João. E pergunta-lhe como desfe-
cho: “que dizes de ti mesmo”? João retruca citando Isaías (40:3): “sou a voz do que clama no deserto,
endireitai os caminhos do Senhor”. Já estudamos esse trecho nos comentários aos sinópticas (Mat. 3:3;
Marcos, 1:3 e Lucas, 3:4). Aqui é o próprio João que a aplica a si mesmo, oficialmente, diante da má-
xima autoridade civil e religiosa do povo israelita.
Neste ponto, o evangelista diz que a delegação fora enviada pelos fariseus, ciosos do cumprimento da
Lei e da Tradição. Finalizado o interrogatório, tomam satisfações de seus atos: “se não és o Cristo,
nem Elias, nem “o” Profeta, com que direito mergulhas tu”?
Como vemos, a crença da reencarnação de Elias era aceita como indiscutível, o que prova que a pró-
pria reencarnação em si também o era. Apenas, não conheciam ainda bem a sua técnica.
João esclarece que apenas “mergulha na água”, para excitar os sentidos à reforma mental, mas afirma
solenemente que “o Messias já está em Israel”.
Informa o evangelista que esses fatos ocorreram em “Betânia” além do Jordão (não é a Betânia de
Marta e Maria). Orígenes, que conhecia o terreno, quis corrigir os manuscritos para “Betabara”, para
conformar-se à topografia da região.

Nesta cena, observamos a angústia que obceca os homens pela personalidade, pelo que cai sob os
sentidos. Nada de interessar-se pelo Espírito. Querem firmar suas crenças externas nas ilusões passa-
geiras do corpo, da pessoa, da filiação, das credenciais humanas.
Estes interrogatórios serão feitos a todos os que mergulharam no Espírito: “Quem és? que autoridade
tens? quem te deu esse poder”?
Se houver um “diploma” conferido, está tudo legal. Mas há que ser um diploma material e humano. A
Força Divina, para os homens comuns e para as “autoridades”, de nada vale: é indispensável a con-
firmação da autoridade “humana”.
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C. TORRES PASTORINO

O MERGULHO DE JESUS

Mat. 3:13-17 Marc. 1: 9-11 Luc. 3:21-22

13. Depois veio Jesus da Gali- 9. Naqueles dias veio Jesus de 21. Quando todo o povo havia
léia ao Jordão ter com Nazaré da Galiléia, e foi sido mergulhado, tendo
João, para ser mergulhado mergulhado por João no sido Jesus também mergu-
por ele. Jordão. lhado, e estando a orar, o
céu abriu-se
14. Mas João objetava-lhe: 10. Logo ao sair da água, viu os
“Eu é que preciso ser mer- céus se abrirem e o espírito, 22. e o espírito santo desceu
gulhado por ti e tu vens a como pomba, descer sobre como pomba sobre ele em
mim”? ele. forma corpórea, e veio uma
voz do céu: “Tu és meu Fi-
15. Respondeu-lhe Jesus: “Dei- 11. E ouviu-se uma voz dos
lho amado, estou satisfeito
xa por agora; porque assim céus: “Tu és meu Filho
contigo.”
nos convém cumprir toda amado, estou satisfeito con-
justiça”. Então ele anuiu. tigo”.
16. E Jesus tendo mergulhado,
saiu logo da água; e eis que
se abriram os céus e viu o
espírito de Deus descer
como pomba sobre ele,
17. e uma voz dos céus disse:
“Este é meu filho amado,
com quem estou satisfeito”.

Pela cronologia que estudamos, o Mergulho de Jesus deve ter ocorrido cerca de dois a três meses antes
da Páscoa do ano 29 (782 de Roma), tendo Jesus perto de 35 anos (Santo Irineu, Patrologia Graeca,
vol. 7, col. 783 e seguintes, diz que “no batismo” tinha Jesus 30 anos; no início de sua missão, 40 anos;
e à sua morte, 50 anos; baseia-se em motivos místicos e em João 8:57). A expressão de Lucas “cerca
de 30 anos” apenas serve para justificar que Jesus já tinha a idade legal (30 anos) para começar sua
“vida pública”.
As igrejas orientais celebram, desde o 4.º século, a data do mergulho a 6 de janeiro, no mesmo dia em
que comemoram a visita dos magos ou epifania (Duchesne, Origines du culte chrétien, 4.ª edição, pá-
ginas 263 e 264).
Pela tradição, parece que o ato foi celebrado na margem direita (ou ocidental) do Jordão, nas cercanias
de Jericó.
Os “Pais” da igreja buscam “razões” para o mergulho ou “batismo” de Jesus: para dar exemplo ao
povo; por humildade; para autorizar o mergulho de João, aprovando-o: para provocar o testemunho do
Espírito, revelando-se ao Batista; para santificar as águas do Jordão com sua presença e com os fluídos
que saíam de seu corpo; para confirmar a abolição do rito judaico do “batismo”; para aprovar o rito
joanino, etc.

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SABEDORIA DO EVANGELHO
João procurou evitar o mergulho de Jesus. O verbo diekóluen está no imperfeito de repetição: “esfor-
çava-se por evitá-lo”, com várias razões, dizendo: “eu é que devo ser mergulhado por ti”.
João conhecia Jesus perfeitamente. Com efeito, sendo Isabel e Maria “parentas” (primas?), tendo Ma-
ria “se apressado a visitar Isabel” em sua gravidez, e com ela morando durante três meses, é evidente
que as relações entre as duas famílias eram de intimidade, e Jesus e João se hão de ter encontrado vári-
as vezes, embora, pela prolongada ausência de Jesus (dos 12 aos 35 anos) e pela estada de João no de-
serto, talvez se não tivessem visto nos ,últimos anos.
A resposta de Jesus é incisiva: “deixa por enquanto”. A necessidade, salientada por Jesus, de “cumprir
toda justiça”, tem o sentido de “realizar tudo o que está previsto com justeza”, ou “fazer tudo direito
como convém”.
E João anuiu, realizando o mergulho de Jesus, com o que demonstrou também verdadeira humildade
(não a falsa humildade, que se recusa a ajudar um superior, dando-se “como indigno” ...): houve a
tentativa de recusa sincera, mas logo a seguir, dadas as razões, houve anuência, sem afetação.

Agora chegamos aos fatos, que enumeramos para facilitar o comentário:


1) Jesus mergulha e sai imediatamente (eythys) da água. Aqui chamamos a atenção do leitor para o
mergulho (batismo) que não era por aspersão nem por derramamento de água na cabeça, mas era
realmente mergulho, tanto que Jesus “sai da água”, onde havia mergulhado totalmente (com cabe-
ça e tudo), costume que se manteve na igreja católica até, pelo menos, o século XI, notando-se que
só era conferido a pessoas adultas, acima da idade da razão. Cirilo de Jerusalém (Catecismo, 20,2)
ao discursar aos recém “batizados”, diz: “à vossa entrada (no batistério) tirastes a túnica, imagem
do homem velho que despistes. Assim desnudados, imitáveis a nudez de Cristo na Cruz ... coisa
admirável: estáveis nus diante de todos e não tínheis acanhamento: éreis a imagem de nosso pri-
meiro pai, Adão”. E na vida de .João Crisóstomo (Patrologia Graeca, vol. 47, col. 10) Paládio es-
creve: “Era Sábado-santo. A cerimônia do batismo ia começar e os catecúmenos nus esperavam o
momento de descer na água. Foi quando irrompeu um bando de soldados que invadiu a igreja para
expulsar os fiéis. Corre o sangue e as mulheres fogem nuas, pois lhes não permitiram apanhar suas
roupas”.
Lucas acrescenta: “estando Jesus a orar”, coisa que esse evangelista de modo geral registra (cfr.
Luc. 5:16; 6:12; 9:18; 11:1; 22:24), talvez compreendendo o grande valor da prece e demonstran-
do que, em todas as ocasiões mais graves, Jesus elevava seu pensamento em prece.

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C. TORRES PASTORINO

Figura “O MERGULHO DE JESUS” - Desenho de Bida, gravura de L. Massad

2) os céus se abriram - céus ou ar atmosférico. Como se abriram? Daria idéia de que algo tivesse sido
visto por trás da abertura. O que? Ou seria apenas uma luz mais forte que tivesse aparecido, dando
a impressão de abertura? Marcos usa a expressão “os céus se fenderam” ou “rasgaram” (mesmo
termo que se emprega para roupa ou rede que se rompe), verbo que também hoje se diz: “um raio
rasgou os céus”. Por aqui se vê que céu ou céus exprime a atmosfera, e não um lugar de delícias.
3) é visto o Espírito (Marcos e João), o Espírito de Deus (Mateus), o Espírito o Santo (Lucas). Mas de
que forma foi percebido o Espírito?
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SABEDORIA DO EVANGELHO
4) “com a forma (Lucas: corporalmente) de uma pomba”. Os quatro evangelistas empregam a conjun-
ção comparativa “COMO”. Nenhum deles diz que ERA uma pomba, mas que era COMO uma
pomba. O advérbio “corporalmente” (somatikó) empregado por Lucas indica a razão de haver sido
comparado o Espírito a uma pomba: era a aparência do corpo de uma pomba. Trata-se da sheki-
nah, luz que desce em forma de V muito aberto: tanto assim que todas as figurações artísticas,
desde os mais remotos tempos, apresentam uma pomba de frente, e de asas abertas, e jamais pou-
sada e de asas fechadas. Os artistas possuem forte intuição.

5) descer sobre ele (“e permanecer”, João). Todas essas ocorrências narradas (que numeramos de 2 a
5) são fenômenos físicos de vidência. A luz não estava parada, mas se movimentava, descendo so-
bre Jesus. Essa descida é que empresta a forma maior profundidade ao centro e maior elevação dos
lados fazendo que pareça (imagem óptica bem achada) uma pomba em vôo. O Espírito desceu so-
bre Jesus, sem forma, como uma luz que descia. Nele penetrou e permaneceu. Mas parecia, ou era
como uma pomba.
6) e ouviu-se uma voz do céu. A própria atmosfera vibrou noutro fenômeno físico de audiência, desta
vez com rumor de voz humana, que emitiu um som e articulou palavras claras, audíveis e compre-
endidas: “este é meu Filho amado, com quem estou satisfeito”, isto é, que aprovei, que me agra-
dou.
Tendo-o chamado “meu Filho”, deve supor tratar-se de um Espírito Superior ao de Jesus, que O amava
como um pai ama o filho.
A expressão é de carinho. Comum ser dado e recebido esse tratamento por parte de pessoas que não
são pais e filhos: sacerdotes assim tratam os fiéis, professores a seus alunos, superiores a seus subordi-
nados, mais velhos a mais moços. E nas reuniões mediúnicas, então, é quase de praxe que assim os
“espíritos” tratem os encarnados. Não significa, em absoluto, que a voz tenha sido de DEUS-PAI, sim-
plesmente porque DEUS ABSOLUTO não é antropomórfico, não possui atributos humanos (em que
idioma falaria Deus?).
Todos os fenômenos narrados são manifestações de efeitos físicos (vidência e audiência) que frequen-
temente ocorrem em reuniões espiritistas, com as mesmas características, percebidas por médiuns vi-
dentes e clariaudientes: céu que se abre, luzes que descem, vozes que falam. Para quem está habituado
a assistir a essas cenas, elas se tornam naturais e familiares, embora sempre impressionem profunda-
mente, pelas revelações que trazem. Autores antigos gregos e romanos, são férteis em narrativas desse
gênero.
Quem percebeu esses fenômenos? Apenas João ou todos os presentes? Mateus e Marcos dão-nos a
impressão de que só João viu e ouviu. Lucas nada diz: apresenta o fato. O evangelista João coloca as
palavras na boca do Batista, como única testemunha ocular, não acenando à voz.

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C. TORRES PASTORINO

João, 1:29-34
29. No dia seguinte, viu João a Jesus que vinha a ele e disse: “Eis o Cordeiro de Deus que
tira o erro do mundo!
30. Este é o mesmo de quem eu disse: Depois de mim vem um homem, que começou antes
de mim, porque existia primeiro que eu ;
31. eu não o sabia, mas para que ele fosse manifestado a Israel, é que eu vim mergulhar
na água”.
32. E João deu testemunho, dizendo: “Vi o Espírito descer do céu como pomba e perma-
necer sobre ele.
33. Eu não o sabia, mas aquele que me enviou para mergulhar na água, disse-me:
“Aquele sobre quem vires descer o Espirito e ficar sobre ele, esse é o que mergulha
num espírito santo”.
34. E eu vi e testifiquei que ele é o Escolhido de Deus.

Mantivemos separado o texto de João, embora houvesse repetição de algumas cenas, porque a narrati-
va diverge dos sinópticos.
Em primeiro lugar, o evangelista que tanta importância dá à numerologia, assinala “no dia seguinte”,
reportando-se ao interrogatório do sinédrio, coisa de que os outros não cogitam. Não há necessidade,
cremos, de interpretar ao pé da letra. Diríamos: “na segunda etapa”. Mais adiante (versículo 35) ele
repetirá a mesma expressão com o mesmo sentido, revelando então os três passos da evolução do caso:

Primeiro, o interrogatório da personalidade (João), estabelecendo seus limites reais; segundo, o mer-
gulho na individualidade, que passa a agir através da personalidade; terceiro, a transferência dos
discípulos (de João) que abandonam também a personalidade, para aderirem à individualidade
(Jesus).
Mas voltemos ao texto.
João viu Jesus vir até ele. Essa narrativa é posterior ao mergulho de Jesus, contado logo após, como
fato já vivido anteriormente (vers' 32, 33). E ele atesta diante dos discípulos: “Eis o Cordeiro de Deus
que tira o erro do mundo”.
Que significará “Cordeiro de Deus”? Seria uma alusão ao cordeiro pascal? ou ao “Servo de Yahweh”
(ebed YHWH) segundo Isaías: “como um cordeiro levado à matança e como uma ovelha diante do
tosquiador” (Is. 53: 7) ?
Ao cordeiro se atribuía a qualidade de “expiar os pecados do mundo”, coisa que jamais foi atribuída a
Jesus (cfr. Strack-Billerbeck, Kommentar zum neuen Testament aus Talmud und Midrasch München,
1924, tomo 2, pág. 368). A semelhança com Isaías é mais aparente que real. Além disso, o verbo em-
pregado por João “tirar o erro” (airein) para esclarecer a verdade, é bem diverso do utilizado por Isaías
(pherein) “tomar sobre si o erro, para expiá-lo como vítima”. Nem pode admitir-se que, nessa época,
se cogitasse de um Messias sofredor. Não obstante, alguns hermeneutas explicam, pelo sentido interno,
que no momento da teofania (manifestação divina) do mergulho, João tenha compreendido todo o al-
cance da missão sacrificial de Jesus, tendo-lhe então aplicado a expressão “Cordeiro de Deus” no sen-
tido exato de Isaías (veja capítulo 52:13-15 e 53:1-12).
Recordemos, de passagem que o latim AGNUS (cordeiro), como símbolo de pureza, aproxima-se de
IGNIS (fogo) que, em sânscrito, língua-máter do latim, é AGNÍ com o sentido de fogo purificador,
fogo do holocausto.
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SABEDORIA DO EVANGELHO
Logo a seguir, João repete a frase sibilina que costumava dizer a seus discípulos: “depois de mim vem
um homem, que começou antes de mim, porque existia primeiro que eu”. Analisemo-la.
“Homem”, no .sentido de macho, de varão ( ανηρ ). “Vem depois de mim” ( οπισω µου ), com signifi-
cado temporal, isto é, aparecerá entre vós depois de mim”; e segue “que começou antes de mim”, quer
dizer “nasceu na eternidade, tornou-se ser” ( γεγονεν , no perfeito) antes de mim ( εµπροσθεν µου ).
Alguns interpretam “que me superou”, ou “que passou à minha frente”. E dá a razão: “porque existia
primeiro que eu “ ( οτι πρωτος µου ην ). Clara aqui a reencarnação, ou, pelo menos, a preexistência dos
espíritos. Jesus, COMO HOMEM, existia antes de João: então, COMO HOMEM, tomou corpo. E a
conclusão lógica é que, se ficar provado que UM SÓ homem existiu antes do nascimento, fica auto-
maticamente provada a preexistência PARA TODOS. E se a preexistência de UM SÓ espírito for
comprovada, ele só poderá nascer na Terra por meio da “encarnação”. E se pode realizar esse feito
uma vez, poderá realizá-lo quantas vezes quiser ou de que necessitar para sua evolução.
Depois, concedendo uma explicação aos discípulos, o Batista revela-lhes por que fez essas afirmativas.
“Eu não o sabia, mas vim mergulhar na água para que ele fosse manifestado a Israel”.
As traduções vulgares trazem “eu não o conhecia”. Mas o verbo ηδειν do texto (mais-que-perfeito do
perfeito presente do indicativo οιδα do verbo ειδω e portanto com sentido de imperfeito do indicativo),
tem o significado primordial de “saber”, ou “estar informado”.
Então o Batista confessa que não tinha informação ou conhecimento total da missão de seu parente
Jesus, mas que tinha vindo à Terra (reencarnado) para que ele, o Messias, pudesse manifestar-se. O
testemunho do mergulho de Jesus era imprescindível para que João o reconhecesse como Messias, e
como tal o apresentasse ao povo. Com isso, compreendemos melhor a frase de Jesus em Mateus: “dei-
xa por agora, porque assim nos convém cumprir toda justiça”, isto é, ajustar-nos ao que está previsto.
E continuam os esclarecimentos, dando o motivo por que soube de que se tratava “vi o Espirito descer
do céu COMO pomba e PERMANECER sobre ele” . O pormenor de que o Espírito (não “santo” nem
de “Deus”, concordando com Marcos) “permaneceu” sobre Jesus, parece ser valioso e será repisado
adiante.
Repete: “eu não o sabia”, e explica: “mas aquele que me enviou para mergulhar na água, disse-me”. A
notícia de que “alguém” enviou João Batista à Terra (logo preexistência e reencarnação) é de suma
importância e confirma as palavras do evangelista João, 1:6. Quem será esse “alguém” que enviou
João à Terra? Acreditamos que o próprio Jesus (Yahweh) antes de encarnar, firmando-lhe na memória
um fato típico que não seria esquecido: aquele sobre quem vires descer o Espírito e permanecer sobre
ele, esse é o que mergulha num espírito santo” (em grego sem artigo). O sinal foi cumprido no mergu-
lho de Jesus, que o evangelista supõe conhecido e dele não fala.
E conclui: “eu vi e testifiquei que esse é o Escolhido de Deus”. As traduções vulgares trazem “Filho de
Deus”, lição dos manuscritos Borgianus (T), século 5.º; Freerianus (W) , século 5.º; Seidelianus II (H),
Mosquensis (VI) e Campianus (M) do século 9.º. Mas preferimos a lição o “Escolhido de Deus” ( О
Εκλεκτος του Θεου ), porque é atestada por mais antigos e importantes manuscritos: Papyrus Oxhirin-
cus (Londres, do século 3.º), pelo sinaítico (séc. 4.º), Vercellensis (séc. 4.º), Veronensis (séc. 4.º), e
pelas versões siríacas sinaítica (séc. 4.º) e curetoniana (séc. 5.º), pela sahídica, assim como pela Vetus
Latina (codex Palatinus, séc. 4.º), bem como por Ambrósio, que foi bispo de Milão no século 4.º.
Além disso, a expressão “Escolhido de Deus” é muito empregada no grego dos LXX e em o Novo
Testamento (cfr. Is. 43:20; Ps. 105:4; Sap. 3:9; Tob. 8:15; Mat. 20:16; 22:14; 24:22, 24,31; Marc.
13:20, 22,27; Luc. 18:7; 23:35; João, 1:34 (este); Rom. 8:33 e 16:13; Col. 3:12; I Tim. 5:21; 2 Tim.
2:10; Tit. 1:1; 1 Pe. 1:1; 2:4, 6, 9; 2 Jo. 1, 13; Apoc. 17:14).
Temos, pois, razões ponderáveis para aceitar nossa versão, que dá a medida das coisas nesse momento:
João viu e deu testemunho, de que Ele, Jesus, era o “escolhido de Deus” para a missão de Messias, o
Enviado Crístico.

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C. TORRES PASTORINO
No mergulho de Jesus, encontramos farto material de estudo.
Diz a Teosofia que, no momento do mergulho, o “espírito” de Jesus saiu do corpo, deixando-o para
que nele entrasse, como entrou, o “espírito” do Cristo, que aí permaneceu até o momento da crucifi-
cação.
A idéia está expressa de maneira incompreensível. Mas assim mesmo, através dessas palavras, perce-
bemos a realidade do que houve.
Jesus, como personalidade, manifestou tão grande humildade, que se aniquilou a si mesmo. E o ani-
quilamento da personalidade, pela renúncia a qualquer vaidade e orgulho, foi tão grande, que não
mais agiu daí por diante. E isso fez que, através de Jesus, só aparecesse e só agisse o seu Cristo Inter-
no, isto é, a Sua individualidade Crística, o Eu divino. Essa é a meta de todas as criaturas: “quem
quiser seguir-me, negue-se a si mesmo” (Mat. 16:24), anule sua personalidade, com a humildade má-
xima, e então poderá seguir a mesma estrada que Jesus, que a viveu antes para dar-nos o exemplo
vivo e palpitante de humildade e aniquilamento.
João Batista é o protótipo da personalidade já espiritualizada.
Nasce antes de Jesus, o que exprime que a evolução da personalidade se dá antes da individualidade.
João é “a voz que clama preparando o caminho para o Senhor”, ou seja, para a individualidade. Daí
dizer (João, 3:30): “é necessário que Ele (Jesus, a individualidade) cresça, e que eu (João, a perso-
nalidade) diminua”. Não fora esse o sentido, haveria contradição com o que foi antes dito: “é tão
grande, que não sou digno de desatar-lhe as correias das sandálias”. Se já era tão superior a João,
porque teria que CRESCER? E se João era tão pequeno, por que teria que DIMINUIR? Não seria o
caso de João dever progredir, aperfeiçoar-se, CRESCER, para tornar-se grande como Jesus? A meta
não é o crescimento espiritual? Mas aí se trata é da oposição entre a personalidade e a individualida-
de: para que a segunda CRESÇA só há um caminho: é fazer que a primeira DIMINUA até ANULAR-
SE. Só assim podemos compreender essa frase de João. O intelecto iluminado de João percebe a Luz
da Verdade, a Bondade do Amor e o Fogo do Poder de Cristo, e o anuncia como o “Cordeiro de
Deus”, pregando a necessidade da metánoia, isto é, da “reforma mental”, a fim de perceber o “reino
de Deus” que, diz ele, “se aproxima de vós”, ou melhor, porque estais prestes a penetrar os mistérios
recônditos do Eu Supremo.
O conhecido “batismo” deve ser entendido no sentido real e pleno da palavra original grega: MER-
GULHO. Com efeito, é o mergulho consciente na presença de Deus dentro de nós, em nosso coração,
mergulho esse que dá o desenvolvimento pleno à individualidade, ao Espírito.
João, a personalidade, só realiza o “mergulho na água”, isto é, o mergulho exterior; mas Jesus (a
individualidade) veio exemplificar-nos o mergulho “no fogo” (AGNÍ) da Centelha de Deus em nosso
coração - por isso, em nossos comentários acenamos à semelhança da raiz latina AGNUS (cordeiro),
em grego “Amnós”, com o sânscrito “agní” - e “no Espírito”, ou seja, no Eu profundo, nosso verda-
deiro Eu espiritual que é o Cristo Cósmico.

ESPÍRITO
Vamos aproveitar para esclarecer a distinção que fazemos das diversas acepções da palavra ESPÍRI-
TO. Ora o escrevemos entre aspas e com inicial minúscula: o “espírito”, e queremos então referir-nos
ao termo comum de espírito desencarnado, isto é, ao espírito da criatura que ainda está preso à per-
sonalidade, com um rótulo, ou seja, um NOME: por exemplo, o “espírito” de João, o “espírito” de
Antônio, etc . Doutras vezes escrevemos a palavra com inicial maiúscula: o Espírito, e com isso signi-
ficamos a individualidade, ou seja, o trio superior composto de Centelha Divina, Mente e Espírito,
mas sem nome, não sujeito a tempo e espaço. Então, quando o Espírito se prende à personalidade,
passa a ser o “espírito” de uma criatura humana, encarnada ou desencarnada. O Espírito é o que
está em contato com o Eu Profundo, enquanto o “espírito” está em contato com o “eu” pequeno, que
tem um nome. Somos forçados a fazer estas distinções para que as idéias fiquem bem claras. Além
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SABEDORIA DO EVANGELHO
desses, temos o “Espírito” de Deus, ou o “Espírito” Santo, que é a manifestação cósmica da Divinda-
de, também chamado o Cristo Cósmico, de que todos somos uma partícula, um reflexo; em nós, o
Cristo é denominado “Cristo Interno” ou Centelha Divina, e é a manifestação divina em cada um de
nós. Não se pense, entretanto, que a reunião de todas as Centelhas divinas ou “mônadas” das criatu-
ras forme o Cristo Cósmico. Não! Ele está imanente (dentro de todos nós), mas é INFINITO e, por-
tanto, é transcendente a todos, porque existe ALÉM de todos infinitamente. O mergulho de que fala-
mos exprime, em primeiro lugar, o ENCONTRO do “espírito” (personalístico) com o seu próprio Es-
pírito (individualidade), e depois disso, em segundo lugar, a absorção do Espírito no mais recôndito
de seu EU profundo, ou seja, a UNIFICAÇÃO do Espírito com o Cristo Interno, com sua consequente
INTEGRAÇÃO com o Cristo Cósmico.
Quando a criatura dá esse mergulho profundo, o Espírito de Deus “desce sobre ele e nele permane-
ce”, porque a união é definitiva e absorvente. Para conseguir-se o mergulho, temos que ir ao encontro
de Deus em nosso coração, mas também temos que aguardar que Deus desça a nós, ou seja, temos
que esperar a “ação da graça”, para então realizar-se o Encontro Sublime .
A forma de pomba, percebida pelo Batista e por ele salientada, simboliza a paz interior permanente,
essa “paz que o mundo não dá” (João, 14:27). E a Voz divina o revela aos ouvidos internos do men-
sageiro, como o “Filho Amado”, como o “escolhido”, confessando-se satisfeito com ele.
Esse mergulho foi compreendido por Paulo de Tarso. Escreveu ele: “todos quantos fostes mergulha-
dos em Cristo, vos revestistes de Cristo” (Gál. 3:27). Desde que o homem mergulha em seu íntimo,
passa a ser revestido do Cristo Interno, como foi Jesus. Quase que o interior se torna exterior, e a
personalidade, ao anular-se, cede lugar à individualidade que começa a manifestar-se externamente:
“não sou mais eu (personalidade) que vivo: é Cristo (individualidade) que vive em, mim” (Gál. 2:20).
E acrescenta: “agora Cristo será engrandecido em meu corpo (personalidade), quer pela vida, quer
pela morte, pois para mim o viver é Cristo, e o morrer (a personalidade) é lucro” (Filip. 1:20-21) . E
explica: “por isso nós, de agora em diante, não conhecemos a ninguém segundo a carne (a personali-
dade): ainda que tenhamos conhecido a Cristo segundo a carne, agora, contudo, não O conhecemos
mais desse modo; se alguém está em Cristo, é nova criatura; passou o que era velho e se fez novo (2
Cor. 5:16-17). Esclarece mais: “pois morrestes (na personalidade) e vossa vida está escondida com
Cristo em Deus” (Colo 3:3). E Pedro Apóstolo, localizando a Centelha divina no coração, aconselha:
“santificai Cristo em vossos corações” (1 Pe. 3:15).
Nesse estado, após o mergulho interno no coração, a criatura passa a ser o “escolhido” ou o “Filho
de Deus”, porque purificou (santificou) seu coração de todo apego personalístico (“bem-aventurados
os puros de coração, porque verão a Deus”, Mat. 5:8), e estão com a “pomba” da paz divina perma-
nente, pacificando-se e pacificando a todos (“bem-aventurados os pacificadores, porque serão cha-
mados Filhos de Deus”, Mat. 5:9). E assim perdem o apego a pai, mãe, esposa, filhos e a si mesmos, e
seguem ao Cristo Interno em seus corações (“quem ama - ou se apega - a seu pai ou mãe ou filho ou
filha mais do que a mim (Cristo), não é digno de mim ... o que acha sua vida (personalística) perdê-la-
á (porque morrerá um dia), mas o que perde (renuncia) sua vida (personalística) por minha causa,
achá-la-á, Mat.10:37-39).
O homem que atingiu esse ápice sublime, no mergulho dentro de seu Espírito e do Fogo da Centelha,
“tira o erro do mundo”(liquidai seu carma) e, por seu exemplo de amor e de humildade, revela a to-
dos o Caminho certo, o Caminho Crístico, que leva à Verdade e à Vida (João,14:6).
Paulo ainda explica: “ou ignorais que todos os que fomos mergulhados em Cristo Jesus, mergulha-
mos na morte dele”? (Rom. 6:3). Quer dizer, os que tomam contato com a Individualidade, fizeram a
personalidade perecer “crucificada na carne” (a Cruz é o símbolo do corpo - de pernas juntas e bra-
ços abertos - e exprime o quaternário inferior da personalidade: corpo denso, duplo etérico, corpo
astral e intelecto). Por isso: “num só Espírito (Cristo) fomos todos nós mergulhados num corpo” (1
Cor. 12:13). A comparação do mergulho no Espírito é feita, exemplificando-se com o ato oposto,
quando o “espírito” mergulha num corpo (reencarnação): assim como ao nascer o “espírito” mer-

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C. TORRES PASTORINO
gulha na carne, assim nós todos, embora ainda crucificados na carne, teremos que mergulhar a per-
sonalidade no Espírito e no Fogo, fazendo que essa personalidade se aniquile, se anule, pereça.
Com isso, com a anulação da personalidade, será tirado o “erro” do mundo, porque ninguém mais
terá pruridos de vaidade, nem sentirá o amor-próprio ferido, nem se magoará, porque SABE que nada
externo poderá atingir seu verdadeiro EU, que está em Cristo. Teremos o perdão em toda a sua am-
plitude, a ausência de raivas e ódios, reinando apenas o Amor e a Humildade em todos. O adversário
será dominado. O adversário (diabo ou satanás) é a própria personalidade vaidosa e cheia de empá-
fia de cada um de nós. Liquidada a personalidade, acaba a separação e acaba o erro no mundo.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

TENTAÇÃO DE JESUS

Mat. 4: 1-11 Luc. 4: 1-13 Marc. 1: 12-13

1. Então foi levado Jesus pelo 1. Cheio de um espírito santo, 12. Imediatamente o espíri-
espírito ao deserto para ser voltou Jesus do Jordão e foi to o imliu para o deser-
posto à prova pelo adversário. levado com o espírito ao de- to,
serto,
2. E tendo jejuado quarenta dias 13. e ali ficou quarenta dias
e quarenta noites, depois teve 2. durante quarenta dias, sen- tentado pelo antagonis-
fome. do experimentado pelo ad- ta; e estava com as feras
versário. E nada comeu nes- e os anjos o serviam.
3. Chegando o tentador disse-
ses dias; mas, passados eles,
lhe: “se és filho de Deus, dize
teve fome.
que estas pedras se tornem em
pães”. 3. Então lhe disse o adversá-
rio: “se és Filho de Deus,
4. Mas Jesus respondeu: “Está
manda que esta pedra se
escrito: “Não só de pão viverá
torne em pão”.
o homem, mas de tudo o Que
sai da boca de Deus”. 4. Respondeu-lhe Jesus: “Está
escrito que não só de pão
5. Então o adversário o levou à
viverá o homem”.
cidade santa e o colocou sobre
o pináculo do templo, 5. E levando-o a uma altura,
mostrou-lhe num relance de
6. e disse-lhe: “se és filho de
tempo todos os reinos habi-
Deus, lança-te daqui abaixo,
tados.
porque está escrito: “a seus
anjos ordenará a teu respeito, 6. Disse-lhe o adversário:
e eles te susterão em suas “dar-te-ei o domínio absolu-
mãos, para não tropeçares em to e o apreço deles, porque
alguma pedra”. eles me foram entregues e
os dou a quem eu quiser;
7. Tornou-lhe Jesus: “Também
está escrito: não tentarás o 7. se tu, pois, me adorares,
Senhor teu Deus”, tudo será teu”.
8. De novo o adversário o levou 8. Respondeu Jesus: “Está
a um monte muito alto e mos- escrito: ao Senhor teu Deus
trou-lhe todos os reinos do adorarás e só a ele darás
mundo e o apreço deles, culto”.
9. e disse-lhe: “tudo isto te darei 9. Então o levou a Jerusalém e
se, prostrado, me adorares”. o colocou sobre o pináculo
do templo e lhe disse : “se és
10. Respondeu-lhe Jesus: “Vai
filho de Deus, lança-te da-
para trás, antagonista, porque
qui abaixo,
está escrito: ao Senhor teu
Deus adorarás e só a Ele da- 10. porque está escrito: “a os
rás culto”. seus anjos ordenará a teu
respeito para te guardarem,
11. Então o adversário o deixou; e

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C. TORRES PASTORINO
eis que vieram os anjos e o 11. e “eles te susterão nas mãos
serviam. para não tropeçares em al-
guma pedra”.
12. Respondendo disse-lhe:
“dito esta que não tentarás
ao Senhor teu Deus”.
13. Tendo o adversário acabado
toda sorte de tentação,
apartou-se dele até ocasião
oportuna.

Estudemos, inicialmente, três palavras que aparecem no texto, uma hebraica e duas gregas. E comple-
taremos logo a seguir o estudo de um assunto que tem sido mal conduzido, por interpretações viciosas.

SATÃ ou SATANÁS - Em hebraico aparece (...) (satan) e em aramaico (...) (sitená), mas também se
encontram as duas palavras iniciadas por samech: (...)
Essa palavra significa literalmente “o opositor, o antagonista, o adversário, ou seja A PESSOA QUE
SE OPÕE.
Foi transliterado em muitos lugares para o grego σατανάς .
No entanto, desde os Setenta até o Novo Testamento, essa palavra aparece também traduzida em gre-
go, por uma equivalente:
DIABO - que é o adjetivo διάβολος,ος,ον
O verbo grego διαβάλλω - composto da partícula διά (que exprime separação em duas ou mais dire-
ções) e o verbo simples βάλλω (que quer dizer “lançar, jogar, impelir”) - tem o sentido de “desunir,
separar”; daí derivam outros sentidos, como “intrigar”, donde: “acusar, caluniar, opor-se”.
Esse verbo é usado, nestes trechos que estamos comentando, duas vezes na forma simples: βάλε - lan-
ça-te (Mat. 4:6 e Luc. 4:9) e uma vez no composto: έиβάλλει - impeliu (Marc. 1:12).
Desse verbo derivam:
a) o substantivo διαβολή , ης (f.), que significa “divisão, desunião”, donde “intriga, acusação, calú-
nia”, e
b) o adjetivo διάβολος,ος,ον com o sentido “que separa, que divide”, donde “adversário, opositor,
provocador, acusador, caluniador”.

TENTADOR - Em grego é um verbo ζαdιзд (só conjugado no presente e no aoristo), cujo particípio
presente é substantivado: o πειραζων . O verbo quer dizer “experimentar, tentar, pôr à prova” e o parti-
cípio tem o sentido de “o tentador”.
Concluímos, pois, que há sinonímia entre os dois primeiros, e sempre os traduziremos assim: “o anta-
gonista” (satanás) ; “o adversário” (diabo) e “o tentador”.
Antes de prosseguir, todavia, expliquemos o sentido REAL atribuído pelo Novo Testamento às pala-
vras “antagonista”, “adversário” e “tentador”.
Todos os três epítetos referem-se à PERSONALIDADE: é o quaternário inferior que, pela encarna-
ção, estabelece a separação, a divisão, a desunião entre as criaturas, e que se opõe à espiritualização;
é o adversário e antagonista da evolução, que tenta o homem para que volte sempre à matéria.

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SABEDORIA DO EVANGELHO
O Espírito (Cristo) é um só em todos (“um só Espírito há”, Ef. 4:4), porque o Foco Incriado (Deus) é
um só (“há um só Deus e Pai de todos”, Ef. 4:6). Quando as Centelhas se afastam do Foco, se esfriam
ou congelam (por estarem distantes vibratoriamente do calor) e se cristalizam na matéria densa opaca
(que é “trevas” por distanciamento vibratório do Foco de Luz). Então, as Centelhas ficam separadas
umas das outras pelo corpo denso de que se revestiram, seja ele mineral, vegetal ou animal; não obs-
tante, mesmo sendo a personalidade “o antagonista, o adversário”, continua sendo “Lúcifer”, ou
seja, o “portador da luz”, porque tem dentro de si a Luz Divina. Divididas e separadas em corpos
diferentes, estabelece-se toda a sequência de contrastes, egoísmos, vaidades, ciúmes, ódios, etc.
O trabalho evolutivo consiste na reunificação de todos em UM; em outros termos, no AMOR total
entre todos, sem distinções e qualquer espécie. O que se opõe a esse AMOR-UNIÃO e a personalida-
de, que é o “antagonista” (satanás) , o “adversário” (diabo) , o “tentador”, que atrai o espírito para
a separação, querendo sobrepujar os demais .
A personalidade é que, separada como está, distingue o “eu” do “tu”, opondo o “eu” a “todo o res-
to”.
Quando conseguirmos reunir, ou melhor, reunificar tudo NUM só Cristo (“para que sejam UM comi-
go, assim como sou UM contigo, Pai”, João, 17:22) teremos alcançado a meta da evolução. E então a
personalidade ( opositor, diabo, satanás, tentador) e sua consequência inevitável, a morte, estarão
dominadas e vencidos: “a morte foi aniquilada pela vitória (cfr. Isaías, 25:8). Onde está ó morte a tua
vitória? (cfr. Oséas, 13:14). Onde está ó morte o teu aguilhão (teu estimulante)? O aguilhão da morte
é a queda (o erro, a involução na matéria), e a força da queda é a lei (da evolução)”, lemos em Paulo
(I Cor.15:54-55).

No entanto, há outras palavras vulgarmente tidas como sinônimos de diabo e satanás, mas que nada
têm que ver com esse sentido. Esclareçamos logo.

DEMÔNIO- Nada autoriza a confundi-lo com os termos acima.


O substantivo grego δαιµων, ονος (masc. e fem.) é simplesmente um espírito desencarnado, de ho-
mem ou de mulher, podendo ser bom (guia), regular (familiar) ou perverso (obsessor). A literatura
grega é farta de exemplos dos três graus, embora os dois primeiros sejam os mais comuns, ao passo
que nos Evangelhos o mais comum é o terceiro. Platão usa o adjetivo δαιµονιος; ao lado do substantivo
σωφια para exprimir “a sabedoria divina” ... (Crat, 396 d) e Herodoto (4, 126 e 7, 48) emprega o mes-
mo adjetivo ao lado de “homem”, no sentido de “homem excelente”. O próprio Platão (Ap. 40 a) refere
que Sócrates dizia ter um “guia” (δαίµων) que o ajudava em todas as dificuldades da vida, aconselhan-
do-o para o bem.
Os verbos δαιµονίζοµαι e δαιµόνω significam “receber espírito”, ou “estar sob a ação de um espírito
desencarnado”, fosse ele bom ou mau.
Do substantivo, deriva o adjetivo δαιµόνιος, ος (α), ον que significa “maravilhoso, extraordinário”;
esse adjetivo é substantivado em το δαιµόνιον, para exprimir “espírito desencarnado”, ou seja, o ser
que está na escala entre Deus e o homem. Observe-se que em o Novo Testamento só é usada essa for-
ma do adjetivo substantivado, aparecendo o substantivo δαίµων apenas em Mat. 4:3.
Demônio, pois, é apenas um “espírito desencarnado”, com três graus de evolução: bons e regulares
(nos autores profanos) e pouco elucidados (nos autores do Novo Testamento), Mas há ainda duas ou-
tras espécies de “espíritos” citados:

IMPURO – πνεΰµα άиάθαρτον com o sentido exato de “não-purificado” ainda, ou melhor, de “atrasa-
do”, de não-evoluído.

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MAU – πνεΰµα πονερόν , que preferimos chamar “sofredor”. Com efeito, πονερός tem esse sentido:
“sofredor, infeliz, defeituoso”, donde passou a “mau”; tanto assim que o substantivo exprime “o so-
frimento”, e daí “o mal” porque, segundo a concepção terrena, todo sofrimento é um mal. Mas ambos
são derivados do substantivo πόνος , que quer dizer “esforço”, donde “fadiga”, e daí “sofrimento”
(compare com o latim poena e o português “pena”).

SANTO - Quando, porém, o “espírito” é bom, esclarecido, ou melhor, iluminado, o Novo Testamento
o chama “santo” ( άγιος ), isto é, puro, sadio, são.
Resumindo, temos as seguintes qualificações para os espíritos humanos desencarnados, de acordo com
seus graus evolutivos:
1) - santo - sadio, bom, iluminado, superior a nós;
2) - demônio - regular, não-esclarecido, familiar, igual a nós;
3) - sofredor - que está sofrendo, mas esforçando-se por melhorar;
4) - impuro, isto é, atrasado - não evoluído ainda, e que se obstina no erro.
A estes, podemos acrescentar mais um termo: é um espírito humano desencarnado, já iluminado (san-
to) que tem missão especial: e um mensageiro, um encarregado de tarefa especial junto aos homens;
denominado, então, ANJO.
Passemos, agora, aos comentários exegéticos dos trechos, procurando ater-nos à cronologia. das ocor-
rências.
(1) Lucas diz que “Jesus voltou do Jordão cheio de um espírito santo” (em grego sem artigo; portanto,
é indeterminado, um epíteto comum: um espírito bom, iluminado), e foi com o (com esse) espírito
para o deserto. Aí temos mais uma vez a preposição grega en, com valor associativo, que comen-
tamos nas págs. 32 e 80.
(2) Mateus afirma simplesmente que “foi conduzido ao deserto pelo espírito” (agente da passiva, com
a preposição “hypó”, que literalmente daria o sentido “sob um espírito”, podendo entender-se: con-
duzido sob a influência do espírito, ou ainda “incorporado”).
(3) O “deserto” não foi localizado até hoje. Pela tradição seria o “Monte da Quarentena” (Djebel Ka-
rantal) a 4 quilômetros a nordeste da moderna Jericó, lugar ermo e cheio de grutas naturais. O de-
serto, segundo informam as Escrituras, era o local preferido dos espíritos atrasados (cfr. Mat.
12:43; Luc. 11:24; Isaías, 13:21 e 34:14; Bar. 4:35 e Tob. 8:3).
(4) Temos a notícia do jejum de quarenta dias e quarenta noites. Não se trata de um hebraísmo essa
repetição, mas salienta o narrador que Jesus não comeu nem de dia nem de noite; há razão para
essa afirmativa, pois no oriente, depois de ocultar-se o sol, os jejuadores podiam alimentar-se,
como ainda se usa hoje no Ramadan.
(5) Por que quarenta? É um número simbólico e cabalístico, que vemos repetido no Velho Testamen-
to: o dilúvio dura quarenta dias (Gên. 7:17); Moisés jejua no Sinai, por duas vezes, durante qua-
renta dias de cada vez (Deut. 9:9 e 9:18); os israelitas ficam 40 anos a peregrinar pelo deserto
(Núm. 14:33) ; Elias jejua 40 dias (1 Reis 19:8); David e Salomão reinam quarenta anos cada um
(1 Reis, 2:11 e 11:42) e outros passos ainda. Na própria vida de Jesus temos esse jejum e mais tar-
de sua permanência na Terra entre a ressurreição e a ascensão, durante quarenta dias (At. 1:3).
Deve haver algum significado nesse número.
(6) Depois assinalam os evangelistas que Jesus teve fome.
(7) Aparece então o “tentador”. Discutem os hermeneutas se Lhe apareceu sob forma humana corpó-
rea, se “pegou” mesmo a pedra com sua mão, ou se a cena se passou em “pensamento”. Na primei-
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ra hipótese teríamos um fenômeno de materialização, e assim costumam representá-la os pintores.
Na segunda, seria apenas um fato intelectual. Não discutiremos essas minúcias, pois o fato será es-
clarecido no comentário simbólico, compreendendo-se que se trata de “pensamentos”, que, aliás,
nem sequer chegaram a tomar consistência, tão rapidamente foram esmagados pelo Espírito de
Jesus.
(8) A seguir são enumeradas as “tentações”. Parece-nos mais lógica a sequência dada por Mateus:

I - de EGOÍSMO - transformar as pedras em pães, para saciar a própria fome. Trata-se do desejo ani-
mal de satisfazer à “fome”, isto é, aos apetites egoístas do quaternário inferior. A resposta de Jesus,
extraída de Deuteronômio 8:3, faz-nos compreender que a alimentação espiritual da tríade superior
também pode saciar ,essas “fomes”.
II - de VAIDADE – lançar-se de grande altura, confiando que Deus mandará “mensageiros” para aju-
dá-lo. O adversário apresenta-se com uma frase do Salmo 91:11-12, mas Jesus lhe responde com outra
do Deuteronômio 6:16. É a tentação de ceder à vaidade de demonstrações taumatúrgicas, onde não
haja necessidade delas, confiando em proteções “especiais” superiores.
III - de ORGULHO - usar qualquer meio bajulatório para obter fama e poder de domínio. Volta Jesus
com um versículo do Deuteronômio 6:13, mostrando que Deus está acima de tudo e só a Ele podemos
e devemos prestar culto, reverência e obediência, não devendo utilizar-nos de meios escusos para ad-
quirir vantagens nem pessoais nem para grupos.

(9) Discute-se também se o “diabo” carregou Jesus em suas mãos, para levá-lo a Jerusalém, colocan-
do-o sobre o pináculo do Templo; e se O transportou carregando-O para o cume da montanha; e
pergunta-se qual seria essa montanha, “de onde se viam todos os reinos do mundo” ... As soluções
oferecidas por alguns comentadores são lamentáveis do ponto de vista do bom senso. Acreditamos
que a explicação não esteja na “letra” e sim no “espírito” ou seja, no sentido global das “tenta-
ções”.
(10) O sentido de “mostrou os reinos do mundo e o apreço deles” em Mateus; e a expressão: “dar-
te-ei o domínio absoluto e o apreço deles”, podem resumir-se: “o domínio das criaturas, e o apreço
ou fama que obteria entre elas”. A palavra grega δόζαν , derivada do verbo δοиεω tem vários sen-
tidos: 1) aparência; 2) opinião; crença; 3) doutrina, ensino (por oposição a άληθεια “verdade
pura”; a γνώσις “conhecimento adquirido; e a έπιστήµη “ciência”); 4) apreço, reputação, donde 5)
glória.
(11) Em Mateus, no final do episódio, Jesus usa uma expressão autoritária: “retira-te, antagonista”,
que foram as mesmas palavras dirigidas a Pedro, quando este se opunha à revelação do sofrimento
de Jesus (Marc. 8:33). O verbo grego υπαγε tem o sentido exato de “retira-te submetendo-te, capi-
tula, rende-te, subordina-te”, porque é composto de υπο (para baixo) e αγω (agir, ir).
(12) A conclusão é que, afastado o adversário, os anjos apresentaram-se para servir a Jesus.
No trecho resumidíssimo de Marcos há um pormenor: Jesus, no deserto, “estava com as feras” e com
os anjos, que O serviam. Na Palestina da época, as feras que perambulavam eram chacais, lobos, rapo-
sas, gazelas e, menos provavelmente, hienas, panteras e leopardos.

Mais alguns ensinamentos de profundo alcance, nesta lição da Boa Nova.


Após ter a individualidade (Jesus) realizado o Sublime Encontro ou Mergulho no Fogo, Cristo Interi-
or, é ela levada para consolidar essa união no “deserto”, onde permanece em oração e meditação.
Realmente, só no isolamento podemos conseguir uma fixação e vibrações em faixas tão delicadas de
frequência tão elevada. Qualquer distração faria fugir a sintonia. E o burburinho ocasionaria distra-

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ção. Por isso, quando o Momento Sublime se apresenta, o Discípulo é levado pelo Espírito (individu-
alidade) ao isolamento, onde viverá em oração e meditação. Isso ocorria muito entre eremitas e ceno-
bitas em tempos idos. Hoje ainda é frequente no Oriente. (Índia e Tibet) embora menos comum no
Ocidente, onde existe, porém, nos conventos das Trapas.
O “deserto” exprime um lugar “sem habitantes”. O planeta Terra é de fato um local em que não são
vistos os “espíritos”. Nesse sentido, é um deserto de espiritualidade, embora seja densamente habita-
do por criaturas físicas. Qualquer espírito elevado, que saia de seu “hábitat” natural no mundo dos
espíritos e venha à Terra, penetra realmente num deserto e, como diz Marcos, “vive entre as feras”,
embora “os anjos o sirvam”, ou seja, os “espíritos” bons jamais o deixem abandonado.
O número quarenta tem um significado especial: exprime o arcano do plano físico, sublinhando seu
caráter material. Representa a esfera da concretização das formas nervosas, isto é, a materialização
(encarnação) do astral e do etérico. “Quarenta” significa também a “luta do espírito com o mundo
exterior”, ou seja, a realização da Mônada ou Centelha divina do lado de fora de si mesma. O discí-
pulo, no Caminho, sabe, porém, que todos os estados materiais (o deserto) são efêmeros e cessarão
um dia. E apesar de só haver dificuldades, sabe que essas dificuldades são momentâneas e não impe-
dirão a ascensão que buscamos (cfr. Serge Marcotoune, “La Science Secrete des Initiés”, pág. 203
ss., éd. André Delpeuch, Paris, 1928).
Então, os quarenta dias no deserto, entre feras (mas servido pelos anjos) é a vida da Centelha divina
no planeta Terra, entre criaturas involuídas.
E sua passagem pela Terra tem justamente a finalidade de “ser tentada”, ou melhor, ser “experi-
mentada” através do “espírito” a que deu nascimento. Assim como em nossas escolas ninguém é
promovido de ano sem prestar exames, assim na vida espiritual ninguém ascende de plano sem passar
pelos “exames” das provações. E é exatamente por isso que se torna imprescindível a encarnação no
plano físico. Com efeito, se a encarnação pudesse ser dispensável, acreditamos que muitos “espíritos”
não viriam ao planeta, e evoluiriam diretamente no mundo espiritual (doutrina aceita por Swe-
denborg): uma vez abandonada a matéria, nunca mais a ela voltariam. A teoria pode ser sedutora,
mas não corresponde aos FATOS comprovados. Ora, contra fatos não há argumentação filosófica que
se sustente. E os fatos, cientificamente experimentados e comprovados, demonstram que o “espírito”
vem à Terra a cada novo passo que tenha que conquistar. Como não podemos admitir que a Sabedo-
ria da Vida obrigue a passos inúteis, concluímos que a única via de acesso a novos planos seja atra-
vés da materialização temporária na Terra, com esquecimento do passado, para que, como nova cri-
atura (nova personalidade), possa assumir a responsabilidade de seus atos, merecendo assim inte-
gralmente a melhoria a que fez jus (ou a consequência dolorosa de seus erros).
Uma vez na matéria, o Espírito (individualidade) está preso ao “tentador”, que pode chamar-se “dia-
bo” ou “satanás”, mas é simplesmente a PERSONALIDADE, o quaternário inferior. E por mais cons-
ciente que esteja o Espírito (individualidade), as “tentações” (experimentações ou provas) são inevi-
táveis, porque são inerentes à própria personalidade, são a condição “sine qua non” da encarnação
ou “crucificação” na matéria. O Espírito, com seu mergulho no quaternário, assume novo “eu”, um
“eu” externo e pequeno, que é porém o “eu” que se manifesta consciente de si e que, por isso, assume
a liderança da consciência. Esse “eu” menor (ou “espírito”) abafa o Espírito (individualidade) e o Eu
Profundo, e passa a agir como se fora o único chefe, comandando o processo evolutivo: o “eu” menor
quer agir por si e dirigir tudo, não tomando conhecimento de que exista outro “EU” superior a ele: é,
por isso, o verdadeiro adversário ou antagonista do Espírito (individualidade) e do EU REAL, que se
vê escondido e sediado no coração (embora em outra dimensão), forcejando por agir - o que nem
sempre consegue. Dessa luta titânica entre o “eu” pequeno ou personalidade (o “espírito”) e o Espí-
rito, ou individualidade, vai resultar o progresso. Se o “eu” pequeno vence, o Espírito derrotado terá
que voltar mais tarde à matéria, com outro “eu” pequeno diferente, para ver se consegue conquistar a
palma da vitória. E um dia obterá inevitavelmente o triunfo, embora demore séculos ou milênios nessa
árdua batalha interna, tão bem descrita no Bhagavad-Gita.

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Quando o “eu” pequeno se anula pela humildade, dando ansas à individualidade de dirigi-lo, a vitó-
ria do Espírito se afirma, e ele prossegue para o plano superior seguinte.
Dessa luta (tentação) dá-nos conta o relato evangélico.
Depois de “mergulhar” na água (de renascer através do mergulho no líquido amniótico) o Espírito é
levado ao “deserto (aos embates da Terra) para ficar em contato com as “feras” (homens atrasados,
pequenos “eus” ferozes e egoístas), permanecendo “quarenta” dias e quarenta noites (permanecendo
na matéria) em jejum absoluto (em isolamento total do EU REAL). É aí que o Espírito encontra o an-
tagonista personalizado (satanás, nosso próprio “eu” menor) que quer arrastá-lo a seus caprichos.
Surgem então as três “tentações” principais, as mais difíceis de vencer por qualquer pessoa (o arcano
3 representa a “obra completa”, e dá o resumo esquemático de um todo). Com efeito, as três provas
citadas englobam os três aspectos da personalidade: as sensações (etérico), as emoções (astral) e o
intelecto (mental concreto).

1.º TENTAÇÃO - O egoísmo na luta da sobrevivência e do bem estar, da satisfação das necessidades
básicas da criatura humana: a fome, o repouso, as ânsias fisiológicas do sexo, as angústias das sen-
sações chamadas “físicas”, mas na realidade pertencentes ao duplo etérico. Então, o Espírito é insta-
do a ceder aos desejos egoísticos dos sentidos do “eu” menor dando-lhe a “alimentação” que o sa-
tisfaça, simbolizada no “pão” que mata a fome. O ato de “matar a fome” faz bem compreender a ín-
dole dessa tentação, muito mais vasta que a simples fome estomacal: trata-se de SACIAR os instintos
inferiores do etérico que se manifesta através do corpo denso.
Além disso, outro aspecto transparece: preso no mundo material das formas, o “espírito” (personali-
dade) tenta transformar as “pedras” (que exprimem os ensinamentos interpretados à letra) em “pão”,
isto é, em alimento. Explicamos: o “espírito”, ao invés de adorar espiritualmente (“em Espírito de
verdade”, Jo. 4:23 e 24) , pretere a exteriorização material da religião, que lhe possa satisfazer aos
sentidos físicos, aos instintos sensoriais, emocionais e intelectuais, e por isso transforma os vãos do
espírito em “pães” materiais, visíveis e sensíveis, chegando ao clímax de pretender transformar o
próprio Deus em pão. Todo seu espiritualismo reduz-se a liturgias e ritos, a atos externos e poderes
ocultos de magia, de vaidade, de vestimentas diferentes e exóticas, de tudo o que satisfaça à “separa-
ção”, ao luxo, à ostentação da “pompa de satanás” (que é exatamente a vaidade das criaturas huma-
nas), assim, a espiritualização nesse grau visa à elevação do próprio “eu” pequeno, em detrimento de
todos os outros “eus”, julgados “outras” pessoas. E a criatura cega transforma os preceitos evangé-
licos, interpretados ao pé da letra (pedras) em satisfações egolátricas de instinto que lhes saciem a
fome de vaidade (pães).
O combate a essa tentação é feito pela auto-disciplina, isto é, pela disciplina que o Espírito, guiado
pelo EU REAL impõe ao “eu” menor, fazendo-lhe ver que o Homem (integral) vive de tudo o que vem
de Deus, desse Deus residente no coração do homem, e não apenas das exterioridades transitórias da
personalidade efêmera.

2.ª TENTAÇÃO - A vaidade própria do “eu” personalístico que se julga separado, diferente, e sempre
(são raríssimas as exceções!) superior a todos os demais, é outra das mais difíceis provas a ser super-
ada pelo “espírito” mergulhado na Cruz da personalidade (“cruz”, quatro pontas, significando o
quaternário inferior).
“Lançar-se do pináculo do templo” (emoção de grandes efeitos mágicos) na certeza de que Deus o
protege em tudo, mesmo nas loucuras insensatas de pretensões vaidosas, por um privilégio a que se
julga “com direito”. De fato, o desenvolvimento do corpo astral aguça as emoções e as hipertrofia de
tal forma, que elas empanam o raciocínio equilibrado, toldam a razão, fazem perder o senso das pro-
porções” Nas criaturas emocionalmente desequilibradas vemos a ânsia de “operar milagres”; a re-
belião contra a autoridade da Razão superior, a pretensão egocêntrica de que “ele” sabe e os outros

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são ignorantes; a ambição de possuir poderes para comandar movimentos religiosos; o desejo de ser
“chefe” espiritual ou religioso, nem que seja de um pugilo de criaturas que se fascinam por suas pa-
lavras, e as acompanham cegamente, tributando-lhes elogios a cada palavra que proferia, e que ele
aceita, com gratidão, porque lhe acaricia a vaidade.
Essa a razão de vermos, desde que a história regista os acontecimentos da sociedade humana, essa
constante fragmentação religiosa, que se opera logo após o desaparecimento do “Mensageiro” divino
que as revelou. Numerosas são as criaturas que se julgam “taumaturgos”, com poderes sobre os
“anjos” e, rebelando-se contra o meio ambiente, instituem a própria seita. Daí verificarmos que esses
homens não defendem idéias novas, divulgando-as em estudos e pesquisas impessoais, mas antes, que-
rem logo iniciar grupos novos e dissidentes, dos quais passam eles ser o chefe, o cabeça. Quantas
“heresias” se multiplicaram nos primeiros séculos do cristianismo, quantas seitas pulularam nos mei-
os evangélicos, quantos movimentos teosóficos e rosa-cruzes que se combatem, quantos milhares de
“centros” espíritas se fragmentam do pensamento original, criando “inovações”, quase nunca com
sentido lógico, quase sempre sem razão de ser; mas o móvel subconsciente e o desejo de “chefiar”
alguma coisa, de “separar-se” do grupo, de concorrer demonstrando gozar de proteções especiais do
mundo espiritual. Não é esta uma característica apenas das criaturas encarnadas: também os desen-
carnados que carregam para além do túmulo, no “espírito”, seus defeitos personalísticos, também
eles gostam muito de criar seus “grupinhos”, onde possam pontificar, conseguindo no mundo astral o
que não conseguiram na Terra; aproveitam médiuns invigilantes, e aí temos outra “facção” a surgir.
E é típico exigirem “separação”, proibirem estudos e leituras, colocando livros no índex particular, e
garantindo que a “salvação” (ou pelo menos especiais privilégios) só se dará dentro daquele pugilo.
Como isto se passa no mundo material, que é o mundo da divisão, é natural que arrastem após si to-
dos os que sintonizam com o “separatismo”, cedendo à tentação de “atirar-se do pináculo do templo”
da Verdade, para os labirintos barônticos do personalismo satânico.
Outro ângulo dessa tentação é a ambição de poderes mágicos, a crença de que “gestos” e atos físicos
criem efeitos espirituais; a pretensão de dominar “espíritos” e elementais, sem pensar nos resultados
que daí possam advir. Os poderes “ocultos”, que envaidecem e separam as criaturas, é aspecto im-
portante dessa prova de fogo por que todos os que já desenvolveram o corpo emocional (astral) têm
que passar.
O combate a essa tentação, isto é, a vitória sobre essa prova, esse “exame” - a que só é submetida
certa classe de pessoas mais evoluídas que as da anterior tentação porque já desenvolveram o corpo
astral - é realizada com a auto-renúncia do “eu” menor: “não tentarás o Senhor teu Deus” exprime,
pois, “não quererás ser superior ao teu EU REAL, não pretenderás exigir dele favores especiais nem
quererás impor-te a ele”. Renunciar à própria vaidade de querer ser chamado “pai” ou “mestre” (“a
ninguém na Terra chameis vosso pai, porque só UM é vosso Pai: aquele que está nos céus; nem quei-
rais ser chamados mestres, porque um só é vosso mestre: o Cristo” Mat. 23:9-10), esse Cristo Interno
que está dentro de TODOS, e não apenas de alguns privilegiados.
Jesus deu-nos o exemplo típico dessa vitória: pregou um IDEAL, mas não chefiou nenhum movimento
religioso; atendeu aos judeus, sem afastá-los de Moisés; socorreu à siro-fenícia, sem arrancá-la de
seus ídolos; elogiou o centurião romano, sem exigir o seu repúdio a Júpiter; e, no exemplo da “cari-
dade perfeita”, citou o samaritano, de religião diferente da Sua. E de tal forma renunciou à Sua per-
sonalidade, que o Cristo agiu plenamente através dele (“Nele habitou corporalmente toda a plenitude
da Divindade” Col. 2:9) de tal maneira, que, durante séculos, foi Ele confundido com o próprio Deus.
E isso foi conseguido com o Seu mergulho humilde nas águas da matéria, na Sua encarnação como
ser humano: “aniquilou-se tomando a forma de servo, feito semelhante aos homens e, sendo reconhe-
cido como homem, humilhou-se, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz” (Filip. 2:7-8).

3.ª TENTAÇÃO - Esta é a experimentação que as criaturas encarnadas (presas à personalidade, cru-
cificadas no quaternário inferior) têm maior dificuldade em superar. Não é mais no duplo etérico,
com as sensações; nem no astral, com as emoções, mas no mais terrível de todos os adversários, mai-
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or que os prazeres (sensações), maior que a vaidade (emoções): trata-se do INTELECTO, isto é, do
ORGULHO de julgar-se melhor que os “outros”. Daí parte a oposição máxima, não mais no mesmo
plano, de “ser diferente”, mas num plano “acima”, de ser superior. Todas as criaturas se julgam
ACIMA DOS OUTROS. Pode tratar-se de um ignorante: há um ponto em que “não cede”, há sempre
um aspecto em que “ninguém o iguala”. Por ínfima que seja a criatura, embora reconhecendo a supe-
rioridade de outrem num ou noutro pormenor, descobre sempre algo em que ninguém lhe é superior.
Daí a crítica e o julgamento que sempre todos nos acreditamos autorizados a fazer.
E a ambição orgulhosa do mando ataca a todos, ao lado da ambição de posses materiais (riquezas)
que lhes dê prestígio e superioridade no mundo material, para garantir-lhe a força da superioridade.
Todos querem ter mais e melhor do que o vizinho. Se o não conseguirem, não importa: são “mais edu-
cados”, “mais generosos”, “mais inteligentes”, “mais fortes”, “mais saudáveis”, ou “gozam de ami-
zades mais ilustres”, qualquer coisa se arrumará, pela qual eles “não se trocam” pelo fulano...
Comum é que o chefe religioso venha a ambicionar logo a seguir o domínio político, para ampliar sua
ascendência sobre as massas e fazer crescer sua autoridade “carismática”, outorgada por Deus. Os
meios para conseguí-lo não lhe ferem o escrúpulo. E uma vez guindados ao poder, não mais desejam
apear. Nem sempre isso ocorrerá visando a uma nação: pode ser apenas pequeno grupo e até uma
família reduzida. Isso explica o desgosto dos pais ao verem seus filhos crescerem e se independizarem.
Daí a rebeldia dos filhos, em certa idade, sentindo também a “tentação” do mando, pretendendo der-
rubar os pais do pedestal em que se encontram.
Provenientes desse “messianismo” do poder, os ditadores, da direita, da esquerda ou do centro cer-
cearem a liberdade dos súditos, certos de que só eles, e os que os aplaudem, são “iluminados”, têm
sabedoria e compreensão, constituindo “os outros” um rebanho sem espírito. Desconhecem que cada
criatura tem Deus dentro de si: para eles, Deus está só com eles, porque eles são os “protegidos”,
colocados “pela Divindade” acima de todos os mortais.
Não estamos falando de “alguns” homens, mas de TODAS AS CRIATURAS HUMANAS. Sem exceção,
somos todos experimentados nesse setor.
Para superar essa “tentação” há um só remédio: o auto-sacrificio, não mais adorando a personalida-
de (satanás), mas unicamente cultuando a Deus que está DENTRO DE NÓS, como também DENTRO
DE TODAS AS CRIATURAS: moços e velhos, homens maduros e crianças, mulheres e homens, bran-
cos. e negros, ignorantes e sábios, santos e criminosos.
Quando compreendermos e “sentirmos” isso, sacrificaremos nosso personalismo, e ligaremos nosso
“espírito” ao EU REAL. Colocaremos a personalidade em seu lugar, submetendo-a, como o fez Jesus:
“rende-te, satanás”, submete-te à individualidade!
Prestar culto à personalidade (satanás) é IDOLATRIA, e praticara idolatria é, seguindo as Escrituras,
pecar por adultério contra Deus. O Espirito tem que estar ligado ao EU REAL e não à personalidade;
se ele se afasta do primeiro para ligar-se ao segundo, está cometendo adultério, está separando o que
Deus uniu (“O que Deus uniu o homem não separe”, Mat. 19:6 e Mc. 10:9).
Só o sacrifício, com a submissão do “eu” menor, é que pode conferir a vitória sobre o orgulho da
personalidade, que desejaria dominar e submeter a si a individualidade, pedindo: “adore-me!”
Quando, porém, o homem vence as três etapas, dominando as sensações, as emoções e o intelecto, ele
vê que os anjos de Deus vêm servi-lo, e o “eu menor” (satanás o antagonista), se retira vencido, até o
“momento oportuno”, porque outras provas ainda virão, todas elas ensinadas nos Evangelhos.

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C. TORRES PASTORINO

OS PRIMEIROS DISCÍPULOS
Luc. 3:23
23. Ora, o mesmo Jesus, ao começar seu ministério, tinha cerca de trinta anos.

João, 1 :35-42
35. No dia seguinte João estava outra vez com dois de seus discípulos
36. e, olhando para Jesus que passava., disse: “eis ali o Cordeiro de Deus”.
37. Ouvindo-o dizer isto, os dois discípulos seguiram a Jesus.
38. Voltando-se Jesus e vendo-os a seguí-lo, perguntou-lhes: “Que buscais”? Disseram-
lhe: “Rabbi (que quer dizer Mestre) onde moras”?
39. Respondeu ele: “Vinde e vereis”. Foram, pois, e viram onde morava, e ficaram aquele
dia com ele; era mais ou menos a hora décima.
40. André, irmão de Simão Pedro, era um dos dois que ouviram João falar e que segui-
ram a Jesus.
41. Ele procurou ao alvorecer seu irmão Simão e lhe disse: “encontramos o Messias” (que
quer dizer Cristo).
42. E o levou a Jesus. Olhando para ele, disse Jesus: “Tu és Simão, o filho de Jonas: tu
serás chamado Cefas (que significa. Pedro).

A primeira frase de Lucas dá-nos conta da idade de Jesus ao iniciar seu ministério: “cerca de trinta
anos”.
Estávamos nos primeiros meses do ano 29 de nossa era, isto é, 782 de Roma, e Jesus, que nasceu em 7
A.C. (747 de Roma), contava precisamente 35 anos. A anotação de Lucas visava apenas a esclarecer
que Jesus já tinha a idade “legal” para sua vida pública, quer civil, quer religiosa.
No trecho de João, volta. como primeiras palavras, a expressão: “no dia seguinte”. Se começarmos a
contar partindo do primeiro episódio (as respostas de João aos emissários do Sinédrio), o fato aqui
narrado situa-se no 3.º dia. Será interessante notar que a sequência prosseguirá até o 7.º dia.
Observemos a cena. Trata-se dos dois primeiros discípulos que Jesus aceita (segundo a narrativa evan-
gélica) e portanto da inauguração oficial de seu magistério na Palestina.
O evangelista foi testemunha ocular: dá-nos os pormenores. João, meio afastado, conversava com dois
discípulos seus, quando viu Jesus passar a distância. Num desabafo de admiração, repete a frase da
véspera: “vejam ali o Cordeiro de Deus”! Essa repetição constituiu um impacto no espírito dos dois
que, apressadamente, se afastaram do Batista, fascinados pelo anseio de encontrar o melhor Mestre. E
se o próprio mestre deles O indicava, podiam confiar com total segurança. Além disso, a Força Interna
deles os impelia, e a de Jesus os atraía irresistivelmente.
Jesus volta-se espontâneo e, fixando-os com olhar penetrante que lhes perscruta o coração, pergunta:
- Que desejais?
Os dois entreolham-se. Que dizer? A primeira idéia é enunciada, daí subentendendo-se o resto:

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SABEDORIA DO EVANGELHO
- Mestre, onde moras?
O título “Mestre”, dito em hebraico-talmúdico, RABBI, era o título oficial reservado aos Doutores da
Lei. Mas também se aplicava por delicadeza ou para demonstrar admiração por alguém mais sábio.
A resposta de Jesus: “vinte e vereis” correspondia à aceitação tácita dos dois novos discípulos. O nar-
rador, que era um deles, continua com simplicidade: “eles foram e viram, e ficaram aquele dia com
ele”. E para firmar que não foi uma conversa rápida e cerimoniosa, acrescenta o pormenor da hora do
encontro: “era mais ou menos a hora décima “, isto é, dezesseis horas. Essa anotação da hora é comum
em João (cfr. 4:52; 18:28; 19:14 e 20:19), o que nos revela, ainda uma vez, a preocupação de João com
a numerologia, que atinge o clímax no Apocalipse.
Como se julgava inadmissível e desrespeitoso chegar a essa hora da tarde em casa de alguém e retirar-
se para pernoitar em outro local, deduz-se que os dois passaram a noite entretendo-se com o Rabbi, de
lá saindo só depois do nascer do sol.
Mas, quem eram os dois? De um, o narrador dá o nome: André (nome tipicamente grego, o que era
comum na Galiléia “dos gentios”) e acrescenta para identificá-lo melhor: “irmão de Simão Pedro”.
Simão é a helenização do hebraico Shim'on (“YHWH ouviu”). Eram ambos naturais da cidade de
Bethsaida-Júlia (hoje El-Tell) a nordeste do Tiberíades (cfr. vers. 44). E o outro? Reza a tradição tra-
tar-se do próprio evangelista João, em vista dos pormenores narrados (é o único a documentá-los). E
em todo o seu Evangelho, ele jamais se cita.
Ao “despontar do dia” (em grego πρωι ), André e João retiram-se. E o primeiro corre a buscar seu ir-
mão Simão, anunciando-lhe o encontro do Messias.
Há três lições nos manuscritos:
1) Veronese (5.º séc.), Palatino (4.º-5.º séc.), a versão siríaca curetoniana e a sinaítica (3.º-4.º séc.)
trazem πρωι (ao despontar do dia);
2) Vaticano (4.º séc. ) Alexandrino (5.º séc.) , Korodethi (7.º-9.º séc.), a “família” 1 e 13 e a Vulgata
trazem πρωτον (em primeiro lugar).
3) Sinaítico (8.º séc.), Régio (8.º séc.), Freer III (4.º-6.º sec.) e o Sangaliense (9.º sec.) trazem: πρωτος
(foi o primeiro).
Seguindo L. Pirot (“La Sainte Bible”, vol. 10, pág. 325) preferimos a primeira lição, por dois motivos:
1 - como acertadamente anota Pirot, é mais fácil a corrupção d
e ПРΏІТΟΝΑ∆Ε∆ΦΟΝ
para ПРΏΤΟΝΤΟΝΑ∆Ε∆ΦΟΝ
ou para ΠΡΏΤΟΣΤΟΝΑ∆Ε∆ΦΟΝ
do que vice-versa.
2 - porque temos, com a primeira leitura, a sequência dos acontecimentos:
I - Testemunho de João aos emissários do Sinédrio (1.º dia)
II - No dia seguinte a apresentação de Jesus aos discípulos (2.º dia)
III - No dia seguinte a adesão de André e João a Jesus (3.º dia)
IV- No dia seguinte o encontro com Simão Pedro (4.º dia)
V - No dia seguinte Jesus parte para a Galiléia (5.º dia)
VI - No 3.º dia (dois dias depois) as bodas de Caná (7.º dia).

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C. TORRES PASTORINO
E essa sequência revela ensinamentos simbólicos de valor inestimável, e João não podia perder a
oportunidade de ensiná-los aos leitores de seu Evangelho.
O anúncio de André a Pedro é taxativo: “encontramos o Messias”.
A palavra Messias ( µεσσιας , helenização do hebraico π‫ מש׳‬mashiah) só é empregada em o Novo
Testamento duas vezes, e ambas por João o evangelista, neste passo e em 4:25. Em ambos, o evange-
lista se apressa em explicar que “Messias” se traduz por “Cristo”. Realmente.
Do verbo ‫( משװ‬mosha - cfr. Moshe Moisés) que significa “ungir”, vêm o adjetivo e substantivo ‫משיח‬
(mashiah) que significa “o ungido” (para uma missão), ou seja, o Messias. Em grego, do verbo Χριω ,
significando “ungir” (com óleo ou perfume) - provém o adjetivo Хριστος, η, ον , com o sentido de “un-
gido, untado”; e daí o substantivo o Хριστος , “o ungido” com significação iniciática e simbólica: “o
impregnado de divindade”. Assim como o óleo impregna e embebe os tecidos, assim o Cristo é o em-
bebido de Deus, aquele cujas células todas estão permeadas da Divindade.
Simeão deixa-se levar a Jesus, que olha para ele com a mesma penetração ( θεσαµενος ) e pronuncia
suas primeiras palavras mudando-lhe o nome. O fato de mudar o nome de alguém revela autoridade e
representa o inicio de nova função ou situação (cfr. Gên. 32:28; 17:5; 22:8; Is. 62:2, etc.). Começa
citando o nome antigo completo: “tu és Simão Barjonas (filho de Jonas ou João, já que Jonas” e a
abreviatura de “Yohanan”): tu serás chamado Kefas.
A palavra иφάς; é uma helenização do aramaico Kephá. proveniente do caldaico ‫( פּיּמּאָ‬siríaco ‫) ئإﺆﺁ‬, do
hebraico ٩‫ פֿ‬, que significa “pedra, rocha”, e só é usado no plural ‫( פמים‬Jer. 4:29 e Job 30:6).
A exigência dos trinta anos para início da vida pública, baseava-se também num simbolismo numero-
lógico: a completação do desenvolvimento da personalidade (3 X 10), embora se houvesse já de há
muito esquecido a razão que havia feito escolher essa idade.
Aqui observamos o fato de um mestre indicar a seus discípulos (talvez os melhores que possuía) o ca-
minho de outro mestre: completa ausência de ciúmes! Mas verificamos que é a personalidade (o inte-
lecto iluminado, João) que compreende que, quando o discípulo chegou a determinado grau evolutivo,
tem que ser entregue à individualidade (Jesus) para que continue o aprendizado.
Os discípulos percebem a insinuação da personalidade (João) e seu desprendimento, e voltam-se, sem
titubear, para a individualidade (Jesus) perguntando-lhe: “Onde moras”? A sede da personalidade,
eles bem o sabem, é o intelecto. Também sabem que, para ter esse desprendimento sem ciúme e sem
vaidade, o intelecto já está iluminado, esclarecido nas grandes verdades. Dirigem-se pois à individu-
alidade e lhe perguntam “onde mora”, porque ainda ignoram qual a sede desse novo plano. A res-
posta não poderia jamais ser o nome de uma rua nem o número de uma casa (observamos que os
Evangelhos jamais disseram onde Jesus residia) porque a individualidade não tem sede no mundo
físico. Daí poder Jesus dizer: “as raposas têm seus covis e os pássaros seus ninhos, mas o Filho do
Homem não tem onde repousar a cabeça” (Mat. 8:20). No mundo físico só a personalidade é situada
e tem “casa”. Então a resposta de Jesus é perfeita: “vinde e vede”, isto é, aproximai-vos de mim (in-
dividualidade) e vereis qual meu pouso: o Espírito.
E os discípulos foram e viram sua elevação espiritual; penetraram no coração e descobriram o Espí-
rito e “ali permaneceram”, em meditação, todo aquele dia.
Era mais ou menos a “hora décima”. Essa anotação numerológica não se refere aos novos discípulos,
mas a Jesus, à individualidade. Os nove primeiros arcanos referem-se ao desenvolvimento do homem
interno. O décimo exprime o início da atividade exterior. Não foi para ele mesmo que o evoluído viveu
as etapas do Conhecimento Profundo e triunfou de uma série de provações. Uma vez atingido o ápice
e superadas as “tentações”, ele precisa aplicar seu saber e sua experiência, levando outros pelo
mesmo caminho. A anotação do evangelista, pois, tem todo o cabimento, no momento exato em que
Jesus (a individualidade) recebe e aceita os primeiros discípulos, a fim de aplicar seus' conhecimen-
tos: para ele, soara a décima hora.

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SABEDORIA DO EVANGELHO
A João interessava assinalar quais os discípulos que seguiram Jesus. Cita-lhes os nomes. O primeiro,
André, representa exatamente o HOMEM; o segundo, que era ele mesmo, é omitido; o terceiro, ao
despontar da aurora do outro dia, é Simão (nome que significa: YHWH ouviu”, da raiz shama). Mas
Jesus lhe muda o nome para Pedro, como representante daqueles que interpretam as Escrituras à le-
tra, levados pela emoção. Ele adere de imediato à individualidade, embora, por falta de intelectualis-
mo e do domínio das emoções, tenha de passar por muitas provas, nem sempre saindo vencedor. No
entanto, em vista do desenvolvimento emocional, é escolhido para dirigir o Colégio Apostólico, que
está fixado no Raio da Devoção, dirigido por Jesus.
O nome com que Jesus é apresentado corresponde exatamente à realidade: o CRISTO INTERNO, a
parte espiritual impregnada da Divindade, ou CRISTO CÓSMICO, da qual a parte material é apenas
a contraparte, a condensação ou materialização, dando origem à personalidade visível no plano físico
e transitório na dimensão tempo e espaço.

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C. TORRES PASTORINO

VOLTA À GALILÉIA
João, 1:43-51
43. No dia seguinte, resolveu (Jesus) ir à Galiléia e encontrou Filipe, e disse-lhe: “segue-
me”!
44. Ora, Filipe era de Betsaida, cidade de André e de Pedro.
45. Filipe encontrou Natanael e declarou-lhe: “encontramos aquele de quem Moisés es-
creveu na Lei e os profetas falaram. Jesus filho de José, o de Nazaré”.
46. Perguntou-lhe Natanael: “De Nazaré pode vir coisa boa?” Respondeu-lhe Filipe:
“Vem e vê”.
47. Vendo Jesus Natanael aproximar-se, disse dele: “eis um verdadeiro israelita, em
quem não há engano”!
48. Perguntou-lhe Natanael: “Donde me conheces?” Respondeu Jesus: “Antes de Filipe
chamar-te, eu te vi, quando estavas debaixo da figueira”.
49. Replicou-lhe Natanael: “Rabbi, tu és o Filho de Deus, tu és o Rei de Israel”!
50. Disse-lhe Jesus: “por dizer-te que te vi debaixo da figueira, crês? verás coisas maiores
que estas”...
51. E acrescentou: “Em verdade, em verdade vos digo, que vereis o céu aberto e os anjos
de Deus subindo e descendo sobre o Filho do Homem”.

No dia seguinte (é o 5.º dia dessa sequência), Jesus resolveu regressar à Galiléia, juntamente com seus
três novos discípulos: João, André e seu irmão Simão-Pedro. Voltavam os quatro para sua terra natal,
ao norte da Palestina.
Aí o pequeno grupo encontra Filipe. Também é nome tipicamente grego, significando “amigo do ca-
valo”, embora corresponda. ao hebraico ‫( פֿבֿטּ׳אב‬Phaltiel), que significa “libertação de El” (cfr, 2 Sam.
3:15). Filipe aderiu de imediato. Podia confiar em seus amigos e conterrâneos. E logo se enfervora
com o que ouve do novo mestre, tentando arranjar outro prosélito. Vai chamar Natanael (mesmo signi-
ficado que Teodoro = “dom de Deus”). O nome de Natanael não mais aparece em o Novo Testamento;
por isso os comentaristas o identificaram com Bartolomeu (filho de Tolmai), que é sempre citado ao
lado de Filipe em todas as listas dos apóstolos (Mat. 10:3; Marc. 3:18; Luc. 6:14).
Segundo informações do próprio João (21: 2), Filipe era natural ria cidade de Caná da Galiléia (hoje,
parece, Kefr-Kenna), que fica a 8 quilômetros de Nazaré, a aldeia de Jesus. Temos a impressão de que
Natanael já conhecia Jesus, porque Filipe, ao anunciar-lhe o encontra “daquele de quem Moisés escre-
veu na Lei e os profetas falaram”, cita o nome familiar: “Jesus, filho de José”, esclarecendo “o de Na-
zaré”. Esses pormenores deviam recordar algo a Natanael que com isso o identificaria.
Conhecendo Jesus, um operário braçal que vivia em minúscula aldeola, Natanael indaga: “e de Nazaré
pode sair algo de importante”? Filipe, porém, não procura fazer a apologia de Jesus: convida-o apenas
a verificá-lo de visu. E Natanael aceita e vai.
O primeiro choque vem do primeiro contato, quando ouve Jesus anunciar ao grupo: “vejam um israe-
lita em quem não há simulação”. Admirado com o elogio inesperado, Natanael indaga donde Jesus o
conhece. Poderia ter tido informações. Mas o Rabbi quer revelar seu poder. Sabe que Natanael é pes-
soa íntegra, cumpridor de seus deveres religiosos, convicto de sua fé. E revela-lhe algo que o estarrece.
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SABEDORIA DO EVANGELHO
Mas o evangelista registra apenas uma frase simples: “antes que Filipe te chamasse, eu te vi debaixo da
figueira”. Para nós, não faz sentido. Mas para Natanael deve ter constituído uma prova irretorquível,
por aludir a algo que ele deveria estar fazendo debaixo da figueira, e a frase de Jesus deve ter tido si-
gnificado profundo para ele, que exclama: “Rabbi, tu és o Filho de Deus (o Enviado especial), tu és o
Rei de Israel (o Messias aguardado) “!
A resposta de Jesus vem ampliar de muito o horizonte mental dos cinco primeiros escolhidos para par-
ticiparem da campanha de transfiguração do planeta.
Começa dizendo que a alusão à estada sob a figueira era de somenos importância e que muitas coisas,
ainda mais extraordinárias, seriam por eles testemunhadas.
Passa então a esclarecer: “Em verdade, em verdade”, locução típica à o hebraico. Quando um israelita-
afirma, com força de juramento (mas sem jurar, para “não tornar em vão o nome de Deus), ele diz:
amén ( ‫ ) אמוּ‬ou seja, “é verdade”. E quando quer solenizar sua palavra, usa a expressão ‫( אמך סלח‬amén
selô): “é verdade eternamente”.
Essa fórmula era com frequência empregada por Jesus, quando revelava fatos que desejava fossem
compreendidos e lembrados por seus discípulos.
“Vereis o céu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo” é uma alusão indiscutível a Gên. 28:10-
17, onde se narra o sonho de Jacob em Bethel, quando de partia para a Mesopotâmia.
Aqui aparece pela primeira vez o título que Jesus se atribuía de FILHO DO HOMEM, já usado por
algum profetas (cfr. Dan. 7:13-14, etc.).

FILHO DO HOMEM
A expressão hebraica “filho de ... “, exprime o possuidor da qualidade da palavra que se lhe segue:
“filho da paz” é o pacífico; “filho do estrangeiro” é o estrangeiro; nessa interpretação, “filho do ho-
mem” é o homem. No entanto, embora em alguns passos possa interpretar-se assim (por exemplo:
“Deus não é como um homem que mente, nem como o filho do homem que muda “, Núm. 23:19) nem
sempre essa expressão se conservou- com esse sentido. Na época mais recente do profetismo, o signi-
ficado se foi elevando, passando a designar algo de especial.
Observamos assim que Daniel (7:13) descreve a visão que teve do “Filho do Homem que vinha sobre
as nuvens do céu”. Isaías fala: “feliz o Filho do Homem que compreende isto” (56:2). Jeremias afirma
que o Filho do Homem não habitará a Iduméia” (49:18) nem Asor (49:33) nem Babilônia (50:40 e
51:43), significando que não terá participação com os pecadores. Ezequiel só é chamado por YHWH
de “Filho do Homem” (em todo o livro de Ezequiel, 92 vezes). O sentido, dessa maneira, se foi res-
tringindo até assumir o significado que, na época de Jesus, já se havia firmado: era o Homem que já se
havia libertado do ciclo reencarnatório (“guilgul” ou “samsara”). Nesse sentido, “Filho do Homem” se
opunha a “Filho de Mulher”, que representava o homem ainda sujeito às reencarnações, ainda não li-
berto da necessidade de nascer através da mulher.
O “Filho do Homem” é o Espírito que já terminou sua evolução, e que portanto se tornou o “produto
do Homem”, o “fruto da humanidade”. Não mais necessita encarnar, mas pode fazê-lo, se o quiser.
Não está preso ao “ciclo fatal” (kyklos anánke): vem quando quer. São os grandes Manifestantes da
Divindade, os Mensageiros, os Profetas, os Enviados, os Messias, que descem à carne por amor à hu-
manidade a fim de trazer revelações, de indicarem o caminho da evolução, exemplificando com sua
vida de dores e sacrifícios, a estrada da libertação, que eles já percorreram, e que agora apenas perlus-
tram para mostrar, como modelos, o que compete ao homem comum fazer por si mesmo. É o caso de
Krishna, Buddha, Moisés, Ezequiel, Jesus, Maomé, Ramakrishna, Bahá 'u 'lláh e outros.
Em o Novo Testamento encontramos o título “Filho do Homem” aplicado por Jesus a ele mesmo na
seguinte proporção: em Mateus, 31 vezes; em Lucas, 25 vezes; em Marcos, 14 vezes; em João, 12 ve-
zes; apenas em João 12:34 o título lhe é dado pelo povo. No entanto, Jesus não o aplica a mais nin-

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C. TORRES PASTORINO
guém. E dá-nos ele mesmo a definição do que entendia pela expressão, quando diz: “ninguém subiu ao
céu, senão aquele que desceu do céu. a saber, o Filho do Homem” (Jo. 3:13), ou seja, só aquele que já
subiu ao céu (que já se libertou da Terra, das reencarnações) é que, ao descer à Terra reencarnado,
pode ser chamado “Filho do Homem”, como era seu caso. Esse tem conhecimento próprio, adquirido
pela experiência pessoal, do que se passa nos planos superiores à humanidade, e portanto pode falar
com autoridade.
Não sendo mais “Filho de Mulher”, mas “Filho do Homem”, podia ele dizer que João Batista era o
maior entre os “Filhos de Mulher”, ou seja, entre aqueles que ainda estão sujeitos à reencarnação pela
Lei do Carma. João era, realmente o maior entre os presos à “roda de Samsara”; mas o menor dos já
libertos, era superior a ele; e Jesus era Filho do Homem, já liberto.
Interessante observar que, no resto do Novo Testamento, a expressão “Filho do Homem” aplicada a
Jesus (que assim se denominava) só é encontrada na boca de Estêvão (Atos, 7:56) e em dois passos do
Apocalipse (1:13 e 14:14). Explica-se o fato porque, fora da Palestina, sobretudo entre os gentios, a
expressão podia ser interpretada ao pé da letra, e portanto traria sentido ridículo à pregação dos após-
tolos sobre a pessoa de Jesus.
Depois de começar a admitir os discípulos na “hora décima”, ou seja, a exteriorizar o aprendizado
evolutivo interno, Jesus resolve caminhar com os recém-vindos para um local de meditação, onde lhes
possa dar as primeiras lições e a exemplificação viva.
Ao penetrar o “jardim fechado” (Galiléia) são citados mais dois nomes: Filipe, ou melhor Phaltiel,
que significa a “libertação de El”, isto é, o Espírito que se liberta do domínio da matéria, a individu-
alidade que se livra do jugo da personalidade, passando a utilizá-la como instrumento da evolução, e
não a servi-la como escravo. Filipe chama Natanael (o “dom de Deus”), completando-se assim o gru-
po de cinco, que simboliza a personalidade mais a intuição: ANDRÉ, o “homem” (físico), o “outro”
(sensações), PEDRO (emoções), NATANAEL (o intelecto, “dom de Deus” ) e FILIPE ( a intuição,
intermediária entre a Mente e o Intelecto).
Como representante da intuição, Filipe convoca Natanael, o intelecto, com ele se comunicando. Agin-
do como legítimo intelecto comum, a primeira reação de Natanael é a crítica, e crítica com menospre-
zo.
Mas, em presença da individualidade, ao ouvir o conhecimento que ela tem do próprio intelecto, ad-
mira-se profundamente. De início, ao perceber o conceito em que é tido, de não ser falso nem fingido,
o intelecto indaga: “de onde me conhece”? É o vício da pesquisa, que quer explicação de tudo. Mas
ao ouvir a resposta final, entrega-se inerme, rende-se sem mais resistência.
A frase que causou o impacto é simples: “antes que Filipe te chamasse, eu te vi sentado sob a figuei-
ra”.
A figueira, abundantíssima em toda a bacia mediterrânea (e portanto também na Palestina) apodrece
citada 56 vezes nas Escrituras (37 no Antigo e 19 em o Novo Testamento). Árvore que não produz
frutos, mas apenas flores (embora flores “inclusas” ) era muito apreciada e tido como símbolo de
abundância. Suas flores tinham grande utilidade: como alimento dos mais delicados e saborosos, e
como medicamento (usado como cataplasma em antrazes, úlceras e abcessos) com efeito curativo. A
árvore floresce na primavera em grande profusão.
De modo geral a figueira é citada ao lado da vinha, da oliveira e da romã, com expressão esotérica. A
figueira representa a floração interna das qualidades morais e espirituais, isto é, a evolução em si
mesma, a transmutação da seiva interior da árvore nas flores da perfeição, não abertas para o exteri-
or, mas inclusas ou fechadas em si mesmas, florescendo para o íntimo. A vinha simboliza a sabedoria
espiritual (como afirmavam: in vino véritas, no vinho, a verdade). A romã representa a fecundidade
sexual e sua consequência natural: o desenvolvimento mental. A oliveira exprime a paz, quer a exter-
na, quer sobretudo a interna e profunda.

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SABEDORIA DO EVANGELHO
A figueira, uma das árvores mais antigas no conhecimento da humanidade, aparece desde as primei-
ras páginas da Bíblia. No profundo simbolismo do episódio adâmico, segundo o Gênesis (3:7), Adão e
Eva cobriram suas partes sexuais com folhas de figueira (tradição conservada até hoje pelos pintores
e escultores puritanos). O significado dessa idéia é que a parte material (animal) é superada (coberta)
pelo aprimoramento da pujante força espiritual.
A expressão “sentar-se sob a figueira e sob a vinha”, ou seja, preparar-se interiormente pela aquisi-
ção da Virtude e da Sabedoria é empregada em 1 Reis, 4:26; em Miquéas, 4:4; em Zacarias, 3:10 e
em 1 Macabeus, 14:12, para simbolizar a Virtude e a Sabedoria que haverá na “época messiânica”,
isto é, no momento em que o homem se encontrará com o Messias ou Cristo Interno.
A frase de Jesus teve, portanto, sentido profundo, quando afirmou que, antes de ser avisado pela intui-
ção, já ele (Cristo Interno) percebera o intelecto (Natanael) “sentado sob a figueira”, ou seja, bus-
cando ansiosamente o encontro com seu Eu, aspirando ao contato - por meio do florescimento das
virtudes - com o Cristo Interno, o Filho de Deus, o Rei da Humanidade (Israel).
O intelecto que tem boa vontade, e desejo sincero de evoluir, cede sempre diante da realidade, venci-
do e convencido.
Mas Jesus acrescenta que ele e os companheiros veriam o “céu aberto”, ou seja, penetrariam o se-
gredo do “Reino dos Céus” que se abriria para eles, em seus corações, e, nesse encontro, seus Espí-
ritos, os “anjos de Deus”, subiriam e desceriam em contatos sucessivos, iluminando o Filho do Ho-
mem, o “espírito” liberto totalmente das peias da matéria.

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C. TORRES PASTORINO

AS BODAS DE CANÁ
João, 2:1-11
1. No terceiro dia, houve um casamento em Caná da Galiléia, e achava-se ali a mãe de
Jesus,
2. e foram convidados também Jesus e seus discípulos para o casamento.
3. Tendo acabado o vinho, a mãe de Jesus disse-1he: “Eles não têm mais vinho”.
4. Respondeu-lhe Jesus: “Que (importa. isto) a mim e a ti, mulher? Ainda não chegou
minha hora”
5. Disse sua mãe aos serviçais : “Fazei o que ele vos disser”.
6. Ora, estavam ali colocadas seis talhas de pedra., das que os judeus usavam para as
purificações, e continha cada uma duas ou três metretas.
7. Disse-lhes Jesus: “Enchei de água as talhas”. Eles as encheram até a borda..
8. Então lhes disse: “Tirai agora e levai ao presidente do banquete”. E eles o fizeram.
9. Quando o presidente do banquete provou a água tornada em vinho, não sabendo
donde era (mas o sabiam os serviçais, que haviam tirado água), chamou o noivo
10. e disse-lhe: “Todo homem põe primeiro o bom vinho, e quando os convidados se em-
briagaram então lhes apresenta o mais recente; mas tu guardaste o bom vinho até
agora”.
11. Jesus fez esta primeira demonstração em Caná da Galiléia, e manifestou sua doutri-
na, e seus discípulos acreditaram nele .

“No terceiro dia” equivale ao que hoje costumamos dizer: “dois dias depois”. Os gregos e romanos, ao
estabelecer um lapso de tempo, começavam contando o próprio dia do início. Assim a relação entre um
caso ocorrido, por exemplo, no dia 4 e outro no dia 6, este era dito: “no terceiro dia”, considerando-se
o próprio dia 4 como o 1.º, o dia 5 como 2.º e O dia, 6 como 3.º dia. Hoje costumamos dizer: “dois dias
depois”, sem fazermos conta do dia inicial. Assim, Jesus desencarnou na sexta-feira. e ressuscitou “no
terceiro dia” isto é. “dois dias depois”, no domingo .
Estamos, pois, no sétimo dia, a contar do primeiro episódio.
O casamento realizou-se na ,cidade de Caná “de Galiléia” (para distingui-la de Caná “de Aser”), a ci-
dade natal do discípulo recém-chegado Natanael.
De quem teria sido o casamento? Nenhuma indicação. Qualquer suposição jamais poderia passar além
de mera hipótese. Entretanto, Maria ali se achava como pessoa independente, como amiga da família, e
não na qualidade de mãe de Jesus. Este é que parece ter sido convidado pelo único motivo de ser seu
filho, e ali aparece com seus discípulos, como “convidados”.
As festas das “bodas” (mishtitha, em aramaico) duravam uma semana e os convites eram amplos. Daí,
por vezes, as previsões das quantidades de comida e bebidas poderem falhar. Pelo que transparece da
narrativa, Maria observou essa dificuldade em relação ao vinho. com sua sensibilidade feminina de
dona de casa.
Com a autoridade oriunda de amiga da família, toma as providências indispensáveis para contornar a
dificuldade, recorrendo a alguém que ela sabia poder remediar a situação: avisa a Jesus que o vinho
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SABEDORIA DO EVANGELHO
acabara e, de imediato, dirige-se aos serviçais ordenando-lhes que obedeçam a Jesus. Pelo que se per-
cebe, parece mesmo tratar-se de pessoa da família, com a autoridade reconhecida pelos serviçais que
lhe obedecem.
Consideremos a resposta de Jesus, analisando-a em seus pormenores:
1) Que nos importa isso a mim e a ti”?
As traduções correntes dão: “que tenho eu contigo”? Como se Jesus afirmasse nada haver entre ele e
sua mãe, o que redundaria num desaforo ou, pelo menos, numa indelicadeza. Ora, o sentido do grego
(e do latim, que traduziu muito bem o original) não é esse.
Comecemos pelo latim, mais acessível. A tradução “quid mihi et tibi” corresponde literalmente ao ori-
ginal grego. Trata-se de dois dativos de interesse, ou dativos “éticos”, construídos em paralelo. Encon-
tramos um exemplo dessa construção em Plauto (Rudens, 1307): “Sed quid tibi est”? (mas que te im-
porta?). Se o sentido fosse o das traduções vulgares, o latim teria uma construção diferente (quid mihi
tecum est), como vemos ainda em Plauto (Men 323: “quid tibi mecum est rei”? (que é que tens comi-
go?) e em Ovidio (Tristes, 2, 1, 1): “quid mihi vobiscum est”? (que é que eu tenho convosco?). Então,
se a expressão fosse esta, o latim teria um elemento em dativo e o outro em ablativo com cum, e jamais
dois dativos em paralelo.
Construção semelhante em grego, cujo texto original reza: τί έµοί иοί σοί ; (que importa a mim e a ti?).
Encontramos, com um elemento, a expressão desse dativo ético em Aristófanes (Lys. 514 e Caval,
1198) : ιί δέ σοί τοϋτο ; (que te importa isso?) e no mesmo Aristófanes (Assembléia, 520:521) τί δέ σοί
τοϋτο; – ότι µοί τοϋτ’έστιν (que te importa isso? o que isso me importa?).
Essa mesma construção aparece ainda no Antigo e em o Novo Testamento várias vezes. Em todos os
passos, é mais natural e conforme ao contexto a interpretação “que importa a mim e a ti”? (conforme
traduz sistematicamente F. Vigouroux, “La Sainte Bible Polyglote, in locis). Uma vez, apenas, é pedi-
do o sentido “que há entre ti e mim”, quando em juízes 11:12 se pergunta: “que há entre ti e mim, que
vens contra mim destruir minhas terras”?
Em todos os demais passos (cfr. 2 Sam, 16:10 e 19:22; 1.º Reis, 17:18; 2.º Reis, 3:13; 2.º Crôn, 35:21)
o sentido é “que importa a mim e a ti”. Inclusive em o Novo Testamento, no mesmo episódio narrado
pelos três sinópticos (Mat. 8:29; Marc. 1:24 e Luc. 4:34) a frase poderia significar “que tens tu conos-
co”? (tradução vulgar). Mas o sentido interno rejeita-o, pela continuação: “Filho de Deus” (Mat.) ou
“Jesus de Nazaré” (Mr, e Lc.). Se os espíritos obsessores vêem no Mestre o “Messias”, reconhecendo-
Lhe a autoridade de Filho de Deu, não podiam perguntar-lhe o que “Ele” tinha com eles; seria um ab-
surdo: logicamente, se era o “Senhor” que ali estava, cabia-lhes obedecer-Lhe. O segundo sentido “que
importa a ti e a nós” é mais aceitável, como se dissessem: “que importa a ti e a nós o que ele (o obse-
dado) está sofrendo”? Como se salientassem que o sofrimento dele era cármico, e que se eles se apro-
veitavam disso, nenhuma importância tinha, nem para eles, nem para o Messias Santo, o Filho de
Deus. Parece-nos, pois, claro que o sentido se impõe como interpretação lógica: “que importa a ti e a
nós, com o que se passa”? Jamais uma oposição entre os dois interlocutores (a não ser no passo supra-
citado de Juízes 11: 12).
2) “mulher”
A palavra “mulher” nada tinha de ofensivo nem de menos respeitoso entre os orientais, os gregos e os
romanos, tanto quanto nada tinha de desrespeitoso a palavra “homem”. Se a semântica variou com o
tempo, emprestando ao termo sentido depreciativo, culpa disso não cabe aos que o empregavam com
todo o respeito naqueles idos. Hoje diríamos “senhora” (termo desconhecido naquela época). A pala-
vra “mulher” era usada como tratamento de mulher casada, em oposição a “parthenos” (virgem), e
denotava mesmo carinho e consideração (cfr Teócrito, 15:12 “olha, mulher, como ele te observa”!).
3) “minha hora ainda não chegou”.
A terceira consideração referente a essa expressão visa a salientar, segundo os intérpretes, que não ha-
via soado o momento de Jesus iniciar sua missão carismática na Judéia.
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Maria, na realidade, não interpretou assim a resposta de Jesus (que teria sido uma recusa), tanto que dá
ordens aos serviçais, e ordem taxativa: obedeçam ao que ele mandar. E a própria atuação de Jesus
contradiz esse sentido, pois ele assume o comando da situação e manda encher de água seis (atenção
ao número!) talhas de pedra, que serviam habitualmente para as abluções rituais dos israelitas. Nem
eram vasilhas próprias para vinho: eram “tinas” ou “tonéis” em que os judeus se lavavam as mãos, os
pés, os pratos, etc. Cada talha continha duas a três “metretas”.
A “metreta” correspondia a um pé cúbico; dependia, então, do comprimento do pé (nas ilhas do Egeu
valia 35,3 litros, mas em Esparta 74 litros). As medidas gregas principais eram o cotile (0,2047 lt, pou-
co menos de um copo); o xeste (2 cotiles, 0,4094 lt); o hemicoos (8 cotiles, 1,6376 lt), o coos (16 coti-
les, 3.275 lt) e a metreta (192 cotiles, 39,294 lt). As talhas tinham, pois, de 75 a 120 litros (de duas a
três metretas). Notem que João está sempre a citar números: de duas a três metretas.
Uma vez cheias as talhas até a borda, Jesus manda que levem o novo vinho ao presidente do banquete,
para que seja provado. Vem a cena da admiração, por causa da qualidade do produto. O texto é bas-
tante claro, devendo notar-se apenas que vinho “recente” era considerado inferior, já que o bom vinho
era o velho.
A tradução que apresentamos do versículo 11 é a interpretação literal do grego. Compreendemos
σηµειον como “demonstração”, e não “milagre”. O sentido da palavra grega, de fato, é “sinal” como
marca distintiva, ou “prova” que demonstra alguma coisa, ou “símbolo” (por exemplo, o tridente é o
símbolo de Netuno) . E δο٤α é a doutrina, a crença, o julgamento, particularmente o ensino filosófico
(é o mesmo radical do verbo δοкεω , que significa “ensinar”).

Grandes e profundos ensinamentos.


Observemos, de início, a sequência da manifestação dos ensinos relacionados pelo evangelista.
1.º dia (l.ª época) - a resposta de João Batista aos emissários do Sinédrio, exprimindo a personalidade
pura, com todas as exigências “burocráticas” de uma sindicância.
2.º dia (2.ª época) - A apresentação de Jesus (a individualidade} aos discípulos, pelo Batista (a perso-
nalidade).
3.º dia (3.ª época) - Os discípulos de João seguem Jesus: abandono da personalidade para confiar-se
à individualidade .
4.º dia ( 4.ª época) - Agrega-se à entrega a emoção (Simão) que tem o nome mudado para “pedra” ou
“rocha”, porque aí se baseará o desenvolvimento da era de “Pisces” (raio devocional), que é o emo-
tivo, dirigido por Jesus.
5.º dia (5.ª época) - Interiorização no “Jardim fechado” (Galiléia), levando consigo o intelecto (Nata-
nael) e a intuição ( Filipe).
6.º dia (6.ª época) - Meditação do ser unido a todos os seus veículos.
7.º dia (7.ª época) - As bodas ou o casamento do “espírito” reencarnado com o Espírito Eterno, em
união mística, profunda e perene.
É deste último passo que trata o presente trecho evangélico, narrando-nos os pormenores que cerca-
ram esse “casamento” entre os dois, essa Unificação perfeita.
As bodas realizam-se em Caná. “Qanáh” significa “cana” ou “caniço”, a planta que nasce reta para
o alto, como uma flecha que está para disparar verticalmente. É a flecha da oração que elevará as
vibrações, partindo do “Jardim fechado”.
Aproximando-se a hora do esponsalício, da união total, íntima e profunda, em que “os dois serão uma
só carne” (Gên. 2:24), a intuição (Maria) adverte a individualidade (Jesus) de que os discípulos (os
convidados ao banquete espiritual) “não têm vinho”, isto é, ainda não possuem o conhecimento pro-

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SABEDORIA DO EVANGELHO
fundo do sentido das Escrituras. E a individualidade retruca que não é esse o caminho, e que “ainda
não chegou sua hora”, ou seja, o momento do contato. Diz mais, que a intuição não deve dirigir-se a
ela (individualidade): “que temos nós com isso?” mas sim à personalidade, aos veículos inferiores,
aconselhando-os a obedecer à individualidade, para que ela possa agir.
Compreendendo a advertência, a intuição volta-se para os veículos interiores (os serviçais), que são o
corpo físico e o duplo etérico (sensações), as emoções e o intelecto, que servem ao Espírito, à indivi-
dualidade.
O Espírito, então, observa que ali se encontram seis talhas de PEDRA.
Esclareçamos o sentido dos termos.
PEDRA exprime a interpretação literal das Escrituras: Moisés recebeu os mandamentos gravados em
pedras (Êx. 24:12,. 31:18, etc.).
ÁGUA simboliza a interpretação alegórica dessas mesmas Escrituras, o sentido extraído da letra:
Moisés feriu a pedra e dela saiu água (Êx. 17:6).
VINHO é a Sabedoria profunda, o sentido simbólico (místico) e espiritual, que inebria os sedentos da
Verdade, e que alegra o coração (Mente) da criatura (Salmo, 104:15) juntamente com a música, a
mais sublime das artes (Eccli. 40:20).
Quando a doutrina não é pura, Isaías o revela com estas palavras: o teu vinho está misturado com
água” ( Is.1:22).
A narrativa evangélica é bastante clara: tomando as Escrituras Sagradas (talhas de pedra), Jesus
manda que os serviçais (a personalidade) as encham de “água (de interpretações alegóricas). Eles o
fazem. E o fazem bem, enchendo “até a borda”. Esgotam os assuntos e as interpretações de que são
capazes. Nesse momento, quando a personalidade está preparada, chega a individualidade (Jesus) e
transforma a água em vinho, ou seja, transforma os ensinos alegóricos, em ensinos simbólicos, místi-
cos, espirituais, cheios de sabedoria. Revela-lhes o que há de oculto na Palavra Sagrada.
Depois de fazê-lo, manda que levem essa Sabedoria (que proveio do coração), ao intelecto (o presi-
dente do banquete), a fim de ser por este examinada, provada, saboreada e julgada racionalmente.
O intelecto maravilha-se diante daquela Sabedoria e mostra ao candidato à união (o noivo) que nor-
malmente os homens não agem assim: o comum é dar-se aos convivas (às criaturas) uma boa doutri-
na, até que eles se embriaguem com ela (se fanatizem), e depois, então, quando querem aprofundar
mais, colocam-lhe entre as mãos o vinho ordinário (ensinamentos medíocres) que são aceitos sem
discernimento nem critério da razão, porque eles já estão embriagados e fanatizados.
Neste caso, porém, houve o inverso: foram sendo distribuídos vinhos mais ordinários (doutrinas sim-
ples e ingênuas) e só no final lhes é dada a Sabedoria profunda. O evangelista nota que o intelecto (o
presidente do banquete) não sabia de onde provinha aquela sabedoria, mas sabiam-no os serviçais (a
personalidade), que haviam colhido apenas a água da interpretação alegórica.
E realmente, ainda até hoje, o intelecto não se deu conta de que a Sabedoria Profunda vem do cora-
ção; e quando se diz isso, ele reluta em aceitar, porque, diz. “o coração é apenas um aglomerado de
células musculares, propulsoras de sangue” ... Como se o cérebro, intermediário do intelecto que ra-
ciocina, não fosse apenas um conglomerado de células nervosas ... O intelecto ainda ignora que “cé-
rebro” e “coração” são apenas pontes, e que, na realidade, o intelecto pertence ao “espírito” (perso-
nalidade) e a Mente pertence ao Espírito (individualidade).
O bom vinho que os convivas beberam, foi bebido exatamente na união mística, quando os segredos
da amada são revelados ao amante, numa união total, em que o vinho permeia todas as células, leva-
do pelo sangue: assim a Sabedoria penetra e impregna todos os escaninhos do ser, quando a criatura
atinge a Consciência Cósmica.

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E o evangelista salienta em conclusão: esta foi a primeira demonstração da individualidade à perso-
nalidade (aos discípulos) revelando-lhes a Doutrina profunda. E os discípulos acreditaram. Depois da
união do Espírito com o “espírito”, este se convence e se entrega incondicionalmente à evidência dos
acontecimentos.

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ESTADA EM CAFARNAUM
João, 2:12
12. Depois disso, desceu ele a Cafarnaum com sua mãe, seus irmãos e seus discípulos; e
não ficaram ali muitos dias.

Em alguns manuscritos aparece Capernaum. Mas os testemunhos mais antigos, inclusive de Josefo,
trazem Capharnaum, que significa “cidade do Consolador” (literalmente NAHUM é a forma intensiva,
que corresponde ao sufixo “oso”. isto é, rico em, cheio de; por exemplo: rahum, rico de piedade ou
piedoso; hannum, rico de graça ou gracioso; nahum, rico de consolação ou consolador). Cafarnaum
ficava à margem leste do lago de Tiberíades.
Jesus desceu de Caná (a mais de 200 metros acima do mar) para Cafarnaum (a 200 metros abaixo do
nível do Mediterrâneo). Com ele veio toda a sua família. A citação de Maria e dos irmãos de Jesus,
confirma que o casamento de Caná foi de elemento das relações de Maria, que levou os seus parentes.
Dos irmãos de Jesus conhecemos quatro: Tiago, José, Simão e Judas (Mat.13:55, onde se diz que tam-
bém tinha “irmãs”, mas não lhes cita os nomes). Com eles vieram os novos discípulos de Jesus (André,
João, Pedro, Filipe e Natanael).
Não se demoram em Cafarnaum: aí ficaram “alguns dias”, preparando-se para seguir para Jerusalém, a
fim de comemorar a Páscoa .
A descida do local do Encontro (o “caniço” apontando para o céu, do “Jardim fechado”) para a “ci-
dade do Consolador”, simboliza a necessidade de levar a consolação recebida do Alto, para a planí-
cie da vida, para aqueles que, embora não maduros, têm também fome de luz. Quem encontrou a Luz
deve levá-la aos que estão em trevas, com amor e sem egoísmo. Dela receberá cada um na medida de
sua capacidade.

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VIAGEM A JERUSALÉM
(Para a Páscoa, abril de 29 A, D. )
João, 2:13
13. Estava próxima a Páscoa dos judeus, e Jesus subiu a Jerusalém.

A Páscoa “dos judeus”, como anota João, era uma das festas que obrigava a todos os homens a visitar
o Templo de Jerusalém.
Estamos no ano 29 da era cristã (782 de Roma).
A expressão “subir a Jerusalém” era a usual, porque realmente a Cidade Santa ficava a 780 metros
acima do Mediterrâneo.
Jerusalém significa “visão da paz” (se ligarmos a primeira parte IERU à raiz râ’âh, ver); ou “a posse
da paz” (se a ligarmos a yârash, possuir); este último nome poderia ter-lhe sido aplicado por Salomão
“o pacífico”. Mas a inscrição das tábuas de Tell el-Amarna e as inscrições cuneiformes do Prisma de
Taylor e do Cilindro C de Senaqueribe, trazem IR-SA-LI-IM-MU, (1) assim como o siríaco traz (2)
('urishlem) e o árabe (3) ('urishalam). Neste caso, o primeiro elemento UR (em hebraico 'ir) significa
“cidade”. Teríamos, então, “cidade da Paz”. As antigas moedas da época reproduzem Yerusalém (4) ,
isto é, (5) e Yerusalaim (6) , istoé, (7).

(1) (5)

(2) (6)

(3) (7)

(4)

O grego transcreve ora ‘Iερουσαλήµ , ora ‘Iεροσόλυµα que o latim verte por Jerusalém ou Hieroso-
lyma.
O primitivo nome da cidade era JEBUS (cfr. Josué 15:8 e 18:16, 28; Juízes, 19:10, 11, e 1 Crôn.
11:4,5).
A primeira referência à páscoa diz: pesah hu la-YHWH, que significa “a passagem de YHWH”. Em
aramaico tomou a forma pashha, que o grego transliterou πασΧα e o latim pascha. Só era permitido
comer pão “ázimo”, isto é, sem fermento, donde ser a festa chamada “festa dos ázimos”. E a comida
era cozida sem sal nem azeite. Imolava-se um cordeiro que devia ser todo comido pela família, antes
de terminar a festa.
A Páscoa era celebrada no mês de Nisan, no 14.º dia .
O ser que recebeu a Luz precisa peregrinar, mas sem esquecer jamais os locais que lhe tragam Paz.
De vez em quando necessita subir vibracionalmente para não perder contato durante a “passagem do
EU interno”, a “páscoa de YHWH”.

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EXPULSÃO DOS EXPLORADORES


(Em Jerusalém, abril de 29 A.D.)

Mat. 21:12-13 Luc. 19: 45-46

12. Jesus entrou no templo, expulsou todos os 45. Tendo entrado no templo, começou a expul-
que ali vendiam e compravam, derrubou as sar os que ali vendiam, dizendo-lhes:
mesas dos cambistas e as cadeiras dos que 46 “Está escrito: minha casa será casa de ora-
vendiam as pombas, ção, mas vós a fizestes um covil de salteado-
13. e disse-lhes: “Está escrito, minha casa será res”.
chamada casa de oração; vós, porém, a fa-
zeis covil de salteadores”.

Marc. 11: 15-17 João, 2: 14-17

14. E chegaram a Jerusalém. Entrando ele no 14. Encontrou no templo os que vendiam bois,
templo, começou a expulsar os que ali ven- ovelhas e pombas, e também os cambistas
diam e compravam, e derrubou as mesas sentados;
dos cambistas e as cadeiras dos que vendi- 15. e tendo feito um azorrague de cordéis, ex-
am as pombas, pulsou a todos do templo, as ovelhas e os
15. e não permitia que ninguém atravessasse o bois, derramou pelo chão o dinheiro dos
templo cambistas e virou as mesas.
16. levando qualquer objeto, e ensinava dizen- 16. E disse nos que vendiam as pombas: “Tirai
do: “Não está escrito que minha casa será daqui estas coisas; não façais da casa de
chamada casa de oração para todas as na- meu Pai uma casa de negócio”.
ções? mas vós a fizestes um covil de saltea- 17. Então se lembraram seus discípulos de que
dores”. está escrito : “O zelo de tua casa me devo-
rará”.

Interessante observar que João coloca o episódio no início da vida pública de Jesus; Mateus e Lucas o
citam no domingo em que Jesus entra triunfalmente em Jerusalém, e Marcos na segunda-feira seguinte,
pela manhã. Quando se realizou realmente? Ou será que a cena se repetiu duas vezes? Não há possibi-
lidade de solucionar a questão com segurança absoluta, Mas parece, como pensam muitos exegetas,
que a razão está com João. No libelo acusatório da quinta-feira seguinte, a última acusação (“final-
mente”, Mat.26:60) é a de que Jesus falara da destruição do Templo e de sua reconstrução em três dias.
Ora, se o episódio se houvesse verificado quatro ou cinco dias antes, que “se recordava” de havê-lo

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C. TORRES PASTORINO
ouvido dizer isso. Os três sinópticos só falam de Jesus em Jerusalém nessa época: natural que, por co-
modidade, tivesse aí colocado o episódio.
Os vendedores permaneciam no ádrio do templo (hierô), único local em que podiam penetrar os genti-
os (isto é, os não-judeus), e não dentro do templo propriamente dito (naós). Alinhavam-se as mesas no
pórtico, como de uso nas vias públicas, e vendiam bois, ovelhas, pombos, farinha, bolos, incenso, óleo,
sal e vinho. Além disso havia os cambistas, que trocavam dracmas gregas, e denários romanos, por
siclos judeus, únicas moedas aceitas como ofertas. A troca era feita com ágio (“cóllybos”).
Todos, vendedores e cambistas, contribuíam com percentagens para os sacerdotes, e Rabbi Simeão
Ben Gamaliel queixa-se dos altos preços extorsivos cobrados pelos vendedores do Templo.
Marcos anota que Jesus protestou também contra a travessia do Templo, a carregar pacotes. Esse cos-
tume foi condenado no Tratado Barakoth do Talmud. Com efeito, para evitar uma volta grande, o povo
se acostumou a carregar suas cargas atravessando o Templo de leste a oeste.
Marcos é o único evangelista que traz as citações completas. A de Isaías (56:7) segundo os LXX: “mi-
nha casa será chamada casa de oração para todas as nações”. E a de Jeremias (7:11), quando esse pro-
feta exorta os israelitas a melhorarem suas vidas; pois se continuassem a roubar, a matar e a mentir,
entrando no Templo com seus crimes, “esta casa, que é chamada de meu nome, se tornaria a vossos
olhos um covil de salteadores”.
Outro argumento a favor de João, colocando a expulsão no início da vida pública, é que o fato constitui
uma confirmação das palavras do Batista (“entre vós está aquele de quem não suspeitais”, Jo, 1:26) e
da profecia de Malaquias (3:1): “depois disso, o Anjo do Testamento, que esperais impacientemente,
fará sua aparição no Templo”.
Segundo João, Jesus faz um chicote de cordinhas (é usado o diminutivo) ou cordéis, para enxotar os
animais (não poderia fazê-lo com carícias!); mas aos homens dirige a palavra candente, derrubando as
mesas donde caíram as moedas dos cambistas.

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SABEDORIA DO EVANGELHO
Figura – “A expulsão dos exploradores”, quadro de BIDA, gravura de FLAMENG.

Para uma ação desse tipo, não houve necessidade de “milagre”: a intervenção repentina e inesperada,
com autoridade, desconsertou-os, e eles obedeceram sem reação, inibidos de espanto.
Muito mais tarde é que os discípulos se lembraram das palavras do Salmo (69:9), citadas segundo os
LXX, no futuro: “o zelo da Tua casa me devorará “ .
---:---:---:---:---
O fato da expulsão dos “exploradores” do Templo, bem aceito pela teologia católica, quer romana,
quer reformada, sofre grandes restrições no ambiente espiritista. Convictos da bondade de Jesus, de
seu amor para com os pecadores e humildes, não querem admiti-Lo violento. Parece-nos haver confu-
são entre violência e energia, entre bondade e complacência. Pode e deve haver bondade enérgica, fre-
quentemente indispensável na educação de crianças rebeldes, sem que haja violência. A moleza de
caráter (muitas vezes chamada “benevolência”) pode em certos casos constituir até crime. Cruzaríamos
os braços diante de um bandido que estivesse para assassinar um bando de crianças, e se tivéssemos
força capaz de detê-lo sem matá-lo? E nossa conivência, sob a capa cômoda da “caridade”, não seria
cumplicidade?
Não se alegue que Jesus “perdeu a linha”, porque nenhum evangelista deixa supó-lo. Repreender com
severidade, derrubar uma mesa de cambista, pegar um feixe de pequenas cordas para enxotar animais,
é um gesto de justa indignação que supõe grande elevação espiritual diante da profanação de um lugar
sagrado. Vem isto provar-nos que não devemos - nem podemos - pactuar com o abuso, sobretudo de
negociar nos lugares destinados à oração.
Quanto ao “chicote” de cordéis, não é necessário supor-se uma “figura”, dizendo que era o chicote “da
palavra”. Não se diz no Evangelho que Jesus espancou os exploradores, mas apenas que fez o chicote,
com ele espantando os animais, que não podiam entender as palavras candentes que dirigiu aos ho-
mens.
O episódio não pode ser posto em dúvida, quando vem narrado nos quatro evangelistas. E em muitas
outras ocasiões podemos observar o retrato de um Jesus másculo e forte. Jamais o vemos fraco e co-
varde. Seria inadmissível que um Espírito, com a autoridade de Jesus que criou o planeta, aqui chegas-
se com um caráter mole e efeminado. A força moral de Jesus, assim como sua energia, é bem confir-
mada pelas palavras duras com que enfrentava os enganadores do povo, que faziam da religião simples
degraus para subir no conceito popular e para adquirir prestígio e honrarias, ou posição política, ou
riquezas e isenção de obrigações.
Desse fato, narrado pelos quatro evangelistas, deduzimos um ensinamento valioso. Trata-se da auto-
ridade e severidade com que devemos tratar nossos veículos inferiores, quando nos querem eles levar
por falsos caminhos, para a fraude, para a simonia.
A individualidade não pode consentir que a personalidade transforme o Templo de Deus, de nosso
Pai, em “covil de salteadores”, onde, se acoitem vícios e enganos, a hipocrisia e a “venda” das coi-
sas que devem servir para o sacrifício à Divindade; não podemos vender nosso “espírito” por favores
em benefício de nossa comodidade e nosso conforto.
Quantas vezes a personalidade acha “natural” fraudar o Templo de Deus, trocando a justiça e a reti-
dão por lucros incontestáveis de sensações e emoções! Quantas vezes permitimos que a animalidade
assuma o papel principal, acima da espiritualidade. Quantas vezes consentimos em constituírem nos-
sos veículos inferiores um aglomerado de vendilhões e exploradores das coisas sagradas, comprando
prazeres sórdidos com sacrifício de nossas potencialidades sacrossantas, seja nas sensações, seja nas
emoções, seja no intelectualismo viciado!
Jesus ensina-nos a agir prontamente, com rapidez, energia e autoridade, com severidade e zelo, mos-
trando-nos que jamais podemos compactuar com essas profanações do Templo de Deus. Exemplifica-

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mos que, se necessário, usemos de um chicote de cordas para expulsar o animalismo, a covardia, o
comodismo, a falsidade, a agiotagem dos “cambistas” que trocam o Reino dos Céus pelos bens da
Terra; que sacrificam as riquezas imperecíveis por gozos momentâneos e ilusórios; que nos atrasam a
caminhada e aprofundam no solo, pelo qual caminharemos, espinhos dolorosos que colheremos nas
estradas futuras.
Energia, sim, rigor , intransigência, autoridade irretragável, dureza incomplacente com todos os veí-
culos inferiores que devem servir ao Espírito, e não escravizá-lo a seus caprichos, a seus prazeres, a
suas loucuras” Mesmo sem violência contra eles, jamais fraquejar nem amolecer: a energia deve ser
varonil e autoritária.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

DISCUSSÃO COM AS AUTORIDADES


João, 2:18-23
18. Perguntaram-lhe pois os judeus: “que sinal nos mostras, pois que fazes essas coisas”?
19. Respondeu Jesus e lhes disse: “derrubai este Templo e em três dias o reerguerei”.
20. Replicaram-lhe, então, os judeus: “há quarenta e seis anos é construído este Templo,
e em três dias o levantas”?
21. Mas ele se referia. ao Templo de seu corpo.
22. Quando pois ressuscitou dentre os mortos, lembraram-se seus discípulos de que ele
dissera isso, e creram na Escritura e na palavra que Jesus dissera.

Ao passar o primeiro impacto da confusão, os sacerdotes e policiais do Templo vão tomar satisfações.
Não Lhe pedem documentos, mas “um sinal”.
Responde Jesus com um enigma, uma figura ou alegoria, muito em voga entre os Doutores da Lei:
“quando tiverdes destruído este Templo, em três dias o reerguerei”.
O sentido literal parecia referir-se ao templo de pedra, e nesse sentido foram citadas essas palavras
pela testemunha de acusação (Mat. 26:61 e Mr. 14:58), e a esse propósito os soldados judeus farão
sarcasmos no Gógota (Mat. 27:40 e Mr. 15:29), voltando na acusação contra Estêvão (At. 6:14). Em
todos esses lugares, diz-se que Jesus afirmou que “ele” destruiria o templo”. Mas, segundo o relato de
João, suas palavras não foram essas.
Referia-se Jesus ao seu corpo, o “Templo de Deus” (“'Não sabeis que sois o Templo de Deus e o Espí-
rito Santo habita em vós”?, 1 Cor.3:16; “é santo o Templo de Deus, que sois vós”, 1 Cor.3:17; “vós
sois o Templo do Deus vivo”, 2 Cor.6:16, etc.).
Realmente o enigma é obscuro.
Os judeus retrucam : “este templo há 46 anos é reconstruído”. De fato, o templo estava sendo recons-
truído, com grande resplendor, pela generosidade de Herodes, que iniciou a obra no 18.º ano de seu
governo,em19A.C. (735 de Roma, cfr. Josefo, Ant. Jud. 15:11:1). Na época da narrativa, estávamos no
ano 29 (782 de Roma) e se tinham passado exatamente 46 anos do início da reconstrução. (Os traba-
lhos prolongaram-se até o tempo do procônsul Albino, em 62-64, cfr. Josefo, Ant. Jud.20.9.7). E esta é
mais uma indicação precisa da cronologia da vida terrena, concordando com Lucas 3:2; que coloca o
mergulho de Jesus no 15.º ano do governo de Tibério como César (29 A.C. Ou 782 de Roma).
A frase de Jesus causa ainda maior estupefação porque trabalhavam na reconstrução do templo dezoito
mil operários, que ficaram ao desemprego ao terminarem as obras (cfr. Josefo, Ant. Jud. 20.9.7). Como
um homem sozinho podia fazer esse trabalho, e em três dias? E que sinal seria esse que teria necessita-
do, primeiro, que se demolisse o templo, coisa absurda só de pensar? A inverossimilhança sustou qual-
quer julgamento precipitado. É um desses enigmas que só será compreendido depois de realizado,
como anota João: só depois da ressurreição compreenderam-no os discípulos, de que estava Jesus fa-
lando.
Esta sequência vem confirmar integralmente nossa interpretação do trecho anterior: a “expulsão”
não é do templo de pedra, mas é do Templo de Deus, o templo construído para ser chamado “do Se-
nhor”, ou seja, o corpo humano, a personalidade. A isso se referia Jesus, disso falaram os quatro
evangelistas alegoricamente, como João explica quando fala da “destruição do templo”. Mas nem

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C. TORRES PASTORINO
todos conseguem penetrar o sentido profundo, só sabem ler literalmente, embora o próprio evange-
lista o explique logo a seguir.
Quando os judeus pedem um sinal de que tem autoridade, Jesus não lhos dá. Apenas faz uma afirmati-
va que os confunde, fazendo-se passar por inconsequente ou quase louco. Em linguagem vulgar dirí-
amos “não deu confiança” a quem não tinha autoridade para pedir-lhe satisfações.
Assim também deve ocorrer com os discípulos. Quando o Espírito, nosso Eu Profundo, exigir de nós
sacrifícios e restrições aos veículos inferiores, quase sempre estes se rebelam, sobretudo o intelecto,
que pede “razões” e não quer entender. O Espírito, consciente de si, pode responder-lhe: '“se esse
templo (esse corpo) for destruído, eu o reerguerei em novo nascimento; em três dias”, no sentido de
rapidamente (como dizemos hoje: “em três tempos”).
Isso sucede quando, para obras mais altas, exigimos de nós mesmos sacrifícios maiores, arriscamos
nossas vidas para beneficiar o próximo; quando sentimos o impulso de atender doentes contagiosos e
de pôr em risco nossos bens materiais, ou nosso ganha-pão, para resistir a uma falha de caráter, num
abastardamento de nossa integridade moral; quando o Espírito nos impele a tudo sacrificar, quase
sempre o intelecto procura obstar a esses atos de heroísmo e “loucura” e, infelizmente, quase sempre
o intelecto vence o coração ... arrasta-nos ao erro, quando deveríamos arrostar a morte (como o fize-
ram os mártires dos primeiros séculos do cristianismo), contanto que não traíssemos nossa fé.
A lição permanece: se o templo for destruído, o Espírito o refará logo. Mas se o “espírito” for sacrifi-
cado, teremos a desgraça: “não temais os que matam o corpo, mas não podem matar o “espírito”;
temei antes os que podem matar o corpo e o espírito na geena” (Mat .10:28).

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SABEDORIA DO EVANGELHO

OS PRIMEIROS ENTUSIASTAS
João. 2:23-25
23. Estando ele em Jerusalém, na festa da Páscoa, ao verem as demonstrações que dava,
creram em seu nome.
24. Mas o próprio Jesus não confiava neles, porque conhecia a todos.
25. e não precisava que alguém lhe desse testemunho do homem. pois ele mesmo sabia o
que havia no homem.

Esses três versículos de João dão-nos conta da impressão que o ensino de Jesus teve sobre a multidão.
Em vendo as curas inexplicáveis que praticava e ao ouvir as palavras de sabedoria que de sua boca
provinham, muitos do povo acreditaram nele. É a massa imatura, que não tem a capacidade dos discí-
pulos nem a obstinação incrédula das autoridades, e deixa-se levar pelo entusiasmo dos fatos externos.
como o trigal que ondula com a aragem.
A festa da páscoa não se refere ao dia principal (pascha), mas à sua continuação (eorté). Durante esses
dias, Jesus permaneceu em Jerusalém falando de público, às ondas sucessivas dos peregrinos que che-
gavam, e agindo diante deles.
O povo admira-se e acredita. Mas é a fé externa e fraca (como assinala João em 4:48, em 6:2 e em
6:14). Essa fé, baseada em coisas externas, sem o amadurecimento interno é abalada por qualquer
vento, esturricada por qualquer sol (cfr. a parábola do semeador).
Bem o sabe Jesus. Ninguém precisa advertí-lo disso. Ele vê o íntimo, lê os corações, sabe “o que está
no homem”. Não se ilude com os aplausos fáceis, com os elogios corriqueiros, e por isso não confia
neles, nem lhes revela o “segredo do Reino”, que só pode ser desvelado aos maduros, àqueles cuja fé
nasce de dentro para fora. A pregação é feita de acordo com a necessidade e a capacidade dos ouvintes.
Para nós a lição é preciosa. Nada de acreditar em qualquer recém-chegado, por mais entusiasmado
que nos pareça e que se diga. Nada de abrir-lhe nosso coração: “não deis as coisas santas aos cães,
nem lanceis vossas pérolas aos porcos” (Mat. 7:6).
Na interpretação profunda compreendemos bem porque muitos permanecem “às portas do templo”
(profanos) sem nele conseguirem penetrar. Fundamentam sua fé em fatos. São católicos porque teste-
munharam um milagre, ou confessam-se espíritas porque assistiram a um fenômeno de materialização
ou à manifestação extraordinária de um “espírito”, mas não porque o coração os leve a isso. É uma
aceitação intelectual, por não conseguirem explicar certos fatos, mas nada lhes nasce do âmago do
ser. Imaturos ainda, apegam-se a fatos externos. Mas basta uma desilusão, provocada por uma im-
perfeição num sacerdote ou num médium, para abjurarem sua fé e se tornarem descrentes ...
As afirmações evangélicas pedem um exame nosso interno: seremos ainda profanos, ofuscados pela
exterioridade dos fenômenos?
Daí o Espírito que habita em nós, nosso Eu Profundo, que nos conhece, não precisar de nenhum tes-
temunho de nosso intelecto, de nenhuma confissão de nossa personalidade. Ele conhece o que existe
no homem, e por isso aguarda pacientemente de cada personalidade o momento azado. Por que certas
criaturas se sentem chamadas e respondem? Por que outras não se sentem chamadas pela Voz Interi-
or? O Espírito sabe que não adianta chamar as personalidades ainda imaturas, surdas à Sua voz.

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C. TORRES PASTORINO
Daí a desnecessidade do proselitismo. Lancemos a semente: “quem tiver ouvidos de ouvir, ouvirá” .
Ninguém chegará nem antes nem depois da hora que lhe é própria: “O Espírito age onde quer”
(Jo.3:8).

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SABEDORIA DO EVANGELHO

ÍNDICE REMISSIVO
1.º TENTAÇÃO, 122 LUCAS, 7
2.ª TENTAÇÃO, 122 MANIFESTAÇÃO CRÍSTICA, 22
3.ª TENTAÇÃO, 123 MANUSCRITOS, 3
A INSPIRAÇÃO, 7 MARCOS, 6
ABREVIATURAS, 4 MASSACRE DOS INOCENTES, 87
ÁGUA, 136 MATEUS, 6
ANJO, 119 MAU, 119
ANJOS E PASTORES, 60 MERGULHO DE JESUS, 107
ANÚNCIO A MARIA, 37 MINISTÉRIO DO PRECURSOR, 94
ANÚNCIO DO MESSIAS, 103 Mulher, 134
APRESENTAÇÃO, 71 NASCIMENTO DE JESUS, 57
ASTRO, 79 NASCIMENTO DE JOÃO, 47
BODAS DE CANÁ, 133 NOMES E NÚMERO, 79
CÂNONE, 2 O CRISTO, 21
CÂNTICO DE SIMEÃO, 73 O PRÓLOGO DE LUCAS, 16
CÂNTICO DE ZACARIAS, 49 ORGULHO, 120
CIRCUNCISÃO, 70 OS EVANGELISTAS, 6
CÓDICES, 3 OS SINÓPTICOS, 7
COLAÇÃO, 4 OS TEXTOS, 5
Comentários Exegéticos, 119 PASSO, 4
COPISTAS, 4 PEDRA, 136
CURVA INVOLUÇÃO-EVOLUÇÃO, 26 Pomba, 110
CUSTOS LINEARUM, 4 PREDIÇÃO DO NASCIMENTO DE JOÃO, 32
DEMÔNIO, 118 PRIMEIROS DISCÍPULOS, 125
DIABO, 117 PRIMEIROS ENTUSIASTAS, 146
DISCUSSÃO COM AS AUTORIDADES, 144 PRINCIPAIS MANUSCRITOS, 5
EGOÍSMO, 120 QUADRO - QUATERNÁRIO INFERIOR, 20
Epístolas Paulinas, 2 QUADRO - TRÍADE SUPERIOR, 19
Epístolas Universais, 3 REGRESSO DO EGITO, 89
ÉPOCA DA CHEGADA, 79 RESPOSTAS DE JOÃO, 105
ESPÍRITO, 113 RESSURREIÇÃO, 8, 100
ESQUEMA DA MISSÃO DE ESQUEMA, 11 REVELAÇÃO A JOSÉ, 53
ESTADA EM CAFARNAUM, 138 ROLOS, 3
EVANGELHO, 2 SALTO, 5
EVOLUÇÃO ANIMAL-HOMINAL, 85 SANTO, 119
EXPULSÃO DOS EXPLORADORES, 140 SATÃ ou SATANÁS, 117
FARISEU, 99 SIGLAS, 5
FARISEUS, 99 SIMBOLISMO CÓSMICO, 93
FILHO DO HOMEM, 130 TENTAÇÃO DE JESUS, 116
FUGA PARA O EGITO, 83 TENTADOR, 117
GENEALOGIA DE JESUS, 65 TESTAMENTO, 2
HAPAX LEGÓMENA, 4 VAIDADE, 120
HARMONIZAÇÃO, 4 VARIANTE, 5
IMPURO, 119 VIAGEM A JERUSALÉM, 139
INSTRUÇÕES DE JOÃO BATISTA, 99 VINHO, 136
INTERPOLAÇÃO, 4 VISITA A ISABEL, 43
INTERPRETAÇÃO, 8 VISITA AO TEMPLO, 91
INTRODUÇAO, 2 VISITA DOS MAGOS, 77
INTUIÇÃO, 19 VISITA DOS PASTORES, 63
JOÃO, 7 VOLTA À GALILÉIA, 129
LIÇÃO, 4 VULGATA, 6
LÍNGUA ORIGINAL, 6 YHWH, 19, 21, 30, 31, 33, 34, 35, 48, 49, 89, 111, 126,
Livro Profético, 3 127, 130, 139
Livros históricos, 2 ZACARIAS E ISABEL, 30

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CARLOS TORRES PASTORINO
Diplomado em Filosofia e Teologia pelo Colégio Internacional S. A. M. Zacarias, em Roma – Professor
Catedrático no Colégio Militar do Rio de Janeiro e Docente no Colégio Pedro II do R. de Janeiro

SABEDORIA DO
EVANGELHO

2.º Volume

Publicação da revista mensa1

SABEDORIA

RIO DE JANEIRO, 1964


C. TORRES PASTORINO

A CONVERSA COM NICODEMOS


João. 3:1-15
1. Havia um homem dentre os fariseus, chamado Nicodemos, chefe dos judeus.
2. Este veio ter com Jesus, de noite, e disse-lhe: "Rabbi. sabemos que és mestre vindo da parte
de Deus, pois ninguém pode fazer essas demonstrações que fazes se Deus não estiver com ele'.
3. Jesus respondeu-lhe: "Em verdade, em verdade te digo. que se alguém não nascer de novo
(do alto) não pode ver o Reino dos céus".
4. Perguntou-lhe Nicodemos: "Como pode um homem nascer sendo velho? Pode porventura
entrar pela segunda vez no ventre de sua mãe e nascer"?
5. Respondeu Jesus: "Em verdade, em verdade te digo, que se alguém não nascer de água e de
espírito não pode entrar no Reino de Deus;
6. o que nasceu da carne é carne, o que nasceu do espirito é espírito.
7. Não te maravilhes de eu te dizer: é-vos necessário nascer de novo (do alto):
8. o espírito age onde quer, e ouves sua voz, mas não sabes donde vem nem para onde vai: assim
é todo aquele que nasceu do espírito".
9. "Como pode ser isto"? , perguntou-lhe Nicodemos.
10. Respondeu-lhe Jesus: "Tu és o mestre de Israel e não entendes estas coisas?
11. Em verdade, em verdade te digo, que falamos o que sabemos e testificamos o que vimos, e
não recebeis nosso testemunho?
12. Se vos falei de coisas terrenas e não me credes, como crereis se vos falar de coisas celestiais?
13. Ninguém subiu ao céu senão aquele que desceu do céu, a saber, o Filho do Homem
14. Como Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho do Homem seja le-
vantado,
15. para que todo aquele que nele crê, tenha a vida futura".

Um dos episódios mais instrutivos, em qualquer plano que se consiga compreendê-lo: no literal, no
alegórico, no simbólico ou no espiritual. Vamos inicialmente fazer os comentários exegéticos, passan-
do depois aos hermenêuticos.
Passa-se o fato com um fariseu de nome grego, Nicodemos ("vencedor do povo"). Seu nome aparece
mais duas vezes apenas, sempre em João (7-5 e 19:39). Era Doutor da Lei e chefe dos judeus, o que
indica pertencer ao Sinédrio. Procura Jesus à noite, hora mais propícia para uma conversa particular,
acrescendo a circunstância da prudência de não ser visto.
Nicodemos dá a Jesus o título de Rabbi, tratando-o como igual. e explica as razões por que o considera
também Doutor da Lei: as demonstrações de obras e palavras, Jesus fala em nascer "de novo" ou "do
alto". A palavra grega ανουεν pode ter os dois sentidos. João o emprega geralmente no segundo sentido
(em 3:31, em 19:11 e em 19:23). Os ,'Pais" da igreja grega (Orígenes, João Crisóstomo, Cirilo de Ale-
xandria, etc.) e alguns modernos (Calmes, Lagrange, Loisy, Bernard, Joüon, Pirot, Tillmann e o nosso
José de Oiticica) preferem "do alto". Os "Pais" da igreja latina (Agostinho, Jerônimo, Ambrósio, etc.) e
outros modernos (d'Alâs, Durand, Knabenbauer, Plummer, Zahn, etc.) opinam por 'de novo”. Um e
outro sentido cabem perfeitamente no contexto.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Jesus inicia a conversa afirmando que ninguém pode VER ( ιδειν ) no sentido de conhecer, ver com a
Mente, identificar-se, e portanto viver) o Reino dos céus (mais abaixo é usado "Reino de Deus" como
sinônimo perfeito) se não nascer de novo, ou do alto. Nicodemos indaga “como pode nascer pela se-
gunda vez um homem velho se poderá voltar para o ventre materno". Esta pergunta revela que o mes-
tre de Israel entendeu "de novo" sem a menor dúvida.
O Rabbi não retira o que disse: ao contrário, confirma-o, especificando que o nascimento deverá ser
"de água e de espírito" (em grego sem artigo); e dizendo mais: "que o que é carne nasce da carne e o
que é espírito provém do espírito" (em grego com artigo). E repete: e necessário nascer de novo (ou do
alto).
Depois acrescenta: "o espírito age onde quer". As traduções vulgares trazem “o vento sopra onde
quer". Ora, a palavra πνευµα (pneuma) é repetida no original cinco vezes nos quatro versículos (5, 6, 7
e 8). Por que traduzir quatro vezes por "espírito" e uma vez por “vento”? Estranho ... Mas há razões
para isso. Veremos.

Jesus muda de tom, torna-se mais solene, eleva os conceitos e penetra assuntos mais profundos. Admi-
ra-se que Nicodemos não o entenda. Salienta que entre os dois há uma diferença: Nicodemos é "o
doutor de Israel", enquanto ele, Jesus, não havia feito os cursos oficiais (daí aparecer em grego o artigo
diante da palavra "doutor"). Salienta, então, que até aqui falou de coisas terrenas, e não foi entendido.
Que sucederá se falar das celestiais (espirituais) ?
Depois cita a serpente de bronze, que foi elevada por Moisés (Núm.21:4-9), dizendo que o mesmo
deverá acontecer ao Filho do Homem. No livro da Sabedoria de Salomão (16:6-7) essa serpente é cita-
da como "símbolo de salvação".
Passemos, agora, à hermenêutica.

1.ª Interpretação: LITERAL


É a adotada pela igreja Católico-Romana. Jesus diz a Nicodemos que a criatura só pode obter o Reino
de Deus (salvar-se) se renascer pela água (que é mesmo a água física do batismo) e pelo espírito (que é
a infusão do Espírito Santo). Daí ser traduzido o versículo 8 por "o vento sopra onde quer", como um
simples exemplo da liberdade do Espírito. O batismo é um rito de iniciação que se tornou um "sacra-
mento". A palavra latina sacramentum é a tradução do grego µυστεριον , e corresponde aos mistérios
gregos que se aplicavam aos catecúmenos (profanos que haviam recebido a instrução oral e estavam
prontos para ser "iniciados" nos mistérios). Nesse sentido era usada a palavra sacramento. No século
4.º, Ambrósio introduziu no latim a palavra grega mysterium, com o sentido de "coisa oculta", segredo
não revelável a estranhos. O sacramento do batismo é a junção da água e das palavras que dão o Espí-
rito, e se define: "sinal sensível que exprime e produz a graça santificante, permanentemente instituído
por Jesus Cristo" (Tanquerey, Theologia Dogmatica, vol. III, n. 248). E Agostinho (Tratado 80, in Jo-
hanne n.3) confirma: “No batismo há palavra e água.. Tira a palavra, que fica? água pura. Se a palavra
é unida ao elemento, temos o sacramento. Que força teria a água de lavar o coração, se não fossem as
palavras"? (Patrol. Lat., vol. 35, col. 1810).
Essa é a única interpretação lícita, segundo o Concílio de Trento (sessão 7, cânon 2):

"Si quis dixerit aquam veram et naturalem non "Se alguém disser que não há necessidade de água
esse de necessitate baptismi, atque ideo verba illa verdadeira e natural para o batismo, e igualmente
Domini nostri Jesu Christi: “nisi quis renatus fue- que devem ser interpretadas como metáfora as
rit ex aqua et Spiritu Sancto" ad metaphoram ali- palavras de nosso Senhor Jesus Cristo: "se alguém
quam detorserit, anathema sit". não renascer da água e do Espírito Santo", seja
anátema".

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C. TORRES PASTORINO
Há, pois, uma interpretação fixada como dogma.

2.ª Interpretação: ALEGÓRICA


Foi justamente a condenada pelo Concílio de Trento, cujo artigo se dirigia contra Calvino e Grotius.
Essa interpretação ainda é seguida pela maioria dos evangélicos (protestantes).
A explicação da "água" corresponde ao rito do batismo. Mas o "espírito" tem novo significado: é o
renascimento moral, a vida nova ou o novo teor de vida no caminho de Cristo. O sentido do renasci-
mento espiritual, com a morte do "homem velho" e o nascimento do "homem novo" é muitas vezes
ensinado nas Escrituras, desde o Antigo Testamento: "Lançai de vós todas as vossas transgressões,
com que errastes, e fazei-vos um coração novo e um espírito novo" (Ez.18:31); "Também vos darei um
coração novo e dentro de vós porei um espírito novo" (Ez.36:26); "Se alguém está em Cristo, é uma
nova criação: passou o que era velho, eis que se fez novo" (2 Cor.5:17); "Não mintais uns aos outros,
tendo-vos despido do homem velho com seus feitos e tendo-vos revestido do homem novo" (Col.3:9);
e ainda 2 Cor.2:11-13 ou Ef. 4:20-24 e Rom.6:3-11.
A tradução adotada no versículo 8 é também "vento", defendendo-se a tradução com a frase do Eclesi-
astes (11:5): "Tu não sabes o caminho do vento". Entretanto, aí a palavra usada não é πνευµα , mas
ανεµος . Quanto ao verbo pnei, se é usado com sentido de "soprar" com referência ao vento, também
pode significar "agir, exteriorizar-se, manifestar-se" em relação ao espírito. O latim traduz πνευµα por
"spiritus" e πνει por spirare, dentro do sentido grego. Mas também em português usamos o mesmo
radical, quer se trate do espírito (inspiração) quer se trate do vento (respiração), que se divide em inspi-
ração e expiração; e quando o espírito se retira, dizemos que a pessoa "expirou".

3.ª Interpretação: FISIO-REALISTA


Aceita pelos espiritistas, como ensino da realidade fisiológica do que ocorre com as criaturas. A tradu-
ção de " ανουεν " é "de novo", tal como a entendeu Nicodemos, que pergunta como pode "o homem,
depois de velho, entrar pela segunda vez ( δευτερον ) no ventre materno".
A essa indagação, longe de protestar que não era isso o que queria dizer, Jesus insiste e confirma suas
palavras: "é o que te disse: indispensável se torna que o homem nasça de água (isto é, materialmente,
com o corpo denso, dado que o nascimento físico é feito através da bolsa d 'água do liquido amniótico)
e de espírito (ou sej a, que adquira nova personalidade no mundo terreno, em cada nova existência, a
fim de progredir). Se Nicodemos entendeu à letra as palavras ãe Jesus, o Mestre as confirma à letra e
reforça seu ensino. Com efeito, o espírito, ao reentrar na vida física, pode ser considerado novo espírito
que reinicia suas experiências esquecido de todo o passado.
Em grego não há artigo diante das palavras "água" e "espírito". Não é portanto nascer da água do ba-
tismo, nem do espírito, mas de água (por meio da água) e de espírito (pela reencarnação do espírito).
Daí a explicação que se segue: "o que nasce da carne (com artigo em grego) é carne”, isto é, é o corpo
físico, com toda a hereditariedade física herdada do corpo dos pais; e o que nasce do espírito é espíri-
to" ou seja, o espírito que reencarna provém do espírito da última encarnação, com toda a hereditarie-
dade pessoal que traz do passado". E Jesus prossegue: "por isso não te admires de eu te dizer: é-vos
necessário nascer de novo". Observe-se a diferença de tratamento: "dizer-TE" no singular, e "é-VOS"
no plural, porque o renascimento é para todos, não apenas para Nicodemos. E mais: "o espírito sopra
(isto é, age, reencarna, se manifesta) onde quer, e não sabes donde veio (ou seja, sua última encarna-
ção), nem para onde vai (qual será a próxima).
As palavras de Jesus foram de molde a embaraçar Nicodemos, que indaga: "como pode ser isso"? E
Jesus: "Tu que (entre nós dois) és o Mestre de Israel, te perturbas com estas coisas terrenas? Que te não
acontecerá, então, se te falar das coisas celestiais (espirituais)"?

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Logicamente Jesus não podia esperar que Nicodemos entendesse as outras interpretações mais profun-
das desse ensinamento (como dificilmente poderia ter querido ensinar o rito do batismo, que não havia
ainda sido instituído nem ordenado por ele, a essa época, quando só havia o "batismo" de João).
Depois exemplifica: "como Moisés ergueu a serpente no deserto, assim o Filho do Homem será ergui-
do da Terra ".
Paulo interpreta assim esse ensinamento de Jesus: "Mas quando apareceu a bondade de Deus, nosso
Salvador, e o seu amor para com os homens, não por obras de justiça que tivéssemos feito, mas segun-
do sua misericórdia nos salvou pelo lavatório da reencarnação, e pelo renascimento de um espírito
santo" (Tit.3:4-5). As palavras utilizadas são bastante claras e insofismáveis: lavatório (lavar com
água; λουτρον da reencarnação: παλιγγενεσια que é o termo técnico da reencarnação entre os gregos;
pelo renascimento (anaxinóseos) isto é, um novo nascimento). Paulo, pois, diz que Deus nos salvou
não porque o tivéssemos merecido, mas por Sua misericórdia, servindo-se da palingenésia (isto é, da
reencarnação) a qual é um "lavatório" (de água) e um "renascimento" do espírito.
Que o renascimento é feito através da água, já o diz o Genesis (cfr.1:1-2; 1:6-7 e 2:4-7).

4.ª Interpretação: SIMBÓLICA


Para compreendê-la, estudemos algumas palavras:
NICODEMOS - significa "vencedor" do povo” e exprime alguém que já venceu a inércia da massa
popular por seus conhecimentos das Escrituras, já se destacou do "vulgo profano” superando sua
natureza inferior.
DE NOITE - talvez signifique que Nicodemos procurou o Mestre em corpo astral (ou mental) durante
o sono físico. Nessa condição ser-Ihe-ia possível manter conversações mais íntimas. E João poderia
ter assistido a ela, pois algumas cenas dos Evangelhos foram assistidas nessa condição (por exemplo,
a "transfiguração": “Pedro e seus companheiros (Tiago e João) estavam oprimidos de sono, mas con-
servavam-se acordados", Luc.9:32).
Nesta interpretação, descobrimos um sentido diferente do diálogo literal entre os dois, o Rabbi e o
Doutor da Lei, o Mestre Espiritual e o Mestre Intelectual. Antes de qualquer pergunta, Jesus dá a fra-
se chave do novo ensinamento que vai ministrar: "é necessário nascer de novo para ver o Reino dos
céus" - Nicodemos entende que Jesus lhe fala da reencarnação, fato já conhecido por ele, pois, sendo
fariseu, aceitava normalmente a reencarnação, e não podia de modo algum estranhar o fato nem ig-
norar sua realidade.
Para confirmar esta assertiva, leia-se apenas esse trecho de Flávio Josefo: "Ensinam os fariseus que
as almas são imortais e que as almas dos justos passam, depois desta vida, a OUTROS CORPOS" ...
(Bell.Jud.2, 5, 11).
Como, pois, Nicodemos podia ignorar esta doutrina, a ponto de admirar-se tanto e fazer uma objeção
pueril? Compreendamos sua frase, quando pergunta a Jesus: "Como poderá (bastar) um homem re-
nascer depois de velho? Acaso poderá (bastar) que ele entre pela segunda vez no ventre materno,
para (só com isso) ver o reino dos céus"?
Jesus então reafirma sua tese, mas ampliando-a, elevando-a de nível tornando-a universal: Não é do
nascimento físico na matéria que ele fala. Não é do microcosmo: é do macrocosmo, de que falara em
Mateus (19:28): "Em verdade vos digo que vós, que me seguistes, quando na reencarnação (palinge-
nesia) o Filho do Homem se assentar no trono de sua glória, sentar-vos-eis também em doze tronos,
para julgardes as doze tribos de Israel". Trata-se, aqui, da reencarnação ou renascimento do planeta.
Explica então: o que nasce da carne é carne, é matéria corruptível, mas a que nasce do "espírito" é o
Espírito eterno, que não necessitará mais da carne para progredir. Só nasce na carne o que está su-
jeito às leis do Carma (individual, grupal, coletivo ou planetário): esse ainda é carne, ainda terá que
nascer da água, porque está preso à baixa densidade. Mas o que nasce do espírito se liberta, ascende
a outros planos. O ensinamento foi desenvolvido por Paulo na Epístola 1 aos Coríntios, capítulo 15,

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versículos 35 a 54, quando compara o homem terreno (psíquico) simbolizado em Adão, coma alma
vivente (que vive), ao passo que o segundo Adão (Cristo) e portanto o Espírito, o Filho do Homem, é o
espírito vivificante (que dá vida). Passou, então, do estado humano ao espiritual, deixou de ser "nas-
cido de carne" para tornar-se "nascido de espírito"; e Paulo prossegue: "o primeiro é da Terra (nas-
cido de carne) o segundo é do céu (nascido do espírito)". E isto porque, prossegue ele, "a carne e o
sangue não podem herdar o Reino dos Céus". Jesus falara das "coisas terrenas" e Nicodemos não o
percebia bem. Como adiantar-se mais? Como explicar-lhe que o Espírito prossegue na evolução, até
chegar a ser “o resultado” do Homem, "o produto" da Humanidade, ou Filho do Homem (como já era
o caso de Jesus)? Ele fala do que "viu", porque estava no céu (no reino espiritual) e de lá "desceu”.
Os "apocalipses" ou "revelações" dos judeus narram histórias de santos varões que haviam subido a
mundos "mentais" conscientemente: esses homens eram denominados “serpentes”. Nesse sentido é
que Moisés "elevou a serpente" no deserto. De fato, a serpente simboliza a inteligência racional ou o
intelecto (veja episódio de Adão, quando conquistou o intelecto por meio da serpente), mas quando a
serpente é "elevada" verticalmente, significa a Mente Espiritual. Sua elevação se dá na "cruz da maté-
ria" (horizontal sobre vertical), e só depois de elevada na cruz, pode essa serpente conquistar o Reino
dos Céus. Todos os que acreditaram nele (que cumprirem seus ensinos) conseguirão a "vida futura",
isto é, a vida Espiritual Superior.
Então, para "vermos" ou vivermos o Reino dos Céus, o Reino Divino, temos que "nascer de novo"
como Filhos de Deus ("Tu és meu Filho, eu HOJE te gerei", Salmo 2:7).

5.ª Interpretação: MÍSTICA


Jesus, a individualidade, ensina ao homem "que venceu o povo" comum, isto é, à personalidade já
evoluída acima do normal, que para conseguir o Encontro Místico é mister "nascer do alto", no Espí-
rito. A personalidade é pura carne, é matéria, mas a individualidade é celeste, é espiritual.
Se renunciarmos ao nosso pequeno "eu", renasceremos "do alto" " viveremos no Reino Divino, não
mais no Reino Humano: seremos Filhos do Homem e, além disso, Filhos de Deus.
Nesse ponto, estaremos (embora crucificados na carne) unidos à Divindade, num Esponsalício místi-
co, perdidos em Deus, "como a gota no Oceano" (Bahá'u'lláh): seremos UM com o Todo, porque "eu
e o Pai somos um" (Jo. 10:30).
Para consegui-lo, é preciso ter sido "suspenso" na cruz, como a serpente de Moisés: é indispensável
passar por todas as crucificações da Terra, por todas as iniciações duras e difíceis, dando testemunho
da Fé em Cristo, ao VIVER seus ensinamentos.

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COMENTÁRIO DO EVANGELISTA
João,3:16-21
16. Deus teve, pois, tanta predileção pelo mundo, que deu seu Filho, o Unigênito, para
que todo o que nele crê, ao invés de perder-se, tenha a vida imanente.
17. Pois Deus não enviou seu Filho ao mundo para julgar o mundo, mas para que o mun-
do seja preservado por meio dele.
18. Quem nele crê não é julgado; o que não crê, já está julgado, porque não crê no nome
do unigênito Filho de Deus.
19. O julgamento é este: que a luz veio ao mundo, e os homens amaram mais as trevas do
que a luz, pois eram más suas obras,
20. porque todo o que faz coisas inferiores aborrece a luz, e não vem para a luz, para que
suas obras não sejam inculpadas;
21. mas aquele que faz a verdade, chega-se para a luz, para que sejam manifestadas suas
obras, porque foram feitas em Deus.

Neste ponto, o evangelista toma a palavra para comentar os ensinos de Jesus a Nicodemos .Os verbos
são empregados agora no passado, e suas primeiras palavras ουτως γαρ são as que geralmente iniciam
seus comentários pessoais (cfr.2:25; 4:8; 5:13, 20; 6:6, 33; 13:11).
Convida-nos João a buscar a razão íntima dos ensinamentos: o amor de Deus, que é universal, e não
apenas restrito aos elementos de uma determinada religião: Deus ama O MUNDO τον κοσµον .
Interessante observar o verbo utilizado no início do versículo. Em grego há três verbos que exprimem
"amar" : φιλειν , que é "amar de amizade, querer bem"; εραν , que significa "amar de amor, apaixonar-
se"; e αγαπειν que quer dizer "amar com preferência, ter predileção por". Neste trecho, é empregado
esse último: "ter predileção ou carinho especial pelo mundo".
Tanto assim, que (oração consecutiva) deu seu Filho, aquele Filho Unigênito que é a própria manifes-
tação divina nos universos ilimitados, o Cristo C6smco, para que "todo aquele que nele crê", e que
viva a sua vida, não se perca. mas obtenha uma vida divina IMANENTE na perfeita união.

VIDA "ETERNA" = VIDA IMANENTE

A tradução corrente das palavras gregas ξωη αιωνιος é "VIDA ETERNA".


No entanto, essa interpretação não nos parece correta. Senão vejamos.

1.º - Se esse fora o sentido: "quem crer nele terá a vida eterna, isto significaria que, quem não cresse
não teria a vida eterna, e portanto deveria ter seu "espírito" destruído, aniquilado (morte do espírito).
Mesmo se admitíssemos o "castigo eterno" (absurdo inconcebível), mesmo assim o espírito teria a
vida eterna, embora não crendo em Jesus. Então, que "promessa" seria essa, que vantagem traria o fato
de crer em Cristo?

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2.º - Poderia admitir-se que Jesus aceitava, com isso, a doutrina dos fariseus, tão bem esplanada por
Josefo (Ant.Jud. 18, 1, 3): "Os fariseus acreditam que possuem um vigor imortal e os virtuosos terão o
poder de ressuscitar e viver de novo"; e mais (Bell.Jud.2, 5, 11): "Ensinam os fariseus que as almas são
imortais; que as almas dos justos passam, depois desta vida, para outros corpos, e as dos maus sofrem
tormentos eternamente". Quando fala do suicídio, repete essa mesma teoria (Bell.Jud.2, 5, 14): "Os
corpos de todos os homens são, sem dúvida, mortais e feitos de matéria corruptível; mas a alma é sem-
pre imortal e é uma partícula de Deus, que habita em nossos corpos ... Recordam (os fariseus) que to-
dos os espíritos puros, quando partem desta vida, obtêm um lugar mais santo no céu, donde, no trans-
curso dos tempos, são novamente enviados em corpos puros; ao passo que as almas dos que comete-
ram sua auto-destruição, são condenadas à região tenebrosa do hades".
Realmente, em linhas gerais, os livros do Novo Testamento confirmam e reproduzem as crenças dos
fariseus. Mas não é só isso que está na promessa, pois isso seria obtido mesmo sem crer em Jesus, por
qualquer fariseu sincero.

A solenidade da repetição dessa promessa, feita 45 vezes em o Novo Testamento, sobretudo por João
(25 vezes) , por Paulo (9 vezes), por Lucas Ev. e At. (5 vezes), por Mateus (3 vezes), por Marcos (2
vezes) e por Judas (1 vez), parece exprimir algo mais profundo e de grande importância.

Tentemos compreender, pesquisando o sentido do adjetivo empregado, assim como do substantivo do


qual se originou.
O substantivo que exprime ETERNO, em grego, é άίδιος assim definido por Platão (Definições, 411a):
τό иατά πάντα Χρόνον иαί πρότερον όν иαί νύν µή έφθαρµένον ,ou seja, “o que é anterior, e através de
todo o tempo e agora, não podendo ser destruído".
Em outras palavras: "o que não tem princípio nem fim".
O advérbio άεί (sempre) também é colocado com a idéia de eternidade: ό άεί Χρόνος = o tempo eterno
(Platão, Fedon, 103e).
Outro substantivo αίών - que é correntemente traduzido como "eterno" - aparece assim definido por
Aristóteles: το τέλος τό πε ριέиον τόν τής έиάστου ζωής Χρόνον ... αίών έиάστου иέиλεται (Arist., Do
Céu, 1,9,15), isto é: “o período que abarca o tempo da vida de cada um, chama-se o "aiôn" dele (a
permanência na Terra).
Realmente, "aiôn" tem seu paralelo em latim aiuom (aevum) , que deu, em português, a palavra "evo".
Desse substantivo originou-se o adjetivo αίώνιος , ος , ογ a que o "Greek-English Lexicon" (Oxford)
dá os seguintes sentidos (jamais aparecendo "eterno", que realmente não tinha):

"I - uma vida, a vida de alguém (sentido mais comum nos poetas) cfr.Homero, Odisséia, 5:160; Ilíada, 5:685 e 24:725;
Herodoto, 1, 32; Ésquilo, Prometeu, 862; Eumênides, 315; Sófocles, Ajax, 645.
2. uma época, uma geração, cfr. Ésquilo, Tebas, 744: Demócrito, 295, 2 ; Platão, Axíolos, 370 c.
3. uma parte da vida, cfr. Eurípedes, Andrômaca, 1215.
II - 1. longo espaço de tempo, uma idade (lat. aevum) cfr. Menandro, Incert 7; usado especialmente com preposições
"pelas idades, pelas gerações" ; cfr. Hesiodo, Teogonia, 609; Ésquilo, Suplicantes, 582 e 574; Agamemnon, 554; Platão,
Timeu 37 d; Aristóteles, do Céu, 1.19.14; Licurgo, 155, 42; Filon, 2.608.
2. um espaço de tempo claramente definido e destacado, uma era, uma idade. período, o "mundo presente" em oposição ao
"mundo futuro"; cfr. Mateus, 13:22; Luc. 16:8. Nesse sentido também usado no plural cfr. Romanos, 1:25: Filipenses, 4:20;
Efésios, 3:9; 1 Coríntios 2:7 e 10:11. etc.".

Ora, "eterno" é filosoficamente, outra coisa; é o QUE ESTA FORA do tempo, como diz Aristóteles
(Física, 4.12, 221 b) : ώστε φανερόν ότι τά άεί όντα,ή άεί όντα, ούи έστιν έν Χρόνω:ού γάρ περιέΧεται

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ύπό Χρόνον, ούδε µετρείται τό εί-ναι αύτών ύπό τού Χρόνου: σηµείον δέ τούτου ότι ούδε πάσΧει
ούδεν ύπό τού Χρόνου ώς ούи όντα ένΧρόνω - que significa: "Vê-se, portanto, que os seres eternos,
enquanto seres eternos, não estão no tempo, porque o tempo não os envolve, nem mede a existência
deles; a prova é que o tempo não tem efeito sobre eles, porque eles não estão no tempo".
Quando se fala de "eterno" em grego, são as palavras que aparecem.
Mas há um trecho importante de Platão (Timeu, 37 e 38) em que sentimos bem a diferença entre αιδιος
e αιωνιος . Vamos citá-lo na íntegra e no original, para bem compreender-se o sentido, e para quc os
conhecedores controlem a veracidade do que afirmamos.

Ώς δέ иινηθέν αύτό иαί ζών ένόησεν τών άϊδίων θεών γεγο-νός άγαλµα ό γεννήσας πατήρ, ήγάσθη τε
иαί εύφρανθείς έτι δή µάλλον όµοιον πρός τό παράδειγµα έπενόησεν άπεργάσασθαι. Κα-θάπερ ούν
αύτό τυγχάνει ζώον άίδιον όν,иαί τόδε τό πάν ούτως είς δύναµιν έπεχείρξσε τοίούτον άποτελεϊν. Н µέν
ούν τού ζώ-ου φύσις έτύγχανεν ουσα αίώνιος, иαί τούτο µέν δή τώ γεννετώ παντελώς προσαπτειν ούи
ή δυνατονúείиώ δ’έπενόει иίνητόν τί να αίώνος ποιήσαι, иαί διαиοσµών άµα ούρανόν ποιεί µένοντος
αίώνος έν ένί иατ’διαиοσµών άµα ούρανόν ποιεί µένοντος αίώνος έν ένί иατ’άριθµόν ίούσαν αίώνιον
είиόνα, τούτον όν δή χρονον ώνοµάиαµεν. Нµέρας γάρ иαρ иαί νύиτας иαί µήνας иαί ένιαυτούς, ούи
όντας πρίν ουρανον γενέσθαι, τόδε άµα έиείνω συνισταµένω τήν γένεσιν αύτών µηχανάται-ταΰτα δέ
πάντα µέ-ρη χρόνου, иαί τό τ’ήν τό τ’έσται χρόνου γεγονότα είδη, & δή φέροντες λανθάνοµεν έπί τήν
άίδιον αύσίαν ούи όρθώς. Λέγοµεν γάρ δή ώς ήν έστιν τε иαί έσται , τή δέ τό έστιν µόνον иατά τόν
άγηθή λόγον προσήиει , τό δέ ήύ τό τ’έσται περί τήν έν χρόνω γένεσιν ίοϋσαν πρέπει λέγεσθαι-
иινήσεις γάρ έστον, τό δέ άέί иατά ταύτα έχον άиινήτως ούτε πρεσβύτερον ούτε νεώτε-ρον προσήиει
γίγνεσθαι διά χρόνου ούδε γενέσθαι ποτέ ούδέ γε γονέναι νϋν ούδ’ είς αύθις έσεσθαι , τό παράπαν τε
ούδέν όσα γε-νεσις τοϊς έν αίσθήσει φεροµένοις προσήψενάλλά χρόνου ταϋτα αίώνα µιµουµένου иαί
иατ’άριθµόν иυиλουµένου γέγονεν είδη-иαί πρός τούτοις έτι τά τοιάδε , τό τε γεγονός είναι γεγονός
иαί τό γιγνόµενον είναι γιγνόµενον , έτι τε τό γενεσοµενον εί-ναι γενεσοµενον иαί τό µή όν µή όν
είναι , ών ούδέν άиριβές λέγοµεν ... χρόνος δ’ ούν µετ’ ούρανοϋ γέγονεν , άµα ίνα γεννη-θέντες άµα
иαί λυθώσιν , άν ποτε λύσις τις αύτών γίγνηται , иαί иατά τό παράδειγµα τής διαιωνίας φύσεως , ίν’
ώς όµοιότατος , αύ τώ иατά δύναµιν ή τό µέν γάρ δή παράδειγµα πάντα αίώνά έσ-τιν όν , ό δ’ αύ διά
τέλους τόν άπαντα χρονον γεγονώς τε иαί ών иαί έσοµενος.

Eis a tradução literal, em que traduzimos αιωνιος por "permanente", para compreendermos bem as
diferenças. Platão explica, pela boca de Timeu, qual a diferença entre eternidade e tempo, e fala na
criação do tempo juntamente com o "céu", isto é, com a abóbada celeste. Esclarece que a eternidade é
estável, imóvel, permanente em realidade, ao passo que o tempo imita essa permanência. com uma
"permanência " relativa. Eis o texto:

“Quando então o Pai Genitor percebeu que este (mundo), que foi a jóia dos deuses eternos, se movia e
vivia, ficou admirado e, alegrando-se, concebeu elaborá-lo ainda mais semelhante ao modelo. E como
ele é um Vivente Eterno, e este é O TODO, empreendeu aperfeiçoá-lo dentro do possível. Sendo po-
rém permanente a natureza do Vivente, não seria possível em vista disso igualar totalmente a ela o que
teve princípio. Doutro lado, tinha feito uma imagem móvel do permanente e, organizando juntamente o
céu, faz uma imagem permanente ritmada segundo o número, de acordo com a permanência imutável
do UM, e isto é o que chamamos tempo.
Com efeito, não existindo os dias, as noites, os meses e os anos antes de ter sido produzido o céu, ele
os produziu então juntamente com a constituição do mesmo. Todas essas coisas, porém, são parte do
tempo, e o passado e o futuro são aspectos do tempo que evolui, e não percebemos que (falamos) im-
propriamente quando os aplicamos à essência eterna. Com efeito, dizemos que (ela) "era", "é" e "será";
mas uma única palavra verdadeiramente lhe convém: "é"; "era" e "será" só devem ser ditos a respeito
da evolução que se processa no tempo, porque são movimentos; o eterno, porém, sendo imutável, não

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cabe (ser) mais velho, nem mais moço, nem evoluir através do tempo, nem ter aparecido outrora, nem
ter acabado de aparecer agora, nem retroceder, nem (ter) qualquer qualidade que a evolução atribuiu às
coisas que são percebidas, porque estes são aspectos pertencentes ao tempo, que imita a permanência e
que gira segundo o número.
Além disso, estas outras expressões “o evoluído é (como se fora) mesmo evoluído", "o que evoluirá,
evoluirá mesmo”, “o não-ser é mesmo não-ser”, são expressões inexatas ... Então, o tempo evolui com
o céu, para que, tendo nascido juntos, juntos também sejam dissolvidos – caso um dia se dê a dissolu-
ção dos mesmos - e (o tempo foi feito) segundo o modelo da natureza permanente, para que seja o
mais semelhante possível a ela. Com efeito, o modelo é todo permanente, mas este (o tempo) é para
sempre um tempo inteiro de passado, presente e futuro".

Agora vejamos o emprego dessas palavras em o Novo Testamento.

I - O substantivo αιδιος só aparece duas vezes:

1) na Epístola de Paulo aos Romanos (1:20) "o Poder e a Divindade dele são eternos".
2) na Epístola de Judas (6-7), numa frase que é iniciada dizendo que Jesus salvou do Egito os israeli-
tas (logo, sentido simbólico), e prossegue: "prendeu os anjos nos cárceres eternos sob a treva; So-
doma e Gomorra suportando a justiça do fogo permanente".

II - O substantivo αιων aparece 120 vezes, empregado com os sentidos:

a) os séculos, isto é, uma época, um lapso de tempo (92 vezes);


Mat. 6:13; 21:19; Marc. 3:29; 11:14; Lc.1:33. 55, 70; Jo. 4:14; 8:35 (2x), 51; 52; 10:28; 11:26; 12:34;
13:8; 14:6; At. 3:21; 15:18; Rom. 1:25; ,9:5; 11:36; 16:27; 1 Cor. 2:7; 8:13; 10:11; 2 Cor. 9:9; 11:31;
Gál. 1:5; Ef. 2:7; 3:9, 11:21 (2x); Fil. 4:20 (2x); Col. 1:26; 1 Tim. 1:17 (3x); 2 Tim. 4:18 (2x); Heb.
1:2, 8 (2x); 5:6; 6:20; 7:17, 21, 24, 28; 11:13; 13:8, 21 (2x); 1 Pe. 1:25; 4:11 (2x); 5:11 (2x); 1 Jo.
2:17; 2 Jo. 2; Jud. 13, 25 (2x); Apoc. 1:6 (2x), 18 (2x); 4:9 (2x); 10 (2x); 5:13 (2x); 7:12 (2x); 10:6
(2x); 11:15 (2x); 14:11 (2x); 15:3, 7 (2x); 19:3 (2x); 20:10 (2x); 22:5 (2x).

b) o século, com o significado de “o mundo material” (em oposição ao mundo espiritual), ou com o
sentido de “uma geração” – 28 vezes:
Mat. 12:32; 13:22,39,40.49; 24:3; 21:20; Marc. 4:19; 10:30; Lc. 16:8; 18:30; 20:34,35; Rom. 12:2; 1
Cor. 1:20; 2:6 (2x), 8; 3:18; 2 Cor. 4:4; Ef. 1:21; 2:2; 1 Tim. 6:17; 2 Tim.- 4:20; Tit. 2:12; Heb. 6:5;
9:26; 1 Pe. 3:18.

III - o adjetivo αιωνιος é empregado, ao lado de vários substantivos, qualificando-os, em 72 lugares:

Uma única vez aparece com o sentido que pode ser interpretado como "eterno", usado por Paulo, em
Romanos (16:26) ao lado do substantivo "Deus" : Κατ’επιταγεν του αιωνιου θεου (segundo o preceito
do Deus sempiterno), em oposição ao que escreve na 2.ª Coríntios (4:4) : o θεος του αιωνιος τουτου "o
deus deste século", isto é, deste mundo.

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Eis os sentidos :

a) futuro, ou seja, no século ou na época vindoura, na vida seguinte, 19 vezes:


Mat. 18:8; 25:41; 25:46; Marc. 3:29; Luc. 16:9; Rom. 16:25; 2 Th.1:9; 2:16; 2 Tim. 2:10; Heb. 5:9;
6:2; 9:12, 14, 15; 13:20; 1 Pe. 5:10; 2 Pe.1:11; Jud. 7; Ap. 14:16.

b) permanente ou perene, no sentido de durar muito tempo, quase um século, 5 vezes:


2 Cor. 4:17, 18; 5:1; 1 Tim. 6:16; Film. 15.

c) os tempos atuais, ou seja, este século, 2 vezes:


2 Tim. 1:9; Tit. 1:2.

d) com o substantivo VIDA (cujo sentido estudaremos agora), 45 vezes:


Mat. 19:16,29; 25:46; Marc. 10:17,30; Lc. 10:25; 18:18.30; At. 13:46 48; Jo. 3:15, 16, 36; 4:14,36;
5:24,39; 6:27, 40,47, 51, 54. 58, 68; 10:28; 12:25, 50; 17:2, 3; Rom. 2:7; 5:21; 6:22, 23; Gál. 6:8; 1
Tim. 1:16; 6:12; Tit. 1:2; 3:7; 1 Jo. 1:2; 2:25; 3:15; 5:11, 13, 20; Jud. 21.

O sentido de ζωή αίώνιος é dado pelo próprio Jesus, no evangelho de João, que é o que emprega mais
vezes a expressão (25 vezes, contra 20 em todos os demais livros do novo Testamento). Lemos aí:
αύτη δέ έστιν ή αίώνιος ζωή , ϊνα γινώσиωσιν σέ , τόν µόνον άληθινόν θεόν , иαί όν άπέστειλας
‘Ιησοϋν χριστόν ou seja, "a vida IMANENTE é esta: 1) que conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e
2) a quem enviaste, Jesus Cristo".
Por aí verificamos que a ζωήûαίώνιος NÃO É uma vida QUE DURA ETERNAMENTE (todas as vi-
das têm essa qualidade); não se refere à DURAÇÃO da vida, mas a uma QUALIDADE ESPECIFICA,
que reside no CONHECIMENTO DA VERDADE TEOLÓGICA. E, ao conhecer essa verdade, haverá
então a unificação total com o Cristo (cfr. Jo. 17:11,21,22), que dá a IMANÊNCIA perfeita, que re-
sultará na liberdade (cfr. Jo. 8:32) dos filhos de Deus (cfr. Rom. 8:21), que existe onde está o Espírito
do Cristo (cfr. 1 Cor. 10:29).
Paulo também explica qual a origem dessa VIDA IMANENTE, quando esclarece aos Romanos (6:23):
τά γάρ όψώνα τής άµαρ-τίας θάνατος , τό δέ χαρισµα τοϋ θεοϋ ζωή αίώνιος , έν χριστώ ‘Ιησοϋ τώ
иυρίω ήµών isto é, "o salário do erro é a morte, a recompensa de Deus é a VIDA PERMANENTE em
Cristo Jesus, o Senhor nosso".
Depois de tudo isso, podemos perceber a profundidade do sentido de "zoé aiónios".
É a VIDA PERMANENTE ou IMANENTE EM CRISTO. Em outros termos, é a união total do "eu"
pequeno com o EU profundo, do "espírito" personalístico, com o Espírito ou Individualidade. A crença
em Cristo, baseada no CONHECIMENTO e na CONVICÇÃO (fé), produzirá seus efeitos com a "ne-
gação da personalidade" (cfr.Mat.16:24), que fica absorvida pela individualidade, pelo Cristo, que
passa a "viver em nós" (cfr.Gál.2:20 e 2 Cor.13:5). É o MERGULHO na Divindade, na qual nos dis-
solvemos, e isso se realiza através do Cristo.
Pelo oposição dos termos, salienta-se o significado: o erro nos trouxe a condição de encarnados, su-
jeitos à morte, e por isso o "salário do erro é o a morte". Mas a recompensa de Deus é o tirar-nos,
quando nós o quisermos (por nosso esforço) , desse cativeiro, dando-nos a VIDA IMANENTE de uni-
ficação com o Cristo, não mais sujeita a reencarnações e à morte.

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Concluindo, pois, temos que "zoé aiónios":
a) não pode ser vida "eterna" (como duração), de que todos participam;
b) não pode ser vida "futura" (como reencarnação) porque todos os espíritos a vivem;
c) não pode ser a vida "espiritual" (do "espírito") porque todos a têm, na alegria ou na dor .
Então, resta que é uma vida diferente dessas todas.
Por isso, compreendemos que só pode ser a vida NO REINO DE DEUS ou no REINO DOS CÉUS,
que é a VIDA IMANENTE em Cristo.
Portanto, o melhor adjetivo para traduzir "aiónios", quando ao lado do substantivo VIDA, é IMANEN-
TE, embora essa tradução não se encontre nos dicionários de grego.
No entanto, o sentido cabe perfeitamente. O latim manere significa "ficar". Com o preverbo PER, dá
idéia de tempo ou duração; com o preverbo IN, exprime penetração, interiorização, união interna e
íntima, "dentro de". Os dois são, pois, um mesmo verbo: MANERE, formando dois compostos: PER-
manere e INmanere; e os sentidos também correspondem: a PERmanência é "ficar durante algum tem-
po" e a Imanência é "ficar dentro de", ou "penetrar em algo e lá permanecer".
Passemos ao versículo 17. Afirma o evangelista que Deus enviou seu Filho NÃO para julgar o mundo,
mas para encaminhá-lo na direção certa.
Parece, à primeira vista, haver contradição entre essa frase e o que se diz logo adiante (5:22): "o Pai a
ninguém julga, mas entregou todo julgamento ao Filho", acrescentando-se (5:27) : "Ele Lhe deu o po-
der de julgar, porque é Filho do Homem". Também em Mateus se descreve o Filho a julgar (25:31-46).
Entretanto, a contradição é mais aparente que real. Uma coisa é dizer que "o Filho julgará", ou "que o
julgamento Lhe foi entregue", e outra, totalmente diferente, é dizer que foi essa a CAUSA da descida
do Filho. Neste passo que comentamos, afirma-se que a RAZÃO de Sua vinda NÃO FOI o julgamento
da humanidade (embora isto Lhe tenha sido colocado nas mãos), mas a missão de tirar a humanidade
do caminho errado ( αφεσις αµαρτιων ) para orientá-la pelo caminho certo ( σω-ζειν ), isto é, para "pre-
servá-la" ou "salvá-la".
O sentido dos versículos seguintes (18-21) é bastante claro na sua interpretação literal, não carecendo
de comentários.
Nesse trecho verificamos que mais clara se torna a linguagem mística de João.
O mundo - expresso pela palavra "cosmo (que significa "ordem" ou "harmonia do universo" ) - é a
manifestação visível do Cristo Cósmico, ou seja, do "Filho Unigênito". Portanto, a própria exteriori-
zação do Cosmo é, já de per si, uma doação que o Pai faz de seu "FILHO UNIGÊNITO".
Recordemos. Já falamos que Deus é O ESPÍRITO (João, 4:24), isto é, O AMOR, o qual, ao expandir-
se e manifestar-se, assume a atitude de PAI, ou VERBO (Logos, Palavra) isto é, O AMANTE, e que o
resultado de sua manifestação ou exteriorização é O FILHO, que é o Universo em sua totalidade ab-
soluta, e que, portanto, é realmente UNIGÊNITO, ou seja, o AMADO.
Por tudo isso, vemos que o CRISTO (CÓSMICO) é o FILHO UNIGÊNITO que está dentro de todos
(sendo então chamado CRISTO INTERNO ou mônada divina).
Ora, todos aqueles espíritos que, por sua evolução, chegam a compreender, a buscar e a conseguir a
Consciência Cósmica (ou consciência do Cristo Cósmico) também denominada União com o Cristo
Interno - porque acreditaram nas palavras do Manifestante divino esses conseguirão a VIDA IMA-
NENTE, a vida UNA com a Divindade que está em todos e em tudo, vida que flui internamente de
dentro deles como fonte de água viva (cfr.João, 4:14). Esses não mais "se perderão" na ilusão da ma-
téria "satânica" ou opositora, a ela regressando constantemente vida após vida, mas empreenderão o
caminho libertador da evolução sem fim.
E Jesus, o maior Manifestante da Divindade entre as criaturas terrenas - a quem Bahá'u'lláh denomi-
na "Sua Santidade o Espírito" não veio para julgar os homens: apontou o caminho com Suas palavras

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SABEDORIA DO EVANGELHO

e, muito mais, com Seus exemplos. Mas deixou as criaturas livres para escolher a estrada longa ou
curta, larga ou estreita. A finalidade de Sua encarnação foi, apenas, conservar ou preservar o mundo,
dando-lhe Seus exemplos, ensinando-lhe Sua doutrina, e derramando sobre o globo terrestre o Seu
sangue vivificador.
No entanto, aqueles que não crêem e se apegam à matéria (ao opositor ou satanás) já se julgam a si
mesmos por sua própria atitude; ao renegar o Espírito ("mas aquele que se rebelar contra o Espírito,
o Santo, não será libertado nem neste século (aiõni) nem no futuro", Mat.12:33, cfr.Mr.3:29 e
Luc.12:10) renunciam espontaneamente à evolução e, nem nesta encarnação nem na próxima, pode-
rão ser libertados do carma. Com efeito, a base ou o barema do julgamento é que a Luz Cristônica
baixou até o mundo na Manifestação de Jesus; mas os homens preferiram as trevas à Luz. E justifica-
se a preferência: suas obras (de separatismo, sectarismo, divisão, concorrência, egoísmo, ambição
material, ódios, etc.) são más, ou seja, não sintonizam com o Amor que é Deus. Já aqueles que agem e
vivem a Verdade, se aproximam vibracionalmente da Luz e deixam que suas obras se manifestem,
porque, sendo realizadas em união total com o Amor (com Deus), são obras boas.
Mas, por que diz "crer NO NOME do Unigênito Filho de Deus" (vers.18) ? O nome é a identificação
da essência que se manifesta. Trata-se, portanto, de crer na manifestação do Filho de Deus, que é a
Força Crística exteriorizada nos Universos (cfr."seja santificado o Teu Nome", Mat.6:9) a ela unindo-
se a criatura através da "infinitização" própria, realizando a "consciência cósmica". O "nome" expri-
me, pois, a realidade mesma do Cristo divino que está em nós.

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C. TORRES PASTORINO

JESUS MERGULHA
João, 3:22-24
22. Depois disto, foi Jesus com seus discípulos para a terra da Judéia, e ali se demorava
com eles e mergulhava.
23. João também estava mergulhando em Enon, perto de Salim, porque ali havia muitas
águas, e (o povo) ia e era mergulhado,
24. pois João não tinha sido ainda lançado ao cárcere.

Ao sair de Jerusalém, após as festas da Páscoa, Jesus permanece nas cercanias com seus discípulos,
exercendo o mesmo ministério que João, que se havia retirado para Enon, perto de Salim, oito milhas
ao sul de Citópolis, na Samaria. Nesse local, havia várias fontes, e João não tinha sido encarcerado.
Parece que esta observação é feita no intuito de salientar que o ministério público de Jesus começou
antes da prisão do Batista, já que, pelos sinópticos, que silenciam sobre esse período, pareceria que
Jesus só operara publicamente depois desse fato (cfr.Mat.4:12 e Mr.1:14).
Por enquanto, o texto não esclarece. Mas no cap. 4, vers. 2, está dito que Jesus não mergulhava "pesso-
almente", mas apenas os discípulos o faziam.

Depois da manifestação na Cidade da Paz, permanece a individualidade no "Louvor a Deus", apro-


veitando-se das circunstâncias para exercitar seus discípulos (as personalidades ainda incompletas),
no ministério material de ritos, que as ajudassem a desvencilhar-se dos defeitos inerentes à separati-
vidade. Tinham assim oportunidade de entrar em contato com a massa e, de tanto repetir a necessida-
de da reforma mental e da purificação, essas palavras, proferidas para os outros, iriam penetrando
por endosmose no próprio subconsciente, preparando-os, na mentalização positiva, para a libertação
dos defeitos seculares. Em sua evolução, o "espírito" necessita passar pelos diversos degraus da exer-
citação, porque "a natureza não dá saltos". Daí ser indispensável, até hoje, que haja diversas agremi-
ações religiosas, para que sejam atendidas todas as criaturas, nos mais diversos graus de evolução.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

ÚLTIMO TESTEMUNHO DE JOÃO


João.3:25-36
25. Ora, levantou-se uma discussão entre os discípulos de João e um judeu, acerca da pu-
rificação.
26. E foram ter com João e disseram-lhe: "Rabbi, aquele que estava contigo além do
Jordão, de quem deste testemunho, eis que ali está a mergulhar, e todos vão a ele".
27. Respondeu João: "O homem não pode receber coisa alguma, se do céu não lhe for
dada.
28. Vós mesmos me sois testemunhas de que eu disse: Eu não sou o Cristo, mas sou envi-
ado diante dele.
29. O que tem a esposa é o esposo; mas o amigo do esposo, que está presente e o ouve,
muito se regozija por causa da voz do esposo. Pois este meu gozo está completo:
30. é necessário que ele cresça e que eu diminua".
31. O que vem de cima, está sobre todos; o que vem da Terra, é da Terra; o que vem do
céu, está sobre todos.
32. O que ele viu e ouviu, disso dá testemunho, e ninguém recebe seu testemunho.
33. O que recebeu seu testemunho, esse confirmou que Deus é verdadeiro.
34. Porque aquele que Deus enviou, fala as palavras de Deus, já que Deus não dá o Espí-
rito sob medida.
35. O Pai ama o Filho e tudo pôs em sua mão.
36. O que crê no Filho tem a vida imanente; o que porém desobedece ao Filho, não verá a
vida, mas sobre ele permanece o acicate de Deus.

Dessa atuação de Jesus, nasce uma disputa de ciúmes entre os discípulos de João e "um judeu". O as-
sunto era a purificação, rito que os fariseus tanto prezavam, e de que salientavam a parte material, ao
passo que Jesus sublinhava o lado espiritual. Os discípulos de João repararam na ascendência cada vez
maior de Jesus sobre o povo, em prejuízo de João. E vão "fazer queixa" a seu rabbi. Embora reconhe-
cessem que "Jesus estivera com João além do Jordão" (1:28) e que o Batista "dera testemunho em fa-
vor dele" (1:32), no entanto a causa do ciúme se manifesta contra toda a lógica: "ele está a mergulhar e
todo o mundo vai a ele" ... A expectativa era de suscitar um protesto enraivecido de João, pela "concor-
rência desleal" ...
Como é HUMANA essa cena, em todas as épocas! ...
A resposta do Batista é magnífica de humildade e consciência de seu papel na História, e encerra em si
preciosa lição de espiritualidade: "nada pode receber o homem, se do céu não lhe vier". Nada. Seja
"bem" ou "mal", julgue-se "pobreza" ou "riqueza", atribua-lhe o nome de "poder" ou "escravidão",
tudo vem do céu, embora possa parecer "justo" ou "injusto". Quem é capaz de JULGAR? Não pode-
mos fazê-lo. O que nos parece bom pode ser mau e vice-versa. Nem julgar os outros, nem julgar-nos a
nós mesmos. Incompetência total, por falta de dados: não penetramos o íntimo de ninguém, nem mes-
mo o nosso. Então, aprendamos a receber tudo com humildade.
Depois o Batista evoca o testemunho de seus discípulos, de que ele já antes declarara não ser o Cristo,
mas apenas um enviado diante dele. Quem tenha consciência da Espiritualidade Superior, jamais se

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C. TORRES PASTORINO
fará passar por quem não é. Embora pululem hoje, como sempre pulularam, os "missionários" divinos
e os "mestres", todos se apresentam em seu próprio nome, assumindo, de modo geral, uma atitude
muito superior à realidade, ou até mesmo forjando situações para engrandecer sua vaidade. O Batista
ensinou com o exemplo, como agir certo: nada de arrogar-se prerrogativas imaginárias, frutos de so-
nhos vaidosos.
Apresenta, depois, uma alegoria bastante elucidativa: num casamento, é o noivo que possuirá a esposa.
No entanto, o amigo do noivo alegra-se ao sentir-lhe a alegria, de que ele participa integralmente. João
é o amigo, que está radiante com a vitória de Jesus; e não o concorrente que se entristece por ficar
"para trás". Essa alegria atinge o grau máximo, pois é mesmo necessário que Ele (Jesus) cresça aos
olhos do povo, e que ele (o Batista) se vá afastando aos poucos; tal como a Estrela d'Alva, que anuncia
o Sol e que depois empalidece e morre, para deixar que o Astro-Rei envolva e fecunde a Terra com seu
esplendor.
---x---x---x---
O evangelista assume, então, a palavra e tece novos comentários, comparando Jesus com o Precursor:
o que vem de cima (Filho do Homem) com o que vem da Terra (Filho da Mulher); o Homem Liberto
das encarnações (samsara, na Índia, e ghilgul, na Palestina), com o que ainda está preso à roda fatídica
do mergulho intermitente no ventre da mulher. O que não exclui que este último possa encontrar-se já
no último degrau, pronto a passar para o outro nível, como era o caso de João Batista ("entre os Filhos
de Mulher, ninguém é maior que João Batista", Mat.11:11 e Luc.7:28).
E em sendo assim evoluído, sabe perfeitamente o que se passa no mundo superior, onde permanece
nos intervalos de suas descidas à Terra, porque se conserva desperto e consciente, provavelmente já no
Plano Mental. E com isso consegue, ao reencarnar, recordar-se perfeitamente de tudo (prova-o, no caso
do Batista, a alegria que teve ainda prisioneiro no ventre de Isabel, ao reencontrar Jesus, cfr.Luc.1:41 e
44). Por isso, pode o evangelista dizer com segurança: "dá testemunho DO QUE VIU E OUVIU". O
Batista viu e ouviu, e veio trazer seu testemunho de que Jesus vem "de cima" ou seja "do céu", das
regiões mais elevadas do Espírito; mas, diz ainda, "ninguém recebe o testemunho de João", que afirma
ser Jesus o Manifestante Divino do Filho Unigênito de Deus.
Mas, aqueles que recebem o testemunho, confirmam que Deus é verdadeiro (o adjetivo αληθης é a
forma negativa do substantivo ληθης que significa "esquecimento", donde "não oculto", ou seja "since-
ro").
Passa a falar de Jesus: o Enviado (ou Manifestante), cujas palavras são as próprias palavras do Deus
Interno, que Ele exterioriza através dos puríssimos canais de Sua humildade e de Seu amor. Isto por-
que, quando o Espírito está UNO com Deus, não há medida de restrição: "não dá o Espírito sob medi-
da". O Pai (o AMANTE) ama o Filho (o AMADO) e tudo colocou em Suas mãos. É aí que se declara a
razão do livre-arbítrio que foi outorgado aos Filhos de Deus, e que tanto é respeitado pela Divindade
que em nós reside: cada um conseguirá sua evolução na proporção de sua livre e espontânea vontade,
com a duração maior ou menor, segundo seu alvédrio.
E é por isso que aquele que crê, que se unifica ao Filho (ao Cristo Interno) possui a VIDA IMANEN-
TE; mas quem lhe desobedece, preferindo a matéria, esse não participará da vida espiritual, mas sentirá
sempre sobre si o acicate de Deus.
Acicate é o aguilhão que faz os bois morosos caminharem mais rápido. Acicate, pois, moralmente, é a
insatisfação que vem de nosso íntimo onde reside Deus, e que nos impele a evoluir bom ou mau grado:
se o quisermos, tudo bem; se o não quisermos, o embate contra a Lei causar-nos-á dores e sofrimentos
atrozes, que acabarão por fazer-nos encontrar o caminho certo.
A palavra οργη nas traduções comuns é interpretada absurdamente como "ira de Deus", atribuindo à
Divindade um dos mais tristes vícios do homem atrasado. Ora, esse substantivo grego exprime literal-
mente "uma agitação interior que expande a alma". Daí se originou o termo "orgasmo" . É exatamente
a insatisfação que nos serve de acicate para a conquista das coisas que nos satisfaçam. Essa agitação
provém do âmago do coração, ou seja, do Cristo Interno que lá reside, e que nos não deixa parar no

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SABEDORIA DO EVANGELHO

marasmo da inação, mas impele-nos a buscar satisfações. O homem, enganado pelas aparências, pro-
cura-as nas riquezas, na fama, na glória, no intelectualismo, nos ritos religiosos, ou seja, em tudo o que
pertence à personalidade. Por toda a parte o vazio, e, portanto, a dor. Até que, cansado de sofrer, desi-
ludido das aparências, o homem crê, finalmente, nas palavras do Cristo Interno, e então se aproxima da
Luz e conquista, enfim, a VIDA IMANENTE.
Precioso esse testemunho de João, pelo qual, mais uma vez, vemos confirmado - como muitas vezes
ainda o veremos na continuação nosso ponto de vista a respeito do sentido oculto dos Evangelhos, e
sobretudo o de João: a interpretação simbólica e mística que vimos fazendo, é, realmente, o ensina-
mento profundo de toda a vida do Mestre Inefável, que nos veio revelar o Caminho único para a Ver-
dade e para a Vida (cfr.João, 14:6), isto é, para o Deus Interno, que nos "chama com gemidos inenar-
ráveis" (Rom.8:26). Nestes últimos comentários seus, o evangelista é bastante explícito, usando, evi-
dentemente, a linguagem de sua época, mas deixando entrever a realidade. Infelizmente poucos foram
os que o tinham compreendido, e esses mesmos não o revelaram senão em meias-palavras. Agora,
porém, cremos que já é tempo de "dizer de cima dos telhados, tudo o que nos foi revelado aos ouvi-
dos" (Mat.10:27 e Luc.12:3).
E todos aqueles que tiverem alcançado certos graus de evolução, perceberão por si mesmos - pela
ressonância que estes comentários despertarem em seus corações - que sem sombra de dúvida há um
ensinamento mais profundo ("em Espírito de Verdade", Jo.4:23-24), oculto sob o véu da letra e sob as
aparências dos fatos e dos nomes, e que será percebido por "aqueles que tem olhos de ver, ouvidos de
ouvir e coração para entender" (cfr.Mr.7:17-18, João, 12:40, e Isaías, 6:10).

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C. TORRES PASTORINO

PRISÃO DE JOÃO

Mat. 14:3-5 Mr. 6:17-20 Luc. 3:19-20

3. Herodes, pois, prendera 17. Porque o próprio Herodes 19. Mas Herodes, o tetrarca,
João, o algemara e pusera mandara prender João e sendo repreendido por ele
no cárcere, por causa de acorrentá-lo no cárcere, por por causa de Herodíades, a
Herodíades, mulher de seu causa de Herodíades, mu- mulher de seu irmão, e por
irmão Filipe. lher de seu irmão Filipe todas as maldades que He-
(pois Herodes se casara com rodes fazia.
4. Porque João lhe havia dito:
ela),
"Não te é lícito tê-la". 20. acrescentou ainda sobre
18. porque João lhe dizia: todas a de fazer encerrar a
5. E embora Herodes quisesse
"Não te é lícito ter a mulher João no cárcere.
matá-lo, temia o povo, por-
de teu irmão".
que este o tinha como profe-
ta. 19. E Herodíades o odiava e
queria matá-lo, mas não
podia,
20. porque Herodes temia
João, sabendo que era ho-
mem justo e santo, e o pro-
tegia; e, ao ouvi-lo, ficava
muito admirado e o escuta-
va com satisfação.

Os três evangelistas relatam-nos a causa principal da prisão do Batista. Revivamos abreviadamente a


história, para melhor compreensão.
Herodes o grande, por sua morte, dera a Judéia a Arquelau, com o título de etnarca; e legara com o
título de tetrarca a Galiléia a Herodes Antipas e a Traconítide a Filipe. Mas o velho Herodes tivera, da
segunda esposa de nome Mariana, um filho, Herodes-Filipe, a quem nada coubera. No entanto, a este é
que inicialmente Herodes destinara sua sucessão no trono; e para que o governo ficasse em família, o
velho Herodes dera sua própria neta Herodíades (então com 3 ou 4 anos), como esposa a Herodes-
Filipe, tio dela, pois Herodíades era filha do irmão dele, Aristóbulo, que Herodes o grande tivera com a
primeira esposa de nome Mariana. Mais tarde, porém, mandou matar esta primeira esposa e seu filho
Aristóbulo. Firmemos, então, que Filipe, marido de Herodíades, nada tinha que ver com Filipe tetrarca
de Traconítide.
Herodes Antipas, bom político, para garantir-se o apoio de Aretas IV, rei árabe dos Nabateus, despo-
sou a filha deste.
Bem mais tarde, Herodes Antipas fez uma viagem a Roma, durante a qual visitou seu irmão Herodes-
Filipe, o deserdado, que vivia como simples cidadão fora da Palestina. Aí conheceu sua cunhada Hero-
díades, já então com cerca de 35 anos, e surgiu violenta paixão entre ambos. Ficou estabelecido que,
ao regressar de Roma, após reassumir o governo da Galiléia, Herodíades iria a seu encontro, para vive-
rem juntos, ocasião em que Antipas repudiaria sua mulher, a filha de Aretas. Esta, porém, veio a saber
do que se tramava e, para evitar a humilhação do repúdio, escapou para Maquérus e daí para a casa do

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SABEDORIA DO EVANGELHO

pai. Aretas jurou vingar a honra da filha e, após algumas escaramuças, fez guerra aberta contra Anti-
pas.
Por seu lado, sua união com Herodíades, sua sobrinha e cunhada, causou escândalo entre os judeus,
por constituir adultério (Êx.20:14 e Lev.18:20 e 20:10) além de incesto (Lev.18:15). Ao chegar, Hero-
díades levava consigo sua filha que se chamava Salomé (Josefo, Ant. Jud.18.5.2). Tudo acabou com a
fragorosa derrota de Antipas, diante do exército de Aretas, no ano 36.
Esclarecidos os fatos, voltemos ao texto. Herodes Antipas, aborrecido com a advertência do Batista a
respeito do escândalo que vinha de cima, prendeu-o e encarcerou-o algemado.
Josefo (loco citato) atribui a prisão de João a motivo político: a pregação do Batista podia levantar uma
sedição dos israelitas, para derrubá-lo do trono. As razões alegadas por Josefo confirmam o que dizem
os evangelistas, e completam as razões da violência do tratamento aplicado a João.
Para livrar-se de quem o preocupava, o mais fácil seria fazê-lo morrer. Entretanto, essa violência pode-
ria piorar a situação, pois o povo admirava o Batista como profeta no melhor sentido da palavra, por-
que este nada temia e invetivara o soberano (pelo que refere Marcos) pessoalmente, "de cara". Não se
sabe se, por acaso, Herodes foi imprudentemente a ele, ou se João se colocou no caminho por onde
passaria o tetrarca.
Marcos acrescenta ainda que Herodíades o odiava: não ficara, pois, satisfeita com a simples prisão do
Batista: queria sua morte. E esse tipo de mulheres não perdoa: tudo faz para conseguir seus desejos
insaciáveis. Todavia, Herodes queria Evitar a morte de João e procurava protegê-lo, levando-o prisio-
neiro para onde quer que fosse, como preciosa carga sempre sob suas vistas. Aproveitando-se da pro-
ximidade, ouvia-o "com satisfação, ficando impressionado" com as palavras do precursor.

FIGURA “Prisão de João”

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C. TORRES PASTORINO
O original, na maioria dos manuscritos, traz a palavra "epoiei", isto é, fazia muitas coisas (A, C, D, N,
delta, sigma, pi, phi e as versões: vulgata, siríaca, armênia, etc). Mas os principais tem "eporei", ou
seja, ficava impressionado, o que condiz com a sequência da narrativa.
Lucas anota que essa, de prender o Batista, foi mais uma maldade que Herodes acrescentou às numero-
sas outras anteriores.

A animalidade ainda vigente nas criaturas não mede as conseqüências de seus atos: para satisfação
de seus apetites, tudo sacrifica. E, embora admirando o intelecto iluminado pelas verdades que lhe
chegam, prefere aprisioná-lo para poder agir livremente. Conhecem o caminho, mas escolhem atalhos
excusos, "isolando" sua própria compreensão, prontos a destruí-lo para que o não atrapalhe. Ainda
hoje é assim: a criatura vai à igreja, ao templo, ao centro, ouve as verdades, faz profissão de fé, toma
resolução de aprimorar-se, mas. . . ao chegar a ocasião que lhe atiça os sentidos, "esmaga" o que
aprendeu e dá largas aos instintos.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

JESUS SAÍDA JUDÉIA

Mat. 4:12 Mart.1:14 João, 4:1-3

12. Jesus, ao ouvir que João 14. Depois de João ser preso, 1. Quando, pois, o Senhor sou-
fora preso, partiu para a Jesus foi para a Galiléia. be que os fariseus tinham
Galiléia. ouvido dizer que ele, Jesus,
fazia e mergulhava m a i s
discípulos que João,
2. (embora Jesus mesmo não
batizasse, mas sim seus dis-
cípulos),
3. deixou a Judéia e foi de novo
para a Galiléia.

Os dois sinópticos assinalam a partida de Jesus da Judéia dando, como motivo (Mateus) ou como refe-
rência de tempo (Marcos) a prisão do Batista.
João é mais minucioso. Dá-nos também outras razões. Jesus veio a saber que os fariseus começavam a
impressionar-se com o fato de que ia mais gente a Jesus, do que fora a João, para ser mergulhada. O
evangelista frisa que, pessoalmente, Jesus não mergulhava, mas apenas seus discípulos. Tendo conhe-
cimento do inquérito que os fariseus haviam realizado contra João, quis evitar o mesmo aborrecimento
e resolveu abandonar a Judéia, refugiando-se na Galiléia onde não corria perigo, por estar longe das
autoridades.

À primeira vista parece estranha a atitude de Jesus, que, ao saber da prisão de seu amigo e primo
João, ao invés de ir confortá-lo, solidarizando-se com sua desgraça, se limitou a escapar do teatro da
luta. Atitude que jamais se esperaria de um Mestre! Mas, penetrando o sentido simbólico, compreen-
demos a lição: quando, no terreno das exterioridades religiosas (Judéia), "prendem" a personalidade
(João Batista), a individualidade se retira para o Jardim fechado (Galiléia), onde poderá agir à von-
tade, sem nenhuma pressão externa: não há autoridade civil, nem militar, nem religiosa, que possa
penetrar no coração e no pensamento. Mesmo na expressão de João, é útil a nós, quando começam a
falar muito de nós ou de nossos trabalhos, uma pequena reclusão, para nos não deixarmos envolver
pelo "mundo".
Anotemos, porém, o esclarecimento de João: não era Jesus que mergulhava pessoalmente, pois a indi-
vidualidade jamais se imiscui nos problemas da exterioridade. Muita coisa temos que deixar para os
que ainda estão envolvidos pelas características da personalidade. E não devemos combatê-los: Jesus
deixou que seus discípulos mergulhassem o povo. Cada nível com suas necessidades e sua atuação, de
acordo com sua sintonia vibratória.

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A SAMARITANA
João, 4:4-26
4. Jesus precisava atravessar a samaria.
5. Chegou, pois, a uma cidade da samaria, chamada sícar, perto das terras que Jacó
dera a seu filho José.
6. Era ali a fonte de Jacó. Cansado da viagem, estava Jesus assim sentado ao pé da fon-
te; era cerca da hora sexta.
7. Uma mulher da Samaria veio tirar água. Disse-lhe Jesus: "dá-me de beber".
8. Pois seus discípulos tinham ido à cidade comprar alimentos.
9. Disse-lhe então a mulher samaritana: "Como, sendo tu judeu, pedes de beber a mim,
que sou mulher samaritana"? (porque os judeus não se comunicam com os samarita-
nos).
10. Respondeu-lhe Jesus: "Se souberas o dom de Deus e quem é Aquele que te diz "dá-
me de beber", tu lhe terias pedido, e ele te daria a água viva".
11. Disse-lhe a mulher: "Senhor, não tens com que a tirar, e o poço é fundo; donde, pois,
tens essa água viva?
12. És tu, porventura, maior que nosso pai Jacó, que nos deu este poço, do qual bebeu ele,
seus filhos e seu gado"?
13. Replicou-lhe Jesus: "Todo o que bebe desta água, tornará a ter sede.
14. Mas quem beber da água que eu lhe der, não terá mais sede no futuro; mas a água
que eu lhe der, se tornará nele uma fonte de água que mana para a vida imanente".
15. Disse-lhe a mulher: "Senhor, dá-me dessa água, para que eu não tenha mais sede,
nem venha aqui tirá-la".
16. Disse-lhe ele: "Vai, chama teu marido e vem cá".
17. Respondeu a mulher: "Não tenho marido". Replicou-lhe Jesus: "Disseste bem que
não tens marido.
18. Porque tiveste cinco maridos, e o que agora tens não é teu marido: isso disseste com
verdade".
19. Disse-lhe a mulher: "Senhor, vejo que és profeta.
20. Nossos pais adoraram neste monte, e vós dizeis que em Jerusalém é o lugar onde se
deve adorar".
21. Disse-lhe Jesus: "Mulher, acredita-me, vem a hora em que nem neste monte, nem em
Jerusalém adorareis o Pai.
22. Vós adorais o que não sabeis, nós adoramos o que sabemos, pois a salvação é dos ju-
deus.
23. Mas vem a hora - e é agora - em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em
verdadeiro espírito; porque são esses que o Pai procura para seus adoradores.
24. Deus é o Espírito; e os que o adoram, precisam adorá-lo em verdadeiro espírito".
25. Respondeu a mulher: "Eu sei que vem o Messias (que se chama o Cristo); quando ele
vier, anunciar-nos-á todas as coisas".

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SABEDORIA DO EVANGELHO

26. Disse-lhe Jesus: "Sou eu: o que fala contigo".

FIGURA “A Samaritana”

O itinerário de Jesus, ao regressar da Judéia para a Galiléia, foi diferente da estrada comum. Estaria
coinscientemente escapando a algum cerco?
Vindo do vale do Jordão, para chegar a Samaria, teve que penetrar nos "ouadis" Aqrabeth ou Beit-
Dedjan, caminho muito mais árduo, porque O obrigava a penosa subida por senda pedregosa (e de
pedras pontudas), até atingir a planície de Mahné, onde se situava Sicar (que não deve confundir-se

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C. TORRES PASTORINO
com Siquém, tantas vezes visitada pelos patriarcas, cfr.Gên.12:6; 33:18 etc .). Realmente o encontro
não se deu em Siquém, cidade abundante de água, mas em Sicar (hoje el-Akar). Já o “Peregrino de
Bordeaux", no ano 333, distinguia as duas localidades (cfr.A. Neubauer, "Geógraphie du Talmud",
Paris, 1868, pág.169-171).
O poço de Jacó ficava a menos de cinco minutos ao sul da cidadezinha, ainda habitada na época de
Jesus. Esse poço captava uma fonte subterrânea; daí empregar o evangelista, indiferentemente, ora
"phéar" (poço), "pégê" (fonte).
Quando Jesus chegou ao pé da fonte, estava cansado (kekopiakôs) da íngreme ladeira que galgara, e
sentou-se (literalmente "deixou-se cair” (ekathedzeto) com toda sencerimônia, sobre a borda do poço
ou ao lado dele.
João não deixa de anotar (sempre os números!) a hora: era a hora "sexta", ou seja, cerca do meio-dia.
Bom lugar para um repouso, a essa hora escaldante. Enquanto o Mestre repousava, seus discípulos vão
pouco além, à cidade, para buscar alimentos.
Nesse interim, aproxima-se uma mulher da região da Samaria, hoje denominada Sebastieh, "samarita-
na". Não vinha da cidade de que ficava a 12 kms de Sicar.
Comum era o hábito de buscar água em ânforas, nos poços. O poço de Jacob mede 39 metros de pro-
fundidade, e só quem possua uma corda bastante longa poderá haurir água. Ora, os viajantes não cos-
tumam carregar tais apetrechos, pois ninguém recusa uma pouca d’água a um peregrino sedento.
Jesus solicita esse obséquio da samaritana. Acontece que, entre samaritanos e judeus havia animosida-
de de longa data, recrudescida após o cativeiro, quando os companheiros de Zorobabel recusaram que
os samaritanos colaborassem na restauração do templo (Esdras.4:1-5). Mais tarde, o sacerdote Manas-
sés, expulso de Jerusalém, estabeleceu um templo no monte Garizim, servido por clero regular, rivali-
zando com Jerusalém (Ant.Jud.11.7,2) o que fez mais tensas as relações. Os judeus equiparavam os
samaritanos aos "filisteus", a tal ponto que o Eclesiástico (50:27-28) diz: "há duas nações que minha
alma detesta, e a terceira nem é uma nação: os que moram na montanha de Seir, os filisteus e o povo
insensato que habita Siquém". Os samaritanos de seu lado não poupavam os judeus (Josefo, Ant.
Jud.8.2, 2 e 20, 6, 1).
Tudo justifica, pois, a surpresa da samaritana, ao ouvir que Jesus falava com ela. Que era um galileu,
manifestava-o seu sotaque (cfr.Mat.26:73) e as borlas de seu manto (cfr.9:20 e Mr. 6:56). Embora sem
recusar a água, faz-lhe sentir sua estranheza.
Jesus, que nela viu um espírito de escol, capaz de penetrar os "mistérios do Reino", aproveita a cir-
cunstância para esclarecê-la; e de tal modo a impressiona, que sua evolução daí por diante se fez quase
vertical, pois quinze séculos após ela se chamaria Teresa de Ávila, a única mulher que recebeu, da
igreja católica. o título de "doutora da igreja", a "doutora seráfica", uma das maiores místicas que hon-
raram e dignificaram a raça humana no ocidente.
Começa o Rabbi dizendo “se souberas ( ει ηδεις , condição não realizada no presente) o dom de Deus,
tu Lhe pedirias de beber, e Ele te daria a água viva". Evidente tratar-se de um simbolismo, notável so-
bretudo numa região pobre de água. A samaritana, porém, não percebe o simbolismo (tal como ocorre-
ra com Nicodemos) e interpreta ao pé da letra, embora lhe tenha dado, agora, o titulo de Senhor, reco-
nhecendo-Lhe a superioridade incontestável.
Ao verificar que não era compreendido, Jesus volta à prática pedindo que ela chame seu marido, ao
que ela confessa não tê-lo. Jesus confirma-o, declarando que já tivera cinco, e que o atual lhe não per-
tencia. Admirada, confessa a samaritana ver nele um "Profeta" (médium), com capacidade de conhecer
a vida intima das criaturas.
Tendo entrado no terreno religioso, a samaritana aproveita para pedir que Jesus dirima a questão, de-
clarando quem está certo: os judeus, que celebram seu culto em Jerusalém, ou os samaritanos, que o
fazem no monte Garizim, no local do templo construído por Manassés em 400 A.C. , mas destruído em
129 A.C. por João Hircan.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Ainda hoje os samaritanos celebram sua páscoa nesse monte. A cena passa-se no sopé do Garizim e do
Hebal onde está o poço de Jacó.
A samaritana opõe “vós" (os judeus modernos, de sua época), a “nossos pais", que representavam a
tradição milenar do tronco comum das duas facções; porque tanto Abraão quanto Jacó erigiram altares
em Siquém (cfr.Gên.12:7 e 33:20) e Josué' o fez no monte Hebal (Deut.27:4); mas nesse local, no
Pentateuco samaritano, aparece o nome do monte Garizim. Entretanto, os judeus fundamentavam-se
em David e Salomão para defender o templo de Jerusalém.
Esse desvio “teológico” deve ter aliviado a tensão da samaritana, temerosa de maiores verificações em
sua vida particu1ar. Jesus pede-lhe que “acredite nele", como profeta que ela mesma reconhece, e pas-
sa a fazer-lhe revelações.
Em primeiro lugar, declara taxativamente que não tem importância o LUGAR físico e geográfico do
culto ao Pai. Em segundo lugar, afirma que os samaritanos adoram o verdadeiro Deus, sem dúvida,
mas não conhecem; ao passo que "nós” (os judeus) - e Jesus viveu a religião judaica do nascimento à
morte, confessando-se abertamente filiado a essa religião: nós os judeus - sabemos o que adoramos. E,
categórico: "a salvação É DOS JUDEUS".
Mas, prossegue o Mestre, virá a hora - e é AGORA - em que os verdadeiros adoradores O cultuarão
em espírito, pois esta é a Vontade divina. Mais uma vez nos afastamos totalmente das traduções vulga-
res tradicionais que trazem: "em espírito E verdade". Preferimos "em espírito verdadeiro” ou "em ver-
dadeiro espírito", pois trata-se, sem sombra de dúvida, de uma hendíades (veja vol, 1, pág. XII), como,
por exemplo, em Sófocles (Ajax.145): βοτα και λειαν isto é, "o gado e a pilhagem", significando "o
gado pilhado". Espírito VERDADEIRO, no sentido de Espírito MESMO, sem mistura de matéria, nem
intelecto, nem emoções, nem sensações.
De qualquer forma, Jesus prega abertamente o universalismo: o Pai comum de TODOS OS HOMENS
será adorado em qualquer lugar físico, pois o verdadeiro templo de Deus é nosso próprio espírito e
nosso corpo (cfr.Rom.8:9,11; 1 Cor.3;16,17 e 6:19; 2 Cor. 6:16; 2 Tim.1:14 e Tiago 4:5). Não há mais
necessidade de templos e igrejas, sinagogas nem "centros' mesquitas nem pagodes; nada mais de litur-
gias, fórmulas sacramentais e sacramentos, pompas e solenidades: os verdadeiros adoradores rejeitam
tudo isso, e adoram em ESPÍRITO VERDADEIRO. Adorar a Deus em verdadeiro espírito, é adorá-lo
verdadeiramente. Ao passo que os ritos, liturgias e gestos mágicos trazem o terrível perigo de materia-
lizar, e portanto mecanizar, o culto. E contra essa mecanização, sempre protestaram os mestres (cfr.
Oseas. 6:6; Amós, 5:20-26; Isaías, 1:11-17: Salmo 50:7-23), e o próprio Jesus (Mat.15:8 e Marc.7:6).
Nem se trata, apenas, de que "agradam" a Deus esses adoradores: não Diz que o pai os PROCURA
(dzetei), porque, sendo o ESPÍRITO, só o Espírito pode com Ele sintonizar. Como pode Deus, o Pen-
samento Universal, "procurar"? Pela impulsão interna, levando as criaturas a uma evolução constante,
até atingir o ápice supremo da perfeição espiritual.
A expressão de Jesus é clara: Deus é O ESPÍRITO ( πνευµα ο θεος ). A colocação do predicativo antes
do verbo, sem artigo, equivale simplesmente pela posição, a um elemento determinado. Portanto, não é
UM espírito, mas O espírito, que é O amor. Quando em atividade, torna-se O amante que produz (Pai
ou Verbo), e o resultado é O amado (Filho). Daí o tríplice aspecto (trindade) de Deus, que foi invertido
pelos que não conheciam a doutrina profunda de Jesus, e que, no entanto, está tão clara nos Evange-
lhos.
Nessa amplitude de visão universalista, a querela entre judeus e samaritanos toma a proporção de mi-
núscula discordância de personalidades vaidosas, sem importância alguma.
Diante do exposto, a samaritana indaga a respeito do Messias aguardado por eles (com a palavra
TAHEB, que significa "O que volta") como pelo judeus. A tradução para o grego é uma explicação do
evangelista.
Nesse ponto, Jesus declara sem rebuços: "sou Eu, quem fala contigo" Foi feita a revelação.

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C. TORRES PASTORINO
No início (vers 11) a samaritana o julga um grande homem (Senhor) mais tarde (vers.19), chega à con-
clusão de que se trata de um inspirado (Profeta); e finalmente (vers.26) nele reconhece o ungido (Mes-
sias ou Cristo). Deu-lhe, pois, a explicação de Suas primeiras palavras: "Se souberas QUEM fala con-
tigo!!” ...

Todo o episódio narrado no cap. 4.º de João, referente à samaritana, está repleto de lições maravilho-
sas.
Não quer isto dizer que se não tenha realizado o fato relatado pelo evangelista. Absolutamente, o fato
realizou-se na esfera terrena. Realmente os pormenores se verificaram, como em todas as outras ce-
nas apontadas pelos evangelistas. Pretendem alguns que TUDO seja simbolismo. Não aceitamos.
Acreditamos firmemente que todas as cenas narradas nos Evangelhos são REAIS, foram vividas no
plano terreno, material. Mas Jesus era tão adiantado que saiba aproveitar todas as ocasiões para dar
lições. Encaminhava os acontecimentos de forma a que deles, quem no pudesse, extrairia lições para a
individualidade; e quem no não alcançasse, tiraria lições para a personalidade. Daí ter falado sempre
em parábolas, enquanto outros ensinamentos eram vividos. Também os evangelistas, mais tarde, sou-
beram ESCOLHER aquilo que deviam revelar, pois nem tudo disseram do que fez Jesus em Sua pas-
sagem pela Terra, pois "se o fizessem, o planeta não comportaria os livros necessários para narrá-
los" (João, 21:25).
Uma vista geral e rápida ao significado das palavras. Samaria, em hebraico (shomron) significa "vi-
gilância". Sicar quer dizer "bebida inebriante", ou "inebriado". Reconhecemos nessa raiz a mesma do
árabe que deu origem ao nosso "açúcar". Saindo, então, Jesus do "louvor a Deus" (Judéia), dirige-se
para o" Jardim fechado" (Galiléia). Mas quis atravessar o monte da "vigilância" (Samaria). E nessa
vigilância chega a ficar "inebriado" (Sicar) de amor, já na região da "fonte" ou "Poço" que “O ven-
cedor" (Jacó) dera a seu filho, isto é, "a quem Deus aumenta , (José).
Vamos à interpretação.
Jesus é a individualidade, o CRISTO INTERNO. Quando a alma está “vigilante" (samaritana) e chega
a "hora sexta" (antes do Grande Encontro da hora sétima), essa Alma Vigilante vai ao "poço" (ao
coração), porque está sedenta de amor divino. E aí ela encontra "sentado" ao pé do poço, (habitando
no coração) aguardando-a, o Cristo Interno, o Eu profundo, também SEDENTO. E a individualidade,
esse Eu profundo, pede-lhe de beber, pede à Alma Vigilante que Lhe entregue seu amor, para que Sua
sede seja saciada.
Todo o episódio retrata, pois, uma lição sobre o Mergulho na Consciência Cósmica, o Encontro com
o Eu profundo, no poço do coração, obtido pelo espírito VIGILANTE.
Primeiramente há um equívoco natural: a Alma Vigilante estranha o chamamento de alguém que ela
ainda não encontrara, um Desconhecido. Ela acostumara-se a percorrer as áreas do amor profano
nos leitos conjugais; do amor desinteressado, nos filhos que gerara; do amor sublimado nas devoções
ritualísticas sonoras de solenes notas de órgão; do amor divino nos claustros segregados do bulício
do mundo. E agora eis que faceta nova à sua frente se apresenta. Um "Estranho"! ...
Mas esse Estranho é belo e é suave como a tarde a descambar ... é puro como a aurora que silencio-
samente arranca os véus da noite, desnudando os céus para o esponsalício com o Sol ... E esse Estra-
nho diz-lhe que lhe poderá dar "água viva" ... Realmente, todas as águas que anteriormente com so-
freguidão bebera para saciar seu amor, jamais a deixaram satisfeita: queria sempre mais; e depois de
ter mais, vinha o tédio ... E o Estranho promete que se ela O "conhecer" profundamente, Ele saciará
sua sede para sempre!
Ingênua, retruca-lhe que o "poço é fundo": realmente o coração do homem é abismo insondável, é
infinito, e só com o infinito pode ser saciado definitivamente.
Será o Desconhecido maior que o "vencedor" que deu à humanidade liturgias, ritos e pompas religio-
sas ? O Cristo Interno demonstra que todos os que bebem da água das exterioridades transitórias da

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personalidade continuam tendo sede; apenas aqueles que se unem a Ele, que O "conhecem", imergin-
do ou mergulhando na Consciência Cósmica, só esses é que jamais terão sede, porque nessa mesma
Alma Vigilante surgirá uma fonte perene de água viva, que virá do fundo do "poço" de seu coração e
manará sem intermitências para a Vida Imanente, para a vida interna, para a vida do Espírito.
Nesse diálogo sublime e inenarrável, a Alma Vigilante sente os pormenores de beleza inefável (só
quem no experimenta pode avaliá-lo !) pede ansiosamente, qual "mendigo do espírito", que lhe seja
dada essa água, para que ela jamais sinta a solidão, jamais volte a ficar sedenta de amor.
Então o Cristo Interno lhe pergunta pelo "marido", ou seja, por aquele a quem ela ama. E a Alma diz
que, no momento, não no possui. "Com verdade respondes", fala o Cristo Interno: "pois CINCO ti-
veste, e o atual não é teu" ! Realmente, na peregrinação longa pelos caminhos da Terra, a Alma vai
desposando numerosas crenças (lembremo-nos de que "adúltero", na Bíblia, é o povo que trai YHWH
para unir-se a outras "deuses"). Afirma o Cristo Interno, que acompanha a Alma desde o início, que
ela tivera CINCO crenças, e que a SEXTA (sempre a numerologia !), que era a dos samaritanos, não
era a legítima: a verdadeira, o marido real e legítimo, seria justamente o SÉTIMO, o amante perfeito,
ele mesmo, o Cristo Interno, representado pelo judeu que com ela se entretinha em colóquio amoroso,
tentando conquistá-la.
Essa mesma passagem, todavia, pode ser interpretada melhor, com mais verdade compreendendo-se
que o Cristo Interno queria dizer que "os cinco maridos" que tivera, referiam-se às suas ilusões,
quando pensara que era: 1) seu próprio corpo; 2) suas sensações; 3) suas emoções; 4) seu intelecto;
5) seu "espírito"; todos eles eram "falsos", no sentido de transitórios e ilusórios. O próprio "sexto"
marido atual, a mente, (que a levara a mergulhar no coração - poço - na busca da Cristo), esse mes-
mo não era legítimo, pois só a Centelha Divina, o Eu profundo, é que pode dizer-se o VERDADEIRO
EU, o verdadeiro Espírito.
O que seria ilógico e incompreensível, se não fossem esses sentidos ocultos de uma lição maior, seria
Jesus pular de um assunto (água viva) a outro: "chama teu marido", sem nenhum nexo, sem qualquer
sequência. No meio dessas lições maravilhosas, que tinha que ver o "marido"? Essas aparentes ilogi-
cidades é que nos convencem de que a lição é muito mais profunda do que o que lemos na letra fria do
texto.
A alma, iludida ainda pelas aparências, indaga a respeito da verdadeira crença, e o Cristo Interno
esclarece que a salvação (o Caminho) é DOS JUDEUS, através do máximo Enviado, do maior dos
Manifestantes divinos na Terra, Jesus de Nazaré. Mas, logo a seguir esclarece que nenhuma crença,
nenhuma religião poderá salvar quem quer que seja: o Pai PROCURA com ânsia amorosa aqueles
que O amam em verdadeiro Espírito, sem nenhuma interferência material, nem sensitiva, nem emoci-
onal, nem intelectual, nem mesmo espiritual-religiosa: é o Espírito Verdadeiro o único que poderá
unificar-se ao Cristo Interno, à Consciência Cósmica.
A alma reconhece, finalmente, na Voz interna do coração o verdadeiro Cristo Cósmico, manifestado
DENTRO DE NÓS; e para ela abre-se a Luz sublime da compreensão: é ESSE Cristo que é o verda-
deiro "Caminho da Verdade e da Vida" (João, 14:6); Ele ensinar-nos-á todas as coisas (João, 14:26).
E o Cristo Interno confirma a sensação íntima da alma vigilante e amorosa: "sou Eu ... que falo conti-
go, sou o CRISTO DE DEUS" !
O amor que se expande do coração da Alma Vigilante não tem medida: atingiu o ápice da felicidade
que pode uma alma humana suportar,. encontrou o Caminho definitivo, a alma gêmea da sua alma, e
a União é total e absoluta, por todos os séculos, liberta já de toda sede espúria: tem tudo; a alegria, a
felicidade, o AMOR (que é DEUS) permeando-lhe, já agora conscientemente, todas as células. Já era
então a hora sétima, a perfeição total e absoluta !
E desse encontro a Alma Vigilante se recordaria e reviveria ainda, quinze séculos após, expandindo
seu amor com estas palavras:
"Alma, tens que procurar-te em Mim, e a Mim, hás de procurar-me em ti".
(Teresa de Avila, “Búscate en mí", Obras, vol. 2.º, pág. 957).

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ESPANTO DOS DISCÍPULOS


João, 4:27-38
27. Nisto chegaram seus discípulos, e admiraram-se de que estivesse falando com uma
mulher; ninguém, todavia lhe perguntou: "que procuras ou que falas com ela"?
28. A mulher deixou o cântaro, foi à cidade e disse aos homens:
29. "Vinde ver um homem que contou tudo o que fiz: será este, porventura, o Cristo"?
30. Saíram da cidade e vieram ter com ele.
31. Entretanto os discípulos lhe rogavam dizendo: “Rabi, come"!
32. Mas ele lhes respondeu: "Eu tenho para comer um manjar que vós não sabeis".
33. Os discípulos, pois, diziam uns aos outros: "Será que alguém lhe trouxe de comer"?
34. Disse-lhes Jesus: "Meu alimento é fazer eu a vontade daquele que me enviou, e com-
pletar sua obra.
35. Não dizeis vós: "ainda quatro meses e chegará a ceifa"? Pois eu vos digo: "Erguei
vossos olhos e contemplai estes campos, que já estão brancos para a ceifa".
36. O ceifador recebe salário e ajunta fruto para a vida imanente, a fim de que ambos, ele
o semeador, juntamente se regozijem.
37. Porque nisto é verdadeiro o ditado: "Um é o que semeia, e outro o que ceifa".
38. Eu vos enviei a colher aquilo em que não tendes trabalhado; outros trabalharam, e
vós entrastes em seu trabalho".

Recordemos que, com Jesus, havia apenas cinco discípulos: os irmãos Pedro e André, João, Natanael e
Filipe. Não era o "colégio apostólico", que não fora constituído. Acompanhavam a Jesus sem compro-
misso formal, tanta que voltaram a seus afazeres na barca. Pouco mais tarde é que Jesus os convoca
oficialmente, para o serviço ativo do "reino".
A samaritana, impressionada com as palavras de Jesus, corre a dizê-lo à população, sempre com aquele
típico exagero feminino: "contou-me TUDO o que fiz” ...
Mas, depois que saíra esbaforida, deixando até a ânfora ao pé do poço, pois podia-lhe estorvar a cami-
nhada, vêm as explicações de Jesus aos discípulos, espantados de vê-Lo a entreter-se interessadamente
com uma mulher e, ainda por cima, "samaritana" ... Esse reparo não deve fazer-nos supor que Jesus
fosse um misógino, isto é, que tivesse aversão ou horror às mulheres. Nada disso: por onde ia, acom-
panhava-o um grupo de mulheres para servi-Lo, talvez até contando-se entre as que O acompanhavam
suas irmãs (Joana, Maria e Salomé?) A admiração provém do fato de Jesus, um Rabbi, entreter-se pu-
blicamente com uma mulher do povo e desconhecida. Também não se refere, como dizem alguns co-
mentadores, à "má vida" da samaritana, que deles não era conhecida; mesmo porque, embora tivesse
mudado "de marido", não era absolutamente o que pudesse chamar-se mulher "pública". Bem longe
disso.
Mas os discípulos respeitaram a atitude do Mestre, e nenhum deles ousou, como anota o evangelista,
"interrogá-Lo" e, muito menos, criticá-Lo (como é tão comum hoje em todos os círculos espiritualis-
tas: se um elemento aborrece ou tem raiva de alguém, todos acham muito natural; mas se gosta de al-

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guém, chovem as críticas e todos se afastam; e no entanto, ele cumpre a lei do amor! A humanidade
está muito atrasada, realmente).
Embora houvesse pedido água, por estar com sede, Jesus recusa comer: não sente mais o vazio do
apetite material, pois a satisfação de seu espírito se estendera a todos os veículos, até mesmo no físico.
O Amor também alimenta! O desejo, não: até aumenta o apetite. Mas o Amor é saciedade e, por ser
tal, satisfaz totalmente.
Os discípulos não compreenderam a causa. Alguém, talvez a própria mulher, Lhe teria trazido de co-
mer ? Jesus explica: o alimento principal do Espírito é fazer a vontade Daquele que O enviou. Mais
tarde ensinaria "procurai em primeiro lugar o reino de Deus e Sua justiça e tudo o mais vos será dado
por acréscimo" ( Mt.6:33).
Depois vem uma lição de profundidade, otimamente colhida no panorama que se estendia a seus pés
no vale, talvez provocada pela observação de um dos discípulos: "ainda quatro meses e chegará a cei-
fa". A planície, contemplada do alto, devia aparecer pejada de espigas nos trigais, que começavam a
amadurecer aos mais ardorosos sóis da primavera, que já se preparava para o verão, num exuberante
junho palestinense. Note-se que, nessa região, ao invés de amarelecer como na Europa, o trigo assume
uma tonalidade branquiça.
"Olhem, pois, e vejam que já está esbranquiçando o trigo, que está quase maduro". E daí à lição do
ceifador, que se empregava por tarefa para a colheita. Na realidade, o provérbio "um semeia e outro
colhe" provinha justamente do fato de que, para as colheitas, eram contratados trabalhadores de fora,
afim de que fosse ela completada dentro do prazo oportuno, sem correr o risco de estragar-se no pé.
O ceifador colhe, mediante salário, o que o semeador plantou, e ajunta no celeiro para o futuro. Assim
na vida espiritual, a colheita é feita para a Vida Imanente, no Reino dos Céus.
E Jesus termina: "eu vos enviei a colher num campo em que não trabalhastes: vós entrastes no trabalho
dos outros". Referia-se à longa e penosa plantação que durante séculos e milênios vinha sendo feita na
Terra pelos Manifestantes divinos, pelos Profetas, Mestres e Filósofos por todos os homens de Deus
que aqui chegavam para preparar a humanidade para o grande passo.
Na época de Jesus, o Governador do Planeta escolhera alguns dos Espíritos mais aptos ao lançamento
e à propagação de Sua doutrina e, a não ser João Evangelista, cujo espírito havia vivificado a persona-
lidade de Samuel o profeta, parece que os outros não pertenciam realmente àquela estirpe de mestres
espiritualizados. Com efeito, além de João, somente Pedro, do colégio dos doze, deixou marca indelé-
vel na propagação do cristianismo. De Levi conhecemos apenas o Evangelho; de André, Bartolomeu
(Natanael), Judas Tadeu, Simão Zelotes, Tomé nada praticamente sabemos que tenham feito, para ga-
rantir-lhes posição de destaque; de Filipe, um aceno em Atos; de Tiago sabemos que um deles foi de-
capitado logo após a morte de Jesus e do outro que foi inspetor em Jerusalém durante alguns anos.
Homens comuns, corajosos e trabalhadores, mas que ficavam a uma distância incalculável de um mís-
tico profundo como João, de um teólogo intelectualizado como Paulo, e de um administrador entusi-
asta como Pedro.
Argumentam alguns que a assertiva de Jesus é ponderoso argumento contra a reencarnação: os após-
tolos (dizem) DEVIAM TER SIDO (caso houvesse reencarnação) os mesmos espíritos que animaram
os profetas e enviados anteriores. Então, eles mesmos teriam plantado, e eles mesmos teriam vindo
colher. Mas Jesus afirma categoricamente "VÓS colheis o que OUTROS plantaram".
Respondemos:
I. em primeiro lugar, se sabemos que o espírito de João viveu como Samuel, nada sabemos dos
outros, e o que realizaram não deu a entender que tivessem provindo dessa estirpe (embora
nada impeça que o tenham sido);
II. além disso as pessoas dos discípulos (que colhiam) nada tinha que ver com as pessoas dos pro-
fetas (que haviam plantado). E durante a encarnação, salvo raras exceções, a consciência indi-

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vidual só está desperta na personalidade (consciência atual). Realmente, novas personalidades
colhiam o que outras personalidades haviam plantado;
III. aprofundando mais, e levando para o terreno das individualidades eternas, que seriam real-
mente as mesmas (caso eles tivessem sido os profetas) não foi o plantio feito propriamente pe-
los profetas - simples médiuns ou intermediários - mas pelos mestres e pelos sumos sacerdotes
de antanho: Abraão, Isaac, Jacó, Moisés ,Aarão, etc., cujos ensinamentos (plantio) era comen-
tado pelos profetas;
IV. e mais: os "semeadores" somavam várias centenas: os "ceifadores" seriam apenas doze; de
qualquer forma, mesmo que também eles tivessem participado da sementeira, não tinham sido
os únicos semeadores.

Então, de qualquer forma, eles "entravam" no trabalho dos outros.

Depois de toda expansão interna, a Alma Vigilante abandona tudo o que é material: larga o cântaro,
e sai a correr, para fazer a todos partícipes de sua felicidade. E declara aos que encontra, que desco-
briu o Cristo (Interno), aquele que sabe e lhe disse tudo o que fez; aquele que conhecia sua vida mais
do que ela mesma. E os que podiam interessar-se acorreram a ela, para que ela, que já descobrira os
segredos do Caminho, os levasse ao Cristo. Foi o que ela fez.
Enquanto isso, os discípulos vão oferecer-Lhe outros manjares, que Ele recusa: estava alimentado de
Amor, saciado de felicidade, pois desposara mais uma de suas criaturas.
A anotação do evangelista é bem típica: os "discípulos" se admiram de vê-Lo a falar com uma mulher.
Vimos o que representavam os discípulos, na lição profundamente simbólica (veja pág.155 do volume
1.º): justamente aqueles que ainda estão apegados à personalidade, preparando-se para o Mergulho
Profundo. Os que estão nesse ponto evolutivo, (que já saíram da "animalidade", mas ainda não pene-
traram a "individualidade"), esses com facilidade se admiram e "escandalizam" diante do Amor, em-
bora sabendo que a LEI é AMAR ... Se encontram dois seres no caminho da espiritualidade que "e
antipatizam, que se criticam, que se odeiam, acham natural e normal: é humano! Mas se encontrarem
dois que SE AMAM, o escândalo é imenso, e todos fogem apavorados porque ... eles cumprem a Lei
do Amor de Cristo! Bem típica a anotação do evangelista!

Jesus aproveita a circunstância para dar lições maravilhosas.

Como apaixonado pela numerologia, mais uma vez encontramos um ensinamento de João baseado
nessa ciência, apresentando uma oposição: "VÓS DIZEIS, ainda quatro meses para a colheita". O
arcano quatro exprime a lei da causalidade, ou seja, a ação da cadeia dos fenômenos ligados entre si;
no plano divino, é o Sagrado Tetragrama YHWH que produziu, como causalidade, o mundo; no plano
humano é a expressão do resultado das ações, simbolizado no quaternário inferior (personalidade),
representado pela cruz do corpo do homem físico, com a "prisão" do material denso (forma), do etéri-
co (sensações), do astral (emoções) e do mental concreto (intelecto). A doutrina dos discípulos era de
que a raça humana ainda não estava apta à união com o divino, precisando de muito trabalho externo
(ritos, liturgias, etc.), para "queimar primeiro o carma das ações pretéritas; por isso afirmam que
"ainda faltam quatro meses para a colheita". Realmente, apesar de todos os ensinos e exemplos de
Jesus, seus discípulos enveredaram por essa trilha, dando à humanidade (salvo raríssimas exceções),
apenas os meios de resgatarem carmas mediante ações externas.
Mas Jesus opõe-se a eles com Sua doutrina: "pois EU VOS DIGO: erguei os olhos e contemplai os
campos (das almas): vede que já estão brancos para a ceifa", estando muitos purificados (brancos),
sem mancha. Já é hora, pois, de colher, de levá-las ao Cristo Interno para o Encontro Sublime.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

O ceifador, isto é, aquele que colhe os frutos de sua sementeira, recebe o prêmio (salário) das obras
praticadas e ajunta frutos para a Vida Imanente, ampliando o celeiro de seu coração, para nele reco-
lher o Amor e expandí-lo de tal forma, que ele, o ceifador (o Espírito) e o semeador (o "espírito" ou
personalidade), ambos juntamente se regozijem.
E o Mestre confirma o ditado: "um é o que semeia, outro o que colhe". Com efeito, a personalidade
semeia na Terra suas ações boas e más, entretanto é a individualidade que colhe os frutos doces ou
amargosos. A personalidade esforça-se, estuda, aprende, semeando em si mesma a cultura,. mas a
individualidade é que colhe os resultados do conhecimento armazenado durante séculos. A personali-
dade semeia as experiências de suas numerosas e multifárias especializações, mas a individualidade
recolhe e aproveita o aprendizado e a evolução.
Daí ter o Cristo Interno enviado seus discípulos, no papel de individualidades em desenvolvimento,
para entrar no trabalho das personalidades anteriores, aproveitando o que elas executaram e apren-
deram no decurso de suas vidas múltiplas e sucessivas.

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C. TORRES PASTORINO

JESUS COM OS SAMARITANOS


João, 4:39-42
39. Muitos samaritanos daquela cidade creram nele por causa das palavras da mulher,
que atestara: 'Disse-me ele tudo o que fiz'.
40. Quando, pois esses samaritanos vieram ter com Jesus, pediram-lhe que ficasse com
eles. E passou ali dois dias.
41. E muitos mais acreditaram, por causa das palavras de Jesus, e diziam à mulher:
42. "Não é mais pelas tuas palavras que nós cremos, mas porque nós mesmos ouvimos e
sabemos que este é verdadeiramente o salvador do mundo".

A propaganda da samaritana excitou a curiosidade dos compatriotas, que acorreram pressurosos a ou-
vir o jovem profeta. Ficaram encantados e pediram que permanecesse com eles. Jesus acedeu, ficando
dois dias (os números em João !).
Convencidos, testemunharam que "não era mais por informações", mas por verificação pessoal que
passavam a crer. E brindam-No com o título de SALVADOR DO MUNDO, não apenas restrito a Is-
rael, mas destinado a todos.

Não foi só a Alma Vigilante que aproveitou do contato com o Cristo Interno, no Sagrado Esponsalí-
cio: muitas outras criaturas, que estavam mais ou menos "vigilantes", aderiram ao anúncio da Boa-
Nova que ela lhes dera, e foram ter com a individualidade. E, ao encontrar-se, pediram-Lhe que per-
manecesse com eles. Como o amadurecimento não era completo, só conseguiram a união por DOIS
dias. O número DOIS, nos arcanos, representa o princípio feminino, isto é, a esfera da receptividade,
o passivo, que, ao receber o princípio (o Um), produz o resultado (o Filho), perfazendo o ternário, que
exprime um ciclo completo da obra. Como a permanência foi de DOIS dias, isto significa que o re-
sultado (o Encontro) não foi obtido totalmente.
No entanto, mesmo esses dois dias de contato com o Cristo, fazem que essas almas "vigilantes", que
tinham chegado ao contato por meio da palavra da primeira, confessem: o contato pessoal fez-nos
sentir que realmente o Cristo Interno é o Salvador da Humanidade, é o "Caminho da Verdade e da
Vida".

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SABEDORIA DO EVANGELHO

VISITA A NAZARÉ
(maio/junho de 29 AD)
João, 4:43
43. Depois desses dois dias, partiu dali para a Galiléia.

Luc. 4:16-22a
16. E foi a Nazaré, onde se tinha criado; no sábado, entrou na sinagoga, segundo seu cos-
tume, e levantou-se para ler.
17. Foi-lhe entregue o livro do profeta Isaías e, tendo-o desenrolado, achou o lugar em
que estava escrito:
18. "Um espírito do Senhor está sobre mim: por cujo motivo me ungiu par anunciar boas
notícias aos mendigos; enviou-me para proclamar libertação dos cativos, restauração
da vista aos cegos e para por em liberdade os oprimidos,
19. e proclamar o ano aceitável ao Senhor".
20. Tendo enrolado o pergaminho, entregou-o ao assistente e sentou-se; e todos, na sina-
goga, tinham os olhares fixos nele.

João, 4:45
45. Assim, quando chegou à Galiléia, os galileus o receberam bem, porque tinham visto
tudo o que ele fizera em Jerusalém na ocasião da festa, pois eles também tinham ido à
festa.

Da Samaria, segue Jesus para a Galiléia, parando em Nazaré, onde, diz o evangelista, passou a primei-
ra infância (literalmente, "onde foi alimentado", no sentido de "onde foi criado").
Nota o autor, que Jesus foi à sinagoga no sábado, "como era seu costume". Como israelita cem por
cento, jamais deixou de cumprir rigorosamente - do nascimento até a morte - todos os preceitos da lei
mosaica. Se sempre foi, confessou e praticou a religião israelita, como afirmar que fundou nova religi-
ão? Jamais o fez. Confirmou o mosaísmo e declarou ter vindo para completar a lei. Apenas, dentro da
religião mosaica, ampliou a visão, ensinando preceitos novos e revelando mais alguns "segredos do
Reino". Numa palavra, deu um "código científico de vida". Bem sabia o Mestre que não é a religião
que salva ou que faz evoluir: é a ação pessoal de cada um, servindo a religião apenas de "trilho" para
facilitar a caminhada da personalidade. Daí, qualquer religião ser aceitável a Deus, pois Deus é um só
e não faz acepção de pessoas. Não é o rótulo que importa: é o conteúdo do frasco.
Tendo agora regressado de Jerusalém, onde tivera atuação rápida porém marcante, seus compatriotas
já o olhavam com admiração. Assim, após a leitura da Torah, quando chegou a vez de ser dada a pala-
vra aos assistentes que desejassem dizer alguma coisa, foi entregue a Jesus o rolo de Isaías. Jesus de-
senrolou-o e foi até o capítulo 61, onde começou a leitura.
Há algumas observações a fazer.
1.ª - O texto lido jamais foi considerado uma haphtarah oficial, isto é, um trecho cuja leitura fosse
estabelecida pela tradição, segundo a ordem de Esdras.

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C. TORRES PASTORINO
2.ª - Ao invés do texto hebraico de Isaías, a citação é feita pelo grego dos LXX. Na realidade, era mais
comum o grego que o hebraico, na Galiléia. Mas, nas recentes descobertas nas grutas de "Qumr'am"
(Mar Morto), foi encontrado um texto hebraico de Isaías que é mais conforme ao grego dos LXX do
que ao original massorético supondo-se, então, que esse texto recém-encontrado tenha sido o original,
do qual foi feita a tradução.
3.ª - O texto não é citado na íntegra. Não aparece a frase "curar os corações espesinhados" (vers.1) nem
"o dia da retribuição" (vers.2); mas ,entre um e outro, há a frase "para proclamar a libertação dos opri-
midos", que pertence ao cap. 58 vers.6, do mesmo Isaías. Essas modificações do original teriam sido
ocasionadas por traição da memória do evangelista que, não sendo judeu não o tinha bem de cor, nem
possuía o texto para confrontar? Aliás, não estava fazendo trabalho de crítica hermenêutica, mas ape-
nas de instrução espiritual.
Todos esses trechos de Isaías referem-se ao "Servo de YHWH", na era messiânica.
Note-se a frase de Isaías, confessando-se "médium", quando diz "um espírito do Senhor está sobre
mim", ou seja, "estou recebendo um espírito enviado do alto". Portanto, simples intermediário.
Terminada a leitura, Jesus entrega o livro ao hazzan (assistente) e senta-se para explicar. Os compatri-
otas ficam alertas, os olhos presos ao jovem que haviam visto menino a brincar nas ruas. E Yahsua
Ben- Yosef começa: "Hoje cumpriu-se esta profecia a vossos ouvidos".
Logicamente, muito mais deve ter dito. Lucas apresenta-nos um resumo. De qualquer forma, as pala-
vras impressionaram favoravelmente o auditório atento e amigo, despertando a satisfação e o orgulho
de ver um "dos seus" que falava tão belas palavras de amor. As traduções comuns trazem "palavras
cheias de graça", o que pode dar a falsa idéia de que Jesus tivesse feito humorismo. Ora, o texto origi-
nal diz bem claramente lógois tês cháritos, ou seja, “palavras de amor".
Além de tudo, a fama que chegara de Jerusalém, trazida pelos galileus que lá haviam estado, narrando
os acontecimentos com os naturais exageros, predispunha-os à admiração.
Jesus, porém, não se demora lá: após essa visita à sua cidade, à sua mãe e a seus irmãos e irmãs, par-
tem para Cafarnaum à beira do lago, passando antes, todavia, pela simpática cidadezinha da Caná.

Depois da festa iniciática no Monte da Vigilância (Samaria), Jesus recolhe-se novamente ao "Jardim
Fechado" (Galiléia) e fala aos "consagrados a Deus" (nazireus), entre os quais se havia criado, co-
mentando o profeta Isaías.
A reunião ("sinagoga" é palavra grega que significa "reunião" ou, por extensão, "lugar de reunião"),
é feita no dia do "repouso" ("sábado" exprime exatamente "repouso"), repouso das ocupações materi-
ais. O estabelecimento de um dia de repouso para a personalidade (trabalhos externos) mostra-nos a
necessidade que temos de parar intermitentemente as atividades personalísticas, para dedicar-nos tão
só às do Eu Profundo, na leitura e sobretudo na meditação sobre textos de Mestres. Nada de trans-
formar esse descanso da personalidade em outras atividades personalísticas de culto externo e ritua-
lístico: temos que alimentar o Espírito. E por isso os judeus nas sinagogas (e Jesus o exemplifica) li-
mitavam-se a ler e comentar os livros revelados (mediúnicos).
O texto de Isaías foi escolhido: suas palavras revelam a doutrina de Jesus, já preconizada por Isaías,
um dos maiores profetas (médiuns) que apareceu na Terra.
Começa esclarecendo que "um espírito (em grego sem artigo) do Senhor está sobre ele", ou seja, de-
clarando aberta e taxativamente que se encontrava mediunizado, recebendo um "espírito", que é bom
e elevado ("do Senhor"). Esse "espírito o ungiu", ou seja, o cristificou, para que ele pudesse realizar
sua missão. Observemos que o médium (profeta) não age por si: é intermediário. Não alcançou por si
mesmo a cristificação (pois nesse caso seria "mestre", e não medianeiro). Daí a necessidade de que
venha "sobre ele", envolvendo-o, um "espírito do Senhor", para ungi-lo, com a finalidade de sustentá-
lo para boa execução dos trabalhos espirituais. Na falta de mestres encarnados na Terra, os "espíritos

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SABEDORIA DO EVANGELHO

do Senhor" servem-se de instrumentos aptos a substituí-los. E a prova é que, por vezes, quando o "es-
pírito do Senhor" se retira, os intermediários fraquejam.
E a tarefa era anunciar "as boas notícias" ou "evangelho" aos mendigos.
Não aos mendigos materiais, de moedas ou de pão, mas aos "mendigos do espírito", àqueles que sen-
tem fome e sede de espírito e o mendigam ao Pai. Nesse mesmo sentido Jesus proferiu a bem aventu-
rança: "felizes os mendigos do espírito (ptôchoi tôi pneúmati) ou seja, os que mendigam com lágrimas
o dom do espírito. A esses sequiosos de espiritualizar-se, serão dadas as "boas notícias".
Então o profeta anuncia que vem proclamar a "libertação dos que estão cativos" na matéria, a restau-
ração da vista espiritual aos que estão cegos, sem ver a verdade; mais ainda, para por em liberdade
os oprimidos pela carne, pois doravante terão a faculdade de, mergulhando na Consciência Cósmica,
não mais sentirem o peso da matéria que lhes oprime a mente e o espírito, conforme dizia "o sábio" no
Livro da Sabedoria (9:15) "o corpo que se corrompe (que se coagula na matéria) pesa sobre a alma, e
esta habitação terrestre abate o espírito que pensa muitas coisas".
Além disso, vem proclamar o ano (isto é, a época) aceitável ao Senhor, pois Ele só espera a prepara-
ção do homem para aceitá-lo e nele manifestar-se.
Jesus, a seguir, revela que chegou o momento de cumprir-se a Escritura. A individualidade é que sabe
e pode declarar ao homem que chegou o momento de realizar o Encontro Sublime.
O evangelista, sem reproduzir as palavras proferidas por Jesus, declara que todos ficaram encantados
com as palavras de amor que procediam de Sua boca, tal como o ficam todos aqueles que tem a felici-
dade de ouvir as misteriosas palavras silenciosas e consoladoras que o Cristo Interno profere no mais
recôndito do coração humano, e que chegam em ondas benéficas ao cérebro inebriando de gozo o
intelecto da personalidade.

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C. TORRES PASTORINO

CURA DO FILHO DO OFICIAL DE HERODES


João, 4:46-54
46. Voltou, então, a Caná da Galiléia, onde fizera da água vinho. Ora, ali se achava um
oficial do rei, cujo filho estava doente em Cafarnaum.
47. Esse homem, ao saber que Jesus tinha regressado da Judéia para a Galiléia, foi ter
com ele e rogou-lhe que descesse para curar seu filho, porque estava à morte.
48. Disse-lhe Jesus: "Se não virdes demonstrações e prodígios, de modo algum acredi-
tais".
49. Rogou-lhe o oficial: "Desce, Senhor, antes que meu filho morra".
50. Disse-lhe Jesus: "Vai. Teu filho vive". O homem acreditou na palavra que Jesus lhe
dissera e retirou-se.
51. Já descia ele, quando seus servos lhe vieram ao encontro, dizendo que seu filho vivia.
52. Perguntou-lhes, então, a que hora se sentira ele melhor. E eles responderam: 'Ontem,
à sétima hora, a febre o deixou".
53. Reconheceu, então, o pai ser aquela a mesma hora em que Jesus dissera: 'Teu filho
vive". E acreditou ele e toda a sua casa.
54. Vindo de novo da Judéia para a Galiléia, esta foi a segunda demonstração que fez
Jesus.

Chegando a Caná (o evangelista não nos dá a razão dessa visita), só um fato é salientado: uma cura a
distância. Examinemos os pormenores.
Oficial do rei (em grego basilikós) exprime o que hoje chamamos um “palaciano", alguém que estava a
serviço do tetrarca Herodes, denominado "rei" por adulação.
Os exegetas discutem quem teria sido, e as opiniões, embora sem provas, tendem para identificá-lo
com Cusa (Hôzay), intendente de Herodes, cuja esposa Joana, juntamente com outras mulheres (cfr.
Luc.8:3 e Mr.15:40) acompanhavam Jesus, ajudando o grupo de seus discípulos, quer financeiramente
quer sobretudo em serviços próprios ao sexo, como cuidar da alimentação e da roupa.
Habitando em Cafarnaum, e sabendo que Jesus passara para Caná, Cusa sobe até lá (são 33 quilôme-
tros de subida íngreme) até que descobre o Mestre. E, sem rebuços, solicita o favor em benefício do
filho à morte.
A resposta de Jesus transparece imbuída de tristeza: não viera para as personalidades, mas para ensinar
à individualidade o caminho da libertação, e no entanto todos só se preocupam com seus corpos ... Se
não vissem demonstrações de poder, não creriam ... Mas o oficial estava aflito, e não quer saber de
conversa: "vem logo, Mestre, antes que meu filho morra" ! ...
É o grito angustiante de um pai que colocou em Jesus a última esperança, mas julga que só com Sua
presença física Lhe seria possível realizar a cura. Calmo e cônscio de Sua Força Cósmica, Jesus lhe
assegura que o filho está salvo.
Aqui entra a fé do oficial. Acreditou e aceitou. E imediatamente regressa, descendo de Caná. Ao che-
gar à beira do planalto, quando começou a descer (a diferença de altitude entre Caná e Cafarnaum é de
700 metros), depara os servos que subiam a seu encontro.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Examinemos uma contradição aparente no horário. Segundo informações, a cura foi realizada "à séti-
ma hora" (13 horas). Logo após o palaciano se retira, empreendendo a viagem de regresso. Essa via-
gem, na descida a pé, é feita geralmente em sete ou oito horas, quando se anda a bom passo, sendo três
horas e meia no plano, através do planalto da Galiléia e outro tanto na descida propriamente dita. Sain-
do, pois, por volta das 13 horas (talvez com ligeira parada para refeição e repouso) o palaciano deveria
chegar a casa pelas 21 horas. Ora, os servos devem ter saído bem depois das 13 horas: a admiração, a
alegria, a verificação da cura, os raciocínios e ponderações e, finalmente, a resolução de mandar os
servos a Caná, para avisar o oficial.
Sendo a descida mais rápida que a subida, o encontro deve ter-se dado, realmente, como diz João,
quando "já descia ele", ou seja, a dois terços ou mais da caminhada, o que nos leva às 19 ou 20 horas.
Se assim foi, os servos tiveram razão de dizer: ONTEM, porque às 18 horas havia começado o "dia
seguinte". Sabemos, com efeito, que na Palestina os dias eram computados (como ainda hoje os sába-
dos entre os israelitas) das 18 às 18 horas.
O fato comprovado solidificou a crença de Cusa e trouxe a adesão de "toda a casa", ou seja, dos pa-
rentes e da criadagem. Daí por diante, sua esposa Joana, sobretudo, jamais se afastaria de Jesus e de
seus discípulos.
E (simples hipótese, à qual voltaremos mais tarde), não seria essa Joana outra das "irmãs" de Jesus?
Isso explicaria a intimidade de Cusa, o conhecimento dos passos de Jesus, sua localização em Caná, e
a certeza de que Ele, que não era ainda conhecido como "curador", poderia fazer voltar a saúde a seu
filho .
E João anota que Jesus veio de novo da Judéia para a Galiléia e, então, novamente em Caná, fez a se-
gunda demonstração de Sua doutrina e de Sua Força Crística.

Nos mínimos fatos há ensinamentos de alto valor.


Jesus recolhe-se novamente em prece (Caná), elevando para o Alto suas vibrações, qual um caniço
erecto. Mas a personalidade sujeita às aflições e à morte, vai em Sua busca reclamando alívio às an-
gústias.
O homem, um "oficial do rei" (ou seja, alguém cujo ofício se prendia às coisas, à matéria) vê seu filho
(a personalidade) a morrer, e requer a presença da individualidade.
Jesus ensina que os prodígios e as demonstrações requeridas pelo intelecto de nada valem. Mas a
personalidade não se conforma. Dá-se então o inesperado, a revelação de que "o filho vive". Jesus
não promete a cura, mas " vida. Não é tanto a cura do corpo físico (coisa secundária para o Espírito),
mas a vida do "espírito". E mais uma vez dá-se uma União, revelada pelo evangelista com o número
cabalístico: à sétima hora. Quando chega a hora sétima, a febre das paixões e dos equívocos ilusórios
abandona as criaturas e elas passam a VIVER.
Através desse fato, que revela o amor paternal a agir, compreendemos também a lição mais profunda:
quando aflitos, a "mendigar o espírito", verificamos que nosso quaternário inferior está ainda total-
mente envolvido pela FEBRE das paixões, e que se encontra prestes a sucumbir, é então que o Espí-
rito (o PAI da nossa personalidade) se aflige realmente, e sai correndo em busca de auxílio, recorren-
do pela prece ao Cristo Interno, nosso Eu Profundo. Mas quase sempre esperamos "milagres" que nos
libertem dos atrativos inferiores. Em contato com a Individualidade, vemos que todas as ilusões físi-
cas, sensoriais, emocionais e intelectuais nos abandonam, porque tomamos contato com a realidade
absoluta e eterna. Mergulhamos na Consciência Cósmica, no Cristo Interno, e todas as ilusões se
mostram tais quais são: ilusões. E novamente a Vida nos vivifica.
Os servos (os sentidos) revelam ao Espírito (pai) que não mais sentem "febre" alguma, e ele reconhe-
ce que foi "no momento exato" do contato que a vida nele penetrou. E ele (o espírito) passa a acredi-
tar por experiência própria, e com ele "toda sua casa", isto é, todos os seus corpos (habitação do es-

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pírito). E todo inteiro passa ele a dedicar-se ao serviço do Mestre Incomparável que o conquistou
para o resto dos séculos sem fim.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

JESUS SE FIXA EM CAFARNAUM


Mat. 4:13-16
13. E (deixando Nazaré), foi morar em Cafarnaum, situada à beira-mar, nas fronteiras
de Zabulon e Neftali,
14. para que se cumprisse o que foi dito através do profeta Isaías:
15. "Terra de Zabulon e Terra de Neftali, caminho do mar além do Jordão, Galiléia dos
gentios!
16. o povo que jazia nas trevas, viu uma grande luz; e os que estavam sentados na região
sombria da morte, para estes raiou a luz".

Três pequenas cidades podem orgulhar-se de haver hospedado Jesus por ocasião de Sua estada no cor-
po físico: Belém, Nazaré e Cafarnaum. Está última (tal como Nazaré) jamais aparece citada no Antigo
Testamento. Mas temos a satisfação de vê-la em Flávio Josefo (Bell.Jud.3.10, 8) uma vez; embora em
sua "Biografia" (§ 72) ele fale de uma vila "Kepharnomé". Aparece também no Talmud (Midrash Ko-
heleth, 7,20). No Evangelho, é chamada até, quando se fala de Jesus "sua própria cidade" (hê idía pó-
lis, Mat.9:1). Também Ptolomeu (Geografia, 4, 16, 4) a cita. Tudo isso corrobora a historicidade dos
Evangelhos. Dela hoje restam as ruínas de Tell Houm, a noroeste do Lago de Tiberíades.
Situava-se no território atribuído à tribo de Neftali, mas era limítrofe do da tribo de Zábulon. Mateus
aproveita-se disso para aplicar a Jesus o trecho de Isaías (8:23 a 9: 1). Diz o original: "No passado, o
Senhor humilhou a terra de Zabulon e a terra de Neftali; no futuro glorificará o caminho do mar, a ou-
tra margem do Jordão e a Galiléia dos gentios: o povo que caminhava nas trevas viu grande luz; sobre
os habitantes da terra das sombras uma luz brilhou".
O "caminho do mar" ia de Damasco ao Carmelo, através do Jordão (também chamada "Peréia", do
grego péran, que significa "além", e que hoje é denominada "Transjordânia").
A Galiléia dos gentios, em hebraico Ghelil hagguim. Ghelil que deu Galiléia, significa "jardim", "regi-
ão", "distrito". A cidade cosmopolita de Cafarnaum, com grande mistura de judeus e gregos, constituía
forte entreposto comercial, com ligações por terra e mar com os distritos circunvizinhos e que deman-
davam Horã, Tiro, Sidon, Síria e Egito" Daí serem tidos os cafarnaítas, pelos ortodoxos da Judéia,
como "livres-pensadores" e como "heréticos sincretistas". Mas, justamente por isso, o terreno era feraz
para a pregação de Jesus, com almas sinceras, sem hipocrisia, podendo manifestar livremente suas
crenças.

A fixação da residência de Jesus em Cafarnaum (cidade do Consolador), na Galiléia (jardim fecha-


do), dá-nos a chave da atuação da individualidade enquanto encarnada num corpo físico: manter-se
em permanente recolhimento interno, mas fazer tudo o que lhe seja possível para socorrer os demais
espíritos em suas aflições, no papel de consolador; embora não tirando as dores cármicas, dá a todos
a força necessária para suportá-las, aproveitando-lhes todo o fruto de amadurecimento que lhes tra-
zem ao espírito, não só purificando-o, como também fortalecendo-o e elevando-o a novos planos.

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C. TORRES PASTORINO

CONVOCAÇÃO DOS DISCÍPULOS

Mat. 4:18-22 Marc.1:16-21 Luc. 4:31a

18. E passeando ao longo do 16. E passeando ao longo do 31. Então, desceu a Cafar-
mar da Galiléia, viu dois mar da Galiléia, viu a Si- naum, cidade da Galiléia.
irmãos, Simão, também mão e a André, irmão de (...)
chamado Pedro, e André Simão, lançando a rede ao
seu irmão, lançando a rede mar, pois eram pescadores.
ao mar, pois eram pescado- 17. Disse-lhes Jesus: "Vinde
res. após mim e eu vos farei
19. E disse-lhes: 'Vinde após pescadores de homens".
mim, e eu vos farei pesca- 18. E imediatamente deixando
dores de homens". as redes, o seguiram.
20. Imediatamente deixaram 19. Passando um pouco adiante
eles as redes e o seguiram. viu a Tiago, filho de Zebe-
21. Jesus, seguindo adiante viu deu, e João seu irmão, que
outros dois irmãos, Tiago, estavam na barca conser-
filho de Zebedeu, e João tando as redes.
seu irmão, que estavam na 20. No mesmo instante os cha-
barca com seu pai Zebedeu, mou. Tendo deixado na
consertando as redes, cha- barca Zebedeu, seu pai,
mou. com os empregados, eles
22. Deixando imediatamente a foram após Jesus.
barca e seu pai, eles o se- 21. E entraram em Cafar-
guiram. naum. (...)

Jesus tranquilamente passeava (peritatôn) pelas margens risonhas do Lago de Tiberíades. Lago peque-
no, que mede nos pontos extremos 21 km de comprimento por 12 km de largura. Aparece ora como
"lago" ora como “mar", recebendo a denominação de Genesaré (étimo desconhecido) ou de Tiberíades,
depois que em sua margem Herodes Antipas construiu a cidade desse nome em homenagem ao Impe-
rador Tibério.
Bastante rico em peixe, essa indústria prosperava, escoando-se com facilidade e remunerando bem os
que a ela se dedicavam. O lucro devia favorecer a companhia, chefiada por Pedro (que não era pobre,
pois possuía bens, que alegou ter abandonado para seguir a Jesus, cfr. Mat. 19:27).
A companhia de pesca era constituída de vários sócios: Pedro, seu irmão André, e Zebedeu, que agre-
gara como sócios também seus dois filhos Tiago e João, além de outros empregados, que prosseguiram
no trabalho depois que os quatro sócios se retiraram, para garantir-lhes o rendimento financeiro.
Ao transitar em seu passeio, Jesus surpreende os pescadores em sua faina a "lançar as redes", expres-
são técnica (amphibállontas) do ramo da pesca.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Os dois irmãos Pedro e André, assim como João, já eram conhecidos por Jesus, que os recebera ao
saírem eles do grupo do Batista, que O acompanharam na viagem a Jerusalém e no regresso à Galiléia,
passando por Samaria.
Tiago é nomeado pela primeira vez, como irmão de João, ambos filhos de Zebedeu (Zabdai) e de Sa-
lomé (Marc.15-40). Seria Salomé uma das “irmãs" de Jesus? Nesse caso, João e Tiago seriam seus
sobrinhos, e isso talvez explique a maior intimidade deles com o Mestre, acompanhando-O de perto
nas ocasiões mais importantes de Sua vida terrena.
Tiago irmão de João é conhecido com o cognome de "o maior", isto é, o mais velho, para distinguí-lo
do outro Tiago, "irmão" de Jesus, denominado "o menor", ou seja, o mais moço.
A cena do chamamento é de grande simplicidade. Os dois primeiros estavam a pescar, "lançando as
redes", enquanto os segundos estavam "na outra barca, a consertar as redes".
Jesus aproveita o fato de estarem a pescar, para demonstrar-lhes, numa frase, o apostolado a que Ele os
destinava: "pescadores de homens". Todas os quatro largam imediatamente (Kai euthús) seus afazeres
e acompanham o Mestre. Não tinham realmente necessidade de seu trabalho manual para seu sustento,
já que os empregados continuariam a tarefa, sob a direção de Zebedeu, provendo-lhes ao ganha-pão.
Anota Marcos, de fato, que Zebedeu ali permaneceu com os empregados, tendo compreendido o al-
cance da tarefa espiritual que lhes estava reservada.
Por isso também vimos Pedro, André e João, sem maiores preocupações financeiras, permanecerem
algum tempo na Judéia, como discípulos do Batista; e depois viajarem acompanhando Jesus, como
gente que sabe ter seu sustento garantido e não precisa regressar em dia marcado, para não perder o
emprego.

Neste episódio consideramos não mais um discipulado, ou seja, a aceitação, por parte da personali-
dade, das doutrinas da individualidade; mas sim a renúncia à própria personalidade, para ir em bus-
ca da individualidade. E isso é feito com a renúncia total de tudo: pais, haveres e profissão.
A um simples chamado, já preparados, eles obedecem imediatamente, sem nada perguntar, sem qual-
quer preocupação: é a adesão integral.
Daí por diante atrairão a si não mais peixes (corpos materiais) capturados com redes, aprisionados à
violência e dominados com despotismo tirânico; mas antes criaturas humanas, atraídas por amor de
modo a se chegarem espontaneamente e a permanecerem com a liberdade individual.
Aprendemos, ainda, que nem todos são chamados: Zebedeu continuou em seu labor material, porque
sua evolução lhe não permitia aderir à individualidade. Permaneceu, pois, com "os empregados" (veí-
culos inferiores) a cuidar das coisas físicas.
O grupo de cinco partiu das margens do lago e penetrou a "cidade do Consolador" (Cafarnaum),
prontos todos a iniciar a tarefa de levar conforto aos que sofriam, de enxugar as lágrimas dos que
choravam, de reavivar a luz dos que estavam nas trevas, de abrir os ouvidos dos que nada percebiam
espiritualmente, de servir de muletas aos que coxeavam no caminho do progresso, de limpar os densos
fluídos dos leprosos morais: ministério de Consolação e magistério de espírito, calor para os cora-
ções e luz para as mentes.

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C. TORRES PASTORINO

CURA DE UM OBSIDIADO

MARC. 1:21-28 Luc 4:31-37

21. ... E imediatamente nos sábados, indo à si- 31. ... E ensinava a eles nos sábados,
nagoga, ensinava. 32. e admiravam-se muito de seu ensinamento,
22. E admiravam-se muito de seu ensino, por- porque sua palavra fora com autoridade.
que ele ensinava como quem tinha autori- 33. Estava na sinagoga um homem que tinha
dade, e não como os escribas. um espírito de um desencarnado atrasado, e
23. Ora, estava na sinagoga deles um homem, bradou em alta voz:
com um espírito atrasado, que gritou: 34. "Ora, que (importa) a nós e a ti, Jesus Naza-
24. "Que (importa) a nós e a ti, Jesus Nazareno? reno ? Vieste a perder-nos? Eu sei quem és:
Vieste a perder-nos? Bem sei quem és: o o santo de Deus".
santo, de Deus". 35. Jesus repreendeu-o dizendo: "Cala-te e sai
25. Mas, repreendendo-o, disse Jesus: "Cala-te dele". E, tendo-o lançado por terra no meio
e sai dele". (de todos), o desencarnado saiu dele sem tê-
lo magoado.
26. Então, agitando-o violentamente e bradan-
do em alta voz, o espírito atrasado saiu dele. 36. Todos ficaram admirados, e perguntavam
uns aos outros: "Que palavra é essa, pois
27. E todos ficaram tão admirados que uns
com autoridade e poder ordena aos espíri-
perguntavam aos outros: "Que é isto? que
tos atrasados e eles saem"?
novo ensinamento é esse? Porque com auto-
ridade ele manda também aos espíritos 37. E por todos os lugares da circunvizinhança
atrasados e eles lhe obedecem"! divulgava-se sua fama.
28. Divulgou-se logo sua fama por toda a cir-
cunvizinhança da Galiléia.

Como era de seu hábito, num sábado Jesus entra na sinagoga. Não se fala de seus discípulos, mas pa-
rece evidente que Pedro, André, Tiago e João que moravam em Cafarnaum deviam lá achar-se, como
bons judeus. Era costume serem convidados os visitantes e assistentes a falar, e isso muito favoreceu a
Jesus, e mais tarde aos apóstolos, a divulgação da nova doutrina diante dos que se interessavam por
assuntos religiosos.
Marcos assinala a admiração dos circunstantes pela autoridade com que Jesus falava, “não como os
escribas” que, de modo geral, levavam os comentários decorados: tanto que o maior elogio que se lhes
podia fazer era de “não dizerem uma só palavra se a não tivessem ouvido de seu mestre". O povo ha-
bituara-se, pois, a ouvir sentenças pré-fabricadas e recitadas, e não interpretações vivas e palpitantes,
objetivas e, acima de tudo, cheias de amor (Lc,4:22).
Encontrava-se na sinagoga um homem obsidiado por um "espírito" atrasado ( άиάθαρτος = não purifi-
cado, não evoluído); aparece essa expressão 23 vezes em o Novo Testamento referindo-se não a uma
pureza legal, mas moral.
Lucas esclarece bem que se trata de "um espírito de um desencarnado" ( πνεϋµα δαιµονίου ) o qual era
ainda não purificado ou atrasado ( άиάθαρτου ) em genitivo, concordando com "desencarnado".

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Como desencarnado, embora atrasado, estava apto a ver a aura magnificamente luminosa de Jesus e a
pressentir que seu domínio sobre o obsidiado, que ele subjugava, teria que terminar. Lança então a
exclamação: "que ( importa) a nós e a ti, Jesus Nazareno" o que este sofre? A expressão τί ήµίν иαί σοί
(que analisamos à pág, 158/9 do vol, 1.º) não é um hebraísmo (como afirma Pirot, vol. 9, pág. 415), já
que era empregada também por autores gregos que nenhum contato tinham com os israelitas, embora
se encontrasse também no hebraico ‫ מח־בגו ךבד‬, tendo sido usada no Antigo Testamento.
O "santo de Deus", ‫ קדרש‬exprime "o consagrado" ao serviço divino, que em grego, άγιος tem precisa-
mente o sentido de "consagrado à divindade, santo, puro", quando se refere a pessoas.
Jesus não conversa nem discute: impõe-lhe silêncio e o desliga do obsidiado. O ato do desligamento
fluídico das duas auras (a do desencarnado que domina e a do encarnado subjugado) provoca "violenta
agitação"; e a angústia da separação faz que o obsidiado grite: todos esses fatos são corriqueiros nas
sessões espíritas, quando se realiza o mesmo ato do desligamento de obsessores violentos. Mas a li-
bertação é feita.
Dá-nos Lucas o pormenor de que o obsidiado foi "lançado por terra", como se houvera perdido repen-
tinamente o ponto de apoio que o sustentava. Também essa modalidade não é rara em nossos dias.
Assinala-se a admiração dos assistentes. Todos conheciam os métodos “religiosos" do exorcismo, que
dificilmente surtiam efeito, por falta de "autoridade moral” dos exorcistas e pelo desconhecimento da
técnica obsessória. E o que os impressiona é o poder psíquico de dominar os desencarnados atrasados
que, quase sempre, são renitentes, teimosos e irreverentes, não obedecendo jamais a quem não possua
real força moral para impor-lhes o afastamento.
Logicamente a fama se espalhou pelas redondezas, apressando-se cada qual a contar as novidades
(neste caso as "Boas-Novas") de que aquele Jesus de Nazaré era senhor de forças notáveis, acima do
comum dos homens.

Jesus, que representa a individualidade, ensina-nos com seu exemplo que mesmo aqueles que já não
necessitam dos "trilhos" de uma religião, nada perdem em sujeitar-se às tradições de seu povo; antes,
devem aproveitar as situações que se apresentam para elucidar a todos as grandes verdades profun-
das do Espírito. Deve, portanto, frequentar o círculo religioso a que se acha ligado, seja ele qual for.
Mostra-nos que, nesses ambientes, deve o iluminado agir com força e autoridade, mas sobretudo com
amor, atendendo aos necessitados, servindo a sua necessidade de evolução. Não obstante, deve evitar
que qualquer indiscrição queira revelá-lo como superior aos outros; então, imporá silêncio, todas as
vezes que um desencarnado tente revelar quem ele é. Nenhuma dúvida, porém, quanto à ação que lhe
seja possível, em benefício de qualquer necessitado espiritual.
Outra interpretação do texto revela-nos que nossa individualidade deve agir com autoridade cada vez
que descobre que nossa personalidade está dominada por “espíritos atrasados” de nossos vícios mi-
lenares: egoísmo, ambição, ódios, etc. Quando nossa iluminação perceber que nosso "espírito perso-
nalístico" é dominado por qualquer vício, deve imediatamente ordenar seu aniquilamento, embora
nosso “espírito atrasado" se contorça, grite e nos lance por terra, sofrendo ao destacar-se do vício.
Sem essa força moral do Espírito, jamais poderia o “espírito" progredir: permaneceria séculos (como
tem permanecido) preso às ilusões demolidoras de nossa ascensão espiritual, aos apegos desordena-
dos às coisas e prazeres materiais transitórios. Lição oportuna e necessária para nossa evolução.

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C. TORRES PASTORINO

CURA DA SOGRA DE PEDRO

Mat. 8:14-15 Marc. 1:29-31 Luc. 4:38-39

14. Tendo entrado Jesus na 29. Em seguida, tendo saído da 38. Tendo-se levantado e saído
casa de Pedro, viu que a sinagoga, foram com Tiago da sinagoga, entrou na casa
sogra deste estava de cama e João à casa de Simão e de Simão. E a sogra deste
e com febre; André. estava deprimida por vio-
lenta febre; e pediram-lhe a
15. e tocando-lhe a mão, a fe- 30. A sogra de Simão estava de
favor dela.
bre a deixou; então ela se cama com febre, e logo lhe
levantou e os servia. falaram a respeito dela. 39. Ele, inclinando-se para ela,
repreendeu a febre e esta a
31. Então, aproximando-se da
deixou; e logo se levantou e
enferma, e tomando-a pela
os servia.
mão, levantou-a; a febre a
deixou e ela começou a ser-
vi-los.

Ao terminar o culto na sinagoga, dirige-se Jesus à casa de Pedro e de André (o que confirma a presen-
ça dos dois que, naturalmente, saíram junto com Jesus); nessa casa, segundo a tradição, achava-se
Jesus hospedado durante sua vida pública. Embora natural de Betsaida (João, 1:44) Pedro habitava em
Cafarnaum, seja por motivo de seu casamento (residia com a sogra), seja por causa de sua "Sociedade
de Pesca".
Regressando a casa, encontraram a sogra de Pedro (cujo nome ignoramos) atacada de febre. Comuns
eram essas febres na Palestina, mormente nos locais vizinhos a lagos, onde grassava o impaludismo
provocado pelos mosquitos muito numerosos, sem que se pusessem em prática regras de higiene. Lu-
cas diz-nos tratar-se de "violento acesso de febre". Mateus assinala que Jesus "viu"; Marcos que "lhe
falaram" a respeito dela, como que desculpando-se de lhe não poder ser dada assistência; Lucas escla-
rece que "pediram" a favor dela.
Jesus inclina-se sobre a doente, toca-a com a mão e a levanta. A febre desaparece instantaneamente, e
bem assim a fraqueza superveniente a esses acessos de impaludismo. A enferma sente-se bem forte
para servir a todos com solicitude.
Nada se fala da esposa de Pedro: é a sogra que parece governar a casa.

Pensam alguns que a criatura que atingiu a vida permanente na individualidade não deve mais aten-
der ao círculo familiar, mas apenas aos estranhos. Jesus ensina-nos que isso constitui um erro. Os
familiares merecem tanto nossa atenção quanto os estranhos, porque nos são mais achegados; e essa
aproximação mostra-nos que eles precisam de nós ainda mais que os outros. Portanto, os parentes
não devem ser menosprezados, mas atendidos com solicitude. Se bem que devamos ter desapego da
família, jamais devemos abandoná-la. O mesmo comportamento deve ser mantido com os familiares
de amigos e condiscípulos.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

OUTRAS CURAS

Mat. 8:16-17 Marc. 1 :32-34 Luc. 4:40-41

16. Ao chegar a tarde, trouxe- 32. Ao chegar a tarde, estando 40. Ao por do sol, todos os que
ram-lhe muitos obsidiados; sol já posto, traziam-lhe to- tinham enfermos de várias
e ele expeliu os espíritos dos os doentes e obsidiados: moléstias lhos trouxeram; e
com a palavra e curou to- 33. e toda a cidade estava reu- ele, impondo as mãos sobre
dos os doentes, nida diante da porta. cada um deles, os curou.
17. para cumprir-se o que foi 34. Então curou muitos que se 41. Também de muitos saíram
dito através do profeta achavam doentes de diver- os espíritos desencarnados,
Isaias: "Ele mesmo tomou gritando: "Tu és o Filho de
sas moléstias e expulsou
as nossas fraquezas, e re- Deus"'. Ele, repreendendo-
muitos desencarnados e
moveu nossas enfermida- os, não lhes permitia que
não permitiu que os desen-
des". carnados falassem, porque falassem, porque sabiam
sabiam (quem ele era). que ele era o Cristo.

A libertação do obsidiado, na sinagoga, espalhou-se por toda Cafarnaum, muito favorecendo a divul-
gação o fato de, aos sábados, não podendo trabalhar nem perambular, ficarem os israelitas à frente de
suas casas, em longas conversas, cujo teor corria de rua em rua.
O resultado é que, logo após terminar o descanso ritualístico, às 18 horas ("logo após o por do sol",
como bem esclarece Marcos), todos se movimentarem para levar seus enfermos e obsedados à residên-
cia de Jesus, na casa de Pedro.
As expressões "muitos" e "todos" são equivalentes. Mateus cita Isaías (53:4) pelo texto hebraico-
massorético; aí, porém, se afirma que "o Messias deverá tomar sobre si (fisicamente) as enfermidades",
o que não é o caso.
Lucas mostra Jesus a proibir que os "espíritos" desencarnados falem a seu respeito, "porque sabiam
que ele era o Cristo". A todos Jesus atendia carinhosamente, livrando os obsidiados e curando os en-
fermos.

Mais uma lição de SERVIÇO, que jamais deve ser negado pela individualidade: é através da liberta-
ção das personalidades ainda presas ao resgate das dívidas do passado, que as criaturas poderão um
dia compreender o caminho que se lhes abre diante. Só uma pessoa, que pode superar seus proble-
mas, consegue atingir a visão da estrada a percorrer.
Ensina-nos, também, que mesmo o Espírito liberto, e a viver na individualidade, deve cuidar de seus
veículos físicos, procurando curar-se de suas doenças, libertando-os de seus apegos e obsessões pelas
coisas materiais. Pelo fato de havermos passado a um degrau superior, nem por isso devemos descui-
dar, e muito menos maltratar, os veículos inferiores que nos ajudam na caminhada: o motorista deve
cuidar bem do seu automóvel, senão poderá este deixá-lo no meio da estrada.
Evitemos, porém, intransigentemente que nos teçam elogios, ainda que esses elogios digam a verdade.
Não basta gabar-se: nem mesmo que os outros o façam deve ser permitido por nós. Por mais elevados
que estejamos, seremos os primeiros a reconhecer que muito nos falta a percorrer: a humildade REAL

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C. TORRES PASTORINO
é, como definiu uma grande amiga nossa, "o conhecimento de nossa participação na Vida", portanto a
simplicidade da aceitação daquilo que se nos apresenta, e não as palavras e impressões que possam
provir de outros a nosso respeito.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

ORAÇÃO

Marc. 1:35-38 Luc.4;42.43

35. Levantando-se antes da madrugada, noite 42. Sendo já dia, saiu e foi a um lugar deserto; e
ainda, saiu e foi a um lugar deserto, e aí as multidões o Procuravam e, tendo-o en-
orava contrado, queriam detê-lo para que não as
deixasse.
36. Simão e seus companheiros foram procurá-
lo, 43. Mas ele lhes disse; "Também às outras ci-
dades eu preciso dar as boas notícias do
37. e, tendo-o encontrado, disseram: "todos te
Reino de Deus, pois para isso fui enviado".
buscam".
38. Disse-lhes Jesus: "Vamos a outros lugares,
às povoações vizinhas, a fim de que eu tam-
bém aí pregue, porque para isso vim".

Após o trabalho intenso da noite do sábado, Jesus sai da casa de Pedro "antes da madrugada, noite ain-
da" (Marcos) ou "logo que surge o dia" (Lucas), pormenores que não trazem preocupação ao espírito.
Dirige-se a um “lugar deserto". Marcos, cujas narrativas são sempre mais pitorescas e cheias de viva-
cidade, esclarece que "foi orar", coisa não assinalada aqui por Lucas que, no entanto, é o evangelista
que mais cita essa particularidade.
Simão e seus companheiros vão procurá-lo, para informar-Lhe que há muita gente que O busca. Mas
Jesus diz que precisa ir a outras cidades para anunciar a Boa-Nova, pois "para isso VIM" (Marcos) ou
"FUI ENVIADO" (Lucas). Outra vez a confirmação da preexistência do espírito ao nascimento: só
vem ou é enviado quem já existe: se o espírito fora criado no momento de nascer, só caberia a expres-
são: "fui criado" para isso.

Demonstra-nos Jesus, com seu exemplo, que por mais elevado que seja ou esteja o Espírito, não pode
prescindir da união com Deus em isolamento, numa prece que o fortaleça. Muitos acreditam que o
trabalho, sobretudo espiritual, é uma oração. Sem dúvida que é. Mas não basta. É indispensável ora-
ção isolada, do Espírito que se une a Deus em seu coração. E para isso, é indispensável a solidão, o
afastamento do bulício do mundo, nem que seja, por alguns minutos ao dia, ou à noite.
Todas as criaturas são enviadas à Terra para uma tarefa. e seu progresso consistirá em cumpri-lo à
risca. Não é portanto justo que, para atender a quem nos chama, por mais sofredor que seja. tenha-
mos que desviar o rumo de nossa rota: antes de tudo e acima de tudo, o cumprimento de Vontade divi-
na a nosso respeito. Quando podemos, atendemos com todo interesse aos que necessitam de nós. Mas
quando isso nos desviasse do caminho, sigamos nosso roteiro, porque é mais importante do que uma
"caridade" mal interpretada. Não temos direito de falsear nossos deveres espirituais, e o primordial
dever é obedecer à tarefa que nos foi imposta. Jamais esqueçamos que a LEI não comete injustiças: se
alguém sofre, é resultado de seus próprios atos no passado e se, no momento, não podemos atender
porque nossa tarefa nos desvia do caminho deles, isso significa que a hora de eles serem aliviados eu
libertados ainda não soou.
Também nos ensina este trecho, que jamais deve o Espírito deixar de fazer sua oração de união com
Deus, embora os necessitados (nossos veículos inferiores) nos chamem para distrair-nos dessa neces-

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C. TORRES PASTORINO
sidade vital. O caminho para Deus, por si só, os ajudará. Precisamos erguer-nos a outros planos:
saibamos não dar ouvidos aos apelos, sobretudo aos desordenados, de nossos veículos (corpo, sensa-
ções, emoções, intelecto). Só assim progrediremos para nossa união com Deus.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

NO BARCO DE PEDRO
Luc. 5:1.3
1. Apertado pela multidão que ouvia a palavra de Deus, estava Jesus em pé junto ao
lago de Genesaré,
2. e viu dois barcos junto à terra; mas os pescadores haviam desembarcado e lavavam
as redes.
3. Entrando em um dos barcos, que era de Simão, pediu-lhe que o afastasse um pouco
da terra; e sentando-se no barco, dali ensinava à multidão.

Após tê-Lo ouvido várias vezes nas sinagogas, aos sábados, a multidão se habituara à Sua palavra
"cheia de amor". E onde quer que O visse, cercava-O para avidamente beber seus ensinamentos.
Assim ocorreu que, ao caminhar pela praia do Lago de Genesaré, foi descoberto pelo povo, que imedi-
atamente O envolveu, comprimindo-O. Jesus observou dois barcos que haviam chegado à praia, cujos
pescadores lavavam as redes. Pediu a Simão que O recebesse em seu barco e o afastasse um pouco da
terra, e assim falou ao povo.

Lição preciosa. Quando uma criatura começa a "ter fama", geralmente é muito procurada, porque
todos querem "ouvir", embora ainda não pratiquem o que ouvem. Quando, pois, acossados pela "mul-
tidão", devem eles saber manter a distância, não deixando de ensinar, mas também não permitindo
que um contato demasiado estreito se estabeleça.
Jesus sai da terra (do físico) passando à barca de Pedro (intelecto), sobre as águas (interpretação
pelo espírito e não pela letra). Foge assim às sensações e emoções. ensinando segundo o raciocínio e
a razão, falando à mente e ao espírito.
Todas as vezes que a multidão de sensações (curiosidade) e de emoções (admiração e pasmo) nos qui-
serem apertar para buscarmos o conhecimento espiritual, sensitivo ou emotivo, devemos saber subir à
barca de Pedro e afastar-nos da terra, para estudar apenas com o intuito de compreender, e não de
satisfazer à nossa parte inferior. Nada de admitir a curiosidade e a emoção em nosso aprendizado:
compreender, sim, para PRATICAR; e não apenas ouvir para satisfação de nossa vaidade.

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C. TORRES PASTORINO

PESCARIA INESPERADA
Luc. 5:4-11
4. Quando acabou de falar, disse a Simão: "Faze-te ao largo e lançai vossas redes para a
pesca".
5. E respondendo, disse Simão: "Mestre, tendo trabalhado toda a noite, nada apanha-
mos; porém sobre tua palavra lançarei as redes".
6. Feito isto, apanharam grande quantidade de peixes, e as redes rompiam-se.
7. Acenaram aos companheiros que estavam no outro barco, para virem ajudá-los; eles
vieram e encheram ambos os barcos a ponto de ameaçarem afundar.
8. Vendo isso, Simão Pedro lançou-se aos pés de Jesus, dizendo: "Retira-te de mim, Se-
nhor, porque sou um homem errado"!
9. A admiração à vista da grande pescaria que haviam feito o invadiu e a todos os que
estavam com ele,
10. como igualmente a Tiago e João, filhos de Zebedeu, que eram sócios de Simão. Disse
Jesus a Simão: "Não temas, de ora em diante serás pescador de homens".
11. E levados os barcos para terra, deixando tudo, seguiram-no.

Depois de ter falado ao povo, Jesus diz a Pedro que se afaste da margem e lance a rede. O velho pes-
cador experimentado nas lides no mar argumenta que, nada tendo apanhado a noite toda, de dia menos
probabilidade havia mas, acrescentou, "creio em tua palavra". E a pescaria foi extraordinária, tanto que
tiveram que pedir auxílio aos companheiros da outra barca da sociedade, dirigida por Zebedeu.
Pedro dá-lhe o título de epistata, que traduzimos por "mestre", embora não seja bem esse o sentido. A
palavra epistátês só é usada em o Novo Testamento por Lucas, neste e em mais quatro passos (8:24;
9:33; 9:49 e 17:13), e significa literalmente "o que está acima", então: chefe, comandante, patrão, su-
pervisor, diretor; a palavra que traduz fielmente o termo grego, é o inglês master. Após a pescaria, Pe-
dro o denomina "senhor", mais respeitosamente. Aqui é a primeira vez que Lucas acrescenta ao nome
de Simão o cognome Pedro, mas só no capítulo 6.º explicará que foi Jesus que lho impôs.
Neste ponto é que Lucas afirma que eles abandonaram "tudo" para seguir Jesus, depois da promessa
feita a Pedro de torná-lo "pescador de homens".
Pedro, temperamental como sempre, exclama patético: "retira-te de mim, porque sou um homem erra-
do"; é o exagero típico do temperamento inflamado, que vai às últimas consequências.

Várias lições aprendemos neste trecho.


Em primeiro lugar, a necessidade de "fazer-nos ao largo", buscando a amplidão oceânica do Pai Infi-
nito que nos envolve e permeia. A ordem que a individualidade (Jesus) dá ao intelecto (Pedro), para
que mergulhe mar adentro de si mesmo, lançando as redes para aprender as grandes verdades eternas
que vivem e nadam no pélago divino, ao alcance dos que sabem e podem captá-las esclarece-nos qual
o caminho a seguir.
Depois, o sempre crítico intelecto analista, com a pretensão de saber deduzir consequências e tirar
ilações: "já buscamos essas verdades durante toda a noite e nada encontramos": não viu que confes-
sava ter buscado à noite, nas trevas, durante muito tempo, e confia mais em si, em sua experiência, do

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SABEDORIA DO EVANGELHO

que no poder do Espírito. Todavia, apesar de convencido da inutilidade dessa tentativa, resolve bus-
car: arrisca-se a um fracasso, para ele certo, mas, em última análise, decide confiar em alguém que
está "acima dele" (epistata).
E sua pesquisa obtém resultado surpreendente. Os peixes (símbolos da pisces que então se iniciava,
escolhido para representar, entre os primeiros cristãos, o próprio Jesus) exprimem bem o porvir pró-
ximo da humanidade de então.
O intelecto confunde-se com o encontro inesperado de tanta sabedoria, que ele nem desconfiava exis-
tisse no fundo daquele oceano. Mas diante da Luz, à luz do dia, vem-lhe à rede uma quantidade tão
grande de verdades, que o intelecto se perturba, tonteia, e aflito pede que o Espírito dele se afaste,
porque, na realidade, conheceu nesse instante o imenso erro de sua personalidade falha: "sou um ho-
mem errado"! Que posso eu saber? Como poderei viver diante de Ti, Sabedoria Incriada" que me ilu-
minas? Como suportarei sem naufragar a imensidade dessas verdades?
E é pedido socorro aos companheiros (aos demais veículos da personalidade: emoções sensações e
até corpo físico), para que a força vigorosa e arrasadora das Verdades que conquistou no mar alto da
meditação, no encontro mudo com o Cristo Interno, com a Consciência Cósmica, não faça soçobrar o
pequeno homem viciado no cotidiano mórbido, ilusório e incolor.
Quando o intelecto, acabrunhado, se confessa derrotado totalmente pelo Espírito, diz-lhe este que não
tema: esse mesmo intelecto, já iluminado pelas verdades eternas já conquistadas, terá doravante outra
tarefa: esclarecer as criaturas humanas, iluminando-lhes os caminhos," constituir-se em luz para
atrair para o Cristo os homens, através do ensino das Verdades profundas, que experimentou pesso-
almente.
Compreendendo a profundidade e importância da nova tarefa proposta, os discípulos todos (os veí-
culos: intelecto, emoções, sensações, etc) decidem entregar-se total e definitivamente à individualida-
de, ao Espírito, ao Cristo interno, e segui-lo incondicionalmente.
As coisas da terra (o barco) são deixadas na terra, e o "espírito" segue o novo rumo brilhante, que o
conduzirá à felicidade imperecível".

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C. TORRES PASTORINO

JESUS PERCORRE A GALILÉIA

Mat. 4:17 e 23 Marc. 1:14-15 e 39 Luc. 5:15 e 44

18. Desde esse tempo começou 14. (Depois que João foi aprisi- 15. E ele ensinava nas sinago-
Jesus a pregar e a dizer: onado, Jesus foi para a Ga- gas deles, sendo elogiado
"Reformai vossa mente, liléia) por todos.
porque se aproximou o rei- 15. anunciando a Boa-Nova e . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
no dos céus. dizendo: "O tempo comple- 44. E pregava nas sinagogas da
........................... tou-se e o reino de Deus Judéia.
aproximou-se: reformai
23. Perambulava Jesus por
Vossa mente e confiai na
toda a Galiléia, ensinando
Boa-Nova".
nas sinagogas deles, ensi-
nando a Boa-Nova do reino . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
e curando todas as enfer- 39. E foi por toda a Galiléia
midades e doenças entre o pregando nas sinagogas
povo. deles e expelindo os desen-
carnados (obsessores).

Encontramos neste ponto um resumo das atividades de Jesus com o cerne de sua pregação.
Em Marcos, afirma o Mestre que "o tempo se completou", como se dissesse "esgotou-se o prazo" ou
então "chegou a época" (Kairós).
A seguir esclarece que o "reino dos céus (Mat.) ou de Deus (Marc.) se aproximou", palavras que já
haviam sido ditas pelo Batista. Devemos entender REINO no mesmo sentido que usamos reino mine-
ral, vegetal, animal, hominal e, prosseguindo na escala, reino celestial ou reino divino.
A terceira proposição pede a reforma mental, a modificação do modo de pensar, a elevação da mente
(transmentação) acima das coisas materiais, ilusórias e passageiras.
A quarta assertiva é uma ordem, também no imperativo como a anterior: "confiai na Boa-Nova". O
verbo grego pisteúô seguido da preposição "en", exprime rigorosamente repousar a mente em (algo ou
alguém), isto é, CONFIAR Neste ponto Jesus pede que os homens confiem na Boa Notícia que lhes
traz. Mais tarde (João, 14:1) pedirá que confiem em Sua pessoa. Com esta quarta parte, Jesus dá um
passo além da pregação do Batista, que não falou na Boa-Nova.
Essa é a síntese do que Jesus dizia aos sábados nas sinagogas de toda a Galiléía. Uma das característi-
cas do desempenho de Sua missão, como seria mais tarde a dos apóstolos, foi a pregação nas sinago-
gas. O termo grego sunagôgé significa propriamente "reunião" (em hebraico keneseth) que foi aplica-
do, ainda, ao local onde elas se realizavam.
Há uma variante nos manuscritos de Lucas, A, D, X, e outros, que trazem "da Galiléia", enquanto
"aleph", B, C, L, Q, R, apresentam "da Judéia". Muitos comentadores julgam que a palavra "Galiléia"
é uma correção, admitindo como o certo, aqui, o termo "Judéia", usado por Lucas neste local para de-
signar genericamente a Palestina, e não a província da Judéia. Realmente, em outros locais (1:5; 7:17;
23:5) Lucas usa Judéia para designar a Terra de Israel. Pelo contexto, verificamos que, de fato, se trata
realmente da Judéia.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Seguindo Mateus verificamos que Jesus estabeleceu como centro de fixação a cidade de Cafarnaum,
irradiando de lá pelas zonas circunstantes, por onde, literalmente circulava (periêgen). Mateus e Mar-
cos assinalam, ainda, que curava todas as enfermidades e expulsava os obsessores.

A obrigação da individualidade para com as outras criaturas são bem claras: esclarecer a humanida-
de, sem forçá-la, anunciando-lhe o reino celestial, isto é, a possibilidade de a criatura humana atingir,
ainda nesta Terra, sua máxima expressão espiritual, que já está a seu alcance.
Proveniente dos reinos inferiores da natureza, o "espírito" que atingiu o reino hominal ainda tem em
si muito do reino animal. Mas chegou a um ponto evolutivo, chegou a época, em que ele já se acha
capacitado a sair do animalismo-intelectualizado (hominal) para alcançar o estado de homem-
espiritual (reino celeste), penetrando com seu “espírito" no reino superior ao atual, o reino divino ou
espiritual.
Não é absolutamente fora da matéria, após a desencarnação, em estado de “espírito desencarnado"
ou no astral, que isso poderá ser conseguido. Só enquanto mergulhado na carne ou sepultado no cor-
po denso, é que terá essa possibilidade ("se o grão de trigo não cair na terra (encarnar) e morrer, não
produzirá frutos", João, 12:24). O reino celestial é conseguido enquanto encarnado o "espírito", não
podendo sê-lo fora da matéria, onde apenas o "espírito" fixa no subconsciente aquilo que conseguiu
aprender como encarnado. Deverá, pois, aguardar novo nascimento para progredir mais um passo.
Houvera a possibilidade de evoluir fora da matéria, e seria dispensável, inútil e até prejudicial o mer-
gulho na carne, que nos embota a mente e causa tantos atrasos e erros. Constituiria uma excrescência
da Natureza (de Deus) forçar a criatura a fazer esse estágio desnecessário, quando lhe seria possível
evoluir muito mais rápida e facilmente enquanto consciente no mundo espiritual. Ora, se todos pas-
sam e são obrigados a passar pela encarnação, isto significa que a encarnação é uma porta indispen-
sável à evolução do "espírito", porque a Natureza não dá passos inúteis.
Aprendemos, pois, que o reino celestial já se aproxima da humanidade, no sentido de que a humani-
dade já se aproximou, em sua lenta evolução, do reino celestial. Já atingiu o ponto, já cumpriu seu
tempo, já está na hora de pensar seriamente em sua espiritualização. Esse foi o grande aviso, a ine-
narrável Boa-Nova que Jesus veio trazer a todos nós, e que todos temos obrigação de dizer a todas as
criaturas.

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C. TORRES PASTORINO

CURA DO LEPROSO

Mat. 8:2-4 Marc. 1:40-45 Luc. 5:12-16

2. E aproximando-se um le- 40. Chegou a ele um leproso e, 12. E aconteceu, então, estar
proso prostrou-se diante pedindo de joelhos, disse: ele em uma das cidades, e
dele dizendo: "Senhor, se "Se quiseres, podes limpar- eis um homem cheio de le-
quiseres podes limpar-me" me". pra, vendo Jesus, caiu de
rastros e rogou-lhe: "Se-
3. E estendendo a mão Jesus 41. Compadecendo-se Jesus,
nhor, se quiseres, podes
tocou-o dizendo: "Quero, estendeu a mão e tocou-o,
limpar-me".
fica limpo". No mesmo ins- dizendo: "Quero, fica lim-
tante ficou limpa sua lepra. po". 13. Estendendo a mão, Jesus
tocou-o dizendo: "Quero,
4. Disse-lhe Jesus: "Olha, a 42. No mesmo instante desapa-
fica limpo". E no mesmo
ninguém o digas, mas vai receu-lhe a lepra e ficou
instante desapareceu-lhe a
mostrar-te ao sacerdote e limpo.
lepra.
fazer a oferta que Moisés 43. Advertindo-o energicamen-
ordenou, para lhes servir te, logo o despediu,
14. Ordenou-lhe Jesus a nin-
de testemunho". guém falasse, mas: "vai
44. dizendo: "Olha, não digas mostrar-te ao sacerdote e
nada a ninguém, mas vai fazer a oferta pela tua lim-
mostrar-te ao sacerdote o peza, conforme ordenou
oferece-lhe pela tua limpe- Moisés, para lhes servir de
za o que Moisés ordenou, testemunho".
para lhes servir de teste-
15. Porém a palavra (fama) a
munho".
respeito dele cada vez mais
45. Mas ele, ao sair dali, come- se divulgava e grandes mul-
çou a anunciar muitas coi- tidões afluíam para ouvi-lo
sas e a divulgar o Palavra, e serem curados de suas en-
de modo que (Jesus) já não fermidades;
podia entrar abertamente
16. mas ele retirou-se para os
numa cidade, mas ficava
desertos a orar.
fora, em lugares desertos; e
de todos os lados iam ter
com ele.

Um dos fatos mais impressionantes da narrativa evangélica é a purificação desse leproso, que se entre-
ga totalmente ao arbítrio de Jesus, demonstrando a confiança mais ilimitada, e deixando toda a ação ao
critério do Mestre: "se queres"... Nada pede: apresenta o fato e confessa sua convicção íntima de que
sua limpeza depende exclusivamente da vontade de Jesus. No dizer de Marcos, Jesus se comove com
essa expressão de simplicidade e confiança, e responde também laconicamente, mas unindo a ação às
palavras: "quero". Sem temer as prescrições legais que o proíbem, toca o leproso com sua mão, e ao
invés de tornar-se impuro legalmente, purifica-o da lepra: "fica limpo".

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SABEDORIA DO EVANGELHO

FIGURA “A Cura do Leproso”

A lepra era um dos grandes flagelos da Palestina a essa época, sobretudo a que eles chamavam "lepra
branca", por causa das manchas brancas que se focalizavam na pele, transformando-se posteriormente
em inchações, acabando por caírem os membros aos pedaços. Hoje é mais conhecida como “leonina",
em vista das deformações faciais .
O leproso era afastado do convívio dos centros habitados, sendo expulsos para lugares desertos. Era
obrigado a gritar, à aproximação de gente: “tamê, tamê" (impuro, impuro). Realmente, a lepra era con-
siderada mais uma impureza que uma doença (cfr.Lev. cap.13 e 14), tanto que o leproso pede que
Jesus o purifique, e não que o cure.

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C. TORRES PASTORINO
Embora considerada incurável, Moisés estabelece um ritual para esse caso (Lev.14:2 a 32): ao ficar
purificado, deveria oferecer em sacrifício, se fosse rico, uma ovelha e dois cordeiros e, se pobre, um
cordeiro e duas rolinhas. Verificada a purificação pelos sacerdotes, o ex-leproso retomava sua posição
na sociedade.
Não podendo entrar na cidade, o leproso aguarda Jesus na estrada e, ao vê-lo passar, lança seu apelo
sincero e patético, humildemente prostrado com o rosto em terra.
Logo após a cura, Jesus adverte-o "severamente" que nada conte a ninguém do que ocorreu, e manda-o
fazer a oferta ritual e apresentar-se aos sacerdotes para verificação da cura. Afirmam os exegetas que
esses constantes apelos de Jesus de nada dizerem os beneficiados, prende-se ao "segredo messiânico";
no entanto, vemos nisso apenas a natural modéstia dos Espíritos Superiores, que não proclamam, nem
gostam que os outros o façam, sua superioridade sobre as demais criaturas.
Lucas mais uma vez anota que Jesus se retirou para orar.

Essas curas, narradas com pormenores pelos evangelistas, parece terem sido escolhidas com intuito
de esclarecer ensinamentos preciosos, relativos ao modo de agir com aqueles que se encontram nos
diversos graus evolutivos, resgatando erros do passado ou fixados nos vícios do presente.
De cada um falaremos em seu lugar.
Mas de qualquer forma anotemos que as curas assim salientadas referem-se a: cegueira, surdez, atro-
fia, corcunda, hidropisia, hemorragia, paralisia e lepra. Algumas correspondem a males do duplo
etérico (nervos) como a corcunda (desvio dos ossos), a atrofia (ressecamento dos músculos) e a para-
lisia (afrouxamento dos nervos).
Outras dizem respeito ao corpo astral, quais a hidropisia (excesso de água), a hemorragia (perda de
sangue) e a lepra (apodrecimento dos tecidos).
E duas referem-se ao intelecto: a surdez (incapacidade de receber, causada pelo orgulho que incha e
nada recebe de fora) e a cegueira (incapacidade compreender, causada pela vaidade que obumbra o
raciocínio).
Todas elas se refletem no corpo físico, o veículo mais externo e mais denso da personalidade, moldado
pela mente de cada um, segundo sua própria capacidade modeladora.
Neste caso particular, encontramos uma personalidade que, diante do sofrimento agudo e prolongado,
conquistou a humildade e reconheceu-se "imundo". Verificou que se achava carregado de fluídos pe-
sados que se exteriorizavam no corpo físico, e então volta-se para a individualidade, para o Espírito,
e confessa que, se ele, o Espírito, o quiser, poderá limpá-lo.

A técnica da purificação do corpo astral obedece à mesma técnica da purificação do corpo físico den-
so. Pela alimentação agregamos a nós fluídos alimentícios. Destes, o que é aproveitável, é assimilado
ao corpo, como músculos, ossos, sangue, etc. Mas todos os detritos são expelidos através dos órgãos
excretores. Assim, quando o corpo astral se "alimentou" de pensamentos (palavras ou ações), tudo o
que neles houver de bom é assimilado como experiência e aprendizado; mas todos os fluídos mentais
pesados e nocivos são expelidos pelo órgão excretor do astral, que é exatamente sua condensação na
matéria, o corpo físico. Então, os fluídos pesados são evacuados através de chagas, pústulas, furúncu-
los, úlceras, canceres, lepra, etc . Verificamos, pois, que qualquer dessas modalidades que, no dizer do
povo, "purificam o sangue", também, na realidade, purificam o corpo astral (que anima o corpo justa-
mente através da circulação sanguínea: daí serem chamados "animais" aqueles que já possuem o corpo
astral desenvolvido, e, portanto, já utilizam um sistema circulatório eficiente e tanto mais completo,
quanto mais desenvolvida for sua alma (ou corpo astral). A evacuação dos fluídos pesados é feita atra-
vés do corpo denso e sobretudo através dos tecidos epiteliais, externos ou internos. Então compreen-
demos que essas "doenças" são necessárias para nossa limpeza, e indispensáveis ao nosso progresso,
sendo, por conseguinte, de suma utilidade para nossa evolução. Quando a limpeza está terminada, a

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SABEDORIA DO EVANGELHO

doença cessa. Mas, por vezes, a quantidade de matéria fecal astral é tão grande, que mais de uma exis-
tência terrena é consumida em sua evacuação. Daí o grave engano dos que pedem a cura, quando devi-
am pedir a purificação, por mais dolorosa que fosse, tal como nos ensina a lição evangélica do leproso
de Cafarnaum.

Quando, pois, a personalidade atinge esse grau de compreensão e recorre ao Cristo Interno, este
toma a iniciativa de limpar a personalidade do resultado cármico dos vícios do passado delituoso. No
entanto, não é "de graça": há mister trabalhar em setores estabelecidos para cada um, de acordo com
seus casos particulares.
No caso deste leproso (desta personalidade que havia esgotado o resgate cármico) a ordem é apre-
sentar-se ao sacerdote e cumprir o ritual, ou seja, seguir ainda a trilha de uma religião ritualística,
indispensável por enquanto a ele para evolução do próprio "espírito". Não lhe seria possível passar
do estado em que se encontrava, para um ascetismo avançado, porque a evolução não dá saltos.

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C. TORRES PASTORINO

CURA DO PARALÍTICO

Mat.9:1-8 Marc. 2: 1-12 Luc. 5: 17-26

1. Jesus entrou numa barca, 31. Alguns dias depois, foi de 17. E ocorreu num daqueles
atravessou para o outro novo Jesus a Cafarnaum, e dias em que ele estava ensi-
lado e foi para sua cidade. soube-se que ele estava em nando, e achavam-se senta-
casa. dos perto nele fariseus e
2. E trouxeram-lhe um paralí-
doutores da lei vindos de
tico em maca. Vendo Jesus 32. Muitos afluíram ali, a pon-
todas as aldeias da Galiléia,
a confiança deles, disse ao to de já não haver lugar
da Judéia e de Jerusalém; e
paralítico: "Tem ânimo, nem junto à porta; e ele
a força do Senhor estava
filho; teus erros foram res- lhes falava a Palavra.
nele para curá-los.
gatados". 33. E trouxeram-lhe um paralí-
18. Vieram uns homens, tra-
3. Ora, alguns escribas disse- tico carregado por quatro
zendo na maca um hemi-
ram consigo: "Esse homem homens .
plégico e procuravam in-
blasfema". 34. E não podendo chegar a ele troduzi-lo e pô-lo diante de
4. Mas Jesus, conhecendo-lhes através da multidão, des- Jesus.
os pensamentos, disse: "Por telharam o teto no lugar em
19. Não achando por onde in-
que pensais coisas más em que ele estava e, feita uma
troduzi-lo através da mul-
vossos corações? abertura, arriaram o estra-
tidão, subiram ao terraço e,
do em que jazia o paralíti-
5. Pois que é mais fácil? dizer: por entre os tijolos, o des-
co.
foram resgatados teus er- ceram na maca para o meio
ros, ou dizer: levanta-te e 35. Vendo Jesus a confiança de todos, diante de Jesus.
caminha? deles, disse ao paralítico:
20. E vendo este a confiança
"Filho, teus erros foram
6. Ora, para que saibais que o deles, disse: "Homem, teus
resgatados".
filho do homem tem, sobre erros foram resgatados".
a Terra, poder para resga- 36. Estavam, porém, sentados
21. Começaram os escribas e os
tar os erros" - disse ao pa- ali alguns escribas que ra-
fariseus a raciocinar, di-
ralítico - "levanta-te, toma ciocinavam em seus Cora-
zendo: "Quem é este que
tua maca e vai para tua ções:
profere blasfêmias? Quem
casa". 37. "Por quê este profere blas- pode resgatar erros senão
7. E ele levantou-se e foi para fêmias? quem pode resga- só um (que é) Deus"?
sua casa. tar erros senão só um (que
22. Mas Jesus, percebendo-lhes
é) Deus"?
8. Vendo isso, as multidões os raciocínios, disse-lhes:
temeram e glorificaram a 38. Mas Jesus, percebendo logo "Que raciocinais vossos co-
Deus, que dera tal poder em seu Espírito que eles as- rações?
aos homens. sim raciocinavam dentro de
23. Que é mais fácil? dizer:
si, perguntou-lhes: "Por
teus erros foram resgata-
quê raciocinais sobre estas
dos? ou dizer: levanta-te e
coisas em vossos corações?
caminha?
39. Que é mais fácil? dizer ao
24. Ora, para que saibais que o
paralítico: foram resgata-
filho do homem tem sobre a
dos teus erros? ou dizer:
Terra poder para resgatar
levanta-te, toma teu estrado

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SABEDORIA DO EVANGELHO

e caminha? erros" - disse ao hemiplégi-


co - "A ti te digo, levanta-
40. Ora, para que saibais que o
te, toma tua maca e vai
filho do homem tem, sobre
para tua casa".
a Terra, o poder de resga-
tar erros" - disse ao paralí- 25. Imediatamente levantou-se,
tico – diante deles, tomou a maca
em que jazia e partiu para
41. "A ti te digo: levanta-te,
sua casa, glorificando a
toma teu estrado e vai para
Deus.
tua casa".
12. Então no mesmo instante 26. Todos ficaram atônitos,
glorificaram a Deus e en-
levantou-se ele, e tomando seu
cheram-se de temor, dizen-
estrado retirou-se à vista de
do: "Hoje vimos coisas ex-
todos; de modo que todos fica-
traordinárias"!
ram atônitos e glorificavam a
Deus, dizendo: "Nunca vimos
coisa semelhante"!

Figura “ A CURA DO LEPROSO”

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C. TORRES PASTORINO

Mateus coloca essa cura depois da viagem a Gadara (Marcos antes dela) e depois do Sermão do Monte
(Lucas antes dele). Sabemos, porém, que não havia preocupação da cronologia dos fatos, pois os evan-
gelistas procuravam apenas transmitir às gerações porvindouras os ensinamentos profundos de Jesus,
intencionalmente ocultos no véu da letra, exatamente para que cada um neles bebesse somente aquilo
que sua capacidade pudesse suportar.
Em Mateus aparece a anotação de que JESUS foi à "sua cidade". Embora nessa época ainda não esti-
vesse residindo há um ano, o que lhe daria direito de ser "filho da cidade", contudo deve ter ficado no
ouvido do autor a expressão, já que o Evangelho foi escrito muito tempo depois.
O ambiente da cena é mais minucioso em Marcos e Lucas: a casa cheia de gente, que extravasava da
sala para o alrendre, amontoando-se mais na porta. Jesus a falar, sentindo em si, como está dito pelo
médico, "a força do Senhor para curar". A expressão é sintomática, sobretudo quando expressa por um
médico. Essa "força do Senhor" talvez manifeste o excesso de fluídos magnéticos prontos a exteriori-
zar-se (coisa que ocorre até independente da vontade ou do conhecimento da criatura, tal como suce-
deu com a "hemorroíssa". Mr. 5:30, Lc- 8:45).
Ao chegarem os quatro amigos a carregar um paralítico (Lucas não emprega o termo popular "paralíti-
co", mas o técnico, no particípio, correspondente a "hemiplégico"), encontraram a entrada totalmente
bloqueada, com as atenções dos circunstantes voltadas para dentro, a fim de não perderem uma pala-
vra. A resolução é instantânea: enveredam pela escada lateral externa, que conduz ao terraço, como em
quase todas as casas da Palestina. Terraço plano, construído com traves de madeira, cruzadas larga-
mente, e sobre elas quadrados chatos de terra cozida ("telhas") - Estas são afastadas e, pelo espaço as-
sim conseguido, o leito foi descido com cordas até diante de Jesus.
Este dirige-se ao enfermo, animando-o e usando, para chamá-lo, o termo de carinho que os pais usa-
vam com os filhos: τέиνον .
Vem então o reconhecimento oficial de que o carma havia sido esgotado άφέωνται , no perfeito dórico-
jônico, e não no presente, nos três evangelistas e em todos os manuscritos, o que afasta a hipótese de
não obstante, as traduções o reproduzem sempre pelo presente ... Assim, a expressão άφέωνται σοί αί
άµαρτίαι σου exprime exatamente: "foram resgatados teus erros", ou, na linguagem moderna: "está
liquidado teu carma".
Dissemos, na pág. 51 do vol. 1, que a frase έν άφέσει άµαρτιών αύτών significava "na rejeição ou ex-
pulsão dos próprios erros". Continuando nossas meditações, chegamos hoje à conclusão de que essa
rejeição dos erros" se refere ao resgate do carma. Não basta rejeitá-los pela vontade, nem tampouco
deixar de praticá-los de agora em diante. O indispensável é RESGATÁ-LOS, de acordo com a Lei de
Causa e Efeito (Lei do Carma) plenamente válida no trecho que comentamos, quando Jesus declara
que o sofrimento da paralisia já resgatou os erros do paciente, já o libertou do carma.
A Lei de Causa e Efeito (Lei do Carma), "cada um receberá de acordo com suas obras", está repetida à
saciedade no Antigo e Novo Testamento, em pelo menos 30 passos, vejam-se os passos:
Deut. 7:9-10; 24:16; 2.º Reis, 14-6; 2.º Crôn. 25:4; Job, 34:11; Salmo, 28:4; 62:12; Prov. 12:14;
24:12; 24:29; Isaias, 3:11; Jer. 31:29-30; Lament.3:64, Ezeq.18:1-32; 35:20; Ecles 15:15; Mat. 3:10;
7:19; 16:27; 18:8-9; Rom 2:6; 1 Cor. 3:14; 2 Cor. 5:10; 9:6; 11:15; Mat. 3:10; 7:19; 16:27; 18:8-9;
Rom. 2:6; 1 Cor. 3:14; 2 Cor. 5:10; 9:6; 11:15; Gal. 6:4; Ef. 6:8; Col. 3:25; 2 Tim. 4:14; 1 Pe. 1:17;
Tiago, 2:24; Apoc. 2:23; 20:12 e 22:12.
Não é, pois, a Lei do Carma uma "invenção" moderna, mas uma verdade revelada em todo o decorrer
das Escrituras.
Quanto à convicção de que as enfermidades de uma existência são o resultado de erros cometidos na
mesma ou em existência anterior, também as Escrituras nos dão frequentes ensinamentos, bastando
citar: "eu era um menino de boa índole, coube-me em sorte uma alma boa, ou melhor, sendo bom, en-
trei num corpo sem defeitos" (Sab.15:19-20); e ainda: "pensais que esses galileus (que foram sacrifica-

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SABEDORIA DO EVANGELHO

dos por Pilatos) eram os maiores transgressores da Galiléia e por isso sofreram essas coisas? Eu vos
digo: NÃO. Mas enquanto não vos reformeis, todos sereis castigados dessa maneira" (Luc.13:2-3); e
mais, em João 9:2, quando por ocasião do cego de nascença “foi ele que pecou (e só poderia tê-lo feito
em existência anterior) ou seus pais"?; e outra vez: "se tua mão ou teu pé ... ou teu olho te são pedra de
tropeço, corta-os e lança-os de ti: melhor te é entrares NA VIDA, manco, aleijado e cego" ... (Mat.
18:8-9); ora, ninguém suporá que na vida espiritual haverá aleijões: é evidente que se trata de entrar na
VIDA TERRENA aleijado e cego, o que ,explica esses defeitos nos recém-nascidos.
Fora das Escrituras: SIPHRA, ao comentar Lev. 14:15 diz que a lepra e o castigo da má língua, à qual,
porém, SABBATH (33b) atribui como efeito a difteria. O Talmud (em Tianith, 16a) diz claramente:
"só o arrependimento não basta, se não houver mudança de vida". E no Sanhedrim (90a): "Todos os
julgamentos do Santo Único (bendito seja!) tem por base: tal ato, tal retribuição”.
Era, portanto, generalizada (e correta) a crença de que a doença constituía o resultado cármico de erro,
praticados na mesma vida ou em vida anterior, tanto que Rabbi Alexandrai escreveu: “o doente não se
ergue de sua enfermidade, senão quando Deus lhe haja perdoado seus pecados, pois está escrito: 'é Ele
que perdoa todos os pecados e cura todas as doenças' (Salmo 103:3)”. Estão certos Strack e Billerbeck
quando escrevem em seu "Comentário sobre o Novo Testamento segundo o Talmud" (tomo 1, pág.
495): “têm razão os anotadores do Talmud quando concluem: perdão primeiro, cura depois”.
Os escribas ( e Lucas acrescenta os “doutores” da Galiléia, da Judéia e Jerusalém) acreditavam nesse
“perdão”, nessa declaração autorizada de "carma liquidado" ou “resgate concluído", mas julgavam só
Deus pudesse fazê-lo. Daí o pensamento que se projetou de seus cérebros em formas mentais: "esse
(homem) blasfema"! O pensamento, confirma-o Jesus mais uma vez, proveio do coração. Não o diz
simplesmente porque os israelitas “acreditavam que a sede da mente estivesse no coração (cfr. Dhor-
me, L’emploi métaphorrique des noms de parties du corps, pág. 122), mas porque, na realidade, é DO
CORAÇÃO que provém os pensamentos, já que o coração é sede da mente (origem dos pensamentos)
ao passo que o cérebro é a sede do intelecto (que analisa e raciocina). Jamais podemos acreditar que
Jesus pudesse ter ensinado errado, só para conformar-se ou não contrariar uma "ignorância" da época:
o Mestre só podia ensinar CERTO, porque sabia o que dizia. Podia conformar-se com o vocabulário de
sua época, mas não com erros.
Jesus, entretanto, em Quem, mais do que em qualquer outro, brilhava conscientemente a Centelha Di-
vina, que agia em todo o Seu esplendor e potencialidade, demonstra-lhes outro poder, ainda não des-
envolvido nos homens comuns: o de LER os pensamentos. E declara abertamente que o faz, numa de-
monstração de poder: "por que pensais coisas más em vossos corações"? E a seguir, coloca-os num
dilema, difícil de solucionar: "que é mais fácil"? A cena é descrita pelos três evangelistas com a mes-
ma vivacidade, contendo um anacoluto violento, natural na linguagem falada, mas forçado na lingua-
gem escrita. Todavia, o testemunho tríplice prova a absoluta fidelidade à cena.
'Levanta-te". O levantar-se atesta a cura de alguém que viera carregado por 4 homens. Não satisfeito,
Jesus leva a demonstração (sêmeion) de Seu poder ao máximo. Levantar-se, apenas, poderia parecer
um passe de sugestão. Mas, quase com ironia, vem a segunda parte: "carrega tua maca, e regressa a
casa". Tudo isso, sem sequer tocá-lo; simples ordens verbais. Daí o grupo de pessoas que assistia à
cena ter ficado estupefato e, após o espanto, ter louvado a Deus pelo Poder que conferia a um homem.
Ainda uma vez, como já o fizera com Nicodemos em particular, Jesus aplica a si, agora publicamente,
o título de "Filho do Homem" (em hebraico bar'enascha e em aramaico bar nasha), que já foi explica-
do ( vol. 1, pág 154/155).
A expressão "coisas extraordinárias" (parádoxa) é termo próprio de Lucas. O adjetivo "atônito" cor-
responde a échstasis, literalmente' "extáticos", ou seja, "fora de si".

Mas há ensinamentos mais profundos.


Muitas criaturas (personalidades) tornam-se paralíticas ou hemiplégicas na estrada evolutiva, por
estarem presas ao passado de erros. Embora os sofrimentos lhes estejam resgatando, ou já hajam

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resgatado, o carma, calculam que muito lhes falta. Param, então, aguardando uma palavra superior a
fim de prosseguir. Típico o exemplo desse paralítico que, ao tomar contato com o Cristo, é por ele
tratado carinhosamente, com a declaração de que deve readquirir o entusiasmo da jornada, pois seu
carma havia terminado.
Observemos a lição em alguns pormenores. O paralítico está estacionado na evolução por desânimo,
sem saber nem poder mover-se. Quatro amigos o conduzem, na qualidade de "guias". Não podem pe-
netrar pela porta normal, das sensações e emoções, a trilha palmilhada pela multidão de ritualistas e
religiosos comuns, porque aí a massa se acotovela e impede a passagem. Todos aí querem buscar o
Cristo para conseguir "milagres". Então os "guias" sobem mais um pouco pela "escada externa" (fora
das religiões dogmáticas) e encontram o caminho certo: abrem um vão "no teto" (no cérebro, pela
compreensão dos ensinamentos verdadeiros) e o fazem merguhar no coração, onde ele ficará diante
do Cristo Interno, na Consciência Cósmica.
Os companheiros de jornada percebem o caminho novo e diferente, e rebelam-se intimamente, porque,
no nível evolutivo em que se acham, não lhes é possível entender um caminho diferente do seu. E lan-
çam "excomunhão" sobre o próprio Cristo que age com o paralítico. O Mestre não se perturba e de-
monstra, por fatos concretos e irrecusáveis, que esse é o caminho (os fatos psíquicos enchem milhares
de páginas de livros em todos os idiomas, mas os "escribas" e os "doutores" das diversas confissões
religiosas e científicas continuam a querer ignorá-los, a excomungar o Cristo, chamando-o "diabo",
porque age sem ser por intermédio deles; e procuram destruir, unidos aos profanos - "herodianos" -
essa força crística que opera sábia e livremente).
Ao paralítico cabe uma só providência daí por diante: erguer-se reanimado, tomar seu leito (seu cor-
po) e regressar para sua casa (para o ambiente espiritual que lhe é próprio), sem dar ouvidos aos
murmúrios dos despeitados e ignorantes dessas coisas. É o que ele faz. E essa subida espiritual é rea-
lizada COMO PROVA de que o Cristo Interno tem razão. Mas, apesar disso, os "doutores" e os "sa-
cerdotes" não aceitam essa sabedoria nem essa santidade, porque não floresceram segundo os "mo-
delos" que eles estabeleceram, e porque não proliferaram no "jardim fechado” que eles mantêm, con-
trolam e dominam.
Mas, que importa isso ao "paralítico"? Ele segue seu caminho "glorificando a Deus", juntamente com
todos os que são sinceros discípulos do Cristo.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

MATEUS É CHAMADO

Mat. 9:9 Marc. 2: 13-14 Luc. 5: 27-28

9. Partindo Jesus dali, viu um 13. Saiu outra vez para beira- 27. Depois disso, saiu e olhou
homem chamado Mateus, mar, e toda a multidão vi- atentamente um cobrador
sentado na coletoria, e dis- nha a ele e ele lhes ensina- de impostos (publicano),
se-lhe: "Segue-me". E, le- va. sentado na coletoria, e dis-
vantando-se, ele o seguiu. se-lhe: “Segue-me”.
14. E quando ia passando, viu
Levi, o (filho) de Alfeu, sen- 28. E deixando tudo, ele levan-
tado na coletoria, e disse- tou-se e seguiu-o.
lhe: "Segue-me". E levan-
tando-se ele o seguiu.

Figura “O CHAMADO DE LEVI”

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C. TORRES PASTORINO
Ao sai de casa, caminhando pela rua, passa Jesus diante de uma coletoria de impostos, com seu chefe
sentado à mesa.
Ao coletor de impostos os romanos denominavam publicanos, ou seja, “agentes do tesouro púbico"; e
os gregos telônes, palavra composta de télos (imposto) e ônéomai (comprar). Consistia sua função em
comprar do governo o direito de cobrar os impostos, pagando antecipadamente, de seu bolso, a impor-
tância orçada pelo Tesouro, e ficando a seu risco ser reembolsado pelos particulares. Paga a soma total
ao governo, o coletor distribuía seus agentes para cobrar taxas de pedágios, de trânsito de mercadorias,
de caravanas, do comércio, de alfândegas, etc., de todo o distrito que lhe estava afeto. O que conse-
guisse cobrar era seu, inclusive se havia (e havia sempre) superavit. Alguns, mais afortunados, com-
pravam os impostos de uma província inteira, sendo então "chefe de publicanos", como era o caso de
Zaqueu (cfr. Luc. 19: 3). Como o povo era oprimido por eles, que buscavam reaver seu dinheiro com
lucro, o povo os odiava, inclusive porque o empréstimo antecipado lhes valia uma autorização oficial
de "cobradores da dívida pública" . E toda a classe era desprezada e comparada aos "pecadores".
E eram mal vistos porque, em geral, cobravam mais do que deviam, para aumentar seus rendimentos
(cfr.Luc.3:12-13). No mundo profano havia o mesmo pensamento e Cícero (De Officiis, 1:42) os cha-
ma "os mais vis dos homens". Os judeus consideravam "traidores e apóstatas", tanto que o Talmud os
proibia de servir de juízes ou de testemunhas nos processos: e a mais consideravam-nos "legalmente
impuros", por seu contato constante com os não-judeus.
Ao narrar o fato, Mateus dá-se apenas esse nome, acrescentando "o publicano", enquanto os outros
dois dão seu primeiro nome, Levi, esclarecendo Marcos, ainda, que era "filho de Alfeu".
Cafarnaum, situada nas fronteiras do domínio de Herodes Antipas com o de Filipe, tinha um posto
aduaneiro que era importante, porque ficava no entroncamento das estradas que ligavam Damasco ao
Mediterrâneo e ao Egito.
Jesus afronta fariseus e escribas, ao escolher um desses homens como discípulo, após olhá-lo atenta-
mente (ethéásato) à sua mesa de trabalho.
E Levi abandona ex abrupto sua mesa e segue-o, com total desprendimento, deixando seu escritório
entregue aos auxiliares.

Muitos de nós ainda agimos na personalidade, como se fora ela nosso EU,. preocupamo-nos, então,
com os haveres e "compramos" bens que nos aumentem os alforges durante a romagem terrena.
Nada há de errado nisso, enquanto não chega o momento de a tudo renunciar, para dedicar-nos inte-
gralmente à vida espiritual.
Mateus ("dom de Deus"), exemplifica o caso do homem de negócios que se preocupa com os bens da
Terra. Mas, ao ouvir a voz de chamamento do Cristo Interno, resolve abandonar tudo e seguir o ca-
minho da perfeição.
O momento do chamado é uma oportunidade que não deve ser perdida por nós. Mas é indispensável
saber ouvir a voz que nos convoca, reconhecê-la, quando vem de dentro do coração, e não confundi-la
com chamados externos, intelectuais ou emocionais, de 'guias", sejam encarnados ou desencarnados,
que prometem o que não podem dar, que se denominam a si mesmos “mestres" ou "gurus", coisa que
jamais o próprio Jesus fez, pois nos esclareceu que "um só é nosso Mestre: o CRISTO” (Mat.23:10).
Cada um de nós deve permanecer atento à própria personalidade, para que não "viva" a preocupar-se
com lucros materiais. A individualidade deve reclamar de nossa personalidade, quando esta só cogita
de "juntar tesouros que a ferrugem consome e a traça corrói e os ladrões roubam" (Mat. 6:19).
Temos que ensinar à nossa personalidade a confiar no PAI.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

O BANQUETE DE LEVI

Mat. 9:10-13 Marc. 2:15-17 Luc. 5:29-32

10. E aconteceu que estando 15. E vai (Jesus) reclinar-se à 29. Levi deu-lhe um grande
reclinado à mesa em cosa, mesa na casa dele (Levi) e banquete em sua casa; e
vieram muitos cobradores reclinaram-se também com era grande o número de
de impostos e "pecadores" ele e com seus discípulos cobradores de impostos e
e reclinaram-se com Jesus e muitos cobradores de im- de outras pessoas que esta-
com seus discípulos. postos e "pecadores", pois vam com eles à mesa.
havia muitos que o segui-
11. Vendo isto, os fariseus per- 30. Os fariseus e se seus escri-
am.
guntavam aos discípulos: bas murmuravam contra os
"por que vosso Mestre 16. E vendo os escribas dos discípulos de Jesus, dizen-
come com os cobradores de fariseus que ele comia com do: "por que comeis e be-
impostos e "pecadores"? os "pecadores" e cobrado- beis com os cobradores de
res de impostos, diziam aos impostos e ‘pecadores'?"
12. Mas ouvindo-o, Jesus disse:
discípulos dele: "por que é
"os sãos não precisam de 31. Respondendo, lhes Jesus:
que ele come com os cobra-
médico, mas sim os enfer- "os sãos não precisam de
dores de impostos e 'peca-
mos. médico, mas sim os enfer-
dores'?" mos.
13. Porém ide aprender o que
17. Ouvindo isto, Jesus res-
significa: misericórdia que- 32. Não vim chamar os justos,
pondeu-lhes: "os sãos não
ro, e não sacrifícios', pois mas os pecadores para a re-
precisam de médico, mas
não vim chamar os justos, forma mental”.
sim os enfermos; não vim
mas os pecadores" .
chamar os justos, mas os
pecadores".

Mateus levanta-se da coletoria para seguir Jesus, mas antes leva-o a sua casa, e aí oferece-lhe um
"grande banquete", no qual se despede de seus amigos e colegas de profissão: realmente os agentes
fiscais eram numerosos em Cafarnaum.
"Reclinar-se à mesa (katakeisthai) porque o alimento era tomado enquanto o conviva ficava recostado,
quase deitado, num leito mais baixo, com a cabeça apoiada no braço esquerdo, ficando o direito livre
para servir-se nos pratos à mesa, algo mais alta. Esse o costume dos banquetes de luxo: provinha da
Assíria, tendo penetrado em Israel ( Amós, 6:4), na Grécia e em Roma.
Notemos que o termo "pecadores" (hamartolós) tem um sentido próprio em grego: os "transviados",
isto é, "os que estão fora do caminho certo" .
Para os fariseus e saduceus ortodoxos, todos os não-judeus (gentios) eram "pecadores", porque não
trilhavam a estrada traçada por Moisés. E também eram chamados "pecadores" todos os judeus que
mantinham contato com os gentios, como os agentes fiscais. Fique bem claro, que o termo "pecadores"
tem esse sentido especial: não eram criminosos, nem delinquentes, mas apenas não seguiam a rigidez
legal, tida como ortodoxia. O banquete que Mateus ofereceu a Jesus era, então, verdadeiro "banquete
de pecadores", como diz Jerônimo (Patr. Lat. , vol. 26, col. 56).
Participar de uma refeição na casa de alguém era fazer-lhe grande honra, mormente para esses homens
ricos, mas desprezados; ver Jesus entre eles deve ter constituído imensa alegria, sinal inequívoco de

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C. TORRES PASTORINO
estima e amizade. Mas os judeus, que eram obrigados a recitar as "bênçãos", jamais admitiam ladear-
se com os gentios nesse ato quase religioso. Vinte anos após a morte de Jesus, os cristãos que provi-
nham do judaísmo recusavam alimentar-se ao lado dos cristãos provenientes do paganismo (Gál. 2:11-
14).
Ao ver, pois, essa promiscuidade, os fariseus escandalizam-se, mas não ousam investigar o Mestre:
vão aos discípulos para investigar a razão dessa manifestação de desrespeito aos preceitos mosaicos.
Jesus intervém pessoalmente, para tirar os discípulos de embaraço e fá-lo com fina ironia, concedendo
aos fariseus o título de "justos" e de "sadios" de espírito (santos).
A expressão "ide aprender o que significa" é fórmula rabínica usada nas controvérsias. Cita então
Oseias (6:6), dizendo que a misericórdia vale muito mais que qualquer sacrifício religioso, e depois
cita um aforisma corrente (cfr. Diog. Laércio, Antisth. 6.1.6. e Plutarco, Apophthegmas, 230 F): "não
são os sadios que precisam de médico". E confirma: 'não vim chamar, (no sentido de convidar) os jus-
tos, mas os "pecadores". Mais tarde dirá novamente que os "pecadores" e as meretrizes conseguirão o
"reino de Deus" antes que os "justos" fariseus e os sacerdotes convencidos (Mat. 21:31).
A esses era muito mais fácil pregar a Boa-Nova, que aos que se julgavam "virtuosos" e "conhecedo-
res", quase que “donos da verdade" ...

A individualidade sabe perfeitamente que as personalidades são coisas passageiras, perecíveis, e vi-
vem numa situação de irrealidade que lhes parece realidade. Daí dar importância muito secundária
aos atos da personalidade. Que importa se a criatura, temporariamente mergulhada na carne, exerce
uma profissão desprezada pelo mundo oficial? Que importa o transvio do que é exterior, se o íntimo
está aproveitando aquela experiência, por vezes dolorosa, para o aprendizado maior?
Então, se a personalidade ainda precisa de certas exterioridades (como o banquete de Mateus), a in-
dividualidade não se recusa a ela: comparece com todos os discípulos (veículos que a envolvem), e
participa da alegria daquela criatura, que ainda dá valor ao temporário e irreal, por julgá-los coisas
duradouras e reais. Nada de "fitas" e de hipocrisias, de cenobitismo eremita, de sacrifícios irracio-
nais: se estamos na Terra na condição de seres humanos, como tais devemos viver. 'Não mais somos
animalizados - então nada de animalismo - mas ainda não somos anjos, portanto, não vivamos como
anjos desprezando a matéria", são palavras de Emmanuel. Por que então fugir à nossa condição de
homens que ainda somos?
A lição de Jesus neste fato é importante e visa a todos os que se envaidecem de suas virtudes, fugindo
ao contato com os enfermos morais: exatamente estes são os mais necessitados.
A misericórdia é superior a qualquer ato religioso, e a nós (a individualidade) não interessam a admi-
ração e os elogios dos bons, dos justos, dos santos: esses têm sua trilha traçada e a seguem sem tro-
peço. O que a individualidade tem que fazer é exatamente convidar as personalidades ainda viciadas e
animalizadas, para que "modifiquem sua mente", seu modo de pensar e de encarar a vida.
Não temamos ombrear com os "pecadores" e transviados; não fujamos de sua companhia; não recu-
semos banquetear-nos à sua mesa; pois daí poderão advir grandes vantagens para eles e para nós.
Por que, afinal, em que somos nós melhores que eles? Só o pensamento de que somos melhores, já é
uma prova de que o não somos: pelo menos ele são humildes, pois sabem que são pecadores, e com
isso sintonizam com Deus; e nós, que nos julgamos "melhores", manifestamos nossa vaidade tola, e
com isso, dissintonizamos com Deus, que é a Humildade Perfeita.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

A QUESTÃO DO JEJUM

Mat. 9:14-17 Marc. 2: 18-22 Luc. 5: 33-39

14. Depois foram a ele os discí- 18. Ora, os discípulos João e os 33. Disseram-lhe eles: "os dis-
pulos de João, dizendo: fariseus estavam jejuando. cípulos de João jejuam fre-
"por que é que nós e os fa- E eles vieram perguntar- quentemente e fazem ora-
riseus jejuamos, mas teus lhe: "por que jejuam os ções, assim como os dos fa-
discípulos não jejuam"? discípulos de João e os dos riseus; mas os teus comem
fariseus, mas os teus discí- e bebem".
15. Respondeu-lhes Jesus:
pulos não jejuam"?
"Podem acaso estar tristes 34. Mas Jesus disse-lhes: "Po-
os convidados do casamen- 19. Respondeu-lhes Jesus: deis fazer jejuar os convi-
to, enquanto o esposo está "Podem acaso jejuar os dados do casamento, en-
com eles? mas dias virão convidados do casamento, quanto o esposo está com
em que lhes será tirado o enquanto o esposo está com eles?
esposo, e nesses dias jejua- eles? Durante o tempo em 35. Dias, porém, virão em que
rão. que têm consigo o esposo, lhes será tirado o esposo,
não podem jejuar.
16. Ninguém põe remendo de então nesses dias jejuarão".
pano novo em manto velho, 20. Dias virão, porém, em que 36. Propôs-lhes também uma
porque o remendo, repuxa lhes será tirado o esposo, e parábola: "Ninguém tira
parte do manto e fica maior então nesses dias jejuarão. remendo de manto novo e o
o rasgão. 21. Ninguém cose remendo de põe em manto velho; senão
17. Nem se põe vinho novo em pano novo em manto velho: rasgará o novo, e o remen-
odres velhos; senão arre- senão o remendo novo re- do do novo não combinará
bentam os odres, e derra- puxa parte do velho, e tor- com o velho.
ma-se o vinho e estragam- na-se maior o rasgão. 37. E ninguém põe vinho novo
se os odres; mas vinho novo 22. E ninguém põe vinho novo em odres velhos; senão o
é posto em odres novos, e em odres velhos; senão o vinho novo arrebentará os
ambos se conservam'. vinho fará arrebentar os odres, e ele se derramará, e
odres e derramar-se-á o vi- estragar-se-ão os odres:
nho e também perder-se-ão 38. Ao invés, vinho novo deve
os odres; ao invés, vinho ser posto em odres novos.
novo é posto em odres no-
vos". 39. Ninguém que já bebeu o
vinho velho, ao ver o novo,
pois diz: "o velho é me-
lhor".

Ainda durante o banquete é apresentada a Jesus outra objeção, desta feita ritualística. Os joanitas (dis-
cípulos de João Batista) observam que, num dia de jejum (conforme noticia Marcos), Jesus se ban-
queteia com seus discípulos. A anotação de Marcos de que os fariseus e joanitas "estavam jejuando"
(êsan nesteúontes) assinala o contraste entre a alegria do banquete e a tristeza "formal" dos que jejua-
vam. Não é crível, todavia, que Jesus estivesse afrontando, logo no início de seu ministério, um jejum
prescrito por lei (como, por exemplo, o "da expiação", a 10 de tishri). Mas havia outras datas, já cita-

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das por Zacarias (8:19) e que, segundo esse profeta deveriam ser abolidas; não obstante, continuavam
a ser rigorosamente observadas pelos ortodoxos rigoristas.
Jesus responde com uma comparação: os "filhos da câmara nupcial" (hoi huioi tou numphônos, tradu-
ção do hebraico benê hupâh ) expressam os "convidados", que não podem manifestar luto e tristeza na
presença do esposo. Essa comparação é dirigida especialmente aos joanitas, que deviam bem lembrar-
se das palavras do Batista, quando comparou Jesus ao "esposo" e ele mesmo ao "amigo do esposo"
(João, 3:29). E, ainda mais, vem ligar Jesus ao Antigo Testamento, onde se afirma que o esposo por
excelência do povo judaico era YHWH (Jer. 2:2; Os. 1:3), confirmando o que escrevemos na pág. 4 do
1° vol., ou seja, de que Jesus é a encarnação de YHWH. No entanto, breve chegará o tempo em que o
esposo "será arrebatado (aparthê), conforme também escreveu Isaías (53:8), ou seja, aparthê aíretais
apó tês gês hê zóe autou (será arrebatada da Terra a vida dela).
Vem depois uma frase sentenciosa, em forma de aforismo: "ninguém sobrepõe remendo ( epíblêma )
de pano novo ( ágnaphos ) , literalmente "não molhado", que portanto encolherá muito ao ser lavado,
em roupa velha, pois a peça (plérôma) repuxará, e o rasgão (schisma) ficará maior. A comparação é
nova e bela. Lucas, porém, a apresenta de forma algo diferente: "ninguém arranca um pedaço da roupa
nova para remendar outra velha", pois as duas ficariam inutilizadas.
Segue-se outra comparação do mesmo teor, a respeito do vinho. O odre (ainda hoje usado no oriente)
consiste numa pele de, animal, sobretudo bode, devidamente macerada, cosida nas extremidades e fe-
chada na boca com uma fivela de osso, conservando mais ou menos a forma do animal. Nesses odres
eram transportados líquidos (água, leite, vinho, óleo ou leben, isto é, leite coalhado). Ora, o vinho
novo, ao fermentar, arrebentaria a pele já velha e desgastada de ser carregada às costas de um lado para
outro, e tanto o vinho se derramaria, como a pele se perderia.
Aqui Lucas acrescenta, também, um versículo novo: quem bebe o vinho velho, não quer saber do
novo, pois o velho é melhor (chrêstóteros, ou, em outros manuscritos, "é bom", chréstos, sem o com-
parativo).
Os exegetas interpretam essas comparações, como a impossibilidade de adaptar-se a "Boa-Nova" às
velhas doutrinas israelitas, e portanto, como afirmação de que a nova doutrina deverá arrebanhar ho-
mens libertos de preconceitos e dogmas. No entanto, pela última frase de Lucas, quem já experimentou
o vinho (a doutrina israelita) nem quererá saber da nova (o Evangelho), porque julgará sempre que o
antigo é o melhor.
Daí concluem que o candidato à nova doutrina de Jesus deverá abandonar totalmente, delas fazendo
tábula rasa, todas as suas crenças antigas, sem o que jamais poderá compreender todo o alcance do
que Jesus ensinou.

Outras lições mais vamos aprendendo, aprofundando assim o conhecimento do ensino de Jesus.
Se os fariseus caracterizam, os tipos hipócritas (atores) que representam uma cena sem que os senti-
mentos expressados correspondam ao que lhes vai no íntimo, os joanitas já são exemplo de outra ca-
tegoria: os rigoristas sinceros, que julgam residir a perfeição no rígido cumprimento dos preceitos
morais: é intelectualismo, ainda, já um pouco esclarecido, embora não bem equilibrado.
Preocupam-se, então, com o lado exterior da vida, dando importância ao jejum, isto é, à ausência da
alegria. Porque o jejum, mais do que a abstenção do alimento, valia pela expressão facial de tristeza,
pelo óleo que derramavam no cabelo, deixando que escorresse pela barba, pela cinza com que pulve-
rizavam a cabeça e as roupas, velhas e sujas, a fim de dar aos outros (embora não a si mesmos) a
impressão de grandes penitentes.
Ora, enquanto o "esposo" (o CRISTO INTERNO) está unido à sua criatura, esta fatalmente terá que
demonstrar alegria. Todos os grandes místicos, que realizaram a unificação, ou pelo menos quando
conseguem a união, sempre foram alegres, bastando-nos recordar o exemplo de Teresa de Ávila.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Entretanto, quando a união se desfaz, nos "intervalos de separação", a tristeza é grande, e a criatura
chega a perder o apetite e o sono, jejuando então espontaneamente; essa fase é denominada período
de secura ou de trevas, como a “noite sem estréias".
Os ensinamentos feitos sob forma de parábolas são profundos.
A interpretação dada por todos os exegetas é de que o Evangelho não pode adaptar-se às crenças
judaicas; a Boa-Nova se perderia se pretendesse brotar e produzir no terreno já cultivado por outra
crença. Esta é, com efeito, a interpretação personalista que joga, quase sempre, com fatos exteriores,
a fim de não precisar tocar em seu próprio íntimo, "reformando sua mente", e modificando seus hábi-
tos e sua crença.
Mas a interpretação real é mais profunda.
O "homem novo" não pode ser sobreposto ao “homem velho", senão ambos se estragam. A individua-
lidade não pode aplicar-se sobre a personalidade, porque senão, quando a individualidade se encolhe
na humildade verdadeira, para ficar de seu tamanho próprio, a personalidade, que a não pode acom-
panhar, se rebela e o rasgão (em grego, o “cisma") entre as duas se torna maior.
E ainda, não há possibilidade de a individualidade que cresce por dentro (fermenta) não poder adap-
tar-se à personalidade mesquinha: o fermento desse crescimento ao infinito arrebentaria a pequenez
da pessoa, e teríamos total estrago. De fato, quando certas pessoas penetram, apenas intelectualmen-
te, nessa compreensão, mas sem conseguir a vivência, observa-se que representam uma coisa que não
são; tornam-se extremamente vaidosas, sob a capa da humildade exterior; não admitem ninguém su-
perior a elas, porque se julgam plenos de sapiência, conhecedores únicos da "verdade"; olham a to-
dos "de cima", como seres superiores que se sentem: perdeu-se o vinho e arrebentou o odre.
Então, a adaptação tem que ser perfeita: primeiramente é mister que a criatura se torne "homem
novo", libertando-se de preconceitos e dogmatismos, com a mente livre de teorias escravizantes, para
então poder receber o vinho novo, ou seja, realizar a união com o Cristo Interno.
Mas tudo isso é difícil, porque, quem experimentou o vinho velho, recusa o novo. Quem, durante sé-
culos, plasmou sua mente em moldes preestabelecidos e a eles se adaptou plenamente, recusa aban-
donar TUDO (cfr. Luc. 14:16 e 33) para tornar-se novamente criança (cfr. Luc. 18: 17) e então "en-
trar no reino dos céus", isto é, na Consciência Cósmica, encontrando o CRISTO INTERNO".

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C. TORRES PASTORINO

A QUESTÃO DO SÁBADO
(GENESAR - SÁBADO, 22 DE MAIO DE 29 A.D.)

Mat. 12:1-8 Marc. 2:23-28 Luc. 6:1-5

1. Naquela ocasião, num sá- 23. E aconteceu que cami- 1. Aconteceu num sábado
bado, passou Jesus pelas nhando Jesus pelas searas passar Jesus pelas searas e
searas; e tendo fome, seus num sábado, seus discípu- seus discípulos colhiam es-
discípulos começaram a los ao passarem, começa- pigas e debulhando-as com
colher espigas e a comer. ram a colher espigas. as mãos, as comiam.
2. Vendo isto os fariseus dis- 24. E os fariseus lhe pergunta- 2. Perguntaram alguns dos
seram-lhe: "Teus discípulos ram: "olha, por que fazem fariseus: "por que fazeis o
estão fazendo o que não é e1es no Sábado o que não é que não é lícito nos sába-
lícito aos sábados”. lícito”? dos"?
3. Mas ele disse-lhes: "não 25. Respondeu-lhes ele: “Nun- 3. Respondeu-lhes Jesus:
lestes o que fez Davi, quan- ca lestes o que fez Davi, "Nem ao menos lestes o que
do ele e seus companheiros quando teve necessidade e fez Davi, quando teve fome,
tiveram fome? fome, ele e seus companhei- ele e seus companheiros?
ros?
4. como entrou na casa de 4. como entrou de Deus, to-
Deus e comeram os pães da 26. Como entrou na casa de mou e comeu os pães da
"proposição", que não lhe Deus, sendo Abiatar sumo- "proposição", que somente
era lícito comer, nem a seus sacerdote, e comeu os pães aos sacerdotes era lícito
companheiros, mas somen- "proposição", os quais só comer, e os deu também
te aos sacerdotes? aos sacerdotes era lícito aos que com ele estavam?
comer, e ainda os deu a 5. E acrescentou: "O Filho do
5. ou não lestes na lei que, aos
seus companheiros”?
sábados, os sacerdotes no Homem é senhor também
templo violam o sábado e 27. E acrescentou: “o Sábado do sábado".
ficam sem culpa? foi feito por causa não do
homem, e não o homem por
6. Digo-vos, porém: aqui está
causa do Sábado;
o que é maior que o templo.
28. assim o Filho do Homem é
7. Mas se tivésseis sabido o
senhor também do Sába-
que significa "misericórdia
do”.
quero e não um sacrifício",
não teríeis condenado os
inocentes,
8. porque o Filho do Homem
é senhor do sábado".

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Figura “JESUS NO TRIGAL” - Desenho de Bida – Gravura de L. Flameng


O fato de poder "respigar" (colher espigas já maduras), assegura-nos que estamos no início do verão
(segunda quinzena de maio; nesse ano, podia tratar-se do dia 22 de maio, que caiu num sábado). Jesus
atravessava um campo de trigo com seus discípulos, e eles tinham fome.
Era permitido pela lei mosaica (Deut. 23:26) que o viandante que atravessasse um campo cultivado, e
tivesse fome, pudesse colher de seus frutos para alimentar-se. Mas acontece que estávamos num sába-
do, e nesse dia era proibido "ceifar" (Êx. 34:21). Ora, para o rigorismo exagerado dos fariseus, "respi-
gar" e "ceifar" não se distinguiam ...
Traz Jesus à balha o exemplo de Davi e de seus companheiros, quando fugiam da perseguição de Saul
(1 Sam. 21:1-6), e chegando a Nob, onde se achava o sumo sacerdote Achimelec, comeram os pães da

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C. TORRES PASTORINO
"proposição". Assim eram chamados os 12 pães que, cada Sábado, eram colocados em duas pilhas de
seis, sobre uma mesa (ou altar) de ouro (3.º Reis.7:48), e só dali eram retirados no sábado seguinte.
Desses pães, após terem sido retirados "da presença de YHWH", somente os sacerdotes podiam comer
(Lev. 24: 5-9).
Note-se que, em Marcos, Jesus fala do sumo-sacerdote Abiathar, quando na realidade não o era ainda.
Os fatos passaram-se assim: fugia Davi, quando passou rela casa de Achimelech e pediu pão para si e
para seus companheiros. Não os tendo em casa, Achimelech levou a todos ao santuário de YHWH,
apanhou os pães da “proposição” e deu-os. Pouco após, denunciado pelo edomita Doeg, Saul mandou
assassiná-lo e a toda a sua família ( 1 Sam. 22:6-23), por terem dado hospitalidade a Davi. Mas o filho
de Achimelech, de nome Abiathar, conseguiu escapar, reunindo-se ao bando fugitivo de Davi; este, ao
ser coroado rei de Israel, fê-lo sumo sacerdote, cargo que ocupou praticamente durante todo o reinado
de Davi. Não se pode dizer que há erro de “copista", porque todos os manuscritos e códices são unâ-
nimes em colocar “Abiathar”. Mas pode Ter havido um engano da parte do evangelista, que não era
“infalível”.
Com isso, Jesus demonstrava que a necessidade “abolia” o Sábado.
Mas outro exemplo é trazido: os sacerdotes, no templo, não violam o sábado ao imolar as vítimas, por-
que o sacrifício ordenado pela Torah é superior à observância sabática.
Aparece então uma afirmativa solene: “aqui está algo (no neutro) que é maior que o templo". Repete,
então, a frase de Oséias (6:6) já anteriormente citada: “a misericórdia é superior a um sacrifício”, e
termina com a assertiva: "o Filho do Homem é o senhor do Sábado”, não só porque ele, Jesus, era o
próprio YHWH que o havia instituído, como também porque todos os filhos dos homens são superio-
res e senhores de quaisquer ordenações, quando estas vêm prejudicar suas necessidades vitais. Porque
“o sábado foi feito por causa do homem, e não o homem feito por causa do sábado".

A lição anterior podia escandalizar muitos discípulos sinceros, embora de mentalidade estreita, que
haviam seguido rigorosa e conscientemente os preceitos, que julgavam "divinos", de suas próprias
igrejas (não só os discípulos daquela época, mas os de todos os tempos, inclusive os atuais, tenham
que denominação tiverem: israelitas, muçulmanos, católicos - romanos ou reformados -, espíritas,
hindus, etc.)
A este é dada outra lição sublime, simbolizada na crença mais firme e arraigada naquela população:
o sábado.
Jesus ensina, claramente, que todo e qualquer preceito por mais "divino" que seja tido, é dado em be-
nefício do homem. Logo, o homem é superior aos preceitos, sejam eles quais forem, e podem resolver,
quando em união com Deus, o que melhor lhes convenha.
Logicamente está claro: quando a personalidade ainda domina, os preceitos lhe são dados para con-
trolar os abusos: são os trilhos e os fios elétricos, aos quais se prende o trem. Mas quando a individu-
alidade assume o comando, não mais necessita disso: é o avião, que tem para locomover-se a ampli-
dão dos céus, só sendo obrigado a sujeitar-se às regras terrenas, quando está em contato próximo
com a terra, com a personalidade.
O exemplo do que fez Davi é típico. Mas a frase do ensinamento esclarece melhor: o sábado (os pre-
ceitos religiosos) foi feito para (ajudar) o homem; e não absolutamente o homem foi feito por causa
do sábado (dos preceitos); então, é certo: aqui está uma coisa (um ensinamento, pois em grego apare-
ce o neutro) que é maior que o templo: um ensinamento que é superior a todas as igrejas.
Os exegetas interpretam que o neutro foi colocado para "não chocar”, e que Jesus se dizia Deus,
confessando-se maior que o templo. Mas teria Jesus esse escrúpulo ao falar, quando o masculino e o
neutro tem a mesma pronúncia? Cremos que o sentido é mesmo o do neutro, que o evangelista enten-
deu e escreveu: "aqui está um ensinamento que é maior que qualquer templo" ou igreja. Muito maior
é a misericórdia, a bondade, a caridade, o amor, do qualquer sacrifício que se realiza nos templos".

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SABEDORIA DO EVANGELHO

E por isso, "não deveis condenar inocentes". Aqueles que, no decorrer dos séculos, condenaram ao
suplício, à fogueira, à morte moral e material tantos inocentes, faziam isso em nome de Jesus, para
"dar-Lhe glória", julgando-se seus únicos discípulos legítimos ... Como é difícil, às personalidades
vaidosas, penetrar o sentido exato dos ensinamentos de Jesus! Os judeus condenaram verbalmente os
discípulos de Jesus, e o Mestre imediatamente protestou; que terá Ele feito, quando Seus próprios
discípulos (ou que "se diziam" tais), se esmeraram em condenar a sofrimentos indizíveis, durante sé-
culos, tantos milhões de criaturas, cujo único "crime" era não pensar como eles?
O Filho do Homem (isto é, todo aquele que já vive na Individualidade, mesmo como encarnado na
Terra) é o senhor do sábado. Quer dizer que, quem tenha conseguido viver na Consciência Cósmica,
na perfeita união com o CRISTO INTERNO, esse é senhor de qualquer de seus atos, superior aos pre-
ceitos, por mais importantes que pareçam às pequenas personalidades temporárias e ignorantes dos
mistérios profundos das riquezas da sabedoria e da ciência de Deus (cfr. Rom. 11:33).

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C. TORRES PASTORINO

CURA DA MÃO A TROFIADA


(CAFARNAUM, SÁBADO, 29 DE MAIO DE 29 A.D.)

Mat.12:9-14 Marc. 3:1-6 luc. 6:6-11

9. Tendo Jesus partido da- 1. Entrou Jesus outra vez na 6. Aconteceu em outro sábado
quele lugar, entrou na si- sinagoga, e aí se achava um entrar na sinagoga e ensi-
nagoga deles. homem que tinha uma das nar; ora, achava-se aí um
mãos atrofiada. homem que tinha a mão di-
10. E achava-se ali um homem
reita atrofiada,
que tinha a mão atrofiada; 2. E observavam-no para ver
e o para que o acusassem se o curaria no Sábado, a 7. e os escribas e fariseus ob-
perguntaram-lhe: "é lícito fim de o acusarem. servavam-no para ver se ele
curar aos sábados”? 3. Disse Jesus ao homem que
o curava no Sábado, a fim
de acharem acusação con-
11. Respondeu-lhes ele: “qual é tinha a mão atrofiada:
tra ele.
o homem dentre vós que, “Levanta-te e vem para o
tendo uma ovelha, se ela ao meio de nós". 8. Mas conhecendo-lhes ele os
sábado cair numa cova, não 4. Então lhes perguntou: “É pensamentos, disse ao ho-
a apanha e tira? lícito, aos sábados, fazer o
mem que tinha a mão atro-
fiada: "Levanta-te e fica
12. Ora, quanto é superior um bem ou o mal, salvar a vida
em pé no meio de nós". E
homem a uma ovelha! Logo ou tirá-la? Mas eles fica-
ele levantou-se e ficou de
é lícito fazer o bem aos sá- ram silenciosos.
pé.
bados". 5. E olhando em redor com
9. Disse-lhes Jesus: "Pergun-
13. Então disse ao homem: desgosto, entristecido pela
to-vos: é lícito no Sábado
"Estende tua mão" Ele a insensibilidade de seus co-
fazer o bem ou o mal, sal-
estendeu, e a mão lhe foi rações, disse ao homem:
var a vida ou tirá-la"?
reconstituída sã como a ou- "Estende tua mão". Ele a
tra. estendeu e a mão lhe foi re- 10. E olhando para todos os
constituída. que o rodeavam, disse ao
14. Mas, saindo dali, os fari-
homem: "Estende tua
seus reuniram-se em con- 6. Saindo dali, os fariseus en-
mão". Ele a estendeu, e a
selho, para resolver como o traram logo em conselho
mão lhe foi reconstituída.
destruiriam. com os herodianos contra
ele, para ver como o des- 11. Mas eles encheram-se de
truiriam. raiva e discutiam uns com
os outros, para ver o que
fariam a Jesus.

Outra cena passa-se ainda na sinagoga "deles", também num sábado (provavelmente a 29 de maio).
Aqui, os fariseus não esperam o fato para depois criticá-lo: tomam a dianteira, como que para avisá-lo
de que não transgrida a lei mosaica. A pergunta que lhe dirigem é capciosa. Tinham eles a certeza do
comportamento de Jesus, pois já o haviam testemunhado com frequência: à vista da enfermidade, fica-
va condoído e curava, não resistindo à compaixão que Lhe causava o sofrimento alheio. Todavia, eles
buscavam situações em que pudessem acusá-lo.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

A “mão atrofiada" (em grego zêrê, “sêca" - só Marcos emprega o particípio eyêramménên, dando a
idéia de que não era congênito o mal, mas fora paralisada e ficara descarnada por acidente), era, se-
gundo Lucas, a “mão direita".
Jerônimo (Patr. Lat. vol. 26 col. 78) escreve: “No Evangelho usado pelos nazareus e pelos ebionitas (é
apócrifo), e que geralmente é tido como o original de Mateus, está dito que esse homem, cuja mão se
atrofiara, era pedreiro, e implorava o socorro com estas palavras: sou pedreiro e ganho a vida com o
trabalho das mãos: peço-te, Jesus. dá-me saúde, para que não passe vergonha de ter que mendigar para
viver”.
A resposta de Jesus obedece ao tipo de casuística rabínica, argumentando, do menos ao mais. Se pode
salvar-se uma ovelha de afogar-se, num Sábado, quanto mais um homem, de muito superior. A conclu-
são é clara: "é lícito curar num Sábado”. E imediatamente passa à ação.
Num comportamento que demostra uma ostentação deliberada, Jesus manda que o doente fique de pé,
no meio da assembléia, para que todos o vejam e se condoam, verificando, ao mesmo tempo, a cura
sensacional.
E então pergunta: “é lícito fazer o bem ou o mal"? Essa pergunta emudece os fariseus, atrapalhados em
sua má-fé. Não poderiam dizer que não era lícito fazer o bem, pois seriam condenados por todos. E se
dissessem que fazer o bem era lícito, apoiariam plenamente a ação de Jesus.
Diante do embaraço deles, Jesus olha em redor (periblepsámenos, expressão que volta em Marcos
3:34: 5:32: 9:8; 10:23 e 11: 11) com desgosto. Já vimos o sentido de orgê, na pág. 25 deste volume:
insatisfação, desgosto, paixão, mas nem ira, nem raiva. E além disso, sentiu profunda tristeza e com-
paixão (sullupoúmenos) que se revelaram em Sua expressão facial. Não podia compreender a insensi-
bilidade (o "endurecimento": o termo grego pórôsis exprime o endurecimento de algo que normal-
mente é mole) de seus corações.
E então, sem um gesto sequer, mas com simples palavras, realiza a cura. Não violara o repouso do sá-
bado, pois em lugar algum se dizia que era proibido falar. E eles ficaram com raiva deles mesmos, di-
ante de sua impotência de opor-se a Jesus. Sem cogitar de "impurezas legais", vão unir-se aos herodia-
nos: era indispensável levar a guerra àquele homem até o extermínio, pois ele os desprestigiava e hu-
milhava seu orgulho.
E foi tomada a decisão (sumboúlion edídoun) de eliminá-lo .

Depois dos ensinamentos teóricos, um exemplo prático .


O homem atrofiara sua mão, e dela precisava para seu serviço. Jesus cura-o, arrostando com isso o
ódio dos "donos da religião", aliados, como sempre, ao "poder temporal", que bajulam para não per-
der os favores transitórios da Terra.
Mas essa é a lição "externa".
Internamente, vemos que a individualidade deve despreocupar-se de tudo o que possam dizer ou fazer
os outros, e agir sempre no interesse do aperfeiçoamento de sua personalidade.
Se nossa personalidade está atrofiada em sua mão direita, ou seja, se não agimos com devêramos, por
qualquer motivo, a individualidade deve colocar-nos, como exemplo, no meio da multidão e modificar
de público nossa atuação, sem temor dos julgamentos apressados que nos condenarão à morte.
O que desgosta e entristece Jesus (a individualidade) é verificar a má-fé, a incapacidade de compre-
ender, daqueles que, estando revestidos de autoridade, têm os corações insensíveis, as mentes obtura-
das, e não vêem, porque não querem ver: endureceram a mente, cadaverizaram o pensamento, enrije-
ceram o raciocínio em moldes imutáveis e, sem piedade, colocam os preceitos (que eles mesmos ou
seus antecessores estabeleceram) acima das criaturas.

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C. TORRES PASTORINO
Jesus ensina e exemplifica uma coisa, mas muitos pensam "provar" que são Seus discípulos, quando
fazem exatamente o contrário do que Jesus disse e praticou! Realmente, corações incapazes de com-
preensão, de maleabilidade, de misericórdia!
Mas Ele mesmo nos ensinará o que devemos fazer nesses casos.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

JESUS RETIRA-SE

Mat. 12:15-21 Mat. 4:24-25 Marc. 3:7-12

15. Sabendo disso, Jesus reti- 24. Sua fama correu por toda a 7. Jesus retirou-se com seus
rou-se daquele lugar. E Síria; trouxeram-lhe todos discípulos para o lado do
muitos o acompanharam, e os enfermos, acometidos de mar: e da Galiléia o seguiu
ele curou todos, várias doenças e sofrimen- grande multidão.
tos, obsedados, epilépticos e 8. Também da Judéia, de Je-
16. advertindo-os de que não o
paralíticos, e ele os curou.
dessem a conhecer, rusalém, da Iduméia, d'a-
25. Muita gente o seguiu da lém Jordão e das circunvi-
17. para cumprir-se o que foi
Galiléia, da Decápole, de zinhanças de Tiro e de Si-
dito através do profeta
Jerusalém, da Judéia e don, sabendo o povo quan-
Isaías:
d'além Jordão. tas coisas fazia Jesus, foi ter
18. "Eis meu servo que escolhi, com ele em grande número.
meu amado, em quem mi-
9. E ele recomendou a seus
nha alma se deleita; sobre
discípulos que tivessem um
ele porei meu espírito, e ele
barquinho sempre à sua
anunciará o certo às na-
disposição, por causa da
ções;
multidão, a fim de que não
19. não discutirá nem gritará, e o apertasse,
ninguém ouvirá sua voz nas
10. porque curou muitos, de
praças.
modo que todos os que pa-
20. Não esmagara a cana ra- deciam qualquer doença, se
chada, nem apagará o pa- arrojavam a ele, para que
vio que fumega, até que os tocasse,
faça triunfar o certo.
11. e os espíritos atrasados,
21. E em seu nome esperarão quando o viam, prostra-
as nações". vam-se diante dele e clama-
vam: "Tu és o Filho de
Deus".
12. E muitas vezes os advertiu
que não o dessem a conhe-
cer.

Sabendo o que se passava, Jesus resolve retirar-se, afastando-se daquele lugar. E Mateus, segundo seu
hábito, aproveita o fato para citar Isaías, (42.1-4), embora algo modificado. Eis o texto do profeta na
íntegra:
Eis meu servo, que eu sustento, meu escolhido, em quem minha alma se alegra. Nele coloquei meu
espírito. Ele exporá o certo às nações. Não o ouvirão gritar nem falar alto, nem elevar a voz nas praças;
não quebrará a cana rachada nem apagará o pavio que fumega. Exporá fielmente o certo, não se cansa-
rá, nem fatigará, até que tenha estabelecido o certo na Terra, e as ilhas esperarão sua doutrina".

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C. TORRES PASTORINO
O termo grego krísis, geralmente traduzido como “juízo" ou "julgamento”, tem precisamente o sentido
de triagem, isto é, separação do certo e do errado do bem e do mal, e, por extensão, “escolha" daquilo
que é direito ou certo. Realmente a escolha, numa triagem, supõe um julgamento. Mas muito melhor se
compreenderá o sentido traduzindo, aqui, como "o certo" do que se o fizéssemos com a palavra “jul-
gamento”: o Emissário Divino ensinará “O CERTO”, e não ensinará o julgamento, coisa que não faria
sentido. Não se cansará até que O CERTO chegue à vitória, e não até que o julgamento chegue à vitó-
ria.
Sua fama se espalha com rapidez pela Síria (de fácil comunicação com a Palestina) e de lá também
chegam doentes físicos e espirituais, e a todos Jesus cura. Com a má-vontade dos fariseus, contrasta o
entusiasmo do povo que o procura e acompanha de diversas partes. A Decápole era uma confederação
de dez cidades (segundo Plínio, Hist. Nat. 5,18,74, eram: Damasco, Filadélfia (Aman), Rafana, Citó-
polis (Beisan), Gadara, Hipos, Dion, Pela, Gelasa (Gerasa) e Canata). Todas, exceto Citópolis, ficavam
além Jordão. Segundo Marcos, vinha gente de Jerusalém e da Judéia, da Iduméia (território que ia de
Jerusalém até Betsur, chegando além do Hebron, e que era a terra dos Herodes). O além Jordão, se-
gundo Josefo (Bel. Jud. 3.2.3) era a Peréia, território entre o Jabok e o Arnon, indo de Maquérus, a este
do Mar Morto, até Pela. Mas também chegava gente do nordeste, da região de Tiro e de Sidon.
Realmente, as ruas estreitas de Cafarnaum não ofereciam segurança: muito melhor era pregar nos
campos abertos, nas praias do lago, onde poderia falar abertamente, sem ser obrigado a discutir seus
atos com os fariseus. De agora em diante, vemos que Jesus se afasta cada vez mais das sinagogas. E
quanto mais o clero oficial o persegue, mais o povo o procura, e a maior satisfação de Jesus é, sem
dúvida, descer aos pequeninos, abandonando os grandes e sábios que Lhe recusam ouvir os ensina-
mentos, cheios que estão de sua própria vaidade de "sabedores" de suas Escrituras e de "seguros" em
suas tradições seculares e milenares. "Quem provou o vinho velho, não quer saber do novo". Todos os
reformadores sempre tiveram que apoiar-se no povo menor, e sempre sofreram a perseguição das "au-
toridades" que jamais desejam perder seu prestígio de mando e sua "cotação" de senhores da situação e
de "donos de Deus". Ainda hoje é assim.

Ao ver a impossibilidade de conseguir compreensão daqueles a quem falava e ensinava, ilustrando


seu ensino com exemplos, a individualidade retira-se. É a aplicação da parábola "da vinha"
(cfr.Mat.21:33-46). Se aquelas personalidades se recusam a ouvi-Lo, Ele irá a outros mais acessíveis.
O texto de Isaias, aplicado por Mateus, diz claro que a misericórdia da Individualidade sabe apro-
veitar todos os menores indícios de possibilidade de aperfeiçoamento. Que, embora a cana já esteja
rachada, a Individualidade não a acabará de partir. Que embora o pavio já esteja apenas fumegando,
ela não o apagará de todo. Não. A individualidade, em união com o Cristo Interno, aproveita as mí-
nimas possibilidades para "salvar", para levar ao bom caminho.
E só estará satisfeita e feliz, quando a personalidade tiver feito sua escolha definitiva. ainda que, para
isso, tenha que esperar múltiplas encarnações, durante muitos séculos.
Claro que, com esse modo de agir, a individualidade atrairá a si multidões de sofredores, de todas as
partes. Mas, para não deixar-se envolver pela multidão, terá sempre à mão, à sua disposição, um
“barquinho”, um meio de fuga, onde possa refugiar-se em prece, todas as vezes que se sentir "aperta-
do”, acossado pelas arremetidas das personalidades insatisfeitas.
E, não obstante desconhecido pelos encarnados, os desencarnados, que vêem sua aura, dirão sem pejo
que ali está um Filho de Deus. Mas a individualidade, pela humildade e modéstia inerentes a seu pró-
prio adiantamento, sempre há de pedir silêncio em torno de si.
Essa a razão pela qual, os que tiveram o Encontro Real, jamais o dizem; pois os que o dizem, pensam
que encontraram o Cristo Interno, mas apenas realizaram o encontro com seu próprio eu ilusório e
pequenino. E os primeiros, nem mesmo permitem que o digam aqueles que o sabem. A lição também é
aproveitável para as sessões mediúnicas: cuidado com os espíritos que elogiam: não são elevados,
são bajuladores: façamo-los calar-se!

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SABEDORIA DO EVANGELHO

A ESCOLHA DOS DOZE

Mat. 10:1-4 Marc. 3:13-19 Luc. 6: 12-16

1. E tendo convocado (Jesus) 13. Depois subiu ao monte e 12. E aconteceu que naqueles
seus doze discípulos, deu- chamou para junto de si os dias se retirou para o mon-
lhes poder sobre os espíri- que ele mesmo quis, e eles te a orar, e passou a noite
tos atrasados, para os ex- aderiram a ele. no oratório de Deus.
pulsarem, e para curarem 14. Então designou doze para 13. E quando se fez dia, cha-
todas as doenças e enfermi- estarem com ele, e para en- mou seus discípulos e es-
dades. viá-los a pregar; colheu doze dentre eles, aos
2. Ora, os nomes dos doze 15. e ter autoridade de expul- quais deu também o nome
emissários são estes: o pri- sarem os espíritos desen-
de emissários,
meiro, Simão, que também carnados. 14. a saber: Simão, a quem
se chama Pedro, e André também chamou Pedro, e
seu irmão; Tiago, filho de 16. Eis os doze que designou: André, seu irmão; Tiago e
Zebedeu, e João, seu irmão; Simão, a quem deu o nome
João, Filipe e Bartolomeu;
de Pedro; Tiago, filho de
3. Filipe e Bartolomeu, Tomé Zebedeu e João, irmão de 15. Mateus e Tomé; Tiago filho
e Mateus, o coletor de im- Tiago, a quem deu o nome de Alfeu e Simão, chamado
postos, Tiago, filho de Alfeu de Boanerges, isto é, filhos Zelote;
e Tadeu; do trovão; 16. Judas irmão de Tiago, e
4. Simão, o Cananita, e Judas 17. André, Filipe, Bartolomeu, Judas Iscariotes, que se
Iscariotes, que o entregou. Mateus, Tomé, Tiago, filho tornou traidor.
de Alfeu, Tadeu, Simão o
Cananita, e Judas Iscario-
tes, que o entregou.

Mateus apresenta-nos o fato como consumado. Marcos assinala a escolha no momento em que foi fei-
ta. Lucas precede a escolha de outros pormenores, assim como a imposição de um título aos escolhi-
dos.
Jesus havia rompido com os "donos" da religião (fariseus e escribas) que o haviam condenado à morte,
unidos aos herodianos: a força religiosa e a força civil. Era-Lhe necessário, pois, recrutar um grupo
que Lhe pudesse continuar a obra incipiente.
Como sempre fazia antes de qualquer decisão importante, retirou-se sozinho a um monte para orar. Os
evangelistas dizem determinando-o com o artigo, como se fora já conhecido e bastasse citá-lo para
saber-se de que monte se tratava: foi AO monte. Supuseram alguns tratar-se de Qarn-Hattin, mas este
fica a 8 km de Cafarnaum; mais aceitável a hipótese de ter sido Um-Barakât (“Mãe das Bênçãos"),
perto de Ain-Tabgha, a 3 km de Cafarnaum.
Realmente, não devia ficar muito distante, pois Lucas informa-nos que, logo após, Ele “entrou na ci-
dade", bem como anota que passou toda a noite no "oratório de Deus" (en têi proseúchêi tou theou).
Esses oratórios (lugares de oração) eram geralmente paredes, sem teto, com assentos em forma de an-
fiteatro, usados, nas cidades em que não havia sinagogas, para as devoções e preces. Ora. Cafarnaum
possuía sinagoga havia pouco tempo, pois ali ainda servia o centurião romano que a construíra (cfr.

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Luc. 7:5). Então o “oratório” devia achar-se meio ou de todo abandonado, sendo ideal, por seu isola-
mento e por suas vibrações devocionais, para o transcurso de uma noite em oração.
Ao sair de sua prece prolongada, já dia, Jesus chama a si, como diz Marcos, “aqueles que Ele quis”. E
todos imediatamente aderiram a Ele. O Verbo grego apélthon tem o sentido exato de “vir abandonando
tudo", ou seja, de aderir incondicionalmente.
Escolhidos os doze, deu-lhes o nome de “emissários”, em grego "apóstolos”. É a primeira vez que apa-
rece esse título. O título grego “apóstolo” (em hebraico saluah, em aramaico saluha) era dado aos
emissários ou comissionados do Sumo-Sacerdote ou do Sinédrio, quando enviados à Diáspora (Atos,
28:21) ou quando alguém era encarregado de missão especial: Paulo era “apóstolo” (emissário) do
Sinédrio em Damasco (At. 9:1-2). Ainda após a queda de Jerusalém, de lá envia “apóstolos" o patriar-
ca Jabne (cfr. Justino. Diál. 17.108 e Eusébio, in Isaia, 18:1).
Desejando dar sempre o sentido verdadeiro e atual, correspondente aos termos usados na época de
Jesus, traduzimos o grego "apóstolos" pelo português “emissários”. Isto porque na simples translitera-
ção do vocábulo, este assumiria um sentido que já variou profundamente em sua semântica através dos
séculos, e representaria hoje um sentido que não tinha, absolutamente, naquela época. Baste-nos citar,
como exemplo típico, a palavra epískopos, que foi transliterada para o latim "episcopus", passando em
português a "bispo". Ora, o termo "bispo" exprime hoje uma coisa totalmente diferente do que signifi-
cava “epíscopos" naquela época. O "epíscopos" era um simples supervisor (epi = super; scopos = vi-
sor), ou melhor, INSPETOR. E não tinha, (como hoje tem os bispos), aquele pomposo vestido roxo,
nem usava mitra, nem báculo, nem anel para ser beijado, nem riquezas. Então, falar de "bispos” na-
quela época é grosseiro anacronismo histórico, falseamento de interpretação, como qualquer pessoa de
mediana inteligência pode perceber, embora essa confusão possa trazer alguma vantagem a certas pes-
soas. Este nosso modo de agir, traduzindo os termos para correspondentes atuais, corresponde à nossa
intenção de compreender e de expor os Evangelhos em sua lídima pureza original, com o sentido exato
dos termos usados pelos evangelistas.
A esses doze emissários, Jesus confere autoridade sobre os espíritos atrasados (obsessores). Essa inter-
pretação coincide perfeitamente com a idéia original dos escritores, que traduziram por “espíritos não-
purificados” a expressão hebraica runôth hattumeah, que era o nome dado aos desencarnados que ain-
da habitavam os cemitérios (cfr. Mat. 8:28), lugar considerado “impuro”. É a esses espíritas de cemité-
rio (espíritas de mortos, el-hametim) e aos familiares (ôb) que Moisés proíbe de evocar para consul-
tas (Deut. 18:11).
A seguir vem o número dos emissários: DOZE, lembrando os doze patriarcas, as doze tribos de Israel
(“eles se sentarão em doze tronos para julgar as doze tribos", Mat. 19-28), os doze signos do zodíaco,
etc. Que esse número encerrava uma intenção, está claro pelo açodamento de Pedro (At.1.15-16) em
substituir Judas para restabelecer o número primitivo.
São quatro as listas completas dos emissários, todas agrupando os doze em três série de quatro, quan-
do, sendo que os cabeças de série são sempre os mesmos, embora a ordem interna varie:
Mat. Mc. Lc At. 1:13
1. Simão Pedro Simão Pedro Simão Pedro Simão Pedro
2. André Tiago André João
3. Tiago João Tiago Tiago
4. João André João André
5. Filipe Filipe Filipe Filipe
6. Bartolomeu Bartolomeu Bartolomeu Tomé
7. Tomé Mateus Mateus Bartolomeu
8. Mateus Tomé Tomé Mateus
9. Tiago (de Alfeu) Tiago (de Alfeu) Tiago (de Alfeu) Tiago (de Alfeu)
10. Tadeu Tadeu Simão Zelote Simão Zelote
11. Simão Cananita Simão cananita Judas (de Tiago) Judas (de Tiago)
12. Judas Iscariotes Judas Iscariotes Judas Iscariotes Judas Iscariotes

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Embora já tenhamos falado de alguns, recapitulemos:


1. SIMÃO, cognominado por Jesus "Pedro" (ver vol. I, pág 150).
2. ANDRÉ, irmão de Pedro (ver vol. 1, pág. 148).
3. TIAGO (JACÓ), filho de Zebedeu (ver neste vol., pág. 58).
4. JOÃO, irmão de Tiago (ver vol. 1, pág. 148).
Anotemos que Marcos nos dá o apelido BOANERGES, aplicado por Jesus, provavelmente por causa
do episódio narrado em Luc. 9:54. No entanto, a tradução que nos dá dessa palavra, “Filhos do Tro-
vão", não corresponde a ela. Esse sentido seria em hebraico ben rahham e em aramaico benereen ou
baneraen (no manuscrito Sangalense, do séc. 9.º , aparece essa correção à margem). Então, deve ter
havido alteração dos copistas na transcrição grega do nome, já que não podemos admitir que Marcos,
sobrinho de Pedro, não conhecesse pelo menos o aramaico.
5. FILIPE (ver vol. 1, pág. 152).
6. BARTOLOMEU, que todos unanimemente identificam como Natanael (vol. 1, pág. 153) .
7. MATEUS, sobre quem falamos páginas atrás, por ocasião de sua convocação por Jesus (pág.89-90)
Novos discípulos escolhidos, pois nesta ocasião, foram apenas cinco:
8. TOMÉ, nome aramaico que significa “gêmeo”. Para explicá-lo, João (11:16 e 20:24) acrescenta-lhe
a tradução grega “Dídimo”. Alguns comentadores supõe-no sócio de Mateus na coletoria. Parece que
seu primeiro nome era Judas (cfr. Acta Thomae 1,1 e Lenda de Abgar, Hist. Ecles. 1,13); e onde João
diz (14:22) “Judas não o Iscariotes”, a versão siríaca curetoniana traz “Judas Tomé”.
9. TIAGO (JACÓ) filho de Alfeu e de Maria (cfr. Mat. 27:56), irmão de José, de Simão e de Judas
Tadeu, todos também chamados “Irmãos de Jesus” (Mat. 13:55). O nome Tiago é uma corruptela por-
tuguesa do nome de Jacó, que deu Iago, e, com o título Santo colocado antes, se tornou SANTIAGO.
Julgando ser o título apenas “são”, o povo transformou-o em "são TIAGO".
Este Tiago era cognominado “o pequeno” (Mr. 15:41), e foi inspetor em Jerusalém (At. 15:13) onde
Paulo o encontrou (Gál. 1:19) e a quem qualificou de uma das "colunas da comunidade” (Gal 2:9),
tendo sido morto em 62. O outro Tiago, dito “o maior”, filho de Zebedeu e irmão de João Evangelista,
foi decapitado também em Jerusalém, no ano 44 (At. 12 :2).
Mas quanto ao parentesco há alguma confusão. Firmemos o que é certo: 1.º Tiago é filho de Alfeu e de
Maria: 2.º é irmão de Judas (Tadeu), pois assim o classifica Lucas, e ele mesmo, em sua epístola (Jud.
1) assim se Tiago e Judas eram irmãos de Simão e de José" e "irmãos de Jesus”.
Agora as confusões.
Em João (19:25) esse mesmo Tiago é dito "filho de Maria, a esposa de Clopas". Seria Clopas o mesmo
nome que Alfeu, como supõem alguns? ou teria ele um nome hebraico Halphai e um nome grego Klo-
pas (abreviatura de Kleópatra - donde a variante Kleópas, o que o identificaria com um dos "discípulos
de Emaús", Luc. 24:18) ? Esta parece a hipótese mais razoável, pois era muito comum na época a du-
plicidade de nomes (João se tornava Jasão, Phaltiel se tornava Filipe, Levi era Mateus, etc.). Esse Clo-
pas, citado em João, é dito "irmão de José" (esposo de Maria) por Hegesipo, pelos meados do 2.º sé-
culo (a cerca de 100 anos dos acontecimentos) conforme testemunho de Eusébio (Hist. Ecles. 3, 11, in
Patrol. Graeca, vol.20, col.248) e segundo Epifânio (Haeres.78, 7, in Patrol. Graeca, vol.42, col.708).
Pensam alguns que Maria, esposa de Clopas, era irmã de Maria mãe de Jesus. Mas como se explicaria
o caso de duas irmãs com o mesmo nome? Além disso, a enumeração de João (19:25) é bem clara:
“estavam ao pé da cruz de Jesus 1) a mãe dele; 2) a irmã da mãe dele; 3) Maria, esposa de Clopas; e 4)
Maria Madalena". Pela construção e pelo andamento da frase grega, "Maria esposa de Clopas" não
pode ser aposto de “a irmã da mãe dele": são duas pessoas distintas. Curiosidade: quem seria essa
"tia" de Jesus, irmã de Maria? Teria sido (simples hipótese!) Joana, a esposa de Cusa, o oficial de
Herodes, que foi buscar Jesus em Caná para curar-lhe o filho (conhecendo-o bem familiarmente,

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portanto, antes mesmo de sua "vida pública")? Além disso, a intimidade constante de Joana de Cusa
com Jesus e com o colégio apostólico é suficiente para dar justificativa a essa hipótese, não de todo
infundada, se bem que nova.
Neste caso, os quatro (Tiago, José, Simão e Judas) seriam primos-irmãos de Jesus, parentesco que
costumava ser abreviado com a simples palavra "irmão".
A afirmativa de alguns apócrifos e dos "pais" da igreja Orígenes, Epifânio, Gregório de Nissa, Hilário,
Ambrósio e Eusébio, de que eles teriam sido filhos de José, num primeiro matrimônio (contra o que
protestou energicamente Jerônimo), não pode ser aceita; pois não se compreenderia que José tivesse
casado com Maria, enquanto sua primeira esposa estava ainda viva (tanto assim que estava ao pé da
cruz de Jesus) e sobretudo seria inconcebível essa promiscuidade das duas esposas. Isso explica tam-
bém que as "irmãs de Jesus (Mat 13:55-56), que segundo Teofilacto se chamavam Maria e Salomé,
deviam ser filhas ou de Alfeu-Clopas, ou de Joana de Cusa (em nossa hirótese). Talvez essa Salomé,
irmã (prima) de Jesus, fosse a esposa de Zebedeu (Mr. 15:40) e então Tiago Maior e João seriam seus
sobrinhos e por isso estavam sempre a seu lado e o tratavam com tanta familiaridade, retribuída por
Jesus que os apelidou com fina ironia "filhos do trovão”.
10. TADEU (segundo Mateus e Marcos - alguns manuscritos têm Lebeu, que significa "coração”) ou
JUDAS irmão de Tiago (segundo Lucas e Atos). Com o nome de Judas, deixou-nos uma epístola, em
que se diz “irmão de Tiago”. O termo Tadeu significa "seio" (peito de moça) e esse cognome prevale-
ceu para evitar confusões com o outro Judas Iscariote. Tadeu, que talvez tivesse recebido esse nome
por sua bondade maternal (cfr. Lebeu, variante de sentido), era também filho de Alfeu-Clopas e de
Maria, e era chamado irmão de Jesus. Acrescentemos que, se fora irmão real de Jesus, era mais carac-
terístico dizê-lo, do que apenas irmão de Tiago.
11. SIMÃO, o zelote. Sendo comum esse nome, era natural um apelido para distinguí-lo de Simão-
Pedro. Mateus e Marcos aplicam-lhe o termo aramaico gannaí ou gan'an, helenizado para cananeu.
Não deve confundir-se com os naturais de Canaã, nem com os habitantes de Caná. Lucas interpretou
bem quando traduziu a palavra pelo grego zelote. Tanto este termo, quanto o aramaico cananita, ca-
racterizavam os filiados a um partido político-religioso, que pugnava ardentemente (zelotes) pela inde-
pendência da Palestina, e que teve grande atuação entre 66 e 70, extinguindo-se com a destruição de
Jerusalém. Mas, à época de Jesus, ainda não se achava propriamente constituído esse partido; talvez
Simão fosse um pouco "jacobino" contra os romanos (nacionalista) e daí lhe adviesse o apelido. Al-
guns crêem que este Simão era o terceiro "irmão" de Jesus a participar do colégio apostólico. Mas não
temos nenhum esclarecimento positivo a respeito, a não ser o nome e a citação seguida dos três nomes:
Tiago, Judas e Simão. Acreditamos que, se o fora, os evangelistas não teriam deixado de anotá-lo,
como fizeram com Tadeu.
12. JUDAS ISCARIOTES, cujo cognome se dividiria em is (homem de) Qerioth, que seria sua aldeia
natal (essa localidade aparece citada na tribo de Judá, em Josué, 15:25). Já seu pai assim era conheci-
do: Simão Iscariote (cfr. João 6:71). Judas era o único "apóstolo" natural da Judéia (judeu), já que to-
dos os outros eram, como Jesus e sua família, galileus. Os evangelistas assinalam, por antecipação, um
ato que só mais tarde se realizou, mas que ficou preso a seu nome como um estigma.
O fato de serem todos galileus vem confirmar a teoria de que Jesus e seus discípulos empregavam cor-
rentemente mais a língua grega que a aramáica, pois o grego era mais divulgado na Galiléia desde
umas duas gerações - 70 anos cerca de domínio romano - do que o aramaico, usado apenas no interior
dos lares, mas que ficara mais arraigado na Judéia, onde maior era a resistência contra os dominadores
romanos. E os judeus tanto não gostavam dessa adesão dos galileus, que passaram a denominar essa
região de "Galiléia dos gentios". Outra anotação, é que os judeus eram de modo geral morenos de ca-
belos pretos e olhos escuros, ao passo que os galileus eram claros, de cabelos louro-bronzeados ou
vermelhos e muitos tinham os olhos azuis ou verdes, o que justifica a tradição das representações grá-
ficas de Jesus e de Maria com essas características físicas.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Neste capítulo consideramos a necessidade da oração, mesmo para aqueles que "se julgam" adianta-
dos e que, por vezes, pensam não mais precisar desse meio. Mas sem a oração de união com Deus,
não podemos acertar com segurança em nossas resoluções.
Mas vejamos o simbolismo do número doze.
No plano divino, doze é o arcano do Messias; no plano humano, exprime o holocausto de si mesmo: é
o sacrifício do indivíduo em benefício da coletividade, e isso feito no plano físico, que é o mundo dos
doze signos do zodíaco, ou a esfera de ação do Messias.
Portanto, com a escolha dos doze emissários, Jesus (a individualidade) deixa claro, para "quem tem
olhos de ver", que iniciou oficialmente, nesse instante, o ciclo sacrificial de sua própria pessoa para
benefício da humanidade.
Anotemos, a título de curiosidade, que se a SOMA do ternário superior com o quaternário inferior tem
como resultado sete, a MULTIPLICAÇÃO de um pelo outro dá-nos exatamente o número doze.
Mais algumas referências escriturísticas do número doze: no Antigo Testamento, eram 12 os filhos de
Jacó (Gên. 35:22) que deram origem às 12 tribos de Israel (49:28). Os altares erguidos por Moisés
(Éx.24:4), por Josué (Jos. 4:20) e por Elias (1.º Reis 18:31) tinham 12 pedras. São 12 os projetas
(Ecli.49:12) e os meses do ano (Dan. 4:26); 12 eram os pães da proposição (Lev. 24:5) as pedras do
urim do Sumo Sacerdote (Éx. 28:17-21); os israelitas encontram 12 fontes em Elim (Éx. 15:22). Salo-
mão nomeia 12 prefeitos para Israel (1.º Reis 4:7) e faz esculpir 12 leões no templo (1.º Reis 7:25).
Em o Novo Testamento, além dos 12 emissários, temos que a hemorroíssa sofria de seu mal há 12
anos (Mat. 9:20 ); a filha de Jairo ressuscitada por Jesus tinha 12 anos (Mrc. 5:42); os tronos dos
julgadores de Israel serão 12 (Luc. 22:30). Na 1.ª multiplicação dos pães são recolhidos 12 cestos de
restos (Mat. 14:20; Mrc. 6:43,. Luc. 9:17 e João, 6:13); 12 são as horas do dia. diz Jesus (Joço, 11:9).
E no Apocalipse, a "Mulher" é coroada por 12 estrelas (Ap. 12:1), a nova Jerusalém tem 12 portas,
com 12 anjos, e os nomes das 12 tribos de Israel (Ap. 21:12) e 12 pedras fundamentais com os nomes
dos 12 "apóstolos" (Ap. 21:14). A árvore da vida tem 12 frutos, um para cada um dos 12 meoes (Ap.
22:2) e seus habitantes são 144.000 = 12 x 12.000 (Ap. 7:4). Citamos apenas alguns dos trechos.
Há, portanto, razões ocultas em tudo isso. Jesus SABIA o que fazia. Pudéssemos nós compreender
todas as Suas lições!

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C. TORRES PASTORINO

A DESCIDA DO MONTE
Luc.6:17-19
17. E descendo com eles, parou num lugar plano, onde se achava uma multidão de seus
discípulos e muito povo de toda a Judéia, de Jerusalém, e do litoral de Tiro e de Si-
don, que vieram para ouvi-lo e ser curados de suas enfermidades.
18. E os que eram atormentados por espíritos atrasados ficavam sãos.
19. e todo o povo procurava tocá-lo, porque saía dele uma força que os curava a todos.

Após a permanência em prece e a escolha dos doze, Jesus desce “até um lugar unido", ou seja, plano
(embora isto não signifique que estava na planície do vale), onde teriam acesso mais fácil os doentes.
Todos procuravam tocá-Lo, e Lucas explica a razão: Dele promanava uma "força" (dúnamis) que a
todos curava.
Já em 5:17 essa observação fora feita pelo próprio Lucas. Embora não tendo conhecido pessoalmente o
Mestre, pode, pelas narrativas testemunhas que ouvira, tirar suas conclusões médicas, de que algo ex-
traordinário havia.
Realmente, com Sua aura puríssima, com o incrível magnetismo irradiado de sua profunda bondade,
de Sua infinita ternura, da compaixão ilimitada, os fluídos (virtudes) que Dele saíam deviam ter tido
um poder curador muito acima de qualquer especulação humana comum.

Quando tivermos alcançado suficiente evolução espiritual, poderemos alcançar os "dons" de ajuda ao
próximo.
Muitos dedicam-se a fazer exercícios especializados, a desenvolver faculdades personalísticas, para
obtenção dessas capacidades. Conseguem alguma coisa, mas sempre permanecendo em dependência
de auxiliares do mundo astral. O caminho não é esse, positivamente. O caminho (o Tao) é o progresso
espiritual, a evolução íntima, o mergulho em Deus, a união com o Cristo Interno. Se conseguirmos
isso, automaticamente ajudaremos o próximo com nossa simples presença, porque de nós mesmos se
irradiará uma força que curará males espirituais e físicos.
Pensam alguns que a preocupação da criatura de evoluir (ao invés de dedicar-se unicamente ao ser-
viço em benefício do próximo), constitui egoísmo. No entanto, nós somos células do todo. Se fizermos
evoluir a célula, que somos nós, estaremos ipso facto fazendo evoluir o conjunto, e muito mais rapi-
damente do que se nos esquecêssemos; pois neste último caso, ajudaríamos as personalidades (tran-
sitórias) dos outros, mas manteríamos todo o conjunto no mesmo nível em que se acham eles e em que
nos achamos nós: daríamos somente alívio, mas não traríamos evolução nem a nós nem a eles.
O caminho, pois, é EVOLUIR, para, com a nossa evolução, arrastar a todos um pouco mais para
cima.
Por exemplo: numa sociedade em que todos sejam pobres, e em que se necessite de dinheiro, se nin-
guém tem meios de consegui-lo, mas um tem a capacidade de realizar um trabalho que lhe aumente de
muito seus próprios rendimentos, isso será se maior ajuda à sociedade (porque ele lhe poderá dar do
que é seu), do que se ele apenas se preocupasse em arranjar dinheiro com pedidos a um e a outro, o
que jamais supriria as necessidades da sociedade.
Evolua, portanto, cada um de per si, e a Humanidade se encontrará amanhã, toda ela, um degrau
acima em seu progresso.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

O SERMÃO DO MONTE
AS BEM-AVENTURANÇAS

Mat. 5:1-12 Luc- 6:20-26

31. Vendo Jesus a multidão, subiu ao monte; e 20. E tendo erguido os olhos para seus discípu-
depois de sentar-se, aproximaram-se dele los, disse: felizes os pobres, porque vosso é o
seus discípulos, reino de Deus
32. e, abrindo a boca, ele lhes ensinava, dizen- 21. Felizes os que agora tendes fome, porque
do: sereis fartos. Felizes os que agora chorais,
porque rireis.
33. felizes os mendigos do Espírito, porque de-
les é o reino dos céus; 22. Felizes sois, quando os homens vos odiarem
e quando vos excomungarem, vos ultraja-
34. felizes os que choram, porque serão conso-
rem e rejeitarem vosso nome como indigno,
lados;
por causa do Filho do Homem
35. felizes os mansos, porque eles herdarão a
23. alegrai-vos e exultai nesse dia, pois grande é
Terra;
vosso prêmio no céu, porque assim seus pais
36. felizes os famintos e sequiosos de perfeição, fizeram aos profetas.
porque eles serão satisfeitos;
24. Mas ai de vós que sois ricos, porque já re-
37. felizes os misericordiosos, porque eles obte- cebestes vossa consolação.
rão misericórdia;
25. Ai de vós os que agora estais fartos, porque
38. felizes os limpos de coração, porque eles tereis fome. Ai de vós, os que agora rides,
verão Deus; porque haveis de lamentar-vos e chorar,
39. felizes os pacificadores, porque eles serão 26. Ai de vós quando vos louvarem os homens,
chamados Filhos de Deus. porque assim seus pais fizeram aos falsos
40. Felizes os que forem perseguidos por causa profetas.
da perfeição, porque deles é o reino dos
céus.
41. Felizes sois, quando vos injuriarem, vos
perseguirem e, mentindo, disserem todo o
mal contra vós minha causa;
42. alegrai-vos e exultai, porque é grande vosso
prêmio nos céus, pois assim perseguiram
aos profetas que existiram antes de vós.

Penetramos, agora, num capítulo da Boa Nova, que todo cristão deveria ler, de joelhos, diariamente,
vivendo-o intensamente. Constitui um dos mais perfeitos, elevados e completos cursos de iniciação
profunda. Se todos os livros de espiritualidade do mundo se perdessem, mas restasse apenas este tre-
chos, bastaria ele para levar as criaturas à perfeição mais extremada, ao adeptado mais avançado, le-
vando-nos - se vivido integralmente - à libertação total dos ciclos reencarnatórios.
* * *

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Diz-nos Mateus que Jesus "subiu ao monte" e lá falou: é a tradição de Jerusalém. Lucas, tradição de
Antióquia, afirma que Jesus "desceu da montanha a um lugar plano" e aí ensinou o Contradição apenas
aparente. Lucas dá-nos os pormenores, que Mateus resume. E absolutamente não se diz, no 3.º Evan-
gelho, que Jesus desceu à planície mas apenas a "um lugar plano", provavelmente na encosta do monte
ainda, onde deparou a multidão que o esperava. Atendeu-a, e depois falou.

O sentido profundo justifica plenamente as duas escrituras. Em Mateus, onde todo o discurso é dado
seguidamente, Jesus fala no monte, elevadamente, para as individualidades, ao Espírito. Em Lucas,
dirige-se Jesus às personalidades, facilita Seu ensino, DESCE a "um lugar plano". Observamos que as
bem-aventuranças em Lucas se referem ao plano físico: os pobres, os que choram, os que têm fome,
que sentem essas angústias na carne, no corpo denso, e o Mestre se refere exatamente à pobreza de
dinheiro, às lágrimas das dores, à fome de comida. E logo a seguir, condena os ricos, os que estão
fartos, os que riem, tudo na parte material, coisa que não vemos em Mateus. Este dá-nos a parte espi-
ritual, com elevação (monte) extra-terrena: cada um interpreta o ensinamento segundo seu diferente
ponto de vista: Mateus, segundo o Espírito, segundo a individualidade; Lucas segundo o corpo, a per-
sonalidade. Daí ter escrito que Jesus DESCEU a um lugar plano.
Bastaria essa observação atenta, para convencer-nos, mesmo se não houvesse outras provas, que a
linguagem dos Evangelhos tem profundo sentido simbólico e místico, embora os fatos narrados te-
nham realmente ocorrido no mundo físico; mas além da letra (que mata) temos que entender o Espí-
rito (que vivifica).
Interpretemos, primeiro, o trecho de Lucas, subindo, em seguida, ao de Mateus.

LUCAS
Lucas apresenta-nos quatro bem-aventuranças e quatro condenações em paralelo, visando unicamente
à personalidade humana em suas vidas sucessivas. Sabemos, com efeito, que, de modo geral, as encar-
nações oferecem alternância de situações: os ricos renascem pobres, e vice-versa (cfr. 1 Sam.2:7-8), os
caluniados renascem louvados e vice-versa. Essa idéia foi bem apreendida por Lucas, quando transcre-
veu em seu Evangelho o Cântico de Maria (Lc. 1: 52-53).
Que não se referia a esta mesma vida de um só transcurso está claro, porque em uma mesma existência
não se dão, absolutamente, tais transformações. E também não podia referir-se à vida "celestial" de um
paraíso ou "céu" de espíritos, porque, uma vez lá, ninguém pensará em fartar-se de iguarias para vin-
gar-se da fome que aqui passou; e mesmo que aqui se tenha fartado, não ligará a menor importância à
falta de alimentos físicos, desnecessários ao espírito. Logo, a única conclusão lógica aceitável racio-
nalmente é a recompensa ou castigo que nos virão NESTA MESMA TERRA, numa vida posterior,
com um corpo novo. E o ambiente antioqueno, todo ele reencarnacionista, compreenderia bem essas
realidades.
As quatro oposições são as seguintes:
1) Felizes vós os mendigos, porque vosso é o rei- Ai de vós os ricos, porque já fostes consolados.
no de Deus.
2) Felizes vós que tendes fome sereis fartos. Ai de vós os fartos, porque tereis fome.
3) Felizes vós que chorais, porque rireis . Ai de vós que rides, porque chorareis .
4) Felizes quando fordes perseguidos, porque as- Ai de vós quando vos louvarem porque assim fize-
sim fizeram aos profetas ram aos falsos-profetas

Se não entendêramos o sentido real da reencarnação, teríamos nesse resumo uma tirada demagógica,
para conquistar simpatizantes e adeptos, pois são declarados felizes exatamente os da massa explorada
e escravizada, enaltecendo-se como coisas ótimas a pobreza, a fome, a dor (doença) e a rejeição dos

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homens. E as ameaças atingem precisamente os elementos exploradores e gozadores: os ricos, os de


mesa farta, os alegres (sadios) e os famosos.
De qualquer maneira, é uma versão personalística expressa para aqueles que ainda se apegam a seu eu
pequenino e passageiro, julgando-o seu Eu real. É uma consolação interesseira, para aqueles que ainda
dão valor ao que é externo a si mesmos: o consolo dos outros, a posse dos bens materiais ou não, uma
boa mesa, e os elogios dos homens.
Para Lucas, neste passo, Deus é a Lei Justiceira que premia e pune, que dá e tira, tal como O concebem
as personalidades presas ao transitório irreal de um mundo passageiro, do qual eles se acreditam "par-
tes integrantes". Personalidades que ainda não se libertaram do apego à Terra, às condições exteriores
de bem-estar financeiro, físico, emocional ou de apoio das outras criaturas.
Acredite ou não na reencarnação, a massa humana se encontra nesse estágio e busca ansiosamente es-
sas mesmas coisas, por todos os meios, materiais e espirituais. Nada interessa ao rebanho senão, em
primeiro lugar a saúde, depois o dinheiro para viver, a seguir a tranquilidade emocional (amores) e
enfim a "boa cotação" na opinião pública. Esses são os pedidos mais frequentes e angustiosos, feitos
nas preces dos crentes de todas as religiões.

MATEUS
Muito diferentes as palavras de Mateus. Transcrevendo os ensinamentos profundos de Jesus, relativos
à individualidade - que não dá a menor importância a coisa alguma que venha de fora, que seja exter-
no, quem presta a mínima atenção ao que dizem "os outros".
Os exegetas e hermeneutas buscam o número 7 nas bem-aventuranças, não conseguindo reduzi-las a
esse número, nem mesmo reunindo duas em uma. Mas, realmente, as bem-aventuranças são apenas 7,
já que as duas últimas vezes em que aparece a palavra "bem-aventurados" (felizes), estão fora da série,
tratam de coisas externas, que não dependem da evolução interna da criatura. As sete primeiras refe-
rem-se à evolução do homem, as duas últimas são acidentes que podem ocorrer e que também podem
não ocorrer, o que nada tira nem acrescenta à evolução do indivíduo: representam elas provações exte-
riores, que experimentam e provam a legitimidade da evolução genuína.

PRIMEIRA - Uma variedade imensa de traduções tem sido dada às palavras de Mateus ptôchoi tôi
pnéumati. Vamos analisá-las. O primeiro elemento, ptôchos, significa exatamente "aquele que caminha
humilde a mendigar". Sua construção normal com acusativo de relação poderia significar o que costu-
mam dar as traduções correntes: "mendigos (pobres, humildes) no (quanto ao) espírito".
Acontece, porém, que aí aparece construído com dativo, à semelhança de tapeinous tôi pnéumati
(Salmo 34:18), "submissos ao Espírito"; ou zéôn tôi pneúmati (At. 18:25), "fervorosos para com Espí-
rito"; ou hagía kai tôi sômati kai tôi pnéumati (1 Cor. 7:34), "santos tanto para o corpo, como para com
o espírito".
Após havermos considerado numerosas traduções, aceitamos a que propôs José de Oiticica. MENDI-
GOS DE ESPÍRITO, por ser mais conforme ao original grego, e por ser a mais lógica e racional; pois
realmente são felizes aqueles que mendigam o Espírito; aqueles que, algemados ainda no cárcere da
carne, buscam espiritualizar-se por todos os meios ao seu alcance, pedem, imploram, mendigam esse
Espírito que neles reside, mas que tão oculto se acha.

SEGUNDA - Felizes os que choram, ansiosos em obter esse Espírito, embora presos às sensações. E
choram porque sentem a dificuldade de libertar-se das provações e tentações a que os sentidos os ar-
rastam.
Não se trata de chorar por chorar, que isso de nada adiantaria à evolução. Fora assim, os que vivem a
lamentar-se da vida seriam os mais perfeitos ... e aqueles que criam doenças e males imaginários, leva-

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dos pela autocompaixão, para sobre si atraírem alheias atenções, palavras de conforto, estariam como
elevados na linha evolutiva ... Nada disso: as lágrimas enchem os olhos e sobretudo o coração diante
do próprio atraso, diante da verificação de quanto ainda somos involuídos. E isso trar-nos-á a consola-
ção de ver-nos finalmente libertados.
Não podemos admitir más interpretações em textos de tão alta espiritualidade, que trazem incontestá-
vel clareza na exposição de seu pensamento.

TERCEIRA - Salienta-se, a seguir, a mansidão ou humildade. a paciência ou doçura (pralís); e aos


que assim forem é prometida, como herança, a Terra.
Já dizia Davi (Salmo 37: 11) "os mansos herdarão a Terra e se deleitarão na abundância da paz". E
mais tarde Isaías (65:9) "meus escolhidos herdarão a Terra e meus servos nela habitarão". Também nos
Provérbios (2:21-22) se diz: "porque os homens retos habitarão a Terra e os íntegros nela permanece-
rão; mas os ímpios serão suprimidos da Terra e os pérfidos dela serão arrancados".
Há, pois, uma constante no pensamento do Antigo e do Novo Testamentos, nesse sentido: a Terra será
o prêmio dos justos, que aí encontrarão a paz perfeita. Não se fala em herdar o "céu", no sentido mo-
derno, mas A TERRA (tên gên), sem a menor possibilidade de interpretações malabaristas.
Que prêmio será esse? Será o apego à personalidade? ao corpo físico e às coisas físicas? Cremos que
não.
Não é, evidentemente, nesta nossa vida atual, em pleno pólo negativo; mas num renascimento futuro
ou, como disse Jesus textualmente, na reencarnação - en têi paliggenesía -, quando o Filho do Homem
se sentar em seu trono de glória (Mat. 19-28).
A Terra, este mesmo planeta, transformado em planeta de paz (depois que dele tiverem sido expulsos
todos os que buscam e causam guerras), conservará como seus habitantes, na evolução, aqueles que,
com ela, tiverem também evoluído por meio da mansidão, da paciência, da doçura e da humildade.

QUARTA - Nesta bem-aventurança fala-se dos famintos e sequiosos de perfeição. Geralmente dikai-
osúnê é traduzido por "justiça". Essa palavra, entretanto, permite uma incompreensão que falsearia o
sentido original: como podem ser louvados os que exigem justiça, se logo após são ditos felizes os
misericordiosos ? Uma coisa exclui a outra: ou justiça, ou misericórdia! Como teria podido Jesus con-
tradizer-se a tão curto intervalo ? Há de haver algum engano.
Ora, realmente o termo grego dikaiosúnê é derivado de dikaios, que exprime precisamente “o observa-
dor da regra, o justo, o reto, o honesto, ou, numa expressão mais exata ainda "o que se adapta às regras
e conveniências", pois o termo primitivo dikê, donde todos os outros derivaram, significa REGRA.
Compreendemos, então, que o sentido (para coadunar-se com a bem-aventurança seguinte) só pode
referir-se aos que aspiram ardente e sequiosamente à PERFEIÇÃO, ao AJUSTAMENTO de si mes-
mos às Leis divinas. Então é justiça no sentido de JUSTEZA (tal como o francês justice, no sentido de
JUSTESSE).
Esses que são famintos desse ajustamento, hão de ser saciados em suas aspirações ardentes.

QUINTA - Nesta quinta, fala Jesus dos misericordiosos, daqueles que, segundo Paulo (Col- 3: 12) "se
revestem das entranhas da misericórdia". É o oposto da "justiça". É o SERVIÇO no sentido mais am-
plo. O serviço de quem se compadece daquele que erra, porque nele não vê maldade: vê apenas igno-
rância e infantilidade.
Esses obterão misericórdia, porque sabem distribuir servindo sempre, sem jamais cogitar de mereci-
mentos ou prêmios. É a misericórdia que tudo entrega à Vontade do Pai, e vai distribuindo bênção a
mancheias sobre todos, indistintamente, incondicionalmente, ilimitadamente, amorosamente.

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SEXTA - Fala-nos esta da limpeza do coração. Muitos interpretam-na como limpeza ou pureza no
sentido de castidade, de não-contato sexual, atribuindo, a um acidente secundário, uma condição fun-
damental. Não é isso: é pureza e limpeza no sentido de renúncia, de ausência total de apego, de nudez,
porque nada possuímos de nosso: tudo pertence ao Pai, e nos é concedido por empréstimo temporário
("nada trouxemos para este mundo, e nada poderemos dele levar", 1 Tim. 6:7); estamos limpos, esta-
mos livres, estamos nus de posses, de apegos, e até mesmo de desejos, desligados inclusive de nossa
própria personalidade.
A palavra Katharós tem um significado bem claro em grego: é tudo aquilo que é puro por não ter
mistura, que é isento, desembaraçado, livre, limpo de qualquer agregação.
A expressão Katharoí têi Kardíai já aparece no Salmo 24:4 (que também traz o adjunto em dativo) e aí
aparece no seguinte sentido: "quem subirá ao monte de YHVW e quem estará no santo lugar"? ou seja,
"quem obterá a realização elevada do encontro com o Cristo"? e a resposta diz: "aquele que é inocente
(sem culpa) nas mãos (nos atos) e LIMPO DE CORAÇÃO", isto é, que em seus atos (mãos) e pensa-
mentos (coração) não tem apego nem culpa, que não trai o amor de Deus (individualidades), desvian-
do-o para amar as personalidades externas, passageiras e enganosas.
Essa mesma expressão é usada por Platão, no diálogo Crátilo (405 b), de que traduziremos o texto: "a
purgação e a limpeza, seja da medicina seja da mediunidade, as fumigações de enxofre, seja por drogas
medicinais ou por mediunismo, e também os banhos desse tipo e as aspersões, tudo isso tem um só e
único poder: tornar o homem limpo, quer seja do corpo, quer seja de alma (Katharós katà sôma tò kai
katà tên psuchén) ... Assim, esse espírito é o limpador, o lavador e libertador de semelhantes sujeiras
(ou agregações que enfeiam)".
Nada se acena à castidade nem ao sexo, cuja união é uma ordem taxativa de Deus e da Natureza, sem o
qual a obra divina não sobreviveria; logo é um ato SANTO e PURO.
Esses, que se libertaram até do eu pequenino, verão Deus (futuro de horáô), que é VER não só física,
mas sobretudo espiritualmente: sentir, experimentar.

SÉTIMA - Ensina-nos a respeito dos pacificadores, ou, literalmente, dos "fazedores de paz", eirêno-
poiós (substantivo que é um hapax na Bíblia); trata-se daquele que não somente TEM a paz, como
também a distribui com suas vibrações de amor.
Esses serão chamados, porque realmente o são, Filhos de Deus, desse "Deus de Paz" de que nos fala
Paulo (2 Cor.13:11), isto é, atingiram não apenas o encontro com o Cristo, mas a unificação perma-
nente com Deus.

Passemos, agora, ao comentário esotérico, onde procuraremos penetrar não apenas o sentido profun-
do das palavras de Jesus, como também meditar a respeito de algumas das correspondências das
bem-aventuranças com outros ensinamentos do próprio Jesus e de outros conhecimentos da realidade
da vida. Será um resumo de estudo comparativo, que poderá ser multiplicado pelos leitores em suas
meditações a respeito.
Vamos verificar que as sete bem-aventuranças dão os sete passos essenciais da evolução íntima de
todas as criaturas, para atingir aquilo que Paulo afirma que TODOS DEVERÃO alcançar "até que
todos cheguemos à unidade da convicção e do pleno conhecimento (pela vivência) do Filho de Deus,
ao estado de Homem Perfeito, à medida da estatura da plenitude de Cristo (Ef. 4:13), ou seja, até que
consigamos que o Cristo viva plenamente em nós, e nossa vida seja UNIFICADA à Dele .

1.º PASSO
Plano: físico ( mineral)

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C. TORRES PASTORINO
Lei: Amor (coesão-repulsão) - Efeito: Consciência única.
Estado de consciência: sono profundo.
Expansão: apenas vibração.
Forças: materiais
Cor: marron - Efeito: dinheiro, bens materiais, pompas.
Bem-aventurança: "Felizes os mendigos de espírito, porque deles é o reino do céus" .
Cristo em relação ao plano: "Eu sou o Pão vivo" (João, 6:51)
Prece: "Liberta-nos do mal" (da matéria, que é o pólo negativo, o satanás, o adversário do Espírito.

Todos aqueles que, mesmo ainda presos à matéria, já atingiram um grau evolutivo que os faz compre-
ender a necessidade de passar do negativo ao positivo, da matéria ao Espirito (5º plano), começam a
aborrecer a materialidade, com todo o seu cortejo de bens materiais, sensações, emoções; e então,
mendigam o Espírito ansiosa e insistentemente, sentindo que, para eles, o único Pão vivo que vem do
céu é o Cristo Interno, o Deus que habita em nós.
Ainda estão sujeitos às forças materiais, mas pedem para delas ser libertados, pois constituem elas o
"mal” para eles, o maior adversário (satanás ou diabo) do desenvolvimento interior espiritual.
Esses, não há dúvida, são os candidatos mais sérios ao "reino dos céus", que é justamente o "reino
espiritual” acima do reino mineral, do reino vegetal, do reino animal, do reino hominal. E o reino
espiritual ou celestial ou reino dos céus, quando atingido conscientemente, mesmo na permanência da
criatura na matéria, traz a realização do objetivo máximo da evolução passar de um reino ao outro,
desenvolvendo em si as forças superiores, pelo domínio das inferiores. Todo ensinamento de Jesus
visou e visa a ensinar aos homens como abandonar o reino hominal para atingir o reino espiritual (ou
dos céus ou de Deus): lição de como dar um passo a mais na estrada evolutiva, que Ele nos ensinou
com palavras e sobretudo com Seu exemplo.

2.º PASSO
Plano: etérico (vegetal)
Lei: Verdade . - Efeito: Existência única .
Estado de consciência: sono sem sonhos.
Expansão: sensibilidade, sensações .
Forças: etéricas.
Cor: vermelho. - Efeito: fascinação, propaganda-hipnotismo" elementais, obsessões.
Bem-aventurança: "Felizes os que choram, porque serão consolados".
Cristo no plano: "Eu sou a Luz do mundo" (João, 8: 12).
Prece: "Não nos induzas às provações".

Além da prisão na matéria, o "espírito", que compreendeu sua necessidade imperiosa de evoluir, pro-
cura libertar-se, também, das sensações causadas por forças externas; e chora pelo fato de ver-se
ainda prisioneiro dos cincos sentidos limitadores, cinco portas por onde entram as "tentações", as
provações, os sofrimentos que ainda lhe ferem a sensibilidade.
Para todos, as tentações ou provações, as dores e sofrimentos "físicos", são causados pelas forças
etéricas (no sistema nervoso). Ora, todo esse complexo de forças em choques violentos traz lágrimas

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SABEDORIA DO EVANGELHO

de angústia, na verificação da dificuldade (ou até, por vezes, da impossibilidade) de libertação imedi-
ata. Nesse plano etérico manifestam-se os elementais, as obsessões tenazes, os assédios do hipnotismo
coletivo de forças que vivem a sugestionar a humanidade, quer pela propaganda, quer pelas idéias-
matrizes que procuram amoldar a elas nosso intelecto, provenientes de elementos encarnados ou de-
sencarnados. Toda a humanidade, atualmente, se acha hipnotizada ou pelo menos sugestionada pela
leitura, pela audição (de rádios), pela visão de imagens nas TVs, que impõem idéias, produtos, "slo-
gans", pontos de vista, buscando desviar a criatura (tentá-la) para fazê-la sair da estrada certa da
interiorização que a levaria à felicidade do encontro com o Cristo Interno, ao mergulho na Consciên-
cia Cósmica. Sente-se o homem "em trevas", sem saber por onde fugir a esse impiedoso cerco de for-
ças violentas. E para estes é que o Cristo se apresenta: "Eu sou a Luz do mundo", desse mundo con-
turbado. Então a prece que mais natural se expande de nosso coração, consiste nas palavras "Não nos
induzas às provações", não nos leves, Pai a uma permanência demasiadamente longa nesse plano; e
ao proferir essas palavras, as lágrimas saltam do coração para os olhos.
Mas ainda felizes os que choram essas lágrimas, porque ao menos compreenderam seu estado e, com
essa compreensão, tem os meios de sair dele: esses, pois, serão consolados com a libertação dessas
angústias torturantes mas, ao mesmo tempo, purificadoras.

3.º PASSO
Plano: astral (animal)
Lei :Justiça - Efeito: Exação única
Estado de consciência : sono com sonhos.
Expansão: emoções.
Forças: animais.
Cor: amarelo - Efeito: concretização da Lei de Causa e Efeito (Carma) .
Bem-aventurança: "Felizes os mansos, porque herdarão a Terra".
Cristo no plano: "Eu sou a Porta das ovelhas" (João, 10:9) .
Prece: "desliga-nos de nossos débitos (cármicos), assim como desligamos aqueles que nos devem" .

Além do corpo, além das sensações, o aspirante sente - à proporção que evolui - o atraso que lhe cau-
sam as emoções, manifestação puramente animal da alma. As emoções são movimentos anímicos en-
tre os dois pólos extremos, o positivo (amor) e o negativo (ódio), com todos os matizes intermediários.
O que mais prende o "espírito" ao ciclo reencarnatório é exatamente a faixa emocional, que os não-
evoluídos confundem com evolução, quando a experimentam em relação ao pólo positivo.
Explicamo-nos. O devoto, que sente emoção e chora ao orar; aquele que se emociona ao ver a dor
alheia, sentindo-a em si; o amoroso que vibra emocionalmente diante da pessoa ou das pessoas ama-
das; o orador que derrama lágrimas emotivas ao narrar os sofrimentos de Jesus, e que comove o au-
ditório, arrastando-o à reforma mental; todos esses estão agindo no plano puramente animal, que é o
das emoções. O amor, a caridade, a prece que Jesus ensinou não são manifestações emotivas: são
espirituais, e só poderão ser puras, elevadas, divinas, quando nada mais tiverem de emotividade.
A libertação dessa emotividade, que tanto mal causa à humanidade, é obtida quando a criatura con-
quista a mansidão, a paciência, a resignação ativa, a conformação com tudo o que com ela ocorre.
Cristo, em relação a este plano, é a Porta das ovelhas, porque só através Dele podemos sair do plano
animal (das ovelhas) e penetrar no reino hominal, subindo daí até o reino celestial ou divino.
A prece coincide perfeitamente: a lei do plano é a da Justiça, portanto Lei do Carma, de Causa e
Efeito, que só age, (e só pode agir) no plano emocional. E por isso, a prece que Jesus ensinou é esta:

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C. TORRES PASTORINO
"desliga-nos de nossos débitos (cármicos), assim como nós desligamos os que nos devem". O termo
grego exprime: "resgatar, soltar, desligar, libertar". Mas a condição de obtermos isso (crf. Mat. 6:15)
é que de nossa parte também nos desliguemos dos outros. A tradução comum é "perdoar", que ainda
supõe a emoção; o perdão dá a entender que a pessoa se sentiu "ofendida" e, depois, reagindo, ven-
cendo-se a si mesma superiormente, concede com generosidade o perdão. Tudo no campo emotivo.
Nada disso ensinou Jesus. Mas era natural que a humanidade, que tantos séculos viveu e ainda vive às
expensas das emoções, só pudesse entender nesse plano. Vendo melhor hoje, compreendemos que não
é isso. Trata-se do desligamento, como tão bem exprime a palavra original grega. Nem a criatura se
sente ofendida (porque nada atinge nosso Eu real), nem precisa perdoar, porque não se julga magoa-
da: simplesmente SE DESLIGA, como se as ocorrências se tivessem passado com pessoas totalmente
estranhas. O perdão ainda supõe, da parte de quem o dá, o sentimento emocional da vaidade. Ora, de
fato, qualquer coisa que atinja nosso "eu" pequeno, só fere exatamente uma criatura "estranha", pas-
sageira e ilusória: porque se importar com isso o Eu Real inatingível? O que tem que fazer é DESLI-
GAR-SE totalmente, para subir de plano, e não ficar preso a emoções várias, que só trazem perturba-
ção.
Aqueles que, vencidas as emoções (todas, boas e más), conseguirem a mansidão mais absoluta, a
inalterabilidade, esses herdarão a Terra, após sua “reencarnação".

4.º PASSO
Plano: intelectual (homem)
Lei: Liberdade. - Efeito: Poder de condicionamento
Estado de consciência: semi-vigília .
Expansão: oposição entre eu e "não-eu"
Força: humanas .
Cor: verde. - Efeito: ensino intelectual.
Bem-aventurança: "Felizes os famintos e sequiosos de perfeição, porque serão fartos" .
Cristo no plano: "Eu sou o Bom Pastor" (João, 10: 11) .
Prece: "dá-nos hoje nosso pão supersubstancial" .

No plano intelectual já a criatura começa a ter capacidade de raciocínio, de discernimento, de escolha,


de condicionamento da própria vida. Já opõe, pela divisão "satânica", o eu contra todo o resto do mun-
do, que é o não-eu. Entra no intelectualismo cerebral, querendo provas de tudo, indagando o porquê de
tudo, e só aceitando o que o próprio cérebro tenha capacidade de compreender. Uma coisa evidente a
um cérebro desenvolvido, pode constituir insondável mistério para outro que ainda se não desenvol-
veu. Uma integral luminosidade clara a um matemático, é um emaranhado de letras escuras para o cé-
rebro virgem nesse ramo ( e muita gente nem mesmo entende o que significa á palavra "integral" que
escrevemos acima ...). Então, há infinidade de estágios também neste plano.
A bem-aventurança explica-se perfeitamente: "felizes os famintos e sequiosos de perfeição, porque
serão saciados". No plano em que vige a lei da Liberdade, são felizes precisamente os que buscam a
perfeição, do caminho, e não a tortuosidade dos enganos; os que se esforçam em conformar-se, em
ajustar-se ao Espírito reto, e não à matéria sinuosa (observe-se que a natureza física tem horror à linha
reta perfeita).
Cristo, nesse plano, diz: "Eu sou o Bom Pastor", aquele que pode guiar seu rebanho com segurança e
amor.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

A prece é a mais necessária: "dá-nos hoje nosso pão supersubstancial, ou seja, o alimento básico que
está acima da substância, que está no Espírito: a iluminação do intelecto.

5.º PASSO
Plano: "espírito" (super-homem)
Lei: Serviço - Efeito: Aperfeiçoamento contínuo.
Estado de consciência: vigília .
Expansão: compreensão do Eu real.
Forças: super-humanas .
Cor: azul. - Efeito: dedicação a Deus e às criaturas.
Bem aventurança: "Felizes os misericordiosos, porque obterão misericórdia" .
Cristo no plano: "Eu sou a ressurreição da vida" (João, 11:25) .
Prece: "seja feita a Tua vontade".

No quinto plano, a criatura já superou o intelecto, já ascendeu acima da personalidade dividida


(egoísta), já compreendeu que seu Eu Real não é o quaternário inferior - pura manifestação temporá-
ria e ilusória de um Espírito eterno.
Logicamente, em vendo isso, percebe que só tem um caminho: o aperfeiçoamento contínuo, sem para-
das, sem retrocessos.
Com essa percepção, dedica-se a Deus nas criaturas, e às criaturas de Deus, servindo-as com todas
as suas forças.
Por isso a bem-aventurança diz: "felizes os misericordiosos, porque obterão misericórdia": quanto
mais misericordioso na ajuda aos outros, mais as forças super-humanas o ajudarão.
A esse plano, Cristo revela-se: "Eu sou a ressurreição da vida". Por isso, os que estão nesse plano
sabem que a vida não termina com o desfazimento da personalidade transitória; sabem que esta atual,
sobre a Terra, não é vida, mas prisão, e que apenas estão manifestados temporariamente na matéria;
sabem que no Cristo Interno eles têm o reerguimento da verdadeira vida, que temporariamente se
encontra eclipsada pelo encarceramento no corpo denso. A vida real, que existe potencialmente em
nós (embora abafada) se reerguerá porque o Cristo Interno, que somos Nós, é substancialmente o
reerguimento, a ressurreição, o ressurgimento dessa vida.
A prece: "seja feita Tua vontade na Terra, tal como é feita nos céus" constitui uma aceitação plena e
incondicional de nosso estágio terreno na cruz da carne. Pois a criatura já SABE qual seu Eu Real, e
conhece a ilusão de seu eu terreno: pede, pois, que nesse eu terreno se realize em cheio, sem nenhuma
limitação, tal como se realiza no plano espiritual (celeste).

6.º PASSO
Plano: mental.
Lei: Perfeição. - Efeito: Harmonia integral.
Estado de consciência: visão direta .
Expansão: eu único em todos: fraternidade absoluta.
Forças: angélicas .
Cor: violeta. - Efeito: compreensão total, auto-sacrifício .

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C. TORRES PASTORINO
Bem-aventurança: "Felizes os limpos de coração, porque verão Deus".
Cristo no plano: "Eu sou o caminho da Verdade e da Vida" (João, 14:6)
Prece: "Venha a nós T eu reino" .

Neste sexto plano, o mental, a criatura já está iluminada (daí chamarem os hindus a este plano, "bú-
dico"). O homem conquistou a perfeita paz interna, a harmonia integral no corpo e no espírito.
E compreendeu que seu Eu Real é único em todas as criaturas, pouco importando a manifestação ex-
terna e transitória que esse Eu Real assuma. As forças angélicas estão “a serviço" e com elas sintoni-
zam aqueles que o atingiram: os místicos, de qualquer corrente, os verdadeiros vedantas. A cor vio-
leta, representativa da mistura entre o rosa (devoção) e o azul claro (espiritualização), assinala a
aura dessas criaturas que superaram a personalidade e vivem na individualidade.
Aí a compreensão da Vida é total. A verdade é sentida em toda a Sua amplitude. E o homem entrega-
se ao sacrifício de si mesmo em benefício da coletividade, na maior das harmonias internas.
“Felizes os limpos de coração" corresponde exatamente a esse plano, já que a criatura que atingiu
esse ponto está desapegada de tudo, tem o coração totalmente “limpo" e vazio, para nele abrigar
apenas o Cristo Interno. Superou as emoções e ama sem mistura de emoção: ama integralmente, sem
distinções, a todos e a tudo, pois sabe, por experiência pessoal, que o Eu é o mesmo em todos e em
tudo, e portanto, todas as criaturas são um único Espírito (cfr. Ef.4:4):
Disse Cristo aos desse plano: Eu sou o caminho da Verdade e da Vida. Indicou-nos, com Seu exemplo,
o caminho que todos temos que seguir para atingir a Vida e a Verdade, que Ele conhece porque já
percorreu todos os estágios vitoriosamente. E só Ele, que sobrepujou todos os planos, pode trazer-nos
essas elucidações com toda a segurança, não apenas com Suas palavras, como com Sua vivência per-
feita, sublinhada pelo sacrifício total em beneficio da humanidade.
Por isso pode bem dizer ser Ele, o Cristo Interno, manifestado em toda a Sua plenitude em Jesus, o
Caminho da Verdade e da Vida.
A prece, “venha a nós Teu reino", expressa bem a ânsia que temos de penetrar nesse plano do reino
espiritual, que é o reino do Pai, o reino divino.

7.º PASSO
Plano: divino (átmico)
Lei: Beleza. - Efeito: Contemplação absoluta .
Estado de consciência: integração e unificação (transubstanciação).
Expansão: fusão total em Deus e em Suas criaturas .
Forças: divinas.
Cor: dourada. - Efeito: Vida.
Bem-aventurança: "Felizes os pacificadores, porque serão Filhos de Deus".
Cristo no plano: "Eu sou a Videira e vós os ramos" (João, 15: 1) .
Prece: "Santificado seja Teu Nome".

Neste sétimo plano, divino; a lei que vige é a beleza (daí tanto atrair a todos a Beleza, em qualquer de
seus graus e planos).
Neste ponto, já a união não é mais intermitente, sendo superada mesmo a visão direta. Já existe a con-
templação absoluta, constante, numa integração perfeita: é a unificação ("Eu e o Pai somos um", João,

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SABEDORIA DO EVANGELHO

10:30) e a criatura, através da vivência em Cristo, unifica-se e funde-se em todas as criaturas de qual-
quer plano.
A cor dourada exprime o resplendor da beleza, (daí exercer o ouro tanta atração em todos), onde agem
forças divinas, que atuam e são atuadas pelos seres cristificados do sétimo plano. O efeito de tudo é a
Vida em Deus, porque Deus passa a viver plenamente na criatura "nele habita toda a plenitude da Di-
vindade" (Col. 2:9) e "já não sou mais eu que vivo: é Cristo que vive em mim" (Gál. 2:20).
A bem-aventurança enaltece esses, que são os pacificadores, os que com sua simples presença, com a
ação benéfica de sua aura, irradiam a paz, pacificando corações e pessoas. Esses pacificadores serão os
chamados Filhos de Deus, pois só os Filhos de Deus são capazes de pacificar realmente, não com a paz
externa, mas com a paz de Cristo: "a minha paz vos deixo, a minha paz vos dou: não a dou como a dá
o mundo. Não se perturbe vosso coração" (João, 14:27).
Diz-nos Cristo nesse plano: "Eu sou a Videira e vós os ramos". E afirma a seguir que só podem ter
Vida os ramos, enquanto estiverem "unidos" à videira. O vinho exprime, no simbolismo esotérico, o
Espírito. Cristo faz aqui a revelação total: que é a Videira, senão a reunião total do tronco e dos ramos?
Cristo só estará integralizado quando a humanidade, de que Ele é a cabeça (Ef. 4:15) estiver toda unida
a Ele, na unidade total e fundamental.
O nome é a representação externa da substância. Quando a humanidade, em todas as suas partes - que
são a manifestação externa no Cristo Cósmico - estiver "santificada", então poderá o Cristo dizer real-
mente: “completei a obra que me confiaste para realizar" (João, 17:4), pois "não perdi nenhum dos que
me deste" (João, 18:9). Esse é portanto o pedido da prece deste plano: que Teu nome, que Tuas mani-
festações, sejam santificadas.
* * *
Após a enumeração dos diversos passos no Caminho da Perfeição, o texto continua no mesmo tom.
Nada exige, no entanto, que estas últimas bem-aventuranças tenham sido proferidas na mesma ocasião,
e nessa ordem: podem ter sido ensinadas em outro momento e acrescentadas aqui pelo evangelista,
para continuar a série. Mas também podem ter sido ditadas em seguida às outras, sem que isso influa
nos sete passos que atrás estudamos.
Firmemos, todavia, que as duas vezes seguintes, em que se repete a palavra "felizes", não fazem parte
dos Sete Passos do Caminho da Perfeição: representam, porém, um corolário, um resultado fatal, ine-
xorável, que advirá a todos os que seguirem por essa estrada.
Todos, sem exceção, todos os que perlustrarem, ainda que apenas os primeiros passos na senda, serão
perseguidos por causa da retidão de vida que assumiram. Felizes, contudo, serão; pois embora perse-
guidos - e até mesmo porque perseguidos - mais depressa atingirão a meta. E também serão felizes os
que forem injuriados, perseguidos e caluniados, já que isso ocorreu sistematicamente a todos os profe-
tas (médiuns) que passaram pela Terra. Portanto, é normal que, no pólo negativo em que nos encon-
tramos, recebamos malevolência em troca do bem que pretendamos distribuir.
Interessante observar que o termo grego traduzido por "injuriar" é oneidísôsin, formado de ónos, "bur-
ro" e de eídos, "figura", ou seja, "chamar de burro" . Realmente na grafite encontrada no Monte Palati-
no (e hoje conservada no Museu Kirscher, em Roma), vemos pregada à cruz uma personagem com
cabeça de burro ...

A interpretação profunda não difere muito da comum. Realmente, todos os que entram ou procuram
entrar, pela estrada do aperfeiçoamento em busca do Cristo interior, encontram grandes dificuldades
de todos os lados: da parte de outras criaturas (externas) e da parte de seus próprios veículos físicos
inferiores. As dificuldades parecem, por vezes, insuperáveis. Daí ser chamada de "estrada estreita",
porque realmente difícil: todos os atropelos investem contra aqueles que buscam destacar-se da cra-
veira comum da humanidade, que forcejam por sair do pólo negativo, onde estamos presos há milêni-
os.

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C. TORRES PASTORINO

O SAL DA TERRA

Mat. 5:13-16 Marc. 9:50 Luc. 14:34-35

43. Vós sois o sal da Terra. Se o 50. O sal é bom, mas se o sal se 34. O sal é bom; mas se o sal se
sal se tiver tornado insípi- tiver tornado insípido, com tiver tornado insípido,
do, como se poderá restau- que haveis de restaurar-lhe como se poderá restaurar-
rar-lhe o sabor? para nada o sabor? tende sal em vós lhe o sabor?
mais presta, senão para ser mesmos, e estai em paz uns 35. Nem é útil para a terra nem
jogado fora e pisado pelos com os outros. para o estrume; é jogado
homens. fora. Quem tem ouvidos
paro ouvir, ouça.

O sal (cloreto de sódio) possui a qualidade de, como agente catalítico, ativar o gosto dos alimentos,
condimentando-os e tornando-os saborosos. Em si mesmo, não é aceitável, mas acrescentado na medi-
da justa, produz o paladar agradável dos próprios alimentos a que é adicionado. Além disso, tem a pro-
priedade de conservar os alimentos, evitando-lhes a deterioração. Duas qualidades preciosas.
No entanto, se o sal se torna insulso, perde ambas, e para nada mais serve.
Jesus compara seus discípulos todos, não apenas os apóstolos, pois se dirigia à multidão que O ouvia)
ao sal: de per si nada valem, mas com sua presença dão sabor às realidades da vida e conservam os
demais cristãos livres da corrupção. Mas, se perderem as qualidades catalisadoras, se tornarão inúteis.

O discípulo, que se une ao Cristo, influi com sua própria aura psíquica na elevação espiritual de toda
a humanidade. Tal como ocorre com o sal nos alimentos, ativa-lhes o paladar, tornando-os mais sa-
borosos, e conserva-os na via certa. Basta essa irradiação poderosa para transformar a humanidade,
ajudando-a mais do que se lhe atendesse às necessidades materiais, físicas, emocionais ou intelectu-
ais. Mais do que assistência social à saúde, à fome, ao vestido, carece a humanidade de paz interior,
de tranquilização da aura. E isso é obtido por meio das radiações espirituais daquele que se tornou o
verdadeiro sal da Terra, com sua unificação com o Cristo Interno.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

A LUZ DO MUNDO

Mat. 5:14-16 Luc. 11:33-36

13. Vós sois a luz do mundo. Não se pode es- 33. Ninguém, depois de acender uma lâmpada a
conder uma cidade situada sobre um mon- coloca num subterrâneo, nem debaixo de
te; um balde, mas sobre o castiçal, a fim de que
os que entram vejam a luz.
14. e ninguém acende uma vela e a coloca de-
baixo de um balde, mas no castiçal; e assim 34. A lâmpada do corpo é o olho. Quando o
ilumina a todos os que estão na casa. olho é simples todo o teu corpo é luminoso;
mas quando for doente, todo o teu corpo
15. De tal modo brilhe vossa luz diante dos ho-
fica trevoso.
mens, que eles vejam vossas boas obras e
glorifiquem vosso Pai que está nos céus. 35. Vê, pois, se a luz que há em ti não sejam
trevas.
36. Pois se todo o teu corpo for luminoso, sem
ter parte alguma em trevas, será inteira-
mente luminoso, como quando uma lâmpa-
da te iluminar com o seu fulgor.

A luz tem como finalidade, tanto quanto o sal, servir aos outros, e não a si mesma. Para que a luz pro-
duza seu efeito, é mister que esteja colocada no alto, e não escondida debaixo de um balde. Assim
como não pode esconder-se uma cidade construída no cimo de um monte, assim a luz não pode deixar
de ser vista: deve ser utilizada para iluminar. Sem pretensão, sem orgulho, mas também sem falsa hu-
mildade, deve iluminar naturalmente, por função própria.
E Jesus continua: assim brilhem vossas boas obras, de modo a serem vistas pelos homens - embora
sem se fazer propaganda delas: recordemos que Jesus proibia que se falasse dele glorificando-o. O
único a ser louvado é o Pai celestial.
Em Lucas há um adendo: a luz do corpo são os olhos. Se estes forem simples (no sentido de limpos,
puros, tersos, ou seja, sem malícia) todo o corpo será luminoso. Se forem enfermos (maliciosos, mal-
dosos) a criatura ficará em trevas. Quando, por exemplo, alguém vê duas criaturas amando-se e, com
simplicidade, sem malícia, admira o amor, tudo permanece em luz; mas se, nesse amor, quem olha
coloca malícia, o amor continuará a brilhar com pureza, mas a criatura que maldou será invadida pelas
trevas da malícia que só existe nela mesma, e não no ato de amor, que é sempre puro e divino, pois
sintoniza com Deus que é Amor.

O ensinamento profundo da Luz que somos, devendo com ela iluminar o mundo, alerta-nos quanto às
obrigações de nosso Espírito (individualidade).
Não se pede que saibamos, nem que falemos apenas, nem que façamos, mas que SEJAMOS. O que
importa é SER LUZ.
Para chegar a ser Luz, só há um meio: é mergulhar na Luz Cósmica do Cristo, que declarou categori-
camente "Eu sou a Luz do Mundo" (João, 8:12). Mas aqui, também em tom solene, afirma: "vós sois a
Luz do mundo". Donde verificamos, ainda uma vez, que Jesus não se apresenta como uma exceção da

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humanidade, mas simplesmente como o modelo de todos nós. Desde que, como Ele, consigamos unifi-
car-nos com o Cristo Cósmico, com o Divino Logos, também seremos a Luz do mundo.
Afora isso, enquanto confundidos com o corpo físico, crendo que a personalidade é o verdadeiro eu,
só podemos ser trevas. Quando nos libertarmos dos entraves da personalidade, rejeitando-a, ficare-
mos iluminados, porque veremos a luz, mergulharemos na luz, nos tornaremos LUZ.
Essa luz interna expande-se em círculos concêntricos atingindo a todos; e mesmo sem que algo se
diga, todos a percebem e a recebem. Os primeiros a usufruí-la, - "todos os da casa são iluminados" -
são nossas células e nossos órgãos.
Pelos "olhos" é que a criatura se ilumina: comparação perfeita, já que os atingidos pela cegueira físi-
ca permanecem nas trevas. Entretanto, há um matiz mais profundo: é pelos olhos intelectuais (e Jesus
usa o singular: "pelo olho") que penetra na criatura a Luz da Mente que nos ilumina.
E aqui talvez se pudesse vislumbrar uma referência ao "olho de Siva", (glândulas pituitária e pineal),
que constituem o olho que nos possibilita a visão espiritual.
A ignorância são as trevas que envolvem o "espírito" (personalidade) levando-o ao erro à maldade.
Por isso, quando os "olhos" intelectuais são enfermos (ou fracos), todo o ser permanece em trevas.
Mas quando os "olhos" intelectuais são simples (sem a malícia da vaidade que obumbra, do orgulho
que incha, da dúvida que vacila) tudo é visto com clareza e precisão.
Cada criatura humana, portanto, que se unifica ao Cristo, é a LUZ DO MUNDO, que ilumina por si
mesma, refletindo a Luz do Cristo Cósmico que nela habita, e que consegue expandir-se através do
cristal purificado de uma personalidade que se anulou a si mesma, para que apenas o Cristo vivesse
nela. Canais limpos de todo apego, espelhos tersos de qualquer jaça, tornar-nos-emos transparentes,
e ninguém mais verá em nós a personalidade, mas encontrará o Cristo Eterno falando por nossa boca,
agindo por nossas mãos, iluminando a todos com o nosso amor que é o amor Dele a expandir-se por
nosso intermédio.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

INTERPRETAÇÃO DA LEI
Mat. 5:17-20
17. Não penseis que vim revogar a Lei ou os profetas: não vim revogar, mas completar.
18. Pois em verdade vos digo: até que o céu e a Terra caduquem, de modo algum caduca-
rão, nem um i, nem um til da Lei ,até que tudo evolua.
19. Aquele, pois, que solucionar um destes mínimos mandamentos e assim ensinar aos
homens, será chamado mínimo no reino dos céus; mas aquele que praticar e ensinar
esse será chamado grande no reino dos céus.
20. porque vos digo, que se vossa perfeição não exceder à dos escribas e fariseus, de modo
algum entrareis no reino dos céus.

Ao iniciar as referências à lei mosaica e seus aperfeiçoamentos por Ele introduzidos, Jesus declara que
não veio revogar, mas COMPLETAR a lei. As traduções vulgares trazem "cumprir", o que não seria
nada de extraordinário, já que TODOS nós viemos também para cumprir a lei: seria uma afirmativa
inane. Todavia o verbo plêrâsai significa "completar" (plêrós quer dizer "cheio", "completo"). Sua
missão, pois, é trazer complementos, acréscimos, para completar o que Moisés ensinou.
Depois explica que durante todo o ciclo de vida deste planeta, "até que o céu e a Terra caduquem",
tudo terá que fatalmente evoluir. E durante todo esse período, nem uma vírgula da Lei caducará, nada
se omitirá, sem que seja cumprido. O verbo génêtai (gígnomai) exprime o tornar-se, o devenir, isto é, a
evolução: toda a Lei se cumprirá, até que inexoravelmente tudo evolua.
A seguir vem um trecho que, nas traduções vulgares, apresenta um contra-senso incompreensível, um
absurdo. Lemos: "quem VIOLAR um pequeno mandamento e assim ensinar, entrará no reino dos céus,
embora seja chamado mínimo". Como poderá penetrar no "reino dos céus" aquele que violar um man-
damento da Lei, ainda mais com a agravante de ensinar o erro aos outros? Será igualado com o prêmio
ao que cumpre a Lei? Não é possível compreender esse disparate. Por exemplo: alguém viola um man-
damento, mata outrem, e ensina os homens a matar, levando-os a fazerem o mesmo; terá ele o mesmo
"reino dos céus" que aquele que jamais matou alguém? Sim, em ponto menor, mas basta isso para
constituir um prêmio ... Não, não é possível. A tradução está mal feita.
Vamos ao original. O verbo usado é lúô, na forma lúsêi. Tem o significado de soltar, solver, resolver,
solucionar, aclarar, explicar. Secundariamente pode traduzir-se por "violar", também, mas o contexto
não permite esse sentido.
O que compreendemos, pois, é que aquele que conseguir solucionar ou explicar um dos mandamentos,
por mínimo que seja, e assim ensinar aos homens, será premiado com a entrada no "reino dos céus",
embora obtenha um lugar pequenino. Mas aquele que solucionar, compreendendo-o e explicando-o, e
assim ensinar aos homens, e além disso praticar e viver todo o conjunto dos mandamentos, esse obterá
o ingresso no "reino dos céus", e será chamado grande. Como vemos o sentido fica lhano e fácil, tem
lógica e sequência, desenvolvimento claro e ilação perfeita.
Realmente a lei é ensinada em palavras humanas, e estas jamais conseguirão traduzir os conceitos espi-
rituais; o ensino é esotérico; e é indispensável que seja encontrada a solução do verdadeiro sentido
profundo e oculto, para que se compreenda o alcance real ao ensinamento; sem o que, aparecerá so-
mente a casca externa e seca de uma linguagem fria e material, que só serve para dirigir os atos exteri-
ores do comportamento da personalidade.

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C. TORRES PASTORINO
Isso, entretanto, irá servindo para preparar as personalidades, fazendo-as amadurecer aos poucos, até
atingirem o grau de capacidade indispensável à compreensão profunda.
Uma vez maduro, o "espírito" começará a compreender, através do véu da letra, o espírito verdadeiro
que estava oculto. Paulo acena a isso (2 Cor.3:14-17): "Mas suas mentes foram endurecidas, pois até o
dia de hoje, na leitura do Antigo Testamento, permanece o mesmo véu, não lhes sendo revelado que
em Cristo é ele tirado. Contudo, até o dia de hoje, sempre que lêem Moisés, está colocado um véu so-
bre o coração (mente) deles. Todas as vezes, porém, que algum deles se converter (unir) ao Senhor, o
véu lhe é tirado. Ora, o Senhor é o Espírito, e onde há o Espírito do Senhor, aí há liberdade".

Dá-nos este trecho, com absoluta clareza, sem ambages, o pensamento de Jesus em relação à leitura e
interpretação dos preceitos da lei. De pouco adianta entendê-los à letra, admitir-lhes a eficiência,
obedecer-lhes exterior e mecanicamente: é preciso solucionar os enigmas que se ocultam sob as pala-
vras.
Quem conseguir fazê-lo, embora seja numa parte mínima, conseguirá uma aproximação do encontro,
ainda que leve e passageiro, experimentando as delícias do reino espiritual ("dos céus") na paz interi-
or. Verdade é que permanece apenas nos primeiros degraus da evolução espiritual. Mas, se tiver o
merecimento de ensinar o pouco que compreendeu às outras criaturas, já se terá tornado um pequeno
foco de luz para o mundo, e alcançará o reino. Sim, porque embora fraca, é sempre LUZ.
Já aqueles que tiverem atingido a solução para todos ou quase todos os ensinamentos; os que soube-
rem interpretá-los à luz crística; os que penetrarem o sentido profundo; e, além de tudo isso, os que os
VIVEREM, e ainda ensinarem aos homens quais os segredos das palavras do Livro sagrado, esses
serão chamados grandes no reino espiritual: terão obtido a unificação com o Cristo, única chave para
a legítima interpretação, e esparzirão Sua Luz, a todos iluminando, como tersos refletores do Logos
Divino que em todos habita.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

AS OFENSAS

Mt. 5: 20-26 Luc. 12: 54-59

21. Ouvistes o que foi dito aos antigos: "não 54. Disse também à multidão: quando vedes
matarás" e "quem matar, estará sujeito ao aparecer uma nuvem no poente, logo dizeis
julgamento". que vem chuva, e assim acontece;
22. Mas eu vos digo que todo o que se magoa 55. e quando vedes soprar o vento sul, dizes que
contra seu irmão, estará sujeito a julgamen- haverá calor, e assim ocorre.
to; e quem chamar seu irmão "tolo", estará 56. Hipócritas, sabeis distinguir o aspecto da
sujeito ao tribunal; e quem chamá-lo “lou- terra e do céu; como então não distinguis
co", estará sujeito ao vale dos gemidos de esta época?
fogo.
57. Por que não discernis também por vós
23. Se estiveres, pois, apresentando tua oferta mesmos o que é justo?
no altar e aí te lembrarás de que teu irmão
tem alguma coisa contra ti, 58. Quando pois vais com teu adversário ao
magistrado, fazei o possível para, no cami-
24. deixa ali tua oferta diante do altar, vai pri- nho, te livrares dele; para que não suceda
meiro reconciliar-te com teu irmão e depois que ele te arraste ao juiz, e o juiz te entre-
vem apresentar tua oferta. gue ao oficial, e o oficial te lançará na pri-
25. Sê benevolente depressa com teu adversá- são.
rio, enquanto estás no caminho com ele; 59. Digo-te que não sairás dali até pagares o
para que não suceda que o adversário te en- último centavo.
tregue ao juiz, o juiz ao oficial de justiça, e
sejas recolhido à prisão;
26. em verdade te digo, que não sairás dali até
pagares o último centavo.

A partir deste ponto, encontramos a confirmação prática do sentido do versículo 17 deste capítulo, em
que Jesus afirma "ter vindo para aperfeiçoar a lei". São cinco oposições entre as palavras da Torah e os
ensinamentos mais elevados e rigorosos de Jesus.
Onde, por exemplo, a lei proíbe apenas "matar", supondo-se digno de castigo só a interrupção da vida
física, Jesus esclarece que o homicídio moral é tão ou mais grave do que aquele, e portanto passível de
resgate doloroso.
Para melhor esclarecimento do assunto, é feita uma divisão em três graus, caminhando-se do menor ao
maior até o clímax, pois Jesus nem admite, sequer, a hipótese de homicídio físico.
1.º o desgosto ou mágoa, correspondente ao grego horgizómenos, que é simples movimento íntimo de
ressentimento, sem repercussão nenhuma exterior;
2.º o aborrecimento que se exterioriza numa injúria, embora leve, chamando-se a criatura de "tola" (em
hebraico "raca", isto é reiga, ou reigah, que significa "cabeça ôca"), numa demonstração de desprezo;
3.º a zanga que se exterioriza com uma ofensa grave e caluniosa, em que se classifica a pessoa de "lou-
ca" (hebraico "moreh", grego môrós), com isso causando prejuízos morais graves, pelo desprestígio de
irresponsabilidade a ela atribuída sem base na verdade dos fatos.

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C. TORRES PASTORINO
A cada uma dessas gradações corresponde um tipo diferente de condenação:
1.º - sujeito a julgamento simples;
2.º - sujeito a julgamento do Sinédrio (da autoridade);
3.º - sujeito ao "vale dos gemidos", para ser purificado pelo fogo.

Quanto à palavra "geena", que traduzimos por "vale dos gemidos", nós a explicaremos no fim deste
capítulo.
Compreendemos assim que:
1.º - quem se magoa, permanecendo ressentido sem perdoar (sem esquecer a ofensa), embora fique
calado, perde a sintonia interna com Deus que é Amor; como, porém, o movimenta é puramente ínti-
mo, ele é culpado perante sua consciência apenas, estando sujeito ao resgate de um carma estritamente
pessoal;
2.º - quem se ofende com algo e se destempera, dando ao adversário epítetos de desprezo (tolo, cabeça
ôca), fica inculpado perante o tribunal da comunidade (sinédrio), porque adquiriu carma grupal, já que
sua ação feriu outra pessoa;
3.º - quem se ofende e, exteriorizando sua ira, atribui ao adversário epítetos caluniosos (louco, malu-
co), se torna culpado perante o tribunal geral, porque a calúnia espalhada não mais pode ser desfeita, e
o prejuízo causado não consegue ser remediado; foi, pois, adquirido carma coletivo, sendo ele o res-
ponsável pelo que disse, pelos prejuízos que causou, e por todos os julgamentos errôneos daqueles que
o ouviram e nele acreditaram. Esse carma coletivo, para ser resgatado, tem que passar pelo fogo per-
manente das dores, que jamais se apaga no "vale dos gemidos" (o planeta Terra, também chamado
"vale de lágrimas").
Os versículos seguintes contêm uma hipérbole para demonstrar a superioridade do amor. Figura Jesus
estar já alguém no altar, a oferecer sua oblata, quando se recorda de que seu irmão tem uma queixa
contra ele. Para salientar quanto o amor é superior aos sacrifícios (cfr. Os. 6: 6), diz Jesus que deixe ali
sua oferta e vá primeiro reconciliar-se com seu irmão. Mostra-nos isso que a adoração e mesmo a ora-
ção não têm efeito, se não estamos vibrando na frequência do amor.
Por isso continua ensinando-nos que jamais devemos levar nossas questões diante dos tribunais, para
reclamar nossos direitos ("onde começa o direito, acaba o amor", escreveu Pietro Ubaldi). Nem deve-
mos permitir que alguém vá aos tribunais contra nós: reconciliemo-nos, ainda que perdendo aparente-
mente, pois o lucro espiritual será demais compensador. Se alguém tem queixa, vamos a ele e cedamos
tudo, contanto que mantenhamos nossa paz na sintonia do amor.
Olhando sob o ponto de vista espiritual, é melhor reconciliar-nos "enquanto estamos no caminho com
ele". A expressão "no caminho" exprime claramente o que hoje diríamos "enquanto estamos reencar-
nados com ele na Terra". Baste confrontar: "Sabemos que se a nossa casa terrestre desta tenda de via-
gem for desfeita temos de Deus um edifício, casa dão feita por mãos, eterna, nos céus” (2 Cor. 5:1);
"Andai com sabedoria com os que estão de fora, remindo o tempo" (Col. 4:5); "exortai-vos uns aos
outros todos os dias, durante o tempo que se chama hoje" (Heb. 3:13); "se invocais como Pai Aquele
que, sem se deixar levar de respeitos humanos, julga segundo a obra de cada um, vivei sem temor du-
rante o tempo de vossa peregrinação" (1 Pe. 1:17); "tenho por justo, enquanto estou nesta tenda de
viagem, despertar-vos com recordações, sabendo que brevemente hei de deixar esta tenda de viagem"
(2 Pe. 1:13-14); e ainda, embora mais veladamente 2 Cor. 3:12-18 e 6:1-3; Heb. 4:1-3; 8:7; 12:11-13; 1
Pe. 5:9. Além disso, a própria denominação da comunidade dos cristãos nos primeiros tempos (os mais
legítimos porque mais próximos à fonte) confirma esta interpretação, pois eles se classificavam como
"os do Caminho" (cfr. At. 9:2); só mais tarde, em Antióquia, passaram a ser conhecidos como "cris-
tãos", isto é, seguidores de Cristo.
Tudo isso - vem a advertência muito séria e severa - para que não sejamos entregues ao juiz (nossa
consciência liberta, nosso Eu profundo) que nos manterá "na prisão", ou seja, no corpo (nas sucessivas

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SABEDORIA DO EVANGELHO

encarnações), das quais não nos libertaremos enquanto não tivermos pago o último centavo. Enquanto
não for resgatado todo o carma, não sairemos da roda das reencarnações, a que os hebreus chamava
gilgal e os hindus samsara.
O texto de Lucas aparece em outro contexto, mas o ensinamento é o mesmo. O exemplo é tirado da
facilidade que tem o povo de conhecer com antecedência o tempo que haverá. A nuvem no poente de-
nota chuva e o vento do sul (realmente do sudoeste, o siroco, em grego notos traz o calor do norte afri-
cano. No entanto, não sabem conhecer a vida espiritual. Vem depois a mesma advertência que em
Mateus, a respeito da reconciliação com os adversários, enquanto encarnados com eles. Sabemos que
os adversários reencarnam, quase sempre, como parentes próximos, afim de que a reconciliação seja
mais fácil pelas ligações sanguíneas. A aproximação dos adversários na reencarnação, como pais, fi-
lhos, irmãos é automática: o ódio une tanto quanto o amor, porque o pensamento de quem odeia, como
o de quem ama, se fixa morbidamente nos seres amados ou odiados; e sabemos que o pensamento é
força que une sintonicamente. Disso se prevalece a Lei para provocar as reconciliações, enquanto os
seres estão com o véu do esquecimento a recobrir as causas desse ódio passado.

A individualidade esclarece bem as personalidades, de que o estado atual em que se encontram é um


simples e ilusório percurso de viagem, e que não convém brigar durante esse caminho transitório.
Muito ao contrário: deve ser aproveitada essa caminhada rápida para uma reconciliação plena com
todos os adversários, enquanto o olvido das causas nos amortece a dor dos efeitos.
Quem não souber valer-se desse ensejo e, ao revés, continuar a alimentar separações e contendas,
aumentando os débitos, permanecerá na prisão até resgatar seu carma de modo integral.
Então, avisa a individualidade às criaturas: sejam inteligentes, espertas. Aprendam a conhecer o re-
sultado das ações, assim como já perceberam a constância dos sinais que precedem as chuvas e o
calor.
No trecho, aprendemos, outrossim, que o ciclo reencarnatório é, como dizia Platão, um "ciclo fatal"
(kyklos ananke) que nos prende como em cadeias, até ser cobrado o último centavo. A Lei é inflexível
e não há preces nem devoções que o diminuam. A "Misericórdia" manifesta-se de outro modo: é dan-
do-nos oportunidades novas e repetidas, de realizarmos pagamentos, isto é, concedendo-nos novas
encarnações (cfr. Pietro Ubaldi, "Queda e Salvação", pág. 61).
O único meio de resgatarmos mais depressa é dedicar-nos ao serviço, por amor ao próximo. Daí a
pregação intensa que é feita do valor da "caridade" ("Fora da caridade não há salvação", escreveu A.
Kardec).

GEENA
A palavra geena que aparece nas traduções vulgares do Evangelho, e que traduzimos por "vale dos
gemidos", É, empregada sete (7) vezes em Mateus (5:22, 29, 30; 10:28: 18:9; 23:15, 33); três (3) vezes
em Marcos (9:43,45,47); uma vez em Lucas (12:5) e uma vez em Tiago (3:6). Nunca a encontramos
em João nem em Paulo.
Nome antiquíssimo, já aparece no Velho Testamento desde Josué. São três as formas de empregá-lo:
a) gê ben Hinnom (vale do filho de Hinnom) em Josué 15: 8a: 18. 16a: 2.º Crôn. 28:3; 33:6; Jer. 7:31,
32: 19:2, 6; e 32 :35.
b) gê benê Hinnom (vale dos filhas de Hinnom) em 2.° Sam. 23: 10.
c) gé Hinnom (vale de Hinnom) em Josué 15.8b; 18.16b e Neemias 11:30.
Era tão conhecido, que Jeremias se limita, em 2:23, a chamá-lo "o vale" (haggê).
Quanto ao significado da palavra Hinnom há discussão. Afasta-se, de modo geral, a hipótese de um
nome próprio, pois jamais se conheceu alguém com esse apelativo. O sentido mais aceito para esse

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C. TORRES PASTORINO
termo é o atribuído por Gesenius-Bull ("Handwoerkerburh") que a faz derivar da raiz árabe (1) (han-
na), que significa "gemer"; Strack Billerbeck (Comentário do Novo Testamento segundo o Talmud e o
Midrasch", tomo 4.º pág. 1030:1031) acata essa etimologia, embora classificando-a de "popular". Nes-
se caso (2) (hinnom) significa "gemidos, lamentações". E no Midrasch de Rabi Tanchuma (texto B, §
2.º, 8.º) lemos: "que signifíca Hinnom (3) ? que os padres idólatras diziam a Moloch, quando uma cri-
ança gemia (4): possa isso dar-te prazer, possa isso ser-te agradável".

(1) (2)

(3) (4)

Na tradução dos LXX encontramos as trancrições: φάραγγα’Ονάµ (Jos.15:8a); νάπης (Σ) ονναµ
(Jos.18:16a), onde evidentemente o sigma entrou no lugar do espírito rude: e γαίεννα (γαί όννόµ , no
códex A), em jos. 18:16b.
No aramaico dizia-se gê Hinnam (5), que passou para o grego γέεννα , com a queda do m final, como
também ocorreu em Μαρία de (6) (Mireiam) .
(5) (6)

Tratava-se de um vale verdejante e ameno, sempre verde mesmo quando em volta todas as árvores
ressecavam pelo calor. Aí estava construído o "altar" de Moloch (ou Melek), onde eram queimadas
vivas as crianças, para aplacar essa terrível "divindade" (espírito atrasado).
Os próprios reis hebreus Manassés e seu filho Acaz aí queimaram seus próprios filhos (2.º Sam. 21:6).
Contra esse costume desumano, Jeremiais protesta revoltado. O rei Josias destruiu o local do culto,
fazendo dele depósito de lixo de Jerusalém e monturo onde se lançavam os cadáveres de animais, sen-
do tudo queimado para não empestiar as redondezas. Mas logo após a morte de Josias, o culto foi res-
tabelecido no mesmo vale (2.º Sam.23:29, 30, 32, 37 e Jer. 11:9, 10).
Também Ezequiel (20:30-31) ameaça os israelitas por essas crueldades inomináveis. Os apócrifos atri-
buem a esse vale o símbolo do castigo dos maus.
A idéia tomou corpo, passando o "vale dos gemidos" a simbolizar “o castigo que purifica os pecado-
res". E como tal, representava a terra, como se pode ver ainda hoje na antiquíssima prece "Salve Rai-
nha”, onde a Terra é chamada "vale de lágrimas".
A escola de Chammai admitia a "geena" como purificação através do fogo, donde sairiam os espíritos
para juntar-se aos justos, como lemos numa baraítha do Tratado Rosch Haschana (16b,34). Hillel ten-
de mais para a misericórdia, pois na mesma baraítha se lê: "os discípulos de Hillel dizem que O que é
grande em misericórdia inclina a balança para a misericórdia, isto é, introduz os medíocres na vida do
mundo futuro" (ou seja, fá-los reencarnar).
Essa a tradição rabínica (e provavelmente popular) na época de Jesus, e daí tê-la o Mestre aproveitado
para dar a seus discípulos a idéia da purificação dos erros cometidos através "do fogo do vale dos ge-
midos", no mesmo sentido: o "fogo" da lei que desgasta as impurezas nas dores porque a humanidade
passa, enquanto "no caminho" através deste "vale dos gemidos".

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SABEDORIA DO EVANGELHO

O ADULTÉRIO

Mat. 5: 27-32 Luc. 16:18

27. Ouvistes o que foi dito: "não adulterarás" 18. Todo aquele que repudia sua mulher e casa
Com outra, comete adultério; e quem casa
28. Eu porém vos digo, que todo o que olha
com a mulher repudiada pelo marido, co-
uma mulher casada, cobiçando-a, já adulte-
mete adultério.
rou com ela em seu coração.
29. Se pois teu olho direito te faz tropeçar, ar-
ranca-o e lança-o de ti; pois te convém mais
que se perca um de teus membros, do que
todo o teu corpo seja lançado no vale dos
gemidos.
30. Se tua mão direita te faz tropeçar, corta-a e
lança-a de ti; pois te convém mais que se
perca um de teus membros, do que todo o
teu corpo seja lançado no vale dos gemidos.
31. Também foi dito: "quem repudiar sua mu-
lher, dê-lhe carta de divórcio".
32. Eu porém vos digo, que todo o que repudia
sua mulher, a não ser por causa de infideli-
dade, a faz ser adúltera; e qualquer que se
casar com a repudiada, comete adultério.

Neste passo, Jesus esclarece as relações entre os dois sexos, tocando em dois pontos essenciais: o
adultério e o divórcio.
Quanto ao primeiro, é ele tratado claramente no decálogo de Moisés (Êx. 20:14 e Deut. 5:18), consti-
tuindo o sétimo mandamento. Já a tradição rabínica ensinava que o simples olhar de desejo (o movi-
mento do corpo de emoções) constituía de per si o adultério (cfr. Strack-Billerbeck, o. c. , página 299).
Jesus confirma essa opinião, dando a entender que não é o contato dos corpos densos que provoca li-
gações cármicas entre duas pessoas (como ainda o julga a humanidade de hoje, convicta de que o "ho-
mem é o corpo físico"), Se assim fora, os homens que, em seu estado de solteiro, frequentam criaturas
livres, por vezes com várias dezenas ou centenas de variações, arcariam com responsabilidades cármi-
cas intermináveis com todas elas, o que não se dá. Com efeito, sendo o corpo denso uma "casca" ex-
terna, o veículo visível básico para movimentação na crosta terrestre, ou seja, o suporte pesado do "es-
pírito", não são seus contatos físicos que ocasionam carmas. Só as ações espirituais, no domínio espi-
ritual, é que provocam ligações reais, e por isso o pensamento é que realmente produz vibrações capa-
zes de "marcar" o intelecto e o corpo emocional de tal forma, que só resgates futuros possam cancelar.
Dai o aviso sério e oportuno do Mestre a seus discípulos e seguidores, com respeito ao pensamento. De
fato, o ato material, de que só participam os veículos inferiores, sem coparticipação espiritual, só traria
consequências cármicas se produzisse prejuízos de ordem material ou moral aos atores da peça. Não
havendo prejuízo, nada acarretará de nocivo, pois não deixa marcas. O mesmo, todavia, não pode di-
zer-se do pensamento.

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C. TORRES PASTORINO
Todavia, est modus in rebus: não é qualquer pensamento que cria carma, como não é qualquer semente
que cai ao solo que produz árvore. O simples olhar que admira a beleza, julgando-a uma criatura visto-
sa, bonita, etc., não criará carmas; o que causará vínculos fortes, e portanto carecentes de resgate, é o
olhar insistente, que provoca movimentos internos emocionais intensos, chegando por vezes até às
sensações, o que demonstra ter atingido a ligação fluídica entre os dois seres (mesmo que um deles o
ignore, e por isso fique isento de culpa). Essa força mental em ação tem seu ponto de partida no Espí-
rito, e por isso nele impregna suas consequências, que se imprimem para futuro cancelamento pelo
resgate.
Analisemos, agora, o que se entendia por "adultério" na lei mosaica: era a infidelidade da esposa ou da
noiva ao seu senhor.
Perante a lei, portanto, só a mulher casada e a noiva podiam cometer adultério. O homem tinha plena
liberdade de ação: se tivesse relações sexuais com moças solteiras, nada de mal havia; no máximo, se
fosse colhido em flagrante, pagava uma multa de 500 ciclos de prata ao pai da moça e a levava como
uma esposa mais (Deut. 22:28-29), podendo assim ampliar à vontade o seu harém, desde que pudesse
sustentá-las todas. Simplesmente, pois, "comprava mais uma propriedade, ao pai, antigo "dono" da
donzela.
A mulher é que, se casada, não podia entregar-se a outro homem, pois esse fato constituía um roubo ao
marido dela, já que ela era propriedade dele. Por isso o adultério era uma infidelidade ao seu senhor. A
lei mosaica mandava que, se eles fossem surpreendidos em flagrante, fossem mortos a pedradas ambos
caso a mulher tivesse marido ou noivo (Lev.20:10 e Deut.22:23); a ela, porque fora infiel a seu dono; a
ele, porque lesara uma propriedade alheia.
Jesus não aprova essa barbaridade: prefere o perdão, como vemos em João,8:1-11.
A seguir vêm dois exemplos, em belas hipérboles literárias. A determinação de olho direito e mão di-
reita é uma concessão à maioria da humanidade, constituída de destros e, além disso, uma minúcia que
agrada ao povo.
Lógico que o ato de arrancar o olho e cortar a mão são atitudes morais, e não físicas. Quando comen-
tarmos a segunda vez em que Mateus cita essas palavras do Mestre (18:8-9), reproduzindo-as com
maior fidelidade, teremos ocasião de estabelecer o sentido preciso que por Ele foi atribuído a essas
afirmativas: veremos que o sentido hiperbólico desce a uma realidade palpável e lógica.
Depois, ligado ainda a esse assunto, vem a questão do repúdio da esposa (jamais o inverso se podia
dar!) permitido por lei (Deut. 24:1), mesmo que o motivo fosse unicamente "não achar graça em seus
olhos ou encontrar nela alguma coisa que fosse feia" ...
Jesus continua a autorizar o repúdio da mulher (ou divórcio) e o repete em Mat. 19:9-10, mas restringe
essa atitude ao único caso em que a esposa tenha tido relações sexuais com outro homem (infidelida-
de). Nesse caso, o libelo de repúdio a deixaria livre, podendo unir-se ao outro.
Entretanto, se o repúdio não for por causa de infidelidade da esposa, então o marido, pondo-a para fora
de casa, a empurraria para o adultério; e quem a acolhesse também cometeria adultério porque, de fato,
ela não estaria divorciada, isto é, os vínculos matrimoniais não estariam dissolvidos. Assim também o
entende a igreja grega ortodoxa, que afirma: a infidelidade conjugal, por parte da esposa, dissolve os
vínculos matrimoniais.
Lucas não cita a exceção: reproduz apenas a regra geral, que proíbe o repúdio.
Nada se fala, entretanto, do caso de uma separação espontânea e voluntária dos dois cônjuges, quando
agissem de comum acordo. A prescrição é clara e taxativa: que o homem não cometa a injustiça de
repudiar a esposa, depois que viveu com ela; dando quase a entender tratar-se do caso em que ela não
quer, e ele a põe pela porta afora. A própria exceção apontada como lícita (quando ela mesma, a espo-
sa, prefere sair de casa para unir-se a outro homem) parece confirmar que, quando o afastamento é
voluntário de ambos os lados, nada existe que os impeça de reconquistar a liberdade.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Vamos entrar em considerações mais profundas, como sempre ocorre. No entanto, logo no pórtico,
queremos dar um aviso que nos parece de suma importância. Leiam com atenção.
Somos forçados a apresentar o que nos é ditado, mas CUIDADO: não nos responsabilizamos pelos
erros de interpretação que cada um faça por sua conta, julgando estar movido pelo Espírito, quando
na realidade são apenas as emoções que o movem. Pedimos encarecidamente muito cuidado e pru-
dência, pois é facílimo o equívoco nestes casos, e não queremos que ninguém adquira carmas, preten-
dendo posteriormente desculpar-se com o que aqui tiver lido. Cuidado, pois, muito cuidado e nada de
ilusões!
Subamos inicialmente a planos mais elevados: Paulo maiora canamus.
A individualidade (Jesus) avisa à nossa personalidade que não podemos tornar-nos adúlteros, isto é,
infiéis ao nosso único dono e senhor, que é o Eu Profundo, o Cristo Interno, o Deus Abscónditus; não
podemos abandonar a REALIDADE, para idolatrar as formas exteriores de nosso eu pequenino e vai-
doso.
Com efeito, no Velho Testamento já YHWH (Jesus) dizia, por intermédio dos profetas (médiuns) essas
verdades e empregava o termo "adultério" no sentido preciso de abandonar o culto a YHWH para
seguir outros espíritos. Pela boca de Jeremias (9:2) diz YHWH: "oxalá tivesse eu no deserto um al-
bergue de viandantes, para poder deixar meu povo, e afastar-me deles, porque todos eles são adúlte-
ros, uma assembléia de prevaricadores". Com o mesmo sentido vemos a palavra usada por Isaías
(57:3-9) e por Ezequiel (16:3-5-38).
Aí se compreende a afirmativa de Jesus: "o que Deus uniu, (a individualidade à personalidade) o ho-
mem não separe" (Mat.19:6), para prender-se a outros amores, como o dinheiro, a fama. a glória, a
política, o intelectualismo, etc. Una-se o homem ao Cristo Interno, que é o verdadeiro esposo da alma,
que é UM conosco "formando um só espírito e uma só carne" (Mat.19:6). E termina essa lição com a
frase enigmática: “e há outros que se fizeram eunucos por causa do reino dos céus: quem puder com-
preender, que compreenda" (Mat.19:12). E mais adiante: "todo o que deixar casas, irmãos, irmãs,
pai, mãe e terras por causa do meu nome, receberá muitas vezes mais (?) e herdará a vida imanente
(Mat. 19-29). Perguntamos: não fosse o sentido que atribuímos a essas palavras, que adiantaria
abandonar tudo, para tornar a receber tudo de volta e multiplicado? Trata-se, evidentemente, de fra-
ses simbólicas, confirmadas pela outra frase: "procurai em primeiro lugar o reino de Deus e sua per-
feição, e tudo o mais vos será acrescentado" (Mat.6:33).
* * *
No entanto, não é só nesse plano - mais real porque espiritual - que vige a lei do adultério. Também a
infidelidade pode repercutir no plano da personalidade, pois através dela é que se manifesta a indivi-
dualidade, isto é, o Espírito.
Precisamos, então, considerar, sob das uniões amorosas.
Logo de início assinalemos que a individualidade condena in totum os movimentos provenientes da
pura concupiscência animal, motivada pela atração das formas físicas exteriores e expressa no texto
evangélico como o desejo carnal. Para quem já vive na individualidade, no reino do Espírito, ou reino
dos céus (e são pouquíssimos!), essa parte foi, de há muito, superada.
De modo geral a humanidade não sabe e não pode ainda fazê-lo: mas há que distinguir entre o Amor
que nasce do Eu Profundo e o desejo emocional, que provém das sintomas animais do corpo astral. E
a confusão é fácil, porque o Amor que vem do Eu Interno (geralmente com raízes milenares) também
se manifesta através dos outros veículos, que lhe são a expressão única possível neste plano terrá-
queo. Mas o Amor do Espírito é sempre puro, induzindo à união dos Espíritos, independendo das
emoções animalizadas.
Também neste plano se aplica o ensino de Jesus (Mat.19:6): "o que Deus uniu, o homem não separe".
Com efeito, o Pai, que em cada um se manifesta na Centelha Divina, tende a unir-se pelo amor a todas
as demais Centelhas Divinas ("que eles sejam aperfeiçoados na unificação", João, 17:23); mas, ao

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encontrar sintonia vibratória mais harmônica com outra Centelha que vibra através de outra perso-
nalidade (mormente se já vêm as duas há séculos ou milênios numa só caminhada, acompanhando a
evolução do Espírito), pode dar-se uma atração irresistível, uma nota uníssona que ressoa num só
tom. Quando isto se dá, a unificação das duas Centelhas, mesmo através das personalidades e de seus
veículos, é fatal, sobretudo se as vibrações se manifestam em pólos opostos (que se atraem).
Neste caso, embora raríssimo, todos os empeços humanos são superados, pois o homem, seja juiz ou
sacerdote, não pode nem deve separar (com suas leis, seus contratos, suas convenções ou preconcei-
tos) o que Deus uniu. A união divina é superior a todos e a tudo, nem está sujeita a quaisquer leis cri-
adas pelos homens.
O grande perigo reside em não saber distinguir-se se o movimento provém do Eu Profundo ou se é
ocasionado por uma atração do físico. E como a maioria da humanidade ainda vibra no plano emoci-
onal (animal) há necessidade de regras e freios que contenham os abusos.
Eis, pois, alguns sinais que, se existirem todos concomitantemente, podem fazer conhecer se, na reali-
dade, o Amor é Espiritual, isto é, se nasce do Eu Profundo:
1.º - não requer retribuição de espécie alguma, continuando irresistível, firme e sólido mesmo se des-
prezado e ferido;
2.º - não alimenta qualquer paixão (não é "apaixonado") mas, ao contrário, é equilibrado, e não visa
a ligações sexuais físicas, embora estas possam ocorrer como consequência desse amor, mas não
como seu objetivo; qualquer fanatismo, porém, é anti-natural;
3.º - embora não seja o primeiro numa existência carnal (pois, de modo geral, o homem evoluído pas-
sa por três fases: o amor vital, o amor artístico e o amor místico; já nas mulheres é mais difícil en-
contrar essas variantes, pois cada uma pertence a um tipo definido: ou é vital, visando à procriação
de filhos; ou é artístico, inspirando o homem; ou é místico, elevando-o a Deus, E nele permanece du-
rante toda a existência terrena), é na realidade o único verdadeiro, que prescinde das formas físicas
belas ou feias, da idade, da condição social, etc.;
4.º- mesmo que apareçam outras atrações físicas por outras criaturas encarnadas (em geral mais mo-
ças e mais belas), o amor Espiritual permanece com a mesma intensidade, vibrando no plano do espí-
rito:
5.º - não há absolutamente nenhum movimento íntimo de ciúme pois se sabe que só o Espírito vale,
nada valendo as formas físicas. E o Amor Espiritual quer a felicidade do ser amado, e não, egoistica-
mente, a própria felicidade;
6.º - O Amor Espiritual supera todos os defeitos (físicos e morais) do ser personalístico, não os levan-
do jamais em consideração: é como se não existissem, pois ama-se o espírito, a individualidade, e a
personalidade é apenas uma casca exterior que hoje existe e amanhã termina;
7.º - jamais se leva em conta qualquer sacrifício que seja necessário fazer para o benefício espiritual
da criatura amada, não se aceitando qualquer retribuição, nem se magoando se não houver gratidão:
a alegria da doação é pela doação em si, não pelo resultado que daí possa advir;
8.º - nenhum outro ser poderá ocupar, no Espírito que ama, o lugar do Espírito amado, embora a per-
sonalidade possa ligar-se, temporariamente, a outras personalidades. Mas o ser amado é insubstituí-
vel e indispensável à vida espiritual;
9.º - para a felicidade espiritual do ser amado, o Espírito que ama sabe usar, se necessário, de rigor,
energia e até rudeza, a fim de corrigir-lhe os defeitos da personalidade que lhe prejudicam a evolução
do Espírito;
10.º - a franqueza e lealdade entre os dois é absoluta e não há jamais segredos entre ambos, pois a
vida de um é um livro aberto diante do outro, mesmo quando se trate dos movimentos mais íntimos e
ocultos. Por isso, onde um procura ocultar do outro qualquer coisa que seja, o amor não é espiritual.
Isso vale para o campo espiritual (experiências íntimas), para o intelectual (conhecimentos), para o
emocional (amores), para o etérico (sensações) e para o físico: em nenhum plano há segredos e coisas

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escondidas: tudo é encarado com a maior naturalidade, porque, na realidade, os dois constituem um
só Espírito é um só corpo.
Numa palavra, em síntese: o Amor Espiritual é o que sempre dá e se doa, sem jamais pretender receber
e sem magoar-se nem diminuir seu amor, se deixar de receber em qualquer campo.
* * *
Outro passo adiante devemos dar. Quando o amor é realmente do Espírito, proveniente das Centelhas
Divinas, muito mais fácil se torna o Encontro Supremo na união das duas Centelhas, através dos veí-
culos manifestantes. Esse é o verdadeiro e real Esponsalício Místico, e a união é realizada em prece,
que circunda o Espírito de celestial aura, e durante a qual os corpos são esquecidos e quase não sen-
tidos, percebendo-se apenas a fusão mística do eu pequeno com o Eu Profundo. A personalidade ex-
perimenta a sensação de haver mergulhado num vácuo de luz, produzindo-se um relâmpago que su-
pera quaisquer emoções e sensações etéricas; o Espírito expande-se fora do tempo e do espaço, per-
dendo totalmente a noção da matéria, e entra em êxtase, consumido pelo Fogo do Amor Divino, como
que perdido na vastidão do infinito.
Daí ter escrito Paul Brunton: "A união permanente com outrem só existe quando se descobriu o Eu
Permanente" ("La Sagesse du Moi Supreme", página 143) .
A fim de comprovar que essa teoria não é nossa, apresentamos uma transcrição, embora algo longa,
do jesuíta Padre Pierre Teilhard de Chardin - O Padre Teilhard de Chardin, Jesuíta, foi um dos maio-
res cientistas de nosso século, no domínio da geologia e da antropologia, tendo descoberto o "homo
pekinensis" em suas pesquisas. Portanto, profundo teólogo "doublé" de abalisado homem de ciência,
justamente no ramo específico do estudo da evolução humana na terra - extraída de sua obra "L'éner-
gie humaine". Vejamos suas palavras textuais:
"Que a sexualidade teve primeiramente a função dominante de assegurar a conservação da espécie,
não há dúvida ... Mas desde o instante crítico da Hominização, outra função, mais essencial, foi atri-
buída ao amor - função de que apenas começamos a ver a importância: quero dizer a síntese necessá-
ria dos dois princípios masculino e feminino na edificação da personalidade (segundo nosso modo de
classificação, deve ler-se: na edificação da INDIVIDUALIDADE) humana. Nenhum moralista nem
psicólogo jamais duvidou que os dois encontrassem uma complementação mútua no jogo da função
reprodutora. Mas esse término era considerado até agora como efeito secundário, acessoriamente
ligado ao fenômeno principal da geração. Agora, se me não engano, a importância dos fatores, de
acordo com as Leis do universo pessoal, tem que inverter-se: O homem e a mulher para o filho - ain-
da, e por muito tempo, enquanto a vida terrestre não tiver chegado à maturidade. Mas o homem e a
mulher um para o outro, cada vez mais e para sempre ... Se o homem e a mulher existem são princi-
palmente uma para o outro, então compreendemos que, quanto mais se humanizarem, tanto mais sen-
tem, só por isso, uma necessidade major de aproximar-se ... No indivíduo humano a Evolução não se
fecha: continua mais longe, para uma concentração mais perfeita, ligada à diferenciação ulterior, ela
mesma conseguida pela união. Pois bem, diríamos, a mulher é, precisamente, para o homem, o termo
susceptível de produzir esse movimento para o alto. Pela mulher, e só pela mulher, pode o homem
escapar ao isolamento, em que sua perfeição arriscaria prendê-lo. Então é mais rigorosamente exato
dizer que a malha do Universo é, para nossa experiência, a Mônada pensante. A molécula humana
completa já é, agora, um elemento mais sintético, e portanto mais espiritualizado do que a pessoa-
indivíduo - ela é uma dualidade, composta ao mesmo tempo do masculino e do feminino. E aqui apa-
rece em sua amplitude, a função cósmica da sexualidade. Ao mesmo tempo vemos aqui as regras que
nos guiarão na conquista dessa energia terrível em que passa, através, de nós, em linha direta, a po-
tência que faz convergir sobre si mesmo o Universo. A primeira dessas regras é que o amor, conforme
as leis gerais da união criadora, serve à diferenciação dos dois seres que ele aproxima. Portanto, nem
um deve absorver o outro nem, menos ainda, perderem-se os dois nos gozos da posse corporal, que
significaria queda no plural e volta ao nada. É a experiência corrente. Mas só se compreende bem
isso nas perspectivas do Espírito-Matéria. O amor é uma conquista aventurosa: só se mantém e des-
envolve, como o próprio Universo, por uma perpétua descoberta. Então só se amam legitimamente
aqueles cuja paixão os conduz, a ambos, e um através do outro, a uma posse maior de seu ser. Assim,

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a gravidade das faltas contra o amor não é ofender não sei que pudor ou que virtude: mas desperdi-
çar, por negligência ou volúpia, as reserva da personalização do Universo. Esse desperdício é que
explica as desordens da "impureza". E ele ainda, em grau mais elevado nos desenvolvimentos da uni-
ão, conduz a uma alteração mais sutil do amor: quero dizer o "egoísmo a dois" ... Em virtude do mes-
mo princípio que obriga os elementos "simples" a completar-se no par, deve também o par continuar
além de si os acréscimos que seu crescimento requer. E isto de duas maneiras: de um lado procuran-
do, fora, outros grupamentos da mesma ordem aos quais associar-se; de outro lado, o CENTRO para
os quais os dois amantes convergem, ao unir-se, deve manifestar sua personalidade no coração mes-
mo do círculo em que buscaria isolar-se sua união. Sem sair de si, o casal só acha seu equilíbrio num
terceiro acima dele. Que nome daríamos a esse "intruso" misterioso? Enquanto os elementos sexuados
do Mundo não haviam atingido o estado da personalidade, a progenitura podia representar a única
realidade em que, de qualquer modo, se prolongavam os autores da geração. Mas logo que o amor
começou a aparecer, não só entre os pais, mas entre duas pessoas, então teve que descobrir-se, mais
ou menos confusamente, acima dos amantes, o TERMO final em que seriam, ao mesmo tempo salvas e
consumidas, não só a raça como sua personalidade ... E então aparece como necessário à consolida-
ção do amor, muito mais que o filho, o CENTRO TOTAL em si mesmo. O amor é uma função a três
termos: o homem, a mulher e Deus. Toda sua perfeição e seu êxito estão ligados ao balanceamento
harmonioso desses três elementos".
A citação está longa, mas explica bem nosso pensamento. Continuemos lendo Teilhard de Chardin:
"Manifesta-se aqui uma grande diferença entre os resultados aos quais leva nossa análise de um Uni-
verso pessoal, e as regras admitidas pelas antiga moral. Para esta, pureza era geralmente sinônimo
de separação dos sexos. Para amar, era indispensável renunciar. Um termo expelia o outro. O "binô-
mio" homem-mulher era substituído pelo binômio homem-Deus (ou mulher-Deus): essa era a lei da
suprema virtude. Muito mais gera! e satisfatória parece-nos ser a fórmula que respeita a associação
dos três termos em conjunto. A pureza, diremos nós, exprime simplesmente a maneira mais ou menos
distinta em que se manifesta, acima dos seres que se amam, o Centro Último de sua coincidência. Não
é mais questão de renunciar, mas apenas de unir-se a um maior do que si mesmo. O mundo não se
diviniza por supressões, mas por sublimação. Sua santidade não é feita por eliminação mas por con-
centração das seivas da Terra. Assim se realiza, uma nova ascese - muito mais laboriosa, mas mais
compreensível e operante que a antiga - a noção do Espírito-Matéria. Sublimação: então conserva-
ção; mas também, e mais ainda, transformação. Se é verdade que o homem e a mulher se unirão tanto
mais a Deus, quanto mais se amarem um ao outro - não é menos certo que quanto mais se unirem a
Deus, mais se verão conduzidos a amar-se de maneira mais sublime. Em que direção imaginaremos
que se efetuará essa evolução ulterior do amor? Sem dúvida para uma diminuição gradual do que
ainda representa (e necessariamente) o lado admirável, mas transitório, da reprodução. A Vida nós o
admitimos, não se propaga apenas por propagar-se, mas para acumular elementos necessários à sua
personalização. Então, quando se aproximar para a Terra a maturação de sua Personalidade, os Ho-
mens terão que reconhecer que para eles não haverá simplesmente a questão de controlar os nasci-
mentos; mas que importa sobretudo dar plena expansão à quantidade de amor, liberto do dever da
reprodução. Sob a pressão dessa nova necessidade, a função essencialmente personalizante do amor
se desligará mais ou menos totalmente do que foi, em certo tempo, o órgão da propagação, a "carne".
Sem cessar de ser físico, para ficar no físico, se fará mais espiritual. O sexo, para o homem, se expan-
dirá no puro feminino. Não é este, na realidade, o sonho mesmo da castidade? Pelo amor do homem e
da mulher, liga-se um fio que se prolonga diretamente ao coração do Mundo", (página 91 a 97): (to-
dos os grifos são nossos).
Mas reproduzamos mais algumas linhas, da mesma obra: "O Amor é a mais universal, a mais formi-
dável e a mais misteriosa das energias cósmicas" (pág. 40). E ainda: "É o universo que realmente
caminha para o homem através da mulher: toda a questão (questão vital para a Terra ...) é que eles o
saibam" (pág. 41). E mais: "Que o homem perceba a Realidade Universal que brilha espiritualmente
através da carne, e descobrirá a razão do que, até então, o decepcionava e atrapalhava seu poder de
amar. Diante dele está a mulher como a atração e o Símbolo do Mundo: ele só poderá abraçá-la, en-

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SABEDORIA DO EVANGELHO

grandecendo-se por sua vez até a medida do Mundo" (pág. 194). E: "a lei geral e suprema da morali-
dade é: limitar a força (o amor), eis o pecado" (pág . 134).
No momento supremo da união das Centelhas, há um átimo em que as criaturas se sentem "morrer",
desaparecendo a consciência da personalidade; nesse átimo sublime o centro da existência se fixa no
coração e "a personalidade se transforma em impersonalidade", sentindo, a seguir, a sensação de
"haver nascido de novo". Estas últimas expressões aspeadas são de outro autor, Paul Brunton (em sua
obra "À la Recherche du Soi Suprême"). Aí ainda lemos (pág. 239): "Se o Ser Supremo não fosse a
mais alta forma de felicidade possível para o homem, este nada aproveitaria de seus prazeres; com
efeito, no instante em que o prazer atinge o clímax, esse é o instante em que ele abandona, ao mesmo
tempo, seu desejo que está satisfeito e o ego, que está na raiz do desejo: então, involuntariamente, no
espaço de um relâmpago, ele faz a experiência da Supraconsciência. Nesse instante experimenta o
mais alto grau de prazer que lhe possa dar a realização de um desejo particular”. Mais adiante escre-
ve esclarecendo sua idéia: "O ponto essencial a fixar, é que num relâmpago repentino de desapego
(depois que o prazer sensual ou o desejo está satisfeito), numa fração infinitesimal de segundo, surge
docemente essa suprema felicidade que a alma do homem irradia. A sensação de desaparecimento do
eu pessoal produz um estado extraordinário e único de libertação. No momento em que o desejo é
satisfeito o eu se sente livre de um fardo e por certo tempo, o mental volta realmente à sua fonte se-
creta, e experimenta a felicidade da Supraconsciência" (pág. 240).
Ora, se isso ocorre com os homens comuns, sem que eles o saibam, que não ocorrerá com aqueles que
já experimentaram o Encontro Sublime?
De tudo isso se conclui, finalmente, que Jesus sabia o que dizia, quando afirmou: "0 que Deus uniu, o
homem não separe".

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OS JURAMENTOS
Mat. 5:33-37
33. Também ouvistes o que foi dito aos antigos: “não jurarás falso, mas cumprirás para
com o Senhor todos os teus juramentos".
34. Eu porém vos digo que absolutamente não jureis, nem pelo céu porque é o trono de
Deus,
35. nem pela terra, porque é o escabelo de seus pés, nem por Jerusalém, porque é uma
cidade do grande rei,
36. nem jures pela tua cabeça, porque nem um só cabelo podes tornar branco ou preto.
37. Mas seja vossa palavra: sim, sim: não, não. Pois tudo o passa disso, procede do mal.

O texto reproduz o terceiro mandamento do decálogo (Êx. 20:7 e Deut. 5:11) e a ordem de cumprir os
juramentos se deduz de Núm. 30:3.
Os israelitas tinham fórmulas estereotipadas de juramento que eram muito frequentes; juravam por
Deus (hâ-Elohim), pelo céu (hasshamâim), pelo templo (nêikelâ), etc.
Jesus proíbe totalmente os juramentos, de qualquer forma, sob qualquer aspecto. O cristão está proibi-
do de jurar, mesmo "seriamente", mesmo "judicialmente", etc., sob pena de desobedecer à ordem taxa-
tiva de Jesus.
Os cristãos reais vivem e agem com tanta lealdade que basta um "sim" ou um "não", para garantir a
veracidade da palavra empenhada. E entre cristãos a franqueza e a verdade devem ser totais e absolu-
tas.
Os juramentos comuns, entre os israelitas daquela época, são analisados pelo Mestre, e apresentadas as
razões que O levaram a proibi-los: o céu, que é o "trono de Deus" - e essa frase provocou ou confirmou
certas crenças antropomórficas a respeito da Divindade. No entanto, compreendamos o espírito da fra-
se: estando Deus em toda parte, os "céus" são a atmosfera impregnada de fluido vital divino, e portanto
um dos locais em que a Divindade se encontra "assentada"; e, dentro da mesma idéia, a terra "onde se
apoia" a atmosfera, é imaginada como sendo "o escabelo de Seus pés"; assim a concentração fluídica
na cidade de Jerusalém, que é citada como "uma das cidades (em grego sem artigo) do Grande Rei".
Depois Jesus desce aos exemplos do próprio homem, pois nem sequer é a criatura capaz de mudar a
pigmentação de seus cabelos, o que prova que não é dono deles.
Quando afirma que nossa palavra deve ser simplesmente sim e não ensina que "tudo o que for além
disso" provém do mal, isto é, do mergulho do "espírito" na matéria densa, no "emborcamento do Anti-
Sistema" (Pietro Ubaldi) que inverte todas as positividades em negativismo.

A lição é preciosa para o Espírito, que deve sempre ser verdadeiro e jamais proferir uma mentira.
Disse grande amiga nossa que "podemos por vezes não-dizer a verdade, calando-a, mas jamais deve-
mos falar uma mentira".
O juramento foi criado pelo vício da personalidade, que quer sempre enganar com astúcias para tirar
vantagens terrenas. Foram então inventadas fórmulas que pudessem "garantir" a lealdade das pala-
vras. No entanto, até mesmo isso foi e é desvirtuado pela falsidade. Daí o aviso lógico e certo de
Jesus: tudo o que não é lealdade e veracidade provém do mal, isto é, exatamente da matéria que pren-
de o Espírito na personalidade transitória.
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SABEDORIA DO EVANGELHO

A NÃO-RESISTÊNCIA

Mat. 5:38-42 Luc. 6:29-30

38. Ouvistes o que foi dito: "olho por olho e 29. Ao que te bate numa face, oferece-lhe tam-
dente por dente'. bém a outra; e ao que te tira a capa, não lhe
negues a túnica.
39. Eu porém vos digo: não resistais ao (ho-
mem) mau, mas a qualquer que te bate na 30. Dá a todo o que te pede; e ao que tira o que
face direita, volta-lhe também a outra; é teu, não lho peças de volta.
40. ao que quer entrar em juízo contigo e tirar-
te a túnica, dá-lhe também a capa;
41. e quem te obriga a andar mil passos, vai
com ele dois mil.
42. Dá a quem te pede, e a quem te solicita em-
préstimos, não voltes as costas.

Neste trecho, Jesus cita primeiro a "lei do talião" (Êx. 21:23-25; Lev.24:17 24 e Deut.19:21), abolindo-
a completamente. Ordena a não-resistência diante dos homens perversos, preceito que Ele mesmo iria
mais tarde ratificar com Seu exemplo, deixando-se prender e assassinar "como um cordeiro diante de
quem o tosquia" (Is. 53:7 e At. 8:32) sem resistir nem às autoridades nem aos esbirros.
Vai muito além da "ahimsa" dos orientais. Mas os cristãos ainda não compreenderam toda a extensão
desses ensinamentos de Jesus e não no põem em prática. Com efeito, nenhuma resistência deve ser
oposta pelos discípulos de Jesus aos exploradores desonestos que abusam de nossa boa-fé. E, para con-
firmar o ensino, são citados vários Exemplos típicos e populares, de fácil compreensão, para que não
paire qualquer dúvida a respeito do que preceituou.
O primeiro é o da "bofetada na face direita". Notam os comentadores que é citada a face direita porque
o povo gosta dessas particularizações; pois, de modo geral, a primeira bofetada, aplicada com a mão
direita, fere a face esquerda de quem lhe está à frente. Segundo Strack-Billerbeck (o.c., pág. 342), o
rabino satisfazia a todas as exigências para esse cargo quando, "esbofeteado na face esquerda, apre-
sentava ao ofensor a direita". A hipérbole exprime claramente o PERDÃO que não revida na mesma
moeda, como exemplificou Jesus ao ser esbofeteado pelo oficial (João, 18: 22-23). Lucas cita o pre-
ceito sem dar o pormenor de face direita ou esquerda.
O segundo exemplo é o do processo judiciário diante de um tribunal, quando o contendor queira tirar-
nos a túnica (chitõn, do hebraico kuttonéth, aramaico kittuná), que era a peça principal do vestuário
dos israelitas. Diz Jesus que deve dar-se também o manto (himátion. hebraico simlâ), que era a outra
peça, menos importante, lançada sobre os ombros. Em Lucas agrada-nos mais à lógica a enumeração:
se o contendor tirar o manto (o supérfluo), deve o coagido entregar também a túnica (até o essencial),
contanto que não lute, a fim de não perder sua paz espiritual. É o PERDÃO-GENEROSO, em que se
cede mais do que nos é exigido.
O terceiro exemplo refere-se aos pedidos, tão comuns entre amigos, de favores (que tantas vezes nos
aborrecem!) e que nos custam, com frequência, sacrifícios pessoais que correspondem a caminhar uma
milha (em latim milium, que passou ao grego mílion e valia cerca de um quilômetro e meio). Ensina

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Jesus que devemos sempre atender de boa-vontade, fazendo sempre mais do que nos é pedido: é a
GENEROSIDADE pura em seu mais belo aspecto, com DOAÇÃO DE SI MESMO até o sacrifício.
O quarto exemplo é o do DESAPEGO. Se alguém pede, deve dar-se, sem distinções; como conservou
Lucas: "dá a quem te pede"; ou seja, jamais recusar qualquer pedido. Esclarece-se esse preceito com
outras frases: "não virar as costas a quem solicita empréstimo (coisa nem sempre fácil por causa do
apego que temos às "nossas coisas" ...). Lucas tem mais força ainda: "se alguém tirar o que é nosso,
não devemos ir reclamá-lo de volta"; deixe-se ir tudo, contanto que o irmão esteja satisfeito, e nós
permaneçamos na inalterável paz espiritual.

A lição de Jesus vai muito além do ahimsa (não-resistência) - já o dissemos - e é uma das mais precio-
sas para a individualidade. E é sobretudo para esta que vale.
Estando a personalidade mergulhada no pólo negativo ("anti-sistema") essa lei dificilmente poderá
ser posta em prática de maneira total. Com efeito, ao seguir literalmente o preceito, a personalidade
seria destruída pelo animalismo, com a perda de seu veículo físico, como ocorreu a Jesus. Daí escre-
ver Lobsailg Rampa que "mesmo os grandes espíritos, na Terra sempre apresentam algum defeito,
para poderem permanecer na crostra, entre os mortais imperfeitos" ("Usted y la Eternidad", pág.113).
Por mais adiantada ou evoluída que seja a individualidade, enquanto convive neste pólo negativo há
que pensar de defender-se para sobreviver. Se puser em prática na matéria, sem distinções, esses pre-
ceitos, ver-se-á despojada de tudo, privados seus filhos do essencial, e isso sem vantagem para os
aproveitadores, porque os não contentaria. Então, materialmente, no pólo negativo, a individualidade
deve agir com "a simplicidade das pombas, mas com a prudência das serpentes" (Mat.10:16) para não
prejudicar a própria evolução e a daqueles que querem apropriar-se de tudo.
Então, não é a matéria em si que interessa, mas o desprendimento das coisas e das pessoas.
Entendamos, todos, esses preceitos espiritualmente, no campo da individualidade: jamais revidar um
mal com outro mal; ao contrário, quando se receber uma ofensa moral ou mesmo material, temos que
retribuir com um benefício, nem que seja uma prece Em favor dos coitados ignorantes, que não sabem
que "quem faz o mal a si mesmo o faz". Daí o simbolismo de "oferecer a outra face", isto é, de genero-
samente oferecer um favor a quem nos magoou, como um bem a fazer a quem nos causou um malefí-
cio.
Entretanto, não apenas as ofensas pessoais referidas neste exemplo, mas também quando o prejuízo é
causado aos haveres, que foram emprestados à personalidade para sua viagem, durante a permanên-
cia no planeta. Por isso, melhor que aborrecer-se em contendas judiciárias, é ceder o que nos exigem
e, se possível, alguma coisa mais, contanto que não criemos desarmonias e inimizades com as mani-
festações divinas que são as demais criaturas: “harmoniza-te depressa com o adversário, enquanto
estás no caminho com ele (Mat. 5:25).
Assim também o exemplo de generosidade: jamais recusar a doação de si mesmo para atender às soli-
citações que de nós requerem sacrifícios pessoais. Nosso Eu Profundo deve dirigir nosso eu pequeno
de forma a que este se sacrifique, caso necessário, para satisfazer às precisões dos companheiros de
viagem, às suas exigências, a fim de cada vez mais ir preparando a harmonização e a união dos espí-
ritos.
Finalmente, dar sempre e emprestar sempre a quem nos pede no campo espiritual. Porque, no domí-
nio da matéria, não podemos dar uma arma a quem pretenda suicidar-se, nem fornecer dinheiro (tal-
vez indispensável a nós) para que outrem o desperdice na mesa de jogo. Mas podemos dar sempre no
mundo espiritual da individualidade, ajudar sempre, com palavras e ações, com a força do pensa-
mento e da prece.
A frase que em Lucas vemos: “ao que tira o que é teu, não lho peças de volta", contém em si um dos
maiores ensinamentos para o Espírito. Que temos nós na Terra que seja propriedade nossa, a não ser
os dons espirituais (morais e intelectuais)? Todo o resto é tão ou mais transitório que nosso corpo

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SABEDORIA DO EVANGELHO

denso: é tudo empréstimos que nos facilitam a viagem pela crostra, mas aqui deixaremos, porque
"nada para cá trouxemos, e daqui nada le'laremos" ( I Tim. 6:7) . Compreendemos, pois, que não de-
vemos aborrecer-nos nem entristecer-nos se alguém nos tira ou furta alguma coisa material: ocorreu,
simplesmente, que o "empréstimo" mudou de mãos. E se algo nos foi subtraído, é porque alguém mais
precisa ou mais merece do que nós. Elevemos um pensamento ao Pai, numa prece sincera, para que
esse ou esses objetos sejam mais úteis a essa pessoa do que o foram enquanto estavam conosco . E a
lição do desprendimento está aí tiXla contida. Não resistir a quem nos fere. Não contender em litígios
judiciários, mas ceder: de qualquer forma, teremos um dia que deixar tudo, então desapeguemo-nos
logo. Não recusar um sacrifício pessoal: todo o bem que fizermos a qualquer pessoa, é a nós mesmos,
em primeiro lugar, que o fazemos: antes de atingir a criatura favorecida, atinge a nós mesmos, porque
modifica nossa aura e a harmoniza; e, ao elevar nossas vibrações internas, faz-nos aproximar da sin-
tonia do Pai que é Amor-Doação.
Lembremo-nos de que Deus se doa a todos, santos e criminosos, evoluídos e atrasados, fornecendo a
todos a própria vida Sua divina, para que seja utilizada por todos livremente. O exemplo divino (como
se verá adiante: “sede perfeitos como é perfeito vosso Pai celestial”, Mat. 5:48) é a maior lição dada
à nossa individualidade, e temos que seguir esse exemplo, se quisermos atingir o Pai que habita den-
tro de nós, unificando-nos a Ele.
Mais se avançará ainda, nesse mesmo teor, na lição que veremos a seguir.

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C. TORRES PASTORINO

AMOR AO PRÓXIMO

Mat.: 5:43-48 Luc. 6:27-28 e 32-36

43. Ouvistes o que foi dito: "amarás o teu pró- 27. Digo porém a vós que me ouvis: amai os
ximo e aborrecerás o teu inimigo”. vossos inimigos, fazei bem aos que vos odei-
am,
44. Eu porém vos digo: amai vossos inimigos e
orai pelos que vos perseguem, 28. abençoai os que vos amaldiçoam, orai pelos
que vos difamam.
45. para que vos torneis filhos de vosso Pai que
está nos céus, porque ele faz levantar-se seu 32. Se amais aqueles que vos amam, que grati-
sol sobre maus e bons, e faz chover sobre dão mereceis? pois também os "pecadores"
justos e injustos. amam aos que os amam.
46. Porque se amardes aos que vos amam, que 33. Se fizerdes o bem aos que vos fazem o bem,
recompensa tendes? os coletores fiscais que gratidão mereceis? até os "pecadores"
também não fazem o mesmo? fazem isso.
47. E se saudardes somente a vossos irmãos, 34. E se emprestardes àqueles de quem esperas
que fazeis de especial? não fazem os gentios receber, que gratidão mereceis? até os "pe-
também o mesmo? cadores" emprestam aos "pecadores" para
receberem outro tanto.
48. Sede vós, portanto, perfeitos, assim como é
perfeito vosso Pai celestial. 35. Amai porém os vossos inimigos, fazei o bem,
e emprestai, sem esperar ressarcimento; e
será grande vossa recompensa, e sereis fi-
lhos do Altíssimo, porque ele é bom para
com os ingratos e maus.
36. sede misericordiosos, assim como é miseri-
cordioso vosso Pai.

Vem agora o aperfeiçoamento da lei do amor, levada ao máximo. Moisés ordenara: "ama teu próximo
como a ti mesmo" (Lev. 19:18) e "ama o estrangeiro e peregrino como a ti mesmo" (Lev. 19:34 e Deut.
10:19). No entanto, em diversos trechos dizia-se que deviam ser olhados como inimigos os amonitas e
moabitas (Deut. 23:6), os amalecitas (Êx. 17:14 e Deut. 25:19), o que fazia supor que esses povos de-
viam ser aborrecidos. Embora em Provérbios (26:21-22) já estivesse escrito: "Se teu inimigo tiver
fome, dá-lhe de comer e se tiver sede, dá-lhe de beber, porque lhe amontoarás brasas vivas sobre a
cabeça e YHWH te recompensará", não era esse o hábito entre os israelitas. (Cfr. ainda Prov. 20:22,
onde se reprime a vingança. Também em Deut o 32:35, YHWH reserva para si a vingança e a recom-
pensa, declarando explicitamente a lei do carma e o choque de retorno).
Jesus chega ao clímax de Suas instruções, ordenando que os inimigos devem ser amados, e não apenas
perdoados; que se deve fazer bem a quem nos faça o mal (Luc.); que se deve abençoar os que nos
amaldiçoam (Luc.) e orar pelos que nos difamam (Luc.) ou perseguem (Mat.), e isto, para seguir o
exemplo do Pai, que é PAI DE TODOS e sobre bons e maus faz surgir o sol e vir o benefício das chu-
vas.
Com esse comportamento, tornar-nos-emos "filhos de Deus", ou seja, DIVINOS, no sentido dado a
essa expressão (cfr. vol . I. pág . XIII, desta obra) entre os escritores judeus da época.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Com efeito, aí reside a sabedoria o Figurando o mal pelo negativo (-1) e o bem pelo positivo (+1), e o
perdão pelo 0 (zero), temos as seguintes equações:
(-1) + (-1) = -2 - mal feito mais mal retribuído = mal duplo
(-1) + 0 = -1 - mal feito mais perdão = 1 mal
(-1) + (+1) = 0 - mal feito mais benefício prestado = mal anulado.

Então, matematicamente se prova que só o bem praticado em favor de quem nos faça o mal é que con-
segue extirpar a dor e o sofrimento da face da Terra.
Depois vem a comparação com o modo de agir dos indivíduos que, perante os israelitas, eram desclas-
sificados de todo: os publicamos (coletores de impostos, cfr. pág. 88-89) e os "pecadores" (cfr. acima
pág. 92). Todas essas classes, assim como os "pagãos" (isto é, os não-judeus) tem uma atuação humana
normal: amam a seus amigos, saúdam seus irmãos, prestam benefícios aos que os ajudam, emprestam
quando tem certeza de que receberão ressarcimento ... Ser igual a eles, não é vantagem. O cristão tem
que ser-lhes superior, mais perfeito, com bondade e misericórdia suprema.
Então vem o fecho de Lucas: "sede misericordiosos como o Pai celestial", e o outro, ainda mais rigoro-
so, de Mateus: "sede PERFEITOS, como perfeito é o Pai celestial".

FIGURA “A ESMOLA” - Desenho de Bida, gravura de L. Flameng


Aqui o ensinamento de Jesus atinge o ápice da perfeição, superando tudo o que os antigos tinham po-
dido ensinar. A lição prossegue no mesmo tom da anterior, mas as verdades são mais explicitamente
ensinadas. Trata-se mesmo de amar os inimigos, que são, na realidade, nossos maiores benfeitores,

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C. TORRES PASTORINO
pois nos ajudam a evoluir mais rápida e seguramente, limando nossas arestas, quebrando nossos es-
pinhos, limpando-nos de nossos defeitos.
Está claramente dito que, para ser cristão não basta "fazer como os outros", retribuindo com bondade
e gratidão aos benefícios recebidos com alegria para nós; mas retribuindo com a mesma bondade e
gratidão aos "benefícios" que recebemos com lágrimas, porque nos fazem sofrer. Indispensável atingir
a perfeição absoluta. E ninguém fica isento de aperfeiçoar se: a exigência abarca todos os cristãos.
Neste trecho, um dos mais sublimes dos Evangelhos, Jesus ensina-nos a superar a perfeição humana,
e dá-nos como modelo a imitar a perfeição divina.
O Pai celestial constitui a vida de todas as criaturas, boas e más, justas e injustas, santas e crimino-
sas, sábias e ignorantes; e a todos, igualmente, sem distinções, dá o sol e a chuva, o ar para respirar e
a Terra para habitar, deixando plena liberdade a todos para que escolham seu próprio caminho. Se a
estrada escolhida é errada, não há intervenção divina, nem castigo: o próprio espírito encontrará
pela frente a parede da Lei, onde baterá a cabeça e sofrerá a dor, até que aprenda a descobrir onde
está a porta que lhe permitirá sair do embaraço.
Nesta Lei do Amor Total sem restrições, baseia-se a evolução, que visa à sintonia perfeita com o
Amor-Integral, em atos, palavras e pensamentos. E só a atingiremos, quando tivermos superado todas
as emoções, de tal forma que, se ofendidos, não sintamos nenhum movimento de mágoa. Certa que,
quanto mais evoluído o ser, mais sentimento possui. Mas não se confunda sentimento com emoção: o
primeiro é do Espírito (individualidade) e jamais se ofende nem magoa, porque é inatingível; o segun-
do é do "espírito", do corpo astral (animal) e vibra na personalidade. Então, todas as desculpas de
"brio", de "amor-próprio", de "honra" ou "honorabilidade", de títulos e posições hierárquicas e nobi-
árquicas, são ilusões que precisamos abolir totalmente, superar integralmente, e nem sequer senti-las.
Enquanto experimentarmos qualquer movimento íntimo nesse sentido, é porque não saímos da perso-
nalidade, não estamos "no ponto": lutemos para conseguir dominar essas emoções, que são sempre
inferiores.
Traçado está, pois, o caminho que leva à perfeição: amar os inimigos, mas amá-los realmente, e não
apenas de boca; fazer bem aos que nos odeiam, mas beneficiá-los de fato, com preces sinceras; aben-
çoar os que nos amaldiçoam, mas abençoar do fundo do coração, reconhecendo o bem que nos fazem,
quando nos causam sofrimento e, portanto, quando nos ajudam a queimar e resgatar nossos carmas;
orar pelos que nos difamam, pedindo ao Pai que lhes proporcione paz e felicidade, em quantidade e
intensidade maiores que a que nos forem doadas pessoalmente a nós mesmos. E assim, com ilimitada
generosidade, emprestar, se o pudermos, embora sabendo que não receberemos ressarcimento; sau-
dando a todos cortesmente, ainda que não recebamos resposta, ou mesmo ouçamos desaforos,. mas
continuar delicadamente saudando a todos com respeito e humildade.
Só assim, diz Lucas, seremos "filhos do Altíssimo", isto é, nos assemelharemos ao Pai, pela bondade e
pela misericórdia.
A conclusão "sede misericordiosos como o Pai" explica o "sede perfeitos como o Pai"; de fato, a per-
feição do Pai, que podemos imitar, reside apenas em suas qualidades que estão ao nosso alcance: O
AMOR-MISERICÓRDIA e também a HUMILDADE. Essas, podemos vivê-las com perfeição, quando
soubermos renunciar à nossa personalidade, negar nosso eu pequeno, e viver de modo absoluto na
individualidade, no Espírito, unificados com a Centelha Divina, que é nosso EU real e profundo.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

A MODÉSTIA
Mat. 6:1-4
1. Prestai atenção: não façais vossas boas obras diante dos homens, para serdes vistos
por eles; senão não tereis recompensa junto de vosso Pai que está nos céus.
2. Quando, pois, deres esmola, não faças tocar a trombeta diante de ti, COMO fazem os
hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem honrados pelos homens; em verdade
vos digo: já receberam sua recompensa.
3. Tu, porém, quando deres esmola, não saiba tua mão esquerda o que faz tua direita,
4. para que tua esmola fique no secreto, e teu Pai, que vê no secreto, te retribuirá.

Vem a seguir a orientação a respeito da modéstia, da humildade, instruindo-nos o Mestre a agir sem
propaganda, sem alarde de nossos atos, mas antes, a manter ocultas as boas obras, de tal maneira que
nem os mais íntimos delas tomem conhecimento: "não saiba a mão esquerda o que faz a direita" - lin-
díssima imagem literária, totalmente original.
Receber a recompensa é, segundo o verbo empregado (apéchousin tòn misthon autõn), ter em mãos o
"recibo".
Parece haver certa discordância entre este ensinamento e o dado acima (Mat. 5:16): "brilhe vossa luz
diante dos homens, para que vejam vossas boas obras e glorifiquem vosso Pai celestial". Mas é bem
fácil compreender-se: façam-se as boas obras sem cogitar de propaganda; por si mesmas elas brilharão.
Não é possível esconder uma luz. Silenciosamente levanta-se o sol todos os dias, sem que precise fazer
autopropaganda todos os vêem. Assim devem agir os cristãos: não mostrar-se nem propalar o que fa-
zem; mas FAZER, porque assim a luz brilhará por si mesma.
A esmola, que exprime a compaixão, deve ser sigilosamente manifestada, conhecida apenas do Pai que
habita em nosso íntimo mais secreto, no coração do homem. A esmola é escolhida como exemplo típi-
co, porque publicar um benefício prestado a alguém que esteja necessitado, é envergonhá-lo; e não
temos o direito de diminuir moralmente nosso irmão.

Mais profunda é a lição para a individualidade. Tudo o que fizermos, deve ser realizado internamente,
e não na personalidade, para que outras personalidades tomem conhecimento e elogiem.
De fato, o eu pequeno, vaidoso e egoísta, está sempre suspirando por aplausos e louvores, o que lhe
alimenta o convencimento e o incha de vento, embora, na costumeira falsa modéstia, se recusem e
neguem os elogios "com a boca"; mas o corpo emocional (animal) vibra de felicidade.
Quem vive no Espírito não busca esses aplausos que nada valem; e os elogios procurados pelo eu
pequeno e vaidoso já lhe constitui a recompensa: tanto a ação, quanto seu resultado, morrem no âm-
bito da personalidade, não alcançando a profundidade do Espírito, e portanto não constituindo de-
graus para a subida.
Não resta dúvida de que, na Terra, a individualidade só pode agir através da personalidade. Mas tudo
é feito com simplicidade, de modo natural e espontâneo. Nada com movimentos estudados nem calcu-
lados, para que tenham testemunhas. E o que se faz aqui, não se conta mais além numa propaganda
sub-reptícia, com a costumeira introdução: "não é para se gabar, mas ...".

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C. TORRES PASTORINO
Todavia, não se trata apenas da parte externa. Também intimamente o ser evoluído SABE que a per-
sonalidade de per si NADA PODE, e tudo o que realiza provém do Cristo Interno, que o vivifica e
sustenta, e que é a fonte inesgotável de todo o bem.
Então, tudo é feito com REAL e não com aparente modéstia.
Na última frase está a chave que explica tudo isso: que nossas ações fiquem "no SECRETO", isto é, no
coração, no Espírito, na Individualidade. Depois é citada a razão, o motivo, a explicação que confir-
ma todas as nossas afirmativas até aqui apresentadas desde o início de nossos comentários evangéli-
cos: "o Pai que vê no secreto", fórmula que mais tarde (Mat. 6:6 e 18) é dita mais explicitamente: "o
Pai que ESTÁ no secreto".
Ora, é exatamente isto que vimos dizendo desde o inicio: o Pai reside no secreto de nossos corações,
está DENTRO DE NÓS, dentro de todos, dentro de tudo, como muito bem o compreendeu Paulo (cfr.
Ef. 4:6 e I cor. 15:28). A Centelha divina, o Cristo interno, o Pai (Verbo), que se tornou Filho, tem
Sua partícula dentro de nós, e é a Fonte Inesgotável da Vida, da Harmonia, da Beleza e do Amor: o
PAI ESTÁ NO SECRETO, e por isso vê tudo e sabe de tudo, "sabe o de que necessitamos antes de Lho
pedirmos", e por isso, quando oramos, devemos "entrar em nosso quarto", isto é, em nosso secreto, em
nosso coração, onde está o Pai, e aí conversar com Ele.
A humanidade até hoje, ainda não encontrou o caminho para Deus, porque o busca fora de si, num
céu geográfico distante, ao invés de seguir o rumo certo, procurando-O dentro de si, "no secreto",
onde Ele realmente se encontra em Sua totalidade metafísica, como o ensinou o próprio Jesus com
uma clareza irretorquível.
Devemos, então, orar "ao Pai que ESTÁ no secreto"; não "no céu", mas NOS CÉUS, isto é, em nosso
âmago. A oração não deve ser proferida com os olhos levantados para o alto, mas ao contrário, re-
colhidos e baixados para o coração, donde nos provém a Vida, que é Deus.
Quando compreendemos esse segredo, revelado há mais de dois mil anos por Jesus - a criatura que
revelou em Si mesma, mais amplamente a Divindade - chegaremos à Paz Espiritual completa. Porque
TODOS temos em nós o CRISTO, na mesma proporção em que O tinha Jesus. Reside a diferença em
que nós, ao redor da Centelha Crítica, temos uma carapaça de barro, de lama endurecida, que no-Lo
não deixa sentir; ao passo que Jesus, tendo aniquilado totalmente pela humildade a Sua personalida-
de, adelgaçou o barro e o queimou, transformando-o em cristal puríssimo, através de cuja transpa-
rência a humanidade VIU Deus Nele.
Realmente Jesus manifesta Deus em Si plenamente, e por isso com razão é confundido com o próprio
Deus. Mas também nós podemos chegar ao mesmo grau e, mais ainda, DEVEMOS CHEGAR TODOS
à evolução de Jesus, conforme escreveu Paulo (Ef. 4:32): "Até que TODOS à cheguemos ao estado de
Homem Perfeito (individualidade), à medida da estatura (da evolução) de Cristo".

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SABEDORIA DO EVANGELHO

A ORAÇÃO

Mat. 6:5-15 Marc. 11 :25-26 Lc. 11:1-4

5. Quando orardes, não sejais como 26. Quando estiverdes 1. E aconteceu que estava
os hipócritas, que gostam de orar de pé, orando, se (Jesus) orando em certo lu-
de pé nas sinagogas e nas esquinas tendes alguma coisa gar e, quando acabou, um
das praças, para serem vistos pe- contra alguém, per- de seus discípulos disse-lhe:
los homens; em verdade vos digo, doai-lha; para que "Senhor, ensina-nos a orar
já receberam sua recompensa. também vosso Pai como João ensinou a seus
que está nos céus. discípulos".
6. Tu, porém, quando orares, entra
vos perdoe vossas
em teu quarto e, fechada a porta, 2. Ele lhes respondeu: quando
ofensas.
ora a teu Pai que está no secreto; e orardes, dizei: Pai, santifi-
teu Pai que vê no secreto te retri- 27. Mas se não perdoar- cado seja teu Nome; venha
buirá (na luz plena). des, também vosso teu reino;
Pai que está nos céus
7. Quando orais, não useis de repeti- 3. o pão nosso sobressubstan-
não vos perdoará
ções inúteis como os gentios, pen- cial dá-nos diariamente;
vossas ofensas.
sam que pelas muitas palavras se- 4. e perdoa-nos nossos erros,
rão ouvidos. porque também perdoamos
8. Não sejais como eles, porque vosso a todo aquele que nos deve;
Pai sabe o que vos é necessário an- e não nos entregues à ten-
tes que lho peçais. tação".
9. Portanto, orai vós deste modo:
"Nosso Pai, que estás nos céus;
santificado seja teu Nome;
10. venha o teu reino; seja feita tua
vontade, como no céu, assim na
terra;
11. o pão nosso sobressubstancial dá-
nos hoje;
12. e perdoa-nos nossas dívidas assim
como nós já perdoamos aos nossos
devedores;
13. e não nos induzas em tentação,
mas liberta-nos do mal".
14. Porque se perdoardes aos homens
as suas ofensas, também vosso Pai
celestial vos perdoará;
15. Mas se não perdoardes aos ho-
mens as suas ofensas, tampouco
vosso Pai celestial perdoará vossas
ofensas.

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C. TORRES PASTORINO
São as mais perfeitas instruções que, neste trecho, recebemos a respeito da prece, seguindo-se-lhes o
modelo ditado por Jesus.
Antes dele, todavia, são dadas as atitudes a assumir. No contato com o Pai, deve evitar-se qualquer
intromissão de outras criaturas: nada de assumir posições especiais, nem de fazê-la em público para ser
admirado e louvado pelos homens.
Assim, é condenada a posição ostensiva, de ficar de pé (hestãtes) nas sinagogas (isto é, nos locais de
oração) e nas praças públicas (referência ao hábito de orar em horas prefixadas, onde quer que se este-
ja, e que era prescrito aos israelitas, como ainda hoje aos muçulmanos).
A essa publicidade, Jesus opõe o segredo de entrar no quarto (eis tò tameiõn, que era o "quarto de
guardados", jamais frequentado por pessoas estranhas); e além disso trancar a porta, para que ninguém
presencie o contato íntimo com o Pai. Exemplo frequente disso deu-nos o Mestre, relatado pelos evan-
gelistas: "retirou-se sozinho ao monte para orar". Lucas aproveita uma dessas situações, dizendo que,
após ter Jesus orado "em certo lugar", os discípulos Dele se aproximaram pedindo-Lhe lhes ensinasse a
orar, como João o fizera. Essa solicitação esclarece que Jesus orava sempre retirado e só, tanto que os
discípulos não sabiam como fazer suas preces.
Outros ensinos ainda são trazidos: não repetir muitas palavras, falando muito "como os gentios, que
pensam que, pela muita repetição é que são ouvidos". Portanto, condenação absoluta de repetir 10, 50
ou 150 vezes as mesmas fórmulas, o que acaba provocando a mecanização de sons, sem que haja inter-
ferência do sentimento quanto ao sentido das palavras.
Diz-nos mais, que não adianta PEDIR coisas ao Pai, pois Ele sabe mais e melhor que nós o de que ne-
cessitamos: habitando DENTRO DE NÓS, em nosso coração, Ele vê e sabe de tudo; inútil, além de
ridículo se torna" querer ensinar a Deus aquilo que deve Ele dar-nos ...
Vem, então, a fórmula perfeita, que passamos a analisar.

ANÁLISE DO "PAI NOSSO"


Nessa prece Jesus criou admirável síntese das fórmulas empregadas nas preces judaicas, escoimando-
as apenas do exagerado nacionalismo e materialismo, dando-lhes sentidos espirituais profundos, que
veremos adiante. Mas as expressões ensinadas são lidimamente judaicas, pois Jesus nascera e se filiara
à religião mosaica, nela vivendo e morrendo, sem jamais ter tido a menor idéia de fundar nova religião.
Portanto, o "Pai nosso" é uma prece totalmente israelita, repetindo fielmente a piedade judaica.
Provemos nossas assertivas, que poderão ser verificadas com facilidade (cfr. Strack e Billeberck, o.c.,
pág. 410 a 422).
1) A primeira invocação pertence à oração, dos rabinos: "Nosso Pai, que estás nos céus, que teu nome
seja louvado por rodas as eternidades"; e "Nosso Pai, que estás nos céus, fazei-nos misericórdia
pelo amor de teu grande nome, que é invocado por nós".
2) a segunda frase é encontrada no Qaddich, oração diária dos judeus: "seja exaltado e santificado teu
grande nome".
3) "Venha a nós teu reino" é frase frequente nas jaculatórias dos rabinos: "que o reino de Deus se ma-
nifeste ou apareça (Targum de Miquéias, 4:8) e "reina sobre nós Tu só" (Chêmonê-esrê, 11).
4) Rabbi Eliézer dizia: "Fazei tua vontade no céu, no alto, e dá tranquila coragem aos que te temem na
Terra, e fazem o teus olhos".
5) "Não me dês pobreza nem riqueza: dá-me o pão necessário", lemos em Provérbios, 30:8; e o Tar-
gum parafraseia: "dá-me o pão que me baste".
6) "Perdoa-nos, nosso Pai, porque pecamos contra ti", está na sexta bênção do Chêmonê-esrê e tam-
bém em Abina Malkênu, de que Rabbi Aqiba diz o início: "nosso Pai, nosso Rei, perdoa e resgata
todas as nossas faltas.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

7) "Perdoa ao próximo sua injustiça, e então, se orares, teus erros serão perdoados", lemos em Eclesi-
ástico, 28:2.
8) Na oração da noite há: "não nos conduzas ao poder do erro, nem ao poder da tentação, nem ao po-
der da traição".
9) E nos Berakkot se encontra: seja feita tua vontade, YHWH, nosso Deus e nosso Pai, salva-nos (...)
do homem mau, do mau encontro, da força má, do mau companheiro, do mau vizinho, do adversá-
rio corruptor, do julgamento rigoroso, dos maus adversários no tribunal".

DIVISÃO DO "PAI NOSSO"


O "Pai nosso" consta de uma invocação, seguida de três pedidos espirituais e de quatro solicitações a
respeito das necessidades do homem na matéria.
INVOCAÇÃO - Jesus não manda dirigir-nos a Deus como Criador, nem como Rei, nem como Deus,
mas como PAI; e mesmo assim, Pai de todas as criaturas. Pai é a mais carinhosa atribuição divina, já
usada diariamente na época de Jesus pelos israelitas, como vemos várias vezes repetida na oração
Chêmonê-esrê ou Tephillah, sobretudo nas bênçãos. E de tal forma Pai, que Jesus adverte: "a ninguém
chameis de pai, na Terra, a não ser vosso Pai que está nos céus" (Mat. 23:9).
Logicamente, quando uma pessoa orar sozinha, dirá "meu Pai", e não "nosso", fórmula reservada às
preces em grupo.
A expressão "que estás nos céus" (beshamaim) era também usual como sequência da invocação. Re-
cordemos que shamaim em hebraico e "ouranós" em grego expressam a atmosfera que envolve a Ter-
ra, e não, jamais, um lugar geográfico específico. Para dar idéia precisa dessas palavras (já que "céus"
foi semanticamente alterado em seu sentido etimológico), deveríamos dizer: "nosso Pai que estás no ar
que nos circunda, impregna e vivifica pela respiração" (cfr."visto ele mesmo dar a todos vida respira-
ção e todas as coisas", At. 17:25).
1.ª PETIÇÃO - Seja santificado Teu nome". O “nome” é usado como expressão da essência, como a
manifestação externa da substância última. Refere-se, pois, o pedido ao mundo, e mais particularmente
às criaturas que, sendo a manifestação divina, em nosso globo, expressam Seu nome. A petição, por-
tanto, revela o voto de que todas as criaturas se santifiquem (se tornem sadias moral e fisicamente),
para que o nome de nosso Pai seja santificado em nós: assim como um filho diria a seu pai: "que possa
eu honrar, com meu comportamento, o teu nome usado por mim". Com efeito, sendo nós filhos de
Deus, trazemos em nós Seu nome e, santificando-nos o santificamos. Dizia Gregório de Nissa que,
com as boas obras, levamos os homens a glorificar a Deus (Patrol. Graeca, 44. 1153).
2.ª PETIÇÃO - "Venha o Teu reino". Exprime o desejo ardente de que o mundo se coloque sob o rei-
nado do Pai - Espírito - e não de satanás, a matéria. Que as criaturas se submetam ao Pai, que sabe go-
vernar Sua casa com justiça, misericórdia e amor. Alguns Pais da igreja atribuíam a esse pedido o ca-
racter escatológico, como Tertuliano (Patrol. Lat. 1, 1158-1159), Cipriano (Patrol. Lat. 4,527 ss) e
Agostinho (Patrol. Lat. 47, 1118).
3.ª PETIÇÃO - "Seja feita Tua vontade na Terra, como é ela feita nos céus”. Esta petição falta em Lu-
cas. Manifesta a aspiração firme de que saibamos conformar-nos à vontade do Pai, obedecendo-lhe às
ordens (que são as circunstâncias que surgem sem nossa interferência na vida) com amor, ao invés de
pretender fazer prevalecer nossa vontade pequena, caprichosa e, sobretudo, ignorante de nossa verda-
deira vantagem no que nos concerne.
4.ª PETIÇÃO - "Dá-nos hoje o pão sobressubstancial". Esse vocábulo, hápax absoluto do "Pai nosso
(epioúsion) foi traduzido pela Vulgata como “cotidiano" ou "de cada dia” (epi tèn oúsan hêméran),
seguindo a opinião de João Crisóstomo (Patrol. Graeca, 67, 280). Na interpretação de Orígenes signi-
ficava o "pão para a subsistência" (epì ousía, Patrol, Graeca, 11, 475). Jerônimo (Patrol. Lat. 26,43)
fala: "dá-nos hoje o pão de amanhã"; mas essa interpretação seria contrária ao ensino de Jesus: "não
vos preocupeis com o manhã” (Mat. 6:34). No entanto, nesse mesmo local citado, Jerônimo interpreta

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o pedido como "o pão espiritual", de acordo também com Orígenes (ibidem), Cipriano (Patrol. Lat. 4,
531-533) e Agostinho (Patrol. Lat. 38, 381 e 289-390).
5.ª PETIÇÃO - "Perdoa nossas dívidas, assim como já perdoamos aos nossos devedores", é a condição
sine qua, salientada expressamente por Jesus, depois de ensinar a orar (versículo 14-15). Se não sou-
bermos perdoar, não poderemos jamais ser perdoados. Nossa tradução, "como JÁ perdoamos" foi feita
para corresponder mais exatamente ao original aphékamen (segunda forma de aoristo 2.º apheíme)
cujo tempo supõe a ação já realizada. Esse mesmo ensino voltará exemplificado na parábola do servo
sem compaixão (Mat.18:23-35).
Após a prece, Jesus volta a insistir no sexto pedido, referente às emoções, salientando a importância do
perdão. Essa repetição explicativa na sublime lição da prece vem esclarecer que a condição do perdão
é INDISPENSÁVEL à libertação do Espírito. As frases são repetidas em Mateus e Lucas; e Marcos, de
toda a lição, fixou apenas esse ensinamento, como resumo básico para nosso aprendizado. Assim como
se quisesse dizer que, se soubermos perdoar realmente, nada mais é preciso fazer; pois fazendo as pa-
zes com os outros, podemos conseguir a paz de Deus.
6.ª PETIÇÃO - "Não nos induzas em tentação". O conjuntivo aoristo segundo, eisenégkêis (de eis-
phérô) tem o sentido de "conduzir para dentro" ou "induzir; e peirasmós é a prova, o exame, a experi-
mentação. Pedido de socorro que fazemos, para que não sejamos colocados em situações perigosas que
nos experimentem as forças, pois tememos sucumbir, já que conhecemos nossas fraquezas. Suplica-
mos, então, à misericórdia do Pai, que nos poupe as experimentações, que talvez nos levem à derrota.
Tentação, pois, não é o "pecado", mas a prova (cfr. Luc. 22:28). Segundo Tiago (1:2) as provações
“são úteis" à evolução. Essa opinião é de que Deus não nos leva ao mal, embora nos submeta à prova
(cfr. Tiago 1:13; Agostinho, Patrol. Lat. 38, 390-391 e Hilário, Patrol. Lat. 9, 510).
7.ª PETIÇÃO - "Mas livra-nos do mal". O genitivo grego poneroú tanto pode ser masculino (do mau),
quanto do neutro (do mal). Da interpretação dependerá exclusivamente a escolha de um ou de outro.
Como sequência do versículo anterior que fala em "provações", e como consequência do ensino "não
resistais ao homem mau" (Mat. 5: 39), pode compreender-se "do MAU". Com efeito, desde que não
podemos nem defender-nos, quando um mau nos ataca, ainda que nos mate (tal como o fez Jesus, que
não levantou um dedo em defesa própria quando foi assassinado, dando o exemplo vivo do que ensi-
nou); e como sabemos que não temos ainda capacidade de agir assim, então pedimos que nos salve o
Pai desses encontros com homens maus.

SENTIDO DO "PAI NOSSO"


Ensina-nos a individualidade que a prece deve ser sempre uma aproximação máxima possível entre
nós e nossa origem; e por isso recorda-nos que Deus é O PAI, já que "somos gerados por Deus "(At.
17:28), somos partículas do Grande Foco de Luz Incriada. Nessas condições, quando nos dirigimos a
esse Pai, "que reside no secreto" de nós mesmos, devemos voltar-nos e mergulhar nesse secreto (en-
trar em nosso quarto) e além disso "trancar as portas" de nossos sentidos, isolando-nos de tudo
quanto é externo e material. Isolar-nos inclusive e sobretudo de nosso próprio eu pequeno, de nossa
personalidade, para que o contato seja o mais lídimo possível.
Nossas primeiras palavras devem constituir um apelo que nos recorde nossa filiação divina, confes-
sando-nos FILHOS no real sentido, mais real ainda do que a simples e transitória filiação humana do
corpo físico. Adverte-nos então que a filiação terrena não é propriamente uma filiação (cfr. Mat.
23:9). De Deus é a verdadeira paternidade, porque Ele é a origem de nosso Espírito de nosso verda-
deiro EU profundo, a Centelha divina e eterna. Só a Ele devemos dirigir nossas preces: Jesus jamais
ensina que nos dirijamos a intermediários, mas sim diretamente ao Pai que habita DENTRO DE NÓS,
no secreto de nossos corações.
Isso mesmo exprime a cláusula apositiva "que estás nos céus". Os céus que exprimem o "reino que
está dentro de nós" (cfr. Luc. 17:21) levam nosso pensamento ao coração; o Pai, que está nos céus,
está então no reino dos céus, que está dentro de nós. A consequência é lógica e irrefutável: nosso Pai

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SABEDORIA DO EVANGELHO

que estás em nosso coração, nesse reino dos céus que ansiosamente buscamos, como mendigos do
Espírito.
E continuamos, fazendo três petições referentes à individualidade:
1 - "Seja santificado Teu nome". Sendo nós a manifestação externa de nossa essência profunda, cons-
tituída pela Centelha divina pedimos que seja santificada nossa personalidade, exteriorização de
Deus. Que nossa parte transitória - que no planeta manifesta Deus, se torne "sadia e sábia". E, por
isso, que nem nos atos, nem nas palavras, nem mesmo nos pensamentos, deixemos jamais de ver em
todos, em tudo e em toda parte, a manifestação do Nome de Deus. Pois todos e tudo exprimem esse
Nome santo, embora exteriorizado com defeitos, por deficiência dos canais que O manifestam. Que
tudo se harmonize sitonicamente com a Santidade divina, que todos, inclusive nós e nossos veículos, se
santifiquem ao contato com a Centelha Divina. Tudo o que conhecemos, que vemos, e que existe é
constituído pela mesma e única essência profunda íntima de Deus, que sustenta tudo com Seu ser.
2 - A segunda petição para a individualidade ou Espírito é "venha o Teu reino" . Trata-se da expres-
são mais ardente do contato íntimo com a Centelha divina, com Deus através de nosso Cristo Interno,
a fim de que mergulhemos na Consciência Cósmica, tornando-nos UM com O TODO, UM com o PAI.
"O reino de Deus (ou dos céus) está dentro de vós": "que Teu reino venha", que nós o encontramos o
mais depressa possível, que nos unifiquemos ao Pai no prazo mais curto e da maneira mais íntima,
numa unificação total e definitiva.
3 - A última das petições referentes à individualidade refere-se ao desejo real de que o Espírito siga a
Vontade do Cristo Interno, e não a vontade da personalidade. De fato, o Espírito se encontra entre
dois pólos opostos, antagônicos: o pólo superior influi o Espírito para sua evolução, induzindo-nos às
ações superiores de fidelidade e gratidão, de bondade e amor; o pólo inferior puxa-o para o materia-
lismo do "anti-sistema" (Ubaldi), impelindo-o à infidelidade, à ingratidão, aos prazeres e gozos ego-
ístas. Nessa situação contraditória, o Espírito é batido de um lado e de outro, internamente tendendo
ao bem, e externamente tentado pelo mal; pelo Cristo Interno convidado a subir, por satanás arrasta-
do ao abismo: perene luta entre Sistema e Anti-sistema, entre espírito e matéria, entre positivo e ne-
gativo, entre bem e mal, entre sabedoria e ignorância, entre egoísmo e amor.
Todos somos testemunhas e atores nessas lutas titânicas que nos envolvem a todos. E muitos se esfor-
çam e sofrem nesse árduo combate, procurando fazer a vontade divina com sacrifícios inauditos. Ora,
o pedido salienta a necessidade de o Espírito fazer espontânea e naturalmente a vontade do Pai, que
se manifesta através de Sua Partícula em nós, o Cristo Interno, que constitui nosso EU Profundo, e
que sempre nos chega ao eu pequeno através da voz silenciosa de nossa consciência. Isso, exatamente,
está expresso com clareza na fórmula: "seja feita Tua vontade na Terra (na personalidade) assim
como nos céus (na individualidade)". O que mais uma vez comprova que o "estás nos céus" significa,
"que estás em nosso íntimo, dentro de nós, em nosso coração", isto é, na individualidade.
São, portanto, três pedidos referentes à individualidade (ou triângulo superior): o primeiro relativo à
Centelha Divina, logo após a invocação: "Seja santificado o Teu nome"; o segundo relativo à mente
chamada "abstrata", que deseja a união integral: "venha o Teu reino"; o terceiro dizendo respeito ao
Espírito, que engloba as três manifestações: "seja feita Tua vontade".
São-nos apresentados a seguir quatro pedidos que se referem à personalidade, (ou quaternário inferi-
or) isto é ao "espírito" encarnado provisoriamente.
1 - O primeiro, "dá-nos hoje o pão supersubstancial", refere-se ao intelecto, e solicita o pão, isto é, o
alimento do "espírito", que é o conhecimento da Espiritualidade, a Sabedoria, Salienta bem Jesus que
se trata do pão "supersubstancial" ou "sobresubstancial", ou seja, em nossa interpretação, o alimento
do contato com o Eu Superior. Nenhum maior nem melhor alimento para nós, do que mergulhar na
Consciência Cósmica, onde encontramos todo o conhecimento, por meio de visões intuitivas, que nos
esclarecem totalmente sobre a Verdade, que é Deus. Não se trata de um conhecimento livresco e ex-
terno de um aprendizado racional e discursivo; mas de conquistas instantâneas, que chegam de dentro
de nós mesmos, como respostas seguras a todas as dúvidas, como lições maravilhosas que obtemos,
por contato com o Infinito, fora do espaço, e com a Eternidade, fora do tempo. Só pelo Esponsalício

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C. TORRES PASTORINO
Místico da Unificação conseguiremos crescer, infinitizando-nos e mudar de dimensão, saindo da li-
mitação do finito das formas para o ilimitado do infinito; das trevas para a luz, do frio congelado
para o Foco Incriado, da divisão para a união, do anti-sistema para o Sistema, do egoísmo para o
amor total.
2 - A segunda solicitação para a personalidade é a que cuida do corpo de emoções (astral ou animal),
dizendo: “perdoa nossas dívidas (cármicas) assim como já perdoamos aos nossos devedores".
O corpo emocional é o responsável pelo carma, já que ele vibra no terceiro plano, o que está sujeito à
Lei da Justiça. Portanto, é em referência ao corpo emocional que pedimos o perdão, o resgate dos
débitos contraídos por nossas emoções descontroladas em todos os campos, pelos desejos que nos
causam as dores. Mas a condição indispensável para nossa libertação é não termos outros devedores
presos a nós pela nossa exigência de pagamento. Quando tivermos perdoado (libertado) todos aqueles
que nos devem, por qualquer motivo, então poderemos pedir que o Pai também nos liberte de nossos
próprios erros do passado.
3 - Lembramo-nos, depois, do duplo etérico, das sensações, no terceiro pedido, solicitando que o Pai,
que está dentro de nós, "não nos induza às provações". Isto porque, dado o olvido total que ocorre na
reencarnação, perdemos o contato com o passado e as provações nos aparecem como novidades que
nos apavoram, pois podemos fracassar por ignorância. Não estando em contato com o Mundo Espi-
ritual, donde proviemos, surgem-nos as experimentações a que estamos sujeitos neste pólo negativo
em que nos achamos, com o emborcamento da realidade, Então, a transitoriedade da riqueza nós a
vemos como garantia de segurança; a ilusão da posse é considerada qual valor de realidade; a menti-
ra do prazer engana-nos com alegrias que amanhã se transformarão em sofrimentos; mas nada disso
percebemos. Por isso as provações ou tentações de riqueza, de posse, de prazer são, em vista de nossa
opacidade visual, inversões da realidade da Vida. Pedimos, pois, ao Pai não nos induza a essas pro-
vações, colocando-nos em posição de poder cair por causa de nossa cegueira temporária. Melhor a
pobreza, o trabalho e a dificuldade, que são os maiores incentivos ao progresso do "espírito".
4 - O quarto e último pedido "liberta-nos do mal" refere-se ao corpo denso, isto é, à matéria. Aqui
interpretamos MAL (e não mau), por causa da simbologia que, entre os hebreus, denominava a maté-
ria de "satanás" ou “diabo", isto é, o opositor, o adversário do espírito. Para esta interpretação mais
profunda, o sentido preferível é este: liberta-nos da matéria, isto é, do ciclo reencarnatório que nos
obriga a voltar periodicamente ao planeta, prendendo-nos já há tantos milênios ao cadáver de carne
que nos cerceia os vôos do Espírito, a este escafandro que nos mantém colados ao chão da Terra sob
o oceano atmosférico.
Apelo dramático que nós, os encarnados, gritamos aflitos ao Pai que está dentro de nós: "liberta-nos
da matéria, do mal aonde mergulhamos por nosso egoísmo divisionista, do abismo em que caímos por
nossa rebeldia orgulhosa".
Eis, então, reduzida a seus termos reais e belíssimos, a prece mais concisa e perfeita, que deve ser
proferida com o coração, meditando em cada um dos pedidos, sem que haja mister repeti-la mais de
uma vez em cada caso.
Não nos esqueçamos das palavras taxativas de Jesus: assim deveis orar.
Mais que um ensino, é uma ordem. Aprendamos a obedecer a Quem sabe mais do que nós, conquis-
tando a felicidade, afastando-nos da materialidade deprimente e alçando-nos às altitudes do Espírito
que se unifica ao Pai.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

O JEJUM
Mat. 6.16-18
16. Quando jejuardes não tomeis um ar triste como os hipócritas; porque eles desfiguram
os rostos, para mostrar aos homens que estão jejuando; em verdade vos digo, que já
receberam sua recompensa.
17. Tu, porém, quando jejuas, unge a cabeça e lava o rosto
18. para não mostrar aos homens que jejuas, mas somente a teu Pai que está na secreto; e
teu Pai que vê no secreto, te retribuirá.

Os ensinamentos continuam no mesmo tom sintético de oposição entre o que costumava praticar-se
naquela época pelos supostos "modelos" de virtude, e o que Jesus pregava a seus discípulos.
Os jejuns eram frequentes entre os israelitas, quer quando prescritos pela lei mosaica, quer por devo-
ção. Em qualquer deles, fazia-se questão de mostrar a todos que se jejuava, apresentando um rosto
sujo, com expressão de sofrimento; o cabelo e a barba embaraçados, sem pentear; o ar sombrio (sku-
thrôpoí, isto é, "de olhos tristes"). Realmente, o jejum judaico incluía a penitência, tanto que se deno-
minava sôm e ta'anith, ou seja, "aflição". Mas se tornava mais uma exibição que realmente uma peni-
tência.
A esse estado de coisas, Jesus opõe o disfarce: esconder a todos que se faz penitência: que lavassem o
rosto, se penteassem e perfumassem os cabelos (Luc.7:44-46), para que ninguém soubesse que seus
discípulos jejuavam, mas a penitência só fosse conhecida do "Pai que está no secreto".
Entretanto, Jesus não aconselhou a seus discípulos que jejuassem, e até foi acusado por isso (cfr. Mat.
9:14).

Para a individualidade valem muito esses conselhos: não tanto pelo jejum como abstenção de ali-
mentos, mas para todo e qualquer sofrimento.
Bem sabemos que não é o fato de abster-se deste ou daquele alimento, que nos trará evolução espiri-
tual. Mas há jejuns que todos somos levados a realizar por necessidades passageiras. Quantas vezes a
individualidade vê que sua personalidade é obrigada a abster-se, quer de alimentos, quer de vestuário
adequado, quer de distrações, quer de quaisquer outros dos chamados "prazeres", mesmo legítimos.
Em quaisquer dessas hipóteses, nada deve transparecer na fisionomia que denote nosso sofrimento
íntimo. Se algo nos falta, saibamos disfarçar e suportar essa carência como se tudo estivesse normal:
ninguém tem nada que ver com a nossa vida.
Mesmo não havendo necessidade de cortar nada que agrade para "mortificar-se", depois que conse-
guimos "ter conosco o Esposo" divino pelo Encontro Místico - pois o Esponsalício Espiritual deve
dar-nos a alegria permanente - é por vezes imprescindível privar-nos, por causa das circunstâncias,
de coisas agradáveis.
E há outras coisas que amamos e que com frequência nos vêm a faltar; ainda assim, nenhuma mani-
festação externa de dor deve ser permitida à personalidade, como por exemplo, a exibição, ainda hoje
comum, de vestir de preto ("pôr luto"), quando uma pessoa querida passa a uma vida melhor. Que tem
os outros que ver com a nossa dor? Só o Pai, que habita no secreto, deve ser testemunha muda de nos-
sos sentimentos .

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OS TESOUROS

Mat. 6: 19-24 Luc. 12:32-34

19. Não ajunteis para vós tesouros na terra, 31. Não temas pequeno rebanho, porque é do
onde a traça e a ferrugem os consomem e agrado de vosso Pai dar-vos o reino.
onde os ladrões penetram e roubam, 32. Vendei o que possuis, e dai esmolas; fazei
20. mas ajuntai para vós tesouros no céu onde para vós bolsas que não envelheçam, um te-
nem a traça nem a ferrugem os consomem, souro inexaurível nos céus, onde o ladrão
e onde os ladrões não penetram nem rou- não chega e a traça não rói,
bam, 33. porque onde está vosso tesouro, também
21. porque onde está o teu tesouro, aí estará estará vosso coração.
também o teu coração.
22. A lâmpada do corpo são os olhos; se pois
estes forem sãos, todo o teu corpo será lu-
minoso,
23. mas se teus olhos forem doentes, todo o teu
corpo será tenebroso. Se, pois, a luz que há
em ti são trevas, quão grandes são essas tre-
vas!
24. Ninguém pode servir a dois senhores, pois
ou há de aborrecer a um e amar o outro, ou
há de unir-se a um e desprezar o outro: não
podeis servir a Deus e às riquezas.

Neste trecho, recomenda-nos Jesus o desprendimento ou desapego das riquezas. Que valem elas aqui,
no planeta, onde podem ser perdidas por ação das traças, da ferrugem ou dos ladrões? Aconselha-nos
antes a ajuntar tesouros espirituais de conhecimento e obras meritórias, que jamais se perdem. Tapetes
no chão ou nas paredes roupas caras nos armários, jarros de louça e aparelhos de cristal, quadros céle-
bres, adegas de vinho e despensas com largas provisões, dinheiro nos bancos e jóias nas caixas-fortes,
tudo isso, além de perecível, deve ser aqui deixado quando abandonarmos o corpo físico. Mas o que, é
conquista do Espírito, isso acompanha-nos para além do mundo da matéria, e jamais o perdemos.
A fórmula axiomática "onde está teu tesouro, aí estará teu coração” esclarece a razão de todo o ensi-
namento. O essencial não é NÃO TER, e sim NÃO APEGAR-SE, não prender o pensamento (cuja
sede reside no coração) a essas coisas externas e transitórias.
Depois aparece um ensinamento em forma de comparação. Na realidade, só conseguimos ter luz se os
olhos forem sadios. Então parece, e nos vemos, todos luminosos, pois distinguimos os objetos, suas
formas e cores. Mas se os olhos adoecerem, isto é, cegarem, todo o corpo parece nadar em densas tre-
vas, que custamos a romper, tateando com as mãos à frente. E termina com um enigma: "se a luz que
há em ti são trevas, quão grandes são essas trevas" . Como pode a luz ser trevas?
As frases referem-se ao ensinamento anterior e o comentam, deixando-se ao leitor a tarefa de compre-
endê-las. Realmente, o coração (o pensamento) pode apegar-se a riquezas materiais ou aos bens espi-
rituais, tal como ocorre com os olhos, cujo primordial papel é servir de lâmpada para o corpo. Se os

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SABEDORIA DO EVANGELHO

olhos forem sadios (haplõus), isto é, sem defeito, simples, sem crostras e "sem apegos" nem cobiças,
então sua tarefa de iluminar desenvolve-se perfeitamente. Mas se esses olhos, que "são a luz do corpo"
começam a criar agregações externas (quase películas de catarata), pela ambição e cobiça, eles come-
çam a ficar velados e, portanto, doentes ou maus (ponêrós) e então enxergam tudo torto, as perspecti-
vas ficam distorcidas e falsas. Daí compreender-se que o olho "mau" ou doente prejudica todo o ser.
Essa interpretação leva-nos um passo adiante: é pelos olhos que nasce, geralmente, o sentimento baixo
e indigno da inveja, que lança raios mortíferos sobre as coisas e sobre as criaturas que as possuem.
Essa má qualidade envenena o espírito de quem a sente, e sobretudo de quem a alimenta; e os fluídos
lançados pelos olhos ("mau olhado") fazem definhar tudo o que foi atingido; mas, em primeiro lugar,
faz definhar a própria criatura que os lançou, porque, antes de atingir a aura dos outros os fluídos atin-
gem a própria aura da pessoa que os lança.
E Jesus termina declarando peremptoriamente que "ninguém pode servir a dois senhores": a Deus, de-
dicando-se ao espiritualismo, e às riquezas.
A palavra usada, e bastante conhecida, mamon (grego mamônas, proveniente do aramaico mamônâ)
pertence ao hebraico mais recente do Eclesiástico (31:8) e do Talmud. Deriva do verbo âman, que si-
gnifica "confiar” ou "depositar" (cfr. Dalman, Gramática, pág. 170, na nota).
Realmente, o espiritualismo olha as posses como ilusões transitórias, ao passo que o materialismo as
considera como as únicas realidades objetivas e palpáveis. Então, não há conciliação possível entre os
dois: ou a criatura se apega a um, ou ao outro, pois os dois pólos se repelem mutuamente. O que não
impede que o espiritualista conserve seus bens materiais e os administre, desde que os considere como
são de fato: empréstimos temporários que lhe foram confiados para gerir, mas sem que seu coração se
lhes apegue.
Em Lucas aparecem dois conceitos novos: um, assegurando ao "pequeno rebanho" - frase de grande
poesia e de profundo carinho - que o Pai tem prazer, e até quer de boa-vontade (eudókêsen, de eu,
"bem" e déchomai, "querer") dar-lhes o "reino dos céus", ou seja, o Encontro Consigo.
Temos, então, o conselho de vender o que possuímos (tà hupárchonta, de hupárchô, "existo", "sou") e
dar esmolas, ou fazer misericórdia, no sentido de ter tal desapego, que nos não incomodemos em des-
fazer-nos do que é nosso, caso outros necessitem; é a generosidade e a liberalidade com tudo o que
temos, inclusive com os nossos veículos inferiores, com sacrifício de nossa personalidade.
Esses conceitos de Lucas serão repisados em outros passos, fixando e determinando a doutrina de
Jesus quanto ao desprendimento.

Para o Espírito, esta é uma lição preciosa. Nada de apegos ao que a personalidade transitória con-
quistou no planeta, depois que aqui chegou, pois tudo lhe será tirado inexoravelmente. Ou se gasta
com o tempo, ou se consome pela velhice, ou nos é roubado pela "morte". Para que, então, lixar o
coração em coisas que teremos que abandonar forçados, queiramos ou não? Muito melhor manter-
nos desde cedo desapegados, para poder ter o vôo livre para as regiões etéreas. Nada pertence a nin-
guém: tudo nos é emprestado por tempo determinado.
Ouvimos pequena história que esclarece bem o tema. Certo grande fazendeiro norte-americano, após
ouvir um bispo falar sobre o desapego e afirmar "nada é de ninguém", convidou-o a almoçar em sua
fazenda. Antes do repasto levou-o a visitar as imensas propriedades cultivadas. Ao regressar na hora
do aperitivo, indagou do bispo:
- Agora diga-me, senhor bispo, tudo isso não é meu? Foi tudo comprado, pago e construído por
mim ... Não é MEU?
O bispo calmamente bebeu mais um trago do aperitivo e disse:
- Faça-me esta pergunta daqui a cem anos! ...

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C. TORRES PASTORINO
Vemos ainda uma vez, neste trecho comentado, a sabedoria profunda dos ensinamentos de Jesus, que
nos trazem a REALIDADE, afastando-nos da ilusão da posse. Tudo o que é de personalidade - inclu-
sive a própria personalidade de que tanto nos envaidecemos - é passageiro, é tudo ilusão (mayá), é
tudo perecível.
Cabe então ao Espírito desprender-se de tudo. Precisa viver no mundo REAL, embora entre riquezas
terrenas, mas como se as não possuísse, como se DE FATO fossem um empréstimo que ele tivesse por
obrigação gerir cuidadosamente.
Além disso, muito cuidado com o coração: jamais coloquemos nossa felicidade em qualquer objeto
(ou em qualquer pessoa!) fora de nosso EU verdadeiro, porque se assim não agirmos, seremos infeli-
zes. Tudo o que é externo traz dor e sofrimento. Só o Verdadeiro Esposo, o Cristo, pode constituir nos-
sa felicidade plena e permanente.
Então, os olhos, por onde o Espírito vê, enquanto permanece no corpo físico na Terra, devem estar
sempre sadios, sempre SIMPLES, sem apego a coisa alguma no mundo material transitório, a fim de
que não invertamos os valores - coisa tão fácil de ocorrer e tão comum no pólo negativo em que se
encontram mergulhadas nossas personalidades. Uma vez que penetra pelos olhos a imagem, surge o
desejo no coração, e este pode apegar-se e cobiçar o que vê, se for doentio, participando dos vícios da
personalidade insaciável. Mas, se for simples e desapegado, continuará a brilhar a luz límpida do
desprendimento de tudo.
Daí a conclusão: ou a personalidade se apega aos bens terrenos, prendendo a individualidade, de
forma que esta não pode expandir-se; ou a individualidade penetra o Eu Crístico, não dando a menor
importância às posses materiais. Por isso, na história, encontramos com frequência muita falta de
equilíbrio, daqueles que só conseguiam desapegar-se espiritualmente, quando abandonavam de todo
as riquezas. Maior evolução lhes faria compreender que não é disso que se trata: não é desfazer-se
fisicamente, mas antes desapegar-se espiritualmente.
Então a lição é preciosa: ou servimos à individualidade (ao Deus Interno) atendendo equilibrada-
mente às necessidades da personalidade; ou servimos à personalidade (às riquezas) com prejuízo da
individualidade. Concomitantemente não podemos servir às duas. Quando nos prendemos à persona-
lidade, nós a amamos e aborrecemos o Espírito (Deus em nós), e quando, ao contrário, nos voltamos
para a individualidade (Deus) e a Ele nos unimos pelo Contato Místico, então desprezamos a perso-
nalidade (no sentido etimológico: isto é, não lhe damos "preço" ou valor).

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AS PREOCUPAÇÕES

Mat. 6.24-34 Luc. 12:22-31

24. Ninguém pode servir a dois senhores, pois 22. E disse a seus discípulos: portanto vos digo,
ou há de aborrecer a um e amar o outro, ou não andeis preocupados com a vida pelo
há de unir-se a um e desprezar o outro: não que haveis de comer, nem com o corpo pelo
podeis servir a Deus e às riquezas. que haveis de vestir.
25. Por isso vos digo: não vos preocupeis com 23. Pois a vida é mais que o alimento e o corpo
vossa vida, pelo que haveis de comer ou be- mais que a roupa.
ber, nem com vosso corpo, pelo que haveis 24. Observai os corvos, que não semeiam nem
de vestir: não é a vida mais que o alimento e ceifam, não têm despensa, nem celeiro, e no
o corpo mais que a roupa? entanto Deus os alimenta; quanto mais va-
26. Olhai as aves do céu, que não semeiam nem leis vós do que as aves!
ceifam nem ajuntam em celeiros, e vosso 25. Qual de vós, por mais preocupado que este-
Pai celestial as alimenta; não valeis vós mui- ja, pode acrescentar um cúbito à sua estatu-
to mais que elas? ra?
27. E qual de vós, por mais preocupado que 26. Se pois, não podeis fazer nem as coisas mí-
esteja, pode acrescentar um cúbito à sua es- nimas, porque vos preocupais pela outras?
tatura?
27. Considerais os lírios como crescem, e não
28. E porque vos preocupais pelo que haveis de trabalham nem fiam, todavia vos digo que
vestir? Considerai como crescem os lírios nem Salomão em todo o seu esplendor se
do campo: eles não trabalham nem fiam. vestiu como um deles.
29. contudo vos digo que nem Salomão em todo 28. Pois se Deus assim veste a erva do campo
o seu esplendor se vestiu como um deles. que hoje existe e amanhã é lançado no for-
30. Se Deus assim veste a erva do campo, que no, quanto mais a vos, homens de pequena
hoje existe e amanha é lançada ao forno, fé!
quanto mais a vós, homens de pequena fé? 29. Não procureis, pois, o que comereis ou be-
31. Assim, não vos preocupeis dizendo: que bereis, nem vos preocupeis,
comeremos? ou: que beberemos? ou: com 30. porque os homens do mundo é que procu-
que nos vestiremos? ram todas essas coisas; mas vosso Pai sabe
32. (pois os gentios é que procuram todas essas que precisas delas.
coisas); pois vosso Pai celestial sabe que 31. Buscai antes o reino de Deus, e todas essas
precisais de todas elas. coisas vos serão acrescentadas.
33. Mas buscai primeiro o reino de Deus e a
perfeição dele, e todas essas coisas vos serão
acrescentadas.
34. Não vos preocupeis pelo dia de amanhã,
porque o amanhã trará o seu próprio cui-
dado; ao dia, basta o seu trabalho.

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C. TORRES PASTORINO
Depois de tratar do desprendimento dos bens terrestres, Jesus passa a maior aprimoramento dessa teo-
ria, ensinando-nos que nem devemos preocupar-nos com o que a humanidade geralmente considera
essencial. E o raciocínio apresentado é de irretorquível lógica: quem dá o mais, dá o menos: quem ali-
menta as aves, a fortiori alimentará os homens; e quem veste as f1ores silvestres, tem meios de sobra
para vestir as criaturas; porque o cuidado que o Autor da Vida dispensa às coisas mínimas, demonstra
a dedicação alerta do Pai carinhoso, atento a todos os pormenores dos mais pequeninos seres.
Todo este trecho é de suma graça poética, em que revemos o sublime Nazareno, sentado sob as árvo-
res, a contemplar ao longe o lago muito azul, cercado de margens floridas, com o céu turquesa cortado
pelo vôo dos pequenos pássaros coloridos: a doçura da natureza plasmando idílico ambiente de paz e
plenitude espirituais.
Aí aparece a afirmativa: "não vos preocupeis com o que haveis de comer e vestir", e depois a compara-
ção: "a vida vale mais que o alimento e o corpo mais que a roupa"; e logicamente quem dá o mais (a
vida e o corpo dará certamente o menos (o alimento e a roupa). Depois, longo e terno olhar para as
avezinhas: "olhai as aves do céu, que não semeiam, nem ceifam, nem ajuntam em celeiros (apothêkas)
e o Pai Celestial as alimenta ... e vos valeis muito mais que elas". (Neste passo, Lucas restringe a idéia,
citando o exemplo do corvo). Outro silêncio calmo, cheio de reflexões de gratidão, e uma pergunta:
"que adianta preocupar-se? quem é capaz de, com sua preocupação, acrescentar um cúbito à sua estatu-
ra"?
A palavra "preocupação" traduz merimnôn (reflexões); o termo hêlixía exprime "estatura" e também
"vida"; donde alguns comentaristas traduzirem: “quem será capaz de acrescentar um cúbito (cerca de
meio metro) à própria vida". Lucas emprega o mesmo termo. A alegação desses comentadores, é que a
vida era, com frequência, comparada a uma medida de comprimento: “nossa vida tem o comprimento
de um palmo; quatro dedos apenas" (Salmo 39:6).
Jesus passa então a contemplar as flores de cores brilhantes, e chega à segunda comparação: os lírios
do campo, flores agrestes que nascem e crescem sem cultivo, todas apresentam uma riqueza de vestuá-
rio que nem o mais rico rei (Salomão) conseguirá igualar. Então, por que duvidar, homens de "pequena
fé" (oligópistoi)?
Vem a seguir a conclusão: "não vos preocupeis", o que significa que devemos trabalhar por consegui-
las, mas sem preocupação, mantendo íntima certeza de que nada nos faltará, do que for essencial à
vida.
Chega, então, a ordem: buscar antes de tudo e acima de tudo o “reino de Deus", isto é, o Encontro com
Deus no imo de nossos corações, e “sua perfeição" (ou sua "justiça" no sentido de "justeza", isto é, de
ajustamento perfeito ao nosso EU profundo). Conseguido isso, tudo o mais nos será dado por acrésci-
mo.
E continua Jesus, recomendando que não devemos preocupar-nos com o amanhã, pois a cada dia basta
o seu trabalho.
Esse abandono à Providência é plenamente correspondido depois do Encontro; mas, enquanto presos à
personalidade, quase não será possível. Isso porque a personalidade tem sempre mais confiança em si
do que em Deus.
O teor do trecho de Lucas é quase idêntico. Apenas onde Mateus fala em pássaros, Lucas particulariza
os corvos, e ainda a ordem que difere um pouco.

Realmente, a confiança na Providência Divina deve ser total por parte da individualidade, do Espírito
que já esteja unido à Centelha Divina. Todo o trecho está imbuído desse espírito de renúncia e des-
prendimento das coisas materiais e de fixação na realidade do que é espiritual.
Quando o Espírito compreende a realidade de Deus Imanente em todos e em tudo; quando verifica
que o Pai habita dentro das plantas e à as flores, dando-lhes vestimentas de delicadeza e beleza ina-
tingíveis pelo homem, qualquer que seja sua riqueza; quando se convence de que Deus está dentro dos

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SABEDORIA DO EVANGELHO

pássaros, deles cuidando ternamente, na roupagem multicor das penas, garantindo-lhes ainda o sus-
tento, dia a dia; então sua confiança na Providência cresce ao ponto de saber que também não poderá
haver abandono por parte do Pai a qualquer criatura humana, cuja evolução a torna muito mais im-
portante do que qualquer flor ou pássaro.
Os preceitos dados referem-se exclusivamente à individualidade.
Lógico que a personalidade, enquanto encarnada na Terra, tem imensa dificuldade em seguir literal-
mente esses preceitos - tanto que os comentaristas dizem tratar-se apenas de "conselhos" - mas a indi-
vidualidade pode vivê-los perfeitamente à vontade, aprendendo então a conduzir a personalidade com
desapego por entre os bens perecíveis da matéria.
A vida é mais que o alimento, porque nossa vida é a participação da Vida Divina, que jamais termina.
Por isso, não há morte para nosso Eu. O corpo se perde e desmancha, mas o Espirito vive da vida de
Deus, que constitui seu Eu, isto é, sua substância última, sua essência profunda.
Comparativamente estão na mesma relação que existe entre corpo e roupa: o corpo permanece, en-
quanto a roupa é mudada com frequência e, quando estragada, é jogada ao lixo. Essa mesma relação,
guardadas as proporções, vige entre Espírito e corpo: quando o corpo se torna imprestável, é aban-
donado e "jogado fora" pelo Espírito, que depois vai formar-se outro corpo novo.
Jesus cita as aves e as flores; não poderia ainda, pela ignorância dos ouvintes; mas bastaria que ci-
tasse a beleza e perfeição complexa do próprio corpo humano, que recebemos plasmado sem que nem
sequer o conheçamos a fundo. Não podemos aumentá-lo com o nosso pensamento: então, por que
preocupar-nos com outras coisas de menor importância, se o Pai já provou seu amor por nós, proven-
do-nos do corpo e da vida?
O ponto básico é o ensino da NÃO-PREOCUPAÇÃO.
Realmente, não é a ocupação que cansa, mas a preocupação. E os cristãos tampouco aprenderam a
lição Daquele que dizem ser seu Mestre, e seu Deus, e vivem hoje a tomar remédios e a fazer higiene
mental, para combater os males psíquicos provocados pela excessiva preocupação de todos por tudo.
As criaturas todas se deixam envolver pelas preocupações ansiosas que causam angústia e descon-
trolam o sistema nervoso; e isto porque não aprenderam a lição que já nos foi ensinada há dois mil
anos! ... Verdadeiras "cabeças duras", na teimosia do erro que não quer ver a verdade.
Lição sublime, se for seguida literalmente, pois os resultados são realmente fabulosos. Só quem o ex-
perimentou pode confirmá-lo: não falha jamais a Providência divina!
Aqui Jesus repete o ensinamento dado versículos antes (Mat. 6:8): "o Pai SABE o de que necessita-
mos, antes de Lho pedirmos". Para quem imagina Deus como alguém que está muito longe, sentado
em trono colocado a milhares de quilômetros, essa assertiva de que Ele vê e sabe de tudo é difícil de
aceitar. Mas para aqueles que concebem Deus como na realidade é: a Força, a Inteligência e o Amor
que constituem a Vida e a Alma dos Universos Infinitos, a Essência última de todas as criaturas ani-
madas e inanimada, estando integralmente imanente em cada décimo milionésimo de milímetro cúbico
de tudo, a idéia é facilmente compreensível.
Se Deus, na Sua totalidade integral, está dentro de tudo (embora seja também transcendente a tudo
por Sua infinita eternidade), Ele SABE realmente TUDO o que se passa, em cada mínimo pormenor de
cada criatura. Numa comparação fraca - omnis comparatio cláudicat - podemos dizer: assim como o
espírito do homem está integralmente em cada célula do corpo, embora seja transcendente ao próprio
corpo total; e assim como o espírito do homem SABE (embora com muita deficiência, por causa de
seu atraso e de sua ignorância) tudo o que se passa em cada célula, tomando conhecimento de cada
espetadela que se dê em qualquer parte do corpo; assim Deus, infinitamente superior, sendo o Espí-
rito dos Universos, SABE o que se passa em cada partícula, por mínima que seja: moléculas, células,
bactérias, vírus, átomos, núcleos, etc.
Então, o Pai SABE REALMENTE o de que cada criatura, cada semente, cada ovo, cada vírus neces-
sitam, a cada momento do dia ou da noite muito mais profundamente que a própria criatura. A dife-

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rença substancial entre a criatura e Deus, é que aquela está finita e limitada no tempo e no espaço, ao
passo que a Inteligência Divina vibra em outra dimensão: o Infinito e a Eternidade.
Por vibrar no Infinito e na Eternidade, que não tem antes nem depois, Deus CONHECE o todo no seu
instante único do HOJE ETERNO; enquanto nós, limitados, dividimos o "agora" em ontem e amanhã.
Ora, nessa deficiência da capacidade cognoscitiva, aconselha Jesus que nos não preocupemos com o
amanhã, porque Deus se ocupará, cabendo a nós viver o momento do agora, o "hoje".
Então a ordem taxativa para a individualidade passa a resumir-se na procura do reino de Deus, e
isso, na máxima perfeição possível. Ora, estando o reino de Deus DENTRO DE NÓS (Luc. 17:21), é
só DENTRO DE NÓS, pelo mergulho (batismo) na Consciência Cósmica (o batismo do fogo e do Es-
pírito) que podemos encontrá-lo e unificar-nos a ele. Quando tivermos conseguido mergulhar no fogo
do Amor e no Espírito Divino (calor de ternura e loz de sabedoria) teremos alcançado o objetivo úni-
co de nossas encarnações: porque a única meta da reencarnação é proporcionar-nos os meios de re-
alizar essa unificação, que só é conseguida enquanto habitamos o "tabernáculo de carne", que nos
facilita os meios de alcançá-lo. Não fora assim, e não haveria necessidade de mergulhar na carne:
"Se a semente não cai na terra e não morre, não pode frutificar" (João, 12:24).
Portanto, quando salientamos a cada passo o Encontro Profundo, estamos simplesmente tecendo co-
mentários aos ensinos de Jesus, e absolutamente nada dizemos de invenção nossa.
Quando tivermos atingido esse ápice de nossas vidas, de nada mais nos preocuparemos, pois Deus em
nós dar-nos-á tudo o de que necessitamos para nossa evolução espiritual cada vez maior. Que essa é a
meta, Jesus o declara em Lucas: "o Pai QUER dar-vos o reino", ou seja, o Pai QUER essa unificação
com sua criatura, absorvendo-a na unificação, em Seu fogo de amor e na luz de Sua Sabedoria infini-
tos.
Daí a consequência de não se dar importância aos bens transitórios e perecíveis: distribuam-se pelos
necessitados, vendam-se, troquem-se por boas obras, que essas ficarão guardadas em "bolsas que não
envelhecem", constituindo um "tesouro que não se acabará" jamais, pois ficará agregado à própria
substância de nosso Eu. Se nosso tesouro está no Espírito eterno, aí estará também nosso coração,
eternamente feliz e bem-aventurado. Mas se tivermos a infeliz ignorância de apegar-nos a qualquer
coisa que esteja fora de nós, que seja externo (mesmo se se trata de religiões e devoções místicas),
estaremos caminhando na direção oposta de Deus, que está em nosso interior mais íntimo.
Coloquemos nosso coração no Pai, unifiquemo-nos a Ele, e aprendamos a olhar tudo o que é externo
como agregações temporárias que nos servem de muletas durante a caminhada terrena, mas que ja-
mais serão essenciais a nosso Eu, embora ajudem nossa evolução durante curto período de tempo.

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OS JULGAMENTOS

Mat. 7:1-5 Luc. 5:37-38 e 41-42


1. Não julgueis para que não sejais julgados, 37. Não julgueis e não sereis julgados; não con-
deneis e não sereis condenados; perdoai e
2. porque com o juízo com que julgais, sereis
sereis perdoados.
julgados, e com a medida que usais, com
essa vos medirão. 38. Dai e vos será dado; boa medida, recalcada,
3. Por que vês o cisco no olho de teu irmão, sacudida, transbordando vos porão no re-
gaço; porque a medida com que medis, com
mas não percebes a viga que tens no teu?
essa medirão para vós.
5. Hipócrita, tira primeiro a viga de teu olho e
então enxergarás bem para tirar o cisco do 41. Por que vês o cisco no olho de teu irmão,
mas não percebes a viga que está no teu?
olho de teu irmão .
42. Como poderás dizer a teu irmão: "deixa-me
tirar, irmão, o cisco de teu olho", se não vês
a viga que está no teu? Hipócrita, tira pri-
meiro a viga de teu olho e então enxergarás
bem para tirar o cisco que está no olho de
teu irmão.

É comum na humanidade o julgamento de nosso" companheiros de viagem. Habitual que tudo o que
não está de perfeito acordo com nosso modo de entender as coisas seja, imediatamente, submetido a
um tribunal sem apelação, passado em julgado e geralmente condenado. Embora aceitemos como natu-
ral o amor que sentimos por alguém, julgamos mal quando vemos qualquer companheiro amando outra
criatura. Apesar de sentir-nos isentos da obrigação de ajudar alguém, logo julgamos e condenamos ao
ver que outrem, nas mesmas circunstâncias, não dá ajuda. Achamos que é "abuso" quando alguém nos
solicita certos favores, que pouco antes não hesitamos em fazer a outra pessoa. E assim por diante. São
julgamentos precipitados, que olham apenas certas circunstâncias externas; são julgamentos malicio-
sos, por vezes temerários, emitidos sem conhecimento de causa; e são julgamentos inapeláveis, que
não admitem contestação, e geralmente definitivos, dificilmente admitindo nós a possibilidade de vol-
tar atrás.
Na frase de Jesus encontramos uma repetição das fórmulas talmúdicas, que diziam respeito à lei de
"causa e efeito". Na Sota 1, 7 lemos: "a medida com que alguém mede, serve para que ele seja medido
com ela". E são dados exemplos: Sansão pecara com os olhos, por isso os filisteus os furaram"; e ain-
da: " Absalão orgulhava-se de sua cabeleira, por isso ficou suspenso pelos cabelos" (Sota, 1, 8). Vários
outros exemplos são dado: em Strack-Billerbeck, o.c., pág. 444 e 445.
Para esclarecer bem seu pensamento, Jesus traz o exemplo do cisco no olho, comparando-o com uma
viga (hipérbole arrojada), que o julgador tenha no próprio olho. Como poderá alguém, que tenha um
defeito maior, julgar e querer corrigir um defeito menor em seu irmão? Mas é o que frequentemente
sucede. Não duvidamos em julgar, sem olhar para nós em primeiro lugar.
E o preceito vem a seguir: corrige-te antes, para depois julgares e corrigires os outros.
Lucas acrescenta mais um tópico; depois de assinalar que não devemos julgar, aduz: “não condeneis,
para não serdes condenados". Com efeito, nestes casos o julgamento supõe a condenação, e é isso que
deve ser evitado, pois se trata de um produto de nossa vaidade natural, que nos faz sempre julgar me-

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lhores e superiores, mais virtuosos e menos defeituosos. Toda essa maneira de agir traz consequências
desastrosas pelo carma que adquirimos.

O ensinamento visa muito à individualidade, que é avisada de não julgar as personalidade alheias.
Jamais podemos saber as causas longínquas e ocultas que levam certas personalidades a ter determi-
nado comportamento. Há casos complicadíssimos, que não podem ser compreendidos por quem está
fora do problema, não lhe conhecendo os antecedentes. Casos de amor que condenamos, e que, por
vezes, são resgates cármicos. Casos de desvios "assustadores" na moralidade, que constituem experi-
ências indispensáveis à evolução do "espírito". Caso, de homicídio que podem representar libertações
definitivas à e mentalizações insistentes de vidas pretéritas. Tudo isso, ao lado de outros casos idênti-
cos NA APARÊNCIA, e que realmente constituem quedas fragorosas e involuções morais e espirituais,
a criar dolorosos resgates. Como podemos julgar, se não temos em mãos os dados para armar a
equação desses caso que temos sob os olhos?
Qualquer julgamento é perigoso e temerário, arriscando-nos a ser injustos e a acarretar contra nós
pesados débitos, não apenas pela divulgação do que imaginarmos, como sobretudo pela criação de
formas mentais que coagirão aqueles sobre os quais lançamos nosso julgamento.
A obrigação, portanto; de nossa individualidade é primeiramente colocar a própria personalidade na
linha certa, a fim de poder progredir em paz. Nada temos que ver com os outros, a não ser amá-los e a
eles servir, sem levar em conta, jamais, qualquer ato ou palavra por eles realizado ou emitida.
Eduquemos de tal forma nosso pequeno eu, que o habituemos a desculpar sempre, embora as aparên-
cias estejam todas contra o infrator; acostumemo-nos a perguntar-nos: "neste caso, como teria agido
eu"? E depois coloquemo-nos em nossa posição de observadores e tornemos a indagar: “e neste caso
em que me acho, como agiria Jesus"?
Veremos que, com esse modo de agir, sustaremos qualquer veleidade de julgamento. Essa foi a ordem
taxativa de Jesus, que continua sendo nosso Mestre Inefável e Sábio.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

A DISCRIÇÃO
Mat. 7:6
6. Não deis o que é santo aos cães, nem lanceis vossas pérolas diante dos porcos, para
que não suceda que as pisem aos pés e, voltando-se, vos mordam

Um versículo apenas, com singelo aviso de prudência em nossas atitudes em relação às demais criatu-
ras. A frase, em forma de provérbio, tem o andamento próprio das frases sentenciosas (mâchál) dos
livros de sabedoria, com o ritmo binário: isto é, repete-se o mesmo pensamento duas vezes, em con-
ceitos sinônimos.
No hebraico aparece, outra assonância entre as duas sentenças, o que nos oferece a razão da escolha de
"pérolas” para opor a “coisas santas”. Com efeito, em hebraico, "santo” é qodesh, e "pérola” é qe-
dasha.
Os comentadores, desde o início buscaram alegorias para os cães e os porcos, dizendo tratar-se dos
pagãos, os infiéis, os apóstatas, os ímpios, os debochados, etc. Mais equilibrados, os primeiros cristãos
(Didáché, 9: 5) atribuem à idéia de não ensinar o encontro místico da Ação de Graças (Eucaristia) a
não ser aos que tivessem conseguido o “mergulho" (batismo), quando então se começava a disciplina
dos arcanos e a iniciação gradual dos catecúmenos.
Realmente parece claro que Jesus não distinguiu povos nem raças, mas simplesmente estágios evoluti-
vos em qualquer raça ou povo. Não é o local do nascimento nem o tipo de sangue, nem qualquer outra
característica da formação do corpo material que poderá decidir a respeito do estágio evolutivo das
criaturas. Mede-se a evolução pelo "espírito", não pela matéria. A comprovação evidente aparece num
exemplo típico do próprio Evangelho, quando Jesus diz (Mat. 8:10 e Luc. 7:9) que "nem entre os ju-
deus encontrou tão grande fé, quanto no centurião", pagão adorador de Júpiter. Doutra feita, para
exemplificar o amor, opõe o apóstata samaritano ao "justo" levita e ao sacerdote israelita (Luc. 10:33),
deixando-os em posição de inferioridade evolutiva, como carentes de amor.
O ensinamento, portanto, resulta bastante claro: antes de revelar-se a verdade a respeito da doutrina,
verifique-se o grau de adiantamento de quem vai recebê-lo, pois poderá suceder que ainda sejamos
perseguidos e mortos pelos que não estão em grau de entender o ensino. E isso de fato ocorreu a milha-
res de criaturas que pretenderam divulgar fatos e conhecimentos, para os quais a humanidade - mesmo
representada pela nata de seus dirigentes espirituais - ainda não estava preparada. Recordemo-nos dos
“mártires” dos primeiros séculos entre os pagãos; dos arianos assassinados pelos cristãos romanos no
século 4.º dos numerosos profetas (médiuns) que surgiram através dos séculos em toda a idade média,
e que foram sacrificados nas fogueiras pelos próprios cristãos; e mais de Galileu, de Savonarola, de
Giordano Bruno, de João Huss, de Joana d’Arc, e de tantos milhares que nem podemos enumerar.
Daí a necessidade de prudência na divulgação das realidades espirituais, que só devem ser reveladas
aos que estão aptos a compreendê-las e, assimilando-as, vivê-las.

A admoestação taxativa vem esclarecer-nos, como de outras feitas ainda veremos, a razão que levou
Jesus (a individualidade) a falar e a agir sempre por metáforas, por exemplos vivos que são verdadei-
ros símbolos, utilizando-se de alegorias, de parábolas, de comparações, sem jamais dizer claramente
qual o segredo de seu ensinamento.
Daí constituírem os Evangelhos uma obra realmente iniciática, revelando sabedoria profunda, jamais
podendo dizer-se que se trata de trabalho escrito por homens comuns. São, de fato, uma revelação do
mais alto teor, inspirados intuitivamente, através dos aparelhos mediúnicos altamente sensíveis que

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foram os evangelistas, cada um captando a mesma inspiração de acordo com o seu próprio grau de
evolução espiritual. Essa a razão de ser João - o místico - o de mais altos e largos vôos, e também a
causa de que muitos outros “médiuns", nessa ocasião, tenham captado a mesma inspiração, mas, por
serem pouco evoluídos, tenham escrito textos fracos, hoje catalogados como " apócrifos". Só mesmo
os quatro de maior sensibilidade psíquica conseguiram atingir a noúre mais elevada, que naquela
época constituía a noosfera do planeta, em virtude da aproximação psíquica de Jesus.
Dessa forma, os Evangelhos podem ser compreendidos e interpretados em vários planos: 1.º o literal,
como o lê a maioria da massa humana que dura há séculos, grandemente aproveitando as palavras
sábias e os exemplos maravilhosos; 2.º o moral, que se eleva um pouco mais, verificando as conse-
quências reais que ali aparecem em todas as frases, belas e cheias de sabedoria; 3.º o alegórico, que
já entrevê ensinos mais profundos, lidos nas entrelinhas, quando se percebe que as palavras são re-
presentações de outros planos mais altos, exprimindo coisas diferentes do que exprimem textualmente
as palavras; 4.º o metafórico, que dá um passo mais adiante, e que já muitos comentadores percebe-
ram plenamente, divulgando seus conhecimentos.
Essas quatro interpretações referem-se todas à personalidade, em seus quatro planos.
Mas outras três existem, compreendidos pela individualidade; o 5.º, ou simbólico, que se vem mani-
festando aos poucos, de acordo com a evolução da humanidade que caminha sempre mais à frente; o
6.º, ou místico, que estamos tentando penetrar, apesar de nosso atraso, mas grandemente ajudados
pelas Forças do Alto; e o 7.º o espiritual ou divino, que ainda não atingimos, em virtude de nossa de-
ficiência evolutiva.
Na época atual, onde numerosos já são os elementos capazes de perceber esse aprofundamento, tor-
nou-se possível penetrar e até mesmo divulgar, como estamos fazendo, essas interpretações, sem que
nos arrisquemos a ser perseguidos e assassinados, como no passado. Mas, não obstante, grande nú-
mero de irmãos de ideal ainda não consegue aceitar o que dizemos e, por isso, recebemos a persegui-
ção moral de diversos tipos de acusação; estas nos alegram, pois sabemos - disse-o Jesus - que seus
discípulos seriam conhecidos pelas perseguições e acusações que sofressem, já que o discípulo não é
mais que o mestre, nem o servo mais que seu senhor; e se o Senhor e Mestre foi acusado de "endemo-
ninhado, seus discípulos também o seriam" (Mat. 10:24-25). Daí o medo que sentiríamos, se fossemos
elogiados: não estaríamos mais figurando entre os discípulos de Jesus.
Voltando ao texto, encontramos a sabedoria do ensino: nem a todos os que revelam desejo de saber,
pode dizer-se a realidade total; nem tudo o que se percebe pode revelar-se, senão a alguns. Quando
escrevemos, porém, sabemos que os que não podem compreender totalmente, não o compreendem
mesmo, por mais claro que tenha sido explicado. Por isso não hesitamos em publicar as idéias que
nos são trazidas, a respeito de aspectos menos divulgados do Evangelho, porque tudo o que dizemos
já foi sabido e vivido por milhares de criaturas, no oriente e no ocidente.
Nada de novo trazemos: apenas nova maneira de apresentar a Verdade Eterna, que jaz silenciosa há
séculos, oculta nas letras materiais das Escrituras, reveladas pelo Cristo Cósmico ao coração da hu-
manidade, através dos grandes Avatares, dos Manifestantes divinos, que vieram à Terra para ajudar-
nos a evoluir.

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LEI DE CAUSA E EFEITO

Mat. 7:7-12 Luc. 11:5-13

7. Pedi e vos será dado procurai e achareis; 5. Disse-lhes ainda: Se um de vós tiver um
batei e vos será aberto; amigo e for procurá-lo à meia-noite e lhe
disser: “Amigo, empresta-me três pães,
8. pois todo o que pede, recebe; o que procura,
encontra; e a quem bate, lhe será aberto 6. porque um amigo meu acaba de chegar a
minha casa de uma viagem, e nada tenho
9. Ou qual de vós homens que, se um filho lhe
que lhe oferecer"
pedir pão, lhe dará uma pedra?
7. E se do interior o outro lhe responder: "não
10. e se pedir peixe lhe dará uma cobra?
me incomodes; a porta já está fechada,
11. Ora, se vós, sendo maus, sabeis dar boas meus filhos estão deitados na cama comigo,
dádivas a vossos filhos, quanto vosso Pai não posso levantar-me para dar-tos".
que nos céus, dará boas coisas aos que lhas
8. Digo-vos: embora não se levante para dar-
pedirem?
lhos por ser seu amigo, ao menos por causa
12. Portanto, tudo o que quiserdes que os ho- de sua importunação se levantará e lhe dará
mens vos façam, fazei-o assim também vós a quantos pães precisar.
eles; porque esta é a lei e os profetas
9. E eu vos digo: pedi e vos será dado; procu-
rai e achareis; batei e vos será aberto,
10. pois todo o que pede, recebe; todo o que
procura, encontra; e ao que bate, lhe será
aberto.
11. Qual de vós é o pai que, se o filho lhe pedir
pão, lhe dará uma pedra, ou se pedir peixe,
lhe dará, em vez de peixe, uma cobra?
12. ou se pedir um ovo, lhe dará um escorpião?
13. Ora, se vós, sendo maus, sabeis dar boas
dádivas vossos filhos, quanto mais vosso
Pai, o do céu, dará um espírito bom aos que
lho pedirem!

Luc. 6:31
31. Assim como quereis que vos façam os ho-
mens, assim fazei vos também a eles.

Os comentadores atribuem, de modo geral, a este trecho, um sentido de "regras para a oração". Real-
mente, o sentido mais evidente é esse: quem se volta para Deus, pedindo algo, obtém. São uma espécie
de apoftegmas que apresentam ligeiras gradações: o pedido simplesmente verbal; a procura, que supõe
esforço pessoal; e o bater que exprime insistência maior. Lucas coloca essas expressões após a pará-
bola do "amigo importuno", para confirmar qual deve ser nosso modo de proceder, quando desejamos
alguma coisa. Não basta pedir ligeiramente e esquecer o pedido: é indispensável MENTALIZAR com
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insistência, batendo na mesma tecla com pertinaz constância, concentrando-nos no que desejamos, sem
duvidar, sem hesitações, sem variações. Existem muitas obras a respeito da mentalização, revelando-
nos os segredos a utilizar para obter o de que necessitamos. São de domínio público, e constituem uma
realidade, no domínio do intelecto.
A parábola, em Lucas, é elucidativa. O amigo procurado não pode atender ao que pede: perturbaria o
sossego da família e muito se incomodaria. Mas o solicitante insiste de tal forma, que acaba obtendo.
Diz Agostinho que devemos insistir no pedido, porque "Deus tem mais desejo de dar-nos, do que nós
de receber" (plus vult dare, quam nos recipere); mas, por vezes, adia a doação, para que não se ape-
quene pelo recebimento imediato (quod dare vult, differt, ut amplius desideres dilatum, ne vilescat cito
datum. Patrol. Lat 38. 619).
Não vemos muita ligação deste trecho com a prece, pois Jesus ensina que não é pelas repetições inú-
teis" (Mat. 6:7) que recebemos. Haveria nisto até uma contradição. Por isso compreendemos que o
trecho se refere, realmente, ao ensino da mentalização.
Vem depois alguns exemplos, que nos esclarecem que jamais receberemos coisas ruins, se mentali-
zarmos coisas boas. Ninguém receberá pedra, se pedir pão, nem cobra se pedir peixe, nem escorpião,
se pedir ovo. Ou seja, os males que nos chegam são devidos a mentalizações errôneas de nossa parte.
Se mentalizarmos certo, recebemos do Pai que habita nos céus (em nosso interior, em nosso coração),
somente coisas boas. Se os homens, maus por sua ignorância e incapacidade, não cometem essas mal-
dades com seus filhos, como o faria o Pai, que é o Bom e o Amor absolutos e Infinitos?
Lição preciosa para nós, que vivemos a queixar-nos da vida, das doenças, das dificuldades e - apesar
dessas mentalizações negativas - pretendemos que tudo nos corra com facilidades. Somos responsáveis
únicos de nossos erros, e colhemos o que plantamos, pois somos exatamente o que pensamos. Somos
hoje a obra de nossa mentalização de ontem, e colhemos hoje o que ontem plantamos com a nossa
mente deficiente e ignorante.

A individualidade colhe outras lições ainda dessas palavras cheias de sabedoria: é a revelação da
técnica da lei de causa e efeito.
De fato, essa Lei é baseada na mentalização. Julgam muitos que a Lei de causa e efeito é provocada
pelos atas e pelas palavras de alguém. Entretanto, o que mais provoca a reação da Lei é o pensa-
mento, muito mais forte que qualquer palavra ou gesto ou ato. Matéria produz matéria, espírito pro-
duz espírito: "o que nasce da carne é carne, o que nasce do espírito é espírito" (João, 3:6). Então, o
carma provocado por palavras e atos é físico, mas o carma criado pelo pensamento é espiritual, ine-
rente ao “espírito".
Sabemos, pois, que o que fazemos traz consequências agradáveis ou desagradáveis, dependendo de
nossa força de pensamento na ocasião, e de sua persistência e intensidade.
Se a parábola de Lucas pode evidentemente referir-se à prece - ou melhor, aos “pedidos", porque
"prece" não é apenas pedir - as frase, sentenciosas que vêm a seguir têm outros sentidos, também.
Quem pede, recebe o que pede, bem ou mal. Quem procura, encontra o que busca, bem ou mal. E a
quem bate, será aberta a porta que leva à alegria ou à dor, dependendo da direção de nossas batidas.
Portanto, aí se encontra a essência última da Lei de Causa e Efeito: o efeito corresponderá à causa
que tivermos colocado livremente; mas o efeito não poderá ser modificado por nenhuma ação ou situ-
ação externa: colocada a causa, com livre arbítrio, virá o efeito inevitável e exatamente correspon-
dente.
Lição oportuníssima para a individualidade, responsável pelos pensamentos: tudo o que esta inculcar
à personalidade, voltará como sofrimentos para o "espírito", na mesma existência ou em vidas poste-
riores. A personalidade talvez não colha os resultados, pois em vida posterior já não mais existe; mas
o "espírito" é sempre o mesmo, e portanto o sofrimento o colherá em cheio, não podendo escapar do
que haja plantado - a não ser que suba de plano. pela evolução.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

DIFICULDADE NA EVOLUÇÃO

Mat. 7:13-14 Luc. 13:23-30

13. Entrai pela porta estreita: porque larga é a 23. Alguém perguntou-lhe: "Senhor, são pou-
porta e espaçosa a estrada que conduz à cos os que se salvam"? Respondeu-lhes;
perdição, e são muitos os que por ela en- 24. Forcejai por entrar pela porta estreita, por-
tram, que vos digo que muitos procurarão entrar
14. mas estreita é a porta e apertada a estrada e não serão capazes
que conduz à vida, e poucos são os que a en- 25. Quando o dono da casa se tiver levantado e
contram houver fechado a porta, e vós, do lado de
fora, começardes a bater, dizendo: "Senhor,
abre-nos" e ele vos responder: "Não sei
donde sois",
26. então começareis a dizer; "nós comemos e
bebemos em tua presença e tu ensinaste em
nossas praças.
27. E ele vos dirá: "não sei donde sois; retirai-
vos de mim todos vós que praticais a iniqui-
dade".
28. Ali haverá choro e ranger de dentes, quan-
do virdes no reino de Deus Abraão, Isaac e
vós excluídos dele.
29. Muitos virão do oriente e do ocidente, do
norte e do sul, e hão de reclinar-se à mesa
do reino de Deus.
30. E então há últimos que serão primeiros e
primeiros que serão últimos.

O texto é de suma clareza: o caminho do aperfeiçoamento é difícil e é mister esforçar-se, "forcejar"


(agônízesthe) para passar pela porta estreita. Já a permanência no mesmo nível evolutivo, ou o retro-
cesso, são fáceis: tal como subir ou descer árdua montanha.
Em Lucas, Jesus não responde à pergunta a respeito do número dos que “se salvam"; apenas adverte
que não adiantam a fé e a devoção: indispensável o esforço "com luta pessoal. Também de nada vale a
procedência (a raça), nem tampouco o rótulo doutrinário e religioso. Os "salvos" chegarão de todas as
partes e raças. E muitos dos que "parecem" últimos, são os primeiros, e vice-versa. Falando aos sacer-
dotes e doutores, disse Jesus: “em verdade vos digo que os pecadores e as meretrizes entrarão primeiro
que vós no reino dos céus" (Mat. 21:31).

A elucidação das dificuldades, que o “espírito" encontra na subida evolutiva, corresponde a uma rea-
lidade palpável, que todos experimentamos. De fato, poucos são os que se esforçam por subir. A gran-
de massa da humanidade ainda vive no comodismo da matéria, nos interesses imediatos, na "estrada

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C. TORRES PASTORINO
da perdição", não no sentido de "inferno" nem de perdição "eterna", mas no de desvio do caminho
certo: estão "perdidos" no matagal das ilusões, nas florestas dos enganos.
Já os que acertam com a porta (e poucos são os que acertam, pois alguns pensam que se trata de de-
voção piedosa, outros de estudos cerebrais de vocábulos, outros de ações taumatúrgicas e milagrei-
ras, outros de puro mediunismo mecânico, outros de conversas com desencarnados, e tantas outras
ilusões posições de corpo, exercícios de yoga, etc. etc.), esses que acertam com a porta da evolução
real, sabem que o caminho é "para dentro".
Então, Jesus não responde à idéia errada, de haver, no final, um grupo de salvos e outro de perdidos
eternamente. A idéia é falsa, não merece respondida: mas esclarecimento, sim. Isso faz o Mestre, ad-
vertindo que não bastam os atos externos, sejam de religião e devoção, sejam de convivência com Ele
("comemos e bebemos contigo"), nem o acolhimento que Dele tenham feito ("falaste em nossas pra-
ças"). Há uma só coisa essencial: EVOLUIR, e fazê-lo de dentro para fora.
E não julguemos pelas aparências (já o vimos ao fala, do julgamento"), pois muitos que parecem pe-
cadores, são mais santos, do que aqueles que se apresentam como virtuosos.
Não percamos de vista, outrossim, que muitos que procuram entrar no “reino" (ter o Encontro Subli-
me), não no conseguem: falta de evolução. Não se trata de falta de merecimento, já que não é este que
determina a possibilidade do Encontro e do Mergulho, e sim o grau evolutivo de cada um: não é o fato
de o cálice ser de ouro, que o fará ter maior capacidade de conteúdo do que uma jarra de barro ordi-
nário.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

FRUTOS DO ESPÍRITO

Mat. 7:15-20 Luc. 6:43-45

15. Guardai-vos dos falsos profetas, que vêm a 43. Não há árvore boa que dê mau fruto; nem
vós com vestes de ovelhas, mas intimamente tampouco árvore má que dê bom fruto
são lobos vorazes. 44. Pois cada árvore se conhece por seu fruto;
16. Por seus frutos os conhecereis. Colhem-se, porque os homens não colhem figos dos es-
acaso, uvas de espinheiros ou figos de pinheiros, nem dos abrolhos vindimam
abrolhos? uvos.
17. Assim toda árvore boa dá bons frutos, po- 45. O homem bom, do bom tesouro de seu co-
rém a árvore má dá maus frutos ração tira o bem, e o homem mau, do mau
tesouro tira o mal; porque a boca fala o de
18. Uma árvore boa não pode dar maus frutos,
que está cheio o coração.
"em uma árvore má dar bons frutos.
19. Toda árvore que não dá bom fruto é corta-
da e lançada ao fogo
20. Logo, por seus frutos os conhecereis.

Em Mateus o texto é precedido de uma advertência, ressaltando o exame cuidadoso que devemos fazer
de tudo o que nos dizem os "profetas" (médiuns e pregadores, e escritores, etc.), que podem trazer-nos
noções falsas. Ainda que vestidos com roupas exóticas, com vestes tradicionais, com mantos dourados;
embora falando com unção, movendo os olhos com beatitude, gesticulando com modéstia estudada; se
bem que tenham, numa palavra, atitudes de cordeiros mansos, seu interior (grego ésothen, que corres-
ponderia a "seu coração") apresenta enganos e falsidades. Talvez eles mesmos nem o percebam, por
incapacidade ou ignorância, sendo os primeiros enganados, Mas, cuidado com eles diz Jesus. Exami-
ne-se tudo, fazendo passar pelo crivo da razão. Mas como concluir com segurança?
"Por seus frutos os conhecereis". Com perspicácia, Jesus não diz "por suas obras", fáceis de enganar,
mas "por seus frutos". O fruto é o produto da árvore, que lhe resume e sintetiza a essência, para produ-
zir amanhã nova árvore. Então, o fruto do homem é sua essência, que se percebe mesmo através das
exterioridades. Quem busca bens terrenos como retribuição de bens espirituais que pretende estar dis-
tribuindo; quem exige confortos e comodidades, atenções e consideração dos outros; quem se confessa
superior e melhor que os outros, todos esses estão no caminho errado.
Interessante a repetição, no vers. 19, do versículo citado em Mat. 3:10 e nesse passo proferido pelo
Batista. E também as mesmas palavras repetidas nos versículos 16 e 20, como para fixar bem na me-
mória dos ouvintes.
Em Lucas há um complemento: do coração tira o homem o que é bom e o que é mau; e suas palavras
provêm do coração, que é a sede do pensamento e do sentimento.

A individualidade não tem dificuldade em perceber a falsidade das palavras das personalidades,
mesmo que hipocritamente digam o que não sentem. A percepção do Espírito é mais profunda que a
do "espírito", que facilmente se deixa ludibriar pelas aparências. Examinem-se os frutos, ou seja, a
sintetização da essência, e logo veremos se há veracidade.

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C. TORRES PASTORINO
Os frutos principais são o AMOR e a HUMILDADE, que têm como consequência fatal o SERVIÇO.
Mas pode haver muito serviço sem fundamento no amor e na humildade. Como o veremos? Se houver
desamor (críticas) ou orgulho (vaidades feridas), isso mostra que os frutos ainda estão verdes.
E esses frutos provêm da individualidade, do coração que está unido ao Cristo Interno, vivendo cons-
cientemente na Consciência Cósmica, e apenas "sobrevivendo" na matéria. Todas as nossas palavras
são constituídas pelo que há de mais abundante em nosso coração: se aí residirem o Amor e a Humil-
dade, nossas palavras naturalmente o revelarão, sem qualquer esforço de nossa parte. E também o mal
daí provém: "Não é o que entra pela boca, mas o que sai que pode sujar-nos, porque provém do cora-
ção" (Cfr. Mat. 15:18).
O coração unido a seu Eu profundo só produz frutos bons. O que está unido às riquezas e cobiças
terrenas, às coisas ou às pessoas, só produz espinheiros e cardos para o amanhã.
Cuidado, então, com quem fala e ensina sem VIVER os ensinos! Continuaremos a vê-lo no próximo
tópico.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

VIVER OS ENSINAMENTOS

Mat. 7.21-27 Luc. 6:46-49

21. Nem todo o que me diz: "Senhor, Senhor", 46. Por que me chamais "Senhor, Senhor", e
entrará no reino dos céus, mas aquele que não fazeis o que vos mando?
faz a vontade de meu Pai que está nos céus. 47. Todo o que vem a mim e ouve minhas Pala-
22. Naquele dia muitos hão de dizer-me: "Se- vras e os pratica, eu vos mostrarei a que é
nhor, Senhor, não profetizamos em teu semelhante.
nome e em teu nome não fizemos muitas 48. É semelhante a um homem que, edificando
coisas notáveis”? sua casa, cavou abriu profunda vala e pôs
23. Então lhes declararei: “nunca vos conheci: os alicerces sobre a pedra; e vindo a en-
apartai-vos de mim os que praticais a ilega- chente, a torrente bateu com força naquela
lidade”. casa e não na pode abalar, porque tinha
sido construída sobre a pedra.
24. Todo aquele, pois, que ouve estas Palavras,
eu o comparo a um homem prudente, que 49. Mas o que os ouve e não as pratica, é seme-
edificou sua casa sobre a pedra; lhante a um homem que edificou sua casa
sobre a terra, sem alicerces; a torrente ba-
25. e caiu a chuva, vieram os torrentes, sopra-
teu com força sobre ela, e logo caiu, e foi
ram os ventos e bateram com força contra
grande a ruína daquela casa
aquela casa, e ela não caiu, pois estava edi-
ficada sobre a pedra.
26. Mas todo aquele que ouve estas minhas Pa-
lavras e não as pratica, será comparado a
um homem tolo, que edificou sua casa sobre
a areia;
27. e caiu a chuva, vieram as torrentes, sopra-
ram os ventos e bateram com força contra
aquela casa, e ela caiu; e foi grande sua ruí-
na.

Jesus insiste no tema anterior. demonstrando agora com exemplos mais vivos, que não é a religião se-
guida que salva ninguém, nem mesmo a devoção, nem a oração, nem o mediunismo, nem qualquer
coisa externa; mas apenas a vivência interior. Enquanto não vivermos integral e intimamente os pre-
ceitos, as obras exteriores serão pura casca, puro verniz que de nada servirão.
Assim a casa solidamente construída, com alicerces profundos, resiste às intempéries; ao passo que as
devoções e obras fundamentadas na vaidade e na esperança de “troca" (do trabalho pelo reino dos
céus), ruirão ao menor sopro da adversidade. A fé, baseada nos homens, esboroa-se quando esses ho-
mens cometem um deslize; mas se alicerçada em Cristo, podem todos os homens falir, que Cristo per-
manece inabalável fundamento do bem por toda a eternidade.

A individualidade, o Espírito, sabe que nada valem as preces, as devoções, as ações taumatúrgicas, o
mediunismo curador ou qualquer outro, se não forem baseadas no cumprimento integral da Vontade

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C. TORRES PASTORINO
do Pai, na obediência espontânea e alegre, natural e Jubilosa a todos os ensinamentos e preceitos, se
não forem fundamentados no Amor e na Humildade.
Quem assim não vive, constrói sua evolução sobre a areia, isto é, sobre os átomos da matéria transitó-
ria, sobre a personalidade passageira, e, em sobrevindo a "morte", tudo está perdido, porque fica na
matéria.
Mas a construção é perene, se for alicerçada na Rocha do coração unido ao Cristo Interno que em
nós habita, que é nosso Eu real.
Só a construção fundamentada no Cristo Interno será sólida e eterna.
Nada a abalará.
Com efeito, tudo o que possa ocorrer-nos de fora, só atinge nossa personalidade, quer no intelecto,
quer nas emoções, quer nas sensações, quer na matéria. Mas o Eu profundo é INATINGÍVEL. Nada
de fora o atinge, nem fere, nem magoa, nem diminui.
Daí a impassibilidade exterior de todos os que conseguiram o Encontro Permanente e Divino: casa
construída sobre a Rocha, que é o Cristo.
Todas as vezes que sofremos quando algo acontece, com isso demonstramos que ainda vivemos na
personalidade. Se alguém nos bate, fere ou mata, é apenas atingido um veículo que nos foi temporari-
amente emprestado: nosso EU jamais é alcançado; quando nos magoam, ofendem ou caluniam, é
apenas alcançado um veículo que nos foi temporariamente emprestado: nosso EU jamais é atingido.
O verdadeiro EU é inatingível por qualquer ação externa, mesmo que a ação provenha de nossa pró-
pria personalidade. Por isso, o Homem que consegue a União é IMPASSÍVEL.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

JESUS DESCE DO MONTE

Mat. 7:28-29 e 8:1 Luc 7:1

28. E aconteceu que, tendo Jesus terminado 1. Tendo Jesus concluído todos os seus discur-
essas Palavras, a multidão estava admirada sos dirigidos ao povo, entrou em Cafar-
do ensino dele, naum
29. porque ele as ensinava como quem tinha
autoridade, e não como quem tinha autori-
dade, e não como os escribas.
1. Quando Jesus desceu do monte, acompa-
nhavam-no grandes multidões.

A admiração do povo provinha da autoridade pessoal com que Jesus ensinava. Os rabinos repetiam
Moisés, mas Jesus modificava os preceitos básicos. Embora muitas das expressões usadas fossem cor-
rentes à Sua época, todavia, muita coisa nova aparece no chamado "Sermão do Monte". São flores e
frutos maravilhosos, que resumem tudo o que deve praticar o Homem que realmente queira evoluir.
Terminado o ensino da Palavra (Logos), Jesus reentra em Cafarnaum, a fim de prosseguir no ministé-
rio do serviço e no magistério da palavra e ao exemplo.

A distinção assinalada por Mateus é exatamente a diferença existente entre o ensino dado pela perso-
nalidade transitória (repetição do que os mestres ensinaram) e o ensino ministrado pela individuali-
dade, que é feito com a autoridade de quem bebe diretamente da Fonte Divina, no Encontro Místico,
as Palavras que profere, sublinhando-as com seu exemplo vivo e com sua vida perfeita de amor e de
humildade.

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C. TORRES PASTORINO

ÍNDICE REMISSIVO
1.ª Interpretação: LITERAL, 3 JESUS RETIRA-SE, 77
2.ª Interpretação JESUS SE FIXA EM CAFARNAUM, 39
ALEGÓRICA, 4 JOÃO, 81
3.ª Interpretação JUDAS, 82
FISIO-REALISTA, 4 JUDAS ISCARIOTES, 82
4.ª Interpretação Julgamento, 103
SIMBÓLICA, 5 JULGAMENTOS, 136
5.ª Interpretação JURAMENTOS, 113
MÍSTICA, 6 LUCAS, 86
ADULTÉRIO, 106 LUZ DO MUNDO, 98
AMOR AO PRÓXIMO, 117 MATEUS, 81, 87
ANDRÉ, 81 MATEUS É CHAMADO, 63
BANQUETE DE LEVI, 65 MODÉSTIA, 120
BARCO DE PEDRO, 49 NÃO-RESISTÊNCIA, 114
BARTOLOMEU, 81 NICODEMOS, 5
CAUSA E EFEITO, LEI DE, 140 OFENSAS, 102
COMENTÁRIO DO EVANGELISTA, 7 ORAÇÃO, 47, 122
CONVERSA COM NICODEMOS, 2 OUTRAS CURAS, 45
CONVOCAÇÃO DOS DISCÍPULOS, 40 PAI NOSSO, 124
CURA DA MÃO A TROFIADA, 74 PAI NOSSO, ANÁLISE DO, 123
CURA DA SOGRA DE PEDRO, 44 PESCARIA INESPERADA, 50
CURA DE UM OBSIDIADO, 42 PREOCUPAÇÕES, 132
CURA DO FILHO DO OFICIAL DE HERODES, 36 PRISÃO DE JOÃO, 18
CURA DO LEPROSO, 54 QUESTÃO DO JEJUM, 67
CURA DO PARALÍTICO, 58 QUESTÃO DO SÁBADO, 70
DESCIDA DO MONTE, 84 SAÍDA JUDÉIA, 21
DIFICULDADE NA EVOLUÇÃO, 142 SAL DA TERRA, 97
DISCRIÇÃO, 138 SAMARITANA, 22
ESCOLHA DOS DOZE, 79 SERMÃO DO MONTE, 85
ESPANTO DOS DISCÍPULOS, 28 SIMÃO, 81, 82
exegetas, 87 TADEU, 82
FILIPE, 81 Teresa de Avila, 27
FRUTOS DO ESPÍRITO, 144 TESOUROS, 129
hermeneutas, 87 TIAGO (JACÓ), 81
INTERPRETAÇÃO DA LEI, 100 TOMÉ, 81
JEJUM, 128 ÚLTIMO TESTEMUNHO DE JOÃO, 15
JESUS COM OS SAMARITANOS, 32 VIDA IMANENTE, 7
JESUS DESCE DO MONTE, 148 VISITA A NAZARÉ, 33
JESUS MERGULHA, 14 VIVER OS ENSINAMENTOS, 146
JESUS PERCORRE A GALILÉIA, 52 YHWH, 27, 30, 34, 68, 72, 108, 117, 124

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CARLOS TORRES PASTORINO
Diplomado em Filosofia e Teologia pelo Colégio Internacional S. A. M. Zacarias, em Roma – Professor
Catedrático no Colégio Militar do Rio de Janeiro e Docente no Colégio Pedro II do R. de Janeiro

SABEDORIA DO
EVANGELHO

3..º Volume

Publicação da revista mensa1.

SABEDORIA

RIO DE JANEIRO, 1964


C. TORRES PASTORINO

Figura “JESUS O CRISTO”

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SABEDORIA DO EVANGELHO

CURA DO SERVO DO CENTURIÃO

Mat. 8:5-13 Luc. 7:2-10

5. Tendo Jesus entrado em Cafarnaum, che- 2. Um servo de um centurião, a quem este


gou-se a ele um centurião e, dirigindo-se a muito estimava, estava doente, quase à mor-
ele, disse: te.
6. "Senhor, meu criado jaz em casa paralítico 3. Tendo ouvido falar a respeito de Jesus, o
padecendo horrivelmente". centurião enviou-lhe alguns dos anciãos dos
judeus, pedindo-lhe que viesse curar seu
7. Disse-lhe Jesus; "eu irei curá-lo".
servo.
8. Mas o centurião respondeu: "Senhor, não
4. E estes, chegando-se a Jesus, suplicaram-lhe
sou digno de que entres em minha casa:
com insistência: "ele é digno de que lhe fa-
mas fala somente ao Verbo e meu criado há
ças isso,
de sarar;
5. pois ele ama nosso povo, e ele mesmo edifi-
9. porque também sou homem sujeito à auto-
cou a sinagoga para nós".
ridade e tenho soldados às minhas ordens. E
digo a este: vai lá, e ele vai; e a outro: vem 6. Jesus foi com eles. E quando já estava a
cá, e ele vem; e a meu servo: fazei isto, e ele pequena distância da casa, o centurião en-
faz". viou-lhe amigos para dizer-lhe: "Senhor,
não te incomodes, porque não sou digno de
10. Ouvindo isto, Jesus admirou-se e disse aos
que entres em minha casa,
que o acompanhavam: "Em verdade vos
afirmo, que nem mesmo em Israel encontrei 7. por isso, eu mesmo não me julguei digno de
tão grande fé; vir a ti; mas fala ao Verbo e meu criado fi-
cará são;
11. e digo-vos que muitos virão do oriente e do
ocidente e se sentarão com Abraão, Isaac e 8. pois também sou homem sujeito à autori-
Jacó no reino dos céus; dade e tenho soldados às minhas ordens, e
digo a este: vai lá, e ele vai; a outro: vem cá,
12. mas os filhos do reino serão lançados nas
e ele vem; e a meu servo: fazei isso, e ele
trevas exteriores; ali haverá choro e ranger
faz".
de dentes".
9. Ouvindo isso, Jesus admirou-se e, virando-
13. Então disse Jesus ao centurião: "vai e, como
se para a multidão que o acompanhava, dis-
creste, assim te seja feito". E naquela mes-
se: "Eu vos afirmo que nem mesmo em Is-
ma hora sarou o criado.
rael encontrei tão grande fé".
10. Regressando a casa, os que haviam sido
enviados encontraram o servo de perfeita
saúde.

Logo após o "Sermão do Monte", reentra Jesus em Cafarnaum, onde estabelecera sua residência há
algum tempo (veja vol. 2.º), talvez como hóspede de Pedro e sua esposa. Na casa morava ainda a sogra
e a filha (ou os filhos) de Pedro (cfr. Clemente de Alexandria, Strom. III, 6, tomo 7 , col. 1156).
Aparece em cena um centurião romano (exatóntarchos). Lembramos que o exército romano era dividi-
do a essa época em legiões de 6000 infantes e 300 cavaleiros, comandadas por seis tribunos militares.

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C. TORRES PASTORINO
Cada legião constava de dez coortes de 600 homens, e cada coorte tinha três manípulos de 200 ho-
mens. O manípulo constituía-se de duas centúrias, à frente de cada uma se achava um centurião. Por
conseguinte, o centurião era o mais subalterno dos oficiais.
Sendo Cafarnaum importante entroncamento de estradas, naturalmente requeria a presença de uma
centúria para garantir a ordem política e vigiar os movimentos das caravanas.
As narrativas de Mateus e Lucas divergem. Diz-nos o primeiro que o servo estava apenas paralítico,
enquanto o segundo, sem precisar a enfermidade, anota que se achava "em perigo de vida".
Mateus usa o termo país, que pode ser filho ou servo (geralmente jovem), enquanto Lucas esclarece
tratar-se de "servo" (doulos).
Em Mateus o centurião vai pessoalmente a Jesus; em Lucas ele se serve de uma embaixada de anciãos
judeus.
Dadas as características da história, parece-nos que os pormenores de Lucas contribuem para atestar
maior fidelidade, acrescendo que, pelo movimento psicológico da humildade do centurião, há também
mais lógica no andamento narrativo de Lucas.
O centurião, filiado à religião oficial romana, cujo Sumo Pontífice era o próprio Imperador Augusto,
apreciava no entanto o mosaísmo - o que vem provar, de imediato, sua evolução espiritual, já que
compreendera que o Espírito está acima de qualquer divisão de religiões humanas - e por isso havia
feito construir uma sinagoga para a cidade de Cafarnaum. Isso grangeara-lhe a simpatia dos judeus,
sobretudo dos mais idosos que, nesse gesto deviam ter visto a realização de velhas aspirações sempre
insatisfeitas.
No momento de aflição, os anciãos judeus prontificam-se a atender ao desejo manifestado pelo centu-
rião, de recorrer aos préstimos do novo taumaturgo, cuja fama crescia cada vez mais. Não desejando
apresentar-se pessoalmente (ignorava como o novo profeta, julgado talvez rigoroso ortodoxo, reagiria
diante de um pagão romano), solicita a interferência dos anciãos, que teriam oportunidade de explicar
ao jovem galileu a simpatia do centurião pelos judeus, como um penhor de garantia para obter o favor
impetrado. Eles sabem interceder com insistência, servindo de testemunhas do mérito do romano.
Jesus acede ao pedido, encaminhando-se para a residência do centurião, acompanhado pela pequena
multidão de discípulos e anciãos. Quando o romano se certifica de que foi atendido - talvez por vê-lo
aproximar-se numa esquina próxima ("já estava a pequena distância") - envia outros emissários para
fazê-lo deter-se: sendo pagão em longo contato com judeus, sabia que nenhum israelita podia entrar
em sua casa, nem mesmo falar com ele, sem incidir nas impurezas legais, que requeriam vários ritos
cerimoniais de limpeza posterior. Daí dirigir-se a Jesus por intermediários: "ele mesmo não se julgava
digno de vir a ti".
Cônscio, entretanto, do poder taumatúrgico do Nazareno, o centurião expressa-Lhe, ainda por emissá-
rios (em Mateus, pessoalmente), o conhecimento iniciático profundo da GNOSE e das doutrinas de
Alexandria, numa frase que - ele o sabia - seria compreendida por Jesus: "fala somente ao Verbo (ao
Lagos) e meu servo ficará curado".
As traduções vulgares (porque os tradutores, de modo geral, desconhecem essas doutrinas ou não
aceitam sua veracidade) estão falseadas neste ponto, exceção feita da do Prof. Humberto Rohden (cfr.
"Novo Testamento". 4.ª edição, pag. 11 e 119). Traduzem, pois, como acusativo (objeto direto): dize
uma palavra; mas em grego está em dativo (objeto indireto): eipè lógoi. Note-se que a Vulgata repro-
duziu bem o original, conservando o dativo: dic Verbo, isto é, "dize AO Verbo" o nosso desejo, e se-
remos satisfeitos: o servo ficará curado.
Com essas palavras, demonstrava o centurião o conhecimento que possuía dos segredos da Vida Espi-
ritual, difundida, àquela época, entre os gnósticos. E para confirmá-lo, traz o exemplo de sua própria
pessoa, sujeita à autoridade superior (e portanto obrigada a obedecer), mas ao mesmo tempo com auto-
ridade sobre seus subordinados (e portanto sendo imediatamente obedecido). Ora - depreende-se de
seu raciocínio - sendo Jesus sujeito à Divindade, tinha poder, todavia, por sua evolução elevadíssima,

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SABEDORIA DO EVANGELHO

sobre o Logos, a quem já se unira permanentemente no contato com o Eu Interno ou Consciência


Cósmica. Bastava-lhe, então, expressar seu desejo para vê-lo satisfeito.
Jesus admira-se profundamente, pois nem entre seus compatriotas jamais encontrara um conhecimento
(pistis, fé) tão exato e vasto. Dentre seus apóstolos, com efeito, só João, o Evangelista, revelaria mais
tarde ter adquirido esses conhecimentos gnósticos, sobretudo quando escreve o prólogo de seu Evan-
gelho. Mas este, ele o escreve cerca de cinquenta anos depois deste episódio. Nessa época nada nos diz
que já o conhecesse. Nem pode saber-se se o aprendeu do próprio Jesus (o que é bem provável) ou se
mais tarde e encontrou pela meditação ou em livros publicados pelos alexandrinos.
Desse fato aproveita-se Jesus para afirmar que não é a raça e a religião que influem na conquista do
"reino dos céus", mas o conhecimento da Verdade adquirido pela elevação pessoal de cada um. E di-lo
com palavras acessíveis a todos: "muitos virão do oriente e do ocidente para sentar-se com Abraão,
Isaac e Jacó no reino dos céus". Não apenas alguns privilegiados de outras religiões, mas MUITOS.
Enquanto isso, os filhos do reino (os israelitas), embora convictos de que são os únicos que possuem a
verdadeira religião, ficarão de fora, sem conseguir a herança de um reino de que se dizem filhos.
Recordemos que a expressão "filhos" significava, entre os israelitas, os participantes da qualidade ex-
pressa pelo genitivo que lhe está ao lado: "filho da paz" (Luc. 10:6), "pacíficos"; filhos da perdição"
(João, 17:12), perdidos; "filhos da geena" (Mat. 23:15), condenados; "filhos do trovão" (Marc. 3:17),
zangados; "filhos deste século e filhos da luz" (Luc. l6:8), mundanos e iluminados ou materialistas e
espiritualistas. Esse modo de expressar-se é também muito encontrado no Talmud.

Figura “JESUS E O CENTURIÃO”

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Vem a seguir a conclusão: o servo do centurião é curado na mesma hora. Jesus, portanto, confirma a
convicção do centurião, e realiza a cura a distância, fazendo a ligação através do Logos ou Cristo
Cósmico.

Admirável centurião! Conhecedor profundo e sempre seguro da iniciação da Verdade, revela-se ho-
mem de grande evolução, pois vivia as duas qualidades máximas do evoluído: o AMOR e a HUMIL-
DADE. Diz-nos Lucas que ele AMAVA o empregado; seu amor era tão grande, que ele o estendia não
apenas aos parentes, mas até aos humildes servos. E sua humildade era tão sincera, que acredita não
ser sua casa digna de receber um profeta; e nem ele mesmo se julga digno de entrevistar-se com ele!
...
Com essas amostras, compreendemos bem que Espírito de escol ali se achava encarnado, oculto sob
as modestas roupagens de um centurião, o oficial mais subalterno do exército romano.
Cônscio de sua situação intermediária, reconhecendo haver seres mais evoluídos a quem devia obedi-
ência, e outros seres menos evoluídos sobre quem exercia autoridade, o centurião se colocava na po-
sição exata da HUMIILDADE, que é o reconhecimento natural e sincero de nossa verdadeira situação
perante as demais criaturas. O ser humilde sabe obedecer aos maiores, mas também sabe comandar
aos menores. Quem não sabe obedecer jamais saberá mandar. Mas o não saber mandar aos inferiores
é sinal de fraqueza, e não de humildade. No máximo, seria falsa-humildade.
Compreende-se bem a interpretação mística do fato.
Quando a criatura atinge o grau evolutivo intelectual de saber comportar-se equilibradamente, com-
preendendo o valor e a necessidade do Encontro Supremo com o Cristo Interno, a Ele se dirige com
humildade, confessando-se indigno de recebê-Lo em sua personalidade; mas como já sabe comandar
com autoridade a seus veículos inferiores (a seu servos), dominando suas paixões e desvios, reconhece
que um desses seus "servos", a quem ele amava porque o servia e muito bem, está grave e perigosa-
mente enfermo. Recorre, então, à individualidade para que esta, falando ao Verbo ou Cristo Interno, o
ajude a curar as fraquezas desse seu servo, desse veículo ainda sofredor em sua animalidade, pois se
acha "paralisado" pela inação.
Não requisita de imediato o Encontro porque, em seu conhecimento seguro, reconhece não haver che-
gado ainda o momento oportuno; indispensável, antes, que a saúde seja perfeita em todos os planos.
A individualidade (Jesus) tece elogios a essa personalidade lúcida, equilibrada e humilde, declarando
que "nem em Israel", isto é, nem entre os religiosos, encontrou tão preciso e consciente conhecimento
da Verdade.
Não bastam a religiosidade e a devoção (representada pelos judeus: lembremo-nos de que Judéia
quer dizer "louvor a Deus" nos textos evangélicos). E por isso acrescenta que "muitos virão do oriente
e do ocidente", ou seja, muitos chegarão de outros setores de atividade humana e permanecerão no
Contato da Unificação com o Cristo Interno, enquanto os religiosos profissionais (os "filhos do rei-
no") continuarão nas trevas exteriores (na ignorância) onde há dores e sofrimentos cármicos inevitá-
veis.
A citação tão frequente no Antigo Testamento e na boca de Jesus, dos três primeiros patriarcas
Abraão, Isaac e Jacó, tem sua razão de ser. Os três expoentes máximos e primeiros do povo israelita
representam o ternário superior ou individualidade, primeiro e principal princípio da criatura huma-
na no atual estágio evolutivo. A individualidade, portanto, pode ser representada por uma só perso-
nagem. JESUS, que engloba as três facetas; ou pode ser simbolizada pelas três separadamente, figu-
rada pelos três patriarcas.
Com efeito, ARRAÃO exprime a Centelha Divina, que dá origem a tudo (tal Como ele deu origem ao
"povo escolhido") e daí seu nome: AB (pai) RAM (luz), ou seja, LUZ PAI; o segundo, ISAAC, significa
"que ri", à primeira vista sem nenhum sentido especial; no entanto, se refletirmos que só o ser racio-
nal que tem raciocínio abstrato é capaz de rir, podemos entender que Isaac é a Mente no seu estado

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SABEDORIA DO EVANGELHO

de perfeição, que é alegria; o terceiro, JACÓ, significa "o que vence", no sentido de "o que suplanta
os adversários"; representa, pois, o Espírito, que suplantará todos os obstáculos e vencerá na linha
evolutiva.
Observemos, então, que isso constitui a Trindade, a qual, apesar da trina, é una, pois constitui uma
única individualidade. Assim o Ser Absoluto, sem perder sua unidade, também se manifesta sob trípli-
ce aspecto: o ESPÍRITO, (o Amor); o PAI, Verbo ou Logos (o Amante), e o FILHO (O Amado). Assim
também a individualidade única de cada um pode ser considerada sob três aspectos: a Centelha Divi-
na (o Eu Verdadeiro, partícula do Cristo cósmico, que é o Amor; sua Mente Criadora pela Palavra ou
Som (Pai, Logos, Verbo que é a palavra que ama) e o Espírito individualizado, que é o resultado da
criação dos dois primeiros, que são o PAI-MÃE (Centelha Divina-Mente), e que constitui o Filho, o
Amado.

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O FILHO DA VIÚVA
Luc. 7:11-18
11. E aconteceu que, no dia seguinte, Jesus se dirigia para uma cidade chamada Naim, e iam com
ele seus discípulos e grande multidão.
12. Aproximou-se ele da porta da cidade e levavam para fora um defunto, filho único de sua mãe
que era viúva: e com ela ia muito gente da cidade.
13. Logo que o Senhor a viu, compadeceu-se dela e disse-lhe: "não chores".
14. Aproximando-se, tocou o esquife e pararam os que o conduziam. E disse: "Moço, eu te digo,
levanta-te"!
15. E o que estava morto sentou-se e começou a falar, e Jesus o entregou à mãe dele.
16. Todos se atemorizaram e glorificaram a Deus, dizendo: "Grande profeta surgiu entre nós e
Deus visitou seu povo".
17. Esta Palavra espalhou-se por toda a Judéia e por toda a circunvizinhança.
18. Os discípulos de João contaram-lhe a respeito de todas essas coisas.

A vila de Naim (ainda hoje existente, quase em ruínas, com o mesmo nome), fica a sudeste de Nazaré,
a sete horas de Cafarnaum, perto do djebel Dahl. Esse local é quase o mesmo de Sunem, onde Eliseu
ressuscitou o filho de sua hospedeira (cfr. 2.º Reis, 4:8, 17-37). Loisy atribui ao fato o sentido alegóri-
co: Jerusalém, ameaçada de perder seu filho único Israel, reencontra-o por obra de Jesus.
Aqui, pela primeira vez Lucas atribui a Jesus o epíteto de Senhor (cfr. ainda 7:19; 10:1; 11:39; 12:42;
13:15; 17:6; 18:6 e 19:8).
Era costume no Oriente carregar o cadáver numa padiola, coberto com um lençol. Jesus toca o esquife,
fazendo deter-se o féretro. Com simples ordem, desperta o jovem e, num gesto de suprema bondade
"entrega-o à mãe".
Há muitas discussões exegéticas a respeito da "ressurreição", ou seja, de fazer reviver o "cadáver".
Nada vemos de extraordinário nesse fato, conseguido em certas circunstâncias até por meios mecâni-
cos pela medicina hodierna. Desde que a alma se não tenha desprendido do corpo (ou seja, desde que
não tenha sido rompido o "cordão prateado") há possibilidade de fazer que o espírito retome o coman-
do do grupo celular que constitui o corpo.
Para a criatura evoluída, com clara e segura visão dos diversos planos físico, etérico, astral, etc.) não é
difícil VER que o "espírito" ainda está ligado ao soma. Portanto, se o corpo está em condições hígidas
e seus órgãos com funcionamento razoável, ele pode conseguir que a psiquê retome a direção do con-
junto de células que ainda não está descontrolado, despertando o corpo, embora este já esteja "cadave-
rizado" em estado letárgico ou cataléptico.
Compreendemos bem que o corpo é constituído de um conjunto de Órgãos e tecidos, formados por
grupos de células especializadas, que permanecem todas reunidas pela unidade de sua "alma-grupo",
que é a psiquê (ou ánima) humana. Enquanto, pois, a alma-grupo mantém sob seu domínio o grupo
celular somático, há possibilidade de fazer reviver o cadáver. Caso, todavia, tenha havido o rompi-
mento do "cordão de prata", cada grupo de células especializadas assume sua própria função biológica
independente, transformando-se as células em "vermes" uni ou pluri-celulares. Dizemos, então, o cor-
po "entrou em putrefação". Já nesse estágio supomos impossível uma ressurreição. Entretanto, não

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estamos em condições de categoricamente afirmar que é impossível: apenas supomos que o seja. Que
sabemos nós das Leis da Natureza, para fazer afirmações definitivas?

Há ocasiões em que o Eu Real vê a individualidade triste, a lamentar-se, porque seu filho único (o
"espírito" encarnado) está anquilosado na indiferença ou cadaverizado na descrença, e já sendo con-
duzido ao sepulcro, fora de tudo o que é belo e agradável (Naim significa exatamente "belo") .
Diante dessa situação desesperadora, o Eu Interno resolve intervir para “ressuscitar" o "espírito"
morto em vida, desanimado de tudo e de todos. Nessas ocasiões, ocorre que o Cristo Interno, comovi-
do, toca, por meio dos dedos da consciência atual, o cadáver, e detém o cortejo dos vícios que arras-
tam o morto para a sepultura definitiva. Vem então a ordem imperiosa e curta: "Levanta-te"!
A essa voz de comando, irresistível e amorosa, dá-se a "conversão" do "espírito" que, aturdido ao
verificar o perigo que o estava ameaçando, ergue-se de um salto e começa a falar. Então o Eu Inter-
no, recolhendo-se novamente ao seu anonimato, entrega-o à individualidade, sua mãe, para que o
dirija.
Diante do ocorrido todos se maravilham: operou-se um prodígio, e o "pecador" sai da morte para a
vida, ressuscitando para o espiritualismo. Todos os veículos, todas as células, sentem que "Deus visi-
tou seu povo", isto é, que o Eu Interno se manifestou sensivelmente. Acontece, então, que o Logos (a
Palavra) se espalha por toda a Judéia (incentivando o espírito religioso) e por todas as circunvizi-
nhanças (atingindo todos os demais setores).
O final, com toda a característica histórica (os discípulos de João foram contar-lhe, no cárcere de
Maquérus onde se achava, todos esses feitos) tem, como cada palavra evangélica, o seu sentido mais
profundo: os veículos (Somático, etérico e astral - discípulos de João, isto é, da personalidade) vão
notificar o intelecto já iluminado (João), embora prisioneiro da matéria, a transformação fabulosa
que se operou naquele "espírito": isto significa que a criatura que foi beneficiada, toma conhecimento
e consciência de tudo o que com ela ocorreu.

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A FAMÍLIA DE JESUS

Mat. 12:46-50 Marc.: 3:20-21 e 31-35 Luc. 8:19-21

46. Enquanto ele ainda falava à 20. E entrou em casa; e mais 19. Vieram ter com ele sua mãe
multidão, a mãe e os irmãos uma vez a multidão afluiu e seus irmãos, e não podiam
dele estavam de fora, pro- de tal modo que nem se- aproximar-se dele por cau-
curando falar-lhe. quer podiam comer pão. sa da multidão.
47. E alguém disse-lhe: "olha, 21. Quando seus parentes sou- 20. E foi-lhe dito: "Tua mãe e
tua mãe e teus irmãos estão beram disso, saíram para teus irmãos estão lá fora
lá fora e procuram falar- segurá-lo, porque, diziam, querendo ver-te".
te". "está fora de si" 21. Ele, porém, respondendo,
48. Mas ele respondeu ao que ............. disse-lhes: "minha mãe e
lhe falava: "quem é minha 31. Chegaram sua mãe e seus meus irmãos são aqueles
mãe e quem são meus ir- irmãos; e ficando do lado
que ouvem a Palavra de
mãos"? de fora, mandaram chamá-
Deus e a praticam".
49. E estendendo a mão para lo.
seus discípulos, disse: "Eis 32. E muita gente estava senta-
minha mãe e meus irmãos; da ao redor dele e disse-
50. porque aquele que fizer a ram-lhe: "Olha, tua mãe e
vontade de meu Pai que teus irmãos [e tuas irmãs]
está nos céus, esse é meu estão lá fora e te procu-
irmão, irmã e mãe'! ram".
33. Ele perguntou-lhes dizen-
do: "quem é minha mãe ou
meus irmãos"?
34. E olhando em torno para os
que estavam sentados em
roda, disse: "eis minha mãe
e meus irmãos;
35. pois quem fizer a vontade
de Deus, esse é irmão, irmã
e mãe".

Aqui são-nos apresentados os familiares de Jesus, numa cena curta e objetivas. Jesus achava-se em
casa, e a multidão o comprimia de tal forma que ninguém podia chegar até ele (cfr. Marc. 2:1-2; vol.
2.º pág. 81). E quando se apresentam Sua Mãe e Seus irmãos e querem falar-Lhe.
Em Mateus, o vers. 47 parece apócrifo, pois falta nos códices aleph e B, em quatro manuscritos, nas
versões siríacas (sinaítica e curetoniana) e na saídica. Por isso não é aceito por Hort, Soden, Tischen-
dorf, Lagrange e Pirot. Com efeito é redundante, com um pormenor desnecessário, podendo passar-se
do 46 ao 48.

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Em Marcos, que apesar de mais sucinto é o que traz mais minúcias, a cena é descrita em dois lances.
No primeiro dá-nos ciência de que seus parentes (hoi par'autou) vieram a saber, em Nazaré (que dista-
va de Cafarnaum cerca de 30 km) do que se passava com Jesus. As notícias chegam sempre aumenta-
das, mormente após caminharem trinta quilômetros! Tão exageradas, que seus "parentes" o julgaram
"fora de si" e foram depressa "para segurá-lo", a fim de impedir que Seu entusiasmo e Sua exaltação
mística Lhe prejudicassem a saúde. A expressão "fora de si" é usada por Paulo (2 Cor. 5:13) para ex-
primir exatamente o êxtase místico, e não (como traduziu a Vulgata) a loucura.
Entre a notícia recebida e a chegada a Cafarnaum, Jesus tem tempo de discutir com os escribas de Je-
rusalém.
Quando seus "parentes" chegam, é que ficamos sabendo de quem se tratava: "sua mãe, seus irmãos e
suas irmãs".
A expressão "suas irmãs" está nos códices A, D, E, F, H, M, S, U, V, Gama, e na maior parte das anti-
gas versões latinas; é aceita por Soden e Merck; Vogel e Nestle a colocam entre colchetes. Não apare-
ce nos códices Aleph, E, C, G, K, Delta, Pi, 1, 13, 33 e 69 e na Vulgata, sendo recusada por Westcott-
Hort, Souter, Swete, Lagrange e Pirot.
A pergunta, aparentemente desrespeitosa para com Sua mãe, vem demonstrar que Jesus. Em Sua mis-
são, não está preso pelos laços sanguíneos, tão frágeis que só vigoram numa dada encarnação. A famí-
lia espiritual é muito mais sólida, pois os vínculos são espirituais (sintônicos) e não materiais (sangue e
células perecíveis). Jesus não pode subordinar-se às exigências do parentesco terreno, mesmo em se
tratando de Sua mãe. Com o olhar benévolo sobre os que O rodeavam, Jesus lança Sua doutrina nítida:
o ideal é superior aos laços de sangue; a família espiritual é mais importante que a natural e sobreleva
a ela. Nem se diga que há mais obrigação de cuidar dos "próximos" consanguíneos, mais do que dos
estranhos, já que aqueles constituem uma "obrigação" (e por isso os romanos os designavam com a
palavra "necessários"), e os outros "apenas" amizade. Não vale isso: pois se os parentes consanguíneos
realmente amam o idealista e querem sua presença e assistência constante, por que também não se tor-
nam seus discípulos espirituais e o acompanham por toda parte como os demais adeptos?
Para o que se dedica ao ministério espiritual contam apenas, como "parentes" aqueles que lhes bebem
os ensinos e dele se aproveitam para evoluir. Se os consanguíneos quiserem, podem agregar-se aos
discípulos (como o fizeram os irmãos de Jesus Tiago e Judas Tadeu, que até se tornaram Seus emissá-
rios (apóstolos).
Quanto aos quatro irmãos de Jesus (Tiago, Judas Tadeu, Simão e José) e às duas irmãs (Maria e Salo-
mé), já apresentamos o problema do parentesco no vol. 2.º, pág- 111-112.

A lição de Jesus (individualidade) quanto ao modo de serem tratados os parentes consanguíneos, vale
hoje e sempre. Não é o fato, repitamos, de haver um laço de parentesco, que pode desviar o curso
evolutivo de um espírito. O parentesco espiritual de fraternidade REAL com todas as criaturas (por-
que filhos do mesmo PAI celestial), é muito mais forte; e Jesus ensina (categoricamente: "a ninguém
na Terra chameis vosso Pai, porque só um é vosso Pai: aquele que está nos céus" (Mat. 23:9), ou seja,
no imo do coração: a Centelha Divina, o Cristo Interno.
Os parentes - inclusive pai, mãe, irmãos e irmãs - são acidentes temporários que se desfazem ao ter-
minar essa encarnação, renovando-se a cada novo nascimento (salvo exceções em que se verifica uma
repetição que, por vezes, dura duas ou três vidas).
Mas os sintonicamente afins, esses seguem em grupos homogêneos que, mesmo sem parentesco físico
algum, se reencontram seguidamente durante milênios.
*
* *

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Outra lição que depreendemos do texto, é que os parentes representam os veículos do espírito (físico,
etérico, astral e intelecto), que são os "parentes” terrenos mais próximos e chegados ao espírito en-
carnado. E a descrição do modo de tratá-los mereceu um tratado especial, o Bhagavad-Gita.
A cena evangélica, neste passo, mostra-nos como a individualidade deve tratar seus veículos. Muitas
vezes o Espírito se retira ou trabalha, na meditação ou no estudo; e os veículos físicos vêm chamá-lo,
porque o acham "fora de si", desequilibrado. Mas o Espírito, de acordo com a lição de Jesus, precisa
colocá-los em seu devido lugar. Eles têm que ser veículos que façam a vontade do Pai (Centelha Divi-
na) e conduzam à espiritualização. Se quiserem atrapalhar, conclamando o Espírito para satisfação
dos apelos do físico, das sensações do etérico; das emoções desequilibradas do astral e dos prazeres
puramente intelectuais, não devem ser atendidos, mas rejeitados, enquanto o Espírito busca seus pa-
res, os que estão na mesma faixa vibratória.
As exigências fisiológicas tendem sempre a afastar o Espírito de sua ascensão evolutiva, e por isso a
personalidade é, realmente, um "satanás" ou "diabo", que tenta desviar todos os impulsos que levam
ao Sistema, ao pólo positivo - que é árduo de conquistar - para arrastá-lo para o pólo negativo, onde
tudo é mais fácil, agradável e satisfatório. Mas o Espírito, prevenido pelo ensino do Mestre, recusa
ouvir-lhe essas exigências, e lhe responde autoritariamente que, se quiserem algo dele, o acompanhem
em sua evolução, como servos dóceis e eficientes.

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JOÃO - REENCARNAÇÃO DE ELIAS

Mat. 11:2-19 Luc.: 7: 19-35

2. Como João, no cárcere, tivesse ouvido falar 19. Chamando dois deles (de seus discípulos),
das obras de cristo, mandou dois de seus João enviou-os a Jesus, para perguntar: "És
discípulos perguntar-lhe: tu o que deve vir, ou esperaremos outro"?
3. "És tu o que vem, ou devemos esperar ou- 20. Quando esses homens chegaram a ele, dis-
tro"? seram: "João, o Batista, enviou-nos para te
perguntar: 'és tu o que vem, ou esperare-
4. Respondeu-lhes Jesus: "Ide contar a João o
mos outro'?
que estais ouvindo e observando:
21. Na mesma hora curou Jesus a muitos de
5. os cegos vêem de novo; os coxos andam; os
moléstias, de flagelos, e de obsessores, e
leprosos ficam limpos; os surdos estão ou-
concedeu vista a muitos cegos.
vindo; os mortos se levantam e aos mendi-
gos é dirigida a boa-nova; 22. Então respondeu-lhes: "Indo embora, rela-
tai a João o que vistes e ouvistes: os cegos
6. e feliz aquele que não tropeça em mim".
vêem de novo, os coxos andam, os leprosos
7. Ao partirem eles, começou Jesus a falar ao ficam limpos, os surdos estão ouvindo, os
povo a respeito de João: "Que saístes a ver mortos se levantam, e aos mendigos é diri-
no deserto? Uma cana sacudida pelo vento? gida a boa-nova.
8. Mas que saístes a ver? Um homem vestido 23. E feliz é o que não tropeça em mim".
de roupas finas? Os que vestem roupas fi-
24. Tendo ido os mensageiros de João, começou
nas residem nos palácios dos reis.
a falar ao povo a respeito de João: "Que
9. Mas que saístes a ver? Um profeta? Sim, saístes a ver no deserto? Uma cana sacudida
digo-vos, e muito mais que um profeta. pelo vento?
10. É dele que está escrito: 'Eis que envio ante 25. Mas que saístes a ver? Um homem vestido
tua face meu mensageiro, que preparará teu com roupas finas? Os que se vestem rica-
caminho diante de ti'. mente e vivem no luxo, estão nos palácios
11. Em verdade vos digo que não apareceu en- dos reis.
tre os nascidos de mulher outro maior que 26. Mas que saístes a ver? Um profeta? Sim,
João, o Batista (o que mergulha); mas o rei- digo-vos, e muito mais que profeta.
no dos céus é maior que ele.
27. É dele que está escrito: 'eis que envio ante
12. Desde os dias de João, o Batista, até agora, tua face meu mensageiro, que preparará teu
o reino dos céus é assaltado, e os assaltantes caminho diante de ti'.
o conquistam,
28. Eu vos digo: entre os nascidos de mulher,
13. porque todos os profetas e a lei profetiza- não há nenhum maior que João; mas o me-
ram até João. nor no reino de Deus, é maior que ele".
14. E se quereis aceitar (isto), ele mesmo é Elias 29. Ao ouvir isto, todo o povo e até os cobrado-
que estava destinado a vir. res de impostos reconheceram a justiça de
15. O que tem ouvidos, ouça. Deus, sendo mergulhados com o mergulho
de João;
16. Mas a que hei de comparar esta geração? É
semelhante a meninos sentados nas praças, 30. mas os fariseus e 0s doutores da lei despre-

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que gritam aos companheiros: zaram a vontade de Deus quanto a eles, não
17. 'nós vos tocamos flauta, e não dançastes; tendo sido mergulhados por ele.
entoamos lamentações e não chorastes'. 31. "A que, pois, compararei os homens desta
geração, e a que são eles semelhantes?
18. Porque veio João não comendo nem beben-
do, e dizem: 'ele recebeu um espírito desen- 32. São semelhantes a meninos que se sentam
carnado'. na praça e gritam uns para os outros: 'nós
19. Veio o filho do homem comendo e bebendo, tocamos flauta e não dançastes; entoamos
lamentações e não chorastes'.
e dizem: 'eis um homem glutão e bebedor
de vinho, amigo de cobradores de impostos 33. Pois veio João, o Batista, não comendo pão
e pecadores'! E contudo, a sabedoria é justi- nem bebendo vinho e dizeis: “ele recebeu
ficada por seus filhos". um espírito desencarnado".
34. Veio o filho do homem comendo e bebendo,
e dizeis: "eis um homem glutão e bebedor
de vinho, amigo de cobradores de impostos
e pecadores!'
35. Entretanto, a sabedoria é justificada por
todos os seus filhos.

João estava na prisão de Maquérus (veja vol. 2). Daí acompanhava com grande interesse todo o desen-
volvimento do ministério de Jesus, sobre o qual é constantemente informado por seus discípulos, que o
visitam com frequência. O que mais lhe contam são os prodígios operados pelo novo taumaturgo de
Nazaré. João jamais perdeu de vista sua tarefa de precursor e todos os seus atos destinam-se a "prepa-
rar o caminho diante dele" (vol. 1).
Que Jesus era o Messias, não havia dúvida para João, que O reconhecera desde o ventre materno (Luc.
1.41. vol. 1); era consciente de ser ele o precursor (Mat. 3:1-6; vol. 1); declarou mesmo que não era
digno de desatar-lhe as correias das sandálias (Mat. 3: 11-12; vol 1); declarou até peremptoriamente
ser o precursor predito (João, 1:19-28; vol. 1); não queria ,mergulhar Jesus, porque se julgava indigno
(Mat. 3:13-15; vol. 1); durante o ato do mergulho viu o sinal do Espírito (Mat. 3:16-17; vol 1); desi-
gnou Jesus como o “cordeiro que resgata o carma do mundo" (João 1: 29-33) e taxativamente declara
"eu vi e testifiquei que Ele é o escolhido de Deus" (João, 1:34; vol. 1); além de tudo isso, influi nos
discípulos que sigam Jesus, declarando-o "o messias" (João, 1:35-37; vol. 1); e quando seus discípulos
se queixam de que Jesus está atraindo multidões, João lhes dá a entender que Jesus é o Messias e
acrescenta "é necessário que ele cresça e que EU diminua" (João 3:25-30; vol. 2).
No entanto, apesar de tudo isso, os discípulos de João não viam Jesus com bons olhos e, por ciúmes,
"escandalizavam-se dele". Observe-se que o verbo grego skandalízô en significa literalmente "tropeçar
em". Assim o substantivo skándalon era, na armadilha, a peça-chave (o alçapão ou trava), que a fazia
detonar. Então, escandalizar era tropeçar na trava, ficando preso na armadilha.
Mas, dizíamos, os discípulos de João tinham ciúmes do êxito crescente de Jesus (coisa tão comum en-
tre espiritualistas!), especialmente quando viram seu próprio mestre na prisão. Observamos que eles
criticaram Jesus na questão do jejum (Mat. 9:14) unindo-se aos piores inimigos de Jesus; vimos que
eles foram queixar-se de Jesus ao próprio João, quando então o Batista se limita a recordar-lhes o que
lhes havia afirmado a respeito de Jesus (vol. 2).
Na prisão, João percebia que seu fim estava próximo e preocupava-se, em primeiro lugar, em conse-
guir mais uma oportunidade de exercer oficialmente sua tarefa de precursor; mas além disso, queria
aproximar de Jesus seus discípulos, a fim de que estes não prosseguissem, após seu desencarne, no
culto de um precursor, ao invés de seguir o verdadeiro Mestre. Para isso, era indispensável uma defini-
ção pública de Jesus. E João resolve provocá-la, mas com delicadeza, deixando-lhe o caminho aberto
para que Jesus respondesse como julgasse mais oportuno.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Daí a pergunta confiada aos dois mensageiros : "és tu o que vem (ho erchómenos, no particípio pre-
sente) ou deverá ser esperado outro"?
Anote-se, para fixar o sentido em que era usada a palavra "anjo" naquela época, que Lucas dá, aos dois
discípulos de João que foram mandados a Jesus, o título de "anjos", isto é, mensageiros.
Jesus responde-lhes com fatos, e, na presença deles, realiza as obras preditas pelos antigos profetas de
Israel como típicas "daquele que viria"; e depois de fazer, passa a citar as realizações por eles antevis-
tas: quanto aos mortos, Isaías, 26: 19; quanto aos surdos e mendigos, Isaías, 29: 18; quanto aos cegos e
surdos, Isaías, 35:5 e quanto aos infelizes, Isaías, 61:1.
Após as obras e citações, Jesus conclui "feliz o que não tropeça em mim" (makários hoi eàn mé skan-
daIisthêi), ou seja, o que não se recusar a aceitá-lo, por não compreender Sua missão. A advertência
dirige-se abertamente aos discípulos de João que criticavam Jesus. Eles, de mentalidade estreita, fa-
zendo questão fechada de ser vegetarianos e abstêmios de vinho e sexo, "tropeçaram" num Missionário
verdadeiro (Jesus), e não no quiseram aceitar, por ser Ele "comilão e beberrão de vinho" (cfr. Mat.
11:18-19 e Luc. 7 :33-34).
Quanto a Jesus, sempre preferiu confirmar Sua missão por meio de Suas obras e de Seus exemplos.
Jesus espera que os discípulos de João se retirem, e então tece o panegírico do precursor, talvez para
que os apóstolos e outros seguidores Seus não viessem a pensar que a pergunta de João fora provoca
da por alguma dúvida real do precursor. Tanto que a primeira pergunta se refere à falta de fé, à vacila-
ção nas atitudes: a cana sacudida pelo vento. João não é um homem qualquer sem convicções, não é
um “grande do mundo", rico e poderoso; e nessa série de perguntas repetidas, a eloquência se exalta:
um profeta? sim, diz Jesus, e muito mais do que profeta: o precursor do Messias. Isso é afirmado atra-
vés da citação de Malaquias (3:11).
Subindo mais ainda, Jesus chega ao clímax, afirmando categoricamente com solenidade: "em verdade
vos digo, entre os nascidos de mulher ninguém é maior que João". Já explicamos (vol. 1) o sentido da
expressão "filho do homem". Recordemos.
Os gnósticos distinguiam dois graus de evolução: os "nascidos de mulher" ou "filhos de mulher" e os
"filhos do homem".
Os "filhos de mulher" são os que ainda estão sujeitos à reencarnação cármica, obrigados a renascer
através da mulher, sejam eles involuídos ou evoluídos. Neste passo declara Jesus que dentre todos os
que estão ainda sujeitos inevitavelmente ao kyklos anánke (ciclo fatal) da reencarnação, o Batista é o
maior de todos.
Já os "filhos do homem" (dos quais Jesus se cita como exemplo logo abaixo, versículo 19) são os que
não estão mais sujeitos à reencarnação, só reencarnando quando o querem para determinada missão; e
são assim chamados como significando aqueles que já superaram o estágio hominal, sendo, o resultado
ou "filho" da evolução humana. Na realidade, Jesus era um dos "filhos do homem", como também ou-
tros avatares que vieram à Terra espontaneamente para ajudar à humanidade (tais Krishna, Buda, etc.).
João, o Batista, cujo Espírito animara, na encarnação anterior a personalidade de Elias o Tesbita, esta-
va sujeito à reencarnação para resgatar o assassinato dos sacerdotes de Baal, junto à torrente de Kishon
(cfr. 1 Reis, 18:40 e 19: 1), mortos à espada por ordem dele; e por isso a personalidade de João tam-
bém teve a cabeça decepada à espada (cfr. Mat. 14:10-11). A Lei de Causa e Efeito é inapelável.
João, portanto, ainda pertencia ao grau evolutivo dos "nascidos de mulher", embora fosse o maior de
todos naquela época.
Entretanto, todos aqueles que tenham conquistado o "reino dos céus", isto é, que hajam obtido a união
hipostática com o Cristo Interno, são maiores do que ele, no sentido de terem superado essa fase do
ciclo reencarnatório: e portanto de haverem atingido o grau de "filhos do homem". Tão importante se
revela essa união definitiva com a Divindade!
Surgem depois dois versículos que os comentadores ansiosamente buscam penetrar quanto ao sentido
profundo, mas, de modo geral, permanecem na periferia, dizendo que "só os que se esforçam violen-

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tamente conseguem o reino dos céus"; e, na segunda parte, que Jesus colocou aqui João como "marco
divisório a encerrar o Antigo Testamento ("toda a Lei e os Profetas até João", como diz Agostinho:
videtur Joannes interjectus quidam limes Testamentorum duorum, Patrol. Lat. vol. 38, col. 1328).
E finalmente a grande revelação, irrecusável sob qualquer aspecto: "se quereis aceitar isso (se fordes
capazes de compreendê-lo) ele mesmo é Elias, o que devia vir ... quem tem ouvidos, ouça (quem pu-
der, compreenda!).
A tradução do vers. 14 não coincide com as comuns. Mas o grego é bem claro: kai (e) ei (se) thélete
(quereis) decsásthai (aceitar, inf. pres. ) autós (ele mesmo) estin (é) Hêlías (Elias) ho méllôn (part .
presente de mellô, destinado", "o que estava destinado") érchesthai (inf. pres.: a vir).
A Vulgata traduziu: "et si vultis recipere, ipse est Elias qui venturus est", em que o particípio futuro na
conjunção perifrástica dá o sentido de obrigação ou destino do presente do particípio méllôn; acontece
que o latim ligou num só tempo de verbo (venturus est) o sentido dos dois verbos gregos (ho méllôn
érchesthai). Com essa tradução, porém, o sentido preciso do original ficou algo "arranhado". Se a tra-
dução fora literal, deveríamos ler, na Vulgata (embora com um latim menos ortodoxo): "ipse est Elias
debens venire", o que corresponde exatamente à nossa tradução: "ele mesmo é Elias que devia (estava
destinado) a vir". Levados pela tradução da Vulgata, os tradutores colocam o futuro do presente (que
deverá vir), quando a ação é nitidamente construída no futuro do pretérito.
A previsão do regresso de Elias à Terra (cfr. Mat. 3:23-24) "eis que vos envio Elias, o profeta, antes
que chegue o dia de YHWH grande e terrível: ele reconduzirá o coração dos pais para os filhos e dos
filhos para os pais" ... é confirmada no Eclesiástico (48:10) ao elogiar Elias "tu, que foste designado
para os tempos futuros como apaziguador da cólera, antes que ela se inflame, conduzindo o coração do
pai para o filho".
Alguns pensam tratar-se "do último dia do juízo final", mas Jesus mesmo dá a interpretação autêntica,
quando diz: "eu vos declaro que Elias já veio mas não foi reconhecido" ... "e os discípulos entenderam
que Ele lhes falava de João Batista" (Mat. 17:12-13).
Então, não pode restar a mínima dúvida de que Jesus confirma, autoritária e inapelavelmente, que João
Batista é a reencarnação de Elias. Embora sejam duas personalidades diferentes, o Espírito (ou indivi-
dualidade) é o mesmo. Gregório Magno compreendeu bem o mecanismo quando, ao comentar o passo
em que João nega ser Elias (João, 1:21) escreveu: "em outro passo o Senhor, interrogado pelos discí-
pulos sobre a vinda de Elias, respondeu: Elias já veio (Mat. 17:12) e, se quereis aceitá-lo, é João que é
Elias (Mat.11:14). João, interrogado, diz o contrário: eu não sou Elias ... É que João era Elias pelo Es-
pírito (individualidade) que o animava, mas não era Elias em pessoa (na personalidade). O que o Se-
nhor diz do Espírito de Elias, João o nega da pessoa" (Greg. Magno, Hom. 7 in Evang., Patrol. Lat.
vol. 76, col. 1100).
Jesus não precisava entrar em pormenores sobre a reencarnação, pois era essa uma crença aceita nor-
malmente entre os israelitas dessa época, sobretudo pelos fariseus, só sendo recusada pelos saduceus.
Em Lucas há dois versículos próprios a ele, distinguindo amassa e os publicanos, que aceitaram o mer-
gulho de João, e os fariseus e doutores da lei, que não aceitaram a oportunidade da mudança de vida,
que Deus lhes oferecia por intermédio de João.
E Jesus prossegue propondo uma parábola, na qual ilustra a contradição de Seus contemporâneos
("desta geração"), que não aceitam a austeridade da pregação de João nem a bondade alegre dos ensi-
nos de Jesus. Ao verem a penitência e abstinência do Batista, ,disseram que "estava obsidiado", que
"tinha espírito desencarnado"; e ao observarem a leveza de atitudes do Nazareno, taxaram-no de co-
milão e beberão.
Cabe notar en passant que a obsessão é sempre atribuída em o Novo Testamento a um daímon (espí-
rito desencarnado), em hebraico dibbuck, e jamais ao diábolos (cfr. vol. 1).

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Definida a posição de dúvidas e hesitações da humanidade daquela época, (da qual pouco difere a
atual) o Mestre conclui com um aforismo: a sabedoria é justificada por seus filhos, ou seja, por seus
resultados. Com efeito, o que é produzido pelo sábio é que lhe justifica a sabedoria.

Há fatos que trazem lições preciosas. Aqui temos um.


O intelecto (João) no "cárcere" da carne, ouve as teorias a respeito da individualidade (Jesus) mas,
como é de seu feitio raciocinador, quer provas. Não se contenta em ouvir afirmativas de outrem: exige
confirmação do próprio. E o meio mais rápido é pedir à própria individualidade que se defina, que
apareça, que se declare de origem divina.
Evidentemente, de nada adiantaria mais uma assertiva, embora proveniente da própria individualida-
de: o intelecto continuaria na dúvida. Inteligentemente a individualidade não responde com palavras,
mas com fatos. O intelecto manda dois de seus discípulos, (faculdades de percepção e de observação)
para apurar. E a resposta consiste em fatos: "veja, diz a individualidade, como se te modificam as
coisas: a cegueira intelectual se abriu para a luz; os ouvidos da compreensão, antes surdos, estão
atentos à voz interior; os passos incertos na caminhada evolutiva se tornaram firmes; os resgates
cármicos que enfeavam a personalidade vão sendo limpos; a morte da indiferença às coisas espiritu-
ais se torna vida entusiástica e, apesar de toda a pobreza dos veículos físicos e do "espírito" é a ele
que se dirige a ótima notícia do "reino" ... mas, coitado daquele que, apesar de todas as evidências,
não crê e tropeça no conhecimento da individualidade ... feliz, porém, aquele que compreende e acei-
ta".
O intelecto recebe as lições e os testemunhos, que lhe comprovam a realidade dos fatos, e retira-se
para meditação.
Entretanto, além da lição extraída dos fatos, temos outra, surgida com a Palavra: o Verbo de Deus
que se manifesta dentro de nós (Jo. 1:14).
Em primeiro lugar, com as perguntas insistentes, temos avisos repetidos do que procura o Espírito:
nem coisas fúteis (uma cana sacudida pelo vento), nem luxo (homem vestido de roupa, finas) nem
mesmo um profeta (médiuns e videntes), mas algo maior que isso: o Espírito quer descobrir o caminho
para encontrar seu único Mestre, o Cristo Interno. Para isso, está sempre alerta, a fim de entrar em
contato com o "mensageiro" (pequeno mestre) que vem mostrar o caminho e aplainá-lo, para facilitar
a busca e o Encontro. A tarefa desse "precursor" e mestre humano (intelecto = ,João) é "aplainar as
veredas", abaixar os outeiros e elevar os vales e levar o coração dos pais aos filhos e vice-versa (ou
seja, harmonizar a mente com todos os veículos que a carregam na jornada evolutiva). O intelecto,
portanto, PREPARA o caminho da personalidade, para que ela possa encontrar o Cristo Interno. En-
tão, o intelecto iluminado é o precursor do Cristo Interno, seja esse intelecto o da própria criatura,
seja o de criaturas outras que se disponham a “servir” à humanidade. E esses precursores tem vindo
várias vezes à Terra, sendo alguns reconhecidos como avatares de lídima estirpe.
Ocorre, entretanto, que muitos dos discípulos desses precursores do Cristo Interno tomam a si, tam-
bém, a tarefa de indicar a senda, quer falando, quer escrevendo, quer sobretudo exemplificando.
E aqui temos o exemplo que Jesus dá, de João, o intelecto que preparou realmente o caminho para o
Cristo, e que, por isso, foi destacado como "o maior" dentre os que vivem ainda na personalidade.
Não obstante, aquele que tiver dado o Mergulho em profundidade na Consciência Cósmica, dentro de
si mesmo, esse será, em sua individualidade, como "filho do homem", maior que qualquer das maiores
personalidades. E por isso João é apresentado como "o mergulhador" (o Batista), "o que mergulha",
isto é, "o que prepara, através" do mergulho que ele ensina, o caminho para o Encontro com o Cristo
Interno".
Jesus, a individualidade, não podia deixar de elogiar esse intelecto iluminado, a fim de chamar nossa
atenção a respeito de como processar a aproximação da meta gloriosa. E o evangelista, que aprende-
ra o mergulho de João e por isso encontrara Jesus (a individualidade), comenta que os humildes
(povo e publicanos) haviam correspondido ao ensino de João e haviam mergulhado, descobrindo o

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Cristo em si, mas os orgulhosos (fariseus e doutores) haviam rejeitado esse ensino, desprezando a
oportunidade que a Vida (Deus) lhes oferecera, e não tinham aceito o mergulho.
Jesus confirma ainda que a representação do intelecto iluminado (Buddha) em o Novo Testamento é a
mesma que fora apresentada, como protótipo no Antigo: Elias.
Depois, numa parábola, avisa a quem possa compreender, que jamais haja decepção, porque a gera-
ção que está na Terra ainda não sabe o que quer, por imaturidade mental. Se um dirigente vem com
penitências, é rejeitado; e se vem com alegria, também o é. Desde que não concordem com seus pon-
tos-de-vista terrenos, os "profetas" ou "precursores" são recusados e levados ao ridículo por qualquer
das facções já existentes.
Todavia, são os resultados obtidos que justificam a sabedoria, e não as palavras proferidas, nem as
aparências, nem o êxito entre as criaturas, nem o poder, nem a força, nem a santificação externa, pro-
veniente dos outros. O que vale é o resultado íntimo, ou seja, o Encontro Místico, oculto, que se dá no
"quarto a portas fechadas", atuando assim "nos céus que estão no secreto, onde habita o Pai”.

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O AMOR SALVA
Luc. 7:36-50
36. Um dos fariseus convidou-o para jantar com ele. Entrando na casa do fariseu, reclinou-se à
mesa.
37. Havia na cidade uma mulher que era pecadora, e esta, sabendo que ele estava jantando na
casa do fariseu, trouxe um vaso de alabastro com perfume
38. e, pondo-se-lhe por trás, aos pés, a chorar, começou a regá-los com lágrimas e os enxugava
com os cabelos de sua cabeça, e beijava-lhes os pés e ungia-os com o perfume.
39. Ao ver isso, o fariseu que o convidara pensava consigo: 'Se esse homem fosse profeta (mé-
dium), saberia quem é, e de que classe, a mulher que o toca, pois é uma pecadora'.
40. E respondendo-lhe, disse Jesus: "Simão, tenho algo a dizer-te". Ele disse: "Fala, Mestre".
41. 'Certo agiota tinha dois devedores; um lhe devia quinhentos denários e o outro cinquenta.
42. Não tendo nenhum dos dois com que pagar, perdoou a dívida a ambos. Qual deles, portanto,
o amará mais"?
43. Respondeu Simão: "Suponho que aquele a quem mais perdoou". Replicou lhe: "Julgaste
bem".
44. E, virando-se para a mulher disse a Simão: "Vês esta mulher? Entrei em tua casa, e não me
deste água para os pés; mas esta mos regou com lágrimas e os enxugou com seus cabelos.
45. Não me deste ósculo; ela, porém, desde que entrei, não cessou de beijar-me os pés.
46. Não ungiste minha cabeça com óleo, mas esta, com perfume ungiu meus pés.
47. Por isso te digo: foram resgatados seus muitos erros, porque ela amou muito; mas aquele a
quem pouco se resgata, pouco ama".
48. E disse à mulher: "Foram resgatados teus erros".
49. Os que estavam com ele à mesa começaram a dizer consigo mesmo: "Quem é esse que até
resgata erros"?
50. Mas Jesus disse à mulher. "Tua fé te salvou; vai em paz".

Trata-se aqui de um episódio particular a Lucas, que não deve ser confundido com outra cena seme-
lhante, ocorrido mais tarde (em abril do ano seguinte) na casa de Simão, ex-leproso, em Betânia (cfr.
Mat. 26:6-13, Marc. 14:3-9 e João, 12:1-8), quando Maria de Betânia, irmã de Marta, executou o
mesmo gesto. Não é possível identificar-se Maria de Betânia com a "pecadora" deste passo. Nem pode
confundir-se com Maria de Mágdala (Luc. 8:2), pois aí é ela apresentada como nova personagem em
cena. E o fato de ter sido libertada de sete obsessores não significa que fosse "pecadora".
O fariseu, também chamado Simão (nome comuníssimo entre os israelitas da época), convida Jesus
para um jantar em sua casa. Jesus costuma aceitar esses convites (cfr. Mat. 11:37 e 14:1).

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Figura “A PECADORA E JESUS”

A expressão "mulher pecadora na cidade" é usada por Amós (7:17) para designar as meretrizes. Mas o
argumento é fraco para atribuir esse procedimento a esta criatura em particular. Dizem os comentado-
res que, se fora meretriz, não na teriam deixado entrar na casa de Simão; mas isso dependeria do nível
social em que ela agisse. Todavia, a desenvoltura de seu modo de proceder e de seu gesto, sem aca-
nhamento nem peias sociais, e mais ainda a intensidade de seu amor, parecem revelar uma criatura
ardorosa e livre de preconceitos, coisas típicas dessas pessoas. Inclusive o fato viria confirmar a afir-
mativa categórica de Jesus: "Em verdade vos digo que as meretrizes e os cobradores de impostos con-
seguirão o reino dos céus antes de vós" fariseus e doutores da lei (Mat. 21:31).
Anota o evangelista que ela trazia um vaso de alabastro com perfume. Eram realmente acondicionados
em vasilhames desse material os perfumes caros (cfr. Mat. 26:7 e Marc. 14:3).
Recordemos que o sistema de mesa nessa época, era em forma de U, ficando os convivas reclinados
(ou deitados) em divãs, em redor do U, apoiados no braço esquerdo, tendo a mão direita livre para co-
mer. Pelo centro andavam os empregados a servir a refeição. Dessa forma, os pés dos convivas fica-
vam "por trás", voltados para as paredes. Nesse espaço entrou a "pecadora", prostrou-se ao chão a cho-
rar, agarrada aos pés de Jesus. Como os visse molhados por suas lágrimas, os enxugava carinhosa-
mente com seus cabelos, ao mesmo tempo que os beijava (katephílei) com ardor. A seguir ungiu-os
com o perfume que trouxera.
A cena era patética, além de profundamente romântica, e chocou o fariseu puritano, que tirou logo suas
deduções desfavoráveis à sensibilidade mediúnica de Jesus. Talvez ele se recordasse de que os antigos
profetas percebiam o grau de moralidade das pessoas pela simples aproximação (cfr. 1 Reis. 14:6; 2.º
Reis 1:3; 5:24, etc). Mas Jesus prova-lhe que o julgamento foi precipitado e propõe-lhe a parábola dos
dois devedores insolváveis, a quem o credor perdoa, a um 500, a outro 50.

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Anotemos, com cuidado, que o verbo usado aqui é echarísato (de charizomai) que literalmente signifi-
ca "fazer benevolência” ou "dar com amor” (que é exatamente o sentido etimológico de “perdoar”, ou
seja , per - prefixo de superlativo - e doar: que é dar de presente; fica então o sentido: doar totalmen-
te).
Indaga, então, o Mestre qual dos dois amará mais o antigo credor. Simão não quer comprometer-se e
introduz sua resposta com um "suponho". Jesus aprova plenamente a interpretação da parábola. E,
quebrando sua anterior impassibilidade, aponta a mulher e salienta a diferença entre o tratamento que
dele recebeu, com austeridade e frieza, e o amor esfusiante e desinibido da mulher que publicamente
lhe manifesta seu sentimento apaixonado.
No vers. 45 todos os textos trazem eiselthon "desde que eu entrei", só se encontrando eiselthen (desde
que ela entrou) na Peschitta e na Vulgata; é evidente correção, para não parecer exagero. Como expli-
car que a mulher já se encontrasse na sala de refeições, a esperar que Jesus entrasse e se reclinasse à
mesa.
Depois vem a declaração: "seus muitos erros foram resgatados (aphéóntai, perfeito de aphíêmi) porque
(hóti) ela amou muito".
As traduções comuns transladam aphéôntai como "são perdoados", no presente, e com o mesmo senti-
do de "Perdão" do versículo 42. Mas aqui o verbo grego é outro: exprime resgatar, que é totalmente
diferente de perdoar , A dívida de dinheiro foi perdoada pelo credor isto é, foi anulada, declarada nula,
sem que nada tivesse sido feito pelo devedor para merecer esse perdão: foi uma consideração benevo-
lente do credor, por seu estado de insolvência. Já o verbo aphíêmi exprime o "resgate", ou seja uma
ação realizada em contraposição ao erro, de tal forma que esse ação do devedor é que anula o erro,
porque o apaga. Digamos, por exemplo, que o devedor de 500 denários houvesse prestado um favor
tão grande ao credor, que este, por isso lhe perdoasse a dívida: aqui teríamos tò aphíêmi, isto é: o favor
prestado fez que a dívida fosse resgatada (cfr. vol. 2.º pág. 84).
Exatamente nesse sentido é que Jesus declara enfaticamente que o AMOR é uma das maneiras (e tal-
vez a melhor) de conseguir o resgate dos erros do passado, anulando todos os carmas. E quanto mais
amor, maior o resgate; mas quando o resgate é pequeno, o amor também o é.
Daí passa à sentença absolutória; e é quando, pela primeira vez, se dirige diretamente à mulher, ratifi-
cando suas ações de amor com a declaração "teu, erros foram resgatados". E, sem dar importância ao
murmúrio que se levanta da parte dos convivas, mais uma vez se dirige a ela: "tua fé te salvou", acres-
centando a fórmula de despedida comum le shalom ",vai em paz" (cfr. Luc 5:48 e 1 Sam. 1:17).

Temos, neste episódio, que pode perfeitamente ter ocorrido no mundo material, um símbolo de grande
beleza e profundidade. Trata-se do encontro da emotividade com a individualidade.
Já não é mais, aqui, o intelecto iluminado que obtém o contato com o Eu Interno,. mas é o astral que
descobre a individualidade e a ela se submete integralmente.
Os observemos os pormenores.
Os fariseus eram religiosos rigoristas com bastante espiritualidade, embora muito apegados ainda à
letra e às exterioridades rituais. Representam, pois, a personalidade com tendências místicas, se bem
que não no rumo certo.
Tendo um deles ouvido falar na individualidade (Jesus) convida-O "a jantar” isto é, a chegar até ele
para um contato no banquete eucarístico. Algo desconfiado, porém, para agir fora dos preconceitos
de sua própria seita religiosa recebe-O com certa secura, sem muita intimidade, não lhe "dando o
ósculo" nem atendendo-O com as mesuras habituais.
Mas o contato com a individualidade desperta-lhe emoções profundas em seu corpo astral, embora
seu intelecto permaneça arredio. Surge, então, a luta dele consigo mesmo: o intelecto a condenar as
emoções que se manifestam com desusado calor. A “pecadora" (são as emoções que arrastam a cria-
tura ao erro) todavia, não conhece peias que a impeçam de expressar-se com entusiasmo: entra em

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cena, levando seu coração ardoroso de profundo amor (o vaso de alabastro) e lança-se aos pés da
individualidade, dando expansão a todo o seu amor com ardentes beijos. E sobre os pés descarrega os
fluidos emocionais, transformados em lágrimas.
O intelecto começa a descrer da individualidade: como pode ela - de quem tanto falaram com elogios,
a respeito de sua superioridade e elevação - como pode deixar de perceber que as emoções são erra-
das e, não obstante, permitir ser por elas acariciada e amada desordenadamente sem um protesto?
A individualidade, no entanto, toma partido em favor da emoção e contra o intelecto vaidoso. Faz-lhe
ver que, apesar de seus muitos erros, essa manifestação imensa e vívida de amor conseguiu resgatá-
los, por causa das vibrações fortíssimas de união sintônica e isso lhe aumentava reciprocamente o
amor, por causa da gratidão; ao passo que o intelecto frio, que não sabe amar, e que encara seus er-
ros, realmente menores, como leves desvios, não consegue resgatá-los a não ser se se entregar à tôni-
ca da humildade, passo dificílimo para ele.
Os exemplos comparativos esclarecem o intelecto, mostrando a diferença profunda no seu agir, em
confronto com a emoção. Enquanto esta se purifica dos fluidos pesados emotivos com as lágrimas,
vertidas com humildade (aos pés), aquele nem com água faz sua catarse; ele não lhe deu um ósculo de
boas-vindas, enquanto ela não deixa de beijar-lhe os pés, desde que a individualidade se manifestou.
Aqui se explica o que parece contradição no texto, entre o vers. 37 (a mulher, ao saber que Jesus fora
jantar, vai, depois dele, e manifesta seu amor) e o vers. 42 (desde que entrei, dando a impressão de
que a mulher já lá estava a esperá-lo). Como, porém, o fato apresenta um símbolo, o verbo do vers.
42, na primeira pessoa, está certo: desde que a individualidade se manifestou, a emoção expressou
seu amor.
E mais ainda, para que o leitor verifique que cada palavra traz realmente um ensinamento: a oliveira
é o símbolo da paz, donde o óleo (azeite), produto da oliveira, é o símbolo da pacificação, resultado
da paz. Diz a individualidade que, ao manifestar-se ao intelecto perquiridor curioso, este "não ungiu
sua cabeça com o óleo", isto é, não pacificou suas lutas íntimas, mas prosseguiu perturbando a mente
da individualidade com suas dúvidas e críticas; ao passo que a emoção “quebrou o vaso de alabas-
tro" de seu coração e "derramou o perfume" de seu amor, humildemente (aos pés) da individualidade.
A conclusão é óbvia: o corpo de emoções. o que vibra no mundo astral sujeito à Lei da Justiça, obtém,
através de seu amor intenso e profundo, o resgate de seus carmas. E isso é conseguido através da fé,
da convicção inabalável que manifestou, ao acreditar imediatamente na individualidade, amando-a e
tendo a coragem de expressar-lhe seu amor, sem qualquer movimento de dúvida.

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AS MULHERES
(Julho a setembro de 29 A.D. - 782 A.U.C.)
Luc. 8:1-3
1. Logo após perambulava Jesus pelas cidades e aldeias, pregando e anunciando as bo-
as-novas do reino de Deus, e iam com ele os doze
2. e algumas mulheres que haviam sido curadas de obsessores e de enfermidades: Ma-
ria, chamada Madalena, da qual tinham saído sete espíritos desencarnados,
3. Joana, mulher de Cuza, procurador de Herodes, Susana e muitas outras, as quais o
serviam com seus bens.

Lucas anuncia nova peregrinação de Jesus pelas cidades e aldeias da Galiléia. Cada vez menos pou-
sando em Carfanaurn, Jesus sai a pregar as boas-notícias do "reino", a curar a população humilde e
sofredora.
Desde que foram escolhidos como emissários (cfr. Mat. 10:1-4; Marco 3:13-19 e Luc. 6:12-16. vol. 2.º
pág. 108), os doze sempre ficaram ao lado do Mestre, acompanhando-O pari passu, preparando-se,
assim, para o futuro apostolado.
A comitiva, pois, era grande, e não podia mais pedir pousada e alimentos gratuitos por onde andava.
Daí a necessidade de quem cuidasse dessas coisas. Para isso estavam a postos várias mulheres, das
quais Lucas cita aqui alguns nomes das que foram curadas de enfermidades e liberadas de obsessores
(pneuma ponerón) e Marcos (15:10) acrescenta outros.
1. A primeira é Maria Madalena, cujo cognome provém de sua aldeia natal (ou de permanência), que
é Mágdala (hoje el-Medjdel), na margem ocidental do lago, perto de Tiberíades. Dessa, o evange-
lista esclarece que havia sido libertada de sete espíritos desencarnados (daímôn). Este simples fato
não significa que ela fosse mulher de vida pública: pode ter sido apenas uma perseguida pelos ini-
migos do astral.
2. Outra é “Joana, mulher de Cuza, procurador de Herodes". O cargo atribuído a Cuza (em hebraico
Hózai) é epítropos, ou seja, intendente, procurador. Temos a impressão de que se trata do mesmo
basilikós (palaciano) de que nos fala João (4:46-54; vol. 2.º pág. 31-32) e que Joana, sua esposa era
uma das irmãs de Maria (vol. 2.º pág. 112). Daí sua intimidade com Jesus, e portanto com os doze
escolhidos, dois dos quais pelo menos (Judas Tadeu e Tiago) mas talvez três (Simão Zelotes) tam-
bém eram "irmãos" de Jesus, e portanto sobrinhos de Joana; estava tudo, pois, em família.
3. De Suzana, a terceira citada (cujo nome significa "lírio") nada sabemos. Seria outra das irmãs de
Jesus ?
Acrescenta o evangelista: "e muitas outras". Dessas muitas, conhecemos mais algumas pela infor-
mação de Marcos (15:40), quando fala das "mulheres que O acompanhavam", citando na enumera-
ção, em primeiro lugar, a mesma Maria Madalena; segue-se a ela:
4. Maria, mãe de Tiago o menor e de José, que também são chamados "irmãos" de Jesus (Mat. 13:55:
cfr. Mat. 25:56), juntamente com Judas Tadeu e Simão. Portanto, tem-se a impressão de que essa
Maria era casada com Alfeu-Clopas (vol. 2.º pág. 111) que, segundo Hegesipo (Euséb., Hist. Ecles.
3, 11, in Patrol. Graeca, vol. 20, col. 248) e segundo Epifânio (Patrol. Graeca vol. 42, col. 708) era
irmão de José, o pai de Jesus.
5. Salomé, sem outra indicação, como sendo pessoa conhecida. Realmente, pensamos, tratava-se de
uma das "irmãs" de Jesus, casada com Zebedeu, e mãe de Tiago o maior e de João o evangelista, os

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C. TORRES PASTORINO
quais, portanto seriam sobrinhos de Jesus. Salomé, pois, era "irmã" de Jesus por ser filha de um dos
casais acima: Maria-Alfeu ou Joana-Cuza, e por isso foi enumerada como “irmã” de Jesus (v. vol. 2.º).
Teríamos, então (uma simples hipótese):

Família de Jesus

Jacó-(?) Joaquim-(Ana) (tradição)

Alfeu-Clopas-(Maria) JOSÉ - MARIA Joana-(Cuza)

José Judas (Tadeu) Tiago (Menor) JESUS Salomé-(Zebedeu) Simão Maria

Tiago (maior) João (evangelista)

Esse grupo de mulheres atendia às necessidades de Jesus e dos demais discípulos, com seus bens (tà
hupárchonta, bens, riquezas; cfr. Plut., Them. 5; Aemil. 4, etc.).
Não podemos qualificar esse modo de agir de "abuso", já que se tratava de gente com posses materiais
e, na maioria, parentes próximos de Jesus.
Analisando rapidamente a situação possível (ou provável) teremos:
I. Pedro e André, irmãos e sócios da firma de pesca, juntamente com Zebedeu e seus filhos Tiago
maior e João Evangelista, todos representados por Salomé mãe dos dois últimos; portanto, grupo
financeiramente bem provido.
II. Tiago o menor e Judas Tadeu, filhos de Alfeu (Klopas), representados por sua mãe Maria.
III. Simão (Zelotes?) representado por sua mãe Joana, esposa de Cuza, que sendo intendente de Hero-
des, percebia bons honorários, e por suas irmãs Salomé (Zebedeu) e Maria.
IV. Mateus, ex-cobrador de impostos, que recebia proventos largos de seu escritório (telônio).
V. De Filipe, Natanael (Bartolomeu), Tomé e Judas nenhuma notícia temos.
VI. Duas das mulheres citadas (Maria Madalena e Suzana) parece terem sido criaturas independentes
(não são citadas em conexão com nenhum nome masculino) e também favorecidas de bens (hipóte-
se que se deduz do texto de Lucas sob exame).
Tratava-se, pois, de uma comitiva coesa, na qual cada um se dispunha a ajudar os outros, com a mais
espontânea alegria e boa-vontade. Então, Amor e União entre aparentados, e nada de exploração.

A individualidade, para qualquer ação material neste planeta, depende da personalidade, seu único
veículo de expressão. Não lhe é possível cuidar fisicamente do sustento, do vestuário e da moradia de
seu corpo denso.
Mas, tendo que viver mergulhado na matéria, necessita de quem faça todas essas coisas para permi-
tir-lhe chegar aos objetivos prefixados em sua tarefa. É pois servido, juntamente com suas faculdades,
por uma série de amigos e amigas, que jamais a abandonam mas, ao contrário, põem todas as suas
potencialidades e capacidades a serviço da individualidade. São seus veículos físicos e astrais, seus
"corpos" densos mais ou menos, suas emoções, seus órgãos, suas células, etc.
Não há, portanto, condenação para aqueles que, tendo de ocupar todos os seus minutos no serviço do
próximo, não dispõem de tempo para adquirir recursos materiais com que prover à subsistência.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

A orientação de Jesus a esse respeito é bem clara: "dar de graça o que de graça se recebe", referindo-
se exatamente à pregação, à cura de enfermos, a ressurreição de mortos, à limpeza de leprosos, à
expulsão de obsessores; e acrescenta que nem sequer se deve carregar "ouro, nem prata, nem cobre,
nem bolsas, nem viveres para o caminho, nem duas túnicas, nem calçado, nem bordão". Mas logo a
seguir acrescenta: "o trabalhador é digno de seu alimento". Então, esclarece, ao chegar a uma cida-
de, indague-se quem é digno, e fique-se hospedado nessa casa (cfr. Mat. 10:7-11).
Portanto, nada de receber dinheiro pelos trabalhos espirituais executados. Mas, deve receber-se mo-
radia e alimentos. Nada de mal, por conseguinte, que o trabalhador seja assistido em suas necessida-
des prementes por criaturas de posses, embora jamais deva receber pagamento.
O ensino é sábio e prudente e é comentado por Paulo na 1.ª Cor. 9:4 a 15 (cfr. ainda 1.ª Tim. 5:17-
18). Se essa maneira de agir dá aso a muitas abusos, nem por isso deixa de ser uma orientação segu-
ra, a fim de permitir que a palavra do ensino possa propagar-se. Assim não fora, e os pregadores,
sempre baldos de recursos, se veriam confinados a pequeno círculo de ouvintes no ambiente natal.
Não há erro, evidentemente, se um grupo de interessados, ao desejar orientação de qualquer prega-
dor, lhe pague as passagens e lhe forneça estada gratuita no local para onde se transfere. Errado es-
taria se, além disso, lhe "pagassem" o trabalho espiritual.
Aí temos, então, um ensinamento claro da individualidade (Jesus), através de seu próprio exemplo e
de esclarecimentos prestados pela palavra, em outro local.

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C. TORRES PASTORINO

A PÁRABOLA DO SEMEADOR

Mat. 13:1-9 Marc. 4:1-9 Luc. 8:4-8

1. Naquele dia, saindo Jesus 1. De novo começou Jesus a 4. Afluindo grande multidão e
de casa, sentou-se junto ao ensinar à berra mar. E vindo ter com ele gente de
mar; reuniu-se a ele grande mul- todas as cidades, disse
tidão, de maneira que en- Jesus esta parábola:
2. e chegaram-se a ele grandes
trou num barco e sentou-se
multidões, de modo que en- 5. Saiu o semeador para se-
nele, no mar; e todo o povo
trou num barco e sentou- mear sua semente. E quan-
estava na praia
se; e o povo todo ficou de do semeava, parte da se-
pé na praia. 2. Ensinava-lhes, pois, muitas mente caiu à beira do ca-
coisas por parábolas, e dis- minho: foi pisada e as aves
3. E muitas coisas lhes falou
se-lhes este seu ensinamen- do céu a comeram.
em parábolas, dizendo: 'O
to:
semeador saiu a semear. 6. Outra parte caiu sobre a
3. Ouvi: o semeador saiu a pedra; e tendo crescido, se-
4. E quando semeava, parte
semear. cou, porque não havia
da semente caiu à beira do
umidade
caminho, e vieram as aves e 4. E aconteceu que ao semear,
a comeram. parte da semente caiu à 7. Outra parte caiu entre os
beira do caminho, e vieram espinhos, e com ela cresce-
5. Outra parte caiu em luga-
as aves e a comeram. ram os espinhos e a sufoca-
res pedregosos, onde não
ram.
havia muita terra; e logo 5. Outra parte caiu em luga-
nasceu, porque a terra não res pedregosos, onde não 8. E a outra caiu na boa terra
era profunda, havia muita terra; e logo e, tendo crescido, deu fruto
nasceu porque a terra não a cento por um. Dizendo
6. e tendo saído o sol, quei-
era profunda; isso, gritou dizendo:
mou-se e, como não tinha
"Quem tem ouvidos para
raiz, secou. 6. E tendo saído o sol, quei-
ouvir, ouça"!
mou-se, e porque não tinha
7. Outra caiu entre os espi-
raiz, secou.
nhos e os espinhos cresce-
ram e a sufocaram. 7. Outra parte caiu entre os
espinhos; e os espinhos
8. E caiu outra na boa terra,
cresceram e a sufocaram, e
havendo grãos que rendiam
não deu fruto algum.
cem, outros sessenta, outros
trinta por um. 8. Mas outras caíram na boa
terra e, brotando, cresce-
9. Quem tem ouvidos, ouça.
ram e deram fruto, e um
grão produzia trinta, outra
sessenta, e outro cem
9. E disse: quem tem ouvidos
para ouvir, ouça.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Figura “JESUS PREGA NA BARCA” - Desenho de Bida, gravura de Léopold Flameng

Novamente em Cafarnaum, após a "tournée" apostólica, Jesus volta à beira do lago, para novas instru-
ções. As massas O comprimem e, mais uma vez (cfr. Luc. 5:3, vol. 2.º), toma o barco, onde se senta
para falar ao povo.
Sendo grande a multidão e multiforme em sua capacidade, Jesus fala por meio de parábolas, esclare-
cendo, mais adiante, a razão de assim agir.
As parábolas são calcadas, de modo, geral, em fatos e situações conhecidas pelos ouvintes, colhidos da
vida diária; dado que a maioria dos circunstantes era constituída de lavradores e pescadores, donas de
casa e pequenos comerciantes, é dessas profissões que são tirados os exemplos.

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C. TORRES PASTORINO
Em Marcos, que guardou a narrativa mais pitoresca, a parábola começou com um convite à atenção:
ouvi!
Vem o exemplo do semeador que espalha suas sementes pelo campo. Este é dividido em quatro partes:
três que não dão resultados, e a Quarta produzindo muito fruto.
Os terrenos montanhosos e pedregosos do norte da Galiléia, com atalhos batidos a atravessar os cam-
pos, com espinheiros e cardos vigorosos a brotar quase espontaneamente, sem que eles dispusessem de
meios para total erradicação; com trechos em que a crosta de pedra é rasa, recoberta apenas por delga-
da camada de terra, oferecia ampla margem de experiência pessoal aos ouvintes, para compreensão da
historieta.
Como em todas as parábolas, os dados apresentados não precisam ser rigorosamente exatos, de acordo
com a realidade: podem ser exagerados ou diminuídos, de forma a dar maior ênfase a este ou aquele
aspecto do ensino. Assim, a modo de exemplo, nenhum campo da Palestina (e nem talvez de outras
terras) produz a cem por um (apesar da afirmativa de Gên.26: 12 de que Isaac colhia "cem por um" em
Gerase, no sul de Sefela). O rendimento normal das sementes vai de quatro a dez por um e mais rara-
mente chega a um resultado ótimo de dez a vinte por um.
Também o fato de três quartas partes serem lançadas em terrenos sáfaros, demonstraria incapacidade
do semeador, que não saberia escolher a terra boa para aí lançar suas sementes. Ora, isso não corres-
ponde ao espírito do ensinamento, onde se quer salientar a incapacidade de quem recebe, supondo-se
perfeita a capacidade de quem semeia.
Volta ao final "quem tem ouvidos, ouça", no sentido de "quem é capaz que entenda". Realmente, atra-
vés dos ouvidos é que se capta a lição, que vai fixar-se no coração, onde será meditada e assimilada.
Mormente naquela época, em que todo aprendizado era feito “de ouvido".

O comentário a este trecho cabe melhor no capítulo em que se trata da interpretação da parábola,
algumas páginas adiante.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

O REINO DOS CÉUS


MAT. 13:44-53
44. "O reino dos céus é semelhante a um tesouro que, oculto no campo, foi achado por
um homem, que o escondeu; e levado por sua alegria, foi vender tudo o que possuía e
comprou aquele campo.
45. O reino dos céus é também semelhante a um negociante que buscava boas pérolas;
46. e tendo achado uma de grande valor, foi vender tudo o que possuía e a comprou.
47. Finalmente o reino dos céus é semelhante a uma rede, que foi lançada ao mar, e apa-
nhou peixes de toda a espécie;
48. e depois de cheia, os pescadores a puxaram para a praia; e, sentados, colocaram os
bons nas vasilhas, mas jogaram fora os ruins.
49. Assim será no fim do ciclo: sairão os mensageiros e separarão os maus do meio dos
justos,
50. e os lançarão na fornalha de fogo; ali haverá choro e ranger de dentes.
51. Entendestes todas estas coisas"? Responderam-lhe: "Entendemos".
52. Então acrescentou: "Por isso todo escriba, experimentado no reino dos céus, é seme-
lhante a um pai de família que do seu tesouro tira coisas novas e velhas".
53. Tendo Jesus concluído estas parábolas, partiu dali.

Seguem-se mais três parábolas rápidas, próprias de Mateus, em que Jesus tenta fazer compreender o
que é o "reino dos céus", sem defini-lo (por ser indefinível de natureza). Procede, pois, por meio de
comparações de exemplos, de símiles, para que possa ser bem percebido por quem tenha evolução ca-
paz de compreendê-lo e para que sirva de tema de meditação para o povo que o não consegue.

1.º símile - Um homem descobre um tesouro num campo que lhe não pertence. Era comum esconde-
rem-se os tesouros em moedas de ouro, prata ou bronze, a fim de evitar furtos. E quando ocorria o fa-
lecimento do dono, ali ficava enterrado até que um acaso feliz o fazia passar a outras mãos. Diz Flávio
Josefo (Bell. Jud. 1, 7, 5. 2) que Tito descobriu numerosos desses tesouros, após a tomada de Jerusa-
lém. E naquela época muitos tinham a "mania" de procurar tesouros enterrados.
O homem que descobre o tesouro tem, inicialmente, uma alegria irreprimível, que o faz sair apressado
para vender tudo o que possui: móveis, alfaias, roupas, pratos, etc. e, com o apurado, vai comprar o
terreno. Uma vez proprietário (a lei israelita reconhecia ao dono do campo a propriedade do solo e do
sub-solo) pode apanhar legalmente o tesouro para si.
Discutem os exegetas a moralidade do ato, que não chega a ser um roubo ao antigo dono do terreno
mas, de qualquer forma, não parece muito honesto. Todavia, não é esse aspecto que interessa à lição da
parábola. A lição situa-se no fato de haver alguém descoberto algo tão precioso, que compensa o des-
fazer-se de tudo o que possui, para adquirir com qualquer sacrifício, o tesouro descoberto.
A interpretação comum é de que o tesouro representa o conhecimento à a doutrina cristã, e o "reino
dos céus” é o "céu" do "outro mundo", aquele "céu" em que as almas ficam o resto da eternidade a
tocar harpa em cima das nuvens.

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2.º símile - Trata-se de um comerciante de pérolas que procura, viajando, belos espécimes. Encontran-
do um de alto valor, vende tudo o que possui para adquiri-la.
3.º símile - A rede de pescar. A palavra grega é sagênê, que corresponde ao que denominamos "rede de
arrastão". Consiste numa faixa, cujo comprimento varia de 4 a 50 metros, e a largura tem 2 a 3 metros,
tendo chumbo de um lado e cortiça do outro. Uma ponta fica presa na praia, e sai um barco até o final
da corda, e aí começa a lançar a rede em semi-círculo. Terminado o lançamento, a rede fica vertical,
pelo jogo da cortiça e do chumbo, e o barco volta à praia com a outra ponta da corda. Aí os pescadores
começam, em grupo, a puxar lenta e seguramente as cordas, sem solavancos, trazendo a rede, nesse
arrastão, todas as espécies de peixe, bons e maus, grandes e pequenos. Ao chegar a rede à praia, tra-
zendo, naturalmente, grande quantidade de peixes, os pescadores sentam-se na areia, colocando os
bons no ággê, que é um vaso com água, de modo que o peixe permanece vivo. Os maus são restituídos
ao mar.
Vem a seguir a comparação com o fim de ciclo (en têi sunteleíai tou aiônos) quando os mensageiros
(anjos) separarão os maus dos justos, aqueles para a fornalha de fogo purificador do sofrimento, e estes
... não é dito para onde irão.
Pergunta Jesus se os discípulos entenderam, e recebe resposta afirmativa. Então conclui: "por isso todo
estudioso experimentado no reino dos céus" (pãs grammateús matheteutheís têi basileíai tôn ouranôn)
ou seja, aquele estudante (sábio) que conquistou pelo estudo (meditação) a experiência pessoal do rei-
no dos céus (como era o caso de Jesus em grau exponencial), "é semelhante a um pai de família que
tira de seu tesouro coisas novas e velhas".
O termo grammateús exprime a idéia de "sábio", de "douto", de estudioso (cfr. A. Bailly, "Dictionnaire
Grec-Français, Hachette, ad verbum).

Este trecho é de suma importância para compreensão do pensamento de Jesus a respeito do "reino
dos céus"; por ele torna-se evidente que "reino dos céus" não é um lugar geográfico, só conquistado
após o desencarne. Longe disso: é um estado d'alma, diríamos quase que uma situação teológica e
teofânica, daqueles que conquistaram o Encontro Místico com a Consciência Cósmica, ou melhor, a
unificação com o Cristo Interno ou Eu Profundo.
Jesus jamais definiu nem descreveu essa realização, porque, na realidade, ela é por si mesma indefi-
nível e indescritível. Limitou-se a estabelecer comparações, mediante as quais os homens pudessem
ter uma idéia aproximada do que Ele ensinava.
Que o "reino dos céus" é a unificação com a Centelha Divina, o Pai, que está DENTRO DE NÓS (cfr.
Luc. 17:21), como Cristo Cósmico, provam-no as expressões usadas por Jesus. Por exemplo, quando
diz entrar no reino dos céus. Com efeito, é indispensável que a criatura entre, penetre, mergulhe (ba-
tismo!) dentro de si mesmo, para conseguir a unificação. Então, para entrar no reino dos céus, é ne-
cessário que o homem entre em si mesmo (porque "o reino dos céus está dentro de vós"), e aí dentro
tenha o Sublime Encontro ("o Pai que habita dentro de vós, no secreto") e se unifique ao Cristo Cós-
mico.
A descoberta dessa verdade, ou melhor, a experiência dessa realidade, é o MAIOR TESOURO que o
encarnado pode conquistar na Terra. Dai a precisão da comparação parabólica dos dois primeiros
símiles apresentados. Tanta é a segurança do ensino que, tanto o tesouro se acha enterrado no cora-
ção do solo, quanto a pérola se encontra mergulhada no âmago do oceano.
O movimento do homem para descobrir o tesouro e para pescar a pérola é o mesmo: é a penetração
em profundidade; só que esse movimento deverá verificar-se para dentro de si mesmo. Mas uma vez
encontrada a "riqueza" que se buscava, logo se reconhece o valor incomparável dessa descoberta.
Tomado então de grande alegria, vai vender tudo o que possui, para entrar na posse definitiva do te-
souro ou da pérola. Não mais lhe interessam bens materiais (corpo físico), nem prazeres da mesa
(sensações), nem gozos e amores terrenos transitórios (emoções), nem cultura livresca (intelecto): o
único interesse reside na REALIDADE SUBSTANCIAL DO SER.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Entretanto, pode ocorrer o perigo de "tomar-se a nuvem por Juno", e de julgar-se que se encontrou a
Verdade, quando apenas se trata de mais uma ilusão. Daí a necessidade de mais uma parábola, a fim
de esclarecer que é indispensável uma triagem e uma escolha criteriosa, guardando-se o que é bom e
lançando fora o que não presta.
Assim o terceiro símile compara o reino dos céus a uma rede que apanha toda espécie de peixes. De
fato, o homem que busca a verdade, lança seus tentáculos para tudo o que lhe parece dourado. Mas
"nem tudo o que reluz é ouro"; então há necessidade de discernir o bom do mau, o pior do melhor.
Cremos que isto diga respeito aos caminhos que os homens pregam como infalíveis para conseguir a
"felicidade espiritual" ou, mais exatamente, um "reino dos céus" que é externo, que será agregado a
nós de fora, como o verniz que torna o móvel mais belo. Esse erro básico tão comum pretende que o
homem terá que "fazer" ações exteriores para "revestir-se da imortalidade". E os conceitos parecem
tão sólidos e os raciocínios tão lógicos, que muitos de inteligência e cultura se deixam embevecer e
arrastar a experiências que amanhã os deixarão frustrados. Daí a imperiosa necessidade de a criatu-
ra "sentar-se" em meditação, para escolher o que há de bom na rede que ele passou pelos autores
espirituais, e recolher no vaso para si; mas o que não for bom nos ensinos religiosos de promessas
que ninguém pode garantir, isso será devolvido ao mar.
Quando o homem tiver atingido essa capacidade de discriminar o certo do errado, estará então apto a
seguir sozinho o seu caminho, sem precisar de guias, de mentores, quer encarnados, quer desencar-
nados .

Depois vem uma palavra clara: "assim será no fim do ciclo"; muitos entendem com essas palavras o
"juízo final" e o fim do mundo. Não vemos razão para isso. Trata-se do fim de um ciclo de vida, de um
século (uma geração), de acordo com o sentido etimológico do termo. A cada regresso ao mundo espi-
ritual, no fim de um ciclo na Terra (onde bons e maus se misturam sem nenhuma distinção), vêm os
mensageiros encarregados da triagem e separam, velas próprias vibrações pessoais de cada um, os
justos - que seguirão seu caminho evoluído - dos maus, que novamente serão lançados "na fornalha de
fogo", ou seja, em nova encarnação, num corpo de carne, onde o fogo do sofrimento purifica o espí-
rito; e "aí haverá choro e ranger de dentes", que é exatamente o quadro que temos diante de nossos
olhos, diariamente, neste planeta.

Como conclusão do trecho, encontramos uma frase algo enigmática para o sentido comum, mas per-
feitamente clara para a interpretação que vem sendo dada: e por isso todo estudante experimentado
(com experiência pessoal) no reino dos céus (como poderia tratar-se de algo que viesse após a mor-
te?) é semelhante a um pai de família (a um adulto de mentalidade amadurecida, por causa dos filhos
que produziu, isto é, das obras que realizou) que tira de seu tesouro (de seu conhecimento) coisas no-
vas e velhas" (a sabedoria atual e a antiga).
O homem que vive unificado com o Cristo Cósmico tem pleno e total conhecimento experimental de
tudo o que já foi dito ontem e de tudo o que está sendo dito agora e que o será no futuro; e essa sabe-
doria é seu tesouro inalienável e incorruptível, porque se tornou a própria essência do espírito.

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C. TORRES PASTORINO

RAZÃO DAS PARÁBOLAS

Mat.13:34-35 Marc. 4:33-34

34. Todas estas coisas falou Jesus ao povo em 33. E com muitas parábolas semelhantes diri-
parábolas, e nada lhes falava senão em pa- gia-lhes a Palavra, conforme podiam com-
rábolas, preendê-la;
35. para que se cumprisse o que foi dito através 34. e não lhes falava senão em parábolas; mas
do profeta: "abrirei em parábolas a minha em particular explicava tudo a seus discí-
boca, e divulgarei coisas ocultas desde a cri- pulos.
ação".

Foi nessa ocasião da "'fala do Lago" de Genesaré, que Jesus iniciou seu ensino por meio de parábolas.
O evangelista explica a razão delas, num pequeno verso de ritmo binário, em que se afirma e se nega:
tudo em parábolas, nada senão em parábolas. Ou seja, a predição mediúnica através do profeta, no
Salmo 79 (vers. 2). O Salmo é citado no Velho Testamento como de autoria de Asaph, qualificado
como profeta por 2.º Crôn. 28:30.
Marcos é mais explícito, afirmando que Jesus falava de acordo com a capacidade dos ouvintes, só ex-
plicando o sentido real a seus discípulos.

As anotações de Mateus e Marcos fazem uma revelação que já alguns comentadores perceberam. Pi-
rot ("La Sainte Bible", tomo IX, pág. 451) escreve: "é preciso salientar a finalidade pedagógica das
parábolas. Jesus a elas recorre diante do povo para dar seu ensinamento, tòn lógon, isto é, a doutrina
concernente ao reino de Deus, e fê-lo por bondade, para colocar seu ensino ao alcance dos ouvintes,
como o fez para seus apóstolos (Jo. 16:12) e como fará a seu exemplo, Paulo aos corintios (1 Cor.
3:2)".
Com efeito, tendo verificado que seu ensino, dado clara e abertamente no Sermão do Monte, não tinha
atingido senão uma minoria (a parábola do semeador é uma justificativa disso, quando afirma que
três quartas partes de Suas palavras caíram em terreno ruim e não produziram fruto), Jesus resolve
modificar Sua didática.
O assunto a explicar, a doutrina do Lagos (ou Cristo Cósmico) e a necessidade do mergulho e da uni-
ficação com o Cristo interno, eram demais elevadas para as massas. A não-compreensão espantava os
ouvintes e os afastava. Eles não tinham capacidade de penetrar os segredos "do reino", por se acha-
rem em degrau evolutivo muito baixo.
Já falando em parábolas, o ensino era dado da mesma maneira, mas ia cilitava a percepção, como
veremos adiante.
Aos discípulos, que tinham maior capacidade evolutiva de compreensão, era tudo explicado, embora,
por vezes, não entendessem bem, e Jesus se queixa disso com certa decepção (Marc. 4:13).

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SABEDORIA DO EVANGELHO

A EXPLICAÇÃO DAS PARÁBOLAS

Mat. 13:10-15 e 18-23 Marc. 4:10-25 Luc. 8:9-18

10. Chegando-se a ele, os discí- 10. Quando se achou só, os que 9. Seus discípulos pergunta-
pulos perguntaram: "Por estavam em redor dele jun- ram-lhe o que significava
que lhes falas em parábo- to com os doze pediram a essa parábola.
las"? (explicação da) parábola.
10. Respondeu-lhes Jesus: "A
11. Respondendo, disse lhes: 11. E ele disse-lhes: "A vós é vós é permitido conhecer os
"Porque a vós é permitido permitido conhecer o se- segredos do reino de Deus,
conhecer os segredos do gredo do reino de Deus; mas aos outros se fala em
reino dos céus, mas a eles mas aos de fora tudo se lhes parábolas para que, vendo,
não lhes é permitido. propõe em parábolas, não vejam; e ouvindo, não
entendam.
12. Pois ao que tem, lhe será 12. para que vendo, vejam, e
dado e terá em abundância; não percebam; e ouvindo, 11. A parábola é esta: a semen-
mas ao que não tem, até ouçam, e não entendam; te é a Palavra de Deus.
aquilo que tem lhe será ti- para que não suceda que se 12. Os que estão à beira do
rado. voltem e sejam resgatados caminho, são os que ouvi-
seus erros".
13. Por isso lhes falo em pará- ram; então vem o adversá-
bolas, porque vendo, não 13. E perguntou-lhe: 'Não per- rio e tira a Palavra de seus
vêem, e ouvindo não ouvem cebeis esta parábola? e corações, para que não su-
nem entendem. como entendereis todas as ceda que, crendo, se sal-
parábolas? vem.
14. Para eles se está cumprindo
a profecia de Isaías, que 14. O semeador semeia a Pala- 13. os que estão sobre a pedra
diz: "Sim, ouvireis, e de vra. são os que, quando ouvem,
nenhum modo entendereis; 15. Os que se acham à beira do recebem a Palavra com
sim, vereis, e de modo al- caminho, onde a Palavra é
alegria; estes não têm raiz e
gum percebereis, semeada, são aqueles de
crêem por algum tempo,
mas na hora da provação
15. porque o coração deste quem, depois de a terem
voltam atrás.
povo se coagulou e seus ou- ouvido, vindo logo o adver-
vidos tornaram-se pesados sário, tira a Palavra que foi 14. A parte que caiu entre os
e eles fecharam os olhos; semeada em seus corações. espinhos, estes são os que
para que, vendo com os 16. Igualmente os semeados em ouviram mas, seguindo seu
olhos e ouvindo com os ou- luares pedregosos são os
caminho, são sufocados
vidos, não suceda que en- que, ouvindo a Palavra,
pelas preocupações, pelas
tendam com o coração e se imediatamente a recebem
riquezas e pelos prazeres
voltem, e eu os sare". com alegria;
da vida, e não levam o fruto
à maturidade.
.............................. 17. e não têm raiz em si, mas
15. E a que caiu na boa terra,
18. Ouvi, a parábola do seme- duram pouco tempo; de-
estes são os que, tendo ou-
ador. pois, sobrevindo tribulação
vido a Palavra com coração
ou perseguição por causa
19. Quando alguém ouve a bom e perfeito, a retêm e
da Palavra, logo se escan-
Palavra do reino e não dão fruto com perseveran-
dalizam.
compreende, vem o mau e ça.
tira o que foi semeado em 18. Os outros, semeados entre

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C. TORRES PASTORINO
seu coração: esse é o que foi os espinhos, são os que ou- 16. Ninguém, depois de acen-
semeado à beira do cami- vem a Palavra, der uma lâmpada, a cobre
nho. 19. e entrando as preocupações
com vaso, nem a põe debai-
xo da cama; mas ao contrá-
20. O que foi semeado nos lu- da vida e a ilusão das ri-
rio, coloca-a num castiçal, a
gares pedregosos, é quem quezas e a cobiça de outras
fim de que os que entram
ouve a Palavra e logo a re- coisas, abafam a Palavra e
vejam a luz.
cebe com alegria, ela fica infrutífera.
17. Porque nada há oculto que
21. mas não tem em si raiz, 20. E os semeados em boa terra
não se torne manifesto,
então é de pouca duração; e são os que ouvem a Palavra
nem há nada secreto que se
sobrevindo tribulação ou e a aceitam, e produzem
não haja de saber e vir à
perseguição por causa da fruto, um a trinta, outro a
luz.
Palavra, logo se escandali- sessenta e outro a cem por
za. um". 18. Atentai, pois, como ouvis,
porque, ao que tiver, lhe
22. O que foi semeado entre os 21. E disse-lhes: "Porventura
será dado; mas ao que não
espinhos, é quem ouve a vem a lâmpada para se por
tiver, até aquilo que pensa
Palavra, mas as preocupa- debaixo de um balde ou
ter lhe será tirado.
ções desta vida e a ilusão debaixo da cama? não é an-
das riquezas abafam a Pa- tes para se colocar no casti-
lavra, e ela se torna infrutí- çal?
fera. 22. Porque nada está oculto,
23. E o que foi semeado na boa senão para ser manifesto; e
terra é quem ouve a Pala- nada foi escondido senão
vra e o compreende, e ver- para ser posto à luz.
dadeiramente dá fruto, 23. Se alguém tem ouvidos
produzindo uns a cento, ou- para ouvir, ouça'.
tros a sessenta e outros a
trinta por um. 24. Também lhes disse:" Aten-
tai ao que ouvis. A medida
com que medis, com essa
vos medirão e se vos acres-
centará.
25. Pois ao que tem, lhe será
dado; e ao que não tem, até
aquilo que tem lhe será ti-
rado".

No texto de Mateus, a frase “chegando-se a ele" vem demonstrar que este trecho não é imediato no
tempo ao anterior. A pergunta dos discípulos só pode ter sido feita depois de dissolvida a multidão, e
talvez depois de terem regressado a casa.
A pergunta, além disso, é feita no plural: "por que lhes falas em parábolas", supondo que várias já ti-
nham sido ensinadas. Ora, é justamente na "fala do Lago" que Jesus começa esse novo sistema didáti-
co, já que anteriormente apenas algumas sentenças parabólicas haviam sido proferidas (cfr. Marc. 3:23
e Luc.3:23 e 39) além de algumas comparações (cfr. Mat. 7:24-27; 9:15-17; 12:43-45).
Marcos salienta que os discípulos o interrogaram quando ele estava "a sós" (katà mónon).
A modificação da maneira de ensinar tem razão profunda. Até aqui Jesus dava Seus ensinamentos mo-
rais com rápidos acenos ao "reino dos céus". Mas a partir deste momento começará a revelar os segre-
dos (tà mystéria) da doutrina do Logos e da obtenção do reino dos céus, coisas para as quais o povo
não estava preparado naquela época (como ainda o não está, na sua maioria). E aqui nos recordamos
do aviso prévio dado por Jesus, quanto à prudência e discrição que se deveria ter no ensinamento:

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SABEDORIA DO EVANGELHO

"Não dareis as coisas santas aos cães" (Mat. 7:6). De fato, ao falar do "reino", os ouvintes daquela épo-
ca interpretaram Suas palavras de acordo com a expectativa deles: a restauração do reino de Israel,
consequente à expulsão dos romanos; e ainda durante milênios, igualmente, continuaram Suas palavras
a ser interpretadas erroneamente pela maioria, como a obtenção de um céu "no outro mundo". Poucos
perceberam a realidade do ensino, de que o "reino dos céus" é interior a nós mesmos, e se obtém aqui
mesmo na Terra, com o Encontro e a Unificação com o Cristo Interno.
Examinemos o texto.
A resposta de Jesus começa com a declaração de que aos discípulos é dado (permitido) conhecer os
segredos do reino dos céus. Ai é empregada a palavra tà mystéria, único lugar em que aparece nos
evangelhos (no plural em Mateus e Lucas, no singular em Marcos), embora seja de uso frequente em
Paulo (21 vezes) e no Apocalípse (4 vezes). Entre os gregos significava a doutrina religiosa secreta ou
oculta, que só era revelada aos iniciados.
Os segredos principais são: que o reino dos céus não é externo, mas interno; não vem com o rumor das
vitórias, nem com o aplauso popular, mas com o silêncio da meditação; não chega com o orgulho do
vencedor, mas com a humildade do vencido; não é obtido com a raiva de quem derrota um inimigo,
mas com o amor de quem ama os adversários, como verdadeiros benfeitores; não é conseguido após a
passagem pela cova escura do túmulo, mas enquanto estamos na carne; não é "deste mundo" de lutas
personalísticas, mas é do mundo espiritual em que, embora na carne, vive o Espírito, a individualidade;
não é constituído de títulos de soberania nem de superioridade hierárquica, mas de vivência interior,
sem aparências exteriores; não é uma conquista visível aos outros, mas se realiza no secreto do próprio
coração onde habita o Pai.
Vem depois a frase que parece enigmática e até, segundo alguns, injusta: “a quem tem, lhe será dado
em abundância; mas a quem não tem, até o que tem lhe será tirado", frase que é repetida após a pará-
bola dos talentos (Mat.25:29). Essa frase introduz a explicação de Jesus, em resposta à pergunta sobre
a razão de ser da ensino parabólico.
Mateus e Marcos trazem o texto de Isaias (6:9-10), que Lucas apenas resume. Ambos atribuem a Jesus
a citação do profeta segundo a versão dos LXX.
Como já vimos, o grego koiné era a língua comum da Palestina desde o domínio romano, que come-
çara duas gerações antes do nascimento de Jesus, ou seia, desde o ano 63 A.C. (Flávio Josefo, Ant.
Jud. 14,3,3 a 4,2; Bell. Jud., 1, 6,4 a 7,5, Dion Cassius, 37,16; Estrabão, 16, 2, 40; Tito Lívio, Epíto-
me, 102; Tácito, Hist. 5,9, etc.). Por isso é que a quase totalidade das citações do Antigo Testamento
são feitas segundo a tradução grega dos LXX, e não pelo original hebraico, língua que, desde o re-
gresso do cativeiro da Babilônia, não era mais compreendida pelo povo, que passara a falar aramai-
co (dialeto de palavras hebraicas misturadas ao assírio, entre cujo povo viveram os israelitas do 8.º
ao 6.º séculos A. C. ). Os israelitas foram levados para a Babilônia em diversas levas (nos anos 705,
606, 598, 588 e 582 A. C. ) e de lá foram trazidos em duas etapas principais, em 536 com Zorobabel e
em 459 com Esdios, que escreveu: "e seus filhos falavam metade de suas palavras na língua de A.
hdod (assírio) e não podiam falar a língua dos judeus, mas a de um e de outro povo" (Neem., 13:24).

Jesus faz suas as palavras de Isaías, e aprova o texto dos LXX contra o do hebraico, que foi escrito por
ocasião da vocação do profeta em 740 A.C., ano em que desencarnou o rei Osias. E explica: o fato "de
verem (lerem) e não entenderem (o sentido profundo real) e de ouvirem e não perceberem (esse senti-
do), provém de que seu coração (sua mente) está enregelado (pela vaidade e pelo egoísmo); então, eles
fecham os olhos e tapam os ouvidos (para não serem obrigados a aceitar a interpretação correta; e isso
lhes é permitido) para que, vendo (lendo) com os olhos, e ouvindo com os ouvidos, não suceda que
entendam com o coração (a mente) e se voltem e eu os sare", porque a eles NÃO INTERESSA a cura
(libertação) das coisas materiais do mundo, às quais estão apegados em profundidade.

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C. TORRES PASTORINO
Não é que Jesus os faça não entender, porque Ele não quer que se convertam e sejam libertos; não é
isso. É o contrário: eles NÃO QUEREM voltar-se (converter-se) nem ser libertados (sarados) e POR
ISSO fecham os olhos e tapam os ouvidos.
Não há pois intenção malévola da parte da Divindade, mas apenas má-vontade, por ignorância e invo-
lução, da parte dos próprios homens que, embora na consciência atual digam que querem converter-se,
na realidade em seu subconsciente não no querem.
Então, o fato de falar em parábolas não é um castigo de Deus; mas antes ao contrário: é uma prova de
misericórdia, pois permite às criaturas que tenham tempo de ir evoluindo, e a cada nova encarnação
possam ir aprofundando o sentido oculto das parábolas, conseguindo assim atingir a realidade total do
ensino de Jesus. Então, não é castigo, como disseram alguns comentadores antigos e modernos, mas
um ensino que deveria ir sendo compreendido gradativamente pela humanidade, à proporção que fos-
sem evoluindo os homens. Mas era indispensável que o ensino fosse dado na oportunidade da perma-
nência de Jesus na Terra, e o melhor meio era exatamente esse: parábolas que iriam sendo interpreta-
das segundo os sete planos (veja vol. 2) até a compreensão final que ainda está para chegar à Terra.
As palavras de Isaías são citadas também por Paulo (At. 28: 23-28) e por João (12:37-41).
A explicação da parábola do semeador é dada por Jesus numa interpretação alegórica e metafórica,
dizendo que a semente é a palavra de Deus e apresentando quatro situações:
a) a primeira categoria é a dos que não compreendem a palavra do reino e o "mau" (a ignorância)
desfaz o efeito do ensinamento;
b) a 2.ª é a dos que ouvem a boa- nova, mas não têm preparo espiritual para com ela superar as dores
e tribulações, desesperando por qualquer coisa;
c) a 3.ª é a dos que ouvem e gostam do ensino, mas o colocam em posição secundária, pois acima
dele estão os interesses da vida e as riquezas; e
d) a 4.ª é a dos que realmente respondem aos apelos e o fazem em diversos graus: 30, 60 e 100 por
um.

Há algo mais a compreender nesta lição.


Jesus começa a explicar a finalidade principal de Sua descida à Terra: ensinar aos homens a Unifica-
ção com o Pai que em nós habita; o Pai, que está nos céus, e que portanto constitui o reino dos céus, o
qual está dentro de nós e por isso, o meio de conseguir a união é o mergulho no fogo e no Espírito
(batismo), dentro de cada um.
Mas a humanidade não estava preparada para um passo tão grande à frente e havia necessidade de
muita discrição e prudência na revelação dos "segredos do reino", e dos "mistérios do Logos".
Realmente, todos os ensinos morais foram dados abertamente, e neles nada encontramos além do que
os outros avatares anteriores a Jesus haviam ensinado: Crishna, Hermes, Buddha, Lao-Tseu, Zoroas-
tro, Moisés, Pitágoras. Mas esse passo definitivo de liberação total veio por meio de Jesus, embora
tivesse sido antecipado em parte, ocultamente por alguns de Seus predecessores.
Então, quando os discípulos (personalidades-iluminadas) pedem explicação, a individualidade (Jesus)
estranha que "nem eles" sabem penetrar o sentido profundo ... Então limita-se a dar, para efeito de
divulgação, uma interpretação alegórica (nível das emoções) e metafórica (nível do intelecto) (vol. 2).
Era a única que podia ser publicada para a época em que Jesus visitou o planeta e também a única
que perduraria séculos, já que dirigida à personalidade. Ignoramos se secretamente foi dada aos dis-
cípulos a interpretação para a individualidade.
De qualquer forma, pelas palavras de Isaías que Jesus cita, deduz-se que sim. Porque, na realidade,
Ele lhes adverte que não adianta "forçar", pais os homens que não superaram ainda as sensações
(físico-etéricas), as emoções (astral-animal), e o intelecto, NÃO PODEM perceber com o coração e
volta-se para o seu interior onde habita o Pai, e portanto NÃO PODEM conseguir a libertação. Eles

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SABEDORIA DO EVANGELHO

amam a prisão da gaiola dourada da carne com suas ilusões. Então há de ser o ensino dado gradati-
vamente, para não causar traumas, já que "a evolução (natureza) não dá saltos".
Vem agora a explicação, que divide os homens na realidade em seis categorias, e não em quatro como
parece à primeira vista:
1. A primeira categoria é a dos que estão presos às sensações (físico-etéricas) e que portanto se dei-
xam influir pelo mau, isto é, pelo diabo-satanás (ver vol. 1), que é exatamente o corpo físico, ou
melhor, matéria em geral, o pólo negativo. Por esses, que mais amam o corpo e suas comodidades
e conforto acima de tudo, a doutrina da Palavra (do Logos) não chega a ser nem sequer compre-
endida, pois é julgada "loucura", sonho, tolice, etc. ... Eles se acham "à beira do caminho", ou
seja, à margem da espiritualidade, totalmente enterrados na matéria, com espírito bem materiali-
zado ainda. Qualquer aceno ao Logos é jogado fora pela preponderância das sensações físicoeté-
ricas.
2. A segunda é a dos que vivem presos à animalidade, e portanto com preponderância das emoções
(corpo astral), e nesse setor se inclui a maioria esmagadora da humanidade. Deixam-se levar pelo
gosto e desgosto, pelo prazer e desprazer, pela simpatia e antipatia, pelo amor e pelo ódio, pela
alegria e pela dor, encontrando a estrada da vida eriçada de pedras e escolhos, que representam
os carmas negativos, os resultados ruins de ações e pensamentos de vidas anteriores. Esses ouvem
a doutrina do Logos ("recebem a Palavra") com alegria, mas quando sofrem os embates da pró-
pria vida, os sofrimentos e ingratidões (quando tropeçam nas pedras), se escandalizam (já vimos
que "escandalizar" em grego significa "tropeçar") e arrepiam carreira. Quantos vemos que, bem
iniciados na senda, ao primeiro revés retrocedem amedrontados e, como disse Jesus, escandaliza-
dos, porque julgam que, uma vez na estrada certa, o sofrimento e as pedras do caminho DEVERI-
AM ser retirados para que sua jornada fosse de rosas ... Acham-se, então, COM DIREITO a certos
privilégios ... A raiz deles é pequena: qualquer contrariedade maior ou palavra ou "falta de consi-
deração" é suficiente para afastá-los do espiritualismo. Dizem que "aquele meio" não serve para
eles e vão de grupo e à procura de uma coisa que jamais encontrarão, pois só a achariam dentro
deles mesmos.
3. A terceira categoria é a daqueles que já se encontram com o intelecto mais desenvolvido, e por-
tanto apresentam certo domínio sobre as emoções, embora estas ainda tenham bastante influência
nas decisões intelectivas . Ocorre, então, que vivem como que entre "espinheiros", que são consti-
tuídos pelos cuidados e "preocupações da vida”, pela "ilusão das riquezas", pela "cobiça de tan-
tas outras coisas" transitórias, que são verdadeiras ilusões. Esses ouvem e até gostam, chegam
mesmo a compreender a doutrina do Logos, o segredo da Unificação com o Pai. Mas NÃO PO-
DEM fazê-las frutificar, porque estão muito OCUPADOS com suas atividades terrenas. A frase
comum a esse grupo de pessoas é: NÃO TENHO TEMPO ... E tudo o que ouvem e aprendem fica
infrutífero.
4. A quarta categoria é a dos que se iniciam na senda: ouviram a Palavra, aceitaram-na com amor,
querem vivê-la. Para isso, buscam perceber a presença e a ação de sua individualidade. Começam
a distinguir entre a realidade do Espírito (dando-lhe supremacia) e a ilusão da matéria e das coi-
sas materiais; já compreendem a necessidade de dedicar algum tempo de sua vida às orações e
meditações que visam à busca do Eu Interno, e de fato dedicam parte de suas horas a esse mister.
Então, a Palavra produz trinta por um, o que já apresenta bom resultado, embora pudessem, re-
almente, fazer um pouco mais.
5. A quinta categoria compreende aqueles que já aprofundaram mais o espiritualismo, que já conse-
guiram penetrar certos mistérios ou segredos do reino, que já obtiveram o mergulho na Consciên-
cia Cósmica, embora tivesse sido apenas por alguns minutos, sem permanência constante; mas já
sentiram a REALIDADE palpavelmente. Homens que superaram todo ilusionismo material e vivem
na ânsia e da ânsia do Encontro Sublime e da Unificação total, e para obter isso tudo fazem: exer-
cícios, ásanas, meditações, etc. São os “místicos" no sentido legítimo do termo, que já experimen-
taram a realidade do Espírito e dessa realidade tem lampejos seguros, nos mergulhos embora

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ocasionais que conseguem. O fruto é recolhido numa proporção bem maior que a anterior, a ses-
senta por um.
6. Finalmente a sexta categoria é a daqueles que já obtiveram a união, ou melhor a Unificação Total
e permanente com o Cristo Interno, e portanto já se tornaram Cristificados, conseguindo, pois, a
libertação plena, e produzindo uma frutificação de cem por um. Já são "filhos do Homem", como
os grandes avatares.
Apenas para dar uma idéia de como, mesmo os considerados grandes espíritos não conseguiram sair
da materialidade do corpo denso, dando muito maior importância ao físico que ao espírito, observem-
se estas interpretações:
Agostinho - 100 por 1, os mártires," 60 por 1, as virgens; 30 por 1, os casados.
Jerônirno - 100 por 1, os que observam a continência; 60 por 1, as viúvas; 30 por 1, os casados que se
conservam castos.
Teofilacto - 100 por 1, os anacoretas; 60 por 1, os cenobitas e religiosos conventuais; 30 por 1, os
casados.
Como se vê, a importância toda é dos atos físicos e do corpo físico, porque, para eles, a espiritualida-
de é o resultado dos atos e das atitudes externas e materiais.
***
Em Marcos aparece aqui uma advertência a respeito da lâmpada, que foi vista em Mateus (5:14-16)
por ocasião do Sermão do Monte, e em Lucas (11:33-36) (ver vol. 2). Deixamos aqui, porque se
adapta bem, no vers. 22 ao espírito da parábola.
A frase "nada está oculto senão para ser manifesto e nada foi escondido senão para ser posto à luz" é
um alerta para que, os que podem aprofundem o sentido. E mais, exprime que essa "ocultação" é pro-
posital: foi oculto com a finalidade de ser descoberto por quem o possa. Assim também a frase se-
guinte: "quem tem ouvidos, ouça", chama nossa atenção para o sentido profundo que se oculta sob as
palavras, ensinando-nos que devemos atinar não apenas com a alegoria e a metáfora (ditadas por
Ele), mas ainda com os planos simbólico, místiro e espiritual.
Além disso, não esquecer de que aqueles que conseguem penetrar o segredo do reino ("procurai o
reino de Deus e sua perfeição") terão tudo o mais por acréscimo. Mas o" que o não conseguirem, per-
derão até o pouco que julgam ter. Quantos, após uma vida inteira dedicada ao sacerdócio, ao ministé-
rio, ao mediunismo mais puro, se acham depois do túmulo de mãos vazias: puderam até o pouco que
julgavam ter, porque estavam na direção errada, já que buscavam Deus fora de si mesmos, e serviam
a Deus através das vaidades e honras humanas.

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VENTANIA ACALMADA

Mat. 8:18 e 23-27 Marc. 4:35-41 Luc. 8:22-25

18. Ora, vendo Jesus a multi- 35. Naquele dia, ao cair da tar- 22. E aconteceu que, num da-
dão em redor de si, mandou de, lhes disse: "Passemos queles dias, entrou num
passar para a outra mar- para o outro lado (do barco com seus discípulos e
gem (do lago). lago)". disse-lhes: "Passemos para
o outro lado do lago". E
................. 36. Deixando eles a multidão,
partiram.
levaram-no assim como es-
tava no barco; e estavam 23. Enquanto eles navegavam,
23. E entrando ele no barco, com eles outros barcos. ele adormeceu. E desabou
acompanharam-no seus um turbilhão de vento so-
37. E levantou-se grande tur-
discípulos. bre o lago e o barco se en-
bilhão de vento e as ondas
24. Surgiu então no mar tão cheu e estavam em perigo.
caíram no barco, de modo
grande agitação que as on- que já se enchia. 24. Aproximando-se, desperta-
das cobriam o barco; mas ram-no, dizendo: "Mestre,
38. E ele estava dormindo na
Jesus dormia. Mestre, perecemos"! Tendo
popa sobre o travesseiro; e
25. Aproximando-se, os discí- ele acordado, repreendeu o
eles o acordaram e lhe per-
pulos o acordaram dizen- vento e a fúria da água, e
guntaram: "Mestre, não te
do: "Salva-nos Senhor, que cessaram, e houve calma-
importas que pereçamos"?
perecemos"! ria.
39. Tendo ele acordado, repre-
26. Ele lhes disse: "Por que 25. Então lhes perguntou:
endeu o vento e disse ao
temeis, homens de pequena "Onde está vossa confian-
mar: "Cala-te! Fica amor-
fé'? Então erguendo-se, re- ça"? Eles, aterrorizados,
daçado"! E cessou o vento e
preendeu os ventos e o mar, admiraram-se, dizendo uns
houve grande calmaria.
e fez-se grande calmaria. aos outros: "Quem é este,
40. Então lhes perguntou: Por afinal, que manda aos ven-
27. E os homens se maravilha- que sois tão medrosos? tos e à água e eles lhe obe-
ram, dizendo: “Quem é Como ainda não tendes decem"?
esse, que até os ventos e o confiança"?
mar lhe obedecem"?
41. E eles, cheios de medo, di-
ziam uns aos outros:
"Quem é este, que até o
vento e o mar lhe obede-
cem"?

Ao cair da tarde, já tendo terminado o ensino, Jesus ordena que se passe “para o outro lado". A frase
era suficiente, num país como a Palestina, dividido ao meio de norte a sul pelo rio Jordão e seus lagos
(Mar Morto e Lago de Genesaré, o qual, no domínio romano, passara a denominar-se Mar de Tibería-
des), formando a faixa ocidental (Cisjordânia) e a oriental (Transjordânia).

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C. TORRES PASTORINO

Figura “VENTANIA NO LAGO”


O evangelista anota o pormenor de que Jesus foi "assim como estava", ou seja, não desceu à terra para
apanhar o manto, recomendável numa travessia do lago durante o frio da noite, a 200 metros abaixo do
nível do mar, onde as variações climáticas são bruscas.
O lugar de honra situava-se na popa, perto do leme, e o passageiro sentava-se geralmente num tapete
velho, apoiando-se num travesseiro de couro. Recostando-se, cansado - embora a elevação espiritual
extraordinária, possuía um corpo físico, e portanto estava sujeito ao cansaço - adormeceu para refazer
as células fatigadas pelo trabalho exaustivo dos últimos dias, sobretudo pelo magnetismo gasto nas
curas. Note-se que esta é a única vez em que os Evangelhos nos apontam Jesus a dormir.
O barco seguia normalmente sua rota para a margem oriental, quer impelida pelos remos, quer, mais
possivelmente, pela vela que aliviava os braços dos discípulos.
A agitação violenta das águas do Tiberíades, provocada por correntes de ar que descem pelo vale do
Jordão, são, ainda hoje, tão repentinas, que é difícil prevê-las. Marcos e Lucas a chamam lailaps, isto
é, um "turbilhão de vento".
Os barcos aprumam-se na crista das vagas de até dois metros, abatendo-se a seguir nos sorvedouros,
enquanto os vagalhões passam por cima do barco, "cobrindo-o" literalmente e perigosamente adernan-
do-o. Não é incomum, porém, terminar como começou: rapidamente. Pelas palavras dos três evange-
listas, é disso que se trata, e não propriamente de "tempestade" com chuvas e trovoadas. Era, pois, um
vendaval mais violento que os comuns, de modo a assustar os pescadores, tão acostumados ao seu
lago, que lhes dava o sustento.
Segurando-se nos bancos, chegaram até Jesus e o despertaram do sono, bastante pesado, a ponto de
não ter sentido a ventania. Após pequena repreensão aos discípulos pela falta de confiança manifesta-
da, usando um termo que era corrente entre os rabinos e no linguajar de Jesus (oligópistoi), Jesus er-

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gue-se e comanda aos ventos, em primeiro lugar, por serem a causa; e em seguida ao mar; e imediata-
mente fez-se acalmaria (em grego foi usado o termo técnico, galéné).
As ordens, citadas só por Marcos, são curtas. Ao vento: cala-te; ao mar, fica amordaçado. É difícil tra-
duzir exatamente o termo grego pephimôso, que é o imperativo perfeito passivo de phimôo, tempo que
não possuímos nas línguas românticas, nem mesmo havia em latim.
Mesmo habituados a uma bonança relativamente rápida, o inesperado da cena ataranta os discípulos;
embora familiarizados com as curas e as desobsessões (também praticadas em larga escala pelos essê-
nios-terapeutas), não sabem explicar o poder de uma criatura humana sobre os elementos desencadea-
dos em fúria, amainando-os de súbito. E vem-lhes a dúvida: "quem será, afinal, esse carpinteiro? Era
bom e compassivo, dominava as enfermidades e os espíritos, mas ... comandar assim a natureza? Isso
superava-lhes a capacidade de compreensão.

As interpretações mais comuns do trecho vêm da antiguidade (cfr. Agostinho, Sermão 68, Patrol. Lat
o, vol. 38 col. 424), de que a cena simboliza:
a) a igreja cristã que, mesmo na tempestade, tem Cristo ao leme e, embora este pareça dormir, na
hora oportuna despertará e salvará;
b) a alma humana que, mesmo agitada pelas provações, não sucumbirá se recorrer a Cristo que nela
se encontra, embora no silêncio do sono.
Outras aplicações ainda poderiam ser feitas, para situações semelhantes, mas o sentido profundo do
fato é o segundo, dado por Agostinho.
O espírito está viajando no barco do corpo, atravessando o lago deste mundo com seus veículos (dis-
cípulos) e com frequência repentinamente se levantam turbilhões de vento que ameaçam o naufrágio
total. O Eu Profundo jaz adormecido na popa, deitado no travesseiro no imo do coração. Quando,
entretanto, as circunstâncias se tornam desesperadoras, os veículos recorrem aos gritos ao Cristo
Interno - embora, muitas vezes, por ignorância, se voltem para fora, a fim de recorrer ao "santo" ex-
terno. No entanto, DEUS EM NÓS está atento a nossas necessidades e "sabe melhor do que nós aquilo
de que necessitamos" (cfr. Mat. 6:8) e socorre-nos sempre a tempo. E com direito, ao presenciar nos-
sa aflição, nos repreende docemente: "por que és medroso? como ainda não tens confiança"?
Mas quão dificilmente se corrige o homem, adquirindo a impassibilidade da confiança inabalável de
quem SABE que CRISTO está conosco, está DENTRO DE NÓS, e que vivemos a própria vida Dele e
que, portanto, nenhum furacão externo poderá atingir-nos!

Outra lição aí vemos ainda. Quando nosso Espírito se vê envolvido pelo vendaval das paixões, origi-
nadas em nossos veículos inferiores; quando percebe, por exemplo, que as violentas emoções de uma
paixão ilógica o envolvem, prestes a fazê-lo soçobrar, nenhum auxílio melhor pode ser-nos trazido: o
recurso ao Pai que em nós habita é o único que consegue acalmar as ondas de desejo desenfreado,
trazendo bonança aos veículos etérico, astral e intelectual. O ensino é de profundo alcance e mostra-
nos o caminho certo: ligação com o Cristo Interno, fazendo-O “despertar" em nós, para que Ele, com
Sua palavra autoritária, faça cessar os desordenados e perturbadores ímpetos do tufão borrascoso
que esses corpos provocam, arriscando matar espiritualmente nosso "espírito", por fazê-lo afogar-se
em terríveis convulsões de longos e penosos carmas.

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O OBSIDIADO DE GERASA

Mat. 8:28-35 Marc. 5: 1-20 Luc. 8:26-39

28. Tendo ele chegado à outra 1. Chegaram ao outro lado do 26. Aportaram no território
margem, à terra dos Gera- mar, no território dos Ge- dos Gerasenos que é fron-
senos, vieram-lhe ao encon- rasenos. teiro à Galiléia.
tro dois obsidiados em ex- 2. Quando Jesus desembar- 27. Depois de haver ele desem-
tremo furiosos, saindo dos cou, veio logo a seu encon- barcado, veio da cidade a
túmulos, de modo que nin- tro, dos túmulos, um ho- seu encontro um homem
guém podia passar por mem obsidiado por espírito obsidiado por espírito de-
aquele caminho. não-purificado. sencarnados, e havia muito
29. E gritaram: "Que (impor- 3. o qual morava nas sepultu- tempo não vestia roupa
ta) a nós e a ti, filho de ras e nem mesmo com ca-
nem permanecia em casa
Deus? Vieste aqui atormen- deias podia alguém segurá-
alguma, mas nos túmulos.
tar-nos antes do prazo"? lo. 28. Vendo a Jesus e gritando,
30. Ora, a alguma distância 4. Porque tendo sido muitas caiu-lhe aos pés e disse em
deles fossava uma vara de vezes preso com grilhões e
alta voz: "Que (importa) a
muitos porcos cadeias, tinha quebrado as
mim e a ti, Jesus, filho do
Deus Altíssimo? Rogo-te
31. e os espíritos rogaram-lhe, cadeias e despedaçado os
que não me atormentes"!
dizendo: "Se nos expeles, grilhões, e ninguém tinha
envia-nos para a vara de força para subjugá-lo. 29. Porque Jesus ordenara ao
porcos". 5. E sempre, dia e noite, gri-
espírito não-purificado que
saísse do homem. Pois mui-
32. Disse-lhes Jesus: "Ide". E, tava nos túmulos e nos
tas posto sob guarda e gri-
tendo eles saído, passaram montes, ferindo-se com pe-
lhões; mas ele, partindo as
para os porcos, e toda a dras.
cadeias, era impelido pelo
vara precipitou-se pelo de- 6. Então, vendo de longe a
espírito desencarnado para
clive no mar e se afogou nas Jesus, correu para ele e os desertos.
águas. prostrou-se diante dele, e,
30. Perguntou-lhe Jesus "Qual
33. Os guarda-porcos fugiram, gritando em alta voz, disse:
é o teu nome"? Respondeu
foram à cidade e contaram 7. "Que (importa) a mim e a
ele: "Legião", porque mui-
tudo, e o (que tinha aconte- ti, Jesus, filho do Deus Al- tos espíritos desencarnados
cido) aos obsidiados. tíssimo? Por Deus te conju- haviam nele entrado.
34. Então a cidade toda saiu ao ro, não me atormentes"!
31. Estes lhe suplicaram que os
encontro de Jesus; e ao vê- 8. Pois Jesus dissera: 'Espírito
não mandasse ir para o
lo, rogaram-lhe que se reti- inferior, sai desse homem". abismo.
rasse daquela região.
9. E perguntou-lhe: "Qual o 32. Ora, havia ali grande vara
teu nome"? Respondeu ele: de porcos a fossar no mon-
"Legião é meu nome, por- te; e pediram-lhe que lhes
que somos muitos". permitisse passar para eles.
10. E rogava a Jesus com insis- E permitiu-lhes.
tência que os não mandasse 33. Tendo saído do homem, os
para fora do território. espíritos entraram nos por-

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SABEDORIA DO EVANGELHO

11. Ora, fossava por ali pelo cos; e a vara precipitou-se


monte uma grande vara de pelo declive no lago e afo-
porcos, gou-se.
12. e os espíritos inferiores su- 34. Quando os guardaporcos
plicaram-lhe, dizendo: viram o que havia aconte-
"Envia-nos para os porcos, cido, fugiram e contaram
a fim de que entremos ne- na cidade e nos campos.
les". 35. Então saiu o povo para ver
13. E imediatamente Jesus lhes o que se tinha passado, e
permitiu. Saindo, então, os foram ter com Jesus, a cu-
espíritos inferiores entra- jos pés encontraram senta-
ram nos porcos; e a vara do, vestido e em perfeito
(que tinha cerca de dois juízo, o homem do qual ti-
mil) precipitou-se pelo de- nham saído os espíritos; e
clive no mar e se afogou. ficaram com medo.
14. Os guarda-porcos fugiram 36. Os que o haviam visto, con-
e foram contar na cidade e taram-lhes de que modo se
nos campos, e muitos foram libertara o obsidiado.
ver o que tinha acontecido. 37. E o povo da região circuns-
15. E chegando-se a Jesus, vi- tante dos gerasenos rogou-
ram o obsidiado, que havia lhe que se retirasse deles,
tido a legião, sentado, ves- pois estavam assustados,
tido, e em perfeito juízo; e com grande medo; e tendo
ficaram com medo Jesus entrado no barco,
voltou.
16. Os que presenciaram o
fato, contaram-lhes o que 38. Mas o homem de quem
havia acontecido ao obsidi- tinham saído os espíritos
ado e aos porcos. suplicava-lhe que o deixas-
se acompanhá-lo. Jesus,
17. E começaram a pedir-lhe
porém, despediu-o, dizen-
que se retirasse daquela re-
do:
gião.
39. "Volta para tua casa e con-
18. Ao entrar ele no barco, o
ta quão grandes coisas
ex-obsidiado rogou-lhe que
Deus te fez". E o homem
o deixasse ficar com ele.
partiu, contando por toda a
19. Jesus não o permitiu, mas cidade tudo o que lhe fizera
disse-lhe: "Vai para tua Jesus.
casa e para os teus, e conta-
lhes quanto te fez o Senhor,
e como teve compaixão de
ti".
20. E ele se foi a divulgar em
Decápole tudo o que lhe
havia feito Jesus, e todos fi-
caram admirados.

Em primeiro lugar, Gerasa, Gadara ou Gergesa? Em Mateus há "Terra dos gadarenos" (que, em 233
A.D. Orígenes - Patrol. Graeca, vol. 14, col. 270/271- corrigiu para gergesenos", apoiado na tradição -
Gên. 10:16 - e nas ruínas locais que ainda encontrou).

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C. TORRES PASTORINO
Em Lucas há "Terra dos gerasenos".
Em Marcos há três variantes: Gerasa (Aleph, B,D, antigas versões latinas, Vulgata, versão copta saídi-
ca); Gadara (em A, C, pi, sigma, phi, vários manuscritos e versões siríacas: peschittâ e filexoniense) e
Gergesa (em L, V, delta, minúsculas do grupo Ferrar: 28, 33, 604, 1071 e versões siríacas: sinaítica,
armênia e etiópica).
Os melhores comentaristas (Tischendorf, Wescott-Hort, Nestle, Hetzenauer, von Soden, Merk, La-
grange, Swete, Jouon, Huby, Pirot, etc) aceitam Gerasa como a melhor lição. Realmente, vejamos ra-
pidamente.
O território de Gadara, na Transjordánia, e sua capital Gadara (cfr. Josefo, Ant. Jud. 17, 11, 4; Bell.
Jud. 2, 6, 3) estava a sudeste do lago, ao sul de Yarmouk; entre Gadara e o Tiberíades corria o rio Hie-
romax (Scheriat el-Menadireh, que os porcos não podiam atravessar a nado sem afogar-se antes de
chegar ao lago.
A modificação de Orígenes baseia-se na tradição antiga; mas Gergesa ficava na Cisjordânia (margem
ocidental) e os Evangelhos falam claramente na margem oriental (perán).
A cidade de Gerasa (hoje Djerach) não pode ser a referida, pois dista 30 milhas do lago. Mas no terri-
tório dessa cidade havia a aldeia de Gamala, (hoje Qala' at el Hosn) e, um pouco ao sul, a 2 km, está o
local Moqa' edlô, distante do lago cerca de 30 metros (e há dois mil anos podia ser ainda menor a dis-
tância) e com um declive a pique, pois logo a seguir está pequena montanha, cheia de grutas, que bem
podiam ter servido de túmulos. O local parece coincidir com a descrição: a 2 km apenas uma cidade,
(aonde correram para dar notícia do ocorrido) que hoje tem o nome de Koursi (em grego, transcrição
do aramaico, chorsia) que pode ser corruptela de Gerasa. Daí justificar-se, como melhor lição, "no
território de Gerasa" (cfr. Abel, Koursi, no "The Journal of Palestine Oriental Society, 1927, pág. 112 a
121).
A iniciativa da ação pertence ao obsidiado, que Mateus, que tanto aprecia o número par, diz terem sido
dois. Realmente, podiam ter sido dois, embora um fosse o famoso louco violento, e o outro apenas
uma sombra que o acompanhava e, como pessoa apagada, não tenha chamado a atenção, não sendo
computado pelos outros evangelistas.
Marcos, como sempre, apresenta mais pormenores, descrevendo circunstanciadamente, segundo ouvira
da pregação de Pedro, a cena; compraz-se em anotar que ele era tão forte, que até rompia cadeias (nas
mãos) e grilhões (nos pés) e atacava os transeuntes.
Ao vê-lo vir a si, Jesus ordena categoricamente o abandono da presa, chamando-o "espírito não-
purificado" (pneuma akátharton), ou seja, inferior, involuído. O obsessor reclama a intervenção, em-
bora reconhecendo, talvez pelo esplendor da aura e pela luminosidade própria, que ali estava um "filho
do Deus Altíssimo" (expressão muito usada pelos israelitas, para distinguir o deus deles, YHWH, dos
outros adorados pelos pagãos). Na realidade, ali estava o próprio YHWH encarnado (cfr. vol. 1). Se-
gundo Marcos, o obsessor a Ele se dirige chamando-O pelo nome. Pergunta, então, que importa aos
dois o sofrimento do obsidiado (quanto ao sentido da pergunta, ver vol. 1). Indaga "por que o ator-
menta antes do prazo", talvez referindo-se ao resgaste do carma. Mas que saberia o obsessor mais do
que Jesus?
O Mestre pergunta-lhe o nome, ao que o espírito responde "legião", que corresponde ao que hoje cha-
mamos uma falange de espíritos. Não significa essa resposta que eles eram exatamente do mesmo nú-
mero que uma legião do exército romano, como pretendem alguns comentadores; mas apenas, como o
explica o próprio obsessor, então incorporado, "porque somos muitos". O nome, pois, é um símbolo,
que se exagera para valorizar. Tão comum é, por exemplo, ao referirmo-nos a um grupo de pessoas:
"veio um batalhão para almoçar em nossa casa", e no entanto trata-se de 5 ou 10 pessoas.
Ainda segundo Marcos, o obsessor pede que não seja mandada a falange para fora do "território", e,
segundo Lucas, que não a mande "para o abismo". E solicita lhes dê autorização para "passar" para
uma vara de porcos que fossava na encosta do morro. Há suposições várias manifestadas pelos co-
mentaristas, sempre do ponto de vista teológico-romano. Parece-nos todavia, que para aqueles que

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SABEDORIA DO EVANGELHO

lidam praticamente com os fenômenos obsessivos e conhecem os trabalhos espiritistas, a explicação


não é difícil. Essas falanges de espíritos inferiores, involuídos, sobretudo os que habitam os cemitérios
(como é expressamente o caso desse obsidiado) dedicam-se ao vampirismo, sugando a vitalidade da
vítima. Ora, sabiam eles que jamais lhes seria permitido por Jesus que passassem para outras criaturas
humanas, e encontram uma oportunidade na vara de porcos (que Marcos diz ser constituída de 2.000
animais) e solicitam insistentemente que lhes permita continuar o vampirismo pelo menos nos porcos.
A expressão "entrar neles" de Marcos pode ser efeito da ignorância desses fenômenos por parte do
obsessor, coisa que ainda hoje persiste inclusive nos meios espíritas, quando se fala em "incorpora-
ção", dando quase a idéia de que o espírito "entra no corpo do médium". E muito médium julga que é
isso mesmo que se dá ... Em Mateus e Lucas aparece uma palavra melhor: "passar para", que exprime
uma transferência de operação vampiresca.
A expressão "sair do território" talvez exprimisse uma facilidade maior de encontrar presas entre os
pagãos, do que entre os israelitas; ou talvez "território" fosse apenas um eufemismo para designar o
corpo do obsidiado, por eles explorado. Quando pedem que os não mande "para o abismo", referem-se
à zona de trevas em baixo do umbral, onde sofreriam horrores sem o alimento da vitalidade a que esta-
vam habituados. O com que não contavam, era com o desfecho, causado pelo pânico da invasão de
entidades grosseiras e muito materializadas nos animais, fazendo-os despenhar-se ladeira abaixo em
desabalada carreira, tão violenta que não conseguiram parar, e caíram no lago, afogando-se.
Pergunta-se a razão de ser de tantos porcos, animal considerado "impuro" e proibido entre os israelitas.
Entretanto, estamos em território não-judeu, onde o comércio de carne suína devia ser bastante rendo-
so.
Também se pergunte se a permissão dada por Jesus, com o consequente afogamento dos porcos, não
constituiu uma "perversidade" contra os pobres animais, que nada tinham que ver com o caso. Em
primeiro lugar, como podemos ignorantes ainda, querer julgar atos que fogem à nossa alçada? Além
disso, um bem maior pode justificar, por vezes, um mal menor, sobretudo se é obtido um bem espiri-
tual através de uma perda material. A maioria dos homens acha normal e natural que se mate e coma
um porco apenas para satisfação do paladar, mas se insurge contra a morte do animal para libertar um
obsidiado ... Além do mais, consideremos que apenas ocorreu aos porcos uma destruição do corpo
físico, fenômeno que teria fatalmente que ocorrer mais dia menos dia, e nada mais, pois seus princípios
vitais (nephesh) voltariam a reencarnar logo de imediato. Supõem, ainda, alguns comentaristas que se
teria tratado de uma "lição" aos proprietários, já que, sendo um comércio ilícito o da carne de porco,
não era sequer lícito criá-los com esse intuito. Realmente assim seria se se tratasse de criadores israe-
litas, mas não podemos saber se era essa a realidade. O fato é que os evangelistas não se preocuparam
em justificar o modo de agir de Jesus.
Pergunta-se por que os porcos "se suicidaram", ou por que a falange se precipitou no lago. De fato, não
ocorreu nem uma coisa nem outra: simplesmente os porcos, ao se sentirem atacados de inopino (e os
animais possuem percepção do astral inferior, que é o plano deles) entraram em pânico e correram para
fugir. Evidentemente, o caminho mais fácil é a descida, e não a subida. O próprio impulso da fuga le-
vou-os a descer automaticamente, às carreiras. Também os obsessores não deviam ter imaginado esse
fim, decepcionante sobretudo para eles.
A observação que se nos apresenta de imediato é que Jesus não se preocupou em "doutrinar" essa fa-
lange (como aliás nenhum dos outros obsessores que foram por Ele afastados), quer porque entidades
do plano astral se encarregavam disso, quer porque eram eles tão involuídos ainda, que não adiantava
doutrinação, mas apenas se devia aguardar um pouco mais de evolução para que pudessem compreen-
der a necessidade de corrigir-se.
Os obsessores deste caso estavam naquele estágio em que se satisfazer com modificação de situações
materiais, para abandonar sua presa. Esse processo de oferecer coisas materiais para conseguir a liber-
tação do obsidiado usado neste caso por Jesus, é ainda hoje bastante usual nos terreiros de Umbanda.
Após o acontecimento, trágico para os guarda-porcos responsáveis pela vara, estes correm à cidade,
que ficava a cerca de 2 km, para contar aos proprietário o que havia ocorrido sem culpa deles. Os mo-

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C. TORRES PASTORINO
radores se alvoroçaram e a notícia corria célere, não muito acreditada, até que, por proposta de um
mais incrédulo, a massa se movimentou para fora da cidade, chegando em cerca de vinte minutos ao
local em que se achava Jesus com seus discípulos. Os cadáveres dos suínos juncavam a praia do lago,
alguns ainda nas contrações finais e, sentado aos pés de Jesus, vestido, risonho, feliz, perfeito em seu
juízo, aquele homem que tanto pânico vivia a causar na região e que por todos era muito bem conheci-
do. A prova da veracidade da narrativa dos guarda-porcos evidenciava-se, tudo coincidia plenamente.
Mas, enquanto o louco apenas se limitava a assustar os transeuntes ou a atacar os incautos que se
aventuravam naquelas regiões, a cura dele lhes causara sérios prejuízos, destruindo-lhes a riqueza. Ha-
via curado um homem, o que nenhum lucro lhes trazia, mas doutro lado lhes matara a enorme vara de
porcos, o que representava substancial perda econômica. Não havia alternativa: melhor o homem, em-
bora louco, do que Jesus. Então, afoitamente vão a Ele e pedem que se vá dali, que "se afaste do terri-
tório deles" - o que representava o pedido oposto ao que lhe fizera o obsessor: que Ele não o afastasse
daquele território. Os habitantes da região concordavam com o obsessor, com ele sintonizavam, prefe-
riam-no: como se libertariam dele?
Jesus nada retruca, não se defende, não protesta, não argumenta, não procura demonstrar os benefícios
que proviriam de Sua permanência alguns dias entre eles, por levar-lhes saúde física e espiritual: cala-
do, volta-se para reembarcar, e entra no barco.
Ao verificar que seu benfeitor vai partir, o ex-obsidiado - talvez chocada por vê-Lo a3sim maltratado e
enxotado - resolve solicitar-Lhe um lugar de discípulo, para acompanhá-Lo sempre. Sem dar os moti-
vos, Jesus recusa mantê-lo a Seu lado, mas nem por isso deixa de confiar-lhe tarefa de alta responsabi-
lidade: a pregação, sobretudo pelo exemplo, do que recebera da Divindade. Humildemente o ex-
obsidiado aceita a tarefa, e os evangelistas testam que realmente ele passou a perlustrar a região da
Decápole, falando dos maravilhosos poderes de Jesus.

Do fato material podemos deduzir interessante lição: a da dificuldade que encontram os "filhos do
homem" ao "chegar à outra margem" (à Terra), onde deparam espíritos humanos na loucura da de-
linquência, preferindo os porcos ao Cristo e suplicando que Este se afaste deles, para que não sofram
os prejuízos materiais da perda dos porcos.
A atuação é descrita com pormenores. A humanidade atrasada não consegue tranquilizar-se nem ter
paz, embora se tente discipliná-la: rompe todos os laços e só se compraz "entre os túmulos", junto às
criaturas cadaverizadas no mal e no materialismo mais grosseiro. Ao deparar com um Missionário do
Plano Superior, não compreendem o benefício que possam usufruir e ainda pedem satisfações: "que te
importa nosso estado"? Rebeldes até o fim, não aceitam nenhum jugo, quebrando todos os grilhões
que pretendam discipliná-los e elevá-los. Não se trata de um só indivíduo, tomado como símbolo, mas
de uma ”legião", da maioria, da massa involuída ainda.
Não obstante, levado pela força sobre-humana do Manifestante Divino, prostra-se a Seus pés, e rece-
be ordem taxativa de evoluir: "Espírito inferior (tó pneuma tó akátharton, com o artigo definido antes
do substantivo e repetido antes do adjetivo, isto é, "espírito não-purificado" ou seja, "que não fez sua
catarse"), sai desse homem", para dar lugar ao "homem novo". A ordem do Mestre era dirigida ao
"espírito" (à personalidade) ainda atrasado, para que "se afastasse", deixando que o Espírito (a indi-
vidualidade) assumisse o comando. Mas a rebeldia dos atrasados é enorme, por causa da ignorância:
pedem que "não os atormente" e preferem continuar a rebolcar-se entre os suínos, a subir um degrau
evolutivo, abandonando os vícios. Então o Avatar deixa-os à própria sorte, não os força, e espera até
que tenham capacidade para compreender a necessidade de progredir, saindo da lama dos chiqueiros
(não vemos, ainda hoje, populações miseráveis que recusam sair das favelas, dos mocambos, dos
"alagados", para habitar em conjuntos residenciais limpos? Não se trata de carma, mas de involução;
eles se comprazem na sujeira em que vivem; e mesmo quando são transportados à força, levam consi-
go sua sujeira, e em menos de um mês o pequeno apartamento novo já se tornou a mesma pocilga em
que estavam habituados a viver). Acontece que eles "solicitam com insistência" que os mande para os
porcos e isso lhes é permitido. Eles vão. E o resultado não se faz esperar: quem quer permanecer no

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SABEDORIA DO EVANGELHO

porão da humanidade, comprazendo-se na animalidade que já deveria ter sido superada, só pode ter o
destino de "afogar-se", já que a descida pelo declive dos vícios é fácil, mas leva à morte.

No entanto, alguns se dispõem a realizar a façanha, e a primeira vantagem que experimentam é a


conquista da liberação com a paz consequente. Lógico que, ao sentir-se liberado das terríveis forças
negativas, seu primeiro impulso, ampliado pelo sentimento de gratidão, é ligar-se ao Avatar, dedican-
do-se totalmente a Seu serviço. Mas apesar da boa-vontade e das boas-intenções, ele não se acha ma-
duro para esse passo: é então aconselhado a realizar seu apostolado entre os de sua evolução (seus
parentes e conterrâneos), e para isso existem tantas seitas e religiões, tantos sistemas de espiritualis-
mo que exatamente servem para conservar em seus ambientes aqueles que já desejam progredir, mas
que não podem dar saltos, por falta de vivência anterior. Nesses agrupamentos, vão eles plasmando as
experiências necessárias, até que um dia possam alçar vôo.
Vem a seguir a reação daqueles que assistem ao fenômeno. Ao verificarem a transformação das per-
sonalidades (que eles conheciam desequilibradas nos vícios) tornando-se pacíficas e ordeiras, eles
"têm medo"! ... Medo dos bons! Medo dos calmos! Eles que o não tinham dos viciados, porque lhes
eram iguais. E chegam à conclusão de que tal mudança não lhes é útil nem vantajosa: mil vezes me-
lhor permanecer no materialismo grosseiro e animal! Resolvem, então, solicitar ao Mensageiro "que
se retire deles", que abandone o planeta visitado. O exemplo de Jesus, nessa circunstância, foi até
suave pois, na realidade, eles não costumam "pedir" que se afaste: eles o expulsam, quase sempre de
modo rude e violento (decapitação, enforcamento, fogueira, crucificação, etc.).
Nesta compreensão mais lógica e profunda, fica totalmente explicado que não se trata em absoluto de
"espíritos" desencarnados que "incorporem" em porcos, nem tampouco de castigo para os pobres
animais. Se o fato se realizou, como é relatado e possível, foi apenas para que dele pudéssemos extrair
uma lição preciosa e oportuna para nossa própria evolução.
Em todos os atos e palavras, os Manifestantes Divinos trazem ensinamentos que são apreendidos e
vividos por aqueles que os conseguem compreender: "quem tem ouvidos, ouça". . "quem puder com-
preender, compreenda ...

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C. TORRES PASTORINO

O PEDIDO DE JAIRO

Mat.9:18-19 Marc. 5:21-24 Luc. 8:40-42

18. Enquanto assim lhes falava, 21. Tendo Jesus regressado no 40. Quando regressou, foi
veio um chefe (da sinagoga) barco para o outro lado, Jesus bem recebido pelo
e adorava-o, dizendo: "Nes- afluiu para ele grande mul- povo, pois todos o espera-
te momento acaba de expi- tidão; e ele estava à beira- vam.
rar minha filha; mas vem, mar. 41. E veio um homem chamado
põe tua mão sobre ela e vi- 22. Chegou-se a ele um dos Jairo, que era chefe da si-
verá". chefes da sinagoga, chama- nagoga, e, prostrando-se
19. E Jesus, levantando-se, o do Jairo, e, vendo-o, lan- aos pés de Jesus, suplicou-
foi seguindo com seus dis- çou-se a seus pés. lhe que chegasse à sua casa,
cípulos. 23. e rogou-lhe com insistência, 42. porque tinha uma filha
dizendo: "Minha filhinha única, de cerca de doze
está a expirar; suplico-te anos, que estava à morte.
que venhas por as mãos so- Enquanto ele ia, a multidão
bre ela, para que sare e o comprimia.
viva".
24. Jesus foi com ele. E grande
multidão, acompanhando-
o, o comprimia.

Mateus assinala apenas que era um "chefe” (árchôn eis), enquanto Marcos diz ser “um dos arquisina-
gogos" e Lucas o chefe da sinagoga". Os dois últimos citam-lhe o nome, "Jairo" helenização do he-
bráico Jair (Yâ'yr, que encontramos em Núm, 32:41, Juízes, 10:3 e Ester, 2:5).
Cada sinagoga possuía somente um chefe. Entretanto, os que o assistiam eram também denominados
"chefes", como título de respeito, pois eles dirigiam a leitura aos sábados.
Entre Mateus e os outros há uma contradição in términis, já que o primeiro coloca na boca do pai aflito
a notícia de que a filha acabava de falecer e o pedido explícito da “ressurreição" (zésetai); os outros
fazem-no dizer que "a filha está à morte"; acrescentando Lucas que era "filha única" e que "tinha doze
anos". Parece, pois, que Mateus se satisfez em dar o resumo da história, suprimindo os pormenores.
Jesus atende de imediato, acompanhando-o

Os outros comentários serão feitos no final do episódio, após a cura da filha de Jairo.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

CURA DE HEMORRAGIA

Mat. 9:20:22 Marc. 5:25-34 Luc. 8:43-48

20. Ora, uma mulher, que pa- 25. Ora, uma mulher que pa- 43. E uma mulher que por
decia há doze anos de he- decia há doze anos de um doze anos tinha um fluxo
morragia, veio por detrás fluxo de sangue, de sangue e que gastara
dele e tocou-lhe a borla do 26. e que tinha sofrido bastante com médicos todos os re-
manto. às mãos de muitos médicos,
cursos vitais, tendo conse-
guido ser curada por ne-
21. porque, dizia consigo, "se gastando tudo o que pos-
nhum,
lhe tocar somente o manto, suía sem nada aproveitar,
ficarei curada". antes ficando cada vez pior, 44. chegando-se por detrás
tocou-lhe a borda do man-
22. Voltando-se Jesus e vendo- 27. tendo ouvido falar a respei-
to; e imediatamente cessou
a, disse: "Tem ânimo, filha, to de Jesus, veio por detrás,
fluxo de sangue.
tua fé te curou". E desde entre a multidão, e tocou-
aquela hora a mulher ficou lhe o manto, 45. Perguntou Jesus "Quem
sã. 28. porque, dizia: "se eu tocar
me tocou”? negando-o to-
dos, disse Pedro: " a multi-
somente sua veste, ficarei
dão te comprime e sufoca, e
curada".
perguntas quem tocou"?
29. No mesmo instante, secou a
46. Mas Jesus disse: “Alguém
fonte de sangue, e sentiu em
me tocou, que percebi que
seu corpo que estava cura-
de mim um poder”.
da de seu flagelo.
47. Vendo a mulher que não
30. Conhecendo Jesus logo, por
tinha ficado despercebida,
si mesmo, o poder que dele
veio tremendo prostrar di-
saíra, virando-se no meio
ante dele e declarou, na
da multidão perguntou:
presença todo o povo, o mo-
"Quem tocou meu manto"?
tivo por que o havia tocado
31. Responderam-lhe seus dis- e como fora imediatamente
cípulos: "Vês que a multi- curada.
dão te comprime, e pergun-
48. E ele lhe disse: “Filha, tua
tas quem me tocou"?
fé te curou, vai-te em paz".
32. Mas ele olhava ao redor
para ver quem fizera isso.
33. Então a mulher, receosa e
trêmula, cônscia do que
nela se havia operado, veio,
prostrou-se diante dele e
declarou-lhe toda a verda-
de.
34. E Jesus disse-lhe: "Filha, a
tua fé te curou; vai-te em
paz e fica livre de teu mal".

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C. TORRES PASTORINO

Figura “A CURA DA HEMORRAGIA”

Interessante observar que os três sinópticos mantiveram a mesma ordem dos fatos, colocando a cura da
hemorragia no percurso entre o local do pedido de Jairo e a casa dele.
Também aqui Mateus abrevia os fatos.
Observemos que não mais se trata de uma cura à distância (como a do servo do centurião), nem do
toque intencional de Jesus (como, por exemplo, fez com a sogra de Pedro); trata-se de um contato com
Sua roupa, e realizado de surpresa para Ele.
Nota-se que Marcos e Lucas, que assinalam que a filha de Jairo tinha doze anos, dão à doença da mu-
lher, tal como Mateus, a mesma idade.
Ela consultara numerosos médico, sem obter resultado. Marcos acrescenta que "muito sofrera, gastan-
do seus haveres e piorando cada vez mais", confirmando o que se lê na Mischna (tratado Qidduchin,
4:4) que "o melhor dos médicos é digno da geena" ... Mas Lucas, que também era médico, desculpa
seus colegas, dizendo apenas "que não obtivera a cura".
O catamênio era considerado impureza legal (Levit. 15:15) e contaminava todos os que tocassem a
enferma ou que fossem por ela tocados. Por isso a pobre mulher mantinha secreta sua enfermidade.
Seu pensamento intuitivo dizia-lhe que "se tocasse nem que fosse a borla (kráspedon) de seu manto
(imátion), ela ficaria curada.
YHWH ordenara (Núm. 15:37-41 e Deut. 22:12) que nos cantos do manto, os israelitas deviam pendu-
rar borlas de fios de lã branca, com um fio azul cada uma, a fim de recordarem os mandamentos e os
observarem.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Sendo esvoaçante, o manto era mais fácil de ser tocado que a túnica presa à cintura e mais aderente ao
corpo. E a enferma resolutamente abre passagem entre o povo que comprimia Jesus e toca-lhe o man-
to.
Imediatamente o Mestre sente que de seu corpo saiu um jato de fluidos (poderes) magnéticos curati-
vos, atraídos (sugados) pelo ímã da fé poderosa. A fé plasma a forma mental da coisa desejada (cfr.
Hebr. 11: 1), e esta funciona como um recipiente a vácuo, que atrai a si os elementos que o encherão;
ou como um "fio-terra", que retira a eletricidade para derramá-la no solo.
Instintivamente indaga quem O tocou. Ninguém se acusa. E Pedro, temperamental, diz-lhe, quase em
tom de reprimenda: "Mestre, a multidão te aperta, e perguntas quem te tocou”? Jesus então confessa a
razão essa pergunta: sentiu a inesperada saída de fluidos curativos. Esta anotação é privativa do "médi-
co" Lucas, não tendo Marcos ousado incluí-la. em suas anotações.
Quando a mulher, que já se refizera de sua emoção ao sentir-se curada, viu que fora descoberta (talvez
por um olhar mais penetrante de Jesus), confessou seu gesto. O Mestre não lhe faz a mínima restrição,
limitando-se a atribuir todo o mérito do ocorrido à sua fé (cfr. Jerôn., Patrol. Lat. vol. 26, col. 58).
A essa mulher a Acta Pilati ou "Evangelho de Nicodemos" (cap.7) dá o nome de Beronike e os textos
latinos "Verônica". A lenda apoderou-se dessa figura e fez que ela, no percurso de Jesus para o calvá-
rio, lhe enxugasse o rosto suado e ferido, ficando Sua Face gravada no lenço (sudário) que mais tarde
operou numerosas curas (cfr. Mors Pilati, 1; Vindicta Salvatoris, 22, 26, 27, 29 e 32, in "Los Evange-
lios Apócrifos", Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid, 1956).

Observemos o que nos ensina esse fato material.


Em primeiro lugar, notemos que os três evangelistas o colocam na mesma posição: no percurso para a
casa de Jairo, entre o pedido do pai e a cura da filha.
Além disso, os três assinalaram que a mulher sofria de seu catamênio havia DOZE anos; e também que
a menina curada tinha exatamente DOZE anos.
Outros pormenores: o nome hebráico Yâ'yr (Jair, helenizado em Jairo) significa "o sexto". Ora, já vi-
mos (vol. 2) que o número doze, no plano humano, exprime "o holocausto de si mesmo".
O simbolismo é intensificado pelo tipo da enfermidade: a perda de sangue, é a expiação da alma" (he-
braico: ki-haddam hu bannephesh iakapher; grego: tò gàr haima autou anti psychês ecsilásetai; Levit.
17:11).
Realmente, o Levítico afirma, nesse local, que "a alma de toda carne é seu sangue" (vers. 11; hebraico:
ki-nephesh habbassar baddam hu; grego: hê gàr psychê pasês sarkòs haima autou esti); e repete a
mesma frase por duas vezes no versículo 14, numa das quais há pequena modificação, para que não
paire dúvida: "porque (quanto) à alma de toda carne, o sangue é por sua alma" (hebraico: ki-nephesh
kal-bassar damô benapheshô hu).
Parece, então, bem claro que a palavra "alma" (do latim ánima, porque sua função é animar o corpo)
corresponde ao que atualmente é chamado, nos meios espiritualistas, de corpo astral, que é o que vivi-
fica e anima o corpo físico. Assim como o duplo etérico toma sua forma visível no sistema nervoso,
assim o corpo astral toma sua forma visível no elemento biológico denominado sangue: o sangue é a
alma de qualquer animal.
Nós sabemos, com efeito, que o sangue passa constantemente pelo coração, em cujo nó de Kait-Flake
e His está fixa, embora em outra dimensão, a Centelha Divina ou Mônada; aí o sangue capta as vibra-
ções da Vida Divina, que leva a todos os mínimos recantos do corpo para vivificá-lo: se impedirmos a
circulação sanguínea de qualquer membro, este se necrosa, porque onde não há sangue não há vida,
pois não há alma. Além de buscar vida no coração, o sangue vai apanhar nos pulmões o prana (nitro-
gênio), para com ele alimentar as células, por mais microscópicas que sejam. Alimento importantíssi-
mo e vital (embora não único), bastando lembrar que, enquanto as células podem viver até dias sem

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comer nem beber, não conseguem manter-se vivas senão alguns minutos, se parar a respiração, que as
alimenta de prana.
Mas, como tudo em a Natureza é aproveitado, o sangue serve de veículo para, enquanto fornece ali-
mento, recolher as impurezas, levando-as ao forno crematório dos pulmões, onde o oxigênio se encar-
rega de queimá-las na hematose. Veículo do prana (nitrogênio) parece que são os leucócitos (segundo
o biologista Dr. Jorge Andréa) que, além disso tem a tarefa de combater os micróbios por meio a fago-
citose. Então verificamos que os dois principais elementos sanguíneos têm suas funções bem definidas:
enquanto os leucócitos alimentam as células, lhes carreiam as impurezas e as defendem contra os inva-
sores prejudiciais, as hemácias transportam os fluidos vitais, produzindo vida no corpo físico que, sem
ele, se reduziria a simples cadáver.
Tendo, pois, o sangue essa importância vital, o máximo sacrifício que pode uma criatura fazer é der-
ramá-lo para defender uma causa; e esse sacrifício serve de "expiação para a alma" (resgata os carmas
dos erros do "espírito"). Daí o grande valor das primeiras testemunhas (mártires) do cristianismo, cujo
sangue, cristãos" no dizer de Tertuliano, era "a semente de novos cristãos”.
Feito esse preâmbulo, vejamos o simbolismo desse fato material passou no plano físico.
A mulher (elemento feminino, porque representa a "alma" que se manifesta no sangue) aproxima-se de
Jesus (a individualidade) porque completara o resgate de seus erros, e já estava cansada de sofrer por
causa deles. Compreendemos que se trata disso, pelo número DOZE apresentado, simbolizando o auto-
sacrifício voluntário, realizado conscientemente para queimar os carmas dolorosos do passado com o
derramamento do próprio sangue (que faz "expiação" pelo espírito).
Nenhum médico terreno conseguira estancar o sangue, antes do final do resgate. Com efeito, por mais
sábia e santa que seja a entidade, encarnada ou desencarnada, ela não conseguirá libertar quem quer
que seja de seus resgates, se não tiver chegado o tempo: só a própria criatura poderá fazê-lo.
Chegado esse tempo, a alma vai, silenciosa e ocultamente (porque qualquer contato deve ser secreto)
em busca do Encontro com a individualidade, dizendo: "por menor que seja esse contato, por mais
rápido que seja, ficarei liberta de minhas dores". Busca então tocar (entrar em contato) com “a borla de
seu manto" (é pelas pontas que melhor se escoa o magnetismo). Aí alma crê que ao entrar na vibração
da plano da individualidade, certamente terá "estancada a fonte de sangue", ou seja, o kyklos anánke"
(ciclo fatal) do carma.
Acredita, também, que todo o seu agir permanecerá secreto, não contando com a sabedoria da indivi-
dualidade. Mas sua própria fé, que forma como que um vácuo, atrai a si com força o magnetismo espi-
ritual do Cristo Interno. Sua aspiração é satisfeita de todo, e o espírito lhe dá a paz tão desejada, escla-
recendo-lhe que todo o merecimento desse Encontro rápido cabe totalmente à sua fé. No ato material,
Jesus faz questão de que o ato se torne público a fim de não perder o ensejo de uma lição preciosa. Daí
ter confessado que "sentiu sair de si um fluido", a fim de provocar a confissão da beneficiada, e com
isso dar-nos o ensinamento.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

A FILHA DE JAIRO
Mat. 9:23-26 Marc. 5:35-43 Luc. 8:49-56

23. Quando Jesus chegou à 35. Ele ainda falava, quando 49. Enquanto ele ainda falava,
casa do chefe (da sinagoga), vieram da (casa) do chefe veio alguém da casa do che-
ao ver os locadores de flau- da sinagoga, dizendo a este: fe da sinagoga, dizendo a
ta e a multidão em alvoro- "Tua filha já morreu, por este: "Tua filha morreu,
ço, disse: que ainda incomodas o não incomodes mais o Mes-
Mestre"? tre"
24. "Retirai-vos, pois a menina
não está morta, mas sim 36. Tendo Jesus ouvido o reca- 50. Ouvindo isso, respondeu-
dormindo". E caçoavam do que foi dito, imediata- lhe Jesus: "Não temas,
dele. mente disse ao chefe da si- apenas confia e ela será
nagoga "Não temas, apenas salva".
25. Mas, retirada a multidão,
confia".
entrou Jesus, tomou a me- 51. Tendo chegado à casa, não
nina pela mão e ela se le- 37. E não permitiu que nin- permitiu que ninguém en-
vantou. guém o acompanhasse, se- trasse com ele, a não ser
não Pedro, Tiago e João Pedro, João e Tiago, e o pai
26. E a fama desse fato correu
irmão de Tiago e a mãe da menina.
por toda aquela terra.
38. Chegando à casa do chefe 52. Todos choravam e a pran-
da sinagoga, viu Jesus um teavam, mas ele disse:
alvoroço, e que choravam e "Não choreis: ela não está
lamentavam muito. morta mas dorme".
39. E tendo entrado disse-lhes: 53. E caçoavam dele, porque
"Por que fazeis alvoroço e sabiam que ela estava mor-
chorais? a menina não está ta.
morta, mas dorme". 54. Porém ele, tomando-a pela
40. E caçoaram dele. Tendo, mão, disse em voz alta:
porém, feito sair a todos, "Menina, levanta-te"!
ele tomou consigo o pai e a 55. E seu espírito voltou e ela
mãe da menina e os que se levantou imediatamente,
com ele vieram e entrou e ele mandou que dessem a
aonde estava a menina ela de comer.
41. E, tomando-a pela mão, 56. Seus pais ficaram atônitos,
disse-lhe: "Talithá koúmi",
mas ele advertiu-os de que
que se traduz, "Menina, (eu a ninguém dissessem o que
te digo), levanta-te". havia ocorrido.
42. Imediatamente ela se levan-
tou e começou a andar, pois
tinha doze anos. Então eles
ficaram atônitos.
43. E Jesus recomendou-lhes
expressamente que nin-
guém o soubesse, e mandou
que dessem a ela de comer.

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Figura “A CURA DA FILHA DE JAIRO”

Era hábito antigo entre os israelitas contratar tocadores de flauta (hebr.: halilim, grego; aulêtaí) e car-
pideiras (hebr.; meqôneneth), para velar o morto e acompanhar os funerais; por mais pobre que fosse a
família, esses elementos não faltavam. E quanto mais podia despender, mais "barulho" era necessário,
para exprimir uma "dor maior". Um chefe de sinagoga que perdia sua "filha única" de doze anos, devia
haver contratado bom número deles. Daí os evangelistas falarem em "multidão em alvoroço".
Marcos e Lucas anotam que alguém veio avisar ao pai que a menina falecera: inútil incomodar mais o
Mestre: diante da morte, quem teria poder? Mas Jesus reanima a esperança do pai e escolhe os três
discípulos mais íntimos (Pedro, Tiago e João) para entrar com ele na casa, deixando de fora todos os
que O acompanhavam.
Ao entrar, manda que se retirem todos os que estavam no quarto da menina, permitindo a permanência
apenas dos pais e dos três discípulos . Parece querer esconder seu trabalho ... Ao passar pela multidão
de choradores, avisa que parem com o barulho, pois a menina não morreu, mas apenas "estava dor-
mindo" (grego: katheúdei, composto de eudô, dormir e da preposição katá, que exprime movimento de
cima para baixo; daí, o sentido preciso do verbo usado ser: está deitada para dormir, ficar inerte). Uma
afirmação dessas parecia zombaria, e o povo começa logo a rir e caçoar Dele.
Apesar da demora dos preparativos, Jesus espera que todos saiam, o que deve ter levado algum tempo.
A sós, no quarto, com os pais e os três discípulos, com toda a simplicidade, Jesus segura a mão da me-
nina, usando termos próprios exatamente para despertar quem dorme: "menina, levanta-te"!
A alegria dos pais foi grande, cuidando de regozijar-se. Mas o Mestre chama-lhes a atenção para a
alimentação, pois devia a menina estar fraca de fome, em vista do tempo em que ficara em jejum pela
doença.

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Finalmente a recomendação comum, de que não se divulgue o ocorrido, o que podia trazer prejuízo à
missão espiritual de Jesus, com centenas de pedidos de todos os que tivessem mortos na família, e que
desejariam que Ele os ressuscitasse, mesmo quando o "carma" não admitisse tal gesto; e isso viria tra-
zer o descrédito e a má-vontade para com Sua tarefa, fazendo inimigos gratuitos.

A cena vem demonstrar a ação da individualidade no ambiente das personalidades. Os pormenores


indicam o simbolismo com rara precisão.
Inicialmente o chefe da sinagoga, que representa a mente, ao ver o estado lastimável da personalida-
de, que “era sua filha única", recorre ao Cristo Interno, com absoluta fé, pedindo que realizasse um
"contato" (que a tocasse).
Antes de mais nada, o primeiro passo do Cristo é verificar que o resgate já fora completado pelo auto-
sacrifício, inclusive com derramamento de sangue. Faz então cessar o fluxo sanguíneo, que durara
DOZE anos. E isso explica a razão de os três evangelistas haverem colocado a cura da hemorragia
exatamente antes de ser atendido o pedido da mente (do pai, Jairo).
Depois, vem o cuidado de querer realizar tudo em segredo. Mas antes disso, os servos (os demais veí-
culos, emoções, sensações, etc.) vêm comunicar à mente que de nada mais adianta agir, porque a per-
sonalidade já sucumbiu ao peso do sofrimento. O Eu Interno renova-lhe a fé: "confia".
Ao aproximar-se da casa (corpo) verifica que está cercado por uma multidão em alvoroço de ele-
mentais, de "kama-rupas", de obsessores, de fluidos pesados, todos a querer apossar-se de sua vitali-
dade. Necessária uma limpeza externa: então são todos expulsos da casa, num socorro oportuno.
Escolhe, então, para entrar na "casa" da personalidade, o corpo físico, os elementos que julga neces-
sários: os pais, isto é, o Espírito e a Mente; e os três, discípulos, Pedro (emoções), Tiago (intelecto) e
João (intuição) . Nesse ambiente de paz e serenidade, tendo "entrado no quarto e fechado a porta", o
Cristo Interno "toma a mão da menina", isto é, se liga à personalidade unindo-a a Si, e fá-la renascer
da morte para a vida, iniciando novo ciclo de existência, não mais apegada às ilusões terrenas da
matéria, mas no mundo do Espírito, embora continuasse dentro do corpo de carne.
Uma vez despertada a personalidade, Sua preocupação prende-se à sual fixação na vida espiritual, e
para isso algo existe de indispensável e urgente a “alimentação” do aprendizado, de que se encarre-
gam a Mente e o Espírito.
Temos, portanto, a exemplificação do que deve ocorrer, na ressurreição de uma personalidade cujo
carma tenha sido resgatado totalmente, sobretudo quando isso tiver ocorrido por vontade própria,
pelo auto-sacrifício que vai até o derramamento de sangue. Esse resgate total (DOZE anos de hemor-
ragia, e DOZE anos de vida da personalidade) deve ser verificado antes da "ressurreição": necessário
que o "espírito" esteja purificado de qualquer resquício do passado e que não haja mais necessidade
de "derramamento de sangue" que, por isso, se estanca.
Vemos, então, o trabalho nos diversos planos: o corpo físico (1.º plano) que estava inerte, deve ser
trazido às sensações (etérico, 2.º plano) e as emoções (3.º plano, astral) precisam ser transformadas;
o intelecto (4.º plano) tem que ser iluminado pelo alimento do 'pão sobressubstancial"; o Espírito in-
dividualizado (5.º plano) precisa voltar a comandar seus veículos inferiores, revivificando-os sob a
direção da Mente (6.º plano - daí o nome do pai da moça ser exatamente Yâ'yr, Jairo, que significa "o
sexto"), para que então a Centelha Divina, o Cristo Interno (7.º plano) possa expandir-se, em mani-
festação plena, através da personalidade ressuscitada, plasmando assim o "homem novo".
Note-se, porém que isso não significa que o carma deva durar doze anos. O número DOZE é simbóli-
co de uma terminação de ciclo (por exemplo: os doze signos do zodíaco), podendo esse ciclo contar
qualquer número de anos. Nos doze signos do zodíaco encontramos, v.g., doze meses; no entanto,
computamos 52 semanas e 365 dias, que nada realmente têm que ver com o número doze. Fica bem
claro, pois, que DOZE é apenas representativo de um ciclo completo.

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JESUS EM NAZARÉ
(Sábado, 21 de outubro do ano 29 A.D.)

Mat.13:54-58 Marc. 6:1-6a

54. E chegando a sua aldeia, ensinava a eles na 1. Jesus saiu dali e foi para sua aldeia, e seus
sinagoga deles, de modo que se admiravam discípulos o acon1panharam.
e diziam: 'Donde lhe vem essa sabedoria e 2. Chegando o sábado, começou a ensinar na
esses poderes? sinagoga; e muitos ao ouvi-lo, se admira-
55. Não é este o filho do carpinteiro? Sua mãe vam, dizendo: "Donde lhe vêm essas coisas?
não se chama Maria e seus irmãos não são Que sabedoria é essa que lhe é dada? E que
Tiago, José, Simão e Judas? significam esses poderes operados por sua
mão?
56. E não vivem entre nós todas as suas irmãs?
Donde lhe vem, pois, isso tudo?" 3. Não é este o carpinteiro, filho de Maria,
irmão de Tiago, de José, de Judas e de Si-
57. E ele lhes era uma pedra de tropeço. Mas
mão? e suas irmãs não estão aqui entre
disse-lhes Jesus: "Um profeta só é despre-
nós"? E ele lhes era pedra de tropeço
zado em sua terra e em sua casa".
4. Então Jesus lhes disse: "Um profeta só é
58. E não exerceu ali muitos poderes, por causa
desprezado em sua terra, entre seus paren-
da incredulidade deles.
tes e em sua casa".
5. E não conseguia exercer ali nenhum poder,
a não ser que pôs as mãos sobre alguns en-
fermos e os curou.
6. E admirava-se, por causa da incredulidade
deles.
Luc. 4:22b-30 João, 4:44

22. b ... E perguntaram: "não é este o filho de 44. E o próprio Jesus atestou que um profeta
José"? não recebe honra em sua própria terra.
23. E ele lhes disse: "Certamente aplicareis a
mim este provérbio: "Médico, cura-te a ti
mesmo", o que ouvistes ter sido feito em
Cafarnaum, faze-o também aqui, em tua
terra".
24. Disse mais: "Em verdade vos digo, que ne-
nhum profeta é aceito em sua terra";
25. mas, sem dúvida, digo-vos que muitas viú-
vas havia nos dias de Elias em Israel, quan-
do o céu se fechou por três anos e seis me-
ses, de forma que houve grande fome em
toda a região;
26. mas Elias não foi enviado a nenhuma delas,
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SABEDORIA DO EVANGELHO

a não ser a uma moça viúva, em Sarepta de


Sidon;
27. e muitos leprosos havia no tempo de Eliseu,
o profeta, em Israel, mas nenhum deles foi
limpo, a não ser Naaman, o sírio".
28. Tendo ouvido essas coisas, eles ficaram
cheios de raiva na sinagoga.
29. E, levantando-se, o expulsaram para fora e
o levaram até um precipício na montanha
em que estava construída a cidade deles,
para lançá-lo abaixo.
30. Ele, porém, passando pelo meio deles, foi
embora.

Em Marcos encontramos a sequência cronológica. De lá, sai Jesus para "sua aldeia nativa", Nazaré,
aonde deve ter chegado no fim do ano 29 (sábado, 21 de outubro?). Com Ele seguem seus discípulos e
comitiva, pois não foi para visitar parentes, mas para divulgar a Boa-Nova.
Nazaré fica a cerca de 50 quilômetros de Cafarnaum, e Jesus já passara por lá ao dirigir-se para fixar
residência numa cidade mais importante, em maio/junho desse mesmo ano (veja vol. 2 e cfr. Mat. 4:13
e Luc. 4: 16-22a).
Neste trecho, Lucas se afasta de Mateus e Marcos. Vejamos primeiro estes dois.
Repetindo o que fizera na primeira visita, aguarda o sábado para, na sinagoga local, falar ao povo.
Nesta segunda visita não estamos informados do texto comentado por Jesus. A verdade é que Suas
palavras e os fatos prodigiosos que Dele se narravam, operados em Cafarnaum por Ele (literalmente:
dià tou cheirôn autou, "por meio das mãos dele"), suscitavam uma série de indagações. Os nazarenos
sabiam que Ele era de condição modesta (Marcos, "carpinteiro", téktô; Matteus, "filho de carpinteiro",
tou téktonos). Sabiam que "sua mãe se chama Maria" (com o verbo no presente do indicativo, indican-
do que ela ainda se achava encarnada entre eles). Sabiam que tinha quatro irmãos, cujos nomes são
citados: Tiago (o menor) considerado "uma das colunas da comunidade de discípulos" (cfr. Gál. 1:19;
2:9,12; Art. 12:17; 15: 13; 21: 18 e Flávio Josefo, Ant. Jud. 20, 11, 1), autor de uma epístola, chefe do
grupo de Jerusalém até sua morte em 62); José; Judas (denominado "Tadeu", outro dos discípulos) e
Simão (que não sabemos se terá sido o chamado 'Zelotes", também discípulo de Jesus). Das irmãs não
são citados os nomes, mas deviam ser várias, por causa do adjetivo empregado: "todas as suas irmãs'.
Dado esse conhecimento de Sua origem, de Sua família e de Sua educação, os nazarenos se pergunta-
ram como teria Ele conseguido tamanha cultura e de que modo teria obtido os poderes de dominar a
natureza. Diante do conhecimento, não podia ser o Messias, cuja origem deveria ser desconhecida (cfr.
João 7:27). Então a própria figura de Jesus fê-los "tropeçar" na incredulidade e desconfiança.
Jesus cita um provérbio, aproveitando o ensejo para demonstrar a seus discípulos, contemporâneos e
posteriores, que jamais pensassem em conquistar para sua crença os familiares e conterrâneos: "o pro-
feta só não recebe honra em sua cidade, entre seus parentes e em sua família". Sêneca tem a mesma
opinião: vile habetur quod domi est (De Renef 3,3): "o que está no lar é julgado vil".
Dessa maneira, a não ser alguns enfermos a quem curou com Seus passes (imposição das mãos), nada
mais PODE fazer, por falta de fé dos compatriotas. Sem a receptividade indispensável da fé, "que é a
substância da coisa desejada (Hebr. 11: 1) e portanto forma o "vácuo" que atrai os fluidos magnéticos,
qualquer irradiação se perde no ar, não adere, escorrega pela superfície sem conseguir penetrar na cri-
atura, qual ocorre com a água numa superfície impermeabilizada. Marcos é explícito, quando afirma
que Jesus NÃO CONSEGUIU; o que para nós é de suma importância para ensinar-nos a não desani-

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mar quando também não conseguimos realizar determinados efeitos benéficas em certas pessoas. Uma
advertência para admoestar-nos: nem tente!
Nota ainda Marcos que Jesus "se admirou" da falta da fé, da incredulidade deles, dos quais provavel-
mente esperava (como todos nós esperamos dos familiares) maior compreensão e mais fé, provocada
exatamente pelo velho conhecimento e pela antiga amizade de companheiros de infância, aos quais
mais do que a ninguém, desejamos ajudar a fazer subir.
Inegavelmente a lição é profunda e eficaz.
Lucas relata essa visita em termos diferentes, talvez porque, longe dos acontecimentos e sem ligação
pessoal com os nazarenos, não tenha tido receio de relatar fatos mais graves.
Começa salientando que o próprio Jesus percebe a descrença deles e lê o pensamento que eles não ha-
viam ousado proferir em voz alta: "Certamente me direis: médico, cura-te a ti mesmo, e faze aqui o
que fizeste em favor de Cafarnaum (eis tên Kapharnaoum)".
Dito isto, responde com outro provérbio: "nenhum profeta é aceito em sua pátria”. E para confirmá-lo
cita dois exemplos extraídos da própria Escritura. Refere-se o primeiro a Elias que, (cfr. 1.º Reis, 17: 8
e seguintes) perseguido pelos seus na grande fome que durou três anos (Lucas: três anos e seis meses),
não pode atender a ninguém, mas renovou a provisão de azeite e farinha de uma viúva de Sarepta, ao
sul de Sidon. O outro refere-se a Eliseu, quando curou de lepra o sírio Naaman (2.º Reis, 5:1 e seguin-
tes), embora não tenha curado nenhum leproso na Samaria.
Essas palavras causam tumulto na sinagoga, provocado pelo despeito que se torna raiva contra o inso-
lente que, além de nada fazer, diz que só beneficiará outras cidades. Levantou-se a multidão e expul-
sou-o aos empurrões da sinagoga, levando-O para "um precipício na montanha em que estava cons-
truída a cidade". Não é necessário supor, como diz a tradição, que se tratava do rochedo de Esdrelon,
que fica a 3 km de Nazaré. Não. Qualquer altitude de 3 a 4 metros dava para, após jogá-lo em baixo,
poder liquidá-lo pela lapidação.
Entretanto, a calma de Jesus em Sua tranquila dignidade fez que Ele se voltasse sereno, passasse no
meio deles, sem que eles conseguissem mover um dedo contra Ele: num silêncio constrangedor, eles O
vêem retirar-se. Para quem tivesse boa-vontade, o simples fato de haver Jesus passado pelo meio deles,
silenciando a multidão enfurecida, bastaria para demonstrar o "sinal" que eles haviam desejado.
A quem lê o evangelho de Lucas de seguida, não deve estranhar o fato de que ele tenha reunido numa
só narrativa as duas visitas de Jesus a Nazaré. Na primeira, Ele se declara categoricamente o Messias,
tendo reservado para seus conterrâneos a primeira revelação explícita, e com isso conquista-lhes a be-
nevolência. Cerca de quatro meses após, Jesus vai colher o resultado de Sua declaração anterior; mas o
ciúme causado pelo ministério realizado fora da pequenina aldeia suscita-lhes a má-vontade, que chega
ao despeito e à raiva. Lucas, de modo geral, gosta de terminar uma narrativa no mesmo local, mesmo
que para isso tenha que unir dois pormenores afastados no tempo.

Todas as vezes que uma criatura dá o salto da personalidade para a individualidade, ela se vê a bra-
ços com sérios problemas em seu círculo de parentesco e de amizades. Dai a quase necessidade de o
indivíduo afastar-se de casa, para poder dar cumprimento às tarefas que lhe competem. Em casa não
é recebido: "veio para o que era seu, e os seus não O receberam"; no entanto os de fora da casa con-
sanguínea, "todos os que O recebem e crêem em Seu nome, a esses Ele dá o direito de se tornarem
filhos de Deus", embora "não tenham nascido do sangue, nem da vontade da carne, sem da vontade do
homem", porque "nasceram de Deus" (cfr. João, 1:11-13). Os mais afins a nós espiritualmente, sem-
pre os encontramos fora do círculo doméstico.
Lição que precisamos ter sempre diante dos olhos, para não desanimarmos ao ver que, exatamente os
que mais são ligados a nós pela convivência, esses é que mais nos repelem, e até muitas vezes nos
perseguem e caluniam, porque damos mais atenção aos “outros" do que a eles ...

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SABEDORIA DO EVANGELHO

São trazidos argumentos de "direitos adquiridos" pelos laços do sangue, pela afeição mais antiga, e
todos tropeçam naquele que pode elevá-los na evolução, mas que "não no consegue" pela falta de fé
da parte deles.
O próprio Jesus "se admira da indredulidade deles", dizendo-nos com isso que o mesmo há de ocorrer
com todos os que seguissem Seu exemplo. Os franceses dizem, com razão, "qu'il n'y a pas de grand
homme pour son valet de chambre", trazendo para o cotidiano o que dissera Jesus: "Só na própria
terra o profeta não é honrado."

Em outro sentido mais restrito, encontramos que os piores inimigos do homem são seus parentes mais
íntimos e mais próximos, ou seja, seus veículos inferiores. Quando o Espírito descobre os altos cimos
espirituais e quer escapar à personalidade, negando-a, os mais ferrenhos opositores são seu intelecto
que duvida, suas emoções que o arrastam para fora de si, suas sensações que reclamam maior bem
estar e comodismo, seu corpo que pesa tristemente numa sonolência que corta qualquer meditação.
Diante do próprio eu pequenino, o Eu Maior se vê rejeitado, negado e até, se possível, expulso, pois é
julgado qual intruso que busca destronar o vaidoso e personalista eu de suas ilusões efêmeras.
Num e noutro caso, aquele que souber vencer os percalços e óbices, amando o Cristo mais que sua
personalidade (cfr. Mat. 10:37) e que souber perseverar até o fim (cfr. Mat. 10:22), esse obterá a vida
imanente. Mas caso "e deixe envolver por esses laços asfixiantes que escravizam a criatura, não obte-
rá a liberdade gloriosa dos filhos de Deus (cfr. Rom. 8:21).
Fomos avisados com clareza, sem ambages; cabe a nós agora a decisão ...

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C. TORRES PASTORINO

JESUS PERCORRE A GALILÉIA

Mat. 9:35-38 Marc. 6: 6 b

35. Jesus circunvagava por todas as cidades e 6. b ... Ele perambulava pelas aldeias circun-
aldeias, ensinando na sinagoga deles, pre- vizinhas, ensinando.
gando a boa-nova do reino e curando todas
as doenças e enfermidades.
36. É, vendo ele as turbas, se comovia de com-
paixão por elas, porque estavam escorcha-
das arrasados, como ovelhas que não têm
pastor.
37. Então disse a seus discípulos: "Na verdade
a seara é grande, mas os trabalhadores são
poucos;
38. rogai, pois, ao Senhor da seara, que envie
trabalhadores para sua seara".

Ao sair de Nazaré, depois de atravessar a multidão enfurecida que repentinamente emudecera ao vê-Lo
voltar-se e sair calmamente, Jesus se reúne à Sua comitiva, que ficara de fora, e empreende um giro
pelas aldeias vizinhas, ensinando nas sinagogas.
Mateus conserva-nos a impressão que Jesus tivera das massas populares dos lugares por onde passara.
São trechos de conversas amigáveis, mantidas durante a marcha na poeira das estradas. O Mestre via a
população como "ovelhas sem pastor", desorientada pela falta de mestres seguros que as alimentassem
com a Verdade Divina. Então, "se compadeceu" (esplagchnísthê, que pxprime a compaixão profunda
que chega até as entranhas, comovendo emocionalmente); e a razão dada é que os humildes estavam
"escorchados" (eskulménoí, ou seja, com a pele arrancada) e "arrasados" (errimménoí, isto é, jogados
ao chão, lançados por terra).

Anota, então, o ensino dado aos discípulos: “a seara é grande, mas os trabalhadores são poucos: pedi
ao Senhor da seara que envie mais trabalhadores" .

É o que até hoje vemos: a massa abandonada por falta de verdadeiros pastores, de qualquer agrupa-
mento religioso: dirigentes espíritas, pastores evangélicos, sacerdotes católicos, suâmis orientais, rabi-
nos israelitas, numa palavra todos os pregadores de espiritualismo, pensam mais em si, em seus inte-
resses.
no domínio político e até na exploração financeira de suas ovelhas, do que no Amor que se sacrifica e
se dá desinteressadamente. Além disso, o próprio ensino ministrado por todos é puramente teórico,
sem o calor do exemplo vivido com esquecimento de si e de seus interesses, e que teria o dom de fazer
frutificar e amadurecer as palavras proferidas. Até hoje as ovelhas estão sem pastores, porque os
verd2deiros e desinteressados são pouquíssimos e não chegam para atender às necessidades prementes
e inadiáveis e substanciais .

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Todos os que se sintam inflamados de Amor pelos pequenos abandonados ( de qualquer idade física,
porque falamos da infância "espiritual"), são convidados a orar ao Pai para. com suas vibrações men-
tais e sua ação, propiciarem ambiente favorável à reencarnação em massa dos mestres de grande evo-
lução.
O aviso serve para despertar as individualidades que, de modo geral, não querem cuidar desses pro-
blemas mais materiais. Teoricamente caberia a todos os que atingiram esse grau, oferecer-se como
"médiuns de materialização" para a vinda desses espíritos missionários, realizando, em prece, os con-
tatos físicos indispensáveis à formação de seus corpos purificados .
No entanto, justamente os que mais mergulham na espiritualidade, menos querem pensar nesses pro-
blemas físicos de sexo. E os missionários permanecem aguardando oportunidades de encarnação que
não chegam ou, se o conseguem, é em ambientes precários de famílias humildes, complicadas por difi-
culdades financeiras e culturais Lógico que todos temos que, primeiramente, receber aqueles que a nós
estão carmicamente ligados . M as ao atingirmos determinados graus evolutivos, a via torna-se mais
acessível. A prece que pode fazer que cheguem missionários para a seara de pouco valerá, se não for
coadjuvada pela ação efetiva de propiciar os meios para a encarnação deles. E neste ponto esbarram os
homens - máxime os mais evoluídos - nas barreiras dos preconceitos humanos. Quanto mais espiritua-
lizado, mais se vêem cerceados pelos falatórios e pela condenação das criaturas, que lhes constrangem
a liberdade de agir .
Se alguém é considerado "mestre" ou 'líder" religioso e realiza qualquer união com o objetivo de per-
mitir a descida de um espírito desse alto teor vibratório, todos os que se dizem seus sequazes e discí-
pulos o abandonam, porque só compreendem o que está dentro das "leis" criadas pelos homens, jul-
gando imoral o que tiver sido realizado fora do "casamento legal" .
Dessa forma, a força da Vida que busca fazer evoluir a humanidade se vê coagida a não agir, e os sea-
reiros continuam poucos, insuficientes para o serviço .
Quando terá a humanidade bastante evolução para compreender o problema e saber solucioná-lo, sem
que se sinta amarrada pelas convenções e preconceitos? Quando chegar esse dia, os missionários pode-
rão descer numerosos, premiando assim a coragem e o desassombro dos homens de boa-vontade, que
obedecem mais às leis divinas que às humanas .

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C. TORRES PASTORINO

INSTRUÇÕES AOS EMISSÁRIOS – PARTE I


(Ano 30 A. D. ou 783 A. U . C. - Janeiro - Fevereiro)
Mat. 10:5-15 Marc. 6:7 -11 Luc. 9:1-5
5. A estes doze (veja vol. 2) enviou 7. E chamou a si os doze e 1. Convocando a si os doze,
Jesus, dando-lhes estas instru- começou a envió-los dois deu-lhes poder e autori-
ções: 'Não ireis pelas estradas a dois e deu-lhes autori- dade sobre todos os es-
dos gentios, nem entrareis nas dade sobre os espíritos píritos desencarnados e
cidades dos samaritanos, atrasados, para curarem doenças,
6. mas ide antes às ovelhas perdi- 8. e ordenou-lhes que nada 2. e enviou-os a pregar o
das da casa de Israel. levassem para o cami- reino de Deus e a curar.
nho, exceto um só bor-
7. Pondo-vos a caminho, pregai 3. E disse-lhes: "Nada le-
dão; nem alforge, nem
dizendo "está próximo o reino veis para o caminho,
pão, nem dinheiro na
dos céus". nem bordão, nem alfor-
cintura; ge, nem pão, nem prata,
8. Curai os enfermos, ressuscitai os
9. mas que fossem calçados nem tenhais duas túni-
mortos, limpai os leprosos, expeli
de sandálias e que não cas.
os espíritos desencarnados; de
vestissem duas túnicas.
graça recebestes, de graça dai. 4. Em qualquer casa em
10. Disse mais a eles: "Em que entrardes, nela ficai
9. Não vos provereis de ouro, nem
qualquer casa onde en- e dali partireis.
de prata, nem de bronze em vos-
trardes, permanecei ali
sas cinturas; 5. E qualquer (local) que
até que vos retireis do vos não receber, ao sair
10. nem de alforge para a jornada, lugar. da cidade, sacudi o pó
nem de duas túnicas, nem de
11. E se algum (lugar) não de vossos pés, em teste-
sandálias, nem de bordão, pois é
vos receber, nem vos ou- munho contra eles.
digno o operário de seu sustento.
vir saindo dali sacudi o
11. Em qualquer cidade ou aldeia pó da sola de vossos pés
em que entrardes, indagai quem em testemunho contra
nela é digno; e aí ficai até vos re- eles”.
tirardes.
12. Ao entrardes na casa, saudai-a
13. e se a casa for digna, desça sobre
ela a vossa paz; mas se o não for,
torne para vós vossa paz.
14. E se alguém vos não receber nem
ouvir vossas palavras ao sairdes
daquela casa ou daquela cidade,
sacudi o pó de vossos pés.
15. Em verdade vos digo, que no dia
do carma haverá menor rigor
para a terra de Sodoma e de
Gomorta, do que para aquela ci-
dade".

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Tal como faz no "Sermão do Monte", Mateus conservou-nos, de seguida, uma série de recomendações
atinentes à pregação da Boa-Nova, por parte dos Emissários, enquanto nos outros evangelistas as en-
contramos esparsas.
Podemos dividir a alocução de Mateus em cinco partes principais. Em nosso texto apenas as enumera-
remos. São elas:
A - Instruções (vers . 5 a 15);
B - Avisos (vers. 16 a 23);
C - Encorajamento (vers. 24 a 33);
D - Dificuldades (vers. 34 a 39) e
E - Recompensas ( vers. 40 a 42) .
Muitas coisas foram ditas sob o império das circunstâncias da época, e necessitam ser atualizadas. À
recomendação de "não seguir pela estrada dos gentios nem entrar nas cidades dos samaritanos, mas só
falar às ovelhas perdidas da casa de Israel", pode bem substituir-se hoje: "não pretender fazer proséli-
tos de outras religiões, tirando-os de suas crenças, mas falar apenas àqueles que estiverem insatisfeitos
e perturbados em sua própria religião".
"Os doze" é fórmula frequente em Marcos (4:10; 9:34; 10:32; 11:11; 14:10,17,20,43) e em Lucas (8:1;
9:2; 18:31; 22:3,47; At. 6:2, etc.), designando os discípulos mais chegados, aos quais Jesus denominou
oficial mente como "seus Emissários" (Apóstolos).
A partir deste momento os doze se tornam efetivamente Emissários de Jesus, e Este os instrui sobre o
comportamento durante a viagem. Essas recomendações voltarão, quando do envio dos 72 discípulos,
mais adiante.
Marcos esclarece que eles foram mandados "dois a dois", tal como é dito a respeito dos setenta e dois.
O tema básico da pregação é ainda a fórmula do Batista (Mat. 3:2) repetida no início por Jesus (Mat.
4:17), de que "o Reino dos céus está próximo", ou seja, não se acha distante no tempo (após a desen-
carnação) nem espaço (nas alturas, acima das nuvens), mas antes acha-se próximo a nós no tempo
(agora, já) e no espaço (dentro de nós, Luc. 17: 21).
Além disso recebem os doze a ordem taxativa de curar os enfermos ressuscitar os mortos, de limpar os
corpos (da lepra) e os espíritos (dos obssesores). Tudo isso deve ser feito, sem que jamais se pense em
retribuição de qualquer espécie, mormente financeira: de graça recebestes (este dom) de graça dai(-o a
todos os que vo-lo pedirem).
Até aqui a concordância dos três sinópticos não oferece dúvida. Mas na enumeração do que devem
levar ou não, no caminho, há certas discrepâncias. Concordam em proibir: a) dinheiro; b) alforge (com
víveres) e c) d túnicas, Entretanto Mateus e Lucas proíbem o bordão, enquanto Marcos o recomenda;
Mateus proíbe as sandálias, Marcos as autoriza e Lucas silencia a respeito
Analisemos o texto.
Falando no dinheiro, Marcos diz "bronze", Lucas escreve "prata" e Mateus especifica "nem ouro
(krysón) nem prata (argyrón) nem bronze (kalkón). Nesses materiais eram cunhadas as moedas, se-
gundo seus valores, sendo que de bronze eram confeccionadas as moedinhas de pequeno valor.
Traduzimos "na cintura" (e não no "bolso", nem na "bolsa"), pois era a cintura (ou às vezes o turbante)
o local utilizado para carregar as moedas, quer colocadas em pequenos sacos, quer numa cava costura-
da para isso na cintura da túnica. Já expressamos (vol. 2) nosso pensamento, quanto à tradução dos
Evangelhos, como deve ser feita: com toda a clareza e fidelidade em termos da língua atual, mas que
dêem com a máxima exatidão o sentido da época. Falar em bolsas ou bolsos seria anacronismo, pois o
que na época se utilizava não era o que hoje entendemos com essas palavras. E não só entre israelitas
se carregava o dinheiro na cintura, pois Horácio (Epíst. II. 2, 40) escreve: ibit eo quo vis, qui zonam
pérdidit, isto é, "irá aonde quiseres, quem perdeu a cintura", ou seja, o dinheiro.

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C. TORRES PASTORINO
As sandálias ou alpercatas também são proibidas em Mateus, que as chama hypodêmata (sola de couro
ou de madeira, amarrada aos pés), mas são autorizadas em Marcos, com a expressão: hypodedeménois
sandália, "amarrando sandálias sob os pés".
"Vestir duas túnicas" era costume de viagem, para proteger-se do frio à noite, servindo a segunda de
"muda", enquanto se lavava a de baixo, que estava suada.
Todas essas recomendações são feitas para treinar a confiança na Providência do Pai ("que não deixa
morrer de fome um pardal' ...), assim como o espírito de desprendimento e pobreza, indispensável a
quem pregava o reino do Espírito. E tudo foi dito em vista da conclusão: "o operário é digno de seu
sustento". O grego trophê exprime o alimento e algo mais: como acolhida e hospedagem. A trophê era
o que se proporcionava aos filhos da casa.
Ao chegar à localidade, mister informar-se de alguém que fosse "digno" (áxios), e nessa casa se per-
maneceria todo o tempo, pois ausentar-se dela constituiria, segundo o hábito israelita, ofensa ao hos-
pedeiro.
Ao entrar na casa, a primeira coisa a fazer é "saudar" seus moradores (Mateus: aspásasthe), fórmula
simples que Lucas (10:5) dá por extenso: "em qualquer casa em que entreis, começai dizendo paz a
esta casa." E, uma vez atraídas as vibrações de paz, ela se derrama fatalmente, quer sobre a casa, se a
sintonia for boa, quer sobre o próprio emissário.
Se o emissário cristão não fosse recebido, devia fazer o que era hábito de todo o israelita, quando re-
gressava à Palestina proveniente de terras pagãs: sacudia o pó da roupa e dos pés, para não conspurcar
a Terra Santa. Paulo e Barnabé (At. 13:5) obedecem à letra a essa recomendação, quando são obriga-
dos a sair de Antióquia da Pisídia para dirigir-se a Icônia. De qualquer forma, não deveria haver polê-
mica: caso não fosse aceito, devia retirar-se imediatamente.
A memória do cataclismo de Sodoma e Gomorra permanecia viva, e era julgado como o mais terrível
castigo da impiedade. Pois menos rigor haveria para essas cidades, que para aquela que não recebesse
os enviados do Mestre.
No entanto, a permanência em cada localidade devia ser curta. A tradição da época, registrada da Di-
dachê (11:1) prescreve um dia ou, no máximo, dois, acrescentando que "aquele que permanecer três
dias é falso profeta".
O "dia do carma" (krisis) não se refere ao "juízo final", mas à colheita do resultado das ações feita por
meio da frequência vibratória de cada um: de acordo com as ondas básicas (tônica) de cada ser, será
ele atraído para este ou para aquele local, tal como as ondas hertzianas que penetram no aparelho de
rádio-receptor de acordo com a sintonia em que este se encontra.
Se as ações forem na linha do bem (na direção do Espírito) a colheita será alegria e paz; se forem no
sentido do mal (matéria ou satanás) o resultado colhido (carma) será dores e sofrimentos. Essa triagem,
essa "separação" (Krísis) é exatamente o carma automático, pois a Lei já estabeleceu tudo de antemão,
e não é necessário que ninguém faça julgamentos. A humanidade de hoje não precisa mais dessas figu-
rações infantis: já está madura para receber a verdade sem distorções. Então, de acordo com o carma
será o estado de espírito dos seres, vibratoriamente separados segundo suas tônicas.

JULGAMENTO
Há um verbo grego (krínó) que é sistematicamente traduzido nas edições correntes por JULGAR; e seu
substantivo (krísis) é sempre transladado por JULGAMENTO ou JUÍZO.
Estudemos esses termos, que são de capital importância na compreensão do ensino de Jesus.
O verbo KRÍNÔ apresenta os sentidos básicos de: separar, fazer triagem, escolher, decidir, resolver e,
por analogia e extensão, julgar.
O substantivo KRÍSIS exprime fundamentalmente: ação, separação, triagero, escolha, o resultado da
ação de escolher, decisão, donde, por analogia e extensão, julgamento, ou juízo.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Analisemos, agora o sentido etimológico, que também importa. Foram consultados: "Émile Boisacq,
Dictionnaire Étimologique de Ia Langue Grecque, 4.ª edição, Heidelberg, 1950"; Liddell & Scott,
Greek-English Dictionary", Oxford, 1897"; e "Sir Monier Monier-Williams, A Sanskrit-English Dicti-
ona,y, Oxford, 1960", pág. 258 e 300.
KRÍNÔ e KRÍSIS (assim como o latim CERNO) vêm da raiz sânscrita KRI, que significa: agir, fazer,
causar, elaborar, construir, escolher, etc.
Dessa mesma raiz KRI deriva o substantivo sânscrito KARMA, que exprime: ação, realização, efeito,
resultado da ação escolhida, escolha, e cujo sentido é perfeitamente compreendido pelos estudiosos
do espiritualismo, ou seja: CARMA é a consequência (boa ou má) de uma ação (boa ou má) que a cri-
atura tenha realizado por sua livre escolha .
Verificamos, pois, que traduzir sistematicamente KRÍNÔ e KRÍSIS por “julgar" e "julgamento" (senti-
dos analógicos e extensivos) é, em muitos casos, forçar o sentido e até desvirtuá-lo totalmente.
EXEMPLOS – “O Pai a ninguém julga, mas deu todo julgamento ao Filho" (João, 5:22) só formaria
sentido se aceitássemos um deus pessoal, sentado num trono (como Salomão) a proferir sentenças,
embora de grande sabedoria. Aliás, muita gente imagina exatamente uma cena assim ... Sabemos, po-
rém, que isso jamais pode dar-se com o Ser Absoluto e Impessoal que é O Pensamento Criador e Sus-
tentador dos universos, transcendente a tudo e a todos, mas imanente em todos e em tudo, pois que
constitui a essência última de todos os seres e de todas as coisas.
Apliquemos a tradução lógica (não a "analógica") e vejamos: "O Pai a ninguém escolhe, mas deixa
toda escolha ao filho". Aí o sentido procede: justamente por ser imanente em todos, o Pai Impessoal a
ninguém escolhe, porque a todos, "bons e maus, justos e injustos" (cfr. Mat. 5:45), santos e criminosos,
dá as mesmas oportunidades, a mesma quantidade de amor e, liberdade absoluta do livre-arbítrio. Mas
"toda escolha é dada ao filho", isto é, ao ser humano, "filho de Deus" que, com seu livre-arbítrio, es-
colhe o caminho que quer, arcando depois com as consequências, na "época do carma” (no "dia do
juízo", que pretende traduzir exatamente a palavra krisis). No caso de Jesus, Ele podia afirmar, em
continuação: "e minha escolha é justa, porque não busco a minha vontade, mas a vontade de quem me
enviou” (João, 5:30), isto é, o Pai que é representado em nós pelo Cristo Interno, pelo Logos em nós .
Se nesse trecho traduzíramos KRÍNÔ por "julgar", haveria frontal contradição com os seguintes textos:
a) João, 8:15-16: "vós julgais segundo a carne (as aparências); eu a ninguém julgo. Mas se eu julgo
alguém, é verdadeiro meu julgamento, por que não estou só, mas eu, e o Pai que me enviou". Afi-
nal, é o Pai que julga? ou deu o julgamento ao filho? E como o filho não julga ninguém? Não seria
possível compreender-se.
Substitua-se, porém, nesse passo, a tradução analógica pela lógica, e o sentido se torna claro, ób-
vio, compreensível: "vós escolheis segundo a carne (as aparências); eu não escolho ninguém; mas,
se escolho alguém, é verdadeira minha escolha, porque não estou só, mas eu, e o Pai que me envi-
ou".
b) João, 12: 47: "Se alguém me ouve as palavras e não confia, eu não o julgo, pois não vim para jul-
gar o mundo, mas para salvar o mundo". Afinal o julgamento é do filho ou do Pai? Se "todo o jul-
gamento foi dado ao filho”, como diz o filho que “não veio para julgar"? Então, compreendemos
que realmente, há uma diferença entre os dois textos, e que, neste último passo, krínô tem, de fato,
o sentido analógico de "julgar". Aqui é mesmo JULGAR como naquele outro passo de Lucas
(5:37): "Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai e se-
reis perdoados".
No trecho que aqui comentamos, compreendemos perfeitamente que não pode haver um "dia do juí-
zo", interpretação que deu margem à invenção de um "juízo particular" e de um "juízo universal",
quando "o mundo terminaria”. Esses absurdos anticientíficos e antilógicos não mais podem ser aceitos
hoje. Não haverá "fim do mundo", pois no máximo poderá ocorrer um "fim de ciclo", que coincide
com o movimento pendular do eixo do planeta, cada 26.000 ou 28.000 anos. No entanto, há compro-
vadamente a época da "colheita de resultado de nossas ações" a cada término de existência terrena, ou

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C. TORRES PASTORINO
seja, "o dia do carma", assim como, a cada fim de ciclo, haverá uma triagem (separação) de acordo
com as vibrações de cada um. Portanto, a melhor tradução do trecho, em termos atuais, para compre-
endermos o que Jesus ensinou, é exatamente "o dia do carma", isto é, "o dia da colheita (krísis) dos
resultados de nossas ações, boas ou más".
Isto porque, a cada pessoa ou coletividade, "será dado segundo suas obras” (cfr. Mat. 16:27; Rom. 2:6;
2 Cor. 5:10 e 11:15; 1 Pe. 1:17: Apoc. 2:23 e 22:12; e outros semelhantes).

Ao ler este primeiro trecho, temos a impressão de estar recordando as recomendações que são feitas
àqueles que, emissários do Alto para a Terra, reencarnam com tarefas específicas de evangelização.
Os que costumamos chamar de "espíritos missionários aí encontram as diretrizes básicas de seu com-
portamento: desprendimento total e absoluto de tudo o que pertence ao plano material, inclusive às
pessoas físicas e às organizações religiosas. A tarefa é específica: ensinar a proximidade do reino dos
céus, que se encontra dentro de cada um. Se não for aceito num local, numa família, saia para os ou-
tros, para todos os que estão "perdidos", isto é, desorientados. Nessa passagem rápida, distribuir
PAZ, saúde, luz e amor, sem nada esperar de volta.

Ensina-nos o trecho que nenhuma preocupação devemos ter com a personalidade transitória, que fe-
nece como a erva do campo. O aceno ao "dia do carma" esclarece que na colheita do resultado das
ações é muito mais levada em conta a atitude espiritual (recusa de espiritualizar-se) do que os atos
físicos do corpo, os erros do sexo (Sodoma e Gomorra) e as imperfeições sempre naturais a quem é
imperfeito. O ato de recusar o convite para espiritualizar-se ("pecado contra a Espírito") é que cons-
titui a condenação, não como castigo, mas porque isso vem assinalar externamente a direção interna
de seu caminhar. Se a criatura está caminhando para o sul e, embora convidada, recusa ir para o
norte, está condenada a jamais chegar ao norte; assim, se caminhar para a matéria ("anti-sistema") e
recusa voltar-se para dirigir-se ao Espírito (“Sistema"), fica ipso facto "condenada", porque “peca
contra o Espírito" (Luc. 12:10), isto é, se movimenta na direção oposta ao Espírito.
Resumindo: todo aquele que pretende dedicar-se à vida real do Espirito, tem que desprender-se (de-
sapegar-se) de tudo quanto é material: dinheiro, roupa, calçado, comidas, etc., vivendo apenas para
fazer o bem: curando, ressuscitando, limpando, distribuindo PAZ, tudo "de graça", sem esperar retri-
buição. Só o Espírito vale: a personalidade é precária e transitória.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

INSTRUÇÕES AOS EMISSÁRIOS – PARTE II


Mat. 10:16-23
16. "Atenção! Eu vos envio como ovelhas no meio de lobos; tornai-vos, pois, prudentes
como as serpentes e simples como as pombas.
17. Cuidado, porém, com os homens, porque vos entregarão aos tribunais e, em suas si-
nagogas, vos açoitarão,
18. e, por minha causa, sereis levados à presença de governadores e de reis, para servir-
lhes de testemunho a eles e às nações.
19. Quando vos entregarem, não vos preocupeis como, ou o que, falareis, porque naquela
hora vos será dado o que direis,
20. pois não sois vós os que falais, mas é o espírito de vosso Pai que fala em vós.
21. Irmãos entregarão à morte aos irmãos e pais aos filhos e filhos se levantarão contra
seus pais e os farão morrer
22. E sereis odiados de todos por causa do meu nome; mas quem suportar até o fim, esse
será salvo.
23. Quando, porém, vos perseguirem numa cidade, fugi para outra; porque em verdade
vos digo que não acabareis de percorrer as cidades de Israel, antes que venha o filho
do homem.

Este trecho, de avisos do que sucederá aos Emissários, não se refere à época desta primeira missão,
mas ao futuro.
Inicialmente, um alerta: "Atenção"! (idoú), depois uma sentença para ser gravada de memória: “eu vos
envio como ovelhas no meio de lobos", em que o perigo de ser morto é grande. Daí o conselho: "tor-
nai-vos (gínesthe, e não "sede") prudentes (phronímoi, que é a prudência hábil e astuta) como as ser-
pentes, e simples (akéraioi, sem mistura, ou seja, sem duplicidade) como as pombas”.
Os lobos são os próprios homens, que procurarão devorar os emissário do Espírito; e como talvez não
possam estraçalhá-los com suas mãos, os entregarão aos tribunais (sinédria, no plural, referindo-se aos
pequenos sinédrio, de 23 membros, que era constituído nas aldeias que tivessem mais de 120 homens)
e eles os mandarão açoitar.
Mas, além disso, a causa cresceria de âmbito, e os enviados do Espírito também seriam citados diante
de governadores e reis, para que seu exemplo servisse de testemunho de verdade diante das nações
pagãs (não-israelitas).
No entanto, quando se achassem diante dos tribunais, não deviam preocupar-se como falar, já que,
naqueles momentos de angústia, "o Espírito de vosso Pai" falaria por intermédio deles. A história está
cheia desses exemplo, de respostas de sabedoria acima da capacidade humana, nessas situações terrí-
veis de perseguição, bastando recordar a profundidade das respostas de Joana d'Arc aos setenta bispos,
verdadeiros lobos devoradores a serviço da política eclesiástica de então. Essa assistência parece refe-
rir-se até a um, psicofonia total prometida aos perseguidos, quando tiverem que ser julgados.
Trata-se a seguir das desavenças dentro do próprio lar, entre pais e filhos, coisa que sempre se verifi-
cou e ainda hoje vemos, quando alguém que vive em ambiente de determinada religião resolve aderir
ao espiritualismo e ao Evangelho de Jesus. E o aviso: "sereis odiados por causa de Meu Nome" Real-
mente. Aqueles que obedecem à ordem de curar os enfermos em nome de Jesus, por exemplo, são le-

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vados ainda hoje à barra dos tribunais por "exercício ilegal da medicina" ... E quem os acusa se diz
cristão, discípulo Daquele que deu ordem de curar em Seu Nome! Há verdadeiro ódio contra os Emis-
sários do Mestre, por parte da maioria dos tomens.
Mas "quem suportar" (hypomeínas, ter paciência e perseverança numa dificuldade sem arredar pé; per-
sistir; suportar) tudo até o fim (eis telós), esse será salvo; isto é, libertado das dores. Pode referir-se
esse "fim" ao término das perseguições ou ao final dessa existência terrena.
Todavia não deve o Emissário de Jesus arriscar-se a sofrer voluntariamente: se for perseguido numa
localidade, transporte-se para outra (sacudindo o pó dos pés), pois o que ele tem para dar servirá a ou-
tros, que talvez estejam sequiosos de recebê-lo.
"Não terminar de perlustrar as cidades de Israel, até que venha o filho do homem" é interpretado como
o primeiro trecho escatológico, em que Jesus parece fazer alusão a um regresso próximo. Durante
muito tempo foi isso compreendido como uma garantia da parusia.
Expliquemos os termos. "Escatologia" é o estudo do que ocorre depois da morte, depois do fim, que
alguns pensam ser o "fim do mundo" (derivado de eskhatós);e "parusia", que significa "presença",
refere-se à segunda vinda do Cristo, que acreditavam fosse pessoal, em corpo físico, embora em apa-
rência gloriosa.
Outros exegetas atribuem a essas palavras o sentido de uma profecia da destruição de Jerusalém por
Tito, no ano 70, onde Cristo teria voltado simbolicamente para "vingar" as perseguições, como escreve
Lagrange: "Essa vinda não é necessariamente a parusia que termina a história do mundo. O filho do
homem vem quando exerce um grande julgamento, sobretudo da espécie da ruína de Jerusalém" (La-
grange, "Évangile selon Saint Matthieu", Paris, 1923, pág. 205).

A interpretação do sentido profundo é muito mais clara e lógica.


O missionário que desce à Terra, chega aqui verdadeiramente como ovelha no meio de lobos. Costu-
mamos, em conversa, comparar as dificuldades vibratórias que sentiu, por exemplo, Jesus, ao encar-
nar entre nós, às dificuldades que sentiríamos se fôssemos obrigados a encarnar numa vara de porcos
selvagens. A situação é semelhante sob muitos espectos. A humanidade egoísta e cruel parece uma
alcatéia de lobos famintos e vorazes, que só buscam seus interesses imediatos. Dai a necessidade de
ser prudentes e astutos como serpentes, embora, no próprio íntimo, mantendo a simplicidade branca
das pombas.
Os homens perseguirão a personalidade do emissário, levando-a aos tribunais; mas o espírito deverá
manter-se forte e inabalável em suas convicções, servindo-lhes de testemunho de que o Espírito é su-
perior à matéria, e a individualidade maior que a personalidade. Nos embates com as autoridades, a
personalidade do emissário será assistida pelo Espírito do Pai que nele habita (o Cristo Interno, a
Centelha Divina) que lhe ditará as palavras que deverão ser proferidas. Compreendamos, entretanto,
que "governadores" e "reis" não são apenas os políticos profanos, mas também as autoridades religi-
osas de outros credos. E serão também aqueles que, não compreendendo o alcance de sua atuação em
certos setores, os acusam levianamente.
No entanto, não é só de estranhos, mas dos próprios parentes mais chegados que virão os ataques. E
sabemos que, por esses termos, se entendem os veículos inferiores que nos servem de médiuns para
nossa manifestação no planeta denso. Então, os próprios veículos do Espírito lhe serão inimigos, que-
rendo levá-lo à desistência da tarefa com a qual se comprometeu, para que aproveite os minutos de
satisfação física que lhe podem trazer o conforto das riquezas, a glória da fama, os prazeres dos sen-
tidos, o domínio autoritário, a celebridade do intelecto. Tudo e todos se levantarão contra a boa-
intenção do emissário de cumprir sua tarefa, que será inçada de dificuldades sempre crescentes e
inamovíveis, podendo chegar até a causar-lhe a morte.
Só aqueles que suportarem até o fim as lutas, poderão conseguir vitória.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Entretanto, sempre devemos procurar refúgio em "outra cidade", quando aquela em que estamos nos
tornar impossível a vida. Ou seja, sempre devemos buscar recolher-nos ao Espírito, em nosso interior,
quando as tempestade crescerem no mundo físico. E não teremos terminado de percorrer todas as
cidades de Israel (de completar todo o caminho evolutivo), pois antes disso virá o filho do homem (en-
contraremos o Cristo Interno).

A frase "cidades de Israel" é terminologia iniciática, e exprime simbolicamente o percurso evolutivo


do homem. Numa síntese, bastante rápida, podemos assinalar esquematicamente alguns dados ape-
nas:
Fatos históricos: Simbolizando:

1. Criação do povo de Israel pelo PAI-LUZ (AB- A. individualização da Centelha, ainda no reino
RAM) e sua opressão no Egito. animal, aí permanecendo na prisão

2. A matança dos cordeiros e o passagem do Mar A passagem do animal (que deve terminar) para o
Vermelho. estado hominal.

3. A longa conquista de Canaã. A demorada conquista do intelecto.

4. A passagem do Jordão. A passagem definitiva para o domínio intelectual.

5. O reinado de Judá e a construção do Templo. O domínio do intelecto e o início da religiosidade.

6. O exílio de Babilônia. A limitação do intelecto preso na matéria

7. A reconquista de Jerusalém e a reconstrução A libertação do intelecto que passa ao domínio do


do Templo. Espírito ou individualidade.

Então, antes que o emissário termine o percurso das "cidades” ou ponto chaves da história de Israel,
o filho do homem virá a ele, ou seja, verificar-se-á o acesso à individualidade. Enquanto isso, ele terá
que ir suportando a perseguições nas sucessivas encarnações, superando aos poucos o animalismo até
conseguir o domínio do Espírito.
Conforme vemos, a linguagem simbólica é de perfeita clareza; mas a interpretação literal não nos faz
chegar a uma conclusão lógica.

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C. TORRES PASTORINO

INSTRUÇÕES AOS EMISSÁRIOS – PARTE III

Mat. 10:24-33 Luc. 6:40

24. "Não é o discípulo mais que seu mestre, 40. O discípulo não é mais que seu mestre, mas
nem o servo mais que seu senhor: todo aquele que é diplomado é como seu
mestre.
25. basta ao discípulo ser como o seu mestre e
ao servo como o seu senhor. Se chamaram
Beelzebul ao dono da casa, quanto mais (o
farão) aos seus domésticos!
26. Portanto, não os temais: pois nada há de
encoberto que não venha a descobrir-se,
nem de oculto que não venha a saber-se.
27. O que vos digo às escuras, dizei-o na luz; e o
que ouvis aos ouvidos, proclamai-o nos te-
lhados.
28. Não temais os que matam o corpo, mas não
podem matar o alma; temei, antes, o que
pode fazer perder tanto a alma como o cor-
po no vale das lamentações.
29. Não se vendem dois passarinhos por um
centavo? e nenhum deles cairá no chão sem
vosso Pai.
30. E até os cabelos de vossa cabeça estão todos
contados:
31. Não temais, pois: mais valeis vós que muitos
passarinhos.
32. Portanto todo aquele que me aceitar diante
dos homens, eu também o aceitarei diante
de meu Pai que está nos céus;
33. mas aquele que me rejeitar diante dos ho-
mens, eu também o rejeitarei diante de meu
Pai que está nos céus.

Nesta terceira parte, que intitulamos "encorajamentos", encontramos, em forma sentenciosa, três reco-
mendações de coragem, iniciadas com as palavras “não temais".
A fórmula inicial salienta que um discípulo não deve pretender tratamento superior ao que teve seu
mestre, nem o servo ser mais bem tratado que seu senhor. A verdade é evidente. Muito felizes deverão
julgar-se discípulos e servos, se conseguirem tratamento semelhante ao do mestre e ao do senhor.
Lucas apresenta uma particularidade: o discípulo não é mais que seu mestre, mas todo discípulo di-
plomado (katêrtisménos, particípio passado passivo de katartízô, isto é, que foi aparelhado, preparado,
formado, ou seja, diplomado), é como (é igual) a seu mestre.
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SABEDORIA DO EVANGELHO

Depois vem o exemplo: chamaram o Mestre de Beelzebul. Essa palavra desorientou os exegetas du-
rante séculos. Nessa forma aparece nos manuscritos, e significa literalmente "senhor do fumeiro"; não
deve ser confundido com Beelzebub, “senhor das moscas", a quem Ozonias (2.º Reis 1:6) mandava
consultar em suas dificuldades. Na época de Jesus, Beelzebul tinha o sentido genérico de “ídolo", isto
é, de culto a uma divindade falsa; então, Beelzebul era o falso profeta, o falso sacerdote. Se assim
chamaram o "dono da casa", quanto mais o farão a seus familiares! ...
Até hoje vemos esse epíteto aplicado, mesmo dos púlpitos, aos que seguem os lídimos preceitos de
Jesus. E o próprio ato de sermos assim denominados, constitui para nós a maior glória, pois vem pro-
var à saciedade que, segundo a predição de Jesus, nós realmente somos seus seguidores, seus discípu-
los, pois recebemos o mesmo epíteto que Ele.
A argumentação é feita nos moldes rabínicos, da menor para a maior (a minori ad majus, na fórmula
silogística da Escolástica).
Por que temê-los?
Depois aparece uma sentença axiomática, também repetida: tudo o que se esconde, há de aparecer à
luz; e as malevolências dos homens, tenham ele que títulos tiverem e atribuam-se a autoridade que
quiserem, tudo se virá a saber a respeito da verdade. Podem eles intitular-se a si mesmo delegados,
embaixadores e representantes de Deus, mas suas credenciais estão assinadas por eles mesmos, e por-
tanto nenhum valor real apresentam, porque lhes falta a chancela da Divindade. Tudo isso, que é es-
condido, virá a ser publicado.
A seguir uma advertência baseada no costume da época. O pregador, denominado darshan, não discur-
sava na sinagoga aos sábados em voz alta: falava a meia-voz ao intermediário chamado amorâ ou tur-
gemân, e este é que repetia em voz alta o que o darshan lhe comunicava (cfr. Strack e Billerbeck,
Kommentar zum neuen Testament aus Talmud und Midrash: Das Evangelium nach Matth., Munchen,
1922, tomo 1, pág. 579; citado por Pirot, o.c.). Assim diz Jesus, que o que lhes é dito às escuras, deve
ser proclamado na luz; isto é, o que é dito simbolicamente, deve ser explicado com clareza, e tudo o
que for oculto deve ser traduzido à luz; e o que for dito aos ouvidos, deve ser gritado dos telhados.
Prende-se esta última frase também a um hábito da época: o hazzan subia, às sextas-feiras, ao telhado
mais alto da aldeia e tocava a trombeta, para avisar a todos os camponeses que se recolhessem para
respeitar o sábado.
Justamente pela explicação clara desses ensinamentos secretos vem a humanidade esperando há quase
dois mil anos. Com a ajuda do Pai, eles estão sendo trazidos aos poucos, infelizmente ainda de modo
deficiente, por incapacidade dos intérpretes.
Aparece o segundo conselho de coragem. Aqui encontramos a oposição entre sôma (corpo) e psychê
(alma). Não devem temer-se os que só tem o poder de matar o corpo (sôma) , mas não no possuem
para matar a alma (psychê), ou seja, desviá-la do rumo certo, levando-a para o anti-sistema, para o
pólo negativo.
Em numerosos lugares, tanto do Antigo como do Novo Testamento, aparecem como ações opostas as
locuções "matar a alma" e "salvar a alma". A alma (psychê) é o corpo astral que plasma o corpo físico
na reencarnação e aparece, no físico, sob a forma de sangue (Deut. 12:23). A distinção entre "matar o
corpo” (sôma) e "matar a alma” é bem clara nas Escrituras. Quem mata o corpo apenas destrói o veí-
culo mais denso, mais grosseiro, mas, com isso, não afeta o corpo astral (a alma), já que esta prossegue
sua mesma vida em outro plano de vibrações e, de modo geral, não é prejudicado senão por perturba-
ção momentânea pois de qualquer forma dirimiu um carma que o alivia de dívidas do passado. Por
tudo isso, a alma se vê "salva" da garra dos perseguidores. Já a "morte da alma" se apresenta sob ou-
tros aspectos muito mais graves. É atingido o próprio corpo astral, que se perturba profundamente e, ao
chegar ao outro plano de vibrações, permanece desequilibrado de tal forma, que só novo mergulho no
"vale das lamentações" (na reencarnação terráquea) poderá reequilibrá-lo através do esquecimento
temporário. No entanto, a reencarnação desses que se encontram "mortos" nesse estado é terrivelmente
dolorosa, pois que, pelo próprio desequilíbrio, construirão corpos físicos deficientes, defeituosos, ou
pelo menos com os neurônios cerebrais disrítmicos, o que lhes causará sérias perturbações mentais e

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até demência. Por tudo isso, compreende-se que a morte do corpo físico não é temível, mas a da alma é
de consequêncías desastrosas, e por isso deve ser temida: "teme: os que podem fazer perder tanto a
alma quanto o corpo no vale das lamentaçães”, perdidos no escuro cárcere da loucura que afeta tanto o
corpo como a alma.
No entanto, a Providência do Pai que em todos e em tudo habita, está sempre atenta a tudo, e nada nos
acontecerá sem Ele. O texto grego áneo tou patrós humôn, que literalmente significa "sem vosso Pai",
pode ser entendida nesse sentido preciso (que preferimos): nada ocorre sem o Pai que está dentro de
tudo e de todos (cfr. Ef. 4:6 e 1 Cor. 15:28), e que constitui a essência ou substância ultérrima de tudo
o que existe; ou b) “fora de vosso Pai". pois nada existe fora Dele, já que Nele estamos mergulhados
integralmente. Nele nos movimentamos, Nele existimos (cfr. At. 17:28); ou c) interpretando-se o sen-
tido: "Sem o consentimento ou a vontade de vosso Pai”.
Se o Pai está em nós e nós estamos no Pai, que temer? Tudo o que ocorre conosco, ocorre juntamente
com o Pai que nos acompanha a cada segundo, e nada ocorre a nós sem que o Pai nos acompanhe amo-
ravelmente. Até os pardais, que quase nada valem, não caem ao chão sem Ele; até os fios de cabelo de
nossas cabeças; que estão todos contados pelo Pai, não caem sem Ele. E uma criatura humana, que
muito mais vale, como poderia qualquer coisa ocorrer-lhe sem a coparticipação do Pai? É ainda o raci-
ocínio a minori ad majus; se não cai um cabelo nosso, como ocorreria uma enfermidade ou morte sem
que isso ocorresse com o Pai, a Seu lado dentro Dele.
Não adotamos as traduções "sem o consentimento" do Pai nem, menos ainda, "sem a vontade" do Pai,
para não falsear a idéia expressa por Jesus. Essas duas expressões dariam a falsa impressão de que um
Pai externo e pessoal estaria deferindo requerimentos, dando uma permissão exterior para que uma
desgraça atingisse ou não seus filhos, enquanto Ele ficaria "de fora”, a olhar passivamente os exterto-
res de dor das criaturas. E menos ainda a "vontade" do Pai, que faria que o imaginássemos como um
sádico a gozar com o sofrimento das criaturas, sofrimento planejado e desejado pela vontade Dele.
Essa tradução plasmou erradamente a mentalidade geral durante milênios, e ainda hoje ouvimos: "Fu-
lano ficou aleijado ... foi a vontade de Deus”: ou então: "Fulano foi roubado ... foi a vontade de Deus";
e coisas piores, como se Deus, o Pai Amoroso e Bom, fora um malfeitor criminoso que só quisesse
desgraças. Porque se algo de bom e agradável acontece, ninguém diz que “foi vontade de Deus", ao
contrário: o que é bom é atribuído à sorte da criatura, à sua competência, à justiça, e até ao acaso, mas
jamais à vontade de Deus. Esta só ocorre nos acontecimentos tristes e dolorosos. Para a massa, Deus
ainda é "o vingador" do tempo de Moisés. No entanto, pelo ensino de Jesus, aprendemos o contrário: o
Pai é a Alegria, a Felicidade, a Bondade, e só quer o Bem de seus filhos; se algo de mal ocorre, é pro-
vocado por nossos erros, como consequência de nossas investidas contra a Lei. Ora, quem bate com a
cabeça num muro de pedra, quebra a cabeça por vontade própria, não por vontade de Deus. Ele cons-
truiu o muro de pedra da Lei para guiar a humanidade, e leva todos a obedecerem à Lei para não se
ferirem nas pedras, sendo até mesmo beneficiados e defendidos por essa muralha granítica. Mas se
alguém, por ignorância ou maldade, teima em investir contra o muro, Ele não tem culpa, não é por Sua
vontade que isso ocorre. As consequências são colhidas pela criatura que cometeu o erro, e exclusiva-
mente por culpa própria, porque quis.
A conclusão é dada com a "maior" “vós valeis mais que muitos passarinhos".
Lemos depois a sentença que finaliza esta parte do discurso, e que constitui uma ilação de tudo o que
foi dito. O raciocínio caminha com impecável lógica.
a) o discípulo não é mais que o Mestre;
b) se perseguiram o Mestre, perseguirão o discípulo;
c) não obstante, coragem! preguem a doutrina; já que
d) os inimigos só poderão prejudicar o corpo,
e) mas nada acontece fora do Pai, nem a um passarinho;
f) ora, os discípulos valem muito mais,

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g) então aceitem esse Mestre, apesar dos sofrimentos.


As traduções correntes transladam o verbo grego homologéô por "confessar". Realmente, pode apre-
sentar-se esse sentido. Mas o significado português atual de confessar pode dar idéia de "contar os pe-
cados a um sacerdote ou seus erros a um juiz". E esse não é o significado desse verbo, que, etimologi-
camente exprime: "falar" (logéô) "a mesma coisa" (homo), e portanto, "concordar, estar de acordo,
reconhecer, aceitar". Preferimos o último, por causa da oposição com a segunda parte do dístico:
"aceitarei, quem me aceitar; rejeitarei, quem me rejeitar”.
O princípio ensinado é claro: é o discípulo que escolhe o mestre e se entrega à sua formação. Se ao
professor fosse dado escolher seus discípulos, seria ótimo; mas a ele só cabe ser escolhido pela prefe-
rência de quem nele confia e lhe quer ouvir os ensinos. Portanto, a lógica ainda continua precisa: se
alguém O aceitar, será aceito por Ele; mas se O rejeitar, por Ele será rejeitado.

As frases do ensino tornam-se cada vez mais incisivas.


A diferença entre individualidade e personalidade é aqui realçada com todo o vigor.
Jamais poderá pretender a personalidade transitória superar ela mesma o nível da individualidade.
Em relação a esta, a personalidade é um discípulo diante de um mestre, uma escrava perante seu se-
nhor, e não lhe cabe outro recurso senão abaixar a cabeça, "renunciar a si mesma" e, carregando sua
cruz por ela mesma construída, seguir no rumo da espiritualização. Mais tarde virão outros conheci-
mentos em apoio: só quem der preferência absoluta à individualidade poderá dizer-se discípulo (Mat.
10:37). Por enquanto, está firmado o princípio da superioridade de uma sobre a outra, sem possibili-
dade de enganos. Por mais que se esforce, a personalidade poderá, no máximo, quando já "diploma-
da", igualar a individualidade através do conhecimento que lhe advêm exatamente da sabedoria pro-
funda da própria individualidade, sua mestra inequívoca.
Quem coloca a personalidade acima de seu "mestre e senhor” o Espírito, o Cristo Interno, ainda se
encontra bastante atrasado na estrada da evolução no período da construção de suas cruzes, às quais
automática e sucessivamente vai ficando preso, tendo que carregá-las posteriormente até o cimo do
Calvário.
Ora, enquanto o Cristo Interno se acha crucificado na matéria, trilhando a dura, árdua, íngreme e
pedregosa estrada para o Gólgota, terá que passar pelas Forcas Caudinas do sofrimento; e como se
acha entre "espíritos" muito materializados, que nem sabem o valor do Espírito, terá que suportar a
perseguição do meio ambiente que o acolhe. Acha-se assim elucidada a frase: "se o mestre e senhor
(Espírito, Cristo Interno) é chamado Beelzebul (senhor do fumeiro, isto é, chefe das trevas, da igno-
rância), muito mais o serão os seus familiares" (ou domésticos), que são seus veículos, e em primeiro
lugar seu intelecto que governa toda a sua personalidade. Quer isto dizer que a perseguição movida
pelo mundo material ao Espírito, sê-lo-á também aos veículos daqueles que servem ao Espírito, como
seus discípulos e servos.
No entanto, toda essa perseguição movida pela matéria (diabo, satanás) ao Espírito, no planeta em
que vivemos, será temporária: "nada há encoberto que se não descubra". Se nas condições atuais o
Espírito está oculto sob a matéria, ele virá a descobrir-se, manifestando-se radiantemente ao próprio
mundo. E a massa humana irá aos poucos encontrando-o dentro de si mesma. Para isso, requer-se
tempo, não contado em dias e meses, mas computado em séculos e milênios. "Tudo o que está oculto,
virá a saber-se", e por isso a única parte real da vida (o Cristo) será conhecido de todos .
Caberá, pois, aos discípulos e continuadores da obra de Jesus (da individualidade) ensinar às massas
o Segredo do Reino, falando claramente o que Ele revelou sob o véu da simbologia mística, explican-
do Seus ensinamento, em época futura mais preparada para recebê-Lo. Melhor dito: o que cada cria-
tura evoluída ouviu em segredo, silenciosamente, ensinado por seu Cristo Interno residente em seu
coração, ela deverá proclamá-lo a todos os ventos, na hora oportuna.

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Recordemos: "Tenho ainda muito que vos dizer, mas não podeis suportá-lo agora; quando vier porém
o Espírito verdadeiro, ele vos guiará a toda verdade, porque não falará por si mesmo, mas dirá o que
tiver ouvido, e vos anunciará coisas futuras" (João, 16:12-13).
Então, nada de mistérios nem de "segredos ocultos" só para iniciados: devemos divulgar "por cima
dos telhados" tudo o que formos aprendendo.
Chega, a seguir, a advertência de coragem: nada do que ocorre à personalidade, de bem ou de mal,
atinge a individualidade, o Eu profundo. Se algum mal é feito à personalidade de Fulano, só a perso-
nalidade de Fulano sofrerá com isso, pois o Eu profundo é inatingível. Mas aqueles que podem obri-
gar o "espírito" a reencarnar no "vale das lamentações" (a Terra), esses devem ser temidos. Fugir dos
que chegam a nós, obrigando-nos a com eles criar carmas dolorosas para o futuro.
E finalmente a certeza da vitória: os passarinhos, os cabelos, tudo está no Pai, e jamais coisa alguma
poderá ocorrer sem o Pai, que reside dentro de nós, que constitui nosso Eu mais profundo. Por que
temer? O Pai está conosco, em redor de nós, dentro de cada um de nós, e nós estamos mergulhados no
Pai como peixes no oceano: nada nos acontecerá sem o Pai. Então, "não temais"!
Todavia, há importante pormenor a considerar. Toda criatura que "diante dos homens., publicamente,
aceitar seu Espírito, seu Cristo Interno, será aceita e recebida em união com Ele, "diante do Pai que
está nos céus”, isto é, que babita dentro de nós, e portanto será feita a união mística. Mas quem, "di-
ante dos homens" rejeitar sua própria individualidade, preferindo viver a vida ilusória da personali-
dade, será rejeitado "diante do Pai" e não poderá realizar a unificação mística.
Está, pois, neste passo, bem esclarecida a questão da graça e do livre-arbítrio, tão discutida há milê-
nios, e já resolvida em duas frases lapidares pelo Mestre Incomparável. Se o movimento partir do li-
vre-arbítrio do homem (aceitar o Cristo Interno ), o Cristo Interno aceitará a criatura (graça) diante
do Pai (com a união mística). Mas essa graça não poderá descer até o homem que a rejeitar livre e
espontaneamente. Portanto, a rejeição é provocada pela personalidade, que em primeiro lugar rejeita
o Cristo Interno, mergulhada e gozosa que está com a matéria em que se rebolca. É a velha exemplifi-
cação do copo: se o colocarmos debaixo de uma bica aberta, mas emborcado de boca para baixo, ele
não poderá ficar cheio; mas se o colocarmos de boca para cima, ele se encherá das bênçãos da água
que dessedenta.

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INSTRUÇÕES AOS EMISSÁRIOS – PARTE IV

Mat.10:34-39 Luc. 12:49-53

34. Não penseis que vim lançar paz à Terra: 49. Fogo vim lançar sobre a Terra, e que (mais)
não vim lançar paz, mas uma espada, quero, se já foi aceso?
35. pois vim separar o homem contra seu pai, a 50. Num mergulho tive de ser mergulhado, e
filha contra sua mãe, a nora contra sua so- quanto me angustio até que ele termine!
gra. 51. Pensais que estou aqui na Terra para trazer
36. Assim, os inimigos do homem são os de sua paz? Não, eu vo-lo digo: nada mais que di-
própria casa. visão,
37. Quem ama seu pai ou sua mãe mais do que 52. pois de ora em diante haverá numa casa
a mim, não é digno de mim; e quem ama cinco pessoas em desacordo, três contra du-
seu filho ou sua filha mais do que a mim, as e duas contra três:
não é digno de mim, 53. estarão divididos pai contra filho e filho
38. e quem não toma a sua cruz e não segue contra pai; mãe contra filha e filha contra
após mim, não é digno de mim, mãe; sogra contra sua nora e nora contra
sogra.
39. O que acha sua alma, a perderá; mas o que
perde sua alma por minha causa, a achará.

Comecemos a análise pelo texto de Lucas, com a frase inexistente em Mateus: "vim lançar fogo sobre
a Terra, e que mais quero, se já está aceso"?
O verbo grego balein é "lançar", e não "trazer", como se lê com frequência nas traduções correntes. A
segunda parte da frase pode ter várias interpretações, entre as quais preferimos a literal: kaì tí thélô ei
êdê anêphthê, "que (mais) quero, se já foi aceso"? (anêphthê é o aoristo segundo passivo de anaptô).
Mas podem atribuir-se-lhe outros sentidos: "e quanto desejo que já tivesse sido acesso", ou ainda: "e
como estou alegre (cfr. Sir. 23:14) de já ter sido aceso".
Perguntam os exegetas que "fogo" é esse, e citam o significado de “prova" ou "castigo" que se aplicava
a esse termo no Antigo Testamento: e mais, o de “purificar" (Zac. 13:9); "depurar os metais" (Mal.
3:2ss; Ecli.2:5: 4.º Mac. 9:22): ou também "o calor das paixões" (Jer. 4:14; 20:9; 23:29; Ecli. 9:8 e
23:16). Gregório Magno (Patrol. Lat. vol. 76 col.1223) diz tratar-se do "Espírito Santo". Vemos, en-
tão, que entre os próprios hermeneutas se verificam as divisões preditas por Jesus; e Seus discípulos
muitas vezes se separam só por causa da interpretação de Suas palavras, criando-se novas seitas a
combater-se inútil e ridiculamente.
Logo depois Jesus confessa, num desabafo muito humano, o sacrifício extraordinário que fez por nós:
“tive de ser mergulhado num mergulho”: compreendemos como custou o doloroso baixamento de Suas
vibrações divinas, para “encarnar", mergulhando na grosseria da matéria física, fato salientado por
Paulo (Filip. 2:6-8): "Jesus que, subsistindo em forma de Deus, não julgou usurpação ser como Deus,
mas esvaziou-se, tendo tomado a aparência de escravo, tornando-se semelhante aos homens e achando-
se na condição de homem: humilhou-se, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz”. E esse
holocausto do mergulho O angustiava, suspirando Ele pela libertação quando finalmente largasse a
matéria.

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Transforma depois seu ensino, que toma a forma de uma pergunta a que o próprio Mestre responde
pela negativa, afirmando que veio trazer a divisão. O verbo grego dikázô exprime literalmente "dividir
em dois" ou "partir ao meio", donde derivou a nossa “dicotomia".
Cita então um exemplo: uma casa de cinco pessoas, sendo 1. o pai; 2. a filha; 3. o filho casado; 4. sua
esposa; e 5. a mãe (que também é a sogra). Entre todos surgiriam divisões e desacordo.
Essas mesmas palavras encontram-se em Mateus. E de fato havia a crença de que, precedendo a vinda
do Messias, haveria muitas dores e catástrofes (chamadas habelê Meshiah, isto é, "as dores do Messi-
as"), que, em Mateus 24:8 são ditas ôdínes. Em Sanhedrim 97a, lemos: “Na semana de anos em que
deve vir o filho de David, desencadear-se-ão guerras no sétimo ano, mas no fim do sétimo ano chegará
o filho de David".
A doutrina pregada por Jesus torna-se, pois, a ocasião (embora não a causa) desses conflitos, que ter-
minarão em perseguições violentas e sanguinárias, e “os inimigos do homem são os de sua própria
casa", fato explicado com pormenores alguns séculos antes pela Bhagavad-Gita.
Quando Jesus compara o amor que a Ele devemos ter, maior que o dedicado a pais e filhos, emprega o
termo philéô, que exprime o amor terno e instintivo; e não agapáô, que é a afeição respeitosa dirigida a
um benfeitor. Entre os israelitas daquela época era comum ser o mestre colocado antes do pai: “o pai
nos colocou neste mundo, mas o mestre, que nos ensina a sabedoria, nos dá a vida do outro mundo"
(Tratado Baba Messias, 2, 11).
A frase seguinte (vers. 38) apresenta maior dificuldade. A cruz constituía um suplício infamante, só
aplicado a escravos e criminosos de baixo nível. Jesus não havia ainda, com sua crucificação, enobre-
cido esse emblema. No entanto, o fato de "carregar sua cruz" era corrente, pois os condenados carrega-
vam até o local do suplício a trava superior, onde seriam pregados ou amarrados. Uma vez presos a
ele, era ele suspenso e pendurado nos postes já permanentemente fincados no chão para esse efeito. A
cruz (staurós, derivado da palavra tau que designava a letra T) era bastante conhecida na antiguidade
como símbolo, quer a "ansata" no Egito, símbolo da imortalidade e da junção espírito-matéria; quer a
Jaina na Índia (conhecida também como svástica; em sânscrito svasti quer dizer "saudar") antiquíssi-
ma, simbolizando a criação do fogo pelo atrito e adotada mais tarde como símbolo do "sinal da cruz"
que o cristão traça sobre si mesmo; e por isso figura nas catacumbas de Roma e no "púlpito" de Santo
Ambrósio em Milão, Itália.
Realmente a metáfora "carregar sua cruz" para significar a aceitação da prova, não aparece na literatu-
ra rabínica. Mas Cristo exige para seus discípulos, que carreguem sua cruz e O sigam (literalmente:
"sigam após mim”, akolouthei opísô mou): caminhamos como crucificados na carne, seguindo Seu
exemplo.
O último versículo de Mateus é um ensinamento em forma axiomática, realçado pela contradictio in
términis (contradição entre as palavras), formando bela antítese. A oposição entre alma e corpo (vida
material e vida espiritual) era comum entre os rabinos. Lemos em Talmud, 66 a: "Que fará um homem
para viver? - Dar-se-á a morte. Que fará um homem para morrer? - Dar-se-á a vida".
Cristo adota o pensamento, acrescentando uma condição taxativa: por minha causa: quem acha sua
alma, locupletando-a com as satisfações terrenas, sem cogitar do espírito, a perde; mas quem, por cau-
sa do Espírito, perde sua alma nas dores e dificuldades terrenas, a encontrará mais aperfeiçoada; após
transpassar o túnel estreito e escuro do túmulo.

A continuação do ensino se vai aprofundando aos poucos em revelações fortes mas de meridiana cla-
reza. Sigamos a mesma ordem, comentando antes o texto de Lucas.
Em primeiro lugar: a individualidade (Jesus) declara ter vindo "lançar fogo sobre a Terra". Com
efeito, a matéria inerte e mesmo a vivificada pela força da vida animal e psíquica, pode considerar-se
apagada se não tiver em si o "fogo" do Espírito desperto, consciente de si, a trabalhar pela evolução.
Quem lança esse fogo nos seres humanos é a individualidade, ao assumir seu legítimo posto de su-

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premacia na criatura humana. Para lançar, porém, esse fogo espiritual, a individualidade necessita
mergulhar no corpo físico, encarcerando-se na carne; e durante toda a sua permanência nesse mer-
gulho, vive angustiada (synéchomai), ansiosa por libertação, a fim de voar livre em seu mundo pró-
prio.
O Espírito, individualização da Centelha Divina, quando consegue comunicar seu fogo próprio espi-
ritual (o "mergulho de fogo", cfr. Mat. 3:11; Marc. 1:8; Luc. c:16, vol. 1 página 119 ss) ao ser huma-
no, sente em si a alegria de vê-lo arder na espiritualização integral; no entanto, seu aprisionamento
lhe faz sofrer todas as restrições de um cárcere cheio de lutas. Com efeito, o domínio da individuali-
dade numa criatura lança-a em lutas titânicas externas, embora garantindo uma paz interior inabalá-
vel.
Mas a "descida" da individualidade traz, não a paz, à personalidade, mas a divisão em dois, a "dico-
tomia" entre matéria e espírito. Se bem que a matéria nada mais seja que a condensação (congela-
mento) do espírito, ocorre que, no momento de a individualidade assumir o comando, a personalidade
adquire a consciência de uma dualidade, da nítida separação (dicotomia), com a característica de
oposição entre espírito e matéria. Centenas, e talvez milhares de autores já se referiram a essa luta
entre os dois pólos "opostos" (positivo e negativo, Sistema e Anti-Sistema, alma e corpo). Há pois ra-
zões ponderosas de afirmar que, no mergulho na carne, a individualidade vem produzir, de início, a
dicotomia entre espírito e matéria.
Essa divisão, todavia, não reside unicamente nas extremidades opostas. Também os planos intermedi-
ários estarão sujeitos a ela. Assim, numa "casa” (ou seja, numa pessoa humana), onde há cinco pes-
soas (o pai: o espírito; a mãe: a inteligência; o filho: o corpo astral; com sua esposa: o duplo etérico;
a filha: a carne), a luta entre os elementos é grande e contínua. O pai ("espirito") quer impor-se ao
filho (corpo astral, emoções), mas estas se opõem a ele; a mãe (inteligência) quer superar a filha (a
carne), mas esta se rebela e não quer obedecer a ela, vencendo-a com o sono, o cansaço, etc.; a sogra
(ainda a inteligência) busca dominar a nora (as sensações físicas), mas estas são mais poderosas e
levam de vencida a inteligência. Quem não conhece a dificuldade de a inteligência desarraigar hábi-
tos (vícios) como de fumo, de bebidas, de gula, de preguiça, etc"? Ou os obstáculos causados à inteli-
gência pela fadiga do corpo? Ou o descontrole que o espírito sofre, perturbado pelas emoções da có-
lera e da raiva, do amor descontrolado e do ciúme, etc.?
Bem razão tem a individualidade de proclamar que não veio "lançar a paz, mas a espada". E por isso,
"os inimigos do homem são os de sua própria casa", isto é, as máximas lutas que uma criatura tem
que enfrentar são, realmente, contra seus próprios veículos inferiores, que causam os maiores distúr-
bios e perturbações, obstáculos e embaraços na caminhada da senda evolutiva. Muito mais fácil der-
rotar um inimigo externo que a si mesmo: "vencedor verdadeiro é o que vence a si mesmo", lemos
algures. Indispensável, pois, harmonizar os veículos entre si e depois sintonizá-los com o Espírito.
Daí a conclusão: não é digno do Espírito, do Cristo Interno, quem "mais ama seu pai ou sua mãe, seu
filho ou sua filha". No sentido em que estamos examinando a questão, essas palavras exprimem os
veículos mais densos (da personalidade): seu intelecto, suas emoções, suas sensações, seu comodismo.
Quem mais ama essas partes personalísticas do que ao Cristo Interno, não é digno do Cristo Interno:
está voltado para as falsas realidades transitórias terrenas, externas a seu verdadeiro EU, ao invés de
apegar-se à realidade real perene, eterna, infinita. Não é digno da realidade, quem se apega às apa-
rências. Não é digno da individualidade eterna, quem valoriza mais a personalidade momentânea.
Não é digno do Espírito quem lhe prefere a matéria. Não é digno do Cristo, quem lhe antepõe o mun-
do e suas ilusões.
Consequentemente, para ser digno do Cristo-que-em-nós-habita, e que constitui nosso verdadeiro e
real Eu Profundo, é indispensável "tomar sua cruz", ou seja, carregar seu corpo físico e seus demais
veículos (quando estamos de pé, de braços abertos, temos a configuração de uma cruz) e seguir o
exemplo que Jesus nos deu. O mergulho do Espírito na matéria densa é uma crucificação, é "ser pre-
gado na cruz". Essa cruz tem que ser carregada até o fim (até o "Gólgota", que quer dizer "caveira"),
por maiores angústias que isso nos cause ("num mergulho tive que ser mergulhado, e quanto me an-
gustio até que ele termine" ...). Jamais podemos deixar que a "cruz" (o corpo) carregue e arraste nos-

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so Eu para o pólo oposto, para Satanás (a matéria); mas carregá-la nós para o cimo da montanha,
que é o Espírito, seguindo passo a passo o Cristo Interno. Este é o caminho certo da evolução, ditado
taxativamente por Jesus, a individualidade mais evoluída, que nos deu Seu exemplo, servindo-nos de
modelo, como nossa irmão mais velho, "primogênito entre muitos irmãos" (Rom. 8:29).
Não se trata, porém, de despersonalizar-se por motivos de fuga, de covardia; mas por uma causa que
é a única que vale: por causa da união, da fusão, da unificação com o Cristo Interno, dessa persona-
lidade transitória, que se anula para ser substituída pela individualidade permanente e divina. Só por
esse motivo ("por minha causa", diz o Cristo) é que vale a despersonalização da criatura. E o homem
Jesus, símbolo da individualidade, deu-nos o exemplo com indiscutível clareza, como veremos a seu
tempo, em comentários futuros.
Daí se chega à conclusão: "quem acha sua alma (sua psiquê) a perderá". De fato, quem na Terra des-
cobre sua personalidade (psiquismo) e a coloca no pedestal, acima de tudo, acaba perdendo-a, por-
que ela é destruída pela "morte", no fim de cada ciclo de existência terrena (cfr. Heb. 9:27). No en-
tanto, aquele que, por causa do Cristo Interno, aniquila ainda na vida terrena sua personalidade
("perde sua alma") esse a encontrará, isto é, descobrirá sua individualidade eterna, residente no imo
de si mesmo.
Em nosso atraso confundimos muito a individualidade com a personalidade. Julgamos que esta cons-
titui nosso verdadeiro eu imortal, que jamais será destruído. No entanto, ao progredirmos, verifica-
mos nosso engano: o Eu profundo, a Individualidade, é a única coisa que permanece. Mas para des-
cobrir ("achar") seu verdadeiro Espírito Eterno, é mister perder sua "alma” (personalidade) transitó-
ria.

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INSTRUÇÕES AOS EMISSÁRIOS – PARTE V


Mat. 10:40-42
40. Quem vos recebe, a mim recebe; e quem me recebe, recebe aquele que me enviou.
41. Quem recebe um profeta por ser profeta, receberá o recompensa do profeta; e quem
recebe um justo por ser justo, receberá a recompensa do justo.
42. Quem der de beber, ainda que seja um copo de água fria a um destes pequeninos, por
ser meu discípulo, em verdade vos digo que de nenhum modo perderá sua recompen-
sa.

O trecho final das instruções a Seus emissários revela as recompensas daqueles que os receberem.
Conforme disse Jesus em outro passo: "Como me enviaste, Pai, assim eu os envio" (João, 17:18), aqui
é dito: "quem vos recebe a mim recebe; e quem me recebe, recebe aquele que me enviou". É uma se-
quência em que vemos: 1) o Pai; 2) o Cristo; 3) os emissários; 4) os que os recebem, todos reunidos
num interesse comum, facilitando assim a entrada em contato dos homens com o Pai.
A expressão "receber um profeta por ser profeta" está, no original, literalmente: "recebe um profeta
em nome (na qualidade) de profeta", expressão que corresponde ao hebraico leschêm. Para bem fixar o
ensino, Jesus o repete três vezes: um profeta, um justo, um discípulo.
No último exemplo, já não se requer nem mesmo a hospitalidade, mas até um simples favor de quase
nenhuma importância: dar um copo d'água fresca, afirma o Mestre, se for dado por ser seu discípulo,
terá sua recompensa.
Manifesta-se com essas frases o lado positivo da Lei de Causa e Efeito (Carma), garantindo-se que
todas as causas colocadas produzirão infalivelmente seu efeito correspondente e equivalente.

Ainda aqui a individualidade declara que a personalidade que a recebe (hospeda), automaticamente
receberá o Cristo Interno; e quando esse contato for estabelecido, imediatamente se realizará a unifi-
cação com o Pai ("se alguém me amar ... meu Pai o amará, e nós viremos a ele e habitaremos nele",
João, 14:25). Vamos procurar esclarecer melhor. Quando a personalidade resolver receber em si
mesma o Espírito (emissário do Cristo), ipso facto ela receberá o próprio Cristo Interno (entrando em
contato com ele), e por esse passo, automaticamente receberá o Pai que em nós habita, dando-se a
unificação. Isso não se dará se a personalidade se recusar a receber o Espírito (individualidade), por
estar demais envolvida e preocupada com a própria personalidade, com seu eu pequeno e transitório.
Quem se volta para o lado de fora, não pode receber (entrar em contato) com o lado de dentro. Quem
caminha para a periferia, não pode chegar ao centro. Quem se dirige para o que morre (ocidente) não
pode encontrar o que nasce (oriente). Isto não quer dizer que quem recusa receber o seu próprio Espí-
rito não no tenha: tem-no sim. Mas nada quer com ele, que se vê rejeitado (cfr. o que dissemos à pá-
gina 85).
A seguir fala-se das recompensas do Espírito, na personalidade dessa existência terrena ou de outras
existências sucessivas; pois terminando a personalidade com a desencarnação, ela só poderá ser re-
compensada na mesma encarnação ou no prolongamento de sua existência como personalidade de-
sencarnada no plano astral; não se dando tal caso, a recompensa - ou privação - só pode verificar-se
na nova personalidade que se constituirá com o novo nascimento na matéria. No entanto, O Espírito
(a individualidade) que receberá as consequências de seus atas, é a mesma, seja qual for a personali-
dade através da qual se manifeste (seja qual for a "máscara" atrás da qual se esconda). A identidade
do EU é real apenas quanto ao Espírito: o eu pequeno personalístico muda a cada nova encarnação.

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Ensina-nos, então, o Mestre que, quando uma personalidade (guiada pela individualidade) recebe ou
hospeda um profeta (médium), considerando o fato de ser ele um profeta (médium) e não simples-
mente na qualidade de homem, faz jus à recompensa do próprio profeta. O mesmo se diga quanta ao
justo e quanto ao discípulo.
Importantes os três graus apresentados:
a) o profeta (médium) é um simples intermediário de outros espíritos, um medianeiro, embora seu
trabalho constitua obra meritória de grande alcance no setor humano, pois pode com isso elucidar
questões e dar orientações importantes para a evolução pessoal e coletiva;
b) o justo é aquele que sabe discernir o bem do mal e tem capacidade e força suficientes para só fa-
zer o bem, evitando qualquer mal. Seu comportamento é irrepreensível certo, correto, nobre e ele-
vado;
c) o discípulo do Cristo é a criatura que já conseguiu a união com o Eu Profundo e que, portanto, já
se encontra "realizado". A este, então, bastará o mínimo de ajuda no plano material (dar um sim-
ples copo d'água fresca), para merecer uma recompensa. E isso porque, quem recebe um "discí-
pulo do Cristo", recebe ao próprio Cristo que é Quem nele age e, ipso facto, recebe o próprio Pai
Amoroso e Bom.
Compreendamos então: o "espírito" encarnado que sentir em si a ação do Espírito e se dispuser a
recebé-lo (aceitá-lo), vivendo de acordo com as intuições recebidas dele e correspondendo a seus
apelos - quer como médium, quer como justo, quer como "discípulo do Cristo" - esse "espírito" rece-
berá as recompensas a que fazem jus esses graus e evoluirá de conformidade com a aceitação que der
ao hóspede divino em si. A Centelha Divina (ou Cristo Interno), nosso verdadeiro Eu Profundo, já é
evoluído por si mesmo, pela sua condição de Centelha Divina; mas o Espírito (individualidade) está
fazendo sua evolução, servindo-se do "espírito" encarnado como de um veículo, por meio do qual de-
verá atingir a meta. O Espírito é o Emissário do Cristo Interno junto ao "espírito" encarnado. E esse
receberá a recompensa pelo que fizer de positivo em favor da evolução do Espírito (individualidade)
eterno. Ora, acontece que o "espírito" encarnado é, porém, uma simples projeção, em vibração mais
baixa, do Espírito Externo, e por isso, mesmo perdendo sua personalidade com a nova encarnação,
não perde sua existência REAL e portanto não perderá sua recompensa. O Espírito se projeta em di-
versas personalidades, através do tempo e do espaço, mas cada projeção é, na realidade, o próprio
Espirito Eterno sob diversas formas e modalidades, até que aprenda a renunciar às formas e modali-
dades externas no tempo e no espaço, para fixar-se no seu próprio íntimo, onde não existem formas,
nem modalidades, nem tempo, nem espaço, mas apenas o Eterno, o Infinito e o Imutável: o Cristo In-
terno, seu verdadeiro EU, partícula do Todo, Centelha Divina.

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PREGAÇÃO

Mat . 11: 1 Marc. 6:12-13 Luc. 9:6

1. E aconteceu que quando 12. E tendo eles saído, prega- 6. Tendo eles partido, cami-
Jesus acabou de instruir ram para que modificassem nharam através das aldeias,
seus doze discípulos, partiu a mente. anunciando as boas-novas e
dali a ensinar e a pregar 13. E expeliam muitos espíritos fazendo curas em toda par-
nas cidades deles. te.
desencarnados, ungiam
com óleo muitos enfermos e
os curavam.

Os emissários põem em prática os ensinos de Jesus, saindo pelas aldeias a pregar a modificação men-
tal. É a execução sob a supervisão do Mestre, como exercício de aprendizado, que mais tarde terá que
ser realizado por conta própria. Indispensável, portanto, uma "prévia", na qual pudessem ser desfeitas
todas as dúvidas e corrigidos todos os enganos.
Uma observação de Marcos (que o irmão de Jesus, Tiago, apoiará em sua epístola, 5:14-15) diz que os
discípulos "ungiam com óleo muitos enfermos e os curavam". Da observação genérica do modo de
agir de todos, deduz-se ter havido alguma instrução particular nesse sentido por parte de Jesus. Com
efeito, era hábito utilizar-se o óleo para aliviar as feridas (cfr. Luc. 10:34), sendo ele normalmente uti-
lizado pelos terapeutas essênios.

Não basta ter recebido as instruções da individualidade: mister pô-las em prática, exercitando-se na
oração, na meditação e na ação. Só assim conseguirá a personalidade subir alguns degraus evoluti-
vos, plasmando o "espírito" pelo hábito (condicionamento espiritual) que, uma vez arraigado, se tor-
nará instinto. Só então, depois de solidificados os hábitos, se poderá pensar num passo à frente, por-
que a evolução não dá saltos. Sem base, não pode haver construção. E quanto mais alto o edifício,
mais profundos e sólidos precisam ser os alicerces.
Então, não basta a teoria: indispensável a prática constante e ininterrupta, longa e persistente.

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A MORTE DO BATISTA

Mat. 14:6-12 Marc. 6:21-29

6. Chegado, porém, o aniversário de Herodes, 21. E chegou um dia favorável, quando Hero-
a filha de Herodias dançou de público e des em seu aniversário natalício deu um
agradou a Herodes. banquete a seus dignitários, aos comandan-
tes militares e aos principais da Galiléia.
7. Por isso este prometeu, sob juramento, dar-
lhe o que ela pedisse. 22. Tendo entrado a filha dessa Herodias, dan-
çou e agradou a Herodes e a seus convida-
8. E ela, instigada por sua mãe, disse: "Dá-me
dos. Então o rei disse à mocinha: "pede-me
aqui num prato a cabeça de João o Batista".
o que quiseres e to darei".
9. O rei ficou entristecido, mas por causa de
23. E jurou-lhe: "eu to darei, ainda mesmo que
seus juramentos e também dos convidados,
me peças a metade de meu reino".
ordenou dar-lha;
24. E ela saiu e perguntou a sua mãe: "Que
10. e, mandando, decapitou João no cárcere.
devo pedir"? Esta respondeu: "A cabeça de
11. E foi trazida sua cabeça num prato e dada à João o Batista".
mocinha; e ela a levou a sua mãe.
25. Regressando logo depressa para o rei, disse:
12. Então vieram os discípulos dele, levaram o "Quero que sem demora me dês, num pra-
corpo e o sepultaram; e, partindo eles fo- to, a cabeça de João Batista".
ram dar a notícia a Jesus.
26. O rei ficou muito triste, mas por causa do
juramento e também dos convidados não
lha quis recusar.
27. Imediatamente o rei enviou um guarda com
a ordem de trazer a cabeça de João. Saindo,
ele decapitou-o no cárcere,
28. e trouxe a cabeça dele num prato e a deu à
mocinha; e a mocinha a deu a sua mãe.
29. Sabendo disso, vieram seus discípulos e le-
varam o cadáver dele e o depositaram num
túmulo.

A narrativa de Mateus segue-se à declaração feita em 14:5, onde é dito que era desejo de Herodes li-
quidar o Batista; em Marcos a sequência é a mesma; daí dizer-se que "chegou um dia favorável".
O aniversário (no grego "koiné" a palavra genesía substituíra genethlía para exprimir o aniversário
natalício) de Herodes deve ter ocorrido em janeiro de 31, quando o tetrarca se achava em sua "villegi-
atura" de inverno, no castelo de Maquérus, justamente onde se encontrava detido o Batista.
Herodes ofereceu um banquete, ao qual compareceram os que tinham interesse em agradar-lhe: os di-
gnitários dá corte, os comandantes militares (romanos) e as principais figuras da alta sociedade gali-
léia.

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Já pelo final do banquete, todos um pouco "tocados" pelos abundantes e generosos vinhos servidos,
aparece a dançar a filha "dessa" Herodíades (de que Marcos falara no vers. 19 e voltaria a citar no vers.
24). A apresentação deve ter causado sensação, já que só se dedicavam à dança as profissionais, de
vida livre, jamais moças de família e, menos ainda, "princesas".

Figura “A MORTE DO BATISTA”

Segundo Josefo (Ant. Jud. 18, 5, 2), a mocinha se chamava Salomé e devia contar nessa época por
volta de 15 anos. Esse autor narra a prisão e morte do Batista, dando-lhe motivo político ("para evitar
uma insurreição"), que bem pode ter sido a causa alegada perante o público.
A dança agradou plenamente a todos, mas sobretudo a Herodes, tanto que este a convida a pedir o que
quisesse, que ele lho daria, imitando o gesto de Assuero (cfr. Ester, 5:2-3,6 e 7:2). Acrescentou que lhe
concederia mesmo "metade de seu reino", palavras vazias, pois nenhum reino possuía, já que seu “rei-

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nado" consistia apenas numa simples "tetrarquia", que ele administrava por concessão do Imperador
romano.
A mocinha corre à mãe para aconselhar-se e, por instigação dela, solicita-lhe seja entregue "aqui e ago-
ra, num prato cabeça de (estava num banquete!) a João Batista".
Quer sinceramente, quer por causa da presença dos convivas, o tetrarca demonstra entristecer-se, mas
faz questão de cumprir sua promessa. Dá ordem que o pedido seja imediatamente atendido. Um guarda
(Marcos usa um termo latino, spectator, transcrito em letras gregas) resolveu o problema e decapitou
João no cárcere, trazendo de volta a cabeça num prato.
A mocinha de 15 anos pegou a bandeja com a macabra encomenda e, na maior naturalidade e calma,
entregou-a à mãe, revelando com esse fato possuir nervos de aço que suporíamos difícil hoje, se não
conhecêssemos o entusiasmo fanático de tantas mocinhas hodiernas pelas lutas de "box" e de outras
pancadarias selvagens. Jerônimo (Patrol. Lat. vol. 23 col. 488), talvez influenciado pela lenda de Fúl-
via com Cícero, afirma que Herodíades puxou a língua inerte de João, nela espetando uma agulha de
costurar.
Ao saber da notícia, os discípulos vêm apanhar o corpo de seu mestre, para dar-lhe sepultura, embora
não se saiba em que lugar o tenham feito.
A decapitação de João Batista foi o resultado cármico de sua ação, quando se manifestava na persona-
lidade de Elias o Tesbita. Leia-se: "Disse Elias: agarrai os profetas de Baal: que nenhum deles escape!
Agarraram-nos. Elias fê-los descer à torrente de Kishon e ali os matou" ,1.º Reis, 18:40); a morte a eles
dada foi exatamente a decapitação: "Referiu Ahab a Jezebel tudo o que Elias havia feito e como matara
todos os profetas à espada" (l.º Reis, 19:1). Portanto, execução rígida da Lei de Causa e Efeito, confir-
mando as palavras de Jesus: "todos os que usam a espada, morrerão à espada" (Mat. 26:52); não nos
esqueçamos de que essa Lei é afirmada em mais de 30 lugares do Antigo e Novo Testamentos, sobre-
tudo com a fórmula: "a cada um será dado conforme suas obras".

Aqui apresenta-se-nos um episódio chocante, mas pleno de ensinos.


No primeiro plano observamos o comportamento do homem involuído, ainda materializado, que acre-
dita bastar destruir o corpo de alguém (matá-lo) para libertar-se dele e de suas idéias. Julgamento
primário, pois as idéias não morrem e nem sequer a criatura que continua bem viva, somente perden-
do seu veículo denso. Mas a ilusão de aniquilar "o inimigo" é total, e satisfaz à ignorância dos seres
imaturos.
Aprofundando, verificamos que o homem encarnado (e o desencarnado também), quando ainda mate-
rializado demais, quando ainda possua sua tônica no plano astral inferior (animal) das emoções bai-
xas e sensações violentas, dá extraordinário valor a tudo o que excite seus apetites mais grosseiros,
que se situam acima de qualquer prazer intelectual (nem se fala dos gozos espirituais ...). Observamos
isso no exemplo de Herodes, que tanto se fascinou pela dança de Salomé, que estava disposto a sacri-
ficar até "metade de seu reino", pelo prazer sensual que lhe causaram suas formas físicas em movi-
mentos luxuriosos.
Herodes é o símbolo da humanidade nesse estágio inferior de sensações físicas exacerbadas, pelo
qual todos nós passamos (e talvez ainda estejamos passando nos veículos pesados, sujeitos mas rebel-
des ao comando do Espírito, que tanta dificuldade encontra em manter-nos em nível mais elevado).
No fato que comentamos, verificamos a ascendência do luxo falso (convite a dignitários e autoridades
transitórias, sem levar em conta o valor das individualidades), da gula (banquetes para comemorar
eventos alegres, só satisfeitos mediante sensações gustativas), da luxúria (dança sensual excitante de
apetites lúbricos). Essa maneira de agir ainda é muito comum, não apenas “nos outros”, mas em nós
mesmos.
Levados pelas sensações e emoções descontroladas, somos muita vez arrastados a faltar no setor de
nossos deveres espirituais, para satisfazer aos apetites inferiores, a fim de agradar à nossa vaidade, à

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nossa ambição, ao nosso apego a coisas e formas passageiras, mas que nos parecem valiosíssimas e
insubstituíveis. Sacrificamos, então, o Espírito à matéria, o Eu eterno às satisfações do eu transitório,
e "cortamos a cabeça" de nossa consciência, esperando silenciá-la para sempre.
Observamos ainda, no episódio, que a filha (sensações) pede opinião a mãe (emoções) a respeito do
que deve escolher. Realmente são as emoções que governam as sensações e até toda a personalidade
imatura. São as emoções que causam os maiores descontroles em nossa vida. Elas levaram Herodes a
repudiar a filha de Aletes IV, por preferir Herodíades, conquistada a seu próprio irmão consanguí-
neo; elas induziram a filha a perturbar a cabeça de Herodes por meio da dança; elas pediram, como
vingança, a cabeça de João Batista, sendo sempre obedecidas cega e imediatamente pelas sensações
(veja vol. 1, onde se diz que Herodes simboliza o duplo-etérico mais o corpo físico).
Olhando agora sob o prisma de João, verifiquemos o ensino que nos chega através do fato.
Antes de tudo, a lição básica da realidade indiscutível da Lei de Causa e Efeito (carma).
Mas, sendo João o representante da personalidade iluminada ("o maior dentre os filhos de mulher")
nele encontramos representado o protótipo de todas as personalidades desse grau evolutivo. O que se
passou com o Batista é o que terá que suceder a todos nós.
Tendo ele aceito o "mergulho" (o encontro com "o Cristo"), que ele pregou e realizou às margens do
Jordão, viu-se, por isso mesmo, encarcerado no corpo de carne: reconheceu que sua existência terre-
na não era a verdadeira vida, mas um cárcere, que tinha que ser destruído, para que seu Espírito re-
conquistasse a liberdade gloriosa dos filhos de Deus. Reconhecendo-o, esperou pela libertação, sa-
bendo de antemão que devia resgatar seus débitos passados.
O golpe de espada, que lhe destruiu o corpo físico, significou, voltando, a dupla libertação de seu Es-
pírito: a do cárcere de seu corpo e o resgate cármico do erro cometido, quando ele se manifestava
através da personalidade de Elias. Nem todas as personalidades, porém, se libertarão através de um
golpe de espada física: muitos sofrerão golpes de companheiros, de amigos, de esposos ou esposas, de
filhos e pais, que virão cobrar as dívidas do passado, e que, por vezes, fazem sofrer mais do que um
seco e rápido talho de afiada espada. Convençamo-nos, entretanto, de que, uma vez na prisão, "daí
não sairemos sem haver pago até o último centavo" (Mat. 5:26).
Todavia, se dos resgates morais e materiais nos não podemos libertar sem efetuar o pagamento, po-
demos colocar-nos fora do alcance deles, quando passarmos a viver unidos ao Cristo, que nos dá Sua
Paz, não a paz do mundo (cfr. João, 14:27); teremos a Paz Interna da tranquilidade absoluta no cora-
ção, embora nos assolem as tempestades e furacões de um mundo turbulento em redor de nós, e até
investindo contra nós; estaremos unidos ao Cristo "que dorme no fundo do barco durante a ventania",
bastando que o despertemos, a fim de permanecermos a Seu lado.
Prosseguindo na meditação, verificamos que, com frequência, o intelecto ou raciocínio ou razão
(João) é vencido totalmente pelos veículos inferiores.
Quantas vezes ocorre isso conosco: o corpo etérico e físico (Herodes) viciado na sede de sensações
fortes e inéditas, encontra ocasiões de desvio em movimentos desordenados e luxuriosos (dança) de
seus nervos excitados (Salomé) e começa a sentir-se dominado e vencido. Entra, então, em entendi-
mentos ilícitos, desejoso de satisfazer-se radicalmente até o fim, perguntando que deve ele dar em
troca de mais um prazer desregrado. Há, nesse ínterim, uma consulta à emoção exacerbada (Herodí-
ades), e esta opta pelo assassinato imediato e violento da razão (João Batista) a fim de poder, com seu
afastamento, ser atingido o objetivo visado.
Emoções e sensações jamais titubeiam, quando excitados pelos movimentos inferiores (de luxúria, de
raiva, de ódio, e ciúme, de inveja, e de quaisquer outros desregramentos). Jamais hesitam em fazer
silenciar o raciocínio, para dar vasão a seus instintos inferiores.
A difícil tarefa da evolução consiste exatamente em conseguir-se que o intelecto vença essas fortes
correntes baixas, dominando-as com a lógica do bom-senso e com a razão do Espírito.

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C. TORRES PASTORINO

REGRESSO DOS EMISSÁRIOS

Marc. 6:30-31 Luc. 9:10

30. Reunindo-se os emissários com Jesus, con- 10. Tendo regressado os emissários, relataram-
taram-lhe tudo o que tinham feito e o que lhe o que tinham feito. E, levando-os, ele re-
tinham ensinado. tirou-se isoladamente, para uma cidade,
chamada Betsaida.
31. E disse-lhes: "Vinde vós, sozinhos, a um
lugar isolado e descansai um pouco". Pois
eram muitos os que vinham e iam, e nem ti-
nham vagar para comer.

Os emissários regressaram de sua excursão apostólica; mas tanta gente cercava Jesus, "indo e vindo",
que não havia vagar nem para alimentação, quanto mais para uma boa conversa íntima, em que os
pormenores fossem contados e sugestões fossem dadas.
Para maior calma, Jesus decide retirar-se para um local isolado. Com isso atingiria dois objetivos: pro-
porcionar a todos um pouco de repouso e palestrar com tranquilidade. Vai então para os arredores de
Betsaida- Júlias (hoje El-Tell), nos domínios do tetrarca Filipe, também filho de Herodes o Grande,
mas de caráter pacífico.
A sudeste da cidade, havia vasta planície que se estendia até as colinas. O nome Júlias lhe fora atribuí-
do (cfr. Josefo, Ant. Jud. 18, 2, 1) pelo tetrarca, em homenagem a Júlia, filha do Imperador Augusto.
A excursão dos apóstolos deve ter sido mais ou menos longa (talvez várias semanas) pois haviam per-
corrido diversas cidades e aldeias, e muita coisa havia para conversar na intimidade.

Interessante observar que, após a ação externa da personalidade, a individualidade sempre a convida
para um repouso em lugar ermo. A palavra Betsaida é expressiva, pois significa "Casa dos Frutos"
(ou "local de boa pescaria"). Nada mais significativo que, depois de trabalho intenso, em que se lan-
çaram sementes a todo vento, deva haver um repouso exatamente no local em que podem colher-se os
frutos do trabalho realizado. Frutos que serão a paz e a meditação silenciosas, longe do burburinho
de uma multidão que "vem e vai" sem descanso.
A personalidade não poderá manter-se equilibrada, se não houver alternância de trabalho e repouso,
de ação e oração. E isto só pode obter-se no isolamento, em companhia apenas do Cristo-que-em-nós-
habita.
Só assim podem ser aproveitados os frutos da experiência.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

OPINIÃO DE HERODES

Mat. 14:1-2 Marc. 6:14-16 Luc. 9:7-9

1. Nessa época, ouviu o te- 14. E Herodes o rei ouviu 7. Ora, o tetrarca Herodes
trarca Herodes a fama de (porque o nome dele se tor- ouviu tudo o que foi feito
Jesus. nava conhecido) e disse: por ele (Jesus), e admirou-
"João o Batista despertou se, porque era dito por al-
2. e disse a seus cortesãos:
dentre os mortos, e por isso guns:
"esse é João o Batista; ele
os poderes operam nele".
despertou dentre mortos, e 8. "João despertou dentre os
por isso os poderes operam 15. Outros diziam: "É Elias”; mortos", por outros: "Elias
nele". outros ainda: "É profeta, apareceu", e outros: "reen-
como um dos profetas". carnou um dos antigos pro-
fetas".
16. Mas, ouvindo isso, Herodes
dizia: “É João, que eu de- 9. Disse, porém, Herodes:
golei, que despertou dentre "Eu degolei João, mas
os mortos". quem é este de quem ouço
tais coisas". E procurava
vê-lo.

Além da ação pessoal de Jesus a pregar as Boas-Novas, houve um recrudescimento de fatos extraordi-
nários, que se multiplicaram com a saída dos Emissários Dele, por diversas aldeias concomitantemen-
te. A fama de Jesus, em nome de Quem todos agiam, cresceu muito, estendendo-se tanto que chegou
aos ouvidos do tetrarca daquela região.
As palavras de Herodes dão a perfeita impressão de que ele se convenceu da ressurreição de João Ba-
tista, "ressurreição" no sentido atual do termo, isto é, que o "morto" voltara a viver no mesmo corpo.
Herodes não se refere à reencarnação, conforme o notara já Jerônimo (Patrol. Lat. vol. 26, col. 96)
com razão: Jesus tinha mais de trinta anos, quando João desencarnou.
* * *
Para fins de estudo, observemos o emprego dos verbos gregos nesses textos, e para isso analisemos
antes os próprios verbos.
Aparecem dois; egeírô e anístêmi, ambos traduzidos correntemente com a mesma palavra portuguesa:
"ressuscitar". Mas o sentido difere bastante de um para outro.
EGEÍRÔ, composto de GER com o prefixo reforçativo E (cfr. o sânscrito ajardi, que significa "estar
acordado") tem exatamente o sentido de "despertar do sono, acordar", ou seja, passar do estado de
sono ao de vigília. Era empregado correntemente com o sentido de ressuscitar, isto é, sair do estado de
sono da morte, para o da vigília da vida. Para não haver confusão, acrescentava-se ao verbo o esclare-
cimento indispensável: egeíró ek (ou apó) nekrôn, "despertar de entre os mortos".
ANÍSTÊMI, composto de ANÁ (com três sentidos: "para cima", ou "de novo" ou "para trás") e ÍSTÊ-
MI ("estar de pé"). De acordo com as três vozes, teríamos os seguintes sentidos:
a) voz ativa (transitivo) - "levantar alguém", "elevá-lo"; ou "tornar a levantar”, ou então "fazer al-
guém voltar";

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C. TORRES PASTORINO
b) voz média - "levantar-se" (do lugar em que se estava sentado ou deitado, sem se cogitar se se esta-
va desperto ou adormecido), ou "tornar a ficar de pé”, ou "regressar” ao lugar de onde se viera;
c) voz passiva - "ser levantado por alguém", ou "ser posto de novo em pé", ou "ser mandado embora
de volta".
Esse verbo, portanto, apresenta maior elasticidade de sentido que o anterior, podendo, inclusive, ser
interpretado como "ressuscitar"; com efeito, não só a ressurreição pode ser compreendida um "desper-
tar do sono da morte" (egeírô, que é o mais exato tecnicamente), como também pode ser entendida
como um "levantar-se" de onde se estava deitado (o caixão); ou como um "tornar a ficar de pé”; ou
como um "regressar ao lugar de onde se veio". No sentido de ressuscitar foi usado por Homero ("Ilía-
da", 24, 551), por Ésquiles de Elêusis ("Agamemnon", 1361), por Sófocles ("Electra", 139), etc.
No entanto, esse verbo anístêmi apresenta outro sentido muito importante, e que geralmente é despre-
zado pelos hermeneutas, que procuram esconder as idéias originais dos autores, quando não estão de
acordo com a sua, e isso até em obras "cientificamente" organizadas (Não estamos fazendo acusações
levianas. Para só citar um exemplo moderno, tomemos a obra "Lexique de Platon”, publicada em dois
volumes (1964) pelas edições "Les Belles lettres" (portanto editora crítica, da qual se espera fidelida-
de absoluta ao original). Pois bem, nessa obra, preparada pelo padre Édouard des Places, jesuíta,
não figuram anístêmi, nem egeírô, nem o substantivo anástasis, nem qualquer outra palavra que si-
gnifique "reencarnação" ...), e é o sentido de "reencarnar". Realmente, a reencarnação é um "levantar-
se" para reaparecer na Terra; é um "tornar a ficar de pé", e é sobretudo um "regressar ao lugar de sua
vida anterior". Nesse sentido foi bastante empregado pelos autores gregos. Anotemos, todavia, que
esse não era um verbo especializado nesse sentido, como o é, por exemplo, ensómatóô ou o substanti-
vo paliggenesía. Numerosas vezes é usado, mesmo nos Evangelhos, com a simples acepção de "le-
vantar-se" do lugar em que se estava sentado (cfr. Marc. 3:26; Luc. 10:25; At. 6:9, etc.).
Daí a necessidade de interpretar, pelo contexto, qual o sentido exato em que foi empregado.
Ora, nos textos em estudo, os três sinópticos referem-se à opinião de Herodes com o mesmo verbo
egeírô (que sistematicamente traduzimos por "despertar", seu significado real e etimológico). No en-
tanto, o próprio Lucas que empregou egeírô para exprimir a idéia de "ressurreição", nesse mesmo ver-
sículo 8, para exprimir o "regresso à Terra" de algum dos antigos profetas, muda o verbo, e usa anís-
têmi ... Então, não era a mesma coisa: João "ressuscitara", despertara do sono da morte; mas o antigo
profeta "regressara à Terra", ou seja, em linguagem moderna, "reencarnara". E assim traduzimos, acre-
ditando haver agora justificado nossa tradução afoita.
Para antecipadamente responder à objeção de que não havia esse rigor "literário" nos evangelistas,
queremos chamar a atenção para o verbo usado com referência a Elias. Era crença geral que Elias não
desencarnara, mas fora raptado num carro de fogo (cfr. 2.º Reis, 2:11). Ora, nesse caso especial, não
podia ser empregado egeírô (despertar dentre os mortos), nem anistêmi (reencarnar); e de fato, nenhum
dos dois foi usado por Lucas, e sim um terceiro verbo: epháne, isto é "apareceu".
* * *
A Herodes não ocorria outra explicação mais plausível, em vista dos "poderes" (dynámeis) espirituais
que se manifestavam, e de cujos resultados assombrosos ouvia falar com insistência. Realmente, en-
quanto Jesus permanecera em Cafarnaum e adjacências, sua fama aí ficara adstricta ao pessoal mais
humilde. Mas depois das excursões mais prolongadas, sobretudo após a ação conjunta dos doze emis-
sários que se espalharam por muitas aldeias e cidades, os fatos começaram a atrair a atenção e admira-
ção gerais, tanto mais que, durante sua existência terrena João jamais operara prodígios nem fizera
demonstrações de curas, limitando-se seu ensino a falar e exemplificar.
Os "poderes" exprimem aqui (como em Marc. 5:30, em 1.º Cor. 12:10, 28, 29, em Gál. 3: 5 e em Hebr.
6:5) a faculdade, a força de realizar obras extraordinárias; e não as próprias obras em si mesmas (como
em Marc. 6:2, em At. 2:22; 8:13 e 19:11, em 2.ª Cor. 12:12, em Hebr. 2:4, etc.).
Entretanto, a opinião de Herodes não foi aceita concordemente pelos cortesãos, já que alguns diziam
que Elias reaparecera na Terra, e Jesus havia afirmado o mesmo em relação ao Batista, como lemos em

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Mat. 11: 4 ,3 17:10-13, e em Marc. 9:9-13, garantindo a reencarnação de Elias na pessoa de João Ba-
tista; o mesmo também foi confirmado por Lucas (1:17). Dizem alguns comentaristas ortodoxos (cfr.
Lagrance, "Le Messianisme", cap. 6, pág. 210-213), que essa assertiva de Jesus se prende a uma "saí-
da" do Mestre, para que Seus contemporâneos não Lhe objetassem que Ele não era o Messias, porque
Elias não viera antes! Então Jesus "inventou" isso. Até esse triste papel é atribuído a Jesus, por Seus
"representantes" na Terra, contanto que o pensamento deles não seja "atrapalhado" pelo ensino do
Mestre!
Mas outras vozes fazem-se ouvir: trata-se de um profeta, como tantos já houve em Israel; e mais: "é a
reencarnação de um dos antigos profetas" que teria regressado a seu povo, para reavivar o entusiasmo
religioso. Não obstante essas opiniões, que pretendiam desviar o tetrarca de suas apreensões, Herodes
insiste, amedrontado, em seu ponto de vista: "eu degolei (por "mandei degolar") João, mas ele voltou
do meio dos mortos". ... E procurava conhecer Jesus, para certificar-se da veracidade de seus temores,
com a secreta esperança de que não fosse João ... Mas só conseguiu esse intento por ocasião da conde-
nação de Jesus (cfr. Luc. 23:8).

A atuação de Herodes é típica das personalidades ainda sem o contato íntimo com o Cristo: apavo-
ram-se com as experiências, temem o resultado de seus erros, supõem as mais absurdas coisas, olhan-
do outras criaturas como abantesmas que as assustam. Obra do remorso que lhes estrangula o cons-
ciente e que, sufocado de um lado, surge de outro, como as cabeças da Hidra de Lerna.
A personalidade, que vive presa na materialidade, julgando real apenas o curto período de uma exis-
tência terrena, amedronta-se diante de qualquer ocorrência que lhe pareça comprovar uma sequência
da vida após a cadaverização no túmulo. A voz da consciência fala em silêncio, mas nem por isso dei-
xamos à e ouvi-la, pois é mais forte que os ruídos de que nos possamos cercar externamente para
abafá-la.
Daí a necessidade absoluta de aniquilarmos não a consciência, mas a personalidade, mergulhando
em busca do Cristo Interno que em nós habita. Só assim nos libertaremos do medo. O desconheci-
mento dessa verdade leva a esses paroxismos angustiosos, e como os involuídos só conhecem a perso-
nalidade, esta é temida.
Verificamos que Herodes não teme a realidade, mas aparências: não tem medo da individualidade
eterna (que ele nem sabe existir), mas se apavora diante das personalidades palpáveis e visíveis (úni-
cas que conhece). O temor do tetrarca refere-se a um reaparecimento da personalidade do Batista,
entidade concreta que o aterrorizava. Assim, hoje, o ser imaturo teme a polícia, não o Espírito; tem
medo das enfermidades e da morte, e não das consequências mais remotas de seus erros na existência
seguinte.
Ao lado disso, comprovamos o medo pânico que os involuídos têm, naturalmente, do plano astral: dos
fantasmas, das ameaças de espíritos atrasados, dos "lobisomens", etc., sem experimentarem o menor
receio da Lei de Causalidade, tão rigorosa em seus efeitos, depois que "plantamos" as causas. Escon-
dem-se de um homem para que os não veja praticar más ações, e não se dão conta de que o Cristo
Interno, habitando dentro deles, é permanente e silenciosa testemunha de tudo o que fazem, embora
sozinhos, embora trancados num quarto à noite, embora apenas em pensamento ...
Outro ponto ainda a considerar é que, nesses ambientes, os seres jamais ficam de acordo: cada um
tem sua opinião, que procura fazer prevalecer acima da dos outros. Daí surgem as divergências, as
discussões, as separações, surgindo sérias controvérsias que os tornam até inimigos, levantando-se
perseguições de uns contra outros. Comportamento totalmente diferente ocorre no âmbito das indivi-
dualidades cônscias de si: todos os grandes místicos, de qualquer religião ou seita, do oriente e do
ocidente, dizem a mesma coisa, falam a mesma língua espiritual, qualquer que seja a época de sua
vida terrena, acreditam nas mesmas verdades, unem-se ao mesmo Pai que em todo habita.

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C. TORRES PASTORINO

JESUS É SEGUIDO

Mat. 14: 13-14 Marc. 6:32-34

13. Tendo Jesus ouvido isso, afastou-se dali 32. E foram no barco sozinhos para um lugar
num barco para um lugar deserto, sozinho; deserto.
e quando as multidões o souberam, segui- 33. E os viram partir e muitos os reconhece-
ram-no das cidades, por terra. ram; e correram para lá a pé de todas as ci-
14. E Jesus, ao desembarcar, viu grande multi- dades (e lá chegaram antes deles).
dão, compadeceu-se dela e curou seus en- 34. Ao desembarcar, viu Jesus grande multidão
fermos. e compadeceu-se dela, porque era como
ovelhas sem pastor; e começou a ensinar-
lhes muitas coisas.

Luc. 9: 11 João 6:1-4

11. E ao saber isso, a multidão seguiu-o; e ten- 1. Depois disso, Jesus atravessou o mar da
do-a Jesus acolhido, falou-lhe do reino de Galiléia, que é o de Tiberiades.
Deus, e curava os que tinham necessidade 2. Grande multidão seguia-o, porque tinha
de cura. visto os sinais que operara nos que se acha-
vam enfermos.
3. Jesus subiu ao monte, e ali se sentou com
seus discípulos.
4. E estava próxima a Páscoa, festa dos Ju-
deus.

Duas razões principais levaram Jesus a afastar-se da Galiléia, dominada por Herodes Antipas.
A primeira foi proporcionar aos discípulos, que acabavam de regressar de um giro de pregações e cu-
ras, um pouco de repouso longe das multidões sofredoras e sequiosas de conhecimento (cfr. Marc.
6:30-31 e Luc. 9:10).
A segunda foi discretamente colocar-se fora do alcance do tetrarca, que já ouvira falar Dele (cfr. Mat.
14:1-5; Marc. 6: 14-16; Luc. 9:7-9) e que, segundo Lucas, "procurava conhecê-Lo". Ora, tendo ouvido
falar nessas coisas, e sobretudo no assassinato de João, julgou prudente dirigir-se para o território do
tetrarca Filipe, a leste do lago, rumando para Betsaida- Júlias (Mat. 14:22; Luc. 9:10). Esta razão, po-
rém, não era assim tão importante, pois ao dia seguinte de manhã Jesus regressou a Cafarnaum.
Caladamente embarcou com os discípulos e iniciou a travessia.
Aconteceu, entretanto, que O viram embarcar e observaram o rumo que tomava. Ao verificar para
onde se dirigia, alguns mais entusiasmados resolveram segui-Lo por terra. A distância entre Cafar-
naum e Betsaida- Júlias não chega a 10 km, que portanto podia ser coberta folgadamente por uma e
meia a duas horas (Marcos assinala que alguns "corriam a pé"). E em seu alvoroço alegre iam dando
notícia a todas as pessoas que encontravam pelas aldeias do caminho, e novos contingentes engrossa-

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SABEDORIA DO EVANGELHO

vam a comitiva, de tal forma que, ao desembarcar, Jesus encontrou na praia pequena multidão que O
aguardava.
No barco, não havia pressa: iam descansar. Já haviam começado a conversar a respeito do que ocorrera
a cada um no giro. E assim a viagem transcorria suave e demorada.
Ao ver a massa que se comprimia, frustrando Suas primitivas intenções de repouso, Jesus não de-
monstra nenhum movimento de impaciência, antes: "compadeceu-se ternamente" (esplagchnísthê) e
começou a falar-lhes e a curar os enfermos. Aquela gente humilde, pobre, suarenta, desnorteada, deu-
Lhe a impressão de "um rebanho sem pastor". E Monsenhor Louis Pirot ("La Sainte Bible", Letouzey,
Paris, 1946, vol 9, pág 472) escreve: "Jesus teve piedade dessa multidão; os que deviam esclarecê-la,
padres e doutores da lei, são infiéis à sua missão ou estão abaixo de sua tarefa. Preocupados, na maio-
ria, unicamente nos proventos pecuniários que lhes renda seu sacerdócio, ou prisioneiros das tradições
dos Padres, que deformaram a lei e alteraram o verdadeiro espírito do mosaísmo autêntico, eles são
incapazes de guiar o povo para o Messias prometido que, no entanto, se apresenta em pessoa a Israel".
São palavras não minhas, mas de um Monsenhor católico. Mutatis mutandis ...
Diante desses fatos, Jesus sobe da margem para pequena elevação de terreno (João, vers 3) e ali come-
ça a falar.
As horas passam, e todos permanecem embevecidos, presos a seus lábios "que falavam palavras cheias
de amor" (cfr. Luc. 4: 22). Os enfermos, revigorados na saúde, já podem permanecer ali sem maiores
sofrimentos.

Frequentemente a individualidade sente imperiosa necessidade de recolher-se a um lugar isolado,


levando consigo apenas seus veículos, para dedicar-se à meditação e à prece, para auscultar a "voz
do coração", para responder às dúvidas de seu intelecto, para atender às necessidades de suas emo-
ções ensinando-as a controlar-se, para aliviar as tensões de suas sensações exacerbadas nos embates
da vida.
Mormente após viagens de pregação ou períodos de trabalhos mais intensos (ou após cada período
encarnatório na Terra), aparecem sintomas desagradáveis, agregações fluídicas, cansaço cerebral,
perturbações emocionais; e sair da "multidão" para o isolamento do silêncio e da meditação, em
contato com o Eu Profundo é o remédio eficaz.
No entanto, nem sempre se consegue isso. Quantas e quantas vezes, exaustos e confusos, vamos à pro-
cura de repouso e, em lugar dele, encontramos outra "multidão" à nossa espera, pedindo favores, su-
plicando conselhos, solicitando "passes", expondo-nos dúvidas, jogando-nos em cima seus problemas
... Cabe a nós aprender a lição que nos é aqui ensinada: não aborrecer-nos, nem sequer impacientar-
nos. Olhar sempre os sofredores como "ovelhas sem pastor" e segurar o báculo do serviço, compade-
cendo-nos de todos os que, ainda presos às ilusões do corpo e da matéria, se crêem injustiçados.
Mas a lição tem outro pormenor: o atendimento tem que ser multiface. Em primeiro lugar, o ensina-
mento, para que o conhecimento apague dúvidas; depois a cura dos males; em seguida (ve-lo-emos no
próximo capítulo) o atendimento social. A importância da urgência e da necessidade de cada um dos
passos é ensinada pela ordem em que foi executada pelo Mestre: 1.º O ensino (alimento do espírito); é
o atendimento mais elevado e imprescindível, que se pode dar à humanidade; 2.º a cura das enfermi-
dades (realizada em grande parte pelo conhecimento adquirido com o ensino dado, que desperta a fé
e refaz o equilíbrio); e em 3.º lugar (o último) o atendimento social (alimento do corpo que lhe refo-
cila as forças físicas, para dar-lhe energias, a fim de prosseguir na luta diária.
* * *
Outra interpretação. Nosso Eu ou individualidade jamais deve cansar-se de atender às necessidades
de seus veículos, nem de perdoar seus erros. Por vezes, sabemos que é mais difícil perdoar a si mes-
mo, que fazê-lo aos outros. Apesar de toda imperfeição e incapacidade de nossa personalidade,
aprendamos a suportá-la, ensinando-lhe a evoluir, atendendo-a com amor, sem nervosismos nem an-

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gústias, quando ela se mostra incapaz de atingir o alvo que desejaríamos; demos-lhe o ensino paci-
ente, sem dela exigirmos mais do que possa dar de esforço; alimentemos-lhe a fome de conhecimento
com palavras simples, demonstrando que a evolução é realmente coisa penosa e difícil, carecente de
carinho e ajuda.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

1.ª MULTIPLICAÇÃO DOS PÃES

Mat. 14:15-21 Marc. 6:35-44

15. Tendo chegado a tarde, aproximaram-se 35. E já estando a hora muito adiantada, che-
dele seus discípulos, dizendo: "este lugar é gando-se a ele seus discípulos, disseram:
deserto e a hora está avançada; despede as "este lugar é deserto e já é muito tarde;
multidões para que, indo às aldeias, possam 36. despede-os para que vão aos sítios e às al-
comprar seus alimentos". deias circunvizinhas comprar pão para si,
16. Mas Jesus disse-lhes: "Não precisam ir; pois que têm eles para comer"?
dai-lhes vós de comer". 37. Mas respondendo, disse Jesus: "Dai-lhes
17. Eles disseram-lhe: "Não temos aqui senão vós de comer". E disseram-lhe: 'Deveremos,
cinco pães e dois peixes". então, ir comprar duzentos denários de pão
e dar-lhes de comer"?
18. Disse-lhes ele: "Trazei-mos cá".
38. Mas ele lhes perguntou: "Quantos pães
19. E ordenando à multidão que se reclinasse
tendes? ide ver". Depois de se terem certifi-
sobre a relva, tomou os cinco pães e os dois
cado, responderam: "Cinco pães e dois pei-
peixes e, erguendo os olhos ao céu, deu gra-
xes".
ças e, partindo os pães, entregou-os aos dis-
cípulos, e os discípulos os entregaram à 39. Então ordenou aos discípulos que a todos
multidão. fizessem reclinar em grupos sobre a relva
verde.
20. E todos comeram e se fartaram; e eles apa-
nharam dos fragmentos doze cestos cheios. 40. E sentaram-se em grupos de cem e cinquen-
ta.
21. Ora, os que comeram foram cerca de cinco
mil homens, além de mulheres e crianças. 41. E ele tomou os cinco pães e os dois peixes e,
erguendo os olhos ao céu, deu graças e, par-
tindo os pães, os ia entregando aos discípu-
Luc. 9:12-17 los para eles distribuírem; e repartiu por
todos os dois peixes.

12. O dia começava a declinar e, aproximando- 42. Todos comeram e ficaram satisfeitos.
se de Jesus os doze disseram: "Despede a 43. E recolheram dos fragmentos doze cestos
multidão para que, indo às aldeias e sítios cheios de pão e de peixes.
vizinhos, se hospedem e achem provisões,
44. Ora, os que comeram os pães foram cinco
pois estamos aqui num lugar deserto".
mil homens.
13. Ele, porém, lhes disse: "Dai-lhes vós de co-
mer". Responderam-lhe eles: "Não temos
mais que cinco pães e dois peixes, a não ser João, 6:5-13
que devamos ir comprar comida para todo
esse povo".
5. Então, levantando os olhos e vendo que uma
14. Pois eram quase cinco mil homens. Então grande multidão vinha ter com ele, disse a
disse a seus discípulos: "Fazei-os reclinar-se Filipe: "Onde compraremos pão para que
em turmas de cinquenta cada uma". eles comam"?
15. Assim o fizeram, o mandaram a todos recli- 6. Mas dizia isso para experimentá-lo, pois já

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C. TORRES PASTORINO
nar-se. sabia o que ia fazer.
16. E tomou os cinco pães e os dois peixes e, 7. Respondeu-lhe Filipe: "Duzentos denários
erguendo os olhos ao céu, deu graças e os de pão não lhes bastam para que cada um
partiu; e entregou aos seus discípulos, para receba um pouco".
que os distribuíssem à multidão. 8. Um de seus discípulos, chamado André,
17. Todos comeram e se fartaram; e foram re- irmão de Pedro, disse-lhe:
colhidos doze cestos dos fragmentos que so- 9. "Está aqui um rapazinho que tem cinco
braram. pães de cevada e dois peixinhos, mas que é
isto para tantos"?
10. Disse Jesus: "Fazei que os homens se recli-
nem". Ora, havia naquele lugar muito feno.
Recostaram-se, pois, os homens em número
de cerca de cinco mil.
11. Jesus, então, tomou os pães e, tendo dado
graças, distribuiu-os aos discípulos, e os dis-
cípulos aos que estavam reclinados; e do
mesmo modo os peixinhos, quanto queriam.
12. Depois de saciados, disse Jesus a seus discí-
pulos: "Recolhei os fragmentos que sobra-
ram, para que nada se perca".
13. Assim os recolheram e encheram doze ces-
tos de pedaços dos cinco pães de cevada,
que sobraram aos que haviam comido.

Pelas anotações dos quatro evangelistas, o percurso do barco e a caminhada do povo deve ter ocorrido
na parte da manhã, pois eles anotam que tudo começou quando "a tarde começa a declinar" (cerca de
15 ou 16 horas); que era a “primeira parte da tarde", deduz-se do vers. 23, onde se repete que "a tarde
chegara", isto é, a entrada da noite, depois das 18 horas.
Ao ver Jesus entusiasmado a falar e a multidão pendente de suas palavras de amor, os discípulos resol-
vem "quebrar o encanto", trazendo o Mestre Inefável à realidade da vida material. Chamam Sua aten-
ção sobre a hora e a carência de alimentos naquele local, sugerindo que despeça a turba para que ela
tenha tempo de comprar comida. A essa hora, ainda seria possível encontrar sítios e lojas onde conse-
gui-la.
Mas Jesus os provoca: "dai-lhes vós de comer"! Espanto geral: "a toda aquela gente"?
Segundo João, Jesus volta-se para Filipe, (será porque ele teria nascido nessa Betsaida?) e se informa
"onde seria possível comprar pão". Filipe espanta-se, pois duzentos denários (um denário equivale à
importância atual de um dólar) não bastariam.
O Mestre ordena que verifiquem quantos pães havia. André, irmão de Pedro, diz que "um rapazinho
tem cinco pães de cevada e dois peixinhos”.
Antes de fazer qualquer coisa, Jesus manda que se recostem todos os ouvintes em grupos de 50 e 100,
que se reclinem na "relva verde" (o que indica estarmos na primavera, única época do ano em que
cresce erva verde nessa região). Já por João sabemos que estávamos nas vésperas da Páscoa (abril do
ano 30), a segunda Páscoa da "vida pública" de Jesus. A divisão em grupos facilitou a contagem dos
homens presentes.
Depois Jesus começa a ação. "Levanta os olhos ao céu" (cfr. Marc. 7:34; João 11:41 e 17:1), gesto que
diferia do costume israelita: "a regra de orar é ter os olhos baixos e o coração levantado ao céu", diz
Rabbi Ismael Bar José (cfr. Strack-Billerbeck, o. c. t. 2, pág. 246). A oração prescrita para antes de

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comer-se o pão era: "Louvado sejas Tu, Senhor, nosso Deus, Rei do universo, porque fizeste a terra
produzir o pão". O termo grego eulógêse tem o sentido de "dar graças", "agradecer" (donde vem o nos-
so "elogio") - João usa eucharistêsas, que tem a mesma significação - melhor que benzer ou abençoar.
Depois disso "partiu o pão", ritual comum entre os israelita: o dono da casa sempre procedia à klásis
tou ártou para distribuí-lo, depois da ação de graças, aos convivas ou hóspedes.
Todos comeram e se fartaram. Depois Jesus manda recolher os fragmentos em cestos (grego kophínos,
hebraico quppâh), que todo israelita levava sempre consigo quando fazia qualquer excursão. Lógico
que o povo, tendo saído às pressas, não os tinha; mas os discípulos (exatamente doze) deviam tê-los;
levado.
* * *

OBSERVAÇÕES
1. Quanto à historicidade do fato - É atestado pelos quatro evangelistas e repetido mais tarde uma
segunda vez por Mateus (15:32-39) e Marcos (8:1-10) e faz parte de toda a tradição evangélica e
cristã dos primeiros séculos.
2. Quanto ao número à e pessoas - Parece realmente que reunir cinco mil homens (fora mulheres e
crianças) numa "corrida" por aldeias que podiam ter, cada uma, somente algumas centenas de ha-
bitantes, levando-os a uma planície deserta a cinco ou dez quilômetros, não deve ter sido muito fá-
cil. Cinco mil pessoas é, de fato, uma multidão considerável.
3. Quanto à novidade do fato - Não foi inédito. Lemos em 2.º Reis, 4:42-44, o seguinte: "Um homem
veio de Baal-Shalishah e trouxe ao Homem de Deus (Eliseu) uns pães de primícias, vinte pães de
cevada e trigo novo em seu alforge. Eliseu disse: "Dá ao povo para que coma". Disse-lhe seu servo:
"Que dizes? Hei de eu por isto diante de cem homens"? Porém ele retrucou: "dá ao povo para que
coma, porque assim diz YHWH: comerão e sobrará" . Então lhos pos diante, comeram e ainda so-
brou, conforme a palavra de YHWH".
4. Quanto à possibilidade da realização - São aventadas várias hipóteses, quanto à possibilidade físi-
ca ou natural dessa multiplicação de pães. Naturalmente, certas escolas nem cogitam desse estudo,
pois admitem a prióri o milagre, que jamais podemos aceitar, pelo menos como é ele definido:
"um fato contra as leis da natureza". Se fora dito: "contra as leis que conhecemos", poderíamos
aceitar o "milagre" sem escrúpulos, pois de fato desconhecemos a grande maioria das leis da natu-
reza; e mesmo as que "pretendemos" conhecer, será que as conhecemos realmente? Não serão elas
diferentes do que pensamos? O que é gravidade? Como e por que se dá a "transmutação da maté-
ria" na assimilação do bolo alimentar em nosso organismo? O fato é que nada pode ser feito contra
as leis da natureza, já que estas são a manifestação divina e Deus jamais pode contradizer-se. En-
tretanto, contra as leis "que conhecemos", muita coisa pode ocorrer, que não podemos explicar por
ignorância nossa. Que diria um selvagem ao ver-nos tocar um botão e, só com isso, acender as lu-
zes de um salão? Gritaria "milagre"! Porque esse gesto iria contra tudo o que ele conhecia.
Antes de entrarmos na análise das diversas hipóteses que podemos formular em nossa incapacidade
ignorante, recordemos que Jesus é a encarnação de YHWH, construtor do planeta, como um de seus
arquitetos, e portanto conhecia profundamente as mais minuciosas e precisas leis e todos os segredos
da física e da química, suas combinações e transformações, a desintegração e reintegração dos átomos,
as mutações das moléculas, etc. Com essa base indiscutível e plena de conhecimento, que não poderia
Ele fazer? Passemos agora à análise das suposições que podemos imaginar.

a) hipnotismo (alucinação coletiva) ou ilusionismo - Se fora um fato apenas visto ... Mas acontece
que, depois de saciados, foram recolhidos doze cestos de fragmentos, matéria sólida e palpável.
b) transporte dos pães - O "transporte" consiste numa desmaterialização do objeto no local em que se
encontra; na transferência de suas moléculas astrais pelo espaço até o local desejado, mesmo atra-

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vessando paredes; e na rematerialização das moléculas no local desejado. A possibilidade desse
fato é atestada à saciedade por numerosos casos concretos que se realizam em sessões espíritas que
contam com a presença de um simples médium de “efeitos físicos", por vezes homem cheio de im-
perfeições humanas. Poderia ter sido feito por Jesus, sem necessidade, como nós temos, de câmara-
escura. etc.
c) transmutaçâo da matéria - Já acenamos ao que se passa em nosso organismo: na assimilação ali-
mentar aos tecidos orgânicos. Mas há milhares de outros exemplos: um grão de milho, enterrado
no solo, transmuda a matéria sugada da terra em centenas de outros grão de milho. Assim se dá
com o trigo e com todos os vegetais. Por que não poderia ter sido realizada uma transmutação ins-
tantânea da matéria? Os faquires comuns, na Índia, não fazem que em poucos minutos, com um
simples olhar, uma semente brote e a planta cresça, operação que normalmente levaria trinta dias?
d) pura criação mental pela coagulação de fluidos astrais. A única diferença desse fato, com o que
qualquer um de nós pode realizar, embora no estágio evolutivo atrasadíssimo em que nos encon-
tramos, é a quantidade e a rapidez. No resto, não. "A fé é a substância das coisas esperadas" (Hebr
11:1). Portanto, havendo a substância no plano mental, fácil é condensá-la no plano astral e coa-
gulá-la no plano material. O processo, comprovado pela ciência hodierna, já era conhecido pelo
autor do livro de Job, mais de mil anos antes de Cristo. Aí lemos (10:10): "Derramaste-me (o espí-
rito) no jarro (no ventre materno) como leite, e, como queijo, me coagulaste (o corpo astral)". As-
sim, aproveitando as moléculas existentes na atmosfera, podiam elas ser condensadas e coaguladas
sob forma de pães de cevada ou de peixes. Compreendendo que a energia é uma só, diferenciando-
se a matéria pela constituição atômica (número de prótons, eléctrons, etc , em torno do núcleo) e
pela estrutura molecular, é viável executar (para quem no saiba e possa!) a tarefa de reunir átomos
e moléculas materiais da energia (prana) que se encontra na própria atmosfera, dando-lhes a cons-
tituição atômica e a estrutura molecular desejadas.

5. Quanto à interpretação - Todos os comentadores, desde os mais antigos textos cristãos, interpre-
tam a multiplicação dos pães como uma "figura" ou "símbolo" da Eucaristia, da qual todos podem
alimentar-se, sem que jamais termine, multiplicando-se ilimitadamente.
A Eucaristia (palavra grega que significa "ação de graças") ou comunhão, consiste na ingestão de uma
partícula de pão sem fermento como símbolo da introdução, no corpo espiritual, do Cristo Vivo.
Tal como o ensino é feito atualmente, exagerando-se a parte material (de que a partícula de pão se
"transubstância" na carne real, no sangue verdadeiro, nos ossos físicos de Jesus), o cristão menos elu-
cidado acredita comer o corpo físico Dele (o que não deixa de constituir uma "antropofagia" ...). No
entanto, a realidade da Eucaristia é de uma sublimidade simbólica jamais alcançada em qualquer outra
iniciação terrena.
O pão, sem fermento, de trigo puro (sem mistura) é bem a materialização de um dos elementos divinos
mais belos da natureza. Deus, a Essência Absoluta de todas as coisas, encontra-se dentro de tudo o que
existe. Mas nós O sentimos mais facilmente nas coisas limpas do que nas sujas, muito mais na beleza
de uma flor, do que na podridão do estrume, onde, no entanto, também está. Assim, o cristão evoluído
vê, no pão, a substância divina, e prepara-se espiritualmente para sentir que, quando seu corpo físico
ingere o pão, ele concomitantemente está recebendo em seu espírito a substância divina; e mais: que
assim como seu corpo material assimila a substância do pão a seu organismo, assim seu espírito tam-
bém assimila, a suas energias, a força da substância divina existente no pão.
Tudo isso traz revivificação de energias espirituais, renascimento de fé, ampliação de fervor e, além de
tudo, a noção viva e sensível, de que o Cristo Vivo reside realmente dentro de cada um de nós. Divino
simbolismo que Jesus aconselha que Seus discípulos repitam todas as vezes que se sentarem à mesa,
partindo pão comum, agradecendo-o a Deus e distribuindo-o aos companheiros: "todas as vezes que
comerdes esse pão e beberdes esse vinho", "lembrai-vos de mim" (cfr. 1 Cor. 11:24 e Luc. 22:19); e
mais claro ainda, quando diz, após distribuir o vinho: "fazei isto todas as vezes que bebeis, em minha
recordação" (1 Cor. 11:25).

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Não é, pois, rigorosamente falando, a instituição de uma cerimônia especial para comemorar um fato,
mas uma recordação constante e específica de um fato que deverá repetir-se a cada vez que ingerirmos
pão ou bebermos vinho. Cada vez que nos alimentarmos, recordemos que a Substância última do ali-
mento é a Divindade que nos dá vida. E cada vez que partirmos o pão para dele nos servirmos, assim
como cada vez que saborearmos o vinho, recordaremos aquela ocasião em que Jesus o fez, antes de
exemplificar-nos, com Seu sacrifício, a estrada a seguir em nossa evolução.
Comemoração simples, ao alcance de todos, dos mais pobres (no reino de Deus não há privilegiados),
realizada nas mesas de nossos lares, por mais modestos que sejam, sem necessidade de pompas exter-
nas, de ritos exóticos, de ordenanças inibidoras. O simples partir de nosso pão cotidiano é uma recor-
dação, é magnífico e inigualável simbolismo, que temos que realizar com devoção, em comemoração
sincera e íntima que devemos fazer "em memória” do Mestre Inefável e Amoroso.

Estamos diante de um ensinamento básico, na iniciação revelada por Jesus a seus discípulos, a qual
deverá ser transferida para cada um de nós por meio de nossa individualidade, quando tiver soado a
hora de recebê-la.
Sigamos cuidadosamente os passos da narrativa nos quatro intérpretes do pensamento do Mestre In-
comparável, atentando para os pormenores que parecem, à primeira vista, nada significar.
Vimos, no último capítulo, que a individualidade desejava retirar-se com seus veículos (discípulos)
para uma solidão, a fim de repousar, conversando com eles e ouvindo-os, depois da viagem que havi-
am feito no plano terreno, adquirindo experiências novas. No entanto, ao chegar ao local escolhido,
vê-se cercada "pela multidão" que correra para alcançá-la "na outra margem" ... Representa isso os
órgãos e as células de uma personalidade que desperta para a espiritualidade.
E mais uma vez verificamos que a "graça" descerá a nós proveniente do Deus Interno, mas que, ante-
cipando-a, é indispensável que o livre-arbítrio a preceda, correndo-lhe ao encontro. E não a busca na
Terra, mas no plano espiritual ("na outra margem", isto é, no outro pólo da matéria).
Ao contemplar aquela multidão sedenta de verdade, o Espírito a acolhe com bondade e lhe "ensina"
as grandes e eternas verdades, curando as que estão enfermas e reequilibrando as perturbadas. Os
veículos todos ouvem com tamanha atenção, que esquecem a hora de sua alimentação material que
entretanto, lhes é indispensável ao prosseguimento da vida no planeta denso.
Os “discípulos", que aqui podem significar a parte mais elevada dos veículos e células, isto é, o inte-
lecto, fazem ver ao Espírito - que vive fora do tempo e do espaço - o avanço da hora terrena e a neces-
sidade de reabastecer de fluidos mais sólidos as células e órgãos astrais e físicos. É necessário que
busquem, também, o pão físico.
Começa aqui a lição preciosa. A individualidade afirma que o próprio intelecto pode sustentar os veí-
culos inferiores, sem que eles precisem buscar alhures outro sustento. Há uma admiração, fruto da ig-
norância a respeito dos "poderes mentais". Vem então a pergunta: "quantos pães tendes"?
O pão material é o alimento básico do corpo físico; mas já foi ensinado que havia outro pão, o "pão
sobressubstancial" (cfr. Mat. 6:11, vol. 2.º, página 161), que alimenta ainda mais, porque quem dele
come consegue a "Vida Imanente", que dispensa os cuidados mais grosseiros, prescindindo até mesmo
dos materiais densos para seu sustento.
O intelecto esclarece que só existem CINCO pães e DOIS peixinhos.
Voltamos aqui à numerologia dos arcanos. Recordemos.
CINCO, no plano divino, é a Providência ou Vontade Divina que governa a vida universal, alimen-
tando-a e sustentando-a. No plano humano é a vontade do homem que dirige sua força vital. No plano
da natureza é a força viva de todo o universo. Além de tudo isso, o CINCO é o símbolo do Cristo (o
tetragrama sagrado YHWH) quando mergulhado na carne, formando a representação da mônada
encarnada para sua redenção (o pentagrama humano YH-SH-WH, isto é, com as vogais:
YHESHWAH, Jesus). Tudo isso é representado figurativamente pela estrela de cinco pontas, que jus-

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tamente é o HOMEM (a ponta de cima é a cabeça, as duas laterais. os braços. e as duas inferiores, as
pernas).
Temos, pois, nos CINCO pães, um simbolismo perfeito da Mônada Divina mergulhada na carne, for-
mando O HOMEM. Veremos, mais adiante, no capítulo intitulado "O Pão da Vida", que Jesus explica
tudo em pormenores; esta multiplicação dos pães serviu de experiência prática, para que o, discípulos
pudessem compreender, mais tarde, a explicação teórica.
Resta-nos, ainda, ver os DOIS peixinhos. O arcano DOIS exprime, no plano divino, a segunda mani-
festação da Divindade; no plano humano, a receptividade feminina; no plano da natureza, os planetas
fecundados. Aí temos, pois, a lição superiormente dada para quem possa entendê-la. O intelecto diz
que apenas possui, para dar como alimento à multidão de células, o Ser-Humano vivificado pela Di-
vindade e a receptividade passiva (total) da mulher, que está pronta para acolher em si mesma a se-
mente da Verdade, fazendo-a frutificar em si.
A individualidade diz que basta isto. Nada mais é necessário para a alimentar a multidão, além do ser
disposto a receber o ensino. E em vista de tudo estar preparado, ergue os olhos ao céu (eleva suas
vibrações), parte o pão (separa o espírito da matéria) e, agradecendo a ótima disposição de tudo,
distribui a verdade para todos, cada grupo de células reunido em seu conjunto de órgãos ("em grupos
de cinquenta e cem") e todos comem e se fartam.
Vem então a ordem de recolher os fragmentos que sobraram (as verdades que possam ser reveladas à
grande massa profana) para não se perderem. E ficam repletos DOZE cestos (os DOZE emissários).
Já vimos (Vol 2) a significação do arcano DOZE: a esfera da ação do Messias e a redenção completa
(veja acima nas págs. 66/67). Então, as verdades recolhidas nos DOZE cestos servirão para o ensino
dos "que estão de fora" e que não podem ainda receber a Verdade Total ("muita coisa ainda tenho a
dizer-vos, mas não podeis suportar agora", João, 16:12). Assim é que temos, nos Evangelhos sob o
véu da letra material (os cestos) os fragmentos das verdades que foram reveladas, e que só puderam
chegar até nós em fragmentos e sob formas de alegorias e metáforas, a fim de que a Verdade não fos-
se desvirtuada por quem não na compreendesse.
Anotam os evangelistas que estavam presentes a esse banquete sobre a relva verde (em a natureza
virgem e fecunda a um tempo), CINCO MIL homens; o CINCO conserva a mesma representação sim-
bólica supracitada; o MIL dá idéia do "sem-limite". Na realidade, refere-se isto à humanidade: CIN-
CO é o HOMEM) englobadamente considerada em seu número ilimitado (MIL) de milhares e milha-
res de criaturas, e representada - em cada um de nossos corpos físicos - pelas células organizadas em
órgãos, tal como a humanidade está organizada em raças e nações.
Capítulo importante como vemos, do qual ainda muitos ensinamentos ainda podem ser extraídos, e
que será mais bem compreendido depois de lida e estudada a lição intitulada "O Pão da Vida".

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SABEDORIA DO EVANGELHO

EM ORAÇÃO

Mat. 14:22-23 Marc. 6:45-46 João, 6:14-15

22. Em seguida obrigou os dis- 45. imediatamente obrigou 14. E vendo os homens a de-
cípulos a embarcar e passar seus discípulos a embarcar monstração que Jesus fize-
primeiro do que ele para o e passar adiante, para o ou- ra, disseram: "Este é ver-
outro lado, enquanto ele tro lado, para Betsaida, en- dadeiramente o profeta que
despedia o povo. quanto ele despedia a mul- vem ao mundo".
tidão.
23. Tendo despedido o povo, 15. Percebendo Jesus que eles
subiu sozinho ao monte 46. E tendo-se separado dela, estavam para vir apanhá-
para orar. E à noitinha foi ao monte para orar. lo, a fim de fazê-lo rei, reti-
achava-se ali só. rou-se novamente para o
monte, ele só.

Aqui encontramos uma expressão estranha, repetida nos dois sinópticos: Jesus obrigou (énágkase) os
discípulos" ... Por que haveria necessidade de obrigá-los, a eles que parecem ter sido sempre dóceis e
obedíentes? Parece que a causa é revelada por João. Vejamos:
Com a maravilhosa demonstração de poder (tò sémeion) que foi a multipilcação dos pães e peixes, a
massa popular composta exatamente de agricultores e pescadores entreviu um paraíso na Terra: não
haveria mais necessidade do duro labor nos campos na plantação e na colheita sempre duvidosa! Não
mais as noites frias e chuvosas no lago à procura de peixe! Ali estava quem poderia fornecer para sem-
pre ao povo pão e peixe sem trabalho! era só fazê-Lo “rei"! Moisés não alimentara os israelitas no de-
serto, anos a fio, com pão caído do céu todas as manhãs (cfr. Êx. 16:4. 8, 12-15)? Ora, o próprio Moi-
sés predissera (Deut. 18:15) que surgiria em Israel um profeta com os mesmos poderes que ele. Não
seria um simples profeta (cfr. João, 6:16 e 9:17), mas “o" profeta, “semelhante a Moisés", o qual, se-
gundo os fariseus (cfr. João 1:21) não coincidiria com a pessoa do Messias. Mas, para o povo, essas
distinções eram supérfluas. Então, ali estava "o" profeta, igual a Moisés, e que daria pão e peixes em
abundância. Por que não fazê-Lo imediatamente "rei"?
Ora, isso constituiria uma subversão total da missão puramente espiritual de Jesus ("o meu reino não é
deste mundo", João, 18:36). Mas, além disso, seria precipitar a perseguição de Herodes, que não su-
portaria um concorrente. E Jesus terminaria, mais cedo do que devia, como os outros galileus indóceis
em suas pretensões messiânicas (cfr. Josefo, Ant. Jud. 17. 9, 3) e que foram massacrados por ordem de
Pilatos (cfr. Luc. 13:2).
Era indispensável obviar a essa dificuldade com rapidez e energia. Talvez os próprios discípulos, atô-
nitos com a multiplicação de pães e peixes (tanto que mais tarde não na haviam ainda compreendido
(cfr. Marc. 6:52), talvez eles também se tivessem entusiasmado com a idéia de fazê-Lo "rei" ... pois
ainda não haviam penetrado profundamente no sentido espiritual da missão de Jesus.
Dai Jesus dizer-lhes que “fossem para a outra margem", a cuja sugestão quiçá tivessem reagido, já in-
fluenciados pelo desejo de colocá-Lo no “lugar merecido"; e isso forçou Jesus a constrangê-los com
uma ordem taxativa e firme, que os evangelistas traduziram pelo verbo "obrigar": eles foram contra a
vontade.
Foram, para onde? Estavam no território de Betsaida- Júlias, na margem oriental. Diz Mateus: "para a
outra margem", que Marcos repete, acrescentando: "para Betsaida”. Haveria outra Betsaida na margem

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ocidental do lago? Essa questão é ardorosamente discutida pelos comentadores, dividindo-se em dois
campos:
1) os que negam a existência, interpretam prós Bethsaidan como “na região fronteiriça a Betsaida",
sentido possível da preposição grega prós (cfr Tucídides, História, 2,55: hê prós Pelopponéson, "a
qual é fronteira ao Peloponeso). Assim traduzem Lagrange João Marta, Abel, Pirot, etc. E pergun-
tam eles: se os discípulos iam para Betsaida, por que diz João "que se dirigiam para Cafarnaum
(João, 6:17) onde desembarcaram (João, 6:21)? E por que Mateus (14:34) e Marcos (6:53) dizem
que desembarcaram em Genesaré?
2) os que afirmam a existência de outra Betsaida (van Kasteren, Patrizzi, Knabenbauer, Fillion.
Meistermann. Rose, Buzy e outros), trazem os seguintes argumentos:
a) a existência de Bethsaida-Júlias (hoje el-Tell) a dois km ao norte de el-Aradj, é coisa certa: a cida-
de foi reconstruída pelo tetrarca Filipe, que lhe acrescentou o cognome Júlias em homenagem à fi-
lha de Augusto;
b) João, no início de seu Evangelho (1:44) diz que o discípulo Filipe “era de Betsaida”; mais tarde
(12:21) especifica melhor, que "era de Bétsaida da Galiléia". Ora. Betsaida-Julias ficava na provín-
cia de Gaulanítida, e não na Galiléia. E João devia conhecer bem a região ... não iria confundir du-
as províncias.
c) Neubauer ("La Géographie du Talmud", pág. 225) e Strack-Biller-beck, o. c. pág. 605) citam a
existência de uma localidade, não longe de Cafarnaum, em Ain-Tabgha ou Khan Minyeh (ao norte
do Tell Oreimeh) denominada Saydethah, que eles supõem ser a Beth-Saida do Evangelho, e que
ficava exatamente na Galiléia.
Depois que os discípulos partiram, Jesus convenceu o povo a ir para casa, e Ele mesmo subiu ao monte
para orar sozinho, segundo seu hábito.

Acontece com freqüência que o público que cerca os "pregadores" se entusiasma e quer "homenageá-
los" com posições destacadas, com títulos honrosos, ou convencê-los a arriscar-se em cargos eletivos
na política. Jesus exemplificou que se deve fugir dessas situações com energia e rapidez, "obrigando-
os" a retirar-se "para a outra margem".
No outro sentido mais profundo, verificamos algo mais sério. Quando a individualidade consegue
manifestar-se por intermédio de nossa personalidade, realizando algo mais fora do comum, a perso-
nalidade quase sempre se envaidece e começa a acreditar-se "missionário", um "enviado divino",
certo de que é superior às demais criaturas "vulgares", que é um "privilegiado" com direitos adquiri-
dos e merecimento garantido. Os veículos físicos se exaltam: o intelecto raciocina sobre tudo isso
para cada vez mais convencer-se de sua superioridade, e complacentemente ouve e acredita nas mais
mirabolantes histórias de encarnações passadas grandiosas; as emoções e sensações se comovem e
incham,. e para combater isso, só há um remédio: mandá-los "afastar-se para a outra margem", e
retirar-se para uma região mais elevada (monte) a fim de entrar em contato com a Divindade, por
meio da oração e da meditação.
É mister separar-se de tudo o que é material, para compreender as proporções reais da perspectiva;
entrar no plano das realidades espirituais, para perceber as ilusões terrenas.
Assim em cada fato, em cada episódio do Evangelho, há uma lição preciosa, oportuna e profunda,
exemplifícada pelo Mestre Inolvidável, o Cristo Divino que vive em nossos corações e que se mani-
festou plenamente em Jesus, que soube aniquilar sua personalidade para deixar o Cristo Divino exte-
riorizar-se.

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JESUS ANDA SOBRE A ÁGUA

Mat. 14:24.33 Marc. 6:47-52 João, 6; 16-21

24. E o barco estava agora no 47. À tardinha achava-se o bar- 16. Chegada a tarde, desce-
meio do mar (a muitos está- co no meio do mar, e ele so- ram seus discípulos ao
dios da terra) açoitado pelas zinho em terra. mar,
ondas, porque o vento era 48. E viu-os embaraçados em 17. e, entrando num barco,
contrário. remar, porque o vento lhes atravessaram o mar para
25. À quarta vigília da noite ele era contrário; e pela quarta ir a Cafarmaum. E já se
veio ter com eles, caminhan- vigília da noite foi ter com tornara escuro, e Jesus
do sobre o mar. eles, andando sobre o mar, e ainda não tinha vindo ter
queria passar-lhes adiante. com eles.
26. Os discípulos ao vê-lo a an-
dar sobre o mar ficaram 49. Vendo-o eles, porém, a an- 18. E o mar, ao sofrer grande
aterrorizados e exclamaram: dar sobre o mar, pensaram vento, se agitava.
"é um fantasma', e gritaram que era um fantasma e gri- 19. Tendo remado uns vinte e
de medo. taram, cinco a trinta estádios, vi-
27. Mas Jesus imediatamente 50. porque todos o viram e fica- ram a Jesus andando so-
lhes falou: "Tende coragem, ram aterrorizados. Mas no bre o mar e aproximan-
sou eu, não temais"! mesmo instante falando do-se do barco, e ficaram
com eles, disse: "Tende co- com medo.
28. Respondendo-lhe, disse Pe-
ragem, sou eu, não temais"! 20. Mas ele lhes disse: "sou
dro: "Se és tu, senhor, orde-
na que eu vá a ti por cima 51. E veio a eles no barco e ces- eu, não temais"!
das águas". sou o vento; e eles se enche- 21. Desejavam então recebê-
ram de grande pasmo.
29. E ele disse: "Vem". E saindo lo no barco, e imediata-
Pedro do barco, andou sobre 52. Pois não haviam compreen- mente o barco chegou à
as águas para ir ter com dido a demonstração dos terra para onde iam.
Jesus. pães; ao contrário, o cora-
ção deles estava endurecido.
30. Quando porém sentiu o ven-
to forte, teve medo e, come-
çando a submergir, gritou:
"salva-me, Senhor"!
31. No mesmo instante, esten-
dendo a mão, segurou-o e
disse-lhe: "ó pequena fé, por
que duvidaste"?
32. E entrando ambos no barco,
cessou o vento.
33. Então os que estavam no
barco prostraram-se ante
ele, dizendo: "verdadeira-
mente és um Filho de Deus".

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Pelo texto de João, compreendemos que os discípulos desceram à praia e permaneceram perto do bar-
co, onde ficaram esperançosos de que Jesus viesse alcançá-los. Entretanto, "já se tornara escuro e Ele
não viera". Resolveram, então, partir.
Uma vez embarcados, os discípulos encontram vento contrário bastante forte, o que era comum no
lago (cfr. visto antes) , tanto que não haviam chegado à outra margem "na quarta vigília da noite", isto
é, entre 3 e 6 h da manhã. Após o domínio romano na Palestina, os israelitas passaram a dividir a noite
(de 18 às 6 h) em quatro vigílias (em vez de três como era tradicional entre eles), vigílias essas iguais
no comprimento, sendo mais longas no inverno quando as noites eram maiores, e bem menores no
verão. A primeira (das 18 às 21 h.), a noite; a segunda (das 21 às 24 h), a noite fechada; a terceira (das
24 às 3 h) o cantar do galo; e a quarta ( das 3 às 6 h) a alvorada ou manhã.
Ora, à "noitinha" (opsías), do montículo onde se achava, Jesus já vira os discípulos a lutar contra o
vento; e a travessia, mesmo na parte mais larga do lago (12 km) era feita, no máximo, em 2 a 3 horas.
E ali eles não estavam na parte mais larga. Mas, às 3 ou 4 horas da manhã eles só haviam avançado
"25 a 30 estádios" (segundo João), anotação que parece ter sido introduzida em Mateus posteriormen-
te, pois só aparece em alguns manuscritos ("a muitos estádios da terra"). O estádio media cerca de 185
metros; portanto, eles só se haviam adiantada cerca de 5 km da margem.
Continuava a luta contra o vento, e os discípulos remavam esforçadamente, para alcançarem rápido a
outra margem, talvez imaginando que o Mestre seguiria a pé e lá chegaria antes deles, para esperá-los.
Repentinamente percebem, assustadíssimos, um vulto branco a caminhar calmamente sobre o mar en-
capelado pelo vento ... O que seria? Quem seria? Olham melhor: é uma forma humana ... aproxima-se
... só pode ser um fantasma! E os fantasmas eram considerados de mau agouro (cfr. Sab. 17:4, 14-15;
Josefo, Ant. Jud. 13, 12, 1 e 17, 13, 3-5). O medo foi crescendo, eriçando os cabelos, arrepiando a pele,
e aqueles pescadores rudes, homens fortes e barbados, não tiveram outro remédio senão ... gritar "va-
lentemente"'! ...
Penalizado, mas bem provavelmente a sorrir do susto que pregou em seus discípulos, Jesus os acalma,
recomendando-lhes "coragem" que eles demonstraram evidentemente não possuir ...
João, cujo Evangelho (e Epístolas) foram escritos com a finalidade senão primordial, pelo menos bas-
tante clara, de combater os "docetas" (que afirmavam ser "fluídico" o corpo físico de Jesus que, segun-
do eles não era homem, mas um agênere), não acena à impressão que os discípulos tiveram de que se
tratava de um fantasma, já que o fantasma é, exatamente, um agênere.
Os "docetas", assim cognominados primeiramente por Teodoreto (Epist. 82) e por Hipólio (Philoso-
phúmena, 8, 8-11), que criaram o nome "docetas" do verbo grego dokéo, que significa "parecer",
afirmavam que Jesus não possuía corpo físico de carne, mas sim "corpo fluídico", um "corpo de fan-
tasma". Diziam que tudo o que fizera fora apenas "aparência" e não realidade. Não nascera, nem
crescera, nem comera, nem morrera na cruz. "Pareceu" que houve tudo isso, mas "não houve", era
tudo MENTIRA e FINGIMENTO. A razão em que se baseavam era a crença de que tudo o que é mate-
rial é imperfeito e impuro, pois é obra do "Princípio do Mal", que eles identificavam com o Deus Cri-
ador do Velho Testamento, YHWH, que para eles era Satanás. Como Jesus apresentara o "Princípio
do Bem", o PAI, não podia ter-se submetido ao Princípio do Mal, e portanto, não poderia ter tido cor-
po físico carnal.
O docetismo foi combatido desde o início de seu aparecimento por uma testemunha ocular da vida de
Jesus, por seu "discípulo amado", João Evangelista, que protesta ardentemente contra essas inven-
ções absurdas; vemos a refutação do docílimo em muitos passos do Evangelho de João, mas sobretu-
do em 1:14, e nas Epístolas (Primeira, 2:22; 4:2; 5:6,2.0; e Segunda, vers. 7). Combateram-no ainda
no 1.º século Inácio, nas Epístolas ad Trai., 9 f; ad Smyrn. 2:4; ad Ephes. 7; e Policarpo, ad Phil. 7; e
logo após por Clemente, de Alexandria, Strom., 7 e Teodoreto, Haeret. Fab., 5. Modernamente volta a
pretender insinuar-se entre espiritualistas essa teoria esdrúxulo, que contraria os pontos básicos do
próprio Espiritualismo que só admite um Princípio Criador, o do Bem, e que sabe que a matéria (a
carne) é tão nobre, pura e santa quanto o espírito, pois é apenas a condensação do espírito; e sabe
que todas as criações divinas são perfeitas, inclusive a matéria.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

O velho pescador saltou do barco, sob o olhar horrorizado dos companheiros, sem pesar as consequên-
cias, e lá foi cambaleante, a equilibrar-se sobre os vagalhões ferozes; mas quando, ao chegar já perto
do Mestre Querido, se dá conta do vento violento, fica com medo. Ora, o medo é justamente a falta de
fé, a perda da confiança.. E sem fé, nada é possível construir nem realizar: ele começa a afundar e grita
apavorado por "socorro"! Jesus repreende-o suavemente (mais uma vez O entrevemos a sorrir ...): "ó
pequena fé, por que duvidaste"? E segurou-o pela mão.
Voltaram os dois a caminhar sobre as águas, e os demais discípulos quiseram que Jesus entrasse no
barco, em vez de continuar a caminhar pelo lago até a margem.
Entraram ambos, e o vento cessou. Os discípulos estavam atônitos, sem poder explicar tantas coisas
estranhas que haviam acontecido naquele dia, pois nem sequer tinham compreendido a "multiplicação
dos pães" ali, entre as mãos deles ... Então chegam a uma conclusão irrefutável: "verdadeiramente és
um filho de Deus"!
O texto grego está sem artigo. Não é, pois, uma confissão da Divindade de Jesus, como pretendem
alguns. Temos que compreender a mentalidade e a psicologia dos israelitas, sobretudo naquela época:
rigidamente monoteístas, não podiam jamais cogitar de outro Deus além do único Deus, a quem Jesus
chamava "O PAI", repetindo exaustivamente que era "o único Deus”. Entretanto, eles sabiam que ha-
via os "filhos de mulher" (homens sujeitos ao "kyklos anánke" ou ciclo fatal das encarnações por meio
da mulher) e os "filhos do homem” (criaturas que já se haviam libertado da evolução na etapa huma-
na), mas havia também os "filhos de Deus" (seres excepcionais acima de qualquer classificação que
não fosse a comparação de "ligados à Divindade", os seres (que hoje chamaríamos "avatares") em que
Se manifesta a Divindade, os Cristos ou Buddhas.
Como já se achavam perto da praia, chegaram "logo" à planície de Genesaré (hoje denominada el-
Ghoueir) que mede 6 km de comprimento por 3 de largura, na margem ocidental, exatamente entre
Ain-Tabgha e el-Medjdel (onde devia estar situada a aldeia de Betsaida da Galiléia, bem perto de
Cafarnaum. Daí a aparente contradição dos textos: Betsaida (Marc. 6:45) Genesaré (Mat. 14:34 e
Marc. 6:53) e Cafarnaum (João, 6:17). Referem-se todos eles à mesma região, uma área reduzida, com
pequenas aldeolas e cidades. Uns falam genericamente (Cafarnaum), outros dão maior precisão (Gene-
saré, para dizer que não desembarcaram na cidade de Cafarnaum) mas Jesus quando lhes antecipa o
local de desembarque, dá ainda maior exatidão (Betsaida).

Ocorre, muitas vezes, que a individualidade percebe a luta titânica e inglória dos veículos, no oceano
do mundo, açoitados pelo vento borrascoso das emoções descontroladas. Mas não atende logo, por-
que sabe que é necessário aprender a dominá-las por si mesmos. No momento oportuno, vai aproxi-
mando-se levemente, por cima das vagas altas e violentas, inatingido pelas ondas e pelo furacão,
tranquilo em sua serenidade infinita.
Todos os grandes místicos que obtiveram o Encontro Sublime, a Iluminação da alma, experimentaram
antes a terrível "Noite Escura da Alma" os momentos cruciais das "Trevas Espessas" (cfr. Kempis,
Henrique de Suso, Mestre Eckhart, João da Cruz, Teresa de Ávila, Ruysbroeck, Catarina de Siena,
Ângela de Foligno, Francisco de Sales, Madame Guyon, etc. Ver o excelente estudo de Evelyn Under-
shill, "Mysticism", The Noonday Press, N.Y., 1955, 2.ª parte, cap. 9: "The Dark Night of the Soul",
págs. 380 a 412).
Quando, após esse período de secura espiritual, vemos aproximar-se a figura imaterial do Cristo In-
terno, assustamo-nos horrorizados, temendo seja mais uma ilusão (fantasma) de nossa mente, alguma
criação mental nossa que não venha desviar da meta tão arduamente perseguida. E gritamos apavo-
rados, encolhendo-nos no mais recôndito desvão de nós mesmos.
A felicidade só começa a fazer-se sentir, quando identificamos a voz suave e inconfundível do Amado
de nossa alma.
E quantas vezes atiramo-nos afoitamente aos vagalhões enfurecidos, para mais depressa abraçarmos
o Ser Inefável que é nosso Cristo Interno! Mas, no meio da viagem, quase a alcançar o porto seguro,

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C. TORRES PASTORINO
frequentemente assalta-nos a dúvida, e sentimo-nos submergir mais uma vez, derrubados pela venta-
nia infrene que ulula em torno de nós, apanhados e rodopiados pelas ondas revoltas que nos turbilho-
nam, arrastando-nos ao abismo ...
É quando gritamos novamente por socorro. E a mão, sempre terna, do Amigo Incondicional, se esten-
de, sustentando-nos acima das vagas enraivecidas.
Uma vez firmes e seguros de nossos passos, tendo em nossa mão a mão firme do Cristo, vemos que os
veículos reclamam para si a honra de carregar a Individualidade. Logo que esta penetra em nós mes-
mos, isto é, logo que conseguimos unir-nos a ela que já reside em nós, cessa o vento, o mar se abran-
da, e imediatamente chegamos ao porto de destino aliviados e consolados (Cafarnaum = cidade do
Consolador).
Quantas vezes se repetem essas cenas, e depois de cada uma acreditamo-nos definitivamente imunes
de outros vendavais ... Mas eles voltam, e cada vez com, parece-nos, uma violência maior, mais as-
sustadora ...
Nos momentos do Encontro, ao sentirmo-nos envolvidos pela suavidade da Paz do Cristo, reconhece-
mos que verdadeiramente "Ele é um filho de Deus", ou seja, uma partícula da Divindade que vive em
nós e nos sustenta, sempre Amoroso e Terno, sempre Compassivo e Benevolente.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

EM GENESARÉ

Mat. 14:34-36 Marc. 6:53-56


34. Tendo passado para o outro lado, chegaram 53. E tendo atravessado além, chegaram à terra
à terra de Genesaré. de Genesaré e atracaram.
35. E conhecendo-o os homens daquele lugar, 54. E saindo do barco, imediatamente a conhe-
enviaram a todos os arredores e trouxeram- ceram,
lhe todos os que tinham enfermidades,
55. e correndo por toda aquela circunvizinhan-
36. e lhe rogavam que os deixasse tocar somen- ça, começaram a levar nas macas os que se
te na borla de seu manto; e todos os que to- achavam doentes, para onde ouviam dizer
caram, se curaram. que ele estava.
56. E onde quer que ele entrasse, nas aldeias,
ou nas cidades, ou nos campos, punham os
enfermos nas praças e lhe rogavam que os
deixasse tocar ao menos a borla de seu man-
to; e todos os que o tocaram, se salvaram.

Pelos dois evangelistas sabemos então que Jesus desembarcou na planície de Genesaré, logo ao sul de
Cafarnaum. Já falamos desse local que, segundo Josefo (Bell Jud. 3, 10, 8) era de suma fertilidade,
produzindo flores e frutos o ano inteiro.
Tocando em terra, Jesus toma a estrada que vai a Cafarnaum, e pelo caminho atravessará diversas al-
deias e vilarejos, pequenas cidades e campos cultivados. Anota Marcos que, ao chegar à terra, "logo o
reconheceram". Por essas palavras percebemos que Jesus ainda não estivera nessa região; mas sendo
ela tão próxima a Cafarnaum, muitos de seus moradores já deviam tê-Lo conhecido, ao vê-Lo na cida-
de.
Dessa forma, a notícia espalhou-se, e todos os que tinham enfermos os levaram em macas para as lo-
calidades que, se sabia, Ele atravessaria, e os colocavam quer nas praças, quer em locais amplos, para
que ao passar, os doentes tocassem as borlas de seu manto esvoaçante (Núm. 15:38). E pediam que Ele
lhes permitisse tocar nelas, para conseguir a cura. E obtinham-na. E todos "se salvaram" das enfermi-
dades, dizem as duas testemunhas. Interessante observar, aqui, o sentido do verbo "salvar-se".
Enquanto isso, Jesus continuava o trajeto para seu objetivo, ao mesmo tempo que se afastava de Tibe-
ríades, onde então estava residindo Herodes Antipas. E "por onde Ele passava, ia beneficiando e cu-
rando" (Cfr. Atos, 10:38).

Aqui temos um exemplo da bondade dos seres evoluídos. Jesus podia ter desembarcado diretamente
em Cafarnaum. Mas preferiu aproveitar a oportunidade e descer à terra mais ao sul, a fim de percor-
rer uma região que não visitara antes e, na viagem, distribuir benefícios a todos os enfermos. É um
modo de agir que pode e deve ser imitado por todos os que atingiram o quinto plano evolutivo, do
Serviço. Por onde quer que perambulemos, há sempre numerosas criaturas que necessitam de auxílio,
seja moral ou material, para sua saúde, seu trabalho, seu conforto, sua compreensão das verdades; e
iremos enxugando as lágrimas dos que choram, reajustando os desequilíbrios emocionais, iluminando
as inteligências, numa palavra: beneficiando.

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C. TORRES PASTORINO
Também em relação a seus próprios veículos, há necessidade, vez por outra, de a individualidade
ocupar-se com eles, "percorrendo-os" a fim de verificar suas deficiências e atendê-las. Essa "viagem
de inspeção" é feita com o que costuma chamar-se "exame de consciência", em que passamos em re-
vista nossos atos, nossos pensamentos, nossos desejos, nossas emoções, verificando os pontos fracos a
serem fortificados e os excessos a serem controlados. Reequilibrando o nervosismo, acertando rumos,
firmando resoluções, estaremos beneficiando nossos veículos, para que melhormente cumpram suas
obrigações.
Comum é que vivamos tão absorventemente preocupados com as coisas exteriores, que esquecemos
nossas próprias necessidades íntimas. Aprendamos, pois, a permanecer vigilantes, observando tudo o
que se passa em nós mesmos, a fim de prevenir ou remediar a tempo qualquer dificuldade que surja.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

O TRIBUTO DO TEMPLO
(abril do ano 30)
Mat. 17:24-27
24. Tendo chegado a Cafarnaum, dirigiram-se a Pedro os que cobravam as duas dracmas
e perguntaram: “Vosso Mestre não paga as duas dracmas"?
25. Respondeu-lhes ele: "Paga". E quando Pedro entrou em casa, antecipou-se Jesus, di-
zendo; "Que te parece, Simão: de quem recebem os reis da Terra tributo ou imposto?
de seus filhos ou dos estranhos"?
26. Respondeu Pedro; "Dos estranhos". Jesus disse: "Então os filhos estão isentos ...
27. Mas para que os não escandalizemos, vai ao mar, lança o anzol, e o primeiro peixe
que subir, tira-o; e abrindo-lhe a boca, encontrarás um "státer"; apanha-o e entrega-
lhes por mim e por ti".

Depois de percorrer a planície de Genesaré, proveniente de Betsaida-Júlias, chega finalmente a comiti-


va a Cafarnaum, recolhendo-se cada um a seu lar.
Pouco após a chegada, batem à porta os “cobradores do imposto do Templo”. Jesus residia com Pedro
e é a este, o dono-da-casa, a quem se dirigem os cobradores, perguntando-lhe “se o Mestre não pagava
o imposto de dracmas".
A origem do “imposto do Templo” se prende a Moisés (Êx.30:11-13), quando YHWH ordena que, ao
serem contados os israelitas, de cada um fosse cobrado um tributo de “meio siclo", que correspondia a
vinte gueras. Na época da restauração, Neemias (10:33) baixou a tarifa para um terço de siclo, especi-
ficando ao mesmo tempo a finalidade do imposto: a manutenção do Templo e dos serviços religiosos.
Na época de Jesus, já voltara a ser meio-siclo. O siclo de prata tinha o valor de quatro dólares atuais.
Sua equivalência nas moedas contemporâneas era de quatro denários (moeda romana) e de quatro dra-
cma (moeda grega). Então, o imposto de meio-siclo correspondia a duas dracmas (a que chamavam
didracma). Para duas pessoas, havia necessidade de quatro dracmas, que perfaziam um "státer".
Mateus chama aos coletores desse imposto hoi tò dícrachma lambánontes, isto é, os recebedores de
didracmas.
A coleta começava: em Jerusalém no dia 25 de adar e fora da capital a 15 de adar, que era o nome do
mês que precedia o de nisan, no qual era celebrada a Páscoa. Deveria terminar a coleta e ser recolhido
o resultado até o dia l.º de nisan, na Sala do Tesouro do Templo, para ser usado com as despesas da
Páscoa. Nas regiões mais distantes o resultado da coleta devia ser enviada a Jerusalém até 15 dias antes
de Pentecostes; e as do exterior deviam chegar até 15 dias antes da Festa dos Tabernáculos, quando
afluíam a Jerusalém os israe1itas da Diáspora. O montante era levado pelos próprios peregrinos de
confiança.
Estavam obrigados ao imposto os israelitas maiores de 20 anos, inclusive os levitas, os prosélitos e os
libertos; eram isentos os menores daquela idade, os escravos, as mulheres e os sacerdotes (sobre o que
muito se discutia). Em vista da crescente fama de Jesus como Messias, os cobradores ficam na dúvida
se Ele não pretendia valer-se da isenção, e interrogam Pedro. Observe-se que a casa é apresentada
como moradia de Jesus (tal como em 13:1 e 36), e não mais essencialmente como casa de Pedro,
(como em 9:14).
Por esse pormenor verificamos que estávamos a um mês da Páscoa, o que confirma o afirmado em
João 6:4.

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C. TORRES PASTORINO
Pedro responde aos cobradores, sem hesitar: “Paga”! E ao entrar em casa, Jesus “se antecipa" a Ele,
perguntando de quem recebem imposto os reis, se dos filhos ou dos estranhos. A resposta é óbvia. E
lógica a conclusão de Jesus que conscientemente, se sabia filho de Deus, porque Nele já agia o Cristo
Interno em sua plenitude, e não a personalidade filha da carne.
Não obstante, julga dever ser evitado qualquer mal-entendido, ou, como se diz, “escândalo". E resolve,
para satisfazer ao pagamento, dizer que Pedro chegue até a praia e lance o anzol, avisando-lhe que na
boca do primeiro peixe encontrará um "státer”. Com esse "státer", diz Jesus, seria pago seu tributo e,
num gesto de delicada cortesia para com o amigo, acrescenta: "e o teu".
Pergunta-se: 1.º) como teria sido obtido que essa moeda estivesse na boca de um peixe; 2.º) como teria
Jesus tido conhecimento de que lá havia uma moeda; e 3.º) como sabia que esse seria o primeiro peixe
a morder a isca lançada por Pedro.
Logicamente, não estamos em condições de dar resposta certa e definitiva, com cabal garantia do que
houve realmente. Apenas poderemos formular hipóteses. E a única que nos parece viáve1 e aceitável, é
a de que não havia lá nenhuma moeda: mas Jesus, por meio dos espíritos que o rodeavam "e o servi-
am” (Mat. 4:11), providenciou para que, na boca do primeiro peixe que mordesse a isca lançada por
Pedro, fosse materializada (ou para lá "transportada") a moeda. O "transporte" é coisa que pode ser
realizada, desde que haja capacidade por parte do agente.

Outra lição para todos os espiritualistas. De modo geral, ao atingir certo grau evolutivo que julgam
ter, os espiritualistas começam a sentir desapego das coisas materiais e procuram evitar quaisquer
pagamentos. Acham que tudo merecem "de graça", pois estão isentos das obrigações terrenas. Real-
mente a sensação é justa. Mas para que e por que, ensina o Mestre, escandalizar e suscitar aborreci-
mentos? Quem está na Terra, utilizando o corpo físico-denso cujas células todas são tiradas do mate-
rial do planeta, e servindo-se diariamente das coisas que o cercam, deve também contribuir para o
aprimoramento e a melhoria física do ambiente em que vivem eles mesmos e os outros irmãos seus.
Seres evoluídos não são apenas os Santos e Místicos, nem somente os Gênios e Artistas: também os
inventores, os construtores, os industriais, os comerciantes, todos enfim que colaboram no progresso
do planeta para conforto e beleza da casa que o Pai fornece gratuitamente para nossa habitação tem-
porária, todos esses são colaboradores valiosos da Obra do Pai, missionários do Alto. Como seria
triste e difícil a Terra sem eles! Que desequilíbrio terrível se verificaria, se os Espíritos atualmente
muito evoluídos, tivessem que habitar um planeta ainda caótico e selvagem, como era este na era
quaternária! O conforto material e o progresso físico também ajudam a evoluir, proporcionando sa-
tisfação espiritual e ambiente mental para aquisição de cultura.
Por isso devemos sujeitar-nos aos impostos que nos são solicitados pelas autoridades, a fim de, por
esse meio, compensar a hospedagem que recebem nossos corpos durante nossa estada gratuita neste
imenso e belíssimo albergue que o Pai colocou à nossa disposição.
Mas há outro ponto de vista. É a relação existente entre a individualidade e os corpos físicos. Muitas
vezes a personalidade pede "pagamento" de tributos ao Espírito. São horas de sono para refazimento
das energias dos órgãos; são distrações para repouso dos neurônios cerebrais; são passeios nas
montanhas e no mar para revigorar o sangue com oxigênio novo e puro; é a alimentação para sus-
tentar as células; são períodos de lassidão para contrabalançar as distensões musculares; são enfim
tantas pequenas exigências de nossos veículos, que PRECISAM ser atendidas. Tudo isso pode ser
comparado ao "imposto do Templo", já que, na realidade, "nosso corpo é o templo de Deus vivo" (2
Cor.6:16) e como tal tem que ser bem cuidado. É o veículo que tomamos ao nascer e que terá que le-
var-nos ao termo da viagem sem acidentes provocados por nosso descuido. Muito viríamos a sofrer se
perdêssemos o veículo no meio da viagem por culpa nossa: o que faltasse da estrada teria que ser
feito a pé!

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SABEDORIA DO EVANGELHO

O PÃO DA VIDA – PARTE I - O CENÁRIO


João, 6:22-25
22. No dia seguinte, a multidão que permanecera no outro lado do mar, viu que ali não
havia senão um barquinho, e que Jesus não entrara nele com seus discípulos, mas que
estes tinham partido sós.
23. Chegaram, todavia, outros barquinhos de Tiberíades, perto do lugar em que tinham
comido o pão, depois de o Senhor haver dado graças.
24. Quando, pois, a multidão viu que Jesus não estava ali, nem seus discípulos, entraram
nesses barcos e foram a Cafarnaum, à procura de Jesus.
25. E, tendo-o encontrado no outro lado do mar, perguntaram-lhes: "Rabbi, quando che-
gaste aqui"?

Figura “O PÃO DA VIDA”

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C. TORRES PASTORINO
Começa aqui a lição teórica que Jesus dá, após a lição prática da multiplicação dos pães. Dividimo-la
em cinco partes: 1) O cenário; 2) a motivação; 3) a via contemplativa: 4) a via unitiva; 5) o desfecho
prático.
Os três primeiros versículos deste longo trecho de João, que se segue imediatamente à multiplicação de
pães e de peixes, são um tanto confusos estilisticamente. Mas uma vez explicados o sentido torna-se
claro.
A multidão que acorrera a Betsaida-Júlias e vira o extraordinário fato, e que ainda se achava insisten-
temente do outro lado do mar, tinha observado que só havia na praia um barco. Observara além disso
que os discípulos haviam regressado nesse barco sozinhos. Portanto Jesus lá ficara, sem a menor dúvi-
da. E eles, uma minoria entusiástica, continuaram esperando por Ele e procurando-O, até o dia se-
guinte.
No entanto, nesse segundo dia haviam chegado a Betsaida-Júlias, provenientes de Tiberíades, outros
barcos. Esses barcos que lá chegaram no dia seguinte, foram aproveitados para a travessia por aqueles
que lá haviam ficado, e que já tinham desistido de encontrar Jesus naquelas bandas. Evidentemente,
não eram os cinco mil: apenas alguns, os mais entusiastas.
Uma observação a ser feita é que muito dificilmente os barcos pernoitavam no lado oriental do lago,
por causa do perigo que correriam de serem lançados e de se arrebentarem contra a margem, pelos
ventos violentos. que tinham sempre a direção oeste-leste.
Quando chegam a Cafarnaum, ficam estupefactos: lá estava Jesus! Como regressara? É o que eles não
compreendem; e então, no invés de perguntar “como", indagam “quando" lá chegou ...
Estava naturalmente armado o cenário para a aula teórica que ia desenrolar-se: lá se achavam os doze,
mais os discípulos que costumavam acompanhá-Lo de perto, e lá acabavam de chegar os mais sequio-
sos ouvintes, que haviam aproveitado da multiplicação dos pães, e que não tinham desistido de ir em
busca de mais alguma coisa, após o esforço penoso de uma noite passada no deserto à sua procura, e
de uma travessia em busca do Taumaturgo.
Era de presumir-se que todos estivessem amadurecidos para ouvir as grandes verdades: assim o de-
monstravam exteriormente, que mereciam um ensinamento de sabedoria acima do plano vulgar; Jesus
resolveu dá-lo, para ver se algum deles chegava a percebê-lo. No final, mais uma vez se decepcionará.
Que podemos nós esperar? Resultados melhores do que os que obteve Jesus? Daí a sabedoria oriental
ensinar que se deve agir sem cogitar dos frutos da ação: "seja teu interesse apenas na ação, jamais em
seus resultados; não seja o resultado o teu móvel" (Bhagavad Gita, 2:47); ainda: "Firme na yoga, rea-
liza tuas ações abandonando o apego, ó Arjuna, sendo indiferente ao êxito ou fracasso; a yoga é defi-
nida indiferença" (Ib, 2:48); e mais: Livre de apego, não falando de si mesmo, cheio de resolução e
energia, imutável no êxito e no fracasso, quem assim age é chamado sattvika (bondoso)" (Ib. 18:26).

Muitas vezes essas circunstâncias se repetem no mundo hodierno, quando o pregador começa a reve-
lar capacidade para ensinar certas verdades. Um grupo cada vez mais numeroso vem cercá-lo, mani-
festando-se ansioso na busca dos conhecimentos, mas realmente querendo novidades e acepipes exóti-
cos para seu paladar ávido de novos sabores.
O fenômeno que então ocorre é sempre identico: todos querem, todos buscam, todos pedem, todos
reclamam, todos exigem tudo dele. E o pregador encontra-se num bívio crucial: ou a) atende à multi-
dão, que crescerá permanentemente e a quantidade resultará em prejuízo da qualidade, pois o ensino
terá que baixar de nível para atender ao grande número," ou b) o pregador manterá o nível elevado
de seu ensino, e verá seus ouvintes se distanciarem “escandalizados", por não poderem perceber a
Verdade.
Aves ainda implumes, não podem acompanhar os altaneiros vãos daqueles que já singram as grandes
altitudes. Tentam, então, criticar o pregador, atribuindo-lhe todos os defeitos possíveis, para descul-

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SABEDORIA DO EVANGELHO

par-se da própria apostasia. Não querem confessar sua incapacidade de penetrar os mistérios da
Vida, e mascaram essa deliciência, procurando rebaixar o pregador.
Outros envidam todos os esforços para desviá-lo de seu rumo, sob a alegação de que ele deve "con-
quistar multidões", deve "atender a todos, porque isso é que é caridade"; deve, como obrigação bási-
ca, descer de seu nível para "salvar o maior número de almas" ... São razões tentadoras que, em mui-
tos casos, impressionam o pregador e o fazem ceder e tornar-se um "repetidor banal" de generalida-
des, paralisando sua própria evolução. Isto porque, não sentindo necessidade urgente de penetrar os
"segredos do Reino", de viver em meditação profunda para descobrir novas vias, mas bastando-lhe
soltar em qualquer canto as mesmas migalhas em palavras bonitas, ele se deixa levar pelo comodismo
e pela falta de estímulo e estaciona, nivelando-se aos ouvintes, ao invés de elevá-los à altitude de seu
conhecimento espiritual.
Não foi esse o exemplo dado por Jesus. Aos que desejavam segui-Lo e O buscavam ansiosos, disse a
VERDADE, e deixou, embora triste, que se afastassem os imaturos; permitiu que os próprios discípu-
los se escandalizassem e o abandonassem, mas não traiu o ensino; e ainda indagou de Seus próprios
escolhidos para Emissários especiais, se também não queriam retirar-se. Temos a impressão de que o
Mestre estava disposto a perder todos os seguidores, mas não concordava em baixar o nível da aula
que devia dar, porque especialmente para isso viera dos altos planos ("do céu"). As verdades comuns
já tinham sido ditas por numerosos outros Enviados do Pai, por criaturas de grande elevação moral e
espiritual; a Ele cabia ensinar o curso superior, e Ele o fez, mesmo com o risco de ficar falando sozi-
nho.
Daí deduzimos a lição. Se muitos há que distribuem o "leite às criancinhas" espirituais (cfr. Paulo, 1
Cor. 3:2), são necessários alguns, pelo menos, que, resistindo à tentação de reunir em torno de si
grande número de seguidores que lhes batam palmas, saibam manter-se no plano de profundidade que
possam alimentar com a "carne da sabedoria" aos espíritos adultos, que exigem alimentação mais
sólida e consistente.
Também estes são filhos de Deus, e não podemos, por causa dos alunos incompetentes, prejudicar os
aplicados e inteligentes. Lógico que quanto mais alto é o padrão do ensino, menos pessoas capazes de
assimilá-lo serão encontradas. Quanto mais no alto do cone, menor o diâmetro da circunferência.
Para cinco mil pessoas que comeram os pães multiplicados, houve doze que perceberam a explicação
teórica do fenômeno. A multidão apenas se satisfez na vida material, enquanto os evoluídos cresceram
na vida imanente.
Trazendo para nossa personalidade essa lição, compreendemos que, frequentes vezes esta se mani-
festa ávida de progredir. Mas quando a individualidade a quer levar pelos caminhos árduos da renún-
cia e do desprendimento, encontra terríveis barreiras que resistem. Assim, por exemplo, quando o
Cristo Interno quer cultivar no Espírito o sentimento do AMOR, comprova triste que logo aparecem,
ofuscando esse sentimento, as emoções egoístas que, em vez de dar e distribuir, querem receber e go-
zar sozinhos; em vez de amar a todos, querem ser amados com exclusividade; não admitem amar
"dando-se", mas fazem questão de ser os "únicos", e então amam "vigiando" o ser amado, com o ciú-
me exacerbado pelo medo de perder o domínio e a exclusividade do "amor" que, no fundo não é
AMOR, mas apenas desejo emocional.
Nesses casos, o Cristo Interno não cede em rebaixar sua exigência: apenas isola-se, aguardando mai-
or evolução do Espírito, para então tornar a atraí-lo a Si, na mesma existência ou na encarnação se-
guinte, ou daí a dez, a vinte, a cem ou a mil encarnações. Mas, enquanto o Espírito não amadurecer
através do aprendizado e da experiência, burilado pela dor, não será possível colher seu fruto.

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C. TORRES PASTORINO

O PÃO DA VIDA – PARTE II - MOTIVAÇÃO


João, 6:26-34
26. Respondeu-lhes Jesus e disse: "Em verdade, em verdade vos digo: vós me procurais
não porque vistes demonstrações, mas porque comestes dos pães e vos saciastes.
27. Trabalhai não pelo alimento transitório, mas pelo alimento estável para a vida ima-
nente, que vos dará o filho do homem, pois o Pai o confirmou".
28. Eles lhe perguntaram: "Que faremos para realizar as obras de Deus"?
29. Respondeu Jesus e lhes disse: "Esta é a obra de Deus, que acrediteis naquele que ele
enviou".
30. Perguntaram-lhe então: "Que demonstrações fazes para que as vejamos e acredite-
mos em ti? Que realizas tu?
31. Nossos pais comeram o maná no deserto, como foi escrito: "Deu-lhes a comer o pão
do céu".
32. Replicou-lhes então Jesus: "Em verdade, em verdade vos digo: não foi Moisés que vos
deu o pão do céu: mas meu Pai vos dá o verdadeiro pão do céu,
33. porque o pão de Deus é o que desce do céu e dá vida ao mundo".
34. "Disseram-lhe então: "Senhor, dá-nos sempre esse pão".

A aula teórica que Jesus dá sobre o Pão da Vida, e que constitui uma parte de seu "ensino" (de seu ló-
gos), é uma explicação da aula prático-experimental que foi a multiplicação dos pães e peixes. Trecho
dos mais profundos que o Evangelho nos conservou.
Estudá-lo-emos cuidadosamente, dando os comentários linguísticos primeiro, e a seguir a interpretação
impressa em grifo. Veremos cada versículo separadamente, porque cada palavra é importante.
26. “Respondeu" (apekríthe) é fórmula genérica no sentido de "tomou a palavra" ou "prosseguiu". A
repetição "em verdade, em verdade" traduz a locução hebraica amén amén (transliterada no grego)
e exprime uma espécie de juramento sobre a veracidade do que é afirmado, uma "afirmativa cate-
górica" (ver vol. 1). Traduzimos sêmeia por “demonstrações" (ver vol. 1), que é o sentido real da
palavra: “sinal, prova, demonstração", só lhe sendo atribuído o sentido de “prodígio, milagre" (tra-
dução que lhe é dada sistematicamente nas edições comuns) quando a demonstração é fora do co-
mum, acima do normal. Só não aceitamos essa tradução porque hoje a palavra “milagre” variou de
tal forma de sentido, que passou a significar outra coisa.
27. “Trabalhai" traduz ergázesthe, no sentido de "esforçar-se ou trabalhar com esforço, arduamente".
O "alimento” recebe dois adjetivos opostos: "transitório" (apolluménen, "que perece") e "estável"
(menousan, "que permanece”). São dois particípios presentes com valor adjetivo, "Vida imanente"
é zôê aiônos, que estudamos exaustivamente no vol. 2. "Que vos dá" (presente dídôsin segundo os
mss. aleph e D) repetido no vers. 32. O sentido de “filho do homem" foi estudado no vol. 1. Tradu-
zimos "o Pai confirmou", sentido do verbo esphrágisen, que também pode significar "selar, marcar
com selo" ou "carimbar", depois que se aprova ou confirma o documento.
28/30 "Obra" é a tradução de érgon, que exprime um trabalho realizado, isto é, produzido pelo esforço
da criatura. Daí termos traduzido o verbo ergázomai como "realizar", no sentido de "produzir". O
verbo "confiar. crer , acreditar" é pistéuô, donde o substantivo pístis, "confiança, fé".

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SABEDORIA DO EVANGELHO

31. O verbo "comer" apresenta neste trecho dois sinônimos gregos: esthíô (no qual alguns tempos to-
mam as formas do defectivo phágomai) e que tem o sentido normal de "comer"; e trôgô que é mais
especialmente empregado com o significado de "comer alimentos crus", ou "regalar-se com acepi-
pes"; preferimos, para distinguir em português os dois sinônimos, traduzir o primeiro por "comer"
e o segundo por “saborear". O "maná", palavra hebraica, formado de man'hu, que significa "que é
isto"?, é a denominação dada ao "pão que caiu do céu" no deserto (cfr. Êx. 16:4,8, 12-15). A ex-
pressão "pão do céu" só poderia ser fielmente traduzida por uma perífrase: "pão VINDO do céu",
já que o grego ho ártos ek toú ouranoú dá o ponto de partida (latim em ablativo) e não a qualidade
(do céu = celeste, que seria dado em latim pelo genitivo). É indispensável fixar bem na mente esse
pormenor, para que não haja confusão de sentido: quando se ler "pão do céu", entenda-se sempre
"pão VINDO do céu".
32. "Verdadeiro" aqui é tradução de alêthinón, adjetivo.
33. “Dar vida" é o grego zôén didoús. “Descer do céu" é katabaínô, que se opõe a anabaínô, "subir".
Aqui começa mais precisamente a aula teórica, o “ensino (tòn lógon, vers. 60) de Jesus, a respeito do
Pão da Vida, um dos mais importantes e profundos textos dos Evangelhos. Examinemos atentamente
cada frase, acompanhando o desenvolvimento didático, com todas as suas oportunas repetições escla-
recedoras.
Aproveitando-se da busca ansiosa que Dele fizeram os que se haviam saciado com os pães e peixes,
salienta que era para isso que O procuravam: para ter garantido o sustento sem trabalhar; e não por
causa da demonstração prática que lhes dera, como antecipação da explicação que agora seria dada
de Sua doutrina da unificação da criatura com o Criador.
27. Jesus começa esclarecendo que há duas espécies de alimento: o que refocila temporariamente ape-
nas o corpo perecível, e que portanto é transitório (porque "perece": brôsin apolluménen) e o que sus-
tenta perenemente o espírito, e portanto é estável (porque "permanece": brósin ménousan). Este segun-
do dá vida, não por acréscimo exterior, mas por crescimento interior: é a "Vida Imanente" de união
com o Pai que habita em todos. Os dois alimentos, representados figurativamente pelo pão comum
(que os antigos "comeram" no deserto, mas apesar disso "morreram") e pelo Pão "sobressubstancial"
(Mat. 6:11; ver. vol. 2).
E é este Pão, afirma o Mestre em Sua aula magistral, que nos será dado pelo "filho do homem", isto é,
pela Individualidade já evoluída, e portanto desperta e vigilante, porque a este (filho do homem) o Pai
já "confirmou", isto é, "já lhe colocou Seu Selo" (esphrágisen) com a unificação do Encontro Místico.
Justamente por este segundo alimento estável é que precisamos "trabalhar com esforço", e não pelo
pão comum e transitório, que nutre por algumas horas o corpo perecível.
28. Os ouvintes idagam "que fazer para realizar as obras de Deus". A pergunta que, em português,
parece não condizer com a explicação anterior, tem perfeita consonância no original grego, pois é
repetido o mesmo verbo empregado por Jesus (ergázomai), com seu objeto da mesma raiz (er-
gazômetha tà érga), tanto que a tradução literal é "que faremos para trabalhar os trabalhos de
Deus"?
29. A resposta é simples e pouco exigente: para realizar as obras de Deus, basta confiar (crer) na-
quele que foi enviado à Terra pelo Pai. E deixa entrever que o "Enviado do Pai" é exatamente Ele,
o Cristo, que estava então a falar através da personalidade de Jesus. O Cristo Cósmico, teceira
manifestação divina, o Filho (o Amado) que proveio do Pai, foi enviado à Terra e habita em todos.
Confiando em Sua voz silenciosa no âmago de nosso ser, nós "realizaremos as obras de Deus".
30. Diante dessa afirmativa solene, e sem perceber que não era a personalidade de Jesus que falava,
indagam qual a prova que Ele pode dar, a fim de confirmar Sua missão de Embaixador. Querem
uma "demonstração"; teriam esquecido a maravilhosa comprovação realizada havia menos de
vinte e quatro horas, na multiplicação dos pães e peixes? Eles insistem: "Que realizas" empregan-
do o mesmo verbo ergázomai.

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C. TORRES PASTORINO
31. E prossegue a argumentação dos ouvintes: "Moisés deu a nossos pais o pão vindo do céu, no de-
serto ... está escrito"! ... Mas calam a principal razão, que já fora percebida e veladamente denun-
ciada por Jesus: "o sustento foi dado por Moisés anos a fio, sem que ninguém precisasse "fazer
força” (ergázomai) ... então, que demonstração é essa que fizeste, que apenas distribuis alimento
uma vez"?
32. Jesus protesta quanto à expressão "pão vindo do céu", dizendo que esse, Moisés não havia dado:
esse, o verdadeiro pão vindo do céu (é usado o adjetivo alêthinós em lugar de destaque, no fim da
frase), só o Pai o dá, ninguém mais. Porque "o verdadeiro pão vindo do céu" é a Centelha Divina;
o Cristo Interno ("Eu sou o Pão vivo que desci do céu") e que habita (diríamos com a deliberada
ênfase de Paulo, Col. 2:9) que habita corporalmente em todas as coisas.
33. Não satisfeito ainda, Jesus esclarece mais: "O Pão de Deus (não o humano), esse é o que desce do
céu", e seu efeito é maravilhoso, porque "dá, vida ao mundo". Ora, está bastante claro que nossa
interpretação está correta; não se trata aqui do pão vulgar de trigo (tomado apenas como símbo-
lo), nem mesmo do pão sobressubstancial que alimenta o Espírito; mas de algo mais profundo,
daquilo que realmente DÁ VIDA ao mundo. Se, no mundo, a vida é dada pelo "Pão descido do
céu"; se, no mundo, a vida é dada pela Centelha Divina, que é a substância última de todas as coi-
sas; então podemos corretamente concluir que o "'Pão descido do céu”' é a Centelha Divina, o
Cristo Interno, que provém diretamente do Pai, que nasce de Deus, e portanto "vem do céu”.
Concorda com isso o que ensina Agostinho (Confissões, 10, 28, 39): Cum inhaésero tibi ex omni me ...
VIVA erit vita mea, tota plena de te, ou seja: "Quando eu aderir a ti com todo o meu eu ... minha vida
será VIVA, toda cheia de ti". (Cfr Salmo 23:24: "Eu encho o céu e a Terra"). E, é confirmado por To-
más de Aquino (Summa Theologica, I, q. 8, art. 3, ad primum) Deus dícitur esse in ómmbus PER ES-
SENTIAM: non quidem rerum quasi sit de essentia earum; sed per essentiam SUAM: quia SUBS-
TANTIA SUA adest ómnibus ut causa essendi, ou seja: "diz-se que Deus está em todas as coisas
PELA ESSÊNCIA não, de certo, das coisas, como se fora da essência retas, mas pela Sua essência (de
Deus); porque SUA SUBSTÂNCIA (de Deus) está em todas as coisas como a causa da existência".
Então, nossa conclusão está certa, confirmada por dois dos maiores luminares humanos na interpre-
tação do pensamento evangélico: a VIDA DO MUNDO é o CRISTO CÓSMICO, que é, na realidade, o
PÃO VIVO QUE DESCE DO CÉU, constituindo, por meio da Centelha Divina que habita em todas as
coisas, a VIDA do mundo.
34. Evidentemente os ouvintes hão entenderam o esclarecimento, e repetem o mesmo pedido que fez a
Samaritana (João, 4:18) da "água viva": querem recebê-lo sem esforço, com a mesma inconsciên-
cia com que uma criança pede balas ... Depois de tão elevada exposição, é chocante o pedido:
demonstra a total incompreensão do auditório.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

O PÃO DA VIDA – PARTE III - VIA CONTEMPLATIVA


João, 6: 35-46
35. Falou-lhes Jesus: "Eu sou o Pão da Vida; o que vem a mim, de modo algum terá fome, e o que con-
fia em mim nunca jamais terá sede.
36. Mas eu vos disse que vós até me vistes, e não confiais
37. Todo o que o Pai me dá, virá a mim; e o que vem a mim de modo, algum o lançarei fora
38. porque eu desci do céu, não para fazer a minha vontade, mas a vontade de quem me enviou.
39. E esta é a vontade de quem me enviou: que todo o que ele me deu, eu não o separe dele, mas o ele-
ve na etapa final.
40. Porque esta é a vontade do que me enviou: que todo o que contempla o filho e nele confia, tenha a
vida imanente, e eu o elevarei na etapa final.
41. Os judeus então murmuravam dele, porque dissera:
42. "Eu sou o pão que desci do céu", e perguntavam: "este não é Jesus, o filho de José, cujos pai e mãe
nós conhecemos? Como pois diz isto: "Desci do céu"?
43. Respondeu-lhes Jesus e disse: "Não murmureis uns com os outros”,
44. Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou o não atrair, e eu o elevarei na etapa final.
45. Está escrito nos profetas: "E serão todos instruídos por Deus"; todo o que ouviu do Pai e aprendeu,
vem a mim.
46. Não que alguém tenha visto o Pai, senão aquele que vem de Deus: esse viu o Pai".

35. "Eu sou o pão da vida", original: egô eimi ho árlos tês zôês, repetido no vers. 48.
36. "vós me viste", com o pronome objeto direto, segundo os manuscritos B, L, D, W, theta
37. "Todo o que". O sentido exige que se trate de criaturas humanas, especialmente por causa da conti-
nuação e do andamento do versículo: "Todo o que o Pai me dá virá a mim, e o (aquele que, no
masculino singular, referindo-se pelo sentido a todo o que) vem a mim, não o lançarei fora". Ora,
acontece que a primeira parte, pãn hó, está no acusativo neutro, que deveria ser traduzido por "tudo
o que". O padre Max Zerwick, jesuíta ("Análysis Philológica Novi Testamenti Graeci", Roma,
1960, pág. 223) escreve: "neutro no lugar de masculino, talvez por influência do aramaico onde kol
de, “a totalidade que", não distingue nem o gênero nem o número". A mesma expressão é usada no
vers. 39, também no neutro em lugar do masculino. E encontramos a mesma construção de neutro
pelo masculino em João, 3:6: 5.39; 17:2,24 e 1 João, 5:4.
38. Aqui é dito "eu desci do céu" (katabébêka ek toú ouranqú) com o mesmo verbo empregado no
vers. 33: "o pão de Deus que desce do céu' (ho ártos toú theoú katabainôn ek toú ouranoú). Esse
verbo é repetido nos vers. 42, 50. 51 e 58 deste trecho.
39. A expressão mê apolésô ex autoú é mais fielmente traduzida por "eu não separe dele", em vez de
"eu não perca dele". Assim também allá anastêsô autó (acusativo neutro) "mas o eleve", ou seja, o
levante, o melhore; en têi eschátêi hêmérai, vulgarmente traduzido à letra "no último dia". No en-
tanto, preferimos dar o sentido exato da expressão em linguagem moderna: "na etapa final", "na
última etapa", pois sabemos que a palavra "dia" designava qualquer espaço de tempo (cfr. no Gê-
nese, os "dias" da criação), que nós hoje melhor designamos com a palavra "etapa", "ciclo", etc.
Essa expressão volta nos vers. 40, 44, 54.

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40. "Contemplar" é o sentido mais preciso de theóréó aqui empregado. Não se trata mais do verbo ho-
ráô (ver), empregado no vers. 36. Enquanto este designa a visão física, o primeiro apresenta tam-
bém o sentido de visão intelectual (de união contemplativa com aquilo que é contemplado, que é
objeto de compreensão).
41. Os "judeus", estamos em Cafarnaum; portanto esses israelitas não eram propriamente "judeus" (da
tribo de Judá), mas "galileus", embora obedientes ao judaísmo oficial. "Murmuravam" (egógguzon)
não tem sentido pejorativo, exprimindo mais o murmúrio da surpresa.
42. "Filho de José" - é a única vez que aparece, no Evangelho de João, uma referência ao pai carnal de
Jesus.
44. "Se o Pai o não atrair", traduz eán mê ho pátêr helkusêi autón. O verbo hélkô (cfr. latim veho) ex-
prime mais propriamente "puxar arrastando", para si um objeto pesado.
45. "Instruídos por Deus", em grego didáktoi theoú, particípio passado com seu agente da passiva em
genitivo; "todo o que ouviu (particípio aoristo de akoúô) e aprendeu" (particípio aoristo 2.º de
manthánô) exprimem uma ação atemporal. O texto citado é do profeta Isaías, 54: 13.
46. O versículo diz, em última análise: só quem vem de Deus é que pode "ver" o Pai.

35. O Mestre não se preocupa, em absoluto, em responder às palavra dos ouvintes. A exposição,
aprofundando cada vez mais o tema, prossegue numa lição que, se não for aproveitada pelos pre-
sentes, se-lo-á pelos futuros.
Neste ponto, a personalidade humana de Jesus desaparece, aniquila-se: quem toma a palavra através
da boca de Jesus é o CRISTO CÓSMICO, que por essa personalidade podia manifestar-se em sua
plenitude ("porque Nele habita corporalmente toda a plenitude da Divindade" , Col. 2:9), já que a
personalidade, o Espírito de Jesus, se anulara totalmente pela humildade ("pois Jesus, subsistindo em
forma de Deus, não julgou usurpação ser como Deus, mas esvaziou-se, tendo tomado a aparência de
escravo, tornando-se semelhante aos homens e achando-se na condição de homem; humilhou-se, tor-
nando-se obediente até a morte, morte de Cruz", Filip. 2:6-8).
Quando o Cristo Cósmico começa a falar através de Jesus, o tom da aula assume maior profundidade,
as verdades tornam-se incisivas, "fala como quem tem autoridade" (Mat. 7:29), e o discurso passa a
ser feito na primeira pessoa: "EU SOU o Pão da Vida". Abramos os ouvidos de nosso coração para
aprender a maravilhosa lição que nos é dada diretamente pelo CRISTO, que também em nós habita;
mas estamos ainda tão retardados em nossa evolução, que queremos que Seus ensinamentos passem
pelo nosso intelecto, e com isso distorcemos Seu ensino. Aproveitemos, então, ao máximo, o que Ele
nos diz através de Jesus. EU SOU o Pão da Vida: era a Substância Divina, que existe em todas as
coisas, mas que, encontrando um intérprete à altura, podia manifestar-se através Dele, exteriorizan-
do-se e revelando-se às personalidades múltiplas ali presentes.
O eco de Sua Voz sublime deveria ressoar em todos, no auditório, como em nós deve ecoar, porque o
Cristo Cósmico é o mesmo, é UM SÓ, que em todos e em cada um habita com Sua plenitude ("Há um
só Espírito, uma só carne, um só Deus e Pai", Ef. 4:4-5) e CRISTO está todo inteiro em cada um de
nós (sicut ánima est tota in toto córpore et tota in quálibet parte córporis, (Agostinho, De Trinitate, 6:6)
ita Deus TOTUS est in ómnibus et IN SÍNGULIS, (Summa Theológica, I, q. 8, art. 2, ad tertium), ou
seja: "Assim como a alma está TODA em todo o corpo e em cada parte do corpo, assim Deus TODO
está em TODOS e EM CADA UM").
Diz o Cristo: "Eu sou o Pão da Vida", isto é, o sustento da vida, a base da vida, a Centelha da Vida, a
substância da vida. E acrescenta "quem vem a mim (quem se liga a mim, ao Cristo Cósmico) jamais
voltará a ter fome”, porque estará saciado para sempre; e "todo aquele que confia em mim, jamais
terá sede". Realmente, uma vez "encontrada a pérola de grande valor", ou "descoberto o tesouro en-
terrado" nunca mais a criatura buscará ansiosamente (com fome a sede) as "comidas e bebidas" da

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SABEDORIA DO EVANGELHO

matéria, os prazeres, a glória, a comodidade, e tantas outras vacuidades que só satisfazem aos senti-
dos e às personalidades, mas são todos transitórios e perecíveis.
36. Aparece a seguir uma frase que parece interromper a sequência da lição, e que muitos intérpretes
comentam como um parênteses. No entanto, compreendêmo-la como mais uma evidência, dirigida
àqueles Espíritos que já perceberam alguma coisa da Realidade Espiritual, aos que já tinham co-
nhecimento desse ensino, embora ainda não confiem, na prática, plenamente; e diante de qualquer
atropelo da vida, se emocionam, perturbam, descontrolam e preocupam. Diz o Cristo: "mas eu vos
disse que até me vistes, e não confiais em mim": ou seja, até mesmo tendo tido rápidos Encontros,
percepções da Grande Presença, não obstante ainda não confiam; mesmo depois de alguns "mer-
gulhos" na Consciência Cósmica, assim mesmo ainda temem diante das contingências humanas ...
Falta de confiança em Cristo que em nós habita!
37. Depois, amplia mais a visão, explicando porque temos todos que unir-nos ao Cristo: pertencemos
a Ele. E diz, esclarecendo a origem dessa posse, para que não pairem dúvidas: "todo o que o Pai
me dá, vem a mim".
Eis a razão: o Pai nos doou ao Cristo; ou melhor, o Pai (o AMANTE) tornou-se o Filho (o AMADO, o
Cristo) e ambos são um só ("Eu e o Pai somos um", João, 10:30) e "tudo quanto o Pai tem, pertence
ao Cristo" (cfr. João, 16:15). Com efeito, sendo o Cristo a própria substância mais íntima de todas as
coisas, possui tudo o que existe, já que as formas externas apenas revestem a substância íntima; e
então tudo o que existe irá fatalmente a Ele no final da evolução. E todos os que a Ele forem, buscan-
do-O no âmago de seus corações, impulsionados pelo Pai (ou "atraídos" ou "arrastados" pelo Pai),
esses jamais serão rejeitados pelo Cristo; todos os que O procuram, serão por Ele acolhidos carinho-
samente. Todos os que, por qualquer meio, Nele confiarem com ardor e se lançarem no "mergulho
interno", serão atendidos, sem exceção: a ninguém o Cristo rejeitará, ninguém ficará decepcionado,
desde que se voltem para Ele. A questão é usar a técnica correta e os meios certos.
38. E isso porque o Cristo "desceu do céu", ou seja, baixou suas vibrações do Estado de Luz Incriada
(Espírito Santo, Brahma) ao plano do SOM (Verbo, Pai) e a seguir baixou mais ao plano das vi-
brações individuadas (Mônadas) e desse plano baixou mais ao estado de energia, e daí desceu
mais ainda sua frequência ao estado da matéria densa; tudo isso, não para realizar a Sua vontade
(do Cristo, do Filho, do Amado, terceiro aspecto da Divindade), mas para obedecer à vontade do
Verbo Criador, o Pai, o segundo aspecto trinitário, o SOM da Luz Incriada que é o Deus Único e
absoluto, o Foco de Luz inextinguível, que é o Amor.
O AMOR é o absoluto (LUZ), que se manifesta em SOM no AMANTE, o Pai (também chamado Ver-
bo ou Lagos, por ser SOM), o qual quis manifestar-se para produzir o objeto de Seu Amor, o AMA-
DO, que é o Filho ou Cristo Cósmico, terceiro aspecto divino. O Cristo Cósmico espalhou-se e multi-
plicou-se, sem dividir-se, individualizando-se nas coisas criadas. Então Este, o Cristo, não desceu "do
céu", de Suas altíssimas vibrações, senão para fazer a vontade do Amante, do Pai.
39. Mas qual será a vontade do Pai, desse Amante, desse Verbo (SOM ou Palavra)? O Cristo a revela
claramente: "A vontade de Quem me enviou é que Eu (o Cristo) não separe Dele (do Pai) nenhum
daqueles que me foram lados mas, ao contrário novamente os eleve à mesma vibração primitiva na
etapa final da evolução".
Evidentemente tudo isso devia ser ensinado naquela época e naquele ambiente com palavras e compa-
rações materiais, ao alcance de mentalidades ainda cruas (cfr. João, 16:12); palavras que só poderão
ser plena e profundamente compreendidas "quando vier o Espírito Verdadeiro que nos guiará à Ver-
dade total" (João, 16: 13), ou seja, quando o Espírito contemplar o Pai no Encontro Místico, na Uni-
ficação total com a Centelha Divina que é nosso Eu Profundo.
Esse, então, o sentido geral da evolução, de que está encarregado o Cristo, o Amado: descer até a
matéria ("descer do céu") e, de dentro dela, fazê-la evoluir através dos "reinos" mineral, vegetal, ani-
mal, hominal, até chegar ao "reino dos céus" ou "reino de Deus", que é a perfeição primitiva da Fonte
de onde emergiu, ao Pai que lhe deu origem, ao Som que a produziu, à Luz de que constitui uma Cen-
telha.

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Isto Paulo compreendeu, quando escreveu, narrando a descida da Mônada e Sua subida, sua involu-
ção ao "Anti-Sistema" e a nova ascensão ao "Sistema" (Pietro Ubaldi): "A graça foi concedida a cada
um de nós (a Centelha Divina habita em cada um) segundo a proporção do dom de Cristo (segundo a
própria capacidade de manifestá-Lo). Por isso diz: quando Ele (Cristo) subiu às alturas, levou cativo
o cativeiro (levou consigo o Espírito Individualizado e evoluído, que mantinha cativa a Centelha) e
concedeu dons aos homens (e gratificou-os com imensas e inesgotáveis oportunidades de evoluir).
Ora, continua o Apóstolo, que quer dizer subiu, senão que também havia descido até as regiões inferi-
ores da Terra (ou seja: se o Cristo se elevou às alturas, é sinal de que havia anteriormente descido até
a matéria densa, que constitui a região inferior da Terra)". E então repete, esclarecendo: "Aquele que
desceu é também O MESMO que subiu acima de todos os céus, para encher todas as coisas" (o Cristo
glorificado é a mesma humilde Mônada que percorre todos os degraus evolutivos, e agora, novamente
em Sua plena potência, enche todas as coisas). E essa subida evolutiva de cada Mônada tem justa-
mente esse objetivo: "até que todos (todos, sem exceção) cheguemos à unidade da confiança e do total
conhecimento do Filho de Deus, ao estado de Homem Perfeito, à medida da evolução plena do Cristo"
(Ef. 4:7-10 e 13).
40. E, repetindo didaticamente o mesmo conceito, diz com outras palavras: "esta é a vontade de Quem
me enviou (do Pai, Verbo ou Som), que todo o que contempla o Filho - ou seja, todo o que, pela
contemplação se une ao Filho, (ao Cristo, ao Amado, que é a Centelha divina) - e Nele plenamente
confia (e a Ele totalmente se entrega) esse, quem quer que seja, "terá a Vida Imanente", a Vida
Divina que, qual Fonte inesgotável de Água Viva (cfr. João, 4:14) jorrará de dentro dele perene-
mente como Vida Imanente. E essa criatura que tiver conquistado esse grau evolutivo supremo,
será elevado ao plano espiritual da vibração da Luz, na etapa final do ciclo de sua evolução.
As afirmativas a respeito da VIA CONTEMPLATIVA começa a desenvolver-se, para chegar à exposi-
ção clara da VIA UNITIVA (são termos da Teologia Mística ...) que será esplanada logo a seguir, a
partir do vers. 47. Então, concluindo o arrazoado, temos que a vontade do Pai é que todos (sem exce-
ção) cheguem à fase da contemplação mística, tendendo para a união completa.
41. Novamente, em vez de dizer "galileus", João emprega o gentílico “Judeus", e com razão: sabemos
que "Galiléia" significa o Jardim Fechado em que vivem aqueles que já penetraram a Individuali-
dade; ao passo que "judeus" são os "adoradores de Deus" seres já religiosos, mas que ainda não
compreendem o "mergulho interno", e toda a devoção deles é externa. Realmente, observamos que
a objeção apresentada prende-se à personalidade.
42. Não podem eles entender o Espírito, o Cristo Interno; pois até o próprio Deus, o Absoluto, afir-
mam ser uma "pessoa" ... Confundem o Cristo (individualidade) com a personalidade exterior de
Jesus que eles estão vendo. E perguntam como pode ter essa personalidade "descido do céu", se
eles lhe conhecem o pai e a mãe ... É total a falta de compreensão; absoluta a ausência de pene-
tração da Verdade, tão claramente ensinada.
43. O Cristo não gasta Seu tempo em explicar. Eles não estavam maduros para a lição e o demonstra-
ram cabalmente (vers. 66) logo após a segunda parte da aula, que foi ainda mais profunda (e cho-
cante!) que a primeira. Sempre alguns haveriam de aproveitar (e dos doze, alguns o compreende-
ram) e aquela oportunidade não seria perdida. Limita-se, então, nosso único Mestre (cfr. Mat.
23:10) a recomendar: "não murmureis entre vós"!
44. E prossegue no mesmo tom, ainda mais ampliando o ensino sobre a Via Contemplativa: "Só pode
vir a mim (ao Cristo Interno que falava pela toca de Jesus) quem for atraído (ou "arrastado") pelo
Pai”. E a conclusão é a mesma: "eu o elevarei na etapa final".
A respeito dessa "atração" que o Pai exerce, atração do Amante que atrai a Si todos os Amados, de
dentro de cada um, arrastando-os a evoluir, Agostinho escreveu bela explicação, demonstrando que
não se trata de uma atração "forçada", mas de um "arrastar de amor". Eis suas lindas palavras: Noli
te cogitare invítum tráhi: tráhitur ánimus et amore ... Porro si poetae âírere licuit "trahit sua quemque
voluptas" (Verg. Ecl. 2,65), non necéssitas, sed voluptas; non obligatio, sed delectatio; quanto fortius
nos dicere debemus trahi hóminem ad Christum qui delectatur veritate, delectatur beatitudine, delec-

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SABEDORIA DO EVANGELHO

tatur justitia, delectatur sempiterna vita, quod totum Christus est? Videte quómodo trahit Páter: docen-
do delectat, non necessitatem imponendo. Ecce quómodo trahit (Patrol. Latina, vol. 35, col. 1608).
Traduzindo: "Não penses que és arrastado contra a vontade: o espírito é arrastado também por amor
... Por isso pode o poeta escrever "cada um é arrastado por seu prazer"; não a necessidade, mas o
prazer; não a obrigação, mas o deleite: quanto mais devemos dizer que o homem é arrastado para o
Cristo que se deleita na verdade, que se deleita na felicidade, que se deleita na justiça, que se deleita
na vida perene, o que tudo é o Cristo? Observai como o Pai arrasta: deleita ensinando, não impondo
a necessidade. Eis como arrasta".
Realmente, se o primeiro passo tem que ser dado pelo livre-arbítrio da criatura, esta todavia só o
dará quando for atraída ou arrastada pelo desejo, pela vontade, pela ânsia interior de encontrar a
felicidade. E quem desperta na criatura a sede incontrolável de felicidade, inata em todas as criatu-
ras, é precisamente o Pai, o AMANTE, que atrai o AMADO.
Por isso vemos que no início da evolução, sentindo-se atraída por um Amante, a criatura corre atrás
de tudo o que lhe cai sob os sentidos, enganada de objetivo, crente de que a felicidade que a atrai e
arrasta são as riquezas materiais, são os prazeres físicos, são as sensações exóticas, são as emoções
violentas, é a glória dos aplausos, é a cultura que a incha de orgulho, e até é a religião ritual que a
eleva pela autoridade aos olhos das multidões e dos "reis". E após errar séculos e séculos em busca
dessas ilusões, sente em cada uma delas o travo amargo da decepção, do vazio, da solidão ... Até que
um dia, depois de lições práticas e de experiências de dor, percebe que a atração não vem de nada
que esteja foca dela: é de dentro, é do AMANTE que a chama com "gemidos inenarráveis" (cfr. Rom .
8:26) para Si, para a felicidade total: qual maior felicidade, para o Amado, que unificar-se ao Aman-
te, no Amor?
45. Falando a conhecedores das Escrituras, o Cristo aduz como testemunho de autoridade a palavra
de Isaias: "Todos (sem exceção) serão instruídos por Deus". Observemos a profundidade da inter-
pretação que é dada à frase pelo Cristo: Deus está dentro de todos, "com Sua essência" (Tomás de
Aquino), e daí, do mais íntimo de cada ser, instrui a todos através de Suas manifestações: o Pai (o
Amante, o Verbo ou Som) e o Filho (o Amado, o Cristo Interno que, dentro de cada um, constitui o
Eu Profundo de cada criatura). Deus instrui a todos, mostrando o caminho certo, por meio das
experiências bem sucedidas ou fracassadas, até que descubramos por nós mesmos que todos os
caminhos que não levam ao interior, ao Cristo, são falsos, e que o único "caminho da Verdade e
da Vida é o Cristo, e só por Ele chegaremos ao Pai" (cfr. João 14:6). Instruídos todos por Deus,
que pacientemente nos espera a volta como o pai esperou o "filho pródigo" (cfr. Luc. 15:11-32),
acabamos atinando com o rumo verdadeiro que é para dentro de nós mesmos, através do "mer-
gulho" no Infinito e Eterno Cristo, o Amado.
46. No final desta primeira parte da aula, vem um esclarecimento indispensável para esta Via Con-
templativa. Não imaginemos que havemos de ver o Pai com os olhos da matéria, nem mesmo com
os do astral ou do mental: "Ninguém viu o Pai". Invisível como pessoa, como figura, porque é a
Força Mental, é o Amante concreto mas de tão subtil vibração, que não pode ser percebido pela
visão, por mais extensa que seja a gama da capacidade visual em qualquer plano; é inaudível pe-
los ouvidos mais apurados, porque é o SOM (o Verbo) Criador de todas as vibrações altíssimas
plasmadoras dos universos, mas está infinitamente acima de qualquer escala de vibrações sonoras
que possamos imaginar. Poderíamos compará-la à nossa inteligência que, apesar de pequenina,
não pode ser vista, nem ouvida diretamente, mas apenas percebida pela própria inteligência em si
mesma, através de seus efeitos . Por isso o Cristo usa aqui o verbo horáô, "ver" (e não theoréô,
"contemplar”). Daí a conclusão dada: "só aquele que vem de Deus, vê o Pai". Ou seja, o única
plano da criatura que pode "ver" o Pai, é o que provém Dele: é a Centelha Divina que veio "de
perto de Deus" (òn parà toú theoú), porque é um reflexo Dele, e que constitui exatamente nosso Eu
profundo, o Cristo Interno. Só esse pode "ver" o Pai, pode contemplá-lo no Encontro Místico,
quando mergulha na Luz Incriada. Só o Cristo Interno, o AMADO, pode unificar-se ao Pai, o
AMANTE, mergulhando no Espírito (o Santo), que é o AMOR.

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C. TORRES PASTORINO
Todos os grandes místicos concordam com este ponto de vista, embora jamais tenha interpretado este
trecho evangélico como uma lição a esse respeito. Longa seria a citação. Mas pode ser obtido um bom
resumo do que dizem no capítulo 4.º (The Ilumination of the Self, pág. 232 a 265) e no capítulo 7.º
("Introversion: Contemplation", pág: 328 a 387 da obra MYSTICISM, da autoria de Evelyn Under-
shill (The Noonday Press, New York, 1955).

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SABEDORIA DO EVANGELHO

O PÃO DA VIDA – PARTE IV - VIA UNITIVA


João, 6:47 -58
47. 'Em verdade, em verdade vos digo: quem confia em mim tem a vida imanente:
48. eu sou o Pão da Vida.
49. Vossos pais comeram o maná no deserto, e morreram.
50. Este é o pão que desce do céu, para que qualquer um coma dele e não morra.
51. Eu sou o Pão Vivo que desci do céu: se alguém comer desse pão, viverá para a ima-
nência. E mais, o pão que eu darei é minha carne, em lugar da vida do mundo".
52. Discutiam, então, os judeus uns com os outros, dizendo: "Como pode este dar-nos de
comer sua carne"?
53. Respondeu-lhes Jesus: "Em verdade, em verdade vos digo: se não comeis a carne do
filho do homem e não bebeis seu sangue, não tendes a Vida em vós.
54. Quem me saboreia a carne e me bebe o sangue, tem a vida imanente, e eu o elevarei
na etapa final.
55. Porque minha carne é verdadeiramente alimento, e meu sangue verdadeiramente be-
bida.
56. Quem me saboreia a carne e me bebe o sangue, permanece em mim e eu nele.
57. Assim como o Pai que vive me enviou e eu vivo através do Pai, assim quem me sabo-
reia, esse viverá também através de mim.
58. Este é o pão que desceu do céu; não é como o que comeram vossos pais, e morreram;
quem saboreia este pão viverá para a imanência."

51. Aqui a expressão varia. Não é mais "o pão da Vida", mas "o Pão Vivo", ou seja: ho ártos ho zôn,
literalmente: "O PÃO, O QUE VIVE". Depois acrescenta: "é minha carne" (hê sárx mou estin) ex-
pressão muito mais forte do que se dissera "meu corpo" (sóma). Notemos a insistência de João
(aqui e nos versículos 52, 53, 54, 55 e 56) em frisar bem que Jesus possuía realmente carne e san-
gue, e que portanto era um homem normal, e não apenas um fantasma, com o corpo fluídico.
A preposição hupér, quando construída com o genitivo, apresenta os significados usuais: 1 - sobre em
cima de; 2 - por, ou para; 3 - em lugar de; 4 - por causa de; 5 - a respeito de. Ao transladá-la, neste
trecho, para a Vulgata, Jerônimo usou a preposição latina PRO, que aceita os significados 2, 3 e 4, mas
não o 1.º nem o 5.º. Temos, então, que limitar o sentido da frase a: 2 - a) PELA vida do mundo (em
troca da ...); 2 - b) PARA a vida do mundo (para vivificá-la); 3 - EM LUGAR DA vida do mundo
(para substituí-la); 4- POR CAUSA DA vida do mundo (para que não morra). Por todo o contexto da
aula, verificamos que cabem melhor os sentidos 2 e 3: PELA, EM TROCA DA, EM LUGAR DA, EM
SUBSTITUIÇÃO A. Em nossa tradução, preferimos "em lugar da" porque apresenta maior clareza de
sentido, sem perigo de ambiguidade.
O texto grego atestado por maior número de mss. (B, C, L, D, T, W) é: kaì ho ártos dè hòn egô dôsô
hê sárx mou estin hupèr tês toú kósmou zôês. Literalmente na ordem grega: "o pão além disso que eu
darei a minha carne é em lugar da vida do mundo". E, na ordem portuguesa : "e mais, o pão que eu
darei é minha carne, em lugar da vida do mundo". Essa foi nossa tradução. Tertuliano, com o Códex
Sinaíticus, desloca o adjunto adverbial para junto da oração adjetiva: "e o pão que eu darei, em lugar

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C. TORRES PASTORINO
da vida do mundo, é minha carne". O Textus receptus supre o sentido, acrescentando uma segunda
oração adjetiva: "o pão que eu darei é minha carne que eu darei pela vida do mundo".
53. Até aqui é usado sistematicamente o verbo defectivo phageín, sempre traduzido por "comer". Nos
versículos 54, 56 e 57 é empregado trôgeín, que tem quase o mesmo sentido; alguma razão deve
haver para essa troca de sinônimos. Beber é pípein, e sangue, haíma.
55. "Verdadeiramente", em ambas as repetições, é alêthôs, advérbio, nos mss. aleph, D, delta, theta, e
Vulgata; ao passo que B, C, L, T, e W tem "verdadeira" (alêthês), adjetivo na forma feminina.
56. "Permanece" é o verbo ménei (cfr. latim manet). Veja a mesma afirmativa em João, 14:10,20 e 1
João, 3:24 e 4:15-16.
57. O mesmo adjetivo usado para qualificar o pão, no vers. 51, é empregado aqui para qualificar o Pai:
"o Pai Vivo" ou "que vive". "Eu vivo através do Pai" (zô dià tòn patéra), em que "através de" tem
o sentido de “por meio de", melhor tradução do que simplesmente "por" ou "pelo", que apresenta-
ria ambiguidade de sentido, podendo ser interpretado como "por causa do Pai". Ora, a preposição
diá significa basicamente "através de"; e só secundariamente apresenta sentido causal.
58. Neste vers. há uma variação sinonímica entre os verbos: primeiro é empregado éphagon (come-
ram), ao passo que depois é usado trôgôn (saboreia). A expressão "para a imanência" tem, no ori-
ginal: eis tòn aiôna.

Assim como diante da Samaritana (a alma "vigilante") foi dito "Eu sou a Água Viva", expondo o pri-
meiro passo do DESPERTAMENTO DO EU; e no trecho da cura da Hemorroíssa e da ressurreição
da filha de Jairo, foi alertado sobre a VIA PURGATIVA; e no trecho que acabamos de comentar foi
ensinada a VIA CONTEMPLATIVA, agora é-nos revelada a VIA UNITIVA, ou seja, o Cristo confirma
que Deus habita em nós com Sua Essência; e não apenas em nós, mas "em todas as coisas" (cfr . To-
más de Aquino, Summa Theológica, I, q. 8, art. 1: Deus est in ómnibus rebus ... et intime ... sicut agens
adest ei in quod agit, isto é: "Deus está em todas as coisas ... e intimamente ... como o agente está na-
quilo em que age"). Vimos que "a vontade do Pai" é que O encontremos . Agora, veremos que temos
que VIVER NELE, tal como Ele vive em nós, não apenas em perfeita união, mas em unificação total.
Então a aula prossegue no mesmo tom, que se eleva cada vez mais, até chegar ao clímax, que faz que
os imaturos se afastem definitivamente. São dados os ensinos práticos de como obter essa unificação.
Vejamos.
47-48 O novo passo é iniciado ainda com a fórmula de garantia da veracidade: "Em verdade, em ver-
dade vos digo". Sempre é repetida como prólogo de uma lição importante, de uma verdade funda-
mental. Vem depois a afirmativa: "quem confia em mim (no Cristo Cósmico, que continua com a
palavra) tem a Vida Imanente". E então reafirma solenemente: "Eu sou o Pão da Vida". A imagem
do Pão é uma das mais felizes para ensinar a Via Unitiva.
49. Aparece depois uma comparação para introduzir, com melhor compreensão, a temática que será
desenvolvida. Começa, pois, concedendo a veracidade da objeção formulada no vers. 31: "Vossos
pais comeram o pão no deserto". Observemos que, se fora a personalidade de Jesus que falasse, te-
ria dito: "nossos pais"; mas sendo o Cristo, não tem filiação humana, não tendo nascido "do san-
gue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus" (João, 1:13). Observemos
ainda que diz apenas "pão", e não como fora enunciado pelos objetantes: "pão vindo do céu". Con-
cedida, em princípio, a objeção apresentada, é-lhe oposta, de imediato e contradita decepcionante:
"mas morreram" ... A contra-argumentação é categórica, verdade irrespondível que não admite ré-
plica.
50. E logo em contraposição do pão que não evita a morte, é apresentado aos discípulos o outro pão
espiritual que, uma vez ingerido, lhe comunica, vida que não admite morte. O que mais assusta os
circunstantes é que Jesus, após apresentar-se como sendo Ele o Pão que desce do céu, diz que se
alguém comer desse pão não morrerá. Não tendo conhecimento de que era o Cristo que falava,

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SABEDORIA DO EVANGELHO

julgavam ser a personalidade de Jesus que se propunha dar-se como alimento. Dai o qui-pro-quo
terrível que os desorienta, que se agrava cada vez mais, e que o Cristo não se preocupa em desfa-
zer. Ao contrário: vai dando Sua lição superior, sem cuidar dos imaturos.
51. Fala o Cristo. "Eu sou o PÃO VIVO que desci do céu". Já não diz mais "o Pão da Vida", mas
muito mais explicitamente, definindo Sua natureza: "o PÃO, O QUE VIVE" (ho ártos, ho zôn, com
a mesma fórmula usada no vers. 57 "o PAI, 0 QUE VIVE, ho pátêr, ho zôn). É a repetição do
mesmo conceito em outros termos mais precisos e profundos, numa didática perfeita, em que cada
repetição acrescenta um pormenor, por vezes mínimo, mas trazendo sempre maior elucidação. E
repisa: "se alguém comer deste Pão (que é Ele!) viverá para a imanência".
Como poderia dar-se isso? Não dando tempo nem para pensar, vem a frase chocante: "e mais, o Pão
que eu darei é MINHA CARNE" ... e esclarece "em lugar da vida do mundo"! O ensino chegou à re-
velação total da Verdade que constituía o objetivo da aula. Compreendamos bem o texto: para todos
os que ainda vivem na personalidade, o eu é constituído por seu próprio corpo físico denso; então a
substância deles, para eles, é a carne deles. Nesse sentido, diz o Cristo que o Pão é Sua Carne" isto é,
Sua Substância; pois a substância do Cristo Cósmico é a substância última de todas as coisas, apenas
numa vibração mais baixa, ou seja; na condensação da energia.
Exatamente esse pensamento é repetido por Agostinho que, em suas meditações, confessa ter percebi-
do essa mesma voz do Cristo Interno: tamquam audírem vocem tuam de excelso: cibus sum gradium;
cresce et manducabis me Nec tu me in te mutabis sicut cibum carnis tuae, sed tu mutáberis in me
(Confiss. 7, 10, 16) ou seja: "como se eu ouvisse uma voz do alto: sou o alimento dos evoluídos; cres-
ce e me comerás. E tu não me transformarás em ti como alimento de tua carne, mas tu te transforma-
rás em mim". A característica das criaturas geniais é dizerem bem e dizerem muito em poucas pala-
vras. Nessa frase de Agostinho está perfeitamente revelada a Cristificação da criatura, que se infiniti-
za, se eterniza? se deifica em contato com a Substância Divina, que está em todos e em cada um, pela
unificação com o Cristo Interno, que é o Eu Profundo e verdadeiro, a Centelha Divina.
Tomás de Aquino explica o modo por que está em nós a essência de Deus (cfr. Summa Theol. I, q. 8,
art. 3, ad primum, citado acima). Quanto à segunda parte da frase de Agostinho, é ela elucidada por
Tomás de Aquino, que escreve: "Spiritualia cóntínent ea in quibus sunt, sicut ánima cóntinet corpus.
Unde et Deus est in rebus sicut cóntinens res. Támen, secundurn quamdam similitudinem corporalium,
dicuntur omnia esse in Deo, in quanturn continentur ab ipso (Sum . .Theol. I, q. 8. art. I, ad 2 um) , que
significa: "as coisas espirituais contêm as coisas em que estão, como a alma contém o corpo. Donde
também Deus está nas coisas corno contendo as coisas. Contudo, por uma espécie de semelhança com
as coisas materiais, diz-se que todas as coisas estão em Deus, já que são contidas por Ele".
Em Sua lição, de que é o Pão Vivo o Cristo não quer deixar a menor dúvida de que o Pão de que Ele
fala é "Sua CARNE", ou seja, Sua Substância aquela mesma substância divina que Ele nos dá na Vida
Imanente, para substituir a vida do mundo, ou seja, em lugar da vida pequenina e transitória da per-
sonalidade.
52. Claro que nada disso foi compreendido pelos ouvintes, embora encontremos em Strack-Billerbeck
(o.c., t .2, pág. 485) que alguns deveriam ter entendido "comer e beber" como aplicados ao estudo
da lei mosaica. Surgem então as discussões com os que entenderam que tudo devia ser interpreta-
do literalmente. Vem a pergunta: "Como dará Ele de comer sua própria carne"? A hipótese antro-
pofágica foi rejeitada como absurda e inaceitável.
53. Diante de tal incompreensão, o Cristo nem procura explicar. Nem uma palavra é proferida em
resposta à indagação angustiosa. De nada adianta perder tempo esclarecendo criaturas que não
alcançam sequer a metáfora e o simbolismo, quanto mais o sentido protundo.
Então o Cristo resolve romper todas as barreiras e repetir Seu ensinamento, martelando na mesma
tecla e acrescentando um pormenor horripilante para os israelitas: "Se não comeis a carne do Filho
do Homem, e não bebeis seu sangue, não tendes a Vida em vós"! Ora, era terminante e severamente
proibido "comer o sangue" dos animais, mesmo cozinhado (cfr. Gên. 9:4 e Deut. 12:16), porque aí

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C. TORRES PASTORINO
mesmo se esclarece que "o sangue é a alma do ser vivente". Muito pior sena, portanto, a hipótese de
beber o sangue cru, ainda quente, e não de um animal, mas de um ser humano ...
Mas era exatamente isso que o Cristo ensinava e ensina-nos ainda: para ter a Vida Imanente é indis-
pensável COMER (assimilar a si) a carne (a substância viva) do Cristo Interno que é nossa vida; e
além disso, BEBER (aspirar em si por sintonia vibratória perfeita) o Seu sangue (a alma, a parte mais
espiritual Dele). De fato é assim: só nos unificaremos ao Eu Profundo no Esponsalício Místico, quan-
do assimilarmos a nós a Substância e o Espírito do Cristo de Deus, que em nosso coração habita com
toda a plenitude da Divindade.
54. E diante de um movimento de horror escandalizado, o Cristo repisa, já então mudando o verbo,
para causar maior repulsa nos imaturos e mais acendrado amor nos evoluídos: "quem me sabo-
reia a carne e me bebe o sangue tem a Vida Imanente, e eu o elevarei na etapa final”. Só depois
que o Espírito consegue essa unificação mística mas REAL, é que poderá atingir a etapa final da
evolução. Sem o Encontro no "mergulho", sem a unificação com o Cristo Interno dentro de nós,
não obteremos o "reino dos céus", não atingiremos a etapa fina! ("o último dia") de nossa subida
para o Alto. E a razão disso é dada:
55. "Porque minha carne é verdadeiramente alimento e meu sangue é verdadeiramente bebida". Não
são apenas símbolos: são realidades, embora não físicas e materiais, mas espirituais, porque to-
das as palavras do Cristo “são Espírito e são Vida" (vers. 63). Com efeito, nosso Eu Real não é
constituído da carne do corpo físico denso, nem do sangue que circula em nossas veias: nosso EU
REAL é constituído da substância mais íntima (a carne) e da vibração mais pura (o sangue) do
Filho do Homem, do Cristo Interno, do Amado Divino. Então, essa essência de Deus em nós é que
constitui o verdadeiro alimento e a verdadeira bebida da Vida Imanente.
56. E aqui chegamos ao ponto mais sublime do ensino sobre a Via Unitiva; temos a revelação plena da
unificação com o Cristo; após mais uma repetição didática, para que não haja ambiguidade: "quem
me saboreia (longamente, no mergulho interno) a carne e me bebe (a largos haustos, na oração) o
sangue, PERMANECE EM MIM E EU NELE"! ...
Esse maravilhoso ensino será ainda repetido pelo Cristo em João, 14:10-20; 15:4-5; 1 João, 3:24 e
4:15-16. Trata-se da unificação total, mútua, perfeita: vivemos na plenitude do Cristo e o Cristo vive
em nós, como dizia Paulo: "não sou mais eu que vivo, o Cristo é que vive em mim" (Gál. 2:20).
Como não entender que toda essa magnífica e elevadíssima lição não se prende apenas a um simples
ato externo da ingestão de uma hóstia de trigo? Seu sentido é muito mais profundo, mais belo, mais
verdadeiro e mais sublime! Por que limitar um ensino de tal excelsitude a um pequeno e rápido rito
exterior? Compreendamos o alcance maravilhoso da Palavra do Cristo em toda sua profundidade viva
e real. Nenhum Avatar, nenhum místico, em qualquer época ou país, atingiu níveis tão elevados e sub-
limes de ensino.
57. Neste versículo volta o Mestre a insistir na união do Amado ao Amante: "assim como o Pai (o
Verbo, o Som Criador) que vive, que é a Vida porque é Deus em Seu segundo aspecto, enviou a
mim, o Cristo (o Amado), e eu, o Cristo, vivo por meio do Pai (através do Pai), assim quem me sa-
boreia também viverá por meio de mim (através de mim)".
É perfeita a simbiose entre o Amante (Pai) e o Amado (Filho), e um vive pelo outro dentro do Amor (o
Espírito Santo) , que é o Absoluto, a Luz Incriada, o Sem Nome. Só quem saboreia o Cristo no mer-
gulho, poderá viver através do Cristo, tal como o Cristo vive através do Pai que O enviou à matéria,
na qualidade de Centelha Divina, para dar Vida ao mundo.
58. E como arremate da lição, volta às palavras iniciais, repetindo a tese que foi exuberante e exausti-
vamente provada: este é o pão que desce do céu e "que não é como o pão que comeram vossos
pais e morreram: quem come este pão, viverá sempre na imanência".
Maravilhosa e sublime lição, que atinge as maiores altitudes místicas capazes de serem compreendi-
das no estágio hominal em que nos achamos!

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Depois da aula virá uma explicação de grande importância reservada aos discípulos. Veremos.
Quem desejar conhecer a opinião dos místicos ocidentais a respeito da Via Unitiva, leia MYSTICISM,
de Evelyn Undershill, cap. 10.º (da 2.ª part") pág. 413 a 443.

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C. TORRES PASTORINO

O PÃO DA VIDA – PARTE V - DESFECHO


João, 6:59-71
59. Estos coisas disse ele, ensinando na sinagoga de Cafarnaum.
60. Ouvindo isso, muitos de seus discípulos disseram: "Difícil é esse ensino, quem pode entendê-
lo"?
61. Mas sabendo Jesus em si mesmo que seus discípulos murmuravam disso, disse-lhes: "isso vos
escandaliza?
62. Então se vísseis o filho do homem subir aonde estava antes! ...
63. O espírito é o que vivifica; a carne não aproveita nada: as palavras que eu vos disse são espí-
rito e são vida.
64. Mas alguns há entre vós que não confiam". Pois Jesus conhecia desde o princípio os que não
confiavam, e quem o havia de entregar.
65. E falou: "Por isso eu vos disse, que ninguém pode vir a mim, se pelo Pai não lhe for concedi-
do".
66. Desde aí muitos de seus discípulos andaram para trás, e não andavam mais com ele.
67. Perguntou, então, Jesus aos doze: "Não quereis vós também retirar-vos"?
68. Respondeu-lhe Simão Pedro: "Senhor, para quem iremos? Tu tens palavras de vida imanen-
te,
69. e nós confiamos, e sabemos que tu és o santo de Deus".
70. Replicou-lhes Jesus: "Não vos escolhi eu a vós, os doze? E no entanto um de vós é adversá-
rio".
71. Falava de Judas, filho de Simão Iscariotes, um dos doze, porque era ele quem o havia de en-
tregar.

59. A "sinagoga" de Cafarnaum era, provavelmente, a construída pelo centurião (Luc. 7:5), de quem
Jesus curou o servo.
60. A frase "esse ensino é difícil" corresponde ao original skleròs estin hoútos ho lógos, literalmente:
"é duro esse ensino". Muito maior precisão existe na tradução de lógos por "ensino", que por "pa-
lavra". O sentido pode ser um e outro. O verbo "entender" nós o traduzimos de akoueín, que à letra
é "ouvir".
61. Transliteramos skandalízei por "escandaliza", pois o sentido é precisamente esse, e a tradução ad
sensum "tropeça" constituiria aqui impropriedade lógica.
62. "Subir" traduz anabaínô, que se opõe a katabaínô, vers , 33, 38, 42 e 58. "Onde estava primeiro"
(hopou hên tò próteron), ou seja, regressou ao lugar onde primitivamente residia. Geralmente in-
terpretado em relação a "ascensão".
63. O espírito (tò pneúma) é (esti) que vivifica (tò zôopoioún) ou seja, "produz vida"; a carne (he sárx)
não aproveita nada (ouk ôpheleí oudén). "As palavras (tá rêmata não ho lógos) são espírito e são
vida” (pneúma esti kai zôê estin).

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SABEDORIA DO EVANGELHO

64. O verbo paradídômi, aqui no particípio futuro (só usado três vezes nos Evangelhos, aqui, em Luc.
22:49 e Mat. 27:49) significa literalmente "entregar", e só por extensão "trair". Parece-nos que
Jesus se referia ao ato expresso da "entrega" que Judas Dele fez aos homens do Sinédrio.
65. "Não lhe for concedido", literalmente "não lhe for dado" (eàn mê hê de doménon autôi), expressão
mais branda do que a do vers. 44, q. v.
66. "muitos de seus discípulos andaram para trás", literalmente, no original, polloí apêlthon tôn ma-
thetôn autón eis tà opisô.
67. "aos doze", expressão usada aqui por João pela primeira vez.
68. "palavras de Vida Imanente", rêmata zôês aiôniou.
69. “O santo de Deus", ho hágios toú theoú, segundo os manuscritos Aleph, E, C*, L, D, W; melhor
que "o Cristo, o Filho de Deus", segundo outros mss.
70. "Adversário", em grego diábolos (veja vol. 1).
71. O original traz Ioúdan, Símônos Iskariôtou e não Judas Iscariotes, filho de Simão. O nome do pai é
que se agregou como cognome do filho.

Terminada a "Aula de Sapiência", o evangelista dá conta do que se passou a seguir, relatando as rea-
ções dos discípulos e dos doze, sem mais falar dos outros ouvintes.
59. Em primeiro lugar anota que "Jesus deu esse ensino na sinagoga de Cafarnaum", salientando o
ambiente fechado e mais escolhido em que falou, como se quisesse sublinhar que não foi ao ar li-
vre, de público.
60. Terminado o discurso, provavelmente já fora da sinagoga, formaram-se os grupos dos mais che-
gados - os doze com os discípulos que habitualmente acompanhavam Jesus em suas pregações
pelas aldeias - e passaram a comentar o que tinham ouvido. Alguns dos discípulos acharam os
conceitos emitidos demais "duros", difíceis de ser entendidos pela razão, e portanto, inaceitáveis.
61. Já aqui, nesta roda mais íntima, ainda manifestando o Cristo, pergunta Jesus se o ensino minis-
trado os "escandalizou", isto é, se lhes foi uma "pedra de tropeço" no caminho evolutivo.
62. E numa exclamação que sobe de gradação quanto à pergunta anterior, diz com simplicidade: "se
então visseis o filho do homem subir aonde estavas antes"! ... E nada mais. Há controvérsias sobre
essa frase, querendo alguns se refira à crucificação. Mas quando Jesus fala da "suspensão" na
cruz, usa o verbo hupsôthenai (ser suspenso, João, 3:14 e 12:32-34), e não, como aqui, anabaínein
(subir). Além disso, na crucificação Jesus não "voltou ao lugar em que estava antes".
A segunda interpretação, preferida pela maioria, diz que a frase se refere ao ato da "ascensão", afir-
mando que esse ato constituiria a prova de que a carne que Jesus daria a comer, não era a material, do
corpo denso, mas a "espiritual" ("pneumática", cfr. 1 Cor. 15:40); então, quando eles vissem a ascen-
são, compreenderiam o ensino, que agora lhes parecia difícil.
Ambas as interpretações são fracas, diante da sublimidade da revelação feita. Entendemos a frase
como uma confissão dos êxtases de Jesus (o Filho do homem), quando tinha os Contatos com o Pai.
Daí Jesus retirar-se sempre Só, para orar, a fim de poder ter Seus Encontros Místicos sem testemu-
nhas. Uma única vez, sabemos que os três mais evoluídos (Pedro, Tiago e João) assistiram à "Transfi-
guração" que, no entanto, só foi revelada muito mais tarde, após a "ressurreição" (cfr. Mat. 17:19). E
tratou-se apenas de uma elevação ao plano mental, e não de um êxtase (samadhi) de Esponsalício
Místico na união com o Pai. Se nessa elevação, ao encontrar os Espíritos de Moisés e de Elias, a apa-
rência externa de Jesus foi tão maravilhosa, qual não seria a apresentada numa unificação com o
Pai?
Nesse sentido, a frase de Jesus adquire valor pleno e real: vocês se escandalizam com o que o digo ...
se então vissem a realização prática do que ensinei, vivida pelo Filho do Homem, pela personalidade

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C. TORRES PASTORINO
de Jesus, que diriam? Porque nesses momentos de união, Ele subia à Divindade, à qual antes vivia
permanentemente ligado.
63. E logo dá a chave para confirmar que nada do que disse se refere à carne física, à personalidade,
mesmo após a desencarnação. Não se trata de "corpo", seja ele denso ou astral. A explicação é taxati-
va: "o que vivifica , é o Espírito, a carne não aproveita nada". Então, o Pão Vivo é o ESPÍRITO; Sua
carne é o ESPÍRITO; o que temos que comer e saborear e beber é o ESPÍRITO. A carne para nada
aproveita, de nada serve: é simples condensação transitória da energia, a qual, por sua vez, é o baixa-
mento das vibrações do Espírito. Tudo o que o Cristo falou, "todas as palavras que eu vos disse", nesta
aula (e também em qualquer outra ocasião), "são Espírito e são Vida", com o verbo repetido para evitar
ambiguidade e más interpretações. Portanto, NÃO PODEM ser interpretadas à letra, mas só "em Espí-
rito Verdadeiro" (cfr, João, 4:24), no plano espiritual místico mais elevado.
Não são, também. símbolos: constituem a mais concreta realidade, porque estão no plano da única
realidade verdadeira: DEUS.
Então, é neste versículo que Jesus explica como devemos interpretar suas palavras neste e em qual-
quer outro ensinamento. Por que prendê-las a letra física, entendendo que Ele falou da carne materi-
al, embora "espiritualizada" depois do desencarne? Por que rebaixar o tom, o nível de Verdades tão
sublimes, para atribuí-las a um rito - esse sim, simbólico? Conceito magnífico que jamais devemos
perder de vista: "O Espírito é o que vivifica, a carne para nada aproveita: as palavras, que eu vos
disse, são Espírito e são Vida"!
64. E termina: "mas há alguns dentre vós que não confiam". E o evangelista comenta: "desde o prin-
cípio Jesus conhecia os que não confiavam Nele, e inclusive quem O havia de entregar ao Siné-
drio". Com a penetração psicológica própria de Seu nível evolutivo, Jesus percebia a vibração tô-
nica fundamental de cada um, e portanto SABIA os que não estavam suficientemente amadureci-
dos para acompanhá-Lo.
65. É isso mesmo o que explica o Cristo: "essa foi a razão pela qual já vos disse, que ninguém pode
vir a mim, se pelo Pai, lhe não for concedido" Realmente, só pela "atração" (ou impulso interior)
do Pai que em cada um reside, é que conseguimos evoluir até o Encontro com o Cristo. Se não
respondermos ao apelo de Amor, como esse que o Cristo fez por intermédio de Jesus (e nos faz a
nós mesmos diariamente) então, pior ainda, "andaremos para trás".
66. Realmente ocorreu: "muitos de Seus discípulos andaram para trás e não andavam mais com Ele".
Fica estranha a tradução literal que fizemos, em lugar da tradução comum que vem sendo feita há
séculos: "afastaram-se". Mas o sentido profundo em que entendemos o ensino do Cristo requer
exatamente essa expressão "andaram para trás", isto é, regrediram espiritualmente, deixaram de
estar em companhia do Cristo, para voltar a seguir "doutrinas de homens" (João, 5:41), ou, como
é dito mais fortemente nos Provérbios (26:11): "Como o cão que volta ao seu vômito, assim é o
tolo que rei0tera sua estultice", provérbio citado por Pedro (2 Pe. 2:21-22): "Melhor lhes fora não
ter conhecido o caminho da Justiça, do que, depois de conhecê-lo, desviar-se do santo manda-
mento que lhes fora dado. Tem-lhes sucedido o que diz o verdadeiro provérbio: voltou o cão ao
seu vômito; e a porca lavada tornou a revolver-se no lamaçal".
67. Diante dessa roação decepcionante para o Mestre, que sabia o que ensinava, o Cristo se volta para
os doze escolhidos, indagando se também eles queriam retirar-se.
A quem incumbe a tarefa de instruir, não importa o número de seguidores nem os aplausos vazios.
Quando mais elevado é o ensino, ele sabe que menos criaturas poderão compreendê-lo e acompanhá-
lo, e não se assusta de ver periodicamente seu “grupo de estudos" esvaziar-se de muitos elementos, e
chegarem outros para substituí-los. Desses outros, ele já o sabe, muitos também se retirarão. E no fim
da carreira, talvez ele tenha apenas um "pequeno pugilo" um "pequeno rebanho" (cfr. Luc. 12:32) em
redor de si. Não importa. O que sobretudo importa é não trair o recado que traz para a humanidade.
Aqueles que são trazidos pelo Pai, esses virão a ele. Os outros, que chegam motu proprio, por curiosi-
dade; ou por ambição de conseguir "poderes"; ou pela vaidade de dizer-se seguidor ou amigo do pre-
gador. Tal, que é apreciado e admirado pela multidão; ou em busca de favores espirituais; ou, pior

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SABEDORIA DO EVANGELHO

ainda, de posições materiais, todos esses se retiram mais cedo ou mais tarde, desiludidos de não en-
contrar o que buscavam, ou então "escandalizados", quer com o ensino da verdade, quer, outras ve-
zes, com a prática da verdade.
68-69 Pedro, sempre temperamental, o mais velho ao que parece do grupo dos doze, e porta-voz deles,
designado mais tarde para ser "monitor" dos discípulos, toma a palavra num rasgo de confiança
absoluta: "para quem iremos"? E a razão dessa atitude: "tens palavras de Vida Imanente", ou seja,
em Tuas palavras encontramos realmente o segredo da Vida Divina em nós (prova de que havia
bem compreendido o sentido profundo dado por Cristo, de que lhe havia ouvido o apelo, e que o
Cristo Interno despertara em seu coração, com as palavras ouvidas através da boca de Jesus). E
continua: "nós confiamos e sabemos que tu és o Santo de Deus", isto é, o Eleito de Deus, o Messias
(cfr. Mat. 1:24 e João, 10:36). Pedro falava em nome de todos os doze, como representante dos
emissários escolhidos por Jesus.
70. No entanto, o Cristo chama sua atenção, dizendo-lhe que as palavras de confiança que proferira,
não correspondiam ao pensamento de "todos". Sim, "Ele escolhera os doze". Mas, não obstante,
um deles Lhe era adversário. Adversário no sentido real: tinha uma "diferença" com seu Mestre.
Talvez mais tarde saibamos a razão dessa "diferença". Mas o fato é que esse - chamemo-lo por
enquanto de "ciúme" - fez que Judas o entregasse ao Sinédrio, revelando à soldadesca o local em
que se encontrava, para que fosse preso às escondidas, envitando barulho do povo que O admira-
va.
Se Jesus encontrou entre os Seus escolhidos um adversário que O entregou aos inimigos que O mata-
ram, por que queixar-nos de encontrar entre os que frequentam nossas rodas espirituais "adversários"
muito mais mansos, que se limitam a falar contra nós, por interpretar mal nossas palavras ou nossos
atos, ou, quando muito, a caluniar-nos? Agradeçamos ainda que sofremos tão pouco! Especialmente
porque ainda temos a consolação de que nós não escolhemos nossos seguidores, fato que causou ain-
da mais profunda tristeza em Jesus.
71. O evangelista conclui o capítulo explicando que Jesus se referia a Judas, filho de Simão Iscario-
tes, o único dos doze que não era ga1ileu.

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C. TORRES PASTORINO

CURA NO TEMPLO
(Sábado, 23 de abril do ano 30)
João, 5:1-16
1. Depois disso, havia a festa dos judeus, e Jesus subiu a Jerusalém.
2. Ora, em Jerusalém, junto à (porta) das ovelhas, há uma piscina, que em hebraico é chamada
Bethesda, a qual tem cinco pórticos.
3. Nestes jazia grande número de enfermos, cegos, coxos, paralíticos [esperando o movimento da
água,
4. porque descia um anjo em certas épocas e agitava a água da piscina; e o primeiro que entrasse na
piscina depois de a água mover-se, ficava curado de qualquer doença que tivesse].
5. Achava-se ali certo homem, que havia trinta e oito anos estava enfermo.
6. Vendo-o Jesus deitado, e tendo sabido que estava assim desde muito tempo, perguntou-lhe:
"queres ficar são"?
7. Respondeu-lhe o enfermo: "Senhor, não tenho ninguém que me ponha na piscina, quando a
água é movida: enquanto vou, outro desce antes de mim".
8. Disse-lhe Jesus: "Levanta-te, toma teu leito e caminha".
9. Imediatamente o homem ficou são, tomou seu leito e andou.
10. Era sábado aquele dia. Pelo que disseram os judeus ao que fora curado: "Hoje é sábado, e
não te é lícito carregar o leito'.
11. Ele respondeu-lhes: "O que me curou, esse me disse: toma teu leito e caminha".
12. Perguntaram-lhe, então: "Qual foi o homem que te disse: toma teu leito e caminha"?
13. Mas o que fora curado não sabia quem era; porque Jesus se retirara, já que havia muita gen-
te naquele lugar.
14. Depois Jesus o encontrou no templo e disse-lhe: "Olha, ficaste curado: não erres mais, para
que te não suceda coisa pior".
15. Saiu o homem e foi dizer aos judeus, que fora Jesus que o curara.
16. Por isso os judeus perseguiam Jesus, porque fazia essas coisas nos sábados.

Após a magnífica aula sobre o Pão da Vida, em que Cristo nos revelou a Via Contemplativa e a Via
Unitiva, Jesus "Sobe a Jerusalém".
Observamos que houve troca de folhas nalgum manuscrito primitivo (já Orígenes o notara) e o atual
capítulo 5.º tem que ser lido depois, do 6.º. A inversão é bem clara pela crítica interna. Por causa dessa
troca, os mss. A, B, D, N, W e theta trazem "uma festa" (sem artigo), ao passo que os mss. aleph, C, L,
delta e as versões coptas (boaírica e saídica, respectivamente do alto e baixo Egito) trazem o artigo: hê
heortê, "a festa". Quando era assim determinada, a expressão "a festa" designava a Páscoa. Estávamos,
pois, na segunda Páscoa da "vida pública" de Jesus (ver a primeira em João, 2:13, e terceira em João
12:1).

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Figura “CURA NO TEMPLO”

"Junto à (porta) das ovelhas", no original: epi tôi probatikêi (literalmente "perto da probática") pode
exprimir quer o nome da porta do ângulo nordeste do templo, quer uma confusão com a piscina "pro-
bática" primitiva, em que se lavavam as vitimas antes do holocausto.
O nome dado à piscina (kolumbêthra, literalmente "banho público") apresenta variantes:
1) BEZATHA, por Euzébio, baseado em Josefo (Bell. Jud. 5, 4, 2 e 5, 6 e 7) que cita o novo bairro de
Jerusalém, dando-lhe o nome de Bezata, que significa "cidade nova"; é aceito por Lagrange.
2) BEZETHA, por Vincent, significa '"corte".
3) BELZETHA, em D, no Sinaítico de Paris e poucos outros.
4) BETHSAIDA, nos mss. B, C, W e na Vulgata (é o menos provável).

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C. TORRES PASTORINO
5) BETHZATHA, nos mss. aleph, L, 33, e, 1; aceito por Nestle.
6) BETHZETHA, aceito por Tischendorf, Westcott-Hort e Van Soden.
7) BETHESDA, nos mss. A, C, E, F, G, H, S, V, theta, omega e muitos outros gregos; nas versões
síriaca oficial (Peschito), nítria, árabes e em dois mss. da Vetus Itálica; aceito por Vogels, Prat,
Merck, Weiss, Bem e Bover. Citado nessa forma por Jerônimo (De Situ et Nom. Loc. Hebr., Pa-
trol. Lat. vol. 23, col. 884); João Crisóstomo (In Joanne Hom. 36,1, Patrol.Graeca, vol. 54, col.
203); Cirilo de Alexandria (In Joanne, Hom. 2 e 6, Patrol. Graeca, vol. 73, cols. 336 e 988); e Dí-
dimo de Alexandria (De Trinit.2, 14, Patrol. Graeca vol. 39, col. 709).
Como vemos, BETHESDA (que significa "Casa da Misericórdia") tem mais testemunhos.
A piscina ocupava um quadrilátero de 120 m por 60 m, e era cercada por uma galeria em arcadas (pór-
ticos), dividida em duas partes iguais por uma comporta que tinha, por cima, uma quinta galeria tam-
bém em colunata como as outras quatro. A bacia ficava circundada por aleijados que esperavam que "a
água se movimentasse". O movimento das águas era provavelmente causado pela abertura da Com-
porta, a fim de jorrar água limpa na piscina.
A segunda parte do vers. 3 e todo o vers. 4 parece que foram interpolados posteriormente, por algum
comentador, pois não figuram nos mss. S, B, C, D, W, 33, 134, 157, f, t e na Vulgata de Wordsworth;
apenas os mss. A, L, delta e theta trazem essas palavras. Devem ser cortadas, segundo a maioria dos
hermeneutas; pois se exprimissem a verdade, "representariam o maior milagre relatado na Bíblia", mi-
lagre inexplicável, em que "o primeiro chegado era curado". Além disso, nenhum texto além desse
alude a esse caso extraordinário.
Entre os enfermos, havia um deitado no chão (katakeímenon) doente havia 38 anos. Quando Jesus veio
a saber naquele momento (gnóus supõe conhecimento recente) o tempo da enfermidade, se condoeu
dele e perguntou-lhe se queria curar-se. Respondeu-lhe o doente que não tem quem o ajude "a descer à
água quando esta se movimenta", frase que provavelmente teria provocado a explicação interpolada
nos vers. 3 e 4. Pelas palavras, parece tratar-se de um paralítico.
Uma frase apenas é dita por Jesus: "levanta-te, apanha tua esteira e caminha". Alguns viram nessa fra-
se uma repetição da narração do fato ocorrido em Cafamaum (Mat. 9:2-8; Marc. 2:1-12; Luc. 5:17-26;
veja vol. 2). Mas as circunstâncias diferem totalmente e o ensino ministrado é de outra ordem: lá
acentua-se a autoridade do Filho do Homem de resgatar o carma, e aqui sua autoridade acima das pres-
crições teológicas da guarda do sábado (cfr. Mat. 12:1-8; Mar. 2:23-28; Luc. 6:1-5; vol. 2).
Realmente, entre as 39 proibições de trabalhos, aos sábados, é expressamente mencionada a do trans-
porte de um leito, com alguém deitado nele ou vazio.
João, que sempre designa por "os judeus" os principais cabeças dos israelitas, coloca de imediato a
questão, com a repreensão ao infrator. Este joga a responsabilidade "em quem o curou", que ele não
sabia quem era: Jesus se afastara rápido, confundindo-se na multidão. Talvez para não ser solicitado a
fazer outras curas? E por que curou apenas UM, entre tantos enfermos que lá estavam?
Mais tarde Jesus "o encontra no templo" (cfr. 9:35), recomendando-lhe que não voltasse a errar, para
que lhe não sucedesse coisa pior. Libertado de seu carma, não fosse contrair outro laço, talvez de re-
sultados mais dolorosos.
O comportamento deste doente, indo logo denunciar Jesus àqueles que o haviam repreendido, parece
bastante estranho. Alguns pretendem desculpá-lo, atribuindo-lhe apenas o desejo de tornar conhecido
seu benfeitor. Realmente, com a lábia dos mal-intencionados, estes talvez o tenham convencido a dizer
quem o curou, para que pudessem "louvá-lo" ...

Aqui é-nos apresentado um episódio privativo da narrativa de João, obedecendo à mesma técnica
didática utilizada na lição do Pão da Vida: partindo de um exemplo prático, de uma experiência viva,
finaliza com o desenvolvimento de um tema teórico.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Em vista da importância do ensino posterior, há que prestar atenção a todos os pormenores e sinais
fornecidos pelo narrador, como por exemplo à numerologia, simbolismo muito usado pelo quarto
evangelista, sobretudo no Apocalipse. Neste trecho comprovamos ainda uma vez a veracidade desta
nossa assertiva (já salientada por nós em outros passos), quando João assinala minúcias numéricas
totalmente secundárias e inexpressivas, não fora o símbolo que exprimem (piscina com 5 pórticos ...
enfermo havia 38 anos ...).
Mas tudo isso é base para posteriores esclarecimentos, na lição teórica Vejamos o trecho.
Inicia-se salientando que "Jesus subiu a Jerusalém pela festa (da Páscoa)". Dirigia-se da Galiléia
(Jardim fechado" da individualidade) para a Judéia ("Louvor a Deus" da personalidade religiosa fili-
ada a igrejas), colocando sua meta em Jerusalém ("Cidade da Paz", onde poderia desenvolver um
tema profundo em relação às criaturas que já se achavam pacificadas no caminho religioso da evolu-
ção). E isso por ocasião da "festa da Páscoa", isto é, da alegria da passagem da ordem inferior da
personalidade, para a superior da individualidade.
Nesse ambiente, anota-se o local da lição prática: a "porta das ovelhas", o lugar mais indicado para
um "Bom Pastor" conversar com aqueles que, "quais ovelhas entre lobos", desejavam penetrar o sen-
tido profundo das Escrituras, libertando-se do sentido "literal". Era exatamente a porta de acesso a
uma lição espiritual profunda.
Não nos esqueçamos de que as ovelhas constituem o símbolo do holocausto, do sacrifício da parte
animal do ser humano, quando aceito resignadamente. Ao contrário, por exemplo, dos suínos, que
berram revoltados ao serem sacrificados, as ovelhas caminham sem protesto para a tosquia e até para
o holocausto de suas vidas: "não abriu a boca, como o cordeiro que é levado ao matadouro e como a
ovelha que é muda diante dos que a tosquiam" (Is. 53:7).
O ensino de que a ovelha (cordeiro ou carneiro) é o símbolo da parte animal do ser humano, e que é
esta que deve ser sacrificada, nós o recebemos desde o Antigo Testamento (cfr. Gênesis, cap. 22).
YHWH ordena a Abraão que vá a Moriah e ali lhe sacrifique seu único filho Isaac, "a alegria" (ou
seja, seus veículos físicos, "filhos" únicos do Espírito); obedecendo à letra da ordem, Abraão encami-
nha-se para o local determinado e chega a amarrar Isaac no altar do sacrifício, levantando o cutelo
para imolá-lo. Faz-se então ouvir a voz de YHWH, esclarecendo que não era esse o sentido da ordem;
que se alegrava por vê-lo obediente, mas que não sacrificasse o corpo (o "filho"); é quando Abraão vê
um carneiro e o imola, isto é, quando compreende a alegoria, percebendo que o holocausto pedido é
apenas do animalismo ainda residual no homem.
Na "porta das ovelhas" havia uma piscina, um "banho público" (lugar destinado à limpeza e purifica-
ção dos corpos) com CINCO pórticos; outra anotação que deixa perceber que a criatura-paradigma
da lição já se achava purificada e limpa em sua parte da animalidade.
Recordando e aplicando o conhecimento dos arcanos, vemos que se trata de um modo de assinalar que
ali "a Providência divina governaria a vida universal e a vontade do homem dirigiria sua força vital
(cfr. pág- 121).
Tanto assim é que João registra o nome simbólico da piscina, Bethesda, ou "Casa da Misericórdia".
Esse nome não consta de nenhum outro documento histórico, nem podia constar, pois foi escolhido
pelo evangelista para fazer compreender a quem no pudesse, o significado da lição: um Manifestante
divino que chegava às criaturas misericordiosamente para elucidá-las.
Mas também aprendemos que a lição se referirá aos seres já purificados no corpo, os quais, tendo
superado as fases da personalidade (físico, etérico, astral e intelectual) estão começando a perceber,
consciente ou inconscientemente, o plano da individualidade, o quinto plano, embora não consigam
sozinhos dar o passo decisivo. Daí o fato ocorrer na "porta" (entrada) das "ovelhas" (dos dispostos ao
sacrifício) numa "piscina" (depois de purificados) na "Casa da Misericórdia" onde receberão a Pro-
vidência que governa a vida universal, já que eles se acham prontos a dirigir suas forças vitais nesse
sentido. Então, tudo está preparado, o discípulo está pronto, vai aparecer o Mestre Revelador dos
segredos eternos.

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C. TORRES PASTORINO
A seguir João acrescenta que "ali havia grande número de enfermos". Ora, isso jamais teria sido pos-
sível na vida real. Numa cidade dominada pelos romanos havia quase um século (de 63 A.C. a 30
A.D.), nunca seria permitido um enxame de enfermos mendigos em redor - e banhando-se! - num local
destinado aos banhos públicos, frequentados pela nata da sociedade. A entrada nas Termas era seve-
ramente controlada em Roma, em Atenas, em qualquer outra cidade importante. Por que não no seria
em Jerusalém?
Então, resultando a anotação do evangelista uma inverdade histórica, só podia ser alegórica. Tanto o
é, que ele ainda cuida de especificar os tipos de enfermos: cegos, coxos e paralíticos. Aí temos, pois,
aqueles que, embora começando a perceber a individualidade, nos lugares de "louvor a Deus" (isto é,
nas religiões oficiais) e embora na "cidade da paz" (ou seja, em estado" pacificados pela convicção
religiosa) estavam CEGOS, não compreendendo o que com eles se passava, não vendo a realidade
evolutiva; eram COXOS, como que caminhando com uma perna só (a devoção) sem conseguir usar a
outra (evolução), ou se achavam PARALÍTICOS, sem poder dar um passo sequer na estrada certa.
Todas as três espécies de enfermos que não poderiam mover-se sem ajuda de outrem!
Notemos que João não fala de surdos, pois estes seriam os que não queriam ouvir ninguém, vaidosos e
presunçosos de seus conhecimentos, e portanto não estariam ali aguardando o Mestre. Também não
fala de mudos, de leprosos, de possessos ou obsidiados, de epilépticos, de hidrópicos ... Cita apenas as
três classes que, precisamente, teriam dificuldade de "lançar-se à água quando esta se movimentas-
se": os cegos não enxergariam o movimento da água; os coxos poderiam mover-se claudicando com
dificuldade; e os paralíticos não poderiam mover-se ... Ora, se na realidade a cura se desse tal como
literalmente dá a entender o Evangelho, não haveriam de faltar os portadores de outras moléstias, que
com facilidade poderiam atirar-se na piscina, curando-se. Como lá não estavam? Mais um pormenor
que nos chama a atenção para o simbolismo da cena.
E é realçado esse simbolismo pelo fato de o Mestre dirigir-se a apenas um dos presentes, ao que já
estava preparado de todo para caminhar à frente, dando o passo decisivo para a atuação da Centelha
divina nele.
Com efeito, é anotado que esse, que ali estava, já se achava "enfermo" (fraco) havia trinta e oito anos.
Que significaria o número 38? Não vemos outro simbolismo que a falta de DOIS ANOS, para com-
pletar QUARENTA. E sabemos que 40 (veja vol. 1) exprime a luta do Espírito com o mundo exterior.
Em sua encarnação (materialização do astral e do etérico), o Espírito, a Centelha divina, ainda não
havia atingido a exteriorização de si mesma no plano da personalidade; ainda não conseguira mani-
fesfar-se a esta: faltavam dois anos somente.
Recordemos que o DOIS é, no plano humano, a receptividade feminina, o campo pronto a receber a
semente fecundadora. Então, faltava apenas receber a manifestação da PALAVRA (o Logos, ou SE-
GUNDO aspecto da Divindade) para que essa Centelha se manifestasse à personalidade. O homem
estava pronto, aguardando a mão que o ajudasse a dar o passo definitivo.
E o Cristo pergunta-lhe se ele quer dá-lo. Nada é feito sem que o livre-arbítrio da criatura o decida (é
o simbolismo do CINCO: a vontade do homem para dirigir sua força vital).
A resposta dele mais uma vez confirma nossa interpretação: "não tenho quem me ponha na piscina,
quando a água é movimentada". Por que não teria ele dito simplesmente "quero"?
Na realidade, sabemos que a ÁGUA simboliza a interpretação alegórica das Escrituras. E é disso que
se queixa o enfermo: não podia mover-se sozinho para ir buscar essa compreensão profunda (faltava-
lhe a "chave") e não encontrara ninguém que lhe proporcionasse meios de penetrar a alegoria, ex-
traindo das palavras físicas, da letra, o SENTIDO espiritual (cfr. vol. 1).
Aqui compreendemos as frases de João nos vers. 3 e 4, que podem perfeitamente ser aceitas neste
sentido mais profundo: de tempos a tempos desce um ANJO (chega à Terra um Mestre, um Manifes-
tante divino, um Avatar) e "movimenta as águas" (revela certos sentidos alegóricos e simbólicos pro-
fundos das Escrituras); e os "enfermos" que entram nessas águas (que compreendem a lição e a vi-
vem) se curam de suas fraquezas. Não se referia João, com essas palavras ao fato expresso pela letra,

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SABEDORIA DO EVANGELHO

mas a um sentido oculto, que pudesse ser captado por quem tivesse a capacidade de compreender: qui
potest cápere, cápiat.
Diante dessa disposição de aceitação plena, em que o enfermo apenas solicita a ajuda de alguém para
iniciá-lo, o Cristo resolve fazê-lo. Levanta-te, isto é, eleva tuas vibrações íntimas; toma teu leito, ou
seja domina teu corpo, carregando-o como um peso necessário, embora incômodo e externo a teu Eu
verdadeiro; e caminha, e prossegue avante tua jornada evolutiva em busca do Espírito.
A seguir o Evangelista salienta que era sábado, dia prescrito ao repouso. E por isso os "judeus" (os
"adoradores de Deus", sequazes ortodoxos da religião oficial) protestam, ao vê-lo afastar-se das
prescrições religiosas correntes. Todos os religiosos fervorosos (ou fanáticos) colocam a observância
externa dos cultos e ritos como base de salvação, e condenam com veemência (excomungando) todos
os que, libertando-se das exterioridades, procuram seguir o Espírito (individualidade).
O doente desculpa-se, dizendo que Aquele que o havia curado (que lhe havia revelado o caminho a
seguir, manifestando-lhe o sentido secreto do espiritualismo) esse lhe havia ordenado que não desse
importância aos preceitos impostos pelos homens, mesmo que tivessem sido "atribuídos" à Divindade.
Quando lhe perguntam "quem era" esse, responde "não saber": trata-se do Grande Inominado, o
Cristo Interno, que a personalidade de Jesus nos revela plenamente. Mais tarde, em outro contato
íntimo e profundo (Jesus o encontra NO TEMPLO, isto é, o Cristo tem contato com ele no coração),
percebe de Quem se trata, ao aprender que deve vigiar para não cometer outros erros, afastando-se
do Espírito, pois coisas piores lhe poderiam ocorrer, em encarnações de sofrimento e dor; não mais
trilhar os caminhos da materialidade, no Anti-Sistema, mas sair do pólo negativo para o positivo,
para o Sistema (P. Ubaldi).
Emocionado com as novidades do ensino, ofuscado com as luzes que lhe chegaram - embora já se
sentisse perseguido por haver saído da trilha normal comum a todos os religiosos de mentalidade es-
treita - resolve divulgar a verdade, revelando de onde recebeu esses ensinamentos: o Cristo. Vai a
seus antigos companheiros de religião, com o intuito de ensinar-lhes os segredos que tanto bem lhe
haviam feito. Mas isso desencadeia novas perseguições, desta vez diretamente voltadas contra o
Cristo, contra o Espírito que nele se manifestara.
Estava dada a aula prático-experimental, só faltando o desenvolvimento teórico, para que os discípu-
los compreendessem a profundidade do exemplo apresentado, da experiência vivida.
E é o que o Mestre faz, a seguir, numa lição cheia de beleza e elevação, numa aula magistral.

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C. TORRES PASTORINO

CRISTO E SUA AÇÃO – PARTE I


João, 5:17-29
17. Mas Jesus respondeu-lhes: "Meu Pai até agora trabalha, e eu também trabalho".
18. Por isso, então, os judeus mais procuravam matá-lo, porque não somente violava o
sábado, mas também dizia que Deus era seu próprio Pai, fazendo-se igual a Deus.
19. Respondeu-lhes então Jesus e disse-lhes: "Em verdade, em verdade vos digo: o Filho
não pode fazer nada por si mesmo, senão o que veja seu Pai fazendo; porque tudo o
que ele faça, o Filho também faz semelhantemente.
20. Pois o Pai ama o Filho e lhe manifesta tudo o que faz, e maiores obras que estas lhe
manifestará, para que vos admireis.
21. Assim, pois, como o Pai desperto os mortos e os vivifica, assim também o Filho vivifi-
ca os que ele quer,
22. porque o Pai não escolhe ninguém, mas deu toda escolha ao Filho,
23. para que todos honrem o Filho, assim como honram o Pai. Quem não honra o Filho,
não honra o Pai que o enviou.
24. Em verdade, em verdade vos digo, que o que ouve o meu ensino e confia em quem me
enviou, tem a vida imanente e não vai para o carma; pelo contrário, já se transladou
da morte para a vida.
25. Em verdade, em verdade vos digo, que vem uma hora, e é agora, em que os mortos
ouvirão a voz do Filho de Deus, e os que a tiverem ouvido, viverão.
26. Porque assim Como o Pai tem vida em si mesmo, assim também deu ao Filho ter vida
em si mesmo,
27. e deu-lhe autoridade para fazer a escolha, porque é Filho do Homem.
28. Não vos maravilheis disso, porque vem uma hora em que todos, nos túmulos, ouvirão
sua voz e sairão,
29. os que produziram coisas boas para uma restauração de vida, os que praticaram coi-
sas vulgares, para uma restauração de carma.

Quando os judeus se voltam para o Cristo, a fim de pedir contas de seus atos de rebeldia contra as
prescrições da religião oficial, provocam-Lhe mais uma lição de suma importância para nossa compre-
ensão das realidades espirituais.
A aula divide-se em duas partes distintas, versando a primeira sobre:
a) as qualidades e poderes do Espírito;
b) os resultados consequentes às suas ações,
na utilização dessas qualidades e poderes; na segunda parte aprendemos como conhecer a legitimidade
da missão dos mestres e da doutrina que eles ensinam.
Temos que considerar todos os pormenores da lição. Procederemos, por isso, como na aula sobre o Pão
da Vida, tecendo primeiramente comentários linguísticos para, em seguida, interpretar o sentido real
do trecho, de incalculável profundidade. Vejamos cada versículo de per si.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

17. O verbo duas vezes empregado, e que traduzimos por "trabalhar", é ergázomai (já explicado quan-
do expusemos os vers. 27-30, na lição do Pão da Vida. Vimos que tem o sentido de "produzir algo
(com esforço)", já que esse verba é derivado de érgon.
18. No original "mais procuravam matá-lo": mãllon ezêtoun autàn apokteínai; seu próprio pai: patêra
ídion: fazendo-se igual a Deus: íson heautòn poiõn tôi theôi.
19. Recomeça com a fórmula de garantia da verdade do que vai ensinar: "amén, amén".
Daqui por diante é interessante dar o texto original completo, a fim de mostrar que nossa tradução é
fiel e perfeita, sem distorções nem más interpretações. A seguir de cada frase traduzida, reproduzire-
mos em grifo o texto grego, infelizmente com caracteres latinos, em vista da falta de tipos gregos na
tipografia.
O Filho não pode fazer nada (ho huiós ou dúnatai poieín oudén) por si mesmo (aph'heaután) se não
(eàn mé) o que veja (tí blépêi) o Pai fazendo (tòn patéra poioúnta ), porque tudo o que ele faça (hà gàr
àn ekeínos poiêi) o Filho também faz semelhantemente (taúta kaí ho huiós homoiôs poieí). O sentido
das palavras não deixa a menor dúvida: Pai e Filho são UM, embora o Pai seja "maior que o Filho"
(João, 14: 28) pois o Filho procede do Pai.
20. Pois o Pai ama (phílein) o Filho e lhe manifesta tudo o que faz (kai pánta deíknusin autôi hà autòs
poiei); e maiores obras que estas (kai meizona toútôn érga) lhe manifestará (deíxei autôi) para que
vos admireis (hína huméis thaumázête).
21. Assim pois como o Pai (hôsper gàr ho patêr) desperta os mortos (egeírei toùs nekroùs; quanto ao
sentido de egeirô) e os vivifica (kaí zôopoiei) assim também o Filho (hoútos kaí ho huiòs) vivifica
os que ele quer (zôopoiei hoùs thélei).
22. Porque o Pai não escolhe ninguém (oudè gàr ho patêr krínei oudéna); já vimos o sentido de krinô:
mas deu toda escolha ao Filho (allà tèn krísin pãsan dédôken tôi huiôi).
23. Para que todos honrem o Filho (hína pántes timôsi tòn huiòn) assim como honram o Pai (kathôs
timôsi tòn patéra): o que não honra o Filho (ho mê timôn tòn huiòn) não honra o Pai que o enviou
(ou timãi tòn patéra tón pémpsanta autón); pémpsanta é o particípio de pémpô.
24. Em verdade, em verdade vos digo: o que ouve meu ensino (ho tòn lógon mou akoúôn) e confia em
quem me enviou (kaí pisteúôn tôi pémpsantí me) tem a vida imanente (échei zóen aiónion) e não
vai para o carma (kaí eis krísin ouk érchetai) pelo contrário já se transladou da morte para a vida
(allà metabebêken ek tóu thanátou eis tèn zôen); metabebêken é o perfeito de metabaínô.
25. Em verdade, em verdade vos digo que vem uma hora (érchetai hôra, sem artigo) e é agora (kaí nún
estin) em que os mortos (hóte hoi nekroí) ouvirão a voz do Filho de Deus (akoúsousin tês phônes
toú huioú toù theoú) e os que a tiverem ouvido, viverão (kaí hoi akoúsantes zésousin).
26. Porque assim como (hôsper gàr) o Pai tem vida (ho patêr échei zôen) em si mesmo (en heautôi),
assim também deu ao Filho (hoútôs kaí tôi huiôi édôken) em si mesmo (en heautôi).
27. E deu-lhe autoridade (kaí exousían édôken autôi) para fazer a escolha (krísin poieín) porque é Fi-
lho do Homem (hóti huiòs anthrôpou estin).
28. Não vos maravilheis disso (mê thaumázete toúto) porque vem uma hora (hôti érchetai hôra) em
que todos (en hêi pántes) nos túmulos (en tois mnemeíois) ouvirão sua voz e sairão (akoúsousin tês
phônes autòs kaí ekporeúsontai).
29. Os que produziram coisas boas (hoi tà agathà poiêsantes) para uma restauração de vida (eis anás-
tasin zôés, sem artigo), os que praticaram coisas vulgares (hoi tà phaula práxantes) para uma res-
tauração de carma (eis anástasin kríseôs). A palavra phaúla, geralmente traduzido por mal, tem o
sentido de "coisa vulgar, comum, ordinária, de pouco preço". O termo anástasis tem o significado
principal de "restauração, levantamento, erguimento", e por isso geralmente traduzem como "res-
surreição".

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C. TORRES PASTORINO
Consideremos, agora, o sentido real e profundo da aula sublime que a Misericórdia do Cristo trouxe
para nós. Bebamos seus ensinos até as últimas gotas, saboreando tudo o que nossa ainda pequeníssi-
ma capacidade evolutiva permite.
17. Inicialmente diz-nos o Cristo, terceiro aspecto da Divindade, que Se manifestava plenamente atra-
vés de Jesus, falando por sua boca: "meu Pai até agora trabalha e eu também trabalho", justifi-
cando Seus atos desrespeitosas da lei mosaica (lei humana, para a personalidade) com o exemplo
divino. Os próprios teólogos israelitas admitiam que Deus continuava trabalhando no cosmo.
Philon de Alexandria ("Nómôn Hieròn Allegorías", 1,5) escreve: paúetai gàr oudépote poiôn ho
theos, all'hôsper ídion tò kaíein puros kaí chíonos tò psúchein, hoútos kaí theoú tò poieín, ou seja:
"Deus jamais deixa de produzir; mas como é próprio do fogo queimar e da neve gelar, assim pro-
duzir é próprio de Deus". Cfr. também de Philon, Cherubim, 87, e os rabinos Pinehas e Hosaja,
em Bereshit-rabba, 11, citado por strack e Billerbeck, o.c. tomo 2, pág. 461.
A igualdade com o Pai, em tal intimidade que lhe justificava os atos, causou maior celeuma ainda que
o desrespeito à lei sabática. Todo israelita se sabia "filho de Deus", a quem chamava Pai; mas consi-
derando sempre um Pai exterior a eles, apenas transcendente e de natureza diferente. O Cristo, de um
golpe, embora de modo implícito, declara-se juridicamente IGUAL ao Pai, com os mesmos direitos
divinos acima de todas as prescrições religiosas. Foi isso mesmo que entenderam os presentes, con-
forme anota o evangelista, e isso era ainda muito mais grave do que a própria violação dos preceitos
legais.
Em toda esta aula, Cristo prova que, de direito, pode imitar o Pai, não porque sejam hierarquica-
mente iguais (cfr. "o Pai é maior que eu") mas porque, sendo ele o Filho Unigênito, tudo o Pai Lhe
concede, pelo amor que Lhe dedica.
Na realidade assim é. O Pai é o Logos, o SOM-CRIADOR e CONSERVADOR, que constantemente
cria e conserva os sistemas atômicos e estelares, em seus contínuos movimentos de rotação e transla-
ção. E esses sistemas - que formam miríades de Universos - são as manifestações do Filho Unigênito,
o CRISTO CÓSMICO que, de dentro de todos e de tudo - imanentemente - impele tudo à evolução
para o Espírito. O amor do Pai pelo Filho (o AMOR é o ESPÍRITO SANTO) faz que tudo caminhe do
Amor para o Amor, do Espírito para o Espírito, passando pelas fases dos aspectos intermediários do
Pai (SOM, Lógos) e do Filho (impulso evolucionador intrínseco, o CRISTO interno). Sendo o Pai o
Som Criador e Conservador, trabalha sempre, criando e conservando. E o filho igualmente trabalha
sempre, impelindo tudo pelo caminho da evolução constante e progressiva.
18. Os "judeus" (os religiosos ortodoxos da religião oficial) procuravam sufocar-lhe a voz, a fim de
não perderem sua autoridade dominadora das classes populares e mesmo das da alta sociedade: o
Espírito abafado pela matéria, o sem-Forma sufocado pela forma, o Infinito limitado pelo espaço,
o Eterno restringido pelo tempo, a Vida perseguida pela morte.
19. O ensinamento prossegue, salientando qual A AÇÃO do Filho: fazer tudo o que faz o Pai. Nada
pode fazer o Filho por si mesmo, já que é passivo, é o Amado; toda força criadora e propulsora,
ativa, de Amante, pertence ao Pai, ao Logos, ao Som Criador, à Palavra produtora do som.
Então o trabalho é feito em conjunto, porque Deus é UM só, quer sob o aspecto de AMOR (LUZ), quer
sob o de AMANTE (SOM), quer sob o de AMADO (que vai dos sistemas atômicos aos estelares, galá-
xicos, cósmicos). O Pai fala, o Filho obedece; a Palavra cria, o Filho dirige a criação; o Som produz
vibrações, o Filho as organiza, tudo ligado e existente e vivificado pela Luz Incriada, o Amor Con-
creto, que se manifesta em COESÃO nos átomos físicos (minerais), em ADAPTAÇÃO nos átomos eté-
ricos (vegetais), em SIMPATIA nos átomos astrais (animais), em DESEJO nos átomos intelectuais
(homens), em AMOR nos átomos espirituais (Filhos do Homem). E a ação, sendo conjunta, o Filho
age semelhantemente ao Pai, embora "por si mesmo" nada possa fazer: se não houver o impulso cria-
dor e sustentador vibracional do som, nada se sustenta.
20. Neste versículo confirma-se a interpretação: o Pai ama o Filho, ou seja, o AMOR (Espírito Santo)
é a ligação entre o Pai (Amante) e o Filho (Amado). O verbo philein, aqui usado, exprime o amor
terno e instintivo que é o tipo de amor que o Cristo nos pede em relação a Ele. Por causa desse

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SABEDORIA DO EVANGELHO

amor, o Pai manifesta ao Filho tudo o que faz; ou seja, tudo o que é criado pelo Som Criador traz
em si, intrinsecamente, o sopro divino, o pneuma ou Espírito, que é precisamente o Cristo Interno,
o Filho. Então, tudo o que existe pertence ao Filho (cfr. "tudo o que o Pai tem é meu", João,
16:15), porque o Filho é a essência ultérrima de tudo, já que tudo o que existe é a manifestação do
Filho.
E maiores obras, maiores produções que estas (atuais) lhe manifestará, "para que vos admireis";
profecia que já vem começando a realizar-se. Entre os israelitas, e a atual concepção da grandeza
cósmica, medeia um abismo. Hoje conhecemos muito mais profundamente a constituição das galáxias
e do número infinito dos universos com seus sistemas estelares habitados; hoje conseguimos sobre-
pujar a atmosfera e viajar pelos espaços, coisa que, naqueles idos, só o mencioná-lo, seria julgado
rematada loucura; hoje chegamos a compreender a exatidão científica das palavras do Cristo, quanto
à criação dos universos e o aparecimento da matéria: "obras muito maiores que estas lhe manifestará,
para que vos admireis".
21. Começa agora o Cristo a enumerar as qualidades e poderes do Espirito (individualidade); a pri-
meira é a VIDA; e o exemplo é o da doação da Vida.
Lembremo-nos de que a Vida é a expressão máxima do Filho, é o sopro divino em nós (e por isso até a
ciência não lhe descobriu a essência). Assim como o Pai Criador "desperta os mortos", ou seja, faz
que a matéria inerte e morta (inorgânica) se torne matéria viva (orgânica), assim como que desper-
tando de um sono de milhares de milênios, assim também o Filho vivifica, do íntimo das coisas, tudo
aquilo que ele quer, ao verificar que está na hora oportuna de elevá-los de nível.
Podemos, também, interpretar como a capacidade de fazer que os mortos tornem a despertar para a
vida em nova encarnação. Da mesma forma que o Pai, o Som Criador, desperta os mortos na encar-
nação mecânica e automática dos seres involuídos, assim o Filho vivifica os mortos na encarnação
consciente, quando cada um toma por si a iniciativa de voltar à vida física, impulsionado interna-
mente pela Centelha divina, que é exatamente o Cristo Interno, o Filho.
22. Tanto é assim, que neste versículo é explicado que "o Pai não escolhe ninguém, mas deu toda es-
colha ao Filho". Isto é, o Pai age automaticamente, dando movimento e vida A TODOS, mas com-
pete ao Filho escolher o momento exato para determinar os passos evolutivos que cada ser deve
dar, e isso porque o Filho é Imanente e dirige a evolução de dentro.
Numa interpretação mais elevada na escala, já podemos entrever a concessão do livre-arbítrio aos
seres mais evoluídos. O Pai dá-lhes força e vida, deixando-lhes inteira liberdade; mas o Filho, o
Cristo Interno, do âmago do coração de cada homem, escolhe o caminho que quer seguir, buscando
sempre a felicidade máxima. De fato pode enganar-se o homem, colocando a felicidade fora de si em
coisas externas, mas com o tempo chegará a compreender onde se encontra a meta real e verdadeira
de sua felicidade. Para isso o Cristo nos convoca e "seu amor nos impulsiona" (amor Christi urget
nos, 2.º Cor. 5:14), pois "o amor de Deus foi derramado abundantemente em nossos corações por
meio do Espírito Santo" (Rom. 5:5 ), que é o Amor Concreto.
Então, a escolha cabe realmente AO FILHO, ao HOMEM, a quem foi concedida liberdade absoluta
(livre-arbítrio), competindo ao Pai Criador conceder a graça àqueles que a escolheram por sua von-
tade própria: "toda escolha foi dada ao Filho".
Por essa razão é que rejeitamos o sentido analógico de "julgamento", já que jamais exprimiria o ensi-
namento dado.
23. A escolha foi dada ao Filho com uma finalidade: "para que todos os, homens honrem ao Filho,
como honram ao Pai". O Filho, o Cristo-que-em-todos-nós-habita, deve ser por todas as criaturas
tratado com a honra que todos tributam ao Pai. Esse mesmo verbo é usado no quinto mandamento
da lei mosaica: "honrarás teu pai e tua mãe" (Deut. 5:16). Assim como a lei escrita para a perso-
nalidade transitória manda que honremos os seres que nos proporcionaram o corpo físico, assim a
Lei de Cristo ordena honremos o Filho, que é nosso Eu Profundo, tal como honramos o Pai Cria-
dor, que nos deu a existência eterna e nos sustenta com Sua Vida.

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C. TORRES PASTORINO
E a razão é acrescentada: quem não honra o Filho, ipso facto não honra o Pai que o enviou a percor-
rer a escala evolutiva; porque ambos, Pai e Filho, são UM SÓ, no Amor do Espírito Santo: "eu e o
Pai somos UM" (João 10:30 ), confessa o Cristo. E, mais especificadamente, diz: "eu estou NO Pai e o
Pai está EM MIM" (João, 10:38 e 14:10 e 11). Se é assim como não podemos duvidar que seja - o
"envio" do Filho por parte do Pai não pode exprimir o que tem sido ensinado até hoje: que o Pai, lá
do “céu", enviou o Filho cá para a Terra, para fazê-lo morrer à mão dos malfeitores; e então, rego-
zijando-se com essa morte, teria perdoado à humanidade. Tão absurda é essa crença que não podemos
compreender como atravessou séculos, repetida por gente que parecia saber raciocinar. Seria como se
um homem tivesse uma fazenda e fosse lesado anos a fio por seus empregados. Então resolveu que
perdoaria os empregados, mas com uma condição: que eles lhe matassem o filho único! Infantilidade
inconcebível, essa teoria da "redenção", pela morte do "Filho de Deus". E o sentido do ensino é tão
diferente! Vê-lo-emos a seu tempo.
24. Passa então o Cristo a falar no resultado das ações dos homens, e nas condições indispensáveis
ao êxito da evolução, sem perigo de atrasos na caminhada. As condições são duas: a) ouvir o en-
sino que o Cristo nos traz, em nosso âmago; e b) confiar no Pai que em nós habita sob a forma de
vida, e donde partiu o Filho para constituir nossa essência profunda.
Também os resultados obtidos serão duplos: a) ter a vida imanente, UNA com o Cristo e, por isso
mesmo, b) não mais cometer erros, mas passar diretamente da morte do corpo encarnado para a vida
liberta do Espírito, não mais sujeita à lei cármica das encarnações compulsórias (kyklos ananke).
Quem ouve o ensino e se entrega ao Pai confiadamente, atrai a si a graça do Encontro Místico e se
unifica com o Cristo, que é um com o Pai (cfr. "eu estou EM meu Pai, e vós EM MIM, e eu EM VÓS",
João, 14:20). Ora, nesse estado, ninguém caminhárá para o calma; mas, embora encarnado, "já se
transladou (sentido literal de metabébêken) da morte para a Vida".
25. Com a repetição da fórmula de garantia da veracidade do que afirma, o Cristo assegura que che-
gará uma hora - e já começou desde aquele momento - em que os mortos (os encarcerados na car-
ne) ouvirão a Voz do Filho de Deus, o Cristo Interno; e todos os que a tiverem ouvido (e seguida
seus ensinamentos) viverão no Espírito.
26. Depois dessas explicações, já bastante claras, não satisfeito, utiliza-se o Grande Mestre Inefável
de repetições didáticas, repisando os mesmos conceitos com palavras diferentes, a fim de evitar
qualquer dúvida que ainda pudesse pairar na interpretação dos ouvintes. Toca novamente nos três
pontos esclarecidos: a) a V ida; b) a escolha (livre-arbítrio) ; c) o resultado (carma) das ações li-
vremente realizadas.
Diz, então: assim como o Pai tem vida em si mesmo (já não é mais o poder de dar vida, mas o fato de
ter em si a vida), assim concedeu que o Filho tivesse vida em si mesmo.
Com efeito, proveniente da Vida-Amor, manifestação da Vida Plena, o Pai é a própria VIDA que se
ativa sob o aspecto de Amante,. e como o Filho é o próprio Pai que se estende e manifesta, também o
Filho, o Cristo, tem em si a vida passiva sob o aspecto de Amado. Três aspectos de um só Amor; três
faces de um só triângulo; três raios de uma só Luz; três harmônicos de um só Som; três expressões de
uma mesma Vida.
27. Repete a seguir que o Pai concedeu ao Filho o poder da escolha, deixando-Lhe o livre-arbítrio, e
isso "porque é Filho do Homem", porque já está na plena posse de suas faculdades psíquicas e
intelectuais (racionais), podendo avaliar o que ele julga ser melhor para si mesmo.
28. Volta então ao assunto do carma, ao resultado das ações, esclarecendo que ninguém se maravilhe
de ver chegar uma hora em que todos (pántes) nos túmulos (da encarnação física) ouvirão a voz
do Cristo Interno, e sairão dos túmulos para colher o fruto de suas obras.
29. E aqui vem a separação: todos os que tiverem produzido "coisas boas" conseguirão uma restaura-
ção de vida no Espírito imortal,. mas aqueles que, porventura, tiverem praticado "ações vulgares"
(de pouca valia, apenas cuidando dos interesses materiais), esses se encaminharão para uma res-
tauração do carma.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

A lógica da sequência do ensinamento é perfeita. Só não procederia, se acompanhássemos as tradu-


ções correntes, que falam em "ressurreição da vida" e em "ressurreição do juízo". Que significaria
essa "ressurreição DO JUÍZO"? Não faz sentido o agrupamento dessas duas palavras. Por isso tradu-
zimos aqui anástasis como "restauração", sentido real dessa palavra, registrado nos dicionários, e
que nos esclarece com precisão o ensino do Cristo.

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C. TORRES PASTORINO

CRISTO E SUA AÇÃO – PARTE II


João, 5:30-47
30. Não posso fazer nada por mim mesmo; conforme ouço, escolho, e minha escolha é jus-
ta, porque não procuro minha vontade, mas a vontade do que me enviou.
31. Se eu testifico a meu respeito, não é verdadeiro meu testemunho?
32. Há outro que testifica a meu respeito, e sei que é verdadeiro o testemunho que ele tes-
tifica a meu respeito.
33. Vós enviastes a João e ele testificou a verdade.
34. Eu porém não recebo testemunho de homem, mas digo estas coisas para que vos sal-
veis.
35. Ele era a lâmpada que ardia e brilhava: vós quisestes alegrar-vos por uma hora na
luz dele.
36. Eu porém tenho um testemunho maior que o de João: pois as obras que o Pai me deu
para que eu as termine, essas obras que produzo, testificam acerca de mim, que o Pai
me enviou.
37. E o Pai que me enviou, esse testificou a meu respeito. Nem a voz dele nunca ouvistes,
nem a forma dele vistes,
38. e não trazeis imanente em vós o seu ensino, porque não confiais em quem ele enviou.
39. Examinais as Escrituras, porque pensais ter nelas a vida imanente, e são elas que tes-
tificam a meu respeito.
40. E não quereis vir a mim, para que tenhais vida.
41. Não recebo doutrina de homens,
42. mas conheci-vos, e não tendes em vós o amor de Deus.
43. Eu vim por meu Pai e não me recebeis; se vier outro por si mesmo, esse recebereis.
44. Como podeis confiar, recebendo uns dos outros uma doutrina, e não procurais a dou-
trina que vem da parte do único Deus?
45. Não penseis que vos acusarei ao Pai: há quem vos acuse, Moisés, no qual esperastes.
46. Pois se tivésseis confiado em Moisés, teríeis confiado em mim, pois de mim escreveu
ele.
47. Se porém não confiais em seus escritos, como confiareis em minhas palavras?

Continuaremos a dar o texto, frase por frase, seguida logo pelo original grego.
30. Não posso fazer nada por mim mesmo (ou dúnamai egô poieín ap'emautou oudén): conforme
ouço, escolho (kathôs akoúô krínô) e minha escolha é justa (kaì he krísis he emê dikaía estin) por-
que não procuro minha vontade (hóti ou zêtô tò thélêma tò emón) mas a vontade do que me enviou
(allà tò thélêma tóu pémpsantós me).
31. Se eu testifico (eàn egô marturĉ) a respeito de mim mesmo (perì emautou) não é verdadeiro meu
testemunho (he marturía mou ouk estin alêthês;)? A frase só pode ser interrogativa, já que em

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SABEDORIA DO EVANGELHO

João, 8:14, o Cristo diz: "se eu testifico a meu respeito, meu testemunho é verdadeiro, porque sei
donde vim e para onde vou". E Cristo não podia contradizer-se.
32. Há outro que testifica a meu respeito (állos estin ho marturôn peri emou) e sei que é verdadeiro
(kaì oida hóti alêthês estin) o testemunho (he marturía) que ele testifica (hèn martureí) a meu res-
peito (perì emou).
33. Vós enviastes a João (humeís apestálkate pròs Iôánnén) e ele testificou a verdade (kai memar-
túréken têi alêtheíai)
34. Eu porém (egô dè) não recebo testemunho de homem (ou parà anthrópou tèn marturían lambánô)
mas digo-vos estas coisas (allà taúta legô) para que vos salveis (hína humeís sôthête) . O verbo
sôzô, cuja tradução de “salvar" aqui aceitamos, embora não totalmente satisfeitos, exprime o “livrar
de perigos", o "ajudar a escapar de um perigo", ou "conservar com saúde”; não resta dúvida de que
o verbo que, em português, exprime essas coisas é "salvar"; se não ficamos satisfeitos, é porque
esse verbo tomou o sentido de "ir para o céu", coisa de que aqui não se cogita em absoluto. Mas
não conseguimos encontrar outro verbo que exprimisse a idéia do verbo sôzô, sem ser salvar. Pe-
dimos, então, aos leitores, que não o interpretem como "ir para o céu".
35. Ele era a lâmpada (ekeínos hèn ho lúchnos) que ardia e brilhava (ho kaiómenos kaì phaínôn), vós
porém quisestes alegrar-vos (huméis dè êthelésate agalliathénai) por uma hora (prós hôran) na luz
dele (en tôi phôtì autóú).
36. Eu porém tenho um testemunho (egô dè échô tèn marturían) maior que o de João (meízô tou Iôan-
nou): pois as obras que o Pai me deu (tà gàr érga há dédôken moi ho patêr) para que as termine
(hína teleiôsô autà) essas obras que eu produzo (autà tà érga hà poiô) testificam acerca de mim
(martureí perì emou) que o Pai me enviou (hóti ho patêr me apéstalken). O verbo teleióô significa
exatamente "levar ao fim" ou "terminar, concluir" trabalho, e não apenas "executá-lo", como se lê
nas traduções vulgares.
37. E o Pai que me enviou (kaì ho pémpsas me patêr) esse testificou a meu respeito (ekéínos memar-
túrêken perì emou). Nem a voz dele nunca ouvistes (oúte phônên autou pôpote akêkóate) nem a
forma dele vistes (oúte eídos autou eôrákate).
38. E não trazeis imanente em vós seu ensino (kaì tòn lógon autou ouk échete en humín ménonta) por-
que vós não confiais naquele que ele enviou (hóti hòn apésteilen ekeínos toútôi humeís ou pisteúe-
te).
39. Examinais as Escrituras (eraunãte tàs graphas) porque pensais ter nelas a vida imanente (hóti hu-
méis dokeíte en autoís zôên aiônion échein) e são elas que testificam a meu respeito (kaì ekeínai ei-
sin hai marturoúsai peri emou).
40. E não quereis vir a mim (kaì ou thélete éltheín pròs me) para que tenhais a vida (hína zôên échete).
41. Não recebo doutrina de homens (dóxan parà anthrópôn ou lambánô). Aqui mais uma vez (cfr .
vol. 1) não podemos traduzir dóxa por "glória", como nas versões correntes, mas seu sentido eti-
mológico, derivado do verbo dokéô, "ensinar"; aquilo que se ensina é o ensinamento, é "a doutri-
na". Caso aqui se tivesse que aceitar o sentido de "glória", que ocorreria? Tendo Cristo declarado
que "não recebia glória dos homens", verificaríamos que, durante séculos, a ele teriam desobedeci-
do todos os que o glorificaram e lhe renderam culto e veneração ... Esses sentidos absurdos, é que
não compreendemos como foram e são mantidos até hoje. Já o sentido exato: "não recebo DOU-
TRINA de homens" é perfeitamente lógico: o Cristo divino não vai receber imposições humanas e
prescrições de leis criadas pelos homens, como a lei mosaica do sábado.
42. Mas conheci-vos (allà égnôka humãs) que não tendes em vós o amor de Deus (hóti tén agápén tou
theoú ouk échete en heautois).
43. Eu vim por meu Pai (egô elélutha en tôi onómati tou patròs mou) e não me recebeis (kaì ou lam-
bánete me); se vier outro por si mesmo (eàn állos élthêi en tôi onómati tôi idiôi) esse recebereis
(ekeínon lêmpsesthe). Já vimos que "em nome de" significa "no lugar de", "por".

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C. TORRES PASTORINO
44. Como podeis confiar (pôs dúnasthe humeís pisteúsai) recebendo uns dos outros uma doutrina (dó-
xan parà allélôn lambánontes) e não procurais a doutrina que vem da parte do único Deus (kaì tên
dóxan tên parà tou mónou theoú ou zêteite;)? Aqui mais uma vez se confirma que doxa não pode
significar "glória". Qual é a glória que Deus dá aos homens? Mas “doutrina" ou ensinamento, sim,
vem de Deus para os homens, por meio dos Emissários divinos, sobretudo por meio de quem fala-
va, o Cristo de Deus. Trouxe-nos ele a doutrina de Deus, que os homens não recebem, preferindo
cada um receber a doutrina que os outros homens lhe dão.
45. Não penseis (mê dokeíte) que eu vos acusarei (hóti egô kategorêsô humôn) ao Pai (pròs tòn paté-
ra); há quem vos acuse (estin ho katêgorôn humôn) Moisés, no qual esperastes (Môusês, eis tòn
humeís elpíkate).
46. Pois se tivésseis confiado em Moisés (ei gàr episteúete Môusés) teríeis confiado em mim (episteú-
ete an emoì) pois de mim escreveu ele (perì gàr emou ekeínos égrapsen).
47. Se porém não confiais em seus escritos (ei dè toís ekeínou grámmasin ou pisteúete) como confia-
reis em minhas palavras (pôs toìs emoís rhêmasin pisteúesete; ) ?

Nesta segunda parte da aula, o Cristo fala-nos da legitimidade dos mestres e das doutrinas que são
trazidas aos homens. Muitos foram os que se intitularam "mestres" e ensinaram às criaturas as "suas"
doutrinas, elaboradas por seu intelecto personalista, inventando teorias e impondo obrigações a seus
sequazes, traindo a verdade que devia chegar límpida diretamente do Pai através do Cristo Interno.
30. Por isso, o primeiro cuidado do Cristo é declarar peremptoriamente que nem Ele mesmo pode
fazer qualquer coisa por si. Na realidade, sendo "O Amado" passivo, toda ação provém do
"Amante", que é ativo. Distinção que é apenas filosófica e didática, já que, na prática, ambos são
Um só. Daí a sequência: "conforme ouço, escolho", isto é, de acordo com a inspiração ou suges-
tão das vibrações que provêm do Pai Criador e Sustentador permanente de todas as coisas. Mas
são as vibrações ativas do som, que moldam as ações realizadas pelo Filho: o livre-arbitrio do
intelecto (personalidade) pode opor-se a elas, resolvendo por conta própria até em sentido contrá-
rio. Mas o Cristo, UM com o Pai, jamais se afasta das diretrizes deste. E sendo o Pai o Verbo, a
Palavra, o SOM, o termo empregado OUÇO é tecnicamente o correto: "conforme OUÇO, esco-
lho".
Ora, sendo sua escolha sempre de acordo com as vibrações sonoras emitidas pelo VERBO (Palavra),
será logicamente sempre uma escolha justa. E a razão dada do acerto da escolha é exatamente a que
nós demos, mas, como é óbvio, é apresentada com termos conformes à compreensão possível na épo-
ca: "não procuro a minha vontade, mas a vontade de Quem me enviou”. As palavras diferem, mas a
idéia é a mesma: é a adaptação de suas vibrações às do Pai, é a sintonização, é o ajustamento perfei-
to, salientado na 4.ª bem-aventurança: "felizes os famintos e sequiosos de perfeição (de ajustamento
ou sintonia perfeita) porque serão satisfeitos" Mat. 5:6; cfr. vol. 2).
31. A seguir, talvez respondendo a alguma pergunta formulada ou apenas mental, indaga por que não
seria verdadeiro o testemunho que desse a seu próprio respeito, em sinal de garantia de seu ensi-
no. Se Ele, o Cristo Unigênito, o FILHO AMADO, não tivesse consciência plena do que era e do
que podia, quem dos homens poderia fazê-lo? Então, sendo Ele consciente eternamente desde o
princípio sem princípio, conhecedor ab imo de tudo numa onisciência absoluta, seria incompetente
para testificar a seu próprio respeito? não lemos suas palavras (João, 8: 14): "se eu testifico a
meu respeito, meu testemunho é verdadeiro, porque sei donde vim e para onde vou"?
32. Concede, entretanto, a objeção, e afirma categoricamente: "não importa, há outro que testifica a
meu respeito". Desde que o testemunho venha de alguém digno de crédito, pode e deve ser aceito
de olhos fechados. No entanto Ele, o Cristo, dá sua garantia: "sei que seu testemunho é verdadei-
ro".
33. Alguns devem ter pensado no testemunho dado por João o Batista, a respeito da personalidade
Jesus, que encarnara qual o Messias prometido (cfr. João 1:29-42; vol. 1). E o Cristo não desau-

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toriza seu testemunho. Ao contrário, confirma-o: "vós enviastes a perguntar a João, e ele testemu-
nhou a verdade". Observe-se que o Cristo não diz "a meu respeito", pois na realidade João falou
de JESUS, personalidade humana, e não do Cristo, terceiro aspecto da Divindade, que vive EM
TODOS NÓS, aguardando a hora em que o deixemos manifestar-se plenamente, como Jesus o dei-
xou.
34. Mas aquele que falava, o Cristo, era caso diferente. Por isso afirma solenemente: "mas eu não
recebo testemunho de homem" ... Em sua posição de manifestação divina, qual o homem que pode-
ria dar testemunho a seu respeito? Nenhum. O finito não pode testificar sobre o Infinito, nem o
temporal sobre o Eterno, nem o transitório sobre o Permanente, nem o limitado sobre o Sem-
limite, nem o ignorante sobre o Onisciente, nem o homem sobre Deus.
Vem então a declaração da razão da sua lição: tudo o que diz tem um motivo sério, e é que os homens
possam conservar-se ilesos (dos perigos). O significado preciso do verso sôzô é "salvar" no sentido de
"conservar ileso, manter livre de perigos, conservar sadio, proteger", donde analogicamente "salvar".
Pena que o sentido atual desse verbo tenha adquirido uma nuança especial teológica, que suponha o
"fazer ir para o céti', ou então "livrar do inferno". Ora, os perigos a evitar são neste planeta, e não
depois da desencarnação. Dai a necessidade de encontrar outro sinônimo que exprima a mesma idéia,
sem nenhum substrato teológico, já enquistado no verbo "salvar", distorcendo-lhe o sentido através
dos séculos.
35. Depois do parêntese, explicando porque dava esses ensinamentos, volta a falar a respeito do Ba-
tista, dando belo testemunho dele: "era a lâmpada que ardia e brilhava", inflamado que estava de
amor pelo Cristo, seu Mestre, e pelos homens, seus irmãos; de si lançava a luz que iluminava as
inteligências e o calor que acalentava os corações. Depois declara que os "judeus" quiseram re-
almente alegrar-se por um instante na luz dele, mas logo em seguida o esqueceram, voltando-se
para os interesses materiais.
36. Aproveitando esse assunto, que voltará à tona, afirma que o testemunho que tem para citar de si
mesmo é maior que o do Batista: são as obras que o pai Lhe deu para que as termine. Aqui mais
uma vez se prova que interpretamos corretamente o sentido das palavras do Mestre. Nas tradu-
ções correntes, o verbo teleíô é traduzido como "executar". Mas seu sentido verdadeiro é "levar ao
fim, terminar, concluir" alguma coisa que foi começada por outrem (ou por si mesmo).
Temos, pois, exatamente o que dissemos. O Pai Criador e Sustentador cria e mantém em movimento
constante os sistemas atômicos e estelares, mas o Cristo-que-em-todos-habita (Cristo Cósmico -
Cristo Interno) é Quem leva todas as coisas, de dentro de cada coisa, ao término de seu aperfeiçoa-
mento, à meta de sua evolução. Perfeita a expressão: o Pai deu ao Filho as obras que criou, para que
o Filho AS TERMINE, levando-as de volta ao Sistema, ao pólo positivo.
Então conclui: "essas obras que eu produzo é que testificam a meu respeito, confirmando que o Pai
me enviou". Não era, absolutamente, uma referência às curas e chamados "milagres", que tantos ou-
tros taumaturgos também já realizaram. Muito pouco para o Cristo.
Refletindo sobre essas palavras, percebemos a realidade do processo: DESCIDA VIBRATÓRIA - SU-
BIDA EVOLUTIVA. A Luz Incriada baixa sua frequência vibratória, transformando-se em Som; este,
descendo sua frequência vibratória, solidifica-se em átomos que, dentro de si, contém a VIDA, a Cen-
telha divina, o CRISTO. Do átomo até o arcanjo (cfr. Allan Kardec, "O Livro dos Espiritos", resposta
540) e além ainda, o Cristo Interno TERMINA a obra do Pai, levando os seres à evolução ilimitada
para o reino dos céus, para o Espírito.
Então, realmente, esse trabalho hercúleo testemunha a divindade do Cristo, da Mônada divina que, no
íntimo de todos e de tudo, reside essencialmente e integralmente.
37. Então, através dessas obras é que o próprio Pai dá testemunho do Cristo, pelo Amor que mani-
festa em relação a Ele, pela confiança (pístís, fé) que Nele depositou. Depois, ainda esclarecendo dú-
vidas, tácitas ou manifestadas, confessa que realmente o Pai não é percebido pelas criaturas huma-
nas. Sendo Ele o Verbo, a Palavra, o Som, é perfeitamente natural que empregue palavras próprias:

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"nunca lhe ouvistes a VOZ". Com efeito, a voz é, de fato, produto do Som. Mas, assim também como o
Som não tem forma, assim pode acrescentar: "nem vistes sua forma".
Todas as palavras do Cristo confirmam plenamente nossa teoria que, aliás, foi exatamente deduzida
destas palavras que comentamos. Não "criamos" uma teoria, para a ela aplicar o sentido do ensina-
mento do Cristo; ao contrário: meditando longamente sobre esses conceitos, chegamos à conclusão de
que a origem e sustentação dos universos era a que o Cristo nos revelara. No fim deste capítulo, ex-
poremos nossa teoria a respeito da origem da matéria e da formação dos universos.
38. Além de afirmar que nem a voz do Pai foi ouvida, nem sua forma percebida pelos olhos, acres-
centa uma acusação séria: não trazeis imanente em vós seu ensino (muito mais lógico do que "não
permanece em vós sua palavra" das traduções vulgares; como permaneceria uma palavra pendu-
rada em alguém?); e logo a seguir dá a razão: "porque não confiais naquele que Ele enviou". Aqui
já não é simples verificação de um fato, mas uma acusação verdadeira porque o ensino está sendo
dado, mas os homens não estão entendendo nem aceitando, porque não confiam no Cristo, não
acreditam no que está dizendo. Talvez não tenham compreendido plena e profundamente nessa
hora. Mas, mesmo séculos após, ainda não compreendem.
O essencial, portanto, não será apenas ouvir, nem somente aprender, mas TRAZER FIXO, IMANEN-
TE EM SI esse ensino, vivendo-o dia a dia, hora a hora, quase que respirando-o à vida e permanen-
temente.
39. Depois, já que falava a israelitas que aceitavam as Escrituras como de inspiração divina, e nelas
colocavam toda a sua fé, certos de que, obedecendo a elas, teriam garantida a vida imanente, ou
seja, o encontro final com a Divindade "no seio de Abraão", o Cristo apela para o testemunho das
Escrituras, declarando taxativamente que elas testificam a respeito dele.
40. Queixa-se então, num lamento amoroso, que é ao mesmo tempo um apelo ao coração dos homens:
"e não quereis vir a mim, para que tenhais vida"! ...
Com todo o trabalho que o Cristo vem realizando desde miríades de milênios por nossa evolução,
impulsionando todo o progresso, não encontra senão raros exemplares que a Ele se dirigem para o
Encontro Místico no imo do coração. A grande maioria ainda corre atrás de riquezas, de prazeres de
fama, de domínio, de glórias efêmeras, de celebridade intelectual e até mesmo de santidade religiosa,
em nome de um Cristo externo, em corpo perecível; e não atinam com o Cristo Verdadeiro e Vivo, que
habita em nós, silenciosamente, ávido de receber nosso amor, nossa adesão a Ele, nossa unificação
com Ele (cfr. João, 17:21-24).
Nesse Encontro, nessa unificação com o Cristo Interno, é que encontraremos a Vida Real, e só assim
teremos a Vida em nós.
41. Depois, numa frase rápida e incisiva declara que "não recebe doutrinas de homens". É a resposta
à acusação de não respeitar a lei sabática, promulgada por Moisés. Todas as prescrições criadas
pelos homens só atingem as personalidades transitórias, jamais alcançando o Cristo Interno, so-
berano divino que está acima de todas as leis inventadas pelos que ambicionam dominar as mas-
sas com a autoridade de legisladores de almas. O Cristo, e aqueles que com Ele já vivem unifica-
dos, não precisam mais sujeitar-se a essas injunções que, em muitos casos, chegam ao absurdo e
ao ridículo.
42. E logo a seguir afirma tê-los conhecido a todos. Realmente, habitando no coração de cada um,
nada Lhe escapa à visão e ao conhecimento. Ninguém melhor e mais que o Cristo pode declarar
ter-nos conhecido e conhecer-nos. Ele, que perscruta o coração dos homens (cfr. 1 Crôn. 28:9,.
Rom.8:27 e I Cor. 2:10).
Conhecendo-nos assim, podia afirmar com toda a segurança e verdade: "não tendes em vós o Amor de
Deus". O que neles (e em tantos outros ...) predominava e predomina, são os amores das coisas terre-
nas, de si mesmos, de suas vantagens pessoais, incluindo embora a conquista do "céu", totalmente
egoística, pois se sentem felizes quando seus antagonistas vão para o inferno ...

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Não é o Amor de Deus que os move: é a ambição pessoal em todas as direções; é a vaidade de acre-
ditar-se melhores que os outros, superiores em seu orgulho e conhecimento. E por isso capacitam-se
de que podem, do alto de suas falazes cátedras, julgar e condenar a todos os que com eles não con-
cordam, ou se afastam de suas ordenações.
43. Faz então o Cristo uma declaração que mais uma vez confirma sua atuação: eu vim POR meu Pai,
em lugar de meu Pai ou, literalmente: "em nome de meu Pai". É a materialização do Verbo Cria-
dor, a solidificação, o congelamento, do som e, portanto, representa-o plenamente.
E no entanto, não é recebido, apesar de apresentar credenciais tão valiosas e seguras.
Neste ponto, faz uma oposição, a fim de mostrar como gostam as criaturas de ser enganadas: "se vier
outro em seu próprio nome, esse recebereis". Com frequência vemos isso ainda hoje. Não são ouvidos
aqueles que trazem a doutrina lídima do Cristo, mas aqueles que inventam novos sistemas pessoais e
lideram grupos de auto-elogio; esses vivem rodeados de sequazes aduladores, que os julgam super-
homens e missionários privilegiados, semi-deuses a viver no plano humano. A massa dá mais valor
aos que se endeusam, do que aos que reproduzem a humildade e a simplicidade do Cristo. Daí todos
os que pretendem angariar gloríolas humanas fazerem algo que possa atrair os humildes pequeninos:
roupagens exóticas, cabelos e barbas compridas, sinais cabalísticos como emblemas, alimentação
especial bem anunciada diante de todos, qualquer coisa, enfim, para que sua presença seja de imedi-
ato percebida e honrada.
44. Então pergunta-nos o Cristo como os homens confiam, se recebem uma doutrina "de outro ho-
mem", igual a eles; como pode uma personalidade transitória falar das realidades eternas, se não
tem unificado a si o Cristo Eterno? Como pode o intelecto limitado, encarcerado dentro de uma
caixa ossa craniana, dogmatizar sobre o infinito, se seu Espírito ainda não se "infinitizou" imer-
gindo no Cristo Cósmico? Por que então, não procurar, no Esponsalício Místico, no mergulho in-
terno, a doutrina que provém da parte do Deus único, que é o AMOR?
Só quando o Espírito expandir sua consciência pequena na imensidão da Consciência Cósmica; só
quando deixar a criatura de viver a SUA vida, personalística e pequenina, permitindo que o cristo
viva nela, é que terá capacidade para transmitir e interpretar os ensinos do Cristo Interno, que fala
silenciosamente em seu próprio coração, como no coração de todas as criaturas.
Então, ao invés de procurar em livros, em ensinamentos externos, temos que, após compreender a
fonte verdadeira que jorra incessantemente água viva em nosso íntimo, buscar a doutrina verdadeira
que provém do único Deus que em nosso âmago habita.
45. A seguir, manifestando ainda sua bondade imensa, o Cristo diz que não acusará ninguém perante
o Pai. Cada um dará conta de suas próprias obras, de seus atos, de suas palavras, de seus pensa-
mentos. O Cristo convoca e impulsiona a todos, mas a ninguém acusa, a ninguém castiga, porque
a ninguém julga.
No entanto, há alguém, cujas palavras serão por si mesmas uma acusação a todos os que Neles não
acreditam: é o próprio Moisés, em quem todos colocaram suas esperanças.
46. E isso, porque Moisés escreveu a respeito do Cristo, mas eles não confiam nas palavras que lêem.
47. E se não confiam nas palavras escritas por Moisés, como confiariam nas palavras proferidas por
ele?
Com a tristeza de quem se vê incompreendido, encerra mais uma aula magistral em que, resumindo
fatos extraordinários, nos dá lições sublimes de profundidade e elevação, dando-nos o roteiro que
todos temos que seguir, para alcançar os cimos da evolução, onde o Cristo nos espera a todos de bra-
ços abertos.

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HIPÓTESE COSMOGÔNICA
De tudo o que até agora vimos nos Evangelhos, chegamos a deduzir como se formaram os universos. E
o mais impressionante é sua concordância com as recentes descobertas científicas. O que aqui publi-
camos é simples esboço, aguardando maior aprofundamento do assunto.
João, o discípulo que reproduz os ensinos mais profundos de Jesus, o Cristo, revela-nos o segredo dos
três aspectos do DEUS ÚNICO.
Lemos em seu Evangelho (4:24), com palavras do Mestre de Sabedoria, que "DEUS É O ESPÍRITO",
ou seja, o ABSOLUTO.
No prólogo desse mesmo Evangelho (1:1 e 14) é-nos ensinado o segundo aspecto desse Espírito, como
o VERBO (a Palavra) ou LOGOS CRIADOR, a Quem Jesus chama o PAI; e aí mesmo se diz que esse
Verbo baixou Suas vibrações até a matéria ("fez-se carne"), assumindo então o terceiro aspecto do
Espírito, o FILHO. (Já nos ocupamos dessas relações no 1.º vol. da "Sabedoria do Evangelho").
Aí temos o tríplice aspecto do DEUS-UNO: Espírito, Pai, Filho.
No entanto, o próprio João revela-nos outro ângulo da questão, quando diz (l.ª João, 4:8 e 16): ho theòs
agápé estin, DEUS É AMOR. Ainda o Absoluto, o "Espírito Santo", conforme escreve Gregório Mag-
no: Ipse Spiritus Sanctus est AMOR, ou seja, "o próprio Espírito Santo é o Amor" (Hom. de Pentecos-
tes, XXX, Patrol. Lat. vol. 76 col. 1220). Então, é o AMOR-CONCRETO e REAL.
Esse Amor, quando age (ativo), apresenta-nos o segundo aspecto, o AMOR-AÇÃO, isto é, o AMAN-
TE.
Mas para que o Amante possa expandir-se, é indispensável haja o objeto de seu Amor, e então surge o
terceiro aspecto, o AMOR-PRODUTO, ou o AMADO.
Novamente encontramos o tríplice aspecto do DEUS-UNO: o Amor, o Amante, o Amado.
Tomás de Aquino (Summ. Theol. I, q. 37, art. 1 ad 3um) compreendeu bem a questão, só tendo difi-
culdade de explicá-la a fundo, porque o ensino de Jesus sofrera má interpretação, e a "trindade" tivera
seus aspectos invertidos para "Pai-Filho-Espírito Santo", ao invés do correto "Espírito-Pai-Filho". Eis a
palavra do Angélico: "Diz-se que o Espírito-Santo é a união entre o Pai e o Filho, já que é o AMOR;
porque como o Pai ama num único amor a si e ao Filho, e vice-versa, é expressada no Espírito-Santo,
como AMOR, a relação do Pai ao Filho, e vice-versa, como do AMANTE ao AMADO.
"spiritus Sanctus dicitur esse nexus Patris et Filii inquantum est AMOR: quia cum Pater amet única
dilectione Se et Filium, et e converso, importatur in Spiritu Sancto, prout est AMOR, habitudo Patris
ad Filium, et e converso, ut AMANTIS AD AMATUM. sed ex hoc ipso quod Pater et Filius se mutuo
amant, oportet quod mutuus Amor, qui est Spiritus Sanctus, ab utroque procedat" (Summ. Theol. I,
q.37, art . 1, ad 3um).
Até aqui perfeito. Daí por diante, vemos a dificuldade de Tomás, por causa da inversão dos aspectos
trinitários; continua ele: "Mas pelo fato mesmo de que o Pai e o Filho se amam reciprocamente, é ne-
cessário que o amor mútuo, que é o Espírito-Santo, proceda de um e de outro". Neste final está o equí-
voco. Nas criaturas, sendo o amor abstrato (um acidente, não a substância), é ele a resultante das rela-
ções entre amante e amado. Mas em Deus, sendo o Amor substancial e concreto, é Dele, do Amor, que
procedem o Pai e o Filho, gerados pelo próprio Amor-Concreto.
Escreve Agostinho: "Não deve compreender-se confusamente o que diz o Apóstolo: dele, por ele e
nele" ("Non confuse accipiendum est quod ait Apostolus: ex ipso, et per ipsum, et in ipso" - Ag. De
Trinit., 6,10; Patrol. Lat. vol. 42, col. 932); e mais adiante: "Diz Dele por causa do Pai; por Ele, por
causa do Filho; e Nele, por causa do Espírito-Santo" ("Ex ipso dicens propter Patrem, per ipsum,
propter Filium, et in ipso, propter spiritum Sanctum" - Ag. Contra Maxim., Patrol. Lat. vol. 42, col.
800).
E Tomás continua a completar a objeção ("Sed videtur inconvenienter. Quia per hoc quod dicit IN IP-
SO, videtur importari habitudo causae finalis, quae est prima causarum" - Summ. Theol. I, q. 39,

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SABEDORIA DO EVANGELHO

art.8, obj. 4.º): "Mas parece que incorretamente, porque nele parece implicar a relação de causa final,
mas esta é a primeira das causas". Esta objeção contém grande verdade, pois tudo existe NELE, no
Amor, no Espírito-Santo, que é realmente a Causa Primeira; tudo provém DELE, do Pai do Amante-
Criador; e tudo é feito por ELE, pelo Filho, pelo Amado, o Cristo. Realmente é assim, pois hoje já não
mais pode admitir-se a criação INSTANTÂNEA, ex nihilo, aparecendo tudo pronto e feito de um gol-
pe: o que a ciência prova, é que o PAI imergiu na matéria tomando a aparência de FILHO, penetrando
na matéria para que ela EVOLUA POR SI MESMA, isto é, POR ELE, pelo Filho, que lhe constitui a
essência última e profunda, sua alma, seu espírito.
Ainda em João temos uma terceira revelação (l.ª João, 1:5): DEUS É LUZ (ho theòs phôs estin).
E aqui chegamos à parte científica da Física de vibrações, já comprovada modernamente: tudo o que
existe é produto de vibrações, e a vibração que dá origem a tudo é a LUZ. Mas, como se condensou a
Luz?
Facilmente se comprova. que a Luz, sendo vibração, produz SOM. E quanto mais alta a frequência
vibratória da luz, mais forte, (embora inaudível a nossos ouvidos físicos) o som. Que força não terá o
som produzido pela Luz Infinita, eterna e incriada?
Então, temos o primeiro aspecto: o Absoluto, a LUZ, o Espírito. Essa LUZ produz o SOM, que é cha-
mado A PALAVRA (em latim, VERBO, em grego, LOGOS). E esses nomes são bem característicos,
de que o Pai-Criador é, realmente, SOM, pois que é PALAVRA.
Esse SOM produz as massas que se movimentam com rotação e translação constantes, enquanto per-
dura o som que as criou e as re-cria a cada instante (cfr.: "meu Pai trabalha até hoje, e eu também tra-
balho", João, 5:17); essas massas em movimento constante (se parasse o movimento, tudo cairia no
nada) podem ser macroscópicas (sistemas estelares) ou microscópicas (sistemas atómicos): "o que há
em cima, é como o que há em baixo" (Hermes). Essas massas, em que se tornou o Som Criador, são O
FILHO, pois são animadas e constituídas pela essência do SOM-CRIADOR, mas existem EM SI,
como FILHO, o terceiro aspecto.
Resta provar que o som produz sistemas estelares ou atômicos.
O Dr. Hans Jenny, médico em Dornak (Basiléia, Suíça), conhecido técnico em acústica experimental,
ampliou de muito as experiências de Chladni, operando com diversos materiais. De suas pesquisas, as
que vem em apoio de nossa terioria são as realizadas com pó de licopódio, colocado em finas camadas
sobre membranas vibrante.
Espalhado o pó, foi produzido o SOM, controlado em suas vibrações em Hz; e as figuras formadas,
foram filmadas durante todo o processo por Hans Peter Widmer. De seus filmes foram extraídas as
gravuras que reproduzimos.
Uma das observações básicas, comprovadas pelo Dr. Jenny, foi de que as massas redondas de licopó-
dio, aglutinadas do pó, pelo som, mantinham permanentemente um movimento de rotação sobre si
mesmas e outro de translação, "parecendo, escreve ele, semelhantes a sistemas cósmicos, e dando a
sensação de reproduzir as estruturas que unem entre si as várias partes da criação". Realmente, "as
figuras pulsam e oscilam enquanto permanece o som, apresentando correntes e rotações regulares".
Nas quatro figuras, vemos:

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C. TORRES PASTORINO

FIG.1 - Na produção do som, o pó de licopódio se reúne em pequenas massas esféricas, que jamais se
imobilizam; mas além do movimento de rotação sobre si mesmas, tem o movimento traslação, cami-
nhando da periferia para o centro grudadas à membrana, emergindo no centro, e regressando à perife-
ria por cima das outras, numa circulação contínua.

FIG. 2 - Aumentanda-se a amplitude da vibraçãa sonara, as massas esféricas se vão aglomerando umas
às outras tendendo para o centro e aumentando de volume por aglutinação .

FIG. 3 - A aglomeração vai crescendo ao ampliar-se a frequência vibratória do som, até formar-se uma
grande ESFERA, que prossegue em seu movimento regular de rotação sobre si mesma, o qual causa
desenhos de altorelevo (montanhas e vales!) como manifestação desse movimento; mas além dele,

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SABEDORIA DO EVANGELHO

continua sua rota constante de translação. O autor faz aqui uma observação: de que todo o processo
aparece como uma tentativa de modelo das relações entre a parte e o todo num sistema unitário: cada
parte, em seu próprio campo, se comporta como o todo, pois faz exatamente tudo o que o todo faz; ao
passo que o todo-aparente, apesar de sua unidade, se divide em vários elementos.

FIG. 4 - Aumentando ainda mais a amplitude da vibração sonora, vemos que os movimentos se tornam
mais violentos (Jenny os chama "dramáticos"), e as massas esféricas são atiradas "como o jato de uma
fonte" para a periferia, enquanto os da periferia voltam em grande velocidade para o centro, sem ja-
mais perder o movimento rotativo.

Resta esclarecer um ponto básico: o som atua na matéria (pó de licopódio) fazendo-a movimentar-se;
mas a matéria já existe. Como se explicaria, porém, o fato do aparecimento da matéria? Já existiria ela
antes de ser movimentada pelo Som Inaudível (talvez aquele a que alguns chamam a "música das esfe-
ras")? Ou terá surgido como que criada pelo som? Neste último caso, esse surgimento daria a real im-
pressão de ser verdadeira criação ex nihilo (do nada).
Acreditamos nesta segunda hipótese que, no entanto, ainda não podemos comprovar cientificamente,
mas apenas expô-la teórica e racionalmente.
Já foi provado pelas experiências atômicas que, na desintegração do átomo, a matéria desaparecia to-
talmente, transformando-se em energia. Donde a dedução correta de que a matéria é simples congela-
mento ocasionado pelo baixamento de vibrações na degradação da energia.
Por outro lado, sabemos que a mais baixa frequência vibratória do som audível é de 16 ciclos por se-
gundo. Se descermos mais, entramos na vibração da matéria, que vai diminuindo até frações ínfimas
da unidade, embora sem jamais atingir o zero (teoria dos limites), senão cairia no nada absoluto. Raci-
ocinando ao revés, verificamos que se a matéria ativar suas vibrações, crescendo-as acima de 16, pro-
duzir-se-á o som ... São, pois, vizinhos na escala vibratória o som e a matéria, bastando uma fração de
grau a mais ou a menos, para que de um estado se passe a outro.
Compreendemos então que, ao degradar-se ("Degradarse" no sentido de diminuir o grau, fisicamente,
sem nenhuma influênda moral) o Som Infinito, suas vibrações baixaram a tal ponto que se tornaram a
"poeira cósmica": o som se transformou em matéria ("o Verbo se fez carne" ...), criando-a (Interes-
sante observar que foi dito: "YHWH formou o homem do pó da terra" - Gên. 2:7). Ao continuar o som
a agir sobre a poeira cósmica, começa ela a movimentar-se reunindo-se em pequenos agregados - ele-
mentos atômicos - que acabam formando os átomos; estes, as moléculas; estas, os agregados molecula-
res, que se vão complicando até possibilitar, pela reunião de H, O, C e N o surgimento da vida, impul-
so elétrico da eterna energia sonora, manifestação da Inteligência que atuará daí por diante, impelindo
e dirigindo a evolução no processo inverso de regresso ao Espírito. Utilíssimo consultar, a propósito, a
"Grande Síntese", de Pietro Ubaldi (sobretudo o cap. 48).

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C. TORRES PASTORINO
Com essa hipótese, ficaria explicada cientificamente a discutida origem da matéria, que teria sido cria-
da pela degradação da energia sonora, a qual provém da degradação da Luz (Einstein). A Luz lncriada
baixou suas vibrações tornando-se SOM, e o Som degradando sua energia, solidificou-se, tornando-se
MATÉRIA.
Compreendemos, dessa forma, porque uma partícula ultra-microscópica, como o átomo, tem em si tão
grande energia concentrada que, ao ser ele desintegrado, detona forças imensuráveis.
E é por isso que os antigos mestres denominavam a matéria Lúcifer (portador da luz) , pois sua subs-
tância ultérrima é, realmente, a luz.
Por aí vemos a confirmação de nossa teoria: o SOM produz os sistemas estelares gigantescos e os sis-
temas atômicos ultra-microscópicos. O SOM é realmente o VERBO-CRIADOR, que se torna FILHO
criando a matéria. E de dentro dessa mesma matéria, como elemento impulsionador, como ALMA, vai
fazendo que a matéria evolua, até atingir novamente a espiritualização completa. Tudo se resume num
baixamento de vibrações altíssimas, até o limite máximo que conhecemos no sopé da escala, a matéria.
E tudo tende a evoluir subindo novamente de vibração até o ponto máximo na elevação da vibração do
Espírito ("até que todos cheguemos à medida da evolução de Cristo", Ef. 4:13). Compreendemos, pois,
que a matéria, expressão e manifestação da Divindade, existe desde que a LUZ-INCRIADA produziu
o SOM -CRIADOR.
Resumamos os três aspectos daquilo que costumamos chamar DEUS:
A - o Abosluto Imanifestado B - a Manifestação C - o Manifestado
1. Na Física de Vibrações:
LUZ INCRIADA SOM CRIADOR SISTEMAS
(atómicos e estelares)
ESPÍRITO ENERGIA MATÉRIA
2. Na Física dinâmica:
FORÇA POTENCIAL FORÇA MOTORA MOVIMENTO
3. Na Biologia:
VIDA AMORFA FORMADOR DE VIDA FORMAS VIVAS
(Vivificante)
4. Na Filosofia:
MENTE (Inteligência) PALAVRA CRIADORA CRISTO CÓSMICO
Pensamento absoluto Verbo ou Lagos Alma dos Universos
PENSAMENTO VONTADE AÇÃO
5. No Psiquismo:
ESPÍRITO SANTO PAI CRIADOR FILHO UNIGÊNITO
6. Na Mística:
AMOR CONCRETO AMANTE (Ativo ) AMADO (Passivo)
Esses três aspectos se refletem no HOMEM, quando a matéria já atingiu, em sua eterna evolução, um estágio superi-
or, de forma a permitir a manifestação inteligente do CRISTO, através dele ("feito segundo a imagem e semelhança
de Deus"):
CENTELHA DIVINA ESPÍRITO VEÍCULOS FÍSICOS
Mente Individualidade Personalidade (intelecto, astral, elétri-
co, corpo)
Allan Kardec chamou a esses três aspectos principais de :
ESPÍRITO PERISPÍRITO CORPO

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SABEDORIA DO EVANGELHO

ÍNDICE REMISSIVO
CRISTO E SUA AÇÃO – PARTE I, 136 Maria, mãe de Tiago o menor e de José, 23
CRISTO E SUA AÇÃO – PARTE II, 142 MORTE DO BATISTA, 82
CURA DE HEMORRAGIA, 49 MULHERES, AS, 23
CURA DO SERVO DO CENTURIÃO, 3 MULTIPLICAÇÃO DOS PÃES, 1.ª, 93
CURA NO TEMPLO, 130 Multiplicação dos Pães, OBSERVAÇÕES, 95
DEUS, 152 O AMOR SALVA, 19
Família de Jesus, 24 OBSIDIADO DE GERASA, 42
FAMÍLIA DE JESUS, 10 OPINIÃO DE HERODES, 87
Fatos históricos, 69 ORAÇÃO, EM, 99
FILHO DA VIÚVA, 8 PÃO DA VIDA – PARTE I - O CENÁRIO, 109
GENESARÉ, EM, 105 PÃO DA VIDA – PARTE II - MOTIVAÇÃO, 112
HIPÓTESE COSMOGÔNICA, 148 PÃO DA VIDA – PARTE III - VIA
INSTRUÇÕES AOS EMISSÁRIOS – PARTE I, 62 CONTEMPLATIVA, 115
INSTRUÇÕES AOS EMISSÁRIOS – PARTE II, 67 PÃO DA VIDA – PARTE IV - VIA UNITIVA, 121
INSTRUÇÕES AOS EMISSÁRIOS – PARTE III, 70 PÃO DA VIDA – PARTE V - DESFECHO, 126
INSTRUÇÕES AOS EMISSÁRIOS – PARTE IV, 75 PÁRABOLA DO SEMEADOR, 26
INSTRUÇÕES AOS EMISSÁRIOS – PARTE V, 79 PARÁBOLAS, A EXPLICAÇÃO DAS, 33
JESUS ANDA SOBRE A ÁGUA, 101 PARÁBOLAS, RAZÃO DAS, 32
JESUS É SEGUIDO, 90 PEDIDO DE JAIRO, O, 48
JESUS EM NAZARÉ, 56 PREGAÇÃO, 81
JESUS PERCORRE A GALILÉIA, 60 REGRESSO DOS EMISSÁRIOS, 86
Joana, mulher de Cuza, 23 REINO DOS CÉUS, O, 29
JOÃO - REENCARNAÇÃO DE ELIAS, 13 Suzana, 23
JULGAMENTO, 64 TRIBUTO DO TEMPLO, 107
KRÍNÔ e KRÍSIS, 65 VENTANIA ACALMADA, 39
Maria Madalena, 23

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CARLOS TORRES PASTORINO
Diplomado em Filosofia e Teologia pelo Colégio Internacional S. A. M. Zacarias, em Roma – Professor
Catedrático no Colégio Militar do Rio de Janeiro e Docente no Colégio Pedro II do R. de Janeiro

SABEDORIA DO
EVANGELHO

4..º Volume

Publicação da revista mensa1.

SABEDORIA

RIO DE JANEIRO, 1964


C. TORRES PASTORINO

Figura “O BOM PASTOR”

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SABEDORIA DO EVANGELHO

REGRESSO A GALILÉIA
João, 7:1
1. Depois disso, Jesus andava pela Galiléia, porque não queria andar pela Judéia, pois
os judeus procuravam matá-lo.

Era natural que após as declarações que fizera em Jerusalém, indispondo-se com os elementos in-
fluentes da religião oficial, Jesus não julgasse prudente permanecer naquela região que se tomara peri-
gosa.
Não percamos de vista que ele era um galileu, proveniente do território mais habitado por estrangeiros,
dos quais conservava o tipo claro, de cabelos bronzeados e nariz reto, bem diferente dos judeus, more-
nos, de cabelos pretos e nariz aquilino. Encontrara-se com a má vontade dos homens da Judéia. Então,
regressava à Galiléia, à Terra em que nascera e se criara, à cidade que escolhera para residir.

Verificamos que depois das declarações aos religiosos (judeus), tendo encontrado mau acolhimento às
suas afirmativas cheias de inovações nas crenças tradicionais, a individualidade se recolhe ao Jardim
Fechado da meditação (Galiléia), onde permanecerá instruindo seus discípulos (exercitando seus veí-
culos físicos) no caminho da evolução (da superação dos instintos inferiores).
Perseguido numa cidade, fugir para outra. Foi a lição dada anteriormente. O exemplo também foi
dado. A meditação sobre os ensinamentos e os passos de Jesus podem, de per si, levar a criatura à
perfeição.

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C. TORRES PASTORINO

DOGMAS HUMANOS

Mat.15:1-11 Marc. 7:1-16

1. Vieram, então, de Jerusalém a 1. Reuniram-se com ele os fariseus e alguns escribas vindos
Jesus, escribas e fariseus, di- de Jerusalém.
zendo: 2. E, tendo visto que alguns discípulos dele comiam pão
2. "Por que transgridem teus dis- com mãos contaminadas, isto é, sem lavá-las,
cípulos a tradição dos mais ve- 3. - pois os fariseus e todos os judeus, observando a tradi-
lhos? Pois não lavam as mãos ção dos mais velhos, não comem sem lavar as mãos até o
quando comem pão". punho,
3. Respondendo, disse-lhes Jesus: 4. e quando voltam da rua não comem sem banhar-se; e
"Por que vós também trans- muitas outras coisas há que receberam e observam, la-
gredis o mandamento de Deus vando copos, jarros e vasos de metal –
com vossa tradição?
5. perguntaram-lhe os fariseus e os escribas: "Por que não
4. Pois Deus ordenou, dizendo: caminham teus discípulos segundo a tradição dos mais
"Honra teu pai e tua mãe', e velhos, mas comem com mãos contaminadas"?
também: 'Quem falar mal do
pai ou da mãe seja ferido de 6. Respondeu ele: "Bem profetizou Isaías a vosso respeito,
morte', mas vós dizeis: hipócritas, como está escrito: 'Este povo honra-me com
os lábios, mas seu coração está muito longe de mim;
5. 'Se alguém disser a seu pai ou a
sua mãe: “Oferta, o que de 7. em vão, porém, me veneram, ensinando doutrinas que
mim serias ajudado", são preceitos de homens'.
6. esse nunca mais honre seu pai 8. Deixando o mandamento de Deus, observais a tradição
nem sua mãe. Assim invalidais dos homens".
a ordem de Deus com vossa 9. E disse-lhes: "Anulais muito bem o mandamento de
tradição. Deus, para manter a vossa tradição,
7. Hipócritas! Bem profetizou de 10. pois Moisés disse: 'Honra teu pai e tua mãe', e: 'Quem
vós Isaías, dizendo: maldisser a seu pai ou a sua mãe, seja morto';
8. 'Este povo honra-me com os 11. mas vós dizeis: 'Se um homem disser a seu pai ou a sua
lábios, mas seu coração está mãe: "Oferta o que de mim serias ajudado",
muito longe de mim;
12. não lhe permitis fazer mais nada pelo pai ou pela mãe,
9. em vão, porém, me veneram,
ensinando doutrinas que são 13. invalidando o ensino de Deus pela tradição que vós
preceitos de homens". mesmos transmitistes; e fazeis muitas outras coisas se-
melhantes".
10. E tendo chamado a multidão,
disse-lhe: "Ouvi e entendei: 14. E tendo chamado todo o povo, disse-lhe: "Ouvi-me todos
e entendei:
11. não é o que entra pela boca que
contamina o homem, mas o que 15. nada há fora do homem que, entrando nele, possa con-
sai da boca, isso contamina o taminá-lo, mas as coisas procedentes dele, essas são que
homem”. contaminam o homem.
16. Se alguém tem ouvidos de ouvir, ouça".

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Depois da exposição realizada em Jerusalém, e que provocara a perseguição a Jesus, com o intuito de
matá-Lo, já de volta a Cafarnaum (onde também o pequeno sinédrio o julgara digno de morte por cau-
sa da lição sobre o Pão da Vida), o Mestre se vê cercado pelos fariseus locais, cujo grupo fora reforça-
do por alguns escribas vindos de Jerusalém. A impressão que temos, é que se formara uma comissão
de "doutores da Lei", para sindicar a respeito das atividades desse operário-carpinteiro afoito, que dava
tanto que falar. E Jesus vai sublinhar com ênfase o que dissera: "não recebo doutrinas de homens"
(João, 5:41).
Logo à chegada, verificaram eles uma falta grave: os discípulos de Jesus tomavam sua refeição sem
lavar as mãos. Constituía isso imperdoável crime, porque violava os preceitos dos "mais velhos"
(presbyteros, no comparativo de presbys, "velho"); referiam-se às ordenações orais (hálaga) que che-
gavam por meio da tradição. Esta era considerada superior até à própria lei mosaica e transgredi-la
importava em heresia punível com a morte.
Conforme esclarece Marcos, a lavagem das mãos antes de comer era prescrição rigorosa, sujeita a lon-
ga série de complicadas regras. Tinham que ser lavadas pygmêi (até os punhos), com dois derrama-
mentos de água sobre elas: o primeiro para purificar (e a água saía contaminada) e o segundo para tirar
as gotas "contaminadas" da primeira ablução, que porventura tivessem ficado aderidas à pele; tinham
que ser lavadas com as mãos vazias (sem segurar nada); se a água não chegasse até os punhos, não
purificava as mãos; na ablução, os dedos tinham que permanecer no alto e os pulsos para baixo, e as-
sim permanecer até que as mãos secassem por si, etc. (cfr. Strack e BilJerbeck, o. c. t. 1, pág. 698 a
705).
Quanto ao termo "contaminadas" é a tradução do grego koinos ("comum") e do verbo koinéô ("tornar
comum"). Esse adjetivo e o verbo que dele deriva qualificam as coisas que pertencem ao uso ordinário
e vulgar de todas as criaturas (como, por exemplo, a língua utilizada nos domínios romanos do oriente,
como a Palestina, era conhecida como "grego koinê", isto é, a língua familiar a todos, falada pelo povo
todo, não o grego clássico, privativo dos literatos). Então, na época de Jesus, esse adjetivo e esse verbo
eram empregados com o sentido "comum" ou "vulgar", e portanto contaminado pela multidão, pelo
contato com as criaturas não legalmente purificadas.
Quando Marcos aqui se refere a "judeus", com isso designa a nação judaica, não tendo a palavra o
sentido que vimos utilizado por João.
A prescrição da lavagem das mãos era mais severa quando se voltava "da rua" (no original, apò agorá,
ou seja, do mercado, das lojas, da praça pública, que nós hoje englobamos na expressão "chegar da
rua"). E continuando diz que também copos, jarros e vasilhas de metal deviam todos ser lavados e pu-
rificados antes de neles serem servidos os alimentos e bebidas.
Todas essas prescrições foram posteriormente reunidas na Mishna e depois no Talmud.
Outro termo que convém analisar é presbyteros, "os mais velhos", geralmente transliterado por "pres-
bíteros" ou traduzido por "sacerdotes", "padres", etc. Nada disso exprime esse termo. Segundo a legis-
lação mosaica, em cada comunidade judaica deviam os homens mais idosos, "os mais velhos", assumir
uma espécie de direção da comunidade, solucionando os casos, resolvendo as questões, decidindo lití-
gios, quase um "conselho patriarcal". A esses "mais velhos" a Vulgata dá o nome de maiores natu, ou
então de seniores, traduzindo exatamente presbyteroi e o hebraico zeqênim. A constituição oficial dos
mais velhos (cfr. Núm. 11:16 e seguintes; Lev. 9:1 e Deut. 27:1) também foi praxe em Roma, na orga-
nização inicial do "senatus", palavra derivada de sénis, "velho".
Dirigindo-se, pois, ao Mestre, responsável moral pelos atos de seus discípulos, indagam do motivo por
que não obedecem estes aos preceitos dos "mais velhos". Interessante observar que foi empregado o
verbo peripatéô, "caminhar", no sentido figurado: "caminhar pelos preceitos", isto é, seguir os precei-
tos, significado ignorado no grego clássico, mas usado no Antigo Testamento na versão dos LXX (cfr.
2.º Reis 20:3, Prov. 8:20) e também por Paulo (cfr. Rom. 8:4 e 14:15, 2.º Cor. 10:2 e 3, Ef. 2:2) e por
João (cfr. 8:12, 12:35 e I Jo. 1:6).

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C. TORRES PASTORINO
Ao invés de responder diretamente à pergunta, Jesus contra-ataca, justificando sua maneira de ver as
coisas e mostrando à evidência que as exageradas exigências dos "mais velhos" não só careciam de
importância como, muitas vezes, ludibriavam e anulavam a própria lei mosaica. Diante do argumento
ad hominem, calam-se contrafeitos os emissários de Jerusalém, engulindo o pesado epíteto de "hipó-
critas" (atores) que lhes aplica o Mestre.
As palavras são todas de tom acre e acusatório, revelando a energia máscula que jamais faltou ao
Mestre, que não se intimidava perante qualquer ataque. A meiguice era usada com os pobres e enfer-
mos desvalidos, em cujo trato transparecia uma bondade delicada, até quase feminina. Mas perante as
"autoridades constituídas", contra os "grandes" da política ou da religião, revelava indômita energia e
autoridade moral, ensinando-nos que a humildade não consiste em abaixar-se covardemente nem si-
lenciar perante adversários poderosos.
O argumento lançado em face dos escribas, de que eles colocavam as tradições acima da lei, anulando-
a, é fundamentada com o exemplo de qorban. Quando um filho não desejava ajudar a seus pais, basta-
va-lhe afirmar que tudo o que poderia dar-lhes "era qorban". Essa palavra designava os objetos consa-
grados (ou pseudo-consagrados) ao Templo, como oferta particular; e o doador da oferta podia dispor
deles para qualquer finalidade, menos para seus pais, abuso baseado em Lev. 27: 1-34. O rigor nesse
sentido chegava ao absurdo (Wakefield diz que extraiu do Talmud o caso de um israelita de Beth Ho-
ron, que consagrara seus bens como qorban. Mas ao casar um filho quis convidar seu pai. Para isso,
vendeu a um amigo o quarto em que se realizaria a festa, "com a condição de que convidasse seu pai".
A transação foi julgada ilegal, só por causa dessa cláusula ...). Por isso não admira a energia de Jesus
ao protestar contra esse costume bárbaro.
A frase grega é uma tradução literal do aramaico (qônâm sheâttâh neheneh lakh) e por isso sua forma
não apresenta maleabilidade. Mas o sentido é este: "tudo o que tenho e que poderia ser-te útil, é qorban
(oferta ao Templo)". Com isso estava realmente anulado o quinto mandamento, "honrarás teu pai e tua
mãe" (Êx. 20: 12 e Deut. 5: 16) e ainda outro texto: "quem fala mal de seu pai ou de sua mãe será pu-
nido com a morte" ( Lev. 21: 17) . Ora, quem condenava seus pais a sofrerem todas as necessidades.
sem socorrê-los, agia pior que se falasse mal deles.
Mais uma vez Jesus ataca com veemência a impertinência costumeira dos dirigentes religiosos, que
antepõem suas prescrições rituais aos mandamentos simples e naturais da Grande Lei do Amor, "anu-
lando a ordem divina, para manter a tradição criada pelos homens".
E, classificando-os de hipócritas, atribui a eles a palavra do profeta Isaías (29:13), segundo a versão
grega dos LXX, já que o texto hebraico reza: "pois esse povo se aproxima com palavras e me honra
com os lábios, enquanto mantém afastado de mim seu coração, e o culto que me rende é um preceito
aprendido de homens".
Dando então as costas aos acusadores, que se mantinham retraídos, silenciosos e vencidos, volta-se
Jesus para o povo, exclamando: "ouvi e compreendei"! Estava consciente de que a frase que ia procla-
mar era de difícil compreensão, mas de qualquer forma é ela dita de forma axiomática, de que Marcos
parece conservar-nos o texto original mais completo: "Nada, vindo de fora, pode, ao entrar no homem,
contaminá-lo; mas as coisas que procedem dele, essas contaminam o homem".
A seguir, para mais uma vez chamar a atenção dos ouvintes, repete a conhecida expressão "quem tem
ouvidos de ouvir, ouça". Esta sentença (o vers. 16) inexistente em aleph, B, L, 28 e 102, aparece em A,
D, X. gama, sigma, phi e numerosos códices minúsculos, e na maioria das versões; é rejeitado por
Tishendorf, Nestle, Swete, mas aceita por von Soden. Vogel, Merk, Lagrange, Huby e Pirot.
Realmente, a sentença é de difícil compreensão. Para os israelitas, que tinham uma série de "alimentos
impuros" proibidos (cfr. Lev. cap. 11 e Deut. cap. 14) equivalia a uma ab-rogação da lei mosaica. Mas
a segunda parte corria o risco de ser interpretada à letra, isto é, significando que só contaminava o ho-
mem o que saía dele (em Mateus: "da boca"), ou seja, as excreções, a saliva, etc. Mais adiante o Mes-
tre explicará aos discípulos o sentido que deu a essas palavras.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

A lição para a individualidade é válida em todos os seus pontos.


Em primeiro lugar, aprendemos que são inúteis todos os ritos e rituais, as preces repetidas desaten-
tamente "com os lábios" 50 ou 100 vezes, (se excetuarmos jaculatórias ou "japas" ditas de coração)
todos os gestos, as posturas, as "observâncias" de datas, as exterioridades que só valem para as per-
sonalidades ou personagens (Aceitamos a observação de Sergio M. Mondaini (v. SABEDORIA n.º
34) de que talvez seja melhor classificar de "personagem" (substantivo concreto) o que denomináva-
mos "personalidade" (substantivo abstrato, que considerávamos como concreto). Realmente expressa
bem o que desejamos, e evita confusões com o sentido atribuído a "personalidade" pelos psicólogos
modernos. Daqui por diante iremos pouco a pouco substituindo essa palavra por "personagem”) ainda
retardadas no caminho da evolução. Para todos aqueles que julgam que seu verdadeiro eu é o corpo,
logicamente só vale o que é executado por esse corpo: é o máximo que eles podem fazer na etapa em
que se encontram. Para eles, acender uma vela, realizar um gesto em cruz com as mãos, cobrir ou
descobrir a cabeça, ajoelhar-se ou ficar de pé, comer carne domingo ou peixe na sexta-feira, são coi-
sas de capital importância; não compreendem ainda que só tem real valor o íntimo, com pensamentos
de amor para com todos, de perdão, de amizade, sem falar nem mesmo pensar mal de ninguém, sem
malícia nem julgamentos apressados.
O que constitui evolução são as vibrações internas e a adesão total à Lei Natural, à Lei de Deus, de
nada valendo as prescrições humanas. A honra a ser dada aos pais, como a todas as criaturas, é ma-
nifestada com o respeito e a assistência nos momentos de necessidade, sem estar a fazer conta do que
se dá, sem lançar ao rosto dos beneficiados os benefícios prestados, sem exigir retribuição e nem
mesmo gratidão, porque a ajuda a quem está necessitado constitui obrigação, e não caridade.
Em segundo lugar, a lição importantíssima da energia na defesa da verdade. Há quem pense que espi-
ritualizar-se e ser humilde é ceder e abaixar (quase escrevemos rebaixar-se) deixando que todos o
dominem e lhe imponham suas vontades.
De modo algum pode ser aceito tal modo de proceder. Humildade, já o vimos, é a naturalidade es-
pontânea, é ser o que se é. Ceder externamente com revolta no íntimo, é hipocrisia, e não humildade.
Mesmo o mais humilde tem obrigação de falar para fazer valer a verdade contra o erro, embora para
isso seja mister alterar-se, mesmo usando termos violentos. A hipocrisia, a mentira, as aleivosias têm
que ser combatidas a peito aberto, sem temores, pois muitas vezes sob capa de humildade temos legí-
tima corvadia.
Não queremos dizer que logo na primeira fala deva alguém ser violento: pode-se ser enérgico sem
perder a linha com palavras pesadas. Mas há casos em que até essas palavras são indispensáveis
para que se seja ouvido e respeitado.
Se humildade não é covardia, mansidão não é temor. Não podemos nem devemos atemorizar-nos di-
ante dos poderosos e grandes, mas ao contrário: temos que enfrentar como homens e fazer como
Paulo fez diante de Pedro: in faciem ei réstiti, isto é, "resisti-lhe na cara" (Gál. 2:11). Firmeza, ener-
gia, coragem são virtudes, e virtudes másculas, que Jesus possuía em alto grau.
Chegamos, depois, à sentença (que comentaremos no próximo capítulo) “não é o que entra no homem,
mas o que dele sai, que o contamina".

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C. TORRES PASTORINO

O QUE PREJUDICA

Mat. 15:12-20 Marc. 7:17-23 Luc. 6:39

12. Aproximando-se então seus 17. Tendo deixado a multidão, 39. E falou-lhes uma parábola:
discípulos, disseram-lhe: entrou em casa, e seus dis- "Porventura pode um cego
"Sabes que os fariseus, ou- cípulos lhe perguntaram a guiar outro cego? Não cairão
vindo o ensino, se escanda- respeito da parábola. ambos no barranco"?
lizaram”? 18. Ele disse-lhes; "Assim
13. Mas ele respondendo, disse: também vós não entendeis?
"toda planta que meu Pai Não compreendeis que tudo
celestial não plantou, será o que está fora do homem,
erradicada. ao entrar nele não pode
contaminá-lo,
14. Deixai-os: são cegos, guias
de cegos; e se um cego gui- 19. porque não entra no cora-
ar outro cego, cairão ambos ção dele mas no ventre, e é
no barranco". lançado no sanitário"; (dis-
se isto) purificando todos os
15. Respondendo, disse Pedro:
alimentos.
"Explica-nos essa parábo-
la". 20. E disse; "O que sai do ho-
mem, isso contamina o ho-
16. Jesus então disse: "também
mem,
vós ainda não entendeis?
21. porque de dentro do cora-
17. Não sabeis que tudo o que
ção dos homens procedem
entra pela boca, desce ao
os maus pensamentos, as
ventre e é lançado no sani-
prostituições os furtos, os
tário?
homicídios,
18. Mas tudo o que sai da boca,
22. os adultérios, as cobiças, as
vem do coração, e isto con-
malícias, o engano, a in-
tamina o homem.
temperança, o mau olho, a
19. Porque do coração vêm calúnia, a soberba e a lou-
pensamentos, homicídios, cura;
adultérios, prostituições,
23. Todas essas coisas proce-
furtos, falsos testemunhos,
dem de dentro e contami-
calúnias.
nam o homem".
20. São estas coisas que conta-
minam o homem; comer
sem lavar as mãos, não con-
tamina o homem".
Marcos completa Mateus, dando o pormenor de que Jesus se afastou da multidão e entrou em casa. E
aí, no aconchego dos íntimos, os discípulos aproximam-se para conversar.
O primeiro assunto é salientado só por Mateus . Revela-nos a sofreguidão com que os discípulos vão
ao Mestre, contando que "os fariseus se escandalizaram com o ensino dado".

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Apesar de haver-lhes voltado as costas para dirigir-se à multidão, os escribas de Jerusalém e os fari-
seus ficaram alertas para ouvir o que dizia o rabbi. E o que Ele disse causou-lhes arrepios de espanto:
nada menos do que uma ab-rogação total não apenas dos preceitos, mas da mesma lei mosaica, anu-
lando todo o extenso e complicado capítulo dos alimentos impuros! Ora, isto lhes serviria às maravi-
lhas, para reforçar a acusação contra aquele jovem de trinta e seis anos, que pretendia sobrepor-se aos
"mais velhos", às autoridades, e até à lei de Moisés ... e isso sem ser nem mesmo rabino diplomado nas
escolas oficiais! Quem era ele para agir assim? perguntavam-se os emissários do Sinédrio.
Jesus, porém, afasta qualquer temor dos discípulos com uma sentença: "toda planta não plantada por
meu Pai será erradicada". Alguns exegetas vêem nessa sentença uma referência direta àqueles fariseus
e escribas. Acreditamos mais lógico aplicá-la aos ensinos deles, às exigências humanas. Sendo "pre-
ceitos de homens" (isto é, do intelecto personalístico), tendem a desaparecer, sendo erradicadas da hu-
manidade, porque não foram "plantadas pelo Pai" no coração os homens (individualidade), como o são
as leis naturais, que jamais desaparecerão da face da Terra.
Aos fariseus e escribas, pessoalmente, refere-se a segunda sentença: "deixai-os, pois são cegos (que
nada conhecem porque não enxergam) a guiar outros cegos". Que sucederá? "Cairão no barranco", isto
sim, acerta em cheio nas criaturas pretensiosas que, em sua ignorância enfatuada, se julgam donas da
verdade, ensinando, julgando e condenando, segundo bem lhes parece.
Depois desta resposta, em que o Mestre reduz às suas proporções reais os preceitos humanos rigoristas
e as autoridades que os exigem de seus fiéis, adianta-se Pedro para pedir que Jesus lhes explique o
sentido "da parábola" que havia proferido, escandalizando os emissários de Jerusalém. Na verdade,
trata-se de uma sentença enigmática, e não de uma parábola.
Inicialmente, Jesus sublinha sua estranheza por ver que seus discípulos mais chegados, após cerca de
um ano de íntima convivência com Ele, ainda não alcançaram o hábito de entender suas palavras. Em-
prega o termo asúnetos, que significa "sem conhecimento interior", sem "inteligência (súnesis) para
compreender, já que o sentido literal e etimológico desse vocábulo exprime a junção (sun-esis) de duas
coisas em uma só, isto é, da coisa apresentada com a inteligência.
Depois explica-lhes que tudo o que de fora entra no homem (qualquer espécie de alimentação) desce
ao ventre e, após digerido, são os excrementos lançados ao vaso sanitário. Logo, moralmente não po-
dem contaminar-lhes o espírito, pois só transitam pela matéria, pelo corpo físico.
A frase "purificando os alimentos todos" precisa, em nossa língua, de um esclarecimento, o que fize-
mos acrescentando em grifo: "disse isto". A razão é que, em grego, não há ambigüidade, já que o parti-
cípio presente katharízôn se encontra no nominativo singular masculino, só podendo referir-se, por-
tanto, ao sujeito da oração "ele, Jesus"; de forma alguma poderia referir-se, nem lógica nem gramati-
calmente, ao aphedrôna (vaso sanitário), que é acusativo singular neutro. Se não acrescentássemos o
esclarecimento, na tradução portuguesa, o leitor teria a impressão de que o vaso sanitário é que purifi-
caria todos os alimentos.
E continua, dizendo que "o que sai do homem é que pode contaminá-lo", pois provém exatamente do
CORAÇÃO, isto é, da Mente, do Espírito (individualidade) que tem sede no coração (enquanto o "es-
pírito", personalidade ou personagem, tem sede no intelecto, no cérebro). Mais uma vez Jesus afirma
essa verdade incontestável; e não podemos dizer que Ele ignorava a verdade real, sob pena de anular-
mos, sob essa pecha, todos os sublimes ensinamentos que nos revelou. Nem é admissível se diga que
pactuava com a ignorância da época. Podia utilizar imagens e palavras que facilitassem a compreensão
dos homens de então, mas afirmar uma mentira, uma irrealidade, uma falsidade, só para conformar-se
com a ignorância, não é coisa que um Mestre admita em seus ensinamentos.
A seguir são dados exemplos, enumerando alguns vícios que provêm do coração.
Em Mateus são classificados:
a) pensamentos: raciocínios maldosos (dialogísmoi ponêroí)
b) ações: homicídios (phônoi), adultérios (moicheía); prostituições (porneíai) e furtos (klópai)

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c) palavras: falsos testemunhos (pseudomarturíai) calúnias (blasphêmíai).

Em Marcos verificamos que a divisão é diferente. Inicialmente são citados:


a) seis vícios no plural, referindo-se a pensamentos ou atos sucessivos, classificados como "raciocíni-
os maus" (dialogísmoi kakoí); são eles as prostituições (porneíai), os furtos (klópai), os homicídios
(phónoi), os adultérios (moicheíai), as cobiças (pleonecsíai) e as malícias (ponêríai)
b) seis no singular, manifestando mais exatamente seis tendências viciosas inatas, do caráter da cria-
tura; são elas: o engano (dólos), a insolência (grosseria, asélgeia), o olho mau (inveja, ophthalmós
ponêrós), a calúnia (blasphêmía), o orgulho desdenhador (huperêphanía) e a loucura (aphrosúnê).
Digno de notar-se: a palavra blasfêmia significa propriamente "palavras de mau agouro, proferidas
durante o sacrifício", ou "injúrias contra Deus" (cfr. nos Evangelhos: Mat. 12:31 e 26:65; Marc. 3:28 e
14:64; Luc. 5:21 e João 10:33; assim também o verbo "blasfemar": Mat. 9:3, 23:65 e 27:39; Marc. 2:7,
3:28-29 e 15:29; Luc. 12:10, 22:65 e 23:39; João 10:36 e Atos 13:45, 18:6 e 19:37). Somente neste
local, em Mateus e Marcos, apresentam mais logicamente o sentido de "calúnias".

Neste trecho encontramos duas respostas do Mestre.


A primeira refere-se ao "escândalo farisaico", que o Cristo manda não levar em consideração, por
duas razões:
1) Toda doutrina (planta) não inspirada (plantada) pelo Pai (Mente), mas apenas fruto dos intelectos
personalísticos, será cortada pela raiz e totalmente destruída. Constantes exemplos disso encon-
tramos na História, ao verificar as numerosas seitas e religiões que nascem, vivem certo período
(que pode ser de um, vinte ou cinquenta séculos) e depois desaparecem, mortas pela falta de raízes
espirituais. Todas as "doutrinas" que vêm de Deus (cfr. João, 5:44) permanecem: são plantas cu-
jas sementes foram lançadas pelo Pai e germinam, crescem, florescem e frutificam no coração dos
homens por toda a eternidade.
2) E também porque os homens, que criaram ou dirigem essas organizações humanas são, de fato,
cegos espirituais, que não penetram a verdadeira luz e nada vêem, a não ser a matéria e as coisas
espirituais (cfr. Mat.16:23 e Marc. 8:32). Ora, todos esses, mesmo se conduzirem milhões de
criaturas, mesmo que tenham boa-fé e convicção absoluta, "caem no barranco" com os seus guia-
dos, ou seja, voltam a reencarnar.
A diferença entre o ensino do Cristo e o dos homens é que o Mestre não fala em condenação ao infer-
no, sem possibilidade de libertação posterior: de um "barranco", a criatura poderá sair, ainda que
machucada ...

Vem agora a explicação da sentença enigmática: "não é o que vem de fora e entra no homem que o
contamina".
Essa verdade profunda faz-nos compreender de modo absoluto que o HOMEM VERDADEIRO, isto é
a Mônada Divina, o EU profundo, é INATINGÍVEL por qualquer coisa vinda de fora. Não apenas os
alimentos ingeridos ou as bebidas, mas nem mesmo as vibrações mentais de outras criaturas, nem
pensamentos externos, nem acusações caluniosas, nem ataques físicos ou morais: imperturbável em
sua paz intrínseca e profunda, o EU maior sobre está a tudo, pairando em outra atmosfera, vivendo na
eternidade, difuso no infinito.
O esclarecimento é dado de forma clara: nada do que vem de fora entra no coração, onde reside o Eu
profundo. Não podia ser mais explícito, mais claro. E essa é, realmente, nossa interpretação.
O que vem de fora, esclarece o Mestre, vai ao ventre e é lançado no vaso sanitário. Isto, literalmente,
referindo-se aos alimentos físicos. Mas a lição é extensiva ao sentido moral: todas as vibrações que

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vêm de fora são expelidas pelas vias normais, não passando dos veículos físicos da personagem. Mas
não chegam ao coração.
Entretanto, o que sai do coração, isso contamina o homem. Todo pensamento criado pelo espírito,
antes de atingir o alvo atravessa a aura de quem pensa e nela imprime suas vibrações. Logo, sendo
coisa de baixa frequência vibratória, abaixa as vibrações da aura, prejudicando a criatura seriamen-
te. Portanto, as coisas ruins que saem do coração, o contaminam.

A citação dos exemplos é uma enumeração lógica de erros, que podem ser tanto os erros cometidos
em ações (atos materiais), como em palavras (criações de vibrações sonoras), como em pensamentos
(criações mentais).
A enumeração de Mateus apresenta essas três divisões, mas a de Marcos, embora sem uma ordem
lógica, é mais completa.
Os pensamentos ("raciocínios maldosos ou maliciosos" ) cheguem a ser executados em atos físicos ou
palavras, ou permaneçam simplesmente como pensamentos, referem-se a:
1 - adultérios ou desejo sexual (com ato material realizado ou não), em relação a uma pessoa com-
prometida com outra;
2 - prostituições ou desejos e atos sexuais que não estejam fundamentados no amor, mas apenas no
interesse, sejam ou não oficializados em atos civis ou cerimônias religiosas;
3 - homicídios em pensamentos, desejos ou atos, que prejudiquem a vida física, seja de outra criatura,
seja da própria pessoa;
4 - furtos, de qualquer espécie: físicos ou intelectuais (de idéias de outrem, fazendo-as passar por
suas);
5 - cobiças, sejam elas de bens materiais, de posições sociais, de fama imerecida, quando a criatura
não apresenta capacidade para conquistá-la;
6 - maldades ou malícias, quer pensando mal, quer falando mal dos outros (ou de si mesmo), prejudi-
cando-os com atos e palavras malevolentes.

Na segunda lista, são enumerados os caracteres das pessoas que, ainda involuídas, apresentam como
base da personalidade (tônica vibratória) os seguintes tipos:
1 - astúcia, típica dos que pretendem viver maquiavelicamente, enganando a todos para auferir van-
tagens materiais, morais, intelectuais e até espirituais, contando "enganar a Deus";
2 - insolência ou grosseria, típica dos que não conseguiram refinar-se com a educação e o domínio
das próprias emoções, e se exaltam, explodindo em maus modos contra outrem;
3 - olho mau ou inveja, típica daqueles que sempre olham com rancor, despeito e raiva para todos os
que tenham mais que eles mesmos, seja em bens materiais, em cultura, em bondade ou bens mo-
rais e espirituais;
4 - calúnia, típica daqueles que passam suas horas a falar mal dos outros, aumentando os defeitos
verdadeiros ou inventando mentiras, e espalhando aos quatro ventos os defeitos alheios;
5 - orgulho desdenhoso, típico dos que, montados em posições de falaz autoridade (que não estão à
altura de desempenhar) pisoteiam os pequenos e os desprezam, não perdendo vasa de achincalhá-
los, sobretudo diante de terceiros;
6 - demência ou loucura, típica dos que perderam o equilíbrio de julgamento, e portanto se tornaram
fanáticos, na religião, na política, nos esportes, no amor, isto é, exagerados em tudo, sem ponde-
ração nem raciocínio, apaixonados sem medida, dominados totalmente pelas emoções violentas.

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Conforme vemos, todos os vícios enumerados são faltas contra o Amor, e portanto retardam terrivel-
mente a evolução espiritual da criatura, já que a levam para o Anti-Sistema ou pólo negativo.
Ora, tudo isso - resume o Mestre, numa figura retórica chamada inclúsio - procede do íntimo do "es-
pírito", e portanto contamina o homem.
Perfeita e esclarecedora, como vemos, a lição dada para a individualidade, demonstrando o caminho
a seguir e os obstáculos a vencer, na estrada do progresso espiritual.

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CANANÉIA

Mat. 15:21-28 Marc. 7:24-30

21. Partindo dali, Jesus retirou-se para os lados 24. levantando-se, saiu dali para as fronteiras
de Tiro e de Sidon. de Tiro e de Sidon. E entrando na casa, quis
que ninguém o soubesse, e não pode ocul-
22. E uma mulher cananéia, que tinha vindo
tar-se.
daquelas regiões, gritava-lhe: "Compadece-
te de mim, senhor Filho de David! Minha 25. Ouvindo, pois, (falar) a respeito dele, uma
filha está terrivelmente obsidiada"! mulher cuja filhinha era obsidiada por um
espírito atrasado, veio e prostrou-se a seus
23. Mas ele não respondeu palavra. E chegando
pés;
seus discípulos, rogaram-lhe dizendo:
"Despede-a, porque vem gritando atrás de 26. mas a mulher era grega, nativa da Siro-
nós". fenícia; e rogava-lhe que expulsasse de sua
filha o espírito.
24. Mas Jesus, respondendo, disse: "Não fui
enviado senão às ovelhas perdidas da casa 27. Mas Jesus lhe disse: "Deixa primeiro que se
de Israel". fartem os filhos; porque não é bom tomar o
pão dos filhos e lançá-lo aos cachorrinhos".
25. Contudo, aproximando-se prostrou-se dian-
te dele, dizendo: “Senhor corre-me"! 28. Ela, porém, respondeu e disse-lhe: "Sim,
Senhor, mas até os cachorrinhos, debaixo
26. ele respondeu, dizendo: "Não é bom tomar
da mesa comem as migalhas das crianças".
o pão dos filhos e lançá-lo aos cachorri-
nhos". 29. Então ele lhe disse: "Por esta palavra, vai-
te: o espírito já saiu de tua filha"
27. Ela, porém, disse: "Sim, Senhor, mas até os
cachorrinhos comem as migalhas que caem 30. E tendo entrado em sua casa, ela achou a
da mesa de seus donos". menina deitada na cama, tendo (dela) saído
o espírito.
28. Então, respondendo, disse-lhe Jesus: "ó
mulher, é grande tua confiança! Faça-se
contigo como queres". E desde aquela hora,
sua filha ficou curada.

Neste episódio, observamos que Jesus se dirige para noroeste, penetrando o território da Fenícia, país
não-israelita, na região de Tiro e Sidon. Mateus emprega o termo mere (uma parte) e Marcos usa ho-
ria, fronteira de um estado, município ou distrito .
A fama de Jesus já atingira essa região, tanto que se diz (cfr. Marc. 3:8) que peregrinos dessas duas
cidades O foram ouvir à margem do lago.
A ida de Jesus não se prende à pregação da Boa-Nova, tanto que seu desejo era permanecer incógnito
na casa de algum amigo, para conversar com seus discípulos na intimidade, longe do apelo das multi-
dões. Parece tê-lo conseguido, pois só é mencionado esse fato da mãe aflita que obtém a cura da filha.
Essa mulher é dita "cananéia" por Mateus, tendo em vista que nesse território foi estabelecida a primei-
ra colônia de cananeus (cfr. Gên. 10:15). Marcos qualifica-a tecnicamente de siro-fenícia, ou seja, fe-
nícia da Síria (distinguindo-a dos fenícios da Líbia). Realmente, desde a conquista de Pompeu, a antiga
Fenícia fora englobada na província domana da Síria. Marcos, que escrevia para os romanos, entra em

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maiores minúcias étnicas e geográficas, coisa supérflua para Mateus que, escrevendo para os israelitas,
se satisfaz denominando-a "cananéia". Não obstante, como poderia tratar-se de uma israelita, embora
nascida em país "pagão", o segundo evangelista especifica que ela era hellenís, isto é, "de fala grega".
Com esse termo, a essa época, distinguiam-se os não-israelitas, já que, para os israelitas, o mundo se
dividia em duas partes: judeus e não-judeus (pagãos ou gentios).
Temos, portanto, o caso de uma criatura de religião diferente da que Jesus professava oficialmente (tal
como o centurião romano). Nem por isso o Mestre a convida, sequer, a filiar-se ao judaísmo: para Ele,
todos são filhos do mesmo Pai.
Mateus reproduz o primeiro apelo. Inicia a mulher suplicando compaixão para ela, já que a filha talvez
fosse inconsciente do que com ela se passava: a mãe é que mais sofria com o caso. Comprende-se o
título de "Senhor", mas é estranhável o epíteto de "Filho de David", na boca de uma pagã, mesmo que
Sua fama tivesse já atravessado as fronteiras com esse apelativo.
Logo após é citado o motivo do pedido de socorro: achava-se sua filha (não é revelada a idade, embora
Marcos use o diminutivo: thygátrion, "filhinha"), sofrendo de forte obsessão (talvez mesmo possessão
total) e ela suplica o rabbi que a cure. À semelhança do centurião (cfr. Mat. 8:5-13, Luc. 7:1-10), ela
solicita uma cura a distância, revelando um adiantamento evolutivo bem grande, que virá a ser com-
provado pela continuação, com suas palavras de humildade sincera. Agostinho (Quaestiones Evangeli-
cae, 1, 18, in Patrol. Lat. vol. 35, col. 1327) faz a mesma observação, concluindo: "as duas curas mila-
grosas que Jesus realizou, nessa menina e no servo do centurião, sem entrar em suas casas, são a figura
de que as nações (os gentios) seriam salvos por força de sua palavra, sem serem honrados, como os
judeus, com sua visita".
Jesus, que lá fora para descansar, apresenta um comportamento estranho, só explicável pelo desejo que
tinha de demonstrar aos circunstantes, e deixar exemplo aos provindouros, de como deve alguém com-
portar-se diante do não-atendimento de um pedido (de uma prece). Então, nada responde: continua
impertérrito a caminhada, não tendo a mínima consideração ou, como diz o povo, "não dando confian-
ça".
A primeira reação da pedinte é insistir na solicitação (cfr. Luc. 11:5-8), sem julgar-se diminuída nem
ofendida com o silêncio, que parece depreciativo.

Figura “CANANÉIA”

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Aí ocorre a intervenção dos discípulos, que sugerem ao Mestre mandá-la embora, atendida ou não; e
isso, não por amor a ela, mas para não serem incomodados. O princípio da "intercessão" está bem cla-
ramente estabelecido, aqui como em outros passos, embora apresente sempre esse ar de enfado, e o
pedido intercessório seja sempre para mandar embora o importuno, ou de fazê-lo calar-se ... Observe-
se, de fato, o pormenor de jamais encontrarmos nos Evangelhos qualquer discípulo solicitando ao
Mestre a realização de um fato extraordinário em benefício de quem quer que fosse (nem deles mes-
mos). Ao contrário, quando qualquer ocasião se apresentava de situação difícil, ou eles sugeriam uma
solução normal, ou declaravam não ser possível resolvê-la, deixando o Mestre isento de compromisso.
Jesus continuava ignorando a pedinte, e responde-lhe apenas indiretamente, falando a seus discípulos,
como se ela ali não estivesse: "fui enviado somente para as ovelhas perdidas da casa de Israel".
Resistindo ao silêncio, superando a primeira negativa com humildade, ela insiste: "socorre-me, Se-
nhor"! A confiança permanecia vívida, firme, sólida e inabalável. É então que Jesus, levando até o fim
a experiência, desfere o terceiro golpe, forte bastante para descoroçoar qualquer esperança, bastante
fundo para arrasar os últimos resquícios do orgulho: "Não é bom tomar o pão dos filhos, para dá-lo aos
cachorrinhos" ...
Vencendo a terceira negativa, numa demonstração de humildade sem hipocrisia, revelando de todo sua
evolução, a estrangeira retruca com belíssima imagem, brilhante e literária, talvez com leve e alegre
sorriso de esperança a bailar-lhe nos lábios: "mas os cachorrinhos, debaixo da mesa, comem as miga-
lhas que as crianças deixam cair" ...
Impossível resistir-lhe mais! A humildade sincera vencera, segundo o princípio enunciado 600 anos
antes pelo "Velho Mestre" (Lao Tse) no Tao Te King: "A doçura triunfa da dureza, a fraqueza triunfa
da força" (n.º 36). Realmente, a Força é vencida pela fraqueza, cede o Poder diante da impotência, cur-
va-se o Super-Homem diante da fragilidade feminina: a mãe é atendida, beneficiando-se a filha da am-
plitude ilimitada do amor materno.
Resta-nos, apenas, analisar o epíteto de "cachorrinhos" (kynária) aplicado por Jesus à mãe cananéia.
Jerônimo afirma que Jesus classifica os não-judeus de "cães" (canes autem éthnici propter idololatri-
am dicuntur, Patrol. Lat. vol. 26, col. 110).
Não cremos tenha sido esta a intenção de Jesus, que seria inoportuna e ofensiva, denotando baixeza de
caráter e falta da mais elementar educação, em relação a uma mãe aflita. Não podemos aceitar, inclusi-
ve, porque o elogio posterior desmentiria essa intenção. Se real fosse, o orgulho que lhe haveria provo-
cado tal resposta fá-lo-ia manter sua atitude de desprezo até o fim, o que seria incompatível com Sua
elevação espiritual.
O que se deduz de todo o andamento e do diminutivo "cachorrinhos", é que a frase foi dita com bene-
volente sorriso, como que a desculpar-se, mas desejando ser vencido, como o foi, para atendê-la. Além
disso, não é uma depreciação, como se a comparasse a um "vira-lata" da rua. Antes, estabelece para-
lelo com os cachorrinhos carinhosamente tratados dentro de casa, ao lado dos filhos ("das criancinhas",
como diz ela) e que comem da mesma comida dos filhos, apenas um pouco mais tarde. Daí a beleza da
resposta: "mas antes da ração maior que lhes cabe, os cachorrinhos aproveitam as migalhas que caem
da mesa dos filhos".
Monsenhor Louis Pirot ("La Sainte Bible", vol. IX. pág. 485), assim termina seu comentário a este
trecho: "Deve citar-se o exemplo da siro-fenícia como modelo da prece susceptível de tudo obter, por
ser feita com fé, humildade, confiança e perseverança. Tudo estava contra essa mulher, primeiro sua
religião e sua raça, depois a atitude pouco animadora dos apóstolos, o silêncio e afinal a recusa de
Jesus. Não obstante, pode dizer-se, ela esperou contra toda a esperança, e Sua prece foi ouvida".

Outra lição de grande profundidade (como todas!) é-nos apresentada neste episódio comovente.
Examinemos rapidamente os termos geográficos, a fim de descobrir, dentro do fato material apresen-
tado, o simbolismo escondido sob o véu da letra.

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Canaã exprime "negócio, comércio" ou, segundo Philon de Alexandria (“Os Sacrifícios de Abel e de
Caim", n.º 90), "terra de agitação".
Tiro e Sidon significam respectivamente "força" e “caçada".
Síria e Fenícia têm o sentido de "elevado" e de “púrpura".
A individualidade retira-se para uma busca: quer encontrar uma alma, a fim de estabelecer contato
místico com ela. Talvez, por isso, os evangelistas tenham ligado as duas cidades, dizendo "o território
de Tiro e de Sidon". Na realidade essas duas cidades ficavam bem distantes uma da outra (cerca de
quarenta quilômetros à vol d'oiseau). A união das duas, quando entre elas havia ainda, a meio cami-
nho, a cidade de Sarepta, não deixa de ser estranha. Não seria um simbolismo para salientar que a
"viagem" tinha como objetivo uma "forte caçada", uma busca intensa?
Lá se encontra a alma de escol, verdadeira "púrpura elevada", vermelha de amor sublime e místico,
embora mergulhada na "terra de agitação" dos negócios materiais.
O encontro desse intelecto privilegiado (a última resposta sua revela-lhe o notável desenvolvimento
intelectual) com o Cristo, é de indiscutível beleza.
Apesar de procurada (“caçada") pelo Cristo, o primeiro passo para o encontro efetivo é dado pelo
"espírito", como não podia deixar de ser, em virtude do livre-arbítrio. Mas ele reconhece imediata-
mente o "Filho de David", e a ele se apega, suplicando seu auxílio para libertar-se (para libertar a
filha bem-amada - o corpo de emoções) de terrível obsessão que a faz sofrer (que faz sofrer o intelec-
to). O intelecto busca, então, o domínio das emoções, descontroladas por forças estranhas (meio am-
biente, educação, etc.), sacudidas pelo espírito de ambição e pelos desejos desregrados, verdadeira-
mente obsidiadas. E o caminho único é o encontro com o Cristo Interno.
Não é fácil, porém. Embora residindo no âmago de nós mesmos, constitui tarefa árdua o encontro e a
unificação com o Cristo. Aprendemos, então, a técnica da insistência humilde, que suplica com todas
as forças de que é capaz, que ora em voz alta, que grita angustiadamente, suplicando socorro.
Os demais veículos (os "discípulos") aconselham que seja o intelecto persuadido a desistir de seu in-
tento. Mas ele persiste, apesar de tudo.
Como necessidade de experimentação, o Cristo diz que primeiro terão que ser atendidas "as ovelhas"
perdidas da casa de Israel", ou seja, as individualidades religiosas já espiritualizadas. O intelecto,
embora cultivado, precisa elevar-se mais, não permanecendo no nível personalístico animalizado
("cachorrinhos"), para que possa pretender alimentar-se com o pão sobressubstancial destinado aos
"filhos", aos já espiritualizados.
Nessa ocasião é que o intelecto se revela realmente superior, porque humilde, e sai com aquela "tira-
da" maravilhosa: "embora ainda indigno, o intelecto come as migalhas que lhe chegam através da
intuição".
Vencera, porque satisfizera a uma condição fundamental para o Encontro Místico: a HUMILDADE.
Pela humildade verdadeira e sincera, o homem sintoniza perfeitamente com a Divindade, a criatura
identifica-se ao Criador, o Filho une-se ao Pai, o ser unifica-se à essência da Vida.
O Cristo manifesta-se, então, plenamente ao coração desse ser humilde, preparado, inteligente e ar-
doroso, cheio de fé e de amor; e nesse mesmo momento da unificação, "a filha é curada em sua casa",
isto é, as emoções são controladas dentro de seu corpo físico.
Em todos os passos evangélicos o ensino é o mesmo: claro e cristalino límpido e sem discrepâncias.
Não é possível ocultar-se a verdade que transparece tão nítida, através de um simbolismo maravilho-
so e diáfano.

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O SURDO-GAGO
Junho do ano 30
Marc. 7:31-37
31. De novo retirou-se das fronteiras de Tiro e de Sidon e foi para o mar da Galiléia, por
meio do território da Decópole.
32. E trouxeram-lhe um surdo e gago, e pediram-lhe que pusesse a mão sobre ele.
33. Tirando-o da multidão, Jesus levou-o à parte, pôs seus dedos nos ouvidos dele e, cus-
pindo, tocou-lhe a língua.
34. Depois, erguendo os olhos ao céu, suspirou e disse: ephphetha, isto é, "abre-te"!
35. E foram abertos seus ouvidos, e logo se lhe rompeu o freio da língua, e falava corre-
tamente.
36. Recomendou-lhes Jesus que a ninguém o dissessem; mas quanto mais o recomendava,
tanto mais eles o divulgavam.
37. E admiravam-se imensamente, dizendo: “Fez bem todas as coisas: faz os surdos ouvi-
rem e os mudos falarem".

A narrativa é peculiar às anotações de Marcos, e apresenta pormenores valiosos à interpretação.


Inicialmente o aceno ao caminho percorrido pela comitiva: "de Tiro e de Sidon, pelo meio do território
da Decápole". Isso nos revela que de Tiro Jesus se dirigiu mais para o norte, atravessando Sidon e to-
mando a estrada que leva a Damasco, a leste, alcançando as encostas meridionais do Líbano; no Her-
mon, abandona essa estrada, dobra a sudeste, atravessa o Jordão (talvez na "ponte das Filhas de Jacó")
e chega ao coração da Decápole, ao sul do mar da Galiléia, tendo portanto, que voltar atrás para atingir
esse mar.
Na decápole (Gerasa, cfr. Marc. 5: 1-20) fora deixado cerca de seis meses antes, com a tarefa de difun-
dir sua doutrina, o ex-obsidiado. Dessa forma, logo que a comitiva penetra na região, é Jesus reconhe-
cido e solicitado a curar um enfermo. Trata-se de um surdo e gago. "Gago" é o significado preciso de
mogilálon, que algumas versões traduzem por "mudo". Mas não há dúvida de que se trata de um gago,
já que mais adiante se diz que "se lhe rompeu o freio da língua", e mais, "que falava corretamente"
(orthõs), sinal de que antes falava, sim, embora atrapalhado.
O pedido é feito para que Jesus "lhe imponha as mãos", tradicional gesto que até hoje permanece nos
denominados "passes", que Jesus tanto empregava (cfr. Marc. 6:5, 8:23, 25, etc.).
Mas a técnica usada aqui por Jesus difere da normal. Ele leva o doente para longe da multidão. Depois,
ao invés de utilizar seus poderes maravilhosos, ao invés de uma simples ordem, vemos que emprega
pequeno ritual mágico: encosta os dedos fisicamente nas orelhas do enfermo; a seguir cospe (possi-
velmente nas pontas dos dedos) e, com sua saliva, toca a língua do gago. Depois desses gestos, levanta
os olhos para o alto, suspira, como que recebendo ou emitindo uma onda fluídica através de sua respi-
ração, e então pronuncia uma palavra em hebraico: éphphetha (que é o ithpael do verbo phâtah, que
significa "abrir").
Observemos, de passagem - como mais uma prova de que Jesus e seus discípulos falavam normal-
mente o grego - que todas as vezes em que era proferida pelo Mestre uma palavra ou a expressão em
hebraico, é por Marcos citada a palavra ou expressão no original, como coisa digna de ser notada e de
registrar-se (cfr. Marc. 5:41; 7:11; 14:36 e 15:34).

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Depois de realizados esses gestos e toques é que se efetua a cura da surdez e o rompimento do freio da
língua, permitindo ao enfermo expressar-se corretamente, pronunciando com clareza as consoantes.
Resta-nos esclarecer: a) por que afastar-se da multidão? b) por que tocar as orelhas? c) por que a saliva
na língua? d) por que a palavra hebraica?
Eis as respostas dos exegetas:
a) levou-o à parte porque, nessa localidade não queria agir de público. E como teria que usar gestos
para despertar a fé no enfermo (já que, sem essa condição exigida por Jesus, nada faz: a Ele) não
queria que julgassem seus gestos um ato de magia. Escondia-se, então, para não ser mal interpreta-
do ...
b) tocou as orelhas porque, sendo o enfermo surdo, não podia ouvir as explicações e Jesus só podia
demonstrar a ele o que ia fazer, tocando-lhe as partes afetadas;
c) tocou-lhe a língua com saliva por seguir a tradição rabínica que dizia ter a saliva, sobretudo em
jejum, poderes curativos (cfr. Sabbat, 14, 14b e Abada Zara, 11, 10, 9), embora aí se saliente a cura
das doenças dos olhos. Com efeito além deste passo, encontraremos outras duas curas realizadas
por Jesus, servindo-se o Mestre da saliva, ambas para curar cegos, em Marcos 8:23 e em João 9:6;
d) proferiu a palavra como uma súplica de que se realizasse a cura; e isso constituía mais uma razão
para afastar-se, já que os preceitos rabínicos proibiam terminantemente quaisquer palavras quando
se tratavam chagas ou enfermidades, para evitar a crença em efeitos mágicos de palavras.
As três razões apresentadas podem parecer ponderáveis, mas apenas para efeito externo. No entanto,
consideremos que Jesus curava publicamente as multidões (cfr. Mat. 15: 29-31, etc.) sem necessidade
de tocar nos enfermos. Alguma razão havia, e muito mais forte que essas razões externas, para agir
assim. Vê-lo-emos.
A seguir vem a habitual proibição de divulgar o ocorrido, naturalmente não obedecida. E o impacto
que causa a cura é descrita com a expressiva palavra hyperperissõs, ou seja, "hiper-admiração". Donde
ser aplicada a Jesus a palavra de Isaías (35:5,6), que o próprio Jesus já aplicara a si mesmo, quando
respondeu aos emissários do Batista (Mat. 11:1-6).

Aqui descobrimos que existe um ensinamento simbólico, além do fato real da cura.
Inicialmente indaguemos por que anotou tão cuidadosamente o evangelista o roteiro anormal de
Jesus. De Tiro, o caminho mais direto para o mar da Galiléia seria a estrada que ligava Tiro a Cafar-
naum, quase em linha reta, no próprio território galileu, passando por Giscala, Saphed e Corozaim
(cerca de 60 kms, isto é, três dias de marcha). No entanto, perfaz uma jornada muito mais longa, dan-
do uma volta de mais de 150 kms. Explicam os exegetas que aproveitou a viagem “para conversar a
sós com os discípulos" e mais, que assim evitava viajar pelo território governado por Antipas, fazendo
o trajeto pela tetrarquia de Filipe. Possível que assim fosse.
Todavia, como sabemos que todas as palavras e minúcias de um livro "revelado" têm uma razão sim-
bólica, verificamos que a passagem de "uma busca intensa (Tiro e Sidon) na terra agitada de negóci-
os" (Canaã), para as águas tranquilas (mar) do "jardim fechado" (Galiléia), não se faz repentina e
abruptamente: vibracionalmente a distância é grande, atravessando numerosos estágios ("dez cida-
des", ou seja, Decápole).

Ao chegar, é apresentada uma personagem surda e gaga, para que a individualidade a cure.
A surdez física simboliza aquele que não consegue ouvir a Voz Interna da Verdade. E a gageira,
aquele que, apesar desse defeito de audição, pretende ensinar o caminho certo às criaturas, ou seja,
aquele que fala incorretamente. Portanto, o modelo dos pregadores que ainda não tiveram contato
com a Grande Realidade, que ainda não mergulharam na Consciência Cósmica, que ainda não se
unificaram ao Cristo. Só podem falar "gaguejando", não física, mas espiritualmente; não pronuncian-

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SABEDORIA DO EVANGELHO

do as palavras pelo meio, mas ensinando somente meias-verdades; e isso porque, sendo “surdos" à
Voz Interna do Cristo, só conhecem as coisas através dos gestos materiais (das leituras e livros).
Jesus o retira da multidão, levando-o "à parte". Naturalmente, a primeira coisa a fazer num caso des-
ses é chamar o homem ao isolamento da meditação, fora da multidão, a fim de que no silêncio possa
realizar-se o Encontro Místico.
Depois coloca seus dedos nos ouvidos, revelando a bondade do Cristo que estende misericordiosa-
mente Suas mãos, para que possa ser mais bem ouvido. A seguir, “cuspindo" (isto é, emitindo de Si as
intensas vibrações de amor), toca-lhe a língua, rompendo-lhe o freio, para que possa proferir corre-
tamente as palavras (para que possa revelar as Verdades com correção).
A comunicação da saliva à língua alheia é um dos maiores e mais expressivos gestos de amor, nor-
malmente praticado pelos que se amam profundamente, por meio do beijo na boca: é a intercomuni-
cação das duas almas, através da comunhão dos fluidos físicos que emitimos pela saliva, numa inter-
penetração vibratória por vezes mais forte que a própria penetração dos órgãos sexuais.
Elevando então sua tônica ao máximo (“erguendo os olhos ao céu"), profere a palavra (som-criador)
ÉPHPHETHA, isto é, “abre-te". O sentido do termo é revelador da necessidade da criatura nesse
ponto: é exatamente a de abrir os canais superiores do espírito, para a união com o Cristo.

Observe-se um pormenor de sumo interesse para nossa vida prática: Cristo, ao ver que o homem era
surdo à Voz Interna e ensinava meias-verdades, não tem uma palavra sequer de condenação, não o
faz silenciar, não o despreza; ao invés, chama-o à parte para abrir-lhe o caminho certo da evolução,
para ajudá-lo, para reajustá-lo à Verdade.
O resultado dessa ação do Cristo é que o homem teve seus ouvidos abertos à Voz Divina e então
(note-se a propriedade da expressão!) falava corretamente, pregando certo, divulgando as verdades
reais, ensinando as verdadeiras realidades. Não é dito que passou a falar "fluentemente" ou “corren-
temente", mas CORRETAMENTE: falar CERTO, de acordo com a Verdade (orthôs).

O final da história revela o êxito da cura: o acontecimento é visto e verificado por todos: aclamam o
autor como a Bondade Encarnada: “fez bem todas as coisas" (kalõs pánta pepoíêke), frase que cons-
titui um dos mais belos testemunhos a respeito de qualquer ser.

Também desse trecho deduzimos que o Cristo que em nós reside está pronto a ajudar-nos, abrindo-nos
os ouvidos para que aprendamos, estendendo as mãos para guiar-nos pelo caminho certo para en-
contrá-Lo, desde que o desejemos, a fim de assimilar Seus ensinamentos silenciosos e profundos e
poder então divulgá-los corretamente. Quando chegará nossa vez?

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C. TORRES PASTORINO

NO MAR DA GALILÉIA
(Julho do ano 30 A.D.)
Mat. 15:29-31
29. Tendo deixado esses lugares, Jesus voltou para as margens do Mar da Galiléia, e, su-
bindo ao monte, sentou-se aí.
30. E veio a ele grande multidão, trazendo consigo coxos, estropiados das mãos, cegos e
surdos, e deitaram-nos aos pés de Jesus e ele os curou,
31. de modo que a multidão se maravilhou ao ver mudos a falar, estropiados curados, co-
xos a andar e cegos a ver, e glorificou o Deus de Israel.

A primeira metade do vers. 29 já nos foi mais minuciosamente relatada por Marcos (capítulo anterior).
Sobe "à montanha". Qual? Não nos é dito, mas apenas determinado o local pelo artigo. O fato é que
mais uma vez a multidão se reúne a Seus pés .
As curas efetuadas, ao que parece todas instantâneas, compreendem quatro tipos de enfermidades:
chôlós, "coxo"; kydlós, "aleijado das mãos"; typhós, "cego"; e kôphós, "surdos" ou "mudos".
O sentido preciso de kôphós é "embotado", "silencioso", podendo expressar tanto o "surdo" (cfr. Plu-
tarco, Morales, 337 e 791e), quanto "mudo" (cfr . Platão, Leges 932a; Ésquilo, Septem contra Thebas,
202); talvez, até, possa exprimir "surdo-mudo", conforme vemos em Heródoto (1, 34) que qualifica de
kôphós um dos filhos de Creso, especificando que "não falava", (era "áphonos", 1, 85) e também que
"não ouvia" ("diephtharménos tên akouén", 1, 38).
Essas curas causavam profunda admiração no povo e a notícia se espalhava célere por todas as locali-
dades vizinhas. Observam alguns comentaristas que essas enfermidades não são de reincidência (como
seriam febres, resfriados, etc.) mas crônicas; e que, uma vez curadas, não voltavam. E perguntam
como poderia haver tantos desses enfermos numa população relativamente escassa, para justificar to-
dos os passos dos evangelistas. Em vista do simbolismo de que se reveste todo o texto evangélico, não
vemos dificuldades em aceitar as anotações que até nós chegaram.
A frase final "e glorificaram o Deus de Israel" é bem característica do povo que, tendo seus "deuses"
(santos ou espíritos protetores), não deixam de reconhecer que o santo ou protetor (Deus) do povo de
Israel (ou seja, o especial amigo do taumaturgo) é digno de louvores, pelo extraordinário poder que
revela quando se manifesta.

Todas as vezes que a Individualidade chega às margens do Mar da Galiléia (as águas tranquilas do
"Jardim Fechado"), tem ocasião de "subir ao monte", isto é, de elevar suas vibrações (que importa o
"nome" do monte?) e lá, aproveitando ambiente harmônico, vai curando as mazelas de seus veículos
inferiores. E que isso ocorre de fato, nós o verificamos porque hoje até a medicina profana já desco-
briu o valor da talassoterapia.
A Individualidade identifica os veículos que custam a caminhar (coxos) não conseguindo acompanha:
o ritmo das aspirações do Espírito,. aqueles que agem desajeitadamente (estropiados das mãos), fa-
zendo o que não devem, ou omitindo o que deveriam fazer; aqueles que não vislumbraram ainda a
estrada da realidade (cegos) e também os que não respondem (mudos) aos apelos da Voz Profunda da
Consciência, porque não chegam sequer a ouvi-la (surdos). Já se fixaram, então, no materialismo, que
os tomou "embotados" em relação ao Espírito.

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A Individualidade, nesses casos, exerce ação terapêutica, despertando os veículos e curando-os de


suas fraquezas e enfermidades, a fim de prepará-los para que ajudem a evolução do Espírito, que já
perlustra consciente a jornada evolutiva do mundo real.

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SEGUNDA MUL TIPLICAÇÃO DOS PÃES

Mat. 15:32-38 Marc. 8:1-9

32. Então, tendo Jesus chamado seus discípulos, 17. Naqueles dias, sendo muito grande a multi-
disse: "Tenho compaixão deste povo, por- dão e não tendo nada que comer, Jesus
que já há três dias permanece comigo e não chamou os discípulos e disse-lhes:
tem nada que comer; não quero despedi-los 18. "Tenho compaixão deste povo, porque já há
famintos, para que não desfaleçam no ca- três dias permanece comigo e não tem nada
minho". que comer;
33. Disseram-lhe os discípulos: "Como encon- 19. e se eu os mandar para suas casas famintos,
traremos, neste deserto, tantos pães para desfalecerão no caminho, pois alguns há que
fartar tão grande multidão"? vieram de grande distância".
34. E disse-lhes Jesus: "Quantos pães tendes?" 20. E responderam-lhe seus discípulos: "Como
Responderam: "Sete e alguns peixinhos". poderá alguém satisfazê-los de pão aqui no
35. E tendo mandado ao povo que se reclinasse deserto"?
no chão, 21. E perguntou-lhes: "Quantos pães tendes"?
36. tomou os sete pães e os peixes e, dando gra- Responderam eles: "Sete".
ças, partiu-os e os deu aos discípulos, e os 22. E ordenou ao povo que se reclinasse no
discípulos ao povo. chão; e tomando os sete pães, dando graças,
37. E todos comeram e se fartaram; e apanha- partiu-os e entregou a seus discípulos para
ram os fragmentos que sobraram em sete que os distribuíssem; e eles os distribuíram
certas cheias. à multidão.
38. Os que comeram eram quatro mil homens, 23. Tinham também alguns peixinhos; e aben-
além de mulheres e crianças. çoando-os disse: "Distribuí também estes".
24. Todos comeram e se saciaram e apanharam
dos fragmentos sobrados sete cestas.
25. Eram os que comeram quatro mil homens.
E os despediu.

Alguns críticos pretendem que esta seja simples repetição da primeira multiplicação dos pães (veja vol.
3.º). No entanto, não apenas Mateus (16:9-10) como Marcos (8:19-20) colocam na boca de Jesus a
citação expressa das duas multiplicações como dois fatos distintos.
Se alguns pormenores se repetem, pela semelhança das situações, outros diferem frontalmente. Lá os
discípulos têm a iniciativa, dando como causa o avançado da hora; aqui é Jesus que lhes chama a aten-
ção para o fato de que a multidão O acompanhava havia três dias, não obstante não ter o que comer; na
primeira havia cinco pães e dois peixinhos, neste há sete pães e "alguns" peixinhos; na outra eram cin-
co mil pessoas, nesta são quatro mil; a anterior realizou-se no território de Filipe, tendo vindo a multi-
dão de Cafarnaum e arredores; a última ocorreu na Decápole, com o povo do local; lá foram recolhidos
doze cestos (kophínos), aqui sete cestas (spurídas), ou seja, recipiente de maior capacidade, segundo
atesta João Crisóstomo (Patrol Graeca, vol. 58, col. 527), sendo mesmo citada em Atos (9:25) como
tendo servido a Paulo para descer dos muros de Damasco; na primeira o povo recosta-se na relva",

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SABEDORIA DO EVANGELHO

denotando a primavera, mas na segunda acomoda-se "por terra", sinal de que estamos no verão, com o
solo ressequido.
A pergunta dos discípulos revela a impossibilidade material de encontrar alimento: póthen tanto pode
ser "onde", quanto "como" (lugar ou modo), mas qualquer dos dois exprime falta total de meios para
consecução do objetivo desejado. Essa pergunta é citada como falta de confiança naqueles que, pouco
antes, haviam presenciado situação semelhante com solução prodigiosa, dada pelo Mestre. Por que não
supor gesto semelhante e inculcar-lho? Serve-nos de lição observar que jamais os discípulos sugeriram
meios insólitos para auferir vantagens: não requisitaram atravessar o lago a pé, mesmo depois de tes-
temunharem essa possibilidade por parte de Jesus e de Pedro; não pediram outras "pescarias inespera-
das" para facilitar-lhes o trabalho e poupar-lhes as energias; não esperam aqui outra multiplicação de
pães; e por vezes até procuram afastar os pedintes, queixando-se da amolação que trazem ao grupo,
sem nunca supor que serão atendidos por vias extraordinárias.
Limita-se o Mestre a ordenar, como na vez anterior, que o povo se sente organizadamente e, dando
graças (aqui Mateus e Marcos usam o verbo eucharistêsas - empregado por João na primeira cena - ao
invés de eulógêsen que haviam escrito), partiu os pães e fê-los distribuir juntamente com os peixinhos.
Os evangelistas anotam terem sido quatro mil os convivas, esclarecendo Mateus "sem contar mulheres
e crianças". Esse número também comprova a duplicidade de ações; fora criação ou acréscimo, o natu-
ral seria vermos a proporção aumentada: 5 pães para 5.000 pessoas - 7 pães para 7.000 pessoas. O
contrário é que se verifica: aumenta o número de pães e decresce o de convivas.
Tendo-se realizado o prodígio entre não-judeus, observamos que não houve nenhum movimento para
colocar uma coroa real na cabeça do taumaturgo.

Figura “SEGUNDA MULTIPLICAÇÃO DOS PÃES”

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Mateus e Marcos, que não registaram a aula consequente à primeira multiplicação dos pães - só nar-
rada por João, cap. 16 - apresentam, sob forma de novo simbolismo, o avanço necessário. Observa-
mos, então, que os números variam: sete, em lugar de cinco.
SETE, nos arcanos, significa vitória, exprimindo a "afirmação da Divindade, do Espírito, sobre a
matéria; da lei do Ternário sobre o Quaternário a lei do domínio sobre o mundo das causalidades. No
plano humano é o caminho bem escolhido, ou seja, o triunfo sobre as provações. No plano físico é o
êxito realizador, a vitória sobre os obstáculos criados pela inércia da matéria" (Serge Marco to une,
“La Science Secrete des Initiés", pág. 95).
É nesse arcano SETE que está construído o planeta Terra e tudo o que nele habita, porque é neste
planeta Terra que a humanidade terá que conquistar a vitória final do Espírito sobre a matéria; aqui
vencerá a Divindade. Daí ser esse número considerado cabalístico desde a mais remota antiguidade,
com forte vibração e potencialidade insuperável.
Na primeira lição, tivemos CINCO pães para CINCO mil pessoas: é a Vontade ou Providência divina
a governar o mundo, sustentando-o e alimentando-o (veja vol. 3.º); nesta segunda aparecem SETE
pães para QUATRO mil pessoas, ou seja, é a vitória do Espírito (tríade superior) sobre a matéria
(quaternário inferior). Na outra, os discípulos (Espírito) pedem ao Mestre a alimentação; nesta, a
iniciativa de dar parte do Mestre, da Individualidade: é que a primeira exprime o primeiro movimento
do livre-arbítrio do eu pequeno (personalidade ou personagem) que busca a espiritualização; nesta
aparece a resposta espontânea em que o Espírito atende à solicitação anterior.
Outro ponto a considerar é que na primeira são recolhidos DOZE cestos: material que seria distri-
buído através dos DOZE emissários às multidões famintas (profanos, não-iniciados); mas na segunda
o sobejo é recolhido em SETE cestas; não é mais para distribuição do material aos profanos: é o lu-
cro obtido com a vitória do Espírito sobre a matéria. Daí a minúcia da modificação da palavra em-
pregada, de kophínos para spurídas, isto é, de cestos para cestas, de um recipiente menor (menos va-
lia) para um maior (mais valia).
Sob o ponto de vista espiritual, a lição é evidente e fácil: aqueles que aspiram ao Supremo Encontro,
têm que passar pela via-purgativa (a fome ou jejum de três dias); depois pela via contemplativa (prece
ou meditação, sentados na terra nua); e finalmente pela via unitiva (a assimilação do alimento espi-
ritual), obtendo-se, por fim, o fruto dessa união (as sete cestas). Em poucas linhas simbólicas, os
evangelistas Mateus e Marcos resumiram a lição dada, por extenso, pelo evangelista João.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

PEQUENA VIAGEM

Mat. 15:39 Marc. 8:10

39. E tendo despedido o povo Jesus entrou na 26. E entrando imediatamente na barca com
barca e foi para a costa de Magadan. seus discípulos, dirigiu-se para o território
de Dalmanuta.

Após despedir o povo, na margem oriental (Decápole), Jesus toma o barco e dirige-se a Magadan
(Mateus) ou Dalmanuta (Marcos).
Temos duas questões a resolver: qual o nome da localidade e onde estava situada.
Trazem Magadan (Magedan) os códices aleph, E, D, aversão siríaca sinaítica, Taciano e Eusébio, além
de outros minúsculos.
Apresentam Magdala, o Theta e muitos cursivos ( 1, 13, 69, 118, 209, 230,271,274,347 e 604).
Dalmanuta está em Marcos apenas, em todos os unciais (exceto D), alguns manuscritos da Vetus Lati-
na, a Vulgata, as versões coptas e armênias. No entanto, segundo a opinião de R. Harris (Codex Bezae,
pág. 178), de Nestle (Philologia Sacra, pág. 17) de Lagrange ("Évangile selon S. Marc", pág. 205), a
palavra Dalmanuta seria uma reunião de três palavras aramaicas, (D)almanuta, que seria a expressão
grega eis tà mérê (para a costa); essa expressão teria sido introduzida no texto como substituição a
Magadan, de localização desconhecida.
Magadan, realmente, não aparece em outros textos. Mas os códices que seguem Orígenes (que não
tinha dúvidas em corrigir) apresentam Magdala, com apoio de São Jerônimo. Ora Mag(e)dan apresen-
ta-se como fácil corruptela de Magdala, a conhecida el-Medjdel, a 4,5 km do Tiberiades, à entrada da
planície de Genesar.
A localização na margem oriental, atestada por Eusébio, (Onom. 134, 18), Knabenbauer (In Marcum,
pág. 208) e outros, não é aceitável. Jesus operara na margem oriental (Decápole) e, se toma o barco, é
lógico se dirija à margem ocidental. Tanto que logo após discute com os fariseus, que jamais iriam à
margem oriental entre pagãos; e a seguir (Mat. 16:5 e Marc. 8:13) vai "para a outra margem", a orien-
tal, na região de Cesaréia de Filipe, perto das fontes do Jordão. E qualquer dúvida desaparece quando
Marcos (8:22) diz que desembarcam em Bertsaida-Júlias, dirigindo-se para Cesaréia de Filipe .
Portanto, Magadan deve situar-se, mesmo, na margem ocidental, e bem provavelmente deve tratar-se
de Magdala.

A única observação a fazer é que após a segunda multiplicação dos pães (resumo da orientação para
o Encontro Místico), a individualidade entra em Magdala, palavra que significa "magnificência", de-
notando-se, com isso, a grandiosidade do êxito obtido com esse passo decisivo do Espírito.

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O FERMENTO DOS FARISEUS

Mat. 16:5-12 Marc. 8: 14-21

5. Indo seus discípulos para o outro lado, es- 14. E esqueceram-se os discípulos de levar pão;
queceram-se de levar pão. e não tinham consigo no barco senão um só
pão.
6. Disse-lhes Jesus: "Olhai: guardai-vos do
fermento dos fariseus e dos saduceus". 15. E preceituava-lhes, dizendo: "Olhai: guar-
dai-vos do fermento dos fariseus e do fer-
7. Eles, porém, dialogavam entre si dizendo:
mento de Herodes".
"É porque não trouxemos pão".
16. Eles racionavam entre si, dizendo: "É por-
8. Percebendo-o Jesus, prosseguiu: "Por que
que não temos pão".
estais discorrendo entre vós, homens de pe-
quena fé, por não terdes pão? 17. Percebendo-o Jesus, lhes perguntou: "Por
que discorreis por não terdes pão? Não
9. Não compreendeis ainda, nem vos lembrais
compreendeis ainda, nem entendeis? Ten-
dos cinco pães para cinco mil homens e
des vosso coração endurecido?
quantos cestos apanhastes?
18. Tendo olhos, não vedes? e tendo ouvidos,
10. Nem dos sete pães para quatro mil, e quan-
não ouvis? e não vos lembrais de
tas cestas recolhestes?
19. quando parti os cinco pães para cinco mil,
11. Como não compreendeis que não vos falei a
quantos cestos cheios de pedaços apanhas-
respeito de pão, mas: Guardai-vos do fer-
tes"? Disseram-lhe: "Doze".
mento dos fariseus e dos saduceus"?
20. "E quando parti os sete para quatro mil,
12. Então entenderam que lhes não dissera que
quantas cestas cheias de fragmentos reco-
se guardassem do fermento do pão, mas do
lhestes"? Disseram: "Sete".
ensinamento dos fariseus e dos saduceus.
21. E disse-lhes: "Ainda não entendeis"?

O episódio que se desenrola, todo natural e cheio de vivacidade, é um instantâneo da vida, com seus
esquecimentos inevitáveis e suas confusões.
Ao embarcar, os discípulos esqueceram de prevenir-se com provisões de boca. Lembra-se Marcos de
que tinham apenas um pão, pois Pedro lhe frisara bem esse ponto. E isso talvez preocupasse os discí-
pulos desde o início da travessia.
Ora. de seu travesseiro de couro, à popa, o Mestre ergue a voz máscula, embora repassada de doçura,
para dar-lhes um aviso, precedido de uma interjeição: "Olhai! Cuidado com o fermento dos fariseus e
saduceus" (em Marcos: "dos fariseus e de Herodes").
Diante disso, eles extravasam a angústia represada: "Pronto! é porque esquecemos os pães"! ... E quem
sabe principia urna discussão entre eles, buscando qual o "culpado" ...
Mas Jesus interrompe-os com entonação de tristeza e desilusão na voz. Mais uma vez fora mal inter-
pretado: seu ensino era espiritual, não material. Que importava o pão físico? Então já haviam esqueci-
do as duas multiplicações? E aqui vem a comprovação da realidade de ambas, citadas separadamente,
com os pormenores salientados, numa vivacidade natural: quantos cestos apanhastes quando cinco mil
foram saciados com cinco pães? E quantas cestas, quando quatro mil o tornam com sete?

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SABEDORIA DO EVANGELHO

A expressão "ter olhos e não ver" ... é bíblica (cfr Jer. 5:21; Ex. 12:2; Salmo 115:5 e 135:16), salien-
tando a decepção causada ao Mestre pelos próprios discípulos, que com Ele conviviam há bastante
tempo, e que não percebiam ainda o sentido oculto. Era uma desilusão forte, após a outra sofrida na
aula dada na sinagoga de Cafarnaum (João, 6:66; vol. 3.º).
Parece então que foi percebido, como anota Mateus: o fermento, elemento corruptor (tanto que era
proibido colocá-lo no pão utilizado na Páscoa e no das oblatas, Lev. 2:11) era a hipocrisia (Luc. 12:2)
e outros graves defeitos citados em vários pontos do Evangelho, mas sobretudo em Mat. 23: 1-7.

A lição da individualidade chega-nos com frequência à personalidade física. Mas esta, envolvida pela
materialidade que a circunda, não entende os sussurros silenciosos de advertência que lhe são feitos,
e quase sempre os interpreta viciosamente, atribuindo aos avisos espirituais sentido material. Por
vezes, mesmo, há amigos desencarnados que se encarregam de advertir-nos. No entanto, queixamo-
nos de que "não são claros nem objetivos", porque não os ouvimos com os ouvidos espirituais, mas
apenas com os materiais ... eles querem facilitar-nos a compreensão, mas temos os olhos da mente
vedados!
As palavras do Espírito só podem tratar de aspectos espirituais.
Todavia, o aviso é oportuno: cuidado com os fariseus (os hipócritas intelectuais), com os saduceus (os
materialistas agnósticos) e os herodianos (os que se prendem aos gozos dos sentidos), porque eles,
que de todos os lados nos cercam, acabam permeando-nos com suas doutrinas e agindo como o fer-
mento: fazendo-nos inchar toda a massa, corrompendo-a.
O sentido espiritual se deduz da letra, única que pode chegar até nós através do intelecto. E que o
sentido da palavra deva ser percebido em todas as minúcias, vemo-lo num pormenor que parece in-
significante: ao relembrar as duas multiplicações, o Mestre sublinha os termos utilizados em cada
uma, distinguindo que, na primeira, os fragmentos foram recolhidos em cestos (kophínos) e na segun-
da em cestas (spurídas), recipientes maiores. Não há confusão possível.
O espiritualista está cercado de doutrinas exóticas e facilmente deixa-se penetrar por elas sem sentir.
Quando abrir os olhos, verificará que saiu da renda reta despercebidamente. Cuidado! O pão sobres-
substancial é simples, sem fermentos de grandezas, sem exterioridades, sem misturas: é sincero (no
sentido etimológico, "sem mistura"), não hipócrita, não fariseu; é espiritual, sem materialidade nem
agnosticismo, não-saduceu; e não busca prazeres físicos dos sentidos, é não-herodiano.

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C. TORRES PASTORINO

O CEGO DE BETSAIDA
Marc. 8:22-26
22. E ele chegou a Betsaida. E trouxeram-lhe um cego, e solicitaram-lhe que o tocasse.
23. E tendo segurado a mão do cego, levou-o para fora da aldeia; e cuspindo-lhe nos
olhos, pôs as mãos sobre ele e perguntou-lhe: "Vês alguma coisa"?
24. Este, começando a ver, disse: "Vejo os homens, porque, como árvores, os vejo andan-
do".
25. Então de novo lhe impôs as mãos sobre os olhos e ele enxergou em redor e foi curado
e discerniu tudo nitidamente mesmo ao longe.
26. E mandou-o para sua casa, dizendo: "Nem entres na aldeia".

Novamente na margem oriental, em Betsaida-Júlias (el Tell), a 3 km ao norte do lago de Genesaré e a


300 m a leste do Jordão; cidade construída por Filipe o tetrarca. Não deve admirar que Marcos lhe
aplique o epíteto de kómê (aldeia), pois assim o fez também Josefo (Ant. Jud. 18, 2, 1). E o Novo Tes-
tamento não leva à risca a classificação: João (7:42) chama Belém de aldeia (kómê), enquanto Lucas
(2:4) a eleva à categoria de cidade (pólis).
Ao desembarcar, os habitantes levam a Jesus um cego, a primeira cura desse tipo narrada por Marcos,
e privativa deste Evangelho, tal como a do surdo-gago. A solicitação é sempre a mesma: "que o toque"
(ou "que lhe imponha as mãos"). O gesto, hoje denominado "bênção" pelos católicos ou "passe" pelos
espiritistas é idêntico: lançamento de fluidos curadores, mediante expressivo gesto da mão, com ou
sem contato físico.
Ao invés disso, o Mestre segura a mão do cego e o leva para fora da cidade, tal como fizera com o sur-
do-gago. Aí recomeça o ritual mágico de colocar saliva nos olhos. Após isso pergunta-lhe se está ven-
do. A resposta é, talvez, desconcertante: "vejo os homens (blépô tous anthrópous) porque (hóti) como
árvores (hôs déndra) os vejo andando (horô peripatoúntes).
Dividem-se os exegetas, discutindo se o cego o era de nascença ou não. O fato que transparece claro é
que, em sua cegueira, ao ouvir o farfalhar das frondes, ele tinha a impressão de que as árvores "cami-
nhavam em redor"; e a visão ainda deficiente fazia-lhe ver os homens grandes como ele imaginava
serem as árvores.
A cura não estava completa. Mister havia de nova intervenção taumatúrgica, embora de menor intensi-
dade: serão utilizados os fluidos magnéticos das mãos, sem mais necessidade do emprego da saliva.
Após impor as mãos sobre os olhos, nova verificação para confirmar se a cura estava realmente termi-
nada com êxito.
Interessante notar que Marcos diferencia as nuanças, utilizando-se dos compostos e sinônimos. Veja-
mos os versículos 24 e 25: "este, começando a ver (anablépô) disse: vejo (blépô) os homens porque,
como árvores, os percebo (horáô) andando. Então de novo lhe impôs as mãos sobre os olhos e ele en-
xergou em redor (diablépô) e foi curado e discerniu (emblépô) tudo nitidamente mesmo ao longe".
Observe-se que anablépô é o verbo usado em Mat. 11:5, quando Jesus manda dizer ao Batista que "os
cegos vêem"; e também em João (9:11. 15, 18) quando é narrado o episódio do cego de nascença.
O último advérbio têlaugôs, que só aparece aqui em todo o Novo Testamento, é composto de têle (ao
longe) e augê (brilho, nitidez). Daí o termos traduzido por "nitidamente mesmo ao longe".

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Vale salientar a ordem de recolher-se imediatamente a sua casa, nem sequer entrando na aldeia" para
não sucumbir à tentação de divulgar o ocorrido.

Já vimos que Betsaida significa "casa dos frutos", e sabemos o significado simbólico da cegueira espi-
ritual: o homem que não compreende, que não vê, que não percebe intelectualmente. E muitos são
assim.
Quando isso ocorre, pode acontecer que a individualidade, por solicitação de intercessores (encarna-
dos ou desencarnados) ou mesmo espontaneamente, resolva agir para "abrir" os olhos" e apressar o
progresso.
Aí temos a técnica, em poucos versículos. Em primeiro lugar levar a personalidade para fora da mul-
tidão (que importa se Betsaida era aldeia ou cidade?), para o isolamento, no qual o Mestre (Cristo
Interno) e os discípulos (os veículos dessa personalidade) poderiam agir a sós na meditação.
A seguir, colocar "saliva nos olhos", ou seja, tirar da essência divina e profunda de seu próprio ser os
fluidos indispensáveis para abrir os canais do intelecto, a fim de que, por meio deles (a intuição) a
criatura possa ver. Verificamos anteriormente que já abrira os canais dos ouvidos, para que ouvisse
Sua voz, e da língua, para que se manifestasse. Abre agora os olhos para que veja e compreenda a
lição do Eu Superior.
Aqui o ensino se desdobra em minúcias: não é de uma vez que conseguimos compreender tudo. Há
etapas sucessivas. Inicialmente surgem confusões, que talvez durem vidas, seguindo a criatura doutri-
nas que, apesar de belezas e esplendores, não revelam a verdade real e espiritual.
Mas quando finalmente a misericórdia suprema do Cristo percebe que começamos a entrever a Ver-
dade, novamente coloca Sua mão bendita e estabelece o contato definitivo. É então que começamos a
ver (anablépô) ou "levantamos os olhos" (outro sentido do mesmo verbo), e enxergamos em redor (dià-
blépô), sendo curados por fim, e discernindo (emblépô) tudo com nitidez, mesmo ao longe (têlaugôs),
isto é, no futuro distante, que se perde no infinito do espaço e na eternidade do tempo.

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C. TORRES PASTORINO

A CONFISSÃO DE PEDRO

Mat. 16:13-20 Marc. 8:27-30 Luc. 9:18-21

13. Indo Jesus para as bandas 27. E partiu Jesus com seus 18. E aconteceu, ao estar ele
de Cesaréia de Filipe, per- discípulos para as aldeias sozinho orando, vieram a
guntou a seus discípulos: de Cesaréia de Filipe; e no ele os discípulos; e ele per-
"Quem dizem os homens caminho interrogou seus guntou-lhes, dizendo:
ser o filho do homem"? discípulos, dizendo; "Quem "Quem dizem as multidões
dizem os homens que sou que eu sou"?
14. Responderam: "Uns dizem
eu"?
João Batista; outros, Elias; 19. Responderam eles: "Uns
outros, Jeremias, ou um 28. Responderam eles: "Uns João o Batista; outros que
dos profetas". dizem João Batista; outros, um profeta dos antigos re-
Elias; e outros, um dos pro- encarnou".
15. Disse-lhes: “Mas vós, quem
fetas".
dizeis que eu sou"? 20. E disse-lhes: "E vós, quem
29. E ele lhes disse: "Mas vós, dizeis que sou"? Respon-
16. Respondendo, Simão Pedro
quem dizeis que sou"? dendo, pois, Pedro disse:
disse: "Tu és o Cristo, o
Respondendo, Pedro disse- "O Cristo de Deus".
Filho do Deus o vivo",
lhe: "Tu és o Cristo". 21. Porém advertindo-os ener-
17. E respondendo, disse-lhe
gicamente, ordenou que a
Jesus: "Feliz és tu, Simão
ninguém dissessem isso.
Bar-Jonas, porque carne e
sangue não to revelaram,
mas meu Pai que está nos
céus.
18. Também eu te digo que tu
és Pedro, e sobre essa pedra
construir-me-ei a
"ekklêsía"; e as portas do
"hades" não prevalecerão
contra ela.
19. Dar-te-ei as chaves do reino
dos céus, e o que ligares na
Terra será ligado nos céus,
e o que desligares na Terra
será desligado nos céus".
20. Então ordenou a seus discí-
pulos que a ninguém dis-
sessem que ele era o Cristo.

Da margem oriental, onde se encontrava a comitiva, Jesus parte com seus discípulos para o norte,
"para as bandas" (Mat. ) ou "para as aldeias" (Mr.) de Cesaréia de Filipe.
Essa cidade fica na encosta do Hermon, a 4 ou 5 km de Dan, portanto no limite extremo norte da Pa-
lestina. No 3.º séc. A.C., os gregos aí consagraram a Pâ e às Ninfas uma gruta belíssima, em que nasce

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SABEDORIA DO EVANGELHO

uma das fontes do Jordão. Daí o nome de Paneas (ainda hoje o local é denominado Banias pelos ára-
bes) dado à aldeia. No alto do penhasco, Herodes o grande construiu um templo de mármore de alvi-
nitente esplendor em honra de Augusto; e o tetrarca Filipe, no ano 3 ou 2 A.C. aí levantou uma cidade
a que denominou Cesaréia, para homenagear o mesmo imperador. Logo, porém, a cidade passou a ser
conhecida como "Cesaréia de Filipe", para distingui-la da outra Cesaréia da Palestina, porto de mar
criado por Herodes o grande no litoral, na antiga Torre de Straton.
A viagem até lá durava dois dias, beirando-se o lago Merom (ou Houléh); ao chegar aos arredores de
Cesaréia de Filipe, encontraram o ambiente de extrema beleza e frescor incalculável, que perdura ainda
hoje. Verde por toda a parte, a dominar o vale em redor, com o silêncio das solidões a favorecer a me-
ditação, diante de uma paisagem deslumbrante e serena; ao longe avistavam-se as águas que partiam
da gruta a misturar-se, ao sul, com o Nahr el-Hasbani e com o Nahr el-Leddan, para dar origem ao
Jordão. Nesse sitio isolado, entre pagãos, não haveria interferências de fariseus, de saduceus, nem de
autoridades sinedritas ou herodianas.
Mateus, cujo texto é mais minucioso, relata que Jesus fez a pergunta em viagem, "indo" para lá; Mar-
cos, mais explicitamente declara que a indagação foi feita "a caminho". Lucas, porém, dá outra versão:
mostra-nos Jesus a "orar sozinho", naturalmente enlevado com a beleza do sítio. Depois da prece, faz
que os discípulos se cheguem a Ele, e então aproveita para sindicar a opinião do povo (a voz geral das
massas) e o que pensam Seus próprios discípulos a Seu respeito.
As respostas apresentam-se semelhantes, nos três sinópticos, repetindo-se mais ou menos o que foi dito
quando se falou da opinião de Herodes (Mat. 14:2, Marc. 6:14-16; Luc. 9:8-9; ver vol. 3.°). Em resu-
mo:
a) João, o Batista, crença defendida sobretudo pelo remorso de Herodes, e que devia ter conquistado
alguns seguidores;
b) Elias, baseada a convicção nas palavras bastante claras de Malaquias (3:23-24), que não deixam
dúvida a respeito da volta de Elias, a fim de restaurar Israel para a chegada do Messias;
c) Jeremias, opinião que tinha por base uma alusão do 2.º livro dos Macabeus (2:1-12), onde se afir-
ma que a Arca, o Tabernáculo e o Altar dos Perfumes haviam sido escondidos pessoalmente por
Jeremias numa gruta do Monte Nebo, por ocasião do exílio do povo israelita, e por ele mesmo ha-
via sido vedada e selada a entrada na pedra; daí suporem que Jeremias voltaria (reencarnaria) para
indicar o local, que só ele conhecia, a fim de reaver os objetos sagrados. E isso encontrava confir-
mação numa passagem do 4.º livro de Esdras (2:18), onde o profeta escreve textualmente: "Não
temas, mãe dos filhos, porque eu te escolhi, - diz o Senhor - e te enviarei como auxílio os meus
servos Isaías e Jeremias";
d) um profeta (Lucas: "um profeta dos antigos que reencarnou), em sentido lato. Como grego, mais
familiarizado ainda que os israelitas com a doutrina reencarnacionista, explica Lucas com o verbo
anestê o modo como teria surgido (re-surgido, anestê) o profeta.
No entanto, é estranhável que não tenham sido citadas as suspeitas tão sintomáticas, já surgidas a res-
peito do messianato de Jesus (cfr. Mat. 12:23), chegando-se mesmo a querer coroá-lo rei (João, 6:14).
Não deixa de admirar o silêncio quanto a essas opiniões, conhecidas pelos próprios discípulos que no-
las narram, ainda mais porque, veremos na continuação, eles condividiam esta última convicção, entu-
siasticamente emitida por Pedro logo após.
O Mestre dirige-se então a eles, para saber-lhes a opinião pessoal: já tinham tido tempo suficiente para
formar-se uma convicção íntima. Pedro, temperamental como sempre e ardoroso incontido, responde
taxativo:
- "Tu és o Cristo" (Marcos)
- "Tu és o Cristo de Deus" (Lucas)
- "Tu és o Cristo, o filho de Deus o vivo" (Mateus).

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C. TORRES PASTORINO
Cristo, particípio grego que se traduz como o "Ungido", corresponde a "Messias", o escolhido para a
missão de levar ao povo israelita a palavra física de YHWH.
Em Marcos e Lucas, acena para aí, vindo logo a recomendação para fiada disso ser divulgado entre o
povo.
Em Mateus, porém, prossegue a cena com três versículos que suscitaram acres e largas controvérsias
desde épocas remotíssimas, chegando alguns comentaristas até a supor tratar-se de interpolação. Em
vista da importância do assunto, daremos especial atenção a eles, apresentando, resumidas, as opiniões
dos dois campos que se digladiam.
Os católicos-romanos aceitam esses três versículos como autênticos, vendo neles:
a) a instituição de uma "igreja", organização com poderes discricionários espirituais, que resolve na
Terra com a garantia de ser cegamente obedecida por Deus no "céu";
b) a instituição do papado, representação máxima e chefia indiscutível e infalível de todos os cristãos,
passando esse poder monárquico, por direito hereditário-espiritual, aos bispos de Roma, sucessores
legítimos de Pedro, que recebeu pessoalmente de Jesus a investidura real, fato atestado exatamente
com esses três versículos.
Essa opinião foi combatida com veemência desde suas tentativas iniciais de implantação, nos primei-
ros séculos, só se concretizando a partir dos séculos IV e V por força da espada dos imperadores ro-
manos e dos decretos (de que um dos primeiros foi o de Graciano e Valentiniano, que em 369 estabe-
leceu Dâmaso, bispo de Roma, como juiz soberano de todos os bispos, mas cujo decreto só foi posto
em prática, por solicitação do mesmo Dâmaso, em 378). O diácono Ursino foi eleito bispo de Roma na
Basílica de São Júlio, ao mesmo tempo em que Dâmaso era eleito para o mesmo cargo na Basílica de
São Lourenço. Os partidários deste, com o apoio de Vivêncio, prefeito de Roma, atacaram os sacer-
dotes que haviam eleito Ursino e que estavam ainda na Basílica e aí mesmo mataram 160 deles; a
seguir, tendo-se Ursino refugiado em outras igrejas, foi perseguido violentamente, durando a luta até
a vitória total do "bando contrário". Ursino, a seguir, foi exilado pelo imperador, e Dâmaso dominou
sozinho o campo conquistado com as armas. Mas toda a cristandade apresentou reações a essa preten-
são romana, bastando citar, como exemplo, uma frase de Jerônimo: "Examinando-se do ponto de vista
da autoridade, o universo é maior que Roma (orbis maior est Urbe), e todos os bispos, sejam de Roma
ou de Engúbio, de Constantinopla ou de Régio, de Alexandria ou de Tânis, têm a mesma dignidade e o
mesmo sacerdócio" (Epistula 146, 1).
Alguns críticos (entre eles Grill e Resch na Alemanha e Monnier e Nicolardot na França, além de ou-
tros reformados) julgam que esses três versículos tenham sido interpolados, em virtude do interesse da
comunidade de Roma de provar a supremacia de Pedro e portanto do bispado dessa cidade sobre todo
o orbe, mas sobretudo para provar que era Pedro, e não Paulo, o chefe da igreja cristã.
Essa questão surgiu quando Marcion, logo nos primeiros anos do 2.º século, revolucionou os meios
cristãos romanos com sua teoria de que Paulo foi o único verdadeiro apóstolo de Jesus, e portanto o
chefe inconteste da Igreja.
Baseava-se ele nos seguintes textos do próprio Paulo: "Não recebi (o Evangelho) nem o aprendi de
homem algum, mas sim mediante a revelação de Jesus Cristo" (Gál. 1:12); e mais: "Deus ... que me
separou desde o ventre materno, chamando-me por sua graça para revelar seu Filho em mim, para pre-
gá-lo entre os gentios, imediatamente não consultei carne nem sangue, nem fui a Jerusalém aos que
eram apóstolos antes de mim" (Gál.15:15-17). E ainda em Gál. 2:11-13 diz que "resistiu na cara de
Pedro, porque era condenado". E na 2.ª Cor. 11:28 afirma: "sobre mim pesa o cuidado de todas as
igrejas", após ter dito, com certa ironia, não ser "em nada inferior aos maiores entre os apóstolos" (2.ª
Cor. 11:5) acrescentando que "esses homens são falsos apóstolos, trabalhadores dolosos, transforman-
do-se em apóstolos de Cristo; não é de admirar, pois o próprio satanás se transforma em anjo de luz"
(2.ª Cor. 11:13-14). Este último trecho, embora se refira a outras criaturas, era aplicado por Marcion (o
mesmo do "corpo fluídico" ou "fantasmático") aos verdadeiros apóstolos. Em tudo isso baseava-se

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Marcion, e mais na tradição de que Paulo fora bispo de Roma, juntamente com Pedro. Realmente as
listas fornecidas pelos primeiros escritores, dos bispos de Roma, dizem:
a) Irineu (bispo entre 180-190): "Quando firmaram e estabeleceram a igreja de Roma, os bem-
aventurados apóstolos Pedro e Paulo confiaram a administração dela a Lino, de quem Paulo fala na
epístola a Timóteo. Sucedeu-lhe depois Anacleto e depois deste Clemente obteve o episcopado, em
terceiro lugar depois dos apóstolos, etc." (Epíst. ad Victorem, 3, 3, 3; cfr. Eusébio, His. Eccles.,
5,24,14).
b) Epifânio (315-403) escreve: "Porque os apóstolos Pedro e Paulo foram, os dois juntos, os primei-
ros bispos de Roma" (Panarion, 27, 6).
Ora, dizem esses críticos, a frase do vers. 17 "não foi a carne nem o sangue que to revelaram, mas meu
Pai que está nos céus", responde, até com as mesmas palavras, a Gálatas 1:12 e 16.
Para organizar nosso estudo, analisemos frase por frase.
VERS. 18 a - "Também te digo que tu és Pedro e sobre essa pedra construir-me-ei a "ekklêsia") (oi
kodomêsô moi tên ekklêsían).
O jogo de palavras corre melhor no aramaico, em que o vocábulo kêphâ (masculino) não varia. Mas no
grego (e latim) o masculino Petros (Petrus, Pedro) é uma criação ad hoc, um neologismo, pois esse
nome jamais aparece em nenhum documento anterior. Mas como a um homem não caberia o feminino
"pedra", foi criado o neologismo. Além de João (1:42), Paulo prefere o aramaico Kêphá (latim Cephas)
em 1 Cor. 1:12; 3:22; 9:5; 15:5 e Gál. 2:14.
Quanto ao vocábulo ekklêsía, que foi transliterado em latim ecclésia (passando para o português
"igreja"), temos que apurar o sentido: A - etimológico; B - histórico; C - usual; D - seu emprego no
Antigo Testamento; e E - no Novo Testamento.
A- Etimologicamente ekklêsía é o verbo Kaléô, "chamar, convocar", com o preverbo ek, designativo
de ponto de partida. Tem pois o sentido de "convocação, chamada geral".
B- Historicamente, o termo era usado em Atenas desde o 6.º século A.C.; ao lado da Boulê ("concí-
lio", em Roma: Senado; em Jerusalém: Sinédrio), ao lado da Boulê que redigia as leis, por ser
constituída de homens cultos e aptos a esse mister, havia a ekklêsía (em Roma: Comitium; em Je-
rusalém: Synagogê ), reunião ou assembléia geral do povo livre, que ratificava ou não as decisões
da autoridade. No 5.º séc. A.C., sob Clístenes, a ekklésía chegou a ser soberana; durante todo o
apogeu de Atenas, as reuniões eram realizadas no Pnyx, mas aos poucos foi se fixando no Teatro,
como local especial. Ao tornar-se "cidade livre" sob a proteção romana, Atenas viu a ekklêsía per-
der toda autoridade.
C- Na época do início do cristianismo, ekklêsía corresponde a sinagoga: "assembléia regular de pesso-
as com pensamento homogêneo"; e tanto designava o grupo dos que se reuniam, como o local das
reuniões. Em contraposição a ekklésía e synagogê, o grego possuía syllogos, que era um ajunta-
mento acidental de pessoas de idéias heterogêneas, um agrupamento qualquer. Como sinônimo das
duas, havia synáxis, comunidade religiosa, mas que, para os cristãos, só foi atribuída mais tarde
(cfr . Orígenes, Patrol. Graeca, vol. 2 col. 2013; Greg. Naz., Patrol Graeca vol. 1 col. 876; e João
Crisóst., Patrol.Graeca, vol. 7 col. 22). Como "sinagoga" era termo típico do judaísmo, foi preferi-
do "ecclésia" para caracterizar a reunião dos cristãos.
D- No Antigo Testamento (LXX), a palavra é usada com o sentido de reunião, assembléia, comuni-
dade, congregação, grupo, seja dos israelitas fiéis, seja dos maus, e até dos espíritos dos justos no
mundo espiritual (Núm. 19, 20; 20:4; Deut. 23:1, 2, 3, 8; Juizes 20:2; 1.º Sam. 17:47; 1.º Reis
8:14,22; 1.º Crôn. 29:1, 20; 2.º Crôn. 1:5; 7:8; Neem. 8:17; 13:1; Judit 7:18; 8:21; Salmos 22:22,
25; 26:5; 35:18; 40:10; 89:7; 107:32; 149:1; Prov. 5:14; Eccli, 3:1; 15:5; 21:20; 24:2; 25:34;
31:11; 33:19; 38:37; 39:14; 44:15; Lam. 1:10; Joel 2:16; 1.º Mac. 2:50;3:13; 4:59; 5:16 e
14:19).
E- No Novo Testamento podemos encontrar a palavra com vários sentidos:

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1) uma aglomeração heterogênea do povo: At. 7:38; 19:32, 39, 41 e Heb. 12:23.
2) uma assembléia ou comunidade local, de fiéis com idéias homogêneas, uma reunião organizada em
sociedade, em que distinguimos:
a) a comunidade em si, independente de local de reunião: Mat. 18: 17 (2 vezes); At. 11:22; 12:5;
14:22; 15:41 e 16:5; l.ª Cor. 4:17; 6:4; 7:17; 11:16, 18,22; 14:4,5,12,19,23,28, 33,34,35; 2.a Cor.
8:18, 19,23,24; 11:8,28; 12:13; Filp. 4:15; 2.a Tess. 1:4; l.ª Tim. 3:5, 15; 5:6; Tiago 5:15; 3.a Jo. 6;
Apoc. 2:23 e 22:16.
b) a comunidade estabelecida num local determinado, uma sociedade local: Antióquia, At. 11:26;
13:1; 14:27; 15:3; Asiáticas, l.ª Cor. 16:19; Apoc. 1:4, 11, 20 (2 vezes); 2:7, 11, 17, 29; 3:6, 13, 22;
Babilônia, 1 Pe. 5:13; Cencréia, Rom. 16.1; Corinto, 1 Cor. 1:2; 2 Cor. 1:1; Êfeso, At. 20:17;
Apoc. 2:1; Esmirna, Apoç. 2:8; Filadélfia, Apoc. 3:7; Galácia, 1 Cor. 16.1; Gál. 1:2; dos Gentios,
Rom. 16:4; Jerusalém, At. 5:11; 8:1,3; 12:1; 15:4,22: 18:22; Judéia, At. 9:31; 1 Tess. 2:14; Gál.
1:22; Laodicéia, Col. 4:16; Apoc. 3:14; Macedônia, 2 Cor. 8:1; Pérgamo, Apoc. 2:12; Roma, Rom.
16:16; Sardes, Apoc. 3:1; Tessalônica, 1 Tess. 1:1; 2 Tess. 1:1; Tiatira, Apoc. 2: 18.
c) a comunidade particular ou "centro" que se reúne em casa de família: Rom. 16:5, 23; 1 Cor. 16:19;
Col. 4:15; Film. 2; 3 Jo. 9, 10.

3) A congregação ou assembléia de todos os que aceitam o Cristo como Enviado do Pai: Mat. 16:18;
At. 20:28; 1 Cor. 10:32; 12:28; 15:9; Gál.1:13; Ef. 1:22; 3:10,21: 5:23,24,25,27,29,32; Filp. 3:6;
Col. 1:18,24; Heb. 2:12 (citação do Salmo 22:22).
Anotemos, ainda, que em Tiago 2:2, a comunidade cristã é classificada de "sinagoga".
Concluímos desse estudo minucioso, que a palavra "igreja" não pode ser, hoje, a tradução do vocábulo
ekklêsía; com efeito, esse termo exprime na atualidade.
1) a igreja católica-romana, com sua tríplice divisão bem nítida de a) militante (na Terra) ; b) sofredo-
ra (no "Purgatório") e c) triunfante (no "céu");
2) os templos em que se reúnem os fiéis católicos, com suas "imagens" e seu estilo arquitetônico es-
pecial.
Ora, na época de Jesus e dos primeiros cristãos, ekklêsía não possuía nenhum desses dois sentidos. O
segundo, porque os cristãos ainda não haviam herdado os templos romanos pagãos, nem dispunham de
meios financeiros para construí-los. E o primeiro porque só se conheciam, nessa época, as palestras de
Jesus nas sinagogas judaicas, nos campos, nas montanhas, a beira-mar, ou então as reuniões informais
nas casas de Pedro em Cafarnaum, de Simão o leproso em Betânia, de Levi, de Zaqueu em Jerusalém,
e de outros afortunados que lhe deram hospedagem por amizade e admiração.
Após a crucificação de Jesus, Seus discípulos se reuniam nas casas particulares deles e de outros ami-
gos, organizando em cada uma centros ou grupos de oração e de estudo, comunidades, pequenas algu-
mas outras maiores, mas tudo sem pompa, sem rituais: sentados todos em torno da mesa das refeições,
ali faziam em comum a ceia amorosa (agápê) com pão, vinho, frutas e mel, "em memória do Cristo e
em ação de graças (eucaristia)" enquanto conversavam e trocavam idéias, recebendo os espíritos
(profetizando), cada qual trazendo as recordações dos fatos presenciados, dos discursos ouvidos, dos
ensinamentos decorados com amor, dos sublimes exemplos legados à posteridade.
Essas comunidades eram visitadas pelos "apóstolos" itinerantes, verdadeiros emissários do amor do
Mestre. Presidiam a essas assembléias, "os mais velhos" (presbíteros). E, para manter a "unidade de
crença" e evitar desvios, falsificações e personalismos no ensino legado (não havia imprensa!) eram
eleitos "inspetores" (epíscopoi) que vigiavam a pureza dos ensinamentos. Essas eleições recaíam sobre
criaturas de vida irrepreensível, firmeza de convicções e comprovado conhecimento dos preceitos de
Jesus.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Por tudo isso, ressalta claro que não é possível aplicar a essa simplicidade despretensiosa dessas co-
munidades ou centros de fé, a denominação de "igrejas", palavra que variou totalmente na semântica.
Daí termos mantido, neste trecho do evangelho, a palavra original grega "ekklêsía", já que mesmo sua
tradução "assembléia" não dá idéia perfeita e exata do significado da palavra ekklêsía daquela época.
Não encontramos outro termo para usar, embora a farta sinonímia à disposição: associação, comunida-
de, congregação, agremiação, reunião, instituição, instituto, organização, grei, aprisco (aulê), sinaxe,
etc. A dificuldade consiste em dar o sentido de "agrupamento de todos os fiéis a Cristo" numa só pala-
vra. Fomos tentados a empregar "aprisco", empregado por Jesus mesmo com esse sentido (cfr. João,
10:1 e 16), mas sentimos que não ficava bem a frase "construirei meu aprisco".
Todavia, quando ekklêsía se refere a uma organização local de país, cidade ou mesmo de casa de fa-
mília, utilizaremos a palavra "comunidade", como tradução de ekklêsía, porque a correspondência é
perfeita.

VERS. 18 b - "As portas do hades (pylai hádou) não prevalecerão contra ela".
O hades (em hebraico sheol) designava o hábitat dos desencarnados comuns, o "astral inferior" ("um-
bral", na linguagem espirítica) a que os latinos denominavam "lugar baixo": ínferus ou infernus. Diga-
se, porém, que esse infernus (derivado da preposição infra) nada tem que ver com o sentido atual da
palavra "inferno". Bastaria citar um exemplo, em Vergílio (En. 6, 106), onde o poeta narra ter Enéias
penetrado exatamente as "portas do hades", inferni janua, encontrando aí (astral ou umbral) os roma-
nos desencarnados que aguardavam a reencarnação (Na revista anual SPIRITVS - edição de 1964, n.º 1
-, nas páginas 16 a 19, há minucioso estudo a respeito de sheol ou hades. Edições Sabedoria).
O sentido das palavras citadas por Mateus é que os espíritos desencarnados do astral inferior não terão
capacidade nem poder, por mais que se esforcem, para destruir a organização instituída por Cristo.
A metáfora "portas do hades" constitui uma sinédoque, isto é, a representação do todo pela parte.

VERS. 19 a - "Dar-te-ei as chaves do reino dos céus".


As chaves constituíam o símbolo da autoridade, representando a investidura num cargo de confiança.
Quando Isaías (22:22) fala da designação de Eliaquim, filho de Hilquia, para prefeito do palácio, ele
diz : "porei sobre seu ombro a chave da casa de David; ele abrirá e ninguém fechará, fechará e nin-
guém abrirá". O Apocalipse (3:7) aplica ao Cristo essa prerrogativa: "isto diz o Santo, o Verdadeiro, o
que tem a chave de David, o que abre e ninguém fechará, o que fecha e ninguém abrirá". Em Lucas
(11:52) aparece uma alusão do próprio Jesus a essa mesma figura: "ai de vós doutores da lei, porque
tirastes as chaves da ciência: vós mesmos não entrastes, e impedistes os que entravam".

VERS. 19 b - "O que ligares na Terra será ligado nos céus, e o que desligares na Terra será desligado
nos céus".
Após a metáfora das chaves, o que se podia esperar, como complemento, era abrir e fechar (tal como
em Isaías, texto que devia ser bem conhecido de Jesus), e nunca "ligar" e desligar", que surgem abso-
lutamente fora de qualquer sequência lógica. Aliás é como esperávamos que as palavras foram coloca-
das nos lábios de Clemente Romano (bispo entre 100 e 130, em Roma): "Senhor Jesus Cristo, que
deste as chaves do reino dos céus ateu emissário Pedro, meu mestre, e disseste: "o que abrires, fica
aberto e o que fechares fica fechado" manda que se abram os ouvidos e olhos deste homem" - haper àn
anoíxéis énéôitai, kaì haper àn kleíséis, kéklestai - (Martírio de Clemente, 9,1 - obra do 3.º ou 4.º sé-
culo). Por que aí não teriam sido citadas as palavras que aparecem em Mateus: hò eàn dêséis... éstai
dedeménon... kaí hò eàn lêsêis...éstai lelyménon?
Observemos, no entanto, que no local original dessa frase (Mat. 18:18), a expressão "ligar" e "desligar"
se encaixa perfeitamente no contexto: aí se fala no perdão a quem erra, dando autoridade à comunida-
de para perdoar o culpado (e mantê-lo ligado ao aprisco) ou a solicitar-lhe a retirada (desligando-o da

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C. TORRES PASTORINO
comunidade) no caso de rebeldia. Então, acrescenta: "tudo o que ligardes na Terra, será ligado nos
céus, e tudo o que desligardes na Terra, será desligado nos céus". E logo a seguir vem a lição de "per-
doar setenta vezes sete”. E entendemos: se perdoarmos, nós desligamos de nós o adversário, livramo-
nos dele; se não perdoarmos, nós o manteremos ligado a nós pelos laços do ódio e da vingança. E o
que ligarmos ou desligarmos na Terra (como encarnados, "no caminho com ele", cfr. Mat. 5.25), será
ratificado na vida espiritual.
Daí a nítida impressão de que esse versículo foi realmente transportado, já pronto (apenas colocados
os verbos no singular), do capítulo 18 para o 16 (em ambos os capítulos, o número do versículo é o
mesmo: 18).
A hipótese de que este versículo (como os dois anteriores) foi interpolado, é baseada no fato de que
não figuram em Marcos nem em Lucas, embora se trate claramente do mesmo episódio, e apesar de
que esses dois evangelistas escreveram depois de Mateus, por conseguinte, já conheciam a redação
desse apóstolo que conviveu com Jesus (Marcos e Lucas não conviveram). Acresce a circunstância de
que Marcos ouviu o Evangelho pregado por Pedro (de quem parece que era sobrinho carnal, e a quem
acompanhou depois de haver abandonado Paulo após sua primeira viagem apostólica. Marcos não po-
dia ignorar uma passagem tão importante em relação a seu mestre e talvez tio. Desde Eusécio aparece
como razão do silêncio de Marcos a humildade de Pedro, que em suas pregações não citava fatos que o
engrandecessem. Mas não é admissível que Marcos ignorasse a cena; além disso, ele escreveu seu
Evangelho após a desencarnação de Pedro: em que lhe ofenderia a modéstia, se dissesse a verdade to-
tal? Mais ainda: seu Evangelho foi escrito para a comunidade de Roma; como silenciar um trecho de
importância tão vital para os cristãos dessa metrópole? Não esqueçamos o testemunho de Papias (2,
15), discípulo pessoal do João o Evangelista, e portanto contemporâneo de Marcos, que escreveu:
"Marcos numa coisa só teve cuidado: não omitir nada do que tinha ouvido e não mentir absolutamen-
te" (Eusébio, Hist. Eccles. 3, 39).
E qual teria sido a razão do silêncio de Lucas? E por que motivo todo esse trecho não aparece citado
em nenhum outro documento anterior a Marcion (meados do 2.º século) ?
Percorramos os primeiros escritos cristãos, verificando que a primeira citação é feita por Justino, que
aparece como tendo vivido exatamente em 150 A.D.

1. DIDACHE (15,1) manda que os cristãos elejam seus inspetores (bispos) e ministros (diáconos).
Nenhum aceno a uma hierarquia constituída por Jesus, e nenhuma palavra a respeito dos "mais
velhos" (presbíteros).
2. CLEMENTE ROMANO (bispo de Roma no fim do 1.º e início do 2.º século), discípulo pessoal de
Pedro e de Paulo (parece até que foi citado em Filip. 4:3) e terceiro sucessor de ambos no cargo de
inspetor da comunidade de Roma. Em sua primeira epístola aos coríntios, quando fala da hierar-
quia da comunidade, diz que "Cristo vem da parte de Deus e os emissários (apóstolos) da parte de
Cristo" (1.ª Clem. 42, 2). Apesar das numerosíssimas citações escriturísticas, Clemente não apro-
veita aqui a passagem de Mateus que estamos analisando, e que traria excelente apoio a suas pala-
vras.
3. PAPIAS (que viveu entre o 1.º e o 2.º século) também nada tem em seus fragmentos.
4. INÁCIO (bispo entre 70 e 107), em sua Epístola aos Tralianos (3, 1) fala da indispensável hierar-
quia eclesiástica, mas não cita o trecho que viria a calhar.
5. CARTA A DIOGNETO, aliás comprovadamente a "Apologia de Quadrado dirigida ao Imperador
Adriano", portanto do ano de 125/126 (cfr. Eusibio, Hist. Eccles. 4,3 ), nada fala.
6. EPÍSTOLA DE BARNABÉ (entre os anos 96 e 130), embora apócrifa, nada diz a respeito.
7. POLICARPO (69-155) nada tem em sua Epístola aos Filipenses.
8. O PASTOR, de Hermas, irmão de Pio, bispo de Roma entre 141 e 155, e citado por Paulo (Rom.
16: 14). Em suas visões a igreja ocupa lugar de destaque. Na visão 3.ª, a torre, símbolo da igreja, é

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construída sobre as águas, mas, diz o Pastor a Hermas: "o fundamento sobre que assenta a torre é a
palavra do Nome onipotente e glorioso". Na Parábola 9, 31 lemos que foi dada ordem de "edificar
a torre sobre a Rocha e a Porta". E o trecho se estende sem a menor alusão ao texto que comenta-
mos.
9. JUSTINO ( + ou - ano 150) cita, pela vez primeira, esse texto (Diálogus, 100, 4) mas com ele só se
preocupa em provar a filiação divina do Cristo.
10. IRINEU (bispo entre 180-190), em sua obra cita as mesmas palavras de Justino, deduzindo delas a
filiação divina do Cristo (3, 18, 4).
11. ORÍGENES (184-254) é, historicamente, o primeiro que afirma que Pedro é a pedra fundamental
da igreja (Hom. 5,4), embora mais tarde diga que Jesus "fundou a igreja sobre os doze apóstolos,
representados por Pedro" (In Matt. 12, 10-14). Damos o resumo, porque o trecho é bastante longo.
12. TERTULIANO (160-220) escreve (Scorpiae, 10) que Jesus deu as chaves a Pedro e, por seu in-
termédio, à igreja (Petro et per eum Ecclesiae): a igreja é a depositária, Pedro é o Símbolo.
13. CIPRIANO (cerca 200-258) afirma (Epíst. 33,1) que Jesus, com essas palavras, estabeleceu a
igreja fundamentada nos bispos.
14. HILÁRIO (cerca 310-368) escreve (De Trinit. 3, 36-37) que a igreja está fundamentada na profis-
são de fé na divindade de Cristo (super hanc igitur confessionis petram) e que essa fé tem as cha-
ves do reino dos céus (haec fides Ecclesiae fundamentum est...haec fides regni caelestis habet cla-
ves).
15. AMBRÓSIO (337-397) escreve: "Pedro exerceu o primado da profissão de fé e não da honra (prir-
naturn confessionis útique, non honóris), o primado da fé, não da hierarquia (primatum fídei, non
órdinis)"; e logo a seguir: "é pois a fé que é o fundamento da igreja, porque não é da carne de Pe-
dro, mas de sua fé que foi dito que as portas da morte não prevalecerão contra ela" (De Incarnatio-
nis Dorninicae Sacramento, 32 e 34). No entanto, no De Fide, 4, 56 e no De Virginitate, 105 - le-
mos que Pedro, ao receber esse nome, foi designado pelo Cristo como fundamento da igreja.
16. JOÃO CRISÓSTOMO (c.345-407) explica que Pedro não deve seu nome a seus milagres, mas à
sua profissão de fé (Hom. 2, In Inscriptionem Actorum, 6; Patrol. Graeca vol. 51, col. 86). E na
Hom. 54,2 escreve que Cristo declara que construirá sua igreja "sobre essa pedra", e acrescenta
"sobre essa profissão de fé".
17. JERÔNIMO (348-420) também apresenta duas opiniões. Ao escrever a Dâmaso (Epist. 15) deseja
captar-lhe a proteção e diz que a igreja "está construída sobre a cátedra de Pedro". Mas no Comm.
in Matt. (in loco) explica que a “pedra é Cristo" (in petram Christum); cfr. 1 Cor 10:4 "e essa pedra
é Cristo".
18. AGOSTINHO (354-430) escreve: "eu disse alhures. falando de Pedro, que a igreja foi construída
sobre ele como sobre uma pedra: ... mas vejo que muitas vezes depois (postea saepíssime) apliquei
o super petram ao Cristo, em quem Pedro confirmou sua fé; como se Pedro - assim o chamou “a
Pedra" - representasse a igreja construída sobre a Pedra; ... com efeito, não lhe foi dito "tu es Pe-
tra", mas "tu es Petrus". É o Cristo que é a Pedra. Simão, por havê-lo confessado como o faz toda a
igreja, foi chamado Pedro. O leitor escolha qual dos dois sentidos é mais provável" (Retractationes
1, 21, 1).
Entretanto, Agostinho identifica Pedro com a pedra no Psalmus contra partem Donati, letra S; e na
Enarratio in Psalmum 69, 4. Esses são os locais a que se refere nas Retractationes.
Mas no Sermo 76, 1 escreve: "O apóstolo Pedro é o símbolo da igreja única (Ecclesiae unicae typum);
... o Cristo é a pedra, e Pedro é o povo cristão. O Cristo lhe diz: tu és Pedro e sobre a pedra que profes-
saste, sobre essa pedra que reconheceste, dizendo "Tu és o Cristo, o filho de Deus vivo”, eu construirei
minha igreja; isto é, eu construirei minha igreja sobre mim mesmo que sou o Filho de Deus. É sobre
mim que eu te estabelecerei, e não sobre ti que eu me estabelecerei. ... Sim, Pedro foi estabelecido so-
bre a Pedra, e não a Pedra sobre Pedro".

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Essa mesma doutrina aparece ainda em Sermo 244, 1 (fim): Sermo 270,2: Sermo 295, 1 e 2; Tractatus
in Joannem, 50, 12; ibidem, 118,4 ibidem, 124. 5: De Agone Christiano, 32; Enarratio in Psalmum
108, 1.

Aí está o resultado das pesquisas sobre o texto tão discutido. Concluiremos como Agostinho, linhas
acima: o leitor escolha a opinião que prefere.
O último versículo é comum aos três, embora com pequenas variantes na forma:
Mateus: não dizer que Ele era o Cristo.
Marcos: não falar a respeito Dele.
Lucas: não dizer nada disso a ninguém.
Mas o sentido é o mesmo: qualquer divulgação a respeito do messianato poderia sublevar uma perse-
guição das autoridades antes do tempo, impedindo o término da tarefa prevista.

Para a interpretação do sentido mais profundo, nada importam as discussões inócuas e vazias que
desenvolvemos acima. Roma, Constantinopla, Jerusalém, Lhassa ou Meca são nomes que só têm ex-
pressão para a personagem humana que, em rápidas horas, termina, sob aplausos ou apupos, sua
representação cênica no palco do plano físico.
Ao Espírito só interessa o ensino espiritual, revelado pela letra, mas registrado nos Livros Sagrados
de qualquer Revelação divina. Se o texto foi interpolado é porque isso foi permitido pela Divindade
que, carinhosamente cuida dos pássaros, dos insetos e das ervas do campo. Portanto, se uma inter-
polação foi permitida - voluntária ou não, com boas ou más intenções razão houve e há para isso, e
algum resultado bom deve estar oculto sob esse fato. Não nos cabe discutir: aceitemos o texto tal
como chegou até nós e dele extraiamos, pela meditação, o ensinamento que nos traz.
* * *
Embevecido pela beleza da paisagem circunstante, reveladora da Divindade que se manifesta através
de tudo, Jesus - a individualidade – recolhe-se em prece. É nessa comunhão com o Todo, nesse mer-
gulho no Cosmos, que surge o diálogo narrado pelos três sinópticos, mas completo apenas em Mateus
que, neste passo, atinge as culminâncias da narração espiritual de João.
O trecho que temos aqui relatado é uma espécie de revisão, de exame da situação real dos discípulos
por parte de Jesus, ou seja, dos veículos físicos (sobretudo do intelecto) por parte da individualidade.
Se vemos duas indagações na letra, ambas representam, na realidade, uma indagação só em duas
etapas. Exprime uma experiência que visa a verificar até onde foi aquela personagem humana (em
toda a narrativa, apesar do plural "eles", só aparece clara a figura de Simão Bar-Jonas). Teriam sido
bem compreendidas as aulas sobre o Pão da Vida e sobre a Missão do Cristo de Deus? Estaria exata
a noção e perfeita a União com a Consciência Cósmica, com o Cristo?
O resultado do exame foi satisfatório.
Analisemo-lo para nosso aprendizado.

Em primeiro lugar vem a pergunta: "Quem dizem os homens que eu sou"? Não se referia o Cristo aos
"outros", mas ao próprio Pedro que, ali, simbolizava todos os que atingiram esse grau evolutivo, e
que, ao chegar aí, passarão por exame idêntico (esta é uma das provações "iniciáticas"). A resposta
de Pedro reflete a verdade: no período ilusório da personalidade nós confundimos o Cristo com ma-
nifestações de formas exteriores, e o julgamos ora João Batista, ora Elias, ora Jeremias ou qualquer
outro grande vulto. Só percebemos formas e nomes ilusórios. Esse é um período longo e inçado de
sonhos e desilusões sucessivas, cheio de altos e baixos, de entusiasmos e desânimos.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

O Cristo insiste: "que pensais vós mesmos de mim"? ou seja, "e agora, no estágio atual, que é que
você pensa de mim"?
Nesse ponto o Espírito abre-se em alegrias místicas incontroláveis e responde em êxtase: Tu és o Un-
gido, o Permeado pelo Som (Verbo, Pai) ... Tu és o Cristo Cósmico, o Filho de Deus Vivo, a Centelha
da Luz Incriada, Deus verdadeiro proveniente do verdadeiro Deus!
Na realidade, Pedro CONHECEU o Cristo, e os Pais da Igreja primitiva tiveram toda a razão, quan-
do citaram esse texto como prova da divindade do CRISTO, o Filho Unigênito de Deus. O Cristo
Cósmico, Terceiro aspecto da Trindade, é realmente Deus em Sua terceira Manifestação, em Seu ter-
ceiro Aspecto, e é a Vida que vivificava Jesus, como vivifica a todas as outras coisas criadas. Mas em
Sua pureza humana, em Sua humildade, Jesus deixava que a Divindade se expandisse através de Sua
personalidade física. E Pedro CONHECEU o Cristo a brilhar iluminando tudo através de Jesus, como
a nós compete conhecer a Centelha divina, o Eu Interno Profundo a cintilar através de nossa indivi-
dualidade que vem penosamente evoluindo através de nossas personalidades transitórias de outras
vidas e da atual, em que assumimos as características de uma personagem que está a representar seu
papel no palco do mundo.
Simão CONHECEU o Cristo, e seu nome exprime uma das características indispensáveis para isso:
"o que ouve" ou" o que obedece".
E como o conhecimento perfeito e total só existe quando se dá completa assimilação e unificação do
conhecedor com o conhecido (nas Escrituras, o verbo "conhecer" exprime a união sexual, em que os
dois corpos se tornam um só corpo, imagem da unificação da criatura com o Criador), esse conheci-
mento de Pedro revela sua unificação com o Cristo de Deus, que ele acabava de confessar.
O discípulo foi aprovado pelo Mestre, em cujas palavras transparece a alegria íntima e incontida, no
elogio cheio de sonoridades divinas:
- "És feliz. Simão, Filho de Jonas"!
Como vemos, não é o Espírito, mas a personagem humana que recebe a bênção da aprovação. Real-
mente, só através da personalidade encarnada pode a individualidade eterna atingir as maiores alti-
tudes espirituais. Se não fora assim, se fosse possível evoluir nos planos espirituais fora da matéria, a
encarnação seria inútil. E nada há inútil em a natureza. Que o espírito só pode evoluir enquanto reen-
carnado na matéria - não lhe sendo possível isso enquanto desencarnado no "espaço" - , é doutrina fir-
mada no Espiritismo: Pergunta 175a: "Não se seria mais feliz permanecendo no estado de espírito"?
Resposta: "Não, não: ficar-se-ia estacionário, e o que se quer é progredir para Deus". A Kardec, "O
livro dos Espíritos". Então estava certo o elogio: feliz a personagem Simão ("que ouviu e obedeceu"),
filho de Jonas, porque conseguiu em sua peregrinação terrena, atingir o ponto almejado, chegar à
meta visada.
Mas o Cristo prossegue, esclarecendo que, embora conseguido esse passo decisivo no corpo físico,
não foi esse corpo ("carne e sangue”) que teve o encontro (cfr. A carne e o sangue não podem possuir
o reino dos céus", 1 Cor, 15:50). Foi, sim, o Espírito que se uniu à Centelha Divina,. e o Pai que ha-
bita no âmago do coração é que revela a Verdade.
E continuam os esclarecimentos, no desenvolvimento de ensinos sublimes, embora em palavras rápi-
das - não há prolixidade nem complicações em Deus, mas concisão e simplicidade - revelando-nos a
todos as possibilidades ilimitadas que temos:
- Eu te digo que tu és Pedro, e sobre essa pedra me edificarei a "ekklêsía".
Atingida a unificação, tornamo-nos conscientemente o Templo do Deus Vivo: nosso corpo é o Taber-
náculo do Espirito Santo (cfr. Rom. 6 :9, 11; 1 Cor. 3:16, 17; 2 Cor. 6:16: Ef. 2:22; 2 Tim. 1:14; Tia-
go, 4:5). Ensina-nos então, o Cristo, que nós passamos a ser a "pedra" (o elemento material mineral
no corpo físico) sobre a qual se edificará todo o edifício (templo) de nossa eterna construção espiritu-
al. Nossa personagem terrena, embora efêmera e transitória, é o fundamento físico da "ekklêsíia”
crística, da edificação definitiva eterna (atemporal) e infinita (inespacial) do Eu Verdadeiro e divino.

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Nesse ponto evolutivo, nada teremos que temer:
- As portas do hades, ou seja, as potências do astral e os veículos físicos (o externo e o interno) não
mais nos atingirão com seus ataques, com suas limitações, com seus obstáculos, com seus "proble-
mas" (no sentido etimológico). A personagem nossa - assim como as personagens alheias - não pre-
valecerá contra a individualidade, esse templo divino, construído sobre a pedra da fé, da União místi-
ca, da unificação com o Cristo, o Filho do Deus Vivo. Sem dúvida os veículos que nos conduzem no
planeta e as organizações do pólo negativo tentam demolir o trabalho realizado. Será em vão. Nossos
alicerces estão fixados sobre a Pedra, a Rocha eterna. As forças do Anti-Sistema (Pietro Ubaldi,
"Queda e Salvação") só podem alcançar as exterioridades, dos veículos físicos que vibram nos planos
inferiores em que elas dominam. Mas o Eu unido a Deus, mergulhado em Deus (D-EU-S) é inatingí-
vel, intocável, porque sua frequência vibratória é altíssima: sintonizados com o Cristo, a Torre edifi-
cada sobre a Pedra é inabalável em seus alicerces.
E Cristo prossegue:
- "Dar-te-ei as chaves do reino dos céus".
Com essas chaves em nossas mãos, podemos abrir e fechar, entrar e sair, ligar-nos e desligar-nos,
quando e quanto quisermos, porque já não é mais nosso eu pequeno personalístico que quer, (cfr.
João, 5:30) pensa e age; mas tudo o que de nós parte, embora parecendo proveniente da personagem,
provém realmente do Cristo ("já não sou mais eu que vivo, o Cristo é que vive em mim", Gál 2:20).
Com as chaves, podemos abrir as portas do "reino dos céus", isto é, de nosso coração. Podemos en-
trar e sair, para ligar-nos ao Cristo Cósmico na hora em que nosso ardor amoroso nos impele ao nos-
so Amado, ou para desligar-nos constrangidos a fim de atender às imprescindíveis e inadiáveis tarefas
terrenas que nos competem. Por mais que pareçam ilógicas as palavras "ligar" e "desligar", após a
sinédoque das chaves, são essas exatamente as palavras que revelam o segredo do ensinamento: estão
perfeitamente encaixadas nesse contexto, embora não façam sentido para o intelecto personalístico
que só entende a letra. Mas o Espírito penetra onde o intelecto esbarra (cfr. "o espírito age onde
quer", João, 3:8). Com efeito, após o Encontro, o Reconhecimento e a União mística, somos capazes
de, mesmo no meio da multidão, abrir com as nossas chaves a porta e penetrar no "reino dos céus" de
nosso coração; somos capazes de ligar-nos e conviver sem interrupção com o nosso Amor.
E a frase é verdadeira mesmo em outros sentidos: tudo o que ligarmos ou desligarmos na Terra, atra-
vés de nossa personalidade (da personagem que animamos) será automaticamente ligado ou desliga-
do "nos céus", ou seja, nos planos do Espírito. Porque Cristo é UM conosco, é Ele que vive em nós,
que pensa por nós, que age através de nós, já que nosso eu pequenino foi abolido, aniquilado, absor-
vido pelo Eu maior e verdadeiro; então todos os nossos pensamentos, nossas palavras, nossas ações
terão repercussão no Espírito.
A última recomendação é de capital importância na prática: a ninguém devemos falar de nada disso.
O segredo da realização crística pertence exclusivamente à criatura que se unificou e ao Amado a
quem nos unimos. Ainda aqui vale o exemplo da fusão de corpos no Amor: nenhum amante deixa
transparecer a ouvidos estranhos os arrebatamentos amorosos usufruídos na intimidade; assim ne-
nhum ser que se uniu ao Cristo deverá falar sobre os êxtases vividos em arroubos de amor, no quarto
fechado (cfr. Mat. 6:6) do coração. Falar "disso" seria profanação, e os profanos não podem penetrar
no templo iniciático do Conhecimento.
Isso faz-nos lembrar outra faceta deste ensinamento. Cristo utiliza-se de uma fraseologia tecnica-
mente especializada na arquitetura (que veremos surgir, mais explícita, posteriormente, quando co-
mentarmos Mat. 21:42, Marc.12:10 e Luc. 20:17).
Ensina-nos o Cristo que será "edificada" por Ele, sobre a "Pedra", a ekklêsía, isto é, o "Templo".
Ora, sabemos que, desde a mais remota antiguidade, os templos possuem forma arquitetônica especi-
al. Na fachada aparecem duas figuras geométricas: um triângulo superposto a um quadrilátero, para
ensinamento dos profanos.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Profanos é formado de PRO = "diante de", e FANUM = "templo". O termo originou-se do costume da
Grécia antiga, em que as cerimônias religiosas exotéricas eram todas realizadas para o grande público,
na praça que havia sempre na frente dos templos, diante das fachadas. Os profanos, então, eram aque-
les que estavam "diante dos templos", e tinham que aprender certas verdades básicas. Ao aprendê-las,
eram então admitidos a penetrar no templo, iniciando sua jornada de espiritualização, e aprendendo
conhecimentos esotéricos. Daí serem chamados INICIADOS, isto é, já tinham começado o caminho.
Depois de permanecerem o tempo indispensável nesse curso, eram então submetidos a exames e pro-
vas. Se fossem achados aptos no aprendizado tornavam-se ADEPTOS (isto é: AD + APTUS). A esses
é que se refere Jesus naquela frase citada por Lucas "todo aquele que é diplomado é como seu mestre"
(Luc. 6:40; veja vol. 3). Os Adeptos eram os diplomados, em virtude de seu conhecimento teórico e
prático da espiritualidade.
O ensino revelado pela fachada é que o HOMEM é constituído, enquanto crucificado na carne, por
uma tríade superior, a Individualidade eterna, - que deve dominar e dirigir o quaternário (inferior só
porque está por baixo) da personagem encarnada, com seus veículos físicos. Quando o profano chega
a compreender isso e a viver na prática esse ensinamento, já está pronto para iniciar sua jornada,
penetrando no templo.
No entanto, o interior dos templos (os construídos por arquitetos que conheciam esses segredos). o
interior difere totalmente da fachada: tem suas naves em arco romano, cujo ponto chave é a "pedra
angular", o Cristo (cfr. Mat. 21:42,. Marc. 12:10; Luc. 20:17,. Ef. 2:20; 1 Pe. 2:7; e no Antigo: Job.
38:6; Salmo 118:22: Isaías, 28:16, Jer. 51:26 e Zac. 4:7).
Sabemos todos que o ângulo da pedra angular é que estabelece a "medida áurea" do arco, e portanto de
toda a construção do templo. Assim, os que já entram no templo ("quem tem olhos de ver, que veja"!)
podem perceber o prosseguimento do ensino: o Cristo Divino é a base da medida de nossa individuali-
dade, e só partindo Dele, com Ele, por Ele e Nele é que podemos edificar o "nosso" Templo eterno.
Infelizmente não cabem aqui as provas matemáticas desses cálculos iniciáticos, já conhecidos por Pi-
tágoras seis séculos antes de Cristo.
Mas não queremos finalizar sem uma anotação: na Idade Média, justamente na época e no ambiente
em que floresciam em maior número os místicos, o arco romano cedeu lugar à ogiva gótica, o "arco
sextavado", que indica mais claramente a subida evolutiva. Aqui, também, os cálculos matemáticos
nos elucidariam muito. Sem esquecer que, ao lado dos templos, se erguia a torre ...
Quantas maravilhas nos ensinam os Evangelhos em sua simplicidade! ...

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C. TORRES PASTORINO

Corte do PANTEON de Roma, mostrando a arquitetura iniciática, com as medidas áureas

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SABEDORIA DO EVANGELHO

PREDIÇÃO DA MORTE

Mat. 16:21-23 Marc. 8:31-33 Luc. 9:22

21. Desde esse tempo, começou 31. E começou a ensinar-lhes 22. Dizendo :"É necessário que
Jesus a mostrar a seus dis- que precisava o Filho do o Filho do Homem padeça
cípulos que lhe era necessá- Homem padecer muitas muitas coisas e seja rejeita-
rio ir a Jerusalém e pade- coisas, ser rejeitado pelos do pelos mais velhos, pelos
cer muitas coisas dos mais mais velhos, pelos princi- principais sacerdotes e pe-
velhos, dos principais sa- pais sacerdotes e pelos es- los escribas, seja assassina-
cerdotes e dos escribas, ser cribas, ser assassinado e do e no terceiro dia seja
assassinado e no terceiro após três dias levantar-se despertado (ressuscitado)
dia ser despertado (ressus- (ressucitar).
citado) 32. E abertamente falava esse
22. Correndo a protegê-lo, Pe- ensino. Então, chamando-o
dro começou a repreendê- à parte, Pedro começou a
lo, dizendo; "Deus te guar- repreendê-lo.
de, Senhor: de modo algum 33. Mas, virando-se e olhando
te acontecerá isso"! para seus discípulos, repre-
23. Mas, virando-se ele, disse a endeu a Pedro, dizendo:
Pedro: "Vai para trás de "Vai para trás de mim, ad-
mim, adversário; tu me és versário, porque não pen-
pedra de tropeço, porque sas nas coisas de Deus, mas
não pensas nas coisas de nas dos homens".
Deus, mas sim nas dos ho-
mens".

Aqui, pela primeira vez, após o reconhecimento oficial de Seu messianato por parte dos discípulos,
Jesus lhes expõe com clareza e sem circunlóquíos (Marcos diz: “o ensino foi dado abertamente") o fim
trágico que Lhe está reservado exteriormente, diante dos homens. E é interessante salientar que, embo-
ra alguns manuscritos (seguidos por Wescott-Hort, Weiss, Nestle e Lagrange) tragam "Jesus Cristo",
outros, (como C, E, F, G, H, S, U, theta, omega e numerosos mais, seguidos por Tischendorf, von So-
den, Vogels e Bover) omitem a qualidade divina, aí deixando apenas o nome humano de "Jesus". Re-
almente, quem teria que submeter-se à terrível prova de dor-amor era o homem Jesus, já que o Cristo
divino, que "habita corporalmente" em todos nós, é INATINGÍVEL a qualquer dor ou sofrimento, seja
de natureza moral ou física.
A teoria docetista de que às dores físicas Jesus foi insensível por ser um fantasma (agênere) é de indi-
zível ingenuidade; nem há razões que justifiquem a abolição da dor física, a fim de salientar a dor
moral (motivada pelo baixamento de vibrações, o que lhe permitiu conviver na Terra com a humani-
dade ainda atrasadíssima como está). O homem Jesus (o Filho do Homem) sofreu moral e fisicamente.
Mas o Cristo Cósmico, mesmo em suas Centelhas, sendo Deus, é imutável e impossível, não sofrendo
nem de um modo nem de outro; é inatingível a dores e sofrimentos, pois vive na beatitude permanente
da sintonia absoluta com o Som (Verbo), unificado que está ao Pai e com o Espírito-Amor, a luz, de
que o Cristo constitui um raio. Tal como um adulto não sofre, porque compreende a incapacidade
infantil, se um lactente lhe faz uma desfeita, nem do recém-nascido exige o comportamento de um ho-

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mem amadurecido, assim o Cristo divino - muito mais elevado em relação ao homem, que o adulto em
relação ao lactente - não sofre jamais, porque sabe e compreende a ignorância infantil da humanida-
de.
Os avisos que “começa” a dar, a respeito de Suas dores futuras, têm por escopo prevenir Seus discí-
pulos que abandonassem a crença vulgar do Messias-Rei, e se familiarizassem com a idéia realística do
Messias-Servo-de-YHWH, sofredor e incompreendido (cfr. Isaías, 52:13 a 53:12 e Salmo 22).
Esse aviso é dado sistematizadamente em quatro etapas:
1.ª - que Ele deverá sair do "Jardim" risonho e florido da Galiléia, para subir a árdua, agreste e íngreme
montanha de Jerusalém;
2.ª - que terá que padecer muitas coisas às mãos do Sinédrio hierosolimitano, citado por seus compo-
nentes: os mais velhos (presbyte oi) que constituiam a nobreza do povo; os sacerdotes mais importan-
tes (principais) e os doutores da lei. escribas, intérpretes autorizados das Escrituras; ou seja, será rejei-
tado pelo mundo oficial da Igreja israelita;
3.ª - que terminará Sua carreira sendo assassinado de modo violento;
4.ª - mas que ao terceiro dia será DESPERTADO (em Mateus e Lucas: egerthênai, infinito aoristo pas-
sivo) ou SE LEVANTARÁ (em Marcos: anastênai, infinito aoristo segundo ativo).
Há pequena discordância entre Mateus e Lucas, que assinalam "no terceiro dia" (têi tritêi hêmera) e
Marcos que escreve "após três dias" (metà treís hêmerás). Ora, a expressão que correspondeu aos fatos
é a de Mateus e Lucas, repetida em Atos 10:40 e em Paulo (2.ª Cor. 15:4). A locução de Marcos colo-
caria a chamada "ressurreição" na 2.ª feira, quando ela se deu no domingo (repare-se: 1.º dia, 6.ª feira,
2.º dia, sábado, 3.º dia, domingo) . Em Oséias (6:3) a expressão "após dois dias" é usada como igual a
"no terceiro dia”.
Essa revelação abrupta causa em Pedro violento choque emocional e, temperamental como sempre,
parece-lhe que tudo vai realizar-se ali mesmo, naquele momento, diante de todos. Então, extrovertido e
generoso "corre a protegê-Lo" (sentido literal de proslabómenos, particípio presente ativo de proslam-
bánomai). Parece que o vemos, com gestos largos, quase interpondo-se entre Jesus e a estrada de Jeru-
salém, a bradar vermelho:
- Deus te ajude, Senhor! De modo algum te acontecerá isso!
A fórmula grega aqui usada, hileôs soi (proveniente de hílaos, "alegre", donde vêm nossos vocábulos
"hílare" e "hilaridade"), omitia sempre o nome de Deus, traduzindo-se literalmente: "favoravelmente a
ti", e correspondendo às nossas expressões correntes "Deus te ajude", "Deus te favoreça" ou “boa sor-
te".
O amor humano de Pedro não pode compreender nem aceitar que o seu Rabbi, tão jovem e tão bom,
tivesse fim tão trágico: bastar-lhe-ia não mais ir a Jerusalém! Mas o Mestre, virando-se e fixando seus
olhos límpidos e expressivos, repreende-o em termos severos, com as mesmas palavras que usara ao
repelir a "terceira tentação" (veja vol. 1):
- Vai para trás de mim, adversário!
"Adversário", em grego satanã (transcrição do hebraico satan), porque, tal como da outra vez, havia
manifesta oposição à missão messiânica que Ele viera cumprir, pretendendo-se incutir-Lhe a vaidade,
o orgulho e a ambição, caminhos opostos à humildade, à renúncia e à submissão necessárias para levar
a termo o auto-sacrifício por amor.
Logo depois é dada explicação do motivo por que o chama de adversário. Quase num jogo de imagens,
ao mesmo a quem chamara "a pedra" (Pedro), diz, agora, ser "pedra de tropeço", pois pretende fazê-Lo
tropeçar e cair no caminho da evolução. Aqui o sentido literal de skándalon pode ser dado em toda a
sua plenitude.

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Mas a explicação prossegue com profundo sentido didático: o discípulo precisa compreender total-
mente as razões de uma repreensão: "não pensas (ou phroneís) nas coisas de Deus, mas nas dos ho-
mens", isto é, olhas tudo do ângulo material e humano, e não do espiritual e divino.
Lucas limita-se a transcrever o aviso que Jesus deu do que O aguardava, sem aduzir o incidente do
protesto de Pedro.

O episódio traz-nos ensinamentos que nos alertam contra a prudência (phrónis) típica da personagem
encarcerada na carne.
Logo após o Encontro Místico e o reconhecimento do Cristo Interno por parte do intelecto que se ren-
de à evidência; logo após a felicidade inaudita da nova conquista, a criatura é alertada para os pas-
sos inevitáveis que ainda terá que dar, antes de atingir as alturas da libertação definitiva da descida à
matéria, ao pólo negativo, ao Anti-Sistema.
Aqui, temos que fazer ligeira digressão, para fazer-nos entender.
A evolução, como toda subida, supõe as dores produzidas pelo esforço. Essa estrada dolorosa que
leva aos cumes do Espírito, é geralmente denominada "iniciação", e consiste basicamente em sete
passos bem definidos, que tem recebido várias designações metafóricas (citemos a título de exemplo,
"os sete vales" do sufi 'Attar; os "sete castelos da alma" de Teresa de Ávila: "a montanha dos sete pa-
tamares" de Thomas Menton, etc.).
Todas essas etapas estão bem estabelecidas na vida física de Jesus" que é o modelo e exemplo do que
a todos nós deverá ocorrer para o nascimento do "homem novo" ou "Filho do Homem", isto é, a vida
plena da individualidade.
Quando o Espírito já percorreu a maior parte da estrada evolutiva, e já se encontra maduro para dar
o salto definitivo para a individualidade; ou seja, quando já atingiu a liberação total dos carmas ne-
gativos, tendo inclusive adquirido a sabedoria (desenvolvimento pleno das sensações, que foram su-
peradas; das emoções, que foram dominadas e vencidas; e do intelecto, que foi iluminado, estando
apto a mergulhar e dissolver-se na mente), então a "iniciação" realizada no planeta Terra chega ao
ponto de poder despojar definitivamente o Espírito das personalidades ou personagens transitórias,
libertando-o da "roda das encarnações" (gilgul, samsara, kyklos ananke), ou seja, do ciclo de "Filho
da mulher", passando-o a "Filho do Homem"; e se os passos forem perfeita e completamente realiza-
dos, terminará a experiência como "Filho de Deus".
Dissemos que as etapas foram todas vencidas por Jesus. Por exemplo:
1.ª - o NASCIMENTO na carne, como última entrada num corpo físico, passagem indispensável à
evolução, que só pode realizar-se na carne (cfr. Allan Kardec, "Livro dos Espíritos", resposta n.º
175a: se permanecesse na condição de espírito, a criatura "estacionaria"; e resposta 230: na erratici-
dade o espírito "pode melhorar-se muito", mas "na carne é que põe em prática as idéias que adqui-
riu". Também a "iniciação aos mistérios" só pode realizar-se na carne, quando se realizar o MER-
GULHO nas águas do coração, matando-se o "homem velho", para renascer o "homem novo". Uma
vez conseguido isso, é mister que seja obtida outra etapa:
2.ª - a CONFIRMAÇÃO, quando desce "a graça", resposta divina ao esforço humano, o que ocorreu
com Jesus no momento exato em que foi dado o mergulho, quando se fez ouvir a voz: "este é meu filho
bem-amado".
3.ª - as TENTAÇÕES, que representam a metánoia, ou modificação total da mentalidade, e que terão
que ser vencidas com vitória absoluta, contra a atração dos três maiores vícios da personagem divisi-
onista: vaidade, orgulho, ambição. Também estas só são consideradas superadas, quando se obtém a
"manifestação" do Alto na outra etapa:
4.ª - a TRANSFIGURAÇÃO, que é a sublimação do corpo físico, após a vitória sobre os vícios, pela
elevação das vibrações, purificando definitivamente a carne pelo contato com a divindade, obtendo-

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se, então, a "manifestação" (epiphania) das Forças Espirituais. Novamente aparece a frase: "este é
meu filho bem-amado, ouvi-o".
5.ª - a UNIÃO total com o Cristo Interno e, por seu intermédio, com o PAI, num matrimônio místico,
coisa que ocorreu na chamada Última CEIA, quando Jesus revelou o grande segredo, o mistério má-
ximo de sua doutrina, depois do que pode declarar: "Eu e o Pai somos UM" (João, 10:30).
6.ª - a conquista do grau de SACERDOTE, que precisa ser precedido por uma "experiência" mística
vivida, com o sofrimento voluntário da DOR-AMOR (1), que consegue a redenção total do passado, e
que Jesus viveu na CRUCIFICAÇÃO, obtendo a consagração na RESSURREIÇÃO, com a definitiva
vitória sobre a matéria.
(1) A palavra portuguesa "paixão" vem do latim passione(m), (verbo patior) muito semelhante ao gre-
go páthos (verbo patheín). O sentido de patheín é realmente "experimentar" ou "sofrer uma experiên-
cia". Empregava-se esse verbo no sentido de que os "iniciados" teriam que "experimentar" ao vivo os
ensinamentos aprendidos, conforme, aliás, consta de um fragmento de Aristóteles (em "Sinésio", Dion
10): "O místico deve não apenas aprender (mathein) mas experimentar (patheín)". Na interpretação
iniciática consistiu exatamente nisso a "paixão" de Jesus.
7.ª - a ASCENSÃO, que exprime a passagem ao plano mental (o plano próprio do ser que conquistou a
plenitude do estado hominal) com a final destruição da personalidade, eliminando-se, de todo, as sen-
sações do etérico, as emoções do astral e o raciocínio do intelecto, e permanecendo apenas o senti-
mento e o conhecimento intuitivo e global, a sabedoria experimental (ou gnose).
Nesse ponto ("na etapa final", ver vol. 3) o ser conquistou o estado espiritual, tendo vencido a morte e
subjugado o "inferno" (a inferioridade personalística), tornando-se Filho de Deus nas esferas evoluti-
vas ou "celestiais".
A cada encarnação em que a criatura repete esse ciclo iniciático, ascende mais um passo. Daí haver
diversos planos de iniciação: iluminados, iniciados, adeptos, mestres, hierofantes ... Jesus, evidente-
mente, estava no último grau da última iniciação terrena.
Voltando ao nosso tema, observamos que a criatura é alertada quanto aos passos dolorosos por que
terá que passar. Embora tendo o intelecto reconhecido o Cristo Interno em seu contato íntimo, ainda
não está totalmente preparado e assusta-se diante dos transes aflitivos que sobrevirão à personagem
humana, antes de galgar o supremo degrau que lhe dará o adeptado no planeta de provas que é a Ter-
ra. Assusta-se e procura esquivar-se. Realmente, nesse ponto muitos recuam; alguns poucos chegam
ao 2.º passo; raros ao 3.º; em menor número ainda ao 4.º, e raríssimos seguem daí por diante. No
entanto, TODOS, no dizer de Paulo (Ef. 4:13) teremos que atingir a "plenitude da evolução de Jesus,
o Cristo".
Diante, pois, do medo manifestado, o Cristo assinala que o intelecto ainda é o adversário, o antago-
nista do Espírito. Com seus cálculos egoístas, o intelecto personalista se apega aos bens terrenos. O
Cristo o sacode, demonstrando-lhe e ordenando-lhe que fique atrás do Espírito: "vai para trás de
mim". Coloca-o no lugar justo, submetido ao Espírito, e não querendo impedir-lhe a caminhada.
E esclarece (o intelecto é curioso...) a razão disso: ele só pensa nas coisas humanas, terrenas, materi-
ais ou intelectuais, ao invés de preocupar-se com os problemas do Espírito, com as coisas de Deus.
Enquanto a criatura não modificar sua mente (a palavra usada nos Evangelhos para exprimir isso é
metánoia) colocando acima das coisas terrenas as espirituais, não estará apto a submeter-se às pro-
vas, não terá ainda iniciado a subida evolutiva.
Como vemos, dizer-se "iniciado", sem ter passado por essas provas, exprime arrojo inaudito. Aliás, só
o fato de alguém dizer-se iniciado, demonstra que não o é; porque o verdadeiro iniciado jamais o diz:
limita-se a revelá-lo por seus atos, por seu comportamento, por sua irradiação espiritual. Quem estiver
à altura de compreendê-lo, o saberá ao primeiro contato. Desconfiemos de todos as que precisam dizer
que o são, para serem reconhecidos...
Mas o próprio Mestre, no próximo capítulo, desenvolverá melhor esse tema.

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O DISCIPULATO

Mat. 16:24-28 Marc. 8:34-38 e 9:1 Luc. 9:23-27

24. Jesus disse então o seus 34. E chamando a si a multi- 23. Dizia, então, a todos: "Se
discípulos: "Se alguém dão, junto com seus discí- alguém quer vir após mim,
quer vir após mim, negue- pulos disse-lhes: "Se al- negue-se a si mesmo, tome
se a si mesmo, tome sua guém quer vir após mim, cada dia sua cruz e siga-me.
cruz e siga-me. negue-se a si mesmo, tome 24. Pois quem quiser preservar
sua cruz e siga-me.
25. Porque aquele que quiser sua alma, a perderá; mas
preservar sua alma. a per- 35. Porque quem quiser pre- quem perder sua alma por
derá; e quem perder sua servar sua alma, a perderá; amor de mim, esse a pre-
alma por minha causa, a e quem perder sua alma servará.
achará. por amor de mim e da Boa- 25. De fato, que aproveita a um
Nova, a preservará.
26. Pois que aproveitará ao homem se ganhar o mundo
homem se ganhar o mundo 36. Pois que adianta a um ho- inteiro, mas arruinar-se ou
inteiro e perder sua alma? mem ganhar o mundo in- causar dano a si mesmo?
Ou que dará o homem em teiro e perder sua alma? 26. Porque aquele que se en-
troca de sua alma? 37. E que daria um homem em vergonhar de mim e de mi-
27. Porque o Filho do Homem troca de sua alma? nhas doutrinas, dele se en-
há de vir na glória de seu 38. Porque se alguém nesta
vergonhará o Filho do Ho-
Pai, com seus mensageiros, geração adúltera e errada
mem, quando vier na sua
e então retribuirá a cada se envergonhar de mim e
glória, na do Pai e na dos
um segundo seu compor- de minhas doutrinas, tam-
santos mensageiros.
tamento. bém dele se envergonhará o 27. Mas eu vos digo verdadei-
28. Em verdade vos digo, que Filho do Homem, quando ramente, há alguns dos
alguns dos aqui presentes vier na glória de seu Pai aqui presentes que não ex-
absolutamente experimen- com seus santos mensagei- perimentarão a morte até
tarão a morte até que o Fi- ros”. que tenham visto o reino de
lho do Homem venha em 9:1 E disse-lhes: "Em verdade
Deus.
seu reino. em verdade vos digo que há
alguns dos aqui presentes,
os quais absolutamente ex-
perimentarão a morte, até
que vejam o reino de Deus
já chegado em força".

Depois do episódio narrado no último capítulo, novamente Jesus apresenta uma lição teórica, embora
bem mais curta que as do Evangelho de João.
Segundo Mateus, a conversa foi mantida com Seus discípulos. Marcos, entretanto, revela que Jesus
"chamou a multidão" para ouvi-la, como que salientando que a aula era "para todos"; palavras, aliás,
textuais em Lucas.

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Achava-se a comitiva no território não-israelita ("pagão") de Cesaréia de Filipe, e certamente os mora-
dores locais haviam observado aqueles homens e mulheres que perambulavam em grupo homogêneo.
Natural que ficassem curiosos, a "espiar" por perto. A esses, Jesus convida que se aproximem para
ouvir os ensinamentos e as exigências impostas a todos os que ambicionavam o DISCIPULATO, o
grau mais elevado dos três citados pelo Mestre: justos (bons), profetas (médiuns) e discípulos (ver vol.
3).
As exigências são apenas três, bem distintas entre si, e citadas em sequência gradativa da menor à
maior. Observamos que nenhuma delas se prende a saber, nem a dizer, nem a crer, nem a fazer, mas
todas se baseiam em SER. O que vale é a evolução interna, sem necessidade de exteriorizações, nem
de confissões, nem de ritos.
No entanto, é bem frisada a vontade livre: "se alguém quiser"; ninguém é obrigado; a espontaneidade
deve ser absoluta, sem qualquer coação física nem moral. Analisemos.
Vimos, no episódio anterior, o Mestre ordenar a Pedro que "se colocasse atrás Dele". Agora esclarece:
"se alguém QUER ser SEU discípulo, siga atrás Dele". E se tem vontade firme e inabalável, se o
QUER, realize estas três condições:
1.ª - negue-se a si mesmo (Lc . arnésasthô; Mat. e Mr. aparnésasthô eautón).
2.ª - tome (carregue) sua cruz (Lc. "cada dia": arátô tòn stáurou autoú kath'hêméran);
3.ª - e siga-me (akoloutheítô moi).
Se excetuarmos a negação de si mesmo, já ouvíramos essas palavras em Mat. 10:38 (vol. 3).
O verbo "negar-se" ou "renunciar-se" (aparnéomai) é empregado por Isaías (31:7) para descrever o
gesto dos israelitas infiéis que, esclarecidos pela derrota dos assírios, rejeitaram ou negaram ou renun-
ciaram a seus ídolos. E essa é a atitude pedida pelo Mestre aos que QUEREM ser Seus discípulos: re-
jeitar o ídolo de carne que é o próprio corpo físico, com sua sequela de sensações, emoções e intelec-
tualismo, o que tudo constitui a personagem transitória a pervagar alguns segundos na crosta do pla-
neta.
Quanto ao "carregar a própria cruz", já vimos (vol. 3), o que significava. E os habitantes da Palestina
deviam estar habituados a assistir à cena degradante que se vinha repetindo desde o domínio romano,
com muita frequência. Para só nos reportarmos a Flávio Josefo, ele cita-nos quatro casos em que as
crucificações foram em massa: Varus que fez crucificar 2.000 judeus, por ocasião da morte, em 4 A.C.,
de Herodes o Grande (Ant. Jud. 17.10-4-10); Quadratus, que mandou crucificar todos os judeus que se
haviam rebelado (48-52 A.D.) e que tinham sido aprisionados por Cumarus (Bell. Jud. 2. 12.6); em 66
A.D. até personagens ilustres foram crucificadas por Gessius Florus (Bell. Jud. 2.14.9); e Tito que, no
assédio de Jerusalém, fez crucificar todos os prisioneiros, tantos que não havia mais nem madeira para
as cruzes, nem lugar para plantá-las (Bell. Jud. 5.11.1). Por aí se calcula quantos milhares de crucifica-
ções foram feitas antes; e o espetáculo do condenado que carregava às costas o instrumento do próprio
suplício era corriqueiro. Não se tratava, portanto, de uma comparação vazia de sentido, embora cons-
tituindo uma metáfora. E que o era, Lucas encarrega-se de esclarecê-lo, ao acrescentar "carregue cada
dia a própria cruz". Vemos a exigência da estrada de sacrifícios heroicamente suportados na luta do
dia-a-dia, contra os próprios pendores ruins e vícios.
A terceira condição, "segui-Lo", revela-nos a chave final ao discipulato de tal Mestre, que não alicia
discípulos prometendo-lhes facilidades nem privilégios: ao contrário. Não basta estudar-Lhe a doutri-
na, aprofundar-Lhe a teologia, decorar-Lhe as palavras, pregar-Lhe os ensinamentos: é mister SEGUI-
LO, acompanhando-O passo a passo, colocando os pés nas pegadas sangrentas que o Rabi foi deixando
ao caminhar pelas ásperas veredas de Sua peregrinação terrena. Ele é nosso exemplo e também nosso
modelo vivo, para ser seguido até o topo do calvário.
Aqui chegamos a compreender a significação plena da frase dirigida a Pedro: "ainda és meu adversário
(porque caminhas na direção oposta a mim, e tentas impedir-me a senda dolorosa e sacrificial): vai
para trás de mim e segue-me; se queres ser meu discípulo, terás que renunciar a ti mesmo (não mais

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pensando nas coisas humanas); que carregar também tua cruz sem que me percas de vista na dura, la-
boriosa e dorida ascensão ao Reino". Mas isto, "se o QUERES" ... Valerá a pena trilhar esse áspero
caminho cheio de pedras e espinheiros?
O versículo seguinte (repetição, com pequena variante de Mat. 10:39; cfr. vol. 3) responde a essa per-
gunta. As palavras dessa lição são praticamente idênticas nos três sinópticos, demonstrando a impres-
são que devem ter causado nos discípulos.
Sim, porque quem quiser preservar sua alma (hós eán thélei tên psychên autòn sõsai) a perderá (apo-
lêsei autên). Ainda aqui encontramos o verbo sôzô, cuja tradução "salvar" (veja vol. 3) dá margem a
tanta ambiguidade atualmente. Neste passo, a palavra portuguesa "preservar" (conservar, resguardar)
corresponde melhor ao sentido do contexto. O verbo apolesô "perder", só poderia ser dado também
com a sinonímia de "arruinar" ou "degradar" (no sentido etimológico de "diminuir o grau").
E o inverso é salientado: "mas quem a perder "hós d'án apolésêi tên psychên autoú), por minha causa
(héneken emoú) - e Marcos acrescenta "e da Boa Nova" (kaì toú euaggelíou) - esse a preservará (sósei
autén, em Marcos e Lucas) ou a achará (heurêsei autén, em Mateus).
A seguir pergunta, como que explicando a antinomia verbal anterior: "que utilidade terá o homem se
lucrar todo o mundo físico (kósmos), mas perder - isto é, não evoluir - sua alma? E qual o tesouro da
Terra que poderia ser oferecido em troca (antállagma) da evolução espiritual da criatura? Não há di-
nheiro nem ouro que consiga fazer um mestre, riem que possa dar-se em troca de uma iniciação real.
Bens espirituais não podem ser comprados nem “trocados” por quantias materiais. A matemática pos-
sui o axioma válido também aqui: quantidades heterogêneas não podem somar-se.
O versículo seguinte apresenta variantes.
MATEUS traz a afirmação de que o Filho do Homem virá com a glória de seu Pai, em companhia de
Seus Mensageiros (anjos), para retribuir a cada um segundo seus atos. Traduzimos aqui dóxa por "gló-
ria" (veja vol. 1 e vol. 3), porque é o melhor sentido dentro do contexto. E entendemos essa glória
como sinônimo perfeito da "sintonia vibratória" ou a frequência da tônica do Pai (Verbo, Som). A atri-
buição a cada um segundo “seus atos" (tên práxin autoú) ou talvez, bem melhor, de acordo com seu
comportamento, com a "prática" da vida diária. Não são realmente os atos, sobretudo isolados (mesmo
os heróicos) que atestarão a Evolução de uma criatura, mas seu comportamento constante e diuturno.
MARCOS diz que se alguém, desta geração "adúltera", isto é, que se tornou "infiel" a Deus, traindo-O
por amar mais a matéria que o espírito, e "errada" na compreensão das grandes verdades, "se envergo-
nhar" (ou seja "desafinar", não-sintonizar), também o Filho do Homem se envergonhará dele, quando
vier com a glória do Pai, em companhia de Seus mensageiros (anjos).
LUCAS repete as palavras de Marcos (menos a referência à Boa Nova), salientando, porém, que o Fi-
lho do Homem virá com Sua própria glória, com a glória do Pai, e com a glória dos santos mensagei-
ros (anjos).
E finalmente o último versículo, em que só Mateus difere dos outros dois, os quais, no entanto, nos
parecem mais conformes às palavras originais.
Afirma o Mestre "alguns dos aqui presentes" (eisin tines tõn hõde hestótõn), os quais não experimenta-
rão (literalmente: "não saborearão, ou mê geúsôntai) a morte, até que vejam o reino de Deus chegar
com poder. Mateus em vez de "o reino de Deus", diz "o Filho do Homem", o que deu margem à ex-
pectativa da parusia (ver vol. 3), ainda para os indivíduos daquela geração.
Entretanto, não se trata aqui, de modo algum, de uma parusia escatológica (Paulo avisa aos tessaloni-
censes que não o aguardem "como se já estivesse perto"; cfr. 1.ª Tess. 2:lss), mas da descoberta e con-
quista do "reino de Deus DENTRO de cada um" (cfr. Luc. 17:21), prometido para alguns "dos ali pre-
sentes" para essa mesma encarnação.
A má interpretação provocou confusões. Os gnósticos (como Teodósio), João Crisóstomo, Teofilacto e
outros - e modernamente o cardeal Billot, S.J. (cfr. "La Parousie", pág. 187), interpretam a "vinda na
glória do Filho do Homem" como um prenúncio da Transfiguração; Cajetan diz ser a Ressurreição;

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Godet acha que foi Pentecostes; todavia, os próprios discípulos de Jesus, contemporâneos dos fatos,
não interpretaram assim, já que após a tudo terem assistido, inclusive ao Pentecostes, continuaram es-
perando, para aqueles próximos anos, essa vinda espetacular. Outros recuaram mais um pouco no tem-
po, e viram essa "vinda gloriosa" na destruição de Jerusalém, como "vingança" do Filho do Homem;
isso, porém, desdiz o perdão que Ele mesmo pedira ao Pai pela ignorância de Seus algozes (D. Calmet,
Knabenbauer, Schanz, Fillion, Prat, Huby, Lagrange); e outros a interpretaram como sendo a difusão
do cristianismo entre os pagãos (Gregório Magno, Beda, Jansênio, Lamy).
Penetremos mais a fundo o sentido.

Na vida literária e artística, em geral, distinguimos nitidamente o "aluno" do "discípulo". Aluno é


quem aprende com um professor; discípulo é quem segue a trilha antes perlustrada por um mestre. Só
denominamos "discípulo" aquele que reproduz em suas obras a técnica, a "escola", o estilo, a inter-
pretação, a vivência do mestre. Aristóteles foi aluno de Platão, mas não seu discípulo. Mas Platão,
além de ter sido aluno de Sócrates, foi também seu discípulo. Essa distinção já era feita por Jesus há
vinte séculos; ser Seu discípulo é segui-Lo, e não apenas "aprender" Suas lições.
Aqui podemos desdobrar os requisitos em quatro, para melhor explicação.
Primeiro: é necessário QUERER. Sem que o livre-arbítrio espontaneamente escolha e decida, não
pode haver discipulato. Daí a importância que assume, no progresso espiritual, o aprendizado e o
estudo, que não podem limitar-se a ouvir rápidas palavras, mas precisam ser sérios, contínuos e pro-
fundos. Pois, na realidade, embora seja a intuição que ilumina o intelecto, se este não estiver prepa-
rado por meio do conhecimento e da compreensão, não poderá esclarecer a vontade, para que esta
escolha e resolva pró ou contra.
O segundo é NEGAR-SE a si mesmo. Hoje, com a distinção que conhecemos entre o Espírito (indivi-
dualidade) e a personagem terrena transitória (personalidade), a frase mais compreensível será: "ne-
gar a personagem", ou seja, renunciar aos desejos terrenos, conforme ensinou Sidarta Gotama, o Bu-
ddha. Cientificamente poderíamos dizer: superar ou abafar a consciência atual, para deixar que pre-
valeça a super-consciência.
Essa linguagem, entretanto, seria incompreensível àquela época. Todavia, as palavras proferidas pelo
Mestre são de meridiana clareza: "renunciar a si mesmo". Observando-se que, pelo atraso da huma-
nidade, se acredita que o verdadeiro eu é a personagem, e que a consciência atual é a única, negar
essa personagem e essa consciência exprime, no fundo, negar-se "a si mesmo". Diz, portanto, o Mes-
tre: "esse eu, que vocês julgam ser o verdadeiro eu, precisa ser negado". Nada mais esclarece, já que
não teria sido entendido pela humanidade de então. No entanto, aqueles que seguissem fielmente Sua
lição, negando seu eu pequeno e transitório, descobririam, por si mesmos, automaticamente, em pou-
co tempo, o outro Eu, o verdadeiro, coisa que de fato ocorreu com muitos cristãos.
Talvez no início possa parecer, ao experimentado: desavisado, que esse Eu verdadeiro seja algo "ex-
terno". Mas quando, por meio da evolução, for atingido o "Encontro Místico", e o Cristo Interno as-
sumir a supremacia e o comando, ele verificará que esse Divino Amigo não é um TU desconhecido,
mas antes constitui o EU REAL. Além disso, o Mestre não se satisfez com a explanação teórica verbal:
exemplificou, negando o eu personalístico de "Jesus", até deixá-lo ser perseguido, preso, caluniado,
torturado e assassinado. Que Lhe importava o eu pequeno? O Cristo era o verdadeiro Eu Profundo de
Jesus (como de todos nós) e o Cristo, com a renúncia e negação do eu de Jesus, pode expandir-se e
assumir totalmente o comando da personagem humana de Jesus, sendo, às vezes, difícil distinguir
quando falava e agia "Jesus" e quando agia e falava "o Cristo". Por isso em vez de Jesus, temos nele
O CRISTO, e a história o reconhece como "Jesus", O CRISTO", considerando-o como homem (Jesus)
e Deus (Cristo).
Essa anulação do eu pequeno fez que a própria personagem fosse glorificada pela humildade, e o nome
humano negado totalmente se elevasse acima de tudo, de tal forma que "ao nome de Jesus se dobre
todo joelho, nos céus, na Terra e debaixo da terra" (Filp. 2:10).

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Tudo isso provocou intermináveis discussões durante séculos, por parte dos que não conseguiram
penetrar a realidade dos acontecimentos, caracterizados, então, de "mistério": são duas naturezas ou
uma? Como se realizou a união hipostática? Teria a Divindade absorvido a humanidade?
Por que será que uma coisa tão clara terá ficado incompreendida por tantos luminares que trataram
deste assunto? O Eu Profundo de todas as criaturas é o Deus Interno, que se manifestará em cada um
exatamente na proporção em que este renunciar ao eu pequeno (personagem), para deixar campo
livre à expressão do Cristo Interno Divino. Todos somos deuses (cfr. Salmo 81:6 e João, 10:34) se
negarmos totalmente nosso eu pequeno (personagem humana), deixando livre expansão à manifesta-
ção do Cristo que em todos habita. Isso fez Jesus. Se a negação for absoluta e completa, poderemos
dizer com Paulo que, nessa criatura, "habita a plenitude da Divindade" (Col. 2:9). E a todos os que o
fizerem, ser-lhes-á exaltado o nome acima de toda criação" (cfr. Filp. 2:5-11).
Quando isto tiver sido conseguido, a criatura "tomará sua cruz cada dia" (cada vez que ela se apre-
sentar) e a sustentará galhardamente - quase diríamos triunfalmente - pois não mais será ela fonte de
abatimentos e desânimos, mas constituirá o sofrimento-por-amor, a dor-alegria, já que é a "porta es-
treita" (Mat. 7:14) que conduzirá à felicidade total e infindável (cfr. Pietro Ubaldi, "Grande Síntese,
cap. 81).
No entanto, dado o estágio atual da humanidade, a cruz que temos que carregar ainda é uma prepa-
ração para o "negar-se". São as dores físicas, as incompreensões morais, as torturas do resgate de
carmas negativos mais ou menos pesados, em vista do emaranhado de situações aflitivas, das "monta-
nhas" de dificuldades que se erguem, atravancando nossos caminhos, do sem-número de moléstias e
percalços, do cortejo de calúnias e martírios inomináveis e inenarráveis.
Tudo terá que ser suportado - em qualquer plano - sem malsinar a sorte, sem desesperos, sem angús-
tias, sem desfalecimentos nem revoltas, mas com aceitação plena e resignação ativa, e até com alegria
no coração, com a mais sólida, viva e inabalável confiança no Cristo-que-é-nosso-Eu, no Deus-
Imanente, na Força-Universal-Inteligente e Boa, que nos vivifica e prepara, de dentro de nosso âmago
mais profundo, a nossa ascensão real, até atingirmos TODOS, a "plena evolução crística" (Ef. 4:13).
A quarta condição do discipulato é também clara, não permitindo ambiguidade: SEGUI-LO. Observe-
se a palavra escolhida com precisão. Poderia ter sido dito “imitá-Lo". Seria muito mais fraco. A imi-
tação pode ser apenas parcial ou, pior ainda, ser simples macaqueação externa (usar cabelos compri-
dos, barbas respeitáveis, vestes talares, gestos estudados), sem nenhuma ressonância interna.
Não. Não é imitá-Lo apenas, é SEGUI-LO. Segui-Lo passo a passo pela estrada evolutiva até atingir a
meta final, o ápice, tal como Ele o FEZ: sem recuos, sem paradas, sem demoras pelo caminho, sem
descanso, sem distrações, sem concessões, mas marchando direto ao alvo.
SEGUI-LO no AMOR, na DEDICAÇÃO, no SERVIÇO, no AUTO-SACRIFÍCIO, na HUMILDADE, na
RENÚNCIA, para que de nós se possa afirmar como Dele foi feito: "fez bem todas as coisas" (Marc.
7.37) e: "passou pela Terra fazendo o bem e curando" (At. 10:38).
Como Mestre de boa didática, não apresenta exigências sem dar as razões. Os versículos seguintes
satisfazem a essa condição.
Aqui, como sempre, são empregados os termos filosóficos com absoluta precisão vocabular (elegan-
tia), não deixando margem a qualquer dúvida. A palavra usada é psychê, e não pneuma; é alma e não
"espírito" (em adendo a este capítulo daremos a "constituição do homem" segundo o Novo Testamen-
to).
A alma (psychê) é a personagem humana em seu conjunto de intelecto-emoções, excluído o corpo den-
so e as sensações do duplo etérico. Daí a definição da resposta 134 do "Livro dos Espíritos": "alma é
o espírito encarnado", isto é, a personagem humana que habita no corpo denso.
Aí está, pois, a chave para a interpretação do "negue-se a si mesmo": esse eu, a alma, é a personagem
que precisa ser negada, porque, quem não quiser fazê-lo, quem pretender preservar esse eu, essa
alma, vai acabar perdendo-a, já que, ao desencarnar, estará com "as mãos vazias". Mas aquele que -

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por causa do Cristo Interno - renunciar e perder essa personagem transitória, esse a encontrará me-
lhorada (Mateus), esse a preservará da ruína (Marcos e Lucas).
E prossegue: que adiantará acumular todas as riquezas materiais do mundo, se a personalidade vai
cair no vazio? Nada de material pode ser-lhe comparado. No entanto, se for negada, será exaltada
sobre todas as coisas (cfr. o texto acima citado, Filp. 2:5-11).
Todas e qualquer evolução do Espírito é feita exclusivamente durante seu mergulho na carne (veja
atrás). Só através das personagens humanas haverá ascensão espiritual, por meio do "ajustamento
sintônico". Então, necessidade absoluta de consegui-lo, não "se envergonhando", isto é, não desafi-
nando da tônica do Pai (Som) que tudo cria, governa e mantém. Enfrentar o mundo sem receio, sem
"respeitos humanos", e saber recusá-lo também, para poder obter o Encontro Místico com o Cristo
Interno. Se a criatura "se envergonha" e se retrai, (não sintoniza) não é possível conseguir o Contato
Divino, e o Filho do Homem também a evitará ("se envergonhará" dessa criatura). Só poderá haver a
"descida da graça" ou a unificação com o Cristo, "na glória (tônica) do Pai (Som-Verbo), na glória
(tônica) do próprio Cristo (Eu Interno), na glória de todos os santos mensageiros", se houver a cora-
gem inquebrantável de romper com tudo o que é material e terreno, apagando as sensações, liquidan-
do as emoções, calando o intelecto, suplantando o próprio "espírito" encarnado, isto é, PERDENDO
SUA ALMA: só então “a achará”, unificada que estará com o Cristo, Nele mergulhada (batismo),
“como a gota no oceano" (Bahá'u'lláh). Realmente, a gota se perde no oceano mas, inegavelmente, ao
deixar de ser gota microscópica, ela se infinitiva e se eterniza tornando-se oceano ...
Em Mateus é-nos dado outro aviso: ao entrar em contato com a criatura, esta “receberá de acordo
com seu comportamento" (pláxin). De modo geral lemos nas traduções correntes “de acordo com suas
obras". Mas isso daria muito fortemente a idéia de que o importante seria o que o homem FAZ, quan-
do, na realidade, o que importa é o que o homem É: e a palavra comportamento exprime-o melhor que
obras; ora, a palavra do original práxis tem um e outro sentido.
Evidentemente, cada ser só poderá receber de acordo com sua capacidade, embora todos devam ser
cheios, replenos, com “medida sacudida e recalcada” (cfr. Lc. 5:38).
Mas há diferença de capacidade entre o cálice, o copo, a garrafa, o litro, o barril, o tonel ... De acor-
do com a própria capacidade, com o nível evolutivo, com o comportamento de cada um, ser-lhe-á
dado em abundância, além de toda medida. Figuremos uma corrente imensa, que jorra permanente-
mente luz e força, energia e calor. O convite é-nos feito para aproximar-nos e recolher quanto qui-
sermos. Acontece, porém, que cada um só recolherá conforme o tamanho do vasilhame que levar con-
sigo.
Assim o Cristo Imanente e o Verbo Criador e Conservador SE DERRAMAM infinitamente. Mas nós,
criaturas finitas, só recolheremos segundo nosso comportamento, segundo a medida de nossa capaci-
dade.
Não há fórmulas mágicas, não há segredos iniciáticos, não peregrinações nem bênçãos de "mestres",
não há sacramentos nem sacramentais, que adiantem neste terreno. Poderão, quando muito, servir
como incentivo, como animação a progredir, mas por si, nada resolvem, já que não agem ex ópere
operantis nem ex opere operatus, mas sim ex opere recipientis: a quantidade de recebimento estará de
acordo com a capacidade de quem recebe, não com a grandeza de quem dá, nem com o ato de doa-
ção.
E pode obter-se o cálculo de capacidade de cada um, isto é, o degrau evolutivo em que se encontra no
discipulato de Cristo, segundo as várias estimativas das condições exigidas:
a) pela profundidade e sinceridade na renúncia ao eu personalístico, quando tudo é feito sem cogitar
de firmar o próprio nome, sem atribuir qualquer êxito ao próprio merecimento (não com palavras,
mas interiormente), colaborando com todos os "concorrentes", que estejam em idêntica senda
evolutiva, embora nos contrariem as idéias pessoais, mas desde que sigam os ensinos de Cristo;

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b) pela resignação sem queixas, numa aceitação ativa, de todas as cruzes, que exprimam atos e pala-
vras contra nós, maledicências e calúnias, sem respostas nem defesas, nem claras nem veladas (já
nem queremos acenar à contra-ataques e vinganças).
c) pelo acompanhar silencioso dos passos espirituais no caminho do auto-sacrifício por amor aos
outros, pela dedicação integral e sem condições; no caminho da humildade real, sem convenci-
mentos nem exterioridades; no caminho do serviço, sem exigências nem distinções; no caminho do
amor, sem preferências nem limitações. O grau dessas qualidades, todas juntas, dará uma idéia do
grau evolutivo da criatura.
Assim entendemos essas condições: ou tudo, à perfeição; ou pouco a pouco, conquistando uma de
cada vez. Mas parado, ninguém ficará. Se não quiser ir espontaneamente, a dor o aguilhoará, empur-
rando-o para a frente de qualquer forma.
No entanto, uma promessa relativa à possibilidade desse caminho é feita claramente: "alguns dos que
aqui estão presentes não experimentarão a morte até conseguirem isso". A promessa tanto vale para
aquelas personagens de lá, naquela vida física, quanto para os Espíritos ali presentes, garantindo-se-
lhes que não sofreriam queda espiritual (morte), mas que ascenderiam em linha reta, até atingir a
meta final: o Encontro Sublime, na União mística absoluta e total.
Interessante a anotação de Marcos quando acrescenta: O "reino de Deus chegado em poder". Du-
rante séculos se pensou no poder externo, a espetacularidade. Mas a palavra "en dynámei" expressa
muito mais a força interna, o "dinamismo" do Espírito, a potencialidade crística a dinamizar a criatu-
ra em todos os planos.

O HOMEM NO NOVO TESTAMENTO


O Novo Testamento estabelece, com bastante clareza, a constituição DO HOMEM, dividindo o ser
encarnado em seus vários planos vibratórios, concordando com toda a tradição iniciática da Índia e
Tibet, da China, da Caldéia e Pérsia, do Egito e da Grécia. Embora não encontremos o assunto didati-
camente esquematizado em seus elementos, o sentido filosófico transparece nítido dos vários termos e
expressões empregados, ao serem nomeadas as partes constituintes do ser humano, ou seja, os vários
níveis em que pode tornar-se consciente.
Algumas das palavras são acolhidas do vocabulário filosófico grego (ainda que, por vezes, com peque-
nas variações de sentido); outras são trazidas da tradição rabínica e talmúdica, do centro iniciático que
era a Palestina, e que já entrevemos usadas no Antigo Testamento, sobretudo em suas obras mais re-
centes.

A CONCEPÇÃO DA DIVINDADE
Já vimos (vol, 1 e vol. 3 e seguintes), que DEUS, (ho théos) é apresentado, no Novo Testamento, como
o ESPÍRITO SANTO (tò pneuma tò hágion), o qual se manifesta através do Pai (patêr) ou Lógos (Som
Criador, Verbo), e do Filho Unigênito (ho hyiós monogenês), que é o Cristo Cósmico.

DEUS NO HOMEM
Antes de entrar na descrição da concepção do homem, no Novo Testamento, gostaríamos de deixar
tem claro nosso pensamento a respeito da LOCALIZAÇÃO da Centelha Divina ou Mônada NO CO-
RAÇÃO, expressão que usaremos com frequência.
A Centelha (Partícula ou Mônada) é CONSIDERADA por nós como tal; mas, na realidade, ela não se
separa do TODO (cfr. vol. 1); logo, ESTÁ NO TODO, e portanto É O TODO (cfr. João, 1:1).
O "TODO" está TODO em TODAS AS COISAS e em cada átomo de cada coisa (cfr. Agostinho, De
Trin. 6, 6 e Tomás de Aquino, Summa Theologica, I, q.8, art. 2, ad 3um; veja vol. 3, pág. 145).

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Entretanto, os seres e as coisas acham-se limitados pela forma, pelo espaço, pelo tempo e pela massa; e
por isso afirmamos que em cada ser há uma "centelha" ou "partícula" do TODO. No entanto, sendo o
TODO infinito, não tem extensão; sendo eterno, é atemporal; sendo indivisível, não tem dimensão;
sendo O ESPÍRITO, não tem volume; então, consequentemente, não pode repartir-se em centelhas
nem em partículas, mas é, concomitantemente, TUDO EM TODAS AS COISAS (cfr. l.ª Cor. 12:6).
Concluindo: quando falamos em "Centelha Divina" e quando afirmamos que ela está localizada no
coração, estamos usando expressões didáticas, para melhor compreensão do pensamento, dificílimo
(quase impossível) de traduzir-se em palavras.
De fato, porém, a Divindade está TODA em cada célula do corpo, como em cada um dos átomos de
todos os planos espirituais, astrais, físicos ou quaisquer outros que existam. Em nossos corpos físicos e
astral, o coração é o órgão preparado para servir de ponto de contato com as vibrações divinas, através,
no físico, do nó de Kait-Flake e His; então, didaticamente, dizemos que "o coração é a sede da Cente-
lha Divina".

A CONCEPÇÃO DO HOMEM
O ser humano (ánthrôpos) é considerado como integrado por dois planos principais: a INDIVIDUA-
LIDADE (pneuma) e a PERSONAGEM ou PERSONALIDADE; esta subdivide-se em dois: ALMA
(psychê) e CORPO (sôma).
Mas, à semelhança da Divindade (cfr. Gên. 1:27), o Espírito humano (individualidade ou pneuma)
possui tríplice manifestação:
l.ª - a CENTELHA DIVINA, ou Cristo, partícula do pneuma hágion; essa centelha que é a fonte de
todo o Espirito, está localizada e representada quase sempre por kardia (coração), a parte mais íntima e
invisível, o âmago, o Eu Interno e Profundo, centro vital do homem;
2.ª - a MENTE ESPIRITUAL, parte integrante e inseparável da própria Centelha Divina. A Mente, em
sua função criadora, é expressa por noús, e está também sediada no coração, sendo a emissora de pen-
samentos e intuições: a voz silenciosa da super-consciência;
3.ª - O ESPÍRITO, ou "individualização do Pensamento Universal". O "Espírito" propriamente dito, o
pneuma, surge "simples e ignorante" (sem saber), e percorre toda a gama evolutiva através dos milêni-
os, desde os mais remotos planos no Anti-Sistema, até os mais elevados píncaros do Sistema (Pietro
Ubaldi); no entanto, só recebe a designação de pneuma (Espírito) quando atinge o estágio hominal.
Esses três aspectos constituem, englobamente, na "Grande Síntese" de Pietro Ubaldi, o "ALPHA", o
"espírito".
Realmente verificamos que, de acordo com Gên. 1:27, há correspondência perfeita nessa tríplice mani-
festação do homem com a de Deus:
A - ao pneuma hágion (Espírito Santo) correspondente a invisível Centelha, habitante de kardía (cora-
ção), ponto de partida da existência;
B - ao patêr (Pai Criador, Verbo, Som Incriado), que é a Mente Divina, corresponde noús (a mente
espiritual) que gera os pensamentos e cria a individualização de um ser;
C - Ao Filho Unigênito (Cristo Cósmico) corresponde o Espírito humano, ou Espírito Individualizado,
filho da Partícula divina, (a qual constitui a essência ou EU PROFUNDO do homem); a individua-
lidade é o EU que percorre toda a escala evolutiva, um Eu permanente através de todas as encarna-
ções, que possui um NOME "escrito no livro da Vida", e que terminará UNIFICANDO-SE com o
EU PROFUNDO ou Centelha Divina, novamente mergulhando no TODO. (Não cabe, aqui, discu-
tir se nessa unificação esse EU perde a individualidade ou a conserva: isso é coisa que está tão in-
finitamente distante de nós no futuro, que se torna impossível perceber o que acontecerá).
No entanto, assim como Pneuma-Hágion, Patêr e Hyiós (Espírito-Santo, Pai e Filho) são apenas três
"aspectos" de UM SÓ SER INDIVISÍVEL, assim também Cristo-kardía, noús e pneuma (Cristo-

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coração, mente espiritual e Espírito) são somente três "aspectos" de UM SÓ SER INDIVÍVEL, de uma
criatura humana.

ENCARNAÇÃO
Ao descer suas vibrações, a fim de poder apoiar-se na matéria, para novamente evoluir, o pneuma
atinge primeiro o nível da energia (o BETA Ubaldiano), quando então a mente se "concretiza" no in-
telecto, se materializa no cérebro, se horizontaliza na personagem, começando sua "crucificação". Nes-
se ponto, o pneuma já passa a denominar-se psychê ou ALMA. Esta pode considerar-se sob dois as-
pectos primordiais: a diánoia (o intelecto) que é o "reflexo" da mente, e a psychê propriamente dita isto
é, o CORPO ASTRAL, sede das emoções.
Num último passo em direção à matéria, na descida que lhe ajudará a posterior subida, atinge-se então
o GAMA Ubaldiano, o estágio que o Novo Testamento designa com os vocábulos diábolos (adversá-
rio) e satanás (antagonista), que é o grande OPOSITOR do Espírito, porque é seu PÓLO NEGATIVO:
a matéria, o Anti-Sistema. Aí, na matéria, aparece o sôma (corpo), que também pode subdividir-se em:
haima (sangue) que constitui o sistema vital ou duplo etérico e sárx (carne) que é a carapaça de células
sólidas, último degrau da materialização do espírito.

COMPARAÇÃO
Vejamos se com um exemplo grosseiro nos faremos entender, não esquecendo que omnis comparatio
claudicat.
Observemos o funcionamento do rádio. Há dois sistemas básicos: o transmissor (UM) e os receptores
(milhares, separados uns dos outros).
Consideremos o transmissor sob três aspectos:
A - a Força Potencial, capaz de transmitir;
B - a Antena Emissora, que produz as centelas;
C - a Onda Hertziana, produzida pelas centelhas.
Mal comparando, aí teríamos:
a) o Espirito-Santo, Força e Luz dos Universos, o Potencial Infinito de Amor Concreto;
b) o Pai, Verbo ou SOM, ação ativa de Amante, que produz a Vida
c) o Filho, produto da ação (do Som), o Amado, ou seja, o Cristo Cósmico que permeia
e impregna tudo.
Não esqueçamos que TUDO: atmosfera, matéria, seres e coisas, no raio de ação do transmissor, ficam
permeados e impregnados em todos os seus átomos com as vibrações da onda hertziana, embora seja
esta invisível e inaudível e insensível, com os sentidos desarmados; e que os três elementos (Força-
Antena e Onda) formam UM SÓ transmissor o Consideremos, agora, um receptor. Observaremos que
a recepção é feita em três estágios:
a) a captação da onda
b) sua transformação
c) sua exteriorização
Na captação da onda, podemos distinguir - embora a operação seja uma só - os seguintes elementos:
A - a onda hertziana, que permeia e impregna todos os átomos do aparelho receptor, mas que é
captada realmente apenas pela antena;

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B - o condensador variável, que estabelece a sintonia com a onda emitida pelo transmissor. Esses
dois elementos constituem, de fato,
C - o sistema RECEPTOR INDIVIDUAL de cada aparelho. Embora a onda hertziana seja UMA,
emitida pelo transmissor, e impregne tudo (Cristo Cósmico), nós nos referimos a uma onda
que entra no aparelho (Cristo Interno) e que, mesmo sendo perfeita; será recebida de acordo
com a perfeição relativa da antena (coração) e do condensador variável (mente). Essa parte
representaria, então, a individualidade, o EU PERFECTÍVEL (o Espírito).

Observemos, agora, o circuito interno do aparelho, sem entrar em pormenores, porque, como disse-
mos, a comparação é grosseira. Em linhas gerais vemos que a onda captada pelo sistema receptor
propriamente dito, sofre modificações, quando passa pelo circuito retificador (que transforma a cor-
rente alternada em contínua), e que representaria o intelecto que horizontaliza as idéias chegadas da
mente), e o circuito amplificador, que aumenta a intensidade dos sinais (que seria o psiquismo ou
emoções, próprias do corpo astral ou alma).
Uma vez assim modificada, a onda atinge, com suas vibrações, o alto-falante que vibra, reproduzindo
os sinais que chegam do transmissor isto é, sentindo as pulsações da onda (seria o corpo vital ou du-
plo etérico, que nos dá as sensações); e finalmente a parte que dá sonoridade maior, ou seja, a caixa
acústica ou móvel do aparelho (correspondente ao corpo físico de matéria densa).
Ora, quanto mais todos esses elementos forem perfeitos, tanto mais fiel e perfeito será a
reprodução da onda original que penetrou no aparelho. E quanto menos perfeitos ou mais
defeituosos os elementos, mais distorções sofrerá a onda, por vezes reproduzindo, em
guinchos e roncos, uma melodia suave e delicada.
Cremos que, apesar de suas falhas naturais, esse exemplo dá a entender o funcionamento do homem,
tal como conhecemos hoje, e tal como o vemos descrito em todas as doutrinas espiritualistas, inclusive
- veremos agora quiçá pela primeira vez - nos textos do Novo Testamento.
Antes das provas que traremos, o mais completas possível, vejamos um quadro sinóptico:
θεός DEUS
πνεϋµα άγιον Espírito Santo
λόγος Pai, Verbo, Som Criador
υίός - Χριστό CRISTO - Filho Unigênito
άνθρωπος HOMEM
иαρδία - Χριστό CRISTO - coração (Centelha)
πνεϋµα νους mente individualidade
πνεϋµα Espírito
φυΧή διάγοια intelecto alma
φυΧή corpo astral personagem
σώµα αίµα sangue (Duplo) corpo
σάρξ carne (Corpo)

A - O EMPREGO DAS PALAVRAS


Se apresentada pela primeira vez, como esta, uma teoria precisa ser amplamente documentada e com-
provada, para que os estudiosos possam aprofundar o assunto, verificando sua realidade objetiva. Por
isso, começaremos apresentando o emprego e a frequência dos termos supracitados, em todos os locais
do Novo Testamento.

KARDÍA

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Kardía expressa, desde Homero (Ilíada, 1.225) até Platão (Timeu, 70 c) a sede das faculdades espi-
rituais, da inteligência (ou mente) e dos sentimentos profundos e violentos (cfr. Ilíada, 21,441) poden-
do até, por vezes, confundir-se com as emoções (as quais, na realidade, são movimentos da psychê, e
não propriamente de kardía). Jesus, porém, reiteradamente afirma que o coração é a fonte primeira em
que nascem os pensamentos (diríamos a sede do Eu Profundo).
Com este último sentido, a palavra kardía aparece 112 vezes, sendo que uma vez (Mat. 12:40) em
sentido figurado.
Mat.5:8,28; 6:21; 9:4; 11:29; 12:34 13-15(2x),19; 15:8,18,19; 18;35; 22;37; 24:48; Marc. 2:6,8; 3:5;
4:15; 6;52; 7;6,19,21; 8:11; 11.23; 12:30,33; Luc. 1:17,51,66; 2;19,35,51; 3:5; 5:22; 6:45; 8:12,15;
9:47; 10:27; 12:34; 16:15; 21:14,34; 24;25,32,38; João, 12:40(2x); 13:2; 14:1,27; 16:6,22 At.
2:26,37,46; 4:32; 5:3(2x); 7:23,39,51,54; 8;21,22; 11;23.13:22; 14:17; 15:9; 16;14; 21:13; 28:27(2x);
Rom. 1:21,24; 2:5,15,29; 5:5; 6:17; 8:27; 9:2; 10:1,6,8,9,10; 16:16; 1.ª Cor. 2:9; 4:5; 7:37; 14:25; 2.ª
Cor. 1:22; 2:4; 3:2,3,15; 4:6; 5:12; 6:11; 7:3; 8:16; 9:7; Gál. 4:6; Ef. 1:18; 3:17; 4:18; 5:19; 6:5,22;
Filp. 1:7; 4:7; Col. 2:2; 3:15,16,22; 4:8; 1.ª Tess. 2:4,17; 3:13; 2.ª Tess. 2:17; 3:5; 1.ª Tim. 1:5; 2.ª Tim.
2:22; Heb. 3:8,10,12,15; 4:7,12; 8:10; 10:16,22; Tiago, 1:26; 3:14; 4:8; 5:5,8; 1.ª Pe. 1:22; 3:4,15; 2.ª
Pe.1:19; 2:15; 1; 1.ª Jo. 3;19,20(2x),21; Apoc. 2:23; 17:17; 18:7.

NOÚS
Noús não é a "fonte", mas sim a faculdade de criar pensamentos, que é parte integrante e indivisível de
kardía, onde tem sede. Já Anaxágoras (in Diógenes Laércio, livro 2.º, n.º 3) diz que noús (o Pensa-
mento Universal Criador) é o "'princípio do movimento"; equipara, assim, noús a Lógos (Som, Pala-
vra, Verbo): o primeiro impulsionador dos movimentos de rotação e translação da poeira cósmica, com
isso dando origem aos átomos, os quais pelo sucessivo englobamento das unidades coletivas cada vez
mais complexas, formaram os sistemas atômicos, moleculares e, daí subindo, os sistemas solares, ga-
láxicos, e os universos (cfr. vol. 3.º).
Noús é empregado 23 vezes com esse sentido: o produto de noús (mente) do pensamento (nóêma),
usado 6 vezes (2.ª Cor. 2:11: 3:14; 4:4; 10:5; 11:3; Filp. 4:7), e o verbo daí derivado, noeín, empregado
14 vezes (3), sendo que com absoluta clareza em João (12:40) quando escreve "compreender com o
coração” (noêsôsin têi kardíai).
Luc. 24.45; Rom. 1:28; 7:23,25; 11:34; 12:2; 14.5; l.ª Cor. 1.10; 2:16: 14:14,15,19; Ef. 4:17,23; Filp.
4:7; Col. 2:18; 2.ª Tess. 2.2; 1.ª Tim. 6:5; 2.ª Tim. 3:8; Tit. 1:15;Apoc. 13:18.

PNEUMA
Pneuma, o sopro ou Espírito, usado 354 vezes no N.T., toma diversos sentidos básicos:
Mat. 15:17; 16:9,11; 24:15; Marc. 7:18; 8:17; 13:14; João 12:40; Rom. 1:20; Ef. 3:4,20; 1.ª Tim. 1:7;
2.ª Tim. 2:7; Heb. 11:13

1. Pode tratar-se do ESPÍRITO, caracterizado como O SANTO, designando o Amor-Concreto, base e


essência de tudo o que existe; seria o correspondente de Brahman, o Absoluto. Aparece com esse sen-
tido, indiscutivelmente, 6 vezes (Mat. 12:31, 32; Marc. 3:29; Luc. 12:10; João, 4:24: 1.ª Cor. 2:11).
Os outros aspectos de DEUS aparecem com as seguintes denominações:
a) O PAI (ho patêr), quando exprime o segundo aspecto, de Criador, salientando-se a relação entre
Deus e as criaturas, 223 vezes (1); mas, quando se trata do simples aspecto de Criador e Conservador
da matéria, é usado 43 vezes (2) o vocábulo herdado da filosofia grega, ho lógos, ou seja, o Verbo, a
Palavra que, ao proferir o Som Inaudível, movimenta a poeira cósmica, os átomos, as galáxias.

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C. TORRES PASTORINO
(1) Mat. 5:16,45,48; 6:1,4,6,8,9,14,15,26,32; 7:11,21; 10:20,29,32,33; 11:25,27; 12:50; 13:43; 15:13;
16:17,27; 18:10,14,19,35; 20:23; 23:9; 24:36; 25:34: 26:29,39,42,53; Marc. 8:25; 11:25,32;14:36; Luc.
2:49;6:36;9:26;10:21,22;11:2,13;12:30,32;22:29,42;23:34,46;24:49;João,1:14,18;2:16;3:35;4:21,23;5:1
7,18,19,20,21,22,23,26,36,37,43,45,46,27,32,37,40,44,45,46,57,65;8:18,19,27,28,38,41,42,49,54;10:1
5,17,18,19,25,29,30,32,35,38;11:41;12:26,27,28,49,50;13:1,3;14:2,6,7,8,9,10,11,13,16,20,21,24,26,28,
31,15:1,8,9,10,15,16,23,24,26;16:3,10,15,17,25,26,27,28,32;17:1,5,11,21,24,25; 18:11; 20:17,21;At.
1:4,7;2:33;Rom.1:7;6:4;8:15;15:6;1.º Cor. 8:6; 13:2; 15:24; 2.º Cor. 1:2,3; 6:18; 11:31; Gól. 1:1,3,4;
4:6; Ef. 1:2,3,17; 2:18;3:14; 4:6; 5:20; Filip. 1:2; 2:11; 4:20; Col. 1:2,3,12: 3:17; 1.0 Teõs. 1:1,3;
3:11,13; 2° Tess. 1:1 2; :2:16; 1.º Tim. 1:2; 2.º Tim. 1:2; Tit. 1:4; Flm. 3; Heb. 1:5; 12:9; Tiago
1:17,27: 3:9; 1° Pe. 1:2,3,17; 2.º Pe. 1:17, 1.º Jo. 1:2,3; 2:1,14,15,16, 22,23,24; 3:1; 4:14; 2.º Jo. 3,4,9;
Jud. 9; Apoc. 1:6; 2:28; 3:5,21; 14:1.
(2) Mat. 8:8; Luc. 7:7; João, 1:1,14; 5:33; 8:31,37,43,51,52,55; 14:23,24; 15:20; 17:61417; 1.º Cor.
1:13; 2.º Cor. 5:19; Gál. 6:6; Filp. 2:6; Cor. 1:25; 3:16; 4:3; 1.º Tess. 1:6; 2.º Tess. 3:1; 2.º Tim. 2:9;
Heb.:12; 6:1; 7:28; 12:9; Tiago, 1:21,22,23; 1.° Pe. 1:23; 2.º Pe. 3:5,7; 1.º Jo. 1:1,10; 2:5,7,14; Apoc.
19:13.
b) O FILHO UNIGÊNITO (ho hyiós monogenês), que caracteriza o CRISTO CÓSMICO, isto é, toda a
criação englobadamente, que é, na realidade profunda, um dos aspectos da Divindade. Não se trata,
como é claro, de panteísmo, já que a criação NÃO constitui a Divindade; mas, ao invés, há imanência
(Monismo), pois a criação é UM DOS ASPECTOS, apenas, em que se transforma a Divindade. Esta,
além da imanência no relativo, é transcendente como Absoluto; além da imanência no tempo, é trans-
cendente como Eterno; além da imanência no finito, é transcendente como Infinito.
A expressão "Filho Unigênito" só é usada por João (1:14,18; 13:16,18 e 1.a Jo. 4:9). Em todos os de-
mais passos é empregado o termo ho Christós, "O Ungido", ou melhor, "O Permeado pela Divindade",
que pode exprimir tanto o CRISTO CÓSMICO que impregna tudo, quanto o CRISTO INTERNO, se o
olhamos sob o ponto de vista da Centelha Divina no âmago da criatura.
Quando não é feita distinção nos aspectos manifestantes, o N.T. emprega o termo genérico ho theós,
"Deus", precedido do artigo definido.
2. Além desse sentido, encontramos a palavra pneuma exprimindo o Espírito humano individualizado;
essa individualização, que tem a classificação de pneuma, encontra-se a percorrer a trajetória de sua
longa viagem, a construir sua própria evolução consciente, através da ascensão pelos planos vibratóri-
os (energia e matéria) que ele anima em seu intérmino caminhar. Notemos, porém, que só recebe a
denominação de pneuma (Espírito), quando atinge a individualização completa no estado hominal
(cfr. A. Kardec, "Livro dos Espíritos", resp.79: "Os Espíritos são a individualização do Princípio
Inteligente, isto é, de noús).
Logicamente, portanto, podemos encontrar espíritos em muitos graus evolutivos, desde os mais igno-
rantes e atrasados (akátharton) e enfermos (ponêrón) até os mais evoluídos e santos (hágion).
Todas essas distinções são encontradas no N.T., sendo de notar-se que esse termo pneuma pode desi-
gnar tanto o espírito encarnado quanto, ao lado de outros apelativos, o desencarnado.
Eis, na prática, o emprego da palavra pneuma no N.T.:
a) pneuma como espírito encarnado (individualidade), 193 vezes:
Mat. 1:18,20; 3:11; 4:1; 5:3; 10:20; 26:41; 27:50; Marc.1:8; 2:8; 8:12; 14:38; Luc. 1:47, 80; 3:16,
22; 8:55; 23:46; 24.37, 39; João, 1:33; 3:5, 6(2x), 8; 4:23; 6:63; 7:39; 11:33; 13:21; 14:17, 26;
15:26; 16:13; 19-30, 20:22; At. 1:5, 8; 5:3; 32: 7:59; 10:38; 11:12,16; 17:16; 18:25; 19:21; 20:22;
Rom. 1:4, 9; 5:5; 8:2, 4, 5(2x), 6, 9(3x), 10, 11(2x),13, 14, 15(2x), 16(2x), 27; 9:1; 12:11; 14:17;
15:13, 16, 19, 30; 1° Cor. 2:4, 10(2x), 11, 12; 3:16; 5:3,4, 5; 6:11, 17, 19; 7:34, 40; 12:4, 7, 8(2x),
9(2x), 11, 13(2x); 14:2, 12, 14, 15(2x), 16:32; 15:45; 16:18; 2º Cor. 1:22; 2:13; 3:3, 6, 8, 17(2x), 18;
5:5; 6:6; 7:1, 13; 12:18; 13:13; Gál. 3:2, 3, 5; 4:6, 29; 5:5,16,17(2x), 18, 22, 25(2x1); 6:8(2x),18; Ef.
1:13, 17; 2:18, 22; 3:5, 16; 4:3, 4:23; 5:18; 6:17, 18; Philp. 1:19, 27; 2:1; 3:3; 4:23; Col. 1:8; 2:5; 1º
Tess. 1:5, 6; 4:8; 5:23; 2.º Tess. 2:13; 1.º Tim. 3:16; 4:22; 2.º Tim. 1:14; Tit. 3:5; Heb. 4:12, 6:4;

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SABEDORIA DO EVANGELHO

9:14; 10:29; 12:9; Tiago, 2:26: 4:4; 1.º Pe. 1:2, 11, 12; 3:4, 18; 4:6,14; 1.º João, 3:24; 4:13;
5:6(2x),7; Jud. 19:20; Apoc. 1:10; 4:2; 11:11.
b) pneuma como espírito desencarnado:
I - evoluído ou puro, 107 vezes:
Mat. 3:16; 12:18, 28; 22:43; Marc. 1:10, 12; 12:36; 13.11; Luc. 1:15, 16, 41, 67; 2:25, 27;
4:1, 14, 18; 10:21; 11:13; 12:12; João 1:32; 3:34; At. 1:2, 16; 2:4(2x), 17, 18, 33(2x), 38;
4:8; 25, 31; 6:3, 10; 7:51, 55; 8:15, 17, 18, 19, 29, 39; 9:17, 31; 10:19, 44, 45, 47; 11:15, 24,
28; 13:2, 4, 9, 52; 15:8, 28; 16:6, 7; 19:1, 2, 6; 20:22, 28; 21:4, 11; 23:8, 9; 28:25; 1.º Cor.
12:3(2x), 10; 1.º Tess. 5:9; 2.º Tess.2:2; 1.° Tim. 4:1; Heb. 1:7, 14; 2:4; 3:7; 9:8; 10:15;
12:23; 2.º Pe. 1:21; 1.° Jo. 4:1(2x), 2, 3, 6; Apoc. 1:4; 2:7, 11, 17, 29; 3:1, 6, 13, 22; 4:5;
5:6; 14:13; 17:3: 19.10; 21.10; 22:6, 17.
II - involuído ou não-purificado, 39 vezes:
Mat. 8:16; 10:1; 12:43, 45; Marc. 1:23, 27; 3:11, 30; 5:2, 8, 13; 6:7; 7:25; 9:19; Luc. 4:36;
6:18; 7:21; 8:2; 10:20; 11:24, 26; 13:11; At. 5:16; 8:7; 16:16, 19:12, 13, 15,16; Rom. 11:8:
1.° Cor. 2:12; 2.º Cor. 11:4; Ef. 2:2; 1.º Pe. 3:19; 1.º Jo. 4:2, 6; Apoc. 13:15; 16:13; 18:2.
c) pneuma como "espírito" no sentido abstrato de "caráter", 7 vezes: (João 6:63; Rom. 2:29; 1.ª Cor.
2:12: 4:21: 2.ª Cor. 4:13; Gál. 6:1 e 2.ª Tim. 1:7)
d) pneuma no sentido de "sopro", 1 vez: 2.ª Tess. 2:8
Todavia, devemos acrescentar que o espírito fora da matéria recebia outros apelativo, conforme vimos
(vol. 1) e que não é inútil recordar, citando os locais.
PHÁNTASMA, quando o espírito, corpo astral ou perispírito se torna visível; termo que, embora fre-
quente entre os gregos, só aparece, no N.T., duas vezes (Mat. 14:26 e Marc. 6:49).
ÁGGELOS (Anjo), empregado 170 vezes, designa um espírito evoluído (embora nem sempre de cate-
goria acima da humana); essa denominação específica que, no momento em que é citada, tal entidade -
seja de nível humano ou supra-humano - está executando uma tarefa especial, como encarrega de “dar
uma mensagem” , de "levar um recado" de seus superiores hierárquicos (geralmente dizendo-se "de
Deus"):
Mat. 1:20, 24; 2:9, 10, 13, 15, 19, 21; 4:6, 11; 8:26; 10:3, 7, 22; 11:10, 13; 12:7, 8, 9, 10, 11, 23;
13:39, 41, 49; 16:27; 18:10; 22:30; 24:31, 36; 25:31, 41; 26:53; 27:23; 28:2, 5; Marc.1:2, 13; 8:38;
12:25; 13:27, 32; Luc. 1:11, 13, 18, 19, 26, 30, 34, 35, 38; 4:10, 11; 7:24, 27; 9:26, 52; 12:8; 16:22;
22:43; 24:23; João, 1:51; 12:29; 20:12 At. 5:19; 6:15; 7:30, 35, 38, 52; 12:15; 23:8, 9; Rom. 8:38;
1.° Cor. 4:9; 6:3; 11:10; 13:1; 2.º Cor. 11:14; 12:7; Gál. 1:8; 3:19; 4:14; Col. 2:18; 2.º Tess. 1:7; 1.°
Tim. 3:16; 5:21; Heb. 1:4, 5, 6, 7, 13; 2:2, 5, 7, 9, 16; 12:22; 13:2; Tiago 2:25; 1.º Pe. 1:4, 11; Jud. 6;
Apoc. 1:1, 20; 2:1, 8, 12, 18; 3:1, 5, 7, 9, 14; 5:2, 11; 7:1, 11; 8:2, 3, 4, 5, 6, 8, 10, 12, 13; 9:1, 11, 13,
14, 15; 10:1, 5, 7, 8, 9, 10; 11:15; 12:7, 9, 17; 14:6, 9, 10, 15, 17, 18, 19; 15:1, 6, 7, 8, 10; 16:1, 5;
17:1, 7; 18:1, 21; 19:17; 20:1; 21:9, 12, 17; 22:6, 8, 16.

BEEZEBOUL, usado 7 vezes: (Mat. 7.25; 12:24, 27; Marc. 3:22; Luc. 11:15, 18, 19) só nos Evange-
lhos, é uma designação de chefe” de falange, "cabeça" de espíritos involuído.
DAIMÔN (uma vez, em Mat. 8:31) ou DAIMÓNION, 55 vezes, refere-se sempre a um espírito fami-
liar desencarnado, que ainda conserva sua personalidade humana mesmo além túmulo. Entre os gre-
gos, esse termo designava quer o eu interno, quer o "guia". Já no N.T. essa palavra identifica sempre
um espírito ainda não-esclarecido, não evoluído, preso à última encarnação terrena, cuja presença pre-
judica o encarnado ao qual esteja ligado; tanto assim que o termo "demoníaco" é, para Tiago, sinônimo
de "personalístico”, terreno, psíquico. "não é essa sabedoria que desce do alto, mas a terrena (epígeia),
a personalista (psychike), a demoníaca (demoniôdês). (Tiago, 3:15)

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C. TORRES PASTORINO
Mat. 7:22; 9:33, 34; 12:24, 27, 28; 10:8; 11:18; 17:18; Marc. 1:34, 39; 3:15, 22; 6:13; 7:26, 29, 30;
9:38; 16:9, 17; Luc. 4:33, 35, 41; 7:33; 8:2, 27, 29, 30, 33, 35, 38; 9:1, 42, 49; 10:17; 11:14, 15, 18,
19, 20; 13:32; João 7:2; 8:48, 49, 52; 10:20, 21; At. 17:18; 1.ª Cor. 10:20, 21; 1.º Tim. 4:1; Tiago
2:16; Apoc 9:20; 16:24 e 18:2.
Ao falar de desencarnados, aproveitemos para observar como era designado o fenômeno da psicofonia:
I - quando se refere a uma obsessão, com o verbo daimonízesthai, que aparece 13 vezes (Mat. 4:24;
8:16, 28, 33; 9:32; 12:22; 15:22; Marc 1:32; 5:15, 16, 18; Luc. 8:36; João, 10:21, portanto, só em-
pregado pelos evangelistas).
II - quando se refere a um espírito evoluído, encontramos as expressões:
• "cheio de um espírito (plêrês, Luc. 4:1; At. 6:3, 5; 7:55; 11:24 - portanto só empregado por Lucas);
• "encher-se" (pimplánai ou plêthein, Luc. 1:15, 41, 67; At. 2:4; 4:8, 31; 9:17; 13:19 - portanto, só
usado por Lucas);
• "conturbar-se" (tarássein), João, 11:33 e 13:21).
Já deixamos bem claro (vol 1) que os termos satanás ("antagonista"), diábolos (“adversário”) e pei-
rázôn ("tentador") jamais se referem, no N.T., a espíritos desencarnados, mas expressam sempre "a
matéria, e por conseguinte também a "personalidade", a personagem humana que, com seu intelecto
vaidoso, se opõe, antagoniza e, como adversário natural do espírito, tenta-o (como escreveu Paulo: "a
carne (matéria) luta contra o espírito e o espírito contra a carne", Gál. 5:17).
Esses termos aparecem: satanãs, 33 vezes (Mat. 4:10; 12:26; 16:23; Marc. 1:13; 3:23, 26; 4:15; 8:33;
Luc. 10:18; 11:18; 13:16; 22:3; João 13:27, 31; At. 5:3; 26:18; Rom. 16:20; 1.º Cor. 5:5; 7:5; 2.º
Cor. 2:11; 11:14; 12:17; 1.° Tess. 2:18; 2.º Tess. 2:9; 1.º Tim. 1:20; 5:15; Apoc. 2:9, 13, 24; 3:9;
12:9; 20:2, 7); diábolos, 35 vezes (Mat. 4:1, 5, 8,11; 13:39; 25:41; Luc. 4:2, 3, 6, 13; 8:12; João,
6:70; 8:44; 13:2; At. 10:38; 13:10; Ef. 4:27; 6:11; 1.º Tim. 3:6, 7, 11; 2.º Tim. 2:26; 3:3 Tit. 2:3; Heb.
2:14; Tiago, 4:7; 1.º Pe. 5:8; 1.º Jo. 3:8, 10; Jud. 9; Apoc. 2:10; 12:9,12; 20:2,10) e peirázôn, duas
vezes (Mat. 4:3 e 1.ª Tess. 3:5).

DIÁNOIA
Diánoia exprime a faculdade de refletir (diá+noús) , isto é, o raciocínio; é o intelecto que na matéria,
reflete a mente espiritual (noús), projetando-se em "várias direções" (diá) no mesmo plano.
Usado 12 vezes (Mat. 22:37; Marc. 12:30: Luc. 1:51; 10:27: Ef. 2:3; 4:18; Col. 1:21; Heb. 8:10;
10:16; 1.ª Pe. 1:13; 2.ª Pe. 3:1; 1.ª Jo. 5:20) na forma diánoia; e na forma dianóêma (o pensamento)
uma vez em Luc. 11:17. Como sinônimo de diánoia, encontramos, também, synesis (compreensão) 7
vezes (Marc.12:33; Luc. 2:47; 1.ª Cor. 1:19; Ef. 3:4; Col. 1:9 e 2:2; e 2.ª Tim. 2:7).
Como veremos logo abaixo, diánoia é parte inerente da psychê, (alma).

PSYCHÊ
Psychê é a ALMA, isto é, o "espírito encarnado (cfr. A. Kardec, "Livro dos Espíritos", resp. 134:
"alma é o espírito encarnado", resposta dada, evidentemente, por um "espírito" afeito à leitura do Novo
Testamento).
A psychê era considerada pelos gregos como o atualmente chamado "corpo astral", já que era sede dos
desejos e paixões, isto é, das emoções (cfr. Ésquilo, Persas, 841; Teócrito, 16:24; Xenofonte, Cirope-
dia, 6.2.28 e 33; Xen., Memoráveis de Sócrates, 1.13:14; Píndaro, Olímpicas, 2.125; Heródoto,
3.14; Tucídides, 2.40, etc.). Mas psychê também incluía, segundo os gregos, a diánoia ou synesis, isto
é, o intelecto (cfr. Heródoto, 5.124; Sófocles, Édipo em Colona, 1207; Xenofonte, Hieron, 7.12; Pla-
tão, Crátilo, 400 a).

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SABEDORIA DO EVANGELHO

No sentido de "espírito" (alma de mortos) foi usada por Homero (cfr. Ilíada 1.3; 23.65, 72, 100, 104;
Odisséia, 11.207,213,222; 24.14 etc.), mas esse sentido foi depressa abandonado, substituído por ou-
tros sinônimos (pnenma, eikôn, phántasma, skiá, daimôn, etc.).
Psychê é empregado quase sempre no sentido de espírito preso à matéria (encarnado) ou seja, como
sede da vida, e até como a própria vida humana, isto é, a personagem terrena (sede do intelecto e das
emoções) em 92 passos:
Mar. 2:20; 6:25; 10:28, 39; 11:29; 12:18; 16:25, 26; 20:28; 22:37; 26:38; Marc. 3:4; 8:35, 36, 37;
10:45; 12:30; 14:34; Luc. 1:46; 2:35; 6:9; 9:24(2x), 56; 10:27; 12:19, 20, 22, 23; 14:26; 17:33;
21:19; João 10:11,15, 17, 18, 24; 12:25, 27; 13:37, 38; 15:13; Atos. 2:27, 41, 43; 3:23; 4:32; 7:14;
14:2, 22; 15:24, 26; 20:10, 24; 27:10, 22, 37, 44; Rom. 2:9; 11:3; 13:1; 16:4; 1.º Cor. 15:45; 2.º Cor.
1:23; 12:15; Ef. 6:6; Col. 3:23; Flp. 1:27; 2:30; 1.º Tess. 2:8; 5:23; Heb. 4:12; 6:19; 10:38, 39; 12:3;
13:17; Tiago 1:21; 5:20; 1.º Pe. 1:9, 22; 2:11, 25; 4:19; 2.º Pe. 2:8, 14; 1.º Jo. 3:16; 3.º Jo. 2; Apoc.
12:11; 16:3; 18:13, 14.
Note-se, todavia, que no Apocalipse (6:9: 8:9 e 20:4) o termo é aplicado aos desencarnados por morte
violenta, por ainda conservarem, no além-túmulo, as características da última personagem terrena.
O adjetivo psychikós é empregado com o mesmo sentido de personalidade (l.ª Cor. 2:14; 15:44, 46;
Tiago, 3:15; Jud. 19).
Os outros termos, que entre os gregos eram usados nesse sentido de "espírito desencarnado", o N.T.
não os emprega com essa interpretação, conforme pode ser verificado:
EIDOS (aparência) - Luc. 3:22; 9:29; João, 5:37; 2.ª Cor. 5:7; 1.ª Tess. 5:22.
EIDÔLON (ídolo) - At. 7:41; 15:20; Rom. 2:22; 1.ª Cor. 8:4, 7; 10:19; 12; 2; 2.ª Cor. 6:16; 1.ª Tess.
1:9; 1.ª Jo. 5:21; Apoc. 9:20.
EIKÔN (imagem) - Mat. 22:20; Marc. 12:16; Luc. 20:24; Rom. 1:23; 1.ª Cor.11:7; 15:49 (2x) ; 2.ª
Cor. 3:18; 4:4; Col. 1:5; 3:10; Heb. 10:11; Apoc. 13:14; 14:2, 11; 15:2; 19 :20; 20 :4.
SKIÁ (sombra) - Mat. 4:16; Marc. 4:32; Luc. 1:79; At. 5:15; Col. 2:17; Heb. 8:5; 10:1.
Também entre os gregos, desde Homero, havia a palavra thumós, que era tomada no sentido de alma
encarnada". Teve ainda sentidos diversos, exprimindo "coração" quer como sede do intelecto, quer
como sede das paixões. Fixou-se, entretanto, mais neste último sentido, e toda, as vezes que a depara-
mos no Novo Testamento é, parece, com o designativo "força". (Cfr. Luc. 4:28; At. 19:28; Rom. 2:8;
2.ª Cor. 12:20; Gál. 5:20; Ef. 4:31; Col. 3:8; Heb. 11:27; Apoc. 12:12; 14:8, 10, 19; 15:1, 7; 16:1,
19; 18:3 e 19:15)

SOMA
Soma exprime o corpo, geralmente o físico denso, que é subdividido em carne (sárx) e sangue (hai-
ma), ou seja, que compreende o físico denso e o duplo etérico (e aqui retificamos o que saiu publicado
no vol. 1, onde dissemos que "sangue" representava o astral) .
Já no N.T. encontramos uma antecipação da moderna qualificação de "corpos", atribuída aos planos ou
níveis em que o homem pode tornar-se consciente. Paulo, por exemplo, emprega soma para os planos
espirituais; ao distinguir os "corpos" celestes (sómata epouránia) dos "corpos" terrestres (sómata
epígeia), ele emprega soma para o físico denso (em lugar de sárx), para o corpo astral (sôma
psychikôn) e para o corpo espiritual (sôma pneumatikón) em 1.ª Cor. 15:40 e 44.
No N.T. soma é empregado ao todo 123 vezes, sendo 107 vezes no sentido de corpo físico-denso
(material, unido ou não à psychê);
Mat. 5:29, 30; 6:22, 25; 10:28(2x); 26:12; 27:58, 59; Marc. 5:29; 14:8; 15:43; Luc. 11:34; 12:4, 22,
23; 17:37; 23:52, 55; 24:3, 23; João, 2:21; 19:31, 38, 40; 20:12; Aros.9:40; Rom. 1:24; 4:19; 6:6,
12; 7:4, 24; 8:10, 11, 13, 23; 12:1, 4; 1.º Cor. 5:13; 6:13(2x), 20; 7:4(2x), 34; 9:27; 12:12(3x),14,

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C. TORRES PASTORINO
15(2x), 16 (2x), 17, 18, 19, 20, 22, 23, 24, 25; 13:3; 15:37, 38(2x) 40).2.0 Cor. 4:40; 5:610; 10:10;
12:2(2x); Gól. 6:17; Ef. 2:16; 5:23, 28; Ft. 3:21; Col. 2:11, 23; 1.º Tess. 5:23; Heb. 10:5, 10, 22;
13:3, 11; Tiago 2:11, 26; 3:2, 3, 6; 1.º Pe. 2:24; Jud. 9; Apoc. 18:13.
Três vezes como "corpo astral" (Mat. 27:42; 1.ª Cor. 15:14, duas vezes); duas vezes como "corpo espi-
ritual" (1.º Cor. 15:41); e onze vezes com sentido simbólico, referindo-se ao pão, tomado como sím-
bolo do corpo de Cristo (Mat. 26:26; Marc. 14:22; Luc. 22:19; Rom. 12:5; 1.ª Cor. 6:15; 10:16, 17;
11:24; 12:13, 27; Ef. 1:23; 4:4,12, 16; Filp. 1:20; Col. 1:18, 22; 2:17; 3:15) .

HAIMA
Haima, o sangue, exprime, como vimos, o corpo vital, isto é, a parte que dá vitalização à carne (sárx),
a qual, sem o sangue, é simples cadáver.
O sangue era considerado uma entidade a parte, representando o que hoje chamamos "duplo etérico"
ou "corpo vital". Baste-nos, como confirmação, recordar que o Antigo Testamento define o sangue
como "a alma de toda carne" (Lev. 17:11-14). Suma importância, por isso, é atribuída ao derrama-
mento de sangue, que exprime privação da "vida", e representa quer o sacrifício em resgate de erros e
crimes, quer o testemunho de uma verdade.
A palavra é assim usada no N.T.:
a) sangue de vítimas (Heb. 9:7, 12, 13, 18, 19, 20, 21, 22, 25; 10:4; 11:28; 13:11). Observe-se que só
nessa carta há preocupação com esse aspecto;
b) sangue de Jesus, quer literalmente (Mat. 27:4, 6, 24, 25; Luc. 22:20; João 19:34; At. 5:28; 20:28;
Rom. 5:25; 5:9; Ef. 1:7; 2:13; Col. 1:20; Heb. 9:14; 10:19, 29; 12:24; 13:12, 20; 1.ª Pe. 1:2,19;
1.ª Jo. 1:7; 5:6, 8; Apoc. 1:5; 5:9; 7:14; 12:11); quer simbolicamente, quando se refere ao vinho,
como símbolo do sangue de Cristo (Mat. 26:28; Marc. 14:24; João, 6:53, 54,55,56; 1.ª Cor.
10:16; 11:25, 27).
c) o sangue derramado como testemunho de uma verdade (Mat. 23:30,35; 27:4; Luc. 13:1; At. 1:9;
18:6; 20:26; 22:20; Rom. 3:15; Heb. 12:4; Apoc. 6:10; 14,:20; 16:6; 17:6; 19:2, 13).
d) ou em circunstâncias várias (Marc. 5:25, 29; 16:7; Luc. 22:44; João, 1:13; At. 2:19,20; 15:20, 29;
17:26; 21:25; 1.ª Cor. 15:50; Gál. 1:16; Ef. 6:12; Heb. 2:14; Apoc. 6:12; 8:7; 15:3, 4; 11:6).

SÁRX
Sárx é a carne, expressão do elemento mais grosseiro do homem, embora essa palavra substitua, mui-
tas vezes, o complexo soma, ou seja, se entenda, com esse termo, ao mesmo tempo "carne" e "sangue".
Apesar de ter sido empregada simbolicamente por Jesus (João, 6:51, 52, 53, 54, 55 e 56), seu uso é
mais literal em todo o resto do N.T., em 120 outros locais:
Mat. 19:56; 24:22; 26:41; Marc. 10:8; 13:20; 14:38; Luc. 3:6; 24:39; João, 1:14; 3:6(2x); 6:63;
8:15; 17:2; At. 2:7, 26, 31; Rom. 1:3; 2:28; 3:20; 4:1; 6:19; 7:5, 18, 25; 8:3, 4(2x), 5(2x), 6, 7, 8, 9,
13(2x); 9:358; 11:14; 13:14; 1.º Cor. 1:2629; 5:5; 6:16; 7:28;10:18; 15:39(2x),50; 2.º Cor. 1:17;
4:11; 5:16; 7:1,5; 10:2,3(2x); 1:18; 12:7; Gál. 2:16, 20; 3:3; 4:13, 14, 23; 5:13, 16, 17, 19, 24;
6:8(2x), 12, 13; Ef. 2:3, 11, 14; 5:29, 30, 31; 6:5; Col. 1:22, 24; 2:1, 5, 11, 13, 18, 23; 3:22, 24; 3:34;
1.º Tim. 3:6; Flm. 16; Heb. 5:7; 9:10, 13; 10:20; 12:9; Tiago 5:3; 1.º Pe. 1:24; 3;18, 21; 4:1, 2, 6; 2.º
Pe. 2:10, 18; 1.º Jo. 2:16; 4:2; 2.º Jo. 7; Jud. 7, 8, 23; Apoc. 17:16; 19:21.

B - TEXTOS COMPROBATÓRIOS

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Respiguemos, agora, alguns trechos do N.T., a fim de comprovar nossas conclusões a respeito desta
nova teoria.
Comecemos pela distinção que fazemos entre individualidade (ou Espírito) e a personagem transitória
humana.

INDIVIDUALIDADE- PERSONAGEM
Encontramos essa distinção explicitamente ensinada por Paulo (l.ª Cor.15:35-50) que classifica a indi-
vidualidade entre os "corpos celestiais" (sómata epouránia), isto é, de origem espiritual; e a persona-
gem terrena entre os "corpos terrenos" (sómata epígeia), ou seja, que têm sua origem no próprio pla-
neta Terra, de onde tiram seus elementos constitutivos (físicos e químicos). Logo a seguir, Paulo torna
mais claro seu pensamento, denominando a individualidade de "corpo espiritual" (sôma pneuma-
tikón) e a personagem humana de “corpo psíquico" (sôma psychikón). Com absoluta nitidez, afirma
que a individualidade é o "Espírito vivificante" (pneuma zôopioún), porque dá vida; e que a persona-
gem, no plano já da energia, é a "alma que vive" (psychê zôsan), pois recebe vida do Espírito que lhe
constitui a essência profunda.
Entretanto, para evitar dúvidas ou más interpretações quanto ao sentido ascensional da evolução, asse-
vera taxativamente que o desenvolvimento começa com a personalidade (alma vivente) e só depois que
esta se desenvolve, é que pode atingir-se o desabrochar da individualidade (Espírito vivificante).
Temos, pois, bem estabelecida a diferença fundamental, ensinada no N.T., entre psychê (alma) e
pneuma (Espírito).
Mas há outros passos em que esses dois elementos são claramente distinguidos:
1) No Cântico de Maria (Luc. 1:46) sentimos a diferença nas palavras “Minha alma (psychê) engran-
dece o Senhor e meu Espírito (pneuma) se alegra em Deus meu Salvador".
2) Paulo (Filp. 1:27) recomenda que os cristãos tenham "um só Espírito (pneuma) e uma só alma
(psychê), distinção desnecessária, se não expressassem essas palavras coisas diferentes.
3) Ainda Paulo (l.ª Tess. 5:23) faz votos que os fiéis "sejam santificados e guardados no Espírito
(pneuma) na alma (psychê) e no corpo (sôma)", deixando bem estabelecida a tríade que assinala-
mos desde o início.
4) Mais claro ainda é o autor da Carta dos Hebreus (quer seja Paulo Apolo ou Clemente Romano), ao
.utilizar-se de uma expressão sintomática, que diz: “o Logos Divino é Vivo, Eficaz; e mais pene-
trante que qualquer espada, atingindo até a divisão entre o Espirito (pneuma) e a alma (psychê)”
(Heb. 4:12); aí não há discussão: existe realmente uma divisão entre espírito e alma.
5) Comparando, ainda, a personagem (psiquismo) com a individualidade Paulo afirma que "fala não
palavras aprendidas pela sabedoria humana, mas aprendidas do Espírito (divino), comparando as
coisas espirituais com as espirituais"; e acrescenta, como esclarecimento e razão: "o homem psí-
quico (ho ánthrôpos psychikós, isto é, a personagem intelectualizada) não percebe as coisas do
Espírito Divino: são tolices para ele, e não pode compreender o que é discernido espiritualmente;
mas o homem espiritual (ho ánthrôpos pneumatikós, ou ,seja, a individualidade) discerne tudo,
embora não seja discernido por ninguém" (1.ª Cor. 2:13-15).
Portanto, não há dúvida de que o N.T. aceita os dois aspectos do "homem": a parte espiritual, a tríade
superior ou individualidade (ánthrôpos pneumatikós) e a parte psíquica, o quaternário inferior ou
personalidade ou personagem (ánthrôpos psychikós).

O CORPO

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C. TORRES PASTORINO
Penetremos, agora, numa especificação maior, observando o emprego da palavra soma (corpo), em seu
complexo carne-sangue, já que, em vários passos, não só o termo sárx é usado em lugar de soma,
como também o adjetivo sarkikós (ou sarkínos) se refere, como parte externa visível, a toda a perso-
nagem, ou seja, ao espírito encarnado e preso à matéria; e isto sobretudo naqueles que, por seu atraso,
ainda acreditam que seu verdadeiro eu é o complexo físico, já que nem percebem sua essência espiri-
tual.
Paulo, por exemplo, justifica-se de não escrever aos coríntios lições mais sublimes, porque não pode
falar-lhes como a "espirituais" (pnenmatikoí, criaturas que, mesmo encarnadas, já vivem na individu-
alidade), mas só como a “carnais" (sarkínoi, que vivem só na personagem). Como a crianças em
Cristo (isto é, como a principiantes no processo do conhecimento crístico), dando-lhes leite a beber,
não comida, pois ainda não na podem suportar; "e nem agora o posso, acrescenta ele, pois ainda sois
carnais" (1.ª Cor. 3:1-2).
Dessa forma, todos os que se encontram na fase em que domina a personagem terrena são descritos por
Paulo como não percebendo o Espírito: "os que são segundo a carne, pensam segundo a carne", em
oposição aos "que são segundo o espírito, que pensam segundo o espírito". Logo a seguir define a "sa-
bedoria da carne como morte, enquanto a sabedoria do Espírito é Vida e Paz" (Rom, 8:5-6).
Essa distinção também foi afirmada por Jesus, quando disse que "o espírito está pronto (no sentido de
"disposto”), mas a carne é fraca" (Mat. 26:41; Marc. 14:38). Talvez por isso o autor da Carta aos He-
breus escreveu, ao lembrar-se quiçá desse episódio, que Jesus "nos dias de sua carne (quando encarna-
do), oferecendo preces e súplicas com grande clamor e lágrimas Àquele que podia livrá-lo da morte,
foi ouvido por causa de sua devoção e, não obstante ser Filho de Deus (o mais elevado grau do adepta-
do, cfr. vol. 1), aprendeu a obediência por meio das coisas que sofreu" (Heb, 5:7-8).
Ora, sendo assim fraca e medrosa a personagem humana, sempre tendente para o mal como expoente
típico do Anti-Sistema, Paulo tem o cuidado de avisar que "não devemos submeter-nos aos desejos da
carne", pois esta antagoniza o Espírito (isto é constitui seu adversário ou diábolos). Aconselha, então
que não se faça o que ela deseja, e conforta os "que são do Espírito", assegurando-lhes que, embora
vivam na personalidade, "não estão sob a lei" (Gál. 5:16-18). A razão é dada em outro passo: "O Se-
nhor é Espírito: onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade" (2.ª Cor. 3:17).
Segundo o autor da Carta aos Hebreus, esta foi uma das finalidades da encarnação de Jesus: livrar a
personagem humana do medo da morte. E neste trecho confirma as palavras do Mestre a Nicodemos:
"o que nasce de carne é carne" (João, 3:6), esclarecendo, ao mesmo tempo, no campo da psico-
biologia, (o problema da hereditariedade: dos pais, os filhos só herdam a carne e o sangue (corpo físico
e duplo etérico), já que a psychê é herdeira do pneuma ("o que nasce de espírito, é espírito", João,
ibidem). Escreve, então: "como os filhos têm a mesma natureza (kekoinônêken) na carne e no sangue,
assim ele (Jesus) participou da carne e do sangue para que, por sua morte, destruísse o adversário (di-
ábolos, a matéria), o qual possui o império da morte, a fim de libertá-las (as criaturas), já que durante
toda a vida elas estavam sujeitas ao medo da morte" (Heb. 2:14).
Ainda no setor da morte, Jesus confirma, mais uma vez, a oposição corpo-alma: "não temais os que
matam o corpo: temei o que pode matar a alma (psychê) e o corpo (sôma)" (Mat. 10:28). Note-se,
mais uma vez, a precisão (elegantia) vocabular de Jesus, que não fala em pneuma, que é indestrutível,
mas em psychê, ou seja, o corpo astral sujeito a estragos e até morte.
Interessante observar que alguns capítulos adiante, o mesmo evangelista (Mat. 27:52) usa o termo
soma para designar o corpo astral ou perispírito: "e muitos corpos dos santos que dormiam, desperta-
ram". Refere-se ao choque terrível da desencarnação de Jesus, que foi tão violento no plano astral, que
despertou os desencarnados que se encontravam adormecidos e talvez ainda presos aos seus cadáveres,
na hibernação dos que desencarnam despreparados. E como era natural, ao despertarem, dirigiram-se
para suas casas, tendo sido percebidos pelos videntes.
Há um texto de Paulo que nos deixa em suspenso, sem distinguirmos se ele se refere ao corpo físico
(carne) ou ao psíquico (astral): "conheço um homem em Cristo (uma individualidade já cristificada)
que há catorze anos - se no corpo (en sômai) não sei, se fora do corpo (ektòs sômatos) não sei: Deus

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SABEDORIA DO EVANGELHO

sabe foi raptado ao terceiro céu" (l.ª Cor. 12:2). É uma confissão de êxtase (ou talvez de "encontro"?),
em que o próprio experimentador se declara inapto a distinguir se se tratava de um movimento pura-
mente espiritual (fora do corpo), ou se tivera a participação do corpo psíquico (astral); nem pode veri-
ficar se todo o processo se realizou com pneuma e psychê dentro ou fora do corpo.
Entretanto, de uma coisa ele tem certeza absoluta: a parte inferior do homem, a carne e o sangue, esses
não participaram do processo. Essa certeza é tão forte, que ele pode ensinar taxativamente e sem titu-
beios, que o físico denso e o duplo etérico não se unificam com a Centelha Divina, não "entram no
reino dos céus”, sendo esta uma faculdade apenas de pneuma, e, no máximo, de psychê. E ele o diz
com ênfase: "isto eu vos digo, irmãos, que a carne (sárx) e o sangue (haima) NÃO PODEM possuir o
reino de Deus" (l.ª Cor. 15:50). Note-se que essa afirmativa é uma negação violenta do "dogma" da
ressurreição da carne.

ALMA
Num plano mais elevado, vejamos o que nos diz o N.T. a respeito da psychê e da diánoia, isto é, da
alma e do intelecto a esta inerente como um de seus aspectos.
Como a carne é, na realidade dos fatos, incapaz de vontades e desejos, que provêm do intelecto, Paulo
afirma que "outrora andávamos nos desejos de nossa carne", esclarecendo, porém, que fazíamos "a
vontade da carne (sárx) e do intelecto (diánoia)" (Ef. 2:3). De fato "o afastamento e a inimizade entre
Espírito e corpo surgem por meio do intelecto" (Col. 1.21).
A distinção entre intelecto (faculdade de refletir, existente na personagem) e mente (faculdade ine-
rente ao coração, que cria os pensamentos) pode parecer sutil, mas já era feita na antiguidade, e Jere-
mías escreveu que YHWH "dá suas leis ao intelecto (diánoia), mas as escreve no coração" (Jer. 31:33,
citado certo em Heb. 8:10, e com os termos invertidos em Heb. 10:16). Aí bem se diversificam as fun-
ções: o intelecto recebe a dádiva, refletindo-a do coração, onde ela está gravada.
Realmente a psychê corresponde ao corpo astral, sede das emoções. Embora alguns textos no N.T.
atribuam emoções a kardía, Jesus deixou claro que só a psychê é atingível pelas angústias e aflições,
asseverando: "minha alma (psychê) está perturbada" (Mat. 26:38; Marc. 14:34; João, 12:27). Jesus não
fala em kardía nem em pneuma.

A MENTE
Noús é a MENTE ESPIRITUAL, a individualizadora de pneuma, e parte integrante ou aspecto de
kardía. E Paulo, ao salientar a necessidade de revestir-nos do Homem Novo (de passar a viver na in-
dividualidade) ordena que "nos renovemos no Espírito de nossa Mente" (Ef. 4:23-24), e não do inte-
lecto, que é personalista e divisionário.
E ao destacar a luta entre a individualidade e a personagem encarnada, sublinha que "vê outra lei em
seus membros (corpo) que se opõem à lei de sua mente (noús), e o aprisiona na lei do erro que existe
em seus membros" (Rom. 7:23).
A mente espiritual, e só ela, pode entender a sabedoria do Cristo; e este não se dirige ao intelecto para
obter a compreensão dos discípulos: "e então abriu-lhes a mente (noún) para que compreendessem as
Escrituras" (Luc.24:45). Até então, durante a viagem (bastante longa) ia conversando com os "discí-
pulos de Emaús". falando-lhes ao intelecto e provando-lhes que o Filho do Homem tinha que sofrer;
mas eles não O reconheceram. Mas quando lhes abriu a MENTE, imediatamente eles perceberam o
Cristo.
Essa mente é, sem dúvida, um aspecto de kardía. Isaías escreveu: "então (YHWH) cegou-lhes os
olhos (intelecto) e endureceu-lhes o coração, para que não vissem (intelectualmente) nem compreen-
dessem com o coração" (Is. 6:9; citado por João 12:40).

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C. TORRES PASTORINO
O CORAÇÃO
Que o coração é a fonte dos pensamentos, nós o encontramos repetido à exaustão; por exemplo: Mat.
12:34; 15:18, 19; Marc 7:18; 18:23; Luc. 6:45; 9:47; etc.
Ora, se o termo CORAÇÃO exprime, límpida e indiscutivelmente, a fonte primeira do SER, o "quarto
fechado" onde o "Pai vê no secreto" Mat. 6:6) , logicamente se deduz que aí reside a Centelha Divina,
a Partícula de pneuma, o CRISTO (Filho Unigênito), que é UNO com o Pai, que também, conse-
quentemente, aí reside. E portanto, aí também está o Espírito-Santo, o Espírito-Amor, DEUS, de que
nosso Eu é uma partícula não desprendida.
Razão nos assiste, então, quando escrevemos (vol. 1 e vol. 3) que o "reino de Deus" ou "reino dos
céus" ou "o céu", exprime exatamente o CORAÇÃO; e entrar no reino dos céus é penetrar, é MER-
GULHAR (batismo) no âmago de nosso próprio EU. É ser UM com o CRISTO, tal como o CRISTO é
UM com o PAI (cfr. João, 10.30; 17:21,22, 23).
Sendo esta parte a mais importante para a nossa tese, dividamo-la em três seções:
a) Deus ou o Espírito Santo habitam DENTRO DE nós;
b) CRISTO, o Filho (UNO com o Pai) também está DENTRO de nós, constituindo NOSSA ESSÊN-
CIA PROFUNDA;
c) o local exato em que se encontra o Cristo é o CORAÇÃO, e nossa meta, durante a encarnação, é
CRISTIFICAR-NOS, alcançando a evolução crística e unificando-nos com Ele.

a)
A expressão "dentro de" pode ser dada em grego pela preposição ENTOS que encontramos clara em
Luc. (17:21), quando afirma que "o reino de Deus está DENTRO DE VÓS" (entòs humin); mas tam-
bém a mesma idéia é expressa pela preposição EN (latim in, português em): se a água está na (EM A)
garrafa ou no (EM O) copo, é porque está DENTRO desses recipientes. Não pode haver dúvida. Re-
corde-se o que escrevemos (vol. 1): "o Logos se fez carne e fez sua residência DENTRO DE NÓS"
(João, 1:14).
Paulo é categórico em suas afirmativas: "Não sabeis que sois templo de Deus e que o Espírito Santo
habita dentro de vós" (1.ª Cor. 3:16).
Οΰи οίδατε ότι ναός θεοϋ έστε иαί τό πνεϋµα τοϋ θεοϋ έν ϋµϊν οίиεί;
E mais: "E não sabeis que vosso corpo é o templo do Espírito Santo que está dentro de vós, o qual re-
cebestes de Deus, e não pertenceis a vós mesmos? Na verdade, fostes comprados por alto preço. Glori-
ficai e TRAZEI DEUS EM VOSSO CORPO" (1.ª Cor. 6:19-20).
Esse Espírito Santo, que é a Centelha do Espírito Universal, é, por isso mesmo, idêntico em todos: "há
muitas operações, mas UM só Deus, que OPERA TUDO DENTRO DE TODAS AS COISAS; ... To-
das essas coisas opera o único e mesmo Espírito; ... Então, em UM Espírito todos nós fomos MER-
GULHADOS en: UMA carne, judeus e gentios, livres ou escravos" (1.ª Cor. 12:6, 11, 13).
Καί διαιρέσεις ένεργηµάτων είσιν, ό δέ αύτός θεός ό ένεργών τα πάντα έν πάσιν. ... Дάντα δέ ταύτα
ένεργεί τό έν иαί τό αύτό πνεύµα. ... Кαί γάρ έν ένί πνεύµατι ήµείς πάντες είς έν σώµα έβαπτίσθηµεν,
είτε ̉Ιουδαίοι εϊτε έλληνες, είτε δούλοι, εϊτε έλεύθεροι.
Mais ainda: "Então já não sois hóspedes e estrangeiros, mas sois concidadãos dos santos e familiares
de Deus, superedificados sobre o fundamento dos Enviados e dos Profetas, sendo a própria pedra an-
gular máxima Cristo Jesus: em Quem toda edificação cresce no templo santo no Senhor, no Qual tam-
bém vós estais edificados como HABITAÇÃO DE DEUS NO ESPÍRITO" (Ef. 2:19-22).
“Αρα ούν ούиέτι έστε ζένοι иαί πάροιиοι, άλλά έστε συµπολίται τών άγίων иαί οίиείοι τού θεού,
έποιиοδοµηθέντες έπί τώ θεµελίω τών άποστόλων иαί προφητών, όντος άиρογωνιαίου αύτού Χριστόύ

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SABEDORIA DO EVANGELHO

‘Іησού, έν ώ πάσα οίиοδοµή συναρµολογουµένη αύζει είς ναόν άγιον έν иυρίώ, έν ώ иαί ύµείς
συνοιиοδοµείσθε είς иατοιиητήεριον τού θεού έν πνεµατι.
Se Deus habita DENTRO do homem e das coisas quem os despreza, despreza a Deus: "quem despreza
estas coisas, não despreza homens, mas a Deus, que também deu seu Espírito Santo em vós" (1.ª Tess.
4:8).
Тοιγαρούν ό άθετών ούи άνθρωπον άθετεί, άλλά τόν θεόν τόν иαί διδόντα τό πνεύµα αύτού τό άγιον
είς ύµάς.
E a consciência dessa realidade era soberana em Paulo: "Guardei o bom depósito, pelo Espírito Santo
que habita DENTRO DE NÓS" (2.ª Tim. 1:14). (20)
Тήν иαλήν παραθήиην φύλαζον διά πνεύµατος άγίου τού ένοιиούντος έν ήµϊν.
João dá seu testemunho: "Ninguém jamais viu Deus. Se nos amarmos reciprocamente, Deus permane-
cerá DENTRO DE NÓS, e o Amor Dele, dentro de nós, será perfeito (ou completo). Nisto sabemos
que permaneceremos Nele e Ele em nós, porque DE SEU ESPÍRITO deu a nós" (1.ª Jo. 4:12-13).
θεόν ούδείς πώποτε τεθέαται:έάν άγαπώµεν άλλήλους, ό θεός έν ήµϊν µένει, иαί ή άγάπη αύτοϋ τε-
τελειωµένη έν ήµϊν έστιν. Εν τουτω γινώσиοµεν ότι έν αύτώ µένοµεν иαί αύτός έν ήµϊν, ότι έи τοϋ
πνεύµατος αύτοϋ δέδώиεν ήµϊν.

b)
Vejamos agora os textos que especificam melhor ser o CRISTO (Filho) que, DENTRO DE NÓS.
constitui a essência profunda de nosso ser. Não é mais uma indicação de que TEMOS a Divindade em
nós, mas um ensino concreto de que SOMOS uma partícula da Divindade.
Escreve Paulo: "Não sabeis que CRISTO (Jesus) está DENTRO DE VÓS"? (2.ª Cor. 13:5).
E, passando àquela teoria belíssima de que formamos todos um corpo só, cuja cabeça é Cristo, ensina
Paulo: "Vós sois o CORPO de Cristo, e membros de seus membros" (l.ª Cor. 12:27).
Esse mesmo Cristo precisa manifestar-se em nós, através de nós: "vossa vida está escondida COM
CRISTO em Deus; quando Cristo se manifestar, vós também vos manifestareis em substância" (Col.
3:3-4).
E logo adiante insiste: "Despojai-vos do velho homem com seus atos (das personagens terrenas com
seus divisionismos egoístas) e vesti o novo, aquele que se renova no conhecimento, segundo a imagem
de Quem o criou, onde (na individualidade) não há gentio nem judeu, circuncidado ou incircunciso,
bárbaro ou cita, escravo ou livre, mas TUDO e EM TODOS, CRISTO" (Col. 3:9-11).
A personagem é mortal, vivendo a alma por efeito do Espírito vivificante que nela existe: "Como em
Adão (personagem) todos morrem, assim em CRISTO (individualidade, Espírito vivificante) todos são
vivificados" (1.ª Cor. 15:22).
A consciência de que Cristo vive nele, faz Paulo traçar linhas imorredouras: "ou procurais uma prova
do CRISTO que fala DENTRO DE MIM? o qual (Cristo) DENTRO DE VÓS não é fraco" mas é po-
deroso DENTRO DE VÓS" (2.ª Cor. 13:3).
E afirma com a ênfase da certeza plena: "já não sou eu (a personagem de Paulo), mas CRISTO QUE
VIVE EM MIM" (Gál. 2:20). Por isso, pode garantir: "Nós temos a mente (noús) de Cristo" (l.ª Cor.
2:16).
Essa convicção traz consequências fortíssimas para quem já vive na individualidade: "não sabeis que
vossos CORPOS são membros de Cristo? Tomando, então, os membros de Cristo eu os tornarei corpo
de meretriz? Absolutamente. Ou não sabeis que quem adere à meretriz se torna UM CORPO com ela?
Está dito: "e serão dois numa carne". Então - conclui Paulo com uma lógica irretorquível - quem adere
a Deus é UM ESPÍRITO" com Deus (1.ª Cor. 6:15-17).

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C. TORRES PASTORINO
Já desde Paulo a união sexual é trazida como o melhor exemplo da unificação do Espírito com a Di-
vindade.
Decorrência natural de tudo isso é a instrução dada aos romanos: "vós não estais (não viveis) EM
CARNE (na personagem), mas EM ESPÍRITO (na individualidade), se o Espírito de Deus habita
DENTRO DE VÓS; se porém não tendes o Espírito de Cristo, não sois Dele. Se CRISTO (está) DEN-
TRO DE VÓS, na verdade o corpo é morte por causa dos erros, mas o Espírito vive pela perfeição. Se
o Espírito de Quem despertou Jesus dos mortos HABITA DENTRO DE VÓS, esse, que despertou
Jesus dos mortos, vivificará também vossos corpos mortais, por causa do mesmo Espírito EM VÓS"
(Rom. 9:9-11). E logo a seguir prossegue: "O próprio Espírito testifica ao nosso Espírito que somos
filhos de Deus; se filhos, (somos) herdeiros: herdeiros de Deus, co-herdeiros de Cristo" (Rom. 8:16).
Provém daí a angústia de todos os que atingiram o Eu Interno para libertar-se: "também tendo em nós
as primícias do Espírito, gememos dentro de nós, esperando a adoção de Filhos, a libertação de nosso
corpo" (Rom. 8:23).

c)
Finalmente, estreitando o círculo dos esclarecimentos, verificamos que o Cristo, dentro de nós, reside
NO CORAÇÃO, onde constitui nosso EU Profundo. É ensinamento escriturístico.
Ainda é Paulo que nos esclarece: "Porque sois filhos, Deus enviou o ESPÍRITO DE SEU FILHO, em
vosso CORAÇÃO, clamando Abba, ó Pai" (Gál. 4:6). Compreendemos, então, que o Espírito Santo
(Deus) que está em nós, refere-se exatamente ao Espírito do FILHO, ao CRISTO Cósmico, o Filho
Unigênito. E ficamos sabendo que seu ponto de fixação em nós é o CORAÇÃO.
Lembrando-se, talvez, da frase de Jeremias, acima-citada, Paulo escreveu aos coríntios: "vós sois a
nossa carta, escrita em vossos CORAÇÕES, conhecida e lida por todos os homens, sendo manifesto
que sois CARTA DE CRISTO, preparada por nós, e escrita não com tinta, mas com o Espírito de Deus
Vivo; não em tábuas de pedra, mas nas tábuas dos CORAÇÕES CARNAIS" (2.ª Cor.3:2-3). Bastante
explícito que realmente se trata dos corações carnais, onde reside o átomo espiritual.
Todavia, ainda mais claro é outro texto, em que se fala no mergulho de nosso eu pequeno, unificando-
nos ao Grande EU, o CRISTO INTERNO residente no coração: "CRISTO HABITA, pela fé, no VOS-
SO CORAÇÃO". E assegura com firmeza: "enraizados e fundamentados no AMOR, com todos os
santos (os encarnados já espiritualizados na vivência da individualidade) se compreenderá a latitude, a
longitude a sublimidade e a profundidade, conhecendo o que está acima do conhecimento, o AMOR
DE CRISTO, para que se encham de toda a plenitude de Deus" (Ef. 3:17).
Кατοιиήσαι τόν Χριστόν διά τής πίστεως έν ταϊς иαρδίαις ύµών, έν άγάπη έρριζωµένοι иαί
τεθεµελιωµένοι, ϊνα έζισγύσητε иαταλαβέσθαι σύν πάσιν τοϊςάγίοιςτί τό πλάτος иαί µήиος иαί ύψος
иαί βάθος, γνώσαι τε τήν ύπερβάλλουσαν τής γνώσεως άγάπην τοϋ Χριστοϋ, ίνα πληρωθήτε είς πάν
τό πλήρωµα τού θεοϋ.
Quando se dá a unificação, o Espírito se infinitiza e penetra a Sabedoria Cósmica, compreendendo
então a amplitude da localização universal do Cristo.
Mas encontramos outro ensino de suma profundidade, quando Paulo nos adverte que temos que
CRISTIFICAR-NOS, temos que tornar-nos Cristos, na unificação com Cristo. Para isso, teremos que
fazer uma tradução lógica e sensata da frase, em que aparece o verbo CHRIO duas vezes: a primeira,
no particípio passado, Christós, o "Ungido", o "permeado da Divindade", particípio que foi translite-
rado em todas as línguas, com o sentido filosófico e místico de O CRISTO; e a segunda, logo a seguir,
no presente do indicativo. Ora, parece de toda evidência que o sentido do verbo tem que ser O MES-
MO em ambos os empregos. Diz o texto original: ho dè bebaiôn hemãs syn humin eis Christon kaí
chrísas hemãs theós (2.ª Cor. 1:21).
‘Ο δέ βεβαιών ήµάς σύν ύµίν είς Χριστόν иαί χρίσας ήµάς θεός.
Eis a tradução literal: "Deus, fortifica dor nosso e vosso, no Ungido, unge-nos”.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

E agora a tradução real: "Deus, fortificador nosso e vosso, em CRISTO, CRISTIFICA-NOS".


Essa a chave para compreendermos nossa meta: a cristificação total e absoluta.
Logo após escreve Paulo: "Ele também nos MARCA e nos dá, como penhor, o Espírito em NOSSOS
CORAÇÕES" (2.ª Cor. 1:22).
‘Ο иαί σφραγισάµενος ήµάς иαί δούς τόν άρραβώνα τόν πνεύµατος έν ταϊς иαρδϊαις ήµών.
Completando, enfim, o ensino - embora ministrado esparsamente - vem o texto mais forte e explícito,
informando a finalidade da encarnação, para TÔDAS AS CRIATURAS: "até que todos cheguemos à
unidade da fé, ao conhecimento do Filho de Deus, ao Homem Perfeito, à medida da evolução plena de
Cristo" (Ef. 4:13).
Мέρχι иαταντήσωµεν οί πάντες είς τήν ένότητα τής πίστοως. иαί τής έπιγνώσεως τοϋ υίοϋ τοϋ θεοϋ,
είς άνδρα τελειον, είς µέτρον ήλιиίας τοϋ πληρώµατος τοϋ Χριστοϋ.
Por isso Paulo escreveu aos Gálatas: "ó filhinhos, por quem outra vez sofro as dores de parto, até que
Cristo SE FORME dentro de vós" (Gál. 4:19) (Тεиνία µου, ούς πάλιν ώδίνω, µέρχις ού µορφωθή
Χριστός έν ύµϊν).
Agostinho (Tract. in Joanne, 21, 8) compreendeu bem isto ao escrever: "agradeçamos e alegremo-
nos, porque nos tornamos não apenas cristãos, mas cristos", (Christus facti sumus); e Metódio de
Olimpo ("Banquete das dez virgens", Patrol. Graeca, vol. 18, col. 150) escreveu: "a ekklêsía está
grávida e em trabalho de parto até que o Cristo tome forma em nós, até que Cristo nasça em nós, a fim
de que cada um dos santos (encarnados) por sua participação com o Cristo, se torne Cristo". Também
Cirilo de Jerusalém ("Catechesis mystagogicae" 1.3.1 in Patr. Graeca vol. 33, col. 1.087) asseverou:
"Após terdes mergulhado no Cristo e vos terdes revestido do Cristo, fostes colocados em pé de igual-
dade com o Filho de Deus ... pois que entrastes em comunhão com o Cristo, com razão tendes o nome
de cristos, isto é, de ungidos".
Todo o que se une ao Cristo, se torna um cristo, participando do Pneuma e da natureza divina (theías
koinônoí physeôs) (2.ª Pe. 1:3), pois "Cristo é o Espírito" (2.ª Cor. 3:17) e quem Lhe está unido, tem
em si o selo (sphrágis) de Cristo. Na homilia 24,2, sobre 1.ª Cor. 10:16, João Crisóstomo (Patrol.
Graeca vol. 61, col. 200) escreveu: "O pão que partimos não é uma comunhão (com+união, koinônía)
ao corpo de Cristo? Porque não disse "participação" (metoché)? Porque quis revelar algo mais, e mos-
trar uma associação (synápheia) mais íntima. Realmente, estamos unidos (koinônoúmen) não só pela
participação (metéchein) e pela recepção (metalambánein), mas também pela UNIFICAÇÃO
(enousthai)”.
Por isso justifica-se o fragmento de Aristóteles, supra citado, em Sinésio: “os místicos devem não ape-
nas aprender (mathein) mas experimentar" (pathein).
Essa é a razão por que, desde os primeiros séculos do estabelecimento do povo israelita, YHWH, em
sua sabedoria, fazia a distinção dos diversos "corpos" da criatura; e no primeiro mandamento revelado
a Moisés dizia: " Amarás a Deus de todo o teu coração (kardía), de toda tua alma (psychê), de todo
teu intelecto (diánoia), de todas as tuas forças (dynameis)"; kardía é a individualidade, psychê a per-
sonagem, dividida em diánoia (intelecto) e dynameis (veículos físicos). (Cfr. Lev. 19:18; Deut. 6:5;
Mat. 22:37; Marc. 12:13; Luc. 10:27).
A doutrina é uma só em todos os sistemas religiosos pregados pelos Mestres (Enviados e Profetas),
embora com o tempo a imperfeição humana os deturpe, pois a personagem é fundamentalmente divisi-
onista e egoísta. Mas sempre chega a ocasião em que a Verdade se restabelece, e então verificamos
que todas as revelações são idênticas entre si, em seu conteúdo básico.

ESCOLA INICIÁTICA
Após essa longa digressão a respeito do estudo do "homem" no Novo Testamento, somos ainda obri-
gados a aprofundar mais o sentido do trecho em que são estipuladas as condições do discipulato.

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Há muito desejaríamos ter penetrado neste setor, a fim de poder dar explicação cabal de certas frases e
passagens; mas evitamo-lo ao máximo, para não ferir convicções de leitores desacostumados ao as-
sunto. Diante desse trecho, porém, somos forçados a romper os tabus e a falar abertamente.
Deve ter chamado a atenção de todos os estudiosos perspicazes dos Evangelhos, que Jesus jamais re-
cebeu, dos evangelistas, qualquer título que normalmente seria atribuído a um fundador de religião:
Chefe Espiritual, Sacerdote, Guia Espiritual, Pontífice; assim também, aqueles que O seguiam, nunca
foram chamados Sequazes, Adeptos, Adoradores, Filiados, nem Fiéis (a não ser nas Epístolas, mas
sempre com o sentido de adjetivo: os que mantinham fidelidade a Seus ensinos). Ao contrário disso, os
epítetos dados a Jesus foram os de um chefe de escola: MESTRE (Rabbi, Didáskalos, Epistátês) ou de
uma autoridade máxima Kyrios (SENHOR dos mistérios). Seus seguidores eram DISCÍPULOS (ma-
thêtês), tudo de acordo com a terminologia típica dos mistérios iniciáticos de Elêusis, Delfos, Crotona,
Tebas ou Heliópolis. Após receberem os primeiros graus, os discípulos passaram a ser denominados
"emissários" (apóstolos), encarregados de dar a outros as primeiras iniciações.
Além disso, é evidente a preocupação de Jesus de dividir Seus ensinos em dois graus bem distintos: o
que era ministrado de público ("a eles só é dado falar em parábolas") e o que era ensinado privada-
mente aos "escolhidos" ("mas a vós é dado conhecer os mistérios do reino dos céus", cfr. Mat. 13:10-
17; Marc. 4:11-12; Luc. 8:10).
Verificamos, portanto, que Jesus não criou uma "religião", no sentido moderno dessa palavra (conjunto
de ritos, dogmas e cultos com sacerdócio hierarquicamente organizado), mas apenas fundou uma ES-
COLA INICIÁTICA, na qual preparou e "iniciou" seus DISCÍPULOS, que Ele enviou ("emissários,
apóstolos") com a incumbência de "iniciar" outras criaturas. Estas, por sua vez, foram continuando o
processo e quando o mundo abriu os olhos e percebeu, estava em grande parte cristianizado. Quando
os "homens" o perceberam e estabeleceram a hierarquia e os dogmas, começou a decadência.
A "Escola iniciática" fundada por Jesus foi modelada pela tradição helênica, que colocava como ele-
mento primordial a transmissão viva dos mistérios: e "essa relação entre a parádosis (transmissão) e o
mystérion é essencial ao cristianismo", escreveu o monge beneditino D. Odon CaseI ( cfr . "Richesse
du Mystere du Christ", Les éditions du Cerf. Paris, 1964, pág. 294). Esse autor chega mesmo a afirmar:
"O cristianismo não é uma religião nem uma confissão, segundo a acepção moderna dessas palavras"
(cfr . "Le Mystere du Culte", ib., pág. 21).
E J. Ranft ("Der Ursprung des Kathoíischen Traditionsprinzips", 1931, citado por D .O. Casel) escre-
ve: "esse contato íntimo (com Cristo) nasce de uma gnose profunda".
Para bem compreender tudo isso, é indispensável uma incursão pelo campo das iniciações, esclarecen-
do antes alguns termos especializados. Infelizmente teremos que resumir ao máximo, para não prejudi-
car o andamento da obra. Mas muitos compreenderão.

TERMOS ESPECIAIS
Aiôn (ou eon) - era, época, idade; ou melhor CICLO; cada um dos ciclos evolutivos.
Akoueíu - "ouvir"; akoueín tòn lógon, ouvir o ensino, isto é, receber a revelação dos segredos iniciá-
ticos.
Gnôse - conhecimento espiritual profundo e experimental dos mistérios.
Deíknymi - mostrar; era a explicação prática ou demonstração de objetos ou expressões, que serviam
de símbolos, e revelavam significados ocultos.
Dóxa - doutrina; ou melhor, a essência do conhecimento profundo: o brilho; a luz da gnôse; donde a
"substância divina", e daí a "glória".
Dynamis - força potencial, potência que capacita para o érgon e para a exousía, infundindo o impulso
básico de atividade.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Ekklêsía - a comunidade dos "convocados" ou "chamados" (ékklêtos) aos mistérios, os "mystos” que
tinham feito ou estavam fazendo o curso da iniciação.
Energeín - agir por dentro ou de dentro (energia), pela atuação da força (dybamis).
Érgon - atividade ou ação; trabalho espiritual realizado pela força (dynamis) da Divindade que habita
dentro de cada um e de cada coisa; energia.
Exêgeísthaí - narrar fatos ocultos, revelar (no sentido de "tirar o véu”) (cfr. Luc. 24:35; João, 1:18; At.
10:8: 15:12, 14).
Hágios - santo, o que vive no Espírito ou Individualidade; o iniciado (cfr. teleios).
Kyrios - Senhor; o Mestre dos Mistérios; o Mistagogo (professor de mistérios); o Hierofante (o que
fala, fans, fantis, coisas santas, hieros); dava-se esse título ao possuidor da dynamis, da exousía e do
érgon, com capacidade para transmiti-los.
Exousía - poder, capacidade de realização, ou melhor, autoridade, mas a que provém de dentro, não a
"dada" de fora.
Leitourgia - Liturgia, serviço do povo: o exercício do culto crístico, na transmissão dos mistérios.
Legómena - palavras reveladoras, ensino oral proferido pelo Mestre, e que se tornava "ensino ouvido"
(lógos akoês) pelos discípulos.
Lógos - o "ensino" iniciático, a “palavra" secreta, que dava a chave da interpretação dos mistérios; a
"Palavra” (Energia ou Som), segundo aspecto da Divindade.
Monymenta - "monumentos", ou seja, objetos e lembranças, para manter viva a memória.
Mystagogo – o Mestre dos Mystérios, o Hierofante.
Mystérion - a ação ou atividade divina, experimentada pelo iniciado ao receber a iniciação; donde, o
ensino revelado apenas aos perfeitos (teleios) e santos (hágios), mas que devia permanecer oculto aos
profanos.
Oikonomía - economia, dispensação; literalmente "lei da casa"; a vida intima de cada iniciado e sua
capacidade na transmissão iniciática a outros, (de modo geral encargo recebido do Mestre).
Orgê - a atividade ou ação sagrada; o "orgasmo" experimentado na união mística: donde "exaltação
espiritual" pela manifestação da Divindade (erradamente interpretado como "ira").
Parábola - ensino profundo sob forma de narrativa popular, com o verdadeiro sentido oculto por metá-
foras e símbolos.
Paradídômi - o mesmo que o latim trádere; transmitir, "entregar", passar adiante o ensino secreto.
Parádosis - transmissão, entrega de conhecimentos e experiências dos ensinos ocultos (o mesmo que o
latim tradítio).
Paralambánein - "receber" o ensino secreto, a "palavra ouvida", tornando-se conhecedor dos mistéri-
os e das instruções.
Patheín - experimentar, "sofrer" uma experiência iniciática pessoalmente, dando o passo decisivo para
receber o grau e passar adiante.
Plêrôma - plenitude da Divindade na criatura, plenitude de Vida, de conhecimento, etc.
Redenção- a libertação do ciclo de encarnações na matéria (kyklos anánkê) pela união total e defini-
tiva com Deus.
Santo - o mesmo que perfeito ou "iniciado".
Sêmeíon - "sinal" físico de uma ação espiritual, demonstração de conhecimento (gnose), de força
(dynamis), de poder (exousía) e de atividade ou ação (érgon); o "sinal" é sempre produzido por um
iniciado, e serve de prova de seu grau.

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C. TORRES PASTORINO
Sophía - a sabedoria obtida pela gnose; o conhecimento proveniente de dentro, das experiências vivi-
das (que não deve confundir-se com a cultura ou erudição do intelecto).
Sphrágis - selo, marca indelével espiritual, recebida pelo espírito, embora invisível na matéria, que
assinala a criatura como pertencente a um Senhor ou Mestre.
Symbolos - símbolos ou expressões de coisas secretas, incompreensíveis aos profanos e só percebidas
pelos iniciados (pão, vinho, etc.).
Sótería - "salvação", isto é, a unificação total e definitiva com a Divindade, que se obtém pela "reden-
ção" plena.
Teleíos - o "finalista", o que chegou ao fim de um ciclo, iniciando outro; o iniciado nos mistérios, o
perfeito ou santo.
Teleisthai - ser iniciado; palavra do mesmo radical que teleutan, que significa "morrer", e que expri-
me "finalizar" alguma coisa, terminar um ciclo evolutivo.
Tradítio - transmissão "tradição" no sentido etimológico (trans + dare, dar além passar adiante), o
mesmo que o grego parádosis.

TRADIÇÃO
D. Odon Casel (o. c., pág. 289) escreve: "Ranft estudou de modo preciso a noção da tradítio, não só
como era praticada entre os judeus, mas também em sua forma bem diferente entre os gregos. Especi-
almente entre os adeptos dos dosis é a transmissão secreta feita aos "mvstos" da misteriosa sôtería; é a
inimistérios, a noção de tradítio (parádosis) tinha grande importância. A paraciação e a incorporação
no círculo dos eleitos (eleitos ou "escolhidos"; a cada passo sentimos a confirmação de que Jesus fun-
dou uma "Escola Iniciática”, quando emprega os termos privativos das iniciações heléntcas; cfr.
"muitos são chamados, mas poucos são os escolhidos” - Mat. 22.14), características das religiões gre-
co-orientais. Tradítio ou parádosis são, pois, palavras que exprimem a iniciação aos mistérios. Trata-
se, portanto, não de uma iniciação científica, mas religiosa, realizada no culto. Para o “mysto", consti-
tui uma revelação formal, a segurança vivida das realidades sagradas e de uma santa esperança. Graças
a tradição, a revelação primitiva passa às gerações ulteriores e é comunicada por ato de iniciação. O
mesmo princípio fundamental aplica-se ao cristianismo".
Na página seguinte, o mesmo autor prossegue: "Nos mistérios, quando o Pai Mistagogo comunica ao
discípulo o que é necessário ao culto, essa transmissão tem o nome de traditio. E o essencial não é a
instrução, mas a contemplação, tal como o conta Apuleio (Metamorphoses, 11, 21-23) ao narrar as
experiências culturais do "mysto" Lúcius. Sem dúvida, no início há uma instrução, mas sempre para
finalizar numa contemplação, pela qual o discípulo, o "mysto”, entra em relação direta com a Divin-
dade. O mesmo ocorre no cristianismo (pág.290).
Ouçamos agora as palavras de J. Ranft (o. c., pág. 275): "A parádosis designa a origem divina dos
mistérios e a transmissão do conteúdo dos mistérios. Esta, à primeira vista, realiza-se pelo ministério
dos homens, mas não é obra de homens; é Deus que ensina. O homem é apenas o intermediário, o Ins-
trumento desse ensino divino. Além disso ... desperta o homem interior. Logos é realmente uma pala-
vra intraduzível: designa o próprio conteúdo dos mistérios, a palavra, o discurso, o ENSINO. É a pala-
vra viva, dada por Deus, que enche o âmago do homem".
No Evangelho, a parádosis é constituída pelas palavras ou ensinos (lógoi) de Jesus, mas também sim-
bolicamente pelos fatos narrados, que necessitam de interpretação, que inicialmente era dada, verbal-
mente, pelos "emissários" e pelos inspirados que os escreveram, com um talento superior de muito ao
humano, deixando todos os ensinos profundos "velados", para só serem perfeitamente entendidos pelos
que tivessem recebido, nos séculos seguintes, a revelação do sentido oculto, transmitida quer por um
iniciado encarnado, quer diretamente manifestada pelo Cristo Interno. Os escritores que conceberam a
parádosis no sentido helênico foram, sobretudo, João e Paulo; já os sinópticos a interpretam mais no

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SABEDORIA DO EVANGELHO

sentido judaico, excetuando-se, por vezes, o grego Lucas, por sua convivência com Paulo, e os outros,
quando reproduziam fielmente as palavras de Jesus.
Se recordarmos os mistérios de Elêusis (palavra que significa "advento, chegada”, do verbo eléusomai,
"chegar”), ou de Delfos (e até mesmo os de Tebas, Ábydos ou Heliópolis), veremos que o Novo Tes-
tamento concorda seus termos com os deles. O logos transmitido (paradidômi) por Jesus é recebida
(paralambánein) pelos DISCÍPULOS (mathêtês). Só que Jesus apresentou um elemento básico a
mais: CRISTO. Leia-se Paulo: "recebi (parélabon) do Kyrios o que vos transmiti (parédote)” (l.ª
Cor. 11:23).
O mesmo Paulo, que define a parádosis pagã como "de homens, segundo os elementos do mundo e
não segundo Cristo” (Col. 2:8), utiliza todas as palavras da iniciação pagã, aplicando-as à iniciação
cristã: parádosis, sophía, logo", mystérion, dynamis, érgon, gnose, etc., termos que foram emprega-
dos também pelo próprio Jesus: "Nessa hora Jesus fremiu no santo pneuma e disse: abençôo-te, Pai,
Senhor do céu e da Terra, porque ocultaste estas coisas aos sábios e hábeis, e as revelaste aos peque-
nos, Sim, Pai, assim foi de teu agrado. Tudo me foi transmitido (parédote) por meu Pai. E ninguém
tem a gnose do que é o Filho senão o Pai, e ninguém tem a gnose do que é o Pai senão o Filho, e
aquele a quem o Filho quer revelar (apokalypsai = tirar o véu). E voltando-se para seus discípulos,
disse: felizes os olhos que vêem o que vedes. Pois digo-vos que muitos profetas e reis quiseram ver o
que vedes e não viram, e ouvir o que ouvis, e não ouviram" (Luc. 10:21-24). Temos a impressão per-
feita que se trata de ver e ouvir os mistérios iniciáticos que Jesus transmitia a seus discípulos.
E João afirma: "ninguém jamais viu Deus. O Filho Unigênito que esta no Pai, esse o revelou (exêgêsa-
to, termo específico da língua dos mistérios)" (João, 1:18).

"PALAVRA OUVIDA"
A transmissão dos conhecimentos, da gnose, compreendia a instrução oral e o testemunhar das revela-
ções secretas da Divindade, fazendo que o iniciado participasse de uma vida nova, em nível superior (o
"homem novo" de Paulo), conhecendo doutrinas que deveriam ser fielmente guardadas, com a rigorosa
observação do silêncio em relação aos não-iniciados (cfr. "não deis as coisas santas aos cães", Mat.
7:6).
Daí ser a iniciação uma transmissão ORAL - o LOGOS AKOÊS, ou "palavra ouvida" ou "ensino ou-
vido" - que não podia ser escrito, a não ser sob o véu espesso de metáforas, enigmas, parábolas e sím-
bolos. Esse logos não deve ser confundido com o Segundo Aspecto da Divindade (veja vol. 1 e vol. 3).
Aqui logos é "o ensino" (vol. 2 e vol. 3).
O Novo Testamento faz-nos conhecer esse modus operandi: Paulo o diz, numa construção toda espe-
cial e retorcida (para não falsear a técnica): "eis por que não cessamos de agradecer (eucharistoúmen)
a Deus, porque, recebendo (paralabóntes) o ENSINO OUVIDO (lógon akoês) por nosso intermédio,
de Deus, vós o recebestes não como ensino de homens (lógon anthrópôn) mas como ele é verdadei-
ramente: o ensino de Deus (lógon theou), que age (energeítai) em vós que credes" (l.ª Tess. 2:13).
O papel do "mysto" é ouvir, receber pelo ouvido, o ensino (lógos) e depois experimentar, como o diz
Aristóteles, já citado por nós: "não apenas aprender (matheín), mas experimentar" (patheín).
Esse trecho mostra como o método cristão, do verdadeiro e primitivo cristianismo de Jesus e de seus
emissários, tinha profunda conexão com os mistérios gregos, de cujos termos específicos e caracterís-
ticos Jesus e seus discípulos se aproveitaram, elevando, porém, a técnica da iniciação à perfeição, à
plenitude, à realidade máxima do Cristo Cósmico.
Mas continuemos a expor. Usando, como Jesus, a terminologia típica da parádosis grega, Paulo insiste
em que temos que assimilá-la interiormente pela gnose, recebendo a parádosis viva, "não mais de um
Jesus de Nazaré histórico, mas do Kyrios, do Cristo ressuscitado, o Cristo Pneumatikós, esse mistério
que é o Cristo dentro de vós" (Col. 1:27).

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C. TORRES PASTORINO
Esse ensino oral (lógos akoês) constitui a tradição (traditio ou parádosis), que passa de um iniciado a
outro ou é recebido diretamente do "Senhor” (Kyrios), como no caso de Paulo (cfr. Gál. 1:11): "Eu vo-
lo afirmo, meus irmãos, que a Boa-Nova que preguei não foi à maneira humana. Pois não na recebi
(parélabon) nem a aprendi de homens, mas por uma revelação (apokálypsis) de Jesus Cristo".
Aos coríntios (l.ª Cor. 2:1-5) escreve Paulo: "Irmãos, quando fui a vós, não fui com o prestígio do ló-
gos nem da sophía, mas vos anunciei o mistério de Deus. Decidi, com efeito, nada saber entre vós se-
não Jesus Cristo, e este crucificado. Fui a vós em fraqueza, em temor, e todo trêmulo, e meu logos e
minha pregação não consistiram nos discursos persuasivos da ciência, mas numa manifestação do Es-
pírito (pneuma) e do poder (dynamis), para que vossa fé não repouse na sabedoria (sophía) dos ho-
mens, mas no poder (dynamis) de Deus".
A oposição entre o logos e a sophia profanos - como a entende Aristóteles - era salientada por Paulo,
que se referia ao sentido dado a esses termos pelos "mistérios antigos". Salienta que à sophia e ao lo-
gos profanos, falta, no dizer dele, a verdadeira dynamis e o pnenma, que constituem o mistério cristão
que ele revela: Cristo.
Em vários pontos do Novo Testamento aparece a expressão "ensino ouvido" ou "ouvir o ensino"; por
exemplo: Mat. 7:24, 26; 10:14; 13:19, 20, 21, 22, 23; 15:12; 19:22; Marc. 4:14, 15, 16, 17, 18, 19, 20;
Luc. 6:47; 8:11,12, 13,15; 10:39; 11:28; João, 5:24, 38; 7:40; 8:43; 14:24; At. 4:4; 10:44; 13:7; 15:7;
Ef. 1:13; 1.ª Tess. 2:13; Heb. 4:2; 1.ª Jo. 2:7; Ap. 1:3.

DYNAMIS
Em Paulo, sobretudo, percebemos o sentido exato da palavra dynamis, tão usada nos Evangelhos.
Pneuma, o Espírito (DEUS), é a força Potencial ou Potência Infinita (Dynamis) que, quando age
(energeín) se torna o PAI (érgon), a atividade, a ação, a "energia"; e o resultado dessa atividade é o
Cristo Cósmico, o Kosmos universal, o Filho, que é Unigênito porque a emissão é única, já que espaço
e tempo são criações intelectuais do ser finito: o Infinito é uno, inespacial, atemporal.
Então Dynamis é a essência de Deus o Absoluto, a Força, a Potência Infinita, que tudo permeia, cria e
governa, desde os universos incomensuráveis até os sub-átomos infra-microscópicos. Numa palavra:
Dynamis é a essência de Deus e, portanto, a essência de tudo.
Ora, o Filho é exatamente o PERMEAADO, ou o UNGIDO (Cristo), por essa Dynamis de Deus e pelo
Érgon do Pai. Paulo já o dissera: "Cristo ... é a dynamis de Deus e a sophía de Deus (Christòn theou
dynamin kaí theou sophían, 1.ª Cor. 1:24). Então, manifesta-se em toda a sua plenitude (cfr. Col.2:9)
no homem Jesus, a Dynamis do Pneuma (embora pneuma e dynamis exprimam realmente uma só
coisa: Deus): essa dynamis do pneuma, atuando através do Pai (érgon) toma o nome de CRISTO, que
se manifestou na pessoa Jesus, para introduzir a humanidade deste planeta no novo eon, já que "ele é a
imagem (eikôn) do Deus invisível e o primogênito de toda criação" (Col. 1:15).

EON
O novo eon foi inaugurado exatamente pelo Cristo, quando de Sua penetração plena em Jesus. Daí a
oposição que tanto aparece no Novo Testamento Entre este eon e o eon futuro (cfr., i.a., Mat. 12:32;
Marc. 10:30; Luc. 16:8; 20:34; Rom. 12:2; 1.ª Cor. 1:20; 2:6-8; 3:18: 2.ª Cor. 4:4; Ef. 2:2-7, etc.). O
eon "atual" e a vida da matéria (personalismo); O eon "vindouro" é a vida do Espírito ó individuali-
dade), mas que começa na Terra, agora (não depois de desencarnados), e que reside no âmago do ser.
Por isso, afirmou Jesus que "o reino dos céus está DENTRO DE VÓS" (Luc. 17:21), já que reside NO
ESPÍRITO. E por isso, zôê aiónios é a VIDA IMANENTE (vol, 2 e vol. 3), porque é a vida ESPIRI-
TUAL, a vida do NOVO EON, que Jesus anunciou que viria no futuro (mas, entenda-se, não no futuro
depois da morte, e sim no futuro enquanto encarnados). Nesse novo eon a vida seria a da individuali-
dade, a do Espírito: "o meu reino não é deste mundo" (o físico), lemos em João, 18:36. Mas é NESTE
mundo que se manifestará, quando o Espírito superar a matéria, quando a individualidade governar a

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personagem, quando a mente dirigir o intelecto, quando o DE DENTRO dominar o DE FORA, quando
Cristo em nós tiver a supremacia sobre o eu transitório.
A criatura que penetra nesse novo eon recebe o selo (sphrágis) do Cristo do Espírito, selo indelével
que o condiciona como ingresso no reino dos céus. Quando fala em eon, o Evangelho quer exprimir
um CICLO EVOLUTIVO; na evolução da humanidade, em linhas gerais, podemos considerar o eon
do animalismo, o eon da personalidade, o eon da individualidade, etc. O mais elevado eon que conhe-
cemos, o da zôê aiónios (vida imanente) é o da vida espiritual plenamente unificada com Deus
(pneuma-dynamis), com o Pai (lógos-érgon), e com o Filho (Cristo-kósmos) .

DÓXA
Assim como dynamis é a essência de Deus, assim dóxa (geralmente traduzida por "glória") pode apre-
sentar os sentidos que vimos (vol. 1). Mas observaremos que, na linguagem iniciática dos mistérios,
além do sentido de "doutrina" ou de "essência da doutrina", pode assumir o sentido específico de
"substância divina". Observe-se esse trecho de Paulo (Filp. 2:11): "Jesus Cristo é o Senhor (Kyrios) na
substância (dóxa) de Deus Pai"; e mais (Rom. 6:4): "o Cristo foi despertado dentre os mortos pela
substância (dóxa) do Pai" (isto é, pelo érgon, a energia do Som, a vibração sonora da Palavra).
Nesses passos, traduzir dóxa por glória é ilógico, não faz sentido; também "doutrina" aí não cabe. O
sentido é mesmo o de "substância".
Vejamos mais este passo (l.ª Cor. 2:6-16): "Falamos, sim da sabedoria (sophia) entre os perfeitos (te-
leiois, isto é, iniciados), mas de uma sabedoria que não é deste eon, nem dos príncipes deste eon, que
são reduzidos a nada: mas da sabedoria dos mistérios de Deus, que estava oculta, e que antes dos eons
Deus destinara como nossa doutrina (dóxa), e que os príncipes deste mundo não reconheceram. De
fato, se o tivessem reconhecido, não teriam crucificado o Senhor da Doutrina (Kyrios da dóxa, isto é,
o Hierofante ou Mistagogo). Mas como está escrito, (anunciamos) o que o olho não viu e o ouvido não
ouviu e o que não subiu sobre o coração do homem, mas o que Deus preparou para os que O amam.
Pois foi a nós que Deus revelou (apekalypsen = tirou o véu) pelo pneuma" (ou seja, pelo Espírito,
pelo Cristo Interno).

MISTÉRIO
Mistério é uma palavra que modificou totalmente seu sentido através dos séculos, mesmo dentro de
seu próprio campo, o religioso. Chamam hoje "mistério" aquilo que é impossível de compreender, ou o
que se ignora irremissivelmente, por ser inacessível à inteligência humana.
Mas originariamente, o mistério apresentava dois sentidos básicos:
1.º - um ensinamento só revelado aos iniciados, e que permanecia secreto para os profanos que não
podiam sabê-lo (daí proveio o sentido atual: o que não se pode saber; na antiguidade, não se podia
por proibição moral, ao passo que hoje é por incapacidade intelectual);
2.º - a própria ação ou atividade divina, experimentada pelo iniciado ao receber a iniciação completa.
Quando falamos em "mistério", transliterando a palavra usada no Novo Testamento, arriscamo-nos a
interpretar mal. Aí, mistério não tem o sentido atual, de "coisa ignorada por incapacidade intelectiva",
mas é sempre a "ação divina revelada experimentalmente ao homem" (embora continue inacessível ao
não-iniciado ou profano).
O mistério não é uma doutrina: exprime o caráter de revelação direta de Deus a seus buscadores; é uma
gnose dos mistérios, que se comunica ao "mysto” (aprendiz de mística). O Hierofante conduz o ho-
mem à Divindade (mas apenas o conduz, nada podendo fazer em seu lugar). E se o aprendiz corres-
ponde plenamente e atende a todas as exigências, a Divindade "age" (energeín) internamente, no "Es-
pírito" (pneuma) do homem. que então desperta (egereín), isto é, "ressurge" para a nova vida (cfr. "eu
sou a ressurreição da vida", João, 11:25; e "os que produzirem coisas boas (sairão) para a restauração

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de vida", isto é, os que conseguirem atingir o ponto desejado serão despertados para a vida do espírito,
João 5-29).
O caminho que leva a esses passos, é o sofrimento, que prepara o homem para uma gnose superior: e
"por isso - conclui O. Casel - a cruz é para o cristão o caminho que conduz à gnose da glória" (o.c.,
pág. 300).
Paulo diz francamente que o mistério se resume numa palavra: CRISTO "esse mistério, que é o Cris-
to", (Col. 1:27): e "a fim de que conheçam o mistério de Deus, o Cristo" (Col. 2:2).
O mistério opera uma união íntima e física com Deus, a qual realiza uma páscoa (passagem) do atual
eon, para o eon espiritual (reino dos céus).

O PROCESSO
O postulante (o que pedia para ser iniciado) devia passar por diversos graus, antes de ser admitido ao
pórtico, à “porta" por onde só passavam as ovelhas (símbolo das criaturas mansas; cfr.: “eu sou a porta
das ovelhas", João, 10:7). Verificada a aptidão do candidato profano, era ele submetido a um período
de “provações", em que se exercitava na ORAÇÃO (ou petição) que dirigia à Divindade, apresentando
os desejos ardentes ao coração, “mendigando o Espírito" (cfr. “felizes os mendigos de Espírito" Mat.
5:3) para a ele unir-se; além disso se preparava com jejuns e alimentação vegetariana para o SACRI-
FÍCIO, que consistia em fazer a consagração de si mesmo à Divindade (era a DE + VOTIO, voto a
Deus), dispondo-se a desprender-se ao mundo profano.
Chegado a esse ponto, eram iniciados os SETE passos da iniciação. Os três primeiros eram chamados
"Mistérios menores"; os quatro últimos, “mistérios maiores". Eram eles:
1 - o MERGULHO e as ABLUÇÕES (em Elêusis havia dois lagos salgados artificiais), que mostra-
vam ao postulante a necessidade primordial e essencial da "catarse" da "psiquê". Os candidatos, des-
nudos, entravam num desses lagos e mergulhavam, a fim de compreender que era necessário "morrer"
às coisas materiais para conseguir a "vida" (cfr.: "se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica
só; mas se morrer dá muito fruto", João, 12:24). Exprimia a importância do mergulho dentro de si
mesmo, superando as dificuldades e vencendo o medo. Ao sair do lago, vestia uma túnica branca e
aguardava o segundo passo.
2 - a ACEITAÇÃO de quem havia mergulhado, por parte do Mistagogo, que o confirmava no caminho
novo, entre os "capazes". Daí por diante, teria que correr por conta própria todos os riscos inerentes ao
curso: só pessoalmente poderia caminhar. Essa confirmação do Mestre simbolizava a “epiphanía" da
Divindade, a "descida da graça", e o recem-aceito iniciava nova fase.
3 - a METÂNOIA ou mudança da mente, que vinha após assistir a várias tragédias e dramas de fundo
iniciático. Todas ensinavam ao "mysto" novato, que era indispensável, através da dor, modificar seu
"modo de pensar" em relação à vida, afastar-se de. todos os vícios e fraquezas do passado, renunciar a
prazeres perniciosos e defeitos, tornando-se o mais perfeito (téleios) possível. Era buscada a renovação
interna, pelo modo de pensar e de encarar a vida. Grande número dos que começavam a carreira, para-
vam aí, porque não possuíam a força capaz de operar a transmutação mental. As tentações os empol-
gavam e novamente se lançavam no mundo profano. No entanto, se dessem provas positivas de modi-
ficação total, de serem capazes de viver na santidade, resistindo às tentações, podiam continuar a sen-
da. Havia, então, a "experiência" para provar a realidade da "coragem" do candidato: era introduzido
em grutas e câmaras escuras, onde encontrava uma série de engenhos lúgubres e figuras apavorantes, e
onde demorava um tempo que parecia interminável. Dali, podia regressar ou prosseguir. Se regressava,
saía da fileira; se prosseguia, recebia a recompensa justa: era julgado apto aos "mistérios maiores".
4 - O ENCONTRO e a ILUMINAÇÃO, que ocorria com a volta à luz, no fim da terrível caminhada
por entre as trevas. Através de uma porta difícil de ser encontrada, deparava ele campos floridos e per-
fumados, e neles o Hierofante, em paramentação luxuosa. que os levava a uma refeição simples mas
solene constante de pão, mel, castanhas e vinho. Os candidatos eram julgados "transformados", e por-

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tanto não havia mais as exteriorizações: o segredo era desvelado (apokálypsis), e eles passavam a sa-
ber que o mergulho era interno, e que deviam iniciar a meditação e a contemplação diárias para con-
seguir o "encontro místico" com a Divindade dentro de si. Esses encontros eram de início, raros e bre-
ves, mas com o exercício se iam fixando melhor, podendo aspirar ao passo seguinte.
5 - a UNIÃO (não mais apenas o "encontro"), mas união firme e continuada, mesmo durante sua estada
entre os profanos. Era simbolizada pelo drama sacro (hierõs gámos) do esponsalício de Zeus e Demé-
ter, do qual nasceria o segundo Dionysos, vencedor da morte. Esse matrimônio simbólico e puro, reali-
zado em exaltação religiosa (orgê) é que foi mal interpretado pelos que não assistiam à sua representa-
ção simbólica (os profanos) e que tacharam de "orgias imorais" os mistérios gregos. Essa "união", de-
pois de bem assegurada, quando não mais se arriscava a perdê-la, preparava os melhores para o passo
seguinte.
6 - a CONSAGRAÇÃO ou, talvez, a sagração, pela qual era representada a “marcação" do Espírito do
iniciado com um "selo" especial da Divindade a quem o "mysto" se consagrava: Apolo, Dyonisos, Isis,
Osíris, etc. Era aí que o iniciado obtinha a epoptía, ou "visão direta" da realidade espiritual, a gnose
pela vivência da união mística. O epopta era o "vigilante", que o cristianismo denominou “epískopos"
ou "inspetor". Realmente epopta é composto de epí ("sobre") e optos ("visível"); e epískopos de epi
("sobre") e skopéô ("ver” ou "observar"). Depois disso, tinha autoridade para ensinar a outros e,
achando-se preso à Divindade e às obrigações religiosas, podia dirigir o culto e oficiar a liturgia, e
também transmitir as iniciações nos graus menores. Mas faltava o passo decisivo e definitivo, o mais
difícil e quase inacessível.
7 - a PLENITUDE da Divindade, quando era conseguida a vivência na "Alma Universal já libertada".
Nos mistérios gregos (em Elêusis) ensinava-se que havia uma Força Absoluta (Deus o "sem nome")
que se manifestava através do Logos (a Palavra) Criador, o qual produzia o Filho (Kósmo). Mas o
Logos tinha duplo aspecto: o masculino (Zeus) e o feminino (Deméter). Desse casal nascera o Filho,
mas também com duplo aspecto: a mente salvadora (Dionysos) e a Alma Universal (Perséfone). Esta,
desejando experiências mais fortes, descera à Terra. Mas ao chegar a estes reinos inferiores, tornou-
se a "Alma Universal" de todas as criaturas, e acabou ficando prisioneira de Plutão (a matéria), que a
manteve encarcerada, ministrando-lhe filtros mágicos que a faziam esquecer sua origem divina, em-
bora, no íntimo, sentisse a sede de regressar a seu verdadeiro mundo, mesmo ignorando qual fosse.
Dionysos quis salvá-la, mas foi despedaçado pelos Titãs (a mente fracionada pelo intelecto e estraça-
lhada pelos desejos). Foi quando surgiu Triptólemo (o tríplice combate das almas que despertam), e
com apelos veementes conseguiu despertar Perséfone, revelando lhe sua origem divina, e ao mesmo
tempo, com súplicas intensas às Forças Divinas, as comoveu; então Zeus novamente se uniu a Demé-
ter, para fazer renascer Dionysos. Este, assumindo seu papel de "Salvador", desce à Terra, oferecen-
do-se em holocausto a Plutão (isto é, encarnando-se na própria matéria) e consegue o resgate de Per-
séfone, isto é, a libertação da Alma das criaturas do domínio da matéria e sua elevação novamente
aos planos divinos. Por esse resumo, verificamos como se tornou fácil a aceitação entre os grego, e
romanos da doutrina exposta pelos Emissários de Jesus, um "Filho de Deus" que desceu à Terra para
resgatar com sua morte a alma humana.
O iniciado ficava permeado pela Divindade, tornando-se então "adepto" e atingindo o verdadeiro grau
de Mestre ou Mistagogo por conhecimento próprio experimental. Já não mais era ele, o homem, que
vivia: era "O Senhor", por cujo intermédio operava a Divindade. (Cfr.: "não sou mais eu que vivo, é
Cristo que vive em mim", Gál. 2:20; e ainda: "para mim, viver é Cristo", Filp. 1:21). A tradição grega
conservou os nomes de alguns dos que atingiram esse grau supremo: Orfeu ... Pitágoras ... Apolônio de
Tiana ... E bem provavelmente Sócrates (embora Schuré opine que o maior foi Platão).

NO CRISTIANISMO
Todos os termos néo-testamentários e cristãos, dos primórdios, foram tirados dos mistérios gregos: nos
mistérios de Elêusis, o iniciado se tornava "membro da família do Deus" (Dionysos), sendo chamado.
então, um "santo" (hágios) ou "perfeito" (téleios). E Paulo escreve: "assim, pois, não sois mais estran-

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geiros nem peregrinos, mas sois concidadãos dos santos e familiares de Deus.' (Ef. 2:19). Ainda em
Elêusis, mostrava-se aos iniciados uma "espiga de trigo", símbolo da vida que eternamente permanece
através das encarnações e que, sob a forma de pão, se tornava participante da vida do homem; assim
quando o homem se unia a Deus, "se tornava participante da vida divina" (2.ª Pe. 1:4). E Jesus afir-
mou: "Eu sou o PÃO da Vida" (João 6.35).
No entanto ocorreu modificação básica na instituição do Mistério cristão, que Jesus realizou na "última
Ceia", na véspera de sua experiência máxima, o páthos ("paixão").
No Cristianismo, a iniciação toma sentido puramente espiritual, no interior da criatura, seguindo mais
a Escola de Alexandria. Lendo Filon, compreendemos isso: ele interpreta todo o Antigo Testamento
como alegoria da evolução da alma. Cada evangelista expõe a iniciação cristã de acordo com sua pró-
pria capacidade evolutiva, sendo que a mais elevada foi, sem dúvida, a de João, saturado da tradição
(parádosis) de Alexandria, como pode ver-se não apenas de seu Evangelho, como também de seu
Apocalipse.
Além disso, Jesus arrancou a iniciação dos templos, a portas fechadas, e jogou-a dentro dos corações;
era a universalização da "salvação" a todos os que QUISESSEM segui-Lo. Qualquer pessoa pode en-
contrar o caminho (cfr. "Eu sou o Caminho", João, 14:6), porque Ele corporificou os mistérios em Si
mesmo, divulgando-lhes os segredos através de Sua vida. Daí em diante, os homens não mais teriam
que procurar encontrar um protótipo divino, para a ele conformar-se: todos poderiam descobrir e unir-
se diretamente ao Logos que, através do Cristo, em Jesus se manifestara.
Observamos, pois, uma elevação geral de frequência vibratória, de tonus, em todo o processo iniciáti-
co dos mistérios.
E os Pais da Igreja - até o século 3.º o cristianismo foi "iniciático", embora depois perdesse o rumo
quando se tornou "dogmático” - compreenderam a realidade do mistério cristão, muito superior, espi-
ritualmente, aos anteriores: tornar o homem UM CRISTO, um ungido, um permeado da Divindade.
A ação divina do mistério, por exemplo, é assim descrita por Agostinho: "rendamos graças e alegremo-
nos, porque nos tornamos não apenas cristãos, mas cristos" (Tract. in Joanne, 21,8); e por Metódio de
Olímpio: "a comunidade (a ekklêsía) está grávida e em trabalho de parto, até que o Cristo tenha toma-
do forma em nós; até que o Cristo nasça em nós, para que cada um dos santos, por sua participação ao
Cristo, se torne o cristo" (Patrol. Graeca, vol. 18, ccl. 150) .
Temos que tornar-nos cristos, recebendo a última unção, conformando-nos com Ele em nosso próprio
ser, já que "a redenção tem que realizar-se EM NÓS" (O. Casel, o. c., pág. 29), porque "o único e ver-
dadeiro holocausto é o que o homem faz de si mesmo".
Cirilo de Jerusalém diz: "Já que entrastes em comunhão com o Cristo com razão sois chamados cris-
tos, isto é, ungidos" (Catechesis Mystagogicae, 3,1; Patrol. Graeca, ,01. 33, col. 1087).
Essa transformação, em que o homem recebe Deus e Nele se transmuda, torna-o membro vivo do
Cristo: "aos que O receberam, deu o poder de tornar-se Filhos de Deus" (João, 1:12).
Isso fez que Jesus - ensina-nos o Novo Testamento - que era "sacerdote da ordem de Melquisedec
(Heb. 5:6 e 7:17) chegasse, após sua encarnação e todos os passos iniciáticos que QUIS dar, chegasse
ao grau máximo de "pontífice da ordem de Melquisedec" (Heb. 5:10 e 6:20), para todo o planeta Terra.
CRISTO, portanto, é o mistério de Deus, o Senhor, o ápice da iniciação a experiência pessoal da Di-
vindade. através do santo ensino (hierôs lógos), que vem dos "deuses" (Espíritos Superiores), comuni-
cado ao místico. No cristianismo, os emissários ("apóstolos") receberam do Grande Hierofante Jesus
(o qual o recebeu do Pai, com Quem era UNO) a iniciação completa. Foi uma verdadeira "transmis-
são" (traditio, parádosis), apoiada na gnose: um despertar do Espírito que vive e experimenta a Ver-
dade, visando ao que diz Paulo: "admoestando todo homem e ensinando todo homem, em toda sabedo-
ria (sophía), para que apresentem todo homem perfeito (téleion, iniciado) em Cristo, para o que eu
também me esforço (agõnizómenos) segundo a ação dele (energeían autou), que age (energoumé-
nen) em mim, em força (en dynámei)". Col.1:28-29.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Em toda essa iniciação, além disso, precisamos não perder de vista o "enthousiasmós" (como era
chamado o "transe" místico entre os gregos) e que foi mesmo sentido pelos hebreus, sobretudo nas
"Escolas de Profetas" em que eles se iniciavam (profetas significa "médiuns"); mas há muito se havia
perdido esse "entusiasmo", por causa da frieza intelectual da interpretação literal das Escrituras pelos
Escribas.
Profeta, em hebraico, é NaVY', de raiz desconhecida, que o Rabino Meyer Sal ("Les Tables de la
Loi", éd. La Colombe, Paris, 1962, pág. 216/218) sugere ter sido a sigla das "Escolas de Profetas"
(escolas de iniciação, de que havia uma em Belém, de onde saiu David). Cada letra designaria um
setor de estudo: N (nun) seriam os sacerdotes (terapeutas do psicossoma), oradores, pensadores, filó-
sofos; V (beth) os iniciados nos segredos das construções dos templos ("maçons" ou pedreiros), ar-
quitetos, etc.; Y (yod) os "ativos", isto é, os dirigentes e políticos, os "profetas de ação"; (aleph), que
exprime "Planificação", os matemáticos, geômetras, astrônomos, etc.
Isso explica, em grande parte, porque os gregos e romanos aceitaram muito mais facilmente o cristia-
nismo, do que os judeus, que se limitavam a uma tradição que consistia na repetição literal decorada
dos ensinos dos professores, num esforço de memória que não chegava ao coração, e que não visavam
mais a qualquer experiência mística.

TEXTOS DO N.T.
O termo mystérion aparece várias vezes no Novo Testamento.
A - Nos Evangelhos, apenas num episódio, quando Jesus diz a Seus discípulos: "a vós é dado conhecer
os mistérios do reino de Deus" (Mat. 13:11; Marc. 4:11; Luc. 8:10).
B - Por Paulo em diversas epístolas:
Rom. 11:25 - "Não quero, irmãos, que ignoreis este mistério ... o endurecimento de Israel, até que ha-
jam entrado todos os gentios".
Rom.16:15 - "conforme a revelação do mistério oculto durante os eons temporais (terrenos) e agora
manifestados".
1.ª Cor. 2:1 – “quando fui ter convosco ... anunciando-vos o mistério de Deus".
1.ª Cor. 2:4-7 - "meu ensino (logos) e minha pregação não foram em palavras persuasivas, mas em
demonstração (apodeíxei) do pneúmatos e da dynámeôs, para que vossa fé não se fundamente na so-
phía dos homens, mas na dynámei de Deus. Mas falamos a sophia nos perfeitos (teleiois, iniciados),
porém não a sophia deste eon, que chega ao fim; mas falamos a sophia de Deus em mistério, a que
esteve oculta, a qual Deus antes dos eons determinou para nossa doutrina".
1.ª Cor. 4:1 - "assim considerem-nos os homens assistentes (hypêrétas) ecônomos (distribuidores, dis-
pensadores) dos mistérios de Deus".
1.ª Cor. 13:2 - "se eu tiver mediunidade (prophéteía) e conhecer todos os mistérios de toda a gnose, e
se tiver toda a fé até para transportar montanhas, mas não tiver amor (agápé), nada sou".
l.ª Cor. 14:2 - "quem fala em língua (estranha) não fala a homens, mas a Deus, pois ninguém o ouve,
mas em espírito fala mistérios".
1.ª Cor. 15:51 - "Atenção! Eu vos digo um mistério: nem todos dormiremos, mas todos seremos trans-
formados".
Ef. 1:9 - "tendo-nos feito conhecido o mistério de sua vontade"
Ef. 3:4 - "segundo me foi manifestado para vós, segundo a revelação que ele me fez conhecer o misté-
rio (como antes vos escrevi brevemente), pelo qual podeis perceber, lendo, minha compreensão no
mistério do Cristo".

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C. TORRES PASTORINO
Ef. 3:9 - "e iluminar a todos qual a dispensação (oikonomía) do mistério oculto desde os eons, em
Deus, que criou tudo".
Ef. 5:32 - "este mistério é grande: mas eu falo a respeito do Cristo e da ekklésia.
Ef. 9:19 - "(suplica) por mim, para que me possa ser dado o logos ao abrir minha boca para, em públi-
co, fazer conhecer o mistério da boa-nova".
Col. 1:24-27 - "agora alegro-me nas experimentações (Pathêmasin) sobre vós e completo o que falta
das pressões do Cristo em minha carne, sobre o corpo dele que é a ekklêsía, da qual me tornei servidor,
segundo a dispensação (oikonomía) de Deus, que me foi dada para vós, para plenificar o logos de
Deus, o mistério oculto nos eons e nas gerações, mas agora manifestado a seus santos (hagioi, inicia-
dos), a quem aprouve a Deus fazer conhecer a riqueza da doutrina (dóxês; ou "da substância") deste
mistério nas nações, que é CRISTO EM VÓS, esperança da doutrina (dóxês)".
Col. 2:2-3 - "para que sejam consolados seus corações, unificados em amor, para todas as riquezas da
plena convicção da compreensão, para a exata gnose (epígnôsin) do mistério de Deus (Cristo), no qual
estão ocultos todos os tesouros da sophía e da gnose".
Col. 4:3 - "orando ao mesmo tempo também por nós, para que Deus abra a porta do logos para falar o
mistério do Cristo, pelo qual estou em cadeias".
2.ª Tess. 2:7 - "pois agora já age o mistério da iniquidade, até que o que o mantém esteja fora do cami-
nho".
1.ª Tim. 3:9 - "(os servidores), conservando o mistério da fé em consciência pura".
1.ª Tim. 2:16 - "sem dúvida é grande o mistério da piedade (eusebeías)".
No Apocalipse (1:20; 10:7 e 17:5, 7) aparece quatro vezes a palavra, quando se revela ao vidente o
sentido do que fora dito .

CULTO CRISTÃO
Depois de tudo o que vimos, torna-se evidente que não foi o culto judaico que passou ao cristianismo
primitivo. Comparemos:
A luxuosa arquitetura suntuosa do Templo grandioso de Jerusalém, com altares maciços a escorrer o
sangue quente das vítimas; o cheiro acre da carne queimada dos holocaustos, a misturar-se com o odor
do incenso, sombreando com a fumaça espessa o interior repleto; em redor dos altares, em grande nú-
mero, os sacerdotes a acotovelar-se, munidos cada um de seu machado, que brandiam sem piedade na
matança dos animais que berravam, mugiam dolorosamente ou balavam tristemente; o coro a entoar
salmos e hinos a todo pulmão, para tentar superar a gritaria do povo e os pregões dos vendedores no
ádrio: assim se realizava o culto ao "Deus dos judeus".
Em contraste, no cristianismo nascente, nada disso havia: nem templo, nem altares, nem matanças;
modestas reuniões em casas de família, com alguns amigos; todos sentados em torno de mesa simples,
sobre a qual se via o pão humilde e copos com o vinho comum. Limitava-se o culto à prece, ao rece-
bimento de mensagens de espíritos, quando havia "profetas" na comunidade, ao ensino dos "emissári-
os", dos "mais velhos" ou dos "inspetores", e à ingestão do pão e do vinho, "em memória da última
ceia de Jesus". Era uma ceia que recebera o significativo nome de "amor" (ágape).
Nesse repasto residia a realização do supremo mistério cristão, bem aceito pelos gregos e romanos,
acostumados a ver e compreender a transmissão da vida divina, por meio de símbolos religiosos. Os
iniciados "pagãos" eram muito mais numerosos do que se possa hoje supor, e todos se sentiam mem-
bros do grande Kósmos, pois, como o diz Lucas, acreditavam que "todos os homens eram objeto da
benevolência de Deus" (Luc. 2:14).
Mas, ao difundir-se entre o grande número e com o passar dos tempos, tudo isso se foi enfraquecendo
e seguiu o mesmo caminho antes experimentado pelo judaísmo; a força mística, só atingida mais tarde

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SABEDORIA DO EVANGELHO

por alguns de seus expoentes, perdeu-se, e o cristianismo "foi incapaz - no dizer de O. Casel - de man-
ter-se na continuação, nesse nível pneumático" (o.c. pág. 305). A força da "tradição" humana, embora
condenada com veemência por Jesus (cfr. Mat. 15:1-11 e 16:5-12; e Marc. 7:1-16 e 8:14-11; veja
atrás), fez-se valer, ameaçando as instituições religiosas que colocam doutrinas humanas ao lado e até
acima dos preceitos divinos, dando mais importância às suas vaidosas criações. E D. Odon Casel la-
menta: "pode fazer-se a mesma observação na história da liturgia" (o.c., pág. 298). E, entristecido, as-
severa ainda: "Verificamos igualmente que a concepção cristã mais profunda foi, sob muitos aspectos,
preparada muito melhor pelo helenismo que pelo judaísmo. Lamentavelmente a teologia moderna ten-
de a aproximar-se de novo da concepção judaica de tradição, vendo nela, de fato, uma simples trans-
missão de conhecimento, enquanto a verdadeira traditio, apoiada na gnose, é um despertar do espírito
que VIVE e EXPERIMENTA a Verdade" (o. c., pág. 299).

OS SACRAMENTOS
O termo latino que traduz a palavra mystérion é sacramentum. Inicialmente conservou o mesmo
sentido, mas depois perdeu-os, para transformar-se em "sinal visível de uma ação espiritual invisível".
No entanto, o estabelecimento pelas primeiras comunidades cristãs dos "sacramentos” primitivos, per-
dura até hoje, embora tendo perdido o sentido simbólico inicial.
Com efeito, a sucessão dos "sacramentos" revela exatamente, no cristianismo, os mesmos passos vivi-
dos nos mistérios grego. Vejamos:
1- o MERGULHO (denominado em grego batismo), que era a penetração do catecúmeno em seu eu
interno. Simbolizava-se na desnudação ao pretendente, que largava todas as vestes e mergulhava
totalmente na água: renunciava de modo absoluto as posses (pompas) exteriores e aos próprios veí-
culos físicos, "vestes" do Espírito, e mergulhava na água, como se tivesse "morrido”, para fazer a
"catarse" (purificação) de todo o passado. Terminado o mergulho, não era mais o catecúmeno, o
profano. Cirilo de Jerusalém escreveu: "no batismo o catecúmeno tinha que ficar totalmente nu,
como Deus criou o primeiro Adão, e como morreu o segundo Adão na cruz" (Catechesis Mista-
gogicae, 2.2). Ao sair da água, recebia uma túnica branca: ingressava oficialmente na comunidade
(ekklêsía), e então passava a receber a segunda parte das instruções. Na vida interna, após o "mer-
gulho" no próprio íntimo, aguardava o segundo passo.
2- a CONFIRMAÇÃO, que interiormente era dada pela descida da "graça" da Força Divina, pela
"epifanía" (manifestação), em que o novo membro da ekklêsía se sentia "confirmado” no acerto de
sua busca. Entrando em si mesmo a "graça" responde ao apelo: "se alguém me ama, meu Pai o
amará, e NÓS viremos a ele e permaneceremos nele" (João, 14:23). O mesmo discípulo escreve em
sua epístola: "a Vida manifestou-se, e a vimos, e damos testemunho. e vos anunciamos a Vida
Imanente (ou a Vida do Novo Eon), que estava no Pai e nos foi manifestada" (l.ª João, 1:2).
3- a METÁNOIA (modernamente chamada "penitência") era então o terceiro passo. O aprendiz se
exercitava na modificação da mentalidade, subsequente ao primeiro contato que tinha tido com a
Divindade em si mesmo. Depois de "sentir" em si a força da Vida Divina, há maior compreensão;
os pensamentos sobem de nível; torna-se mais fácil e quase automático o discernimento (krísis)
entre certo e errado, bem e mal, e portanto a escolha do caminho certo. Essa metánoia é ajudada
pelos iniciados de graus mais elevados, que lhe explicam as leis de causa e efeito e outras.
4- a EUCARISTIA é o quarto passo, simbolizando por meio da ingestão do pão e do vinho, a união
com o Cristo. Quem mergulhou no íntimo, quem recebeu a confirmação da graça e modificou seu
modo de pensar, rapidamenle caminha para o encontro definitivo com o Mestre interno, o Cristo.
Passa a alimentar-se diretamente de seus ensinos, sem mais necessidade de intermediários: ali-
menta-se, nutre-se do próprio Cristo, bebe-Lhe as inspirações: "se não comeis a carne do Filho do
Homem e não bebeis seu sangue, não tendes a vida em vós. Quem saboreia minha carne e bebe
meu sangue tem a Vida Imanente, porque minha carne é verdadeiramente comida e meu sangue é

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C. TORRES PASTORINO
verdadeiramente bebida. Quem come minha carne e bebe o meu sangue, permanece em mim e eu
nele" (João, 6:53 ss).
5- MATRIMÔNIO é o resultado do encontro realizado no passo anterior: e o casamento, a FUSÃO, a
união entre a criatura e o Criador, entre o iniciado e Cristo: "esse mistério é grande, quero dizê-lo
em relação ao Cristo e à ekklêsia”, escreveu Paulo, quando falava do "matrimônio" (Ef. 5:32). E
aqueles que são profanos, que não têm essa união com o Cristo, mas antes se unem ao mundo e a
suas ilusões, são chamados "adúlteros" (cfr. vol. 2). E todos os místicos, unanimemente, comparam
a união mística com o Cristo ti uma união dos sexos no casamento.
6- a ORDEM é o passo seguinte. Conseguida a união mística a criatura recebe da Divindade a consa-
gração, ou melhor, a "sagração", o "sacerdócio" (sacer "sagrado", dos, dotis, "dote"), o "dote sa-
grado" na distribuição das graças o quinhão especial de deveres e obrigações para com o "rebanho"
que o cerca. No judaísmo, o sacerdote era o homem encarregado de sacrificar ritualmente os ani-
mais, de examinar as vítimas, de oferecer os holocaustos e de receber as oferendas dirigindo o
culto litúrgico. Mais tarde, entre os profanos sempre, passou a ser considerado o "intemediário"
entre o homem e o Deus "externo". Nessa oportunidade, surge no Espírito a "marca" indelével, o
selo (sphrágis) do Cristo, que jamais se apaga, por todas as vidas que porventura ainda tenha que
viver: a união com essa Força Cósmica, de fato, modifica até o âmago, muda a frequência vibrató-
ria, imprime novas características e a leva, quase sempre, ao supremo ponto, à Dor-Sacrifício-
Amor .
7- a EXTREMA UNÇÃO ("extrema" porque é o último passo, não porque deva ser dada apenas aos
moribundos) é a chave final, o último degrau, no qual o homem se torna "cristificado”, totalmente
ungido pela Divindade, tornando-se realmente um "cristo".
Que esses sacramentos existiram desde os primeiros tempos do cristianismo, não há dúvida. Mas que
não figuram nos Evangelhos, também é certo. A conclusão a tirar-se, é que todos eles foram comuni-
cados oralmente pela traditio ou transmissão de conhecimentos secretos. Depois na continuação, fo-
ram permanecendo os ritos externos e a fé num resultado interno espiritual, mas já não com o sentido
primitivo da iniciação, que acabamos de ver.
Após este escorço rápido, cremos que a afirmativa inicial se vê fortalecida e comprovada: realmente
Jesus fundou uma "ESCOLA INICIÁTICA", e a expressão "logos akoês" (ensino ouvido), como ou-
tras que ainda aparecerão, precisam ser explicadas à luz desse conhecimento.
* * *

Neste sentido que acabamos de estudar, compreendemos melhor o alcance profundo que tiveram as
palavras do Mestre, ao estabelecer as condições do discipulato.
Não podemos deixar de reconhecer que a interpretação dada a Suas palavras é verdadeira e real.
Mas há "mais alguma coisa" além daquilo.
Trata-se das condições exigidas para que um pretendente possa ser admitido na Escola Iniciática na
qualidade de DISCÍPULO. Não basta que seja BOM (justo) nem que possua qualidades psíquicas
(PROFETA). Não é suficiente um desejo: é mistér QUERER com vontade férrea, porque as provas a
que tem que submeter-se são duras e nem todos as suportam.
Para ingressar no caminho das iniciações (e observamos que Jesus levava para as provas apenas três,
dentre os doze: Pedro, Tiago e João) o discípulo terá que ser digno SEGUIDOR dos passos do Mes-
tre. Seguidor DE FATO, não de palavras. E para isso, precisará RENUNCIAR a tudo: dinheiro, bens,
família, parentesco, pais, filhos, cônjuges, empregos, e inclusive a si mesmo: à sua vontade, a seu in-
telecto, a seus conhecimentos do passado, a sua cultura, a suas emoções.
A mais, devia prontificar-se a passar pelas experiências e provações dolorosas, simbolizadas, nas
iniciações, pela CRUZ, a mais árdua de todas elas: o suportar com alegria a encarnação, o mergulho
pesado no escafandro da carne.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

E, enquanto carregava essa cruz, precisava ACOMPANHAR o Mestre, passo a passo, não apenas nos
caminhos do mundo, mas nos caminhos do Espírito, difíceis e cheios de dores, estreitos e ladeados de
espinhos, íngremes e calçados de pedras pontiagudas.
Não era só. E o que se acrescenta, de forma enigmática em outros planos, torna-se claro no terreno
dos mistérios iniciáticos, que existiam dos discípulos A MORTE À VIDA DO FÍSICO. Então compre-
endemos: quem tiver medo de arriscar-se, e quiser "preservar" ou "salvar" sua alma (isto é, sua vida
na matéria), esse a perderá, não só porque não receberá o grau a que aspira, como ainda porque, na
condição concreta de encarnado, talvez chegue a perder a vida física, arriscada na prova. O medo
não o deixará RESSUSCITAR, depois da morte aparente mas dolorosa, e seu espírito se verá envolvi-
do na conturbação espessa e dementada do plano astral, dos "infernos" (ou umbral) a que terá que
descer.
No entanto, aquele que intimorato e convicto da realidade, perder, sua alma, (isto é, "entregar" sua
vida do físico) à morte aparente, embora dolorosa, esse a encontrará ou a salvará, escapando das
injunções emotivas do astral, e será declarado APTO a receber o grau seguinte que ardentemente ele
deseja.
Que adianta, com efeito, a um homem que busca o Espírito, se ganhar o mundo inteiro, ao invés de
atingir a SABEDORIA que é seu ideal? Que existirá no mundo, que possa valer a GNOSE dos mistéri-
os, a SALVAÇÃO da alma, a LIBERTAÇÃO das encarnações tristes e cansativas?
Nos trabalhos iniciáticos, o itinerante ou peregrino encontrará o FILHO DO HOMEM na "glória" do
Pai, em sua própria "glória", na "glória" de Seus Santos Mensageiros. Estarão reunidos em Espírito,
num mesmo plano vibratório mental (dos sem-forma) os antigos Mestres da Sabedoria, Mensageiros
da Palavra Divina, Manifestantes da Luz, Irradiadores da Energia, Distribuidores do Som, Focos do
Amor.
Mas, nos "mistérios", há ocasiões em que os "iniciantes", também chamados mystos, precisam dar
testemunhos públicos de sua qualidade, sem dizerem que possuem essa qualidade. Então está dado o
aviso: se nessas oportunidades de "confissão aberta" o discípulo "se envergonhar" do Mestre, e por
causa de "respeitos humanos" não realizar o que deve, não se comportar como é da lei, nesses casos,
o Senhor dos Mistérios, o Filho do Homem, também se envergonhará dele, considerá-lo-á inepto, in-
capaz para receber a consagração; não mais o reconhecerá como discípulo seu. Tudo, portanto, de-
penderá de seu comportamento diante das provas árduas e cruentas a que terá que submeter-se, em
que sua própria vida física correrá risco.
Observe-se o que foi dito: "morrer" (teleutan) e "ser iniciado" (teleusthai) são verbos formados do
mesmo radical: tele, que significa FIM. Só quem chegar AO FIM, será considerado APTO ou ADEP-
TO (formado de AD = "para", e APTUM = "apto").
Nesse mesmo sentido entendemos o último versículo: alguns dos aqui presentes (não todos) consegui-
rão certamente finalizar o ciclo iniciático, podendo entrar no novo EON, no "reino dos céus", antes de
experimentar a morte física. Antes disso, eles descobrirão o Filho do Homem em si mesmos, com toda
a sua Dynamis, e então poderão dizer, como Paulo disse: “Combati o bom combate, terminei a car-
reira, mantive a fidelidade: já me está reservada a coroa da justiça, que o Senhor, justo juiz, me dará
naquele dia - e não só a mim, como a todos os que amaram sua manifestação" (2.ª Tim. 4:7-8).

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C. TORRES PASTORINO

A TRANSFIGURAÇÃO

Mat. 17:1-9 Marc. 9:2-8 Luc. 9:28-36

1. Seis dias depois, tomou 2. Seis dias depois tomou 28. E aconteceu que cerca de
Jesus consigo a Pedro, Tia- Jesus consigo a Pedro, Ti- oito dias depois desses ensi-
go e João seu irmão, e ele- ago e João e elevou-os à nos, tende tomado consigo
vou-os à parte a um alto parte, a sós, a um alto Pedro, João e Tiago. subiu
monte. monte. E foi transfigurado para orar.
diante deles.
2. E foi transfigurado diante 29. E aconteceu na que oração,
deles: seu rosto resplande- 3. E seu manto tornou-se a forma de seu rosto ficou
ceu como o sol, e suas ves- resplandecente e extre- diferente e as roupas dele
tes tornaram-se brancas mamente branco, como brancas e relampejantes.
como a luz. neve, qual nenhum lavan- 30. E eis que dois homens con-
deiro na terra poderia al-
3. E eis que foram vistos Moi- versavam com ele, os quais
vejar.
sés e Elias conversando eram Moisés e Elias,
com ele. 4. E foram vistos Elias e 31. que apareceram em subs-
Moisés, e estavam conver-
4. Então Pedro disse a Jesus: tância e discutiam sobre sua
sando com Jesus.
"Senhor, é bom estarmos saída, que ele estava para
aqui; se queres, farei aqui 5. Então Pedro disse a Jesus: realizar em Jerusalém.
três tendas; para ti uma, "Rabi, é bom estarmos 32. Pedra e seus companheiros
para Moisés uma e uma aqui: façamos três tendas, estavam oprimidos de sono,
para Elias!". uma para ti, uma para mas conservando-se desper-
Moisés e uma para Elias".
5. Falava ele ainda, quando tos, viram sua substância e
uma nuvem de luz os en- 6. porque não sabia o que os dois homens ao lado dele.
volveu e da nuvem saiu havia de dizer, pois ti- 33. Ao afastarem-se estes de
uma voz dizendo: "Este é nham ficado aterroriza- Jesus, disse-lhe Pedro:
meu Filho, o Amado, que dos. "Mestre, é bom estarmos
me satisfaz: ouvi-o". 7. E surgiu uma nuvem en- aqui. Façamos três tendas,
6. Ouvindo-a, os discípulos volvendo-os, e da nuvem uma para ti, uma para Moi-
caíram com a face por ter- veio uma voz: "Este é meu sés e uma para Elias", não
ra e tiveram muito medo. Filho, o Amado: ouvi-o". sabendo o que dizia.
7. aproximando-se Jesus, to- 8. E eles, olhando de repente 34. Enquanto assim falava, sur-
cou neles e disse: "levantai- em redor, não viram mais giu uma nuvem que os en-
vos e não temais". ninguém, senão só Jesus volvia, e aterrorizaram-se
com eles. quando entraram na nuvem.
8. Erguendo eles os olhos a
ninguém mais viram, senão 9. Enquanto desciam do 35. E da nuvem saiu uma voz,
só a Jesus. monte, ordenou-lhes que dizendo: “Este é meu Filho,
não contassem a ninguém o Amado, ouvi-o".
9. Enquanto desciam do mon-
o que tinham visto, senão 36. Tendo cessado a voz, foi
te, ordenou-lhes Jesus di-
quando o Filho do Homem
zendo: "A ninguém conteis achado Jesus só. Eles se ca-
se tivesse levantado dentre
esta visão, até que o Filho laram e, naqueles dias, a
os mortos.
do Homem se tenha levan- ninguém contaram coisa al-
tado dos mortos". guma do que haviam visto.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Interessante observar o cuidado dos três evangelistas, em relacionar o episódio da chamada "Transfigu-
ração" com a "Confissão de Pedro" ou, talvez melhor, com os ensinos a respeito do Discipulato (cfr.
Lucas).
Mateus e Marcos precisam a data, assinalando que o fato ocorreu exatamente SEIS DIAS depois, ao
passo que Lucas diz mais displicentemente, "cerca de oito dias". Como nenhum dos narradores de-
monstra preocupações cronológicas em seus Evangelhos, chama nossa atenção esse pormenor. Como
também somos alerta dos pelo fato estranho de João, testemunha ocular do invulgar acontecimento, tê-
lo silenciado totalmente em suas obras, embora nos tenha ficado o testemunho de Pedro (2.ª Pe. 1:17-
19).
A narrativa dos três é bastante semelhante, embora Lucas seja o único a tocar em três pontos: a oração
de Jesus, o sono dos discípulos, e o assunto conversado com os desencarnados.
Começa a narrativa dos três, dizendo que Jesus leva ou "toma consigo” (paralambánai) Pedro, Tiago e
João, e os leva "à parte". Essa expressão paralambánai kat'idían é de cunho clássico (cfr. Políbio,
4.84.8: Plutarco. Morales, 120 e; Diodoro de Sicília, 1 .21).
Os três discípulos que acompanharam Jesus, foram por Ele escolhidos em várias circunstâncias (cfr.
Mat. 26:37; Marc. 5:37; 14:33; Luc. 8:51), tendo sido citados por Paulo (Gál. 2:9) como "as colunas da
comunidade". Pedro havia revelado a individualidade de Jesus pouco antes, e fora o primeiro discípulo
que com João se afastara do Batista para seguir Jesus; João, o "discípulo a quem Jesus amava" (cfr.
João, 13:23; 19:26; 21:20) e talvez mesmo sobrinho carnal de Jesus (cfr. vol. 3); Tiago, irmão de João,
foi decapitado em Jerusalém no ano 44 (At. 12:2), tendo sido o primeiro dos discípulos, escolhidos
como emissários, que testemunhou com seu sangue a Verdade dos ensinos de Jesus.
Com os três Jesus "subiu ao monte", com artigo definirlo (Lucas), ou "os ELEVOU a um alto monte" .
Mas não se identifica qual o monte. Surgiu, então, a dúvida entre os exegetas: será o Hermon ou o Ta-
bor? O Salmo diz "que o Tabor e o Hermon se alegram em Teu Nome" (89:12) ...
Alguns opinam pelo Hermon, a 2.793 m de altura, perto do local da "confissão de Pedro", Cesaréia de
Filipe. Objeta-se, todavia, que é recoberto de neve perpétua e que, situado em região pagã, dificilmente
seria encontrada, no dia seguinte, no sopé, a multidão a esperá-lo, enquanto discutia com os demais
discípulos, que haviam permanecido na planície, sobre a dificuldade que tinham de curar o jovem epi-
léptico.
Outros preferem o Tabor. Além dessas razões, alegam: que "seis dias" são tempo suficiente para che-
gar com calma de volta à Galiléia. O Tabor é um tronco de cone, com um platô no alto de cerca de 1
km de circuito; fica a sudeste de Nazaré situado no final do planalto de Esdrelon, que ele domina a 320
m de altura (562 m acima do nível do mar e 800 m acima do Lago de Tiberíades). Tem a seu favor a
tradição desde o 4.º século, atestada por Cirilo de Jerusalém (Catech. 12:16, in Patrol. Graeca, vol. 33,
col. 744) e por Jerônimo que, ao escrever sobre Paula, afirmava que ela scandebat montem Thabor, in
quo transfiguratus est Dominus (Ep. 108.13, in Patrol. Lat. vol. 20, cal. 889, e Ep. 46,12, ibidem, col.
491), isto é, "subia ao monte Tabor, onde o Senhor se transfigurou".
Objetam alguns que lá devia haver um forte, de que fala Flávio JosefO (Bel1. Jud. 2-.20.6 e 4.1.1.8),
mas isso só ocorreu 36 anos depois, na guerra contra Vespasiano.
Do alto do Tabor, fértil em árvores odoríferas, contempla-se todo o campo do ministério de Jesus: Ca-
ná, Naim, Cafamaum, uma parte do Lego de Tiberíades, e, 8 km a noroeste, Nazaré.
Chegam ao cume, Jesus se põe a orar (Lucas) e, durante a prece, "se transfigura". Mateus e Marcos não
temem usar metemorphôthê, "metamorfoseou-se", que exprime uma transformação com mudança de
forma exterior. Lucas evita esse verbo, preferindo metaschêmatízein ("revestir outra forma"), talvez
para que os pagãos, a quem se dirigia, não supussessem uma das metamorfoses da mitologia.
Essa transformação se operou no rosto, que tomou "outra forma"; embora não se diga qual, a informa-
ção de Mateus é que "resplandecia como o sol". Também as vestes se tornaram "brancas como a luz"

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C. TORRES PASTORINO
(Mat.) ou "brancas qual nenhum lavandeiro seria capaz de alvejar (Marc.) ou "brancas e relampejan-
tes" (Lucas).

Figura “TRANSFIGURAÇÃO”
Mateus e Marcos falam em "visão" (ôphthê, aoristo passivo singular, "foi visto"), enquanto Lucas ape-
nas anota que "dois homens", que eram Moisés e Elias, conversavam com Ele.
Moisés, o libertador e legislador dos israelitas, servo obediente e fiel de YHWH, e Elias, o mais valo-
roso e adiantado intérprete, em sua mediunidade privilegiada, do pensamento de YHWH. Agora vi-
nham ambos encontrar, aniquilado sob as vestes da carne, aquele mesmo YHWH, o "seu DEUS", com
o simbólico nome de JESUS: traziam-Lhe a garantia da amizade e a fidelidade de seus serviços, so-
bretudo nos momentos difíceis: dos grandes sofrimentos que se aproximavam. Lucas esclarece que a
conversa girou exatamente em torno do "êxodo", ou seja, da saída de Jesus do mundo físico, que se
realizaria em Jerusalém dentro de pouco tempo, através da porta estreita de incalculáveis dores morais
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SABEDORIA DO EVANGELHO

e físicas. Embora desencarnados, continuavam servos fiéis de "seu Deus". Digno de nota o emprego
desse mesmo termo "êxodo" por parte de Pedro (2.ª Pe. 1:15), quando se refere à sua próxima desen-
carnação. E talvez recordando-se dessa palavra, Lucas usa o vocábulo oposto (eísodos) "entrada" (At.
13:24) ao referir-se à chegada de Jesus no planeta em corpo físico.
Como vemos, trata se de verdadeira e legítima "sessão espírita", realizada por Jesus em plena natureza,
a céu aberto, confirmando que as proibições, formuladas pelo próprio Moisés ali presente, não se refe-
riam a esse tipo de sessões, mas apenas a "consultar" os espíritos dos mortos sobre problemas materiais
(cfr. Lev. 19:31 e Deut. 18:11), em situações em que só se manifestam espíritos de pouca ou nenhuma
evolução. Tanto assim que era condenado o médium "presunçoso" que pretendesse falar em nome de
YHWH, sem ser verdade (mistificação) e o que servisse de instrumento a "outros" espíritos (Deut.
18:20). Mas conversar com entidades evoluídas, jamais poderia ter sido condenado por Moisés que
assiduamente conversava com YHWH e que, agora mesmo, o estava fazendo, embora em posição in-
vertida.
Quanto à presença de Elias ,que Jesus afirmou categoricamente haver reencarnado na pessoa de João
Batista, (cfr. Mat. 11:14) observemos que o episódio da "transfiguração" se passa após a decapitação
do Batista (cfr.Mat. 14:10 e Marc. 6:27; vol. 3). Por que, então, teria o precursor tomado a forma de
uma encarnação anterior? Que isso é possível, não há dúvida. Mas qual a razão e qual o objetivo? Só
entrevemos uma resposta: recordar o tempo em que, sob as vestes carnais de Elias, esse Espírito fiel e
ardoroso servira de médium e intérprete ao próprio Jesus, que então respondia ao nome de YHWH.
Outra indagação fazem os hermeneutas: como teriam os discípulos reconhecido Moisés, que viveu
1500 anos antes e Elias que viveu 900 anos antes, se não havia nenhum retrato deles coisa terminante-
mente proibida (cfr.Êx. 20:4; Lev. 26:1; Deut. 4:16, 23 e 5:8)? No entanto, ninguém afirmou que os
discípulos os "reconheceram". Lucas, em sua frase informativa, diz que "viram dois homens"; depois
esclarece por conta própria: "que eram Moisés e Elias". Pode perfeitamente deduzir-se daí que o sou-
beram por informação de Jesus (que os conhecia muito bem, como YHWH que era). Essa dedução
tanto pode ser verídica que, logo depois, ao descerem do monte os quatro (vê-lo-emos no próximo ca-
pítulo) a conversa girou precisamente sobre a vinda de Elias antes do ministério de Jesus. Como pode-
ria vir, se ainda estava "no espaço"? E o Mestre lhes explica o processo da reencarnação.
Também em Lucas encontramos outra indicação preciosa, que talvez lance nova luz sobre o episódio.
Diz ele que "os discípulos estavam oprimidos pelo sono, mas conservando-se plenamente despertos"
(tradução de diagrêgorêsantes, particípio aoristo de diagrêgoréô, que é um verbo derivado de egrêgo-
ra, do verbo egeírô, "despertar"). Quiçá explique isso que o episódio se passou no plano espiritual (as-
tral, ou talvez mental). Eles estavam em sono, ou seja, fisicamente em transe hipnótico (mediúnico),
com o corpo adormecido; mas se mantinham plenamente despertos, isto é perfeitamente conscientes
nos planos menos densos (astral ou mental); então, o que de fato eles viram, não foi o corpo físico de
Jesus modificado, mas sim a forma espiritual do Mestre e, a seu lado, as formas espirituais de Moisés e
Elias. Inegavelmente a frase de Lucas sugere pelo menos a possibilidade dessa interpretação. Mais
tarde, na agonia, é também Lucas que chama a atenção sobre o sono desses mesmos três discípulos
(Luc. 22:45).
Mateus e Marcos parecem indicar que Pedro fala ainda na presença de Moisés e Elias, mas Lucas es-
clarece que ele só se manifestou depois que eles desapareceram. Impulsivo e extrovertido como era,
não conseguiu ficar calado. E sem saber o que dizer, propõe construir três tendas, uma para cada um
cios visitantes e uma para Jesus.
Interessante observar que em Marcos encontramos o vocábulo que deve ter sido usado por Pedro "Ra-
bbi", enquanto Mateus o traduz para "Senhor" (kyrie) e Lucas para "Mestre" (epistata, ver vol. 2). Per-
gunta-se qual a razão das tendas. Talvez porque já era noite? Mas quantas vezes dormira Jesus ao re-
lento, sem que Pedro se preocupasse ... Alguns hermeneutas indagam se a expressão "construir tendas"
não terá, por eufemismo, significado apenas "permanecer lá", isto é, não mais voltar à planície. E a
hipótese é bastante lógica e forte, digna de ser aceita.

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Pedro não obteve resposta. Estava ainda a falar quando os envolveu (literalmente "cobriu") a todos
uma nuvem (Mat.: de luz), e os três jogaram-se de rosto ao chão, aterrorizados. Na escritura, a nuvem
era um sinal da presença de YHWH (cfr. Êx. 16:10; 19:9,16; 24:15,16; 33:9-11; Lev.16:2; Núm.
11:25, etc.). Daí pode surgir outra interpretação, que contradiz a primeira hipótese, de haver-se passa-
do a cena no plano espiritual. A nuvem poderia ser o ectoplasma que tivesse servido para materializa-
ção dos espíritos e que, ao desfazer-se a forma, tomava aspecto de nuvem difusa, até o ectoplasma ser
absorvido pelo ar. O mesmo fenômeno, aliás também atestado por Lucas apenas (At. 1:9) se observou
ao dispersar-se o ectoplasma utilizado para a materialização do corpo astral de Jesus após a ressurrei-
ção; nessa circunstância, dois outros espíritos aproveitaram o ectoplasma para materializar-se e dizer
aos discípulos boquiabertos, que fossem para seus afazeres; e logo após desaparecerem. Também aqui
parece coincidir o aparecimento da nuvem com o desaparecimento dos dois espíritos.
Quando a nuvem os cobriu, foi ouvida uma voz (fenômeno comum nas sessões de materialização, e
conhecido com o nome de "voz direta"), que proferiu as mesmas palavras ouvidas por ocasião do
"Mergulho de Jesus" (Mat.13:17; Marc. 1:11; Luc. 3:22; vol. 1): "este é meu filho, o Amado, que me
alegra"; e os três evangelistas acrescentam unanimemente: "ouvi-o". No entanto, Pedro. testemunha
ocular do fato, repete a frase sem o imperativo final: "recebendo de Deus Pai honra e glória, uma voz
assim veio a Ele da magnífica glória: este é meu Filho, o Amado, que me satisfaz. E essa voz que veio
do céu, nós a ouvimos, quando estávamos com Ele no monte santo"(2.ª Pe.1:17-18).
Após a frase, que Marcos, com um hápax (exápina) diz "ter cessado", tudo voltou à normalidade. Mas,
segundo Mateus, eles permaneceram amedrontados. Foi quando Jesus, tocando os, mandou-os levan-
tar-se, dizendo que não tivessem medo. Levantando-se, eles viram apenas Jesus, já em seu estado físi-
co normal.
Termina Lucas informando que tal impressão causou o fato, que os três nada disseram a ninguém "por
aqueles dias". Esse silêncio aparece como uma ordem dada por Jesus aos três, "ao começarem a descer
o monte", fixando-se o prazo: "até que o Filho do Homem se levante dentre os mortos" (ou "seja res-
suscitado").

Procuremos penetrar, agora, o sentido profundo do episódio narrado pelos três sinópticos.
Esclareçamos, de início, que as instruções de João o evangelista, quanto à iniciação ao adeptado e
sua conquista, seguem caminho diferente dos três outros evangelistas, e por isso essa passagem foi
substituída por outra: as bodas de Caná (cfr . vol. 1). Daí não haver tocado no assunto. Mas outras
razões podem ser dadas: tendo experimentado esse esponsalício pessoalmente, não quis divulgá-lo
por discrição. Ou também: tendo sido narrado pelos três, inútil seria revivê-lo depois que estava di-
vulgado havia pelo menos 30 anos.

Examinemos rapidamente os dados fornecidos pelos textos.


Mateus e Marcos assinalam, com precisão que a cena se deu SEIS dias depois. Não nos interessa sa-
ber depois "de que"; e sim assinalar que o fato se passou no SÉTIMO dia. Alertados, pois, para isso
(que Lucas, mais intelectualizado por formação, interpretou como pura indicação cronológica e re-
gistrou com imprecisão: cerca de oito dias), imediatamente compreendemos que se trata, mais uma
vez, do último passo sério de uma iniciação esotérica. Daí a necessidade de prestar toda a atenção
aos pormenores, ao que está escrito, ou ao que está sugerido, embora não dito, às ilações silenciosas
de um texto que, evidentemente, tinha que aparecer disfarçado, indicando apenas, despretensiosa-
mente, uma ocorrência no mundo físico.
Antes de entrarmos nos comentários "místicos", observemos o episódio à luz dos mistérios iniciáticos
o Jesus passara, em sua peregrinação terrena, pelos três primeiros graus: o MERGULHO nas águas
profundas do coração,. a CONFIRMAÇÃO, obtida com a Voz ouvida logo após o mergulho, comple-
tando assim os mistérios menores. E recebera bem a "prova" do terceiro grau, as "tentações", vencen-
do-as em tempo curto e de maneira brilhante. Nem mesmo necessitara propriamente de uma metánoia

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("modificação mental" ou, como prefere H. Rohden, "transmentação"): sua mente já estava firmada
no Bem havia milênios; submeteu-se às provas por espontânea vontade (tal como ocorrera com o
"mergulho" diante do Batista, Mat. 3:14-15), para exemplificar, deixando-nos o modelo vivo, que te-
mos que seguir.
Superadas, pois, as tentações (3.° grau) - e portanto vencida e domada totalmente a personagem tran-
sitória com sua ignorância divisionista, transbordante de egoísmo, vaidade e ambição - podia preten-
der o ingresso no 4.° grau iniciático, nos mistérios maiores.
A cerimônia, realizada diante da Força Divina, conscientemente sentida dentro de cada um, mas tam-
bém transcendente em a Natureza, dividia-se em duas partes.
A primeira partia do candidato (termo que significa "vestido de branco”; cfr. Marcos: "branco qual
nenhum lavandeiro na Terra é capaz de alvejar"); consistia na "Ação de Graças" (em grego eucharis-
tía). O homem eleva suas vibrações ao máximo que lhe é possível, a fim de, sintonizando com Deus,
agradecer o suprimento de Força (dynamis) e de Energia (érgon) que recebeu. Com isso, seu Espírito
caminha ao encontro do Pai.
A essa Ação de Graças comparecem os "padrinhos" do novo ser que "inicia" a estrada longa e árdua
do adeptado: dois "iniciados maiores", que se responsabilizam por ele, tornando-se fiadores de que
realmente ele é digno de receber a Luz o Alto, e de que está APTO ao passo de suma gravidade que
pretende dar. Ninguém melhor que Moisés e Elias para apresentar-se fiadores da pureza e santidade
de YHWH, diante da Grande Ordem Mística e de seu Chefe, o Rei da Justiça e da Paz, MELQUISE-
DEC! E lá estão eles, revestidos de luz, embora suas luzes fossem ainda inferiores às daquele que,
para eles, fora "o seu Deus"!
Nesse encontro magnífico, o entretenimento permanecia na mesma elevação espiritual, e os assuntos
tratados referiam-se exatamente aos passos seguintes: o quinto e as dores e a paixão indispensáveis
para o sexto; conversavam a respeito da próxima "saída" que, dentro em pouco, se realizaria em Je-
rusalém. Nesse alto nível de frequências vibratórias, puramente espirituais, em que o candidato acei-
ta, de pleno grado e com alegria, tudo o que os "padrinhos" lhe apresentam como necessário à pro-
moção, aguardava-se a aprovação do Alto, a poderosa manifestação (em grego epiphanía) que devia
chegar do VERBO, através da palavra autorizada do Hierofante Máximo, declarando o candidato
aceito no quarto grau, que lhe garantia o título oficial de "Iniciado". E Melquisedec mais uma vez faz
soar SUA VOZ: "este é meu Filho, o Amado". Através do Sumo Sacerdote do Deus Altíssimo (Heb.
7:1) soava o SOM divino, e ao mesmo tempo vinha a autorização plena e total, para que pudesse EN-
SINAR os grandes mistérios àqueles que deles fossem dignos: OUVI-O!
Os três discípulos que ali haviam sido convocados testemunharam espiritualmente a cerimônia porque,
em existências precedentes, já haviam passado por esse grau, embora em nível inferior, e estavam,
agora, repetindo mais uma vez os sete passos, num nível mais elevado. Explicamo-nos:
Realmente sabemos haver diversos planos em cada estágio evolutivo. No estágio hominal (como em
tudo neste planeta), os planos são estruturados em setenários. Então, cada ser terá que submeter-se
aos sete passos iniciáticos em cada um dos sete planos. O Homem atingirá o grau definitivo de "ilu-
minado" após os três primeiros cursos de iniciação em três vidas diferentes, embora, talvez não suces-
sivas. Ao completar o quarto curso, terá então o título definitivo de "iniciado", quando já se firmou na
estrada certa. Depois do quinto curso, poderá receber o grau de "adepto". Após o sexto curso merece-
rá o mestrado supremo, será o "Hierofante". Só após o sétimo e último curso, será legitimamente
chamado "O CRISTO". E foi isso que precisamente ocorreu com Jesus que, de direito, foi e é denomi-
nado Jesus, O CRISTO!
Só alguém que tenha um grau maior ou igual, poderá conceder a uma criatura os títulos legítimos.
Por isso, na Terra, só o Rei da Justiça e da Paz, o CRISTO MELQUISEDEC, poderia ter conferido a
Jesus essa prerrogativa. E por essa razão foi escrito que Jesus, "sacerdote da Ordem de Melquisedec"
(Heb. 5:6), "entrou, como precursor, por nós, quando se tornou Sumo Sacerdote, para sempre, da
Ordem de Melquisedec" (Heb. 6:20).

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Enquanto Jesus conquistava o quarto grau do sétimo plano, os três discípulos presentes eram recebi-
dos e confirmados no mesmo quarto grau, mas de um plano inferior, que ousamos sugerir se tratava
do quarto plano, pois se estavam preparando para o grau de "Iniciados", que realmente demonstra-
ram ser, pelo futuro de suas vidas físicas, naquela encarnação.
Olhando-se as coisas sob esta realidade que acabamos de expor, é que verificamos quanta ilusão
anda pelo mundo, no coração daqueles que se intitulam "iniciados" logo nos primeiros passos do ca-
minho do Espírito; e sobretudo daqueles que julgam poder comprar uma palavra mágica que os torna
instantânea e milagrosamente "iniciados" da noite para o dia ...
Mas olhemos, agora o texto sob outro prisma. Estudemo-lo em sua interpretação mística do mundo
mental, dentro do coração, na conquista do "reino dos céus".
Observemos que Jesus (a Individualidade) toma consigo PEDRO (a emoção, o corpo astral); TIAGO
(corruptela portuguesa de Jacó - veja vol. 2 - com o sentido "o que suplanta", e que representa aqui o
intelecto, que suplanta toda a animalidade, quando se desenvolve no plano hominal) e JOÃO (o inte-
lecto já iluminado, cujo nome exprime "o dom de Deus" ou "a graça divina", cfr. vol. 1).
Por aí se compreende a razão da escolha. Qualquer passo que pretenda ser sério e construtivo espi-
ritualmente, na individualidade, tem que contar, na personalidade, com esses três fundamentos: as
emoções, o intelecto que suplantou a animalidade e o intelecto já iluminado pela intuição; por isso os
evangelistas nos mostram Jesus a chamar, nos casos mais importantes, os três nomes-chaves: Pedro,
Tiago e João.
Outra observação importante é o termo empregado por Mateus e Marcos (Lucas emprega anébê, "su-
biu) e que nos elucida com exatidão: anaphérei, ou seja, ELEVOU-OS. Com isso percebemos que hou-
ve uma elevação de vibrações, e bastante forte: ao monte alto (Mateus e Marcos). Lógico que não era
preciso dar o nome do monte: foi ao Espírito, à mente, ao coração, que Jesus os "elevou", que a indi-
vidualidade fez ascender a personalidade, subindo com Ela. E não deixa de salientar: "à parte", sozi-
nhos, deixando na planície, ao sopé do monte, os demais discípulos, ou seja, os veículos inferiores.
Lucas, bem avisado, anota que os discípulos ficaram "oprimidos pelo sono" (hêsan bebaryménoi hyp-
nôi). No entanto, pode acrescentar que, apesar disso, se conservavam “plenamente despertos", isto é,
numa superconsciência espiritual ativíssima, fora do corpo físico (desdobrados).
Passados os veículos superiores para o plano mental (mergulhados no coração), puderem observar
aquilo que todos os grandes místicos atestaram sem discrepância, no oriente e no ocidente, em qual-
quer época: a percepção de uma luz intensíssima, que só poderia ser comparada, como o foi, ao SOL
e à própria LUZ. Estavam os veículos em contato com o Eu Interno, com o CRISTO, com o Espírito
em todo o seu resplendor relampejante: Deus é LUZ: mergulhar em Deus é mergulhar na LUZ.
Aí, nessa fulguração supernatural, observaram os três planos da individualidade, a tríade superior: a
Centelha divina do Sol imortal, a partícula da Luz Incriada, representada por Jesus, pelo Cristo Cós-
mico mergulhado no ser; viram a Mente Criadora, que eles personalizaram em Moisés, criador da
legislação para a personalidade; e o Espírito Individualizado, que o participante da experiência mís-
tica representa por Elias (cujo nome significa "Deus é meu Senhor"); Elias é o Espírito mais típico em
sua ação espiritual, no Antigo Testamento. Aparece repentinamente nos livros históricos, sem filiação
nem tradição, e também faz sua partida estranhamente num carro de fogo, como se se tratasse de al-
guém que não nasceu nem morreu ou que aqui tivesse vindo e ido proveniente de outro planeta. Tal
como o Espírito imortal que, proveniente de uma individualização do Pensamento Universal, não co-
nhece seu princípio nem jamais finalizará sua ascensão.
Aí temos, portanto, mais um exemplo vivo e palpitante, mais uma lição maravilhosamente exposta na
prática, de um dos processos da unificação da personagem humana, em sua parte mais elevada, com a
individualidade divina. A personagem descobre, nesse Encontro acima dos planos comuns, no nível
altíssimo (alto monte) do mental, que seu verdadeiro EU tem três aspectos distintos, embora constitu-
am um só princípio: 1.º o Cristo Cósmico, a Partícula divina; 2.º a Mente criadora (nóus) simbolizada
em Moisés; 3.º o Espírito individualizado, do qual Elias serviu de símbolo. Esses três aspectos reú-
nem-se numa única individualidade, com o sagrado nome de JESUS.

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Daí a metamorfose que eles dizem que Jesus sofreu "no rosto": não era mais aquele Jesus do corpo
físico, mas sim o JESUS-INDIVIDUALlDADE, ali observado nas três faces: Jesus o CRISTO, Moisés
a Mente, Elias o Espírito.
O episódio da "transfiguração" torna-se, por tudo isso, um dos pilares fundamentais da mística cristã,
uma das provas basilares da realidade do mundo espiritual que somos nós, esse microcosmo que é a
redução finita de um macrocosmo infinito, incompreensível ao nosso intelecto personalístico; esse
minuto-segundo, ponto físico euclidiano, que é uma projeção descritiva da eternidade, inconcebível ao
nosso cérebro físico.
Lição perfeita em sua execução, revestida de impecável didática para quem olha e vê.
Dos veículos presentes ao excelso acontecimento, só as emoções se descontrolam. A parte puramente
hominal do intelecto e a parte super-hominal do intelecto-iluminado, receberam a lição e silenciaram
respeitosamente, absorvendo o ensino (o Lógos) e transmudando-se no Homem Novo que ali surge, no
Super-Homem que naquele instante nasce para a Vida imanente. Mas as emoções se comovem pro-
fundamente, a ponto de não saber o que fazer: e nessa comoção, agitando-se, fazem o cenário desapa-
recer, diluem a visão, embora propondo permanecer indefinidamente nesse estado samádico, nesse
êxtase supremo. Mas de qualquer forma, foi exteriorizado um "desejo"; mesmo sendo sublime, mesmo
revelando a decisão de anular-se para permanecer naquela vibração puríssima, a emoção revolveu as
águas cristalinas que espelhavam o céu na terra, e a descida foi perturbadora. Os veículos se aterro-
rizaram na queda de vibrações e caíram "prostrados com o rosto por terra", sem mais coragem de
fitar a amplidão infinita.
Após essa revelação magnífica, tudo começa a voltar à normalidade, descendo os veículos espirituais
ao corpo denso, e nele mergulhando como alguém que ao descer de um céu límpido e diáfano, pene-
trasse numa nuvem grosseira de materialidade. A "nuvem" da matéria toca-lhes a visão divina emba-
ça-lhes os olhos espirituais, diminui-lhes a agudeza perceptiva da superconsciência.
Surge ainda, no entanto, a afirmação espiritual do Verbo (Som, Pai), proclamando a individualidade,
o Espírito individualizado, o CRISTO, como o Filho Amado, "que lhe proporciona alegria": é a decla-
ração de Amor do Amante ao Amado, na união profunda de dois-em-um, no amplexo sublime do Es-
ponsalício Místico. Nada mais natural que traduzir por palavras o ímpeto amoroso do Amante, porque
o Amante é exatamente A PALAVRA, o VERBO, o LOGOS, o SOM Incriado, que tudo cria, sustenta e
conserva com seu Amor-Ação Ativo e criador de PAI, permanentemente em função fecundadora. E,
sendo PAI, nada mais natural que declarar que o Cristo-é "MEU FILHO". Também é óbvio que acon-
selhe aos veículos todos que O ouçam, seguindo-Lhe os ensinos e as inspirações.
Ao sentirem o impacto do natural peso mundo das células, ao penetrarem no mundo das formas, os
veículos se oprimem, se amedrontam, e caem em quase desânimo, tristeza e saudade.
Mais uma vez a individualidade "tocando-os", fá-los levantar-se para reanimá-los aos embates físicos.
E eles vêem "apenas Jesus", apenas a individualidade despida da glória, em seu aspecto mais comum.
Não deixa esta, todavia, ao "descer do monte", ou seja, ao penetrar novamente na personagem terre-
na, de recomendar que silenciem o acontecimento. Os que realmente se amam, a ninguém revelam
seus íntimos contatos amorosos: é o segredo da câmara nupcial que se leva ao túmulo. Assim, a per-
sonalidade deverá manter secretos esses encontros místicos, essas experiências indizíveis (2.ª Cor.
12:4). Sobretudo àqueles que não tiveram a experiência, aos que vivem NA personagem apenas, nada
deverá jamais ser revelado: só poderá tratar-se desses raptos, desse Mergulho, com aqueles que já os
VIVERAM, isto é, só quando o FILHO do Homem (ou o Super-Homem) tiver sido levantado da morte,
do sepulcro da personagem física terrena, e definitivamente ingressado no "reino dos céus", só então
será lícito condividir as experiências sublimes da unificação com o Cristo-Deus.
Mais uma prova de que se tratava realmente de um rito iniciático dos mistérios, é o silêncio imposto, o
segredo que Jesus exige dos que a ele assistiram. Todas as cerimônias dos mistérios eram secretíssi-
mas e ouvidos profanos delas não podiam ouvir falar. Nenhum dos escritores antigos que a elas assis-
tiu as reproduz em suas obras. Mais tarde, depois que todos os passos fossem dados, poderia o fato
ser divulgado, mas apenas como "um episódio" ocorrido no mundo físico, e não como o acesso a um

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grau iniciático, não como a conquista de um nível espiritual superior na escala dos Mistérios divinos.
Essa interpretação só poderia vir à luz no fim do ciclo zodiacal de Pisces (trevas), no alvorecer do
signo do Aquário, quando tudo o que é oculto virá à luz, e os segredos celestiais jorrarão torrencial-
mente do Alto, para dessedentar os sequiosos de Espírito.
* * *
A "transfiguração" de Jesus é classificada com o termo metamorfose, típica dos mistérios iniciáticos
gregos, fundamento da Mitologia. Muitas dessas metamorfoses são narradas pelos escritores iniciados
nesses mistérios. Se os profanos pensam que são reais, enganam-se: são simbólicas da passagem de um
estado a outro, ou de um estágio ao seguinte. Apuleio, por exemplo, simboliza e mergulho de Lúcius
na matéria densa (encarnação), imaginando sua metamorfose num asno. As peripécias do animal são as
ocorrências normais da vida humana na Terra. No fim, a iniciação nos mistérios de Ísis o faz voltar,
muito mais experiente, à vida hominal, dedicando-se totalmente ao Espírito.
A metamorfose de Jesus, porém, foi de outro tipo: passou da carne ao Espírito, desintegrando momen-
taneamente a matéria em energia luminosa, embora ainda conservasse as características hominais da
conformação externa, mas muito mais belas, por serem Energia Espiritual Radiante e Puríssima.

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REENCARNAÇÃO

Mato 17:10-13 Marc. 9:10-13

10. Perguntaram-lhe os discípulos dizendo: 10. E guardaram essa palavra, discutindo entre
"Por que então dizem os escribas que Elias si o que seria ter sido levantado dentre os
deve vir primeiro"? mortos.
11. Respondendo, Jesus disse: “Sem dúvida 11. Então lhe perguntaram dizendo: "Como é
Elias vem primeiro e restaurará todas as que os escribas dizem que Elias deve ter
coisas; vindo primeiro"?
12. mas eu vos digo que Elias já veio e não o 12. Respondendo, disse-lhes: "Elias, tendo vin-
conheceram, antes fizeram com ele tudo o do primeiro, restauraria todas as coisas e
que quiseram; assim também o Filho do (como está escrito do Filho do Homem) pa-
Homem há de padecer por parte deles". deceria muitas coisas e seria rejeitado;
13. Então os discípulos entenderam que lhes 13. mas digo-vos que (tal como está escrito a
falara a respeito de João Batista. respeito dele) também Elias veio e fizeram a
ele tudo o que queriam.

Aqui temos um dos ensinos mais claros e explícitos de Jesus, mas há dois milênios vem ele sendo
premeditadamente mal interpretado. Pensadamente se torce a doutrina explicada pelo Mestre, para
adaptá-la às próprias convicções e aos convencionalismos ditados pela falta de conhecimento da reali-
dade. São então trazidos à balha nos comentários de hermeneutas e exegetas, os mais deslavados so-
fismas, que contradizem frontalmente o texto.
Reconstituamos a cena, tal como está narrada pelos dois evangelistas.
Em Marcos, encontramos a causa que provocou a pergunta. Tinham os discípulos gravado na memória
a proibição de Jesus e, a esse respeito, vinha sendo mantida acesa discussão a propósito da frase: ter-se
levantado dentre os mortos" (veja-se o estudo de anístêmi, "levantar-se", no vol. 3).
Apesar da discussão, não se fez a luz e não chegaram eles a uma conclusão satisfatória.
Com efeito, havia muitos dados que pareciam contraditórios entre si. Malaquias previra o retorno de
Elias à Terra, antes do Messias, na qualidade de Seu precursor. Jesus declarara (Mat. 11:14) a respeito
de João Batista, então encarnado: "e se quereis aceitá-lo, ele mesmo (João) é o Elias que tinha que vir"
(Convém ler todo o comentário do vol. 3). Mas, logo após, João Batista fora retirado da cena, decapi-
tado. Agora, mais uma complicação surgira: eles acabavam de ver e ouvir Elias, com a forma de Espí-
rito. Como explicar-se ali a presença de Elias? Elias não havia renascido na pessoa de João Batista? E
então, por que apareceu Elias, e não o Batista? E havia mais: se estava previsto que a missão de Jesus
chegava ao fim (assunto tratado durante a visão, confirmando as palavras anteriores de Jesus), não ha-
veria tempo suficiente para que Elias reencarnasse e viesse "preparar o caminho para o Senhor".
De fato, a confusão era procedente e eles resolveram interpelar o Mestre, expondo-Lhe suas dúvidas
numa pergunta que as englobasse: "como dizem os escribas que Elias deve vir primeiro" (dei elthein
prôton)?
Jesus aceita e ratifica o ensino dos escribas baseado nas Escrituras: não há dúvida de que Elias vem
antes. Eis as respostas com suas variantes nos dois Evangelhos:

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C. TORRES PASTORINO
Mateus: "Sem dúvida Elias vem (érchetai, pre- Marcos: "Com efeito, tendo vindo primeiro, Elias
sente do indicativo) e restaurará todas as coi- restauraria todas as coisas e (como também está
sas. Mas eu vos digo que ELIAS JÁ VEIO e escrito do Filho do Homem) padeceria muitas coi-
não o conheceram, mas fizeram com ele tudo o sas e seria rejeitado. Mas digo-vos que (tal como
que quiseram: assim também o Filho do Ho- está escrito a respeito dele) também ELIAS VEIO
mem há de padecer da parte deles" . e fizeram-lhe tudo o que queriam.
Mesmo assim confuso, o sentido do texto de Marcos concorda com o sentido do de Mateus em suas
linhas básicas: ELIAS JÁ VEIO e, não tendo sido reconhecido, foi assassinado o Mas Elias JÁ VEIO.
Após essa resposta incisiva, os raciocínios se aclararam: eles haviam degolado "Elias", quando degola-
ram João Batista, e por isso Elias apareceu em espírito. De fato, o Espírito não morre. Só morre a per-
sonalidade terrena, única que recebe um nome. A conclusão é óbvia: o Espírito (individualidade) é um
só, que vivifica sucessivamente várias personagens. O mesmo Espírito, pois, vivificara Elias e, nove-
centos anos depois, vivificara a personagem João Batista. Assim sendo, o Espírito era o mesmo, e po-
dia apresentar-se com qualquer das duas formas, a seu gosto: ou Elias, ou João Batista.
Tudo se esclarecia definitivamente e "os discípulos entenderam finalmente que, quando Jesus lhes fala-
ra de Elias, Ele se referira a João Batista, nova encarnação de Elias".
E foi assim que o compreendeu Gregório Magno que vamos repetir "Em outro passo o Senhor, interro-
gado pelos discípulos sobre a vinda de Elias, respondeu: Elias já veio (Mat. 17:12: Marc. 9:12) e, se
quereis aceitá-lo, é João que é Elias (Mat. 11:14). João, interrogado, diz o contrário: eu não sou Elias
(João, 1:21). É que João era Elias pelo Espírito (individualidade) que o animava, mas não era Elias em
pessoa (personagem). O que o Senhor diz do Espírito, João o nega da pessoa" (Greg. Magno, Homilia
7 in Evang., Patrol. Lat. vol. 76, col. 1100) .

O sentido desse esclarecimento dado pela individualidade (Jesus) ao intelecto e às emoções da perso-
nalidade (Pedro-Tiago-João) é o exemplo do que ocorre com todos os que se aproximam das realida-
des espirituais.
Muita coisa existe que o intelecto (mesmo iluminado) e as emoções recusam aceitar. Nesse mesmo
trecho temos a comprovação disso: há quantos séculos obstina-se a humanidade em não aceitar a
lição dada, só porque, vivendo presa à personalidade, seus intelectos não percebem a realidade pro-
funda? E no entanto, centenas de intelectuais privilegiados leram o trecho e o comentaram, mas sem-
pre baseados nos raciocínios horizontais da personagem humana limitada. Por isso é tão difícil con-
vencer aqueles que, encarcerados na personalidade - cujo eu unicamente conhecem - não conseguem
perceber nada além do que os sentidos lhes fornecem, e recusam a luz do Espírito.
Quando, todavia, se dá o contato com o Espírito, esse mostra ao intelecto o FATO, e o intelecto ime-
diatamente VÊ, PERCEBE e ENTENDE as coisas, sem necessidade de fazê-las passar pelo crivo do
raciocínio e pelo filtro das emoções. A visão é global, interiça, total.
Nessa elucidação de Jesus, as palavras foram poucas, mas o alcance do Intelecto, que acabava de ter
tido o contato, foi completo: "entenderam que lhes falava de João Batista". Entenderam. Perceberam.
Viram. Nada mais lhes era necessário. A intuição estava absorvida, a convicção era indiscutível, o
Espírito penetrara no intelecto, e o intelecto "entrara no reino dos céus", vendo, "não mais através de
um vidro obscuro, mas face a face, não mais por partes, mas englobadamente" (1.ª Cor. 13:12).
Natural e compreensível a recusa daqueles que vivem na personalidade, de aceitar as visões espiritu-
ais: um plano se opõe ao outro em pólos opostos. Quem está e vive preso aos sentidos físicos, quem só
raciocina intelectualmente, é como "a criança, que fala como criança, pensa como criança, raciocina
como criança; mas quando eles se tornarem Homens, abandonarão os modos de ver das crianças" (l.ª
Cor. 13:11). Ora, como pretender que a criança cresça repentinamente e de imediato raciocine como
pessoa adulta? Como pretender que a personalidade de inopino atinja a individualidade? Só o tempo
(que "é o ritmo evolutivo", no dizer de Pietro Ubaldi) é que poderá resolver o caso e amadurecer os

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SABEDORIA DO EVANGELHO

frutos. Aguardemos com paciência que a Humanidade e seus dirigentes, políticos e espirituais, se tor-
nem adultos, e tudo será mais fácil.

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C. TORRES PASTORINO

A CURA DO EPILÉPTICO

Mat 17:14-18 Marc. 9: 14-27 Luc. 9:37 -43c

14. E chegando eles à 14. E chegando para os discípulos, viu grande 37. Aconteceu no dia se-
multidão, veio a multidão em redor deles e escribas discu- guinte que, tendo eles
ele um homem e, tindo com eles. descido da montanha,
ajoelhando-se di- 15. Imediatamente toda a multidão, vendo-o, grande multidão foi
ante dele, disse: surpreendeu-se e, acorrendo, saudava-o.
encontrá-lo,
15. "Senhor, com 16. Ele lhes perguntou: "Que estais discutindo 38. E do meio da multi-
padece-te de meu com eles"?
dão um homem gri-
filho, porque é tou: "Mestre, suplico-
lunático e sofre 17. Respondendo-lhe um dentre a multidão, te que olhes meu filho
horrivelmente; disse: "Mestre, eu te trouxe meu filho que porque é o único que
pois muitas vezes tem um espírito mudo. tenho,
cai no fogo e mui- 18. e este, onde quer que o apanhe convulsio- 39. e um espírito o toma e
tas outras na na-o; e ele espuma e range os dentes e vai ele repentinamente
água; definhando; roguei a teus discípulos que o grita e convulsiona-o
16. eu o trouxe a teus expulsassem, e eles não tiveram força". e fá-lo espumar, e di-
discípulos e eles 19. Respondendo, disse-lhes: "Ó geração sem ficilmente se afasta,
não puderam cu- fé, até quando estarei convosco? Até quan- jogando-o por terra.
rá-lo". do vos tolerarei? trazei-mo". 40. Supliquei a teus dis-
17. Respondendo, 20. E eles lho trouxeram. E vendo-o (a Jesus), cípulos que o expul-
pois, Jesus disse: logo o espírito o convulsionou e, caindo no sassem, mas não pu-
"Ó geração sem chão, contorcia-se, espumando. deram".
fé e pervertida, 41. Respondendo, disse
até quando esta- 21. Perguntou (Jesus) ao pai dele; "Há quanto Jesus: "Ó geração
rei convosco? Até tempo acontece-lhe isso"? Respondeu ele:
"Desde a infância; sem fé e pervertida,
quando vos tole- até quando estarei
rarei? Trazei-me 22. e muitas vezes o lançou ora no fogo, ora na convosco e vos tolera-
aqui o menino". água para destruí-lo; mas, se podes alguma rei? traze aqui teu
18. E Jesus repreen- coisa, compadece-te de nós e ajuda-nos". filho".
deu-o e o espírito 23. Disse-lhe Jesus: "Se podes? tudo é possível 42. Quando se aproxima-
desencarnado ao que crê". va, o espírito desen-
saiu dele e desde carnado derrubou-o e
aquela hora ficou 24. Imediatamente o pai do menino exclamou; convulsionou-o; mas
curado o menino. "Creio! Ajuda minha incredulidade".
Jesus repreendeu ao
25. E vendo Jesus que uma multidão afluía, espírito atrasado cu-
repreendeu o espírito, dizendo-lhe: "Espí- rou o menino e entre-
rito mudo e surdo, eu te ordeno, sai dele e gou-o ao pai.
nunca mais nele entres".
43. E maravilharam-se
26. Gritando e convulsionando-o muito, saiu; e todos da grandeza de
o menino ficou como morto, de modo que a Deus.
maior parte do povo dizia; "Morreu".
27. Mas Jesus, tomando-o pela mão, desper-
tou-o e ele levantou-se.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Neste episódio, Mateus e Lucas apresentam um resumo de Marcos, que narra a cena com pormenores
vividos, reproduzindo, ao que parece, o que a memória priviligiada de Pedro conservou do fato. Segui-
remos Marcos em nossos comentários, acrescentando-lhe as achegas novas que porventura encontre-
mos nos dois outros.
Lucas, por exemplo, anota que eles "chegaram no dia seguinte", donde concluir-se que a "Transfigura-
ção" ocorreu durante a noite, e eles desceram do monte na manhã do outro dia.
Nas últimas curvas da descida, já deve Jesus ter percebido pequena aglomeração no sopé. Além dos
nove discípulos, que não haviam escalado a montanha, aguardavam a comitiva numerosas outras pes-
soas que discutiam animadamente.
A aparição súbita de Jesus causou surpresa no povo. Não há necessidade de supor (com Teofilacto,
Cajetan, Jansênio, Cornélio a Lápide e outros) que o rosto de Jesus ainda conservasse um resquício do
brilho da transfiguração, tal como é narrado de Moisés ao descer do Sinai (Êx. 34:29). Bastaria o ines-
perado da chegada, num momento crítico de dificuldade para surpreender a todos. O povo voltou-se
imediatamente e correu a saudá-Lo. Recebidas as saudações - que, para serem assinaladas, devem ter
sido muito efusivas - dirige-se o Mestre não a Seus discípulos, mas aos escribas que viu ali presentes.
Porque os discípulos estavam tão cabisbaixos e confusos, que davam a impressão de terem sido derro-
tados. Com efeito, já tantas vezes haviam expulsado obsessores, sentindo-se alegres com os resultados
obtidos (cfr. Marc. 6:13), que não conseguiam descobrir por que não dominaram este. E logo diante da
primeira tentativa falhada, a dúvida cresceu, automaticamente diminuindo-lhes a fé a respeito de suas
possibilidades. Daí ao fracasso total foi um passo . E os escribas devem ter aproveitado o ensejo para
menosprezar os nove e, através deles, o próprio Jesus, o que mais os magoou. Ora, o fracasso era natu-
ral: o “espírito" era surdo, e portanto não podia ouvir as "ordens" verbais.
Jesus indaga da aglomeração qual o assunto do litígio com Seus discípulos. Notemos, de passagem, a
confiança de Jesus em Seus seguidores. Qualquer mestre humano e cioso de suas prerrogativas (isto é,
vaidoso) interpelaria os próprios discípulos: "que é que vocês fizeram em minha ausência sem minha
ordem"? E estaria pronto a repreender os discípulos, para não perder o prestígio diante dos adversários.
Jesus age diferente (como sempre!). Interpela "os outros", já se colocando na atitude de defender Seus
escolhidos.
Mantendo-se silenciosos, demonstraram respeito e confiança no Mestre justo e bom, que saberia de-
fendê-los e ensinar-lhes o caminho certo.
Quem falou foi "um da multidão", um anônimo, que explicou a situação. Trouxera seu filho (Lucas
esclarece que era "único", como de outras vezes, em 7:12 e 8:42) e que estava possuído por um espírito
obsessor mudo (mais tarde Jesus esclarecerá que era também surdo). E Marcos coloca nos lábios do
pai aflito a descrição dos sofrimentos do filho.
Mateus resume as súplicas do pai em uma palavra: "lunático". Dizia-se lunático o epiléptico, porque as
crises violentas geralmente coincidiam com a lua nova. Marcos e Lucas citam apenas, como expres-
sões do pai, a possessão pelo obsessor. Era crença antiga que a epilepsia era provocada pela incorpora-
ção de um obsessor violento. E hoje, com o conhecimento trazido pelo Espiritismo, sabemos com se-
gurança que, excetuada pequena percentagem de casos devidos a lesões ou disritmia cerebral, todo o
grande volume restante é realmente isso: ação de obsessor violento em incorporação total (possessão).
Digno de nota que, contrariamente ao que sói acontecer, a descrição da enfermidade em Marcos con-
tém mais pormenores médicos que a de Lucas: convulsões violentas, gritos inarticulados seguidos de
queda, o espumar e o rilhar de dentes, a contração dos músculos e o retesamento dos membros e, fi-
nalmente, após a crise, a prostração absoluta. com palidez cadavérica, chegando enfim ao sono.
Depois da descrição, vem a queixa, embora em termos respeitosos e quase desculpando os discípulos:
"eles não tiveram força".
Jesus, depois de repreender os presentes pela falta de fé, numa frase em que revelava profundo amar-
gor, lamentando se de ter que permanecer entre criaturas tão retardadas, pede que o garoto lhe seja
trazido.

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C. TORRES PASTORINO

Figura “CURA DO EPILÉPTICO”


Mas logo que o obsessor enfrentou o Mestre, deu mais uma demonstração de sua violência, prostrando
o menino na habitual convulsão: bastava a presença de Jesus, com Seus poderosos fluidos, para pertur-
bá-lo.
Observemos, com atenção que Jesus não se "afoba", não se apressa, mas, antes de agir, indaga dos
antecedentes, a respeito da época em que se iniciara a obsessão. O pai informa que o fato ocorria "des-
de a infância", embora não especifique a idade. E, aproveitando que estava novamente com a palavra,
roga a Jesus que se compadeça, mas já antecedendo o pedido de uma condicional: diante do fracasso
dos discípulos, a dúvida se instalara em seu íntimo, e ele diz com sinceridade "se podes alguma coisa".
Jesus aproveita para dar uma de Suas lições, quase com ironia: "se podes? ... Mas tudo é possível
àquele que crê".
O pai não se descoroçoa: humilde reconhece que ele crê no poder de Jesus, mas também confessa que
sua fé não é das maiores; pede Lhe, pois, que ajude sua falta de fé, realizando a cura do filho.
Nesse ponto, a aglomeração dos curiosos passantes crescia, e Jesus ordena com autoridade (egô epis-
tássô soi) que o espírito se retire e não mais volte a importunar o menino. A obediência foi imediata,
mas não devido às "palavras" de Jesus, e sim ao poder magnético altíssimo, cujo impacto vibratório o
espírito já havia sentido desde o momento em que Lhe chegara à presença.
O desligamento foi feito com violência e o menino, gritando, teve outra convulsão e caiu ao chão de-
sacordado. O povo, apavorado e palpiteiro como sempre, murmurava entre si: "morreu". O Mestre não
dá ouvidos ao desânimo: abaixa-Se, segura a mão do menino e o desperta: com toda a naturalidade, ele
se levanta, e Jesus o restitui sadio a seu pai.
Na última frase de Marcos há uma observação a fazer: os verbos egeírô e anístêmi são traduzidos com
frequência nas edições correntes, ambos como "ressuscitar". Ora, não é possível entender-se aqui:

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SABEDORIA DO EVANGELHO

"Jesus o tomou pela mão e o ressuscitou e ele ressuscitou-se", o que seria absurdo. Em trechos desse
tipo, este e outros, é que percebemos o sentido real que era atribuído a esses verbos, e neles baseamos
nossa tradução constante de egeírô = despertar, e anístêmi = levantar-se (cfr. vol. 3).

Outra lição de profundo interesse para aqueles que gostam de mergulhar mais fundo, além das pala-
vras do texto.
O Espírito (individualidade) regressa de seu contato unificador com o Cristo Interno, "descendo do
monte" da sublimidade para a planície corriqueira do cenário material. Aí reside a turbulência natu-
ral dos elementos divididos pelo egoísmo separatista, cada qual procurando sobrepor-se aos outros,
na titânica luta pelo domínio ambicioso da matéria.
Ao reentrar na personagem, intelecto e emoções acham-se descontrolados pela temporária sublima-
ção do Espírito e da Mente espiritual. O próprio intelecto, dividido em si mesmo pela dúvida, ("discí-
pulos" versus "escribas" perscrutadores oficiais de minúcias escriturísticas e dissecadores da "letra")
raciocina inseguro, entre a crença e a negação, não conseguindo dominar as emoções, que foram in-
vadidas pelas forças antagônicas da matéria. Só o Espírito, com sua elevação e sobretudo com a fé
(segurança) de seu poder divino, alcança a supremacia absoluta para apaziguar tudo.
Esta uma das interpretações cabíveis da narrativa dos evangelistas.
Há, entretanto, pormenores elucidativos para outros níveis de evolução. Quando, por exemplo, apli-
camos a lição aos casos comuns da humanidade, em que as criaturas ainda não atingiram o esponsa-
lício místico, podemos considerar o episódio como desligado do trecho anterior, consistindo numa
lição isolada.
Teríamos aqui, pois, o símbolo das criaturas que são ainda presas indefesas das forças negativas do
Anti-sistema.
O quadro é bem descrito. O intelecto, embora não amadurecido e ainda vacilante em sua fé ("se po-
des"), já aprendeu que a prece é o poder mais eficiente para ajudar a criatura em qualquer circuns-
tância. Por isso, ao perceber que sua personagem (seu filho único) está sofrendo os embates das pai-
xões, decide-se a ir buscar o socorro para libertá-la das garras monstruosas e torturantes dos vícios.
No próprio texto podemos perceber duas interpretações desse socorro:
a) o socorro é buscado fora de si, com os discípulos e seguidores de doutrinas religiosas, os quais -
por falta de fé - não conseguem libertar a criatura dos hábitos arraigados, até que, voltando-se
para a Divindade em prece sincera (embora ainda vacilante), obtém a libertação.
b) o socorro é buscado em si mesmo: os discípulos representariam, neste caso, as faculdades da
alma, o psiquismo superior, a força de vontade, a persistência e a mentalização; sendo, porém, in-
capazes de frear e manter dóceis as emoções que sempre se rebelam, é-lhe concedido - por causa
da boa-vontade sincera - o contato com a individualidade subjacente: e esta, o Espírito, assume o
comando, ordena categoricamente o reequilíbrio, refaz os órgãos atormentados e enfraquecidos, e
restitui ao pai (intelecto) uma personagem restabelecida (o filho curado).
Por aí verificamos quantas lições podem ser aprendidas num único trecho, dependendo do nível evo-
lutivo da criatura a que se aplica o ensinamento.
Observando certos pormenores, verificamos que o impacto emocional é realmente SURDO à voz inte-
rior da consciência e mais ainda à própria vontade, (quando desligada do Espírito), que as emoções
ludibriam, recaindo sempre nos mesmos vícios e defeitos, sobretudo quando estes vêm acompanhando
a criatura "desde a infância" (que pode ser compreendida como de uma vida, a atual, ou desde muitas
existências, desde "a infância do espírito").
Ser MUDO é característica daquele que não fala, que não avisa, quando leva ao abismo dos fracas-
sos, muitas vezes intempestivamente, causando "quedas na água e no fogo, jogando par terra", etc.

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C. TORRES PASTORINO
A exclamação queixosa de Jesus (“até quando estarei convosco?") exprime o apelo veemente e an-
gustioso da individualidade que quer ver-se livre do peso da matéria, do abaixamento de vibrações
que o constrange; além de expressar, também, a verdade da letra: um espírito de escol, preso entre
criaturas atrasadas evolutivamente, dominadas pelo egoísmo, fascinadas pela ambição, interdevoran-
do-se em ódios mesquinhos, sente todo o impacto da materialização como cadeias constringentes, e
aspira libertar-se o mais rápido que lhe for possível, terminando sua tarefa e imediatamente retiran-
do-se do cenário deprimente e involuído.
O pedido do pai do menino (intelecto, pai da personagem encarnada) para que sua fé "seja ajudada",
reflete a posição certa dos que, no embate violento e torturante das paixões, sabem ser humildes, re-
conhecer as próprias fraquezas e gritar por socorro. A solicitação dessa ajuda espiritual jamais fica
sem resposta por parte das ondas noúricas de energia superior: basta sintonizar com elas, para rece-
bê-las, pois estão permanentemente espalhando suas bênçãos em abundância. Estando "no ar" o
transmissor, basta sintonizar o aparelho receptor no ponto certo, para receber o som. Se a "resposta"
não vem, é sinal de que há defeito no receptor, ou que ele está mal sintonizado: mister então consertá-
lo, fazendo uma boa regulagem.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

A FÉ

Mat. 17-19-21 Marc. 9:28-29

19. Então chegando-se os discípulos a Jesus em 28. E tendo entrado ele em casa, perguntaram-
particular, perguntaram: "Por que não pu- lhe seus discípulos particularmente: "Por
demos nós expulsá-lo"? que não pudemos nós expulsá-lo"?
20. Jesus respondeu-lhes: "Por vossa falta de 29. Respondeu-lhes: "Esta espécie só pode sair
fé, pois em verdade vos digo que, se tiverdes pela oração e jejum".
fé do tamanho de um grão de mostarda, di-
reis a este monte: Passa daqui para lá, e ele
passará; e nada vos será impossível" .
21. Mas esse tipo não sai senão com oração e
jejum".

Marcos tem o cuidado de avisar-nos que os discípulos se dirigiram ao Mestre "depois que estavam em
casa", fato que Mateus assinala apenas com a expressão "em particular".
A pergunta revela ansiedade: "por que não pudemos expulsá-lo"?
E a resposta esclarece para todos: "por falta de fé".
Já havia sido dito que TUDO é possível ao que crê. E agora mais uma lição nos chega, com palavras "e
comparações repetidas das lições rabínicas, onde era frequente a expressão "pequeno como grão de
mostarda"; e também, para significar algo muito difícil, dizia se "como transportar montanhas". A uni-
ão dos dois termos, porém, é particularidade do Evangelho.
O último versículo de Marcos (29) dá uma pequena desculpa aos discípulos: esse tipo (de espíritos) só
pode sair pela oração e pelo jejum". Nem todos os códices têm "pelo jejum" (aleph, B, K ) , que é su-
primido por Nestle, Swete, Lagrange, Huby e Pirot; Merck o coloca entre chaves; mas é mantido por
von Soden, Vogels e Prat. Realmente, os rabinos ensinavam que "quem quer que ore sem ser atendido,
ponha-se a jejuar" (cfr. Strack e Eillerbeck, o. c. , vol. 1, pág" 760). Esse versículo parece ter sido
transportado para constituir o vers. 21 de Mateus, que falta em aleph, B, theta, em três minúsculos e
em todas as versões copta, etiópica, siríaca hierosolymitana, e no mss. "k" da vetus latina, e na Vulga-
ta.

Vem agora a lição sobre a fé. Preciosa e esclarecedora, incisiva e categórica. De fato, uma LIÇÃO.
O intelecto, na meditação em contato com o Eu verdadeiro ou com a individualidade ("em casa"),
indaga das razões por que não conseguiu o domínio das emoções. E a resposta é taxativa: falta de fé.
A dúvida é o pior veneno para a criatura. Tiago (1:6-8) entendeu a lição do Mestre: "Peça-se com fé,
sem hesitar, pois aquele que hesita é como a onda do mar impelida e agitada pelo vento; esse homem
nada recebe do Senhor pois é homem de dupla alma, instável em todos os seus caminhos".
Que significa, afinal, pístis, a FÉ?
A definição vai depender do nível evolutivo em que cada um se encontre, para compreender o sentido
da palavra. Vejamos.

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C. TORRES PASTORINO
1. As crianças (físicas na idade temporal ou intelectuais pela infância do "espírito"), interpretam fé
como acreditar. Se acredito no que alguém me diz, sem pedir provas, demonstro fé na pessoa. Essa
fé recebe geralmente o designativo de "fé do carvoeiro", ou do homem "crente" que, por não saber
nada, acredita em tudo o que lhe dizem, sem capacidade para raciocinar por si: é a fé do simpló-
rio e do ignorante, exaltada em certos círculos humanos como virtude máxima, e até como condi-
ção essencial e única para a criatura "salvar-se".
2. Os que vivem mais no plano astral (emocional) acham que a fé é um "sentimento", uma emoção,
que se acende ou apaga, aumenta e diminui, segundo o estado emocional da criatura. É a fé que se
conquista diante de um ato de generosidade ou se perde, num segundo, diante de uma desilusão;
mais baseada nos outros, com suas qualidades e defeitos, do que em si mesmos, em seu próprio
conhecimento da verdade. É a fé que vibra altaneira e provoca, às vezes, gestos heróicos e repen-
tinos, mas que também pode levar a extremos opostos de aridez e até de ateísmo absoluto, de ma-
terialidade total.
3. Os intelectualizados que baseiam tudo no raciocínio horizontal e na pesquisa. preferem, como
sinônimo de fé, a palavra convicção, certeza confiança. Representa, então, uma virtude intelectual,
um fruto da experiência, e não mais uma emoção. Supõe o conhecimento profundo do assunto: a
certeza científica baseada nesse conhecimento é a fé. É a segurança do químico que, ao fazer as
combinações de ácidos com bases, tem a certeza de que obterá um sal: fé absoluta, fé raciocinada
e experimentada, com fundamento em fatos vividos e verificados sob controle.
4. Outros preferem considerar a fé: como demonstração de fidelidade (por exemplo, o Prof. Huberto
Rohden, de quem recebemos uma carta a esse respeito). Esses, já vivendo acima do intelecto, sin-
tonizados com a "razão" (ou individualidade), compreendem que a faculdade essencial à criatura
é a fidelidade aos princípios. Uma vez conhecido o caminho e encontrado o Mestre, não haverá
mais esmorecimentos nem desvios, não se permanecerá mais no saber, nem no dizer, nem mesmo
no fazer, mas se exigirá de si mesmo o máximo, o SER, o SER TOTAL, INTEGRAL, ser igual ao
Mestre, numa completa e total FIDELIDADE DE REPRODUÇÃO, como a cópia de carbono com
o original, como a estátua de gesso com o molde de barro, como a imagem no espelho com quem
se mira. Essa a interpretação que demos à quarta bem-aventurança (veja vol. 2): felizes os que
buscam o ajustamento, a justeza, do modelado com o modelo, do cristão com o Cristo.
A qualquer dessas interpretações, podemos aplicar, cada um em seu grau, a lição ministrada: a fé,
ainda que do tamanho de um grão de mostarda, ou seja, embora ainda esteja no início do desenvolvi-
mento, nos primeiros passos da caminhada, já será suficiente para obter-se extraordinário efeito.
Lógico que o efeito corresponderá, em grandeza, ao adiantamento do nível evolutivo de quem a possui
e a vive. Mas, não é mister diplomar-se como professor de matemática superior, para realizar as
quatro operações. Desde que a faculdade exista, desde que a causa aja, o efeito é produzido. Para
fazer luz numa lâmpada, não há necessidade de movimentar-se uma usina elétrica e nem mesmo de
possante gerador: até uma pilha acende uma lâmpada de 6 volts, mas a luz é feita; é fraca, mas é luz.
Assim, a "montanha" poderá ser transportada de cá para lá. Seja uma montanha de dificuldades, ou
de terra, ou de defeitos, ou de fluidos ou de correntes do astral, ou quaisquer outras.
A expressão "montanha" exprime, simplesmente, algo de grande, de imenso, de "impossível" de abra-
çar-se com os curtos braços humanos. Não há montanha que resista a quem tem fé: "nada é impossí-
vel ao que crê".
Quem meditar profundamente nessa frase, encontrará a força de vencer quaisquer obstáculos, quer
interprete a fé como "crença", ou como "sentimento", ou como "convicção" ou como "fidelidade" a
nosso-modelo, o CRISTO.
No entanto, há coisas que a fé opera apenas por meio da ORAÇÃO. Não é da "reza" repetida mecani-
camente em novenas e trezenas, mas a oração da união total com o Cristo Interno, a meditação e o
mergulho em que a criatura consegue "ajustar-se" totalmente ao Criador, em que a onda sonora sin-
toniza perfeitamente com a emissora, em que o cristão se CRISTIFICA (2.º Cor. 1:21).

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SABEDORIA DO EVANGELHO

A palavra "jejum" que aparece em alguns códices e é rejeitada por numerosos hermeneutas, tem sua
razão de ser nesta interpretação, pois com ela não se entende o jejum da comida física, mas o jejum
"da materialidade". Explicamo-nos: aquele que se desprende da matéria e vive unido do Espírito, ou
seja, "que vive na matéria sem ser da matéria, ou que vive no mundo sem ser do mundo" (Huberto
Rohden), esse é o que "jejua". Com efeito, mesmo estando diante das iguarias tentadoras do mundo e
de suas paixões, ele permanece sem nelas tocar, em oração (unido ao CRISTO) e em jejum (desligado
da matéria). Então, está realmente ESPIRITUALIZADO, ou, melhor ainda, CRISTIFICADO. Esse é o
que possui o poder máximo no domínio espiritual da Terra, com largas e profundas repercussões
mesmo no domínio material, sem necessidade de buscar nem treinar "poderes", com exercícios exóti-
cos.

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C. TORRES PASTORINO

PREDIÇÃO DA MORTE
(setembro de ano 30)

Mat. 17:22-23 Marc. 9:30-32 Luc. 9:43 b-45

22. Enquanto eles atravessa- 30. E partindo daí, passou 43. ... Admirando-se todos so-
vam a Galiléia, disse-lhes através da Galiléia e não bre tudo o que Jesus fazia
Jesus: "O Filho do Homem queria que ninguém (o) disse a seus discípulos:
está para ser entregue às soubesse 44. "Colocai estas palavras em
mãos dos homens, 31. pois ensinou a seus discí- vossos ouvidos: pois o Filho
23. e eles o matarão, e ao ter- pulos e disse: "o Filho do do Homem está para ser
ceiro dia ele despertará". E Homem é entregue às mãos entregue às mãos dos ho-
(eles) entristeceram-se dos homens e eles o mata- mens".
grandemente. rão; e, tendo morrido, ao 45. Eles porém não entende-
terceiro dia ele se levanta- ram essa palavra e foi vela-
rá"'. da para eles, para que não
32. Eles não compreenderam a percebessem; e eles rece-
essa palavra, mas receavam avam perguntar-lhe a res-
interrogá-lo. peito dessa palavra.

Quando Jesus se retira do Tabor, após a cura do obsidiado, "atravessa a Galiléia", procurando manter-
se incógnito durante a viagem, a fim de completar ensinamentos a Seus discípulos. Aproximava-se a
hora da experiência máxima, o momento supremo de pôr em prática os maiores ensinamentos que mi-
nistrara a respeito da personalidade. Queria que ficasse bem impresso em suas mentes que, aos discí-
pulos, não bastava aprender, mas era imprescindível experimentar pessoalmente. Isso era dito em tom
de ensinamento (edidasken tous mathêtãs autou).
E entre as lições (menos minuciosas que a anterior, (v. pág. 58ss), é acrescentado que o Filho do Ho-
mem será "entregue nas mãos dos homens". O verbo paradídotai é o mesmo empregado quando se fala
que "Judas o entregou". O fato de "ser entregue nas mãos dos homens" era considerado o maior suplí-
cio imaginável, e já David preferira a peste: "caiamos nas mãos de YHWH, pois suas misericórdias são
grandes, mas que eu não caia nas mãos dos homens" (2.º Sam. 24:14). E também o Eclesiástico (2:18)
repete: "cairemos nas mãos do Senhor, não nas mãos dos homens". E isto porque os homens não sa-
bem perdoar.
Lucas, que não refere as circunstâncias em que foi feita esta segunda predição da paixão, liga-a à cura
do epiléptico e à admiração das multidões.
Os discípulos ouvem a recomendação do Mestre de "guardar estes ensinos" (tous lógous toútous), mas
não alcançam a profundidade dos mesmos. Só sabem, por enquanto, observar o lado externo: se Ele é o
Messias, como poderá ser sacrificado? Não há dúvida que logo se acrescenta que "será despertado"
(Mat.) ou "se levantará" (Marc.) ao terceiro dia. Mas de qualquer forma, fica a impressão de que eles
não querem entender a coisa totalmente.

Novamente insiste a individualidade (Jesus), ensinando à personagem o que ela tem que fazer para
poder sublimar-se, sublimando o Espírito que a construiu. Mas a personagem faz-se de desentendida;

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entrevê a coisa, mas não na percebe plenamente, e tem medo de penetrar mais a fundo: receia com-
preender totalmente o assunto, assumindo, com essa compreensão, a responsabilidade de agir, obri-
gando-se a obedecer à voz interna que a quer chamar à realidade. De outro lado, jamais o Espírito
revela com clareza meridiana o que está para ocorrer: as indicações são "veladas", para que a perso-
nagem não se assuste demasiadamente, fugindo à iniciação dolorosa.
O "Filho do Homem será entregue nas mãos dos homens, que o matarão, mas ele se levantará ao ter-
ceiro dia". A revelação é espantosa e os atemoriza pois não podem fixar-se no final "despertamento",
após permanecer três dias no "Coração da Terra" (Mat. 12:40). O que apavora a personagem é a dor,
o sofrimento físico e sobretudo a morte: o espectro terrível com poderes discricionários e irresistíveis
para aniquilar o ser atual, para destruir a personagem transitória, para reduzir a zero o "filho único
tão querido", o nome que tanto prezamos.
Às mãos dos homens, às feras devoradoras, somos todos lançados quando mergulhamos na carne, no
Anti-Sistema, enterrados no pólo negativo, à mercê da ignorância e da maldade sem peias e sem limi-
tes, ávidas de sangue e destruição, de saque e de gozos sádicos, de martírios morais e, se possível, de
torturas físicas. E quanto mais elevado o Espírito, mais se encarniça a massa infrene contra aquele
que lhe é superior, certa de que, conquistará a paz e a liberdade de rebolcar-se nos vícios sem ter
quem lhe aponte e condene os erros, sem ninguém que a convoque à melhoria.
Cortado o modelo de diante dos olhos, mais fácil é cada um forjar-se seu próprio modelo, plasmado
segundo seus desejos incontidos de prazeres e felicidade passageira material.
Até agora tem caminhado assim a humanidade, sacrificando todos os que a querem elevar e melhorar,
e endeusando todos os que a elogiam e enaltecem os caprichos e favorecem os espasmos. Grandes são
os que excitam suas emoções, nos cantos feceninos, nos jogos violentos, nas lutas físicas nas doenças
excitantes, na música sensual, nas cenas brutais, nos entrechos de "suspense": cantores, futebolistas,
"boxeurs" , "iê-iês", sambistas, "filmes" de "intocáveis" o policiais ... São os mais ricos e festejados, os
que "impõem seu preço" às multidões. Reino supremo do Anti-Sistema em toda a sua pujança, em cu-
jas mãos "são entregues os Filhos dos Homens", que serão perseguidos e assassinados (ainda que
moralmente) mas que, "ao terceiro dia" despertarão do tumulto atordoante, para reconquistar a Paz
Interna, carregando a palma do um passo a mais na árdua e longa estrada da evolução sem fim.
Observemos, agora, esta predição sob outro ângulo: o dos mistérios iniciáticos.
Jesus recebeu, durante a "transfiguração", as instruções relativas às provas que precisava sofrer
(páthein) em Jerusalém. Pelo relato de Lucas, temos a impressão de que os três discípulos Pedro, Tia-
go e João tinham ouvido a conversa, e portanto estavam a par do que iria ocorrer. Tanto que Pedro,
que tamanho escândalo fizera quando da primeira vez Jesus acenara a isso, desta vez, depois do epi-
sódio do monte Tabor, nada diz.
No entanto, havia necessidade de prevenir aos outros nove discípulos, e às pessoas que o acompanha-
vam, (e que nada sabiam a respeito do ocorrido com Moisés e Elias porque os três assistentes, por
proibição de Jesus, nada haviam narrado), que Jesus teria que submeter-se a sofrimentos atrozes.
Aproveitando, pois, a conversa informal que surgira na pequena viagem a pé através da Galiléia o
Mestre notifica-lhes a ocorrência violenta que está por vir, a fim de que, quando acontecesse, não os
apanhasse desprevenidos.
O aviso é dado por completo: o abandono às mãos dos algozes, a morte por assassinato, e também o
resto: que Ele novamente se levantaria vivo. Tratava-se portanto de uma morte aparente, ou seja,
apenas morreria o veículo físico-denso, já que, na realidade, Ele permaneceria vivo, tanto que, ao
terceiro dia, tornaria a erguer-se.
Os discípulos, que não estavam a par dos ritos da iniciação, não entenderam bem do que se tratava,
mas não tiveram coragem de interrogá-lo. Limitaram-se a "ficar tristes", pois pressentiam que iriam
perder a companhia física de um Mestre que eles já se haviam habituado a amar.

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C. TORRES PASTORINO

SIMPLICIDADE

Mat. 18:1-5 Marc. 9:33-37 Luc.9:46-48

1. Naquela hora chegaram-se 33. E chegaram a Cafarnaum; 46. Surgiu um pensamento


os discípulos a Jesus per- e estando ele em casa per- neles, sobre qual deles seria
guntando: "Quem é, então, guntou-lhes: "Sobre que o maior.
o maior no reino dos pensáveis no caminho"? 47. Mas Jesus vendo o pensa-
céus"? 34. Mas eles calaram-se, por- mento de seus corações,
2. 2 E tendo chamado Jesus que pelo caminho haviam tomou uma criancinha e
uma criancinha, colocou-a conversado entre si qual colocou-a junto de si e dis-
no meio deles (deles era) maior. se-lhes:
3. e disse: "Em verdade vos 35. E sentando-se, chamou os 48. "Quem quer que receba
digo que se não vos modifi- doze e disse-lhes: "Se al- esta criancinha em meu
cardes e não vos tornardes guém quer ser o primeiro, nome, a mim me recebe; e
como as criancinhas: não seja o último de todos e o quem quer que me receba,
podeis entrar no reino dos servidor de todos". recebe aquele que me envi-
céus. 36. E tomando uma criancinha,
ou”. Pois aquele que for
menor dentre todos vós,
4. Quem, portanto, se dimi- colocou-a no meio deles e,
esse será grande".
nua como esta criancinha, abraçando-a, disse-lhes:
esse é o maior no reino dos 37. "Quem quer que receba
céus, uma criancinha assim em
5. e quem receba uma crian- meu nome, a mim me rece-
cinha assim em meu nome, be; e quem quer que me re-
me recebe". ceba, não recebe a mim,
mas aquele que me envi-
ou".

Como se dá com frequência, embora sendo o mais curto no cômputo total, o Evangelho de Marcos é o
que apresenta mais pormenores e maior vivacidade; neste trecho, em poucas palavras ele situa a cena,
esclarecendo que realmente "residia" em Cafarnaum; e, após citar o nome dessa que Mateus chamou "a
sua cidade” (cfr. Mat. 9:1; vol. 2), acrescenta: estando em sua casa (en têi oikíai).
Mateus inverteu a ordem dos outros dois, e atribui a iniciativa da conversa aos discípulos, que se teri-
am dirigido ao Mestre com uma indagação teórica; parece, com isso, querer desculpar a ambição do
grupo, do qual ele mesmo fazia parte. Apresenta, pois, o colegiado acercar Jesus, e a perguntar ino-
centemente, como ávidos de conhecimento: "então, quem é o maior no reino dos céus"? Observemos
que, pelo tom, não se trata deles, pessoalmente, mas é uma questão de tese. A resposta do Rabbi, no
entanto, é fielmente transcrita, concordando com a dos outros dois intérpretes.
Marcos, ao invés, dá a iniciativa a Jesus, que lhes pergunta maliciosamente (tal como em Lucas) "em
que pensavam eles no caminho" ... E Lucas explica a seus leitores que o Mestre "lera o pensamento"
que neles surgira.
Antes de prosseguir, seja-nos lícito estranhar que, nas traduções deste trecho, aparece em Lucas "sur-
giu uma DISCUSSÃO entre eles ... e Jesus lendo o PENSAMENTO deles" ... Ora, no original, a mes-

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ma palavra dialogismos aparece nos dois versículos seguidos. Por que razão é ela traduzida de dois
modos diferentes (e tão diferentes!), a primeira como discussão e a segunda como pensamento, à dis-
tância de duas linhas e no mesmo episódio? Não conseguimos perceber o móvel dessas "nuanças su-
tis". Também em Marcos a pergunta é feita com o verbo dialogízein (no texto dielogízesthe, "pensá-
veis"). Mas logo a seguir aparece o verbo dieléchthêsan (aoristo depoente de dialégomai) pròs
allêlous, que se traduz: "conversavam uns com os outros". Mas de uma conversa em pequenos grupos,
que entre si sussurravam um descontentamento, deduzir-se que se tratava de uma DISCUSSÃO, a dis-
tância é grande ...

Figura “CONSELHOS AOS DISCÍPULOS”


O descontentamento já vinha grassando há tempos entre eles, como sempre ocorre entre discípulos,
que se julgam mais competentes ou pelo menos mais "espertos" que o mestre, para "ver" as coisas e
resolvê-las com acerto. Apesar de Jesus lhes haver ensinado que "o discípulo não é maior que seu
mestre" (cfr. Mat. 10:24; Luc. 6:40; vol. 3), eles eram humanos e achavam, talvez, que a escolha de
Jesus e a "autoridade" que conferira a Pedro, não estava cem por cento perfeita: outros melhores havia.
E eram relembrados "fatos": Jesus se hospedara em casa de Pedro (que morava com seu irmão André,
as esposas de um e de outro, e os filhos; cfr Marc. 1:29, vol. 2) quando podia ter escolhido uma casa
mais tranquila, maior, mais cômoda. ... Quando chegou a época de pagar a didracma (Mat. 17:27; vol.
3) Jesus recorre a um expediente "fora do normal" para pagar por si e por Pedro, sem pensar em fazê-
lo pelos "outros", nem mesmo por André ... Havia desagradado o encargo de cada um dos outros pagar
por si mesmo, embora o gesto elegante de Jesus se justificasse plenamente, em relação ao discípulo
que o hospedava em seu próprio lar, naturalmente arcando com todas as despesas de alimentação,
vestuário, etc. Sem dúvida, Pedro podia fazê-lo com folga, já que não devia ser pequena a receita que
percebia da "companhia de pesca", de que ele e André tinham sociedade com Zebedeu (cfr. vol. 2).
Mas havia mais: o Mestre tinha até mudado o nome dele para Kêphas (Pedro), sendo-lhe conferidas
prerrogativas de chefe sobre os outros (ver acima). Ora, tudo isso, e talvez outras coisas que desconhe-
çamos, tinham deflagrado uma crise de ciúmes e ambições ocultas, algumas mal disfarça das (como

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veremos mais tarde a de Judas Iscariotes que, julgando não ter o próprio Jesus capacidade e dinamismo
suficientes para sua tarefa messiânica, entrou em entendimentos com o Sinédrio para que assumisse a
direção da obra, ficando Jesus apenas com o encargo de dar ensinamentos espirituais e fazer "mila-
gres").
Então, quem REALMENTE seria o CHEFE, após o tão anunciado assassinato do Mestre? Pedro podia
ser o mais velho, mas seria o mais sábio? seria o administrador mais competente? seria o mais fiel in-
térprete das idéias? seria o mais culto? o mais prudente? Prudente? ... Não fora Pedro repreendido por
Jesus, que o chamara "antagonista"? Não fracassara na tentativa imprudente de pretender imitar o
Mestre andando sobre as águas? Com esse seu temperamento vivo e emotivo, não estava sempre a in-
tervir inoportunamente, nos momentos mais impróprios? ... Tudo porque Jesus ainda não dera a "cha-
ve" para resolver a questão, que só foi revelada após sua paixão, quando, por três vezes seguidas per-
guntou a Pedro "se O amava" (cfr. João, 21:15-17). O AMOR VERDADEIRO do discípulo pelo Mes-
tre é o que realmente decide sobre a escolha do sucessor.
Cada um dos outros julgava-se com alguma qualidade superior a Pedro, pretendendo que essa qualida-
de o predispunha melhor ao posto de chefe ... "afinal, quem era DE FATO o maior entre eles"?
Uma solução direta e radical do caso poderia provocar mágoas em Seus escolhidos. Com a sabedoria
profunda e delicada de sempre, Jesus resolve apresentar aos doze uma parábola em ação, de compreen-
são mais pronta e fixação mais duradoura que as de simples narrativa.
Chama uma "criancinha". Quem era? Curiosidade ociosa. Jesus acha-se '"em casa", ou seja, na casa de
Pedro, com quem morava também André. Qual a criancinha que lá havia para ser chamada? A resposta
mais pronta é que deveria tratar-se de um dos filhos ou filhas de Pedro ou de André. Que Pedro tinha
filhos, parece não haver dúvidas, pois a tradição o diz e mesmo alguns "Pais da igreja" o atestam (cfr.
Clemente de Alexandria, Strom. 3.6.52, Patrol. Graeca, vol. 8, col. 1156 e Jerônimo, Adv. Jov., 1.26,
Patrol. Lat. vol. 23, vol. 245). Mas qual prova teríamos da criancinha? Os outros discípulos também
deviam ter filhos, podendo tratar-se de algum deles (segundo a tradição, o único discípulo que não
contraiu matrimônio foi o evangelista João, que, à época da morte de Jesus devia contar entre 20 e 21
anos). Mas havia também o grupo das discípulas que acompanhavam o Mestre (Marc. 15:41). É verda-
de que as narrativas evangélicas calam sistematicamente o fato de estar alguém casado; a não ser o
aceno à sogra de Pedro (Mat. 8;14; Marc. 1;30; Luc. 4:38; vol. 2), não se fala em nenhum casamento,
nem do Mestre, nem dos discípulos. Só algumas figuras a látere aparecem como formando casais.
No século 9.º afirmaram que a criancinha teria sido Inácio de Antióquia, mas sem qualquer prova (teria
sido revelação mediúnica?). De qualquer forma, não importa quem tenha sido o garotinho; o que conta
é o fato. Vamos a ele.
Jesus chama uma Criancinha e a "carrega ao colo" ou "a abraça". O particípio enagkalisámenos, do
verbo enagkalízomai, é composto de en + agkálê, que exprime "nos braços recurvados", podendo ex-
primir uma ou outra das traduções. Entre todos aqueles homens, a ternura de Jesus pela criança é emo-
cionante. E Ele a apresenta como modelo a ser imitado, numa lição que nos foi transmitida em duas
variantes.
MATEUS: "se não nos modificardes e vos tornardes (eàn mê straphête kaí genêsthê, ou seja, "voltar-
des a ser") crianças, NÃO PODEIS entrar no reino dos "céus".
E continua: "quem se diminuir será o maior". O verbo tapeinôsei exprime exatamente "diminuir-se" ou
"tornar-se pequeno"; diríamos, em linguagem moderna, "miniaturizar-se". Não é, pois, da humildade
que aqui se trata, já que a criança não é humilde: é pequena. A oposição, na parábola, é salientada en-
tre a pequenez, a simplicidade e a sinceridade (Sinceridade no sentido etimológico: "isento, puro, sem
mistura". Tanto que os antigos - cfr. Donato, Ad Ev. 177 - faziam derivar a palavra da expressão "si-
necera". Horácio - Epod. 2, 15 - escreveu: aut pressa puris mella condit ámphoris, que o Pseudo
Acron comenta: hoc est, favos premit, ut ceram séparet et mel sincerum réparet. E Donato conclui:
sincerum, purum, sine fuco et simplex est, ut mel sine cera) da criança, e a ambição, o orgulho, e o
egoísmo que tomavam vulto no coração deles. Esse mesmo termo foi empregado por Paulo (Filip. 2:8),
testificando que, Jesus "se diminuiu (apequenou-se, etapeínôsen), tornando-se obediente até a morte".

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MARCOS acrescenta uma frase: "quem quiser ser o primeiro, seja o último de todos", lição que volta-
rá na parábola do banquete (cfr. Luc.14:7-11), e além disso: "o servidor de todos. Essas idéias voltam
em Mat.20:26-27 e Marc. 10:43-44; e também de si mesmo disse o próprio Jesus (Mat. 20:28): "o Fi-
lho do Homem veio para SERVIR, e não para SER SERVIDO".
O mesmo conceito aparece sob outra forma em Lucas: "o que dentre vos for o menor de todos, esse
será grande".
Terminada a lição do "apequenamento" e do "serviço", os três sinópticos concordam na conclusão, que
se resume numa garantia para o futuro: "quem recebe uma criancinha assim EM MEU NOME (epí tôi
onómati mou, ou seja, "por minha causa") é a mim que recebe". Trata-se, portanto, de uma delegação
ampla de credenciais, feita em caráter geral a todas as crianças em todos os tempos, para representá-Lo
como embaixadores perante todos os adultos da humanidade.
E essa delegação vai ampliada mais ainda, quando confessadamente declara o Mestre que Ele apenas
sub-delega, pois "quem O recebe, recebe Aquele que O enviou". Marcos utiliza um hebraísmo típico
genuíno e, confessamo-lo, saborosíssimo: "e quem me recebe, não é a mim (propriamente) que recebe,
mas Aquele que me enviou".
Os hermeneutas dividem-se em três grupos principais, a fim de esclarecer que crianças são essas:
1. simbolizariam os próprios discípulos enviados por Jesus, conforme a regra estabelecida no cap. 12
da Didachê, que ordena aos cristãos que recebam "quem quer que venha em nome do Senhor";
2. seriam o símbolo de todas as crianças, que devem ser acolhidas sempre pelos adultos;
3. seriam não apenas as crianças assim classificadas por causa de sua idade física, mas, além delas,
todas as crianças intelectuais ou morais, os "espíritos-novos" (embora adultos na idade do corpo),
que não tivessem alcançado desenvolvimento e amadurecimento mental.
De qualquer forma, entende-se com a lição que, por menor que seja a criatura, devemos sempre consi-
derá-la como legítimo representante na Terra do Cristo e, por conseguinte, que devemos tratá-la como
o faríamos pessoalmente ao próprio Mestre Jesus.
Tolstoi bem o compreendeu em seu conto: "A Visita de Jesus".

A luta titânica da personagem para prevalecer sobre todos os que a cercam é constante e insaciável.
Mesmo nas escolas espiritualistas (para não dizer "sobretudo nelas' ...) manifesta-se com força incal-
culável e renascente.
A tentação vencida pela individualidade (Jesus, vol. 1) ainda não o fora pelas personagens que a ser-
viam. Nas outras atividades (pintura, música, literatura, poesia, técnica, ciência, etc.) o valor de cada
um é avaliável pelos "de fora", que aplaudem, apupam ou ficam indiferentes. No espiritualismo nada
disso se dá. A evolução é INTERIOR, invisível e inapreciável de fora. Só um Mestre que possua o dom
de penetrar no âmago dos discípulos poderá dizer qual o melhor (ou "o maior", no dizer do texto
evangélico). As exterioridades enganam. Ninguém pode julgar ninguém nesse campo: "não julgueis e
não sereis julgados" (Mat. 7:1 e Luc. 5:37; vol. 2).
Exatamente contra esse preceito investiram as personagens (discípulos) ao darem acolhida em seus
corações à ambição de cada um ser "o maior".
No sentido profundo é indiferente que o tema parta da personagem, que pretenda enaltecer-se diante
da individualidade, ou desta, que resolva ensinar o caminho certo àquela. O que vale é a lição que
recebemos, definitiva e clara.
Que é, em última análise, a personagem transitória diante da individualidade eterna? Um recém-
nascido a balbuciar sons desconexos! ... Com o exemplo dado - a criancinha - está evidente o ensino:
se a personagem não se diminuir, não se miniaturizar, não poderá ser dado o "mergulho" dentro do
"reino dos céus", ou seja, do coração. Essa miniaturização tem que ir até a grandeza de um ponto

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adimensional, embora isto signifique precisamente infinitizar-se, pois também o infinito é adimensio-
nal.
Difícil em linguagem daquela época, uma explicação assim clara. Mas o exemplo dado não deixa mar-
gem a dúvidas e as palavras também são de limpidez absoluta: há necessidade de modificação, de vol-
tar a ser como as criancinhas: sem isso NÃO SE PODE penetrar no coração para unificar-se com o
Cristo Interno.
O maior ou menor será julgado em relação AO REINO DOS CÉUS, isto é, à maior ou menor unifica-
ção com o Cristo, e não em relação a dons e faculdades da personagem. Não são a agudeza intelectu-
al, o desenvolvimento da cultura, as atividades mentais nem físicas, a força emocional, os dons artísti-
cos, numa palavra, não são as qualidades personalísticas que decidirão sobre a grandeza de uma cri-
atura, mas única e exclusivamente seu grau de união com o Cristo é que medirá sua evolução. Daí
não terem sido escolhidos os expoentes da época para discípulos de Jesus, mas somente aqueles cuja
evolução lhes permitia atingirem o maior grau de unificação com o Mestre único (cfr. Mat. 23:10) de
todos nós.
Desde que se diminua, não terá dificuldade em tornar-se o "servidor de todos" (cfr. Mat. 23:11), o
"diácono" que serve sem exigir pagamento, nem recompensa, nem retribuição, nem gratidão. Servir
desinteressadamente, e continuar servindo com alegria, mesmo se observar indiferença; sem contar os
benefícios prestados, ainda que receba grosserias; sem magoar-se porque, depois de ajudar com sa-
crifício e sofrimento, dando de si, o recebedor passa por nós e não nos cumprimenta, e faz até que nos
não conhece ... Pequenino, diminuído, como invisível micróbio que nos ajuda a viver, oculto em nos-
sas entranhas, e de cuja existência nem sequer tomamos conhecimento.
Realmente assim agem as crianças: prestam favores e não esperam o "muito obrigado": viram as
costas e seguem seu caminho. Servem, e passam.
A segunda parte da lição é valiosa, tanto para as personagens quanto para a individualidade.
Para as personagens, além das interpretações que vimos acima, há outros pormenores a considerar.
Pode tratar-se (e trata-se evidentemente) da acolhida em nome do Cristo das crianças que encontra-
mos abandonadas ou desarvoradas, em qualquer idade física que se encontrem, a qualquer religião a
que pertençam, qualquer que seja a pigmentação da pele (como fez, por exemplo, Albert Schweitzer).
Outra interpretação - e cremos que de suma importância - refere-se às crianças que chegam através
da carne; cada filho que recebemos, em nome ou por causa do Mestre, é como se a Ele mesmo rece-
bêssemos. E ao recebê-Lo é realmente ao Pai que recebemos, pois a Centelha divina lá está naquele
pequenino templo da Divindade. Essa interpretação mostra-nos a linha de comportamento a ser se-
guida pelos discípulos: jamais recusar receber uma criancinha entre nossos braços, e não preocupar-
nos com o caminho por que chegam até nós.
Há ainda a considerar a relação existente entre individualidade eterna (e adulta) e a personagem (re-
cém-criada, infantil) que recebemos a cada nova encarnação. A individualidade tem que receber, em
nome do Cristo que em nós habita, a personagem que lhe advém pela necessidade cármica, aceitando-
a com as deficiências que tiver, e amando-a com o mesmo amor; sabendo perdoar-lhe os desvios e
desmandos que servirão maravilhosamente para exercitar a humildade; educando-a e dirigindo-a
pelo melhor caminho que lhe proporcione evolução mais rápida; compreendendo que a personagem
reproduz EXATAMENTE a necessidade maior do Espírito naquele momento da evolução, e portanto
sem rebelar-se contra qualquer coisa que lhe não pareça perfeita e que lhe traga dificuldades e emba-
raços.
Mais. Na linguagem iniciática, o trecho assume novos matizes.
Consideremos a Escola Iniciática que Jesus criara para os doze, revelando-lhes, de acordo com o
grau evolutivo de cada um, os "mistérios" que viera desvendar.
Nas antigas Escolas, os graus eram comparados às idades das criaturas. Assim, a pergunta dos discí-
pulos como relata Mateus, visava a conhecer qual o caminho para atingir as mais altas culminâncias

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da perfeição; quais as características dos maiores na senda evolutiva. E Jesus vê-se constrangido a
esclarecê-los. Leva em conta que três deles (Pedro, Tiago e João) estão em grau mais elevado que os
outros, pois cursavam o quarto plano iniciático (em nossa hipótese); ao passo que os demais estavam
em planos mais baixos, talvez ainda no terceiro ou no segundo nível.
Serve-se, então, da terminologia típica das iniciações nos mistérios gregos (mais uma vez) e recorda-
lhes que o primeiro passo é o da "infância", segundo essa terminologia: CRIANÇAS (iniciantes dos
primeiros planos) quando ainda estavam em busca do "mergulho" e da "confirmação"; HOMENS
FEITOS, os iniciados que já haviam superado o terceiro grau (vencendo as tentações e dominando a
matéria) e o quarto grau (obtendo a união com o Cristo Interno); esses eram chamados também
"perfeitos" (teleios) ou "santos" (hágios).
Para confirmar o que afirmamos, basta ler 1.° Cor. 3:1-3; e 13:11, e também Ef. 4:13-14: "até que
todos cheguemos à unidade da fé, e do pleno conhecimento do Filho de Deus, ao estado de homem
feito (ou perfeito), à medida da evolução plena do Cristo, para que não sejamos mais meninos, joga-
dos de um lado para outro, e levados ao redor por todos os ventos de doutrina, etc.".
Recordemo-nos, ainda, da conhecida pergunta da Esfinge, sobre as três idades do homem.
Nessa interpretação, "tornar-se como criancinha" é rejeitar toda cultura externa, toda "a sabedoria
do mundo, que é estultice" (1.ª Cor. 3:19), para recomeçar a caminhada em outra direção; diríamos
ainda: fazer tábula rasa de tudo o que se aprendeu, a fim de poder penetrar os segredos dos "mistéri-
os do reino". Com efeito, se alguém pretender entrar na Escola Iniciática da Espiritualidade Superior,
trazida por Jesus, a primeira coisa a fazer é tomar-se como criança intelectual, nada sabendo da sa-
bedoria deste eon, para poder reaprender tudo de novo, como as crianças fazem, da Vida Espiritual,
conquistando, dessarte, a verdadeira sabedoria de Deus.
Notemos ainda que os três evangelistas empregam o verbo déchomai, que se traduz "receber", mas no
sentido de "ouvir", aceitar (um ensino) (cfr.Lidell & Scott, "Greek-English Lexicon", ad verbum). Não
se trata, pois, só de "receber como hóspede em casa", mas de "aceitar o ensino" (cfr. o termo corres-
pondente em aramaico, Kabel). Teríamos: quem aceitar o ensino de um desses meus discípulos (que se
tornaram criancinhas) por minha causa é como se a mim mesmo ouvisse e aceitasse; e quem aceitar
um ensino eatá aceitando o ensino do Pai que me enviou.
Responsabilidade pesadíssima dos intérpretes da Boa-Nova!

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C. TORRES PASTORINO

TOLERÂNCIA

Marc. 9:38-41 Luc. 9:49-50

38. Perguntou-lhe João, dizendo: "Mestre, vi- 49. Tomando a palavra, João disse: "Mestre,
mos alguém expulsando espíritos atrasados vimos alguém expulsando espíritos atrasa-
em teu nome e lho proibimos, porque ele dos em teu nome, e lho proibimos porque
não nos acompanha". não nos acompanha.
39. Mas Jesus disse: "Não lho proibais. Pois 50. E disse Jesus: "Não lho proibais, pois quem
ninguém há que faça trabalho em meu não é contra vós, é por vós".
nome, e possa logo depois falar mal de mim.
40. Quem não é contra vós, é por vós.
41. E quem vós der de beber um copo de água
em (meu) nome, porque sois de Cristo, em
verdade vos digo, de modo algum perderá
sua retribuição".

As últimas palavras de Jesus, "receber em meu nome", fizeram que João se recordasse de um episódio
que com ele se passou, embora não possamos saber a ocasião nem o local, que os narradores silencia-
ram.
Sabemos, realmente, que a tolerância não era a característica fundamental, naqueles primeiros anos
ardorosos de juventude, de João e de seu irmão Tiago (cfr. Luc. 9:54), tanto que Jesus os apelida de
"filhos do trovão" (cfr.Marc. 3:17).
Foi-lhes chocante, pois, e aborreceu-os fortemente o fato de uma criatura, que não seguia o Mestre,
expulsar um obsessor em nome de Jesus: Imediatamente eles se aproximaram e o proibiram de conti-
nuar com esse "abuso". Julgavam que, com isso, estavam defendendo a honra do Mestre querido, e, ao
mesmo tempo, pretendiam garantir para si e para seus companheiros, o "privilégio" do uso exclusivo
do nome de Jesus, como um monopólio religioso ... Essa mentalidade teve (e tem!) numerosos segui-
dores, sobretudo na Idade Média e nos tempos que se lhe seguiram, não se conseguindo, porém, até
hoje extirpá-la totalmente, entre os cristãos de todos os matizes.
Pela frase de João temos a impressão de que esse exorcista operava com êxito, coisa que não ocorreu
com os filhos do sacerdote Ceva (Cfr. At. 19:13-16) que fracassaram na tentativa com o mesmo nome
de Jesus. Naquela época eram realmente numerosos os exorcistas, judeus e não-judeus, que se fixavam
em certos locais ou perambulavam pelas cidades, exercendo essa profissão.
Com a ordem de Jesus, de que fossem recebidas as crianças em Seu nome, João sente que talvez tenha
agido precipitadamente, e pede a opinião do Mestre, que a dá com franqueza, ensinando que se deve
olhar a intenção, e que esta não deve ser prejulgada má à primeira vista.
A frase de João, que mantivemos na tradução: "e lho proibimos porque não nos acompanhava" (kai
ekôlyomen autòn, hóti ouk êkoloúthei hêmin) baseia-se nos códices aleph, E, delta, theta, e é seguida
por Vogels, Swete, Huby, Pirot e outros.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

A regra de Jesus é clara; "quem não é contra vós, está do vosso lado: é a vosso favor"; e torna-se evi-
dente que, se alguém trabalha em nome de Jesus, não pode, logo a seguir, falar mal dele. Realmente, só
o fato de usar o nome de Jesus prova bem que é ou pelo menos pretende ser, seu discípulo.
E para salientar que não há necessidade de "seguir" a doutrina, mas basta um simples ato de humani-
dade para atrair bênçãos, acrescenta uma imagem corriqueira da vida diária: basta que vos dêem um
copo d'água em meu nome, porque sois de Cristo.
Aparece o possessivo "meu" em aleph, C2, D, X, gama, delta, e pi2. Outra observação; aqui é o único
passo dos sinópticos em que "Cristo" aparece sem artigo; só mais tarde, em Paulo, é que o encontra-
mos assim (cfr. Rom.8;9; l.ª Cor. 1; 12 e 3:23; 2.ª Cor. 10;7).

A preocupação máxima da personagem egoística, que vive e vibra no mundo divisionista da matéria, é
manter ciosamente os "direitos" conquistados. Ignora que "onde começa o direito, termina o amor"
(Pietro Ubaldi). A individualidade, que sabe e reconhece que é una com o Cristo Cósmico e portanto
com todas as individualidades que existem, é que ama sem limitações de "direitos", conhecendo ape-
nas humilde e desprendidamente seus deveres do serviço.
A lição, pois, procede plenamente. Vemos a personagem humana, exaltada pelo ciúme (que frequen-
temente se camufla com o eufemismo de "zêlu") a protestar e perseguir, sob a alegação de que não
pode falar e agir em nome do Mestre quem não for seguidor da escola que os homens regulamentaram
e impuseram como sendo a única que é "dona" de Jesus, muito embora na prática venham a contradi-
zer os ensinos teóricos do Mestre. Tudo isso, porém é sobejamente conhecido, para que percamos
tempo em comentários.
A lição diz-nos que devemos superar todas essas divisões, considerando correligionários e irmãos
todos os que falam, pregam e agem em nome de Cristo, embora em línguas diferentes ou sob outras
formas verbais. Cristo é um só manifestando-se através dos grandes avatares: Mesquisedec, Rama,
Hermes, Crishna, Gautama o Buddha, Quetzalcoatl, Jesus, Bahá'u'lláh, Ramakrishna, ou qualquer
outro. CRISTO revelou-se sempre e ainda se revela universalmente a todas as criaturas, em todas as
latitudes e meridianos, em todas as épocas, em todos os idiomas, embora os homens. O interpretem
segundo suas capacidades pessoais (são personagens) e portanto traduzam Seu pensamento dentro do
estilo e do idioma, dos hábitos e das tradições folclóricas, do adiantamento cultural e das limitações
de compreensão; dessa forma, parece aos que estão demais apegados à personalidade e não são ob-
servadores, que cada grupo humano segue uma senda diferente dos outros: são, pensam eles, "outras"
religiões ... são adversários ... antagonistas ... diabólicos ... E cada grupo SE atribui a única e total
posse da verdade, classificando todos os outros no "erro" ... São crianças, que não alcançam a com-
preensão adulta do Homem feito, o qual já percebe, pela individualidade, que TODOS os caminhos
levam ao mesmo e único Deus que habita DENTRO DE TODOS indistintamente, de qualquer religião
que seja. E o único testemunho que apresentam a favor dessa "propriedade", é a palavra deles mes-
mos: eles SE DIZEM donos do "Deus verdadeiro", e ai de quem não acreditar neles!
Quando a humanidade tiver evoluído suficientemente para superar a fase materialista e divisionista das
personagens transitórias, ela compreenderá que “tudo está cheio de Deus" (pánta plêrê theôn, Aristó-
teles, Anima, 4.5,411 a 7 ), e que o caminho que leva a religar-nos a Deus, é o CRISTO UNIVERSAL
(Cósmico), sob qualquer das denominações por que Se tenha manifestado a nós, em qualquer época,
em qualquer clima: "Eu sou o CAMINHO da Verdade (Pai) e da Vida (Espírito-Santo) (João, 14:6).
Só através do Cristo Cósmico teremos a verdadeira união fraternal de todos ("todos vós sois irmãos",
Mat. 23:8), a verdadeira e real "união de todos os crentes", sob a Chefia não de um homem - por mais
rico que seja, por mais prestigiado, por mais luxuosas suas roupas, por maiores seus palácios, por
mais pomposos seus ritos, por mais numerosos, unidos e hierarquizados seus súbditos - mas sob a
Chefia DO CRISTO, que diretamente age no âmago de cada criatura, a insuflar-lhe humildade, har-
monia e amor.

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C. TORRES PASTORINO
A lição da tolerância é o passo inicial da lição da compreensão total, que a todos FUNDE no amor.
Passo inicial, porque "tolerar" supõe ainda pretensa superioridade em quem "generosamente" tolera,
embora a contragosto. O passo final é a fusão, a unificação de todos - cada qual permanecendo em
sua própria linha evolutiva - no grande rebanho, com o único Pastor, o CRISTO: "EU SOU O BOM
PASTOR" (João, 10:14-16).
Todos aqueles que não se opõem frontalmente ao trabalho crístico são a ele favoráveis, porque, se
não ajudam, pelo menos não obstam à tarefa.
No entanto, qualquer ajuda (um copo d'água que seja a quem ainda está no caminho, será recompen-
sada, desde que a intenção seja a de cooperar com o irmão, por ser ele de Cristo. Não de um Cristo
particular, determinado, mas sem artigo, com a generalidade da indeterminação: DE CRISTO.
Quando o homem deixa de pertencer a si mesmo, no egoísmo separatista e passa a ser DE CRISTO
(Cfr, 1.ª Cor. 6:19-20), começa aí, realmente, o caminho intérmino e maravilhoso, cheio de amor e
inçado de espinhos e dores; começa aí sua crucificação consciente na carne, que lhe já não constitui o
máximo de prazer, mas que se torna a "gaiola", embora dourada, que o impede de voar; começa aí a
verdadeira porta da iniciação, e por isso o Cristo afirmou: "Eu sou a PORTA" (João, 10:7), a porta
que leva ao "caminho", o caminho que leva à Verdade, a Verdade que leva à vida, na gloriosa ascen-
são que nos unifica a Ele, que nos harmoniza sintonicamente ao Som do Verbo, que nos transforma
em luz ao mergulharmos na Fonte Incriada da Luz do Espírito-Santo.
Perspectiva de infinito, que principia quando "voltarmos a ser crianças", e tem seu ponto de fuga na
eternidade da Vida.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

CONVERSA COM OS IRMÃOS

João, 7:2-9
2. Estava próxima a festa dos judeus, a das cabanas.
3. Disseram-lhe então seus irmãos: "Parte daqui e vai para a Judéia, para que também
teus discípulos vejam as obras que fazes,
4. pois ninguém faz nada em segredo e procura ele mesmo estar em público. Se fazes es-
sas coisas, manifesta-te ao mundo".
5. Pois nem seus irmãos acreditavam nele.
6. Disse-lhes, então, Jesus: "Minha época ainda não está presente; mas vossa época está
sempre presente.
7. O mundo não pode odiar-vos, mas a mim odeia, porque eu testifico a respeito dele,
que suas obras são más.
8. Subi vós a esta festa; eu não subo a esta festa, porque meu tempo ainda não está com-
pletado".
9. Tendo-lhes dito isto, ficou na Galiléia.

Estamos em fins de setembro ou princípios de outubro do ano 30, já que a festa dos Tabernáculos (em
hebraico hag hasseqot, "festa da cabanas": em grego skênopêgía ou heortê skênôn, "festa das tendas")
era celebrada entre 14 e 21 de Tishri, ou seja, mais ou menos entre 1 e 8 de outubro. Constituía uma
das três grandes solenidades em que os israelitas eram obrigados a ir a Jerusalém.
A festa foi estabelecida e regulamentada em Êxodo (23:15-16 e 34:22), no Levítico (23:34-42), no
Deuteronômio (16:13-15) e em 2.º Esdras (8:14-17) e tinha duplo objetivo: agradecer as colheitas do
ano (Êx. 23:16) e comemorar a longa estada dos israelitas no deserto, onde habitavam em tendas (Lev.
23 :43). Durante os oito dias eram feitas ofertas especiais (Núm.29:12-38).
Os homens dirigiam-se a Jerusalém carregando ramos de oliveiras, mirta, palmeiras, cidra ou salguei-
ro, cantando a palavra Hosanna (Salmo 118:25) "salva agora" ou "salva-nos, te pedimos", seguida da
expressão "Bendito o que vem em nome de YHWH" (Salmo, 118:26).
Durante os dias da festa (todos eles "feriados"), os israelitas saíam do conforto de seus lares, indo ha-
bitar em cabanas improvisadas nos campos, nas praças, nas ruas ou nos terraços das casas (Núm. 8:14-
:17). No templo, o altar dos holocaustos era molhado com água da fonte de Siloé, implorando-se boas
chuvas. Realizavam-se procissões, sendo a cidade enguirlanada de flores e luzes e alegrada com músi-
ca. No tempo de Flávio Josefo (Ant. Jud. 7.4.1) era considerada a "maior e mais santa festa do ano"
(heortê sphroda parà tois hebraiois hagiôtátê kai megístê).
Ora, num ambiente desses, e evidente que surgiam muitas desordens, tumultos, aglomerações ruidosas
e ocasiões para propagandas políticas e religiosas. Os irmãos de Jesus acharam que essa era a "época
ideal" para que ele se manifestasse ao mundo (kósmôi).
Quais seriam esses "irmãos"? Cremos devam ser excetuados Tiago e Judas (Tadeu) que O seguiam,
restando Simão (seria esse o "zelotes"?) e José, todos nominalmente citados em Mateus (13:55). Mas
desses falam, sem declarar-lhes os nomes também os outros (cfr. Mat. 12:46,47; Marc. 3:31,32; Luc.
8:19,20; João, 2:12) citando ainda "irmãs" (Cfr. Mat. 3:.56 e Marc.6:3).

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O raciocínio deles (dos que "não criam nele") é bem humano: Jesus teimou em prosseguir com sua
campanha, contrariando-lhes a opinião "sensata" (cfr. Marc. 3: 21,31-35) e parecia realmente possuir a
capacidade de "levantar" as multidões e de realizar curas espetaculares; por que, então, ficar restrito a
uma provinciazinha sem expressão? por que não aproveitar seus dotes, e, ao invés de permanecer "es-
condido" (en kryptôi) não "falar abertamente (en parrêsíai) diante das grandes multidões que subiam a
Jerusalém, a capital do país? Nesses conselhos transparece, sem dúvida, a vaidade deles: ter "na famí-
lia" um elemento que se destaca, que chama sobre si a atenção e, por natural reflexo, sobre todos eles,
enaltecendo-os diante do povo.
Mas Jesus recusa ir à festa e afirma que o momento não é oportuno: "minha época ainda não está pre-
sente" (oúpô párestin). Eles, todavia, podem ir a Jerusalém quando quiserem, pois a "época deles está
sempre presente".
A afirmativa de Jesus é categórica, não deixando margem a dúvidas, nem permitindo insistências: "não
subo" (ouk anabaínô), conforme se lê em aleph, D, pi, a, b, c, e, ff2, na Vulgata na tradução siríaca
curetoniana, em Jerônimo, , Epifânio, João Crisóstomo, etc. Bem melhor que oúpô anabaínô ("não
subo ainda"), evidente correção de B, L, delta, W, N, theta, f e g, provavelmente para afastar qualquer
idéia de que Jesus estivesse dissimulando ou mentindo.
Com o mesmo objetivo, certos hermeneutas envidam esforços, para explicar que a expressão ouk ana-
baínô eis tên heortên taútên exprime "não vou em comitiva a esta festa". Confessamos não perceber
absolutamente esse "sentido oculto" em palavras tão claras. No versículo 10 (veja o próximo capítulo)
é que aparece esse sentido, quando o evangelista afirma que Jesus foi à festa "não abertamente" (ou
phanerôs), "mas às ocultas" (allà en kryptôi).
De fato, não era interessante para Jesus chamar sobre Si a atenção das autoridades, que tão grande má-
vontade demonstravam a Seu respeito. Ora, se acompanhasse os galileus na marcha, não conseguiria
chegar incógnito a Jerusalém: todos os Seus conterrâneos O conheciam de sobra e, orgulhosos Dele,
seriam os primeiros a anunciar-Lhe a presença, provocando talvez tumultos e discussões extemporâ-
neas.
Por isso Ele não partiu. Com a comitiva, seguiram para o sul Seus irmãos, afim de cumprir suas obri-
gações. Mas Ele permaneceu na Galiléia. No entanto, seu atraso não foi além de quatro dias.
Pormenores aparentemente sem importância, fatos corriqueiros, situações comuns, revelam, se ocorri-
dos com Avatares, ensinamentos e lições sublimes.
Começa o evangelista anunciando a proximidade da festa dos "judeus” (os religiosos que ainda vibram
na personalidade). Essa festa, diz João, era "a dos Tabernáculos" (tendas ou cabanas). O significado
simbólico desse termo é-nos revelado por Pedro (2.ª Pe 1:13-14) e por Paulo (2.ª Cor. 5:1,4), referindo-
se à permanência do Espírito na carne, como que estando a habitar em "tendas" ou "tabernáculos de
viagem". Compreendemos, então, que uma alusão direta à "festa dos Tabernáculos", com as palavras
exatamente nesta ordem: "a festa dos judeus, a dos Tabernáculos", encerra uma lição: tratava-se de
uma comemoração religiosa de seres encarnados, ainda moradores nos "tabernáculos de carne".
Além disso confirmando tal interpretação vemos que essa festa celebrava precisamente a estada demo-
rada dos israelitas no "deserto", isto é, a longa e repetida demora no deserto das encarnações terrenas.
Por ocasião dessas solenidades, os veículos personalísticos sugerem sempre à individualidade uma
aparição espetacular que impressione as massas: se o Espírito tanto fala das belezas do reino, e tanto se
aprofunda nos arcanos, e tão espetaculares maravilhas realiza em seus êxtases, por que tudo isso não é
executado perante as multidões, para que seja glorificado por todos? Por que não "manifestar-se ao
mundo"?

A resposta do Espírito é profunda, dividindo-se em três partes.


Em primeiro lugar, assegura que sua época não está presente, embora para as personagens esteja
sempre presente, pois vivem em seu próprio ambiente, na Terra. O "tempo", para o Espírito, é dife-

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SABEDORIA DO EVANGELHO

rente. Enquanto as personagens transitórias estão presas a "dias, meses, tempos e anos" (Gál. 4:10),
isto é, se prendem a datas e comemorações prefixadas, o Espírito estabelece seus passos de acordo
com sua escala evolutiva (na definição perfeita de Pietro Ubaldi, Grande Síntese, cap. 29: "tempo é o
ritmo evolutivo"). A personagem marca seus dias em preto e vermelho no calendário e a eles se sub-
mete, o Espírito consulta, ao invés, as necessidades da subida, o momento oportuno, sem dar impor-
tância a datas fixas.
Em segundo lugar, esclarece que as personagens jamais são odiadas pelo "mundo", porque a ele se
conformam, já que a ele pertencem de fato e de direito, até mesmo pelos materiais que dele retiraram
para construir seus veículos físicos. Já ao Espírito, o mundo aborrece, chegando até a odiá-lo, porque
o Espírito "testifica que suas obras são más"; demonstra o erro de suas crenças e convenções, o der-
ruba seus ídolos de ouro; prova a falacidade de suas ilusões mais caras, a transitoriedade de seus
bens mais sólidos, a sem-valia de suas glórias mais heróicas. Ora, o mundo persegue de morte os que
lhe patenteiam as fraquezas, que justamente ele considera sua força, as mentiras que são julgadas
verdades, os enganos fantasiosos que são louvados como realidades "palpáveis".
Em terceiro lugar, o Espírito declara que não atenderá às exigências das personagens, já que não
precisa sujeitar-se às religiões organizadas ("Judéia"); e por isso ele permanecerá no "Jardim Fecha-
do" ("Galiléia") da espiritualidade superior a todas as religiões. Para que precisa de estradas o avi-
ão? A essas festas estão presas as personagens encarnadas, com sua adoração externa a um deus ex-
terior, mas o Espírito unido ao Deus Interno é livre, pois "onde há o Espírito de Deus, aí há liberda-
de" (2.ª Cor. 3:17) e não submissão a regras, preceitos e preconceitos humanos.
A razão dada é real: não subo A ESSA FESTA (o Mestre não diz que não subiria a Jerusalém). E não
foi mesmo: foi a Jerusalém, mas NÃO PARA A FESTA: lá esteve para divulgar Seu ensino ao povo;
não carregou, ramos de árvores, mas levou as flores perfumadas de Seu coração amoroso; não fez
sacrifícios de animais, mas ofereceu Seu próprio serviço como holocausto agradável; não participou
da festa, mas condoeu-se das trevas da ignorância e acendeu Sua luz, mesmo com risco de ser assas-
sinado, porque ficava mais visado na escuridão reinante.
Esse é o caminho do Espírito, essa sua tarefa entre as criaturas escravizadas às personagens efême-
ras, mas que grande orgulho provocam nos seres iludidos pelo desconhecimento das Realidades Espi-
rituais.

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C. TORRES PASTORINO

VIAGEM A JERUSALÉM

Mat. 19:1 Luc. 9:51 João, 7: 10

1. E aconteceu, quando Jesus 51. Em se completando, porém, 10. Mas quando seus irmãos já
acabou esses ensinos, partiu os dias de sua elevação, tinham ido à festa, então ele
da Galiléia e veio para a aconteceu que ele fortale- também foi, não aberta-
fronteiras da Judéia, além ceu sua personagem para ir mente, mas às ocultas.
do Jordão. a Jerusalém.

Os três dizem a mesma coisa, mas cada um revela um pormenor significativo.


Em Mateus é a primeira vez que Jesus vai à Judéia, onde só estivera (segundo ele) duas vezes: no nas-
cimento (2:1) e no mergulho do Batista (3:1, 13). É que esse evangelista organizou sua narrativa de
forma a dar todos os acontecimentos da Galiléia de seguida, para depois fazer o Messias seguir para
Jerusalém definitivamente, lá ficando até ser crucificado. Sabemos que não havia preocupação crono-
lógica nem histórica: estavam sendo escritos livros de ensinamentos para iniciação dos que desejavam
aprofundar-se na Escola de Jesus.
Entretanto, anote-se que em Mateus é dito que Jesus foi "para além Jordão" (a Peréia ou Transjordâ-
nia), pois atravessou o Jordão, que é o limite leste extremo da Judéia.
Depois desta viagem, Jesus ainda volta à Galiléia, subindo a Jerusalém mais duas vezes (a 1.ª dada em
Luc, 13:22 e João 7:1 a 10:39: a segunda em Luc, 17: 11 e João, 11: 8), até que segue definitivamente
(Luc. 18:31 e João 11:55). Mateus, porém, além da vez aqui citada, só relata a viagem definitiva
(20:18).
Em João, é afirmado que Jesus vai a Jerusalém (está escrito “a festa”, mas, como vamos verificar só
compareceu para ensinar no Templo). E sua viagem é feita “às ocultas”, isto é, em particular, não em
caravana.
Lucas é que apresenta aqui a frase reveladora que, por ser bastante clara, trouxe sempre aos herme-
neutas dificuldades de tradução. Observemos.
A primeira frase: "quando se completaram (literalmente: “ao se completarem") os dias de sua eleva-
ção” (en tôi symplêroústhai tàs hêméras têsanalépseôs autoú) traz discussões quanto à palavra analép-
sis (ou analémpsis). Usado apenas aqui, no N.T., embora apareça o perfeito passivo anelémphthê de
analambánô em At, l:2 e 22: e o particípio aoristo passivo analemphtheis (em Art. 1:11) com os senti-
dos respectivamente de "foi elevado", referindo-se à chamada "ascensão". Esse termo, entretanto, é
usado no Antigo Testamento, quando fala da subida de Elias (2.º Reis, 2:11), na de Moisés (1.º Mac.
2:58 e Eccli. 48:9) e na de Enoch (Eccli. 49:14). Realmente analêpsis exprime "elevação promoção,
suspensão".
A segunda frase: "e fortaleceu sua personagem para ir a Jerusalém" (kaí autòs prósôpon autou estéri-
xe tou poreúesthai eis lerousalêm) é geralmente traduzida por "firmou seu rosto" ou "manifestou a
firme resolução". No entanto, prósôpon, que literalmente significa "face", "rosto", corresponde "o la-
tim "pessoa" ou "máscara" (persona) e portanto especifica a personagem encarnada, designando o todo
pela parte, numa figura de sinédoque. Jesus sabia que iria começar a fase final de sua paixão, e logi-
camente a coragem da parte humana precisava ser fortalecida pelo Espírito, para que se animasse a
enfrentar o cenário dos sofrimentos físicos atrozes.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

A revelação que obtemos na frase simples e despretensiosa de Lucas é de molde a tornar claro o sen-
tido oculto: "tirando o véu" da letra, descobrimos o que realmente houve. Há necessidade de penetrar
pela meditação o sentido, mas a Luz se fará e tudo será visto.
Enquanto Mateus e João se limitam a citar o fato da ida de Jesus a Jerusalém, Lucas, talvez esclare-
cido por Paulo, revela o motivo exato da partida de Jesus do "Jardim fechado" de sua vivenda espiri-
tual, para penetrar no ambiente estreito e fanatizado dos religiosos ortodoxos.
A frase de Lucas, embora incompreensível aos profanos, é clara para os que já viveram essas fases.
Suas palavras: "em se completando, porém, os dias de sua elevação", que tantas dúvidas têm suscita-
do nos hermeneutas, pode ser assim traduzida em linguagem atual: "já tendo, pois, transcorrido os
"prazos de carência" para sua promoção ao grau seguinte".
Todos os passos iniciáticos eram dados controladamente e, entre um e outro, o candidato era obriga-
do a demonstrar o aproveitamento que tivera; mas além disso, era indispensável que respeitasse os
intervalos prefixados, os "prazos de carência" determinados para cada intervalo. Só depois de trans-
corrido o tempo regulamentar, lhe era permitido dar o passo seguinte.
Diz-nos Lucas que terminara o prazo da espera, e chegara a hora de submeter-se à prova para, se
aprovado, passar ao grau seguinte, "ser elevado" ou "promovido". As provas desse passo eram duras,
rudes, dolorosas. E é dito que a individualidade (Jesus) "fortaleceu sua personagem, para que não
esmorecesse e tivesse a coragem de colocar-se entre as mãos daqueles que o fariam passar pelas an-
gústias e aflições da provação violenta a que tinha de submeter-se.

Já tinham sido superadas as fases iniciais:


1.º - Vencera a grande dificuldade do mergulho consciente na matéria, com todos os horrores causa-
dos pelas limitações à liberdade de um Espírito infinitamente superior, como era o de Jesus (vol. 2).
Vencida a prova, tivera a primeira promoção, quando conseguira, na presença do "mestre" João Ba-
tista, dar, enquanto na carne, o mergulho no Espírito (vol. 1).
2.º - O segundo passo, a "confirmação", veio em virtude do adiantamento de seu espírito, nesse mesmo
momento do mergulho, com a epifania, ou "manifestação" da aprovação divina, por meio da frase:
"este é meu Filho, o amado" (vol. 1). Com um ato, superara os dois primeiros graus.
3.º - Para galgar o terceiro, tinha de comprovar o resultado da "metánoia", ou seja, a modificação da
mente. É então submetido às "tentações" ocasionadas pela matéria: vaidade, orgulho e ambição. Su-
perou-as a todas, dando inequívocas provas de superioridade e elevação máxima. Provava na prática
que o Espírito já dominara a matéria totalmente (vol. 1). Podia então dar o passo seguinte.
4.º - O ingresso fora feito com a espetacular manifestação da "Transfiguração", a "ação de graças"
("eucharistía") do homem pela vitória obtida, recebendo a plena efusão do Espírito Divino, com a
aprovação confirmada: "este é meu Filho, o amado, ouvi-lo". Depois desse passo, unido já à Divinda-
de, pode Jesus dar as lições maiores: "minha carne é verdadeiramente comida, e meu sangue é verda-
deiramente bebida" (João, 6:55). Ensinou-o com clareza absoluta e mais tarde, na chamada "última
ceia", iria revelar integralmente o mistério cristão da união com Deus.
Mas agora chegara o momento de preparar-se para as provas dolorosas em que teria que submeter-se
ao violento afastamento dos veículos físicos, para unir-se inteiramente a Deus, num "matrimônio"
místico total e definitivo: "o que Deus uniu, o homem não separe" (Mat. 19:6). Mas, para esse grau
superior, havia necessidade absoluta da "experiência sofrida", o "páthos" ou paixão. Era o ponto cru-
cial, em que mergulharia em cheio na DOR-AMOR, desligando-se violentamente da parte inferior de
seu ser, em holocausto cruento, a fim de libertar a parte superior para a união definitiva com a Divin-
dade no matrimônio indissolúvel.
Diante dessas perspectivas sombrias, a parte física assusta-se, teme e treme, procurando subtrair-se
às provas (coisa que, veremos adiante, ocorre com o homem Jesus no instante decisivo). Tudo isso é

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explicado pelo evangelista com a frase: "fortaleceu sua personagem", para que tivesse a coragem
indispensável de colocar-se espontaneamente entre as mãos dos algozes.
No momento crucial do passo decisivo, quando as forças começam a fraquejar, Ele recorre à prece a
fim de receber novas energias; e as recebe. E impertérrito segue adiante até o sacrifício final. Exem-
plo magnífico para todos nós, revelando que realmente "a carne é fraca" (Mat. 26:41 e Marc. 14:38),
mas que nem por isso devemos esmorecer nem desesperar-nos: os grandes Espíritos também sofrem,
quando na carne, as limitações que a carne impõe a todos.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

FOGO DO CÉU
Luc. 9:52-56
52. E enviou mensageiros diante de sua pessoa. Indo, entraram eles numa aldeia dos sa-
maritanos para preparar (pousada) para ele,
53. mas não o receberam porque sua aparência era a de quem ia para Jerusalém.
54. Vendo isso, os discípulos Tiago e João disseram: "Senhor, queres que mandemos des-
cer fogo do céu para consumi-los, como fez Elias"?
55. Mas voltando-se para eles, repreeendeu-os e disse: "Não sabeis de que Espírito sois, O
Filho do Homem não veio para perder, mas para salvar almas".
56. E foram para outra aldeia.

Trecho privativo de Lucas.


A Samaria era o caminho mais curto entre Cafarnaum e Jerusalém. Mas os samaritanos, que não su-
portavam os judeus, tinham sua raiva aumentada por ocasião das festas, pois achavam que a ida a Jeru-
salém constituía um desprestígio para o culto "verdadeiro" do Monte Garizim. Por saber disso, o Mes-
tre envia uma delegação à sua frente, para consultar se pode ali pernoitar, e a resposta é negativa.
Aqui vemos, novamente, duas vezes empregada a palavra prósôpon: a primeira "diante de sua pessoa",
ou simplesmente "adiante de si"; na segunda tem o sentido de "aparência" que é, em última análise, a
"forma" da personagem encarnada.
Tiago e João, com o ardor juvenil de que dispunham, querem aproveitar-se dos poderes que já recebe-
ram para "queimar a aldeia", o que lhes valeu o jocoso apelido dado por Jesus de “Filhos do Trovão",
(Marc. 3:17). Os manuscritos A, C, D, X e outros, acrescentam as palavras "como fez Elias”, que são
omitidas em aleph, B, L e xi. Realmente fato semelhante é narrado em 2.ª Reis, 1:10-12; mas, em vista
da ausência dessas palavras em alguns manuscritos principais, raciocinam os hermeneutas que elas
devem ter sido acrescentadas, como glosa, pelos marcionitas, para aproveitar o texto e mostrar às cla-
ras a oposição entre o Deus violento e atrabiliário do Antigo Testamento, que queimava cem homens
sem motivo (que culpa tinham eles da maldade do rei?) e o Deus de Jesus, todo bondade e perdão.
De fato, Jesus volta-se para os dois e os repreende, não aceitando a violência. Também aqui é acres-
centado: "e disse: não sabeis de que espírito sois, pois o Filho do Homem não veio para perder almas,
mas para salvar". Também esse trecho, aliás belíssimo, é tachado de marcionismo e rejeitado por her-
meneutas e exegetas.
Tem a frase os códices: D (Beza); E (de Basiléia); F (Boreliano); G e H (sedeliano I e II); K (Cíprio);
M (Campiano); S Vaticano grego 354; U (Naniano); V (de Moscou); gama (Tischendorfiano); theta
(Koridethiano); lambda (oxoniense); pi (petropolitano 11); ómega (athusiano); minúsculo: 579, 700,
1.604, famílias de 1 e de 13; versões: todas as vetus latina (menos 9 1, 1, r2); as siríacas curetoniana,
peschitto, harclense; a copta bohairídica; a armênia; aparece nas obras: Didachê, e em Taciano,
Marcion, Cipriano, Epifônio, Crisóstomo e Ambrósio.
Não existe no papiro 45, nos códices aleph (sinaítico), B (Vaticano grego 1209); C (Efrem); L (cíprio
II); T (Borgiano); W (Freeriono); Z (de Dublin); delta (de S. Galiano); psi (athusiano) e nos minús-
culos: 33, 892 e 1241.
Depois, com toda a naturalidade, dirigem-se a outra aldeia para pernoitar.

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C. TORRES PASTORINO
Mas ficou registrada uma lição preciosa, infelizmente pouco seguida até hoje por aqueles mesmos que
se dizem cristãos: a lição do perdão absoluto, sem discussão; a lição da não-violência, da ahimsa, do
seguir adiante sem sequer molestar-se com a incompreensão, com as recusas, com as ofensas dos ou-
tros. Nada de retribuir o mal com o mal: calar e seguir em frente, sem aborrecer-se com os que não
querem colaborar. Sobretudo, nada de vinganças. O discípulo do Cristo não pertence a esse "espírito"
de desforço, de represália, de revide. Ofendido, passa além, tranquilo: não foi dele o erro. E o erro dos
outros, não no atinge.
O Filho do Homem não veio à Terra para castigar ninguém: é um prenúncio da frase: "Pai, perdoa-
lhes: "não sabem o que fazem" (Lc . 23:34). Assim, qualquer cristão tem a tarefa específica de ajudar
sempre, sem jamais condenar: "não condeneis e não sereis condenados" (Luc. 6:37). É o exemplo vivo
e prático das lições teóricas.

Diante das perspectivas dos grandes e dolorosos acontecimentos que estavam para vir, Jesus dá uma
lição prática: ao encaminhar-se do "Jardim fechado" do Espírito para o centro da religiosidade orto-
doxa, quer ensinar aos discípulos a necessidade imprescindível da vigilância ("Samaria").
No entanto, mesmo encaminhados ao monte da Vigilância, demonstram quão longe ainda se encon-
tram do ponto desejável, e à primeira contrariedade - leve, se levarmos em conta o que viria em se-
guida - reagem de maneira violenta, sugerindo destruição e morte. E se a ofensa foi de alguns, o cas-
tigo terá que recair sobre todos: descer fogo do céu sobre a totalidade das coisas e das criaturas. E
esse ato de vandalismo é " justificado" com fatos e palavras das Escrituras ... Elias não fez o mesmo?
A personagem humana, limitada e separada de todas as demais criaturas pela "forma" material do
corpo, opõe o "eu" ao "não-eu"; e mais adiante opõe o "eu e meus amigos" a tudo mais que está fora
do círculo fechado, tudo o que é "externo". Daí a ardorosidade da defesa do "eu" e do "grupo", jul-
gando-se adversários e inimigos tudo o que está extra-muros. E qualquer ofensa, precisa ser retribuí-
da com sangue, fogo, destruição e morte ... ou, pelo menos, com a indiferença do desprezo e da inimi-
zade disfarçada com sorrisos hipócritas ...
Na individualidade, o conhecimento já se fez. Sabe-se que o Espírito que anima os “samaritanos" é o
mesmo Espírito que reside nos "judeus". A oposição é apenas temporária e aparente, personalística.
Então, tudo é superado com o bom-senso adulto de quem conhece a realidade, e sabe que nada pode
prejudicar-nos, "tudo concorrendo para o bem daqueles que amam a Deus" (Rom. 6:28).
Ao contato com a realidade objetiva terrena, a vigilância fraqueja. E a individualidade avisa que eles
não sabem ainda a que “Espírito" pertencem: pensam que são personagens terrestres, dominadas
pelo espírito egoístico divisionista, opositor do Espírito superior divino. Mas, de fato, já não mais
pertencem à inferioridade da personagem, e sim à universalidade do Espírito Divino: ao Espírito do
Universo, Uno e Indivisível.
E quando se chega a esse estágio, não mais se deseja “perder", isto é, castigar, quem quer que seja:
procura-se, antes. "salva”, ou seja, elevar as criaturas à mesma união com a Divindade.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

OPINIÕES DESENCONTRADAS
João, 7;11-13
11. Os judeus, então, procuravam-no na festa e perguntavam: "onde está ele"?
12. E grande murmuração havia a respeito dele entre as multidões. Uns diziam: “Ele é
bom". Diziam outros; "Não, antes engana o povo".
13. Entretanto, ninguém falava dele abertamente, por medo dos judeus.

Texto privativo de João.


Quando este emprega o epíteto "os judeus", refere-se exclusivamente às autoridades constituídas da
religião israelita, que então dominavam; jamais às massas, ao povo. Aqui é dito que estas "o procura-
vam" nas comitivas dos galileus. E mostraram-se decepcionados ao não encontrar o operário carpintei-
ro que tanta celeuma levantava.
As opiniões divergiam profundamente, uns julgando-o bom, outros um impostor. Ninguém ousava,
contudo, manifestar de público sua opinião (cfr. 7:26; 16:29; 18:20) porque era grande o medo dos
"principais sacerdotes" (cfr. 9:22; 12:42) que tinham sentenciado a morte de Jesus, sob pretexto de
blasfêmia (5:18).
O sacerdócio que então dominava e o Sinédrio, em sua maioria, estavam comprometidos com Roma,
por cujo intermédio haviam conseguido suas posições políticas de mando. Desde o domínio romano
(63 A.C.). as "raposas" herodianas (cfr. Lc. 13:22) tinham comprado aos dominadores os cargos, e
estes haviam afastado as autoridades legítimas, substituindo-as por elementos "de sua confiança", dis-
postos a qualquer transação, mesmo de consciência, contanto que não perdessem suas posições de
destaque. Contra esses levantava Jesus sua voz (cfr. Mat. 23:13-29 e Lc. 11:39-43).
No entanto, o povo judaico aceitava o Mestre, tanto que as autoridades vendidas aos romanos tinham
muito cuidado em não por suas mãos sobre Jesus "diante do povo", pois sabiam que este defenderia
com ardor o seu taumaturgo: prisão, pseudo-julgamento castigo e morte foram realizados quase às
ocultas, durante a noite e a madrugada, para que o povo ficasse diante do fato consumado, sem poder
reagir.
Estabeleçamos, pois, claramente: "OS JUDEUS", em João (e Pedro), são as autoridades que, àquela
época, usurpavam as principais posições politico-religiosas de mando, NÃO O POVO.
Neste episódio também descobrimos o lado oposto: o povo que não se manifestava abertamente, com
medo dos sacerdotes mais influentes, que já haviam excomungado Jesus e podiam tomar atitudes drás-
ticas sobre aqueles que exteriorizassem sua simpatia pelo galileu. Nas brigas de gigantes, os pequeni-
nos recebem a pior, pois a corda arrebenta sempre do lado mais fraco.

Mostra-nos aqui João o que acontece a todos os "espirituais", quando entram em contato com os "ter-
renos". Nesses encontros, aparece a grande diferença entre "psíquicos" e "pneumáticos". Qualquer
criatura que passe a viver na individualidade, demonstrando por seus atos - mesmo sem qualquer in-
tenção ostensiva - que compreende o mundo de modo diverso da maioria, ocasiona de imediato dis-
cussões e cria pelo menos dois partidos opostos: os "a favor" e os "contra"; os que o adoram, por ve-
zes, até a fanatismo, e os que não acreditam e o combatem até com a calúnia.
Aliás, nem sequer é preciso SER "espiritual" para provocar esses choques: quantos se limitam a falar
de espiritualidade, a emitir opiniões até calcadas sobre outros, a imitar vestes, barbas, gestos, cita-

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ções, atitudes (cfr. Mat. 23:5) e imediatamente arrastam em suas pegadas pequenas multidões que
nele vêem o máximo, o melhor, o "santo". Mas também outros, de logo, assumem atitude oposta, e não
o poupam em suas diatribes.
Esse é o quadro descrito em rápidas e vivas pinceladas por João, quadro que se vem reproduzindo,
em clichê, por todos os séculos, até nossos dias.
Não devem assustar, portanto, - se somos sinceros - a assuada do combate nem a conjuração do silên-
cio, os ataques soezes e as calúnias: são normais. Até pelo contrário: se combatidos e caluniados pelo
maior número, teremos a certeza de estar com o Mestre (cfr. Mat. 10:25). E se muito aplaudidos pelas
multidões, é porque talvez. estejamos sintonizados com "este eon", com o pólo negativo, com o Anti-
Sistema.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

AINDA A CURA NO TEMPLO


João, 7:14-24
14. Ora, estando a festa já em meio, Jesus ao Templo e ensinava.
15. E os judeus maravilhavam-se, dizendo: "Como sabe este as Escrituras sem ter apren-
dido"?
16. Jesus respondeu-lhes e disse; "O meu ensino não é meu, mas daquele que me enviou;
17. se alguém quiser executar a vontade dele, saberá a respeito do ensino, se é de Deus ou
se falo por mim mesmo.
18. Quem fala por si mesmo, busca sua própria doutrina; mas quem busca a doutrina
daquele que o enviou, este é verdadeiro e nele não há desonestidade.
19. Não vos deu Moisés a lei? no entanto nenhum de vós executa a lei. Por que procurais
matar-me?
20. Respondeu o povo: "Tens espírito! Quem procura matar-te"?
21. Respondendo, Jesus disse-lhes: "Um só trabalho realizei, e todos vos maravilhais dele.
22. Moisés vos deu a circuncisão (se bem que ela não venha de Moisés, mas dos patriar-
cas) e no sábado circuncidais um homem;
23. pois bem, se um homem recebe a circuncisão no sábado para não violar a lei de Moi-
sés, como ficais zangados comigo, porque no sábado eu tornei um homem inteiramen-
te são?
24. Não julgueis segundo a aparência, mas julgai com discernimento perfeito".

No "meio" da festa dos Tabernáculos (no 4.º dia, isto é, sábado dia 17 de Tishri no ano 30), Jesus subiu
ao Templo para ensinar. Qual tenha sido Sua elocução e sobre que tema haja versado, não sabemos,
pois o narrador silencia. O fato é que todos se admiraram da sabedoria de Suas palavras "cheias de
amor" (cfr. Luc. 4:22) e da segurança e autoridade proveniente de seu interior com que ensinava (cfr.
Mat. 7:29 e Marc. 1:22).
A admiração era espontânea e generalizada; e se faziam uns aos outros a indagação: "como pode co-
nhecer assim as Escrituras, se jamais cursou a Escola Rabínica"? Esse é, realmente, o sentido do vers.
15. Grámata, no grego clássico, exprimia as letras do alfabeto; mas em Jerusalém ninguém estava em
situação de julgar e saber se Jesus havia aprendido a ler e escrever em sua Terra natal. E além disso,
entre os judeus helenizantes, hierà grámata designava as Sagradas Escrituras; e disso os hierosolimita-
nos tinham certeza: Jesus jamais cursara a Escola Rabínica de Jerusalém. Nesse mesmo sentido, João
empregou o termo pouco acima (cfr. 5:47; vol. 3.º, página 176).
Aliás, o trecho que agora comentamos parece ser o prosseguimento imediato da "Cura no Templo"
(João, 5: 16. vol. 3.º 160ss), e do discurso que se lhe seguiu (João, 5:17-47; vol. 3.º, pág. 167ss). Não
aproximamos os dois textos a fim de respeitar a indicação do evangelista que, categoricamente, afirma
ter-se passado o episódio na festa dos Tabernáculos, quatro meses depois. E realmente podia acontecer
que, após esse lapso de tempo, a ocorrência permanecesse tão viva na memória de todos, que facil-
mente voltasse à tona por ocasião do novo discurso de Jesus, naquele mesmo local.
Logicamente a interrogação a respeito da sabedoria de Jesus não foi formulada em voz alta. Mas fácil
de ser percebida pelo Espírito penetrante do Mestre, recebe pronta e adequada resposta: "o meu ensino
não é meu; eu o trago daquele que me enviou; e bastará observar a vontade divina para reconhecê-lo".
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A seguir entra a argumentação psicológica: "quem fala por si mesmo, pretende criar uma doutrina sua
pessoal; mas quem afirma que a doutrina não é sua, e revela a fonte de origem, evidentemente é ho-
nesto, e portanto verdadeiro".
Depois dessa argumentação irrefutável, que capta o favor e a simpatia de todos os de boa-vontade, vem
a pergunta que desperta o auditório: "Moisés vos deu uma lei (que proíbe matar) e vós não observais a
lei, pois me ordenastes a morte". O espanto é geral, já que o público desconhece as maquinações dos
maiorais. E dentre o povo vem a resposta acre: "estás obsedado! quem quer matar-te"?
A frase daimónion échei caracteriza alguém fora de seu juízo, o que, geralmente era atribuído (quando
a pessoa era normal) à incorporação de um espírito perturbado. Diante da sabedoria manifesta e admi-
rável de seus ensinamentos, claro que ele, pessoalmente, não podia ser desequilibrado; qualquer dese-
quilíbrio viria de fora, de algum espírito que o houvesse tomado repentinamente. De qualquer forma, a
frase não tem a maldade revelada pela afirmação pérfida dos fariseus, de que Jesus operava suas curas
por seus poderes de Beelzebul (cfr. Mat. 12:24; Marc. 3:22; Luc. 11:15 e João, 8:48).
Os escribas e sacerdotes, porém, calam, porque sabem que a pergunta do Mestre tem fundamento e
lhes é dirigida. E Jesus, sem responder ao povo (porque teria que fazer revelações perigosas, que pode-
riam ser contradita das facilmente) passa a justificar a cura realizada no templo quatro meses antes.
Essa justificação é feita no puro estilo rabínico, da menor à maior: Moisés ordenou a circuncisão (que
por ele fora recebida dos ancestrais) e os judeus colocavam sua realização rigorosa acima da lei divina
do repouso do sábado. Não havia discordância quanto a esse ponto: "pode-se fazer aos sábados tudo o
que é necessário à circuncisão" ( Sabbath, 18:3). E ainda no 1.º século o Rabino Eleazar Bar Azaria
escreveu: "Se a circuncisão, que toca apenas um dos 248 membros do homem, é mais importante que o
Sábado, muito mais importante se revela ser o corpo inteiro do homem". Esse o acordo geral.
E foi esse, precisamente, o argumento de Jesus: "por que sou condenado, só por ter curado o corpo de
um homem no sábado"?
De fato, se a questão levantada na época fora o fato de o ex-paralítico ter carregado seu leito no sába-
do, e não propriamente a cura, todos sabiam, que o que levara os sacerdotes a condenar Jesus à morte
tinha sido a cura espetacular, que vinha ameaçar-lhes o prestígio. Não querendo confessar as verdadei-
ras razões, por conveniências, haviam-se apegado a um pormenor que desviava a atenção do povo.
E o episódio termina com uma advertência severa: não são as aparências ("não é a carne", dirá mais
tarde, João, 8:15) que devem ser levadas em conta no julgamento de um caso, mas sempre há que ter-
se um discernimento perfeito. A tradução corrente dessa frase contém uma redundância inconcebível:
"julgai segundo a reta justiça" . Haverá alguma justiça "torta"? ou alguma justiça "injusta"? Ora, já
vimos que krísis, literalmente, é o "discernimento", ou a "escolha" entre duas coisas, o que realmente
supõe um “julgamento". Mas passar tên dikaían "o justo", krísin "discernimento" para “a reta justiça",
é colocar nos lábios de Jesus uma incongruência.

O contato do ser que vive no Espírito com as multidões apresenta sempre essa incógnita: como pode
saber tudo isso, se não aprendeu? A cultura intelectualizada da humanidade ainda se encontra no
estágio primitivista da “ciência oficial", ou da "filosofia oficial" ou da "teologia oficial". Daí a neces-
sidade absoluta de todo aquele que pretenda trazer uma idéia nova, buscar apoio quer nas Escrituras,
quer nos autores sacros ou profanos. Se simplesmente se limitar a pregar suas idéias, será rejeitado
de plano, como desequilibrado mental. Poderia ser ouvido apenas por dois ou três que estivessem no
mesmo nível, mas jamais atingiria outros elementos.
Na Terra, para chegar-se à Mente, é mister passar pelo intelecto. Daí ser indispensável o apoio das
"autoridades”. Tomás de Aquino chegava a dizer: nihil est in intellectu, quod prius non fúerit in sensu,
isto é, "nada chega ao intelecto se antes não passar pelos sentidos", numa confissão materialística
total, pois com essa expressão axiomática, nega peremptoriamente a intuição e a inspiração espiritu-
ais e divinas, negando até mesmo sua própria teoria da "ciência infusa", ou seja, do conhecimento
revelado.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

É esse conhecimento revelado obtido diretamente da Fonte Divina por experiência própria - podería-
mos dizer, é essa gnose - que Jesus confessa ter e ensinar.
Tendo conseguido, no contato com o Cristo, na perfeita sintonia com o SOM (Logos, Pai) a gnose
profunda dos mistérios, limita-se a ensinar o que ouviu, o que sentiu, o que percebeu. E o confessa,
com humildade, ao invés de pavonear-se, dando, como seu, o que foi recebido.
Mas os homens não aceitam, não podem aceitar que alguém receba conhecimentos de uma fonte que a
eles não seja acessível: acusam-no logo de "mistificação".
Então, quando há qualquer revelação de uma intenção oculta, a revolta procura abafar a realidade
da declaração.
Mas toda essa parte é de somenos importância, porque são fatos que ocorrem constantemente. O es-
sencial da lição é a ordem final: "não julgueis pelas aparências, mas julgai com discernimento per-
feito".
Não se trata de julgamento stricto sensu, de juiz em sua cátedra, mas do julgamento lato sensu de to-
das as criaturas que necessitam exercê-lo para saber se devem ou não seguir alguém que se apresenta
como pregador, guia, inovador ou revelador de doutrinas espirituais.
Há, sempre houve, aqueles que se salientam, elevando-se acima da multidão, com "idéias" que ansei-
am distribuir. O Mestre avisa-nos: "não olheis as aparências! elas podem enganar”. Roupas, cabelos,
barbas, rosários, cruzes, sinais cabalísticos, túnicas de saco com corda à cintura, tudo isso é exterio-
ridade, aparência, ilusão. Não são esses os elementos que devem ser levados em conta. Ele próprio,
Jesus, vestia-se como qualquer homem de sua época. Ao contrário: quando vemos alguém que precisa
vestir-se "diferente" dos demais, para, “mostrar” o que é, isso nos levanta certa suspeita: será que
essa excentricidade é sinal de vazio interno? Será que tudo é só "aparência" de espírito? Realmente,
quem se modificou, quem se espiritualizou por dentro, não precisa demonstrá-lo: sua aura, seu com-
portamento, suas atitudes, sobretudo suas vibrações, o denunciam à distância, mesmo que não se che-
gue jamais a vê-lo.
Daí a segunda parte do aviso: "julgai com discernimento perfeito". De fato, é mister muito cuidado,
muita prudência, para saber a quem vamos seguir. Muitos encarnados se intitulam "iniciados", ou
"mestres", ou " gurus" ... o próprio Jesus não o fez. Ao revés, aconselhou-nos que "a ninguém cha-
mássemos mestre, pois um só é nosso Mestre: O CRISTO" (Mat. 23:8,10). Se Ele se achou indigno de
atribuir-se esse título, qual o ser humano que poderia pretendê-lo?
Há também muitos "espíritos" desencarnados que, nas reuniões mediúnicas se dizem "guias", "mento-
res" e "mestres", vindos do oriente ou de outros planetas ... A condição é a mesma. Pelo fato de perder
a roupa de carne, o espírito não dá saltos evolutivos que o elevem de categoria. "Somos todos irmãos"
(Mat. 23:8), quer na condição de prisioneiros da carne, quer dela libertos.
Em nossa experiência, confessamos que até hoje recusamos seguir quem quer que fosse, na qualidade
de "nosso" mestre: só aceitamos o CRISTO, através de Suas manifestações indiscutíveis: Jesus, Bu-
ddha, Kríshna ou, modernamente, Bahá'u'lláh, Ramakrishna, e outros cujas obras, varando os séculos
e milênios, ou de nossos dias, nos chegaram com indubitáveis provas de autenticidade de ensino. Mas,
através de todos ou de qualquer um deles, ouvimos um único Mestre: O CRISTO.
"Julgai com discernimento perfeito", sem entusiasmos apressados, sem fascinações perigosas, sem
fanatismos exagerados, sem cegueiras prejudiciais, sem predeterminações facciosas. Há quem en-
cante com "significados de palavras" (cfr. 1.ª Tim. 6:4), com proposições falazes (cfr. Col. 2:8), e
promessas de felicidade, e com tais sinais e prodígios que "induziriam em erro, se isso fosse possível,
os próprios escolhidos" (Mat, 24:24).
A personagem intelectual é facilmente ludibriada pelo fascínio de belas palavras ou de raciocínios
suasórios, Mas o Espírito, esse percebe a Voz do Cristo em seu íntimo, ou através dos Manifestantes.
O difícil é nós, personagens, ouvirmos a voz do Espírito. Mas se pedirmos com fé, receberemos (Mat.
7:7, Luc. 11:9), pois "felizes são os que mendigam o Espírito: desses é o reino dos céus" (Mat. 5:3).

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MANDATO DE PRISÃO
João, 7:25-36
25. Diziam, então, alguns hierosolimitanos: "Não é este aquele a quem procuram matar?
26. E eis que fala abertamente, e nada lhe dizem. Será que as autoridades verdadeiramente reconhece-
ram que este é o Cristo?
27. Mas nós sabemos donde ele vem. E quando vier o Cristo, ninguém saberá donde é ele".
28. Então Jesus ergueu a voz no templo, ensinando e dizendo: "A mim conheceis e sabeis donde sou: e
eu não vim de mim mesmo mas é verdadeiro aquele que me enviou, a quem vós não conheceis.
29. Eu o conheço, porque venho dele e ele me enviou".
30. Procuravam, pois, prendê-lo; mas ninguém pôs as mãos sobre ele, porque ainda não chegara sua
hora.
31. Mas muitos do povo creram nele, e diziam: "Quando vier o Cristo, fará mais demonstrações do que
este homem fez?
32. Os fariseus ouviram a multidão murmurar essas coisas a respeito dele, e os principais sacerdotes e
os fariseus mandaram seus empregados para prendê-lo.
33. Mas Jesus disse: "Ainda um pouco de tempo estou convosco; depois vou para quem me enviou.
34. Procurar-me-eis, e não me encontrareis; e onde eu estiver, vós não podeis ir".
35. Perguntavam, pois, os judeus entre si: "Aonde estará ele para ir que não o acharemos? Acaso estará
para ir à Dispersão dos gregos, e ensinará aos gregos?
36. Que palavras são essas que ele disse: procurar-me-eis e não me encontrareis, e: onde eu estiver,
não podeis ir"?

Entre os moradores de Jerusalém, alguns havia que conheciam a disposição das autoridades. Prova-
velmente os "mais velhos" que, embora leigos, participavam do Sinédrio, ao lado dos fariseus e escri-
bas. Estes admiravam-se de ver o desembaraço e a "petulância" com que Jesus enfrentava os podero-
sos, falando abertamente no Templo, sem constrangimento nem medo; e também estranhavam a omis-
são dessas autoridades, que O não prendiam logo, a fim de terminar aquele "abuso". Ou seria que, fi-
nalmente, O haviam reconhecido como o verdadeiro Messias?
Nasce-lhes no espírito, todavia, a objeção: o Messias devia aparecer repentinamente, segundo a opini-
ão vulgar generalizada (cfr. Justino, Diál. c.8), embora se soubesse que viria "da semente de Davi" (2.º
Sam. 7:12; Ps. 132:11; Is. 11:1; Jer. 18:15; "Salmos de Salomão", 17:21), e que nasceria em Belém de
Judá (Miq. 5:2; Mat. 2:5; João, 7:42).
Jesus ergue a voz (grego: "grita", ékraxen) para uma declaração solene, afirmando que a origem do
Messias não deve ser buscada no nascimento físico, mas na proveniência espiritual. Entretanto, os "ju-
deus" não conhecem o Pai como deviam, e, por isso, não percebem a realidade. Jesus, porém, conhece
o Pai (cfr. Mat. 11:27; Luc. 10:22 e João, 6:46) e pode garantir que provém Dele.
Essa nova afirmativa, que os "judeus" bem compreenderam e por isso mesmo a julgaram blasfematória
(cfr. João 5:18) reacende neles o propósito de eliminá-Lo. Não se tratava mais da questão do sábado
(João, 5:16 e 9:16), mas das palavras que comentamos. Não passaram, contudo, à ação, porque "não
chegara a hora" (cfr. João 12:25, 27; 13:1; 16:21; 17:1). A razão que deram, de seu ponto-de-vista, é
que temiam a reação popular (cfr. Mat. 21:46).

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SABEDORIA DO EVANGELHO

O apoio do povo a Jesus crescia com o destemor e a veemência de Suas afirmativas, e os fariseus o
perceberam: aumentava o número dos que O aceitavam. Mister agir com rapidez. Recorrem então aos
sacerdotes principais para que, com seus empregados (hypêrétas), que constituiam quase uma "polícia"
(cfr. João, 7:45,46; 18:3, 12, 18, 22, 36; e 19:6) providenciassem a captura de Jesus, por meio de um
mandato legal.
Jesus volta-se para o povo e, com um enigma, lhe anuncia a partida próxima para o mundo espiritual:
em breve se ausentaria fisicamente, desaparecendo da vista deles. E subiria tão alto, que ninguém ali
teria capacidade de acompanhá-Lo aonde Ele ia. As autoridades, no entanto, mostram-se perplexas
ante o enigma: para onde pretenderia Ele ir? Para os israelitas da dispersão? Para os judeus helênicos?
Para os próprios gregos? E repetem, entre si, as palavras de Jesus, em busca de uma interpretação, sem
conseguir descobri-la. Na simples hipótese formulada de que poderia ir para falar aos gregos (toús Hé-
llênes) confirma-se a teoria de que Jesus falava o grego. Se assim não fora, como poderia ser entendido
na Grécia?
Na época atual o mesmo ocorre. Não aceitamos os Manifestantes divinos que nos declaram clara ou
veladamente sua origem. Tudo o que sentimos não possuir, negamo-lo que outros possuam. Como
pode "ele" ter aprendido? Como saberá mais que "nós" que temos tantos títulos acadêmicos e univer-
sitários e falamos tantos idiomas? E somos louvados por tanta gente? De onde veio? Ora, como tendo
nascido numa aldeola do interior, pode ser superior a "nós" que nascemos na capital? E, sendo filho de
operários, como poderá saber mais que "nós", que temos linhagem aristocrática? Faz coisas admirá-
veis? Prestidigitação ... Diz coisas notáveis? Mistificação ... Contraria nossos pontos-de-vista? Obsidi-
ado! ... Fala coisas que não entendemos? Louco! E assim recusamos qualquer palavra do Alto, qual-
quer chamamento que pretenda tirar-nos da comodidades físicas ou mentais que conquistamos por
meio dos raciocínios viciados de nosso confortável materialismo personalístico. Só aceitamos, mesmo,
quando o que ele diz concorda com os nossos "pontos-de-vista", quando aprova nossas emoções,
quando nos elogia e engrandece as paixões ... Então, sim, é um Enviado do Alto!

Assistimos ao início da grande luta entre a Mente intuitiva da individualidade e o intelecto discursivo
da personagem, entre o espírito e a matéria, entre o eterno e o temporal, entre o divino e o humano. A
Mente revela, o intelecto recusa. A Mente afirma, o intelecto nega. A Mente mostra, o intelecto fecha
os olhos. A Mente fala, o intelecto tapa os ouvidos. Parece tratar-se de dois seres que falem duas lín-
guas diferentes, e um não entenda o outro.
Realmente, pertencem a dois planos distintos. E sempre assim ocorre entre a individualidade (mente)
e a personagem (intelecto). Nosso "eu" vaidoso e pequeno, jamais quer ouvir a intuição que vem do
coração e nos convoca a evoluir. Começamos a opor-lhe os raciocínios mais abstrusos e até sofismas,
para fazê-la silenciar.
A mesma dificuldade de serem entendidos sentiram e sentem todos os "iniciados" diante dos profanos
e todos os espiritualistas diante dos "religiosos" ordodoxos. Esse mesmo caminho que foi imposto a
Jesus pelas autoridades religiosas de Sua época, também o foi pelas de épocas mais recentes: Giorda-
no Bruno, João Huss, Joana d'Arc e milhares de outros iniciados que traziam espiritualidade à Terra,
foram martirizados, torturados, queimados ou decapitados pelos altos hierarcas eclesiásticos, sob
acusações pesadas de lhes não obedecerem. As vozes divinas eram silenciadas à força. E hoje mesmo,
depois de ser expressada "oficialmente" uma boa-vontade específica de união entre os crentes, na
prática os óbices são insuperáveis, ou quase.
Temos, então, dois planos diferentes em choque. O plano superior da individualidade ou Espírito
(pneuma), a urgir a personagem ou alma (psychê) para que abandone mâyâ (a realidade transitória e,
portanto, ilusória), para acompanhar-lhe o vão espiritual. Mas a personagem - apegada às aparênci-
as da forma, às ligações do sangue (etéricas), às emoções da paixão, ao prazer do intelectualismo
vaidoso e cônscio de seu valor no mundo físico, à grande e terrível ilusão de um "merecimento" que só
produz o efeito de prender a criatura aos ciclos reencarnatórios dos karmas coletivos - recusa-se e

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C. TORRES PASTORINO
ameaça de "prisão" (?) o Espírito que a perturba em sua vida tão agradável no conforto dos gozos dos
sentidos!
Não lhe importa o que o Espírito ensina, com a voz "silenciosa" dos apelos "inenarráveis" (cfr. Rom.
8:26). Os sentimentos íntimos da personagem desarvorada, a vogar por sobre as ondas do encapelado
oceano do calidoscópio terreno, parece-lhe totalmente secretos e impossíveis de serem percebidos por
outrem, e até mesmo por seu próprio Espírito. Daí rir-se de qualquer chamado espiritual.
Chega então o último aviso: "ainda um pouco de tempo estou convosco; depois voltarei para quem me
enviou; procurar-me-eis e não me encontrareis, e onde eu estiver, vós não podeis ir".
Essa frase é das mais sérias, encerrando ensinamento avançado, que merece meditação profunda e
longa. Daremos, apenas, ligeiro resumo para ser apreciado e estudado.
O Espírito é a individualização da Centelha Divina que está EM TUDO. Temos, nele, portanto, uma
entidade, um SER, que é eterno por sua origem divina, embora ele mesmo tenha tido, ao individuali-
zar-se, um "ponto de partida". Entretanto, uma vez individualizado jamais se extinguirá no infinito da
eternidade, porque possui, de direito, a "vida eterna". Iniciando-se "simples e sem saber", essa enti-
dade (esse ser) plasma para si, em gradação evolutiva, "corpos" que a ajudem a galgar, no ambiente
terreno, seu progresso ilimitado. Esses corpos são, por isso, cada vez mais aperfeiçoados, de acordo
com a evolução que vai obtendo o próprio Espírito que, partindo do átomo, sobe pelos minerais, ve-
getais e animais até atingir a intelectualização nos hominais.
Nesse grau, já consideramos esses corpos "personagens" dotadas de psychê (sensações, emoções e
intelecção) com um consciente próprio e desperto de Sua existência, o chamado "consciente atual".
Essa é a única consciência que vige nesse plano. Para atingir o consciente profundo da Individualida-
de é indispensável aprendizado, conhecimento, exercício e vivência, que é conquistada com a evolu-
ção gradativa e lenta.
Verificamos, pois, que encontramos NUM SÓ SER REAL, uma dualidade de princípios, uma duplici-
dade de conscientes: um, naturalmente desperto. Outro, ainda adormecido. Porque o consciente pro-
fundo (da individualidade) só vai despertando aos poucos, gradativamente, através das incontáveis
"vidas" e das conquistas experimentais do aprendizado evolutivo - da mesma forma que o consciente
atual que, no recém-nascido, está adormecido, e também gradativamente vai despertando, à propor-
ção que a criança cresce, experimentando e aprendendo. A individualidade não surge perfeita, mas
antes "simples e sem-saber". Desenvolve-se através do lento e longo aprendizado que faz, através de
inúmeras vivendas no plano físico. A personagem, cônscia de sua existência através dos sentidos e da
intelecção, comanda toda a vida terrena. A outra, a individualidade, vai evoluindo e preparando-se
até despertar para, então, substituir-se à personagem, com seu consciente profundo vindo à tona e
assumindo a direção total do SER ÚNICO. Porque, repitamos, a personagem é uma condensação ou
manifestação em plano mais denso, da individualidade que a criou para poder agir nos planos astral e
físico, a fim de colher experiências e evoluir. Mas, sendo embora uma coisa só, UM SÓ SER, contém
em si duplo consciente.
Acontece, então, que a personagem, cônscia de si (compos sui) e ignorando a individualidade (que,
em muitíssimos casos, também se ignora a si mesma) possui capacidade específica de ação e livre-
arbítrio. E como é guiada pelo consciente dela própria, pode opor-se a individualidade eterna, quan-
do esta já tenha evoluído bastante para destacar-se e agir de per si; neste caso, a personagem torna-
se-lhe adversária ("diabo") ou antagonista, isto é, olhando as coisas de um ângulo (gônia) oposto
(anti), o que é designado em hebraico com o termo "satanás".
Repisemos: a criação da personagem constitui, na realidade, uma transmutação que se opera na pró-
pria individualidade, ou seja, o pneuma se transforma (metamorphosis) na psychê, tomando a aparên-
cia (prósôpon, "persona" ou máscara) de uma personagem com seu nome "particular" Então a perso-
nagem (psychê) é a própria individualidade (pneuma) que vibra em frequência mais longa (mais bai-
xa). Mas, embora vibrando inicialmente em faixas relativamente próximas, aos poucos a individuali-
dade se distância muito da personagem, pois séculos e milênios de exercício, de aprendizado e de au-
tomatização de experiências, fazem a individualidade alcançar grande progresso e plena conscienti-

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zação, que nem sempre consegue fazer exteriorizar na personagem que plasma, em vista de injunções
múltiplas (karmas individuais e coletivos, hereditariedade, ambiente social, etc. etc. ). Assim, com o
caminhar evolutivo, muito mais rápida e solidamente se eleva a individualidade, embora com dificul-
dade consiga que as personagens que cria lhe acompanhem a elevação; e, após determinado ponto da
escala, já consciente de si, tão diferentes e distantes são as faixas vibratórias entre ambas, que pare-
cem seres distintos, especialmente porque o consciente profundo da individualidade, ao penetrar nas
zonas pesadas da matéria, revive memórias e automatizações antigas, não conseguindo filtrar-se atra-
vés do consciente "atual" da personagem, que se encontra vivamente desperto. E ao mesmo tempo, nos
momentos em que consegue "destacar-se" da personagem, SENTE o peso desta, e anseia por libertar-
se.
Um exemplo concreto (embora grosseiro porque se passa na matéria) talvez facilite a compreensão do
que acontece a uma individualidade já desperta, quando em contato de direção de uma personagem.
Suponhamos o grande e saudoso Jaime Costa que, em nosso exemplo, figurará a individualidade.
Para atuar no palco, fá-lo-emos assumir, conscientemente, em três dias consecutivos, três papéis dife-
rentes (três personagens).
Então, primeiro "nesce" no palco com a figura de D. João VI. E enquanto exteriormente a representa,
ele não filtra para D. João VI a consciência própria de Jaime Costa, deixando desperto e ativo apenas
o consciente "atual" de D. João VI, e assumindo-lhe todas as características. Com efeito a individua-
lidade já evoluída está consciente de si, porque, se o não fora, não poderia desempenhar satisfatoria-
mente seu papel. É pela longa experiência adquirida através do aprendizado vivo e real de persona-
gens várias e numerosas vividas no palco, que o ator, (individualidade) adquiriu a técnica (arte) da
representação, atingindo evolução plena (ator "perfeito"). O mesmo se dá na individualidade em rela-
ção à personagem encarnada. Então, o consciente de Jaime Costa se transforma no consciente "atual"
de D. João VI, abafando, para não atrapalhar a personagem, o seu próprio consciente "profundo" de
Jaime Costa. Mas acontece que, ao terminar a representação, "morre" no palco D. João VI, e então
Jaime Costa reassume plenamente seu consciente profundo, levando mais uma experiência de "vida"
no palco, e portanto, mais evoluído do que quando a começou.
No dia seguinte, Jaime Costa, (individualidade) novamente "nasce" no palco como D. Pedro I, e os
mesmos fenômenos ocorrem: seu consciente "profundo" de Jaime Costa é abafado pela personagem
de que se reveste, chegando a esquecer-se de que ele existe, no meio das circunstâncias e do ambiente
que o cerca, e só ficando desperto o consciente "atual" de D. Pedro I, com suas características vibrá-
teis e agitadas. Aproveitemos, para focalizar um exemplo de karma: nesse papel, ou nessa persona-
gem, D. Pedro I tropeça e cai, torcendo um pé. Quem caiu foi D. Pedro I, a personagem. Mas quem
sofre realmente a dor é a individualidade Jaime Costa que, ao "morrer" no palco D. Pedro I, sai man-
cando.
No outro dia, ocorre que Jaime Costa "nasce" de novo no palco com o nome de D. Pedro II. O consci-
ente profundo do ator é ainda "abafado" pela personagem criada, só ficando desperto o consciente
"atual" de D. Pedro II, que entra no palco mancando. A personagem D. Pedro II nada sabe do tombo
da personagem D. Pedro I; mas a individualidade Jaime Costa, que foi a mesma em ambos os casos,
SABE que caiu no papel de Pedro I, e portanto aceita o defeito que surge em D. Pedro II, como efeito
de causa passada. E no papel de D. Pedro II continua mancando, e talvez quando se libertar dessa
personagem Jaime Costa não tenha conseguido curar-se da dor, e levará consigo o pé torcido, que o
fará sofrer até a cura final (resgate total do karma).
Verificamos, então, que a personagem e a individualidade são UM SER SÓ, embora consciente em
dois planos diferentes, pois Jaime Costa, nos papéis que desempenha, conserva sua consciência pro-
funda, ainda que as personagens representadas NÃO POSSAM nem tomar conhecimento da existência
do ator, pois isso estragaria a representação.
Só quando a personagem plasmada atinge, ela mesma, por impulso interno de ânsia de progresso,
determinado grau de elevação intelectiva, chegando a perceber e conhecer a existência da individua-
lidade, (consciente profundo, Eu Interno) é que sente a necessidade imperiosa de voltar a ela. Neste

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ponto, a personagem, consciente de si na consciência "atual", busca unir-se ao consciente "profundo"
e, para isso, aprende a mergulhar nas águas do poço profundo do coração. E dela, da personagem
(embora silenciosamente insuflada pela individualidade) é que tem que partir o primeiro passo para o
Sublime Encontro. Só depois desse passo inicial é que a individualidade responde com clareza, mani-
festando-se abertamente e confirmando que sua busca foi coroada de êxito. Nesse ponto, pois, a per-
sonagem passa a SENTIR em si, plenamente, o duplo consciente, o "atual" e o "profundo", e aos pou-
cos vai conseguindo substituir um pelo outro, anulando o consciente "atual" ("negue-se a si mesmo") e
deixando que funcione atualmente o "consciente profundo". Então, já não é mais a "personagem"
("Paulo") que vive na consciência atual, mas é "o Cristo que vive nele".
No plano espiritual, o Espírito (pneuma) que assume o papel de "espírito" (psychê) com sua persona-
gem transitória no palco da vida, tem, pois, uma ação muito mais substancial (embora menos materi-
al) que no plano físico. Assim, se Jaime Costa, por qualquer motivo, retirar seu "corpo" do palco, a
personagem que ele "vive" desaparecerá totalmente. Mas no plano espiritual as coisas não se passam
assim: a individualidade pode retirar-se da personagem, sem que esta desapareça de imediato do ce-
nário da vida.
Pedimos redobrar a atenção para penetrar o pensamento que vamos expor.
A personagem (psychê) é limitada e circunscrita à forma, reproduzida pelo corpo físico que sobre ela
se molda ("a alma é a forma substancial do homem", Tomás de Aquino, Sum. Theol. p. 1, q. 76, a. 4,
contra). Por isso, para a encarnação, o Espírito (pneuma) precisa primeiramente plasmar com fluidos
do plano astral a forma corpórea-fluídica, a qual agrega a si, no líquido amniótico, a matéria; ou,
explicando mais corretamente: no ventre materno, as células astrais se materializam, conservando o
corpo físico a mesma forma característica do corpo-astral.
Essa psychê nasce e morre, e tem como função animar (ou vivificar) o corpo material, sendo por isso
chamada ánima ou "alma". Como a evolução da maior parte da humanidade ainda está muito retar-
dada, ocorre que o fenômeno também é lento em sua execução. Já o Espírito evoluído que vibra no
plano hominal (búlddhico, arúpico ou "sem-forma") tem que plasmar-se um corpo astral cada vez que
mergulha no condensado material. Ao desfazer-se este no plano físico, o corpo astral dura mais algum
tempo (em geral cerca de quarenta dias) no plano astral, e também se desfaz, regressando o Espírito
(pneuma) ao plano mental.
Mas com o Espírito que ainda não se acha nesse estágio evolutivo e se compraz no astral (plano ani-
mal) com suas ilusões, não sucede assim: uma vez criada a personagem (psychê) no plano astral ela
reencarna e permanece tão envolvida nos fluidos animais do astral que, ao perder o corpo físico, não
sai do plano astral: nele permanece com a mesma psychê (mantendo até mesmo o nome que tinha na
Terra), até encarnar de novo. E assim sucessivamente durante milênios, pois a isso esteva habituado,
por causa dos milênios em que assim fazia, enquanto evoluía através do estágio animal.
Ora, o Espírito (pnema, individualidade) pode, por vezes, alçar vôo mais altaneiro; ou, talvez, esteja
preso à encarnação apenas por algum Karma bom ou mau do passado; mas quer avançar mais de-
pressa (motus in fine velocior). Então poderá utilizar-se do mesmo expediente a que se habituou
quando atravessava os "reinos" mineral, vegetal e animal, vale dizer, quando plasmava concomitan-
temente, milhares ou milhões de formas densas, colhendo experiências e aprendizado através de todas
elas. Esse modo de agir não apresenta dificuldades para o Espírito (pneuma) porque ele não está li-
mitado nem pela forma, nem pelo tempo, nem pelo espaço, nem pela dimensão. Sendo, pois, ilimitado
e adimensional, pode encontrar-se em qualquer lugar físico ao mesmo tempo, consciente em todos
eles, animando simultaneamente qualquer número de tormas densas. A isso, normalmente, os ocultis-
tas denominam "alma-grupo" ou " alma-coletiva".
Como funciona essa "alma-grupo", podemos aprendê-lo ao estudar o complexo "homem". Nós temos
um "espírito" (psychê) ou alma, que governa todo o nosso corpo físico. Ora, o corpo físico é constituí-
do de alguns trilhões de células, cada qual com sua Centelha Divina e com seu corpo astral, conden-
sado em sua exteriorizacão físico-material. No entanto todos esses trilhões de células (que evoluirão
até constituir cada uma delas um ser plenamente consciente ou humano, daqui a milênios sem conta),

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estão regidos por uma única "alma-grupo", que é nossa psychê, a qual sendo UMA, adquire experiên-
cias concomitantemente através desses trilhões de seres celulares, cada qual com sua própria e ainda
subdesenvolvida psychê.
O Espírito (pneuma), tal como a alma (psychê) também pode colher experiências ao reger simultane-
amente várias psychês, como se fossem outras tantas células de um só corpo, apenas mais distantes
umas das outras, ou seja, com os "espaços intercelulares" maiores.
Como, porém, o Espírito (pneuma) é inespacial, isso não constitui óbice para ele. Pode levar sua
consciência a qualquer ponto, assim como pode nossa psychê levar sua consciência a qualquer das
células de nosso corpo, desde que ela apresente qualquer anomalia: dor ou prurido, sensação de frio
ou calor, etc. Pode fixar-se a consciência em qualquer das células, ou numa determinada célula em
particular ou em todo o conjunto delas simultaneamente, por mais numerosas que sejam.
Ora, da mesma forma que, quando o "espírito" (alma ou psychê) se retira do corpo físico, desligando-
se das células, cada uma delas prossegue "viva" em seu estado vegetativo, na qualidade de "vermes",
alimentando-se da matéria até que se extingam quando lhes termina o pábulo, ou passando a outros
estados (Se esses vermes não se extinguissem, os nossos "cemitérios" teriam seu solo superpovoado de
"bichinhos", o que não sucede na realidade), assim também pode a individualidade (pneuma) retirar-se
de Uma personagem (psychê) para continuar alhures sua subida evolutiva, ou simplesmente para re-
gressar a seu plano mental, sem que obrigatoriamente essa psychê desapareça da existência: pode
continuar "vegetando (embora com intelecto), mas sem a presença da individualidade. Judas Tadeu (o
"irmão" de Jesus) assim descreve esses casos em sua Espínola (vers. 19): houtoi eisin hoi apodieirí-
zontes, psycbikoi, pneuma mê échontes, isto é: "estes são os que se separam, psíquicos, não tendo
Espírito". Realmente, tem apenas a psychê, são apenas uma personagem com corpo físico, sensações,
emoções e intelecto, ou seja, com todo o psiquismo, mas sem o pneuma que se ausentou.
Seria como uma " associação" de homens, fundada e dirigida por um presidente. Se este se retirar, a
sociedade continuará, até que seus membros se dispersem, desfazendo-se então o conjunto. Entretan-
to, a sociedade pode continuar tal, mesmo sem seu presidente-fundador, em virtude da capacidade
adquirida por seus próprios membros.
Assim o agrupamento de células que constituem o corpo e o psiquismo, pode manter-se unido e funci-
onando automaticamente em virtude do hábito que já se tenha tornado instinto, mesmo que o pneuma
se tenha retirado, até que terminada a vitalidade do conjunto, este desmorone e se desfaça em suas
partes constitutivas. Além disso, o intelecto e seu "consciente atual" podem permanecer regendo o
conjunto e garantindo-lhe a unidade até o término do fluido vital ou da vitalidade do todo.
A ausência do pneuma não traz maiores problemas físicos nem psíquicos, pois o pneuma simplesmente
plasmou (mas não criou) algo que já existia; é pois uma causa segunda, sendo a causa primeira a
Centelha divina. E esta não se retira, porque está EM TUDO: no pneuma, na psychê, na matéria e em
cada uma das células. Ora, se a causa primeira "criadora" e sustentadora permanece, a causa segun-
da, simples "plasmadora" pode ausentar-se sem prejuízo da existência da personagem; talvez ocasio-
ne nela, apenas, um amortecimento, mas não necessariamente a morte.
Ao lhe morrer o corpo físico, essa psychê sem pneuma entra no plano astral e aí permanece até desfa-
zer-se e também "morrer", quando lhe termina ai, vitalidade.
Da morte da psychê (ou segunda morte) há vários trechos escriturísticos que falam: "não temais os
que matam o corpo mas não podem matar a psychê" (Mat. 10:28; vol. 3.º); "quem acha sua psychê a
perderá, e quem na perder por minha causa a achará" (Mat. 10:39; vol. 3.º e Mat. 16:25, vol. 4.º):
"quem quer que coma dele (o pão da vida) não morrerá" (João, 6:50; vol. 3.º); "todo o que crê em
mim nunca jamais morrerá" (João, 11:26); etc.
No entanto, existe a possibilidade de o pneuma voltar a reanimar aquela mesma psychê, se o resolver,
antes que ela se desfaça, reassumindo-a para continuar, através dela, a colher experiências. E isso lhe
é possível porque nada impede que, sendo o pneuma adimensional, atemporal, inespacial, ilimitado e
Eterno, possa ele conduzir e adquirir experiências, concomitantemente, através de diversas persona-

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gens, no mesmo país ou em países diferentes (cfr. a obra do Dr. Ed. Bertholet: "La réincarnation d'a-
pres l'enseignement d'un Ami de Dieu, le Maitre Philippe de Lyon", éd. Pierre Genillard, Lausanne,
1960).
Essa possibilidade é-nos ensinada já há milênios, desde que Moisés escreveu: "Deus criou o homem
(o pneuma) à sua imagem, homem e mulher os criou” (Gên. 1:27). Quando o pneuma, que possui em
si ambos os sexos, se plasma concomitantemente uma personagem masculina e uma feminina, para
colher experiências em ambos os aspectos psíquicos, agindo simultaneamente em ambos, temos aí a
origem da antiga teoria das "almas gêmeas", isto é, das psychês gêmeas. Nunca, porém, se ouviu nem
se ouvirá falar de "espíritos gêmeos".
As "almas gêmeas" muito dificilmente se encontram. Interessa ao pneuma colher experiências dife-
rentes, em ambientes díspares, e não lado a lado, na mesmo ambiente. O a que vulgarmente chamam
"almas gêmeas" são, no máximo, almas afins. Outro esclarecimento; o pneuma precisa estar bastante
evoluído para conseguir dirigir mais de duas psychês. Dizem os Adeptos que jamais acima de nove.
São casos raríssimos e quase isolados, só realizados por seres excepcionais.
Tanto o sentido é esse, que Moisés apresenta o pneuma CRIADO antes; e só em Gên. 2:7 é que vem
ensinar a FORMAÇÃO (não criação) do corpo do homem, "plasmado do pó da terra" (isto é, da poei-
ra cósmica, cfr. vol. 3.º) e da psychê que lhe foi "insuflada pelas narinas", tomando o corpo um "ser
vivente". E isso é confirmado por Zacarias (12:1), quando afirma que "Deus FORMOU A PSYCHÊ
(ruah) dentro do homem".
Ocorrendo, assim, as coisas, como vimos, podemos compreender a frase da individualidade (Jesus) às
personagens, em seu sentido pleno: "ainda um pouco de tempo estou convosco, depois vou para quem
me enviou; procurar-me-eis e não me encontrareis, e onde eu estiver vós não podeis ir". De fato, ja-
mais a psychê poderá chegar ao plano do pneuma: antes disso terá sido desfeita.

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ÁGUA VIVA
(Quarta-feira, 21 de Tishri - 15 de outubro)
João, 7-37-44
37. No último dia da festa, levantou-se Jesus e gritou, dizendo: "Se alguém tiver sede, ve-
nha a mim e beba.
38. Quem crê em mim, como disse a Escritura, de seu âmago jorrarão torrentes de água
viva".
39. Disse isso a respeito do Espírito, do qual estavam para receber os que nele criam; pois
não havia ainda Espírito, porque Jesus ainda não fora transubstanciado
40. Então, muitos dentre a multidão, tendo ouvido esse ensino, diziam: "Esse homem é
realmente o profeta".
41. Outros diziam: "Este é o Cristo"; outros porém perguntavam: "porventura da Gali-
léia é que vem o Cristo?
42. Não diz a Escritura que O Cristo vem da semente de David e de Belém, a aldeia don-
de era David"?
43. Surgiu, então, uma discussão entre o povo a seu respeito.
44. Alguns deles queriam prendê-lo, mas ninguém pôs as mãos sobre ele.

Os festejos seguiram seu curso, até chegar ao final solene, no último dia. Foi quando, diante da maior
multidão, no Templo, Jesus se ergueu acima da massa e gritou (ékraxen) para fazer Sua revelação. A
frase pode ser pontuada de dois modos, alterando o sentido. Vejamos, lado a lado, as duas versões pos-
síveis:
"Quem tiver sede venha a mim e beba. Quem "Quem tiver sede venha a mim e beba quem crê
crê em mim, como diz a Escritura, de seu âmago em mim. Como diz a Escritura, de seu âmago
jorrarão torrentes de água viva". jorrarão torrentes de água viva".

A primeira pontuação é muito mais satisfatória, apesar do anacoluto violento que encontramos no vers.
38. Essa pontuação foi sustentada pelos Pais orientais (Orígenes, Cirilo de Jerusalém, Basílio, Anastá-
cio, etc) e no ocidente por Jerônimo e Agostinho.
A segunda pontuação foi sustentada no ocidente, antes de Jerônimo: Irineu, Cartas das igrejas de Viena
e Lion, Cipriano (Ep. 63,8: P . L. vol. 4, col. 579); De Rebaptismate; De Montibus Sina et Sion.
Quanto ao sentido, a segunda pontuação dá a entender que as águas Jorrarão DO ÍNTIMO DO CRIS-
TO.
Como base, são citados os seguintes passos: Is. 44:3; Ez. 36: 25 e 47: 1,12; Joel 2:28; Zac. 12:10 e
13:1; e sobretudo: "não têm sede os que foram levados ao deserto (ao planeta Terra): para eles corre
água das rochas (Cristo)” (Is. 48:21). Além disso Jesus aplica a si as figuras do Templo (Jo. 2:19 ss);
da serpente de bronze (Jo. 3:14); do maná (Jo. 6:32-33). E além disso a frase de Paulo (1.ª Cor. 10:4):
"Todos bebiam da rocha espiritual que os acompanhava: essa rocha era o Cristo".
O sentido, de fato, está perfeitamente de acordo com todo o contexto escriturístico.

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No entanto, pela primeira pontuação, (que adotamos na tradução) o ensinamento é mais profundo e
concorda melhor com os ensinos crísticos: a torrente de água corre do íntimo de cada crente.
Realmente, quando aquele que crê se une ao Cristo que nele habita, é de seu íntimo mesmo que jorra-
rão as águas.
Mas, que águas? João explica que a "água viva" é "o Espírito".
Vêm a seguir vários ensinos sob forma metafórica, em imagens difíceis de serem percebidas pelos que
não possuem a chave iniciática nos graus mais elevados. E de tal maneira foram ditas, que inclusive
facilitam interpretações acomodadas dentro do razoável, e que foram aproveitadas durante milênios.
Observemos o sentido comum:
"Falou isso a respeito do Espírito, do qual estavam para receber os que nele criam"; ou seja, explicam,
falou a respeito do Espírito Santo", que só lhes foi dado no Pentecostes. "Pois o Espírito não fora ain-
da dado (tradução infiel) porque Jesus ainda não fora glorificado" (não ressuscitara).
O original diz claramente: oúpô gár ên pneuma (não havia ainda espírito) hóti iêsoús oudépó edóxas-
the (porque Jesus ainda não fora transubstanciado). No segundo comentário, abaixo, procuraremos
penetrar o sentido real dessas frases.
Como de modo geral acontece, quando se dá uma revelação inesperada, os ouvintes se dividem. Lá uns
achavam que se tratava de um profeta; outros do Messias. Esses representavam os que tivessem capa-
cidade de "receber o mistério" (paralambánein tòn mystérion) depois de "ter ouvido a palavra"
(akoúsantes tòn lógon). Os que não podiam penetrar mais fundo no verdadeiro sentido, porque se regi-
am ainda pelo intelecto raciocinador, lembraram-se das objeções formais: os grandes profetas predisse-
ram que o Messias proviria do sêmen de David (2.º Sam. 7:12; Is. 11:1; Jer. 23:5; Salmo 132:11) e,
além disso, que nasceria em Belém (Miq. 5:2) a cidade de David (1.º Sam. 18:15).
Levantada a discussão, como sempre estéril pelo ardor fanático que inflama os litigantes, alguns queri-
am até prendê-Lo. Mas ninguém o conseguiu.

Aqui temos, flagrante, um exemplo da atuação do Cristo Cósmico a ensinar por meio de Jesus, o que
serve de modelo para todos nós: frases que, embora compreensíveis pela acepção corrente das pala-
vras que as constituem, guardam um segundo sentido oculto, só percebido pelos que estão em grau de
compreender. Só os Mestres têm capacidade de falar assim, e aqueles que estão ligados ao Cristo In-
terno.
Como a frase de Jesus, citada pelo evangelista, é de difícil compreensão mesmo pelos iniciados, João
as interpreta logo a seguir, embora de forma ainda inatingível pelos profanos. Mas muito menos
enigmática e, portanto, mais acessível. Examinemos.
"Se alguém tiver sede", isto é, se o Espírito, ou mesmo a psychê, da criatura ansiar sequiosamente
pelo encontro, que "venha a mim", que se chegue ao Cristo em seu coração, em seu íntimo, correndo a
seu encontro, e que "beba", isto é, se desaltere para sempre, unificando-se a Ele. A clareza desse sen-
tido demonstra-se por causa, exatamente, da explicação posterior do discípulo amado. Para os que O
seguiam desde o início acompanhando o evoluir gradativo da iniciação gnóstica dada pelo Mistagogo
Sublime, o sentido devia ser claro.
Em vista disso, podia ser dado o ensino com a afirmativa categórica: "do âmago (do coração) daquele
que crê (que se unifica) com o Cristo, jorrarão torrentes de água viva". Dessa "água viva" já falara à
"alma vigilante", a samaritana (vol e 2.º), embora lá não se tivesse esclarecido a simbologia oculta
sob suas palavras. Sabemos agora, pela interpretação joanina, que a "água viva" é a torrente inspira-
tiva de conhecimentos intuitivos e a replenação afetiva universal que se obtém quando se mergulha na
Fonte Perene do Cristo Cósmico, que enche, permeia e cristifica a alma, a psychê e o intelecto, e faz
que o Espírito (pneuma) se independize dos veículos inferiores e viva sua própria vida em plena saci-
edade divina e inesgotável. Assim repleto, ungido, permeado e cristificado, o ser nada mais deseja
nem quer, não sente falta de coisa alguma, tem tudo, porque está no Todo.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Isso exatamente explica João: Jesus referia-se ao pneuma, ao Espírito, à individualidade, que estavam
para receber os que nele criam. Na subida de conhecimentos e práticas iniciáticas que Jesus lhes mi-
nistrava, já se avizinhavam do quinto passo: “estavam para receber” (paralambánein) experimental-
mente; por isso recebiam antes o ensino oral (tòn lógon akoês) explicativo, a fim de poderem entender
plenamente o que com eles se passaria. A confirmação de que o evangelista se refere precisamente à
individualidade, que se não tornara independente da personagem (da psychê, única sentida pelos
profanos), é o que ele escreve a seguir: "pois NÃO HAVIA AINDA ESPÍRITO".
Essa frase, que tanto assustou os hermeneutas e exegetas que eles resolveram modificar-lhe o texto
original nas traduções, a começar pela Vulgata: nondum enim erat Spiritus DATUS. O texto grego
não tem o verbo "dar": é mesmo o verbo ser, existir ou haver: NÃO HAVIA ainda espirito, ou seja,
nenhum deles estava ainda vivendo na individualidade; esta, para ele NÃO EXISTIA ainda. E só iria
começar a existir daí a pouco tempo. Mas, por enquanto, o Espírito não existia para eles, porque eles
não tinham tomado conhecimento experimental da individualidade, da realidade do Espírito; só co-
nheciam (isto é, só existia para eles) a personagem, a psychê, com o nome terreno que lhes fora atri-
buído pelos pais, os plasmadores do corpo físico denso.
E o evangelista explica, para evitar dúvida, a causa de "não haver ainda Espírito": "porque Jesus (o
homem - não o Cristo) ainda não fora transubstanciado". Também aqui a tradução de edóxasthe foi
feita por "glorificado", para poder falar-se na "ressurreição" e explicar-se que o Espírito seria "dado"
no Pentecostes. Mas o verbo doxázô, derivado de dóxa, conserva seu sentido básico de substância.
A que se refere essa transubstanciação? essa mudança de substância? Cremos que precisamente à
transformação que se opera na obtenção do quinto grau inciático do sétimo plano, e que Jesus con-
quistou na chamada "última ceia", quando obteve a maravilhosa capacidade vedântica de, unificado
ao Cristo Cósmico, poder transmudar-se na substância daquilo que quisesse. E, tomando Ele o PÃO e
o VINHO, pode dizer: "isto é o meu corpo" e "isto é o meu sangue". Declarou-se transubstanciado, em
sua substância física carnal, assumindo a substância física vegetal do trigo, purificado pelo logo no
cozimento do pão; e da uva, decantada pela fermentação ao tornar-se vinho.
Aí temos a sublimação dos símbolos iniciáticos dos mistérios gregos de Eléusis. Na Grécia eram da-
das como deíknymis a "espiga" e a "uva" (Dionysos - Baco). Jesus os apresenta numa categoria mais
elevada (porque purificada) e mais útil (porque aptas a prestar serviços na alimentação humana), sob
a forma de PÃO e de VINHO, representações, respectivamente, do quaternário psíquico, com o inte-
lecto (pão sobressubstancial) e do ternário da individualidade (o Espírito). Assim, o Mestre verdadeiro
modifica Sua substância para transformar-Se, através de Seu ensino e de Sua vida espiritual, em ali-
mento sobressubstancial de Seus discípulos fiéis que a Ele se unem em Espírito Vivo.
Maravilhosas lições, veladas há milênios, mas que precisam ser relembradas e publicadas, para que
aqueles que se acham no "Caminho" se reanimem e prossigam impávidos e intimoratos ao Encontro
da Sublimidade indizível da Vida plena e perfeita. Agora, como então, há muitos ouvidos à espreita e
há hoje, como houve naquela circunstância, os que puderam "receber o ensino oral" (paralambánein
tòn lógon akoês) e declarar que esse Mestre é realmente "o" profeta (João, 1:21; vol. 1) ou o Messias.
Embora a grande massa vacile, duvide, descreia, se afaste, e alguns desejem até "prendê-Lo", o Espí-
rito prossegue impertérrito na conquista da Humanidade para dela e nela plasmar os Super-Homens
do futuro.

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C. TORRES PASTORINO

MISSÃO FALHADA
João, 7:45-53 e 8:1
45. Voltaram, então, os empregados aos principais sacerdotes e fariseus, e estes lhes per-
guntaram: "Por que não o trouxestes"?
46. Responderam os empregados: "Nunca homem algum falou como fala esse homem".
47. Retrucaram-lhes os fariseus: "Acaso também fostes enganados?
48. Porventura creu nele alguma das autoridades, ou algum dos fariseus?
49. Mas este povo, que não conhece a lei, é amaldiçoado".
50. Nicodemos, um deles, que antes fora ter com Jesus, perguntou-lhes
51. "Porventura julga nossa lei um homem sem primeiro ouvi-lo e dele saber o que faz"?
52. Eles lhe responderam e disseram: "Acaso tu também és da Galiléia? Pesquisa, e vê
que da Galiléia não se levanta profeta".
53. E cada um foi para sua casa.
8:1 Mas Jesus foi para o monte das Oliveiras.

Narra-se o que ocorreu nos bastidores do Evangelho. Essa informação só pode ter sido obtida de tes-
temunha que, por pertencer ao grupo, assistiu a cena íntima, passada intra muros. O próprio Nicode-
mos? José de Arimatéia, que também pertencia ao Sinédrio? Ou aquele "empregado” que era conheci-
do de João (João, 18:15)?
Os empregados (hypêretás, "servos, adjuntos") voltam de mãos vazias, fazendo um relatório verbal
favorável a Jesus. Sobressai do texto a irritação que causou nos sacerdotes "principais" o fracasso da
missão que fora confiada a seus empregados de confiança. Evidenciava-se a superioridade da honesta
sinceridade dos servos, sobre a covardia dos "grandes" que pretendiam prender o Nazareno, sem imis-
cuir-se pessoalmente no caso, afim de amanhã jurarem inocência, jogando a responsabilidade do ocor-
rido sobre o povo ... Mas os simples são mais capazes de entender, e não possuem malícia: as palavras
daquele homem eram sublimes! Ninguém jamais falara como ele! Não era possível prendê-lo ...
Não podendo confessar suas intenções excusas, desafogam a irritação com sarcasmo, fazendo crer que
se eles, os "chefes", não aceitam, é porque Jesus diz coisas que não servem: eles são a "medida", os
"sábios" únicos capazes de julgar ... Esse povo - am-ha-harés - é endemoninhado!
E a ironia ferina é vomitada até mesmo contra o companheiro Nicodemos, membro do Grande Conse-
lho (João, 3:2), isto é, do grupo dirigente do Sinédrio e doutor da lei (João, 3:10). Suas palavras foram
sensatas e, com ponderação, defendiam as prescrições legais (Êx. 23:1 e Deut. 1:11). No entanto, os
ânimos exaltados e decepcionados respondem com uma injúria chamando-o de "galileu".
Segue-se ao desprezo uma demonstração de cegueira momentânea, causada pela raiva: "pesquisa (a
Escritura) e vê que da Galiléia não se levanta profeta”, o que é uma inverdade, já que Jonas (2.º Reis,
14:25) era galileu; e o próprio Isaías (8:23) estende à Galiléia a glória messiânica. E isto sem contar o
fato concreto (mas ignorado deles) de que Jesus não nasceu na Galiléia, embora seus pais aí residis-
sem; e aí tivesse sido Ele criado.
Nessa desarmonia vibratória, retira-se cada um para sua casa, enquanto Jesus sobe ao Monte das Oli-
veiras para meditar. Os grandes desníveis evolutivos notam-se até nos pequenos gestos corriqueiros.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

O monte das Oliveiras fica perto de Jerusalém, da qual só o separa o Vale do Cedron. Era lugar calmo,
solitário e silencioso, arborizado com a planta que simboliza a paz. Sempre que permanecia em Jeru-
salém era hábito de Jesus retirar-se para lá à noite (cfr. Mat. 21:1: 24:3: 26:30).

O final do capítulo dá-nos conta, apenas, do que se passou "do lado de fora", para ensinar-nos que o
procedimento dos homens é o mesmo em todos os tempos, e não devemos desanimar nem preocupar-
nos. Não é o discípulo mais que seu Mestre e o que fizeram ao Mestre, farão também a Seus discípulos
(cfr. Mat. 10:24-25).
Os humildes são os primeiros a atingir a compreensão, porque suas mentes estão limpas de vaidade.
Os grandes, dominados e inchados pelo orgulho das posições que ocupam, são como cegos e debater-
se nas trevas, mas recusando a luz, mesmo quando a poderiam vislumbrar para recobrar a visão.
Perdem as melhores oportunidades, peados pelo convencimento de conhecer tudo; fecham raivosa-
mente os olhos, trancam-se nos castelos arruinados de sua ignorância presunçosa, e ainda buscam
destruir aqueles que lhes querem trazer a luz e aqueles que, deslumbrados pela Beleza, ouvem a doce
e amorável voz do Espírito.
Enquanto os pequenos reconhecem por instinto a fala do Mestre e a acatam (cfr. João, 10:3), os auto-
suficientes só sabem julgar pelas aparências, pelas exterioridades, preocupando-se apenas com filia-
ção, linhagem, riquezas, títulos acadêmicos, sem conseguir penetrar - porque têm a mente obtusa - os
arcanos do conhecimento, as idéias imponderáveis, a santidade invisível.
Após a rejeição, voltam à sua materialidade, a "suas casas" de pedra (cfr. vol. 1), pois são pigmeus
que não podem olhar o céu acima dos telhados nem expandir-se na amplidão, subindo o Monte da
Paz, onde meditam os iluminados pelo Espírito.

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C. TORRES PASTORINO

DISCÍPULOS CONVIDADOS

Mat. 8:19-22 Luc. 9:57-62

19. E chegando um escriba, disse-lhe; "Mestre, 57. Enquanto estavam indo pela estrada, disse-
seguir-te-ei para onde quer que fores". lhe alguém: "Seguir-te-ei para onde quer
que fores".
20. E disse-lhe Jesus: "As raposas têm covis e
as aves do céu, pousos; mas o Filho do ho- 58. Jesus disse-lhe: "As raposas têm covis e as
mem não tem onde reclinar a cabeça". aves do céu, pousos; mas o Filho do homem
não tem onde reclinar a cabeça".
21. Outro dos discípulos disse-lhe: "Senhor,
deixa-me ir primeiro enterrar meu pai". 59. A outro disse: "Segue-me". Ele, todavia,
respondeu: "Deixa-me ir primeiro enterrar
22. Porém Jesus disse-lhe: "Segue-me, e deixa
meu pai".
os mortos enterrarem os seus próprios mor-
tos". 60. Retrucou-lhe Jesus e disse: "Deixa os mor-
tos enterrarem os seus próprios mortos; tu
porém vai, anuncia o reino de Deus".
61. Disse-lhe ainda outro: "Seguir-te-ei, Se-
nhor; mas deixa-me primeiro despedir-me
dos que estão em minha casa".
62. Respondeu-lhe Jesus: "Ninguém que olhe
para trás depois de ter posto a mão no ara-
do, é apto para o reino de Deus".

Nesta lição, privativa de Mateus e Lucas, podemos aprender o modo como devemos encarar a relação
entre Mestre e discípulos.
O primeiro caso é de alguém (Mateus esclarece tratar-se de um escriba, profissão recrutada entre os
fariseus), que espontaneamente se propõe a seguir Jesus, para onde quer que ele vá.
Qual seria sua intenção profunda? Jerônimo o acusa de "aproveitador": ut lucra ex operum miraculis
quaereret (Patrol. Lat. v. 26 c. 53), isto é, "procurava lucros dos milagres operados". Mas isso é julga-
mento leviano e acusação graciosa. Duas hipóteses apresentam-se plausíveis; ou ele pretendia real-
mente ser discípulo para progredir (e neste caso a resposta de Jesus não o desanimaria); ou seu desejo
era seguí-lo para escrever as lições que ele dava, quer para seu uso, quer para cedê-las a quem as de-
sejasse, quer para levá-las aos fariseus, quer para "empregar-se", mediante pagamento, para exercer
sua profissão.
Jesus limita-se a uma resposta que, no fundo, constitui uma recusa: ele não tem pousada fixa, não dis-
põe de um leito. Como empenhar-se em despesas com alguém? Não tendo conforto para si, não podia
dispensá-lo a outrem. E o caso encerrou-se aí.
Mas o final é-nos desconhecido. Teria ele aceito as condições e acompanhado Jesus? Teria desanima-
do e se retirado? Tratar-se-ia de um dos doze por exemplo, Judas Iscariotes, cujo chamamento não
aparece nos Evangelhos, e cujo ingresso no Colégio Apostólico talvez tenha sido por espontânea von-
tade? O fato de só mais tarde aparecer o caso, depois de ter sido ele citado como discípulo nada im-

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SABEDORIA DO EVANGELHO

porta. Pode o evangelista só havê-lo recordado mais tarde e, desejando que não fosse esquecida a res-
posta do Mestre, tê-la registrado mesmo fora da ordem cronológica.
O segundo caso é diferente: trata-se de um chamado positivo de Jesus: “segue-me"! O discípulo con-
vocado ao serviço solicita um adiamento: "deixa me primeiro enterrar meu pai". Que significado pode
ter essa frase? Podia tratar-se de um pai idoso, e o discípulo, querendo obedecer ao mandamento “hon-
rar pai e mãe", pede para atender ao pai, aguardando que ele passe para o outro lado da vida: sentir-se-
ia então livre para seguir o Mestre. Podia tratar-se, ainda, de um caso real, de morte realmente ocorri-
da, e á espera para o sepultamento seria coisa de um a dois dias. Entretanto, pela resposta de Jesus,
parece mais viável a primeira hipótese; "deixa que os mortos (encarnados) enterrem (cuidem) de seus
mortos (encarnados); tu, porém, entrega-te à pregação do reino de Deus". Teria ele ido? Ou teria prefe-
rido ficar com o pai? Também aqui os evangelistas não esclarecem, deixando livre campo às especula-
ções. Cirilo de Alexandria (Patrol. Graeca- v- 8. c.1129) diz tratar-se do diácono Filipe (At. 6:5). Mas
nenhuma prova aduz dessa opinião, que talvez fosse resultante de uma tradição corrente no Egito. Ora,
Filipe foi o mistagogo do ministro da rainha Candace, da Etiópia (A-l8:27), país limítrofe do Egito.
O terceiro caso, apresentado apenas por Lucas, também parece ter sido a resposta a um chamado do
Mestre. Ele aceita a tarefa, mas quer despedir-se dos seus. A resposta é dura: "se queres vir já, estás
apto ao discipulato; mas se voltares os olhos para trás, não serves" (cfr. Gên. 19:26). A comparação
com o lavrador procede: se quem guia o arado olha para trás, o sulco sai torto (cfr. Filp. 3:13-14).

Através de Jesus, o Cristo já manifestara as condições por Ele exigidas, para a aceitação de Seus dis-
cípulos amados. Esse ensino é agora exemplificado com três casos específicos, a fim de demonstrar a
superioridade da união crística sobre três situações distintas e que, de modo geral, são as mais aduzi-
das para recusar-se o passo decisivo: e isso porque são três situações em que o homem tem a impres-
são de que se trata de três deveres fundamentais: o dever para consigo mesmo, o dever para com os
genitores e o dever para com os familiares.
Cristo anula os três: o dever máximo diz respeito ao Espírito eterno, não à matéria transitória.
Por conseguinte, o ensino é dirigido para esclarecer que nem as obrigações para com o próprio cor-
po, nem para com os pais, nem para com esposa e filhos devem afastar o candidato do caminho espi-
ritual. O exemplo dado é o vivido pela personagem humana Jesus, que não tinha "uma pedra sequer
para repousar a cabeça". E a lição prossegue com duas regras básicas: os vivos no Espírito não de-
vem preocupar-se com os mortos na carne, isto é, os que vivem na individualidade, não podem pren-
der-se a laços puramente carnais e sanguíneos (corpo físico e duplo etérico), mas à família espiritual
divina (cfr. Ef. 2:19). Dirá ainda que é mister amá-lo mais que ao pai, à mãe, à esposa, aos filhos (cfr.
Luc. 14:26 ou Mat. 10:37, vol. 3.º) para ser digno de dizer-se Seu discípulo.
Claro, portanto, o ensinamento, no plano místico.
No campo das iniciações, encontramos nesta lição três condições indispensáveis para a dedicação ao
Caminho. São três das provas essenciais a superar quando se tem que passar do quarto para o quinto
grau. A modificação da mente com transmentação requer desapego. Não é bem o caso do abandono
ou de fuga, mas de não prender-se, de não inverter a ordem dos valores, de não julgar mais impor-
tante o que é menos importante.
Além disso, o pretendente ao quinto grau deve saber que não pode dar importância ao física próprio,
nem ao alheio; que os profanos com seus hábitos, crenças, convencionalismos e preconceitos devem
ser deixados a homenagear-se entre si; e que, finalmente, uma vez passado o quarto grau não pode
mais voltar atrás! Esse é um passo decisivo: dado à frente, não há recuo possível. Mister, pois, medi-
tar bem, examinar-se, medir as próprias forças, antes de arriscar-se. Uma queda depois, uma desis-
tência, um "olhar para trás" saudoso, podem trazer consequências graves que talvez durem séculos.
Daí o provérbio latino corruptio optimi; pessima: " a queda do melhor, é a pior".

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C. TORRES PASTORINO
Cuidado portanto: não alimentar pretensões que não correspondam às possibilidades; não buscar
provas acima das forças reais,. não dar passos maiores que as pernas; "não por o chapéu onde a mão
não alcança" ...
Deixe-se de lado a vaidade, o desejo de "parecer" aos outros mais do que se é realmente, de enganar-
se a si mesmo, julgando-se gigante quem ainda é pigmeu. Comedimento justo é melhor que desabala-
da corrida, arriscando-se a quedas fragorosas. A estrada do Espírito é árdua, íngreme, estreita, pa-
vimentada de pedras pontiagudas e ladeadas de espinheiros: é preciso coragem e decisão inabalável,
com prévio conhecimento das próprias capacidades.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

ÍNDICE REMISSIVO
1.ª - o NASCIMENTO na carne, 45 INDIVIDUALIDADE- PERSONAGEM, 64
2.ª - a CONFIRMAÇÃO, 45 IRINEU, 37
3.ª - as TENTAÇÕES, 45 JERÔNIMO, 37
4.ª - a TRANSFIGURAÇÃO, 45 JOÃO CRISÓSTOMO, 37
5.ª - a UNIÃO, 46 JUSTINO, 37
6.ª - a conquista do grau de SACERDOTE, 46 KARDÍA, 58
7.ª - a ASCENSÃO, 46 LUCAS, 50
ACEITAÇÃO, 77 MANDATO DE PRISÃO, 130
ÁGGELOS, 60 MAR DA GALILÉIA, NO, 20
AGOSTINHO, 37 MARCOS, 50, 111
ÁGUA VIVA, 137 MATEUS, 50, 110
ALMA, 66 MATRIMÔNIO, 83
AMBRÓSIO, 37 MENTE ESPIRITUAL, 55
BEEZEBOUL, 60 MENTE, A, 66
CANANÉIA, 13 MERGULHO, 82
CARTA A DIOGNETO, 36 MERGULHO e as ABLUÇÕES, 77
CEGO DE BETSAIDA, O, 28 METÁNOIA, 82
CENTELHA DIVINA, 55 METÂNOIA ou mudança da mente, 77
CIPRIANO, 37 MISSÃO FALHADA, 140
CLEMENTE ROMANO, 36 MISTÉRIO, 76
COMPARAÇÃO, 56 MUL TIPLICAÇÃO DOS PÃES, 2ª, 22
CONCEPÇÃO DA DIVINDADE, A, 54 NOÚS, 58
CONCEPÇÃO DO HOMEM, A, 55 O CORPO, 65
CONFIRMAÇÃO, 82 O PASTOR de Hermas, 37
CONFISSÃO DE PEDRO, A, 30 O QUE PREJUDICA, 8
CONVERSA COM OS IRMÃOS, 117 OPINIÕES DESENCONTRADAS, 125
CORAÇÃO, O, 67 ORDEM, 83
CRISTIANISMO, NO, 79 ORÍGENES, 37
CULTO CRISTÃO, 81 PALAVRA OUVIDA, 74
CURA DO EPILÉPTICO, A, 98 PANTEON de Roma, 42
CURA NO TEMPLO, AINDA A, 127 PAPIAS, 36
DAIMÔN, 60 PEQUENA VIAGEM, 25
DIÁNOIA, 61 PHÁNTASMA, 60
DIDACHE, 36 PLENITUDE, 78
DISCIPULATO, O, 48 PNEUMA, 58
DISCÍPULOS CONVIDADOS, 142 POLICARPO, 37
DOGMAS HUMANOS, 4 PREDIÇÃO DA MORTE, 43, 106
DÓXA, 76 PROCESSO, O, 77
DYNAMIS, 75 PSYCHÊ, 61
EMPREGO DAS PALAVRAS, O, 57 REENCARNAÇÃO, 95
ENCARNAÇÃO, 56 REGRESSO A GALILÉIA, 3
ENCONTRO e a ILUMINAÇÃO, 78 SACRAMENTOS, OS, 82
EON, 75 SÁRX, 63
EPÍSTOLA DE BARNABÉ, 36 SETE passos, 77
ESCOLA INICIÁTICA, 71 SIMPLICIDADE, 108
ESPÍRITO, 55 SOMA, 62
EUCARISTIA, 83 SURDO-GAGO, O, 17
EXTREMA UNÇÃO, 83 TERMOS ESPECIAIS, 71
FÉ, A, 103 TERTULIANO, 37
FERMENTO DOS FARISEUS, O, 26 TEXTOS COMPROBATÓRIOS, 64
FILHO UNIGÊNITO, O, 59 TEXTOS DO N.T., 80
FOGO DO CÉU, 123 TOLERÂNCIA, 114
Grande Síntese, 55 TRADIÇÃO, 73
HAIMA, 63 TRANSFIGURAÇÃO, A, 86
HILÁRIO, 37 UNIÃO, 78
HOMEM NO NOVO TESTAMENTO, O, 54 VIAGEM A JERUSALÉM, 120
INÁCIO, 36

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CARLOS TORRES PASTORINO
Diplomado em Filosofia e Teologia pelo Colégio Internacional S. A. M. Zacarias, em Roma – Professor
Catedrático no Colégio Militar do Rio de Janeiro e Docente no Colégio Pedro II do R. de Janeiro

SABEDORIA DO
EVANGELHO

5..º Volume

Publicação da revista mensa1.

SABEDORIA

RIO DE JANEIRO, 1964

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C. TORRES PASTORINO

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SABEDORIA DO EVANGELHO

OS 72 EMISSÁRIOS

Luc. 10:1-16 Mat. 11:20-24


1. Depois disso, o Senhor consagrou outros setenta e dois e envi- 20. Começou então a inveti-
ou-os de dois em dois adiante de si, a todas as cidades e lugares, var as cidades onde se
aonde ele estava para ir . manifestaram suas mai-
ores forças, porque não
2. E disse-lhes. "A seara, em verdade, é grande, mas os trabalha-
modificaram sua mente:
dores são poucos; rogai, portanto, ao Senhor da seara que envie
trabalhadores para sua seara. 21. "Ai d.e ti, Corazin! Ai
de ti, Betsaída! porque
3. Ide, mas atenção! Eu vos envio como cordeiros no meio de lo-
se em Tiro e em Sidon se
bos.
tivessem manifestado as
4. Não leveis bolsa, nem alforje nem sandálias; e a ninguém sau- forças que em vós se
deis pelo caminho. manifestaram, de há
5. Em qualquer casa em que entrardes, dizei primeiro. "Paz a muito elas teriam modi-
esta casa", ficado sua mente em
saco e cinza.
6. e se ali houver algum filho de paz, sobre ele repousará vossa
paz; e se não houver, ela tornará para vós. 22. Mas digo-vos que no dia
da triagem haverá mais
7. Permanecei nessa mesma casa, comendo e bebendo o que vos tolerância para Tiro e
oferecerem, porque o trabalhador é digno de sua recompensa. Sidon, que para vós.
Não vos mudeis de casa em casa.
23. E tu, Cafarnaum, acaso
8. Em qualquer cidade em que entrardes, e vos receberem, comei te exaltarás até o céu?
o que vos oferecerem, Cairás até o hades; por-
9. curai os enfermos que nela houver e dizei: "aproximou-se sobre que se em Sodoma se ti-
vós o reino de Deus"; vessem manifestado as
forças que em ti se ma-
10. mas no cidade em que entrardes e não vos receberem, saindo nifestaram, ela teria
pelas suas praças, dizei: permanecido até hoje.
11. ‘até o pó que da vossa cidade se nos pegou aos pés, nós vo-lo 24. Digo-vos, porém, que no
sacudimos; todavia, sabei que o reino de Deus se aproximou'. dia da triagem haverá
12. Digo-vos que, naquele dia, haverá mais tolerância para Sodoma mais tolerância para a
do que para aquela cidade. terra de Sodoma, que
para ti".
13. Ai de ti, Corazin! Ai de ti, Betsaida! porque se em Tiro e em
Sidon se tivessem manifestado as forças que se manifestaram
em vós, de há muito sentadas em saco e cinza teriam modifica-
do a mente.
14. No entanto, haverá mais tolerância para Tiro e para Sidon no
dia da triagem, do que para vós.
15. E tu, Cafarnaum acaso te exaltarás até o céu? Descerás até o
hades.
16. Quem vos ouve, me ouve; quem vos rejeita, me rejeita; e quem
me rejeita, rejeita aquele que me enviou".

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Comecemos o comentário por Lucas que nos apresenta um pormenor com exclusividade: a consagra-
ção dos setenta e dois discípulos.
O verbo anadeíknymi usado por Lucas (anadeíxen) exprime literalmente “mostrar elevando”, ou
“mostrar no alto” e, nas escolas iniciáticas expressa a consagração da criatura ao grau do sacerdócio
onde se permanece “em evidência” perante o público.
Há uma variante séria: setenta? ou setenta e dois?
Os códices B, D, M, R, os minúsculos a, c, e, a Vulgata, as versões siríacas curetoniana e sinaítica, e a
armênia, trazem setenta e dois.
Os códices aleph, A, C, L, X, gama, delta, psi, pi, os minúsculos b, í, g, e as versões siríacas gótica e
etiópica, escrevem setenta.
Parece aos hermeneutas que setenta foi uma correção, para estabelecer paralelismo com o Antigo Tes-
tamento, como o diz expressamente Tertuliano (Patr. Lat. v. 2, c. 418) ao salientar a semelhança entre
os doze apóstolos e os setenta discípulos, com as doze fontes e as setenta palmeiras de Elim (Êx. 15:27
e Núm. 33:9).
Realmente o número setenta é frequente, como se vê no caso dos setenta anciãos (Ex. 24:1, 9;
Núm.11:16ss; Ez. 8:11) que se transformaram nos setenta membros do Sinédrio (Fl. Josefo, Bell. Jud.
2, 20, 5 e Vita, 14); os setenta reis (Juízes, 1:7); os setenta sacerdotes de Baal (Dan. 14:9); os setenta
anos normais da vida humana (Salmo 89;10); os setenta siclos de resgate (Núm. 7:13), os setenta cú-
bitos de altura do Templo (Ez. 41:12), etc.
Infelizmente não nos foram conservados os nomes desses discípulos da Segunda “leva”, embora dentre
eles tenham sido propostos os substitutos de Judas (José Barsabbas, o Justo, e Matias). tendo este últi-
mo (At. 1:21-26). Eusébio (Hist. Eccl 1,12) cita alguns nomes colhidos na tradição oral.
Jesus os enviou (apésteilen) para onde? O evangelista não o esclarece, embora diga que “iam aonde
Jesus estava para ir”. Não se trata, porém (como em Luc. 9:52) de preparar-Lhe pousada, mas apenas
para conquistar novos adeptos. Em vista do episódio de Marta e Maria (Mat. 10:38-42) que está pró-
ximo a este, supõe Lagrange que estavam nos arredores de Jerusalém.
Foram enviados dois a dois, como ocorrera com os Emissários (Marc. 6:7, vol. 3) e como parece se
tornaria praxe daí por diante (cfr. At. 13:2; 15:27, 39, 40; 17:14; 19:22).
Jesus demonstra querer apressar-se para que, antes de partir deixe três gerações de discípulos prepara-
dos. Ordena-lhes, pois, que orem para que venham muitos outros (cfr. Mt. 9:37, 38) para serem prepa-
rados trabalhadores. Evidentemente, nem todos os convidados se mostraram aptos para o serviço. Dis-
so já se queixara Gregório Magno (P. L. v. 76, c. 1139): ecce mundus est sacerdotibus plenus, sed ta-
men in messe Dei rarus valde reperitur operator; quia officium quidem sacerdotalem suscipimus, sed
opus officii non implemus, isto é: “eis que o mundo está cheio de sacerdotes, e no entanto, na seara de
Deus raríssimo é o trabalhador; porque recebemos, na verdade, o encargo sacerdotal, mas não cum-
primos os deveres do encargo”.
Da alocução preparatória, conserva-nos Lucas alguns excertos: são eles avisados de que serão como
cordeiros entre os lobos, já que não disporão das mesmas armas que os adversários nem poderiam pen-
sar em desforços nem vinganças (cfr. Luc. 9:54).
As instruções ministradas à primeira leva dos doze (cfr. Mat. 10:5-16; Marc. 6:7-11 e Luc. 9:1-6; vol.
3) são aqui repetidas: nem bolsa, nem dinheiro, nem alforges, nem sandálias, ou seja, nenhuma preo-
cupação com o preparo da viagem; confiança absoluta na Providência divina; pobreza total e nenhuma
perda de tempo para cumprimentar nem para conversar com amigos. Ao entrar na casa para anunciar o
reino de Deus, a saudação será uma emissão de fluidos de paz. A expressão aqui é mais completa que
em Mat. 10:12 (veja vol. 3). E temos a garantia assegurada de que essa emissão atingirá seu objetivo,
envolvendo e penetrando os que estiverem aptos a recebê-la. E se acaso ninguém for digno, o jato
emitido voltará para quem o irradiou.

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Também não deverão mudar de casa em casa para não desapontar nem magoar seus primeiros hospe-
deiros e também para fixar um centro de sua pregação, onde possam ser facilmente encontrados, por
quem quiser ouvi-los. Na casa em que se fixarem, poderão aceitar alimentos sem constrangimento )cfr.
Mat. 10:10), pois "o operário é digno de seu salário". Observemos que Lucas emprega o termo misthós
(salário) ao passo que Mateus, no trecho que acabamos de citar, emprega trophes (alimento); Paul
Vulliaud, “La Clé Traditionnelle des Évangiles", pág. 137, sugere que essa divergência se prende às
palavras m'hiro (seu salário) e m’hiato (seu alimento) que só diferem em uma letra no hebraico. A
idéia é repetida em outros pontos do Novo Testamento, de que, quem dá o pão espiritual, pode receber
sem escrúpulo o pão material; no entanto, cremos que isso não justifique a “venda” de pregações e atos
religiosos por dinheiro (mesmo que se procure enganar a Deus e a si mesmo, utilizando sinônimos e
eufemismos: “troca" ou “espórtula”, etc.). Eis outros locais: “não amarrarás a boca do boi quando de-
bulha” (Deut. 25:4, citado em 1." Cor. 9:9 e em 1.ª Tim. 5:18); “digno é o trabalhador de seu salário”
(1.ª Tim. 5:18); “Será que não temos o direito de comer e beber”? (1.ª Cor. 9:4); e mais adiante: “O
Senhor ordenou aos que pregam o Evangelho, que vivam do Evangelho” (1.ª Cor. 9: 14).
Esse princípio vale não apenas para a casa que o hospeda, mas para toda a cidade. E para que também
se dê além do pão do Espírito, a predisposição para ele, o Emissário terá o poder de curar os enfermos,
como faziam os terapeutas essênios. Aqui, porém, não são citados o poder de ressuscitar os mortos”,
nem a proibição de pregar fora de Israel (esta última, aliás, também não enumerada por Lucas no cap,
9).
Entretanto, onde não fosse encontrada receptividade, se retirassem sem mágoa, mas também sem levar
coisa alguma da cidade, nem mesmo a poeira na sola das sandálias. Não obstante a mensagem devia
ser entregue, de que o reino de Deus se aproximou deles.
A culpa da rejeição é grave. E, em estilo oriental, são trazidas à meditação comparações vivas e cho-
cantes entre cidades: Corazin e Betsaida opostas a Tiro e Sidon, e Cafarnaum oposta a Sodoma.
Corazin, cidade da Galiléia, na ponta norte do Lago de Tiberíades, um pouco a leste de Cafarnaum. É
identificada com as ruínas de Khisbet Kerázeh, a 4 km ao norte de Tell Houm.
Betsaida, hoje El-Aradj, a 2 km a leste de onde João se lança no Lago Tiberíades e na margem deste. É
a Betsaida-Júlias, de Felipe, construída em homenagem à filha de Augusto (cfr. vol. 1 e vol. 3).
Tiro, hoje Sour, cidade da Fenícia, no litoral mediterrâneo.
Sidon, hoje Saida, capital desse país, 18 km ao norte de Tiro, também porto do Mediterrâneo (cfr. Mat.
15:21 e Marc. 7:24; vol 4).
Cafarnaum “cidade de Jesus” (vol. 2, ver também vol. 1 e vol. 2), situada na Galiléia, a 60 km ao norte
de Jerusalém.
Sodoma, antiga cidade, celebre por sua destruição pelo fogo, na época de Abraão e sempre citada
como exemplo (cfr. Gén 10:19; 13:10, 12,13; 14:2, 8, 10, 11, 17, 21; 18:16, 20, 22, 26; 19:1, 24, 28;
Deut. 19:23; 32:32; Is. 1:9, 10; 3:9; 13:19; Jer. 23:14; 49:18; 50:40; Thre 4:6; Ez. 16:46, 48, 49, 53, 55,
56; Sof. 2:9; Amós, 4:11; Mat. 10:15; 11:23, 24; Luc. 10:12; 17:29; Rom. 9:29; 2.ª Pe. 2:6; Jud. 7 e
Apoc. 11:8).
As oposições são feitas no estilo figurado, da suposição do que teria sucedido se uma causa tivesse
sido interposta, e lançado o resultado no futuro, "no dia da triagem". Já vimos que "triagem" é o senti-
do certo da palavra krísis, geralmente traduzida por “julgamento” ou “juízo” (cfr. vol. 2 e vol. 3). Se
tudo o que foi feito em Corazin e Betsaida, deixando-as surdas e empedernidas, tivesse sido realizado
em Tiro e Sidon - cidades “pagãs” – estas teriam radicalmente modificado sua mente (metanóêsen).
Porque em Corazin e Betsaida, como em Cafarnaum, Jesus “manifestara (“fizera nascer” egénonto) as
suas maiores forças” (kai pleístai dynámeis autóu). Cafarnaum, então, poderia Ter sido “exaltada até o
céu”, em virtude de nela Ter residido por três anos o Mestre; mas por tê-lo rejeitado, cairia até o “ha-
des”: ao recusar a luz, escolhera as trevas. Trata-se evidentemente de comparações “por absurdo”, pois
se refletissem a realidade, sem dúvida o Cristo teria pregado naquelas cidades, e não nestas. Anotemos,

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porém, que em nenhum ponto do Novo Testamento se fala da pregação de Jesus em Corazin; deduzi-
mos, daí quanto as narrativas são resumidas a respeito da ação de Jesus no planeta (cfr. João 21:25).
Aos setenta e dois, tanto quanto fizera aos doze, é atribuída delegação plena, no mesmo pé de igualda-
de: todos são Emissários ("apóstolos") que representam Jesus como embaixadores plenipotenciários:
"quem vos ouve é como se a mim mesmo ouvira; quem vos rejeita, a mim mesmo rejeita; e quem me
ouve ou rejeita, está ouvindo ou rejeitando o Cristo, uno com o Pai, que impulsionou ou “enviou” o
Filho. E esta verdade vale ate hoje, para os que receberam a tarefa da pregação falada ou escrita.
A expressão "sentadas em saco e cinza” é tipicamente bíblica: v’schaq va-epher iatsiah, (Isaias 58:5).

Esta lição é preciosa, porque nos revela o plano executado por Jesus, quando de sua estada na Terra.
Em primeiro lugar, convoca doze elementos e lhes dá um curso intensivo de iniciação, revelando-lhes
os "segredos do reino”. Aptos a passar adiante os ensinos, são eles enviados dois a dois. Cada dupla
consegue (naturalmente por indicação de Jesus), exatamente mais doze elementos, sobre os quais.
possivelmente, exercessem direção. Seis vezes doze, formaram, então, os setenta e dois discípulos con-
vocados, que se aproximaram do Mestre para ouvir-Lhe os ensinos e serem, por sua vez, iniciados nos
“mistérios do reino”. Daí a necessidade que Pedro sentiu (At. 1:21) de designar um substituto para
Judas, a fim de chefiar o grupo dos doze que ficara acéfalo e poder, dessa forma, prosseguir no tra-
balho silencioso.
Agora, novamente, Jesus envia os setenta e dois, em duplas. São, por conseguinte, trinta e seis grupos,
cada um dos quais convocará doze novos iniciados, perfazendo, portanto, o total de 432 discípulos,
que estariam espiritualmente aptos a divulgar o ensino iniciático do Mestre. Cremos que esta nova
teoria não poderá ser tachada de imaginação nossa, já que, na 1.ª Cor (15:5-6), Paulo relata que os
“discípulos” englobavam exatamente os setenta e dois MAIS os quatrocentos e trinta e dois (que so-
mam 504), quando diz: “Apareceu (Jesus) a Cefas, e depois aos doze: depois apareceu a mais de qui-
nhentos irmãos de uma vez”. Ora, “irmãos” (adelphoí) era o termo técnico para designar os compa-
nheiros de iniciação. Portanto, quando Jesus desencarnou, deixou, ao todo, 516 discípulos já inicia-
dos e pronto para o trabalho da divulgação de Sua doutrina, garantindo, assim, a continuidade do
ensino. Estivesse, pois, a humanidade preparada, e dentro de poucos anos mais a Terra se teria podi-
do transformar pois no 12.º envio dessas duplas (dois já haviam sido feitos), teríamos 4.353.564.672
“irmãos“, ou seja, a população toda do planeta! Mas a humanidade se encontrava (e se encontra ain-
da!) muito retardada no caminho evolutivo. Aguardemos com paciência, até que a Lei se cumpra.
Essa maneira de agir explica-nos por que Jesus escolheu pequena aldeia desconhecida e se manifes-
tou a homens socialmente sem posição destacada, pois já eram humildes por sua própria condição. E
por isso o cristianismo se difundiu entre o povo pequeno, mais apto a receber a lição e a transmiti-la.
Não eram as grandes pregações nos centros populosos e cosmopolitas, que visassem a uma impressão
e a um aplauso externo, mas facilmente sufocáveis pela bacanal do “mundo". Jamais interessou ao
Mestre, que SABIA como agir, a aprovação exterior da personagem transitória: Ele queria a trans-
formação íntima e profunda, a CRISTIFICAÇÃO REAL. E por isso tem sempre falhado os grandes
pregadores de multidões, e têm obtido êxito os Mestres escondidos e silenciosos, quase anônimos das
grutas da Índia ... Todas as vezes que o culto se propaga horizontalmente entre milhares de crentes,
crescendo em número, com pompas e rumores e trombetas, observamos que se trata de um movimento
de superfície que encrespa as águas, mas não as revolve, que entusiasma, mas não dura. Frutos só
poderão ser colhidos, quando o trabalho é realizado verticalmente, na profundidade do ser. Daí a
decepção de tantos pregadores célebres, que falam a milhares de criaturas entusiasmadas e dispostas
a sacrifícios “naquela hora", mas que não chegam a transformar nenhuma: as sementes lançadas se
esriolam ao sol, ou são comidas pelas aves do céu, ou sufocadas pelas ervas daninhas (cfr. vol. 3).
Que os setenta e dois foram iniciados mostra-nos o verbo anadeíknymi: “elevar, mostrar no alto”, e
portanto, “consagrar como sacerdote”.
As instruções, iguais às do primeiro lote de doze, revelam que estavam no mesmo grau, tanto que lhes
foi confiada tarefa igual. Os requisitos foram os mesmos para os dois grupos. O termo “enviou”

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(apéstelen) é o mesmo. Por que só dão aos primeiros o título de “apóstolos"? Todos os oitenta e qua-
tro o foram, legítima e oficialmente consagrados por Jesus. A Tradição não os reconheceu? Observe-
mos um fato: o mais antigo documento da tradição escrita, a DIDACHÊ, em seu cap. 11, vers. 3 a 6.
diz: “enquanto aos apóstolos e profetas, agi conforme a doutrina do Evangelho. Ora, qualquer após-
tolo que chegue a vós, recebei-o como (vindo) do Senhor. No entanto, não permanecerá mais que um
dia só. Se houver necessidade, mais um dia. Mas se ficar três dias, é falso profeta. Ao sair o apóstolo,
nada leve consigo, a não ser pão, até a nova hospedagem. Se pedir dinheiro, é falso profeta". Racioci-
nemos. Se houvesse apenas os doze, a comunidade cristã os conheceria imediatamente, e saberia
quais eram os verdadeiros apóstolos. Como, entretanto, eram mais de quinhentos, fácil seria que al-
gum aventureiro se apresentasse como sendo “apóstolo”, não no sendo.
No vers. 9, de Lucas, traduzimos o verbo éggiken (perfeito de eggízó) por “aproximou-se”, e não
como nas traduções correntes: “está próximo”; e também eph’humín, traduzimos por “sobre vós”,
literalmente. Pode parecer algo duro”, no português, mas exprime a idéia original: o reino dos céus,
que é a realização interna, no coração já fez sua aproximação, chegando do Alto, das vibrações mais
elevadas, para atrair a si o Espírito, convidando-o a corresponder ao chamado e unificar-se com o
Amado.
Para apenas acenar ao sentido dos termos usados: Corazin significa “o Segredo” e Betsaida, “Casa
dos Frutos”. Realmente elas revelam a chave usada pelo Mestre: buscar os frutos em segredo, pela
iniciação INTERNA. E lamenta-se: quem sabe se não obteria maior êxito se o tivesse feito em Tiro, ou
“força” ou em Sidon, a “caçada” (vol. 4), ou seja, se lançasse à humanidade uma "cacada à força"?
Quem sabe se ao invés de "Casa do Consolador” (Cafarnaum) se agisse na "aridez" (Sodoma), isto é,
com dureza, os resultados teriam sido melhores?
Depois do desabafo, vem a confirmação de que os setenta e dois estavam no grau do sacerdócio, ca-
pazes de passar adiante a iniciação: é a alusão ao logos akoês, à “palavra ouvida”: quem vos ouve,
me ouve, e quem me ouve, ouve meu o Pai". A linha da tradição (parádosis) iniciática divina prosse-
gue na Humanidade. O essencial é que a "palavra ouvida" seja realmente o Logos DIVINO, e não o
logos dos homens. Quando o ensino (logos) é verdadeiro e testificado pelo CRISTO, sua rejeição
apresenta consequências graves: o afastamento da vibração divina, que é repelida, e a queda nas ilu-
sões de falsas e vazias teorias humanas, que a nada conduzem, que nada constróem, que levam à per-
dição.

COINCIDÊNCIAS
Há certas coincidências em nossos vidas que nos causam impressão. Eis alguns exemplos, cuja desco-
berta nos alegrou:
1) Nos comentários evangélicos (“Sabedoria do Evangelho”) adotamos o princípio (vol. 1) de escre-
ver com E (maiúsculo) a palavra Espírito, quando nos referíamos à Individualidade; e com “e”
(minúsculo), espírito, quando quiséssemos designar a personagem, a psychê. Ora, no ano passado
(1967) chegou a nossas mãos o volume “The Hidden Wisdom in the Holy Bible”, da autoria de
Geofrey Hodson (The Theosophical Publishing House, Adyar, Madras 20, Índia, 1963). Lemos aí,
na pág. 58, nota I: “Throughout this work, in order to reduce ambiguity concerning the meaning of
this term to a minimum, a capital initial is used when the unfolding, immortal, spiritual principle
of man is meant, e. g. Spiritual Soul. The term “Ego” is also used to denote this centre of the sense
of individuality in man. A small “s” is used when the psyche, the mental and emotional aspects of
the mortal personality, are referred, - e. g. soul”. A única diferença é que, na personalidade, deno-
minaríamos aspecto “Intelectual”, e não “mental”.
2) Outro ponto de coincidência ocorre quando consideramos em nossos comentários, como símbolo
da individualidade no homem (do homem-futuro) a figura de Jesus, ou seja, quando os evangelistas
atribuem esta ou aquela ação a Jesus, e quando Jesus age deste ou daquele modo, isso representa
em nós o que deve fazer a individualidade, o Eu Profundo (vol. 1). Lemos em Hodson: “Jesus
Christ Who personifies God’s Spirit and presence within man” (pág. 63).

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3) Quando dissemos que as pessoas citadas historicamente nas Escrituras representavam, além de seu
papel histórico, a caracterização de uma qualidade ou defeito humano, ou um veículo, um plano de
consciência (vol. 1). Na obra citada, lemos: “The second key is that each of the persons introduced
into the stories represents a condition of consciousness and a quality of character. All actors are
personifications of human nature, of attributes, principles, powers, faculties, limitations, weaknes-
ses and errors of man” (pág. 63).
4) Afirmamos ainda (vol. 3) que até mesmo a história do povo hebreu, como outras, representavam os
passos da evolução do Espírito. Eis o que diz o autor na página 90: “The third key is that each stary
is thus regarded as a graphic description of the human soul as it passes through the various phases
of its evolutionary Journey to the romised Land, or Cosmic Consciousness – the goal and summit
of human attainment”.
5) Quando comentamos o caso da “Samaritana”, salientamos (vol. 2) a incongruência do pedido de
Jesus: “Chama teu marido”, esclarecendo que isso alertava para um sentido mais profundo. Cite-
mos Hudson (página 93): “incongruities are clues to deeper meanings”, o que é explicado longa-
mente nas páginas seguintes.
6) Dissemos que os fatos narrados nas Escrituras se realizaram mesmo (vol. 1) e o simbolismo deles é
extraído por quem o consiga. Mas o simbolismo não invalida a realização dos fatos, como preten-
dem alguns ocultistas. Escreve Hodson (pág. 208): “Thus whilst the historicity of Bible is not con-
tested, the idea is advanced that the related incidents have both a temporal, historical significance
AND a timeless meaning, universal and human”.
Em numerosos outros pontos a obra de Hodson concorda com a nossa “Sabedoria do Evangelho”, em-
bora divirja em muitos outros. Dissemos, no início, que esse fato muito nos alegrou. Com efeito, veri-
ficamos que as mesmas idéias foram captadas por várias criaturas, em continentes diferentes e longín-
quos; e não sabemos se terão aparecido as mesmas idéias em outros lugares, pois assim como essa obra
levou quatro anos a chegar a nossas mãos, outras podem ter sido divulgadas sem que as conheçamos.
Alegra-nos o fato, pois segundo Allan Kardec, quando as mensagens são recebidas por diversas pesso-
as, em lugares diferentes, isso constitui uma prova de sua autenticidade. E uma confirmação indireta
do que escrevemos, conforta-nos o espírito, porque nos demonstra que estamos sendo fiéis pelo menos
nesses pontos, :não traindo o pensamento emitido do Alto.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

O SAMARITANO
Luc. 10:25-37
25. E então levantou-se certo doutor (da lei), tentando-o e dizendo: “Mestre, que farei
para herdar a vida imanente?"
26. Ele disse-lhe: "Na lei, que está escrito? Como lês?
27. Respondendo-lhe, disse; "Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a
tua alma, de toda as tuas forças, e de todo o teu intelecto, e a teu próximo como a ti
mesmo”.
28. E disse-lhe (Jesus): "Respondeste corretamente; faze isso e viverás”.
29. Mas, querendo justificar-se, ele disse a Jesus “E quem é meu próximo"?
30. Replicando, disse Jesus: "Certo homem descia de Jerusalém a Jericó e caiu entre la-
drões que, tendo-o não só despido como batido até chegá-lo, foram embora deixando-
o meio-morto.
31. Por coincidência, descia por aquele caminho um sacerdote e, vendo-o, passou ao lar-
go.
32. Igualmente um levita, vindo a esse lugar e vendo-o, passou ao largo.
33. Certo samaritano, porém, viajando, chegou junto dele e, vendo-o, teve compaixão.
34. E aproximando-se, enfaixou-lhe as feridas, derramando sobre elas azeite e vinho; e
colocando-o sobre seu jumento, levou-o a uma hospedaria e cuidou dele.
35. E no dia seguinte, tirando dois denários, deu-os ao hospedeiro, e disse "Cuida dele, e
o que quer que gastes a mais, eu te pagarei no meu regresso".
36. Qual destes três te parece ter-se tornado o próximo do que caiu entre ladrões?
37. Respondeu-lhe: "O que teve misericórdia para com ele”. Disse-lhe Jesus: "Vai tam-
bém tu fazer do mesmo modo".

A lição é de extraordinária beleza em sua simplicidade. Como tantas outras vezes, o doutor da lei (no-
mikós) quer "tentá-lo” (ekpeirázôn). Sua pergunta, que visa a entabolar uma discussão, é semelhante às
apresentadas por Mat. 22:34-40 e Marc. 12:28-34. Mas as circunstâncias e a resposta variam de forma
a mostrar-nos que se trata de episódios diferentes. O sistema de fazer perguntas para embaraçar o in-
terlocutor era habitual entre os doutores da lei e os escribas (grammateus) que, em se aproveitando de
seu profundo conhecimento da Torah e dos comentários do Talmud e da Mishna, com facilidade con-
fundiam os outros, firmando então seu conceito de sábios perante o público.
Para ganhar terreno, logo de início, Jesus inverte os papéis e responde com nova pergunta, exatamente
dentro do campo que, para o doutor, era o mais fácil: o da Torah: "Que diz a Torah"? Mas, a fim de
evitar longas citações, limita o que deseja como resposta: "como lês", isto é, como a entendes em suas
palavras escritas?
A resposta é pronta e clara. tirada do Deut. 6:5 (que resume Deut. 6:4-9 e 11:13-21, bem como Núm.
15:37-4l) e que duas vezes por dia os israelitas repetiam no início do sema (oração). A segunda parte é
extraída de Lev. 19:18, não fazendo parte do sema. Mais tarde (Mat. 22:40) Jesus dirá que "nestes dois
preceitos estão resumidos toda a lei e os profetas".

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O BOM SAMARITANO
Desenho de Gustavo Doré, Gravura de A. Gusmand

Jesus aprova plenamente a resposta e aconselha o indagador a cumprir o que disse. Mas a derrota tinha
sido muito rápida, e o doutor não se conforma em sair de cabeça baixa. Volta à carga com outra per-
gunta, sobre a qual, fácil lhe seria estabelecer a discussão desejada: "e quem é meu próximo"? Para os
israelitas, "próximos" eram os pais, os filhos, os parentes, os da mesma religião, os da mesma raça,
nessa ordem de precedência. Os “pagãos" e samaritanos não constituíam "o próximo, mas o adversário.
Ao invés de permanecer no terreno teórico, fácil para provocar controvérsias interpretativas, Jesus pas-
sa à prática, com uma “parábola". Coloca o caso num "homem”, sem esclarecer se era judeu ou pagão;
não lhe importa a nacionalidade nem a religião. Vem então a situação “de fato": ele descia de Jerusa-
lém (a 800 metros de altitude) para Jericó (que se achava a 250 metros abaixo do nível do mar). A es-
trada era árdua e íngreme e atravessava regiões desertas, para além do monte das Oliveiras, partindo à
e el-Azarieh. Fácil ser atacado por salteadores de estradas, numerosos naquela época, que se aproveita-

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vam dos viajantes solitários. O "homem" foi envolvido por um desses bandos, e tiraram-lhe tudo, até a
roupa do corpo, deixando-o nu e, além disso, o cobriram de pancadas, largando-o ferido.
Estava esboçado o quadro. Agora chegam as personagens. para estabelecer os confrontos.
A primeira é um sacerdote, cujo ofício lhe impunha o amor aos semelhantes e o socorro aos necessita-
dos. Mas ele olha o desgraçado ferido e nu, e não quer complicações: dá uma volta para passar o mais
longe possível (antiparélthen, caminha do lado oposto). Ora, o sacerdote, tanto quanto o levita (servi-
dor do Templo, da tribo sacerdotal de Levi) deviam conhecer o preceito da Lei: "se vês o asno de teu
irmão ou seu boi caído na estrada, não te afastes, mas ajuda-o a levantar-se " (Deut. 22:4) e mais ainda:
"se encontras o boi de teu inimigo ou seu asno perdido, o levarás a ele, e se vês o asno de teu inimigo
caindo sob o fardo, não te abstenhas: ajuda-o a descarregá-lo" (Êx. 23:4-5). Se esses eram os preceitos
para com asnos e bois, a fortiori se referiam aos próprios seres humanos, fossem amigos ou inimigos.
Mas os dois se afastaram.
Entretanto, aparece na estrada um samaritano, que se compadece do ferido e o atende com misericór-
dia e humanidade. Lava-lhes as feridas, segundo o costume da época, com óleo e vinho, e coloca-lhes
ataduras, embora precárias. Carrega-o sobre seu próprio jumento, caminhando a pé, a seu lado, até a
próxima hospedaria ou "Khan". Lá cuida melhor dele, pernoita, e na manhã seguinte, ao partir, "tira"
(da cintura) dois denários, que entrega ao hospedeiro para as despesas futuras com o ferido. O denário
era a importância correspondente a um dia de trabalho (cfr. Mat. 20:2), e dois seriam mais do que sufi-
cientes para atendê-lo até o restabelecimento. Mas podia dar-se a necessidade de mais: o samaritano
pensa em tudo: ao regressar pagará o que tiver faltado. E segue viagem tranquilo pelo dever cumprido.
Não cogitou de indagar a nacionalidade, nem a religião de quem necessitava: fez.
Terminada a parábola, muito psicologicamente Jesus não lhe tira a ilação moral: deixa esse encargo ao
doutor, obrigando-o a pronunciar-se categoricamente, passando de inquisidor a inquirido: "Qual dos
três foi próximo do ferido"?
A resposta veio sincera e correta, mas teria sido muita humilhação reconhecer que o "samaritano" tinha
sido superior ao sacerdote e ao levita de sua religião. Então, responde com um circunlóquio: “o que
teve misericórdia com ele".
Aqui Jesus encerra a discussão com a superioridade do Mestre que ensina. Já havia tomado essa posi-
ção depois da primeira pergunta: "faze isso e viverás"; agora insiste: "age do mesmo modo”.
Esta lição é a exemplificação prática do que Jesus ensinou antes, completando a lei (cfr. Mat. 5:43-48 e
Luc. 6:27-28 e 32-36: vol. 2).
A expressão "fazer misericórdia para com ele” (poieín éleon metà autoú) é um hebraísmo conservado
nos LXX, e é empregado só por Lucas aqui, em 1:72 e nos Atos 14:27 e 15:4).

O nomikós, ou doutor da lei (literalmente "o legalista") representa, nos Evangelhos, em seu sentido
profundo e simbólico, o intelecto plasmado nos preconceitos de "escolas", sobrecarregadas de pre-
ceitos humanos inventados por "intelectuais” do espírito e impostos como princípios e dogmas à hu-
manidade.
Para esses, chega o aviso de que bastam os dois preceitos fundamentais: amar a Deus e ao próximo
(templo de Deus). Tudo o mais, como dizia Rabbi Hillel, "são comentários a esses dois preceitos".
Jesus, aqui como alhures, aceita os preceitos hilelistas, afastando-se totalmente da escola rigorista de
Rabbi Shammai.
A prova do "escolasticismo" do intelecto é a pergunta seguinte, a respeito do "próximo". Aproveitan-
do-a, o Mestre Único lança à humanidade toda uma lição sublime, em forma de parábola, a fim de ser
aproveitável a profanos e iniciados.
Para os primeiros, a tese de que temos que amar positiva, eficiente e realmente (comprovando-o nos
mínimos atos) aqueles mesmos que "julgamos" inimigos, mas são de fato "nosso próximo". Portanto
"ajudar", sem considerar cor, raça, religião, idade, sexo. condição social.

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Para os "discípulos" há outros sentidos.
Podemos considerar primeiramente, no plano logo superior ao físico, o espírito desencarnado, assal-
tado por perseguidores do plano astral e deixado ferido e maltratado. Não são os "ministros" das re-
ligiões (sacerdotes) nem os “aliados" (levitas) que poderão prestar-lhe eficiente socorro. Só uma
"alma vigilante" (samaritana, veja vol. 2) é capaz de realizar os esforços indispensáveis à sua recupe-
ração, conduzindo-o a um "Posto de Socorro" (hospedaria) ou hospital do mundo espiritual, cuidando
que suas forças sejam refeitas, a fim de que possa preparar-se convenientemente para "continuar sua
viagem evolutiva", após essa "descida" moral, novamente reencarnando.
Em outro estágio algo mais elevado, podemos discernir, na lição sóbria, o trabalho de elevar um ser,
ferido pelas paixões violentas (salteadores), que lhe roubaram todas as qualidades positivas (saúde) e
o deixaram intranquilo e desesperançado (caído e chagado). Não são as religiões organizadas (sacer-
dotes) nem os "companheiros" de romagem (levitas) que poderão prestar-lhe cabal assistência, pois se
acham no mesmo plano "adormecido" da personagem humana normal. Só mesmo alguém que já tenha
sido despertado para a vida maior do Espírito (samaritano - vigilante) é capaz de trazer-lhe efetivo e
eficiente socorro, derramando em suas chagas o óleo (bálsamo do conforto e consolação) e o vinho
(interpretação e explicações espirituais), e levá-lo, depois, aonde possa ele libertar-se, pela meditação
ao lado de um mestre (hospedeiro), dos danosos efeitos e das consequências dos vícios, e poder assim
recomeçar, fortalecido, sua evolução, após haver aprendido, em dolorosas experiências, a evitar os
perigosos caminhos do mundo, infestados de gozos e paixões traiçoeiras (ladrões e salteadores) pro-
curando manter-se equilibrado no plano espiritual. Atravessará, assim, indene as vicissitudes terrenas
e chegará a salvo ao fim da jornada.
No plano iniciático, podemos interpretar a lição como uma indicação do caminho que a criatura per-
lustra na Terra. Inicialmente, o homem se lança ao mundo, numa viagem que "desce de Jerusalém"
(visão da paz) a Jericó ("a lua dele"), isto é, que baixa suas vibrações, descendo do Espírito pacifica-
do à mutação variável (lunática) da personagem terrena. Na descida, encontra-se com numerosos e
variados percalços que o maltratam e ferem, com ladrões de sua paz (sensações) e salteadores de sua
espiritualidade (emoções), os quais o reduzem à situação de frangalho humano, a um ser "decaído" na
condição de "incapaz" de, por si, reagir e vencer o jogo das sensações desregradas e das emoção des-
controladas. O intelecto perde sua ação, e fica paralisado (caído) e nu (sem capacidade para compre-
ender nem raciocinar). O que primeiro chega a seu lado, para a recuperação, é o sacerdote, ou seja, o
representante das religiões organizadas (budismo, catolicismo, judaísmo, espiritismo, protestantismo,
etc.). O resultado da atuação das religiões é ironicamente salientado: passar de largo, o mais longe
possível dos realmente necessitados: falam, mas não agem; pregam, mas não realizam; ensinam, mas
não praticam; utilizam a voz, mas não praticam; utilizam a voz, mas não as mãos. Em conclusão, o
desejoso de espiritualidade" (ou "mendigo do Espírito") fica na mesma, sem ter como modificar seu
estado, amargando as dores e suportando as aflições de seu estado. O segundo com que deparam os
"feridos da vida", é o levita. Descrente da ação das religiões que não atenuaram sua sede íntima, co-
loca nos "aliados" a esperança de recuperação. Outra desilusão soma-se à primeira. Seus companhei-
ros também "passam ao largo" quanto aos problemas profundos, não resolvem as dificuldades ínti-
mas, nada trazem de novo. E, de tudo despojado, nu e caído em sua romagem terrena, a vítima sofre,
calada, o choque de retorno cármico de seus erros. Para socorro eficiente e acerto na direção a to-
mar, só alguém que já esteja desperto e iluminado na senda. Com o óleo balsâmico do alívio e o vinho
espiritual das interpretações reveladoras dos Mestres, vem o primeiro e essencial reconforto para as
feridas das emoções, e esclarecimento para as dádivas do intelecto. As "feridas" são, então, "enfaixa-
das" com os panos do amor envolvente, que o destacam do mundo; e o próprio "mestre" assume sobre
si uma parte do carma da vítima, carregando-a em seu próprio corpo (o seu jumento) e levando-a a
uma Escola Iniciática, onde a deixa para recuperar-se, servindo de "fiador" daquele Espírito. Daí por
diante, reconfortado e iluminado, esclarecido e refeito física e intelectualmente, estará apto a cami-
nhar com seus próprios pés.
Daí a grande e preciosa ordem de Jesus a seus discípulos: "vai tu fazer o mesmo", isto é, percorre as
estradas do mundo e socorre, com tuas próprias mãos, e derrama tua própria paz como óleo recon-

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fortante, e despeja o vinho de teu próprio conhecimento espiritual, e enfaixa com as ligaduras amoro-
sas de teu próprio coração, e assume sobre teu corpo a responsabilidade cármica, e serve tu mesmo
de fiador de quantos encontrares aflitos, angustiados, feridos, inertes, caídos, desprezados e desespe-
rados em tua peregrinação pela face da planeta sofredor.
Esta a verdadeira lição. Se fora somente socorrer os "corpos" literalmente feridos, poucas ocasiões
teríamos de pô-la em prática. Mas com a interpretação espiritual, sabemos que haverá centenas ou
milhares de ocasiões de realizar o preceito do Mestre.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

MARIA E MARTA
Luc. 10:38-42
38. E aconteceu que, na ida deles, entrou numa aldeia, e certa mulher de nome Marta re-
cebeu-o na casa dela.
39. E tinha uma irmã, chamada Maria, a qual, sentada aos pés de Jesus ouvia o seu ensi-
no.
40. Maria entretanto, estava atarefada com muito serviço; e disse: “Senhor, a ti não im-
porta que minha irmã me tenha deixado sozinha a servir? Dize-lhe, pois, que me aju-
de".
41. Mas, responcendo-lhe, Jesus disse: "Marta, Marta, estás ansiosa e preocupada com
muitas coisas,
42. no entanto, poucas são necessárias, ou melhor, uma só; como Maria escolheu a parte
boa, esta não lhe será tirada" .

Lucas não nos diz qual a aldeia, mas João (11:1) esclarece tratar-se de Betânia, situada no sopé do
monte das Oliveiras, na estrada que levava a Jerusalém, 2 km a leste.
Quem hospeda Jesus é Marta, a mais velha, o que significa ser ela solteira. Não fora assim, o marido é
que receberia o hóspede. Maria, sem deveres de hospitalidade a desempenhar, senta-se ao chão junto
aos pés de Jesus, indiferente ao serviço da casa. Lucas apresenta-a como "uma irmã, chamada Maria",
o que afasta a hipótese de identificá-la quer com a pecadora (7:37), quer com Maria Madalena (8:2),
ambas já apresentadas anteriormente ao leitor pelo evangelista.
Em suas intermináveis idas e vindas, para preparar a casa e a refeição, Marta aflige-se, ao ver que per-
de grande parte dos ensinos de Jesus. Mas o sentido da obrigação de dona-de-casa é mais forte que o
desejo de aprender. Aproveitando-se, então, de uma aproximação, reclama com o Mestre da calma
despreocupada de Maria, e pede-Lhe que diga à irmã que venha ajudá-la, condividindo a tarefa do-
méstica.
A resposta de Jesus é clara, e condena as preocupações de Marta, louvando a preferência de Maria. Há
duas lições: A, C1, P, delta e pi escrevem como a Vulgata: "uma só coisa é necessária" (henós dé estin
chreían); mas a melhor lição é a de aleph, B, C2, L e versões coptas, etiópicas e siríacas: “poucas coi-
sas são necessárias ou melhor, só uma (olígon dé estin chreía hé henós).
Realmente, de bem pouco precisa o homem na Terra para seu sustento. As complicações e complexi-
dades são criadas pelos desejos do próprio homem, não pela necessidade. Ora, não há razão para preo-
cupações desnecessárias: o essencial é pouca coisa; aliás, o essencial é apenas uma coisa: o reino de
Deus.
Assim sendo, Maria é que está com a razão. Escolheu o que é bom, a "parte boa", e esta jamais lhe será
tirada. Trata-se da conquista do Espírito que, à medida da evolução, aprende a selecionar o essencial
do supérfluo.

Lição curta em seus termos, mas profunda em seus significados. É dada por meio de um fato vivo e
autêntico, donde possamos deduzir mais seguramente as conclusões para nosso aprendizado e evolu-
ção.

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A primeira lição bem compreendida por todos, é que a “vida contemplativa" apresenta, realmente,
incontestável superioridade em relação à vida ativa", que é classificada, por exclusão, como a "parte
não-boa". Observemos que o Mestre não se refere à primeira dizendo a "a melhor", como que compa-
rando um bem menor a outro maior. Diz, taxativamente, "a parte BOA", opondo-a a uma "parte MÁ".
A vida ativa, a que se refere o Mestre é precisamente a de atender ao necessitado, já que Marta pre-
parava, atarefadamente, alimentos para Ele, o hóspede amorosamente tratado.
Mas a lição mais profunda ensina-nos algo diferente. O hóspede divino de todos nós está caminhando
conosco, na "ida" do Anti-Sistema para o Sistema. Nessa viagem, permanece hospedado, recebido em
nossa casa. E a "dona-da-casa" (significado da palavra "marta") faz todas as honras ao ilustre Se-
nhor. Portanto, trata-se de uma criatura que já atingiu elevado grau evolutivo, que já compreendeu a
sublimidade daquele que habita em "sua casa".
Acontece, porém, que essa "dona-de-casa", a personagem, vive atarefada e preocupada com os afaze-
res do mundo, ao passo que a individualidade, "sentada aos pés do Mestre", procura manter-se em
contato permanente com Ele. A queixa da personagem não se faz esperar: quer trazer para sua com-
panhia a individualidade, fazendo-a baixar suas vibrações, para mergulhar no azáfama externo e inú-
til das coisas materiais.
Recorre ao Mestre, e este, alertando-a para o sem-valor dessas coisas, garante a permanência de Ma-
ria ("a exaltada" ou "a extática") em seu êxtase maravilhoso. A contemplação é a “parte boa" da
vida: jamais a ação divina afastará um Espírito de sua união plena. As tentações materiais e terrenas
poderão pretender influir, para afastá-la dessa união. Mas, do lado divino, jamais provirá uma inici-
ativa dessas. As crenças terrenas de que a “caridade" material sobreleva e vale mais que a contem-
plação, podem iludir as criaturas imaturas; mas os que já sentiram a presença do Mestre, SABEM que
mais vale um minuto de unificação com o Cristo, que uma vida inteira de agitação caritativa. Então, a
criatura evoluída, o ser iniciado, mesmo quando precisa desdobrar-se em atividades externas, só o faz
com o espírito "sentado aos pés" de seu apaixonado amor.
Como vemos, lição prática, para ensinar-nos a manter os dois lados em equilíbrio, embora bem dis-
tintos um do outro. As tarefas terrenas que nos "ocupam", não nos "preocupem": realizemo-las com os
veículos externos, sem nelas imiscuir o Espírito. Este deve permanecer na contemplação e na união
divina. Agir com as mãos, meditar com o coração. Andar com os pés do corpo, enquanto o Espírito
permanece "sentado" a conversar com o Amigo Sublime. Olhar as coisas com os olhos físicos, man-
tendo o olhar do Espírito preso às belezas do Amor. Raciocinar com o intelecto, deixando a mente a
contemplar o Amor do Amado.
E o evangelista soube, perfeitamente, estabelecer a sequência, dando-nos esta lição logo a seguir à do
"samaritano", como que prendendo uma à outra, afim de alertar-nos que o atendimento ao próximo,
embora necessário e sublimador, não deve afastar-nos, de modo algum, do ambiente místico da con-
templação interior.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

O REGRESSO DOS 72

Mat. 11-25-30 Mat. 13:16-17 Luc. 10:17-24

25. Naquela ocasião Jesus dis- 16. Mas felizes são vossos 17. Voltaram os setenta e dois
se: "Abençôo-te, Pai, Se- ouvidos porque ouvem. com alegria, dizendo: "Se-
nhor do céu e da Terra, 17. pois em verdade vos nhor, até os espíritos se nos
porque ocultaste estas coi- digo, que muitos profetas submetem em teu nome".
sas aos sábios intelectuais e e justos desejaram ver o 18. Respondeu-lhes Jesus: "Eu
as revelaste aos pequeni- que vedes e não viram; e via o adversário cair, como
nos; ouvis, e não ouviram. relâmpago do céu.
26. Sim, Pai, pois assim se tor- 19. Atenção: dei--vos poder para
na bom perante ti. pisardes sobre serpentes e es-
27. Todas as coisas me foram corpiões e sobre toda a força
transmitidas por meu Pai; e do inimigo, e nada, de modo
ninguém tem a gnose do algum, vos fará mal.
Filho senão o Pai, e nin- 20. Mas não vos alegreis de que
guém tem a gnose do Pai os espíritos se vos submetam:
senão o Filho e aquele a alegrai-vos antes de que vos-
quem o Filho quer revelar. sos nomes estão inscritos nos
28. Vinde a mim todos os fati- céus".
gados e sobrecarregados, e 21. Nessa hora Jesus alegrou-se
eu vos repousarei. em espírito e disse: "Abençôo-
29. Tomai sobre vós o meu te, Pai, senhor do céu e da
jugo e aprendei de mim, Terra, porque ocultaste estas
porque sou doce e modesto coisas aos sábios intelectuais e
de coração e achareis re- as revelaste aos pequeninos.
pouso para vossas almas, Sim, Pai, pois assim se torna
bom diante de ti.
30. porque meu jugo é benéfico
e meu fardo é leve". 22. Tudo me foi transmitido por
meu Pai, e ninguém tem a
gnose do Filho, senão o Pai, e
ninguém tem a gnose do Pai
senão o Filho, e aquele a
quem o Filho quer revelar".
23. E voltando-se para seus discí-
pulos, disse: "Felizes os olhos
que vêem o que vedes,
24. pois digo-vos que muitos pro-
fetas e reis quiseram ver o que
vedes e não viram, e ouvir o
que ouvis, e não ouviram" .

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Não nos foi esclarecido quanto tempo demorou o trabalho da segunda leva, dos setenta e dois Emissá-
rios. Nem se sabe se todo chegaram no mesmo dia, por ter sido antecipadamente marcado um término
a essa excursão, ou se foram regressando aos poucos. O fato comprovado pelas anotações de Lucas, é
que chegaram "alegres", por haverem realizado com êxito a tarefa missionária recebida.
A impressão causada é que, todos reunidos, foi estabelecida uma assembléia ("igreja", ekklêsia) , tendo
o evangelista resumido, numa frase, a impressão e o relatório deles, salientando a surpresa de terem
conseguido "até" dominar os Espíritos desencarnados obsessores.
Jesus responde com uma frase para nós enigmática: ethéôroum tòn satanãs hôs astrapên ek toú oura-
noú pesónta, cuja tradução pode ser dupla, conforme prendamos ek toú ouranoú a astrapén (l.ª) ou a
pesónta (2.ª):
1.ª - eu via o adversário caindo, como relâmpago do céu;
2.ª - eu via o adversário caindo do céu, como relâmpago.
Alguns autores, aceitando a segunda, vêem na frase uma alusão à "queda dos anjos" (cfr. Apoc. 10:7-
9). Nada, porém, justifica tal afirmação. Dizem outros que Jesus "via" as vitórias de Seus discípulos,
como derrota e queda dos espíritos atrasados.
Observamos claramente repetido que o "poder" (exousía) dado aos setenta e dois foi o mesmo que aos
primeiros doze, embora lá (cfr. vol 3) não se tenha acenado a esse poder: "de caminhar sobre serpentes
e escorpiões e sobre a força (dynamis) inimiga". Sabemos que, de fato (cfr. Marc. 16:18) segundo pa-
lavras do Mestre, os que crerem expulsarão espíritos, falarão línguas novas (que não conheçam por
outras vias), pegarão em serpentes, nenhum veneno mortal lhes causará danos e, com a simples impo-
sição das mãos curarão enfermos. Os verdadeiros enviados não são atingidos por males externos.
O Mestre afirma que o domínio sobre espíritos obsessores pode causar a alegria da vitória do bem.
Mas a alegria profunda e íntima deve ser proporcionada, quando sabemos que temos os "nomes ins-
critos nos céus". Esta é uma expressão antiga entre os israelitas. Deparamo-la pela primeira vez, profe-
rida por Moisés, quando diz a YHWH: "perdoa-lhes o erro, ou senão risca-me do livro que escreveste"
(Êx. 32:32-33). E aparece ainda em Is. 4:3; Dan. 12:1; Salmo 68:29; Filp. 4:3 e Apo. 20:15. A expres-
são "ter o nome escrito ou inscrito nos céus" ou "no livro da Vida", significa "estar salvo".
Logo após, Jesus dirige-se ao Pai, numa oração de "ação de graças” (eucharistía) em termos que mere-
cem análise.
"Naquela hora (en autéi têi hôrai) alegrou-se (égalliásato, cfr. Luc. 1:47, vol. 1) em espírito (tôi pneú-
mati)". Alguns manuscritos acrescentam "santo", que é omitido no papiro 45, nos códices E, F, G e H,
em muitíssimos minúsculos e em Clemente de Alexandria. Suprimimo-lo, porque o sentido não o
pede, já que a alegria é do próprio Espírito da criatura, e o de Jesus (cfr. Luc. 1:35) era um Espírito
Santo. Nessa suprema alegria espiritual, fala Jesus: exomologoúmai soi, páter, kyrie toú ouranoú kaì
tês gês, "abençoo-te, Pai, senhor do céu e da Terra", hóti apekrypsas tauta, "porque ocultaste estas
coisas" apò sophôn kaì synetôn, "dos sábios intelectuais", kaì apekalypsas autà nêpíois "e as desve-
laste aos pequeninos”.
Preferimos considerar sophôn kai synetôn como uma hendíades (ver vol. 1) e traduzir "sábios intelec-
tuais", ao invés de "sábios e inteligentes", ou "sábios e hábeis". Com efeito, a dificuldade de aceitar a
revelação, reside nos sábios do intelecto, que só atribuem valor aos raciocínios horizontais, recusando
a intuição a inspiração, as revelações e o mergulho interno. Os “pequeninos" traduz nêpíois, que lite-
ralmente significa "infantes", isto é, as criancinhas que ainda não falam: são os humildes que aceitam
as coisas espirituais sem pretender falar por si mesmos nem querendo expender suas próprias opiniões
personalistas. E continua:
"Sim, ó Pai, porque assim se torna agradável diante de ti" (naí, ho pater, hótí hoútôs eudokía egéneto
émprosthen sou). É a conformação plena e explícita com a vontade do Pai, que se manifesta sempre
através dos acontecimentos que nos ocorrem, independentemente de nossa atuação voluntária. E pros-
segue: "tudo (pánta = todas as coisas) me foi transmitido (moi paredóthê) por meu Pai (hypó toú pa-

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trós mou)", numa declaração explícita de iniciação natural e divina (cfr. João, 3:35). E depois a frase
mais reveladora: "e ninguém tem a gnose (kaì oudeís ginóskei - em Mateus, epiginôskei) quem é o Fi-
lho (tís estin hyiós) senão o Pai (ei mê ho patêr), e quem é o Pai senão o Filho (kaì tis estin ho patêr ei
mê ho hyiós) e aquele a quem o Filho quer revelar (kaì hôi eán boúlêtai ho hyiós apokalypsai)”. O
verto usado por Mateus é mais forte: “reconhecer" ou melhor, "aprender a conhecer", o que supõe "ter
a gnose", o conhecimento pleno ou a plenitude do conhecimento (cfr. João, 6:46). Esse trecho foi clas-
sificado como "a revelação do mistério essencial da fé cristã", por Cirilo de Jerusalém (Patrol. Graeca,
v, 35, c. 464) e por João Crisóstomo) (Patrol, Graeca, v. 58, c. 534).
Voltando-se, depois, para Seus discípulos em particular (os 12 mais os 72), continua a manifestação de
alegria plena, numa frase em que os felicita pela imensa ventura de ali conviverem com Ele, na intimi-
dade da vida diária: "felizes vossos olhos por verem o que vedes, que tão ansiosamente foi desejado
por profetas e reis, que quiseram ver e ouvir e não no conseguiram". Essa frase acha-se, em Mateus,
em outro local, mas trouxemo-la para cá pelo indiscutível paralelismo com Lucas.
A seguir aparecem mais alguns conceitos, só em Mateus. São belíssimos, justificando o que a respeito
deles escreveu Lagrange ("L'Évangile selon St Matthieu", Paris, 1923, pág. 226): "é a pérola mais pre-
ciosa de Mateus". E prossegue (id. ib.): "O principal mérito do estudo de Norden (Agnostos Theos pág.
227-308) é o de ter mostrado que um convite ao estudo da sabedoria seguia normalmente os elogios da
sabedoria, isto é, o conhecimento de Deus". E seguem-se os exemplos: "E agora, meus filhos, escutai-
me: felizes os que guardam meus caminhos" (Prov. 8:32); "Vinde a mim, vós que me desejais, e saciai-
vos de meus frutos" (Ecli. 24:18); "Aproximai-vos de mim, ignorantes, e estabelecei vossa morada em
minha escola" (Ecli. 51:23); e sobretudo: "Dobrai vosso pescoço sob o jugo e que vossa alma receba a
instrução. Vede com vossos olhos que, com pouco trabalho, conquistei grande repouso" (Ecli. 51:34 e
35).
Mas as frases de Jesus são mais belas que essas e que todas as posteriores que lemos no Talmud:
"Efraim, nosso justo messias, possa teu espírito encontrar repouso, pois o trouxeste ao espírito do Cri-
ador e ao nosso" (Pesiq, 163a); "Bendita a hora em que nasceu o Messias! Feliz a geração que o viu!
Felizes os olhos julgados dignos de contemplá-lo! Pois seus lábios abrem-se em bênçãos e paz e suas
palavras são repouso ao espírito" (Pesiq, 140a); "Possa teu espírito repousar, pois repousaste o meu"
(Sabbat, 152b).
A expressão "jugo" era comum. No sema (oração diária), o israelita dizia, duas vezes por dia, o "jugo
do reino dos céus" e ainda falava no "jugo da Torah", no jugo dos Mandamentos", no "jugo do Santo"
ou do "céu", no "jugo da carne e do sangue" (a encarnação), etc. Assim também quanto à palavra "far-
do": o "fardo da Lei" (cfr. Mat. 23:4). Por aí vemos como Jesus se servia de palavras e expressões já
conhecidas e correntes, mas apresentando-as em conceitos novos e originais. Por isso, todos compre-
endiam seu ensino externo, mas de tal forma era nova a maneira de dizer, que afirmavam: "ninguém
jamais falou como esse homem" (João, 7:46).
Vejamos, pois, os maravilhosos conceitos do Mestre: "Vinde a mim (deúte pròs me) todos os fatigados
(pántes hoi kopiôntes) e sobrecarregados (kaì pephortisménoi) e eu vos repousarei (kagô anapáúsô
hymãs). Tomai sobre vós o meu jugo (árate tòn zygòn mou eph'hymãs) e aprendei de mim (kai máthete
ap'emoú, no sentido de "tornai-vos meus discípulos"), porque sou doce e modesto de coração (hóti
prays eimi kaì tapeinòs têi kardíai) e achareis repouso para vossas almas (kai eurêsete anápausin tais
psychaís hymõn). Porque meu jugo é benéfico (ho gàr zygòs mou chrêstós) e meu fardo é leve (kaì to
phortíon mou elaphròn estin)".
A tradução que fizemos, conforme acatamos de demonstrar, é a que mais se aproxima do texto origi-
nal, palavra por palavra, embora diferindo das traduções correntes.

Muito temos que aprender neste trecho. Acompanhemos seu desenvolvimento.


Inicialmente o regresso da segunda leva dos novos iniciados, que voltam da sua primeira missão. A
comprovação de que se tratava de verdadeiros iniciados, embora ainda no primeiro plano (veja vol.

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4) e de que o processo criado por Jesus continuou em expansão, tanto em número quanto em ascen-
são, são os numerosíssimos "mártires” (testemunhas) que, nos primeiros séculos inundaram com seu
sangue a superfície da Terra, tendo sido "o sangue deles, no dizer de Tertuliano, a semente de novos
cristãos".
A felicidade dos que iniciaram o "Caminho" (nome da Escola iniciática cristã) sob a orientação de
Jesus, é imensa e extravasa de seus corações: verificaram que realmente possuíam os "poderes" ex-
ternos, que a verdadeira iniciação propícia naturalmente: domínio da matéria na cura das enfermida-
des, domínio dos espíritos na libertação dos obsidiados.
A frase de Jesus é uma afirmativa de alcance e profundidade incomensuráveis: "eu via o adversário
cair, como o relâmpago do céu", ou seja, eu via a vitória do espírito, como emissão fúlgida de luz,
provocando a queda e o aniquilamento das personagens (adversárias da individualidade). O Espírito
iluminado brilha com fulgor invulgar, aos experimentados olhos do Mestre Vidente, que percebe as
mais abscônditas reações de Seus discípulos. A manifestação crística luminosa abafa todos os veículos
físicos inferiores, derrubando-os inexoravelmente: caem por terra definitivamente derrotados e con-
sumidos na fulgurante e enceguecedora luz espiritual do Cristo-que-em-todos-habita. Nesse sentido,
percebemos o significado real e profundo dessas palavras "enigmáticas". A meta a atingir é a união
com o Cristo Interno. Nessa união, dá se a iluminação do espírito (da individualidade). Essa luz
"queima" e ajuda a aniquilar os veículos da personagem (o "adversário"). Ora, diz Jesus, enquanto
vocês agiam, eu via o adversário cair (as personagens serem anuladas, cfr. "negue-se a si mesmo"),
superadas pela luz interna do Cristo, que se expandia "como um relâmpago do céu".
Logo após, entretanto, chega o aviso, com a instrução correspondente: "Atenção! (idou) Dei-vos o
poder (exousía) para caminhar sobre serpentes e escorpiões e para vencer a força (dynamis) dos ini-
migos, nada de mal podendo atingir-vos. MAS não vos alegreis por isso: são coisas secundárias e
transitórias; não é o domínio da matéria nem dos espíritos que significa evolução nem libertação do
plano terreno: é ter o nome inscrito nos céus".
Segundo as Escolas Iniciáticas, todo aquele que atingia os graus da iniciação maior (sobretudo o 7.º
passo), entrava a fazer parte da família do "deus" e, em muitos casos, chegava a abandonar os nomes
terrenos da família carnal, para assumir os nomes específicos de suas atividades, isto é, nomes iniciá-
ticos, costume ainda hoje usado em certas ordens monásticas do ocidente e nos ashrams orientais.
Isso era comum na Grécia.
Dos filósofos e escritores gregos, chegaram a nós exatamente os nomes iniciáticos, como, a título de
exemplo: Aristoclês (a melhor chave) que recebeu, mais tarde, o apelido de Platão (o "largo”) pela
larga e vasta amplitude de seus conhecimentos (interessante observar que os autores profanos dizem
que o apelido lhe foi imposto "por ter ombros largos ...”), Aristóteles (o melhor fim); Pitágoras (o
anunciador da revelação); Sócrates (senhor seguro, ou infalível); Demóstenes (a força do povo); De-
mócrito (escolhido pelo povo); Isócrates (senhor equânime); Anaxágoras (poderoso em público);
Epicuro (o socorro); Arquimedes (primeiro inventor), etc. etc.
Esse mesmo fato de passar a pertencer à "família do Deus" é assinalado por João (1:12) "aos que O
receberam, deu o poder de tornar-se filho de Deus", por Paulo (Rom. 8:16) "somos filhos de Deus; se
filhos, herdeiros", e por Pedro (2.ª Pe. 1:3) "participamos da natureza divina."
Fica bem claro, portanto que os "poderes" (siddhis) de pouco valem, sejam eles de que natureza fo-
rem: domínio de animais traiçoeiros ou venenosos, de espíritos ignorantes ou rebeldes, do próprio
corpo e das sensações, das emoções, e até do intelecto vaidoso. Tudo isso é apenas a limpeza do ter-
reno, a desbravarão da mata, a desinfecção do ambiente, indispensáveis a uma caminhada tranquila.
Mas não exprime, ainda, a caminhada em si. Mister aprontar todos os preparativos para a viagem,
sem o que esta não poderá ser feita; mas, efetuada a total preparação, nem por isso começou a jorna-
da: só tem ela início quando nos pomos a caminho. E só à chegada, no final da estrada, poderemos ter
a garantia de estar nosso nome "inscrito no livro da Vida", no registro dos viajantes que chegaram a
bom termo, sabendo que Alguém nos espera no pórtico da entrada da cidade.

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Tivemos, pois, na escala iniciática, o conferimento de poderes (exousía) para ajudar os outros. E
quando a ajuda foi eficiente, comprovada a metánoia, alegra-se o Hierofante Divino em Seu Espírito e
entra em êxtase (samadhi) unindo-se ao Pai, pronto para fazer a revelação do mistério máximo da
iniciação, ensinando a todos a unificação final com o Verbo (Pai). É então que lhes anuncia que seus
nomes foram inscritos nos céus, isto é, que foram aceitos como "familiares de Deus" (Ef. 2:19) e que,
portanto, poderão dar o passo supremo, atingindo a cristificação.
Em oração de louvor e ação de graças (no mistério augusto da "eucaristia"), alegra-se por ver cum-
prir-se a vontade do Pai, que oculta os mistérios do reino (cfr. 13:11) aos "sábios intelectuais" das
personagens vaidosas, e os revela ou "desvela" (apokálypsai) aos que são pequeninos no mundo
(nêpíois = infantes) e nem sequer sabem "falar" a linguagem do mundo. Esse é o modo agradável ao
Pai: "seja feita Sua vontade"!
Passa, então, ao ensino secreto, ao mistério propriamente dito. Confessa, antes, que foi o próprio Pai
(o Verbo Divino, o Som Incriado e Criador) que diretamente transmitiu (parédothê) a Ele (Cristo In-
terno) todas as coisas, todos os ensinos e revelações. Nenhum ser humano Lhe serviu de Mistagogo
nem de mestre. E revela: "Ninguém tem a gnose (o conhecimento pleno e experimental) do Filho (do
Cristo) senão o Pai (o Verbo): e vice-versa, só o Cristo Interno, em cada um, pode ter a gnose (a ple-
nitude experimental do conhecimento) de quem é o Pai. E só o Cristo Interno tem a capacidade, ou
poder (exousía), a força (dynamis) e a energia (érgon) de revelá-Lo, a quem Ele julga apto a receber
essa gnose do mistério.
Portanto, conforme vemos, nenhum mestre humano, nem mesmo Jesus, pode propiciar-nos, de fora,
esse contato divino, essa gnose, essa plenitude: só nós mesmos, em nossos próprios corações, unidos
ao Cristo Interno, poderemos, através Dele, encontrar e unir-nos ao Pai. A união ou fusão (que pro-
duz a transubstanciação) é que lhes dará o pleno conhecimento experimental (gnose), que só chega
precisamente por meio da experiência vivida (páthein). "Conhecer" é unir-se e fundir-se. Daí a ex-
pressão bíblica, usando o verbo conhecer para exprimir a união sexual. Só quando se une intima-
mente ao ser amado é que realmente o Amante o "conhece", e vice-versa. Só quem se unifica com o
Pai, com Ele fundindo-se e transubstanciando-se Nele, é que verdadeiramente o conhece. E a união só
pode realizar-se entre Pai e Filho, entre o Verbo e o Cristo, entre o Amante e o Amado. Nessa união,
incendiando-se e iluminando, é que se manifesta a Luz Incriada, o Deus-Amor-Concreto, que cria e
sustenta todas as coisas com seu aspecto de Pai ou Verbo Criador, e que impregna e permeia tudo
com seu aspecto de Filho ou Cristo.
Após essa revelação beatifica os novos promovidos com o título de "Felizes" (Bem-Aventurados) e
declara que muitos profetas (os iniciantes da escala, na evolução consciente, quando ainda permane-
cem no uso dos poderes); muitos justos (aqueles que iniciaram o exercício real da própria espirituali-
zação, conquistando mais alguns passos iniciáticos, cfr. vol. 3 e vol. 4); e muitos reis (aqueles que
haviam atingido o 6.º passo da iniciação, já tendo todo o conhecimento intelectual dos mistérios e
suficiente conhecimento experimental dos mesmos), tinham desejado ver e ouvir esse mistério último,
mas não no haviam conseguido.
A iniciação real (régia) ou hierofântica conferia ao iniciado, o título de REI (basileus). Plotino dedica
sua 5.ª Enéada a essa iniciação. Cfr. também Victor Magnien, "Les Mysteres d'Eleusis", Payot, Paris,
1929, pág 193 a 216. Sinésio (Patrol. Graeca, v. 66, c. 1144) no Tratado "Dion", descreve os planos
iniciáticos: 1.º, pequenos mistérios (purificação) ; 2.º grandes mistérios (confirmação e metánoia); 3.º
epoptía (contemplação); 4.º holocleria ou coreutía (participantes); 5.º dadukía (portador da tocha, ou
iluminado); 6.º hierofante ou REI; do sétimo passo, união divina, só fala em seu Tratado "De provi-
dentia".
Com efeito, após a consagração do iniciado como "rei", havia mais um passo a dar: a deificação (cfr.
Plotino, Enéada 6.ª, 9 e 11). Essa deificação é aqui revelada pelo Mestre, que utiliza exatamente as
expressões iniciáticas dos mistérios gregos: ver e ouvir (epoptía e Akouein lógon). Todos haviam sido
profetas, justos e conquistado o título de "reis" (ou hierofantes). Mas o último passo, a cristificação
pela unificação com a Divindade, só o Filho, o Cristo Interno, poderia dá-lo em cada criatura, e con-
cedê-lo aos que Ele julgasse aptos ao "reino dos céus".

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Após essa revelação sublime, o Mestre se cala, apagando a personagem, e deixa que Nele se manifeste
plenamente o Cristo Interno, pois "nele habita corporalmente toda a plenitude da Divindade" (Col.
2:9). E o Cristo, tomando a palavra convoca os novos hierofantes, convoca a todos nós Seus discípu-
los de todos os séculos, para que seja dado o último passo: "Vinde a mim"!
É o dramático apelo do Amante ao Amado: "Vinde a mim"! Unificai-vos comigo! E especifica: todos
aqueles que estiverem cansados do mundo, sobrecarregados de aflição, fatigados das dores, exaustos
das lutas, aniquilados pelo sofrimento, unam-se a MIM, e se sentirão aliviados, repousados, pacifica-
dos e felizes, no reduto inatingível da Paz Íntima, na Paz do CRISTO (cfr. João, 14:27).
Convida-os insistente: "Tomai sobre vós meu jugo, porque sou doce e modesto de coração, e achareis
repouso para vossas almas". O Cristo é, realmente, o Grande Escondido por Sua modéstia e pequenez
(sentido literal da palavra grega tapeinós, cfr. Luc. 1:48, vol. 1) e precisa ser ardentemente desejado e
ardorosa e permanentemente procurado, até ser encontrado.
Para experimentar se realmente O amamos, Ele coloca em nosso caminho evolutivo centenas de coi-
sas amáveis, para experimentar-nos, se de fato as amamos mais do que a Ele: conforto, bens, rique-
zas, prazeres, fama, intelectualismo, glória, arte, religiões, cultos, etc. Só quando, desiludidos de tudo,
tudo abandonamos para dedicar-nos só a Ele, é que positivamente comprovamos nosso amor por Ele.
Só então o Cristo nos atende e Se revela a nós.
Mas, uma vez que O descobrimos, e a Ele nos unimos, nunca mais nos “perdemos”: conquistamos a
Paz Absoluta e Indestrutível, porque, sem engano, Seu jugo é grandemente benéfico (chrêstós), é útil a
nós, é bom de suportar-se, é confortador, faz-nos bem e faz-nos bons. E o fardo que nos impõe é leve e
fácil de transportar, dá alegria carregá-lo, inunda-nos de felicidade levá-lo pelo mundo: é o jugo sua-
ve e sublime do AMOR a Ele, o Deus em nós, e o fardo leve e altamente compensador do AMOR ao
próximo, que somos nós mesmos com outras aparências externas, e que é Ele mesmo, manifestado sob
outras formas.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

CURA DE UM OBSIDIADO

Mat. 12:22-30 Marc. 3:22-27 Luc. 11:14-23

22. Então foi-lhe trazido um ob- 22. E os escribas que 14. Estava Jesus expulsando um espí-
sidiado cego e mudo, e curou- tinham descido de rito (obsessor) e este era mudo; e
o de modo que o cego e mudo Jerusalém, disse- aconteceu que, tendo saído o espí-
tanto falava quanto via. ram: “ele tem Be- rito (obsessor), falou o mudo e
elzebul”, e "por- maravilhou-se a multidão.
23. E admirou-se toda a multidão
que pelo chefe dos
e dizia: "Não é este o Filho de 15. Mas alguns deles disseram: "É
espíritos (obsesso-
David"? por Beelzebul, príncipe dos espíri-
res) ele expulsa os tos (obsessores) que ele expele os
24. Ouvindo-o, os fariseus disse- espíritos (obsesso- espíritos ("obsessores").
ram: "Este não expele os espí- res)".
ritos (obsessores) senão por 16. Outros, para experimentá-lo, pe-
23. Tendo-os então
Beelzebul, chefe dos espíri- diam-lhe um sinal celeste.
chamado, disse-
tos". 17. Conhecendo-lhes, porém, os pen-
lhes em parábo-
25. Conhecendo, porém, Jesus as las: Como pode o samentos, disse-lhes: "Todo reino
reflexões deles, disse-lhes: adversário expul- dividido contra si mesmo se esva-
"Todo o reino dividido contra sar um adversá- ziará e cairá casa sobre casa.
si mesmo será desolado, e rio? 18. Também se o adversário se dividir
toda cidade ou casa, dividida contra si mesmo, como subsistirá
24. E se um reino se
contra si mesma, não subsisti- seu reino? dizeis que eu expulso os
dividir contra si
rá. espírito (obsessores) por Beelze-
mesmo, esse reino
26. Se o adversário expulsa o ad- não pode subsis- bul.
versário, está dividido contra tir. 19. Se eu expulso os espíritos (obses-
si mesmo; como então subsis- sores) por Beelzebul, por quem os
25. Se uma casa se
tirá seu reino? expelem vossos filhos? Por isso se-
dividir contra si
27. E se eu expulso os espíritos mesma, essa casa rão eles mesmos vossos julgado-
(obsessores) por Beelzebul, não pode perma- res.
por quem os expelem vossos necer. 20. Mas se pelo dedo de Deus eu ex-
filhos? Por isso eles mesmos pulso os espíritos (obsessores) en-
26. E se o adversário
serão vossos julgadores. tão chegou a vós o reino de Deus.
se levantou contra
28. Mas se por um espírito de si mesmo e se di- 21. Quando o (homem) forte, bem
Deus eu expulso os espíritos vidiu, ele não pode armado, guarda sua casa, seus
(obsessores), então já chegou subsistir, mas tem bens estão em paz.
o reino de Deus sobre vós. fim.
22. Mas quando sobrevier outro mais
29. Ou como pode alguém entrar 27. pois ninguém forte que ele e o vencer, tira-lhe
na casa do (homem forte e pode entrar na toda a armadura em que confiava
roubar-lhe os bens, sem pri- casa do (homem) e reparte seus despojos.
meiro amarrá-lo? e então lhe forte e roubar-lhe
saqueará a casa. os bens, sem antes 23. Quem não está comigo, é contra
amarrá-lo; e então mim, e quem comigo não ajunta,
30. Quem não está comigo, é con- espalha".
tra mim, e quem comigo não lhe saqueará a
ajunta, espalha". casa".

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Mateus e Lucas expõem o fato que provocou a discussão entre Jesus e os fariseus, escribas e doutores
da lei, discussão que se estenderá violenta ainda por alguns capítulos.
Foi-lhe trazido um obsidiado (daimonizómenos, isto é, dominado por um espírito obsessor, ver vol. 1),
cujo perseguidor espiritual o mantinha cego e mudo (Lucas diz apenas "mudo"). Não é esclarecida a
origem do caso; mas para atribuir-se a mudez e a cegueira à ação do espírito, deve ter ocorrido após o
nascimento, já se havendo comprovado a possibilidade física de a vítima ter, naturalmente, a capacida-
de de ver e falar. Jesus atende ao caso e parece que o desligamento foi instantâneo: o ex-obsidiado pas-
sa logo a falar e enxergar. Ora, isso constitui um espetáculo inédito para os presentes, de tal forma ma-
ravilhando-os, que alguns desconfiam seriamente tratar-se do Messias ("Filho de David").
Outro episódio semelhante é narrado em Mat. 9:33-34, mas as circunstâncias variam. Não obstante,
Lagrange, (o. c. , pág. 241) julga que as duas narrativas se referem ao mesmo caso, embora Pirot (o. c.
9.º vol., pág. 158) e Dãusch (Die drei altern Evangelien, 1932, pág. 194, citado por Pirot) distingam
um de outro.
Neste ponto começam os fariseus e "escribas provenientes de Jerusalém" (nota de Marcos) a lançar sua
campanha de descrédito contra o taumaturgo, com a acusação mais insensata que possa ser imaginada
nesses casos. Havia, nas sinagogas, os exorcistas "oficiais (cfr. os ilhos de Ceva, At. 19:14) que obti-
nham êxito por meio da prece (sema) ou da recitação do Salmo 92, ou servindo-se de jejuns e outros
ritos. Jesus, ao contrário, de nada se utiliza, ordena, e a libertação é feita. Donde lhe vinha tal poder? O
povo vê certo intuitivamente: "de Deus". Mas as que temem a concorrência, e não querem perder o
prestígio, levantam maldosa e conscientemente a hipótese absurda e insensata, que até hoje permanece
válida nas religiões organizadas. Com isso, pretendem assustar as criaturas simples e tímidas, fazendo-
lhes crer que só eles estão com Deus ... E a frase parte, mentirosa e cheia de veneno (e repetida até
hoje pelos descendentes dos fariseus): "é por Beelzebul que ele expulsa os espíritos obsessores"!
BEELZEBUL está em todos os códices unanimemente e significa “senhor do fumeiro”. A Vulgata
modificou o termo para Beelzebub, "senhor das moscas", para identificá-lo com o Baal de Accaron
(Ekron), consultado por Ocozias (2.º Reis, 1:2, 3, 6 e 16).
Perguntam os hermeneutas por que Beelzebub se transformou em Beelzebul. Lembremos que também
o filho de Saul, Ishbaal "homem de Baal" (cfr. 1.º Crôn. 8:29-40 e 9:35-44) teve seu nome mudado
para Ishboseth “filho da vergonha" (cfr. 2.º Sam. 2:28, etc). Alguns supõem que isso visava a ridicula-
rizar o nome do deus (espírito-guia) do povo filisteu, que era rival do deus (espírito-guia) do povo isra-
elita. Strack & Billerbeck, ao comentar este passo (citado em Pirot, o. c., v. 9.º, pág. 158) apresentam a
hipótese de que as duas palavras são independentes. E cita: "sacrificar ao deus de Israel é zâbáh; ora, o
sacrifício era feito com fogo. Por ironia, talvez, a fim de dizer que os holocaustos aos outros deuses só
produziam fumaça, foi empregada a palavra zâbal, que significa "'fumeiro". Daí o sacrifício “idolátri-
co" ser dito zebel e a oferta zibbul. Ora, Beel-zibbul pode ter-se abrandado em Beelzebul, que passou a
designar o “chefe do fumeiro" ou seja. qualquer espírito-guia diferente de YHWH.
Segundo Marcos, Jesus chama os discípulos para perto de si e lhes expõe a resposta à objeção frágil e
insensata. Começa afirmando que um "reino" ou uma casa dividida contra si mesmos, não poderão
subsistir. Qualquer luta intestina é sumamente prejudicial ao crescimento e progresso; antes, leva fa-
cilmente ao desfazimento e à ruína. Este é um princípio tão evidente que se torna argumento irretor-
quível. Daí é deduzida a ilação: satanás não pode lutar contra satanás, senão seu reino cai em ruína.
Aqui temos um dos passos que comprovam que “satanás" não é a personificação de um ser, como pre-
tendem certas teologias, mas a generalização de um princípio; e com isto concordam Lagrange (o.c.,
pág. 242) e Pirot (o.c., 9.", pág. 159).
Além desta resposta racional e sensata, vem o argumento ad hominem: se assim fosse, por quem os
expulsariam os “vossos filhos"? Os exorcistas das sinagogas bem sabem que a força divina é a única
eficiente nesses casos. Eles, que têm prática, serão os julgadores autorizados dos fariseus, nessa ques-
tão.
E prossegue a argumentação, apertando os contendores em círculos férreos. Se a libertação do obsidia-
do não é pela força adversária do próprio chefe, logicamente só pode sê-lo por “um espírito de Deus"

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(em grego não há artigo). E se assim é, então estamos em pleno “reino de Deus", que já chegou à hu-
manidade, já chegou "sobre vós “(eph'humãs, cfr. Dan. 4:21). Observe-se que pela primeira vez apare-
ce aqui a expressão “pelo dedo de Deus" (en daktylôi theoú), reproduzindo Ez. 8:19; 31:18; Deut. 9:10;
Salmo 8:4).
O Mestre apresenta, então, uma parábola, no gênero mâchâh, tão usada desde o V.T. (cfr. 2.º Sam
12:1-15, sobre o homem rico e a ovelha; e Is. 5:1-17, sobre a vinha), ou seja, uma comparação desen-
volvida, diferindo da alegoria, que é uma série de metáforas.
Para saquear-se a casa do homem forte, é mister primeiro segurá-lo e amarrá-lo Sem o que, impossível
será roubar-lhe os bens. Ora. para pilhar-lhe a casa, só um homem mais forte o conseguiria. Parece
haver aqui uma alusão a Henoque (10:13 e 54:4) que afirma que, nos tempos messiânicos, os obsesso-
res seriam amarrados. O mesmo é declarado no “Testamento de Levi" (sectio 18.º).
Esses são os argumentos que os espiritistas têm às mãos, para responder aos ataques das igrejas orga-
nizadas, lembrando aos acusadores que o próprio Jesus já havia previsto essa espécie de desleal com-
bate, quando advertiu: "se chamaram Beelzebul ao dono da casa, quando mais o farão a seus familia-
res" (Mat 10:25). Com isso comprova-se que os espiritistas são, realmente, os “familiares de Jesus",
pois neles se realiza a advertência profética do Mestre: as mesmas acusações infundadas e maldosas.
O caso finaliza com uma sentença: "quem não está comigo, é contra mim; quem comigo não ajunta,
espalha". Strack & Billerbeck, em seu comentário a este passo, trazem vários exemplos de ditos judeus
do Talmud, donde se conclui que havia uma expressão “Juntar”, que significava “não-fazer”: "Juntar
os pés”, queria dizer "não andar"; assim espalhar exprimia “fazer": "espalhar os pés”, significava “an-
dar”. Então, a segunda parte da sentença seria uma confirmação, em paralelo, da primeira: quem não
junta (se reúne) comigo, espalha (isto é, faz um caminho inútil, perdendo seu tempo).

A lição para a individualidade não apresenta segredos: está clara no texto.


Observemos o modo de agir de Jesus, já salientada uma vez (vol. 3): Jesus não perde tempo em dou-
trinar o obsessor: cura o obsidiado. O Mestre tinha capacidade para VER de quem era a culpa, coisa
que ainda não podemos fazer. E como sabemos que, em muitos casos, o obsessor é o menos culpado,
já que é o encarnado que o obsidia, não podemos discernir culpas nem culpados; então, para não
corrermos o risco de ser injustos, atendemos aos dois concomitantemente, doutrinando o obsidiado e
o obsessor. A diferença de ação depende da nossa incapacidade de distinguir os casos, de saber se o
carma já se completou ou não; ignoramos qual o responsável, quais as causas, quem tem razão, etc.
Enfrentamos, pois o problema em seu conjunto.
Sabemos, todavia, que isso nos trará aborrecimentos e perseguições, tanto por parte de encarnados
presos a preconceitos de "escolas" ( religiosa ou científica), quanto por parte dos próprios obsessores
e de seus amigos. Alegremo-nos, portanto, quando formos acusados de vencer neste campo "por obra
do inimigo": estaremos seguindo as pegadas do Mestre e colocando-nos na inconfundível e invejável
posição de Seus discípulos e familiares.
Outro ponto a salientar é a parábola do "homem forte". Alude isso à força que realmente possuem os
espíritos obsessores, sobretudo se reunidos nas assembléias organizadas no plano astral, com o fito de
arrastar os encarnados para sua inferioridade, por espírito de vingança e em vista da intimidade que
com eles tiveram em outras vidas. E também, em certos casos, por verificarem que algumas criaturas,
que aparentam e fazem questão de demonstrar virtudes e qualidades e, no entanto, secretamente agem
de modo totalmente oposto.
Entretanto, ensina-se taxativamente que, embora fortes, sempre o bem é mais forte que o mal, sempre
a luz espanta as trevas.
A última lição é uma advertência séria para todos nós: "quem não está comigo é contra mim”. Ple-
namente real. Todo aquele que ainda não esteja unido ao Cristo, está ligado ipso facto à personagem,
o "satanás" opositor do espírito. Está, pois, contra Ele, E assim a segunda parte: "quem comigo não

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ajunta, espalha". Qualquer colheita que façamos no campo da personagem é um desperdício que de
nada serve. Para haver realmente lucro, mister colher no Espírito, unidos ao Cristo, não importando
que seja por meio da personagem, mas desde que não seja só na, e para a personagem.
Desliguemo-nos da matéria, do transitório, das sensações, das emoções, do intelectualismo, dos ritu-
alismos, pomposos e ocos: tudo isso é um "espalhar" de energias, inútil e prejudicial até, porque daí
nada de concreto espiritualmente levaremos para a união com o Cristo Interno. Mas se, ao invés, nos
unificarmos com Ele tudo isso nos virá espontaneamente, por acréscimo. Fundidos no Todo, teremos o
Todo, seremos o Todo. Desligados Dele, o vazio é nossa herança.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

FALAR CONTRA O ESPÍRITO

Mat. 12:31-37 Marc. 3:28-30

31. Por isso digo-vos: "Todo erro e má palavra 28. "Em verdade vos digo, que serão relevados
será relevada aos homens; mas a má pala- aos filhos dos homens todos os erros e pala-
vra do Espírito não será relevada. vras mas que profiram,
32. E quem profira um ensino contra o filho do 29. Mas quem falar mal contra o Espírito, o
homem, lhe será relevado, mas o que diga Santo, não tem resgate neste ciclo mas é réu
contra o Espírito Santo não lhe será releva- do erro do ciclo".
do nem neste ciclo nem no vindouro. 30. Porque diziam: "tem espírito não purifica-
33. Ou supondes a árvore boa e seu fruto bom, do".
ou supondes a árvore má e seu fruto mau;
porque a árvore é conhecida pelo fruto.
34. Filhos de víboras, como podeis falar boas
coisas, sendo maus? porque da abundância
do coração a boca fala.
35. O homem bom do bom tesouro tira coisas
boas, e o homem mau do mau tesouro tira
coisas más.
36. Digo-vos, pois, que qualquer palavra inútil
que tenham falado os homens, darão conta
desse ensino no dia da discriminação.
37. porque por teus ensinos serás justificado e
por teus ensinos serás condenado".

Este é um dos trechos mais discutidos no Novo Testamento, pois inclusive os grandes Espíritos não
satisfizeram a muitos, com sua exegese. Agostinho, por exemplo, no decurso de suas obras, hesitou a
seu respeito, apresentando, sucessivamente, seis explicações diferentes, do que ele chamava "o pecado
contra o Espírito-Santo": 1) impenitência final; 2) desespero; 3) obstinação no mal; 4) combate consci-
ente à verdade; 5) presunção; 6) inveja. Não pretenderemos, nós também, encerrar a questão: daremos,
apenas, mais uma opinião, para ser meditada pelos estudiosos.
Começa Jesus falando de erro (harmartía) e blasfêmia (blasphêmía). Literalmente, hamartía é "erro"
no sentido de "errar o alvo" ou "desviar-se do caminho certo", isto é, perder-se (no deserto, no mato),
enganando-se de rumo; e blasphêmía é a palavra de mau augúrio, a "praga", ou as palavras más profe-
ridas contra coisas sagradas: a palavra que não era lícito pronunciar durante uma cerimônia religiosa,
ou dirigida contra deuses e espíritos, exprimindo, ainda, a maledicência contra outras criaturas. À
blasphêmía (palavra má) opunha-se a euphêmía (palavra boa), o elogio, o louvor. Desta, conservamos
o resquício em português, quando usamos uma palavra bonita, por eufemismo, em lugar de uma feia
ou pesada. Em grego, blasphêmós é o desbocado desrespeitoso, o difamador, tanto de coisas sagradas,
quanto de outras criaturas.

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Ora, o primeiro versículo parece-nos claro: pãsa hamartía kai blasphêmía aphethêsetai tois anthrôpois
"todo erro e blasfêmia será relevado aos homens"; hê dé toú pneúmatos blasphêmia ouk aphethêsetai:
"mas a blasfêmia do Espírito não será relevada”.
O verbo grego aphíêmi (composto de apó e iêmi) significa literalmente "jogar fora", isto é, deixar ir,
libertar, soltar; daí poder chegar-se a "relevar" ou "perdoar". Então temos, na primeira parte: "todo erro
e blasfêmia será relevado aos "homens".
Na segunda parte encontramos: "mas (dé) a blasfêmia (hê blasphêmía) do Espírito (toú pneúmatos)
não será relevada". Forçando-se o texto, pode realmente interpretar-se "do Espírito" como genitivo
objetivo, e daí chegar-se, por comparação com o versículo seguinte, a blasfêmia contra o Espírito. Mas
acontece que no versículo seguinte a expressão é clara: eipêi kata toú pneúmatos "falar contra o Espí-
rito". Se o autor desejasse dar, ao versículo anterior o mesmo sentido que no seguinte, a construção
teria sido a mesma, com a mesma preposição katá, "contra". Se a não usou, é porque o sentido é outro:
trata-se, mesmo, de um genitivo subjetivo. De fato, com o verbo blasphêmeín são usadas as preposi-
ções eis, perí e katá; ou o acusativo, quando tem o sentido de “difamar" alguém; com o substantivo
blasphêmía é usada a preposição prós, além das três acima citadas: jamais o genitivo objetivo.
Compreendemos, então, que os erros e blasfêmias dos "homens", isto é das personagens, serão releva-
das. Mas quando provêm do âmago, do Espírito, não serão relevadas. Os erros das personagens liqui-
dam-se nas personagens: são coisas leves, transitórias, presas a uma única encarnação, e com ela se
enterram para sempre: o Espírito não os leva consigo, não os fixa em si, e não produzem carmas nega-
tivos porque, de modo geral, não prejudicam a terceiros nem trazem fixação mental danosa. É o que a
teologia cataloga como "pecados veniais". Já a ação proveniente do Espírito, procedente do coração,
revestida de maldade intrínseca, ou que cause prejuízos a outrem, ou que provoque fixações mentais
negativas com influência nas futuras encarnações, essa não será relevada isto é, SERÁ levada em conta
- porque a Lei é inexorável, e tudo se paga até o último ceitil.
Escolhemos o verbo "ser relevado", em lugar de "ser perdoado", que aparece nas traduções correntes,
exatamente para que não nos prendamos a um "perdão" que NÃO EXISTE. Para certa teologia, conce-
dido o perdão pelo sacerdote (por exemplo, na confissão), fica tudo em ordem. Mas sabemos que o
perdão da confissão se refere à culpa, não à pena: é um alívio que conforta a alma (emocional) mas
que, nem por isso, garante à criatura a isenção do posterior resgate cármico imposto pela Lei. Nesses
casos, o perdão é garantido pelo arrependimento (ou seja, pela metánoia) que é exatamente a mudança
de direção da mente que, ao invés de caminhar na direção contrária a Deus (direção errada, isto é, ha-
martía) se volta para Ele, demonstrando querer buscá-lo. Portanto "relevar o erro" é bem mais verídi-
co, corresponde muito mais à realidade, do que "perdoar"; essa palavra "perdoar" pode levar a criatura
a uma interpretação errônea: como se alguém pudesse "ofender a Deus", e Deus, generosamente, o
perdoasse. Ora, ninguém jamais poderá ofender a Deus, já que, sendo Deus imutável e inatingível por
nossos atos, jamais pode ofender-se nem magoar-se, nem entristecer-se. Nem jamais poderia perdoar o
que suporia uma "modificação" em Deus, que é imutável. A mutação de sentimentos e atitudes é in-
concebível em Quem é imutável e impessoal. Então, melhor é "relevar", ou seja, "deixar passar". (sen-
tido literal, aliás, de aphíêmi), não dar importância, não levar em conta. não registrar.
O versículo seguinte é muito mais forte em tudo. Trata-se de um lógos de um "ensino". Examinemos a
letra: kaí hòs eàn eipêi lógon katà toú hyioú toú anthrópou - "e quem diga um ensino contra o filho do
homem” - aphethêsetai autõi "ser-lhe-á relevado": hòs d'àn katà tou pneúmatos toú hagíou "mas quem
diga um ensino contra o Espírito, o Santo", ouk aphethêsetai autôi, "não lhe será relevado", oute en
toutõi tõi aiõni oute en tôi méllonti, "não lhe será relevado nem neste ciclo nem no vindouro".
Não se trata, pois, de palavras, mas da responsabilidade do ensino. Jesus falava aos discípulos, àqueles
a quem mandara ensinar, e ao clero israelita, (fariseus, escribas e doutores da lei) cuja principal tarefa
era, precisamente, o ensino religioso das massas. Estes últimos estavam ensinando ao povo, mas erra-
damente, prevalecendo-se, para a "blasfêmia" (atribuir a satanás uma obra de Deus) da posição especi-
al de que desfrutavam perante o povo. Jesus é de uma clareza contundente: aqueles que ensinarem er-
rado acerca do filho do homem (e aqui, neste ensino, "filho do homem” tem o sentido exotérico de
"homem", e não o sentido iniciático, ver vol. 1), isso lhes será relevado. Mas os que ensinarem errado a

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respeito de Deus, o Absoluto (o Espírito Santo), a esses a maldade não lhes poderá ser relevada, nem
neste ciclo evolutivo (eon) nem no vindouro.
A inversão que os homens fizeram do ensino claro de Jesus, é que trouxe a confusão e causou obscuri-
dade ao texto. Tendo ensinado que o maior era o Pai, seguido do Filho, e que a última pessoa, a 3.ª era
o Espírito Santo e julgando que o "filho do Homem” era a 2.ª pessoa divina encarnada, eles não conse-
guiam compreender por que uma b1asfêmia contra o Filho seria perdoada, mas não no seria uma con-
tra o Espírito-Santo ... Tivessem tido a percepção exata e correta dos três aspectos divinos: em que o
Absoluto Imanifestado é o Espírito Santo, que se manifesta como Verbo Criador (Pai, segundo aspec-
to) e como Filho (produto da criação do Pai), ser-lhes-ia fácil perceber o sentido profundo da lição.
No texto de Marcos há pequenas variantes: "Em verdade vos digo (amên légô humín) que todas as coi-
sas (hóti pánta) serão relevadas aos filhos dos homens (aphethêsetai tois tõn anthrôpân): os erros e as
blasfêmias que blasfemarem (tà hamartêmata kai hai blasphêmíai hósa eàn blasphêmêsôsin). Mas
aquele que blasfeme ao Espírito Santo) (hòs d'àn blasphêmêsêi eis tò pneuma tò hágion) não tem li-
bertação no ciclo (ouk échei áphesin eis tòn aiôna) mas é réu do erro do ciclo (allà enochôs estin
aiôníou harmartêmafos).
Essas palavras demonstram-nos com clareza que, neste passo, “filhos do homem” é sinônimo de "ho-
mens", confirmando nossa interpretação de Mateus. Marcos interpreta as palavras de Jesus, que lemos
em Mateus, dizendo que o ensino contra o Espírito Santo constitui uma blasfêmia. Mas também escla-
rece que os ensinos (erros ou blasfêmias) dos filhos dos homens contra os filhos dos homens, esses
serão relevados: não se revestem de extraordinária gravidade.
Fica, assim, esclarecido o ensinamento de Jesus, que podemos resumir em linguagem atual da seguinte
maneira: "Erros, ensinos e maledicências de homens contra homens, serão relevados: mas ensinos es-
pirituais contra Deus não no serão, nem neste ciclo evolutivo, nem no próximo: terão que ser resgata-
dos".
Jerônimo, interpretando o pensamento generalizado da igreja, atribui aqui a expressão "Filho do Ho-
mem" a Jesus, e explica o texto colocando nos lábios do Mestres a seguinte paráfrase: "Quem fala
contra o Filho, escandalizado por minha carne e supondo-me apenas homem - sob pretexto de que sou
filho de um carpinteiro, tendo como irmãos Tiago, José e Judas - um homem que come e bebe vinho,
essa opinião blasfematória, embora errada e culpável, todavia merece perdão, por causa de minha apa-
rência" (Patrol. Lat. vol. 26. col. 81). Louis Pirot (o. c. vol. 9.º pág 160) diz que "o pecado contra o
Espirito Santo é chamar diabólico ao que é divino, confundindo o princípio do bem com o princípio do
mal”, exatamente como fazem muitos companheiros seus, em relação ao Espiritismo.
Para que conheçamos bem, sem perigo de engano, quem está ensinando certo ou errado, é-nos forneci-
da uma norma infalível: assim como conhecemos a árvore, boa ou má, pelos frutos que produz, tam-
bém sabemos que os homens que só produzem coisas boas, são os que geralmente têm o conhecimento
correto da Divindade. E a prova é dada de imediato, com uma expressão forte: "filho de víboras", pros-
seguindo: como pode o homem mau falar coisas boas? O homem só fala aquilo de que seu coração está
cheio e transbordando. E só virão coisas boas, se o seu coração (seu tesouro) estiver repleto de coisas
boas. sendo verdadeiro também o contrário. Trata-se pois de um metro-padrão, com que podemos
aquilatar os “mestres” que aparecem, perambulando pelo planeta.
E Jesus prossegue, no mesmo tom de autoridade, afirmando que os homens encarregados do ensino
serão responsáveis pelas palavras inúteis, pelo tempo perdido, no grave dever de preparar e acelerar a
evolução humana. De grande interesse observar que o evangelista mede as palavras, sempre que cita as
frases de Jesus. Note-se que não se fala em "ensino" inútil, mas em “palavra" (rêma) inútil. Mas que
essas palavras (rêmata) inúteis não devem ser proferidas, quando cabe dar um “ensino” (lógos). Daí a
severidade: quando, "o invés dos ensinos (lógoi) se proferem palavras (rêmata) inúteis, isso será objeto
de peso no dia da discriminação, quando houver a separação, por sintonia e dissintonia, entre bons e
maus.
Também aqui a interpretação de Jerônimo difere da nossa. Ele define "palavra inútil": "é a que se pro-
fere sem proveito para quem a diz e para quem a ouve, por exemplo, se, omitindo coisas sérias, fale-

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mos de coisas frívolas e narremos fábulas antigas" (Patrol. Lat. vol. 26, col. 82). Essa interpretação o
defeito de apresentar extremo rigorismo, sobretudo vindo ao lado da outra afirmativa: a de que falar
contra o Filho do Homem (na interpretação dele) seria um gesto relevável. A contradição é flagrante
nessa interpretação: se falar contra a segunda pessoa da trindade, nada acontecerá; mas se proferir uma
palavra inútil, terá que dela prestar contas! Daí deduzimos que a interpretação não é a correta.
Com a nossa interpretação, desaparece, também. a contradição com a palavra de Jesus em Mat. 25:31 e
seguintes, onde se diz que o homem será justificado por suas obras (e não pelas palavras inúteis).
Compreendemos, pois, que na realidade a justificação vem pelas obras (os frutos, que classificam as
árvores) e pelos ensinos, quando o tem como tarefa especifica.
A frase final, também severa, afirma que, pelos ensinos ministrados serão os discípulos (e os que se
consideram "mestres" na Terra) declarados "justos” (dikaiôthêsêi), isto é, ajustados à sintonia do Pai
(Som) ou desajustados com essa sintonia (katadikaiôthêsêi).
Anotemos, ainda, que neste passo encontramos, pela primeira vez em Marcos a fórmula hebraica amên
(ver vol. 1). No Antigo Testamento ela aparecia sempre depois (cfr. Núm. 5:22 (2x): Deut. 27.15 a 26
(12x); 1.º Reis, 1:36: 1.º Crôn. 16:36; 2.º Esdr. 5:13; 8:6 (2x): 13:31; Tob. 9:12; 13:23; Is. 25:1: 6.5:16;
Jer. 11:5; 28:6) . Nos Evangelhos a fórmula vem sempre antes da afirmativa (exceto em Luc. 24:53).
Nas Epístolas e no Apocalipse, também aparece sempre depois. No Evangelho de João, é sempre repe-
tida, em duplicata: “amên, amên".
Ainda em Marcos, o versículo 30 nos esclarece que essas palavras de Jesus foram proferidas a propó-
sito do que estudamos no capítulo anterior, quando o Mestre foi acusado de estar possuído por um es-
pírito atrasado.
Quando estudarmos, alguns capítulos adiante, as invectivas contra os "mestres" – fariseus, escribas e
doutores - veremos totalmente confirmada nossa interpretação.

Após as explicações minuciosas do texto, devemos salientar a importância atribuída ao ensino das
coisas espirituais. Enquanto se exige preparo técnico e profissional comprovado para o ensino das
matérias humanas, qualquer criatura se julga em condições de doutrinar nos assuntos espirituais. E,
pior ainda, nas escolas que existem de formação de mestres de religiões (os seminários das religiões
organizadas) o ensino de Jesus é distorcido, para adaptar-se aos dogmas criados por homens. Desse
ensino, terão os responsáveis que prestar contas.
A advertência enquadra, com severidade, todos aqueles que, tendo recebido a iniciação (como os dis-
cípulos ali presentes) são pelo Mestre encarregados de transmiti-los aos pósteros. A honestidade da
interpretação deve estar acima de todas as nossas idéias preconcebidas. Temos que ler o que está
realmente escrito, mesmo que contradiga nossos pontos-de-vista anteriores, e fazer o comentário rigo-
rosamente dentro do que está escrito, com absoluta sinceridade. E é nessa leitura honesta e nessa in-
terpretação sincera, que vamos aprendendo sem distorções a doutrina verdadeira do Mestre sublime,
os legítimos ensinos do Cristo, genuínas revelações divinas que até nós chegaram. Qualquer falsa
interpretação ou contribuição de nossas convicções pessoais, assume incalculável gravidade, e dela
temos responsabilidade total.
A primeira parte do ensino também se torna clara com a exposição feita. Palavras de homens sobre e
contra homens, coisas das personagens, que não são carregadas pelo Espírito, mas permanecem na
planície no planeta e são enterradas com o corpo: não têm maior importância.
Entretanto, tudo aquilo que se refira ao Espírito, quer dele parta, quer lhe diga respeito, quer contra
ele vá, tudo é contabilizado; não que no mundo superior do Espírito haja contabilistas, mas porque
essas coisas se fixam na memória espiritual da própria criatura, e dali só poderão ser retiradas com
ações da mesma intensidade em sentido contrário, isto é, por meio de resgates cármicos futuros.
Há coisas que não provocam fixação. Essas não importam, são relevadas, são "deixadas ir" (aphíê-
mi), sejam elas pensamentos, palavras ou ações. Outras, entretanto, se impregnam de tal forma, que

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precisam de um resgate cármico, para que delas nos libertemos; ou atraem, por sua vibração, um
choque de retorno, ou prejudicam outras criaturas, que nos vêm cobrar posteriormente o débito que
com elas contraímos.
Essa a distinção entre os erros e blasfêmias dos filhos dos homens, contra os filhos dos homens, de
personagens contra personagens, e os erros e blasfêmias do Espírito contra o Espírito Santo.
O que vale, na evolução, é a bondade intrínseca e natural, não a forçada nem a interesseira. O bem
praticado por exigência da natureza da criatura, não por motivos outros, de "ganhar o céu", ou de
esperar "recompensas", ou de "evitar o inferno".
A virtude é a força que surge espontânea nas criaturas evoluídas, quando exatamente não mais se
pensa em praticar o bem: ele é produzido da mesma maneira que as ações instintivas, pela necessida-
de vital com que se respira. Se houver uma luta consigo mesmo, ou qualquer hesitação entre agir de
um maio ou de outro. isso revela que ainda não existe virtude nem evolução, embora já se observe
louvável esforço para consegui-las.
Exatamente por esse fruto (a bondade natural e espontânea, sem esforço nem intenções de recompen-
sa, sem afetação nem desejo de louvor) é que podemos conhecer a "árvore".
Lição prática, objetiva. fácil de pôr em prática.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

AÇÃO DE OBSESSORES

Mat. 12:43-45 Luc. 11:24-26

43. "Mas quando o espírito não-purificado ti- 24. "Quando o espírito não-purificado tiver
ver saído do homem perambula por lugares saído do homem, perambula por lugares
áridos, buscando repouso, e não o acha. áridos, procurando repouso; e não o achan-
do, diz: "Voltarei para minha casa donde
44. Então diz: "Voltarei para minha casa don-
saí".
de saí". E ao chegar, encontra-a desocupa-
da, varrida e arrumada. 25. E, ao chegar, acho-o varrida e arrumada.
45. Vai, então, e leva consigo sete outros espíri- 26. Depois vai, e levo consigo outros sete espíri-
tos piores que ele, e ali entram e habitam, e tos piores que ele, e, tendo entrado, aí habi-
a condição posterior desse homem torna-se tam; e a condição posterior desse homem
pior que a anterior. Assim acontecerá tam- torna-se pior que o anterior".
bém a esta geração má".

Como Mateus a coloca depois do episódio do “pedido de um sinal celeste”, e Lucas a situa antes, pre-
ferimos não estabelecer nenhuma ligação lógica entre esse fato e o ensino aqui dado, deixando-o como
lição autônoma.
Na interpretação vulgar, entendemos a advertência como relativa às obsessões, devendo ter sido dada
em conexão com algumas das libertações de obsessores, executada por Jesus, e talvez a mais recente, a
do cego-mudo.
O Mestre firma doutrina a respeito da técnica obsessiva por parte dos desencarnados. Perfeito conhe-
cedor do assunto, pode revelar-nos com segurança, há dois mil anos, uma coisa que o ocidente só ficou
sabendo, por experiência direta, há um século, com os estudos do Espiritismo de Allan Kardec e seus
seguidores.
O obsessor - espirito não-purificado (a + kátharton) e, por conseguinte, não-esclarecido (mas não se
use o termo contundente e descaridoso "imundo”: afinal é um "espírito" filho de Deus, como nós!) -
liga-se a uma criatura por quem sente ódio e sede de vingança. Ora, o ódio é o desequilíbrio de um
amor, frustrado por qualquer motivo: e quanto maior o amor, mais fundo o ódio. Uma vez ligado flui-
dicamente à criatura – ou, na linguagem evangélica, "tendo entrado nele" - o obsessor passa a usufruir
de todas as sensações e emoções da vítima, ao mesmo tempo que lhe injeta todas as suas próprias sen-
sações, emoções e pensamentos. estabelecendo-se, assim, tenebroso intercâmbio de vibrações barônti-
cas, muito desagradáveis para o encarnado, embora aprazíveis para o perseguidor.
Ocorre que, quando, por ação externa, é ele desligado de sua vítima, se vê coagido a permanecer per-
vagando no plano astral que, mutável como é, apresenta a cada entidade o aspecto condizente com sua
evolução. Em se tratando, pois, de entidades não-evoluídas, a ambiência astral manifesta-se como a
exteriorização da imaginação de cada um: região ainda inóspita, árida. ("sem água'" = anhydrôn), can-
sativa porque sem postos fixos de referência, já que é instável, onde o "espírito" não encontra repouso,
porque sua desorganização mental faz que ai os sítios se modifiquem, a cada alteração do pensamento.
O repouso (ou paz) só poderia provir de seu próprio âmago, de seu coração; e justamente aí reside a
insatisfação frustrada e a rebeldia inconformada, que se projetam no intelecto, o qual, ao pensar, plas-
ma os ambientes pavorosos em seu redor.

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C. TORRES PASTORINO
Quando, porém, se vê desligado da vítima e aliviado das pressões fluídicas que o expulsaram daquele
posto avançado da luta em que vivia empenhado, se sente descontrolado e confuso e tenta voltar. Ao
chegar, novamente atraído pela sintonia vibratória - alguns ex-obsidiados registram sensações desagra-
dáveis pela ausência do peso do perseguidor a que estavam habituadas, e este "vazio” faz que subcons-
cientemente de novo o atraiam para junto de si percebe que há dificuldade em influência a antiga víti-
ma: a "casa" está "desocupada, varrida e arrumada". Significa isso que a personagem visada já se cor-
rigiu de alguns defeitos, colocou em ordem suas emoções, reequilibrando sua aura e se libertou das
falsas imagens sugeridas pelo perseguidor espiritual. Talvez, até, tente injetar-lhe novos quadros as-
trais inferiores, sem encontrar ressonância: perdeu a antiga ascendência.
Regressa, então, descoroçoado, mas não desanima de seus objetivos. Consegue, nas rodas de entidades
semelhantes a si, outros sete "piores que ele”. A decepção com a evolução de quem ele considera seu
inimigo, faz nele crescer proporcionalmente a raiva e o desejo insano de derrubá-lo do ponto atingido,
e não aceita obstáculos a seu ódio implacável. Ao lado dos sete novos "amigos”, e já a eles subjugado
porque devedor de um obséquio que será cobrado até o último centavo e mais os “juros” - embora eles
só aceitem a empreitada quando vêem possibilidades de auferir boas vantagens de baixo teor - o ataque
é renovado. E a condição última torna-se pior que a anterior.
Jesus termina prevendo e predizendo que assim aconteceria àquela geração má - ou melhor, “enferma”
(ponerá) - que não está assimilando a profundidade de Seu ensino.

A lição desdobra-se em profundidade maior que a aparente. A escala de valores, como sempre, apli-
ca-se a diversos graus, segundo a interpretação que pode ser dada.
Em primeira plana aparece, sem dúvida, a lição literal, que vimos acima. Trata-se do que realmente
ocorre nos casos de obsessão e possessão, por parte de espíritos desencarnados. O texto é claro: é o
exemplo da vida diária. Fatos corriqueiros.
Há outra interpretação: após a "conversão" de uma criatura, do materialismo ou da descrença, à es-
piritualidade, verificamos que foi dela expulso um "espírito atrasado": o da dúvida. Mas logo depois,
com a "casa vazia, limpa e arrumada", surgem outros sete espíritos piores, que são: a vaidade de ter
alcançado aquela compreensão: o convencimento de sua capacidade pessoal em melhorar; o orgulho
de haver galgado um passo a mais na evolução: a auto-satisfação da crença de que realmente é um
eleito; a pretensa superioridade que o faz acreditar-se melhor que "os outros"; a arrogância que des-
caridosamente despreza os outros pecadores; e o pior de todos, a invigilância que se supõe infalível
em suas opiniões, em seus julgamentos, em suas condenações.
Esses sete espíritos piores - muito piores - que o materialismo e a descrença, passam a morar naquele
indivíduo, cujo estado se tornou muito mais grave do que antes. Huberto Rohden tem uma frase que
descreve bem esse caso tão típico e, infelizmente, tão comum nos espiritualistas de qualquer religião:
"Livre-me Deus de minhas virtudes, que de meus vícios eu me livrarei".
No entanto, a última frase profética de Jesus, relatada por Mateus, e que amplia o conceito do indiví-
duo para a coletividade, abre-nos o horizonte para uma terceira interpretação. Diz: "e assim aconte-
cerá a esta geração".
Essa profecia é facilmente verificável, agora, após vinte séculos, em sua realização comprovada.
Aqueles homens que ingressaram no cristianismo, embora o cristianismo não tivesse ingressado neles,
e que, portanto, não perceberam o âmago, a base, a profundidade do ensino de Cristo, foram exata-
mente os que se apoderaram do poder, imbuídos da convicção de se haverem libertado do "espírito"
do paganismo e do judaísmo. Expulso aquele espírito, todavia, outros sete piores vieram neles habitar.
Convenceram-se de que eram os melhores. Quiçá os únicos que realmente compreendiam e interpre-
taram a verdadeira religião cristã, numa vaidade sem limitações: incharam de convencimento a ponto
de se intitularem, eles mesmos, os legítimos e indiscutíveis representantes de Deus na Terra, herdeiros
dos "Apóstolos", fundamentando-se, para isso, no lugar geográfico em que se encontravam, e não no
espírito que possuíam,. encheram-se de orgulho, certos de que eram "donos de Deus" e chegaram ao

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C. TORRES PASTORINO
cúmulo de se julgarem por Ele obedecidos, podendo determinar "por decreto", aqueles que deviam
habitar o céu (e mesmo, durante certa época o fizeram, até o lugar do céu que deveriam ocupar ...);
dormiram sobre os louros das conquistas de seus postos, com a auto-satisfação de que eram “escolhi-
dos”, os “eleitos de Deus”, os privilegiados" do planeta: felicitaram-se com a pretensa superioridade
de que, quem os não seguisse, estaria condenado, e desprezaram, perseguiram, e espezinharam outros
povos, destruindo documentos e monumentos que - por não provirem deles - eram julgados "diabóli-
cos"; cresceram em sua arrogância desmesurada, torturando, queimando, e assassinando, em "nome
de Deus" e como delegados Seus, todos aqueles que se lhes não queriam submeter; e finalmente caí-
ram na pior das invigilâncias, solenemente decretando-se a si mesmos como sendo infalíveis, pois o
que diziam era o próprio Deus que falava por sua boca. A profecia de Jesus cumpria-se ad litteram:
"nem um iota" ...
No capítulo 17 do Apocalipse há outros pormenores proféticos a respeito da " Babilônia a grande" (v.
5), "instalada sobre sete colinas" (v. 9) e que está "embriagada (satisfeita, feliz em sua irresponsabili-
dade) com o sangue dos mártires (testemunhas) de Jesus", tanto que o vidente "ficou estupefacto ao vê-
la” (v. 6).

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SABEDORIA DO EVANGELHO

O ELOGIO DA MULHER
Luc. 11:27-28
27. Aconteceu que, enquanto ele falava essas coisas, certa mulher do meio da multidão
levantou a voz e disse-lhe "Feliz o ventre que te carregou e os seios que sugaste".
28. Mas ele respondeu: "Felizes, antes, os que ouvem o ensino de Deus e que despertam".

Dois versículos apenas. Duas frases. Duas revelações.


Ao ouvir encantada os ensinos proferidos por Jesus, “certa mulher do povo” eleva a voz, louvando a
Deus pela felicidade que a mãe daquele homem deve ter sentido, ao ver seu filho um sábio genial nos
caminhos do mundo. Em suas palavras encontramos a primeira realização histórica da profecia de Isa-
bel (Luc 1:42) e das palavras da própria Maria: “Todas as gerações me chamarão bem-aventurada"
(Luc. 1:48).
A resposta é imediata. Nela o filho confirma o louvor feito à sua mãe, salientando, apenas, que "mais
felizes" são os que ouvem o ensino de Deus, pondo-o em prática. Isso fez Agostinho escrever (Patrol.
Lat., v. 40, c. 398): beatior Maria perficiendo lidem Christi, quam concipiendo carnem Christì, ou
seja: “Maria foi mais feliz realizando a fidelidade a Cristo, do que concebendo a carne de Cristo" (isto
é, de Jesus).
Digna de estudo a frase final: hoi akoúontes tòn lógon toú theoú kaì phylássontes (os que ouvem a pa-
lavra de Deus e despertam). O verbo phylássô, quando usado intransitivamente, exprime “vigiar, des-
pertar, ficar ou manter-se desperto, ou vigilante", quando empregado transitivamente (com objeto di-
reto), tem o sentido de “guardar, observar", como "juramentos" (Ilíada, 3,280), “Tratados" (Plut., Mo-
rales, 196d), “a palavra" (Plat., Leis, 892 d), a lei (Sófocles, Traquinianas, 616 e Plat., Política) 292 a).
Ora, acontece que o texto pode ser lido de duas maneiras:
a) com o objeto direto antecipado (tòn lógon) e não repetido depois do segundo participío presente:
“os que ouvem e põem em prática (observam) o ensino de Deus" (e assim é invariavelmente tradu-
zido em todas as versões correntes);
b) firmando-se o período como duas orações coordenadas, mas de sentido independente: "os que ou-
vem o ensino de Deus e os despertos"
Essas frases, que se prestam a duas interpretações são, quase sempre, portadoras mesmo de dois senti-
dos, que serão percebidos pelos que o conseguirem: "quem tem ouvidos, ouça".

O que observamos, com absoluta clareza, no trecho, é a lição dada pelo Mestre àqueles que só perce-
bem a personagem encarnada.
Ao elogio da mulher "do povo" (evolução normal das massas, que vê apenas o físico, a parte materi-
al), que salienta a maternidade física, de sangue (o ventre que o carregou e plasmou o corpo físico, e
os seios que o amamentaram), o Cristo expõe seu ponto de vista espiritual.
Não há dúvida de que a maternidade que plasma corpos constitui algo de essencial para a evolução
do Espírito, e portanto recebe felicidade se seu rebento é um dos Espíritos Santificados. No entanto,
muito mais ditoso é aquele que cultiva a individualidade e a faz seguir o caminho iniciático que Ele
traçou, aquele que "ouve o ensino" (é a expressão estudada no vol. 4), e aquele que desperta para a
vida superior, ingressando conscientemente no quinto plano, o do "super-homem".

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C. TORRES PASTORINO
Não pode haver, quase, termo de comparação entre os dois planos. Enquanto a personagem, transitó-
ria por seu fatal destino de "morrer", desaparecerá, dela restando apenas uma lembrança e um exem-
plo, a individualidade subirá sem limitações, muito acima do espaço e do tempo.
Feliz, sim, a mãe que vê o filho ascender espiritualmente em sabedoria e amor. Mas muito mais feliz
aquela que o vê superar essa personagem que ela forjou e alimentou, por haver conquistado o grau
supremo de Filho do Homem, de ser desperto na vida Espiritual, consciente de si e do universo, do
micro e do macrocosmo. E feliz sobretudo aquele que não apenas vê os outros atingirem esse grau,
mas ele mesmo o conquista para nunca mais perdê-lo, porque "ouviu o ensino de Deus", proveniente
do Cristo Interno de seu coração e, tendo-o ouvido, despertou do estado de adormecimento na matéria
para o de vigilante (samaritano) no Espírito: que sabe o que sabe e faz o que sabe, porque sabe o que
faz.

Figura “FELIZ O VENTRE QUE TE GEROU” – Desenho de Bida, gravura de L. Flameng

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SABEDORIA DO EVANGELHO

O SINAL CELESTE

Mat. 12:38-42 Mat. 16:1-4

38. Então alguns dos escribas e fariseus disse- 1. Chegaram os fariseus e saduceus e, para
ram: "Mestre, queremos ver algum sinal experimentá-lo pediram que lhes mostrasse
(feito' por ti". um sinal celeste.
39. Ele, porém, respondeu: "Uma geração má e 2. Mas ele respondendo-lhes, disse: "Chegan-
adúltera pede um sinal; mas nenhum sinal do a tarde, dizeis: Bom tempo, porque o céu
se lhe dará, senão o sinal do profeta Jonas. está vermelho;
40. Porque assim como Jonas esteve três dias e 3. e pela manhã: Hoje (teremos) tempestade,
três noites no ventre do peixe, assim o Filho porque o céu (está) vermelho e carregado.
do Homem estará três dias e três noites no Hipócritas, sabeis, na verdade, discernir o
coração da terra. aspecto do céu, e não podeis (discernir) os
sinais dos tempos?
41. Os homens ninivitas se levantarão no jul-
gamento com esta geração e a condenarão: 4. Uma geração má e adúltera pede um sinal, e
pois modificaram sua mente com a prega- nenhum sinal se lhes dará senão" de Jo-
ção de Jonas; eis um maior que Jonas aqui. nas". E deixando-os, retirou-se.
42. A rainha do sul despertará no juízo com
esta geração e a condenará: pois veio dos Luc. 11:29-32
confins da Terra para ouvir a sabedoria de
Salomão; e eis um maior que Salomão
aqui". 29. Como afluíssem as multidões, começou a
dizer: "Esta é uma geração má: pede um
sinal e nenhum sinal se lhe dará, senão o si-
Marc. 8:11-13 nal de Jonas.
30. Pois assim como Jonas se tornou um sinal
11. Saíram os fariseus e começaram a discutir para os ninivitas, assim também o Filho do
com ele, procurando dele obter um sinal Homem o será para esta geração.
celeste experimentando-o. 31. A rainha do sul despertará no juízo com os
12. Ele, suspirando em seu Espírito, disse: "Por homens desta geração e os condenará; pois
que esta geração pede um sinal? em verda- veio dos confins da Terra para ouvir a sa-
de vos digo que a esta geração nenhum sinal bedoria de Salomão; e eis um maior que
será dado". Salomão aqui.
13. E deixando-os, tornou a embarcar e foi 32. Os homens ninivitas se levantarão no jul-
para o outro lado. gamento com esta geração e a condenarão,
porque modificaram sua mente com a pre-
gação de Jonas; e eis um maior que Jonas
aqui".

O fato de aparecer duas vezes em Mateus, pode significar que realmente a cena se repetiu. É a opinião
de Lagrange, apoiado em alguns manuscritos e versões, bem como na tradição de Taciano, Eusébio e
João Crisóstomo, seguido nisto por Pirot, Entretanto, Tischendorf, Hort, Soden, Vogels, firmam opini-

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C. TORRES PASTORINO
ão contrária, por causa da omissão do Sinaítico, do Vaticano e das versões copta, armênia e siríacas
(sinaítica e curetoniana), assim como da tradição de Orígenes e talvez Jerônimo. De qualquer forma,
não havendo segurança, resolvemos englobar tudo num só comentário, pois os termos são quase idên-
ticos.
Os fariseus, escribas e saduceus pedem que, como comprovação de seu ministério, Jesus lhes forneça
um "sinal celeste". É como podemos entender o ek ou apò tou ouranou: sinal proveniente do céu (he-
braico: min hachâmaim). Não bastam as palavras e as curas, fenômenos terrenos: querem algo super-
natural, tal como (nota Pirot) faz exatamente a igreja católica romana, quando exige dos candidatos à
canonização, sinais extraordinários (milagres!). Se Jesus voltasse à Terra, novamente teria que sub-
meter-se às mesmas exigências, e talvez desse literalmente as mesmas respostas ... Os homens eram e
são julgados não pelo que SÃO, mas pelo que FAZEM.
Habituados à leitura do Antigo Testamento, conheciam eles os sinais “celestes" realizados como de-
monstração da autoridade divina: o maná caído do céu (Êx. 16:12ss); Josué que fez “parar o sol" (Jos.
10:12, 13); Elias que faz descer fogo do céu expressamente para provar a legitimidade de sua interven-
ção, ou faz chover (1.º Reis 17:1; 18:38, 45; 2° Reis 1:10-12); Isaias que fez recuar a sombra no qua-
drante de Acaz (Is. 38:7-8).
Ora, jamais se deixou Jesus arrastar, pelo que conhecemos das Escrituras e de Sua formação psicológi-
ca. a realizar atas espetaculares, embora, segundo Suas próprias palavras, pudesse fazê-lo (cfr. Mat.
26:53). Seus poderes eram usados apenas para beneficiar outras criaturas necessitadas, ou como base
de ensinamento para Seus discípulos.
Jesus recusa o sinal, invectivando aquela “geração", termo que pode referir-se a Seus contemporâneos
em geral, ou particularmente ao clero hierosolimitano, que o condenou à morte e que estava ali pre-
sente, por seus representantes credenciados. Qualquer que seja o sentido, a "geração" é acusada de
"adúltera e má".
O qualificativo “adúltera" (moichális) é aplicado no sentido bíblico (veja vol 2 e vol 4). Concordam
com isso Pirot (o. c. vol. 9.º, pág. 163) que diz serem adúlteros “os infiéis a seu deus" (sic.); e o jesuíta
Padre Max Zerwick (Analysis Philogica Novi Testamenti Graeci, Roma, 1960, pág. 31): defectio a
Deo; qui cum populo suo quasi matrimonio se junxit, adulterium in Vetere Testamento appellatur, isto
é, o afastamento de Deus que se uniu a seu povo como em matrimônio, é chamado adultério, no Anti-
go Testamento".
Entretanto, Jesus abre uma exceção: eles presenciarão novamente o “sinal de Jonas" (Jonas, 2:1), só
que, em lugar de ficar “no ventre do peixe", Jesus permanecerá no "coração da terra" (morto e enterra-
do) três dias e três noites. Na realidade, sepultado numa sexta-feira à tarde (antes das 18 horas), le-
vantou-se no domingo pela manhã, tendo permanecido, pois, parte de sexta-feira, todo o sábado, e
parte do Domingo; e duas noites: a de sexta para sábado e a de sábado para domingo. No entanto,
Strack & Billerbeck (o. c., pág. 649) cita Rabbi Eleazar bar Azaria (100 A.D.): "um dia e uma noite
fazem um 'iona (24 horas), mas um 'iona começado, vale um 'iona inteiro".
A citação de Jonas evoca Ninive, cidade “pagã", mas que atendeu à pregação do profeta e modificou
seu modo de agir. E ali, perante o clero de Jerusalém. estava alguém maior (pleion) que Jonas.
Outra lembrança é trazida: a rainha de Sabá saiu de sua Terra, empreendendo longa viagem para ouvir
a sabedoria de Salomão (1.º Reis 1:1ss). No entanto, apesar de maior que Salomão, Jesus não trepidou
em vir pessoalmente ao encontro dos israelitas, para trazer-lhes a sabedoria de Deus: e não O queriam
ouvir! Por isso, os ninivitas e a rainha do Sul, são testemunhas contra aquela "geração" incrédula e
orgulhosa, no dia do discernimento.
No segundo trecho de Mateus há outro pormenor: Jesus compara os sinais meteorológicos da aparência
do céu, que tinham sido observados por eles, com os sinais da época messiânica, predita pelos profetas.
Se eles sabiam dizer, ao chegar a tarde "Bom tempo, céu vermelho", e pela manhã: "Temporal, céu
vermelho e carregado", como não tinham capacidade de perceber as palavras dos profetas, que haviam
falado a respeito do Messias?

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A grande ansiedade da personagem humana volta-se para os fenômenos exteriores: sinais, "milagres",
manifestações de espíritos, ectoplasmias, materializações, curas espirituais espetaculares, operações
realizadas por entidades do astral, etc. etc. A busca é aflita, intessante, angustiosa. Organizam-se
centros de estudos, grupos de pesquisa, reuniões médicas; observam-se rituais, armam-se sessões de
efeitos físicos, prendem-se os médiuns em gaiolas fechadas a cadeado, e este é coberto com espara-
drapo que leva a assinatura dos assistentes, tudo em teatralização bem montada para o aplauso públi-
co.
Visa tudo isso, em grande parte, à caça de prosélitos, para aumentar o número de cabeças, como se o
valor de um sistema religioso se computasse como a riqueza de um vaqueiro: pela contagem das re-
zes. E se essas "cabeças" forem "coroadas" pela nobreza do sangue ou da riqueza, isso dá para "en-
cher a boca" de vanglória, como se a matéria pudesse trazer prestígio ao campo espiritual. Organi-
zam-se festas, espetáculos pomposos, exterioridades vazias, com os mais variados pretextos: todos se
julgam "merecedores" de assistir a fenômenos extraordinários de toda ordem, realizados no momento
preciso em que são desejados. como passes de mágica.
E para movimentar as massas são oferecidas vantagens imediatas, pessoais ou familiares, vindo a
seguir a curiosidade inconsequente: ver, ouvir, presenciar: assistir, testemunhar, aprender de fora,
como verniz que encobre e lustra um móvel de madeira geralmente ordinária e talvez até bichada no
miolo. Criam-se cursos, sociedades, ordens, confrarias, associações, congregações, com o escopo de
auto-elogios, de incensação mútua, dos louvores trocados reciprocamente, distribuindo-se ou assu-
mindo-se os títulos mais solenes e pomposos, de mestres, veneráveis, gurus, adeptos, iniciados, swâ-
mis, ... anandas, etc. Quanto mais honrarias e comendas se distribuem: mais comparsas aparecem, em
busca de destaques - mas não de trabalho - adorando-se os “cargos", mas não os "encargos".
Em outras palavras, encontramos a curiosidade intelectual que se repasta nos termos complicados,
nas etimologias abstrusas, nos segredos "indizíveis", só revelados aos que atingiram determinados
graus prefixados numa escala hierárquica artificialmente criada e caprichosamente organizada (ou
aos que pagaram as quotas correspondentes a esses graus ...); tudo é feito num sigilo grotesco e ilusó-
rio, facilmente desvendável e decepcionante, pois quando se vem a conhecer "o grande mistério", se
verifica que é assunto ultra-superado, talvez escrito há séculos ou milênios e que só se acha sem di-
vulgação porque a massa perdeu o contato com línguas antigas (hebraico, sânscrito, grego, persa
antigo, copta, tibetano e até latim). Só é mistério porque alguém descobriu como "novidade" e disso se
serve para mostrar-se (ou julgar-se) superior aos outros, só revelando sua descoberta aos seus "elei-
tos". Vale-se desses segredos de polichinelo como de um escabelo para manter-se superior aos demais
companheiros, conquistando a auréola de douto ou de sábio, de ser privilegiado, que os ignorantes
lhe confirmam.
Os "mestres" legítimos, os que realmente trazem mandato dos planos superiores, jamais agem dessa
forma, nem concordam com essas criancices: fazem como Salomão (Sab. 7:13) "aprendi sem hipocri-
sia, transmito sem inveja". Não procuram agradar nem lhes interessam aplausos, nem aumento quan-
titativo de discípulos, nem se envaidecem porque conquistam sequazes nas altas esferas sociais, políti-
cas, intelectuais ou financeiras: visam apenas à qualidade, à evolução íntima, preferindo, por vezes,
pescadores e publicanos humildes, a doutores da lei e escribas.
Cristo deu-nos a lição, com Seu exemplo e com Suas palavras, como sempre: "nenhum sinal lhes será
dado" a esse amontoado de vaidades, a esses que julgam que uma doutrina só pode vencer se tiver a
aprovação, o beneplácito e a adesão deles! ... Mas eles passam, e a doutrina, se for boa, se for legíti-
ma, permanece durante séculos iluminando as criaturas.
Sinal celeste? Mas "eles" só têm altitude para compreender o "céu" meteorológico, que prenuncia
tempo bom ou borrascoso. Mas o "céu" da alma, o "reino dos céus" do coração, lhes está totalmente
fora do alcance evolutivo. Por isso pedem sinais exteriores, já que não sabem ouvir a voz silenciosa
do Cristo Interno.
Mas só lhes será dado o "sinal de lonas". As palavras relembram a tradição, tal como ficou registrada
no livro, embora sentidos outros possam surgir.

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Jonas (cujo nome Iona significa "pombo") recebe de YHWH a incumbência de dirigir-se à cidade de
Nínive, capital da Assíria, para anunciar que dentro de 40 dias ela será destruída. Fugindo da ordem,
o vidente vai a Társis, cidade do sul da Espanha, o extremo oposto ... O navio é sacudido por forte
temporal, com risco de naufragar. Jonas apresenta-se como "responsável" daquilo e pede para ser
lançado ao mar, o que é feito. Um "peixe" o engole e três dias depois o lança na praia, perto de Níni-
ve, onde ele anuncia a destruição da cidade. Todos nele acreditam e, do rei ao último dos cidadãos,
modificam sua conduta, sendo então poupada a cidade, que não é destruída, o que muito decepciona
Jonas, que teme passar por mentiroso.
Evidentes a alegoria e o simbolismo, que transparecem de todos os pormenores.
Ao receber ordem de desempenhar sua tarefa, o Espírito pode rebelar-se e pretender fugir: tem o seu
livre-arbitrio. Mas as borrascas que surgem no planeta (barco) são tão pavorosas que ele - que invi-
gilante e irresponsável dormia no porão - desperta e acusa-se culpado, solicitando dos senhores do
carma a pena merecida. É então lançado no vórtice do plano astral, até que seja "engolido" por um
peixe, em cujo ventre passa três dias e três noites ou seja, até que novamente mergulhe no liquido am-
niótico, qual peixe n'água e, no ventre materno viva o número exato de dias e noites (simbolizado no
número perfeito três) e depois é "vomitado", vendo a luz na região certa em que deve cumprir sua
tarefa, depois de "renascido" ou "ressuscitado". Ora, mutatis mutandis, é precisamente isso que ocor-
rerá com Jesus, que ficará no "coração da terra" o tempo necessário, para depois reerguer-se e conti-
nuar Sua trajetória no plano que Lhe é próprio.
Podemos alargar os horizontes e verificar que o Mestre ficará oculto durante o signo de "piscis" (até
o ano 2.000, mais ou menos), no "coração (ou interior) da terra", voltando a aparecer na era do
Aquário.
Outra interpretação, no setor dos mistérios iniciáticos, nos esclareceria que o único sinal que o ser
evoluído pode dar, é submeter-se pessoalmente à experiência (páthein) ou paixão, com uma morte,
mesmo violenta, mas aparente, podendo dali sair, superando-a e arrebentando-lhe os grilhões. Esse
passo deve ser vivido no último plano: supremamente difícil e arriscado, são poucos os que, mesmo
"iniciados", podem tentar vencê-lo. Jesus conquistou o seu, e com vitória notável, demonstrando o
domínio pleno e o comando seguro dos veículos inferiores: depois de passar o tempo necessário no
"inferno" (parte baixa geograficamente, o "coração da terra", ou centro), volveu à vida, como se nada
Lhe houvesse acontecido, triunfante e glorioso, conquistando com justiça o título e o posto de "Sumo
Sacerdote" (Hebr. 2:20) ou "Rei".
Esse seria o único sinal que Ele daria a "esta geração", ou seja, a "quem tivesse olhos de ver": sua
vitória total no setor espiritual, conquistada exatamente, através da derrota do plano material.
O simbolismo místico também está suficientemente claro: para conquista do triunfo espiritual, é mis-
ter inicialmente "mergulhar" no coração da terra (no corpo), onde se esconde o Cristo Interno pujante
de vida; de beleza. Depois desse encontro sublime, é que virá a superação de todos os óbices e a der-
rota da morte e das fraquezas. E aqui compreendemos as palavras do Mestre: "eis aqui alguém maior
que Jonas, maior que Salomão". A rainha do sul foi buscar longe a sabedoria de um homem, de Salo-
mão. Pois o Cristo, maior que Salomão, está em nosso âmago, esperando por nós, para manifestar-se.

Por que não ir a Ele, não ouvir-Lhe a voz? A alusão ao monarca antigo ajuda esta interpretação, pois
as obras que escreveu ("Sabedoria" e sobretudo "Cântico dos Cânticos") são, sem sombra de dúvida,
tratados místicos que ensinam a busca do Cristo Interno, para quem sabe entendê-las.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

ALMOÇO COM O FARISEU


Luc. 11:37-41
37. Tendo acabado de falar, pediu-lhe um fariseu que almoçasse com ele; e havendo en-
trado, reclinou-se à mesa.
38. Vendo isto, o fariseu estranhou, porque não se lavou antes do almoço.
39. O Senhor, porém, disse-lhe: "Agora vós, os fariseus, limpais o exterior do copo e do
prato, mas vosso interior está cheio de rapina e maldade
40. Insensatos, acaso quem fez o exterior não fez também o interior?
41. Dai, porém, em esmolas o conteúdo, e eis que todas as coisas são limpas para vós".

Figura “Almoço com o Fariseu” – Desenho de Bida, gravura de Léopold Flameng

Este trecho, privativo de Lucas, arma o cenário de uma série de invectivas, em que Jesus demonstra
toda a falsidade dos fariseus. escribas e doutores da lei, falando sem constrangimento, “resistindo-lhes
na cara” (cfr. Gál. 2:11), com tal autoridade e firmeza, que ninguém ousou retrucar nem desmentir.
Vê-lo-emos no próximo capítulo.
"Um" fariseu. sem citação de nome, sem identificação possível, um dentre a grande coletividade, após
ouvir-Lhe as palavras, pede que aceite almoçar em sua casa. Jesus acede. Entra-lhe no lar e reclina-se à

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mesa: o fariseu de estranhar; Jesus, o conhecido Rabbi, não fizera as abluções ritualísticas! Já o caso
fora anteriormente discutido e explicado (cfr. Mat. 15:1-20; Marc. 7:1-23; vol. 4).
Essas abluções ritualísticas constituíam praxe rigorosa entre os fariseus (pharusim = separados), que as
exageravam, exigindo-as de todos sem exceção, no trato diário, sempre que se chegavam à mesa; ao
passo que o prescrito em Lev. 15:11-12 estabelece sua necessidade apenas para os homens vitimados
por doença venérea. Todavia, de medo hipócrita de ser contaminados sem sabê-lo exigiam eles a ablu-
ção das mãos e de todos os recipientes que serviam à alimentação.
O Mestre vai direto ao assunto, mostrando que não é o recipiente físico material (prato ou copo) que
necessitam de limpeza. mas o "interior", o âmago, o coração deles, que se revela, no entanto, cheio de
"rapina e maldade". Jesus revela perceber que essa exigência rígida constitui um "transfert" psicológi-
co, em que a criatura descarrega no objeto todo o peso da própria consciência, para com isso sentir-se
aliviada. Com Sua frase franca, lançando-lhes em rosto o epíteto magistralmente escolhido e que se
adapta de pleno ao caso: "insensatos"! (asynetoi, isto é, "sem inteligência").
São proferidas, a seguir, duas frases aparentemente enigmáticas: "quem fez o interior, também fez o
exterior". É uma oposição entre duas coisas distintas mas que, pelo jogo psicológico, vinham a consti-
tuir-se, no fundo, uma só: o interior dos homens e o exterior dos pratos, dos copos, dos recipientes, dos
"vasos". Ora, a comparação é válida, mesmo no estilo escriturístico, conforme podemos verificar na
literatura posterior, em que o "corpo" físico é considerado o "vaso" da alma, e o homem, o "vaso" da
Divindade: "Esse (Paulo) é para mim um vaso de eleição" (At. 9:15); "será um vaso de honra, santifi-
cado e útil ao Senhor" ( 2.ª Tim. 2:21); "para que cada um de vós saiba possuir o vaso em santificação
e honra" ( 1.ª Tess. 4:4); "temos esse tesouro em vasos frágeis" (2.ª Cor. 4:7).
A segunda frase é: "dai porém em esmolas o conteúdo (tà enónta) e todas as coisas são limpas para
vós". Observamos o processo de superação dos convencionalismos, por meio do trabalho de doação de
si. A interpretação corrente, que atribui a essas palavras o sentido de dar "o que está dentro dos pratos
e copos" - ou, pior ainda, a tradução da Vulgata: quod súperest, "o que é supérfluo" - como se houves-
se referência à doação de bens materiais ou alimentos, constitui uma distorsão da idéia básica, que vem
sendo desenvolvida no contexto, ou seja, a oposição entre o exterior dos recipientes e o interior do
homem. Conservando-se o mesmo teor interpretativo, verificamos que a doação em esmolas do "con-
teúdo" da criatura, de sua própria pessoa, de suas vibrações de amor desinteressado, em benefício "dos
demais, fará que se esqueçam seus próprios problemas, anulando-se traumas e fobias, e promovendo a
tranquilidade da paz interna, a única que pode garantir a pureza de todas as coisas: "tudo é limpo para
os limpos" (Tito, 1:15).

A lição que se depreende deste trecho vem de encontro a muitas teorias esposadas por muitas seitas
religiosas, sistemas filosóficos e mesmo doutrinas esotéricas.
A distinção estabelecida entre o "recipiente" e o "interior" faz-nos compreender, logo de início, que os
termos são usados em sentido metafórico: trata-se do corpo, vaso do Espírito, que é seu interior. Com
efeito, a "pureza legal" reteria-se unicamente ao corpo físico-denso: corrimentos, fluxos sanguíneos
muliebres (menstruação) ou de ambos os sexos (hemorróidas), poluições seminais masculinas (esper-
matorréia), contatos sexuais com emissão espermática, ou seja, tudo o que estava ligado às partes
genitais; ou então, aos casos de cadáveres, que também tornavam "legalmente impuros" os que deles
tratavam ou neles tocavam. Tudo isso era, inclusive, extensivo aos que tivessem contatos com os pró-
prios impuros ou com os objetos em que eles tocassem. Essas regras higiênicas tinham razão de ser:
evitar o alastramento das doenças venéreas (pelo que também foram proibidas as carnes "remosas",
isto é, causadoras de irritações cutâneas e dermatoses), e o perigo de contágio de enfermidades que
pudessem ser transmissíveis, sobretudo depois da rápida deteriorização dos cadáveres no clima
quente palestiniano. Daí serem "legalmente impuras" também as doenças julgadas contagiosas. Tudo,
como vemos, relacionado com o corpo físico-denso.

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Na realidade, já se falara antes da limpeza do coração (cfr. Salmo 23:4), na limpeza do mal (cfr. Is.
1:16), na limpeza da alma (Tob. 3:16). Essa a limpeza do interior a que se refere Jesus (cfr. Mat. 5:8)
em oposição à outra.
E o que se deduz deste trecho é uma lição em que o Mestre demonstra que não é a limpeza de corpo
que vale, mas a do Espirito. E justamente a tendência de muitas seitas é a de considerar "pecado" o
ato físico, sem dar a devida importância ao Espírito, quando o oposto foi ensinado por Jesus: haja
limpeza espiritual, que o ato físico pouca importância tem (cfr. 1.ª Cor. 7:9). Muito mais que o contato
físico dos sexos, o que importa são os pensamentos a esse respeito (cfr. Mat. 5:28 e 15:19; Marc.
7:21). Não é o ato carnal que torna impuro: é a criação mental. De nada adianta guardar uma casti-
dade física e nutrir pensamentos libidinosos. Será melhor realizar logo o ato e aliviar-se, que arder de
desejos incontidos perdendo a paz espiritual, como afirmou Paulo aos coríntios (l.ª Cor. 7:9).
A explicação dessa teoria é dada categoricamente: quem fez o exterior (Com os órgãos sexuais, para
serem santamente usados, dentro do amor), também fez o interior, que se revela o único responsável,
como guia do conjunto Homem. Não é bastante a pureza exterior; com maior razão, requer-se a inte-
rior. De nada adianta lavar e purificar o exterior, o "recipiente", sem que o mesmo suceda com o
"conteúdo", que precisa estar "limpo" de maldade e rapina.
Ora, o contrário da rapina e da maldade, é a generosidade e a bondade. Então, para combater os
vícios primordiais da usura e do egoísmo, que "sujam" a criatura, o ideal será fazer a doação do pró-
prio Espírito em atos de socorro, de iluminação, de conforto, de assistência. Quem organizar sua vida
sem ambição egoísta, sem enclausuramento em si mesmo, mas aprender a dedicar-se integralmente ao
próximo, com auto-doação plena, verá que tudo é puro para si, não apenas de pureza "legal", mas de
pureza real, que nada consegue manchar.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

OS SETE AIS

Mat. 23:13-36 Luc. 11:42-52

13. "Mas ai de vós, escribas e fariseus hipócritas! 42. "Mas ai de vós, fariseus! Porque dais o
Porque fechais diante dos homens o reino dos dízimo da hortelã, da arruda e de todas
céus; e nem vós entrais nem deixais entrar os as hortaliças, e desprezais o discernimen-
que estão entrando. to e o amor de Deus: estas coisas, porém,
devíeis fazer, sem omitirdes aquelas.
15. Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas! Por-
que rodeais o mar e a terra para fazerdes um 43. Ai de vós! fariseus! Porque gostais das
prosélito; e quando feito, o tornais filho da ge- primeiras cadeiras nas sinagogas e das
ena o dobro de vós. saudações nas praças.
16. Ai de vós, guias cegos! que dizeis: quem jurar 44. Ai de vós! Porque sois semelhantes aos
pelo templo, nada é; mas quem jurar pelo ouro túmulos invisíveis, sobre os quais passei-
do templo, fica obrigado. am os homens sem o saberem".
17. Néscios e cegos! Pois qual é o maior, o ouro ou 45. Então lhe disse um dos doutores da lei:
o templo que santifica o ouro? "Mestre, falando assim, a nós também
insultas".
18. E quem jurar pelo altar nada é; mas quem
jurar pela oferta que está sobre ele, fica obri- 46. Respondeu ele: "Ai de vós, também, dou-
gado. tores da lei! Porque carregais os homens
com fardos opressivos e vós, nem com
19. Tolos e cegos! Pois qual é o maior, a oferta ou
um dedo vosso, os tocais.
o altar que santifica a oferta?
47. Ai de vós! Porque construís os túmulos
20. Quem, pois, jura pelo altar, jura por ele e por
dos profetas que vossos pais mataram.
tudo o que está sobre ele.
48. e assim testificais e consentis nas obras
21. Quem jura pelo templo, jura por ele e por
de vossos pais, porque eles, sem dúvida,
quem nele habita.
os mataram, e vós lhes construís os tú-
22. E quem jura pelo céu, jura pelo trono de Deus mulos.
e por quem nele se senta.
49. Por isso também disse a sabedoria de
23. Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas! Por- Deus: enviar-lhes-ei profetas e emissári-
que dizimais a hortelã, o endro e o cominho, e os, e a alguns eles matarão, a outros per-
negligenciais os preceitos mais importantes da seguirão.
lei, que são o discernimento, a misericórdia e a
50. para que a esta geração se peça o sangue
fidelidade; estas coisas, porém, devíeis fazer,
de todos os profetas derramado desde a
sem omitirdes aquelas.
fundação do mundo.
24. Guias cegos! que coais mosquito e engulis um
51. desde o sangue de Abel, até o sangue de
camelo.
Zacarias, que foi morto entre o altar e a
25. Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas! Por- casa; sim, eu vos digo, que se pedirá a
que limpas o exterior do corpo e do prato, mas esta geração.
por dentro estais cheios de rapina e injustiça
52. Ai de vós, doutores da lei! Porque tiras-
26. Fariseu cego, limpa primeiro o interior do tes a chave da gnose; vós mesmos não en-
copo e do prato, para que também seu exterior trais, e impedistes aos que entravam".
se purifique.

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27. Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas! Por-
que vos assemelhais a sepulcros branqueados
que, por fora, parecem realmente vistosos,
mais por dentro estão cheios de ossos de mor-
tos e de todas as impurezas
28. Assim também vós, exteriormente pareceis
justos aos homens, mas por dentro estais chei-
os de hipocrisia e de ilegalidade
29. Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas! Por-
que construís os sepulcros dos profetas e ador-
nais os túmulos dos justos e dizeis:
30. Se tivéssemos vivido nos dias de nossos pais,
não teríamos sido seus cúmplices no sangue
dos profetas
31. Assim testificais a vós mesmos que sois filhos
dos assassinos dos profetas:
32. enchei, pois, a de vossos pais!
33. Serpentes, filhos de víboras! Como escapareis
da discriminação da geena?
34. Por isso é que vos envio profetas, sábios e es-
cribas: a uns matareis, e crucificareis; a ou-
tros, açoitareis nas vossas sinagogas e perse-
guireis de cidade em cidade,
35. de tal forma que venha sobre vós todo o san-
gue justo que se derrama sobre a Terra, desde
o sangue de Abel o Justo, até o sangue de Za-
carias, a quem matastes entre o santuário e o
altar.
36. Em verdade vos digo, que tudo isto virá sobre
esta geração".
Antes de começarmos a análise, impõem-se algumas considerações genéricas para comparação dos
dois textos.
Evidente, à primeira vista, que se trata do mesmo episódio, mas cada narrador o apresenta à sua manei-
ra.
Mateus entra ex abrupto na matéria ("falando à multidão e aos discípulos", 23:1) e enumera SETE ais
seguidos, todos assestados contra "escribas e fariseus”, tachados sempre de "hipócritas”.
Lucas, ao contrário, ambienta a cena com o almoço oferecido pelo fariseu, e os três primeiros ais (do
total da SEIS) verberam apenas os fariseus. Quando um “doutor da lei" - que eram os diretores espiri-
tuais do povo toma as dores, protestando que também eles são insultados, o Mestre se volta para ele
acrescentando outros três ais contra os doutores.
Dos sete ais de Mateus. Lucas cita quatro: o 1.º, o 4.º, o 6.º e o 7.º, que ele coloca como, respectiva-
mente, 6.º, 1.º, 3.º e 5.º. Os restantes aparecem em Mateus. mas sem o anátema do “ai de vós”. Ao
todo, portanto, somando os “ais” de ambos os evangelistas encontramos NOVE condenações diretas e
taxativas, da maneira de agir dos escribas, fariseus e doutores da lei.
Digna de nota a coragem carismática do Mestre, em verberar o comportamento errado de cara, de cor-
po presente, sem subterfúgios, sem "mandar recados”, não com "indiretas”, nem com amaciamentos,
mas categoricamente; e isso, é bom assinalar, na casa de um deles, sentado à mesa dele, num almoço

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em que era o convidado de honra. Em tal situação, difícil se tornaria a um homem comum tomar essa
atitude, reveladora de coragem, de segurança dos próprios atos e da justiça de suas palavras: a posição
incômoda de "convidado", sentado à mesa do almoço, talvez nos fizesse pelo menos adiar a reprimen-
da, numa falsa idéia de gentileza e cortesia, pois nosso espírito fora "comprado" por um gesto de gene-
rosidade da parte do transgressor da lei. Ou talvez usássemos de outro expediente: não aceitar o con-
vite, para não comprometer-nos. Jesus age de modo diverso: convidado aceitou. Mas nem por isso es-
condeu a verdade: disse claramente o que sabia, condenou o erro, verberou a hipocrisia, definiu as po-
sições, impôs sua autoridade.
* * *
Passemos à análise do texto, começando pelo vers. 14 de Mateus: "Ai de vós, escribas e fariseus hipó-
critas! Porque devorais as casas das viúvas sob pretextos de longas orações: por isso recebereis mais
pesada condenação". Aparece em alguns manuscritos da Vulgata, é atestado por Taciano e pela versão
copta bohaírica (alto Egito), é aceito por Merck e Gramática. Mas a maioria dos críticos (p. ex.: White,
Hetzenauer, Nestle, Bover, Pirot, etc.) o recusa, pois se trata apenas de uma transcrição de Marcos
(12:40), indevidamente acrescentado a Mateus: pura redundância. Vejamos agora, os "ais", conforme
aparecem, Também nós o omitimos no texto.
* * *
1.º de Mateus, 6.º de Lucas: condena a hipocrisia de modo genérico. Segundo Strack & Billerbeck (o.
c. vol. 1, pág. 921), Rabbi Nathan (160 A.D.) escreveu: "há dez partes de hipocrisia no mundo: nove
em Jerusalém, e uma no resto do universo". Em Lucas se assinala com mais precisão o sentido: os
doutores se julgam os únicos capazes de interpretar as Escrituras, "tem a chave do santuário", onde se
guardam os livros, e portanto o conhecimento, a gnose. Mas, interpretando mal, não "entram" nem
deixam que os outros entrem.
2.º de Mateus: Embora não haja, no Talmud, notícia de atividades proselitistas, sabemos por Josefo
(Ant . Jud. 20, 2, 4) que o judeu Eleazar fez o rei Izate e sua corte de Adiabene, circuncidar-se. E nas
viagens de Paulo encontramos acenos aos prosélitos pagãos, que ingressavam no judaísmo. A expres-
são "mar e terra" (literalmente: "mar e sólido": tên thálassan kaì tên xêrán). "Filho da geena" (hebrai-
co: benê gêhinnom) era a filiação metafórica que exprimia dependência ou natureza comum (ver vol.
2).
3.º de Mateus: Não é repetida a fórmula "escribas e fariseus hipócritas", que vem substituída por "guias
cegos" (hodêgoí typhloí) ou seja, diretores espirituais incompetentes. Realmente Jesus proibira qual-
quer espécie de juramento (Mat. 5:33-37; vol. 2). Mas os fariseus desobrigavam do juramento pelo
templo e pelo altar, mas exigiam seu cumprimento se fosse pelo ouro do templo ou pela oferta que
estava sobre o altar. Volta a invectiva: môroí kaì typhloí, tolos e cegos, que vale mais (que é maior,
meízon)? O ouro é santificado por estar no templo e a oferta por estar sobre o altar, e não o contrário.
Ora, o que mais vale é o que tem o poder de santificar.
4.º de Mateus, 1.º de Lucas: Exemplo concreto de hipocrisia, que faz questão de preceitos leves, como
o dízimo das plantas comestíveis e vulgares, desprezando os preceitos graves e importantes. A menta
(hortelã, hêdyosmon) porque aromatiza os alimentos e servia de remédio para as taquicardias (eram
comidos três ovos: um com menta, um com cominho e o terceiro com sésamo); o endro (ánéthon),
comestível muito usado; e o cominho (kyminon) também empregado como tempero e remédio. No
entanto, negligenciavam o discernimento (krísis), a misericórdia (éleos) e a fidelidade (pístis). E é
acrescentada a fórmula: "devíeis fazer estas coisas, sem omitir aquelas", ou seja, não é que a primeira
esteja errada: é que deve ser mantida em sua posição real, em segundo lugar. Em Lucas são citadas: a
hortelã a arruda (péganon) planta aromática e as hortaliças em geral (láchanon), e, como negligencia-
das, o discernimento e o amor de Deus (agápén tou theoú). No final de Mateus há uma daquelas ironi-
as próprias de Jesus e originais: "guias cegos' coais um mosquito e engulis um camelo" (hoi díulízontes
ton kônôpa, tên dè kámêlon katapínontes). Figura metafórica das mais felizes, para sublinhar o ensi-
namento dado.

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5.º de Mateus: Neste se condena o zelo de limpar o exterior do copo e do prato, embora eles por dentro
estejam cheios de (gémousin ex) rapina e injustiça (akrasía). O sentido é alegórico, já o vimos no estu-
do do capítulo precedente, ao comentarmos esta condenação em Lucas 11:39-41, onde desenvolvemos
o assunto. A sequência confirma-o: limpa primeiro (kathársin prôton) o interior, o Espírito, e todos os
atos materiais que este realizar serão puros por si mesmos. Não são os ritos, as cerimônias, as obser-
vâncias, a aparência de santidade que dão pureza ao Espírito. É exatamente o inverso: se o Espírito for
puro, "todas as coisas são lícitas, embora nem todas convenham" porque "nem todas dão o bom exem-
plo" (l.ª Cor, 6:12 e 10:23).
6.º de Mateus, 3.º de Lucas: São comparados os fariseus e escribas aos sepulcros “caiados de branco".
Refere-se ao costume da época. Desde o dia 15 de Adar (um mês antes do 15 de Nisan, quando se co-
memorava a páscoa), os sepulcros eram caiados de branco, para que ninguém, por descuido, tivesse
contato com um túmulo, já que a lei (Núm. 19:16) atribuía impureza legal a esse contato. Branqueados,
todos os viam e evitavam. Mas por dentro, continuavam cheios de ossos (gémousin ostéôn) de cadáve-
res e impurezas de toda espécie. Continua o sentido metafórico, mas já agora explicitamente traduzido:
“assim vós pareceis justos aos homens, mas internamente estais cheios de hipocrisia e ilegalidade
(anomías). Em Lucas, a comparação toma sentido mais forte ainda: "sois semelhantes aos túmulos que
não são percebidos, e sobre os quais os homens andam sem perceber", ou seja, a aproximação com os
fariseus constitui sério perigo para os homens desprevenidos que julgam estar lidando com homens
justos, e no entanto internamente estão cheios de podridão.
7.º de Mateus, 5.º de Lucas: Aqui aparecem duas divisões: profetas e justos, cujos túmulos e monu-
mentos são erigidos e ornamentados. A argumentação de Jesus é de lógica cerrada e irrespondível.
Com a costumeira hipocrisia, dizem os fariseus: “se tivéssemos vivido no tempo de nossos pais, não
teríamos concordado com o assassínio deles”. Ora, isso é uma confissão de que eles são os “Filhos dos
assassinos", e não os filhos dos profetas e justos. A estirpe deles se prende aos inimigos dos bons não
aos bons. Houve quem tivesse visto aí um aceno à reencarnação: hoje, mais evoluídos, não teriam feito
o que fizeram outrora: e isso é uma confissão de arrependimento de um ato realizado em vida anterior,
na condição em que estavam de ascendentes da geração atual.
Antes de passar à invetiva final, examinemos rapidamente, as duas condenações restantes de Lucas:
8.º (2.º de Lucas): Salienta o orgulho e convencimento desmedidos dos fariseus, que fazem questão dos
primeiros lugares nas sinagogas e de serem saudados por todos; essa condenação aparece em Mat.
23:6, texto que no Evangelho, aparece logo antes do que comentamos, mas que, na realidade, foi pro-
ferido cronologicamente em época posterior.
9.º (4.º de Lucas): Acusa-os de sobrecarregar a humanidade com fardos opressivos e obrigações insu-
portáveis, embora não queiram para si nenhum trabalho; também aparece a mesma condenação em
Mat. 23:4.
Como final vem uma apóstrofe violenta: “enchei a medida de vossos pais”, fazendo-as transbordar.
Rabbi Hamnuna escreveu: “Deus não castiga o homem antes que sua medida esteja cheia. Quando se
enche, vem sobre ele a necessidade” (cfr. Strack & Billerbeck. o. c. , vol. 1. pág. 939).
Volta aqui a expressão “serpentes filhos de víboras", numa exclamação inflamada de justa indignação
pela falsidade que clama aos céus. E a pergunta: “como escapareis da discriminação da geena”? (cfr.
em Mat. 3:7 as palavras do Batista).
Contudo, o Cristo ainda envia profetas (médiuns que falando sob ditado); sábios (sophoús, hebr.
hakkâmim) que falam por sua própria sabedoria, e escribas (grammatéis) intérpretes que explicam os
textos de uns e de outros. Nada porém adianta: continuarão as matanças iníquas “em nome e para mai-
or glória de Deus", sendo todos perseguidos de cidade em cidade. Nunca, talvez, uma profecia se tenha
cumprido tão à risca e durante tantos séculos seguidos! ... A metáfora, na visão plena, inespacial e
atemporal do Cristo, engloba os fariseus de todas as religiões, em todas as épocas, de todas as raças.
Depois considera os presentes: vós! “sobre vós é que recairá (élthê, sem a partícula duplicativa) o san-
gue inocente (haíma dikaíon), expressão muito usada mesmo em hebraico (dâm nâqi) que se derrama

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(em grego ekchynnómenon, particípio presente) sobre a terra (epì tês gês, não sobre o kósmou, mas
sobre o chão). Esta frase retoma a hipótese da reencarnação, acima aventada: esses fariseus aí presen-
tes eram, realmente, a reencarnação dos antigos assassinos, tanto que eles (vós!) eram os responsáveis
por todos os crimes, desde o sangue de Abel (narrado em Gên. 4:8) até o de Zacarias. Eles, aí presen-
tes, eram os assassinos; eles, aí presentes, responderam por todos esses crimes: “tudo isto virá sobre
ESTA geração". E ai deles, que continuaram reencarnando séculos afora, e continuaram assassinados,
já agora “em nome” desse Cristo que os advertira tão claramente!
Quem era esse Zacarias, que Jesus diz ser o filho de Baraquias, morto entre o santuário e o altar?
Esse fato é narrado em 2.º Crôn. 24.20-22. O livro das crônicas é o último livro histórico da Bíblia
Judaica, e Jesus demonstra aceitar a historicidade bíblica desde o Genesis até Crônicas, deixando de
fora os livros de Macabeus. Portanto, anotemos, os livros dos Macabeus, considerados canônicos pela
igreja de Roma, e recusada pelos judeus e pelos protestantes, também pão foram ratificados por Jesus.
Realmente, Jesus poderia ter citado os assassinatos dos irmãos Macabeus, exemplares de fidelidade e
de coragem. Mas, para salientar "todos os crimes narrados nas Escrituras", limita-se a citar "do Gênesis
ao livro cias Crônicas". Digno de registro.
Acontece que Zacarias, segundo o livro das Crônicas, é filho de Joiadas, e foi assassinado pelo rei Joas
2.º; não era filho de Baraquias. Jerônimo (Patrol. Lat. vol. 26. col. 174) esclarece: in Evangelio quo
utuntur, Nazaraeni, pro filio Barachiae, filium Joiadae reperimus, isto é: “no Evangelho usado pelos
nazarenos, encontramos filho de Joiada, em lugar de filho de Baraquias". O mesmo Jerônimo e João
Crisóstomo (Patrol. Graeca, vol. 58, col 681) pensam que talvez se tratasse de dois nomes (diónymos),
conforme glosa de um manuscrito.
Alguns críticos (Klostermanno Lagrange, Loisy, Durand, Prat, etc.) consideram a frase “filho de Bara-
quias” como uma glosa posterior ao Evangelho de Mateus, já que não existe no códice sinaítico nem
no trecho correspondente de Lucas. Realmente, quem era filho de Baraquias era o profeta Zacarias,
que nada tem que ver com este aqui citado por Jesus. Mas algum escriba, que já tinha no ouvido o
nome do profeta Zacarias, filho de Baraquias, achou por bem acrescentar esse esclarecimento ao texto
de Mateus, o que é qualificado de “glosa antiga" (Loisy, Les Évangiles Synoptiques, Paris, 1907, tomo
2, pág. 386) e "glosa errada" (Durand, Évangile selon St. Matthieu, Paris, 1924, pág. 374).
Que significa exatamente a expressão final “tudo isso (tauta panta) virá sobre esta geração"? Jouon
(L’Évangile de N. S. Jésus Christ Traduction et Commentaire du texte original, compte tenue du subs-
trat sémitique, Paris, 1930, pág. 46) acha que é “o sangue”; Lagrange, (o. c. pág. 452) diz ser “o cri-
me”; Buzy (Évangile selon St. Matthieu, Paris, 1946. pág. 310) prefere ver aí “o castigo".

A lição é ainda uma vez, preciosa: o discípulo, que segue o Mestre, que é dirigido pela individualida-
de, não pode ser covarde. Deve enfrentar com a Verdade os poderosos da Terra que estejam errados.
Qualquer acomodação com o erro é cumplicidade. A verdade precisa ser dita corajosamente, mesmo
à custa da vida física - já que a do Espírito ninguém na pode tirar: é eterna. E a verdade participa da
eternidade do Espírito. Calar é consentir; omitir-se é concordar; deixar fazer é participar da injusti-
ça. Nada disso faz parte da humildade. Humildade não é passividade: é ação justa, no momento justo.
Humildade e coragem não se repelem, não se opõem, não se anulam; ao invés disso, uma corrobora a
outra. Quem tem o conhecimento, tem a obrigação de ensiná-lo; quem possui a chave, tem que abrir a
porta; quem está com a verdade é coagido a demonstrá-la.
O conceito de que a humildade se esconde e sofre calada, só vale para os casos pessoais, que não
afetem a comunidade. O discípulo tem que ser corajoso e enfrentar as feras do circo, quando se trata
de testificar a verdade de suas convicções; tem que crescer diante das autoridades, quando estas se
encontram no caminho errado; em resumo, tem que revestir-se da couraça do herói e brandir a espa-
da candente da verdade, para verberar os erros que a desfigurem, zurzindo a hipocrisia e a falsidade,
o orgulho e a vaidade, a mentira e a injustiça.

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O exemplo de Jesus é valioso para todas as épocas, em todos os climas. E desde então até hoje os
imitadores do Mestre não têm faltado. A História registra casos sem conta de discípulos dignos, que
pagaram com perseguições e com a vida a coragem de arrostar a ira dos poderosos.
Também a linguagem forte serve de modelo. A. verdade não precisa nem deve ser mascarada nem
edulcorada com a desculpa de uma caridade mal interpretada. Dizem que a verdade fere; absoluta-
mente. O que fere é a injustiça, é a calúnia, é a mentira.
Os artistas representam a verdade nua, embora alguns defendam que deve ser recoberta "com o
manto diáfano da fantasia". Mas isso pode referir-se aos ensinamentos que não devem ser dados aos
profanos; a estes se fala em parábolas, "para que vendo, não vejam, e ouvindo não ouçam" (cfr. Mat.
13:15; Marc. 4:12; At. 28:27; Rom. 11:8), a fim de "não serem dadas coisas santas aos cães" (Mat.
7:6). Mas quando se trata de restaurar a pureza do ensino, a nudez forte da verdade deve aparecer em
toda a sua pujança, com os termos próprios, com o sentido exato, sem temores nem subterfúgios.
No entanto, podemos entender as invectivas de Jesus, como símbolo que é da individualidade nossa,
quais advertências e reprimendas dirigidas à personagem.
Muito comum, em todos nós, é que a personagem encarnada, com seu intelecto maroto, crie numero-
sas desculpas para escapar ao controle do Espírito. Enquanto este quer levar uma vida correta e diri-
gir-se diretamente à meta prefixada por sua linha evolutiva, a personagem inventa situações, forja
planos, imagina fugas, envereda por desvios, tudo para sobrepor-se e aparecer, para brilhar e res-
plandecer, para ofuscar e embair os incautos.
Mergulhada na matéria densa, tendo perdido o contato com o Eu Profundo, volta-se para as exterio-
ridades, onde busca o reconforto dos aplausos externos, das bajulações, das posições elevadas, dos
elogios e das falsidades. Não possuindo força interna. não SENDO, procura "aparentar" o que não é,
por atos, palavras, posições, afirmativas vazias que não concordam com o âmago. O exterior torna se
brilhante e ofusca a vista dos que só vêem a superfície, enquanto o interior é podridão corrupta.
Para sanar esses males, a Individualidade não deve agir com subterfúgios, mas combater diretamente,
empunhando as armas mais eficazes. O Bhagavad-Gita já o ensinara, quando Arjuna demonstra re-
ceio de combater "seus próprios familiares" e Krishna, o "cocheiro" (o Eu interno que guia o carro da
personagem), o incita a não temer; esses familiares são exatamente os vícios da personagem. A per-
sonagem é o "filho único" da individualidade, mas precisa ser corrigido com rigor, para não desviar-
se da rota certa. Se acaso se desvia, precisa ser de novo trazido ao caminho certo, embora mediante
severidades drásticas.
O simbolismo do trecho ora analisado confirma plenamente a tese do BhatJavad-Gita. Aqui Jesus, a
Individualidade, verbera corajosa e veementemente as personalidades cheias de falsidade e hipocri-
sia. Diz abertamente todos os defeitos e vícios, põe a nu todos os enganos e mentiras, desvela todas as
manhas e artimanhas, e revela que "sobre essa geração" (ou seja, nessa mesma personagem, encar-
nada ou desencarnada) virão todas as consequências dos atos praticados. Diz à psychê e ao pneuma
que eles são os responsáveis de todas as ações anteriores, desta e de outras vidas passadas, e de todas
as ações erradas colherão os resultados amargos, pela Lei de Causa e Efeito.
Isto porque toda criatura humana é, inegavelmente, um "fariseu e escriba hipócrita", e só depois de
muita violência contra a personagem é que conseguirá anulá-la, para que brilhe a luz pura do Eu
Profundo.
Esse exame sincero e honesto é indispensável seja feito antes de qualquer promoção nos graus iniciá-
ticos. E se o resultado for negativo, está garantida a permanência no mesmo ponto ... Só se já houver
vitórias expressivas, poderá haver promoção. Enquanto a personagem tiver esses defeitos atribuídos
aos "fariseus e escribas hipócritas", não há acesso a graus superiores da iniciação. Que isto seja bem
meditado por todos aqueles que, impensadamente, recebem títulos e rótulos de mãos incompetentes,
sem que tenham, no profundo de si mesmos, a maturidade indispensável obtida com a anulação dos
personalismos. Nesses casos, os títulos se tornarão um agravante de farisaísmo, e não uma realidade
evolutiva.

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C. TORRES PASTORINO
O Mestre que tem por encargo "iniciar" os candidatos, em cujas mãos se encontra a responsabilidade
pesada e intransferível de verificar a possibilidade de cada um, não pode ser medroso nem tímido:
precisa dizer tudo com a franqueza mais rude, a fim de "provar" ou "experimentar" as reações emoti-
vas dos que lhe forem entregues. Jesus ensinou, na prática, como temos que agir, e como têm que agir
conosco os encarregados de nossa evolução.
A "caridade" e a "humildade", geralmente interpretadas como emprego apenas de palavras e fórmulas
dulçurosas, consistem, ao contrário, em saber agir com firmeza e desassombro, verberando-se os er-
ros de frente e sem subterfúgios, revelando-se os defeitos e deficiências com segurança e até mesmo
com certa rispidez, para que se sinta a gravidade dos mesmos. Se não é "com vinagre que se pegam
moscas, mas com mel", não é todavia com mel que se corrigem espíritos inveterados nos erros do
mundo: "quem ama o filho, não lhe poupa a vara" (cfr. Prov. 13:24). Se referirmos essa verdade em
relação à Individualidade diante da personagem, ao Espírito (pneuma) diante do "espírito” (psychê),
teremos compreendido toda a tese desenvolvida no Bhagavad-Gita e também aqui, nos "ais" dirigidos
por Jesus, o Mestre, a nós todos.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

EPÍLOGO DO ALMOÇO
Luc. 11:53-54
53. Quando saiu de lá, os escribas e fariseus começaram a irritar-se terrivelmente, e a
importuná-lo com muitas perguntas,
54. armando-lhe ciladas, para surpreender algo de sua boca.

Lucas apresenta o epílogo do almoço na casa do fariseu.


Preferimos a lição: "Quando saiu de lá", atestado pelo papiro 45 (3.º século), pelos códices Vaticano,
Sinaítico, Efrem e Régío, pelos minúsculos 33, 579 e 1241, pela versão copta bohaírica e pela siríaca
harclense (ad marginem) e aceita pelos críticos Tischendorf, Wescott-Hort, Weiss, von Soden, Vogel,
Lagrange, Merck, Nestle, Pirot etc.
A outra lição da Vulgata: "Tendo dito essas coisas” parece-nos menos exata, embora apareça nos códi-
ces Alexandrino, Beza, Koridethi, nos minúsculos 157, 213 e 1604, nas versões vetus latina e siríacas
curetoniana e sinaítica. e na armênia.
Diz, a seguir, que os escribas e fariseus "se irritaram” (enéchein). O sentido dessa palavra é confirma-
do pelas versões copta bohaírica ("observaram maliciosamente"); copta-sahídica (“provocaram"); sirí-
acas (“ficaram constrangidos"); peschitto (“ficaram descontentes"); e armênia (“ficaram irritados").
As perguntas sobre os mais variados assuntos tinham por finalidade embaraçar o jovem Mestre, armar
ciladas, para que fosse levado a comprometer-se com alguma resposta em falso.

O resultado da ação enérgica em prol da verdade desencadeia, sempre, uma torrente de perseguições
que, por vezes, permanecem apenas no terreno das idéias, mas com frequência se materializam em
atos contra o afoito que ousou ferir susceptibilidades de criaturas importantes.
É saber sofrer tudo com calma, sem deixar que a perturbação dos atingidos penetre nosso âmago,
revolvendo a paz de Espírito.
As tentativas para pôr a perder o discípulo vêm de todos os lados. Há que resistir brava e duramente,
já que os ataques chegam dos encarnados e dos desencarnados que com eles sintonizam.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

A ADÚLTERA
João, 8:2-11
2. De manhãzinha, veio de novo ao templo e todo o povo ia a ele; e, sentando-se, os ensi-
nava.
3. Os escribas e fariseus conduzem uma mulher, surpreendida em adultério, colocando-
a em pé no meio (de todos),
4. e disseram-lhe: "Mestre, esta mulher foi surpreendida no próprio ato de adultério.
5. Na Lei, ordenou-nos Moisés que essas sejam apedrejadas; tu, pois, que dizes"?
6. Diziam isto tentando-o, para ter com que o acusar Jesus, porém, inclinando-se para a
frente, escrevia uma lista na terra, com o dedo.
7. Como persistissem perguntando, ergueu-se e disse-lhes: "O (que está) puro, dentre
vós, atire primeiro uma pedra".
8. E, inclinando-se para a frente, de novo escrevia na terra.
9. Ouvindo essa resposta, saíram um a um, começando pelos mais velhos até os últimos,
ficando só Jesus e a mulher em pé no meio.
10. Erguendo-se, pois, Jesus perguntou: "mulher, onde estão (teus acusadores)? Ninguém
te condenou"?
11. Ela respondeu: "Ninguém, Senhor". Disse Jesus: "Nem eu te condeno. Vai, e não er-
res mais".

Esta passagem tem sua autenticidade discutida pelos críticos.


Com efeito. vejamos:
I - É OMITIDA:
a) nos CÓDICES: aleph (Sinaítico) IV séc,. Londres; B (Vaticano, grego 1209) IV séc.; Roma; C
(Ephrem rescriptus) V séc., Paris; L (Cíprio) VIII séc., Paris: N (Purpúreo) VI séc., Leningrado; T
(Borgiano) V séc., Roma; W (Freeriano) IV V séc., Washington; Z (Dublinense) V-VI séc.,
Dublin; delta (Sangalense) IX séc., Saint-Gall; theta (Koridéthi) IX séc., Tíflis; lambda (Oxonien-
se) IX séc., Oxford: psi (Athusiano) VIII-IX séc., MonteAthos;
b) nos MINÚSCULOS: 33, 579, 892, 1241;
c) na Vétus Latina (ítala) mss.: a, f. q, l;
d) nas versões siríacas.
Não é citado por Clemente, Orígenes. Tertuliano, Cipriano, Nônio nem João Critóstomo.
Realmente, o estilo do trecho é mais de Lucas que de João (cfr. "escribas e fariseus", expressão muito
própria dos sinópticos, mas que só neste passo aparece em João); além disso, o episódio interrompe, na
sequência, o discurso de Jesus, relatado por João de 7:16 a 8:59. Note-se ainda, que a família 13 dos
"minúsculos" coloca essa perícope depois do vers. 36 do capítulo 21 de Lucas.
II - É TRANSCRITA:
a) nos CÓDICES: D (Beza, bilingue) VI séc., Cambridge; E (Basiliense) VIII séc., Basiléa; F (Bore-
eliano) IX séc., Utrecht; G (Seideliano I), X séc., Londres; H (Seideliano II) IX séc., Hamburgo; K

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(Cíprio) IX séc., Paris; M (Campiano) IX séc., Paris: S (Vaticano grego 354) X séc., Roma; U
(Naniano) IX séc., Venedig; V (Mosquense) IX séc., Moscou; gama (Tischendorfiano) IX séc.,
Oxford; omega (Athusiano) VIII séc., Monte Athos;
b) nos MINÚSCULOS família 13; 71, 113, 209, 272, 700. 1071 e muitos outros;
c) na Vetus Latina (ítala) mss.: b, c, e, ff2, j;
d) na Vulgata (desde Jerônimo, em todos os manuscritos e edições):
e) nas versões: armênia, bohaírica, e fragmento siríaco-palestinense.
É citado por Ambrósio, Agostinho e Jerônimo.
Não deve impressionar que não apareça nos papiros, já que nenhum dos que chegaram a nós tem os
cap. 7 nem 8 de João.
No entanto, essa perícope é conhecida desde a mais remota antiguidade, pois é citada por Papias (1.º
século), conforme atesta Eusébio (Hist , Eccl III, 39, 17).
A questão da autenticidade do trecho já era discutida na antiguidade pelo menos pelos que a defendi-
am, como Ambrósio e Jerônimo, que diz (Patrol. Lat, vol. 33 col. 553) que o episódio se encontra em
muitos manuscrito, gregos e latinos anteriores a ele (séc. II e III).
Agostinho, no "De Conjugiis Adulterinis" II, 7, 6, (Patrol Lat. vol. 40 col. 474) afirma que a omissão
do trecho em alguns manuscritos é "obra do ciúme dos maridos".
François- Marie Braun (in Pirot, o. c., vol X, pág. 380) considera essa tese de Agostinho "pouco con-
vincente" e ingenuamente pergunta: "como, simples particulares, sem autoridade oficial na igreja teri-
am autoridade bastante para causar essa omissão"? Esse exegeta esquece ou, pior ainda, faz que ignora,
que todo o clero (padres, bispos e papas) possuía esposas e família (Jerônimo afirma que conhece mais
de 300 bispos casados, e isso no séc. IV). Já Paulo estabelecera "que os bispos deviam ser homens de
uma só mulher" (1.º Tim. 3:2).
Nessa época, não havia ainda aquilo que modernamente entendemos por "casamento"; só começou a
ser considerado "sacramento" no século XI (por Bonizo), confirmado como tal por Hugo de Saint-
Victor (séc. XIII) e por Pedro Lombardo, quando distinguiu os "sacramentos” dos "sacramentais", lan-
çando uma dúvida a respeito de o casamento ser um sacramento, porque estes "conferem uma graça",
enquanto os sacramentais são apenas "remédios" (alia in remedium tantum, ut matrimonium, Ped.
Lomb. 4, 2, 1). Tomás de Aquino (Summ. Theol. IV, 26 q. 2, art. 1) afirma, porém. que "o matrimônio
confere a graça", solucionando a questão para o catolicismo, embora Duns Scot (IV. 2. q. 1, art. 1. sol.
2 ad 3) ainda fique em dúvida a esse respeito.
Ora, em todo o cristianismo, e mesmo no catolicismo o clero contraia matrimônio, não obstante as
recomendações dos Concílios de Nicéia (325) no Ocidente, e de Amyra e Trullo, respectivamente em
314 e 692, no Oriente; do Concílio de Cartago (390/401); da orientação de Leão I (440-461); de Bene-
dito VIII (1022) que decretou que os “filhos de padres seriam servos da igreja"; de um cânon do Con-
cílio de Latrão (1049); das palavras de Gregório VII (1073). Só o Concílio de Latrão, o 10.º (1139),
sob a presidência de Inocêncio II. resolveu impor o celibato eclesiástico, com o cânon 7.º, que "proíbe
serem assistidas as missas dos padres casados ou amasiados, e declara nulos os casamentos dos padres,
dos cônegos regulares, dos monges, ordenando que sejam submetidos à penitência os que contraírem
matrimônio”.
E não nos esqueçamos de que AINDA ATÉ HOJE, os padres, bispos e patriarcas das igrejas cristãs
ortodoxas podem ser casados e manter família, sem que isso lhes diminua a virtude (ao contrário!) e o
fervor religioso. A igreja oriental manteve muito mais forte a tradição primitiva do cristianismo.
Ora se tudo isso é conhecido na História Eclesiástica, verificamos que Agostinho apresentou uma ra-
zão viável e perfeitamente lógica.
Quanto aos críticos modernos: Wescott-Hort coloca a perícope no fim do Evangelho de João, entre
colchetes; Tischendorf, Soden, Vogels, Merck, Nestle dão-na em tipos menores, na margem inferior da

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página: Bover e Pirot aceitam-na no texto; Jouon e Tillmann acusam-na de suspeição; Lagrange, base-
ado no estilo (crítica interna) nega sua origem joanina.
* * *
De manhãzinha, bem cedo (órthou) Jesus regressa do Monte das Oliveiras para o pátio do templo, e
não demora o povo a cercá-Lo. Jesus senta-se e começa a ensinar conversando despretensiosamente,
respondendo a perguntas, prestando esclarecimentos, tirando dúvidas, solucionando dificuldades, con-
fortando aflições.
É quando surge um grupo de escribas e fariseus que se dirigiam ao templo para submeter a julgamento
certa mulher que lhes fora entregue, segundo o preceito da Lei (Lev. 20:10: cfr. Deut. 22:23 ss), por ter
sido surpreendida em adultério.
Realmente, em Lev. 20:10, a mulher casada que adulterava era condenada à morte, sem que aí se espe-
cificasse qual o gênero de assassinato: a noiva (Deut. 22:23) devia ser lapidada. Segundo Strack-
Billerbeck (o. c., vol. 2, pág. 519) a pena da esposa adúltera era a estrangulação. No entanto, pelo fato
de aqui acenar-se (vers. 7) a "pedra", não é mister deduzir-se que se tratava de uma noiva.
De qualquer forma, a condenação pelo Sinédrio era simbólica, já que desde o domínio romano, a pena
de morte (jus gladii) fora retirada do Sinédrio e reservada ao Procurador.
Mas tendo o grupo percebido aquele jovem operário que se arvorava a ensinar e a verberá-los com
suas palavras candentes, achou que seria ótima ocasião de embaraçá-Lo. Se condenasse a mulher,
contradiria sua doutrina de perdão e rasgaria sua máscara de bondade; se a desculpasse, infringiria a lei
mosaica, e poderia ser difamado e condenado. Não havia escapatória. Levam-na, então, a ele e colo-
cam diante dele o fato consumado, que não admitia subterfúgios; e pedem uma resposta categórica
sobre o direito.
A mulher é colocada "em pé, no meio" (stêsantes en mêsôi) e o círculo em torno, atento, aguarda a
resposta. Sentado onde estava - talvez no chão à maneira oriental - Jesus abaixa-se um pouco e, incli-
nando-se para a frente, nada responde, limitando-se a traçar com o dedo, algumas palavras na areia do
pátio.
Jerônimo, imaginoso, pretende adivinhar o que Ele escrevia: Jesus inclinans scribebat in terra, eorum
vidélicet qui accusabant et omnia peccata mortalium secundum quod scriptum est in propheta: "Relin-
quentes autem te, in terra scribentur” (Jer. 13:5), isto é: "inclinando-se, Jesus escrevia no chão todos
os pecados dos mortais e daqueles que acusavam, segundo o que está escrito no profeta: deixando-te,
escreverão na terra” (Patrol. Lat. vol. 23, col. 553).
No entanto, de nada adiantam as suposições: NÃO SABEMOS o que o Rabbi escreveu. A única indi-
cação que temos, e muito vaga, é o verbo grego empregado, katégraphen, que tem o sentido literal de
"escrever uma lista" ou “fazer um rol".
Sentindo-se desprestigiados pela indiferença de Jesus, os escribas insistem na pergunta. O Mestre le-
vanta os olhos e devolve a eles o julgamento: "Quem entre vós está inocente, seja o primeiro a atirar a
pedra contra ela". E novamente inclinando-se continua a escrever na poeira do chão.
Aproveitando-se do fato de que Jesus não estava olhando, eles foram esgueirando-se e escapando, os
mais velhos - e por isso mais prudentes em primeiro lugar. Haviam sido apanhados na armadilha que
eles mesmos tinham preparado: verificaram em primeiro lugar, que não podiam apedrejá-la ali, porque
os milicianos romanos interviriam, condenando-os por desobediência à lei civil vigente e desrespeito à
autoridade de César; em segundo lugar por temerem que Jesus interviesse, declarando também em voz
alta os erros deles: quem não nos têm?
Mais alguns minutos de silêncio, e Jesus novamente ergue os olhos do chão; lá continua, de pé, a pobre
mulher, rodeada apenas pelo povo, espectador mudo da luta entre as autoridades eclesiásticas consti-
tuídas e o operário humilde, sem qualificações oficiais.

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Dirigindo-se à acusada, pergunta-lhe onde estão seus acusadores. E, sem esperar resposta, indaga se
nenhum deles a condenou. A réplica e singela: "ninguém, Senhor". E o fecho é de ouro, digno do cora-
ção maravilhoso e nobre do Mestre: "nem eu te condeno! Vai e não erres mais"!

Aprendemos a lição da piedade pelas fraquezas dos outros (porque, das nossas, sempre temos descul-
pas que nos parecem definitivas e irrespondíveis). Indispensável, em qualquer situação, que haja
"compreensão", pois dificilmente possuímos em mãos elementos para formar um juízo completo e
perfeito, de qualquer ação praticada por outrem. No lugar deles, nas mesmas circunstâncias, e com o
psiquismo "deles", podemos garantir que agiríamos de modo diverso? Para melhor, ou para pior?
Outra lição a deduzir, com clareza absoluta, é a de que atos externos, praticados pela personagem
terrena, não trazem consequências graves para a individualidade: desde que não se causem prejuízos
sérios, nem provoquem resultados danosos, nem insuflem contra nós ódios ou revoltas, os simples atos
físicos não criam carmas negativos. Então, "não julguemos jamais, para não sermos julgados nem
jamais condenemos, para não sermos condenados". O episódio é a confirmação prática dessa doutri-
na teórica, ensinada pelo Mestre.
No terreno simbólico, a lição é mais profunda.
“Adultério" exprime, sistematicamente, o abandono da religião "oficial”. E os escribas e fariseus,
ciosos da ortodoxia da religião prática, condenam todos os que se bandeiam para outros cultos. Sur-
preendida a criatura em flagrante adultério, de submeter-se a culto diferente do "oficial", é levada a
julgamento para ser "excomungada", de modo geral sem direito a defesa condenação absoluta e irre-
vogável. Também aí vale o ensino do Mestre: coisa secundária é render-se culto a Deus desta ou da-
quela maneira, com este ou aquele nome. O próprio Talmud, no Tratado Avodá Zará, diz: "quando
vires o idólatra a orar diante de seu ídolo, não o perturbas: ele pensa que se dirige a Deus e, ainda
que esteja errado, Deus lhe aceita a prece". Por que condenar alguém, só por se ter afastado de "nos-
so modo de pensar e ter preferido um caminho diferente do "nosso", para ir ao encontro do Pai de
Amor de todas as criaturas? Se isso constitui hamartía (desvio da rota, erro, no sentido de "vaguear"
de caminhar sem rumo: errático, erraticidade, errante, "errar ao acaso pelos campos"), nem por isso
merece condenação. O final da estrada é o mesmo: Deus. Jesus recomenda, após afirmar-lhe que não
merece Sua condenação, que "não erre, mais", que "não vagueie por outras estradas "
Essa última interpretação explica, também, a razão do interesse oculto de considerar-se apócrifo esse
texto.
No campo iniciático descobrimos a individualidade a decidir a respeito das desorientações intelectu-
ais da personagem. Ávido de sensações novas e emoções ainda não experimentadas, o intelecto corre
em busca de novos conhecimentos e comete o "adultério" de não mais seguir a trilha que sempre pra-
ticara. E quando começa essa pesquisa, a criatura "erra" de déu em déu como abelha em busca de
novas espécies de flores, numa erraticidade que acaba corroendo a solidez dos fundamentos de sua fé.
Essa busca indiscriminada, sobretudo para os que não possuem firmeza no arcabouço intelectual -
por falta de estratificação de cultura, obtida em séculos de preparação lenta e bem arquitetada - pode
causar desfavoráveis rumos e provocar perturbações conceptuais.
Um simples acesso ao 5.º grau iniciático (matrimônio, veja vol. 4) no primeiro plano da iniciação não
dá garantias de capacidade mental para essas incursões arriscadas. A fuga desse "matrimônio” (uni-
ficação) com o Eu Interno, para adultérios intelectuais em outros setores, pode ser profundamente
prejudicial ao avanço evolutivo.
Daí, embora o Cristo Interno não condene, porque a aspiração ao saber (a busca da Verdade) é fina-
lidade altamente valiosa, contudo adverte ao iniciando que não dê largas a seu gosto de erraticidade
pelas doutrinas humanas (vol. 4), mas se apegue ao matrimônio real com o Eu Interno Profunda Sa-
bedoria Divina, orientadora da Humanidade por todos os evos e eons, na eternidade sem fim e sem
limite!

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Figura “A ADÚLTERA” – Desenho de Bida, gravura de Ed. Hédouin

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SABEDORIA DO EVANGELHO

LUZ DO MUNDO
João 8:12-20
12. Então Jesus falou-lhes de novo, dizendo: "Eu sou a luz do mundo: quem me segue, de
modo algum andará nas trevas, mas terá a luz da vida"
13. Disseram-lhe pois os fariseus: "Tu dás testemunho de ti mesmo: teu testemunho não é
verdadeiro".
14. Respondeu Jesus e disse-lhes: "Embora eu dê testemunho de mim mesmo, meu tes-
temunho é verdadeiro, porque sei donde vim e para onde vou; mas vós não sabeis
donde venho nem para onde vou
15. Vós escolheis segundo a carne eu não escolho ninguém.
16. E se escolho, minha escolha é verdadeira porque não sou só, mas eu e quem me envi-
ou,
17. e na vossa lei foi escrito que o testemunho de dois homens é a verdade.
18. Eu sou o testemunho de mim mesmo e o Pai que me enviou testifica a meu respeito".
19. Eles lhe perguntaram: "Onde está teu Pai"? Respondeu Jesus: "Não vedes nem a
mim nem a meu Pai. Se me vísseis, também veríeis meu Pai'
20. Proferiu essas palavras na câmara do tesouro no templo; e ninguém o prendeu por-
que ainda não chegara sua hora.

Aqui aparece o segundo EU SOU, enfaticamente proferido pelo Cristo, a modo de esclarecimento a
Seu respeito. Ei-los na ordem em que aparecem no Evangelho de João:
1. Eu sou o Pão da Vida ou o Pão Vivo (6:35);
2. Eu sou a Luz do mundo (8:12);
3. Eu sou a Porta das Ovelhas (10:7);
4. Eu sou o Bom Pastor (10:11);
5. Eu sou a Ressurreição da Vida (11:25);
6. Eu sou o Caminho da Verdade e da Vida (14:6); e
7. Eu sou a Vinha verdadeira (15:1).

Examinemos as comparações com a LUZ.


O Salmista (27:1) escreve: "YHWH é minha Luz" e Isaias (42:6 e 49:6) faz YHWH dizer que porá o
Messias "como Luz dos gentios".
No Novo Testamento, o sacerdote Simeão (Luc. 2:32) afirma que o recém-nascido Jesus “é a Luz para
guiar os gentios", e Mateus atribui a Jesus a profecia de Isaías (9:2): "Nasceu uma Luz para os que
estavam sentados na região sombria da morte". O próprio Mestre ensina que a luz deve ser colocada à
vista para iluminar a todos (Mat. 5:15-16) e mais, que Seus discípulos são “A Luz do mundo" (Mat
5:14), isto é, o mesmo título que atribui a si mesmo neste passo.

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Em seu Evangelho, João escreveu (1:4) que "a Vida é a Luz dos homens”; e ao falar de Si mesmo, o
Cristo confirma que "a Luz veio a este mundo" (João 3:19); cada vez que estou neste mundo, sou a
Luz do mundo” (João, 9:5); e mais tarde: "ainda por um pouco a luz está dentro de vós - en humin
(João, 12:35). E na primeira epístola (1:5) ensina-nos esse evangelista que “Deus é Luz".
Os judeus, desde alta antiguidade, utilizavam a luz no culto, rememoranduoa nuvem luminosa que os
guiara no deserto (Êx. 13:21). Desde Moisés, permanecia perenemente acesa a lâmpada no santuário
(Êx. 27:20 Lev. 24:2, 4), além do candelabro de sete braços (Êx: 25:37, Núm. 8:2) com minuciosa des-
crição. Eis a descrição:
"Farás um candelabro de ouro puro lavrado, com seu pedestal, e sua haste, seus cálices, maçãs e açu-
cenas, formando com ele uma só peça. Seis braços sairão de seus lados, três de um lado e três de ou-
tro. Num braço haverá três copos em forma de flor de amendoeira, com uma maça e uma açucena; na
outro braço haverá três copos em forma de flor de amendoeira, com uma maçã e uma açucena e assim
em cada um dos seis braços que saem do candelabro. No próprio candelabro haverá quatro copos em
forma de flor de amendoeira, com suas maçãs e suas açucenas: uma maçã sob os dois primeiros bra-
ços que saem do candelabro, formando uma só peça com a haste; uma maçã sob os outros dois braços
e outra maçã sob os dois últimos braços, igual para os seis braços que saem do candelabro. Essas
maçãs e braços formarão uma só peça com a haste, sendo tudo obra lavrada de ouro puro" (Êx.
25:21-36).
Salomão colocou, no Templo que construiu sobre o Monte Moriah, em Jerusalém, dez desses candela-
bros, cinco de cada lado do tabernáculo (1.º Reis, 7:49 e 2.º Crôn. 4:7).
Depois de declarar solenemente que "é a LUZ do mundo", acrescenta que jamais estará em trevas
aquele que O siga, tal como ocorria com a nuvem luminosa durante a travessia do deserto em relação
aos israelitas. Mas, além da garantia de ter seu "caminho" iluminado, é ainda assegurado que terá em si
mesmo "a luz da vida” ou "a luz-Vida” pois já fora dito que "a Vida é a Luz dos homens" (João, 1:4).
Essas afirmativas desagradam aos ouvintes que objetam não poder acreditar num testemunho proferido
a favor de si mesmo. Como em João 5:31 (ver vol. 3) dá o Mestre a garantia da veracidade de Suas
expressões, pelo fato de ter a consciência desperta em todos os planos, e portanto de conhecer-Se per-
feitamente, sabendo de onde vem e para onde vai, o que é ignorado por todos os presentes, que não O
conhecem. Observemos que todos os profetas sempre deram testemunho de si mesmos, quando se
apresentaram, sendo feita a comprovação da veracidade de suas assertivas pelos frutos que produziam
e pelo acerto de suas palavras. Eles mesmos, porém, só se baseavam na força interna que os impulsio-
nava a falar ou a agir. O consenso externo pode testificar a santidade ou não de alguém, mas o "reca-
do" que o profeta recebe para transmitir e a lição que o mestre sabe para ensinar, só podem ser garanti-
das pela própria autoridade sua pessoal e pelo conjunto de obras e palavras de atitudes e sentimentos
que manifesta. Além disso, a voz do verdadeiro Mestre e do verdadeiro Profeta ecoa dentro do coração
dos evoluídos que “sentem" a legitimidade ou não do que é dito.
Aqui aparece novamente o verbo krino, que significa "separar, triar, distinguir, escolher", podendo, por
extensão, expressar "decidir, resolver, explicar, interpretar, opinar", e mais: "julgar (no sentido de
"avaliar, estimar, apreciar") atribuir e adjudicar". (ve:-. vol. 2 e vol. 3). Neste trecho, o sentido “esco-
lher" cabe perfeitamente aos conceitos expendidos: o vulgo geralmente discrimina e escolhe de acordo
com as aparências do corpo físico, com a beleza, a elegância, as maneiras e atitudes, o modo de vestir
e de falar. No entanto, os mestres de modo geral não escolhem ninguém, mas aguardam e acolhem os
que espontaneamente os buscam.
Vem aí a pergunta das personagens, que só dão valor às exterioridades e as coisas palpáveis: "onde
está teu pai"? Embora alguns hermeneutas queiram supor que a pergunta se refere a Deus, acreditamos
mais designasse mesmo o pai terreno requerido para comparecer ao agrupamento a fim de confirmar
ou não as afirmativas de seu filho; seu pai fora invocado como testemunha pelo próprio orador, onde
estava ele para ser inquirido?
A resposta é desconcertante e desanimadora, porque constitui um enigma para as personagens, ignaras
da Grande Realidade: "Não vedes nem a mim nem ao Pai. Se me vísseis, também veríeis ao Pai". No

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âmbito do corpo físico, isso é irreal: quem vê o filho não está vendo o pai, pois são seres destacados.
Mas o Espírito é, concomitantemente, a própria centelha do Pai à qual damos o nome de Filho. Como a
Centelha é interna (Cristo Interno) e espiritual, jamais pode ser vista com os olhos carnais. Essa mesma
frase será repetida, mais tarde, a Filipe (João, 14:9). As traduções correntes trazem, ao invés de "ver",
"conhecer". Mas o original grego não é gignôscô, e sim eídô, que significa "ver". Os tradutores evita-
ram esse verbo porque não penetraram o sentido espiritual do trecho; não compreenderam que era o
Cristo Interno invisível, que falava, e julgaram que era a pessoa física de Jesus. Ora, essa pessoa física
estava diante deles, sendo vista por eles; logo, não podiam traduzir eídô por "ver", pois seria, no enten-
der deles, um contra-senso, e escolheram um sinônimo, "conhecer". Por aí vemos como os tradutores
torcem o sentido do texto, para adaptá-lo à sua mentalidade intelectualista e racional, e não obedecem
ao que diz o original, mas "traem" o sentido, tornando perigoso fiar-se na simples leitura das traduções.
Ora, o original diz claramente: "Não me VEDES", e isso desnorteou os ouvintes (que se afastaram) e
os tradutores que todos julgavam ser Jesus que estava falando ...
O término abrupto desse discurso, aqui resumido, em que o evangelista se limita a esclarecer o local da
entrevista, dá-nos a sensação de que os ouvintes, desesperançados de entender se afastaram, dispersan-
do-se pelos arredores, numa descrença total. O local apontado é o "gazofilácio", isto é, a câmara do
tesouro. Ora, aí ninguém podia penetrar. Parece evidente tratar-se das "proximidades" da câmara, mas
do lado de fora, no pórtico do ádrio das mulheres, onde ficava a abertura por onde eram lançadas as
ofertas, como novamente veremos no "óbulo da viúva" (Luc. 21:2), onde se juntava sempre pequena
aglomeração curiosa, que os ricaços adoravam, por ver comentadas suas doações materiais.
A anotação de que não foi preso "porque não chegara sua hora" é aqui repetida (cfr. João 7:30, vol. 4),
como indicação de que nada ocorre sem que soe a hora preestabelecida pela determinação da vontade
da Vida.

As lições vão assumindo cada vez maior profundidade simbólica, ampliando o campo de conheci-
mentos iniciáticos. A cada novo episódio ou lição, mais um passo é dado à frente, tornando-se, inclu-
sive, mais difícil a compreensão e, portanto, a interpretação dos textos.
A afirmativa de SER A LUZ, conforme vimos, é abundante e variada nas Escrituras judaicas e sobre-
tudo em o Novo Testamento. No entanto, a sequência da frase traz aqui nova revelação: o Cristo que
fala, usa a mesma expressão que em Mat 5:14 usara a respeito dos discípulos. Não há distinção entre
"Vós sois a Luz do Mundo" e "Eu sou a Luz do mundo”. Igualdade plena. Ora, não eram as persona-
gens encarnadas dos discípulos que constituíam a luz do mundo mas exatamente o Cristo Interno, que
era O MESMO, quer em Jesus, quer em Seus discípulos, quer em qualquer criatura. Todos os que se
unificam com o Cristo se tornam, ipso facto, LUZ para o mundo, isto é, para seus veículos.
E a continuação confirma: “quem me segue não andará nas trevas, mas terá a Luz da Vida". Trata-se,
pois, de seguir, não fisicamente, pois o físico transitório não interessa ao Espírito, mas seguir nos
passos da evolução espiritual. Não é uma imitação de atos físicos, mas uma vivência de essência mís-
tica. Os que souberem repetir o caminho iniciático do Mestre-Modelo, "não andarão nas trevas", por-
que terão em si mesmos a "Luz da Vida" ou a Luz viva. A unificação com o Cristo interno equivale ao
acender-se da Luz em si mesmo. E ninguém que tenha em si mesmo a luz poderá jamais andar em tre-
vas. As trevas só podem cercar uma lâmpada apagada, nunca uma lâmpada acesa porque a lâmpada
tem a luz em si. Ora, se a criatura acendeu em si mesma a luz crística, não conseguirá, nem que o
queira, andar nas trevas, porque ela eles objetavam e perguntavam, embora sempre o fizessem mani-
festando que a mesma iluminará o ambiente circundante. Daí ter escrito João (1.ª João, 3:6): "Todo o
que permanece (em Cristo) não erra" e (1.ª João, 5:18): "Todo o que nasceu de Deus (fez seu segundo
nascimento unindo-se a Deus) não erra".
As palavras são do Cristo, do Cristo Cósmico que é o mesmo Cristo Interno dentro de cada um de nós.
Quem O segue, com Ele unificando-se, participa de Sua luz, acende em si sua própria luz" e portanto
se torna capaz de iluminar por si mesmo, tornando-se isento de qualquer erro.

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A objeção dos ouvintes é material, proveniente do raciocínio discursivo, como não pode deixar de ser.
Essas objeções e perguntas parecem feitas por adversários (fariseus, doutores, saduceus). No entanto,
João diz apenas "os judeus", isto é, os "religiosos apegados ainda às religiões ortodoxas", literal-
mente, "os adoradores". Às vezes as objeções eram dos próprios discípulos chamados (que já eram,
como vimos atrás, 516 a freqüentar a Escola Iniciática "Assembléia do Caminho"), nem todos evoluti-
vamente adiantados para penetrarem a fundo o sentido e a realidade dos ensinos. Talvez perguntas-
sem e objetassem com intenção de aprender. Todavia, fariseus e doutores costumavam mesclar se aos
discípulos, pois Jesus falava de público, e também eles objetavam e perguntavam, embora sempre o
fizessem manifestando má vontade e superioridade cheia de empáfia. Aqui, a objeção é típica dos fari-
seus: o testemunho de um só homem não tem valor.
A resposta do Cristo é de molde a fazer-nos compreender que não era Jesus que falava, mas o Cristo:
"sei donde vim e para onde vou", coisa que as criaturas humanas são incapazes de saber em plena
consciência. E logo a seguir vem a confirmação, com a assertiva profundamente verdadeira, de que os
homens só podem estabelecer o veredicto para a escolha, baseando-se nos atributos externos da maté-
ria, isto é, da carne. Só a aparência, a superfície, os "rictus" faciais, são percebidos e analisados e
computados para uma escolha. Aviso importante para as Escolas Iniciáticas: jamais basear a escolha
dos elementos para galgar passos superiores, nas aparências exteriores!
Já com o Cristo não ocorre assim. Luz vital do Cosmo, luz vital de cada criatura, habitante do âmago
mais profundo, essência última, o Cristo impulsiona tudo de dentro, obrigando a evoluir ("o amor de
Cristo nos impulsiona", 2.ª Cor. 5:14). Tudo o que atinge o ponto crítico de maturação é impelido a
prosseguir para o próximo passo, seguindo à frente. Essa "escolha" acertada da hora precisa de "ele-
var" a criatura, só pode ser executada com segurança absoluta pelo Cristo Interno e pelo Pai, pois
conhecem melhor a criatura do que ela própria se conhece. Jesus, porém, mesmo em Sua qualidade
Incontestável de Mestre, mas Espírito humano, a ninguém escolhe, pois não veio para isso (João, 3:17
e 12:47), mas para salvar o que estava perdido (Mat. 18:11), isto é, para reorientar no rumo certo o
que se havia extraviado da rota evolutiva. E quando o homem já se acha unido ao Cristo Interno e
portanto com o Pai, já são duas pessoas a testemunhar, o que satisfaz à exigência da lei (Deut. 19:15).
A pergunta feita a "Jesus" a respeito do pai dele, só podia referir-se a José o carpinteiro. Mas como
não é Jesus que está falando, mas o Cristo, a resposta desnorteia os ouvintes, que pensavam estar
falando a um homem igual a eles, e Quem lhes estava a responder era o Filho de Deus, o Cristo Divi-
no.
Considerada sob esse ponto-de-vista: a resposta é de suma beleza e verdade: "não vedes nem a mim
nem a meu Pai". Quem dos humanos pode "ver" o Cristo? Só quem com Ele já se unificou. E quem
pode "ver" o Pai? Só quem se unificou com o Cristo. Por isso diz: "se me vísseis, veríeis o Pai".
Só a unificação permite à criatura "ver" o Cristo experimentalmente, fundindo-se na Luz, vivendo o
Cristo, mergulhando na Consciência Cósmica, inflamando-se no incêndio de Amor que abrasa sem
consumir, que purifica sem desgastar, que abrasa sem aniquilar.
A verdade, conforme vemos, é de profundidade absoluta, e só interpretando-a "em Espírito" pode ser
entendida. Ao ser revelada pela primeira vez, traz todo o sabor de lição nova e estonteante: só unifi-
cando-nos, "veremos" o Cristo, e vendo-O, veremos o Pai que é UNO com Ele, e portanto também
veremos o Espírito. Daí ter ensinado que Ele, o Cristo, é o Caminho da Verdade (Pai) e da Vida (Es-
pírito Santo).
Mais uma observação: diz-nos o evangelista que essas palavras foram proferidas na "câmara do te-
souro" no Templo, isto é, no ádito mais recôndito do coração, onde reside o Cristo, o máximo tesouro
de nossas vidas. Já escrevemos (vol. 2) e o recordamos atrás que quando o sentido é obscuro ou ab-
surdo, parecendo-nos um erro, aí se oculta algo de simbólico. Para as personagens intelectualizadas,
temos que esclarecer que na câmara do tesouro (gazolifácio, como dão as traduções correntes, usan-
do um termo incompreensível) ninguém podia penetrar, e naturalmente o evangelista quis dizer "pró-
ximo" à câmara. Mas para as individualidades intuitivas já podemos expor a realidade: o evangelista
está certo: é mesmo “na câmara do tesouro (coração) do templo (corpo humano)", que o Cristo pro-

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clama a grande verdade até então oculta. Embora também seja verdade o que se diz: nenhum "profa-
no" podia (nem pode) penetrar nessa "câmara do tesouro", se antes não tiver percorrido os passos da
"Escola do Caminho".
Por aí, verificamos que os objetantes também não são "externos" (fariseus e doutores), mas os própri-
os veículos personativos com o intelecto à frente, que não aceitam as realidades do Espírito. Tão co-
mum ouvirmos o intelecto objetar que "não entende" e que "quer ver" com os olhos físicos! Não preci-
saremos procurar muito longe de nós mesmos essa incredulidade por falta de capacidade espiritual de
intuição.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

JESUS DECLARA-SE YHWH


João, 8:21-30
21. Disse-lhes então de novo: "Eu me vou retirar, e me procurareis, e morrereis em vos-
sos erros; para onde vou, não podeis ir”
22. Diziam então os judeus: "Acaso se matará? Pois diz, para onde vou, não podeis ir”.
23. Disse-lhes Jesus: "Vós sois de baixo, eu sou de cima; vós sois deste mundo, eu não sou
deste mundo.
24. Por isso vos disse que morreríeis em vossos erros; pois se, não credes que EU SOU,
morrereis em vossos erros"
25. Perguntaram-lhe, então: "Quem és tu"? Respondeu-lhes Jesus: "Acima de tudo,
aquilo mesmo que vos estou dizendo.
26. Muitas coisas tenho que falar e decidir sobre vós; mas quem me enviou é verdadeiro,
e o que dele ouvi, isso falo ao mundo".
27. Eles não perceberam que lhes falava do Pai.
28. Disse, pois, Jesus: "Quando desenvolverdes o Filho do Homem, então conhecereis
porque EU SOU e nada faço de mim mesmo, mas como me ensinou o Pai, assim falo.
29. Quem me enviou, está comigo: não me deixou só, porque sempre faço as coisas agra-
dáveis a ele".
30. Falando estas coisas, muitos creram nele.

Alguns hermeneutas julgam ser esta palestra uma continuação da anterior, baseados no dativo autois, a
que atribuem o sentido "a eles mesmos", isto é" aos mesmos ouvintes de antes. Ora, da mesma forma
que o autois do vers. 12 não se refere aos mesmos ouvintes que o circundavam no episódio da "adúlte-
ra" (a estes dirigiu-se no pátio do Templo, e o vers. 12 se refere a outros ouvintes ao lado da "câmara
do tesouro"), assim o autois deste vers. 21 pode também significar apenas genericamente "a eles mes-
mos" os judeus. Tanto no vers. 12 como no 21, o advérbio empregado é o mesmo: pálin. ou seja, "de
novo", no sentido de "outra vez", ou "em outra ocasião".
Embora o assunto apresente a mesma tônica de elevação que o trecho anterior, outros argumentos to-
davia são trazidos à liça. A primeira frase já fora proferida em outra ocasião, quase com as mesmas
palavras (cfr. João, 7:34; vol. 4). Mas aqui é acrescentado: "morrereis em vosso erro”. Lá os ouvintes
supõem que pense transferir-se para a diáspora; aqui, que talvez se mate. Reações diferentes de auditó-
rios diferentes. Confessam que realmente não poderão segui-Lo, se se matar, porque o suicídio era (e
é) veementemente condenado entre os israelitas.
O prosseguimento também varia, com uma explicação de motivo de Ele poder ir a lugares aonde não
possa ser seguido por eles: "vós sois de baixo, (kátô), eu sou de cima (ánô)”. E para que não pairem
dúvidas a respeito do sentido dessas palavras é fornecido o esclarecimento final: “vós sois deste mun-
do” (toútou tou kósmou), pertenceis a este planeta em que fazeis vossa evolução, "eu não sou deste
mundo", pois venho de outro plano. O evangelista João (3:31; vol. 2) já havia consignado a distinção
entre os habitantes do planeta Terra e os de outros planos: “o que vem de cima, é sobre todos; o que é
da Terra, é da Terra e fala da Terra; o que vem do céu é sobre todos".
Depois o orador pede que acreditem que Ele é o mesmo YHWH, pois dá de Si a mesma definição que
aparece em Êxodo 3:14, isto é: “Disse o elohim a Moisés: EU SOU QUEM SOU: dize aos filhos de

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Israel: EU SOU enviou-me a vos” (vaiomer elohim el-mosheh ehieh asher ehieh; vaiomer ki tomar
libeni israel ehieh selahani eleokem).
Este ponto é de importância capital para estabelecer a identidade do Espírito de Jesus.

ELOHIM YHWH
Já estudamos em “La Reencarnación en el Antiguo Testamento” (Revista SPIRITVS, n.º 1, 1964, págs.
19 a 25) que ELOHIM, plural de EL ou ELOHÁ, tem o sentido exato de “espírito desencarnado”.
Com efeito, a médium de Êndor (1.º Sam. 28:13) ao ver o espírito desencarnado de Samuel aparecer-
lhe, diz a Saul: "vejo um ELOHIM subir da terra.
O espírito desencarnado que se “manifestava" como “guia” de pessoas, cidades ou nações (“Santo"
protetor), era chamado EL ELOHÁ ou ELOHIM entre os hebreus; "Deus" entre os romanos”; "Theós"
entre os gregos. Mas nenhum desses termos jamais se referiam ao DEUS o ABSOLUTO. Então, ape-
sar da pecha de politeístas, os povos antigos (pelo menos a elite intelectual e espiritual) cria num só
DEUS, embora atribuísse aos espíritos desencarnados de categoria mais elevada os epítetos de ELO-
HIM (hebreus), DEUS (romanos), THEOS (gregos), exatamente como nós, hoje, da idade moderna
acreditamos num só Deus supremo, imanente em tudo e transcendente a tudo, mas denominamos
"SANTOS" (católicos), DEVAS (hindus), “GUIAS" (espiritistas), aos espíritos desencarnados de ele-
vada categoria moral e espiritual. Compreendamos, pois, que ELOHIM, DEUS, THEÓS deverão en-
tender-se como “santos", "Guias", "devas".
Ora, bem numerosas são os passos do Antigo Testamento, em que lemos a frase: "porque eu, YHWH,
sou vosso ELOHIM". Se lermos a Bíblia sem preconceitos de "escolas”, veremos que e irrespondível
nossa argumentação: YHWH é um ELOHIM, isto é, um “espírito desencarnado”, GUIA (Protetor) do
povo hebreu (e por isso encarnou entre eles), mas nunca o Deus Absoluto. O próprio Moisés (Éx. 5:3)
designa YHWH como "homem combativo".
Mas muitos e muitos passos o confirmam: YHWH fala com seus amigos e com seus adversários, com
Caim (Gén. 4:10), com Abrão (Gén . 13:14), com Jacob (Gén. 31:3), com Moisés (Êx. 8:1, 5, 16, 20;
9:8, 13, 22, etc. etc.), com Josué (Jos. 11:6; 20:1, etc.) e com todos os profetas; responde a uma con-
sulta de Rebeca (Gên. 25:22) que vai a ele saber por que os gêmeos lutam em seu ventre - exatamente
como qualquer espírita vai a um “centro” consultar o guia -; e aparece visualmente (Gén. 26:2, etc.) e
desce para ver (Gên. 11:5) ou desce ao Sinal para conversar com Moisés (Éx. 19:20); ou se arrepende
(Gen. 6:6; Êx. 32.14); ou se encontra com Balaão (Núm. 23:16); por vezes se ira (Êx. 4:14; Deut. 9:8,
20) e até se vinga (1.º Sam. 4:8); no deserto caminha à frente da coluna dos hebreus (Éx. 13:21) e,
quando não gosta de alguém, “põe ciladas” (2.º Crôn. 20:22), etc. Não citamos nem a centésima parte
dos atos humanos de YHWH, praticados na qualidade de ELOHIM, isto é de espírito desencarnado;
atos inadmissíveis para um Deus que não seja antropomórfico, isto é, feito “à imagem e semelhança do
homem".
Além disso, não é só YHWH que é ELOHIM: a mesma denominação de “guia”, com essa mesma pa-
lavra, é empregada em muitos pontos: Camos elohá dos Amorreus (Juízes, 11:24); Dagon, elohá dos
filisteus (Juizes, 16:23) e elohá também de Azot (l.º Sam. 5:7); Astarté, elohá dos sidônios, Camos
elohá de Moab, Milcom elohá dos filhos de Amon (1.º Reis, 11:33); Baal Zebub elohá de Acaron (2.º
Reis, 18:34), etc. etc. Todos são combatidos e condenados, mas reconhecidos como elohim, título que
não lhes é jamais recusado. Essa palavra elohim a Vulgata traduz sempre por “Deus”, mas exatamente
no sentido que lhe davam os romanos; e os LXX traduzem por “theós”, precisamente no sentido que
lhe davam os gregos, isto é, “espírito desencarnado", ou “santo", ou "protetor”.
No Génesis (3:22), após narrar a passagem dos animais ao estado hominal, pelo fato de "haver comido
o fruto da árvore da vida", isto é, de haver conquistado o intelecto racional (localizado acima da espi-
nha dorsal em posição vertical de árvore, e não mais na posição horizontal dos animais), dizem os elo-
him que "o homem se tornou igual a nós", no plural. Ora, inadmissível o anacronismo do plural, "ma-

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jestático", consideremos que o homem se tornara “espírito", igual aos espíritos desencarnados, mas
jamais igual a DEUS o Absoluto!
Então, YHWH é um ELOHIM, o ELOHIM dos hebreus ou israelitas e, no dizer de Isaías (60:2) "nas-
cerá em ti (Israel) e em ti se verá sua glória".
Ora, neste trecho Jesus se declara YHWH, quando taxativamente diz: “se não credes que EU SOU,
morrereis em vossos erros". Não foi assim que YHWH se definiu a Moisés: “EU SOU QUEM SOU:
dize aos filhos de Israel: EU SOU enviou-me a vós" (Êx. 3:14)? Há alguma dúvida, ainda, no espírito
do leitor?
No espírito dos ouvintes daquela palestra não pairou dúvida. Mas tão ousada lhes pareceu a assertiva,
que eles voltaram a indagar, para certificar-se de que tinham ouvido bem: "Quem és tu? E Jesus, sim-
ples e claramente lhes confirma: “Acima de tudo, o que vos estou dizendo": é isso mesmo que vos
digo: EU SOU.
Essa resposta tem sido discutidíssima há milênios. O original tem: tên archên hó ti kaì lálô humin. Mas
os tradutores não chegaram a uma conclusão.
Analisemos cada. termo, e verificaremos que Jesus realmente reafirma sua declaração anterior, de que
Ele é EU SOU.
Hê archê significa "o princípio". Acha-se em acusativo. Mas, não sendo objeto direto, só pode ser ad-
junto adverbial. Pode significa: 1) “no princípio”; 2) “antes de tudo” (mesmo em intensidade, o que
nos permite dizer “acima de tudo”, só para evitar equívocos, pois se disséramos "antes de tudo”, pode-
ria parecer que se tratava de tempo); 3) "primeiramente”. Jamais, porém, poderá significar "desde o
princípio", que seria ap’archês (construção usada neste mesmo capítulo, logo adiante, no vers. 44) ou
ex’archês. Aliás, na tradução para o grego moderno (rumaico) encontramos: hó, ti sãs légô ap’archês,
ou seja, "aquilo que vos digo desde o princípio”. A Vulgata dá uma tradução que não concorda em
absoluto com o original: principium, qui et loquor vobis, isto é, “(sou) o princípio, que vos falo". Ou-
tras traduções interpretam a frase como interrogativa: "perguntais aquilo que vos tenho dito desde o
princípio"? (Versão Brasileira) ou "Por que afinal estou a falar-vos" (Rohden); "o princípio que até
falo convosco” (Frei J. J. Pedreira de Castro); (Eu sou Deus), o princípio (de todas as coisas) eu que
vos falo" (Pe. Matos Soares); “Que é que desde o princípio vos tenho dito”? (Almeida revisada); a Es-
cola Bíblica de Jerusalém traduz: "D'abord ce que je vous dis”; e a melhor tradução quanto ao sentido,
é a dos monges de Maredsous: "Exactement ce que je vous declare". Essas as principais variantes de
uma frase obscura. Mas, prossigamos a análise.
Hó ti – “aquilo que", no gênero neutro, logo, não concordando com tên archên, feminino. Kaì, literal-
mente conjunção aproximativa "e", quando entre duas palavras ou frases equivalentes; mas quando
isolada, como aqui, é advérbio e tem , além de outros, o sentido de “mesmo” (cfr. Bailly, “Diction.
Grec-Français”, in verbo, B, I, 4 e B, II, 1). O verbo lálô, primeira pessoa do presente do indicativo,
“falo ou digo", com sentido continuativo: "acabo de dizer" ou “estou dizendo”. O dativo humin, “a
vós” ou “vos”.
Então, consideramos a melhor tradução: "Quem és tu"? - "Acima de tudo, aquilo mesmo que vos estou
dizendo", ou seja: EU SOU, ou YHWH. Daí dar perfeitamente o sentido a tradução de Maredsous:
"Exatamente o que vos declaro". No grego dos LXX, a frase de Êx. 3:14 é traduzida: egô eimi ho ôn,
ou seja, "eu sou o ente", ou "o que é". E acrescenta: "dize aos filhos de Israel, o ENTE enviou-me a
vós".
Passa depois a falar com um acento de ternura, afirmando que muita coisa tem ainda a dizer e a decidir
a respeito deles. Mas uma só coisa interessa no momento; e é que enviado pelo Pai, tem a certeza ab-
soluta de que no Pai está a Verdade e de que só essa Verdade Ele fala ao mundo, a este mundo negati-
vista do Anti-Sistema e o evangelista interrompe a palavra de Jesus, para anotar que eles "não percebe-
ram".
Volta, então, o Mestre a confirmar o que disse de Si mesmo: eles terão a gnose do porque Ele é EU
SOU, quando desenvolverem, fazendo-o crescer, (hypsôsête) o Filho do Homem. A frase é clara: tóte

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gnôsesthe hóti egô eimi; interpretamos o hóti como causal, não como integrante. Compreendido esse
ponto em profundidade, por meio da evolução interna – não de informações externas de terceiros - se
saberá que Jamais pode o EU SOU falar diferente do que o Pai ensina; e também porque nunca o deixa
só: o Cristo faz apenas o que agrada ao Pai, pois é UM com Ele.

Também est’outra lição, quase incompreensível para a personagem terrena racional, traz profundos
ensinamentos para o Espírito, que, embora mergulhado na carne, “tem fome e sede de ajustamento”
com Divindade.
Desde o início, esta palestra só pode ser entendida num plano mais alto. Rigorosamente, a expressão
portuguesa atual deveria ser: “vou retirar-me, e me procurareis e morrereis em vossa desorientação,
pois para onde vou não podereis ir".
Realmente, a palavra hamartía exprime a "perda de rumo do navio", o errar ou pervagar sem orienta-
ção numa floresta (veja vol. 2 e acima).
O Cristo de Deus, que naquele momento se manifestava externamente, diante de todos, pois encontra-
ra um veículo excelente para isso, na pessoa de Jesus de Nazaré, avisa que vai retirar-se da cena,
para permanecer apenas imanente em cada coração. Ninguém queria aproveitar a oportunidade de
crer Nele, de amá-Lo, de unir-se a Ele? Ao retirar-se, só seria encontrado oculto dentro do coração
das criaturas e em vão seria procurado pela grande maioria ainda imatura para conseguir encontrá-
Lo. Daí a conclusão: "Morrereis (ou desencarnareis) em muitas vidas, na vossa desorientação, por-
que, não podendo penetrar dentro do coração no mergulho interno, continuareis buscando desespera-
damente as ilusões da matéria, das sensações das emoções, do intelecto: riquezas, conforto, prazeres e
cultura livresca e religiosidade externa.
A incompreensão das massas é total e os ouvintes pensam em suicídio, coisa que o judaísmo não ad-
mitia, nem admite. Mas essa objeção provoca maiores ensinos e esclarecimentos mais úteis: é a pala-
vra categórica e definitiva de que a personagem é "de baixo", plasmada com material dos planos infe-
riores do planeta: o astral, o etérico e o material, embora vivificados e sustentados pela Centelha
Crística do Espírito que, esse, vem "de cima", para constituir a individualidade. Os materiais com que
se formam os veículos pertencem ao mundo onde vivem as criaturas que deles se servem para plasmá-
los. Então as personagens são, realmente, "deste mundo", embora as individualidades e a Centelha
Crística não sejam deste mundo, mas de planos espirituais superiores.
E para reafirmar que quem falava era, de fato, o Cristo, dá a razão: "por isso vos disse que desencar-
nareis em vossa desorientação"; mas qual a causa? “porque se não crerdes que EU SOU, continua-
reis desorientados".
Aqui também a revelação é profunda. O Cristo não diz que "existe", isto é, que SISTIT EX, ou seja,
que está estabelecido "de fora"; mas QUE É. O Cristo é a própria ESSÊNCIA (do verbo ESSE, "ser":
ens, entis, particípio presente tardio, “o que é"). Portanto, aqueles que não perceberem, que não com-
preenderem, e não tiverem a fé convicta, a crença consciente dessa essência profunda dentro deles,
desse Cristo Interno QUE É, esses morrerão continuamente em sua desorientação personalística:
materiais, sensórias, emotivas e intelectuais, porque ainda não descobriram, apesar de procurarem,
loucamente, que o único QUE É é o Cristo, já que tudo o mais apenas existe, mas NÃO É. Tudo o mais
é ilusório, só o Cristo é ETERNO; tudo o mais é limitado, só o Cristo é INFINITO; tudo o mais é pe-
recível, só o Cristo é A VIDA; tudo o mais são trevas, só o Cristo é LUZ; tudo o mais são mentiras, só
o Cristo é a VERDADE.
Os ouvintes, alarmados com a afirmativa "EU SOU", característica do “seu Deus", apresentam uma
pergunta direta: Quem és tu? Mas uma resposta limitaria filosoficamente o Cristo, pois exigiria uma
definição, e toda definição é uma limitação. "Quem és tu"? Como poderia o infinito caber dentro do
limitado espaço de uma definição? A própria palavra latina FINIS significa "limite" ou "fronteira";
portanto “de-fini-ção” equivale a "de-limit-ação". E como poderia o eterno ser trazido preso a um
momento transitório? Daí não ter podido o Cristo dar de Si uma definição, além do que havia dito

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antes a título de uma comparação: EU SOU. Nada mais. E sua resposta confirma sua anterior asser-
ção: "Sou exatamente o que vos estou dizendo".
Nós, seres humanos, personagens encarnadas, existimos exteriorizados na matéria. Mas essas perso-
nagens são apenas manifestações visíveis do Cristo Invisível ("não me vedes"), que constitui nossa
essência íntima profunda.
Mas continua, esclarecedor e bondoso: "muito tenho que dizer-vos, muita coisa a decidir a vosso res-
peito", mas como fazé-lo agora, se sois ainda tão involuído, que só percebeis as personagens transitó-
rias, julgando-as definitivas e reais, e só utilizais o intelecto discursivo, incapazes, ainda, de receber a
luz de uma intuição mais ampla? “Se crerdes em mim e me seguirdes, tereis a luz em vós. E procura
trazer serenidade àqueles espíritos endurecidos, com o testemunho: "Quem me enviou é verdadeiro, e
só o que Dele ouvi falo ao mundo".
Contudo, eles não compreenderam que lhes falava do Pai, UNO com Ele, do logos divino; não enten-
deram que a Centelha se referia à Fonte que Lhe dera Vida; não penetraram o mistério da descida da
LUZ ao mundo das trevas, do mergulho da VIDA nas sombras da morte, da auto-doação do Espírito
ao plano da matéria.
E numa última tentativa de dar esperança, olha para o futuro em relação à Humanidade, futuro nosso
que é presente para Ele que vive na eternidade, e promete: "quando desenvolverdes em vós mesmos o
Filho do Homem, então conhecereis porque EU SOU e que nada faço de mim mesmo, mas falo como
me ensinou o Pai". Terão entendido? Muitos não compreenderam e, só sabendo ver com a persona-
gem manifestada na matéria, julgaram que falava na crucificação do corpo físico de Jesus sobre o
Calvário ... Daí terem traduzido: "quando tiverdes levantado o Filho do homem sobre a Cruz" ... Na
verdade, o Cristo exprime outra coisa: quando conseguirdes erguer vosso pequeno eu ao estado de
Filho do Homem, ou seja, quando tiverdes evoluído até "a unificada fidelidade, à gnose do filho de
Deus" e crescido até o grau de "homem perfeito ou Filho do Homem, à dimensão da plena evolução
do Cristo" (Ef. 4:13), então sabereis que o Cristo só faz o que faz o Pai, só fala o que Logos ensina,
pois "Quem me enviou está comigo, nunca me deixa só", já que somos UM, e minha vontade jamais
prevalece, pois só "faço a vontade Dele, o que a Ele agrada".
Ensinamento sublime que desce ao cerne da Divindade em nós, revelando as operações da Trindade
em Si e na Sua manifestação através das criaturas. Revelação. Revelação definitiva para quem tem
olhos de ver, ouvidos de ouvir, mas sobretudo coração de entender.
"E muitos acreditaram Nele", arremata João. De todos aqueles discípulos chamados, muitos se con-
venceram da Verdade, e talvez tenham vivido espiritualmente o "encontro" maravilhoso com Aquele
Cristo que ali se manifestava abertamente através de Jesus. Muitos. Mas não todos. Nem todos haviam
alcançado o degrau evolutivo indispensável à compreensão, nem tinham atingido a sintonia necessá-
ria para que, dentro deles, ressoasse a mesma sintonia daquelas palavras de Amor.
O caminho da iniciação é longo é árduo: sete passos em cada plano, e sete planos (cfr. vol. 4) repre-
sentam quarenta e nove etapas a vencer, cada uma das quais trazendo suas dificuldades inerentes.
Quantas vidas terrenas para galgar esses degraus altos e escorregadios! E quantas vidas ainda perdi-
das na busca das ilusões de tudo o que EXISTE, totalmente desorientados, longe de QUEM É! Mas,
apesar da longa e lenta subida, todos atingirão o ápice, entrando conscientemente no "Reino dos
Céus", com a Paz Crística no coração e a felicidade plena do Espírito, filho pródigo que regressa à
Casa Paterna, após perder-se durante milênios, através das ilusões e dores do mergulho na matéria.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

A GNOSE DA VERDADE
João, 8:31-59
31. Disse, então, Jesus aos judeus que nele tinham crido: "Se permanecerdes no meu en-
sino, verdadeiramente sois meus discípulos,
32. e tereis a gnose da verdade e a verdade vos libertará".
33. Responderam-lhe eles: "Somos descendentes de Abraão e nunca fomos escravos de
ninguém, como dizes vos tornareis livres"?
34. Replicou-lhes Jesus: "Em verdade, em verdade vos digo: todo o que faz o erro é es-
cravo do erro,
35. e o escravo não permanece na casa para a imanência, mas o filho permanece para a
imanência.
36. Se, pois, o filho vos libertar sereis realmente livres
37. Sei que sois descendentes de Abraão; mas procurais matar-me, porque meu ensino
não penetra em vós.
38. Falo o que vi junto ao meu Pai, mas vós fazeis o que escutastes de vosso pai".
39. Responderam-lhe eles e disseram: "Nosso pai é Abraão". Disse-lhes Jesus: 'Se sois
filhos de Abraão, fazei as obras de Abraão.
40. Mas agora procurais matar-me a um homem que vos disse a verdade que ouviu de
Deus: isso Abraão não fez.
41. Fazeis as obras de vosso pai". Responderam: “Não nascemos de prostituição: temos
um Pai, que é Deus”.
42. Replicou-lhes Jesus: "Se Deus fosse vosso Pai, vós me amaríeis, porque vim de Deus e
estou aqui; pois não vim de mim mesmo, mas ele me enviou.
43. Por que não conheceis a minha linguagem? Porque não podeis ouvir meu ensino.
44. Vós sois filhos do Adversário, e quereis fazer a vontade de vosso pai. Ele era homicida
desde o princípio e não permaneceu na verdade, porque a verdade não está nele.
Quando fala o mentira fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso como o pai dele
45. Mas porque digo a verdade, não me credes.
46. Quem de vós me argui de erro? Se digo a verdade, porque não me credes?
47. Quem é de Deus ouve as palavras de Deus; vós não me ouvis por isso, porque não sois
de Deus".
48. Responderam os judeus e disseram-lhe. "Não falamos certo que és samaritano e tens
espírito"?
49. Retrucou Jesus: "Eu não tenho espírito, mas honro meu Pai e vós me desprezais.
50. Não busco a minha reputação: há quem a busque e decida.
51. Em verdade, em verdade vos digo: se alguém praticar meu ensino, de modo algum
verá a morte para a imanência".

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52. Disseram-lhe os judeus: 'Agora conhecemos que tens espírito. Abraão morreu e os
profetas, e tu dizes: se alguém praticar meu ensino de modo algum provará a morte
para a imanência;
53. acaso és maior que nosso Pai Abraão, que morreu? E os profetas morreram; quem
pretendes ser"?
54. Respondeu Jesus: "Se eu tiver uma opinião sobre mim, minha opinião nada é; quem
me julga é meu Pai, o que vós dizeis que é nosso Deus.
55. E não o conhecestes, mas eu o sei, e se disser que não o sei, serei semelhante a vós,
mentiroso; mas o sei e pratico seu ensinamento.
56. Abraão, vosso Pai, alegrou-se esperando ver meu dia; viu-o e regozijou-se”.
57. Disseram-lhe" então. "Ainda não tens cinquenta anos e viste Abraão"?
58. Respondeu-lhes Jesus: "Em verdade em verdade vos digo: antes de Abraão ter nasci-
do, EU SOU".
59. Pegaram, então, em pedras para atirar sobre ele, mas Jesus escondeu-se e saiu do
templo.

Esta terceira palestra de Jesus - já agora no pátio do templo (único lugar que, por não estar terminada
sua construção tinha pedras no chão para serem apanhadas) - dirige-se aos que nele acreditaram, con-
vidando-os amorosamente a confiar Nele e a segui-Lo. Mas é rapidamente tumultuada pelos cépticos
que só se fiam no próprio saber e alargam cada vez mais o abismo entre eles e o Mestre, que amoro-
samente lhes oferece a maior oportunidade de suas vidas. Neste trecho também fomos obrigados a
afastar-nos das traduções comuns. Vejamos os versículos em que isso ocorre, procurando justificar
nossa opinião.
Vs. 31 - Traduzimos logos por "ensino", e não "palavra", expressão fraca para corresponde, à força da
frase e do resultado que promete.
Vs. 32 - Em lugar de "conhecereis", que dá idéia de simples informação intelectual externa que real-
mente e insuficiente para produzir o resultado prometido preferimos a expressão técnica "tereis a gno-
se”, que exprime o conhecimento profundo e experimental-prático, vivido pela criatura (cfr. vol. 4). Só
com a experiência viva é possível a libertação, jamais obtida com as simples leituras informativas, por
mais claras e profundas que sejam.
Vs. 34 - A maioria dos códices adota a frase: "quem faz o erro, é escravo do erro”. Esse final, todavia,
não aparece em D, b, na versão siríaca sinaítica nem em Clemente de Alexandria, que tem apenas:
"Quem faz o erro é escravo". Parece que o acréscimo foi trazido por comparação de Rom. 6:17-20. No
encanto, só se desorienta quem ainda é escravo do Anti-Sistema, ao passo que os filhos, unificados
com o Cristo não mais se desorientam: são livres.
Vs. 35 - Preferimos traduzir tòn aiôna por "imanência" (cfr. vol 2), pois aqui não se trata de "tempo”
nem de "duração”, e sim de essência, de modo-de-ser. Deixamos de lado, então, tanto o "eterno",
quanto o "para sempre” (que não são o sentido de aiôn), não entendendo mesmo nem o "ciclo" ou
"eon". A distinção é feita entre a vida imanente na casa do coração, e a vida material voltada para fora:
o escravo sai da casa do coração e fica na rua, vagueando ou errando de léu em léu. Disso foi imagem
simbólica o fato narrado em Gênesis, nos cap. 16 e 21, quando também distingue Ismael, filho da es-
crava egípcia Hagar de Isaac, filho da livre Sarah. Embora fossem ambos da semente de Abraão, o
filho livre, Isaac, permaneceu com o pai em casa, enquanto Ismael, filho da escrava (e portanto escra-
vo) foi expulso para o deserto.
Vs. 37 - Em vez de traduzirmos hóti ho logos ho emós ou chôrei en humin, como em geral, por “por-
que minha palavra não cabe em vós" - expressão que, analisada, não tem sentido - preferimos dar a
logos o significado de “ensino” e interpretar chôrei como "penetrar". Há, então, um sentido lógico e

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racional na frase: o ensino crístico não consegue atravessar a carapaça do conhecimento egoístico do
intelecto para penetrar no coração dos ouvinte.
Vs. 38 - Há aí uma distinção sutil no original: a mesma preposição para é usada com o dativo tôi patrí,
quando Jesus se refere a Seu Pai (vi junto a meu Pai), e com o genitivo toú patrós, quando fala do pai
dos judeus (ouvistes de vosso pai) exprimindo proveniência. Os adjetivos “meu (Pai)”, omitido em B,
C L, e W, aparece em aleph, D, gama, delta, theta, a, b, c, e, f, ff2, na Vulgata e na versão siríaca cu-
retoniana; assim "vosso (pai)”, omitido em E eL, aparece em aleph, C, D, gama, delta, e vulgata.
Vs. 40 - Jesus se diz homem (e não Deus): “Quereis matar-me, a um homem que vos disse a verdade"
(nyn dè zêteite me apokréinai ánthrôpon hòs tén alêtheian humin lelálêka).
Vs. 41 - Os ouvintes tomam a acusação como de idolatria, quando arguídos de terem outro pai (outro
elohim), coisa que merecia o epíteto de filhos da prostituição" (cfr. Hoséa. 1:2 e 2:4).
Vs. 43 - Não tendo a capacidade iniciática de “ouvir a palavra” (akouein tòn logon), isto é, de perceber
o ensino, nem sequer podem compreender a linguagem (ginôskein tên lalían) de Jesus. Era. com efeito,
uma linguagem esotérica e alegórica simbólica e mística, só entendida dos preparados para recebê-la.
Vs. 44 - Ainda aqui diábolos é “o adversário” (cfr. vol. 1 e vol. 4). Este é um dos versículos aduzidos
como defesa do ensino dualista de Jesus. No entanto, o dualismo aí é apenas aparente, constituindo
simplesmente a distorsão causada pelo nosso mergulho na matéria, que interpreta as exterioridades da
superfície como sendo a essência. Pelo que vimos estudando até aqui, verificamos que o ensino real de
Jesus é MONISTA. O que aparece neste versículo é a teoria "dos opostos”, pela qual todo polo positi-
vo tem também seu polo negativo; mas a barra do ímã é uma só, UNA, embora de cada um de seus
lados haja um polo: o positivo, o Sistema, Deus; e o negativo, o Anti-Sistema, que é o adversário (Dia-
bo) ou antagonista (Satanás); este porém, não é uma entidade à parte, com substância própria individu-
al, mas somente a projeção do próprio Espírito na matéria. Então, a matéria é o próprio Espírito que se
congelou, ao baixar as vibrações e adquirir um peso específico elevado, ficando prisioneiro dela, que
lhe é o verdadeiro adversário. Opostos de qualidade, mas uma só substância; opostos de posições mas
uma só essência; opostos de realidade; opostos de aparência, mas um só ser; opostos de pontos-de-
vista, mas uma só verdade. A matéria e um prisma que bifurca num dualismo superficial e ilusório, o
monismo essencial e verdadeiro do Espirito.
Afirma Jesus que o adversário (isto é, a matéria) é homicida desde o princípio. Realmente, sendo eter-
no, o Espírito não sabe o que seja morte nem desfazimento, características próprias da matéria. Então,
desde o princípio (ap'archés) a matéria é homicida, porque faz o homem morrer fisicamente, fá-lo ex-
perimentar a desagradável sensação de perda e dissolução. E além de homicida, é mentiroso, porque na
matéria não está a verdade, já que a matéria e ilusão (máyá) transitória, modificando-se constante-
mente, num equilíbrio instável de todas as suas células, que vivem em contínuas trocas metabólicas.
Vs. 48 - Traduzimos daimómon por "espírito" desencarnado. Era comum atribuir-se à influência de um
espírito (geralmente obsessor, sentido constante de daimónion no Novo Testamento, cfr. vol. l) quais-
quer incongruências no falar e conceitos que soassem absurdos. A acusação volta no vers. 52, como já
fora feita anteriormente (João, 7:20).
Vs. 50 - Traduzimos dóxa como "reputação" (cfr. vol. 1), único sentido que encaixa perfeitamente no
contexto. As palavras de Jesus valeram-Lhe a má reputação de obsidiado e samaritano (a esta Jesus
não respondeu), e Ele limita-se a dizer que não Lhe interessa Sua reputação vinda de homens, pois só
vale a opinião divina do Pai. O que realmente Lhe interessa é dizer a verdade, pensem os ouvintes o
que quiserem a Seu respeito. Como vemos, traduzir aqui dóxa por "glória", não caberia absolutamente:
Jesus nunca pareceu importar-se com essas vaidades humanas, próprias dos seres involuídos, que afa-
nosamente buscam famas e glórias.
Vs. 51 - Aqui também nos afastamos das traduções vulgares. Achamos sem sentido a expressão "guar-
dar minha palavra". Muito mais razoável "praticar meu ensino", perfeitamente justificado pelo original
grego: tòn emòn lógon têrêsêi. A segunda parte: thánaton ou mê theôrêsêi eis tòn aiôna, "de modo
algum verá a morte para a imanência". O sentido é real e lógico. O que não pode admitir-se é que o

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Mestre, que vem dando ensinamentos espirituais tão profundos, venha aqui prometer que, quem cum-
prir seus ensinos, não morrerá fisicamente! Que importa ao Espírito a morte do corpo? Lembramo-nos
de Paulo a dizer (Filp. 1:21): “para mim, viver é Cristo, e morrer, uma vantagem"! Jesus jamais acena-
ria como prêmio a alguém, o ficar preso à matéria grosseira e inimiga durante toda a eternidade ... Não
sabemos como possa alguém perceber tão mal seus ensinos.
Vss. 52-53 - Mas os ouvintes entenderam exatamente isso: para eles o verdadeiro “eu" era o corpo físi-
co.
Vs. 54 - Ainda aqui dóxa tem o mesmo sentido do vs. 50: reputação, opinião. Esse mesmo significado
tem o verbo daí derivado, doxázô, que é opinar, estimar, avaliar, julgar". Não cabe aqui o sentido "gló-
ria". O sentido é racional e claro: à pergunta deles "quem pensas ser" (literalmente, "quem te fazes",
tína seautòn poieís), Jesus responde que não tem opinião a Seu respeito, que não se julga (doxázô)
porque uma opinião Dele sobre Si mesmo de nada vale: o Pai é quem opina ou julga a Seu respeito.
Esse Pai, é Aquele exatamente que eles dizem ser nosso Deus.
Vs. 55 - Deixamos a oída o sentido real de “saber", isto é, "ter informação plena e correta de quem é o
Pai". Mas, além desse saber, Jesus sublinha com ênfase: "e pratico seus ensinamentos" (kaì tón lógon
autoú têrô). A tradução usual “guardo sua palavra" é fraca e sem sentido, nada diz de concreto. Essa
que Ele tem, é uma certeza iniludível: se dissesse o contrário seria mentiroso como eles.
Vs. 56 - O original apresenta uma construção estranha: égalliásato hína ídêi tên hêméran tên emên,
isto é, “alegrou-se para que visse meu dia”. O sentido à essa cláusula final, iniciada por hína só pode
ser interpretada por tratar-se de uma ação posterior, tanto que é repetida, logo a seguir, no passado:
“viu e regozijou-se”. Por isso traduzimo-la pelo sentido lógico: “alegrou-se na esperança de ver”. O
verbo agalliáô, só usado no presente e no aoristo, é um hápax do grego escriturístico (LXX e Novo
Testamento). Essa “alegre esperança de ver” baseava-se, certo, na promessa (Gên. 12:3 e 22:18) de
uma descendência de reis e nações.
Vs. 57 – “Ainda não tens cinquenta anos" significa cálculo por exagero (Jesus devia contar mais ou
menos 36 anos) e não, como opinava Irineu, repetindo os presbíteros de Papias, que ele "tinha" mais
ou menos 50 anos (cfr. adv. Haer. 2, 22, 5, 6; Patrol. Graeca vol. 6 col. 781 ss). Os dados de Lucas
(3:23) são mais precisos. O verbo usado, eôrakas (em A, C, D) ou eôrakes (em B, W, theta) é lição
melhor que eôrake (em aleph e na versão siríaca sinaítica). Com efeito, é mais compreensível a admi-
ração de que Jesus, que ainda não tinha cinquenta anos, tivesse visto Abraão, do que este ter visto
Jesus, o que poderia ter ocorrido na vida espiritual (opinião de Maldonado).
Vs. 58 - As traduções correntes trazem “antes que Abraão fosse (feito) eu sou". Ora, o original diz:
prin Abraàm genésthai egô eimi, literalmente: “antes de Abraão nascer EU SOU” (genésthai é infiniti-
vo presente da voz média). Há profunda diferença filosófica entre “ser feito" e “nascer”: é feito ou cri-
ado aquilo que não existe; nasce na carne o espírito que já existe. Jesus declara categoricamente SER,
antes que Abraão nascesse na matéria. Mas com isso confirma in totum sua asserção de ser YHWH.
Vs. 59 - Isso mesmo é que os ouvintes entendem, pois está escrito nos Salmos (90:2) e nos provérbios,
que YHWH é antes da constituição da Terra. E, segundo a prescrição do Levítico (24:16) estava "blas-
femando o nome de YHWH”, merecendo por isso, a lapidação aí prescrita. Ora, o pátio do templo pelo
testemunho de Flávio Josefo (Ant. Jud. 17, 9, 3) ainda não estava terminado, havendo pelo chão muitas
pedras. Fácil apanhá-las para fazer cumprir a lei com as próprias mãos. Mas Jesus esconde-se (ekrybê)
e sai do templo: não chegara ainda sua hora.

Nesta terceira palestra aos que Nele haviam acreditado, o Mestre lança amorável mas veemente con-
vite para que viessem fazer parte de Sua "Assembléia do Caminho". A lição anterior é continuada,
aprofundando-se os conceitos. Ocorreu, no entanto, que outros "judeus" (elementos religiosos, mas
filiados a credos ortodoxos) se achavam presentes e começaram a lançar suas objeções de increduli-
dade, às quais o Cristo responde carinhosamente. Mas a Voz Espiritual proveniente da pureza diáfana
do Sistema não consegue romper a armadura materialística dos que ainda pertenciam ao Anti-

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Sistema. E, como é de hábito nesse pólo negativo, estes encerram qualquer discussão com a violência,
e tentam apedrejá-Lo ... Típico modo de agir de seres involuídos que, não tendo argumentos, recorrem
à força física.
Vejamos o teor dos novos ensinamentos.
Inicialmente, garante que, só permanecendo na realização de Seus ensinos, é que se tornarão real-
mente Seus discípulos (cfr. João, 15:4, 7 e 1.ª João 2:6, 24, 27 e 3:24); por esse caminho experimen-
tal, conseguirão a gnose da Verdade e esta os libertará do peso da matéria na roda das encarnações
indefinidamente repetidas. A afirmativa constitui uma garantia que inclui uma promessa. Compreen-
der e realizar o ensino do Cristo, quer manifestado em Jesus há dois mil anos, quer expresso por ou-
tros avatares, quer - e sobretudo - falando dentro de nós mesmos: essa é a condição do discipulato
perfeito. Ninguém pode dizer-se "discípulo" se não tiver adotado o espírito de Sua Escola e de Seu
Mestre (cfr. vol. 4). O aluno pode só aprender intelectualmente as teorias de uma doutrina e até re-
transmití-las bem aos outros, sem que, no entanto, essa doutrina se torne nele um modo-de-viver. O
Discípulo, porém, é o que vive a doutrina, tendo a mesma vivência que o Mestre. Para ser discípulo de
Cristo, indispensável é, pois, viver permanentemente, PERMANECER, em Seus ensinos, sem acrésci-
mos nem omissões.
Essa vivência permanente levará à união e, portanto, à gnose experimental da Verdade, possibilitando
dessa forma a progressiva libertação do kyklos anánké. É a "salvação" pelo conhecimento, pela sabe-
doria e pela experiência vivida, conceito fundamental da gnose. O mosaísmo apresenta a salvação por
meio da obediência à lei; Paulo substitui a lei pela fé, tornando esta a base e a condição da salvação;
mas através do místico João, sabemos que o Cristo, embora não tenha vindo abolir a lei, mas com-
pletá-la (Mat. 5:17; cfr. vol. 2); e ainda que exija a fé (Mat. 17:20; vol. 4), coloca acima de tudo uma
condição mais elevada: a gnose, a experiência iniciática superior, como última fase para a salvação
dos seres evoluídos. São três estágios que o homem atravessa em sua ascensão: a LEI do primarismo
da hominização rebelde, onde predomina a sensação (2.º plano, lei da verdade); a FÉ no passo se-
guinte, onde a supremacia cabe às emoções (3.º plano, lei da justiça); e agora a gnose no plano do
intelecto desenvolvido (4.° plano lei da liberdade). Caminho longo, ascensão lenta, mas estrada segu-
ra e infalível. No entanto, os que ainda se encontram no primeiro estágio lutarão contra os do segun-
do, assim como estes e os do primeiro se unirão contra os que já estão no terceiro estágio. O catoli-
cismo, sucessor direto do judaísmo, exige a obediência a suas determinações e preceitos dogmáticos,
e anatematiza o protestantismo que atingiu o nível paulino da fé e do livre exame; mas os dois conde-
nam as "heresias gnósticas" dos espiritualistas, que buscam a salvação pelo Estudo e pela compreen-
são da Verdade e pela prática experimental.
No campo iniciático, a frase do Cristo assume profundidade excepcional, pois constitui a garantia
específica de que, estudando e praticando os ensinos do Deus em-nós (Immanu-El) e permanecendo
na vivência de Sua mística, o iniciado atingirá a gnose plena da Verdade que é a unificação perma-
nente com Deus, e se libertará totalmente das injunções do pólo negativo do Anti-Sistema. E outro
meio não existe, pois o Cristo - 3.º aspecto da Divindade - é o único Caminho da Verdade (que é o
Pai) e da Vida (que é o Espírito Santo), como Ele mesmo o revelou (João 14:16).
Como sempre ocorre nos agrupamentos humanos, os profanos, por estarem em seu ambiente, são
mais audaciosos, porque donos da situação, e levantam mais a voz, ousando contradizer qualquer
afirmativa que, pela aferição do gabarito intelectual puramente materialista de sua ignorância ultra-
passe a capacidade de seu raciocínio. Senhores absolutos do terreno que lhes pertence (os do Sistema
é que aqui na Terra estão fora de seu ambiente) não admitem autoridade maior que a sua, nem julgam
possa haver ciência superior à que conhecem. Não entendem a lição, mas torcem o verdadeiro sentido
das palavras espirituais para adaptá-las à sua concepção materializada da vida. Neste caso, inter-
pretam a liberdade espiritual de que o Cristo falava, como oposição à escravidão dos corpos físicos;
e, como descendentes de Abraão (valor máximo atribuído à personagem na herança do sangue) sabem
que jamais foram escravos fisicamente.
Em seu teor elevado, vem o esclarecimento da palavra “liberdade” e daquilo que constitui a verda-
deira escravidão, que não é a dos corpos materiais, mas a espiritual, causada pelo desvio do rumo

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correto, pela perda da rota pela desorientação que faz sair do caminho verdadeiro para a floresta das
miragens e ilusões: todo aquele que se desvia da estrada-mestra se torna escravo das ilusões do cami-
nho (sensações, emoções, intelectualismo superficial), pois “vagueia" (veja acima) por sendas que o
prendem em seus tentáculos enganadores, desvirtuando a luz da verdade, que lhes aparece fracionada
pelo prisma defeituoso da matéria.
A consequência é inevitável: quem vagueia por atalhos, não permanece na casa (na estrada-mestre
segura) que é o coração onde habita o Cristo Imanente. Mas o filho, aquele que está permanentemente
unido ao Pai, esse vive na imanência divina, sem jamais perder o Contato Sublime. Ora, se o filho,
isto é, o Cristo, terceira manifestação divina existente dentro de cada um de nós, conseguir libertar-
nos dos desvios da ilusão, para trazer-nos ao caminho certo, no imo do coração, então haverá a con-
quista da liberdade espiritual (embora presos à matéria). Só é realmente livre das injunções satânicas
(antagônicas, materiais) aquele que se unificar com o filho, numa total e perfeita simbiose (no sentido
etimológico).
Volta-se, então, novamente para a objeção, respondendo agora à primeira parte. Admite saber que,
fisicamente, eles são descendentes de Abraão por consanguinidade. Mas espiritualmente não o são, já
que tem o senso do homicídio, típico do pólo negativo, procurando destruir o corpo material de seu
emissário, Jesus, só porque o ensino crístico não consegue penetrar a capa grosseira de seus intelec-
tos dominados pelo negativismo atrasado do Anti-Sistema.
Aqui percebemos um "alerta” para todos nós, confirmando o "não deis pérolas aos porcos nem coisas
santas aos cães” (Mat. 7:6; vol. 2): se Jesus, trazendo aos homens diretamente, numa filtragem per-
feita, o ensino do Cristo de Deus, não conseguiu convencer seus ouvintes, não haveremos de ser nós a
pretender convencer as massas da realidade. Aprendemos que, para sermos entendidos, não é mister
evolução de nossa parte (podemos ser entendidos mesmo se involuídos), mas é essencial a evolução da
parte dos ouvintes, pois só nesse estágio superior sentirão em si o eco daquilo que enunciamos. Por-
tanto, também quando convencemos certas pessoas, com as nossas palavras ou exemplos, e as eleva-
mos evolutivamente - mesmo nas Escolas iniciáticas isso não é obtido em virtude de nosso mereci-
mento, porque sejamos evoluídos, mas porque os ouvintes, eles sim, estão maduros para sintonizar
com as verdades que enunciamos, das quais somos meros intérpretes, e quantas vezes imperfeitos!
Vem então o testemunho do próprio Cristo: só fala o que viu junto ao Pai, vivendo a Seu lado, UNO
com Ele; enquanto os que O contradizem obedecem a voz do pai deles, que é o adversário. O protesto
é imediato e enérgico: "nosso pai é Abraão". E a resposta contundente: "se sois filhos de Abraão agi
como vosso pai Abraão. Ora, pensais em destruir meu corpo, só porque falo a verdade. Abraão não
faria jamais coisa semelhante”, pois agia de conformidade com o sistema, ao passo que eles agem na
tônica do Anti-Sistema. Querem matar o “corpo" - Cristo o salienta com palavras claras – destruir “a
um homem”, não a Ele, o Cristo.
Feridos pela alusão a uma filiação espúria, reclamam para si também a paternidade divina, ao que o
Mestre retruca com um argumento ad hominem: se filhos fossem de Deus, ouviriam a palavra de
Deus. Mas a sintonia é diferente. A prova é de que, como personagens, são filhos do Anti-Sistema (do
adversário), tanto que nem podem entender a linguagem crística. Não há neles, ainda escravos dos
elementos do quaternário inferior, a capacidade de instruir-se pelo "ensino ouvido” (lógos akoês).
Concluindo a argumentação, vem a declaração taxativa: “vós sois filhos do adversário".
Se houvesse necessidade de um texto evangélico para confirmar a revelação ubaldiana em "A Grande
Síntese”, em "Deus e Universo", em "O Sistema” e em "Queda e Salvação”, nenhum outro melhor
serviria que este. Cristo, a Centelha Divina dentro de cada criatura, provém diretamente de Deus, Pai
do Espírito, de onde parte para construir a evolução dele, mergulhando na matéria; ai chegando, a
Centelha se envolveu no corpo físico (átomo) e, de seu interior, provocou e impeliu a evolução da
matéria, através do inorgânico, do orgânico (células), do vegetal, do animal, até chegar ao hominal e
conquistar o intelecto racional; então, verdadeiramente as personagens, com seus corpos físico, etéri-
co, astral e intelectual são filhos do adversário, isto é, filhos da matéria, antagônica (satânica, diabó-
lica) ao Espirito, embora seja da mesma essência que este. O Espírito, filho do Sistema, de Deus; a

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personagem, com seus veículos, filha da matéria, do adversário. Exatamente como explicado com
pormenores nos livros acima citados de Pietro Ubaldi.
Mas o Cristo continua com a mesma lógica irrespondível: “vosso pai era homicida desde o princí-
pio”. De fato, a “morte”, isto é, o desfazimento da forma, só se dá na matéria e nos planos inferiores
a ela inerentes. O Espírito, filho ou procedente do Sistema, jamais morre. Os veículos inferiores e a
personagem de que se reveste o Espírito (filhos ou provenientes do Anti-Sistema) é que estão sujeitos
às mutações, ao desfazimento e reconstruções intermitentes. Mais uma vez se confirma a tese: o Anti-
sistema, adversário do sistema é homicida, porque coage o homem a submeter-se a morte.
Outro argumento reafirma a mesma tese: "não permaneceu na verdade, porque a verdade não está
nele". Realmente, a Verdade é eterna e imutável: tudo o que é variável e mutável, está no pólo oposto
da verdade, que se chama "mentira" (verdade invertida). Diz o Cristo: "Quando fala a mentira fala do
que lhe é próprio, porque é mentiroso como seu pai". Eis aí a teoria completa em poucas palavras
incisivas e contundentes, embora com o linguajar possível naquela recuada época. Toda personagem,
adversária da individualidade, fala a mentira, porque é mentirosa como seu pai, o Anti-Sistema. E é
mentirosa, porque sendo, se faz passar por coisa real; sendo mortal, busca uma imortalidade que não
possui; sendo transitória, arroga-se uma perenidade falsa; sendo negativa, pretende ser juiz da positi-
vidade do Espírito, chegando por vezes ao cúmulo e negá-lo; sendo ignorante, julga-se dona do co-
nhecimento. “Mentirosa como seu pai”.
Mentirosa, também, porque em mutação contínua: o organismo vivo é um conjunto de variações e
modificações no ritmo veloz dos segundos, em constantes trocas metabólicas internas e externas, com
o ambiente que a circunda: nasce, alimenta-se, cresce, expele excrementos, multiplica-se ou divide-se
e finalmente morre para logo adiante renascer, tudo ininterruptamente, sem parada nem repouso.
Nesse equilíbrio instável permanece a Vida estável (o Espírito); nessa matéria orgânica mutabilíssima
(mentirosa) vive o Espírito permanente (verdadeiro). A personagem, filha do Anti-Sistema adversário,
é “mentirosa como seu pai”. E “quando se lhe diz a verdade, não crê”.
Por que não crer quando surge alguém que pode desafiar a humanidade a arguir-Lo de erro, e traz a
Verdade? Precisamente porque, não sendo de Deus, do Sistema – mas ao invés filho do Anti-Sistema,
do adversário – jamais poderão as personagens “ouvir a palavra” de Deus. Posições contrárias.
Qualidades inconciliáveis. Verdade e mentira. Positivo e negativo. Amor e Ódio. Deus e adversário.
O inciso seguinte consiste num desaforo ilógico e na resposta insofismável. Não há obsessão: há a
consciência da honra prestada ao Pai; ao passo que o fruto do Anti-Sistema é desonrar ou desprezar
o Espírito e tudo o que a ele se refira. Mas, para o Espirito, que importa a reputação, opinião ou o
julgamento que dele façam as personagens ignorantes ainda? Basta-lhe a consciência tranquila e a
aprovação divina. O recado estava dado até ai. Mas havia necessidade de entregar mais um ensino
àqueles que confiavam, mais presentes, ou que confiariam, mais tarde.
"Em verdade, em verdade vos digo" - fórmula solene que sublinha ensinamento profundo e iniciático.
Ei-lo: "quem praticar meu ensino, de modo algum verá a morte para a imanência”. A prática dos en-
sinamentos, a vivência da gnose, é sempre frisada pelo Cristo (cfr. João, 14:15-21, 23; 15:20 e 17:6).
Morte para a imanência, isto é, morte espiritual, que bem pode assim qualificar-se a separação do
Contato Sublime com o Cristo. Quem puser rigorosamente em prática todos os ensinos do Cristo, com
Ele se unificando na casa do coração, numa imanência perfeita, esse de modo algum experimentará a
perda dessa prerrogativa da imanência, porque já foi absorvido totalmente pelo Cristo de Deus. Esse
sentido espiritual procede. Absurdo seria, como anotamos acima, supor que o Cristo se referisse ao
desfazimento sem importância de uma forma material transitória por sua própria natureza e constitui-
ção íntima. Interpretação mesquinha e materialista de uma sublime verdade espiritual. E esses intér-
pretes sempre esquecem que o Cristo avisou: "o Espírito é o que vivifica, a carne para nada aprovei-
ta" (João, 6:63), acrescentando logo a seguir: "As palavras que vos digo, são espírito e são vida”.
Essa interpretação falsa e grosseiramente materialista, aceita por muitos hermeneutas, foi justamente
a que deram aqueles ouvintes ignaros das grandes verdades espirituais. Tanto que eles desafiam o
Cristo de Deus, ao perguntar-Lhe: “quem pensas ser"?

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A resposta é uma lição de humildade para todos nós, que nos julgamos gênios, santos, iniciados,
adeptos, reencarnação de figuras notáveis do passado, “qualquer opinião que eu tenha sobre mim
mesmo nada vale: o Pai é Quem me julga". Quem é afinal esse Pai? o mesmo “que vós dizeis ser nos-
so Deus". Deus que eles não conhecem, pois o único deus que adoram são eles mesmos. Mas o Cristo
SABE, tem a gnose do Pai, e cumpre na pratica todos os Seus ensinos.
Chega, neste ponto, o caso de Abraão, que em sua personagem viveu alegre na expectativa de ver a
luz do Cristo. O testemunho de que o conseguiu é dado: “viu e regozijou-se". Também aqui os herme-
neutas e exegetas só sabem ver a matéria, e imaginam que dia será esse: o da encarnação (Agostinho,
Tomás de Aquino)? o da morte na matéria (João Crisóstomo, Amônio)? Ora, dia é LUZ: é o dia da
realização interna, o dia do Encontro Sublime, o dia da unificação total. Abraão sai de sua terra e de
sua gente (desliga-se de seus veículos inferiores, de seu corpo) e segue em frente para obedecer à
vontade divina; cegamente cumpre a ordem da intuição (Sarah) e expulsa de si os vícios próprios da
personagem (o filho de Hagar, a escrava); dispõe-se a sacrificar seu filho (que é sua alegria, Isaac)
matando-o (destruindo seu corpo, seu filho único), mas é-lhe explicado que deve apenas sacrificar a
parte animal de si mesmo (o cordeiro); tem o maravilhoso Encontro com Melquisedec, o rei do mun-
do, depois que consegue vencer os quatro reis (os quatro elementos inferiores: físico, etérico, astral,
intelectual) que haviam aprisionado os cinco reis, por meio dos três aliados, e se prosterna diante do
Rei do Mundo; depois da unificação, até o nome muda, de Abrão para Abraão; e tantos outros sím-
bolos que aparecem nas entrelinhas do Gênesis. Realmente, Abraão viu o DIA, ou seja, a LUZ do
Cristo.
A interpretação dos ouvintes volta a ser chã: entendem como sendo idade do corpo físico. Temos a
impressão de que o Cristo se cansa dessas criancices e resolve acabar com as tolices das personagens
ignorantes lançando-lhes uma resposta que as perturba e descontrola. Mas é a Verdade: “antes de
Abraão nascer, EU SOU”. É a eternidade sempre presente, diante da transitoriedade temporal de
uma vida terrena; é o infinito que não pode comparar-se com o finito; é o ilimitado que não se prende
em fronteiras; é a onisciência que anula a ignorância; é o Cristo de Deus, Deus Ele mesmo, que É,
perante uma criatura que existiu.
Isso eles compreendem bem. Isso o Cristo falou claro. Mas como reação surge a violência que quer
destruir ... a matéria, mas que jamais atingirá o Espírito; quer aniquilar a forma, mas sem poder des-
truir a substância: quer fazer calar a voz produzida pelas cordas vocais, mas sem ter capacidade de
eliminar o SOM (Lógos, Verbo, Palavra) que cria e movimenta os universos. Pigmeus impotentes que
esbravejam contra o gigante; crianças pretensiosas que desejam apagar o sol com baldes d'água;
seres humanos que pretendem fazer desaparecer a Divindade, destruindo-Lhe um templo; trevas que
buscam eliminar a Luz, apagando uma vela; meninos da espiritualidade, sem conhecimento, nulos
diante do sábio e filósofo, julgando acabar com a Sabedoria ao queimar um livro.
O Cristo esconde-se e sai do templo. Ainda aqui, há uma lição magnífica. Tentemos expô-la.
Assistimos ao trabalho da Individualidade para fazer evoluir a personagem, com seus veículos rebel-
des, produto do Anti-Sistema. A figuração do Cristo diante da multidão simboliza bem a individuali-
dade a falar através da Consciência, para despertar a multidão de pequenos indivíduos, representa-
dos pelo governo central, que é o intelecto. Imbuído de todo negativismo antagônico, o intelecto leva a
rejeitar as palavras da Verdade que para ela, basicamente situada no pólo oposto, soam falsas e ab-
surdas. O Espirito esforça-se por explicar, responde às dúvidas, esclarece os equívocos, todavia nada
satisfaz ao intelecto insaciável de noções de seu plano, onde vê tudo distorcido pela refração que a
matéria confere à idéia espiritual, quando esta penetra em seu meio de densidade mas pesada. Quan-
do verifica que não tem argumentos capazes para rebater o que ouve, rebela-se definitivamente e in-
terrompe qualquer ligação com o Eu interno, voltando-se para as coisas exteriores, supondo que a
matéria (as pedras) possam anular a força do Espírito. Diante de tal atitude violenta e inconquistável,
a individualidade esconde-se, isto é, volta a seu silêncio, abandonando a si mesma a personagem, e
saí do templo, ou seja, larga a personagem e passa a viver no Grande-Todo, no UNO, indivisível, sem
deixar contudo de vivificar e sustentar a vida daquela criatura mesma que a rejeitou com a violência.
Um dos casos, talvez, em que, temporária ou definitivamente, a Individualidade pode desprender-se

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C. TORRES PASTORINO
da personagem que, por não querer aceitar de modo algum o ensino, continuará sozinha a trajetória
(cfr. vol. 4), tornando-se "psíquica", mas "não tendo Espírito” (Judas, 19).

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SABEDORIA DO EVANGELHO

NOTA DO AUTOR

A partir deste ponto, podemos oferecer a nossos leitores bases mais seguras em nossa tra-
dução do texto uriginal grego.
Até a página anterior, seguimos o NOVUM TESTAMENTUM GRAECE, de D. Eberhard
Nestle e D. Erwin Nestle; o NOVI TESTAMENTI BIBLIA GRAECA ET LATINA, de J . M.
Bover; a "S. Bible Poliglotte" de Vigouroux; as versões da Escola Bíblica de Jerusalém, da
Abadia de Maredsous, a "Versão Brasileira" a Vulgata de Wordsworth e White, e a Análise
de Max Zerwick, que eram os textos mais bem informados (só nos faltava o texto de Merck,
mas a edição de Bover o colaciona).
Agora, todavia, conseguimos receber o recentíssimo volume THE GREEK NEW TESTA-
MENT, de Kurt Aland (da Univ. de Munster, Westfalia), Matthew Black (da Univ. de St. An-
drews), Bruce M. Metzger (da Univ. de Princeton) e Allen Wikgren (da Univ. de Chicago),
com larga colaboração de especialistas de cada setor, de forma a ser um texto realmente
autorizado.
A publicação foi feita em 1967, pelo United Bible Sccieties, de Londres (que reúne as Soc.
Bíblicas Americana, Inglesa Estrangeira, Escocesa, Neerlandesa e de Wurttemberg). Traz
todas as variantes dos papiros, dos códices unciais, dos minúsculos, da ítala e da vulgata,
dos lecionários, das versões antigas (siríacas, coptas, góticas, armênias, etiópicas, georgia-
nas, núbias), dos Pais da Igreja, e de todos os editores, trazendo até as descobertas mais
recentes nesse campo. Isso permite ao tradutor apoiar-se com maior segurança em seu tra-
balho, podendo analisar as variantes e avaliar os pesos de cada manuscrito ou tradução,
tirando conclusões mais fiéis ao original.
daqui em diante, pois, seguiremos o texto grego dessa edição. E comprometemo-nos a RE-
VER, à sua luz, e com os dados mais recentes, tudo o que até agora foi traduzido e publica-
do: qualquer novo testemunho que nos leve a modificar nossa opinião expendida, honesta-
mente a divulgaremos oportunamente, para que continue, neste trabalho audaciosamente
iniciado, a mesma qualidade básica essencial: honestidade sincera.
A tradução que sozinho empreendemos do original grego, sob nossa responsabilidade pes-
soal única, não se filia a nenhuma corrente religiosa antiga ou moderna. O que pretende-
mos é conseguir penetrar o sentido real, dentro do grego, transladando-o para o português,
sem preocupação de concordar nem de discordar com quem quer que seja.
Também não pretendemos ser dogmáticos nem saber mais que outros, mas honestamente
dizemos o que pensamos, como estudiosos, trazendo mais uma achega depois de quase
cinquenta anos de estudos especializados nesta existência. Mas estamos dispostos a acei-
tar qualquer crítica e rever qualquer ponto que nos seja provado que foi mal interpretado por
nós.
Só pedimos uma coisa: que nos seja reconhecida a honestidade com que trabalhamos e a
sinceridade pessoal com que sentimos e nos expressamos.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

CEGO DE NASCENÇA
João, 9:1-41
1. E passando (Jesus) viu um homem cego de nascença.
2. Perguntaram-lhe seus discípulos, dizendo: "Rabbi, quem errou, ele ou seus pais; para
que nascesse cego?
3. Respondeu Jesus: “Nem ele errou; nem seus pais, mas para que se manifeste nele a
ação de Deus;
4. nós devemos executar as ações de quem me enviou enquanto é dia; vem a noite,
quando ninguém pode agir;
5. cada vez que eu esteja no mundo, sou a luz do mundo".
6. Dizendo isso, cuspiu no chão e fez lama com o cuspo e ungiu sua lama sobre os olhos
(do cego) e disse-lhe:
7. ‘Vai levar-te na piscina de Siloé (que significa Enviado). Ele foi, pois, lavou-se e re-
gressou vendo.
8. Então os vizinhos e os que costumavam vê-lo antes, porque era mendigo, diziam:
"Não é esse o que se sentava e mendigava"?
9. Uns dizem: “É ele mesmo”; outros diziam: “Não é, mas é parecido com ele”; ele
mesmo dizia: sou eu”.
10. Perguntavam-lhe então: ‘Como te foram abertos os olhos’? ......................
11. Respondeu ele “O homem chamado Jesus fez lama, ungiu-ma sobre os olhos e disse-
me: vai a Siloé e lava-te; então fui, lavei-me e vi”.
12. Perguntaram-lhe: “Onde está ele”? Respondeu: “Não sei”.
13. Levaram o ex-cego aos fariseus.
14. Ora, era Sábado o dia em que Jesus fez lama e lhe abriu os olhos.
15. De novo, então, os fariseus perguntaram-lhe como via. Respondeu-lhes ele: “Ungiu-
me lama sobre meus olhos, lavei-me e vejo”.
16. Diziam, pois, alguns dos fariseus: "Este homem não é de Deus, porque não observa o
Sábado” . Outros porém diziam: "Como pode um homem errado fazer semelhantes
sinais"? E havia divergência entre eles.
17. Disseram, então, ao cego de novo: “Que dizes tu a respeito dele, visto que te abriu os
olhos"? Ele respondeu: “Que é profeta”.
18. Mas os judeus não acreditam, a respeito dele, que fora cego e via, até que chamaram
os pais do que recebera a vista,
19. e os interrogaram dizendo: É este vosso filho, que vós dizeis ter nascido cego? Como,
pois, vê agora"?
20. Responderam seus pais e disseram: "Sabemos que este é nosso filho o nasceu cego;
21. ma como agora vê, não sabemos; ou quem lhe abriu as olhos, não Sabemos: interro-
gai-o, já tem idade, ele mesmo falará a seu respeito'

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22. Isso disseram seus pais, porque temiam os judeus, porque os judeus já haviam com-
binado que se alguém confirmasse o Cristo, seria expulso da sinagoga.
23. Por isso disseram seus pais: “Já tem idade, interrogai-o”.
24. Chamaram, pois, pela Segunda vez o homem que fora cego e disseram-lhe: “Dá glória
a Deus: nós sabemos que esse homem é errado”.
25. Ele respondeu: “Se é errado, não sei; uma coisa sei: eu era cego e agora vejo".
26. Disseram-lhe, pois: 'Que te fez? Como te abriu os olhos'?
27. Respondeu-lhes: "Já vo-lo disse e não ouvistes; por que quereis ouvir de novo? Acaso
também vós quereis ser seus discípulos"?
28. Injuriaram-no e disseram: “Tu és discípulo dele; nós somos é discípulos de Moisés;
29. sabemos que Deus falou a Moisés, mas este não sabemos donde é".
30. Respondeu o homem e disse-lhes: “Nisto está o admirável, que não saibais donde ele
é, e (no entanto) ele me abriu os olhos.
31. Sabemos que Deus não ouve os errados, mas se alguém for reverente (a Deus) fizer a
vontade dele, a este ouve.
32. Desde séculos não se ouviu que abrisse os olhos a um cego de nascença.
33. Se esse homem não fosse de Deus, não poderia fazer nada”.
34. Replicaram eles e disseram-lhe: "Tu nasceste todo em erros e nos ensinas"? E o lan-
çaram fora.
35. Ouviu Jesus que o lançaram fora e, encontrando-o, disse-lhe: "Crês no Filho do Ho-
mem"?
36. Respondeu ele e disse: "Quem é, Senhor, para que eu creia nele"?
37. Disse-lhe Jesus: "Já o viste e é ele quem fala contigo".
38. E ele disse: "Creio, Senhor", e prostrou-se diante dele.
39. E disse Jesus: "Para um arbitramento vim a este mundo, para que os que não vêem,
vejam, e os que vêem se tornem cegos".
40. Ouvindo isto, (alguns) dos fariseus que estavam com ele disseram-lhe: "Acaso somos
nós também cegos"?
41. Disse-lhes Jesus: "Se fosseis cegos, não teríeis erro; mas agora dizeis: nós vemos; vos-
so erro permanece".

O discípulo amado soube dispor a ordem de sua narrativa de tal forma que logo após a revelação da
teimosia dos "judeus" que NÃO QUERIAM VER, ele apresenta um fato (verdadeiro símbolo, que es-
tudaremos a seguir) demonstrando a razão de ser de os judeus não crerem.
Certos hermeneutas acham que este fato não se seguiu ao tumulto no templo: "é inadmissível que Jesus
se tenha mostrado à luz do dia imediatamente após a tentativa de assassinato a que escapara, antes que
a efervescência da multidão inimiga se tivesse acalmado" (Pirot, o. c., vol. 10, página 389). É não co-
nhecer a psicologia de um "líder", julgando-o pela craveira comum dos mortais medrosos. Ao contrá-
rio, entendemos que as palavras de João salientam precisamente a sequência imediata dos fatos. Jesus
"se esconde e sai do templo" e, ao sair da cidade com seus discípulos pela porta de Siloé, "passando, vê
o cego de nascença", e faz questão de curá-lo, mesmo sem ser solicitado para dar uma demonstração
irrecusável das verdades que havia proclamado. Assim como se dissesse: "Não acreditam em minhas
palavras? pois vejam os fatos".

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Figura “CEGO DE NASCENÇA”

Esse cego - sabemo-lo pelo desenrolar dos acontecimentos - era figura conhecida pela longa perma-
nência naquela "porta de Siloé", pois aí o viam todos diariamente a esmolar e lhe conheciam a história.
Os próprios discípulos galileus, que só raramente iam a Jerusalém, também tinham ciência disso, e
aproveitam a oportunidade para provocar uma explicação de teorias, cuja certeza não haviam adquiri-
do. Nem pensam na cura, que também a eles devia figurar-se "impossível”. Mas os doutos explicavam
que as enfermidades constituíam o resgate (castigo) de crimes cometido anteriormente. No entanto, as
Escrituras manifestavam-se dúbias e confusas em sua interpretação literal.

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Em Êxodo (20:5 e 34:7), em Números (14:18) e no Deuteronômio (5:9) afirma-se que Deus "visitará a
iniquidade dos pais nos filhos sobre os terceiro e quartos", o que era explicado literalmente que os fi-
lhos “pagam” pelos pais. Todavia, no próprio Deuteronômio (24:16) está escrito: “não se farão morrer
os pais pelos filhos nem os filhos pelos pais: cada homem será morto pelos seus erros". Essa mesma
teoria da responsabilidade pessoal (Veja citações completos em "La Reencarnación en el Antigua Tes-
tamento", de C. Torres Pastorino, pág. 32 - Edições Sabedoria) é citada e reafirmada em Deuteronô-
mio (7:9-10), em Ezequiel (18:1-32 e 33:20), em Job (34-11) nos Salmos (28:4), nos Provérbios (12:14
e 29), em Isaías (3:11), em Jeremias (31:29-30), nas Lamentações (3:64) e no Eclesiástico (16:15).
A qual das duas opiniões ater-se ? Serão castigados os filhos pelos erros dos pais? Ou o resgate dos
erros é pedido exclusivamente ao que errou? Ali estava um caso típico, um cego de nascenças: “Quem
errou, para que este nascesse cego: ele mesmo ou seus pais”?
Lógico que na segunda hipótese apresentada, de estar cego por causa dos erros dos pais, a teoria do
resgate dos filhos por culpas dos pais seria confirmada. Mas na primeira hipótese de ele mesmo haver
errado, se confirmaria a teoria da responsabilidade pessoal, segundo o ensinamento das vidas terrenas
múltiplas (reencarnação), já que o homem nascera cego; logo, só poderia ter cometido o erro em vida
anterior. A segurança da pergunta é sinal evidente de que os discípulos não colocaram a menor dúvida
a respeito da lei comprovada da reencarnação. E o Mestre não os corrige: ao contrário, confirma-lhes a
certeza, quando responde: “ele mesmo não errou”. Logo, viveu antes, sim mas a cegueira atual não é o
resgate de erros seus de vidas anteriores, não é cármica. Mas também não é o resgate de culpa dos pais.
A idéia de que todo e qualquer sofrimento era “castigo” estava generalizada nos povos antigos, e
Plantão mesmo cita a comparação órfica de que o corpo “soma" é uma sepultura ou cárcere (sêma) ou
isolamento (phrousão) que a alma recebe como punição de seus erros anteriores, após ficar "errando cá
e lá no espaço", quando não agiu bem durante a vida (cfr. Filolau, fragm. 15 D, e Plantão, Crátilo, 40
a; Górgias, 493 a; e Fedon, 62 b).
Diante da pergunta dos discípulos, o Mestre explica que não é assim baseando-se num caso concreto,
que tem diante de si. A frase citada por João, embora resumida e esquemática, deixa clara a lição para
quem já tenha compreendido a mecânica evolutiva. Afirma Jesus que não houve erro, nem dele próprio
em vida anterior, nem de seus pais, ou seja, que a cegueira não é cármica, mas simplesmente uma ex-
perimentação ou provação (pathós) que serve de acicate para provocar avanço mais rápido daquela
criatura, verdadeiro “aguilhão evolutivo".
O ensino é límpido: nasceu assim cego “para que nele se manifestasse a ação (érga) de Deus”, ou seja,
para que se faça sentir o impulso divino, que o constrange a evoluir. Não se trata, portanto, de resgate
cármico, mas de provação, tanto que veremos como o ex-cego reagiu corajosa e ousadamente contra as
autoridades, com o destemor próprio da criatura evoluída, que não se submete a mentiras e injustiças.
A interpretação corrente, de que “nasceu cego” só para que Jesus pudesse operar um "milagre”, é de
inconcebível fragilidade e irracional. Tantos meios haveria de realizar prodígios, que seria absurdo e
monstruoso ter que sacrificar durante anos um filho de Deus, na cegueira, só para ser curado sem alar-
de, como o foi a posteriori, tendo sido posto em dúvida o fato, porque não foi público. Essa suposição
de um Deus que não sabe fazer as coisas certas fere a racionalidade equilibrada de quem tenha um
pouco de bom-senso. Qual o pai que deixaria um filho preso durante anos num cubículo sem luz, uni-
camente para que mais tarde viesse outro filho seu e mostrasse à humanidade que tinha a chave para
abrir o cubículo e trazê-lo à luz? Por que supor sempre uma Divindade tão inferior as suas próprias
criaturas?
Mas prossigamos na análise do texto.
No vers. 4, preferimos: “Nós devemos executar” (aleph, B, D, L, T, W, Z, lambda, psi, papiros 66 e
75, uncial 0124, mss. da siríaca palestiniana, etiópica e copta bohaírica, e Orígenes, Jerônimo, Cirilo
de Alexandria e Nonio, a “EU devo executar” (A, C, K, X, delta, theta, pi, psi, fam 1 e 13, vários mi-
núsculos, versões siríacas e latinas). No entanto, é preferível “ME enviou” (os mesmos testemunhos
citados testemunhos citados acima, em primeiro lugar, exceto aleph, L e W) a “NOS enviou” (trazido

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por papiros 66 e 75, aleph, L, W, e os testemunhos da segunda citação). A lição foi manuseada pela
dificuldade de concordar o plural “Nós", com o singular “me”.
Nesse versículo aprendemos que a ação (érba) divina precisa manifestar-se e realizar-se através dos
próprios homens, e isso só pode fazer-se "enquanto é dia", ou seja, quando a luz do Cristo nos possibi-
lita a visão dos acontecimentos; se sobrevierem as trevas das perseguições, e entenebrecimento da
Mente, a noite da alma que só vê a matéria, não se pode mais agir (as ações divinas).
O vers. 5 é iniciado com hótan, composto de hóte, “quando" e partícula an, que exprime eventualidade
e repetição, devendo, então traduzir-se hótan por "cada vez que" ou “todas as vezes que" (latim: toti-
ens) (Cfr. Liddell and Scott. "Greek-Ellglish Lexicon, 1086, ad verbum). Daí a tradução que demos,
divergente das comuns: "cada vez que (todas as vezes, que) eu esteja no mundo, sou a luz do mundo".
Isso faz-nos perceber, irrecusavelmente, que aquela vez, narrada nos Evangelhos, não foi a única vez
que Jesus esteve encarnado neste planeta.
Jesus utiliza-se novamente da saliva (cfr. vol. 4), com que faz lama, misturando-a à terra do chão, e
com ela bezunta os olhos natimortos do cego: e envia-o a lavar-se na piscina de Siloé.
O nome hebraico tradicional é Siloáh: os massoretas marcaram a pronúncia Seláh; o grego transcreveu
Siloám e significa “envio" (de águas). Era aplicado à fonte natural intermitente, única existente dentro
da cidade de Jerusalém (cfr. Flávio Josefo, Bell. Jud. 5, 41; 6, 1; 9, 4 e 12, 2; Tácito, Hist. 5, 12). Daí
ser dita “a" fonte. Mas aplicava-se também ao canal, construído por Ezequias (cfr. 2.º Crôn. 32:30) que
desviou as águas do rio Gihon, cavando subterraneamente na rocha um canal retilíneo de 550 m de
extensão por baixo da cidade, até fazê-lo desembocar a oeste de Jerusalém, onde se construíra a “pisci-
na do rei" ( 2.º Esdr. 3:15); mas o nome Siloé também se aplicou a essa piscina balneária (kolybêthra,
vol. 3). À época de Jesus, tinha 22 m de norte a sul, 23 m de leste a oeste, e 5.5 m de profundidade.
Hoje ainda existe, com 15 m por 5 m de largura e igual profundidade, com o nome de birkét Silôân,
sendo ainda chamada 'Ain Umm ed-Deradj (fonte dos degraus) ou 'Ain Sitti-Mariam (Fonte de Maria).
O nome Siloé estendera-se à porta da cidade e à região, e parece claro que foi nessa porta que Jesus viu
o cego mandando-o à piscina, que lhe devia ser bem conhecida e ficava próxima ao local em que se
achava. Tratando-se de uma piscina balneária, nada impedia que o cego cumprisse a determinação de
Jesus e mergulhasse. “Lava-te", disse Jesus, e não apenas "lava teus olhos". E após mergulhar, verifi-
cou com assombro que conquistara a visão.
O regozijo e o espanto fizeram que a nova se espalhasse. Os vizinhos - deve ter corrido para casa a fim
de participar a boa-nova aos seus - não queriam acreditar no que viam. É ele, não é ele, levantava-se a
discussão, tão estranha era a ocorrência. Foram ao cego, amontoados à porta de sua casa: “és tu"? –
“Sou eu”! – “É ele”! Diante do fato incontestável, convenceram-se.
Como foi? O cego narra o ocorrido em palavras simples, embora se sinta, na sequência singela, um
toque de emoção: lama nos olhos ... vai lavar-te ... fui ... lavei-me ... vi! O choque dos vizinhos amigos
e parentes foi tão violento pelo inesperado, que agarraram o homem e deliberaram levá-lo aos chefes
da religião, aos fariseus todo-poderosos. Nem quiseram esperar pelo dia seguinte. Foram no próprio
sábado em que se deu o fenômeno inexplicável e nunca ouvido.
E subiram todos eles em bloco as escadarias do templo, levando de roldão o ex-cego, que não cabia em
si de alegria por ver as maravilhas do sol a bailar sobre o outro brilhante e sobre o mármore branco do
monumento erguido a YHWH. Queriam levar consigo, também, o herói, o curador, mas onde estaria
esse Jesus? A resposta foi desconcertante: “Não sei”!
Os cépticos fariseus duvidaram. Começou o inquérito prudente, iniciado pela pergunta como foi. Nova
repetição do beneficiado. Surge, então. a questão do quando, e a resposta de que fora naquele mesmo
sábado fez explodir incontroláveis os preconceitos humanos, procurando abafar o maravilhoso do ato:
esse homem não é de Deus, pois se o fora, teria respeitado o Sábado, obedecendo aos fariseus e a suas
exigências, como, no entender deles, o próprio Deus o fazia. Para os religiosos desse tipo de religiões
organizadas Deus não pode sair da linha de conduta que eles traçam: está sujeito a eles, como pequena
e dútil marionete que eles manobram à vontade.

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Mas entre eles, havia alguns não fanatizados, que chegaram a aventar a hipótese arriscada, de que não
seria possível a uma pessoa que errasse fora dos caminhos de Deus, a realização de uma cura espeta-
cular: era um cego de nascença. A discussão afervorou-se entre eles, sob os olhares atônitos do ex-
cego. Resolveram pedir a opinião dele. E ele foi franco e intimorato: é um profeta.
Desconfiaram, então, os julgadores mais severos, que se tratava de uma farsa: naturalmente estava
tudo combinado. Ele se dizia cego de nascença e curado, mas não era verdade. Onde estavam seus
pais? Estes o reconheceriam, e não teriam coragem de mentir ... Talvez saindo do meio da pequena
multidão que o acompanhara, apresentaram-se logo. Sim. Aquele era o filho deles não havia dúvida, e
realmente nascera cego. Que acontecera, então? Bem, perguntem a ele, tem idade suficiente ... Que
responda. Acovardaram-se, com medo de serem excomungados. Era comum, àquela época, (como
ainda hoje, em muitas corporações religiosas) em três graus: a excomunhão vitalícia (herem) que che-
gava à confiscação dos bens; a expulsão da sinagoga por trinta dias (niddui) que obrigava ao luto e a
deixar crescer barca e cabelos: e a separação por uma semana (nezipha), menos grave.
O texto original grego diz homologêsêi christón, literalmente, “falasse igual ao Cristo”, ou “fosse igual
ao Cristo", (de homo = igual e logêô = falo); algumas traduções vulgares seguem o códice D, único
que dá “confessasse ser ele o Cristo”; outras trazem: “ser Jesus o Cristo". Mas não é isso o que diz o
original. Exprime uma idéia de "iniciados", que os profanos não conheciam e por isso não podiam
compreender: se alguém falasse ou fosse igual, se igualasse, ou mesmo, em última instância "confir-
masse”, no sentido de “aceitasse” ou “sintonizasse" com o Cristo.
Passam as autoridades, então, a sugestionar o ex-cego: se a cura foi feita num sábado. indiscutivel-
mente “esse homem é um errado" (1), está “fora do caminho certo. Mas o benefício não se enreda na
armadilha": bom ou mau, não sei: sei que era cego e agora vejo! É o fato que derruba qualquer argu-
mento teórico, filosófico ou teológico.
(1) Evitamos, na tradução, os termos que variaram no semântico, o fim de não dar idéias errôneas e
anacrônicas do que foi dito. Assim, hamartía é o "erro” e Pramartolos, o errado, o que perdeu o ca-
minho. Não dizemos "pecado", nem "pecador", pois estas palavras assumiram o significado específico
de "ofensa a Deus", como se a Divindade fosse uma criatura mutável que pudesse ofender-se, zangar-
se com os homens, e depois, perdoasse, quando estes se arrependessem. No sentido iniciático, ha-
martolós é o "profano", o "que está ainda no caminho errado".
Tentam, agora, pegá-lo em contradição: “como foi mesmo”? O homem já estava cansado e apela para
a ironia: contar outra vez? Já disse como foi. Ou quererão tornar-se seus discípulos? A ironia fere
como uma chicotada e faltos de argumentos, recorrem à injúria. Ainda se envaidecem de ser discípulos
de Moisés, mas "esse" de onde vem? O carpinteiro não possuía as credenciais, os títulos, a submissão a
eles. Valores e fatos de nada adiantavam, sem que tivessem “reconhecido a firma". A ironia continua,
com laivos de sarcasmo: “não sabeis donde é, coisa estranha, mas ele me abriu os olhos" ... O descon-
trole chega ao máximo: “nasceste todo em pecados, e pretendes ensinar-nos”? O que confirma oficial-
mente a tese de que a doença, sobretudo a de nascença, é resgate cármico; e indiretamente confirma,
sem dúvida, o conhecimento da lei da reencarnação por parte do Sinédrio. E acabam expulsando-o do
templo. Tratava-se de uma testemunha incômoda cuja presença atestava a impotência deles sobre
aquele carpinteiro e os deixava perplexos e sem saída.
O ex-cego demonstrara seu destemor e se comportara varonilmente diante do perigo. Jesus o procura
para recorfortá-lo. A alegria da cura fora diminuída pela decepção diante de homens que ele, talvez,
esperava, em sua ingenuidade simples, ergueriam hosanas a YHWH pela maravilha que ocorrera em
Israel, onde nunca se ouvira dizer que um cego de nascença recuperara a visão”. Jesus o procura e o
encontra. "Crês no Filho do Homem"? Atônito , ele pergunta: “Quem é ele'? E Jesus, tal como o fizera
com a samaritana, se revela a ele.
A expressão “Filho do Homem aparece em pap. 66 e 75, aleph, B, D, W, versões sahídica, achimimia-
na, faiúmica, boaírica (mss) e siríaca sinaítica; copta; é mais segura que “Filho de Deus”, evidente
emenda posterior de A, K, L, X, delta, theta, psi, omega, alguns minúsculos e das versões latinas.

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Diante do novo iluminado, declara Jesus ter vindo para um arbitramento (krima) a fim de que os cegos
vejam e os videntes se tornem cegos. É a afirmação clara de que o fato deve ser interpretado como
alegoria ou símbolo.
Alguns fariseus que se achavam presentes quiseram saber imprudentemente (a verdade ofusca e cega)
se acaso eles (fariseus) eram cegos. A resposta de Jesus é sábia: se fossem realmente cegos, e nada
conhecessem, a respeito da verdade, não haveria erro da parte deles; mas eles mesmos se diziam sá-
bios, competentes, que viam, e nisso consistia a erro que permanecia neles.

A explicação teórica da lição anterior deve ter sido completa, levando a verdadeira LUZ a alguns dos
Espíritos de discípulos ali presentes, adiantando-os na senda. Mas talvez em alguns deles tenha havi-
do maior dificuldade de compreensão. Como agir diante do mundo, depois de iluminados? O ideal
não seria revelar tudo isso aos chefes religiosos? Que maravilha se as maiores autoridades das reli-
giões conseguissem VER o que ocorria àqueles que recebiam a iluminação interior! Como progrediria
a humanidade se os dirigentes da religião oficial comprovassem a Realidade do Espírito! A humani-
dade poderia rapidamente modificar-se. Eles mesmos abandonariam o egoísmo ambicioso, para vive-
rem a doação de si mesmos aos desamparados. Perceberiam a vaidade e falácia das coisas da terra e
subiriam aos píncaros da espiritualidade, seriam "iluminados".
O Mestre ouviu, embaraçado por não querer desiludi-los, a explosão da esperança em seus corações.
E resolveu dar-lhes um exemplo vivo. Nada melhor que um cego de nascença, para servir à alegoria,
demonstrando que nem sequer a iluminação física seria reconhecida, quanto mais a espiritual que se
oculta no fundo d’alma.
A demonstração prática foi completa, revelando a dificuldade de uma criatura obter a iluminação
interior e o Encontro Sublime, se para isso não está preparada evolutivamente.
Procuremos analisar cada linha e cada entrelinha da narrativa de João e do fato que foi realizado
bem a propósito, como exemplificação do que é “ser a luz do mundo". Observamos anteriormente (cfr.
vol. 3) que o Mestre agia primeiro para explicar depois. Aqui a ordem foi invertida.
O evangelista, bem imbuído do ensino aprendido em sua vivência, soube ocultar em suas palavras,
com rara sabedoria, tudo o que foi dito aos discípulos de boca a ouvido, e que não deveria ser divul-
gado naquele momento da História. Só muito mais tarde poderia ser publicado, quando a humanidade
fosse abrindo os olhos de ver, os ouvidos e ouvir e sobretudo o coração de entender.
A lição parece ter sido provocada pelos próprios discípulos, ávidos de conhecimento mais profundo
do ensino místico do Cristo.
Já vimos que a primeira parte se refere às causas das doenças. Nem todas constituem resgates cármi-
cos de ações de vidas anteriores: algumas há que são “aguilhão evolutivo”. Os termos registrados
pelo narrador resumem a lição em algumas linhas, onde só o essencial é dado a lume, para que os
profanos não penetrassem o significado total, mais tarde, viria a inspiração para que se revelassem
um pouco mais do teor da lição. Mas a palavra érga, “ação", levanta a pista. Estando Deus dentro de
todos e de tudo, a ação divina se manifesta de dentro para fora.
No entanto, a este segue-se logo outro ensino de capital importância. Fala o Cristo Interno a Seus
discípulos: “Nós devemos executar as ações de Quem Me enviou”. A Centelha crística é enviada ou
projetada pelo Pai (SOM) e se reveste de forma e veículo físicos para, de dentro, fazer evoluir o Espí-
rito que dela se individou. O processo é conhecido, não precisamos repeti-lo. No homem, a Centelha
continua seu trabalho de impulsionar à evolução. Mas o grosso da humanidade não alcançou ainda o
contato e a comunicação direta com a Centelha, pois nem sequer atingiu o conhecimento intelectual
desse fato. A Seus discípulos, já iluminados, o Cristo afirma que a verdadeira evolução é proveniente
dessa ação divina interna, e que ela só pode efetivar-se "enquanto é dia", pois vem a noite quando
ninguém pode agir. Parece enigmático o resumo que João faz do ensino.

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Mas, sentindo isso, ele apressou-se a acilitar a explicação: "cada vez que eu esteja no mundo, sou a
luz da mundo", isto é, todas as vezes que me manifesto no coração da criatura, ilumino-a, tornando-a
dia (LUZ) para que ela tenha claro seu caminho.
Segundo o Prof. José Oiticica o termo "mundo", exprime os veículos físicos. Logo conforme escreve
("Os Sete eu sou", 1958, pág. 7 ), o significado da frase é: "O Cristo encerrado nos veículos físicos da
manifestação é a luz desses veículos”.
Mas enquanto o Cristo se mantém "adormecido no fundo do barco" (Mat. 8:24, Mr. 4:38, Luc. 8:23)
levantam-se as tempestades nas trevas da noite do Espírito e ele não pode agir, não consegue dar os
passos evolutivos (ergázesthai = evoluir), porque perde o rumo certo, desvia-se da rota, “erra" (ha-
martânô) o caminho.
Passa então ao ensino prático, de ação física, reveladora do processo espiritual. Começa mostrando
que o Cristo Cósmico lança de Si uma Centelha ("cospe no chão",) a qual se mistura com os elemen-
tos materiais (terra), formando um corpo físico (lama) cuja VIDA é a Centelha (cuspo). Estando esta
oculta num corpo, enquanto assim se mantiver, a criatura é cega de nascença; mas quando essa cria-
tura receber o impacto no intelecto (olhos) poderá reaver a visão. Para isso, é mister cristificar (o
verbo grego usado aqui é epichríô, composto de chríô, ungir, cujo particípio passado é christós) o
cérebro (visão). Maravilhosa lição contida numa pequena palavra! Por isso, unge (cristifica) os olhos
do cego de nascença (de quem se acha na ignorância completa) e manda-o "lavar-se na piscina de
Siloé", ou seja, manda que mergulhe (batismo) nas águas (na interpretação alegórica da doutrina) da
Enviado (isto é, do Cristo, o Enviado do Pai).
Haverá lição mais clara e explícita para indicar-nos o caminho certo do Encontro com o Cristo Inter-
no?
O cego é dito "de nascença" porque só nascera como ser humano "de baixo”, e jamais conhecera a
luz do alto (José de Oiticica, o.c., pág. G). Podemos, também, interpretar como um ensino o cuspir na
terra: só através da encarnação, do mergulho da essência crítica na matéria e especialmente depois
que se lavou, mergulhando nos ensinos alegóricos (não os literais) do Enviado do Pai, é que o Espí-
rito pode evoluir.
Quando isso ocorre com uma criatura, a modificação é tão radical e profunda, que todos os “vizi-
nhos" (sejam células, órgãos, veículos físicos, ou pessoas externas) chegam a duvidar se trate daquele
mesmo que estavam habituado, a ver triste, sorumbático, miserável, a mendigar nas esquinas um pou-
co de felicidade, como tantos que vemos a correr ansiosos pelas instituições espiritualistas, mendi-
gando luz sem obtê-la, e permanecendo cegos, desorientados, angustiados. Mas, cuidado com os equí-
vocos: muitos há que experimentam arrebatamentos, êxtases, iluminações ou "samádhis” e acreditam
que isso constitua a União definitiva. São passos decisivos para alcançá-la, mas ainda não são o final
ansiado. Aqui, neste capítulo, trata-se exatamente da obtenção da União por meio da iluminação.
Verificado o resultado, vem o desejo de todos de saber como foi isso conseguido. A resposta do recém-
iluminado esquematiza o processo com extrema simplicidade: o homem chamado Jesus (a individuali-
dade) fez lama (misturou a Centelha divina com a matéria, plasmou o corpo físico), ungiu-ma sobre os
olhos (cristificou-me a capacidade intelectiva) e ordenou-me que me lavasse (mergulhasse) nas águas
(na interpretação alegórica da doutrina) de Siloé (do Enviado do Pai, o Cristo Interno); fui (obedeci:
faça-se a tua vontade), lavei-me (mergulhei no coração) e vi (encontrei-me com a Centelha divina). A
concisão da frase, em sua singeleza, transmite esperançosa mensagem a todos os que lêem o sentido, e
não apenas as palavras; a todos os que "sentem", e não apenas vêem as letras impressas.
Contínua o desejo de saber mais; "Onde está ele"? A resposta só podia ser a que foi dada: "Não sei".
Como saber ONDE se encontra o Infinito, ONDE se situa o Eterno, ONDE se aloja o Ilimitado? Im-
possível dizê-lo, porque impossível sabê-lo: está em todo lugar e em nenhum lugar, já que não se lo-
caliza no espaço: é inespacial; está sempre presente, mas sempre ausente, pois não se manifesta no
tempo: é eterno e atemporal; é o grande nada; é o Absoluto em que mergulha o relativo que não pode
defini-Lo nem percebê-Lo; é invisível aos nossos olhos, insensível a nossos sentidos, pois vibra em

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outra dimensão, só perceptível à superconsciência do Eu profundo, quando este desperta para a Rea-
lidade.
Vem a seguir uma lição para aqueles que encontram na escola da Iniciação, na “Assembléia do Ca-
minho": a exemplificação do que sempre ocorrerá com eles em relação aos profanos. Ao descobrirem
um Iniciado verdadeiro (não os que se dizem tais, mas os que realmente o são, e nunca o dizem a
quem quer que seja) eles querem forçá-lo a limitar-se numa religião, a restringir-se numa seita, a fili-
ar-se a um partido, cerceando sua liberdade sob o jugo dos poderosos da Terra. E de modo geral o
círculo escolhido é dos piores e mais farisaicos e anáticos que quererão obrigá-lo ao obedecer a todos
os preconceitos e conveniências humanas, por mais ilógicas e absurdas.
O processo utilizado é descrito em pormenores, finalizando com a excomunhão, inevitável para que as
organizações religiosas oficiais mantenham sua "autoridade" e supremacia sobre os profanos; a pre-
sença de um iluminado entre eles viria ofuscá-los diante do público, obumbrando-lhes a ignorância
travestida de sabedoria. Corpo estranho que pertubaria os interesses materiais ardentemente busca-
dos e que jamais são suficientes para aplacar-lhes a ambição.
Mas a criatura iluminada procura demonstrar com fatos, mesmo perante assembléias hostis, a verda-
de que experimentou, apresentando todos os testemunhos pedidos, embora, firme na sua convicção e
na experiência vivida (fui cego e agora vejo) não se deixe abater nem intimidar. Já os profanos ame-
drontam-se com as ameaças; os "judeus" (religiosos ortodoxos) podem excomungá-los.
Observemos que o verbo homologeô significa literalmente "falar igual", donde "ser igual", “ser con-
forme", "confirmar", "Dele se derivam o nosso "homologar". Vemos nesse verbo o sinônimo mais
aproximado do nosso atual verbo "sintonizar”, ou seja, vibrar na mesma tônica, expressões que
àquela época não podiam ser proferidas, por serem desconhecidas as ondas elétricas e hertzianas(1).
(1) Confessamos que essa interpretação pode causar estranheza a alguns leitores, porque nós mesmos a
estranhamos. Mas temos sempre procurado ser sinceros e honestos, escrevendo com toda fidelidade as
idéias que chegam, algumas tão inesperadamente (como esta) que chegamos a ficar atônitos. Mas de-
pois de recebê-la ficamos inteiramente de acordo com ela (homologêkamen), sentimo-la, houve per-
feita sintonia mental. Assim também a condenação dos profanos virá fatalmente, traduzida em lutas
contínuas e perseguições contra todos os que conseguirem SINTONIZAR O CRISTO. Não fosse tão
nova e chocante a idéia, inclusive constituindo o termo forte anacronismo, e o teríamos colocado na
própria tradução do texto evangélico, porque, a nosso ver, "sintonizar" é o verbo moderno que traduz
mais perfeitamente homologéo.
Uma lição que precisa ser bem aproveitada é o final do capítulo.
Inicialmente observemos que houve uma iluminação, resultante da ação crística (atuação da "graça")
e do mergulho (atuação do "livre arbítrio"). A visão lhe chegou nova (não houve "recuperação", pois
era cego de nascença). Mas o Encontro não havia sido atingido, apesar da "cristificação" que lhe foi
proporcionada antes do mergulho. Compreendemos, então, que essa "cristificação" foi o apelo crísti-
co interno da "graça", num primeiro chamamento.
Como, porém, a criatura obedeceu - é o caso de dizer - cegamente, e teve a coragem moral de arros-
tar as autoridades sem esmorecer (inclusive o próprio intelecto perquiridor) e recebeu com humildade
o castigo do mundo que o expulsou do templo externo das personalidades, aí então, e só então, o
Cristo se manifesta a ele. Pergunta-lhe se crê, se pretende "ser fiel", ou seja, manter a fidelidade ao
Filho do Homem (ou Filho de Deus). E a boa-vontade é total: "Quem é ele para que lhe possa ser fi-
el"? O Cristo se revela (tira o véu = apokálypsai) e ele o VÊ em todo o Seu esplendor divino. E ani-
quila-se diante dele ("prostra-se"). Lógico que tudo isso se passa no íntimo da criatura. Expulsa do
templo exterior da personagem, houve outro mergulho no templo interno do coração, e aí, de fato, se
dá o Encontro Sublime. Coroamento celestial de uma experiência fascinante que arrebata e transfor-
ma uma vida.
O Cristo, cada vez que se revela a este mundo - a uma criatura - produz inesquecível efeito. Mas esse
efeito possui duas acetas antagônicas: os que não vêem, os que são cegos, tornam-se videntes, ilumi-

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nados pelo Cristo. Mas aqueles que julgam ver, com a fraca luminosidade do intelecto, vaidosa e oca
("a sabedoria do mundo é estultícia diante de Deus”, 1.ª Cor. 3:19) esses tornam-se cegos. Em outras
palavras, os que são humildes e, ainda que sábios, reconhecem sua ignorância e anseiam pelo Espí-
rito, são iluminados pela luz interior (agem enquanto é dia) e passam a ver tudo pelo prisma da ver-
dadeira Sabedoria. Mas aqueles que só vêem as coisas materiais e por isso se julgam videntes, esses
diante do Espírito se tornam cegos, e passam a não perceber mais nada. A explicação dada aos fari-
seus confirma esse ponto de vista. E por isso “permanecem no erro”, isto é, continuam a vaguear por
tempos intermináveis nas sendas ilusórias do mundo físico da personagem, presos à roda das encar-
nações.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

A PORTA DAS OVELHAS


João, 10:1-9
1. "Em verdade, em verdade vos digo: o que não entra pela porta do aprisco das ove-
lhas, mas sobe vindo de outro lugar, é ladrão e assaltante.
2. Mas o entra pelo porta, esse é pastor das ovelhas.
3. A este abre o porteiro e as ovelhas ouvem sua voz, e ele chama pelo nome suas ovelhas
e as conduz para fora.
4. Cada vez que conduz para fora todas as suas, vai adiante delas e as ovelhas o seguem
porque conhecem a voz dele.
5. Mas de modo algum seguirão o estranho, antes, fugirão dele, porque não conhecem a
voz dos estranhos".
6. Jesus disse esse provérbio, mas eles não compreenderam o que era que lhes falava.
7. Disse, então, Jesus de novo: "Em verdade ,em verdade vos digo: eu sou a porta das
ovelhas.
8. Todos quantos vieram em meu lugar são ladrões e assaltantes, mas as ovelhas não os
ouviram.
9. Eu sou a porta: se alguém entrar por mim, será salvo, e entrará, sairá e achará pasta-
gem”.

O trecho que acabamos de ler, bem como o próximo, parecem ser a continuação da conversa de Jesus
com o ex-cego e com seus discípulos. Após a simbologia dos cegos e videntes, vem o ensino que João
resumiu, de como penetrar na Escola de Jesus, a "Assembléia do Caminho", e conseguir o ambiciona-
do objetivo.
Inicia com uma parábola a que João chama um "provérbio" (paroimía) palavra que aparece aqui e mais
duas vezes (João, 16:25 e 29). O termo “parábola" só é empregado nos três sinópticos (47 vezes) e na
epístola aos hebreus (2 vezes), e nunca em João nem em Paulo.
Interessante observar que essa parábola é iniciada com a fórmula solene das grandes verdades: "amén,
amén", o que levanta logo a suspeita de que se trata de profundíssimo ensino que João esquematizou
em forma de parábola.
É uma comparação pastoril que opõe a situação do pastor num redil à do ladrão que vem roubar. Se-
gundo o costume palestiniano da época, o rebanho era recolhido à noitinha num aprisco, cercado de
muro baixo de pedras, enquanto os pastores iam dormir, só ficando de atalaia um porteiro. Pela ma-
nhãzinha vinham os pastores buscar suas ovelhas, o que faziam emitindo cada um seu grito gutural
próprio. As ovelhas conheciam a voz de seu pastor e o seguiam para as pastagens frescas, grudadas a
seus calcanhares. Era comum dar nomes aos principais animais do rebanho, as guias ou "madrinhas”.
Já se qualquer estranho quisesse penetrar no cercado, tinha que pulá-lo, porque o porteiro não o deixa-
ria entrar; e se o conseguisse, não adiantaria procurar imitar o grito do pastor, porque as ovelhas, não
lhe reconhecendo a voz, não o seguiam e até fugiam, amedrontadas.
A palavra empregada, que acompanhando a tradição utilizamos na tradução como "ovelhas", é próba-
ton, que exprime qualquer animal de quatro patas (ou melhor, que caminhe para a frente), mas designa
mais especialmente o gado lanígero (ovelhas, cordeiros, carneiros). Nada impede que se utilize a pala-
vra “ovelhas".
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Os discípulos não percebem a lição dessa parábola. Jesus a explica: “eu sou a porta das ovelhas"; só
quem entrar por mim será salvo. A expressão “entrar e sair” é semítica, e manifesta a liberdade de ir e
vir (cfr. Núm. 27:17; Deut. 31:2 e 1.º Sam. 17:15).
O vers. 8 é violento: pántes hósoi êlthon, “todos quantos vieram", prò einoú, “em meu lugar", kléptai
eisin kaì lêptaí, (observemos a assonância, tanto mais que o kai era popularmente elidido na conversa-
ção) “são ladrões e assaltantes". A locução prò emoú pode ser interpretada como adjunto temporal,
“antes de mim", ou como locativo, "em meu lugar", isto é, fazendo-se passar pelo Cristo. Talvez hou-
vesse uma alusão aos que, havia pouco, se haviam dito “messias": JUDAS, o galileu (cfr. At. 5:37),
natural de Gamala, que é chamado por Flávio Josefo ora Gaulonita (Ant. Jud. 18, 1, 1) ora o galileu
(Ant. Jud. 18, 1, 6; 20, 5, 2; Bell. Jud. 2, 8, 1; 17, 8, 9; 7, 8, 1). Segundo esse historiador, foi ele o fun-
dador da seita dos zelotes (designativo de Simão, um dos doze discípulos de Jesus, Luc. 6:15 e At.
1:13). Morreu em 6 A.D. em combate com os romanos; e TEUDAS (cfr. At. 5:36) só conhecido por
essa citação, e que talvez seja o Simão citado por Flávio Josefo (Bell. Jud. 2, 4, 2; Ant. Jud. 17, 10, 6),
assassinado pelas autoridades. Ambos combatiam o domínio romano, atribuindo-se as qualidades do
messias.
Mas se a interpretação aceitar o "antes de mim", essa frase englobaria todos os profetas e avatares an-
teriores a Jesus o que não seria fácil de explicar. Donde talvez o melhor sentido seja "em meu lugar", o
que seria confirmado por Mateus (24: 24) e Marcos (13:22), quando falam que outros pseudo-cristos
aparecerão na Terra, os quais "enganariam até os escolhidos, se fosse possível".

Aqui se nos depara mais um ensinamento simbólico e iniciático.


Vejamos, primeiro, o simbolismo. Observemos que os elementos citados são: a porta, o aprisco, o
pastor, o ladrão, as ovelhas, o porteiro, a voz e a pastagem.
Num plano restrito encontramos:
• ovelhas - as células do corpo humano
• aprisco - o corpo humano
• ladrão - a matéria, as sensações, as emoções
• porteiro - a intuição
• pastor - o Pai
• voz - a consciência
• porta - o Cristo Interno
• pastagens - a espiritualidade
A ação assim se desenrola: as ovelhas ou células do corpo humano, individuações conscientes que
trabalham ativamente e sem descanso para ajudar a evolução do Espirito, vivem no aprisco do corpo
das criaturas. Mas acontece que, por vezes, surgem os ladrões e assaltantes, que são as sensações,
emoções e até o intelecto, que sobem vindo de outro lugar, isto é, do polo negativo do Anti-Sistema,
metaforicamente situado "em baixo". Daí ter sido usado o termo "sobem". Não podem entrar quando
o porteiro, a intuição, lhes percebe as más intenções e proíbe o avanço. Às vezes, porém assaltam com
violência atraindo-nos com desejos incontrolados (soberba, avareza, sensualidade, inveja, gula, ira e
preguiça) que nos roubam a paz, turbam a visão e atrasam na caminhada evolutiva. Mas as ovelhas
(células) ouvem a voz do Pastor, a voz silenciosa da consciência, o SOM do Pai que é o Bom Pastor, e
que penetra em nós pela porta, que é o Cristo Interno. Essa porta não apenas serve de entrada para a
orientação superior, como também é utilizada para a saída, a fim de que as células (e o homem) evo-
luam. Só através do Cristo Interno, essa PORTA divina em nós, poderemos evoluir, alcançando as
pastagens, a espiritualidade, e a liberdade de ir e vir, sem estar sujeitos ao ciclo fatal das reencarna-

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ções compulsórias. Só por meio do Cristo Interno a criatura poderá elevar-se do astral ao mental e a
outros planos superiores.
Num plano mais amplo, temos:
ovelhas - as criaturas humanas, células do corpo de Jesus;
aprisco - a humanidade do planeta Terra;
ladrão - elementos inferiores rebeldes, intelecto;
porteiro - intuição;
pastor - o Pai;
voz – Jesus;
porta - o Cristo;
pastagem - o planeta espiritualizado.
Já vimos que as células, individuações conscientes, evoluem gradativamente, passando pelo estágio
animal até chegar, após milênios sem conta, ao estágio hominal. Firmemos bem o princípio de que as
células são constituídas da parte física (corpo material), do etérico, do astral, do mental (concreto e
abstrato), do psiquismo (ainda não é pneuma, Espírito, grau que o psiquismo atingirá somente quando
chegar ao estágio hominal) e da Centelha Divina.
Aqui cabe mais um passo na explicação a respeito da Centelha Divina e da Mente, que dissemos estar.
no homem, "localizada" no coração. Como então, existe em cada célula? A Centelha divina, já o dis-
semos, (vol. 4) não se localiza, pois é infinita e não se destaca do Todo. O que existe no coração é o
PONTO DE CONTATO, a "antena" que entra em sintonia com o Cristo. Na célula, como em tudo está
toda a Divindade, a Centelha e a Mente, ou seja, cada célula tem seu PONTO DE CONTATO. Afir-
mamos que o homem é uma condensação da Centelha e da Mente: ora, "condensar" é reduzir, e não
ampliar. A Centelha com sua Mente, infinitas ambas, se reduzem a um ponto material, mas permane-
cendo infinitas como a Divindade de que fazem parte e da qual não se destacam (nada se pode tirar
nem acrescentar ao que é infinito). Portanto, a Centelha com sua Mente, no homem, permanecem infi-
nitas, embora no "coração" haja um "ponto capaz de entrar em sintonia, de vibrar em uníssono, com a
Divindade. Então, nossa Centelha e nossa Mente são infinitamente maiores que nosso próprio corpo,
e o envolvem e se estendem ilimitadamente. Nós constituímos uma condensação material delas. Talvez
um exemplo, dado por Sérgio Mondaíni, faça compreender bem a coisa. No Oceano Atlântico, forma-
se, em determinado ponto, pequeno cristal de sal. É a condensação da água salgada, mas continua
mergulhado no Oceano que o envolve e interpenetra. Nesse pequeno cristal de sal, existe um "ponto
de contato" com o Oceano, e por isso dizemos que naquele ponto" se localiza, no cristal, o Oceano.
Assim acontece conosco. E tal como nesse pequeno cristal, endurecido, cristalizado, a água não pode
movimentar-se à vontade, porque está "condensada em sólido", assim, em nós, a Centelha e a Mente
não podem agir livremente, porque estão "condensadas” na matéria, e só podem agir através do cére-
bro físico material com seus neurônios. No entanto, nossa Mente continua infinita, UNA com o Cristo,
apesar de nosso cérebro físico não ter conhecimento disso porque se "destacou” ou "se isolou" do
conjunto, mesmo continuando mergulhado nele, tal como a cristalzinho de sal no Oceano Atlântico. O
objetivo que procuramos é fazer que esse cristal novamente se desfaça e se perca no Oceano, ou seja,
que aprendamos a superar nossa personagem física, para (através do ponto de contato do coração
mas não nele) podermos novamente infinitizar-nos no Todo Infinito. Acreditamos que ficou tudo claro.
As células são, pois, seres verdadeiramente completos, a caminhar na escala evolutiva. As células
físicas, que vemos em nosso corpo, são a materialização ou condensação (encarnação) de seres vivos,
já animais, embora monocelulares, que se encontram nos primórdios da evolução.
Ora, desde que chegamos pelo menos, ao estágio hominal, as células que nos acompanham e ajudam
na evolução, são AS MESMAS, até o final de nosso progresso. Não as mesmas fisicamente (a duração
máxima da vida físico-material de uma célula é de sete anos, excetuadas as do sistema nervoso), mas
mentalmente, pois quando perdem o corpo físico (desencarnam) adquirem outro (reencarnam) imedi-
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ata e automaticamente, no mesmo local e com as mesmas funções. Poderão mudar de funções entre
um desencarne nosso e outro (se largamos o corpo astral) a fim de irem treinando as diversas tarefas
que lhes forem cometidas.
Daí termos aventado a hipótese (vol 1) de que a atual humanidade do planeta Terra é constituída das
células já evoluídas ao estágio hominal, do corpo que serviu a Jesus em sua evolução há milhões de
séculos ou milênios, e por isso foi ele o encarregado de construir este planeta como habitat de SUAS
antigas células, para ajudar e dirigir a evolução dos que também O ajudaram a evoluir a seu tempo, e
isso sob a orientação de Espíritos superiores a Ele (por exemplo, Melquisedec, cfr. Hebr. 4:14; 5:6,
10; 6:20 e cap. 7). Então, o planeta Terra é o aprisco em que se reúnem todas as suas ovelhas; mas os
elementos inferiores, provenientes do Anti-sistema, com o intelecto ainda rebelde e não iluminado,
procuram roubar essas ovelhas para outros caminhos tortuosos, apesar dos esforços do porteiro (in-
tuição) que ouve a VOZ (SOM) do Pai, através dos avatares que nos mostram o caminho.
Ora, falando o Cristo Interno, diz-nos que é a PORT A. através da qual nos chega a Voz do Pastor (o
Pai), e através da qual, pela união atingiremos a unificação e infinitização com o Pai, a perfeita SIN-
TONIA com o SOM. Só com esse trabalho evolutivo, através do Cristo, conseguiremos a liberdade de
ação espiritual e as pastagens, isto é, a vida liberta no planeta espiritualizado. Sem essa união através
do Cristo, nada se conseguirá.
No campo da iniciação sabemos que há uma passagem estreita e difícil, que os Espíritos têm que atra-
vessar para atingir o estágio superior. Há um ponto-chave, uma angustura, que é a passagem da per-
sonagem à individualidade, a perfeita metánoia ou mudança da mente ou pensamento, que deixa de
agir através da mente concreta (intelecto) para fazê-lo diretamente por meio da mente abstrata (ou
Mente), com o indispensável desapego total (ou o abandono, se necessário, na vida monacal) de todos
os contatos inferiores (matéria, sensações, emoções, intelectualismo) que são definitivamente supera-
dos. E só um meio existe de atravessar essa passagem estreita, conforme foi ensinado: “entrai pela
porta estreita ... poucos são os que a encontram" (Mat. 7:13-14) e “forcejai por entrar pela porta es-
treita, porque vos digo que muitos procurarão entrar e não serão capazes" (Luc. 13:24. cfr. vol. 2),
Pois o Cristo é essa PORTA ESTREITA, mas segura e garantida. Se conseguirmos atravessá-la, tere-
mos liberdade de entrar e sair e pastagens maravilhosas.
Realmente, a passagem através do Encontro com o Cristo Interno (que é também externo e infinito) é
das mais difíceis de conseguir na senda evolutiva. Mas há que atravessar essa porta, para alcançar "o
outro lado" das pastagens, para conseguirmos passar da matéria ao Espirito. E esse passo só o con-
seguiremos dar enquanto mergulhados na carne (o cuspo, misturado com a terra, é que possibilita a
visão). Tentemos com todas as nossas forças e não desanimemos de tentá-lo, ainda que levemos nessa
luta dez, vinte ou cinquenta encarnações.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

O BOM PASTOR
João, 10:10-21
10. "O ladrão não vem senão para roubar, matar e destruir; eu vim para que elas te-
nham vida e a tenham abundante.
11. Eu sou o Bom Pastor. O bom pastor aplica sua alma sobre as ovelhas.
12. O mercenário, não sendo pastor, de quem as ovelhas não são próprias, vê vir o lobo e
deixa as ovelhas e foge, e o lobo as agarra e dispersa,
13. porque é mercenário e não interessam as ovelhas
14. Eu sou o Bom Pastor, conheço as minhas (ovelhas) e as minhas me conhecem,
15. assim como me conhece o Pai e eu conheço o Pai; e aplico minha alma sobre as ove-
lhas.
16. E tenho outras ovelhas que não são deste aprisco; estas devo trazer, e ouvirão minha
voz e haverá um rebanho, um pastor.
17. Por isso o Pai me ama, porque aplico minha alma para que de novo a recolha.
18. Ninguém a tira de mim, mas eu de mim mesmo a aplico. Tenho o poder de recolhê-la:
esse mandamento recebi de meu Pai".
19. Por causa desses ensinos, houve de novo divergência entre os judeus.
20. Muitos deles diziam: "Ele tem obsessor e tresvaria, por que o escutais?"
21. Outros diziam: "Essas palavras não são de um obsedado; pode acaso um obsessor
abrir os olhos aos cegos"?

Sem intervalo, no resumo de João, passa-se à segunda aplicação da parábola, em que Jesus se diz "O
Bom Pastor".
A figura de pastor, com aplicação ao guia espiritual, já era comum no Antigo Testamento. É atribuída
a YHWH "a rocha de Israel" por Moisés (Gên. 49:24); e o próprio YHWH verbera os pastores de Is-
rael porque relapsos (Ez. 34:1-10) e diz que ele mesmo será o pastor de seu povo (Ez. 34:11-31), sali-
entando que "suscitará sobre eles um só pastor, que as apascentará, meu servo amado (1). Ele as apas-
centará e servirá de pastor. Eu YHWH serei seu Elohim, e meu servo amado será príncipe entre eles"
(2).
(1) As traduções trazem "meu servo David". Ora, David reinou em Israel de 1055 a 1015 A.C., ao
passo que Ezequiel escreveu essa profecia no cativeiro da Babilônia, com Oconias, em 592 A.C., isto
é, mais de quatrocentos anos depois de David. A não ser que se queira aceitar que Jesus seio o reen-
carnação de David, o que parece contradizer os fatos, temos que admitir não se possa falar no futuro
de uma personagem passado. Evidente, então, que nesse passo david é um substantivo comum, e como
tal temos traduzi-lo: "o amado".
(2) Outros passos do A.T. em que "pastor" tem esse sentido de "guia' espiritual: Núm. 27:17; 1.º Reis
22:17; 2.º Crôn. 18:16; Judit, 11:15; Ecl. 12:11; Ecli. 18:13; Cânt. 1:7; Isaías, 13:20; 31:4; 38:12;
40:11; 44:28; (referindo-se a Ciro); 56.11; 63:11; Jeremias, 2:8; 3:15; 6:3; 10:21; 12:10; 17:16;
22:22; 23:1, 2, 4; 25:34-36; 31;10; 33:12; 43:12; 49:19; 50:6, 44; 51:23; Ezeq. 37:24; Amós, 1:2;
Miq. 5:5; Nah. 3:18; Zac. 10:2, 3; 11:3, 5, 8, 16, 17; 18:17. No Novo Testamento. Mat. 9.36; 25:32:

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26:31: Marc. 6.34: 14:27; 1.º Cor. 9; 7; Ef. 4:11; 1.º Pe. 2:25; 5:2, 4. E em João, 21:15-17, Jesus
encarrega Pedro de cuidar de Seu "rebanho".

Figura “O BOM PASTOR”

Nesta segunda interpretação da parábola é dado um passo adiante. Salienta Jesus, de início, que o “la-
drão" só vai ao rebanho para "roubar, matar e destruir", ao passo que Ele veio para vitalizá-las mais
abundantemente (perissóm). E afirma: "eu sou o bom pastor": caracterizando-o pelo que faz: "aplica
sua alma sobre as ovelhas”. Aqui afastamo-nos das traduções correntes que trazem: "dá a vida pelas
ovelhas". Vejamos o original: ho poimên ho kalos tên psychén autoú títhêsin hypèr tõn probátôn; ora,
títhêmi só tem contra si dídômi (dar) no papiro 45, numa emenda posterior do Sinaítico, em D e na
versão latina e siríaca sinaítica; e títhêmi significa “depositar, colocar e aplicar" (como prefere o Prof.

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José Oiticica, "Os 7 Eu Sou”, 1958, pág. 7): tên psychên é a “alma”, o princípio espiritual vivificador;
e hypér pode ser “em favor de", sem dúvida, mas o sentido principal é "sobre", e há razões para mantê-
lo. Não devemos modificar, na tradução, o significado das palavras, sob pena de escapar-nos o sentido
profundo que elas exprimem.
Enquanto o mercenário foge e abandona as ovelhas ao ver o lobo, o pastor a elas se dedica, porque as
ovelhas são de sua propriedade e ele as ama e as conhece uma a uma pelo nome. Mas outras há que
não são deste aprisco e mister será reuni-las para que haja um só rebanho, um só pastor. Notemos que
no original não há a cópula "e". Essa universalidade de “salvação" é assinalada por Paulo: "todos vós
sois UM em Cristo" (Gál. 3:28): “há um só Espírito ... até que TODOS cheguemos" à perfeição (Ef.
4:4, 13).
O vers. 8, ao invés das traduções vulgares que trazem: "tenho direito de dar minha vida e de reassumi-
la" (coisa sem sentido) diz no original: “tenho o poder de aplicar minha alma e tenho o poder de reco-
lhê-la”, também aqui concordando com a opinião do Prof. José Oiticica.
Novas discussões (cfr. João, 7:43 e 9:16) causaram esse ensino, uns apontando Jesus como obsedado,
outros não acreditando que um obsessor pudesse ter aberto os olhos a um cego de nascença.

Examinemos, agora, a parte muito mais importante do ensino, que tem que entender-se penetrando em
profundidade as palavras do rápido resumo que João nos legou.
Analisemos segundo a interpretação dada, no capítulo anterior, aos termos utilizados. Estamos no
plano a que denominamos "mais amplo".
“O ladrão vem apenas para roubar, matar e destruir". Trata-se da personagem (a matéria, com seu
peso; as sensações com seus gozos; as emoções com seus descontroles apaixonados; o intelecto com
sua rebeldia analista e discursiva), também chamada "antagonista" (satanás) ou adversário (diabo)
que pode mesmo considerar-se um "ladrão" da espiritualidade. Realmente a personagem "rouba,
mata e destrói" tudo o que é espiritual, pois só vê e percebe as coisas da matéria e dos sentidos. O
Cristo Cósmico, entretanto, penetra tudo e todos, dando-lhes Vida, e "age" para que essa Vida seja
mais abundante e plena, mais rica e vibrante, do que a simples "vida" psíquica dos veículos inferiores.
Então chega-nos a declaração enfática: "eu sou o BOM PASTOR", o que governa o conjunto das
ovelhas, o que vive nelas e por elas, que delas cuida e as ama, que constitui a "alma grupo" de todo o
rebanho, "a cabeça de todo o corpo" (cfr. 1.ª Cor. 11:3; Ef. 4:15 e 5:23; Col. 1:18 e 2:10).
A esta segue-se a frase que foi modificada por não ter sido entendida: "'o bom pastor aplica sua alma
sobre suas ovelhas", ou seja, o Cristo utiliza e aplica toda a Sua alma, a Sua força cristônica, sobre
Suas criaturas, para fazê-las evoluir a fim de alcançá-Lo. Isso foi representado ao vivo com o cuspo
misturado à terra, para ser colocado sobre os olhos do cego de nascença. O que também exprime que
só através da encarnação, do mergulho na matéria, é que o ser pode trabalhar por sua evolução.
Aqui entram mais dois elementos de comparação: o mercenário e o lobo. O "mercenário" é o intelec-
to, que "faz as vezes" de pastor, isto é, que em nome do pastor (Mente Crística) toma conta dos veícu-
los inferiores. No entanto, sendo mercenário, não cuida como deve do tesouro que lhe foi confiado; é
quando aparecem os lobos (as paixões desordenadas vorazes, insaciáveis, trazidas pelos instintos,
pelos desejos, pelas necessidades). O mercenário "se retira", deixando campo aberto e livre às pai-
xões, aos lobos. A frase é de sentido usual e corrente: perturbação dos sentidos, obliteração intelectu-
al, a ira cega, e tantas outras expressões que demonstram que realmente nos grandes embates emoci-
onais, os lobos paralisam o intelecto, amordaçam a acuidade de racionar, e o corpo e o psiquismo são
estraçalhados pelos paroxismos passionais, agarrados e desorientados pelos rapaces devoradores,
que roubam, matam e destroem.
Assim age o intelecto "mercenário", porque as células não lhe pertencem e não lhe interessam, já que
é simples coordenador, como governo central, substituto eventual e temporário da Mente. Além disso,
julga-se a autoridade máxima e única que tem a capacidade de resolver seus problemas e os da per-

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sonagem, pois chega até a ignorar a existência da Mente abstrata: ele vem "de baixo" (sobe), e a
Mente é "de cima"; ele pertence ao Anti-Sistema, a Mente ao sistema; ele representa o polo negativo,
a Mente o positivo: ele é o chefe dos veículos inferiores, a Mente é espiritual. Daí, com frequência,
recusar o intelecto a espiritualização e confessar-se materialista e ateu, só acreditando no que a ele
chega através dos sentidos, e não da PORTA que é o Cristo.
Já com o Cristo o caso difere fundamentalmente. Ele conhece uma a uma cada célula (cfr. Mat. 10:30;
Luc. 12:7 e 21:18), porque de dentro de cada uma, embora também de fora (imanente e transcenden-
te) a impele à evolução, ajudando-lhe a escalada ascensional. As células lhe pertencem, porque são
condensação Sua, quando Se sacrificou, baixando Suas vibrações até o Anti-Sistema, a fim de provo-
car-lhes a individuação que lhes forneça a diferenciação do Todo, para o aprendizado. O Cristo In-
terno, por isso, APLICA SUA ALMA sobre cada uma das células, e por isso as conhece plenamente,
tanto quanto conhece o Pai e é conhecido pelo Pai; pois assim como Ele é UM com o Pai e o Pai UM
com Ele, assim Ele é UM com as células e as células são UM com Ele.
Como agora estamos considerando as células já evoluídas ao estágio hominal (na acepção do “plano
mais amplo"), neste sentido o Cristo afirma também que conhece cada ser humano tanto quanto é co-
nhecido pelo Pai e vice-versa, porque o Cristo é UM com cada uma de Suas criaturas, embora cada
criatura ainda não saiba que é UM com Ele. E não o sabe porque se acha dissociada Dele pelo inte-
lecto da personagem que, tendo vindo "de baixo", ainda é cega de nascença: o mercenário ainda não
conhece o pastor verdadeiro e chega até ao cúmulo de negar Sua existência ...
Acontece, porém, que na evolução do planeta Terra, onde foram reunidas todas as antigas células,
hoje seres humanos, houve várias trocas de domicílio. A Terra recebeu, sabemo-lo, pela generosidade
de seus Mentores, grande grupo de "espíritos" provenientes de Capela e outros planetas, que não
pertencem a evolução terrena, assim como também muitos dos nativos da Terra estão estagiando em
outros planetas ("Na casa de meu Pai há muitas moradas", João, 14:2). A quais se refere o Cristo?
Aos que estão em outros planetas e que precisam ser trazidos para cá, a fim de formarem o conjunto
com seus antigos companheiros? Os aos que estão aqui, mas "não são deste aprisco”, aos quais, po-
rém, é mister unir aos deste, para que formem um todo? De qualquer forma - ou trazendo os de fora
para cá, quando o planeta tiver evoluído para recebê-los, ou conquistando os estranhos que aqui es-
tão - o fato é que deverá formar-se um só rebanho, uma só humanidade, um só pastor; da mesma for-
ma que cada corpo possui um só Espírito, assim a humanidade possui uma só “alma grupo". Para
reunir a todos, será utilizado o processo científico da sintonização de vibrações (“ouvir a voz", isto é,
igualar a frequência vibratória do SOM).
A ação do Cristo, embora constante ("Meu Pai age até agora, eu também ajo") João, 5:17) é sentida
por nós intermitentemente, porque Ele tem "o poder de aplicar e o poder de recolher” Sua força cris-
tônica, segundo Sua vontade, sem que por ninguém seja coagido. Realmente, em muitos momentos
sentimos o "apelo" que nos ativa o desejo de encontrá-Lo. Daí a teoria da "graça", que não chega
quando nós queremos, mas quando a vontade divina o determina, por ser o melhor momento para
cada um de nós. Então, podemos interpretar a "graça" como uma atuação mais forte do Cristo Interno
dentro de cada um, aplicando a vibração do SOM, "Sua alma", e buscando dar-nos a tônica, para
que, de nossa parte, busquemos sintonizar com essa nota básica. A tônica é o AMOR, por isso o Pai
vibra como Amante e o Cristo age como Amado (david), constituindo o “príncipe” entre todos. Essa é
a ordem do Pai.
O Cristo, portanto, é o bom pastor, o chefe de todo o rebanho que atualmente constitui a humanidade
terrestre; conhece todas e cada uma de Suas ovelhas, e aplica Sua força a cada uma delas no mo-
mento mais oportuno; e quando elas começam a agir por si, recolhe essa força, a fim de permitir que
elas trabalhem pessoalmente por sua própria evolução. Indispensável que aprendam a trabalhar sozi-
nhas, assumindo a responsabilidade plena seus atos.
No campo iniciático, o Cristo é o Bom Pastor, ou seja, o verdadeiro Hierofante e Rei, dentro de nós
("Um só é vosso Mestre, o Cristo", Mat., 23:10). As criaturas que agem em Seu nome, os intelectos
personalísticos que se fazem passar por Mestre, são simples agentes que vêm "de baixo", mercenários
e ladrões de almas, que roubam, matam e destroem tudo o que é verdadeiramente espiritual, para seu

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próprio proveito vaidoso, de terem sequazes que os endeusem. São numerosos e enganam a muitos só
não chegando conquistar as ovelhas escolhidas, porque estas conhecem a "voz" do verdadeiro pastor,
e não seguem estranhos. Os SONS que produzem são diferentes, fora da tônica do AMOR do Cristo.
Os que são realmente emissários Seus, esses jamais falam em seus próprios nomes, não aceitam se-
quer o nome de mestres, sabem que nada sabem, e que tudo o que lhes vem, é proveniente do Cristo
Interno que neles age. Não fazem seguidores, porque convidam apenas os homens e acompanhá-los no
cortejo do Cristo, para onde todos caminham, uns mais à frente, outros mais à retaguarda, uns como
"guias" do rebanho, com a campainha ao pescoço, outros colaborando, mas todos simples ovelhas do
único rebanho do único pastor.
O evangelista assinala, ainda uma vez, a divergência entre os religiosas ("judeus"): uns julgando ob-
sedado aquele que transmite os ensinos do Cristo, outros, porém, "sentindo" em sua voz a doce tônica
do AMOR, que faz os cegos verem, isto é, que ilumina os intelectos, e comove os corações, atraindo-os
ao Cristo.
Que a voz do Bom Pastor seja sempre o guia de nossos Espíritos, para que jamais percamos o rumo
certo, para que não erremos pelas estradas invias, para que nos libertemos dos lobos vorazes, e só
vivamos pelo AMOR e para o AMOR.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

PREGAR SEM MEDO


Luc. 12:1-12
1. Nesse ínterim, tendo-se reunido dezenas de milhares de pessoas, de tal forma que pisavam uns so-
bre os outros, começou a dizer a seus discípulos primeiro: "Precatai-vos contra o fermento que é a
hipocrisia dos fariseus.
2. Nada existe encoberto que não se descubra, nem oculto que não se conheça.
3. Por isso, tudo o que dissestes nas trevas, será ouvido na luz; e o que falastes ao ouvido, na adega,
será proclamado dos terraços.
4. Digo-vos, a vós meus amigos, não temais os que matam o corpo, e depois disso nada mais conse-
guem fazer.
5. Mostrar-vos-ei a quem temer; temei o que, depois de matar, tem o poder de lançar na geena; sim,
digo-vos, temei a esse.
6. Não se vendem cinco passarinhos por dois asses? E nem um deles está esquecido diante de Deus.
7. Mas até os cabelos de vossa cabeça estão todos contados. Não temais: valeis mais que muitos pas-
sarinhos.
8. Digo-vos mais: todo o que me confirmar perante os homens, também o Filho do Homem o confir-
mará perante os mensageiros de Deus;
9. mas o que me negar diante dos homens, será renegado diante dos mensageiros de Deus.
10. Todo aquele que proferir um ensino contra o Filho de Homem, ser-lhe-á relevado; mas o que blas-
femar contra o santo Espírito, não lhe será relevado.
11. Todas as vezes que vos levarem perante as sinagogas, os magistrados e as autoridades, não vos
preocupeis como ou com que vos defendereis ou o que falareis;
12. porque o santo Espírito vos ensinará nessa mesma hora o que deveis dizer".

Aqui temos uma série de exortações do Mestre a Seus discípulos, para que não temam os perigos,
quando se trata de anunciar a boa-nova do "Reino de Deus” dentro dos homens.
O evangelista fala de dezenas de milhares de pessoas (myria = 10.000) dizendo literalmente: episyna-
chtheisõn tõn myriádõn toú ochlóu, isto é, "se superajuntavam às dezenas de milhares de povo", a tal
ponto que pisavam uns sobre os outros em torno de Jesus para ouvir-Lhe a voz. Os comentaristas jul-
gam isso uma hipérbole. A própria Vulgata traduz multis turbis circumstantibus, "estando em redor
muito povo", não obedecendo ao original.
Há uma enumeração de percalços, que são encontrados quando alguém acorda esse assunto vital e de-
cisivo para a espiritualização da humanidade.
1) "O fermento que é a hipocrisia dos fariseus". O fermento que permanece oculto, que ninguém vê, e
no entanto tem ação tão forte que "leveda a massa toda" (cfr. Mat. 13:33; Marc. 13:21; l.ª Cor. 5:6
e Gál. 5:9). A comparação do fermento com a hipocrisia aparece em outros pontos (cfr. Mat. 16:6,
11, 12; Marc. 8:15). Não acreditar, portanto, de boa-fé, “abrindo o jogo” nas aparências dos que se
dizem ou fingem, mas NÃO SÃO. Muitos exteriorizarão piedade, fé, santidade, mas são apenas
“sepulcros caiados”. Cuidado com eles!, adverte-nos o Mestre.
2) O segundo princípio vale para essa admoestação que acabou de ser dada e também para o que se
segue: tudo o que estiver escondido e oculto virá a luz. Os hipócritas serão vergonhosamente des-

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mascarados ao desvestir-se da matéria, única que lhes permite enganar, pois o "espírito" se enca-
minhará automaticamente, por densidade, por peso atômico ou por sintonia vibratória, para o local
que lhe seja afim.
Doutra parte, todos os segredos iniciáticos ou não, aprendidos de boca a ouvido, serão divulgados a
seu tempo. O que foi dito a portas fechadas, será proclamado de cima dos terraços, às multidões. É o
que está ocorrendo hoje: tudo está sendo dito. Não mais adiantam sociedades ou fraternidades “secre-
tas”: a imprensa divulga todos os segredos. Quem tem ouvidos de ouvir ouve: quem não os tem, nada
percebe ...
3) Prossegue o terceiro aviso, de que há dois perigos que precisam ser bem distinguidos:
a) os que "matam o corpo”, que é coisa sem importância. que qualquer pessoa pode sofrer sem lhe
causar transtorno maior, como o próprio Jesus o demonstraria em Sua pessoa, deixando que assas-
sinassem com requintes de crueldade Seu corpo - e com isso até conquistando o amor de toda a
humanidade - e depois reaparecendo vivo e glorioso, como vencedor da morte;
b) e o perigo real, que vem "daquele" que tem o poder (exousía) de lançar na "geena". Já vimos que
"geena" (vol. 2) é o “vale dos gemidos", ou seja, este planeta, em que "gememos" (cfr. 2.ª Cor. 5:4
e 2.ª Pe. 1:13-14). Portanto, só devemos temer a volta constante e inevitável às reencarnações
compulsórias, que nos fazem sofrer neste “vale de lágrimas", dores morais e físicas indescritíveis e
desoladoras. E quem pode lançar-nos nas reencarnações é nosso Eu Profundo. Isso é revelado com
especial carinho, de pai a filhos: "eu vou mostrar o que deveis temer". Mas, matar o corpo, crucifi-
cá-lo. Queimá-lo, torturá-lo? Outro melhor será construído!
Depois é dada a razão por que não devemos temer. O Pai, que está EM TUDO e EM TODOS, mesmo
nas mínimas coisas, está também DENTRO de cada um. Se cuida dos passarinhos, que cinco deles
custam "dois vinténs", como não cuidará muito mais carinhosamente dos homens. "Seus amigos"? É a
argumentação a minore ad majus. Se até todas os fios de cabelo de nossa cabeça estão contados (coisa
que a criatura humana não consegue fazer), porque o Pai está inclusive dentro de cada um deles, muito
mais saberá com antecedência, o que conosco se passa e “o de que necessitamos” (Mat. 6:8).
4) Segue um ensino de base: só quem confirmar o Cristo perante os homens, será por Ele confirmado
perante os mensageiros divinos. Volta aqui o verbo homologein (veja atrás) que já estudamos. A
interpretação comum até hoje, de "confessar o Cristo", trouxe no decorrer dos séculos enorme série
de criaturas que não temeram confessar o Cristo e por Ele dar a vida, em testemunho de sua crença,
tornando-se “mártires” (testemunhas) diante dos verdugos e perseguidores.
5) A advertência seguinte é urna repetição do que foi dito atras (Mat. 12:32; Marc. 3:29), embora lá se
refira a quem atribua ao adversário uma obra divina, e aqui venha em outro contexto. Mas o senti-
do é o mesmo. Em nossa evolução estamos caminhando entre dois pólos: o negativo, reino do ad-
versário, a matéria, do qual nos vamos afastando aos poucos: e o positivo, reino de Deus, o Espiri-
to, do qual lentamente nos aproximamos. A quem ensinar contra o Filho do Homem (Jesus ou
qualquer outro Manifestante Crístico), lhe será relevado o erro: isso embora possa atrasar-lhe a
caminhada, não o faz regredir; mas quem, ao invés de caminhar para o Espírito já puro (livre da
matéria, porque o adversário também é Espírito embora revestido de ou transformado em matéria),
esse não terá como ser relevado, pois virou as costas ao ponto de chegada e passou a caminhar na
direção contrária, mergulhando mais na matéria (Anti-Sistema). Os agravos das personagens cons-
tra as personagens não têm gravidade. Mas quando atingem o Espírito, assumem graves caracterís-
ticas cármicas.
Há uma observação a fazer. Neste trecho (vers. 10 e 12) não aparece pneuma hágion, mas hágion
pneuma; isto é, não "Espírito Santo”, mas “Santo Espírito”. Abaixo, voltaremos ao assunto.
6) A última advertência transforma-se numa garantia de que , quando diante das autoridades, eles não
devem preocupar-se com a defesa nem com as respostas "porque o santo Espírito lhes ensinará
nessa mesma hora, o que devem dizer". Trata-se de uma inspiração direta, da qual numerosos
exemplos guardou a história, bastando-nos recordar, além dos ocorridos com os discípulos daquela

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época (cfr. Atos. 4:5-21; 7:1-53; 22:1-21; 23:1-7; 24:10-21 e 26:2-29) as respostas indiscutivel-
mente inspiradas de Joana d'Arc, diante do tribunal de bispos que a condenou à fogueira.
Note-se que em Mateus (10:18) e Marcos (13:9) fala-se em governadores e reis, termos que Lucas
substitui por "magistrados" (archaí), e autoridades" (exousíai) expressões que também aparecem reu-
nidas em Paulo (Ef. 3:10; Col. 1:16 e Tit. 3:1).
De tudo se deduz que não devem temer os discípulos: a vitória espiritual está de antemão garantida,
embora pereça o corpo físico.

PNEUMA HAGION
Trata-se de uma observação de linguística: o emprego do adjetivo hágion, ao lado do substantivo
pneuma. Sistematicamente, o substantivo precede: pneuma hágion ("Espírito santo"). No entanto, Lu-
cas, e só Lucas, inverte nove vezes, contra 41 vezes em que segue a construção normal. Qual a razão?
Para controle dos estudiosos, citamos os passos, nos quatro autores dos Evangelhos, dando os diversos
textos em que aparece a palavra pneuma com suas diversas construções:
1 - tò pneuma tò hágion = o Espírito o santo.
Mat. 12:32;
Marc. 3:29; 12:36; 13:11;
Luc. Ev. 3:22; 10:21; At. 1:16; 2:33; 5:3, 32; 7:51: 10:44, 47; 11:15; 13:2; 15:8, 28; 19:6;
20:28; 21:4; 28:25.
Em João aparece uma só vez, e assim mesmo em apenas alguns códices tardios, havendo forte suspei-
ção de haver sido acrescentado posteriormente (em14:26).

2 - Pneuma hágion (indefinido, sem artigo) = um espírito santo:


Mat. 1:18, 20; 3:11;
Marc. 1:8;
Luc. Ev. 1:15, 41, 67; 2:25; 3:16; 4:1; 11:13: At. 1:2, 5: 2:4; 4:8, 25; 7:55; 8:15, 17, 19; 9:17;
10:38; 11:16, 24; 13:9, 52; 19:2 (2 vezes);
João, 20:22.

3 - tò hágion pneuma = o santo Espírito (inversão):


Mat. 28:19, num versículo indiscutivelmente apócrifo;
Luc. Ev. 12:10, 12; At. 1:8: 2:38; 4:31; 9:31: 10:45; 13:4; 16:6.
E em todo o resto do Novo Testamento, só aparece essa inversão uma vez mais, em Paulo (l.ª Cor.
6:19), onde, assim mesmo, alguns códices trazem a ordem comum.
Para completar o estudo da palavra pneuma nos Evangelhos, mesmo sem acompanhamento do adjetivo
hágion, damos mais os seguintes passos.

4 – tò pneuma = o espírito:
Mat. 4:1; 10:20; 12:18, 31;
Marc. 1:10, 12;
Luc. Ev. 2:27; 4:14; At. 2:17, 18; 6:10; 8:18, 29; 10:19; 11:12, 28; 16:7; 20:22; 21:4;

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João, 1:32, 33; 3:6, 8, 34; 6:63; 7:39; 14:17; 15:26; 16:13.

5 - pneuma (indefinido, sem artigo) = um espírito:


Mat. 3:16; 12:28; 22:43;
Luc. Ev. 1:17; 4:18; At. 6:3: 8:39; 23:89;
João, 3:5, 6; 4:23, 24; 6:63; 7:39.

Resumindo:
Mat. Marc. Luc. João
Ev. Ev. Ev. At. Ev. totais
1. tò pneuma tò hágion 1 3 2 15 21
2. pneuma hágion 3 1 7 17 1 29
3. tò hágion pneuma 2 7 9
4. tò pneuma 4 2 2 11 10 29
5. pneuma 3 2 4 6 15
totais 11 6 15 54 17 103

* * *
O evangelista resume, neste trecho, uma série de ensinamentos, de que só escreveu o esquema mas
como sempre em linguagem comum, embora deixando claro indícios para os que possuíssem a “cha-
ve” poderem descobrir outras interpretações da orientação dada pelo Mestre.
No atual estágio da humanidade, conseguimos descobrir pelo menos três interpretações, senão a pri-
meira a exotérica que vimos acima.
A segunda interpretação que percebemos refere-se às orientações deixadas em particular aos discí-
pulos da Escola Iniciática “Assembléia do Caminho". E, antes de prosseguir, desejamos citar uma
frase de Monsenhor Pirot (o. c. vol. 10, pág 158). Ainda que católico, parece inconscientemente con-
cordar com a nossa tese (vol. 4) e escreve: "Seus discípulos teriam podido ser tentados a organizar
círculos fechados, só comunicando a alguns apenas a plena iniciação que tinham recebido”.
A contradição flagrante do início do trecho demonstra à evidência que algo de oculto existe nas pala-
vras escritas. Com efeito, é dito que “se supercongregavam (epi + syn + ágô) dezenas de milhares de
povo", a ponto de “se pisarem mutuamente, uns por cima dos outros" e, no entanto acrescenta que
"falou a seus discípulos" apenas! Como? Difícil de entender, se não lermos nas entrelinhas a realida-
de, de que modo falou apenas a alguns, no meio de uma multidão.
No âmbito fechado da Escola Iniciática é compreensível. Às instruções que dava o Mestre aos discí-
pulos encarnados, compareciam também os discípulos desencarnados, que se preparavam para reen-
carnar, a fim de, nos próximos decênios, continuar a obra dos Evangelizadores de então. O que o
evangelista notou é que esses espíritos desencarnados compareciam “as dezenas de milhares" (cál-
culo estimativo, pela aparência, já que é bem difícil aos encarnados, mesmo videntes, contar o número
de desencarnados que se apresentam em bloco numa reunião). Sendo desencarnado, eram visto, jun-
tos (syn), uns como que “por cima” dos outros (epi). pisando-se (literalmente katapatéô é “pisar em
cima”) ou seja, uns espíritos mais no alto outros mais em baixo. Compreendendo assim, fica clara a
descrição e verdadeira.
Seguem se as instruções dadas aos iniciados:

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1) Precisam. primeiro que tudo (prôton) tomar cuidado com o fermento que é a hipocrisia do tipo dos
fariseus, e que, mesmo iniciando-se pequenina, cresce assustadoramente com o decorrer do tempo.
Em outras palavras, eles mesmos devem ser verdadeiros, demonstrando o que são; e não apre-
sentar-se falsamente com um adiantamento espiritual que não possuem ainda. Sinceridade, sem
deixar que os faça inchar um convencimento irreal. Honestidade consigo mesmo e com os outros,
analisando-se para se não ficarem supondo mais do que são na realidade. Naturalidade, não
agindo de um modo quando sós e de outro quando observados.
2) A segunda instrução refere-se aos ensinamentos propriamente ditos. Da mesma forma que não
adianta exteriorizar algo que não exista na realidade íntima, porque tudo virá à tona cedo ou tar-
de, desmascarando o hipócrita, o mentiroso, assim também de nada valerá querer manter secretos
- quando o tempo for chegado - os ensinos iniciáticos que ali estão sendo dados. Haverá gente que
se arvorará em “dono” do ensino do Cristo, interpretando-o somente à letra e combaterá, perse-
guindo abertamente ou por portas travessas, os que buscam revelar a Verdade desses ensinos.
Nada disso terá resultado. A Verdade surgirá por si mesma, tudo o que estiver oculto será revela-
do, às vezes pelas pessoas menos credenciadas, e todos, com o tempo terão acesso à verdadeira
interpretação. O que está dito "na adega” (en tois tamieíois), será apregoado por cima dos tetos;
tudo o que foi ensinado nas trevas, será ouvido na luz plena da Imprensa. Preparem-se, pois, por-
que os que se supõem “donos" do assunto, encarnados ou desencarnados, se levantarão dispostos
a destruir as revelações. Não haja susto, nem medo, porque não os atingirão.
3) Sobre isso versa a terceira instrução, esclarecendo perfeitamente que o HOMEM NÃO É SEU
CORPO. Por isso, podem os perseguidores da Verdade lançar nas masmorras, torturar, queimar e
assassinar nas fogueiras das inquisições os corpos de todos eles: a Verdade permanecerá de pé,
íntegra inatingível e indestrutível. "Eles" matam apenas os corpos e nada mais podem fazer, em-
bora se arvorem o poder que eles mesmos se atribuem ridiculamente de condenar ao inferno eter-
no. Mas isso é apenas vaidade e convencimento tolos e vazios. São palavras sem fundamento real.
E o Mestre, o Hierofante e Rei, Sumo Sacerdote da "Assembléia do Caminho", assume o tom carinho-
so para falar "a seus amigos", e diz que só há um que deve ser temido: aquele que tem o poder real de
lançar a criatura na "geena" deste vale de lágrimas, em novas encarnações compulsórias. E o único
que possui essa capacidade é o Eu Profundo, o Cristo Interno que, ao verificar que não progredimos
como devêramos, nos mergulha de novo neste “vale dos gemidos", em nova encarnação de aprendiza-
do.
Porque tudo o que geralmente chamamos "resgate" é, na realidade, nova tentativa de aprendizado,
embora doloroso. O Espirito que erra numa vida, em triste experiência, por sair do rumo, e comete
desatinos, voltará mais outra ou outras vezes para repetir a mesma experiência em que fracassou, a
ver se aprende a evitá-la e se se resolve a comportar-se corretamente, reiniciando a caminhada no
rumo certo. Se alguém comete injustiças ou crueldades que prejudiquem aos outros, voltará na vida
seguinte à "geena" para assimilar a lição de experimentar em si mesmo o que fez a outrem. Verá
quanto dói em si mesmo o que fez os outros sofrerem. Mas isso não é castigo, nem mesmo, sob certos
aspectos é resgate: trata-se de APRENDIZADO, de experiências práticas, único modo de que a Vida
dispõe para ensinar: a própria vida. A esse Eu Profundo, Cristo-em-nós, devemos temer. É nosso
Mestre - nosso "único Mestre (Mat. 23:10) - e Mestre severo que nos ensina de fato, cumprindo Sua
tarefa à risca, sem aceitar "pistolões". E, para não incorrer em sua justa e inflexível atuação, temos
que ouvir-Lhe as intuições, com a certeza absoluta de que Ele está vigilante a cada minuto segundo,
plenamente desperto, sem distrações nem enganos, e permanece ativo em cada célula, em cada fio de
cabelo.
4) Por que temer, então, os perseguidores das personagens transitórias, que nascem já destinadas a
desaparecer, que se materializam somente durante mínima fração de tempo, para logo se desmate-
rializarem? Cada fio de cabelo está contado e numerado (êríthmêntai) por esse mesmo Cristo que
está em nós, em cada célula, em cada cabelo, em cada passarinho, por menor e mais comum que
seja, em cada inseto, em cada micróbio: em tudo. Se a Divindade que está EM TUDO e EM TO-
DOS cuida das coisas minúsculas e sem importância (cinco são vendidos por dois vinténs) como

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não cuidará de nós, SEUS AMIGOS, já muito mais evoluídos e com o psiquismo desenvolvido, com
o Espírito apto a reconhecê-Lo?
5) Depois dessa lição magnífica, passa o evangelista a resumir outro ensino, no qual tornamos a
encontrar o mesmo verbo homologéô que interpretamos como “sintonizar". Aqui também cabe
esse mesmo sentido. Todo aquele que, em seu curso de iniciação, tiver conseguido sintonizar com
o Cristo Interno (“comigo") durante a encarnação terrena ("perante os homens"), esse terá con-
firmada, quando atingir o grau de liberto das encarnações humanas a sintonia de Filho do Ho-
mem "entre os Espíritos de Luz", já divinizados, que se tornaram Anjos ou Mensageiros de Deus.
Mas se não conseguiu essa sintoma, negando o Cristo e ligando-se à matéria (Anti-Sistema) "será
renegado" pelos Espíritos Puros, e terá que reencarnar: não alcançou a sintoma, a frequência vibra-
tória da libertação definitiva. Em sua volta à carne, continuará o trabalho de aprendizado e treina-
mento iniciático, até que chegue a esse ápice, que é a meta de todos nós.
6) A instrução seguinte é o resumo do que já foi exposto em Mateus e Marcos, com o mesmo sentido.
Mas Lucas, nesta esquematização, abreviou demais a lição. Felizmente as anotações dos dois ou-
tros discípulos nos permitem penetrar bem nitidamente o pensamento do Mestre.
7) A última instrução deste trecho é uma garantia a todos os discípulos que se iniciaram na Escola
de Jesus. As perseguições virão. Os interrogatórios serão realizados com incrível abuso de poder
e falsidade cruel e ironia sarcástica, por indivíduos que revelam possuir cérebros cristalizados em
carapaças de fanatismo. Não importa. O Espírito será iluminado pelo Cristo Interno, e as respos-
tas, embora não aceitas, virão à luz, para exemplo e lição.
*
* *
Mas percebemos terceira interpretação: O Cristo Interno, Eu Profundo, dirige-se ao Espírito da pró-
pria criatura e à personagem.
Sendo a personagem, de fato, constituída de trilhões de células, cada qual com sua mente, não há
exagero nem hipérbole na anotação de Lucas. São mesmo "dezenas de milhares de multidão que se
aglomeram, pisando umas sobre as outras". Não obstante, o Cristo se dirige às mais evoluídas, capa-
zes de entendimento por terem o psiquismo totalmente desenvolvido: o intelecto, que é o "parlamento
representativo" das mentes de todas as células e órgãos.
Resumamos a série de avisos e instruções dadas em relação aos seis principais planos de consciência
da personagem encarnada, através do intelecto, que é onde funciona a "consciência atual". Recomen-
da que:
1.º - não assuma, no físico as atitudes falsas da hipocrisia farisaica, de piedade inexistente, de sorri-
sos que disfarçam esgares de raiva;
2.º - quanto às sensações do duplo, não adiantará escondê-las: serão reveladas: e as palavras faladas
em segredo serão ouvidas, e as sensações furtadas às escondidas no escuro, virão à luz: tudo o que
fazemos, fica registrado no plano astral;
3.º - quanto às emoções do astral, lembre-se de que constitui o astral das células e órgãos um grupo
"amigo", pois durante milênios acompanham a evolução da criatura. Mas que não se emocione no
caso de alguém fazer-lhe perder o físico através da morte, porque não será destruído o astral. Devem
temer-se as coisas que coagem a novamente lançá-lo na "geena", no sofrimento das encarnações do-
lorosas: os vícios, os gozos infrenes, os desejos incontrolados, as ambições desmedidas, a sede de
prazeres, os frêmitos de raiva. No entanto, apesar de tudo, o Eu Profundo controla tudo, até os fios de
cabelo, e portanto ajudará a recuperação total, não abandonando ninguém;
4.º - o próprio intelecto deve buscar ardorosamente a sintoma com Ele, o Cristo, a fim de que receba a
indispensável elevação ao plano mental abstrato, e não permaneça mais preso ao plano astral ani-
malesco. Mas se não for conseguida a sintonia, porque negou o Cristo Interno, ficará preso à parte
inferior da animalidade, e permanecerá renegado diante da Mente, mensageira divina;
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5.º - o Espírito individualizado não se importe com os ensinos errados que forem dados contra as
criaturas humanas, contra os homens: mas que jamais se rebele nem blasfeme contra o Espírito, já
puro e perfeito, porque o que Ele faz, mesmo as dores, está sempre certo;
6.º - a Mente não se amedronte, quando convocada a responder perante autoridades perseguidoras: o
Espírito puro do Cristo Interno jamais a abandonará, e na hora do perigo lhe inspirará tudo o que
deve transmitir como defesa e resposta às inquirições.
Outras interpretações devem existir, mas não nas alcançamos ainda. O fato, porém, é que essas já são
suficientes como normas de vida e de comportamento para todos aqueles que desejam penetrar no
caminho e segui-lo até o fim.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

A AVAREZA EGOÍSTA
Luc. 12-13-21
13. Disse-lhe alguém da multidão: "Mestre, dize a meu irmão que divida comigo a herança".
14. Mas ele disse-lhe: "Homem, quem me constituiu árbitro ou partidor entre vós"?
15. E disse a eles: "Olhai e precatai-vos contra todo o supérfluo, porque a vida dele não está no
superabundar de algo que esteja à sua disposição".
16. Então lhes narrou uma parábola, dizendo: "De certo homem rico, a terra era fértil,
17. e ele raciocinava consigo dizendo: que farei, pois não tenha onde recolher meus frutos?
18. E disse: Farei isto: derrubarei meus celeiros e construirei maiores, e aí guardarei toda a co-
lheita e meus bens.
19. E direi à minha alma: Alma, tens muitos bens em depósito para muitos anos: repousa, come,
bebe, alegra-te.
20. Mas Deus disse-lhe: "Insensato, esta noite te pedirão de volta tua alma; e as coisas que pre-
paraste, para quem serão?"
21. Assim é o que entesoura para si, não enriquecendo para com Deus".

Lemos aqui uma parábola, provoca da pelo pedido feito a Jesus por “alguém" da multidão. Baseando-
se na autoridade moral e na sabedoria de Jesus, solicita-Lhe que intervenha junto ao irmão do supli-
cante a fim de que haja divisão da herança. A lei judaica atribuía ao primogênito dois terços da herança
(Deut. 21:17), sendo o terço restante dividido entre os outros filhos.
O homem dirige-se ao Mestre (no sentido de "professor: didáskale): é tudo o que sabemos. Não adi-
anta especular maiores particularidades, pois o caso parece ser citado apenas como provocador do en-
sino que o evangelista julgou digno de registro.
Começa o Mestre por colocar um princípio de direito; não possui oficialmente credenciais para proferir
sentenças decisórias de litígios de herança. Ensina-nos, assim, a não envolver-nos em questões materi-
ais alheias, a não ser que ocupemos cargos específicos de juiz ou partidor (funcionário da Justiça en-
carregado de calcular ou executar as partilhas de uma herança).
As palavras conservadas nas anotações de Lucas são de clareza absoluta e constituem lição primorosa.
Depois da negativa de intrometer-se em problema que Lhe não diz respeito, fala "a eles" (prós autoús),
deixando supor que o irmão acusado estava presente, pois os conselhos a respeito da avareza egoísta
destinam-se a ambos, mas com mais precisão ao que lesou o queixoso, embora as palavras em si sejam
dirigidas ao irmão impetrante: "olhai e precatai-vos contra todo o supérfluo (pleonexia), porque a vida
dele (do usurpador não está no superabundar de algo que esteja à sua disposição”. Em outras palavras:
não é o fato de possuir muito, que o fará viver mais (cfr. Luc. 12:25).
Depois, para não dizer frontalmente que ele pode morrer e deixar tudo, antes mesmo de gozar a heran-
ça, tem o Mestre a delicadeza de transformar a lição numa parábola, introduzindo uma personagem
estranha, que ficou na abundância de bens, mas que teve repentinamente que largar tudo na própria
terra donde lhe proviera a riqueza.
A conclusão é aplicação prática do "não ajunteis para vós tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem
consomem e onde os ladrões penetram e roubam, mas ajuntai para vós tesouros no céu, onde nem a
traça nem a ferrugem ,à psychê, isto é, ao astral (emoções) pelo intelecto personalístico.

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C. TORRES PASTORINO
A lição que aprendemos está exposta com clareza meridiana e serve para todos os planos: qualquer
apego às coisas materiais com uso exclusivo da própria pessoa, não consegue trazer vantagens ao
plano do Espírito. E isso, não apenas no nível mais elevado do Espírito, mas nem sequer ao mais bai-
xo, do duplo etérico.
* * *
Quando afirmamos (vol. 4) que os Evangelhos fazem clara distinção das sete divisões no homem (três
superiores da individualidade e quatro inferiores da personagem encarnada) não estávamos engana-
dos, embora tivéssemos afirmado coisa inteiramente nova e original. Aqui encontramos inesperada-
mente plena confirmação, de precisão filosófica e linguística, em palavras que o evangelista atribui a
Jesus. Salienta que de nada adianta, para a evolução, qualquer satisfação dada à personagem encar-
nada, e isso é feito com quatro verbos, na ordem exata do menos ao mais:
1.º - REPOUSA (anapaúou) que exprime o desejo da preguiça, que deixa imóveis os corpos densos de
todo o soma, referindo-se ao corpo físico;
2.º - COME (pháge) dirigindo-se às sensações, que se comprazem, sobretudo, no bem-estar da fartura
alimentar, na gula, que locupleta e leva ao sono;
3.º - BEBE (píe) que diz respeito às emoções, excitadas e descontroladas pelo álcool, referindo-se ao
corpo astral;
4.º - ALEGRA-TE (euphraínou, derivado de phrên, intelecto) que fala da alegria despreocupada de
quem não pensa em nada sério, mas vive a gargalhar de piadas e anedotas vulgares.
Essas quatro operações da personagem são citadas como ordens dadas à psyché, isto é, ao astral
(emoções) pelo intelecto personalístico.
E a observação do Eu Profundo é iniciada com o vocativo que se dirige exatamente ao intelecto, acu-
sando-o de "falta de senso", áphrôn (também derivado de phrên) isto é "insensato" ou "demente".
A conclusão da parábola é uma comparação entre a personagem terrena e a Individualidade espiritu-
al: as maiores surpresas estão reservadas àqueles que entesouram para a personagem, não enrique-
cendo (ploutôn, particípio presente) para o Espírito.
De toda a oposição do ensino transparece, pelo final, que o mal não consiste em enriquecer, mas em
entesourar, isto é, guardar a riqueza improdutiva, sem que faça a prosperidade da comunidade em
que vive; o mal reside em não produzir, em guardar nas arcas egoisticamente, reservando para si,
sem trazer benefícios à sociedade.
O aviso não ataca propriamente a riqueza em si, mas a avareza e a ambição egoística. Também não
condena a posse do que é necessário à vida na terra, mas sim do que é supérfluo (pleonexía). A cria-
tura pode e deve, se tem capacidade, fazer multiplicar sua fortuna, desde que dela faça partícipe uma
parte da humanidade, com indústria, comércio, agricultura, arquitetura, etc., produzindo bens e dan-
do sustento ao maior número de famílias, através de salários condignos de seus empregados ou ope-
rários. O mal é entesourar as riquezas em museus e fechar as bibliotecas à consulta pública, mas ja-
mais construir uma fábrica que beneficie a população, assim como, na parte intelectual, é saber
egoisticamente, sem ensinar e publicar o que se sabe.
No decurso da história humana, se encontramos ascetas e místicos que nada possuem de seu, não co-
nhecemos nenhum iniciado que viva só para si: de modo geral sabem agir de modo a progredir para
ajudar sempre seus semelhantes, da maneira que mais se adapte ao tipo de seu "raio" (1).
(1) Só a titulo de exemplo: Salomão (1.º), Pitágoras (2.º), Platão (3.º), Da Vinci (4.º), Roger Bacon
(5.º), João Evangelista (6.º), Máximo de Éfeso (7.º). Nunca se ouviu falar que qualquer deles "passasse
privações" por falta de dinheiro, que eles sempre utilizaram em benefício da humanidade, cada um
dentro das características de seu "raio”.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

"METANÓIA"
Luc. 13:1-5
1. Vieram alguns, nessa mesma ocasião, anunciando-lhe a respeito dos galileus, cujo
sangue Pilatos misturou com o dos holocaustos deles.
2. E respondendo, disse-lhes Jesus: "Imaginais que esses galileus se tornaram mais cul-
pados, em comparação com todos os galileus, porque sofreram essas coisas?
3. Não, digo-vos; mas se não mudardes vossa mente, perecereis todos de igual modo.
4. Ou esses dezoito, sobre os quais caiu a torre em Siloé, pensais que eles se tornaram
mais devedores, em comparação com todos os homens habitantes em Jerusalém?
5. Não, digo-vos; mas se não mudardes vossa mente, perecereis todos do mesmo modo”.

Neste trecho, a lição é dada aproveitando-se o Mestre de dois episódios recentes, ocorridos em Jerusa-
lém, embora nenhum dos dois tenha sido registrado na história. Realmente constituem fatos que, ape-
sar de causa, em impacto nos circunstantes, não possuem em si mesmos amplitude capaz de repercutir
no âmbito de uma nação.
A morte dos galileus (quantos? talvez dois ...) provocada pela pregação da rebelião contra o domínio
romano, era coisa quase comum. Também a crucificação de Jesus (mais um galileu!) não foi registrada
pelos historiadores (um fato banal na vida cotidiana), sendo-o a de João Batista (Flávio Josefo, Ant.
Jud. 18, 5, 2) por motivos políticos. Segundo esse autor, os galileus eram agitados (Ant. Jud. 17, 9, 3) e
o então governador da Galiléia, Pôncio Pilatos, tinha a mão pesada (Ant. Jud. 18, 3, 2).
Também a torre, isto é, algum torreão da muralha de Jerusalém. na região que ficava perto da piscina
de Siloé, e que - talvez enfraquecida e carcomida em seus alicerces pelas águas do rio Gihon, subterrâ-
neo, que lhe passava por baixo e não podia deixar de ter ação erosiva - ruíra, soterrando dezoito mora-
dores sob seus escombros. Fato sem gravidade suficiente para ser catalogado na história de um povo.
Tal como no capítulo anterior, também aqui os fatos são citados apenas como justificativa dos ensinos,
julgados dignos de registro; e o fundamento do ensino é duplo:
1) as catástrofes e calamidades não atingem somente os culpados, nem mesmo os mais culpados;
2) todos os culpados sofrerão as consequências de seus erros.

Há, pois, duas conclusões a tirar desses ensinos:


1.ª - Sendo as catástrofes e cataclismos da natureza efeitos de causas físicas, nem sempre é possível
evitar que atinjam, juntamente com os culpados, outros que o não sejam, ou que o sejam menos. Mes-
mo porque o sofrimento e a dor não são apenas resgate: são também estímulos evolutivos. Aliás, já
vimos que "resgate”, propriamente, não existe, mas apenas aprendizado e experiência (cfr. Jó, 4:7).
2.ª - Como consequência dessa primeira conclusão, verificamos que, obviamente, todos os errados re-
ceberão oportunidades de correção e aprendizado, como condição de progresso. A alternativa é dada
com clareza e reforçada repetição das mesmas palavras, após dois exemplos distintos:
a) ou o errado “muda sua mente" (eàn mê metanoête), isto é, opera a metánoia, passando a vibrar em
tônica mais elevada e portanto corrigindo-se a si mesmo e aprendendo espontaneamente; ou

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b) será constrangido pela Lei a fazê-lo, embora contra sua vontade: "se não modificardes vossa mente,
perecereis todos de igual modo”, isto é, violentamente.

O aviso realizou-se realmente no ano 70, com a destruição de Jerusalém por Tito, que assassinou com
violência praticamente todos os habitantes de Jerusalém.

Para um Mestre verdadeiro, qualquer episódio torna-se fundamento para uma lição.
No campo iniciático, vemos a necessidade absoluta de dar o terceiro passo (metánoia) para que possa
iniciar-se a libertação progressiva dos carmas negativos.
Interessante anotar o número dezoito. Voltaremos a ele em breve.
A lição expõe, portanto, a inevitabilidade da lei de causa e efeito, em seus fundamentos e particulari-
dades.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

PRODUZIR FRUTOS
Luc. 13:6-9
6. Dizia então esta parábola: "Alguém tinha uma figueira plantada em sua vinha e veio
procurando fruto nela, e não achou.
7. Disse, então, ao viticultor: há três anos venho procurando fruto nesta figueira e não
acho; corta-a, pois. Para que deixar inativa a terra?
8. Respondendo, disse-lhe ele: Senhor, deixa-a ainda este ano, até que eu cave em torno
dela e ponha adubo, e certamente dará fruto no futuro; mas se não, cortá-la-ás".

Logo a seguir dos exemplos e do apelo para a "mudança da mente”, é narrada uma parábola que subli-
nha o ensino, fazendo ver não apenas a necessidade de fazê-lo, produzindo bons frutos, como a urgên-
cia de ser tomada essa atitude.
Na Palestina era comum plantarem-se outras árvores nos vinhedos, a fim de bem aproveitar o terreno,
fazendo-o produzir o máximo. Daí a frase que afirma estar a figueira "tornando inútil o terreno" (ka-
targeín). O viticultor pede um prazo de mais um ano, para tentar levá-la a produzir. Talvez se tratasse
de uma figueira silvestre, na qual as flores não chegam ao amadurecimento, caindo todas (não esque-
çamos que o figo não é uma fruta, mas uma "flor inclusa", isto é, fechada em si mesma). O prazo é
concedido, mas com a ressalva de que é a última oportunidade.
A parábola é atribuída, pelos exegetas, aos judeus, sendo Deus o senhor da vinha, Jesus o viticultor.
Por solicitação deste, foi concedido um adiamento do corte, e ele próprio desceu à Terra para ajudar a
figueira. Mas, nada tendo conseguido, deu-se o corte no ano 70, com a grande matança do povo israe-
lita e a destruição de Jerusalém.

Mas há outras lições importantíssimas, nessa pequena parábola.


A - No campo humano - Três períodos foram aguardados, para que a criatura modificasse sua mente e
produzisse frutos. Após essas três oportunidades (reencarnações) o "mentor" solicita para seu tutela-
do mais um ensejo, em que lhe proporcionará todos os cuidados: ambiente de nascimento ou de fre-
quência posterior, amizades boas e cultas, círculo de espiritualistas em seu redor, às vezes uniões
sentimentais com pessoas de elevada espiritualidade e bondade, filhos evoluídos, meios de estudo e
progresso, etc., representando o "adubo" da parábola. Se nada for conseguido, terá que voltar a Terra
por sua conta e risco, porque o crédito conseguido terminou.
B - No campo evolutivo - podemos considerar o quarto ano, como uma descida na matéria (crucifica-
ção no corpo físico), já que a mudança da mente não está sendo conseguida.
C - No campo iniciático - pode esperar-se por três períodos, no máximo concedendo mais um, ao can-
didato que não conseguiu a metánoia. Se depois disso nada for obtido, deve seguir-se o convite para
sair da Escola. Nesse adiamento, serão redobrados os esforços do Mestre, para ver se consegue o
avanço do iniciando.
D - No campo do ocultismo - Alerta-nos esse jogo de três anos mais um (= quatro) para aprofundar o
sentido oculto. Entre os arcanos (cfr. Serge Marcotoune, "La science secrete des Initiés", Paris, 1928),
o QUATRO pode exprimir: no plano divino, o "Formador", isto é, o Demiurgo, que é representado
exatamente pelo viticultor, que se propõe formar os mundos humanos e elevá-los gradativamente a
níveis superiores, embora encontre humanidades rebeldes e improdutivas. Se nada obtiver no número
previsto de períodos (três, número perfeito), pode conceder a essa humanidade um adiamento, envi-

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ando-lhe mais profetas e avatares. Nada obtendo, a humanidade será ou destruída ou transferida para
outro planeta mais atrasado. No plano humano, o arcano QUATRO exprime "o que é recebido", ou "o
resultado das receptividades e da atividade que se manifestaram no terceiro plano". Precisamente o
que é narrado na parábola: os três primeiros "anos" de atividade não tendo chegado a um resultado
satisfatório, no quarto deve apurar-se o tratamento, para ver se se consegue algum fruto. No plano da
natureza, o arcano QUATRO exprime a objetivação concreta de toda formação ou fecundação: só no
quarto ano se poderá verificar se realmente virão os frutos palpáveis da fecundação, produzida nos
três primeiros anos.
E - No plano da magia (e é a primeira vez que tratamos desse plano nesta obra. Mas a referência à
magia é tão clara, que não podemos calar). Conhecemos, na magia, a chamada RODA MÁGICA,
constituída de quatro momentos, que assim se resumem:
1.º momento - STA ("pára"), que exprime a vontade planificada do operador;
2.º momento - COÁGULA ("materializa") que se refere ao "terreno” astral-nervoso, onde se pretende
operar;
3.º momento - SOLVE ("solta"), que revela a ação do operador no "terreno", realizando o trabalho e
"soltando" livremente sua ação ativa, sobre o terreno passivo;
4.º momento - MULTÍPLICA ("multiplica") que nos apresenta a materialização ou mesmo a realiza-
ção e o resultado prático de toda a operação.
O momento mais difícil de vencer é exatamente o 3.º, como nos diz a parábola: no terceiro ano o dono
da vinha já quer agir desfazendo a operação que ainda permanece infrutífera. O perigo do 3.º mo-
mento situa-se no livre-arbítrio das criaturas, onde pode esbarrar e esboroar-se toda a ação, ou na
resistência passiva de outros seres vivos, que não reagem à altura (a figueira). Vencido o 3.º momen-
to, o quarto será bem sucedido. Na parábola verifica-se, precisamente a “roda” emperrar por falta de
correspondência da criatura.
Para obter êxito, é mister conhecer certos segredos dessa RODA. Em primeiro lugar, precisa-se fixar
bem o eixo onde vai girar a roda: que o faça sem distorções nem perigo de paralisação; depois, indis-
pensável calcular com o máximo cuidado a igualdade e proporção dos raios da roda: se um deles for
mais fraco, ou vier a enfraquecer-se, poderá romper-se a roda; se houver cálculos errados, a roda
pode assumir um movimento inverso, que atingirá e destruirá o operador (choque de retorno).
A fim de esclarecer bem o que desejamos expor, vamos dar um exemplo bem material do funciona-
mento dessa roda, deixando aos leitores sua aplicação nos planos espirituais. Suponhamos um capi-
talista (operador) que deseje criar uma indústria: é o primeiro raio da roda (STA). O segundo é cons-
tituído pelo consumidor (COÁGULA), que é o “terreno” onde os produtos vão ser lançados. O tercei-
ro raio é o derrame da produção (SOLVE), que será ou não, aceito pelo consumidor (aí reside o peri-
go). O quarto é, então, o resultado dessa operação (MULTÍPLICA), com a multiplicação dos lucros.
Ora, o operador terá que estudar se tem capital (capacidade financeira) e qualidades (capacidade
técnica) para lançar o produto: está medindo o comprimento do 1.º raio da roda. Depois terá que
pesquisar as necessidades dos consumidores e sua capacidade aquisitiva. Em terceiro lugar terá que
lançar o produto com publicidade eficiente, para tornar seu produto conhecido. Se tudo foi bem pla-
nejado e calculado, o quarto raio obterá o êxito desejado e a roda prosseguirá girando sem empera-
mentos em seu eixo, trazendo prosperidade (bons frutos) ao operador.
Mas se um dos raios da roda estiver falho (capital e de entusiasmo, incapacidade aquisitiva do con-
sumidor do produto, publicidade inadequada, etc.), a roda assumirá o movimento contrário, e o in-
dustrial irá à falência (choque de retorno, porque moveu com forças que depois não pode controlar).
No caso da parábola, verificamos que justamente o terceiro raio não foi bem resolvido, por que a fi-
gueira não frutificou. E a causa podia ser o fato de não estar bem calculado o segundo raio: a figuei-
ra estava plantada num vinhedo, terreno errado; ou também a resistência passiva do consumidor (ár-
vore) contra a ação do operador (viticultor). Este, todavia espera poder corrigir o defeito, (cavar em

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redor e colocar adubo, isto é, fazer publicidade) para a plena realização do quarto raio da roda, ob-
tendo assim a multiplicação dos frutos.
F - No campo simbólico abrem-se novos horizontes. Vimos já que a FIGUEIRA (vol. 1.º) exprime a
"floração interna de qualidades morais e espirituais em si mesma" (a figueira não produz frutos, mas
flores inclusas). A figueira, estando plantada num vinhedo, examinemos o simbolismo: a VINHA sim-
boliza a sabedoria espiritual. Temos, então, simbolicamente, que a floração interna de qualidades
morais e espirituais, embora plantada na sabedoria espiritual, não conseguiu atingir a maturação
final, e a causa disso seria a falta de adubo específico. Vemos, aí, o caso de uma criatura virtuosa,
com os conhecimentos indispensáveis, mas que não conseguiu a evolução própria, e isto porque se
encontra na abundância material. O remédio proposto é “cavar em redor”, isto é, cortar as amarras,
os apegos, os liames emocionais, e “colocar adubo”, ou seja, fazê-la viver entre os necessitados , po-
bres e mendigos, para que aprenda praticamente a doação de si mesma (frutificação). O adubo – os
necessitados – embora atrasados espiritualmente (“mal-cheirosos”) lhe fornecerão a seiva indispen-
sável para ajudar-lhe a evolução. Quem desce aos necessitados para socorrê-los, apesar de Ter que
suportar o “mau-cheiro” de seus defeitos, conseguirá, não obstante isso, ou talvez por causa disso,
ganhar através deles mais espiritualidade e maior evolução.
Eis aí alguns dos pontos trazidos à nossa meditação por essa pequenina parábola. Muitos outros ain-
da poderão ser achados através da meditação.
G - No campo biológico, a VIDA INTELIGENTE, INFINITA E ETERNA, a que chamamos DEUS,
permeia todas as coisas em todos os universos. Mas cada ser recebe essa VIDA em pequeno grau,
segundo suas capacidades e possibilidades. À proporção que o ser sobe na escala evolutiva, aumenta
o grau de VIDA de que participa: nos minerais, ela se manifesta nos vórtices atômicos (matéria den-
sa); nos vegetais já conquista a sensibilidade, psiquismo rudimentar (duplo etérico); nos animais ad-
quiriu a emotividade (emoções) com o psiquismo mais desenvolvido; nos hominais, esse psiquismo
mais se adianta, transformando-se em alma intelectualizada, tomando o nome de espírito.
Ora, quando o ser, em qualquer grau, não utiliza com proveito o grau de VIDA de que participa, o Eu
Profundo ordena que se desligue esse ser da VIDA UNIVERSAL, a fim de que se consuma por si só,
entregando os elementos que lhe servem ao acervo comum de seus planos respectivos, para que sejam
aproveitados por outros seres, a fim de que evoluam com rapidez ("para que deixar inativa a terra",
isto é, para que deixar os elementos inferiores estacionarem na evolução por deficiência de frutos?).
subentra o apelo intercessório de amigos espirituais para que lhes seja permitido tentar, durante mais
um período, ver se salvam esse ser, mediante estímulos externos, evitando-lhe a morte da alma (não
do Espírito, do verdadeiro Eu Interno, que esse é eterno e jamais pode ser destruído, como centelha
divina que é). O adiamento é concedido, porque a Misericórdia é ilimitada. A tentativa será feita, de-
pendendo o êxito da reação do ser.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

CURA DE UMA OBSIDIADA


Luc. 13:10-17
10. Estava (Jesus) ensinando numa das sinagogas, nos sábados,
11. e eis uma mulher tendo, havia dezoito anos, um espírito enfermo; e estava recurvada
e não podia levantar a cabeça até o fim.
12. Vendo-a, Jesus chamou-a e disse-lhe: "Mulher, foste libertada de tua enfermidade".
13. E pôs as mãos sobre ela, e imediatamente levantou a cabeça e cria em Deus.
14. Respondendo, o chefe da sinagoga, indignado porque Jesus curava no sábado, dizia à
multidão que "há seis dias nos quais se deve agir; nesses então vindo, curai-vos, e não
no dia de sábado".
15. Respondeu-lhe, porém, o Senhor e disse: "Hipócritas, não solta cada um de vós, no
sábado, seu boi ou seu jumento da manjedoura, levando-os a beber?
16. E sendo filha de Abraão, esta que o antagonista incorporou há dezoito anos não devia
ser solta dessa ligação no dia de sábado"?
17. Dizendo ele isto, envergonharam-se todos os seus opositores, e toda multidão se ale-
grava de todas as coisas famosas feitas por ele.

Lemos aqui mais uma cura de certa mulher obsidiada. Jesus ainda fala, aos sábados, nas sinagogas dos
judeus (embora seja esta a última vez que Lucas o assinala). Ao falar, num dos sábados, percebe na
assistência uma criatura com um obsessor preso a ela, forçando-lhe a cabeça para baixo, porque ele
mesmo era doente. O narrador não assinala nenhum pedido dela nem dos outros, mas talvez tenha ha-
vido uma intercessão no astral. Apiedado, Jesus chamou-a e anunciou-lhe a cura, efetuada ao aplicar-
lhe um passe de descarga, com a imposição das mãos, cuja força magnética era extraordinária.
Sendo sábado, o chefe da sinagoga - zeloso observador da lei mosaica e das prescrições tradicionais
dos fariseus - zanga-se, e dirige-se ao povo, parecendo temer falar diretamente àquele Rabbi poderoso.
Não nega o fato: reconhece-o. Não o culpa, mas acusa os assistentes de "trazerem seus doentes justa-
mente no sábado". E, para dar ênfase à sua reclamação, cita os termos da lei (Êx. 20:9): "Seis dias tra-
balharás" ... Pois que nesses dias tragam seus enfermos para serem curados.
O orador do dia retruca com a energia que lhe outorga sua autoridade, acusando os fariseus de "hipó-
critas", pois soltam jumentos e bois da manjedoura e os levam a beber, no sábado, e vêm protestar
quando Ele solta da ligação de um espírito enfermo uma irmã de crença, filha de Abraão, como eles! O
efeito da reprimenda causou mal-estar e vergonha aos fariseus, e produziu alegria ao povo, que se re-
gozijou com a cura e com a resposta de Jesus.
* *
*
Há duas observações a fazer, ambas no campo do Espiritismo.
A primeira é o fato da obsessão, tão comum entre as criaturas, de qualquer raça ou credo. Dizem os
exegetas que era "crença" dos judeus daquela época que algumas doenças fossem causadas por obses-
sores. Mas aqui é o evangelista que afirma categoricamente, com sua autoridade de médico diplomado,
que a mulher NÃO ESTAVA enferma, mas que TINHA UM ESPÍRITO ENFERMO (gynê pneuma
êchousa astheneías). E ao falar, o próprio Jesus confirmou o FATO não a suposta crença: "a qual o
antagonista incorporou há dezoito anos" (hên édêsen ho satanãs idoú dêka kaí okto étê). O verbo
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êdêsen, aoristo ativo de édô, tem o sentido de LIGAR, prender amarrando, agrilhoando, vinculando, e
uma boa tradução dele é "incorporou", que, na realidade, é uma ligação fluídica que prende a vítima.
Não se trata de agrilhoar fisicamente, mas no plano astral: logo, é uma incorporação. Caso típico, estu-
dado e explicado pelo Espiritismo e milhares de vezes atestado nas sessões mediúnicas.

Figura “A MULHER RECURVADA”


Observe-se, quanto à tradução, a diferença entre desmós, que é a ligação (de édô, ligar, amarrar) que
tanto pode referir-se à matéria quanto ao astral, e phylakês, que é a cadeia, prisão material, entre quatro
paredes (1).
(1) Confrontem-se os passos: desmós: Marc. 7:35; Luc. 8:28; 13:165; Atos 16:26; 20:23; 23,29:
26:29; Philip, 1:7, 13, 14, 17; Col. 4:18; 2.ª Tim. 2:9; Phm. 10.13; Heb. 11:36 e Judas 6; e phylakês:
Mat. 5:25; 14:3, 10; 18:30; Marc. 6:17, 27; Luc. 3:20; 12:58; 21:12; 23:19, 25; Jo. 3:24; At. 5:19,
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22, 25; 8:3; 12:4, 5, 10, 17; 16:2, 24, 27, 37, 40; 22:4; 26:10; 2.ª Cor. 6:5; 11:23; Heb. 11:36; 1.ª Pe.
3:19 e Ap. 2:10 e 20:7.
Na mediunidade dá-se, exatamente, a ligação fluídica, que amarra o espírito ao médium. A isso cha-
mam "incorporação", embora o termo não exprima a realidade do fenômeno, pois o espírito não "entra
no corpo” (in - corpore), mas apenas SE LIGA.
A segunda observação é quanto ao método da libertação, o “passe", ou “imposição das mãos". O verbo
utilizado, epitíthémi (também no aoristo ativo epéthêken) significa literalmente “colocar sobre", “pôr
em cima". As anotações evangélicas não falam em “passe" no sentido de movimentar as mãos, mas
sempre no de colocar as mãos sobre o enfermo (cfr. Mat. 9:18; 19:13, 15; Marc. 5:23; 6:5; 7:32; 8:23,
25; 16:18; Luc. 4:40; 13:13; At. 6:6; 8:17, 19; 9:12, 17; 13:3; 19:6; 28:8; 1.ª Tim. 5:22).
Esse derrame de magnetismo através das mãos serve para curar, para retirar obsessores, para infundir o
espírito (fazer "incorporar") ou para conferir à criatura um grau iniciático que necessite de magnetismo
superior do Mestre.
O passe foi utilizado abertamente por Jesus e Seus discípulos, conforme farta documentação em Evan-
gelhos e Atos, embora não fossem diplomados por nenhuma faculdade de medicina (o único médico
era Lucas). Hoje estariam todos condenados pelas sociedades que se dizem cristãs, mas não seguem o
cristianismo. O próprio Jesus, hoje, teria que responder a processo por "exercício ilegal da medicina",
acusado, julgado e talvez condenado pelos próprios "cristãos”.
O passe com gestos e com imposição das mãos (embora só produzindo efeitos em casos raríssimos)
continua a ser praticado abundante e continuadamente, ainda que com outro nome, nas bênçãos de
criaturas e de objetos, sendo o movimento executado em forma de cruz traçada no ar e em certos casos,
colocando as mãos, logo a seguir, sobre o objeto que se abençoa.

A lição aqui ensinada é de interesse real. Além da parte referente ao Espiritismo, aprovado e justifi-
cado com o exemplo do Mestre em Seu modo de agir, encontramos outras observações.
Por exemplo, Lucas salienta que a ligação ou incorporação do obsessor enfermo durava havia dezoito
anos, quando se deu o desligamento. Esse número dezoito aparece duas vezes neste capítulo, pois
também oram dezoito as vítimas do desabamento da torre em Siloé. Façamos, pois, uma análise rápi-
da do arcano DEZOITO, para depois tentar penetrar o sentido do ensino.
No plano divino, simboliza o abismo sem fundo do Infinito; no plano humano, denota o crepúsculo do
espírito e suas últimas provações; no plano da natureza, exprime as forças ocultas hostis do Cosmo.
Baseando-nos nesses ensinos ocultistas, observamos que os números citados por Lucas têm sua razão
de ser. As forças ocultas hostis da natureza (não personalizemos; são forças cegas, fundamentadas em
leis científicas, que nada cogitam a respeito de carmas humanos, embora possam ser utilizadas pelos
"Senhores do Carma", em ocasiões determinadas, para atingir objetivos desejados) agem de acordo
com os impulsos das leis de atração e repulsão, de causa e efeito, de gravidade (centrípeta) e de ex-
pansão (centrífuga). No entanto, se seus resultados beneficiam (arcano 7), nós as denominamos “be-
néficas"; se nos causam prejuízo (arcano 18), as dizemos "hostis". Em si, porém, elas agem, essas
forças da natureza material, sem ligação com as vidas dos homens. Daí a queda da torre de Siloé que,
por terem sido esmagadas criaturas humanas, foram julgadas hostis, o que foi traduzido com o núme-
ro dezoito.
No plano do homem, esse mesmo arcano simboliza "o crepúsculo do espírito e as últimas provações".
Daí ser dito que a mulher obsidiada o estava havia dezoito anos, ou seja, finalizara sua provação.
Este caso difere do da mulher que tinha o fluxo sanguíneo (Mat. 9:20-22; Marc. 5:25-34; Luc. 8:43-
45; vol. 3) e que "se sacrificava" havia doze anos. Já aqui sabemos que existiu uma provação, ou seja,
uma experiência que devia ser suportada, a fim de provocar uma melhoria. Como chegara ao fim o
período probacional, e como a vítima estava totalmente resignada (tanto que não solicitou sua cura) o
Mestre lhe anuncia que foi libertada, passando, a seguir, a desligá-la do obsessor. Ela não foi liberta-

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da por causa dos passes, mas por causa do término da prova; os passes foram o meio de efetuar o
desligamento já obtido antes, pela aprovação nos exames da dor. Por isso, a contradição aparente nos
tempos de verbo: "foste libertada" ... é feita a imposição das mãos ... ela se cura.
Uma das lições a deduzir é que as "provações” constituem experimentações, uma espécie de "exa-
mes", para verificar o grau de adiantamento do espírito: se aprendeu a comportar-se nas lutas e tris-
tezas, com a mesma força e equanimidade com que enfrenta os momentos de alegria e prazer. Vencida
a prova, superado o exame, o espírito é libertado da prova: ascende mais um passo evolutivo.
Outro ponto a considerar é que a realização iniciática só se efetua na prática da vida. Simples e lógi-
ca a ciência, mas vale apenas na aplicação vivida do dia-a-dia. Só essa prática experimental trans-
forma um profano num iniciado, e não o conhecimento teórico intelectual nem os títulos que ele ou
outrem agreguem a si. Assim, uma experiência dolorosa e longa suportada com heroísmo é mais apta
a elevar um espírito, que o simples estudo intelectual. Mas cada criatura recebe apenas o que está
preparado a receber, segundo a idade de seu espírito e o estágio atingido em suas encarnações atual e
anteriores.
Quando aquele que caminha pela via da iniciação atinge o arcano 18, é obrigado a enfrentar os "ini-
migos ocultos" que procuram levá-lo ao desespero. Trata-se de um ponto crucial da caminhada, que
para ser vencido precisa da intervenção de seu mestre. Um exemplo disso é-nos dado com o "tarot"
18, que representa um iniciado a chegar ao cimo da montanha, descobrindo que esta se divide em
duas, abrindo-se um abismo entre elas, cheio de monstros. Se ele se desespera, perde a caminhada. Se
confia, descobre a realidade: tudo é ilusão dos sentidos. Neste ponto é que precisa ter a humildade
suficiente para pedir ou pelo menos para aceitar a intervenção da misericórdia divina, tal como ocor-
reu com a "mulher curvada". A simples força do homem é insuficiente. E quando ele verifica isso, des-
cobre a fragilidade de suas forcas pessoais, tornando-se humilde. Quando, ao contrário, subentra
nesse ponto a vaidade das posições adquiridas, dos títulos, do conhecimento intelectual, tudo se esbo-
roa e ele cai (arcano 16) constrangido pelo carma.
Torna-se indispensável, portanto, para vencer o arcano 18, que a criatura já se tenha desapegado de
sua situação no mundo, de seu orgulho, de sua posição social, de seus títulos. Mas, se se dá a vitória,
com a intervenção do Mestre, depois da provação do arcano 18 surge o Amor no arcano 19, como
nova aurora, para ajudá-lo a transformar-se, e então a criatura "levanta a cabeça e crê em Deus",
sua fé aumenta, solidifica-se sua confiança no poder Supremo, e reconhece que foi reintegrado em sua
individualidade.
As palavras de Jesus, consideradas sob este prisma, adquirem novo significado: os homens que ainda
se acreditam ser apenas o corpo, apegados ao animalismo, dão valor às datas (sábados) e à parte
animal (jumento e boi), mas não conseguem vislumbrar a altitude que adquiriu o espírito que já se
tornou "filho de Abraão", ou seja, que está ligado ao "Pai-Luz" (cfr. vol. 3) que deu origem. Embora o
intelecto racionalista (os opositores ) se houvesse envergonhado da interpretação involuída que havia
dado, a "multidão" das células de todos os veículos se alegrou com a ação do Cristo Interno.
A imagem trazida com a "mulher recurvada" é maravilhosamente bem escolhida: é a criatura tão ob-
sidiada por preconceitos que chega a andar curvada sob o peso dos preceitos e das exigências desca-
bidas, que lhe são impostas pelos legistas. Há que libertar-se a humanidade desse peso inútil e preju-
dicial, adquirindo conhecimento que a coloque no nível de filhos de Deus, que só reconhecem o Espí-
rito. "Ora, o Senhor é o Espírito, e onde há o Espírito do Senhor, aí há liberdade" (2 Cor. 3:17).

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SABEDORIA DO EVANGELHO

MOSTARDA E FERMENTO

Mat. 13:31-33 Marc. 4:30-32 Luc. 13:18-22

31. Outra parábola lhes 30. E dizia: "A que assemelha- 18. Disse, então: "A que é se-
transmitiu, dizendo: "O remos o reino de Deus, ou melhante o reino de Deus, e
reino dos céus é semelhante com que o representare- a que o compararei?
a um grão de mostarda, mos? 19. É semelhante a um grão de
tomando o qual um homem 31. Como um grão de mostar- mostarda, que um homem
plantou em seu campo. da, o qual, sempre que se tomou e lançou em sua hor-
32. O qual é, na verdade, a semeia na terra, sendo a ta, e que cresceu e se tor-
menor de todas as semen- menor de todas as sementes nou árvore; e as aves do
tes, mas sempre que cresça sobre a terra, céu nidificaram em seus
é a maior das leguminosas e 32. e sempre que se planta, ramos".
se torna árvore, de modo cresce e se torna a maior de 20. E de novo disse: "A que
que as aves do céu também todas as leguminosas, e faz comparei o reino de Deus?
vêm nidificar em seus ra- ramos grandes, de forma
mos". 21. É semelhante ao fermento
que sob sua sombra podem que uma mulher tomou e
33. Outra parábola lhes falava: as aves do céu nidificar". escondeu em três medidas
"O reino dos céus é seme- de farinha de trigo, até que
lhante ao fermento, que fosse toda levedada".
uma mulher tomou e es-
condeu em três medidas de 22. E passava pelas cidades e
farinha de trigo, até que aldeias, ensinando e jorna-
fosse toda levedada". deando para Jerusalém.

Aqui encontramos duas parábolas, em Mateus e Lucas, e uma só em Marcos. Como o sentido de am-
bas é o mesmo, deixamo-las juntas.
Mateus relata simplesmente as historietas, ao passo que Lucas e Marcos as precedem de uma interro-
gação natural e espontânea, vívida e de grande efeito, como se o Mestre, cercado de Seus discípulos,
os introduzisse em Seu próprio pensamento e lhes pedisse colaboração, para os exemplos a citar: a que
compararemos o reino de Deus? Em Mateus, a expressão é substituída por "céus", já que a palavra
sagrada não devia, entre os judeus, ser proferida “em vão", coisa que, para Lucas, pagão, e para Mar-
cos, que escreveu entre os pagãos de Roma, não representava motivo de escrúpulo.
Por falar em Marcos, observamos que seu estilo, nesta parábola, se revela confuso e infantil, como se
escrito por incipiente aluno. Talvez dificuldade de manusear o grego, por parte de alguém que só ma-
nejava o aramaico. Mateus é o mais completo. E do ensino, Lucas registrou apenas o essencial à me-
mória da lição.
A primeira parábola fala do grão de mostarda (sínapis nigra, L., da família das crucíferas), arbusto
comum na Palestina, atingindo, na região lago de Tiberíades, até 3 ou 4 metros de altura. A semente é
ansiosamente devorada sobretudo por pardais e pintassilgos.
A semente da mostarda é, realmente, minúscula, sendo imagem favorita dos rabinos, “pequeno como
grão de mostarda" (cfr. Strack & Billerbeck, o. c. tomo 1 pág. 669). Foi novamente usada por Jesus:
"se tiverdes fé do tamanho de um grão de mostarda" (Mt. 17:20).

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C. TORRES PASTORINO
O verbo grego usado, kataskênô significa "fazer tabernáculo, campar em tenda" e, portanto, “fazer
ninho, nidificar". Mas na maioria das traduções aparece "pousar” porque, no século 17, o jesuíta espa-
nhol Maldonado atesta: nam ego, qui magnas aliquando sinapis silvas vidi, insidentes saepe aves vidi,
nidos non vidi ("Commentarii in quatuor Evangelistas", pág, 279), isto é, "pois eu que já vi muitos
bosques de mostardeiras, muitas vezes vi pássaros pousados, ninhos não vi". Isso bastou para que as
traduções se modificassem ...
A interpretação comum é que o Mestre salienta que a vida espiritual, mesmo começando pequenina,
cresce enormemente. Outros aplicam a parábola ao cristianismo, iniciado em pequeno grupo, mas que
se expandirá por toda a Terra. Essa imagem já fora empregada por Ezequiel (17:23 e 31:6) e por Dani-
el (4:9). Mas Jerônimo (Patrol. Lat. vol. 26, col. 90) arrisca que a semeadura é feita na própria criatura,
no coração, e quem semeia é a inteligência e a alma.
A segunda parábola é a da mulher que faz o pão, costume tradicional na 2 Palestina e nas aldeias pe-
quenas, mesmo da Europa. Ela “esconde” o fermento na massa da farinha de trigo (áleuron) em quan-
tidade pequena, mas isso basta para que a massa cresça até o dobro em sua quantidade (no campo, sen-
do maior a quantidade de fermento, a massa cresce até o triplo, mas o pão fica com gosto acre e mofa
depressa).
As três medidas (sáton) correspondem à medida do módio (em hebraico seah, cfr. Flávio Josefo. Ant.
Jud. 9, 4, 5) que tem, cada uma, 13, 131 lt.; o que, tomado ao pé da letra, parece exagero, pois daria
para fazer mais de 250 bisnagas de pão, demais para uma família mesmo numerosa, sabendo-se que o
pão era feito de duas a três vezes por semana. Mas essas três "medidas” podem significar apenas três
"porções", sem rigor matemático, não exigido numa simples parábola.
Também aí Jerônimo (Patrol. Lat. vol. 26, col. 92) aventa hipóteses simbólicas: que as três medidas
representam as três qualidades platônicas da alma, a racional (logikós), a irascível (thymós) e a concu-
piscível (epithymós); ou ainda, embora a classifique de pius sensus, a mistura da fé humana com as três
manifestações da Trindade.

A interpretação profunda revela-nos que o "reino dos céus" ou "reino de Deus" não pode ser definido
com palavras humanas. Daí só ter sido revelado pelo Cristo por meio de comparações e parábolas
(cfr. vol. 3).
Aqui é dado, justamente, um complemento às parábolas que aí comentamos (Mat. 13:44-53). Foi dito
lá que o reino dos céus era semelhante a um "tesouro oculto no campo", a "uma pérola" mergulhada
no oceano, a uma "rede que apanha muitos peixes": localizava, então, o Encontro do "reino" no cen-
tro cardíaco. Mas talvez houvesse ainda algumas dúvidas por parte de alguns discípulos: esperavam
algo grandioso, solene, imenso, que deslumbrasse logo no primeiro instante.
O Cristo parece encontrar dificuldade em traduzir, em palavras humanas, em conceitos intelectuais, a
verdade profunda, em vista da pobreza do linguajar terreno, e da capacidade intelectual nossa. “A
que poderemos comparar o reino céus”? E acaba descobrindo na semente minúscula da mostarda, um
símile que pode dar vaga idéia da Mônada Divina, ultra-microscópica, infinitésima, invisível. E, no
entanto, quando encontrada, agiganta-se de modo espetacular.
Assim o reino de Deus, o Cristo Interno, embora um átomo Espiritual, ao ser encontrado, dá a possi-
bilidade de encontrar-se o infinito e o eterno, de mergulhar-se no inespacial e no atemporal. O ponto
de partida pode ser o infinitamente pequeno, mas o ponto de chegada é o infinitamente grande.
A idéia do crescimento de algo pequeno, é trazida, também, com o fermento: o Encontro Sublime age
na criatura como o fermento na massa de farinha de trigo, isto é, faz crescer espiritualmente de ma-
neira inesperada.
Duas imagens diferentes, procurando explicar a mesma idéia básica. Nem atribuamos ao Cristo a
dificuldade a que acenamos acima: a dificuldade residia nos ouvintes. Figuremos um professor a que-
rer explicar algo mais transcendental a uma criança: que dificuldade não teria em achar termos e

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C. TORRES PASTORINO
comparações que o intelecto infantil pudesse captar! Os próprios exemplos seriam aproximados, nun-
ca perfeitos, porque a criança não entenderia.
Em ambas as parábolas, pormenores comuns ressaltam a justeza dos exemplos: a semente é enterrada
no solo, o fermento escondido na massa. A semente é a menor antes de enterrada, mas depois de
plantada, cresce; o fermento é pouco, mas depois de escondido, faz crescer: só a humildade, no mer-
gulho interno, poderá obter o êxito desejado. Mas num e noutro caso, os "frutos" são espalhados por
muitos: os grãos atraem os pássaros, os pães alimentam os homens. Assim os pensamentos, as vibra-
ções, as palavras e obras dos que se uniram ao Cristo interno, sustentam e fazem crescer todos os que
deles se aproximam.
No campo iniciático, a lição é dada aos estudantes com precisão maravilhosa. A jornada não é feita
por meio de ações externas, mas com o início humilde dentro de si mesmo.
O reino dos céus - o grau de REI ou hierofante, o sétimo passo - não é o coroamento mundano de va-
lores terrenos, mas o labor oculto ("enterrado, escondido") que é o único que pode garantir o cresci-
mento certo e benéfico posterior.
Tudo isso faz-nos penetrar no sentido exato da Escola Iniciática "Assembléia do Caminho". Coloque-
mos a semente, embora pequena, e o fermento, embora pouco, no coração das criaturas, e aguarde-
mos que cada um cresça por si; se o terreno for fértil, a semente se tornará árvore; se a massa for
boa, levedará com o fermento, por si mesma. Saibamos agir, em nós e nos outros, com humildade: a
ação divina fará por si, não nos preocupemos. Basta que lancemos as sementes e coloquemos o fer-
mento: “eu plantei, Apolo regou, mas Deus fez crescer" (1.ª Cor. 3:6).

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SABEDORIA DO EVANGELHO

A SEMENTE
Marc. 4:26-29
26. E dizia: "Assim é o reino de Deus, como um homem (que) lança a semente na terra,
27. e, durma ou desperte, de noite e de dia, a semente germina e cresce; como, ele não
sabe.
28. A terra frutifica automaticamente, primeiro a erva, depois a espiga, depois "trigo
cheio na espiga.
29. Cada vez que entrega o fruto, imediatamente envia a foice, porque chegou a colhei-
ta".

Esta parábola é privativa de Marcos. Simples em suas palavras, mas profunda em seu sentido interno.
Compara o "reino de Deus" a um homem que lança a semente na terra e vai a seu afazeres. A semente
germina, cresce e frutifica, porque a terra produz automaticamente (automátê). Madura a espiga, é só
colhê-la. João Crisóstomo, Jerônimo e Beda, seguidos por Maldonado e Knabenbauer, julgam tratar-se
de uma alegoria.

Mais um dos ensinos crísticos, referentes ao "reino de Deus", procurando dar, por meio de compara-
ções, uma idéia de como cresce em nós a parte espiritual, e de como se desenvolvem os passos iniciá-
ticos. Observemos os graus diversos do ensino.
O homem - qualquer que seja - lança a semente na terra, e tanto de dia quanto de noite, esteja ele
dormindo ou acordado, o crescimento é silenciosa mas eficientemente realizado; como isso ocorre, ele
não sabe. Imagem perfeita para demonstrar a incapacidade intelectual da criatura de penetrar os
segredos da auto-realização, quanto a seu modus operandí.
O homem lança a semente, mas a maneira com que ela se desenvolve no interior de seu coração, isso
ele ignora. O fato, entretanto, é que planta, e ela germina, cresce, floresce e frutifica. Por obra de
quem? da terra que, automaticamente, a ajuda, ou seja, do átomo espiritual, da centelha divina, resi-
dente no coração do homem.
Os termos "entrega" (paradoí) o fruto e "envia" (apestéllei) a foice fazem-nos compreender que se
trata de simbolismo. Acusam Marcos de exprimir-se mal em grego, e concordamos quanto à gramáti-
ca. Mas, numa obra escriturística, não podemos admitir que as palavras sejam fruto de ignorância.
Se empregou karpophórei no versículo anterior, não saberia usar phérein kárpon, no seguinte, em lu-
gar de paradídômi kárpon?
Quando encontramos expressões estranhas à razão, procuremos penetrar nas entrelinhas. O verbo
paradídômi é termo técnico da transmissão de um ensinamento (cfr. vol. 4), de um "fruto" que amadu-
receu dentro da criatura.
Com isso, mais uma vez descobrimos o ensino profundo aqui oculto. O trabalho do "reino de Deus",
isto é, da Centelha divina, se torna automático depois que o homem dá o primeiro passo, ou seja, que
lança a semente na terra. O primeiro passo tem que ser da livre vontade do homem (4.º plano, liber-
dade, livre-arbítrio). O resto é consequência desse primeiro impulso. Vejamos como a descrição é
perfeita em sua simplicidade resumida, confirmando-se sempre a mesma trajetória (cfr. vol. 4):
1 - A semente (razão personalística, intelecto) é enterrada (mergulhada na individualidade) no cora-
ção: é o mergulho ou "batismo".
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2 - A semente se desfaz, pela humildade, no seio da terra: a personagem se aniquila e morre ("se o
grão não morrer" ... João, 12:24) reconhecendo a superioridade da individualidade à qual se entrega,
confirmando seu desejo inicial: confirmação.
3 - Com esse ato voluntário de anulação de si ("negue-se a si mesmo") ocorre a germinação, isto é, o
nascimento de outra criatura, do "homem novo": é a metánoia.
4 - Essa nova criatura, tenra e frágil, lentamente emerge, transformando-se na erva que reverdesce e
tende a subir sempre em busca da luz, para, dentro de si mesma, transmudá-la, pela fotossíntese, na
clorofila: é a eucaristia, alimento espiritual, ação de graças.
5 - Com a ação conjunta da terra, da água, do ar e do fogo (sol), e impulsionada pela força interior
da vida divina, plasma-se a espiga, que reúne em si todos os elementos físicos e espirituais: é o ma-
trimônio, união completa e perfeita e indissolúvel.
6 - A espiga se desenvolve, os grãos tornam-se grados, crescidos de, amor, prontos para servir de
alimento às criaturas, destinando-se ao serviço, pela doação de si mesma: é a consagração ("ordem").
Daí ser a espiga, desde os mistérios egípcios, gregos, orientais, até o cristianismo, o símbolo do sa-
cerdócio.
7 - E "cada vez que" chega a esse ponto, soa a hora de colheita, e é "enviada" a foice (símbolo da
morte) para cortar de vez a personagem, destacando a espiga da terra elevando-a ao moinho para ser
triturada (martirizada) e ao fogo para ser cozida, tornando-se então o PÃO, o alimento por excelência
da humanidade. É a última cristificação ("extrema unção") e por isso Mesquisedec (Gên. 14:18)
quanto Jesus (Mat. 26:26; Marc. 14:32; Luc. 24:30 e João, 6:35 a 52, etc.) se utilizaram do pão como
símbolo do sacrifício da total doação do homem como alimento que espiritualiza as criaturas.
Eis como, numa pequenina parábola, descobrimos um roteiro de vida, verificando que todas as pala-
vras dos Evangelhos levam sempre às mesmas conclusões. Cada vez mais nos certificamos que nossa
interpretação está certa. pois tudo a confirma.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

UM COM O PAI
(Fim de dezembro do ano 30)
João, 10:22-39
22. E aconteceu a festa da dedicação em Jerusalém; era inverno.
23. E Jesus passeava no templo, no pórtico de Salomão.
24. Cercaram-no os judeus e diziam-lhe: "Até quando suspendes nossa alma? Se és o
Cristo, fala-nos abertamente".
25. Respondeu-lhes Jesus: "Eu vo-lo disse e não credes; as ações que eu faço em nome de
meu Pai testificam a meu respeito.
26. Mas não credes, porque não sois de minhas ovelhas.
27. As minhas ovelhas ouvem minha voz, e eu as conheço e elas me seguem.
28. e eu lhes dou a vida imanente, e nunca jamais se perderão, e ninguém as arrebatará
de minha mão:
29. o Pai, que as deu a mim, é maior que tudo, e ninguém pode arrebotar da mão do Pai:
30. eu e o Pai somos um".
31. Os judeus outra vez buscaram pedras para apedrejá-lo.
32. Retrucou-lhes Jesus: "Mostrei-vos muitas belas ações da parte do Pai; por causa de
qual ação me apedrejais"?
33. Responderam-lhe os judeus: "Não te apedrejaremos por uma bela ação, mas por
blasfêmia, porque, sendo tu homem, te fazes um deus".
34. Retrucou-lhes Jesus: "Não está escrito na lei: "Eu disse, vós sois deuses"?
35. Se ele chamou deuses aqueles nos quais se manifestou o ensino de Deus - e a Escritura
não pode ser ab-rogada
36. a quem o Pai consagrou e enviou ao mundo, dizeis "blasfemas", porque eu disse: "sou
filho de Deus"?
37. Se não faço as ações de meu Pai, não me creiais,
38. mas se faço, embora não me creiais, crede nas ações, para que conheçais e tenhais a
gnose de que o Pai está em mim e eu estou no Pai".
39. E de novo procuravam prendê-lo, mas ele saiu das mãos deles.

Este é mais um dos trechos de importância capital; nas declarações do Mestre. Analisemo-lo cuidado-
samente. O evangelista anota com simplicidade, mas com precisão, a ocasião em que foram prestadas
essas declarações de Jesus: a festa da "dedicação" (hebraico: hanukâh, grego: egkainía) era uma festa
litúrgica, instituída por Judas Macabeu, em 164 A.C., em comemoração à purificação do templo, da
profanação de Antíoco IV Epifânio (cfr. 1.º Mac. 1:20-24, 39 e 4:59; 2.º Mac. 10:1-8; Fl. josefo, Ant.
Jud. 12, 5, 4). Começava no dia 25 de kislev (2.ª metade de dezembro, solstício do inverno) e durava
oito dias. Em solenidade, equivalia às festas da Páscoa, de Pentecostes e dos Tabernáculos.

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C. TORRES PASTORINO
Por ser inverno, Jesus passeava (com Seus discípulos?) no pórtico de Salomão, que ficava do lado do
oriente, protegido dos ventos frios do deserto de Judá. Um grupo de judeus aproxima-se, cerca-O, e
pede que se pronuncie abertamente: era o Messias, ou não?
Ora, essa resposta não podia ser dada: declarar-se "messias" seria confessar oposição frontal ao domí-
nio romano, segundo a crença geral (o messias deveria libertar o povo israelita); essa declaração traria
duas consequências, ambas indesejáveis: atrair a si a malta de políticos ambiciosos e descontentes,
ávidos de luta; e, ao mesmo tempo, o ódio dos "acomodados" que usufruíam o favor dos dominadores,
e que logo O denunciariam a Pilatos como agitador das massas (e dessa acusação não escapou), para
que fosse condenado à morte, como os anteriores pretensos messias. Mas, de outro lado, se negasse a
si mesmo o título, não só estaria mentindo, como decepcionaria o povo humilde, que Nele confiava.
Com Sua sábia prudência, no entanto, saiu-se galhardamente da dificuldade, citando fatos concretos,
dos quais se poderia facilmente deduzir a resposta; e chegou, por fim, a declarar Sua unificação com a
Pai. Portanto, Sua resposta foi muito além da pergunta formulada, para os que tivessem capacidade de
entender.
Baseia-se, para responder, em Suas anteriores afirmativas e nas ações (érga) que sempre fez "em nome
do Pai". Tanto uma coisa como outra foram suficientes para fazê-Lo compreendido por "Suas ove-
lhas", que “O seguem fielmente". E a todas elas é dada a Vida Imanente, de forma que elas "não se
perderão" (apóllysai, "perder-se", em oposição a sôizô, "salvar-se”, e não "morrer", sentido absurdo).
A. razão da segurança é que elas estão "em Sua mão" e, portanto, “na mão do Pai, que é maior que
tudo".
Mais uma vez salientamos que zôê aiônios não pode traduzir-se por “vida eterna" (cfr. vol. 2), já que a
vida é ETERNA para todos, inclusive na interpretação daqueles que acreditam erroneamente num in-
ferno eterno ... Logo, seria uma promessa vã e irrisória. Já a Vida imanente, com o Espírito desperto e
consciente, unido a Deus-dentro-de-si, constitui o maior privilégio, a aspiração máxima. que nossa
ambicionar um homem na Terra.
O versículo 29 apresenta três variantes principais, das quais adotamos a primeira, pelo melhor e mais
numeroso testemunho:
1 - “O Pai, que as deu a mim, é maior que tudo" (hós, masc. e meizôn, masc.) - papiro 66 (ano 200,
que traz édôken, aoristo, em vez de dédôken, perfeito, como os códices M e U); K, delta e pi, os mi-
núsculos 1, 118, 131, 209, 28, 33, 565; 700; 892; 1.009 ; 1.010; 1.071 1.071; 1.079; 1.195, 1.230,
1.230, 1.241, 1.242, 1.365, 1.546, 1.646, 2.148; os unciais bizantinos (maioria), as versões siríacas
sinaítica, peschita e harclense, os Pais Adamâncio, Basílio, Diodoro (4.º séc.), Crisóstomo, Nono e
Cirilo de Alexandria (5.º séc.); e aparece com o acréscimo do objeto direto neutro autá na família 13,
em 1216, 1344 (que tem o mac. oús), e 2174, nas versões coptas boaírica (no manuscrito), saídica,
achmimiana, nas armênias e georgianas.
2 - "O que o Pai me deu é maior que tudo" (hó, neutro e meízon, neutro) no códice vaticano (com cor-
reção antiga para hós), nas versões latinas ítala e vulgata, na boaírica e gótica, nos Pais Ambrósio e
Jerônimo (5.º século).
3 - "O Pai é quem deu a mim o maior que tudo" (hós, masc, e meízon, neutro), nos códices A, X, theta
e na versão siríaca palestiniana.
A quarta variante (hó, neutro e meizôn, masc) parece confirmar a primeira, já que não faz sentido em
si; talvez distração do copista, esquecendo o "s". Aparece nos códices sinaítico, D, L, W e psi.
A segunda variante, aceita pela Vulgata, é bastante encontradiça nas traduções correntes: "O que o Pai
me deu é maior (mais precioso) que tudo". Realmente, esse pensamento do cuidado de Jesus pelo que
o Pai Lhe deu, é expresso em João 6:37-39 e 17:24; mas a idéia, que reconhecemos como do texto ori-
ginal, além de caber muito melhor no raciocínio do contexto (estão as ovelhas "na mão do Pai" e nada
poderá arrebatá-las, porque Ele é maior que tudo), também é confirmado por João 14:28.

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A seguir explica por que, estando "em Sua mão", automaticamente, estão na mão do Pai: "Eu e o Pai
somos UM".
A expressão "estar nas mãos de alguém" é usual no Antigo Testamento. Sendo a mão um dos princi-
pais instrumentos físicos da ação, no homem, a mão exprime o "poder de agir" (Ez. 38:35), a "potên-
cia" (Josué, 8:20; Juízes, 6:13; 1.º Crôn. 18:3; Salmo 75:6; Isaías 28:2; Jer. 12:7; 1.º Sam. 4:3; 2.º Sam.
14:16, etc.). Assim, estar na mão de alguém" exprime "estar com alguém" (Gên. 32:14; 35:4; Núm,
31:49; Deut. 33:3; Jer. 38:10, etc.) ou “estar sob sua proteção ou seu poder" (Gên. 9:2; 14:20; 32:17;
43:37; Ex. 4:21; 2.º Sam, 18:2; 1.º Reis 14:27; 2.º Reis 10:24; 2.º Crôn. 25;20; Job 8:4; Sab. 3:1). Sim-
bolicamente fala-se na "mão de Deus", que é “poderosa" (Deut 9:26; 26:8; Josué 4:25; l.ª Pe. 5:6) e
garante sua ajuda (Luc. 1:66); ou, quando está sobre alguém o protege (2.º Crôn, 30:12; 1.º Esd, 7:6, 9,
28; 8:18, 22, 31; 2.º Esd. 2:8, 18; Is. 1:25; Zac. 13:7. etc,).
A frase “Eu e o Pai somos UM" foi bem compreendida em seu sentido teológico pelos ouvintes, que
tentam apedrejá-Lo novamente (cfr. João, 8:59) e "buscavam" (ebástasan) pedras fora do templo, já
que não nas havia no pórtico de Salomão.
Mas diferentemente da outra ocasião, Jesus não "se esconde". Ao contrário, enfrenta-os com argu-
mentação lógica, para tentar chamá-los à razão. Eis os argumentos:
1.º - Ele lhes mostrou "muitas belas ações" (pollá érga kalá) vindas do Pai. As traduções correntes
transformaram o "belas" em "boas". Por qual delas querem apedrejá-Lo?
A resposta esclarece que não é disso que se trata: é porque “sendo Ele um homem, se faz (poieís se-
autón) um deus", o que constitui blasfêmia.
2.º - Baseado na "lei", texto preferível (por encontrar-se no papiro 45, em aleph, D e theta) a "na vossa
lei" ( A, B, L e versões Latinas e Vulgata). O termo genérico "lei" (toráh) englobava as três partes de
que eram compostas as Escrituras (toráh, neviim e ketubim). A frase é citada textualmente de um sal-
mo, mas também se encontra no Êxodo uma atribuição dela.
Diz o Salmo (82:6): ani omareti elohim atem, vabeni hheleion kulekem (em grego: egô eípa: theoí éste,
kaì hyioì hypsístou pántes), ou seja: "eu disse: vós sois deuses, e filhos, todos, do Altíssimo". Jesus
estende a todos os homens o epíteto de elohim (deuses) que, no Salmo (composto por Asaph, no tempo
de Josafá, cerca de 890 A.C.) era dirigido aos juízes, que recebiam esse título porque faziam justiça em
nome de Deus. Nos trechos do Êxodo (21:6 e 22:8 e 28), a lei manda que o culpado "se apresente ao
elohim", isto é, ao juiz.
Tudo isso sabia Jesus, e deviam conhecê-lo os ouvintes, tanto que é esclarecida e justificada a compa-
ração: lá foram chamados deuses "aqueles nos quais o ensino de Deus se manifestava" (os juízes) - e a
Escritura (graphê) "não pode ser ab-rogada" (ou dynastai lysthênai). É o sentido de lyô dado por Heró-
doto (3, 82) e por Demóstenes (31, 12) quando empregam esse verbo com referência à lei.
3.º - Ora, se eles, simples juízes, eram chamados deuses na lei, por que seria Ele acusado de blasfêmia
só por dizer-se "filho de Deus" se Ele fora “separado" (hêgíasen, verbo derivado de hágios que, lite-
ralmente tem esse significado) ou "consagrado" pelo Pai, e "enviado" ao mundo? E tanto só se dizia
"filho", que se referia a Deus dando-Lhe o nome de Pai.
4.º - As ações. Pode dividir-se em dois casos:
a) se não as fizesse, não era digno de crédito:
b) fazendo-as, devia ser acreditado.
Todavia, mesmo que, por absurdo, não acreditassem em Sua palavra, pelo menos as ações praticadas
deviam servir para alertá-los, não só a "conhecer" (gnôte) mas até mesmo' a ter a gnose plena (gi-
nôskête, papiro 45, e não pisteuête, "creiais") de que, para fazê-las, era indispensável "que o Pai esti-
vesse Nele e Ele no Pai".
De nada adiantaram os argumentos. Eles preferiam as trevas à luz (João, 3:19-21), pertenciam ao Anti-
Sistema (João, 8:23), porque eram filhos do Adversário" (João, 8:47), logo, não tinham condições espi-

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rituais de perceber as palavras nem de analisar as ações "do Alto". Daí quererem passar à violência
física, prendendo-O (cfr. João, 7:1, 30, 32 e 44, e 8:20). Mas, uma vez mais, Ele escapa de suas mãos e
sai de Jerusalém (como em João 4:3 e 7:1).

Lição prenhe de ensinamentos.


Jesus passeava no pórtico de Salomão (que significa "pacífico" ou "perfeito") na festa da "dedicação"
do templo (corpo) a Deus. Eis a primeira interpretação.
Jesus, o Grande Iniciado, Hierofante da "Assembléia do Caminho", é abordado pelos "religiosos or-
todoxos" (judeus), que desejam aberta declaração Sua a respeito de Sua missão. Mas o "homem"
Jesus, que já vive permanentemente unificado com o Cristo Interno, responde às perguntas na quali-
dade de intérprete desse mesmo Cristo.
Cita as ações que são inspiradas e realizadas pelas forças do Alto (cfr. João, 8:23), suficientes para
testificar quem é Ele; mas infelizmente os ouvintes "não são do seu rebanho", e por isso não Lhe ou-
vem nem reconhecem a voz (cfr. João 10:14,16 ). A estas suas ovelhas é dada a vida imanente e elas
não se perderão (cfr. João 8:51), porque ninguém terá força de arrebatá-las de Seu poder, que é o
próprio poder do Pai, já que Ele e o Pai são UM.
O testemunho não é aceito. Antes, é julgado "blasfêmia", pois Ele, simples homem, "se faz um deus".
Jesus (o Cristo) retruca que, se todo homem é um deus, segundo o que está na própria Escritura, Ele
não está usurpando direitos falsos, quando se diz "filho de Deus", em Quem reconhece "o PAI". Con-
tudo, se não quisessem acreditar Nele, não importava: pelo menos reconhecessem as ações divinas
realizadas pelo Pai através Dele, e compreendessem que o Pai está Nele e Ele no Pai, já que, sem essa
união, nada teria sido possível fazer.
Inútil tudo: o fanatismo constitui os antolhos do espírito.
Transportemos o ensino para o âmbito da criatura encarnada, e observemos o ceticismo do intelecto,
ainda mesmo quando já iluminado pelas religiões ortodoxas ("judeus"), mas ainda moldado pelos
dogmas estreitos de peco fanatismo.
A Individualidade (Jesus) é solicitada a manifestar-se ao intelecto, à compreensão racional e lógica
do homem. Como resposta, cita as ações espirituais que ele mesmo vem sentindo em sua vida religio-
sa: o conforto das preces, a consolação nos sofrimentos, a coragem nas lutas contra os defeitos, a
energia que o não deixa desanimar, a doçura das contemplações. Mas, sendo o intelecto um produto
do Anti-Sistema, não consegue "ouvir-lhe a voz" (akoúein tòn lógon, vol. 4) nem segui-lo, porque não
o conhece. Mas se resolver entregar-se totalmente, anulando seu eu pequeno, ninguém poderá derro-
tá-lo, porque "o Pai é maior que tudo" e Ele se unificará ao Pai quando se unificar à Individualidade,
que já é UNA com o Pai.
O intelecto recusa: julga ser "blasfema" essa declaração, já que o dogma dualista de sua religião lhe
ensinou que o homem está "fora de Deus" e, por sua própria natureza, em oposição a Ele: logo, ja-
mais poderá ele ser divino. Politeísmo! Panteísmo! Blasfêmia! ...
O argumento de que todo homem é divino, e que isto consta das próprias Escrituras que servem de
base à sua fé, também não abala o intelecto cético, que raciocina teologicamente sobre "unidade de
essência e de natureza", sobre "uniões hipostáticas", sobre "ordens naturais e sobrenaturais", sobre
"filho por natureza stricto sensu e filhos por adoção", sobre o "pecado de Adão, que passou a todos",
etc. etc. E continua sua descrença a respeito da sublimidade do Encontro, só conhecido e experimen-
tado pelos místicos não-teólogos. E, como resultante dessa negação, a recusa do Cristo Interno que,
por ver inúteis seus amorosos esforços, "se afasta e sai de Jerusalém".
No campo iniciático, observamos o ensino profundo, em mais um capítulo, manifestado de maneira
velada sob as aparências de uma discussão. Eis alguns dos ensinos:
Para distinção entre o verdadeiro Eu Profundo e os enganos tão fáceis nesse âmbito, há um modo
simples de reconhecimento: as belas ações que vêm do Pai.

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Entretanto, uma vez que foi feita a íntegra doação e a entrega confiante, ingressando-se no "rebanho
do Cristo", nenhum perigo mais correremos de perder-nos: estamos na mão do Cristo e na mão do
Pai. Não há forças, nem do físico nem do astral que nos possam arrebatar de lá. Nada atingirá nosso
Eu verdadeiro. As dores e tentações poderão atuar na personagem, mas não atingem a Individualida-
de. Já existe a união: nós e o Pai somos UM, indistintamente.
Não há objeções que valham. A própria Escritura confirma que todo homem é um deus, embora tem-
porariamente decaído na matéria. Não obstante, o Pai continua DENTRO DO homem, e o homem
DENTRO DO Pai.
Aqui vemos mais uma confirmação da onipresença concomitante de Deus, através de seu aspecto ter-
ceiro, de Cristo Cósmico.
O CRISTO CÓSMICO é a força inteligente NA QUAL reside tudo: átomos, corpos, planetas, sistemas
estelares, universos sem conta nem limite que nessa mesma Força inteligente, nessa LUZ incriada,
nesse SOM inaudível, têm a base de sua existência, e dela recolhem para si mesmos a Vida, captando
aquilo que podem, de acordo com a própria capacidade receptiva. Oceano de Luz, de Som, de Força,
de Inteligência, de Bondade, QUE É, onde tudo flutua e de onde tudo EX-ISTE.
Mas esse mesmo Oceano penetra tudo, permeia tudo, tudo impregna com Sua vida, com Sua força,
com Sua inteligência, com Seu amor.
Nesse Infinito está tudo, e esse Infinito está em tudo: nós estamos no Pai, e o Pai está em nós.
E é Pai (no oriente denominado Pai-Mãe) porque dá origem a tudo, Dele tudo parte e Nele tudo tem a
meta última da existência. Partindo desse TODO, vem o movimento, a vibração, a vida, o psiquismo, o
espírito, nomes diferentes da mesma força atuante, denominações diversas que exprimem a mesma
coisa, e que Só se diferencia pelo grau que conseguiu atingir na evolução de suas manifestações cor-
póreas nos planos mais densos: é movimento vorticoso no átomo, é vibração no éter, é vida nos vege-
tais, é psiquismo nos animais, é espírito nos homens. E chegará, um dia, a ser chamado o próprio
Cristo, quando atingirmos o ponto culminante da evolução dentro do reino animal: "até que todos
cheguemos à unificada fidelidade, à gnose do Filho de Deus, ao estado de Homem Perfeito, à dimen-
são da plena evolução de Cristo" (Ef. 4:13).

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SABEDORIA DO EVANGELHO

VOLTA A TRANSJORDÂNIA

Mat. 19:1b-2 Marc. 10:1 João, 10;40-42

1b ... e veio para as fronteiras 1. E levantando-se daí, veio 40. Retirou-se outra vez para
da Judéia, além do Jordão, para as fronteiras da Ju- além do Jordão, para o lu-
déia e além do Jordão, e gar onde João estava mer-
2. e o acompanhavam grandes
novamente o acompanha- gulhando no princípio, e ali
multidões, e ali as curou.
vam as multidões e, como permaneceu.
costumava, de novo as en- 41. E muitos vieram a ele e
sinava. diziam: João, na verdade,
não fez sinal algum, mas
tudo quanto deste disse
João, era verdade".
42. E ali muitos creram nele.

Em Mateus. no cap. 19, toda a viagem da Galiléia a Jerusalém para a festa dos Tabernáculos, é descrita
no vers. 1, que também se refere à partida dessa cidade para a Transjordânia depois da festa da dedica-
ção. No vol. 4.º, pág. 147, comentamos todo o versículo.
A expressão de Marcos ekeithen anastás lembra o mesmo em 7:24. Era um modismo hebraico comum
(vaiaqom, cfr. Gên. 22:3 e Núm. 22:14, 21, etc.) indicando o início de uma viagem.
O fato de que temos aqui notícia é que Jesus, tendo saído de Jerusalém, retira-se para além Jordão, nos
arredores de Betânia, no local em que o Batista costumava mergulhar nas margens do Jordão (João.
1:28; vol. 1), antes de transferir-se para Enon, perto de Salim (João, 3:23; vol. 2). Exatamente aí Jesus
iniciara Sua "vida pública" (João, 4:23; vol. 2) e aí convocara seus primeiros discípulos (João 1:35-43;
vol. 1.º). Os moradores locais ainda se recordavam bem de João, “que não dera sinais exteriores", mas
que falara certo quando se referiu a Jesus, recém-chegado, dizendo que era o Esperado. Essa fé valeu
de muito, pois foram curados “todos" os que a Ele recorreram.
Daí por diante, Jesus permanece naquela região (eis tà hória), indo a Efraim ou Efrém na Samaria, nos
arredores e regressando a Jericó, donde se dirigirá a Jerusalém, onde será crucificado na páscoa do ano
31.
A Peréia (Transjordânia) era uma região que se estendia por uns 100 km nas margens orientais do Jor-
dão, entre o lado de Tiberíades ao norte e o mar Morto ao sul. O rio limitava-a a oeste e Filadélfia a
leste, Péla ao norte e Maquérus ao sul. Sua capital, antes denominada Betharamphtha, fora cognomi-
nada Lívias por Herodes, o grande, em homenagem à esposa de Augusto, e engrandecida por Herodes
Antipas que, porém, preferia residir em Maquérus. Lívias ficava defronte de Jericó, na outra margem
do Jordão que, nesse ponto, tinha vários vaus. permitindo travessia fácil.

A lição que nos dá essa notícia é a comparação entre a personagem, mesmo santificada (João) e a
individualidade (Jesus). Embora a primeira, mesmo com o intelecto iluminado, nada consiga fazer por
si mesma, no entanto o testemunho que dá a respeito da individualidade é verdadeiro.

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C. TORRES PASTORINO
O papel da individualidade é plenamente realizado: ensina e cura, isto é, ilumina e corrige, acaba
com a enfermidade do espírito (ignorância) e com a enfermidade do corpo.
Exemplo de como devemos agir, mesmo nos retiros forçados: jamais "parar". Ainda repousando, ain-
da revendo lugares passados, o trabalho prossegue ininterrupto, firme, sem esmorecimento.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

CURA DE DOIS CEGOS


Mat. 9:27-31
27. Seguiram a Jesus que saía de lá, dois cegos, gritando e dizendo: "Compadece-te de
nós, Filho de David".
28. E entrando em casa, vieram a ele os cegos; e Jesus disse-lhes: "Credes que posso fazer
isso"? Responderam-lhe: "Sim, Senhor" .
29. Então tocou-lhes nos olhos, dizendo: "Seja feito a vós, conforme vossa fé".
30. E abriram-se seus olhos. Jesus ameaçou-os, dizendo: "Vede, ninguém saiba!"
31. Eles, porém, saindo, fizeram-no conhecido em toda aquela terra.

O local geográfico do episódio não é citado. Alguns hermeneutas o situam em Cafarnaum, em vista de
estar, em Mateus, logo a seguir à ressurreição da filha de Jairo, e se dividem quanto à "casa" a que se
refere o narrador, que diz apenas "entrando em casa" (elthónti eis tên oikían). Loisy ("Les Êvangiles
Synoptiques") supõe, como em geral, ser casa de Pedro, mas Lagrange (“Évangile selon St. Matthieu",
pág. 189) acha que é a casa de Mateus, o que é aceito por Durand ("Évangile selon St. Matthieu", Pa-
ris, 1924) ; Pirot (o.c. vol. 9, pág. 122) opina que "Jesus alugara um apartamento para si, independente,
para ter a liberdade de movimento indispensável a um ministério como o seu". E essa dedução é feita
porque em Mat. 8:14 é dito "foi à casa de Pedro", e em Mat. 13:1 "saiu de casa" ou "voltou a casa"
(Mat. 13:36 e 17:25 ). Logo é a "sua casa". Não cremos haja Jesus abandonado a casa de Pedro, nem
para trocá-la por uma mais rica (a de Mateus), nem para um apartamento próprio, onde teria o proble-
ma de quem lhe cuidasse das coisas, o que não faltava, com todo o amor, na casa de Pedro, com as
esposas dele e de André, suas filhas e a própria sogra de Pedro, que fora curada por Jesus.
Pela cronologia geralmente aceita, a cura foi efetuada na Transjordânia, em sua estada depois da festa
da dedicação.
Os cegos acompanham Jesus "que vai saindo de lá”, e vão “gritando” (krázontes, como são sempre
apresentados os cegos nos Evangelhos). O título "Filho de David" designava o messias (cfs. Salmo
17:23, etc.) e já fora empregado pela Cananéia (vol. 4). Não é plausível que eles soubessem que se
tratava do messias. Mais viável que, desejando um favor, atribuíssem interessadamente, um título que
honrava a pessoa: ben David. É mais da psicologia humana, não só daquele tempo, como de hoje: elo-
giar aquele de quem esperamos um favor.
Jesus primeiro pergunta se eles acreditam que Ele tenha a força (dynamis) de fazer isso. A resposta é
singela: "Sim, Senhor" (em grego, kyrie, em aramaico, mari, "meu senhor", cujo feminino é marta).
Em resposta, Jesus lhes diz: "faça-se (genêthêto) a vós segundo a vossa crença", e lhes toca os olhos,
recuperando eles imediatamente a visão. Depois adverte-os (o verbo grego embrimaómai, só usado
aqui e em João, 11:33 e 38, mas com outro sentido, é de difícil tradução: "roncar, fremir, zangar-se”)
que ninguém saiba. Mas bastava olharem para eles, para verificar que haviam recuperado a visão, e
eles tornam Jesus conhecido (diephêmisan autón) em toda a região.

Este episódio abre também nossos olhos para revelações dignas de registro.
Notemos que os cegos são DOIS. Ora, já vimos (vol. 2 e vol 3) que o "dois" exprime a receptividade
passiva feminina. Há, portanto, nessa súplica vibrante e veemente de luz ("gritando") um espírito
pronto para a iluminação, com a receptividade perfeita.

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C. TORRES PASTORINO
Ora, esse espírito segue Jesus (a individualidade) quando "sai de lá" (parágonti ekeíthen) e quando
"entra em casa" (elthónti eis tên oikían), isto é, quando peregrina partindo da Luz e faz seu caminho
na "casa" de seus veículos físicos. Acompanha-a dentro da "casa" (coração) "gritando" por “miseri-
córdia" (eléêson), para receber a iluminação.
O pedido é feito ao "Filho de David". Realmente, vimos que David significa "o Amado", e simboliza o
Cristo Cósmico, o terceiro aspecto da Divindade. Ora, o espírito se dirige ao "filho" de David, ou
seja, à Centelha Crística, que proveio (é filha) do Cristo Cósmico, e é essa Centelha ou Eu Profundo
que ele segue até dentro de casa.
A persistência, essa ânsia em "mendigar o espírito" (tôchoí tôi pneúmati, Mat. 5:3; vol. 2), esse prepa-
ro comprovado pela receptividade perfeita (“dois") vão merecer resposta favorável. É quando o
Cristo Interno indaga se ele tem fé (emoções) e se confia (intelecto) que Ele tenha a forca (dynamis)
de realizar a iluminação. A resposta é "sim".
Diante dessa garantia, vem o deferimento ao pedido, com a ordem de que “seja feita" ou "ele evolua"
(genêthêto, de gínomai) de acordo exatamente com a fidelidade (sintonia vibratória espiritual) que
tiver. Isso porque ninguém recebeu nem receberá jamais por favoritismos nem privilégios: a única
medida do que se recebe é a capacidade intrínseca do receptor, nem mais nem menos.
E isso é medido pela frequência vibratória do SER (não do "fazer", nem do' "saber”, nem do "crer",
nem do "falar").
E a luz flui da força potencial (dynamis) simbolizada pela “mão" que toca os "olhos", ou seja, os ór-
gãos da compreensão, o intelecto, que se abre para deixar penetrar a flux os raios luminosos do
Cristo. Com a força crística atuante, a luz é feita de imediato. Não mais necessidade de testemunhos
alheios, de pesquisas, de estudos, de raciocínios: é a intuição instantânea que tudo clareia a visão
objetiva que tudo vê, a mente aberta para o infinito, o Espírito que se incendeia no Cosmo, a Luz que
tudo ilumina.
O Cristo "treme" ou "murmura" (aqui podemos entender o pleno sentido e o porquê do emprego de
enebrimêthê, do verbo embrimáomai: "roncar" ou "fremir", isto é, fazer sentir vindo de dentro, sem
palavras) que "ninguém tenha conhecimento" (ginôskétô) do que se passou.
No entanto, não houve desobediência como pensam os profanos. Como criaturas "preparadas", nada
foi dito. O segredo foi mantido. Mas, assim como a própria presença de um cego conhecido que recu-
pera a visão atesta o que com ele se passou, assim também a simples presença da criatura iluminada
pelo Encontro, mesmo sem palavras, "torna o Cristo conhecido” a todos os que dela se aproximam. O
Cristo transparece através daqueles que tiveram a felicidade indescritível de a Ele unificar-se .

Figura “CURA DE DOIS CEGOS”

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SABEDORIA DO EVANGELHO

O OBSIDIADO MUDO
Mat. 9:32-34
32. Retirando-se eles, eis trouxeram-lhe um homem mudo obsidiado.
33. E, expulso o obsessor, falou o mudo. E a multidão admirou-se, dizendo: "Nunca se
manifestou isso em Israel".
34. Mas os fariseus diziam: "Pelo chefe dos obsessores, expulsa os obsessores".

Mais um episódio de obsessão, explicitamente, confessada. Obsessão com efeitos fisiológicos acentua-
dos, pois o adversário espiritual emudeceu a vítima.
Não entra o narrador em pormenores da cura, mas deixa claro mais uma vez que o Mestre, não "dou-
trinava" obsessor (cfr. vol. 3 e atrás): simplesmente o afastava, e de modo enérgico "expulsar = lançar
fora, ekbállô). Livre do obsessor, o homem voltou ao uso normal da palavra.
Aprendemos, pois, que um obsessor (e a fortiori um bom espírito) pode dominar o aparelho fonador ou
os centros da palavra de seu instrumento psíquico. E, se pode fazê-lo emudecer, evidentemente pode
constrangê-lo a falar.
As apreciações registradas por Mateus dão conta dos dois extremos: os entusiastas que afirmam jamais
ter ocorrido fato semelhante em Israel, e os incrédulos que logo atribuem a força divina aos próprios
obsessores . Exatamente como hoje: os homens não mudam: ou elevam o médium às alturas, enalte-
cendo-o como um ser supra-humano, ou o acusam de influenciados pelo “demônio". A lição do Evan-
gelho, ensinada há dos mil anos, não foi aprendida até hoje, nem mesmo pelos que se dizem “cristãos".

Figura “O OBSIDIADO MUDO” – Desenho de Gustavo Doré, gravura de Piaud

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C. TORRES PASTORINO
Lição curta, que nos mostra a Individualidade a vencer a resistência passiva da matéria inerte de que
se revestiu, ao condensar-se, o espírito. O peso do físico-denso é qual zavorra que lhe tira a liberdade
não só de movimentação como de qualquer ato espiritual. Se o espírito quer orar, meditar, falar, seu
estado de congelado na carne o torna mudo e sonolento, não lhe permitindo vôos altaneiros. A ação
da individualidade, em certos casos, é decisiva: destaca o espírito, expulsando a carne, nem que seja
nas horas de sono.
Outra consideração: quando nosso eu pequeno fica mudo, sem saber sequer balbuciar uma prece, nos
momentos de dificuldade, aprendamos a arrebatar dele o peso das preocupações, do medo, das an-
gústias - dos "obsessores" que emudecem - para que, liberto, possa ele, a sorrir, entreter-se com o
Cristo Interno, a fim de receber o conforto e o auxílio indispensáveis, por meio de palavras de grati-
dão e amor.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

RECADO A HERODES
Luc. 13:31-33
31. Naquela mesma hora, vieram alguns fariseus, dizendo-lhe: "Sai e vai embora daqui,
porque Herodes quer matar-te".
32. E disse-lhes (Jesus): "Indo, dizei a essa raposa: eis expulso obsessores e realizo curas
hoje e amanhã, e no terceiro (dia) me aperfeiçôo.
33. Mas devo caminhar hoje e amanhã e no (dia) seguinte, porque não convém a um pro-
feta morrer fora de Jerusalém".

A expressão "naquela mesma hora" dá-nos a impressão de que se tratava de um fato que provocara a
admiração na massa com ampla repercussão. Aproximam-se alguns fariseus, avisando a Jesus que saia
da Peréia onde se encontrava, e que pertencia ao território governado por Herodes Ântipas porque este
queria matá-Lo. Já o fizera a João Batista, podia repetir a façanha com Jesus.
Surge natural a curiosidade de saber por que essa solicitude dos fariseus, que tinham sido terrivelmente
arrasados pela palavra candente do carpinteiro humilde. Mas o grupo de fariseus da Peréia parece não
ter sido tão dogmático e intransigente como o de Jerusalém, pois estavam mais distantes do centro po-
lítico do partido. Nos próximos capítulos veremos o Mestre dirigir-se a eles com certa consideração.
Desse modo, pode ser que realmente alguns se interessassem pelas lições que dava, e portanto por Sua
pessoa.
De outro lado parece que estavam apenas dando, disfarçadamente, um recado do próprio Herodes. O
assassinato do Batista, executado contra sua vontade - porque o sabia justo e o temia (cfr. Marc. 6:20) -
trouxera-lhe pesado remorso, chegando a afirmar que Jesus era o mesmo Batista que ressuscitara (Mat.
14:1-2; Marc. 6:14-16; Luc. 9:7-9; vol. 3).
Ora, nessas condições era psicológico que ele não se interessasse absolutamente em envolver-se de
novo com aquele homem: "avisem-no que saia do meu domínio, para que não seja eu obrigado a matá-
lo".
O recado foi transmitido fielmente. E a resposta de Jesus, inesperada e desconcertante. Percebendo que
os fariseus eram emissários do próprio Herodes, manda-lhe a resposta: "regressando a ele, dizei a essa
raposa que continuarei a expelir obsessores e a curar, hoje e amanhã, e no terceiro dia me aperfeiçôo",
isto é, atinjo à minha perfeição (teleioúmai, presente do indicativo da voz média de teleióô, “comple-
tar, terminar, atingir a perfeição").
E continua afirmando que "hoje, amanhã e no dia seguinte" é-Lhe necessário caminhar (seguir à frente,
evoluir) porque a um profeta não convém morrer (apotésthai, infinitivo aoristo segundo da voz média
de apóllymi) fora de Jerusalém. Palavras todas enigmáticas, que os exegetas procuram compreender e
explicar em relação à próxima morte de Jesus; como estamos em janeiro do ano 31, julgam tratar-se
não de "dias", mas de "meses"; com efeito, três meses, mais ou menos, depois desse episódio, houve a
crucificação. Daí o teleioúmai ser geralmente traduzido por "serei consumado", na voz passiva.

Aqui encontramos indicações de "horas" e "dias".


Desse episódio, verificamos o modo de agir do Espírito que não teme as ameaças terrenas, mas reali-
za seu trabalho missionário rigidamente dentro do pre-estabelecido: primeiro o serviço de atendi-
mento aos que sofrem, libertando-os das cadeias dos planos inferiores: astral (obsessces) e físico (cu-
ras). São duas etapas distintas, ambas dependentes de poderes psíquicos. A terceira etapa será a ob-

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C. TORRES PASTORINO
tenção da perfeição plena em si mesmo. Mas, de qualquer forma, é indispensável caminhar, pois na
evolução dá-se o mesmo que ao subir a correnteza de um rio: parar é regredir.
A conclusão, introduzida com uma oração causal, só faz sentido pleno quando compreendida em sua
interpretação mais profunda: um profeta (médium) não deve terminar sua carreira terrena fora do
âmbito (cidade) da Paz (cfr . vol. 1). E para que não seja a Paz perdida, mister que a obrigação seja
cumprida. E cumprida totalmente, sem medo de ameaças de morte nem da própria morte.
Compreendamos ainda, outra lição: a perfeição (teleíos) ou iniciação total, vem através e em conse-
quência do serviço prestado por amor, aos semelhantes, quer se trate de curas espirituais (expulsão
de obsessores) ou físicas (doenças da matéria). Já dizia Allan Kardec: "fora da caridade não há sal-
vação”, e também Juvenal: "mens sana, in corpore sano", (Sat. 10, 356), ou seja, se a mente é perfei-
tamente sadia, em consequência o corpo também o será.
O físico é a condensação do espírito. Logo, só adoecerá o físico, se o espírito for ou se tornar doente
(a não ser casos de acidentes externos, desastres, etc.). Mas a própria medicina está chegando à con-
clusão de que as enfermidades são desarmonias vibratórias do psiquismo (1).
(1) Daí ser muito mais eficiente para a cura, o tratamento psicossomático combinado com os remédios
de homeopatia; pois estes, não contendo a substância, mas apenas a vibração da substância, harmoni-
zam as vibrações do corpo astral, diretamente, e, como reflexo, operam a cura definitiva do corpo físi-
co-denso. Ao passo que, sendo os remédios alopatas baseados nas combinações químicas, eles atacam
o resultado, mas não a causa da desarmonia psíquica que influiu no corpo físico-denso. A causa se
acha no pensamento (ação psicossomática) e na desarmonia vibratória do corpo astral, que só podem
ser corrigidas por vibrações do mesmo teor (simília simílibus curantur) que agem na fonte, no perispí-
rito. E isso só se consegue com a homeopatia.
Digna de meditação a dupla repetição das TRÊS etapas, numa insistência que nos alerta para que
pesquisemos o substrato das enumerações.
Há uma confirmação clara do TRÊS como número de perfeição, pois só na terceira etapa é atingida:
"no terceiro ME APERFEIÇÔO". O original não tem a palavra “dia", que suprimos para a sequência
dos dias: "hoje e amanhã, e no terceiro me aperfeiçôo".
A primeira dedução que fazemos é quanto ao Espírito (individualidade) que age em relação à perso-
nagem: antes tem que curá-la psíquica e fisicamente, em etapas que podem ter qualquer duração
(como vemos no Gênesis) mas, de qualquer modo, são dois períodos. Só no terceiro poderá dar-se o
aperfeiçoamento, depois de superados os dois primeiros, anulados todos os vícios e defeitos, imperfei-
ções e aleijões, morais e materiais.
Outra dedução é quanto aos aprendizes da iniciação. Mesmo se lhes chegam ameaças por parte de
autoridades, o temor não deve prevalecer, nem o "instinto de conservação" de um corpo material,
destinado mesmo a desaparecer e que, além disso, não constitui a essência do Eu, mas simplesmente
um estado transitório do próprio Espírito. Se destruído o corpo físico, o Espírito continua intacto, tal
como, destruídas as roupas, o corpo nada sofre.
Muito mais importante - aliás a única coisa importante - é viver a fieira reencarnatória em seus vários
períodos, libertando-se de todas as mazelas psíquicas e físicas. Mas, seja como for, é mister não parar
em nenhum dos três graus.
Daí ter sido feita a repetição: "expulso obsessores (vícios) e laço curas, HOJE e AMANHÃ, e no ter-
ceiro ME APERFEIÇÔO", depois de totalmente libertado dos entraves e mazelas. Mas deve caminhar
em qualquer dos três períodos: "hoje, amanhã e no (dia) seguinte, pois não convém perder-se (apó-
llymi também tem esse sentido) fora da Paz". Se houver parada ou paralisação, há perturbação.
Também aprendemos que o passado não mais interessa, pois não mais existe senão em nossa memó-
ria. A enumeração do caminho é feita a partir do presente: “hoje, amanhã e depois devo progredir".
O ontem passou, com ou sem progresso, e dele já somos escravos. Mas a partir de hoje temos nas

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C. TORRES PASTORINO
mãos as rédeas de nossa vida, somos senhores absolutos e decidimos o que fazer, e podemos fazê-lo, e
devemos fazê-lo sem temor, sem desânimo, sem demora.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

QUEIXA DE JERUSALÉM

Mat. 23:37-39 Luc. 13:34-35

37. 'Jerusalém, Jerusalém, a matadora dos pro- 34. 'Jerusalém, Jerusalém, a matadora dos pro-
fetas e apedrejadora dos que lhe são envia- fetas e apedrejadora dos que lhe são envia-
dos! Quantas vezes eu quis ajuntar teus fi- dos! Quantas vezes eu quis ajuntar teus fi-
lhos, como uma galinha aconchega seus pin- lhos como uma galinha aconchego seu ninho
tinhos sob suas asas, e não quiseste! sob as asas, e não quiseste!
38. Eis que vos é deixada deserta vossa casa. 35. Eis que vos é deixada vossa casa. E digo-vos
que não me vereis até que digais: Bendito o
39. Digo-vos, pois, que desde agora não me ve-
que vem em nome do Senhor.
reis mais, até que digais: Bendito o que vem
em nome do senhor".

O mesmo trecho foi colocado em dois contextos diferentes. Mateus o narra em sequência aos "ais"
lançados contra os fariseus. portanto, como tendo sido pronunciado na própria Jerusalém, depois do
“domingo de ramos”. Lucas o liga ao aviso a respeito das intenções assassinas de Herodes, por conse-
guinte, como proferido na Peréia. Esta segunda colocação responde muito melhor à crítica interna,
além do que, Lucas é mais cuidadoso que Mateus na sequência cronológica.
Outra observação é a forma hebraica, reproduzida nos códices gregos: Ierousalém (ao invés de Iero-
sólyma, como era dito em grego). Em Mateus esta é a única vez que aparece a forma hebraica, pois nos
outros lugares (11 vezes) está a forma grega. Já em Lucas, é mais frequente a forma hebraica que a
grega, o que não deixa de ser estranho, sendo Mateus israelita e Lucas grego.
Traduzimos como adjetivos ativos “matadora" e "apedrejadora”, os particípios presentes ativos femi-
ninos hê apokteínousa e lithobólousa, por falta de correspondência em português dessas formas ver-
bais.
Chamamos a atenção, ainda, para o "lhe" (prós autên) na terceira pessoa, no meio de uma apóstrofe
vocativa. Conservamo-lo em português, preferindo pequeno solecismo, a quebrar a beleza do original
em sua singela simplicidade, pois a frase nada perde em clareza.
Os hermeneutas vêem no texto uma alusão à perspectiva da morte próxima, mas não aceitam que o
final "não me vereis até que digais bendito o que vem em nome do Senhor" (cfr. Salmo 118:26) possa
referir-se à "entrada triunfal” em Jerusalém, no domingo antes da paixão. A alegação é que Mateus
coloca o episódio depois desse dia (o que não convence, pois sabemos que foi proferida a invectiva
antes). Mas há outra razão: o período entre a apóstrofe e a entrada seguinte em Jerusalém (dizem eles)
é muito curto (três meses, no máximo) para justificar uma profecia em forma de ameaça tão solene. A
opinião mais generalizada é que o dito se refere a uma vinda triunfal "no final dos tempos". Mas aí
teríamos um erro na predição, já que a ida a Jerusalém daí a três meses - e com essa mesma frase can-
tada pele povo - desmentiria a profecia. Pensamos se refira exatamente a essa "entrada” que estudare-
mos mais adiante (Mat. 21:1-11; Marc. 11:10; Luc. 19:38).
A imagem da "galinha que aconchega seus pintinhos" (tá nossiá, Mat) ou “seu ninho" (tén nossián,
Luc), é bela, delicada, original.
A “casa deserta" parece referir-se às palavras de YHWH a Salomão (1.º Reis. 9:7-9), “exterminarei
Israel da Terra que lhe dei e expulsarei de minha visão o templo que consagrei a meu nome, e Israel

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C. TORRES PASTORINO
será motejo e riso de todos os povos. E por mais alto que seja este templo, quem quer que passe diante
dele assobiará de pasmo e dirá: Por que YHWH fez isto a este templo e a este país? E responderão:
Porque abandonaram YHWH, seu elohim, que tirou seus pais do Egito, e ligaram-se a outros elohim,
diante deles se prostraram e os adoraram; eis porque YHWH fez vir sobre eles todos esses males". Sa-
bendo, como sabemos, que Jesus é a encarnação de YHWH, compreendemos plenamente tudo o que
ocorreu. E a previsão feita refere-se, evidentemente. à destruição de Jerusalém em 70 A.D. e à conse-
quente dispersão dos israelitas por outros países perdendo o domínio da Palestina, só reconquistado
recentemente, no final do ciclo, "pois YHWH se compadecerá de Jacob, ainda recolherá Israel e os
porá na própria terra deles" (Is. 14:1).

A triste frustração dos grandes instrutores e Manifestantes divinos, ao verificar a rebeldia dos ho-
mens, é aqui expressa com todo o sentimento de dor. Quantos grandes Iniciados e Adeptos da Frater-
nidade Branca desçam entre os homens, tantos são sacrificados, perseguidos, assassinados. E isso,
não apenas na antiguidade, classificada pelos historiadores atuais como "bárbara", mas, ainda hoje,
em plena segunda metade do século XX, por homens e em países que se dizem civilizados no mais alto
grau. Por mais que esses Emissários, com delicadeza e amor, tentem "ajuntar os homens", como a
galinha faz com seus pintinhos, aconchegando-os sob suas asas, eles se rebelam, não aceitam, vão
para uma oposição injusta e incompreensível, e voltam contra Eles sua inferioridade negativa típica
do Anti-Sistema. Como evitar que a Lei os venha defender, e sua casa se torne vazia?
"Eis que YHWH devasta a Terra e a torna deserta, sua superfície revolta e seu, habitantes dispersos
... A terra será totalmente devastada, inteiramente pilhada ... A terra está em desolação, quebrada, o
mundo enfraquece e murcha: os chefes transgrediram as leis, violaram as regras, romperam a alian-
ça eterna. Por isso a maldição devora a terra e seus habitantes recebem seu carma; os habitantes da
terra são queimados e só pequeno número de homens sobrevive ... O pavor, a cova e a rede vão
apanhar-te, habitante da terra. Quem correr para escapar ao pavor, cairá na cova; quem sair da cova
será pegado na rede, porque as represas do Alto se abrirão e os fundamentos da terra tremerão. A
terra é feita em pedaços, a terra estala e se fende, a terra é sacudida, a terra cambaleia como um bê-
bedo e balança como uma rede de dormir" (Isaías. 24:1, 3, 4, 6, 17,-20).
Nada disso, porém, pode classificar-se como vingança nem "retribuição do mal" por parte desses se-
res superiores. Trata-se de simples efeito da Lei. Aquele que atira pedras para o Alto, em vertical, as
recebe sobre sua cabeça, em virtude da própria lei da gravidade. Assim os povos que sacrificam os
avatares, ou mesmo Adeptos e Iniciados, não demoram em receber o choque de retorno, pelo efeito da
própria Lei, sem nenhuma interferência dos atingidos que, em muitos casos, pedem ao "Pai que os
perdoe, porque não sabem o que fazem" (Luc. 23.34). De qualquer forma, porém, isso não evita o re-
sultado da Lei, que é inflexível e age automaticamente como a gravidade, que atrai príncipes e mendi-
gos, santos e criminosos, sem distinção. Assim a LEI que destrói homens, nações e planetas, quando
estes jogam suas pedras para o Alto, derrubando, por qualquer meio, os Enviados que vêm salvar o
planeta: "A Lei trata igualmente, seja uma nação, seja um homem" (Job. 34:29).

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SABEDORIA DO EVANGELHO

CURA DO HIDRÓPICO
Luc. 14:1-6
1. E aconteceu que ao vir ele (Jesus) à casa de um dos chefes fariseus, no sábado, para
comer pão, este o estava observando.
2. E eis que certo homem hidrópico estava diante dele.
3. E respondendo Jesus falou aos doutores da lei e fariseus, dizendo: "É lícito curar no
sábado, ou não"?
4. Eles calaram-se. E tocando, curou-o e libertou-o,
5. e a eles disse: "qual de vós, se cair no poço um filho ou um boi, imediatamente não o
levanta, mesmo em dia de sábado"?
6. E não puderam responder a isso.

Este trecho e os três seguintes pertencem ao mesmo episódio: um almoço na casa "de certo chefe fari-
seu" (tínos tôn archóntôn pharisaíôn), ou seja, de algum dos membros influentes do partido, porque os
fariseus jamais tiveram o que pudesse denominar-se um "chefe" oficial. No entanto, havia vários
membros do partido que, por sua posição social, cultural, política ou financeira, gozavam de maior
prestígio, e eram considerados "archontes" (principais, destacados, influentes, chefes etc.).
O que convidou Jesus parece que era simpático ao Mestre, como veremos pela atenção e delicadeza
com que O trata, e pelas lições de perfeição que recebe, num grau bem mais elevado que o da plebe. E
o convite, mesmo depois de tantas acusações feitas a Jesus e de Suas invectivas contra os fariseus de-
monstra que havia, pelo menos, admiração e desejo de aprender. Não obstante, o anfitrião não deixa de
observá-Lo.
A expressão "comer pão" era corrente em hebraico para significar uma refeição sem formalismo.
Ao entrar em casa dos fariseus Jesus vê diante de si (émprosthen autoú) um hidrópico. Dizem os her-
meneutas que no oriente há mais liberdade de alguém penetrar na casa de estranhos, do que um oci-
dental permitiria, e por isso o hidrópico deve ter entrado ao ver Jesus para já dirigir-se. Mas quem nos
diz que o hidrópico era um mendigo? podia até ser um dos convidados. Nem só os mendigos adoecem
de hidropisia. Ou podia ser um dos agregados ou empregados. O texto diz que Jesus "viu diante de si",
dando a entender que o enfermo já estava na casa. E o verbo apolyô não significa rigorosamente, nem
apenas, "despedir" (dando idéia de que se manda embora uma pessoa), mas também "libertar".
O fato é que Jesus aproveita o ensejo e pergunta se é licito curar no sábado, como o fizera na sinagoga
(Luc. 6:9; vol. 2) com o homem da mão atrofiada. Já fora criticado por fazê-lo (Luc. 13:14), mas sem-
pre ensinou que o sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado (Mat. 12:8 e Luc. 6:5;
vol. 2).
Como não pudessem responder sobre a liberdade ou não do ato, o Mestre não perde tempo: toca o en-
fermo, despejando sobre ele Seus poderes e Seu magnetismo curador, e liberta-o da enfermidade; além
de curá-lo, deixa-o livre. Não exige declaração de fé, como fizera em outros casos, nem avisa quanto
ao perigo de uma recaída, se tornasse a errar. Por faltarem esses pormenores é que preferimos traduzir
apolyô por "libertar”: o curado estava libertado do carma.
Depois prossegue na argumentação, demonstrando aos presentes que, se eles libertam um filho ou um
boi, quando caem num poço num dia de sábado por que não poderia Ele faze-lo a uma criatura huma-

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C. TORRES PASTORINO
na? Por que um filho merece mais que um estranho? Não sofrem ambos? E por que um boi vale mais,
por ser "nosso", do que um irmão, filho do mesmo Pai celestial ?

Figura “CURA DO HIDRÒPICO” – Desenho de Bida, gravura de Gilbert

A comparação já fora feita com "um boi e um asno” (Mat. 12:11; Luc. 13:15). Agora aparece um filho
ou um boi", com ótimos testemunhos (papiros 45, 75, códices A, B, E, G, H, L, M, S, U, V, W, gama,
delta e boi” (códices sinaítico, K, X, pi, psi e siríaca sinaítica).
O argumento era decisivo. Nada foi dito e, parece, o fato foi bem aceito.

A lição versa sobre o serviço aos estranhos, oposto aos do próprio círculo de parentesco ("filho") e
das propriedades ("bois"). Todos somos UM. E não há dias nem datas prefixadas para atender aos
necessitados. Desde que se apresente a necessidade, ajuda-se, sem burocracia, sem exigências, sem
condições, com todo o amor.
Mas todos os que entram no "Caminho" são agudamente observados pelos profanos, que os julgam
por sua pauta humana mesquinha, e fazem questão cerrada de amoldá-los a suas formas prefabrica-
das, segundo os preceitos inventados por eles como regras infalíveis, atribuindo-os sempre a um deus
que lhes está sujeito, como títere em suas mãos.
A figura do hidrópico é típica como exemplificação, tal como fora a da "mulher recurvada" (Luc.
13:11). Aqui a imagem é tirada de um hidrópico (1).
(1) A hidropisia é causada pelo derrame de serosidade em qualquer cavidade do corpo, tomando nomes
técnicos de acordo com o local (hidrotórax, no peito; hidrocefalia, na cabeça; hidroftalmia, nos olhos;
edema ou anasarca a total ou parcial infiltração no tecido celular, etc.). No entanto, vulgarmente, a
hidropisia é tida como sinônimo de "barriga d'água", embora, no ventre, os médicos a denominem ofi-
cialmente "ascite" (doença de que desencarnou o famoso Domingos de Gusmão, fundador dos frades
dominicanos (cfr. Frei Luiz de Souza, "História de São Domingos", livro 5, cap. 38).
A hidropisia faz inchar a parte do corpo atacada pela enfermidade. Assim, o convencimento de ser
"dono da verdade" incha o pequeno eu vaidoso (cfr. Paulo: 1.ª Cor. 4:18, 19; 5:2; 8:1; Col. 2:18,. 1.ª

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Tim. 3:6). Nada mais típico para ensinar-nos que precisamos curar (sobretudo em nós mesmos!) essas
hidropisias intelectualóides, a fim de conseguir a humildade indispensável para compreender as lições
que nos são trazidas. Curada a hidropisia do orgulho, o espírito é libertado (apolyô) e progredirá sem
empecilhos.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

OS PRIMEIROS LUGARES
Luc. 14:7-11
7. Observando, porém, como escolhiam para si os primeiros lugares, narrava aos convi-
dados uma parábola, dizendo-lhes:
8. “Todas as vezes que sejas convidado por alguém para um casamento, não te reclines
no primeiro lugar, acaso não seja por ele convidado um, mais honrado que tu,
9. e vindo o que convidou a ti e a ele, te diga: Dá o lugar a este; e então começarás, en-
vergonhado, a ter o último lugar.
10. Mas todas as vezes que sejas convidado, indo, reclina-te no último lugar, de modo
que, vindo o que te convidou, te diga: Amigo, sobe mais acima; então será uma glória
diante de todos os que se reclinam contigo.
11. Pois todo o que se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado".

Depois da chegada à casa do fariseu, e do parênteses da cura do hidrópico, dirigem-se todos para os
triclínios, a fim de se reclinarem, para participar do ágape. Vimos que os convivas eram pessoas sele-
cionadas: fariseus e doutores da lei. Jesus também os observa. E vê que à porfia, buscam os "primeiros
lugares", isto é, os mais próximos do anfitrião. E aproveita para, delicadamente, dar um ensinamento
de humildade. Da mesma forma que curou o hidrópico do corpo, quer agora curar-lhes a hidropisia do
espírito.
A lição foi dada com tato, tomando como exemplo um convite para “casamento", onde o rigor da es-
colha dos lugares é maior que numa refeição informal como aquela. Aconselha, pois, que procurem
ocupar os últimos lugares, de modo que (hína tem aqui mais sentido consecutivo que final: se alguém
vai para o último lugar a fim de que seja chamado para o primeiro, isso seria uma falsa humildade, e
não podemos admitir que Jesus haja ensinado a ser hipócrita) de modo que o dono da casa, se o achar
digno, o convide a ocupar lugar mais honroso.
Aqui, sim, dóxa tem exatamente o sentido de "glória", isto é, boa reputação, boa opinião (cfr. vol. 1,
vol. 3 e vol. 4).
A razão é dada pela frase que Jesus gostava de repetir: "o que se exalta será humilhado, o que se hu-
milha será exaltado", que já vinha do Antigo Testamento (p. ex., Is. 10:33) e fora dito pela Mãe de
Jesus (Luc. 1:52) e pelo próprio Mestre (Mat. 18:14 e 23:12). A lição era boa para os fariseus que, em
geral, faziam questão dos primeiros lugares e de outras honrarias (cfr. Luc. 11:43).

O ensino primordial é que devemos ser humildes. Mas humildade nada tem que ver com humilhação.
Podemos e devemos evitar que nos humilhem, em público ou em particular, pois isso nenhuma vanta-
gem nos trará ao progresso espiritual. Mas sim, SER humildes. Se, fora de nosso controle, nos vier a
humilhação, o humilde não sofrerá com isso, nem a julgará humilhação, mas justiça: aceitará calado,
considerando que realmente nada vale e, portanto, qualquer que seja o modo com que for tratado,
isso lhe parecerá justo. Mas não se procure ser humilhado, pois isso talvez revele o cúmulo do orgu-
lho disfarçado.
O fato, também, de buscar com toda a naturalidade os últimos lugares, deve ser sincero e real, res-
pondendo a uma convicção e necessidade e não com o intuito de ser engrandecido pelo dono da casa.

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Essa lição serve, às maravilhas, para os aprendizes da iniciação e para "iniciados" que, pelo fato de
estarem entre profanos, julgam merecer acatamento e distorções especiais, em virtude de seus conhe-
cimentos e do caminho que já percorreram na senda.
Aviso oportuno, que deve permanecer sempre presente: na personagem transitória nada somos e nada
valemos. Qualquer honraria que nos chegue, seja recebida como um acréscimo de bondade da pessoa
que a presta a nós, e não atribuída a merecimento pessoal.
Difícil, mas necessário ser assim. Não nos julguemos merecedores de graças especiais, de favores da
espiritualidade e dos encarnados: por mais que tenhamos feito ou realizado, “somos sempre servos
inúteis, que fizemos apenas o que devíamos fazer” (Luc. 17:10).

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SABEDORIA DO EVANGELHO

OS CONVIDADOS
Luc. 14:12-14
12. Dizia, também, ao que o convidara: "Cada vez que fazes um almoço ou jantar, não
chames teus amigos, nem teus irmãos, nem teus parentes, nem vizinhos ricos, não su-
ceda que eles te retribuam o convite e (isso) se torne retribuição para ti.
13. Mas cada vez que fazes recepção, convida mendigos, mutilados, coxos, cegos,
14. e feliz serás, porque não possam retribuir-te, pois serás retribuído na ressurreição dos
justos".

A outra lição é muito mais dura, tanto que os exegetas procuram todos os meios para destruir-lhe a
pureza original. A magnífica tradução dos monges de Maredsous manda "acrescentar" (!) no versículo
12, a palavra somente, isto é: "não convides somente teus amigos" ... Monsenhor Pirot (o.c. vol. 10,
pág. 182) escreve: "o que diz, não é um conselho que deva ser seguido pessoalmente e à letra, mas uma
comparação". E assim por diante.
Observamos que quando não interessa aos comentadores o ensino evangélico - talvez porque não pos-
sam ou não queiram compreendê-lo e praticá-lo - procuram de todos os modos torcer o original à sua
maneira de pensar. Jesus só pode ensinar o que esteja de acordo com seu nível evolutivo. Negam o que
supere esse gabarito. Mas o que devemos fazer é dizer exatamente o que aparece nos Evangelhos, e
humildemente reconhecer que ainda não nos achamos suficientemente evoluídos para praticá-lo, por
atraso nosso. Tenhamos a hombridade e a humildade de reconhecer nossas deficiências.
Imaginemos um aniversário de nosso filho, para o qual convidamos em geral os primos, parentes e
amigos. Deveríamos, entretanto, convidar crianças pobres, aleijadas, apanhadas na rua ou nas favelas,
ou de famílias sem fortuna. Quem tem a coragem de fazer isso?
Imaginemos um almoço de comemoração festiva em nossa residência. Convidar a quem? Aos pobres e
deserdados, mendigos e cegos, aleijados e favelados. São sujos? Que melhor comemoração que dar-
lhes de presente, por ocasião dessa data, um enxoval novo a cada um, e trazer alegria à vida miserável
em que vivem? Mas quem tem coragem de agir assim?
Nós, que escrevemos, ainda não a temos. E no entanto essa é a ordem: clara, nítida, sem subterfúgios
possíveis. E a felicidade virá, íntima e incalculável, não comparável a qualquer alegria terrena.
A frase "na ressurreição dos justos" pede algum raciocínio. Diz o grego: en têi anastásei tôn dikaíôn.
Ora, anástasis significa literalmente "o levantar-se", isto é, o "ficar em pé" (stasis) em cima (aná).
Portanto, o sentido pode ser duplo:
1.º - quando o espirito se levantar, com seu corpo astral, depois que o fisico-denso se desagregou na
morte, a criatura terá a sintonia apta a sustentá-lo permanentemente no mundo astral entre os justos;
2.º - quando o espírito se levantar, com novo corpo físico-denso, em nova encarnação, a criatura terá a
retribuição de um bom carma, como ocorre com os justos.
Ambas as interpretações são legítimas, dependendo do sentimento de cada um, segundo as palavras do
texto original. E como sabemos que as Escrituras, em suas expressões, manifestam vários sentidos,
podemos escolher o que preferirmos, inclusive concomitantemente os dois.

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Penetrando mais em profundidade, além desses sentidos, podemos entrever aqui uma ordem de apli-
car na prática os ensinos dados em outros locais: desapego das ligações de sangue e das riquezas, e
coração aberto para receber todos os sofredores do corpo, da alma e do espírito.
Ordem de realizar tudo na vida, sem cogitar de recompensa nem de retribuição. Servir desinteressa-
damente. Dar indistintamente. Pois só essa ação que não se prende aos frutos pode trazer real liberta-
ção do espírito, das amarras que o retém em baixo, na desagradável convivência com a massa de in-
voluídos do pólo negativo do Anti-Sistema.
A ação desinteressada garantirá aos que assim agem, a retribuição automática de uma elevação evo-
lutiva, para atingir o nível dos " justos" (cfr. vol. 3 e vol. 4). Trata-se de uma terceira interpretação da
frase: anástasis tôn dikaíôn: compreendemos, aqui, então, o genitivo como subjetivo, e não como ob-
jetivo.
Se para atingir o nível dos "justos" é necessária essa renúncia total aos frutos, que não será preciso
SER, para alcançar o nível de "discípulos"? E como podemos ter a pretensão de dizer-nos "discípulos
de Jesus", se ainda não VIVEMOS os ensinamentos dados?

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PARÁBOLAS DOS CONVIDADOS

Mat. 22:1-14 Luc. 14:15-24

1. E respondendo Jesus, de novo falo-lhes em 15. Ouvindo essas coisas, um dos que se recli-
parábolas, dizendo: navam (ao triclínio) disse-lhe: "Feliz quem
comer pão no reino de Deus"!
2. "É semelhante o reino dos céus a um ho-
mem rei, que fez o casamento de seu filho. 16. Ele disse-lhe: "Certo homem fazia um
grande jantar e convidou muitos.
3. E enviou seus servos a chamar os convida-
dos para o casamento, e não quiseram vir. 17. E enviou seu escravo, na hora do jantar,
dizer aos convidados: Vinde, já está tudo
4. De novo envia outros servos, dizendo: Dizei
preparado.
aos convidados: Eis preparei meu almoço,
meus touros e cevados estão abatidos e tudo 18. E começaram todos à uma a desculpar-se.
preparado, vinde ao casamento. O primeiro disse-lhe: comprei um campo e
tenho necessidade de sair para vê-lo. Peço-
5. Eles, porém, não ligando, foram um para
te ter-me por escusado.
seu campo, outro para seu negócio,
19. E outro disse: Comprei cinco juntas de bois,
6. e outros, prendendo os escravos dele, ultra-
e irei examiná-las. Peço ter-me por escusa-
jaram e mataram.
do.
7. O rei, contudo, aborreceu-se e mandou suas
20. E disse outro: Casei-me, e por isso não pos-
tropas e matou aqueles e incendiou a cidade
so ir.
deles.
21. Voltando, o escravo narrou isso a seu se-
8. Então disse a seus escravos: O casamento
nhor. Então, insatisfeito, o dono da casa dis-
está preparado, os convidados, porém, não
se a seu escravo: Sai depressa às ruas e vie-
eram dignos.
las da cidade e introduze aqui os mendigos e
9. Ide, pois, às encruzilhadas das estradas e aleijados, cegos e coxos.
chamai todos quantos achardes, para o ca-
22. E disse o escravo: Senhor, feito o que man-
samento.
daste, e ainda há lugar.
10. Saindo aqueles escravos para as estradas,
23. E disse o Senhor ao escravo: Sai pelas es-
reuniram todos os que encontraram, maus e
tradas e atalhos e obriga a entrar, para que
bons, e encheu-se a sala de convivas.
se encha a casa,
11. Entrando o rei, porém, para ver os convi-
24. pois digo-vos que nenhum dos homens con-
vas, viu aí um homem não vestido de roupa
vidados me provará o jantar".
de casamento,
12. e disse-lhe: Companheiro, como entraste
aqui não tendo roupa de casamento?
13. Então o rei disse aos servos: Amarrando-lhe
pés e mãos, lançai-o às trevas de fora: ali
haverá o choro e o ranger de dentes.
14. Muitos, pois, são chamados, poucos escolhi-
dos".

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A parábola das bodas, em Lucas, não apresenta dificuldade. É introduzida pelo comentário de um dos
presentes à última frase de Jesus: a ressurreição dos justos, que lhe provoca a exclamação: "feliz o que
comer pão no reino de Deus”. A metáfora é comum em vários pontos das escrituras (cfr. Mat. 8:11;
26:29; Marc. 14:25: Luc. 13:29; 22:30; Ap. 19:9) para designar a intimidade dos eleitos com o Rei,
pois o Reino de Deus era compreendido como verdadeiro reino, segundo o modelo dos impérios e rei-
nos da Terra (compare Mat. 10:35-37), todo externo, com trono, coroa, ministros. etc.
Todavia Jesus alerta o interpelante para o fato de que nem todos os convidados (só por fazerem parte
dos "filhos de Abraão, por seguirem à risca os mandamentos, etc.) terão a sorte de comparecer a ele.
Narra-lhes, então, uma parábola .
Quem oferece o jantar é “um homem”, e quando tudo está pronto, manda o escravo para convocar os
convidados. A expressão toú doúlou autoú , “o escravo dele”, não exprime que só tivesse esse escravo,
mas que mandou “o" escravo que tinha essa função específica de fazer contato com os amigos, o “pu-
blic relation".
Todos recusam “à uma (apò mías) com as mais variadas desculpas. O dono da casa ficou “insatisfeito"
(orgistheis, cfs. vol. 2) e mandou convocar mendigos, aleijados, cegos e coxos (tal como ensinara no
vers 13 deste capítulo) até que se encha a casa, pois os convidados não eram dignos e não provariam
do jantar.
Já em Mateus a parábola apresenta outros pormenores e alguns contraditórios entre si, a ponto de al-
guns hermeneutas afirmarem não se tratar da mesma parábola. Analisemos.
O convite parte de um rei que celebra o casamento do filho. Seus emissários são vários escravos: Os
convidados recusam sem desculpar-se. São novamente instados a comparecer. Mas não fazem caso e
vão a seus afazeres normais. E aqui entra um procedimento novo: alguns ferem outros matam os es-
cravos do rei que, aborrecido, manda suas tropas para matá-los e queimar a cidade deles.
Alguns exegetas vêem aqui uma interpolação de outra parábola, e argumentam: como queimar a cida-
de, se possivelmente era a própria cidade em que morava o rei? E se a cidade fosse incendiada, como
realizar o banquete, e como buscar os que estavam nas ruas e encruzilhadas? E enquanto as tropas iam
e vinham, as comezainas se estragariam.
Depois, aparece outro fator ainda. Foram chamados bons e maus. Por que então zangar-se, por ver um
conviva sem o trajo de cerimônia? Sugerem, então, que se trata de nova interpolação de terceira pará-
bola. E como lançar às "trevas exteriores" (contrastantes com a luz do banquete) se se tratava de almo-
ço (áriston), portanto à luz do dia? Verdade é que Gregório Magno (Patrol. Lat, v. 76, col, 1282) afir-
ma que a designação era elástica, podendo tratar-se de jantar.
Loisy (o. c., tomo 2.º, pág. 324/5) diz tratar-se de uma alegoria, em vista das contradições que tornam a
parábola ininteligível. Pirot ( o. c, vol. 10 pág. 291) sugere que aí vejamos três parábolas, cujos "resí-
duos" se conglomeraram numa só.
A “veste nupcial”, segundo Jerônimo (Patrol. Lat. v. 26 col. 1601) são os mandamentos e as boas
obras. Para Gregório Magno (Patrol. Lat. v. 76 col. 1287) é a caridade, e o expulso é o homem que
tem fé, mas não caridade. Dom Calmet ("L'Evangile de Matthieu", pág. 472/3) interpreta que é o "ho-
mem novo” de que fala Paulo, ou seja, a fé e a caridade.
No vers. 12 traduzimos "companheiro", em lugar de "amigo”, das traduções correntes, pois o original
tem hetaíre, e não phíle (como em Lucas 14:10).

Nenhum desses problemas típicos do intelectualismo perquiridor chega a afetar a interpretação pro-
funda da parábola, que é realmente uma nos dois evangelistas, ou seja, que traz um ensino cujos por-
menores se acham mais ampliados em Mateus e mais simplificados em Lucas.
O "senhor" que convida para a refeição - para Sua intimidade - envia aos homens e às nações seus
servos (os Emissários que pregam o progresso e o amor, sem distinção de raças, credos ou pátrias).
Mas indivíduos e nações recusam, porque estão demasiadamente ocupados com os negócios da maté-
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ria: campos, compra de bois, casamentos. E alguns até prendem e matam os Enviados. Evidentemente
o castigo não tardará para os que assim agem, sejam indivíduos ou povos.
Ainda aqui descobrimos diversos graus interpretativos.
No campo humano, em geral, evidente tratar-se da vida espiritual em contraposição à material. Mui-
tos comprometem-se, enquanto na espiritualidade, a realizar trabalhos meritórios no campo do espí-
rito: pregadores, servidores da caridade, socorristas de órfãos, atendentes das mesas mediúnicas,
escritores, sustentadores financeiros de obras espiritualistas. etc. Mas, em aqui chegando, o mergulho
da carne os faz esquecerem as resoluções. Distraídos com os bens móveis e imóveis, com casamentos
e compras de fazendas, com construção de apartamentos e de casas de campo confortáveis, e com a
modernização do tipo de automóvel e a prosperidade financeira sempre maior, enveredam pelo mundo
dos negócios, engolfados em preocupações que aumentam dia-a-dia.
O Senhor envia emissários para recordar-lhes os compromissos, manda verdadeiros convites para
banquetes espirituais. E aí manifesta-se o apego material superposto aos benefícios do espírito. O
comportamento varia. Em Lucas, vemos:
a desculpa da aquisição de imóveis: não posso aceitar o convite para o trabalho espiritual: tenho que
superintender a construção de minha casa;
a desculpa dos bens materiais: não posso comparecer à mesa do banquete do espírito: preciso atender
a meus empregos, para dar conforto à minha família;
a desculpa da vida amorosa: não posso ir: tenho que manter a paz do lar e a esposa (ou o marido)
não gosta que eu saia, não admite o espiritualismo, etc. Ou então: preciso atender a esse caso de
amor, que é cármico, não tenho tempo de comparecer (todos os casos amorosos dos espiritualistas
são "cármicos"!).
Conforme vemos, são enumerados os bens da terra (campos) correspondentes ao corpo físico; os bens
animais para a movimentação do veículo, que correspondem às sensações; e o casamento, que simbo-
liza as necessidades emotivas.
São escolhidos, pelo Senhor, os mendigos, ou seja, os que não possuem bens terrenos e portanto, sim-
bolicamente, são desapegados; os aleijados, isto é, os que dominaram as sensações a ponto de "não
terem" mais certos membros vivos; os cegos, aqueles que não têm mais olhos físicos para contemplar
as coisas materiais e podem, por isso, ensimesmar-se na meditação; e os coxos, os que não mais cor-
rem atrás de bens e riquezas.
Aqui somos alertados para outro principio: ninguém é indispensável. Se alguém recusar a tarefa de
que foi encarregado, outro virá substitui-lo, mas o serviço será realizado. Não importa que o trabalho
não venha a ter a perfeição "humana" esperada. Pode o substituto ter suas deficiências (ser aleijado,
cego ou coxo, ou não ter o dinheiro que o outro tinha), mas o resultado será obtido. Porque o homem
é simplesmente instrumento, e o verdadeiro executante é a Força Cósmica que age em todos. Se o
instrumento for bom, tudo será ótimo. Se o instrumento for defeituoso, o operador é tão formidável,
que obterá o mesmo êxito maravilhoso. Quando a corda do violino arrebentou em pleno concerto, no
palco, fenômeno que teria perturbado qualquer violinista, Paganini prosseguiu o concerto sem dar a
menor importância, utilizando-se apenas das três cordas restantes. É fato registrado na história.
Quanto mais não fará a Força Cósmica!
Em Mateus o comportamento dos "convidados" é mais violento. Parece-nos referir-se mais a povos
que a indivíduos. Há nações ou raças predestinadas a exercitar tarefas de responsabilidade espiritual
no planeta. Vimos - são rápidos exemplos - a Itália receber o bastão orientador da religião cristã no
ocidente, e transformá-lo em instrumento de domínio e prepotência, tendo por isso sua estrela decaído
no firmamento; vimos a França, luminar da libertação, malbaratar pela violência a pregação dos
missionários, perdendo, por isso, o posto, em favor dos Estados Unidos; agora estamos observando
que este último, destinado a educar as massas, dá-lhes como pasto histórias, filmes e exemplos de vi-
olência injustificável, que seus próprios cidadãos estão empregando contra os missionários encarre-
gados de levar esse povo ao caminho de que se desviou. O "Senhor" enviará suas tropas, suas cidades

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serão incendiadas e seus habitantes mortos. Muito se fala da missão do Brasil no terceiro milênio.
Mas se seu povo não corresponder, a tarefa será cometida a outra nação. Mister cuidar em não per-
seguir nem anular as forças dos missionários que cumprem seu dever.
Podemos, ainda, interpretar a parábola como o episódio do despertamento. O Eu Profundo (o Rei da
criatura) deseja realizar as bodas (união mística) de seu filho (a personagem) consigo mesmo (o
Cristo Interno). Manda que o escravo (o intelecto) convide os demais veículos para esse banquete (a
que assistirão). Mas, apegada ao físico, às sensações, às emoções, a personagem recusa recolher-se
interiormente e busca apenas exteriorizar-se (campos, bois, sensualidade). O Eu Profundo decepcio-
na-se, e manda que suas tropas destruam a cidade e exterminem seus habitantes (que sobrevenha a
morte física da personagem) e convoca outros convidados (outros veículos, em nova encarnação) para
que possam assistir às bodas sem distrair o Espírito. Como os primeiros convidados recusaram, por
estarem voltados para o mundo externo, o Eu Profundo faz vir à luz outros convidados (outra perso-
nagem) que possuam impedimentos sérios à exteriorização. São criaturas que terão como dotes a po-
breza ("mendigos", para que os bens materiais não os distraiam); a deficiência física ("aleijados", ou
seja, com fraquezas orgânicas ou doenças congênitas, que cortem os abusos das sensações); a ceguei-
ra (a fim de que, fechadas as janelas para a contemplação das formas físicas, não haja tentações for-
tes a desviá-los do caminho); e a dificuldade no caminhar (para que nem sequer se tente perseguir as
riquezas e os postos honoríficos). A tudo isso, costuma chamar-se "resgate". Mas muitas vezes, é sim-
ples "estímulo evolutivo”.
Na nova personagem, há coisas (convivas) boas e más, porque a evolução não dá saltos; mas, pelo
menos externamente, surge uma impossibilidade inata de desvios perigosos. A luta prosseguirá, sem
dúvida, mas para que se consiga dar um passo à frente, o Eu Profundo examinará os novos veículos
com todos seus órgãos e células.
Se entre eles descobrir algum elemento estranho que envolva (como veste negra) o novo ser (por
exemplo algum obsessor renitente), fazendo que não apareça à vista sua "veste de casamento", ele
será expulso para nova encarnação compulsória ("amarrados pés e mãos será lançado às trevas exte-
riores", a matéria, onde haverá choro e ranger de dentes, ou seja, dores e sofrimentos). Muitas perso-
nagens são chamadas pelo Eu Profundo para esse passo definitivo, mas muito poucas são realmente
"eleitas", por sua correspondência integral ao convite, a fim de assistir às bodas do intelecto com o
Eu Maior.
Mais uma interpretação especial merece o caso da "veste do casamento". O trecho não tem defesa na
lógica racional: o rei manda chamar a todos, nas ruas e encruzilhadas, e os servos os recolhem dire-
tamente da rua à sala do banquete, bons e maus. Será que todos estavam vestidos de gala? Não é pos-
sível. Referir-se-á a "veste nupcial" à parte moral da virtude? Não, porque entraram bons e maus, e
no entanto só um não estava adequadamente trajado. De que se trata? Que o fato era grave, verifica-
se pelo castigo aplicado. Que será a "roupa de casamento"? A conclusão tem, bem manifesta, sua
contradição evidente. Se a sala se encheu de convivas, e só um foi expulso, como são "muitos chama-
dos e poucos escolhidos, se foi escolhida a totalidade menos um?
Toda essa contradição in términis indica-nos que só pode haver uma explicação: trata-se de simbo-
lismo, e simbolismo iniciático, totalmente incompreensível para os profanos. Tentemos decifrar o
enigma. Analisemos.
Trata-se, aqui, da admissão de discípulos aos graus iniciáticos, nas Escolas, e a lição versa a respeito
desse tema, sobretudo em Mateus.
Observemos que o evangelista fala num "homem-rei", ou seja, um ser que tem a categoria de hiero-
fante. Os primeiros convidados recusam segui-lo. Então ele "queima a cidade", abandonando-a, e
transferindo-se para outra loca1idade; os primeiros, que não atenderam ao chamado, "morrem" para
o caminho iniciático. Feita a transferência, faz-se a convocação de novos elementos, de todas as par-
tes, classes, culturas, raças, profissões: arrebanhamento atabalhoado, para que o tempo precioso que
o "rei" (hierofante) destinou à formação de novos candidatos não se perca no vazio.

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Feita a introdução na Escola de bons e maus - ou seja, de aparentemente aptos e ineptos - o hiero-
fante vai observar a aura ("veste") dos convivas e verifica que um deles não na tem própria para o
"casamento", isto é, para a união de amor. Encarrega, então, seus representantes encarnados de
afastá-lo da Escola, não sem antes dirigir-lhe a palavra, denominando-o “companheiro". Significati-
vo: trata-se, pois, de alguém que é companheiro (que já está no segundo grau iniciático, sendo o pri-
meiro o de "aprendiz", e do terceiro em diante, "irmão") e portanto, possui algum conhecimento, mas
não tem ainda a "aura de amor" (roupas de casamento). Não operou ainda a "metánoia" (mudança de
mentalidade). Trata-se, pois, de adepto da "matéria-negra”. Conhece algo, iniciou a caminhada, mas
volta-se para o mal, para o egoísmo, para o auto-interesse, a venda de benefícios por dinheiro ou jói-
as, a escravidão do livre-arbítrio dos que o seguem. Daí a condenação ser severa: "trevas exteriores",
ou seja, perda dos poderes psíquicos externos, que já adquirira, regressando à treva cega da matéria
densa, onde as dores e sofrimentos cármicos se encarregarão de purificá-lo (de fazer nova catarse) a
fim de que, mais tarde, operada então a "metánoia", possa reabilitar-se e ingressar na Escola.
O vers. 14 não se refere a essa conclusão apenas, nem a expressão "um homem" exprime somente a
unidade. São elementos simbólicos. O "muitos chamados" atinge a todos os que primeiramente tinham
sido convidados, mas que, experimentados nos "testes" da vida, sucumbiram à ambição terrena e se
afastaram; aos que, levados por vaidades, abandonaram o caminho; aos que, presos aos interesses
materiais, aos sonhos de grandeza, à sede de postos, às exigências de família ou das conquistas amo-
rosas absorventes, ao conforto material, não se dispõem a seguir. Outros os substituirão. Mas o local
será outro, bem diferente, bem distante, e a frustração que os invadir no mundo espiritual pela opor-
tunidade perdida, os preparará para um regresso à carne com melhores disposições.
Os "poucos escolhidos" são aqueles que, mesmo após a aceitação, e o ingresso na Escola, tenham
capacidade de prosseguir e chegar a "saltar sobre o abismo". Poucos, sem dúvida, muito poucos gal-
garão o cimo, sustentados pelo irmão mais velho (espiritualmente). Mas, embora somente número
reduzido atinja o cume (poucos escolhidos), o fato de muitos já se equilibrarem na encosta da monta-
nha é um consolo e um prêmio, para quem os tirou da profundeza do vale, "das ruas e encruzilhadas"
do mundo.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

ÍNDICE REMISSIVO

A ADÚLTERA, 51 METANÓIA, 105


A AVAREZA EGOÍSTA, 102 MOSTARDA E FERMENTO, 114
A GNOSE DA VERDADE, 66 MULTÍPLICA, 108
A PORTA DAS OVELHAS, 86 NOTA DO AUTOR, 75
A SEMENTE, 117 O BOM PASTOR, 90
AÇÃO DE OBSESSORES, 31 O ELOGIO DA MULHER, 34
ALEGRA-TE, 103 O OBSIDIADO MUDO, 128
Allan Kardec, 8, 31, 131 O REGRESSO DOS 72, 16
ALMOÇO COM O FARISEU, 40 O SINAL CELESTE, 36
Anaxágoras, 19 OS CONVIDADOS, 140
aprisco, 88 OS PRIMEIROS LUGARES, 138
Aristoclês, 19 OS SETE AIS, 43
Aristóteles, 19 ovelhas, 88
Arquimedes, 19 PARÁBOLAS DOS CONVIDADOS, 142
BEELZEBUL, 23 pastagem, 88
Capela, 93 pastor, 88
CEGO DE NASCENÇA, 76 percalços, 95
COÁGULA, 108 Pitágoras, 19, 103
COINCIDÊNCIAS, 7 Platão, 19, 103
COME, 103 PNEUMA HAGION, 97
CRISTIFICAÇÃO REAL, 6 PONTO DE CONTATO, 88
CRISTO CÓSMICO, 123 porta, 88
CURA DE DOIS CEGOS, 126 porteiro, 88
CURA DE UM OBSIDIADO, 22 Pramartolos, 81
CURA DE UMA OBSIDIADA, 110 PREGAR SEM MEDO, 95
CURA DO HIDRÓPICO, 135 PRODUZIR FRUTOS, 107
Da Vinci, 103 QUEIXA DE JERUSALÉM, 133
Demócrito, 19 RECADO A HERODES, 130
Demóstenes, 19 REPOUSA, 103
EMISSÁRIOS, 3 Roger Bacon, 103
Epicuro, 19 Salomão, 103
EPÍLOGO DO ALMOÇO, 50 SAMARITANO, 9
FALAR CONTRA O ESPÍRITO, 26 servo amado, 90
hamartía, 81 Sócrates, 19
Isócrates, 19 SOLVE, 108
JESUS DECLARA-SE YHWH, 61 STA, 108
João Evangelista, 103 UM COM O PAI, 119
ladrão, 88 VOLTA A TRANSJORDÂNIA, 124
LUZ DO MUNDO, 56 voz, 88
MARIA E MARTA, 14
Máximo de Éfeso, 103

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CARLOS TORRES PASTORINO
Diplomado em Filosofia e Teologia pelo Colégio Internacional S. A. M. Zacarias, em Roma – Professor
Catedrático no Colégio Militar do Rio de Janeiro e Docente no Colégio Pedro II do R. de Janeiro

SABEDORIA DO
EVANGELHO

6.º Volume

Publicação da revista mensa1.

SABEDORIA

RIO DE JANEIRO, 1969

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C. TORRES PASTORINO

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SABEDORIA DO EVANGELHO

SER DISCÍPULO
Luc. 14:25-33
25. Saía com ele grande multidão e, voltando-se disse (Jesus) a eles:
26. "Se alguém vem a mim e não odeia seu pai, e a mãe, e a esposa, e os filhos, e os irmãos, e as
irmãs, e até também a própria alma, não pode ser meu discípulo;
27. quem não carrega sua cruz e vem atrás de mim, não pode ser meu discípulo.
28. Quem de vós, pois, querendo edificar uma torre, primeiro não se senta a calcular o gasto, se tem
para acabar?
29. Para que não suceda que, pondo o alicerce e não podendo terminar, os que vêem comecem a
caçoar dele,
30. dizendo: "este homem começou a edificar e não pode terminar".
31. Ou que rei, saindo a lançar-se em guerra com outro rei, primeiro não senta, deliberando se é
forte com dez mil, para enfrentar ao que vem com vinte mil contra ele?
32. Se não, estando ele ainda longe, envia uma legação, pedindo as (condições) para a paz
33. Assim, pois, qualquer de vós que não se destaca de todas as suas posses, não pode ser meu
discípulo".

As "multidões" saíam, acompanhando Jesus, correndo atrás de Sua fascinante personalidade humana,
maravilhadas com Seus poderes psíquicos, com Suas "palavras de amor" (Luc. 4:22; vol. 2), de sabe-
doria e autoridade. O Mestre observa os componentes do grupo: quantos ali estão a Ele se prendem
somente por causa dos benefícios recebidos ou a receber ... Não. Não é isso o que importa, não é isso
que interessa. Não é imitá-Lo externamente, nas palavras e gestos. E algo mais profundo e misterioso.
Volta-Se, então, e mais uma vez fala, repisando temas já versados outras ocasiões, a fim de fixar res-
ponsabilidades e alertar contra entusiasmos fáceis e efêmeros. Já expusera longamente, certa feita, as
condições essenciais para ser Seu discípulo (cfr. Mat. 16:24-28; Marc. 8:34-38; Luc. 9:23:-27; vol. 4).
Novamente frisa, com outras palavras, as condições indispensáveis para que possa alguém ingressar na
senda do discipulado.
1.ª - "odiar" (míseô) os parentes, por mais próximos e queridos que sejam, e cita: "pai, mãe, esposa,
filhos (em geral, dos dois sexos, tékna), irmãos, irmãs. Em Mateus 10:37 (vol. 3), são citados: pai,
mãe, filho, nora e filha. E pelas palavras aí registradas por esse evangelista, compreendemos o sentido
deste "odiar". Lá encontra-se: ho philôn patéra è mêtéra hyper emé, isto é, "o que ama o pai ou a mãe
acima de mim" (mais que a mim). Trata-se, portanto, de dois termos de comparação entre dois amores,
levada ao extremo exagero por metáfora, devido à exuberância do linguajar oriental.
2.ª - Não apenas os seres queridos "externos", mas até a própria alma (psyché), ou seja, sua persona-
gem terrena. Em outro passo (Mat. 16:24; Marc. 8:34; Luc. 9:23; vol. 4) essa exigência é dita com a
expressão "negue-se a si mesmo". Então, desligamento total de amores personativos externos e inter-
nos.
3.ª - Carregar sua cruz, já explicado no vol. 4.
4.ª - Caminhar após Ele (idem, ibidem).

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C. TORRES PASTORINO

5.ª - Calcular sua capacidade. Exigência que pela vez primeira aparece. Ou seja, fazer o indispensável
balanço no que possua de compreensão, de cultura, intelectual, de conhecimento, para ver se tem pos-
sibilidade de iniciar e terminar o estudo e a "construção da torre".
6.ª - Calcular suas possibilidades, isto é, as forças de que dispõe para enfrentar um adversário numero-
so e ferrenho.
7.ª - E última: destacar-se (o verbo grego apotássô é composto de tásso, "por no lugar devido", e apó,
longe de"), ou seja, saber colocar nos devidos lugares, bem longe um do outro, o Espírito e os bens
materiais (hypárchousin) ...

Para esclarecer de vez o sentido do vers. 26, vamos reler o Bhagavad-Gita. Arjuna vê, formados no
exército que devia combater, "seus avós, sogros, tios, irmãos e primos com seus respectivos filhos e
netos, seus camaradas, professores e amigos" (I,26 - por coincidência o mesmo número do artigo!) e
assim fala:
"Ó Krishna, ao ver estes meus parentes reunidos aqui, desejosos de lutar, meus membros
cedem. arde-me a boca, meu corpo tirita, meus cabelos arrepiam-se, o arco me escorrega
das mãos, a pele se me abrasa. Ó Krishna, não sou capaz de manter-me, os pensamentos se
me confundem, vejo maus presságios. Não aspiro a vitória, nem a reino, nem a prazeres.
Mestres, tios, filhos e netos, avós, sogros, além de outros parentes - que inspiravam o de-
sejo de império, alegria e prazeres - eles próprios estão aí, em ordem de batalha, renunci-
ando à vida e à fortuna. Que valem, pois, reino, alegria, e mesmo a existência, ó Govinda'?
A esses guerreiros não quero matar, embora por eles seja eu morto, nem pelo domínio dos
três mundos, quanto mais por causa desta Terra, ó matador de Madhu. ó Janárdana, que
prazer pode advir a nós do assassínio dos filhos de Dhritarashtra? Só o erro se apossará de
nós, por termos massacrado esses malfeitores. Portanto, não devemos matar esses filhos
de Dhritarashtra, que são nossos parentes; como podemos nós, ó Madhava, ter felicidade,
destruindo nossos próprios parentes? Embora eles, dominados pela ambição, não vejam
mal em destruir a família, nem erro em hostilizar amigos. Mas, ó Janárdana, por que não
recuarmos deste erro, já que percebemos claramente o mal em destruir a família"? (I, 28-
39).
No capítulo segundo, Krishna esclarece Arjuna de que todos esses "entes caros" são as exterioridades
transitórias e ilusórias, os veículos inferiores da personagem terrena, com seus vícios (e, por isso,
destruindo-os, realmente não há prazer em reinos nem em alegrias terrenas) mas que precisamos
combater para atingir a essência íntima, o Eu verdadeiro: "esses corpos são perecíveis, (II,18). Mas o
Eu é "eterno, onipresente, imutável, permanente, perpétuo" (II, 39 ), pois é no linguajar evangélico, o
"reino dos céus". A explicação é bastante clara.
"O sábio, dotado de conhecimento, abandonando o fruto de suas ações, torna-se livre dos
grilhões do berço e alcança o estado que está além de todo mal. Quando teu intelecto hou-
ver atravessado o pântano da ilusão, então, e só então atingirás a indiferença em relação às
coisas ouvidas e por ouvir. Quando teu intelecto, agindo pelas várias opiniões antagônicas
das Escrituras, se firma inabalavelmente no Eu, então atingirás a Yoga (auto-realização ou
união com Deus)" (II, 51-53).
E continua:
"Ó Partha, quando um homem chega a satisfazer-se apenas com o Eu pelo Eu, e baniu
completamente todos os desejos da alma, então se diz que ele possui firme sabedoria.
Aquele cuja alma não se agita em calamidades, e que não aspira ao poder, e que está li-
berto do apego, do medo e da cólera é em verdade tido como um santo de firme sabedoria.
Aquele que é liberto de todo apego, e que não se rejubila ao receber o bem, nem se pertur-
ba ao receber o mal, tem sua sabedoria bem confirmada. Sua sabedoria começou a ficar
bem filmada, quando ele retirou inteiramente seus sentidos dos objetos dos sentidos, como

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SABEDORIA DO EVANGELHO

a tartaruga renuncia aos membros. O encarnado, pela prática da abstinência (não dando
alimento aos sentidos), pode amortecer os sentimentos dos sentidos, mas os anseios ainda
permanecem em seu coração; todos os anseios se abatem, quando tiver visto o Supremo. Ó
filho de Kunti, os sentidos (parentes) são perigosos, chegam mesmo a arrastar à força o es-
pírito de um homem sensato que está lutando pela perfeição. O homem de firme sabedoria,
tendo-o subjugado a todos eles (os sentidos, seus "parentes" mais caros) fica fixado em
Mim, o Supremo, Aquele que tem os sentidos sob controle, tem a sabedoria bem firmada.
Cuidando dos objetos dos sentidos, o homem e torna apegado a eles. Do apego nasce o an-
seio, e do anseio a cólera. Da cólera nasce o delírio, e este causa a perda de memória. Com
esta arruina-se a faculdade de escolha, e com a ruína desta faculdade o homem perece. Mas
aquele que se domina alcança a paz e circula por entre os objetos com os sentidos contro-
lados, isento de qualquer anseio ou aversão. Na paz, cessa a infelicidade e o espírito cheio
de paz em breve se firma na sabedoria. Não há sabedoria para o instável nem para o que
não medita. E como poderá haver ventura para quem não tem paz? O espírito que condes-
cende com os sentidos indisciplinados e errantes, arrasta consigo sua sabedoria, exata-
mente como um barco na água é arrastado pelo vento. Portanto, ó poderosamente-armado,
sabedoria firme é a daquele cujos sentidos estão bem afastados de todos os objetivos dos
sentidos".
O ensinamento do Espírito, do Cristo, é um em todas as épocas e em todos os quadrantes, porque "há
um só corpo e um só Espírito ... um só Senhor, uma só fé, um só mergulho, um só Deus e Pai de todos,
que está acima de todos, e é por todos e está em todos" (Ef. 4:3-6).
Fica, pois definitivamente explicado o sentido profundo e simbólico do verbo "odiar" neste trecho
evangélico, tão incompreendido até hoje.
Mas passemos à interpretação do texto no campo iniciático.
Ainda uma vez encontramos preciosas lições de como deve preparar-se aquele que pretende ingressar
na "Assembléia do Caminho", essa criação sublime de Mestre e Hierofante Divino, que veio pessoal-
mente instruir-nos. Vejamos as condições requeridas:
1 - Compreensão absoluta do desligamento total de tudo o que é terreno, como seu corpo, suas sensa-
ções, suas emoções, seu intelectualismo humano, com todos os seus agregados "animais", que a ele se
colaram durante o percurso evolutivo pelos reinos inferiores: preguiça, sensualismo, paixões, vaidade e
orgulho; de tão arraigados, com ele mesmo confundidos, são considerados "parentes consanguíneos:
pai, mãe, esposa, filhos, irmãos, irmãs. Tudo o que constitui matéria, duplo etérico (sangue) e astral
deve ser abandonado e como que "odiado", voltando-se o candidato na direção oposta: o "Espírito
Puro". Como, de modo geral, o ambiente familiar é contrário a qualquer elevação espiritual do iniciado
(e Jesus tinha experiência pessoal disso, cfr. Marc. 3:21 e 33-35), o candidato deve estar convicto de
que, também, seu progresso espiritual está desligado de qualquer laço familiar, se for indispensável
cortar os afetos (emoções) para dedicar-se integralmente ao Espírito. Muito mais fortes são as ligações
espirituais, que as consanguíneas. A fraternidade espiritual é REAL E ETERNA, já que somos filhos
do mesmo PAI ETERNO; ao passo que o parentesco sanguíneo é passageiro, de uma só encarnação,
podendo, na seguinte, ser realizado em outro grupo, em outra terra, em outra raça.
2 - Entretanto, não são apenas os apegos externos que precisam ser cortados, mas até o do próprio eu
pequeno, da personagem terrena transitória - o filho único tão querido - a própria "alma", com suas
idiossincrasias, seus gostos, suas características temperamentais. Esse é o maior apego nosso. E não
basta convencer-se disso, mas é preciso realizar (ou seja, páthein) experimentar, "sofrer" destaque
total e passar a viver no Eu verdadeiro. Só realizando esses dois desligamentos é que o candidato po-
derá tornar-se discípulo. E aqui mais uma vez comprovamos o emprego da terminologia técnica das
escolas iniciáticas: discípulo o que põe o pé na senda para iniciar a caminhada. Só após perlustrar o
discipulado em seus graus primeiros (discípulo em provação e discípulo aceito) é que pode pretender
o ingresso na iniciação. E dificilmente se obtém isso numa só existência terrena. Os próprios "Mestres
de Sabedoria" continuam até hoje a denominar-se a Si mesmos. "Discípulos". Daí não acreditarmos

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C. TORRES PASTORINO

em quem se chama a si próprio de "iniciado": quem o diz, não o é; porque quem verdadeiramente é
iniciado, não o diz
3 - A terceira condição para ser discípulo-aceito, é receber com alegria o peso da própria cruz, que
tem vários aspectos. Inicialmente, é a própria encarnação, quando a criatura se torna consciente de
que se acha "pregado" na cruz de carne, limitado em suas possibilidades, grudado ao chão de maté-
ria. Mas, além desse peso, outros podem superpor-se: pobreza, falta de meios e de ambiente, aderen-
tes incompreensivos, exploradores e abusadores, dores e sofrimentos, deficiências físicas humilhações
e desprezos, perseguições e até morte. E, não obstante tudo isso, continuar firme o trajeto, sem aba-
ter-se nem desanimar.
4 - O passo seguinte é o de palmilhar a estrada que o Mestre exemplificou, com Sua humildade, Seu
espírito de sacrifício, Sua dedicação integral ao serviço à humanidade, Sua união com o Pai, Seu
amor sem condições a todos. "Vem atrás de mim" ou "segui-Lo", quando são frases proferidas pelo
Cristo, significa realmente unir-se a Ele, buscá-lo por todos os meios, "mendigar o Espírito" com lá-
grimas, procurando "ajustar-se" com a sintonia crística, até unificação final.
5 - Para ingressar no discipulado, faz-se ainda mister capacidade cultural, a fim de bem compreender
os ensaios, sem limitações nem distorções. Muitos há que desejam ardentemente ingressar como dis-
cípulos-aceitos ou, até mesmo, atingir a iniciação. Inegavelmente, são, muitas vezes pessoas ardoro-
sas de amor e ansiosas de perfeição. Mas não possuem as condições essenciais para isso, não têm
conhecimento. Para iniciação são essenciais três condições pessoais: amor, amadurecimento e sabe-
doria (cfr. vol. 5) "Jesus crescia em sabedoria, amadurecimento e amor" (Luc. 2:5; vol. 1). Então, os
que não conquistarem o conhecimento, e ainda precisarem dedicar-se ao estudo, não são cortados do
espiritualismo: podem seguir a via devocional ou a via mística. Mas não a senda iniciática. A via de-
vocional e a mística são linhas evolutivas pessoais, ao passo que a senda iniciática é grupal, e prepa-
ra a criatura para o magistério sacerdotal. Ora, sem cultura e conhecimento, como se poderá ensi-
nar? Há enorme perigo não apenas de desviar-se, mas, pior ainda, de afastar do rumo certo aqueles
que neles confiam. Daí serem tão rigorosas as escolas que preparam discípulos para a iniciação na
admissão de candidatos. Jesus, em diversas ocasiões - como esta agora - alerta quanto às condições
indispensáveis para ingressar no discipulado: examine-se se tem capacidade intelectual desenvolvida,
para que não inicie uma obra e se veja obrigado a parar na metade do caminho.
6 - Outro requisito para entrar na Escola é saber se conseguiu vitória, ou se está capacitado para
obtê-la, contra os inimigos internos e externos. Em outras palavras, se seus instintos inferiores ani-
mais não estão mais fortes que sua capacidade de luta. O "rei" (o Espírito) precisa calcular suas for-
ças, a fim de ver se são superiores às do "outro rei" (a personagem). Se forem inferiores as forças do
Espírito, este "pede as condições de paz". Isto é (por exemplo) se a sensualidade predominar e o Espí-
rito não tiver condições de sublimá-la, obedeça à força de sua personagem e se dedique à família, sem
pensar em desapegar-se; se a violência do temperamento não pode ser dominada, afaste-se da senda
nessa vida, e volte quando puder contar com o domínio de suas energias exuberantes. E assim por
diante. Então, calcule bem suas possibilidades de luta e de vitória, antes de lançar-se ao combate, a
fim de não arriscar-se a derrotas espetaculares que, além de descoroçoá-lo, podem trazer sérios pre-
juízos à instituição a que se filia. Daí o rigor que os instrutores manifestam, antes de receber alguém,
e o longo período probacional a que são submetidos: comprovar que superaram todos os vícios.
Aqueles que ingressam na senda por sua alta recreação, de modo geral caem fragorosamente, quer
desviando-se para a magia negra, quer aniquilando-se até na parte humana: corrúptio óptimi, péssi-
ma, ou seja, a corrupção do melhor, é a pior.
7 - Finalmente é mister destacar-se de todos os bens materiais, de todas as "posses" para que não seja
por elas "possuído". Deverá ser capaz de dar tudo, e passar o resto da existência a mendigar seu sus-
tento. Ainda que isso não lhe seja exigido, no entanto deve ser capaz de fazê-lo sem sofrimento moral.
Portanto, desapego total ...
Essas são as regras para todas as épocas e regiões do globo, sem exceção. Como vemos, encontramos
no ensino crístico a orientação completa e integral. A única necessidade é saber interpretar Suas pa-
lavras de sabedoria, e não apenas fixar-se na letra fria e morta.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

A OVELHA PERDIDA

Mat. 18:12-14 Luc. 15:1-7


12. "Que vos parece? Se um homem tem cem 1. Esfavam próximos a ele todos os cobradores
ovelhas e uma delas se extravia, não aban- de impostos e os desencaminhados a ouvi-lo.
dona as noventa e nove sobre o monte e, 2. E os fariseus e escribas murmuravam, di-
indo, procura a extraviada? zendo: este recebe os desencaminhados e
13. E se acontece achá-la, em verdade vos digo, come com eles.
que se alegra mais por causa desta, do que 3. Disse-lhes pois esta parábola, dizendo:
pelas noventa e nove que não se extravia-
ram. 4. "Que homem dentre vós, tendo cem ove-
lhas, e tendo perdido uma, não deixa as no-
14. Assim, não é da vontade de vosso Pai que venta e nove no deserto e sai atrás da perdi-
está céus, que se perca nem um destes pe- da até que a ache?
queninos".
5. E, achando, a superpõe sobre seus ombros
alegre,
6. e vindo à casa, convoca os amigos e vizi-
nhos, dizendo-lhes: alegrai-vos comigo,
porque achei minha ovelha perdida.
7. Digo-vos que assim haverá mais alegria no
céu sobre um desencaminhado que muda
sua mente, do que sobre noventa e nove jus-
tos, que não têm necessidade de mudança
de mente".

Lucas ambienta a parábola, fazendo-a surgir de uma queixa dos fariseus e escribas (os "cumpridores
rigorosos" da lei mosaica, que se denominavam "pharusim", ou seja, "os separados" da multidão de
errados ou desencaminhados da reta via). Estranham que Jesus converse e coma com os cobradores de
impostos (publicanos) e os errados ou desencaminhados (extraviados do "caminho certo).
Em Mateus, a parábola é dada como confirmação da anterior assertiva de “não desprezar os pequeni-
nos, cujos anjos contemplam a face do Pai". E a introdução é interrogativa, solicitando-lhes a opinião:
Que vos parece"?
Apresenta-nos afigura de um homem que é pastor, e possui cem ovelhas. Em Mateus temos, literal-
mente: "há (génêtai) para um homem cem ovelhas", construção comum com gínomai nas terceiras
pessoas do singular de todos os tempos, equivalendo ao nosso "haver" impessoal. Nesta construção, o
possuidor é dado em dativo (em latim "dativo de posse").
A fórmula "que homem dentre vós" (tís ex hymõn ãnthrôpos) constitui quase um pleonasmo. Mas figu-
ra bem um ofício comum a muitos dos ouvintes. O número cem é simbólico, pela totalidade. Das cem
ovelhas uma “se extravia” (Mat.: planáô) ou "se perde" (Luc.: apóllymi), coisa fácil numa região como
a Palestina, cheia de colinas, buracos, cisternas e pequenos lugares desérticos.
Dando pela falta, o pastor "abandona" (Mat.: aphíêmi) ou "deixa” (Luc.: kataleípô) as noventas e nove
"na montanha" (Mat.) ou "no deserto" (Luc.) e sai "atrás da perdida" (poreúetai epí tó apolôlós) até

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C. TORRES PASTORINO

achá-la. Lucas anota pormenor: "ao achá-la, coloca-a sobre os ombros", E ao regressar, convoca ami-
gos e vizinhos para, com eles, celebrar o reencontro, pois sua alegria é transbordante.

Psicologicamente, qualquer reencontro de qualquer coisa que se haja extraviado, produz alegria. Mas
aqui o sentido é mais profundo. Confirma, com um exemplo, a assertiva que foi dada em Lucas (5:32)
"não vim chamar os justos, mas os desencaminhados à mudança de mente" (ouk elélytha kalésai
dikaíous allà hamartôloús eis metánoian).
Descobrimos, com toda a sua plenitude, a lei do SERVIÇO. Nenhum Manifestante Divino, nenhum
Avatar, nenhum Adepto, jamais desce à Terra para gozar da companhia dos justos e dos bons: estes
não necessitam de iluminação. A única finalidade que os traz a este planeta, são exatamente os desen-
caminhados, os errados, os "pecadores", os que estão fora do caminho certo. Daí o sacrifício desses
Seres, que abandonam o Seu "céu" de justos, para vir sofrer às mãos dos involuídos.
Uma das características do verdadeiro iniciado é o campo de trabalho em que se situa. Se seu círculo
de relações e suas andanças só se realizam entre eleitos, revelam não ser trabalhadores a serviço do
Cristo e da Hierarquia. Quem se coloca sob a orientação dos Dirigentes Brancos, convive com enfer-
mos e deficientes, com incrédulos e perturbados, com ateus e malfeitores. Estes necessitam de guia e
conforto espiritual. Como afirmou Krishna: "Sempre que há declínio da virtude e predominância do
vício, encarno-me" (Bhagavad Gita, 4,7).
E mais alegria causa a reconquista de um desencaminhado, que a permanência de noventa e nove
justos no caminho certo.
A frase de Mateus traz um esclarecimento definitivo quanto ao problema dito da "salvação". Versam
as discussões teológicas a respeito do número de "salvos", em relação ao dos "perdidos". Alegam,
pela parábola das bodas, que poucos se salvam, e a grande maioria se perde. Outros alegam que
Deus não perderia para o "Diabo" (!). No entanto, sabemos que a Vontade de Deus é Todo-Poderosa
e se realiza incondicionalmente. Ora, aqui é dito: "não é da Vontade de vosso Pai que se perca nem
um destes pequeninos". Temos, pois, a garantia de que nem um homem se perderá, porque essa é, ta-
xativamente, a Vontade do Pai. Nenhuma discussão, pois, pode ser autorizada, já que essa afirmativa
anula qualquer possibilidade de não atingirem TODOS a meta.
Há casos em que "pastores" de almas tenham que interromper temporariamente seu trabalho entre os
discípulos fiéis, para afastar-se em busca de alguma alma que lhes interessa e que se transviou do
redil. Há que escalar montanhas, baixar a abismos, enfrentar feras e monstros, rasgar-se nos espi-
nheiros, sujar-se no lodo dos pantanais, patinar em paúis, arrastar-se sobre areias movediças ... e
aguardar o resultado. Se conseguir reconquistar a ovelha, perdida, ele a colocará sobre seus ombros,
pois se tornará "a mais querida", em vista dos sacrifícios que lhe custou. Não se escandalizem os que
ficam, ao ver o pastor afastar-se temporariamente: são tarefas realmente sacrificiais, impostas pelo
dever e pelo amor, e que frequentemente representam compensações de abandonos em outras vidas,
que agora são corrigidos a custa de dores e renúncias dolorosas. "Não julgueis, para não serdes jul-
gados, não condeneis, para não serdes condenados" (Luc. 6:37). Quem está encarregado de certas
tarefas, conhece razões desconhecidas pelos outros, e sabe o que deve fazer e o que não deve.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

A DRACMA PERDIDA
Luc. 15:8-10
8. "Ou qual é a mulher que, tendo dez dracmas, se perder uma dracma não acende a
candieiro, varre a casa e a procura diligentemente até achá-la?
9. E achando-a convoca as amigas e vizinhas, dizendo: alegrai-vos comigo porque achei
a dracma que perdera.
10. Assim, digo-vos, há alegria na presença dos mensageiros de Deus por um errado que
muda sua mente."

Repete-se o mesmo motivo que na parábola da ovelha que se tresmalhou, e que será sublinhado a se-
guir na do "filho pródigo", com pormenores sempre diferentes em cada caso.
O exemplo aqui trazido à balha é de uma dona de casa, que conseguira pequena economia de dez "dra-
cmas". A dracma não era moeda palestinense, mas, embora grega, tinha curso corrente em qualquer
mercado oriental, como o dólar de hoje. Era de prata e pesava, nessa época, quatro gramas e meio,
equivalendo ao salário de um dia de trabalho.
Inconformada com a perda de uma das moedas, mune-se de um candieiro, varre a casa, revolve tudo,
até achá-la. Depois, alegre com o que só tinha importância para ela mesma, não resiste à tagarelice
feminina e vai comentar o fato com as vizinhas e amigas, as "comadres" sempre ávidas de uma novi-
dades que interrompa a monotonia dos trabalhos domésticos.

O fato mais corriqueiro tem sempre uma lição a ensinar-nos, desde que tenhamos capacidade de ver:
milhões de homens observaram milhões de maçãs a cair de seus galhos, e no entanto, desse fato banal
Newton deduziu a lei da gravitação universal. Assim, do sumiço de pequena moeda entre o desamanho
de um lar, traz-nos o Mestre o ensinamento sutil do que ocorre conosco.
No meio do desconchavo da vida e de seus atropelos, perdemos de vista a moeda preciosa de nossa
ligação com o espírito. Quando percebemos se percebemos - esse extravio, esforçamo-nos em reavê-
lo, dando os passos necessários, que foram bem delineados no texto:
1.º - acendemos a candeia, gesto indispensável, para quebrar as trevas densas em que estamos mer-
gulhados, e poder vislumbrar o caminho a seguir,
2.º - varremos a casa, isto é, procedemos à catarse de nossos veículos personalísticos, a fim de possi-
bilitarmos a procura interna da moeda extraviada sem que nenhum embaraçamento no-la faça perder
de vista, sem nenhum véu de poeira a possa isolar de nosso contato.

Os espíritos "Mensageiros de Deus" alegram-se quando um errado (que se extraviou do caminho


certo) muda seu modo de pensar; ou quando um profano entra na senda iniciática à procura da moe-
da.
Admiramos a sabedoria profunda de cada linha do Evangelho, onde cada palavra está pesada, medi-
da e situada em seu tempo certo. Há muitos objetos que uma dona-de-casa pode ver extraviados:
anéis, brincos, colares, peças de vestuário, e qualquer outro aparelho doméstico. Todavia, a escolha
da moeda como exemplo é a mais perfeita, já que representa o poder aquisitivo, e não a utilidade em
si mesma, Ou seja, possuir uma moeda por si mesma nada vale, pois só representa valor pelo que com
ela pode obter-se.

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C. TORRES PASTORINO

Portanto ensina-nos a parábola que o espírito não se extraviou, mas o meio de consegui-lo. Nenhum
objeto se perdeu, mas o meio de adquiri-lo. O Espírito lá está: o meio de encontrá-lo é que não se
conhece.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

O FILHO PRÓDIGO
Luc, 15:11-32
11. Disse pois: "Certo homem tinha dois filhos.
12. Disse o mais moço deles a seu pai: "Pai, dá-me o que me cabe na partilha dos bens.
"Ele repartiu-lhes os meios de vida.
13. E não muitos dias depois, ajuntando tudo, o filho mais moço partiu para um país dis-
tante e lá, por viver prodigamente, dilapidou seus bens.
14. Tendo gasto tudo, sobreveio grande fome aquele país e ele começou a sofrer priva-
ções.
15. E saindo, ligou-se a um dos cidadãos desse país, que o enviou a seus campos a apas-
centar porcos;
16. e queria fartar-se das alfarrobas que os porcos comiam, e ninguém lhas dava
17. Mas caindo em si, dizia: quantos empregados de meu pai se fartam de pão e aqui
morro de fome!
18. Levantando-me irei a meu pai e dir-lhe-ei: Pai errei contra o céu diante de ti;
19. já não sou digno de ser chamado teu filho; faze-me como um de teus empregados.
20. E levantando-se foi para seu pai. Estando ainda a grande distância viu-o seu pai e
compadeceu-se e, correndo, lançou-se-lhe ao pescoço e beijou-o.
21. Disse-lhe o filho: Pai, errei contra o céu e diante de ti; já não sou digno de ser chama-
do teu filho.
22. Disse, então, o pai a seus servos: Trazei depressa a melhor túnica e vesti nele e dai um
anel para a mão e sandálias para os pés;
23. e trazei o bezerro gordo e matai-o e comendo alegremo-nos,
24. porque este meu filho estava morto e reviveu, estava perdido e foi achado. E começa-
ram a alegrar-se.
25. Seu filho mais velho, porém, estava, no campo; e voltando chegou a casa e ouviu sin-
fonias e coros,
26. e chamado um dos moços perguntou-lhe que era aquilo.
27. Este disse-lhe: teu irmão chegou e teu pai matou o bezerro gordo, porque o recebeu
com saúde
28. Aborreceu-se, então, e não queria entrar. Mas saindo, seu pai o convidava
29. Respondendo, porém, disse a seu pai: Eis tantos anos te sirvo e nunca transgredi uma
ordem tua e jamais me deste um cabrito para que me alegrasse com meus amigos:
30. mas quando veio esse teu filho que te devorou os haveres com meretrizes, mataste
para ele um bezerro gordo
31. Ele disse-lhe porém: Filho, tu sempre estás comigo e tudo o que é meu é teu é preciso
alegrar-se e rejubilar-se porque esse teu irmão estava morto e reviveu, e estava per-
dido e foi achado.

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C. TORRES PASTORINO

Figura “A VOLTA DO FILHO PRÓDIGO” – Desenho de Bida, gravura de Leopold Flameng

Volta o mesmo argumento das parábolas anteriores. Ampliam-se, porém os pormenores, e aprofunda-
se o ensino.
O filho mais moço pede seja feita a partilha dos bens ainda em vida do pai. Seu quinhão era de um
terço da fortuna paterna (Deut. 21:17), pois o resto pertencia de direito ao primogênito. Quer sua parte
para ter liberdade de agir, e não cogita de amor nem piedade filial.
Viaja para país longínquo, a fim de não ser "vigiado" em seu modo de agir, e dissipa os bens sem co-
gitar de repor o que gasta, por meio do trabalho.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Lógico que o capital chega ao fim. Diz o texto que o dispêndio foi feito por viver ele "prodigamente",
isto é, por "gastar sem guardar" ou, mais literalmente "sem salvar": é o sentido etimológico de asôtôs
(hápax bíblico, ou seja, esta é a única vez, na Bíblia, que aparece esta palavra).
Com a escassez de colheitas que sobreveio ao país, mais difícil se tornou sua posição. Emprega-se com
um cidadão de posses, mas sofre a suprema humilhação que poderia sobrevir a um israelita: apascentar
porcos, os animais "imundos” por excelência. Nesse mister, passa por suas mãos a alimentação abun-
dante dos animais, as "alfarrobas" (vagens adocicadas que, quando secas, são comestíveis, produzidas
pela alfarrobeira, a ceratonia siliqua dos botânicos. E vem a vontade de devorá-las para "fartar-se"
(Chortasthênai, atestado pelos melhores códices, como papiro 75 do 3.º século, o Sinaítico e o Vatica-
no do 4.º, etc.; a lição "encher a barriga" - gemisai tên koilían autoú - só aparece depois do 5.º século,
no códice Alexandrino e outros mais recentes).
Nesse ponto da descida social, parado enquanto olhava os bichos, pode meditar sobre sua situação; e o
evangelista e médico Lucas sabe dizê-lo com uma expressão psicológica bem adequada: "entra em si
mesmo" (eis eautón êlthôn), passando a julgar pela razão, e não sob o domínio dos sentidos. E percebe
que cometeu grave erro.
Resolve, então, regressar ao lar paterno. Estuda a frase com que se apresentará a seu pai, solicitando
um lugar como empregado, já que sente não mais merecer, de justiça, o posto de filho. Pelo menos,
ainda que como servo, terá alimentação, e não mais viverá entre suínos. Revela, portanto, humildade e
confiante amor pelo pai.
Feita a viagem, é percebido ainda ao longe pelo instinto paterno. A frase estudada é proferida, com
exceção da última parte: diante da recepção amiga e efusiva do pai, constituiria ofensa pedir-lhe para
ser considerado simples empregado (embora essa segunda parte da frase apareça nos códices Sinaítico
e Vaticano) não aparece no papiro 75, parecendo que a correção do copista se deve ao automatismo de
fazer o moço dizer ao pai a frase completa que preparara).
Além de manifestar sua alegria pessoalmente, com abraços e beijos, manda vesti-lo com a melhor tú-
nica, calçá-lo com sandálias (só os servos andavam descalços), e colocar-lhe no dedo o anel simbólico
da família, e ordena se proceda a um banquete, mandando matar um bezerro gordo, como nas grandes
festas (cfr. Gên. 18:7).
Essa matança de bezerros é a recordação ou revivescência do passado egípcio, quando nosso planeta
estava sob o signo de Touro ("boi Ápis"). Os hebreus que já haviam saído desse signo (a "saída do
Egito") teimavam em recordar os “velhos tempos" e a querer adorar o bezerro, como ocorreu no de-
serto (cfr. Êx. cap. 32) ou por obra de Jeroboão (1.º Reis 12:30).
No entanto, a era dos judeus estava sob o signo do Cordeiro, como nos dá conta o capitulo 12 de Êxo-
do, com o ritual da passagem ("Páscoa") do signo do Touro para o signo do Cordeiro.
Quando de sua estada na Terra, Jesus fez a passagem do signo do Cordeiro (tendo sido Ele chamado
"O Cordeiro de Deus", pelo Batista) para o signo de Peixes, como deixou bem claro com as duas mul-
tiplicações de pães e peixes (cfr. vol. 3 e vol. 4) e quando, depois da "ressurreição", dá aos discípulos,
os "pescadores" de homens, na praia, pães e peixes (João, 21:13) , e também como exprime a própria
palavra grega I-CH-TH-Y-S ("peixe"), adotada como pentagrama de JESUS CHRISTO FILIUS DEI
SALVATOR (em grego) em substituição ao tetragrama de YHWH, e bem assim o desenho do peixe
como "sinal" secreto dos iniciados cristãos entre si.
Atualmente, quando passamos de Peixes para Aquário, tudo é renovado: símbolos. sinais, palavras,
senhas, etc. Mas só os que são realmente iniciados se conhecem através deles, porque só eles os co-
nhecem, e outras pessoas passam por eles sem nada perceber. Só podemos informar, pelo que nos di-
zem, que não se trata de nenhum dos símbolos antigos ressuscitados: é tudo novo e tão simples, que,
mesmo vendo-os ninguém os nota.
Só agora aparece o filho mais velho, chegando do campo onde trabalhava, e estranha a festa de que
não tivera notícia. Quando sabe do motivo, por meio de um dos servos, transborda seu despeito e in-
veja, e reclama acremente tomando a atitude infantil do "não brinco mais".

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Os hermeneutas interpretam a parábola como aplicando-se aos fariseus (o mais velho) e aos publicanos
(o mais moço). Mas Dâmaso compreende o mais velho como representante dos "justos", embora a um
justo, diz ele, não convenha "que se entristeça com a salvação de outrem, especialmente de um irmão"
(ut de salute alterius et maxime fratris contristetur, Patrol. Lat. vol. 22, col. 380). E Jerônimo o acom-
panha (Patrol, Lat. vol. 22, col. 389): ut licet videatur obsistere, quod reversioni fratris invideat, isto é,
"embora pareça opor-se, porque inveja o regresso ao irmão”.

Há outras interpretações possíveis, além dessa que transparece, à primeira vista, da "letra" do texto, e
que foi aventada em época pelos pais da igreja. Realmente a atitude de total modificação mental apre-
sentada pelos "publicanos" e a vaidosa pose dos "doutores em Escritura" e dos "fariseus", dá margem
a que a parábola se adapte plenamente a eles, demonstrando que os primeiros são recebidos com ale-
gria porque se modificaram; ao passo que os segundos são advertidos a respeito da necessidade de
perdoar e amar aos que retornam do caminho árduo das experiências dolorosas. Alerta que vale até
hoje, quando os religiosos ortodoxos sempre ficam prevenidos com os antigos "pecadores", julgando-
os inferiores a si.
Mas procuremos mergulhar mais a fundo no "espírito que vivifica" (João, 6:63) e façamos rápida
análise do texto.
Observemos o triângulo escaleno, formado pelo pai e pelos dois filhos, um "mais velho" (presbyteros)
e portanto teoricamente mais experiente, porque mais vivido, e o outro "mais moço" (neôteros) e por
conseguinte necessitando adquirir as experiências que o primeiro já vivera. No entanto, a parábola
não confirma essa impressão e vai mostrar-nos um "mais velho" inexperiente, de mentalidade infantil,
que jamais se afastou da proteção paterna. E, por falar nisso, observemos que a parábola não fala,
em absoluto, da mãe dos rapazes.
O "mais moço", cheio de vigor e ambição, sente o impulso íntimo de ganhar a amplitude da liberdade,
para agir por conta própria segundo seu livre-arbítrio. Requer, então, os meios indispensáveis para
lançar-se a campo e conquistar aprendizado à sua custa. Não quer "avançar" no que lhe não perten-
ce: solicita apenas o que de direito lhe cabe, pela natureza e pela lei. E o pai atende à solicitação do
filho sem nada indagar , já que reconhece o requerido não apenas justo, mas necessário, a fim de que
o filho possa adquirir experiências que o façam evoluir.
Faz-lhe, então, entrega do que foi solicitado. E aqui observamos que, no original, está escrito que o
pai dividiu-LHES (autois), como se tivesse dado a mesma coisa aos dois, e não apenas ao mais moço.
Mas, cada palavra do texto escriturístico tem sua razão. Notemos que o filho pede "o quinhão aos
bens" (méros tês ousías). E essa expressão é usada duas vezes, nos vers. 12 e 13. Todavia, o evange-
lista, também duas vezes, nos vers. 12 e 30, diz que o pai lhe deu, literalmente, "a vida" (tòn bíon).
Guardemos essa observação, (1) pois ela nos alerta para uma primeira interpretação: o filho "pródi-
go" que parte do pai e volta a ele após as experiências, é o ensino que nos revela todo o processo in-
volutivo-evolutivo da Centelha, que é emitida da Fonte, se individua e cai até o fundo do AntiSistema
(pólo negativo) para daí regressar à Fonte de onde se desprendeu, após todo o aprendizado prático.
(1) A palavra bíos ("vida”) aparece nove vezes no Novo Testamento, sendo:
- duas vezes neste trecho;
- duas vezes (Mat. 13:44 e Luc. 21:4) quando Jesus afirma que o óbulo da viúva representava
"toda a sua vida" ou “o meio de sua vida";
- quatro vezes com o sentido de "vida" biológica (Luc. 8:14: l.ª Tim. 2:2; 2.ª Tim. 2:4; 1.ª João
2:16);
- e a nona vez em 1.ª João 3:17 quando o evangelista fala na "Vida do Mundo" (tòn bíon tou
kósmou), que também pode interpretar-se como "bens do mundo".
Realmente bíos pode sofrer uma sinédoque, exprimindo a parte pelo todo, ou seja, o "meio de
vida", em vez de "vida", e isso foi aproveitado pelos autores gregos da boa época (cfr. Hesíodo,
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SABEDORIA DO EVANGELHO

"obras e Dias", 31, 42: Eurípedes, "Suplicantes", 450 e 861; Aristófanes, "Pluto" 751 e "Ves-
pas" 706; Platão, "Leis" 936 b; Sófocles, "Filoteto" 931; Xenofonte "Memoráveis de Sócrates",
3, 11, 6; etc.).
Todavia, chama a atenção o fato de que, no próprio vocabulário de Lucas há outros termos, que
também exprimem especificadamente "bens, riquezas, posses", Aqui, vers. 12 e 13, Lucas em-
prega, ousía, (que só aparece aqui em todo o Novo Testamento); mas ainda encontramos chrê-
ma (Marc. 10:23; Luc. 18:24; At. (Luc!) 8:18, 20 e 24:26); e ktêma (Mat. 19:22; Marc. 10:22;
At. (Luc!) 2:45 e 5:1); e mais hypérchonta (Mat. 19:21, 24; 25:14; Luc. 8:3; 11:21; 12:15, 33,
44; 14:33; 16:1, 19:8; At. (Luc!) 4:32; 1.ª Cor. 13:3; Heb. 10:34).
Estendemos esta nota, a fim de que se observe o modo como procedemos em nosso estudo. Não
são opiniões aventadas, mas pesquisas sérias e racionais, de que nos servimos para fazer a tradu-
ção mais honesta que podemos. Aqui, pois, concluímos pela seguinte observação: enquanto o ra-
paz pede "bens" (ousía) e dilapida os "bens" (ousía), o pai lhe dá "meios de vida" (bíos) e o ir-
mão o acusa de haver consumido os "meios de vida" (bíos). Na escolha de palavras ("elegantia")
há sempre um motivo sério e ponderável, nas obras inspiradas, e não deve escapar-nos esta mi-
núcia.

Anotemos os pormenores. A Centelha sabe e solicita sua partida, ansiosa de terminar o ciclo. Pede ao
Pai tudo o que de direito lhe cabe para essa viagem. O Pai lhe dá a vida, ou seja, a substância da
vida, a individuação indispensável que a distinga do Todo-Homogêneo indiferenciado e a torne autô-
noma. E ela sai (apó) de seu ambiente (dêmos) para um país distante (apedêmêsen eis chôran makran)
ou seja, destaca-se aparentemente do Todo pela individuação (não ainda individualização), tomando-
se um "eu" à parte, e vai cair no pólo negativo. Mas dentro de si está a "vida" (tón bíon) recebida do
Pai.
Começa a caminhada e avança seu aprendizado, atravessando os estados de mineral, vegetal e ani-
mal. Mas ao atingir a individualização no estado humano, e com o desenvolvimento progressivo do
intelecto, ela percebe que está faminta, que a "vida" lhe está oculta, que ela se encontra vazia de espi-
ritualidade, pois vive dominada e explorada por seres desse país longínquo (do Anti-Sistema); e que o
ambiente em que atualmente se encontra é terrível, pois são animais imundos (porcos) que a cercam, e
o alimento que lhes é dado não lha satisfazem.
Resolve mudar a direção da caminhada e voltar-se para o Pai, que a recebe feliz, com a alegria com-
partilhada por todos, menos por seu "irmão mais velho” (não é casual o emprego da palavra pres-
byteros) que, embora seja assim denominado, não tem a vivência nem o conhecimento espirituais ne-
cessários para compreender. Por jamais haver-se afastado da luz, julga-se mais perfeito; erro básico
de julgamento cometido por todos os que se apegam às exterioridades. O isolamento das experiências
confere isenção, mas não aprendizado. A virtude real (qualidade adquirida) é produto da experiência,
e não da ignorância. Não pode ser grande pintor quem jamais tenha lidado com pincéis, nem escritor
emérito quem não conheça o alfabeto; assim, puro não é o que ignora e, por isso, se abstém da sensu-
alidade, mas aquele que, conhecendo a fundo toda a gama da sensualidade, aprendeu a dominá-la em
si mesmo, por ter superado o estágio animal.
Um dos grandes perigos da pseudo-virtude, manifestada pelo irmão mais velho, é exatamente a vaida-
de (palavra que vem de vánitas, que designa o "vão", o "vazio") pois toda vaidade é fruto da ignorân-
cia (uma e outra são apenas "vazios" de saber). Só a experiência, não apenas estudada teoricamente
(mathein) mas experimentada e sofrida na prática (pathein, vol. 4.º pág. 62) podem conferir à criatura
a base sobre que construir a própria ascensão evolutiva.
Mas, olhando o contexto com atenção, descobrimos outra interpretação, apropriada às Escolas Inici-
áticas.
Como todas as criaturas de Deus, o ser partiu da Fonte e se encontra no meio da jornada.

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C. TORRES PASTORINO

No ponto exato em que o ser abre os olhos e sabe ver-se a si mesmo, aí se situa o apoio onde se toma
o impulso para regressar, isto é, aí está o fim da estrada da descida involutiva, e o início da senda da
subida evolutiva. Também a esse despertamento pode aplicar-se o "conhece-te a ti mesmo".
1.º passo - Abertos os olhos, considerado seu estado, o ser "entra em si mesmo" (eis eautón êlthôn) ou
seja, dá o MERGULHO em seu íntimo e entra em meditação. Nesse estado de espírito, reconhece que
vem errando (vagueando fora da senda) e não é digno de ser chamado filho: é o ato de humildade.
Logo a seguir vem o complemento, o ato de amor, pois prefere a qualificação de servo, contanto que
possa permanecer junto ao Pai, como disse o salmista (84:10) "é melhor estar no limiar da casa de
meu deus, que morar nas tendas da perversidade".
2.º passo - Esses atos de humildade e de amor confiante ("quem se humilha será exaltado", Luc.
14:11; e "o amor cobre a multidão de erros", Luc. 7:47) fazem elevar-se sua sintonia vibratória, fato
confirmado com o verbo empregado no texto: "levantando-se foi para seu pai"; ou seja, apurando
suas vibrações automaticamente, pela humildade e pelo amor, aproximou-se do Pai, embora se manti-
vesse "ainda a grande distância" (éti dé autou makrán apéchontos). Mas a graça responde de imediato
ao primeiro passo do livre-arbítrio da criatura, e o Pai se precipita amorosamente, envolvendo o filha
de ternura e carinho.
3.º passo - Diante da efusão abundante e confortadora da graça, o filho estabiliza, na prática, a meta-
nóia, que teoricamente fora decidida durante a meditação.
Os demais passos são citados em rigorosa ordem, embora a narração os precipite, em poucas pala-
vras, quase num só versículo.
4.º passo (ação de graças) - o regresso à casa paterna com a esfusiante alegria da gratidão por ter
sido recebido.
5.º passo (matrimônio) - a veste nupcial, "a melhor túnica", para que vivesse permanentemente com o
Pai"
6.º passo (sacerdócio) - o "anel para a mão", simbolizando a consagração da mão de quem serve à
Divindade; anel que traz o selo da família, fazendo o portador participante da "família do deus"
(note-se que se fala em "anel", não em "aliança").
7.º passo (cristificação) - As "sandálias para os pés", a fim de simbolizar o total desligamento, desta-
cando-se do solo do planeta, renunciando à matéria.
O último passo iniciático, nas ordens antigas, era comemorado com grandes festejos, que aqui tam-
bém não faltam. Anotemos a escolha do animal (sobre que já comentamos), assinalando que, em três
versículos (23, 27 e 30), fala-se na morte do bezerro, significando que o novo iniciado atingiu a meta
(conseguiu seu grau) ao sair da evolução egípcia (signo de touro), que acaba de ser superada. E ape-
sar de poder interpretar-se, por dedução, que a festa consistiu em "comer-se" o bezerro, isso não é
dito. O que se afirma claramente é que participaram de um banquete no qual se entregaram à alegria
e à beleza, com "sinfonias e coros". Pode-se, pois, nesta interpretação, compreender-se como "ban-
quete espiritual de regozijo", palavra esta (ou "alegria") usada nos versículos 23 e 24.
A razão é dada pelo pai aos convidados, e depois ao "mais velho" (vers. 24 e 32): o filho "morrera e
reviveu, se perdera e foi achado". Realmente, ele se encontrava morto (nekrós) na matéria, e perdido
(apolôlôs) nas estradas falsas, mas reviveu (anézêsen, composto de zôê) e foi achado (heuréthê) na
senda certa. Daí a razão de "alegrar-se" (euphraínesthai).
O filho mais velho, que chega do campo, não se conforma em ver a festa tributada ao mais moço. Dei-
xa-se levar pelo despeito e pela inveja: sempre ficara ao lado do pai, servindo-o, e nunca teve, nem
sequer um cabrito, para alegrar-se com seus amigos. É a posição normal da pseudo-virtude. O pai
procura justificar sua conduta, demovendo-o de sua infantilidade mental. O parabolista deixa em
aberto a questão, sem dizer se ele atendeu ou não ao apelo do pai.
Apesar de "mais velho" (presbyteros) revela-se infantil e comprova, com isso, que não é a idade nem a
permanência nos santuários, que vale como testemunho de evolução. Nem tampouco vale o fato de

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dedicar-se à vida religiosa reclusa, em permanente adoração. Nem sequer o apego a mandamentos,
cerimônias e ritos externos, religiosamente obedecidos. E aqui aprendemos que, se tudo isso pode
conferir merecimentos, não exprime de modo algum, evolução (ver revista Sabedoria, ano 2.º, n.º 14,
pág. 52). E portanto, que muitas criaturas podem possuir toneladas de merecimento, sem que isso
signifique que são evoluídas. No entanto, o merecimento, por trazer colaboração de amigos gratos,
ajuda e influi numa facilitação da caminho evolutivo.
Uma das acusações do mais velho, é que o mais moco devorou a vida do pai com meretrizes (ho kata-
phagôn sou tòn bíon metá pornôn), ou seja, distribuiu sua substância, não apenas monetária mas tam-
bém a física. sensória, emotiva e intelectual, com criaturas de toda ordem, numa prodigalidade que
marcou o rapaz e o caracteriza até hoje. "Há mais alegria em dar" ( At. 20:35) traço normal do ser
evoluído, enquanto o "pedir" é típico do involuído, que tudo quer receber.
No final, o pai dirige-se ao mais velho, recordando-lhe que "está sempre com ele" em união insepará-
vel, e que "tudo o que é meu é teu" (pánta tà emá sà estin), frase que Jesus emprega na oração sacer-
dotal (João, 17:10) em relação ao Pai.
Realmente, se considerarmos esse “irmão mais velho" como um espírito já evoluído, em união total
com o Pai, é profundamente estranho esse comportamento despeitado e invejoso, que atesta imenso
atraso. Essa contradição novamente nos impele à meditação, para ver se conseguimos perceber de
que se trata. E a idéia que nos chega é que esse irmão "mais velho" representa a centelha antes da
peregrinação; daí aquela imagem simbólica de Lúcifer (o "Portador da Luz") que se rebela (tal como
o mais velho) e, por esse motivo, é expulso do "céu", numa "queda" espetacular, para fazer sua evolu-
ção; representaria, também, em outro plano, o tipo religioso ortodoxo, quando ainda apegado a exte-
rioridades e aparências, antes de compreender o verdadeiro caminho da iniciação, para dentro de
cada um.

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O ADMINISTRADOR NÃO- JUSTO


Luc. 16:1-17
1. Disse Jesus também a seus discípulos: "Certo homem era rico e tinha um administra-
dor, e este lhe foi acusado como dilapidador de seus bens.
2. E tendo-o chamado, perguntou-lhe: "Que ouço dizer de ti? Presta conta de tua admi-
nistração, pois não podes mais administrar".
3. Disse o administrador consigo mesmo: "Que farei, porque meu senhor me tira a ad-
ministração? Não tenho forças para cavar, tenho vergonha de mendigar ...
4. Sei o que farei para que, quando for removido da administração, me recebam em su-
as casas".
5. Tendo chamado cada um dos devedores de seu senhor, disse ao primeiro: "Quanto
deves a meu senhor"?
6. Respondeu ele: "Cem cados (1) de azeite". Disse-lhe então: "Pega tua fatura, senta-te
já e escreve cinquenta".
7. Depois perguntou a outro: "E tu, quanto deves"? Respondeu ele: "Cem coros (2) de
trigo". Disse-lhe: "Pega tua fatura e escreve oitenta".
8. E o senhor louvou o administrador não justo, porque procedeu prudentemente; por-
que os filhos deste eon são mais atilados para com sua geração, do que os filhos da
luz.
9. E eu vos digo: Fazei para vós amigos da riqueza não justa, para que, quando vos fal-
tar, vos recebam eles nas tendas do eon.
10. Quem é fiel no pouco, também é fiel no muito; e quem não é justo no pouco, também
não é justo no muito.
11. Se pois não vos tornastes fiéis na riqueza vã, quem vos confiará a verdadeira?
12. E se não vos tornastes fiéis no alheio, quem vos dará o que é vosso?
13. Nenhum empregado pode servir a dois senhores: porque, ou aborrecerá a um e ama-
rá o outro; ou se unirá a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e às ri-
quezas.
14. Ouviam tudo isso os fariseus, que eram amigos do dinheiro, e caçoavam dele.
15. Disse-lhes Jesus: "Sois vós que vos justificais perante os homens, mas Deus conhece
vossos corações; pois é abominável diante de Deus.
16. A lei e os profetas (foram) até João: desde então o reino de Deus é alegremente anun-
ciado, e todos forcejam para ele.
17. Mas é mais fácil passarem o céu e a terra, do que cair um til da Lei" .

(1) Cado, medida que equivale a 40 litros. A dívida, portanto era de 4.000 litros, que foram reduzidos
a 2.000.
(2) Coros, medida que equivale a 400 litros. A dívida, pois, era de 40.000 litros, reduzidos a 32.000
litros.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Mais uma vez Jesus se dirige a Seus discípulos. No entanto, como havia elementos estranhos ao colé-
gio iniciático por perto (cfr. vers. 14) , utiliza, como de hábito, uma parábola. Talvez mais tarde a te-
nha explicado em particular ao grupo.
O exemplo escolhido é de um mordomo ou administrador (em grego ecônomo) que se demonstrou
infiel para com seu senhor. E as falcatruas chegaram aos ouvidos do amo, pelo que este, agindo corre-
tamente, afirma que ouviu acusações sérias, e portanto pede que lhe sejam apresentadas as contas,
pois, caso se verifique o acerto da acusação, não poderá mais gerir seus bens.
O verbo diabállô tem o sentido de "acusar", embora também aceite o sentido de "caluniar" (cfr. Dan.
3:8, 9 e 2.º Mac. 3:11). Desse verbo vem o adjetivo diábolos, que é o "acusador", o "adversário" que
acusa ou calunia, ou seja, a matéria que se opõe à espiritualização, o "Anti-Sistema" (P. Ubaldi) ou
pólo negativo, em que mergulha a Centelha ou Mônada.
O parabolista não esclarece (nem interessa à história) a espécie de desonestidade do mordomo, se era
simples má gestão ou real malversação dos bens para proveito próprio. A continuação da parábola de-
mostra inclusive a que ponto podia chegar: falsário.
O administrador estava tão convicto da verdade das acusações, que não cogita aproveitar-se do ensejo
de defesa que o patrão lhe coloca à disposição: apresentação das contas, demonstrando correção. Ao
invés, passa logo a cogitar de como sair-se para defender-se depois de despedido.
Resolve aproveitar o curto espaço de tempo que lhe ficou à disposição para organizar seu balanço, a
fim de falsificar a escrituração. Mas engaja os devedores em sua falsificação, de forma a tê-los presos
a si, impossibilitados de acusá-lo sem que também sejam envolvidos no mesmo crime; e daí, uma vez
complicados pela cumplicidade, se verem obrigados a dar cobertura ao mordomo despedido.
O "devedor" (chreôpheilétês) de que fala o texto é aquele que realizou a compra e ainda a não pagou,
por ter que fazê-lo apenas 30 ou 60 dias "fora o mês". Modificando a escrituração do balanço, e modi-
ficando a fatura de entrega da mercadoria, nada apareceria de errado, embora toda a transação fosse
desonesta.
O mordomo, ainda investido de suas funções, convoca os devedores, embora cada um seja introduzido
em particular, conforme especifica o texto. A cada um é feita, inicialmente, a pergunta de "quanto
deve", ou seja é pedida uma "confissão de dívida" explícita para que fique bem clara a transação irre-
gular a realizar-se.
Apenas dois exemplos são dados. As medidas utilizadas, bem estudadas no artigo do Pe. Barrois, "La
Métrologie dans 1a Bible", publicado na "Revue Biblique" de 1931 (pág. 212), são bem diferentes uma
da outra. O batos (do hebraico bâth) tem 39.384 litros ao passo que o coros (do hebraico kôrs) tem dez
vezes mais, isto é, 393.384 litros. Arredondando, os cem batos correspondem a 4.000 litros, enquanto
os cem coros correspondem a 40.000 litros. Daí os primeiros CEM terem sido reduzidos à metade,
num abatimento de 2.000 litros; ao passo que os segundos CEM só foram reduzidos de 20%, isto é, de
8.000 litros. As dívidas, portanto, desceram de 4.000 para 2.000 e de 40.000 para 32.000. A redução da
segunda dívida de 50% seria muito forte e, talvez, não teria sido aceita pelo próprio devedor, temeroso
de ser descoberto.
"Nada há de oculto, que se não venha a conhecer": o senhor descobriu a falcatrua do mordomo, não se
diz como. E reconheceu que o administrador foi atilado e agiu com prudência, embora continue deno-
minando-o "não-justo" (adikías).
Até aqui a parábola. Seguem-se as considerações do Mestre aos discípulos, dando a interpretação mais
chã (já que falava diante de profanos) e aproveitando a ocasião para aconselhá-los.
Em primeiro lugar, salienta a prudência com que agem os filhos "deste eon" (toú aiônos toútou) entre
si, "em sua geração" (eis tên geneán tên heautôn), e lamenta que os "filhos da luz" não utilizem a
mesma habilidade para conquistar o "reino dos céus".
Depois vem um conselho em estilo algo confuso, que requer muita atenção, a fim de ser bem compre-
endido: "fazei para vós amigos da riqueza não justa (Huberto Rohden traduz, com muita propriedade,

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"riqueza vã") para que, quando esta faltar, vos recebam eles (esses amigos) nas tendas do eon". As
traduções correntes aproveitam o sentido de "por meio de", que recebe a preposição grega ek (cfr. Xe-
nofonte, Helênicas, 3, 2, 11 e Anabase, 2, 3,10; Sófocles, Filoctete, 702 e Plutarco, Temístocles, 4),
para apresentar: "fazei-vos amigos com (por meio da) riqueza vã". No entanto, a Vulgata traduz o ek
pela preposição latina de: fácite vobis amicos de mammona iniquitatis, conservando a mesma perífrase
que o grego. Em inglês usaríamos from, em lugar de by. Observemos que o sentido muda totalmente.
Analisemos.
Fazer amigos por meio da riqueza vã, é utilizar a nossa riqueza para conquistar esses amigos. Fazer
amigos da riqueza vã, é conquistar a amizade dos ricos, pelos serviços a eles prestados. Por mais gene-
ralizada que seja a primeira interpretação, preferimos a segunda, considerando que os discípulos "fi-
lhos da luz" não são, de modo geral, pessoas que abundem de bens terrenos materiais, embora sejam
ricos de espírito de serviço e de bondade desinteressada.
Doutro lado, a expressão "quando esta faltar" (hótan eklipêi, no singular, muito mais bem testemunha-
do que o plural eklípete) pode referir-se às riquezas, dando margem às duas interpretações: se somos
ricos e usamos a riqueza para conquistar amigos, quando esta faltar, seremos recebidos por esses ami-
gos a quem conquistamos; ou: se conquistamos a amizade dos ricos, quando o dinheiro nos fizer falta,
seremos por eles recebidos. Quer dizer, ambas as interpretações são válidas no contexto. Outros intér-
pretes chegam mais adiante: quando faltar "a vida", isto é, quando morrermos, abandonando forçada-
mente as riquezas, seremos recebidos pelos amigos conquistados.
Recebidos aonde? "Nas tendas do eon" (eis tãs aiôníous skênás). Também aqui entendemos nas "casas
deles", nas residências do eon, do século, do mundo, da matéria; embora a maioria dos exegetas prefira
traduzir aiôníous por "eternas": seremos recebidos "nos tabernáculos eternos", isto é, nas casas celesti-
ais. A interpretação corrente, pois, é que: se conquistarmos amigos por meio de nossas riquezas, dando
esmolas, os que receberem essas esmolas se tornarão nossos amigos e nos receberão "no astral", quan-
do lá chegarmos desprovidos de tudo, já que as riquezas ficaram na terra. Não chegamos a entender,
positivamente, esse jogo de interesses, de querer "comprar" um lugar no "astral" ou no "céu", por meio
das riquezas terrenas, como se evolução espiritual fosse coisa comprável com dinheiro.
Daí nossa preferência por "tendas de eon", ou seja, casas terrenas, do "século", do qual são "filhos" os
homens atilados, e onde podem eles agir como "donos" da situação. E não no "astral" ou "céu", onde
pouco devem poder os que vivem na matéria e para a matéria.
Quanto ao vocábulo "riquezas", é tradução do aramaico mammona, que tem o sentido de "confiado,
depositado, ganho", conforme fala também Agostinho (Patrol. Lat. vol. 34 col. 1290): lucrum púnice
mammona dícitur, isto é, "em cartaginês o lucro é chamado mamona".
Seguem-se duas frases em estilo axiomático: fidelidade ou desonestidade são qualidades que não de-
pendem de medida: o fiel e o desonesto o são tanto nas coisas mínimas como nas máximas: é uma ati-
tude intrínseca, congênita na pessoa.
A conclusão imediata é que, se alguém não se tornou fiel na riqueza vã (nos bens materiais) tampouco
merece confiança para receber em depósito as riquezas verdadeiras (espirituais), pois não sendo fiéis
no alheio, não terá oportunidade de receber o que lhe é próprio.
Chega, então, a conclusão geral: impossível servir a Deus e às riquezas. Repetição do que já foi dito
antes (Mat. 6:24).
Os fariseus, ditos aqui "amigos do dinheiro" (philárgyroi) já que consideravam os bens materiais como
um dom divino em recompensa da fidelidade à lei (Deut. 28.1-14), só podiam ter uma atitude em rela-
ção a esses ensinamentos: zombaria.
Mas Jesus responde que eles se dizem e se fazem justos perante os homens, mas por conta própria,
porque Deus conhece "os corações deles". E acrescenta que tudo o que é julgado grande pelos homens,
para Deus não passa de coisa abominável. Interessante observar que o termo grego bdélygma é o que
se renega "por causa do fedor".

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Segue-se a afirmativa que "A lei e os profetas até João", sem verbo, que geralmente é suprido por “du-
raram" ou "vigoraram". Entendem alguns que depois de João a Lei e os profetas não mais tem ação, só
passando a vigorar o Evangelho, a Boa-Nova. O próprio texto dá a entender isso, afirmando que "des-
de então o reino de Deus é alegremente anunciado (evaggelízetai) e todos forcejam por penetrar nele.
No entanto, Jesus já afirmara que não veio destruir a lei, mas aperfeiçoá-la (cfr. Mat. 5:17-20).
O final da parábola é categórico: mais fácil é ruírem céu e terra que um “til" (keraía, que é um daque-
les sinais minúsculos colocados nos caracteres hebreus, para facilitar a leitura) da lei deixar de ser
cumprido.

O Senhor da Terra, isto é, do Planeta, não a trabalha diretamente, mas por meio dos homens, pois as
criaturas humanas são as ADMINISTRADORAS dos bens terrenos que lhes não pertencem, mas sim
ao Dono da Terra, ao Supremo Governador (a que os hebreus chamam Melquisedec, os hindus Rama
ou Naráyana).
Todas as vezes que a criatura que recebe a mordomia dilapida os bens de seu Senhor, utilizando-os
em benefício próprio com prejuízo daqueles que também possuem direitos sobre eles; ou quando não
os sabe conservar e gerir de forma a multiplicá-los; ou os esbanja em frioleiras e gozos exagerados,
em vez de empregá-los em beneficio de obras úteis; ou com eles compra terras e as deixa improduti-
vas, com a idéia egoísta de guardá-las só para si e para os seus; ou os enterra em bancos sem apro-
veitamento - essa criatura está dilapidando os bens de seu Senhor, porque os não está empregando
segundo a Vontade Dele, mas sim de acordo com seus caprichos.
Definida esta parte, observemos os ensinos da parábola.
O Senhor chama o administrador - a criatura que emprega mal os bens que recebeu em mordomia - e
pede as contas, porque chegou a um ponto em que não pode continuar gerindo bens terrenos. É ge-
ralmente o momento da desencarnação e aproximação da morte.
Nesses últimos momentos, a criatura se lembra de que realmente agiu com egoísmo. E sabe que vai ter
que abandonar não só os bens, mas a própria decisão a respeito deles. Então, só então, se lembra de
que há pobres (os pobres são os que entram na Terra como devedores, e por isso não recebem bens
para gerir) e resolve diminuir-lhes as dívidas, dando-lhes parte da fortuna que está gerindo, saldando,
de um, 50% da dívida, de outro 20% , etc ...
Essas importâncias dadas (ou deixadas em testamento) têm a vantagem, segundo essa criatura, de
fazer que os beneficiados lhe demonstrem gratidão no eon futuro. Tinha, pois, muita razão, o Senhor
de louvá-lo, pois agira, átiladamente e com prudência. E aqui pode compreender-se plenamente o
termo utilizado pelo evangelista: o "administrador não-justo". Lembramo-nos de que os que se apro-
ximam do Caminho foram divididos por Jesus em três classes: os profetas, os justos, e os discípulos
(vol. 3). Aqui é simplesmente citado o caso de alguém que ainda não atingiu o segundo grau: ainda
não é justo, o que não significa que seja positivamente "iníquo" nem "desonesto" integralmente. Não
percamos de vista que os Evangelhos adotam um linguajar técnico rigoroso de Escola Iniciática (vol.
4). Nem poderia supor-se o contrário de livros especializados e "inspirados". Dizer que o Novo Tes-
tamento é escrito em linguagem popular porque seus autores não tinham conhecimentos, é desvalori-
zar a inspiração do Alto. O sentido de cada palavra é sempre rigidamente empregado dentro da técni-
ca do ensino ministrado pelo Mestre, que era um Hierofante da categoria sublime de Jesus, e da in-
concebível e incomensurável sabedoria do Cristo que através Dele se manifesta. Não são obras de
ignorantes nem de iletrados: são documentos perfeitos e cientificamente redigidos, embora em alguns
pontos os homens os tenham modificado para adaptá-los às suas conveniências. Podemos admitir que
seus autores não eram gênios, mas temos que convir que suas mãos eram dirigidas por Inteligências
superiores. Não pode conceber-se que obras, destinadas ao ensinamento profundo da humanidade
durante milênios, fossem deixadas ao acaso das incompetências e limitações cerebrais de homens sem
cultura. Afirmar o contrário é irreverência e até mesmo blasfêmia inominável.
A continuação do texto vem confirmar esta segunda interpretação. Observemos as frases:

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a) "fazei para vós amigos da riqueza vã" (não-justa), isto é, da riqueza terrena material (ou também,
"por meio da riqueza vã"), pois, de qualquer maneira, ao terminar o ciclo da vida material, essas
amizades perdurarão no ciclo astral e espiritual. As amizades, no ambiente terreno, são sustenta-
das e alimentadas pelos obséquios, pelos presentes trocados, pelos favores dados e recebidos, o
que facilita uma sintonização de interesse mútuo que, com o tempo, se tornará sintonização de vi-
brações intelectuais e, mais tarde, de vibrações espirituais.
b) "quem é fiel no pouco sê-lo-á igualmente no muito", etc.; verdade substancial, já que honestidade,
fidelidade, justiça são qualidades intrínsecas (já o vimos) e independem da quantidade.
c) portanto, ao homem é apresentada a ocasião de exercitar-se e de revelar suas qualidades, e de
aperfeiçoá-las, enquanto na matéria, no "pouco" (bens terrenos materiais) para que, se for dada
prova de possuir a qualidade mestra da justiça e da fidelidade, lhe seja entregue a riqueza verda-
deira. Ponto essencial para não correr-se o risco de dar as riquezas verdadeiras (o conhecimento
espiritual) a criaturas ainda incapazes, que poderão transformar-se em "magos negros". Daí a ne-
cessidade de escolas com períodos probatórios longos. Dai as numerosas encarnações de experi-
mentação rígida de valores. Só depois de longos séculos de provações em muitos campos, e depois
de haver treinado a administração dos bens materiais, pode a criatura ser aceita como discípulo.
E, mesmo depois desse passo, chegam os exames, os "passos iniciáticos", as provas rigorosas, a
prática, a vivência (páthein, vol. 4), para que, depois de tudo isso, possam ser dados, confiante-
mente, os graus iniciáticos, até atingir-se o adeptado. Se não dermos provas cabais e definitivas de
fidelidade na administração sábia dos bens terrenos (e todos os que administram por profissão
estão ainda nesse passo), não estaremos aptos a receber o conhecimento da riqueza verdadeira.
d) A mesma idéia é repisada com outras palavras: a fidelidade no alheio é uma garantia para rece-
bermos o que é nosso. Dentro da pura concepção humana terrena, esse conceito é logicamente ab-
surdo. Ninguém experimenta a fidelidade de uma criatura confiando-lhe riquezas alheias para se
comprovada a qualidade - entregar-lhe a riqueza própria. Temos, pois, um ensino mais profundo:
se não nos tornarmos fiéis no que é dos outros, ou seja, no que pertence aos veículos inferiores, ao
planeta físico, aos demais seres que nos cercam, comprovamos não estar aptos a entrar na posse
dos bens espirituais, a que temos direito por nossa origem divina. E essa é uma das razões de nos-
sa encarnação na matéria: aprender a governar-nos no que é alheio, mas sem importância capital,
até tornar-nos capacitados para recebermos a herança que nos pertence. Ninguém nos dará a ri-
queza verdadeira (espiritual) a que temos direito, se antes não tivermos atingido a perfeição da
justiça naquilo que é material e transitório. Todos os que estão atualmente encarregados de admi-
nistrar as riquezas materiais, estão se preparando ainda para que no futuro possam entrar na pos-
se na, verdades espirituais. São períodos encarnatórios de treino, indispensáveis para verificação
da capacidade intrínseca de cada um. E a VIDA é sábia, e distribui as profissões a cada um, de
acordo com o degrau evolutivo que tiver atingido. Que os dirigentes de Escola estejam atentos,
pois, em não confiar iniciações àqueles cuja profissão terrena oficial ainda for administração fi-
nanceira.
e) "não podeis servir a dois senhores". Realmente é impossível dedicar-nos à gestão e conquista de
riquezas materiais e ao espiritualismo da busca divina. Claro e lógico. São duas direções opostas.
Ninguém pode caminhar ao mesmo tempo para o norte e para o sul. Ninguém pode dirigir-se si-
multaneamente para o Sistema e para o Anti-Sistema, para o pólo positivo e para o pólo negativo.
Questão de orientação fundamental do caminho a ser percorrido. Quem se encaminha na direção
do Sistema, fixando-se na Individualidade, aborrece as riquezas; e quem se prende às riquezas
para multiplicá-las, a fim de comprar apartamentos, casas de campo, comodidades, conforto, etc.,
automaticamente desprezará as filigranas espirituais e o desprendimento total, por que precisa
agir na zona pesada dos interesses que não admitem sentimentalismos. O esclarecimento final do
Mestre acaba com as dúvidas: Deus e as riquezas (posses = Mammona) são pólos opostos. Ou se-
guimos para a direita, abandonando tudo o que é material e seguindo Cristo, ou para a esquerda,
e possuiremos bens terrenos, estando atentos às nossas contas bancárias. Os que nesse campo se

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aproximam dos espiritualistas, estão exercitando para que, em próximas vidas, possam aprender a
renunciar totalmente aos bens terrenos.
A intervenção dos fariseus provoca outros ensinos.
f) "o que é elevado entre os homens, é abominável diante de Deus": posições, honrarias, títulos, car-
gos, riquezas, fama, domínio - tudo o que se julga nobre e digno de respeito na humanidade terre-
na, constitui algo desprezível e "fedorento" (bdélygma) para Deus e para os Seres que já supera-
ram o caminho evolutivo e se encontram no ápice da pirâmide. Deus conhece os corações, porque
neles habita, conscientemente impelindo e dirigindo a evolução de cada um. E os que buscam
Deus e a evolução, procuram realmente apagar-se no campo terráqueo do Anti-Sistema.
g) A expressão "lei e profetas" exprime o Antigo Testamento, que é o símbolo da personagem terre-
na; o Novo Testamento é o reino de Deus, que é o campo da Individualidade.
Moisés legislou para a personalidade terrena; Jesus para a individualidade espiritual. O reino da
personalidade durou até João, que foi o maior entre os "filhos de mulher" (cfr. vol. 1, vol. 3 e vol. 4);
ao passo que Jesus é o "Filho do Homem", trazendo à Terra o "Reino de Deus", que é "anunciado
alegremente". Portanto, até João ainda vigoravam os preceitos para a personalidade, que perderam
sua razão de ser nesse nível, porque foram completados e aperfeiçoados (cfr. vol. 2) pela vinda de
Jesus, que os elevou, para aplicá-los e adaptá-los à individualidade.
h) "Todos forcejam para o reino dos céus", exprime a velocidade maior no final da carreira (motus
in fine velocior) . Uma vez percebida e compreendida a meta, a criatura envereda com entusiasmo
pela senda, forcejando e violentando-se, e percorre o que falta em relativamente menor número de
encarnações. Exemplifiquemos grosseiramente: se levara 80.000 encarnações para percorrer de 1
a 80 (à razão de 1.000 em cada passo), levará agora 200 encarnações para caminhar de 80 a 100
(à razão de 10 em cada passo). Essa pressa violenta (como dá a entender o verbo grego biázô) ex-
prime o esforço de atingir o objetivo o mais depressa possível. Mas jamais nos iludamos de que
estamos na "última encarnação". Só poderemos afirmar isso, se tivermos alcançado a evolução
que Jesus tinha. Quem a tem?
i) O último ensino é categórico: a LEI se cumprirá. Aqui não há mais referência à lei mosaica, es-
crita para a personagem transitória, e portanto transitória ela mesma. Trata-se da LEI suprema
da evolução, da LEI MAIOR, que não toma conhecimento de privilégios nem de pistolões.
Essa, pois, a segunda interpretação que podemos dar à magnífica lição contida na parábola do admi-
nistrador não-justo. Outras existirão ainda, pois cada parábola encerra em si ensinos de profundida-
de variável, de acordo com a capacidade de quem a lê.

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O RICO E LÁZARO
Luc. 16:19-31
19. Certo homem era rico e se vestia de púrpura e linho finíssimo, e leviano banqueteava-
se todos os dias alegremente.
20. Certo mendigo, de nome Lázaro, todo em chagas, fora deitado diante do ádrio dele,
21. desejando saciar-se com o que sobrava da mesa do rico; mas até os cães vinham lam-
ber-lhe as úlceras.
22. Aconteceu, porém, morrer o mendigo e ser levado pelos espíritos ao seio de Abraão;
morreu também o rico e foi sepultado.
23. No hades, estando em provação, levantou seus olhos e viu Abraão ao longe, e Lázaro
em seu seio.
24. E ele chamou, dizendo: "Pai Abraão, compadece-te de mim e envia Lázaro, que mer-
gulhe na água a ponta de seu dedo e refrigere minha língua, porque muito sofro nes-
tas chamas".
25. Abraão, porém, respondeu: "Filho, lembra-te de que recebeste teus bens em tua vida,
e igualmente Lázaro os males; agora, pois, ele foi aqui consolado, mas tu sofres;
26. e nestas regiões todas, entre nós e vós estabeleceu-se imenso abismo, de tal forma que
os que querem passar daqui para vós, não podem, nem os de lá passar para nós" .
27. Ele disse: "Peço-te, então, ó Pai, que o envies à casa de meu pai,
28. porque tenho cinco irmãos; de modo que os avise, para que também eles não venham
a este lugar de provação".
29. Mas disse Abraão: "Eles têm Moisés e os profetas: que os ouçam".
30. Retrucou ele: "Não, Pai Abraão, mas se alguém dentre os mortos for a eles, mudarão
a mente".
31. Respondeu Abraão: "Se não ouvem Moisés e os profetas, mesmo se se levante alguém
dentre os mortos, não se persuadirão".

Aqui deparamos outra parábola com ensinos seguros a respeito do plano astral, como consequência
imediata da vida neste plano terráqueo. Temos a impressão, por isso, de que as duas foram narradas
seguidamente, pois havendo falado nas “casas” (vers. 4) "deste eon" (vers. 8) e nas "tendas do (outro)
eon" (vers. 9), era interessante, e até conveniente, que o ensino prosseguisse no esclarecimento das
realidades ocorrentes em uma e outra “localização" das criaturas.
Alguns "pais da igreja" julgaram tratar-se de fato verídico, como se depreende da versão copta saídica
e de um escólio do grego, que dão o nome de Níneve ao rico, denominado Píneas por Prisciliano
("Tractatus" IX) e pelo pseudo-Cipriano ("De Pascha Comp.", 17). A dedução é feita em virtude de
constar o nome Lázaro, pois não é da técnica parabólica a citação de nomes próprios. No entanto, justi-
fica-se o aparecimento do nome, já que não poderia mais designar-se por "o mendigo", quando este
tivesse chegado à nova situação "no seio de Abraão".
Destaca o ensino, o contraste entre a grande riqueza e a extrema miserabilidade. O manto de púrpura e
as túnicas de linho fino (byssos) eram a roupa normal dos grandes ricos da época. E o "banquetear-se
alegremente" (euphraínô ) confirma o padrão elevado de vida.

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Figura “ LÁZARO E O RICO” – Desenho de G. Doré, gravura de ª Bertrand

Ao lado disso, aparece o pobre, com o nome apropriado de Lázaro (diminutivo de Eleazar, que signifi-
ca "Deus ajuda"). Descrito como "mendigo" (ptôchós) que, além de nada possuir, se achava coberto de
chagas (eílkôménos) e permanecia deitado, sem poder movimentar-se, de tal forma que nem conseguia
afastar os cães que lhe vinham lamber as úlceras.
O verbo bállô, no mais que perfeito passivo, de sentido continuativo (ebéblêto) indica que ali "fora
deitado" e ali continuava sem de lá sair. E disso deduzimos que, quando ele "desejava saciar-se com a
sobra da mesa do rico", ele o conseguia. Não fora assim, teria buscado outro local. Não corresponde,
pois, à realidade o acréscimo da Vulgata Clementina: et nemo illi dabat ("e ninguém lho dava"), sem
nenhum apoio nos códices gregos. Provavelmente foi para aí trazido da parábola do "filho pródigo"
(Luc. 15:16). Portanto, embora não cuidado com amor, era diariamente alimentado pela criadagem do
rico que, por isso, se sente encorajado a pedir de Abraão que permita que Lázaro lhe retribua os pe-

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quenos favores prestados. Preferimos, na tradução, "o que sobrava da mesa do rico" (tõn piptóntôn apò
tes trapézês tou plousíou), à precisão "as migalhas" (tõn psichíôn) que caíam, expressão que aparece
em numerosos manuscritos. No entanto, os mais antigos e mais seguros omitem-na (papiro 75, Sinaíti-
co, Vaticano, Régio, versões itálicas e coptas saídica e boaídica, e os "pais" Clemente, Adamâncio,
Ambrósio e Gaudêncio).
Lázaro, afinal, larga seu corpo chagado e é conduzido pelos espíritos protetores ao "seio de Abraão".
Mais tarde também o rico abandona o corpo nédio, que é sepultado com as honras de praxe. Aqui tam-
bém a Vulgata trouxe, por paralelismo, o início do vers. 23 para o final do vers. 22, sublinhando a opo-
sição entre "o pobre no seio de Abraão" e "o rico sepultado no inferno". Mas não há justificativa em
nenhum original grego. Inclusive o tratamento trocado entre Abraão, que chama o rico de "filho"
(tékna) e este que a ele se dirige respeitosamente como "pai", demonstra que o rico não estava no "in-
ferno".
A crença israelita da época dizia que todos os desencarnados se localizavam num só sítio, o cheol (em
grego hades, que é o termo aqui empregado), que se dividia em vários planos, pois lá se encontravam
bons e maus, santos e criminosos, patriarcas e ladrões e todos se viam e podiam comunicar-se. Não
era, portanto, em absoluto, a idéia de "céu" e "inferno" que posteriormente se formou em muitas seitas
cristãs. A expressão "seio de Abraão", isto é, "regaço de Abraão" era o plano mais elevado, dirigido
pelo patriarca fundador e "pai" de todos os israelitas. Mas não se pense que os espíritos desencarnados
eram literalmente "carregados no colo", pelo velho patriarca ...
Conforme vemos, a descrição feita por Jesus do mundo astral é muito mais conforme aos ensinos espi-
ritistas que a outras teorias: o plano é o mesmo, só existindo, entre os diversos níveis, uma distância
vibratória; elevada e trazendo bem-estar aos que haviam descarregado na vida física, pela catarse, to-
dos os fluidos pesados agregados ao corpo astral; e trazendo sofrimento, por sua vibração baixa e por-
tanto carregada de calor e queimante com o fogo purificador, aos que haviam transcorrido vida viciada
no plano físico.
Permanecendo, pois, no hades, em provação (básanos, o lápis Lydius dos latinos, era uma "pedra de
toque”, com a qual se reconhecia o ouro. Trata-se, portanto, da "experimentação" ou provação a que
são submetidos os desencarnados que necessitam purificar-se) sofria a dor da limpeza pelo fogo purifi-
cador que queima os agregados do corpo astral. É quando levanta os olhos e vê Abraão e, no círculo
por ele governado, o ex-mendigo Lázaro. Lembra-se de que, na Terra, ele o favorecia com os restos de
sua mesa e lhe permitia ficar deitado junto ao portão de sua casa. Suplica, então, que Abraão lhe envie
Lázaro, após mergulhar o dedo na água, a fim de trazer-lhe um pouco de refrigério, pois o que mais o
martiriza é a sede. Pede pouco (uma gota d'água) porque também dera pouco (as sobras apenas).
Responde Abraão a seu "filho" que sofre, explicando-lhe o mecanismo da Lei de causa e efeito. O rico
recebera todas as facilidades, e delas se servira abusivamente, não cogitando de, com ela, servir gene-
rosamente. Agora tinha que suportar a dor da limpeza, para purificar-se e evoluir. No entanto, essa fase
já fora superada por Lázaro, que fizera sua purificação através da mesma dor na vida terrena. Já pron-
to, achava-se agora reconfortado. Ambos tinham que sofrer as mesmas operações. Mas enquanto Láza-
ro as suportara no corpo, o rico preferira aproveitar sua existência em gozos e prazeres, adiando a lim-
peza para o plano astral - Tivesse, pois, paciência.
Completando a ilustração, explica-lhe que "'em todas aquelas regiões" (en pãsi toútois) há verdadeiros
abismos vibratórios entre um plano e outro, tirando qualquer possibilidade de transitar-se de um a ou-
tro: o rádio de onda longa não tem possibilidade de sintonizar a onda curta, nem vice-versa; há entre as
duas frequências. verdadeiro abismo.
O rico compreende a lição e conforma-se. Mas, possuidor de bons sentimentos, recorda-se de que dei-
xou encarnados no planeta mais cinco irmãos, que moram com seu pai. E preocupa-se com o futuro
estado deles. Se a dificuldade de ele receber o alívio reside na distância vibratória imensa, certamente
esse empecilho não existirá entre o hades e o plano físico. Lázaro não poderia aparecer na casa de seu
pai terreno para avisar a seus irmãos?

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Abraão faz-lhe ver que, na Terra, seus irmãos já receberam toda a elucidação possível da parte de Moi-
sés e dos profetas, cujas obras costumam ouvir lidas aos sábados nas sinagogas. Essa orientação é-lhes
suficiente para dirigir corretamente suas vidas. Mas o rico, que desencarnara havia pouco, lembra-se
bem de que também ele não dera atenção a Moisés e aos profetas: a leitura daqueles textos consistia
simplesmente numa rotina tradicional, sem qualquer influência maior na prática da vida. E se algum
"defunto" aparecesse causaria tamanha sensação, que certamente eles ficariam alertados e acertariam o
rumo de suas existências, pois "mudariam a mente", renovando suas crenças.
Mas Abraão conhece bem a humanidade. E sabe que, mesmo depois de 2.000 anos. ainda continuará
igual: de nada adiantará o aparecimento de "fantasmas", por mais comprovado que seja: todos quase
continuarão descrentes, duvidando de tudo. Não será a aparição de espíritos que os persuadirá (como
até hoje ocorre). Terão que modificar-se de dentro para fora, e não com acontecimentos exteriores, por
mais sensacionais que sejam.

Verificamos, pois, que o rico não é condenado pelo fato de não haver atendido ao pobre - porque,
embora minimamente, ele o atendeu - mas é ensinada, apenas, através do contraste chocante de situa-
ções na terra e no plano astral, a lei de causa e efeito, que age nos dois planos (físico e astral) que são
interligados e interpenetrantes.
A lição é por demais preciosa, sobretudo por vir trazer confirmação de muitas obras espiritualistas
(Antonio Borgia, Francisco Cândido Xavier, Yvonne A. Pereira e muitos outros) que são recusadas
pelas igrejas ortodoxas.

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C. TORRES PASTORINO

TRIGO E JOIO
Mat. 13:24-30
24. Outra parábola lhes propôs (Jesus), dizendo: "Assemelhou-se o reino dos céus a um
homem que semeou boa semente em seu campo.
25. Enquanto, porém, dormiam os homens, veio o inimigo dele e semeou por cima joio,
por entre o trigo, e foi embora.
26. Quando, pois, cresceu a erva e produziu fruto, então apareceu também o joio.
27. Chegando os servos do dono da casa, disseram-lhe: "Senhor, não semeaste boa se-
mente em teu campo? Donde, então, vem o joio"?
28. Ele respondeu-lhes: "um homem inimigo fez isso". Os servos disseram-lhe; "Queres
então que vamos colhê-lo"?
29. Replicou ele: "Não, para que colhendo o joio, não arranqueis juntamente com ele o
trigo;
30. Deixai crescer ambos até a colheita; e na época da colheita direi aos cefeiros: colhei
primeiro o joio e amarrai-o em feixes para queimá-lo; mas o trigo, recolhei-o ao meu
celeiro".

Segue-se outra parábola, esta menos clara, de tal forma que os discípulos, ao chegarem a casa, pediram
uma explicação em particular.
Observe-se que geralmente o verbo é usado no presente: "o reino dos céus é semelhante" (homoía estin
hê basileía tõn ouránõn, cfr. 13:31, 33, 44, 45, etc), e uma vez aparece no futuro: "assemelhar-se-á"
(homoiôthêsetai, 25:1); no entanto aqui é empregado o aoristo: "assemelhou-se" (homoiôthê).
A semeadura é boa, e não há razão para vigilância noturna enquanto as sementes ainda se encontram
sob a terra. E os lavradores aproveitam a noite para dormir. Aproveitando-se da escuridão, alguém
percorre os sulcos recém-semeados de trigo, e lança à terra fofa a semente do joio. Dai Jerônimo (Pa-
trol. Lat. vol. 26 col. 93) avisar aos chefes da igreja que não durmam, para que não se façam semeadu-
ras de heresias entre os fiéis.
O joio (em grego zizánia) é o lolium temulentum de Linneu, planta que apresenta grande semelhança
com o trigo, pois é também uma graminácea, e frutifica em espigas, embora menores e mais magras
que as do trigo. Cereal venenoso, com efeitos de náuseas e embriaguez, por causa do cogumelo mi-
croscópico (Endoconidium Temulentum, de Prillieux e Delacroix), que vive em simbiose com o grão,
logo que ele se forma, como foi comprovado por P. Guérin ("Journal de Botanique", 1898 pág. 230).
Quando se formam as espigas, torna-se fácil distingui-lo do trigo, mas com ele se confunde durante
todo o crescimento (Jerônimo, Patrol. Lat. vol 26, col. 94). Abundante sobretudo no oriente e na Pa-
lestina. O hábito de querer prejudicar alguém plantando sementes nocivas em campos úteis não devia
ser raro, pois foi previsto, no Código Penal de Roma.
Quando os lavradores percebem o fato, indagam do Senhor como terá ocorrido esse desastre. Dada a
explicação e proposta a extirpação do joio, é-lhes ordenado aguardar a colheita, quando o trigo, cres-
cendo mais alto, será mais fácil de distinguir. Será então colhido o joio junto com a palha e queimado,
e o trigo será recolhido ao celeiro (1).
(1) Como curiosidade anotemos o correspondente grego de "celeiro": apothêke, que etimologicamente
significa "caixa, cofre" (thêka) "debaixo” (apó), e designava geralmente a adega, onde se guarda-

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SABEDORIA DO EVANGELHO

vam os vinhos. Essa palavra passou diretamente do grego ao português, masculinizando-se apo-
thêke - boteco, donde saiu o diminutivo botequim.

O segundo comentário será feito junto com o do capítulo seguinte.

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C. TORRES PASTORINO

EXPLICAÇÃO DA PARÁBOLA
Mat. 13:36-43
36. Tendo, então, deixado as turbas, veio para casa. E, aproximando-se dele seus discí-
pulos, disseram: "Explica-nos a parábola do joio do campo".
37. Respondendo, disse: "O semeador da boa semente é o Filho do Homem.
38. O campo é o mundo; a boa semente são os filhos do reino; o joio são os filhos do mal;
39. o inimigo que o semeou é o adversário; a colheita é o término do eon; os ceifeiros são
os espíritos (mensageiros).
40. Então, como é colhido o joio e queimado no fogo, assim será no término do eon:
41. enviará o Filho do Homem seus mensageiros e recolherão de seu reino todas as pedras
de tropeço e os que agem ilegalmente,
42. e os lançarão na fornalha de fogo; aí haverá choro e ranger de dentes.
43. Então os justos brilharão como o sol no reino do Pai deles. Quem tem ouvidos, ouça".

Mais uma vez o Mestre explica a parábola aos "discípulos", em particular, depois que chegaram a casa.
O uso de parábolas no ensino iniciático, quando dado ao povo, era comum desde a antiguidade. O
Salmo (78:2) de Asaph, que conforme 2.º Crôn. (28:30) era profeta, já dizia: "abrirei minha boca em
parábolas, narrar-lhes-ei os mistérios ocultos desde a fundação do mundo". Jerônimo (Patrol. Lat. vol.
26, col. 93) afirmava que os acontecimentos da história bíblica no Antigo Testamento deviam enten-
der-se parabólice, isto é, alegoricamente.
Vemos, assim, que Jesus se serve do mesmo estilo dos antigos profetas hebreus. E aqui mesmo dá a
explicação alegórica desta parábola.
ALEGORIA - Uma alegoria pode ser explicada por três processos:
1 - Equação ou aplicação direta, em que cada palavra tem seu próprio significado;
2 - Por substituição, quando as figuras são substituídas pela realidade;
3 - Por comparação, como nas parábolas simples.
Nesta explicação, como anota Pirot, o Mestre utiliza simultaneamente os três processos. Trata-se, por-
tanto, de um paradigma de interpretação parabólica. Encontramos, por exemplo:
1.º - Equação: “o campo é o mundo"; "a boa semente são os filhos do reino", etc .
2.º - Substituição: "O Filho do Homem enviará seus mensageiros";
3.º - Comparação: "Assim como é colhido o joio e queimado no fogo, assim será no término do eon".
Analisemos os termos.
"O Semeador é o Filho do Homem", ou seja, aquele que já atingiu a superação do estágio hominal.
"O campo é o mundo" (kósmos), isto é, todo o planeta, não apenas determinada região nem raça.
"A boa semente são os filhos do reino", ou seja, aqueles que, em sua vida interna e externa, seguem os
preceitos do Espírito, filiando-se às Escolas ou independentes.
"O joio são os filhos do mal". Aqui o genitivo poneroú pode ser do substantivo ponerón (o "mal") ou
do adjetivo ponerós, (o "mau"). O comum das interpretações traz "o mau", referindo-se ao "diabo",

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citado no vers. 39. Ora, assim teríamos que as criaturas podiam provir de duas origens: ou "filhos de
Deus" ou "filhos do diabo". Dois criadores. Dois princípios autônomos e poderosos. Não podemos
aceitar essa interpretação. Resta-nos, pois, considerar o genitivo poneroú como do substantivo, e com-
preender "filhos do mal", isto é, da matéria. Temos, então, que o Criador é um só, o Pai, que dá origem
aos Espíritos; estes, ao mergulhar na matéria, que é o mal (cfr. vol. 2) tornam-se "filhos do mal", isto é,
sujeitos à matéria. Então, o semeador do joio é o "adversário" (diábolos, acusador, adversário) ou seja,
o baixamento de vibrações e sua condensação.
"A colheita é o término do eon", isto é, do presente ciclo evolutivo, e não do "fim do mundo".
"Os ceifeiros são os espíritos" (mensageiros), os chamados "anjos". Espíritos bons, sem corpo físico ou
com ele, que se dedicam a cumprir, como "Mensageiros", a Vontade do Pai. Estes, no corpo físico ou
fora dele, estão encarregados de fazer a triagem (em grego krisis, que geralmente é traduzido mal
como "julgamento") dos bons e dos maus, daqueles que seguem já o caminho evolutivo, embora ainda
apresentem alguns defeitos, e daqueles que voluntariamente se opõem à evolução.
A separação será feita "no fim do ciclo". Na Terra permanecerão os "filhos do reino", enquanto os "fi-
lhos do mal", os substancialmente maus, dela serão afastados para a "fornalha de fogo inextinguível",
em outro planeta, porque "meus escolhidos herdarão a Terra, e meus servos habitarão nela" – (Is.
65:9).
Constitui este versículo uma das provas, para certas seitas, da "eternidade" do fogo do inferno. Não há
a menor razão para isso. O "fogo inextinguível", segundo Emmanuel, é o fogo do Amor Divino, que
faz que todos se purifiquem de seus erros. Nós diríamos, o "fogo do carma", que não se apaga en-
quanto a catarse não estiver terminada, e esse fogo causa "choro e ranger de dentes" em todos os que a
eles estão sujeitos. Essa expressão aparece em Mat. 8:12; 13:50; 22:13; 24:51; 25:30; Luc. 13:28.
Já os justos (aqui não se fala nem dos profetas nem dos discípulos) os simples "justos" brilharão como
o sol, na comparação de Daniel (12:3), ou seja, expandirão luz sobre todos o João Crisóstomo (Patrol.
Gr. vol. 58 col. 475) afirma ter Jesus apresentado essa parábola, a fim de evitar que, no futuro, as co-
munidades cristãs se perturbassem diante dos maus elementos que contra ela agiriam. De qualquer
forma, não há outro remédio: a convivência de bons e maus é inevitável. Resta aproveitar o máximo de
bem que se possa extrair dos maus, "exercitando-os no bem", como escreveu Tomás de Aquino. Agos-
tinho (Patrol. Lat. vol. 30, colo 1371) também diz que "os maus exercitam a paciência dos bons, e que
estes se esforçam por trazê-los ao bem". Por isso Jerônimo (Patrol. Lat. vol. 260 col. 93) aconselha: ne
cito amputemus fratrem, ou seja, "não cortemos depressa um irmão".
A separação só ocorrerá no fim do ciclo (do eon).
João Crisóstomo, ao aplicar a parábola aos "herejes", diz que "é permitido reprimi-los, fechar-lhes a
boca, tirar-lhes a liberdade de palavra, dissolver suas assembléias, rescindir seus contratos, mas é proi-
bido matá-los" (Patrol. Lat. vol. 33, col. 477) , lição de que a "Inquisição" não tomou conhecimento:
preferiu a opinião de Agostinho, quando já no fim da vida escreveu que "a violência não deixa de pro-
duzir bons resultados" (Patrol. Lat. vol. 33, col. 321); e a de Tomás de Aquino que autorizou a violên-
cia, embora "usada com discrição" (Ópera, vol. 10, pág. 131); e sobretudo a do jesuíta Maldonado,
frontalmente oposta à de Jesus, pois escreveu: quid opus est messem exspectare? mature evellenda
sunto mature comburenda sunt, ou seja, "por que é preciso esperar a colheita? Devem ser logo arran-
cados, devem ser logo queimados" (Commentarii in Quattuor Evangelistis, pág. 277).
Quem escreveu essas linhas se diz cristão e não é julgado "hereje", por contradizer taxativamente o
Mestre. E muitos preferiram seguir Maldonado, a seguir Jesus ... apesar de se dizerem "representantes
oficiais e exclusivos de Jesus na Terra”!

Encontramos aqui a interpretação alegórica externa, que o próprio Mestre Jesus deu da parábola do
trigo e do joio, ensinando a Seus discípulos como fazer para interpretar todas as demais parábolas
diante do público que deixara de ser "profano" para ser "catecúmeno".

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C. TORRES PASTORINO

Agora, à distância de dois milênios, outras interpretações já podem ser dadas; acreditamos que, mes-
mo àquela época, em particular aos discípulos, e sem autorização para divulgar, já tivessem sido en-
sinados outros modos de entendê-las.
A primeira versão que nos ocorre é a compreensão do homem em si mesmo. Cada criatura é consti-
tuída do "trigo" do Espírito (Individualidade) e do "joio" do quaternário inferior (personagem).
A palavra "semear" (speírô) nesse sentido de "nascer, surgir" é usada por Paulo: "semeia-se em cor-
rupção, é ressuscitado em incorrupção; semeia-se em vileza, é ressuscitado em glória; semeia-se em
fraqueza, é ressuscitado em poder; semeia-se corpo animal, é ressuscitado corpo espiritual" (l.ª cor.
15:42-44). Então, "semear" é utilizado como significando a formação do corpo físico, da personagem;
e o verbo ressuscitar ou levantar-se (anístêmi) para exprimir a libertação do Espírito do quaternário
inferior. A interpretação, portanto, tem base escriturística.
Ora, criado ou semeado o Espírito, o "inimigo" (isto é, a vibração material) semeia a personagem,
que vai perturbar o crescimento desse Espírito, entravando-o como se lhe fora real inimigo. A pro-
posta de "arrancar de imediato" o joio (destruir os veículos inferiores) para favorecer o crescimento
do Espírito é inviável: a própria evolução do ser vai depender do atrita com sua personagem rebelde.
Mister portanto que se deixem ambos crescer juntos até a colheita (o final do eon), quando então
aqueles que tiverem superado a inferioridade do polo negativo poderão "brilhar como o sol"; ao pas-
so que os que permaneceram estacionários no Anti-sistema, serão "lançados nas chamas inextinguí-
veis" da correção e purificação cármicas, a fim de prosseguir sua evolução em outros planetas.
Outra justificativa desse modo de ver transparece do próprio texto parabólico, quando se diz que "a
boa semente são os filhos do reino, e o joio são os filhos do mal", designando-se com isso a individua-
lidade e a personagem, que representa o mal para o Espírito. Daí o último pedido do "Pai Nosso" ser
exatamente esse: "liberta-nos do mal", isto é, da matéria.
Para a Escola iniciática apresenta-se bastante clara a interpretação. Os emissários (apóstolos) e to-
dos os que atingiram o grau de Filho do Homem na escala iniciática superior, são semeadores da boa
doutrina, exemplificadores de atos corretos, diretores de consciências, instrutores dos discípulos que
lhes seguem os passos. Ora, o próprio Mestre Jesus não se livrou de ter entre seus mais íntimos, um
traidor. Assim, somos avisados, pela parábola e pelo exemplo do Mestre, que, entre aqueles que nos
seguem, há de tudo: trigo e joio.
Não devem, pois, os encarregados de ensinar, entristecer nem julgar-se fracassados porque, entre a
semente que lançaram, venha a ser semeado o joio das más interpretações, da discórdia, da ambição
do mando, do desejo de desviar a Escola do caminho traçado, tornando-se joguete de vaidades pesso-
ais e busca de grandezas financeiras, exibicionismo, etc. Sempre haverá, nos melhores ambientes, o
joio que se misturará ao trigo, penetrando nos recintos mais sagrados e recônditos (como na "Assem-
bléia do Caminho"), com o fito de destruir a obra benéfica em benefício próprio. Os homens tornam-
se, então, simples marionetas insconscientes nas mãos das forças do mal. Não haja pânico. Ação se-
gura e firme em todos os momentos, é a ordem. Não afrouxar as rédeas, embora jamais se deva tentar
arrancar o joio, como Jesus também não expulsou Judas do Colégio Apostólico, apesar de saber de
antemão o que estava para suceder. Os elementos que não se afinarem sairão por seus próprios pés
no momento exato em que devem sair. Os mensageiros (Espíritos bons) se encarregam de "recolher
todas as pedras de tropeço e os que agem ilegalmente", afastando-os do convívio das obras, para que
estas não se desviem da rota traçada. A "Assembléia do Caminho" não sofreu abalo ao perder o con-
curso de Judas. Assim prosseguirão seu curso normal as obras que estiverem realmente ligadas às
forças Superiores.
O momento da colheita poderá chegar individualmente para cada criatura. Nessa hora crítica dá-se a
separação do joio, que será afastado e, ligado "em feixes" (em conjunto com outros elementos que
com eles sintonizem) será lançado à fornalha de fogo das provações espirituais, onde "o choro e o
ranger de dentes" os farão ver o erro cometido, incentivando-os a humildemente voltar ao caminho
certo. Se houver humildade verdadeira, regressarão à "Casa Paterna" e prosseguirão na felicidade do
lar espiritual a participar do banquete eucarístico. Mas se o orgulho e a vaidade predominarem, só

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SABEDORIA DO EVANGELHO

em outras vidas, e depois de passar pelo fogo da dor, receberão novas oportunidades, porque o Amor
do Pai é incomensurável, ilimitado, infinito, eterno, e a “Hora do Encontro" soará para todos.
Não nos esqueçamos, porém, de que essa separação será feita automaticamente, pelo princípio da
frequência vibratória, sendo atraído cada espírito para o ambiente de acordo com sua sintonia íntima
(tal como, em nossos rádios, selecionamos as estações, recebendo-as conforme sintonizamos o "dial").

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C. TORRES PASTORINO

ESCÂNDALOS

Mat. 18:6-10 Marc. 9:42-48 Luc.17:1-2

6. 'Quem fizer cair um destes 42. 'E quem quer que faça cair 1. Disse Jesus a seus discípu-
pequenos que crêem em um destes pequenos que los: "É inevitável que ve-
mim, mais lhe conviria que crêem em mim, seria me- nham escândalos, mas ai
suspendesse uma mó (de lhor se pendurasse uma mó daquele por quem venham:
burro) em torno do pescoço (de burro) em torno do 2. ser-lhe-ia mais útil se
dele e se submergisse na pescoço dele e se lançasse amarrasse a seu pescoço
profundeza do mar. no mar. uma pedra de moinho, e se
7. Ai do mundo, por causa 43. E se tua mão te faz cair, lançasse no mar, que fazer
dos escândalos, porque é corta-a; melhor te é entra- cair um destes pequenos".
fatal que os escândalos ve- res manco na vida que,
nham; mas ai do homem tendo duas mãos, saires
por quem vem o escândalo. para a geena, para o fogo
inextinguível.
8. Se tua mão ou teu pé te
fazem cair, corta-os e lan- 45. E se teu pé te faz cair, cor-
ça-os de ti: melhor é para ti ta-o; melhor te é entrares
entrares na vida manco ou coxo na vida que, tendo
coxo que, tendo duas mãos dois pés, seres lançado na
ou dois pés, seres lançado geena.
no fogo do eon. 47. E se teu olho te faz cair,
9. E se teu olho te faz cair, arranca-o; melhor te é en-
extrai-o e lança-o de ti; trares com um só olho no
melhor te é entrares na reino dos céus que, tendo
vida com um só olho, do dois olhos, seres lançado na
que, tendo dois, seres lan- geena,
çado na geena de fogo. 48. onde o verme deles não
10. Vede não desprezeis um morre e o fogo não se exti-
destes pequeninos, pois vos gue'.
digo que os Espíritos deles,
nos céus, incessantemente
vêem a face de meu Pai nos
céus".

Antes de passarmos à análise do texto, examinemos alguns vocábulos. Os moinhos (rêhhajm) eram de
dois tipos: o leve (portátil) chamados "moinhos de homem (rêhhaim shel'adâm) e os pesados, denomi-
nados “moinhos de burro" (rêhhaim shel hamôr), porque essa alimária era utilizada para fazer girar a
pedra móvel (a que chamamos mó) ou "cavaleiro" (rekhebh), que pisava o grão rodando sobre a outra
pedra de baixo (petah tahtith), também dita "que dormia" (shakkâbh).
Os gregos também distinguiam o moinho a mão (cheiromylé, cfr. Êx. 11:5; Juizes 9:53 e Mat. 24:47) e
moinhos de burro (epimylion). A mó deste segundo era dita líthos mylikós.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Os romanos os conheciam, bastando lembrar Ovídio: pumíceas versat asella molles (Fastos, 6, 318),
isto é: "a burrica gira as mós de pedra-pomes".
A figura "pendurar uma mó ao pescoço" aparece em Qidduchin 29-b, quando o Rabbi Jochanan diz:
"casar-se e depois estudar a Lei, é condenar-se a estudá-la com uma mó no pescoço".
Quanto a lançar ao mar alguém com um peso, diz Suetônio (Augustus,67) que foi suplício usado: one-
ratos gravi póndere cervícibus praecipitavit in flumen, ou seja: "precipitou (-os) no rio, carregados
com grande peso nos pescoços".
Entre os israelitas, porém, o afogamento era suplício inaceitável, porque privava a vítima de sepultura.

ESCÂNDALO
Muitas vezes aparece em o Novo Testamento a palavra "escândalo" (grego skándalon), que literal-
mente significa "pedra de tropeço” ou “armadilha para fazer alguém cair". Assim também o verbo
skandalízein que é "provocar a queda" (escandalizar).
Pelas frases "escandalizar os pequenos" e pelas ações, certificamo-nos de que se trata de palavras ou
ações que "desviam do rumo certo" (em grego hamartánô, em latim peccare, este composto precisa-
mente de pés, “pé", e cádere, "cair", dando a idéia de "tropeço" que provoca a queda).
O exemplo de Paulo é totalmente esclarecedor. Vejamos:
1) aos romanos: "Sei e estou persuadido no Senhor, de que nenhuma coisa é, em si, impura (a não ser
para aquele que a tem como tal) ... Bom é não comer carne, nem beber vinho, nem fazer alguma
coisa em que teu irmão se escandalize" (Rom. 14:14, 21).
2) aos coríntios: "Quanto ao comer as carnes sacrificadas aos ídolos, sabemos que um ídolo nada é no
mundo ... A comida, porém, não nos recomendará a Deus : não somos piores se não comermos
nem melhores se comermos. Mas vede que essa liberdade vossa não venha de alguma forma a ser
pedra de tropeço para os fracos ... Por isso, se a comida serve de pedra de tropeço a meu irmão,
jamais comerei carne, para que eu não sirva de pedra de tropeço para meu irmão" (l.ª Cor. 8:4, 8,
13).
Compreendemos, então, que essa "pedra de tropeço" ou esse “escândalo" não é somente o ver e admi-
rar-se: é o afrouxar a vigilância e imitar o ato, embora a consciência do escandalizado o condene por
isso. O que torna má e prejudicial uma ação, não é a ação em si, mas o que nossa consciência o julga.
Se sabemos que beber cerveja não constitui "pecado", mas o vizinho ao lado julga que o seja, diante
dele procuraremos evitar esse ato, pois ele poderia ser levado a imitar-nos e a ficar com a consciência
pesada, criando a vibração do remorso, que atrairia infalivelmente o carma negativo. O sofrimento que,
por esse fato, lhe adviesse, seria causado por nós; e, como co-responsáveis, também sofreríamos. E
quiçá mais do que pudéssemos supor, pois responderíamos por todas as consequências decorrentes de
um ato que talvez, para nós, não tivesse representado nada ou quase nada.
Estamos dando exemplos de coisas pequenas, de somenos importância, mas sabemos todos que há
coisas muito mais graves, cujo remorso pode provocar carmas negativos que necessitem duas ou mais
encarnações para serem queimados. Quanto mal, quanto atraso podemos causar a companheiros de
jornada terrena, se não tivermos a delicadeza de "sentir" o que podemos ou não fazer e dizer perante
eles!
Esse é o escândalo, o tropeço, que é fatal ocorrer. Mas, ai daquele que for o causador: receberá pelo
"choque de retorno" toda a carga que tiver jogado sobre os ombros dos irmãos ou irmãs.
O "escândalo" ou "pedra de tropeço", consiste, também, em desviar irmãos “menores" (em evolução,
em inteligência, em conhecimentos) do caminho certo, influindo para que se afastem de grupos onde
se acham bem; ou para que abandonem a religião que lhes fala à alma. Daí o erro do proselitismo: cada
um deve modificar seu modo de pensar de dentro para fora, quando chegar a necessidade íntima, e não
por influências e pregações externas.

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Vejamos agora a tradução corrente, que diz: "é necessário que o escândalo venha". Não pode essa tra-
dução, na verdade, ser taxada de errada, mas corresponde muito mais ao grego anágkê o português
"fatal" ou "inevitável". Cremos não ser preciso demonstrar a diferença entre "é necessário" e "é inevi-
tável".
Jerônimo já descobrira a traição ao original, quando escreveu que "se fosse necessário o escândalo, não
haveria culpa da parte de quem o ocasionasse; mas, ao contrário, cada um por sua culpa faz cair"
(unusquisque suo vitio scándalis patet, Patrol. Lat. vol. 26, col. 129). A expressão de Lucas
anéndekton estin confirma nossa asserção: "é inevitável".
Em Sua vida terrena, Jesus evitava escandalizar, como, por exemplo, no caso da didracma (cfr. Mat.
17:24-27; vol. 3). E Paulo refere-se ao escândalo em Rom. 14:21; 1.ª Cor. 8:13 e 2.ª Cor. 11:29).
Examinemos, agora, o enfático conselho que, comparativamente, é dado: seria melhor o suicídio por
afogamento, que a provocação do escândalo.
A razão salta aos olhos: o suicídio traz sofrimento bárbaro, do qual só nós responderemos perante a
Lei, sofrendo-lhe pessoalmente as consequências dolorosas. O escândalo, que induz ao mal, na arma-
dilha que preparamos, escondendo um perigo (portanto intencionalmente, cfr. Sab. 14:11) traz resulta-
dos danosos aos outros, multiplicando nossa responsabilidade pelo número de pessoas que desviamos
do caminho com o nosso exemplo ou as nossas palavras. E sofreremos a dor de nosso erro e do carma
dos erros de todos os que fizemos sair da estrada certa, numa reação em cadeia incalculável e imprevi-
sível. A ignorância poderá atenuar; mas o peso será total se o fizermos conscientes, quer motivados por
espírito de maldade, só para prejudicar, quer levados por orgulho ou pela vaidade ferida.
Examinando, agora, as três comparações da amputação da mão, do pé e da extração do olho (Mateus,
que aqui evidentemente resume Marcos, engloba os dois primeiros num só versículo) , vemos o que
significa a comparação com o suicídio.
Não se trata da amputação física do corpo material-denso, cortando os membros que nos atrapalham a
evolução. Assim o entendeu Orígenes, o grande escritor cristão grego; mas entendeu mal, e por isso a
igreja, ainda à sua época, o condenou. Sendo ele vítima de fortes apelos sexuais, resolveu, baseado
neste texto, e naquele outro que fala dos "que se tornam eunucos por causa do reino dos céus" (Mat.
19:12) fazer-se castrar fisicamente, amputando aquilo que o levava à queda em sua opinião. Opinião
errada, porque não é o físico, mas o espírito que causa essas perturbações.
No entanto, a simples leitura atenta do texto demonstra que essas amputações são realizadas no corpo
astral, antes da encarnação. Com efeito, "é melhor entrar NA VIDA" - isto é, na vida FÍSICA da maté-
ria densa – coxo, manco ou cego de um olho, que nascer aqui perfeito e ser lançado na "geena" dos
vícios e das lutas, que tanto nos fazem sofrer. Sim, porque ninguém poderia supor que essa "vida" de
que fala Jesus, se referia ao "céu". Que adiantaria ficar nesse céu mitológico na condição de coxo, de
cego ou de manco, se: 1.º lá não haveria mais perigo de cair; 2.º lá tudo é perfeito; 3.º se lá não se pro-
duzem mais escândalos?

PROVA DA REENCARNAÇÃO
Este trecho constitui uma das mais insofismáveis provas de que Jesus, pelos próprios textos evangéli-
cos, aceitava a doutrina da reencarnação. De que a reencarnação era ensinada clara e categoricamente.
Não sabemos por que os adeptos do Espiritismo e das doutrinas reencarnacionistas só costumam evo-
car as provas de Nicodemos e de Elias-Batista, e deixam de lado esta preciosidade.
Essas palavras evangélicas explicam incontestavelmente a questão dos nascimentos diferentes: a razão
das crianças que nascem aleijadas, cegas, surdas, ou com qualquer deficiência, enquanto outras surgem
no planeta, perfeitas e saudáveis.
Dá-nos ainda a compreender que, se algumas crianças nascem aleijadas por motivo de carmas negati-
vos, outras assim renascem, por escolha pessoal, antes da encarnação, a fim de evitar quedas sucessi-
vas ou retardamentos prejudiciais na evolução; então voluntariamente interrompem o caminho do erro

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SABEDORIA DO EVANGELHO

e enveredam pela senda do auto-aperfeiçoamento, sentindo-se privadas, na vida da carne, daqueles


órgãos que constituíram sua desgraça no passado.
Quanto ao fogo inextinguível, já o estudamos no capitulo anterior.
No vers. 10 de Mateus, lemos que "os Espíritos dos pequenos vêem incessantemente a face do Pai nos
céus". Isso contradizia a crença israelita da época, que só admitia que tivessem a “visão beatífica" os
Anjos Superiores. A expressão "ver a face" equivale a "estar na presença" e permanecer unido ao Pai.
Mas aceitavam plenamente a doutrina dos "anjos de guarda". Acreditavam firmemente que cada crian-
ça entrava na vida acompanhado por um Espirito bom, encarregado de ajudá-la, e também por um es-
pírito mau, sempre pronto a derrubá-la.
Também entre os cristãos a crença no anjo de guarda é antiga. Jerônimo escreveu: magna dígnitas
animarum, ut unaquaeque habeat ab ortu nativitatis, in custodiam sui, angelum delegatum, isto é,
"grande é a dignidade das almas, para que cada uma tenha desde o nascimento, um anjo delegado para
sua guarda" (Patrol. Lat. vol. 26, pág. 130).

Várias considerações há que fazer, em pesquisa mais apurada, além das que já foram aduzidas. Inici-
almente, é mister insistir no ensinamento verdadeiro do trecho.
Sabemos que os evangelistas reproduziram, em anotações rápidas e fragmentárias, os ensinos de
Jesus e as palavras do Cristo através Dele. para que não fossem esquecidos nem distorcidos pelos
futuros membros da Escola Iniciática "Assembléia do Caminho", sobretudo por parte dos encarrega-
dos da explicação da doutrina.
Dessa forma, destinavam-se os Evangelhos à memorização Ensinos especializa dos para os irmãos
(adelphós): assim eram denominados os que se filiavam à Irmandade da Escola. Só entre eles era
usado o título de irmão. E os autores dos escritos inspirados bem o sabiam, classificando os compa-
nheiros como irmãos ou santos (sadios, purificados).
Sabiam, também, o que significavam as expressões "pequenos", "pequeninos” ou "crianças, crianci-
nhas": eram aqueles que estavam pretendendo ingresso ou começando a frequentar as reuniões ainda
exotéricas, os “infantes” espirituais. Assim como "cachorrinhos" ou “cães" eram os profanos, total-
mente afastados do espiritualismo. Quando um "desses pequeninos" era aceito e inscrito nos primei-
ros cursos da Escola, recebia o nome de "catecúmeno”.
Não foram escritos, pois, os Evangelhos, com endereço popular, com destino a profanos daquela épo-
ca. Essa intenção básica refletiu-se durante séculos na igreja romana, que reservava a leitura e o es-
tudo evangélico apenas aos "clérigos". Quando a humanidade, muito mais tarde, conquistou a matu-
ridade que a tornou apta a compreender os textos, veio à Terra o grande missionário Lutero, com a
tarefa específica de vulgarizar os Evangelhos entre o grande público.
Mas os escritores sabiam que as anotações que registravam nos papiros e pergaminhos poderiam cair
(e caíram mesmo) em mãos profanas, sem qualquer condição, nem moral nem intelectual, de penetrar-
lhes a profundidade do ensino. Daí a necessidade absoluta de transmitir o ensino verdadeiro mas de
forma velada ("não deis coisas santas aos cães nem pérolas aos porcos", Mat 7:6). Essa forma alegó-
rica e simbólica seria entendida apenas pelos possuidores das "chaves de decifração". Quem conhecia
o "segredo do cofre", poderia abri-lo a qualquer momento.
Doutro lado, só os fatos essenciais, cuja interpretação pudesse servir de ensino, é que foram anota-
dos. Não havia necessidade, nem convinha, que se lançasse na publicidade incontrolada do papel, um
"tratado" completo. Aos que haviam cursado a Escola, bastariam pontos essenciais acenados, quer
sob forma parabólica ditada por Jesus, quer sob o disfarce de falas e exemplos, quer sob a forma ale-
górica ou simbólica de ensinos rápidos, em que o essencial era resumido, apenas como esquema
mnemônico.
Outra vantagem havia nessa maneira de expor assuntos capitais para a evolução, mas perigosos como
armas de dois gumes para os que não houvessem conquistado o direito de acesso ao santuário: ao

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C. TORRES PASTORINO

cair entre mãos profanas, as palavras seriam entendidas segundo seu sentido corrente vulgar, e isso
permitiria que, mesmo com o obscurantismo que sucederia na era Pisces, o ensino pudesse ser apro-
veitado em sua forma material, acessível às mentalidades pouco espiritualizadas da massa ignara.
Obra de suma responsabilidade, reveladora da profunda psicologia de seus autores. Como escreveu
Renan, em outras palavras, “negar a genialidade de Jesus acarretaria dificuldade muito maior: a de
admitir a genialidade dos quatro evangelistas”.
Com a natural evolução da humanidade, chegaríamos a compreender o sentido real e profundo dos
ensinos evangélicos. Questão de tempo e de ascensão espiritual dos homens. A obra foi confiada aos
pergaminhos. A semente foi plantada. Os frutos chegariam no tempo devido.
*
* *
A lição que aqui se acha oculta sob a frase chocante, de que era preferível o suicídio ao "escândalo" é
dirigida particularmente aos encarregados do ensino nas Escolas. Para o vulgo, ela assusta e faz
evitar as ações erradas que possam fazer cair os companheiros fracos.
Mas aos que seguem a carreira do mestrado, ela admoesta que um ensino errado - quer provocado
por estudo desidioso que não chega a quebrar a capa da ignorância, quer por improvisação de con-
ceitos (dado que a vaidade não deixa confessar a insciência) - equivale a um suicídio da pior espécie.
Quem, ao exaltar-se na cátedra, arrasta os "pequenos” de compreensão e os de boa-fé a acreditar
nele, pessoa humana, que se constitui ídolo vivo, intitulando-se "mestre" em busca de gloríolas, arca
com responsabilidade tão imensa, que chega a equivaler a um suicídio moral.
Quem ensina, por falta de conhecimento ou, pior ainda, de sinceridade, a ir em busca de um Deus
externo e mau, severo e vingativo, inconstante e, volúvel que, mesmo exigindo dos homens que perdo-
em “setenta vezes sete", ele mesmo não perdoa e lança seus "filhos" num inferno eterno, é tão culpado
perante a Lei como se cometesse um suicídio.
Quem distorce as verdades evangélicas, interpretando-lhes as palavras para apoiar suas idéias (e não
no sentido real), por vezes até opostas ao ensino de Jesus, está de fato preparando armadilhas para
que os pequenos retardem sua evolução. Seu sofrimento será maior que o do suicídio, na vida fora da
matéria.
Todos esses tipos de "escândalos" são inevitáveis que ocorram, em vista do atraso dos homens, imbuí-
dos de vaidade ignorante e de presunção orgulhosa.
Entretanto, melhor seria se se apresentassem diante dos homens com sincera honestidade: coxo ou
manco de conhecimento ou meio cego de compreensão, e humildemente confessassem sua ignorância
do assunto, sem a vaidade de "saber tudo". Muito melhor que arcar com a responsabilidade de um
ensino errôneo ou personalístico. O carma negativo que se colhe quando se age mal - sobretudo
quando é conscientemente - é terrível, porque "o verme do remorso não morre e o fogo da consciência
não se extingue".
No vers. 47 de Marcos, a expressão "entrar na vida" é substituída por "entrar no reino de Deus". Com
efeito, quem não ensina certo não tem possibilidade de realizar, na Terra, a união divina, sintonizan-
do com o Pai.
O vers. 10 de Mateus, que avisa: "não desprezeis um destes pequenos, pois vos digo que os Espíritos
deles nos céus, incessantemente vêem a face de meu Pai nos céus", traz a revelação de uma verdade
ainda pouco divulgada.
Todos nós sabemos ser constituídos de uma individualidade que se condensa em personagem, para
conquistar a evolução. Mas precisamos compreender que essa condensação é literalmente uma con-
densação, ou seja, o Espírito ilimitado se reduz num corpo relativamente minúsculo, embora perma-
neça o Espírito com as mesmas características ilimitadas. Então, enquanto está preso na personagem,
está também "nos céus", ligado ao Pai (“vendo-Lhe incessantemente a face”).

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Não podemos dizer que "uma parte" no Espírito se condensa, e "outra parte" permanece ilimitada,
porque o Espírito não tem "partes", já que não possui extensão nem dimensão: é UM TODO inespaci-
al, adimensional, ilimitado, vibracionalmente consciente em todos os planos, inclusive no plano divino
geração Dele" (At. 17:28).
Por isso, mesmo que nossa consciência atual não o saiba nem o perceba, nós (o Espírito) "estamos em
Deus, Nele nos movemos e existimos e somos geração Dele" (At. 17:28).
Por menor e mais involuída que se apresente a nós a criatura, ali está a manifestação visível, com
forma, de um Espirito invisível e divino em sua essência. Logo, não há motivo para desprezar alguém
por ser ignorante, pobre, pequeno, aleijado ou criminoso. Estas são as "aparências" externas da per-
sonagem "filha do mal", criatura do Anti-Sistema, vibração condensada no polo negativo de um Espí-
rito que vive incessantemente consciente no polo positivo.
A sublimidade do ensino chega a estarrecer-nos, sem dúvida. Mas está claro na palavra de Jesus. É
nova concepção da Vida, da existência do ser. Trata-se de verdadeira revelação consoladora e esti-
mulante.
Quando os homens souberem disso e se convencerem dessa realidade, o ambiente da Terra se modifi-
cará totalmente .
Verdade essa que foi vivida pelos Grandes Seres, e agora é permitida: sua divulgação ampla, pois
soou a hora de alertar a todos da REALIDADE sublime de nossa divindade substancial. A revelação
gradativa reserva-nos grandes surpresas, e ainda outras coisas há que dizer, que virão a seu tempo
determinado.
Aproveitemos este ensejo para meditar a respeito do que é um Filho do Homem: um ser que conquis-
tou, a duras penas, a consciência do que ele verdadeiramente é: um Espírito unido ao Pai pela vibra-
ção mística que constitui sua essência mais profunda. A personagem, transitória e carregada de de-
feitos, é veículo temporário e deficiente, que apenas representa a exteriorização mínima e sem impor-
tância de uma realidade que está acima de nossa mais fértil imaginação.

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C. TORRES PASTORINO

O PERDÃO
Mat. 18:15-35
15. Se teu irmão errar (contra ti), vai avisá-lo entre ti e ele sozinho. Se te ouvir, terás ga-
nho teu irmão.
16. Mas se não ouvir, toma contigo ainda um ou dois, para que por boca de duas ou três
testemunhas se resolva toda a questão.
17. Se, porém, não lhes atender, dize à comunidade; se também não atender à comunida-
de, seja-te como o estrangeiro e o cobrador de impostos.
18. Em verdade vos digo, tudo o que ligardes sobre a terra será ligado no céu; e tudo o
que liberardes sobre a terra, será liberado no céu.
19. Novamente vos digo, que se dois de vós, sobre a terra, concordarem sobre qualquer
coisa que pedirem, ser-lhes-á feita por meu Pai que está nos céus.
20. Porque onde dois ou três estão reunidos em meu nome, aí estou no meio deles.
21. Então, aproximando-se Pedro, disse-lhe: "Senhor quantas vezes errará meu irmão
contra mim e o relevarei? até sete vezes"?
22. Disse-lhe Jesus: "Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete.
23. Por isso, foi assemelhado o reino dos céus a um homem rei, que quis ajustar contas
com seus servos.
24. Tendo começado a ajustá-las, trouxeram-lhe um que lhe devia dez mil talentos.
25. Como não tivesse, porém, com que pagar, mandou-o o Senhor ser vendido, e também
a esposa e os filhos e tudo o que tinha, para pagar.
26. Prostrando-se, então, o servo, instava dizendo: "Senhor, tem paciência comigo e tudo
te pagarei".
27. Compadecendo-se o Senhor daquele servo, liberou-o e relevou-lhe a dívida.
28. Tendo, porém, saído aquele servo, encontrou um de seus companheiros, que lhe devia
cem denários, e segurando-o o sufocava dizendo: "paga o que me deves".
29. Caindo-lhe, então aos pés, seu companheiro o implorava dizendo: "tem paciência co-
migo, e te pagarei".
30. Ele porém não quis e, indo embora, lançou-o no cárcere até que pagasse a dívida.
31. Vendo, pois, os companheiros dele o ocorrido, entristeceram-se muito e, indo, narra-
ram (com pormenores) tudo o que aconteceu a seu Senhor.
32. Então chamando-o, o Senhor disse-lhe: "Servo mau, relevei-te toda aquela dívida,
porque me pediste;
33. não devias também tu compadecer-te de teu companheiro, como eu me compadeci de
ti"?
34. E, indignando-se, seu Senhor entregou-o aos verdugos, até que pagasse toda a dívida.
35. Assim também meu Pai celestial fará convosco, se cada um não relevar a seu irmão
do imo do coração".

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Luc. 17:3-4
3. "Cuidai-vos de vós. Se teu irmão errar, repreende-o, e se mudar a mente, libera-o,
4. e se sete vezes no dia errar contra ti, e sete vezes no dia voltar a ti dizendo: "mudo a
mente", liberá-lo-ás".

Grande lição aqui se apresenta a nós, esclarecendo a regra pela qual devemos pautar nossa vida prática
em relação a nossos companheiros de jornada.
Alguns códices importantes (Sinaítico, Vaticano) versões (manuscritos coptos saídico e boaídico) e
pais (Orígenes, Cirilo, Basílio, Jerônimo) não registram as palavras "contra ti", que aparecem em D, K,
L, X, delta, theta, pi, alguns minúsculos, versões bizantinas, ítala, Vulgata, siríaca e pais Cipriano e
Hilário.
Poderiam ser mantidas por dois motivos:
1.º o texto fala de erros "contra ti" (cfr . vers. 21);
2.º se a ação do irmão não diz respeito a nós, nada teríamos com isso.
No entanto, parece melhor suprimi-las, porque o trecho se refere mesmo à correção fraterna. Se algum
irmão errar, mesmo que não seja contra nós, devemos buscar corrigi-lo. Lógico que deve tratar-se de
erro grave, que afete a evolução dele ou o bom nome da instituição a que pertence.
A lei mosaica (Lev. 19:17-18) já estipulava; "Não aborrecerás teu irmão em teu coração; não deixarás
de repreender teu próximo, e não levarás sobre ti um erro por causa dele. Não te vingarás nem guarda-
rás ressentimento contra os filhos de teu povo, mas amarás a teu próximo como a ti mesmo: eu sou
YHWH". E os bons israelitas obedeciam a esse preceito; "Se tens companheiros que te repreendem e
outros que te louvam, ama o que te repreende e despreza o que te louva; pois o que te repreende te
conduz à vida do mundo futuro, e o que te louva te leva fora desse mundo" (Rabbi Meir, in Strack e
Billerbeck, tomo 1, pág. 787).
Se o irmão atende, tê-lo-emos conquistado para o caminho certo, como afirma Jerônimo (Patrol. Lat.
v. 26, col. 131): si quidem audíerit, lucrifácimus ánimam ejus, et per alterius salutem, nobis quoque
acquíritur salus, isto é; "se em verdade nos ouvir, lucraremos a alma dele e, pela salvação do outro,
adquire-se também a salvação para nós".
Se não atender à nossa admoestação, convoquemos testemunhas, depois levemos o caso à comunidade
e depois, se nada disso adianta, coloquemo-lo de lado, tratando-o com toda a consideração e amor,
como devemos fazer ao estrangeiro, mas não com a intimidade do "irmão".
A razão de tudo isso é dada: tudo o que ligamos a nós neste plano, permanecerá ligado no mundo as-
tral, antes e depois do desencarne; e de tudo o que nos liberarmos neste plano terráqueo, permanece-
remos desligados e liberados no plano astral. Ora, é de todo interesse que se não constituam liames
entre nós e pessoas erradas, que poderão envolver-nos em seu carma negativo por complacência culpo-
sa de nossa parte.
As palavras que acabamos de citar, e que pertencem de direito a este trecho, foram transportadas para
o vers. 16 do cap. 16 do mesmo Mateus, como comprovamos exaustivamente no vol. 4 e seguintes.
No entanto, é neste versículo que se baseia a igreja romana para justificar seu direito de "excomungar".
Passa a seguir o Mestre, sem transição, para uma das comprovações de que, o que ligarmos na Terra,
será ligado "no céu": se duas pessoas concordarem sobre determinado assunto, tudo o que pedirem lhes
será feito.
Strack e Billerbeck (I, 793) cita: "Rabbi Acha bar Chanina dizia: que se são ouvidas as preces feitas na
sinagoga, no momento em que a comunidade ora, isso decorre do midrasch de Job (36:5): "Deus não
despreza a multidão", e do Salmo (55:19): "Ele libertará em paz minha alma do combate que me é fei-
to, porque a multidão (da comunidade em prece) estava em torno de mim".

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O fato de o Cristo de Deus afirmar que onde há criaturas reunidas em Seu nome, Ele está no meio de-
las, tem precedente na crença judaica da presença da Chekinah, que permanecia entre aqueles que fa-
lam sobre a Torah". como dizia Rabi Chanina bar Teradjon. E acrescentava: "Deus é dito máqôm ("O
lugar") porque está em todos os lugares".
Depois desse desvio, que confirma que o perdão deve ser dado (cfr. Mat. 6:14-15), vem o ensino
exemplificado com uma parábola, desenvolvida por ocasião de uma pergunta de esclarecimento feita
por Pedro: quantas vezes perdoar?
Simão Pedro, acostumado ao sistema de seu povo de perdoar até três vezes, julga-se extremamente
generoso propondo fazê-lo até SETE vezes. Mas Jesus, sem impressionar-se, calmamente estende para
setenta vezes sete, NO MESMO DIA: éôs hebdomêkontákis heptá.
Jerônimo comenta: ut toties peccanti fratri dimítteret in die, quoties ille peccare non possit, ou seja:
"para que tantas vezes se perdoe ao irmão que erre num dia, quantas ele nem possa errar" (Patrol. Lat.
vol. 26, col. 132). E João Crisóstomo: tò ápeiron kaí diênekés kaí aeí, isto é: “ao infinito, incessante-
mente, sempre" (Patrol. Graeca, vol. 58, col. 589).
Quanto à parábola, anotemos que o ensino principal, que é uma ilustração nos vers. 14 e 15 do cap. 6
de Mateus: se não perdoarmos aos nossos companheiros da Terra, não obteremos o perdão.
Quanto aos dados. O servo devia 10.000 talentos. Um talento equivalia a 6.000 dracmas (ou 6.000 de-
nários). Então, 10.000 talentos são 60.000.000 de dracmas, quantia realmente elevada, em comparação
com os 100 denários (100 dracmas). Lembremos que a dracma (ou o denário, moedas equivalentes, a
primeira grega, a segunda latina) era o preço normal de um dia de salário de um trabalhador braçal.
Chamado para prestar contas e condenado por insolvência confessada, prostra-se aos pés do credor (o
rei) e pede paciência. O resultado é o perdão da dívida, a anulação do débito. Mas ao defrontar-se com
um colega de serviço (syndoúlos) que lhe deve a quantia de cem denários, perde o controle, avança
sobre ele, tenta sufocá-lo e de nada adianta ouvir do companheiro as mesmas palavras que ele mesmo
havia proferido diante do rei: impiedosamente o condena à prisão.
Os outros servos não se conformam com essa atitude e vão contar acena triste "com pormenores" ao
rei. Este se aborrece e vê que o perdão dado foi errado e o entrega não a simples carcereiros, mas aos
carrascos (basanístais = experimentadores).
A lei mosaica (Êx. 22:3) só permitia que fosse vendido o ladrão insolvável, ou então (Lev. 25:39) per-
mitia aceitar a escravidão voluntária de um israelita extremamente pobre, mas que deveria ser tratado
com humanidade, e ser libertado no primeiro ano de jubileu.
Os teólogos, aplicando a parábola a Deus, dizem que nossos débitos para com a Divindade são imen-
sos, em comparação com as dívidas feitas pelos homens entre si. Mas surge-lhes a dúvida: se Deus
pode modificar uma decisão Sua e condenar, depois que perdoou. Tomás de Aquino (Summa Theol,
III.ª , q. 88, art. 1-4) alega que o segundo castigo veio por causa das agravantes, e não pela revivescên-
cia da falta já perdoada. Mas nada isso interessa ao ensino, que se destina a prescrever o perdão entre
os homens, como salienta João Crisóstomo (Patrol. Graeca vol. 58, col. 589).

Mas há outros ensinos mais profundos a deduzir deste trecho. Para estudá-los, dividamos os dois as-
suntos principais.
CORREÇÃO FRATERNA - Não percamos de vista que Jesus deu essas instruções aos discípulos (Mat.
18:1 e Luc. 17:1). Ora, os discípulos eram os filiados à "Assembléia do Caminho", já em graus mais
elevados, pois davam, entre si, o tratamento de "irmão" (vol. 5). Todo o trecho, pois, assim como a
parábola que se segue, refere-se estritamente aos membros da Fraternidade Iniciática entre si, e nada
absolutamente tem que ver com os que se acham fora.
O primeiro ensino, pois, é que o irmão tem a obrigação de chamar a atenção do irmão que erra. Não
é deixado livre de fazê-lo ou não: "se errar ... vai avisá-lo". Mas esse primeiro passo deve manter-se

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secreto, e jamais será divulgado. Se ouvir nosso aviso, e mudar sua forma de agir, é um irmão que
ganhamos em nosso convívio, pois não terá que deixar a fraternidade.
Mas pode dar-se o caso de não sermos atendidos. Chamemos, então, o testemunho de mais um ou dois
(que somados a nós farão duas ou três testemunhas) a fim de solucionar o caso. Trata-se, portanto,
não de uma ofensa feita a nós, mas de um erro que acarreta consequências danosas ao próprio ou à
comunidade.
Caso persista o erro, deve-se avisar a comunidade, a corporação ou ekklêsía a que ambos pertencem.
Far-se-á, já neste ponto, uma admoestação oficial, buscando reconquistar aquele que se está transvi-
ando do caminho (hamartolós).
São, pois, três advertências. Se após as três persistir o desvio da conduta, deve então esse "irmão" ser
considerado alienígena ou estrangeiro, ou “publicano", isto é, novamente profano, saindo da comuni-
dade a que pertencia a fim de não trazer prejuízos a todo o conjunto. Mas nem por isso deve ser mal-
tratado nem desprezado: antes, como preceitua a lei, o estrangeiro deve ser tratado com delicadeza e
consideração. Apenas não participará dos mistérios.
Verificamos, então, que há dois comportamentos: ligar ou soltar, amarrar ou desprender. E qualquer
dos dois atos é realizado não apenas na Terra, mas também "no céu", ou seja, no mundo espiritual,
em todos os planos: astral, mental e espiritual.
O ensino é de importância capital, pois ficamos sabendo que as ações do mundo físico têm repercus-
são bem maior do que poderia supor-se. Uma ligação com determinada criatura reflete-se no mundo
espiritual e perdura além do plano terrestre-denso. E o mesmo ocorre se houver um desligamento.
O ensinamento (que verificamos tratar-se de uma repetição: "Novamente vos digo” ...) traz uma con-
sequência de sumo interesse: se houver ligação e sintonia vibratória perfeitas entre duas criaturas, a
força daí redultante é tão poderosa que é capaz de atrair tudo o que for pedido. O Pai reside em cada
um de seus filhos. Mas se houver união plena entre dois, concordância total, sintonia absoluta, em
qualquer assunto (perì pantòs prágmatos) não importa qual, a obtenção é garantida por parte do Pai
"que está nos céus". Não há dúvida de que duas mentalizações são mais eficientes que uma só. E as
duas notas emitidas em uníssono movimentam as forças que modificam o curso dos acontecimentos.
Confortadora promessa, perigosa: porque também a mentalização do erro surtirá efeito ...
A razão disso é dada pelo Cristo Divino, que se vinha manifestando em Sua qualidade de Mestre úni-
co: "onde duas ou três pessoas estão reunidas em meu nome, aí estou no meio deles". E a razão cien-
tífica do fato prende-se a que, embora a presença crística seja constante e integral em todos os luga-
res e situações, inclusive dentro de cada pessoa, no entanto, se houver uma ligação entre duas ou três
pessoas, forma-se uma corrente mais fortalecida, que poderá movimentar forças magnéticas ambien-
tes mais poderosas com repercussões nos diversos pianos espirituais; da mesma forma que uma bate-
ria é muito mais forte que uma pilha isolada. Dessa maneira a presença é mais sentida e essa própria
conscientização aumenta a força de cada um. Isso mesmo já era ensinado nas Escolas Judaicas (Ká-
bbalah), que dava o nome de Chekinah a esse acréscimo perceptível da presença real do FOHAT divi-
no entre as criaturas. Diziam, então, que era a "presença de Deus".

PERDÃO - Entra Pedro (o símbolo das "emoções") com a pergunta de quantas vezes terá que perdoar
ao "irmão" que faz algo contra ele. Não se trata mais de erro (desvio da rota certa) no sentido evolu-
tivo, mas de algo pessoal entre os membros da corporação.
Isso, diz o Cristo de Deus, não apresenta a menor importância. São criancices. E o número de sete
vezes (num dia!) é julgado pouco pelo Mestre, que o amplia para setenta vezes mais (cfr. vol. 4 e vol.
5), o que significa sempre. O Espírito que já entrou na linha evolutiva conscientemente, não pode es-
tar perdendo tempo com essas questiúnculas das personagens. Não dá relevo a picuinhas e a pirraças.
Para ele não importam ofensas nem calúnias: segue em frente, sempre para o alto, e tudo o que possa
ocorrer "contra ele", isto é, contra a personagem, bate de raspão e perde-se no espaço, sem deixar
sequer mossa nem arranhão por mais leve que seja. Então, PERDOE SEMPRE, sem nem contar as

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vezes. Seja sempre a rocha que não se abala pelo choque das ondas. Deixe que os profanos sejam
como a areia, que vai e vem com as ondas do mar.
Essa é a razão de ter sido assemelhado o Reino de Deus a um homem-rei, designação típica do hie-
rofante, do "rei" da Escola Iniciática, a suma autoridade para os membros da fraternidade. A escolha
do hierofante como modelo, é típica, pois refere-se à autoridade do Rei do Mundo, que o hierofante
representa para seus discípulos em cada comunidade. Em relação ao hierofante os irmãos são desi-
gnados como servos, pois a ele devem obediência irrestrita e sem discussões, pois se se entregaram à
sua direção, é porque nele reconhecem o Mestre que penetra os mais recônditos segredos dos cora-
ções.
A parábola fala de um débito de 10.000 talentos, imagem de uma dívida evidentemente espiritual, e
não material. A comparação das conquistas espirituais com "talentos" foi feita, também, em outra
parábola (cfr. Mat. 25:14-30; Luc. 19:11-27).
Encontramos, pois, que a interpretação nos revela que o Rei ensinara os mistérios em sua maior pro-
fundidade a esse servo, dando-lhe conhecimentos vastos. Mas quando lhe foi "pedir contas" do que lhe
devia, como lição "passada para estudo", verificou que ainda não aprendera, e continuava devendo.
Julgou-o incapaz, e sua vontade inicial foi "prendê-lo a ele, à mulher e aos filhos", isto é, colocá-lo,
com todos os seus veículos, novamente na prisão do mundo profano, afastando-o do convívio dos de-
mais "irmãos" seus conservos. Não apenas a ele (ou seja ao Espírito) se referia a restrição que as
condições impunham, mas a todos aqueles que formavam o ser e que atrapalhavam sua evolução.
No entanto, em vista de sua humildade, resolveu esperar mais, "perdoando-lhe a dívida" naquele mo-
mento, para que mais tarde verificasse se realmente tinha conseguido aprender.
Ao sair dali, entretanto, esse mesmo servo encontra outro a quem havia dado noções (100 denários,
quase nada) de espiritualismo. Pede as contas, e verifica que seu companheiro não havia aproveitado.
Nesse ponto, perde o controle emocional, agarra-o e procura sufocá-lo, naturalmente com palavras
violentas, e manda que vá para a prisão do mundo. Por aí vê-se que realmente tinha autoridade den-
tro da fraternidade, confirmando que o débito alto se referia a aprendizado mais profundo.
Os companheiros estranham o fato e - verificando a inutilidade do aviso em particular e com testemu-
nhas - levam logo o ocorrido ao conhecimento do hierofante. Comprova, então, o rei que realmente o
primeiro não havia compreendido, nem mesmo aprendido a lição. Resolve, pois, entregá-lo aos "expe-
rimentadores" (basanístais), ou seja, às provações cármicas do mundo, que terão que experimentá-lo
normalmente, até que a custa própria e por experiência vivida, aprenda que "deve fazer aos outros o
que quer que os outros lhe façam" (Mat. 7:12).
A lição é singela e clara na letra e no espírito: dar, para receber. Amar para ser amado. Perdoar para
ser perdoada. "A medida com que medirdes, essa será usada convosco" (Mat. 7:2; vol. 2).
Cientificamente, temos que considerar a lei das frequências vibratórias. Se estamos na frequência do
perdão, estendendo-o aos outros, nós mesmos nos beneficiamos dessa onda tranquila. Mas se saímos
da faixa do perdão e caímos na da cobrança impulsiva, sintonizamos com essa frequência mais baixa,
onde também nos será cobrado. Não há necessidade, hoje, de levar o problema ao "sobrenatural",
nem de envolver Deus no processo puramente humano, para saber se Ele pode ou não anular um ato
de perdão já concedido. Com a eletrônica, atualmente, vemos que o indivíduo é que se situa, vibrato-
riamente, numa ou noutra faixa, à sua vontade, recebendo o que transmite. Qualquer rádio-amador
sabe disso.
A personificação de um fato científico era indispensável há dois mil anos. Mas hoje atrapalha, mais
que ajuda, porque as mentes pouco habituadas à ciência e os intelectos viciados em imaginar figuras
antropomórficas da Divindade, continuam acreditando que existe uma "pessoa", sentada num trono de
ouro, a fazer o julgamento e a lavrar sentenças.
Não há, pois, razão, para discutir se Deus volta atrás de uma sentença! A criatura recebe o choque de
retorno, porque desce suas vibrações ao plano das emoções (plano animal, lei da justiça), tanto assim

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SABEDORIA DO EVANGELHO

que, figuradamente, o credor avança para o devedor e tenta estrangulá-lo; descendo de plano, caiu na
armadilha cármica.
Isso porque Deus, imutável e perfeito, nem sequer pode ser ofendido, pois não é atingido por qualquer
espécie de ação humana, nem pode "perdoar": a criatura é que se coloca no plano da libertação cár-
mica, por sua própria vibração interna, ou se lança, por descontrole emocional no plano da justiça,
na lei de causa e efeito.
Daí a ordem de "perdoar setenta vezes sete", ou seja, SEMPRE. Porque uma só vez que não se perdoe
acarreta a entrada na vibração baixa da vingança ou do ressentimento. Por isso já fora dito: "se esti-
veres apresentando tua oferta no altar e aí te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti,
deixa ali tua oferta diante do altar, vai primeiro reconciliar-te com teu irmão, e depois vai apresentar
tua oferta" (Mat. 5:23-24). Porque qualquer questão com o "irmão" provoca baixa de vibrações.
Se temos obrigações de "amar os inimigos" (Mat. 5:44), muito maior é o dever em relação aos irmãos
de comunidade.

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C. TORRES PASTORINO

SERVOS INÚTEIS
Luc. 17:7-10
7. "Qual de vós, tendo um servo arando ou pastoreando, lhe dirá ao vir ele do campo:
vem já, reclina-te (à mesa)?
8. Mas não lhe dirá: Prepara o que cearei e, cingindo-te, serve-me, enquanto como e be-
bo, e depois tu comerás e beberás.
9. Acaso agradecerá ao servo porque cumpriu as ordens?
10. Assim também vós, todas as vezes que tiverdes cumprido todas as ordens, dizei: so-
mos servos inúteis, fizemos o devíamos fazem”.

O caso do servo fiel refere-se, evidentemente, a um escravo cujo tempo integral deve estar à disposição
de seu senhor, já que o assalariado dispõe para si de todas as horas, antes e após o serviço contratado.
O exemplo trazido parece demonstrar uma pessoa que só possuía esse servo para todo o serviço.
Embora pareça mais "humano” que o servo fosse primeiramente comer e ter rápido repouso após a
estafa do campo, o fato aqui comentado é uma lição que precisa ser interpretada como alegoria de ou-
tra realidade mais alta. Tanto assim, que em Lucas (12:37) dá-se até o exemplo contrário: o servo, que
o senhor encontra vigilante, é servido pelas mãos de seu senhor, com alegria e gratidão.
A única explicação necessária é quanto ao verbo "cingir-se”. O trabalho pesado no campo era realizado
pelos servos totalmente nus ou com pequena tanga, a não ser no sol escaldante do verão, quando então
vestiam uma túnica larga, enfiada pelo pescoço, com um turbante à cabeça. Ao terminar o trabalho,
entravam em casa, em qualquer época, com a túnica esvoaçante, que não se adaptava, porém, a servi-
ços domésticos. Para realizá-los, ou para sair à rua (vol. 3) amarravam um cordel à cintura ("cingiam-
se"), para que os movimentos fossem facilitados.

Lição das mais belas.


O Senhor do Mundo, por meio de Seus discípulos graduados, os Mestres de Sabedoria, governa larga
rede de Adeptos, Iniciados, Discípulos aceitos e Discípulos em provação, conscientes ou inconscientes
de suas ligações; e isso em todos os setores religiosos, filosóficos, políticos, industriais, comerciais,
artísticos, na medicina, na engenharia, no jornalismo, em todas as profissões, mas especialmente no
magistério de todos os graus. Através dessas criaturas, são executadas as tarefas necessárias à recu-
peração da humanidade e do planeta, para que tudo evolua dentro dos pianos do Grande Concílio.
Assim, todos os que estão conscientes das tarefas que lhes foram cometidas e das obrigações que as-
sumiram voluntariamente, são como escravos que se venderam, para dedicar-se à obra em regime de
tempo integral, dia e noite, abandonando, se necessário, família, afazeres, negócios, posse, particula-
res, de forma a que nenhum minuto seja dedicado a outros interesses. O serviço, para quem quer que
entre para a Fraternidade, tem que ser total e desinteressado, constante e contínuo, alegre e despreo-
cupado dos frutos que nos não pertencem: todo o fruto do trabalho do escravo pertence a seu senhor,
de direito e de fato. Todas as horas são absorvidas pelo trabalho assumido, não havendo desculpas
para interrupções nem afrouxamentos, sob pena de desligamento automático da Fraternidade à qual
espontaneamente nos filiamos, levados pelo amor altruísta de AJUDAR aos outros sem pensar em
nossa personagem transitória e deficiente.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Quem não coloca a obra acima da personalidade, em TODOS os aspectos, não pode ser "discípulo em
provação", assim chamado durante o tempo em que é experimentado, para ver se realmente é desinte-
ressado (não apenas monetariamente, mas em todos os sentidos), se é capaz de sacrificar emprego,
família, comodidade, sono, alimentação, tudo, em benefício e para servir à obra. Essa “provação”
dura, em cada existência, cerca de sete anos. Findos estes, se as provas não foram de fato concluden-
tes, mais sete anos são acrescentados, numa segunda e última oportunidade, para verificar-se a pos-
sibilidade de ingressar na Escola como "discípulo aceito". As lições verdadeiras chegam-nos desde a
mais remota antiguidade. O Antigo Testamento já nos ensinara que assim ocorre, narrando um fato
com valor simbólico.
Observemos, inicialmente, o significado dos nomes. LABÃO quer dizer “branco, brilhante”, e repre-
senta o Mestre Hierofante e Iniciador. JACOB exprime "o suplantador, ou vencedor" das provas. LIA
(Le'ah) quer dizer "cansado, falto de forças". E RAQUEL (Rahhel) significa “cordeiro ou ovelha”.
Analisemos, agora, os fatos como se passam.
Jacob pretende Raquel (o Cordeiro era o signo daquela era, isto é, o máximo da evolução) e Labão, o
Mestre, exige que ele "sirva" na escola durante sete anos. Findos os quais, não lhe dá Raquel, porque
o pretendente não alcançara o grau necessário, mas, antes sente-se "cansado" (recebe Lia, em lugar
de Raquel). Fica resolvido, então, que "servirá" mais sete anos. E vence (é "o vencedor, o suplanta-
dor" das provas) neste segundo período recebendo, então, como troféu de vitória, a Iniciação (Ra-
quel).
Ainda hoje, essa é a técnica. A isso nos submetemos todos, consciente ou inconscientemente, nas per-
sonagens atuais. As oportunidades são-nos dadas, para demonstrar que conquistamos a humildade,
ouvindo o que não nos agrada e sorrindo, sem magoar-nos; o desprendimento total, estando prontos a
renunciar a tudo o que possuímos ("Vai, vende tudo o que tens, e vem, segue-me”, Luc. 10:21); o
amor desinteressado a todos, mesmo aos seres mais antipáticos; a constância e a continuidade no
trabalho, "em esmorecimentos nem vontades de largá-lo por quaisquer motivos, por mais fortes que
nos pareçam; resolução férrea de superar as provas, sobretudo as que ferem nossa vaidade pessoal e
nosso orgulho profissional; e renúncia absoluta a quaisquer resultados e a quaisquer conquistas de
bens terrenos, sejam eles quais forem.
Aqueles que, tendo sido admitidos a uma Escola (mesmo que tenha outro nome), após esses anos de
experimentação não lograram atingir o ponto evolutivo requerido, saem por seus próprios pés, ale-
gando que não concordam com isto ou aquilo, ou que não "se dão" com esta ou aquela pessoa, ou que
não se dispõem a renunciar a seu próprio "modo de ser" (pois, dizem, sou assim).
Para alguns espíritos que realmente não são aproveitáveis, dois ou três anos de experimentação bas-
tam para se definirem; mas a outros, que poderiam e deveriam ser aproveitados como discípulos
aceitos, é dada oportunidade maior de sete e mais sete; se após catorze anos de frequência não “mo-
dificam sua mente" (metánoia) são afastados, para não impedirem o progresso espiritual da Escola.
Os discípulos aceitos, após darem tudo o que podem no trabalho diurno, quer como "agricultores”,
arando o terreno sáfaro da humanidade; quer como "pastores”, levando ao pasto do conhecimento, à
alimentação do ensino espiritual, as almas famintas e sedentas da Verdade; devem ainda antes de
relaxar-se no suspirado repouso, cingir-se a cintura e ir, durante a noite, em corpo astral ou mental,
preparar a ceia e servir a seu Mestre, para que, com a aproximação propiciada pela ajuda amorosa e
dedicada, aumentem cada vez mais seu conhecimento da Verdade.
Para essas tarefas, requer-se obediência cega; sacrifício pessoal do repouso; abandono a segundo
plano de qualquer interesse, mesmo "justo" no mundo, se estiver fora do trabalho ordenado pelo
Mestre (“não podeis servir a dois senhores, a Deus e às riquezas", Luc. 16:13); requer-se a superação
da vontade própria pessoal, em benefício da vontade do Mestre; a energia controlada nos momentos
de perigo, para que as ordens do Senhor sejam cumpridas, mesmo que isso signifique rompimento dos
laços sanguíneos de parentesco ou de amizades antigas e arraigadas; a isenção de ânimo para, sem
titubear, colocar os interesses da obra acima dos seus; a fortaleza de mente para não se ser afetado
minimamente pelas palavras ou julgamentos alheios, pelo que os outros "possam dizer”; o equilíbrio

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C. TORRES PASTORINO

para continuar no trabalho sem perturbação, mesmo entre as grandes perturbações, que jamais deve-
rão desnortear mente do discípulo.
E tudo isso, terá que ser realizado sem que a emoção (animalismo) se intrometa, para que não haja
atuação de vínculos menos nobres; embora classificado de "frio" e "sem sentimentos", o discípulo tem
que alimentar em si mesmo o sentimento puro e espiritual do perdão e do amor, os quais, entretanto,
não podem interferir nas decisões que forem "ordem superior", para resguardar a programação pre-
vista no desenvolvimento do trabalho.
Se tudo isso for feito, e depois que tudo isto tenha sido feito, não merecemos nenhum agradecimento
de nosso Mestre: fizemos o que tínhamos que fazer e, portanto, somos servos "inúteis".
Pode argumentar-se que, de fato, tivemos alguma utilidade no desenvolvimento do trabalho. Mas o
ensino é dado para que nos convençamos da realidade: qualquer outro faria o mesmo ou melhor que
nós. Nós ainda temos que agradecer a honra que nos é conferida, de poder trabalhar para tão grande
Senhor! Somos "inúteis", pois apenas cumprimos ordens, mas nada acrescentamos de nosso. Em com-
paração grosseira digamos que duas pessoas se apresentem a um Banco, com certa importância na
mão. A primeira vai quitar um empréstimo. Apesar de ter dado lucro ao estabelecimento, é "inútil"
pare o real progresso do Banco e não merece agradecimentos: cumpriu sua obrigação. O segundo é
depositante novo, que confia sua conta à casa de crédito esse sim, será útil, e merece a gratidão do
banqueiro. Nesse exemplo verificamos quanto somos realmente "inúteis": estamos pagando emprésti-
mos que fizemos, e não trazendo lucros extraordinários.
Anotemos que a palavra "inútil", em grego (achreíos) talvez fosse mais bem traduzida por "não-útil".
Se profundamente, em nossos corações, tivermos essa convicção, poderemos continuar colaborando
com a Grande Fraternidade, porque apagamos nosso personalismo vaidoso e estamos "à disposição"
de nossos Mestres e Senhores.
*
* *
Neste ponto acrescentemos uma observação.
Passa-se exatamente o mesmo nas relações entre a personagem e a individualidade entre o pequeno
"eu" e o EU verdadeiro, entre o espírito com um nome e o Espírito, cujo nome está no Livro da Vida.
Nenhum direito a agradecimentos tem a personagem por ter cumprido seu dever de colaborar na
evolução do EU; nenhum repouso lhe cabe, até que seu dever tenha sido integralmente cumprido: o
regime não é de "assalariado" com tempo prefixado para a tarefa, mas de escravidão, com tempo in-
tegral dedicado ao Espírito. Não há férias, nem feriados, nem repouso remunerado: tudo para o Espí-
rito, do Espírito e no Espírito.
Cumpramos nosso dever, sem buscar repouso, nem conforto, nem férias nem divertimentos, prazeres,
recompensas: a VIDA é superior à vida, o menos cede ao mais, o menor serve ao maior, a persona-
gem só existe para que a Individualidade possa operar no planeta. Se esta é sua obrigação, deve ser
cumprida à risca, com todo sacrifício. E no final de sua carreira, saibam nossos intelectos manifestar-
se sinceramente: somos servos inúteis, fizemos o que devíamos fazer".

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SABEDORIA DO EVANGELHO

OS DEZ LEPROSOS
Luc. 17:11-19
11. E aconteceu, ao viajar para Jerusalém, que ele passou no meio da Samaria e da Gali-
léia.
12. E entrando ele em certa aldeia, vieram-(lhe) ao encontro dez homens leprosos que pa-
raram de longe,
13. e elevaram a voz, dizendo: Jesus, Mestre, compadece-te de nós.
14. E, vendo-os, disse-lhes: "Indo, mostrai-vos aos sacerdotes". E aconteceu que ao irem
foram limpos.
15. Um deles porém, vendo que fora curado, regressou e, em alta voz, glorificou a Deus
16. e caiu com o rosto em terra junto aos pés dele, agradecendo-lhe: e este era samarita-
no.
17. Respondendo, pois, disse Jesus: "Não foram limpos os dez? Onde estão os nove?
18. Não se achou quem voltasse, dando graças a Deus, senão este estrangeiro"?
19. E disse-lhe: "Levanta-te e vai; tua fidelidade te salvou".

As traduções correntes trazem que Jesus passou “pela divisa entre a Samaria e a Galiléia", na viagem
da Galiléia a Jerusalém. Isto porque - dizem – a expressão grega dià mêson, "pelo meio", deve querer
significar isso. Vejamos um texto: “dià meson: hic solum dià localiter cum accusativo: "per"; loco
verbis anà meson, per medium; sensus debet esse: inter Samariam et Galileiam" (Max Zerwick. S. I.,
"Análysis Philológica", Romae, 1960), que significa: "dià meson: somente aqui uso locativo com acu-
sativo: "por"; em lugar das palavras anà meson, “pelo meio"; o sentido deve ser: entre a Samaria e a
Galiléia”.
Não se chega a compreender. Parece-nos claro, entretanto, que o sentido está explícito: pelo meio, pelo
centro, da Galiléia e da Samaria. Realmente, havia três caminhos para ir-se de Cafarnaum a Jerusalém:
O primeiro seguia pelo vale do Jordão, margeando o rio, mas em território samaritano; o segundo pelo
meio das duas províncias, passando por Naim, Citópolis, Kesaboth (a última aldeia galiléia ao sul),
Ginaia (a primeira cidade samaritana ao norte, cfr. Flávio Josefo, Bell. Jud. 3, 3, 1, 4), a planície de
Gizreel, Sicar, etc.; a terceira pelo litoral mediterrâneo, passando pelo Carmelo, por Joppe, Cesaréia-
sobre-o-mar, Cafar-Saba, etc.
Uma única coisa não era humanamente possível: ir de Cafarnaum a Jerusalém passando ENTRE a Ga-
liléia e a Samaria, caminhando pelas fronteiras das duas províncias. E isso pela simples razão geográ-
fica, de que o limite entre a Galiléia e a Samaria seguia uma linha leste-oeste, e entre Cafarnaum e Je-
rusalém o caminho tinha que ser norte-sul (cfr. Gustave Dalman, “Les Itinéraires de Jesus", Paris,
Payot, 1930, págs. 276 ss). Não obstante, as traduções mantêm essa impropriedade.
"Ao entrar em certa aldeia", tem um sentido amplo: antes de entrar, pois a lei (Lev.13:45-46) proibia
os leprosos de penetrarem em lugares habitados. Qual a aldeia? Tarbeneth, ‘Affoule, El-Foule, Sólem?
Impossível determinar. Mas, pelo número, vemos que devia estar ainda em território galileu, onde um
samaritano podia bem misturar-se aos nove judeus doentes. O contrário, ou seja, nove judeus leprosos
viverem em território samaritano, é que não teria sido possível.

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Figura “OS DEZ LEPROSOS” – Desenho de Bida, gravura de Éd. Hédouin

Os dez vêm ao encontro de Jesus, mas param a distância, pedindo “misericórdia" (eléêson) e dando-lhe
o título de epistáta, "mestre", termo só usado por Lucas (em 5:5; 8:24, 45e 9:33, 49; cfr. vol. 2 e vol.
4).
Jesus manda que se vão mostrar aos sacerdotes, para verificação da cura, conforme ordenado na lei
(Lev. 13:2 e 14:2), ação diferente do que ocorrera em Luc. 5:12-14, onde a ordem foi posterior à cura,
que se realizou imediatamente.

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Crendo, eles obedeceram. Ainda em caminho, obtiveram a catarse ou purificação (katharízô é a ex-
pressão técnica para a cura da lepra).
Ao ver-se curado, um deles regressa incontinente e lança-se aos pés de Jesus, "glorificando a Deus" a
agradecendo (eucharistôn) a Jesus. Fato semelhante ocorreu entre o sírio Naaman (2.º Reis, 5:15) que
voltou para agradecer a Eliseu a cura da lepra.
Mas o único que manifestou essa gratidão era samaritano, e Jesus o assinala: não eram dez? E só o
estrangeiro voltou?
Dirige-se, então, a ele e carinhosamente manda que se levante e vá para sua casa. E acrescenta: tua
fidelidade te salvou, te tornou incólume.
Ainda uma vez divergimos, embora levemente, das traduções correntes, que trazem "tua fé te curou, ou
te salvou". O grego diz: hê pístis sou sésôkén se. Já verificamos que o verbo sôizó (cfr. vol. 3) apre-
senta dificuldade na tradução, porque, na realidade, não é a salvação espiritual, mas a libertação a que
se refere: "salvar da prisão", socorrer, "salvar de uma queda", amparar "salvar da miséria", curar "sal-
var da doença", defender, "salvar do ataque, tornar incólume" ao mal, etc. A "fé", todos os dez a tive-
ram, tanto que foram curados. Mas a fidelidade de voltar e agradecer, só o samaritano a teve. Também
curados todos o foram. Mas o acréscimo merecido por uma fidelidade maior, é a salvação da doença,
isto é, o tornar-se "incólume" ao mal físico.
Jesus chama ao samaritano "estrangeiro" (allótropos, ou seja, natural de outro lugar, "alienígena") por-
que, de fato, a Samaria fora povoada por colonos assírios, provenientes da Mesopotâmia (cfr. 2.º Reis,
17:24-30).

Eis outra grande lição, apresentada por meio de um fato que, não há dúvida, deve ter ocorrido, mas
cujas aparências de acontecimento externo constituem uma alegoria transparente para nossa prática
evolutiva.
Jesus (a individualidade) vai para Jerusalém (cidade da adoração, centro das religiões ortodoxas) e
atravessa a Galiléia (o "jardim fechado") e a Samaria (a "vigilância"). Assim, todas as vezes que o
discípulo da "Assembléia do Caminho" se dirige aos ambientes profanos, embora religiosos, deve pre-
caver-se com redobrada vigilância no horto recluso do Eu profundo.
Infalivelmente será reconhecido pelos enfermos e "leprosos" espirituais, expulsos das comunidades
religiosas, que não podem frequentar, por serem julgados "pecadores" e "excomungados" perigosos,
capazes de desviar (contaminar) as "santas e puras" ovelhas do rebanho fiel.
Reconhecido, recebe o título de "mestre", não no sentido de Rabbi, mas de epistáta, o que "está aci-
ma" e pode ensinar a doutrina e dominar (cfr. vol 4). A compaixão implorada dá a idéia de que pro-
vocará uma cura imediata, fazendo-se que eles entrem para o grupo do iniciado. Cuidado! Jesus
mostra-nos que esse modo de agir está errado. Seja qual for o grupo religioso a que pertençam (ju-
deus ou samaritanos) devem ser encaminhados para seus sacerdotes, e não desviados antes do tempo
para ingressar na senda. São criaturas ainda submetidas ao carma religioso ortodoxo, e por isso não
convém sejam daí arrancadas. Aos sacerdotes dos cultos "oficiais" é que devem obedecer.
Não obstante ficarem limpos dos erros, o caminho deve prosseguir "em saltos arriscados para eles
mesmos.
Um deles, todavia, que já possuía dentro de si a "vigilância" o "samaritano" abandona os companhei-
ros e volta a Jesus espontaneamente, verificando-se que, por estar "desperto", pode conseguir, depois
da catarse, a metánoia e a eucaristia: a observação das palavras do original grego nos despertam
para esse sentido mais profundo. Vemos, então, que na posição de total humildade épesen (caiu) epí
psósôpon (sobre o rosto) parà toú pódas autoú (junto aos pés dele) eucharístôn autôi (agradecendo a
ele), isto é unindo-se vibratoriamente em comunhão espiritual.

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O único capaz disso e o “estrangeiro” (isto é, o nascido de outro lugar), o "samaritano" (ou seja, o
"vigilante", o "acordado", o “desperto"). Os demais “judeus" (religiosos ortodoxos) não têm capaci-
dade para afastar-se dos dogmas de suas religiões.
A lição é sublinhada para que se não perca: onde estão os outro, nove curados? Só este alienígena
regressou. Só o que provinha de outra fonte espiritual.
A frase final é maravilhosa: levanta-te ("eleva-te acima de ti mesmo") e vai (segue em frente); essa tua
fidelidade à ação divina te tornou incólume ao mundo terreno, com suas deficiências e moléstias.
Tenhamos, pois, muito cuidado em nosso modo de tratar os que nos pedem socorro, aqueles que, uni-
dos a seu personalismo, ainda perambulam pelas plagas inóspitas e traiçoeiras de um planeta de pro-
vações. O exemplo está claro.
Aos membros das "Escolas" é permitido perambularem por entre os religiosos ortodoxos, e recebem a
força capaz de curar os enfermos. Mas são alertados para que não queiram agregá-los a si, num pro-
selitismo perigoso: deixem que cumpram e terminem seu curso de aprendizado nos "colégios" em que
foram matriculados pela Vida.
Mesmo aqueles que estão "despertos" não devem ser aceitos de imediato: sigam seu caminho para a
frente, elevando cada vez mais suas vibrações: em outras vidas posteriores, chegará a hora deles,
assinalada naturalmente no relógio divino.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

DENTRO DE VÓS
Luc. 17:20-21
20. Interrogado pelos fariseus, quando viria o reino de Deus, respondeu-lhes e disse:
"Não vem o reino de Deus de modo ostensível,
21. nem dirão: ei-lo aqui ou ali; eis porque: o reino de Deus está dentro de vós".

Estes dois versículos de Lucas, que acabamos de ler, constituem uma das lições mais sublimes e pro-
fundas.
Já por várias vezes fora comentado o "reino de Deus" ou "reino dos céus" (expressão esta preferida por
Mateus, para "não tomar em vão o nome de Deus"), mas sempre por meio de comparações e de pará-
bolas. Mas jamais foi definido por Jesus, por impossibilidade de definir-se o indefinível, ou de descre-
ver-se com o intelecto finito o infinito.
Aqui, porém, é feita uma pergunta quanto ao tempo: QUANDO virá?
Esperavam todos que esse "reino" fosse humano (apesar de "divino"), e que viria com reis, áulicos,
ministros e exércitos, e que terminaria com o domínio romano odiado. Mas quando, finalmente, surgi-
ria no cenário palestinense ?
A resposta merece análise minuciosa: ouk érchetai (não vem), he basiléia toú theoú (o reino de Deus)
metà paratêrêseôs (com ostentação, isto é, de modo ostensível: não pode ser observado de fora de
forma visível); oudè eroúsin (nem dirão) idoú hôde hê ékei (ei-lo aqui ou ali); idoú gár (eis porque) he
basiléia toú theoú (o reino de Deus) entòs humôn estin (dentro de vós está).
Grande número de traduções autorizadas e aprovadas transforma o "DENTRO" (entós) em "entre vós",
sob as mais ocas alegações.

Esta é a palavra mais clara do Cristo, sem alegorias nem símbolos, a respeito do reino de Deus. Toda
pergunta deve ser respondida com a Verdade, seja feita por quem for. E esta é uma lição secundária
que depreendemos do texto. Porque se quem indaga não está à altura de entender, não entenderá.
Mas se estiver preparado, perceberá todas as sutilezas. A resposta foi de clareza meridiana, e no en-
tanto, não dizemos os fariseus, mas nem mesmo as que "se dizem" cristãos, a têm compreendido, e
torcem a transparência das palavras. Damos a prova: "entos cum genitivo, intus, in, intra; vix in cor-
dibus Pharisaeorum, ergo potius intra, apud vos" (Max Zerwick, S. I., "Aná1ysis Philológica", Romae,
1960, pág. 186); isto é: "entòs, com genitivo, dentro, em, no interior de, dificilmente nos corações dos
fariseus, logo, é antes no interior de, no meio de vós" ... Assim se procura modificar uma palavra
certa, desde que não se compreenda algo diferente da própria crença formulada pela vaidade huma-
na.
Já vimos (vol. 1) que o reino de Deus ou reino dos céus não é um reino terreno, mas um estágio evo-
lutivo, assim como dizemos reino mineral, reino vegetal, reino animal, reino hominal, também dizemos
"reino celeste, divino ou de Deus ou dos céus". Trata-se de um passo acima do reino hominal. Quando
os homens, feita sua evolução através do reino humano, podem libertar-se dele, e passam a ser a con-
sequência ou o resultado do reino hominal, atingindo o estágio de "filhos do homem", conseguem
"entrar" no reino dos céus ou reino de Deus, pois este chega ou vem, e desabrocha, floresce, frutifica
...

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C. TORRES PASTORINO

O reino de Deus está dentro de nós, por mais atrasados que estejamos, tal como a árvore está na se-
mente; tal como a borboleta está na lagarta; tal como a ave está no ovo; tal como o corpo do homem
está no óvulo fecundado pelo espermatozóide; tal como o adulto está no recém-nascido.
A questão é de conscientização e desabrochamento. Mas todos chegaremos a "entrar" no reino dos
céus, da mesma forma que os animais "entrarão" no reino hominal.
Daí não poder dizer-se QUANDO virá: todos entrarão nele, mas cada um por sua vez, quando tudo
concorrer para isso.
O reino dos céus, ou reino de Deus, que está dentro de vós, é o CRISTO DIVINO, a terceira manifes-
tação da Divindade, que constitui a essência ultérrima de todas as coisas criadas; é o terceiro aspecto
de Deus Espírito Santo, a LUZ, que quando emite o SOM (Pai, Verbo), provoca o nascimento do FI-
LHO, a força cristônica que emerge e é, em todos os lugares e todas as coisas.
O reino de Deus é o passo gigantesco de avanço espiritual, que não se vê de fora, que não pode ser
observado por olhos humanos, que chega silencioso como o nascer do sol, quando sem o menor ruído
envolve de luz a Terra. É a transmutação do homem vulgar no gênio, a transformação do ignorante no
sábio, a mudança do homem comum em santo, a libertação definitiva do plano animal. Em grande
parte, a humanidade já compreendeu que há coisas superiores na criatura humana, tanto que aban-
donou a antiga definição: "O homem é um animal racional". Era, sim. E muitos ainda assim se reve-
lam nas atitudes, nas palavras e nos pensamentos. Mas hoje já sabemos, já aprendemos, pelas lições
trazidas pelos Manifestantes Divinos, que o homem é uma Centelha divina, a perambular pelo globo
terráqueo em busca da perfeição.
O reino dos céus é a Felicidade Total conquistada ainda na Terra, apesar das dores e sofrimentos, de
carências e humilhações.
Quem entrou uma vez no reino dos céus, dele não sai mais, embora tudo tenha contra ele, até o martí-
rio do corpo e a morte da personagem terrestre.
O reino de Deus está DENTRO DE NÓS: desenvolvamo-lo com todas as nossas energias e nossos
esforços; é a única coisa que vale a pena procurar e possuir.
Vendamos todas as nossas pérolas, para conseguir essa pérola mais preciosa que todo o planeta (Mat.
13:45); desfaçamo-nos de tudo o que possuímos, para adquirir o campo onde está enterrado o tesouro
valioso (Mat. 13:44); coloquemos o fermento da fidelidade absoluta, para fazer crescer dentro de nós
mais rapidamente o amor (Mat. 13:33). De qualquer modo, temos que AGIR, pois nem todo o que
apenas é devoto e diz "Senhor, Senhor" conseguirá entrar no reino dos céus (Mat. 7:21), já que a
porta é estreita (Mat. 7:14). Mas uma coisa é certa: temos que buscar em primeiro lugar o reino dos
céus e sua perfeição, porque, então, todas as coisas nos serão acrescentadas" (Mat. 6:33).
Qual o segredo, ou a técnica, para conquistá-Lo?
Para ensinar isso, os quatro evangelistas nos deixaram as preciosas anotações do ensino do Mestre
Nazareno. Aí estão todos os passos necessários e todas as técnicas e segredos; tudo. E como o Pai
ama a todos os seus filhos, não apenas aos judeus e aos ocidentais, há outras revelações na Índia, no
Tibet, na Pérsia, etc. todas com o mesmo objetivo. Cabe à humanidade saber vê-las e praticá-las.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

O “DIA” DO FILHO DO HOMEM


Luc. 17:22-30
22. Disse então aos discípulos: "Virão dias em que ansiareis ver um dos dias do Filho do
Homem e não vereis,
23. e vos dirão: ei-lo lá, ou ei-lo aqui. Não saiais nem procureis.
24. Pois como, relampejando, o relâmpago fulgura de um horizonte a outro horizonte, as-
sim será o Filho do Homem no dia dele.
25. Mas primeiro deve ele experimentar muitas coisas e ser reprovado por esta geração.
26. E como ocorreu nos dias de Noé, assim será também nos dias do Filho do Homem:
27. comiam, bebiam, casavam e davam-se em casamento, até o dia em que Noé entrou na
arca e veio o cataclismo e perdeu a todos.
28. Como igualmente ocorreu nos dias de Lot: comiam, bebiam, compravam, vendiam,
plantavam e construíam,
29. mas no dia em que Lot saiu de Sodoma, choveu do céu fogo e enxofre e perdeu a to-
dos.
30. Do mesmo modo será o dia em que o Filho do Homem se revelar".

A interpretação literal deste trecho, dado pelas igrejas ortodoxas, não satisfaz espiritualmente: imagi-
nam ser a volta do mesmo Jesus, o Cristo, de forma espetacular e formidanda, imenso, abarcando os
céus, para o "juízo final". É a denominada parusia. O infantilismo dessa concepção pode vicejar no
analfabetismo generalizado da idade média. Hoje cai no ridículo do absurdo.
Mas há indagações várias que fazer:
a) Que significa o "dia" do Filho do Homem?
b) Por que ansiaria a criatura por ver "um" desses dias, sem que o pudesse conseguir?
c) Por que haveria uma falsa localização aliciadora dos crentes?
d) Por que e como seria o aparecimento semelhante ao do relâmpago?
e) De que forma se assemelharia, ao mesmo tempo, a uma inundação de água e a um incêndio vulcâ-
nico de fogo e enxofre?
f) Pelas palavras parece tratar-se de fenômeno próximo a realizar-se. Mas por que teria o Filho do
Homem de experimentar dores (sofrer) antes de aparecer como um relâmpago? Se a "paixão" de
Jesus se deu dentro de alguns meses a partir dessas palavras, até agora, após dois mil anos, nada
apareceu nos céus com essas características. Teria Jesus se enganado?
Anotemos a recomendação de não "ir atrás" (apelthête) e de não "perseguir" ou "procurar" (diôzête)
essa imaginação enganadora de um Filho do Homem hipotético: a vinda será espontânea (cfr. Mat.
24:27).
Vêm, então, as comparações:
a) com Noé, no dilúvio (tecnicamente designado como cataclismo (kataclismós) como no Gênesis
6:17; 7:6; 9:11 E 28), com uma enumeração de quatro funções materiais dos homens da época:
comer, beber, casar (egámoun, isto é, o homem que busca: a mulher) e dar-se em casamento (ega-

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mízonto, ou seja, a mulher que busca o homem). Infelizmente não há, em português, termos que
possam ser usados para; traduzir, com uma só palavra, o significado preciso desses verbos gregos.
b) com Lot, na "chuva de fogo e enxofre do céu", onde também são citadas seis atitudes humanas
materiais dos homens: comer, beber, comprar, vender, plantar e edificar.
Notemos que a expressão é a mesma que se repete: nos dias do Filho do Homem, nos dias de Noé, nos
dias de Lot; usada também no singular: o dia do Filho do Homem, no dia em que Noé entrou na arca,
no dia em que Lot saiu de Sodoma, e no dia em que o Filho do Homem se manifestar.

A interpretação racional tem que ser procurada através do significado simbólico das palavras, coisa
que os próprios fatos citados do Antigo Testamento vêm esclarecer.
Analisemo-los, pois, em primeiro lugar.
NOÉ (em hebraico No'ah, significando quietude) símbolo de alguém que não se mistura com a multi-
dão bulhenta e rixadora, só preocupada com as atividades físicas da comida e do sexo animalizado.
Mas, ao contrário, busca na quietude solitária da meditação um aprendizado mais profundo. Com
efeito "aos seiscentos anos" (o SEIS exprime o penúltimo passo, cfr. vol. 4) Noé consegue sobrenadar
acima do populacho e permanecer a salvo em cima das águas, isto é, penetra o sentido alegórico dos
acontecimentos e dos ensinos (cfr. vol 4). E isso ocorre depois que mergulhou "na arca" de seu cora-
ção, embora ainda acompanhado de todos os "animais" de seus veículos físicos (células, etc.).
Ora, em todo esse fato, houve realmente um "dia", ou seja, uma LUZ, em oposição às trevas da noite
interior; e não é fora de propósito o que se diz: na LUZ (no "dia") em que Noé entrou na arca, ao per-
ceber o sentido alegórico do ensino, enquanto a multidão humana permanecia no puro animalismo,
perdendo-se todos, sem que se dessem conta do que se passava com aquele mais elevado discípulo,
que foi até mesmo ridiculizado como fantasista, alucinado e louco.
Semelhantemente, no "dia" em que Lot saiu de Sodoma (que significa "aridez") quando a humanidade
algo mais esclarecida já se preocupava com problemas mais intelectuais: comprar, vender, plantar e
edificar - houve uma LUZ que se fez em seus interior, e ele saiu de Sodoma, ou seja se desligou dos
interesses materiais, coisa que nem sua própria esposa compreendeu, e por isso não pó de acompa-
nhá-lo, transformando-se em "estátua de sal” (matéria pura).
Em ambos os casos, a massa humana atrasada recebeu os resultados funestos de sua permanência
teimosa nos planos mais baixos e a perda dos corpos animalizados foi generalizada, para que outros
veículos mais adiantados lhes fossem construídos: no primeiro caso, a destruição foi pela água,. no
segundo, pelo fogo.
Observando-se sob esse prisma, tornam-se claras as palavras referentes ao Filho do Homem.
Já sabemos o que significava a expressão (cfr. vol. 1): o ser que superou a evolução no reino hominal
e passou para o grau seguinte. Essa transição é dada pela permanência do mergulho no Cristo Inter-
no, que é o "portador da Luz" (Lúcifer) definitiva do despertamento total, em plano mais elevado da
consciência.
Tudo isso já devia ser perfeitamente sabido pelos "discípulos" da Assembléia do Caminho. E foi a eles
que o Mestre falou. Logicamente o evangelista anotou a lição sob o véu do mistério, de forma a não
ser percebida pelos profanos, como não o foi até hoje.
Então, foi dito: "chegará a época em que ansiareis ver um dos dias do Filho do Homem e não vereis".
Quer dizer: ao atingirdes certa evolução espiritual e desejardes penetrar na Luz e alcançar o grau de
Filho do Homem, nem que seja momentaneamente (um dos dias)" não o conseguireis dessa forma, por
provocação pessoal.
Ocorre que, quando o aspirante ou mesmo o discípulo estão nessa busca ansiosa, lançam mão de to-
dos os recursos, sobretudo na ilusão de que vão encontrar o caminho iniciático FORA deles mesmos.
Aparecem, então, numerosos os que se intitulam "mestres", pretendendo agrupar em torno de sua vai-

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SABEDORIA DO EVANGELHO

dade as almas sequiosas de aperfeiçoamento. E muitas delas, que desconhecem ou não compreendem
o Evangelho, seguem quais carneiros mansos para o matadouro espiritual, e ingressam nas confra-
rias, fraternidades, ordens ou grupos, nos quais pontificam esses "mestres" autonomeados. E assim
retardam cada vez mais o "seu dia". Mas, como nada ocorre por acaso, essas demoras são úteis ou,
talvez até, necessárias, para que haja maior amadurecimento espiritual antes do "encontro". En-
quanto vão cá e lá, em busca de um mestre externo, com endereço errado do Cristo, estão acabando
de fazer a própria catarse e evoluindo um pouco mais. Aqueles que, realmente estão "no ponto", esses
recusam filiar-se a grupos: voltam-se para dentro de si mesmos, e lá encontram o caminho que busca-
vam.
Como reconhecer as agremiações certas, aonde ingressar para estudos, sem o risco de perder-se num
desvio? São aquelas onde não há mestres, já que o único Mestre é o Cristo.
O Cristo (Filho do Homem) aconselha, pois, categoricamente, que "não vamos atrás deles nem os
procuremos", e dá a razão: "como, relampejando, o relâmpago fulgura de um horizonte a outro hori-
zonte, assim será o Filho do Homem no dia dele". Traduzindo o pensamento: da mesma forma que o
relâmpago ilumina repentina e inesperadamente o céu todo, assim se dá o aparecimento do Filho do
Homem no coração da criatura que amadureceu espiritualmente (1).
(1) A expressão "no dia dele” é omitida no papiro 75, em B e D (bons códices), mas aparece no Sinaí-
tico, em A, K, L, W, X, delta, theta; pi e ypsilon. E essas palavras são "chave": assim aparece o Filho
do Homem NA LUZ DELE.
No silêncio e na quietude da meditação, (No'ah), dentro da arca do coração e fora da aridez (Sodo-
ma) do mundo material consumido pelo fogo das ambições e pelo enxofre das paixões exacerbadas, o
discípulo levanta o véu ("Lot” significa exatamente véu, e no último versículo está que o Filho do
Homem "se revelará", isto é, levantará o véu) e sente em si mesmo como um relâmpago relampejante
a presença divina, e nela se perde, se desfaz, se incendeia, se infinitiza, num grau de consciência
muito mais elevado que a pequenina consciência da personagem, tornando-se, então, também ele, um
Filho do Homem.
Isso, porém, não lhe é dado de graça: "primeiro deve ele (o discípulo que se torna Filho do Homem)
sofrer ou experimentar muitas coisas: sobretudo ser "reprovado" por sua geração atrasada que com
ele habita a Terra. Todos os intérpretes atribuem essa alusão a Jesus: é "Ele" que diz que vai sofrer.
Cremos, entretanto, que se refere ao novo candidato: antes de tornar-se Filho do Homem, deve ele
suportar e experimentar (páthein. vol. 4) muitas coisas, e deve ser rejeitado por sua geração.
São dados, então: exemplos esclarecedores: NOÉ (quietude) e LOT (véu) o conseguiram; mas um teve
que penetrar nas águas da interpretação alegórica e permanecer solitário e em quietude durante qua-
renta dias e quarenta noites (quanto durou o "dilúvio" e quanto durou a estada de Jesus no deserto
depois do "mergulho"); e Lot teve que sair de Sodoma ("aridez", vol. 5) para alcançarem o grau am-
bicionado, mesmo à custa, o segundo, da perda da esposa. Ambos deram testemunho de fidelidade às
ordens recebidas, com desapego total de tudo o que possuíam e que perderam, o primeiro pela água, o
segundo pelo logo, antes de recomeçarem nova vida, como "homens novos" que se tornaram.
A frase final vem trazer a confirmação de tudo: "será assim o dia em que o Filho do Homem SE RE-
VELAR (apokalyptetai, isto é, tirar o véu, Lot) que o oculta a nós mesmos, pois nós mesmos seremos
os Filhos do Homem amanhã. Essa manifestação ou revelação de Filhos do Homem em nós far-se-á
ASSIM, como o relampejar repentino e fulgurante, de um horizonte a outro, revestindo de LUZ, ou
lucificando, todo o nosso ilimitado Espírito, em um átimo de segundo. E a massa de células que nos
cerca materialmente nos veículos físicos, verá desaparecer em outras dimensões o Espírito, e, sem ele,
perecerá, quer afogada nos fluidos do plano astral ou do físico, quer queimada pelo fogo e pelo enxo-
fre que a envolve, a fim de aniquilar-lhe totalmente as impurezas e poderem as células renascer um
ponto acima, na evolução.
Temos, assim, uma descrição do grande acontecimento que aguarda o Espírito em sua unificação com
o Todo.

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Trata-se de uma espécie de choque violento, que realmente lembra um cataclismo destruidor: tudo em
torno se abate e desmorona e se desmantela e morre abruptamente nesse instante solene e único em
que o existir mergulha no ser, em que conscientemente o homem transfere seu centro para o Espírito
adimensional (e por isso ilimitado), inespacial (e por isso infinito, porque fora do espaço), instante
sublime em que a criatura se absorve no Criador, sentindo-se LUZ sem sombra, DIA sem noite, eter-
no, porque fora do tempo.
A descrição pode não ser entendida de pronto, sem explicação. Mas, depois de interpretada, fica tão
clara a lição, tantas vezes descrita, quase com as mesmas palavras, pelos místicos de todos os climas,
de todas as épocas, e todos os cultos, que não compreendemos como já não tivesse sido percebida
durante os dois milênios que nos separam de sua divulgação.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

A PRECE
Luc. 18:1-8
1. Narrava-lhes então (Jesus) uma parábola, quanto a eles deverem orar sempre e ja-
mais negligenciar,
2. dizendo: "Em certa cidade havia um juiz que não temia a Deus nem respeitava os
homens.
3. Também, naquela cidade, havia uma viúva que vinha a ele constantemente, dizendo:
defende-me contra meu adversário.
4. E por muito tempo, não queria, mas depois disse em si mesmo: embora não tema a
Deus nem respeite os homens,
5. como, porém, me cansa esta viúva, defendê-la-ei, para que me não venha molestar até
o fim.
6. Disse, então, o senhor: ouvi o que diz esse juiz não-justo.
7. Deus, porém, não defenderá seus escolhidos que a ele clamam dia e noite, nem é mise-
ricordioso com eles?
8. Digo-vos que defenderá com rapidez. Mas ao vir, acaso o Filho do Homem achará fi-
delidade na Terra?"

O trecho aqui apresentado, dá-nos o resumo doutrinário que, depois, é esclarecido pela narrativa para-
bólica.
O verbo proseuchestai (composto de pros e éuchomai, "orar a alguém") tem o sujeito do infinitivo em
acusativo (autoús) posposto ao verbo. O sentido é "orar", com a acepção de dirigir preces, oferecer-se
à Divindade, pántote, sempre, o tempo todo, sem negligenciar, sem cessar (mê egkakein).
O juiz não-justo é-nos mostrado como não temente a Deus nem respeitador dos homens: fazia o que
bem queria. A viúva vinha a ele constantemente (o verbo êrcheto está no imperfeito iterativo, que ex-
prime ação repetida no passado). Ela pedia-lhe que a "defendesse": o sentido de ekdíkêson é "defende-
me" ou "faze-me justiça", dando a entender que a justiça consistia em defendê-la do adversário que a
prejudicava. Aqui "adversário" é simplesmente antídikos, ou seja, a "parte contrária" num processo.
Durante muito tempo o juiz resistiu às súplicas da viúva; mas viu-se tão acossado que resolveu atendê-
la, para ficar livre das visitas constantes que o molestavam.
E o Mestre chama a atenção dos discípulos para a conclusão do juiz: atender, embora não fosse justo, a
um pedido insistente, e daí parte para a comparação com a prece.
A primeira vista, choca-nos essa comparação: também Deus só atenderá se a prece for longa e repeti-
da, e com a finalidade de não ser "molestado" pelo crente, e não por bondade, misericórdia e justiça?
Não é esse, precisamente, o sentido de suas palavras: "Deus defenderá seus escolhidos que a Ele cla-
mam dia e noite, pois é misericordioso com eles". A diferença nos tempos dos verbos (poiêsêi, aoristo;
e makrothymeí, presente) exprime, o primeiro uma garantia do que há de ocorrer, e o segundo uma
qualidade inerente à Força Divina; o verbo makrothymeí pode ser até transliterado: longânime. E essa
defesa será rápida.
O último versículo, em sua segunda parte, parece nada ter com o contexto da parábola; "acaso, ao vir,
o Filho do Homem achará fidelidade na Terra"? Os intérpretes colocam essa frase como uma restrição,

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já que é iniciada por plên ("contudo"): será que, no fim dos tempos, diante de tantos sofrimentos, os
discípulos se manterão fiéis?

Analisemos.
ORAÇÃO - A oração não se limita a um petitório ininterrupto, nem Deus é uma "pessoa" (antropo-
morfismo) que resolva fazer ou não fazer" atender ou negar. Deus é a LEI" implacável e impessoal,
que age inapelavelmente. Não é um "pedido" que fará mudar o curso dos acontecimentos: é a mudan-
ça de vibração da pessoa interessada que pode fazer mudar o fato que estava para acontecer.

Expliquemos.
"Antônio" está com uma dívida vencida, e o credor se dispõe a cobrá-la judicialmente. Se o devedor
paga a dívida, o credor não mais o processará. Houve mudança de vibração por parte do devedor,
mas o credor não modificou, seu modo de agir.
“Maria" está com a mão no lugar em que o lenhador vai bater o machado. A mão será decepada. Mas
ao descer o machado, Maria retira rapidamente a mão, e o machado não a toca. Houve mudança de
atitude de Maria, mas o lenhador prossegue impertérrito seu trabalho.
Um maquinista conduz velozmente seu trem. "João", parado na linha férrea vai ser atropelado. Mas,
ao perceber o perigo, João pula para fora das trilhos e o trem passa deixando-o incólume. Houve mo-
dificação da posição de João, mas não do maquinista.
Esses três exemplos podem revelar-nos o que é a prece. Não adiantaria Maria pedir ao machado que
desviasse seu curso; nem João pedir que o trem parasse de repente" ; nem ao devedor pedir ao credor
que o não processasse.
Não é o PEDIR em si que obtém o "milagre": é a modificação de atitude e de vibração da criatura,
que faz seja obtido o favor, e que propicia se faça sentir a Infinita Misericórdia da LEI, que só atinge
os rebeldes incorrigíveis. Desde que a criatura se volte do lado favorável, a dor não na atinge.
Assim ocorre na prece contínua e incessante. Não é esse PEDIR que modifica a ação do Legislador,
para que a LEI seja anulada ou falseada. Trata-se (psicologicamente pode provar-se isso) da modifi-
cação de atitude do pedinte: de tanto repetir, ele aos poucos transforma sua mente, adaptando-a ao
novo fator que deseja seja introduzido em sua vida. E essa adaptação, embora inconsciente, decide a
obtenção daquilo que ele deseja.
No entanto; essa mudança tem que ser real e objetiva. Como porém isso poderia ser interpretado mal,
e muitos pretenderiam "fingir" que mudaram externamente, na expectativa do cumprimento de seu
desejo, mas sem mudar intimamente, (e portanto sem fazer jus ao recebimento desejado), o Mestre,
bom psicólogo, ensinou logo um método que não admite dúvidas: oração continua e incessante. A
mudança virá automaticamente para os que estiverem “maduros". Para os imaturos, não virá a modi-
ficação mental; mas também não conseguirão uma prece continua e incessante. Ao contrário, ao se
não verem atendidos logo, desistem e se revelam quais são: impacientes, revoltados, descrentes.
O exemplo da viúva satisfaz à condição requerida: jamais se impacienta, nem rebela, nem descrê, mas
volta sistematicamente ao juiz, a pedir defesa de seus direitos.
Tudo porque a LEI tem as mesmas características que o juiz não-justo: a LEI não teme a Deus (por-
que é o próprio Deus); nem atende em vista de títulos, nem de posições aos homens. Exatamente as-
sim. A LEI dá, quando a criatura entra em sintoma com ela para receber.
É a imagem do copo. A LEI derrama sua misericórdia (makrothymei, no presente, ação continuada e
incessante) ininterruptamente, como um jorro d'água a cair permanentemente. Se lhe chegamos um
copo emborcado, de boca para baixo (revoltado!), nada captamos. Mas se sob o jorro colocamos um
copo de boca para cima (sintonizado, em "posição certa"), a água enche o copo: o pedido é atendido.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Como, então, não seriam atendidos os "escolhidos", aqueles que estão conforme a LEI? Serão atendi-
dos, e rapidamente. Mas ... será que haverá fidelidade na Terra, fidelidade REAL e não apenas apa-
rência externa, no momento em que o Filho do Homem chegar?
Não é pela posição social, nem pelo título pomposo de reis e sacerdotes, nem pela exterioridade de
virtudes físicas corpóreas, que alguém fará jus ao recebimento de benefícios celestiais, mas pela sin-
tonia interna do SER: "os errados e as prostitutas vos precederão (a vós, sacerdotes) no reino de
Deus" (Mat 21:31).
A expressão: "que a Ele clamam dia e noite" exprime a oração permanente sem negligência. Os her-
meneutas afirmam que a prece não pode ser contínua, pois há outros afazeres, mas sim reiterada. No
entanto, não é esse o espírito da parábola. O que aí se diz é que devemos orar SEMPRE (pántote), sem
jamais negligenciar ou cessar (mê egkakein). E isso porque a oração não é a fórmula recitada maqui-
nalmente para pedir favores: trata-se de uma atitude espiritual do psiquismo, da sintonia do ser com o
SER, jamais dele se desligando, onde quer que esteja, fazendo qualquer ato.
Orar é permanecer ligado à corrente, mesmo que não estejamos recitando fórmulas nem pronuncian-
do palavras. É como permanecer ligado à corrente um rádio-receptor, embora não esteja transmitin-
do som, no momento. Jamais nos desliguemos da corrente, e nosso coração permanecerá alimentado
pela eletricidade e pelo magnetismo divino a todo momento.

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VAIDADE
Luc. 18:9-14
9. Disse também esta parábola, para aqueles que confiam em si mesmos, que são justos,
e desprezam os outros:
10. "Dois homens subiram ao templo a orar, um fariseu e o outro cobrador de impostos.
11. O fariseu, de pé, dentro de si orava: Deus, agradeço-te porque não sou como os outros
homens, ladrões, injustos, adúlteros, nem mesmo como esse cobrador de impostos;
12. jejuo duas vezes por semana e dou o dízimo de tudo quanto ganho.
13. O cobrador de impostos, todavia, de pé ao longe, não queria nem sequer erguer os
olhos para o céu mas batia no peito, dizendo: Deus, sê propício a mim, um errado.
14. Digo-vos que este desceu justificado para sua casa, mas não aquele; porque todo o
que se exalta será humilhado, e o que se humilha será exaltado".

Ensino endereçado aos que se julgam bons, puros, virtuosos e, portanto, superiores àqueles que ainda
conservam os vícios e erros humanos. Por causa disso, segregam-se do convívio de todos os "pecado-
res" e dos "viciados”, fogem de sua companhia e até envergonham-se de falar com eles. Só aceitam a
convivência de seus "iguais", nos quais ainda descobrem defeitos, mas enfim ... acham-se generosos
em tolerar sua presença.
Exatamente esse é o significado da palavra "fariseus" (pharusim, "separados") e deles escreveu Flávio
Josefo (Bell. Jud. 1, 5, 2) que "se consideravam mais puros" que os demais israelitas. Precisamente
isso é demonstrado pela parábola: o orgulho presunçoso e vaidoso da virtude, que fez Huberto Rohden
exclamar: "Deus me livre de minhas virtudes, que de meus vícios me livro eu".
A expressão "subir" ao templo exprimia a verdade, pois a construção fora executada no cume do
Monte Morya, na cidade de Jerusalém.
Era hábito dos israelitas orarem de pé, e não de joelhos (cfr. 1.º Reis. 8:55 e Mat. 6:5). Vemos que
tanto um quanto o outro estavam de pé no templo. O sentimento interno que extravasava da prece de
cada um é que constituía a diferença moral entre ambos, e não a posição física do corpo que de nada
importa.
O fariseu enumera, satisfeito, os vícios que domina: roubo, injustiça adultério, e as virtudes que, se-
gundo ele, o colocam num pedestal acima do "vulgo profano que ele odeia" (Ódi profanum vulgus et
arceo", Hor., Odes, III, 1,1). São elas:
a) o jejum, realizado duas vezes na semana, sentido evidente de "sábado", pois não se compreenderia
jejuar duas vezes "cada sábado". Ora, a obrigação legal era de jejuar uma vez por ano, no dia 9 de
ab, no yom kippur, ou dia da expiação pelo saque de Jerusalém realizado por Nabucodonosor. Era,
pois, segundo o fariseu, ato altamente meritório.
b) dá o dízimo (a décima parte) "de tudo quanto ganha" (pânta hósa ktômai) o que também significa-
va um acréscimo às exigências legais (Lev. 27:30-33 e Deut. 14:22-29) que só ordenava recolher o
dízimo das colheitas e dos rebanhos. Dízimo "de tudo" só lemos ter sido dado por Abrão a Melqui-
sedec (Gên. 14:20).
O cobrador de impostos limitou-se a pedir misericórdia, humildemente cônscio de que era uma criatura
defeituosa, com erros e vícios, embora aspirasse ao "céu", mas sem coragem sequer de olhar para ele.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

E volta a frase: "quem se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado", que já encontra-
mos.

Figura “O FARISEU E O COBRADOR DE IMPOSTOS”


Desenho de Bida, gravura de Bracquemond

O ensino aqui trazido à nossa meditação constitui ponto basilar no processo evolutivo; mas enquanto
caminhamos ao longo da estrada, só poucos conseguem percebê-lo.
Ao observarmos as seitas ortodoxas ou não, os ambientes espiritualistas e religiosos, verificamos que
a maioria absoluta faz questão das aparências externas, crente de que nisso consiste a virtude.

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VIRTUDE
Analisando etimologicamente a palavra “virtude”, vemos que é derivada do latim VIRTUS que, por
sua vez, deriva de VIR (homem, varão, o elemento forte). E VIR é proveniente de VIS, a "força", da
raiz VI, que também dá viril, violência, etc.
Então, "virtude é a qualidade de quem tem força", sobretudo moral.
Analisando a virtude do ponto de vista evolutivo, verificamos que, enquanto a criatura tem que “fazer
força" para evitar o erro, o desvio do caminho certo, isso demonstra que ainda não evoluiu. Por
exemplo: "não roubar" consiste em não tirar materialmente o que nos não pertence, embora se morra
de vontade de fazê-lo; "castidade" é não ter contato físico corporal, ainda que os desejos mentais e
emocionais sejam incontrolados; "ser religioso" é frequentar, em dias prefixados, a casa de oração
com o corpo, mesmo que a mente permaneça distante e, ao sair de lá, as ações demonstrem que não
somos nada religiosos. E assim por diante. A criatura que assim age, se julga "virtuosa", porque "faz
força" para adquirir bons hábitos e, geralmente, consegue praticá-los com sacrifício.
Fazer força para melhorar não é um mal. Absolutamente. Constitui antes um grande benefício para o
próprio, pois é esse exercício constante de vencer as inclinações erradas, que nos vão acostumando a
não gostar delas. Assim, depois de várias encarnações que vivemos a fazer esforços continuados de
virtude, acabamos acostumando-nos e forma-se então o hábito. Esse hábito plasma, no subconsciente,
o instinto. Uma vez formado este, e quando agimos certo naturalmente, sem esforço e sem sequer pen-
sar nisso, então teremos dado um passo evolutivo à frente.
Deixaremos de ser "virtuosos", para sermos "naturais" ou espontâneos, já que o hábito bom se tornou
parte integrante de nossa natureza íntima .
Portanto, o esforço despendido para ser "virtuosos" (forte moral e espiritualmente) é exercício de
suma vantagem no caminho evolutivo.
O erro da criatura reside em julgar que, por estar combatendo em si as más inclinações, já é evoluída,
acreditando-se, por isso, superior aos outros e desprezando-os, e até mesmo evitando-lhes a compa-
nhia "para não se misturar" e não ser confundido com eles. O que também pode constituir uma "defe-
sa" para quem não está muito seguro consigo mesmo.
Mesmo inconscientemente, a criatura "virtuosa" se compara aos outros, chegando à conclusão de que
"já é diferente" e, por esse motivo agradece a Deus; ao passo que a criatura evoluída não se compara
a ninguém, porque não se vê perfeita, nem repara nos outros, porque não tem tempo para isso.
Ora, a vibração da vaidade presunçosa é pior que o próprio erro em si. Porque a vaidade é a vibra-
ção oposta à humildade divina. O erro, trazendo vergonha, desperta a humildade, o que aproxima da
sintonia do Sistema. A vaidade afasta deste e leva a sintonizar com o Anti-Sistema. Por isso, o cobra-
dor de impostos, ao pedir misericórdia para seus erros, saiu do templo justificado, porque sintonizado
com a humildade.
Para o fariseu todos os homens eram ladrões, injustos e adúlteros. Para o cobrador de impostos só
havia preocupação consigo mesmo, a fim de pedir compaixão para seus erros. Já vimos, no capítulo
anterior, que "os errados e as prostitutas precederão os sacerdotes no reino de Deus" (Mat. 21:31),
não porque sejam melhores, mas porque são humildes, ao passo que os sacerdotes possuem a vaidade
do posto que ocupam.
A lição é prática e se dirige especialmente aos "discípulos" das Escolas. Por terem conseguido ingres-
so nesses setores mais selecionados, e por terem aprendido algo mais adiantado que não é dado às
massas incultas, eles facilmente são tentados a acreditar-se superiores, escolhidos, melhores, privile-
giados, "iniciados" e até "mestrinhos", com todo o revestimento de vaidade que isso naturalmente traz
à criatura ainda imperfeita.
Essa parábola é um alerta vigoroso, que deve manter-se sempre presente em todos os ambientes espi-
ritualistas, para evitar que grassem e cresçam o ciúme, a inveja, a emulação do orgulho, o julgar-se
melhor que os outros, a crítica e as "fofocas"; em todos esses ambientes, não faria mal uma tabuleta,

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SABEDORIA DO EVANGELHO

lembrando a parábola do fariseu e do cobrador de impostos, ou um quadro representativo da cena


instrutiva.
Porque, com os fariseus não adianta falar: eles não aceitam avisos nem conselhos; são os melhores,
sabem sempre mais, têm revelações espetaculares e elogiosas de "guias" e de "mentores" astronomi-
camente elevados ... pois seus "mestres" são superiores a todos os mestres ...

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LIBELO DE REPÚPIO

Mat. 19:3-12 Marc. 10:2-12

3. E vieram a ele (alguns) fariseus, tentando-o 2. E chegando (alguns) fariseus, perguntaram-


e dizendo: É lícito a um homem repudiar lhe, tentando-o, se era lícito a um homem
sua mulher por qualquer motivo? repudiar sua mulher.
4. Respondendo, disse: "Não sabeis que o Cri- 3. Respondendo, disse-lhes: "Que vos ordenou
ador, de início, macho e fêmea os fez, Moisés"?
5. e disse: por isso, um homem deixará o pai e 4. Eles disseram: Moisés permitiu dar carta de
a mãe e se aglutinará à mulher e serão os divórcio e repudiar.
dois uma só carne? 5. Jesus então disse-lhes: "Pela dureza de vos-
6. Por isso, já não são dois, mas uma só carne. so coração vos escreveu esse preceito.
O que Deus juntou, portanto, um homem 6. Mas no início da criação fê-los macho e fê-
não separe". mea, por essa razão, um homem deixará seu
7. Disseram-lhe: Por que então Moisés orde- pai e sua mãe e se aglutinará à sua mulher,
nou dar carta de divórcio e repudiar? 7. e serão os dois uma só carne; assim já não
8. Disse-lhes: "Moisés, por causa da vossa du- são dois, mas uma só carne.
reza de coração, vos permitiu repudiar vos- 8. Então, o que Deus juntou, um homem não
sas mulheres, mas no início não foi assim. separe".
9. Digo-vos, porém, que quem repudiar sua 9. E em casa, os discípulos de novo o interro-
mulher, a não ser por infidelidade, e casar garam sobre isso
com outra, adultera".
10. e disse-lhes: "o que repudiar sua mulher e
10. Disseram-lhe seus discípulos: Se é essa a casar com outra, adultera contra a primei-
condição do homem com a mulher, não ra; e se ela repudiar o homem dela e casar
convém casar. com outro, adultera".
11. Mas disse-lhes: "Nem todos compreendem
esta doutrina, mas a quem é dado:
12. porque há eunucos, os quais desde o ventre
materno foram gerados assim; e há eunucos
os quais foram castrados pelos homens; e há
eunucos os quais se castraram a si mesmas,
por causa do reino dos céus. Quem pode
compreender, compreenda".

Este trecho tem suscitado discussões teológicas e éticas, e não seremos nós que pretenderemos dizer a
última palavra. Trata-se da indissolubilidade ou não do matrimônio e da liceidade de novas núpcias
após o divórcio. A questão já foi ventilada no 2.º volume, quando se tratou do adultério, comentando
Mateus 5:27-32 e Luc. 16:18.
Aqui o assunto é tratado com mais pormenores, provocado por uma pergunta de "alguns" (o grego não
traz artigo, deixando indeterminado o sujeito no texto).

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Na época de Jesus havia duas escolas bastante influentes: a de Hillel, mais humana e tolerante e a de
Chammai, rigorosa e exigente. Vejamos, então, o discutido texto do Deuteronômlo (24:1-4):
"Se um homem toma uma mulher e coabita com ela, assim será se não achar benevolência diante
dele porque descobriu nela um costume inconveniente, escreverá carta de repúdio, dar-lha-á nas
mãos dela e a despedirá de sua casa. E, saindo, ela se torna de outro homem: o segundo homem,
se não gostar dela e escrever-lhe carta de repúdio e lhe der nas mãos dela e a despedir de sua
casa; e se morrer o segundo homem que a tomou para sua mulher, não poderá o primeiro homem
que a despediu, voltando atrás, tomá-la como sua mulher, depois de suja, porque isso é abomina-
ção diante do Senhor teu Deus: e não sujarás a terra que o Senhor teu Deus te deu em partilha".

Segundo Hillel, bastaria que o homem se desgostasse ou descobrisse qualquer defeito nela (até se
queimasse um prato de comida), para que fosse lícito repudiá-la. Chammai, porém, era inflexível: só se
houvesse realmente um "costume inconveniente", isto é, se a mulher lhe fosse infiel entregando-se a
outro homem, é que se lhe poderia dar carta de repúdio.
A mulher podia casar-se, depois disso, com outro homem.
O caso da mulher é o único previsto, porque o homem tinha plena liberdade de fazer o que quisesse
com seu corpo, do qual era dono absoluto, ao passo que o corpo da mulher pertencia ao homem que o
"comprara". O homem não precisava repudiar a mulher para ter outra ou outras esposas, desde que
tivesse meios para pagar os 50 siclos (1) poderia comprar quantas virgens quisesse e coabitar com to-
das a um tempo. Na época de Moisés não havia "casamento" no sentido em que hoje o entendemos
(civil e religioso ou contrato e "sacramento"): o homem era polígamo (e os mais evoluídos seres, os
patriarcas, reis e sacerdotes, os homens de bem, conviviam maritalmente com várias mulheres). A re-
gulamentação, pois, foi escrita por Moisés quanto ao repúdio, que nada tem que ver com a monogamia
nem com a indissolubilidade de um vínculo que só surgiu posteriormente, com a evolução da humani-
dade e das leis sociais.
Não havia, mesmo na época de Jesus, cerimônia religiosa para o casamento, mas apenas, nas famílias,
uma festa, em que, numa procissão, a noiva era levada por seus pais, que já haviam recebido o dinheiro
(o célebre “dote") à casa do noivo, mesmo que esse já possuísse uma, dez ou vinte outras mulheres
como esposas. Só era adúltera a mulher, porque o fato de entregar seu corpo a outro homem constituía
um "roubo" a seu dono, que lhe havia comprado exatamente o corpo.
Na época de Jesus, embora menos ampla, a poligamia ainda proliferava, permitida por lei. Para esses
hábitos Jesus falou, e não para o costume que mais tarde se implantou (em grande parte por obra da
legislação romaria e da influência do cristianismo) da monogamia.
O que Jesus afirmou foi que, uma vez que o homem houvesse adquirido uma esposa (ou várias delas)
não a deveria jamais repudiar, a não ser por motivo de infidelidade, isto é, a não ser que ela se entre-
gasse a outro homem, caso em que poderia libertá-la para que fosse viver com seu novo amor. "O que
Deus juntou, um homem não separe", pois "os dois se tornaram uma só carne": isto é, uma vez unidos,
não deve haver repúdio, não deve ser expulsa de casa a mulher com que se coabitou, pois isso seria um
atentado contra o mandamento de "amar ao próximo tanto quanto a si mesmo". Depois de conviver
com a mulher, é criminoso pô-la para fora de casa, a não ser que ela quisesse ir por sua espontânea
vontade, para aderir a outro. Quem o fizer, a leva a talvez adulterar (roubar o marido de outra); e se o
fizer e colocar outra no lugar dela, está adulterando com a primeira, isto é, está sendo infiel àquela à
qual se uniu numa só carne; e quem receber a repudiada e unir-se a ela, igualmente adultera, porque se
está unindo à que pertence a outro homem.
Então, vemos taxativamente condenado o repúdio, a expulsão de casa, quando ainda existe o laço de
amor, pelo menos de um lado. Quando, todavia, esse laço foi rompido de fato, porque ela se entregou a
outro por amor, aí o motivo mais forte existe: a ligação feita por Deus o foi com outra pessoa: dê-se-
lhe a liberdade de escolher seu caminho.

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A pergunta dos fariseus prende-se, precisamente, à causa do repúdio; se é lícito repudiar "por qualquer
motivo" (katà pásan aitía). E Jesus utiliza-se da mais perfeita técnica rabinica para responder, repor-
tando-se ao texto do Pentateuco e citando suas palavras ipsis lítteris, segundo a versão dos LXX, como
era de seu hábito, e não no original hebraico:
"Não sabeis que o criador (ktísas) desde o princípio macho e fêmea os fez"?
Está citado o vers. 27 do cap. 1.º do Gênesis, que se lê:
no hebraico (1) no grego (A)
"Elohim fez o homem à sua imagem, à imagem de "E o deus fez o homem, segundo a imagem do
elohim o fez, macho e fêmea os fez" . deus o fez, macho e fêmea os fez".
‫( ךיבךא אלהים יאה־האךם פצלמך בצלם‬1 A) Καί έποίησεν ό θεός τόν άνθρωπον,
‫אתם׃‬Н‫בךא‬Н‫ךבקבת‬М‫אתך‬М‫בךא‬Н‫ אלהים‬иατ΄είиόνα θεού έποίησεν αύτόν, άρσεν иαί θήλυ
έποίησεν αύτούς.

Notemos que "macho e fêmea" no grego estão no gênero neutro (ársen e thêlu); e no hebraico, os ter-
mos zakâr e n'qebâh exprimem macho e fêmea tendo em vista os órgãos sexuais, isto é, literalmente,
pênis e vagina.
Logo a seguir, emendando as frases com uma simples vírgula, prossegue citando o vers. 24 do cap. 2.º
do Gênesis: e disse:
no hebraico (2) no grego (B)
"Por isso deixará o homem seu pai e sua mãe e "Por essa razão deixará o homem o pai dele e a
será ligado com sua mulher e serão uma carne". mãe e se unirá à mulher dele e serão os dois uma
carne" .

Daí tira a conclusão: "O que Deus juntou, um homem não separe".
Até aqui, nada existe a respeito da monogamia: apenas é salientado que não se deve repudiar a mulher
com quem se coabita, porque, unindo-se, ambos passaram a constituir um só corpo físico; e o repúdio
representaria quase a amputação de uma metade do todo.
Na realidade, lemos no vers. 2 do cap. 5.º do Gênesis:
no hebraico (3) no grego (C)
"Macho e fêmea os fez e abençoou-os e fez o "Macho e fêmea fê-los e abençoou-os e chamou o
nome dele homem (adám) no dia em que o fez". nome dele adám no dia em que os fez".

Portanto, há uma só unidade macho e fêmea, e seu nome é um só, adám ("homem"), englobando o ser
completo, o duplo macho-fêmea.
Tudo isso, a nosso ver, refere-se à constituição do Espírito, que não possui distinção sexual, mas en-
globa em si a dupla possibilidade masculina e feminina. Quando se trata da plasmação dos veículos
físicos, é que a característica dominante prevalece sobre a outra, então dá-se a encarnação como ho-
mem (varão) ou como mulher. Tanto que, no próprio Gênesis, logo no cap. 2.º (após haver dito que foi
feito adám macho e fêmea, com a ordem de multiplicar-se na terra), volta o texto a dizer: "e não existia
o homem (adám) para trabalhar a terra" (Gên. 2:5). Como assim? Então o elohim, que já aqui é cha-
mado YHWH, resolve formar (o verbo hebraico não é mais baráh, criar, mas itsér, formar) o homem
"do pó da terra", isto é, revesti-lo de matéria física densa. Aí, nessa situação de encarnado, é que o
sexo dominante prevalece.

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‫( על־בו יעזב־איש אח־אביו ךאת־אמד‬2 B) “Ενεиεν τούτου иαταλείψει άνθρωπος τόν πα-
‫ ודכק באשחז דחיו לבשך אחך ׃‬τέρα αύτού иαί τήν µητέρα, иαί προσиολληθήσε-
ται πρός τήν γυναϊиα αύτού, иαί έσονται οιδυο είς
σάρиα µίαν.
‫( זבר ובקבח בראם ויבךד אחם ויקךא‬3 Γ) “Aρσεν иαί θήλυ έποίησεν αύτούς, иαί
‫ אה־שמם ארם ביום חבראם ׃‬εύλόγησεν αύτούς, иαί έπωνόµασε τό όνοµα
αύτού ‘Aδάµ, ή ήµέρα έποίησεν αύτούς.

Então, resolve o "elohim YHWH" dar-lhe uma companheira do sexo feminino, "que lhe seja a contra-
parte" literalmente: "E disse elohim-YHWH, não é bom ser o homem separado, farei para ele uma au-
xiliar, sua contraparte".
Temos, portanto, dois tempos distintos: a constituição (ou "criação") do Espírito bi-sexual, e a forma-
ção do corpo físico no qual só se desenvolve uma das duas características. Ora, a união de dois corpos
carnais de pólos opostos recompleta o Espírito bivalente: é um só Espírito em dois corpos. E quando
estes se unem, por meio do ato sexual, as duas tendências, que se encontravam separadas, tornam a
unificar-se.
A objeção dos fariseus é feita em tom de defesa da própria idéia. Sente-se que a primeira pergunta foi
colocada por um discípulo de Chammai: "será que qualquer motivo é suficiente para repudiar a mu-
lher, como diz Hillel"? Agora entra um dos discípulos de Hillel: "mas Moisés ordenou o repúdio" ... E
Jesus, imediatamente, corrige: Moisés PERMITIU o repúdio, o que é bem diferente ...
Mas por que permitiu? Pela dureza de coração (pròs tên sklerokardían) que não se sensibiliza pela
desgraça alheia e, egoisticamente, resolve as coisas de acordo com sua comodidade e seu prazer: se
não gosta mais da mulher, manda-a embora, sem pensar nos males que lhe podem advir, ao invés de
suportá-la e tratá-la bem até o fim, mesmo que seja ao lado de outras mulheres.
“De início, porém, não foi assim". Realmente, só é conhecido o caso do repúdio de Abraão contra Ha-
gar, por exigência de Sarah (cfr. Gên. 21.9-14), embora tivesse esse ato "parecido bem duro aos olhos
de Abraão, por causa de seu filho" (Ismael).
Repete-se, então, o ensino dado em Mat. 5:32, com as mesmas palavras: "Digo-vos, porém, que quem
repudia sua mulher, a não ser por infidelidade, e casa com outra, adultera; igualmente, também, quem
casa com a repudiada, adultera" (1).
(1) Esta última expressão não aparece em bons códices, como o Sinaítico, mas preferimos conservá-
la, porque: a) está no papiro 25 do 4.º século; b) está em Mat. 5:32; c) o copista pode ter saltado a
frase, erro fácil pois ambas as cláusulas terminam com a mesma palavra: kaì gamêsêi állên moichá-
tai, ôsaútôs kaì ho gamôn apoleyménên moichátai. Além disso, aparece em outros bons códices.
O último versículo de Marcos crêem alguns ter sido acrescentado pelo evangelista, porque escreveu
para os cristãos romanos, e nessa cidade era permitido a mulher repudiar o marido, coisa que a legisla-
ção israelita jamais admitiria. Lembremo-nos, todavia, que em 25 A.C. a irmã de Herodes o Grande,
Salomé, repudiou seu marido Costobar "apesar das leis judaicas" diz Flávio Josefo (Ant. Jud. 15, 7,
10); e também Herodíades deixara seu tio e marido Herodes Filipe, para casar com Herodes Ântipas;
por verberar isso, o Batista foi decapitado. E talvez a situação do momento, em que esse mesmo Ânti-
pas repudiara a filha de Nabateu 4.º, houvesse dado margem às perguntas dos fariseus.
Aqui entra Marcos, esclarecendo que o diálogo com os fariseus parou aí. O resto foi dito aos "discípu-
los", em particular, "em casa" onde os ensinos podiam ser aprofundados espiritualmente.
Vem então a objeção dos discípulos: "Se essa é a condição do homem em relação à mulher, não con-
vém casar". Seria arriscado trazer para casa a mulher e depois ter que sofrê-la o resto da vida, por pior
que ela fosse. Ainda aqui não se fala de monogamia, que só mais tarde Paulo exigiria daqueles que
pretendessem o cargo de inspetores ("bispos"): "Se alguém aspira a ser inspetor, deseja belo trabalho;
deve pois o inspetor ser irrepreensível, homem de uma só mulher", ... (l.ª Tim. 3:1-2).

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No entanto, esse mesmo Paulo permite que a mulher cristã, abandonada pelo marido incrédulo, se case
novamente, e vice-versa (l.ª Cor. 7:15); é o chamado "privilégio paulino". Mas recomenda a monoga-
mia: "Bom é que o homem não toque mulher mas, por causa das fornicações, cada um tenha sua mu-
lher e cada uma seu homem" ( l.ª Cor, 7:1-2).
Aos discípulos em particular foi dado o ensino elevadíssimo, do qual apenas as expressões enigmáticas
foram escritas e publicadas, com o aviso bem claro, duas vezes sublinhado, anteposto e posposto:
"Nem todos compreendem esta doutrina, mas a quem é dado", e no fim: "Quem pode compreender,
compreenda". As duas advertências salientam a dificuldade de interpretar-se a doutrina tão resumida e
enigmaticamente exposta.
Tornemos a ler as três asserções:
a) há eunucos que foram gerados assim desde o ventre materno;
b) há eunucos que foram castrados pelos homens;
c) há eunucos que se castraram a si mesmos por causa do reino dos céus.

Como entender? Literal e materialmente? Ou espiritualmente?


Se as duas primeiras forem interpretadas carnalmente, a terceira também deverá sê-lo (e foi o que
compreendeu e executou em si mesmo Orígenes), e não como quer Jerônimo (Patrol, Lat., vol. 36, col.
135): duorum carnalium et tertii spiritualis, ou seja, "o sentido dos dois (primeiros) é carnal, do tercei-
ro é espiritual".
Os rabinos (cfr. Strack-Billerbeck, o.c., t. 1, pág. 805/6) dividiam os eunucos em duas categorias:
a) os de nascimento (sârís mimme'ê immô) ou "do céu" (sârís châmaim) ou do sol, do calor (sârís
hâmmâh);
b) os dos homens (sârís ' âdâm).

O terceiro grupo foi introduzido por Jesus e proliferou de forma estupenda nos séculos que se lhe se-
guiram até hoje. Daí nasceu, pelo menos doutrinariamente, senão na prática, apoiada desde o início,
por todos os "pais da igreja":
a) a monogamia para ambos os sexos;
b) a indissolubilidade do vínculo matrimonial (1), sem exceções na igreja ocidental, e com a exceção
da infidelidade na igreja oriental-grega, que diz que "o adultério rompe os laços matrimoniais";
c) o culto do celibato masculino, sobretudo monacal e sacerdotal;
d) a exaltação da virgindade feminina.
(1) O matrimônio foi citado na igreja cristã como "sacramento”, pela primeira vez, por Hugo de Saint-
Victor (+ 1142) em "De Sacramentis”, 2, 11 (Patrol. Lat vol. 176, col. 479) e logo a seguir Pedro
Lombardo (c. 1150) em seu "Sententiae” 4, 2, 1, cita a lista dos sete sacramentos, introduzindo,
em último lugar, o matrimônio. Só no Concílio de Florença (1439) essa lista foi proclamada "dog-
ma". A palavra "sacramentum" que Agostinho escreve no De Bono Conjugali, 32 e no Contra
Julianum, 3, 57, referindo-se ao matrimônio, tem o sentido exato do termo latino na época: sáncti-
tas sacramenti é então, a "santidade do juramento" da fidelidade conjugal, baseado no sacramen-
tum que era a palavra usada para o juramento dos soldados quando entravam para o serviço do
exército romano.

Antes de qualquer comentário ulterior, pedimos ao leitor que releia o que foi escrito no volume 2
desta obra.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Tudo o que escrevemos nessas páginas é mantido integralmente aqui, em vista da interpretação que
dá o apóstolo Paulo das palavras aqui focalizadas: "Assim também devem os maridos amar a suas
mulheres como a seus próprios corpos. Quem ama a sua mulher, ama-se a si mesmo, pois ninguém
jamais aborreceu a própria carne, mas a nutre e dela cuida, como também o Cristo o faz à ekklêsía,
porque somos membros de seu corpo. Por esta razão o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à
sua mulher e os dois serão uma só carne. Este mistério é grande, mas eu falo em relação a Cristo e à
ekklêsía" (Ef. 5:28-32).
Tudo o que expendemos no primeiro comentário é válido para a personagem humana, que situa sua
consciência nos veículos interiores materiais.
Mas Paulo, como iniciado graduado na "Assembléia do Caminho", penetrou o "mistério" (a explica-
ção proibida aos profanos) do ensino dado aos "discípulos" em particular, e que apenas vimos acena-
dos nos dois últimos versículos do trecho que analisamos.
Eunuco é palavra grega composta de eunê ("leito") e échô ("guardo"), e exprime o cargo do homem
de maior confiança: o que vigiava o leito e o quarto de dormir de seu senhor. Por extensão passou a
designar os grandes do reino (ainda hoje, um título de grande honra na igreja católica é a de "Cama-
reira do Papa", isto é, guarda do quarto (câmara) em que dorme o Pontífice), os homens de absoluta
confiança do governo, encarregados dos negócios secretos, titulares de responsabilidade, embaixado-
res e legados de assuntos particulares. Com o tempo, os eunucos passaram a ser vigias dos harens dos
soberanos, para cuidar de suas concubinas, a carga mais preciosa do palácio. E, para tal mister, era-
lhe imposta a operação da extirpação das glândulas sexuais. Daí o sentido derivado que tomou a pa-
lavra, de "castrados", que se popularizou, tornando-se termo depreciativo de "homem impotente e sem
capacidade para procriar e para realizar".
Até hoje se tem interpretado as palavras do Cristo como designativas de "mantenedor de castidade",
ou seja, criatura afastada dos prazeres sexuais. Jerônimo classifica os dois primeiros casos de casti-
moniae necéssitas, non volúntas est, isto é, "não vontade, mas necessidade de castidade", e a terceira:
per se enim cástitas blanda est et quémlibet ad se alliciens, ou seja: "atrativa por si mesma e suave"
(Patrol. Lat. vol. 26, col. 136), porque espontânea e "concedida aos que a pediram, aos que a quise-
ram, aos que se esforçaram para recebê-la" (his datum qui petierunt, qui voluerunt, qui ut accíperent
laboraverunt, ib, col. 135).
Parece-nos evidente que Jesus, o Cristo, não podia ter tomado como modelo dos que aspiravam ao
reino dos céus aqueles homens que se tornavam impotentes e deficientes, quando sabemos que a pro-
dução hormonial das glândulas sexuais é excepcional alimento das atividades intelectuais e, por esse
intermédio, do vigor espiritual. Não se trata, pois, do segundo sentido derivado e depreciativo de
"castrado", mas simplesmente do significado moral que possa exprimir.
Em geral os hermeneutas interpretam: se existem homens que já nascem defeituosos nos órgãos geni-
tais, forçados por isso a evitar as relações sexuais; se há os que são violentamente obrigados pela
maldade e ambição dos homens a tornar-se incapazes para essas relações; também existem aqueles
que voluntária e espontaneamente se coagem moralmente para evitar contatos com o sexo oposto,
quer com o celibato masculino, quer com a virgindade feminina.
Mas há outra interpretação dos dois primeiros casos, que reputamos muito mais lógica e coerente
com a doutrina do Cristo: os "eunucos" desde o ventre materno são os que já nascem com a elevação
espiritual conquistada em vidas anteriores, e desde pequenos se revelam totalmente fortes e superiores
às emoções sensoriais do sexo vivendo uma vida casta e isenta de sensações fortes, como tantos exem-
plos de santos e místicos que a história registra, e que se tornaram modelos para a humanidade.
Os "eunucos" que foram castrados pelos homens são os que se vêem obrigados a observar o celibato
ou a virgindade por decretos humanos, mesmo que sofram, e muito, com isso, como os membros mas-
culinos e femininos das ordens e congregações religiosas, os sacerdotes e monges, a isso coagidos
pelas leis eclesiásticas. E também os que, pelas circunstâncias e situações da vida, se sentem forçados
a manter-se celibatários e castos, o que ocorre sobretudo com as mulheres.

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C. TORRES PASTORINO

Os "eunucos" que se castraram a si mesmos por causa do reino dos céus são aqueles que, mesmo po-
dendo e tendo todas as capacidades, resolvem espontaneamente manter a castidade, a fim de aperfei-
çoar-se mais depressa. Não nasceram isentos das emoções amorosas. Não são obrigados pelos ho-
mens, porque não entraram para monastérios. Mas combatem para que - julgam - possam assim al-
cançar mais evolução e maior perfeição. Pelo trecho do Padre Teilhard de Chardin, que citamos no
vol. 2, não é isso o que ele pensa: "o homem encontra Deus através do amor à mulher, e vice-versa",
pode resumir-se seu pensamento. E para sintonizar com a Divindade, havemos de ter o amor que se
doa, e não o amor-egoísmo, que busca a própria perfeição sem doar-se.
Mas são nuanças muito pessoais, sobre que não é lícito legislar. Cada um tem seu ponto de vista e
deve seguir sua consciência.
***
Quanto às Escolas Iniciáticas, já que o ensino foi dado especialmente para elas, temos algumas con-
siderações que fazer.
Já aqui olharemos toda a lição do ponto de vista da Individualidade, isto é, do Espírito, ao qual não
afetam as ações puramente materiais da personagem transitória, pois todas elas são também transitó-
rias e morrem com a morte da personagem. Ao Espírito só afetam as ações que partem do Espírito,
envolvendo-o profundamente e baixando suas vibrações para o plano das emoções desordenadas.
Olhando sob esse prisma, sabemos que o Espírito possui uma contraparte em algum plano de vibra-
ção (cfr. Gên. 2:18; que reproduzimos mais abaixo), encarnada ou desencarnada, neste ou em outro
planeta, mas sua complementação inata. Quando foi criado o homem (adám) isto é, quando a psiquê
animal adquiriu a capacidade racional através do intelecto, foi feita a bipolaridade do Espírito, taxa-
tivamente declarada: fez adám macho e fêmea.

HOMINIZAÇÃO
Aproveitando o termo utilizado pelo padre Teilhard de Chardin, recordemos a narrativa bíblica.
O animal, que vivia no paraíso da irresponsabilidade (como até hoje seus iguais) podia alimentar-se
de todas as árvores, menos da árvore da "ciência do bem e do mal" (raciocínio com discernimento
moral). A "árvore", representação da medula espinal encimada pelo cérebro, é maravilhoso símbolo;
e Huberto Rohden já descreveu o processo: no reino vegetal, a planta está com a cabeça e os órgãos
da alimentação para baixo (as raízes) e com os órgãos sexuais de reprodução para o alto (flores e
frutos). No reino animal, há um processo de horizontalização, e tanto a cabeça quanto os órgãos ge-
nitais estão no mesmo nível do solo. No homem, termina o giro de 180º, e a cabeça fica no alto, pas-
sando para baixo os órgãos sexuais.
Tudo isso figura nas entrelinhas do relato do Gênesis. Reparemos em que a proibição de comer da
"árvore" do conhecimento do bem e do mal traz ameaça de um castigo, mas o homem é levado a isso
pela serpente, exatamente o símbolo do intelecto, tanto assim que aí mesmo se diz que era "o animal
mais astuto do éden". Então, o desenvolvimento maior do intelecto, permitido pelo maior número de
circunvoluções do cérebro físico, trouxe a possibilidade do raciocínio abstrato de consequências mo-
rais. Um dos castigos é "a morte".
A expressão "se comeres do fruto da árvore do bem e do mal certamente morrerás" (Gên. 2:17) é
confirmação: no dia em que adquirires o raciocínio abstrato, a "razão", discernindo o bem do mal,
morrerás como animal irracional, para nasceres como homem racional. Porque não é crível que até
então os animais não estivessem sujeitos à morte ... Os símbolos são belos e certos, mas a interpreta-
ção do texto segundo a "letra" faz desacreditar no relato bíblico, que se torna "incrível", cientifica-
mente absurdo. Por exemplo, como podia Adám (que segundo o Gênesis foi formado diretamente por
Deus, e Eva da costela dele) dizer que "o homem deixaria pai e mãe", se ele não tivera nem pai nem
mãe? E mais quando YHWH diz à serpente "andarás sobre teu ventre e comerás pó todos os dias de
tua vida", o sentido é simbólico, já que ninguém conseguiu jamais descobrir que a serpente, antes dis-

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SABEDORIA DO EVANGELHO

so, tivesse pernas ... ao contrário, sempre foi assim, mesmo antes dessa solene condenação. No en-
tanto, não é difícil descobrir nessas palavras, o significado: o intelecto (serpente) caminhará sempre
horizontalmente sobre a terra (raciocínio linear ou serpentino) e para toda a vida "comeria o pó" das
coisas terrenas. Realmente, só quando o homem supera a fase do intelecto e atinge a mente, é que
poderá verticalizar-se pela intuição, acima do intelecto rasteiro. Mas estamos saindo do assunto.
O novo ser, que abandona a animalidade irracional, sai do campo de forças da mente cósmica, a que
cegamente obedecem minerais, vegetais e animais, para adquirir a liberdade de escolha, que já lhe é
possível, e que vai torná-lo responsável pelo bem e pelo mal que praticar por seu livre arbítrio. Daí
em diante ele terá que resolver sozinho sua estrada e percorrê-la à própria custa, com "o suor de seu
rosto".
A psiquê animal evoluiu a tal ponto, que se tornou um Espírito, um Ego consciente, ilimitado, atempo-
ral, inespacial, partícipe da Mente Divina que nele habita e portanto apto a perceber, no próprio in-
telecto, as intuições que lhe advêm dos planos superiores, onde permanece ligado o Espírito imortal.
Trata-se, então, realmente, da CRIAÇÃO DO HOMEM, cujas origens anímicas e corporais procedem
do animal, mas cuja superioridade racional é uma conquista sua própria, um prêmio a seu esforço
ininterrupto, através dos reinos inferiores da natureza, conseguido por obra do impulso da Luz que
sempre esteve nele, o Lúcifer da Terra, pois consigo carregava a Centelha ou Mônada divina, mas em
estado latente, sem que ele mesmo se desse conta de sua grandeza interna. Agora, com o intelecto des-
envolvido, o processo atinge seu clímax, a consciência desabrocha vívida, e o caminho se torna mais
rápido, mas sob sua própria e pessoal responsabilidade.
Quando, CRIADO ESSE ESPÍRITO, este tem que descer à carne, para evoluir, não pode mais ter os
dois sexos totalmente desenvolvidos a um tempo no corpo físico: uma parte terá sempre que atrofiar-
se, para deixar que sua contraparte alcance sua maturação normal e eficiente.
O fragmento "elohista" chega até Gên. 2:3; daí começa um dos fragmentos "yahwistas" (1) em que se
relata a formação do globo terráqueo e o aparecimento do corpo do homem formado de matéria ("do
pó da terra"). E o verbo empregado não é mais bará (criar), mas itsér (formar). Neste segundo trecho
é que aparece a distinção dos sexos: "e disse yahweh-elohim: não é bom ser o homem separado, farei
para ele um auxiliar, sua contraparte" (waiiômer YHWH elohim lô-tôb heiôt haâdâm, l'bâddô, e'e-
cheh-lô eger b'negddô).
(1) Chamam-se fragmentos "elohistas" os trechos de Gênesis em que a divindade é apresentada com o
nome de "elohim", e "yahwistas" aqueles em que se chama "elohim-YHWH". A esse respeito, a
"Enciclopedia de la Biblia", Obra católica, escreve: “No puede atribuirse al mismo autor el relato
esquemático, teológico y transcendente de la creación del primer capítulo donde 'Elohim aparece
como un Ser transncendente e inaccesible, creando todas las cosas con su omnipotencia y sabidu-
ria, y el relato folklórico, descriptivo, infantil, ingenuo y antropomórfico del capítulo 2 donde
Yahweh-'Elohim aparece modelando el cuerpo del hombre como um alfarero, o sacando, como un
cirurjano, una costilla de Adán para formar a Eva, y haciendo después de sastre para cubrir la des-
nudez de los primeros padres” ("Enciclopedia de la Biblia", Garriga, Barcelona, 1963, vol. 3.º, col.
772).
Formado o corpo do homem, faltava-lhe o complemento físico e emocional. E numa simbologia muito
interessante, mostra-nos adám formando com sua "costela" (eufemismo piedoso) no silêncio da noite,
na hora do sono, o ser feminino que lhe nasce como "osso de meus ossos e carne de minha carne"
(isto é, sua filha), companheira que já começava, como ele, a perder as características simiescas, por-
que já possuía, como ele, uma forma melhorada, embora o tipo primitivo, cientificamente conhecido
como "pitecânthropus erectus". Talvez seja afoita essa teoria, mas, pelo menos, é cientificamente
aceitável, mais que o "transplante" de uma costela ...
Evidentemente, depois disso, e bem mais tarde, foi compreendido que o homem devia "deixar pai e
mãe" (de forma e intelecto rudimentares, porque ainda símios) e aderir à sua mulher, com ele for-
mando uma só carne no mesmo nível evolutivo um pouco superior.

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C. TORRES PASTORINO

Tudo isso, entretanto, refere-se ainda à personagem.


Mas em relação à individualidade, temos outra visão.
O Espírito, como vimos, se biparte para encarnar, mas a união das duas metades (macho-fêmea) foi
realizada pela Vida em evolução constante, e essa jamais poderá ser separada por "um homem", nem
pelas contingências da vida. Hão de reencontrar-se e refundir-se num só todo, em plano superior de
evolução. Mas isso já é outro assunto.
No entanto, há que descer à matéria para evoluir: a necessidade é vital, pois não há evolução fora da
matéria, já o vimos (cfr. vol. 4). Para isso, o Espírito deixará seu mundo próprio e sublime (seu pai e
sua mãe) e se unirá à personagem, e "os dois serão uma só carne", porque o corpo físico É REAL-
MENTE o próprio Espírito condensado, que permanece unido a ele, e homem algum tem o direito de
separá-los, nem ele próprio pode "repudiar" seu alter ego (cfr. Paulo: "ninguém jamais aborreceu a
própria carne, mas a nutre e dela cuida", Ef. 5:29).
A lição servia para os profanos no campo das uniões carnais do matrimônio, mas para os "discípulos"
o ensino era muito mais profundo. De uma lição dada às massas, foi feita ilação para outra mais ele-
vada e definitiva.
Tanto foi assim que, quando os discípulos, já em casa a sós com o Mestre, lhe dizem que "não vale a
pena casar", este muda totalmente de assunto; se a resposta tivesse sido realmente apenas a que o
Evangelho registra, seríamos tentados a perguntar com certa irreverência: "e daí?" Os três casos de
"eunucos" não respondem absolutamente à objeção de que "não convinha que o homem casasse".
O assunto tratado era bem mais sublime, daí a introdução: "nem todos podem compreender este ensi-
no, mas só a quem é dado"; e a eles foi dado. E eles nos legaram o esquema, para que, se pudéssemos
compreender, compreendêssemos.
Vejamos, inicialmente, o que pode significar o termo eunuco. Etimologicamente, o “guarda do leito";
na realidade, um alto funcionário, um título nobiliárquico; no sentido pejorativo, o que é castrado, ou
seja, aquele de que foi tirada toda esperança e a possibilidade de possuir uma complementação para
seu corpo físico (porque continuam aptos a amar espiritualmente).
Parece que o sentido é o terceiro, já que por duas vezes é usado o verbo eunouchízô, a primeira no
aoristo passivo (eunouchísthêsan, foram castrados) a segunda no aoristo ativo (eunoúchisan, castra-
ram). Isto é: nascem privados, foram privados e privaram-se a si mesmos, por uma razão sublime: o
reino dos céus. Mas, privaram-se DE QUE?
Na mesma ordem de idéias: da posse de todas as complementações materiais, e não apenas do sexo.
Há os que são privados de tudo, desde o nascimento, entrando na vida terrena como criaturas paupér-
rimas, sem ter onde repousar a cabeça, a não ser um pedaço de chão duro. Nem sempre resignados,
quase sempre revoltados.
Há os que são privados de tudo pelos homens: embora ambiciosos, tudo o que conquistam lhes é tira-
do, e jamais conseguem juntar nada para si mesmos.
E há os que "vendem tudo e distribuem aos pobres", e além do mais vão "seguir o Mestre", eunucos
voluntários, que renunciam ao sexo, aos bens, aos parentes sanguíneos, reduzindo-se ao zero quase
absoluto, como o fez Gandhi ainda neste século. Gandhi que escreveu em suas Epístolas ao Ashram,
que quem pretendesse controlar o sexo, tinha que controlar também todos os sentidos e os vícios: o
gosto, o olfato, o tato, os olhos e ouvidos, e a gula, a ambição, o conforto material ... se isso não fosse
feito, a força sexual explodiria, senão nas realizações, pelo menos nos desejos e pensamentos incon-
troláveis. Gandhi entendeu o sentido do termo "eunuco" que Jesus emprega neste passo do Evange-
lho: abstenção total de tudo o que diz respeito aos veículos inferiores, para poder conquistar o reino
dos céus, ou seja, o Espírito.
A maior dificuldade que sentem os seminaristas e os sacerdotes em observar o voto de castidade resi-
de na recomendação que o Papa Bento XV fez aos reitores de seminários e superiores de ordem reli-
giosa, de que compensassem a falta de relações sexuais com boa alimentação, bons vinhos e com os
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SABEDORIA DO EVANGELHO

"prazeres lícitos"; ora, Gandhi, o Mestre que, neste século, melhor viveu o cristianismo evangélico,
ensinou o contrário, e ensinou certo: para conservar-se casto sexualmente, abstenção total e absoluta
de vinhos e bebidas fortes, de carnes, de acepipes condimentados, moderação no comer, passando em
quase jejum sem conforto de camas macias, nem de muitos agazalhos, e nenhuma concessão aos pra-
zeres de qualquer espécie, por mais inocente que sejam. Ou brahmacharya (castidade-abstenção) é
completa, ou não existe. Isto é castrar-se e tornar-se eunuco por causa do reino dos céus: renúncia
voluntária e espontânea e entusiástica e completa a TUDO o que traga sensações e emoções. Viver do
Espírito, no Espírito e para o Espírito.
E vamos encontrar plena confirmação desta interpretação no próprio Evangelho, logo a seguir, no
episódio do "moço rico" e na "dificuldade de os ricos conquistarem o reino dos céus" (Mat. 19:16-30;
Marc. 10:17-31; Luc. 18:18-30).
Quem pode compreender, compreenda!

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C. TORRES PASTORINO

JESUS E AS CRIANÇAS

Mat. 19:13-15 Marc. 10:13-16 Luc. 18:15-17

13. Depois, trouxeram-lhe (al- 13. E lhe trouxeram crianças 15. Traziam-lhe também as
gumas) crianças para que para que as tocasse; os dis- criancinhas para que as to-
impusesse as mãos sobre cípulos, porém, as repreen- casse; vendo-o, os discípu-
elas e orasse; os discípulos, diam. los os repreendiam.
porém, as repreendiam. 14. Vendo isto, Jesus zangou-se 16. Mas Jesus, chamando-os,
14. Mas Jesus disse: "Deixai as e disse-lhes: "Deixai virem disse: "Deixai virem a mim
crianças e não proibais que a mim as crianças, não o as crianças e não proibais,
venham a mim, porque des- proibais, porque destas é o pois destas é o reino de
tas é o reino dos céus". reino de Deus. Deus.
15. E depois que lhes impôs as 15. Em verdade vos digo, quem 17. Em verdade vos digo, quem
mãos, partiu dali. não receber o reino de Deus não receber o reino de Deus
como uma criança, de como uma criança, de
modo do algum entrará modo do algum entrará
nele". nele".
16. E abraçando-as, as abenço-
ava, pondo as mãos sobre
elas.

Temos a impressão de que a chegada das crianças, acompanhadas das mães, veio interromper os ensi-
nos que eram dados aos discípulos. Daí sua impaciência e o gesto, aliado à voz, para impedir a apro-
ximação bulhenta e irrequieta.
Foram trazidas, como é hábito no oriente, para que o Mestre, já conhecido como taumaturgo, as aben-
çoasse, colocando-lhes a mão sobre a cabeça e orando por eles.
As bênçãos eram muito comuns entre os israelitas, por parte dos mais velhos, para augurar pelo futuro
dos mais moços. O Antigo Testamento traz vários exemplos dessas bênçãos, sendo célebres as de Ja-
cob a seus doze filhos (Gên. 49:1-28) e a de Moisés às doze tribos (Deut. 33:1-29). Também o toque
das mãos, com a emissão do magnetismo do taumaturgo, era tida como segura base e garantia de feli-
cidade presente e futura.
Quando Jesus observou a cena da invasão e o esforço que faziam Seus discípulos para manter à distân-
cia as crianças e suas mães, "zangou-se" (êganáktêsen, de aganaktéô). Aliás já dera provas de apreciar
os pequeninos (cfr. Mat. 18:1-5; Marc. 9:33-37; Luc. 9:46-48; vol. 4), e de tomá-los como modelos,
em vista de seu modo de agir.
A frase "Deixai virem a mim as crianças "tornou-se uma das mais citadas e queridas dos cristãos. E
Jesus conclui: "delas é o reino de Deus".
E abraçava (enagkalisámenos) e punha-lhes a mão sobre a cabeça, em passes que lhes deviam trazer
grandes benefícios materiais, morais e espirituais.
E a lição foi dada: "em Deus como uma criança, de verdade vos digo, quem não receber o reino de
modo algum entrará nele".

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Figura “JESUS E AS CRIANÇAS” – Desenho de Bida, gravura de L. Flameng

Dizem os exegetas que o reino de Deus é aqui apresentado como um DOM (que pode ser recebido) e
como um LUGAR (aonde se pode entrar). Essa é a compreensão mais comum e difundida: o reino de
Deus ou dos céus, é o "céu", aquele dos anjos tocando harpas sobre as nuvens, no qual os "lugares"
são conquistados ainda nesta vida, e às vezes até "vendidos".
Quantos erros fatais trouxe essa interpretação durante tantos séculos!
Nem dom, nem lugar, mas CONQUISTA: um estado de consciência em que "se entra" ou se penetra,
"recebendo-o" quando se atinge determinado estágio evolutivo de elevadíssima frequência vibratória
espiritual.
O reino dos céus tem que ser recebido como uma criança recebe o que lhe damos: com interesse e
participação alegre de todo o ser. E nele só se penetra quando nos tornamos crianças, isto é, com a
naturalidade e humildade normais à infância, que confia e ama, sem distinções nem exigências: por
mais que a mãe seja nervosa e rigorosa com seu filho pequenino e o castigue e nele bata, ele só sabe
refugiar-se, mesmo depois das pancadas, no colo dessa mesma mãe, para chorar sua dor, e para re-
conquistar o mais depressa possível o amor daquela que é tudo para ele: é o amor integra! "confiante,
ilimitado e sem rancores, pleno e fiel.
* * *
No estilo da Escola iniciática, "criança" tem outro sentido: são os que se aproximam, ansiosos de pe-
netrar no grupo fechado dos discípulos, mas ainda não suficientemente maduros para acompanhar o

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C. TORRES PASTORINO

aprendizado sério que aí é ministrado: são as "crianças espirituais" que não podem receber o pábulo
forte, como observa Paulo: "eu, irmãos não vos pude falar como a espirituais, mas como a carnais,
como a criancinhas em Cristo. Leite vos dei de beber, não vos dei comida, porque ainda não podíeis.
Ainda agora não podeis, porque ainda sois carnais" (1.ª Cor. 3:1-3).
Acontece, porém, que não pode ser neste sentido que é exigido "ser criança": não se vai pedir a uma
criatura mais evoluída, que volte atrás em seu adiantamento, para tornar-se de novo simples "aspiran-
te", embora muitas vezes o aspirante demonstre maior entusiasmo e mais ardor que aqueles que já es-
tão à frente, e, quase sempre, é bem mais humilde que aqueles, porque reconhece melhor suas defici-
ências e sua ignorância, enquanto os " adiantados" se incham de vaidade.
De uma forma ou de outra, é indispensável possuir certas qualidades, para que se alcance o reino dos
céus. Sem pretender enumerar todas, poderemos citar, como próprio das crianças em tenra idade, as
seguintes qualidades:
1 - a HUMILDADE, que está sempre disposta a reconhecer sua incapacidade e a esforçar-se por
aprender, sem pretender ser nem saber mais que o instrutor; e essa qualidade é básica na infância, que
aceita o que se lhe ensina com humildade e fé;
2 - o AMOR, que se prontifica sempre a perdoar e esquecer as ofensas. A criança pode brigar a sopa-
pos e pontapés, e sair apanhando, mas na primeira ocasião vai novamente brincar com quem a maltra-
tou, esquecendo-se totalmente do que houve;
3 - a ÂNSIA DE SABER, coisa que as crianças possuem até chegar, por vezes, ao ponto de exasperar
os mais vemos com suas perguntas constantes, embaraçosas e indiscretas, jamais dando-se por inte-
gralmente satisfeitas;
4 - a PERSEVERANÇA que, quando quer uma coisa, não desiste, mas usa de todas as artimanhas até
conseguí-la, com incrível persistência e teimosia, obtendo o que quer, às vezes, pelo cansaço que causa
aos adultos;
5 - a INOCÊNCIA, sem qualquer malícia, diante de quaisquer cenas e situações; para as crianças tudo
é "natural" e limpo, mormente se são educadas sem mistérios nem segredos, pois a maldade ainda não
viciou suas almas;
6 - a SIMPLICIDADE, tudo fazendo sem calcular "o que dirão os outros", sem ter preconceitos nem
procurar esconder qualquer gesto ou ato, mesmo aqueles que os adultos hipocritamente classificam
como "vergonhosos”;
7 - a DOCILIDADE de deixar-se guiar, confiantemente, pelos mais idosos, sem indagar sequer "aonde
vão". Não podem imaginar traições nem enganos, porque eles mesmos são incapazes de fazê-lo, e jul-
gam os outros por si.
Se tivermos essa conduta, simples e natural, como a criança (isto é, sem forçar), estaremos com as
qualidades necessárias para poder "receber" estado de consciência superior que traz à alma a paz que
Cristo dá e a felicidade plena do Espírito.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

O MOÇO RICO

Mat. 19:16-22 Marc. 10:17-22 Luc. 18:18-23

16. E eis, vindo a ele, alguém 17. E saindo ele para o cami- 18. E interrogou-o certo prín-
disse: “Mestre, que de bom nha, acorreu alguém e, ajo- cipe, dizendo: "Bom mes-
farei para que conquiste a elhando-se-lhe diante, per- tre, que farei para partici-
vida imanente"? guntou-lhe: “Bom mestre, par da vida imanente"?
que farei para que partici- 19. Disse-lhe Jesus: "Por que
17. Ele disse-lhe: "Por que me
pe da vida imanente"?
perguntas sobre o bem? me chamas bom? Ninguém
Um é o bom. Se queres, po- 18. Jesus disse-lhe: “Por que é bom senão um, Deus.
rém, entrar na vida, obede- me chamas bom? Ninguém 20. Sabes os mandamentos:
ce aos mandamentos". é bom, senão um Só, Deus. não adulterarás, não mata-
18. Disse-lhe: "De que modo”? 19. Sabes os mandamentos: rás, não furtarás, não tes-
Respondeu, pois, Jesus: não matarás, não adultera- temunharás em falso, hon-
"Não matarás, não adulte- rás, não furtarás, não darás ra o pai e a mãe".
rarás, não furtarás, não di- testemunho falso, não de- 21. Ele disse-lhe: "Tudo isso
rás falso testemunho, fraudarás, honra a pai e a observo desde minha ju-
mãe".
19. honra o pai e a mãe e ama- ventude".
rás teu próximo como a ti 20. Ele disse-lhe: "Mestre, tudo 22. Ouvindo isso, Jesus disse-
mesmo". isso observo desde minha lhe: "Ainda te falta uma
juventude".
20. Disse-lhe o jovem: "Tudo coisa: vende tudo o que
isso observo desde minha 21. Contemplando-o, Jesus a tens e distribui aos mendi-
mocidade; que me falta amou e disse-lhe: "Uma gos e terás um tesouro nos
ainda"? coisa te falta: vai, vende céus; e vem, segue-me".
tudo o que tens e dá aos 23. Ao ouvir isso, ficou triste,
21. Disse-lhe Jesus: “Se queres
mendigos e terás um tesou-
ser perfeito, vai, vende teus porque era muito rico.
ro no céu; e vem, segue-
bens e dá aos mendigos e
me".
terás um tesouro nos céus;
e vem, segue-me”. 22. Ele, preocupado com esse
ensino, saiu triste, porque
22. Ouvindo, porém, o jovem
tinha muitas riquezas.
esse ensino, saiu entristeci-
do, pois tinha muitas posses

Quem era esse moço, na época, não se chega a saber pelas vias normais da história. Mateus e Marcos
dizem "alguém", enquanto Lucas afirma tratar-se de "certo potentado" (archôn, principal, chefe, prín-
cipe). Passado o episódio, desaparece totalmente eclipsado.
Outro pormenor de Lucas é que o moço, embora muito rico, se apresenta humilde, pois se ajoelha para
falar com Jesus.
Marcos e Lucas anotam o diálogo que parece ter sido o original: "Bom mestre, que farei para ter em
partilha a vida imanente" (didáskale agathé, tí poiêsô hína zôên aiônion klêronomesô;) Mateus torce a
frase "Mestre, que farei de bom"?

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C. TORRES PASTORINO

Jesus rejeita o título de "bom", que só deve ser atribuído a Deus, demonstrando mais uma vez (cfr.
Mat. 23:9; João 14:28 e 17:13) não julgar-se Deus, mas simples homem. Aceita, porém, o epíteto de
mestre (didáskalos, mestre no sentido de "professor") porque realmente o era. Jerônimo (Patrol. Lat.
vol. 26 col. 136) procura, com belo malabarismo, justificar o dogma da divindade de Jesus: quia ma-
gistrum vocaverat bonum et non Deum vel Dei Filium confessus erat, discit quamvis sanctum hominem
comparatione Dei non esse bonum, isto é, "porque chamara bom o mestre, mas não confessara que era
Deus, aprende que, embora sendo um homem santo, não era bom em comparação com Deus".

Figura “O MOÇO RICO” – Desenho de Bida, gravura de Leopold Flameng

Lemos em Mateus: "se queres entrar na vida, segue os mandamentos". Ao que o moço indaga poiãs,
"de que modo"? As traduções correntes trazem "quais"; mas para essa indagação, teria que ser usado o
interrogativo tiná.
Em Marcos e Lucas, Jesus responde logo: "segue os mandamentos" e os cita.
Há divergência aqui também. São comuns aos três sinópticos os quatro negativos:
1- não matarás;
2- não adulterarás
3- não furtarás
4- não dirás falso testemunho.
Marcos acrescenta: "não defraudarás", ou seja, não negarás a quem quer que seja o que lhe for devido,
bastante sintomático para quem era rico e podia, portanto, explorar os semelhantes.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Dos positivos, os três citam: honrarás pai e mãe; mas Mateus aduz ainda: "ama teu próximo como a ti
mesmo" (Lev. 19:18).
Ao todo, então, temos sete preceitos julgados básicos para a personagem, afim de permitir que o Espí-
rito "entre na vida":
1- não matar, não causar prejuízo físico ao corpo, próprio ou alheio, dispensando a esse veículo os
cuidados necessários à sua manutenção;
2- não adulterar, afastando-se dos preceitos religiosos dos guias espirituais, para buscar emoções em
outros cultos;
3- não furtar, causando prejuízos materiais, nem a si mesmo (desperdício) nem a outros;
4- não dizer falsos testemunhos, afim de não causar prejuízos morais, por meio de mentiras e calúni-
as, contra si e contra outros;
5- não defraudar, pagando ou dando menos que o justo e o contratado; nem contratar por preços me-
nores que os exigidos pela justiça e pela humanidade, abusando das necessidades e da fome alhei-
as;
6- honrar pai e mãe no serviço prestado com amor filial, atendendo às necessidades deles como eles
atenderam às nossas, em nossa primeira infância;
7- amar o próximo, tanto quanto amamos a nós mesmos, no serviço humano prestado à humanidade,
sem distinção de pessoas, de credos, de raças, de idades, de condições sociais, de laços sanguíneos.
Conforme vemos, regras práticas e eficientes para a vida diária. Nada de altos vôos místicos e ascéti-
cos: preceitos para o comum dos homens normais e ainda materializados e apegados às personagens
terrenas.
Ao ouvir as condições, o jovem retruca com simplicidade: "tudo isso tenho feito ou observado
(ephylaxa, perfeito de duração) desde minha mocidade". Essas últimas palavras faltam em alguns có-
dices, mas possuem todas as características de autenticidade: é comum aos jovens falar de sua mocida-
de como de algo distante no passado.
Depois dessas palavras, Jesus olha para ele (emblépsas) e o ama (agapésen, de agapáô, que é o amor
com predileção afetuosa, vol. 2) anotação privativa de Marcos, talvez por informação de Pedro que
assistiu à cena. Voltando-se, então, para o jovem, Jesus convida-o a participar de Sua Escola, tornan-
do-se Seu "discípulo".
Mas para isso era indispensável aspirar à perfeição e, portanto, renunciar a todos os bens terrenos: "vai,
vende tudo o que tens e distribui entre os mendigos (diadós, "dar em todas as direções", bem mais
forte que o simples dós, usado o primeiro por Lucas).
O choque foi violento demais e o rapaz ficou triste (Luc. perílypos), com o sobrecenho carregado
(Marcos: stygnasas) e afastou-se. Nunca mais dele se fala no Novo Testamento, como se tivesse de-
sencarnado.

A primeira observação a fazer é que, no episódio, narrado com simplicidade, o moço se afasta triste e
macambúzio, e no entanto Jesus não manifestou tristeza: apenas aproveitou a cena para tecer co-
mentários e dar ensinos aos discípulos com referência às riquezas, sobre que já falara (cfr. Mat. 6:24,
vol. 2 e Luc. 16:13, vol. 6).
A atitude do jovem foi normal e humana, e Jesus não o repreende. Apenas assinala que a perfeição
requer renúncia efetiva e total. Isso denota que não existe perfeição no modo de agir do moço, embora
não esteja, por isso, condenado: pode ter acesso à vida.
Nesse terreno, muitos exemplos encontramos de criaturas que se elevaram espiritualmente, isto é, que
evoluíram, em tarefas outras, também indispensáveis à humanidade, ainda que não constituam "per-

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C. TORRES PASTORINO

feição" espiritual. Assim os grandes industriais, comerciantes, artistas de todos os matizes podem fir-
mar-se no bem, sendo fiéis aos preceitos básicos requeridos na citação de Jesus.
Observemos que a perfeição é de alguns poucos, no sentido religioso. Se todos os homens se dedicas-
sem à perfeição religiosa e à espiritualidade, a evolução planetária ficaria paralisada. Há missioná-
rios que vêm com tarefas espirituais e missionários que vêm com tarefas materiais, cuidando da parte
econômica e financeira; os que plantam, os que colhem, os que armazenam para a revenda; os que
desenham, os que constróem, os que decoram os edifícios; os que fabricam, estocam e distribuem as
mercadorias, em troca do dinheiro que lhes possibilite prosseguir na produção de benesses; os que
estudam, pesquisam e aplicam o resultado de sua ciência para proveito das criaturas humanas e dos
animais e plantas; os que captam a inspiração para compor, os que orquestram e os que executam
para deleite dos homens; os que legislam, julgam e governam cidades e povos na manutenção da or-
dem; os que defendem acusados, os que curam doentes, os que assistem nos templos, todos sem exce-
ção, todas as profissões e trabalhos que apresentam SERVIÇO, dos mais elevados aos mais humildes,
podem ser levados à Vida, embora nem todos alcancem a perfeição.
A resposta estava no mesmo nível da pergunta: para entrar na vida, são indispensáveis, mas bastam,
os preceitos citados.
Todavia, se alguém busca a PERFEIÇÃO, há que primeiro desvencilhar-se de toda carga externa, de
tudo o que está agregado de fora, de todas as posses (grandes ou pequenas) que tragam apego e von-
tade de defendê-las contra assaltos e preocupações de que não sejam roubadas, e cuidados para que
se não estraguem. Daí a necessidade de vender TUDO e de distribuí-lo aos mendigos, aos que ainda
desejam posses materiais.
Para conseguir a perfeição, a caminhada é longa e árdua, e qualquer carga impede que se entre atra-
vés do “buraco da agulha", a “porta estreita" de que fala o Mestre (cfr. Mat. 7:13).
Entretanto, temos que buscar interpretação mais profunda do texto. Para entrar na Escola Iniciática,
deve o candidato desfazer-se de tudo, não em benefício da própria Escola (costume adotado através
dos séculos pelos que ingressam nas ordens religiosas masculinas e sobretudo femininas), mas para
distribuir aos mendigos. Nos capítulos seguintes veremos algo mais a respeito desse tema.
Não se pode, mesmo, misturar espírito com matéria, e a Escola terá que prover, pelo trabalho, ao
próprio sustento e ao sustento de seus membros.
O episódio do "moço rico" ensina-nos ainda a luta que se trava dentro de nós mesmos quando, cha-
mados pelo Cristo Interno a maior perfeição, temos pena de atender, porque os benefícios materiais e
o conforto que desfrutamos nos acenam com prazeres maiores e mais imediatos, que esse atendimento
a Voz silenciosa nos forçaria a largá-los. Como deixar de gozar a comodidade de um apartamento
novo, o deleite de ficar conversando, em poltrona anatômica, diante da televisão, à noite, para sacrifi-
car-nos a estudar, a frequentar uma reunião, a escrever um artigo? Desculpamo-nos com a "indispen-
sável assistência à família", embora o motivo principal nós o empurremos para o porão do subconsci-
ente e nem dele tomemos conhecimento. Deixar de ir a um cinema? Ora, trata-se de uma higiene
mental necessária a quem luta a semana inteira. Estudar aos domingos? Ah! esses pertencem à famí-
lia! E o chamado do Cristo para que nos dediquemos mais e mais, vai ficando postergado, irrespondi-
do ... Vem então a solução "sábia", que pensamos desculpar-nos integralmente: "Pessoalmente não
posso, mas arranjo meios, dinheiro, vantagens ... faço minha parte ... quando me aposentar" ... Então,
deixamos para o Cristo os ossos reumáticos da velhice, e isso mesmo, porque na velhice já não temos
mais esperança de arranjar novos empregos que nos proporcionem lucros ainda maiores.
Bem tipicamente escolhido o exemplo do moço rico. Porque na mocidade é que realmente se torna
difícil o abandono do que se tem e do que se sonha, se aspira e se espera ter, para mergulhar numa
vida de renúncia. Ricos "velhos" são mais facilmente encontrados com disposição de sacrificar uma
parte, embora mínima, de seus bens ("sabe, tenho meus filhos, não posso prejudicá-los: a própria lei
me proíbe fazer doações com o dinheiro que lhes constituirá a herança"!). No entanto, procuram doar
alguma coisa para "comprar" um post mortem menos angustiado, pois lhes dói a consciência, ao re-
cordar-se das maneiras pouco legítimas ou totalmente ilegítimas com que, por meia da exploração

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SABEDORIA DO EVANGELHO

ignóbil dos semelhantes, conquistaram aqueles bens. Então, quando sentem o peso dos anos e, olhan-
do para o chão, já recurvados sob o guante da tempo, vêem o retângulo da sepultura a lentamente
abrir-se, amedrontam-se e se tornam generosos, a isso compelidos pelos gritos dissonantes do remor-
so. É o que diz o velho adágio: "o diabo, depois de velho, fez-se ermitão".
Quem ama, procura doar-se o mais cedo possível. Qual o noivo que diz à noiva querida: "vou enri-
quecer primeiro; quando me aposentar, casarei contigo"? Assim, porém, fazem os jovens com o Cristo
Interno que os convoca ao Amor.

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DIFICULDADE DOS RICOS

Mat. 19:23-30 Marc. 10:23-31 Luc. 18:24-30

23. Jesus, pois, disse a seus discí- 23. Olhando em torno, disse Jesus a 24. Vendo, então, Jesus
pulos: "Em verdade vos digo seus discípulos: "Como entra- que ele se tornara
que um rico entrará com difi- rão com dificuldade no reino triste, disse: "Como
culdade no reino dos céus. dos céus os que têm riquezas"! dificilmente os que
têm riquezas entra-
24. Novamente vos digo: mais 24. Os discípulos porém se horrori-
rão no reino de
fácil é um camelo passar pelo zaram com as palavras dele.
Deus!
buraco de uma agulha, que Mas respondendo Jesus disse-
um rico entrar no reino de lhes: "Filhos, como é difícil en- 25. Pois é mais fácil um
Deus". trar no reino de Deus! camelo passar pelo
buraco de uma
25. Ouvindo isso, os discípulos 25. É mais fácil um camelo passar
agulha, que um rico
muito se chocaram e pergun- pelo buraco de uma agulha, que
entrar no rei no de
taram: "quem pode, então, um rico entrar no reino de
Deus".
salvar-se"? Deus".
26. Disseram, então, os
26. Olhando-os, porém, Jesus 26. Eles se chocaram terrivelmente,
ouvintes: "E quem
disse-lhes: "Aos homens isso é dizendo uns aos outros: "E
pode salvar-se"?
impossível, mas a Deus tudo é quem poderá salvar-se”?
possível". 27. Olhando-os, Jesus disse: "Aos
27. Ele disse: "O impos-
sível entre os ho-
27. Respondendo, então, Pedro homens isso é impossível, mas
mens é possível para
disse-lhe: "Eis que nós aban- não a Deus, pois tudo é possível
Deus".
donamos tudo e te seguimos; a Deus".
que, pois, será para nós"? 28. Começou Pedro a dizer-lhe:
28. Disse Pedro, então:
"Eis que deixamos
28. Mas Jesus disse-lhes: "Em "Eis que nós deixamos tudo e te
nossas coisas e te se-
verdade vos digo, que vós, que seguimos".
guimos ...
me seguistes na reencarnação, 29. Disse Jesus: "Em verdade vos
cada vez que o Filho do Ho- digo, ninguém que tenha deixa-
29. Então ele disse-lhes:
mem se sentar no trono de sua do casa ou irmãos ou irmãs ou
"Em verdade vos
glória, sentareis também vós mãe ou pai ou filhos ou terras,
digo que ninguém
sobre doze tronos, discrimi- por minha causa e por causa da
há que abandone
nando as doze tribos de Israel. Boa Nova,
casa ou esposa ou
irmãos ou pais ou
29. E todo que tenha abandonado 30. que não receba agora, nesta
filhos por causa do
casas ou irmãos ou irmãs ou oportunidade, o cêntuplo de ca- reino de Deus,
pai ou mãe ou esposa ou filhos sas e irmãos e irmãs e mães e
ou campos por causa do meu filhos e campos, com persegui-
30. que não receba mui-
nome, receberá o cêntuplo e ções, e no eon vindouro a vida
to mais nesta opor-
participará da vida imanente. imanente.
tunidade e a vida
imanente no eon
30. Muitos primeiros, porém, se- 31. Muitos primeiros, porém, serão
vindouro".
rão últimos, e últimos serão últimos, e últimos serão primei-
primeiros". ros".

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Neste trecho, temos os primeiros comentários feitos por Jesus, enquanto se afastava o jovem rico, triste
e preocupado (stygnasas, "de sobrecenho carregado") com a luta íntima que nele se travara entre a
vontade incontrolável de seguir o Mestre, e o apego descontrolado a seus bens, entre o amor ao Espí-
rito e o amor à matéria.
Marcos anota que Jesus "olhou em torno de si" (periblepsámenos), observando com penetração psico-
lógica o efeito que nos discípulos causara a cena, e o que produziriam suas palavras. E disse: "Como os
ricos entram com dificuldade no reino dos céus!" O advérbio dyskólôs, "dificilmente", é usado apenas
aqui nos três sinópticos.
A impressão recolhida no semblante dos discípulos foi de horror. Justamente eles pensavam que os
ricos entrariam muito mais facilmente: que não consegue um homem com dinheiro? Então Jesus resol-
ve aprofundar o espanto e chocá-los, para que jamais esqueçam a lição, e faz uma comparação que os
deixa boquiabertos: "é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha, que um rico entrar no
reino dos céus".
Teofilacto, no século 11°, em seus comentários evangélicos (Patrol. Graeca vol. 123) sugere que, em
lugar de kámelos, "camelo", devia ler-se cámilos, "cabo", "corda grossa", aceitando a hipótese já lan-
çada por Cirilo de Alexandria, em sua obra "Contra Julianum", cap. 6.º. Mas isso nada resolve. Além
do que a expressão de Jesus encontra eco nos escritos rabínicos: "ninguém sonha com uma palmeira de
ouro, nem com um elefante a passar pelo buraco de uma agulha" (Rabbi Raba, cfr. Strack e Billerbeck,
vol. I, pág. 828). Ora, na época de Jesus os camelos eram comuns à vida cotidiana, ao passo que os
elefantes constituíam recordações vagas de séculos atrás, por ocasião das guerras macedônicas. E o
mesmo Jesus utiliza outra comparação com o camelo: "vós, que coais um mosquito e engolis um ca-
melo" (Mat. 23: 24).
A exclamação cheia de ternura, com que Jesus se dirige a seus discípulos, chamando-os "meus filhos"
(tékna) parece querer abrandar o choque traumático que lhes causara. Na expressão "os que têm rique-
zas", o substantivo empregado é chrêmata, que engloba bens móveis e imóveis, ao passo que ktêmata
exprime apenas os imóveis.
No vers. 24 alguns códices trazem "Filhos, como é difícil aos que confiam nas riquezas entrar no reino
dos céus". Esse adendo, na opinião dos hermeneutas, é glosa antiga, para justificar os ricos que não
queriam desfazer-se de suas riquezas, mas cuja amizade interessava ao clero. Knabenbauer (Cursus
Sacrae Scripturae Paris, 1894, pág. 271) esclarece muito atiladamente: si glossa est, apte et opportune
addebatur; neque enim opes incursat, sed eos qui ultra modus iis inhaerent, isto é, "se é uma glosa, foi
acrescentada adequada e oportunamente; pois não condena as riquezas, mas aqueles que a elas se ape-
gam além da medida".
O trauma leva os discípulos (Lucas diz "os ouvintes") a interrogar-se entre si: "e quem poderá salvar-
se"? Realmente todos os seres humanos têm posses, embora as de alguns seja constituída de alguns
trapos para cobrir a nudez. Há então clara distinção entre pobreza efetiva e pobreza afetiva. A primeira,
por maior que seja, talvez a posse de simples lata velha para beber água, pode envolver apego que pro-
voque briga se alguém lha quiser tirar: enquanto a segunda, mesmo que se possuam bens quantiosos, é
mantida com a psicologia do mero gerente ou mordomo, sem nenhum apego afetivo em relação a ela.
Após a explicação de que a Deus nada é impossível, que corta o espanto com a faca da esperança, afi-
ada na pedra da fé e umedecida com o azeite da confiança no Amor divino, Pedro anima-se e "começa
a interrogar" a respeito dos discípulos. Não transparece, em sua indagação, nem egoísmo nem ambi-
ção, mas a curiosidade temperamental e ansiosa, típica dos inquietos: "e nós? Afinal, nós deixamos
tudo e te seguimos ... que acontecerá a nós"?
A resposta de Jesus, registrada por Mateus, tem um pormenor que não aparece nos outros.
Analisemos: amén légô humin (em verdade vos digo) hóti hymeis hoí akolouthésantés moi (que vós
que me seguistes), en têi palligenesíai (na reencarnação), hotan kathísêi ho hyiós toú anthrôpou (cada
vez que se sente o filho do homem) epi thrônou doxês autoú (sobre o trono de sua glória) kathêsesthe

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C. TORRES PASTORINO

kaì hymeis (sentareis também vós) epì dôdeka thronoús (sobre doze tronos) krínontes tàs dôdeka
phylàs toú Israêl (discriminando as doze tribos de Israel).
Temos que assinalar a expressão en têi paliggenesíai, "na reencarnação", termo familiar aos pitagóri-
cos e estóicos, para exprimir o que chamamos hoje, ainda, de reencarnação: o renascimento na matéria
do espírito imortal; com ele também era designada outrora a "transformação do mundo", nos passos
evolutivos que o planeta vai conquistando através dos milênios. Flávio emprega a palavra para expri-
mir a restauração de Israel, sentido provavelmente corrente na época, entre os israelitas, o que fez que
os discípulos pensassem que Jesus vinha operar essa restauração; e isso quiçá tenha provocado o pedi-
do de Tiago e de João (Marc. 10:35) logo a seguir. Philon de Alexandria usa essa palavra para designar
o renascimento do planeta após o dilúvio. E Paulo de Tarso (Tito, 3:5) com o sentido material de reen-
carnação e o sentido espiritual de nascimento na individualidade ou transição do psiquismo ao espírito,
tendo como resultado o surgir do "homem novo".
Outra observação quanto ao "trono de glória", que o Talmud denomina kissê kakkabod, quando diz:
"Há sete coisas que precederam de 2000 anos o mundo: a Torah, o trono de glória, o jardim do Eden, a
geena, a penitência, o santuário de sabedoria, e o nome do Messias. Onde estava escrita a Torah? Com
fogo negro sobre fogo branco, estava ela colocada nos joelhos de Deus, e Deus estava sentado no trono
de glória, e o trono de glória se mantinha no firmamento, que está acima da cabeça dos animais sagra-
dos" (cfr. Strack e Billerbeck, tomo I, pág, 975).
Jesus fala nos "doze tronos", contando ainda com Judas e nas "doze tribos" de Israel que, já à Sua épo-
ca, não mais se achavam divididas, pois séculos antes tinham sido conquistadas e dominadas pela tribo
de Judá, unificando-se num só bloco. Sua existência, pois, era apenas simbólica.
Essa frase consolida a interpretação de "palingenesia" dada por Flávio Josefo: a restauração do reino
de Israel, tornando a dividi-lo em doze tribos soberanas, cada uma das quais seria governada por um
dos doze discípulos. Os Apocalipses (cfr. 4.º Esdras 7:75) falam na renovação messiânica do mundo,
"quando o Todo-Poderoso vier renovar Sua criação". Mas embora se acreditasse que o Messias julgaria
o mundo (cfr. Mat. 25:31ss), neste trecho é dito que o julgamento seria feito pelos doze, a exemplo dos
"juizes" de Israel (como os "sufetas" de Cartago). Já Paulo fala que "os santos julgarão o mundo" (l.ª
Cor. 6:2).
A promessa de julgar (ou discriminar) é benefício honroso, mas transitório, pois é um "ato", que logo
finalizará.
Outras coisas, porém são ditas, a seguir, estendendo a todos os discípulos, contemporâneos e futuros,
que tiverem abandonado tudo "por causa dele". Marcos acrescenta: "E por causa do Evangelho (1).
(1) A palavra Evangelho ("Boa-Notícia") é frequente no vocabulário de Marcos, sendo empregada
oito vezes: 1:1; 1:14; 1:15; 8:35; 10:29; 13:10; 14:9 e 16:15, contra 4 vezes em Mateus, 4:23;
9:35; 24:14 e 26:13, e nenhuma vez nos outros dois evangelistas.
A enumeração do que se abandona compreende: casas, pai, mãe, esposa, filhos, irmãos, irmãs e cam-
pos (2).
(2) Em Mateus, o códice Vaticano, o mss. 2148, a ítala a e n, a versão siríaca palestinense, os pais
Irineu (latino) e Orígenes omitem "esposa" ; mas o termo aparece nos códices sinaítico, C; K, L,
W, X, delta, theta, nos mss. f 13, 28, 33, 565, 700, 892, 1009, 1010, 1071, 1079, 1195, 1216, 1230,
1241, 1242, 1253, 1344, 1365, 1546, 1646, 2174, os leccionários bizantinos, as ítalas áurea, c, i,
gl, h, l, q, a vulgata clementina as versões siríacas peschitta, curetoniana, harclense, as coptas
saídica e boaídica, a armênia, a etiópica, a georgiana, os pais Basílio, João Crisóstomo, Cirilo e
João Damasceno.
Quem, pois, deixar tudo isso, receberá "o cêntuplo AGORA, nesta oportunidade" (nyn en tôi kairôi
toútôi), que só podemos interpretar como "nesta presente vida física", pois logo a seguir se fala "no
eon vindouro", ou seja, na próxima existência.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

A promessa de abandonar UM e ganhar CEM tem trazido dificuldades aos hermeneutas da letra. Jerô-
nimo, porém, já dissera: qui carnalia pro Salvatore dimíserit, spiritualia récipit, ou seja: "quem pelo
Salvador deixar as coisas, recebe as espirituais" (Patrol. Lat. vol. 26, col. 139), interpretação também
apoiada por Ambrósio (Patrol. Lat. vol. 15, col. 1296).
Outros acenam à ampliação de bens e de "família" espiritual que lucram todos os que deixam a família
sanguínea, tendo como pais os superiores (Jesus, aqui mesmo, chama seus discípulos de "filhos");
como irmãos, todos os companheiros de crença (cfr. 2.ª Pe. 1:4, etc.); os "convertidos" são chamados
"filhos" (cfr. Gál. 4:19; 1.ª Cor. 15:58; 2.ª Cor. 6:11-13) e Paulo chega a chamar "mãe", à mãe de Ru-
fus (Rom. 16:13); quanto aos bens, eram eles colocados em comum (cfr. At. 2:44; 4:32; 11:29, 30;
16:15; Gál. 2:10 e 2.ª Cor. 8:1 a 9:15).
Lebreton ("Le Centuple Promis", in "Recherches de Science Religieuse", tomo 20, 1930, pág. 42-44)
diz que "a renúncia nos torna senhores da riqueza, ao invés de escravos dela", lembrando Paulo: ta-
mquam nihil habentes et omnia possidentes, isto é, "como nada tendo, mas tudo possuindo" (2.ª Cor.
6:10).
Marcos avisa que esse cêntuplo virá "com perseguições", embora seja promessa contida nos três si-
nópticos que, "no eon vindouro", o renunciante alcançará a "vida imanente".
O ensinamento todo termina com uma máxima axiomática: "muitos primeiros serão últimos, e últimos
serão primeiros". O venerável Beda (Patrol. Lat. vol. 92, col. 234) comenta: vide enim judam de
apóstolo in apóstatam versum et dícito quod multi erunt primi novissimi; vide latronem in cruce fac-
tum confessorem eodemque die quo pro suis crucifixus est peccatis, gratia fidei cum Christo in paradi-
so gaudentem, et dícito quod et novissimi erunt primi, que significa: "vê Judas, que de apóstolo se tor-
nou apóstata e dize que muitos primeiros serão últimos; vê o ladrão, que na cruz se tornou confessor, e
no mesmo dia em que foi crucificado por seus pecados, gozando com Cristo no paraíso, e dize que
também os últimos serão os primeiros".

Após o exemplo dado com o episódio do "moço rico", chegam as lições teóricas explicativas, com ou-
tros exemplos e parábolas, que vamos agora começar a ver.
O comentário do Mestre precisa ser interpretado em espírito, lembrando-se, mais uma vez, que o "rei-
no dos céus" não é O CÉU, para o qual a alma iria após a morte física, lá permanecendo para a eter-
nidade; mas antes, uma conquista realizada AQUI, NA TERRA.
Observamos que foi isso que o moço rico pediu: a VIDA IMANENTE, na união definitiva com o Cristo
Interno. E o Cristo, manifestando-se através de Jesus, ensinou-lhe - nós o vimos - que para obtê-la
com perfeição era mister vender tudo e distribuir o resultado aos mendigos, para depois segui-LO
internamente. O que dificulta as interpretações das igrejas dogmáticas é ficarem rasteiras na letra
material. Realmente, enquanto houver riquezas e bens, NÃO É POSSÍVEL a união íntima e perma-
nente, porque a preocupação com a gerência dos bens, por maior que seja o desapego, distrai a cria-
tura, levando-a para fora de si, e portanto desligando-a de seu interior, do Cristo.
Mais fácil seria passarmos um camelo pelo buraco de uma agulha, que servirmos a dois senhores tão
opostos: Deus Interno (Espírito) e Dinheiro externo (matéria, que é satanás). Temos que desfazer-nos
do segundo, se quisermos conquistar o primeiro.
A Deus é possível chamar com tanta insistência um rico, que ele abandone tudo e "se salve", embora
criatura humana alguma o consiga.
Estudemos, agora, o vers. 28 de Mateus em seus vários sentidos ocultos e simbólicos.
Anotemos de início que o Cristo deixa de responder à primeira parte da pergunta de Pedro: "nós que
deixamos tudo o que nos pertencia (tà idíia), para só esclarecer o segundo inciso: "te seguimos", dan-
do a entender que o importante não é tanto "abandonar tudo", mas sim "seguí-Lo".

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C. TORRES PASTORINO

Reproduzamos o versículo: "Vós que me seguistes, na reencarnação, cada vez que o Filho do Homem
se sentar sobre o trono de sua glória, também Vós sentareis sobre doze tronos, discriminando as doze
tribos de Israel".
Vimos que a interpretação primeira feita pelos discípulos dizia respeito à libertação de Israel e sua
soberania absoluta no mundo, tanto que Salomé, mãe de Tiago e João, pede para seus filhos os luga-
res mais honrosos à direita e à esquerda do novo Rei (Marc. 10:35).
Outra interpretação que dura há séculos refere-se à "renovação do mundo", confundida com a paru-
sia, ou seja, a segunda vinda de Jesus ao planeta para julgá-lo. Já aqui os apóstolos serão juizes de
toda a humanidade.
Há mais, porém, se aprofundarmos o sentido. Neste caso, leríamos assim, parafraseando o texto: "Vós
que me seguistes", designando os que O buscaram no imo de seus corações, e O encontraram e com
Ele se uniram.
"Na reencarnação", que exprimiria a reencarnação do globo terráqueo, que se dá a cada surgimento
de nova sub-raça. Sete sub-raças constituem uma "raça-raiz"; sete raças-raíz formam uma "ronda" e
sete rondas completam um “manvantara”, após o qual vem o pralaya, ou repouso.
Cada sub-raça tem sua evolução confiada a um Servidor, que vem a Terra sempre acompanhado por
doze discípulos que O assistem e Lhe ajudam a tarefa. Segundo essa doutrina oculta, a promessa feita
aos doze discípulos ali presentes, era que eles O acompanhariam sempre em Suas encarnações, "cada
vez que se sentasse no Trono de Sua glória" ou, talvez melhor, "em Sua Cátedra gloriosa" de ensino
universalista; eles formariam sempre o conjunto de outras doze cátedras, a fim de espalhar o ensino e
"discriminar", ou melhor "passar pelo crivo" (sentido literal de krínein) os homens e as nações de
todo o planeta, que é dividido em doze raios geométricos, representados pelos doze signos do zodíaco.
Outra leitura pode ser feita através das palavras que "ocultam" o pensamento profundo. Nesta inter-
pretação, temos que suprimir a vírgula após as palavras "me seguistes", como o fazem Wescott e Hort
em sua edição grega de 1881, lendo-se, então: "vós que me seguistes na reencarnação". Compreen-
demos: "vós que me acompanhastes nesta encarnação, recebereis, em vossos doze tronos separados,
nova consagração iniciática evolutiva, cada vez que o Filho do Homem der mais um passo à frente,
obtendo o direito de sentar-se no trono glorioso da vitória".
Podemos ainda entender como um ensino dado especialmente para as Escolas Iniciáticas: os que se-
guiram e acompanharam o Cristo em seus corações, terão a oportunidade de conquistar a cátedra
doutrinária do ensino esotérico, para distribuí-lo aos seus discípulos no planeta, após a indispensável
discriminação preliminar.
Avançando um pouco mais, podemos perceber das expressões do versículo que estudamos, um sentido
mais profundo: quando a criatura que segue o Cristo, unificando-se a ELE totalmente durante sua
encarnação terrena, tornando-se, portanto, Filho do Homem, ela, criatura encarnada, experimentará
todas as sensações gloriosas dele. E cada vez que Ele se infinitizar na glória do Trono excelso da di-
vina Luz, ela também se sentará em seu pequeno trono de glória, podendo daí discriminar (distinguir)
as "doze tribos de Israel", ou seja, os doze caracteres básicos da humanidade, conhecendo a criação
toda em toda a sua amplitude, mediante a "ciência infusa" obtida pela intuição instantânea, da visão
direta, pela convivência (ou simultaneidade de vivência) com o Espírito (individualidade) unido à Luz
do Espírito Santo, por meio do Pai Verbo de Sabedoria, através do Cristo Interno, partícula indivisa
do Cristo Cósmico ou Terceiro aspecto da Divindade. A obtenção dessa indescritível e indizível felici-
dade por parte da personagem terrena encarnada, pode considerar-se efetiva divinização, consagran-
do seu privilegiado possuidor como Adepto de alta categoria, como Manifestante divino, como Mestre
em toda a amplitude do termo. Essa interpretação cabe, em sua íntegra acepção, àquela personagem
histórica que nos acostumamos a amar com todo o ardor de nossos corações, e que se denominou
JESUS DE NAZARÉ. Unindo-se, em Sua encarnação, ao Cristo, Sua personagem humana de Filho do
Homem pode sentar-se no trono de glória à mão direita do Pai (cfr. Mat. 25:31 e 26:64; Marc. 14:62,
Luc. 22:69 e At. 7:55, 56), como já dissera David, o Bem-Amado: "Disse o Senhor ao meu Senhor,
senta-te à minha mão direita".

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SABEDORIA DO EVANGELHO

No campo da Fraternidade Branca, cujo chefe supremo é Melquisedec, o Ancião dos Dias, o PAI a
que se referia Jesus, o Trono de Glória é onde Ele pontifica no Grande Concílio, em Shamballa.
Quando o Filho do Homem se sentar em Seu trono de glória, como Chefe e Guia do Sexto Raio da
Devoção, os doze discípulos que O acompanharam em Sua reencarnação na Galiléia, permanecerão a
Seu lado, fazendo a discriminação das "doze tribos de Israel", ou seja, dos doze grandes grupos reli-
giosos em que se subdivide a humanidade e que sucederam, espiritualmente, às doze tribos: hinduís-
mo, judaísmo, zoroatrismo, taoísmo, xintoísmo, confucionismo, budismo, catolicismo (romano e orto-
doxo), islamismo, catolicismo reformado, naturismo (umbanda) e espiritismo. Realmente, após seu
sacrifício e por meio dele, Jesus "se tornou Sumo Sacerdote da Ordem de Melquisedec" (Hbr. 6:20)
assumindo Seu trono de glória como um dos sete Espíritos que assistem diante do Todo-Poderoso Se-
nhor da Terra (cfr. Apoc. 1:4). E por isso escreveu David: "Disse o Senhor (Melquisedec) ao meu Se-
nhor (YHWH-Jesus) senta-te à minha mão direita" (Salmo 110:1; Mat. 22:44,. Marc. 12:36; Luc. 20;
42; At. 2:34; Heb. 1:13 e 12:2).
Mas prossigamos no texto, para não alongar-nos demasiado. Verificamos que além desse resultado
(mais que recompensa) temos outros fatos citados a respeito do "deixamos tudo".
Observemos que há uma citação nominal não apenas dos bens terrenos (casas e campos), mas dos
parentes de primeiro grau, um a um, sejam consanguíneos, como pai, mãe, filhos, irmãos e irmãs,
como não-consanguíneos, a esposa (ou esposo).
A igreja, com a vida monástica, colocou à letra a aplicação dessas palavras; e os monges abandonam
mesmo seus parentes, chegando até, em algumas ordens a trocar de nome, para dedicar-se ao serviço
do Cristo, numa renúncia total e absoluta. Magnífico exemplo, apesar dos defeitos "humanos" que
sobrevieram às regra, rígidas, isto é, ao abuso que se introduziu no uso. Mas, terrenamente o sentido
é esse mesmo: Cristo acima de tudo, mesmo dos amores mais belos e legítimos. Se houver objeções,
dificuldades, lutas, tudo deve ser deixado para seguir o Cristo. Se houver amor por parte desses pa-
rentes, eles acompanharão o seguidor do Cristo. Se o não acompanharem, é porque mais amam a si
mesmos e a suas comodidades, que ao Cristo e ao buscador do Cristo: que fiquem, pois, onde mais
lhes agrada. Os atletas se libertam, por vezes, até das vestes que lhes impedem ou atrapalham a car-
reira. Assim deve fazer aquele que resolve correr atrás do Amor que nos chama com gemidos inenar-
ráveis (Rom. 8:26).
Mas não apenas os parentes "externos" deverão ser abandonados para seguir-se o Cristo: também os
parentes "internos" que constituem nossa própria personagem: veículos físicos, sangue e emoções,
fenômenos do astral, raciocínios e vaidades intelectuais, tudo tem que ser sacrificado, se constituir
óbice para seguir o Cristo.
No entanto, a todos os que deixarem essas coisas, será dado cem vezes mais EM VALOR, pois conse-
guirão o domínio de tudo. Que importam as coisas materiais transitórias, a quem possui o Espírito
imperecível? Cem vezes mais vale este. E o amor do Cristo é superior ao amor de cem mães, de cem
pais, de cem esposas, ou filhos, ou irmãos, ou irmãs, e a posse do Espírito faz sentir a nulidade da
posse temporária tão rápida e ilusória de um pedaço do planeta, ou de uma casa que a poeira do tem-
po destrói e derruba.
A interpretação materialista da igreja romana, como sói acontecer, acena com centenas de irmãos
encarnados nas ordens religiosas, e centenas de casas conventuais de pedra, não compreendendo que
nenhuma vantagem espiritual traria isso ao seguidor do Cristo: trocaria uma ilusão material por ou-
tras cem, mas todas transitórias e perecíveis. A promessa refere-se ao abandono do material para
conquista do espiritual. Tanto que Marcos esclarece "com perseguições" por parte de todos os que
permanecem presos à matéria (satanás) do Anti-Sistema.
E o final do versículo reforça esta interpretação quando adita: "e a VIDA IMANENTE", ou seja, a
permanente unificação interna do Espírito com o Cristo.
Aqui lembramos ainda uma vez (cfr. vol. 2, vol. 3 e vol. 5) que a "vida eterna" das traduções correntes
nada significaria, já que essa vida eterna TODOS OS ESPÍRITOS a possuem por intrínseca natureza,

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inclusive os maus. Quanto mais avançamos na interpretação dos textos evangélicos, mais solidifica-
mos nossa convicção de que é certo o caminho que palmilhamos.
Resta-nos examinar a última frase: "muitos últimos serão primeiros, e muitos primeiros serão últi-
mos". O espanto de muitos espiritualistas, qualquer que seja sua situação ou "posto", será incalculá-
vel, ao se verem preteridos na vida espiritual por pecadores, ateus, materialistas. Mas não menor será
o assombro destes ao se verem acima daqueles que eles consideravam luminares vivos e indiscutíveis
da vida religiosa.
Os homens julgam pela aparência, pelas posições, pelas vestes e pela "virtude" externa. Mas nada
disso significa realidade intrínseca, nem serve de qualificação para a vida espiritual. Apenas o SER, a
vibração específica do Espírito, é que situa o homem no plano vibratório próprio. Ora, quantas vezes
a bondade do materialista será achada superior à do espiritualista, pelo simples fato de que o primei-
ro é bom sem nada esperar de retribuição, ao passo que o segundo se faz de bom na secreta e íntima
esperança de obter um lugar no "céu" ou em "Nosso Lar" ... O que torna sua bondade simples jogo de
interesses e expectativa de polpudas recompensas espirituais após a desencarnação.
No entanto, sabemos que a frase "os últimos serão os primeiros" possui um sentido esotérico muito
profundo e iniciático, que o ocultismo representa pela serpente que morde a própria cauda, onde o
princípio e o fim se unem para formar o círculo perfeito. Daí o simbolismo do Sol que ilumina; o cír-
culo perfeito, em que não há princípio nem fim (eterno) é o dispensador da luz.
Comentando a esse respeito, Luiz Goulart chamou a atenção para a representação da "hóstia" na
igreja católica, que dá ao pão a forma circular: o sol que ilumina. Sendo a hóstia a manifestação da
divindade, poderia a igreja ter-lhe dado a forma do triângulo equilátero, representativo da Trindade
... No entanto, o símbolo ocultista do Sol prevaleceu, tanto que o "ostensório" é feito com o acréscimo
externo dos raios de ouro (dourados) do sol. E quando em exposição, o "Santíssimo" figura, exata-
mente, um sol no apogeu de sua trajetória: cheio e brilhante.

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TRABALHADORES DA VINHA
Mat. 20:1-16
1. Pois o reino dos céus é semelhante a um homem chefe-de-familia, que saiu desde a
madrugada para engajar trabalhadores para Sua vinha.
2. E tendo contratado com os trabalhadores um denário por dia, enviou-os para sua vi-
nha.
3. E tendo saído cerca da hora terceira, viu outros ociosos em pé na praça,
4. e disse-lhes: "ide também vós para a vinha, e vos darei o que for justo". Eles foram.
5. Novamente saiu cerca da hora sexta e da nona, e agiu da mesma forma.
6. E saiu cerca da undécima hora, e achou outros que lá estavam, e disse-lhes: "por que
estacionais aqui desocupados o dia todo"?
7. Disseram-lhe: "porque ninguém nos contratou". Disse-lhes: "Ide também vós para
avinha".
8. Chegando a tarde, disse o dono da vinha a seu capataz: "Chama os trabalhadores e
paga-lhes o salário, começando pelos últimos até os primeiros".
9. E chegando os da undécima hora, receberam um denário cada um.
10. E vindo os primeiros, julgaram que receberiam mais; mas receberam um denário
também eles.
11. E ao receber, murmuravam contra o chefe-de-família
12. dizendo: "esses, os últimos, trabalharam uma hora e os trataste como a nós, sofredo-
res do peso do dia e do calor (do sol)”.
13. Respondendo, ele disse a um deles: "Companheiro, não te faço injustiça; não contra-
taste comigo um denário?
14. Toma o teu e vai; quero dar a este último tanto quanto a ti;
15. ou não me é lícito fazer o que quero nos meus negócios? ou teu olho é mau, porque eu
sou bom"?
16. Assim os últimos serão primeiros e os primeiros, últimos.

Jesus achava-se a caminho, entre a Galiléia e Jerusalém, já tendo passado o Jordão, achando-se, prova-
velmente, na planície de Jericó. Essa viagem, a última que fez em direção à cidade santa, tinha seu
objetivo predeterminado: a ida para o sacrifício final, previsto e predito já por duas vezes (Mat. 16:21 e
17:22-23); dentro de mais alguns dias, repetirá o aviso (Mat. 20:18-19), para deixar bem clara em Seus
discípulos a idéia da importância do ato que se consumará.
Nessa viagem situa-se a parábola alegórica dos trabalhadores da vinha, em que mais uma vez é procu-
rada uma comparação que dê idéia do que venha a ser o "reino dos céus". A lição é privativa de Ma-
teus.
Analisemos rapidamente os termos de nossa tradução.

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"Semelhante é o reino dos céus a um "homem chefe-de-família " (anthrôpôi oikodespôtéi), ou "dono-
de-casa", que saiu "desde a madrugada" (háma prôi, literalmente "com a madrugada"), isto é, à primei-
ra hora (6 da manhã) ou até antes.
Era costume na Palestina, até bem poucos anos, que os desempregados ("diaristas" ou "jornaleiros") se
reunissem na praça da aldeia ("bâzâr") à espera de que alguém os viesse contratar, tal como ocorre em
nossas cidades, com automóveis-táxi, caminhões "a frete" e carrinhos-de-mão, que ficam nos "pontos"
aguardando interessados em seus serviços. Chegando alguém que declarasse necessitar da mão-de-
obra, o trabalhador pedia muito mais do que esperava obter, e o interessado oferecia muito menos do
que pretendia pagar. Estabelece-se, então, a discussão; um abate, outro sobe sua oferta, até que con-
cordem exatamente no salário normal, que é a tarifa convencional que sempre se paga pelo serviço.
Naquela época, o preço normal era um "denário", isto é, uma dracma. Que a cena foi assim imaginada,
verifica-se pela frase "tendo assim contratado de comum acordo" (symphônésas). Para um homem do
oriente médio, até hoje, dizer o preço, receber o dinheiro e entregar a mercadoria, não é "negociar”:
isso supõe discussão, preço alto, oferta baixa, até chegar-se a um acordo. Se tal não ocorrer, o oriental
se sente psicologicamente frustrado: prefere discutir e ganhar menos, depois de meia hora de "negocia-
ção" a receber muito mais (pelo preço inicialmente pedido) mas sem "negociação": no fundo de sua
alma, sente que não soube exercer sua profissão, que "falhou” com o freguês. Para bem compreender-
se essa psicologia, só assistindo às centenas de cenas semelhantes que ocorrem nos mercados e lojas
do oriente médio. Mas voltemos ao texto.
Os trabalhadores contratados foram para avinha. Começaram o trabalho por volta das 6 horas, sabendo
que o "dia" terminaria às 18 horas, quando receberiam a paga de um denário, preço convencionado e
aceito por ambas as partes.
Ou avinha era grande demais, ou o serviço maior do que pudessem dar conta os braços contratados: o
chefe-de-família volta à praça mais quatro vezes:
a) à hora terceira (9 horas)
b) à hora sexta (12 horas)
c) à hora nona (15 horas)
d) à hora undécima (17 horas).
Os contratados à hora terceira trabalhariam durante nove horas; os da hora sexta, seis horas; os da hora
nona, três horas; e os da hora undécima, uma hora apenas.
Há certas incoerências: se o chefe-de-família foi quatro vezes à praça contratar trabalhadores, como
ainda pode, às 17 horas, encontrar trabalhadores “ociosos", a ponto de dizer-lhes: "por que estais aqui
desocupados o dia todo”? Será que das vezes anteriores os não havia visto? Nem teria sido visto por
eles?
Chegando a tarde, isto é, às 18 horas, surge em cena o capataz (epitrópos) que aí figura como superve-
niente apenas para efeito de realizar os pagamentos.
O normal seria pagar primeiro os que primeiro chegaram. Mas a inversão dessa ordem normal não
aborrece os trabalhadores. O que os deixa magoados é ver que os que labutaram apenas uma hora, re-
ceberam o mesmo denário que os que se esforçaram durante doze horas, com todo o calor do dia:
acham que o tratamento é injusto. Não reclamam do capataz, mas, ousadamente, do próprio chefe-de-
família.
Este, porém, não se aborrece. Chama o reclamante de "companheiro" (hetaíre), numa camaradagem
inexplicável, e demonstra-lhe que não há injustiça, pois contratou com ele um denário pelo dia inteiro
de trabalho. Se ele quer ser generoso, não há razão para reclamações: a justiça do contrato foi mantida.
A frase final “os últimos serão primeiros e os primeiros, últimos só se aplica à ordem do pagamento, e
não a importância idêntica paga a todos, que foi a razão da reclamação. A não ser que se entenda que,

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tendo os primeiros trabalhado mais, receberam proporcionalmente menos que os últimos que trabalha-
ram menos e ganharam proporcionalmente mais.
Realmente, ao contratar os trabalhadores da 3.ª hora, o chefe-de-família disse apenas que "lhes daria o
que fosse justo", sem especular preço. O mesmo parece ter sido feito com os outros.
Alguns exegetas procuram explicar essa diferença de tratamento. Maldonado diz que as horas não re-
presentam as diversas épocas do mundo, mas as idades diferentes de cada homem (diversas cujusque
hominis aetates signíficant) e que os últimos trabalharam mais intensamente em uma hora, que os pri-
meiros o dia todo (tantum una hora quantum aliis toto die laboraverunt, Comm. in 4 Evang. pág.
412/414).
No Talmud (Berakhoth) há uma parábola que lembra esta: “a que se assemelha o caso de Rabbi Boun
ben Rabbi Hiya? A um rei que tivesse engajado em seu serviço muitos trabalhadores, dos quais um era
mais ativo em seu trabalho. Vendo isso, que faz o rei? Leva-o, e com ele passeia para um lado e para
outro. Chegam os trabalhadores à tarde, para receber apaga, e é dado igual pagamento completo tam-
bém ao que tinha passeado o dia todo. Vendo isso, queixaram-se os companheiros: estamos cansados
do trabalho de um dia inteiro, e o que apenas trabalhou duas horas recebe o mesmo salário que nós. O
rei explicou: é que este fez mais em duas horas, que vocês num dia inteiro. Assim, quando Rabbi Boun
estudou a Lei até os 28 anos, conheceu-a melhor que um sábio ou um homem piedoso que a tivesse
estudado até os cem anos".
A grande dificuldade dos exegetas reside, sobretudo, no fato de eles interpretarem o chefe-de-família
como sendo Deus, e a recompensa (o "denário") como sendo o reino dos céus, isto é, o CÉU definitivo
depois da morte. Tanto que João Crisóstomo busca desculpas, dizendo que "certamente no céu não há
lugar para murmurações, pois é isento de ciúme e de inveja; mas a parábola diz-nos que os convertidos
gozam de tal felicidade no céu, que daria para causar inveja aos outros santos" ... (Patrol. Graeca, vol.
58, col. 613). Não sabemos como tanta infantilidade possa ter partido de homens tão grandes e tão sá-
bios!

A parábola, realmente, não é de fácil interpretação, já que esbarramos em contradições internas, que
dificultam conclusões teológicas e simbólicas. A não ser que tomemos os dados da parábola grosso
modo, sem dar muita importância aos pormenores (como é permitido no estilo parabólico), esbarrarí-
amos em óbices insuperáveis. O que não cabe, positivamente, é a interpretação "à letra".
Vemos, por exemplo, uma duplicidade de tratamento por parte do chefe-de-família, que parece dar a
entender que há privilégios e preferências inconcebíveis, partindo da Divindade: "não é lícito fazer o
que quero nos meus negócios”? ou teu olho é mau porque eu sou bom"? Teríamos - se se tratasse de
Deus - um deus parcial, com simpatias e nepotismos que qualquer pessoa de bom senso jamais admiti-
ria num simples e imperfeito pai terreno que - ensina a psicologia - não deve tratar um filho melhor
que os outros, para que os menos queridos não fiquem justamente traumatizados. Teríamos um deus
pior que os homens! Essa a dificuldade dos exegetas, porque não tinham à mão a chave-mestra: para
eles, o "reino dos céus" era o céu.
Mas se sabemos que o reino dos céus é um estado de alma resultante do encontro com o Cristo Inter-
no, verificamos que a semelhança da parábola é perfeitamente aceitável, desde que esse denário não
represente absolutamente o reino dos céus: este jamais pode ser pagamento, pois é CONQUISTA in-
dividual laboriosa e lenta.
O símile traz dados psicológicos interessantes para quem dirige escolas iniciáticas ou mesmo os que
simplesmente organizam grupos espiritualistas. A lição é preciosa.
As criaturas trazem, em seu âmago, a convicção profunda de que "antiguidade é posto". Então, não se
julgam as pessoas pelo valor intrínseco, mas pelo "tempo de serviço". Se um funcionário trabalha oito
horas por dia, acha-se com o direito de ganhar mais que outro que só trabalha quatro, sem levar em
consideração o valor do serviço realizado por um e pelo outro. Essa é a mentalidade geral, sobretudo
daqueles que "suportam o peso do dia e o calor do sol".

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Cuidem, pois, os dirigentes de se não deixarem levar por essa mentalidade, atribuindo os primeiros
postos aos discípulos mais antigos, só pelo fato de serem "mais antigos": escolham com o critério do
merecimento, e não com o da antiguidade, por maiores que sejam as reclamações e as pressões. O
interesse da OBRA deve estar acima das preferências de amizade, acima de tempo de serviço e acima
de favores recebidos. Não é "injustiça" nem "ingratidão" preferir-se A a B, se A vale mais que B, em-
bora B tenha feito maiores favores à obra e nela permaneça há mais tempo: o que deve decidir é o
valor intrínseco e a capacidade real de produção e a fidelidade ao pensamento básico da organiza-
ção. Isso traz dificuldades, dissabores e até, por vezes, inimizades ocultas ou claras. Mas se realmente
ocorrer tal coisa, isso virá provar que o dirigente estava certo: se um discípulo se aborrece porque foi
preterido e colocado outro no lugar que ele julgava merecer, isso prova que ele não o merecia, por
estar ainda imaturo, tanto que ainda se magoa por exterioridades e faz questão de postos e de posi-
ções.
Cuidem-se os dirigentes!
Mas, a que se assemelha o reino dos céus?
A um chefe-de-família. O reino dos céus é obtido se alguém souber agir como o chefe-de-família, não
como os trabalhadores.
Quem é o chefe-de-família? É o Espírito, a individualidade, que sai à Terra para engajar trabalhado-
res (personalidades ou personagens, compostas de bilhões de células) a fim de que trabalhem na sua
vinha, ajudando-lhe a ascensão (1).
(1) Pietro Ubaldi, em "Grande Síntese", cap. 29, escreve: "só o relativo, que se transforma, possui
tempo, isto é, ritmo evolutivo. A Lei, sem limites, está à espera no eterno; o tipo preexiste ao ser
que o atravessa, e as formas vão e vêm".
Então ocorre que algumas pegam o trabalho pesado durante as "doze" horas, isto é, um ciclo inteiro
de civilização, pois doze é o giro completo do zodíaco. Sofrem o "peso do dia" e também o "calor do
sol", pois tem que desbastar toda a parte grosseira da hominização primitiva, do trabalho braçal, da
conquista pura e simples do pão de cada dia com o suor real de seu rosto. E nesse afã atravessa todo
aquele eon.
Os trabalhadores seguintes irão sendo convocados em períodos posteriores. Mas à medida que a
evolução avança, cada tipo de personagem dura menos tempo: motus in fine velocior, "no fim, o mo-
vimento é mais rápido".
Assim as do terceiro ciclo servem ao "senhor" (Espírito) que as engaja, durante nove horas, ou seja,
três quartos de um eon. Os convocados no sexto ciclo, servirão durante meio eon (seis horas). Os
chamados no nono ciclo trabalharão apenas um quarto de eon (três horas). Logicamente tudo isso
terá que ser tomado sensu lato, e não com rigor matemático. Na parábola, aprendemos uma teoria
fundamental que variará dentro de limites razoáveis.
Por aí entendemos certas coisas que constituíam interrogação sem resposta. Por exemplo, o progresso
da civilização, que caminha em proporção geométrica: da primeira tentativa de vôo do mais pesado
que o ar ao vôo a jato transcorreram 50 anos; deste ao vôo espacial, e em visita à lua, dez anos; mais:
da primeira experiência cinematográfica (Lumière, 1900) à televisão (1940) distaram 40 anos. Mas
desta às transmissões através de um satélite (Telstar) transcorrem só 20 anos! Consideremos, ainda, a
diferença entre as personagens nascidas há cinquenta anos e as atuais, quando o Q.I. sobe em índices
incontroláveis. Assim, as últimas personagens utilizadas na evolução do Espírito, executarão seu tra-
balho em períodos de tempo muito menores, embora o serviço realizado seja equivalente (ou até supe-
rior) aos dos primeiros trabalhadores. Daí o salário ser idêntico em valor. Proporcionalmente, o tra-
balho executado também foi equivalente.
O reino dos céus, pois, é semelhante a um homem justo, que distribui a cada trabalhador o salário
justo, de acordo com o valor do serviço realizado, e não do tempo empregado para realizá-lo. Assim,
tanto merece aquele que necessita de dez encarnações trabalhando para consegui-lo, quanto aquele
que numa só existência o conquista, porque seu esforço foi mais intenso. O Espírito é o único que

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SABEDORIA DO EVANGELHO

pode julgar, o único que pode contratar e escolher as personagens de que necessita para "trabalha-
rem em sua vinha".
Pode haver uma objeção: da parábola surge a impressão de que os trabalhadores (as personagens)
preexistem à escolha da individualidade, e também que elas subsistem após terem prestado seu servi-
ço. Mas a referência cremos ser feita ao TIPO de personagem, nas diversas etapas evolutivas, como
diz Pietro Ubaldi: "o tipo preexiste ao ser que o atravessa, e as formas (personagens) vão e vêm".
*
* *
Se não quisermos atribuir o ensino às relações entre individualidade e personagens transitórias, ve-
mos que a parábola reflete o que exatamente ocorre entre o CRISTO (o Mestre) e Seus discípulos,
criações Suas, filhos Seus, espiritualmente gerados e sustentados durante milênios, em trocas simbió-
ticas.
O Mestre convoca e agrega em torno de Si os discípulos que sintonizam com Sua tônica vibratória e
que, espontânea e voluntariamente aceitam trabalhar para Ele durante uma ronda. A vinha (o plane-
ta) escolhida é vasta e o trabalho é árduo e longo. Alguns, engajados à primeira hora, têm a incum-
bência de desbastar o solo, de viver entre criaturas ainda rudes e primitivas. Mas prosseguem no ser-
viço sem esmorecimento.
No entanto, a seara cresce, o serviço aumenta, outros operários são requeridos e outras convocações
são feitas, às diversas épocas: no final do labor, agiganta-se a tarefa, que se tornou mais vasta e difí-
cil. A humanidade é menos rude mas, por isso mesmo, mais intelectualizada, apresentando resistên-
cias mais difíceis de superar. O trabalho complica-se sobremaneira. Então a recompensa destes me-
rece ser igual à dos primeiros. Apesar de discípulos e colaboradores, há sempre a expectativa de me-
recer mais. O Cristo, então, narra a parábola para avisar, desde logo, prevenindo os porventura in-
cautos, que nada mais receberão além do justo, pois deverão aprender a dizer: "somos servos inúteis,
cumprimos nosso dever".
*
* *
Aplica-se, ainda, a parábola aos homens em particular, dentro de uma só vida.
Há os que desde a infância se dedicam ao ministério e durante toda a existência dele não se afastam,
em contraposição àqueles que são convocados na mocidade, na idade adulta e outros quase na velhice
(Kardec começou sua tarefa aos cinqüenta anos), mas desenvolvem sua atividade com tal eficiência,
que correspondem à confiança neles pelo Mestre depositada.
O mérito não se mede pelo tempo de serviço, mas pela qualidade dele, pelo êxito do empreendimento,
pelo resultado obtido, pelo número de almas atingido, pelas vitórias alcançadas.
*
* *
Concluindo, o reino dos céus não é o pagamento dado aos trabalhadores, mas uma conquista. Há que
agir, como o fez o chefe-de-família, aliando justiça com bondade, sem ferir direitos, mas sem subme-
ter-se às pressões de fora. Seu critério deve prevalecer, por mais que desagrade aos outros, cuja opi-
nião não deve importar nem influenciar. Independência "nos negócios" do Espírito, pois a responsa-
bilidade é integral de quem age. Se errar, enganado por conselhos de outrem, é o único responsável
pelo erro: por que aceitou o conselho? Não possui intelecto para raciocinar, razão para escolher,
intuição para dirigi-lo?
O reino dos céus é semelhante a um chefe-de-família ativo que sai de casa "com a madrugada" para
engajar seus auxiliares, que com eles entra em acordo; que não repousa, mas está sempre à frente do
serviço, e várias vezes vai em busca de mais braços para a sua vinha, e permanece até o fim ativo e

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eficiente, sobranceiro e independente, resolvendo com firmeza, embora suavemente (fórtiter ao suávi-
ter), pois chama aos trabalhadores seus "companheiros".
Anote-se que os trabalhadores vão para a "vinha", isto é, para o estudo simbólico do espiritualismo
(cfr. vol. 1). São pois alunos avançados na senda. Não obstante, a ambição e a vaidade, sendo quali-
dades inerentes ao intelecto, só mesmo quando alguém consegue viver na individualidade, é que as
esmaga.
Quanto à "vinha", observemos que seu simbolismo é bastante arcaico: no Antigo Testamento, encon-
tramos o exemplo típico de Noé (Noah, que significa "quietude", isto é, contemplação) o qual, depois
do dilúvio, ou seja, de sua longa meditação de quarenta dias e quarenta noites, "sobre as águas" da
interpretação alegórica, faz uma "aliança" com YHWH, simbolizada no "arco-íris" (o reflexo da luz
no vapor da água, isto é, o reflexo de Deus na alma humana). A seguir "planta uma vinha" (Gên.
9:20) e come de seu fruto fermentado, bebendo o VINHO DA SABEDORIA. O que lhe ocorre é mara-
vilhoso: "embriagado e nu se acha dentro de sua tenda" (Gên. 9:21), ou seja, despojado de tudo
quanto é material, entra na visão beatífica que embriaga mais que o vinho (cfr. Salmo, 22:5,. Zac.
9:17; Cant. 1:1; 1:3; 5:1, etc.). Nesse estado é ridicularizado pelas criaturas ainda materializadas do
anti-Sistema. Mas o exemplo é maravilhoso e o simbolismo perfeito.
Embora menos explícito, temos, no "paganismo”, símbolo semelhante, ao vermos associados Apolo e
Baco; e quando os iniciantes da Escola de Dionisos, chamados os "bacantes", eram tidos como em-
briagados, ao entrarem no estado místico-profético, estavam, na realidade, em estado de transe, dan-
çando e cantando, como o "rancho de profetas" discípulos de Samuel (cfr. 1.º Sam. 10:5); a mesma
acusação de embriagues ocorreu, segundo testemunho dos Atos (2:15), com os discípulos de Jesus.

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RESSURREIÇÃO DE LÁZARO
I - DOENÇA DE LÁZARO
João.11:1-16
1. Estava doente certo Lázaro de Betânia, da aldeia de Maria e de Marta sua irmã.
2. (Maria, cujo irmão Lázaro adoecera, era a que ungiria o Senhor com perfume e en-
xugaria seus pés com os cabelos cela).
3. Enviaram a ele, pois, as irmãs, dizendo: "Senhor, olha, aquele que amas adoeceu".
4. Ouvindo (isto) Jesus disse: "Essa doença não é para morte, mas para reconhecimento
de Deus, para que o Filho de Deus seja reconhecido por meio dela".
5. Ora, Jesus amava Marta, e a irmã dela, e Lázaro.
6. Quando ouviu, todavia, que adoecera, ainda permaneceu dois dias no lugar em que
estava.
7. Mais tarde, depois disso, falou aos discípulos: "Vamos à Judéia de novo".
8. Disseram-lhe os discípulos: "Rabi, ainda agora procuravam lapidar-te os judeus, e de
novo vais lá"?
9. Respondeu Jesus: "Não são doze as horas do dia? Se alguém andar de dia não trope-
ça, porque vê a luz deste mundo.
10. Se no entanto andar de noite, tropeça porque a luz não está nele".
11. Falou isso e depois lhes disse: "Lázaro, nosso amigo, adormeceu, mas vou para que o
desperte".
12. Disseram-lhe então os discípulos: "Senhor, se adormeceu, se salvará".
13. (Mas Jesus falara da morte dele, e eles julgaram que falasse do adormecimento do
sono).
14. Então disse-lhes Jesus abertamente: "Lázaro morreu,
15. e alegro-me por vós porque eu não estava lá, para que creiais; mas vamos a ele".
16. Disse então Tomé, apelidado o Gêmeo, aos condiscípulos: "Vamos nós também, para
que morramos com ele".

Todo O episódio constitui sublime lição, que comentaremos a seguir. Antes, porém, analisemos os
termos em que foi vazada. Dividimo-la em quatro partes para facilitar as anotações.
Neste primeiro trecho observamos a localização do acontecimento e as personagens nele envolvidas.
Adoecera "certo Lázaro" (já vimos, que Lâzâr é o diminutivo de Ele’azar, "Deus socorreu"). Esse
Lázaro era de Betânia isto é Beit-'aniâh, reminiscência talvez da Beth-anania, da tribo de Benjamin
(cfr. Neem. 11:32).
Localizava-se no ras ech-chiyakh, a vertente que precede, a leste, o monte das Oliveiras (cfr. G. Dal-
man, "Les Itinéraires de Jesus", pág. 325). Nos arredores de Betânia ficaria a casa de Marta e Maria,
que é citada em Lucas (10:38ss). Da crista do monte das Oliveiras até a aldeia, a distância era de cerca
de três quilômetros. Os nomes das personagens citadas eram muito comuns na época (cfr. vol. 5).

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Figura “O RESSURGIMENTO DE LÁZARO” – Desenho de Bida, gravura de ª M.

Depreende-se de toda a narrativa a grande intimidade de Jesus com as duas irmãs, a tal ponta que sabi-
am onde o Mestre se encontrava retirado em determinada data, para chamá-Lo em caso de necessida-
de. E foi o que ocorreu. Em seu retiro na Galiléia recebe a notícia dada com toda a simplicidade, sem
que nada fosse solicitado. Apenas o recado: "Olha, aquele que amas adoeceu". Nada mais. Só se sali-
entava a afeição de Jesus. O resto seria decorrência desse amor.
Jesus não se abala: "a doença não é para morte, mas para reconhecimento de Deus (all’hypèr tês doxês
tou theou) para que o Filho de Deus seja reconhecido por meio dela" (hína doxásthês ho hyiós tou the-
ou di' autês). Não podemos acompanhar as traduções vulgares: "para glória de Deus e para que o Filho
de Deus seja glorificado". Jamais Jesus buscou gloriar-se de qualquer coisa, o que seria demonstração
de vaidade balofa e ridícula, muito própria de homúnculos, mas não do Grande Espírito Jesus, que
ordenava nada se dissesse a ninguém, quando exercia seus poderes curadores. Se quisesse "glórias",
poderia tê-las a qualquer momento.
Já traduzimos esse mesmo verbo (cfr. vol. 5) por "ter uma opinião", ou seja, "formar-se uma opinião a
respeito de alguma coisa". E era isso que o Messias buscava: que a humanidade reconhecesse Sua mis-
são por meio de Suas obras (João, 10:38). O mesmo "reconhecimento do Pai no Filho" encontraremos
mais adiante (João, 14:13) quando Jesus diz: hò ti àn astísête en tôi onómatí mou, touto poíêsô, hína
doxásthêí ho patêr en tôi hyiôi, ou seja: "se algo pedirdes em meu nome, fá-lo-ei, para que o Pai seja
reconhecido no Filho".

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Vem, depois, a anotação de que Jesus amava Marta, a irmã dela Maria e Lázaro. Aqui é usado o verbo
agapáô ("amar com predileção") ao passo que as irmãs, ao lhe darem a notícia, falaram de "amar" com
o verbo phileín ("amar com amizade") (vol. 2).
Não obstante, Jesus permanece ainda dois dias "no lugar em que se achava". Só "depois disso" anuncia
aos discípulos que voltará à Judéia, numa jornada que lhes demandará dois dias. Contemos o tempo: o
emissário de Mara e Maria levou 2 dias para chegar a Jesus. Este ficou parado 2 dias. Depois gasta 2
dias para chegar a Betânia: ao todo 6 (seis) dias.
Os discípulos lembram-Lhe que os judeus queriam lapidá-Lo pouco antes (cfr. João 7:1; 8:59 e 10:31 e
39) e seria imprudente colocar-se ao alcance de suas mãos homicidas. A resposta é enigmática: durante
as doze horas do dia não se tropeça porque "se vê a luz do mundo"; mas se se andar à noite, tropeça-se,
porque a "Luz não está nele". Já não se trata mais da luz do mundo ,mas da luz própria intrínseca à
criatura. Veremos o que isso significa.
Depois esclarece que "Lázaro adormeceu" (kekoímêtai, do verbo koimâsthai, que significa "dormir" ou
"adormecer" repousando, usado no Novo Testamento com sentido de sono natural (Mat. 28:13, Luc.
22:45, At. 12:6), mas com o sentido de "morrer" (At. 7:60) quando se refere à morte de Estêvão. E
prossegue: "vou despertá-lo". Os discípulos não refletiram que não podia tratar-se de sono normal, pois
seria absurdo que fosse necessário ir Jesus despertá-lo após dois dias de caminhada ... Duraria tanto
assim um sono natural? E citam o provérbio: "se adormeceu, se salvará", pois, anota o evangelista, não
tinham entendido o sentido do verbo. Então o Mestre fala abertamente (parrêsía): "Lázaro morreu"
(apéthanen). E chama a atenção dos doze a respeito da satisfação que lhe causou esse incidente, pois
será motivo para acrescer-lhes a fé (hína pisteúsête) garantindo maior fidelidade da parte deles a Seu
ensino. E concluindo vem o incentivo: "Vamos a ele" (ágômen prós autoú).
Entra, então, Thômâs (que se convencionou denominar, em português, Tomé, quando a melhor tradu-
ção é, sem qualquer sombra de dúvida, Thomás) que João diz "ser apelidado Dídimo", isto é, "o gê-
meo". Na verdade, a palavra grega "dydimos" é a tradução do hebraico Thômâs, derivado da raiz
THOM, que significa "dobrar". Daí Thômâs significar "o gêmeo". Voltando-se para os condiscípulos
(symmathêtâis) ele os anima, para que todos acompanhem e morram com o Mestre, se necessário for.

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RESSURREIÇÃO DE LÁZARO
I I - RESSURGIMENTO DA VIDA
João, 11:17-27
17. Chegando, então, Jesus, achou-o já há quatro dias no túmulo.
18. Ora, Betânia estava longe de Jerusalém cerca de quinze estádios.
19. Muitos dos judeus tinham vindo a Marta e Maria para que as consolassem em relação
ao irmão.
20. Então Marta, quando ouviu que Jesus vinha, foi-lhe ao encontro. Maria, porém, per-
maneceu em casa.
21. Disse, pois, Marta a Jesus: "Senhor, se estivesses aqui, não teria morrido meu irmão;
22. mas agora sei, que tudo o que pedires a Deus, Deus te dará".
23. Disse-lhe Jesus: "Teu irmão reerguer-se-á".
24. Disse-lhe Marta: "Sei que se reerguerá na ressurreição, no último dia".
25. Disse-lhe Jesus: “Eu sou o ressurgimento da vida. Quem crê em mim, mesmo se mor-
reu, viverá.
26. E todo o que vive e crê em mim, certamente não morrerá para o eon. Crês isto"?
27. Disse-lhe: "Sim, Senhor, eu creio que tu és o Cristo, o Filho de Deus, que veio ao
mundo".

Quando Jesus atingiu os arredores de Betânia, já havia quatro dias que Lázaro fora sepultado. Isso por-
que, em virtude do clima quente e úmido da Palestina, e sobretudo da Judéia, a putrefação do cadáver
era rápida.
Estava-se, pois, no período do "luto", que durava sete dias (cfr. Ecli. 22:13) e portanto justificadas
eram as visitas de condolências (2.º Sam. 10:2 e 2.º Esdr. 10:2). Daí a permanência de "muitos dos
judeus" de Jerusalém, que distava de Betânia apenas três quilômetros.
Marta "ouviu que Jesus vinha", por alguém que lho fora dizer, e foi a Seu encontro, a fim de poder-Lhe
falar com mais liberdade, longe de testemunhas. Nem mesmo chamou Maria.
A primeira frase do encontro é carinhosa queixa, com o acréscimo de total confiança: "tudo o que pedi-
res a Deus te será concedido". Ao que o Mestre retruca, assegurando-lhe desde logo que seu irmão se
reerguerá do túmulo. Marta não entende o sentido da frase, atribuindo a promessa à esperada "ressur-
reição do último dia", ou seja, a que se realizaria, segundo a crença vulgar dos israelitas da época, no
final do ciclo.
Mas Jesus garante, com uma de Suas afirmativas categóricas: "Eu sou o ressurgimento da vida"!
As traduções correntes dão literalmente a transferência da frase: "a ressurreição E a vida". No entanto,
sentimos de modo indiscutível que estamos diante de uma hendíades. E o principal motivo que nos
leva a compreender assim é a lógica, isto é, o sentido das palavras e da idéia (além da confirmação que
encontraremos no vers. 42). Vejamos.
O termo "ressurgimento" (anástasis) exprime exatamente o reerguimento ou ressurgimento, isto é, a
volta de alguma coisa que se levanta, e que "outra vê "(anã) "fica de pé" (stásis). Ora, o que "nova-

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mente fica de pé" é a vida, que se retirara, deixando o corpo cair por terra. Então, entendemos a frase:
"eu sou o que faz a vida ficar de novo em pé", ou seja: "eu sou o ressurgimento DA vida".
O que encontramos nas traduções correntes é uma redundância: "sou o ressurgimento E a vida". Só
pode entender-se, por conseguinte, como hendiades : sou o retorno da vida (que esse era precisamente
o caso em questão). O corpo de Lázaro havia cessado de viver; o Mestre o faria ressurgir, ou reerguer-
se, fazendo-lhe voltar a vida: tenho o poder de fazer reviver um corpo morto.
Isso, porém, não significava ser Ele A VIDA, o que vem confirmar nossa hipótese, de refusar as tradu-
ções vulgares. Mesmo na concepção católico-romana, de que Jesus, como segunda "pessoa" da Trin-
dade, era Deus, mesmo assim não seria "a vida", atributo do DEUS ABSOLUTO (o Espírito Santo) ou,
na teoria deles, o Pai. Tanto que o próprio João (1:4) escreveu: "Nele estava a Vida", e não "ele era a
vida".

HENDÍADES
Falsa a objeção de que a hendíades era figura retórica, somente usada pelos clássicos, e que os evan-
gelistas eram "iletrados"; alguns os dizem até analfabetos! (1) . Lembremo-nos de que Lucas, grego de
nascimento e não-judeu, escrevia em estilo ático; de que Mateus era cobrador de impostos, e portanto
pelo menos contabilista, com seguro conhecimento do grego, para poder entender-se com seus patrões
romanos de que João e Marcos, embora judeus, escreviam em grego, o que revela cultura acima da
normal. Chamaríamos "iletrado" a um brasileiro que escrevesse um livro em inglês? ou a um francês
que editasse uma obra escrita diretamente em alemão?
(1) Cfr. Brassac, "Manuel Vigouraux-Bras ac", tomo 3.º, 3.ª edição, pág. 106; Mangenot, "Les Évan-
giles Synoptique", pág. 1; A. Dufourcq, "Histoire de la Fondation de l'Église", 1909, pág. 240;
Strauss, “Nouvelle Vie de Jésus", tomo 1, pág. 252.
Falsa, também a objeção de que a hendíades era comum só ao latim e ao grego literário. Também o
hebraico está cheio dessa figura, mormente na poesia em virtude do paralelismo. E no grego e no latim
a figura em estudo aparece frequente no estilo coloquial epistolar.
Para que não pairem dúvidas alinharemos alguns exemplos . Já vimos (vol. 1) que existem constantes
hendíades tanto no hebraico do Antigo quanto no grego do Novo Testamentos. Recordemos que essa
figura pode aparecer de duas maneiras, sempre exprimindo UMA idéia (hen) em DUAS palavras
(dya):
a) ou dois substantivos ligados por uma preposição, em lugar de um substantivo e um adjetivo (obras
de fé" por "obras fiéis");
b) ou dois substantivos ligados pela conjunção "e", ao invés de o serem por uma preposição, subordi-
nando um substantivo ao outro.
Deste segundo caso, para confirmar nossa hipótese ("ressurgimento DA Vida", em lugar de "ressurrei-
ção E vida"), apresentaremos as seguintes frases colhidas ao acaso de uma leitura nos textos originais:
A - Do hebraico:
1. Êxodo, 15:16- "caiu sobre eles o terror E a angústia", isto é, "caiu sobre eles o terror DA angústia"
(1) .
‫( חפל עליהם אימה זפחך‬1)

2. Deut. 4:6 - "porque essa é a sabedoria E inteligência", isto é, "porque essa é a sabedoria da inteli-
gência" (2).
‫( פי הוא תכמתכם וכינתבס‬2)

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3. Deut. 33:8 - "Tua perfeição E tua doutrina para o homem santo", isto é, "a perfeição DE tua doutri-
na para o homem santo" (3).
‫( תמיר זאוריך לאיש חסידך‬3)

4. Salmo 42:5 - "em gritos pela alegria e pelo agradecimento", isto é, "em gritos pela alegria DO
agradecimento" (4).
‫( פקול־רפה ותודה‬4)

B - Do grego:
1. Marc. 6:26 - "pelo juramento E pelos convidados", isto é, "pelo juramento DIANTE DOS convida-
dos" (5).
(5) διά τούς όρиους иαί τούς άναиειµένους
2. Marc. 11:24 - "quando orardes E pedirdes", isto é, "quando orardes COM pedidos, ou pedindo" (6).
(6) όσα προσεύχεσθε иαί αίτεϊσθε
3. Luc. 6:48 - "cavou E aprofundou", isto é, "cavou EM profundidade" (7).
(7) έσиαψεν иαί έβάθυνεν
4. Atos, 14:17 - "dando tempos E chuvas frutíferas", isto é, "dando tempos DE chuvas frutíferas" (8).
(8) ύετούς διδούς иαί иαιρούς иαρποφόρους
5. Ibidem, - "enchendo com a alegria E o alimento", isto é "enchendo com a alegria DO alimento" (9).
(9) έµπιπλών τροφής иαί εύφροσύνης
6. Atos, 23:6 - "sou julgado pela esperança E pela ressurreição", isto é, "sou julgado pela esperança
NA ressurreição" (10).
(10) περί έλπίδος иαί άναστάσεως τών νεиρών έγώ иρίνοµαι

Conforme estamos vendo, por exemplos colhidos ao folhear a Bíblia, pudemos em cerca de uma hora
de pesquisa trazer à consideração do leitor dez exemplos de hendíades, o que prova a frequência de seu
emprego, não apenas nas obras literárias clássicas, mas inclusive no grego familiar (koinê) em que se
acha escrito o Novo Testamento.
Tendo visto a lógica da frase em si, sigamos em frente. E vamos encontrar a confirmação plena de todo
o nosso raciocínio que poderia permanecer hipotético, não fora a continuação. Porque a sentença se-
guinte o faz tornar-se tese: "quem crê em mim, mesmo se morreu, viverá". Como verificamos, é explí-
cita explicação, embora paratáxica: "eu sou o ressurgimento da vida, pois quem crê em mim, ainda que
tenha morrido, viverá". Não é possível clareza maior.
As duas sentenças seguintes são verdadeiro clímax de espiritualidade e plena compreensão entre duas
almas que se amam incondicionalmente, sem restrições nem segredos: o Mestre Amante dá à Discípula
Amada a garantia de que, quem Lhe for fiel, não morrerá para o eon. E a Discípula Amada faz voto de
fidelidade total e cega, confessando sentir (emocionalmente), saber (intelectualmente) e perceber (espi-
ritualmente) através da intuição e do contato íntimo, que ela está diante do Cristo (não apenas do Jesus
humano), do Filho de Deus, que se manifesta a este planeta.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

RESSURREIÇÃO DE LÁZARO
III - ENCONTRO COM MARIA
João, 11:28-37
28. E tendo dito isto, foi e chamou Maria sua irmã, e disse-lhe secretamente: "O mestre
está aqui e te chama".
29. logo que ouviu, ela ergueu-se depressa e foi a ele,
30. pois Jesus ainda não entrara na aldeia, mas estava no lugar onde Marta acorrera a
ele.
31. Então os judeus que estavam com ela em casa e a consolavam, vendo Maria erguer-se
depressa e sair, acompanharam-na, crendo que ia ao túmulo para lá chorar.
32. Quando, pois, Maria chegou onde Jesus estava, vendo-o, caiu-lhe aos pés, dizendo-
lhe: "Senhor, se estivesses aqui, não teria morrido meu irmão".
33. Jesus, então, quando a viu chorar, e chorarem os judeus que a acompanhavam, fre-
miu em espírito e se comoveu,
34. e disse: "Onde o pusestes"? Disseram-lhe: "Vem e vê".
35. Jesus ficou com os olhos rasos d'água.
36. Diziam, então, os judeus: "Vede como o amava"
37. Alguns deles, porém, disseram: "Não podia este que abriu os olhos do cego, fazer
também este não morresse"?

Depois da explosão mística, Marta regressa a casa, para chamar a irmã contemplativa. Fala-lhe "se-
cretamente" (láthrai). Maria ergue-se imediatamente e vai ao encontro de seu grande Amor. Mas os
visitantes a acompanham pressurosos, para confortá-la, pois julgam que vá ao sepulcro para lá chorar
(klaíein, cfr. Mat. 2:18; Luc. 7:13; Marc. 5:38).
Maria reproduz a cena e as palavras de Marta, mas em posição de maior humildade: caída a seus pés e
desfeita em lágrimas.
Ao vê-la chorar, a psychê sensível e delicada de Jesus "fremiu em espírito" (enebrimêsato tôi pneúma-
ti, tal como em João 13:21) e "se comoveu" (etáraxen heautón), ficando "com os olhos rasos d'água"
(edákrysen). Aqui, mais uma vez nos afastamos das traduções correntes, que - comentando ser este o
versículo mais curto da Bíblia - nos dão: "e Jesus chorou". Bela a imagem, sem dúvida, mas não cor-
responde ao que está no original. Verificamos que, em todos os passos é usado, para "chorar", o verbo
klaíô; mas quando se refere aqui a Jesus, neste versículo, é empregado o verbo dákryô, que não expri-
me, propriamente, "chorar", mas "ficar com os olhos marejados", ou "chegarem lágrimas (dákryma)
aos olhos".
Os judeus, ao vê-Lo comovido, anotam que ele "o amava" (philéô) e, recordando-se do cego de nas-
cença, fato que deu que falar, indagam por que não havia Ele também curado Lázaro, antes que desen-
carnasse.

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RESSURREIÇÃO DE LÁZARO
IV - LÁZARO ERGUE-SE
João, 11:38-44
38. Jesus, então, fremindo de novo em si mesmo, foi ao túmulo; era uma gruta, e uma pe-
dra jazia sobre ela.
39. Disse Jesus: "Tirai a pedra". Disse-lhe Marta a irmã do finado: "Senhor, já fede, pois
é de quatro dias".
40. Disse-lhe Jesus: "Não te disse que, se creres, verás a substância de Deus"?
41. Então retiraram a pedra. Jesus levantou os olhos e disse: "Pai, agradeço-te porque
me ouviste.
42. Eu sabia que sempre me ouves; mas disse por causa do povo circundante, para que
creiam que tu me enviaste"!
43. Tendo dito isto, clamou em grande voz: "'Lázaro, vem para fora"!
44. Saiu o morto, amarrados os pés e as mãos enfaixadas, e o rosto envolto num sudário.
Disse-lhe Jesus: "Desatai-o e deixai-o ir".

Novamente aparece o verbo embrimáomai, mas já não mais tói pneúmati (em espírito) e sim en heau-
tôi (em si mesmo). E segue para o túmulo que, como de hábito, era uma gruta, fechada por grande pe-
dra à entrada.
Marta avisa, à ordem de retirar a pedra, que o cadáver "já fede” (êdêózei) porque é "de quatro dias"
(tetartaíos, "quatriduano"). Desta frase servem-se alguns exegetas para assegurar que o defunto já se
achava em decomposição. No entanto, o simples bom-senso e a lógica mais medíocre verificam de
imediato que se trata de mera suposição, pois Marta não viu pelo raciocínio normal do que costumava
ocorrer, sem dúvida devia estar putrefato: quatro dias, naquele clima quente e úmido, davam para che-
gar a esse ponto.
Jesus não se altera: "não te disse que, se creres, verás a substância de Deus"? Aqui, realmente, não há
melhor tradução para dóxa do que "substância" (Cfr. Odon Casel, ºS.B., “Le Mysteère du Chri, pág.
249). Porém no versículo 4 acima, não cabe essa tradução mas apenas "reconhecimento". Já vimos a
razão lógica. Agora vemos a confirmação dessa nossa assertiva, quando Jesus diz, agradecendo ao Pai
por ouví-Lo, como sempre, para que "o povo circundante creia que me enviaste": exatamente! Jesus
não buscava "glória" alguma, mas apenas queria ser RECONHECIDO como o Enviado do Pai. O ob-
jetivo era esse, para que Sua missão não se perdesse no vácuo do "eu não sabia"! ... ou "se eu soubes-
se"! ... Dessa forma, com Suas demonstrações violentas (outros preferem "prodigiosas") não havia
modo de duvidar, a não ser por cegueira do espírito ou dureza do coração. Ainda hoje os fenômenos
espíritas só têm essa finalidade: provar a realidade da vida do Espírito. Quem não nas aceitar é o único
responsável pela própria teimosia vaidosa.
Depois dessa prece, clama "em voz alta", tal como ocorrera com a filha de Jairo (Marc. 5:41) e com o
filho da viúva de Naim (Luc. 7:14), talvez dando solenidade ao ritual do acontecimento. Mas usa ape-
nas o nome do defunto e mais duas palavras "Lázare, dêuro éxô, "Lázaro, vem para fora..
O defunto (tethnêkôs) saiu. Ainda estava ligado nos pés. A ligadura dos corpos, entre os judeus não era
à maneira das múmias egípcias, que apertavam em numerosas voltas de uma faixa de linho todo o cor-
po; entre os israelitas o cadáver era envolto num simples lençol comprido, que era ligado aos pés por
uma tira de pano, que servia apenas para segurar o lençol, mas deixaria livres os movimentos para que
o morto pudesse erguer-se, em caso de catalepsia. As mãos estavam "amarradas" (keiríais, palavra que

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só aparece aqui e em Prov. 7:16) com uma tira de pano, para mantê-las unidas, a fim de que os braços
não despencassem ao ser carregado o corpo. E no rosto havia um sudário (soudários), que era uma
espécie de lenço grande, para evitar que as moscas ficassem a pousar no rosto. Como vemos, nada im-
possível que Lázaro se erguesse e saísse do sepulcro com seus próprios pés.
Jesus manda que o "desatem" (áphete autón) e o deixem caminhar livremente. E o evangelista nada diz
a respeito da alegria do "morto" e dos familiares e amigos. Só lhe interessa o resultado externo, que
veremos logo a seguir.

A narração, privativa de João - só ele seria capaz de fazê-la, por ser o único que atingira grau iniciá-
tico superior - traz largo acervo de conhecimentos profundos e de revelações dos "mistérios", embora
de forma velada, para não ser percebida por ouvidos profanos, que deveriam permanecer na simples
admiração por uma "ressurreição” maravilhosa, sem atentar para outros ensinos. Observemos.
Betânia (beth-hhananiâh) significa "casa do agraciado de YHWH”. Nesse local, de nome tão apropri-
ado para o ensino, é que se desenrola a cena.
As relações entre o Mestre e os três irmãos eram, como vimos, mais íntimas que as justificadas pela
simples amizade. Entre eles havia amor: amavam-se mutuamente, não apenas com amizade (phílein)
mas com predileção (agapáô), o que parece denotar, claramente, elevação espiritual sintonizada reci-
procamente. Os irmãos estavam a par dos rituais que se cumpriam nos graus superiores da iniciação.
Como confirmação desta assertiva, veremos Maria, durante um banquete em casa de "Simão o lepro-
so”, na própria cidade de Betânia, derramar sobre a cabeça de Jesus, seis dias antes de sua. crucifi-
cação, "uma libra (320 gramas) de nardo precioso e puríssimo, no valor de mais de trezentos denári-
os" (salário de um trabalhador durante dez meses). E quando se levantam protestos acerca do "des-
perdício", o Mestre assume a defesa de Maria, afirmando que essa unção "é feita antecipadamente
para seu sepultamento”; e o ato é de tal importância que, acrescenta Jesus, "onde quer que seja pre-
gado este Evangelho, este fato será narrado" (cfr. Mat 26:6-13; Marc. 14:3-9; João 12:1-8). Tudo
isso esclarece-nos que os irmãos possuíam os segredos de certos ritos iniciáticos. Ou pelo menos que
eram de toda a confiança de Jesus, que lhes permitia agir inclusive consigo mesmo.
No caso de Lázaro, tudo - os dizeres claros e os implícitos - leva a crer que se tratava de algo ligado a
esses rituais, que eram normalmente praticados nas Escolas Iniciáticas antigas: para atingir o quinto
grau, o candidato devia submeter-se à morte, da qual regressaria à vida, após haver experimentado,
por algum tempo, a vida do espírito fora da matéria.
PORFIRIO (Sententiae, 9) escreveu: " A morte é de duas espécies: uma, que todos conhecem, quando
o corpo se destaca da alma; a outra, a dos filósofos, quando a alma se destaca do corpo".
PLATÃO (Phaedon, 67 d) faz SÓCRATES dizer: "o objetivo específico dos exercícios dos filósofos é
exatamente libertar a alma, colocando-a fora do corpo". O Filósofo assevera ainda que o iniciado é
aquele que se desembaraçou do corpo (do "órgão ostreico”) e de suas influências, nada mais temen-
do, "como imagino, de acordo com o que se passa em nossas iniciações (parádosis, Phaedon, 108 a).
De APULEIO, que descreve o máximo que lhe é permitido dos mistérios iniciáticos, a ponto de ter
sido processado por isso (sabemo-lo pela autodefesa que fez em sua "Apologia") citaremos apenas
três trechos de suas Metamorfoses:
a) "Logo meus amigos e escravos domésticos e os que se me ligavam de perto pelos laços de sangue,
deixando o lucro que haviam vestido pela falsa notícia de minha morte, alegres com súbito rego-
zijo, cada um com vários presentes, se apressam à minha presença, novamente trazido dos infer-
nos à luz do dia" (1).
(1) Confestim dénique familiares ac vérnulae quique mihi próximo nexu sánguinis cohaerebant, luctu
depósito, quem de meae mortis falso nuntio susceperant, repentino laetati gaudio, varie munera-
bundi ad meum festinant ilico diurnum reducemque ab ínferis conspectum (Met. XI:18).

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b) "O próprio ato da iniciação é celebrado como uma morte voluntária e como uma salvação de
mercê" (2).
(2) Ipsamque traditionem (apódosis) ad instar voluntariae mortis et precariae salutis (Met. XI:21).

c) " Aproximei-me dos limites da morte e passei o limiar de Proserpina e de lá voltei, trazido através
de todos os elementos" (3).
(3) Accessi confinium mortis et, calcato Proserpinae límine, per omnia vectus elementa remeavi (Met.
XI:23).

"Qualquer iniciação implica numa morte e numa ressurreição, com a renovação do corpo ou da
alma", escreve Goblet d'Alviella ("Eleusina", pág 19; citado em Victor Magnien, "Les Mysteres d'E-
leusis" pág. 75).
Os mesmos ritos eram celebrados também no Egito, conhecidos com a designação de "morte de Osí-
ris", e todos eram figurados nos dramas sacros, que causavam distração aos profanos, mas continham
ensinamentos para os iniciados. Por isso o drama (em latim denominado sacer ludus, "divertimento
sagrado) dividia-se em dois grupos: a TRAGÉDIA, que apresentava o sofrimento violento (páthos), a
lamentação (thrênos), a morte (teletê orl thánatos)" e a ressurreição (ou theophanía, "revelação do
deus"); e a COMÉDIA, que comemorava a vitória (nikê) e o casamento (gámos, isto é, a "união místi-
ca").
Recordados esses fatos, vamos ao texto, para verificar se realmente é isso que aí é dito.
Começa o evangelista afirmando que "certo Lázaro de Betânia" adoecera. Fato corriqueiro da huma-
nidade. Esclarece quem era esse Lázaro: o irmão de Marta e de Maria. A primeira frase é estranha:
"Lázaro de Betânia, da aldeia de Maria e de Marta sua irmã". Por que não diz logo que era irmão
delas? Por que apenas assinala "da aldeia delas"? Por que Lucas quando fala da estada de Jesus em
Betânia (10:40) se refere "à casa de Marta", e não à casa de Lázaro, que seria o homem da família?
Por que esse Lázaro só aparece aqui, neste episódio, nada mais se falando a respeito dele em todo o
Novo Testamento (a não ser quando João diz que os judeus "queriam matar Lázaro”, fato ainda liga-
do a este) ?
Depois surge uma anotação interessante, que parece trazer um pormenor que elucida a questão: "Ma-
ria, cujo irmão adoecera, era a que ungiria os pés (Mateus e Marcos trazem "a cabeça") do Senhor, e
os enxugaria com seus cabelos". Por que essa anotação, que nada tem com o episódio narrado?
Seria para salientar que eles estavam numa mesma Escola Iniciática ou círculo, mas que, ao que tudo
indica, não era a "Assembléia do Caminho”?
Realmente nenhum deles é jamais citado na Escola de Jesus. Lázaro não era nem será Seu "discípu-
lo”, não participará do "apostolado missionário" dos futuros discípulos. Dentre as mulheres que
acompanhavam Jesus, e que estavam presentes à crucificação, nem Maria de Betânia nem Marta são
citadas! E no entanto habitavam ali, tão pertinho: dois quilômetros e oitocentos metros ...
Surge, então, nítida a impressão de que pertenciam a OUTRA ESCOLA, embora para a iniciação
maior, por exigir a presença de um Hierofante, tenha sido convidado Jesus, na qualidade de Mestre
inconteste, então encarnado na Palestina. São todas suposições, e não podemos trazer nenhuma
PROVA desta hipótese. Mas uma coisa parece certa: Lázaro, Marta e Maria não pertenceram ao co-
légio apostólico de Jesus. Talvez fossem dirigentes de outra Escola, e Lázaro recebeu, algum tempo
antes, num plano abaixo, a mesma iniciação que Jesus receberia em plano superior. Dizemos isso,
porque a “morte" de Lázaro foi apenas o afastamento do espírito por efeito da cataepsia, enquanto a
"morte" de Jesus foi violenta, com torturas físicas e derramamento de sangue.
Pela elevação espiritual como dirigente de outra Escola, era natural que eles e Jesus se amassem com
predileção.

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Toda a cerimônia foi cuidadosamente preparada na Escola para a iniciação de Lázaro e, quando che-
gou o momento de necessitarem da presença do Mestre, as irmãs mandam-No avisar, numa frase sim-
ples, semelhante até a uma "senha", dizendo apenas: "Senhor, olha, aquele que amas adoeceu".
O Mestre imediatamente compreendeu o de que se tratava, tanto que afirmou de pronto que "Essa
doença não é para morte", ou seja, que dela não resultaria a morte definitiva. Antes, serviria "para
reconhecimento de Deus, e para que o Filho de Deus fosse reconhecido por meio dela". Lembremo-
nos de que "Filhos de Deus" são os Hierofantes, possuidores do último grau vibrando com o plano
divino, cujo estado de consciência é de integração e unificação (ou transubstanciação) com Deus e
com as criaturas (Ver vol 2). Jesus precisava ser reconhecido como estando nesse grau, anotando em
Mateus (5:9) "felizes os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus".
João anota que Jesus permaneceu ainda dois dias no lugar em que estava. Ora, dando dois dias para
a ida do mensageiro, dois dias para essa parada, "e só mais tarde, depois disso” partiu, e mais dois
dias para a chegada a Betânia, temos a soma de seis a sete dias, para preparação da cerimônia. E a
fim de que não fosse apressado o termo previsto nem antecipado o rito, nem atrasado, houve a demora
bem calculada, para que se cumprisse tudo dentro das normas ritualísticas.
Mas onde estava Jesus? Pelos antecedentes e pela frase "vamos à Judéia", devia achar-se na Galiléia.
Mas o "Jardim fechado" ou "horto interno" não era lugar próprio a um ritual iniciático. Daí ter ido à
Judéia ("Adoração de Deus") para a cerimônia de Lázaro, tanto quanto para a Sua: "não convém a
um profeta morrer fora de Jerusalém" (Luc. 13:33); e Lázaro estava a cerca de 2,8 Km de Jerusalém,
dentro, pois, da aura astral da cidade "santa".
Os discípulos objetam contra a ida a um local, onde havia bem pouco correra o risco de ser lapidado.
Mas a resposta traz um ensino taxativo: "não são DOZE as horas do dia"? Sempre os números em
João! Examinemos, porém, a questão das "luzes" que aqui vemos opostas: a luz deste mundo e a luz
da própria criatura.
Lembremo-nos de que Jesus já falara duas vezes a esse respeito, dizendo: "Eu sou a luz do mundo"
(João 8:12) e "vós sois a luz do mundo" (Mat. 5:14). São, pois, os Espíritos evoluídos que são A LUZ
DO MUNDO, a luz espiritual. Mas a oposição é entre a luz deste mundo, a luz física da Terra, que
brilha durante as doze horas do dia, e a luz própria de cada um, que iluminará espiritualmente o
mundo.
Durante o brilho da luz diurna, quando temos oportunidade de ver as "pedras de tropeço" na estrada
da vida, é fácil evitá-las ou saltá-las. Mas a noite, se não temos a luz em nós, é quase inevitável trope-
çar. Por isso quando estamos ao lado do Mestre (Luz do mundo - e, não esqueçamos, o DOZE expri-
me no plano divino o MESSIAS!), Seu exemplo e Sua luz nos mostram os tropeços do caminho: é dia
(feminino de "deus"!). Mas longe do Mestre, as sombras do mundo nos tolhem a nitidez da visão: é a
noite da alma.
As DOZE horas do dia, quando o homem entra no caminho para percorrer a Senda em seus DOZE
passos do círculo total (os 12 signos do zodíaco) conferem-lhe luz para conhecer as dificuldades do
trânsito. Mas antes disso, na noite do anterior percurso, durante a subida lenta e triste, antes da con-
quista da luz própria, são fatais os tropeços. Digno de nota que os Evangelhos não falam nunca em
"queda" (ptôsis), mas sempre em tropeço (skándalon). Queda parece ser algo definitivo e irremediá-
vel, paralisando a caminhada; enquanto tropeço dá sempre idéia de dificuldade superável e estrada
prosseguida. Quase dando a entender que o pior que pode ocorrer à criatura é simples "tropeço",
jamais "queda".
Depois dessa lição, o Mestre dirige-se aos discípulos de Sua Escola, certo de que, pelo que já sabiam,
fácil lhes seria compreender o sentido de Suas palavras: "Lázaro adormeceu, mas vou para que o
desperte". Lamentavelmente não foi entendido. Apesar de tudo o que haviam aprendido na longa con-
vivência com o Mestre, e com os segredos do Reino, os discípulos não entenderam. Nem sequer racio-
cinaram que ninguém dormiria dois dias seguidos sem despertar; nem que, num sono normal, não
haveria mister que o Mestre se abalasse da Galiléia à Judéia só para despertá-lo, coisa que qualquer

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pessoa poderia fazer. Mas os melhores homens têm seus momentos de obnubilação mental: aliquando,
bonus dormitat Homerus.
Diante da incompreensão absoluta dos discípulos, o Mestre vê que tinham que ser tratados como
profanos. Então fala "abertamente": "Lázaro morreu" (apéthanen, do verbo apotnêskô, derivado de
thnêskô, da mesma raiz que thánatos; essa raiz tomou o sentido, em grego, de "morrer", embora o
significado original do sânscrito de onde provém, dhvantá, seja "coberto, velado, escuro" - cfr. Émile
Boisacq," Dictionnaire Etimologique ele la Langue Grecque", Heidelberg, 1950, págs. 333; e Sir Mo-
nier Monier-Williams, "A Sanskrit-English Dictionary", Oxford, 1960, pág 252). Já Plutarco dizia que
eram duas as "mortes": a primeira que é a separação da alma (psychê) e do corpo (Sôma), e a segun-
da, que é a separação dá mente (noús) e da alma (psychê) (Morales, 942. f).
E como Jesus percebe o espanto na fisionomia deles, acrescenta: "Alegra-me por não ter estado lá".
Assim, chegando e encontrando-o "morto" há vários dias, seria impossível que eles não cressem na
força (dynamis) maravilhosa de Seus poderes (exousia), aceitando-o como Emissário do Pai e Mani-
festante divino.
Thomé, com o espírito jactancioso dos medrosos, propõe que todos sigam "para morrer com Ele",
embora na hora do perigo real, tenham todos fugido, escondendo-se a tremer de medo ...
Aqui encontramos mais dois números. Quando chegou a Betânia, é dito que o Mestre encontrou Láza-
ro "há QUATRO dias no túmulo".
O QUATRO é, cabalisticamente, o tetragrama sagrado (YHWH), a palavra de força e de poder, de
pronúncia secreta. Mas também exprime o quatemário físico do homem, o túmulo (sêma) ou corpo
(sôma) em que está sepultado o Espírito durante a encarnação (ensômatósis). Nos arcanos (cfr. vol. 4
e vol. 5) o quatro significa REALIZAZÃO, sendo que no plano divino, é o Demiurgo, e no plano "hu-
mano-astral-nervoso" é o RESULTADO.
Logo a seguir o evangelista anota - sem que se veja normalmente razão para esse pormenor! - que
"Betânia distava de Jerusalém QUINZE estádios". Ora, o QUINZE exprime, ainda nos arcanos, a
ENCRUZILHADA, onde a criatura terá que escolher o caminho que deve palmilhar. É o momento em
que a Mônada já descobriu as cadeias que a prendem e reconheceu as dívidas do passado, e se en-
contra com o que a cábala denomina "Baphomet”, isto é, o conjunto de emoções desencadeadas nas
vidas anteriores, cujos resultados agora enfrenta, para vencer ou para perder. Daí, nesse momento,
poder dar-se a "morte de Osíris", em que o candidato voluntariamente se submete à experiência, ten-
tando dominar de golpe todo o somatório de suas emoções. Se sucumbir, terá que enfrentar, em nume-
rosas vidas comuns, essas emoções, vencendo-as uma a uma, durante talvez séculos ou milênios. Se
conseguir passar pela "morte", vencendo-a, dará um salto gigantesco à frente. Daí a importância des-
se passo iniciático, daí o risco que ele traz ao indivíduo se não estiver bem preparado, e daí a assis-
tência indispensável de um Hierofante, pois ninguém pode realizá-lo a sós. Se o iniciado vence, ma-
tando, com sua morte, todas as suas emoções de vez, liquida o débito de seu passado, e renasce "nova
criatura". Mas para isso é mister que o Hierofante (ou pelo menos um Mestre de alta categoria e po-
der espiritual) o desperte novamente para a vida deste plano, ou seja, o "ressuscite", isto é, faça o
Espírito "ressurgir" nos veículos físicos que abandonara, e que agora se acham totalmente submetidos
ao comando espiritual, sem mais possibilidade de rebelar-se para fazer cair o Espírito.
Como sempre, os números dizem muito na pena do evangelista João: o quaternário está no túmulo,
como "morto", aguardando a REALIZAÇÃO do Espírito, que vai decidir, nessa ENCRUZILHADA
vital para sua evolução, o caminho a seguir.
Para isso, então, chega o Hierofante à Escola irmã. Marta corre-Lhe ao encontro, desolada, pois em-
bora sabendo da prova (e diante dos profanos não podia deixar transparecer que se tratava disso)
contudo não esperava fosse tão longa a duração da "morte": agora, após quatro dias, já esmorecera.
Sabia que, se lá estivera o Grande Mestre, Lázaro não teria desencarnado, pois teria sido salvo a
tempo, e reconduzido à saúde. Agora já não será tarde? No entanto, no âmago de seu espírito, ainda
resta uma esperança: "sei que Deus te dará tudo o que Lhe pedires".

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Acreditando o Mestre, mais uma vez, que se dirigia a pessoas cônscias dos rituais iniciáticos, assegu-
ra que "Lázaro se reerguerá" do túmulo, pois se trata de "morte" para renascimento em plano superi-
or, e não de "separação definitiva" entre corpo e alma. Marta também não percebe: a perturbação lhe
toldara a compreensão.
É quando o Cristo, o Hierofante Máximo encarnado então, abertamente se manifesta com a solene
declaração, a quinta (correspondente ao quinto grau iniciático): EU SOU O RESSURGIMENTO DA
VIDA!
O Cristo-Filho, onipotente e onipresente manifestação divina, terceiro aspecto da Trindade sacros-
santa e invisível, que habita dentro de todas as coisas, se expressa através do corpo do homem Jesus,
falando por Sua boca, na encarnação crística do Mahachoan Maitreya, e declara que, se o PAI é o
Verbo-Criador, Ele, o Cristo é o RESSURGIMENTO DA VIDA em todos os seres.
A VIDA, que é o ESPÍRITO, é comunicada pelo PAI, que é o Verbo (Som-Criador) e é mantida e res-
surgida cada vez que fenece, pelo CRISTO, o Filho-Vivo, ou Filho de Deus Vivo.
Por isso Ele acrescenta: "quem crê (pisteuô) em mim", isto é, quem me mantém absoluta fidelidade
(pístis), ou se mantém fielmente unido a num, "mesmo se morreu, viverá; e todo o que já vive e crê em
mim", permanecendo fiel à união comigo, "não morrerá para o eon" (eis ton aiônion), ou seja, por
todo o ciclo evolutivo.
A pergunta, se Marta acreditava em Suas palavras, ela reproduz a "confissão de Pedro", dizendo:
"creio que tu és o CRISTO, o FILHO DE DEUS, que veio ao mundo". Eis a prova irrefutável da ele-
vação espiritual de Marta que, olhando para Jesus, nesse instante, Nele não vê mais o "filho de José",
o homem de Nazaré, Aquele para o qual preparava carinhosamente os peixes no melhor azeite, as
ervas mais bem condimentadas, os bolos de trigo mais saborosos, as castanhas com o mel mais puro,
para Quem preparava à noite a cama fresca com lençóis impecavelmente limpos, e que lhe dissera
certa vez: "Marta, Marta, estas ansiosa e te preocupas com muitas coisas" ... (Luc. 10:41). Mas atra-
vés desse Homem maravilhoso, ela percebe com segurança, além da forma corpórea, o CRISTO que
descera à forma física, mantendo-se UNO com o Pai e com o Espírito!
Essa visão dá-lhe um sobressalto: reconheceu com Quem estava lidando. Não! Não era o simples
Jesus, Amigo e Mestre, que lhe falava com tanta sabedoria e profundo amor: viu ali, diante de seus
olhos ofuscados, o CRISTO! E correu a chamar Maria, a contemplativa. Fala-lhe em segredo. E Ma-
ria ao saber da nova, salta de onde se achava sentada e corre para encontrá-Lo.
*
* *
Quando a alma contemplativa sabe que o Amado se aproxima, por havê-Lo anteriormente chamado,
deixa tudo e vai humilde prostrar-se a Seus pés. Os homens "religiosos" (judeus) a acompanham, mas
sem compreender. Pensam em termos de "defunto" e de “sepultura" e de "choro", ao passo que ela se
dirige para a Vida, para a Liberdade, para a Alegria!
O encontro provoca lágrimas em Maria. Nesse instante, já o CRISTO não apenas fala através de
Jesus, mas passa a agir plenamente, eclipsando-Lhe a personagem. E a força cristônica, ao agir em
toda a Sua plenitude, faz fremir a personagem física, tal como um motor forte demais para pequena
embarcação, a faz vibrar com roncos surdos (embrimáomai significa literalmente "fremir roncando”).
Chegou a hora do despertamento daquele que se submetera voluntariamente à prova dura e difícil da
"morte" do físico, para o avanço do Espírito. O poder (exousia), a força (dynamis) e a ação (érgon)
do CRISTO fazem que o homem mortal sinta comoção em sua psychê, de tal forma que os olhos ficam
marejados de lágrimas; não era emoção, já totalmente dominada pelo Mestre, mas consequência da
vibração sublime, poderosa e elevadíssima que sobre Ele adveio.
A pergunta é direta: "onde o pusestes"?

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E todos se aproximam do túmulo, lentamente, enquanto os "religiosos", sempre com sua pequena fé,
acham que Ele poderia ter salvo Lázaro, tal como curara o cego de nascença. Mas agora ... é tarde
demais, pensam eles, e nada pode ser feito contra a morte!
*
* *
A ação potente e sobre-humana continuava a vibrar sobre Jesus: o CRISTO ATUA no Hierofante, na
hora solene de realizar o ato iniciático sacrossanto de reintegrar no corpo físico o Espírito que fora
colher experiências indescritíveis, por "todos os elementos". E o veículo físico de Jesus novamente
"freme", enquanto se encaminha à gruta e ordena ser tirada a pedra.
A fé ainda não se firmara em Marta, que objeta ser o cadáver “de quatro dias". De acordo com o si-
gnificado do número QUATRO, que já vimos atrás, temos diante dos olhos o resultado efetivo de uma
realização do Hierofante, assistido pelo Demiurgo. Mas a objeção de Marta também tem sua razão de
ser: os quatro dias podem expressar-nos o temor de Marta, sobre a incapacidade de os veículos físi-
cos de Lázaro, já arruinados, poderem suportar a força violenta e repentina do regresso do espírito.
De qualquer forma, porém, é uma vacilação inexplicável, embora justificável em vista da fraqueza do
espírito enquanto preso à matéria. Esse temor é revelado sob a forma do odorato" "já fede"; mas o
CRISTO, seguro de Sua força e de Seu poder, retruca que "tudo é possível àquele que crê" (Marc.
9:22).
A pedra é retirada: a matéria física densa que obstaculiza a evolução é posta de lado. E dentro da
gruta vê-se o corpo imóvel e cadaverizado do iniciado que se submete à prova, com as funções somá-
ticas paralisadas pelo afastamento temporário do espírito em exercitação de aprendizado evolutivo.
A seguir o Cristo liga-se mentalmente ao Pai, o Ancião dos Dias, agradecendo, em comunhão euca-
rística, mais essa realização no campo da evolução espiritual. Salienta o fato de “ter sido ouvido",
enquanto assevera que jamais falhou essa ligação de Suas vontades unificadas no trabalho em lavor
da humanidade que lenta e penosamente avança ao longo dos milênios. E justifica essa declaração em
voz alta, pela necessidade de conseguir dos circunstantes a certeza de que Ele é o Enviado do Pai,
para ensinar o caminho, parei exemplificar as qualidades básicas do Super-Homem, traçando e des-
bastando a estrada que deve ser perlustrada pela Individualidade, qual Pastor divino que, em arros-
tando precipícios e tempestades, segue à frente do rebanho.
Passa, então, à ação (érgon). É o Sacerdote da ordem de Melquisedec - o Pai Amado e Amante - que
celebra o rito, simples e solene. E, com, voz altissonante, que faz vibrar o éter dos espaços e despertar
os espíritos, ordena o regresso de Lázaro a seu corpo, e sua apresentação fora da gruta, à multidão
que o aguarda.
“Lázaro, vem para fora"! é a ordem. Não apenas para fora da gruta em que estava seu corpo, mas
sobretudo para fora de sua interiorização na “gruta do coração", onde havia mergulhado, para infi-
nitizar-se em contato com o Infinito, e iluminar-se em unificação com a Luz, absorvendo o aprendiza-
do por intuição e preparando-se para espalhar na Terra as bênçãos de sua evolução.
A exteriorização é imediatamente realizada, embora o físico não tenha conseguido acompanhar a
evolução do Espírito: os pés contituavam “amarrados", as mãos "enfaixadas", e o rosto envolto num
“sudário". O Mestre ordena que o novo iniciado seja libertado: que os pés tenham o poder de cami-
nhar pelo mundo, levando a salvação às criaturas; que as mãos sejam desenfaixadas de suas ataduras
cármicas, e possam abrir-se em bênçãos de serviço; e que sobretudo o rosto seja exposto ao sol da
vida, para que também brilhe com a sabedoria adquirida e, através dos olhos que observam as dores
humanas, irradie as vibrações de amor de que a humanidade vive sequiosa e realmente necessitada.
Aí estava, diante da pequena multidão espantada, mais um sacerdote preparado para o serviço, mais
um apóstolo do bem, acrescendo as fileiras de anônimos obreiros que fazem evoluir a humanidade!
*
* *

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Outra interpretação poderá ser dada, quando transpusermos todas essas ações externas, para o âm-
bito interno do Espírito: a consagração das criaturas por obra do Cristo-Interno, fazendo-as ressurgir
depois da morte a todos os estímulos físicos e da destruição de todas as emoções. Mas essa aplicação
cada um dos leitores poderá fazer por si mesmo, através da meditação.

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DECRETAÇÃO DE MORTE
João, 11:45-54
45. Então muitos dentre os judeus, os que vieram a Maria e viram o que (Jesus) fez, cre-
ram nele.
46. Alguns deles, todavia, foram aos judeus e lhes disseram o fez Jesus.
47. Os fariseus, pois, e os principais sacerdotes reuniram o sinédrio e disseram: "Que fa-
zemos, já que esse homem faz muitos prodígios?
48. Se o deixarmos assim, todos crerão nele e virão os romanos e nos tirarão tanto nosso
lugar quanto nossa nação".
49. Um dentre eles, porém, Caifás, sendo sumo sacerdote naquele ano, disse-lhe: "vós não
sabeis nada!
50. Não raciocinais que vos convém que um homem morra pelo povo e não se perca a na-
ção toda"!
51. (Isso não disse por ele mesmo; mas, sendo sumo sacerdote naquele ano, profetizou
que Jesus estava para morrer pela nação.
52. E não só pela nação, mas para que também os filhos de Deus dispersos, se reunissem
em um).
53. Então, desde esse dia, decretaram que o matariam.
54. Jesus, pois, já não andava abertamente nos judeus, mas saiu dali para a região pró-
xima do deserto, para a cidade chamada Efraim, e ali demorou com os discípulos.

Ao evangelista interessava registrar o efeito externo que produziu a cena assistida, mas não compreen-
dida, pelos judeus procedentes de Jerusalém: acreditaram que realmente se tratava de alguém que de
fato possuía poderes muito superiores aos dos homens comuns; então só poderia tratar-se de, pelo me-
nos, um profeta. A fidelidade à religião mosaica levou alguns a comunicar o fato aos fariseus, seita
dominante, a fim de que oficialmente tomassem as medidas cabíveis: um exame rigoroso e honesto
daquele homem e de suas obras, pois inegavelmente ele realizava, com simples palavras, atos huma-
namente impossíveis.
Os que tinham visto, com seus próprios olhos, não podiam mais duvidar. E faziam questão de conven-
cer seus amigos e de captar a simpatia dos fariseus (cfr. João, 2:23; 5:15; 7:31; 9:13) para o novo tau-
maturgo: era indispensável tomar conhecimento "oficial" desse profeta.
A nova espalhou-se e alarmou as "autoridades constituídas": foi convocada uma reunião do Sinédrio,
com a presença dos principais sacerdotes e dos fariseus; a questão foi colocada na pauta sob o aspecto
político. A maior preocupação, sempre, dos aproveitadores, é agradar aos "chefes", para não perderem
a posição vantajosa de mando, com lucros garantidos.
Todos concordaram em que aquele carpinteiro constituía crescente dor de cabeça, pois poderia, com
sua extraordinária força taumatúrgica, sublevar o povo para mais uma revolução contra os dominado-
res romanos; isso causaria sérios aborrecimentos e prejuízos: o "nosso lugar" (alguns interpretam como
o "templo") e a nação seriam arrasados. Mister agir! eis que eles estavam inertes, ao passo que "esse
homem" se agigantava livremente diante do povo. Não interessava perquirir se era ou não o "messias";
se trazia ou não uma mensagem de YHWH; se realmente se tratava de grande e verdadeiro profeta ou

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SABEDORIA DO EVANGELHO

de impostor: importava que não fosse atrapalhado o trem de vida que os israelitas haviam conseguido
estabilizar mais ou menos, em troca de concessões em todos os campos, mormente no do caráter.
Ergue-se, então, a voz de Caifás (em hebraico, kaifâ, em grego Caiáphas, no latim da Vulgata, Cai-
phas), o qual - diz o evangelista - "era sumo sacerdote naquele ano" (archiereús toú eniautoú ekeínou).
A primeira impressão é que o sumo sacerdócio variava de ano para ano, o que não corresponde à reali-
dade: Caifás foi sumo pontífice do ano 18 ao ano 36 (cfr. Flávio Josefo, Ant. Judo 13, 2,2 e 4,3). Para
permanecer tanto tempo em posição tão cobiçada, devia ser extraordinariamente subserviente aos go-
vernadores romanos. Ora, Caifás proferiu uma frase que solucionou o problema para eles, embora ar-
rasando os companheiros com sua superioridade funcional: "não sabeis nada: não raciocinais que vos
convém que um homem morra pelo povo e que não se perca a nação toda".
Trata-se de razão de estado, puramente política: se o carpinteiro, com sua ação, está pondo em perigo a
comunidade, sacrifique-se o indivíduo em benefício da coletividade.
Entretanto, sem levar em conta que sugerira ter Caifás falado como "cidadão privado" (tís ex autôn) e
não na qualidade de seu cargo, o evangelista afirma que, "por estar exercendo o sumo sacerdócio na-
quele ano, profetizou", isto é, falou mediunicamente, que "Jesus devia morrer pela nação". E o narra-
dor acrescenta: "E não só pela nação (judaica), mas para que também os filhos de Deus dispersos (di-
askorpízô) se reunissem em UM". Frase que é bom reter.
Desde esse dia ficou, portanto, lavrada a sentença de morte de Jesus por parte das autoridades ecle-
siásticas dos judeus. Já antes o haviam tentado (cfr. João 5:18; 7:32 e 9:22) mas seus planos haviam
sido sempre frustrados. Agora o decreto oral do sumo pontífice estava publicamente aceito.
Jesus novamente se refugiou fora de Jerusalém, longe dos judeus sequiosos de destruí-Lo. Dirigiu-se
para a região limítrofe do deserto, para uma cidade denominada Efraim (ou Ephron segundo Eusébio e
Jerônimo: interessante o testemunho desses dois escritores, porque ambos viveram algum tempo na
Palestina). Essa cidade é relacionada, geralmente, com Bethel (cfr. 2.º Crôn. 13:19 e F. Josefo Bell.
Jud. 4,9, 9). Hoje é chamada Thayebêh, situada a cerca de 25 km de Jerusalém. Implantada a 823 m de
altitude, dela se avista belo panorama a leste: o vale do Jordão e, além dele, as cordilheiras de Gile"ad
e de Ammon, a bacia setentrional do mar Morto e as montanhas de Moab. A oeste, ao norte e ao sul, o
horizonte se afasta a perder de vista. Efraim significa "fecundidade", do verbo pârâh, na forma hif'il).
Em Efraim Jesus "demorou" (diatríbô) algum tempo com os discípulos, aguardando o momento opor-
tuno. O verbo diatríbô significa literalmente "passar algum tempo esperando" ou "entreter-se com
amigos até determinado instante", etc.

A lição é altamente significativa para todos os que se dedicam ao espiritualismo, especialmente no


campo da mística do mergulho e da iniciação. Os religiosos ortodoxos ("judeus") dão suma importân-
cia à fenomenologia prodigiosa, às pompas ritualísticas externas, que neles suscita entusiasmo e afer-
vora a devoção. O entusiasmo provocado por atos dessa natureza leva-os a pretender espalhar ao
máximo a notícia do acontecimento, sentindo-se eles mesmos enaltecidos pelo privilégio que tiveram
de ser testemunhas oculares; e isso lhes produz a sensação de coparticiparem da força taumatúrgica.
No entanto, o resultado é sempre o oposto: as "autoridades" religiosas não admitem nada de grandio-
so senão entre os de seu grupo.
Então, cada vez que tentam espalhar notícias de fenômenos exteriores ao grupo privilegiado que está
no poder, provocam com isso perseguições claras ou veladas. E o indivíduo que foi ator da cena, pas-
sa a ser suspeito e alvo de má vontade, que leva ao desejo de destruí-lo sob qualquer desculpa e com
qualquer método: físico ou moral por meio de calúnias inventadas e propaladas.
Com isso aprendemos que o silêncio é "de ouro" nestes assuntos: nada dizer a ninguém a respeito de
quaisquer experiências que tenhamos feito ou venhamos a fazer. O segredo é mais necessário aqui,
que mesmo em matéria de negócios. Muitas vezes, por falarmos certas coisas, perdemos oportunida-
des maravilhosas de obter e realizar certas experiências decisivas. Quando então chegamos a deter-
minado, ponto evolutivo, compreendemos a necessidade do silêncio mais fechado. Daí a máxima ver-

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dadeira: "quem diz que é, não é, o quem é, jamais diz que é". Nunca se ouvirá da boca de um iniciado
verdadeiro, essa afirmativa. E todos aqueles que dizem sê-lo, NÃO SÃO.
A iniciação é coisa muito séria e não vem com sinais exteriores, a não ser com as dores inerentes às
provas indispensáveis à evolução da criatura. Mas, de qualquer forma, aqueles que atingem esse
ponto, devem manter sigilo absoluto, para que ninguém o venha a descobrir de sua boca. No máximo,
serão percebidos por aqueles que estão no mesmo grau ou nos graus superiores.
Julgam muitos - encantados pela insinuante lábia dos que se intitulam a si mesmos mestres, gurus,
brâmanes, swamis, etc. - que ouvindo-lhes as preleções em voz soturna de mistério e seguindo-lhes as
lições ministradas a portas fechadas, e depois submetendo-se a rituais exóticos, se tornam "iniciados",
e vão subindo penosamente os degraus, estabelecidos pelos homens a seu capricho, até alcançarem os
postos mais "elevados". São, porém, ilusões necessárias, para satisfazer aos principiantes, que assim
se vão preparando para, algumas encarnações mais tarde, já treinados por esses "folguedos" espiri-
tuais, poderem realmente dar os primeiros passos na senda.
Compreendemos a necessidade de existirem essas "Escolas" ou "ordens" ou "ashrams", porque é
sempre bom que os espíritos desejosos de progredir, encontrem ambientes propícios. E como as cria-
turas se equilibram nos mais variados estágios evolutivos, mister se formem escolas também em todos
os graus. E cada um se situa dentro de seu padrão vibratório, dos mais baixos aos mais elevados.
Feitas essas anotações, observemos a ação dos religiosos ortodoxos. A razão primordial, embora ja-
mais abertamente confessada ao grande público, é a manutenção do poder político e do prestígio pe-
rante o povo, pois essas duas fontes lhes permitem locupletar-se em todos os sentidos. Convocam-se,
então, reuniões secretas, a fim de decidir do melhor modo de agir. Nessas reuniões é que se torna
mais fácil levantar um pouco o véu e falar mais claramente. Se alguém lhes atrapalha a vida, deve ser
suprimido. Hoje em dia não mais se assassinam as criaturas. Mas a tradição judaica permaneceu fiel
entre os herdeiros deles durante séculos, e milhares de pessoas tiveram a mesma sorte de Jesus: foram
impiedosamente assassinados pelas "autoridades" ecleciásticas ortodoxas, sob a alegação de que
eram "herejes", isto é, não pensavam como eles ...
A orientação dada pelo "Sumo Pontífice" Caifás foi seguida sem discussões pelos inimigos de Jesus
contra Ele, e mais tarde, pelos que se diziam discípulos Dele, contra pobres indivíduos que nenhum
direito tinham de defesa.
No entanto, há uma frase de João que merece ser meditada: "Jesus morreu também para que os filhos
de Deus dispersos se reunissem em UM".
São essas frases soltas que frequentemente trazem luzes fantásticas a respeito de processos que, de
outro modo, não teríamos condições de perceber. Analisemos, dentro de nossas parcas possibilidades.
A "morte" de Jesus, isto é, a separação violenta e transitória do espírito de Jesus de seus veículos in-
feriores, provocou um choque vibratório que possibilitou novos rumos no processo evolutivo de toas
as coisas.
Tudo o que existe - anjos, homens, animais, vegetais, minerais - é obra divina, criada pela Luz Abso-
luta, pelo Imanifestado que Se manifesta: tudo surge de Sua própria substância, e se conserva em
existência dentro de Sua própria essência. Logo, tudo o que existe pode chamar-se, de direito, "filho
de Deus".
Deus é essência. Deus É. Tudo o que surge de Sua substância, existe (ex-sistit) ou seja, É, porque sur-
giu e se mantém sustentada por uma Força distinta de sua própria existência. Vemos, pois, que trans-
parece clara uma distinção: a existência é da criatura, a essência é do Criador, Deus, essência última
de tudo. Em outras palavras: tudo o que existe surge da substância divina e se sustenta porque per-
manece com a essência divina em si, embora tenha uma existência sua própria.
Ora, quando as existências passam a existir em ato, a própria condição inerente à existência é a divi-
são ou dispersão, pois a existência é alcançada com o mergulho no pólo negativo (Anti-Sistema) o
qual é, por natureza, divisionista, dispersivo e antagônico (satânico). Daí podermos distinguir, por

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SABEDORIA DO EVANGELHO

exemplo, milhões de moléculas e átomos de ouro, embora o "ouro" seja uma unidade coletiva única. E
assim ocorre com minerais, vegetais, animais e mesmo homens: na subida evolutiva o movimento tem
que ser contrário: de unificação ("amai-vos uns aos outros"), refundindo-se as partes num só todo.
O movimento de descida e divisão estava no ponto máximo. Era mister colocar-se um ponto final e dar
um apoio, para que a direção do movimento de descida pudesse firmar-se, e iniciar o regresso ao
ponto de partida, invertendo totalmente o sentido geral da caminhada.
Para isso foi indispensável que uma força incalculavelmente elevada espiritualmente tomasse a inici-
ativa de estancar a descida, para iniciar a subida. Achava-se o planeta no ponto mais baixo da escala
divisionista. E sozinho não teria meios de dar meia-volta e principiar a subida árdua e difícil. Alguém
tinha que fazê-lo.
Tudo foi preparado para que, na hora aprazada no relógio do infinito, se produzisse um fenômeno
capaz de revirar o rumo. Seria indiscutivelmente um "salvador" da humanidade. Deu-se, pois, a en-
carnação especialíssima de Jesus, preparada durante várias gerações, e Nele se manifestou o CRIS-
TO, o que foi possível pela grande pureza do espírito de Jesus e de Seu corpo.
Aí temos, portanto, a força cristônica do universo descendo com toda a Sua capacidade e mergulhan-
do na Mente, no Intelecto, no Astral e no próprio físico de Jesus. E através do mergulho em Jesus,
houve, em repercussão, o mergulho em todos os planos (humano, animal, vegetal e mineral) dessa
mesma Força cristônica, que já constituía a essência de todas essas coisas. Mas a intensidade da Pre-
sença foi aumentada de muito. E a descida foi quase que paralisada. Feito isso, durante o tempo ne-
cessário para essa fixação, foi preparado o choque que permitiria o retorno da corrente, desviando-a
do pólo negativo para o positivo: a retirada repentina e violenta do espírito de Jesus, durante curto
período, para logo a seguir regressar. Mas esse impulso, que trouxe trevas ao planeta (Mat. 27:45;
Mr. 15:33,. Lc. 23:44) conseguiu libertar todas as coisas do empuxo para o divisionismo. O violento
choque foi sentido em todos os planos, e todas as coisas passaram a ter a capacidade de reunificar-se
("Amai-vos uns aos outros"). Daí dizer-se que Jesus foi o SALVADOR: de fato, com o empréstimo de
Sua matéria, permitiu que fosse tudo libertado da força dispersiva que, pelo impulso centrífugo, leva-
va tudo ao divisionismo e à dispersão, e deu nova orientação, com violento impulso centrípeto.
Foi isso que entendemos da frase de João: "morreu também para que os filhos de Deus dispersos, se
reunissem em UM".

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PREDIÇÃO DAS DORES

Mt. 20:17-19 Marc. 10:32-34 Luc. 18:31-34

17. E, subindo Jesus para Je- 32. Estavam, pois, na estrada, 31. Tomando, pois, os doze,
rusalém, tomou os doze subindo para Jerusalém, e disse-lhes: “olhem, subimos
discípulos a sós e no cami- Jesus os estava precedendo para Jerusalém e se reali-
nho lhes disse: e os seguiam se espantavam zará tudo o que foi escrito
e temiam. E tomando de por meio dos profetas sobre
18. "Olhem, subimos a Jeru-
novo os doze começou a di- o filho do homem;
salém, e o filho do homem
zer-lhes o que estava para
será entregue aos princi- 32. pois será entregue aos gen-
acontecer-lhe:
pais sacerdotes e escribas, e tios, escarnecido, injuriado
o condenarão à morte, 33. "Olhem, subimos para Je- e cuspido,
rusalém, e o filho do ho-
19. e o entregarão aos gentios 33. e, flagelando-o, o matarão,
mem será entregue aos
para escarnecer, flagelar e e no terceiro dia se levanta-
principais sacerdotes e aos
crucificar, e no terceiro dia rá".
escribas e o condenarão à
será despertado". 34. E eles nada disso entende-
morte e o entregarão aos
gentios, ram, e era essa palavra
oculta para eles, e não tive-
34. e o escarnecerão e cuspirão ram a gnose do que lhes di-
nele e o flagelarão e mata- zia.
rão, e no decurso de três
dias se levantará".

Encontramos aqui mais uma advertência de Jesus a respeito do que se passaria em Jerusalém. É o ter-
ceiro aviso em Mateus (cfr. 16:21 e 17:22-23); o terceiro em Marcos (cfr. 8:31 e 9.30); e o quarto em
Lucas (cfr. 9:22 e 44; e 17:25). Interessante observar que Lucas, o não-israelita, é o único a referir-se
às profecias.
"Subir a Jerusalém" era a expressão corrente, consagrada pelo uso (cfr. 2.º Reis 16:5; Mat. 20:17, 18;
Marc. 10:33; Luc. 2:42; 18:31; 19:28; João, 3:12; 5:1; 7:8; 11:55).
Mateus e Marcos avisam que será entregue primeiro aos principais sacerdotes e escribas que "o conde-
narão à morte", entregando-o aos gentios para a execução (técnica muito usada, também. na igreja ro-
mana, que condena e entrega "ao braço civil", para que seja executada a sentença por ela proferida).
Lucas, entretanto, nada diz dos principais sacerdotes e dos escribas: avisa que será entregue (por
quem?) diretamente aos gentios. Será que, não sendo judeu, não quis magoá-los, procurando desculpá-
los do crime, deixando velada a ação anterior do sinédrio, de que também não fala?
Na descrição do que ocorrerá, cada narrador acrescenta um pormenor:
Mateus: para ser escarnecido (empaíxai), flagelado (mastigôsaí) e crucificado (staurôsai);
Marcos: será escarnecido (empaíxousin), cuspido (emptysousin), flagelado (mastigôsousin) e assassi-
nado (apoktenoúsin);
Lucas: será escarnecido (empaichthêsetai), injuriado (hybristhêsetai) cuspido (emptysthêsetai), e, fla-
gelado (mastigôsantes) o matarão (apoktenoúsin autón).

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SABEDORIA DO EVANGELHO

No entanto todos concordam que não será o fim. Mateus assevera que "no terceiro dia será despertado"
(têi trítêi hêmérai egerthêsetaì); Marcos que "no transcurso de três dias se levantará (metá treis hemé-
rais anastêsetai); e Lucas (têi hemêrai têi trítêi enastêsetai).
A expressão de Marcos metá treis hemêrais é geralmente traduzida como "após três dias", o que não
corresponde à verdade dos fatos. Não há dúvida que metá, preposição com acusativo de sentido tempo-
ral, pode significa: "depois". Mas encontramos também, o sentido de "no transcurso de", "no decurso
de", "no curso de", "no lapso de": cfr. Bailly, Dict. Grec-Français, in verbo: "Com idéia de tempo, o
sentido é "durante": meth'hêméran, durante o dia, Heródoto, 1, 150; Euripedes, Oreste, 58; Bacantes,
485; metá dyo étê, durante dois anos, no transcurso de dois anos, F. Josefo, Bell. Jud. 1, 13, 1; metá
tríton étos, Teofrasto, História das Plantas, 4, 2, 8, no lapso de três anos". Portanto, a bem da verdade,
traduzimos: "no decurso de três dias", e não "depois de três dias".
Observe-se que, desta vez, não houve protesto por parte dos discípulos, como ocorrera no primeiro
anúncio dos sofrimentos.
Na caminhada para Jerusalém, Jesus segue à frente (ên proágôn autóus), com passo firme, qual Chefe
intrépido. Os discípulos e as mulheres (cfr. Mat. 20:20 e Marc. 15:41) se acham espantados, e até apa-
vorados (ethamboúnto kaì ephoboúnto).
Apesar de palavras tão claras, os discípulos não compreenderam (kaì autoí oudén toútôn synêkan, kaì
ên to rhêma toúto kekrymménon ap'autôn, kaì ouk egínôskon tà legómena, Luc.). Tão fortes eram os
preconceitos, em relação ao Messias, que julgavam fosse tudo simbólico: como poderia o "vencedor
dos romanos" ser assassinado, se ele reinaria soberano sobre Israel?

A todo aquele que se acha na Senda, é pedido o sacrifício árduo de uma subida íngreme e difícil. Nin-
guém jamais evoluiu "sur des roulettes".
Nem todos os sofrimentos e dores são provocados pelos resultados (carmas) de ações passadas: mui-
tas vezes (e proporcionalmente tanto mais, quanto maior é a evolução da criatura) a dor é causada
pelo espasmo do empuxo para cima, ao serem arrancadas as raízes do psiquismo animal, do 'terreno
árido e pedregoso do pólo negativo, para que o homem se transforme no super-homem.
Quanto mais baixo na escala da espiritualidade está o indivíduo, menos sofrimento existe, de vez que
ele se afina com as vibrações vigentes no Anti-Sistema. À proporção que se vai elevando, na trans-
mutação de psychê em pneuma, mais profundas e conturbadoras e violentas e dolorosas as reações
externas e internas.
Com efeito, do lado de fora da personagem, vemos aparecer grupos de pessoas, encarnadas e desen-
carnadas, que atacam por todos os meios imagináveis aqueles que iniciam a subida: convites insis-
tentes para deter-se e novamente mergulhar nos velhos erros; atrações quase irresistíveis por parte de
seres do sexo oposto, pretendendo enlear na teia de novos compromissos cármicos; facilidades finan-
ceiras à vista, generosamente oferecidas em troca do abandono dos novos caminhos iniciados, e tan-
tos outros recursos de que o Anti-Sistema dispõe com largueza, para prender em seu âmbito o maior
número de psychês, já que na hora fim que estas lhe faltarem, sua existência entrará em colapso fatal
e desaparecerá.
Mas a luta é pior dentro da própria psychê, na transformação profunda que opera para tomar-se
pneuma. Analisemos .
As criaturas humanas, hoje, possuem e utilizam largamente a psychê que herdaram e desenvolveram
através de toda a caminhada evolutiva pelos reinos animal e hominal. Mas a essa psychê se vai so-
mando o pneuma, que vai conquistando terreno à psychê. O pneuma começou no reino hominal com o
aparecimento do chacra coronário no alto da cabeça (coronário, de corona, "coroa"). Esse apareci-
mento é descrito simbolicamente no Gênese (3:24) da seguinte forma: "Expulsou o homem do paraíso
(da irresponsabilidade animal e do desconhecimento moral) e ao oriente do Jardim do Éden (oriente
de órior, "nascer"; ou seja, no ponto em que começa a criatura: o alto da cabeça) pôs os querubins

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C. TORRES PASTORINO

(rodas de fogo turbilhonantes) e o chamejar de uma espada que girava por todos os lados (o chacra
ígneo de mil pétalas que gira incandescente vertiginosamente) para guardar o caminho da árvore da
vida", isto é, para impedir que, uma vez iniciado o estágio hominal com o surgimento, embora rudi-
mentar de um pneuma (Espírito) representado pelo chacra coronário ausente nos animais, jamais
pudesse a criatura regressar ao estágio animal, ainda que dele estivesse bem próximo evolutivamente.
Mas a vibração passou a ser de outro tipo, com outro timbre, e uma vez adquirido o pneuma, não mais
poderia ser perdido.
Então, aí temos o início do processo.
E a evolução no reino hominal consiste em fazer diminuir, cada vez mais, a psychê, e em fazer cres-
cer, cada vez mais, o pneuma, que paulatinamente vai conquistando a psychê; ou melhor, paulatina-
mente a psychê se vai transformando em pneuma e morrendo.
A evolução tende a abolir a emotividade psíquica animal, substituindo-lhe o sentimento elevado espi-
ritual, numa transmutação lenta de várias dezenas de milênios.
Ocorre que o psiquismo coletivo sente que as forças se lhe vão diminuindo gradativamente, e, como é
óbvio, tende a reagir e a deter a evolução a fim de não desaparecer. Então, os elementos mais afina-
dos com o psiquismo animal inferior, recebem os impulsos de força psíquica (logicamente negativa), e
tentam por todos os modos impedir a transformação que, como vimos, é lenta e dolorosa. Esses ele-
mentos influenciados pelo psiquismo inferior, açulam e procuram injetar em todos os campos, em to-
dos os povos, por todos os meios (a imprensa periódica, as revistas, os livros, a publicidade, o rádio e
a televisão, o cinema e o mais que exista) com palavras suaves e figuras embelezadas e atraentes, o
que de mais baixo impera no homem. Forcejam por despertar-lhe os instintos emotivos mais violentos,
através da parte animal do sexo desenfreado e do sensualismo gozador. Com isso, visam a retardar o
máximo que puderem, a transmutação da psychê em pneuma.
Muito é conseguido daqueles que estão atrasados, após mais de cem mil anos de exercícios no estágio
hominal. Mas de outro lado, confortadoramente, há alguns que conhecem os segredos das coisas, e
que aprendem a reagir positivamente.
É a esse sacrifício doloroso que nos referimos acima, pelo qual passam todos os que pretendem pro-
gredir espiritualmente. Cada passo dado na Senda da iniciação corresponde a um conjunto específico
de dores físicas, morais e espirituais, sem as quais não é possível renascer na escala imediatamente
superior. A própria natureza nos ensina isso com múltiplos exemplos. Basta abrir os olhos da mente:
para nascer um ponto acima de onde se achava, a criança passa nove meses no sepulcro de uma ca-
verna sombria, mergulhada na água e comprimida, e para sair de lá, tem que atravessar uma "porta
estreita", que a aperta dolorosamente, forçando-a a chorar logo que atinge a luz: a dor foi muito
grande! O homem, para dar um passo além, precisar atravessar o pórtico da chamada "morte", em
que o corpo astral é arrancado do físico, causando sensações dolorosas e angustiantes. Os mesmos
passos são exigidos no reino animal e até mesmo no vegetal: a semente sentir-se-á esmagada sob a
terra fria, úmida e escura, experimentando uma espécie de apodrecimento, em que se rompe, para que
de dentro surja a árvore frondosa, o arbusto modesto ou a ervinha humilde. Tudo poderá ser denomi-
nado a dor da expansão, o sacrifício do crescimento, o sofrimento da ascensão. Mas isso constitui
uma exigência da natureza em qualquer campo, sem exceção.
Nos graus superiores, a criatura não é mais forçada pela natureza ao progresso, mas conscientemente
o busca; assim como no curso primário obrigamos nossos filhos ao estudo, embora o curso superior
esteja na dependência da vontade livre de cada um deles.
Assim, exemplificando para nós, Jesus anuncia mais uma vez a Seus discípulos, as dores que O espe-
ram e, que Ele terá que superar para obter mais um passo evolutivo, e também para ajudar ao planeta
a evolver globalmente com todos os seus moradores.
Para iniciar a etapa dolorosa, é indispensável que haja uma "entrega" (parádosis) nas mãos daqueles
que poderão causar-lhe as dores previstas e necessárias a cada caso. Já vimos (vol. 4) que o substan-
tivo parádosis e o verbo paradídômi são vocábulos estritamente iniciáticos, das Escolas gregas, com

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SABEDORIA DO EVANGELHO

sentido preciso. Não se trata, pois, de uma "traição", mas de uma "tradição", algo de previsto pela
Lei, algo de preparado e acompanhado pelos mentores encarregados de ajudar a evolução do candi-
dato, assim como os enfermeiros terrenos preparam um doente que precisa de tratamento cirúrgico
para o ato operatório, mas não o abandonam, nem antes, nem durante, nem depois, só lhe dando
"alta" quando tiver superado a crise e estiver "fora de perigo de recaída", com seu corpo curado. Os
mentores espirituais e Mestres agem da mesma forma com Seus discípulos: jamais os abandonam. E
são incomparavelmente mais cuidadosos que os melhores enfermeiros terrenos ...
As dores atingirão a parte física e a astral com a flagelação e a crucificação: a parte moral com a
zombaria e o desprezo (cuspir na face); a personagem total com a separação violenta do espirito (as-
sassinato).
Se durante todo esse processo o candidato conseguir manter-se firme e inalterado na Mente e no Espí-
rito, conservando intacta sua paz interior, e inabalável sua fidelidade, a vitória lhe sorrirá brilhante, e
seu Mestre o receberá de braços abertos: terá renascido um degrau acima, dominando a morte. liqui-
dando definitivamente as emoções, superando todo o estágio hominal, e iniciando a caminhada no
nível de super-homem ou de Filho do Homem. Nesse ponto, não há mais necessidade de reingressar
na matéria. Mas muitos o fazem em missão sacrificial, para "salvar" humanidades e ajudar a evolu-
ção de Seus irmãos menores, ainda atrasados na estrada, enleados nos cipós grosseiros das paixões e
afundados nos charcos pegajosos das emoções descontroladas do psiquismo animal predominante,
donde é tão difícil sair.
Lucas adverte sem ambages, que os discípulos "nada entenderam"; que esse foi um "ensino oculto"
para eles, e que, por isso, "não tinham a gnose (ouk egínoskon) das palavras (tà legômena)". Como
vemos, linguajar nitidamente iniciático.

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C. TORRES PASTORINO

PEDIDO EXTEMPORÂNEO

Mat. 20:20-28 Marc. 10:35-45

20. Então veio a ele a mãe dos filhos de Zebe- 35. E aproximaram-se dele Tiago e João os fi-
deu, com os filhos dela, prostrando-se e ro- lhos de Zebedeu, dizendo-lhe: "Mestre,
gando algo. queremos que, se te pedirmos, nos faças".
21. Ele disse-lhe, pois: "Que queres"? Respon- 36. Ele disse-lhes: "Que quereis que vos faça"?
deu-lhe: "Dize que estes meus dois filhos se 37. Responderam-lhe eles: "Dá-nos que nos
sentem um à tua direita e outro à tua es- sentemos um à tua direita e outro à tua es-
querda em teu reino” querda na tua glória".
22. Retrucando, Jesus disse: "Não sabeis o que 38. Mas Jesus disse-lhes: "Não sabeis o que
pedis. Podeis beber o cálice que estou para pedis. Podeis beber o cálice que eu bebo, ou
beber"? Disseram-lhe: "Podemos"! ser mergulhados no mergulho em que sou
23. Disse-lhes: "Sem dúvida bebereis o meu mergulhado"?
cálice; mas sentar à minha direita ou es- 39. Eles retrucaram-lhe: "Podemos"! Então
querda, não me compete concedê-lo, mas Jesus disse-lhes: "O cálice que eu bebo, be-
àquele para quem foi preparado por meu bereis, e sereis mergulhados no mergulho
Pai". em que sou mergulhado,
24. E ouvindo os dez, indignaram-se contra os 40. mas o sentar à minha direita ou esquerda,
dois irmãos. não me cabe concedê-lo, mas a quem foi
25. Chamando-os, porém, Jesus disse: "Sabeis dado".
que os governadores dos povos os tiranizam 41. E ouvindo isso, os dez começaram a indig-
e os grandes os dominam. nar-se contra Tiago e João.
26. Assim não será convosco; mas quem quiser 42. E chamando-os, disse-lhes Jesus: "Sabeis
dentre vós tornar-se grande, será vosso ser- que os reconhecidos como governadores dos
vidor, povos os tiranizam e seus grandes os domi-
27. e quem quiser dentre vós ser o primeiro, nam.
será vosso servo, 43. Não é assim, todavia, convosco: mas o que
28. assim como o Filho do homem não veio quiser tornar-se grande dentre vós, será
para ser servido, mas para servir e dar sua vosso servidor,
alma como meio-de-libertação para mui- 44. e o que quiser dentre vós ser o primeiro,
tos". será servo de todos.
45. Porque o Filho do Homem não veio para ser
servido, mas para servir e dar sua alma
como meio de libertação para muitos”.

Lucas (18:34) salientara que os discípulos "nada haviam entendido e as palavras de Jesus permaneciam
ocultas para eles, que não tiveram a gnose do que lhes dizia". Mateus e Marcos trazem, logo depois, a
prova concreta da verdade dessa assertiva.
Mateus apresenta o episódio como provocado pela mãe de Tiago e de João, com uma circunlocução
típica oriental, que designa a mãe pelos filhos: "veio a mãe dos filhos de Zebedeu com os filhos dela",
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ao invés do estilo direto: "veio a esposa de Zebedeu com seus filhos". Trata-se de Salomé, como sabe-
mos por Marcos (15:40) confrontado com Mateus (27:56). Lagrange apresenta num artigo (cfr. "L'Ami
du Clergé" de 1931, pág. 844) a hipótese de ser Salomé irmã de Maria mãe de Jesus, portanto sua tia.
Sendo seus primos, o sangue lhe dava o direito de primazia. Em nossa hipótese (vol. 3), demos Salomé
como filha de Joana de Cuza, esta sim, irmã de Maria. Então Salomé seria sobrinha de Maria e prima
em 1.º grau de Jesus (sua "irmã"), sendo Tiago e João "sobrinhos de Jesus", como filhos de sua "irmã"
Salomé. Então, sendo seus sobrinhos, a razão da consanguinidade continuava valendo. Além disso,
Salomé como sua irmã, tinha essa liberdade, e se achava no direito de pedir, pois dera a Jesus seus dois
filhos e ainda subvencionava com seu dinheiro as necessidades de Jesus e do Colégio apostólico (cfr.
Luc, 8:3 e Marc. 15:41).
Como na resposta Jesus se dirige frontalmente aos dois, Marcos suprimiu a intervenção materna: real-
mente eles estavam de pleno acordo com o pedido, tanto que, a seu lado, aguardavam ansiosos a pala-
vra de Jesus. A interferência materna foi apenas o "pistolão" para algo que eles esperavam obter.
Como pescadores eram humildes; mas elevados à categoria de discípulos e emissários da Boa-Nova,
acende-se neles o fogo da ambição, que era justa, segundo eles, pois gozavam da maior intimidade de
Jesus, que sempre os distinguia, destacando-os, juntamente com Pedro, dos demais companheiros, nos
momentos mais solenes (cfr. Mat, 9:1; 17:1; Marc. 1:29; 5:37; 9:12; 14:33; Luc. 8:51). Tinham sido,
também, açulados pela promessa de se sentarem todos nos doze "tronos", julgando Israel (Mat. 19:28),
então queriam, como todo ser humano, ocupar os primeiros lugares (Mat. 23:6 e Luc. 14:8-10).
A cena é descrita com pormenores. Embora parente de Jesus, Salomé lhe reconhece o valor intrínseco
e a grandeza, e prostra-se a Seus pés, permanecendo silenciosa e aguardando que o Mestre lhe dirija a
palavra em primeiro lugar: "que queres"?
Em Marcos a resposta é dos dois: "Queremos" (thélomen) o que exprime um pedido categórico, não
havendo qualquer dúvida nem hesitação quanto à obtenção daquilo que se pede: não é admitida sequer
a hipótese de recusa : "queremos"!
Jesus não os condena, não os expulsa da Escola, não os apresenta à execração pública, não os exco-
munga; estabelece um diálogo amigável, em que lhes mostra o absurdo espiritual do pedido, valendo-
se do episódio para mais uma lição. Delicadamente, porém, é taxativo na recusa. Sabe dizer um NÃO
sem magoar, dando as razões da negativa, explicando o porquê é obrigado a não atender ao pedido:
não depende dele. Mas não titubeia nem engana nem deixa no ar uma esperança inane.
Pelas expressões de Jesus, sente-se nas entrelinhas a tristeza de quem percebe não estar sendo entendi-
do: "não sabeis o que pedis" Essa resposta lembra muito aquela frase proferida mais tarde, em outras
circunstâncias: "Não sabem o que fazem"! (Luc. 23:34).
Indaga então diretamente: "podeis beber o cálice que estou para beber ou ser mergulhado no mergulho
em que sou mergulhado"? A resposta demonstra toda a presunção dos que não sabem, toda a pretensão
dos que que ignoram: "podemos"!
Jesus deve ter sorrido complacente diante dessa mescla de amor e de ambição, de disposição ao sacri-
fício como meio de conquistar uma posição de relevo! Bem iguais a nós, esses privilegiados que segui-
ram Jesus: entusiasmo puro, apesar de nossa incapacidade!
Cálice (em grego potêrion, em hebraico kôs pode exprimir. no Antigo Testamento, por vezes, a alegria
(cfr. Salmo 23:5; 116:13; Lament 4:21); mas quase sempre é figura de sofrimento (cfr. Salmo 75:8; 1s.
51:17,22; Ezeq. 23:31-33).
Baptízein é um verbo que precisa ser bem estudado; as traduções correntes insistem em transliterar a
palavra grega, falando em batismo e batizar, que assume novo significado pela evolução semântica, no
decorrer dos séculos por influência dos ritos eclesiásticos e da linguagem litúrgica. Batismo tomou um
sentido todo especial, atribuído ao Novo Testamento, apesar de ignorado em toda a literatura anterior e
contemporânea dos apóstolos. Temos que interpretar o texto segundo a semântica da época, e não pelo
sentido que a palavra veio a assumir séculos depois, por influências externas.

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C. TORRES PASTORINO

Estudemos o vocábulo no mais autorizado e recente dicionário ("A Greek English Lexicon", de Liddell
& Scott, revised by Henry Stuart Jones, Londres, 1966), in verbo (resumindo):
"Baptizô, mergulhar, imergir: xíphos eis sphagên, "espada mergulhada na garganta" (Josefo Rell. Jud.
2.18.4): snáthion eis tò émbryon “espátula no recém-nascido" Soranus, médico do 2.º séc. A.C. 2.63);
na voz passiva: referindo-se à trepanação Galeno, 10, 447. Ainda: báptison seautòn eis thálassau e
báptison Dionyson pros tên thálassan, "mergulhado no mar" (Plutarco 2.166 a e 914 d); na voz pas-
siva com o sentido de "ser afogado”, Epicteto, Gnomologium 47. Baptízô tinà hypnôi, "mergulho al-
guém no sono" (Anthologia Graeca, Evenus elegíaco do 5.º séc. A.C.) e hynnôi bebantisméns “mer-
gulhado no sono letárgico" (Archígenes, 2.º séc., apud Aécio 63); baptízô eis anaisthesían kaì hyp-
non, "mergulhado na anestesia e no sono" (Josefo, Ant. Jud. 10, 9, 4); psychê bebaptisménê lypêi
"alma mergulhada na angústia" (Libânio sofista, 4.º séc. A. D., Orationes, 64,115)".
Paulo (Rom , 6:3-4) fala de outra espécie de batismo: "porventura ignorais que todos os que fomos
mergulhados em Cristo Jesus, fomos mergulhados em sua morte? Fomos sepultados com ele na morte
pelo mergulho, para que, como Cristo despertou dentre os mortos pela substância do Pai, assim nós
andemos em vida nova".
Até agora tem sido interpretado este trecho como referente aos sofrimentos físicos de Tiago, decapita-
do em Jerusalém por Herodes Agripa no ano 44 (cfr. Atos, 12:2) e de João, que morreu de morte natu-
ral, segundo a tradição, mas foi mergulhado numa caldeira de óleo fervente diante da Porta Latina
(Tertuliano, De Praescriptione, 36 Patrol. Lat. vol. 2, col, 49) e foi exilado na ilha de Patmos (Jerôni-
mo, Patrol. Lat. vol. 26, col. 143).
As discussões maiores, todavia, se prendem à continuação. Pois Jesus confirma que eles beberão seu
cálice e mergulharão no mesmo mergulho, mas NÃO CABE a Ele conceder o lugar à sua direita ou
esquerda! Só o Pai! Como? Sendo Jesus DEUS, segundo o credo romano, sendo UM com o Pai, NÃO
PODE resolver? Só o Pai; E Ele NÃO SABE? Não tem o poder nem o conhecimento do que se passa-
ria no futuro? Por que confirmaria mais uma vez aqui que o Pai era maior que Ele (João, 14:28)?
Como só o Pai conhecia "o último dia" (Mat. 24:36). Como só o Pai conhecia "os tempos e os mo-
mentos" (At. 1:7). Como resolver essa dificuldade? Como uma "Pessoa" da Trindade poderá não ter
conhecimento das coisas? Não são três "pessoas" mas UM SÓ DEUS?
Os comentadores discutem, porque estão certos de que o "lugar à direita e à esquerda" se situa NO
CÉU. Knabenbauer escreve: neque Messias in terra versans primas in caelo sedes nunc petentibus
quibusque assignare potest, ac si vellet Patris aeterni decretum mutare vel abrogare (Cursus Sacrae
Scripturae, Paris, 1894, pág. 281), ou seja: "nem o Messias, estando na Terra, pode dar os primeiros
lugares no Céu aos que agora pedem, como se pretendesse mudar ou ab-rogar o decreto do Pai eterno".
Outros seguem a mesma opinião, como Loisy, "Les Évangiles Synoptiques", 1908, tomo 2, página 238;
Huby, "Êvangile selon Saint Marc", 1924, pág. 241; Lagrange, "L'Évangile selon Saint Marc", 1929,
pág. 280, etc. etc.
Os séculos correram sobre as discussões infindáveis, sem que uma solução tivesse sido dada, até que
no dia 5 de junho de 1918, após tão longa perplexidade, o "Santo Ofício" deu uma solução ao caso.
Disse que se tratava do que passaria a chamar-se, por uma "convenção teológica", uma APROPRIA-
ÇÃO, ou seja: "além das operações estritamente trinitárias, todas as obras denominadas ad extra (isto
é, "fora de Deus") são comuns às pessoas da Santíssima Trindade; mas a expressão corrente - fiel à
iniciativa de Jesus - reserva e apropria a cada uma delas os atos exteriores que tem mais afinidade com
suas relações hipostáticas".
Em outras palavras: embora a Trindade seja UM SÓ DEUS, no entanto, ao agir "para fora", ao Pai
competem certos atos, outros ao Filho, e outros ao Espírito Santo. Não sabemos, todavia, como será
possível a Deus agir "para fora", se Sua infinitude ocupa todo o infinito e mais além!
Os dois irmãos, portanto, pretendem apropriar-se dos dois primeiros lugares, sem pensar em André,
que foi o primeiro chamado, nem em Pedro, que recebeu diante de todos as "chaves do reino". Como
verificamos, a terrível ambição encontrou terreno propício e tentou levar à ruína a união dos membros

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SABEDORIA DO EVANGELHO

do colégio apostólico, e isso ainda na presença física de Jesus! Que não haveria depois da ausência
Dele?
Swete anota que os dez se indignaram, mas "pelas costas" dos dois, e não diante deles; e isto porque
foi empregada pelo narrador a preposição perí, e não katá, que exprimiria a discussão face a face.
Há aqui outra variante. Nas traduções vulgares diz-se: "não me pertence concedê-lo, mas será dado
àqueles para quem está destinado por meu Pai". No entanto, o verbo hetoimózô significa mais rigoro-
samente "preparar". Ora, aí encontramos hétoímastai, perfeito passivo, 3.ª pessoa singular; portanto,
"foi preparado".
Jesus entra com a sublime lição da humildade e do serviço, que, infelizmente, ainda não aprendemos
depois de dois mil anos: é a vitória através do serviço prestado aos semelhantes. O exemplo vivo e
palpitante é o próprio caso Dele: "Vim" (êlthen) indica missão especial da encarnação (cfr. Marc. 1:38
e 2:17; e Is. 52:13 a 53:12). E essa vinda especial foi para SERVIR (diakonêsai), e não para ser servido
(diakonêthênai), fato que foi exaustivamente vivido pelo Mestre diante de Seus discípulos e em rela-
ção a eles.
O serviço é para libertação (lytron). Cabe-nos estudar o significado desse vocábulo. "Lytron" é, lite-
ralmente "meio-de-libertação", a que também se denomina "resgate". O resgate era a soma de dinheiro
dada ao templo, ao juiz ou ao "senhor" para, com ela, libertar o escravo. O termo é empregado vinte
vezes na Septuaginta (cfr. Hatche and Redpath, "Concordance to the Septuagint", in verbo) e corres-
ponde a quatro palavras do texto hebraico massorético: a kôfer, seis vezes; a pidion e outros derivados
de pâdâh, sete vezes; a ga'al ou ge'ullah, cinco vezes, e a mehhir, uma vez; exprime sempre a compen-
sação, em dinheiro, para resgatar um homicídio ou uma ofensa grave, ou o preço pago por um objeto,
ou o resgate de um escravo para comprar-lhe a liberdade. E a vigésima vez aparece em Números (3:12)
quando o termo lytron exprime a libertação por substituição: os levitas podiam servir de lytron, subs-
tituindo os primogênitos de Israel no serviço do Templo.
Temos, portanto, aí, a única vez em que lytron não é dinheiro, mas uma pessoa humana, que substitui
outra, para libertá-la de uma obrigação imposta pela lei.
Em vista disso, a igreja romana interpretou a crucificação de Jesus como um resgate de sangue dado
por Deus ao Diabo (!?), afim de comprar a liberdade dos homens! Confessemos que deve tratar-se de
um deus mesquinho, pequenino, inferior ao "diabo", e de tal modo sujeito a seus caprichos, que foi
constrangido a entregar seu próprio filho à morte para, com o derramamento de seu sangue, satisfazer-
lhe os instintos sanguinários; e o diabo então, ébrio de sangue, abriu a mão e permitiu (!) que Deus
pudesse carregar para seu céu algumas das almas que lhe estavam sujeitas ... Como foi possível que
tantas pessoas inteligentes aceitassem uma teoria tão absurda durante tantos séculos? ... Isso poderia
ocorrer com espíritos inferiores em relação a homens encarnados, como ainda hoje vemos em certos
"terreiros" de criaturas fanatizadas, e como lemos também em Eusébio (Patrol. Graeca, vol. 21, col.
85) que transcreve uma notícia de Philon de Byblos, segundo o qual os reis fenícios, em caso de cala-
midade, sacrificavam seus filhos mais queridos para aplacar seu "deus", algum "exu" atrasadíssimo.
Monsenhor Pirot (o.c. vol. 9, pág. 530) diz textualmente: "entregando-se aos sofrimentos e à morte, é
que Jesus pagará o resgate de nossa pobre humanidade, e assim a livrará do pecado que a havia escra-
vizado ao demônio"!
Uma palavra ainda a respeito de polloí que, literalmente, significa "'muitos". Pergunta-se: por que res-
gate "de muitos" e não "de todos"? Alguns aduzem que, em vários pontos do Novo Testamento, o ter-
mo grego polloí corresponde ao hebraico rabbim, isto é, "todos" (em grego pántes), como em Mat.
20:28 e 26:28; em Marc. 14:24; em Rom. 5:12-19 e em Isaías, 53:11-12).
Sabemos que (Mat. 1:21) foi dado ao menino o nome de Jesus, que significa "Salvador" porque liberta-
rá "seu povo de seus erros"; e Ele próprio dirá que traz a libertação para os homens (Luc. 4:18).

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C. TORRES PASTORINO

Esta lição abrange vários tópicos:


a) o exemplo a ser evitado, de aspirar, nem mesmo interior e subconscientemente, aos primeiros
postos;
b) a necessidade das provas pelas quais devem passar os candidatos à iniciação: "beber o cálice" e
"ser mergulhados";
c) a decisão, em última instância, cabe ao Pai, que é superior a Jesus (o qual, portanto, não é Deus
no sentido absoluto, como pretendem os católicos romanos, ortodoxos e reformados);
d) a diferença, mais uma vez sublinhada, entre personagem e individualidade, sendo que esta só
evolui através da LEI DO SERVIÇO (5.º plano).
Vejamo-lo em ordem.
I - É próprio da personagem, com seu "eu" vaidoso e ambicioso, querer projetar-se acima dos outros,
em emulação de orgulho e egoísmo. São estes os quatro vícios mais difíceis de desarraigar da perso-
nagem (cfr. Emmanuel, "Pensamento e Vida", cap. 24), e todos os quatro são produtos do intelecto
separatista e antagonista da individualidade.
O pedido de Tiago (Jacó) e de João, utilizando-se do "pistolão" de sua mãe, é típico, e reflete o que se
passa com todas as criaturas ainda hoje. Neste ponto, as seitas cristãs que se desligaram recente-
mente do catolicismo (reformados e espiritistas) fornecem exemplos frisantes.
Entre os primeiros, basta que alguém julgue descobrir nova interpretação de uma palavra da Bíblia,
para criar mais uma ramificação, em que ele EVIDENTEMENTE será o primeiro, o "chefe".
O mesmo se dá entre os espiritistas. Pululam "centros" e "tendas" que nascem por impulso vaidoso de
elementos que se desligam das sociedades a que pertenciam para fundar o SEU centro ou a SUA ten-
da: ou foram preteridos dos "primeiros lugares à direita e à esquerda" do ex-chefe; ou se julgam mais
capazes de realização que aquele chefe que, segundo eles, não é dinâmico; ou discordam de alguma
interpretação da doutrina; ou querem colocar em evidência o SEU "guia", que acham não estar sendo
bastante "prestigiado" (quando não é o próprio "guia" (!) que quer aparecer mais, e incita o seu
"aparelho" a fundar outro centro PARA Ele!); ou a criatura quer simplesmente colocar-se numa posi-
ção de destaque de que não desfrutava (embora jamais confesse essa razão); ou qualquer outro moti-
vo, geralmente fútil e produto da vaidade, do orgulho, do egoísmo e da ambição. Competência? Cul-
tura? Adiantamento espiritual? Ora, o essencial é conquistar a posição de "chefe"! Há ainda muitos
Tiagos e Joões, e também muitas Salomés, que buscam para seus filhos ou companheiros os primeiros
lugares, e tanto os atenazam com suas palavras e reclamações, que acabam vencendo. Que se abram
os olhos e se examinem as consciências, e os exemplos aparecerão por si mesmos.
Tudo isso é provocado pela ânsia do "eu” personalístico, de destacar-se da multidão anônima; daí as
"diretorias" dos centros e associações serem constituídas de uma porção de NOMES, só para satisfa-
zer à vaidade de seus portadores, embora estes nada façam e até, por vezes, atrapalhem os que fazem.
O Anti-Sistema é essencialmente separatista e divisionista, e por isso o dizemos " satânico" (opositor).
II - As "provas" são indispensáveis para que as criaturas sejam aprovadas nos exames. E por isso
Jesus salienta a ignorância revelada pelo pedido de quem queria os primeiros postos, sem ter ainda
superado a" dificuldades do caminho: "não sabeis o que pedis"!
O cálice que deve beber o candidato é amargo: são as dores físicas, os sofrimentos morais, as angús-
tias provocadas pela aniquilação da personalidade e pela destruição total do "eu" pequeno, que pre-
cisa morrer para que a individualidade cresça (cfr. João 3:30); são as calúnias dos adversários e:,
sobretudo, dos companheiros de ideal que o abandonam, com as desculpas mais absurdas, acusando-
o de culpas inexistentes, embora possam "parecer" verdadeiras: mas sempre falando pelas costas, sem
dar oportunidade ao acusado de defender-se: são os martírios que vêm rijos: as prisões materiais
(raramente) mas sobretudo as morais: por laços familiares; as torturas físicas (raras, hoje), mas prin-
cipalmente as do próprio homem, criadas pelo "eu" personalístico, que o incita a largar tudo e a tro-
car os sacrifícios por uma vida fácil e tranquila, que lhe é tão simples de obter ...

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Mas, além disso, há outra prova: o MERGULHO na "morte".


Conforme depreendemos do sentido de baptízô que estudamos, pode o vocábulo significar: mergulhar
ou imergir na água; mergulhar uma espada no corpo de alguém; mergulhar uma faca para operar
cirurgicamente; mergulhar alguém no sono letárgico, ou mergulhar na morte.
Podemos, pois, interpretar o mergulho a que Jesus se refere como sendo: o mergulho no "coração"
para o encontro com o Cristo interno; o mergulho que Ele deu na atmosfera terrena, provindo de
mundos muito superiores ao nosso; o mergulho no sono letárgico da "morte", para superação do
quinto grau iniciático, do qual deveria regressar à vida, tal como ocorrera havia pouco com Lázaro;
ou outro, que talvez ainda desconheçamos. Parece-nos que a referência se fez à iniciação.
Estariam os dois capacitados a realizar esse mergulho e voltar à vida, sem deixar que durante ele se
rompesse o "cordão prateado"? Afoitamente responderam eles: "podemos"! Confiavam nas próprias
forças. Mas era questão de tempo para preparar-se. João teve tempo, Tiago não ... Com efeito, apenas
doze anos depois dessa conversa, (em 42 A. D.) Tiago foi decapitado, não conseguindo, pois, evitar o
rompimento do "umbigo fluídico". Mas João o conseguiu bem mais tarde, quando pode sair com vida
(e Eusébio diz "rejuvenescido") da caldeira de óleo fervente, onde foi literalmente mergulhado.
A esse mergulho, então, parece-nos ter-se referido Jesus: mergulho na morte com regresso à vida,
após o "sono letárgico" mais ou menos prolongado, que Ele realizaria pouco mais tarde.
Esse mergulho é essencial para dar ao iniciado o domínio sobre a morte (cfr. "a morte não dominará
mais além dele", Rom. 6:9; "por último, porém, será destruída a morte", 1.ª Cor. 15:26; "a morte foi
absorvida pela vitória; onde está, ó morte, tua vitória? onde está, ó morte, teu estímulo"? , 1.ª Cor.
15:54-55; "Feliz e santo é o que tem parte na primeira ressurreição: sobre estes a segunda morte não
tem poder, mas serão sacerdotes de Deus e de Cristo, e reinarão com Ele durante os mil anos": Apoc.
20:6). De fato, a superação do quinto grau faz a criatura passar ao sexto, que é o sacerdócio (cfr. vol.
4).
Modernamente o sacerdócio é conferido por imposição das mãos, com rituais específicos, após longa
preparação. No catolicismo, ainda hoje, percebemos muitos resquícios das iniciações antigas, como
podemos verificar (e o experimentamos pessoalmente). Em outras organizações que "se" denominam
"ordens iniciáticas", o sacerdócio é apenas um título pro forma, simples paródia para lisonjear a vai-
dade daqueles de quem os "Chefes" querem, em retribuição, receber também adulações, para se
construírem fictício prestígio perante si mesmos.
O sacerdócio REAL só pode ser conferido após o mergulho REAL, efetivo e consciente, plenamente
vitorioso, no reino da morte. Transe doloroso e arriscado para quem não esteja à altura: "podeis ser
mergulhados no mergulho em que sou mergulhado"?
A morte, realizada em seu simulacro, no sono cataléptico era rito insubstituível no Egito, onde se uti-
lizava, por exemplo, a Câmara do Rei, na" pirâmide de Quéops, para o que lá havia (e ainda hoje lá
está), o sarcófago vazio, onde se deitavam os candidatos. Modernamente, Paul Brunton narra ter vivi-
do pessoalmente essa experiência (in "Egito Secreto"). Também na Grécia os candidatos passavam
por essa prova, sob a proteção de Hades e Proserpina, nos mistérios dionisíacos; assim era realizado
em Roma (cfr. Vergílio, Eneida, canto VI e Plotino, Enéadas, sobretudo o canto V); assim se, fazia em
todas as escolas antigas, como também, vimo-lo, ocorreu com Lázaro.
Superada essa morte, o vencedor recebia seu novo nome, o hierónymos (ou seja, hierós, "sagrado";
ónymos, "nome"), donde vem o nome "Jerônimo"; esse passava a ser seu nome sacerdotal, o qual, de
modo geral, exprimia sua especialidade espiritual, intelectual ou artística; costume que ainda se con-
serva na igreja romana, sobretudo nas Ordens Monásticas (cfr. vol. 5, nota) (1). O catolicismo prepa-
ra para o sacerdócio com cerimônias que lembram e "imitam" a morte, da qual surge o candidato,
após a “ordenação", como "homem novo" e muitas vezes com nome diferente.
(1) Veja-se, também, a esse respeito: Ephemerides Archeologicae, 1883, pág. 79; C.I.A., III, 900; Lu-
ciano, Lexiphanes, 10; Eunapio, In Maximo, pág. 52; Plutarco, De Sera Numinis Vindicta, 22.

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C. TORRES PASTORINO

III - Já vimos que Jesus, cônscio de Sua realidade, sempre se colocou em posição subalterna e sub-
missa ao Pai, embora se afirmasse "unido a Ele e UNO com Ele" (João, 10:30, 38; 14:10, 11, 13;
16:15, etc. etc.).
Vejamos rapidamente alguns trechos: "esta é a vontade do Pai que me enviou" (João, 6:40), logo
vontade superior à Sua, e autoridade superior, pois só o superior pode "enviar" alguém; "falo como o
Pai me ensinou" (João, 8:28), portanto, o inferior aprende com o superior, com quem sabe mais que
ele; "o Pai me santificou" (João, 10.36), o mais santo santifica o menos santo; "O Pai que me enviou,
me ordenou" (João, 12:49), só um inferior recebe ordens e delegações do superior; "falo como o Pai
me disse" (João, 12:50), aprendizado de quem sabe menos com quem sabe mais; "o Pai, em mim, faz
ele mesmo as obras" (João, 14:11), logo, a própria força de Jesus provém do Pai, e reconhecidamente
não é sua pessoal; "o Pai é maior que eu" (João, 14:28), sem necessidade de esclarecimentos; "como
o Pai me ordenou, assim faço" (João, 14:31); "não beberei o cálice que o Pai me deu”? (João, 18:11),
qual o inferior que pode dar um sofrimento a um superior? "como o Pai me enviou, assim vos envio"
(João, 20:21); e mais: "Quem me julga é meu Pai" (João, 8:54); “meu Pai, que me deu, é maior que
tudo" (João, 10:29); "eu sou a videira, meu Pai é o viticultor" (João, 15:1), portanto, o agricultor é
superior à planta da qual cuida; "Pai, agradeço-te porque me ouviste" (João, 11:41), jamais um supe-
rior ora a um inferior, e se este cumpre uma "ordem" não precisa agradecer-lhe; "Pai, salva-me desta
hora" (João, 12:27), um menor não tem autoridade para “salvar" um maior: sempre recorremos a
quem está acima de nós; e mais: "Pai, afasta de mim este cálice" (Marc. 14:36); "Pai, se queres,
afasta de mim este cálice" (Luc. 22:42); "Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem" (Luc.
23:34), e porque, se fora Deus, não diria: "perdoo-lhes eu”? e o último ato de confiança e de entrega
total: "Pai, em tuas mãos entrego meu espírito" (Luc. 23:46), etc.
Por tudo isso, vemos que Jesus sempre colocou o Pai acima Dele: "faça-se a tua vontade, e não a mi-
nha" (Mat. 26:42, Luc. 22:42). Logo, não se acredita nem quer fazer crer que seja o Deus Absoluto,
como pretendeu torná-Lo o Concílio de Nicéia (ano 325), contra os "arianos", que eram, na realida-
de, os verdadeiros cristãos, e dos quais foram assassinados, em uma semana, só em Roma, mais de
30.000, na perseguição que contra eles se levantou por parte dos "cristãos" romanos, que passaram a
denominar-se "católicos".
Natural que, não sendo a autoridade suprema, nem devendo ocorrer as coisas com a simplicidade
suposta pelos discípulos, no restrito cenário palestinense, não podia Jesus garantir coisa alguma
quanto ao futuro. Daí não poder NINGUÉM garantir “lugares determinados" no fabuloso "céu",
como pretenderam os papas católicos ao vender esses lugares a peso de ouro (o que provocou o pro-
testo veemente de Lutero); nem mesmo ter autoridade para afirmar que A ou B são "santos" no "céu”,
como ainda hoje pretendem com as "canonizações". Julgam-se eles superiores ao próprio Jesus, que
humilde e taxativamente asseverou: "não me compete, mas somente ao Pai"! A pretensão vaidosa dos
homens não tem limites! ...
IV - A diferença entre a personagem dominadora e tirânica, representada pelo exemplo dos "governa-
dores de povos" e dos "grandes", e a humildade serviçal da individualidade" é mais uma vez salienta-
da.
Aqueles que seguem o Cristo, têm como essencial SERVIR ATRAVÉS DO AMOR e AMAR ATRAVÉS
DO SERVIÇO.
Essa é a realidade profunda que precisa encarnar em nós. Sem isso, nenhuma evolução é possível.
O próprio Jesus desceu à Terra para servir por amor. E esse amor foi levado aos extremos imaginá-
veis, pois além do serviço que prestou à humanidade, "deu sua alma para libertação de muitos".
Esta é uma das lições mais sublimes que recebemos do Mestre.
Quem não liquidou seu personalismo e passou a “servir", em lugar de "ser servido", está fora da Sen-
da.
DAR SUA ALMA, que as edições vulgares traduzem como "dar sua vida", tem sentido especial. O fato
de "dar sua vida" (deixar que matem o corpo físico) é muito comum, é corriqueiro, e não apresenta

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SABEDORIA DO EVANGELHO

nenhum significado especial, desde o soldado que "dá sua vida" para defender, muitas vezes, a ambi-
ção de seus chefes, até a mãe que “dá sua vida" para colocar mundo mais um filho de Deus; desde o
fanático que "dá sua vida" para favorecer a um grupo revolucionário, até o cientista que também "dá
sua vida" em benefício do progresso da humanidade; desde o mantenedor da ordem pública que "dá
sua vida" para defender os cidadãos dos malfeitores, até o nadador, que "dá sua vida" para salvar um
quase náufrago; muitas centenas de pessoas, a cada mês, dão suas vidas pelos mais diversos motivos,
reais ou imaginários, bons ou maus, filantrópicos ou egoístas, materiais ou espirituais.
Ora, Jesus não deu apenas sua vida, o que seria pouca coisa, pois com o renascimento pode obter-se
outro corpo, até bem melhor que o anterior que foi sacrificado.
Jesus deu SUA ALMA, Sua psychê, toda a Sua sensibilidade amorosa, num sacrifício inaudito, trazen-
do-a de planos elevados, onde só encontrava a felicidade, para "mergulhar" na matéria grosseira de
um planeta denso e atrasado, imergindo num oceano revolto de paixões agudas e descontroladas, ten-
do que manter-se ligado aos planos superiores para não sucumbir aos ataques mortíferos que contra
Ele eram assacados. Sua aflição pode comparar-se, embora não dê ainda idéia perfeita, a um mergu-
lhador que descesse até águas profundas do oceano, suportando a pressão incomensurável de muitas
toneladas em cada centímetro quadrado do corpo. Pressão tão grande que sufoca, peso tão esmaga-
dor que oprime. Nem sempre o físico resiste. E quando essa pressão provém do plano astral, atingindo
diretamente a psychê, a angústia é muito mais asfixiante, e só um ser excepcional poderá suportá-la
sem fraquejar.
Jesus deu Sua psychê para libertação de muitos. Realmente, muitos aproveitaram o caminho que ele
abriu. Todos, não. Quantos se extraviaram e se extraviam pelas estradas largas das ilusões, pelos
campos abertos do prazer, aventurando-se no oceano amplo de mâyâ, sem sequer desconfiar que es-
tão passeando às tontas, sem direção segura, e que não alcançarão a pleta neste eon; e quantos, tam-
bém, despencam ladeira abaixo, aos trambolhões, arrastados pelas paixões que os enceguecem, pelos
vícios que os ensurdecem, pela indiferença que os paralisa; e vão de roldão estatelar-se no fundo do
abismo, devendo aguardar outras oportunidades: nesta, perderam a partida e não conseguiram a li-
berdade gloriosa dos Filhos de Deus.
Muitos, entretanto, já se libertaram. São os que se esquecem de si mesmos, os que deixam de existir e
se transformam em pão, para alimentar a fome da humanidade: a fome física, a fome intelectual, a
fome espiritual; e transubstanciam seu sangue em vinho de sabedoria, em vinho de santidade, em vi-
nho de amor, para inebriar as criaturas com o misticismo puro da plenitude crística, pois apresentam
a todos, como Mestre, apenas o Cristo de Deus, e desaparecem do cenário: sua personalidade morre,
para surgir o Cristo em seu lugar; seu intelecto cala, para erguer-se a voz diáfana do Cristo; suas
emoções apagam-se, para que só brilhe o amor do Cristo. E através deles, os homens comem o Pão
Vivo descido do céu, que é o Cristo, e bebem o sangue da Nova Aliança, que é o Cristo, e retemperam
suas energias e se alçam às culminâncias da perfeição, porque mergulham nas profundezas da humil-
dade e do amor.
Essa é a libertação, que teve como lytron ("meio-de-libertação") a sublime psychê de Jesus. Para isso,
Ele deu Sua psychê puríssima e santa; entregando-a à humanidade que O não entendeu ... e quis as-
sassiná-Lo, porque Ele falava uma linguagem incompreensível de liberdade, a linguagem da liberda-
de, a linguagem da paz, a linguagem da sabedoria e do amor.
Deu sua psychê generosa e amoravelmente, para ajudar a libertar os que eram DELE: células de Seu
prístino corpo, que Lhe foram dadas pelo Pai, ao Qual Ele pediu que, onde Ele estivesse, estivessem
também aqueles que Lhe foram doados (João, 17:24), para que o Todo se completasse, a cabeça e os
membros (cfr. 1.ª Cor. 12:27). A esse respeito já escrevemos (cfr. vol. 1 e vol. 5).

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C. TORRES PASTORINO

CURA DE BARTIMEU

Mat. 20:29-34 Marc. 10:46-52 Luc. 18:35-43

29. E saindo eles de Jericó, 46. E chegaram a Jericó. E 35. Aconteceu pois, ao aproxi-
acompanhou-o grande mul- saindo ele de Jericó com mar-se ele de Jericó, um
tidão. seus discípulos, e bastante cego estava sentado, men-
gente, o filho de Timeu, digando, à beira da estrada.
30. E eis dois cegos sentados à
Bartimeu, cego e mendigo,
beira da estrada, ouvindo 36. Ouvindo passar uma mul-
estava sentado à beira da
que Jesus passa, gritaram, tidão, indagava o que era
estrada.
dizendo: "Compadece-te de aquilo.
nós, senhor filho de Da- 47. E ouvindo que era Jesus o 37. Disseram-lhe que era Jesus,
vid”! Nazareno, começou a gritar o Nazareno, que passava.
e dizer: "Jesus, filho de
31. A multidão repreendia-os, 38. E gritava, dizendo: "Jesus,
David, compadece-te de
para que se calassem, mas filho de David compadece-
mim"!
eles gritavam mais, dizen- te de mim”!
do: "Senhor, filho de Da- 48. E muitos mandaram que se
vid, compadece-te de nós"! calasse, mas ele gritava 39. E Os que iam à frente
mais ainda: "Filho de Da- mandavam que se calasse,
32. Parando, Jesus chamou-os ele porém gritava mais ain-
vid, compadece-te de
e disse: "Que quereis que da: "Filho de David, com-
mim"!
vos faça"? padece-te de mim"!
49. E parando, Jesus disse:
33. Disseram-lhe: "Senhor, que 40. Detendo-se, pois, Jesus
"Chamai-o". E chamaram
se abram nossos olhos"! mandou que o conduzissem
o cego, dizendo-lhe: "Con-
34. Compadecido, pois, Jesus fia, levanta-te, ele te cha- a ele. Tendo chegado, per-
tocou-lhes os olhos e imedi- ma". guntou-lhe:
atamente enxergaram de 41. "Que queres que te faca"?
50. Alijando a capa e saltando,
novo e o seguiam. Ele disse: "Senhor , que eu
ele veio para Jesus.
veja de novo".
51. E falou-lhe Jesus, dizendo:
"Que queres que te faça"? 42. E Jesus disse-lhe: “Vê. Tua
O cego disse-lhe: "Rabboni, fé te salvou".
que eu veia de novo"! 43. E de pronto viu de novo e
52. E disse-lhe Jesus: "Vai, tua seguiu-o, louvando a Deus.
fé te salvou". E imediata- E, vendo, todo o povo deu
mente viu de novo e o louvor a Deus.
acompanhou pela estrada.

De início precisamos resolver uma dificuldade. Mateus e Marcos dizem que a cura foi efetuada ao sair
de Jericó e Lucas que foi ao entrar na cidade. Estudemos a topografia.
A cerca de 26 ou 30 km de Jerusalém, havia uma cidade antiquíssima, chamada Jericó, construída
perto da fonte de Eliseu. Cidade desde Números e Deuteronômio, ficou célebre quando os israelitas,
sob o comando de Josué, a tomaram, ao entrar na Terra Prometida, tendo sido derrubadas suas mura-
lhas ao som das trombetas e dos gritos dos soldadas hebreus. Era chamada a "cidade das palmeiras"

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SABEDORIA DO EVANGELHO

(Deut. 34:3), pois estava num oásis fértil. Suas ruínas foram descobertas nas escavações de 1908-1910.
Acontece que Herodes o Grande, e mais tarde Arquelau, aproveitando o oásis, construíram outra cida-
de mais ao sul, com o mesmo nome, no local em que o Ouadi eI-Kelt desemboca na planície. Local
maravilhoso para morar no inverno, porque as montanhas da Judéia o protegiam contra os ventos frios
de oeste. Foram construídos grandes palácios suntuosos, com piscinas luxuosas, um anfiteatro e um
hipódromo, termas e templos, etc. Jericó tornou-se a segunda cidade da Palestina em importância e
extensão, depois de Jerusalém.
Para os israelitas Mateus e Marcos, a Jericó verdadeira era a "velha", pois a nova era "pagã". Para o
grego Lucas, Jericó era a cidade nova. Compreende-se, então, que ao sair da velha e entrar na nova
cidade, tenha o cego encontrado Jesus. Tanto assim que, logo a seguir Lucas narra o episódio de
Zaqueu, que habitava a cidade nova.
Mas os cegos eram dois ou só havia um? Mateus diz que eram dois, contra a opinião de Marcos e de
Lucas, que afirmam ter sido um, sendo que o primeiro lhe dá até o nome, demonstrando estar muito
bem informado do que ocorreu. Alguns exegetas alegam que de fato os cegos costumavam andar em
duplas, para se distraírem conversando durante as longas horas de espera, e para se consolarem de seu
infortúnio. Observamos, entretanto, que Mateus gosta de dobrar, como no caso dos dois cegos, narrado
em 9:27, dos dois obsidiados de Gerasa (8:28), embora Marcos (5:1-20) e Lucas (8:26-36) digam ter
sido um (cfr. vol. 3).
Também aqui os exegetas dividem suas opiniões, procurando justificar: um dos cegos, Bartimeu, to-
mou a iniciativa e chamou sobre si a atenção; o outro, que o acompanhava, nem foi quase notado, a
não ser por Mateus, presente à cena, pois Marcos ouviu o relato de Pedro, e Lucas só veio a saber dos
fatos muito mais tarde, pela tradição oral. É o que diz Agostinho: hinc est ergo quod ipsum solum vo-
luit commemorare Marcus, cujus illuminatio tam claram famam huic miráculo comparavit, quam erat
illius nota calámitas, isto é, "daí porque Marcos só quis recordar aquele único, cuja cura adquiriu uma
fama tão grande com esse prodígio, quanto era conhecida a calamidade dele" (Patrol. Lat. vol. 34, col.
1138).
De qualquer forma, a anotação de Marcos e Lucas, de que se tratava de "mendigos" (prosaítês), con-
firma a realidade, já que, àquela época, não havia preocupação de aproveitar os estropiados: desde que
a criança nascesse defeituosa, só havia um caminho: a mendicância.
O local escolhido pelos dois era excelente: passagem obrigatória para todos os peregrinos que, por
ocasião da Páscoa que se aproximava, vinham da Transjordânia e da Galiléia, dirigindo-se para Jeru-
salém.
Quanto ao nome, dado em arameu, observamos que geralmente (cfr. Marc. 3:17; 7:11, 34; 14:26, etc.)
é dado primeiro o nome, e depois o significado; no entanto aqui se inverte: primeiro aparece a tradu-
ção, "filho de Timeu", e depois o nome "Bartimeu". Portanto, nome patronímico, como tantos outros
(cfr. Barjonas, Bartolomeu, Barjesus, Barnabé, Baraquias, Barrabás, Barsabás, etc.).
Ao perceber a pequena multidão bulhenta que passava, o cego indagou de que se tratava, e foi infor-
mado de que era o taumaturgo-curador Jesus o Nazareno, filho de David.
A Palavra "Nazareno" aparece com mais frequência sob a forma "Nazoreu" (nâshôray e nazôraios, em
hebr. e grego). Porém, não se confunda essa palavra com "nazireu"! Com efeito, nos evangelhos temos
onze vezes a forma nazoreu (Mt. 2:23 e 26:71; João, 18:5,7, e 19:19; Atos, 2:22; 3:6; 4:10; 6:14; 22:8;
24:5 e 26:9) contra seis vezes a forma "nazareno" (Marc. 1:24; 10:47; 14:67 e 16:6, e Luc. 4:34 e
24:19). Mesmo neste local o texto de Mateus varia nos códices entre nazarenus (Vaticano e outros) e
nazoreu (Sinaítico e outros).
Ao saber de quem se tratava, o cego gritou em altos brados, pedindo compaixão. A multidão tenta fa-
zê-lo calar-se, mas ele não quer perder aquela oportunidade e grita mais forte ainda.
Marcos dá pormenores vivos: Jesus pára e manda chamá-lo. Lucas, médico, é mais preciso na lingua-
gem: Jesus "manda que o tragam até Ele". O espírito leviano da alma coletiva demonstra sua psicolo-

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C. TORRES PASTORINO

gia: já não mais o repreendem para que se cale; ao invés, o encorajam e ajudam, como se tudo provies-
se da generosidade deles!
Ao saber-se chamado, o cego arroja de si o manto, para não atrapalhá-lo na rapidez dos movimentos, e
levanta-se de um salto, lépido e esperançoso. Jesus pergunta-lhe o que quer Dele: dinheiro? A resposta
do cego é clara: "Senhor (Marcos manteve o arameu Rabboni) que eu veja de novo"! O verbo ana-
blépô dá a entender que não se tratava de cego de nascença.
Como sempre, Jesus atribui a cura, que foi instantânea, à fé ou confiança (pistis) do cego. A certeza de
obter o favor era tão firme, que foi possível curá-lo.
E o cego "acompanhou Jesus pela estrada", feliz de estar novamente contemplando a luz e de poder ver
o homem que o tirara das trevas.

Aqui novamente deparamos com um fato que simboliza uma iluminação obtida por um espírito que
sabe o que quer e que quer o que sabe. Não é pedida nenhuma vantagem pessoal, mas a luz da com-
preensão.
Bartimeu (filho do "honorável"), embora mergulhado nas trevas em que o lançaram seus erros, ainda
sabe reconhecer o momento propício de uma invocação, para obter a visão plena do espírito, e sabe
seguí-la depois que a obteve, acompanhando Jesus pela estrada da vida.
Apesar de muita gente querer impedir que o cego grite por compaixão, este não desiste de sua preten-
são. Sua confiança é ilimitada; e esse espírito está enquadrado na primeira bem-aventurança: "felizes
os que mendigam o espírito, porque deles é o reino dos céus".
O mendigar a plenos pulmões, diante da multidão, sem deixar vencer-se pelas vozes que nos querem
obrigar a calar, tem esse resultado: "entramos no reino dos céus", seguindo o Cristo na estrada, sem
mais largá-Lo. Realmente, é esse o primeiro passo para o início da caminhada na Senda: VER com o
intelecto aberto e com a alma liberta dos preconceitos mundanos. E, uma vez obtida a luz, saber aban-
donar tudo, para seguir o Mestre excelso.
Hoje não temos mais o Mestre Jesus em corpo a perambular pelas ruas de nossas cidades. Mas
quantas vezes passa o Cristo por nós e, distraídos, deixamos escapar a oportunidade.
Passa o Cristo no meio da multidão azafamada, preocupada pelos negócios, interesseira de vantagens
materiais, e não sabemos descobri-Lo, e deixamos desvanecer-se o ensejo.
Passa o Cristo entre os furacões e as tempestades de nossa alma, e nós, atormentados e dominados
pelas emoções, nem reparamos em Sua passagem.
Passa o Cristo silencioso nas solidões tristes das horas vazias, nos abandonos cruéis de todos os ami-
gos, nas fugas amedrontadas de nossos companheiros, e não percebemos Sua vibração misteriosa e
profunda a convocar-nos ao Seu coração amoroso.
Quantas vezes já terá passado o Cristo, sem que o tenhamos percebido!

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SABEDORIA DO EVANGELHO

ZAQUEU
Luc. 19:1-10
1. E tendo entrado, (Jesus) atravessava Jericó.
2. E eis um homem, de nome chamado Zaqueu, que era chefe dos coletores de impostos
e rico.
3. E procurava ver Jesus quem era, e não podia, por causa da multidão, porque ele era
baixo de estatura.
4. E correndo à frente, subiu a um sicômoro para vê-lo, porque estava para passar por
aquela (rua).
5. E quando chegou ao lugar, Jesus levantou os olhos e lhe disse: “Zaqueu, apressa-te a
descer, pois hoje devo permanecer em tua casa".
6. E desceu às pressas e o hospedou com alegria.
7. E vendo(-o) todos murmuravam, dizendo: "entrou para hospedar-se com um homem
desorientado".
8. Levantando-se, Zaqueu disse ao Senhor: "Eis que a metade de meus bens, Senhor,
dou aos mendigos, e se defraudei alguém em algo, restituo quadruplicado".
9. Disse-lhe então Jesus: "Hoje aconteceu a salvação em tua casa, porque também este é
filho de Abraão,
10. pois o filho do homem veio procurar e salvar o perdido".

O texto é privativo de Lucas. O episódio é ligado ao anterior, da cura do cego, quando Jesus entrou na
cidade nova de Jericó. Lucas, que de modo geral não cita nomes, demonstra neste passo tratar-se de
tradição segura.
Zaqueu (em grego Zakchaíos, em hebraico Zakhkhay, cfr. Esdr. 2:9 e Neh. 7:14) significa "o justo" ou
o "puro". Sua designação como architelônês, por ser essa palavra um hápax, é de tradução insegura.
Mas deve tratar-se de um Chefe-dos-Coletores ou Coletor-Principal. Era rico, pois como vimos (vol. 2)
devia dar ao governo o montante das cobranças de impostos de seu bolso, ressarcindo-se, depois, nas
coletas individuais que fazia, e isso lhe rendia o lucro. Sendo Jericó a segunda cidade do país em im-
portância, os impostos aí cobrados deviam ser elevados, bem como os lucros.
Tendo ouvido falar a respeito do carpinteiro que era aclamado Rabbi, tinha grande curiosidade de co-
nhecê-lo. E Jesus passava por Jericó. Ocasião propícia única! Mas o povo era muito e ele era de baixa
estatura. Olhou a direção em que ia a onda de gente, correu à frente e, agilmente, trepou num sicômo-
ro, que era árvore não muito alta, mas esgalhada. Lá aguardou a turba.
Quando a multidão ia passando, distinguindo ele o simples e majestoso porte do Mestre galileu, seu
coração pulsava mais violento e mais rápido. Mas o choque maior veio quando Jesus olhou para o alto
da árvore e fixou-o com Seu olhar límpido e penetrante. E se deteve! E lhe dirigiu a palavra, chaman-
do-o pelo nome! Ao ouvir a frase, espontânea e tranquila - "Zaqueu, apressa-te a descer, pois hoje devo
permanecer em tua casa"! - o coração quase lhe pulou pela boca! Era muito mais do que pretendia e do
que esperava. E desceu quase que de um salto. Escreveu Ambrósio (Patrol. Lat. vol. 15 col. 1792) que
"caiu da árvore como um fruto maduro" (Zacchaeus in sycómoro, novum vidélicet novi témporis
pmum).

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C. TORRES PASTORINO

Entrou no meio da multidão, unindo-se a ela e conduzindo-a a seu palacete. A multidão murmurava:
em Jericó, cidade sacerdotal por excelência, Jesus vai hospedar-se na casa de um judeu vendido aos
odiados dominadores romanos!
Ao chegar à entrada da casa Zaqueu pára e se dirige a Jesus, falando de forma a que o povo o escute:
"Dou metade de meus bens aos mendigos e, se defraudei alguém, restituo quadruplicado". É uma justi-
ficativa pública de seu modo de agir, que Jesus tacitamente aceita. E também de modo a ser ouvido,
declara: "Hoje aconteceu a salvação em tua casa". E dirigindo-se claramente à multidão: "porque tam-
bém este é filho de Abraão, e o Filho do Homem veio procurar e salvar o perdido".
Entraram. Fechou-se a porta. Dissolveu-se aos poucos o grupo de admiradores e curiosos.
As traduções correntes vertem os verbos: "darei ... restituirei" ... no futuro, como se fora novo modo de
agir de Zaqueu, a partir daquele momento, provocado pela alegria de hospedar o Mestre. Não nos pa-
rece assim. O presente do indicativo é claro e concordante em todos os códices: dídômi e apodídômi.
Sendo um presente do indicativo, exprime uma ação continuada, não só no momento atual, mas que
vem do passado, revelando um hábito: Zaqueu costumava já dar a metade dos bens aos mendigos e
restituir quadruplicado o que cobrasse, sem querer, acima da conta. E talvez por já agir assim, e por-
tanto ser um espírito de evolução, é que Jesus vai a ele.
Realmente, segundo o Êxodo (21:37) a restituição quádrupla devia ser feita em caso de roubo; mas
tratando-se de simples fraude, a Lei (Lev. 5:24 e Núm. 5:6-7) mandava que se restituísse a importância
mais um quinto (isto é, mais 20%). Jesus não se impôs a Zaqueu nem lhe pediu que abandonasse suas
riquezas e o seguisse: apenas o homenageia com Sua presença.
O fato pode ter parecido sempre a todos como um acontecimento ocasional e simples: passando por
uma cidade onde não costumava deter-Se, Jesus escolhe uma casa grande para hospedar-se com os
doze discípulos mais as mulheres que O acompanhavam.
Como conhecia Jesus aquele homem? Não nos esqueçamos de que Mateus também era coletor de im-
postos em Cafarnaum e fatalmente devia conhecer o colega, nem que fosse apenas de nome, e saber de
sua generosidade. No entanto, sendo Zaqueu Chefe-dos-Coletores, talvez Mateus fosse, em Cafar-
naum, um de seus subordinados funcionais, e costumasse prestar a ele suas contas. São suposições,
mas cremos que tem lógica: "onde há uma explicação natural, não deve buscar-se uma milagrosa", é o
princípio teológico. Ora, por indicação de Mateus, podia Jesus já se estar dirigindo para a casa de
Zaqueu quando, na rua, Mateus que Lhe estava próximo e O conduzia, viu Zaqueu sobre a árvore e
mostrou-o a Jesus: "Mestre, olhe lá Zaqueu em cima daquele sicômoro"! E Jesus a ele se dirige, cha-
mando-o pelo nome.
Supõem alguns autores (Agostinho, Ambrósio, Crisóstomo e os modernos Loisye Reuss) que a frase
de Jesus: "ele também é filho de Abraão", signifique que Zaqueu era gentio. Nada, porém, autoriza
essa hipótese. O nome é do mais puro hebraico e o "também" pode referir-se muito melhor a "apesar
de ser coletor-de-impostos, ele também é filho de Abraão como qualquer outro israelita".
Alguns textos, como as "Homilias" e as "Recognitiones" de Clemente dizem que Zaqueu aderiu a Pe-
dro no apostolado, tornando-se mais tarde "inspetor" (bispo) em Cesaréia (Patrol, Gr. vol, 2, col. 152 e
vol 1, col. 1131). Clemente de Alexandria o identifica ao futuro apóstolo Matias (Patrol. Gr. vol. 8
col. 1249).

Episódio significativo no simbolismo profundo que apresenta.


Eis um exemplo do encontro com o Cristo, bem típico, e de uma clareza meridiana.
Cristo responde sempre a nosso chamado. E nas entrelinhas da narrativa, transparece a busca ansio-
sa de Zaqueu que procura vê-Lo. Sabia que o Cristo lá estava, não no retiro do deserto, mas entre a
multidão rumorosa de grande cidade. E esforça-se por encontrá-Lo.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Quer ao menos vê-Lo. Sobe, então, suas vibrações (simbolizada essa elevação pela subida na árvore)
porque é humilde, isto é, natural, e reconhece sua pequenez. Essa maneira de agir, elevar-se por ser
pequeno, traduz seu desejo ardente do encontro.
Além disso, sua atuação na vida é de profundo desprendimento: distribui a metade de seus bens ao
mendigos ... Não se limita a uma percentagem do dízimo: vai à metade, sem temer descapitalizar-se. E
se ocorre algum engano nas contas e cobra a mais, restitui quatro vezes o valor. Renúncia sincera,
sem prender-se ao que a Lei estabelece. Em geral a lei determina o "mínimo", e até mesmo os que "se
dizem" espiritualistas, se esforçam por burlar a lei pagando menos do que ela estipula. Zaqueu, o
"justo", fazia espontaneamente a sua parte, com maravilhosa generosidade, pelo muito amor que de
seu coração "puro" brotava.
Tendo como base de vida a renúncia, e realizando a busca com excepcional ânsia, teve a resposta
merecida: "hoje me hospedarei em tua casa". Não há frase mais consoladora nos evangelhos. Nada
vale tanto em nossa vida, do que quando a Voz Interna diz aos ouvidos de nossa alma: "hoje me hos-
pedarei em tua casa" (cfr. "se alguém me amar seguirá minha doutrina, e o Pai o amará e virá a ele e
fará morada nele", João, 14:13).
O simbolismo é por demais claro: é a lição, com o exemplo vivo e com pormenores. Observemos.
Para que o Cristo se manifeste, as condições percebem-se manifestas:
1.º - Indispensável que a criatura seja "justa" ou "pura" (Zaqueu) em seu íntimo, mesmo que toda a
"multidão” julgue tratar-se de um "desorientado" ou "errado" (hamartôlós). Seja justo, ou seja, ajus-
tado às vibrações superiores, e seja puro, isto é desprendido de tudo, vazio de tudo (cfr. vol. 2).
2.º - Indispensável que não tenha apego a seus bens e os distribua generosamente (a metade, e não
apenas o supérfluo) ajudando os necessitados.
3.º - Indispensável que a criatura queira buscar o Cristo, não apenas com a boca, mas com efetivo
esforço, correndo para encontrá-Lo.
4.º - Indispensável que se conheça, vendo-se como é: pequeno.
5.º - Indispensável que eleve suas vibrações (a subida no sicômoro). Não esqueçamos que o sicômoro
é a "figueira da Índia". E a figueira (cfr. vol. 1) representa, no ocultismo, exatamente "a floração in-
terna das qualidades morais e espirituais, isto é, a evolução em si mesma, a transmutação da seiva
interior da árvore nas flores da perfeição, não abertas para o exterior, mas inclusas ou fechadas em si
mesmas, florescendo para o íntimo".
Tudo isso adapta-se perfeitamente a Zaqueu - e ai vemos a exatidão absoluta das palavras exemplos e
símbolos do Novo Testamento, sobretudo nas palavras de Jesus - cujas virtudes floresciam interna-
mente, embora de fora todos o julgassem "pecador".
Pode perguntar-se por que não se fala em figueira, e sim em sicômoro. Porque sendo a figueira uma
árvore baixinha, quase um arbusto, não poderia Zaqueu subir nela. E sendo em grego as palavras de
grande semelhança, e uma composta da outra (figueira- sykê, ao lado de sykomoros), qualquer pes-
soa poderia perceber o esoterismo do ensino (1).
(1) Daí defendermos a tese de que os Evangelhos devem ser lidos e meditados na língua original (gre-
go), para que se percebam as minúcias dos significados. Pelo menos os comentadores devem fazê-
lo; pois baseando-se nas traduções correntes, os comentadores são muitas vezes levados a trair,
com interpretações erradas, absurdas c até por vezes contrárias, o texto verdadeiro do ensino do
Mestre, conforme está no original.
Quando essas condições são colocadas, não tenhamos dúvida: aguardemos. Quando menos o espe-
rarmos, o Cristo virá ao nosso encontro, e hospedar-se-á em nossa casa. Se a iniciativa tem que partir
de nós, a vinda Dele só depende Dele: mas não falhará. A resposta é infalível. E Sua vinda será como
o relâmpago, que ilumina e incendeia repentinamente do oriente ao ocidente, do princípio ao fim.

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C. TORRES PASTORINO

OS TALENTOS

Mat. 25: 14-30 Luc. 19:11-28

14. Pois é como um homem, que se ia ausentar 11. Ouvindo eles isto, continuando disse uma
do país, e chamou seus servos e lhes entre- parábola, por estar ele próximo de Jerusa-
gou seus bens lém, e eles pensarem que estava para apare-
cer de imediato o reino de Deus.
15. e a um deu cinco talentos, a outro dois, e o
outro um, a cada qual segundo sua capaci- 12. Disse então: "Certo homem ilustre partiu
dade; e partiu. para um país longínquo, a fim de conseguir
para si um reino e voltar.
16. Imediatamente foi o que recebera cinco ta-
lentos e operou com eles e lucrou outros 13. Tendo chamado dez servos seus, deu-lhes
cinco. dez minas e disse-lhes: “negociai até que eu
volte”.
17. Igualmente o de dois, lucrou outros dois.
14. Seus concidadãos, porém, o odiavam, e en-
18. Mas o que recebera um, foi, cavou a terra, e
viaram uma embaixada atrás dele, dizendo:
escondeu o dinheiro de seu senhor.
"Não queremos que este seja rei sobre nós"!
19. Depois de muito tempo, vem o senhor da-
15. E aconteceu que, ao regressar, ele assumiu o
queles servos e ajusta contas.
reino e mandou fossem chamados aqueles
20. E vindo o que recebera cinco talentos, trou- servos aos quais dera o dinheiro, para saber
xe outros cinco, dizendo: "Senhor, entregas- o que tinham lucrado.
te-me cinco talentos; olha outros cinco ta-
16. Chegou, pois, o primeiro, dizendo: "Senhor,
lentos que lucrei".
tua mina rendeu dez minas".
21. Disse-lhe seu senhor: "Muito bem, servo
17. E disse-lhe: "Muito bem, servo bom, por-
bom e fiel; foste fiel no pouco, confiar-te-ei
que te tornaste fiel no mínimo, tem poder
o muito; entra na alegria de teu senhor”.
sobre dez cidades".
22. Chegando também o de dois talentos, disse:
18. E veio o segundo, dizendo: "A tua mina,
“Senhor, entregaste-me dois talentos; olha
senhor, rendeu cinco minas".
outros dois talentos que lucrei".
19. Disse também a esse: "Também tu serás
23. Falou-lhe seu senhor: "Muito bem, servo
sobre cinco cidades".
bom e fiei; foste fiel no pouco, confiar-te-ei
o muito; entra na alegria de teu Senhor". 20. E outro veio dizendo: "Senhor, eis tua
mina, que eu mantinha guardada num len-
24. Vindo também o que recebera um talento,
ço,
disse: "Senhor, conheço-te que és homem
duro, colhendo onde não semeaste e reco- 21. pois te temia, porque és homem austero,
lhendo onde não distribuíste, tiras o que não puseste e colhes o que não
semeaste".
25. e amedrontado, escondi teu talento na ter-
ra; olha (aqui) tens o teu". 22. Disse-lhe: "Por tua boca te julgo, servo in-
feliz. Sabias que sou homem austero, tiran-
26. Respondendo, então, disse-lhe seu senhor:
do o que não pus e colhendo o que não se-
"Servo infeliz e tímido, sabias que colho
meei?
onde não semeei e recolho onde não distri-
buí? 23. E por que não colocaste meu dinheiro no
banco? E vindo eu, então, o exigiria com ju-
27. Devias, então, ter confiado meu dinheiro
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SABEDORIA DO EVANGELHO

aos banqueiros e, vindo eu, teria recupera- ros".


do o meu com juros.
24. E aos presentes disse: "Tirai dele a mina e
28. Tomai-lhe, portanto, o talento, e dai-o ao dai-a ao que tem as dez minas".
que tem dez talentos, 25. E disseram-lhe: "Senhor, tem (já) dez mi-
29. pois a todo o que tem, será dado e supera- nas"!
bundará; mas de quem não tem, ser-lhe-á 26. "Digo-vos que a todo o que tem, lhe será
tomado até o que tem.
dado, e do que não tem, até o que tem lhe
30. E o servo inútil lançai-o nas trevas exterio- será tirado.
res; aí haverá o choro e o ranger de dentes”.
27. Entretanto, esses meus inimigos que não
queriam que eu reinasse sobre eles, trazei-
os aqui e trucidai-os diante de mim".
28. Tendo dito isso, partiu à frente deles, su-
bindo para Jerusalém.

Aparece aqui mais uma comparação (parábola) de como funciona a lei em relação às pessoas humanas,
dando-nos a tese e a antítese.
Narrada por Mateus e Lucas, anotamos nos dois textos diferenças fortes quanto à forma, embora o
fundo seja o mesmo. Pelas frases do "senhor" aos "servos" e pela conclusão, todavia, certificamo-nos
de que a parábola é a mesma.
Alguns exegetas sugerem que, em Lucas, tenha havido a fusão (ou confusão) de duas parábolas, uma
do pretendente ao trono, outra das "minas" (cfr. Buzy, "Les Paraboles", Paris, 1932, pág. 542-548).
Pensamos que a alusão ao pretendente ao trono tenha sido silenciada por Mateus, por haver ele escrito
para israelitas na Judéia, onde ainda reinavam os "Herodes", ao passo que Lucas, dirigindo-se os gen-
tios, estava mais livre. Com efeito, o "homem ilustre" que pretendeu a investidura como "rei" e foi
solicitar o cetro a Roma, identifica dois episódios historicamente ocorridos na vida material. Trata-se
de Herodes o Grande, em 40 A.C. (cfr Josefo, Ant. Jud. 14, 14, 4-5) e de Arquelau, em 4 A.D. (cfr.
Josefo, Ant. Jud. 17, 9, 3-4 e Bell. Jud. 2, 2, 1-3). O segundo só obteve o título de "tretarca" e foi, efe-
tivamente, seguido por uma embaixada de judeus que o odiavam por causa de sua violência; e chega-
ram até Augusto, em Roma, rogando-lhe não o fizesse "rei". Em seu regresso, foram cruéis as represá-
lias de Arquelau contra seus inimigos.
Outra diferença notada entre as duas narrativas é quanto às importâncias entregues aos servos. Diz
Mateus que três servos receberam dez, cinco e um talento, e Lucas afirma que dez servos foram con-
templados com uma mina cada um, embora, no final, só sejam pedidas contas de três deles.
O tipo de moeda também varia. Mateus fala em "talentos", que era a maior unidade monetária judaica,
equivalendo ao peso de 42,533 k, com valor de 60 minas e 3.000 siclos. Do talento se conserva um
espécime (um kikkâr) no Museu Bíblico de Santana em Jerusalém. Modernamente o talento pode ser
equiparado a 2.000 dólares norte-americanos, ao passo que a mina (que vale 100 dracmas) tem o valor
de pouco menos de 34 dólares.
Em ambos os casos, não se procura propriamente o rendimento do dinheiro (que poderia com mais
segurança ter sido entregue a um "trapezista" (banqueiro, como diríamos hoje); mas o desejo é experi-
mentar os homens, a respeito de administração de bens, para concluir-se sobre as tarefas que lhes po-
deriam posteriormente ser cometidas.
Para isso, é-lhes concedido longo tempo (metá pólyn chrónon) e, ao regressar, são pedidas as contas.
Os dois primeiros, em Mateus, obtiveram cem por cento de lucro. São elogiados e convidados a "entrar
na alegria do senhor", com a promessa de que lhes seriam confiadas grandes tarefas, já que se desin-
cumbiram tão bem das "pequenas". Em Lucas o primeiro consegue multiplicar por dez e o segundo por

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C. TORRES PASTORINO

cinco a quantia recebida. Proporcionalmente são prepostos a dez e cinco cidades, como governadores,
associando-se ao governo do novo rei.
Ambos os evangelistas têm a mesma conclusão: "a quem tem será dado de quem não tem será tirado
até o pouco que tem", frase que já fora proferida em outra oportunidade (Mat. 13:12; Marc. 4:25; Luc.
8:18, vol. 3). A esse respeito escrevemos: "quantos, após uma vida inteira dedicada ao sacerdócio, ao
ministério, ao mediunismo mais puros, se acham, depois do túmulo, de mãos vazias: perderam até o
pouco que julgavam ter, porque estavam em direção errada, já que buscavam Deus fora de si mesmos e
serviram a Deus através de vaidades e honras humanas" (vol. 3).
*
* *
A lição primordial para a personagem humana, é a da REENCARNAÇÃO. Com essa interpretação é
que entendemos a alegoria (mâchâl).
Realmente cada criatura recebe ao "entrar na vida", determinada quantidade ou qualidade de "talen-
tos", mas sempre de acordo com sua capacidade (ou força = dynamis) de fazê-los frutificar. Alguns dez
talentos. São os mais capazes, que aproveitam a oportunidade e os fazem multiplicar-se. Tanto é assim,
que o "senhor" deixa com cada um os talentos que lucrou (pelo menos, na parábola eles não são pedi-
dos de volta). De fato, o que cada indivíduo conquista com seu esforço em cada existência, passa a
pertencer-lhe de direito, agregando-se à sua individualidade eterna.
Outros são menos capazes: produziram menos no passado. São-lhes confiados cinco talentos e, dentro
do que lhes for possível, os multiplicarão.
Mas muitos recebem pouco: um só talento. E passam uma vida inteira sem conseguir fazê-lo multipli-
car-se. Talvez tenham oportunidade de cursar colégios e até de diplomar-se, mas estacionam lamenta-
velmente. Perdem as melhores oportunidades. Deixam-se escoar-se os minutos e as horas em diverti-
mentos e ócios. Os dias esgotam-se, somam-se em semanas, meses e anos, em sucessivos zeros impro-
dutivos. Futilidades e conversas sem objetivo. Preguiça indolente e busca apenas de gozos físicos. A
desencarnação surpreende-os de mãos vazias, após uma existência improfícua. E nada fazem com os
títulos acadêmicos conquistados. Cristalizam no nível em que os colocou a vida pelas facilitações ad-
quiridas na juventude. Nem um passo á frente. Podem e não querem. Não entram pelas portas que se
lhes abrem às escâncaras. Para que? A esses, quando regressam novamente ao planeta, nada mais lhes
será dado. Nenhuma facilidade de estudo. Nada lhes sorri. Desejam aprender, mas faltam-lhes as
oportunidades. O pouco que tenham lhes foi tirado. Castigo? Não: resultado cientificamente controlado
da vida anterior improdutiva: paralisaram a mente por vontade própria, para dar largas à indolência:
agora estão com os neurônios destreinados, com o intelecto amodorrado, e por mais que se esforcem,
as dificuldades agigantam-se: foi-lhes tirado o pouco que tinham, o talento que em outra vida lhes fora
dado, porque lá o deixaram sem frutificar. Agora estão desarmados. Não por castigo nem por vingan-
ça, mas porque eles mesmos desgastaram sua matéria-prima.
Elucidemos com um exemplo prático. A cada aluno é distribuída uma folha de papel em branco, para
escrever sua prova. Na demora da espera, alguns alunos rabiscam a folha com desenhos e garatujas.
Quando soa o momento de iniciar, o papel deles está todo sujo, e eles não têm mais onde escrever,
sendo reprovados: até o papel que tinham lhes é tirado. Não houve castigo, mas desperdício do materi-
al (talento) que lhes havia sido entregue.
Assim, quem não usa o intelecto, deixa-o atrofiar-se: perde, pois, o pouco que tinha, não porque lho
tirem, mas porque o deixou embotar-se e, uma vez embotado, as dificuldades automaticamente cres-
cem.
O prêmio dado aos que produziram é a "entrada na alegria" e a promessa de que, no futuro, maiores
responsabilidades e possibilidades lhes serão atribuídas. Em Lucas, por tratar-se de "rei", é dado aos
vencedores da prova a participação no governo.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

A penalidade imposta aos displicentes, que dão desculpa de temor ou de prudência, em Mateus, é a
perda do que têm e mergulho nas trevas exteriores (reencarnação dolorosa). Em Lucas aparece a con-
denação à morte dos inimigos que se opuseram ao reinado do "homem ilustre". Aqui temos, pois, um
exemplo do que foi acima dito: "os governadores tiranizam ... os grandes dominam" (Mat. 20:25,
Marc. 10:42).

Chama-nos a atenção, em toda a parábola, a frequência do emprego de termos técnicos das Escolas
iniciáticas. Vejamos:
O homem "entrega (paradídômi) os talentos, de acordo com a "capacidade" (dynamis) de cada um;
estes "operam" (ergázomai) com os talentos. Mas o infeliz que recebera um só talento, o "esconde"
(kryptô), até que o senhor chama os servos ao "ajuste de contas" (synaírei lógon, que também poderia
ser traduzido "tomar a doutrina" ou "tomar a lição"), e os convida a entrar na "alegria" (cháran)
quando venceram. A estes, em Lucas, é dado o "poder" (exousía).
Eis, então, uma cena que precisa ser interpretada dentro dos ensinos esotéricos.
Nas Escolas, o candidato recebe a entrega (parádosis ou traditio) dos símbolos sagrados, que podemos
resumir, nas escolas gregas, à espiga de trigo (como nos evangelhos o episódio dos discípulos no tri-
gal, Mat. 12:1-8; Marc. 2:23-28 e Luc. 6:1-5; vol. 2). Em João, há uma referência ao "pão" (João,
6:35, 48), que depois aparece nos demais anotadores (Mat. 26:26; Marc. 14:22,. Luc. 24:30, etc.).
Observemos que na iniciação grega os símbolos eram a espiga de trigo e a uva; na iniciação judaica
passaram a ser o resultado de ambos: o pão e o vinho, que Melquisedec já utilizara (cfr. Gén. 14:18).
Na parábola, observamos que a experiência é feita com dinheiro, para preparação ainda dos aspi-
rantes à iniciação (cfr. atrás).
O símbolo é "mostrado" (deíknymi) e entregue, de acordo com a força (dynamis) de cada discípulo,
tal como o faz Jesus, ao mostrar o pão e dá-lo: "tomai e comei". O hierofante, denominado aqui "ho-
mem ilustre" (ánthrôpos eugenês) introduz o iniciando na Senda e dá-lhe os símbolos para que, por
meio de exercícios espirituais, se desenvolva. E "retira-se para fora de seu país" (apodêmôn), ou seja,
atasta-se do ambiente do discípulo, para que este possa demonstrar sozinho sua força (dynamis). O
tempo é mais que suficiente, pois o Mestre só regressa "após longo tempo" (metà pólyn chrónon).
Durante essa espera, os discípulos têm que "produzir obras" (ergázomai), fazendo que os talentos se
multipliquem, "colocando a luz em cima do castiçal" (Mat. 5:14-16; Luc. 11:33,36). Quem a mantém
"escondida" (kryptô) é réu de egoísmo, e deixa o trabalho, a ação ou atividade (êrgon) improdutivo,
não havendo desculpa na hora de "tomar a doutrina" (synaírei lógon) ou "prestar as contas".
Se o trabalho (érgon) foi bem executado, o candidato adquire "poder" (exousia) e entra na "alegria"
(cháran) do Mestre, demonstrando-se capaz de dirigir outras criaturas pela mesma Senda. Não se tor-
nará "Mestre", mas poderá formar um pugilo de outros discípulos, proporcionalmente ao rendimento
que obteve.
Aí temos, portanto, o modo de agir da Escola Iniciática Assembléia do Caminho. Nada de promoções
por "pistolão" (cfr. Mat. 22:10; Marc. 10:37) nem por beleza física, nem por amizade: é duramente de
acordo com a capacidade e a força de cada um.
* *
*
Outra interpretação, corroborando a reencarnação, se entendermos o "homem ilustre" como o "Eu
Verdadeiro", isto é, o Espírito ou individualidade, que deixa ao "espírito" ou personalidade, a incum-
bência de descer ao plano físico a fim de produzir experiências e multiplicar os talentos que o Espírito
Eterno lhe empresta. No momento da destruição da personagem, o Espírito vem buscar o resultado
para incorporá-lo a seu acervo. Se a personagem conseguiu multiplicar os talentos com seu trabalho
ou sua ação (érgon), receberá como prêmio a concessão da alegria de tornar-se, no planeta, um
"nome famoso", por ter aproveitado bem os dons recebidos. Se nada obteve na encarnação, e nada

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C. TORRES PASTORINO

pode restituir ao Espírito senão o que ele já tinha (pois jamais se perde o que se conquistou), então a
personagem desaparece nas trevas do túmulo, sem que ninguém se lembre dele: seu nome cai no olvi-
do mais total. Permanece um dos milhões de anônimos que perambulam pela superfície do globo.
A parábola é um aviso de suma importância para todos, mas especialmente para os que penetraram
no Caminho e SABEM: sua responsabilidade é incomparavelmente maior que a daqueles que ainda
estão adormecidos na psychê, ou alma puramente animal. Os que "já tem Espírito" (Judas, 19) terão
que prestar contas rigorosas, porque já receberam maior número e melhor qualidade de "talentos".

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SABEDORIA DO EVANGELHO

ONDE ESTA JESUS?


João 11:55-57
55. Estava próxima, porém, a páscoa dos judeus, e muitos daquela região subiam a Jeru-
salém antes da páscoa para purificar-se.
56. Procuravam, então, Jesus e diziam uns aos outros, estando no templo: "Que pensais?
Não virá (ele) à festa"?
57. Os principais sacerdotes e os fariseus tinham dado ordem para que, se alguém sou-
besse onde (ele) estava, o denunciasse, para prendê-lo.

A demora do Mestre com Seus discípulos, em Efraim, não foi longa, pois estava próxima a festa da
páscoa, a terceira narrada por João (cfr. 2:13 e 6:4 ss). A entrada em Jerusalém se daria por Betânia,
pois Jesus seguia normalmente a estrada que vinha de Jericó.
A purificação no templo, antes da Páscoa, era rito legal (Núm. 9:10 e 2.º Crôn. 30:17-18).
E nesse burburinho de gente de todas as partes, uma preocupação sobressaía a tudo: viria Jesus? Sem-
pre aparecia em Jerusalém esse profeta, de porte régio, majestoso em sua simplicidade. Mas desta vez,
a nota dominante era a exigência do Sinédrio: sua cabeça estava "a prêmio"; quem O visse, era obriga-
do a denunciá-Lo.

A denúncia hoje é extemporânea. Mas a curiosidade em torno dos grandes vultos é sempre a mesma.
Todos querem saber se aqueles que se tornam alvo de admiração e estima, agirão desta ou daquela
maneira. Nem sempre é por procurar imitá-los, mas pelo menos para ter assunto para comentários.
Outra categoria de pessoas, os espíritos que já compreenderam e iniciaram a caminhada, também estão
sempre inquietos, para saber se o "Mestre" virá ou não.
Páscoa ou "passagem" simboliza uma transição que pode assumir grande importância para o discípulo.
Contará com a presença sensível daquele que, por ser o Mestre, se responsabilizou por sua orientação?
Não só os que desejam "matá-lo", mas os próprios discípulos, se pudessem, prenderiam o Mestre a si
monopolizando-o para uso próprio, para convivência privativa.
Virá o Mestre? Quando virá? Como aparecerá? Quanto tempo se demorará conosco? A expectativa
gera ansiedade, e esta perturba profundamente a percepção da chegada do Mestre que, talvez, já esteja
presente, ajudando apenas a pacificação silenciosa interior, para fazer finalmente ouvir Sua voz.

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C. TORRES PASTORINO

A UNÇÃO EM BETÂNIA

Mat. 26:6-13 Marc. 14:3-9 João, 12:1-8

6. Estando, pois, Jesus em 3. Estando ele em Betânia, na 1. Então, seis dias antes da
Betânia, em casa de Simão casa de Simão o leproso, páscoa, Jesus veio a Betâ-
o leproso, reclinado (à mesa), veio nia, onde estava Lázaro, o
uma mulher trazendo um morto que Jesus despertou
7. aproximou-se dele uma
(vaso de) alabastro de per- dos mortos.
mulher que tinha um (vaso
fume caríssimo de nardo
de) alabastro de perfume 2. Fizeram-lhe, pois, uma ceia
autêntico; e quebrando o
caríssimo e derramou por lá, e Marta servia, e Lázaro
alabastro, derramou-o na
cima da cabeça dele, recli- era um dos que se reclina-
cabeça dele.
nado (à mesa). vam (à mesa) junto com ele.
4. Alguns estavam indigna-
8. Vendo isso, os discípulos 3. Então Maria, tomando uma
dos, dizendo entre si: "Para
aborreceram-se, dizendo: libra de perfume de nardo
que se fez esse desperdício
"Para que esse desperdí- autêntico caríssimo, ungiu
de perfume?
cio? os pés de Jesus e enxugou
5. Pois podia esse perfume ser com os cabelos dela os pés
9. Pois podia isto ser vendido
vendido por mais de trezen- dele. A casa ficou cheia do
por muito e ser dado aos
tos denários e dado aos odor do perfume.
mendigos".
mendigos". E murmura- 4. Disse Judas, o Iscariotes,
10. Sabendo-o, Jesus disse: vam contra ela. um dos discípulos dele, o
"Por que causais dissabor à
6. Mas Jesus disse: "Deixai-a; que iria entregá-lo:
mulher? pois realizou bela
por que lhe causais dissa-
ação para mim, 5. "Por que esse perfume não
bor? Bela ação realizou em foi vendido por trezentos
11. já que sempre tendes men- mim, denários e dado aos mendi-
digos entre vós, mas a mim
7. pois sempre tendes mendi- gos"?
nem sempre tendes.
gos entre vós, e todas as ve- 6. (Disse isso, não porque se
12. Lançando este perfume zes que quiserdes, podeis importasse com os pobres,
sobre meu corpo, ela fê-lo beneficiá-los; mas a mim mas porque era ladrão e,
para preparar o sepulta- nem sempre tendes. tendo a caixinha, levava o
mento.
8. Ela fez o que pode: ungiu que (nela) se punha.
13. Em verdade vos digo: onde por antecipação meu corpo 7. Disse então Jesus: "Deixa-
quer que seja pregada esta para o sepultamento. a, para que o conserve para
boa-nova, em todo o mun-
9. Em verdade vos digo, onde o dia de meu sepultamento,
do, será dito o que ela fez,
quer que seja pregada esta
para memória dela". 8. pois os pobres sempre ten-
boa-nova, em todo o mun- des entre vós, mas a mim
do, também o que ela fez nem sempre tendes".
será falado, para memória
dela".

Por João, sabemos que SEIS DIAS antes da festa da Páscoa, ou seja, sábado, dia 1 de abril do ano 31,
Jesus estava em Betânia, na casa de Simão, o leproso, tomando parte numa ceia.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Quem era esse Simão? Supõem alguns que seja o mesmo Simão o fariseu que convidou Jesus a jantar
(Luc. 7:36). Mas seria muita coincidência que, na mesma casa, se repetisse a mesma cena, em duas
ocasiões distintas, por duas mulheres diferentes, porque, evidentemente, o andamento do fato é total-
mente diverso, e Maria de Betânia não era, positivamente, a "'pecadora", como Jerônimo já dissera
(Patrol. Lat. vol. 36, col. 191). Diz o mesmo autor (Patrol. Lat. vol. 36, col. 131) que o epíteto "lepro-
so" deve ter sido mantido como recordação de prístina enfermidade curada por Jesus, tal como Mateus
continua a denominar-se "coletor-de-impostos" mesmo após abandonar a profissão. Outros sugerem
que Simão deve ser o pai de Lázaro, já que a família estava aí reunida: Marta servia à mesa, Lázaro
estava presente e Maria ungiu-lhe o corpo. E o evangelista sublinha: "Lázaro, o morto (1) que Jesus
despertou dos mortos".
(1) Lázaros, sintático, B, L, W, X, itálicos (a, aur., c, e, rl), siríacas (peschitto e palestinense), coptas
(saídica e boaírica) , Diatessaron, Crisóstomo, Nonnus.
Lázaros ho tethnêkôs, papiro 66, A, D, K, delta, theta, pi, psi, 065, 0217, 0250, fl, f13, 28, 33, 565,
700, 892, 1009, 1010, 1071, 1079, 1195, 1216; 1230, 1241, 1242, 1344, 1365, 1546, 1646, (2148 sem
ho), 2148c, 2174, lecionários bizantinos, itálicos (b, d, i, ff2), Vulgata, siríacas (sinaítica e harcleen-
se), coptas (boáirica, achmímica e sub-achmímica), gótica: armênia, geórgia e Chrônica Paschalis.
Mateus fala em "perfume caríssimo", enquanto Marcos e João definem "'nardo autêntico". O nardo
(nardostachys jatamansi), da família das valerianas, era planta que provinha da Índia. Plinio (Hist.
Nat. 13, 2,16) o diz nardum índicum e o descreve (Hist. Nat. 12, 26, 47): de folio nardi plura dici par
est ut principali in unguentis. Sincerum quidem levitate deprehénditur et colore rufo odorisque suavi-
tate et gustu maxime siccante os, saporeí jucundo. Pretium spicae in libras centum denarios, isto é,
"pode dizer-se muitas coisas da folha do nardo, como principal nos perfumes. O legítimo se conhece
pela leveza, pela cor ruça e pela suavidade do cheiro, agradável de sabor mas fortemente adstringente
na boca. O preço da espiga é de cem denários por uma libra". Depois de industrializado em perfume, o
nardo devia custar três ou quatro vezes mais. No entanto, o mesmo naturalista avisa, logo adiante, que
há falsificação do nardo: é o nardo sírio, o gaulês, o céltico e o cretense, cujo valor é muito menor. O
perfume era embalado em pequenas ânforas de alabastro ou de ônix, artísticas, com gargalo fino e
comprido, de muita elegância.
Uma contradição forte, porém, deparamos. Mateus e Marcos asseveram que o perfume foi derramado
na cabeça, enquanto João diz que o foi nos pés, que Maria enxugou com os cabelos dela. Como expli-
car o fato, já que João estava presente à ceia, que descreve com pormenores silenciados pelos outros?
Terá havido confusão com a cena da "pecadora" (Luc. 7:39)? Pela distância entre os episódios e a épo-
ca em que João escreveu seu Evangelho (cerca de meio século depois), pode realmente admitir-se uma
confusão ou lapso de memória. Os outros dois evangelistas escreveram a menos distância no tempo.
Pelas palavras de Jesus a posterióri, e por serem duas testemunhas a afirmar a unção na cabeça, acei-
tamos essa versão como verdadeira, embora a dúvida não possa ser historicamente resolvida.
Em decorrência da quebra do precioso vaso de alabastro e do perfume que escorreu, recendendo pela
casa toda, alguns dos discípulos (João limita o protesto a Judas) lamentaram o "desperdício", já que
podia ter-se vendido aquela preciosidade, distribuindo o produto pelos mendigos. Trezentos denários
era o salário de um trabalhador durante um ano!
Mas Jesus levanta Sua voz em defesa de Maria, como o fizera com a "pecadora" (Luc. 7:40). E diz que
"mendigos sempre os tereis convosco". Já o testificara o Deuteronômio (15:11): "não faltarão pobres
no meio do povo". E o Mestre prossegue: "mas a mim nem sempre tereis". Era uma despedida.
Depois, vem a justificação do ato: "ela me ungiu o corpo (logo não foram apenas os pés) para o sepul-
tamento (entaphiásmon). E a seguir a profecia: "onde quer que esta boa-nova seja difundida, no mundo
inteiro, será narrado o que ela fez, em sua memória" (é o hebraico zikkârôn e o arameu dukerânâ, a
comemoração de um fato ou de uma pessoa).
Nessa defesa, Marcos registrou belíssima frase de Jesus: "Ela fez o que pode"! Mais tivesse podido,
mais teria feito.

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C. TORRES PASTORINO

João acusa Judas, abertamente, de ladrão: carregava o dinheiro do grupo, porque estava a seu cargo a
guarda da caixinha (glôssóxomon, que exprimia primitivamente uma caixeta, onde se guardavam as
linguetas da flauta, cfr. 2.º Crôn. 24:8-10).

Muito mais importante o episódio no setor das iniciações.


Jesus mesmo o revela: "o perfume serviu para preparar o corpo para os ritos do sepultamento (enta-
phiásmon). Por isso, Maria realizou "uma bela ação" (kalòn érgon ergázomai).
Interessam-nos aqui apenas as ações fundamentais. Observamos que o trio de Betânia estava nova-
mente reunido, executando um ritual iniciático, como se, da outra Escola, tivessem querido seus mem-
bros colaborar com Jesus na conquista do 5° grau. Surge um pormenor de grande importância: pas-
sa-se a cena SEIS dias antes da grande imolação de Jesus, que ocorrerá no SÉTIMO dia após a unção
prévia.
Então, em resumo: SEIS dias antes do Sacrificio, que será sangrento (diferente do de Lázaro), o mes-
mo grupo sacerdotal reunido (Lázaro, Marta e Maria), na mesma cidade de Betânia, embora na resi-
dência de Simão, e sem outras testemunhas que os discípulos do colégio apostólico, sendo já aqui
Lázaro, o morto que regressou dos mortos, o assistente, Marta a diaconissa (servia, Martha diêkónei)
e Maria a celebrante, esta unge o corpo de Jesus, derramando sobre Sua cabeça uma libra de nardo
autêntico, proveniente da Índia, onde Jesus provavelmente passara alguns anos de Sua juventude (cfr.
Nicolau Notovitch, "A Vida Desconhecida de Jesus"). Era, pois, algo de especial e de específico, que
chegara da região dos Mestres de Sabedoria.
Cerimônia tocante, comovedora e sublime. E quando é objetado pelos que não sabiam do rito, que
poderia ter sido o perfume vendido para dar-se o dinheiro aos mendigos, Jesus ergue a voz tentando
explicar a realidade do que ocorrera em relação ao simbolismo.
Unamos as frases dos três narradores: "Deixai-a. Por que lhe causais dissabor? Realizou em mim
uma bela ação (érgon é a palavra específica do trabalho espiritual). Ela fez o que pode: ungiu meu
corpo (temos a impressão de que o nardo escorreu da cabeça, por todo o corpo, até os pés, que então
Maria enxugou com seus cabelos) preparando-o antecipadamente para o sepultamento".
Com efeito, o nardo era adstringente, da família das valerianas, e portanto anestésico ou analgésico.
E essa preparação foi antecipada, porque não houve tempo de ungi-lo após a crucificação. Tendo sido
pregado na cruz às 15 horas, seu corpo foi retirado do madeiro antes das 18 horas, permanecendo
portanto pouco mais de duas horas na cruz. E logo a seguir, às pressas, para que não se ferisse o sá-
bado que começava às dezoito horas, foi colocado no túmulo virgem de José de Arimatéia, sem tempo
para qualquer preparação próxima com unguentos.
A unção com nardo deu a Seu corpo uma vibração particular, fortalecendo as células epidérmicas e
mesmo penetrando no derma, para que pudesse suportar as dores e ferimentos que Lhe iam ser cau-
sados pelos maus tratos, flagelações e ferimentos contuso-perfurantes que O atormentariam nos dias
tristes que estavam por chegar. Nada sabemos, mas talvez essa unção com nardo autêntico é que te-
nha provocada, no sudário, que ainda hoje se conserva em Turim, a impressão, em negativo fotográfi-
co, das marcas do corpo de Jesus, por inteiro.
Outra frase de Jesus, que merece atenção: "deixa-a, para que o conserve para o dia de meu sepulta-
mento". Conservar o que? Parece que o corpo. Não pode compreender-se aí outro sentido. Havia
mister que o corpo pudesse suportar tudo, resistindo a todas as feridas e pancadas. Que sabemos nós
das propriedades do nardo legitima? E da absorção que as células podem fazer dessa essência aro-
mática, conservando-a em si durante sete dias? De qualquer forma, o ritual é de suma beleza. E que
se trata de um ritual, o próprio Jesus se encarregou de salientar, explicando a finalidade do ato de
Maria.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

E até hoje, dois mil anos depois, jamais falhou Sua profecia: onde quer que se pregue a Boa Nova,
esse gesto de Maria é narrado para sua maior glória: ter colaborado no supremo sacrifício de Jesus,
fazendo tudo o que podia para ajudá-Lo.
Permita-nos o Pai ter sabedoria suficiente para penetrar a fundo esses ensinos tão elevados e subli-
mes!

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C. TORRES PASTORINO

CONTRA LÁZARO
João, 12:9-11
9. Soube, então, grande multidão de judeus, que Jesus estava lá, e veio, não só por Jesus, mas
também para ver Lázaro que (ele) despertara dos mortos.
10. Resolveram, porém, os principais sacerdotes, que também Lázaro fosse morto,
11. porque muitos, por causa dele, se afastavam dos judeus e criam em Jesus.

A curiosidade humana é insaciável. Sabendo que Jesus se encontrava em Betânia, muitos judeus para
lá acorreram. Lá estava o profeta condenado pelo Sinédrio. Mas também lá estava Lázaro que, após o
ressurgimento do túmulo por ação de Jesus, se tornara um atrativo para todos. Como seria o homem
que experimentara a morte e voltara de lá?
Aos sacerdotes, "autoridades constituídas", é que não agradava isso. Lázaro era uma testemunha "viva"
da força de Jesus. E numerosos eram os judeus que abandonavam os sacerdotes do templo, para acre-
ditar que Jesus era, de fato, um profeta, e talvez o próprio Cristo, e tudo isso contribuía para decrésci-
mo do prestigio do Sinédrio. Para sanar essa dificuldade, havia um meio: também Lázaro devia ser
sacrificado à sanha egoísta dos sacerdotes ...

Para a individualidade, a lição é clara: todos os que agirem em benefício dos homens, ou forem bene-
ficiados pelos Mestres, serão perseguidos e se possível, serão assassinados, para que as provas desa-
pareçam e os homens passem a crer que se tratava apenas de uma invenção ou de uma alucinação,
ainda que coletiva.
Não nos assustemos: quem teve a força de ajudar uma vez, poderá fazê-lo pela segunda vez.
Além disso, não é a perda de um corpo carnal que nos levará à perdição. Outro poderá ser recons-
truído. O que nos atinge e degrada é a ingratidão para com nossos benfeitores; é o egoísmo, o orgu-
lho, a vaidade e a ambição, que nos fazem descer até os últimos degraus da involução. Fidelidade
absoluta, coragem desassombrada, humildade natural e espontânea, e serviço ativo por amor, mante-
rão nossos Espíritos na altura sublime do Cristo que nos ama e nos chama com "gemidos inenarrá-
veis" (Rom" 8:26). Ouçamos-Lhe a voz e sigamo-Lo: a felicidade suprema reside Nele!

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SABEDORIA DO EVANGELHO

ÍNDICE REMISSIVO
Emmanuel, 31
entra em si mesmo, 16
A Equação, 30
A DRACMA PERDIDA, 9 ESCÂNDALO, 35
A OVELHA PERDIDA, 7 ESCÂNDALOS, 34
A PRECE, 59 Eurípedes, 15
A UNÇÃO EM BETÂNIA, 140 Eusébio, 113
ação de graças, 16 EXPLICAÇÃO DA PARÁBOLA, 30
Acha bar Chanina, Rabbi, 41
Agostinho, 31, 70, 132 F
Alegoria, 30
Allan Kardec, 95 Flávio Josefo, 62, 69, 86, 113
Ambrósio, 87, 132 Francisco Cândido Xavier, 27
AMOR, 78
ÂNSIA DE SABER, 78
Antonio Borgia, 27
G
aplicação direta, 30 Gandhi, 74
Apuleio, 105 Goblet d'Alviella, 106
Aristófanes, 15 Gustave Dalman, 49
As Doze Tribos de Israel, 89
Assembléia do Caminho, 5, 32, 37, 42, 51, 56, 71, 106, 137
H
B HENDÍADES, 101
Hesíodo, 14
Baphomet, 108 Hilário, 41
Basílio, 41 Hillel, 67
Bhagavad-Gita, 4 Homilias, 132
Billerbeck, 41 HOMINIZAÇÃO, 72
Huberto Rohden, 62, 72
C Hugo de Saint-Victor, 70
HUMILDADE, 78
Cado, 18
Chammai, 67
Chanina bar Teradjon, Rabi, 42
I
chrêma, 15 INOCÊNCIA, 78
Cipriano, 41
Cirilo, 41
Cirilo de Alexandria, 85 J
Clemente, 132 JACOB, 47
Colégio Apostólico, 32 jejum, 62
comparação, 30 Jerônimo, 36, 37, 41, 42, 70, 80, 87, 113, 125, 141
CONTRA LÁZARO, 144 JESUS E AS CRIANÇAS, 76
Coros, 18 Joana de Cuza, 121
CORREÇÃO FRATERNA, 42 João Crisóstomo, 31, 42, 93
Crisóstomo, 132 Jochanan, Rabbi, 35
cristificação, 16 José de Arimatéia, 142
CURA DE BARTIMEU, 128 Judas, 32

D K
DECRETAÇÃO DE MORTE, 112 Knabenbauer, 122
denários, 42 Krishna, 4, 8
DENTRO DE VÓS, 53
DIFICULDADE DOS RICOS, 84
Dionisos, Escola de, 96 L
dízimo, 62
LABÃO, 47
DOCILIDADE, 78
LIA, 47
dracmas, 42
LIBELO DE REPÚPIO, 66
Loisye Reuss, 132
E Luiz Goulart, 90
Lutero, 37
Elias-Batista, 36
Émile Boisacq, 108

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C. TORRES PASTORINO

M quem se humilha será exaltado, 16

Mahachoan Maitreya, 109


Maldonado, 93
R
Maldonado, jesuíta, 31 Rabbi Boun ben Rabbi Hiya, 93
Marcos, 38 Rabbi Raba, 85
Mateus, 42 RAQUEL, 47
matrimônio, 16 Recognitiones, 132
Max Zerwick, 53 Renan, 38
Meir, Rabbi, 41 RESSURREIÇÃO DE LÁZARO - I - DOENÇA DE
metanóia, 16 LÁZARO, 97
Moisés, 67 RESSURREIÇÃO DE LÁZARO - I I - RESSURGIMENTO
Monier-Williams, Sir, 108 DA VIDA, 100
Monsenhor Pirot, 123 RESSURREIÇÃO DE LÁZARO - III - ENCONTRO COM
MARIA, 103
N RESSURREIÇÃO DE LÁZARO - IV - LÁZARO ERGUE-SE,
104
Nicodemos, 36
Nicolau Notovitch, 142
Noé, 56, 96
S
sacerdócio, 16
O Santo Ofício, 122
Septuaginta, 123
O “DIA” DO FILHO DO HOMEM, 55 SER DISCÍPULO, 3
O ADMINISTRADOR NÃO-JUSTO, 18 SERVOS INÚTEIS, 46
O FILHO PRÓDIGO, 11 Simão Pedro, 42
O MOÇO RICO, 79 SIMPLICIDADE, 78
O PERDÃO, 40 Sócrates, 105
O RICO E LÁZARO, 24 Sófocles, 15
ONDE ESTA JESUS?, 139 Strack, 41
ORAÇÃO, 60 substituição, 30
Orígenes, 36, 41, 70 sudário, 142
OS DEZ LEPROSOS, 49 Suetônio, 35
ousía, 15 Swete, 123
Ovídio, 35
T
P talentos, 42
Papa Bento XV, 75 TALENTOS, OS, 134
Paul Brunton, 125 Teilhard de Chardin, Padre, 72
Paulo, 35 Tomás de Aquino, 31, 42
Paulo de Tarso, 86 Tomé, 99
PEDIDO EXTEMPORÂNEO, 120 TRABALHADORES DA VINHA, 91
Pedro, 42, 43 TRIGO E JOIO, 28
Pedro Lombardo, 70
Pentateuco, 68
PERDÃO, 43
V
PERSEVERANÇA, 78 VAIDADE, 62
Philon de Alexandria, 86
Philon de Byblos, 123
Pietro Ubaldi, 94, 95 X
Platão, 15, 105 Xenofonte, 15
Plinio, 141
Plutarco, 108
Porfirio, 105 Y
PREDIÇÃO DAS DORES, 116
Yvonne A. Pereira, 27
PROVA DA REENCARNAÇÃO, 36

Q Z
ZAQUEU, 131
quaternário inferior, 32

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CARLOS TORRES PASTORINO
Diplomado em Filosofia e Teologia pelo Colégio Internacional S. A. M. Zacarias, em Roma – Professor
Catedrático no Colégio Militar do Rio de Janeiro e Docente no Colégio Pedro II do R. de Janeiro

SABEDORIA DO
EVANGELHO

7.º Volume

Publicação da revista mensal

SABEDORIA

RIO DE JANEIRO, 1970

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C. TORRES PASTORINO

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SABEDORIA DO EVANGELHO

A CAMINHO DE JERUSALÉM

Mat. 21:1-9 Marc. 11:1-10


1. E quando se aproximavam de Jerusalém e 1. E quando se aproximavam de Jerusalém, de
chegaram a Betfagé, ao monte das Olivei- Betfagé e de Betânia, perto do monte das
ras, então Jesus enviou dois discípulos, Oliveiras, envia dois de seus discípulos
2. dizendo-lhes: "Ide à aldeia que está diante 2. e diz-lhes: "Ide à aldeia que está diante de
de vós, e logo achareis uma jumenta presa e vós, e logo que entrardes nela achareis um
o jumentinho com ela; soltando(-os) trazei(- jumentinho preso, sobre o qual nenhum
os) a mim. homem jamais montou; soltai-o e trazei(-o).
3. E se alguém vos disser alguma coisa, dizei- 3. E se alguém vos disser: "Por que fazeis
lhe que o Senhor tem necessidade deles; isso"? Dizei: "O Senhor tem necessidade
mas os devolverá logo". dele, e logo o devolve de novo para cá".
4. Isso aconteceu para que se cumprisse o dito 4. E foram e acharam o jumentinho preso à
por meio do profeta, que disse: porta, do lado de fora, na rua, e o soltaram.
5. "Dizei à filha de Sião, eis que vem a ti teu 5. E alguns que lá estavam disseram-lhes:
rei manso e montado num jumento, num "que fazeis, soltando o jumentinho"?
jumentinho, filho de jumenta". 6. Eles falaram como lhes disse Jesus, e os dei-
6. Indo, pois, os discípulos e fazendo como lhes xaram.
ordenara Jesus, 7. E trazem o jumentinho a Jesus e colocam
7. trouxeram a jumenta e o jumentinho e colo- sobre ele seus mantos e o fizeram montar.
caram sobre eles as mantos e fizeram(-no) 8. E muitos estenderam na estrada seus man-
sentar sobre eles (sobre os mantos). tos, e outros, ramagens colhidas nos cam-
8. A grande multidão estendeu seus mantos na pos.
estrada, outros arrancavam ramos das ár- 9. E os que precediam e os que seguiam grita-
vores e os espalharam no caminho. vam: "Hosana!, Bendito o que vem em
9. As turbas que o precediam e as que o segui- nome do Senhor!
am gritavam, dizendo: "Hosana! Bendito o 10. Bendito o reino que vem de nosso pai Da-
que vem em nome do Senhor, hosana nas al- vid! Hosana nas alturas máximas"!
turas"!
Luc. 19:29-40 João 12:12-19
29. E aconteceu, como se aproximasse de Betfa- 12. No dia seguinte, a grande multidão vinda
gé e de Betânia, perto do monte chamado para a festa, ouvindo que Jesus vem a Jeru-
Olival, enviou dois de seus discípulos, salém,
30. dizendo: "Ide à aldeia em frente, entrando 13. apanhou ramos de palmeira e saiu a seu
na qual achareis um jumentinho amarrado, encontro e gritava: "Hosana! Bendito o que
sobre o qual nunca nenhum homem montou vem em nome do Senhor e o rei de Israel"!.
e soltando-o, trazei(-o). 14. Tendo Jesus achado um jumentinho, mon-
31. E se alguém vos perguntar: "Por que o sol- tou nele como está escrito:
tais"? Assim respondereis, que 15. "Não temas, filha de Sião, eis que vem teu
32. "O Senhor tem necessidade dele". Partindo rei montado num filho de jumenta".
os enviados, acharam como lhes dissera. 16. Isso não entenderam a princípio seus discí-
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C. TORRES PASTORINO

33. Soltando eles o jumentinho, disseram-lhe pulos, mas quando Jesus se transubstanci-
seus donos: "Por que soltais o jumenti- ou, então se lembraram de que isso estava
nho"? escrito sobre ele e, do que haviam feito.
34. Responderam que "O Senhor tem necessi- 17. Então a multidão que estava com ele, quan-
dade dele". do chamara Lázaro do túmulo e o desperta-
ra dos mortos, testemunhava.
35. E trouxeram-no a Jesus e colocando sobre
ele seus mantos, fizeram Jesus montar sobre 18. Por isso também saiu-lhe ao encontro a
o jumentinho. multidão, porque soubera ter ele feito o si-
nal.
36. Caminhando ele, estendiam seus mantos na
estrada. 19. Os fariseus, então, disseram entre si: "Vede,
não conseguis nada! Eis todo o mundo foi
37. Aproximando-se ele já da descida do monte
atrás dele"!
das Oliveiras, começou toda a multidão dos
discípulos a louvar jubilosa a Deus em alta
voz, a respeito de toda a força que viram,
38. dizendo: "Bendito o rei que vem em nome
do Senhor! Paz no céu e glória nas alturas
máximas"!
39. E alguns dos fariseus dentre a turba disse-
ram-lhe: "Mestre, modera teus discípulos".
40. E respondendo, falou: "Digo-vos que, se
estes silenciarem, as pedras gritarão".

Quando Jesus e Seus discípulos se aproximavam de Jerusalém, após a longa viagem em que atravessa-
ram a Galiléia, a Peréia, passando por Jericó, subindo o maciço da Judéia, atingindo Betânia, Betfagé e
o Monte das Oliveiras, dá-se a cena que acabamos de ler.
Interessante notar que a palavra Betfagé significa "casa dos figos verdes"; é derivada de Beith pa'gê
(por Beith Pa'gin, já que paggâh, paggim quer dizer "figo não-maduro"). A cidade de Betfagé é una-
nimemente identificada hoje com a aldeia de et-Tour.
Jesus envia dois de Seus discípulos, sem especificar quais, sabendo por antecedência o que encontrarão
e o que lhes será objetado.
Mateus anota que a cena é a realização da profecia que ele cita. A primeira frase: "Dizei à filha de Si-
ão" é de Isaías (62:11), que João transforma em "Não temas, filha de Sião", traído pela memória, mas
repetindo uma fórmula muito encontradiça no Antigo Testamento. O resto é tirado de Zacarias (9:9)
que escreveu: "eis que teu rei vem a ti; ele é justo e vitorioso, humilde e montado num jumento, num
jumentinho filho de jumentas" (al hamôr we al'air bén'athonôth). Mateus não se expressou bem em
grego, não reproduzindo corretamente o paralelismo poético do hebraico, e dá a impressão de que
Jesus montou na jumenta, da qual os outros dois sinópticos nada falam.
A anotação de Marcos e Lucas de que no jumento ninguém havia montado, era para significar que esse
animal estava apto a participar de uma cerimônia religiosa iniciática. Essa crença de que o animal, para
ser utilizado, não devia ter sido ainda subjugado, era comum aos hebreus (1) e aos romanos (2).
(1) "Fala aos filhos de Israel que te tragam uma novilha vermelha, perfeita, em que não haja defeito e
que ainda não tenha levado jugo" (Núm, 19:2); "Os anciãos tomarão da manada uma novilha que
ainda não tenha trabalhado nem tenha puxado com o jugo" (Deut. 21:3); "Tomai duas vacas pari-
das sobre as quais não tenha sido posto o jugo" (1.º Sam. 6:7).
(2) délige et intactas tótidem cervice juvencas, "escolhe também outras tantas novilhas intactos de
jugo" (Verg. Georg. 4, 540); Io, triumphe! tu moraris aureos / currus et intactas boves, "o, tri-
unfo! farás esperar os carros de ouro e, as novilhas virgens de jugo"? (Hor. Eped. 9,22); Bos tibi,

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Phoebus ait, solis occurret in arvis / nullum passa jugum curvique immunis aratri, "uma novi-
lha, diz Febo, se te apresentará nos campos solitários, que não sofreu nenhum jugo e imune do
curvo arada" (Ovid., Met. 3,10).

Figura “O JUMENTINHO” – Desenho de Bida, gravura de Henrietta Browne

Realmente acharam o jumentinho logo à entrada da aldeia (Betfagé) amarrado do lado de fora da porta,
na rua e, sem mais aquela, começaram a soltá-lo. Protestos erguem-se, naturalmente, da parte dos do-
nos. Mas a frase típica: "O Mestre tem necessidade deles e logo os restituirá", tranquiliza-os. A cena
supõe conhecimento do Mestre por parte dos donos do jumento, coisa viável em lugar pequeno; não há
necessidade de recorrer-se a "milagre".

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C. TORRES PASTORINO

A frase "os discípulos colocaram seus mantos sobre eles" exprime que realmente isso pode ter sido
feito, cobrindo-se os dois animais; mas o resto: "e fizeram Jesus montar sobre eles", não se refere aos
dois animais, mas aos mantos colocados sobre o jumentinho.
Esse fato descreve hábito comum no oriente, quando o animal não está selado: o manto amaciava a
dureza da espinha do animal. Também o fato de estender pelo chão da estrada os mantos já é citado em
2.º Reis (9:12-13), após a unção de Jeú como rei.
Os discípulos não entenderam bem o que se passava. Só mais tarde ligaram os fatos à cena a que assis-
tiam, di-lo João.
Mas não deixaram de entusiasmar-se e dar "vivas", juntamente com a pequena multidão que se for-
mou. Hosana é uma exclamação de alegria, correspondendo exatamente ao nosso "viva"! Já aparece
no Salmo 119:25, recitado por ocasião da festa da páscoa e em toda a oitava da festa dos Tabernáculos.
O sétimo dia dessa festa era dito "dia dos hosanas" (hosanna rabba).
A frase "Bendito o que vem em nome do Senhor é do Salmo 118:26, que faz parte do hallel (salmos
recitados durante a páscoa).
Assim discípulos e peregrinos constituíam pequeno coro jubiloso, ladeando Jesus, que seguia montado
no jumentinho.

Começa a grande jornada, descrita com pormenores, da iniciação a que Se submeteu Jesus.
João, com sua agudeza crítica, começa a levantar o véu de tudo o que se vai passar, com aquela frase
simples, mas profundamente reveladora: "a princípio Seus discípulos não entenderam isso; mas quan-
do Jesus se transubstanciou (doxázâ, vol. 4), então se lembraram de que isso estava escrito sobre ele e
do que havia sido feito". Ora, o evangelista não diz "nesse momento eles não entenderam", mas sim "a
princípio", o que denota que só bastante tempo depois, e "quando Jesus se transubstanciou" é que
conseguiram compreender. As traduções correntes trazem: "quando foi glorificado". Mas quando é
que Jesus foi glorificado na Terra? A transubstanciação, sim, houve, após a ressurreição e a chamada
"ascensão", que estudaremos a seu tempo. Mas fixemos que só então os discípulos compreenderam o
sentido dessa entrada em Jerusalém montado num jumentinho que jamais recebera jugo.
Hoje, após a transubstanciação, é fácil deduzir as razões do fato.
O Espírito (Jesus, a Individualidade) vai submeter-se à iniciação maior na cidade-santa. O Sacerdote-
Vítima caminha para o altar do holocausto, onde será imolado qual "cordeiro pascal", sem mancha,
sem defeito. Mas só a parte animal de seu ser poderá submeter-se ao sacrifício. Preciso é, pois, que
haja um símbolo, demonstrando que essa parte animal (Seus veículos físicos, que sofrerão o holo-
causto), estava intata, imune do jugo de qualquer imperfeição. O símbolo foi o jumentinho, sobre que
nenhum ser humano tivera domínio.
Além disso releva notar o simbolismo esotérico do ato em si. Tinha que ficar patenteado por um ato
externo, que a criatura só pode pretender submeter-se às provas do quinto grau iniciático, quando
tiver dominado TOTAL-mente a personalidade animal. E o símbolo escolhido é perfeito: Jesus monta
sobre o jumento, dominando-o e subjugando-o totalmente, e recebendo por isso a consagração e as
"palmas" da vitória.
Esta é a única vez que lemos ter Jesus montado num animal: no momento supremo em que Se dirigia
ao Santuário para imolar-Se, conquistando o grau de "Sumo Sacerdote segundo a Ordem de Melqui-
sedec", conforme lemos: "Ele, nos dias de sua carne (durante Sua vida física) tendo oferecido preces e
súplicas com forte clamor e lágrimas ao Que podia libertá-lo da morte, e tendo sido ouvido por Sua
reverência, aprendeu, embora fosse Filho, a obediência, por meio das coisas que sofreu (martírios e
crucificação) e, por se ter aperfeiçoado (recebendo o grau da iniciação maior), tornou-se autor da
libertação para este eon de todos os que a Ele obedecem, sendo por isso chamado por Deus SUMO
SACERDOTE DA ORDEM DE MELQUISEDEC" (Hebr. 5:7-10).

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Figura “ENTRADA EM JERUSALÉM” – Desenho de Gustavo Doré, gravura de ª Demarle

Toda a alegria e festa popular não penetraram no imo do coração do Mestre, que continuava triste,
chegando a chorar pelo que antevia dever suceder a Jerusalém (vê-lo-emos dentro em pouco). Sabia
que todos endeusavam a personagem transitória, e que os gritos de alegria eram apenas exteriorida-
des emotivas: aqueles mesmos gritariam, dias mais tarde, "mata-o, crucifica-o"!
Assim, qualquer criatura que tiver em torno de si multidões ululantes de alegria, endeusadores contu-
mazes a bater palmas, feche seus olhos e mergulhe dentro de si mesma. As demonstrações de entusi-
asmo provocam a queda daqueles que vivem ainda voltados para fora, a procurar com os olhos a
aprovação dos homens e a buscar o maior número de seguidores. Trata-se de uma das provações mais
árduas e difíceis de vencer. Os elogios embriagam mais que o vinho, dão mais vertigens que as alturas
e jogam no abismo mais rápido que as avalanchas. E isso porque, na realidade, os elogios emotivos
trazem ondas torrentosas de fluidos pesados, que derrubam no precipício da vaidade todos aqueles
que os recebem com a mesma sintoma de emotividade satisfeita. Quantos vimos cair, ruindo por causa
dos elogios!

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C. TORRES PASTORINO

Jesus, o modelo da Individualidade, já estava imune aos gritos louvaminheiros. Não obstante, não os
impede, não os proíbe; não repreende a multidão, como queriam que o fizesse os fariseus: "modera-
os"! Não adiantaria, responde Jesus tranquilo e frio: as próprias pedras gritariam"!
Como? E por que? Hipérbole, não há dúvida, bem no estilo oriental. Todavia, o plano astral naquela
região e naqueles dias devia estar vibrante de expectativa. E sendo o povo judeu, como sempre ficou
demonstrado através dos séculos, altamente sensitivo, com a mediunidade à flor da pele, não há dúvi-
da de que a manifestação dos desencarnados deve ter influído fortemente os encarnados. Para o Mes-
tre, que percebia o plano astral e sua vibração e agitação inusitados, devia ter-se afigurado que, se os
seres animados fossem impedidos de manifestar os desencarnados e elementais, os próprios seres ina-
nimados saltariam rumorosamente de alegria.
Mas o exemplo é precioso para todos nós, sobretudo em certas fases de nossa vida, quando um grupo
de criaturas, voluntariamente ou não, com consciência do que estão fazendo ou não, se reúne em re-
dor de nós com a intenção de derrubar-nos. E para consegui-lo mais fácil e rapidamente, usa o me-
lhor instrumento de sapa que pode existir na Terra: o elogio.
É mister compreender que a personagem transitória nada vale, porque passa apenas alguns minutos
na Terra. Só o Espírito eterno é que conta. E ele não é afetado por esse gênero de encômios baru-
lhentos: o único aplauso que aceita é o da própria consciência, segura de que está cumprindo seu
dever.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

DESTRUIÇÃO DE JERUSALÉM
Luc. 19:41-44
41. E como se aproximasse, vendo a cidade, chorou sobre ela,
42. dizendo: "Se soubesses, neste dia, também tu os (caminhos) para a paz! Mas agora
(isto) foi escondido a teus olhos.
43. Pois virão dias sobre ti em que teus inimigos te cavarão fossos, te cercarão de trin-
cheiras e te comprimirão de todos os lados,
44. e derrubarão a ti e a teus filhos em ti, e não deixarão em ti pedra sobre pedra, porque
não percebeste o momento de tua inspeção".

Jesus estava ainda no monte das Oliveiras, a uma altura de 810 m do nível do Mediterrâneo, 60 m aci-
ma da esplanada do templo, podendo ver todo o movimento intenso daqueles dias festivos da páscoa.
O panorama mostrava, no primeiro plano, o vale de Cedron e Getsêmani, Jerusalém com seu templo
majestoso; ao sul via-se Belém, a cidade de David, sede da antiga escola de profetas: ao norte a Sama-
ria e o monte Garizim; a leste o vale do Jordão, o mar Morto e, para além, os montes Moab e Galaad.
No monte das Oliveiras Salomão ergueu altares a Ashtoreth, Chemosh, Molcch e Milcom cfr. 1.º Reis
11:7 e 2.º Reis, 23:13). Foi, por isso, chamado monte da perdição, da corrupção ou do escândalo. No
Novo Testamento foi testemunha da entrada triunfal em Jerusalém, do discurso sobre a destruição do
templo e sobre o fim do ciclo, da agonia e da paixão de Jesus dos últimos ensinamentos após a ressur-
reição e da "ascensão".
Ao voltar-se, no jumentinho, para dirigir-se à cidade, Jesus olhou a imponência dourada do templo e
sentiu sua psiquê comover-se, ao antever o que ocorreria anos mais tarde: o drama da massa de seus
habitantes e das autoridades aí residentes. Anteviu o cerco que sofreria daí a quarenta anos e sua des-
truição total por obra de seus dominadores. E lamenta que não perceba o "momento de sua inspeção".
As traduções correntes traduzem episkopês por "visitação". Preferimos apresentar o sentido etimológi-
co: epí - "sobre"; e skopês - "vista", ou seja, inspeção.
Alguns racionalistas alegaram que Lucas escreveu a posterióri, e por isso foi preciso em certos porme-
nores. Mas se o tivesse feito, teria silenciado o caso mais espetacular, que foi o total incêndio do tem-
plo, com o ouro do revestimento a correr em cachoeiras?
Todos os comentadores, nestes dois milênios, salientaram, neste trecho, a VINGANÇA de Deus, que
fez destruir Jerusalém porque não recebeu, não ouviu, não compreendeu, Jesus e o crucificou ... Jamais
poderíamos aceitar um deus que fosse vingativo, pois refletiria uma das piores e mais baixas caracte-
rísticas dos seres involuídos. Como podem mentes espiritualmente esclarecidas admitir tais barbarida-
des?

Toda a angústia dos corações dirigentes dos setores humanos reside na verificação de que as criatu-
ras não respondem ao chamado insistente para evoluir, nem mesmo nos momentos supremos em que
os grandes Avatares chegam pessoalmente, para observar ("inspecionar") e estudar qual o melhor
remédio para ser aplicado ao grupo. A simples presença física do Mensageiro, com Sua poderosa
vibração espiritual, é suficiente para atrair e modificar os que estão à altura de perceber. Mas, como
escreveu Emmanuel, "para despertar um passarinho basta um silencioso raio de sol, enquanto para
acordar uma rocha torna-se necessária a dinamite".

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C. TORRES PASTORINO

A dor que causa ao pai ou à mãe a necessidade de realizar uma operação cirúrgica num filho querido
é ainda menor que a sofrida por Jesus, quando verificou as operações cirúrgicas violentíssimas indis-
pensáveis para curar aqueles corações empedernidos.
Feita a verificação que Lhe motiva tristeza e chega a arrancar-Lhe lágrimas, deixará que a história,
em seu desenvolvimento normal, venha a agir na correção necessária. Se fora o mesquinho sentimento
de vingança, por que esperar quarenta anos, quando outra geração estaria no apogeu, e não aquela
que havia condenado Jesus? A ação teria que ter sido imediata, para que se visse a relação de causa a
efeito. Mas os Espíritos Superiores, que nos mandam perdoar setenta vezes sete, já aprenderam essa
lição, e são incapazes de vinganças rasteiras.
Se nosso filho faz uma traquinagem e cai, quebrando uma perna, providenciamos o engessamento
durante os dias necessários à cura, talvez prendendo-o no leito. Chamaremos a isso vingança? Ou
haverá qualquer laivo de vingança em nós? "Se nós, sendo maus, sabemos dar boas dádivas a nossos
filhos, quanto mais o Pai celestial" (cfr. Luc. 11:13).
Jesus, o Médico por excelência, anteviu o remédio amargo e doloroso necessário para que aquele
povo se modificasse, e compreendeu que a cura seria longa. Por isso, lamenta profundamente o que
ocorrerá.
Aplicando a nós mesmos a lição, vemos que a "cidade" constituída por nossa personagem ainda re-
belde, causa sofrimento ao Espírito, ao verificar ele que nosso intelecto não aceita suas inspirações
evidentes, seus apelos continuados, seus "gemidos inenarráveis" (Rom. 8:26); o Espírito, (nós a indi-
vidualidade) antevê as dores que advirão para a personagem nesta e em próximas vidas, repercutindo
sobre si mesmo, tal como os sofrimentos da humanidade necessariamente repercutem sobre Jesus,
cujo Espírito está para a humanidade terrena, assim como nosso espírito está para os órgãos e células
de nosso corpo, tanto no plano astral como no físico.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

NA CIDADE
NA CIDADE
Mat. 21:10-11 Marc. 21:14-11

10. E entrando ele em Jerusalém, agitou-se toda 14. E foram a ele cegos e coxos no templo, e
a cidade, dizendo: "quem é este"? curou-os.
11. E as turbas diziam: este é o profeta Jesus, o 15. Vendo os principais sacerdotes e escribas as
de Nazaré da Galiléia. maravilhas que fez e os meninos que grita-
vam no templo, dizendo: Hosana ao Filho
de David, indignaram-se
Luc. 11:11
16. e disseram-lhe: "ouves o que estes dizem"?
Jesus disse-lhes: "sim; nunca lestes que da
11. E foi a Jerusalém, ao templo, e olhando boca dos pequeninos e bebês conseguirei
tudo em torno, por já serem as horas avan- louvor"?
çadas, saiu para Betânia com os doze. 17. E tendo-os deixado, saiu da cidade para
Betânia e aí pernoitou.

Já dentro da cidade, nota-se desusada agitação entre os peregrinos. Muitos já conheciam aquele Rabbi
que jamais cursara academias mas que era sábio e falava com autoridade maior que a dos doutores,
respondendo a todas as perguntas e embaraçando com suas o sacerdócio organizado, escandalizando o
clero, desrespeitando os padres, afrontando as autoridades políticas dos judeus, embora nunca tivesse
atacado os romanos dominadores. Muitos dos peregrinos, contudo, nada sabiam dele. Tinham vindo de
longe, de outras terras, para a festa da páscoa e não estavam a par do que Se passava na Palestina.
Tudo era novidade ansiosamente perquirida.
Como, porém, o Rabbi da Galiléia era o assunto central de todas as conversas, tendo sua cabeça já
condenada pelo Sinédrio, vinham aos poucos a saber dos fatos, geralmente ampliados como de hábito.
E quando batiam os olhos naquela figura estranha, mais alta que o comum dos judeus (Jesus media
1,82 m de altura, quando a média dos judeus era entre 1,60 me 1,70 m) perguntavam curiosos "quem
era". A informação vinha das turbas, da massa do povo: "é o profeta Jesus, aquele célebre de Nazaré
da Galiléia" de que tanto se fala.
Entrando no templo onde a afluência dos enfermos (cegos e coxos) era grande - a ocasião era propícia
para esmolar, pois os peregrinos sempre gostam de "comprar" a benevolência da Divindade com dádi-
vas a pobres - as curas multiplicavam-se. E, pior de tudo, as crianças, que tinham ouvido na véspera os
gritos alegres dos discípulos e do povo, repetiam na balbúrdia própria da infância e na inspiração da
inocência: "hosana! Viva o Filho de David"! E isto no templo!
Ora, o clero judeu, como todos os cleros ciosos de suas prerrogativas que julgam divinas, não se con-
teve ... E como temiam os protestos diretos perante os garotos, que bem podiam voltar-se contra eles
em assuadas e zombarias, vão ao responsável, pedindo-lhe que ele mesmo os faça calar.
À pergunta ingênua e tola: "ouves os que eles estão dizendo"? Jesus tranquilo responde; "NAI, isto é,
SIM, ouço ... E para fazer calar os sacerdotes - não as crianças - joga-lhes em cima a frase do Salmo
(8:2). Nada mais tinham que fazer ali: perplexos, mordiam-se os lábios de raiva ...
E Jesus, simples e majestoso, sem apressar o passo, dá-lhes as costas e sai, juntamente com Seus discí-
pulos, indo pernoitar em casa de Seus amigos queridos em Betânia.
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C. TORRES PASTORINO

Observemos que Jesus entra na cidade, dirige-se ao templo e espalha benefícios por onde passa, ar-
rostando o perigo de alma forte. Não provoca ninguém. Mas também não abaixa a cabeça diante dos
poderosos que O querem dominar. Humilde e bom diante dos pequenos, dos fracos, dos enfermos,
revela-se altivo e com respostas prontas, muitas vezes mordazes e que tonteiam, quando defrontado
pelos que se julgam autoridades e estão cheios de empáfia: "Deus resiste aos soberbos, mas é bene-
volente com os humildes" (1 Pe. 5:5 e Tiago, 4:6) e ainda: "depõe os poderosos de seu trono e exalta
os humildes" (Luc. 1:52).
O exemplo tem que valer para todos os que Lhe seguem os passos. Humildade não é sinônimo de co-
vardia. Ao contrário: é saber servir a quem merece, mas também saber "dar o troco na mesma moe-
da" a quem injusta e deslealmente queira prejudicar a obra. Em muitas ocasiões os primeiros cristãos
demonstraram que haviam apreendido o espírito da lição e dos exemplos de Jesus e, talvez por esta-
rem Dele mais próximos no tempo, assimilaram-Lhe melhor o ensino. Hoje é que "cristão" passou, em
muitos casos, a significar covardia diante dos que "podem matar o corpo, embora não tenham poder
de perder a alma" (Mat. 10:28). Então, olhamos entristecidos as acomodações que se fazem para
"salvar a vida" transitória e fugitiva da matéria. Onde estariam as TESTEMUNHAS ("mártires") do
Mestre, se Ele tivesse pregado hoje? Prudência, sim. Medo, não. Respeito, sim. Covardia, não. Hu-
mildade, sim. Subserviência, não.
Caminhemos altaneiros e firmes, acompanhando os passos do Mestre e se, com isso, tivermos a ventu-
ra de sofrer prisões, pancadas e morte, não tenhamos receio: o Espírito é imortal e novamente voltará
à matéria, para continuar sua trajetória gloriosa, que nenhuma força e nenhum poder humano são
capazes de deter, assim como todo o poderio do judaísmo e do império romano não detiveram o cris-
tianismo.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

A FIGUEIRA SEM FRUTO

Mat. 21:18-19 Marc. 11:12-14

18. De manhã, voltando à cidade, teve fome. 12. No dia seguinte, saindo eles de Betânia, teve
19. E vendo uma figueira à beira da estrada, foi fome.
a ela e não achou nela senão somente folhas 13. E vendo ao longe uma figueira que tinha
e disse-lhe: "Nunca de ti nasça fruto no folhas, foi (ver) se acaso achava nela (algo)
eon". E instantaneamente secou a figueira. e, aproximando-se dela, nada achou senão
folhas, pois não era tempo de figos.
14. E respondendo, disse-lhe: "Nunca neste eon
de ti ninguém coma fruto". E ouviram(-no)
seus discípulos.

O episódio é narrado por Mateus e Marcos que coincidem em alguns pormenores, diferindo em outros.
Analisemos.
1 - Dizem ambos que, "saindo de manhã de Betânia para voltar à cidade, Jesus teve fome".
Há várias objeções muito sérias. Teria Marta, tão completa dona-de-casa que seu próprio nome tem
esse significado, teria ela permitido que o Mestre saísse de sua casa onde se hospedava sem tomar o de
jejum? O ar matinal provocou a fome? Mas por andar distância tão pequena, logo ao sair de Betânia,
diante de Betfagé? Não convence ...
2 - Jesus viu "à beira da estrada uma figueira". Só tinha folhas. Jesus "foi ver se achava algo para co-
mer". Mas como poderia fazê-lo, se em abril não era época de figos, como bem anota Marcos? Será
que Jesus ignorava o que todos sabiam, até as crianças?
3 - Jesus afinal, decepcionado, amaldiçoa a figueira. Mateus adianta o final do episódio (que Marcos
deixa em suspenso para o dia seguinte) e faz que a figueira "seque instantaneamente".
Algumas considerações.
Os figos-flor começam a aparecer, na Palestina, em fins de fevereiro, antes das folhas, mas só amadu-
recem em fins de junho. No entanto, na figueira selvagem ("figueira braba") apesar de brotarem nor-
malmente as flores, elas secam e caem antes de amadurecer. Vemos, então, claramente, que não era
"culpa" da figueira o fato de não ter frutos ...
Vejamos alguns comentaristas o que dizem.
João Crisóstomo (Patrol. Graeca, vol. 58, col. 633/4), depois de classificar a exigência de Jesus de
encontrar frutos de "exigência tola", por não ser estação de figos, afirma que a maldição da figueira foi
apenas para conquistar a confiança dos discípulos em Seu poder: era um símbolo de "Seu ilimitado
poder vingativo" (!).
Jerônimo (Patrol. Lat. vol. 26, col. 153) diz que "o Senhor, que ia sofrer aos olhos de todos e carregar
o escândalo de Sua cruz, precisava fortalecer o ânimo de Seus discípulos com Este sinal antecipado".

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Figura “LIÇÃO DA FIGUEIRA” – Desenho de Bida, gravura de J. Veyssarat

Outros dizem que não queria figos, mas dar uma lição aos discípulos. Outros que se trata de uma "pa-
rábola de ação", bastante comum entre os profetas (1).
(1) Isaías durante três anos andou nu e descalço para profetizar o cativeiro assírio (Is. 23:1-6); Jere-
mias enterra seu cinto e o desenterra já podre (Jer. 13:1-11); ele mesmo quebra uma botija de
barro (Jer. 19:1, 2, 10) e pendura brochas e canzis ao pescoço (Jer. 27:1-11 ); Ezequiel desenha a
cidade de Jerusalém num tijolo e constrói fortificações em torno dele (Tz. 4:1-8); corta a barba e o

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SABEDORIA DO EVANGELHO

cabelo e queima-os (Ez. 5:1-3); depois se muda com todos os seus móveis, para que todos vejam
que vão ter que sair de casa (Ez. 12:3-7).

Quando as contradições ou os absurdos são evidentes, trata-se de símbolos e não, realmente, de fatos.
Ponderemos com lógica. Causaria boa impressão aos discípulos uma injustiça flagrante do Mestre, ao
condenar, por não ter frutos, uma figueira que não podia ter frutos? A demonstração de poder não
teria sido, ao mesmo tempo, um exemplo de atrabiliário despotismo, além de injusto, desequilibrado e
infantil? Que lucro adviria para Jesus e para os discípulos, por meio de uma ação intempestiva e de
tamanho ridículo?
Não, não é possível aceitar o fato como ocorrido. Houve, realmente, uma lição. E por que foi escolhi-
do o símbolo da figueira sem figos, ou com figos ainda verdes, porque estavam em abril?
Observemos que, ao sair de Betânia para Jerusalém, a primeira aldeia que "tinham à frente;" era BE-
TFAGÉ, que significa, precisamente, "CASA DOS FIGOS NÃO-MADUROS"! ...
Ora, ao sair de Betânia, a conversa do caminho girou em torno do poder daquele que mantém fideli-
dade absoluta e inalterável ao Pai, a Deus, ao Espírito. Daí a lição destacar a capacidade de a cria-
tura dominar os elementos da natureza com o poder mental. E o exemplo é apresentado ao vivo: se,
quiserem, poderão fazer secar até as raízes, ou fazer crescer rapidamente, uma árvore, e poderão até
mesmo erradicar montanhas, como veremos pouco adiante. Se fora apenas para "demonstrar poder",
seria muito mais didático e lógico que Jesus fizesse a figueira sem frutos frutificar e produzir de ime-
diato figos maduros! ...
Há, pois, evidentemente, profunda ligação entre a figueira sem figos e o nome da aldeia de Betfagé, o
que vem explicar-nos a "motivação" da aula.
* * *
Quanto ao ensinamento em si que poderemos entender dessas poucas linhas que resumem, como con-
clusão, uma conversa que se estendeu por dois quilômetros e meio? Trata-se, é claro, de uma conclu-
são, e dela teremos que partir para deduzir pelo menos os pontos essenciais da mesma.
Façamos algumas tentativas.
Quando o Espírito necessita colher experiências por meio de uma personagem que esteja sendo vivifi-
cada ou animada por ele, e essa personagem não corresponde em absoluto, não produzindo os frutos,
mas apenas as folhas inúteis das aparências, o único remédio que resta ao Espírito, para que não per-
ca seu tempo, é secar ou cortar a ligação, avisando, desde logo que, naquele eon, naquela "vida",
ninguém mais aproveitará dela qualquer resultado positivo.
Cabe à personalidade aceitar os estímulos do Espírito e produzir frutos, seja ou não "época" de fazê-
los. O Espírito precisa avançar, e temos por obrigação corresponder à sua expectativa, sem exigir
épocas especiais. Taí como o médico deixa a refeição sobre a mesa ou sai do aconchego do leito a
qualquer hora e com qualquer tempo para atender a chamados urgentes, assim o cristão tem que pas-
sar por cima de tudo; abandonando conforto, amores, amizades, comodismos, riquezas, vantagens,
para obedecer incontinenti aos apelos do Espírito, que não obriga, mas convida e pede e solicita "com
gemidos inenarráveis" (Rom. 8:26). Se o não fizermos, não desencarnaremos instantaneamente, mas
secaremos até as raízes as ligações com a Espiritualidade Superior, que verifica não poder contar
conosco nessa existência pelo menos. Mais à frente veremos uma parábola, a dos dois filhos, que vem
ilustrar o que acabamos de afirmar. Comentá-la-emos a seu tempo.
Assim compreendemos algumas das expressões empregadas na conclusão da lição evangélica e que,
no sentido literal, são incompreensíveis, por absurdas. Jesus "teve fome", ou seja, quando a Individu-
alidade manifesta alguma necessidade vital; "vê uma figueira com folhas", isto é, uma personagem
com possibilidades; "vai ver se encontra frutos", vai verificar se pode aproveitá-la para o serviço.
Nada encontra, porque a desculpa é exatamente "não tenho tempo" ... "não é minha hora" ... "não está
ainda na época - preciso gozar a mocidade, aposentar-me, esperar enviuvar ... mais tarde"! ...

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O que falta, em realidade, é amor e boa-vontade, porque não há "horas" para evoluir. O progresso é
obrigação de todos os minutos-segundos, e não se condiciona a "estações" nem "épocas". Lógico que,
diante da falta de disposição, tem que vir a condenação. Não é, propriamente, a "maldição". Trata-se
do verbo kataráomai, depoente, composto de katá, "para baixo" e aráomai, "orar", já que ará é "ora-
ção". Essa condenação ou execração é introduzida pelo advérbio mêkéti, que exprime apenas "não
mais". Não é, pois, uma proibição para a eternidade, mas uma verificação, tanto que o tempo empre-
gado é o subjuntivo, e não o imperativo nem o optativo. Portanto, o Espírito diz, em outros termos:
"de agora em diante, percam-se as esperanças de obter fruto de ti nesta encarnação".
A lição portanto é lógica e oportuna. Abramos os olhos enquanto é tempo!

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ENSINO NO TEMPLO

Marc. 11:18-19 Luc. 19:47-48 Luc. 21:37-38

18. Os principais sacerdotes e 47. E todas os dias estava ensi- 37. Estava todos dias ensinan-
escribas ouviram isso e nando no templo. Mas os do no templo e saindo, às
procuravam um modo de principais sacerdotes, e os noites, pernoitava no monte
matá-lo; pois o temiam, já escribas, e os anciãos do chamada Olival.
que todo o povo se admira- povo procuravam matá-lo. 38. E todo o povo madrugava
va de seu ensino. 48. E não achavam o meio de junto dele, no templo, para
19. E logo que chegou a tarde, fazê-lo, porque o povo todo ouvi-lo.
saíram da cidade. se fascinava ao ouvi-lo.

Estes três pequenos trechos dão-nos conta das atividades de Jesus durante a semana da Páscoa.
Muitos comentadores estranham o que se encontra referido nas narrativas evangélicas, como realizado
nos seis dias que vão de domingo, quando entra triunfalmente em Jerusalém, até a sexta-feira, em que
foi crucificado. Tantos são os episódios, os discursos, as atividades que, de fato, dificilmente poderiam
caber em seis dias. Baste dizer que levaremos provavelmente dois volumes para comentá-los. No en-
tanto, como grande parte do ensino traz em si o simbolismo, acreditamos que houve alguma razão para
essa aglomeração de acontecimentos. Não apresentamos, neste local, nenhuma hipótese para decifra-
ção dessa dúvida. O que for aparecendo, iremos gradativamente comentando.
Dizem-nos, pois, os trechos que Jesus durante o dia ensinava no Templo, e "às noites pernoitava no
monte chamado Olival", embora já tenhamos lido que, também, se dirigia a Betânia.
O Monte das Oliveiras ficava entre Jerusalém e Betânia. Mas Jesus não estava só: seguiam-No os doze
e mais as mulheres, que não abandonavam a comitiva. Será que todos dormiam ao relento, quando tão
perto havia um lar com acomodações para todos? Esse tipo de perguntas está fadado a ficar sem res-
posta.
O fato é que as "autoridades" haviam resolvido (vol. 5) matá-Lo, para que lhes não perturbasse a vida;
era melhor para salvação de todos que Ele fosse riscado na face da Terra. Assim poderia permanecer o
statu quo, sem quaisquer contratempos políticos.
Mas matá-Lo à vista de todos poderia provocar uma rebelião na massa que adorava ouví-Lo. Busca-
vam, então, um modo de conseguí-lo às ocultas. E o descobrirão, como veremos, dando até a esse sa-
crifício o caracter de castigo a um criminoso.
O verbo "madrugava (orthrízein) é hápax no Novo Testamento, embora seja frequente seu emprego
nos LXX. Releva salientar que alguns manuscritos (13, 69, 124, 346 e 566) colocam, após o vs. 38, o
episódio da "adúltera" (João, 7:53 a 8;11), talvez influenciados pelo verbo "madrugar".

Algumas palavras, apenas, para salientar o modo de agir das criaturas no Anti-Sistema.
As autoridades - religiosas, civis ou militares que se encontram momentaneamente no ápice da vida
social ou política, sempre se acreditam os donos da situação e os únicos competentes para governar,
julgando os que estão abaixo coma inimigos potenciais que, se subirem, ocasionarão a desgraça do
país (embora só causem a deles próprios pessoalmente). Dessa forma, qualquer pessoa ou entidade

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que lance idéias diferentes ou até mesmo que apenas conquiste crédito e força perante a massa popu-
lar, já de antemão está condenada como inimiga pública merecedora de ser combatida.

Figura “ORAÇÃO NO MONTE” – Desenho de Bida, gravura de L. Flameng

Foi sempre assim em todos os setores. Na antiguidade, o meio de acabar com esses líderes que, per-
manecendo fora do grupo governamental, subiam no conceito popular, era a morte: eliminados, ces-
sava o perigo. Atualmente outros são os processos utilizados. Um dos mais correntes é o silêncio, pois
quanto mais deles se falar, maior é a propaganda. Outro meio de largo emprego é a difamação, em-
bora para isso se inventem calúnias.
De qualquer forma, porém, TÊM QUE SER DESTRUÍDOS, para salvar os homens que ocupam os
postos chaves.
Como lição para nosso aproveitamento, temos a alternância do trabalho, durante as horas do dia, a
serviço das multidões, com o período de oração contemplativa nas horas silenciosas da noite, com a
elevação espiritual na paz da meditação, simbolizada pela expressão monte (elevação) das Oliveiras
(da paz).
Sendo, entretanto, tão necessitada a humanidade, o serviço deve começar bem cedo (madrugada) no
local de nosso trabalho, que deve constituir, qualquer que seja ele, um templo de amor e dedicação.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

A FIGUEIRA SECA

Mat. 21:20-22 Marc. 11:20-24 Luc. 17:5-6

20. E vendo-o, os discípulos 20. E passando de manhã, vi- 5. E os emissários disseram ao


admiravam-se, dizendo: ram a figueira seca desde a Senhor: "Aumenta nossa
como secou repentinamente raiz. fidelidade”!
a figueira? 21. E recordando-se, Pedro 6. Disse então o Senhor: "Se
21. Respondendo, Jesus disse- disse-lhe: "Rabbi, olha a fi- tendes fidelidade como um
lhes: "Em verdade vos gueira que condenaste, se- grão de mostarda, diríeis a
digo, se tiverdes fidelidade cou"! este sicômoro: desarraiga-
e não hesitardes, fareis não 22. E respondendo Jesus disse- te e planta-te no mar; e ele
só isto da figueira; mas se vos teria obedecido".
lhes: "Se tendes fidelidade
disserdes a esse monte: de- a Deus,
sarraiga-te e lança-te ao
mar, far-se-á. 23. em verdade vos digo, que
quem quer que diga a esse
22. E tudo quanto, tendo fide- monte: desarraiga-te e lan-
lidade, pedirdes na oração, ça-te ao mar, e não hesitar
recebereis". em seu coração, mas confi-
ar que se faz o que diz, as-
sim será.
24. Por isso digo-vos: tudo
quanto orardes e pedirdes,
confiai que (já) recebestes,
e ser-vos-á (feito)".

Marcos coloca a comprovação da figueira que secou nas palavras de Pedro, que o observa na manhã de
terça-feira.
O fato em si, já o vimos, não importa: vale a lição, cujas conclusões foram anotadas pelos evangelistas.
A fidelidade (pístis) é essencial. Assim como a certeza intelectual de que o que se quer se realizará.
Não pode haver hesitação nem dúvida, nem no intelecto (confiar) nem no coração (fidelidade da união
com o Eu Real).
De fato diakrithête exprime, literalmente, "julgar dentro de si", ou seja, ficar pensando se poderá con-
seguir-se ou não, calculando as possibilidades e probabilidades, e agir com uma ponta de desconfiança
intelectual.
Observemos, no entanto, que a prece não conhece limites: "TUDO QUANTO PEDIRDES" (pánta
ósa). Todavia, é necessário ter uma certeza absoluta, como "se já tivéssemos recebido o que pedimos":
temos que considerar o fato consumado; agir com a convicção plena de já ter o que queremos.
Em Lucas não se fala do episódio da figueira. Mas a resposta de Jesus por ele citada, em esclareci-
mento do pedido dos emissários, lembra o fato, tanto mais porque não se fala em "montanha", mas em
"sicômoro" (sykáminos) que, como vimos, é palavra composta de figueira (syké). O encadeamento da

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frase torna-se, até, mais lógico: falando de árvore, cabe mais o termo "desarraiga-te (ekrizóthéte) e
planta-te no mar; e ele vos teria obedecido".
Pode parecer, em português, que haja solecismo violento no texto de Lucas. No entanto, quisemos
manter os tempos do original grego, que dá a seguinte construção: "Se TENDES fidelidade (condição
real: ei échete), DIRIEIS (condição possível no presente: elégete án) a este sicômoro desarraiga-te e
planta no mar. e ele vos TERIA OBEDECIDO (condição possível no futuro: hypêkousen án).

A lição dirige-se, aos iniciados mais avançados da Assembléia do Caminho. Aos outros, tudo parecia
um sonho. Eram palavras bonitas, mas esperanças vãs. Ora, quando jamais se poderia conseguir, com
a mente, destacar do solo uma montanha e lançá-la ao mar? Consolo e animação para a humanidade,
com uma esperança impossível ...
A humanidade acha-se ainda no ciclo da lagarta feia e pesadona, colada às folhas. Se alguém lhe dis-
ser que um dia se tornará leve e multicolorida borboleta, levantará os "ombros" e dirá em seu cora-
ção: "lérias"!
Mas alguns daquele grupo, (e alguns de outros grupos atuais), já sabiam, por havê-lo visto, que breve
seriam borboletas. E alguns já haviam sabido, através dos ensinos ministrados nos círculos "secretos"
da Assembléia (ekklêsía) que a força mental segura e bem dirigida, pode obter coisas assombrosas
mesmo na parte material. Talvez tivessem ouvido falar no que aconteceu com as pirâmides do Egito e
do Peru, na época dos grandes Iniciados Atlantes. Sem dúvida tinham conhecimento da ação daqueles
que são chamados Devas no oriente, e anjos no ocidente, quando ativos, no governo da natureza.
Como fazem a acomodação dos solos, como provocam a libertação de gases incandescentes sob a
forma de vulcões, como armam as tempestades para purificar a atmosfera, como conseguem afundar e
reerguer continentes nos oceanos encapelados, como dominam águas, ventos e eletricidade. De certo
fora-lhes explicado que tudo obedece a ordens mentais de extraordinária força, pois os próprios uni-
versos em manifestação constituem indiscutivelmente a projeção mental (o Pensamento) do ser a que
vulgarmente denominamos "Deus".
Ora, como Centelhas e partículas dessa mesma Divindade que se fragmentou em sem-número de
criaturas atualmente também já pensantes e, portanto, com a mesma capacidade mental, embora finita
em grau e natureza, os homens adquiriram a capacidade criadora, ainda que limitada e infinitamente
menos poderosa que a plenitude (o plêrâma) divina.
Como exemplo final do ensino dado a respeito da Força Mental, foi escolhida uma árvore inútil, pois
não conseguia amadurecer os frutos (lembrémo-nos: Betfagé! ) e esta, durante a exposição da teoria,
foi sacrificada através de uma ordem, e "secou desde a raiz" (exêramménên ek rhizôn).
Eis aí: é possível admitir-se que o fato realmente se deu. Mas é mister ler nas entrelinhas, para com-
preender o episódio. Os narradores, que não podiam estender-se sobre o ensino esotérico, tiveram
que "inventar" uma história. E a história inventada acontece que não convence ao nosso intelecto
perquiridor, pois repugna ao bom-senso.
Por aí verificamos que os ensinos grafados nos Evangelhos constituem "conclusões" de ensinos exten-
sos, resumos de lições profundas, ou pequenas histórias e parábolas que tinham por mira apenas fazer
recordar aos iniciados, o que eles haviam aprendido oralmente, mas devia ficar oculto.

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O PODER DE JESUS

Mat. 21:23-27 Marc. 11 :27-33 Luc. 20:1-8

23. E entrando ele no templo, 27. E vieram de novo a Jeru- 1. E aconteceu em um dos
aproximaram-se dele, que salém. E perambulando dias em que Jesus ensinava
ensinava, os principais sa- Jesus pelo templo, vieram a ao povo no templo e anun-
cerdotes e os anciãos do eles os principais sacerdo- ciava coisas alegres, chega-
povo, dizendo: com que tes e escribas e os anciãos, ram os principais sacerdo-
poder fazer estas coisas? e 28. e disseram-lhe: com que tes e os escribas junto com
quem te deu esse poder? poder fazes essas coisas? ou
os anciãos,
24. Respondendo, Jesus disse- quem te deu esse poder 2. e falaram dizendo-lhe: di-
lhes: "Perguntar-vos-ei para fazeres essas coisas? ze-nos com que poder fazer
também eu uma palavra, 29. Jesus porém disse-lhes: essas coisas, ou quem é que
que, se me responderdes, Perguntar-vos-ei uma pala-
te deu esse poder?
também vos responderei vra e me respondereis, e 3. Respondendo-lhes, disse:
com que poder faço essas vos direi com que poder "Perguntar-vos-ei também
coisas. faço essas coisas: eu uma palavra; respondei-
25. Donde era o mergulho de 30. o mergulho de João era do me:
João? Do céu ou dos ho- céu ou dos homens? res- 4. o mergulho de João era do
mens”? Eles, porém, racio- pondei-me"! céu ou dos homens"?
cinavam entre si dizendo:
se dissermos "do céu", dir- 31. E raciocinavam entre si, 5. Consultaram-se entre si,
nos-á: "por que não acredi- dizendo: se dissermos "do dizendo: se dissermos "do
tastes nele"? céu", dirá: por que não céu" dirá: por que não
acreditastes nele? acreditastes nele?
26. Mas se dissermos "dos ho-
mens" tememos a multidão, 32. Mas se dissermos "dos ho- 6. Mas se dissermos "dos ho-
pois todos têm João como mens" ... temiam o povo, mens", o povo todo nos
profeta. pois todos consideravam apedrejará, pois está certo
que João fora realmente de João ser profeta.
27. E respondendo a Jesus, profeta.
disseram: "Não sabemos"! 7. E responderam que não
Disse-lhes também ele: 33. E respondendo a Jesus, sabiam donde (era).
"Nem eu vos digo com que disseram: não sabemos. E 8. Jesus disse-lhe: "Nem eu
poder faço essas coisas". Jesus disse-lhes: "Nem eu vos digo com que poder
vos digo com que poder faço essas coisas".
faço essas coisas".

Diariamente Jesus ensinava no templo. Numa dessas ocasiões, chegam a Ele os sacerdotes principais,
ou seja, os que pertenciam ao Sinédrio, em companhia de seus colegas os anciãos do povo e os escri-
bas, para interpelá-Lo.
Observavam aquele galileu, de condição social inferior, que jamais lhes havia seguido os cursos aca-
dêmicos e que, não obstante, demonstrava sabedoria profunda em Suas palavras, poder mágico em
Suas ações, irresistível força de liderança popular, movimentando as massas como em tempo algum
haviam eles conseguido.

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Figura “DONDE VEM TEU PODER ? – Desenho de Bida, gravura de Ed. Hédonen

Lembravam-se vivamente da cena de dois anos atrás, quando expulsara os comerciantes do templo;
das curas instantâneas que efetuara; das respostas irretorquíveis que lhes dera, muitas vezes, obrigan-
do-os a retirar-se cabisbaixos e silenciosos, embora remordendo-se de despeito; das peças que lhes
havia pregado em várias circunstâncias, como no episódio da "adúltera"; do que ouviam contar Dele,
trazido por testemunhas oculares da Galiléia; da tão falada ressurreição de Lázaro havia alguns dias
apenas; e de tantas outras "façanhas" que, realmente, homens como eles, cultos e de alta categoria so-
cial e religiosa, não só não podiam realizar, como nem compreender.
Animam-se, pois, e vão perguntar-Lhe, talvez movidos por íntima sensação de estar diante de algum
profeta:
- Com que poder oculto fazes todas essas coisas? Quem te deu esse poder (exousía é o poder basea-
do em dynamis, "força", de realizar érgon "trabalho ou ação").
Quiçá tinham a esperança de ser-lhes revelado o segredo espiritual, que eles, como autoridade preten-
diam ter o direito de saber, e que os animasse a estudar o caso, aceitando-o, se convencidos da prove-
niência divina, ou rejeitando-o se não fosse provada essa origem com plena nitidez.
Haviam perguntado duas coisas e ansiosamente aguardavam a resposta. Jesus utiliza o processo rabíni-
co, de responder com outra pergunta, mas salienta que, em vez de duas, lhes fará uma só:
- Respondei-me: o mergulho de João era do céu ou dos homens? Se mo responderdes, direi donde
me vem esse poder ...
Pronto! Outra peça pregada ... Cochicham entre si e verificam que, qualquer que fosse a resposta, esta-
vam presos pelo pé. O texto é claro e apresenta-nos a angustiosa dúvida da embaixada. O melhor era

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SABEDORIA DO EVANGELHO

declarar a ignorância a respeito, como se lhes coubesse ignorar, a eles, a autoridade religiosa mais alta
de Israel!
- Não sabemos!
O Mestre retorque-lhes altaneiro, declarando que tampouco lhes diria donde lhe vinha Seu poder.
Sabe-o, mas não dirá.

Lição preciosa!
Quase todos os espiritualistas que proliferam atualmente, ou que tais se julgam, fazem questão de
apresentar e apregoar títulos que receberam de homens, ou que eles mesmos inventaram. Citam Cen-
tros frequentados, Ordens, Associações e Fraternidades a que pertencem "há tantos e tantos anos";
honrarias conquistadas (às vezes compradas ...), milagres realizados, nomes "iniciáticos" precedidos
de "sri" ou seguidos de "ananda" que alguém lhes deu ou que se atribuíram, e mais medalhas, e car-
gos do "Mestres (ou "gurus”, que é mais bonito e impressiona mais ...), e fitas de "veneráveis", e "cra-
chats" de valor internacional, etc. etc. Muitas vezes também enumeram as amizades que tem com
grandes homens, os contatos com personagens importantes, como se isso valesse algo ... Não se lem-
bram de que os motoristas, copeiros e cozinheiros dessas criaturas tem contato muito mais íntimo!
Jesus ensina-nos como devemos agir: nada temos que dizer. Mas também não há necessidade de ma-
nifestar nem de internamente envaidecer-nos pelo fato de nada dizer. SIMPLICIDADE, acima de
tudo: nada vale nossa personalidade temporária, que hoje é a amanhã fenece como a erva do campo;
trata-se apenas de um "veículo" que transporta nosso EU verdadeiro e que, uma vez envelhecido e
imprestável, é abandonado à margem do caminho; e nosso EU verdadeiro, o Espírito, é idêntico ao de
todas as demais criaturas: que razão nos sobra de envaidecer-nos?
Portanto, há uma só coisa que fazer: TRABALHAR e SERVIR.
Qual a fonte de origem de nossos atos, de nossos conhecimentos? Não interessa. O que importa é se
falamos e agimos CERTO: pela árvore se conhece o fruto.
Por que inflar-nos de orgulho se, como médiuns, se manifestam por nosso intermédio nomes de seres
respeitados pela humanidade? Teria direito de orgulhar-se a caneta, por ser usada por um sábio?
Que faz ela mais que a caneta, que presta idêntico serviço na mão de uma criança que aprende a es-
crever? A função é a mesma, o resultado - escrever - o mesmo.
Certa vez, conversando com Francisco Cândido Xavier, ele citou-nos o nome de um espírito "graúdo"
na Espiritualidade que estava a nosso lado. Retrucamos que não podíamos acreditar, pela nossa pe-
quenez. Mas, talvez observando uma vibração de vaidade em nós, apesar das palavras, Chico logo
advertiu:
- Não se envaideça não, porque quanto mais errada a criatura, mais necessidade tem de um aju-
dante forte!
E pensamos: realmente, quanto mais recalcitrante o animal, mais hábil tem que ser o peão!
A vaidade é dos piores vícios. Mas se torna muito mais grave, quando ataca os espiritualistas, sobre-
tudo aqueles que, por circunstâncias diversas, se encontram à frente de instituições. Já vimos (vol. 6)
que "é preferível o suicídio a ensinar errado". Ora, a vaidade oblitera a inspiração, porque dissintoni-
za e corta as intuições; e o resultado é fatal: passamos a ensinar segundo nosso ponto-de-vista, e não
segundo a VERDADE. Ensinemos sempre que os ouvintes devem usar a razão para analisar nossos
ensino" (leia-se por exemplo, Allan Kardec, "Livro dos Médiuns", números 261 a 267), pois ninguém
na Terra possui autoridade absoluta e infalível; todos estamos estudando e aprendendo, e apenas pas-
samos adiante aquilo que vamos conquistando com esforço, pela grande dificuldade do assunto espi-
ritual. Portanto, não citemos "a fonte", já que não sabemos qual seja ...

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C. TORRES PASTORINO

OS DOIS FILHOS
Mat. 21:28-32
28. "Mas que vos parece? Um homem tinha dois filhos; chegando ao primeiro, disse: Fi-
lho, vai trabalhar hoje no vinha.
29. Respondendo, ele disse: Não quero. Depois, porém, tendo mudado a mente, foi.
30. Foi ao outro e disse o mesmo. Respondendo, disse ele: Eu, senhor! E não foi.
31. Qual dos dois fez a vontade do pai"? Disseram: O primeiro. Disse-lhes Jesus: "Em
verdade vos digo, que os cobradores de impostos e as meretrizes vos precederão no
reino de Deus.
32. Porque João veio a vós no caminho da perfeição e não lhe fostes fiéis; mas os cobra-
dores de impostos e as meretrizes lhe foram fiéis; vós, porém, vendo(o), não mudastes
vossa mente depois, para lhe serdes fiéis".

Parábola privativa de Mateus, em cujo texto os manuscritos se dividem, o que provoca sérios embara-
ços aos exegetas. Esquematizemos, para melhor compreensão:
A- O 1.º diz: SIM - e não vai (desobedece)
O 2.º diz: NÃO - e vai (obedece)
Códices: B (Vaticano), D, theta, it.: a, aur, b, d, e, ff1, 2, g1, h1; versões: siríaca, copta boaírica; armê-
nia, etiópica (mss.): pais: Efren, Jerônimo, Isidoro, Pseudo-Atanásio; edições críticas: Hort. Nestle,
von Soden, Vogels, Merk, Pirot.

B- O 1.º diz: NÃO - e vai (obedece)


O 2.º diz: SIM - e não vai (desobedece)
Códices: Sinaítico (mss. original), C (idem), K, L, W, X, delta, pi, 0138, f. 1, 28, 33, 565, 892, 1009,
1010, 1071, 1079, 1195, 1216 (hypágô), 1230, 1241, 1242, 1253, 1341, 1546, 1646, 2148, 2174; ver-
sões: bizantina; it. c, f, q; vulgata (IV séc.); siríacas peschita, curetoniana, harcleense; copta saídica
(mss); etiópica de Roma e Pell-Plat; pais: Crisóstomo, Ireneo, Orígenes, Eusébio, Hilário, Cirilo de
Alexandria.

Os que preferem a primeira versão acima citada, embora apresentada em menor número de testemu-
nhas, baseiam-se em razões diplomáticas, ou seja:
1.ª - A parábola refere-se aos fariseus (mais antigos, primeiros e aos publicanos (mais recentes, "os
outros"); ora, os fariseus responderam SIM, mas ludibriaram o chamamento com sua hipocrisia, obe-
decendo apenas externamente; ao passo que os publicanos, chamados depois por Jesus, inicialmente
não tinham atendido ao chamado mosaico da lei, mas reagiram aos apelos do Batista e de Jesus, cuja
atração possuía irresistível magnetismo, no dizer de Jerônimo (Patrol. Lat. v. 26, col. 56): sicut in
magnete lápide haec esse vis dícitur; portanto, o desobediente foi o primeiro, logicamente o mais ve-
lho, que sem dúvida devia ser chamado primeiro.
2.ª - Nas outras parábolas, sempre o mais velho ou os primeiros chamados são os "desobedientes" e
rebeldes, e os mais moços ou segundos chamados são os melhores, como:

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SABEDORIA DO EVANGELHO

a) no "Filho pródigo" (Luc. 15:12ss);


b) no "Banquete de núpcias" (Mat. 22:1ss);
c) nos "Trabalhadores da vinha" (Mat. 20:1ss) .

3.ª - Paulo diz o mesmo, quando afirma que os judeus foram chamados primeiro, e, depois que não
vieram, apesar de terem dito "sim", o chamado foi feito aos gentios.
4.ª - Já no Antigo Testamento o mais moço esta acima do mais velho (cfr. "Esaú servirá a Jacó", Gên.
25:23).
5.ª - No próprio texto, Jesus diz que "os cobradores de impostos e as prostitutas entrarão primeiro que
vós no reino de Deus" (vers. 31).
E concluem: a presunção é em favor da regra, e não da exceção; logo, o primeiro é que diz SIM e não
vai; o segundo, mais moço, é que diz NÃO, mas vai.
Outra questão discutida é se o pai chamou os dois a um tempo, ou se só chamou o segundo depois que
viu que o primeiro não foi. Ora, o chamamento é feito a todos igualmente, nas mesmas épocas e cir-
cunstâncias. Uns dizem sim, e não vão; outros dizem não e vão, ou seja, uns aderem externamente à
ordem do pai, outros primeiro recusam, depois, mudando a mente (metamelêtheís) mergulham no reino
de Deus.
A parábola realmente não diz que só foi chamado o segundo depois de o primeiro não ter ido. Ao con-
trário, parece que se dirigiu a um e depois, sem esperar o resultado, dirigiu-se ao outro. Pode até com-
preender-se melhor , seguindo a lição apresentada pelo maior número de testemunhas: uma vez que o
primeiro havia dito NÃO, o pai vai ao segundo e o convoca ao trabalho na vinha. Logo, as razões di-
plomáticas, neste caso, deixariam de existir, cedendo lugar a razões lógicas.
Entretanto, e como à lição não importa muito a ordem dos fatores, mantivemos em nossa tradução a
ordem do maior número, seguindo Aland (ed. 1968). O essencial é sentir a oposição entre o que diz
SIM e não faz, e o que diz NÃO e faz.
Note-se que no vers. 30, as traduções correntes trazem: "irei, senhor", e nós traduzimos apenas: "Eu,
senhor"! Assim está no original, quase unanimente (1). Pode interpretar-se como omitido o verbo
"irei"; o egô, entretanto, não pode ser substituto de "sim". Não poderíamos, observar, que essa resposta
já significava certa má vontade, como seja: "logo eu"!? Não podendo ter certeza absoluta do sentido,
mantivemos a tradução literal: "Eu, senhor".
(1) Só trazem hypágô, "vou", os códices theta (séc. IX), 700 e 1216 (séc. XI); a fam. 13 (séc. XI); o
lecionário 547 (séc. XIII); e as versões copta saídica (séc. III, mas de leitura duvidosa), armênia
(séc. IV-V) e geórgias 1 e 2 (séc. IX-X). Como vemos, emendas recentes ou interpretações em lín-
guas diferentes.

Depois de narrada a parábola, vem a pergunta sutil: "Qual dos dois fez a vontade do pai"?
Os fariseus, que tantas vezes haviam feito perguntas cuja resposta esperavam embaraçasse e prendesse
Jesus em armadilha - das quais, porém, Ele sempre se saiu galhardamente - desta vez não perceberam a
emboscada que lhes armara Jesus e caíram redondamente. O Rabbi Nazareno não os poupa e, apro-
veitando a própria resposta, volta-se contra eles, que são os que não fazem a vontade do pai, embora
digam SIM com a boca, hipocritamente.
Logo a seguir, Jesus cita o que ocorreu com o Batista. Quando este chegou, aqueles que haviam dito
SIM a Moisés, não atenderam à "voz que clamava no deserto"; enquanto isso, os exatores de impostos
e as prostitutas que tinham dito NÃO à lei mosaica, atenderam à pregação joanina e mudaram seu
comportamento. E nem sequer diante desse exemplo os fariseus abriram os olhos ... E nem souberam
responder, na véspera, se o mergulho do Batista era do "céu" ou dos homens ... Jesus pode aceitar que

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C. TORRES PASTORINO

eles digam que "não sabem"; mas, para que não tenham desculpa de seu dolo, faz questão de dizer-lhes
que, a recusa de atender a João o Batista, correspondia a uma rejeição ao chamado divino do Pai.

A lição consiste numa parábola (comparação) que apresenta um fato, e numa previsão do que sucede-
rá em consequência no futuro.
O que ocorre é que pode a humanidade ser considerada dividida em duas facções principais: os que
dizem SIM e não fazem e os que dizem NÃO e fazem.
Não importa saber se os primeiros são os fariseus e os segundos os publicanos; ou se temos oposição
entre judeus e gentios: a aplicação é do todos os tempos, como já escreveu antigamente o autor (des-
conhecido) do Opus Imperfectum: "O sim é dito por todos os pretensos justos, e o não por todos os
pecadores que, mais tarde, se convertem à senda do bem" (citado em Pirot).
Esta é, com efeito, a chave para interpretar a lição, em relação às personagens terrenas. Não importa
quando é feito o chamado, se antes ou depois; o essencial é que TODOS são chamados, e muitos se
apressam a dizer o SIM, exteriormente, com os lábios, e a entrar para as religiões, as ordens e frater-
nidades, seguindo os preceitos externos com todo o rigor, executando os ritos e rituais, observando as
regras e regulamentos, vestindo-se e paramentando-se impecavelmente.
Não obstante, afirma o Mestre que "pecadores e meretrizes entrarão primeiro que eles no reino de
Deus".
A interpretação das igrejas ortodoxas, de que o "reino de Deus" exprime aquele "céu" em que os anji-
nhos ficam a tocar harpas eólias e ao qual se vai depois da morte, faz o ensino no Cristo tornar-se
absurdo. Mesmo que consideremos "conversões" ou até mudanças de mente espetaculares.
Se, todavia, entendermos seu ensino no sentido verdadeiro, a compreensão é clara; no reino de Deus
entra-se por meio do mergulho interno. Ora, todos os que se julgam justos, estão fiados na persona-
gem que cumpre os preceitos humanos externos, voltando-se para fora. Por dentro deles, existe a vai-
dade e o convencimento de que são bons e superiores às demais criaturas, porque eles estão no cami-
nho certo e os outros são "errados" (Hamartoloí).
Enquanto isso, os pecadores e as prostitutas encontram em seu âmago, a humildade que reconhece
suas fraquezas, suas deficiências, seus erros. Isso faz que se voltem para dentro de si mesmos, mer-
gulhando no íntimo onde - ao ver seus desregramentos - mais humildes se tornam.
Eis que, então, têm facilitado o caminho para o reino de DEUS que está dentro deles e que só se con-
quista através da humildade e do amor.
O que mais tem chocado nessa frase dura mas verdadeira - e a verdade dói - é verificarmos que ela
esvazia toda a prosopopéia de homens e mulheres religiosos, que colocam a "virtude" acima de tudo.
Jesus agiu de modo diverso. Apesar da sagrada maternidade e da santidade reconhecida por todos em
Maria de Nazaré, Sua mãe, Ele concede as primícias de Seu contato, após a ressurreição, à pecadora
de Magdala. Não que não houvesse merecimento da parte de Sua mãe: mas quis ensinar-nos que o
parentesco é coisa secundária na vida espiritual, mesma em se tratando de mãe (quanto mais de ou-
tros parentes e amigos!); e segundo, que as meretrizes merecem tanto quanto qualquer outro Espírito,
em nada devendo ser sacrificados no processo evolutivo.
O convencionalismo tradicional que vem de épocas remotas, sobretudo do domínio masculino judaico
e cristão (patriarcalismo) - em que os homens são senhores absolutos de qualquer situação, sendo-lhe
tudo permitido condena ao opróbrio público as mulheres que se entregam à prostituição, a isso força-
das pelos próprios homens incontinentes e inconscientes do que fazem e inconsequentes. Nenhuma
mulher se torna meretriz sem o concurso do homem que a leve a esse caminho: são eles os primeiros a
pretender o uso do corpo da mulher, para após condená-la, pois não assumem a responsabilidade de
lhes dar um lar.
Profundamente compassivo e percebendo a injustiça dessa condenação hipócrita (pois o homem,
quando sem testemunhas, mesmo condenando-as, delas se serve com diabólico empenho e supremo

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SABEDORIA DO EVANGELHO

prazer), o Cristo manifesta a compreensão da realidade: trata-se de criaturas vilmente exploradas


pelos que as condenam, mas tão filhas de Deus quanto qualquer santo, e dignas de toda compaixão e
ajuda. E como são humildes e sempre cultivam o AMOR - embora nos degraus mais baixos, animali-
zados e degradados, mas amor - estão em mais próxima sintonia com a Divindade (que é AMOR), que
aqueles que só pensam em guerras, em matanças, em odiar inimigos, e para isso se preparam em es-
colas "especializadas", aprendendo a manejar armas cada vez mais aperfeiçoadas, que matem melhor
e mais gente ao mesmo tempo.
Quem cultiva o amor sintoniza com Deus que é Amor. Quem cultiva sede de domínio, de desforra ou
vingança, quem alimenta orgulhos e vaidades de raça superior, e ódios de vizinhos, sintoniza com o
Adversário (satanás) e se dirige ao pólo oposto de Deus: encaminha-se em sentido contrário, erra
"contra o Espírito-Santo".
Por isso as prostitutas e os pecadores, os "errados perante o mundo", entrarão no reino de Deus antes
dos grandes do mundo, cheios de empáfia e maldade, julgando-se justos, virtuosos e bons, mas cami-
nhando para o pólo negativo.
Lição dura de ouvir, porque todos nós nos acreditamos escolhidos e evoluídos! Sejamos humildes:
somos piores que pecadores e prostitutas, pois a vaidade nossa nos afasta do pólo positivo, e a humil-
dade real deles, os aproxima de Deus e com Ele sintoniza. Não são nossas palavras que definem nossa
sintonização: é o sentimento íntimo de cada um que faz afinar ou desafinar com a tônica do amor.
* * *
Quanto à individualidade, somos levados a meditar que não são as exterioridades da personagem que
valem, mas exatamente a sintonia interna. Não é o que uma pessoa faz, nem o que diz, mas o que É
intimamente. Por fora, pode tratar-se de uma prostituta, mas a vibração interna ser mais elevada que
a da que apresenta comportamento socialmente irrepreensível, embora em seu intimo cultive ódios e
ressentimentos. Por que o mundo acha natural e nada diz, quando uma criatura fala mal de outra, e
no entanto não perdoa se essa mesma criatura se una a outra pessoa por amor? Se um dirigente de
instituição passa os dias a criticar seus "concorrentes", o povo acha que nada de mal existe. Mas se
demonstra preferência e amor por alguém, acha que "decaiu de seu pedestal". Por aí, vemos que o
pólo negativo só admite desavenças, críticas, separatismos, mas não aceita união, afeto, amor. En-
tretanto, o Mestre ensinou que o AMOR é tudo, pois Deus é AMOR, e só no amor e através do amor
chegaremos a sintonizar com Deus. Mas quando alguém critica e fala mal, está com a razão; e quan-
do ama, é "pouca vergonha" ... Com quem ficaremos? Com o pólo negativo do Anti-Sistema, ou com o
Mestre? A escolha da estrada é livre, mas Ele disse, sem ambages nem possíveis interpretações dife-
rentes: "os publicanos e as prostitutas (pórnai) entrarão no reino de Deus primeiro que vós"!

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OS LAVRADORES MAUS

Mat. 21 :33-46 Marc. 12:1-12 Luc. 20:9-19

33. "Ouvi outra parábola. Ha- 1. E começou a falar-lhes em 9. Começou, pois, a dizer ao
via um homem proprietário parábolas: "Um homem povo esta parábola: "Um
que plantou uma vinha, plantou uma vinha, circun- homem plantou uma vinha
circundou-a com uma pa- dou-a com uma cerca e ca- e entregou-a a lavradores e
lissada, cavou nela um la- vou um lagar e edificou viajou muito tempo.
gar e edificou uma torre, e uma torre e entregou-a aos 10. Na época enviou aos lavra-
entregou-a a uns lavrado- lavradores e saiu do país. dores um servo, para que
res e saiu do país. 2. E enviou aos lavradores, na lhe dessem do fruto da vi-
34. Quando chegou a época dos época, um servo para que nha; mas, espancando-o, os
frutos, enviou seus servos dos lavradores recebesse lavradores o devolveram
aos lavradores para rece- dos frutos da vinha. vazio.
ber seus frutos. 3. E recebendo-o, espancaram 11. Resolveu enviar outro ser-
35. E os lavradores, recebendo e (o) devolveram vazio. vo; a este, eles, espancando
os servos dele, feriram um, 4. E de novo enviou a eles ou- e ofendendo, devolveram
mataram outro e apedreja- tro servo; e a este feriram a
vazio.
ram outro. cabeça e ofenderam. 12. E resolveu enviar um ter-
36. De novo enviou outros ser- 5. E enviou outro, e a este ceiro; ferindo também este,
vos, mais numerosos que mataram; e muitos outros,
expulsaram.
antes; e agiram com eles do e a uns espancaram, a ou- 13. Disse então o senhor da
mesmo modo. tros mataram. vinha: Que farei? Enviarei
37. Por último enviu-lhes seu 6. Ainda tinha um, um filho meu filho amado; este, pro-
filho, dizendo: respeitarão amado; enviou-o por últi-
vavelmente, respeitarão.
meu filho. mo a eles, dizendo: respei- 14. Os lavradores, porém, ven-
38. Mas os lavradores, vendo o tarão meu filho. do-o, raciocinavam entre
filho, disseram entre si: este 7. Aqueles lavradores, porém, eles: este é o herdeiro; ma-
é o herdeiro; vinde, ma- disseram entre si: este é o
temo-lo para que a herança
temo-lo e tomemos sua he- herdeiro; vinde, matemo-lo
se torne nossa.
rança. e nossa será a herança. 15. E lançando-o fora da vinha,
39. E segurando-o, jogaram-no 8. E recebendo-o, mataram- mataram. Que fará a eles o
fora da vinha e o mataram. no e o lançaram fora da vi-
senhor da vinha?
40. Quando, pois, vier o senhor nha. 16. Virá e perderá esses lavra-
da vinda, que fará àqueles 9. Que fará, então, o senhor dores, e entregará a vinha a
lavradores? da vinha? Virá e perderá os
outros". Ouvindo, porém,
disseram: Não se faça!
41. Disseram-lhe: "Perderá lavradores e entregará a
severamente os maus e en- vinha a outros. 17. Ele, contudo, olhando-os,
tregará a vinha a outros la- 10. Nem lestes esta Escritura: disse: "Que é, então, este
vradores, que lhe darão os uma pedra que os constru-
escrito: Uma pedra que os
frutos na época própria". tores recusaram, essa se
construtores recusaram,
essa transformou-se em ca-
42. Disse-lhes Jesus: "Nunca transformou em cabeça de

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SABEDORIA DO EVANGELHO

lestes nas Escrituras: Uma ângulo, beça de ângulo?


pedra que os construtores 11. ela foi transformada pelo 18. Todo o que cair sobre a
reprovaram, essa se trans- senhor e é maravilhosa a pedra, se contundirá; sobre
formou em cabeça de ân- nossos olhos"? quem ela cair, ela o penei-
gulo; ela foi transformada rará.
pelo senhor e é maravilhosa 12. E procuravam apoderar-se
a nossos olhos? dele, e temeram o povo, 19. E procuravam os escribas e
pois sabiam que a respeito principais sacerdotes pôr as
44. (E o que cai sobre essa pe- deles disse a parábola. E mãos sobre ele, na mesma
dra, será contundido; sobre deixando-o, retiraram-se hora, e temeram o povo;
quem ela cair, ela o penei- pois sabiam que para eles
rará)." disse esta parábola.
43. Por isso digo-vos que será
tirado de vós o reino de
Deus e será dado a um povo
que faz os frutos dele.
45. E ouvindo os principais
sacerdotes e fariseus as pa-
rábolas dele, compreende-
ram que falou a respeito
deles,
46. E procurando apoderar-se
dele, temeram o povo, por-
que o considerava profeta.

A parábola, comum aos três sinópticos (como a do "Semeador"), inicia com uma frase de Isaias (5:1-
2), em que o profeta descreve a nação israelita como uma vinha cultivada por YHWH. Esse início es-
clarece com clareza insofismável que a parábola se referia aos judeus. A frase de Isaías é citada, por
Mateus, literalmente.
Uma vez plantada a vinha, foram providenciadas as defesas e utilidades: a palissada em volta, para
defendê-la contra as inundações das chuvas hibernais; o lagar (lat. tórcular, gr. lênós, hebr. yéqêb), que
consistia numa pedra com inclinação, cavando-se, em planos mais baixos, locais para onde escorria o
vinho que depois fermentava; a torre servia para que os encarregados da vinha pudessem subir para
vigiá-la: era a torre de vigilância.
Tudo preparado, o proprietário entregou avinha a um grupo de lavradores, para que a cuidassem, e fez
longa viagem fora do país (apedêmêsen, de apodêmô).
Na época da vindima, manda buscar "sua parte nos frutos", o que significa pretender receber não em
dinheiro, mas in natura.
Ocorre que todos os servos que envia são mal recebidos, espancados e até mortos. A alusão também se
torna explícita: os profetas enviados por YHWH, dono da vinha (Israel) regressavam de mãos vazias, e
muitos sofreram ofensas, pancadas e até a morte (cfr. Elias, Eliseu, Jeremias, Daniel, Zacarias e até o
Batista).
Daí Jesus passa a falar de si: por último, manda seu filho querido, dizendo: "a este respeitarão".
Na alegoria parabólica pode admitir-se. Na vida real, porém, é comportamento inconcebível. Se o pro-
prietário tem força para castigar os lavradores, como o fez mais tarde, por que mandar o filho sozinho,
e não com uma escolta para defendê-lo?
Os lavradores, que já se supunham donos da vinha (como o clero se julga dono da igreja e os sinedritas
se achavam donos de Israel), decidem matar o herdeiro, para legitimar a posse dos bens materiais.
Matam-no e jogam o cadáver fora do cercado da vinha (Marcos). Em Mateus e Lucas, o filho é morto

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C. TORRES PASTORINO

já fora, o que pode explicar-se pelo fato de ter Jesus sofrido a crucificação "fora da porta de Jerusalém"
(Hebr. 13:12) ou então por influência do que ocorria com o "bode expiatório", ou ainda do sucedido a
Naboth (1.º Reis, 21:13), que foi levado fora da vinha e lapidado. Parece, pois, que a lição original é a
de Marcos.
Esta foi a primeira vez que Jesus falou em Seu sacrifício perante o público, fora do círculo restrito de
Seus discípulos.
À pergunta: "Que fará o dono da vinha aos lavradores" temos, em Mateus, a resposta dada pelos ou-
vintes; em Marcos e Lucas, dada pelo próprio Jesus. Agostinho (Patrol, Lat. vol, 34, col. 1142/3, "De
consensu") preocupa-se com essa divergência e dá uma explicação que não satisfaz, dizendo que "sen-
do os discípulos membros de Jesus, as palavras deles Lhe podem ser atribuídas" (mérito vox iílorum
illi tribueretur, cujus membra sunt). Ora, não vemos importância maior em que a resposta seja coloca-
da na boca deste ou daquele, pois se trata de simples questão de estilo literário.
O teor da resposta é óbvio e lógico: o dono da vinha castigará aqueles lavradores e entregará a vinha a
outros honestos.
Lucas introduz um protesto popular, com uma expressão muito comum em latim ("absit!") e em grego
("mê génoito!"), que poderíamos dar com uma expressão bastante corrente entre nós: "Deus nos li-
vre!".
Mas a alegoria foi tão clara, que todos os fariseus e sacerdotes perceberam que se referia a eles, embo-
ra não pegassem o sentido daquele "Filho que foi assassinado", pois jamais aceitariam que esse fosse
Jesus. Nunca admitiriam que um operário-carpinteiro, que não pertencia ao clero sacerdotal "escolhi-
do", pudesse ser enviado divino, tal como hoje o Vaticano não aceitaria, em hipótese alguma, um lei-
go, fora de seu quadro religioso, como emissário divino. Bastaria citar uma Joana d'Arc, um Lutero,
um Giordano Bruno, e a lista cresceria muito mais. O clero (basta dizer que a palavra "clero", que eles
se atribuem, significa exatamente "escolhidos") é sempre idêntico em todas as religiões, em todos os
climas, em todas as épocas: são os "donos" de Deus, os únicos que sabem, que podem, que mandam ...
Até que a vinha passe a outras mãos. Como a vaidade humana destrói as criaturas!
* * *
Mas o Mestre não pára aí. Prossegue na lição, com um adendo que confirma Sua parábola.
Por isso indaga ironicamente se eles "nunca tinham lido" as palavras do Salmo (117:22-23). Fazendo
parte do hallel, haviam sido elas oficialmente cantadas dois dias antes.
Aqui traduzimos literalmente: "uma pedra (em grego sem artigo) que os construtores recusaram, essa
se transformou em cabeça de ângulo". A expressão hebraica é 'eben pinnâh; o grego a exprime de di-
versas formas: líthos gôniaíos ("pedra angular"), akrogôniaíos ("ponta de ângulo") ou kephalê gônías
("cabeça de ângulo", como aqui). Aparece no Antigo Testamento em Job (38:6), em Isaías (28:16) e no
Salmo citado; no Novo Testamento nestes três Evangelhos e mais em Atos (4:11), na carta aos Efésios
(2:20) e na primeira de Pedro (2:6-7).
Depois Jesus continua citando livremente (cfr. Is. 8:14-15 e 28:15 e Dan. 2:32-35): "o que cai sobre
essa pedra, será contundido; sobre quem ela cair, ela o peneirará (likmêsei, de likmáô). As traduções
correntes interpretam: "esmagará", mas o verbo tem sentido preciso: "peneirar", para que o vento car-
regue a palha e fique, sobre a peneira, apenas o grão.
Para lhe dar sequência ao pensamento, sem interrupções, invertemos a ordem dos versículos de Ma-
teus, colocando o 44 antes do 43, concordando a ordem do texto com os de Marcos e Lucas.
No final, em Mateus, Jesus diz taxativamente: "Por isso será tirado de vós o Reino de Deus, e será
dado a um povo que faz os frutos dele". O mesmo evangelista acrescenta (sem necessidade) que os
sacerdotes e fariseus compreenderam que se referia a eles. Mas se foi dito categoricamente isso mes-
mo!
Todos os comentaristas concordam quanto à clareza meridiana da interpretação alegórica, dada pelo
próprio Mestre, de que a autoridade hierática passaria dos judeus aos cristãos, chegando Jerônimo

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SABEDORIA DO EVANGELHO

(Patrol. Lat. vol. 26, col. 158) a escrever: Locata est autem nobis vinea, et locata ea conditione, ut
reddamus Domino fructum tempóribus suis, et sciamus unoquoque témpore quid opórteat nos vel loqui
vel fácere, isto é: "foi-nos arrendada, pois, a vinha, e arrendada com a condição de darmos ao Senhor o
fruto nas épocas próprias, e de sabermos em qualquer tempo o que tenhamos que falar e que fazer".
Essa a evidente intenção do ensino para as personagens terrenas, para os sacerdotes de todas as épocas
e nações, quando se arrogam a prerrogativa de serem os únicos privilegiados, com tal prestígio diante
de Deus, que o Criador tem que pedir-lhes licença e obter o nihil obstat antes de agir entre os homens!

Mas há outras lições a transparecer da parábola, com grande clareza. Vejamos, inicialmente, no âm-
bito restrito da criatura humana.
O dono da vinha é o Espírito que planta, cerca, prepara, aprimora um corpo físico para, por meio
dele, extrair frutos para seu aprendizado e sua evolução. Uma vez tudo pronto, entrega a vinha aos
cuidados da personagem, sob o comando do intelecto, e ausenta-se para longa viagem a outro país,
isto é, recolhe-se a seu plano, deixando que o intelecto dirija toda a produção dos frutos por sua con-
ta.
No entanto, nas épocas próprias, o Espírito deseja recolher a parte que lhe toca dos frutos produzi-
dos, e para isso manda mensageiros preparados, "cobradores" das dívidas cármicas, que vão experi-
mentar se conseguem dobrar e comover o lavrador ao qual foi confiada a vinha.
Mas, não tendo havido progresso, esses obsessores (encarnados ou desencarnados) que se lhe apro-
ximam e lhe entram no círculo ambiental, do parentesco ou das amizades ou da aura espiritual, ainda
são repelidos com rebeldia e insubordinação. Outros e mais outros vão chegando, e por vezes cresce a
irritação. Por vezes, não satisfeito com o maltrato infligido aos afins encarnados ou aos estranhos que
encontra, chega até o homicídio.
O senhor da vinha, o Espírito, verifica que a personagem por ele criada e o intelecto a que a confiou,
não tem condição de recuperação. Não atende às lições que lhe foram ensinadas: "ama a teu próximo
como a ti mesmo" (Mat. 19:19); "harmoniza-te com o adversário enquanto estás no caminho com ele"
(Mat. 5:25); "perdoa setenta vezes sete" (Mat. 18:22); "ama teus inimigos" (Mat. 5:44), etc. etc.
Ainda uma tentativa será feita: o Espírito enviará seu próprio filho amado, sua própria Mente, por
meio de fortes intuições, de remorsos, por vezes até de quadros mentais e vozes que surgem, para
chamar o intelecto à razão.
Mas, empedernido em sua maldade, ambiciosa e crente de que poderá tornar-se eterno como o Espí-
rito, herdando a vida (a "vinha") que, de fato, não lhe pertence, mas apenas lhe foi confiada, a perso-
nagem expulsa de si mesmo todas essas vozes incômodas e mata-as, para procurar apoderar-se da
vida.
Quando vê que tudo está perdido, o Espírito resolve solucionar pessoalmente o caso. Regressa, pois,
junto dessa personagem e perde-a, fazendo-a desfazer-se pela "morte", para então entregar a vinha a
outros lavradores: a outro intelecto, com a esperança de conseguir, então, colher os frutos de que
necessita para seu progresso.
Embora totalmente nova e original, essa interpretação parece-nos válida, e confirma amplamente a
doutrina da REENCARNAÇÃO, inclusive o processo utilizado pelo Espírito para plasmação das per-
sonagens que lhe são necessárias; o afastamento que o Espírito opera para deixar que a personagem
tenha liberdade de ação, de tal forma que, os que ainda não se uniram ao Espírito, têm até dificuldade
em reconhecê-lo e acreditam que seu verdadeiro EU seja apenas o eu personalístico; e deixa mesmo
entrever a suposição de que, se a personagem, numa vida, conseguiu produzir para o Espírito, frutos
opimos e valiosos, este poderá fazê-la reencarnar de novo, uma e mais vezes, a fim de aproveitar-lhe
ao máximo as qualidades já desenvolvidas anteriormente.
Tentemos, agora, uma interpretação mais ampla, nos domínios dos símbolos.

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C. TORRES PASTORINO

A VINHA (cfr. vol. 1) representa a "sabedoria espiritual”, ou seja, a interpretação simbólica dos ensi-
nos dados. Então, a plantação da vinha exprime os ensinamentos superiores, cuidadosa e carinhosa-
mente ministrados por Mensageiro Divino, com todas as atenções dispensadas aos pormenores: a
palissada em volta, a fim de evitar penetração das águas (interpretações puramente alegóricas) vin-
das de fora; o lagar , onde a usa do conhecimento deve ser pisada, para dela extrair-se o vinho da
sabedoria, abandonando sob os pés o bagaço da erudição; os poços (corações) onde deve a sabedoria
ser guardada para fermentar pela meditação; e a torre de vigilância, onde o discípulo possa perma-
necer desperto, sem dormir, nas observações de tudo o que ocorre, para não se deixar surpreender
por ataques inopinos e traiçoeiros que poderiam derrubá-lo.
Uma vez tudo pronto, os discípulos são deixados sós, a fim de executar, isto é, de VIVER os ensinos
que receberam. Têm tudo perfeito e pronto: resta ver se renderão os frutos que deles se esperam.
De tempos a tempos chegam Mensageiros Superiores, para arrecadar os frutos que a Escola devia ter
produzido.
Mas infelizmente ocorre que as Escolas todas sofrem do mesmo mal das criaturas que as constituem:
entram em decadência. "A resistência de uma corrente se mede pelo elo mais fraco". E os Mensagei-
ros não são reconhecidos, por falta de capacidade dos discípulos ...
Estamos vendo que esta interpretação coincide, em parte, com a que é emprestada à parábola, mas
em nível mais amplo e mais elevado: não mais se trata de poder físico, da constituição material ecle-
siástica de Israel ou do cristianismo, e sim do sistema doutrinário, dos princípios sapienciais.
Realmente Israel recebeu a vinda (a sabedoria); mas a interpretação que lhe foi dada foi literal (pe-
dra), ou no máximo alegórica (água), não conseguindo manter a simbólica (vinha).
O Cristo diz que a vinha será dada a outro povo. Todos interpretam como sendo o Cristianismo. E é.
Mas ocorre que três séculos depois da partida de Jesus (o Espírito), o verdadeiro cristianismo (aria-
nismo) foi violenta e sanguinariamente massacrado pelo que se intitulou "catolicismo romano”, e tudo
voltou ao mesmo ponto anterior em que estavam os judeus: interpretação literais ou no máximo ale-
góricas. A sabedoria simbólica, o ensino espiritual e profundo, desapareceram. E o catolicismo pas-
sou a agir talqualmente o judaísmo: feriu, martirizou, ofendeu e matou todos os Emissários divinos
que lhe vieram para cobrar os frutos dos ensinos simbólicos. Quando qualquer desses Mensageiros
Celestes encarnados na Terra tentavam abrir-lhe os olhos e relembrar-lhe os ensinamentos profundos,
as fogueiras da Inquisição ("santa"!) sufocavam-lhes a voz, o fogo queimava-lhes as carnes, "para
maior glória de Deus"!
De tempos a tempos, "sempre que há um enfraquecimento da Lei e um crescimento da ilegalidade por
todas as partes, ENTÃO EU me manifesto. Para salvação do justo e destruição dos que fazem o mal,
para o firme estabelecimento da Lei, EU volto a nascer, idade após idade" (Bhagavad Gita, 4:7-8): é
o FILHO AMADO que volta à Terra, para restabelecer os ensinos simbólicos da Lei.
Por isso encontramos as encarnações sublimes de Hermes, de Krishna, de Gautama, de Pitágoras, de
Jesus o Cristo e, mais recentemente, de Bahá'u'lláh e de Gandhi, todos "Filhos Amados", além de tal-
vez outros de que não temos conhecimento.
Mas todos são perseguidos e quase sempre assassinados. Não pelo povo, mas exatamente pelo clero,
pelos sacerdotes, pelas autoridades eclesiásticas, justamente por aqueles que tinham o dever de rece-
bê-Los, de reconhecê-Los, de acatá-Los e beber-Lhes as lições, honrando-Os como Filhos do Dono da
Vinha!
Quando terá a humanidade suficiente evolução para agir certo?
* * *
Mas a segunda parte traz outros esclarecimentos.
"Uma pedra, que foi recusada pelos construtores, transformou-se em cabeça de ângulo" - ou seja, um
trecho literal, que não foi compreendido e foi mal interpretado (rejeitado) pelos construtores, isto é,
pelos exegetas e autoridades, esse é transformado em base para construção futura do edifício evoluti-

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SABEDORIA DO EVANGELHO

vo, como "chave mística" para o crescimento espiritual da criatura. Por exemplo: todos os textos
comprobatórios da reencarnação, rejeitados pelas autoridades eclesiásticas da igreja de Roma, já se
tornaram hoje pedra angular, quase a ponto de serem comprovados cientificamente ...
"Essa transformação é operada pelo Senhor”, pelo Espírito, o senhor da vinha, e é coisa que "se torna
admirável a nossos olhos".
O chocar-se contra essa pedra, que se tornou "cabeça de ângulo", isto é, o combater as interpretações
simbólicas e místicas, extraídas da primitiva pedra simples, contunde, machuca, os opositores. Mas se
a interpretação nova cair sobre as criaturas, essa interpretação as peneirará. Realmente, a nova in-
terpretação tem por objetivo peneirar os discípulos, deixando que o vento carregue os imaturos, os
incapazes, os de má-vontade, ficando aproveitados aqueles que estiverem aptos para entender e prati-
car os ensinamentos apresentados com as interpretações novas.
Aí temos, pois, uma previsão de que os próprios trechos literais, os fatos narrados, as parábolas, tudo
o que ficou cristalizado na letra das Escrituras, deve ser transformado pelo Espírito em "cabeças de
ângulo", com interpretações profundas, pois só assim poderão produzir frutos na época própria.
Por isso não tememos fazer essas interpretações, inteiramente novas, que vimos fazendo nesta obra.
São tentativas de transformar as pedras rejeitadas em cabeças de ângulo.
Com isso, estamos tentando a seleção dos seres que, de futuro não muito longínquo, deverão receber o
Cristo de volta entre nós, quando Sua Santidade o Espírito se dignar atender aos chamados que ansi-
osamente todos Lhe fazemos, repetindo com o Apocalipse (22:20): "Vem, Senhor Jesus"! E também
estamos tentando preparar as criaturas, já amadurecidas, para receber de volta o Cristo QUE NAS-
CERÁ NELAS MESMAS. Essas criaturas que, sequiosas de Espírito, repetem as palavras proféticas
do Vidente de Patmos. “Vem, Senhor Jesus"!

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C. TORRES PASTORINO

A MOEDA DE CÉSAR

Mat. 22:15-22 Marc. 12:13-17 Luc. 20:20-26

15. Indo, então, os fariseus, 13. E enviaram a ele alguns dos 20. E observando, enviaram
tomaram conselho como o fariseus e dos herodianos, (pessoas) desleais, que fin-
embaraçariam numa dou- para que o embaraçassem giam ser justos, para em-
trina. numa doutrina. baraçá-lo em doutrina dele,
de forma que pudessem en-
16. E enviaram os discípulos 14. E vindo, disseram-lhe:
tregá-lo ao governo e ao
deles com os herodianos, "Mestre, sabemos que és
poder do procurador.
dizendo: Mestre, sabemos verdadeiro e não te impor-
que és verdadeiro e ensinas tas de ninguém, pois não 21. E interrogaram-no, dizen-
o caminho de Deus em ver- olhas os rostos dos homens, do: "Mestre, sabemos que
dade, e não te importas de mas ensinos o caminho de falas certo e ensinas, e não
ninguém, pois não olhas os Deus em verdade; é lícito observas o rosto, mas ensi-
rostos dos homens. dar o tributo a César ou nas em verdade o caminho
não? Damos, ou não da- de Deus:
17. Dize-nos, então, que te pa-
mos?"
rece: é lícito dar o tributo a 22. é-nos lícito dar o tributo a
César ou não? 15. Vendo ele, porém, a hipo- César, ou não?
crisia deles, disse-lhes: 23. Subentendendo, porém a
18. Conhecendo, porém, Jesus,
"Por que me tentais? Tra-
a malícia deles, disse: "Por astúcia deles, disse-lhes:
zei-me um denário para
que me tentais, hipócritas? 24. "Mostrai-me um denário.
que (o) veja".
19. Mostrai-me a moeda do De quem tem a imagem e a
16. Eles trouxeram. E disse-
tributo". Eles trouxeram- inscrição"? Eles disseram:
lhes: "De quem é esta ima-
lhe um denário. De César.
gem a inscrição"? Eles dis-
20. E disse-lhes: "De quem é a seram-lhe: De César. 25. Ele disse-lhes: "Então de-
imagem e a inscrição"? volvei o de César a César, e
17. Então Jesus disse-lhes: "O o de Deus a Deus".
21. Disseram-lhe: "De César"; de César, devolvei a César,
Então disse-lhes: "Devol- e o de Deus, a Deus". E 26. E não puderam apanha na
vei, pois, o de César, a Cé- admiraram-se dele. palavra dele diante do
sar, e o de Deus, a Deus". povo; e admirados pela
resposta dele, calaram-se.
22. E ouvindo, admiraram-se e,
deixando-o, retiraram-se.

Tal como já lemos em Mateus (12:14), o Sinédrio reuniu-se em Conselho (symbólyon élabon), para
estudar o melhor modo de embaraçar Jesus, obrigando-O a pronunciar-Se de tal forma, que pudesse ser
apanhado em armadilha, para ser condenado. A embaixada oficial do Sinédrio (fariseus, escribas e
anciãos) fora posta fora de combate, com a resposta a respeito do poder de Jesus e, logo a seguir, com
a alusão clara à perda do cetro religioso por parte dos judeus. Reúnem-se, então, e resolvem pegá-Lo
numa emboscada que lhes pareça infalível. Mas eles mesmos não podiam voltar, porque já eram co-
nhecidos de Jesus e do povo. Que fazer?
Resolveram mandar pessoas desconhecidas. Escolheram discípulos seus (talmidê hakhâmim), que seri-
am acompanhados por herodianos, que poderiam acusar logo que fosse proferida qualquer palavra

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SABEDORIA DO EVANGELHO

ofensiva aos dominadores romanos. Eram chamados "discípulos dos fariseus" os que cursavam a Es-
cola Rabínica, antes de obter o título final de "Rabino" (ou Rabbi). Os herodianos eram judeus fiéis a
Herodes, que muita questão faziam de unir-se aos romanos, aplaudindo-os, embora os não suportas-
sem, só para não perderem as posições conquistadas. Os fariseus eram inimigos dos herodianos, que
eles desprezavam, mas decidiram unir-se a eles, para terem testemunhas insuspeitas perante as autori-
dades romanas.

Figura “A MOEDA DO TRIBUTO” – Desenho de Bida, gravura de A. Mouilleron

Com efeito, a reunião chegara a esse resultado: era necessário preparar-Lhe uma armadilha tal, que O
apanhassem de qualquer forma. Os verbos empregados pagideúsôsin (Mateus e Lucas) e agreúsôsin
(Marcos) pertencem ao vocabulário de caça: "apanhar em armadilha ou laço" (pagís). Para isso, era
mister que Jesus firmasse uma doutrina (lógos) que O comprometesse perante o procurador romano
(hêgemôn, como em Mat. 27:2 e At. 23:24, 26), ou perante Seus seguidores.
A pergunta foi escolhida com cuidado e os emissários bem treinados.
Apresentaram-se respeitosos e dirigiram-se a Jesus dando-Lhe o título de Mestre, no sentido de "pro-
fessor" (didáskale), fazendo um preâmbulo bem preparado, em que elogiavam exatamente Sua fran-
queza e honestidade doutrinária, Sua coragem e desassombro diante de todos, não "olhando os rostos",
isto é, não tendo "respeitos humanos", sem ligar à posição social, aos cargos, à riqueza, etc.; de tudo
isso sobejas provas havia.
Embora todos os judeus pagassem os impostos e tributos aos romanos, faziam-no a contragosto. Judas
o Gaulanita já pregara abertamente contra os tributos exigidos por Quirinius (cfr. Flávio Josefo, Ant.
Jud. 18, 1, 1 e Bell. Jud. 2, 8, 1 e 17, 8) dizendo que isso constituía crime de lesa-majestade contra a

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C. TORRES PASTORINO

soberania única de Deus. Não deviam os judeus pagar tributos aos homens, mas apenas o Templo tinha
direito de cobrá-los, porque era a representação de Deus.
A questão, portanto, foi sobre a liceidade do pagamento do tributo. Que eram obrigados a pagar, não
havia dúvida. Mas diante da consciência, era lícito? Dizer SIM, incompatibilizaria Jesus com todos os
judeus, que o desacreditariam como o messias. Dizer NÃO era a condenação certa como revoltoso
contra Roma, e lá estavam os herodianos para testemunhar contra Ele.
A pergunta foi feita de forma a só poder ter duas respostas: sim ou não. Impossível escapar: "é-nos
lícito dar o tributo a César, ou não? Damos ou não damos"?
Jesus percebe a malícia e o declara: "por que me tentais, hipócritas"?
Começa, então, a preparar a resposta, numa dialética perfeita. Pede uma prova concreta: quer ver a
moeda do tributo (e aqui se percebe a ironia).
As "regras do jogo" exigiam que, mesmo se Ele a tivesse consigo, devia pedir que a prova fosse trazida
pelos adversários. Trouxeram-na.
Vem a segunda investida. Jesus estava farto de saber que a imagem ou efígie (eikôn) era de César, as-
sim como a inscrição (epigraphê). Mas ainda aqui era preciso que eles o dissessem. E disseram: "é de
César". Jesus os tinha na mão: o adversário confessava que a moeda do tributo (o denário) era romana.
Tudo estava pronto para a resposta. E Jesus calmamente conclui:
- Então devolvei o que é de César a César, e o que é de Deus, a Deus!
Traduzimos apódote por "devolver", sentido real, sem dúvida muito melhor que o dai das traduções
correntes.
Com essa resposta, que nenhum deles esperava, Jesus estabeleceu irrecusavelmente a doutrina do res-
peito à autoridade civil legitimamente constituída, tema que seria desenvolvido mais tarde por Paulo,
na carta aos romanos (13:1-8).
Anotemos que a palavra alêthês ("verdade") é empregada, nos sinópticos, apenas neste trecho, embora
João a use com larga frequência. Também o termo de Marcos (agreúsôsin) é hápax neotestamentário.
Diante dessa resposta, os emissários "murcharam" e não mais puderam abrir a boca. Mas intimamente
admiraram Sua sabedoria. E retiraram-se, olhando uns para os outros ...
Só tinham mais um recurso: era confiar a missão aos saduceus, que tentariam ver se O confundiam.
Vê-lo-emos no próximo capítulo.

Perfeitas todas essas deduções. Procuremos meditar.


A "moeda do tributo", cunhada no metal, representa o corpo humano, moldado em células de matéria
orgânica. Tem, pois, a efígie de seu possuidor, e seu nome em epígrafe. Ora, se o corpo possui grava-
do a imagem da personalidade, é porque pertence a ela, e a esse corpo devem ser prestados os servi-
ços de que ele carece. Nada do que lhe pertence deve ser-lhe negado.
No entanto, o Espírito, "partícula" divina, tem sua parte. E não será lícito prejudicar um em benefício
do outro. Nem tirar de César (do corpo) para dar ao Espírito, nem tirar de Deus (o Espírito) para dar
ao corpo.
A divisão é nítida: devolver ao corpo tudo o que este nos tiver dado de experiências e lições, e tratá-lo
com o cuidado de que necessitar. Mas sem lesar a parte devida ao Espírito.
Daí o equilíbrio indispensável em nosso comportamento, sem exageros nem para um lado nem para o
outro. Porque, no final das contas, o Espírito é que se condensou no corpo: a autoridade divina é que
se manifesta em César.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Outra lição que podemos aprender, refere-se aos grupos. Muito comum que se misturem negócios de
César nos setores divinos. Em outros termos, que as instituições espiritualistas se fundamentem no
reinado de César.
Lógico que, estando num planeta material, cujo valor de troca é a moeda de César, as organizações
espiritualistas necessitem dessa parte para atuar no mundo. Mas pensamos- salvo erro - que essa
parte deva ser conquistada "com o suor do rosto", e não constituída apenas pelo resultado de apelos e
doações. Daí acharmos que todas as agremiações que tratam do Espírito deveriam possuir a látere
uma indústria puramente comercial que sustentasse a obra, onde trabalhariam dando seu tempo e seu
esforço os dirigentes da obra, mas sem que houvesse mistura de uma em outra (1).
(1) Pondo em prática esse pensamento, dirigimos, para sustentar nossas publicações, a revista, etc.,
uma Agência de Publicidade, cujo lucro reverte para cobrir o déficit das edições. O mesmo ocorre,
por exemplo, com o "Lar Fabiano de Cristo", que sustenta milhares de crianças através da CAPE-
MI (Caixa de Pecúlio dos Militares-Beneficente), onde os diretores de ambas trabalham sem per-
ceber nenhum salário.

A idéia de "fazer caridade" na dependência da "caridade" dos outros, pode ser cômoda e até pode
estar certa. Mas não "sentimos" assim, por acharmos que, da mesma forma que, com nosso trabalho
provemos a alimentação física de nossos filhos, também com nosso trabalho devemos prover a ali-
mentação espiritual de nossos irmãos.
* * *
Mas cremos que a lição principal é puramente simbólica e mística, não literal nem alegórica.
Vimos que a moeda, que tem duas faces, traz o cunho de uma personalidade: a efígie que retrata a
criatura que foi plasmada pelo Espírito. Além da efígie aparece a inscrição (epígrafe), com o nome
atribuído a essa personagem no curso da evolução no planeta Terra.
Ora, a personagem é a condensação do Espírito, e o representa na Terra, tal como a moeda é a con-
densação de um valor convencional, garantido pela autoridade e poder da pessoa cuja imagem nela
se encontra gravada. E tal como a moeda passa de mão em mão, sempre adquirindo benefícios para
quem a possua, assim a personagem vai de contato em contato, comprando experiências para o Espí-
rito, que a criou e possui .
O valor da moeda, convencional, está inscrito nela. Assim o valor do Espírito também se encontra
manifesto na personagem: ora elevado, ora baixo. De acordo com a evolução do Espírito, assim será
o valor gravado na personagem. Daí podermos avaliar mais ou menos um, pela expressão do outro.
Lógico que a moeda não é César, mas o representa. Assim, embora sendo a condensação do Espírito,
a personagem não é ele, mas apenas o representa, materializado no mundo.
Temos, então, três graus, sobre os quais fala o Mestre: a moeda, César e Deus. Assim também temos
três graus nessa simbologia: a personagem, a individualidade e o Deus-Imanente-Transcendente.
A moeda, em si mesma, nada vale, pois seu valor é somente convencional e transitório, tal como as
personagens humanas, que como meteoros passam sobre a Terra, muitas vezes atribuindo-se um valor
que não possuem absolutamente ... A individualidade (César) tem valor bem maior pois constitui a
garantia subjacente do valor da moeda (personagem). À individualidade devemos restituir aquilo que
lhe pertence: as experiências adquiridas, o aprendizado conquistado. Mas o Supremo Bem, a Verdade
total, e a Beleza Perfeita, Deus, jamais pode ser omitido.
Vale a moeda (personagem) só enquanto tem, entre os homens, o curso garantido pela individualidade
eterna. Mas o que valoriza esta é a Centelha Divina, que a sustenta, constituindo-lhe a essência pro-
funda.
Compreendemos, portanto, a lição nesse sentido muito mais amplo, nesse nível muito mais elevado. É
mister que jamais deixemos de devolver, por meio da personagem (moeda) o tributo devido à indivi-

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dualidade (César) e o tributo devido a Deus: vida espiritual absoluta, na qual a personagem terrena
(moeda) simboliza apenas o "meio-de-troca" ou a expressão-do-tributo.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

A RESSURREIÇÃO

Mat. 22:23-33 Marc. 12:18-27 Luc. 20:27-39

23. Naquele dia chegaram a ele 18. E chegaram uns saduceus a 27. Chegando, porém, alguns
uns saduceus, dizendo não ele, os quais dizem não ha- dos saduceus, que negavam
haver ressurreição, e per- ver ressurreição, e pergun- haver ressurreição, pergun-
guntaram-lhe, taram-lhe, dizendo: taram-lhe,
24. dizendo: Mestre, Moisés 19. Mestre, Moisés escreveu- 28. dizendo: Mestre, Moisés
disse: Se alguém morrer, nos que se algum irmão nos escreveu: se algum ir-
não tendo filhos, o irmão morrer e deixar mulher e mão morrer tendo mulher e
dele casará com a mulher não deixar filho, que o ir- esse seja sem filho, que o
dele e ressuscitará a semen- mão dele tome a mulher e irmão dele tome a mulher e
te de seu irmão. suscite uma semente para suscite a semente a seu ir-
seu irmão. mão.
25. Ora, havia sete irmãos, en-
tre nós, e o primeiro, casa- 20. Havia sete irmãos; e o pri- 29. Havia, pois, sete irmãos, e o
do, morreu, não tendo se- meiro tomou mulher e, primeiro tomou mulher e
mente, e deixou a mulher morrendo, não deixou se- morreu sem filho,
dele a seu irmão. mente. 30. e o segundo
26. Igualmente o segundo e o 21. E o segundo tomou-a e 31. e o terceiro tomaram-na, e
terceiro, até o sétimo. morreu e não deixou se- igualmente os sete não dei-
mente; e o terceiro igual-
27. Depois de todos, morreu a xaram filhos e morreram.
mente.
mulher. 32. Por último também a mu-
22. E os sete não deixaram se-
28. Na ressurreição, pois, de lher morreu.
mente. Por último de todos
qual dos sete será a mu-
também a mulher morreu. 33. Na ressurreição, pois, a
lher? Pois todos a tiveram. mulher de qual deles se
23. Na ressurreição, de qual
29. Respondendo, porém, Jesus tornará esposa? Pois os sete
deles será a mulher? Pois
disse-lhes: "Enganai-vos, a tiveram como mulher.
os sete a tiveram como
não sabendo as Escrituras 34. E disse-lhe Jesus: "Os fi-
mulher.
nem a força de Deus, lhos deste eon casam-se e
24. Disse-lhes Jesus: "Não é
30. pois na ressurreição nem se dão-se em casamento,
por isso que vos enganais,
casam nem se dão em ca-
não sabendo as Escrituras 35. mas os dignos de participar
samento, mas são como os daquele eon e da ressurrei-
nem a força de Deus?
anjos no céu. ção dos mortos, nem se ca-
25. Pois quando ressuscitarem
31. Quanto, porém, à ressur- sam nem se dão em casa-
dos mortos, nem se casarão
reição dos mortos, não les- mento,
nem se darão em casamen-
tes o dito pelo Deus a vós,
to, mas são como anjos nos 36. pois já nem podem morrer,
dizendo: pois são quais anjos e são
céus.
32. Eu sou o Deus de Abraão, e filhos de Deus, sendo filhos
26. Mas quanto aos mortos que
o Deus de Isaac, e o Deus de da ressurreição.
se reerguem, não lestes no
Jacó? Não é o Deus de mor-
livro de Moisés, na sarça, 37. Que os mortos se reerguem,
tos, mas de vivos". também Moisés revelou na
como lhe disse Deus: Eu
33. E ouvindo, as multidões sou o Deus de Abraão, o sarça, como disse: O senhor

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maravilhavam-se acerca do Deus de Isaac, o Deus de Deus de Abraão, e Deus de


ensino dele. Jacó? Isaac, e Deus de Jacó.
27. Não é um Deus de mortos, 38. Deus, contudo, não é de
mas de vivos: muito vos en- mortos, mas de vivos, pois,
ganais”. para ele, todos vivem".
39. Respondendo, porém, al-
guns dos escribas disseram:
Mestre, falaste bem!

Chegou a vez dos saduceus. Salomão (cfr. 1.º Reis, 2:35) constituiu Sadoc (Zadok) sacerdote. Era da
tribo de Levi. E seus descendentes assim ainda se mantiveram, como atesta Ezequiel (40:46) fiéis a
YHWH, para servi-lo. Quando foram condenados outros elementos e famílias levitas, YHWH abriu
uma exceção para os saduceus: "mas os sacerdotes levitas, filhos de Sadoc, que cumpriram as funções
prescritas de meu santuário, quando os filhos de Israel se desviaram de mim, esses se chegarão a mim
para servir-me" (Ez. 44:15). Já no tempo de Jesus estava bem firmado o partido político-religioso dos
saduceus, que constituíam a aristocracia sacerdotal entre os judeus, dificilmente "descendo" a discutir
com a plebe: os doutores, fariseus e anciãos é que agitadamente tomavam a si essa tarefa.
A questão proposta ao Rabi Nazareno era, provavelmente, velha objeção jamais solucionada, e argu-
mento irrespondível, quando apresentado aos fariseus e doutores para combater a "ressurreição".
Strack e Billerbeck (o.c. t.3, pág. 650) cita o Tratado Jebannoth (4, 6b, 35) que traz um desses "casos":
eram treze irmãos, sendo doze casados, mas todos estes morrem sem filhos; o décimo terceiro recebe
as doze viúvas e fica, com cada uma, um mês do ano; após três anos, está com trinta e seis filhos. Eram
"casos" que visavam a demonstrar o "absurdo" da ressurreição.
Os casos citados prendem-se à chamada "Lei do Levirato" (Núm.25:1-10): "Se irmãos moram juntos e
um deles morrer e não tiver filhos, a mulher do defunto não se casará com gente estranha, de fora; mas
o irmão de seu marido estará com ela, recebê-la-á como mulher fará a obrigação de um cunhado, com
ela".
Chamamos a atenção do leitor para o que escrevemos atrás (vol. 6): o adultério só existia para as mu-
lheres.
A questão foi proposta, e a resposta aguardada ansiosamente.
Sem alterar-se, diz-lhes Jesus que "não conhecem as Escrituras, pois quando os espíritos se erguem
(ressurgem) abandonando os corpos cadaverizados, são COMO os anjos do céu: nem (os homens) se
casam, nem (as mulheres) se dão em casamento". Essa resposta, porém, constituía uma afirmativa teó-
rica, que podia ser aceita ou recusada de plano.
Sabendo disso, Jesus traz um argumento irrespondível, citando exatamente uma frase do Êxodo (3:6),
pois os saduceus só aceitavam o Pentateuco como divinamente inspirado. Aí se encontra a palavra de
YHWH: "Eu sou o deus de Abraão, o deus de Isaac, o deus de Jacob". Ora, os três já haviam morrido,
para a Terra. No entanto, YHWH - afirma Jesus de acordo com a crença dos fariseus - não é um deus
de mortos, mas de vivos.
A resposta foi tão inesperada e tão fantasticamente irretrucável, que os próprios escribas não puderam
conter-se e elogiaram de público o adversário: “Mestre, falaste bem"!
Em Lucas há dois pormenores que chamam a atenção: "os filhos deste eon casam-se ... mas os dignos
de participar daquele eon e da ressurreição dos mortos, não; pois nem mais podem morrer, sendo
QUAIS anjos, filhos de Deus, já que são filhos da ressurreição".
O outro: "Não é Deus de mortos, mas de vivos, pois para ele, todos vivem".

Aprofundemos o estudo dentro do possível.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Aprendamos, primeiramente, a lição que nos é dada a respeito do reerguimento do espírito, após
abandonar à terra seu corpo imprestável, na chamada "ressurreição dos mortos" (anástasis ek tõn
nekrõn). Note-se, de passagem, que jamais fala o Novo Testamento em ressurreição DA CARNE in-
venção muito posterior; só fala em ressurreição "dos mortos", valendo esse DOS como ponto de par-
tida, ablativo (em inglês from).
A distinção é feita com a palavra eon (aiôn), opondo-se este eon, ao que vem após, aquele eon: dois
estágios da mesma vida contínua, eterna, indestrutível. Neste eon, mergulhados na matéria, há neces-
sidade do uso de uniões sexuais para que se propague a humanidade, evitando o desaparecimento da
espécie humana. Imperativo biológico, imposto pela natureza a todos os seres.
No entanto, alguns são dignos de participar daquele eon e da ressurreição dos mortos. Se só alguns
são dignos, isto quer dizer quem nem todos o são, e por isso, nem todos ressurgem. Como seria isso?
Sabemos que a grande massa de catalogados como pertencentes à espécie hominal, na realidade ain-
da não atingiu plenamente esse estágio, pois se acha pouco acima da escala animal não racionaliza-
da. São seres recém-saídos do reino animal, que "ainda não têm espírito" (Jud. 19), isto é, que ainda
não tomaram consciência de serem espíritos, mas se julgam somente "o corpo". Estes, quando perdem
esse corpo e o largam no chão da terra, permanecem adormecidos, (como os bichos), com vaga per-
cepção de que existem, mas incapazes de pensar. Apenas "sentem" sensações (etérico) e emoções (as-
tral). O intelecto não está ainda firmado independentemente. Por isso, vão e voltam de seguida, auto-
maticamente, para reaver outro corpo, para o qual se sentem irresistivelmente atraídos. Isso ocorre
com os animais já individualizados e com os seres humanos ainda animalizados, que constituem a
imensa maioria da massa terrestre. Ainda "não são dignos", por incapacidade intelectiva á evolutiva
de verdadeiramente ressurgir, ou seja, de - fora da matéria poderem levar vida indepente, livre e
consciente.
Não se trata, pois somente de dignidade moral, mas de capacidade evolutiva (kataxiôthéntes, de ka-
tarióô, "julgo alguém digno de algo"). Ninguém pode ser digno de receber alguma coisa que não en-
tenda.
Dessa forma não chegam a viver no plano astral: apenas vegetam, aguardando o novo e inevitável
mergulho na matéria densa. E não "vivem"; mas continuam "mortos": então, não ressurgiram dos
mortos! Incapacidade por atraso, por involução. Não são dignos por não terem aquele mínimo grau
de evolução necessária.
Aqueles, todavia, que já alcançaram um grau evolutivo que os faça perceber seu novo estado no mun-
do astral; aqueles que despertam fora do corpo, consciente de si, e portanto vivem "naquele eon",
esses "são dignos de ressuscitar": afastam-se, de fato, de seus cadáveres que debaixo da terra apodre-
cem, erguem-se (egeírô) realmente do meio dos outros "mortos", e penetram na vida espiritual seme-
lhante à dos mensageiros divinos. Sabem que são filhos de Deus. Sabem que são homens ressuscitados
("filhos da ressurreição"). Sabem que jamais morrerão: estão vendo que não existe a morte. Sabem
que não há necessidade, para eles, nesse novo estado, de uniões sexuais, e que todo amor é sentimen-
to, mais que emoção. E sabem que o amor é a chave da vida. Preparam-se, então, para futuros en-
contros no planeta denso, para recomeçarem suas experiências de aprendizado ou de resgate.
A propósito, encontramos um trecho de um livro ainda inédito do Professor Pietro Ubaldi (cap. 16, "O
Meu Caso Parapsicológico", da obra "Um Destino Seguindo Cristo"), que vem confirmar tudo isso.
Escreveu ele:
"Nos primitivos não desenvolvidos no supraconsciente, ativos apenas no plano físico, a vida é somente
a corpórea e a morte dá a sensação da anulação final, e é, por isso, olhada com terror. Mas isso não
quer dizer que eles não sobrevivam. Mas sobrevivem caindo na inconsciência ou ficando com a capa-
cidade de pensar apenas no nível do subconsciente animal, o faz realmente sofrer essa sufocante di-
minuição vital, que é o que torna terrível a morte. Extinto o cérebro, que era a zona dentro da qual
estava limitada toda a consciência que o indivíduo possuía, mentalmente é como se este fosse finito,
mesmo que sobrevivam em seu subconsciente resíduos de reminiscências terrestres. Para tais indiví-
duos, a vida é a do corpo no plano físico, por isso temem perdê-la e, perdida, a procuram, reencar-

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C. TORRES PASTORINO

nando-se para tornar a viver no plano físico deles, o único em que se sentem vivos. Pelo contrário, no
indivíduo que alcançou desenvolvimento mental e nível de consciência psicocêntrico mais avançado
que o normal, a sobrevivência da personalidade, após a morte, advém sem nenhuma perda de consci-
ência, em estado lúcido, sem a sensação da anulação e da morte".
Prossigamos em nosso raciocínio: então, enquanto lá vivem, todos se sentem irmãos, amando-se pro-
funda, sincera e fraternalmente, sem exclusivismos nem ciúmes. Que importa se a mulher pertenceu
corporalmente aos sete? Não é mais de nenhum, pois aquele corpo que foi possuído, não mais existe:
filha da ressurreição, imortalizada no amor universal, semelhante aos angélicos mensageiros do pla-
no astral, compreende que a união de corpos é totalmente superada quando se perdem esses corpos.
O Mestre, entretanto, reforça sua lição, pois é preciso fixar categoricamente o princípio irrecusável
da vida após a morte. E o texto trazido para comprová-lo, jamais fora utilizado pelos rabinos com
essa interpretação espiritual. Mas é taxativo.
Quando Moisés, no Sinai, ouve a voz de seu espírito-guia, YHWH, (naquela época o espírito-guia era
chamado "Deus", conforme vimos no vol. 5), ele deseja saber de quem se trata. E YHWH, sem zangar-
se, identifica-se como sendo o mesmo espírito-guia "de teu pai (Amram), de Abraão, de Isaac e de
Jacob". Não diz: "FUI o deus de" ... mas diz: "SOU o deus de" ... A diferença é sutil, mas filosofica-
mente importante: YHWH continua sendo o espírito-guia ou deus de Amram, de Abraão, de Isaac, e
de Jacob. Então, eles continuam vivos! Quem se daria ao trabalho de querer guiar algo que deixou de
existir (morreu)?
E o acréscimo de Lucas traz um impacto de grandiosidade magnificente e confortadora, numa das
mais sublimes lições, que o Cristo jamais deu aos homens: "para Deus, todos vivem".
Vejamos o original: pántes gàr autôi zôsin. Podemos interpretá-la de quatro maneiras diferentes:
a) "pois para ele (Deus) todos vivem (são vivos);
b) "pois todos vivem para ele (Deus)";
c) "pois todos vivem por ele (Deus)" - considerando-se o autôi como dativo de agente; embora só
seja este usado, em geral, com verbos na voz passiva no perfeito ou no mais que perfeito ou com
adjetivos.
d) "pois todos vivem nele (em Deus)" - caso em que teria que subentender-se a preposição en.

Os dois primeiros significados são traduções literais, rigorosamente dentro da expressão original,
sem nenhum desvio interpretativo; e como procuramos manter sempre o máximo de fidelidade ao ori-
ginal, usamos em nossa tradução o primeiro sentido, que é o mais fiel ao texto, inclusive quanto à
ordem das palavras.
Há que penetrar, portanto, o significado do texto tal como chegou até nós. E, sem a menor dúvida,
para Deus, que é a Vida substante a todas as coisas e a todos os seres, tudo o que existe partilha de
Sua Vida, e logicamente vive. A morte seria o aniquilamento, isto é, a não-existência, o nada. E sendo
Deus TUDO, o nada não pode coexistir onde o Tudo impera: teríamos que imaginar "buracos vazios"
no Todo.
Então, o ensino é perfeito: "para Deus, todos vivem", não importa se revestidos de matéria pesada ou
dela libertos em planos superiores de vibração. Este o sentido REAL da frase.
Mas esse mesmo sentido REAL é consentâneo com o ensino que se oculta nessa idéia: "todos vivem
EM Deus". Se Deus é a substância última de tudo o que existe (pois só Ele É), concluímos licitamente
que tudo existo NELE. Daí a exatidão da frase paulina: "pois todos vivemos nele”, embora aí Paulo
empregue a preposição: en autôi gàr zômen (At. 17:28), a fim de que o sentido de sua frase não ficas-
se dúbio, como ficou no texto de Lucas (autor, aliás, tanto do Evangelho quanto dos Atos. Por que,
num, teria usado a preposição e no outro a teria omitido?).

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Terminada a exposição, procuremos penetrar SENTINDO a sublimidade do ensino, que deve ser sem-
pre repetido, para não correr o risco de ser olvidado e para que aprofundemos dia a dia o alcance
ilimitado de sua expressão.
Aprendamos que nossa vida, que se manifesta de fora, é a exteriorização da VIDA interna, que cons-
titui, simplesmente, a expressão do Deus imanente em nós. Anotemos entrementes que não somos pri-
vilegiados, nós os humanos. Se a vida é comprovada pelo movimento intrínseco, tudo o que vive, se
move por força intrínseca (a força divina); e o corolário brilha legítimo a nossos olhos: tudo o que se
move por impulso íntimo, tem vida.
Se outrora, por ignorância científica, nossos ancestrais negavam movimento intrínseco (e portanto
vida) às matérias inorgânicas (ferro, ouro, pedra, cobre, etc.), verificamos hoje que a classificação
deixou de ter perfeita exatidão, pois desde os átomos, tudo está em celeríssima movimentação por
impulso intrínseco; então, os próprios átomos do ferro, do ouro, da pedra, do cobre, etc., têm vida.
Vida própria? Não: vida cósmica, isto é, vida divina, porque a Divindade lhes é a substância última.
Mas também os seres orgânicos, animais e homens inclusive, não possuem vida própria, pois "todos
vivem NELE", todos usufruem a manifestação da vida de Deus.
Essa VIDA é a Divindade, o Espírito (-Santo), que se manifesta em Som (Palavra, Verbo, Logos, isto é
VERDADE), o qual, por sua vez, se manifesta em movimento intrínseco, que cria e sustenta tudo, ao
qual denominamos o CRISTO Cósmico: é o movimento "Permeado" ou "Ungido" (Cristo) pela VIDA
VERDADEIRA.
Isso não é criação nossa: o próprio Cristo, manifestado em Jesus, o ensinou quando disse: "EU (o
Cristo) sou o CAMINHO DA VERDADE (da Palavra ou Logos) e DA VIDA (Espírito)" (João, 14:6).
É assim que, iluminada pela Luz, a humanidade pode entrever a grande REALIDADE e descobrir o
rumo, estabelecer a rota, demarcar o roteiro, e seguir adiante, até atingir a meta: luzes ofuscantes que
nos apresenta a Beleza Divina!

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O GRANDE MANDAMENTO

Mat. 22:34-40 Marc. 12:28-34a

34. Mas os fariseus, ouvindo que silenciara os 28. e chegando um dos escribas, tendo ouvido a
saduceus, reuniram-se em grupo discussão deles, e vendo que belamente lhes
respondera, perguntou-lhe: Qual o primeiro
35. e, experimentando-o, um deles, doutor da
mandamento de todos?
lei, perguntou:
29. Respondeu Jesus: "O primeiro é: Ouve, Is-
36. Mestre, qual o grande mandamento da lei?
rael, um Senhor é nosso Deus, o Senhor é
37. Ele disse-lhe: "Amarás o senhor teu Deus um,
com todo o teu coração, com toda a tua alma
30. e amarás o Senhor teu Deus com todo o teu
e com toda a tua inteligência;
coração, e com toda a tua alma, e com todo
38. este é o grande e primeiro mandamento. o teu intelecto, e com toda a tua força.
39. Mas o segundo é semelhante a este: Amarás 31. O segundo é: Amarás o teu próximo como a
o teu próximo como a ti mesmo. ti mesmo. Não há outro mandamento maior
40. Nestes dois mandamentos, toda a lei e os que estes".
profetas estão suspensos. 32. e disse-lhe o escriba: Bem disseste, Mestre,
na verdade, que Um é, e não há outro além
dele,
33. e o amá-lo com todo o coração e com toda a
inteligência, e com toda a força, e o amar ao
próximo como a si mesmo, é maior que to-
dos os holocaustos e sacrifício".
34a E vendo Jesus que inteligentemente res-
pondera, disse-lhe: "Não estás longe do
Reino de Deus".

Já haviam todas as classes feito o interrogatório: fariseus, seus discípulos, herodianos, escribas e sadu-
ceus. Todos haviam ficado inibidos diante da prontidão das respostas e da Sabedoria que revelavam.
Adianta-se, então, um doutor da lei, que Mateus classifica como nomikós (única vez que nele aparece
esse título, embora Lucas o empregue seis vezes), que exprimia uma classe diferente e mais elevada
que os simples escribas (grammateús). Os nomikói eram quase juristas, exegetas, ou mesmo "doutores"
no sentido legítimo da especialidade das leis.
Pelo que lemos em Marcos, estava admirado da Sabedoria de Jesus (talvez fosse um dos que O haviam
elogiado abertamente: "falaste bem” (Luc. 20:39). Quer "experimentá-Lo (peirázôn), aqui mais no
sentido de "senti-Lo". E pergunta qual o grande mandamento (Mat.) ou o primeiro (Marc.), que ante-
cede os demais.
Ora, os "mandamentos" eram exatamente 613, sendo dois "yahwistas" que rezavam: "Eu sou o Senhor
teu Deus", e "Não adorarás outro Deus além de mim". E mais 611 "mosaicos". Observe-se que a pala-
vra que exprime "lei" é TORAH, e como os números, em hebraico, são expressos com as letras do al-
fabeto (veja "Sabedoria" número 57, de setembro de 1968), temos exatamente que TORAH dá a soma

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SABEDORIA DO EVANGELHO

611, ou seja: thau = 600; vau = 6; resh = 200 e hê = 5 (600 - 6 + 200 + 5 = 611). Desses 613 manda-
mentos, 248 eram positivos ("faze" miswôth 'aséh) e 365 negativos ("não faças" miswôth lô ta 'aséh).
Jesus cita as palavras de Deuteronômio (6:4), - apenas substituindo forças", do original, por "inteligên-
cia" - que são as primeiras do Shêma. O shêma (é a primeira palavra do trecho que significa "escuta")
era constituído dos seguintes textos: Deut. 6:4-9; 11:13-21; Núm. 15:34-41. Nos manuscritos e nas
Bíblias em hebraico, a letra 'ayn, da palavra shêma ("escuta") e o dálet da palavra 'ehâd ("um") são
escritas em tamanho maior, a fim de destacar a importância do versículo; essas duas consoantes unidas
compõem o vocábulo 'êd ("testemunha") porque Israel deve ser a testemunha de YHWH diante dos
povos.
Todo israelita deve recitar esses textos duas vezes por dia, de manhã, ao nascer do sol, e à tarde, ao
sol-pôr. Por isso, escreviam-nos em pergaminho, que colocavam em caixetas, presas a correias. Estas
eram amarradas em torno do antebraço esquerdo, na altura da coração, e na testa, entre os olhos: é o
chamado tephillin ("orações") em aramaico, totaphôt em hebraico e phylacterion ("amuleto") em gre-
go.
O hábito de pendurar o philactérion vem da interpretação literal do Deuteronômio (6:8) quando, ao
falar dos mandamentos, lá se acha escrito: "amarrá-los-ás em tua mão para te servir de sinal e serão
como um frontal entre teus olhos" (cfr. Êx. 13:9). Jerônimo, já na 4.º século anota (Patrol. Lat. vol. 26,
col. 168) que essas palavras são metafóricas, e não devem ser interpretadas à letra, como faziam as
"beatas" de seu tempo (superstitiosae muliérculae), que carregavam ao peito cruzes, livretos, "breves",
etc.
As palavras citadas por Jesus eram sabidas de memória por qualquer israelita. No entanto, por sua
conta, sem ser interrogado, acrescenta o "segundo" mandamento, o amor ao próximo, prescrito por
Moisés (Lev. 19:18). E sublinha, com ênfase, que, "pendurados" (krématai) nestes dois mandamentos
estão toda a lei e os profetas, pois não há outro mandamento que seja maior que estes.
O doutor da lei rendeu-se de corpo e alma, como bem anotou Victor de Antióquia no 5.º século: abriu-
se seu espírito para receber o impacto do fluxo crístico, e elogia o Nazareno diante de todos os seus
colegas: "Mestre, disseste bem, na verdade, que UM é". Como bom israelita, não podia proferir o
nome sagrado.
E conclui: "Amar a Deus e ao próximo vale mais que todos os holocaustos e sacrifícios". E aqui de-
monstra concordar com o que disseram os profetas (cfr. 1.º Sam. 15:22; Prov. 21:3; Jer. 7:21-23; Os.
6:6).
Jesus penetra-o com olhar profundo e atesta: "Não estás longe do Reino de Deus"!

Diante dessa lição categórica deveriam terminar - se os homens tivessem real evolução - todas as dis-
cussões e distinções religiosas. Que importa se alguém presta homenagem a Deus de modo diferente
do que eu faço? O que importa é amá-lo acima de tudo, com todo o coração (Kardía, Espírito), com
toda a alma (psychê, sentimento) e com toda a inteligência; (diánoia, racionalidade). São as três divi-
sões clássicas: o coração que representa a Centelha Divina, que se individualiza em pneuma (Espíri-
to); a alma que exprime a vida que o espírito fornece à personagem, e a inteligência como símbolo
dessa mesma personagem incarnada, na qualidade de sua faculdade mais elevada e dirigente do cor-
po físico (sôma).
O ensino joga em profundidade, recomendando a fidelidade absoluta e o amor total ao nosso deus:
ama o TEU DEUS. Onde e quando não havia possibilidade de aprofundamentos teológicos a respeito
da Divindade (o Absoluto Imanifestado), mister se tornava uma representação palpável e sensível, na
pessoa do Espírito-Guia da raça: YHWH. Toda Revelação tem que ser feita proporcionalmente à ca-
pacidade daqueles que a recebem, senão se perde. Não pode ensinar-se cálculo integral nem teoria
dos "quanta" a. quem ainda se esforça por decorar a tabuada de multiplicar . Não há cabimento em
teorizar com argumentos metafísicos diante de espíritos primários. O aprofundamento era reservado

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aos discípulos da Assembléia do Caminho. E justamente porque o "doutor da lei" deu mostra de haver
penetrado o âmago do ensino, diz-lhe o Mestre que "não se acha longe do Reino de Deus".
A sequência dada por Jesus aos dois mandamentos é de molde a fazer, nos compreender que a ligação
é íntima entre eles. O "nosso" Deus habita em cada um de nós. Cada criatura, pois, é a manifestação
de "nosso" Deus. E como ainda não conseguimos amar sem conhecer (nihil vólitum quin cógnitum), e
como é impossível a nós, seres finitos, "conhecer" o infinito temos que amar o "nosso" Deus com todo
nosso Espírito, nossa Alma e nossa inteligência, POR MEIO DO AMOR A NOSSO PRÓXIMO, que é
também a exteriorização do "nosso" Deus.
Qualquer outro preceito é secundário, e nada vale, se este não for vivido a cada minuto-segundo de
nossa vida.
Ações externas - holocaustos e sacrifícios, preces e reuniões mediúnicas, missas e cultos, pregações e
esmolas - nada valem, se não estiverem "penduradas" (como é expressivo o termo krématai!) nesse
mandamento maior , primeiro e básico. O amor é superior à oração: "se estiveres no altar ... e te lem-
brares que teu irmão tem alguma queixa contra ti, vai primeiro reconciliar-te com teu irmão, e depois
vem orar" (Mat. 5:23-25). Leia-se, também, 1.ª Coríntios, capítulo 13.
O discípulo que SABE isso e que já consegue VIVER esses preceitos, desconhece raivas, despeitos,
ofensas, desprezos, vaidade, mágoas, ressentimentos, numa palavra, todas essas infantilidades, tão
próprias do homem do mundo, cuja personalidade cresce em prejuízo do Espírito. O discípulo deve
amar a Deus acima de tudo, tudo perdoando, tudo relevando, tudo compreendendo, porque seu amor
a Deus é superior a qualquer contingência. Por isso, não trairá jamais a tarefa que lhe foi confiada,
não a abandonará e não a desviará de sua meta, ainda que tenha que carregar sozinho sua cruz, mor-
rendo para o mundo: renascerá para a plena vida do amor espiritual!
A humanidade precisa compreender o que é "amar a Deus", o que é entregar-se de corpo e alma, por
amor ao serviço prestado aos semelhantes, distribuindo de si mesmo a seiva do conhecimento e da
própria vida.
O Mestre ensinou e praticou. Deu o preceito e o exemplo. Explicou a lição e viveu-a: abandonado,
perdoou a todos os que o abandonaram (mas que voltaram depois das "dores") e até a quem pretendia
tornar política Sua missão espiritual e mudar os rumos dos acontecimentos que haviam sido prede-
terminados pelas Forças Superiores. Seu Amor tudo superou, porque Seu amor se dirigia, em primeiro
lugar, ao Pai, "acima de tudo", e em segundo lugar "ao próximo; esse amor ao próximo que perdoa,
releva, desculpa e esquece, mas nem por isso se deixa envolver para trair as ordens recebidas do Alto.
O testemunho de Jesus para o doutor, é de que "não estava longe do Reino de Deus": realmente a
compreensão é o primeiro passo para conduzir-nos à ação. E uma vez liberadas as forças ativas do
progresso, a própria lei de inércia não nos deixa mais parar a meio do caminho.
Ensino de alta relevância para as Escolas iniciáticas: a meta está acima de tudo, e TUDO o que atra-
palhar a caminhada deve ser sacrificado, tem que ser dominado, vencido e esquecido.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

FILHO DE DAVID

Mat. 22:41-46 Marc. 12:35-37 e 34b Luc. 20:41-44 e 40

41. Estando reunidos os fari- 35. E respondendo, Jesus disse, 41. Disse-lhes: "Como dizem
seus, perguntou-lhes Jesus, ao ensinar no templo: ser o Cristo filho de David?
"Como dizem os escribas
42. dizendo: "Que vos parece a 42. Pois o próprio David, no
que o Cristo é filho de Da-
respeito do Cristo? De livro dos Salmos, diz: Disse
vid?
quem é filho"? Disseram- o Senhor ao meu Senhor,
lhe: De David. 36. O próprio David falou no senta à minha direita,
espírito, o Santo: Disse o
43. Disse-lhes: "como então 43. até que ponha teus inimigos
Senhor ao meu Senhor,
David, em espírito, cha- escabelo de teus pés.
senta à minha direita, até
mou-o Senhor, dizendo: 44. David, pois, chama-o Se-
que ponha teus inimigos
44. Disse o Senhor à meu Se- sob teus pés. nhor como então é filho
nhor, senta à minha direita, dele"?
37. O próprio David di-lo Se-
até que ponha teus inimigos 40. E não ousavam mais per-
nhor, donde pois, é filho,
sob teus pés? guntar-lhe nada.
dele"? Grande multidão
45. Se, pois, David chama-o ouvia-o com satisfação.
Senhor, como é filho dele"?
34b E ninguém ousava mais
46. E ninguém pode responder- interrogá-lo.
lhe uma palavra, nem nin-
guém ousou mais interro-
gá-lo desde esse dia.

Depois de ter sido posto à prova, como se tivesse sido "examinado" a respeito de Seus conhecimentos,
tendo-Se saído bem de todos os quesitos que Lhe foram propostos, volta-se agora o Mestre e lança
uma só pergunta, dirigida ao grupo de fariseus ali na expectativa. E de tal sutileza foi, que nada pude-
ram responder, nem mesmo conseguiram sair do embaraço com um sofisma! Só o silêncio. Emudece-
ram. E depois disso, "ninguém ousou mais fazer-lhe perguntas": o Mestre estava muito acima de todos
eles, reconheciam-no, e nada adiantava terçar armas de inteligência e de conhecimento. Só poderiam
vencê-lo, como queriam, com as armas da violência. E, como todos os involuídos do Anti-Sistema,
apelaram para a violência, cuidando destruí-Lo, sem sequer desconfiar que essa mesma violência por
eles praticada representava um imperativo histórico, e provocou para Ele a conquista de mais um passo
evolutivo e a vitória total sobre a "morte".
Isso ocorre com frequência entre as criaturas do pólo negativo: pensando que destroem, provocam
evolução; crendo deter, impulsionam maior velocidade; julgando que derrubam, elevam; pretendendo
matar, dão vida mais abundante.
Jesus pede as opiniões deles a respeito do Cristo (no sentido de "messias"). "De quem é filho"? A res-
posta poderia ter sido dada por qualquer pessoa, qualquer criança israelita: filho de David. A referência
é dos protetas: Is. 11:1; Jer. 23:5; 30:9; 33:15; Ez. 34:23; 37:24; Os. 3:5; Amós, 9:11.
Isaías o diz "saído do tronco de Jessé" (l.c.); denomina-o Immanu-ei' ("Deus conosco"); e qualifica-o
de "maravilhoso conselheiro, poderoso Deus, eterno pai, príncipe da paz" (Is. 9:6), que os LXX tradu-
zem como "Anjo do Grande Conselho". Miquéias (5:2) diz que "as saídas do messias são desde os

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tempos antigos, desde a eternidade", e Daniel afirma que o Filho do Homem tem origem celestial e se
apresenta diante do "Ancião dos Dias" (Dan. 7:13). Também os apócrifos dizem o mesmo (cfr. 4.º Es-
dras e Henoch, 37:71).
A exegese bíblica era o "forte" dos fariseus e escribas. Todos os textos eram estudados e perquiridos
(embora, na prática, apenas intelectualmente), mas muitos trechos resultavam obscuros, inexplicáveis,
incompreendidos. É um desses trechos que Jesus sorteia como ponto de exame, embora sabendo que
todos eles "cristalizariam" diante do enunciado da pergunta.
O Salmo (110:1) é citado pelo texto dos LXX: "disse o Senhor ao meu Senhor", pois o texto hebraico
massorético está: "disse YHWH ao meu Senhor".

E a pergunta sibilina: se é filho dele, como o chama Senhor?


Os comentaristas das teologias ortodoxas escapam da dificuldade dizendo simplesmente que em Jesus
há duas naturezas, a humana, descendente de David, e a divina, como segunda pessoa da Trindade.
Entreviram a realidade, mas não na compreenderam in toto, por faltar-lhes dados concretos de um
conhecimento que foi perdido através das gerações, que se voltaram para as exterioridades, perdendo
contato com as liçôes-mestras das iniciações antigas.
Provém a confusão da má interpretação dos textos escriturísticos, tomados à letra e moldados segun-
do teorias prefabricadas, ao invés de serem olhados no sentido em que foram escritos. Daí confundir-
se causa com efeito, atribuindo ao Cristo o segundo lugar ao invés do terceiro, na expressão da Di-
vindade, esquecendo-se, ao mesmo tempo, a imanência, e só se considerando a transcendência. Daí o
conceito distorcido e o privilégio incompreensível, da Divindade imanente só em Jesus, ao passo que
em todas as outras criaturas estava imanente o Diabo, de cujas mãos o messias teria vindo arrancar a
humanidade ...
Essa concepção teológica, basicamente distorcida, foi causa de muitos outros erros consequentes.
Voltando, porém, ao verdadeiro conceito da Trindade considerada em Seus três ASPECTOS (não três
"pessoas" - embora nos primeiros tempos, a palavra "pessoa" em latim e "prósôpon" em grego, signi-
ficassem realmente "aspectos", "aparências"), e colocando a sequência na ordem certa: (1) Espírito
Santo; (2) Palavra Criadora, Som; (3) Cristo (Filho Unigênito), como representação de tudo o que
existe espiritual e material (efeito do SOM que é a causa, e resultado da condensação da LUZ e do
SOM incriados) - tudo se esclarece e explica com lógica irrespondível, de acordo com a verdade (isto
é, com a verdade que pode ser atingida por nós atualmente, da mesma forma que a explicação dada e
que criticamos, era a única verdade possível de ser captada pela evolução dos estudiosos daquela
época).
Atualmente, pelo contato refeito com as doutrinas iniciáticas antigas (sobretudo através do Espiritis-
mo, da Rosacruz e da Teosofia) torna-se clara e evidente a pergunta de Jesus, que distingue categori-
camente o CRISTO, de JESUS (como o fará mais taxativamente ainda no próximo capitulo Mat.
23:10). Baseado na ignorância dos fariseus e escribas não iniciados, coloca-os diante de uma per-
gunta que jamais poderiam responder.
Hoje é compreensível o ensino, pois já foi revelado, não obstante possibilite, ainda, duas interpreta-
ções:
I - CRISTO CÓSMICO
A LUZ (Espírito-Santo), baixando Sua vibração, produz o SOM (Logos, Verbo, Palavra) que, como
PAI, gera as vibrações perceptíveis do CRISTO CÓSMICO (filho realmente UNIGENITO) que dá
origem a tudo ("todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada foi feito", João, 1:3) e sustenta
tudo, porque está imanente, dentro de tudo: "O Verbo (Pai) se fez (transformou-Se em) carne (maté-
ria) e construiu seu tabernáculo dentro de nós" (João, 1:14).

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Esse Cristo Cósmico, portanto, o terceiro aspecto que a Trindade assume, está DENTRO DE TUDO, e
nós O denominamos didaticamente, o Cristo INTERNO, a Centelha Divina, o Átomo Monádico, etc.
Em nós outros, a personagem é demais grosseira e O oculta totalmente, sendo Ele como uma lâmpada
acesa dentro de um revestimento de barro opaco e rude. Em Jesus, ser humano evoluidíssimo, o re-
vestimento da personagem estava purificado: é como uma cobertura de cristal puríssimo, que deixa
ver a lâmpada acesa em seu interior. Por isso, olhando para Jesus, vemos nele O Cristo em todo o Seu
esplendor. Essa visão começou a dar-se quando, em profundo ato de humildade, Ele aniquilou a sua
personalidade, ao submeter-se ao mergulho diante de João Batista, seu inferior hierárquico. Foi a
última renúncia de Jesus, ao seu eu menor personalístico, anulado daí em diante. Por isso, Ele passou
a denominar-se, com justiça, JESUS, O CRISTO.
Daí dizermos que os cristãos das religiões ortodoxas não deixam de ter sua razão, quando afirmam
que em Jesus havia duas naturezas: a humana (Jesus) e a divina (o Cristo). Só que eles limitam a
Jesus esse que lhes parece um "privilégio", quando, ao invés, isso deverá ocorrer com todos os seres.

II - CRISTO-MAYTREA
A segunda interpretação prende-se à Fraternidade Branca - a Hierarquia que se manifesta em Sham-
balla - e que está, no planeta Terra, como representante da Verdadeira Fraternidade Branca Supre-
ma, existente num planeta da constelação de Sírius, constelação que é o núcleo central da molécula de
nosso Universo, molécula denominada pelos cientistas de Galáxia, da qual nosso Sistema Solar é sim-
ples átomo.
Anteriormente, o Cristo Cósmico se tornou visível em outro ser humano, cujo nome é Maytréa, e por
isso também Ele é denominado Maytréa o Cristo.
No Supremo Conselho da Fraternidade Branca de Shamballa, sob a chefia de Sanat Kumara (que a
Bíblia denomina Melquisedek ou o Ancião dos Dias - e em Hebreus (5:6) é dito claramente que Jesus
era "sacerdote da Ordern de Melquisedek, e por meio da 5.ª iniciação, na cruz, se tornou sumo-
sacerdote dessa ordem (Hebr. 5:10 e 6:20 -) existe uma Hierarquia de Seres que dirigem a evolução
do Planeta. Vamos tentar esclarecer, dentro de nossas parcas possibilidades.
O Apocalipse de João, em seu cap. 4.º, descreve a visão que ele teve da sede dessa Fraternidade
Branca no mundo espiritual (Shamballa). Aí viu um trono, "no qual estava sentado UM", e ao lado
desse trono outros vinte e quatro, onde se achavam outros tantos anciãos de vestes brancas, coroados
de ouro: é o que conhecemos como o "Grande Conselho de Shamballa".
Diante do trono havia "sete Tochas de fogo, que são os sete Espíritos de Deus", assim representados
os chefes dos sete Raios; e ainda em redor do trono "quatro Seres viventes", simbolizando os denomi-
nados três Buddhas ("iluminados") mais o Cristo-Maytréa.
Representante dos sete Espíritos de Deus (cfr. cap. 5), e englobando em si a força deles (sete chifres) e
o conhecimento deles (sete olhos), um dos sete sacrificou-se, encarnando na Terra com o nome Jesus,
e por seu sacrifício de amor foi comparado a um Cordeiro que, ao regressar, recebeu as homenagens
de todos e a glorificação merecida.
O "UM", sentado no trono, é, exatamente, o "Ancião dos Dias" ou Melquisedek (Sanat-Kurnara) a
Quem Jesus denomina "O Pai", afirmando ser "UM com Ele".
Segundo essa teoria, alguns místicos - embora aceitando como legítima a primeira tese que expuse-
mos - atribuem a classificação de "Cristo" a um lato diferente. Ou seja, durante o ministério de Jesus
encarnado no planeta, e a partir do mergulho diante de João Batista, o Cristo-Maytréa uniu-se a Ele,
e os dois trabalharam identificados durante aqueles anos. No momento em que Jesus se submetia à
quinta iniciação, na Cruz ("morte de Osíris"), é que o Cristo-Maytréa deixou que Ele galgasse sozinho
esse degrau de tão grande importância, permanecendo-Lhe ao lado, embora não unificado com Ele.
Em conclusão, pois, dizem esses místicos que o atributo "Cristo" é devido à união com Maytréa, e não
pela permeabilização total do Cristo Cósmico em Jesus - ainda que essa permeabilização tenha sido

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C. TORRES PASTORINO

real, mas não perceptível ao ponto de justificar o atributo. A outra união (com Maytréa), sendo mais
fácil de perceber-se, é que lhe provocou o título de Cristo.
Hipótese que pode ser aceita, mas que não invalida a outra. A palavra Christós em grego significa
precisamente "ungido", ou seja "permeado" pela Força Cristônica divina (como ocorre com Maytréa)
e não simplesmente "mediunizado" nem "unificado" a outro ser humano, ainda que esse outro ser es-
teja, ele mesmo, "permeado" pela Força Cristônica.
Julgamos, pois, - salvo erro de nossa parte, o que é bem possível que a primeira tese é mais válida,
sem que afaste a hipótese de que Maytréa o Cristo tenha trabalhado unido a Jesus, o que nos parece
perfeitamente lógico e viável.
*
* *
Por fora desses que, à época, eram "segredos iniciáticos", os letrados nas Escrituras - título que bem
exprime o que eram: intérpretes da letra - não podiam perceber o alcance da pergunta, e calaram. O
ponto sorteado para exame era de curso superior, e eles estavam no curso primário: só o silêncio lhes
cabia.
Mas a tese ficou posta, para que a humanidade, mais tarde, pudesse basear-se nessas palavras a fim
de penetrar o sentido profundo e oculto.
Mas não podemos deixar de salientar o que se diz de David: que falou "em espírito", isto é, mediuni-
zado por um Espírito que era Santo: escreveu divinamente inspirado.
Salientemos, ainda, a diferença importantíssima que existe entre os dois termos: a DIVINDADE AB-
SOLUTA, Suprema e Impenetrável, e DEUS, termo que se refere a um Espírito-Guia.
Os deuses tinham manifestações várias, de acordo com sua evolução própria, desde o Deus-Máximo
da Terra, Melquisedek, o Ancião dos Dias até o Deus Guia-Nacional dos judeus, o "nosso" Deus,
YHWH, e os guias individuais de cada criatura.
A hierarquização é segura e rígida, mas todos, por falta de outro termo, são chamados "deuses": os
elohim que plasmaram como arquitetos o planeta e presidiram à evolução de todos os seres e do ho-
mem, que eles fizeram à sua semelhança; os elohim que dirigiam outras nações, embora alguns bem
atrasados ainda, como Moloch, Baal, etc., de espírito sanguinário; os elohim que dirigiam o Egito, a
Grécia, a Fenícia, a Babilônia, a Caldéia, a Índia, Roma, as Gálias, etc. etc., todos eram denominados
"Deus".
Nem por isso, entretanto, se justifica o crasso erro histórico de classificar esses povos de "politeístas"
no sentido moderno dessa palavra, pois embora os "deuses" (Espíritos-Guias) fossem numerosos, a
DIVINDADE SUPREMA era urna só para todos (a massa ignara do povo é que não entendia isso,
como até hoje).
Eles eram "politeístas", sim, mas no sentido que os antigos emprestavam a esse termo: reconheciam
muitos Espíritos Guias (deuses). E o "monoteísmo" mosaico apenas dizia reconhecer UM ÚNICO ES-
PÍRITO GUIA para todos os israelitas: YHWH, e proibia contato psíquico com outros Espíritos-Guias
"estrangeiros" ...
Todos, porém, - pelo menos os espíritos evoluídos - só aceitavam uma Divindade Suprema e Absoluta.
Nasceu a confusão da ignorância que via, nos Espíritos Guias, a Divindade Máxima, coisa corriquei-
ra aos indivíduos profanos, que jamais passaram pelas Escolas iniciáticas, existentes desde o longín-
quo passado (e diga-se de passagem: que ocorreu até mesmo entre os próprios israelitas e seus suces-
sores, os católicos, que elevaram o Espírito Guia YHWH à Suprema Divindade, personalizando e
dando forma humana ao Absoluto ...).

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SABEDORIA DO EVANGELHO

CONDENAÇÃO DO CLERO

Mat. 23:1-12 Marc. 12:38-40

1. Então Jesus falou ao povo e aos discípulos,38. E no seu ensino dizia: "Cuidado com os
escribas, que gostam de andar com vestes
2. dizendo: “Nas cadeiras de Moisés sentaram-
compridas e das saudações nas praças,
se os escribas e os fariseus.
39. e das primeiras cadeiras nas sinagogas e dos
3. Tudo, pois, quanto vos disserem, fazei e
primeiros lugares nos banquetes,
observai; mas não façais segundo suas
obras, pois dizem e não fazem. 40. e dilapidam as casas das viúvas e fazem
como desculpa, longas orações: estes rece-
4. Amarram fardos pesados e insuportáveis e
berão maior condenação".
impõem sobre os ombros dos homens, mas
eles não querem movê-los com o dedo deles.
5. Fazem todas as obras deles para serem vis- Luc. 20:45-47
tos pelos homens; alargam os filactérios
delas e alongam as túnicas,
45. Ouvindo todo o povo, disse a seus discípu-
6. e gostam do primeiro lugar nos banquetes e los:
das primeiras cadeiras nas sinagogas,
46. “Atentai aos escribas, que querem andar
7. e das saudações nas praças, e de serem com vestes compridas e gostam das sauda-
chamados mestres pelos homens. ções nas praças, das primeiras cadeiras nas
8. Mas vós não vos chameis mestres, pois um sinagogas e dos primeiros lugares nos ban-
só é vosso mestre, e todos vós sois irmãos. quetes;
9. E não chameis ninguém vosso pai sobre a 47. eles dilapidam as casas das viúvas e, como
terra, pois um só é vosso pai, o celestial. desculpa, fazem longas orações: estes rece-
berão maior condenação”.
10. Nem vos chameis mentores, porque vosso
mentor é um só, o Cristo.
11. O maior de vós, será vosso servidor.
12. Quem se exaltar será apequenado, e quem
se apequenar será exaltado”.

Lição pública, fora dos muros da Assembléia do Caminho; ao lado dos discípulos estavam fariseus,
saduceus, escribas, anciãos e a massa do povo fiel. Jesus inicia um discurso, em que focaliza a posição
do clero de Sua época e de todas as épocas, os sacerdotes de Sua religião e de todas as religiões, as
autoridades eclesiásticas de Seu país e de todos os países: a raça humana é a mesma, ainda hoje, e onde
entra o elemento humano, com ele entram a vaidade, a cobiça e a hipocrisia - os três vícios focalizados
nesta lição.
De início, salienta que "se sentaram" (ekáthisan), por iniciativa própria, os escribas e fariseus. Não
foram aí colocados por ordem superior, mas assaltaram as cadeiras e os púlpitos, de onde pregam -
MAS NÃO PRATICAM - a doutrina de Moisés.

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C. TORRES PASTORINO

O assalto é consumado, por vezes, por via diplomática ou política, por influência de elementos de
projeção intelectual ou social; mas doutras vezes é assalto à mão armada, como ocorreu no século 4.º
(ver nota no vol. 4), quando, por exemplo, o cristianismo se transformou em "catolicismo".
Amarram (desmeúousin, isto é, unem os fardos entre si) fardos pesados e insuportáveis (baréa kaì
adysbastakta) e os colocam sobre os ombros dos fiéis, embora eles mesmos não queiram movê-los
nem com um só dedo (dáktylô).
Jesus passa a enumerar outros atos errados: tudo o que fazem, é para serem vistos e aplaudidos pelos
homens, em triste vaidade exibicionista. Para isso, "alargam seus filactérios", ou seja, colocam em lu-
gares bem visíveis, símbolos religiosos, como vimos no capítulo anterior. Hoje, as cruzes chamadas
episcopais são bem grandes, douradas ou de ouro e com pedrarias preciosas, pendentes de correntes de
ouro; e mais: "alongam suas túnicas", em batas ou batinas pretas, brancas, roxas, púrpuras; e mais:
"gostam dos primeiros lugares nos banquetes e das primeiras cadeiras nas sinagogas". Bastará trocar
"sinagogas" por igrejas, onde o clero tem especiais regras para acomodar-se hierarquicamente; e tam-
bém os fiéis adquirem o direito de possuir "genuflexórios" próprios, nas primeiras filas, de acordo com
a importância de seu donativo à sua igreja, e conforme os títulos que possuam: as "autoridades" e os
benfeitores" têm direito às primeiras filas (contrariamente ao que nos deixou escrito Tiago em sua
epístola, 2:1-8; vale a pena reler). E mais ainda: "gostam das saudações nas praças", esperando que
todos beijem suas mãos ou seus anéis de ouro, quando não seus pés, revestidos de sandálias bordadas a
ouro.
Não pára aí: "gostam de ser chamados mestres". Mas logo vem o conselho positivo: "vós - meus discí-
pulos - não vos chameis mestres: todos sois irmãos". O "mestre", em hebraico RAB (ou RABBI, "meu
mestre", ou RABBAN, "nosso mestre") era o título usual e corrente dado pelo povo aos homens letra-
dos, escribas e fariseus - coisa que Jesus adverte jamais dever ser praticada pelos que O seguem. A
advertência, porém, continua sendo letra morta ...
Mais ainda: "a ninguém na terra chameis vosso pai". Os hebreus, inicialmente, só davam o título de
"Pai" (AB) a Abraão, Isaac e Jacob (e o nome de "Mãe" só a Sara, Rebeca, Lia e Raquel). Mas os es-
cribas mais em evidência gostavam de ser chamados "pai" - havendo até um livro com esse título:
Pirqê Abhôth, "Sentenças dos Pais" - Ainda hoje, os sacerdotes católicos, desobedecendo frontalmente
à ordem taxativa e indiscutível de Jesus (a Quem chamam seu "Deus"!) fazem chamar-se e assinam-se
PAl ou PADRE, ou PÈRE, ou FATHER etc., em qualquer língua. Os primeiros escritores, são chama-
dos os "Pais da Igreja". E chegam até ao máximo de denominar SANTO PAI (ou PADRE) a seu chefe.
Interessante observar que a vaidade inominável não está circunscrita aos encarnados: acompanha a
personagem para além da sepultura, e vemos os "pretos velhos" da Umbanda (e muitos kardecistas)
com o mesmo prazer, querendo ouvir-se chamar "pai" ...
Em Mateus, nas traduções vulgares, parece haver uma repetição, onde se lê: "não vos chameis mestres,
porque vosso mestre é um só, o Cristo". O termo aqui empregado não é didáskalos, como acima, mas
kathêgêtês, hápax neotestamentário, que significa: "guia que vai à frente e ensina o caminho", ou "di-
retor espiritual", ou "mentor".
A razão é dada: um só é vosso mentor: o Cristo!
Em Mateus, segue-se a lição de humildade, mais uma vez repisada: "o maior de vós, será vosso servi-
dor", mas não apenas dizendo-se "servo dos servos de Deus", e colocando-se num trono dourado, para
que todos lhe beijem os pés ("dizem, mas não fazem"!). E ainda a frase repetida: "quem se exaltar será
apequenado, e quem se apequenar, será exaltado".
Marcos e Lucas trazem mais uma frase violenta: dilapidam as casas das viúvas, e fazem, como descul-
pa, longas orações". Ainda hoje. A pretexto de ofícios e missas e "gregorianas", conseguem, com a
promessa de libertar as almas dos maridos falecidos, fartas "esmolas" das viúvas, para que obtenham
"indulgências". Monsenhor L. Pirot (o.c., vol. 9.º, pág. 555), ao comentar este trecho, deixa escapar
uma frase que revela bastante prática do assunto; citamos textualmente: "Luc (20:47) a distingué les
deux défauts qui peuvent, d'ailleurs, fort bien se combiner avec des conseils juridiques en acceptant
des aumônes sous promesse de prières . Les femmes surtout y sont sensibles" (o grifo é nosso).

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Estes, diz Jesus, "receberão maior condenação".


*
* *
Encontramos, pois, avisos oportunos para que os discípulos de Jesus não imitem o clero judaico da
época do Mestre. Inutilmente foi dada a lição, porque os homens, imperfeitos ainda, vaidosos e cúpi-
dos, fazem exatamente o inverso do que lhes foi ordenado. Com isso provam que perderam totalmente
sua ligação com o Cristo, preferindo ligar-se a seus adversários, por Ele condenados.
Resumamos, para maior fixação mnemônica, os itens:
1. intitulam-se sucessores do Mestre, tendo-se sentado nas cadeiras dos apóstolos para comandar;
2. dizem-se "servos", mas agem como senhores;
3. impõem obrigações, que eles mesmos não cumprem;
4. procuram aparecer, exibindo roupas compridas (diferentes das dos outros homens) e grandes sím-
bolos religiosos, em material precioso;
5. reservam para si os primeiros lugares nas igrejas e nos banquetes;
6. fazem tudo para serem saudados e homenageados nas praças, dando a beijar suas mãos;
7. requisitam "esmolas" das viúvas, em troca da promessa de missas e longas orações;
8. julgam-se e dizem-se "mestres";
9. fazem-se chamar PAIS (ou PADRES, que é o mesmo) por todos;
10. inculcam-se como guias e "diretores espirituais" das almas.

Qualquer semelhança será mera coincidência? Inegavelmente Jesus era PROFETA, com ampla e segu-
ra visão do futuro!

Assim NÃO DEVE e NÃO PODE agir o discípulo VERDADEIRO de Jesus: este tem que SERVIR por
amor, e AMAR através do serviço.
O discípulo real SABE que não é "mestre" de ninguém; de fato, é o servidor incondicional, sem dia
nem hora para o serviço, sem condições nem exigências, sem distinções nem restrições: servir inteira
e alegremente a cada momento, "dando de si sem pensar em si".
Ao homem profano comum, ainda sob a legislação mosaica dirigida à personagem, bastará "amar o
próximo como a si mesmo" (Lev. 19:18); ao discípulo, todavia, foi dado outro mandamento: "amar o
próximo como Jesus nos amou", dando até a vida, se necessário, pelo próximo. Se isso for feito por
amor e renúncia, não será considerado suicídio indireto nem suicídio lento (desculpas cômodas de
muitos médiuns que não querem trabalhar em certas horas). Não: isso será a expansão máxima do
Amor, que nos foi pedida como testamento, pelo Mestre que, não satisfeito com o ensino, deu o exem-
plo, e deixou que O imolassem por nosso amor.
* *
*
Mas de toda a lição há uma frase que sobressai pela profundidade: "um só é vosso Mentor: o Cristo".
Observemos que Jesus - que falava - não se dá como sendo Ele o Mentor nosso: distinguindo bem Sua
pessoa sublime da sublimidade maior do Cristo Divino, que em todos e em cada um "construiu seu
tabernáculo" indica como ÚNICO MENTOR e guia esse Cristo Interno.

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C. TORRES PASTORINO

Nenhum homem - nem Ele mesmo, Jesus - pode fazer-nos progredir: só o CRISTO dentro de cada um
de nós.
Alerta, pois, a todos os espiritualistas que se julgam, se dizem ou deixam chamar-se mestres ou men-
tores. Não iludam as criaturas, nem se enganem a si mesmos: ninguém pode ser mentor de ninguém: o
nascimento do Cristo, é virginal em cada um, e só ocorre quando o "Espírito Santo" obumbra a cria-
tura, fazendo-Se sentir pela união mística profunda.
No máximo, podem abrir-se as janelas, para mostrar o céu estrelado ou o sol a brilhar acima do hori-
zonte; mas não pode dar-se a visão aos cegos: a criatura, para discernir o que mostramos, tem que ter
capacidade de "visão". Pode escancarar-se uma porta, para facilitar o trânsito da criatura; mas não
se pode carregá-la no colo nem fornecer-lhe pernas. Podem tirar-se os véus que encobrem os grandes
símbolos, e mostrar toda a nudez puríssima da verdade; mas jamais terá alguém capacidade para
fazer que a criatura compreenda Ou olhando, logo vêem, ou, tendo olhos, nada enxergam; ou ouvin-
do, logo percebem, ou, tendo ouvidos; nada escutam; ou tendo inteligência; logo compreendem, ou,
possuindo intelecto, nada entendem em seus corações ...
Ninguém - nenhum ser humano - pode dizer-se Pai, Mestre, Mentor:
PAI - só o Ancião dos Dias, Melquisedek;
MESTRE - só a encarnação crística que nos traz os ensinos;
MENTOR - só o Cristo, no âmago mais profundo de nosso ser, tão no profundo, que é necessário
mergulhar quase no infinito para perceber-Lhe a presença em nós mesmos ...
Mas quando descobrimos esse Mentor sublime, esse Guia divino, daí por diante Ele será nosso CA-
MINHO; que nos conduzirá à VERDADE de nosso Mestre e à VIDA de nosso Pai.
Esse Cristo Interno divino só se encontra através do EU verdadeiro, como no-lo ensinou nosso Mes-
tre: "Ninguém vai ao Pai senão através do EU" (João; 14:6), que é precisamente o Cristo Interno, o
"Caminho".

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SABEDORIA DO EVANGELHO

A ESMOLA DA VIÚVA

Marc. 12:41-44 Luc. 21:1-4

41. E sentado em frente ao Tesouro, olhava 1. Erguendo os olhos, viu os ricos que jogavam
como o povo jogava dinheiro ao tesouro; e no tesouro suas ofertas.
muitos ricos jogavam muita coisa. 2. Viu, porém, certa viúva muito pobre, jo-
42. E vindo uma viúva mendiga jogou dois lep- gando lá dois leptas,
tas o qual vale um quadrante, 3. e disse: "Digo-vos que, verdadeiramente,
43. E chamando seus discípulos, disse-lhes: essa viúva mendiga jogou mais que todos,
"Em verdade vos digo, que essa viúva men- 4. pois todos esses jogaram como ofertas, do
diga jogou mais que todos os que jogaram que lhes sobrava; esta, porém, jogou da po-
no tesouro, breza dela, toda a vida que tinha".
44. pois todos jogaram do seu supérfluo, ela,
porém, jogou tudo quanto tinha de sua po-
breza, toda a vida dela".

A frase "sentado em frente ao tesouro" revela-nos que Jesus se achava no ádrio das mulheres. Este era
um quadrado cercado de três lados por colunas, sobre as quais havia uma galeria, de onde as mulheres
podiam assistir às cerimônias litúrgicas. No quarto lado estava uma larga escada semicircular, com
quinze degraus (o templo de Jerusalém dessa época, construído por Herodes, já não tinha as medidas
áureas, nem obedecia aos símbolos esotéricos) que levava ao "ádrio de Israel". Num desses degraus
sentara-se Jesus, para breve descanso.
Daí via-se, à esquerda, o Tesouro (gazophilácio) , que consistia em treze salas (cfr. Chekkina, 6.1.5),
cada uma das quais exteriorizava um "tronco", de gargalo estreito em cima, que alargava na parte de
baixo, donde serem chamados shofarôth ("trombetas"). Aí eram lançadas as esmolas para o gasto do
templo. Os exibicionistas trocavam a importância que desejavam dar em moedinhas de cobre
(chalkón), para terem grande número e fazerem bastante barulho ao serem lançadas, atraindo dessa
forma a atenção dos demais peregrinos.
O Mestre estava a olhar aquela multidão, que tanto se avolumava nos dias da Páscoa, enquanto obser-
vava as reações dos discípulos, que se admiravam, arregalando os olhos e cutucando-se, quando algum
ricaço, ruidosamente, despejava sua bolsa cheia de moedas, causando um tilintar que trazia alegria aos
corações dos sacerdotes que serviam no tempo.
Nisso surge pobre viúva, que deixa escorregar, envergonhada, dois leptas (dois centavos!). Um sorriso
fugaz dançou sub-reptício nos lábios dos discípulos, revelando compaixão por aquele gesto inútil.
Marcos esclarece seus leitores de Roma que o lepta vale um quadrante, ou seja, a quarta parte do asse.
O lepta era a menor fração monetária, e pesava cerca de um grama.
Ao ver o gesto da viúva - que Lucas qualifica com o hápax neotestamentário penichrá (paupérrima) e
depois a diz ptôchê (mendiga) - e ao observar o desdém "compassivo" dos discípulos, o Mestre, que
via além das aparências chama-lhes a atenção para o fato e explica:
- Olhem, ela deu mais que todos ...

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C. TORRES PASTORINO

Figura “A ESMOLA DA VIÚVA” – Desenho de Bida, gravura de J. Veissarat

Os olhares dos discípulos se transformam em outros tantos pontos de interrogação duvidosos, até que o
Mestre completa a frase:
- ... todos deram do que lhes sobrava, mas esta, deu tudo o que tinha para viver.
Todos eles abaixaram as pálpebras de seus olhos: as cenas exteriores deviam desaparecer, para que
pudesse sua visão ser preenchida pela luz que lhes nascia, na meditação a respeito de ensino tão inopi-
nado e contundente.
E não era para menos. Invertiam-se de golpe todos os valores até então vigentes! Naquela época, -
como ainda hoje para as personagens, sem exceção - vale mais quem mais dá: nos templos, nas igrejas,
nos centros espíritas, nas associações e fraternidades, e até na vida particular: "temos que dar um pre-
sente mais caro a Fulano, que foi quem nos deu mais"! ... E as pessoas jurídicas dão títulos de "bene-
mérito", de "sócio vitalício", de "presidente de honra" ...
Ninguém olha com olhos espirituais para a empregadinha que tirou de seu sustento, deixando de tomar
uma "média", para doar um tostãozinho: dá-se-lhe em troco um sorriso de favor complacente, com um
agradecimento pro forma, e logo se esquece o gesto que tanto lhe custou! ...
A personagem ambiciosa, materialista, interesseira, só avalia as pessoas pelos valores materiais; só
ajuda se é ajudado; só dá bons ordenados a quem traz lucros maiores para a organização, como no co-
mércio que rende preito a Mammon. Os que dão pouco rendimento material, os que se dedicam doan-
do de si mesmos mas sem aumentar os lucros, os que dão espiritualmente - esses nada valem para as
instituições, mesmo as que se ufanam de ser espiritualistas.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Só quando a humanidade atingir o Espírito e sentir com a Individualidade, é que poderá mudar-se o
padrão de aferimento de valores. Por enquanto, nem sequer ouvindo durante dois mil anos a lição do
"óbulo da viúva", os cristãos conseguiram despertar da matéria para o Espírito. Ainda não subimos da
personagem à individualidade, não aprendemos a lição do Mestre, não fugimos da orientação de
Mammon para a de Cristo, não começamos sequer a sair do Anti-Sistema para ingressarmos no Siste-
ma.
Doloroso e lamentável.
Sobretudo porque observamos isso nos ambientes mais "espiritualistas", ou que tais se crêem e se di-
zem. Nas igrejas, "Santas-Casas", e Centros Espíritas, é comum vermos o retrato do doador da sede e
dos benfeitores, embora não se saibam mais os nomes das médiuns passistas "anônimos" e das irmãs-
de-caridade, que deram sua vida para atender aos enfermos.

Após essa "lamentação" extensa, procuremos os elementos positivos do ensino, para buscar sua reali-
zação.
A escala de valores, para a Individualidade, é aferida pelo grau de renúncia e de sacrifício que cada
criatura tenha a capacidade de realizar.
Mas não é fácil apurar esse grau, porque aqueles que são capazes de renúncia, também renunciam à
palavra auto-elogiosa; e os que aprenderam a sacrificar-se, nem sequer percebem o que estão fazen-
do: esse sacrifício lhes é tão natural e espontâneo, que apenas verificam que estão cumprindo sua
obrigação; uns e outros só sabem que "são ser-vos inúteis, que fizeram o que deviam fazer" (Luc.
17:10).
Se eles mesmos não se reconhecem superiores, como o farão os outros que não têm olhos de águia
para descortinar as grandes altitudes?
Não obstante, os que seguem espiritualmente os cursos da Escola de Jesus, são obrigados a mudar o
metro-padrão de sua conceituação. Lembremos o apreço que no oriente é dado aos chamados gurus,
que ensinam mais pelo exemplo que pelas palavras, mais pela vivência que pelas pregações. Como
disse Gandhi ao missionário cristão, que lhe perguntava qual o melhor meio de atingir os hindus:
"VIVER o Evangelho é o meio mais eficiente ... Gosto dos que nunca pregam, mas vivem ... A rosa não
precisa pregar: simplesmente esparze seu perfume" (Harijan, 29-3-935; veja o texto todo em "Sabedo-
ria" n.º 46, outubro 1967, pág. 186).
Portanto, este é o modo de agir. Mas com a capacidade de observação espiritual bem alertada, procu-
remos sentir o perfume da vivência de nossos companheiros, para dar mais valor aos valores reais, e
menor às contribuições materiais, embora isso venha a chocar e ofender fundamente as personagens
deles, que julgam muito mais importante a ajuda financeira que a espiritual. Se sofremos com esse
nosso modo de agir evangélico, consolemo-nos: o Mestre foi crucificado por não ceder às injunções
terrestres dos terrenos, e nós, por mais que soframos, ainda não temos o merecimento suficiente para
morrermos mártires ... Compreendamos, pois que somos iguais a todos, e não atingimos o grau que
aqui assinalamos!
Uma nota mais: não esqueçamos que Jesus afirma que "a viúva deu toda a sua vida" (bíon) ao templo.
Embora possa essa palavra ser traduzida como "seu sustento", o símbolo da doação da vida, de todos
os minutos de nossa vida ao Espírito, é de importância, para calcularmos o valor que é atribuído, pelo
Mestre, ao trabalho espiritual.

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C. TORRES PASTORINO

REVELAÇÃO AOS GREGOS


João, 12:20-36
20. Havia, porém, alguns, dos que sobem para adorar, na festa,
21. e estes, então, foram a Filipe, o de Betsaida da Galiléia, e pediram-lhe, dizendo: Se-
nhor, queremos ver Jesus.
22. Foi Filipe e disse a André; foram André e Filipe e disseram a Jesus.
23. Jesus respondeu-lhes dizendo: "Chegou a hora, para que o Filho do Homem se tran-
substancie.
24. Em verdade, em verdade digo-vos: se o grão de trigo, caindo na terra, não morre, ele
permanece só; mas se morre, produz muito fruto.
25. Quem ama sua alma, a perde; e quem odeia sua alma neste mundo, a conservará para
a vida imanente.
26. Se alguém me servir, siga-me, e onde eu estou, aí também estará o meu servidor; se
alguém me servir, o Pai o recompensará.
27. Agora minha alma se agitou. E que direi? Pai, salva-me desta hora? Mas por causa
disso vim a esta hora.
28. "Pai, transubstancia teu nome". Veio então um som do céu: Já transubstanciei e de
novo transubstanciarei.
29. Então a multidão que (ali) estava a ouviu e disse ter havido um trovão; outros diziam:
um anjo lhe falou.
30. Respondeu Jesus e disse: "Não por mim veio este som, mas por vós.
31. Agora é a discriminação deste mundo, agora o príncipe deste mundo será lançado
fora,
32. e se eu for elevado da terra, atrairei todos para mim mesmo."
33. Isso, porém, dizia, significando de que morte devia morrer.
34. Respondeu-lhe então o povo: nós ouvimos da lei que o Cristo permanece para o eon e
como dizes tu que deve ser elevado o Filho do Homem? Quem é esse Filho do Ho-
mem?
35. Disse-lhes, então, Jesus: "Ainda por breve tempo a luz está em vós. Andai enquanto
tendes luz, para que a treva não vos apanhe, (pois) quem anda na treva não vê aonde
vai.
36. Enquanto tendes a luz, sede fiéis à luz, para que vos torneis filhos da luz". Jesus disse
estas coisas e, indo, ocultou-se deles.

Trecho de suma importância no ensino. Inicialmente, entretanto, vamos esclarecer alguns versículos.
Eram chamados hellênés os gregos; os judeus que viviam na Grécia eram ditos hellênistaí. Ora, aqui
trata-se de hellênés. Portanto, não judeus. Talvez simpatizantes ou, como se dizia então, "tementes a
Deus" (phoboúmenos tòn theón) ou "piedosos" (seboménoi).

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Sendo gregos, é lógico que procurassem Filipe, e este se pusesse de acordo com André. Reparemos em
que são dois nomes legitimamente gregos. Os dois levaram os novos visitantes à presença do Mestre,
fazendo a apresentação.
Afirmam alguns hermeneutas que as palavras que Jesus profere a seguir nada têm que ver com os gre-
gos. Discordamos, primeiro porque o evangelista liga os dois episódios com as palavras: "responde-
lhes (aos gregos) dizendo"; em segundo lugar, pelo que comentaremos na segunda parte.
Outra observação quando ao verbo doxázô. Vimos que "glorificar" não cabe (cfr. vol. 5 e vol. 6), como
é dado nas traduções correntes. Mas anotemos que dóxa também significa "substância" (e nisto somos
apoiados pelo monge beneditino alemão Dom Odon Casel, em "Richesse du Mystere du Christ", pág.
240 - como já anotamos no vol. 4). Ora, se dóxa tem o sentido de substância, o verbo doxázô significa-
rá "transubstanciar", como vimos no vol. 4.
Neste trecho, parece-nos ser esse o sentido que cabe melhor no contexto. Veremos por que.
Salientamos, ainda, que a frase "Quem ama sua alma a perde" ... já apareceu em Mat. 10:39 (vol. 3);
em Mat. 16:25; Marc. 8:35; Luc. 9: 24; vol. 4; e aparecerá ainda em Luc. 17:33.
O "som" (phônê), ou "voz" que se ouviu, é fenômeno atestado em outras ocasiões: no "mergulho"
(Mat. 3:17; Marc. 3:11; Luc. 3:22; vol. 1) e na "transfiguração" (Mat. 17:5; Marc. 9:7; Luc. 9:35; vol.
4); e ocorreria com Paulo às portas de Damasco (Atos, 9:4; 22:7 e 26:14).
Que o "reino do messias" não teria fim, fora dito por Isaías, 9:7.
No vers. 32 há uma variante nos códices:
A - "atrairei TODOS" (pántes) - papiro 75 (duvidoso); Sinaítico (de 2.ª mão), A, B, K, L, W, X, delta,
theta, pi, psi, 0250 e muitos minúsculos; versões: siríaca harcleense; copta boaírica; armênia; pais:
Orígenes (grego), Atanásio, Basílio, Epifânio, Crisóstomo, Nono, Cirilo.
B - "atrairei TUDO" (pánta) - papiro 66 (o mais antigo conhecido, do 2.º/3.º século), Sinaítico (mão
original); versões: todas as ítalas, vulgata; gótica; geórgia; siríacas sinaítica, peschitta, palestinense;
coptas saídica. achmimiana; etíope; Diatessáron; pais: Orígenes (latino) e Agostinho.
Ambas as lições, portanto, estão bem escudadas por numerosos manuscritos. Mas também ambas as
lições são válidas, porque a atração evolutiva em direção à Divindade é de todos os homens, mas tam-
bém é de todas as coisas.

Estudo mais cuidadoso do texto revela-nos beleza impressionante e ensinamentos profundos.


Eis como entendemos este passo, dentro de nossa tese de que Jesus criou uma Escola Iniciática nos
velhos moldes das Escolas de Mistérios, com a denominação de "Assembléia (ekklêsía ou igreja) do
Caminho". Embora afoita, não estamos tão isolados como possa parecer. O mesmo monge beneditino
que citamos linhas acima (e notemos de passagem que seu nome ODON significa em grego "caminho"
e é a palavra usada nos Atos dos Apóstolos; ekklêsía toú ódou) em sua obra "Le Mystere du Christ",
pág. 102, escreve (o grifo é dele): "A terminologia antiga (dos mistérios gregos) passou inteiramente
ao cristianismo, mas aí se tornou, por sua superioridade espiritual, a forma e a expressão de valores,
de noções incomparavelmente mais puras e mais elevadas". Muito nos alegra essa confirmação de
nossa tese.
Então, acreditamos que esse grupo de gregos era uma representação oficial de alguma Escola da
Grécia (provavelmente Elêusis, em vista das palavras de Jesus). O grupo foi a Jerusalém por ocasião
da festa da Páscoa, porque na Escola se teve conhecimento do "drama sacro" que aí se realizaria nes-
sa semana, e era interessante um contato com o Hierofante Jesus.
A maneira de agir dos gregos foi a ritualmente correta, não se dirigindo diretamente ao Mestre, mas
buscando antes um de Seus discípulos, a fim de identificar-se por meio do "sinal" ou “senha" (1). E
escolheram alguém que talvez já lhes fosse conhecido, pelo menos de nome.

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C. TORRES PASTORINO

(1) Entre outros, há o testemunho de Apuleio (2.º séc.) que confirma nossas palavras, na defesa
("Apologia") que fez no Tribunal, ao ser acusado de magia. Escreve: "Tomei parte em muitas ini-
ciações sagradas na Grécia. Certos sinais (sêmeíon) e objetos (monymenta) delas, que me foram
entregues (paradídômi) pelos sacerdotes, conservo-os cuidadosamente (cfr. vol. 4) - Sacrorum plé-
raque initia in Graecia participavi. Eorum quidem signa et monumenta trádita mihi a sacerdóti-
bus, sédulo conservo (55,8). E mais adiante, confirmando os sinais ou senhas de que falamos: "Se
acaso está presente algum meu copartícipe daquelas solenidades, DÊ A SENHA, e pode ouvir o
que guardo. Pois na verdade, não serei coagido jamais, sob nenhuma ameaça, a revelar aos profa-
nos o que recebi para silenciar" - Si qui forte adest eorundem sollemnium mihi párticeps, SIGNUM
DATO, et audias licet quae ego adservem. Nam équidem nullo unquam perículo compellar, quae
reticenda recepi, haec ad profanos anuntiare (56, 9-10).

Jesus recebeu os emissários (apóstolos) da Escola grega e entrou logo no assunto elevado, em termos
que eles podiam entender, dos quais João registrou o resumo esquemático.
Em primeiro lugar confirma chegado o momento em que o "Filho do Homem (veremos que essa ex-
pressão bíblica não era familiar aos gregos) ia ser transubstanciado. Isso lhes era conhecido. Trata-
va-se da denominada "Morte de Osíris", que transtormaria o iniciado que a ela se submetesse em
Adepto, o sacerdote em sumo sacerdote (cfr. Hebr. 5:10 e 6:20), como que mudando-lhe a substância
íntima (transubstanciando seu pneuma).
Que era esse o sentido, vem comprová-lo o versículo seguinte: "se o grão de trigo, caindo na terra,
não morre: permanece só; mas se morre produz muito fruto".
Essa imagem era plenamente compreensível a discípulos da Escola de Elêusis, cujo símbolo central
era o trigo e a uva, que Jesus transformou - ou transubstanciou - em pão e vinho.
Na Escola de Elêusis celebrava-se o drama sacro de Deméter, a mãe cuja filha Coré (Perséfone), que
representa o grão de trigo, fora arrebatada por Hades, deus subterrâneo, e "desceu à região inferior"
(káthodos), simbolízando o enterramento do grão de trigo, para mais tarde ressuscitar como espiga e
"ascender" (ánodos) para o céu aberto (a superfície da terra). Parece-nos ouvir o trecho do "Símbolo
dos Apóstolos" de Nicéia: "desceu aos infernos, ao terceiro dia ressuscitou e subiu ao céu" ...
A ausência de Coré (o grão de trigo enterrado) faz Deméter ser chamada "Mãe Dolorosa" (Dêmêtêr
Achaía). Mas, depois de voltar à superfície, Deméter entrega a Triptólemo uma espiga de trigo, para
que ele a distribua por toda a Terra, enquanto Coré o coroa de louros: é o "muito fruto" que produz o
grão de trigo, se morrer debaixo da terra.
Temos nesse drama (resumido na frase de Jesus, o Cristo) dois aspectos simbólicos:
1.º - O Espírito humano, esse grão sagrado, tem que ser arrebatado para a região interior que é este
nosso planeta ("caindo na terra"), para "morrer" na reencarnação, a fim de mais tarde renascer do
mundo dos espíritos (cfr. G. Méautis, "Les Mysteres d"Eleusis", pág. 64).
2.º - na subida evolutiva, através da iniciação, é indispensável, para galgar os últimos degraus, a
"morte em vida", com a descida do espírito às regiões sombrias, enquanto o corpo permanece em es-
tado cataléptico (no Egito, essa cerimônia era realizada na "Câmara do Rei", na pirâmide de Qhé-
ops); depois o espírito regressava ao corpo, revivificando-o, mas já transubstanciado em adepto (1).
(1) Essa transubstanciação de Jesus, diz Pedro (2.ª Pe. 1:16) que os discípulos contemplaram, e empre-
ga o termo tipicamente iniciático, epoptaí: "mas nos tornamos contempladores da majestade dele"
(all' epoptaí genêthéntes tês ekeínou megaleiátêtos).
Qualquer dos dois sentidos explica maravilhosamente o significado profundo da frase seguinte:
"Quem ama sua alma (psychê) a perde", pois não evolui, nem no primeiro sentido, pois não reencar-
nou, nem no segundo, por não avançar no "Caminho"; e prossegue: "Quem odeia (mísein) sua alma
neste mundo, a conservará para a vida imanente (zôê aiônios)". Isso é dito no sentido de querer expe-
rimentá-la com todo o rigor, sem pena, submetendo-a às dores físicas e emocionais, como quem a

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"odiasse", para transformá-la ou transubstanciá-la, de trigo em pão (triturando-a e cozinhando-a no


fogo) e de uva em vinho (pisando-a e fazendo-a fermentar).
A psychê é a que mais sofre nessas provas, em virtude do pavor emocional. Mas, superada a crise,
achar-se-á transubstanciada pela união mística, na vida imanente, com seu Deus, a cuja "família"
passará a pertencer.
Tanto assim que prossegue o discurso do Cristo: "Se alguém me servir (prestar serviço, diakónêi),
siga-me (busque-me), e onde eu estou, aí também estará meu servidor"; é a "vida imanente" a união
perfeita com o Cristo Interno, com o EU profundo; precisamos "servir ao EU", ajudá-lo. E segue: "Se
me servir, o Pai o recompensará", insistência na idéia da imanência total, como será dito mais adi-
ante: "Se alguém me amar e praticar meu ensino, meu Pai o amará e nós (o Pai e Cristo) viremos a
ele e faremos nele morada" (João, 14:23).
Após haver explicado isso, acrescenta o exemplo pessoal: "Agora minha alma (psychê) se agitou. E
que direi? Pai, salva-me desta hora? Mas por causa disso vim a esta hora!" É o caso acima citado: a
alma se agita, freme, perturba-se, mas o Espírito (aquele que diz minha alma), a domina com força.
indaga então: "suplicarei ao Pai que me livre desta hora, quando vou passar pela dolorosa transubs-
tanciação, só para satisfazer à minha alma? Absolutamente: foi para isso que aqui vim; não posso
submeter-me às exigências emocionais que me queiram afastar da meta nem ao pavor anímico de uma
personagem transitória.
Dirige, então, ao Pai um apelo, mas no sentido contrário àquele: "Pai, transubstancia teu nome!". Já
vimos, (vol. 2) que o nome é a "manifestação externa de nossa essência profunda, que é constituída
pela Centelha Divina" ou Cristo Interno, que é o produto do Som (Pai). Então, nós somos o nome do
Pai, já que somos a exteriorização de Sua substância.
A prece solenemente proferida do fundo dalma tem resposta imediata: faz-se ouvir um som (som de
uma voz) que diz: "Já transubstanciei e de novo transubstanciarei"! A vibração das ondas mentais foi
tão forte e poderosa, que suas partículas foram aproveitadas para um fenômeno de voz direta, embora
só alguns tenham percebido as palavras. Esses deram a opinião de que era um "anjo" ("mensageiro")
que falara. Mas a massa do povo só percebeu o rumor, e o atribuiu a um trovão. Como profanos não
podiam alcançar o que se passava.
Neste ponto, Jesus volta-Se para os emissários da Escola grega, para dizer-lhes que "essa voz" viera a
fim de confirmar Suas palavras. Não O conhecendo, talvez pudessem ficar desconfiados da procedên-
cia e realidade do que estavam ouvindo. Um testemunho por parte de uma entidade extraterrena (ou
melhor, incorpórea) seria suficiente para garantir que estavam, de fato, diante de um Mestre.
Depois desse incidente, prosseguem os esclarecimentos, ainda mais enigmáticos: "Agora é a discrimi-
nação deste mundo; agora o príncipe deste mundo será lançado fora". A expressão refere-se ao pe-
queno eu do microcosmo personalístico, que é príncipe (ou principal, archôn) neste planeta. Não pode
referir-se ao célebre "diabo" ou "satanás", nem às "forças planetárias do mal", de vez que essa previ-
são não se deu até hoje. Jesus não diria "agora", duas vezes", se fosse algo a realizar-se milênios
após. E que não se realizou, é fato verificável, até hoje, por qualquer um. A humanidade não se redi-
miu: o "diabo anda solto", as maldades campeiam em todos os setores, inclusive nos religiosos e
cristãos. Como poderia aceitar-se esse sentido? Seria supor Jesus mentiroso.
No sentido "pessoal", entretanto, verifica-se que o previsto ocorreu, e na mesma semana em que fala-
va. Assim como dantes se referira a seu corpo como o "templo" (Marc. 14:58 e João, 2:19), diante e
para os judeus, agora, para os gregos, a ele se refere como "mundo", o kósmos, imagem que lhes era
muito mais familiar. E da mesma forma que para os israelitas falava da personagem humana denomi-
nando-a e personificando-a como "satanás" ou "diabo", para os gregos, que não se utilizavam desses
termos, emprega "príncipe deste mundo".
E uma vez "lançada fora" a personagem terrena, o EU ou Espírito será elevado ao céu, retirado da
Terra: ao ocorrer isso, o Cristo atrairá a Ele todos e tudo; aberto o caminho ("o EU é o caminho",
João 14:6) todos poderão buscar, seguir e unir-se ao EU ou Cristo Interno.

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C. TORRES PASTORINO

Aqui entra em cena o evangelista, para dar uma explicação, que é entendida de dois modos, de acordo
com a compreensão do leitor; o profano entende à letra: "como "morreu" na cruz, suspenso do chão,
o "elevado da Terra" se refere à Crucificação". Mas para quem vem acompanhando o desenvolvi-
mento do ensino do Mestre, outro sentido é muito mais claro e evidente. Se fosse interpretação à letra,
era totalmente inútil o esclarecimento: qualquer mentalidade medíocre veria esse sentido, tão trans-
parente é ele. Justamente porque o autor se esforçou em querer explicar uma coisa tão clara, é que
desconfiamos haver segunda interpretação: Jesus quis significar, com essas palavras "de que morte
devia morrer", isto é, não era a morte normal, a desencarnação vulgar, mas a "morte em vida", co-
nhecida nas escolas como "morte de Osíris". Veremos a seu tempo.
Os gregos fazem duas perguntas:
1.ª - Se foi dito que O Cristo permaneceria por todo o eon, como seria ele elevado da Terra?
2.ª - Quem é esse Filho do Homem?
Esta segunda pergunta demonstra, sem a menor hesitação, que eram gregos os que ali estavam. Seria
inconcebível que hebreus, familiarizados com os profetas, sobretudo com Dabiel, não soubessem a
que se referia a expressão "Filho do Homem", especialmente depois de ter Jesus repetido essa expres-
são tantas e tantas vezes, referindo-se a si mesmo. Mas a expressão era desconhecida à Escola de
Elêusis. Justifica-se, por isso, a pergunta.
O evangelista não anotou as respostas, que devem ter sido dadas, mas apenas resume a conclusão do
discurso: "Ainda por breve tempo a luz está em vós (não "entre" vós, como nas traduções vulgares:
em grego está "en).
A luz é o Cristo: "Eu sou a luz do mundo" (João, 8:12); "Enquanto estou no mundo, sou a luz do mun-
do" (João, 9:5); "A luz veio ao mundo, mas os homens amaram mais as trevas" (João, 3:19); e "Vós
sois a luz do mundo" (Mat. 5:14).
Ora, o Cristo estava visivelmente, através de Jesus, manifestado ao mundo. Mas isso seria por pouco
tempo, pois brevemente "seria elevado da Terra". Então, eles, que também eram a luz, refletiriam ne-
les a Luz crística. Esse reflexo duraria ainda breve tempo. Que fosse aproveitado com urgência, para
não serem surpreendidos pela escuridão, pois na treva não se vê aonde vai. Seja então aproveitada a
luz que está neles e mantida integral fidelidade a ela, para que também nos tornemos "filhos da luz",
ou seja, iluminados (Buddhas). Há uma gradação, entre a luz estar "em nós", e nós nos "tornarmos
luz".
Após essa magnífica aula, Jesus retira-se e oculta-se deles: entra em meditação.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

PROSSEGUE A REVELAÇÃO
João, 12:44-50 e 36 b
44. Jesus, pois, clamou e disse: "Quem me tem fidelidade, não é a mim que a tem, mas a
quem me enviou,
45. e quem me contempla, contempla aquele que me enviou.
46. Eu, a Luz, vim ao mundo para que todo o que me tem fidelidade não permaneça nas
trevas.
47. E se alguém me ouvir as palavras e não as praticar, eu não o julgo, porque não vim
para julgar o mundo, mas para salvar o mundo.
48. Quem me põe de lado e não recebe minhas palavras tem seu julgador; o Logos que
falei o julgará,
49. porque não falei por mim mesmo, mas o Pai que me enviou deu ordem do que precei-
tuo e do que falo,
50. e sei que sua ordem é vida imanente. O que falo, pois, falo como o Pai me disse".
36b Jesus disse estas coisas e, indo, ocultou-se deles.

Conforme pode verificar-se, colocamos os versículos 44-50 antes de 37-43 o que também é feito por
Bernard - "Gospel according to St. John" (Edinburg, 1928) - Isso, porque constituem, na realidade,
uma continuação das palavras que dirigiu aos gregos. Segundo esse autor, aliás, deveríamos colocar o
vers. 36 b depois do 50, como fizemos neste capítulo.
Nestes versículos é salientada, mais uma vez, a necessidade de manter fidelidade de sintonia com o
Cristo, conforme fora dito e repisado em várias oportunidades (cfr. João 3:15; 6:29, 35, 40, 47; 8:24,
45, 46, 9:35; 10:37-38; 11:25-26).
Reafirma que foi enviado pelo Pai e que aceitá-Lo é aceitar o Pai, ou seja, o Ancião dos Dias (cfr.
3:11; 5:36ss; 7:16-18, 28; 8:19, 26, 38, 42 e 47) porque Sua união é tão íntima que chega a ser real
unificação com o Pai (cfr. 5:18 ss; 8:19; 10:30, 38 etc.).
Quanto à tradução dos termos, aqui ainda encontramos krínô, que pode ser "julgar" ou "discriminar"
(cfr. vol. 3). Recordemos que o sentido preciso e técnico desse verbo é "peneirar" ou "passar pelo cri-
vo", ou "joeirar", atos todos que eram realizados na vida agrícola de então para separar o trigo da pa-
lha, guardando-se o primeiro nos depósitos e queimando-se a segunda.
Aí temos, também, o verbo athetéô, com o sentido de "pôr de lado". As traduções vulgares o interpre-
tam como "desprezar". Vemos nele, salvo erro, o oposto de homologéô (cfr. vol. 5). Parece-nos que,
assim como homologéô é "sintonizar" (e não apenas "confessar"), assim athetéô é "dissintonizar", isto
é, "pôr de lado" a estação emissora.
Outra consideração básica refere-se ao "Pai que envia". Na crença de um deus antropomórfico, pode-
mos atribuir esse envio comissionado por esse deus. Mas, na realidade, sendo Deus o Absoluto, a Inte-
ligência Onipotente, Onipresente e Onisciente - e não uma "pessoa" - Sua manifestação é intrínseca, no
âmago mais profundo de cada criatura, podendo alguém dizer-se "impelido" por Deus, "inspirado por
Deus, ou qualquer outro sinônimo, mas não "enviado". Quem envia, fica, e manda alguém: há, pois,
uma separação. Se vai junto, se acompanha, não há "envio". Ora, quem jamais pode dizer-se "separa-
do" de Deus, se Deus é a essência última de todas as coisas, se está "dentro de todos" (Ef. 4:6) e "den-

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tro de tudo" (1.ª Cor. 15:28)? Como poderia "enviar", se está junto, intimamente unido, constituindo a
Vida e o Sustento de Suas criaturas?
Evidente que quem envia, fica, e manda alguém. Então, Esse que ficou e mandou, foi O Pai, a quem as
Escrituras chamam o "Ancião dos Dias" (cfr. Dan. 7:9, 13, 22) e também Melquisedec (cfr. Gên.
14:18; Salmo 109:4; Hebr. 5:6,10; 6:20; 7:1, 10, 11, 15 e 17; veja atrás).
De todo este contexto, ("o Pai deu ordem do que preceituo e do que falo" e "o que falo, falo como o
Pai me disse") se depreende a dualidade personativa, apesar da unicidade individual. E de muitos ou-
tros textos se apreende o mesmo (veja vol. 6).

Fidelidade é SINTONIA. Se alguém sintoniza fielmente com o Cristo interno, automaticamente está
sintonizado com o Pai - Melquisedec, "Deus" do planeta - que enviou o Messias. E se alguém sintoni-
za com o Cristo cósmico, fonte incriada, individuada no Cristo interno, automaticamente está sintoni-
zado com o PAI ou VERBO, com o SOM cósmico ou Palavra Criadora que, sendo Palavra, cria, pre-
ceitua e sustenta Suas criações.
Da mesma forma, quem consegue contemplar o Cristo, atinge em sua contemplação a Força suprema
que O enviou. Anotemos que aqui não se trata de "ver" com os olhos físicos (tradução das edições
vulgares) a personagem terrena encarnada, e sim de "contemplar", na verdadeira contemplação mís-
tica, com os olhos do Espírito: o verbo empregado não é eídô, "ver", mas theôréô, que tem o sentido
específico de "consultar um oráculo", isto é, atingir ou ver, pela contemplação mística, a vontade es-
piritual (cfr . Liddell & Scott, 1966, pág, 796).
Nessa contemplação atingimos a LUZ: "Eu, a LUZ (o Cristo), vim ao mundo (exteriorizado em Jesus)
para que todos os que comigo sintonizarem, possam receber e refletir essa Luz, fazendo-a luz própria,
a fim de não permanecerem nas trevas". Basta a fidelidade de, sintonia, para que a Luz permaneça em
nós, tal como basta a fidelidade de sintonia do aparelho de rádio ou de televisão, para que eles rece-
bam, com perfeição, as estações emissoras.
Sendo idêntica a sintonia entre Pai e Filho, entre o Produtor do Som (Verbo) e o Som produzido
(Cristo), quem sintoniza com um, obtém a sintonia com o outro; quem contempla um, contempla o
outro; quem ouve (akoúô) um, ouve o outro.
No entanto, não cabe ao Cristo o julgamento ou discriminação ou triagem (cfr. vol. 3) de ninguém,
por estar ou não vivendo os ensinos trazidos. A missão do Cristo é libertar ou salvar o mundo de sua
prisão na matéria, e não de verificar quem age desta ou daquela maneira. Sua missão é impelir e
compelir as criaturas à evolução, ajudando-as a obter a perfeita sintonia. Quem não no consegue,
arca com as consequências. Tanto assim que, quem "põe de lado" o Cristo, isto é, quem não consegue
a sintonia (athetéô), será discriminado e julgado pelo próprio Verbo ou Pai.
Não teremos, porém, um Pai "pessoal", sentado em trono dourado, a pesar as almas numa balança: o
julgamento será por sintonia. Quem não estiver com seu Espírito em sintonia com o Cristo (e com o
Pai), não Lhe, poderá receber a irradiação. Assim um aparelho de rádio ou de televisão que esteja
sintonizado fora da onda da estação transmissora não lhe recebe, os sons e a imagem, sendo ipso
facto "julgado" ou "discriminado" pela própria estação transmissora. As ondas emitidas continuam a
passar pelo aparelho, mas não são captadas por culpa do aparelho receptor que ficou "fora da esta-
ção": então, o julgamento ou discriminação é feito automaticamente pelo próprio Verbo, pelo próprio
ensino que não foi vivido. Quem "me põe do lado", quem não sintoniza comigo, já está julgado pelas
próprias obras: não recebe a luz, embora a luz esteja a vibrar intensamente no ambiente em que está
o aparelho.
Tudo o que nos é transmitido pelo Cristo vem do Pai, que determina os preceitos a serem dados. E
Sua ordem é vida imanente, ou seja, é vida íntima, proveniente do âmago mais profundo de cada ser,
donde provém a vida divina que em nós palpita, transformando-se e exteriorizando-se através dos
veículos físicos.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Como vemos, trata-se de um prosseguimento das palavras reveladas aos gregos que procuraram o
Mestre em Jerusalém. E as explicações estão conformes aos ensinos ministrados nas Escolas Iniciáti-
cas gregas, de que são usados os próprios termos: pisteúô, theóréô, akoúô, rhêma distinguido de ló-
gos, krínô, etc.

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C. TORRES PASTORINO

INCREDULIDADE DOS JUDEUS


João, 12:37-43
37. Apesar de tantos sinais realizados diante deles, não lhe eram fiéis,
38. para que se cumprisse a palavra que disse Isaías, o profeta: Senhor, quem acreditou
no que ouviu de nós? e a quem foi revelado o braço do Senhor?
39. Por isso não podiam crer, porque de novo disse Isaías:
40. Cegaram-se os olhos deles e endureceu-se o coração deles, para que não vejam com os
olhos nem entendam no coração, nem se voltem e eu os cure.
41. Isso disse Isaías porque viu a doutrina dele e falou sobre ele.
42. Contudo, apesar disso, muitos até dentre as autoridades acreditaram nele mas, por
causa dos fariseus, não se uniam a ele, para que se não tornassem excomungados,
43. pois amavam a doutrina dos homens mais que a doutrina de Deus.

Terminadas as palavras reveladoras aos gregos, não deu o evangelista o resultado dessa entrevista.
Mas, pelo comentário escrito a respeito da descrença dos judeus, com os quais o Mestre convivera al-
guns anos, e diante dos quais realizara tantos sinais inequívocos da Sua missão superior, temos a nítida
impressão de que os gregos Lhe protestaram fidelidade incondicional. E foi isso o que mais deve ter
impressionado o discípulo amado: como é que aqueles estrangeiros haviam bebido em rápida entre-
vista os ensinos de Jesus, e os judeus ... "apesar de tantos sinais (e aqui João emprega o termo iniciáti-
co sêmeion) não acreditavam nele"?
A única explicação desse fato incrível, vai buscá-lo o narrador na profecia de Isaías (53:1). A esse res-
peito, Agostinho (Patrol. Lat. vol. 52, col. 1276) avisa-nos prudentemente que "A profecia não é a cau-
sa do fato, mas simplesmente vê antes, tanto quanto a memória vê depois. Mas o fato é independente
da profecia, tanto quanto da memória que o relembra".
Isaías pergunta ao Senhor Deus dele (a "Seu Guia"), em tom de queixa: "quem acreditou no que ouviu
de nós? E a quem foi revelado o braço do Senhor"? - ou seja, a quem se tornou manifesto o poder su-
perior?
A explicação do fato de não acreditarem nem serem fiéis, o próprio Isaías o revela em outro passo
(6:9-10), já citado em Mat. 13:14-15 e em Marc. 4:12, quando é explicada a razão de Jesus falar em
parábolas (cfr. vol. 3). Como lá escrevemos, não se trata de poderes superiores que impeçam a evolu-
ção dos homens, cegando-os, mas, ao contrário: são os homens que NÃO QUEREM voltar-se e ser
curados, e por isso fecham os olhos (cegam) e endurecem o coração.
Até aqui tudo regular e compreensível. Mas João lança uma afirmativa séria: "Isaías (Esaias) disse
(eípen) isso (taúta) porque (hóti) (1) viu (eíden) a doutrina (dóxan) dele (autoú) e falou (kai elálêsen) a
respeito dele (perì autoú)".
(1) hóti ("porque") nos papiros 66 e 75; códices sinaítico, A, B, L, X, theta, psi, f. 1, 33, 1071 , 1546,
ítala "e", siríaca palestiniana, copta saídica, boaírica, achmimiana 2, armênia, Orígenes latino,
Ambrosiaster, Hilário, Dídimo, Epifânio, Crisóstomo, None, Cirilo;
hóte ("quando") em D, K, delta, pi, f.13, 565, 700, 892, 1009, 1079, 1195, 1216, 1230, 1241,
1242, 1344, 1365, 1646, 2148, 2174, ítala a, aur. b; c; d; f; ff2; q, r1; vulgata, siríaca peschitto,
harcleense, gótica, etiópica, georgia (?), Diatessáron, Orígenes latino, Eusébio, Ambrosiáster,
Hilário, Basílio, Dídimo, Crisóstomo.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Como vemos, a preferência por "porque", em lugar de "quando", é baseada apenos nos códices
mais antigos (Sinaítico e Vaticano) e nos dois papiros do segundo século: 66 e 75.
Ainda uma vez - perdoem-nos os leitores se os castigamos com repetições - as traduções correntes tra-
zem "glória", e assim escrevem: "porque (ou quando) viu a glória dele". Já vimos o sentido de dóxa
(vol. 1 e vol. 3). E perguntamos. apenas: como é que vendo a "glória", descobriu o profeta, na realida-
de, a derrota, por não ter ele conseguido a conversão dos homens? No entanto, se interpretarmos dóxa
como "doutrina", há perfeita sequência lógica: vendo Isaías a doutrina, percebeu claramente que mui-
tos homens não na entenderiam e feçhariam olhos, ouvidos e coração. Não é o que ocorre ainda hoje,
quando ensinamos que não se deve resistir ao homem mau, que devemos dar a face esquerda quando
nos batem na direita, que devemos andar dois mil passos a quem nos obriga a andar mil, que temos que
dar a capa a quem quer tirar-nos a túnica? Os próprios homens que se dizem cristãos, espiritualistas e
espíritas não reagem com a frase: "Tanto assim, não!" E não brigam na justiça por seus direitos? E não
respondem quando criticados? E não reagem quando atacados? E não brigam, até ficar zangados, che-
gando mesmo a reçusar receber em seu centro os que eles acusaram injustamente, e que desejavam
humildemente pedir-lhes perdão? Já vimos médiuns considerados grandes e formidáveis agirem assim
... E quantos padres e pastores têm o mesmo comportamento! Fácil, portanto, a previsão de Isaías.
Isaías viu a doutrina dele e verificou que era elevada demais para a humanidade terrena. Mas como
pode Isaías ver a doutrina de Jesus? Logicamente lhe foi revelada por Ele mesmo em Espírito, antes de
encarnar, pois era o própria Guia de Isaías, e se apresentava aos médiuns de então com o nome de
YHWH. E Sua doutrina era a mesma ensinada nas Escolas de Médiuns (ou de "profetas"), que as ha-
via, como vimos (cfr. vol. 4, nota).
No entanto, João acrescenta que até mesmo "muitas autoridades" aceitaram a doutrina de Jesus, embo-
ra às ocultas, achando-a bela, mas "não se uniam a ele", e isso pelo "respeito humano", isto é, pelo te-
mor de serem excomungados pelas autoridades eclesiásticas das sinagogas. Com efeito "amavam a
doutrina (dóxa) dos homens mais que a doutrina de Deus".
Isso ocorre ainda hoje ... E mais uma vez perguntamos: por que também aqui dóxa é traduzida por
"glória" nas edições vulgares? Interessante observar que as traduções correntes dizem: "prezavam mais
a glória que vem dos homens, do que a glória que vem de Deus". Alguém já viu Deus vir à Terra para
glorificar algum homem? Nem com Jesus ocorreu isso! ... O que dizem certos autores, de glórias rece-
bidas de Deus, são teorias subjetivas e opiniões de criaturas, em seus julgamentos pessoais.

Este trecho do Evangelho de João salienta de forma impressionante as grandes diferenças claramente
observáveis entre três tipos de criaturas:
a) as fanatizadas por doutrinas religiosas dogmáticas que, mesmo diante da evidência dos fatos, se
recusam a renunciar às suas convicções pessoais: preferem de longe as doutrinas em que aprisio-
naram seus intelectos, e nada vêem além disso, mesmo diante de provas convincentes ("não acre-
ditaram nele");
b) as educadas em doutrinas religiosas dogmáticas mas que, ou já adquiriram certa capacidade in-
telectual para raciocinar por si, ou possuem certo grau de intuição; estas, diante de provas irre-
futáveis e de fatos incontestáveis, cedem. Mas de tal forma se acham condicionadas ao que lhes foi
ensinado desde a infância, que têm medo de afastar-se da trilha que lhes foi dada, ainda que na
prática também não na adotem plenamente, pois limitam-se à frequência corporal externa dos ri-
tos, sem que sua mente os compreenda nem aceite ("não se uniam a ele para não serem excomun-
gados");
c) as que se acham totalmente libertas de dogmas religiosos criados pelos homens, quer porque seu
intelecto já os repeliu definitivamente, quer porque suas dúvidas racionais os deixaram tão incré-
dulos, que se acham prontos a aceitar aquilo que lhes chegue apoiado em provas de razão e em
fatos indiscutíveis. São os "maduros" para "receber o Reino de Deus". E quando encontram a ver-
dade, ainda que fora dos rebanhos em que foram criados, sabem discernir o falso do certo, e

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C. TORRES PASTORINO

acompanham os Emissários divinos que lhes venham revelar novos caminhos ("quem me tem fide-
lidade, não é a mim que a tem, mas a Quem me enviou").
Ainda hoje encontramos essas três espécies de criaturas, bem definidas, além de uma quarta, que fica
fora de cogitação:
a) os religiosos fanáticos que nem querem ouvir falar de espiritualismo;
b) os que de manhã "vão à missa", e de noite vão buscar sua receita no Centro Espírita,
c) os que, sendo superiores em perceção espiritual, não temem abandonar o redil, porque reconhe-
cem a "voz do pastor' verdadeiro fora dele;
d) os que, ainda demasiadamente materializados e animalizados, nada querem com o Espírito, per-
manecendo agarrados somente às sensações físicas e às emoções de baixo teor vibratório .
Um dia tornar-se-á realidade geral a verdade de que nenhum ser humano deverá ser escravizado pelo
temor moral de castigos, quer se digam falsamente de origem divina, coma o inferno eterno, quer se-
jam impostos por "guias" (?) de grande atraso evolutivo, que ainda ameaçam desastres aos que os
abandonarem para buscar outros "Centros".
A Divindade está dentro de todas as Suas criaturas e envolve-as por todos os lados, deixando-lhes
liberdade de escolha, pois só aprenderá a escolher o certo, quem tiver sofrido as dores cruciais de seu
equívoco ao escolher o errado: um aprendizado de experiências pessoais conscientes cujo professor é
o Sofrimento.
Então, se a Divindade nos deixa livres, qual é o homem ou o espírito desencarnado que seja tão igno-
rante a ponto de julgar-se com direitos e sabedoria superiores aos de Deus?
O grande caso triste nas tarefas iluminativas do Espírito, é que a grande massa humana ainda se en-
contra nos primeiros degraus do estágio hominal, só há muito pouco tempo saída, e não de todo, da
irracionalidade animal, e não tem capacidade para vislumbrar a verdade espiritual. Pouquíssimos
conseguem realmente perceber as vibrações puras e elevadas dos Mestres de Sabedoria, e são ainda
em menor número os que deixam tudo para seguí-Los, "muitos são os chamados, poucos os escolhi-
dos" (Mat. 20:16 e 22:14).
Então ocorre exatamente o que disse Isaías: têm olhos e não vêem, têm ouvidos e não ouvem, porque
seus olhos parece que cegaram, e seu coração se endureceu de maneira que nada entendem e não se
voltam da matéria para o espírito a fim de serem curados de suas dores e sobretudo de sua ignorân-
cia.
A doutrina de Jesus - que só falou o que recebeu do Pai - é Doutrina Eterna, conhecida desde que o
Espírito se manifesta no planeta Terra (para não falarmos em outros mundos habitados). Essa doutri-
na chegou-nos em diversos pontos, desde as eras mais remotas, por meio de vários sublimes Manifes-
tantes Divinos. Será preciso citar o Tibet, a China, a Índia, a Pérsia, a Caldéia, o Egito, e a própria
Grécia, através de Pitágoras, Sócrates e Platão? Não foi a Palestina o único centro da Revelação,
embora tenha sido um dos mais recentes no tempo, e a lição tenha sido trazida por um dos seres hu-
manos mais evoluídos e mais intimamente ligados aos componentes da humanidade há milhões de
séculos (cfr. vol. 1 e vol. 5, onde estudamos o assunto). Por tudo isso, a doutrina de YHWH-
YH(SH)WH - yahweh-yehshwah - era bem conhecida de Isaías e de todos os profetas (médiuns) que a
estudavam nas Escolas Iniciáticas de Profetismo e a viviam na prática dos exercícios religiosos mais
rigorosos, onde as revelações do oriente mais remoto já haviam chegado, pois a ligação entre as Es-
colas era fato concreto, não só por meio das viagens dos Mestres encarnados que perambulavam pe-
las ínvias estradas do mundo de então, como pelas lições trazidas pelos desencarnados que se comu-
nicavam e que, embora tivessem pertencido a um centro iniciático, reencarnavam em outro, a fim de
tornar universais as experiências conquistadas, beneficiando a humanidade toda.
Aqui ainda aparece mais uma vez o verbo hômologéô, ao qual atribuímos (vol. 5) o sentido de "sinto-
nizar" e portanto "unir-se", ou talvez melhor "unificar-se", falando no mesmo tom, falando (logéô) no
mesmo tom (hômo), vibrando na mesma nota.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

DESTRUIÇÃO DO TEMPLO

Mat. 24:1-2 Marc. 13:1-2

1. Tendo Jesus saído do templo, retirava-se, e 1. E saindo ele do templo, disse-lhe um de seus
chegaram-se os discípulos dele, mostrando- discípulos: Mestre, olha que pedras e que
lhe as edificações do templo. edificações!
2. Ele, porém, respondendo disse-lhes: "Não 2. E Jesus disse-lhe: "Vês essas grandes edifi-
vedes tudo isso? Em verdade vos digo, não cações? Não será deixada aqui pedra sobre
será deixada aqui pedra sobre pedra que pedra que não seja derrubada".
não seja derrubada".

Neste trecho, há discordância entre os narradores. Enquanto Mateus nos mostra Jesus já fora do templo
a retirar-se, Marcos coloca o episódio no momento mesmo da saída, e Lucas não nos diz o local: ape-
nas, pelo aceno aos "donativos", faz supor que estivessem ainda no templo, embora nada impeça que a
referência a eles tenha sido feita fora do ambiente.
Pela sequência, vemos que Jesus saiu pela porta de leste, descendo pelo declive do Cedron para, logo
após, subir a rampa do monte das Oliveiras. Desse local a vista era maravilhosa, podendo contemplar-
se toda a magnificência do templo. Flávio Josefo (Bellum Judaicum, 5, 5, 6) assim no-lo descreve:
"Tudo o que havia no exterior do templo alegrava os olhos, enchia de admiração e fascinava o espírito:
era todo coberto de lâminas de ouro tão espessas que, desde o alvorecer, se ficava tão ofuscado quanto
pelos próprios raios solares. Dos lados em que não havia ouro, tão brancas eram as pedras que essa
massa soberba parecia, de longe, aos estrangeiros que o não conheciam, uma montanha coberta de
neve".
Toda essa riqueza fora aí colocada por Herodes o Idumeu, que ampliara o templo de Zorobabel: o pór-
tico de Salomão, uma cobertura sobre colunas, corria a leste; o pórtico real dominava o Tiropeu. Os
recintos internos e o tesouro assombravam os visitantes e constituíam o orgulho dos israelitas.
Ora, os discípulos de Jesus participavam desse ufanismo, e por isso um deles lembra-se de chamar a
atenção do Mestre para a maravilhosa construção. A resposta de Jesus constituiu uma ducha de água
gelada sobre o calor do entusiasmo deles. "Não ficará aqui pedra sobre pedra".
A profecia cumpriu-se à risca no dia 9 de âb (agosto) no ano 70. Flávio Josefo (Bell. Jud. 5.5.1-2 e
Ant. Jud. 15.11-3) anota que Tito Lívio fez tudo para salvar o templo da destruição. Mas, depois que
uma tocha, lançada por um soldado, iniciou o incêndio "que se propagou como um relâmpago" (são
palavras dele, Bell. Jud. 6.4.3-6), Tito ordenou que não só a cidade, mas o próprio templo fossem to-
talmente arrasados.

Aqui temos a motivação de um fato, a fim de permitir sua posterior explicação e a explanação do
ponto a desenvolver. Para conseguir a oportunidade de documentar as lições a respeito da "destrui-
ção do templo" e do "término do eon", os evangelistas partiram de uma pergunta que interessaria
profundamente a todos. E as predições como toda linguagem profética, apresentam temática confusa,
de forma a não elucidar senão aos que tenham consigo a "chave", que não devia ser divulgada ao
grande público, a fim de evitar pânico, precipitações e erros prejudiciais.
A verdadeira lição será dada nos próximos capítulos.

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C. TORRES PASTORINO

Figura “A DESTRUIÇÃO DO TEMPLO” - Desenho de Bida, gravura de Haussoulier

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Sabedoria do Evangelho Dr. Carlos Tôrres Pastorino

PROFECIAS ( 92 – 99 )

Mat. 24:3-14 Marc. 13:3-13 Luc. 2:13-19

3 Estando ele sentado no 3 Estando ele sentado no monte 5 Falando alguns a respeito do
monte das Oliveiras, elas Oliveiras, defronte do templo, porque era ornado de
chegaram a ele os templo, perguntaram-lhe em belas pedras e donativos, disse:
discípulos em particular, particular Pedro, e Tiago, e 6 “Isso que vedes, dias virão em que
dizendo: Dize-nos quando João e André: não será deixada pedra sobre
serão essas coisas e qual 4 Dize-nos quando ocorrerá isso pedra que não seja arrasada”.
o sinal de tua vinda e do o qual o sinal quando tudo 7 Perguntaram-lhe, pois, dizendo:
término do eon. isso está para consumar-se. Mestre, quando, então, será isso?
4 E respondendo, disse-lhes 5 Jesus, porém, começou a E qual o sinal quando estiver para
Jesus: “Vede que ninguém dizer-lhos: “Vede que acontecer?
vos desvie (do caminho ninguém vos desvie (do 8 Ele disse: “Vede que não sejais
certo), caminha certo). desviados (do caminho certo), pois
5 porque muitos virão 6 Muitos virão (apoiados) sobre muitos virão (apoiados) sobre meu
(apoiados) sobre meu meu nome, dizendo que sou nome, dizendo: “Eu sou”, e, “o
nome, dizendo: Eu sou o eu, e desviarão muitos”. tempo chegou”; não sigais atrás
Cristo, e desviarão muitos. 7 Todas as vezes,” porém, que deles,
6 Haveis de ouvir guerras e ouvirdes guerras e boatos de 9 Todas as vezes que ouvirdes
boatos de guerras; guerras, não vos assusteis. guerras e revoluções, não vos
cuidado, não vos isso deve acontecer, mas assusteis, pois é necessário, que
assusteis, pois é mister ainda não é o fim, primeiro ocorram essas coisas,
que isso ocorra, mas ainda 8 pois se levantará povo contra mas não (será) imediatamente o
não é o fim, povo, e reino contra reino, fim”. ,
7 porque se levantarão, povos haverá terremotos em cada 10 Então disse-lhes: “Levantar-se-á
contra povos e reino lugar, haverá fome: isso é um povo contra povo e reino contra
contra reino, e haverá princípio das dores do parto. reino;
fome e terremotos em 9 Cuidai de vós mesmos: 11 haverá grandes terremotos, em
cada lugar. entregar-vos-ão aos tribunais cada lugar, fome e peste, haverá
8 Tudo isso, porém, .é um e nos sinagogas sereis terrores também e grandes sinais
princípio das dores de açoitados e comparecereis do céu.
parto diante de governadores e reis 12 Antes de tudo isso, porém,
9 Então vos entregarão à por minha causa, em lançarão suas mãos sobre vós e
opressão e vos matarão e testemunho para eles. perseguirão, entregando-vos às,
sereis odiados de todos os 10 E a todo povo, primeiro, deve sinagogas e prisões, conduzindo-
povos por causa do meu ser pregada a Boa Nova. vos aos reis e governadores, por-
nome 11 E todas as vezes que vos causa de meu nome.
10 E então muitos serão levarem para entregar, não, 13 Sairá (isto) para vós como
derrubados e mutuamente vos preocupeis do que direis, testemunho.
se entregarão e se odiarão mas o que vos for ensinado 14 Ponde, então, em vossos corações
mutuamente , naquela hora, dizei; pois não não premeditar como defender-
11 e muitos falsos profetas se sereis vós que falais, mas o vos,
levantarão e desviarão Espírito Santo. 15 pois eu vos darei eloqüência e
muitos; e 12 E um irmão entregará o irmão sabedoria, às quais não poderão
12 por crescer a ilegalidade, à morte, e um pai o filho, e se resistir, nem responder todos os
se resfriará o amor de levantarão os filhos contra os vossos opositores.
muitos; pais e os matarão. 16 Sereis entregues até por pais e
13 Mas o que perseverar até o 13 E sereis odiados de todos por irmãos e parentes e amigos, e
fim, esse será salvo, causa de meu nome. O que matarão alguns de vós.
14 E será pregada esta Boa perseverar até o fim, esse 17 E sereis odiados de todos por
Nova do Reino em toda a será salvo”. causa de meu nome,
terra habitado, em 18 mas um cabelo de vossa cabeça
testemunho a todos os não se perderá:
povos, e então virá o fim”.. 19 em vossa perseverança, adquirireis
vossas almas”.

Na opinião unânime dos comentadores, este trecho é reputado um dos mais difíceis dos
Evangelhos.
Sabemos pela narrativa de Marcos que os quatro discípulos, que foram os primeiros a ser
admitidos na Escola (João, 1:14-20) — Pedro e André (irmãos) Tiago e João (irmãos) — fizeram a
Jesus a pergunta de esclarecimento a respeito da previsão da destruição do templo; em Mateus,
porém, a indagação tem duas fases:
a) quais os sinais que precederão a destruição do templo;

Volume 7 pag.55/115
Sabedoria do Evangelho Dr. Carlos Tôrres Pastorino

b) quais os que assinalarão o término do eon ou ciclo (que as traduções vulgares interpretam
como fim do mundo”).
Observemos que no original não está escrito télos toú kósmou (fim de mundo), mas synteleía
toú aiônos (término do eon ou ciclo). Os israelitas opunham ólâm hazzêh ( “este eon”) a ólâm habbá
(“o outro ou o próximo eon”) .
Entre as primeiras comunidades (“centros”) cristãs, teve muita voga a crença de que a mudança de
o o
eon se daria muito breve, com a “chegada” (parusia) de Jesus (cfr. vol. 3 pág. 85, vol. 4 pág. 67 e
o
vol. 6 pág. 73).
A palavra parusia ( grego parousía ) tem o sentido preciso de “ presença “ ou “ chegada “. Já
[94] desde três séculos antes de Cristo designava as visitas triunfais de reis e imperadores às cidades de
seus domínios ou não: “chegavam” tornando-se “presentes”. Os cristãos aplicavam o termo ao
“retorno” de Jesus à Terra, que era aguardado para aquela época tanto que a demora desanimou a
muitos que, por isso, abandonaram o cristianismo.
As interpretações deste trecho são várias:
1 — Trata-se apenas do fim do ciclo, dizem, entre outros, Irineo, Hilário, Apolinário, Teodoro de
Mopsuesto, Gregório o Grande, etc.
2 — Tem duas fases distintas, uma referente à destruição de Jerusalém (vers. 4 a 22), outra ao
término do ciclo (vers. 23 a 51), é a opinião de Borsa, João Crisôstomo e muitos modernos.
3 — As duas referências se misturam, sem divisão nítida, pensam Agostinho, Beda,
Knabenbauer, Battifol, Lagrange, Durand e muitos outros; modernos.
Maldonado, (o.c. pág. 475) afirma que os apóstolos fizeram as duas perguntas confuse
(confusamente) e que Jesus respondeu também confusamente, para que ninguém soubesse quando
seria o “fim do mundo”. O raciocínio peca pela base, já que as perguntas foram nitidamente duas e
em seqüência lógica. Em segundo lugar, não é digno de um “mestre” esclarecer “confusamente” a
seus discípulos, ainda que esses fizessem confusão nas perguntas, o que não é o caso: isso
revelaria falsidade no ensino, hipótese que não pode sequer ser aventada em relação a Jesus. Eis as
palavras do jesuíta: existimabant apostoli haec esse conjuncta: finem templi et finem mundi; noluit
Christus hund illis errore erípere, isto é, “julgaram os apóstolos serem simultâneos esses dois
acontecimentos: o fim do templo e o fim do mundo; Cristo não quis tirá-los desse erro”.
Preferimos aceitar a explicação mais lógica, de que a “mistura” foi feita pelos narradores,
dentro do estilo profético clássico, que encontramos em Isaías (8:21; 13:13, 19:2, etc.), em Ezequiel
(5:12, etc.), em muitos outro, apocalipses e até, modernamente, em Nostradamus.
Analisemos o trecho, dentro da interpretação generalizada, respigando alguns tópicos:

Vers. 5 — “Muitos virão (apoiados) sobre meu nome”, e não apenas, muitos virão em meu
nome”. Não se refere somente aos que se apresentam como representantes do Cristo, “em nome
dele”, mas daqueles que falam dizendo-se “O Cristo”, fundamentados na autoridade desse nome. O
grego não diz en onámati, mas claramente epi tôí onómati mou. Encontramos exemplos dessa
mesma época: Simão o Mago (At. 8:9-11); Teudas, sob o procurador Fadus (Fl. Josefo, Ant. Jud.,
20.5.1); outros cujos nomes não nos foram conservados (Bell. Jud. 2.13.4); outro sob o procurador
Félix (Bell. Jud. 2.13.5 e Ant. Jud. 20.8.6 e 10).
Vers. 6 e 7 — Guerras e lutas entre nações. Nessa época sabemos de muitas: nas Gálias
(Víndex e Virginius), no Danúbio, na Germânia, na Bretanha, com os Partos (Tácito, Annales, 12, 13;
13,6 a 8; Suetônio, Nero, 39). Lutas em 68 entre Galba, Oton, Vitélio e Vespasiano (Tácito, Historiae,
1, 2, 1); lutas na Palestina ( Bell. Jud. 2.12. 1 e Ant. Jud. 18.9. 1 ); revoluções sob Cumano (entre 48 e
[95] 52), sob Gessio Floro (entre 64 e 66); massacres entre gregos e judeus em Cesaréia, em Ascalon,
em Ptolemaida, em Tiro, em Hipos, em Gadara, em Damasco, em Alexandria: “cada cidade parecia
dividida em dois campos inimigos” (Bell. Jud. 2.17. 10 e 18, e 1 a 8). A opinião de Tácito também é
valiosa e insuspeita (1).
(1) Tácito (Historiae, 1, 7, 1-6) assim descreve essa época: Opus adgredíor opímum
cásibus, atrox proeliis, discors seditiónibus, ipsa etiam pace saevurn: quattor príncipes ferro
interempti trina bella civilia, plura externa ac plerumque permixta: prosperae in oriente, adíversae in
occidente res; turbaturn illyricum, Galliae nutantes, perdómita Britannia et statim missa; coortae in
nos Sarmatarum ac Sueborum gentes, nobilitatus cládibus mutuis Dacus, moto prope etiam
Parthorum arma falsi Neronis ludibrio. Iam vero Italia novis cladibus vel post longam saeculorum
seriem repetitís adflicta: haustae aut óbrutae urbes, fecundissima Campaniae ora; et urbs incendiis

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Sabedoria do Evangelho Dr. Carlos Tôrres Pastorino

Vastata consumptis antiquissimis delubris, ipso Capitólio civium manibus incenso. Pollutae
caerimoniae, magna adulteria; plenum exiliis mare, infecli coedibus scopuli. Atrocius in urbe
saevitum: nobilitas, opes, omissi gestique honores pro crimine et ob virtutes certissimum exitium.
Nec minus praemia delatorum invisa quam scelera, cum alii sacerdotia et consulatus ut spolia
adepti, procurationes alii et interiorem potentiam, agerent verterent cuncta odio et terrore. Corrupti
in dominos servi, in patronos liberti; et quibus deerat inimicus per amicos oppressi.
Para as poucos treinados em latim, eis a tradução: “Empreendo uma obra fecunda em
catástrofes, atroz de. combates, discordante pelas sedições, sendo cruel a própria paz: quatro
príncipes mortos pela espada, três guerras civis, muitas estrangeiras e outras mistas; êxitos no
oriente, derrotas no ocidente; perturbada a Ilíria, cambaleantes as Gálias, a Bretanha dominada e
logo perdida; Suevos e Sármatas revoltadas contra nós; o Dácio celebrado pelas nossas derrotas
e pelas deles; os próprios Partos quase pegando em armas por engano de um falso Nero. Além
disso, a Itália afligida por novas calamidades, que se repetiam após longa série de séculos;
cidades engolidas ou arrasadas no litoral tão fértil do Campânia; Roma desolada por incêndios,
vendo consumir-se os mais antigos santuários; o próprio Capitólio queimado pela mão dos
cidadãos; a religião profanada, adultérios escandalosos, o mar coberto de exilados, os rochedos
tintos de sangue. Mais atroz na cidade a crueldade: a nobreza, a fortuna, as honras, a recusa
mesmo das honras tida como crime, e a morte como preço da virtude. Os prêmios dos delatores
tão odiosos quanto os crimes, pois uns tomavam como despojos o sacerdócio ou o consulado,
outros a procuradoria e o poder palaciano, tudo derrubando pelo ódio ou pelo terror. Os escravos
corrompidos contra seus senhores, os libertos contra seus protetores, e os que não tinham
inimigos, opressos por seus amigos”.

Todo esse aparato de horrores não denota, entretanto, o fim: é apenas do princípio das dores
de parto” (no original: archê ôdinôn), não simples “dores”. O termo é técnico, exprimindo uma dor que
tem, como resultado, um evento feliz: uma dor que provoca um avanço, uma criação física ou mental.
As acusações entre cristãos são atestadas por Tácito (2) .
(2) Também aqui Tácito (Annales, XV, 44, 4-6) nos esclarece com os seguintes palavras,
após descrever a incêndio de Roma: Ergo abolendo rumori Nero subdiditreos et quaesitissimis
poenis adfecit quos per fiagitia invisos vulgus Christianos oppelabat. Auctor nominis ejus Christus,
Tiberio imperitante per procuratorem Pontium Pilatum supplicio adfectus erat; repressaque, ín
praesens exitiabilis superstitio cursum erumpebat, non modo per Judaeam, originem ejus mali, sed
per urbem etiam quo cunda úndique atrocia aut pudenda confluunt celebranturque. Igitur primum
correpti qui fatebantur, deinde indicio corum multitudo ingens haud proinde in crimine incendii
quarn odio humani generis convicti sunt. Isso significa: “Assim para abolir os boatos, Nero supôs
culpados e infligiu tormentos refinados àqueles que, odiados por suas ações, o povo chamava
Cristãos. O autor desse nome, Cristo, fora supliciado pelo procurador Pôncio Pilatos no império de
Tibério. Reprimida no presente, a detestável superstição novamente irrompia, não só na Judéia,
onde nascera, mas pela própria Roma, aonde chegam de todas as partes e são celebrados os
cultos mais horrorosos e vergonhosos. Foram primeiro presos as que confessavam, depois, por
indicação deles, enorme multidão, acusados não tanto pelo crime do incêndio, como de ódio pelo
gênero humano”.

Quanto à divulgação da Boa Nova, Paulo escreveu (Rom. 10:18): “Sua voz espalhou-se por
toda a Terra e suas palavras às extremidades do mundo habitado”. Realmente, no texto não é dito
que o Evangelho será pregado “em todo o mundo” ( hólói tôi kósmôi ) mas em “toda a Terra habitada”
[96] (hóléi têi oikouménêi) . Essa palavra (donde deriva “ecumênico”) era usada entre os gregos para
exprimir o território deles, em oposição ao dos bárbaros; entre os romanos, era o império romano, em
oposição aos demais povos.
Nessa mesma época, entre 30 e 70, temos notícias de tremores de terra na Ásia menor, na
Assíria, na Macedônia, em Creta, na Itália: em 61 e 62 na Laodicéia, Colosso e Hierápolis; em 63,
com a erupção do Vesúvio, em Nápoles, Herculanum e mais três cidades menores; o incêndio de
Roma em 64 (cfr. Tácito, Annales, 14,16; Sêneca, Quaestiones Naturales, 6,1; FI. Josefo Bell. Jud.
4.4.5). A fome, sob Cláudio, assolou Roma e Palestina (cfr. At 11:28 e Ant. Jud. 20.5.2)
O comparecimento ante os tribunais também é abundantemente citado, não só pelos autores
profanos, como no Novo Testamento: discípulos presos (At. 4:3 e 5: 18-40); citados perante o
Sinédrio ( At. 8:1-3; 9: 1,2,2 1; 26: 10: 28:22; Rom. 15:30-31); Tiago é condenado e decapitado (At.
12:2); Pedro é preso e condenado (At. 12:3-17); Paulo é apedrejado em Listra (At. 14: 18), é açoitado
e preso em Filipos (At. 16:22-24); fico preso quatro anos em Jerusalém (At. 21:33) em Cesaréia (At.
24:27) em Roma (At. 28:23,30-31 ): é levado diante do procônsul Gálio (At. 18:14), do Sinédrio de
a
Jerusalém (At. 23), de Félix (At. 24:25), de Festus (At. 25:9) do rei Agripa (At. 26) e de Nero (2 Tim.
4:17-19) .

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Aí temos, pois, um apanhado que justifica a interpretação corrente do trecho, de que os


acontecimentos previstos se referem ao mundo exterior da personagem, às ações que vêm de fora.

O segundo comentário ainda é bem mais difícil. Que sentido REAL está oculto, sob essas
palavras enigmáticas?
O aviso inicial é de uma clareza ofuscante: “Vêde que ninguém vos desvie do caminho certo”
(1). O comentarista sente-se perplexo e assustado, temeroso de incorrer nesse aviso prévio de
cuidar-se, para não se deixar levar por fantasias.
Oremos, suplicando que a inspiração não nos falte, e que não distorçamos a luz que nos vem
do Alto, a fim de não nos desviarmos, nem tirarmos os outros do caminho certo.

(1) Não podemos considerar errada a tradução que fazem as versões vulgares do verbo
planáô, por “enganar”; mas o sentido preciso desse verbo, “desviar do caminho certo” é muito mais
expressivo e corresponde bem melhor ao que se diz no contexto.
o
[97] De início, observemos que Jesus “sobe ao monte das Oliveiras” que, já o vimos (vol. 2 pág-
118), exprime uma elevação de sintonia vibratória, avisando-nos que as palavras serão dirigidas às
individualidades, e não às puras personagens terrenas físicas.
Além disso, fala-se no “templo”, que não exprime apenas o de pedra no monte Moriah, mas
o
também o corpo humane (cfr. vol. 1 pág. 168), o mais perfeito templo da Divindade.
Quanto ao “ciclo” ou “eon”, não olhemos, tão somente, o dos anos terrestres da matéria, mas
também os de uma evolução do espírito humano: quais os “sinais” para conhecermos quando se dará
o término das reencarnações: terrenas (a “destruição do templo de carne”) e quais os “sinais” que nos
farão reconhecer que está para finalizar o ciclo de nossas encarnações terrenas? Cremos que essa é
a pergunte básica, feita pelos discípulos mais avançados na iniciação da Escola Iniciática
“Assembléia do Caminho”. E dentro desse espírito, analisaremos os avisos do Mestre Sublime.
Realmente sempre houve, e ainda hoje encontramos, aqueles que com mantos brancos,
pretos, amarelos ou vermelhos, se apregoam “mestres” e “mentores”, quando “um só é vosso Mestre
... um só é vosso Mentor: o Cristo”! Por isso, só aceitamos os que repelem títulos de “iniciados” e de
“mestres”, e se apresentam como homens comuns, apontando-nos como nosso único Senhor, Mestre
e Mentor, O CRISTO.
No âmago da própria criatura, o intelecto arvora-se, com freqüência esses títulos, pretendendo
superar a razão e a intuição, e querendo julgá-las com seu milímetro mesquinho, reduzindo o vôo da
águia ao passo da tartaruga.
Nenhum desses conseguirá chegar, enquanto assim agir, ao “término do eon”, nem assistir à
parusia, crística !
Antes desse passo gigantesco, ocorrerão no íntimo de cada um guerras e revoluções terríveis,
fomes e terremotos, lutas de células contra células, de órgãos contra órgãos — da mente equilibrada
contra os abusas sexuais, da razão contra a gula e a intemperança, do Amor ativo contra a
comodismo preguiçoso — e de reinos (o espiritual) contra reinos (o animal).
Todas essas lutas titânicas assinalarão “o princípio das dores de parto”, para o renascimento virginal
do Cristo em cada um de nós.
Nesse mesmo campo de lutas, virão combater-nos as forças das provações externas:
julgamentos, prisões, acusações falsas, calúnias, opressões, ódios, assassinatos (morais e físicos),
denúncias de parentes (“está louco” ! ou então: “perdeu o juízo”; cfr. Marc. 3:21) — tudo por causa do
nome do Cristo, considerado o maior inimigo do “mundo”, conforme bem assinalou Tácito na citação
que há pouco fizemos. Diz ele que os cristãos eram acusados e condenados como “inimigos da
humanidade”, isto é, das criaturas humanas do Anti-Sistema ou pólo negativo.
Realmente assim é. Trava-se a batalha para a saída do Espírito do cipoal emaranhado do reino
animal, aonde mergulhou em sua estrada de aprendizado. E todas as forças se conjugam para
impedir essa saída,
A atuação do ímã forma um campo magnético de forças, que se biparte de acordo com os pólos (
embora um sempre exerça certa influência sobre o outro, apesar de opostos ); metade do
[98] campo prende-se ao pólo positivo, metade ao pólo negativo. Enquanto no hemisfério influenciado
pela força magnética do pólo negativo, o espírito considera normal sua permanência nele, o mesmo
ocorrendo no pólo oposto. Nos limites entre um campo e outro, quando se fazem sentir ambas as

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forças em direções opostas, é que o corpo sofre as impulsões contraditórias, em impactos que o
desnorteiam, numa espécie de lutas e guerras entre as duas tendências.
Se transportarmos esse exemplo para o mundo humano, compreenderemos muito bem o
“sermão profético”.
Enquanto sob a influência do pólo negativo (material-animal) o homem vive perfeitamente à
vontade no ambiente do Anti-Sistema; mas se trata de abandoná-lo para dirigir-se ao pólo positivo do
Sistema, encontra dificuldades gigantescas por parte das forças que convencionalmente são
chamadas “do mal”, embora sejam perfeitamente naturais e essenciais no plano geral da vida. O
homem tenta escapar da influência magnética de um campo de forças, para passar ao campo oposto.
No início, as lutas são grandes. Mas quando a criatura atinge o limiar entre os dois campos, na faixa
neutra, ela sente as impulsões do positivo atraindo-a, e o empuxo do negativo procurando retê-la.
Como já estamos no plano intelectual-racional, compreendemos que essas, forças do pólo negativo
agem não apenas magnética, mas também intelectualmente, por intermédio dos seres que com elas
sintonizam e que procuram impedir que o homem se afaste de seu campo: aparecem, então, os
perseguidores, os delatores, os caluniadores, os assassinos — que agem pela violência, na “fase da
fera” (cfr. Pietro Ubaldi, “Queda e Salvação”, págs. 285 a 291) — e também os falsos profetas, falsos
mestres e falsos cristos — que agem pela astúcia na “fase das legislações” (id. ib.).
A criatura que teima em ascender e insiste na caminhada, sofre terrivelmente verdadeiras
“dores de parto”, até que — de seu própria coração espiritual, de seu âmago — nasça “virginalmente”
o “homem novo”, ou seja, a Cristo interno.
Esses elementos externos, sintonizados com as vibrações do Anti-Sistema conseguirão
“desviar muitos do caminho certo”; e, ao sentir-se enganados, perdem a fé e “se resfria o amor” do
Espírito. Só aqueles que “perseveram até o fim”, mesmo através de muitas encarnações, nesse
combate titânico, é que serão salvos do Anti-Sistema, passando a ficar sob a influência direta do pólo
positivo.
Nessa luta, assistiremos a desequilíbrios e desavenças entre pais e filhos, isto é, entre espírito
e corpo físico, ora o pai (espírito) massacrando e até matando o filho (corpo) com penitências e
macerações, ora o corpo (filho) matando o pai (espírito) por desviá-lo da vida espiritual e arrastá-lo
aos engodos do plano de sensações e emoções.
E no plano do pólo negativo, todos os que seguirem o Cristo serão odiados, desprezados,
vilipendiados e perseguidos, pois ligam-se a uma sintonia oposta. Nesse plano, os “filhos da astúcia”
continuarão a pretender desviar os justos com afirmativas levianas: “é agora ... o tempo chegou... sou
eu o mestre”. Ai de quem os ouvir! Aí de quem os seguir!
[99] Depois de todas essas lutas tremendas, diz-nos Lucas que “o fim não será imediato”: ainda
haverá a percorrer o caminho evolutivo no hemisfério do sistema que, embora menos difícil, não é
contudo menos árduo.
E nas polêmicas entre o coração e o cérebro (entre a mente intuitiva e o intelecto discursivo) não há
necessidade de premeditar como deverá ser feita a defesa, pois o Espírito, que é santo, terá
eloqüência e sabedoria, embora se faça sentir apenas pela voz silenciosa e oculta; mas nenhum dos
opositores conseguirá resistir aos argumentos, a não ser pela violência das atitudes: daí a “morte”
que sobrevirá “a alguns”.
Mas “nem um cabelo de nossa cabeça se perderá, pois em nossa perseverança adquiriremos
nossa alma”. Evidente que não se trata de cabelos físicos, pois o envoltório carnal é de somenos
importância no processo evolutivo.
Sabendo ouvir, percebendo as intuições, obedecendo à VOZ DO ESPIRITO através da
consciência, adquiriremos a espiritualização, chegaremos à ”destruição do templo” do corpo físico,
pois sairemos da roda das reencarnações, e atingiremos o “término do ciclo” evolutivo.
Mais pormenores, ainda, dessa lição, encontraremos no próximo capítulo.

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DIAS CALAMITOSOS ( 100 – 104 )

Mat. 24:15-28 Marc. 13:74-23 Luc. 17:31~37

15 Todas as vezes, pois, que 14 Todas as vezes que 31 “Naquele dia, quem está no
virdes o horror da virdes o horror da terraço e tem seus haveres
devastação, dita por meio de devastação estar onde em casa, não desça a tirá-los
Daniel o profeta, existindo não deve (quem lê, e quem (está) no campo
no lugar santo (quem lê, entenda!) então os (que igualmente não volte atrás:
entenda!), estão) na Judéia fujam 32 Lembrai-vos da mulher de
16 então os do Judéia fujam para os montes, Lot.
para os montes, 15 os (que estão) no 33 Quem procurar preservar sua
17 o que (está) no terraço não terraço não desçam alma, a perderá; quem a
desça para apanhar as nem entrem para perder, a conservará.
coisas de sua casa, apanhar algo de sua 3,1 Digo-vos que, naquela noite,
18 e o do campo não volte atras casa,, haverá dois à mesma mesa,
para apanhar sua capa. 16 e o (que está) no um será tomado e o outro
19 Mas ai das gestantes e das campo não volte atrás será deixado.
que amamentam nesses para apanhar seu 35 Duas estarão a moer juntas,
dias. manto. uma será tomada e a outra
20 Orai, porém, para que não 17 Ai das gestantes e das será deixada”.
ocorra vossa fuga no que amamentam 37 E perguntando, disseram-lhe:
inverno nem no sábado, naqueles dias ! Onde, Senhor? Ele disse-
21 pois haverá então grande 18 Orai para que não lhes: “Onde o corpo, aí
calamidade, qual não ocorra (isso) no também se juntarão as
ocorreu desde o início do inverno. águias”.
mundo até agora, nem 19 pois aqueles dias serão
ocorrerá. de calamidade tal que Luc. 21:20-24
22 E se não se abreviassem não houve desde a
aqueles, dias, não se início da criação que 20 “Mas todas as vezes que
salvaria nenhuma carne; Deus construiu até verdes Jerusalém cercada
mas por meio dos agora, e nunca mais pelos exércitos, então sabei
escolhidos serão abreviados haverá. que se aproximou a
aqueles, dias. 20 E se a Senhor não devastação, dela.
23 Então se alguém vos disser: abreviasse os dias, não 21 Então os (que estão) na
Olha aqui o Cristo! ou: Ei-lo se salvaria carne Judéia fujam para os montes
ali, não acrediteis, alguma. Mas por meio e os (que estão) dentro dela,
24 pois se levantarão falsos dos escolhidos que saiam, e os (que estão) nos
cristos e falsos profetas e (ele) escolheu, reduziu campos não entrem nela,
farão grandes sinais e os dias. 22 porque dias de expiação são
prodígios que desviariam, se 21 E então se alguém vos estes, de completar-se tudo o
possível, até os escolhidos. disser: Eis aqui o (que foi) escrito.
25 Vede que vos predisse. Cristo! Ei-lo ali, não 23 Ai das gestantes e das que
[101] 26 Se então voz disserem: Olha, acrediteis, amamentam naqueles dias,
está no deserto! , não saiais; 22 pois se levantarão pois haverá grande
Ei-lo no apartamento!, não falsos cristos e falsos necessidades sobre a terra e
acrediteis. profetas e darão sinais angústia contra este povo,
27 Porque como o relâmpago e prodígios para 24 e cairão a fio de espada e
sai do oriente e brilha até o afastar, se possível, os serão levados cativos a todas
ocidente, assim será a escolhidos. as nações, e Jerusalém será
chegada do Filho do 23 Vós, porém, cuidai-vos: pisada pelos gentios até que
Homem: predisse-vos tudo” se completem os prazos dos
28 onde quer que esteja o gentios”.
cadáver, aí se ajuntarão as
águias,

Continuam as dificuldades, que procuraremos expor da melhor maneira que nos for possível.
A expressão “horror da devastação”, que as edições vulgares traduzem por “abominação da
desolação”, corresponde ao grego bdélygma erêmôseôs, tradução (mal feita, dizem alguns) da
expressão hebraica shíqqus messhômem, usada por Daniel. Eis os três passos:

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a) Quando se refere a Tito e aos romanos:--”e o povo do príncipe que há de vir destruirá a
cidade e o santuário ... sobre a asa das abominações virá o assolador” (Dan. 9:26,27);
b) quando se refere a Antíoco Epifânio, que colocou uma estátua de Zeus Olímpico no altar
dos holocaustos: “profanarão o santuário, isto é, a fortaleza e tirarão o holocausto perpétuo
e estabelecerão a abominação da desolação” (Dan. 11:31);
c) quando estabelece o prazo: “desde o tempo em que o holocausto perpétuo for tirado e a
abominação da desolação for estabelecida, haverá mil duzentos e noventa anos” (Dan.
12:11).
Sobre Antíoco Epifânio está escrito: “Em 145, dia 15 do mês de Caleu, edificaram a
o
abominação da desolação no altar” (1 Mac. 1:54).

A aplicação da expressão é incerta. A quem se referirá?


1). A João de Giscala que, em 68, transformou o santuário em fortaleza (Fl. Josefo, Bell. Jud.
4,3,10; 4,5,1 e 4,6,3)?
2) A estátua de Adriano erguida no templo (Jerônimo, Pat. Lat. volume 26, col. 177)?
o
3) Aos sacrifícios aos ídolos, no altar dos holocaustos, por Antíoco Epifânio (1 Mac. 1:54)?

Lucas interpreta que se refere ao cerco de Jerusalém, tal como fora predito antes: “Dias virão
em que construirão fossos em torno de ti e atacarão e sitiarão” (Luc. 19:43).
A expressão “quem lê, entenda” parece ser dos próprios narradores, já que o Mestre falou, mas
não escreveu.
[102] Depois disso, vem o conselho objetivo, para que individualmente se escape do cerco de
Jerusalém: quem mora na Judéia, que fuja para os montes de além-Jordão (o Moab e o Ammon), em
cujas grutas terão segurança. Desde a época de David esses eram lugares seguros. Quando em 60
as legiões romanas iam fechando o cerco, ocupando Jericó, Emaús, Betel, Hebron... os cristãos de
Jerusalém acompanharam Simeão, inspetor que sucedeu a Tiago o menor nessa cidade, e
refugiaram-se em Pella (hoje Tabakât-Fahil) na Transjordânia (cfr. Eusébio, Hist. Eccl. 3.5.3.).
A fuga deve ser rápida: nada de ir apanhar objetos em casa, por mais preciosos que sejam,
como fez a mulher de Lot (Gên. 19:26) que, voltou atrás e ficou petrificada. Do terraço, desça-se pela
escada exterior, e do campo siga-se diretamente para os montes, mesmo sem capa!
A frase “calamidade qual nunca houve” também é usada por Flávio Josefo em relação à
destruição de Jerusalém (Bell. Jud., Proemio, 4).
A alusão às gestantes e às que amamentam salienta a dificuldade na pressa da corrida. O
sábado, porque só permitia o máximo de 2.000 passos. E o inverno por causa dos caminhos que se
tornavam intransitáveis.
As traduções correntes dizem: “por amor aos escolhidos”, onde o grego traz: diá tôn ekléktôn,
ou seja, literalmente: “por meio dos escolhidos”, e contínua: “serão. abreviados aqueles dias”, pois se
assim não fora, não se salvaria “nenhuma carne” (pâsa sárx): ninguém escaparia na face da Terra.
Volta a previsão dos falsos cristos e dos falsos profetas (médiuns mistificadores) que terão.
inclusive, capacidade para dar os sinais iniciáticos (sêmeíon) e para realizar prodígios (térata —
magia negra) de tal monta. que os próprios escolhidos, se isso fosse possível, seriam desviados do
caminho certo. Vemos, pois, que aqueles que de fato se desviam, não eram escolhidos, embora
parecessem, mas simples “chamados”.
Para alertar bem os discípulos, Jesus declara: “Eu vo-lo predisse”! Não acrediteis em quem
anuncia o Cristo neste ou naquele local geográfico (quer seja dentro de casa, no deserto, num
templo, numa igreja, num centro espírita).
Neste ponto o padre Denis Buzy (S. C. J.) escreve (in Pirot, Êvangile de S. Marc, vol. 9, pág.
a
318): “Concluímos que no ensino de Jesus, como em S. João (1 Jo. 1:18-23) não existe um anticristo
individual: há uma coletividade, poderosa e temível, de anticristos”. Ora, isso concorda plenamente
com o que escreveu Emmanuel a respeito da “besta do Apocalipse” ( “A Caminho da Luz”, pág. 115-
116), onde identifica o anticristo com o papado, a coletividade dos que se dizem “representantes
oficiais do Cristo” (cfr.: “virão apoiados sobre o meu nome”),

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A parusia ou chegada será como o relâmpago, que brilha instantaneamente do oriente ao


ocidente.
Em Lucas, no texto do cap. 17 (que faz seqüência à descrição da vinda do “reino de Deus”) é
colocada a chegada à noite, com a imagem de dois homens que se reclinam à mesa da ceia e duas
mulheres que moem juntas, sendo um tirado e o outro deixado. E os discípulos indagam: “Onde,
Senhor”? Jesus responde: “onde está o corpo (em Lucas: sôma, em Mateus ptôma, “cadáver”) aí se
ajuntam as águias”.
[103] Objetam, os comentadores que as águias não vivem em bando, nem se alimentam de
cadáveres, e sim os corvos, muito comuns na Palestina. Mas o grego aetoí significa “águias”, e não
corvos.
Dizem os exegetas que o corpo representa Jesus, e as águias são os fiéis que acorrem
(Jerônimo) ou os anjos e santos (João Crisôstomo).
No cap. 21 (20-24), Lucas se fixa na destruição de Jerusalém, como já anotara Agostinho (Pat.
Lat, vol. 33, col. 916), quando escreveu: tamen Lucas evangelista et hanc dierum breviationem et
abominationem desolationis, quae duo ipse non dicit, sed Matthaeus Marcusque dixerunt, ad
eversionem Jerusalém docuit pertinere, alia cum eis dicens apertius de hac eadem re, quae illi
posuerunt obscurius, isto é, “Contudo o evangelista Lucas não fala nem da abreviação dos dias nem
da abominação da desolação, de que Mateus e Marcos falaram, mas ensinou que se referem à
destruição de Jerusalém, dizendo outras coisas mais claramente sobre o mesmo assunto, que
aqueles falaram mais obscuramente”.
Também declara Lucas que esses serão “dias de expiação” (ekdíkêsis') ou seja, de prestação
de contas.
Muitos “cairão a fio de espada” e “serão levados cativos a todas as nações”. Flávio Josefo (Bell.
Jud. 6.9.2) diz que 1.100.000 morreram no cerco de Jerusalém e 97.000 foram levados como
escravos. “E Jerusalém será pisada pelos gentios até se completar o prazo dos gentios”. De fato,
depois da conquista de Tito, Jerusalém foi dominada pelos romanos, pelos persas, pelos sarracenos,
pelos francos, pelos turcos, pelos árabes ... até que em 1948 os judeus voltaram a possuir suas terras
tradicionais: completou-se o prazo dos “gentios”. Israel não soubera cuidar da vinha e esta fora
confiada a outras mãos (cfr. Luc. 20:16).
No dizer de Paulo (Rom. 11:25) a cegueira dos judeus deverá durar até que a massa dos
gentios se cristianize; logo após chegarão eles (Rom. 11:25-32), coisa que Lucas (13:35) também
deixa entrever.

Há, no texto, evidentemente — sobretudo em Lucas — uma alusão clara aos acontecimentos
que sucederam em Jerusalém no ano 70. Mas não acreditamos que o Mestre, descido das sublimes
regiões superiores com tanto .sacrifício, consumisse seu tempo a preocupar-se com as ocorrências
que diziam respeito ao corpo físico. Buscamos ensinos muito mais elevados e profundos em Suas
palavras, embora se encontrem eles embotados na materialização das letras mortas.
Todas as vezes que virdes o horror da devastação no campo moral, religioso, espiritual, fugi para os
montes: elevai vossos espíritos ao monte da oração, sublimai vossos sentimentos, ganhai altitude nos
vôos místicos, na vibração de vossas almas! Como é belo e prático e eficiente o conselho! Como é
mais compreensível na boca de um Mestre, do que um rasteiro correr pelas estradas enlameadas
para defesa do corpo físico perecível!
E a lição do desprendimento, do desapego, da renúncia: quem já está no terraço, acima do
telhado, na vida espiritual, não desça às ambições terrenas para “apanhar coisas”. E os que se
libertaram “no campo”, nem sequer se preocupem com a roupa: a vestimenta dos lírios é mais bela e
mais rica que a de Salomão (cfr. Mat. 6:28, Luc. 12:27).
[104] Nesses dias de fim de ciclo — que estamos vivendo em cheio — são de lamentar-se as
gestantes e as que amamentam, pois não pode prever-se o dia de amanhã; diz Lucas que haverá
“grande necessidade” (anágkê megálê) na terra e angústia (orgê) em todo o povo: o temor das
bombas atômicas e de hidrogênio, dos gases e irradiações mortíferas, que ninguém sabe se cairão
sobre nossos filhos pequeninos. Para que trazer ao mundo mais crianças, se não podemos saber as
desgraças por que serão atingidas?
Esses são dias de “prestação de contas”, de expiação, de reparação ou pagamento, em que
todos os carmas maus acumulados se resgatarão violentamente e de vez.

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As calamidades serão maiores do que se possam imaginar. Daí a necessidade de que sejam
abreviados (ou “truncados”, kolobôthêsontai). Mas isso, não para salvar corpos, e sim para não
enlouquecer os espíritos. E esse encurtamento de prazo é obtido por meio dos escolhidos, que agem
como intermediários, como ajudantes e protetores da humanidade, como “portadores da luz” e da paz
divinas e irradiadores do Amor infinito: os Mestres, os Mensageiros desencarnados ou encarnados,
os “Anjos” do Senhor.
As expressões “cadáver” ou “corpo” (ptôma ou sôma), de Mateus e der Marcos, são
equivalentes: são os homens atados ao sepulcro da carne (sárx).
Quer estejam perambulando ainda no corpo (sôma), quer já tenham caído, (cadáver, do verbo
latino cádere “cair”, ou ptôma, do verbo grego píptô, cair”), as águias, que são os escolhidos e os
mensageiros do céu, aí se reunirão para ajudá-los a reerguer-se e elevar-se. — Daí a aparente
incongruência de serem citadas “águias”: é que não se trata de banquete fúnebre de corvos que
buscam saciar-se de cadáveres: é uma realidade espiritual muito mais nobre.
A águia é o símbolo da alma humana elevada à espiritualidade superior, tanto que se tornou o
símbolo do mais místico dos evangelistas, o apóstolo João, aquele que deixou a narrativa espiritual a
respeito dos ensinos do Mestre. Assim, as águias espirituais se reunirão onde houver homens
encarnados ou desencarnados, a fim de dar-lhes oportuna ajuda. A águia é muito citada pelo fato de
poder encarar o sol, pois seus olhos possuem pálpebras sobressalentes e transparentes, que são
abaixadas à sua vontade. Ezequiel afirma (1:10 e 10:14) que os querubins que ele viu tinham “asas
de águia”. E na bela descrição da águia que encontramos no livro de Job (39:30) está escrito: “onde
está ela, aí estão os cadáveres”, texto que talvez tenha servido de inspiração para a frase do trecho
que estudamos já no Deuteronômio (32:11) se compara o modo de as águias ensinarem seus filhotes
a voar, à solicitude de YHWH por seu povo. No Êxodo (19:4) está a palavra de YHWH: “Vistes... de
que modo vos trouxe, sobre asas de águias, e vos cheguei a mim”. Concluímos, pois, que nossa
interpretação, embora totalmente nova, não constitui, no âmbito geral das Escrituras, uma novidade:
as águias são os “iluminados” que aclaram o caminho dos homens, conduzindo-os ao Sol da
Verdade.

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VINDA DO FILHO DO HOMEM ( 105 – 108)

Mal. 24:29-31 Marc. 13:24-27 Luc. 21:25-28

29 “Logo após a calamidade 24 “Mas naqueles dias, 25 “E haverá sinais no sol e


daqueles dias, o sol com aquela na lua e nas estrelas, e na
escurecerá e a lua não dará calamidade, o sol se terra angústia dos povos e
seu esplendor e as estrelas escurecerá o a lua não perplexidade, pelo bramido
cairão do céu e as forças dará sua claridade, do mar e das ondas,
dos céus oscilarão. 25 e as estrelas serão 26 (ficando) inanimados os
30 E então brilhará o sinal do cadentes e as forças homens de medo e
Filho do Homem no céu, e do céu oscilarão expectativa pelo que
então serão abaladas todas 26 e então se verá o Filho sobrevem à terra habitada,
as tribos da terra e verão o do Homem vindo nas pois as forças do céu
Filho do Homem vindo nuvens com grande oscilarão.
sobre as nuvens do céu força e aparência, 27 E então verão o Filho do
com força e grande 27 e então enviará os Homem vindo numa
aparência; mensageiros e reunirá nuvem, com força e grande
31 e enviará seus os escolhidos (dele) aparência.
mensageiros com grandes dos quatro ventos, da 28 Começando, pois, estas
trombetas e reunirão seus extremidade da terra coisas a ocorrer,
escolhidos dos quatro até a extremidade do erguei(-vos) e levantai
ventos, de uma céu.. vossas cabeças, porque se
extremidade dos céus até aproxima vossa
outra extremidade”. libertação”.

Este trecho descreve Os cataclismos cósmicos, repetindo os profetas antigos.


Profetizando contra a Babilônia e prevendo-lhe a queda, Isaías escreveu: Pois as estrelas do
céu e suas constelações não darão sua luz; o sol se escurecerá ao nascer e a lua não resplandecerá
com sua luz” (Is. 13: 10).
O mesmo profeta disse contra Edom: “Todo o exército do céu se dissolverá e os céus se
enrolarão como um livro” (Is. 34:4) .
Ezequiel, falando sobre a queda do Egito, diz: “Quando eu te extinguir, cobrirei os céus e farei
enegrecer suas estrelas, encobrirei o sol com uma nuvem e a lua não dará sua luz” (Ez. 32:7).
E a respeito do “ dia de YHWH “ fala Joel: o dia de YHWH, “ dia de trevas e escuridão, dia de
[106] nuvens e negrume” (Joel, 2:2); e mais: “A terra se abala diante deles e os céus tremem; o sol e a lua
escurecem e as estrelas retiram seu resplendor” (Joel 2: 10).
Fala Mateus nas “forças dos céus” (hai dynámeis toú ouranoú) que exprime o que está em
Isaías como tzebâh hashamaim, “o exército do céu”. Os LXX traduzem dynámeis por “estrelas” e os
Targums interpretam como sendo “os anjos”. Agostinho pensa que as referências aos astros são
alegóricas: o sol é o Cristo, e a lua é a igreja, que ficarão obscurecidos pelas perseguições; enquanto
as estrelas são os santos que decaem de sua posição. A maioria dos exegetas tende para a
interpretação literal.
Lucas limita-se a dizer que “haverá sinais no sol, na lua e nas estrelas”. mas não esclarece que
“sinais” serão esses. Lagrange (L'Evangile de S.Luc, pág. 483) afirma que “são imagens
apocalípticas, e não predições técnicas”.
O verbo saleúô preferimos traduzi-lo em seu sentido normal: “oscilar”, em lugar de “abalar” das
edições vulgares. já no versículo seguinte, em Mateus, em vez de “lamentar-se”, traduzimos, kóptô,
na voz passiva, por “ser abalado”, pois o significado real desse verbo é “cortar, bater, sacudir, ferir,
abalar”. Se em Zacarias (12:10) (cujo texto é repetido no Apocalipse, 1:7) o sentido é “lamentar-se”,
observaremos que o grego traz kóptô epí, isto é, “lamentar-se sobre” ou “a respeito” de alguma
coisa; aqui, ao invés, está usado de maneira absoluta. Além disso, pelo confronto com Lucas, vemos
que o melhor sentido é abalados, ou seja, sacudidos moralmente, perplexos, assustados.
a
Com efeito, Lucas fala na “angústia” (synochê) dos povos (termo usado só aqui e em 2 Cor.
2:4); na “perplexidade” (aporía, hápax neotestamentário); em ficarem os homens “exânimes”
(apopsychóntôn, “fora da alma”) e no termo técnico de medicina prosdokía (usado só por Lucas aqui

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e em Atos (12:11), que exprime a expectativa de uma crise fatal. Ora, ficar angustiados, perplexos.
exânimes e na expectativa de uma crise fatal pode resumir-se em “ficar abalados”, muito melhor que
por meio de um inexpressivo lamentar-se”.
Hoje muitos intérpretes revestidos de incontestável autoridade, como Djwal Khul, o Tibetano,
explicam quê as previsões de Jesus são perfeitamente viáveis, inclusive no campo físico material, já
que seu aparecimento facilmente poderá dar-se como um relâmpago instantâneo do oriente ao
ocidente e vindo por cima das nuvens: por meio da televisão. É aguardado seu advento como ser
físico encarnado, e todas as previsões são consideradas realmente ocorrentes no plano material da
Terra.
O Filho do Homem virá sobre uma nuvem. tal como descreveu Daniel (7:13-14): “Vi, nas visões
noturnas, e eis que vinha além das nuvens do céu um como Filho do Homem, que se chegou até o
Ancião dos Dias e se apresentou. diante dele”.
A sua figura mostrará grande força (dynámeis) e grande aparência (doxa), ou seja, aparato
externo, melhor tradução do que “glória” e mais de acordo com o sentido original.
Mateus e Marcos acrescentam que o Filho do Homem enviará seus mensageiros com grandes
trombetas ( Mateus ), para reunir seus escolhidos dos quatro ventos ( cfr. Dan. 37:9 ) de uma
[107] extremidade (ou ponta do céu) até outra extremidade (cfr. Dan. 4:32). A trombeta, com essa
a
finalidade, é citada também por Pauto (1 Cor. 15:52).
No final, Lucas convida os discípulos do Evangelho a alegrar-se: já está próxima a libertação
deles.
Outras interpretações são dadas, com base em fatos. Onde se diz que o Filho do Homem
enviará seus mensageiros, pode compreender-se de pleno direito que isso se refere aos espíritos
desencarnados, que se manifestarão (como se manifestam) nas sessões espíritas, desde o oriente
até o ocidente; irresistivelmente, e como trombetas alertadoras, fazem insistentes e reiterados apelos
à luta pelo bem, conclamando a todos que despertem da matéria para o espírito. É o que vemos por
toda parte, sobretudo a partir das irmãs Fox. Por isso fora anteriormente dito “o Cristo não está aqui
nem ali”: nem nesta igreja, nem naquele templo, pois está dentro de cada homem. Esta última
interpretação encontra eco nas palavras de Joel, repetidas em Atos: “derramarei meu espírito sobre
toda a carne” (Joel, 2:28-32 e At. 2:16-21). Todas as nações, cada uma em sua língua, receberão as
mensagens da Boa Nova revivida, rápidas e numerosas, como um relâmpago que brilha
instantaneamente de leste a oeste, sem que ninguém possa detê-lo em sua marcha, nem negar sua
autenticidade.

Verificamos que a interpretação iniciada no capítulo anterior pode prosseguir sem a menor
dúvida: a chegada do Filho do Homem é o Grande Encontro, a sublime União Mística, o nascimento
do Cristo interno, fazendo que cada um se torne o Homem Novo.
Analisemos os termos do trecho, e veremos que todos concordarão dentro dessa hipótese.
“Após a calamidade daqueles dias”, ou seja, após todo o descontrole intelectual, emocional e
físico que precede o alcance da meta aspirada, “o sol e a lua não darão mais sua luz”, isto é, todos os
valores humanos — filosóficos, científicos., religiosos — empalidecerão diante da nova luz que surge.
“as estrelas cairão“, porque tudo aquilo que nos parecia brilhar como as estrelas nas trevas de nossa
ignorância, cairá pelo desvanecimento de novas ilusões, dantes alimentadas com todo carinho e
apego.
Lucas, mais técnico, anuncia que todos os “astros” que iluminavam nossa personalidade
terrena, emitirão sinais. Não os cita como propriamente apagados, mas como reveladores de sêmeía,
os “sinais” que serão compreendidos por aqueles que iniciaram a Senda e que percebem os
verdadeiras valores; intrínsecos permanentes, ao invés de suas aparências enganadoras externas, O
“Povo” — células, órgãos, veículos interiores das sensações e emoções — ficará angustiado e
perplexo “pelo bramido do mar e das ondas, exânime de medo e expectativa”, aguardando o que
poderá ocorrer ao corpo (a “terra habitada” pelo espírito) já que o Espírito (as “forças do céu) estará,
nessa hora, oscilante, em equilíbrio instável, até conseguir a superação total e poder equilibrar-se
estavelmente no plano mais alto, Nesse momento surgirá, vindo das vibrações superiores (“sobre
uma nuvem”) o Filho do Homem, o Cristo, com “grande força” vibratória e aparência majestosa. Com
[108] Ele, chegarão os Grandes Seres espirituais, mensageiros celestes, servidores do Cristo, que estarão
prontos a ajudar e acompanhar o novo amigo nas esferas mais elevadas.

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Esses mensageiros emitirão notas específicas na tônica vibratória conhecida, e os “escolhidos”


— isto é, os demais iniciados e os adeptos — acorrerão dos quatro pontos cardeais de todos os
planos celestiais.
Suma razão, portanto, tem Lucas, em transcrever as palavras do Mestre: “Quando começarem
essas coisas a ocorrer, erguei-vos e levantai vossas cabeças! porque se aproxima vossa libertação”.
Ao obter a união mística com o Cristo, bem próxima já se encontra a libertação dessa criatura
da roda das reencarnações, do kykIos anánkè. e sua elevação ou “ascensão” a planos superiores
chegará bem depressa.
Por que terá sido dada essa lição de forma tão material, que durante, dois mil anos sua
interpretação permaneceu oculta sob o véu da letra, sendo sempre compreendida — mesmo pelas
que dizem que devemos olhar “o espírito que vivifica e não a letra que mata”, como profecias de
eventos físicos-terrenos e do “fim do mundo”?
Cremos que se guardada não fora a verdade em cofre tão seguro, poderia ter sido torcida
através das eras. Além disso, esses assuntos não deviam ser divulgados para a massa ignara, que
só acredita e só se aferra ao que vê, que sente e que toca. Reconheçamos a sabedoria e a arte de
quem tão bem soube velar doutrinas tão sublimes em frases simples e de sentido tão físico, que não
levantou suspeitas de ninguém, e isso durante dois milênios.

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DESPERTAR DO SONO ( 109 – 118 )

Mat. 24:32-44 Marc. 13:28-37 Luc. 21:29-36

32 “Da figueira aprendei esta 28 “Da figueira aprendei a 29 E disse-lhes uma


parábola: todas as vezes que parábola: todas as vezes parábola. Vede a
seu ramo já se tornar tenro e que o ramo já se tornou figueira e todas as
as folhas germinarem, sabeis tenro a germinaram as árvores.
que (está) próximo o verão. folhas, sabeis que logo é 30 todas as vezes que já
33 Assim também vós, todas as o, verão. brotam, vendo(-o)
vezes que virdes tudo isso, 29 Assim também vós, por vós mesmos,
sabeis que está próximo, na todas as vezes” que sabeis que já está
porta. virdes ocorrerem essas próximo a verão.
34 Em verdade vos digo, que não (coisas), sabeis que logo 31 Assim também vós
passará esta geração até que está à porta. todas as vezes que
tudo isso aconteça. 30 Em verdade vos digo virdes , acontecer
35 O céu o a terra passarão, mas que não passará esta isto, sabeis que está
minhas palavras não passarão. geração até que ocorra próximo o reino de
36 Mas a respeito daquele dia o tudo isso. Deus.
hora, ninguém sabe, nem os 31 O céu e a terra passarão, 32 Em verdade digo-
mensageiros dos céus, nem o mas minhas palavras vos, que não pastara
Filho, senão o Pai. não passarão. esta geração até que
37 Assim como (foram) os dias de 32 A respeito daquele dia e tudo aconteça.
Noé, assim será a chegado do hora, ninguém sabe, 33 O céu o a terra
Filho do Homem; nem os mensageiros do passarão, mas
38 porque como naqueles dias, céu, nem o Filho, senão minhas palavras não
antes do cataclismo, estavam o Pai. passarão,
mastigando e bebendo, 33 Estai atentos, despertai, 34 Estai atentos a vós
casando-se e dando-se em pois não sabeis quando mesmos, para que
casamento, até o dia (em que) será a ocasião. não vos pesem
Noé entrou na arca, 34 Como um homem a vossos corações na
39 e não sabiam até (que) veio o viajar deixa a casa dele e embriaguez, nem na
cataclismo e levou todos, dá a seus servos o excitação, nem nas
assim será (também) a poder, a cada um seu preocupações da
chegada do Filho do Homem. trabalho, e ao porteiro vida, e sobrevenha
40 Então dois estarão no campo, ordenou que ficasse sobre vós
um é levado e outro é, acordado inopinadamente
deixado. 35 Despertai, pois, porque aquele dia
[110] 41 Duas (estarão) a moer no não sabeis quando o 35 pois cairá como uma
moinho, uma é levada e outra senhor da casa virá, ou à rede sobre todos os
é deixada. noitinha, ou à meia- que habitam na face
42 Despertai, pois, porque não noite, ou ao cantar do de toda a terra.
sabeis em que dia vem vosso galo, ou de madrugado, 36 Despertai, pois, o
Senhor. 36 para que, vindo de tempo todo, orando
43 Sabeis que, se o dono da casa inopino, não vos para que prevaleçais
soubesse em que hora da encontre dormindo. a escapar a tudo isso
noite viria o ladrão, ficaria 37 O que vos digo, digo a que está para
acordado e não deixaria ser todos: espertai” ocorrer, e a manter-
arrombada sua casa. vos de pé diante de
44 Por isso também vós estai Filho do Homem”.
preparados, porque na hora
em que não pensais, virá o
Filho do Homem”.

Prosseguem as previsões do que ocorrerá no fim do ciclo. Foram enumerados alguns dos
sinais que precederão o acontecimento; resta saber ligar as ocorrências com o ato final.
É citado, então, o exemplo da figueira, bem escolhido para a Palestina, pois essa espécie só
começa a reverdecer as folhas em março. As outras espécies — oliveiras, castanheiras, carvalhos,
alfarrobeiras — têm folhas permanentes; as amendoeiras, que também perdem as folhas no inverno,
reverdecem com freqüência em fevereiro, janeiro e até em dezembro, com qualquer veranico que
apareça; voltando o frio, tornam a perder as folhas. Não constituem, portanto, índice seguro da

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Sabedoria do Evangelho Dr. Carlos Tôrres Pastorino

chegada definitiva do verão. Lucas, o médico, sem muita vivência em contato com a natureza como
os pescadores, amplia o conceito para “outras árvores”, mas sem razão. Já a figueira, que no inverno
dá a impressão de haver secado totalmente, em março reverdece de maneira notável, com as
folhazinhas tenras. Então, quando virem os discípulos os fatos anteriormente citados, saibam que
está “às portas” a chegada do Filho do Homem.
Aqui encontramos um versículo que provocou muitas discussões ao longo dos séculos: “Não
passará esta geração até que tudo isso aconteça”. Estudemos o caso conscienciosamente.

GERAÇÃO
Comecemos nosso estudo, verificando que, em grego, há uma palavra que significa “geração” no sentido
de “toda a multidão de homens vivos juntos ao mesmo tempo”, ou seja, a coletividade de seres humanos que
constitui determinada época Essa palavra é geneá.
Nesse mesmo sentido foi usada por autores gregos antigos, na época clássica: “duas gerações de
homens, dúo geneaí anthrôpôn (Homero, Ilíada. 1.250); “durante muitas gerações”, epi pollàs geneás (PIatão,
Timeu, 230), e ainda em Heródoto (2, 142), Tucidides (1, 14), etc. etc.
No Novo Testamento, essa palavra aparece 40 vezes, sempre com o mesmo sentido.
[111] Mas, antes de proceder à demonstração, notemos que, por vezes, é encontrada a palavra “geração” nas
traduções vulgares do Novo Testamento. com sentido diferente. Observemos as citações, e veremos que nesses
passos, a palavra portuguesa “geração”, dessas traduções, não corresponde ao grego geneá, mas sim a outros
termos:
a) Mat. 3:7 e 12:34 — “Geração de víboras, quem vos fará fugir da ira futura”?, (em grego:
gennérnata).
b) Luc. 22:18 — “Não beberei da geração da videira até que” ... (em grego: genemata, com um só n,
porque se refere a produto vegetal).
c) Mat. 1:1 e 1:17 — “A geração de Jesus é” ... (em grego génesis, no sentido de “genealogia”).
a
d) 1 João 5:18 — “Quem é da geração de Deus---_ (em grego: gennètheís, verbo: gerado por).
a
e) 1 a Tim. 2:15 — “A mulher é salva pela geração de filhos”, (em grego: tek-nogonias).
f) Hebr. 7:6 — “Essa geração não é enumerada entre eles” (.genealogoúmenos).
Vejamos agora os passos em que é empregada a palavra geneá, a fim de verificar o sentido constante da
mesma. No fim, concluiremos.
Mat.1:17 — “Assim todas as gerações, desde Adão até David, são catorze gerações; também desde
David até o exílio de Babilônia, são catorze gerações; e desde o exílio em Babilônia até o Cristo, catorze
gerações”.
Luc. 1:48,50 — “Pois de ora em diante todas as gerações me chamarão bem-aventurada ... e sua
misericórdia se estende de geração em geração”.
Luc. 16:8 — “Porque os filhos deste eon são mais atilados para com sua geração que os filhos da luz”.
At. 2:40 — “Exortava-os dizendo: salvai-vos desta geração perversa”.
At. 8.33 — “quem contará a sua geração “?
At. 13.36 — “Tendo David, na sua geração, servido ao conselho de Deus”.
At. 14:16 — “O qual permitiu que, nas gerações passadas, todas as nações andassem em seus próprios
caminhos”.
At. 15:21 — “Pois Moisés. desde as gerações antigas, tem homens que o pregam nas sinagogas”.
Ef. 3:5 — “O qual (mistério do Cristo) em outras gerações não foi manifestado aos filhos dos homens”.
Ef. 3.21 — “Seja glória na comunidade e em Cristo Jesus, por todas as gerações dos séculos”.
FIp. 2:15 — “Para que vos torneis irrepreensíveis e sinceros, filhos de Deus sem defeito, no meio de uma
geração má”.
Col. 1:26 — “O mistério que esteve escondido dos séculos e das gerações. mas agora foi descoberto”.
Hebr. 3:10 — “Porquanto me indignei contra esta gerações”.
Nestes exemplo, não paira a menor dúvida quanto ao sentido. Mas outros existem em que mais se
acentua:
Mat. 12:39,41,42 — “Uma geração má e adúltera pede um sinal ... Os homens ninivitas se levantarão no
julgamento com esta geração ... A rainha do sul despertará no juízo com esta geração e a condenará”.

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Marc. 8:12 — “A esta geração nenhum sinal será dado”.


Luc- 11:29-32 — “Esta é uma geração má ... O Filho do Homem será um sinal para esta geração... A
rainha do sul despertará no juízo com os homens desta geração” ... Os ninivitas se levantarão no julgamento
com esta geração”...
Mat. 16:4 — “Uma geração má e adúltera pede um sinal”..
[111] Desses trechos, vemos que no julgamento estará presente a geração que ali estava convivendo com
Jesus, e que não queria aceitá-Lo; por isso teria que prestar contas severas. Mais ainda:
Mat. 11:16 — “A que compararei esta geração ? A meninos”.
Luc. 7:31 — “A que compararei os homens desta geração?”
Sem dúvida, a geração que com Ele convivia na Palestina naquela época.
Ainda:
Luc. 17:25 — “Necessário é que padeça muito e que seja rejeitado por esta geração”.
Além da mesma idéia expressa no texto que estudamos, temos:
Marc. 8:38 e 9:1 — “Porque se alguém nesta geração adúltera e errada se envergonhar de mim e de
minhas doutrinas, também dele se envergonhará o Filho do Homem quando vier na substância de seu Pai com
seus santos mensageiros. E disse-lhes: Em verdade, em verdade vos digo, que há alguns dos aqui presentes. os
quais absolutamente experimentarão a morte, até que vejam o reino de Deus já chegado em força”.
Assim as exclamações:
Mat. 17:17 — “ó geração incrédula e perversa. até quando vos suportarei”?
Marc. 9:19 — “ó geração,. incrédula, até quando estarei convosco”?
Luc. 9:41 — “ó geração incrédula e perversa, até quando estarei convosco e vos sofrerei”?
De todos esses passos deduzimos que a palavra geneá tem mesmo o sentido de geração. isto é, de
conjunto de homens que viviam ao mesmo tempo no planeta, contemporâneos de Jesus,
Mas há mais: aquela geração que convivia com Jesus. era a mesma que vinha reencarnando na Terra
desde o início. Basta ler, para verificar- a clareza desta afirmativa:
Mt. 23:34-36 — “Por isso é que vos envio profetas, sábios e escribas: a uns matareis e crucificareis a
outros açoitareis nas vossas sinagogas e perseguireis de cidade em cidade, de tal forma que venha sobre vós
todo o sangue justo que se derrama sobre a terra, desde o sangue de Abel o justo, até o sangue de Zacarias, a
quem matastes entre o santuário e o altar. Em verdade vos digo, que tudo isso virá sobre esta geração”.
Luc. 11:49-51 — “Por isso também disse a sabedoria de Deus: enviar-lhes-ei profetas e emissários e a
alguns deles matarão a outros perseguirão, para que a esta geração se peça o sangue de todos os profetas
derramado desde a fundação do mundo, desde o sangue de Abel até o sangue de Zacarias, que foi morto
entre o altar e a casa; sim. eu vos digo, que se pedirá a esta geração.
Não é possível ser mais claro. Por isso também foi dito:
Mat. 12:425 -- “Assim também acontecerá a esta geração. perversa”.
Raciocinando como conclusão, vemos que já desde o profeta Ezequiel está escrito: “ O filho não morrerá por
causa da iniqüidade do pai. mas certamente viverá... a alma que errar, essa morrerá; o filho não levará a
iniqüidade do pai nem o pai levará a iniqüidade do filho: a justiça do justo será sobre ele e a impiedade do ímpio
será sobre ele”.
Se isso consta do Antigo Testamento, como poderia ter dito Jesus que “esta geração” receberia o castigo
de tolos os crimes cometidos contra os profetas desde o início da raça adâmica (desde Abel)? Notemos que
Jesus disse isto acentuando um ponto importante: o castigo, esta geração o receberia nos últimos dias.
[113] Se e a mesma geração a culpada da morte de Abel e de todos os profetas; se é a mesma geração que
estava ali com Jesus; e se é a mesma geração que estará na terra (não passará) quando vierem esses
cataclismos finais, que poderemos concluir com segurança absoluta ? Que essa geração está permanentemente
na Terra, por meio das reencarnações sucessivas e solidárias umas às outras, em que seus componentes se
vêm aperfeiçoando e resgatando suas culpas, até. poderem ser aceitos no “reino”.
Não cremos possível outra interpretação do texto, se o consideramos referente às personalidades terrenas: esta
geração, esta mesma geração incrédula que estava ali presente com Jesus, e que era a mesma desde os
tempos de Abel, ela não terminará de passar sobre o planeta Terra — findando o ciclo das reencarnações —
sem que advenham as coisas preditas no passo que estudamos. Claro e evidente.

* * *
Vejamos, agora, outras opiniões. João Crisóstomo, Gregório Magno e Tomás de Aquino acham
que essa “geração” se refere aos fiéis. Jerônimo, que se trata da humanidade ou, então,

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especificadamente dos judeus. L. Marchal (Evangile de S. Luc, in Pirot, vol. 10, pág. 251) escreve,
refutando essas opiniões: “é inútil julgar que são designados pelo termo geneá quer os judeus, cuja
raça não desapareceria antes do fim do mundo, quer os crentes, quer a humanidade em geral,
sentidos que não se justificam absolutamente no Novo Testamento”.
Entre os católicos, a idéia de atribuir geneá aos contemporâneos de Jesus foi, pela primeira
a
vez, aventada por Tostat ( Commentárium in Matthaeum”, 24:34, edição Colônia, 1613, tomo XI, 2
parte, pág. 525). Maldonado acusa-a de “Herética”. Lagrange e Dom Calmet aceitam-na, mas a
atribuem à destruição de Jerusalém. Orígenes (Patrol, Graeca, vol. 13, col. 1684) não admite que se
refira aos contemporâneos. Prat e Knabenbauer acham que se refere à nação judia.

* * *
“O céu e a Terra passarão” porque constituem coisas físicas materiais: o planeta Terra e a
atmosfera (céu = ouranós) que o circunda. E aqui fica solenemente afirmado, pelo próprio Mestre,
que ao falar Ele de “céu”, não exprime o famoso “céu” eterno dos católicos, pois, segundo Ele, o céu
também passará. Só o Espírito é real e eterno; tudo o que é material teve começo e por isso terá fim.
E o “as palavras que não passarão” prende-se à doutrina, pois no original está lógoi, e não apenas
rhémata. Portanto, é mais a doutrina, o sentido interno dos ensinamentos, e não apenas as palavras
em seu rumor externo. Sua “doutrina” não passará jamais.
“Quanto ao dia e hora, ninguém sabe”, diz Jesus, “nem os mensageiros dos céus (anjos ou
Espíritos superiores) nem o Filho, só o Pai “. O grande ponto de controvérsia é a expressão “nem o
Filho”.
O argumento favorece a teoria dos arianos, que afirmavam — tal como o próprio Jesus o disse — que
o Filho era menor que o Pai (cfr. João, 14:28). Os opositores de Ario buscaram todos os argumentos
possíveis para contornar a frase clara e taxativa do Mestre: eles tinham uma doutrina, e precisavam
[114] adaptar o ensino de Jesus à sua própria maneira de ver. Irineu, Atanásio, Gregório de Nissa, Cirilo de
Alexandria, Teodoreto (a Escola Grega) afirmaram que, embora sabendo como “Deus”, Jesus
ignorava como “homem”. Ambrósio, Jerônimo, Agostinho, Gregório Magno (a Escola Latina) e o grego
João Crisóstomo são de opinião que, mesmo em sua humanidade, Jesus sabia, mas não Lhe
competia revelar. Lagrange (o. e. pág. 350) atribui ao Mestre uma “restrição mental” no melhor
estilo: “Jesus sabe, mas como não tem a missão de revelá-lo, nesse sentido ignora”! Achamos
indigno de um Mestre ,ensinar fazendo “restrições mentais”, simples e “piedoso” eufemismo, para não
dizer a realidade: dizendo MENTIRAS! A restrição mental é típica da “fase da astúcia” (cfr. Pietro
Ubaldi, “Queda e Salvação”, pág, 281ss) e Jesus está na fase superior do Perdão e do Amor,
constituindo o “caminho da Verdade “(cfr. João, 14:6).
Vem então a comparação com os “dias de Noé”, que chegaram de inopino, surpreendendo a
todos.
As expressões “um é levado, o outro é deixado” (no presente do indicativo), não deixam clara a
idéia. Alguns autores interpretam que os bons; serão levados para a reunião dos escolhidos, a
exemplo do que ocorreu com as cinco virgens prudentes, tendo sido “deixadas” as imprevidentes.
Nada se opõe, contudo, que os “deixados” na Terra sejam os bons, e os menos bons sejam “levados”
para outros planetas mais atrasados.
Depois desse exemplo, vem o alerta: DESPERTAI !, no sentido de “acordar do sono”, pois os
verbos empregados são agrypneíte e grégoreíte (observe-se que grégoréô é um presente derivado
do perfeito egrêgcra, do verbo original egeírô, “despertar”, ou “levantar-se da cama”, também com
freqüência traduzido como “ressuscitar” nas edições vulgares). Não usamos o verbo tradicionalmente
empregado aqui: vigiai, porque — embora o latim vigilare signifique “despertar”, e apesar de “estado
de vigília” se oponha a “estado de sono” — o “vigiar” dá idéia, atualmente, de “olhar com atenção para
ver quem venha”, muitas vezes até chegando a colocar-se a mão em pala acima dos olhos, como
natural mímica de “vigiar” ... Portanto, DESPERTAR é o que melhor exprime a idéias do texto original:
é indispensável acordar, deixar de dormir, a fim de não perder o momento solene e precioso da
chegada do Filho do Homem.

Vem a seguir o exemplo do homem que, ao viajar para o exterior (apódémos) deixa a seus
servos o poder (exousía), tendo cada um seu trabalho (érgon), sendo que ao porteiro é dada ordem
de ficar acordado durante a noite, ainda que durma de dia, pois nas horas diurnas os outros servos
estarão acordados para recebê-lo.
Marcos deixa claro isso, citando que o Senhor podia chegar a qualquer hora da noite. Os
romanos, e também na Palestina durante o domínio romano que já durava a essa época mais de

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a
sessenta anos, dividiam o dia em 12 horas, sendo a primeira ao nascer do sol e a 12 ao pôr do sol.
Aí começavam as “vigílias”, que eram sempre quatro, logicamente mais curtas no verão e mais
longas no inverno, observando-se o contrário nas horas diurnas. Só na primavera e no outono é que
[115] as noites se equilibravam com os dias. A primeira vigília era dita “noitinha” (opsé), a segunda noite
fechada” ou meia noite (mesonyktion), a terceira “o cantar do galo” h6ª
(alektorophônías) e a quarta, “madrugada” ou “alvorada” (prôí). Pelas h3ª h9ª
gravuras pode-se observar a diferença. mais ou menos, entre inverno
e verão; a primeira gravura representa o outono e a primavera, que
corresponde à divisão horária atual, medida por meios mecânicos. h1ª 12ªh
4ªv 1ªv

O verbo usado por Lucas, “Estai atentos” (proséchete), é uma 3ªv 2ªv
particularidade sua, pois só boa aparece aqui e em 12: 1; 17:3 e em
Atos 5: 5 e 20:28, Nesse evangelista lemos a recomendação de não h6ª
beber demasiado, até atingir a embriagues (kraipálê,. hápax h9ª
h3ª
neotestamentário); nem procurar excitantes, naturais ou artificiais, que
inebriem (méthê), pois se perderia o autocontrole; nem deixar-se levar
pelos “preocupações da vida” (mérimna biôtikós), pois “aquele dia”
cairá sobre a criatura como “uma rede” (hôs pagís). Além disso, é
aconselhada a oração (deómenoi) para que possa “manter-se de pé- 4ªv 1ªv 12ªh
(staúénai) diante do Filho do Homem, sem fraquejar. 3ªv 2ªv

h6ª
h3ª h9ª
E Marcos, que dissera ter sido a conversa mantida entre o
Mestre e os quatro discípulos, não esqueceu a recomendação final: “o 12ªh
h1ª
que vos estou dizendo, digo a toda a humanidade: DESPERTAI !
4ªv 1ªv

Quando o Encontro sublime está para realizar-se, o candidato 3ªv 2ªv


percebe sinais precursores, que foram enigmaticamente citados nos
passos que acabamos de ver. Eqüivalem a um renascer de folhas,
quando o inverno acaba e principia a primavera; é e surgir inopinado do Homem Novo, que salta das
cirzas do Homem Velho. Ao assinalar os tumultos íntimos, saberá a aspirante que “está próximo, às
portas” o momento solene e inolvidável.
A seguir é-nos dada garantia de que neste mesmo cicio de nossa evolução humana se dará
esse minuto definitivo. Não importa que a Terra se esboroe e o céu se transmude totalmente,
modificando-se os hemisférios celestes pela verticalização do eixo terrestre, devido a seu “movimento
pendular”, na expressão da geografia: o ensino crístico não se perderá, não falhará jamais.
Apesar de tudo, o momento preciso é absolutamente, totalmente desconhecido de todos: dos
[116] mensageiros, dos Mestres e até do Filho do Homem: só o Pai que habita no âmago de cada um
SABE o momento exato em que poderá manifestar-Se à criatura humana. Da mesma forma que só o
Pai, — o Som ou Verbo Criador — é que SABE qual o momento exato em que deve fazer eclodir a
pequenina semente debaixo da terra; só Ele, o Pai, SABE o instante preciso em que o óvulo deve ser
fecundado pelo espermatozóide; só o Pai SABE o minuto certo em que a pupa deve transformar-se
em borboleta; só a Pai SABE o segundo definitivo de impelir a avezita implume a romper a casca de
seu ovo. O Pai, que está em tudo, que é a essência ultérrima de tudo, com Sua mente onipresente
dirige tudo o que ocorre, até “um cabelo que cai da cabeça” (cfr. Luc. 21:18). Daí a verdade irrefutável
de que “só o Pai SABE a respeito daquele dia e daquela hora”.
A comparação encontrada pelo Cristo é feita com a ocorrência que sucedeu a Noé. Conforme vimos
o
(vol. 6 págs. 74 e 126), Noé conseguiu passar da interpretação literal à alegórica (da “pedra” ou
terra, à “água”), mas só percebeu o momento em que devia penetrar em seu íntima (“entrar a na
arca”) quando recebeu o “sinal” (sêmeion) do Cristo Interno. Tanto assim que vemos prosseguir a
lição do Gênesis, que nos ensina que Noé expulsou de si toda a animalidade inferior, simbolizada no
corvo (Gên. 8:7). Logo após, envia a paz à Terra, isto é, a pomba (Gên. 8:8) que regressou a ele,
tendo sido recolhida com suas mãos: a Terra não era ainda digna de receber a paz (cfr. Mat. 10:13).
Depois de SETE dias (ou períodos), novamente enviou a pomba, que regressou com um ramo de
oliveira no bico, significando a disposição de a Terra receber a paz. Mais SETE dias ou períodos de
espera, e novamente envia a paz à Terra (“minha paz vos deixo, minha paz vou dou, João, 14:27). Já
fora por Noé peneirado o sentido alegórico das palavras (lógoi) do livro da vida; já conseguira
renunciar definitivamente à animalidade inferior (corvo); já atingira o grau de pacificador (cfr. “Felizes
os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus” Mat. 5:9). Faltavam ainda alguns passos.

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Sabedoria do Evangelho Dr. Carlos Tôrres Pastorino

Noé saí da arca, de seu íntimo profundo, e recebe a benção de Deus (Gên. 9:1), que com ele
estabelece uma aliança, simbolizada no arco-íris (Gên. 9:17), a união do céu com a terra, do Espírito
com a matéria: Noé descera à Terra, o “Verbo se fez carne” (João, 1:14). Chega então o momento de
penetrar mais fundo em si mesmo: Noé planta a vinho e colhe a uva, representação iniciática das
Escolas gregas. E segue adiante, dentro do espírito da Escola Israelita: transforma a uva em vinho,
como vemos feito por Abraão e por Jesus, e bebe desse vinho da sabedoria até inebriar-se,
penetrando o estado místico profundo (Gên. 9:20), ficando nu, ou seja, despojado de tudo o que é
material e vivendo apenas no espírito e para o espírito. Houve, inegavelmente, falta de entendimento
da lição sublime por parte dos comentadores antigos, que acrescentaram uma série de pormenores
pitorescos nessa narrativa, e acabaram fazendo parte do próprio texto. Lições maravilhosas colhemos
no Antigo Testamento, desde que o leiamos com os olhos do Espírito, e não nos prendamos à letra
que atrofia todas as idéias elevadas, reduzindo-as aos limites da carne e do sangue.
Nesse exemplo está reafirmado, com pormenores típicos: a chegada do Filho do Homem é
inesperada para todos os veículos, já que o único que SABE é o Pai ( o Som ou Verbo Criador ) que
[117] mantém viva a criatura, habitando em seu âmago; mas o Espírito, o Eu interno — Cristo individuado
na criatura, o “Filho” — embora não saiba o momento preciso, contudo sente a aproximação. Pode
tentar avisar a seus veículos, sobretudo ao intelecto, mas este não lhe dá a mínima atenção. Tudo
continua no mesmo teor de vida, até que chega de inopino o cataclismo máximo da existência, e tudo
“é levado”, enquanto Noé entra na arca. Os veículos, dirigidos pelo intelecto, prosseguem em sua
vida normal, comendo, bebendo, mantendo relações sexuais. até que são surpreendidos por total
modificação, desaparecendo diante da transformação fundamental — verdadeira transubstanciação
— por que passa o ser.
Os exemplos dos “deixados” e dos “levados” servem para demonstrar que, para suceder esse
nascimento. não é mister isolar-se no ermo, nem viver recluso em monastérios: na vida normal de
trabalho da terra e do lar pode ocorrer isso cem uma pessoa, enquanto a outra a seu lado nada
percebe.
O aviso essencial, entretanto, é dado agora, com o imperativo “DESPERTAI, porque não
sabeis em que dia vem vosso Senhor”. Observemos, de passagem, que é assinalado quase que
pessoalmente: “vosso Senhor”, que surgirá com toda a Sua substância e imponência do âmago mais
profundo de cada um. E anotemos esse despertar, com toda a sua força e suas nuanças possíveis.
Temos que ficar espiritualmente despertos, em estado “de vigília”, fora do estado de sonolência
inconsciente; e mais ainda: psiquicamente despertos, e não em transe mediúnico, mas em plena
consciência atual vígil, a fim de perceber as minúcias de Seu nascimento em nós.
A recomendação é repisada, em Marcos: “que o Senhor, vindo de inopino, não os encontre
dormindo”, também Lucas sublinha: “para que possais manter-vos de pé diante do Filho do Homem”.
Para isso, permanecer despertos, bem acordados, e orando, a fim de escapar incólumes às
inevitáveis perturbações físicas, emocionais e psíquicas, prevalecendo sobre elas e dominando-as.
Nesse sentido, Lucas entra em pormenores: não apenas evitar o sono, mas também o coração
pesado pelo muito beber; e mais ainda a excitação ansiosa de expectativa e as comuns angústias
pelas preocupações transitórias da vida material.
Trata-se de tranqüilo estado de alerta, na serenidade expectante de quem confia e SABE o que
está para vir, pressentindo a aproximação da parusia. Todos os que SABEM o sentido dessa divina
parusia do Filho do Homem. e a experimentaram, não se iludiram quanto ao sentido literal que era
atribuído à frase, nem se decepcionaram com o “atraso” do regresso “físico- do Cristo ao mundo, já
que conheciam perfeitamente que CRISTO jamais se afastou da humanidade, dirigindo-lhe os
destinos e assistindo-a carinhosamente, e vivendo no íntimo, de cada criatura.
Deixamos para o fim a frase: “Não passará esta geração, até que tudo isso aconteça”.
[118] Outro sentido, totalmente diverso, surge dessa sentença: a individuacão da Centelha provoca a
criação de um ser que terá sua evolução ininterrupta, embora lenta, até os mais altos cimos. Essa
“viagem evolutiva” constitui uma geração do ser, pois uma vez gerado, só pode encontrar um
caminho: o de subida.
Compreendemos, então, que esta geração do espírito não terminará, não chegará ao fim, não
atingirá a meta, sem que essas coisas anunciadas ocorram. Podem passar céus e terras, podem
transferir-se as criaturas de um planeta a outro ou a outros, mudando de céus e de terras, mas sua
geração só atingirá o alvo depois de haver experimentado tudo o que aqui se acha predito.
Verificamos que a interpretação espiritual se coloca muito acima da literal. Que importa ao Espírito
eterno uma convulsão de seu planeta? Sim, poderá ela ocorrer, mas será sempre coisa de somenos
importância para o Espírito, tal como seria a destruição de uma casa em relação do homem que nela

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Sabedoria do Evangelho Dr. Carlos Tôrres Pastorino

habita: buscará outra. Daí não nos conformarmos em ver o Cristo de Deus preocupado com simples
fatos materiais secundários e passageiros, a predizer terremotos como qualquer geólogo diante de
seu sismógrafo. Espírito de tal envergadura só podia preocupar-se com as coisas do Espírito, não
com a matéria perecível

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Sabedoria do Evangelho Dr. Carlos Tôrres Pastorino

Diplomado em Filosofia e Teologia pelo Colégio Internacional S.A.M. Zacaria, em Roma


Professor Catedrático de Latim no Colégio Militar do Rio de Janeiro e Docente no Colégio Pedro II

OBRAS DO AUTOR

1 - “Pequena História da Música” Rio, 1938 (esgotada).

2 - “A Música Através dos Séculos” Rio, 1942 (esgotada),

3 - “Chave da Versão Latina”, Rio, 1947 (esgotada).

4 - “Garcia Lema” (em espanhol), Rio, 1948 (esgotada).

5 - “Wim Van Dijk” (em francês), Rio, 1948.

6 - “De Pestilitate In, Lucreti. Poemate” Rio, 1950.

7 – “Farrapos d'Alma” (poesias), Rio, 1958.

8 - “Método Elementar de Esperanto” Rio, 1959 (2.a edição)


a
9 - “Latim para os Alunos”, 1 série, Rio, 1981.
a
10 - “Latim para os Alunos”, 2 série, Rio, 1961.

11 - “Teu Lar, Tua Vida” Ria, 1962.

12 - “Latim para os Alunos” Curso Complementar, Rio, 1963

13 - “Teu Amor, Tua Vida” Rio, 1963.


o
14 - “Sabedoria do Evangelho” 1 volume, Rio, 1964.

15 - “La Reencarnación en el Antiguo Testamento, Rio, 1964.


o
16 - “Sabedoria do Evangelho” 2 volume, Rio, 1965

17 - “Minutos de Sabedoria”, Rio. 1970 ( 3ª edição)


o
18 - “Sabedoria do Evangelho” 3 volume, Rio, 1966.
o
19 - “Sabedoria do Evangelho” 4 volume, Rio, 1967.
o
20 - “Sabedoria do Evangelho” 5 volume, Rio, 1968.
o
21 - “Sabedoria do Evangelho” 6 volume, Rio, 1969.

22 - “Técnicas da Mediunidade” , Rio, 1970


Sabedoria do Evangelho Dr. Carlos Tôrres Pastorino

Sabedoria do Evangelho. Vol. 7

Relação de textos na seqüência do Volume ( Original / Atual )

Título pag. Título pag.


A CAMINHO DE JERUSALÉM 6 /1 DESTRUIÇÃO DO TEMPLO 89/54
DESTRUIÇÃO DE JERUSALÉM 13/4 PROFECIAS 92/55
NA CIDADE 15/6 DIAS CALAMITOSOS 100/60
A FIGUEIRA SEM FRUTO 17/8 VINDA DO FILHO DO HOMEM 105/64
ENSINO NO TEMPLO 22/11 DESPERTAR DO SONO 109/67
A FIGUEIRA SECA 25/13 SERVOS BONS E MAUS 119/74
O PODER DE JESUS 28/15 AS DEZ MOÇAS 124/77
OS DOIS FILHOS 32/17 FIM DO CICLO 130/80
OS LAVRADORES MAUS 37/21 PLANO DE PRISÃO 137/84
A MOEDA DE CÉSAR 44/26 PROPOSTA DE JUDAS 140/85
A RESSURREIÇÃO 50/29 PREPARAÇÃO PARA A PÁSCOA 145/89
O GRANDE MANDAMENTO 56/33 INÍCIO DA CEIA 151/94
FILHO DE DAVID 60/36 O MAIOR SERVE AO MENOR 153/95
CONDENAÇÃO DO CLERO 66/40 O LAVA-PÉS 155/96
A ESMOLA DA VIÚVA 71/43 JUDAS É INDICADO 161/100
REVELAÇÃO AOS GREGOS 75/45 TRANSUBSTANCIAÇÃO 165/103
PROSSEGUE A REVELAÇÃO 82/49 O NOVO MANDAMENTO 177/110
INCREDULIDADE DOS JUDEUS 85/51 AVISO A PEDRO 181/112
REFRENCIAS /115

Textos do Evangelho tratados neste volume, referindo-se as páginas do original

João Lucas Mateus Marcos


Cap. Ver. Vol/pag Cap Ver. Vol/pag Cap. Ver. Vol/pag Cap. Ver. Vol/pag
12: 12-19 7, 8 19: 41-44 7,13 21: 1-9 7, 6 11: 1-10 7, 6
20-36a 7, 75 20-24 7,100 10-11 7, 15 11 7, 15
36b 7, 82 25-28 7,102 12-31 1,165 12-14 7, 17
37-43 7, 85 29-36 7,109, 18-19 7, 1^. 18-19 7, 22
44-50 7, 82 35-48 7,119 20-22 7, 25 20-24 7, 25
13: 1-20 7,155 22 1- 2 7,137 23-27 7, 28 25-26 2,158
31-32 7,161 3- 6 7,140 28-32 7, 32 27-33 7, 28
33-35 7,177 7-13 7,145 33-46 7, 37 12: 1-12 7, 37
36-38 7,181 14 7,151 22: 15-22 7, 44 13-17 7, 44
24-30 7,153 23-33 7, 50 18-27 7, 50
31-37 7,160 34-40 7, 56 28-34a 7, 56
21-23 7,161 41-46 7, 60 34b 7, 60
15-26 7,165 23: 1-12 7, 66 35-37 7, 60
31-34 7,181 24: 1- 2 7, 89 38-40 7, 66
3-14 7, 92 41-44 7, 71
15-28 7,100 13: 1- 2 7, 89
29-31 7,105 3-13 7, 92
32-44 7;109 14-23 7,100
45-51 7,119 24-27 7,105
25: 1-13 ?.124 28-37 7,109
31-46 7,130 14: 1- 2 7,137
26: 1- 5 7,137 10-11 7,140
14-16 7,140 12-16 7 145
17-19 7,145 17 7 151
20 7.151 18-21 7,161
21-25 7.161 22-25 7,165
26-29 7.1 27-35 7,181
31-35 7.18I
C. TORRES PASTORINO

SERVOS BONS E MAUS

Mat. 24:45-51 Luc. 12:35-48

45. "Quem, pois, é o servo fiel e 35. "Estejam cingidos vossos quadris e acesas vossas lâmpa-
inteligente, que o Senhor das,
constitui sobre sua criada- 36. e vós, semelhantes a homens que vão receber seu Senhor,
gem, para dar-lhe alimento quando se libertar dos esponsórios, para que, vindo e ba-
nas horas certas ? tendo, imediatamente lhe abram a porta.
46. Feliz aquele servo que, vindo 37. Felizes aqueles servos que, vindo o senhor, achar acorda-
seu Senhor, encontrar fa- dos; em verdade digo-vos que se cingirá e os reclinará e,
zendo assim. chegando-se, os servirá.
47. Em Verdade, digo-vos que o 38. E se chegar na segunda ou na terceira vigília e os achar
constituirá sobre todos os assim, felizes ele; serão.
seus bens.
39. Isto sabei, que se o dono da casa soubesse a que horas viria
48. Se, porém, sendo mau, o ladrão, não o deixaria arrombar sua casa.
aquele servo disser em seu
coração: meu Senhor demo- 40. Também vós estai preparados, porque na hora que não
ra, sabeis virá o Filho do Homem".
49. e começa a bater em seus 41. Disse Pedro: Senhor, dizes essa parábola para nós, ou tam-
companheiros, a comer e bém para todos?
beber com ébrios, 42. E disse o Senhor: "Quem, pois, é o ecônomo fiel e inteligen-
50. virá o Senhor desse servo no te, que o Senhor constitui sobre sua criadagem, para dar-
dia em que não espera e na lhe, no tempo certo, o alimento?
hora que não sabe, 43. Feliz aquele servo que, vindo o Senhor dele, encontrar fa-
51. e o cortará pelo meio e porá zendo assim.
a parte dele com os hipócri- 44. Verdadeiramente digo-vos o constituirá sobre todos os seus
tas; aí haverá o choro e o bens.
frêmito dos dentes".
45. Mas se aquele servo disser em seu coração: meu Senhor
demora a chegar, e começar a bater nos criados e criadas, e
começar a comer e beber e embriagar-se,
46. virá o Senhor daquele servo, no dia em que não aguarda e
na hora que não sabe, e o cortará ao meio e porá a parte
dele com os infiéis.
47. Mas aquele servo que soube a vontade de seu Senhor e não
se preparou nem fez segundo sua vontade, será castigado
com muitos açoites.
48. Mas quem não o soube e fez coisas dignas de açoites, será
castigado com poucos (açoites). A todo aquele a quem foi
dado muito, muito será pedido dele, e a quem muito é con-
fiado, muito mais lhe será pedido".

Página 92 de 143
SABEDORIA DO EVANGELHO

Em Mateus, a parábola é introduzida com uma interrogação, como vimos em 7:9-10 e 12:11, enquanto
em Lucas apenas com uma frase de conselho, vindo a seguir a comparação.
Era comum, na ausência do chefe das grandes casas, que um servo ficasse encarregado do resto da
criadagem, com uma espécie de mordomia. Desse exemplo vale-se Jesus para opor dois comporta-
mentos extremos: o bom servo que age corretamente, e o mau que, içado ao poder, trata violentamente
seus antigos companheiros, para demonstrar a forca da posição que lhe foi atribuída.
O prêmio ao bom é constituí-lo intendente sobre todos os seus bens, enquanto o mau “será cortado ao
meio" (dichotomêsei). Já ensinava Jerônimo, Patrol. Lat. vol. 26. col. 183, que "isso não quer dizer
que o cortará em dois com uma espada, mas somente que o separará da sociedade dos santos e o rele-
gará com os hipócritas”. No entanto, como o verbo empregado por Lucas é o mesmo, insistindo na
mesma idéia, a interpretação de Jerônimo parece-nos boa, sobretudo porque é acrescentado: "Porá a
parte dele com os hipócritas", isto é, colocá-lo-á no rol dos fingidos. Recordemos que hypócrités signi-
fica “ator”, aquele que é uma coisa e representa outra.
Em Lucas, o conselho de manter “cingidos os quadris e acesas as lâmpadas", exprime o estado de “vi-
gília", pois para dormir soltavam-se os cintos e apagavam-se as candeias.
O prêmio do servo bom é inesperado e desusado: o próprio Senhor porá o avental para servi-lo à mesa,
conforme é dito mais adiante (Luc. 22:27): "quem é o maior o que está à mesa ou o que serve? Não é
quem está à mesa? Mas eu estou no meio de vós como quem serve”.
De passagem, aparece o exemplo do dono da casa, que não sabe a hora em que virá o ladrão. Aqui, o
Filho do Homem é comparado ao ladrão que arromba a casa para entrar, tal como o Homem Novo que
penetra inopinadamente e à sorrelfa, roubando do homem velho todos os seus bens perecíveis, inclusi-
ve “matando-o” definitivamente. Bem o compreendeu Pedro (2.ª Pe. 3:10) e bem o interpretou Paulo
(1.ª Tess. 5:2).

A cada novo passo que temos diante dos olhos, compreendemos que a interpretação que vimos dando
plenamente se confirma.
A criatura deve permanecer espiritualmente desperta, "com os quadris cingidos e a lâmpada acesa”,
embora até mesmo a parte material do corpo físico possa adormecer no sono noturno, refocilando-se
das lides diárias. Mas o Espírito, não: esse deve manter-se acordado, em oração, mesmo nas horas de
repouso corporal.
Lucas fala do regresso do Senhor "quando se libertar dos esponsórios (póte analysêi ek tôn gámôn),
que as traduções correntes vertem por "ao voltar das bodas". De qualquer forma, a idéia fundamental
é a mesma, embora "anâlysis" exprima "libertação", mais que regresso. Mas que sentido profundo
terá essa expressão? Carl Jung relaciona as núpcias com a união total e interna da parte "feminina"
do homem com seu Espírito, ou seja, à unificação do eu personalístico com o Eu individualístico ou
profundo. Ao regressar dessas núpcias, devem estar preparados os veículos todos para receber o Se-
nhor, o Pai, cuja vinda já está "às portas", fazendo manifestar-se o Cristo interno.
Sempre preferiram os místicos a figura do esponsalício, como a mais representativa da realização da
vida; a alma rende-se ao chamado do Bem-Amado e finalmente abraça o Perfeito Amor (cfr E. Un-
derhill, "Mysticism”, pág. 136). Assim Bernardo de Claraval (cfr. Dom Cuthberg Butler, Western
Mysticism”, pág. 160), Teresa d'Ávila (Castelo Interior, Sétima Morada, cap. 2.º), Ricardo de S. Vic-
tor ("De quattuor Gradibus Violentae Charitatis", Patrol. Lat. vol. 196, col. 1207), Plotino (Enéada 6,
v. 9), Jacopone da Todi (Lauda 91), Dante Alighieri (Paraíso, 1, 73), o Sufi Jalálu'd Din Rumi ("Se-
lections", pág. 10) e a quase totalidade dos místicos, que seria longo enumerar. Sem falar nas exem-
plos do próprio Evangelho, bastaria citar Paulo: "quem adere a Deus é um Espírito com ele (1.ª Cor.
6:17).
Ora inicialmente ocorre a união do eu pequeno com o EU grande, da personagem com a individuali-
dade, do espírito com o Espírito, do eu superficial com o EU profundo e verdadeiro. Só depois desse

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C. TORRES PASTORINO

processo de unificação íntima, no esponsalício místico, é que ocorre a grande descida da graça, a
manifestação do Pai na alma, o nascimento virginal do Cristo na criatura, a absorção do ser pelo
Verbo Criador ou Pai, a total cristificação do homem.
No segundo passo surge integral o Homem Novo, que é Filho do Homem: a criatura transubstancia-se
como a uva em vinho e o trigo em pão. Constitui este o passo final da evolução humana no planeta
Terra. Foi isso o que ocorreu com Jesus o Nazareu, que se anulou para que por Ele ressoasse a Voz
do Verbo em toda a Sua santidade (hágios), em toda a Sua força (dynamis), em todo o Seu poder
(exousía), fazendo as obras (érga) para mostrar (deíknymi) o caminho aos homens, entregando-lhes
(paradídômi) os ensinos (lógoi) que deviam ser experimentados (páthein) para adquirir-se á sabedoria
(sophía) e com ela atingir-se a ação sagrada (orgê) que leva à plenitude (plêrôma) da salvação (sôte-
ría) (Cfr. vol. .4).
Daí chegamos a uma interpretação oposta que, por incrível que pareça, pode ser aceita ab íntegro
juntamente com a outra. Seria compreender gámos no sentido de união do espírito preso na matéria.
A libertação (análysis) dos esponsórios (tôn gámôn) seria o desprendimento espiritual real do domínio
dos veículos menores (físico, sensações, emoções e intelecto) para entregar-se aos veículos maiores
(mente, Espírito, Centelha Divina). Todos devem estar preparados e despertos para receber o senhor
(o Espírito), quando este "se libertar dos esponsalícios", ou seja, da escravidão às influências materi-
ais, às sensações, às emoções e ao intelectualismo horizontal.
Evidentemente, essa libertação transtorna todo o equilíbrio até então vigente, causando perturbação
sensível ao eu pequeno, que perde o apoio básico que até então o sustinha desde sua constituição in-
dividual. Ao desapegar-se de tudo, o Espírito dá uma guinada de 180º, saindo das trevas para a luz e,
durante algum tempo, sentir-se-á ofuscado pela claridade, até poder firmar-se no novo plano evoluti-
vo que atingiu.
Daí ocorrer que essa instabilidade, por vezes, na passagem de um degrau para outro, dura várias
encarnações: a criatura permanece com um pé no degrau de baixo e o outro no de cima, sem se resol-
ver a tomar o impulso definitivo. Por isso existem, entre os espiritualistas, tantos que se encontram no
limiar, que aspiram a entrar na Senda, mas não têm coragem de "saltar o abismo", soltando o pé do
chão ("libertando-se dos esponsórios") para lançar-se no grande vazio do ignoto.
Se as criaturas estiverem acordadas e perceberem a chegada do Senhor, serão "constituídas sobre
todos os seus bens", isto é, conseguirão o domínio total da natureza e de todas as coisas criadas, com
poderes absolutos inclusive de materialização e desmaterialização da matéria: "fareis as obras que
faço e ainda maiores" (João, 14:12).
Em Lucas é dito que "o Senhor os servirá à mesa”, atendendo a todas as suas solicitações e nada mais
lhes faltando.
Pedro indaga se o ensino é só para os discípulos do Colégio Iniciático ou "para todos", e a resposta
indireta deixa claro que "para todos os servos que forem fiéis”, isto é, que sintonizarem com o Cristo.
Se, porém a criatura adormecer, descuidando-se do espírito e passar à perseguição dos companheiros
de jornada, considerando apenas a parte material da vida, procurando vencer pela força, pelo poder
ou pela astúcia e tiranizando os semelhantes, o Senhor "o cortará ao meio" e "porá sua parte com os
hipócritas".
Aqui também a interpretação precisa ser cuidadosa. A opinião de Jerônimo, citada acima, é interes-
sante para não assustar a personalidade, acreditando que seu corpo não será aberto a espada. Mas o
verbo grego dichotomízô não dá margem a essa interpretação: não é "separar" um homem de um
grupo. Também não se trata de "morte", pois o servo continuará vivo, sendo colocado no bloco dos
hipócritas. Que será?
Na epístola aos hebreus (4:12) está escrito: zôn gár ho lógos toú theoú kaì energês kaì tomôteros
hypèr pãsan máchairan dístomon kaì diiknoúmenos árchi merismóu psychês kaì pneúmatos, harmôn te
kaì myelôn, kaì kritíkòs enthymêseôr kaì ennoiôn kardías que significa: "Vivo, pois, é o Lógos de Deus

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e energético e mais cortante que qualquer espada de dois gumes, penetrando até a divisa da alma e do
espírito, das conexões e da medula, e discriminador dos pensamentos e das razões do coração".
Bem compreendido, o trecho assinala os diversos níveis conscienciais do ser humano, pois cita o Ló-
gos de Deus, a força divina. que penetra e invade até as distinções (divisões, merismós) que possam
ser feitas entre alma ou personagem (psychê) e espírito ou individualidade (pneúma); entre as cone-
xões (harmós, sistema nervoso periférico das sensações) e medula (myelós, medula, sistema nervoso
central das emoções): e acrescenta que inclusive é "discriminador" (kritíkós) entre os pensamentos
raciocinados horizontais do intelecto personativo (enthymêsis) e as razões ou idéias mentais que pro-
vêm do coração ou Eu profundo (énnoia kardías).
Ora, se intervém o afastamento da individualidade (cfr. vol. 4), verifica-se, exatamente, um "corte pelo
meio", uma dicotomia do ser) e a personagem humana, sem a presença física do Espírito, continuará
"vegetando", ou seja: "terá sua parte com os hipócritas". Poderíamos traduzir muito melhor, se rigo-
rosamente nos ativéssemos à letra do original: "passará a funcionar com os atores", com aqueles que
representam ser criaturas humanas, mas não são: constituem simples simulacros destinados ao fogo
que consumirá a palha depois que dela saiu a espiga. Nesse ambiente, haverá lamentações e dores
atrozes porque, de qualquer forma, o intelecto sentirá o desfalecimento total da personalidade, que
perdeu preciosa oportunidade de evoluir com o Espírito, e que por isso foi por Ele abandonada a fim
de construir outra personagem mais responsável, que melhor responda a seus anelos, correspondendo
a sua ânsia evolutiva.
Eis que novas lições surgem do mesmo texto antigo dos Evangelhos, abrindo horizontes inesperados
para todos, que passamos a ver imensas riquezas guardadas durante séculos nos cofres da letra, para
que, a seu tempo, fossem abertos e desvendado o segredo da lição ali encerrada. Bendito seja o Pai
que a todos nos ilumina!

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C. TORRES PASTORINO

AS DEZ MOÇAS
Mat. 25:1-13
1. “Então o reino dos céus será assemelhado a dez moças que, tomando suas lâmpadas,
saíram ao encontro do noivo.
2. Mas cinco delas eram tolas e cinco inteligentes.
3. As tolas, pois, ao tomar suas lâmpadas, não apanharam consigo azeite.
4. Mas as inteligentes apanharam azeite nos vasos, com as lâmpadas delas.
5. Demorando o noivo, cochilaram todas e dormiram.
6. Mas à meia-noite foi dado um grito: Olha o noivo! Saí a seu encontro!
7. Então levantaram-se todas aquelas moças e prepararam suas lâmpadas,
8. e as tolas disseram às inteligentes: dai-nos de vosso azeite, porque nossas, lâmpadas se
estão apagando.
9. Mas as inteligentes disseram: Não é bastante para nós e para vós; é melhor irdes aos
vendedores comprá-lo para vós.
10. Indo elas comprá-lo, chegou o noivo e as preparadas entraram com ele para as núpci-
as e fechou-se a porta.
11. Por fim chegaram também as outras moças, dizendo: Senhor, Senhor, abre-nos!
12. Respondendo, ele disse: Em verdade digo-vos, não vos conheço.
13. Despertai, então, porque não sabeis o dia nem a hora".

O cerimonial das núpcias era bastante solene e rumoroso a essa época, durando vários dias e noites de
festas, que cada noivo realizava em sua casa. O noivo permanecia rodeado de seus amigos, os “para-
ninfos”, e a noiva cercada por suas amigas geralmente moças casadoiras, de sua idade. O termo grego
parthénos, em geral traduzido por “virgem", não exige essa condição física da mulher, mas simples-
mente designa a não-casada ainda. Embora não tenha mais as características materiais da virgindade,
por já ter mantido relações sexuais com outros homens.
Os dois grupos reuniam-se no último dia, o marcado para as bodas, quando o noivo se dirigia com seus
paraninfos à casa da noiva, a fim de levá-la consigo, juntamente com o grupo de suas amigas, para sua
casa. Reunidos os dois grupos de parentes e amigos de ambos, na casa do noivo realizava-se o ban-
quete oficial de núpcias, que podia durar vários dias.
Embora até hoje se tenha interpretado a parábola como referente às moças (ou “virgens”) amigas da
noiva, cremos que não é a elas que se refere o Mestre. Notemos que a Vulgata (e alguns códices, como
D, X e theta, a família 1, algumas versões ítalas, siríacas, armênias, o Diatessaron, Hilário e Origenes
latino) é que trazem: "saíram ao encontro do noivo e da noiva: contra o testemunho dos melhores códi-
ces, que suprimem "e da noiva" (como o Sinaítico, o Vaticano, K. L, W, X2, delta, pi, a família 13
mais 21 minúsculos, as versões siríacas harcleense e palestiniana, a copta saídica e a boaírica, a etiópi-
ca e os pais Metódio, Basílio, Crisóstomo, João Damasceno).
Examinando o texto, verificamos que contradiz frontalmente a todos os hábitos normais das núpcias da
época, se se referisse às moças companheiras da noiva. Vejamos alguns pontos para comprovar nossa
tese:

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SABEDORIA DO EVANGELHO

1) As moças estão na rua, e não na casa da noiva, o que é inconcebível.


2) Saem com pequenas lâmpadas a óleo, que se apagariam com qualquer rajada fresca de vento.
3) Dormem, enquanto esperam o noivo, e dormem na rua. Se estivessem na festa, a algazarra as
manteria acordadas.
4) Cinco levavam suprimento de azeite e são chamadas "inteligentes", embora demonstrem indiferen-
ça e dureza de coração em relação a suas companheiras. Numa festa, não necessitariam de lâmpa-
das nem de suprimento de azeite, mesmo porque o cortejo era feito com archotes ou tochas. E se
fossem "acompanhantes", não havia razão para que as inteligentes recusassem ajudá-las.
5) As "tolas” são enviadas a comprar azeite nos vendedores à meia-noite; compram e regressam,
quando a essa hora nenhuma loja permanecia aberta para comerciar.
6) Ao chegar o noivo, este fecha a porta, coisa inadmissível num banquete nupcial, e impede a entra-
da das amigas e convidadas da noiva, em gesto de suprema deselegância e desconsideração.
Por tudo isso, concluímos que a parábola não se refere absolutamente às “acompanhantes" da noiva
numa festa de núpcias, e sim às próprias pretendentes ao casamento, às próprias noivas que, sem qual-
quer festa, seriam introduzidas na câmara nupcial do noivo para se casarem com ele. O fato de serem
cinco ou dez, nada importa, já que a poligamia era admitida como lícita para o homem, só sendo proi-
bida para as mulheres, únicas sujeitas às sanções contra o adultério. Desde que tivesse meios de sus-
tentá-las, o homem podia casar-se lícita e oficialmente com quantas esposas quisesse.
O noivo da parábola havia convocado dez, para determinado dia, mas estava a viajar. As dez foram
pontuais, mas ele atrasou-se e chegou tarde - à meia-noite ou segunda vigília, diz o parabolista - e, ao
entrar, só encontrou cinco. Ao regressarem as "tolas", estava evidentemente ocupado e, não mais quis
abrir a porta.
Agostinho (Patrol. Lat. vol. 38, col. 575) escreveu: "algo de grande simboliza o óleo, de muito grande:
julgas não ser o amor"? E, acrescentam os comentadores com acerto: "o óleo dos outros de nada adi-
anta, só o próprio".
Em todo o episódio, verificamos que o cochilo, e depois o sono das moças, natural pelo cansaço físico,
não foi condenado pelo parabolista, embora toda a parábola seja narrada para salientar a necessidade
de permanecer "despertos" ou "acordados". Mas o essencial é estar espiritualmente desperta a criatura
e preparada para a chegada do noivo bem-amado.

Ainda aqui vem confirmar-se de forma flagrante e magnífica nossa tese, "O Reino dos Céus será as-
semelhado” (no futuro, homoiôthêsetai, veja vol 6). Claro que não se percebe qualquer comparação
com o céu mítico de após a morre do corpo físico. Trata-se da continuidade de um ensino dado à saci-
edade, com lições teóricas e práticas, com citação de fatos reais ou imaginários, que pudessem dar
uma idéia pálida da realidade, por meio de comparações (ou seja, parábolas) que visavam a esclare-
cer pormenores. Todos os exemplos, os fatos, as semelhanças, enfim todos os recursos didáticos possí-
veis naquela época, foram utilizados pelo Mestre, para que Seus discípulos percebessem algo que não
podia, como até hoje não pode, ser explicado com palavras terrenas, pois é algo que se passa fora e
além da intelecção humana, no campo do Espírito e da mente espiritual.
Mas está tão evidente que se refere todo o ensino crístico ao mergulho do ser em seu âmago e da uni-
ão de nosso Espírito com o Pai, que se torna fácil interpretar todas as Suas palavras com base nesse
leit-motiv que volta e é repisado a cada página dos Evangelhos.
Vejamos, pois, o que nos diz ao coração a parábola das dez moças (ou "virgens”) candidatas ao es-
ponsalício, e que "saem ao encontro do noivo”. Inicialmente observemos essa expressão (em grego:
exêlthon eis hypántêsin toù nymphíou) que nos revela que elas se encaminharam ao encontro de seu
próprio noivo, e não ao encontro do noivo de outra. Em todo o transcurso da parábola não há refe-
rência nem longínqua a qualquer noiva ou sponsa, afora as dez citadas: é o noivo que é esperado, só

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ele é anunciado, só ele chega, só ele entra com as cinco, só ele responde à porta. O esponsalício era
dessas cinco com o noivo.
O parabolista divide aritmeticamente as dez em dois grupos de cinco, DEZ e CINCO.
Fazendo rápida incursão nos arcanos (cfr. Serge Marcotoune, "La Science Secrete des Initiés") verifi-
camos que o DEZ representa a diversidade da vida nos acontecimentos que surgem. Com efeito, os
nove primeiros arcanos são reveladores da vida interior, enquanto o arcano 10 simboliza a multipli-
cidade da vida para iniciar a realização no mundo exterior. O DEZ é o término do trabalho interior,
que dá direito à atividade externa. Ao passar do nove é indispensável aplicar sua sabedoria e experi-
ência, a fim de executar a tarefa confiada à encarnação, cumprindo-a no âmbito que lhe foi designa-
do.
Mas como aqui se trata de dois grupos de CINCO, este é o arcano que mais nos interessa, pois preci-
samos explicar-nos porque o mesmo número simboliza, na parábola, a vitória e a derrota. E chega-
mos à conclusão de que está perfeitamente certo.
O número CINCO exprime basicamente a vida. No plano divino é a Providência (no caso, o noivo que
vai chegar, a Divindade que se dirige ao homem, o Criador que vem ao encontro da criatura que an-
tes demonstrou desejar ir a Seu encontro). No plano humano é a força do microcosmo (as dez moças
que buscam a união sagrada). No plano da natureza é a força vital (que faltou às cinco "tolas", sim-
bolizada no óleo em pequena quantidade, que não conseguiu manter acesa a lâmpada da vida e da
espiritualidade).
O CINCO é essencialmente dinâmico: "a vida e uma sequência de quaternários sucessivos e entrecru-
zados" e representa no plano humano a vontade do homem e no plano da natureza a força vital, sua
resistência, seu esforço. Seria o ponto, no centro da cruz, dando-lhe a energia para o movimento evo-
lutivo. Seria o schin, no meio do nome sagrado: yodhê-wau-hê transformando o tetragrama divino no
pentagrama messiânico, a Energia cósmica fundamental YHWH em Sua manifestação YH-SH-WH
(Yahweh em Yeshwa, ou Jeová em Jesus).
No entanto, o pentagrama representado pela estrela de cinco pontas pode ser completado com a figu-
ra do bode (o "Baphomet") das paixões e crimes elementares, tanto quanta pela figura da homem ide-
al, com braços e pernas estendidos. Isso significa que, ao sair do arcano quatro e penetrar no cinco,
pode a criatura tomar duas direções: para o bem ou para o mal, com a ponta para cima ou para bai-
xo, conforme a direção que a vontade lhe imprime. O que não se concebe ai é a ausência da vontade
dirigente. Pode haver rápida hesitação ou dúvida da vontade na escolha do caminho, mas invariavel-
mente segue-se a decisão para orientar-se na ação. Se não há amadurecimento suficiente do espírito,
pode este fraquejar, por incapacidade de atingir a meta.
Foi o que ocorreu com as cinco "tolas". Por falta de vigor vital (o azeite que mantém acesa a lâmpada
da vida) fraquejaram. Podemos dar a esse vigor vital o nome que quisermos: amor, fidelidade, sinto-
nia, equilíbrio mental (o termo grego môra exprime exatamente a incapacidade mental) ou qualquer
outro.
O fato de cochilarem e adormecerem fisicamente não importa: a lâmpada ao anelo ardente permane-
ceu viva e desperta, só começando a bruxulear as das que não tinham suprimento suficiente.
Não há, tampouco, dureza de coração das que recusaram fornecer seu azeite. Trata-se da impossibili-
dade absoluta de transferir uma capacidade espiritual. Ninguém pode transfundir em outrem seu co-
nhecimento nem sua elevação evolutiva, nem seus dons intelectuais ou morais. Cada um tem aquilo de
que é capaz. O copo não pode fornecer a um cálice a capacidade que possui de armazenar duzentos
gramas. Daí a frase muito lógica: ide adquirir aquilo que vos falta, com exercícios e experiências
próprias, pessoais e intransferíveis.
O grito que anuncia a chegada do noivo é dado à meia-noite, a hora em que o sol se encontra exata-
mente nos antípodas do local, isto é, no momento em que a fonte de luz está no mais profundo abismo
do ser. Nesse exato instante, chega o noivo para realizar a união, ou seja., o Encontro misterioso que
se efetua a portas trancadas dentro do ser: "entra em teu quarto e, fechada a porta, ora a teu Pai que

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está no secreto" (Mat. 6:6; vol. 2). Ninguém jamais pode testemunhar nem presenciar o verdadeiro e
real esponsalício místico entre a noiva e seu Amado; realiza-se ainda em maior reserva e pudor que a
própria união sexual entre os cônjuges.

O parabolista mostra a chegada extemporânea e apressada das cinco “tolas", com a resposta apa-
rentemente dura do noivo: "não vos conheço". Não nos esqueçamos de que o verbo "conhecer" tem
sentido especial na Escritura, exprimindo a união sexual (vol. 1), a união íntima (volume 4), ou a
gnôse total (vol. 5); daí dizer Jesus que “conhece o Pai" (vol. 4).
Finaliza a parábola com a repetição da advertência: "Despertai, porque não sabeis o dia nem a
hora". A consciência, mantida alerta e acordada no plano superior do espírito, constitui a lâmpada
que deve estar alimentada pelo azeite da prece ininterrupta. Assim não se desfaz a sintoma com Seu
Espírito, conservando-o preparado para a recepção suprema ao Noivo Divino.

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FIM DO CICLO
Mat. 25:31-46
31. "Todas as vezes que vier o Filho do Homem em sua substância e todos os mensageiros
com ele, então sentará sobre o trono de sua decisão.
32. E serão reunidos em torno dele todos os povos e separará uns dos outros, como o pas-
tor separa as ovelha dos bodes,
33. e porá as ovelhas à sua direita e os bodes à esquerda.
34. Então dirá o rei aos de sua direita: Vinde, escolhidos de meu Pai, participai do reino
para vós preparado desde, a constituição do mundo;
35. pois tive fome e me alimentastes, sede e me fizestes beber, era estrangeiro e me rece-
bestes,
36. estava nu e me vestistes, doente e me visitastes, estava preso e me viestes ver.
37. Então lhe perguntarão os justos, dizendo: Senhor, quando te vimos faminto e te ali-
mentamos, ou sedento e te demos de beber?
38. quando te vimos estrangeiro e te recebemos ou nu e te vestimos?
39. E quando te vimos doente ou na prisão e te visitamos?
40. E respondendo, o rei lhes dirá: Em verdade vos digo, quanto fizestes a um destes
meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes.
41. Então dirá também aos da esquerda: Afastai-vos de mim, infelizes, para o fogo do
eon, destinado ao adversário e seus mensageiros,
42. pois tive fome e não me alimentastes, tive sede e não me destes de beber ,
43. era estrangeiro e não me recebestes, estava nu e não me vestistes, doente e preso e não
me visitastes.
44. Então perguntarão também eles, dizendo: Senhor, quando te vimos faminto, ou se-
dento, ou estrangeiro, ou nu, ou doente, ou preso e não te servimos?
45. Então lhes responderá, dizendo: Em verdade vos digo, quanto não fizestes a um des-
tes mais pequeninos, nem a mim fizestes.
46. E irão estes para o castigo do eon, mas os justos para a vida imanente".

Ainda prosseguem as previsões para o fim do ciclo. Anuncia o Mestre que "o Filho do Homem virá em
sua substância". Neste versículo, o grego dóxa é traduzido como "glória" duas vezes nos textos vulga-
res. Analisando-se o contexto, todavia, verificamos que poderia ser dado esse sentido apenas lato sen-
su; mas que idéia faríamos daquele que encarnou o Amor mais sublime com a maior humildade, se ao
invés de chegar com a simplicidade característica dos Grandes Espíritos, pretendesse impor-se pelo
aparato pomposo de uma glória ostentatória, para esmagar as pobres criaturas com sua presença? Os
seres inferiores podem impressionar-se com isso - as fêmeas dos irracionais deixam-se levar pela bele-
za "gloriosa" ou pela bela voz dos machos - mas repugna-nos admitir que um Espírito superior e divino
aderisse a esse critério tão animalesco, tentando ofuscar pela emoção da forma majestosa. Daí termos
traduzido dóxa por "SUBSTÂNCIA" neste passo.

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Mas no mesmo versículo há pela segunda vez a mesma palavra, na expressão "ele se sentará sobre o
trono de sua glória" (grego dóxa, hebraico, kissê hakkabôd). Ora, se no primeiro caso preferimos
aquele sentido: "em sua substância", isto é, EM PESSOA, ELE MESMO, e não mais seus emissários e
mensageiros (COM os quais se apresentará, metà aggélôn autoú), neste segundo passo, devendo ele
presidir à separação de bons e maus, o sentido mais consentâneo é "trono de sua decisão", legítimo
significado de dóxa (cfr. Parmênides, 1, 30 e 8, 51; Ésquilo, Persae, 28; Sófocles, Fragmenta 235; e
Trachiniae, 718; Platão, Górgias, 472 e; Filebo, 41 b).
Ao assentar-se no "trono de sua decisão" (veremos o sentido mais profundo adiante), todos os povos
(pánta tà éthnê) se Lhe reunirão em torno, conforme foi escrito também em Joel (4:29) e Zacarias
(14:2).
Utilizará, então, o método empregado pelos pastores ("fará COMO"), o que oferece significado especi-
al que procuraremos estudar, a fim de "separar uns dos outros" (aphorísei autoús ap'allêlois).
Vem a seguir o discurso dirigido aos da direita, em que é salientado o grande, o inestimável, o único
valor que conta: a misericórdia em relação aos desgraçados de qualquer espécie: "felizes os misericor-
diosos porque eles obterão misericórdia" (Mat. 5:7).
E as "obras de misericórdia" são enumeradas uma a uma:
alimentar os famintos
abeberar os sedentos
vestir os nus
assistir os enfermos
visitar os presos.
Conforme comprovamos, referem-se todas à matéria física, ao corpo e ao conforto moral; nenhuma se
dirige à parte espiritual, reservada apenas aos "discípulos" da Escola. Trata-se de verdadeiro resumo
dos objetivos da "Assistência Social" ou da Caridade.
A misericórdia, no ambiente israelita era sobretudo moral e corporal e vem citada como necessária em
diversos passos (Gên. 21:23; Jos. 2:14 e 11:20; 2.º Sam. 10:2; 3:8 e 9:1; Job 31:18; Ecli. 18:12; Zac.
7:9, etc.); a misericórdia dá honra a quem na recebe (Prov. 14:31); mas deve ser acompanhada de
constância e justiça (Jos. 2:14; Prov. 3:3; 14:22; 16:6 e 20:28). Numa frase citada por Jesus (Mat. 9:13
e 12:7) é dito que a misericórdia tem mais valor que os sacrifícios (Oséas, 6:6; Ecli. 35:4; cfr. ainda:
Mat. 15:5, 6 e Marc. 7:10-13). As parábolas do "bom samaritano" (Luc. 10:30-37) e do perdão (Mat.
18:23-35) são exemplos de misericórdia e da ausência dela. Paulo de Tarso e João recomendam que os
cristãos tenham "vísceras de misericórdia" (Flp. 2:1; Col. 3:12 e 1.ª João 3:17).
Os que praticaram e viveram essas "obras de misericórdia" são os chamados, porque "escolhidos pelo
Pai" para tomar parte no reino "preparado desde a constituição do mundo". Admirados, perguntarão
quando tiveram oportunidade de fazer tudo isso, se jamais O encontraram na Terra. E a resposta é que
"tudo o que se faz a um desses meus irmãos pequeninos necessitados, é feito a Ele mesmo". Lição
magnífica e oportuna.
Já aos "da esquerda", são eles convidados a afastar-se, infelizes que são, "para o fogo do eon, destina-
do ao adversário e seus mensageiros". Sentido algo enigmático, que tentaremos analisar. O que os tor-
nou "infelizes" foi, exatamente, o contrário das obras de misericórdia:
A avareza que não reparte de sua mesa com os famintos;
O egoísmo que, rodeado de bebidas finas, não pensa na sede dos desgraçados;
O orgulho mal entendido, que não abre sua porta a estranhos;
A vaidade que exige para si trajos luxuosos, deixando sem roupa os mendigos;
O comodismo que não sai de seu conforto para estender a mão e abrir seu coração aos enfermos; e

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A dureza de coração que não se apiada dos que sofrem nos cárceres, castigados por descontroles emo-
cionais.
A resposta é o reverso da medalha da que foi dada aos primeiros.
E vemos sempre a referência "a estes meus irmãos (IRMÃOS!) mais pequeninos (enì toútôn tôn
adélphôn mou tôn elachístôn). Repete-se, como um refrão, que os homens, por menores que sejam, por
mais desgraçados, por mais atrasados, são SEUS IRMÃOS: "quem faz a vontade do Pai é meu irmão,
minha irmã, minha mãe" (Mat. 12:50 e Marc. 3:35); "são meus irmãos os que fazem a vontade do Pai"
(Luc. 8:21); "ide avisar a meus irmãos" (Mat. 28:10) e os humildes são seus irmãos pequeninos, Dele
que "é o primogênito entre muitos irmãos" (Rom. 8:29); e mais: "quem vos recebe, me recebe" (Marc.
10:40); "quem recebe a uma destas criancinhas em meu nome é a mim mesmo que recebe" (Mat. 18:5).
Não vimos aí, em absoluto, um DEUS EM SUA GLÓRIA, como quiseram fazer-nos crer durante dois
milênios, mas um irmão mais velho, cheio de carinho e ternura, de cuidados verdadeiramente mater-
nais para com os IRMÃOZINHOS mais pequeninos! Vemos um amor aconchegante, que se preocupa
com os sofrimentos até do físico e sente em si mesmo os efeitos dos benefícios recebidos por eles e a
amargura das portas que se fecham diante deles; lembramo-nos do anexim popular: "quem meu filho
beija, minha boca adoça". Mas o Mestre nem fala de filhos ("um só é vosso Pai, a ninguém na Terra
chameis de Pai", Mat. 23:9) e sim, igualando-se a eles, em irmãos menores, ainda pequeninos, dignos
de toda atenção e amor.
Os que desprezam "seus irmãos mais pequeninos" são ditos katêraménoi, isto é, "infelizes"; mas ob-
servamos que, enquanto os misericordiosos são "abençoados pelo PAI", os duros de coração se desgra-
çam a si mesmos. A estes está reservado o "fogo do eon" (tò pyr aiônion), que é a labareda do sofri-
mento no percurso lento e doloroso de mais um eon ou ciclo de evolução. Trata-se do fogo purificador,
que faz a catarse dos espíritos, aquele "fogo inextinguível que queimará a palha" das imperfeições
(Mat. 3:12) e que atinge a todos os que são "lançados na fornalha de fogo" (Mat. 13:42) das reencarna-
ções cármicas dolorosas.
Esse fogo foi preparado para o adversário (diábolos) e seus mensageiros desde a criação do mundo,
pois desde aí começou o funcionamento da grande lei de causa e efeito.
A consequência final é que os misericordiosos irão participar da "vida imanente" (eis zôên aiônion)
enquanto os endurecidos irão para o "sofrimento imanente" (eis kólasin aiônion) em segura oposição
de resultados. Também poder-se-iam traduzir as expressões por: "vida do eon" e "sofrimento do eon".

Muito temos que aprender nas sábias e profundas lições do Evangelho. Vejamos inicialmente as pre-
visões exteriores.
Todas as vezes que o Filho do Homem aparece em Sua própria substância, e não através de interme-
diários, essa presença assinalará fundamental modificação na tônica vibratória do planeta: é como se
Ele sentasse em seu "trono da decisão", para firmar o tom de seu diapasão na energia sonora (o Som,
a Palavra criadora ou Verbo ou Logos do Pai), pelo qual será testada a sintoma intrínseca dos seres.
O fenômeno da separação "à direita e à esquerda" - como costumam fazer os pastores ao separar os
bodes das ovelhas, nas épocas em que não deve haver procriação - não é religioso, nem místico, nem
teológico: é CIENTÍFICO.
Desde que a chegada do Filho do Homem em Sua substância faça que o planeta evolua, elevando sua
tônica vibratória, automaticamente ocorrerá que os espíritos que sintonizarem com esse diapasão
elevado, nela permanecerão, enquanto os que tiverem tons mais baixos serão atraídos para planetas
de tônica vibratória mais baixa, ou seja, de menor evolução, sendo, portanto, "deportados" da Terra
(cfr. Prov. 2:21-22 "pois os justos habitarão a Terra e os perfeitos permanecerão nela, mas os sem
misericórdia serão suprimidos da Terra e os perversos serão arrancados dela"; e mais adiante Prov.
10:30 "o justo não será removido no eon, mas o sem misericórdia não habitará a Terra").

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Como vemos, o julgamento ou "juízo" no final do ciclo (ou separação dos bons dos maus) será uma
ação automaticamente científica, de acordo com a lei física das sintonias vibratórias intrínsecas de
cada ser não havendo, pois, nenhuma possibilidade de enganos, nem de privilégios, nem de valoriza-
ções por estar rotulado nesta ou naquela religião, com este ou aquele cargo.
Exemplificando grosseiramente: a Terra tem atualmente (suponhamos!) uma vibração de número 30,
tal como grande parte (dois terços, segundo Zacarias 13:8) de seus moradores. Ao elevar-se a vibra-
ção da Terra para o número 50, só conseguirão permanecer nela aqueles espíritos cuja vibração in-
trínseca seja de número 50 (que são os que hoje se sentem tão mal neste ambiente de falsidades, ódios,
guerras e violências); e todos os que tiverem vibração número 30, serão automaticamente atraídos
por outro planeta que também tenha vibração número 30. Exatamente isso ocorreu quando para a
Terra vieram tantos espíritos, ao ser vibratoriamente elevado seu planeta de origem na Constelação
do Cocheiro (cfr. Francisco Cândido Xavier "A Caminho da Luz", FEB, 1941, 2.ª ed. pág. 27).
Podemos dar outro exemplo: suponhamos que o planeta seja um rádio-receptor, e o espírito uma esta-
ção transmissora. O planeta que esteja ligado na sintonia de 800 kilohertz, atrairá espíritos dessa
mesma sintonia (tal como o rádio-receptor atrai as ondas da Rádio Ministério da Educação). Mas se
esse planeta muda sua agulha para a sintonia de 1.400 kilohertz, os espíritos de 800 não mais são ali
recebidos: só os que possuem a sintonia de 1.400 kilohertz o serão. No entanto, aqueles de 800 irão
para outro planeta que tenha essa sintonia.
Prosseguindo na interpretação do trecho quanto à parte externa, vemos que a grande chave determi-
nante da sintonia é a MISERICÓRDIA que tira de si para dar aos outros, ou seja, o AMOR em toda a
extensão ampla de suas consequências. Como escreveu H. Rohden: "não é o saber, não é o ter, não é
o falar nem o fazer: o que vale é o SER".
Achada conforme a sintonia dos "justos" e dos "perfeitos", estes terão sua recompensa numa evolução
menos atribulada de dores, porque isenta de ódios e violências, ao passo que os sem misericórdia
continuarão alhures a série de encarnações de resgate, de purificação, de aprendizado: "o fogo inex-
tinguível do Amor que purifica e eleva".
Se, no entanto, trouxermos a análise para a vida espiritual interna, de acordo com a interpretação que
vimos dando nos últimos capítulos, veremos que o sentido ainda aqui é perfeito.
Todas às vezes que o Filho do Homem nasce, com Sua própria substância, na criatura, acompanhado
de todos os seus mensageiros, ou seja, de Suas características, para assumir o bastão de comando
como regente supremo, ele decide a respeito de todos os atos dessa criatura.
Quando o Filho do Homem assume o comando ("senta em seu trono decisão"), já o eu pequeno perso-
nalístico desapareceu, aniquilando-se em sua nulidade temporária, e o Homem Novo, já então Filho
do Homem (veja vols. 1, 5 e 6) é o Senhor absoluto do terreno. Esse é o significado da expressão
“trono da decisão": o Eu supremo passa a governar o eu menor e a decidir realmente por ele; o
Cristo se substitui à personagem transitória; o Pai age através do Filho (cfr. João, 14:11 "as obras
que faço, é o Pai que as faz", etc. veja vol. 6).
Uma vez estabelecido em seu "trono de decisão" na criatura. o Filho do Homem terá a tarefa precí-
pua, que não lhe é difícil, de discernir os espíritos, e o fará de acordo com rigorosa justiça por sua
sintonia interna. O diapasão regulador será a bondade intrínseca que se exterioriza em favor dos me-
nos aquinhoados, com esquecimento de si mesmo.
Aqueles que sintonizarem, serão acolhidos como irmãos, enquanto os dissintonizados serão afastados
de seu círculo para a indispensável catarse de seus erros.
Também terá que agir assim o Filho do Homem em relação a seus veículos de revestimento temporá-
rio. Se estes (físico, etérico, astral e intelectual) tiverem contribuído não só para a evolução da huma-
nidade com a assistência carinhosa aos irmãos pequeninos, que estão abaixo de nós, mas também
para a evolução do Eu profundo? cuidando de alimentá-lo, de saciar sua sede, (tanto física, quanto
moral, intelectual, emotiva e espiritualmente); buscando recebê-lo quando ainda era considerado
"estrangeiro" porque desconhecido; vestindo-o com as matérias dos diversos planos, quando ele ain-

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C. TORRES PASTORINO

da se mantinha “naquela condição nua de puro espírito", no dizer de Paul Brunton; e visitando-o pe-
riodicamente com os esforços continuados de encontrá-lo, quando ainda enfermo pelo "desejo" de
unir-se, mas "preso" às contingências de não poder violar o livre-arbítrio, - nesses casos, os veículos
"inferiores" terão sua recompensa, mantendo-se todos em contato íntimo e permanente até mesmo sem
experimentar a morte (cfr. João, 11:25-26 "quem sintoniza comigo, mesmo se estiver morto, viverá, e
quem vive e sintoniza comigo, não morrerá no eon"; e mais, João 3:15 e 36; 5:24; 6:35, 40, 47; e
14:12) e sem ser sequer julgado (João, 3:18).
Se, ao contrário, tiver sido grande a oposição dos veículos em obter a sintonia com o Filho do Ho-
mem, resistindo a todos os apelos e chamados e egoisticamente debruçando-se para fora, sem mesmo
praticar as "obras de misericórdia" em relação aos "irmãos pequeninos", os veículos serão destruídos
pela morte, tendo que passar pelo fogo purificador do sofrimento, que não se extingue durante o eon
até a catarse integral.
Digno de meditação o trecho. E quem o fizer, encontrará ainda mais pormenores para seu aprendiza-
do e edificação.

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PLANO DE PRISÃO

Mat. 26:1-5 Marc. 14:1-2 Luc. 22:1-2

1. E aconteceu que, quando 1. Era, pois, a Páscoa e os 1. Aproximava-se, porém, a


Jesus terminou todos esses ázimos dois dias depois. E festa dos ázimos, a chama-
ensinos, disse a seus discí- procuravam os principais da Páscoa,
pulos: sacerdotes e os escribas 2. e procuravam os principais
como, prendendo-o com
2. "Sabeis que com dois dias sacerdotes e os escribas
enganos, o matariam,
acontecerá a Páscoa e o como o matariam, pois te-
Filho do Homem será en- 2. pois diziam: não na festa, miam o povo.
tregue para ser crucifica- para que não haja tumulto
do". no povo.
3. Então reuniram-se os prin-
cipais sacerdotes e anciãos
do povo no palácio do sumo
Sacerdote, chamado Caifás,
4. e resolveram apoderar-se
de Jesus com engano e ma-
tá-lo.
5. Mas diziam: Não durante a
festa, para que não surja
tumulto no povo.

Ao terminar a grande lição, o Mestre anuncia aos discípulos que a "páscoa" OU "festa dos ázimos" se
celebrará daí a dois dias. Estamos, pois, na noite de terça ou na manhã de quarta-feira, já que essa festa
era celebrada das 18 horas de quinta até as 18 horas de sexta-feira.
Recordemos (vol. 1) que o primitivo nome de "páscoa" era pesah hu'la YHWH (em grego páscha estì
kuríôi) ou seja a passagem de YHWH" (Êx. 12:11).
Diz mais, que nessa páscoa "o Filho do Homem será entregue para ser crucificado". A comunicação é
feita com tranquila solenidade.
Logo a seguir o evangelista modifica o cenário, e sobre o palco aparece a reunião das autoridades, isto
é, dos sacerdotes, escribas e anciãos. Mateus e Lucas citam os escribas, que Mateus omite, como em
outros passos (cfr. 21:23; 26:47; 27:1, 3, 12, 20).
A reunião é realizada no "palácio" (aulê) do Sumo Sacerdote. O sentido de aulê pode ser o próprio
"palácio" (como em Mat. 26:3, 38; Marc. 14:54 e 15:16; Luc. 11:21 e João 18:15) ou o "pátio do palá-
cio", sobretudo quando acompanhado do adjetivo "exterior" (cfr. Mat. 26:69; Marc. 14:66 e Luc.
22:55).
A páscoa era comemorada rigorosamente a 14 de nisan, com a imolação do cordeiro, enquanto a "festa
dos ázimos" durava uma semana, durante a qual só poderiam comer-se pães sem fermento e alimentos
sem sal nem azeite, (cfr. Êx. 12:1-20 e 39).

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A resolução era consumar-se o sacrifício às ocultas, e não durante a festa, a fim de não provocar tu-
multo entre o povo. Mas os desígnios espirituais nem sempre coincidem com as intenções humanas.

Dada toda a parte teórica da lição, já está soando o momento de chegar-se à parte prática, vivendo-se
tudo o que foi ensinado. Isso é anunciado com palavras bastantes claras para todos.
A partir deste ponto da permanência de Jesus na Terra, em carne, torna-se de cristalina evidência que
todas as ocorrências e palavras assumem característica dúplice:
A) a parte externa, exotérica, para os profanos, que só percebem os fatos físicos, os gestos, as atitu-
des, os diálogos, numa palavra, o que ocorre com a personagem;
B) a parte interna, esotérica, que é representada simbolicamente pelas ocorrências exteriores, mas
que se realiza em outro plano, em outra dimensão, relacionando-se com a individualidade, e que
constitui em última análise, a verdadeira lição a aprender.
Jesus terminou "todos esses ensinos" teóricos (pántas tous lógous toútous) e faz a revelação que a
exemplificação prática está para começar dentro de dois dias, durante os quais será feita toda a pre-
paração mística indispensável. Tratava-se da "passagem" de um grau iniciático a outro, a "travessia'"
da "porta estreita". Realmente, era esse o significado atribuído à palavra "páscoa" por aqueles que
"entendiam" do assunto. Tanto assim que a "páscoa" era chamada por Flávio Josefo (Ant. Jud.
2.14.6) hyperbasía, isto é, "passagem"; por Filon (1,174 e II, 292) era dita diabatêria, "travessia"; por
Gregorio Nazianzeno (Patrol. Graeca, vol. 37 col. 213) heortê diabatêrios, "festa da travessia".
Para essa "travessia" o Filho do Homem "tinha que ser entregue (paradídotai) para ser crucificado
(staurôthênai)".
Aqui começamos a tomar contato com os primeiros passos da grande cena que se desenrolará (à imi-
tação dos dramas sacros de Elêusis) em solene cerimônia iniciática, com a participação integral de
todos os elementos indispensáveis a essa realização suprema.
Era o "sacerdote da Ordem de Melquisedec" que ia submeter-se ao sacrifício máximo para - se conse-
guisse vencê-lo vencendo-se - atingir o grau de "Sumo Sacerdote" da mesma Ordem, ou seja, o grau
de Hierofante ou de "Rei" (1).
(1) Não é sem razão que o catolicismo considera Jesus "Rei": trata-se do grau máximo das Escolas
Iniciáticas, inclusive da que Ele criou.
Para o ato, reuniu-se o alto poder espiritual de seu povo, o povo de Israel, na cidade-santa Jerusalém.
Embora as personagens que o compunham nem sequer desconfiassem do papel que estavam desempe-
nhando na economia planetária pois só "viam dos tetos para baixo" e só consideravam os corpos físi-
cos visíveis - não obstante a Lei utiliza as criaturas para execução de seus fins, mesmo sem nada re-
velar-lhes: os homens são marionetas pretensiosas que julgam agir de acordo com suas convicções
inabaláveis e sua plena liberdade de escolha ...
Sacerdotes, anciãos e escribas (o Sinédrio) RESOLVEM matá-lo, mas desejam fazê-lo às ocultas, sem
que o povo perceba, a fim de evitar tumultos e possíveis represálias. Pretendem, pois, executá-lo DE-
POIS da festa da páscoa. Mas os desígnios dos Espíritos Superiores são outros: há de ser exatamente
na celebração solene da PASSAGEM ("páscoa"). E o meio de conseguí-lo será posto em realização,
conforme predições proféticas anteriores.
Vê-lo-emos a seguir.

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PROPOSTA DE JUDAS

Mat. 26:14-16 Marc. 14:10-11 Luc. 22:3-6

14. Indo, então, um dos doze, o 10. E Judas Iscarioteh, um dos 3. Mas o antagonista entrou
chamado Judas Iscariotes, doze, foi aos principais sa- em Judas, o chamado Isca-
aos principais sacerdotes, cerdotes para que o entre- riotes, que era do número
gasse a eles. dos doze
15. disse: que quereis dar-me, e
eu vo-lo entregarei; eles es- 11. Ouvindo-o, eles alegraram- 4. e, indo, conversou com os
tabeleceram-lhe trinta si- se e prometeram dar-lhe principais sacerdotes e ofi-
clos. dinheiro. E procurava ciais, como o entregaria a
como o entregaria oportu- eles.
16. E desde então procurava
namente.
ensejo para entregá-lo. 5. E alegraram-se, e combina-
ram dar-lhe dinheiro.
6. E consentiu, e procurava
ensejo de entregá-lo a eles
sem multidão.

Aparece aqui a figura de Judas, "O chamado Iscariotes". Mateus e Lucas escrevem Iskariótês, en-
quanto Marcos só grafa Iskaríoth. Os comentaristas inclinam-se para considerar essa uma palavra
composta de ISH ("homem") e KARIOTH ("de Cariot") que é uma localidade da Judéia, já citada em
Josué (15:25). O hebraico QERIYOT significa "desfiladeiro", embora os LXX tenham traduzido como
"cidades" (hai póleis), plural do QERIY AH, correspondente ao árabe QARAIYA (ver vol. 2).
0 evangelista assinala que esse Judas "era um dos doze", portanto um dos discípulos da Escola, a par
de tudo o que ocorria, e encarregado das finanças (João, 12:6).
Apresentando-se aos "principais sacerdotes", ofereceu-se para "entregá-lo" (paradôsô). Mateus afirma
que Judas propôs receber dinheiro; Marcos, que os sacerdotes prometeram pagar-lhe, sem que ele o
pedisse; e Lucas que os sacerdotes combinaram pagar-lhe e ele consentiu. Marcos e Lucas anotam que
os sacerdotes "alegraram-se" ao ver facilitada sua tarefa.
A quantia fixada foi de trinta siclos (não "denários") que era a moeda oficial do Templo. Já no Êxodo
(22:12) fora determinado que, em caso de morte acidental causada a um escravo, devia o senhor ser
indenizado com trinta siclos de prata. O ciclo valia 120 denários; portanto 30 siclos somavam 3.600
denários.
Em Zacarias (11:12-13) lemos: "Eu lhe disse: se vos parecer bem, dai-me a minha paga; e se não, dei-
xai-vos disso. Pesaram, pois, por minha paga trinta moedas de prata. YHWH disse-me: arroja-as ao
oleiro, esse belo preço por que fui apreçado por eles. Tomei as moedas de prata e arrojei-as ao oleiro
na Casa de YHWH". Inegável que há, na narrativa do sucedido com Judas, uma alusão a esse trecho de
Zacarias, tanto mais que o simbolismo prossegue, dizendo-se que as moedas foram restituídas e "arre-
messadas do santuário" (Mat. 27:3-5) e "com elas foi comprado o campo do oleiro" (Mat. 27:9). Mas a
seu tempo comentaremos o trecho.

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C. TORRES PASTORINO

Entramos numa parte sujo comentário se torna ainda mais difícil. Vemos Judas, um dos doze, entregar
o Mestre e não se importar de, por esse ato, receber dinheiro. João (12:6) diz claramente que "ele era
ladrão".
Como interpretar esotericamente o comportamento de Judas?
Diante das personagens humanas, Judas é o protótipo do traidor sujo e desprezível, que atraiçoa a
quem o beneficiou, em troca de miseráveis moedas, arrependendo-se depois, mas muito tarde. Já fo-
ram escritos muitos volumes de comentários desse "gesto infame", e apareceram muitas teorias a res-
peito desse comportamento estranho.
No entanto, temos que considerar o outro lado do fato. Jesus afirma "que melhor fora que não houve-
ra nascido" (Mat. 26:24 e Marc. 14:21) o que não deixa de comprovar a reencarnação como veremos
a seu tempo. Essa frase pode interpretar-se como terrível condenação da personagem, mas também
podemos olhá-la como lamentação a respeito do tremendo choque de retorno que essa personagem
receberia, por ainda não achar-se à altura de perceber toda a magnitude cósmica de seu gesto" e se
desesperaria.
Considerando o fato sob a luz da economia planetária, o papel de Judas na entrega de seu Mestre foi
um ato altamente sublime: exerceu a mesma tarefa do sacerdote que oferece e imola a vítima no altar
dos holocaustos.
Meditemos nessa "entrega" como a legítima parádosis (ou traditio) do iniciado que vai galgar mais
um degrau na Senda, e precisa ser entregue ao Colégio Sacerdotal a fim de submeter-se aos ritos
prescritos nos cerimoniais secretos. O sacerdote que, nas Escolas Iniciáticas egípcias e gregas intro-
duzia (entregava) o candidato ao colegiado de sacerdotes (neste caso o "Sinédrio"), para que fosse
submetido à prova da "Morte de Osíris", é que se constituía espontaneamente como FIADOR ou
AVALISTA do candidato; e isso em virtude de bem conhecê-lo, sabendo e jurando acerca de sua ca-
pacidade de sofrer todas as provas e vencê-las. Se houvesse fracasso do candidato, o sacerdote ofer-
tante era incriminado como incompetente, perdendo a confiança dos Mestres que passavam a conside-
rá-lo incapaz de apresentar qualquer outro candidato; mas se este vencesse? seu "fiador" moral era
homenageado por isso, merecendo maiores considerações de todos.
Mas, como admitir isso? Lamentavelmente nossa ignorância ainda é tão grande, que não vemos meios
de responder a essa pergunta. No entanto, porem ser aventadas algumas hipóteses.
O papel de Judas foi fundamental no Drama do Calvário, que foi representado à maneira dos Dramas
Sacros de Elêusis, sem que houvesse faltado nenhum pormenor. Ora, as Forças Superiores não podi-
am permitir que uma tarefa tão ingente e de tão grandes consequências para a humanidade, ficasse à
mercê de uma criatura "fora do palco": só um dos elementos da peça poderia representá-lo com segu-
rança, sem perigo de fazer fracassar todo o conjunto. Daí, antes que permitir que o Sinédrio agisse,
ter sido um dos próprios discípulos que marcou a hora e os minutos do início solene da cerimônia
sacra iniciática estabelecida por Jesus, quando lhe diz (João 13:27): "faze já o que tens que fazer".
Função de tão grande responsabilidade e importância devia ser confiada a quem tivesse a capacidade
de executá-la sem falhas. Mas - pobre homem! - o choque que recebeu, depois de cumprida a incum-
bência, foi tão violento, que ele se descontrolou e desesperou: "melhor lhe fora que não houvera nas-
cido"! A personagem não resistiu ao embate das forças mentais da época que o condenaram.
E mais ainda: a repercussão no terreno das personagens foi esmagador e tão atroz que perdura até
hoje, a uma distância de quase dois mil anos! Todavia, a ação no plano espiritual foi assinalada como
altamente meritória: o Espírito de Judas teve a inominável coragem de representar o papel mais triste
da história, de submeter-se à pecha de "traidor", e de sofrer todas as consequências do desprezo e dos
pensamentos contrários condenatórios de bilhões de criaturas durante milhares de anos, e isso com o
objetivo de colaborar no drama sacro da cerimônia iniciática a que Jesus, seu Mestre, tinha que sub-
meter-se! Seu sacrifício, voluntariamente aceito por seu Espírito (seu Eu profundo) garantiu-lhe ele-
vação no campo da coragem moral; no entanto, a fraqueza da personagem encarnada não conseguiu

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SABEDORIA DO EVANGELHO

atingir esse ápice e se desesperou, ao ver o Mestre e amigo iniciar e levar a termo as cerimônias ne-
cessárias, com toda as violências previstas, até a aparente morte na cruz.
As cenas desse tipo de iniciação, a que Judas assistira, quando realizadas na pessoa de Lázaro, não
tiveram as características de violência e derramamento de sangue, como Jesus. Ao contemplar, pois,
seu Mestre na Cruz, lanceado no peito, veio-lhe a dúvida atroz de que talvez não conseguisse sobrevi-
ver como Ele havia predito na Escola. Cresceu a dúvida em seu peito, e julgou que tudo fracassara.
Não teve coragem de esperar o fim: fraquejou em sua parte humana sensitiva da emoção que ainda
não estava aniquilada pela razão e pela intuição.
Essa foi a grande perda, para ele: a dúvida, a falta de confiança em seu Mestre. E se o plano falhara e
ali estava à morte Aquele que ele mesmo entregara ao Sinédrio - não para morrer, mas apenas para
submeter-se a uma cerimônia iniciática - então também o discípulo que o "entregara" não devia viver.
Olhando-se sob esse prisma que acabamos de expor, descobrimos novas luzes no gesto de Judas, tão
condenado e, apesar disso, tão indispensável a todo o desenvolvimento da evolução humana.
Para que se destaque a luz, é indispensável a sombra. Tudo possui um pólo positivo e um pólo negati-
vo. E essa lei não podia falhar em tão sublime obra-prima do Espírito. Mas ambos os pólos são partes
opostas mas integrantes do mesmo corpo: ambos têm que existir para que haja equilíbrio, pois não
pode haver um sem o outro. Assim, não haveria JESUS sem JUDAS, nem ocorreria a sublimação de
um sem o sacrifício do outro, não poderia elevar-se um sem que o outro se abaixasse: "é mister que
ele cresça e eu diminua". Judas cumpriu sua tarefa, anulando-se e sacrificando-se durante milênios,
para que Jesus fosse exaltado na mesma proporção durante o mesmo período.
A questão monetária constitui um pormenor adrede preparado para escurecer mais o lado da sombra,
a fim de ressaltar melhor a iluminação do positivo, além de constituir, como sempre, símbolo mar-
cante.
TRINTA é um número que aparece com frequência nas Escrituras judaicas, não só porque constitui o
limite de idade para início da vida pública (cfr. Gên. 41:46; Núm. 4:3, 35; 2.º Sam. 5:4; 1.º Crôn.
23:3; Luc. 3:23), como também na medida do mês (Núm. 20:30; Judit, 3:15 e 15:13; Dan. 6:7,12)
sendo uma das medidas da arca (Gên. 6:15) e de outras construções (1.º Reis, 7:2, Judit, 1:2) além de
outros testemunhos.
Temos, nesse número, o símbolo (vol. 1) de haver-se completado o desenvolvimento da personagem
encarnada, ou seja, a multiplicação do TRÊS (que representa o Filho) pelo DEZ (que é o ciclo termi-
nado). Neste caso temos, no TRINTA, o símbolo de que havia sido completado o ciclo da existência da
personagem encarnada de Jesus. Tanto assim que a tradição diz que viveu 33 anos, isto é, 30 mais os
três da perfeição. Na realidade, já vimos que deve ter permanecido, nessa vida exotérica, cerca de 37
anos ou 38 anos.
Ademais, Judas, em todas as listas de Emissários, sempre foi colocado em 12.º lugar (cfr. Mat. 10:2-4;
Marc. 3:16-19; Luc. 6:14-16; At. 1:13, onde Judas não é citado; veja vol. 2). Ora, o arcano 12 cor-
responde, no alfabeto hebraico, à letra lamech, cujo valor numérico é precisamente 30.
Outras observações nesse setor: na correspondência dos doze emissários com as doze tribos de Israel,
Judas é comparado a DAN (1). Um e outro equivalem ao signo de Escorpião, no zodíaco. O signo de
escorpião representa a "geração" do veículo mais denso (serpente), em sua energia mais baixa, atra-
vés do sexo físico que é, nos seres humanos, uma herança do estágio animal; mas representa, também,
a "regeneração" (águia), que atinge em seu vão os mais altos planos. Esse signo, portanto, quando em
ação, simboliza a destruição definitiva do eu personalístico que provém da evolução do psiquismo
animal, para o nascimento integral e absoluto do Eu Profundo não mais sujeito à reencarnação.
(1) Segundo Sábado Dinotos ("Dicionário Hebraico-Português", H. Koersen, 1962, pág. XXIII) a tribo
de Dan povoou a Grécia ("danai") e o norte da Europa, permanecendo de seu nome um resquício
em "DANemark", em DANúbio, etc.

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C. TORRES PASTORINO

Então compreendemos a atuação de Judas ("escorpião") no Drama do Calvário e exatamente nesse


ponto histórico: porque aqui encontramos a aniquilação total da personagem terrena Jesus, numa
final absorção dela por parte do Cristo de Deus, que nascera e se desenvolvera através de seu Eu In-
terno.
De DAN, rezava a tradição talmúdica, surgiria o antimessias; e lemos no Gênesis (49:17) "Dan será
uma serpente no caminho, uma víbora na Senda, que morde os calcanhares ao cavalo, de modo que
caia para trás seu cavaleiro"; interessante observar que, no Apocalipse (7:5-8), são enumeradas as
doze tribos de Israel, mas a de Dan é substituída por Manassés, filho de José (do Egito). Da mesma
forma Judas desaparecerá da relação dos doze Emissários, sendo substituído por Matias (At. 1:26). O
escorpião desaparecera, tendo-se tornado "águia".

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SABEDORIA DO EVANGELHO

PREPARAÇÃO PARA A PÁSCOA

Mat. 26:17-19 Marc. 14:12-16 Luc. 22:7-13

17. No primeiro dia dos ázi- 12. E no primeiro dia dos ázi- 7. Veio, pois, o dia dos ázimos
mos, vieram os discípulos a mos, quando sacrificavam a em que devia sacrificar a
Jesus, dizendo: onde queres Páscoa, disseram-lhe seus Páscoa.
que te preparemos para discípulos: onde queres que 8. E enviou Pedro e João, di-
comeres a Páscoa? vamos preparar-te para zendo: "Indo, preparai-nos
que comas a Páscoa?
18. Ele disse: "Ide à cidade, a a Páscoa para comermos".
um tal, e dizei-lhe: o Mestre 13. E enviou dois de seus discí- 9. Eles disseram-lhe: Onde
diz: está próximo meu tem- pulos e disse-lhes: "Ide à queres que (a) prepare-
po; em tua casa farei a Pás- cidade, e virá a vós um ho- mos?
coa com meus discípulos". mem carregando um cân-
taro de água; acompanhai- 10. Disse-lhes ele: "Eis que,
19. E os discípulos fizeram indo vós à cidade, virá a
o;
como lhes ordenara Jesus e vós um homem carregando
prepararam a Páscoa. 14. e onde entrar, dizei ao dono um cântaro de água; acom-
da casa que o Mestre diz: panhai-o até a casa em que
Onde é meu aposento, em entrar;
que comerei a Páscoa com
meus discípulos? 11. e direis ao dono da casa: O
Mestre te diz: Onde é o
15. Ele vos mostrará um so- aposento em que comerei a
brado grande, mobiliado, Páscoa com meus discípu-
pronto; e ai preparai-nos". los?
16. E saindo os discípulos e 12. E ele vos mostrará um so-
chegando à cidade, e encon- brado grande, mobiliado;
trando como lhes dissera, ai preparai".
prepararam a Páscoa.
13. Indo, pois, encontraram
como lhes dissera, e prepa-
raram a Páscoa.

Anotam os narradores que "era o primeiro dia dos ázimos". Pelo que sabemos de Flávio Josefo (Ant.
Jud. 2, 15, 1) a festa durava oito dias cheios, pois no dia da imolação do cordeiro, 14 de nisan, não
devia encontrar-se na casa nenhum alimento fermentado, nenhum condimentado com sal, nenhum
temperado com azeite. Para evitar descuidos, desde a véspera, 13 de nisan, os donos da casa percorri-
am-na em todos os recantos, catando qualquer migalha de fermento, para que fosse queimado a tempo.
Era, assim, denominado "primeiro dia dos ázimos" o dia 13. No entanto, também era permitida uma
antecipação da imolação do cordeiro.

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C. TORRES PASTORINO

PÁSCOA
A imolação do cordeiro pascal, seu cozimento e sua consumação eram realizados ao pôr do sol do dia
14 de nisan, e a FESTA DA PÁSCOA, propriamente, era comemorada no dia 15. Ora, sabemos que
Jesus foi crucificado "no dia em que devia comer-se o cordeiro", isto é a 14 de nisan.
Então, forçosamente, o cordeiro foi imolado e comido, por Ele e por seus discípulos, no dia 13 (o pri-
meiro dia dos ázimos). Essa antecipação podia realizar-se:
1.º - Quer porque o próprio Jesus tenha resolvido fazê-lo, para seguir a grande massa popular, que re-
cuava de um dia a imolação, quando o dia 15 caía num sábado, para que não violassem os preceitos do
repouso depois das 18 horas da sexta-feira. Isso apesar de a Michna estabelecer: "a páscoa é superior
ao sábado", não havendo necessidade dessa antecipação (cfr. Mechitta, 5, 1 e Gem. Pesachim 33, 1 e
66, 1).
2.º - Quer porque o Sinédrio, levado pela opinião dos sacerdotes da Casa de Boethus, que tinham gran-
de influência, tivessem recuado oficialmente a cerimônia, para não ferir o repouso sabático.
Com esses dados, podemos estabelecer a data da crucificação de Jesus, já que sabemos que foi crucifi-
cado numa "sexta-feira 14 de nisan": com efeito, durante a procuradoria de Pilatos na Palestina, só três
vezes o 14 de nisan coincidiu com a sexta-feira: no ano 27 (a 11 de abril); no ano 30 (a 7 de abril ) e no
ano 33 (a 3 de abril). Alguns autores, (João Crisóstomo, Patrol. Craeca vol. 58, col. 729; Teofilacto,
Patr . Gr. vol. 123, col. 440; Pseudo-Victor, Catena, pág. 420; Eutímio, Patrol. Craeca, vol. 129, col.
652) opinam que prôtos, "primeiro" dia dos ázimos, deveria ler-se pro, isto é "na véspera" do dia dos
ázimos (1).
(1) Pelos dados mais recentemente descobertos, devemos trazer um acréscimo à cronologia que expu-
semos no 1 vol, pois a crucificação só teria podido dar-se no ano 30 (dia 7 de abril), quando então
teríamos que recuar de 28 para 27 o mergulho de João; ora, no mesmo vol. 1 chegamos à conclu-
são de que o mergulho realizou-se no ano 29. Tendo Jesus nascido a 7 A.C., e tendo completado
seu primeiro ano de vida no ano 6 A.C., no ano 29 teria "cerca de 30 anos", ou mais precisamente
34 anos. Nesse passo, a crucificação não poderia ter ocorrido no ano 30, em vista das numerosas
atividades relatadas nos Evangelhos. Temos, portanto, que adiar para o ano 33 (dia 3 de abril) a
crucificação. Ai, então, compreendemos o porquê da tradição unânime que vem de longa data, de
que Jesus "morreu aos 33 anos". Deve-se ao erro do diácono Dionísio o Pequeno, que estabeleceu
o nascimento no ano 1 de nossa era, pois se fixara no dito de Lucas (3:23) de que Jesus tinha
"cerca de 30 anos", e de que sua crucificação ocorrera no ano 33. Contudo, tendo Jesus nascido a
7 A.C. (vol. 1) ou seja, o ano 747 da fundação de Roma, sua crucificação ocorreu no ano 33 (785
de Roma), quando contava, quase, 38 anos, ou seja estava no 37.º ano de sua vida, embora não ti-
vesse completado os 38. Com isso, queremos corrigir o que escrevemos no vol. 1.

Os discípulos tomam a iniciativa de perguntar ao Mestre onde quer que seja preparada a Páscoa. Jesus
encarrega Pedro e João de irem à cidade - o que denota que estavam fora de Jerusalém - e lá prevê o
que está para acontecer: ao entrar (logicamente pela Porta de Siloé, onde se localizava a Fonte) encon-
trariam um homem a carregar água.
Observemos a originalidade: àquela época eram só as mulheres (escravas ou, nas famílias pobres, as
donas da casa) que exerciam esse mister: um homem, mesmo servo, a fazê-lo, constituía uma exceção.
Ao encontrá-lo, deviam segui-lo para ver aonde se dirigia e onde entrava: com isso, localizariam a casa
de "um tal" (pròs tòn deína), maneira de evitar a citação nominal por parte dos narradores. As suposi-
ções foram várias ao longo dos séculos: era a casa de Nicodemos, a de José de Arimatéia ou de qual-
quer outra personagem importante cujo nome não devia ser citado para evitar perseguições, ou mesmo
do pai de Marcos, que era casado com Maria, a irmã de Pedro, e que morava em Jerusalém (cfr. At.
12:12, 17). Mas é inútil querer adivinhar!

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Ao encontrar o dono da casa, diriam: "o Mestre pergunta: onde é o meu aposento (tò katályma mou)
para comer a páscoa com meus discípulos"? E Mateus acrescenta: "comerei a páscoa em tua casa"
(pròs se, equivalente a parà soi, que o francês traduz otimamente: chez toi). A expressão tò katályma
designava o aposento de hóspedes (cfr. 1.º Reis, 1:5 e Ecli. 14:25). Tudo isso demonstra que havia
realmente intimidade grande e confiança absoluta de parte aparte.
O anfitrião mostraria um "sobrado grande" (anágaion méga), o que revela casa grande de pessoas ri-
cas. Anotemos que essa palavra anágaion é um hápax neotestamentário, pois o termo comum para
expressar o sobrado era hyperôon ("o andar de cima"). Ocupava, geralmente, todo o pavimento superi-
or, abarcando todos os cômodos do térreo, e se mantinha normalmente mobiliado com tapetes, almofa-
das e divãs, para condignamente receber os hóspedes, permitindo-lhes comer e dormir.
Jesus regressa a Betânia com os discípulos, deixando Pedro e João encarregados dos preparativos, na-
turalmente auxiliados pelos escravos e empregados da casa.
A refeição da ceia pascal consistia em pão sem fermento, em salsa ritual (haroseth), em chicóreas
amargas (merôrim), tudo cozido sem sal nem azeite (cfr. Êx. 12:8 e Núm. 9:11).

Eis a primeira preparação para o início do Drama Sacro para a emancipação do homem.
Aparece um sinal (sêmeion) que é mostrado (deíknymi) com clareza tão grande e evidência tão bri-
lhante, que admira não ter sido comentado em todos os tons durante esses quase dois mil anos, um
sinal que anuncia a possibilidade e a época em que se promoverá a libertação ou redenção para a
humanidade terrena.
Hão de ocorrer todas as modificações preditas nos capítulos que anteriormente comentamos - E "toda
esta geração estará presente para vê-lo" – mas só se dará início à passagem (páscoa) no signo de
AQUÁRIO: sim, encontrarão um homem a carregar um cântaro de água.
Isso representa, desde a mais remota antiguidade, o signo de aquário, que figura no zodíaco egípcio
de Denderah com duas ânforas. Todas as tradições orientais relacionam esse arquétipo com o final de
um ciclo que traz em si o germe de novo princípio (ouróboros). Aquário é o princípio da dissolução e
decomposição das formas, e da imediata proximidade da libertação, por meio da destruição do que é
meramente fenomênico.
Mas o signo do aquário constitui simplesmente o sinal (sêmeion) reconhecedor da época. A realidade
do ágape místico virá ao encontrarmos o" dono da casa" (oikodêspótês), que simboliza o Eu profun-
do, a Individualidade, que já mantém "mobiliado" o aposento de cada um. Notemos, de fato, que Jesus
pergunta pelo "”MEU aposento", e embora não seja abertamente revelado, esse aposento está no "so-
brado alto", no "primeiro andar" (anágaion).
O termo exprime, literalmente "acima" (aná) "a terra" (gáios, de gês). Não é na parte material, onde
encontramos o aposento secreto do encontro e da passagem, aquele "aposento" (tameíon) onde já
devemos estar habituados a "entrar e, fechada a porta, orar em secreto" (Mat. 6:6): é "acima da ter-
ra” (anágaion), acima do nível material.
Essa a razão por que Marcos e Lucas não usaram o termo vulgar e comum hyperôo, que exprimia o
andar de cima reservado primitivamente às mulheres e, mais tarde, aos escravos. Com uma palavra
nova, altamente significativa, quiseram chamar a atenção dos discípulos para o sentido oculto. E cri-
aram o novo termo, dantes inexistente na língua grega. Por aí ficamos sabendo que as figurações ale-
góricas que se passam na terra (en tês gês), representadas na matéria densa, constituem mero e pálido
reflexo sombrio da realidade vivida "acima da terra".
Onde? Dizem alguns autores que a ação pimordial foi realizada no plano astral. Outros admitem que
o foi mesmo no físico denso, e que a humanidade e o planeta conseguiram deter sua descida evolutiva
que já se avizinhava da destruição total da "alma" (cfr. Rudolf Steiner, "Pierres de construction pour
la connaissance du Mystère du Golgotha", Paris, 1947) e iniciar o caminho do regresso, quando o
sangue de Jesus (seu duplo etérico) penetrou na terra, infundindo-lhe novas energias divinas.

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C. TORRES PASTORINO

Quanto a nós - salvo erro - pensamos que a REALIDADE foi integralmente vivida no plano espiritual-
mental, enquanto o reflexo se fazia sentir no plano astral e, secundariamente, em repercussão inevitá-
vel, no plano físico, único testemunhado pelos discípulos diretos.
Exatamente por isso, aqueles que tinham capacidade e poder espiritual para acompanhar o Grande
Drama Místico no plano mental - ou plano REAL e ESSENCIAL - não tiveram necessidade de compa-
recer ao espelhismo do ocorrido no plano físico. Referimo-nos à ausência, que tanta estranheza cau-
sa, em todo o sacrifício do Gólgota, dos três grandes amigos íntimos de Jesus: Lázaro, Marta e Maria.
Deles não mais se fala na história do cristianismo de então. Não são citados nos livros escriturísticos,
nem nos apócrifos, nem mesmo figuram nas tradições orais: desapareceram totalmente, como se ja-
mais tivessem tido ligação com o Mestre. Nem por isso deduziremos que renegaram o Amigo: apenas
O seguiram por outros caminhos, em outros planos.
A tradição fala-nos de Maria Madalena, mas não da Maria de Betânia. Interessante focalizar resumi-
damente o que se disse no passado das três Marias: a pecadora, a Madalena e a irmã de Marta.

* * *

AS TRÊS MARIAS
Nas narrativas evangélicas, além de outras (a Mãe de Jesus, a esposa de Cléofas, etc), aparecem três
Marias sobre as quais as opiniões divergem:
1. MARIA "a pecadora", que ungiu os pés de Jesus na casa de Simão o fariseu (Luc. 7:36-50; vol. 3).
2. MARIA MADALENA, que o Talmud apresenta como casada inicialmente com o judeu Pappus Ben
Judah, que abandonou para unir-se ao oficial de Herodes chamado Panther; não era, necessaria-
mente uma "pecadora pública" nem uma "viciada" como a descreve Gregório Magno (Patrol. Lat.
vol. 76, col. 1239, na Homilia in Evang. 33,1). Curada por Jesus que lhe expulsou sete espíritos
obsessores, agregou-se a Ele permanecendo a seu lado até a crucificação; a ela Jesus apareceu
logo após a "ressurreição", em primeiro lugar.
3. MARIA DE BETÂNIA, irmã de Lázaro e de Marta (cfr. João, 11:1-44) que ungiu os pés e também
a cabeça de Jesus na casa de Simão o leproso (João, 12:3, vol. 6) e recebeu Jesus em sua casa
(Luc. 10:38-42, vol. 5).
Entre os comentadores, divergem as interpretações desde as mais remotas épocas:
A) as três constituem uma só pessoa, afirmam: Clemente de Alexandria (Pat. Gr. vol. 8 col. 430);
Tertuliano (Pat .Lat. vol. 2 col. 1001); Gregário Magno (Pat. Lat. vol. 76 cols. 854 e 1239; vol. 77,
col. 877; e vol. 79 col. 243); Bernardo, embora com hesitação (Pat . Lat. vol. 183, cols. 342, 422,
527, 831); e Agostinho, que ora afirma a identidade das três (Pat. Lat. vol. 34 col. 1155) ora hesita
em afirmar que sejam uma só pessoa (Pat .Lat. vol. 35, col. 1748).
B) Distinguem a pecadora da Madalena (nem supõem identidade com Maria de Betânia): as Consti-
tutiones Apostolicae (Pat.Gr. vol. 1, col. 769); João Crisóstomo (Pat.Gr. vol. 78, col. 342; Orígenes
(Pat.Gr. vol. 13, col. 1721). Seguido por Teofilacto, Eutímio, Servio, etc.; Ambrósio (Pat. Lat. vol.
15, col. 1672), discute o assunto, afirmando que são duas, embora possa defender-se a hipótese de
que a pecadora se transformou em santa; Hilário (Pat. Lat. vol. 9 col. 748); Jerônimo (Pat. Lat.
vol. 23, col. 1123 e 1130 e vol. 26, col. 191).
Modernamente J. Bollandus, Acta Sanctorum (tomo 5.º pág. 187) afirma a identidade das três, que fez
festejar pela igreja de Roma a 22 de julho; Bossuet ("Sur les Trois Madeleine", Migne, Paris, 1856,
vol. 5.º, col. 1647) distingue as três em defesa brilhante.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Analisemos os argumentos que distinguem a "pecadora" de Madalena:


a) o nome do anfitrião, Simão, era tão comum que, entre os doze discípulos de Jesus, dois se chama-
vam assim;
b) uma é dita "a pecadora"; a outra designada pelo nome;
c) uma unge os pés, a outra os pés e a cabeça;
d) uma derrama o perfume, a outra quebra o vaso;
e) de uma murmura o anfitrião contra Jesus, da outra queixa-se Judas em alta voz contra o desperdí-
cio;
f) no episódio da pecadora é repreendido Simão; no da Madalena são repreendidos os discípulos;
g) Simão o fariseu estava na Galiléia; Simão o leproso em Betânia, na Judéia;
h) o primeiro banquete foi mais de um ano antes da crucificação, o segundo, seis dias apenas antes;
i) o fato de ter tido sete obsessores não implica em ter sido pecadora pública;
j) logo após citar a pecadora (Luc. 7:37), o mesmo evangelista apresenta a Madalena (Luc. 8:2)
dando-lhe o nome, como personagem nova;
k) o fato de João dizer que Maria foi "a que ungiu" (hê aleípsasa) no passado, quando só narra a
unção posteriormente, nada indica, pois na mente do evangelista devia estar vivo o episódio como
já realizado, e só literariamente aparece a narrativa do fato em seguida.

Quanto à irmã de Marta:


a) Nada faz supor que tivesse tido vida desregrada;
b) Jesus conhece a pecadora durante o jantar de Simão o fariseu, ao passo que Maria de Betânia era
sua amiga, sendo sua casa frequentada por Jesus;
c) Maria Madalena era originária de Magdala, na Galiléia; Maria irmã de Marta era originária de
Betânia, na Judéia.
Das três, nada mais se sabe a respeito da "pecadora" nem de Maria de Betânia. Apenas da Maria
Madalena há tradições:
Gregório de Tours (Pat .Lat. vol. 71, col. 131) escreve no seu "De Glória Martyrum", no 29, que o
túmulo de Maria Madalena era visto em Éfeso ainda no século 6.º.
Daniel, o higumeno, diz ter visto seu túmulo e sua cabeça, em Éfeso, no ano 1106 (cfr. Tomaschek,
"Comptes Rendus de l'Académie de Vienne" tomo 124, pág. 33).
Os historiadores bizantinos dizem que o imperador Leão VI, em 899, fez trazer para Constantinopla o
corpo de Madalena (cfr. Leo Grammatictts, Pat. Graeca, vol. 120, col. 1108).

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INÍCIO DA CEIA

Mat. 26:20 Marc. 14:17 Luc. 22:14

20. Vindo a tarde, reclinou-se à 17. E, vindo a tarde, chegou 14. E quando aconteceu a hora,
mesa com os doze. com os doze. reclinaram-se também às
mesa os discípulos, junto
com ele.

Aqui vemos que Jesus chegou com os doze, proveniente talvez de Betânia, depois do repouso vesper-
tino, após o banho reconfortador, quando a tarde já vinha caindo: estávamos pois cerca das 18 horas de
13 nisan (embora, para os judeus, fosse essa a primeira hora de 14): era a hora legal para realizar-se a
ceia pascal.
No original lemos sempre apenas o verbo "reclinados" (anakeiménoi) mas, para boa compreensão,
temos que acrescentar "à mesa".
Os judeus não usavam mais comer o cordeiro segundo a prescrição legal (Êx. 12:11) isto é, de pé, com
roupa de viagem (embora vejamos que Jesus despe o manto de viagem para o lava-pés e depois torna a
vesti-lo), com o manto cingido e um bastão na mão. Haviam aderido ao costume "pagão": reclinados
num tapete, com o braço esquerdo apoiado numa almofada, deixando livre o braço direito para tomar
os alimentos, que eram levados à boca com a mão, geralmente servindo-se diretamente da travessa.
Numerosos estudos foram realizados, pela observação dos costumes da época, para saber a posição dos
discípulos. A conclusão mais lógica (cfr. P. Prat, "Les Places d'honneur chez les Juifs Contemporains
du Christ", em "Recherches", 1925, pág. 512-522; e em "Jésus-Christ", vol. 2, pág. 280; e Talmud de
Babilônia, Berakhot, 46 b) aponta-nos que a mesa tinha forma de U. Era dividida em três porções,
donde o nome de triclinium (três leitos) com um leito no meio (lectus medius) de face para a entrada
da sala; um à esquerda (lectus summus) e outro à direita (lectus imus). O lugar de honra era à esquerda
(hyper autón) do chefe, que ficava um pouco de costas para seu convidado principal, e o segundo à
direita (hyp'autón). Dessa forma, Jesus devia estar ao centro, com Pedro à sua esquerda e João à sua
direita, o que lhe facilitou recostar a cabeça no peito de Jesus para falar-lhe a voz baixa. Logo ao lado
de João devia estar Judas, por ser o ecônomo, encarregado de chefiar todo o serviço da refeição.
Os narradores falam apenas da presença dos discípulos na ceia: o próprio dono da casa não tomou
parte na cerimônia.

A primeira parte do drama é armada no sobrado, com a presença do candidato e dos sacerdotes (lem-
bremo-nos de que o termo "sacerdote" - de sacer, "sagrado" e dos,dotis, "parte,dote" - exprime essen-
cialmente nos costumes antigos ,o "sacrificador", aquele que abate as vítimas do holocausto).
Cada um dos elementos principais terá sua tarefa específica, como iremos vendo na continuação das
narrativas, embora só três deles apareçam como realmente atuantes: Pedro, João e Judas. Os outros
nove perdem-se na multidão anônima, até depois da ressurreição, onde alguns deles ainda são recor-
dados.
Veremos a seguir o que ocorreu na chegada.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

O MAIOR SERVE AO MENOR


Luc.22:24-30
24. Surgiu, também, neles, uma emulação, qual deles parecia ser o maior.
25. Ele disse-lhes: "Os reis dos povos dominam sobre eles e os chefes deles são chamados
benfeitores.
26. Mas vós, não sejais assim, porém o maior em vós se torne como o menor e o presiden-
te como o servidor.
27. Pois quem é o maior: o que se reclina à mesa ou o que serve? Não é o que se reclina?
28. Vós sois os que permaneceram comigo nas minhas experiências,
29. e eu vos confiro um reino, como o Pai me conferiu,
30. para que comais e bebais à minha mesa no meu reino; e vos sentareis sobre tronos
para discriminar as doze tribos de Israel".

Não há confusão possível entre esta "emulação" ou rivalidade dos discípulos entre si e a narrada em
outro passo (cfr. Mat. 18:1; Marc. 9:34 e Luc. 9:46; ver vol. 4), quando Jesus dá o ensino aos discípu-
los colocando uma criança no meio deles. Se aqui as palavras da lição são as mesmas que no episódio
narrado em Mat. 20:20-28 e Marc. 10:35-45 (vol. 6), confessamos que pode ter havido uma interferên-
cia de uma lição em outra, tendo Lucas trazido para o episódio atual, o exemplo dos reis, que cabe
melhor na pretensão dos filhos de Zebedeu.
Mas que é diferente este episódio de Lucas, prova-se pelo exemplo do que está à mesa e do que serve à
mesa, típico e oportuno para a ceia que estava a começar.
Outro argumento de que essa discussão ocorreu no momento em que os discípulos se estavam a aco-
modar à mesa, cada qual julgando-se com direito de ocupar os primeiros lugares, é que vemos Jesus
erguer-se de seu posto imediatamente, dando logo o exemplo pessoal do modo de servir , ao lavar os
pés de seus discípulos, após o que repisa a lição.
Que os dominadores gostam de ser chamados "benfeitores", temos a prova em moedas e inscrições (p.
ex.: Inscr. Graec. 12, 1, 978, onde Trajano é dito Soter e Evergetes, isto é, Salvador e Benfeitor).

Foi uma das mais completas e perfeitas lições do Cristo, a respeito da maneira de agir das criaturas.
Inicialmente, feita a provocação da aula, pelo fato de os discípulos disputarem os lugares, discutindo
sobre precedências e méritos, é dada a teoria. Salienta-se a vaidade do homem que, se não ocupa a
posição de rei sobre uma nação, quer desempenhá-la no próprio lar, julgando-se "o maior", o mais
experiente, o mais capaz, e pretendendo que todos o considerem a figura máxima no pequenino reino
doméstico, do qual se julgam benfeitores absolutos: todos lhe devem respeito, obediência e serviço.
"Convosco assim não sela: o maior deve comportar-se como se fora o menor, e o presidente, como se
fora o servidor de todos".
Os que estão à mesa do banquete não são mais importantes que aqueles que servem? No entanto, em-
bora tenha recebido do Pai poderes sobre tudo, ali está o Mestre procurando servir: "Confiro a Vós
os poderes que recebi do Pai, porque permanecestes a meu lado, em constante assistência, durante
minhas experiências; e sentareis sobre tronos para discernir as tribos de Israel.

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Também entrevemos, nesta lição, uma advertência da Individualidade à personagem, do Eu Profundo


aos veículos mais densos: quando a personagem total serve integralmente ao Eu Supremo, ao Espíri-
to, este pode dirigir-se a ela e, sem a menor dificuldade, conferir-lhe todos os poderes espirituais re-
cebidos do Pai, inclusive a imortalidade. E além disso, em vista de a personagem haver permanecido
fiel durante as experiências e provações duras do Espírito, concidá-la a sentar-se à sua mesa, no
"Festim da Imortalidade", colaborando no governo do Planeta. Muitos avatares, entre os quais o pró-
prio Jesus, assim agiram e agem, donde Paulo haver perguntado: "Onde está, ó morte, a tua vitória?"
(1.ª Cor. 15:55).

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SABEDORIA DO EVANGELHO

O LAVA-PÉS
João, 13:1-20
1. Antes da festa da páscoa, sabendo Jesus que viera sua hora para que passasse deste
mundo para o Pai, tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim.
2. E durante a ceia, já tendo o antagonista posto no coração de Judas, filho de Simão Is-
cariotes para que entregasse Jesus.
3. Sabendo este que o Pai lhe dera tudo nas mãos e que saíra de Deus e regressaria para
Deus,
4. levantou-se da ceia, despiu seu manto e apanhando uma toalha, cingiu-se.
5. A seguir pôs água na bacia e começou a lavar os pés dos discípulos e a enxugá-los com
a toalha com que estava cingido.
6. Chegou então a Simão Pedro. Disse-lhe: Senhor, tu me lavas ou pés?
7. Respondeu Jesus e disse-lhe: "O que faço tu não sabes agora, mas saberás depois dis-
so".
8. Disse-lhe Pedro: Não me lavarás os pés neste eon. Respondeu-lhe Jesus: "Se não te
lavar não terás parte comigo".
9. Disse-lhe Simão Pedro: Senhor, não só os pés, mas também as mãos e a cabeça!
10. Jesus disse-lhe: "Quem tomou banho não tem necessidade senão de lavar os pés, pois
está todo limpo; e vós estais limpos, mas não todos".
11. Pois conhecia quem o entregaria; por isso disse: nem todos estais limpos:
12. Quando então lavou os pés deles e tomou seu manto e de novo se reclinou à mesa, dis-
se-lhes: "Entendeis o que vos fiz?
13. Vós me chamais O Mestre e O Senhor e dizeis bem, pois eu sou.
14. Se então eu, o Senhor, o Mestre, vos lavei os pés, vós também deveis lavar-vos os pés
uns aos outros,
15. pois vos dei um exemplo para que, como eu fiz, vós também o façais.
16. Em verdade, em verdade vos digo, não é o servo maior que seu senhor, nem o emissá-
rio maior que quem o enviou.
17. Se sabeis isso, felizes sereis se fizerdes assim.
18. Não falo de todos vós: eu conheço os que escolhi; mas para que se cumpra a Escritu-
ra: Quem comigo come o pão, levantou contra mim o calcanhar.
19. Desde já vos digo, antes que aconteça, para que, quando ocorrer, acrediteis que eu
sou.
20. Em verdade, em verdade vos digo: quem recebe alguém se eu enviar, recebe a mim, e
quem me recebe, recebe quem me enviou".

Depois da motivação da lição, apresentada por Lucas, João dá-nos por extenso a parte prática exempli-
ficativa e o resto dos avisos para a vida cotidiana: "Não é maior o que se reclina à mesa? Pois eis o que
faço".

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C. TORRES PASTORINO

A introdução do evangelista, neste passo, é de maravilhosa sublimidade. Começa dizendo que a ação
se passou "antes da festa da páscoa"; realmente, no princípio, quando já estava Jesus reclinado no ta-
pete, e bem assim os discípulos, que acabavam de acomodar-se após as hesitações provocadas pela
"emulação".
João prossegue, afirmando que o Mestre sabia que chegara "sua hora", tantas vezes anunciada (cfr.
João 2;4; 7:30; 8:20; 12:23, 27 e 32) de regressar ao Pai. Ia deixá-los fisicamente, porque terminara
Sua tarefa e eles já deveriam estar "amadurecidos". Mas a vaidade ainda os atormentava, julgando-se
cada um maior e melhor que os outros. Não obstante, não os repreende: sempre os amara e seu amor
não diminui: ao contrário, aqui Seu amor chega "ao fim" (eis télos), ou seja, até as últimas consequên-
cias, embora, segundo o narrador, já um deles, Judas, tivesse firmado o propósito de "entregar" seu
Mestre aos judeus.
Mas Jesus sabia que "o Pai lhe dera tudo nas mãos" (expressão que Lucas traduz: "o Pai me conferiu o
reino", ou domínio total) e também sabia "que saíra de Deus, e estava para voltar para Deus".
Então, "durante a ceia", isto é, depois de achar-se recostado no tapete, após haver observado as hesita-
ções dos discípulos em tomarem seus lugares, toma a levantar-se, despe seu manto (tà imatía, que é a
sobreveste "de sair"), e apanha uma toalha, cingindo-a à cintura, à maneira dos empregados que ser-
vem à mesa e dos que lavam os pés quando seus senhores regressavam da rua (cfr. Suetônio, Calígula,
26) e como ainda hoje costumam fazer os garçons nos bares mais modestos.
Apanhando uma bacia, enche-a de água e começa a circular em torno do triclínio. Estando os discípu-
los deitados no tapete, com as cabeças voltadas para a mesa, seus pés ficavam do lado de fora, facili-
tando a operação do "lava-pés" enquanto eles comiam. Embora todos deviam ter parado de comer para
observar o que o Mestre estava fazendo.
Ao chegar a Pedro (o primeiro à sua esquerda) este - temperamental como sempre - dá um salto reco-
lhendo os pés; só então percebera o que Jesus pretendia ao levantar-se, cingir-se com a toalha e prepa-
rar a bacia com água: e quase gritando protesta; "TU, lavar-me os pés"?!
Pacientemente Jesus elucida que, se bem naquele momento não entenda o que está a fazer, dali a pou-
co compreenderá. Mas Pedro resiste: "Não me lavarás os pés de modo algum"!. Agostinho (Pat. Lat.
vol. 35, col. 1788) comenta com muita graça; cogitanda sunt potius quam dicenda; ne forte quod ex
his verbís aliquátenus dignum cóncipít ánima, non éxplicet língua: numquam hoc feram, numquam
pátiar, numquam sínam: hoc quippe in aeternum non fít, quod numquam fit, isto é: "suas palavras são
mais para sentir que para dizer: a não ser que, dessas palavras a alma conceba até certo ponto algo di-
gno, mas a língua não exprima; jamais o permitirei, jamais o suportarei, jamais o deixarei; porque o
que nunca se fez, nunca se fará".
Mas, à violenta resistência amorosa de Pedro, Jesus responde com o intransigente amor que quer ser-
vir; "se não deixares, não poderás ficar comigo"! Caindo em si, Pedro oferece mãos e cabeça, além dos
pés. E o Mestre retruca: "Quem tomou banho (verbo loúesthai, "banhar o corpo inteiro") só precisa
lavar os pés" (verbo nípsesthai, "lavar uma parte do corpo"). A distinção dos sentidos dos verbos é
precisa.
Terminado o giro por todo o triclínio, Jesus tira a toalha e torna a vestir o manto, a fim de manter pelo
menos essa tradição, de comer com a roupa de sair. E então pergunta: "Entendestes a lição prática?" E
explica: "Vós diz eis que sou O MESTRE e O SENHOR", e a excelência do título é salientada de duas
formas: pelo emprego do artigo e pelo caso nominativo, em lugar do vocativo, que seria o natural. E
conclui: "E dizeis com acerto, pois EU SOU. Sendo eu, pois, o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés;
então deveis fazê-lo também assim entre vós". Os servos (os discípulos) não são maiores que seu se-
nhor (o Mestre) nem os emissários ("apóstolos") maiores que quem os envia (o Cristo). Conhecendo a
regra, felizes sereis se a puserdes em prática".
Logicamente, Jesus não se referia ao ato físico, mormente se solenemente realizado uma vez por ano
com toda a pompa, para demonstrar uma coisa que na realidade não existe; mas ensinou a humildade

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SABEDORIA DO EVANGELHO

no serviço prestado diariamente com amor, uns aos outros, sobretudo os maiores aos menores, para dar
o exemplo vivo que Jesus nos deu.

Figura “O ‘LAVA-PÉS’” – Desenho de Bida, gravura de J. Veyssarat


A seguir, acena à escolha: "Conheço quais homens escolhi e sei quem levantou o calcanhar contra
mim" (frase do Salmo 40:10, no qual David se queixa de Aquitofel); "mas é bom saberdes que o sei,
antes que aconteça, para que acrediteis que EU SOU".
As últimas palavras repetem velho ensinamento já dado: "Quem vos recebe, me recebe; e quem me
recebe, recebe aquele que me enviou".

A lição prossegue, neste passo, em toda a sua amplitude e profundidade, com um gesto vivo do Mes-
tre, que precisa e quer fixá-la no coração dos discípulos.
Analisemos os diversos tópicos.
Jesus conhecia de antemão "sua hora" de fazer a "passagem" (páscoa) deste mundo para o Pai; co-
nhecendo-a, de muito aumentou Seu amor pela humanidade, mas sobretudo por aquele pugilo que O
acompanhou amorosamente durante tanto tempo em convivência diária. Nesse momento, preocupado
com a vaidade deles, ainda não dominada, cresce seu amor e verifica que falar apenas não adianta-
ria: era mister um exemplo que chocasse, para que nunca mais fosse olvidada a lição.
E na vida o maior inspirador, o mais eficaz, é sempre o amor: onde existe AMOR, as lições são ensi-
nadas com eficiência absoluta, não tanto pelas palavras, quanto pelos exemplos vividos.
Jesus conhecia "sua hora". Os minutos eram contados. Tendo partido da presença do Pai, da presen-
ça do Deus-Da-Terra ou Ancião dos Dias (Melquisedec), sabia que terminara Sua trajetória entre os
homens visivelmente na Palestina, e teria que regressar ao Reino do Pai, após Sua passagem pela

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C. TORRES PASTORINO

porta estreita de mais um grau iniciático. Quis ensinar, portanto, ao pequenino grupo dos mais fiéis
discípulos, o modo de comportar-se em relação uns com os outros.
Nessa hora, porém, as emoções (Pedro, vol. 1) gritam, sendo reduzidas ao silêncio com argumentação
segura: como participar da VIA espiritual, se se apresenta com rebeldia?
A lição é magistral, é divina. Quando ameaçada de não participar da vida espiritual, transformada em
sentimento, a emoção sugere ser toda levada. Mas o Mestre anota que os veículos todos já sofreram a
catarse essencial (tomaram banho), só sendo mister lavar os pés, ou seja, purificar o veículo mais
denso (mais baixo), o corpo físico, que agrega a si a poeira das estradas percorridas na viagem evo-
lutiva, pelos contatos com os companheiros de jornada. A criatura está toda limpa, purificada, mas o
físico precisa ainda de rápida purificação externa.
Nesse ponto o Mestre salienta que estão limpos "mas não todos": há entre eles alguém que sofre de
terríveis impactos emocionais, lutas homéricas em sua consciência. Estava ele ali, ao lado de seu
Mestre, comendo com Ele no mesmo nível de todos os outros, tratado com o mesmo amor. No entanto,
sua tarefa dificílima, sua perigosa missão, impunha-lhe o afastamento durante séculos daquele conví-
vio amoroso, pois tinha que entregar seu Amigo para o sacrifício, dando todas as características de
uma traição vergonhosa e infamante.
No vale dos espinheiros, tumultuado interiormente, cumprindo sua obrigação com todo o rigor reque-
rido, carregando sua cruz até o fim, não conseguia, entretanto, paz interior: vulcões queimavam-lhe o
cérebro e alimentavam a fogueira da dúvida ... Deveria mesmo entregar o querido Mestre, ou seria
melhor fugir a tudo? Mas, se fugisse, como se daria o indispensável passo iniciático necessário? O
"antagonista" insuflara em seu coração essa hesitação perigosíssima: sua obrigação era cumprir a
tarefa de entregar o Mestre; mas suportaria ele, durante séculos, a pecha de "traidor"? E conseguiria
ele olhar para seus companheiros que não estavam a par dos meandros da cerimônia? E como o povo
beneficiado por Jesus iria tratá-lo?
Dentro dessa tese, perguntam-nos, por vezes, se Jesus conhecia essa missão terrível que fora confiada
a Judas; e se, conhecendo-a, não poderia tê-la explicado a seus companheiros do Colégio Iniciático, a
fim de aliviar a tensão do discípulo que mais se sacrificaria no Drama do Calvário. Por que, ao con-
trário, Jesus o acusaria de "levantar contra ele seu calcanhar", fazendo carga junto aos colegas para
que alimentassem o maior desprezo por Judas.
Acreditamos que Jesus secretamente deve ter revelado a verdade a Seus discípulos. No entanto, era
mister que essa atitude fosse mantida secreta, que a realidade permanecesse oculta, até que soasse a
hora de tudo ser revelado. Não teria sido possível justificar a atitude de Judas, senão manifestando
aos profanos os segredos iniciáticos. E isso jamais poderia ter ocorrido antes do minuto estabelecido
para isso. As aparências tinham que ser salvas. O mistério devia ser guardado a sete chaves. O segre-
do precisava manter-se oculto. E o foi.
Externamente, para o grande vulgo, Judas sempre apareceu como "o traidor". As palavras de Jesus
pareceram duras. A condenação pública dos companheiros foi violenta, foi atroz. Tudo isso fazia
parte da missão difícil de Judas, e todo esse sofrimento foi de antemão aceito por seu espírito. Mas
tudo tinha que permanecer escondido no cofre sigiloso da "letra" que mata, para que não "fossem
dadas pérolas aos porcos nem coisas santas aos cães", isto é, aos profanos que, não podendo alcançar
a sublimidade divina das ocorrências, das causas e efeitos, teriam levado sua interpretação para o
pólo oposto.
E que o teriam feito, não resta dúvida: com toda a externa e severa condenação da letra escriturística
do gesto de Judas, a massa popular e até muitas elites intelectuais e religiosas imitaram e imitam até
hoje o papel do "Judas-traidor"! Que não teria havido se seu gesto houvesse recebido pública justifi-
cação por parte de Jesus, dos discípulos e dos comentaristas durante esses séculos que nos precede-
ram?

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Inegavelmente, o Mestre SABIA, como sempre soube e saberá, a melhor maneira de agir, e nada te-
mos a criticar; antes pelo contrário, ficamos deslumbrados com a sabedoria revelada no modo de
apresentar as coisas mais difíceis.
Agora, à distância de quase dois milênios, prestes a soar a hora aprazada para que tudo seja revelado
aos que PODEM LER - pois quem "não pode", também "não lê" - compreendemos e admiramos o tato
extraordinário e a prudência Daquele que humildemente se ajoelhou diante de Seus discípulos, lavan-
do-lhes os pés. Não esqueçamos que os Evangelhos constituem apenas o resumo (cfr. vol. 6) dos ensi-
nos reais de Jesus, escritos para que pudessem ser lidos pelos profanos sem que fossem revelados os
"segredos do Reino, que só a vós é revelado" (Marc. 4:11 e Luc. 8:10), pois "só os santos podem co-
nhecê-los" (Col. 1:26), segundo escreveu Paulo em sua época, quando "santos" exprimia "iniciados".
Hoje, às vésperas das grandes modificações que a Terra e os homens viverão, mister se torna que tudo
seja dito, a fim de preparar os fiéis para os passos difíceis que estão chegando.
A frase final revela-nos a veracidade desta interpretação, na frase "digo-vos antes que aconteça para
que, quando ocorrer, acrediteis que EU SOU": trata-se da mesma expressão que, em hebraico, se lê
YHWH; trata-se do EU PROFUNDO que fala.
Deste passo em diante, a cada novo ensino, sempre mais claro se torna o ensino do EU, manifestação
da Divindade em cada um de nós. A conclusão é um exemplo. Mas falaremos mais tarde sobre isso.

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C. TORRES PASTORINO

JUDAS É INDICADO
Mat. 26:21-25 João, 13:21-32

21. E, comendo eles, disse: "Em verdade vos 21. Tendo Jesus dito isso, agitou-se no espírito e
digo que um dentre vós me entregará". testificou e disse: "Em verdade, em verdade
vos digo, que um de vós me entregará".
22. E muito tristes começaram a dizer-lhe um a
um: Acaso sou eu, Senhor? 22. Olhavam os discípulos uns para os outros,
perquirindo a respeito de quem ele falara.
23. Respondendo ele, disse: "Quem comigo
mete a mão no prato, esse me entregará. 23. Estava reclinado à direita de Jesus um dos
discípulos dele, o que Jesus amava.
24. O filho do homem vai, como está escrito
sobre ele; mas coitado desse homem por 24. A esse então, Simão Pedro acenou com a
quem o filho do homem é entregue: era-lhe cabeça, inquirindo a respeito de quem ele
melhor se não houvesse nascido esse ho- falara.
mem". 25. Reclinando-se ele, assim, sobre o peito de
25. Respondendo Judas, o que o entregaria, Jesus, disse-lhe: "Senhor, quem é"?
disse: Acaso sou eu, Rabbi? Disse-lhe: "Tu 26. Respondeu Jesus: "É aquele a quem eu der
o disseste". o pedaço de pão mergulhado (no vinho).
Tendo mergulhado, então, o "pedaço de
pão", pegou e deu a Judas, filho de Simão
Marc. 14:18-21
Iscariotes.
27. E depois do pão, então, entrou nele o anta-
18. E estando eles reclinados à mesa, Jesus dis- gonista. Disse-lhe pois Jesus: "O que fazes,
se: "Em verdade digo-vos que um dentre faze-o depressa".
vós me entregará, um que come comigo".
28. Nenhum "os que se reclinavam à mesa sou-
19. Começaram a entristecer-se e a dizer-lhe be para que lhe dissera isso.
um a um: Acaso serei eu?
29. Pois eles julgavam, já que Judas tinha a
20. Ele disse-lhes: "Um dos doze, que se serve bolsa, que Jesus lhe dissera: compra o de
comigo no prato; que precisamos para a festa, ou para que
21. pois o filho do homem vai, como dele está aos mendigos desse algo.
escrito; mas coitado desse homem por quem 30. Tomando, então, o pedaço de pão, ele saiu
o filho do homem vai ser entregue: bom lhe logo; era noite.
era se não tivesse nascido esse homem".
31. Quando, pois, saiu, disse Jesus: "Agora o
filho do homem é transubstanciado e Deus é
Luc.22:21-23 transubstanciado nele;
32. se Deus é transubstanciado nele, também
Deus o transubstanciará em si, e o transubs-
21. "Contudo, eis a mão de quem me entrega tanciará imediatamente".
está comigo à mesa;
22. porque o filho do homem, segundo foi de-
terminado, vai; mas coitado desse homem
por quem será entregue".
23. E eles começaram a perguntar entre si
quem deles seria, que iria fazer isso.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

O estudo deste trecho é de importância capital para a compreensão plena dos ensinos dados no Grande
Drama do Calvário.
Estavam reunidos à mesa, ainda comendo (esthiontôn autôn), quando revela aos demais discípulos que
o drama tem início, pela entrega da vítima, que é Ele mesmo, nas mãos do clero organizado, para o
sacrifício. E esse ato será realizado por um dentre os doze. O gesto está iminente, tanto que os verbos
estão, o primeiro no futuro imediato (paradôsei, entregará), os outros no presente do indicativo (para-
dídotai, é entregue) e no presente do particípio (paradidoús, que temos que traduzir pelo futuro do
pretérito, entregaria).
João, por estar mais próximo, salienta em sua narrativa que Jesus "agitou-se em espírito" (etaráchthê
tôi pneúmati) e assegurou como testemunho da verdade (kaì emartirêsen) que um dos doze o entrega-
ria.
A revelação brusca faz cair o mal-estar em todos, como o salientou Agostinho (Patrol. Lat. vol. 35,
col. 1800 ): "cada um estava seguro de si, mas duvidava de todos os outros". Ergue-se um vozerio de
todos os lados: "serei eu"? Dentre todas as vozes faz-se ouvir a de Judas, que conhecia sua tarefa, mas
não podia revelá-la. Tem que perguntar, para que seu silêncio não o denuncie (cfr. Jerônimo, Patrol.
Lat. vol. 26, col. 195). Jesus o confirma: "tu o disseste"!
Alguns comentadores assinalam que todos se dirigem a Jesus denominando-O didáskale, e que Judas o
diz Rabbi. Mas além da equivalência absoluta dos dois tratamentos, há que lembrar que os galileus
utilizavam muito mais o idioma grego, ao passo que os judeus preferiam o aramaico.
A resposta ao grupo foi apenas indicação de que ali estava presente aquele de quem falara: esse o sen-
tido de "mete comigo a mão no prato", coisa que Marcos traduz "come comigo" e Lucas "está comigo
à mesa". Expressões equivalentes.
Mas ninguém ouve a resposta de Jesus a Judas. Nem Pedro que, indócil, quer saber quem é, e acena
com a cabeça (é o sentido do grego neúô) para João, que se designa com um circunlóquio: "o discípulo
que Jesus amava". A pergunta é feita em voz baixa. Jesus diz-lhe que vai dar um pedaço de pão (pso-
míon) mergulhado (bápsô, do verbo báptô) provavelmente no vinho: tão óbvio, que não era mister
dizê-lo ...
Molha o pão no vinho e passa-o a Judas, em deferência toda especial, pois aos outros dá apenas o pão
seco e faz passar a taça de vinho, na qual todos bebem.
João assinala que, com o pão, "entrou nele o antagonista". Ao verificar que tudo correra de acordo com
o previsto, Jesus dá-lhe ordem de desencadear os acontecimentos: "o que fazes, faze-o depressa". Diz
João que "ninguém entendeu". Revelada a trama, ninguém protestou! Comportamento estranho! Judas
recebeu o pão embebido em vinho, comeu-o e saiu. Já era noite fechada.
Nesse momento, Jesus anuncia a transubstanciação, que analisaremos no segundo comentário.

Avançamos, cada vez mais, para a realização do Grande Drama. Após o exemplo de humildade, é
iniciada a refeição da ceia pascal anualmente celebrada.
A certa altura, sente o Mestre o aviso de Seu Eu profundo, que peremptório Lhe diz ter chegado sua
hora. Seu espírito se agita, pois os veículos mais densos terão que passar por uma prova dura, difícil,
quase sobre-humana, mas é NECESSÁRIO, e Jesus não titubeia, não hesita. Resolve ordenar o início,
dar a partida do Ato Sacro, e fazer Suas últimas recomendações, antes de ser coagido a desaparecer
do cenário físico.
Começa dizendo que "está determinado que o Filho do Homem vá", e Ele irá; mas lamenta profunda-
mente o homem que tem a ingrata tarefa de entregá-Lo (1) às autoridades eclesiásticas para o sacrifí-
cio sangrento: esse homem sofrerá terríveis impactos, mas terá que cumprir sua obrigação até o fim,
terá que beber o cálice até as fezes.

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C. TORRES PASTORINO

(1) Anotamos mais uma vez que o verbo empregado insistentemente paradídômi, é característico das
cerimônias iniciáticas (cfr. vol. 4).
Os discípulos ficam preocupados. Mas o Mestre acrescenta: "esse homem está comendo conosco: é
um dentre vós"! Maior preocupação os assalta e o peso da dúvida lhes penetra o ânimo. Embora sou-
bessem o que estava para ocorrer, desconheciam qual o "escolhido" (o "clérigo") que deveria execu-
tar o gesto indispensável, tomando a posição de "antagonista" oficial de Jesus, para ser condenado
durante milênios pela humanidade. Era um gesto que requeria força e heroísmo sem limites: precisa-
va-se de um voluntário disposto a sacrificar-se. Qual deles seria o escolhido?
Jesus aduz que "era melhor que esse homem não tivesse nascido", tal a dificuldade quase insuperável
a vencer. E, com essa frase, mais uma vez revela abertamente a realidade da reencarnação, da qual já
falara outras vezes, não insistindo mais no assunto porque era convicção profunda e arraigada em
todos eles de que assim ocorre com as criaturas. Mas convenhamos que para dizer que "melhor fora
que não tivesse nascido", era mister a certeza de que ele existia antes de nascer, e ter-lhe-ia sido
muito melhor permanecer em estado de espírito, não se metendo numa dificuldade tão grande, não se
sujeitando a um sofrimento tão atroz. De fato, se o espírito fosse criado por Deus no momento do nas-
cimento, como ensinam certas seitas religiosas, a frase de Jesus constituiria uma blasfêmia contra
Deus, pois isso seria uma crítica direta contra um ato divino! Jesus teria acusado Deus de ter criado
um espírito, quando seria melhor que o não tivesse feito! Ora, não podemos admitir uma crítica desse
teor, contra Deus, nos lábios de Jesus. A conclusão é que o espírito de Judas preexistia à encarnação
(ao nascimento) e, mais ainda, que aceitara a difícil missão. Conhecendo-lhe as asperezas, Jesus
confessa-se penalizado pelo que sofrerá e diz que melhor fora se não tivesse aceito e reencarnado,
pois teria evitado as atrocíssimas dores futuras.
Todos se entristecem preocupados, e querem saber qual deles terá a triste incumbência. Judas, embo-
ra já o soubesse, também indaga, para ouvir a confirmação. A resposta de Jesus "tu o disseste", equi-
vale a: "já o sabes, por que o perguntas?" Por isso não vemos aí o simples "sim".
Pedro, (a emoção) não resiste à curiosidade e acena com a cabeça para que João pergunte ao Mestre.
Jesus retruca-lhe que dará um pedaço de pão mergulhado no vinho, indicando o escolhido; recorde-
mos que ainda hoje assim é dada a "comunhão" na igreja ortodoxa: um pedaço de pão mergulhado no
vinho. Assim fortalecido, Judas sai.
Mas, para os profanos, a verdade tinha que ser encoberta pelo véu das coisas ocultas. Por isso, o
"discípulo que Jesus amava” fala que "o antagonista entrou nele junto com o pão”. Realmente, neste
ponto Judas inicia sua carreira de "antagonista": voluntária e espontaneamente se coloca no pólo
oposto, para começar a receber os impactos de ódio e desprezo, a fim de que seu Mestre receba toda a
onda de simpatia e de amor por parte da humanidade.
Mas que era uma coisa sabida e esperada, prova-o o fato de que nenhum dos discípulos protesta con-
tra Judas. Ninguém o ataca. Ninguém o acusa. Ninguém se revolta. Ninguém o condena. Ninguém
procura defender seu Mestre contra Judas. Todos aceitam passivamente calados o fato que, em quais-
quer outras circunstâncias, forçosamente faria que todos se levantassem como um só homem para
detê-lo de seu intento. Não. Nada disso ocorre: só o silêncio da aceitação.
Para justificar essa imóvel passividade dos discípulos, João escreve aquela frase incompreensível a
quem quer que raciocine: julgaram que Jesus o mandara fazer compras (mas àquela hora da noite!)
ou distribuir esmolas (mas de noite?). Evidente que se trata de uma desculpa na qual o narrador, em
verdade, não foi muito feliz: basta um pingo de reflexão, para verificar-se que ela não convence, em
absoluto. Mas era necessário dizer alguma coisa, para justificar a impassibilidade dos discípulos que
assistiam à "acusação" e a aceitaram sem uma palavra de protesto. Nem o temperamental Pedro se
rebelou! E no entanto, ficou sabendo com segurança de quem se tratava ... Por que? Porque todos
sabiam o que se passava.
Dado o passo inicial, Jesus anuncia que vai dar-se a transubstanciação. Analisemos as frases de João,
cheias de sentido profundo.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

"Agora o Filho do Homem é transubstanciado e Deus se transubstancia no Filho do Homem": o


Cristo interno, a Divindade que em tudo habita, a Essência última de todas as coisas, encontra campo
para expandir-se e manifestar-se plenamente no Filho do Homem, por sua aceitação total do sacrifí-
cio para subir um degrau na evolução, demonstrando o caminho à humanidade. Deus o permeia, o
penetra, o infinitiza. E "se Deus se transubstancia" pela unificação mística "no Filho do Homem, tam-
bém Deus transubstanciará o Filho do Homem em Deus". Ou seja, se Deus se transmuda em homem,
o homem se transmuda em Deus; se Deus se expande no homem, o homem se expande em Deus; se
Deus se torna homem, o homem se torna Deus.
E essa transubstanciação de Essência, de manifestação, de unificação total de tudo no Todo, não é
para depois, no "céu": é AGORA: imediatamente, neste instante, Deus transubstanciará o Filho do
Homem em Deus.
Realizada essa fase inicial da divinização do homem, pela humanização de Deus, é lançado o grande
símbolo que permitirá a perpetuação desse ato por toda a humanidade nos séculos seguintes: o ho-
mem daí por diante poderá, quando o queira, transubstanciar-se também em Deus.
Vê-lo-emos no próximo capítulo.

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C. TORRES PASTORINO

TRANSUBSTANCIAÇÃO

Mat. 26:26-29 Marc. 14:22-25 Luc. 22:15-20

26. Estando eles a comer , to- 22. Estando eles a comer, to- 15. E disse a eles: “Desejei ar-
mando Jesus um pão e ten- mando um pão e tendo dentemente comer esta
do abençoado, partiu e deu abençoado, partiu e deu a páscoa convosco, antes de
aos discípulos, dizendo: eles, dizendo: "Tomai, isto eu sofrer,
"Tomai, comei, isto é o meu é o meu corpo". 16. pois vos digo que de modo
corpo". 23. E tomando uma taça, tendo algum a comerei até que se
27. E, tomando uma taça e dado graças, deu a eles e plenifique no reino de
tendo dado graças, deu- todos beberam dela. Deus".
lhes, dizendo: "Dela bebei 24. E disse-lhes: "Isto é o meu 17. E tendo apanhado uma
todos, sangue do testamento der- taça e tendo dado graças,
28. pois isto é meu sangue do ramado sobre muitos. disse: "Tomai isto e distri-
testamento, derramado em 25. Em verdade digo-vos que bui a vós mesmos,
relação a muitos para não mais beberei do produ- 18. pois vos digo que, desde
abandono dos erros. to da videira até aquele dia agora, não beberei do pro-
29. Digo-vos, porém, que não quando o beberei convosco duto da videira até que ve-
beberei desde agora deste no reino de Deus". nha o reino de Deus".
produto da videira, até 19. E tomando um pão, tendo
aquele dia quando o bebe- dado graças, partiu e deu a
rei convosco no reino de eles, dizendo: "Isto é o meu
meu Pai". corpo que é dado para vós:
fazei isto para lembrar-vos
de mim"
20. E do mesmo modo a taça,
depois do jantar, dizendo:
“Esta taça é o novo testa-
mento no meu sangue, que
é derramado por vós".

Vejamos o texto literal, estudando-o quanto aos termos.


A expressão "desejei ardentemente" corresponde ao grego: epíthymía epethymêsa, literalmente: "de-
sejei com grande desejo", tal como se lê em Gên. 31:30, versão dos LXX.
"Até que se plenifique" (héôs hótou plêrôthêí) ou seja, até que atinja sua plenitude, sua amplitude total.
"Tomando um pão" (labôn ártan) sem artigo, do mesmo modo que mais adiante "tomando uma taça"
(labôn potêrion) , onde Lucas (vs. 17) usa "tendo apanhado" (dexámenas, de déchomai).
"Tendo abençoado" (em Mateus e Marcos, eulogêsas) ou "tendo dado graças" (eucharistêsas) nos três
narradores. Na realidade são quase sinônimos, pois a bênção consistia num agradecimento a Deus pelo
alimento que ia ser ingerido, suplicando-se que fosse purificado pela Bênção divina (cfr. Êx. 23:25).

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SABEDORIA DO EVANGELHO

"Partiu o pão" (éklase tòn árton): era o hábito generalizado entre os judeus, quando à mesa o anfitrião
tirava pedaços de pão e os distribuía aos convivas em sinal de amizade e deferência.

Figura “A TRANSUBSTANCIAÇÃO” – Desenho de Bida

"Tomai, comei" (lábete, phágete) sem copulativa "e" (kaì).


"Isto é o meu corpo" e "isto é o meu sangue" (toúto estin tò sômá mou e toúto estin tò haímá mou). O
pronome toúto é neutro e significa "isto". No entanto, surge a dúvida: não será neutro apenas para con-
cordar com os substantivo sôma e haíma que também são neutros? Pela construção, mais adiante
(João, 22:38) onde se lê: "este é o grande mandamento" (autê estin ho megálê entolê), pode interpretar-
se que o pronome venha em concordância com os substantivos. Deveria então preferir-se a tradução:
"este é meu corpo" e "este é meu sangue". Teologicamente, tanto "este" quanto "isto" exprimem a
mesma idéia, embora 'isto' seja mais explícito para exprimir a transubstanciação.
"Sangue do testamento" (em Lucas: "do novo testamento") lembra Moisés (Êx. 24:8) quando esparziu
o sangue dos bois sobre o povo, em que fala do "sangue do testamento" que muitos traduzem como
"sangue da aliança" (cfr. Jean Rouffiac, "Recherches sur les Caracteres du Grec dans le Nouveau Tes-
tament d'après les Inscriptions de Priène", Paris, 1911, pág. 42). Lucas exprimiu a idéia de outra forma:
"esta taça é o novo testamento em meu sangue" (toúto tò potêrion hê kainê diathêkê en tôi haímati
mou). A palavra grega diathêkê exprime literalmente as "disposições testamentárias", tanto no lingua-
jar clássico quanto no popular (koinê), como vemos nas inscrições funerárias e nos "grafitti" da época.
De qualquer forma, vemos, nessa frase, a abolição total dos sacrifícios sangrentos, pois as "disposições
testamentárias" são feitas através do simbolismo do vinho transubstanciado no sangue.
O sangue "que é derramado" (tò ekchynnómenon), no particípio presente; portanto, simbolismo do vi-
nho na taça, representando o que seria mais tarde derramado quando o sacrifício se realizasse no Cal-

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C. TORRES PASTORINO

vário. O sangue que é derramado "em relação a muitos" (perì pollôn, Mat.) ou "sobre muitos" (hypèr
pollôn, Marc.) ou "sobre vós" (hypèr hymõn, Luc). Também o pão, em Lucas, é dito "que é dado sobre
vós" (tò hypèr hymõn didómenon).
A taça (potêrion) utilizada era a comum destinada ao vinho, e o uso de agradecer a Deus e fazê-la pas-
sar por todos os convivas, já é assinalado quanto à "taça do Qiddoush" na Michna (Pesachim, 10).
A expressão "não mais beberei do produto da videira até o dia em que o beberei convosco no reino de
Deus", se compreendêssemos como alguns fazem, o "reino de Deus" como sendo "o céu", nós teríamos
irrespondivelmente um "céu" semelhante ao dos maometanos, com bons vinhos (lógico, os vinhos do
céu não poderiam jamais ser ruins!) e talvez até com as célebres "huris".
No entanto, Loisy ("Les Evangiles Synoptiques, 1907/8, vol. 29, pág. 522) reconhece que o sentido
literal das palavras desse trecho justificam plenamente o comportamento das igrejas cristãs desde os
primeiros séculos.
Os teólogos muito se preocupam se Jesus também comeu e bebeu o pão e o vinho, que deu e fez passar
entre os discípulos: querem saber se Ele comeu o próprio corpo e bebeu o próprio sangue ... Vejamos.
Jerônimo (Patr. Lat. vol. 22 col 386) diz que sim: ipse conviva et convivium, ipse cómedens et qui
coméditur, ou seja: "ele-mesmo conviva e alimento, ele mesmo que come e é comido". Agostinho
(Patr . Lat. vol. 34 col. 37) é da mesma opinião: sacramento córporis et sánguinis sui praegustato,
significavit quod voluit, isto é: "tendo saboreado o sacramento de seu corpo e de seu sangue, exprimiu
o que quis". João Crisóstomo (Patr.Gr. vol. 58, cal. 739) diz que para evitar a repulsa dos discípulos
em comer carne humana e beber sangue, ele mesmo comeu e bebeu primeiro.
Mas os imperativos são por demais categóricos e estão todos na segunda pessoa do plural, o que exclui
a participação da primeira.
Mateus e Marcos colocam a transubstanciação depois da saída de Judas.
Lucas, que confessa (1:3) ter tido todo o cuidado com a cronologia histórica dos fatos, coloca a tran-
substanciação antes da saída de Judas, versão que é aceita por João Crisóstomo (Patr. Gr. vol. 58, col.
737).

Ainda estavam comendo (esthióntôn autôn) quando Jesus lhes anuncia que "desejou ardentemente"
comer com Seu colégio iniciático aquela refeição pascal, antes de sofrer (páthein), ou seta, antes de
submeter-se experimentalmente aos transes dolorosos daquele grau iniciático (cfr. vol. 4, nota).
Nesse "jantar pascal" Ele lhes deixará Suas "disposições testamentárias" (diathêkê), que consistem no
ensino da transmutação da matéria ou transubstanciação; na ordem de realizar sempre as refeições
em memória Dele; e nas últimas revelações e ensinos, promessas e profecias para o futuro da huma-
nidade.
A razão é que, depois desse jantar, o Filho do Homem não terá outra oportunidade até que se plenifi-
que o "reino de Deus", atingindo seu sentido pleno e total. Já vimos que essa expressão "reino de
Deus" ou "reino divino" ou "reino dos céus" ou "reino celeste" é equivalente às outras que tanto em-
pregamos: reino mineral (matéria inorgânica), reino vegetal (matéria orgânica), reino animal (psi-
quismo), reino hominal (racionalismo), reino divino (Espírito). Então, o sentido exato das palavras
pode ser: até que o Espírito esteta plenamente vigorando nas criaturas, estando superadas definitiva-
mente todos os outros reinos inferiores. Enquanto não tenha sido atingido esse objetivo na Terra, não
mais provará o Filho do Homem nem o jantar pascal, nem o produto (genémata) da videira.
Após essas palavras, mais uma vez o Cristo passa a agir e a falar através de Jesus, utilizando Seu
instrumento humano visível, mas diretamente proferindo as palavras. Não são as frases ditas pelo
homem Jesus, mas são ditas pelo Cristo de Deus pela boca de Jesus.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Pega então um pão, um dos que estavam sobre a mesa, e abençoa-o, como se deve fazer a qualquer
alimento antes de ingeri-lo: agradecer ao Pai a graça de tê-lo obtido, e sobre ele suplicar as bênçãos
divinas.
De acordo com o uso judaico, o chefe da casa parte pedaços do pão e dá a cada conviva um pedaço.
O essencial da lição, a novidade, portanto, é a frase: "ISTO É O MEU CORPO". Há um ensino ma-
gistral nesse gesto e nessas palavras: o pão é o corpo crístico que serve de alimento à parte espiritual
do homem, pois lhe sustenta os veículos inferiores durante a romagem terrena. Representação perfei-
ta, sem que se precise chegar ao exagero de dizer que o "pão eucarístico" é, de fato, "o corpo, o san-
gue, a alma e a divindade, e os ossos de Jesus".
Deu-se a confusão porque não houve suficiente compreensão da distinção entre Jesus, o ser humano
excepcionalmente evoluído, e o Cristo divino que Lhe era a essência última, como o é de todas as coi-
sas criadas, visíveis e invisíveis. Assim como podemos dizer que Jesus é "o corpo do Cristo", porque o
Cristo está nele, assim também pode dizer-se do pão (como de qualquer outra substância) que se tra-
ta, em verdade do "corpo do Cristo". Não foi o fato de ser abençoado que assim o tornou (não é a
"consagração" na missa que transubstancia o pão em alimento divino), mas qualquer pedaço de pão,
qualquer alimento, tem como essência última a Essência Divina, já que a Divindade É, enquanto tudo
o mais EXISTE, ou seja, é a manifestação dessa mesma essência divina: tudo é a expressão exteriori-
zada dessa Divindade que está em tudo, porque está em toda a parte sem exceção.
Por que terá o Cristo de Deus escolhido o pão? Mesmo não considerando que era (e é) o alimento
mais difundido na humanidade, temos que procurar alcançar algo mais profundo.
Nas Escolas iniciáticas egípcias e gregas, o simbolismo é ensinado sob a forma da ESPIGA DE TRI-
GO; nas Escolas palestinenses dá-se um passo à frente, apresentando-se o PÃO, que constitui a tran-
substanciação do trigo, após ter sido moído e cozido, símbolo já definido quando Melquisedec oferece
pão ao Deus Altíssimo (Gên. 14:18). Assim como o trigo, produto da natureza, criação do Verbo, é
transmudado em pão pelo sofrimento de ser moído e cozido, assim o pão se transmuda em nosso corpo
após o sofrimento de ser mastigado e digerido. Então o pão se torna, pelo metabolismo, corpo huma-
no, da mesma maneira que o corpo humano, após ser açoitado e crucificado, se transmudará em Espí-
rito.
Daí, pois, a expressão toúto estin tò sômá mou ter sido traduzida por nós em "ISTO é o meu corpo, no
sentido de ser aquilo que estava em Suas mãos não ser mais "pão": não era mais" este pão", mas
"ISTO", pois sua substância fora transmudada simbolicamente.
Logo a seguir temos que considerar o vinho. Apanhando de sobre a mesa uma taça de vinho (no ori-
ginal sem artigo) novamente agradece ao Pai a preciosa dádiva, e afirma igualmente: "ISTO é meu
sangue do Novo testamento". Tal como Moisés utilizou o sangue de bois como símbolo das disposições
testamentárias de YHWH com o povo israelita, assim o Cristo apresenta, por meio de Jesus; o vinho
como símbolo das disposições testamentárias novas que são feitas pelo Pai à humanidade.
Assim como o pão, também o vinho está mais avançado que a uva, símbolo utilizado nas Escolas ini-
ciáticas egípcias e gregas. Ao invés do produto da videira (tal como a espiga produto do trigo) repre-
sentava a transubstanciação da terra-mãe, que se transmudava em alimento. Mas na Palestina, um
passo à frente, empregava-se o vinho, símbolo da sabedoria (vol. 1 e vol. 4) obtido também, como o
pão, através da dor: a uva é pisada no lagar e depois o líquido é decantado por meio da fermentação.
Quanto à oferenda do pão e do vinho, como substitutos dos holocaustos sangrentos de vítimas ani-
mais, já a vemos executada como sublime ensinamento por Melquisedec, conforme lemos na Torah
(Gên. 14:18): vemalki-tsadec meleq salem hotsia lehem vaiiam vehu kohen leel hheleion; e nos LXX:
Melchisedek, basileús salêm, exênegke ártous kaì oínon, hên dè hiereús toú theoú hypsístou, ou seja:
Melquisedec, rei de Salém, ofereceu pão e vinho, pois era sacerdote do Deus altíssimo".
Aí, pois, encontramos a origem dos símbolos escolhidos pelo Cristo, por meio de Jesus, que era preci-
samente "sacerdote da Ordem de Melquisedec" (Hebr. 6:20) e que, com o passo iniciático que deu no
Drama sacro do Calvário, se tornou "sumo sacerdote da mesma ordem" (Hebr. 5:7-10; cfr. vol. 6). A

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C. TORRES PASTORINO

indicação de uma Escola sacerdotal, portanto, é mais que evidenciada: o sacerdócio do Deus Altíssi-
mo (não de YHWH) é exercido por Melquisedec, Hierofante máximo da ordem que tem seu nome, da
qual fazem parte Jesus e outros grandes avatares. Essa Ordem de Melquisedec é conhecida atual-
mente como a Fraternidade Branca, continuando com o mesmo Hierofante, o "Ancião dos Dias", o
Deus da Terra, o Pai místico de Jesus, o único que, na realidade, neste planeta, tem o direito de ser
chamado "pai” (Mat. 23:9).
Então entendemos em grande parte qual a meta a que somos destinados: onde está o Pai, de onde
Jesus proveio e para onde estava regressando (João, 13:1 e 3), pois o desejo maior de Jesus é que
vamos para onde foi: "que onde eu estou, vós estejais também" (João, 17:24). Mas tudo isso será es-
tudado com Suas próprias palavras nos próximos capítulos.
Essa interpretação explica a expressão: "não mais beberei o produto da videira" ou "comerei a pás-
coa", até quando convosco o faça no reino (na casa) do Pai: compreende-se, porque se trata da Terra,
e não do "céu".
O sangue, foi dito em Mateus, é derramado em relação a muitos para "abandono dos erros" (eis áphe-
sin tôn hamartiôn). Inaceitável a tradução "remissão dos pecados", pois até hoje, quase dois mil anos
depois, continuam os "pecados" cada vez mais abundantes na humanidade. Que redenção é essa que
nada redimiu?
Lucas tem uma frase de suma importância, que é repetição de Paulo (l.ª Cor. 11:24 e 25), tanto em
relação ao pão, quanto em relação ao vinho: "fazei isto em recordação de mim, todas as vezes que o
beberdes" (toúto poieíte eis tên esmên anámnêsin hosákis ean pínete). Quem fala é O CRISTO. Daí
podermos traduzir com pleno acerto: "fazei isto para lembrar-vos do EU" que, em última análise, é o
CRISTO INTERNO.
Nem o grego nem o latim podiam admitir a construção permitida nas línguas novilatinas, que podem
considerar o pronome pessoal como substantivo, antepondo-lhe o artigo: o eu, do eu, para o eu; em
virtude das flexões da declinação, eram forçados a colocar o pronome nos casos gramaticais requeri-
dos pela regência. Daí as traduções possíveis nas línguas mais flexíveis: "em minha memória", ou "em
memória de mim" ou mesmo, em vista do conjunto do ensino crístico, "em memória DO EU". Confes-
samos preferir a última: "para lembrar-vos DO EU" que se refere ao Cristo Interno que individua o
ser. Sendo porém o Cristo que falava, nada impede que se traduza: em minha memória, ou "para lem-
brar-vos de mim".
Portanto, pão e vinho representam, simbolicamente, o corpo e o sangue do Eu profundo, do Cristo; a
matéria de que Se reveste para a jornada evolutiva no planeta.
Pedimos encarecidamente que o leitor releia, antes de prosseguir, o que está escrito no vol. 39, páginas
143 a 155.
* * *
Há mais um ponto importante a focalizar: é quando diz: "fazei isto em memória de mim, TODAS AS
VEZES QUE O BEBERDES".
Então não se trata apenas de uma cerimônia religiosa com dia e hora marcados: mas todas as vezes
que nos sentarmos a uma mesa, para tomar qualquer alimento, todas as vezes que comermos pão ou
que bebermos vinho, devemos fazê-lo com a certeza de que a essência divina (que constitui a essência
desse alimento sob as formas visíveis e tangíveis transitórias) penetra em nós para sustentar-nos,
transubstanciando-nos em Sua própria essência, transformando nosso pequeno "eu" personativo em
Seu Eu profundo, no Cristo interno que nos sustenta a vida.
Por isso devemos tornar instintivo em nós o hábito de orar todas as vezes que nos sentarmos' à mesa:
uma prece de agradecimento (eucharistía), de tal forma que qualquer bocado deglutido se torne uma
comunhão nossa com a Essência Divina contida em todos os alimentos e em todas as bebidas, quais-
quer que sejam, inclusive no ar que respiramos, pois "em Deus vivemos, nos movemos e existimos"
(At. 17:28).

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Temos que considerar (e já foi objeto de estudos desde a mais alta antiguidade) que havia duas partes
totalmente destacadas e distintas na prática dessa "ação de graças" em relação à comida e à bebida:
uma era ensinada aos fiéis comuns, para neles despertar o sentimento de fraternidade real; a outra
era reservada aos componentes da Escola iniciática Assembléia do Caminho.
Tratemos inicialmente da primeira. Vejamos apenas alguns textos que confirmem o que afirmamos,
para que o leitor forme um juízo. Quem desejar aprofundar-se, consulte a obra de Joseph Turmel,
"Histoire des Dogmes", Paris, 1936, páginas 203 a 525 (são 322 páginas tratando deste assunto).
A cerimônia destinada aos fiéis em geral consistia num jantar (o termo grego deípnon designava a
refeição principal do dia, realizada geralmente à noite, tanto que muitos traduzem como "banquete" e
outros como "ceia"). Em diversos autores encontramos referências a esse jantar, que Paulo denomina
deípnon kyríakon ("jantar do Senhor").
Esse tipo de refeição em comum, de periodicidade semanal, já se tornara habitual entre os judeus de-
votos. Iniciava-se com a passagem por todos os presentes da "Taça do Qiddoush", que continha o vi-
nho da amizade pura. Era uma cerimônia de sociedades reservadas, mantenedoras das tradições orais
(parádôsis) dos ensinos ocultos, de origem secular, que com suas transformações e modificações re-
sultou naquilo que hoje tem o nome de Maçonaria. Nessa refeição comia-se e bebia-se à vontade, só
sendo rituais a taça de vinho inicial com sua fórmula secreta de bênção, o pão também abençoado e
depois partido e distribuído pelo que presidia, e a taça final de vinho; cada um desses rituais era pre-
cedido e seguido de uma prece, de cujos termos exotéricos a Didachê conservou-nos um resquício
"cristianizado" posteriormente. Mas a base é totalmente judaica. A ordem desse cerimonial foi-nos
conservada inclusive pelo evangelho de Lucas (ver acima vers. 17, 19 e 20).
PAULO DE TARSO (l.ª Cor. 11:20-27) afirma que recebeu o ritual diretamente do Senhor. E neste
ponto repete as palavras com a seguinte redação: "O Senhor Jesus, na noite em que foi entregue, to-
mou um pão e, tendo dado graças (eucharistêsas) partiu e disse: Isto é o meu corpo em vosso favor
(toúto moú estin tò sôma tò hypèr hymôn); fazei isto em memória de mim. Igualmente também a taça
depois do jantar, dizendo: Esta taça é o novo testamento no meu sangue; fazei isto todas as vezes que
beberdes, em memória de mim."
Ora, esse texto da carta aos coríntios é anterior, de dez a vinte anos, à redação escrita de qualquer
dos Evangelhos. E isso é de suma importância, pois foi Lucas quem escreveu essa epístola sob ditado
de Paulo, que só grafou a saudação final (cfr. 1.ª Cor. 16:21). Logo, aí se baseou ele na redação de
seu Evangelho.
Nessa mesma carta Paulo avisa que, no jantar, devem esperar uns pelos outros, pois se trata de uma
comemoração: quem tem fome, coma em casa (ib. 11:34) e não coma nem beba demais, como estava
ocorrendo entre os destinatários da missiva, pois enquanto uns ficavam com fome, outros já estavam
embriagados.
PEDRO (2.ª Pe. 2:13) ataca fortemente o desregramento e a devassidão dos sensuais ao banquetear-se
com os fiéis.
JUDAS, o irmão do Senhor (epist. 12), queixa-se dos que abusam dos jantares cristãos.
A DIDAQUÊ ("Doutrina dos Doze Apóstolos"), escrita no século I, fala no "jantar de ação de gra-
ças"; diz como deve ser realizado, quais as preces que precedem e quais as que devem ser recitadas
"depois de fartos" (metà de tò emplêsthênai oútôs eucharistêsete, 10,1). No final desse capítulo, em
que se registra o texto da prece, há um acréscimo interessante: "aos profetas (médiuns) é permitido
darem as graças como quiserem (toís de prophêtais epitrépete eucharístein hósa thélousin) .
PLÍNIO O JOVEM, no ano 112, fala que os cristãos se reuniam ad capiendum cibum promiscuum
tamen et innoxium, "para tomar alimento coletivo, mas frugal" (Carta a Trajano, 10,97) .
TERTULIANO, no ano 197, escreve que os jantares cristãos têm o nome de agápê, que significa
"amor" e jamais ferem a modéstia e a boa educação; e prossegue (Patr. Lat. vol. 1, col. 477): non
prius discúmbitur quam oratio ad Deum praegustetur; éditur quantum esurientes capiunt, bíbitur

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C. TORRES PASTORINO

quantum pudícis útilis est. Ita saturantur, ut qui memínerint etiam per noctem adorandum Deum sibi
esse; ita fabulantur, ut qui sciant Dominum audire. Post aquam manualem et lúmina, ut quisque de
Scripturis sanctis vel de proprio ingenio potest, provocatur in medium Deo cánere; hinc probatur quó-
modo bíberit. Aeque oratio convívium dírimit ("De Ágapis", 39,21); eis a tradução: "Ninguém se põe
à mesa antes de saborear-se uma oração a Deus. Come-se quanto tomam os que têm fome; bebe-se
quanto é útil a homens sóbrios. De tal forma se fartam, como quem se lembra de que deve adorar a
Deus durante a noite; conversam como quem sabe que o Senhor ouve. Depois da água para as mãos e
das lanternas, cada um é convidado a cantar a Deus no meio, ou tirando das Santas Escrituras ou de
seu próprio engenho; por aí se julga como tenha bebido. Igualmente uma oração encerra a refeição".
Aí temos, pois, claramente exposto o ágape cristão dos primeiros tempos, destinado aos fiéis que ami-
gável e amorosamente se reuniam uma vez por semana, no die solis, que passou a denominar-se dies
domínica.
* * *
Outro sentido, entretanto, era dado à modesta ceia de pão e vinho, realizada pelos iniciados, que em-
prestavam significado todo especial ao rito que lhes era reservado. Vejamos alguns testemunhos.
JUSTINO MÁRTIR, no ano 160 (quarenta anos depois de Plínio e quarenta anos antes de Tertuliano)
já escrevia ("De Conventu Eucharístico", 65, 2-5): allêlous philêmati, etc., ou seja: "Saudamo-nos
mutuamente com um beijo, quando terminamos de orar. Depois é trazido pão e vasilhas com vinho e
com água ao que preside aos irmãos. Recebendo-os dá louvor e glória ao Pai de todas as coisas em
nome do Filho e do Espírito Santo, e ação de graças (eucharistía) pelas dádivas Dele recebidas em
abundância ... Depois que quem preside fez preces e todo o povo aclamou (com o Amén), aqueles que
são chamados servidores (diáconoi) distribuem o pão e o vinho e a água sobre os quais foram dadas
graças, a todos os presentes, e os levam aos ausentes".
E na 1.ª Apologia (66,1-4) escreve mais: kaì hê trophê hautê kaleítai par'hemín, etc. isto é: "E esse
alimento é chamado entre nós ação de graças ... Mas não tomamos essas coisas como um pão comum
nem como bebida comum. Mas do mesmo modo que Jesus Cristo, nosso libertador, se fez carne (en-
carnou) pelo Lógos de Deus, e teve carne e sangue para nossa libertação, assim também, pela oração
do ensino dele, aprendemos que o alimento sobre o qual foram dadas graças, do qual se alimentam
nosso sangue e nossa carne pelo metabolismo (katà metabolên), são a carne e o sangue daquele Jesus
que se fez carne (encarnou). Pois os apóstolos, nas Memórias que escreveram, chamadas Evangelhos,
transmitiram que assim lhes foi ordenado, quando Jesus, tomando o pão e tendo dado graças, disse:
Fazei isto em memória de mim, isto é o meu corpo. E tomando a taça, igualmente dando graças, disse:
Isto é o meu sangue. E só a eles distribuiu. Certamente sabeis ou podeis informar-vos de que, tornan-
do-se imitadores, os maus espíritos ensinaram (isso) nos mistérios de Mitra; pois são dados um pão e
um copo de água aos iniciados do Forte (Mitra) com certas explicações complementares". (Não per-
camos de vista que os mistérios de Mitra antecederam de seis séculos a instituição dos mistérios cris-
tãos.)
No "Diálogo com Trifon o Judeu" (70,4) Justino escreveu: hóti mèn oún kaì légei, etc ., ou seja: "Ora,
é evidente que também fala o profeta (Isaías, 33:13-19) nessa profecia sobre o pão que nosso Cristo
nos mandou comemorar, para lembrar sua encarnação por amor dos que lhe são fiéis, pelos quais
também sofreu, e sobre a taça, que aparece em recordação de seu sangue, nos mandou render ação de
graças".
Vemos, pois, a interpretação de algo mais profundo que o simples "jantar"; e isso é mais explicita-
mente comentado por
IRINEU, no ano 180 ("De Sacrificio Eucharistiae", 4, 17, 5), onde escreve: Sed et suis discípulis dans
consilium primitias Deo offerre ex suis creaturis, non quasi indigenti sed ut ipsi nec infructuosi nec
ingrati sint, eum qui ex creatura panis est, accepit et gratias egit, dicens: Hoc est meum corpus. Et cáli-
cem simíliter, qui est ex ea creatura, quae est secundum nos suum sánguinem confessus est, et novi
testamenti novam docuit oblationem, quam ecclesia ab apóstolis accípiens, in universo mundo offert
Deo, ei qui alimenta nobis praestat, primitias suorum múnerum in novo testamento, isto é: "Mas, dan-

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SABEDORIA DO EVANGELHO

do também a seus discípulos o conselho de oferecer a Deus as primícias de suas criaturas, não como a
um indigente, mas para que eles mesmos não fossem infrutíferos nem ingratos, tomou da criação
aquele que é o pão, dizendo: Isto é o meu corpo. E igualmente a taça que é daquela criatura que, se-
gundo nós, confessou ser seu sangue, e ensinou a nova oblação do novo testamento; recebendo-a dos
apóstolos, a igreja oferece, no mundo inteiro, a Deus, àquele que nos fornece os alimentos, primícias
de suas dádicas no novo testamento".
Aí, portanto, temos uma interpretação bastante ampla: o alimento ingerido com ação de graças é um
atestado vivo de gratidão a Deus, pelo sustento que Dele recebemos; os quais alimentos, sendo cria-
ções Suas, representam Seu corpo, isto é, são a manifestação externa de Sua essência que subestá em
tudo.
Mas outro autor vai mais longe:
CLEMENTE DE ALEXANDRIA, no ano 200, escreve (Strommateis, 5,10; Patr. Gr. vol. 9, col.
100/101): "Segundo os apóstolos, o leite é a nutrição das crianças, e o alimento sólido é a nutrição
dos perfeitos (teleisthai, "iniciados"). Entendamos que o leite é a catequese, a primeira nutrição da
alma, que a nutrição sólida é a contemplação (epoptía) que vê os mistérios. A carne e o sangue do
Verbo (sárkes autaì kaì haíma toú Lógou) é a compreensão do poder e da essência divina ... Comer e
beber (brôsis gàr kaì posis) o Verbo divino, é ter a gnose da essência divina (hê gnôsis estí tês theías
ousías)".
Clemente de Alexandria compreendia bem os mistérios cristãos porque fora iniciado em Elêusis antes
de ingressar na Igreja. Por isso explica melhor, com os termos típicos da Escola Eleusina.
Dele ainda temos (Pedagogia, 1, 6; Patr. Gr. vol. 8, col. 308): "O Cristo, que nos regenerou, nutre-
nos com Seu próprio leite, que é o Verbo ... A um renascimento espiritual corresponde, para o homem,
uma nutrição espiritual. Estamos unidos, em tudo, ao Cristo o Somos de sua família pelo sangue, por
meio do qual nos libertou. Temos sua amizade pelo alimento derivado do Verbo (dià tên anatrôphên
tên ek toù Lógou) ... O sangue e o leite do Senhor é o símbolo de sua paixão (páthein) e de seu ensi-
no". E mais adiante (Pedag. 2, 2; Patr. Gr. vol. 8 col. 409): "O sangue do Senhor é dúplice: há o san-
gue carnal com o qual nos libertou da corrupção; e há o sangue espiritual (tò dè pneumatikós) do
qual recebemos a cristificação. Beber o sangue de Jesus significa participar da imortalidade do Se-
nhor".
Aí temos o pensamento e a interpretação desse episódio, cujo símbolo já fora dado também no protó-
tipo de Noé, citado pelo próprio Jesus (cfr. vol. 6), quando o patriarca se inebriou com o vinho da
sabedoria. Na ingestão do vinho oferecido em ação de graças, nosso Espírito se inebria na união
crística, participando da "imortalidade do Senhor".
Trata-se, pois, da instituição de um símbolo profundo e altíssimo, que aqueles que dizem REVIVER O
CRISTIANISMO PRIMITIVO não podem omitir em suas reuniões, sob pena de falharem num dos
pontos básicos do ensino prático do Mestre: não é possível "reviver o cristianismo primitivo" sem re-
alizar essa comemoração. Evidentemente não se trata de descambar para os rituais de Mitra, como
ocorreu outrora pela invigilância dos homens que "paganizaram" o cristianismo. Mas é fundamental
que se realize aquilo que o Mestre Jesus ordenou fizéssemos: TODAS AS VEZES que comêssemos pão
ou bebêssemos vinho, devemos fazê-lo em oração de ação de graças, para lembrar-nos Dele e do Eu,
do Cristo Interno que está em nós, que está em todos, que está em todas as coisas visíveis e invisíveis;
do Qual Cristo, o pão simboliza o corpo, e o vinho simboliza o sangue, por serem os alimentos básicos
do homem: o pão plasmando seu corpo, o vinho plasmando seu sangue (1) .
(1) Esdrúxulo deduzir daí que o corpo de Jesus não era de carne. Contra isso já se erguera a voz auto-
rizada de João o evangelista em seu Evangelho (1:14) e em suas epístolas (l.ª João, 4:2 e 2.ª João,
7) e todas as autoridades cristãs desde os primeiros séculos (cfr. Tertuliano, De Pudicicia, 9 e Ad-
versus Marcionem, 4:40, onde escreve: "Tendo (o Cristo) tomado o pão e distribuído a seus discí-
pulos, Ele fez seu corpo (corpus suum illum fecit) dizendo: Isto é o meu corpo, isto é a figura de
meu corpo (hoc est corpus meum dicendo, id est figura córporis mei). Ora, não haveria figura,
se Cristo não tivesse um corpo verdadeiro. Um objeto vazio de realidade, como é um fantasma, não

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C. TORRES PASTORINO

comportaria uma figura. Ou então, se Ele imaginasse fazer passar o pão como sendo seu corpo,
porque não tinha corpo verdadeiro, teria devido entregar o pão para nos salvar: teria sido bom ne-
gócio, para a tese de Marcion, se tivessem crucificado um pão"!

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SABEDORIA DO EVANGELHO

O NOVO MANDAMENTO
João, 13:33-35
33. "Filhinhos, ainda um pouco estou convosco; procurar-me-eis e assim como disse aos
judeus: aonde eu vou, vós não podeis chegar, - também vos digo agora.
34. Novo mandamento vos dou: que ameis uns aos outros; assim como vos amei, que
também vós ameis uns aos outros.
35. Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns aos outros".

O termo teknía, "filhinhos", exprime toda a ternura possível, tendo-se tornado usual em João (cfr. l.ª
João, 2:1, 12, 28; 3:7, 18; 4:4; 5:21). O aviso de ter que seguir "só" fora dado aos judeus (cfr. João,
7:34 e 8:21).
O novo mandamento é o amor mais amplo, irrestrito, incondicional, acima das indiferenças, das ingra-
tidões, das ofensas, das calúnias e até do suplício, do abandono, da morte.
Os primeiros cristãos o viveram, segundo lemos nos Atos dos Apóstolos (4:32): "Na comunidade dos
fiéis, havia um só coração e uma só alma, e ninguém dizia possuir algo, pois tudo entre eles era co-
mum". Idêntico testemunho dá Tertuliano (Apologética, 39, 9; Patrol. Lat. vol. 1, col. 534): Sed ejús-
modi vel máxime dilectionis operatio nobis inurit penes quosdam. Vide, inquiunt, ut ínvicem se díli-
gant (ipsi enim ínvicem óderunt) et ut pro altérutro mor i sint parati (ipsi enim ad occidendum altéru-
trum paratiores erint, ou seja; "Mas a prática desse nosso amor em grau máximo queima a alguns. Vê,
dizem, como se amam mutuamente (mas eles mutuamente se odeiam) e como estão prontos a morrer
um pelo outro (mas eles estão mais preparados a matar uns aos outros)". E, mais adiante: ítaque qui
ánimo animáque miscemur, nihil de rei communicatione dubitamus: omnia indiscreta sunt apud nos,
praeter uxores, isto é: "Por isso, nós que nos unimos pelo espírito e pela alma, não hesitamos em pôr
tudo em comum; todas as coisas são, entre nós, de todos, exceto as esposas".

A interpretação profunda leva-nos ao extremo ilimitado, ao pélago abissal do AMOR TOTAL, sem a
menor restrição, mesmo em relação àqueles que nos são ingratos, prejudiciais, perversos e caluniado-
res.
O amor é a "pedra-de-toque" que dará a conhecer ao mundo os verdadeiros discípulos do Cristo. São
os que não agem, não falam, nem pensam com críticas a quem quer que seja. Não pode haver separa-
tismo entre nações, religiões, partidos, centros, igrejas. Quem condena ou persegue criaturas, cristãs
ou muçulmanas, católicas ou espíritas, protestantes ou materialistas, não é CRISTÃO: "nisto conhece-
rão todos que sois meus discípulos: se tiverdes amor uns aos outros".
Mas o vício humano torceu tudo. Hoje, se duas criaturas se aborrecem, se uma fala mal de outra, se
uma denigre a fama ou faz restrições a outros, todos acham normal e natural. No entanto, se um AMA
outro, está armado o escândalo! Se um médium ataca outro, logo se formam os partidos: "eu sou de
Paulo, eu sou de Apolo" (l.ª Cor. 1:12). Se um sacerdote ataca violentamente e calunia um espírita,
todos os católicos o aplaudem. Mas se qualquer um desses começa a AMAR uma moça, imediatamen-
te, dizem todos: "caiu do pedestal!" Todos compreendem e justificam o ódio, as competições, as críti-
cas, as acusações, até as calúnias. Mas o AMOR, não! Ninguém compreende o AMOR. E no entanto,
"nisto conhecerão todos que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns aos outros".
Trata-se do amor, como o entendeu Paulo. O amor que está acima e que é mais importante e mais vali-
oso, que o dom das línguas humanas e angélicas; acima da mediunidade por mais humilde ou espeta-

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C. TORRES PASTORINO

cular que seja; acima da gnose dos mistérios iniciáticos, acima ainda da ciência oculta, acima da pró-
pria fé mais atuante, que remove montanhas; acima da caridade mais generosa e sacrificial e do pró-
prio marítimo que se deixa queimar em testemunho da fidelidade à crença ...

Figura “AMAI-VOS UNS AOS OUTROS” - Desenho de Bida, gravura de Léopold Fleming
AMAR é ter a alma grande, é ser benigno, é não ser ciumento nem invejoso; quem ama não se gaba,
não se vangloria, não se ensoberbece, não se envaidece, não se comporta com inconveniências, não
busca seus próprios interesses, por mais legítimos que sejam; quem ama não se irrita nem se magoa,
não suspeita mal de ninguém, não se alegra com a dor alheia, mas apenas com a Verdade; suporta
tudo, crê em tudo, preferindo ser enganado a enganar, espera com paciência, sofre tudo calado, per-
doando e amando ... Esse amor jamais terminará, jamais desaparecerá, pois é maior que a fé e que a
esperança! (Cfr. 1.ª Cor. 13:1-8).
No AMOR TOTAL, quando é real, absoluto, inclusivo, em todos os planos, não há exigências, nem
distinções, nem limites, nem preconceitos, nem interesses: dá, sem nada pedir; perdoa, sem nada lem-
brar; sofre sem queixar-se; é pisado sem magoar-se; empresta sem exigir volta; abre a bolsa, os bra-
ços e o coração a todos, incluindo todos num só amplexo carinhoso e generoso e alegre e suave e sor-
ridente - pois esse é o sinal efetivo e real do discipulado do Cristo. E é "por seus frutos que os conhe-
ceremos" (Mat. 7:16).

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SABEDORIA DO EVANGELHO

AVISO A PEDRO

Mat. 26:31-35 Marc. 14:27-31

31. Então disse-lhes Jesus: "Todos vos escan- 27. E disse-lhes Jesus: "Todos vos escandaliza-
dalizareis de mim nesta noite, pois está es- reis, porque está escrito: Ferirei o pastor e
crito: Ferirei o pastor e as ovelhas do reba- as ovelhas serão dispersas;
nho serão dispersas. 28. mas depois de eu despertar , vos precederei
32. mas depois que eu despertar, vos precederei na Galiléia".
na Galiléia". 29. Mas Pedro disse-lhe: Que todos se escanda-
33. Respondendo, porém, Pedro disse-lhe: Se lizem, mas eu não!
todos se escandalizarem de ti, de modo al- 30. E disse-lhe Jesus: "Em verdade digo-te que
gum eu me escandalizarei. tu, hoje, nesta noite, antes de o galo cantar
34. Falou-lhe Jesus: "Em verdade digo-te que duas vezes, três vezes me negarás".
nesta noite, antes que o galo cante, três ve- 31. Mas repetindo, ele dizia: Se eu devesse
zes me negarás". morrer contigo, de modo algum te negaria!
35. Disse-lhe Pedro: Se ainda devesse morrer Do mesmo modo diziam todos.
contigo, de modo algum te negarei. Igual-
mente também disseram todos os discípulos.

Luc. 22:31-34
João, 13:36-38

31. "Simão, Simão, eis que o antagonista vos


reivindica para joeirar (-vos) como o trigo, 36. Disse-lhe Simão Pedro: Senhor, aonde vais?
Respondeu-lhe Jesus: "Aonde vou, não me
32. mas eu orei por ti, para que não fraquejasse podes agora seguir; mas seguirás mais tar-
tua fidelidade; e tu, quando tornares, apoia de".
teus irmãos".
37. Disse-lhe Pedro: Senhor, por que não posso
33. Ele disse-lhe: Senhor, estou preparado a ir seguir-te agora? Sobre ti aplicarei minha
contigo tanto para o cárcere, quanto para a alma!
morte!
38. Respondeu Jesus: "Aplicarás tua alma so-
34. Disse-lhe ele: "Digo-te, Pedro, não cantará bre mim? Em verdade, em verdade te digo:
hoje o galo até que três vezes me tenhas ne- não cantará o galo, até que três vezes me
gado conhecer". tenhas negado".

O verbo skandalízô, de uso apenas bíblico, tem o sentido de "colocar uma pedra para fazer tropeçar",
derivando-se do substantivo skándalon (tò). Mas a transliteração portuguesa "escandalizar" reproduz
razoavelmente o significado original, pois a pedra é colocada "moralmente", para provocar a queda
espiritual dos fracos e desprevenidos.
"Ferirei o pastor" - é citação livre de Zacarias (13:7) que se referia ao rei Sedecias.

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C. TORRES PASTORINO

O testemunho dos quatro evangelistas deve ser lido como complementação mútua, dando a impressão
de que se trata de uma conversa surgida à mesa, que cada um reproduziu à sua maneira: Pedro inicia
perguntando aonde irá o Mestre, e Jesus explica que ninguém poderá segui-Lo nesse momento: só
mais tarde. Mas Pedro, que é homem de “fazer já e não deixar para depois", retruca que "aplicou sua
alma sobre ele", repetindo a expressão de Jesus quando falou do "Bom Pastor", que "aplica sua alma
sobre suas ovelhas (João, 10:11; vol. 59, págs. 118/119). Diz estar disposto a tudo. Jesus adianta que
todos serão experimentados, pois uma vez que ele estiver ferido, todos os discípulos se dispersarão.
Pedro, inflamado, protesta que jamais o abandonará. Jesus novamente esclarece que orou por ele, para
que, mesmo tendo fugido, sua fidelidade sintônica não fraquejasse por degradação de vibrações. Toda-
via, uma vez que se recuperasse, devia sustentar os companheiros. Pedro afirma repetindo teimosa e
entusiasticamente, que está pronto a ser preso e morto com seu Rabbi. Então, para provar-lhe que "o
Espírito (individualidade) está pronto, mas a carne (personagem) é fraca" (Mat. 26:41), Jesus demons-
tra saber que, antes de o galo cantar pela segunda vez (de madrugada) Pedro, por três vezes, terá nega-
do conhecê-Lo.
Pedro quer ir com o Mestre agora. Mas o antagonista (a personagem calculadora) reivindica seu direito
de sacudir o homem violentamente (joeirar) como se faz ao trigo para separar o grão da palha.
As traduções vulgares trazem: "Satanás obteve permissão" (de Deus): é a famosa, embora falsa, con-
cepção de um deus antropomorfo a conversar amigavelmente com o Senhor Diabo! Mas o verbo grego
usado exêitêsato (de exaitéô, na voz média) significa "reclamar para si, reivindicar". E já sabemos que
o antagonista do Espírito (individualidade) é a personagem, com seu intelecto discursivo, convencido
de que nele apenas reside toda a realidade de seu ser, nada mais havendo além do corpo físico com
suas sensações, suas emoções e seu intelectualismo!
Na frase "quando tornares, apoia teus irmãos" (traduzido vulgarmente: quando te arrependeres, con-
firma teus irmãos") apoiou-se o Concílio Vaticano I (Const. De Ecclesia, cap. IV) para fundamentar a
"infalibilidade papal". Estranha base, que quebrou e se reconstituiu, para afirmar-se que "não pode
quebrar!"
Os comentadores falam muito na "temeridade" de Pedro. Mas Jerônimo (Patrol. Lat. vol. 26, col. 198)
o defende: Non est teméritas, nec mendacium, sed fides est Apóstoli Petri et ardens affectum erga Dó-
minum Salvatorem, isto é: "não é temeridade nem mentira, mas a fé e o afeto ardente do apóstolo Pe-
dro para com o Senhor Salvador".
O "canto do galo" (veja atrás) assinalava a terceira vigília que, no princípio de abril, época em que se
passam os fatos, terminava às cinco da madrugada. Não procede a objeção de que era proibido criar
galináceos em Jerusalém, pois diziam os fariseus que, ao ciscar, podiam fazer vir à superfície do solo
vermes "imundos": sempre os havia, embora não fossem criados soltos, conforme podemos verificar
(cfr. Strack e Billerbeck, o. c. , t. 1, pág. 992-993). Além disso, cremos que se trate mais de uma refe-
rência à hora.

Os propósitos podem ser os mais ardorosos, mas a personagem se acovarda diante da dor. Embora
neste caso de Pedro, como teremos a seu tempo, nada disso tenha ocorrido: ele queria apenas ludibri-
ar os circundantes, para que pudesse ali permanecer a fim de ver aonde levariam e o que fariam com
seu Jesus querido.
O "escândalo" a que se referia o Mestre era a crucificação, que faria fugir os discípulos, horrorizados
com medo de terem a mesma sorte. No entanto, o aviso fora bem claro: serei ferido, adormecerei, e
despertarei do sono (egeírô); então vos precederei na Galiléia: ainda chegaria lá antes deles! ...
Então o escândalo seria o medo e a consequente dúvida, suscitadas pelo intelecto (antagonista) que
veria tudo perdido, de acordo com o raciocínio rasteiro comum à personagem: arruinado o corpo -
única coisa real, porque visível e palpável - tudo está acabado! Tempo desperdiçado, aquele em que
seguiram um Mestre que foi vergonhosamente aniquilado! Perdida a batalha com o sacrifício do ge-
neral, os soldados dispersam-se desorientados.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

A personagem, antagonista-nata do Espírito, arroga-se o pretensioso direito de sopesar e julgar, por


meio do intelecto, as ações e decisões do Espírito. Passa-as pelo crivo do racionalismo, para saber se
pode concordar ou discordar. E, atrasado como ainda é, quase sempre conclui a fator do lado errado,
só considerando a matéria física densa. O Espírito está pronto a ser preso, martirizado, sacrificado,
vendo morrer o corpo, pois sabe que a vida continua; mas a personagem não concorda, em hipótese
alguma, em desaparecer, e usa de todos os artifícios para fugir da destruição.
Aonde ia o Mestre, ninguém o podia seguir: a conquista de um grau iniciático é problema estrita-
mente pessoal, isolado, interno, que se passa no âmago mais recôndito da criatura, embora por vezes
se exteriorize em cenas públicas, como no caso da crucificação, "ressurreição" e "ascensão"; ou em
fatos que a todos parecem corriqueiros e naturais, mas que trazem no bojo a força irresistível de fazer
o candidato dar um passo à frente: morte ou abandono de pessoa querida, uma calúnia violenta, um
choque traumático, etc.
Ninguém se achava ali em condições de acompanhar o Mestre nesse passo. Mesmo João, que fisica-
mente o acompanhou, não podia ainda arrostar os degraus, demais elevados para sua capacidade.
O antagonista - a personagem - sempre reivindica e exige, como necessária provação, o direito de
"joeirar" ou sacudir violentamente na peneira o Espírito, a fim de experimentá-lo. Mas os verdadeiros
discípulos estão sustentados pela "Força Cósmica" e não fraquejam na fidelidade absoluta ao Cristo
Interno; e desde que se mantenham fiéis e sintonizem internamente, conservam a capacidade de servir
de apoio aos irmãos, ainda que a personagem esperneie. Não se confundam força e fidelidade do Es-
pírito com os artifícios da personagem, que busca valer-se de todos os meios para conseguir seus in-
tentos, sobretudo quando ditados pelo amor. O fato é que as palavras de Simão Pedro não foram
proferidas pela personagem, mas foram o ditado de sua individualidade enérgica e firme, através da
boca da personagem frágil. Não foram "temeridade", mas "amor" levado ao grau máximo.
Oxalá possamos todos nós manter permanentemente nosso Espírito com a segurança e a firmeza de
princípios de Pedro!

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C. TORRES PASTORINO

ÍNDICE REMISSIVO
Irineu, 88, 134
A
J
A CAMINHO DE JERUSALÉM, 3
A ESMOLA DA VIÚVA, 55 Jacopone da Todi, 93
A FIGUEIRA SECA, 19 Jean Rouffiac, 129
A FIGUEIRA SEM FRUTO, 13 Jerônimo, 13, 87, 88, 93, 94, 130
A MOEDA DE CÉSAR, 34 João Crisóstomo, 13, 87, 88, 130
A PORTA DAS OVELHAS, 86 José Oiticica, Prof., 83
A RESSURREIÇÃO, 39 Judas, 133
Agostinho, 88, 120, 130 JUDAS É INDICADO, 124
Allan Kardec, 23 Justino Mártir, 134
Ambrósio, 88
AS DEZ MOÇAS, 96
Assembléia do Caminho, 59
K
Atanásio, 88 Knabenbauer, 87
AVISO A PEDRO, 139
L
B
Lagrange, 87, 88
Bernardo de Claraval, 93
M
C
Maldonado, 73, 87
Carl Jung, 93
CEGO DE NASCENÇA, 77
Cirilo de Alexandria, 88 N
Clemente de Alexandria, 114, 135 NA CIDADE, 11
CONDENAÇÃO DO CLERO, 51 Nostradamus, 73
NOTA DO AUTOR, 76
D
Dante Alighieri, 93 O
DESTRUIÇÃO DE JERUSALÉM, 9 O GRANDE MANDAMENTO, 44
DESTRUIÇÃO DO TEMPLO, 69 O LAVA-PÉS, 119
DIDAQUÊ, 133 O MAIOR SERVE AO MENOR, 117
Dom Calmet, 87 O NOVO MANDAMENTO, 137
O PODER DE JESUS, 21
E Orígenes, 87
OS DOIS FILHOS, 24
Emmanuel, 9 OS LAVRADORES MAUS, 28
ENSINO NO TEMPLO, 17
P
F
PÁSCOA, 112
FILHO DE DAVID, 47 Paul Brunton, 104
FIM DO CICLO, 100 Paulo de Tarso, 133
Flávio Josefo, 35, 69, 87, 106, 111 Pedro, 133
Francisco Cândido Xavier, 23, 103 Pietro Ubaldi, 41
PLANO DE PRISÃO, 105
G Plínio, 133
Plotino, 93
Gandhi, 57 Prat, 87
Gregório de Nissa, 88 PREPARAÇÃO PARA A PÁSCOA, 111
Gregório de Tours, 115 PROFECIAS, 71
Gregório Magno, 87, 88, 114 PROPOSTA DE JUDAS, 107
Gregorio Nazianzeno, 106 PROSSEGUE A REVELAÇÃO, 63

I R
INCREDULIDADE DOS JUDEUS, 66 REVELAÇÃO AOS GREGOS, 58
INÍCIO DA CEIA, 116 Ricardo de S. Victor, 93

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SABEDORIA DO EVANGELHO
Rudolf Steiner, 113 Teresa d'Ávila, 93
Tertuliano, 133
Tomás de Aquino, 87
S Tostat, 87
Sábado Dinotos, 109 TRANSUBSTANCIAÇÃO, 128
SERVOS BONS E MAUS, 92 TRÊS MARIAS, AS, 114
Sufi Jalálu'd Din Rumi, 93
V
T Victor de Antióquia, 45
Teodoreto, 88

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CARLOS TORRES PASTORINO
Diplomado em Filosofia e Teologia pelo Colégio Internacional S. A. M. Zacarias, em Roma – Professor
Catedrático no Colégio Militar do Rio de Janeiro e Docente no Colégio Pedro II do R. de Janeiro

SABEDORIA DO
EVANGELHO

8.º Volume

Publicação da revista mensal

SABEDORIA

RIO DE JANEIRO, 1971

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C. TORRES PASTORINO

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SABEDORIA DO EVANGELHO

O “EU” PROFUNDO
João, 14:1-14

(Tradução literal) (Sentido real)


1. “Não se turbe vosso coração: crede em Deus 1. “Não se turbe vosso coração: sede fiéis à
e crede em mim. Divindade e ao Eu.
2. Na casa de meu Pai há muitas moradas; 2. Na casa de meu Pai há muitas moradas:
senão, ter-vos-ia dito que vou preparar lu- senão, ter-vos-ia dito que o Eu vai preparar
gar para vós? lugar para vós?
3. E se eu for e preparar lugar para vós, de 3. E se o Eu for e preparar lugar para vós, de
novo volto e vos tornarei junto a mim, para novo volta e vos tomará junto a si, para que
que, onde estou, também vós estejais” onde esteja o Eu estejais vós também.
4. E para onde vou, sabeis o caminho”. 4. E para onde vai o Eu, sabeis o caminho”.
5. Disse-lhe Tomé: Senhor, não sabemos para 5. Disse-lhe Tomé: Senhor, não sabemos para
onde vais; como poderemos saber o cami- onde vais, como poderemos saber o cami-
nho? nho?
6. Disse-lhe Jesus: “Eu sou o caminho da Ver- 6. Disse-lhe Jesus: “0 Eu é o caminho da Ver-
dade e da Vida: ninguém vem ao Pai senão dade e da Vida: ninguém vem ao Pai senão
por mim. pelo Eu.
7. Se me conhecesses, conheceríeis também 7. Se conhecesseis o Eu, conheceríeis também
meu Pai; e agora o conheceis e o vistes”, meu Pai e agora o conheceis e o vistes”.
8. Disse-lhe Filipe: Senhor, mostra-nos o Pai e 8. Disse-lhe Filipe: Senhor, mostra-nos o Pai e
basta-nos. basta-nos.
9. Disse-lhe Jesus: “Há tanto tempo estou con- 9. Disse-lhe Jesus: “Filipe, há tanto tempo o
vosco e não me conheceis, Filipe? Quem me Eu está convosco e não o conheceis? Quem
vê, vê o Pai. Como dizes tu: mostra-nos o vê o Eu, vê o Pai. Como dizes tu: mostra-
Pai? nos o Pai?
10. Não crês que estou no Pai e o Pai (está) em 10. Não crês que o Eu está no Pai e o Pai no
mim? As palavras que vos falo, não falo por Eu? As palavras que vos falo, não falo por
mim mesmo: o Pai que habita em mim faz mim mesmo: o Pai que habita no Eu faz as
as obras dele. obras dele.
11. Crede-me que eu (estou) no Pai e o Pai em 11. Crede-me que o Eu (está) no Pai e o Pai no
mim; se não, crede nas próprias obras. Eu; senão, crede nas próprias obras.
12. Em verdade, em verdade vos digo: o fiel a 12. Em verdade, em verdade vos digo: o fiel ao
mim, fará as obras que eu faço e fará maio- Eu fará as obras que faço, e fará maiores
res que elas, porque vou para o Pai, que elas, porque o Eu vai para o Pai,
13. e tudo o que pedirdes em meu nome, isso 13. e tudo o que pedirdes em nome do Eu, isso o
farei, para que o Pai se transubstancie no Eu fará, para que o Pai se transubstancie no
Filho. Filho.
14. Se me pedirdes algo em meu nome, eu fa- 14. Se pedirdes algo em nome do Eu, o Eu
rei”. fará”.

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C. TORRES PASTORINO

Inicialmente, alguns esclarecimentos a respeito do texto literal, para posterior comentário exegético e
simbólico em que se procurará alcançar o sentido real das palavras do Cristo.
Parece que, de fato, os discípulos se achavam perturbados com os acontecimentos que se precipitavam
naqueles dias tumultuados e cheios de acontecimentos imprevisíveis para eles. Daí a recomendação
inicial. O segundo membro do versículo é traduzido pelo indicativo ou pelo imperativo, já que pisteú-
ete é forma comum a ambos os modos. Optam pelo indicativo: Agostinho, a Vulgata, Beda, Maldona-
do, Knabenbauer, Tillmann, Lagrange, Durand. Preferem o imperativo: Cirilo de Alexandria, João
Crisóstomo, Teofilacto, Hilário, Joüon, Bernard, Huby; e o imperativo coaduna-se muito mais ao con-
texto.
A frase: “se não, ter-vos-ia dito que vou preparar lugar para vós”?, deixamo-la como interrogativa,
conforme se acha na margem da tradução da Escola Bíblica de Jerusalém (1958), na Revised Standard
Version (1946), na New English Bible (na margem, 1961), em Die Heilige Schrift (Zurich, 1942), em
The Greek New Testament de Kurt Aland (1968), em Le Nouveau Testament, de Segond (1962) e na
tradução de Lutero (revidierter Text, 1946) - lendo todos hóti como recitativo (Bauer e Bernard). Re-
almente, é muito melhor contexto, do que a leitura afirmativa que se acha em Wescott e Hort, The
New Testament in the Original Greek (1881), em Bover, Novi Testamenti Biblia Graeca et Latina
(1959), em Nestle-Aland, Novum Testamentum Graece (1963), em He Kaine Diathêke, da Sociedade
Bíblica Britânica e Estrangeira (1958), na Revised Version of New Testament (1881), na American
Standard Version (1901), em The New English Bible (1961), na Translation for Translators (1966).
No Evangelho, anteriormente, não há a frase literal citada aqui, mas em João, 12:26 há um aceno:
“onde eu estou, aí estará meu servidor..” Agostinho (Patrol. Lat. vol. 35, col. 1814) abandona a inter-
pretação de “casa de meu Pai” como lugar geográfico, afirmando que “Cristo prepara as moradas de
Seus discípulos, ao preparar moradores para esses lugares”.
O Pai que “habita” ou permanece (mánôn) em mim (en emoi) faz as obras dele (poieí tà érga autoú)
conforme também se acha em João, 5:19; 7:16; 8:28; 10:38 e 12:49.

Para o idioma grego, não teria sido difícil escrever claramente, tal como o fazemos em português, os
pronomes pessoais, embora conservando-lhes as características casuais, como independentes: seria
possível empregar diante deles os artigos, para esclarecer o sentido. Exemplifiquemos com a frase:
Egô eimi he hódos kai he alêtheia kai he zôê: oudeís érchetai pròs tòn patéra ei mê di'e-
mou,
que poderia, a rigor, talvez, escrever-se:
TO EGÔ ESTIN he hódos kai he alêtheia kai he zôe: oudeís érchetai pròs tòn patéra ei mê
dià TOU EMOU.
No entanto, jamais encontramos essas construções em qualquer autor, donde concluímos que, ou os
gregos não na aceitavam absolutamente, ou não interessava ao evangelista falar abertamente. Tercei-
ro argumento: quem falou, não foi Jesus, o ser humano, mas o CRISTO manifestado através dele (dià
autoú).
Temos, por conseguinte, que interpretar corretamente as palavras do Cristo, de acordo com o conhe-
cimento que a humanidade já adquiriu, e de acordo com a assertiva do Cristo mais adiante (João,
16:12-13): “Ainda muitas coisas tenho que vos dizer, mas não podeis compreender agora. Mas todas
as vezes que vier aquele, o Espírito Verdadeiro (o “Cristo Interno” ou o Eu Profundo ), ele vos con-
duzirá a toda Verdade”.
Não interessava a manifestação plena do conhecimento do EU, para a massa popular e para os pro-
fanos, mesmo altamente situados na sociedade, mormente durante o longo período de obscurantismo e
despotismo vigente na kaliyuga: aproveitar-se-iam os chefes embrutecidos da confusão do Eu profun-
do (Individualidade) com o eu menor (personagem) para atribuir àquele as ambições deste, a fim de
oprimir mais ainda os pequenos e fracos. Importava que eles temessem o Deus Transcendente, que

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SABEDORIA DO EVANGELHO

podia castigá-los nesta e na “outra vida”. Indispensável, pois, que tudo permanecesse na bruma,
oculto aos profanos, pois os verdadeiros evoluídos perceberiam tudo por si mesmos, mediante sua
ligação com o plano superior. E isso ocorreu, sem dúvida, com indiscutível frequência, em todos os
climas, produzindo alguns dos denominados “santos” e todos os “místicos”. E ainda hoje verificamos
que criaturas, sem elevação, confundindo os dois planos conscienciais, julgam tratar-se do Eu pro-
fundo, quando estão apenas lidando com o eu menor cheio de falhas. E o pior é que carreiam após si
numerosos discípulos, aceitando o título de “mestres”, etc.
Obedecendo às' orientações recebidas, damos, neste capítulo, ao lado da tradução literal do texto
grego, o “sentido real do ensino, de acordo com o nível atual do desenvolvimento espiritual da huma-
nidade. Talvez agora ainda muitos estranhem essa nova interpretação, mas muitos haverá que se re-
gozijarão com ela, pois sentem e sabem essas coisas, apenas ainda não nas haviam lido nos Evange-
lhos. E com o decorrer o tempo, ao chegarem à Terra as novas gerações que se preparam para des-
lanchar o impacto da renovação das criaturas no terceiro milênio, tudo se tornará tranquilamente
compreensível. E o avanço que, por esse meio, poderão dar os espíritos será incalculável, pois terão
em suas mãos as chaves que lhes abrirão as portas até agora reclusas; só no Oriente fora revelado
claramente esse ensino, mas ninguém se arriscou a ler o sentido real dos Evangelhos, dando de públi-
co essa interpretação legítima. Atrevemo-nos a fazê-lo (embora reconheçamos que ainda não atingi-
mos o ponto mais elevado, pois outros sentidos há, mais profundos ainda, que não estão a nosso al-
cance) para quebrar todos os tabus da “letra que mata”, e abrir passagem aos mais capazes, descen-
dendo o caminho a trilhar: as vias do Espírito.
*
* *
“Não se turbe vosso coração: sede fiéis à Divindade e fiéis ao Eu”. O coração, como vimos (col. 59,
pág. 114), é o local onde reside o átomo monádico, ligação direta com o Eu Profundo e com o Cristo
Interno. Se aí penetrar a perturbação, todo o ser se descontrola. Importa menos a perturbação do
intelecto, pois só a personagem seria envolvida. Mas quando o descontrole - pela dúvida - atinge o
coração, tudo desmorona, porque se altera a ligação profunda.
Para que não advenha perturbação ao coração, é indispensável manter firme e inalterada a união ou
fidelidade à Divindade e ao Eu profundo, que é o Espírito que com a Divindade sintoniza: essa a úni-
ca maneira de evitar-se qualquer perturbação espiritual. Se ocorrer perturbação, e consequente desli-
gamento sintônico do Eu, e portanto da Divindade, o descontrole do Espírito se comunicará irremedi-
avelmente à personagem, que entrará em colapso espiritual, animalizando-se nas mais perigosas
emoções. É quando a criatura manifesta sinais evidentes de alteração do caráter, revelando desinte-
resse e indiferença pelas coisas mais sérias, susceptibilidade, negativismo, impulsividade, oposição e
hostilidade a tudo o que é espiritual, irritabilidade e agressividade, além de reações coléricas contra
os melhores amigos, obstinação, desconfiança e reações de frustração, com hiperemotividade nos
círculos sociais que frequenta e nos empregos, egocentrismo e egoísmo, que coloca seu eu pequeno
como a coisa mais importante a ser atendida, além ainda de instabilidade psicomotora e afetiva, ora
amando ora odiando as mesmas pessoas, o que leva a embotamento do psiquismo, diminuindo sua
sensibilidade às intuições e inspirações e advindo daí todos os desajustamentos imagináveis, que tor-
nam a criatura insociável.
Portanto, todo o segredo da PAZ que defende o Espírito contra qualquer ataque, é a absoluta fideli-
dade sintônica com o Eu e com a Divindade, de tal forma que NADA consiga abalar sua segurança e
sua confiança granítica no Cristo Interno que o dirige e cujas vibrações ele permanentemente PER-
CEBE em si mesmo, no âmago mais profundo do ser. Podem vir ataques pessoais contra ele, do plano
astral ou do material; podem seus amigos mais íntimos traí-lo ou menosprezá-lo ou agir contra ele;
podem seus amores abandoná-lo; pode sua situação financeira cair em descalabro; pode tudo ruir a
seu lado e avalanches de perseguições envolvê-lo, e a doença martirizar-lhe o corpo - continuará IM-
PASSÍVEL em sua paz interior, porque NADA O ATINGE: seu Eu está mergulhado no Cristo, como
um peixe nas. profundezas do oceano, onde não chegam as tempestades e borrascas que agitam a su-

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perfície em vagas gigantescas: ele possui em si a PAZ que o Cristo dá: “MINHA PAZ vos dou, MI-
NHA PAZ vos deixo”.
“Na Casa de meu Pai há muitas moradas. Alguns interpretam materialmente: há muitos planetas ha-
bitados. Outros acham que são os diversos planos ou graus conseguidos no “céu”. Supõe certo grupo
que se trata de locais espirituais, que servem de habitação aos espíritos desencarnados. Ainda pode
interpretar-se como referência aos numerosos planos evolutivos das criaturas ainda presas à carne. E
também pode, a “Casa do Pai”, neste trecho, referir-se a Shamballa, onde permanece o Pai (Melqui-
sedec) com o Grupo de Servidores da Humanidade, a Fraternidade Branca. O Mestre Jesus, Chefe do
Sexto Raio (“Devoção”) já saíra da “Casa do Pai” e agora regressava para assumir seu posto; e lá
prepararia os lugares destinados a seus discípulos mais avançados. Mais tarde, voltaria a eles e,
quando largassem seus corpos físicos, os tomaria consigo para fazerem parte do corpo de Seus. emis-
sários junto às criaturas como membros de Seu Ahsram. Assim permaneceriam nos milênios seguintes
sempre junto a Ele, só retomando ao corpo físico quando fosse indispensável para alguma missão
vital, como ocorreu, por exemplo, com João o Evangelista, que mergulhou na carne como Francisco
de Assis.
Mas, para o momento atual da humanidade que quer evoluir realmente, a mais clara compreensão do
trecho é a que damos na tradução para o “sentido REAL”. Trata-se do CRISTO que fala, e não do
Mestre Jesus; daí ser óbvia a interpretação segundo os diversos níveis evolutivos em que a “Casa do
Pai”, o Templo de Deus, que é o ser humano, pode encontrar-se “morando”; e devemos salientar que,
nesta longa conversa com Seus discípulos, a expressão “morar” ou “permanecer” é repetida ONZE
vezes.
O Eu profundo, que inspira a personagem por Ele plasmada de um lado, enquanto do outro lado per-
manece unido ao Pai, precisa recolher-se em certas situações junto ao CRISTO, a fim de fortalecer-se,
para depois novamente fixar-se na personagem, fazendo-a unir-se à Individualidade, para a seguir
atraí-la a Si: “para que, onde esteja o Eu, estejais vós também”.
Repitamos o processo: a personagem transitória, que pertence ao mundo mentiroso da ilusão, precisa
transferir sua consciência para o nível superior da Individualidade, para então poder unificar-se com
o Eu profundo. Só depois disso poderá unificar-se com o CRISTO interno, e através deste, que é
“Caminho”, se unificará ao Pai, que é a Verdade e a Vida. O “Espírito verdadeiro” (CRISTO) absor-
verá, dominando-o e vencendo-o, o “espírito mentiroso” da personagem terrena.
Quando isso ocorrer, teremos a unificação completa da Individualidade que peregrina evolutivamente
através das muitas personagens transitórias, com o Eu profundo; e “naquele dia, conhecereis que o
Eu está no Pai, e vós no Eu, e o Eu em vós” (João, 14:20). E daí a conclusão: “E para onde vai o Eu,
sabeis o caminho”, isto é, o processo a seguir.
Já muitas explicações haviam sido dadas; no entanto, muitos dos discípulos ainda confundiam o Eu
maior com o eu menor; confundiam o Cristo com Jesus.
Isso ocorreu com Tomé (como o comprovará sua dúvida a respeito da “ressurreição”), que ingenua-
mente indaga, referindo-se à personagem de Jesus: “Senhor, não sabemos para onde vais; como po-
deremos saber o caminho”?
A evidência de que não se tratava de caminho físico-geográfico é a resposta de Jesus: “O EU é o Ca-
minho da Verdade e da Vida: ninguém vem ao Pai senão pelo Eu”!
Aqui temos que alongar-nos para que fique bem clara e comprovada nossa tradução.
O texto diz, literalmente: “Eu sou o caminho e a verdade e a vida”. A repetição do “e” (kai) no se-
gundo e terceiro elementos, dá-nos a chave para compreender que se trata de uma hendíades (cfr. col.
1 e vol. 5) A tradução, para dar idéia do sentido real, deve respeitar a hendíades, para que não fique
“ilógica”: a Verdade e a Vida, são a meta, que não pode confundir-se com o “caminho” que a elas
leva. Jamais diríamos: “este é o caminho E a cidade”, mas sim “este é o caminho DA cidade”; “ca-
minho”, em si, nunca poderá constituir um objetivo: é o MEIO para chegar-se ao objetivo, à meta.

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Ora, sendo o CRISTO cósmico, (individuado em Jesus, mas NÃO a criatura humana de Jesus) que
falava, podia o CRISTO dizer: “EU sou o caminho que leva à Verdade (ao Pai) e à Vida (ao Espírito,
o Santo)”.
Sendo o EU de cada um de nós (o EU profundo) a individuação do CRISTO, a tradução mais perfeita,
para evitar qualquer dúvida, é a do sentido real: “O EU é o caminho da Verdade e da Vida”. Em
qualquer ser, “que já tenha Espírito” (cfr. João, 7:39, col. 6.º pág. 172), o EU ou Cristo interno é,
sem a menor dúvida, o caminho, o meio, pelo qual se alcança o objetivo da evolução: a Verdade e a
Vida.
E a comprovação plena de que nossa interpretação é fiel e verdadeira, está na segunda parte da frase:
“ninguém vem ao Pai senão por mim”, ou melhor, “senão pelo EU”. Ninguém “vem”, pois estando o
Eu, o Cristo e o Pai unificados, o verbo só pode ser “vir”, e não “ir”, que daria idéia de um local
diferente daqueles em que eles estariam.
Se o Pai é a Verdade, e o Espírito é a Vida, e se o Cristo é o “Caminho”, a frase está perfeita: Nin-
guém chega ao Pai, senão através do caminho (Cristo). Então, não é, certamente: “Caminho E Ver-
dade E Vida”, mas sim: “Caminho DA Verdade e DA Vida”.
Sendo o Cristo UM com o Pai, objetam que, indiscutivelmente também Ele é Verdade e é Vida. Certo.
Mas na expressão específica dada neste versículo, o Cristo respeita o que havia dito: “O Pai é maior
que eu” ou “que o EU” (João, 14:28, col. 6.º pág. 163), e O coloca como objetivo, pondo-se na con-
dição de caminho que a Ele leva. Acresce, ainda, que, referindo-se ao EU em todas as criaturas, quis
salientar que o EU de todos é o intermediário, através' do qual se chega ao Pai (Verdade) e ao Espí-
rito ou Divindade (Vida). Tanto que prossegue: “Se conhecêsseis o EU, conheceríeis também o Pai: e
agora O conheceis (no presente do indicativo) e o vistes” (no pretérito perfeito).
“Agora o conheceis”, pois com Sua força cristônica fê-los experimentar a união, quase que por osmo-
se de Sua presença, naquele átimo revelador. Por isso, já falou no passado: “e o vistes”: fora um
instante atemporal.
Mas Filipe não se satisfez. Queria talvez ver com seus olhos físicos ou astrais, um “ser” com forma:
“mostra-nos o Pai”. É o verbo deíknymi (cfr. vol. 49 pág. 92), que exprime o ato de revelar, por uma
figura física, uma verdade iniciática. Ora, jamais isso seria possível. Daí a resposta taxativa do Cris-
to, procurando fazer compreender a Filipe que o EU lá estava ligado a eles, pois já haviam atingido,
evolutivamente, o nível em que o EU se individualiza. E lá estavam ligados a Ele. Será que depois de
tanto tempo, ainda O não conheciam? Será que ainda viviam presos à ilusão transitória da persona-
gem encarnada? Será que ainda acreditavam ser seu próprio corpo físico, vivificado pelos outros veí-
culos inferiores? Não haviam percebido a existência desse EU superior, que lhes constituía a Indivi-
dualidade, que criara e animava a personagem? Ora, quem descobre e quem vê o EU, automatica-
mente está vendo o Pai; porque o EU e o Pai são da mesma essência: o SOM, vibração criadora e o
SOM vibração criada, SÃO O MESMO SOM, a MESMA vibração, a MESMA substância que subestá
ao arcabouço da criatura.
Entretanto, toda essa “região” vibratória elevadíssima só é percebida pela consciência da Individua-
lidade, jamais chegando até a personagem: “A carne e o sangue não podem herdar o Reino de Deus”
(1.ª Cor. 15:50). No máximo, o intelecto poderá tomar conhecimento a posteriori; mas nem sempre
isso ocorre: quando o intelecto está demasiadamente absorvido nas lutas do ideal ou dos afazeres do
serviço, a Individualidade tem seus encontros místicos e nada lhe deixa transparecer. A consciência
“atual” nem sempre percebe o que ocorre na consciência espiritual superior.
Daí muitas ilusões que ocorrem:
A) personagens que colocam sua Imaginação a funcionar e “sentem”, no plano emocional, vibrações
deleitosas, e com o olho de Shiva do corpo astral percebem luzes, acreditam estar em contato com
o EU profundo e anunciam, jubilosos, esse equívoco, como se fora realidade;

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B) personagens que nada “sentem” e vivem no trabalho árduo de servir por amor, julgam não ter
tido ou não estar em contato. No entanto, vivem contatados e dirigidos diretamente pelo Eu pro-
fundo, que os inspira e orienta totalmente.
Entre esses dois extremos, há muitos pontos intermediários, muitos matizes variáveis. Mas o fato é que
todo aqueles que, consciente ou inconscientemente na consciência “atual”, teve contato REAL, jamais
o diz, da mesma forma que o Homem jamais revela a estranhos os contatos sexuais que tenha mantido
com sua amada. Quanto a saber-se quem está ou não ligado, não é difícil para aqueles que se acham
no mesmo grau: SABEM nem é preciso que ninguém lhes diga.
Mas o Cristo prossegue em Sua lição sublime a Filipe: “não sabes que o Eu está no Pai, e o Pai está
no EU”? Realmente, lá fora antes ensinado que “seus anjos estão diante da Face do Pai” (Mat.
18:10; col. 6.º, pág. 52). E então é dada a prova imediata: “as palavras que vos falo, não as falo por
mim mesmo: o Pai, que habita no Eu, faz as obras. dele” (do próprio Pai, através do Eu, que é o in-
termediário).
Vem a seguir o apelo: “crede que o Eu está no Pai e o Pai no Eu, pois as próprias obras (érga) o de-
monstram”. Ora, as obras do Cristo, através de Jesus, eram irrefutáveis e manifestas: domínio dos
elementos da natureza, das enfermidades, da matéria, das almas e dos corações. Inegável que, “pelos
frutos se conhece a árvore” (Luc. 6:44).
E como prova de que a todas as criaturas se dirige o ensino e de que o CRISTO está em todas as
criaturas, vem a garantia, precedida da fórmula solene (cfr. vol. 5.º, pág. 111): “Em verdade, em ver-
dade vos digo, que aquele que for fiel ao EU (que estiver a Ele unificado), esse fará as obras que faço,
e ainda maiores, porque o EU vai para o Pai (liga-se ao Pai) e tudo o que pedirdes em nome do EU
(por causa do EU, cfr. vol. 4.º pág. 136) o Eu fará, para que o Pai se transubstancie no Filho”. E re-
pete: “Se pedirdes algo em nome do Eu, o Eu fará”.
Aí temos uma lição prática de grande alcance. Muitos queixam-se de que pedem e nada conseguem;
mas pedem com a personagem desligada e em nome da personagem Jesus. Não é esse o “caminho”: o
caminho é o EU Profundo, o CRISTO interno. E para obter-se, com segurança, mister que estejamos
unificados com esse EU. Sem isso, o caso é aleatório, poderá conseguir-se ou não. Mas uma vez unifi-
cados, sempre obteremos; o que não significa, porém, que o fato de obtermos; seja indício de que já
estamos ligados ao EU.
Essa obtenção é imediata e fatal porque, estando unificados com o EU, e estando o EU unificado ao
Pai, o EU volta-se (vai) ao Pai que é o Verbo Criador, e então pode “criar” tudo sem dificuldade.
E a razão de assim ser, é que o atendimento se faz “porque o Pai se transubstancia no Filho”. E esse
é o objetivo final. Não que o Pai “glorifique” o Filho, mas que o Filho seja absorvido pelo Pai, que
lhe comunica a plenitude (plerôma) de Sua substância. Torna-se, então, a criatura um Adepto, Hiero-
fante ou Rei, com domínio absoluto e soberania irrestrita. Isso ocorreu com Jesus e com outros subli-
mes Avatares que se transformaram em Luz (Buddhas) e assistem junto ao trono do Ancião dos Dias,
na “Casa do Pai”.
Para lá caminhamos todos: oxalá cheguemos rapidamente!

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O “ADVOGADO”
João, 14:15-24
15. “Se me amardes, executareis meus mandamentos,
16. e eu rogarei ao Pai e vos dará outro advogado, para que convosco esteja no eon,
17. O Espírito verdadeiro, que o mundo não pode receber, porque não o vê nem o conhe-
ce; vós o conheceis, porque habita convosco e está em vós.
18. Não vos deixarei órfãos: volto a vós.
19. Ainda um pouco e o mundo já não me vê, mas vós vedes, porque eu vivo e vós vive-
reis.
20. Naquele dia, vós conhecereis que eu (estou) em meu Pai e vós em mim, e eu em vós.
21. Quem tem meus mandamentos e os executa, é quem me ama; e aquele que me ama
será amado por meu Pai e eu o amarei e me manifestarei a ele”.
22. Disse-lhe Judas, não o Iscariotes: Senhor, que acontece, que deverás manifestar-se a
nós, e não ao mundo?
23. Respondeu Jesus e disse-lhe: “Se alguém me ama, realiza meu Logos e o Pai o amará
e a ele viremos e nele faremos moradia.
24. Quem não me ama, não realiza meu Logos; e o Logos que ouvis, não é o meu, mas do
Pai que me enviou”.

Comecemos, ainda aqui, pelo exame de algumas palavras.


O termo paráklêtos é vulgarmente transliterado “paráclito” ou ainda “paracleto”; ou é traduzido como
“Consolador”, “Advogado” ou “Defensor”. Examinando-o, vemos que é formado de pará (ao lado de,
junto de) e de klêtos do verbo kaléô (chamar). Então, paráklêtos é aquele que é “chamado para junto
de alguém”: o “Evocado”. A melhor tradução literal é ADVOGADO, que deriva do latim advocatus
(formado de vocatus, “chamado” e ad, “para junto de alguém”). Apesar de o sentido atual dessa pala-
vra ter mudado de tal forma que não caberia aqui, não encontramos termo melhor.
O sentido de paráklêtos é mais passivo que ativo: não exprime aquele que toma a iniciativa de defen-
der-nos, mas sim aquele que nós chamamos ou evocamos ou invocamos para permanecer junto de nós.
Esse advogado é dito, logo a seguir, “o Espírito verdadeiro” (tò pneuma tês alêtheias). Ainda aqui
afastamo-nos da tradição, que apresenta a tradução literal: “o Espírito da Verdade”. O raciocínio aler-
ta-nos para o sentido racional e lógico: que pode exprimir a junção dessas duas palavras? Colacionan-
do essa frase com a outra de João (1.ª João, 2:16), onde se fala do “espírito da mentira”, verificamos
que, em ambos os passos, há evidentemente uma figura de hendíades (cfr. vol. 19, pág. XII).
Trata-se realmente de “Espírito verdadeiro” e de “espírito mentiroso” ou “enganador”. Mais adiante
(vers. 26) o Espírito verdadeiro, ou evocado, é dito “o Espírito, o Santo”, expressão que levou os teó-
logos a confundi-lo com a terceira “pessoa” da santíssima Trindade.
Observemos a oposição nítida do ensino: o Espírito verdadeiro, isto é o Espírito real e genuíno, é o que
não teve princípio nem terá fim, o Espírito eterno, individuação da Centelha divina; enquanto o espí-
rito mentiroso ou enganador é aquele que ilude as criaturas, que o julgam eterno e real, quando é ape-
nas transitório e perecível: aprendemos a oposição entre o Eu profundo e o eu menor; entre a Individu-
alidade e a personagem; entre o Cristo e a criatura; entre o Espírito VERDADEIRO E REAL e o espí-

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rito ENGANADOR E TRANSITÓRIO que, nesta obra, sistematicamente distinguimos, escrevendo o


primeiro com maiúscula (Espírito) e o segundo com minúscula (espírito).
O termo “mundo” (kósmos) é empregado como em outros passos de João (1:10; 7:7; 12:31; 15:18,19;
16:8, 11, 33; 17:11ss; 1.º João, 2:15, 16, 17; 3:1, 13; 4:5; 5:4, 5, 19).
A expressão “não vos deixarei órfãos” deve colocar-se ao lado da que os discípulos são carinhosa-
mente chamados “filhinhos” (João, 13:33).
Ao falar de Judas, João tem o cuidado de esclarecer “não o Iscariotes”. Nas listas de Mateus (13:55) e
de Marcos (13:8) parece tratar-se do Emissário aí denominado “Tadeu”. Lucas di-lo irmão de Tiago o
menor, primeiro inspetor de Jerusalém e irmão de Jesus.

“Se amardes o Cristo (se me amardes) executareis meus mandamentos, e eu rogarei ao Pai e vos dará
outro advogado, para que convosco esteja no eon, o Espírito verdadeiro”. O verbo “amar”, aqui, é
agapáô, que exprime o amor de predileção, de união profunda (cfr. vol. 2). Esse amor, que revela e
exige sintonia perfeita entre o amado e o amante, faz que este, espontânea e alegremente se coloque
em posição de realizar todos os desejos do amado, observando intuições e inspirações que lhe che-
gam, sem deixar-se levar pelas distrações e injunções externas. Qualquer desejo do Cristo interno,
através do Eu profundo, será uma ordem, um “mandamento” para a personagem transitória.
Neste caso, ao verificar que a personagem por ele criada para a evolução do Espírito é obediente e
fiel, correspondendo integralmente à sua expectativa, realizando e vivendo suas orientações, o Eu
profundo, através do Cristo interno, rogará ao Pai para que permita a descida definitiva e perma-
nente, durante todo o eon, da Força Cristônica, ou seja, evocará a ligação do Cristo, verdadeiro Espí-
rito, para que fique ligado e “morando” na personagem, como prêmio à sua fidelidade sintônica per-
feita. Então o Espírito real do Homem, o Espírito já santo, porque santificado, não o abandonará du-
rante o ciclo evolutivo, jamais correndo ele perigo de haver o abandono da personagem por parte da
Individualidade (cfr. vol 4 e vol. 7).
Esse Espírito verdadeiro “não pode o mundo receber, porque não o vê nem o conhece mas vós o co-
nheceis, porque habita em vós e está em vós”; o mundo, que representa aqui aqueles que ainda estão
voltados para as coisas exteriores, jamais têm condição de ver e conhecer aquilo que se passa dentro
deles mesmos: seu olhar estende-se para horizontes longínquos - prazeres, cobiça de agregar a si ri-
quezas perecíveis julgadas eternas, erudição, fama, e glória das personagens e para as personagens -
e não têm condições de humildemente enclausurar-se em si mesmo, renunciando e esquecendo tudo o
que vem de fora. Aqueles, todavia, que negarem e esquecerem sua personagem transitória e mergu-
lharem no abismo sem fundo de seu Eu, esses conhecem seu “Morador Divino”, com ele mantém as
mais íntimas relações de afeto, confabulam, pedem orientações, e prestam conta de seus atos e pen-
samentos; em Sua mão entregam todos os problemas que surgem, e a qualquer momento sabem que
podem encontrá-lo, porque “neles habita e está neles”, mais valioso que o universo inteiro com suas
riquezas e belezas mais importante que todos os seres humanos com suas glórias e sua fama.
Neste ponto, o Cristo manifestado em Jesus fala diretamente para confortar o coração dos discípulos:
“eu não vos deixarei órfãos, volto a vós”; embora não mais no corpo físico de Jesus, mas no âmago
de cada um. No corpo de Jesus, o mundo não mais o verá dentro de pouco tempo, porque esse corpo
será levado alhures. “Mas vós vedes, porque eu, o Cristo, vivo, e vós vivereis em mim e por mim”,
pois “quem vive e sintoniza comigo, jamais conhecerá a morte” (João, 11:26).
E então, nesse dia em que conseguirmos VIVER no Cristo, “conhecereis (tereis a gnose plena) de que
EU (o Cristo) estou no Pai, e vós em mim e eu em vós”. Nada pode ser mais claramente declarado, do
que a revelação dessa verdade: o Cristo interno está em nós, e nós estamos no Cristo interno. Por que
não O percebemos? Por falta, ainda, de sintonia. No momento em que elevarmos nossa sintonia até a
do Cristo, pela negação e renúncia total, absoluta e definitiva a tudo o que é externo, inclusive a nos-
so eu, pequeno e vaidoso, e a nosso intelecto cheio de convencimento e orgulho, nesse momento pode-
remos sintonizar com o Cristo interno, através de nosso Eu profundo, de modo total: é o Cristo que

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viverá em nós (cfr. Gál. 2:20). É o que faz Salomão exclamar em êxtase: “vosso Espírito incorruptível
está em todos” (Sab. 12:1).
Repete-se aqui a fórmula: “Quem têm meus mandamentos e os executa”, isto é, quem os conhece e
reconhece e os vive intensa e permanentemente, “é quem me ama”; em grego, literalmente: “é meu
amador ou amante” (ho agapôn me). E quem me ama, será amado por meu Pai e eu o amarei e a ele
eu mesmo me manifestarei (esphanísô autôi emautón)”.
Essa é uma das frases mais fortes, uma das promessas mais confortadoras do Cristo. Não se dirige
apenas aos Emissários ali presentes, nem a Seus discípulos imediatos, durante Sua peregrinação ter-
rena na Palestina, mas sim A TODOS OS QUE AMAM O CRISTO.
Muitos queixam-se da dificuldade de conseguir a união com o Eu profundo e posteriormente a unifica-
ção com o Cristo. Mas a condição de obter-se isso, é uma só: AMÁ-LO e seguir-lhe as ordens, obede-
cer-lhe às intuições, viver-lhe os ensinos, renunciando a tudo, com desapego total (não abandono!),
absoluto, permanente de objetos, de pessoas, de seu próprio eu pequeno, de seu próprio intelecto, de
sua própria cultura, de todos os seus conhecimentos humanos.
De que vale a própria “sabedoria” humana da personagem? “A Sabedoria da carne (da personagem)
é adversária de Deus” (Rom. 8:7); e mais: “Se alguém, entre vós, se julga sábio neste mundo, torne-
se louco para tornar-se sábio, pois a sabedoria deste mundo é loucura perante Deus” (1.ª Cor. 3:18-
19).
Quem assim ama o Cristo, entra plenamente na sintonia crística (reino dos céus) e, logicamente, na
sintonia do Pai, na frequência do SOM cósmico, cuja tônica, em cada planeta, é dada pela tônica de
seu Governador, o Pai plasmador e sustentador de tudo.
Estabelecida a sintonia no receptor, a onda da Estação transmissora entra perfeitamente, sem distor-
ções: é a união do amor mais perfeito, a onda hertziana em vibrações de beleza, de bem, de verdade,
que entra e replena o circuito do receptor bem sintonizado em alta fidelidade, numa unificação total,
no amor mais puro e absorvente.
E se o aparelho é aquilo que denominamos de “televisor”, além do som, entra a imagem: “eu mesmo
me manifestarei a ele”. O verbo emphaínô significa exatamente “manifestar-se visivelmente” ou “fa-
zer-se ver”, isto é “mostrar-se”; daí ter sido dito: “felizes os limpos (desapegados) de coração, por-
que verão a Deus (Mat. 5:8; vol. 2.º, pág. 128).
Visão contemplativa, não de uma forma física, mas sem forma, pois estamos no plano mental (arupa)
onde só se percebe o caminho (Cristo), o Som que é a Verdade (Pai) e a Luz que é a Vida (Espírito, a
Divindade).
Jamais esperem os iniciantes ver com olhos físicos; nem mesmo os médiuns que se ambientaram no
astral, esperem ver com o olho de Shica a forma humana do Cristo ou do Pai: é mais alto, mais eleva-
do, mais sublime. Trata-se da absorção, pela mente, das ondas espirituais que emanam do Pai como
SOM e do Espírito Santo como LUZ e envolvem e impregnam o Espírito do Adepto, e se transubstan-
ciam nele, numa fusão daí por diante indissolúvel e irreversível: mais uma vez o Cristo se transubs-
tancia na criatura, e mais uma vez teremos um Avatar, um Hierofante cristificado, um Buddha.
Judas não contém sua curiosidade: por que seria que essa manifestação, prometida aos discípulos que
O amassem, não seria feita ao mundo? Não seria um acontecimento fabuloso se isso ocorresse, ele-
vando todos a planos superiores?
Volta o Cristo a paciente e caridosamente elucidar o discípulo insofrido: “Se alguém me ama, executa
meu ensino”, no sentido de cima: obedece, VIVE o ensino. E também em outro sentido: realiza meu
Logos, ou seja, passa a VIVER MEU SOM, a vibrar na mesma nota fundamental, na mesma frequên-
cia vibratória, no mesmo tom. E repete uma vez mais: “o Pai o amará e eu (o Cristo) e o Pai viremos
(como uma só coisa) e habitaremos nele”: e passaremos a viver em lugar dele, e nos transubstancia-
remos nele.

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C. TORRES PASTORINO

Não é possível ser mais explícito nem proferir palavras mais consoladoras, ensinos mais profundos: a
união será permanente: habitaremos (monên par 'autôi poiêsómetha, isto é, faremos nele nossa mora-
dia) ou permaneceremos nele, dentro e em redor dele. Não há mais separação, não há mais distinção.
A que mais pode aspirar-se nesta Terra?
Volta-se, então, para o outro lado, ao referir-se ao mundo: “Quem não me ama”, preferindo as exte-
rioridades superficiais do mundo e seu próprio eu pequeno, “não realiza evidentemente meu ensino”
e, logicamente, não tem possibilidade de perceber a sintonia do Cristo interno: recebe e realiza as
ondas de outras estações emissoras. E mais uma vez é dada garantia absoluta da fonte de onde ema-
nam as revelações; “o ensino que ouvis (ho lógos hón akoúete, cfr. vol. 4) não é meu, mas do Pai que
me enviou”.
Ainda uma vez revela-se a obediência cega às ordens do “Pai, que é maior que eu”: o Filho faz a
vontade do Pai sem titubear, repete o ensino do Pai, revela o Lógos (SOM, Palavra) paterno, como
lídimo intérprete que não trai a confiança nele depositada.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

UNIÃO COM CRISTO


João, 15:1-17
1. “Eu sou a videira verdadeira e meu Pai é o agricultor.
2. Todo ramo, em mim, não dando fruto, ele o tira; e todo o que produz fruto, purifica-o
para que produza mais fruto.
3. Vós já estais purificados, por meio do Logos que vos revelei.
4. Permanecei em mim e eu em vós. Como o ramo não pode produzir fruto por si mes-
mo, se não permanecer na videira, assim não podeis vós, se não permaneceis em mim.
5. Eu sou a videira, vós os ramos. Quem permanece em mim e eu nele, esse produz mui-
to fruto, porque sem mim não podeis fazer nada.
6. Se alguém não permanece em mim, foi lançado fora como o ramo, e seca, e esses ra-
mos são ajuntados e jogados ao fogo e queimam.
7. Se permaneceis em mim e minhas palavras permanecerem em vós, pedi o que quiser-
des e vos acontecerá.
8. Nisso se transubstancia meu Pai, para que produzais muito fruto e vos torneis meus
discípulos.
9. Como o Pai me amou, assim eu vos amei: permanecei em meu amor.
10. Se executais meus mandamentos, permaneceis no meu amor, assim como executei os
mandamentos de meu Pai e permaneço no amor dele.
11. Isso vos disse, para que minha alegria esteja em vós e vossa alegria se plenifique.
12. Este é o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros assim como eu vos amei.
13. Ninguém tem maior amor que este, para que alguém ponha sua alma sobre seus ami-
gos.
14. Vós sois meus amigos se fazeis o que vos ordeno.
15. Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o senhor dele; a vós, po-
rém, chamei amigos, porque tudo o que ouvi de meu Pai, vos fiz conhecer.
16. Não vós me escolhestes, mas eu vos escolhi e vos pus, para que vades e produzais fru-
tos e vosso fruto permaneça, a fim de que o Pai vos dê aquilo que lhe pedirdes em
meu nome.
17. Isso vos ordeno: que vos ameis uns aos outros”.

Entramos com os capítulos 16 e 17, antes de apresentar os versículos 27 a 31 do capítulo 15, pois essa
distribuição de matéria satisfaz à crítica interna plenamente e à sequência das palavras. Com efeito,
logo após dizer: “Levantemo-nos, vamos daqui” (14:31) João prossegue: “Tendo dito isso, Jesus saiu
com Seus discípulos”, etc. (18:1). Não se compreenderia que, após aquela frase de fecho, ainda fossem
proferidos 86 versículos.
Alguns comentadores (Maldonado, Shanz, Calmes, Knabenbauer, Tillmann) opinam que, após a des-
pedida e a ordem de saída, ainda permaneceu o Mestre no Cenáculo, de pé, a conversar com os discí-
pulos.

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C. TORRES PASTORINO

Outros (Godet, Fillion, Wescott, Sweet) julgam que todo o trecho (inclusive a prece do cap. 17?) foi
proferido durante o trajeto para o monte das Oliveiras.
Um terceiro grupo (Spitta, Moffat, Bernard) propõe a seguinte ordem:
cap. 13- 1 a 31a
cap. 15- todo
cap. 16- todo
cap. 13- 31b a 38
cap. 14- 1 a 31
cap. 17- todo
Essa ordem não satisfaz, pois a prece não cabe depois da palavra de ordem da saída.
Outros há (Lepin, Durand, Lagrange, Lebretton, Huby) que sugerem que os capítulos 15 e 16 (por que
não o 17?) foram acrescentados muito depois pelo evangelista.
Nem a ordem original, nem as quatro propostas, nos satisfazem. O hábito diuturno com os códices dos
autores clássicos profanos revela-nos que, no primitivo códice de João, com o constante manuseio,
pode ter saído de seu lugar uma folha solta, contendo 5 versículos (27 a 31), que foi colocada, por en-
gano, 17 folhas antes, pois 17 folhas de 5 versículos perfazem exatamente 85 versículos. O engano
tornou-se bem fácil, de vez que o versículo último do cap. 17, é o 26.º, assim como é o 26.º o último do
cap. 14. Tendo em mãos os vers. 27 a 31, ao invés de colocar a folha no fim do cap. 17, esta foi inseri-
da erradamente no fim do cap. 14.
“Mas - objetarão - naquela época o Novo Testamento não estava subdividido em versículos”! Lógico
que nossa hipótese não é fundamentada na “numeração” dos versículos. Pois embora os unciais B
(Vaticano 1209) do século 4.º e o CSI (Zacynthius) do 6.º já tenham divisões em seções, que eram de-
nominadas иεφάλαια (“Capítulos”) maiores, com seus τίτλοι (títulos) menores; em Amônio (cerca de
220 A.D.) em sua concordância dos quatro Evangelhos os tenha dividido também em seções (chama-
das ora perícopae, ora lectiones, ora cánones, ora capítula) e essas fossem bastante numerosas (Mateus
tinha 355; Marcos 235; Lucas 343 e João 232); embora Eusébio de Cesaréia tenha completado o tra-
balho de Amônio em 340 mais ou menos (cfr. Patrol. Graeca vol. 22, col. 1277 a 1299); no entanto, a
divisão atual em capítulos foi executada pela primeira vez pelo Cardeal Estêvão Langton (+ 1288) e
melhorada em 1240 pelo Cardeal Hugo de Saint-Cher; mas os versículos só foram colocados, ainda na
margem, pelo impressor Roberto Estienne, na edição greco-latina do Novo Testamento em 1555; e
Teodoro de Beza, na edição de 1565, os introduziu no próprio texto.
Acontece, porém, que a numeração dos versículos nos ajuda a calcular o número de linhas de cada
folha. E existe um testemunho insuspeito que, apesar de sozinho, nos vem apoiar a hipótese. Trata-se
do papiro 66, do 29 século, possivelmente primeira cópia do manuscrito original no qual, segundo nos-
sa hipótese, já se teria dado a colocação errada da folha já muito manuseada. Ora, ocorre que nesse
papiro, atualmente na Biblioteca de Genebra, Cologny, sob a indicação P. Bodmer II, nós encontramos
o Evangelho de João em dois blocos:
1.º) o que vai de João 1:1 até 14:26;
2.º) o que vai de João 14:27 até 21:25.
Conforme vemos, exatamente nesse ponto, entre os versículos 26 e 27 do capítulo 14, ocorre algo de
anormal, a ponto de ter estabelecido dúvida na mente do copista, que resolveu assinalá-la na cópia: era
a folha que devia estar no final do cap. 17 e que caíra de lá, tendo sido colocada, por engano, no final
do cap. 14.
Em vista desses dados que, a nosso espírito, se afiguraram como perfeitamente possíveis, intimamente
afastamos qualquer hesitação, e apresentamos a ordem modificada.
* * *

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Interessante notar-se que, nestes capítulos (14 a 17) algumas palavras são insistentemente repetidas,
como άγάπη (amor) quatro vezes; иαρπός (fruto) oito vezes; e µήνω (habitar ou permanecer morando)
onze vezes.
No cap. 14 firma-se a idéia da fidelidade em relação aos mandamentos; no 15, salienta-se a idéia da
perfeita união e da absoluta unificação da personagem com o Eu e, em consequência, com o Cristo
interno; a seguir, é chamada nossa atenção para o ódio, que todo o que se uniu ao Cristo, no Sistema,
receberia da parte das personagens do Anti-Sistema.
Não se esqueça, o leitor, de comparar este trecho com o ensino sobre o “Pão Vivo”, em João 6:27-56
(cfr. vol. 3) e sobre a Transubstanciação (vol. 7).
* * *
No Antigo Testamento, a vinha é citada algumas vezes como o protótipo de Israel (cfr. Is. 5:1; Jer.
2:21; Ezeq. 15:1ss e 19:10ss; Salmo 80:8-13).
Nos Sinópticos aparece a vinha em parábolas (cfr. Mat. 20:1-16 e 21:33-46) e também temos o vinho
na ceia de ação de graças (cfr. Mat. 26:29; Marc. 14:21 e Luc. 22:18).
Nos comentários desses trechos salientamos que o vinho simboliza a Sabedoria; e ainda no vol. 6 e no
7 mostramos que Noé, inebriado de Sabedoria, alcançou o conhecimento total e desnudou-se de tudo o
que era externo, terreno ou não, de tal forma que sua sabedoria ficou patente aos olhos de todos. Não
tendo capacidade, por involução (por ser o mais moço, isto é, o menos evoluído) de compreende-lo,
seu filho Cam riu do pai, julgando-o bêbado e louco. Mas os outros dois, mais velhos (ou seja, mais
evoluídos, porque espíritos mais antigos em sua individuação), Sem e Jafet, encobriram com o véu do
ocultismo a sabedoria do pai, reservando-a aos olhos do vulgo. E eles mesmos, não tendo capacidade
para alcançá-la, caminharam de costas, para nem sequer eles mesmos a descobrirem. Daí dizer o pai,
que Cam seria inferior aos dois, e teria que sujeitar-se a eles.
Aqui é-nos apresentada, para estudo e meditação, a videira verdadeira (he ámpelos he alêthinê), ou
seja, a única digna desse nome, porque é a única que vem representar o símbolo em toda a sua plenitu-
de.
A videira expande-se em numerosos ramos e o agricultor está sempre atento aos brotos que surgem,
aos ramos e racemos, aos que começam a secar, aos que não trazem “olhos” promissores de cacho. Os
inúteis são cortados, para não absorverem a seiva que faria falta aos outros, e os portadores de frutos,
ele os limpa, poda e ajeita, para que o fruto surja mais gordo e mais doce e sumulento.
Depois desse preâmbulo parabolístico, vem o Mestre à aplicação: “vós já estais purificados por meio
do Logos que vos revelei”, muito mais forte no original, que nas traduções vulgares: “pela palavra que
vos falei”.
A união nossa com o Cristo, em vista da comparação, demonstra que três condições são exigidas, se-
gundo nos diz Bossuet (“Méditations sur L'Évangile”, 2.ª parte, 1.º dia):
a) “que sejamos da mesma natureza, como os ramos o são da vinha;
b) que sejamos um só corpo com Ele; e
c) que Ele nos alimente com Sua seiva”.
Esse ensino assemelha-se à figura do “Corpo místico” de que nos fala Paulo (1.ª Cor. 12:12,27; Col.
1:18 e Ef. 4:15).
No vers. 16, as duas orações finais estão ligadas entre si e dependem uma da outra: “a fim de que va-
des ... para que o Pai vos dê” (ϊνα ύµείς ύπάγητε ... ϊνα ό τι άν αίτητε ... δώ ύµϊν).

A lição sobre o Eu profundo foi de molde a esclarecer plenamente os discípulos ali presentes e os que
viessem após e tivessem a capacidade evolutiva bastante, para penetrar o ensino oculto pelo véu da
letra morta. Aqui, pois, é dado um passo à frente: não bastará o conhecimento do Eu: é absolutamente

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indispensável que esse Eu permaneça em união total com o Cristo interno, sem o Qual nada se conse-
guirá na vida do Espírito, na VIDA IMANENTE (zôê aiónios).
Magnífica e insuperável a comparação escolhida, para exemplificar o que era e como devia realizar-
se essa união.
Já desde o início, ao invés de ser trazida à balha qualquer outra árvore, foi apresentada como modelo
a videira, produtora da uva (Escola de Elêusis), matéria-prima do vinho, símbolo da sabedoria espi-
ritual profunda que leva ao êxtase da contemplação: já aí tem os discípulos a força do simbolismo que
leva à meditação.
Mas um ponto é salientado de início: se o Cristo é a Lideira, o Pai é o viticultor, ao passo que o ramo
que aí surge é o Eu profundo de cada um. Então, já aqui não mais se dirige o Cristo às personagens:
uma vez explicada a existência e a essência do Eu profundo, a este se dirige nosso único Mestre e Se-
nhor. E aqui temos a base da confirmação de toda a teoria que estamos expondo nestes volumes, des-
de o início: o PAI, Criador e sustentador, o CRISTO, resultado da criação do Pai ou Verbo, e o EU
PROFUNDO, individuação da Centelha Crística, como o ramo o é da videira.
Da mesma forma, pois, que o ramo aparentemente se exterioriza do tronco, mas com ele continua
constituindo um todo único e indivisível (se se destacar, seca e morre), assim o Eu profundo se indivi-
dua, mas tem que permanecer ligado ao Cristo, para não cair no aniquilamento. A vida dos ramos é a
mesma vida que circula no tronco; assim a vida do Eu profundo é a mesma vida do Cristo.
O ramo nasce do tronco, como o Eu profundo se constitui a partir da individuação de uma centelha do
Cristo, que Dele não se destaca, não se desliga: a força cristônica que vivifica o Cristo, é a mesma
que dá vida ao Eu: é o SOM ou Verbo divino (o viticultor) que tudo faz nascer e que tudo sustenta com
Sua nota vibratória inaudível aos ouvidos humanos.
Se houver desligamento, a seiva não chega ao ramo, e este se tornará infrutífero. Assim o Eu profun-
do, destacado do Cristo, se torna improdutivo e é cortado e lançado ao fogo purificador, para que
sejam queimados seus resíduos pelo sofrimento cármico e regenerador.
No entanto, quando e enquanto permanecer ligado ao Cristo, ipso facto se purifica, já não mais pelo
fogo da dor, mas pelas chamas do amor. E uma vez que é vivificado pela fecundidade do amor, muito
mais fruto produzirá. Essa purificação é feita “por meio do Logos que cos revelei”, ou seja, pela in-
tensidade altíssima do SOM (palavra). Hoje, com o progresso científico atingido pela humanidade,
compreende-se a afirmativa. Já obtemos resultados maravilhosos por meio da produção do ultra-som,
a vibrar acima da gama perceptível pela audição humana; se isso é conseguido pelo homem imper-
feito ainda, com seus instrumentos eletrônicos primitivos, que força incalculável não terá o Logos
divino, o Som incriado, para anular todas as vibrações baixas das frequências mais lentas da gama
humana! E, ao lado de Jesus, veículo sublime em Quem estava patente e visivelmente manifestado o
Cristo, a frequência vibratória devia ser elevadíssima; e para medi-la, nenhuma escala de milimicra
seria suficiente! Se o corpo de Jesus não estivera preparado cuidadosamente, até sua contraparte dos
veículos físicos materiais poderia ter sido destruída.
O Cristo Cósmico, ali presente e falando, podia afirmar tranquilamente, pela boca de Jesus: “EU sou
a videira, vós os ramos”. Compreendamos bem: não se tratava de Jesus e dos discípulos, mas do
CRISTO: o Cristo é a videira e cada “Eu profundo”, de cada um de nós, é um ramo do Cristo único e
indivisível que está em todos e em tudo. Então, o “vós”, aqui, é genérico, para toda a humanidade.
Cada um de nós, cada Eu profundo, é um ramo nascido e proveniente do Cristo e a Ele tem que per-
manecer unido, preso, ligado, para que possa produzir fruto.
Realmente, qualquer ramo que venha a ser destacado do tronco, murcha, estiola, seca e morre, pere-
cendo com ele todos os brotos e frutos a ele apensos. Assim, a personagem que por seu intelectualismo
vaidoso e recalcitrante se desliga do Cristo interno, prendendo-se às exterioridades, nada mais pro-
veitoso produzirá para o Espírito: é o caso já citado (vol. 4) quando a individualidade abandona a
personagem que se torna “animalizada” e “sem espírito”, ou seja, destacada do Cristo.

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E didaticamente repete o Cristo a afirmativa, para que se fixe na mente profunda: “Eu sou a videira -
vós os ramos”. E insiste na necessidade da união: “Quem permanece em mim e eu nele, produz muito
fruto, porque sem mim não podeis fazer nada”. Verificamos que, sem a menor dúvida, não há melhor
alegoria para ensinar-nos a fecundidade vitalizante da Divindade em nós.
A vida, que a humanidade vive em seu ramerrão diário, na conquista do pão para sustentar o corpo,
das comodidades para confortar o duplo, dos prazeres para saciar as emoções, do estudo para enri-
quecer o intelecto, leva o homem a permanecer voltado para fora de si mesmo, à cata de complemen-
tos externos que preencham seu vazio interno. Encontra mil coisas em seu redor, que o desviam do
roteiro certo e o fazem esquecido e despercebido do Eu profundo que, no entanto, é o único “caminho
da Verdade e da Vida”. Com esse tipo de existência, nada podemos conseguir para o Espírito, embora
possa haver progresso material. Em outros termos: desligados do Cristo, podemos prosperar no Anti-
Sistema, mas não no Sistema; podemos ir longe para fora, mas não daremos um passo para dentro;
fácil será exteriorizar-nos, mas não nos interiorizamos: nenhum ato evolutivo poderá ser feito por nós,
se não estivermos unidos ao Cristo.
Daí tanto esforço e tantas obras realizadas pelas igrejas “cristãs”, durante tantos séculos, não terem
produzido uma espiritualização de massas no seio do povo; ao invés, com o aprimoramento intelectu-
al e o avanço cultural, a população da Terra filiada a elas, vem dando cada vez menos importância
aos problemas do Espírito (excetuando-se, evidentemente, casos esporádicos e honrosos) e ampliando
sua ambição pelos bens terrenos.
Ao contrário, ligando-nos ao Cristo, unidos e unificados com Ele, frutos opimos colhe o Espírito em
sua evolução própria e na ajuda à evolução da humanidade. Aos que se desligam, sucede como aos
ramos: secam e são ajuntados e lançados ao fogo das reencarnações dolorosas e corretivas.
Outro resultado positivo é revelado aos que permanecem no Cristo, ao mesmo tempo em que Suas
palavras (ou seja, Suas vibrações sonoras) permanecem na criatura: tudo o que se quiser pedir,
acontecerá. Não há limitações de qualquer espécie. E explica-se: permanecendo na criatura a vibra-
ção sonora criadora do Logos, tudo poderá ser criado e produzido por essa criatura, até aquelas coi-
sas que parecem impossíveis e milagrosas aos olhos dos homens comuns. Daí a grande força atuante
daqueles que atingiram esse degrau sublime no cimo da escalada evolutiva humana, com total domí-
nio sobre a natureza, quer material, quer astral, quer mental. Em todos os reinos manifesta-se o poder
dessa criatura unificada com o Cristo, pois nela se expressa a vibração sonora do Verbo ou SOM cri-
ador em toda a Sua plenitude.
E chegamos a uma revelação estupefaciente: “Nisso se transubstancia meu Pai, para que produzais
muito fruto e vos torneis meus discípulos”. Então, não é apenas a vibração sonora em toda a Sua ple-
nitude: é a própria essência do Logos Divino que se transubstancia na criatura! Daí a afirmativa:
“Eu e o Pai somos UM”. Já não é apenas o Cristo, mas o próprio Pai ou Verbo, que passa a consti-
tuir a substância íntima e profunda da criatura, com o fito de multiplicar os frutos espirituais, de tal
forma que a criatura se torna, de fato, um discípulo digno do único Mestre, o Cristo (cfr. Mat. 23:8-
10) e não apenas um aluno repetidor mecânico de Seus ensinos (cfr. Vol. 4).
Coisa muito séria é conseguir alguém atingir o grau de “discípulo” do Cristo, e muito rara na huma-
nidade. Embora para isso não seja mister que se esteja filiado a qualquer das igrejas cristãs, muito ao
contrário. Gandhi, o Mahatma, constitui magnífico exemplo de discípulo integral do Cristo, em pleno
século vinte. E poucos mais. Pouquíssimos. Efetivamente raríssimos os que negam a si mesmos, to-
mam sua cruz e palmilham a mesma estrada, colocando seus pés nas pegadas que o Cristo, através de
Avatares como Jesus, deixam marcadas no solo do planeta, como reais seguidores-imitadores, que
refletem, em sua vida, a vida crística; verdadeiros Manifestantes divinos, discípulos do Cristo, nas
quais o Pai se transubstancia, unificando-se com eles pelo amor divino e total.
O amor desce a escala vibracional até englobar em Si a criatura, absorvendo-a integralmente, em Si
mesmo, tal como o SOM absorve o Cristo, e o Cristo nos absorve a nós. A nós bastará permanecer
ligados, unidos, sintonizados, unificados com o Cristo, mergulhados nele (cfr. Rom. 6:3 e Gál. 3:27),
como peixes no oceano. Permanecer no Cristo, morar no Cristo, como o Cristo mora em nós, e exe-

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cutar, em todos os atos de nossa vida, externa e interna, em atos, palavras e nos pensamentos mais
ocultos, todas as Suas ordens Suas diretrizes, Seus conselhos. Assim faz Ele em relação ao Pai, e por
isso permanece absorvido pelo Amor do Pai; assim temos nós que fazer, permanecendo absorvidos
pelo Amor do Cristo, vivendo Nele como Ele vive no Pai, sintonizados no mesmo tom.
Esse ensino - diz-nos o próprio Cristo - nos é dado “para que Sua alegria esteja em nós”. Observemos
que o Cristo deseja alegria e não rostos soturnos, com que muitos pintam a piedade. Devoto parece
ser, para muitos, sinônimo de luto e velório. Mas o Cristo ambiciona que Sua alegria, que a alegria
crística, esteja EM NÓS, dentro de nós, em vibração magnífica de euforia e expansionismo do Espíri-
to. Alegria esfuziante e aberta, alegria tão bem definida e descrita na Nona Sinfonia de Beethoven.
Nada de tristezas e choros, pois o Cristo é alegria e quer que “nossa alegria se plenifique”: alegria
plena, sem peias, sem entraves, luminosa, sem sombras: esfuziante, sem traves: vibrante, sem distor-
ções; constante, sem interrupções; acima das dores morais e físicas, superiores às injunções deficitá-
rias e às incompreenções humanas, às perseguições e às calúnias. Alegria plena, total, integral, ili-
mitada, que só é conseguida no serviço incondicional e plenamente desinteressado, através do amor.
E chega a ordem final, taxativa, imperiosa, categórica, dada às individualidade, substituindo, só por
si, os dez mandamentos que Moisés deu às personagens. Basta essa ordem, basta esse mandamento,
para que todas as dez sejam dispensados, pois é suficiente o amor para cobrir a multidão dos erros
que as personagens são tentadas a praticar.
Quem ama, não furta, não desobedece, não abandona seus pais, não cobiça bens alheios, não tira
nada de ninguém: simplesmente AMA. Esse amor é doação integral, sem qualquer exigência de retri-
buição. O modelo é dado em Jesus, o Manifestante crístico: amai-vos “tal como vos amei”. E o exem-
plo explica qual é esse amor: por sua alma sobre seus amigos. Já fora dita essa frase: “Eu sou o bom
pastor ... o bom pastor põe sua alma sobre suas orelhas” (João, 10:11). Já falamos a respeito do sen-
tido real da expressão, que é belíssima e profunda: dedicação total ao serviço com disposição até
mesmo para dar sua vida pelos outros (cfr. 2.ª Cor. 4:14, 15; 1.ª João, 3:16 e 1.ª Pe. 2:21).
A afirmação “vós sois meus amigos” é subordinada à condição: “se fazeis o que vos ordeno”. Enten-
de-se, portanto, que a recíproca é verdadeira: se não fizerdes o que vos ordeno, não sereis meus ami-
gos. E que ordena o Cristo? Na realidade, uma só coisa: “que vos ameis uns aos outros”. Então,
amor-doação, amor-sacrifício, amor através do serviço. E explica por que os categoriza como ami-
gos: “o servo não sabe o que faz o senhor dele, mas vós sabeis tudo o que ouvi do Pai”. Realmente, a
amizade é um passo além, do amor, já que o amor só é REAL, quando está confundido com a amizade.
Como se explica a frase: “tudo o que ouvi de meu Pai vos dei a conhecer”, diante da afirmativa pos-
terior: “muito tenho que vos dizer, que não podeis compreender agora” (João, 16:12)? Parece-nos
que se trata de um sentido lógico: tudo o que ouvi de meu Pai para revelar-vos, eu vos fiz conhecer;
mas há muita coisa ainda que não compreendeis, pois só tereis alcance compreensivo mais tarde,
após mais alguns séculos ou milênios de evolução. Não adianta querer explicar cálculo integral a um
aluno do primário, ao qual, entretanto, se diz tudo o que se tem que dizer sem enganá-lo, mas não se
pode “avançar o sinal”. A seu tempo, quando o Espírito verdadeiro, o Eu profundo, estiver amadure-
cido pela unificação com o Cristo, então será possível perceber a totalidade complexa e profunda do
ensino.
A anotação da escolha é taxativa e esclarecedora: “não vós me escolhestes, mas eu vos escolhi”. Não
é o discípulo que escolhe o Mestre, mas este que o escolhe, quando vê que está apto a ouvir suas li-
ções e a praticar seus ensinos. Muita gente, ainda hoje, pretende escolher seu Mestre: um quer seguir
Ramakrishna, outro Râmana Maharshi, outro Yogananda, outro Rudolf Steiner, outro Max Heindel.
Livres de fazê-lo. Mas será que esses Espíritos os aceitam como discípulos? Será que estes estão à
altura de compreender seus ensinamentos e imitar suas vidas, seguindo-os passo a passo na senda
evolutiva? O Mestre nos escolhe de acordo com nossa tônica vibratória, com o Raio a que pertence-
mos, aceitando-nos ou rejeitando-nos segundo nossa capacidade, analisada por meio de sua faculda-
de perceptiva.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Essa é uma das razões da perturbação de muitos espiritualistas, que peregrinam de centro em centro,
de fraternidade em fraternidade, perlustrando as bancas de muitas “ordens” e não se fixando em ne-
nhuma: pretendem eles escolher seu Mestre, de acordo com seu gosto personalístico, e só conseguem
perturbar-se cada vez mais.
Como fazer, para saber se algum Mestre nos escolheu como discípulos? e para saber qual foi esse
Mestre? O caminho é bastante fácil e seguro: dedique-se a criatura ao trabalho e ao serviço ao pró-
ximo durante todos os minutos de sua vida, e não se preocupe. Quando estiver “maduro”, chegará a
mão do Mestre carinhosa e o acolherá em seu grupo: será então o escolhido. O mais interessante é
que a criatura só terá consciência disso muito mais tarde, anos depois. E então verificará que todo o
trabalho anteriormente executado, e que ele acreditava ter sido feito por sua própria conta, já fora
inspiração de seu Mestre, que o preparava para recebê-lo como discípulo. Naturalidade sem preten-
sões, trabalho sincero sem esperar retribuições, serviço desinteressado e intenso, mesmo naqueles
setores que a humanidade reputa humildes são requisitos que revelarão o adiantamento espiritual da
criatura.
A esses “amigos escolhidos”, o Mestre envia ao mundo, para que produzam frutos, e frutos perma-
nentes que não apodrecem. Frutos de teor elevado, de tal forma que o Pai possa dar-lhes tudo o que
eles pedirem em nome de Cristo.
Tudo se encontra solidamente amarrado ao amor manifestado através do serviço e ao serviço realiza-
do por amor.
E para fixação na memória do Espírito, e para que não houvesse distorções de seu novo mandamento,
a ordem é repisada categoricamente: “Isso VOS ORDENO: que vos ameis uns aos outros”! Nada de
perseguições entre os fiéis das diversas seitas cristãs, nada de brigas nem de emulações, nem ciúmes
nem invejas, nem guerras-santas nem condenações verbais: AMOR!
Amai-vos uns aos outros, se quereis ser discípulos do Cristo!
Amai-vos uns aos outros, católicos e evangélicos!
Amai-vos uns aos outros, espíritas e evangélicos!
Amai-vos uns aos outros, católicos e espíritas!
Amai-vos uns aos outros, hindus e budistas!
Amai-vos uns aos outros, espíritas e umbandistas!
Amai-vos uns aos outros, teósofos e rosacruzes!
Amai-vos uns aos outros, é ORDEM de nosso Mestre!
Amai-vos uns aos outros!

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C. TORRES PASTORINO

ÓDIO DO MUNDO
João, 15:18-27
18. “Se o mundo vos odeia, sabei que, primeiro que a vós, me odiou.
19. Se fôsseis do mundo, o mundo gostaria do (que lhe é) próprio; mas porque não sois do
mundo, mas eu vos escolhi do mundo, o mundo vos odeia.
20. Lembrai-vos do ensino que eu vos falei: não é o servo maior que seu senhor; se me
perseguiram, também a vós perseguirão; se executaram meu ensino, também o vosso
executarão.
21. Mas todas essas coisas farão a vós por causa do meu nome, porque não sabem quem
me enviou.
22. Se eu não viesse e não falasse a eles, não teriam erro; agora, porém, não têm desculpa
quanto a seus erros.
23. Quem me odeia, também odeia meu Pai.
24. Se não tivesse feito as obras neles, que nenhum outro fez, não teriam erro; agora, po-
rém, também viram e odiaram tanto a mim, quanto a meu Pai.
25. Mas para que se plenifique o ensino escrito na lei deles: odiaram-me sem motivo.
26. Todas as vezes que vier o Advogado, que eu vos enviarei da parte do Pai, o Espírito
verdadeiro que saiu do Pai, ele testificará a respeito de mim,
27. e vós testificareis, porque desde o principio estais comigo”.

Neste trecho o Cristo avisa a Seus discípulos daquela época e aos porvindouros de todos os tempos,
que todos eles receberão o impacto do ódio do “mundo”. O termo “kósmos” é aqui empregado no sen-
tido antitético, em oposição a “Reino de Deus”, como diria Ubaldi: Anti-Sistema oposto a Sistema, ou
seja, Mundo oposto a Reino dos céus. O mundo é o reino do antagonista (satanás) ou adversário (dia-
bo), que é a personagem transitória (intelecto) que se opõe ao Espírito eterno (Cristo). Mundo é tudo
aquilo que gira fora, que é externo, ao passo que reino dos céus é o dentro, o Eu profundo. Esse senti-
do é dado com frequência a esse termo por João (cfr. 7:7; 8:23; 12:31, 14:17, 30; 16:8, 11; 17:6, 9, 11,
16, 25; 1.ª João, 2:15, 16 e 3:1, 13).
Muitos comentadores interpretam essas palavras como realizadas pelas perseguições dos imperadores
romanos contra os cristãos. Esquecem, entretanto, que a igreja que assumiu abusivamente o título de
“cristã” em Roma, conquistado a fio de espada, já se havia bandeado para o pólo do “mundo”, e perse-
guiu com muito mais violência os lídimos cristãos, por eles classificados de “arianos”; e no espaço de
poucos dias, no ano de 380 (após o edicto de Milão de 3 de agosto de 379 e o edicto de Tessalônica,
publicado por Teodósio em 27 de fevereiro de 380) só na cidade de Roma massacraram cerca de
30.000 verdadeiros seguidores de Cristo - ou seja, um número muito mais elevado do que os assassi-
nados pelos imperadores durante três séculos.
Quando a igreja de Roma, aliando-se aos imperadores romanos Constante e sobretudo Graciano, em
378, abandonou o Espírito do Cristo e aliou-se ao mundo, com esse gesto triste passou a perseguir e
matar friamente - sobretudo com a fogueira e a espada - todos aqueles que possuíam o verdadeiro Es-
pírito crístico: os místicos, os profetas (médiuns, que eles chamavam “feiticeiros”), os enviados e men-
sageiros celestes que encarnavam, para tentar abrir os olhos dos homens ambiciosos de posses e posi-
ções mundanas, que haviam usurpado o mando na sociedade cristã.

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Os primeiros assassinados como “feiticeiros”, cujo registro ficou na história (Cfr. Amiano Marcelino)
foram Hilarius e Patrícius, no ano 370; a última foi Anna Goeldi supliciada em Glaris (Suíça) em 17 de
junho de 1782. Foram 1412 anos de assassinatos de médiuns! Catorze séculos!
Todas essas matanças e perseguições, de que a história registra horrorizada a maldade manifestada na
época da Inquisição e da conquista sobretudo do México e do Peru, atestam a nítida e inegável posição
que a igreja, que se dizia “do Cristo”, assumira contra o próprio Cristo; haviam esquecido que o Novo
Mandamento era o amor mútuo, e não a matança fratricida de criaturas, que amavam com o coração o
mesmo Cristo que vivia profanado nos lábios hipócritas e mendazes das autoridades eclesiásticas, du-
rante o longo espaço de 1.400 anos. Somente agora, com o papa João XXIII, é que se começou a per-
ceber o absurdo de suas atitudes e, oficialmente, se adotou o “ecumenismo”, embora esparsamente
ainda continuem, por obra de elementos avulsos, as mesmas incompreensões e ataques.
* * *
O texto original apresenta o verbo miséô, que significa precisamente “odiar”, e não apenas “aborre-
cer”. O ódio é o pólo oposto do amor pregado pelo Cristo, e esse ódio resolvia-se pela impiedosa des-
truição das formas físicas, a fim de tirar de seu caminho de conquista das vantagens materiais, todos
aqueles que falavam nas prerrogativas do Espírito e na ilusão da matéria, constituindo uma acusação
viva e irrespondível à cobiça dos homens que se haviam apoderado do mando.
Essa perseguição e esse ódio, que Cristo assinalou ser “sem motivo” (cfr. Salmos 25:19 e 69:5), cum-
priu-se in totum: os perseguidos jamais concorreram com os dominadores violentos, jamais ambiciona-
ram seus bens: limitavam-se a amar o Cristo e a servi-Lo, gritando ao povo que os bens materiais são
transitórios e perecíveis. Mas os poderosos, apoiados na espada do poder Leigo ou, mais tarde, toman-
do em suas próprias mãos a espada sangrenta do poder mundano, não na deixavam enferrujar-se na
bainha: usaram-na vigorosamente, servindo-se da maior falsidade hipócrita para decepar as cabeças
que pensavam certo, fazendo parar os corações que Cristo tinha constituído como moradia Sua e do
Pai.
Basílio (século IV) deixou escrito: “As doutrinas dos Pais são desprezadas, as especulações dos inova-
dores criam raízes na igreja ... a sabedoria do mundo toma lugar de honra, derrubando a glória da cruz.
Os pastores foram expulsos e em seu lugar subentraram afrontosos lobos que maltratam o rebanho. As
casas de oração já não encontram quem nelas se reuna e os desertos estão cheios de gente enlutada”
(Epístola 90).
J. G. Davies (“As Origens do Cristianismo”, pág. 252), apesar de absolutamente parcial em favor do
catolicismo, comenta: “A crescente secularização da igreja, devida à incursão dos que eram movidos
por interesses e dos pagãos semi-convertidos, levou muitos a protestar. Os cristãos (ele escreve os pa-
dres”!) do deserto, na verdade fugiam não tanto do mundo, quanto do mundo na igreja”. E mais adi-
ante, verificando a aversão das autoridades eclesiásticas a todos os que buscavam o verdadeiro Espírito
do Cristo, escreve: “Assim, no período entre Nicéia e Constantinopla, enquanto o movimento (monás-
tico) criava raízes sólidas, só gradualmente pôde ganhar para sua causa os principais dirigentes da
igreja, que o podiam defender de seus detratores. Um pagão convertido, cerca de 360, perguntou: Ex-
plicai-me, agora, o que é a congregação ou seita dos monges, e por que é ela objeto de aversão, mesmo
entre os nossos” (in Consul. Zacch. et Apoll., III, 3).
Observe-se que, no vers. 24 não se fala em “sinais” (sêmeion), mas em “obras” (érga), realizadas ne-
les, ou seja, nos homens do mundo, e que eram próprias para abrir-lhes os olhos à realidade. Mas em
todos os tempos e climas, as obras espirituais que beneficiam as criaturas servem, em grande parte,
para dar-lhes forças de continuar realizando suas conquistas mundanas e terrenas.
O fato de “testificar” de “dar testemunho” (martyrein) é várias vezes repetido por João como funda-
mental para alertar as consciências dos homens (cfr. João, 1:7, 8, 15, 32, 34; 3:11, 33; 5:31, 32, 36ss;
8:13ss; 10:25; 15:26ss; 18:37; 19:35 e 21:24).
Novamente fala o Cristo no “Advogado” (paráclêtos), que repete ser o Espírito verdadeiro, e que pro-
cede do Pai, ou seja, “sai de dentro” (ekporeúetai) do Pai, onde tem origem.

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Para finalizar, anotemos que o Cristo fala-nos “que estão com Ele desde o começo”. Não cremos que
essa afirmativa se refira apenas aos que O acompanharam, durante alguns anos, em Sua peregrinação
física na Palestina, sentido que é adotado em outros passos do Novo Testamento: é a convicção muito
humana de que mais vale a convivência de corpos, do que a união profunda do Espírito; no entanto,
esta é muito mais importante que o contato de corpos (cfr. Atos, 1:21, 22; 10:40, 42; 1.ª João, 1:1, 2;
2:7, 24; 3:11 e 2.ª João, 5 e 6). Prova viva em contrário encontramos em Paulo de Tarso que muito
mais fez na divulgação do espírito crístico, que os “apóstolos” que tiveram convivência física com o
Mestre Jesus.

Avisos preciosos que todos nós, sobretudo aqueles que, viciados por longos séculos de vivência no
seio da igreja “oficial” romana, ainda sentem no subconsciente instintivo a tentação das posições de
destaque, das posses materiais, (que garantem o amanhã!), dos títulos hierárquicos, dos templos de
pedra grandes, ricos e solenes, da escala sacerdotal cheia de privilégios e exceções em flagrante dife-
renciação da massa ignara: “Amarram fardos pesados e insuportáveis e impõem sobre os ombros dos
homens, mas eles não querem movê-los com o dedo deles” (Mat. 23:4; vol. 7). Trata-se da adaptação
que nós, homens imperfeitos, fizemos da doutrina de Cristo, moldando-a segundo a fôrma mundana da
qual provínhamos. Agora cabe a nós mesmos, arduamente e com grande fadiga, tornar a trazê-la a
seu ponto exato de sacrifício.
O “mundo” não pode admitir em seu seio, não pode aceitar, o espírito crístico de renúncia e de per-
dão. Encontrando-se no pólo oposto, condena e persegue seus maiores adversários. Pertence e vive
bem no pólo do ódio, em franca e confessada oposição ao pólo do amor.
Por isso é indispensável que o pólo do amor atraia a si, mais pelo exemplo que pelas palavras, todos
os elementos das forças constitutivas desse pólo negativo e, atraindo-os, os transforme em forças po-
sitivas. Seguindo o Cristo, passam as criaturas para o Sistema e de imediato levantam-se contra elas,
odiando-as, as forças cegas e violentas do Anti-Sistema.
Devem todos ter conhecimento e consciência desse fato, para não se deixarem desanimar nos tremen-
dos embates que têm sobre eles, como avalanches titânicas para derrubá-los: apesar do barulho exte-
rior e das basófias que arrotam pedantemente, jamais conseguem destruir as “forças do Cordeiro”
que, em sua mansidão e amor se sobrepõem rígida e inexpugnavelmente: “as portas inferiores não
prevalecerão” contra os escolhidos. (Mat. 16:18).
O mundo gosta dos que a ele pertencem, vivendo segundo suas leis e costumes, na busca infrene de
bens, de prazeres, de fama, de posições e vantagens, de títulos e honrarias externas, embora pisando
os concorrentes. Mas aqueles que o Cristo escolheu do mundo, segregando-os espiritualmente desse
ambiente maquiavélico de competições; aqueles que renunciaram de coração a todo o acervo que
constitui o ponto alto da primazia no mundo, e vivem apagados e apagando-se, recebendo golpes e
dores como incentivo para galgar novos degraus na subida, alegrando-se nas tribulações, sorrindo
impávidos ante as tempestades, amando quando afrontados, dando a capa quando lhes roubam a túni-
ca, inatingíveis aos golpes da malícia e da maldade, - esses tomam-se insuportáveis ao mundo, que os
considera covardes por não reagirem, já que o involuído não sabe que há mais necessidade de cora-
gem para perdoar como os anjos, do que para vingar-se como os animais.
A humanidade, contudo, assaltando o poder e conseguindo posses materiais, terrenos, palácios, tem-
plos suntuosos, grandes extensões de latifúndios, esqueceu a advertência de que o “servo não é maior
que seu senhor”, e não refletem que o Senhor “não possuía uma pedra onde repousar a cabeça”
(Mat. 8:20, Luc. 9:58): tornaram-se, perante o mundo, maiores que o humilde carpinteiro pobre. E
aqueles que O imitaram, foram perseguidos, tal como o havia sido o Mestre.
Se não tivesse Ele vindo à Terra, não teria havido erro. Mas o sublime Pastor aqui veio, deu o exem-
plo vivo, serviu de modelo: portanto não há desculpa para esse erro clamoroso.
E, falando o Cristo, é claro que quem odeia o Filho, odeia o Pai que O enviou. Odeia, no sentido de
permanecer no pólo negativo, opondo-se pela vivência ao pólo positivo. Apesar de todas as obras de

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grandiosidade e benemerência, desprezam tudo o que é do Espírito, só cuidando da parte material


terrena.
Na realidade “não há motivo” para esse ódio: por que o mau odeia o bom? Porque a vivência do bem
é uma condenação patente do mal e a consciência íntima mais profunda grita dentro deles que estão
errados. Por mais que procurem abafar a voz silenciosa da consciência que provém do Eu profundo,
não conseguem eliminá-la.
Mais uma vez aparece o esclarecimento indispensável de que “todas as vezes que vier o Advogado que
eu vos enviarei da parte do Pai, o Espírito verdadeiro, ele testificará a respeito do mim”.
Vale a pena pararmos para tecer alguns comentários sobre isso.
O homem lentamente evolui, saindo do estágio animal puramente psíquico para o estágio hominal
pneumático. Aí chegando, vive milênios para firmar em si mesmo a consciência intelectiva de suas
novas faculdades, que vão surgindo e aperfeiçoando-se. Ao atingir um grau de desenvolvimento capaz
de perceber a fixação de seu Eu profundo, que constitui o somatório das aquisições e experiências
conquistadas durante os milênios de evolução, o homem sente a necessidade de fazer que sua consci-
ência - que só vibrava até então na personagem transitória - se aprimore e eleve sua frequência vi-
bratória, até que possa sintonizar na faixa superior do Espírito.
Ao sentir essa necessidade – o que ocorre como impulso que vem de dentro - quer por si mesmo, quer
alertado por leituras e conhecimentos que vai adquirindo, inicia o processo longo e árduo de buscar
unir-se a esse Eu profundo que permanece em outro plano. Esforça-se, tenta, prepara-se, coloca todas
as condições requeridas para isso, e começa a perceber, de princípio como lampejos, mais tarde como
permanente conscientização, a existência real dessa Individualidade superior, cujos primórdios de
contato já fora levado a sentir de modo automático, embora inconscientemente, durante milênios, nos
momentos de clímax do orgasmo sexual e do sono profundo sem sonhos.
Atingido esse estágio, vai recebendo gradualmente a resposta a seus anseios: o próprio Eu profundo,
o Espírito verdadeiro, vem contatar com a personagem intelectiva, atraindo-a a si.
A Centelha crística - o Cristo interno - que funciona como impulsor constante desde que se individu-
ou, saindo do Pai, como partícula indivisa, age positivamente e envia, condicionando-o e impelindo-o
a isso, esse Eu profundo, essa Individualidade superior, esse Espírito verdadeiro, a vir até a persona-
gem a fim de testificar a respeito do próprio Cristo. E então ocorre que essa Individualidade - à qual o
Cristo fala diretamente, interpelando-a de “vós” – passará a testificar a respeito da real essência e da
veracidade de todo o processo.
E o Mestre termina: “porque desde o princípio estais comigo”.
Incongruente seria interpretar-se a frase no sentido limitado das personagens em contato com a per-
sonagem: ficaria o ensino cósmico reduzido a um episódio transitório de três anos, dentro de um perí-
odo que conta muitos milhões de anos. O sentido é bem mais amplo.
Sendo individuação do Cristo cósmico, a Individualidade está com o Cristo desde o princípio de sua
individuação, mesmo que ignore totalmente essa realidade.
Eis então a gnose total e plena da posição que precisamos assumir, para defender-nos do ódio des-
truidor do mundo. Procuremos resumir esquematicamente essa “obra” (érgon) que Cristo “realizou
em nós” (vers. 24), a ver se damos forma didática.
* * *
Dentro do infinito adimensional e do eterno atemporal do Cristo Cósmico, que é resultante necessário
e sem princípio (Filho unigênito) do Som (Pai), que é a vibração energética produzida pela degrada-
ção das vibrações da Luz Incriada (Espírito-Santo), processa-se uma individuação: uma Centelha que
é lançada para atuar (passa de potência a ato) sem destacar-se do Todo. Portanto, também não tem
princípio, a não ser “externo”, já que existia em potência desde toda a eternidade.

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Essa Centelha decresce suas vibrações até o estado de “núcleo”, que passa a girar por efeito das vi-
brações energéticas do Som (Pai), mantendo em si a vida própria, que é a do Espírito (Luz), a mesma
que mantém a Energia (Som) e vivifica o Cristo Cósmico (Filho unigênito), permanecendo tudo ligado
como um só Todo, apenas desomogeneizado.
Esse núcleo vai agregando a si elétrons e prótons, mésons e néutrons, e outros elementos desconheci-
dos a nós, até constituir um átomo, que também degrada suas vibrações até materializar-se no reino
mineral (o estado mais baixo e menor da matéria que até agora podemos conhecer, o que não impede
que possa haver outros ainda inferiores).
Começa daí a linha evolutiva para o Sistema, após essa “queda” no Anti-Sistema. Sempre sustentado
pelo Som, vivificado pelo Espírito, e mergulhado no Cristo, desenvolve-se o átomo primitivo, atraves-
sando eons incomensuráveis como mineral, depois como vegetal, adquirindo envoltórios sempre mais
desenvolvidos: duplo etérico e a seguir corpo astral, onde aprimora o psiquismo mais animal.
Prosseguindo na linha ascensional, o psiquismo se vai elevando aos poucos no reino hominal, até
atingir o estado de pneuma, no qual aprimora o intelecto, enriquecendo-se com a cultura diferenciada
que avoluma seu potencial.
Já nessa altura, o Eu profundo começa a situar-se com independência, preparando-se para receber
conscientemente o influxo crístico, e expandindo, cada vez mais, sua gama vibratória, de tal forma
que sua faixa mais alta sintoniza com a frequência crística, e a mais baixa com a personagem encar-
nada.
Não deve causar estranheza que o Eu profundo venha a existir já bem mais tarde, só quando adquire
potencialidade suficiente para isso, em virtude do acúmulo de experiência conquistada durante a
evolução de seus veículos: grande maioria dos seres, apesar de sua forma externa humana, ainda não
atingiram o estágio de Homem, e se isso não foi conseguido, “ainda não tem Espírito” (João 7:39 e
Judas, 19; cfr. vol. 4), ou seja, ainda não possuem Eu profundo conscientizado. Este surge aos poucos,
consolidando-se pela impulsão interna do Cristo, e só então toma consciência de seu papel de criar
personagens transitórias que O ajudem mais rapidamente na evolução sem princípio e sem fim. Até
esse ponto, tudo se passa unicamente sob a impulsão direta do Cristo Interno (Mente Cósmica) cons-
tituindo para todos os seres e inclusive para aquele que não formou seu Eu profundo, embora sendo
“homem”, um evoluir automático, do qual não toma conhecimento.
Ao tomar consciência dessa realidade espiritual, o homem encarnado começa a interessar-se pelos
assuntos espirituais internos a si mesmos - não se trata, porém, do interesse pelos assuntos religiosos
externos, coisa natural ao homem desde que o psiquismo iniciou sua transformação em pneuma, na
primeira infância do reino hominal - e começa também a buscar a elevação de seu nível consciencial,
para poder transferi-lo da personagem para a Individualidade.
É nesse ponto que o Eu profundo forceja por entrar em contato com aquele que O busca; constitui-se,
então, em “Advogado” ou seja, “o que é chamado para junto da personagem”.
Então, “todas as vezes que o Advogado (o Eu Profundo) vier, ele será enviado (ou “impelido”) pelo
Cristo Interno; e essa impulsão é dada da parte do Pai (ou Som energético) de onde ele saiu. E esse
Eu profundo atestará a realidade da essência do Cristo, demonstrando-o claramente à personagem,
de tal forma, que esta também poderá dar seu testemunho à humanidade. E esse testemunho da indivi-
dualidade é sólido, convincente e irrespondível, porque a individualidade está com o Cristo interno
desde o desabrochar de sua existência (EX+SISTERE, isto é, exteriorizar-se), desde sua individuação.
Se a personagem o ignora, nada importa: o Cristo tem disso consciência, e já a passou para o Eu
profundo, e este encontra-se capacitado para garantir essa verdade à personagem, dando testemunho
da realidade do fato. Figuremos um bebê recém-nascido: embora produzido pelo pai, plasmado e ali-
mentado pela mãe, ele ignora esse fato.
À proporção que vai crescendo e desenvolvendo seu cérebro, vai tomando consciência do que se pas-
sa. Ao atingir certo grau de amadurecimento, recebe o testemunho dos pais acerca de sua filiação;
testemunho válido, porque proveniente do conhecimento pessoal das ocorrências.

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Assim, na infância de seu Eu, a personagem nada percebe. Mas ao atingir certo grau de maturidade
espiritual, o Eu profundo, o Espírito verdadeiro, testifica a origem divina do ser, porque SABE donde
veio e para onde vai, coisa ainda desconhecida à personagem (cfr. João, 3:8).
Recebido esse testemunho, e certa de sua veracidade, a própria personagem passará também a testifi-
car tudo o que sabe a respeito do Eu e do Cristo. E desde o primeiro instante que isso ocorrer, come-
çará a sofrer os impactos violentos da perseguição do “mundo”, que desconhece totalmente tudo isso,
e crê que a única realidade, é o corpo físico, com as sensações e emoções que pensa serem dele. Daí
dizer que, com a morte, tudo acaba!

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O TRABALHO DO ESPÍRITO
João, 16:1-15
1. “Isso vos revelei, para que não sejais enganados.
2. Tomar-vos-ão excomungados, mas vem a hora em que todo o que vos mata, julgará
oferecer culto a Deus.
3. E farão isso a vós, porque não conheceram o Pai nem a mim.
4. Mas eu vos disse essas coisas para que, todas as vezes que vier a hora deles, vos lem-
breis delas, pois eu vo-lo disse. Não vos revelei desde o princípio, porque estava con-
vosco.
5. Agora, porém, vou para quem me enviou, e nenhum de vós me pergunta: Aonde vais?
6. Mas porque vos disse isso, a tristeza encheu vosso coração.
7. Mas eu vos digo a verdade: convém a vós que eu vá, porque se não for, o Advogado
não virá a vós; se porém, eu for, o enviarei a vós.
8. E, tendo ele vindo, provará ao mundo a respeito do erro, a respeito do ajustamento, a
respeito do discernimento:
9. a respeito do erro, porque não me foram fiéis;
10. a respeito do ajustamento, porque vou para o Pai e já não me vedes;
11. a respeito do discernimento, porque o dominador deste mundo foi reconhecido.
12. Ainda muitas coisas tendo que vos dizer, mas não podeis compreender agora.
13. Mas todas as vezes que vier aquele, o Espírito verdadeiro, ele vos conduzirá a toda
verdade, pois não falará por si mesmo, mas falará tudo o que ouvir e vos anunciará o
(que está) por vir.
14. Ele transubstanciará o Eu, porque tomará do que é meu e vos anunciará.
15. Tudo quanto tem o Pai é do Eu; por isso eu disse que recebe do que é meu e vos anun-
ciará”.

Os ensinos (lógoi) ditados pelo Cristo nesse último encontro, antes do grande passo iniciático que ia
dar, traz revelações precisas e sérias a respeito da Vida Maior, com recomendações para o comporta-
mento da Individualidade e dos cuidados que deve ter com a personagem. Diz o Mestre que o fez para
evitar que fossem enganados pelo modo de agir do mundo, na sucessão dos séculos.
O único ponto a lamentar é que, embora claramente avisados, justamente os que se diziam discípulos
do Cristo ou cristãos, passaram a agir eles à maneira do mundo. E a advertência de que os cristãos “se-
riam excomungados” foi posta em prática pelos que assumiram as rédeas do poder eclesiástico, que
começaram, eles, a excomungar os verdadeiros discípulos do Mestre.
E a advertência de que “todo o que vos mata julgará oferecer culto a Deus” cumpriu-se à risca. Seu
início está nos Atos dos Apóstolos, quando o Sinédrio, em Jerusalém, começa a perseguição religiosa
(Ato 6:8 até 8:2; 9:1-2; 22:3ss e 26:9ss), e continuou depois com os romanos (cfr. Tácito, Annales, 15,
44) e ainda prosseguiu durante mais de mil anos por obra da igreja de Roma (cfr. a História da Inquisi-
ção). E já no Middrash, ao comentar Núm. 25:3, está escrito: “quem derrama o sangue de um ímpio,

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deve considerar-se como se tivesse oferecido um sacrifício” (cfr. Strack e Billerberck, o.c., tomo 2,
pág. 565).
O aviso é dado para que em todas as ocasiões em que se levantarem as perseguições, nos recordemos
dessa advertência, que também já fora dada no “Sermão do Monte” (Mat. 5:10-12): “Felizes os que
forem perseguidos por causa da perfeição, porque deles é o reino dos céus. Felizes sois quando vos
injuriarem, vos perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós por minha causa: alegrai-vos
e exultai, porque é grande vosso prêmio nos céus, pois assim perseguiram os profetas que existiram
antes de vós” (Cfr. vol. 29, pág. 117).
Depois, para esclarecer melhor a lição, motiva a curiosidade deles: “nenhum de vós me pergunta aonde
vou”? Ora, essa pergunta já fora anteriormente feita por duas vezes (por Pedro, em João, 13:36, e por
Felipe, em João, 14:5). Aqui é uma insistência didática, para alertá-los quanto ao prosseguimento do
ensino.
A partida corporalmente visível do Mestre entristece-os, pois não conseguem fazer substituir em seus
corações o Cristo vivo, em lugar da matéria humana de Jesus. Mas é do interesse deles a partida.
Por que não poderia vir o Espírito verdadeiro, enquanto Jesus ali estivesse? Tomás de Aquino (S. Th.
IIIa, q. 57, a .l, ad 3um) diz que se trata de uma condição de fé.
Mas lembremos de um pormenor: Cristo ali estava presente, na humanidade de Jesus Como O buscari-
am eles em si mesmos, se O tinham ali pertinho a conversar com eles? Daí as grandes realizações mís-
ticas, uma vez treinadas aos pés de um Mestre, deverem prosseguir com o discípulo afastado dele, a
fim de experimentar sua força íntima.
O verbo elegein apresenta dois sentidos primordiais, sendo o primeiro mais amplamente empregado:
“provar uma verdade”; deste decorre o segundo, como consequência inevitável: “provocar uma con-
vicção na mente do interlocutor” (o que não deixa de ser provar uma verdade que convença”).
Aqui entramos em três pontos que precisam ser discutidos. As provas dadas referem-se a três assuntos
que serão lançados ao longo dos séculos diante do “mundo”, a fim de provar-lhe o erro tremendo em
que labora.
As provas dirão respeito:
1. ao erro (perì hamartías), porque os próprios homens que se dizem cristãos não Lhe foram fiéis;
2. ao ajustamento (peri dikaiosynês) porque, indo para o Pai, já não será visto o Cristo através de
Jesus, sendo indispensável o encontro com o Cristo interno de cada um, ajustando-se a criatura à
Sua sintonia vibratória;
3. ao discernimento (perì kríseôs) porque o dominador (ho archôn) deste mundo foi discriminado, ou
seja, reconhecido (kékretai de kríô), e apesar disso, os cristãos ainda o seguem totalmente engana-
dos, sem discernir o caminho certo do errado. E então o Cristo, apesar de sacrificado, é o vitorioso
(cfr. João, 3:15 e 12:31-32) e esmagará o dominador deste mundo (cfr. João, 12:31; 14:30; 16:11;
1.ª João, 2:13,14; 4:9 e 5:19).
Em relação aos verdadeiros discípulos, o Cristo lhes revelara tudo o que podiam suportar e compreen-
der naquela ocasião (cfr. João, 15:15) mas “ainda tinha muitas coisas que dizer” (éti pollà échô humín
légeín) que eles não entenderiam.
Essas coisas, eles as obteriam do Espírito verdadeiro, do Eu profundo, quando atingissem pessoal-
mente esse estágio evolutivo, pois o Eu, o Espírito, os guiaria a toda a Verdade” (eis tên alêtheían
pâsan).
Essa é a construção que aparece nos códices A, B, K, Delta, Pi, Psi, e se encontra em Tertuliano, Basí-
lio, Epifânio, Crisóstomo, Teodoro, Teodoreto, Eusébio, Cirilo de Jerusalém, Novaciano e Hilário, e
mais testemunhos que trazem o acusativo, embora o verbo hodêgéô reja o dativo; e isso é o que explica
a frase corrigida em áleph, D, I, W e theta, que trazem en têi alêtheíai pásei.

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C. TORRES PASTORINO

A afirmativa de 16:13 (confirmando 14:26) é a promessa de que toda a Verdade lhes será revelada pelo
Eu profundo ou Espírito verdadeiro, que lembrará tudo o que já foi dito e ampliará essas verdades com
conhecimentos mais profundos.
Aí temos, pois, a certeza de que a revelação não terminaria jamais, contrariando, portanto, frontal-
mente, o decreto do Concílio Vaticano I (cfr. E. D. n.º 1.836) e o Decreto Lamentabili (cfr. E. D. n.º
2.021) que ensinaram, contra a afirmativa do Mestre, que “a revelação parou com a morte do último
apóstolo”. Ao contrário, diz o Cristo que “verdades novas” aparecerão, que não destruirão Seu ensino,
antes, o confirmarão plenamente, pois tudo vem da mesma fonte, o Pai, quer o que nos foi dito pelo
Cristo pela boca de Jesus (João, 7:17; 8.26-40; 12:49 e 14:10), quer o que nos dirá o Espírito verdadei-
ro (João, 15:26).

Continuamos com a sublime lição, que cada vez mais aprofunda o assunto, explicando pormenores,
penetrando profundidades místicas, elevando-se a altitudes divinas: só vão vê que não no queira.
O próprio Cristo, por meio de Jesus, e o próprio Eu de cada um de nós, pela voz silenciosa que em
nosso âmago ressoa vibrante em ondas inaudíveis, avisa abertamente que todas as revelações que está
fazendo têm a finalidade de evitar que sejamos enganados pelas vozes das sereias que nos convocam a
unificar-nos com as coisas externas: uma igreja, uma imagem, uma bíblia, um médium, um Mestre.
Muitos engodos levantam-se ao longo de nossa caminhada, desviando-nos de nosso objetivo único:
“uma só coisa é necessária” (Luc. 10:42), a interiorização que Maria de Betânia estava fazendo, bus-
cando encontrar o Cristo dentro de si, enquanto permanecia sentada aos pés de Jesus.
Mas vem o aviso oportuníssimo: “sereis excomungados”. Todo aquele que não quiser aderir “exter-
namente” a uma igreja “externa”, será excomungado por não conformar-se com as ordens emanadas
das “autoridades”, seguindo a maioria do rebanho. E mais que isso: será torturado e assassinado,
buscando-se número de adeptos (quantidade) ao invés de elementos de alto valor intrínseco (qualida-
de). Realmente, estes fariam sombra às autoridades com lindas vestes talares de seda e púrpura, co-
brindo o vazio interior, quais “sepulcros caiados” (Mat. 23:27). E eles temem sempre perder as posi-
ções tão árdua e maquiavelicamente conseguidas.
Então, matem-se os verdadeiros cristãos “para maior glória de Deus”, esse Deus que é propriedade
deles, e que eles manobram a seu bel-prazer , decretando quem deve ir ou não para o “céu”.
Tudo isto é feito, entretanto, porque eles desconhecem (não tem a gnose) do Pai nem do Filho, que
falava através de Jesus e que poderia falar através deles, se Os conhecessem e se não estivessem tão
absorvidos pelo barulho externo dos elogios mútuos, dos tambores da vaidade, das trombetas do or-
gulho e dos timbales do conhecimento.
O Cristo, para eles, ESTÁ MORTO. Tanto que só O representam, e só O mostram exânime e morto,
pregado numa cruz, imóvel e calado, para que eles, “Seus representantes”, possam manter-se nas
cátedras, ditando normas, gozando a vida e recebendo as homenagens do povo e sobretudo dos go-
vernos. Têm medo de deixar e propagar, entre o povo, o CRISTO VIVO, porque temem que, estando
vivo, o Cristo fale diretamente às almas e eles percam o prestígio e sua “receita” diminua.
Mas eis que fomos avisados. E cada vez que olhamos esse comportamento esdrúxulo, devemos lem-
brar-nos das palavras de advertência do Cristo em pessoa. Se ouvíssemos apenas nossa voz interna a
esse respeito, poderíamos ter dúvidas se acaso não proviria ela do inimigo. Proferidas, porém, pelo
Mestre dos mestres, temos a certeza de que vem do Pai.
* * *
Novamente recorda o Cristo que, com o sacrifício de Jesus na cruz, ao dar o quinto passo iniciático,
Ele - o Cristo Cósmico, que Se revelava como Cristo Interno de Jesus - Se recolheria junto ao Pai; e
instiga a atenção deles com a indagação: “E nenhum de vós me pergunta: aonde vais”? Depois assi-
nala a tristeza que está morando no coração deles, pois não confiavam ainda no Cristo interno de

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SABEDORIA DO EVANGELHO

cada um, e que Se manifestaria neles, o Espírito Verdadeiro, o Eu profundo. De fato, só teriam cons-
ciência plena dessa presença sublime, quando se retirasse da cena o intermediário visível e externo.
Portanto, é necessário e a eles convém que assim ocorra, pois se assim não acontecesse, nenhum deles
conseguiria elevação pessoal, já que todos se encostariam em Jesus e Dele esperariam tudo.
Era preciso que Jesus saísse da presença física deles, como a ave que, ao ver os filhotes aptos a voar,
se afasta do ninho, a fim de que, aguilhoados pela fome, eles levantem vôo sozinhos na busca de ali-
mento. Saindo Jesus, cada um deles sentiria o aguilhão da fome espiritual, e então poderiam perceber
em si mesmos a presença do Verdadeiro Espírito, o Advogado, que aprenderiam a chamar em seu
socorro.
E quando tivessem alcançado esse ápice, em sua evolução humana, muita coisa seria compreendida,
muita coisa que então não podia ainda ser dita, por falta de capacidade perceptora da parte deles e
de experiência pessoal vivida.
Três coisas principais cita o Cristo, que acontecerão àqueles que tiverem obtido essa unificação crís-
tica: três coisas que realmente experimentaram todos os místicos, mesmo cristãos, mas que, ou se
abstiveram de dizê-lo, ou tiveram a imprudência de revelá-lo. No primeiro caso, descobrimos que eles
compreenderam essas três “provas” por meio de seu comportamento; no segundo, receberam o casti-
go do que falaram: foram sacrificados como hereges ou como apóstatas, pois jamais as autoridades
eclesiásticas admitiram que alguém lhes dissesse que estavam laborando em erro.
Analisemos as provas que serão dadas:
1.ª - PROVARÁ AO MUNDO A RESPEITO DO ERRO, PORQUE NÃO FORAM FIÉIS AO CRISTO.
Essa revelação estarrecedora, que começaria a cumprir-se três séculos depois da ausência física de
Jesus, é um dos pontos importantes e de maior eficiência se for compreendido, pois mostra ao cristão
o caminho pelo qual pode libertar-se da escravidão a outros homens: “tereis a gnose da verdade, e a
verdade vos libertará” (João, 8:32), deixando que o verdadeiro cristão experimente a “gloriosa liber-
dade dos Filhos de Deus” (Rom. 8:21), pois “Onde está o Espírito divino, aí está a liberdade” (2.ª
Cor. 3:17). Qualquer jugo, de qualquer organização humana, eclesiástica, religiosa ou de qualquer
natureza, cerceia a liberdade do cristão. Cada um tem que caminhar por si, livre, independente, ab-
soluto, dentro da relatividade de seu plano evolutivo.
Ao encontrarmos, pois, o Cristo Cósmico, através de nosso Eu profundo ou Espírito verdadeiro, des-
cobrimos o erro em que laboramos durante séculos ou milênios, em que vivemos mergulhados nas
trevas da escravidão: vemos, em luz meridiana, que os que mais alto falam do Cristo, apregoando-se
“cristãos” e “representantes do Cristo”, não Lhe foram nem são fiéis, pois palmilham uma estrada
falsa, que leva para longe da meta, pois carreia todos para fora de si mesmos, em atos externos, cul-
tuando imagens, beijando os pés de “Santidades”, extasiando-se diante de pompas coloridas e altis-
sonantes, e esquecendo o local em que podemos encontrar facilmente o Cristo: no estábulo de nosso
coração, cercado pelos animais de nossas paixões, ainda vivas e animalizadas.
Erro fatal, mas que tem a incomensurável virtude de fazer que os espíritos ainda não maduros, se vão
acostumando aos atos de piedade, até que, pela experiência (pathê) viva em si mesmos, sintam no
âmago de ser, qual o caminho certo da fidelidade total ao Cristo interno.
2.ª - PROVARA AO MUNDO A RESPEITO DO AJUSTAMENTO, POIS VOU PARA O PAI E JÁ NÃO
ME VEDES. No vol. 29, pág. 122, demonstramos que o sentido de dikaiosyne não é apenas justiça,
mas, nas lições iniciáticas de Jesus, é sobretudo AJUSTAMENTO. Modernamente, está generalizada a
compreensão desta nossa afirmativa: uma sintonização bem JUSTA de nosso rádio receptor é aquela
que se AJUSTA perfeitamente à frequência da onda da estação emissora, produzindo uma recepção
em alta fidelidade. Assim, o ajustamento ao Cristo interno, pois a Ele devemos ajustar-nos como a
mão na luva, como uma dentadura ao palato, como um parafuso à porca, como o êmbolo à seringa.
Esse ajustamento nosso ao Cristo interno é essencial, indispensável, insubstituível: porque, afastando-
se Jesus fisicamente e indo para o Pai o Cristo Nele manifestado, só com esse ajustamento perfeito
podemos manter-nos na faixa vibratória certa, que nos revela a Verdade.

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C. TORRES PASTORINO

Embota durante milênios a humanidade, mesmo a dita “cristã”, não tenha entendido isso, a verdade
está clara e taxativa nas palavras do Mestre: bastaria atentar para o sentido místico dos termos em-
pregados, ao invés de prender-se à letra gramatical usual no povo profano. Mas isso só é dado com a
experiência vivida, como já o foi por tantos cristãos que, todavia, não tiveram a preocupação de ex-
plicá-lo, satisfazendo-se em viver o ensino para si mesmos. E com isso atingiram eles o ápice, mas o
mundo profano continuou ignorando o sentido exato das palavras evangélicas.
3.ª - PROVARA AO MUNDO A RESPEITO DO DISCERNIMENTO, PORQUE O DOMINADOR
DÊSTE MUNDO FOI RECONHECIDO (ou discriminado). Ora, uma vez reconhecido o ditador do
mundo, e discriminado o caminho certo do errado, não há desculpa para o lamentável engano que
ainda predomina entre os cristãos. Sabem que o reino do antagonista é o mundo com suas vaidades e
exterioridades; sabem que o corpo físico, ou melhor, a personagem intelectiva é o adversário mais
ferrenho e rebelde do Espírito e, não obstante, deixam-se ludibriar pelos engodos do “Espírito menti-
roso”, e não seguem o “Espírito verdadeiro” que está no imo de cada um de nós. Mais: que é nosso
verdadeiro EU.
Quando, pois, unificados com o Eu profundo, tivermos a certeza plena da Realidade do Todo, teremos
a prova irrecusável de que só poderemos evoluir quando renunciarmos, até o âmago, às influências e
encantos do “dominador deste mundo”, que por nós já terá sido perfeitamente reconhecido: negare-
mos, então, a personagem transitória, tomaremos nossa cruz, e por ela elevaremos nossa consciência
“atuar até a Individualidade eterna, aniquilando nosso eu pequeno e deixando que nosso verdadeiro
Eu assuma o controle de tudo, sob a orientação do Cristo Interno. E então, mas só então, poderemos
dizer que não é nosso eu pequeno que vive, mas é o Cristo que vive em nós (Cfr. Gál. 2:20).
Quanta coisa poderia ter sido ainda ensinada a nós pelo Cristo de Deus através de Jesus! Mas como
pretendê-lo, se o atraso da humanidade era tão grande, que tudo foi interpretado mal pela maioria?
Daí ter que esperar o Espírito que as criaturas progredissem por meio do conhecimento científico,
para então a elas novamente revelar-se em conceitos mais profundos e sólidos, como ocorreu, por
exemplo, através da revelação que nos veio por meio de Pietro Ubaldi, na “Grande Síntese”. Que
teriam compreendido os discípulos de então, dessas verdades elevadas, baseadas numa ciência que só
agora está sendo conquistada, vinte séculos depois deles?
Muitas coisas, sim, teria o Cristo que dizer através de Jesus. Mas não desanimemos: Ele no-las dirá por
meio do Espírito verdadeiro, que é nosso Eu profundo, que “nos levará a toda a Verdade”.
E isso, porque nosso Eu profundo “jamais falará por si mesmo - característica vaidosa do eu pequeno
intelectualizado e cheio de empáfia - mas repetirá o que ouvir, revelando-nos o que virá”.
O Cristo operará, em todos aqueles que a Ele se unificarem, uma transformação radical, uma troca de
substância (transubstanciação) e o Eu profundo será unificado ao Cristo interno, e o Eu será tran-
substanciado na Divindade, e nos dirá o que tiver obtido diretamente do Cristo Cósmico e do Pai ou
Verbo (o Som que dá a tônica para a existência dos universos no Todo e em suas partes infinitesimais.
“Tudo o que o Pai tem, pertence também ao Eu”. Essa revelação é uma das mais profundas e eleva-
das que nos foi até agora dada a conhecer. Mas pode compreender-se bem.
Sendo o Pai Aquele SOM que nos deu origem e ainda constitui a vibração que sustenta nossa vida, e
sendo nós também uma vibração em processo de elevação lenta mas irresistível de subida de frequên-
cia, nós somos o Pai, porque somos Sua essência individuada e exteriorizada em nossa existência. E
nada temos, que não seja o Pai em nós; e nada possui o Pai em Si, que não transmita a nós. E tudo
isso, através do Cristo Cósmico, o Filho Unigênito, que constitui nossa essência profunda, já que o
Cristo é, precisamente, o resultado vivo da vibração da Vida.
Então, tudo o que o Eu profundo trouxer à nossa mente, é recebido da tônica do Pai, através da vibra-
ção cristônica.
Que podemos ambicionar mais, na vida, do que atingir esse ápice divino?

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SABEDORIA DO EVANGELHO

ALEGRIA MÁXIMA
João, 16:16-23a
16. “Um pouco e já não me contemplareis, e de novo um pouco e me percebereis”.
17. Perguntaram, então (alguns) de seus discípulos uns aos outros: “Que é isso que nos
diz: um pouco e já não me contemplareis e de novo um pouco e me percebereis? E:
“porque vou para o Pai”?
18. Diziam, pois: Que é isso “um pouco”? Não sabemos o que diz.
19. Percebeu Jesus que queriam interrogá-lo e disse-lhes: “Indagais sobre isso entre vós,
porque eu disse: um pouco e não me contemplareis e de novo um pouco e me percebe-
reis.
20. Em verdade, em verdade vos digo, que chorareis e vos lamentareis, mas o mundo se
alegrará; vós vos entristecereis, mas vossa tristeza se tornará alegria.
21. A mulher, todas as vezes que pare, tem tristeza, porque vem a hora dela; mas todas as
vezes que nasce a criança, já não se lembra da aflição, por causa da alegria, porque
nasceu um homem para o mundo.
22. E vós, então, agora, na verdade, tendes tristeza; mas de novo vos verei e vosso cora-
ção se alegrará, e ninguém arrebata de vós essa alegria”.
23a Naquele dia nada me perguntareis”.

Uma frase, lançada em meio à lição, perturba os discípulos; o Mestre dissera que iria para o Pai. Era o
Cristo que falava, e eles estavam entendendo que era o Jesus humano. Agora diz que “brevemente não
me contemplareis e de novo mais um pouco e me percebereis”. Essa contradição os deixa atônitos.
* * *
Antes de prosseguir, porém, analisemos os verbos theôréô que, conforme vimos (vol. 3) é mais usado
na acepção intelectual, de “ver mentalmente”; e horáô, que exprime sobretudo a visão física (vol. 1;
vol. 3), mas também indica percepção (vol. 4), conforme lemos em Sófocles (Édipo em Colona, 138)
onde Édipo, cego, diz: “vejo pela voz quem fala” (phônêi gàr hórô tò phatizómenon).
O emprego de horáô (74 vezes nos Evangelhos) é muito mais frequente que theôréô (35 vezes, menos
da metade) e os significados dos dois não obedecem a uma distinção definida. Mesmo dentro do Evan-
gelho de João, observamos que o sentido dos dois é praticamente igual, tanto um como outro referin-
do-se ora à visão com os olhos físicos, ora à percepção ou à intuição; e lembremo-nos de que a palavra
“intuição” vem do verbo latino intuéri, que significa “ver” (1).
(1) Quanto à frequência no Evangelho de João, temos: theôréô (20 vezes) em 2:23: 4, 19; 6:19, 40,
62; 7:3; 8:51; 9:8; 10:12; 12:19, 45; 14:17.19; 16:10, 16, 17, 19; 17:24; 20:6, 12, 14. E horáô
(31 vezes) em: 1:18, 34, 39, 50, 51; 3:11, 32, 36; 4:45; 5:37, 6:2, 36, 46 (2x); 8:38, 57; 9:37, 1:40;
14:7, 9 (2x); 15:24, 16:16, 17, 19, 22; 19:35, 37 e 20:18, 25, 29.
Estavam, pois, os discípulos sem entender a expressão “um pouco” (mikrón) que assinalaria o fato de
eles novamente “O verem”, com a assertiva da ida para o Pai, que parecia definitiva.
O Mestre percebe a dúvida e a explica com magnífico exemplo: o parto da mulher. Após sofrer durante
meses o peso em seu ventre, chegam as dores que a fazem aguardar com apreensão “sua hora”. Mas
também isso passa. E logo que a criança surge à luz, a alegria de mulher supera todas as angústias an-
teriores. Assim sucederá com eles.
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C. TORRES PASTORINO

Os comentadores, que em geral só percebem a materialidade, através da letra, interpretam o episódio


como referindo-se ao fato da “ressurreição”: um pouco de tempo, e serei sacrificado na cruz; mais um
pouco de tempo e me vereis ressuscitado e voltará vossa alegria, pois comprovareis que não morri.

A lição é muito mais profunda do que possa parecer à primeira leitura. Não nos esqueçamos de que o
Cristo ali estava a falar através de Jesus. Não interessava, pois, o fato de o corpo físico de Jesus apa-
recer de novo a eles ou não. Era algo mais profundo, mais maravilhoso, mais espiritual. Nem se com-
preenderia que se perdesse tempo com fatos banais e transitórios, que ocorreriam naquelas horas,
quando a humanidade teria que aproveitar e absorver, pelo aprendizado, durante milênios, aqueles
ensinamentos. Na hora do embarque de um filho para países distantes, um pai amoroso não se preo-
cupará em dar avisos a respeito de como entrar no avião, nem de como sentar-se, mas aproveitará
todos os minutos para elucidá-lo a respeito de sua vida nesses países desconhecidos, onde permanece-
rá durante anos. Por que suporíamos Jesus menos inteligente e menos prudente que nós? E por que
atribuiríamos ao Cristo, naquela oportunidade maravilhosa, a mesquinha preocupação de dar avisos
para as emoções dos discípulos, ao invés de aproveitar o ensejo para aprofundar Suas lições subli-
mes?
A tônica geral das últimas lições é constituída pelo ensino da manifestação que teriam do Cristo in-
terno. O assunto explanado era Seu regresso, por meio do Advogado (Espírito verdadeiro ou Eu pro-
fundo), que os conduziria pessoalmente a toda a verdade, que os esclareceria a respeito dos erros, do
ajustamento individual indispensável e do discernimento da verdadeira Senda; e que por fim chegaria
mesmo a transubstanciar o Eu, pois receberia tudo diretamente do Cristo e lhes comunicaria.
Chegando aí, explica por que dissera que convinha a eles que Ele voltasse ao Pai, pois se não fosse,
eles não teriam possibilidade de receber o Espírito verdadeiro.
Agora diz-lhes que não transcorrerá muito tempo entre uma coisa e outra. Eis, portanto, que se trata
do mesmo assunto: breve será minha ausência visível através de Jesus, pois breve vos verei de novo e
vós me percebereis DENTRO DE VÓS MESMOS; nós nos encontraremos e nos reuniremos para todo
o eon.
A materialidade humana e o materialismo típico das personagens dominava ainda os discípulos, como
até hoje preside aos comentadores, que querem entender tudo dentro do limitado âmbito do corpo
físico, de suas emoções, de seu intelectualismo horizontal e rasteiro. Daí a confusão e a dúvida que
deles se apoderou.
O primeiro esclarecimento é dado por uma frase iniciada pela fórmula solene, a fim de ser memoriza-
da: “Em verdade, em verdade vos digo”. Depois é feita a comparação entre a Individualidade espiri-
tual que busca o Cristo, e o “mundo” que se farta de prazeres: “vós chorareis e vos lamentareis, mas
o mundo se alegrará”.
Não interpretemos isso como em geral se faz: o mundo se alegrará PORQUE nós sofremos. Não, o
caminho natural é que o buscador do Cristo sofra, enquanto os gozadores do mundo se alegram, sem
nem se preocuparem com os outros, que eles desprezam e ridiculizam. Essa e a posição normal de
toda a humanidade em todas as épocas e em todos os climas. Em contraste com a alegria externa e
esfuziante do carnaval da vida física, constitui uma sombra a mendicância do Espírito, acompanhada
pelo choro ansioso do buscador do Cristo. Já fora isso dito: “Felizes os que mendigam o Espírito,
porque deles é o reino dos céus. Felizes os que choram, porque serão consolados” (Mat. 5:3,4). E
aqui é repetida a lição: “vós vos entristecereis, durante a busca, mas vossa tristeza se tornará ale-
gria”.
E o exemplo dado da mulher que tem um filho, dentro de nossa interpretação é muito mais real e pro-
fundo do que a interpretação vulgar até hoje apresentada.
De fato, a busca do Cristo interno pode comparar-se às ocorrências normais da vida de toda criatura,
mormente das mulheres, pois todo o transcorrer da vida no planeta, é um exercício de aprendizado
para os planos superiores. Nada é inútil, tudo é necessário. A Vida, preparou para todas as criaturas,

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SABEDORIA DO EVANGELHO

na existência física terrena, uma lição que deve ser vivida e praticada diariamente, e que servirá de
ensino prático para todos os que têm olhos de ver, ouvidos de ouvir e coração de entender. Abramos
os olhos, e o LIVRO DA VIDA nos preparará para a evolução total. Analisemos.
Inicialmente, quando “criança” (espírito novo), não há preocupações com a vida “íntima”, buscan-
do-se apenas folguedos, brincadeiras, jogos, distrações, esportes, e preparo intelectual ou seja, a cri-
ança (o espírito recém-humanizado) só se ocupa com as sensações, as emoções e o intelecto, cultivan-
do-os, o que também é indispensável a seu crescimento.
Ao começar o amadurecimento do Espírito, vêm chegando as angústias e ânsias, incompreensíveis de
início, até que se descobre que se está dando o nascimento do AMOR, a vida íntima que desabrocha.
Sente a moça a necessidade de encontrar uma complementação íntima para a vida do coração, e co-
meça a buscar alguém que a ela se una, a sua “metade” que lhe falta e que a completará. É o Espírito
que aspira a encontrar seu Eu profundo, representado no Homem que deverá chegar, para nela colo-
car a semente do Cristo interno. Esse simbolismo belíssimo foi dado no nascimento de Jesus, numa
lição imperecedora. Maria encontra e é fecundada por um homem, cujo nome é dado; mas como ele
representava o Espírito verdadeiro, o Eu profundo, o Espírito Santo, aboliu-se a união humana e ape-
nas se fala na descida desse Espírito (Eu profundo) que envolveu Maria em Sua sombra. Por isso o
evangelista deixa de lado José e só fala no Eu profundo que se une a Maria e produz o nascimento do
Cristo.
Depois vem a fase do namoro e do noivado (assinalada no Evangelho em relação a Maria), quando o
Espírito julga ter descoberto sua contraparte que o completará, reintegrando-se a unidade bipartida.
Ao atingir o matrimônio, dá-se o primeiro contato, a primeira união com o Eu profundo: a mulher,
realmente penetrada, em profundidade, pelo Eu superior, sente a máxima felicidade: unificou sua per-
sonagem com sua Individualidade. Mas não se satisfaz: quer ir além. E essa comparação da união
com o Eu pelo matrimônio, está nos textos de todos os místicos, de qualquer corrente, e até na Bíblia,
que classifica de “adultério” o afastamento do eu pequeno ao buscar consolações exteriores ao Eu
profundo.
Após haver conseguido vários “encontros” e bastantes “contatos”, representados sempre pela união
sexual, em que temos “dois corpos formando um só corpo”, começa a surgir no imo do coração da
mulher o desejo ardente de produzir o 'fruto” desses encontros: o FILHO, trazido a ela pela Individu-
alidade, pelo Espírito verdadeiro: é o Cristo, que se vai plasmando lentamente em suas entranhas.
Durante todos os meses de gravidez, quando o buscador já sente em si a presença do Cristo, mas ain-
da não O encontrou, em Sua plenitude, a mulher sente dores, torturas, temores de toda espécie, mas
passa a pensar exclusivamente no Cristo: no filho que vai nascer.
É o período de sofrimento que sempre antecede o nascimento do Cristo em nós, denominado pelos
místicos como a “noite escura” (cfr. vol. 3). Ao aproximar-se a “hora” mística, aumentam as apreen-
sões e as dores de parto chegam “como um ladrão à noite”, de que fala o próprio Cristo (Mat. 24:8 e
Marc. 13:8; vol. 7) e que Paulo glosou (1.ª Tess. 5:1-3).
No entanto, terminado o trabalho de parto, ao surgir a criança, a mulher experimenta esquecimento
total das dores e aflições, pois tem diante de seus olhos o novo homem que produziu. Então se torna
completamente MULHER, amadurecida, tal como o Espírito que fez nascer em si o Cristo, se torna
ADEPTO. Assim também o buscador do Cristo esquece todas as angústias e ânsias, ao contemplar o
Cristo que nele nasceu e que vem “morar”, juntamente com o Pai, em seu âmago.
E se, naquele momento os discípulos estavam tristes, que tivessem a certeza de tratar-se de um estado
passageiro, pois o Cristo voltaria a eles, de novo os veria, e eles O perceberiam, e então a alegria
mais radiante encheria seus corações, alegria que ninguém, jamais e em nenhuma hipótese, teria ca-
pacidade de arrebatar deles.

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C. TORRES PASTORINO

A ORAÇÃO
João, 16:23b-33
23. ... “Em verdade, em verdade vos digo, se algo pedis a meu Pai em meu nome, ele vos
dará.
24. Até agora não pedistes nada em meu nome: pedi e tomei, para que vossa alegria seja
completa.
25. Essas coisas vos falei em parábolas: virá a hora em que já não vos falarei em parábo-
las, mas abertamente vos anunciarei a respeito do Pai;
26. naquele dia, pedireis em meu nome e não vos digo que eu rogarei ao Pai por vós,
27. pois o próprio Pai gosta de vós, porque vós me amastes e crestes que eu sai de Deus.
28. Sai do Pai e vim ao mundo, de novo deixo o mundo e volto ao Pai”.
29. Disseram seus discípulos: Eis que agora falas claramente e não falas mais em pará-
bolas:
30. agora vemos que sabes todas as coisas e não tens necessidade de que alguém te per-
gunte; nisso acreditamos que saístes de Deus.
31. Respondeu-lhes Jesus: “Agora credes?
32. Eis que chega a hora, e já chegou, para serdes dispersados, cada um para seu próprio
(lado), e me deixareis só; mas não estou só, porque o Pai está comigo.
33. Eu vos falei estas coisas, para que tenhais paz em mim. No mundo tereis tribulações,
mas tende bom ânimo: eu venci o mundo”!

A afirmativa, precedida da fórmula solene ámen, ámen (em verdade, em verdade), constitui uma rea-
firmação da promessa já feita: uma vez mais se reforça a garantia de serem atendidas as orações, e ago-
ra também é repetido: “se pedis ... em meu nome” (como em João 14:13, 14, 26; 15:16; 16:23 e 24:26).
Assevera, em seguida, que até aquele momento, nada fora por eles pedido “em seu nome”. E insiste:
“Pedi e tomai, para que vossa alegria seja completa”. Interessante observar que não repete “recebe-
reis”, mas adiante logo “tomai”.
Outro ponto salientado é que não mais falará o Cristo em parábolas, mas abertamente e, nessa ocasião,
o Pai atenderá diretamente a cada um, em vista do amor Dele para com Suas criaturas.
A frase “saí do Pai” é dada em duas formas, segundo os códices: ek toú patrós (em B, C, L, 33 etc.) e
parà toú patrós (em aleph, A, delta, theta, etc.).
Embora semelhantes, as duas formas diferem substancialmente, equivalendo à distinção de sentido
existente entre as preposições latinas ex e ab. A primeira denota uma saída de dentro para fora, do
centro para a periferia, do âmago para a superfície; a segunda um afastamento a látere. A discussão
interessa à teologia. Se não for bem interpretada em profundidade, essa frase, assim como está cons-
truída, pode dar como resultado a confirmação de uma dualidade de essências (tanto de existências
como de substâncias), pois pode entender-se que o mundo está fora do Pai topograficamente.
Com a notícia de que “saíra do Pai e viera ao mundo, e agora saía do mundo e voltava ao Pai”, os dis-
cípulos se alegram, abrindo-se-lhes o rosto em largo sorriso de satisfação incontida. Julgaram que fi-
nalmente haviam entendido o processo realizado por Jesus: estava com o Pai de onde saíra para encar-
nar na Terra: agora desencarnava na Terra para regressar para junto do Pai.

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Mais uma vez, com isso, fala o Evangelho tranquilamente no fato da reencarnação, sem explicá-la,
porque era teoria francamente aceita sem a menor dúvida por todos. Diz-se que o Espírito de Jesus saiu
do Pai e reencarnou no mundo, como ocorre com todas as criaturas sem exceção, a cada dia e a cada
minuto. Nada de estranhar, para quem esteja a par do processo natural reencarnatório. Só não o vê,
quem não quer, ou não pode, por falta de capacidade intelectiva ou por deformação intelectual plasma-
da desde os primeiros anos de vida atual.
Para os discípulos, plenamente conscientes do fenômeno reencarnatório, a frase constituiu uma revela-
ção de meridiana clareza: não há mais necessidade daquelas parábolas que tanto torturavam suas inte-
ligências pouco afeitas à filosofia. A declaração taxativa constitui para eles prova categórica de que
seu Mestre “sabia tudo”, revelando-nos que, apesar do diuturno contato com eles, a didática metafórica
utilizada no ensino de Jesus deixava, se não em todos, pelo menos na maioria, certa dúvida a respeito
da competência do professor ...
Mas agora eles têm a prova de que seu Mestre sabe: E fala tão claro, que não há mister fazer pergun-
tas! Em vista disso, surge neles a convicção de que realmente saiu de Deus!
O Mestre não pode evitar de fazer ironia: “só agora acreditais”? Deve ter sentido pequeno choque ín-
timo: de que tinham valido aqueles longos dias de pregação, de curas, de demonstração de poderes
extraordinários, de sacrifícios, de bondade? ... Só agora acreditais?!
Mas já é bem tarde, por que está soando a hora em que todos serão dispersados, cada um para seu lado,
e Ele será abandonado por todos, e na solidão da águia que nas alturas se libra, enfrentará sozinho o
grande passo da dor! ... Só? Não: o Pai estará sempre com Ele, habitando em Seu coração divino que
se humanizou por amor às Suas criaturas.
Apesar de tudo, Seu amor não se perturba: “Falei-vos isso para terdes paz em mim.”
Porque o mundo lançará sobre todos os discípulos o sofrimento que tortura e pisa. Mas que não desa-
nimem, porque “Eu venci o mundo”. Unidos a Ele, também os discípulos vencerão todo o arroxo das
incompreensões e das perseguições.

Vamos continuando a receber ensinamentos cada vez mais profundos e elevados a um tempo. E como
a prece é uma necessidade vital para a criatura humana, para que o periférico não perca contato com
o central e o superficial não deixe de ligar-se ao âmago, e a criatura não se desligue do Criador, e o
filho não se isole do Pai, e a Centelha não se destaque do Foco de Luz - assim nesta hora solene de
despedida de Sua posição sensível volta o Cristo a repetir o ensino, do qual, logo a seguir (cap. 17)
dará o exemplo vivo, na prece pela unificação de todas as criaturas com a Divindade.
Reitera a promessa, que é uma garantia absoluta. Mas já agora, podemos analisar aqui, em profundi-
dade metafísica, Suas palavras. Recordemos, antes, que NOME é “a manifestação externa da essência
profunda”. Isto é, o nome “mesa” exprime a essência profunda desse objeto, seja qual for seu tama-
nho, sua altura, sua forma, ou a matéria de que seja feita: “mesa” é a manifestação externa da essên-
cia desse objeto. E assim ocorre com qualquer outro exemplo: cinzeiro, cão, bananeira, quadrado,
laranja, menina, ametista, rosa, Pitágoras, etc.
Ora, pedir em meu nome exprime, nestas circunstâncias, um sentido muito mais amplo do que se pos-
sa supor à primeira vista. Não basta dizer com palavras: “Pai, eu te peço em nome de Jesus” Cristo
Teu Filho”! Não! Aqui não se ensina nem se exige qualquer fórmula mágica e ritualística, para que o
resultado seja garantidamente conseguido. Nada disso. Essa fórmula é empregada em milhares de
preces tradicionais durante milênios, sem que a resposta tenha obrigatoriamente chegado. E o Cristo,
bem o sabemos, não pode mentir. De que se trata então?
Se o NOME é a manifestação da essência profunda, a expressão “em meu nome” significa logica-
mente EM MINHA ESSÊNCIA.
Explicamos: se realmente tivermos conseguido aquilo que o Cristo ensinou pela boca de Jesus, ou
seja, se tivermos unificado nosso espírito (personagem) com nosso Espírito (individualidade ou nosso

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Eu profundo), e se tivermos unificado esse nosso Eu profundo com o Cristo ou Mônada divina resi-
dente em nosso coração, nós verdadeiramente estaremos NA ESSÊNCIA do Cristo, teremos mergu-
lhado (batismo) e penetrado (matrimônio) no Nome sacrossanto de Cristo, diante do Qual se dobra
todo joelho dos que estão nos céus, na Terra e debaixo da terra” (Filip. 2:10).
Então se nessa situação, “se em minha essência (ou “em meu nome”) pedis algo a meu Pai, Ele vos
dará”.
Com essa condição de cristificados, por sermos UM com a essência crística, bastará querer para que
se realize o desejo; se tivermos fé (isto é, fidelidade harmônica ou sintonia vibratória), embora não
estejamos nos mais elevados graus do adeptado; mas ainda que esse contato seja um ponto minúsculo
“como um grão de mostarda”, já teremos poderes insuspeitáveis para o homem comum (profano). O
que se não dará, portanto, se já nossa posição estiver assegurada pela unificação com a essência
crística, com Seu Nome! Essa é a meta.
E o Cristo, quase numa repreensão, admoesta Seus discípulos: “Até agora nada pedistes em meu
nome!” Com Jesus ali presente, Nele confiavam, não experimentando a necessidade angustiosa de
gritar por socorro: Jesus supria-lhes as deficiências espirituais, psíquicas e físicas. Mas o aviso serve
para o amanhã deles e para o nosso hoje.
É de notar-se a segunda parte da proposição, onde mais não se repete pedi e “recebereis”; categori-
camente o Cristo afirma: Pedi e TOMAI. A ação (érgon) é tão automática, que bastará mentalizar o
desejado e estender a mão para segurá-lo. Então, nessa hora, “nossa alegria será completa”, pois
estaremos unificados com o Cristo e, logicamente com o Logos (Som criador), e nossa vontade será a
Vontade do Criador. Portanto, também criaremos tudo o que desejarmos, no momento exato em que o
desejamos.
Prudentemente, isso não é concedido a quem não tenha conseguido essa unificação: poderia pedir e
obter coisas prejudiciais à sua evolução espiritual. Daí as dificuldades encontradas nessa estrada
pelas criaturas: só ao atingir esse altiplano evolutivo, quando já adquiriram capacidade de discerni-
mento perfeito, é que terão esse dom divino, pois nesse estágio saberão sempre o que pedir correta-
mente.
E isso que explica o grande poder (exousía) e a grande força (dynamis) de Jesus, ao realizar as curas
maravilhosas, cujo relato lemos nos Evangelhos. Ao atingir esse ponto não correremos risco de dirigir
nosso desejo para coisas externas e pedras de tropeço para nós e para os outros pois, tendo a visão
nítida da essência das coisas, que vemos através dos olhos do Pai, sabemos o que será melhor para
adiantar a evolução espiritual de cada um.
Que essas palavras possuam esse “sentido oculto”, não há dúvidas: o Cristo no-lo avisa aqui mesmo:
“até agora vos falei em parábolas”. Inclusive as palavras que acabamos de analisar constituem pará-
bolas, comparações, cujo significado só mais tarde nos seria revelado: “virá a hora em que já não vos
falarei em parábolas, mas abertamente vos anunciarei a respeito do Pai”. É o que ocorre hoje, e por
isso podemos claramente revelar o sentido profundo de Suas palavras.
Quando chegar essa oportunidade, e tivermos conseguido ser UM com o Cristo e com o Pai, então
“pediremos em nome do Cristo” ou seja, pediremos vivendo na essência do Cristo. E Ele acrescenta,
esclarecendo mais: “não vos digo que eu, o Cristo, rogarei ao Pai por vós, pois o próprio Pai vos
ama, tendo em vista que me amastes e que crestes que saí de Deus”. Claro. O amor, amor de união
profunda, de unificação de dois Espíritos num só Espírito, matrimônio místico inconcebível ao ser
humano profano, faz-nos sentir que o Cristo é uma individuação da Divindade.
Aqui temos que interpretar o texto original com todo o cuidado. O grego geralmente aceito e as tradu-
ções vulgares trazem “saí de Deus”. Ocorre, porém, que falta o artigo diante do termo theós nos me-
lhores testemunhos (no papiro 5, em aleph original, em A, theta, 33 em Crisóstomo, etc.) o que dá um
sentido todo especial. Não se trata de um Deus (ho theós), ou seja, “O DEUS dos judeus ou cristãos”,
mas da DIVINDADE, o Pensamento Inteligente a Absoluto (cfr. H. Rohden, “Que vos parece do
Cristo”?, ed Sabedoria, Rio, 1970).

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Logo a seguir, o Mestre explica com toda a clareza o pensamento: num simples versículo, englobou
todo o complexo involução-evolução do ser (que Pietro Ubaldi explicou em “Deus e Universo” e em
“A Grande Síntese”). Realmente, já o vimos em volumes anteriores (cfr. sobretudo vol. 3), que o Espí-
rito Santo (Luz Incriada, Divindade Absoluta, Potência), ao entrar em Ato se manifesta sob o 2.º as-
pecto de Som Criador (Logos, Verbo, Pai) e o resultado é o Cristo (ou Filho), que aqui afirma taxati-
vamente que “saiu do Pai” (ek toù patrós), da substância e essência do Pai, chegando até a matéria; e
agora, tendo de há muito completado o ciclo vibratoriamente descendente, e estando no estágio eleva-
díssimo da aquisição de mais um degrau no ciclo ascendente, “volta ao Pai”.
Eis um resumo esquemático:
descida: LUZ (Divindade) - SOM (Pai, Verbo) - MATÉRIA (Filho)
subida: MATÉRIA (átomo) - ENERGIA (psiquismo) - ESPÍRITO (divinização)
A teologia denomina isso com uma palavra especial: “O Filho procede do Pai.” Mas a palavra usada
pelo Cristo é “sair de dentro de” (ek poreúô), e não um simples “proceder”. Para melhor compreen-
são, podemos utilizar um exemplo grosseiro e imperfeito: é como o vapor que sai da água, conservan-
do, porém, a mesma substância (dóxa), a mesma natureza (ousía), a mesma vida (zôè), a mesma força
(dynamis), a mesma potência (exousía), a mesma ação (érgon), a mesma plenitude (plêrôma), embora
sob um aspecto diferente, e com diferente atividade (orgè).
Como vemos, temos aqui as mais sublimes lições em termos simples e concisos, registrados no Evan-
gelho de João. No entanto, não esqueçamos que se trata de mero resumo esquemático do ensino dado,
para que fosse passível de ser lido também por profanos. Em sua incapacidade de penetrar o âmago
do ensino, ficariam na periferia, admirando a beleza e entendendo dele e dele extraindo apenas o sen-
tido literal (pedra com que construiriam templos magnificentes), ou no máximo o sentido alegórico
(água, com que “fariam” cristãos, pelo batismo), mas sem conseguir penetrar no simbolismo místico
profundo (vinho, pois o utilizado na “missa é pura matéria). Só quem bebeu o vinho da sabedoria po-
derá assimilar em si o significado real dessas palavras.
A lição deve ter descido a esses pormenores, embora não registrados, porque perigosos, já que não se
deve dar pérolas aos porcos (seres animalizados) nem coisas santas aos cães” (profanos) conforme
lemos em Mateus (7:6).
Disso constitui prova irrefutável a alegria que manifestam os discípulos, regozijados pela visão clara
da Verdade: “Agora falas abertamente, e não em parábolas; agora vemos que sabes todas as coisas,
sem que precisemos perguntar; agora vemos que saíste da Divindade” (aqui novamente sem artigo).
A expressão alegre é bem recebida pelo Cristo, mas não pode deixar de manifestar Sua estranheza,
porque “só agora” chegaram a essa conclusão, depois de tantas vezes haver explicado a mesma coi-
sa: “só agora credes? Agora que está chegando a hora, ou melhor, que já chegou a hora em que se-
reis dispersados cada um para seu lado deixando-me só”? Aqui descobrimos, em evidência, a interfe-
rência da humanidade de Jesus, da personagem que, embora unificada com o Cristo, não perdeu suas
características de ser humano. Com Sua sensibilidade apuradíssima, sabe que todos fugirão temero-
sos diante do grande passo iniciático sangrento que está para dar, com a avalanche de violência que
sobre Ele se derramará por obra dos homens. Isso atemorizará os discípulos que fugirão, com medo
de serem envolvidos pelo turbilhão de força que, pela Vontade divina, se elevará do Anti-Sistema,
para “provar” ou experimentar (páthein) qual o grau evolutivo da força íntima de Jesus, a ver se era
capaz de submeter-se sem medo à morte violenta “de Osíris”, tal como ocorrera, milênios antes, com
aquele outro Avatar.
Logo a seguir, levanta Seu ânimo forte, quase arrependendo-se do que dissera: “Mas não estou só:
porque o Pai está comigo”! Seu átimo de fraquejamento humano é logo corrigido pela voz do Cristo,
que Lhe recorda que, sendo Ele e o Pai UM, jamais poderá o homem que vive Neles, em quem Eles
vivem, considerar-se só; poderá ser abandonado pelas “Centelhas” encarnadas, mas que importa, se
Ele está no Foco irradiador das Centelhas? Que importa se as faíscas que partem da fogueira se
afastem do tronco que arde, se este continua no coração da pira?

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Já dissera tudo o que lhe fora possível dizer.


Profere então o fecho da lição: “Disse-vos essas coisas para que tenhais paz em mim”. E é apenas
isso que vale: a PAZ, mas a PAZ do Cristo, tema que será retomado ao final do encontro, depois que
houver proferido a oração pela unificação da criatura com o Criador. Com essa PAZ no coração,
podiam ter confiança tranquila e ânimo forte, pois Ele mesmo já vencera o mundo.
Todo o transcurso percorrido no Anti-Sistema, toda a peregrinação pela área do pólo negativo, foram
superados pelo Cristo interno na pessoa humana de Jesus, como o está sendo em cada um de nós: “e é
com o fim de vos preparar para isso, que venho fazendo convosco - desde os movimentos primitivos da
matéria até o Espírito - tão longa viagem” (P. Ubaldi, A Grande Síntese, cap. 80, pág. 312).
Depois de toda essa escalada, em inúmeras encarnações e reencarnações nos reinos mineral, vegetal,
animal e hominal, segue agora para encarnar no reino celestial ou reino de Deus. Haverá prova mai-
or, mais positiva, mais clara, mais evidente do fato inconteste da reencarnação de todos os seres? Que
ensino mais convincente que este? o circuito realizado pela Centelha divina individuada, através de
todas as formas que gradativamente a Mônada vai plasmando e forçando, de dentro para fora, a evo-
luir, até atingir o ápice do processo, ao passar do hominal ao angélico, do reino humano ao reino de
Deus. Sem a encarnação e a reencarnação, jamais seria isso possível.
Cumprida toda essa escalada, após “ter vencido o mundo”, ou seja, o Anti-Sistema, “deixa o mundo e
volta ao Pai”. Vitória total, absoluta, irrefutável, que poderá ser obtida e DEVERÁ ser obtida por
todas as criaturas humanas, por todos os seres, mais rápida ou mais vagarosamente, de acordo com o
Amor que vibre dentro de cada ser e da compreensão de cada um a respeito da realidade e da Verda-
de.
O Cristo nos guia à Verdade e à Vida, pois Ele constitui, dentro de nós, o único caminho que leva ao
Pai e ao Espírito.
E agora acompanhemos, de joelhos se possível, a grande Prece que o Cristo dirige ao Espírito, à Luz
Incriada, ao Absoluto, em Seu aspecto de Pai, de Som criador, de Logos divino.

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UNIFICAÇÃO COM DEUS


João, 17:1-26
1. Jesus falou essas coisas e, levantando seus olhos para o céu, disse: “Pai, chegou a
hora: transubstancia teu filho, para que o filho te transubstancie.
2. Do mesmo modo que lhe deste poder sobre toda carne, para que dê vida imanente a
todos os que lhe deste.
3. A vida imanente, porém é esta: que te conheçam, o único Deus verdadeiro, e quem
enviaste. Jesus Cristo.
4. Eu te transubstanciei sobre a Terra, completando a ação que me deste para fazer.
5. E agora transubstancia-me tu. Pai, em ti mesmo, com a substância que (eu) tinha em
ti antes de o mundo ser.
6. Manifestei tua essência aos homens que me deste do mundo. Eram teus e mos deste e
realizaram teu Logos.
7. Agora conheceram que todas as coisas que me deste estão em ti.
8. Pois as palavras que me deste, dei a eles, e eles receberam e souberam verdadeira-
mente que saí de ti, e creram que tu me enviaste.
9. Eu rogo por eles; não rogo pelo mundo, mas por aqueles que me deste, porque são
teus.
10. E tudo o que é meu é teu, e o que é teu é meu; e neles sou transbustanciado.
11. Eu já não estou no mundo, mas eles estão no mundo; eu vou para ti. Pai Santo, guar-
da-os em tua essência que me deste, para que sejam um assim como nós.
12. Quando eu estava com eles, eu os guardava em tua essência que me deste e eu os pro-
tegi, e nenhum deles se aboliu senão o filho da abolição, para que a Escritura se cum-
prisse.
13. Agora, porém, vou para ti e falo estas coisas no mundo, para que tenham a minha
alegria, que se plenificará neles.
14. Eu dei a eles teu Logos, e o mundo os odiou porque não são do mundo, como eu não
sou do mundo.
15. Não rogo que os tires do mundo, mas que os guardes do mal.
16. Do mundo não são, com eu não sou do mundo.
17. Santifica-os na verdade: o teu Logos é a Verdade.
18. Como me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo.
19. E sobre eles me santifico a mim mesmo, para que sejam também eles santificados
verdadeiramente.
20. Não somente por eles rogo, mas também pelos que, por meio do Logos deles, forem fi-
éis a mim.
21. Para que todos sejam um, como tu, Pai, em mim e eu em ti, para que também eles se-
jam um em nós, a fim de que o mundo creia que tu me enviaste.
22. A substância que me deste, eu dei a eles, para que sejam um como nós (somos) um.

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23. Eu neles e tu em mim, para que sejam completados em um, a fim de que o mundo co-
nheça que tu me enviaste e os amaste, corno amaste a mim.
24. Pai, os que me deste, quero que onde eu estou, estejam também eles comigo, para que
vejam a substância que me deste, porque me amaste antes da materialização do mun-
do.
25. Pai Justo, também o mundo não te conheceu, mas eu te conheci e estes conheceram
que tu me enviaste.
26. E eu lhes dei a conhecer tua essência, e darei a conhecer, para que o amor que me
amaste esteja neles, e eu (esteja) neles”.

Figura “ORAÇÃO NA CEIA” – Desenha de Bida, gravura de Leopold Flameng

Eis-nos chegados a um dos pontos mais sublimes do Evangelho, numa elevação mística ainda não
igualada, e cuja sintonia nos alça aos páramos das altitudes indizíveis em que o intelecto tonteia e a
mente se infinitiza, mergulhando nas imponderáveis vibrações da Divindade em nós e ofuscando-nos
com a Luz Incriada que nos impregna o Espírito.
O capítulo 17 é conhecido, desde o século XVI, como “Oração Sacerdotal”, título dado pelo luterano
Chytraeus (Kochhafe, 1600), embora Lagrange tenha proposto “Oração pela Unidade”. Nela verifica-
mos a expressão das mais íntimas aspirações do Cristo em relação às individualidades humanas. Diz
Cirilo de Alexandria (Patrol. Gr. vol. 74, col. 505-508), que transparece neste trecho a figura nítida do
Sumo Sacerdote que intercede pelos espíritos sacerdotais que vieram ao mundo.
Façamos uma análise rápida, deixando os comentários para a segunda parte.

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A expressão “toda carne” (pãs sárx em grego e KOL BAZAR em hebraico) expressa tudo o que possui
corpo físico denso (cfr. Gên. 7:21).
O nome “Jesus Cristo” ainda não era usado no tempo de Jesus, tendo aparecido pela primeira vez nas
epístolas de Paulo, devendo notar-se, entretanto, que o Evangelho de João lhes é posterior em data.
Alguns comentadores (como Huby, 'Le Discours après la Cène”, Paris, 1932, pág. 130) julgam, com
razão, que se trata de um acréscimo tardio, e que no original devia estar apenas “o Cristo”. Na época o
Mestre encarnado era denominado Kyrios lêsous, “Senhor Jesus”, ou “O Cristo”, atributo que se acres-
centava a Seu nome como predicativo (cfr. “Todo o que crer que Jesus é o Cristo”, 1.ª João, 5:1 e
2:22).
Traduzimos apóllymi por “abolir”, e não “perder”. A idéia de “perdição” está hoje, por efeito de uma
tradição milenar, dirigida às personagens, muito ligada à idéia de “inferno”. E aqui não se trata disso
absolutamente. Adotamos o verbo ABOLIR porque é derivado direto de APOLLYMI, através do latim
ABOLIRE (cfr. AP+OLLYMI com AB+OLIRE, conforme testemunho de Liddell & Scott, Greek En-
glish Lexicon, 1966, pág. 207; Boisacq, Dictionnaire Etymologique de la Langue Crecque, 1950, pág.
698 e 696; Juret, Dictionnaire Etymologique Grec et Latin, 1942, pág. 195).
A expressão “filho de” já foi bem estudada (vol. 1).
O aceno ao cumprimento da Escritura só é encontrado nos salmos 41 e 109, no Antigo Testamento.
Traduzimos toú poneroú, por “do Mal” (neutro), como em Mat. 6:13, e como encontramos em outros
passos do próprio João (3:19; 7:7; 1.ª João, 2:14; 3:12 e 5:19). Essa interpretação é aceita por Agosti-
nho, João Crisóstomo, Tomás de Aquino, Zahn, Knabenbauer, Lagrange, Lebreton, Huby e outros. Há
quem prefira o masculino (“do mau” ou maligno) como Loisy, Bauer, Tillemann, Durand, Bernard.
De acordo com o que explicamos em nossos comentários do trecho, a seguir , resolvemos traduzir di-
retamente “nome” por “essência”, a fim de facilitar desde logo o sentido real da frase.

Procuremos penetrar mais profundamente o significado verdadeiro e místico dessa prece, na qual
sentimos patente a alma de Jesus, o ser humano chegado à perfeição concebível na escala da humani-
dade terrena neste ciclo: é Ele, JESUS, quem ora ao Pai, nos últimos momentos antes de caminhar
para o terrível sacrifício que tanto O elevaria na escalada evolutiva. Aqui temos, pois, palavras do
Jesus Homem.
Lendo com atenção o texto, verificamos que possui três partes:
1.º - Jesus ora por Si mesmo (vers. 1 a 5)
2.º - Jesus ora por Seus discípulos (vers. 6 a 19)
3.º - Jesus ora pela humanidade toda (vers. 20 a 24).
A isso é acrescentada uma conclusão (vers. 25-26) que resume a prece. Caminhemos devagar.
1.ª PARTE (vers. 1 a .5)
Sentindo em Si o Cristo e o Pai, mas experimentando também a atuação de Sua consciência “atual”
centrada na personagem, dirige Jesus Sua mente para as altas vibrações sonoras do Logos, o que nos
é revelado com a expressão “levantando os olhos ao céu” (cfr. João, 11:41). Com esse gesto, de-
monstra ter entrado em contato sintônico com o Logos e a Ele se dirige, invocando-o, com o Nome de
Pai, e a Ele confessando que sabe ter chegado Sua hora de experimentação dolorosa, para total ani-
quilação de Seu Eu humano, a fim de plenificar Sua absorção na substância do Pai: abandonaria
apenas a expressão visível para as criaturas, Sua forma física, mas Se transformaria em Som.
Esse o primeiro pedido: que o Logos transubstancie em Si o Filho, a fim de que este absorva o Logos:
que o Filho possa transformar-se em som, para que o Som possa substituir a substância do Filho.

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E esse pedido é plenamente justificado por Jesus: é indispensável que essa transubstanciação se efetue
Nele, do mesmo modo que Ele recebeu do Pai o poder sobre todas as criaturas, para dar-lhes também
a elas todas a Vida Imanente, a vida crística divina.
Aí encontramos, pois, uma gradação: Jesus, o Espírito antiquíssimo (vê-lo-emos) e de evolução plena,
recebeu do Pai um grupo de seres, a fim de que se incumbisse de providenciar a evolução deles. A
todos esses que Lhe foram dados, Ele devia dar a Vida Imanente, fazendo despertar neles a Centelha
Crística adormecida, de forma a que pudesse nascer o Cristo em cada um. Assim como tinha essa mis-
são, do mesmo modo Ele precisa, para realizá-la, estar totalmente transubstanciado no Pai. E aqui,
mais uma vez, compreendida a profundidade desse ensino, verificamos a leviandade de traduzir do-
xázô por “glorificar”: que importa a glória a um Espírito superior?
Logo a seguir, mais para conhecimento dos discípulos ali presentes que como parte da prece, Jesus
abre um parênteses e explica: “a vida imanente consiste nisso: que Te conheçam (que tenham a gnose
plena) a Ti, que és o único Deus verdadeiro, e que conheçam Jesus, o Cristo que enviaste à Terra”.
Mais uma vez aparece a declaração taxativa de Jesus, que afirma que não é Deus. Os intérpretes tor-
cem o sentido, afirmando ter Jesus dito que só YHWH é Deus, e não os ídolos. Mas não é isso que se
deduz do contexto, onde não haveria razão para falar de outras crenças. Ao contrário: é feita aqui,
com toda a clareza possível, a distinção absoluta entre o Pai e o Filho: só terá a vida imanente quem
tiver a gnose de que só há um único Deus verdadeiro para a humanidade: é o Pai; mas que o Filho,
Jesus Cristo, que foi enviado pelo Pai, não é Deus nesse sentido estrito e filosófico (embora em senti-
do metafísico todos sejam Deus, já que a Divindade está imanente em todos e em tudo). Na Terra, o
único que verdadeiramente manifesta a plenitude da Divindade em Si - e que portanto merece o título
real de Deus - é o Pai, o plenamente transubstanciado pelo SOM, que o Antigo Testamento denomina
Melquisedec, expressão absoluta do Logos Planetário.
Essa missão de Jesus, de conceder vida imanente, está condicionada à fidelidade sintônica de cada
um (cfr. João, 3:15, 16, 36; 5:24, 30; 6:33ss; 7:28 e 20:31), embora aqui não venha citada essa ne-
cessidade de “fé” ou seja, de fidelidade.
A seguir, declara o que realizou: “Eu Te transubstanciei sobre a Terra”, trazendo fisicamente à alma
e ao corpo do planeta e a todos os seus habitantes, a vibração do Som Divino; e “completando a
ação” (tò érgon teleiôsas) “que me deste para fazer”.
Nesta expressão teleiôsas to érgon entrevemos não apenas a complementação ou aperfeiçoamento da
ação, nem tampouco a finalização do trabalho que Lhe fora dado, já que chegara ao fim de Sua tarefa
como encarnado entre os homens; mas descobrimos, no sentido espiritual, qual a realidade da encar-
nação de Jesus, que foi “tornar perfeita, para chegar aos homens, a energia de Deus”. Poderíamos
ler: “Eu Te transubstanciei sobre a Terra, fazendo ter ação perfeita a energia que me deste para es-
palhar em todos.” Como tenha sido isso obtido, lemos em Paulo: “Jesus Cristo, sendo rico, tornou-se
pobre por amor de vós, para que, por Sua própria pobreza fôsseis enriquecidos” (2.ª Cor. 8:9); e ain-
da: “Cristo Jesus, que subsistia em forma de Deus, não julgou dever apegar-Se a isso, mas esvaziou-
Se tomando a forma de escravo, tornando-Se semelhante aos homens” (Filip. 2:6-7). Tudo isso foi
realizado de acordo e para obedecer à Vontade divina (cfr. João, 4:34; 5:36; 8:29; 9:4 e Luc. 2:49).
Tendo realizado Sua tarefa nada fácil, vem o pedido final para Si mesmo: Agora, transubstancia-me
Tu, Pai, em Ti mesmo (parà seautôi), com a substância que (eu) tinha (têi dóxei hêi eichon) em ti (parà
soi) antes de o mundo ser (prò toú tòn kósmon eínai).
Em unificação perfeita com o Pai, vivia Jesus, o Espírito humano - de outro planeta do Sistema de
Sirius - de onde foi convocado para cuidar carinhosamente da humanidade que um dia habitaria o
planeta Terra (cfr. vol. 1).
Conhecendo isso, entendemos plenamente o sentido desse versículo: trata-se do veemente desejo de
voltar àquele estado batífico, ao lado de Seu Pai, em Sua mesma substância, tal como ocorria antes
que o planeta Terra existisse, Desejo esse que ainda não pôde ser realizado, já que Jesus permanecerá

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SABEDORIA DO EVANGELHO

conosco até o fim do eon (cfr, Mat, 28:20), não obstante o sacrifício que isso constitui para Ele (cfr.
Mat. 17:16; Marc. 9:18; Luc, 9:41; vol. 4).

2.ª PARTE (vers. 5-19)


Inicia declarando que conseguiu “manifestar-Te a Essência (o nome) aos homens que me deste (tiran-
do-os) do mundo”. Essa manifestação foi a revelação da substância do Pai (já vimos o que significa
filosoficamente o termo “nome”). Essa substância ou essência foi revelada àqueles que, tendo sido
retirados do mundo (extraídos do Anti-Sistema) ingressaram sintonicamente no Sistema, ao serem
admitidos na Escola Iniciática Assembléia do Caminho.
Todos esses, que foram dados pelo Pai a Jesus, conseguiram “realizar o Logos” em si mesmos, no
Espírito, embora em suas personagens não houvessem conseguido ainda certos graus “iniciáticos”
superiores, e por isso ainda fraquejavam na parte emocional e intelectual. A expressão “realizar o
Logos”, acreditamos, poderia ser traduzida em linguagem científica moderna, em “sintortizar o Som”
em si mesmos, captando perfeitamente a onda emitida, em alta fidelidade.
Esses é que teriam que agir, doravante, em lugar de Jesus. Era justo, por isso, orar por eles, por qua-
tro motivos:
1) tinham sido tirados do Anti-Sistema (ek toú kósmou) espiritualmente, mas nele
permaneciam com suas personagens;
2) pertenciam ao Pai (soi êsan);
3) foram dados ao Filho (k'amoi autoús édokas); e
4) não reagiram ao chamamento, mas obedeceram prontamente em boa-vontade, dis-
pondo-se aos sacrifícios requeridos pela missão árdua que lhes era cometida, tendo
realizado o Logos planetário em seus corações.
Portanto, já SABEM, já tem a gnose, de que tudo o que foi dado ao Filho, “está no Pai” (parà soú
eisin). E isso porque receberam (élabon) as palavras (tà rhêmata) que, recebida” do Pai, Jesus lhes
revelou (cfr. João, 8:40; 12:49; 15:15 e 17:14), e por isso tiveram conhecimento pleno de que Jesus, o
Cristo, era Aquele que saíra do Pai (parà soú exêlthon) e que pelo Pai fora enviado (sú me apésteilas).
Em Sua prece Jesus explica, então, porque roga por eles e não pelo mundo, embora tenha vindo para
salvar o mundo (cfr. João 3:16) e embora ainda esteja preocupado com o mundo (adiante, vers. 21).
São três as razões citadas:
1.ª - porque pertenciam ao Pai, posto que tudo o que é do Cristo é do Pai, e tudo o que
é do Pai é do Cristo, já que ambos constituem uma unidade perfeita;
2.ª - porque Ele se transubstanciou neles; portanto, já agora eles constituem um pro-
longamento de Si mesmo;
3.ª - porque Jesus já não ficará mais no turbilhão negativo do Anti-Sistema, mas eles aí
permanecerão em trabalho árduo. Jesus vai deixá-los em Sua forma visível (cfr.
João, 13:33-36 e 16:16) retirando-Se para a Casa do Pai (Shamballa).
Aparece a invocação “Pai Santo” (Páter hágie). O adjetivo “hágios” exprime uma idéia dupla: a se-
paração do que é profano (sentido negativo) e a consagração a Deus (sentido positivo). A expressão
“Pai Santo” é proferida, porque Jesus ora pela santificação de Seus discípulos, a fim de que não se-
jam envolvidos pelo negativismo nem pela rebeldia do mundo, mas conservem a fidelidade sintônica
com Ele e com o Pai, e sejam protegidos contra a contaminação mundana, e sejam consagrados ao
Bem na Verdade.
Pede, então, Jesus, que eles sejam guardados na essência do Pai. No original está “em Teu nome”.
Mas sendo o nome, como vimos, a manifestação externa da essência íntima, o “nome do Pai” é a “es-
sência do Pai” manifestada externamente.

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E a súplica prossegue: “guarda-os na Tua essência, essa essência que me deste, para que eles sejam
UM, em natureza (como já são, pois têm em si a Centelha divina que é da mesma natureza que a
Fonte Emissora da Centelha) e em essência (aprendendo a sintonizar com o Som do Logos), assim
como nós já somos UM. Não há distinção, pois, entre a unidade de natureza e essência que há do Pai
com o Filho, e a unidade de natureza e essência que deve haver do homem com o Filho e o Pai.
Há quem não aceite que essa unidade seja tão profunda. Dizem que a unidade entre Pai e Filho é,
realmente, de “natureza e essência”, ao passo que a unidade dos homens com o Pai é apenas de
“adoção pela graça”. O texto e o contexto afirmam a primeira interpretação, pois a comparação é
total: “Que eles sejam UM, “ASSIM COMO” (do mesmo modo e na mesma profundidade) nós somos
UM”. Não são feitas distinções nem diferenças entre uma unidade e a outra: uma é igual à outra, tudo
é uma só unidade, de essência e de natureza: “em Deus vivemos, nos movemos e existimos e somos
gerados por Ele” (At. 17:28). A asserção de sermos “geradas” (não criados externamente, mas gera-
dos, tal como a mulher gera o filho), prova que a natureza é a mesma; então todas as coisas existentes
são “homoúsias” da Divindade.
Além de todos os outros que aparecem esparsos, este trecho vem provar à saciedade que a doutrina
crística está plenamente dentro do MONISMO mais absoluto, e Paulo confirma que compreendeu bem
tudo isso, quando diz: “esforçando-vos por guardar diligentemente a unidade do Espírito no vínculo
da paz: há um só corpo e um só Espírito (como também fostes chamados em uma só esperança de vos-
so chamamento); um só Senhor, uma só fidelidade, um só mergulho, um só Deus e Pai de todos, que é
sobre todos, e por todos, e EM (dentro de) todos” (Ef. 4:3-6).
O pedido para que o Pai os guarde (têrêson) é justificado, já que Jesus - que faz a prece - vai afastar-
Se visivelmente. No entanto, dá testemunho de que os guardava (etêroun) enquanto estava fisicamente
presente em corpo. E guardou-se de tal forma que os protegeu (ephylaxa) de modo completo, tanto
que nenhum dos que Lhe foram confiados teve que afastar-se. E aqui entra um trecho que merece me-
ditado.
Um só “se aboliu” (apôleto), isto é, se aniquilou, pela renúncia voluntária, riscando seu nome do
Colégio Iniciático terreno: era ele o “filho da abolição”, ou seja, o “abolido” ou o “aniquilado” vo-
luntário, aquele que renunciou totalmente, durante milênios, a seu personalismo vaidoso.
Mais uma vez verificamos que o sacrifício de Judas, o Iscariotes, foi voluntário, para que se cumprisse
a Escritura”. Tendo sua posição garantida como sacerdote na Escola Iniciática Assembléia do Cami-
nho, e podendo assegurar-se, com isso, uma posição de relevo entre os seguidores da doutrina nos
séculos seguintes, atraindo a si bons pensamentos e amor da parte das criaturas, ele aceitou “abolir-
se”, aniquilar-se ou esvaziar-se (cfr. Filip. 2:7), atraindo o desprezo e o ódio da humanidade, para
que seu Mestre fosse amado e engrandecido, brilhando em Luz diáfana, em contraste com a sombra
que sobre Jesus se projetaria partindo desse ato heróico de Seu discípulo, interpretado como “traidor
infame”. Além de Jesus, nesse drama, foi Judas o único que aceitou aniquilar seu eu personalístico, a
fim de que o Mestre fosse exaltado. Agora chegou a hora de fazer justiça e revelar a verdade que ficou
tanto tempo oculta na letra, para que a humanidade, no terceiro milênio, compreenda a realidade
espiritual do ocorrido.
A Escritura a que Se refere Jesus é o Salmo (41:9) que fora por Ele citado (cfr. vol. 7) e que diz; “Até
meu amigo íntimo, em quem confiava, que comia meu pão, levantou contra mim seu calcanhar”; e
outro salmo (109:4-19) que prevê, em espírito, o que Judas sofreria durante milênios, como efeito de
sua aniquilação ou abolição voluntária:
4.ª - “Em troca de seu amor tornam-se meus adversários, mas eu me dedico à oração
5.ª - Retribuiram-me o mal pelo bem, e o ódio pelo amor que lhes tenho.
6.ª - Coloca sobre ele um homem perverso, e esteja à sua direita um adversário.
7.ª - Quando ele for julgado, saia condenado, e em pecado se lhe torne sua súplica.
8.ª - Sejam poucos os seus dias, e tome outro seu ofício.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

9.ª - Fiquem órfãos seus filhos, e viúva sua mulher.


10.ª - Andem errantes seus filhos e mendiguem, e esmolem longe de suas residências ar-
ruinadas.
11.ª - Que um credor arme laço a tudo quanto tem, esbulhem-no estranhos do fruto de
seu trabalho.
12.ª - Não haja quem lhe estenda benignidade, nem haja quem se compadeça de seus
órfãos.
13.ª - Seja extirpada sua posteridade, na próxima geração se apague seu nome.
14.ª - Seja recordada por YHWH a iniquidade de seus pais e não seja apagado o peca-
do de sua mãe.
15.ª - Estejam eles sempre diante de YHWH, para que ele faça desaparecer da terra a
memória deles,
16.ª - porque não se lembrou de usar de benignidade, mas perseguiu o aflito e o neces-
sitado e o desencorajado, para lhes tirar a vida.
17.ª - Amou a maldição, e ela veio ter com ele; não teve prazer na bênção, e ela afas-
tou-se dele.
18.ª - Vestiu-se também de maldição como dum vestido, dentro dele, ela penetrou como
água, e nos seus ossos como azeite.
19.ª - Seja-lhe ela como a veste com que se cobre, e como o cinto com que sempre anda
cingido”.
... Como vemos, a situação que Judas viria a ter, estava descrita com pormenores, e ele bem conhecia
o que viria sobre ele. E, apesar de tudo, para que a Lei se cumprisse, e para que seu Mestre amado
pudesse arrostar o supremo sacrifício sangrento e infamante que “O tornaria Sumo Sacerdote da or-
dem de Melquisedec” (Heb 5:7-10), Judas aboliu sua personagem terrena e aceitou a terrível incum-
bência de funcionar como “sacerdote que oferecia a vítima do holocausto no altar do sacrifício”.
Tudo isso é falado, porque Jesus vai retirar-Se em Seu corpo físico; mas antes quer, com Suas pala-
vras, proporcionar conforto espiritual e dar a Seus amados discípulos, “a minha alegria que se pleni-
ficará neles”.
E diz mais: “a eles dei o Teu Logos”, servindo de diapasão. Com Sua presença, elevou-lhes o Eu
profundo de forma a perceberem as vibrações sonoras do Logos Planetário, qual música sublime das
esferas a renovar-lhes a tônica, alteando-lhes a frequência até o grau máximo da harmonia e da bele-
za. Portanto, fê-los penetrar em Espírito no “Sistema”, atingindo o pólo positivo do amor. Todavia, o
mundo os odiava. O Anti-Sistema, pólo negativo do ódio, não pode suportar a vibração do amor, tal
como as trevas repelem a luz que as destrói.
Os discípulos, elevados ao “Sistema” já não mais pertencem ao Anti-Sistema, tal como o próprio
Jesus: “não são do mundo, como eu não sou do mundo”. No entanto, não pede que sejam tiradas suas
personagens do Anti-Sistema, pois aí terão que atuar: o raio de sol tem que mergulhar no pântano
para secá-lo e destruir os miasmas. Mas pede e suplica que, embora mergulhadas suas personagens
no pólo negativo do Anti-Sistema, sejam eles “guardados” e protegidos contra o mal, pois seus Espí-
ritos, como o de Jesus, não mais pertencem ao mal, isto é, à matéria do mundo.
O mal (ausência do bem, trevas, matéria) é a tônica do Anti-Sistema, é o pólo oposto do Bem, a ex-
tremidade negativa da barra imantada e aí são consideradas grandes virtudes o que constitui erro no
pólo positivo: ambição, orgulho, convencimento, domínio, materialismo; ao invés, constituem covar-
dia e frouxidão no Anti-Sistema o que é tido como qualidade positiva no Sistema: desprendimento,
humildade, autoconhecimento, obediência, espiritualismo. Desgraçadamente, ao aliar-se ao “poder
temporar”, ao tornar-se “aliada do mundo”, no 4.º século, a “igreja” dita de Cristo mudou de pólo,

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tornando-se anticristã. E embora pregando com os lábios as qualidades do Sistema, passou a praticar
sub-repticiamente as “virtudes” do Anti-Sistema.
Pede; então, Jesus, ao “Pai Santo” que os “santifique na Verdade”. Já vimos o que significa “santifi-
car”: separar do Anti-Sistema e mergulhar no Sistema ou, como dissemos acima, separar do profano
e consagrar a Deus.
E aqui, mais uma das grandes afirmativas, que já vimos glosando há muito nesta obra, sobretudo
quando afirmamos que a tradução correta da frase de Jesus é “Eu sou o caminho da Verdade e da
Vida” (João, 14:6). Aqui encontramos o testemunho de que não andamos por atalhos falsos, pois
Jesus declara: “O Teu Logos é a Verdade”! Perfeito: a Divindade, o Absoluto, é a Vida (LUZ); o Lo-
gos ou Pai é a Verdade (SOM): o Filho ou Cristo é o caminho que conduz à Verdade (Pai) e à Vida
(Espírito).
E Paulo (1.ª Cor. 14:7-11) ensina a respeito da necessidade absoluta de “Verdade no som”, exempli-
ficando assim, para quem compreenda, a lição contida nessa frase: “o Teu Logos é a Verdade”. E se
não sintonizarmos com esse Som, que é a Verdade, sairemos do reto caminho; e se os que ensinam,
não ensinarem a Verdade, como conseguirão ser seguidos pela estrada certa, na luta pela conquista
da Verdade? “Se a trombeta der um som incerto, quem se preparará para a batalha”?
Os discípulos já venceram pela adesão total à fidelidade (1.ª João, 5:4) e já estão limpos (João, 13:10
e 15:3), ou seja, já superaram o aspecto negativo da santidade, já foram tirados do “mundo”, já se
destacaram do Anti-Sistema. Agora terão que consagrar-se totalmente a Deus, renunciando ao mun-
do, tal como YHWH já ensinara a Moisés, quando determinou que os que ingressavam no “ofício sa-
cerdotal” deviam vestir-se com túnica (auras) de qualidades elevadas e cores harmoniosas, ter a ca-
beça mergulhada numa tiara de bons pensamentos e serem ungidos (cristificados), consagrados pela
prece e santificados (Êx. 28:41). Já antes de encarnar era Santo o Espírito de Jesus: “um Espírito
santo virá sobre ti” (Luc. 1:35), tal como havia ocorrido com Jeremias: “antes que eu te formasse no
centre te conheci e antes que saísses da madre te santifiquei (Jer. 1:5).
A santificação dos discípulos virá “na Verdade” (“en têi alêtheíai”), que é um dativo de instrumento;
então, “por meio da Verdade”. O dominicano François-Marie Braun, professor na Faculdade de Fri-
burgo (in Pirot, o.c., tomo 10 pág. 450) chegou a escrever uma frase preciosa, dizendo que a verdade
seria “a atmosfera espiritual da alma”. Realmente. Apenas acrescentaríamos que essa atmosfera (ou
aura) espiritual atingirá a santificação em seu aspecto positivo, quando atingir a sintonia vibratória
perfeita com a tônica da Verdade do Logos (SOM).
Passa Jesus a outro ponto, revelando que da mesma maneira que Ele foi enviado ao mundo, também
agora envia ao mundo os discípulos, quais ovelhas em meio a lobos (Mat. 10:16 e Luc. 10:3); mas
logo a seguir vem a garantia da assistência protetora: “sobre eles me santifico a mim mesmo, para
que também eles sejam santificados verdadeiramente”. Notamos que no vers. 17 está “santificar na
Verdade” (en têi alêtheíai), ao passo que aqui falta o artigo (en alêtheíai), o que podemos interpretar
como advérbio, talvez: para que sejam verdadeiramente ou realmente santificados. Trata-se da sinto-
nia de Jesus que envolve os cristãos “verdadeiros”, a fim de facilitar-lhes a tarefa: uma vez atingida a
sintonia com Jesus, será mais fácil, por meio Dele, atingir a sintonia crística e depois a do Logos,
como fazia Teresa d’Ávila, que chegou ao Cristo e ao Pai, através da figura humana de Jesus.

3.ª PARTE (vers. 20 a 24)


Agora amplia-se a prece de Jesus em favor de todos os que - nos séculos e milênios posteriores, por
meio do ensino dos emissários legado à humanidade, oralmente ou por escrito - conseguirem a fideli-
dade sintônica com Jesus.
A prece é para que TODOS SEJAM UM.
Não se trata, portanto, da pregação de uma doutrina, mas da criação de uma unidade monística. E
lemos conceitos significativos no dominicano Braun, aos quais acrescentamos apenas duas palavras

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SABEDORIA DO EVANGELHO

entre parênteses: “A fidelidade (sintônica) aos mistérios (iniciáticos) da Boa-Nova, e o amor que o
Pai e o Filho têm em comum, os introduz na sociedade das pessoas divinas” (in Pirot, t. 10 pág. 451).
É a linguagem das Escolas gregas e egípcias: o iniciado passa a fazer parte da família do Deus.
Se houver perfeita e indestrutível união com a Divindade e com os irmãos, esse fato convencerá o
mundo separatista e dividido do Anti-sistema, de que existe uma realidade crística superior a tudo. E
Paulo pede isso a seus discípulos: “Rogo ... que andeis ... com toda humildade e mansidão, com lon-
ganimidade suportando-vos uns aos outros com amor, esforçando-vos diligentemente para guardar a
unidade do Espírito no vínculo da paz” (Ef. 4:2-3). E repete os mesmos conceitos, estendendo-os
mais, aos fiéis de Colossos: “Vós, portanto, como escolhidos de Deus, SANTOS E AMADOS, revesti-
vos de coração compassivo, de benignidade, humildade, mansidão, longanimidade, suportando-vos
uns aos outros e perdoando-vos mutuamente se alguém tiver queixa contra outro ... E acima de tudo
isso, revesti-vos do “amor que é o vínculo da perfeição”. Reine em vossos corações a paz de Cristo, à
qual também fostes chamados “em um só corpo”, e sede sempre gratos” (Col. 2:12-15).
De que isso ocorria realmente na primeira geração de iniciados cristãos, mesmo após o afastamento
físico de Jesus, temos testemunhos: “Todos os que tinham fidelidade, estavam unidos e tinham tudo
em comum, e vendiam suas propriedades e bens e os repartiam por todos, conforme a necessidade de
cada um; e diariamente perseveravam unânimes no templo (judaico) e, partindo o pão em suas casas,
comiam com alegria e singeleza de coração” (At. 2:43-47). E mais adiante: “Na comunidade dos que
eram fiéis, havia um só coração e uma só alma, e nenhum deles dizia que alguma coisa que possuísse
era sua própria, mas tudo entre eles era comum” (At. 4:32).
Como explicar essa união total entre os iniciados do primeiro século? Sem dúvida, resultava da tran-
substanciação do Cristo naqueles discípulos, comunicando-lhes a vida divina que recebera do Pai: “A
todos os que O receberam (pela transubstanciação), aos que mantiveram fidelidade (sintônica) com
Sua essência, Ele deu o direito de se tornarem Filhos de Deus (pertencentes à família divina) e esses
novos seres não nasceram do sangue (etérico), nem da vontade da carne (das sensações), nem da
vontade do homem (intelecto, raciocínio) mas sim de Deus (do Espírito)”, é o que lemos em João
(1:12-13).
O Cristo, sem deixar de estar no Pai, vive em cada um dos Que se unem a Ele, em fidelidade absoluta;
nesses casos, o Logos e o Cristo (o Pai e o Filho) vêm juntos habitar permanentemente nessas criatu-
ras, e não mais são eles (personalisticamente) que vivem, mas é o Cristo que vive neles, em sua indivi-
dualidade.
E mais uma vez alegramo-nos ao ler estas palavras do dominicano F. M. Braun (in Pirot, o.c. T. 10,
pág. 451): “Essa união é a meta à qual quer fazer-nos chegar ... Não pode conceber-se outra mais
perfeita. Já se viu a impressão que isso deve causar no mundo (vers. 21). Já que o Cristo é o princípio
vivo e ativo, [essa união] manifestará externamente a potência de Sua força. A esse sinal as almas de
boa-vontade reconhecerão que não se trata de um pregador qualquer, mas que Ele vinha da parte do
Pai, que O encarregou dessa missão e que ama os homens aos quais O enviou a fim de salvá-los
(João, 3:16). No cap. 13:35, o amor recíproco dos apóstolos era o sinal pelo qual se reconheceriam
como discípulos de Jesus. Aqui deve a união servir para provar a origem divina de Jesus e o amor do
Pai. É o grande sinal exterior do mistério evangélico.”
O texto de João, mesmo em sua letra fria, revela mistérios profundos. Vejamos.
Os versículos 21 e 22 trazem a revelação da aspiração de Jesus, o Cristo, e traduz em Suas palavras o
pensamento do Cristo, que é a expressão da vontade do Pai: “para que TODOS sejam UM”, já que a
humanidade toda constitui o corpo visível do Cristo neste planeta.
Paulo o afirma categoricamente, sem ambages: “Não sabeis que vossos corpos são membros de
Cristo” (1.ª Cor. 6:15). E mais adiante: “Ora, vós sois o corpo de Cristo e, individualmente, cada um
de Seus membros” (1.ª Cor. 12:27). Diz ainda o mesmo Paulo que TODOS caminhamos para a unida-
de absoluta, “tendo em vista o aperfeiçoamento dos santos (separados, iniciados, em oposição a não-
separados ou profanos), para edificação do corpo de Cristo, até que cheguemos a Ele, Cristo, que é a
cabeça” (Ef. 4:12, 15), pois somos “membros do corpo de Cristo” (Ef. 5:30).

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C. TORRES PASTORINO

Então é indispensável que o corpo esteja unido em seus membros e com a cabeça, formando um só
ser, da mesma natureza e com a mesma essência: “para que TODOS sejam UM, tal como Tu, Pai, és
em mim e eu em Ti: assim sejam eles UM em nós.”
Para isso, descendo à Terra e vestindo o corpo físico de Jesus, a fim de poder ter um elo também da
mesma natureza que nós, Cristo nos deu a substância que recebeu do Pai, a fim de que toda a unidade
se constituísse num só ser, sendo Cristo a cabeça, o Pai a alma e nós as cédulas conscientes desse
corpo místico, mas REAL: mais real que nosso corpo físico, que é transitório e perecível. Exatamente
isso: “Tu em mim, e eu neles, a fim de que sejam completados num TODO único, numa unidade total e
completa. Quando isso ocorrer, todos verão a substância que me deste.”
Também está declarado o momento em que Cristo recebeu essa substância: “Antes da constituição do
mundo.”
Os teólogos querem provar, com esta frase que Jesus é um dos três aspectos divinos, uma “pessoa da
Trindade absoluta”. No entanto, não é isso, absolutamente, o que ressalta do contexto, nem da decla-
ração de Jesus, de que “há uma única Divindade” e, distinto dela, há um Homem, que é Ele, o Filho,
que é menor que o Pai (vamos vê-lo a seguir, no próximo capítulo).
Pelo que deduzimos do trecho, está dito que Jesus, o ser humano, a criatura - embora originária de
outro planeta muito mais antigo que o nosso (provavelmente do Sistema de sírius) - já havia conquis-
tado e se revestido da substância do Pai muito antes que o “mundo” (isto é, a Terra) “fosse lançada
para baixo” (katabolês), isto é, fosse materializada em seus elementos físicos. O Espírito humano de
Jesus já estava misticamente unificado com o Pai, quando Dele recebeu a missão de encarregar-Se do
trabalho da instrução da humanidade deste globo terráqueo. Aqui encontraria Ele, chegadas ao está-
gio hominal aquelas células que O ajudaram a evoluir durante o período de Sua evolução (humana
em Seu planeta de origem. Confirma-se, assim, com as próprias palavras de Jesus, a hipótese que
formulamos no vol. 1).
E é por esse motivo, porque durante milênios vivemos todos formando uma unidade com ele, sendo o
corpo Dele que era nossa Alma-Grupo, que tão vivo Lhe aparece o desejo de reconstituir essa unida-
de, já não mais num corpo físico, mas num corpo místico, em que as antigas células já tenham atingi-
do a evolução suficiente para se unificarem com o Cristo Cósmico, tal como Jesus o fizera; e o corpo
se reconstitua em sua unidade primordial e em sua integridade espiritual.
Aqui aparece uma expressão de autoridade inconteste: não é mais “rogo”, mas a afirmativa da von-
tade resoluta e firme: diz “QUERO” (thélô).
Quem poderá contrariar essa vontade? Ele quer sempre o mesmo que o Pai quer (cfr. João 4:34; 5:30
e 6:38-40). Então, também essa é a vontade do Pai.
Para nós, por conseguinte, existe a certeza metafísica de que Sua vontade será realizada, e TODOS,
isto é, a humanidade TODA, alcançará essa união plena. Consequentemente, não haverá “perdidos”!
...
No original há uma variante: alguns códices trazem “o que me deste” (hó dédôkas moi, como em
6:37, 39 e em 10:29) e é melhor que a correção posterior para “os que me deste” (hoús dédôkas moi),
pois exprime a totalidade coletiva de tudo, o quinhão total do Cristo, recebido do Pai e aceito pelo
Cristo. Com essa expressão, vemos que tudo o que está na Terra, inclusive minerais, vegetais, ani-
mais, pertence ao Cristo, e não apenas os homens, que não constituem, assim, uma classe privilegiada
à parte: TODOS e TUDO somos UM, irmãos reais. E o próprio Jesus já havia dito: “Poderoso é Deus
para destas pedras suscitar filhos de Abraão” (Mat, 3:9 e Luc. 3:8).
Voltando à expressão “antes da constituição do mundo”, vemos que a palavra katabolê fora empre-
gada em Mat. 13:35, em Efésios 1:4 e em Hebrel 11:11. Essa idéia de “lançada para baixo” lembra
muito aquilo que Pietro Ubaldi, utilizando velha expressão bíblica, denomina “A Queda”.
Há um trecho de Hermes Trismegisto (Corpus Herméticum, 9:6), bem anterior à época de Jesus, que
procura explicar o mecanismo desse “lançamento para baixo”, como sendo uma semeadura, exata-

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mente no sentido que estamos dando: “Com efeito, a sensação e a intelecção do mundo constituem um
só ato: fazer todas as coisas e desfazê-las em si, como órgão da vontade de Deus. Pois o mundo foi
realmente feito como instrumento para que, guardando as sementes que recebeu de Deus (que foram
lançadas para baixo) produza em si mesmo todas as coisas pela energia; e depois, diluindo-as, as
torne a renovar, tal como um bom semeador de vida. E por seu próprio movimento fornece a todas as
coisas um renascimento. O mundo não gera para a vida (não a dá), mas por seu movimento vivifica
todos os seres: é, ao mesmo tempo, o lugar e o dispensador da vida”.
Aí temos um ensinamento que nos mostra o mundo (a Terra) a receber as sementes que vieram de ou-
tros planos e aqui “caíram” ou “foram lançadas para baixo” (katabolê). Mas compreendamos bem,
que não é um “baixo” quanto a local ou geográfico, mas um baixo que exprime degradação de vibra-
ções, que da energia passa à matéria. No planeta, realizando-se a vontade de Deus, tudo vai evoluin-
do pelas transformações constantes e pela Lei de causa e efeito, de vida e morte de desfazimento e
renascimento. Mas a sensação e a intelecção são uma coisa só, pois expressa a Mente crística que
dirige e governa tudo, CONCLUSÃO (Vers. 25-26).
Aqui novamente aparece um adjetivo ligado à inovação: PAI JUSTO. É salientada a qualidade que o
peticionário deseja ver manifestada no assunto de que trata. Sendo justos os pedidos, mister que se
faça sentir a Justiça para o atendimento.
A situação real, de fato, é demonstrada nesses dois versículos: “o mundo ainda não Te conheceu, mas
eu Te conheci, e estes conheceram que Tu me enviaste”.
Neste passo, cremos que não se trata apenas de conhecimento intelectual, mas da gnose mística, pela
união de seres. O verbo “conhecer”, entre as personagens físicas, nas Escrituras, exprime a união
sexual dos corpos físicos. Na Individualidade, exprime o matrimonio espiritual, pelo qual um Espírito
se unifica ao outro. No físico, serão “dois corpos num só corpo” por meio da penetração do pênis na
vagina, ficando, porém, todo o resto dos corpos exteriorizados, embora abraçados, mas sem penetrar-
se; no Espírito, entretanto, a penetração é total, de todo o corpo (de todas as vibrações energéticas
que se fundem e confundem) e os dois Espíritos passam a constituir real e integralmente UM SÓ ES-
PÍRITO.
O mundo ainda não fez essa unificação, diz Jesus, mas eu a fiz e estes a fizeram comigo, pois sabem
que Tu me enviaste. Com essa união comigo, eu os unifiquei com Tua essência, para que o amor, a
vibração divina da união, que comunicaste a mim, esteja neles e portanto eu esteja totalmente dentro
deles.
Se o Cristo está dentro de nós com esse amor total da união espiritual completa, “é justo” que minha
prece pela unificação de tudo o que me deste seja realizada.
Numa palavra poderia resumir-se a prece de Jesus: “Que se reintegre hoje, na unidade, o meu corpo
do passado, sendo eu ainda a Alma-Grupo de todos (psichê), e Tu, Pai, a Cabeça (Noús)”.
Feita a união total com um grupo, aos poucos se conseguirá a união com todo o restante, que ainda
permanece de fora, mas que virá unificar-se aos poucos até reconstituir-se a unidade perdida pelo
separatismo divisionista do Anti-Sistema. Quando isso for conseguido, teremos reconstituído o Siste-
ma, em relação ao nosso mundo e todos seremos UM COM A DIVINDADE.

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C. TORRES PASTORINO

DESPEDIDA
João, 14:27-31
27. “Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou; não como o mundo a dá, eu vos dou. Não se
turbe vosso coração nem se atemorize.
28. Ouvistes o que eu vos disse: vou e volto a vós. Se me amásseis, vos alegraríeis, porque
eu vou ao Pai, pois o Pai é maior que eu.
29. E agora vos disse, antes que aconteça, para que, todas as vezes que acontecer, acredi-
teis.
30. Já não falarei muitas coisas convosco, porque vem o príncipe do mundo, e em mim ele
não tem nada,
31. mas para que saiba o mundo que amo o Pai e faço assim como o Pai me mandou. Le-
vantai-vos, vamo-nos daqui”.

Aqui ficou registrada a despedida de Jesus a Seus discípulos, após o encontro daquela memorável noi-
te. O encaixe deste trecho após o versículo 26 do capítulo 17 apresenta sequência perfeita.
Terminada a prece, as últimas palavras do Mestre constituem um augúrio, para que os discípulos te-
nham paz, e uma reafirmação de sua volta para junto dos discípulos. Estávamos numa quinta-feira, e
logo no domingo seguinte eles novamente O veriam, depois da prova duríssima por que deveria passar,
com derramamento do próprio sangue e torturas cruéis.
Feita a prece, de coração pacificado, Jesus volta-se para o pequeno grupo de iniciados e derrama sobre
todos ondas de paz, da Sua paz, que é a interna, que vem da Individualidade, do Cristo, do Pai. E Ele
salienta que não se trata da paz que o mundo dá: a Sua é diferente e permanece mesmo quando o discí-
pulo se encontra envolvido pelo barulho físico, batido pelas vicissitudes morais ou atacado pelas trevas
temporárias do espírito.
Era comum, nessa época, e prossegue até hoje em uso constante, em todas as saudações entre judeus,
quando se encontram e ao despedir-se, o emprego da mesma expressão augurando paz (shalôm).
Mas quando as forças da oposição se derramassem sobre eles, que não temessem. Esse imperativo or-
denando que “não temam” (mê deiliátô) já fora ouvido, quando YHWH o diz a Josué (Jos. 1:9 e 8:1) e
quando este o repete aos israelitas (Jos. 10:38). E F. M. Braun comenta: “No exército do Cristo não há
lugar para os medrosos”.
Ainda uma vez salienta que, quando há amor, resulta em alegria até mesmo o afastamento do ser ama-
do, se se tratar de uma melhoria para ele. E não resta dúvida de que terá grande avanço o afastamento
de Jesus, pois Ele irá ao Pai.
E aqui aparece a frase que constitui argumento irrespondível contra todos os que, enceguecidos pela
vaidade, afirmam dogmaticamente que Jesus é o Deus Supremo e Absoluto, totalmente idêntico ao Pai
e ao Espírito Santo. Como pode sê-lo, se Jesus declara categoricamente que “o Pai é maior que Ele”?
Muitos sofismas foram criados para torcer o sentido real dessa afirmativa, mas nenhum deles chega a
convencer. Já falamos sobre esse assunto no vol. 6.
Dizemos “enceguecidos pela vaidade”, pois é ela que leva os homens a pretender que o “seu” Deus
seja maior que “os outros” Deuses. Essa vaidade atinge tanto homens como espíritos desencarnados,
mesmo na posição de espíritos-guias. YHWH diz a Moisés, explicando Sua posição com clareza, ja-
mais pretendendo SER o Deus absoluto: “Eu sou YHWH e apareci a Abraão, a Isaac e a Jacob COMO

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Deus todo-poderoso, mas eles não conheceram esse meu nome” (Êx. 6:2); e, confirmando o que dis-
semos no vol. 1 e no vol. 5, temos as palavras de YHWH a Moisés, delegando-lhe poderes sobre o
Faraó: “Vê que te coloquei COMO DEUS diante de Faraó, e teu irmão Aarão será o teu profeta” (Êx.
7:1). Quanto à vaidade dos homens, para só citar um exemplo antigo, vemos Elias a provar que
YHWH é maior que Baal (1.º Reis, 18:24). Mas não nos delonguemos. Essa, pois, a razão por que os
cristãos romanos não ficaram satisfeitos em ter como Chefe e Patrono um simples profeta e Manifes-
tante divino, mas procuraram elevá-lo à categoria de Deus máximo e Absoluto: eles próprios refletiri-
am em si mesmos essa supremacia sobre os demais povos e suas religiões.
No entanto, Jesus é taxativo: “o Pai é maior que eu”, e por isso, “Se me amardes, ficareis alegres pelo
fato de eu ir para junto do Pai”.
Logo a seguir vem outra ordem: “Levantai-vos, vamo-nos daqui”, o que prova que só então se levanta-
ram os discípulos dos reclinatórios, não havendo necessidade, pois, de tecer suposições a respeito dos
capítulos 16 e 17.

Aqui encontramos o epílogo da grande lição do cenáculo. Outras vezes ainda falou eom eles, tanto
Jesus, quanto o Cristo, mas em fugazes momentos, até Sua imolação da cruz. E das lições dadas após
esse drama iniciático, nada ficou escrito no plano físico (pelo menos, até hoje, nenhum manuscrito foi
encontrado pelos homens).
Revigorado em Seu Espírito pelo contato que teve com o Pai, em Sua prece por Si, pelos discípulos e
pelo próprio mundo que ainda não tinha capacidade para entendê-Lo, o Mestre volta-Se para Seu
grupo de escolhidos e profere mais algumas palavras a modo de conforto e despedida. Acreditamos
que não apenas Jesus, mas também os discípulos, se encontravam então em profundo estado de misti-
cismo, Ele a preparar-Se para o grande passo, e o colegiado na expectativa tensa de não saber ao
certo o que viria no minuto seguinte. Apesar de todos os esclarecimentos, não entendiam plenamente,
em seus intelectos personalísticos, o que se estava passando. Disso teremos prova no próximo capítu-
lo.
Daí as palavras de Jesus, derramando sobre eles a Sua paz do Cristo, e salientando que não era a paz
do mundo; era a paz interior, não o silêncio da inatividade externa; era a paz dinâmica, não a estáti-
ca; era a paz cheia de energia, não a da fraqueza timorata; era a paz do amor que embevece, não a
do despeito que cala; a paz que nada teme, porque no meio da tempestade conturbadora dos elemen-
tos, sabe que o navio está ancorado no porto seguro, ao abrigo das ventanias ululantes, e das vagas
violentas.
E insiste: “Não se turbe vosso coração nem se atemorize”.
Exatamente no Eu profundo, no coração, é que deve residir essa paz inalterável, que nada teme, que
se mantém firme e confiante, fiel à sintonia crística, a união divina: “se Deus é por nós, quem será
contra nós”? (Rom. 8:31). Mesmo que a personagem terrena, em sua fraqueza, trema e se angustie, o
coração deve permanecer intimorato e valente, confiante e calmo, imperturbado e tranquilo, mergu-
lhado na Divindade que o sustenta e lhe dá vida.
Sim, eu irei, “mas volto a vós”. E por que não sentir até alegria, com a partida do Mestre, se o afas-
tamento temporário consistirá numa promoção? Esse afastamento será a maior aproximação com o
Pai, depois desse passo decisivo em Sua carreira evolutiva, e depois dele, não poderá ser tocado por
criatura humana alguma, nem mesmo pelo amor imenso da mulher amada (cfr, João, 20:17), por mais
puro e elevado que seja. Promovido, terá que, primeiro, apresentar-se diante do trono do Ancidão dos
Dias, para receber a confirmação plena (Apoc. 5:12-13): “Digno é o cordeiro que foi imolado, de
receber o poder, a riqueza, a sabedoria, a força, a honra, a glória e a benção”.
O amor e o carinho pelos discípulos fez que o Mestre lhes avisasse com antecedência tudo o que iria
ocorrer, para que, mais tarde, verificando os fatos, pudessem ter certeza de que Ele era realmente o
enviado do Pai.

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C. TORRES PASTORINO

Depois anuncia a chegada do “Príncipe do mundo”, da força unificada e didaticamente personificada


do Anti-sistema, a agir por meio de criaturas que sintonizam com seu atraso evolutivo, “inocentes-
úteis” a serviço do erro, embora muitas vezes supondo estar a servir à Verdade. Nenhum poder contra
Jesus tem essa força e muito menos contra o Cristo, que a sustenta e vivifica. Daí a ação destruidora
das forças negativas ser permitida e alimentada pelas Forças positivas, pois é por meio dessa destrui-
ção do inferior, que se pode construir o superior, é por meio da dor que se edifica a felicidade, é pela
fricção do sofrimento que se acende a luz.
Então, a imolação de Jesus no altar do holocausto como vítima, Lhe proporcionará um avanço na
subida espiritual; mas é preciso que o próprio mundo do Anti-Sistema veja, para crer: necessário o
sacrifício de um Avatar para que seja o Anti-Sistema sacudido em seus alicerces e, refletindo, observe
qual o caminho verdadeiro e certo para a ascensão espiritual.

SALVAÇÃO
Nesse sentido, o sacrifício de Jesus na Cruz - embora tendo sido olhado e considerado dum ponto de
vista diferente do real - constituiu verdadeiramente uma “salvação” para muitos espíritos que, por
meio dele, e impressionados com ele, conseguiram destacar-se do Anti-Sistema e passar a viver no
ambiente sintônico do Sistema. Milhões foram os espíritos que, no decorrer destes últimos dois mil
anos, se “saltaram”. Justifica-se, pois o título de SALVADOR (sôtêr) atribuído a Jesus desde os pri-
mórdios, apesar de essa palavra não ter o sentido que a teologia lhe empresta.
De fato, o pensamento teológico é que a imolação de Jesus teve o efeito de apagar ou “redimir os pe-
cados”, por própria força intrínseca, em vista da grandeza de Seu Espírito divino, ou melhor, em vista
de ser o próprio Deus que “morreu” (!).
Em decorrência disso, teve que fatalmente ser abandonado e combatido o fato da reencarnação, conhe-
cido e comprovado desde a antiguidade, pois se um espírito foi “redimido” e está “salvo”, não poderia
mais voltar à condição antiga de sua capacidade de errar ou “pecar”.
Então, uma interpretação unilateral de um fato, obriga esse intérprete a negar outro fato real. A de-
dução empírica e cerebrina, que constrói uma teoria improvada (e negada pela prática), tenta destruir
um acontecimento comprovado pela maioria.
Esqueceram-se, todavia, de importante pormenor: se o sacrifício de Jesus foi de efeito tão forte e irre-
sistível que “redimiu os pecados da humanidade”, como explicar que os homens continuaram - salvo
raríssimas exceções - a cometer seus “pecados”, obtendo absolvição e voltando de novo aos pecados?
Ao observar a história da humanidade, verificamos uma mudança fundamental na direção de sua ca-
minhada, mas não descobrimos, absolutamente, uma diminuição dos desvios da rota, nem de erros,
nem de crimes, coisa que seria de esperar de tão grande e infinito impacto.
A razão disso é que Jesus de fato SALVOU, como disseram os primeiros discípulos, mas não com a
remissão dos pecados (tradução tradicional mas imprópria e até falsa) e sim com o DESATAR DOS
ERROS (aphesis tôn hamartíôn, vol. 6), que exprime precisamente o que estamos dizendo: desatou os
laços que prendiam os homens aos erros do Anti-Sistema, isto é, à ilusão da personagem.
Nesse sentido, realmente SALVOU (sôzein) a humanidade, pois com sua força vibratória incomensu-
rável, porque crística, interrompeu a caminhada do Espírito que descia cada vez mais para a perso-
nagem, e fê-la dar uma volta de 180º, mudando o rumo errado em que caminhava, para levá-la a pros-
seguir seus passos na direção do Espírito, para o Sistema, para a Individualidade.
Observemos e estudemos com atenção, e verificaremos que milhões de pessoas, depois de Jesus,
aprenderam a renunciar “ao mundo, às suas pompas e às suas obras” - ou seja, desdenharam as hon-
ras, as glórias, a fama e a grandeza da personagem, para buscar dentro de si a felicidade espiritual, o
encontro com o Cristo interno, servindo-se, em muitos casos, do magnífico e insuperável símbolo da
recepção da hóstia consagrada, com a qual “entrava” no coração o Cristo, ainda vindo “de fora”.
Mas, com o tempo, Ele passou a “morar” dentro do coração permanentemente.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Então, Jesus SALVOU a humanidade, por mostrar-lhe a direção certa de sua caminhada e “desatá-la
dos erros” da personagem (da ilusão do mundo transitório ), e não por te-la “redimido do pecado”,
coisa que em absoluto foi atingida até hoje.
Com essa interpretação lógica e acorde com o texto, verificamos que tudo se coloca em seus lugares e
passa a ser indispensável o fato da reencarnação.
Pois não basta reconhecer o caminho certo e voltar-se na direção correta: é necessário palmilhar
essa estrada, pois em Sua vida o próprio Jesus a percorreu, dando-nos o exemplo vivo. E essa jornada
é muito longa, não sendo conseguida em uma só vida, de modo algum: é estrada cheia de percalços,
embora a meta seja nítida, clara e inconfundível no fim da viagem.
Naquela ocasião, não havia mais tempo de muitas explicações, porque se aproximava a hora da ação,
e o Anti-Sistema cumpriria a tarefa que lhe competia.
E embora nada tivesse com Jesus, que descera voluntariamente ao Anti-Sistema, mas a ele não per-
tencia mais, no entanto ainda agia com eficiência sobre a humanidade toda, e portanto devia atingir
Jesus em Sua humanidade. E isso para que todos nós pudéssemos ver, saber e compreender, que o
Espírito ama o Pai e faz como Ele manda, mas a personagem precisa receber os impactos dolorosos
que nos impulsionam na subida evolutiva.
A hora, a partir daí, é de AÇÃO: “Levantai-vos, vamo-nos daqui”, enfrentemos as forças adversárias
que se erguem, e cumpramos as determinações superiores com inquebrantável coragem, a fim de su-
perarmos e vencermos os impactos do mundo.

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C. TORRES PASTORINO

SAÍDA DO CENÁCULO

Mat. 26:30 Marc. 14:26

30. Cantando um hino, saíram para o Monte 26. E cantando um hino, saíram para o Monte
das Oliveiras. das Oliveiras.

Luc. 22:39 João, 18:1a

39. E saindo, dirigiu-se, segundo o costume, 18. Tendo falado essas coisas, Jesus saiu com
para o Monte das Oliveiras, e seguiram-no seus discípulos para a outra margem da
também os discípulos. torrente do Cedron ...

Pequeno versículo, mas que traz a confirmação do hábito israelita de finalizar a ceia pascal com a re-
citação do hino (hymnêzantes) de ação de graças (eucharistía), que consistia na segunda parte do Hi-
llel, que era cantado depois da quarta e última taça de vinho. A segunda parte do Hillel era composta
dos salmos 113 a 11o. Lucas e João não citam esse pormenor.
“Saíram” vem provar que realmente está certa a hipótese que formulamos à página 19, transpondo os
versículos 14:27-31 para o final do capítulo 17.
Para o “monte das Oliveiras”. Vimos (vol. 7) que o cenáculo ficava perto da porta de Siloé. Então, o
caminho seguido pode ter sido:
a) subir em linha reta e descer diretamente para o Cedron e o Getsemani, atravessando o cabe-
ço do Ophel,
b) ou descer a encosta do Tiropeu em escadaria (recentes escavações puseram essa escada à
vista), sair pela porta de Siloé, e dobrar à esquerda, atravessando o pequeno vale do Cedron,
hoje denominado Sitti Maryam. Aí estava um dos uádis do Cedron, classificado de “tor-
rente” (cheimárros) porque só tinha água no inverno, na época as grandes chuvas, perma-
necendo seco no resto do ano.
A distância não ultrapassava a medida permitida para os sábados. Deviam ser, concordam os comenta-
dores, cerca das 22 horas.
Por Lucas (cfr. 21:37) sabemos que era hábito de Jesus orar à noite naquele local, ali pernoitando
quando não desejava ir até Betânia.
Essa torrente do Cedron é citada (2.º Sam. 15:23 ) no episódio da fuga de David. perseguido por Ar-
quitofel.

Depois da prece, dirige-se Jesus com Seus discípulos para orar no monte das Oliveiras.
Como já vimos de outras vezes, para orar Jesus sempre “sobe a um monte”, isto é, eleva suas vibra-
ções; pois só subindo a frequência vibratória, conseguirá sintonizar com a altíssima faixa que venha a
atingir a Casa do Pai.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Além disso, temos que considerar o simbolismo não apenas do “monte”, como também do nome desse
monte: “das oliveiras”. Desde Noé, a oliveira simboliza a PAZ.
Tendo elevado Suas vibrações, automaticamente penetra na esfera da Paz interna, que nada poderá
alterar, pois se torna inatingível às vibrações barônticas do “mundo”.
Aí temos, pois, uma lição que a todos nós servirá: nos grandes momentos que precedem ou acompa-
nham os passos decisivos de nossa vida, mesmo quando as forças negativas do Anti-Sistema nos ata-
cam, precisamos subir a sintonia e penetrar na paz, a fim de não sermos atingidos em nosso Eu pro-
fundo pelos distúrbios provenientes do mundo externo.
Nessa atmosfera de paz dinâmica interna profunda, pode cair sobre nós qualquer avalanche, que nos-
so Eu não se perturba, embora a personagem transitória possa angustiar-se externamente. Mas a in-
dividualidade não se altera, e acaba conseguindo dominar e controlar a personagem.

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OS FACÕES
Luc. 22:35-38
35. E disse-lhes: “Quando vos enviei sem bolsa, sem alforge e sem sandálias, não vos fal-
tou algo”? Eles disseram: “Nada”.
36. Então lhes disse: “Mas agora, o que tem bolsa, segure-a; igualmente o alforge; e o que
não tem, venda sua capa e compre um facão,
37. pois digo-vos que deve realizar-se em mim o (que está) escrito: Foi contado entre os
sem-lei, porque tem fim o que me diz respeito”.
38. Eles disseram-lhe: Senhor, eis aqui dois facões. Disse-lhes ele: “São bastante”.

Trecho privativo de Lucas, que relembra as recomendações feitas mais aos discípulos (10:4) que aos
emissários (9:1). No momento, essas recomendações deixam de ter valor, pois Jesus “será contado
entre os sem-lei”, conforme as palavras citadas de Isaías (53:12).
Como discípulos de um condenado político, não podiam contar com boa recepção nem hospitalidade,
devendo bastar-se a si mesmos, pois de ora em diante viverão entre adversários, serão desprezados e
até odiados e caçados à morte, por causa de Jesus.
Os discípulos não entenderam a alegoria do facão. A respeito dessa incompreensão, Cirilo de Alexan-
dria (in Lagrange, o.c. pág. 558) sugere que Jesus deve ter tido “um sorriso indulgente e melancólico”
(mononouchi diagelai tên phônen).
Bonifácio VIII, na bula Unam Sanctam, interpreta os dois facões como símbolos do poder temporal e
do espiritual: precisava de uma defesa para sua ambição terrena.
Frase embaraçosa é a que traduzimos “tem fim o que me diz respeito (tò peri emoú télos échei). Estu-
dá-la-emos adiante.
Entretanto, indefensável é a tradução das edições vulgares, que trazem “espada”, em lugar de “facão”.
O grego máchaira exprime de fato “facão”, o facão do açougueiro, do pescador, do mateiro, do jardi-
neiro, ou então a “cimitarra” curva, em oposição à espada reta que era dita xíphos. Não podem com-
preender-se essas “espadas” nas mão dos discípulos, simples pescadores, que se reuniam para comer a
páscoa. Se ainda fossem oficiais do exército! Alguns autores servem-se dessa má tradução para buscar
provar que Jesus era apenas simples subversivo contra o poder romano, e estava, na realidade, agre-
gando o povo em torno de si para deslanchar uma revolução armada. E daí sua condenação política e
ter sido entregue aos romanos. No entanto, por toda a Sua vida e Seus ensinamentos, não é possível
crer-se que Jesus tivesse sequer pensado em revolução armada. Daí ser impossível crer que Seus discí-
pulos tivessem “espadas” consigo ... Seria o mesmo absurdo que acreditar que o Mahatma Gandhi pos-
suísse uma metralhadora automática, ou mesmo simples espingarda para combater os ingleses ...
Que tivessem facões, era compreensível: eram pescadores, e levavam consigo seus pertences, Embora
nem todos o fizessem.

No trajeto rápido entre o cenáculo e o monte das Oliveiras, aparece o diálogo que, embora curto,
constitui lição proveitosa.
Trata-se porém de magnífico simbolismo, baseando-se numa lição anterior, do qual foi deduzido o
presente ensino. Lamentavelmente ainda não foi entendido até aqui pelos comentadores ortodoxos, ou
melhor, jamais encontramos nenhum comentário que tenha atingido o cerne da lição.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

O fato nada lhes faltou, e eles o testificam, quando foram enviados desprovidos de elementos materi-
ais para satisfazer a suas necessidades vitais e sem acessórios para seu conforto físico.
A lição: nos momentos de dificuldades, quando assomados pelas forças negativas, não pode o discí-
pulo permanecer desprevenido e inerme, a fim de não ser surpreendido e aniquilado pelos adversári-
os, Indispensável, pois, que se muna dos meios espirituais, representados pelas obras de SERVIÇO,
que equivalem ao dinheiro no plano físico (bolsa); que carregue suas baterias e acumuladores com a
prece que alimenta a alma (alforge); e que dispense a proteção da defesa passiva (capa) para assumir
a iniciativa da ação pela palavra (facão), como Paulo definiu: “Tomai o capacete da salvação e o
facão do espírito, que é a palavra de Deus” (Ef. 6:17). E na epístola aos hebreus (4:12) lemos ainda:
“A palavra de Deus é viva e eficaz, e mais cortante que qualquer faca de dois gumes, e penetra até a
divisão entre a alma e o espírito”.
Então, ao invés de deixar-se levar pelas circunstâncias, aguardando benefícios dos outros, os discí-
pulos deverão, em meio às dificuldades do caminho que crescerão muito, tomar a iniciativa e provi-
denciar para si mesmos os meios de que carecem para realizar suas tarefas. E esses meios serão todos
espirituais: prece que alimenta o espírito (alforge), obras de serviço que produzem merecimento e
evolução (bolsa) e palavra candente e cortante que atinja as almas de todos aqueles a quem se diri-
gem (facão). Nada de ficar envolvidos no comodismo da espera (na capa), aguardando que as forças
do Alto façam tudo: Deus se manifesta aos homens por intermédio dos próprios homens. E os discí-
pulos são os homens designados para essa ação divina de atuação eficiente.
“Tem fim o que me diz respeito” exprime o término de sua missão entre os homens, na qualidade de
Jesus humano encarnado. Tudo o que se refere à humanidade de Sua vida na Palestina, chega ao fim.
Mais algumas horas de permanência entre os homens e tudo acabará com a “morte de Osíris” na
cruz, depois da qual deverá desaparecer para todos os profanos, como se realmente tivesse desencar-
nado, só podendo aparecer diante dos iniciados que compreenderiam o alcance de Seus atos (cfr. vol.
5). Portanto, quanto a Ele pessoalmente, finalizará dentro de horas Sua tarefa. Daí em diante, compe-
tirá a eles a ação. E para essa ação, é indispensável a iniciativa, não a expectativa.
Na realidade, houve ainda incompreensão dos discípulos quanto ao simbolismo dos facões. Basta ob-
servar a alusão aos que estavam na cintura dos dois mais “cuidadosos”, segundo a interpretação que
o mundo empresta à defesa do corpo, mais importante para ele que o Espírito.

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ORAÇÃO NO JARDIM

Mat. 26:36-46 Marc. 14:32-42

36. Então foi Jesus com eles para um sítio cha- 32. E foram a um sítio chamado Getsêmani e
mado Getsêmani, e disse aos discípulos: disse a seus discípulos: “Sentai-vos aqui en-
“Sentai-vos aqui, enquanto vou ali orar”. quanto oro”.
37. E tomando Pedro e os dois filhos de Zebe- 33. E toma a Pedro, Tiago e João com ele, e
deu, começou a entristecer-se e a inquietar- começou a atemorizar-se e a inquietar-se,
se. 34. e disse-lhes: “Triste está minha alma até a
38. Então lhes disse: “Triste está minha alma morte; ficai aqui e despertai”.
até a morte: ficai aqui e ficai acordados co- 35. E adiantando-se um pouco, caiu sobre a
migo”. terra e orou para que, se fora possível, fosse
39. E adiantando-se um pouco, caiu sobre seu afastada dele aquela hora,
rosto orando e disse: “Meu Pai, se é possí- 36. e disse: “Abba, ó Pai, tudo te é possível:
vel, afasta de mim esta taça: porém não afasta de mim esta taça; todavia, não o que
como quero, mas como tu (queres)”. quero, mas o que tu (queres)”.
40. E volta aos discípulos e encontra-os dor- 37. E volta e encontra-os dormindo, e disse a
mindo; e disse a Pedro: “Assim não tivestes Pedro: “Simão, dormes? Não tiveste força
força de ficar acordados comigo uma hora? de ficar acordado uma hora?
41. Ficai acordados e orai, para que não entreis 38. Despertai e orai para que não entreis na
na provação; pois o espírito (tem) boa- provação, pois o espírito (tem) boa-vontade,
vontade, mas a carne (é) fraca”. mas a carne é fraca”.
42. De novo, pela segunda (vez) retirando-se, 39. E afastando-se de novo, orou dizendo as
orou, dizendo: “Meu Pai, se isto não pode mesmas palavras.
passar sem que o beba, faça-se tua vonta-
de”. 40. E vindo novamente, encontrou-os dormin-
do, pois seus olhos estavam pesados e não
43. E vindo de novo, encontrou-os dormindo, sabiam o que responder-lhe.
pois os olhos deles estavam pesados.
41. E foi pela terceira (vez) e disse-lhes: “Dor-
44. E tendo-os deixado novamente, afastando- mis agora e repousais? Basta: chegou a
se, orou pela terceira (vez) dizendo de novo hora, eis que é entregue o filho do homem
as mesmas palavras. nas mãos dos profanos.
45. Então veio aos discípulos e disse-lhes: 42. Levantai-vos, vamos! Eis que chegou o que
“Dormis agora e repousais? Eis que chegou me entrega”.
a hora, e o filho do homem é entregue nas
mãos dos profanos.
46. Levantai-vos, vamos! Eis que chegou o que
me entrega”.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Luc. 22:40-46
40. Chegado, porém, ao lugar, disse-lhes: “Orai para não entrardes na provação”.
41. E foi afastado deles cerca de um arremesso de pedra, e pôs-se de joelhos e orou
42. dizendo: “Pai, se queres, afasta de mim esta taça; faça-se porém não minha vontade, mas a
tua”.
43. Apareceu-lhe um mensageiro do céu, confortando-o.
44. E começando a agonia, orou mais fervorosamente, e tornou-se o suor dele como coágulos de
sangue, caindo no chão.
45. E levantando-se da oração, veio aos discípulos e achou-os adormecidos pela tristeza,
46. e disse-lhes: “Por que dormis? Levantai-vos, orai, para que não entreis na provação”.

João,18:1b
1. ... onde havia um jardim, no qual entraram ele e seus discípulos.

Aqui temos o primeiro ato do drama, ao levantar-se o sipário: o candidato, a sós, enfrenta intelectual-
mente as provas que são mostradas à personagem, pois só a individualidade tivera delas conhecimento
total antes da reencarnação. A personagem conhecia o que a esperava, mas não em seus pormenores.
O termo kôríon é diversamente traduzido: como “lugar” (Loisy Lagrange), como “domínio” (Cram-
pon, Durand, Jouon) como “propriedade” (Buzy, Denis) como “sítio” (Pirot); mas João, que conhecia
bem o local, em vez do genérico kôríon, especifica que se trata de um kêpos, isto é, um “jardim”.
Ficava a cerca de cem metros ao norte, devendo tratar-se de uma propriedade particular, pertencente a
um amigo do Mestre, pelo que tinha Ele ali livre acesso. Mateus e Marcos citam o nome, Getsemani
(hebr. gath shemanim) que significa “lagar de azeite”. Jerônimo (Patrol. Lat. vol. 26 col. 197), julgan-
do que o original era gê’shemani, traduz como “vale fertilíssima” (vallis pinguissima).
O local devia ser solitário e ficava em frente à porta dourada do templo, situando-se para lá (perán) do
Cedron, ou seja, na margem oriental, no ponto do vale em que a torrente, virando para sudoeste, cava
um precipício nos flancos do Ophel.
Pirot (vol. 9 pág. 576) escreve: “Descobertas arqueológicas recentes, em confronto com antigos pere-
grinos, permitiram reencontrar com toda a certeza o lugar exato da agonia e o da traição de Judas (cfr.
Vincent et Abel, “Jérusalem Nouvelle”, pág. 301-327; 1006-1013, Orfali. “Gethsemani”). É necessário
distinguir nitidamente com os mais antigos autores (Eusébio de Cesaréia, o Peregrino de Bordeaux, S.
Cirilo de Jerusalém e, mais tarde, o diâcono Pedro, 1037, o higúmeno Daniel. Ernoul, 1228) o lugar
em que Jesus orou e o em que foi preso. A gruta, erradamente chamada da agonia, deve chamar-se
agora “gruta da traição”; ficava separada do jardim de Getsemani pelo caminho em escada, intacto
ainda no século IX, que permitia, por 537 degraus talhados na rocha, ir do fundo do Cedron ao cimo do
monte das Oliveiras. A gruta da traição, de forma oval bastante irregular, tem no conjunto 17 m de
comprimento, 9 m de largura e 3,50 m de altura. A abóbada rochosa é sustentada por seis colunas, das
quais três são de alvenaria. O próprio rochedo foi encontrado por ocasião das escavações empreendi-
das para encontrar os alicerces da basílica erigida entre 380 e 390. Esse rochedo, que se pretendeu en-
caixar na basílica primitiva por causa de seu caráter eminentemente sagrado, já que foi consagrado
pela oração do Mestre divino e regado com seu adorável sangue, impusera a esta (basílica) uma orien-
tação sensivelmente diferente da que foi adotada nas últimas restaurações. Nesse rochedo, pois, - onde
desde o final do século IV os sacerdotes oferecem o cálice do Senhor, aí mesmo onde seu sangue,
misturado ao suor, caiu gota a gota (Luc. 22:43-44). Graças a esse mole rochoso, situado a cem metros
ao sul da gruta da traição e a 15 m acima da torrente de Cedron, numa distância de mais ou menos 8 m
e numa largura de 3,80 m - é que se encontra o lugar exato da oração de Jesus, e pôde conservar-se nos

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três primeiros séculos sem nenhum monumento comemorativo, apesar do desbastamento da madeira
do monte das Oliveiras, em 70, e dos reviramentos de toda espécie, que tornaram essa colina, a acre-
ditar-se no historiador Josefo, totalmente irreconhecível. Se a lembrança do lugar da agonia tivesse
ficado ligada a esta ou àquela oliveira, teríamos tido um ponto de referência absolutamente precário.
Mas o bloco que fazia parte integral da montanha, podia transmitir através dos séculos essa recordação
sagrada, não obstante as mais selvagens devastações. A restauração da basílica da agonia, cuja
primeira pedra foi colocada a 17-10-1919 pelo cardeal Giustini, foi acabada em 1926.

Figura “NO JARDIM DAS OLIVEIRAS” – Desenho de Doré, gravura de Pannemaker

O fato desenrola-se com naturalidade. Jesus manda-os sentar-se (kathísate) em grupo, a fim de isolar-
se na prece, e leva consigo os mesmo três discípulos que o acompanhavam nos momentos solenes:
Pedro, Tiago e João.
A frase do vers. 45 em Mateus é apresentada interrogativamente em grego. Muito melhor que impera-
tivos afirmativos, que teriam sentido irônico, não concebível em circunstâncias de tamanha apreensão.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

A indagação, ao contrário, é séria: “estais dormindo agora, quando o Filho do Homem vai ser entre-
gue”? E logo a seguir apressa-os: “Levantai-vos, vamos, pois chegou o que me vai entregar.”
Os versículos 43 e 44 de Lucas faltam no papiro 75, em aleph (1.ª cópia), em A, T, W, 1071 e nos pais:
Marcion, Clemente, Orígenes (segundo Hilário), Atanásio, Ambrósio (segundo Epifânio e Jerônimo),
Cirilo e João Damasceno.
São assinalados com asterisco nos códices delta (3.ª cópia) , pi (3.ª cópia) e outros menos importantes.
Mas aparecem nos códices aleph (1.ª mão), D, K, L, X, delta (1.ª mão), theta (1.ª mão), pi, psi (1.ª
mão), família 1 e nos pais: Justino, Irineu, Hipólito, Dionísio, Ario (segundo Epifânio), Eusébio, Hilá-
rio, Cesário Nazianzeno, Gregório Nazianzeno, Dídimo, Pseudo-Dionísio, Epifânio, Critóstomo,
Agostinho, Teodoreto, Leôncio, Cosmos e Fecundo.
Compreende-se a omissão, em vista das críticas que provocava, pois constituía uma prova da fraqueza
humana natural, na pessoa de Jesus, além de também atestar sua não-divindade: não seria concebível
um Deus Absoluto temeroso ante o sacrifício físico.
Outra anotação a fazer é que a palavra grega thrómboi (donde provém nossa “trombose”) não exprime
absolutamente “gotas”, como aparece nas traduções vulgares, e sim “coágulos, grumos”. O suor não
era constituído de sangue, que gotejava, mas era uma substância que a pele de Jesus exsudava através
dos poros e que, COMO se fossem pequenos coágulos de sangue, caíam por terra. O advérbio hôsei
não é, como afirmam os hermeneutas, “indicativo”, mas simples “comparativo”: era COMO SE FO-
RAM coágulos de sangue. “pareciam ser” coágulos de sangue, mas não eram.
No entanto, Irineu (Haer. 3.22.2, Patrol. Graeca vol. 7, vol. 957) e Agostinho (In Ps. 140.4, Patrol, Lat.
vol. 37. vol. 1817) afirmam que se tratava de verdadeiro sangue.
Seja sangue, ou apenas coágulos, como diremos, trata-se de irrespondível prova contra os docetas, que
afirmavam que Jesus não tinha corpo nem sangue físicos, mas era apenas um “fantasma”, que fingia
estar encarnado, mas não estava. Na epístola aos hebreus (5:7) está claro: “nos dias de sua carne”, con-
firmando João (1:4) que diz que “o verbo se fez carne”, e que afirma em sua Epístola (1.ª, 4:2) que se
conhecerá o espírito que vem de Deus, quando disser que Jesus veio em carne. E na 2.ª epístola, v. 7,
insiste: “muitos sedutores tem aparecido no mundo, que não confessam que Jesus Cristo veio em car-
ne: esse é sedutor e anticristo.”
Esse estudo foi feito em amplitude por Azpeitia-Gutierrez, “Estudio Apologetico y Médico”, Zara-
goza, 1944; por L. Picchini, “La Sudorazione di Cristo”, Roma, 1953; e Riquelme Salazar. “Examen
Médico de la Vida y Pasión de Jesucristo”, Madrid, 1953.
Anotemos ainda a palavra agônía, empregada por Lucas no original, mas não na interpretemos como a
nossa “agonia” em português, ou seja, o estado típico daqueles que entram em coma. Em grego, esse
termo exprime “luta”. Aqui, portanto, o “entrar em agonia” significa iniciar a luta da personagem fraca
contra a própria fraqueza. Sustentado pela individualidade, o homem. nos grandes momentos trágicos,
entra em luta titânica e sem tréguas contra a covardia da personagem, que quer evitar a todo custo o
sofrimento moral ou físico. Nessa agonia, isto é, nessa luta, que produz ansiedade e angústia, é que se
decide qual o mais forte, qual das duas sairá vencedora: se a individualidade, haverá avanço evolutivo;
se a personagem, a derrota está à vista.

Não é sem razão que Mateus e Marcos dão o nome de Getsemani ao jardim a que Jesus se recolheu
para orar. Todos os indícios da interpretação foram deixados sabiamente consignados por escrito,
para que a humanidade pudesse, quando disso fosse capaz, descobrir a realidade e compreender o
significado profundo dos atos do Mestre inconfundível.
Observamos que Jesus não estava no “jardim fechado”, ou seja, na Galiléia, e sim na Judéia. Mas vai
para um “jardim”. E o nome desse jardim significa “lagar de azeite”, ou seja, o instrumento que es-
maga as azeitonas, para delas cavar o azeite, tal como o corpo de Jesus seria esmagado pela dor,
para que se produzisse o azeite, o líquido com que se sagravam os sumos-sacerdotes e os reis.

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E esse sofrimento, segundo testifica a epístola aos hebreus (5:7-10) O elevou ao grau de sumo-
sacerdote da Ordem de Melquisedec, tornando-o o CRISTO, isto é, “UNGIDO”, exatamente com o
azeite sagrado da unção sacerdotal. Não poderia haver indicação mais clara da ação espiritual que se
estava realizando no globo terráqueo.

Figura “SONO DOS DISCÍPULOS”, Desenho de Bida, gravura de Léopold Fleming

Da mesma forma que na Transfiguração havia sido dado um passo iniciático, aqui se iniciava o pro-
cesso para o passo seguinte. Então havia mister de “duas ou três testemunhas” (cfr. Deut. 19:15;
Mat. 18:16 e 2.ª Cor. 13:1). Foram escolhidas as mesmas testemunhas que haviam presenciado sua
transfiguração gloriosa, Pedro, Tiago e João, a fim de que agora vissem sua luta (agonia). Eles que
haviam testemunhado a manifestação da Individualidade no Tabor, precisavam ver, e comparar com

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SABEDORIA DO EVANGELHO

aquela, a manifestação de Sua personagem transitória, diante do programa de provas por que deveria
passar heroicamente.
Para preveni-los do a que assistiriam, avisa-os desde o início que “Sua alma” (psychê) - portanto Sua
personagem que não deve absolutamente confundir-se com a individualidade (pneuma) - “está triste
até a morte”. O que exprime o alcance indizível da ânsia por que foi tomada. Pode-lhes, pois, que
fiquem “despertos”, a fim de ajudar Seu eu menor a firmar Sua personagem conturbada pelos gran-
des sofrimentos que terá que suportar sem um gemido.
No entanto, os olhos dos discípulos estavam “pesados”, e os evangelistas esclarecem “por causa da
tristeza”. Hoje a expressão empregada seria outra: fisicamente achavam-se exaustos pela perda de
fluidos magnéticos.
O mesmo ocorrera por ocasião da Transfiguração, quando diz Lucas: “Pedro e seus companheiros
estavam oprimidos de sono, mas conservavam-se despertos” (Luc. 9:32: vol. 4.º, pág. 111).
Aqui, a grande perda de substância ectoplasmática, unida à tristeza apreensiva da hora, à tensão
opressiva e à expectativa dolorosa, não deixaram que resistissem fisicamente.
Jesus recomenda-lhes que permaneçam despertos (gregoreíte) para que “não entrem na provação”,
ou seja, para que não sejam apanhados desprevenidos pelas provas a que seriam submetidos. Nesses
momentos, é indispensável haver dinamismo ativo, e não estaticismo passivo e muito menos relaxa-
mento no sono, pois se o Espírito (pneuma, individualidade) tem boa-vontade (prós thymos), a carne
(sarx, o corpo da personagem) é frágil e pode sucumbir.
Jesus afasta-se dele. Lucas diz textualmente “é arrancado deles (apespáthê ap'autôn): trata-se do Es-
pírito que força o corpo a isolar-se, para que sozinho suporte o impacto, embora a criatura goste
sempre de sofrer acompanhada. Já à distância, o corpo rui por terra, na posição do desânimo e da
súplica: ajoelha-se (theis tà gónata) e curva o rosto até o chão (épiptein epi tês gês, em Marcos: ou
épesen epì prósôpon autoú, em Mateus), e começa a orar.
Mateus cita-lhe as palavras das três vezes que orou, pois nas três exprimiu o mesmo pensamento: “Se
é possível, afasta de mim esta taça”: é a ânsia da personagem que teme arrostar a dor física. Mas
logo a seguir acrescenta: “Mas não como quero eu, e sim como queres tu: faça-se a Tua vontade, não
a minha”.
Aqui verificamos nitidamente a dualidade de vontades, entre a personagem e a individualidade, entre
o Filho e o Pai, entre Jesus e Deus (Melquisedec). Como pode explicar-se isto, de quem dissera: “Eu
e o Pai somos um”? e “faço apenas a vontade do Pai”?
As duas frases, e outras semelhantes, nós o vimos a seu tempo, foram proferidas pelo CRISTO, através
de Jesus, com o qual estava identificada Sua individualidade. Não pela personagem terrena de Jesus,
não por Seus veículos físicos. Seu Espírito (pneuma) já identificara, mas não Sua personagem
(psychê) de fato, “a carne e o sangue não podem possuir o reino dos céus” (1.ª Cor. 15:50). Tudo é
claro e luminoso, e não há contradições nos Evangelhos.
Apesar de tudo isso, fortemente influenciada e dominada pelo Espírito a personagem se conforma e
aceita que a vontade do Pai, que era também a de Seu Eu profundo, seja realizada, e que prevaleça
sobre a vontade fraca e temerosa. Então essa prece, proferida três vezes pelo homem Jesus, demonstra
o esforço que Sua personagem física fazia para sintonizar e concordar com a vontade do Espírito e,
por conseguinte, com a vontade do Pai. Ao falar com os discípulos, cujo físico se achava enfraquecido
pela perda de energia, Ele também esclarece esse mesmo ponto: “O Espírito tem boa-vontade, mas a
carne é fraca.
Isso se passava com Ele nesses momentos e Ele o verificava em experiência pessoal ali mesmo vivida
e sentida.
* * *

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Figura “CONFORTO ESPIRITUAL” – Desenho de Bida, gravura de Éd. Hédouin

Lucas, na qualidade de médico, e portanto mais conhecedor dos fenômenos que se passavam no corpo
físico e no astral, e mais afastado do drama, tendo-se informado de tudo com pormenores, anota dois
fatos de que os outros não falam.
O primeiro e a aparição de um espírito desencarnado, que se materializa para “confortá-lo”. Lucas
di-lo ággelos (mensageiro). Como explicar essa materialização?
Já havíamos assinalado que Pedro, Tiago e João foram os chamados para acompanhar a Transfigu-
ração e, dissemo-lo a seu tempo (cfr. vol. 4), deviam ser médiuns de efeitos físicos, escolhidos exata-
mente para proporcionarem ectoplasma. O que ocorreu lá, ocorre agora aqui e ocorrerá na “ascen-
são”. O ectoplasma abundantemente fornecido possibilitou a materialização do espírito.

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Mas não foi só: houve também o segundo fenômeno assinalado por Lucas.
Aqui entra o tão citado e estudado “suor de sangue” a que a medicina chama hematidrose: vimos que
thrómboi não exprime “gotas”, e sim “coágulos” ou “grumos”, quer de sangue, de leite, gordura, etc.
Muitos esforçam-se em provar que, nas grandes angústias, é possível que as capilares do derma pos-
sam, por exosmose, exteriorizar gotículas de sangue. Mas não nos convence essa explicação, em pri-
meiro lugar porque a luta e a angústia de Jesus não devem ter sido tão apavorantes que causassem
esse efeito violento e raro; em segundo lugar, porque, onde há explicação mais simples e plausível,
não deve buscar-se outra mais complicada e difícil.
Compreendemos que esses coágulos formados por Seu suor, ou seja, pelo que parecia ser “suor”,
eram pequenas cristalizações de ectoplasma.
Sabemos, sem qualquer dúvida, que ectoplasma é proveniente do sangue, e melhor que nós devia sa-
bê-lo Lucas. Sabemos ainda que o ectoplasma se exterioriza, na mediunidade de efeitos físicos, por
todos os orifícios do corpo: boca, narinas, ouvidos, anus, vagina, meato urinário e ainda pelo umbigo
e pelos poros de todo o corpo, sendo tanto mais abundante, quanto maiores forem os orifícios, como é
lógico.
Que o ectoplasma dos discípulos foi abundante, comprova-o o sono irresistível (e anotemos de passa-
gem que realizaram uma sessão de materialização após bebido vinho). Mas também do corpo de Jesus
deve ter-se exteriorizado, como o demostra o fato de ter sido interpretado como “suor”. Mas não se
afastou do corpo, antes, envolveu-o, sendo que, porém alguns coágulos caíram ao chão.
Outro argumento que nos induz a crer que se trata de ectoplasma, é que todos sabemos que se apre-
senta, na escuridão, com fraca luminescência fosfórea, coisa que não ocorre com o suor aquoso, nem
mesmo com a hematidrose. E para ter sido anotado, nessa noite escura, observando-se que “caía por
terra”, era preciso que houvesse algo a iluminá-lo: sua própria fosforescência.
Mas por que e para que se teria produzido tal fenômeno?
Não cremos que tenha sido pelo pavor, mas sim pelo merecimento da personagem de Jesus, sempre
pronta a obedecer e que, nesse mesmo instante, soubera aceitar com resignação a prova dolorosa.
Esse merecimento fez que o espírito materializado o confortasse e ajudasse de duas maneiras eficien-
tes:
1.ª) recobrindo a superfície do corpo de Jesus com aqueles pequenos cristais de ectoplasma, localiza-
dos provavelmente sob a pele, a fim de embotar os terminais nervosos, com o objetivo de diminuir a
violência das dores e contusões, preparando rápida recuperação dos tecidos epiteliais;
2.ª) cauterizando por antecipação os capilares da epiderma e do derma, a fim de que o sangue não
esvaísse com demasiada abundância, mas logo coagulasse.
Com efeito, pelas narrativas não se fala em sangue abundante: houve algum sangue com a intromis-
são dos cravos nos pés e nos pulsos, e correu “um pouco de sangue com água” na chaga do lado; mas
pelo que verificamos no “Sudário de Turim”, o sangue não teve a abundância que seria de esperar,
não tendo tido caráter hemorrágico, o que teria causado esvaimento total, dificultando-lhe a recupe-
ração de Seu corpo.
Verificamos, pois, que em todo o trecho continuam as lições através dos fatos, dando-nos oportunida-
de de aprender novas propriedades do ectoplasma, até agora por nós insuspeitadas. O inciso de Lucas
“orou mais fervorosamente e tornou-se o suor dele como coágulos de sangue, caindo ao chão” é que
nos revelou não se tratar de hematidrose, ou suor de sangue provocado pela angústia, e sim um fenô-
meno benéfico, como resultado imediato da prece.
O fato de Lucas falar em thrómboi, “coágulos”, alertou-nos para a circunstância específica da cris-
talização do ectoplasma, coisa que ainda não lemos nas obras técnicas do Espiritismo moderno. Essa
cristalização talvez provoque efeitos medicinais ainda desconhecidos, que supusemos ser o embota-
mento dos terminais nervosos e mais rápida coagulação do sangue, para evitar o esvaimento hemor-

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rágico. Pareceu-nos lógica essa explicação, restando agora apenas ser comprovada nos laboratórios
dos pesquisadores que se dedicam ao estudo nas sessões de efeitos físicos.
* * *
Assim fortalecido e fisicamente preparado, regressa definitivamente aos discípulos, e pergunta-lhes
por que ainda estão a dormir, se já está chegando o discípulo que vai entregá-lo nas mãos dos profa-
nos para o sacrifício: Ele já estava pronto para iniciar a prova.
Mas que eles orassem, porque também a provação deles estava para chegar: que permanecessem des-
pertos (acordados) e em oração, a fim de não sucumbirem.
Cabe a nós todos o mesmo aviso, em qualquer situação, mas sobretudo quando assoberbados por ata-
ques que visam a experimentar nossas forças.
Não percamos de vista, outrossim, a energia do Espírito a dominar a personagem, e a necessidade
absoluta de aceitação por parte de nosso eu pequeno de TUDO QUANTO VENHA SOBRE NÓS: tudo
é necessário e “tudo coopera para o bem daqueles que amam a Deus” (Rom. 8:28). Quantas vezes
aquilo que nos revolta, seria um passo à frente em nossa evolução, e perdemos a oportunidade! Este-
jamos despertos, atentos, bem acordados, e permaneçamos em oração, para aproveitar todas as oca-
siões de subir.

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PRISÃO MOVIMENTADA

Mat. 26:47-56 Marc. 14:43-52

47. E ainda falando ele, eis chegou Judas, um 43. E logo, ainda falando ele, achegou-se Judas,
dos doze, e com ele grande grupo, com fa- um dos doze, e com ele um grupo com fa-
cões e paus (vindo) dos principais sacerdo- cões e paus (vindo) dos sacerdotes princi-
tes e anciãos do povo. pais, dos escribas e dos anciãos.
48. O que o entregaria dera a eles um sinal, 44. Deu-lhes, o que o entregaria, uma senha,
dizendo: Quem eu beijar, é ele, prendei-o. dizendo: Quem eu beijar , é ele, prendei-o e
levai-o com cuidado.
49. E logo aproximando-se de Jesus, disse: Sal-
ve, Mestre! e o beijou. 45. E logo chegando, disse-lhe: Rabbi! e o bei-
jou.
50. E Jesus lhe disse: “Amigo, vieste para isso”!
Então, aproximando-se (eles), puseram as 46. E puseram-lhe as mãos e o prenderam.
mãos sobre Jesus e o prenderam. 47. Um dos presentes, tirando o facão golpeou o
51. E eis um dos (que estavam) com Jesus es- servo do sumo-sacerdote e decepou-lhe a
tendeu a mão e tirou o seu facão e feriu o orelha.
servo do sumo-sacerdote e decepou-lhe a 48. E respondendo, Jesus disse-lhes: “Como
orelha. sobre um salteador, saístes com facões e
52. Então disse-lhe Jesus: “Repõe teu facão no paus para prender-me?
lugar dele, pois todos os que pegam o facão, 49. Cada dia eu estava convosco ensinando no
morrerão pelo facão”; templo e não me agarrastes; mas para que
53. ou pensas que não posso chamar meu Pai, se cumpram as Escrituras”.
que me porá à disposição agora mais de 50. E deixando-o, todos fugiram.
doze legiões de mensageiros?
51. E certo jovem segue-o, envolvido num len-
54. Como, pois, se cumprirão as Escrituras que çol sobre o (corpo) nu, e o agarraram.
(dizem) dever acontecer assim”?
52. Mas ele, tendo largado o lençol, fugiu nu.
55. Naquela hora, disse Jesus ao grupo: “Como
sobre um salteador saístes com facões e
paus para prender-me? Cada dia eu me João, 18:2-12
sentava no templo ensinando, e não me
agarrastes.
56. Mas tudo isso aconteceu para que se cum- 2. Judas, que o entregaria, também conhecia o
prissem as Escrituras dos profetas”. Dei- lugar, porque muitas vezes ali Jesus se reu-
xando-o, então, todos os discípulos fugiram. nira com seus discípulos.
3. Então, tendo Judas recebido dos principais
sacerdotes a escolta e dos fariseus os servos,
Luc. 22:47-53 chegou ali com fachos, archotes e paus.
4. Sabendo, pois, Jesus tudo o que lhe aconte-
47. Falando ele ainda, eis um grupo, e um dos ceria, aproximando-se disse-lhes: “Quem
doze, o chamado Judas, vinha à frente, e procurais”?
chegou a Jesus para beijá-lo. 5. Responderam-lhe: Jesus, o nazoreu. Disse-

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48. E Jesus lhe disse: “Judas, com um beijo lhes: “Sou eu”. Também estava com eles
entregas o Filho do homem? Judas, que o entregava.
49. Vendo, porém, os (que estavam) em redor 6. Quando, porém, lhes disse: 'Sou eu”, afas-
dele o (que ia) ocorrer, disseram: Senhor, taram-se para trás e caíram no chão.
ferimos com o facão? 7. De novo, então, Jesus perguntou: “Quem
50. E um deles feriu o servo do sumo-sacerdote procurais”? Eles disseram: Jesus, o nazo-
e decepou-lhe a orelha direita. reu.
51. Respondendo, porém, Jesus disse: “Deixa 8. Respondeu Jesus: “Disse-vos que sou eu: se
até isso”, e, tendo tocado a orelha, curou-o. então me procurais, deixai estes irem”.
52. E disse Jesus aos que vieram a ele, princi- 9. Para que se cumprisse a palavra que disse-
pais sacerdotes e oficiais do templo e anci- ra: “Os que me deste, não perdi nenhum
ãos: “Como sobre um salteador saístes com deles”.
facões e paus? 10. Então, tendo Simão Pedro um facão, tirou-o
53. Cada dia, estando eu convosco no templo, e feriu o servo do sumo-sacerdote e dece-
não pusestes a mão sobre mim; mas esta é a pou-lhe a orelha direita; Malco era o nome
vossa hora e o poder das trevas”. do servo.
11. Disse então Jesus a Pedro: “Põe o facão na
bainha; a taça que me deu o Pai, não a be-
berei”?
12. Então a escolta e o tribuno e os servos dos
judeus prenderam Jesus e o algemaram.

O episódio narrado pelos quatro evangelistas retrata a movimentação da ocorrência, salientando cada
um os pormenores que mais feriram sua atenção, gravando-se na memória deles mesmos ou dos in-
formantes, no caso de Lucas. Daí a desordem aparente das quatro narrativas. Bem sabido que as teste-
munhas mesmo oculares sempre contam os fatos com divergências.
Lendo, todavia, cuidadosa e atentamente, podemos chegar a reconstruir a sequência da ação, com a
seguinte ordem provável dos acontecimentos daquela noite:
1. Chegada do grupo, com Judas alguns passos à frente;
2. beijo e saudação;
3. resposta de Jesus;
4. pergunta dos discípulos se devem reagir;
5. reação intempestiva de Pedro;
6. resposta a Pedro;
7. cura da orelha;
8. Jesus aproxima-se do grupo e pergunta a quem procuram;
9. ao responder, sofrem impacto;
10. nova pergunta de Jesus;
11. recomendação de não tocar nos discípulos;
12. censura ao grupo de vir à noite e às escondidas;
13. fuga dos discípulos;
14. prisão de Jesus;

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15. fuga do jovem que ali ficara.

Figura “O BEIJO DE JUDAS” – Desenho de Bida, gravura de U. C.

Enquanto ainda falava Jesus, avisando da chegada do grupo, irrompe este, trazido por Judas, “para que
se cumprissem as Escrituras”. Não eram soldados romanos, embora João fale em “tribuno” (chiliár-
chos), tanto que traziam facões (máchaira) e paus (xylos) e não espadas (xiphós) nem lanças (lógchê),
como João emprega tecnicamente em 19:34.
Pode explicar-se que tivessem vindo com fachos (phanôn) e archotes (lampádôn), apesar de ser noite
de lua cheia (14 de nisan), pois no jardim havia a gruta onde Jesus costumava permanecer, e essa per-
manência em total escuridão. Justamente por ser escuro e não poderem reconhecer fisionomias, é que
Judas necessitava indicar claramente qual daqueles homens era Jesus.

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O grupo fora enviado pelo pessoal do templo e não pelas autoridades romanas, e recebera a senha de
reconhecimento: o beijo respeitoso na face, como o faziam todos os discípulos ao saudarem seu mes-
tre, com a fórmula judaica shalôm Rabbi, “salve Mestre”, que o grego traduz pela expressão usual en-
tre os helenos: chaíre! Mas Judas não deixa de recomendar aos capangas que não se excedam, e “o
levem com todo o cuidado”, pois aquele homem merece toda a consideração.
Jesus lhe recorda que “ele veio para isso”, e continua sendo o “amigo” (hetaíre, eph’hó párei). O texto
é seguramente assertivo, e não interrogativo, como é dado nas traduções vulgares (“amigo, a que vies-
te”?). Nas inscrições das taças de vinho dessa época, lemos frequentemente: euphraínoô, eph’hó párei
ou seja, “alegra-te, para isso vieste” (ou “estais aqui”); e' encontramos, até mesmo, a frase completa de
Jesus: hetaíre, eph’hó párei (cfr. Max Zerwick, Graecitas Bíblica”, Roma, 1960, n.º 221ss – antigo
167ss -; e também Zorell, “Verbum Domini”, ano 9 (1920) pág. 112-116; e mais E.C.E. Owen, “Jour-
nal of Theologic Studies”, ano 29 (1927-28), pág. 384-386).
A frase registrada por Lucas (“Judas, com um beijo entregas o Filho do homem”?), depois de tudo o
que ocorrera, assume sentido irônico, inconcebível naqueles instantes de suprema tensão. Mas os códi-
ces são unânimes em citá-la, o que não levanta suspeitas contra o fato de encontrar-se ela no original
lucano.
Outra frase em que Lucas difere dos outros, é a pergunta atribuída aos discípulos: “Senhor, ferimos
com o facão”? E sem esperar resposta, para não perder tempo, Pedro, impulsivo como sempre, puxa o
facão da bainha e acomete contra um servo do Sumo-Sacerdote. Também essa pergunta, na confusão
do momento, não parece retratar o ocorrido. Mas, tal como a primeira, esta segunda frase dá impressão
de acréscimos posteriores, por conta de quem narrou a Lucas o ocorrido.
Após o gesto impensado de Pedro, que poderia ter provocado um tumulto perigoso, pela inferioridade
numérica dos discípulos, o Mestre olha para ele e acalma-o: “deixa até isso”, ou seja: “não interfiras,
porque até isso está certo e previsto”. E jogo após o aviso, para que se precavenha contra possíveis
carmas negativos: “põe o facão na bainha dele, pois quem usa o facão, morre pelo facão”. Era a con-
firmação, na prática, do ensino teórico anteriormente dado: “não resistais ao homem mau” (Mat. 5:39,
vol. 2).
Jesus não quer saber de violência: toma a orelha do servo, que João diz chamar-se “Malco” e a cura,
segundo Lucas apenas. Temos a impressão de que o informante de Lucas contou que Pedro decepara a
orelha do servo e Lucas pergunta: “Qual”? para ser esclarecido de que foi a “direita”. E depois indaga:
“Mas ele ficou assim ferido”? e o informante: “Não, Jesus o curou. Então o evangelista teve o cuidado
de consignar a cura, que os outros calaram. Sua profissão médica o induziu a esse cuidado. A orelha
talvez não tenha sido totalmente arrancada: pode ter ficado presa pela pele, quando Pedro desceu o
facão de cima para baixo, e o servo desviou a cabeça para o lado esquerdo, de forma que só foi atingi-
da a orelha direita.
Segundo João (episódio omitido nos sinópticos) Jesus se aproxima da malta e pergunta “A quem pro-
curam”. A resposta é rápida: “Jesus, o nazoreu”. No original não está ‘nazareno’, forma que só aparece
em Marcos (1:24, 10:47; 14:67 e 16:6) e Lucas (4:34 e 24:19). A forma “nazoreu” está em Mateus
(2:23 e 26:71), em Lucas (18:37); em João (18:5 e 7 e em 19:19) e nos Atos (2:22; 3:6; 4:10; 6:14;
22:8; 24:5 e 26:9), podendo reler-se o que escrevemos no vol. 1.
Afirma João que, quando Jesus dá a resposta “Sou eu”, o bando sentiu tal impacto, que deu um pulo
para trás, atropelando-se, pelo que alguns caíram no chão. Dada a confusão, Jesus espera que se re-
componham e repete a pergunta, obtendo a mesma resposta e retrucando da mesma forma. Mas já ago-
ra não há mais confusão. Então o Mestre pode concluir seu pensamento: “se é a mim que procurais,
deixai que estes vão embora”. Observamos que não os chama de “discípulos” para não atrair sobre eles
o perigo de serem presos também.
E João anota que isso foi feito para realizar-se o que Jesus havia dito: “não perdi nem um dos que me
deste” (João, 17:12). Depois disso é que João coloca o arremesso de Pedro contra o servo do sumo-
sacerdote, mas tudo indica que o fato se deu antes: não se compreenderia que, depois de liberados para
irem embora. Pedro tivesse avançado contra o grupo, pois isso teria anulado a recomendação de Jesus.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

O que temos a seguir é a censura que o Mestre faz, demonstrando Sua estranheza de não terem tido a
coragem de prendê-Lo quando estava a ensinar publicamente no templo, e viessem a fazê-lo como a
um salteador, na escuridão da noite. Agostinho (Patrol. Lat. vol. 33, col. 981/982) comenta: Quid est
nisi potestas diáboli et angelorum ejus, qui cum fuissent angeli lucis, facti sunt tenebrae, isto é. “por
que, senão porque o poder do diabo e de seus anjos, que tinham sido anjo, de luz. se tornaram anjos
das trevas”?
Depois disso, quando se aproximaram de Jesus e o algemaram (édêsan), todos os discípulos fugiram:
pareceu-lhes perdida a batalha. Mas, por não pertencer ao grupo, um jovem (neanískos), que pelo ad-
jetivo grego devia estar entre 14 e 16 anos, ali ficara a olhar. Estava nu, apenas enrolado num lençol de
linho (síndona epì gymnoú), o que dá a entender que era de família abastada, pois os pobres dormiam
com a mesma roupa com que andavam durante o dia, jogando-se em cima do enxergão; só os mais
providos de meios, que possuíam lençóis, é que tiravam a roupa e dormiam nus, cobrindo-se com len-
çol. Mas isso ainda revela que esse mocinho devia morar próximo ao local, talvez na casa do jardim de
Getsemani, e por isso despertara com o movimento e o barulho; enrolando-se, então, no lençol, viera
ver o que se passava.
Quando, porém, um dos homens o agarrou, soutou-lhe na mão o lençol e fugiu nu para casa. Certo é
que não se tratava de nenhum dos discípulos. Quem teria sido? João Crisóstomo, Gregório Magno e
Beda disseram que devia ser João o Evangelista: Epifânio propõe que era Tiago, irmão de Jesus: outros
dizem ter sido Lázaro, mas a este não cabia o qualificativo de neanískos.
A opinião mais corrente e lógica era de que se tratava do próprio Marcos, ou João-Marcos, o único que
relata o fato por ter-se passado com ele mesmo, e não haver saído jamais de sua memória o susto que
passou. Ora, Marcos parece ter sido sobrinho de Pedro (filho da irmã de Pedro que se chamava Maria,
At. 12:12) e que bem podia morar fora de Jerusalém, como deduzimos de Atos 12:10, onde se diz que,
ao sair da prisão. Pedro “atravessou o portão de ferro que dá para a cidade, que se abriu sozinho” e foi
ter à casa de Maria. Ainda lemos sobre Marcos em Atos (15:37-39) que é dito consobrinus Bárnabae,
isto é, sobrinho ou primo de Barnabé (Col. 4:10). A hipótese, em vista da idade de Marcos, parece bem
viável.

O grupo fora enviado, vimo-lo, pelas autoridades religiosas do Sinédrio (sacerdotes, anciãos do povo
e escribas). Nem se compreenderia que assim não fosse: o grande “mistério” iniciático de conquista
do grau de hierofante só podia ser confiado a um Colégio Sacerdotal regular e legalmente constituí-
do; sendo Jesus israelita, evidente que os homens que detinham o poder do sumo-sacerdócio é que
teriam que desempenhar o rito do holocausto, embora humanamente nada soubessem do que estavam
a fazer. Os romanos, no caso, só entraram como auxiliares da execução para o emprego da força físi-
ca, já que a tortura para a “morte de Osiris” não poderia ter sido a lapidação (segundo a lei mosai-
ca); o simbolismo exigia que fosse a crucificação, e esta só a autoridade civil romana possuía com-
petência legal para aplicá-la.
Judas, ao cumprir sua dolorosa e árdua tarefa, indica a senha que dará à malta que vai prender seu
Mestre que, qual cordeiro, se destina ao holocausto. E escolhe o sinal usual de respeito entre discí-
pulos e mestres: o beijo na face.
Ao chegar próximo de Jesus embora firme em sua resolução de colaborar no drama sagrado, está
constrangido e de coração amargurado, ao proferir as palavras de praxe: “Salve, Mestre”! Seu olhar
e sua vibração deviam ser de profunda tristeza e apreensão, que se manifestaram no tom em que pro-
feriu as palavras. E de tal forma devia estar abatido, que Jesus sentiu piedade e fez questão de con-
fortá-lo com a resposta tranquilizadora registrada por Mateus, que assistiu pessoalmente à cena:
“Amigo, vieste para isso”! Lembrava-lhe, assim, a resolução de seu Espírito, anterior à reencarna-
ção, fazendo-lhe ver que tomara corpo físico na Terra exatamente com essa finalidade: como sacer-
dote da Escola Iniciática Assembléia do Caminho, entregar a vítima às mãos do Colégio Sacerdotal
do Sinédrio, para que se consumasse o holocausto e fosse galgado mais um degrau na escala evoluti-
va de Jesus.

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C. TORRES PASTORINO

Mas apesar de ser nobre e elevada essa que podemos chamar verdadeiramente de “missão”, apre-
sentava para a personagem dificuldades que, para qualquer espírito fraco e titubeante, e para qual-
quer involuído, ainda escravo das emoções, seriam insuperáveis. Por exemplo, Pedro jamais teria
condições, naquela existência, de desempenhar aquele papel. Sua emotividade não fora dominada, sua
impulsividade era dirigida pela emoção, e por isso era ele explosivo e irrefletido em suas reações. Por
seu ato, Judas demonstra Ter tido o Espírito (Individualidade) mais evoluído que Pedro, embora sua
personagem ainda ressentisse deficiências que mais tarde o prejudicariam.
Mas no cumprimento de um dever para o qual se comprometera, o Espírito dominou a personagem
humana encarnada e a fez agir, embora em estado de quase-transe, para que não houvesse possibili-
dade de interferência na ação indispensável. Todos experimentamos, na vida, essas situações, em que
o Espírito assume o domínio completo: quando mais tarde olhamos para trás e analisamos nosso
comportamento, admiramo-nos e perguntamos a nós mesmos: como tive coragem de agir assim nessa
circunstância? Parece até que não fui eu que fiz isso! É que o intelecto não atingiu a noção do Eu
verdadeiro, e julga ser seu eu apenas a personagem. Essas ações parecem-nos que são feitas quase em
estado de “sonho”, e só temos plena consciência delas a posteriori.
A frase de Jesus a Judas foi realmente tranquilizante “vieste para isso”. E o vocativo amigo, com a
palavra hetaíre – que exprime a amizade de companheirismo e camaradagem absolutas – revela-nos
que o ato de Judas não foi de forma alguma considerado por Jesus como uma “traição”, e sim como
um testemunho de amizade, pois O estava ajudando a cumprir Sua missão dolorosa: era muito melhor
que tudo ocorresse como estava previsto, do que ser deixado à discrição popular, arriscando-se o
drama a não atingir sua finalidade predeterminada. Só os verdadeiros “amigos” são capazes de atos
que, mesmo beneficiando, serão julgados por todos os que a eles assistem, mesquinhos e maléficos: ao
amigo não importa a opinião das massas, mas sim o resultado bom que o amigo vai experimentar. E
por isso são os “verdadeiros amigos” que avisam e repreendem de cara, ao invés de falar pelas cos-
tas. E só os “verdadeiros amigos” são capazes de prejudicar-se até o âmago, para proporcionar ao
amigo uma posição superior e vantajosa.
Será que Judas, em sua personagem, conseguiu recordar-se naquele momento, da resolução tomada
antes de encarnar? Talvez sim, talvez não. Mas a angústia daquelas horas difíceis deve Ter-lhe obnu-
bilado o intelecto, não deixando-o refletir nem meditar. No entanto, como veremos, cumprida a tarefa
para a qual tivera que receber a importância estipulada a fim de não levantar suspeitas, vai restituí-la
ao templo. E afasta-se totalmente do grupo, para ver se consegue acalmar-se. Só mais tarde aparece-
rá, para ver o resultado glorioso do Mestre, ao vencer a morte. Mas, quando O vê lanceado no peito,
julga que tudo falhou e se desespera.
A prova da impulsividade explosiva governada pela emoção, em Pedro, manifesta-se quando puxa o
facão da bainha e o desce violentamente sobre a cabeça do primeiro que ali aparece. Este desvia a
cabeça para a esquerda, sendo atingido apenas na orelha direita.
Jesus compreende o impulso de Pedro, mas “sabendo tudo o que ia ocorrer”, repreende-o: “põe teu
facão na bainha: quem com ferro fere, com ferro será ferido. Lembra-te da Lei do Carma! Então, não
deverei beber a taça que o Pai me destinou? Não atrapalhes a ação divina. Se isso não devesse acon-
tecer assim, julgas que não poderia invocar meu Pai, e Ele me enviaria doze legiões de mensageiros
desencarnados? (A legião era de 6.000 homens: seriam, então 72.000 espíritos).
Dizem alguns que essa alusão atingiu todos os discípulos: viriam doze legiões para suprir a vacilação
dos doze discípulos ...
Mas João, o simbolista espiritual, atribui ao servo do sumo-sacerdote um nome: malco. Ora, esse
nome significa REI. Não diremos que era “falso” o nome, nem “inventado” por João, pois houve ou-
tras personagens que o usaram no Antigo Testamento: Malachias, Melcha (fem.), Melchia ou Melchi-
as, Mechon, Melech, além do conhecido composto Melquisedec.
Entretanto, perguntamo-nos por que teria sido citado esse nome tão tipicamente simbólico? Que ra-
zões haveria para citar assim um nome que, na realidade, nenhum interesse possuía. Com efeito, Pe-

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SABEDORIA DO EVANGELHO

dro avança para destruir o “rei” ou “príncipe deste mundo” (tôn archôn toú kósmou toútou) de que
Jesus falava: o rei das trevas, o símbolo personificado da força do Anti-Sistema.
Essa maneira de agir mantém-se ainda hoje entre muitos que “se dizem” espiritualistas, embora na
realidade ajam com as armas e à maneira do Anti-Sistema: igualam-se, na ação, aos que querem con-
vencer que não devem agir assim; gritam com a criança que grita, para ensinar-lhe a não gritar; ba-
tem na criança que bate, para dizer-lhe que não deve bater; matam “legalmente” o assassino que
matou, para convencê-lo, a ele e ao povo, de que não pode nem deve matar! Qual o pior assassino? O
que mata num desvario passional incontrolado e impensado, ou o que fria e deliberadamente manda
matar o doente que se desvairou? Sofismas e desculpas não inocentam ninguém.
O ensino de Jesus é claro: não toque nos corpos, para não assumir carmas negativos. Não use violên-
cia, que atrairá violências dobradas. Não reaja intempestivamente: deixe crescer o joio junto com o
trigo, pois na hora da colheita serão separados (Mat. 13:30). Não enfrente o “rei do mundo”, pois ele
cairá por si mesmo. se tivessem que ser esmagadas as forças do Anti-Sistema, julgas que meu Pai não
teria o poder para enviar à Terra legiões de mensageiros que tudo arrasariam? Se não o faz, é que
esse não é o modo certo de vencer. Não adianta “espancar” as trevas: basta que a luz se acenda si-
lenciosamente. Quem terá a capacidade de julgar os atos do Pai? “Quem és tu, ó homem, que replicas
a Deus?” (Rom. 9:20).
Não esqueçamos que o número DOZE é o símbolo, no plano superior, dos messias ou “enviados”, que
por isso cabe aqui ad unguem, no contexto: mas se o Pai, que tudo governa, acha que os homens têm
que evoluir por si mesmos, à custa do esforço e dos atritos purificadores da dor, esse é que constitui o
caminho melhor, e não o envio “em massa” de mensageiros celestes. Pelo menos, assim era naquela
época, o que não exclui que, em circunstâncias diferentes, diferente seja o modo de agir.
No entanto, o gesto de Pedro está plenamente coerente com seu temperamento exaltado do primeiro
“raio”, o do Poder, que constrói e destrói. Ele sabia o que devia ocorrer com Jesus, tanto que não
reagiu contra Judas quando - tendo perfeito conhecimento do que estava para acontecer - nem se
mexe ao vê-lo sair do cenáculo para “entregar” o Mestre. Mas não contava com o modo de agir dos
profanos e, ao ver chegando aquele grupo armado de paus e tochas, assusta-se e não suporta o im-
pacto, supondo que aquela malta ia massacrar o querido Rabbi ali mesmo. Daí não se ter contido. O
holocausto previsto, sim; mas desse jeito, também não!
Lucas é o único a assinalar a cura de Malco, como vimos.
Depois desse gesto e das palavras dirigidas a Pedro, Jesus encaminha-se para o grupo que se manti-
nha a alguns passos de distância, a fim de recomendar-lhes que “não toquem” em Seus discípulos.
Mas quer esclarecer bem qual a ordem que tinham recebido. Pergunta-lhes, pois, “quem” é que pro-
curam: só Ele, ou o grupo? A resposta é clara: só “Jesus, o nazareu”. Jesus inicia a frase, assumindo
a responsabilidade total e única: “Sou eu”!
João registrou a cena. Impressionara-o a cena do susto daqueles homens rudes, pulando para trás e
atropelando-se, alguns até caindo ao chão. Psicologicamente pode explicar-se pela idéia que tiveram,
de que ia dar-se, da parte de Jesus que caminhava para eles, uma resistência inopinada. Então recua-
ram, para tomar posição de defesa. Como estavam muito aglomerados, os da frente tropeçaram nos
que estavam atrás. Psiquicamente pode supor-se que a força vibratória do SOM emitido, os tenha
atingido qual lambada inesperada e aguda, pertubando-os e assustando-os.
Em vista da confusão, Jesus aguarda que se recomponham e repete a pergunta: exige bem claro o
objetivo da busca, a fim de impor a condição: “se é a mim que buscais, deixai que estes se vão”. E
João esclarece: “para que se cumprisse a palavra de Jesus, que dissera: “não perdi NEM UM dos
que me deste”, pois a TODOS veio Jesus tirar do Anti-Sistema; nem mesmo Judas se “perdeu”, mas
apenas se sacrificou para servir de instrumento que possibilitasse a ação das trevas.
Exigida a condição, dirige-se ao grupo com a autoridade que lhe dá sua posição de Espírito Superior,
perguntando-lhes por que não O prenderam quando estava, durante dias seguidos, sentado no templo

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C. TORRES PASTORINO

a ensinar, rodeado de Seus discípulos. Protesta, pois, com justiça, que tinham vindo armados, como
para prender um salteador afeito a resistir violentamente com as armas.
O protesto caiu no vazio, mas ficou consignado, demonstrando que o homem Jesus, em Sua persona-
gem, não era fraco, medroso nem covarde, e enfrentava as situações de cabeça erguida. Não era
aquela figura dócil e quase efeminada que alguns nos apresentam. Manso, sim, de coração, mas não
de atitudes, todas másculas e vigorosas; sujeitando-se às humilhações “para que se cumprissem as
Escrituras” no que haviam dito a Seu respeito. Manso com os pobres, os doentes, os pecadores humil-
des, mas altivo e até arrogante diante dos poderosos e das autoridades constituídas, falando-lhes so-
branceiramente de cara. Magnífico exemplo!
Lucas acrescenta uma frase: “esta é a vossa hora e o poder das trevas”. Para que tudo pudesse ocor-
rer segundo a predeterminação das Forças de Luz, era mister que as trevas interviessem, para reali-
zar atos inexequíveis por Aquelas. Mas nem por isso deixaram de estar sujeitas a Elas, obedecendo-
Lhes, embora a contragosto. Era a declaração manifesta de que voluntariamente deixava que o Anti-
Sistema agisse em Sua personagem, a fim de obter resultados positivos na área do Sistema.
Foi quando todas resolveram “fugir”, embrenhando-se por entre as oliveiras do jardim. Todos o
abandonaram, inclusive Pedro e João, e mesmo seus irmãos Judas Tadeu e Tiago.
Compreenderam que chegara a hora tão anunciada por Jesus, e que a presença deles perturbaria o
bom andamento do drama. São acusados de “ingratidão” e de “poltroneria”. Todavia, da mesma
forma que os grandes vôos místicos só podem ser realizados a sós, assim também as grandes experi-
ências (páthos) são indispensavelmente vividas em solidão absoluta: “vem a hora em que cada um
seguirá para seu lado, e serei deixado sozinho” (João, 16:31).
A interpretação humana pende sempre a julgar mal qualquer atitude dos outros, sem querer aprofun-
dar o olhar para descobrir a essência última dos atos. Tão fácil se torna acusar e atribuir o mal a
tudo o que se vê, que ninguém quer dar-se ao trabalho de pensar antes de falar. E tão fácil é projetar
nos outros os próprios sentimentos íntimos e inconfessáveis, que a maledicência e a calúnia se tornam
pão cotidiano. E lamentavelmente essa é uma atitude mais comum entre espiritualistas que entre ma-
terialistas, e a razão é que os primeiros estão intimamente convictos de que são os seres “mais evoluí-
dos, perfeitos e infalíveis” do planeta: a opinião deles é A CERTA. Então, divulgam-na ao máximo,
procurando rebaixar todos os “concorrentes”, para que só eles fiquem “de cima”, no pedestal da
perfeição e com a auréola de “santos” e de “sábios”.
Diz João que, depois de tudo, a escolta prendeu Jesus e o “algemou”. O “tribuno”, de que fala nessa
frase, dá a entender que era o grupo chefiado por uma autoridade do exército romano. Mas jamais o
orgulho de um romano, sobretudo oficial, teria permitido que um “tribuno” chefiasse um grupo de
servos. Seria como se hoje imaginássemos um capitão do exército oficialmente à frente de um grupo
heterogêneo de homens armados de paus e facões. Por que então teria João usado esse termo técnico?
Parece-nos que no sentido popular: o “capitão” do grupo, como ainda dizemos o “capitão” do time
de futebol: o chefe, o cabeça, o que dirigia.
Estava, pois, a vítima entregue às mãos dos profanos, para ser levada às autoridades do Colégio Sa-
cerdotal, a fim de cumprir-se o drama que a elevaria um passo acima na escalada evolutiva.
Veremos como agiu e por que sofrimentos passou para galgar o grau iniciático de Sumo Sacerdote da
Ordem Sacerdotal de Melquisedec, a que pertencia.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

VISITA A ANÁS
João ,18:13, 24, 14
13. E (o) conduziram primeiro a Anãs, pois era sogro de Caifás, que era sumo-sacerdote
naquele ano.
24. Então Anãs o enviou algemado a Caifás, o sumo-sacerdote.
14. Era Caifás que aconselhara aos judeus que convinha um homem morrer pelo povo.

Expliquemos, inicialmente, porque introduzimos o versículo 24 entre o 13 e o 14.


Em primeiro lugar porque o exige a ordem dos acontecimentos, e depois por causa da crítica interna do
próprio texto e dos códices.
Com efeito, os sinópticos nada dizem a respeito dessa “visita” feita a Anás, só relatada por João, que
acompanhou Jesus passo a passo.
Mas não pode explicar-se que os vers. 15 a 23 de João se refiram a acontecimentos ocorridos na pre-
sença de Anás, já que, tendo dito e repetido que era Caifás o Sumo-Sacerdote daquele ano (vers. 13 e
24), não poderia chamar Anás de Sumo-Sacerdote, como está nos versículos 15, 16 e 22. Houve, sim,
uma confusão em Lucas (vol. 1) quando fala no “mergulho” de Jesus. Mas Lucas não era judeu nem
vivia na Palestina, e pode ter feito confusão.
Mas, além de tudo isso, essa é a ordem encontrada no manuscrito da versão siríaca palestinense, no
uncial 225 e aceita por Cirilo de Alexandria, além dos comentadores modernos Fillion, Calmès, Ca-
merlynck, Lagrange, Durand, Lebreton, Jouon, Pirot (que diz: “quando uma pequena correção resulta
numa restituição tão coerente, não podemos dizê-la arbitrária”, vol. 10, pág. 456), e por Max Zerwick,
S.I. “Analysis Philologica Novi Testamenti Graeci”, in loco (onde escreve: hic fortasse intermittendus
est versiculus 24).
As versões vulgares trazem o vers. 24 em seu lugar, seguindo a ordem dada pelos palpiros 60 e 66,
pelos códices aleph, A, B, C, D, K, W, X, delta, theta, pi, psi pelos unciais 054 e outros: fam. 1, fam.
13 e 28, 33, 565, 700, 892, 1009, 1010, 1071, 1079, 1216, 1230, 1241, 1242, 1344, 1365, 1546, 1646.
2148, 2174, pelo Lecionário Bizantino pelas ítalas a, aur, b, c, f ff2, q, r, pela Vulgata, pelas versões
siríacas peschitto e harcleense, pelas coptas saídica boaírica, achmimiana, pela gótica, armênia e ge-
órgia.
Ora, já vimos que o arquétipo devia ter cinco versículos em cada folha, e verificamos que, entre o vers.
14 e 23 há, exatamente, 10 versículos. Temos então, que, ao chegar ao vers. 13, ele saltou o vers. se-
guinte no pé da página e virou a folha, continuando a copiar. Ao chegar ao vers. 23, no pé da segunda
página, notou o salto: voltou atrás e copiou o 24. Realmente, depois do vers. 13, temos uma pág. com 5
versículos (14 a 18) e outra página também com 5 versículos (19 a 23).
Como comprovação desses enganos, podemos descobrir testemunhos. A versão siríaca dá a seguinte
ordem: 13-24-14-15; depois 19 a 23 (5 versículos de uma página), depois 16-17-18 e 25-26-27. A ver-
são siríaca palestinense traz a seguinte ordem: 13-24-14 a 23 (10 versículos) e depois repete o 24 (!) e
continua do 25 em diante; a mesma ordem encontramos no mss. 1195. O mss. 225 apresenta a seguinte
ordem: 13a-24-13b a 23 (10 versículos) repete o 24 (!) e continua do 25 em diante.
Está, pois, evidente, que houve desorganização na cópia do arquétipo, que permaneceu causando con-
fusão em alguns manuscritos e versões. Embora as cópias dos códices, feitas desse mesmo arquétipo,
tivessem procurado segui-lo fielmente, colocando o vers. 24 fora do lugar, onde o copista o pusera por
engano.

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C. TORRES PASTORINO

* * *
Anás (cujo nome significa “misericordioso”) era uma das figuras mais influentes social e religiosa-
mente em Jerusalém, e fora feito sumo-sacerdote por Quirínio no ano 6 ou 7 A.D.; mas foi deposto no
ano 15 por Valério Grato (FI. Jos., Ant. Jud. 18, 2, 2), embora tivesse conseguido com sua influência
que cinco de seus filhos (Eleazar, Jônatas, Teófilo, Matias e Anás) e mais seu genro José Caifás (Fl.
Jos. Ant Jud. 18, 9, 1) fossem elevados ao sumo-pontificado. Daí te-lo classificado Flávio Josefo como
um dos homens mais felizes de sua época.
O fato de terem levado Jesus à sua presença, antes de apresentá-lo a Caifás, demonstra o prestígio de
que gozava: quiseram mostrar a “consideração” por sua idade e sua influência.
Anás, tendo olhado para Jesus, enviou-o imediatamente, tal como estava (“algemado”) para Caifás.
João anota que fora Caifás que dissera aquela frase, de ser necessário que um morresse pelo povo
(João, 11:50). Manteve o sumo-sacerdócio do ano 18 ao 36 (FI. Jos. Ant. Jud. 2, 2, 2 e 2, 2, 43).
João fala no “pátio” que era o terceiro elemento das casas helênicas da época. À entrada, na via públi-
ca, (ho pylôn), seguia-se o vestíbulo (tó proaúlion), após o qual vinha o pátio (hê aulê), geralmente
circundado por um pórtico de colunatas, em redor do qual se abriam as salas do pavimento térreo.
Na passagem do pylôn, que João chama “porta” (thyra), é que Pedro ficara retido por não ser conheci-
do.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

NA CASA DE CAIFÁS

Mat 26:57-58 Marc 14:53-54

57. Os que prenderam Jesus, levaram-(no) a 53. E levaram Jesus ao sumo-sacerdote e se


Caifás, o Sumo-Sacerdote, onde os escribas reuniram todos os principais sacerdotes e os
e os anciãos estavam reunidos. anciãos e os escribas.
58. Mas Pedro o seguia de longe até o pátio do 54. E Pedro seguiu-o de longe, até dentro do
Sumo Sacerdote, e, entrando aí, sentou-se pátio do sumo-sacerdote, e estava sentado
com os servos para ver o fim. junto com os servos, aquecendo-se junto ao
fogo.

Luc. 22:54
João, 18:15-16

54. Tendo-o prendido, (o) levaram e introduzi-


ram na casa do Sumo-Sacerdote; mas Pedro 15. Mas seguiam Jesus Simão Pedro e outro
seguia-o de longe. discípulo. E esse discípulo era conhecido do
sumo-sacerdote e entrou junto com Jesus no
pátio do sumo-sacerdote.
16. E Pedro ficou de fora, à porta. Saiu, então,
o outro discípulo, o conhecido do sumo-
sacerdote, e falou com a porteira e fez Pe-
dro entrar.

Segundo o testemunho de Mateus e Marcos, estavam reunidos na casa de Caifás os principais sacer-
dotes, os anciãos e os escriba: portanto o pessoal que constituía o Sinédrio. Marcos anota que estavam
“todos”, mas deve ter havido generalização indébita, pois Nicodemos e José de Arimatéia (cfr. Luc.
23:51) não deviam estar presentes.
Como e por que lá estavam essas autoridades? Tendo fornecido os servos para a captura de Jesus, tal-
vez ali tivessem ficado a conversar, enquanto aguardavam o resultado da “batida”.
Mas o julgamento oficial do Sinédrio não se realizou em seguida, durante a noite, o que era proibido,
sob pena de nulidade, quer pelo Talmud (Sanhedrin, 4, 5ss) quer pelo Direito Romano. Lucas diz cla-
ramente (22:66) que o interrogatório foi feito “Logo que se tornou dia” (hôs egéneto hêmêra). E escla-
rece que não foi na casa de Caifás, e sim no Sinédrio (id. ib), na sala do Gagith, que os gregos deno-
minavam “Conselho” (boulê ou bouleutêrion), que ficava a oeste do templo.
Por que tamanha pressa? Em vista da festa da Páscoa, que começava às 18 horas daquela mesma sexta-
feira, impondo o repouso sabático juntamente com o repouso pascal. Se houvesse delongas, havia,
além disso, o temor de algum levantamento popular favorável ao prisioneiro. Por isso, precipitaram-se
os acontecimentos.
Pedro seguia Jesus “de longe”, enquanto “outro discípulo, que era conhecido do sumo-sacerdote”,
também seguia o grupo. Discute-se quem seria esse “outro discípulo”. A maioria propende em aceitar
que era João, embora Durand (“Évangile selon S. Jean”, pág. 468) não o aceite, sob a alegação de que
um simples pescador do lago de Tiberíades, na Galiléia, dificilmente teria “conhecimento pessoal”

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C. TORRES PASTORINO

com o Sumo-Sacerdote. E lança a hipótese de ter sido aquele jovem que fugiu nu (Marcos), que se
vestira e acompanhava tudo: este morava em Jerusalém e devia pertencer a família abastada, como
vimos.
Não vemos razão para isso. Primeiro porque esse jovem não é apresentado como “discípulo”, como
“um dos doze”, que são os que recebem a classificação de discípulos. Em segundo lugar porque o
Sumo-Sacerdote não era obrigatoriamente “amigo” do discípulo: apenas “o conhecia”. E pode a ex-
pressão ter sido usada lato sensu: o “outro discípulo” era conhecido dos servos do Sumo-Sacerdote,
que eram os que atendiam à porta.
Como era conhecido? Não era ele sócio da companhia de pesca de seu pai (cfr. Mat. 4:21 e Marc. 1:20;
vol. 2)? Não poderia João ser o elemento de ligação que negociava peixe na casa de Caifás? Qual a
dificuldade insuperável para que, sendo conhecido na casa do Sumo-Sacerdote, os servos lhe abrissem
a porta e lhe aceitassem o pedido de deixar que Pedro também entrasse no pátio?
Por ser conhecido dos que atendiam à porta, entrou. Ao ver que Pedro ficara de fora, volta e consegue
que entre, em elegante gesto de cortesia. Assim poderiam os dois acompanhar de perto o processo de
Jesus, confortando-o com suas presenças amigas e dedicadas.

Lógico que, num processo de Iniciação, sobretudo em grau tão elevado, ninguém abaixo de um Sumo-
Sacerdote legalmente constituído possa funcionar. O posto alcançado atribui poderes, mesmo místi-
cos, por menos evoluída que seja a criatura.
Num processo comum de prisão, o acusado não teria necessidade de comparecer perante Caifás: Bar-
rabás não foi lá levado. Nem mesmo perante o Sinédrio, pois a transferência da autoridade religiosa
para a civil era feita por funcionários subalternos. Mas no caso de Jesus não se tratava de criminoso
comum: era indispensável que fosse ouvida a palavra da mais alta autoridade religiosa.
Como não era lícito nem legal o julgamento depois do sol posto, aguardaram o novo surgir do sol
para efetuá-lo. Mas durante esse período, que deve ter sido longo e cansativo, a vítima do holocausto
cruento permaneceu sob a custódia da autoridade máxima da religião.
Isolado em quietude externa, longe de todos, pode permanecer mergulhado em Si mesmo, haurindo de
Sua união espiritual com o Pai as forças energéticas necessárias à provação duríssima que deveria
atravessar dentro de algumas horas: o grande acontecimento começara, e antes do tumultuar do
avanço violento do Anti-Sistema, era mister uma parada, distante das personagens encarnadas, para
concentrar-Se no Foco de Luz Incriada, e para sintonizar com o Som Inaudível que lhe transmitiriam
energia a fim de superar a prova iniciática.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

1.ª NEGAÇÃO DE PEDRO

Mat. 26:69-70 Marc. 14:66-68

69. Mas Pedro estava sentado fora, no pátio; e 66. E estando Pedro em baixo, no pátio, chegou
aproximou-se dali uma criada, dizendo: uma das criadas do Sumo-Sacerdote.
Também tu estavas com Jesus o galileu. 67. E vendo Pedro a aquecer-se, encarando,
70. Ele, porém, negou diante de todos, dizendo: disse-lhe: Também tu estavas com o naza-
Não sei o que dizes. reno Jesus.
68. Mas ele negou, dizendo: Nem sei nem en-
tendo o que dizes. E foi para fora, para o
Luc. 22:55-56
alpendre.

55. Tendo, pois, acendido fogo no centro do


João, 18:17-18
pátio, sentaram-se ao redor, e Pedro estava
sentado entre eles.
56. Vendo-o certa criada sentado junto ao fogo 17. Disse então a Pedro a criada, a porteira:
e observando, disse-lhe: Este também esta- Não és também tu dos discípulos deste ho-
va junto com ele. Mas ele negou, dizendo: mem? Ele disse: Não sou.
Não o conheço, mulher. 18. Ora, estavam os servos e guardas fazendo
um braseiro, porque fazia frio, e se aqueci-
am; também Pedro estava entre eles, em pé,
aquecendo-se.

Já vimos que o palácio de Caifás, cujo portão abria para a rua, tinha um vestíbulo, ou alpendre, antes
do pátio. No primeiro pavimento, acima do térreo, funcionavam as salas de audiência e de recepção.
Segundo a observação de João, testemunha ocular desse pormenor, provocado por ele quando solicitou
da porteira que permitisse a entrada de Pedro, a primeira negativa se deu logo à porta.
Não apenas por curiosidade natural feminina, como por obrigação funcional de impedir o ingresso de
elementos perigosos, ela faz a pergunta óbvia:
- És um dos discípulos dele?
A que Pedro, com o consentimento provável de João, teve que responder pela negativa, senão teria
barrada a entrada e teria anulado o pedido de João em seu favor.
Mas não ficou satisfeita com a resposta, dada talvez com certa hesitação. Quando o pessoal acabou de
entrar, a porteira trancou a portinhola e foi até o pátio. Os servos e guardas estavam sentado em redor
de pequena fogueira (braseiro) improvisada, por causa do frio que fazia. Mas Pedro permanecia emba-
raçado e inquieto entre eles, sentado, segundo os sinópticos, em pé, segundo João: ou seja, ora se sen-
tava, ora ficava de pé impaciente. E a porteira, aproveitando os reflexos de luz do braseiro, o observa e
encara fixamente, reafirmando:
- Você também estava com o nazareno Jesus.

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C. TORRES PASTORINO

Notemos de passagem, que o atributo “nazareno” está na boca de pessoa inculta, que não distinguia
tecnicamente esse termo, do atributo “nazoreu”.

Figura “1.ª NEGAÇÃO DE PEDRO” – Desenho de Gustavo Doré, gravura de Pannemaker

Pedro descontrolou-se mais ainda, e preferiu sair para o alpendre, depois de tartamudear tímido:
- Não entendo o que estás dizendo.
Queria assim escapar aos olhos argutos da porteira, pois não resistiria mais tempo ao interrogatório, e
fazia questão fechada de manter-se na, proximidade, do Mestre, para o que desse e viesse.

Ficou registrada a primeira negação de Pedro, em condições normais humanas. Não se tratava, em
realidade, de renegar o Mestre, mas apenas de não ser cortado de Sua presença. A porteira não tinha,
reconhecidamente, capacidade de julgá-lo nem autoridade para impedi-lo de ficar ao lado de Jesus.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Quando fosse interrogado pela autoridade legitimamente constituída, saberia dar seu testemunho pú-
blico, mesmo à custa da vida. Mas por que entregar a cabeça ao cutelo logo no início, quando nada
estava definitivamente resolvido?
Não foi covardia. Não foi “negação” ainda. Foi uma das mentiras convencionais, comuníssimas ain-
da hoje e que sempre existiram em todas as sociedades humanas. Como poderíamos, sem magoar
profundamente um amigo, mandar dizer-lhe que estávamos em casa mas não poderíamos recebê-los?
Constitui até delicadeza a desculpa de que “Não estamos em casa”. Quando empenhados numa tarefa
com tempo marcado, para daí a vinte minutos, como interrompê-la para receber uma visita que vem
apenas “conversar” para “passar o tempo”? E como, sem ferir-lhe a sensibilidade, dizer que “não
podemos recebê-lo”? Mais caridoso fazer-lhe sentir que não estamos.
Esse foi o tipo de “negação” de Pedro, nesta primeira tentativa da porteira, de não deixá-lo entrar, e
depois de pô-lo na rua.
Antes de lamentar hipocritamente a “defecção” de Pedro, preferimos agradecer-lhe o exemplo cora-
joso que nos dá, e que nos conforta, por ter agido como qualquer um de nós agiria nas mesmas cir-
cunstâncias.

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C. TORRES PASTORINO

PRIMEIRO INTERROGATÓRIO
João, 18:19-23
19. Então o Sumo-Sacerdote interrogou Jesus a respeito de seus discípulos e a respeito de
seu ensino
20. Respondeu-lhe Jesus: “Eu falei abertamente ao mundo; eu sempre ensinei na sinago-
ga e no templo, onde todos os judeus se reúnem, e nada falei às escondidas.
21. Por que me interrogas? Pergunta aos ouvintes o que lhes falei, pois estes sabem o que
eu disse”.
22. Dizendo ele isso, um dos guardas presentes deu uma bofetada em Jesus, dizendo: As-
sim respondes ao Sumo-Sacerdote?
23. Respondeu-lhe Jesus: 'Se falei mal, testifica sobre o ma!? mas se bem, por que me ba-
tes?”

João registra o primeiro interrogatório extra-oficial de Caifás, na qualidade de sumo-sacerdote. E suas


perguntas limitam-se a dois pontos essenciais:
1.º - Quanto aos discípulos, a fim de calcular o grau de periculosidade da revolução que se temia esti-
vesse Jesus preparando contra os romanos. Esse item serviria para denunciá-lo a Pilatos, o Governador
que representava o poderio de Roma e que, pouco antes, mandara crucificar milhares de sediciosos que
se rebelaram contra o Império.
2.º - Quanto à doutrina, a fim de julgá-Lo quanto à lei mosaica, pois ensinos contrários à lei provoca-
vam, também, condenação à pena máxima.
O Sumo-Sacerdote tinha o direito de fazer, por sua posição, a segunda pergunta. Mas não a primeira.
Sua autoridade era religiosa, não política. Daí ter o Mestre calado quanto à primeira, respondendo ape-
nas à segunda.
E assim mesmo não responde diretamente: faz ver que, se respondesse ele, não seria acreditado. Por-
tanto, que interroguem aqueles que o ouviram, pois Ele falara abertamente nas sinagogas e no templo,
para que todos ouvissem. Nada falara às escondidas. Os ouvintes poderiam testificar e seriam acredita-
dos.
O Sumo-Sacerdote deve ter-se sentido frustrado com a resposta inesperada e um guarda, grosseiro e
ignorante, não entendendo nada, aplica-lhe, para captar-se a simpatia do chefe, uma bofetada, recla-
mando contra a resposta, que fora perfeitamente legítima e dentro da lei.
Jesus mantém-se calmo e pergunta-lhe delicadamente onde está o erro de Sua resposta. E se não há
erro, por que ser espancado?
A resposta calma e ponderada de Jesus, enfrentando um homem rude e encolerizado - acentua Pirot -
bem equivale a “dar a outra face”, como fora ensinado (Mat. .5:39).

Eis-nos no primeiro encontro entre a vítima do holocausto e o Sumo-Sacerdote que vai oferecê-la no
altar do sacrifício.
As indagações do Hierofante oficial da religião mosaica são feitas pro forma, já que sobejamente
eram conhecidos Seus discípulos - gente humilde e não belicosa nem armada - e Sua doutrina de per-
dão das ofensas e de benefícios prestados a todos.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Mas essa “prévia”, em que se encontravam as duas autoridades máximas - a da religião oficial orto-
doxa e a da Escola Iniciática fundamentalmente esotérica - revela de imediato a superioridade moral
da segunda, que não se acovarda diante da primeira, enfrentando-a serenamente e ensinando-lhe qual
a maneira correta de agir: sindicância entre os ouvintes e não perguntas ao réu.
Continuará sempre essa dualidade de autoridades morais. No reino das personagens, ocupa a prima-
zia o Chefe da RELIGIÃO esotérica, visível, pública; no reino das individualidades, o hierofante é o
Chefe do ESPIRITUALISMO esotérico, fechado, místico. Um governa, o outro orienta. Um age para
fora, externamente, o outro vive para dentro, internamente. Um é considerado autoridade pelos ho-
mens, o outro só constitui autoridade para os Espíritos. E no campo do Anti-Sistema, no pólo negati-
vo, só o primeiro tem valor e acatamento: o outro ou é desconhecido, ou, se vem a conhecer-se, é per-
seguido. Nas eras antigas, era sumariamente assassinado; nos dias de hoje, procuram destruí-lo com
maledicências e calúnias.
O Sumo-Sacedote da RELIGIÃO (de qualquer das religiões) é aliado político da autoridade profana,
senta-se a seu lado, recebe-lhe as homenagens e as restribui, exige de um lado e cede de outro, para
não perder suas regalias, e possui um exército com uniformes especiais que o distingue das homens
comuns. O Sumo-Sacerdote do reino de Deus só tem aliança com Seus Mestres Espirituais, vivendo
oculto do grande público, desconhecido das autoridades profanas, regendo almas e dirigindo-as na
Senda. Ai dele se lhe percebem a autoridade e o grau de elevação! Torna-se insuportável Sua luz para
os que habitam nas trevas do Anti-Sistema, e todos os meios lhes parecem válidos para derrubá-lo,
pois Suas obras luminosas lhes ferem os olhos habituados à escuridão da materialidade.
Daí a necessidade de virem à Terra esses Sumos-Sacerdotes disfarçados, entre os homens vulgares,
como homem vulgar, em que sobressaem fraquezas e defeitos, a fim de não ser descoberto. Mas, la-
mentavelmente, depois de algum tempo de atuação, acabam desconfiando. E, por via das dúvidas,
todos os que colocam sua Luz mais visivelmente, são perseguidos sem piedade, procurando-se acirra-
damente e com precipitação, que Seus seguidores deles se afastem e que eles fiquem isolados e mal-
vistos. A técnica se repete através dos séculos sem variar, desde os mais antigos profetas até hoje.
Mas há que ponderar a resposta do Mestre, onde declara a pura verdade: “falei abertamente ao mun-
do, ensinando nas sinagogas e no templo onde se reúnem os judeus: nada falei às escondidas”.
Todo o ensino de Jesus foi apresentado ao ar livre, nos locais de reunião oficialmente destinados a
isso. E mesmo assim, conseguiu transmitir os segredos ocultos do conhecimento, que era velado em
parábolas, em alegorias, em simbolismos. Depois, em casa, explicava aos discípulos da Assembléia do
Caminho esses “mistérios”. Mas sobre essas “conversas íntimas” não tinha que dar satisfações: a
pergunta visava à doutrina pregada em público, às idéias divulgadas entre o povo, não às palestras
particulares entre amigos, aos quais “era dado conhecer os mistérios do Reino de Deus” (Marc. 4:11;
Luc. 8:10).
A lição é preciosa, e outros exemplos semelhantes encontramos registrados na História, dados pelos
Iniciados e Adeptos das Escolas de Tebas, de Elêusis, de Heliópolis, etc., recusando-se a responder a
respeito dos segredos das Escolas que dirigiam ou frequentavam.
Grande sempre tem sido a curiosidade ansiosa dos profanos em conhecer e penetrar os mistérios des-
se ensino, mas jamais seus cultores os manifestaram, mesmo se isso lhes custasse a vida do corpo físi-
co. Até hoje não se conhece um só exemplo de traição aos compromissos assumidos: aqueles que deles
não eram dignos e que tentaram levantar uma ponta do véu eram de imediato julgados e afastados do
Colegiado. E o que disseram, não constitui, na realidade, o SEGREDO oculto, mas apenas contrafa-
ções da Verdade.
E mesmo quando, por Seus poderes e por Seu conhecimento dos segredos da natureza, um Adepto é
condenado a morrer, Ele se deixa assassinar, e não foge à morte, embora pudesse ser defendido por
legiões “de anjos” e dela escapar mas essa maneira de agir constituiria uma revelação do que pode, e
isso bastaria para ser uma tradição à Verdade que defende: Ele sempre deve aparecer como um ho-
mem comum, igual aos outros. Assim agiram todos durante milênios.

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Quanto ao ensino público, esse foi realmente dado às claras. Portanto, qualquer das pessoas que ti-
vesse ouvido a palavra de Jesus, poderia dizer o que foi ensinado.
Não é raro que alguém tenha que enfrentar situações semelhantes, em que autoridades, mesmo legal-
mente constituídas, pretendam forçar a revelação de segredos espirituais, religiosos e até místicos,
usando de argúcia ou mesmo de violência: Jesus mostra-nos como agir. É só saber imitá-lo.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

OUTRAS NEGAÇÕES

Mat. 26:71-75 Marc. 14:69-72

71. Saindo, pois, para o vestíbulo, outra viu-o e 69. E vendo-o a criada, veio de novo dizer aos
disse aos dali: este estava com Jesus o nazo- presentes: este é um deles.
reu. 70. Mas ele de novo negou. E depois de pouco,
72. E de novo negou com juramento: “não co- outra vez os presentes disseram a Pedro:
nheço esse homem”. Realmente és um deles, pois também és ga-
lileu.
73. Depois de pouco, chegando, os presentes
disseram a Pedro: Realmente também tu és 71. E ele começou a amaldiçoar e jurar: “Não
um deles, pois até teu sotaque o faz manifes- conheço o homem de quem falais”.
to 72. E imediatamente pela segunda vez o galo
74. Então começou a amaldiçoar e jurar: “Não cantou. E lembrou-se Pedro da palavra que
conheço esse homem”. E imediatamente o lhe disse Jesus: “Antes de o galo cantar du-
galo cantou. as vezes, três me negarás”. E tendo caído
em si, chorava.
75. E lembrou-se Pedro da palavra de Jesus,
que disse: 'Que antes de o galo cantar, três
vezes me negarás”. E indo para fora, cho-
rou amargamente.

João 18:25-27
Luc. 22:58-62

25. Estava, pois, Simão Pedro em pé, aquecen-


58. E depois de pouco, vendo-o outro, disse: do-se. Então lhe disseram: Não és também
Também tu és um deles. Mas Pedro disse: tu dos discípulos dele? Ele negou e disse:
Homem, não sou. Não sou.
59. E tendo passado cerca de uma hora, outro 26. Disse um dos servos do Sumo-Sacerdote,
asseverava, dizendo: Em verdade também parente daquele de quem Pedro cortara a
este estava com ele, pois também é galileu. orelha: Não te vi eu no jardim com ele?
60. Mas Pedro disse: Homem, não sei o que 27. De novo então Pedro negou: e imediatamen-
dizes. E imediatamente, ainda falando ele, o te o galo cantou.
galo cantou.
61. E voltando-se o Senhor olhou para Pedro e
Pedro lembrou-se da palavra do Senhor,
como lhe disse: “Antes de o galo cantar
hoje, três vezes me negarás”.
62. E indo para fora, chorou amargamente.

Alguns comentadores, ao reunir os textos evangélicos, acharam que Pedro não fizera apenas três nega-
ções; chegaram alguns a contar até sete. Cajetan (Comment. in Joannem, 18:77) escreveu: unde collí-
gitur quinquies ad minus Petrum negasse, ter ad vocem mulíeris, et bis ad minus ad vocem virorum,

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C. TORRES PASTORINO

isto é, “donde se conclui ter Pedro negado pelo menos cinco vezes, três à objeção da mulher e duas, no
mínimo, às dos homens” ...

Figura “3.ª NEGAÇÃO E JESUS QUE PASSA”


Desenho de Bida, gravura de Édouard Hédouin

Não há razão para isso, se considerarmos que as ações se passaram no tumulto das conversas do grupo.
Portanto, temos três atos, cada um isolado do outro, mas considerado uma negação em bloco, embora
tivesse havido, no bate-boca, várias objeções e respostas em cada ato. Assim interpretou Agostinho
(Patrol. Lat., vol. :36, col. 1170/71).

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Passou-se o primeiro ato com a porteira, com três intervenções: uma à entrada, outra logo a seguir
quando ela foi observá-lo no pátio à luz da fogueira; a terceira quando, depois da retirada estratégica
de Pedro para o vestíbulo, ela ou outra afirma ao grupo: “este era um deles”. As três vezes que Pedro
disfarça e nega, constituem UMA NEGAÇÃO, a primeira.
O segundo ato foi mais simples, e só aparece em Lucas: é a acusação de um homem, que não causou
muito tumulto: era palavra contra palavra, mas sem provas.
O terceiro ato ocorreu cerca de uma hora depois, como bem assinala Lucas, e desta vez o tumulto foi
grande. Em primeiro lugar, a afirmação deduzida pelos presentes diante do sotaque de Pedro, que não
aguentou ficar calado; e sua pronúncia do aramaico (idioma então usado entre as classes iletradas, que
não assimilaram o grego como as classes média e alta), o traiu: “Sem dúvida és um deles, pois teu so-
taque o revela”. E, ao negar, outro acrescenta: “Mas eu te vi no grupo”. E João, que conhecia os servos
do Sumo-Sacerdote (não a própria pessoa dele, como anotamos páginas atrás), o identifica como pa-
rente de Malco.
E logo a seguir o galo canta pois já estamos na terceira vigília, denominada justamente alektotophôní-
as, isto é, “o cantar do galo”, entre meia-noite e três da manhã (cfr. vol. 7).
Estabelecido o cursus actionum, vejamos outros pormenores.
O sotaque galileu era facilmente identificado pelos judeus, que zombavam e criavam anedotas a esse
respeito. Strack e Billerbeck (o. c., t., 1, págs. 157) narra est: “um galileu perguntou a um judeu: -
Quem tem um AMR? Os judeus presentes riram e perguntaram: - Oh! tolo, que queres tu? um asno
(hamôr) para montar, vinho (hamar) para beber, lã (hhamar) para vestir, ou um cordeiro (immar) para
comer”?
O verbo “amaldiçoar” é dado com um verbo que raramente aparece nos documentos escritos, pois deve
ter sido uma corruptela da língua falada: katathematízein, em lugar de katanathematízein.
Jerônimo (Patrol. Lat., vol. 26 col. 201) escreveu em defesa de Pedro: illi fugiunt, iste, quamquam
procul, séquitur tamen Salvatorem, ou seja, “eles fogem, mas este, embora de longe, contudo segue o
Salvador”. Isso apesar de afirmar mais adiante (col. 203) que foi grave o erro de Pedro, não devendo
ser procurada atenuante para o caso.
O “canto do galo” ocorre, pela primeira vez, entre meia-noite e duas da madrugada. E pela segunda
vez aos primeiros indícios antes que a luz do sol comece a iluminar a região, entre quatro e cinco horas
da madrugada. Pedro reforça a negação, porque quer permanecer ao lado do Mestre o mais que puder,
e tinha interesse em despistar de si a atenção, em vista de haver ferido Malco.
A essa hora, Jesus devia estar saindo da sala de audiência no primeiro pavimento e descendo para o
pátio, ainda algemado, para ser preparado e levado ao Sinédrio, a fim de ser interrogado e julgado,
logo que o sol surgisse. Entre todo o grupo, distingue com Seu olhar percuciente o querido discípulo
Pedro que, ao ver-Lhe o olhar triste e bom, e ao ouvir os insistentes cantos do galo, se lembra da previ-
são do Rabbi amado e se perturba de tal forma, que sai rápido do palácio de Caifás e prorrompe num
choro convulsivo, em certo local onde, no 5.º ou 6.º século foi construída uma igreja que recebeu a
denominação de “São Pedro in galli cantu”.
E ele que dissera que O seguiria até a morte!

Lição dura, mas proveitosa, contra a PRESUNÇÃO que todos temos, de que somos melhores que os
outros e de que temos capacidade absoluta de resistir a qualquer prova. Para todos nós é muito fácil
depreciar as façanhas alheias, menosprezar a coragem demonstrada pelos outros, ou acusar de co-
vardia uma desculpa que permita a penetração em local proibido, contanto que se acompanhe um
amigo na hora do perigo.
Pedro NEGOU conhecer seu Mestre, mas não o RENEGOU: proferiu sons com a boca, mas o coração
Lhe permanecia fiel, tanto que ali se meteu, no local do maior perigo, para não abandoná-Lo. Suas
negações verbais eram meramente escanteios para conservar-se ao lado de Jesus.

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C. TORRES PASTORINO

Seu choro vem sendo interpretado há dois mil anos como arrependimento profundo de tê-Lo negado.
Não poderia ter sido antes o choque de ver que não havia sido libertado, mas ao invés era levado a
julgamento, sem que ele pudesse acompanhá-Lo? Não poderia ter sido o desespero da impotência de
arrancá-Lo das mãos dos captores? Não poderia ter sido pela decepção da certeza de que a força e os
poderes de seu Mestre tudo venceriam com facilidade, e que ali falhavam?

Figura “TRISTEZA DE PEDRO” – Desenho de Bida, gravura de J. Veyrassat

Os três sinópticos falam do choro, assinalando que irrompeu depois de ter ouvido Pedro o canto do
galo. Lucas acrescenta o pormenor do olhar de Jesus. E Marcos emprega a expressão epibalôn, parti-
cípio aoristo segundo, composto de epí (“sobre”) e bállô (“lanço”). Interpretamos como o “lança-
mento sobre si mesmo” ou seja a conscientização das circunstâncias, que tiveram o condão de des-

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SABEDORIA DO EVANGELHO

pertá-lo para o fato que se passava, reavivando-lhe a memória da previsão do Mestre, de que ele o
negaria.
A sucessão rápida e imprevisível dos acontecimentos dolorosos naquela noite cheia de ocorrências
choca profundamente a emotividade de Pedro, cujo corpo astral já se achava saturado de fluidos ba-
rônticos de tristeza, desapontamento, mágoa, ansiedade, angústia, medo, desorientação, dúvida e
também arrependimento; e quando riscou o ar a física de som e de luz (o canto do galo e o olhar de
Jesus), se produziu intensa a centelha eletrolítica que fez arrebentar o dique que represava a emoção,
e abriu em catarata suas lágrimas incontroláveis, que borbotaram abundantes, aliviando a pressão
interna e purificando o corpo astral. Lágrimas, válvula de escape, de que a natureza dotou o homem,
para que pudesse suportar os grandes impactos emotivos.
A negação de Pedro, naquela circunstância, constituiu uma estratégia inteligente não a covardia dos
que renegam para vender-se ao partido contrário: negou para afirmar e confirmar sua adesão ao
Mestre.
Pedro NECOU conhecer seu Mestre, mas não o RENEGOU, proferiu sons com a boca, mas o coração
Lhe permanecia fiel, tanto que ali se meteu, no local do maior perigo, para não abandoná-Lo. Suas
negações verbais eram meramente escanteios para conservar-se ao lado de Jesus.
Seu choro vem sendo interpretado há dois mil anos como arrependimento profundo de tê-Lo negado.
Não poderia ter sido antes o choque de ver que não havia sido libertado, mas ao invés era levado a
julgamento, sem que ele pudesse acompanhá-Lo? Não poderia ter sido o desespero da impotência de
arrancá-Lo das mãos dos captores? Não poderia ter sido pela decepção da certeza de que a força e os
poderes de seu Mestre tudo venceriam com facilidade, e que alí falhavam?
Os três sinópticos falam do choro, assinalando que irrompeu depois de ter ouvido Pedro o canto do
galo. Lucas acrescenta o pormenor do olhar de Jesus. E Marcos emprega a expressão epibalôn, parti-
cípio aoristo segundo, composto de epí (“sobre”) e bállô (“lanço”). Interpretamos como o “lança-
mento sobre si mesmo” ou seja a conscientização das circunstâncias, que tiveram o condão de des-
pertá-lo para o fato que se passava, reavivando-lhe a memória da precisão do Mestre, de que ele o
negaria.
A sucessão rápida e imprevisível dos acontecimentos dolorosos naquela noite cheia de ocorrências
choca profundamente a emotividade de Pedro, cujo corpo astral já se achava saturado de fluidos ba-
rônticos de tristeza, desapontamento, mágoa, ansiedade, angústia, medo, desorientação, dúvida e
também arrependimento; e quando riscou o ar a faísca de som e de luz (o canto do galo e o olhar de
Jesus), se produziu intensa a centelha eletrolítica que fez arrebentar o dique que represava a emoção,
e abriu em catarata suas lágrimas incontroláveis, que borbotaram abundantes, aliviando a pressão
interna e purificando o corpo astral. Lágrimas, válvula de escape, de que a natureza dotou o homem,
para que pudesse suportar os grandes impactos emotivos.
A negação de Pedro, naquela circunstância, constituiu uma estratégia inteligente, não a covardia dos
que renegam para vender-se ao partido contrário: negou para afirmar e confirmar sua adesão ao
Mestre.

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INTERROGATÓRIO OFICIAL

Mat. 26:59-68 Mar. 14:55-65

59. Mas os principais sacerdotes e o sinédrio 55. Mas os principais sacerdotes e todo o siné-
todo procuravam um falso testemunho con- drio procuravam um testemunho contra
tra Jesus a fim de condená-lo à morte, Jesus para condená-lo à morte e não acha-
ram,
60. e não acharam (embora) muitas testemu-
nhas falsas se tenham apresentado. Final- 56. pois muitos testemunhavam falsamente con-
mente apareceram duas, tra ele, mas seus testemunhos não eram
concordantes.
61. dizendo: Ele disse: posso destruir o Santuá-
rio de Deus e em três dias reedificá-lo. 57. E levantando-se davam falso testemunho
contra ele, dizendo:
62. E levantando-se o Sumo-Sacerdote disse-
lhe: Nada respondes? Que testificam eles 58. Nós lhe ouvimos dizer: eu destruirei este
contra ti? santuário manufaturado, e em três dias edi-
ficarei outro não manufaturado.
63. Mas Jesus calava. E O Sumo-Sacerdote dis-
se-lhe: Conjuro-te pelo Deus vivo que nos 59. E nem assim era concordante o testemunho
digas se tu és o Cristo, o Filho de Deus. deles.
64. Disse-lhe Jesus: “Tu o disseste; além disso 60. E levantando-se o Sumo-Sacerdote no meio,
digo-vos: desde agora vereis o filho do ho- interrogou Jesus dizendo: Não respondes
mem sentado à direita do Poder e vindo so- nada? Que testificam estes contra ti?
bre as nuvens do céu'. 61. Mas ele calava e não respondeu nada De
65. Então o Sumo-Sacerdote rasgou seu manto novo o Sumo-Sacerdote interrogou-o e dis-
dizendo: Blasfemou! Que ainda temos ne- se-lhe: Tu és o Cristo o Filho do Bendito?
cessidade de testemunhas? Vedes que agora 62. E Jesus disse: “Eu sou, e vereis o filho do
ouvistes a blasfêmia! homem sentado à direita do Poder e vindo
66. Que vos parece? Respondendo, eles disse- com as nuvens do céu”.
ram: É réu de morte. 63. E o Sumo-Sacerdote, rasgando sua túnica,
67. Então cuspiram-lhe no rosto e deram socos disse: Que temos ainda necessidade de tes-
e esbofetearam, temunhas?
68. dizendo: Profetiza-nos, ó Cristo, quem te 64. Ouvistes a blasfêmia. Que vos parece? E
bateu? todos os julgaram ser réu de morte.
65. E Começaram alguns a cuspir nele e, co-
Luc. 22:63-71 brindo-lhe o rosto, a esbofeteá-lo, dizendo-
lhe: Profetiza! E os guardas retiraram-no a
pauladas.
63. E os homens que o guardavam zombavam 67. dizendo: Se tu és o Cristo, dize-nos. Res-
dele, batendo pondeu-lhes: “Se vos disser, não acredita-
64. e, pondo-lhe urna venda, perguntavam di- reis,
zendo: Profetiza: quem é que te bateu? 68. e se vos interrogar, não me respondereis.
65. E blasfemando diziam muitas (coisas) con- 69. Desde agora estará o filho do homem senta-

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SABEDORIA DO EVANGELHO

tra ele. do à direita do poder de Deus”.


66. E quando se fez dia, reuniu-se o Conselho 70. Disseram todos: Então tu és o Filho de
dos Anciãos do Povo, dos principais sacer- Deus? E ele retrucou-lhes: “Vós dizeis que
dotes e dos escribas e o retiraram para o si- eu sou”.
nédrio deles 71. Então disseram: Ainda temos necessidade
de testemunhas? Pois nós mesmos ouvimos
de sua boca.

Mateus afirma que era procurada uma “testemunha falsa”, mas a expressão de Marcos é mais fiel à
realidade: era procurada uma testemunha contra Jesus, mas que, para eles, fosse verdadeira. Daí a difi-
culdade de encontrá-la. Muitos apareciam com as mais variadas afirmativas, embora fosse impossível
colocá-las de acordo.
E o Deuteronômio (17:6) exigia textualmente: “Com a palavra de duas ou três testemunhas se fará
matar quem deve morrer; não será morto com a palavra de uma só testemunha”.
Finalmente surgiram duas, cujas acusações coincidiram basicamente, embora lhes diferisse a forma,
conforme deduzimos dos textos de Mateus e Marcos. Dizia um: “posso destruir”, revelando a capaci-
dade de fazê-lo; o outro diz: “destruirei”, afirmativa clara de intenção subversiva dolosa. O primeiro
falava de reconstrução material: “posso destruir e reedificar”; o segundo distinguia o “Santuário manu-
faturado” (feito por mãos de homens) e a reconstrução de outro espiritualmente edificado. Portanto, a
concordância não era absoluta: apenas coincidiam na idéia fundamental. A frase proferida por Jesus
(João, 2:19) dizia: “se o destruirdes” ..., e o evangelista assevera que se referia ao “santuário de seu
corpo físico”.
Instigado a pronunciar-se a respeito da acusação, Jesus permaneceu calado, o que causou admiração a
Caifás, habituado a súbitos e raivosos gritos de protesto do réu, interessado em defender-se a qualquer
preço.
Nada obtendo por esse caminho, coloca-se o Sumo-Sacerdote na posição de seu cargo e coage a vítima
“pelo Deus vivo” a declarar se é, ou não, o “Cristo, o Filho de Deus”.

FILHO DE DEUS
Aqui dividem-se os exegetas, afirmando uns (Loisy “Les Evangiles Sinoptiques”, t.2, pág. 604; M.
Maillet, “Jesus, Fils de Dieu”, pág. 52; Strack e Billerbeck, o.c., pág. 1.006, etc.), que a designação
“Cristo” e “Filho de Deus” representam uma unidade, com o sentido único de “Messias”.
Outros (Buzy, “Evangile selon Saint Marc”, pág. 358; Durand, “Evangile selon Saint Matthieu”, pág.,
444; Prat, “Jesus-Christ, sa vie, sa doctrine, son oeuvre”, t. 2, pág. 349, etc.) acham que a pergunta é
dupla:
1.ª se é o Cristo (Messias);
2.ª se é o Filho de Deus no sentido metafísico e teológico, ou seja, se é a “segunda pessoa da
santíssima Trindade”.
Estes últimos não observaram o anacronismo dessa interpretação, pois a teoria da Trindade só se foi
plasmando lentamente, chegando ao ponto atual séculos mais tarde. Mas aqui só nos interessa estudar
o sentido, na época, da expressão “Filho de Deus” e seu desenvolvimento nas primeiras décadas, a fim
de provar que Caifás jamais pôde entender sua pergunta nesse segundo sentido.
O mosaísmo era estritamente monoteísta, não admitindo qualquer sombra de multiplicidade de “as-
pectos” na Divindade. Portanto é historicamente inadmissível que o Sumo-Sacerdote colocasse essa
questão em termos teológicos, perguntando a um homem se era “Filho de Deus” sensu stricto.

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O judaísmo aceitava essa expressão alegoricamente, isto é, era possível a qualquer um ser “Filho de
Deus” por ADOÇÃO, inclusive quando a aplicavam ao Messias esperado, pois se baseavam no Salmo
(2:7) que cantava: “Tu és meu filho, eu hoje te serei”. E qualquer judeu, sem nenhum perigo de blas-
fêmia, podia declarar-se “Filho de Deus” em sentido amplo, como empregou Pedro (Mat. 16:16) para
afirmar que Jesus era “o Cristo, o Filho do Deus vivo” (cfr. vol. 4).
A partir daí temos, pois, três sentidos que se foram superpondo no decurso dos séculos:
a) FILHO DE DEUS em sentido metafórico ou alegórico, segundo o pensamento judaico: filho POR
ADOÇÃO;
b) FILHO DE DEUS no sentido físico ou material (carnal), por influência do paganismo: um Deus
fecundava uma mulher, produzindo um filho;
c) FILHO DE DEUS no sentido metafísico ou teológico: consubstancial com a Divindade.

I - FILHO POR ADOÇÃO


Nos “Atos dos Apóstolos” encontramos Jesus apresentado como “um homem de quem Deus deu tes-
temunho e através do qual fez prodígios e sinais” (At. 2:22). Em Atenas, Paulo diz que Jesus é “o ho-
mem pelo qual Deus decidiu discriminar a humanidade” (At. 17:31). Era, pois, o Filho de Deus no
sentido metafórico: “Sirvo a Deus, pregando seu Filho” (Rom. 1:9); “Deus vos chamou à sociedade de
seu filho Jesus, o Cristo” (1.ª Cor. 1:9): “o Cristo Jesus, Filho de Deus, que vos pregamos” (2.ª Cor.
1:19), etc.; tudo isso decorre do Salmo citado “Tu és meu filho, eu hoje te gerei”, composto em home-
nagem de um príncipe macabeu (João Hircan?) mas atribuído a Jesus desde os primórdios por Seus
discípulos (cfr. At. 13:33 e Hebr. 1:5 e 5:5). Para os primeiros cristãos, esse Salmo foi a patente da
realeza de Jesus como filho de David.
Mas essa filiação divina é encontrável em outros passos do Antigo Testamento, tendo sido sempre in-
terpretada como filiação ADOTIVA, não sendo considerado blasfêmia dizer-se, nesse sentido, Filho de
Deus, como não o era afirmar-se o “Messias”.
No Êxodo (4:22-23) lemos “Assim diz YHWH: Israel é meu filho primogênito ... deixa ir meu filho”.
No Deuteronômio (14:1), falando a todo o povo, está: “Sois filhos de YHWH vosso Deus”. Isaías
(63:16) escreveu: “Pois tu és nosso Pai ... agora, YHWH, és nosso Pai”. Em Jeremias (31:9) YHWH
assevera: “Tornei-me Pai de Israel”. No livro da Sabedoria, de Salomão, o autor descreve vividamente,
no capítulo 2, o comportamento das criaturas do Anti-Sistema, que infalivelmente investem contra as
do Sistema (então como agora), dizendo entre outras coisas: “Cerquemos o justo porque é inútil para
nós e contrário às nossas obras ... ele diz ter conhecimento de Deus e se diz Filho de Deus” (2:12-13).
E, logo a seguir: “Ele julga-nos de pouca valia e se afasta de nosso modo de viver como de coisas
imundas e prefere as sendas dos bons, glorificando-se de ter Deus como Pai. Vejamos, pois, se são
verdadeiras suas palavras e verifiquemos qual será seu fim, e saberemos o resultado: se, com efeito, é
verdadeiro Filho de Deus, Ele o receberá e o livrará das mãos dos adversários” (Sab. 2:16-18). Tam-
bém no Eclesiástico (4:11) lemos as palavras do mestre ao discípulo: “E tu serás obediente como um
Filho do Altíssimo” e mais à frente (36:14): “Apiada-se de Israel, que igualaste a teu filho primogêni-
to”.
YHWH, pois, o Deus dos judeus, era Pai de todos os israelitas e, por extensão, de todos os homens, no
pensamento de Paulo (cfr. Rom. 1:7; 1.ª Cor. 1:3; 2.ª Cor. 1:2; Ef. 1:2; Filp. 1:2; Col. 1:3; 2.ª Tes. 1:2;
Gál. 1:3; 1.ª Tim. 1:2; Tito, 1:4, etc.)
Ainda em meados do 2.º século Justino escreve a Tryphon, o judeu (Diál. 48, 2; Patrol. Gr. vol. 6, col.
581; cfr. Lagrange, “Le Messianisme”, pág. 218): “Entre vós reconhecem que Jesus é o Cristo (Messi-
as), mesmo afirmando que ele é homem nascido de homens (ánthrôpon ex anthrôpôn genómenon).

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II - FILHO CARNAL DE DEUS


Até o final do 1.º século, a maioria dos cristão provinha do judaísmo, mas a partir daí inverte-se a situ-
ação, e o número dos de origem “pagã” supera de muito o dos do judaísmo.
Ora, na mitologia do paganismo era comum encontrarem-se deuses que possuíam sexualmente mulhe-
res mortais (geralmente virgens), dando origem a filhos: os semi-deuses, os heróis, os grandes vultos.
Facílimo foi adaptar essa concepção divina a Maria, supostamente possuída por um deus, para dar nas-
cimento a um semi-deus, fato que Lucas (proveniente do paganismo e não do judaísmo) aceitou com
facilidade, sendo reproduzida a cena com o seguinte diálogo (Luc. 1:34-35): “Como será, pois não
conheço homem? - Um Espírito Santo virá sobre ti e o Poder do Altíssimo te cobrirá, POR ISSO o
menino que nascerá de ti será chamado Filho de Deus”.
Então Jesus passou a ser considerado fisicamente Filho de Deus, que nessa situação recebeu o nome de
“Espírito-Santo”.
Como se teria processado a concepção, a penetração do sêmen no útero de Maria? Na cena do mergu-
lho (“Batismo”) o Espírito Santo é apresentado numa forma semelhante a uma pomba, que afirma ser
Jesus seu Filho. Teria sido essa forma apresentada também para a concepção de Jesus no ventre de
Maria, à imitação da forma de cisne, assumida por júpiter para fecundar Leda'?
O mesmo Justino diz a Tryphon (1.ª Apol. 33, 4) que a concepção se deu sem que Maria perdesse a
virgindade (kyophorêsai parthênon oúsan pepoiêkê).
Mas o judeu Tryphon objeta: “Nas fábulas gregas diz-se que Danae, ainda virgem, deu à luz Perseu,
porque Júpiter a possuíra sob a forma de uma chuva de ouro. Devias envergonhar-te de narrar a mesma
coisa. Seria melhor dizeres que teu Jesus era um homem como os outros e demonstrar, pelas Escritu-
ras, se puderes, que ele é o Cristo, porque sua conduta conforme a lei e perfeita lhe mereceu essa di-
gnidade” (Diál. 67,2).
A isso Justino responde (Apol. 54, 2) com argumento fraco e infantil: “Sabendo os demônios, pelos
profetas, que o Cristo devia vir, apresentaram muitos pretensos filhos de Júpiter, pensando que conse-
guiriam fazer passar a história de Cristo como uma fábula semelhante à invenção dos poetas”.
Então, para os pagãos que chegavam ao cristianismo, era fácil aceitar que, como Júpiter o fazia, tam-
bém o Deus dos judeus podia ter relações sexuais com Maria para gerar Jesus. (Notemos que a raiz de
Júpiter - IAO pater - é a mesma de IAU-hé).
Logicamente a interpretação pagã de filho carnal de Deus era superior à idéia de simples filho adotivo,
defendida pelos judeus.

III - FILHO CONSUBSTANCIAL DE DEUS


O terceiro passo, que eleva Jesus a filho consubstancial de Deus é iniciado ainda pelo próprio Justino,
figura que teve larga repercussão no segundo século da era cristã. Nasceu ele na cidade de Flávia Neá-
polis, a antiga e famosa cidade de Siquém, no ano 100, e aos trinta anos ingressou no cristianismo. Em
suas obras (o “Diálogo” e as duas “Apologias”, a l.ª, ou grande e a 2.ª ou pequena) assistimos a toda a
elaboração da doutrina teológica que predominaria mais tarde na igreja cristã romana.
Para Justino, depois de certo tempo, Jesus passa a ser Filho de Deus no sentido metafísico, ainda não
eterno, como o Pai, pois foi gerado em determinado momento da eternidade, quando então recebe, le-
gitimamente, o título de “Filho” (2.ª Apol. 6,3): “Seu Filho, o único que deve ser chamado Filho; (ho
mónos legómenos kyrios hyiós), o Verbo que estava com Deus antes das criaturas (ho lógos prò tôn
poiematôn kaì synón), que foi gerado quando, no início, fez e elaborou todas as coisas por meio dele
(kaì gennômenos hóte tên archên di'autoú pánta éktise).
Teófilo (“Ad Aulólicum”, 2, 22 e 2, 10) tenta explicar como e quando foi o Verbo gerado, e diz que a
voz ouvida por Adão só pode ter sido o Verbo de Deus, que também é Filho, e “existe de toda eterni-

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dade, envolvido (endiathêton) no seio de Deus. Quando Deus quis criar o mundo, gerou o Verbo pro-
ferindo-o (tòn lógon êgénnêse prophorikón) e fazendo dele o primogênito de toda a criação”.
Mas tudo isso ocorria um século depois do interrogatório de Caifás, que jamais poderia compreender
nem admitir o atributo de Filho de Deus, a não ser por adoção, como todo o povo israelita.
Concluindo, vemos que a pergunta do Sumo-Sacerdote NÃO PODE ser interpretada como filiação
nem física nem metafísica do Inefável, mas apenas como filiação ADOTIVA, como aposto gramatical
de MESSIAS.
* * *
Em Mateus a resposta é “Tu o disseste”; em Marcos é mais categórico: “Eu sou”. Até aí, nada poderia
ter ocorrido, nenhuma acusação poderia ser levantada, e o réu não apresentava motivos de condenação
à morte.
Lucas registra o diálogo de modo diferente, com a pergunta que supõe pedido de esclarecimento: se
Jesus é, ou não é, o Messias. E este responde com lógica que: se ele disser que é o Messias, eles não
acreditarão; e se fizer perguntas esclarecedoras, eles não responderão.
Mas, de uma forma ou de outra, a frase acrescentada, e coincidente nos três sinópticos é que provocou
celeuma e atraiu a condenação à morte como blasfêmia:
- “Desde agora vereis o Filho do Homem sentado à direita do Poder e vindo com as nuvens do céu”.
Ao ouvir as ousadas assertivas daquele operário altivo, porque cônscio de sua realidade, mas na condi-
ção humilhante de prisioneiro algemado, a irritação e o despeito foram incontroláveis no Sumo-
Sacerdote, pois a vítima se dizia, com firmeza tranquila e segurança absoluta, muito superior a ele,
autoridade máxima da religião israelita.
E sua reação foi a tradicional: “rasgou suas túnicas', hábito que vigorava entre os judeus em sinal de
protesto, de luto, de dor (cfr. Núm. 14:6; 2.º Sam. 13:19; Esd. 9:3; Job, 1:20 e 2:12; Jer. 36:24 e At.
14:14).
As túnicas (em Mateus tà imátia, em Marcos toús chitônas, no plural porque era hábito vestirem duas
ou três nos dias frios, uma por cima da outra), eram rasgadas pela costura (descosturadas violenta-
mente) a partir da gola, por cerca de um palmo (30 cm).
Com a palavra do acusado, afirmando-se não apenas o Messias mas o “Senhor de David”, pois fora
convidado por YHWH a sentar-se à sua direita; e atribuindo que a ele se referia a visão de Daniel, per-
diam valor as testemunhas trazidas. A confissão “blasfematória” era evidente. E triunfante, o Sumo-
Sacerdote aproveita a palavra do réu e consulta o Sinédrio: “Que vos parece”? A resposta veio, parece,
unânime e pronta: “É réu de morte”!
Essa condenação não aparece em Lucas. Tendo-o apresentado, no início de seu Evangelho, segundo a
concepção pagã, como filho carnal de Deus, podia chegar, neste ponto, à conclusão lógica. E depois
da afirmativa de Jesus, de que “se sentaria à direita do Poder de Deus”, fazem a indagação ilativa:
“Então és Filho de Deus”? Ao que Jesus responde, confirmando-o, embora indiretamente: “Vós dizeis
que eu sou”!
A expressão “desde agora” (em Mateus ap'árti, em Marcos apò toú nún) é a afirmação da dignidade
que seria conquistada com seu sacrifício; “vereis” (ópsesthe) refere-se a uma visão espiritual; a alusão
à sua vinda com as nuvens do céu não aparece em Lucas.
A citação de sentar-se à direita do Poder (isto é, de Deus), é baseada no Salmo (110:1) que reza: “Diz o
Senhor ao meu Senhor, senta-se à minha direita, até que ponha teus inimigos como escabelo a teus
pés”. Essa assertiva era demais forte, pois assim igualava-se a YHWH, assegurando que tinha lugar de
honra ao lado dele; já na Festa dos Tabernáculos, em outubro, escapara de ser apedrejado por ter dado
a entender a mesma coisa (João, 10:33).
A segunda parte decalca as palavras de Daniel (7:13) quando confessa: “Vi nas visões noturnas, e eis
que vinha com as nuvens do céu um como Filho do Homem, que se chegou até o Ancião dos Dias”.

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Essa mesma afirmativa já fora feita perante seus discípulos, quando o Mestre lhes falava das dores dos
“últimos tempos” (cfr. Mat. 24:30 e Marc. 13:26; ver vol. 7).

Depois da condenação, o ódio do Anti-Sistema se derrama como metal liquefeito sobre ele, retirado
do Sinédrio para aguardar sua ida ao palácio do Procurador Romano: só este tinha poder para ratifi-
car e executar a sentença de morte.
Como fosse voz corrente de que se tratava de um profeta, os guardas (alguns comentadores dizem ter
sido os próprios componentes do Sinédrio) cobrem-lhe os olhos com um pano e pedem que adivinhe
quem bateu: confusão ainda hoje corrente entre profeta (médium) e adivinho. Nessas horas extravaza
o violento e desumano instinto de sadismo dos seres ainda animalizados da humanidade, que batem,
socam, cospem, maltratam, revelando a perversidade inata que ainda conservam.
Como sempre, descobrimos preciosa lição que, infelizmente, não é ainda bem compreendida por
grande parte da humanidade, e de modo especial contra ela se rebelam os que se encontram a meio
caminho da jornada evolutiva: os que já superaram quase toda a fase negativa do Anti-Sistema e dele
começam a destacar-se, mas ainda não se firmaram no campo do Sistema, que só agora penetram em
passos ainda inseguros e hesitantes.
Dessa forma, negam-se a aceitar, e positivamente não entendem, por que os bons são encarniçada-
mente perseguidos neste planeta. A alegação baseia-se no escândalo de observar que os Espíritos
Superiores não tomam a defesa dos bons, salvando-os das mãos dos maus. Gostariam que as virtudes
celestiais fulminassem os perversos, tal como João e Tiago, os “Boanerges” (cfr. Marc. 3:17), queri-
am que Jesus fizesse descer fogo sobre a aldeia que se recusou recebê-lo! O próprio Jesus que PODIA
solicitar doze legiões de defensores, preferiu submeter-se à Lei e ao que é natural no Anti-Sistema,
conforme está descrito no já citado cap. 2 do Livro da Sabedoria, cuja leitura e meditação aconse-
lhamos.
Os dois pólos, negativo e positivo, que constituem respectivamente o Anti-Sistema e o Sistema, encon-
tram-se emborcados, como dois funis, um ligado ao outro pela boca mais larga. Tudo o que num é
bom, no outro é mau, e vice-versa, em posição absolutamente invertida e contrária.
E como as criaturas encarnam na Terra rigorosamente segundo sua tônica vibratória, pela Lei Uni-
versal de sintonia, a maioria da humanidade se encontra na zona intermediária entre Sistema e Anti-
Sistema. Os que, em seu íntimo, já renunciaram ao mal, mas ainda não atingiram degraus mais eleva-
dos do Sistema, encarnam nessa faixa em que predomina o divisionismo egoísta, e sofrem o atrito do-
loroso que arranca do ferro a ferrugem e o fogo consumidor que separa da ganga o ouro puro. E se
alguém, dos degraus mais elevados, resolve sacrificar-se e imiscuir-se nas zonas mais baixas para
qualquer trabalho regenerador, inevitavelmente terá que submeter-se à situação ambiental predomi-
nante, sofrendo os mesmos impactos, embora não no mereça.
Mas não poderia caminhar-se na Senda evolutiva pela trilha do AMOR, sem necessidade de mergu-
lhar no negro abismo do sofrimento? Teoricamente, sim; mas cremos que somente nos planos mais
elevados, onde reine o amor de modo absoluto, sem sombras sequer de egoísmo (nem pessoais, nem
familiares, nem grupais), pois é o egoísmo que gera o sofrimento. Quem não se libertou totalmente do
egoísmo, é automaticamente atraído para o ambiente egoísta, onde predominam ódio, concorrência
desleal, violência, falsidade, engano, maldade, mentira, perseguições e destruição.
Descendo das altitudes sublimes, Jesus resolveu, voluntariamente, embrenhar-se no cipoal das pai-
xões de uma humanidade ainda animalizada, a fim de indicar o caminho da libertação. Além dos ensi-
nos teóricos, mister era-lhe dar o exemplo prático de como agir, e por isso resolveu viver e experi-
mentar (páthein) em Si mesmo todas as dificuldades por que deveriam passar aqueles que O seguis-
sem.
E como soara a hora de ascender mais um posto na escala evolutiva, e como para esse passo impor-
tante era indispensável sujeitar-se a fim exame rigoroso, a fim de comprovar sua coragem e avaliar
sua força, aproveitou-se desse ensejo para executar os dois planos de uma vez; e baixando suas vibra-

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ções o mais que pôde, revestiu o escafandro de carne, para permanecer pregado ao solo do planeta.
Ipso facto, caiu em cheio no ambiente do Anti-Sistema, preparado para receber todo o choque que
isso lhe provocaria. Para avaliarmos bem melhor o que passou, imaginemos que um de nós humanos,
no ponto atual em que se encontra a humanidade, encarnasse conscientemente numa vara de porcos e
agisse de modo diferente deles; que não sofreria? Muito, sem dúvida; mas de certo menos, do que
sofreu Jesus na humanidade!
Entre as feras humanas do Anti-Sistema Jesus prosseguiu tranquilamente sua trajetória, até chegar a
hora aprazada, quando então se submeteu às provas previstas para sua ascensão. O “Alto-Comando”
do Anti-Sistema foi todo mobilizado para essa ocasião. E o exemplo que essa vítima do amor imenso
que nos dedica deu a todos nós, mantendo a dignidade, foi dos mais sublimes, calando quando a per-
gunta era feita fora das normas legais, e corajosamente respondendo quando o indagante possuía
autoridade para fazê-lo.
Mas diante do sofrimento, não abriu a boca, como previra Isaías (53:7-9): “Ele foi oprimido, contudo
humilhou-se a si mesmo e não abriu a boca. Como o cordeiro que é levado ao matadouro e como a
ovelha que é muda diante dos que as tosquiam, assim não abriu ele a boca. Pela opressão e pelo juízo
foi ele arrebatado, e quanto à sua geração, quem considerou que ele foi cortado da terra dos viven-
tes? Por causa da transgressão de meu povo foi ele ferido. Deram-lhe a sepultura com os ímpios e
com o rico esteve em sua morte, embora não tenha cometido violência nem houvesse dolo em sua
boca”.
No entanto, outra consideração que deduzimos dessa lição in artículo mortis (quase poderíamos di-
zer), é a coragem indômita de afirmar a Verdade acima de tudo. Não se utilizou da desculpa da mo-
déstia, para negar Sua qualidade real. E isso causa tremenda irritação entre os homens ainda envol-
vidos pela atmosfera do pólo negativo, não só porque não podem dizer o mesmo de si mesmos, com
porque não podem admitir que haja seres, iguais externamente a eles, e no entanto espiritual e cultu-
ralmente superiores. A inveja e o egoísmo não admitem superioridade nos outros.
E quando não existe a arma da violência, em virtude de maior evolução dos meios sociais humanos,
outras armas talvez piores são utilizadas: a maledicência e a calúnia, as campanhas de arrasamento
moral dos seres de fato superiores, a fim de desmoralizá-los perante a opinião pública.
O exemplo de Jesus, o Mestre incomparável, é claro e insofismável: à pergunta se era Filho de Deus,
ou seja, se pertencia ao Sistema, responde altaneiramente: “EU SOU”. A resposta deve ter soado,
especialmente se foi - e deve ter sido - proferida em hebraico, como uma afirmativa insustentável, pois
a expressão EU SOU, em hebraico, é exatamente YHWH, o nome impronunciável, a não ser pelo pró-
prio Sumo-Sacerdote uma vez por ano.
Paremos um instante em profunda meditação. De olhos fechados para a neiramente: “EU SOU”. A
resposta deve ter soado, especialmente se foi - e deve ter sido - proferida em hebraico, como uma
afirmativa insustentável, pois matéria que nos circunda, revejamos a cena: aquele operário cansado,
algemado, simples, cercado de adversários ferrenhos, está diante do Sumo-Sacerdote, paramentado a
rigor, no trono de sua gloriosa posição suprema. E o réu, cabeça erguida, pronuncia o Nome Indizível
diante de todos, afirmando-se ser aquele que todos acreditavam ser o “Deus dos judeus”, o Espírito-
Guia da raça, o Supremo Ser para eles, e acrescenta, além disso, as frases do Salmo - de que fora
convidado para sentar-se à direita do Altíssimo - do grande profeta Daniel, de que viria, com as nu-
vens do céu. Que espanto inenarrável deve ter percorrido aquela assembléia, como um arrepio de
medo, diante da inqualificável ousadia daquela figura já abatida pela noite indormida, mas, segundo
eles, ridiculamente altiva, a proferir uma legítima blasfêmia, imperdoável e merecedora da imediata
condenação à morte: “é réu de morte”!
Essa atuação teve numerosos imitadores: por muito menos que isso, a igreja romana queimou muitos
homens nas fogueiras da inquisição de triste memória. Nenhuma autoridade humana pode admitir que
um ser, socialmente inferior, se diga espiritualmente superior, com autoridade mais elevada que a
concedida pelos homens. Nenhum elemento do Anti-Sistema aceitará, jamais, que um homem igual a
eles, confesse possuir categoria mais elevada, ainda que pelos exemplos de suas obras se possa dedu-

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zir a realidade da afirmativa. Isso porque o Anti-Sistema não aprendeu a lição de Jesus: “Conhece-
reis as árvores pelos seus frutos: nenhuma árvore má produzirá bons frutos, e nenhuma árvore boa
produzirá maus frutos” (Mat. 12:33). Até hoje, o Anti-Sistema pretende julgar a árvore por ela mes-
ma: se é alta ou baixa, frondosa ou raquítica, reta ou torta, lisa ou espinhosa, sem levar em conside-
ração os frutos que produza. Essa maneira de julgar tem produzido numerosos hipócritas no seio da
humanidade.
Estejamos todos preparados para dar testemunho certo daquilo que realmente somos, diante de quem
quer que seja, empregando o mesmo método utilizado por Jesus diante do tribunal religioso dos ju-
deus.
Quando acossados pela maledicência e pela calúnia, proferidas por aqueles que não possuem autori-
dade moral para fazê-lo, saibamos calar, pois o silêncio é a melhor resposta; soframos em silêncio,
orando por aqueles que, mal informados, se deixam levar pelo ódio inato que os mina como chama
oculta. Um dia, quando na mesma posição, experimentarão as mesmas acusações.
Quando interrogados por quem tenha o direito legal de fazê-lo, a respeito daquilo que realmente so-
mos, respondamos corajosamente, de acordo com a consciência límpida que tivermos a nosso respei-
to, sem nos deixarmos levar pelo orgulho, mas também sem nos escondermos por trás da bandeira
esfarrapada de uma falsa modéstia: quem sabe e tem consciência de saber, esse é sábio verdadeiro.
Mas, se a vida nos trouxer a felicidade de não sermos colocados no fogo cruzado dos adversários do
polo negativo, caminhemos tranquilos, sem esquecer-nos de agradecer ao Pai por essa felicidade sem
nome, de não sermos atacados e despedaçados.
De qualquer forma, em qualquer circunstância, recordemos que o que de fato vale, é o fruto que pro-
duzirmos em benefício da humanidade, são as lições escritas ou faladas, e sobretudo é a lição do
exemplo de desprendimento e de bondade, de perdão e de amor para com todos. Poderão atingir nos-
sa personagem terrena, mas nosso Eu verdadeiro jamais será atingido: foi maltratado, batido, cuspi-
do, ridiculizado o corpo físico de Jesus, mas Seu Eu profundo, o Cristo, não foi tocado, nem até Ele
chegaram as ofensas animalescas da violência e do despeito de homens involuídos cheios de ódio.
Essa lição, que Jesus nos ensinou com Seu exemplo sublime, é sempre oportuna para todos os que
vivemos no ambiente do pólo negativo, e que, por vezes, acossados pela vaidade de nosso pequeno eu
mesquinho, gostaríamos de ripostar aos que nos acusam, devolvendo ofensa por ofensa, e procurando
defender-nos das acusações gratuitas: Jesus calava e em Seu coração suplicava que o Pai lhes perdo-
asse, “pois não sabiam o que diziam”.
Obrigado, Mestre, pela lição do Teu exemplo!

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C. TORRES PASTORINO

ENVIO A PILATOS
Mat. 27:1-2
1. Tendo-se feito manhã, tomaram conselho todos os principais sacerdotes e os anciãos
do povo contra Jesus, para condená-lo à morte.
2. E algemando-o (o) conduziram e entregaram ao procurador Pilatos.

Marc. 15:1
1. E logo de manhã, reunindo o conselho, os principais sacerdotes com os anciãos do
povo e os escribas e todo o Sinédrio, algemando Jesus o levaram e entregaram a Pila-
tos.

Luc. 23:1
1. E levantando-se, todo o grupo deles conduziu Jesus a Pilatos.

João, 28:28
28. Conduzem, então, Jesus de Caifás para o Pretório; era de madrugada; e eles não en-
traram no Pretório para que se não contaminassem, mas comessem a Páscoa.

O sinédrio não contava com a prerrogativa de executar sentenças de morte. Daí precisar recorrer à au-
toridade romana, que podia ratificá-la ou recusá-la. Mister, pois, ser bem fundamentada a acusação:
para mais impressionar, mantiveram o prisioneiro algemado.
Pilatos pertencia à família Pôncia, e foi o 5.º Procurador romano na Judéia, funcionando desde o ano
23 d.C., e conservando-se nesse posto até o ano 36. Como Procurador, detinha poderes civis e milita-
res, mas dependia do Legado na Síria.
No início de sua gestão, Pilatos usara o dinheiro do qorban para a construção do aqueduto de Ethan, e
esse gesto provocou uma revolta dos judeus, reprimida com um massacre (Flávio Josefo, Ant Jud. 18,
3, 2 e Bell. Jund.. 2, 9, 4). Nos momentos difíceis procurava comtemporizar, a fim de fugir à responsa-
bilidade e ver se conseguia agradar simultaneamente às duas partes. Mas acima de tudo buscava agra-
dar a Tibério. Nos Evangelhos é dado a Pilatos o título de hêgemôn, “chefe”, o mesmo atribuído ao
Legado na Síria (Luc. 3:2) e ao próprio Imperador (Luc. 3:1). O título exato da função que desempe-
nhava seria epítropos, palavra que não aparece nos Evangelhos.
Pilatos é citado com frequência por Philon e Flávio Josefo; todavia, a não ser aí, o nome desse Procu-
rador não aparece registrado entre os escritores clássicos profanos, a não ser em Tácito (Anales, 15:44)
onde lemos: auctor nominis ejus (chrestiani) Chrestus, Tibério imperitante, per Procuratorem Pontium
Pilatum supplicio erat adfectus, ou seja: “o autor desse nome (cristão) Cristo (no original Cresto) fora
submetido ao suplício sob o Procurador Pôncio Pilatos, sendo imperador Tibério”. Esse trecho, posto
em dúvida por vários autores, como uma interpolação de cristãos, foi provado ser genuíno por Kurt
Linck, no “De Antiquissimis Veterum quase ad Jesum Nazarenum spectant testimontis”, (na pág. 61).
O Pretório era a residência do Pretor e, por exceção, dos Governadores romanos, desde que aí se ins-
talasse o tribunal (bêma), que consistia num estrado sobre o qual se colocava a sella curulis. Três lo-
cais podem ter sido utilizados ad hoc naquela manhã de sexta-feira:

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SABEDORIA DO EVANGELHO

a) o palácio de Herodes, conhecido como a Torre de David, na porta de Jaffa;


b) o Tribunal civil (melkcmeh), no vale do Tiropeu;
c) a Torre Antônia, ao norte da esplanada do Templo.

A presunção geral pende para o último deles, onde o Procurador permanecia quando se afastava de sua
residência oficial em Cesaréia, ao passar em Jerusalém os dias dos festejos pascais.
Flávio Josefo (Bell. Jud. 5.5.8) diz que o local ficava enquadrado por quatro torres; sua área era de
1.800 m2, sendo construído com grandes pedras, sendo-lhe, pois, bem aplicado o nome de lithóstrotos
(de lithos, “pedra” e strônymi, “pavimentar”), como o denomina João (19:13), dizendo que em hebrai-
co se chama Gábbatha (“lugar elevado, eminência”), de Gabâ; segundo Strack e Billerbeck, (o.c. t.2,
pág. 572) o termo é Gabbahhta, “fronte calva”.
Preferem o primeiro sentido Edersheim, Schurer, Sanday. Guthe, Zahn, Abel, Durand Lagrange (cfr.
Abel. “Jerusalem Nouvelle”, pág. 565-567). Mas as descobertas de 1932-1933 vieram dar muita força
ao segundo.
A concordância dos quatro Evangelistas é total, quando assinalam a sexta-feira, dia 14 de nisan como
véspera da celebração da Páscoa, que começaria nesse dia às 18 horas, donde não quererem os judeus
entrar no Pretório para se não contaminarem legalmente.
Segundo os cálculos astronômicos de J. K. Fotheringam (“Journal of Theologic Studies”, 1911, pág.
120-127) e de Karl Schoch (Bulletin, 1928, pág. 48-57) entre os anos 28 e 34, o 14 nisan foi sexta-
feira no ano 30 (a 7 de Abril) e no ano 33 (a 3 de abril). Num desses dois anos ocorreu a crucificação
(cfr. J, Levie, “La date de la Mort de Jésus”, in “Nouvelle Revue Theólogique”, t. 40, 1933, pág. 141-
147).
Pilatos tenta salvar Jesus da condenação, procurando negociar a clemência dos judeus em favor do réu,
declarando-o “não culpado” e reenviando-o a Antipas, propondo, inclusive salvá-lo com a concessão
da “graça pessoal”.
Mas o ódio dos sacerdotes nada aceita, ameaçando o procurador de denunciá-lo a Roma. Daí dizer
Jesus que Pilatos era “menos culpado” do que o Sinédrio (João, 19:11). Em vista disso levantam-se
muitos para desculpar Pilatos (cfr. Renan, “Vie de Jésus”; Jackson et Lake, “The Reginnings of Chris-
tanity”, pág. 13) embora os autores antigos o apresentem como duro contra os judeus (cfr. Fl. Josefo,
Bell. Jud. 2,9,2, e Philon, “Leg. ad Caium”, 38).

Em vista da impossibilidade em que se encontrava o Colégio Sacerdotal, oficialmente constituído, de


submeter o candidato às provas máximas, que exotericamente seria a morte física, a Lei providenciou
sua entrega ao poder civil, aproveitando-lhe o desinteresse dos chefes pela condenação desse “réu”,
para que a execução não fosse aplicada com sumo rigor, exigindo-se-lhe a verificação da “morte”.
Nos mínimos pormenores comprovamos que jamais é abandonada a criatura humana, pois a Lei,
através de Seus executores, prima em cuidar de todas as minúcias, escolhendo a dedo as personagens
rigorosa e cuidadosamente selecionadas, para que se evitem erros e desvios prejudiciais à meta al-
mejada.
Por esse motivo é que Pilatos, por ser displicente, foi conduzido àquele posto, tendo ao lado exata-
mente aquela esposa, que pudesse interceder em benefício de Jesus, abrandando ainda mais o ânimo
do Procurador e tirando-lhe qualquer veleidade de perseguição.
Assim, encontrava-se Jesus nas mãos de um Colégio Sacerdotal cheio de ódio mortal, mas impotente
na ação, e de um procurador romano que tinha poderes para agir, mas não desejava condenar à
morte, tudo fazendo para libertá-los: era, pois, a figura ideal, que levaria o candidato à iniciação de
seu grau até o ponto exato, e não aquém (libertando-o) nem além (exigindo a morte física real).

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C. TORRES PASTORINO

Não têm razão os que atribuem o sacrifício de Jesus a um “complat” de maldade, exclusivamente de-
pendente da vontade humana: trata-se de uma necessidade vital, governada pela Vida e pelas Inteli-
gências diretoras da Humanidade, que colocaram nos postos-chaves criaturas capazes de cumprir
exatamente as determinações superiores.
Assim vai o candidato a caminhar passo a passo, até a consumação do sacrifício que lhe abrirá, de
par em par, a porta de acesso ao posto supremo de Chefe do Sexto Raio, no Governo da Humanidade.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

EPISÓDIO DE JUDAS
Mat. 27:3-10
3. Vendo, então, Judas que o entregou, que fora condenado, mudando de opinião resti-
tuiu as trinta moedas de prata aos principais sacerdotes e anciãos,
4. dizendo: errei, entregando sangue inocente. Mas eles disseram: Que nos importa?
Arruma-te.
5. E lançando as moedas no santuário, saiu e sufocou-se.
6. Mas os principais sacerdotes, tomando as moedas, disseram: Não é licito lançá-las no
tesouro, porque é preço de sangue.
7. Tendo deliberado em conselho, compraram com elas o Campo do Oleiro, para sepul-
tura dos peregrinos estrangeiros.
8. Por isso foi chamado até hoje aquele campo, Campo de Sangue.
9. Então cumpriu-se o dito de Jeremias o profeta, que disse: “E tomando as trinta moe-
das de prata, o preço do que apreçaram, avaliado pelos filhos de Israel,
10. deram-nas pelo Campo do Oleiro, segundo me ordenou o Senhor”.

Episódio privativo de Mateus, cujas palavras procuraremos estudar com o máximo cuidado e atenção.
Segundo os códices, Judas viu que Jesus fora condenado (katekríthèi) e então, mudando a mente (eta-
melêthéis), tornou a levar (éstrepsen) o dinheiro (tà argyria) para o Sinédrio.
Significaria isso que Judas tinha esperanças de entregá-Lo e depois de vê-Lo escapar ileso das mãos
dos adversários, como de outras vezes? Não teria sido essa uma esperança demais presunçosa e um
risco grande demais, para ser deixado à sorte? E se essa foi a expectativa, não teria sido demais preci-
pitada a reviravolta, já que até o último instante, mesmo condenado, o Mestre poderia escapar, se o
quisesse? Meditando sobre o assunto, não conseguimos atinar com a atitude psicológica de Judas, re-
gistrada por Mateus. Ainda mais quando declara: “Errei, entregando sangue inocente”, numa demons-
tração de consciência plena do que fazia: não agira equivocado, sua ação fora premeditada. Como e
por que tão repentina modificação no modo de encarar a questão?
Continua o evangelista a narrativa, revelando o cinismo das autoridades eclesiásticas de Israel: “que
nos importa” (ti pròs hêmâs)? cuida tu (sy ópêi), ou “Vê tu”, ou mesmo “isso é contigo”. Irritado, Ju-
das teria jogado as moedas no santuário (eis tòn naón), o que trouxe embaraço aos membros do siné-
drio, que diziam não poder colocá-lo no tesouro (eis tòn korbanân) por ser preço de sangue (cfr. Deut.
23:18-19).
Jerônimo (Patrol. Lat. ,o]. 26, col. 204) salienta, muito bem, que tinham escrúpulo quanto à destinação
a ser dada ao dinheiro, mas não quanto a condenar Jesus à morte.
Após anotar que Judas, “saindo, sufocou-se” (apelthôn apêgxato), narra que compraram “o campo do
oleiro” para servir de cemitério para os forasteiros, pelo que “é chamado até hoje campo de sangue”.
Logo a seguir, Mateus assevera que “assim se cumpriu a palavra do profeta Jeremias”. Ora, em Jere-
mias nada existe de tudo isso. Quem fala das trinta moedas e do campo do oleiro é Zacarias (11:12-13)
que, nesse passo se considera um pastor, com delegação de YHWH para apascentar o rebanho. Cansa-
do da infidelidade das ovelhas, pede seu salário aos exploradores do rebanho:

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C. TORRES PASTORINO

12. E eu lhes disse: se o julgais bom, dai-me meu salário. Se não, deixai. E eles me contaram trinta
peças de prata.
13. E YHWH me disse: joga-o ao oleiro, o magnífico preço pelo qual foste avaliado por eles. E tomei
as trinta peças de prata e as lancei na casa do Senhor ao oleiro”.
Alguns perguntam se, em lugar de “oleiro” (iozer) não deveria ler-se “tesouro (uzar). De qualquer
forma, as trinta peças, em Zacarias, são dadas a um oleiro, mas não compram seu campo.
Em Jeremias (33:6ss) há a narração da compra que o profeta faz a Anathoth, do campo de seu primo
Hanameel. Também não é o campo de um oleiro. Onde se fala em “oleiro”, é quando Jeremias visita
um, que refaz seu vaso, que havia saído imperfeito (Jer. 18:1-4).
Perguntamos: onde está a profecia?
Eusébio (De Dem. Evang. 10,4) diz que “os judeus haviam suprimido o texto citado por maldade con-
tra os cristãos” ... Jerônimo (Patrol. Lat. vol. 26, col. 205) afirma que um judeu lhe mostrou um texto
apócrifo de Jeremias, com essas palavras; mas por sua expressão parece que o velho tradutor da Bíblia
não lhe deu crédito. Agostinho (Patrol. Lat. vol. 34 col. 1175) escreve: quae dicta sunt per Jeremiam
tam sunt Zachariae quam Jeremiae, et quae dicta sunt per Zacchariam, tam (sunt) Jeremiae quam
Zachariae, isto é, “o que é dito por Jeremias, é tanto de Zacarias quanto de Jeremias, e o que é dito por
Zacarias tanto de Jeremias quanto de Zacarias”, querendo explicar que, sendo o livro inspirado por
Deus, o nome do profeta pouca importância apresentava. Strack e Billerbeck (o.c. t.l, pág. 1029-1030)
aduz a hipótese seguinte: vindo Jeremias à frente de todos, assumia a paternidade de todas as profecias.
Essa hipótese cai diante do fato de que a presente é a única vez em que isso ocorre: em todos os outros
passos, os profetas são corretamente citados com seus nomes.
Antes de concluirmos, vejamos, para confronto, o texto dos Atos (1:18-19), que pretende ser paralelo a
este, da autoria de Lucas, quando transcreve o discurso de Pedro.
18. Esse (Judas) comprou então um campo (houtos mén õun ektésato chôríon) com o salário da injusti-
ça (ek místhou tês adikías) e tendo caído para a frente (kaì prênês genómenos) estalou no meio
(elákêsen mésos) e derramou todas as suas vísceras (kaì exechythê pánta tà splágchna autoú).
19. e se tornou conhecido (kaì gnôstòn egéneto) a todos os habitantes de Jerusalém (pãsi toís katoixou-
sin Ierousalêm) de tal forma que foi chamado (ôste klêthêmai) aquele campo (tò choríon ekeíno)
no dialeto deles (têi dialetôi autôn) Akéldama, isto é, campo de sangue (akeldamach, tout'estin
Choríon haímatos).”
Vemos que as duas narrativas se contradizem frontalmente, pois nos Atos teria sido o próprio Judas a
comprar um campo, e teria caído para a frente (prênês - pronus) - e não se diz como - e “estalou no
meio, derramando todas as suas vísceras”. Na pena de um médico a expressão deveria ser técnica, mas
esse fenômeno não ocorre na sufocação, nem mesmo por enforcamento, como o quer a tradição. A não
ser, como alguns sugerem, que o corpo tivesse permanecido pendurado na corda vários dias, até apo-
drecer e romper-se, pela inchação, a pele do ventre deixando cair as vísceras apodrecidas na terra. Mas
se isso tivesse ocorrido assim, Lucas não teria empregado o verbo lakéo (elákêsen), com o sentido pre-
ciso de “estalar”, isto é, de dar um estalo, como o bater de palmas.
Resumindo:
Mateus: Atos:

a) Judas devolve as 30 moedas


b) os sacerdotes não aceitam
c) Judas lança-as ao santuário
d) os sacerdotes compram o campo de um oleiro a) Judas compra um campo
que,

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SABEDORIA DO EVANGELHO

e) por ter sido comprado com as 30 moedas, re-


cebe, por isso, o nome de “Campo de sangue” b) cai para a frente e “estala”, derramando as
f) Judas sai e “sufoca” vísceras nesse campo que, por isso, recebe o
nome de “campo de sangue”.

De toda essa confusão, e sobretudo da citação errada do nome de um profeta - inadmissível num autor
“inspirado”, deduzimos que ambos os trechos foram retocados por mãos inábeis, a fim de chamar so-
bre Judas o desprezo dos primeiros cristãos e das gerações posteriores.
Qual teria sido o texto original? Qual seria a mensagem real de ensinamento que a verdadeira tradição
iniciática teria desejado deixar aos discípulos das eras porvindouras?
* * *
Evidentemente estamos diante de um dos trechos que apresentam maior dificuldade de interpretação e
estudo: tentemos.
O argumento mais tentador é o de rejeitar de golpe a versão de Mateus, quanto ao destino dado às
trinta moedas, tão claramente pastichado do “profeta”, embora confundindo a fonte, ou por isso mes-
mo, atribuindo a Jeremias uma alusão de Zacarias. A inabilidade do manuseador do texto é patente,
embora quem no fez, o tivesse feito desde as primeiras edições da narrativa de Mateus. Vemos que ele
se lembrou de um episódio escriturístico e quis criar uma situação que ligasse o drama de Jesus a uma
profecia. Forjou, então, a cena de Judas perante o Sinédrio, e tão inabilmente o fez, que ficou inaceitá-
vel, apesar de citar nomes e de dizer que “até hoje” se chama “Campo de sangue”.
Mas a causa que deu origem a esse nome é totalmente diversa nos dois narradores: Lucas diz ter-se
assim chamado porque nele morreu Judas, ao passo que Mateus afirma que recebeu esse nome por ter
sido comprado pelo Sinédrio com as trinta moedas, “preço de sangue”.
Racionalmente, essa contradição anula a verossimilhança do fato não importando o que a esse respeito
tenham escrito os autores antigos, por mais eminentes que tenham sido.
O manipulador que escreveu as palavras em Atos, com a agravante de havê-las colocado nos lábios de
Pedro, lembrava-se apenas vagamente do que havia sido acrescentado em Mateus. Os comentadores
que tentam explicar as discordâncias evidentes, sucumbem a puerilidades indefensíveis, ao dizer que
Pedro sabia que Judas se enforcara, mas que pretendeu, com a imagem tétrica do arrebentar-se de seu
corpo, impressionar mais a audiência.
Mas, perguntamos: foi Judas que comprou o campo e nele se enforcou ou foi o Sinédrio que comprou?
Se foi o Sinédrio, será que Judas sabia qual tinha sido o campo comprado para ir lá e enforcar-se? Se
não, em que lugar se enforcara ele? Se não foi no campo comprado, por que haveria Pedro de mentir
num discurso oficial de chefe da “comunidade”, perante o colegiado que estava para escolher o subs-
tituto de Judas? Onde ficamos?
Já assinalamos que onde o texto se apresenta incompreensível, impõe-se uma análise fria e desapaixo-
nada, isenta de qualquer idéia preconcebida, e apenas fundamentada nos termos escritos. Diante da
análise, podemos chegar a uma destas conclusões:
a) ou o texto não constava do original e foi acrescentado;
b) ou havia um texto original, que foi manipulado.

Tudo nos leva à segunda hipótese. Havia um texto original, mas diferente daquele que hoje lemos.
Como chegar a ele?
Examinemos o caso pela crítica interna.

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C. TORRES PASTORINO

Descobrimos no trecho uma das características mais típicas do estilo de Mateus: “para que se cumpris-
sem as profecias”: era o desejo de comprovar, pelo que estava escrito nas Escrituras israelitas, que
Jesus era realmente o Messias esperado pela nação Judaica. No entanto, a inadmissível troca de nomes
do profeta (constante de todos os códices) vem provar-nos que o erro NÃO FOI do evangelista. O ma-
nuseador não conhecia bem as Escrituras, e cometeu o erro, deixando-nos a pista para que descobrís-
semos sua malandragem. Apesar de inteligente na ânsia de imitar o estilo de Mateus, foi atraiçoado por
sua memória.
Inteligente, também, o manipulador do texto de Lucas, que busca dar minúcias que sejam particulares
de um médico. Mas o verbo “estalar” ao invés de “romper-se”, revela também uma pista. E as contra-
dições entre os dois narradores dá o golpe de graça final para rejeição do texto tal como se apresenta
hoje a nossa leitura. Racionalmente, é impossível encontrar qualquer acordo que seja plausível ou ve-
rossímil.
Diante da necessidade de tornar abominável a figura de Judas, perante o grande público, a fim de evi-
tar imitadores, era mister denegri-lo ao máximo, colocando-o o mais possível na sombra, para que a
figura de Jesus resplandecesse ao máximo. Com essas duas necessidades fatais, foi julgado lícito e
talvez até meritório que se forjasse um pormenor falseado, em vista daquele terrível princípio imoral,
de que os fins justificam os meios.
Em que ficamos, então? Será possível chegarmos a reconstituir o texto original e daí deduzir alguma
lição?

O desespero de Judas ao ver sem esperança a situação de seu Mestre poderia ser justificável, se ele
não pertencesse ao Colégio Iniciático e, portanto, não estivesse a par do que DEVERIA acontecer.
Mas, cônscio de antemão de como fatalmente DEVIAM OCORRER os fatos, não havia razão para tão
cedo verificar-se um arrependimento teatral.
Admitimos que tenha havido um choque tremendo na personalidade humana de Judas (não na indivi-
dualidade) ao ver Jesus demonstrar, sobre a cruz, todos os sintomas da morte real. Nesse ponto, sim,
deve ter fraquejado. Mas não antes disso. Como discípulo de escol, escolhido como sacerdote para
oferecer a vítima ao altar do holocausto, conhecendo - como devia conhecer a fundo - os ritos da ini-
ciação, SABIA que, para galgar mais um passo, era essencial que sobreviesse a condenação, para que
pudesse sujeitar-se ao sacrifício que O elevaria na escala iniciática.
Talvez não estivesse preparado, em sua condição de encarnado, com uma personalidade limitada, a
alcançar o ponto extremo a que chegaria a “morte de Osíris”, pois muito menos verificara ter aconte-
cido no caso de Lázaro: simples mergulho cataléptico no túmulo durante três dias e três noites (1),
mas sem torturas cruentas e sem derramamento de sangue. Lázaro apenas entrara no esquife, tal
como era habitualmente feito nas pirâmides do Egito, em memória ao fechamento do corpo de Osíris
no sarcófago hermeticamente lacrado e lançado ao Nilo, e que seguiu boiando até Biblos.
(1) A expressão evangélica tetartaios (latim quatriduanus), traduzido como “quatro dias”, compreende
exatamente três dias e três noites em nossa contagem atual. Para os judeus da época, o dia começa-
va as 18 horas de um dia, e finalizava às 18 horas do dia seguinte. Então temos: a) a tarde de um
dia até as 18 horas - 1 dia; das 18 às 18 do segundo dia; das 18 às 18 do terceiro dia; das 18 do ter-
ceiro até a tarde do dia seguinte - quarto dia.
Com Jesus o caso foi muito mais grave: não apenas as torturas dos açoites, como ainda o fato de ser
cravado na cruz, o que produziu hemorragia e, finalmente, o golpe de lança que atingiu a pleura do
lado direito, provocando perda de água (líquido seroso pleurático) misturada com sangue. Que o golpe
não atingiu sequer o pulmão, prova-o o fato de que o líquido seroso escorreu para fora, se tivesse atin-
gido o pulmão, com a colabase deste, o líquido teria sido derramado para dentro da cavidade torácica,
como estudaremos melhor a seu tempo.
Diante desse quadro desanimador, é que acreditamos tenha sobrevindo a Judas a sensação de deses-
pero. Mas ousamos adiantar a hipótese de que esse desespero tenha ocorrido não tanto pelo fato de

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SABEDORIA DO EVANGELHO

ter sido ele a fazer a entrega (parádosis) do Mestre, a qual constituíra honrosa tarefa sua, como pela
tristeza desalentadora de verificar que Jesus. não conseguira dar esse passo conforme fora previsto e
predito por Ele, pois sucumbira vencido pelos rudes golpes, sem superar a prova permanecendo em
vida. Talvez tenha sido realmente essa a causa que provocou o desespero de Judas, levando-o ao sui-
cídio: parecer-lhe que Jesus havia fracassado. Mas o fato se deu depois da crucificação e do lancea-
mento do lado da vítima pelo soldado romano.
* * *
Temos consciência de que a questão “Judas” tem sido tratada por nós de maneira tolamente nova e
original, diferente de tudo o que foi dito e escrito durante os últimos dois mil anos. Mas não podemos
resistir ao impulso de escrever aquilo que SENTIMOS em nosso âmago mais profundo, pois não ad-
mitimos as hipóteses nem de trair aquilo que percebemos como verdadeiro, nem de sermos hipócritas
somente para acompanhar o coro da maioria de vozes dos homens, encarnados ou desencarnados. Se
estamos errados em nossas considerações a respeito desses fatos, que a sublime misericórdia de Jesus
nos perdoe e releve nossa ignorância. Mas é-nos impossível calar o que nos parece ser a verdade dos
fatos.

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C. TORRES PASTORINO

ACUSAÇÕES

Luc. 23:2 João, 18:29-32

2. Começaram, pois, a acusá-lo, dizendo: En- 29. Saiu então Pilatos para fora até eles e disse:
contramos este corrompendo nosso povo e Que acusação trazeis contra este homem?
proibindo de pagar tributo a César, e di- 30. Responderam-lhe e disseram: Se não fosse
zendo ser ele um rei ungido. ele malfeitor, não to entregaríamos.
31. Disse-lhes então Pilatos: Tomai-o vós e jul-
gai-o segundo vossa lei. Disseram-lhe os ju-
deus: Não nos é licito matar ninguém.
32. Para que se cumprisse o ensino que Jesus
disse, revelando de que espécie de morte
devia morrer.

João acompanhou de perto os passos de Jesus, tendo assistido pessoalmente às cenas que descreve; em
vista disso, sua narrativa contém mais pormenores, que lhe emprestam vivacidade, ganhando em preci-
são e colorido.
Em sua qualidade de governador, era impossível a Pilatos satisfazer-se em ratificar a sentença do Siné-
drio; imprescindível estudar a questão de competência e o grau de culpabilidade do acusado, a fim de
instruir o processo dentro do, preceitos legais da justiça romana.
Acedendo ao que solicitavam as autoridades eclesiásticas dos judeus, saiu do Pretório à sacada do pré-
dio, a fim de não coagi-los a entrar em ambiente que os fizesse adquirir impureza legal. Fora, indagou
qual a acusação que faziam. As autoridades israelitas tentam ver se conseguem uma simples ratificação
da sentença por eles proferida, indiretamente solicitando que o governador confie no julgamento do
Sinédrio: “se não fora malfeitor, não to entregaríamos”.
Ora, se a culpa se limitasse a um simples caso policial, cujos resultados não fossem graves, o próprio
Sinédrio tinha poderes para resolver. Mas se envolvesse pena grave, como sentença de morte, então a
competência seria sua. Diante da afirmativa audaciosa de que a sentença do Sinédrio havia sido profe-
rida. Pilatos resolve ironicamente o caso que eles mesmos executem a sentença. Por que deveria ele
assumir o encargo de condenar por inocente? Para que mais uma vez eles o denunciassem a Roma por
causa de execuções ilegais?
Surpresos com a “saída” inteligente do governador, os sacerdotes judeus abrem o jogo e se descobrem:
“não podemos matar ninguém”. Tratava-se, pois, de uma condenação à morte e precisavam da autori-
zação de Pilatos. Então o delito era grave e a competência era do governador. Restava resolver a
questão da culpabilidade, e esta exigia a audiência, sendo ouvido o réu, dando-se-lhe oportunidade
ampla de defesa, segundo as leis romanas.
Em Lucas encontramos que, diante de Pilatos, os judeus não falaram de blasfêmia, mas limitaram-se a
acusar Jesus como agitador de massas ou como hoje se diria, “subversivo”, que preparava uma revolu-
ção contra Roma, inclusive aconselhando o povo a não pagar impostos a César, o que constituía desla-
vada mentira (cfr. Mat. 17:24-27 e Luc. 20:20-26), mesmo porque tinha, entre seus discípulos, um co-
brador de impostos, que era Mateus, e rendera homenagem, elogiando-o, a um chefe de cobradores,
Zaqueu.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Dizem mais: que Jesus dizia ser um “rei ungido” (basiléa chrístos), que as traduções vulgares dão
como “Cristo rei”. Ora, naquela época, a palavra christós expressava a unção real, e não o sentido que
hoje lhe damos. No máximo poderia exprimir o caráter messiânico, de “ungido” para a missão espiri-
tual soteriológica.

Figura “ACUSAÇÕES” – Desenho de Bida, gravura de Ed. Hédouin


Disso nos dão conta os próprios textos do Antigo Testamento, que, na língua hebraica trazem o vocá-
bulo moshâh ou mashàh, “ungir” e mashiàh, “ungido”, transliterado para o português como messias,
raiz que constituiu o nome moshê, (Moisés) que significa “o enviado”. Ora, a não ser o último que foi
transliterado para o grego como nome próprio (quando seria mais um título), todos os outros passos
foram traduzidos pelos LXX como christós, ou seja, “ungidos”.

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C. TORRES PASTORINO

E essa unção com azeite era aplicada não apenas aos reis, como também aos sacerdotes, como se diz
de Aristóbulo (2.º Mac. 1:10) e mesmo de Ciro, que nem israelita era, mas persa (Is. 45:1). Mas os
“ungidos” (christós) eram constantemente citados, nada tendo que ver com o sentido atualmente atri-
buído à palavra Cristo (cfr.: 1.º Sam. 2:10, 35; 12:3, 5; 16:6; 24:7 (2 x); 26:9, 11, 16, 23; 2.º Sam. 1:14,
16; 19:21; 22:51; 23:1; 1.º Crôn. 16:22; 2.º Crôn 6:42; Salmos, 2:2; 18:50; 20:6; 28:8; 84:9; 89:38, 51;
105:15; 132:10, 17; Ecli. 46:22; Lament. 4:20; Dan. 9:25, 26; e Hab. 3:13).
Então não podemos, honestamente, traduzir aqui basiléa christós por “Cristo rei”, mas apenas como
“um rei ungido”, ou seja, divinamente consagrado.
João esclarece aos leitores, dentro das possibilidades de divulgação esotérica, que Jesus havia revelado
a Seus discípulos qual a “espécie” de morte que deveria sofrer, para conquista de Seu novo grau inici-
ático.

Esse último versículo constitui verdadeira revelação para quem tenha olhos de ver, ouvidos de ouvir e
coração de entender. Dentro da lógica mais rígida, racional e espontânea, esse versículo está sobran-
do no contexto. Não houve nenhuma alusão a qualquer gênero específico ou qualidade especial de
morte, O único aceno feito, foi a frase dos sacerdotes: “não nos é lícito matar ninguém”. Por que,
depois disso, essa intromissão extemporânea: “para que (hiná) o ensino de Jesus (ho lógos toú Ièsoú)
se cumprisse (plèrôthei), o qual disse revelando (hón eípen sêmaínôn) de que espécie de morte (poiôi
thánatôi) devia morrer (emellen apothnêskein)”.
Essa frase não se refere ao modo ou ao gênero de morte, isto é, se se trataria de morte natural ou vi-
olenta, se de doença, de fome, decapitado ou crucificado, pois nesse contexto não se fala em crucifica-
ção. Se prestarmos atenção aos termos, verificamos; que se fala da espécie ou qualidade (poiôi) de
morte, ou literalmente “de qual morte”.
Considerando-se que a morte, no sentido corrente, é de uma só espécie, ou seja, é constituída pela
separação realizada entre a alma (psychê) e o corpo (sôma), temos que procurar o sentido desse “en-
sino de Jesus”, que parece ter-se afastado exatamente do sentido normal e corriqueiro: o Mestre falou
de outra “espécie” de morte.
Plutarco (Morales, 942 f) esclarece o pensamento da época quando escreve: “a primeira morte
(thánatos) separa a alma (psychê) do corpo (sôma); a segunda morte (thánatos) separa a mente (noús)
da alma (psychê)”. O mesmo autor fala da iniciação (teleutãn) com essas mesmas palavras (cfr. Cras-
so, 25) e o mesmo é dito por Dionísio de Halicarnasso (Antiquitates Romanae, 4,76).
Ora, em todos os ritos iniciáticos de todas as Escolas, inclusive até hoje na Maçonaria, houve e há a
compreensão de duas mortes. E René Guénon (“Aperçus sur l'Initiation”, Paris, 1953, pág. 178) es-
creve: “A morte iniciática excede as contingências inerentes aos estados particulares do ser e tem,
por consequência, valor profundo e permanente do ponto de vista universal”. E prossegue em suas
considerações, firmando o sentido da palavra “morte” como exprimindo “toda mudança de estado,
que sempre constitui duplo processo: morte para o estado antecedente e nascimento no estado conse-
quente”. portanto, a morte do iniciado expressa o abandono da vida profana para que se nasça à vida
espiritual, que é justamente a espécie de morte que ocorre na iniciação ao terceiro grau da Maçona-
ria e na “ordenação sacerdotal” na igreja católica.
O candidato à iniciação deve passar pela escuridão total, antes de penetrar na verdadeira luz espiri-
tual. E vimos que, durante a crucificação de Jesus, os evangelistas falam nas trevas que ocorreram
(Mat. 27:45, Marc. 15:33 e Luc. 23:44) além do que narram seu encerramento no túmulo de pedra,
durante o qual se deu - como sempre ocorria nas verdadeiras iniciações - a descida ao hades. Só de-
pois disso o iniciado se erguia (ressurreição) como nova criatura, totalmente libertado dos laços ma-
teriais densos. Essa era a primeira morte e esse o segundo nascimento, embora se realizasse, mais
tarde, a segunda morte e o terceiro nascimento, quando se abandonava esse segundo estado (plano
psíquico) para renascer no terceiro estado (plano espiritual), que então constituía a libertação total

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SABEDORIA DO EVANGELHO

não apenas da matéria densa, mas até mesmo do psiquismo, com domínio absoluto sobre os corpos
inferiores; e isso também ocorreu com Jesus, na conhecida cena da ascensão.
Tudo isso, consta das páginas do Novo Testamento, confirmando nossa interpretação.
A morte iniciática era, portanto, de uma espécie diferente da morte comum. Os egípcios a denomina-
vam “morte de Osíris” e, para realizar esse rito da pseudo-morte construíram algumas das pirâmides
(a de Khéops, por exemplo). E só essa construção bastaria para demonstrar-nos o alto valor espiritual
que era atribuído a esse rito.
Já estudamos um caso desses em o Novo Testamento (vol. 6, que convém reler e reestudar), ocorrido
com Lázaro.
Mas não parou aí o ensino dessa espécie de morte, pois nas cartas de Paulo (anteriores, no tempo, à
redação dos Evangelhos) encontramos vários trechos. alusivos a esse rito. Bastar-nos-á, como com-
provação, citar alguns.
Aos ROMANOS (6:2-11): “Nós, que já morremos ao erro (ilusão), como viveremos ainda nele? Por-
ventura ignorais que todos os que fomos mergulhados em Cristo Jesus, fomos mergulhados em Sua
morte? Fomos, pois sepultados com ele na morte pelo mergulho, para que, como Cristo se levantou
dos mortos pela substância do Pai, assim também nós caminhemos em novidade de vida. Se a ele fo-
mos unificados na semelhança de Sua morte, também o veremos, certamente, em Seu reerguimento,
reconhecendo isso: que o homem velho foi crucificado com ele, para que seja destruído o corpo do
erro (o corpo da ilusão), a fim de que não sirvamos mais ao erro (à ilusão da carne). Porque, o que
morreu, está justificado do erro. Mas, se já morremos com Cristo, vemos que também vivemos com
ele, sabendo que, já que Cristo se levantou dos mortos, ele já não morre mais, pois a morte não o do-
mina mais. Pois morrer, Ele morreu uma só vez ao erro, mas viver, Ele vive para Deus (para o Espí-
rito). Assim, vós também, compreendei estar mortos ao erro (à ilusão), mas vivos para Deus (para o
Espírito), em Cristo Jesus”.
Aos CORINTIOS (1.ª, 15:45-47): “O primeiro homem, Adão, foi feito em alma vivente, o último Adão
em espírito vivificante. Mas não é primeiro o espiritual, e, sim, o animal, e depois o espiritual: o pri-
meiro homem é da terra, é terreno; o segundo homem é do céu”.
E mais: “Por isso não fraquejamos: mas embora em nós se destrua o homem exterior, o homem inte-
rior se renova dia a dia” (2.ª, 4:16).
Aos EFÉSIOS (2:14-16): “Pois Ele (Jesus) é nossa Paz, Ele que dos dois fez um e destruiu o muro da
separação, a oposição, pois aboliu em sua carne a lei dos mandamentos contidos nos preceitos, para
que, dos dois Ele criasse em Si mesmo um homem novo, fazendo assim a paz, e reconciliasse ambos
num só corpo, com Deus, por meio da cruz, tendo por ela matado a oposição”.
Aos COLOSSENSES: “Se morrestes com Cristo (2:20) e fostes reerguidos juntamente com Cristo,
buscai as coisas de cima (3:1). Pois morrestes, e vossa vida está escondida com Cristo em Deus.
(3:3)”.
Podemos entrever, nas entrelinhas, o ensino de Jesus a que se refere João: o Mestre ensinou-lhes a
“espécie de morte” a que se submeteria, a morte iniciática, em que separaria temporariamente a
psychê do sôma, com a descida ao hades, e depois regressaria ao sôma já vencedor e como nova cri-
atura.

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C. TORRES PASTORINO

1.º INTERROGATÓRIO

Mat. 27:11-14 Marc. 15:2-5

11. Ora, Jesus estava de pé diante do governa- 2. E perguntou-lhe Pilatos: És tu o rei dos ju-
dor e, interrogando-o, o governador disse: deus? E respondendo. disse-lhe: “Tu estás
És tu o rei dos judeus? Jesus, pois, disse: dizendo”.
“Tu estás dizendo”. 3. E o acusavam de muitas coisas os principais
12. Mas ao ser acusado pelos principais sacer- sacerdotes.
dotes, nada respondeu. 4. Então Pilatos interrogou-o de novo dizendo.
13. Então disse-lhe Pilatos: Não ouves quantos Não respondes nada? Vê Quantos te acu-
testemunham contra ti? sam.
14. E não lhe respondeu sequer uma palavra, 5. Mas Jesus não respondeu nada, de forma a
de forma a admirar muito o governador. admirar Pilatos.

Luc. 23:3-5 João,18:33-38a

3. E Pilatos interrogou-o, dizendo-lhe: És tu o 33. Entrou então de novo Pilatos no Pretório e


rei dos judeus? E respondendo, disse-lhe: chamou Jesus e disse-lhe: És tu o rei dos ju-
“Tu estás dizendo”. deus?
4. Então Pilatos disse aos principais sacerdotes 34. Respondeu Jesus: “De ti mesmo dizes isso,
e à multidão: Nenhuma culpa encontro nes- ou outros to disseram a meu respeito?”
se homem. 35. Replicou Pilatos: Por acaso eu sou judeu? O
5. Mas eles insistiam, dizendo que: Excita o teu povo e os principais sacerdotes entrega-
povo, ensinando por toda a Judéia, e come- ram-te a mim; que fizeste?
çando da Galiléia até aqui. 36. Respondeu Jesus: “Meu reino não é deste
mundo; se meu reino fosse deste mundo,
meus ministros combateriam para que eu
não fosse entregue aos judeus; mas agora,
meu reino não é daqui”.
37. Disse-lhe então Pilatos: E então não és rei?
Respondeu Jesus: “Tu estás dizendo que
sou rei. Para isso nasci e para isso vim ao
mundo, para que testemunhe a verdade;
todo o que é da verdade, ouve minha voz”.
38a Disse-lhe Pilatos: Que é verdade?

O primeiro interrogatório, a que Pilatos submeteu Jesus, está relatado pelos quatro evangelistas, sendo
João o mais pormenorizado. Começa esclarecendo que não ficou na entrada, mas “chamou Jesus para
dentro do Pretório”, sentando-se na cadeira do tribunal, para interrogá-Lo com toda a formalidade.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

A pergunta registrada nos sinópticos, à qual o Mestre se teria limitado a responder: “Tu estás dizendo”,
vem com resposta mais completa, demonstrando a perspicácia de Jesus. Já não estava mais no terreno
religioso, mas no político. E por isso, antes de responder, o réu pede esclarecimentos, a fim de pautar
sua resposta de acordo com o sentido real da pergunta. Indaga, pois, se Pilatos quer saber se Ele é rei
dos judeus por convicção própria - pois nesse caso estaria sendo dada à pergunta um sentido político -
e então a resposta seria negativa. Ou se a pergunta fora sugerida “pelos outros” (pelo clero judeu) -
porque então teria sentido religioso - e a resposta seria afirmativa.
Pilatos não achou graça nessa indagação do réu, e responde com ironia: “acaso sou judeu? foram os
teus que te entregaram a mim”. Estava claro, portanto, que a acusação procedia dos judeus. Já que essa
era a origem, a resposta será afirmativa, mas indireta: “meu reino não é deste mundo” (não se trata de
uma soberania política que se contraponha a Roma) “senão teria havido combate para defendê-Lo”.
Pilatos percebe a profundidade da resposta, e indaga: Se tens um reino que não é daqui, “então não és
rei”, mesmo sendo teu reino fora deste mundo terreno?
Jesus, respeitoso e sereno, continua o diálogo com a autoridade civil que tinha direito de inquiri-Lo:
“tu estás dizendo que sou rei; pois nasci e vim a este mundo para dar testemunho da Verdade. E os que
pertencem à verdade, ouvem minha voz”.
Verdade?! E Pilatos pergunta: “Que é Verdade”? Mas, não deseja intrometer-se pelos meandros de
uma discussão filosófica. Levanta-se da cadeira de Juiz e vai novamente à porta, para declarar: “Nesse
homem não encontrei culpa nenhuma”!
Aos sacerdotes judeus, fanáticos como em geral todos os dessa classe, essa declaração não satisfaz.
Não querem ceder. E o governador vai percebendo, confrontando a majestade calma do réu com a falta
de compostura dos acusadores, que estava diante de um caso lamentavelmente comum até hoje, de
“inveja” no setor religioso, e “o ciúme religioso é o mais feroz de todos” (Pirot, o. c. vol. 9, pág. 590).
Os acusadores prosseguiam em seus gritos acusatórios, e Jesus calava. Pilatos fica cada vez mais admi-
rado diante dessa atitude tranquila: “Nada respondes a eles? Olha como gritam quais energúmenos”!
Jesus talvez se limitasse a olhar para Pilatos, sorrindo ligeiramente, quase imperceptivelmente, mani-
festando a pena que lhe causava aquela falta de argumentos e de compostura.
Aqui deparamos em Mateus com uma construção sintática clássica, rara nesse evangelista: apokríno-
mai pròs “nada responde”.
Pilatos, mesmo fugindo ao esclarecimento filosófico que pedira, conserva seu ponto-de-vista: “nenhu-
ma culpa” (literalmente: nenhuma causa, aitíon, de condenação) encontro nesse homem. Por que con-
dená-lo à morte”?

Quantas lições preciosas aprendemos nesse exemplo que a figura de Jesus nos deixou e que os evan-
gelistas souberam retratar com tanta fidelidade, apesar da, ou talvez mesmo em virtude da simplici-
dade da narrativa, isenta de quaisquer atavios literários.
Aprendemos a responder com respeito, mas sem perder a dignidade, diante das autoridades civis ou
religiosas legitimamente constituídas. Mas a não responder quando quem pergunta não tem credenci-
ais para fazê-lo, pois disso só adviriam discussões inúteis e estéreis, que a nada conduziriam.
Mesmo diante das autoridades, aprendemos que o homem não deve “rebaixar-se” timoratamente. O
oposto da humanidade é o orgulho vazio, mas a altivez faz parte da dignidade do homem, não do or-
gulho. Devemos obediência e respeito à autoridade, mas não subserviência, servilismo, nem temor, se
estamos com a razão.
O comportamento de Jesus foi exemplar, neste caso, como em todos os momentos de Sua vida. Diante
da balbúrdia e dos falsos testemunhos, Sua tônica foi o silêncio impenetrável. Daí a admiração que
essa atitude causou a Pilatos, pois verificou nesse réu o equilíbrio emocional perfeito e serenidade
inalterável, de quem possuía a certeza de estar com a razão. Pilatos, homem dúbio e inconsistente em
suas opiniões, além de fraco, deve ter ficado chocado ao assistir o descontrole irado dos acusadores,

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C. TORRES PASTORINO

em confronto com a calma majestosa do réu. E sentiu-se mais fortalecido para declarar que aquele
Homem não tinha culpa.
Ainda o instigou, para ver se observava alguma alteração: “Nada respondes a essas acusações”?
Mas Jesus permaneceu impertérrito em Sua mudez.
Não deve ter escapado à argúcia do governador o esclarecimento pedido por Jesus, ao ser interroga-
do se “era rei dos judeus”. Apesar da resposta irônica e algo crua, de que não era judeu - o que re-
velava certo desprezo pela “raça inferior” que estava a governar - atende ao esclarecimento solicita-
do: “os teus te entregaram a mim”. E quando Jesus, após a distinção feita, responde que “seu reino
não era humano nem terreno, mas espiritual”, ou seja, um reino da Verdade, atina, provavelmente,
com a intenção do réu. E insiste na idéia: então confessas indiretamente que és rei, mesmo que teu
reino não se constitua de domínio político.
A declaração de que “veio a este mundo” - deixando claro e indiscutível que existia consciente antes
do nascimento e reencarnara em missão específica - não deve ter causado estranheza a Pilatos, pois
os romanos aceitavam a reencarnação como fato natural e indiscutível. Só causa admiração que tex-
tos, como esse, não sejam aproveitados pelos espíritas e outros espiritualistas como argumento irres-
pondível em favor da reencarnação ... Pois se o próprio Jesus declara que VEIO a este mundo, isso
significa, sem sombra de dúvida, que Seu Espírito existia antes do nascimento e que, saindo do local
em que Se encontrava, veio para este planeta e aqui nasceu.
Aprendemos, ainda, a responder às autoridades dizendo a verdade, declarando o que realmente se
passa, mesmo que, por antecipação, saibamos que não seremos compreendidos. Jesus sabia que Pi-
latos não poderia atingir a altitude espiritual da resposta, mas nem por isso deixou de declarar a Ver-
dade de modo total: trata-se da sinceridade que deve nortear nossas respostas, quando os que nos
interrogam tem autoridade legítima para fazê-lo; trata-se de não mentir e não enganar, de ser sempre
honestos, não apenas em relação a nós, como aqueles que merecem nossa consideração.
Evidentemente Jesus se expressou em grego, (pois Pilatos não falava aramaico) confirmando o conhe-
cimento que tinha desse idioma, no qual devia expressar-se normalmente.
E quanto ao “reino”, claro que se refere ao plano espiritual, domínio exercido sobre os espíritos,
pouco importando o que acontecia aos corpos físicos. O atendimento aos enfermos, para curá-los, era
sempre esporádico, mas ensina-nos a não abandonar esse campo, quando se apresentar a ocasião,
mesmo que ele não constitua nossa tarefa específica: trata-se de um meio para que, através dele, se
atinja a finalidade maior, se não a única, que é o CONHECIMENTO DA VERDADE.
Não podemos deixar passar em silêncio uma consideração a respeito do título de “rei”, atribuído a
Jesus, com sentido pejorativo pelos judeus, sem compreendê-lo, por Pilatos, e com todo o conheci-
mento de causa por Jesus. Sua declaração de que “Seu reino não é deste mundo”, constitui confirma-
ção tácita de que É REI, embora o reino Dele não pertença à vibração pesada do plano material dos
corpos físicos. Jesus o afirmou categoricamente. Resta-nos descobrir de onde era esse “reino”.
Muitos acreditam que dele era o “reino dos céus”, no sentido atribuído por certas seitas, que falam
num “céu” cheio de anjinhos, de “santos”, que nada fazem além de tocar harpas e cantar loas à gló-
ria do Senhor. Para que vir estabelecer na Terra um reino que só seria conseguido depois da morte do
corpo físico? Para que nos preparássemos para ele? Não seria muito mais lógico e conveniente dedu-
zir que Ele veio para estabelecer NA TERRA um reino que não era DA TERRA, mas deveria desenvol-
ver-se aqui mesmo neste planeta?
Por tudo o que sabemos a respeito das Escolas Iniciáticas, esse era exatamente o sentido atribuído a
essa frase: Jesus era o REI de um reino ESPIRITUAL, mas que está estabelecido NA TERRA, existin-
do entre as criaturas terrenas encarnadas. E sabemos de fonte certa (vol. 5) que o título de REX
(“rei”) era atribuído ao Hierofante das Escolas, quando atingiam o sexto grau iniciático. O último
passo, que Ele estava para dar, fá-lo-ia atingir o grau máximo, a DEIFICAÇÃO, pela indestrutível
unificação com a Divindade.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

De fato, pois, Rei era Ele, em Sua Escola Iniciática Assembléia do Caminho, pois estava subindo os
últimos degraus da sétima escala iniciática, só percorrida pelos adeptos que já houvessem galgado os
sete degraus das seis escalas anteriores. Atingido esse ponto culminante, seria considerado “O Ungi-
do” (Christo), personificando a Divindade que ungira e permeara Sua criatura.
Havia, pois, toda razão em aceitar o título tacitamente, embora não Lhe conviesse dizê-lo abertamente
ao mundo e a quem não poderia compreender o sentido. Mas, diante da autoridade legitimamente
constituída, não poderia mentir: aceitou a afirmativa como tendo sido feita de fora: “és tu que está.,
dizendo isso”.

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C. TORRES PASTORINO

ENVIO A HERODES
Luc. 23:6-12
6. Ouvindo (isto), porém, Pilatos perguntou se o homem era galileu.
7. E quando soube que era da jurisdição de Herodes, enviou-o a Herodes, que estava
nesses dias em Jerusalém.
8. E vendo Jesus. Herodes alegrou-se muito, porque havia muito tempo queria vê-lo,
pelo que ouvira a seu respeito, e esperava ver algum sinal feito por ele.
9. Interrogou-o, pois, em numerosas questões; mas ele nada respondeu.
10. Ali estavam os principais sacerdotes e os escribas acusando-o intensamente.
11. Desprezando-o, pois, Herodes com seus soldados, e zombando, cobrindo-o com um
manto alvo, o reenviou a Pilatos.
12. Tornaram-se amigos entre si Herodes e Pilatos naquele dia, pois antes eram inimigos
um do outro.

Texto privativo de Lucas que, ao que parece, tinha maiores informações a respeito de Herodes, con-
forme verificamos em outros passos (cfr. Luc. 9:7-9 e 13:31). Supõem alguns comentadores que suas
informações tenham sido colhidas por intermédio de Joana, a esposa de Cusa, que era intendente de
Herodes, pois apenas Lucas a cita em seu Evangelho como uma das acompanhantes de Jesus (cfr. Luc.
8:3 e 24:10).
A menção à Galiléia, que lemos no capítulo anterior, ofereceu ensejo a Pilatos de tentar desembaraçar-
se daquele caso espinhoso que lhe incomodava a consciência, já que via tratar-se de um homem que
era vítima da inveja, e não de um criminoso.
Sabendo, pois, que era galileu, envia-o a Herodes, tetrarca da Galiléia, e que se achava em Jerusalém
para a festa da páscoa.
Jesus é então levado ao palácio de Herodes Antipas, que se mostra satisfeito ao ver o ato de deferência
do governador romano e, sobretudo, por poder ter contato com Jesus. Lucas afirma tratar-se de curio-
sidade: ver um sinal, algo de diferente do comum. Não escondeu sua alegria e fez numerosas perguntas
(en lógois ikanoís). Herodes não era considerado como merecedor de consideração, e Jesus já o cha-
mara de “raposa” (Luc. 13:32).
Vimos que Jesus respondeu com altivez, mas com respeito, ao Sumo Sacerdote (autoridade religiosa
legítima) e a Pilatos (autoridade civil legítima). Mas não deu a menor importância aos que, sem autori-
dade, queriam impor-se e aparecer: diante destes, permaneceu silencioso. Esse silencio exasperou-os,
pois não apenas foram frustrados quanto ao desejo de mostrar-se a Ele superiores e de ao de, por curio-
sidade vã, assistir a fenômenos fora da craveira normal.
Deram vazão, portanto, a seus sentimentos de despeito, procurando ridiculizá-lo, revestindo-o de uma
sobrecapa branco-brilhante (esthêta lamprán) que Flávio Josefo (Bell. Jud. 2.1.1) diz ser a vestimenta
de gala, na investidura dos príncipes, usando a expressão esthêta leukên. E assim vestido, o restituiu a
Pilatos, sem nada ter conseguido.
A inimizade de que fala Lucas, entre Pilatos e Herodes, nascera por ocasião do massacre que o gover-
nador ordenara ser feita aos galileus que provocaram tumulto em Jerusalém (cfr. Luc. 13:1).

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Vimos que Lucas tem sempre mais informações, e aqui descobrimos o pormenor do envio do réu a
Herodes.
Na vida dos espiritualistas, sobretudo dos que se elevam alguns pontos acima da mediocridade gene-
ralizada, encontramos frequentemente cenas semelhantes. Isso aparece principalmente na vida dos
médiuns.
Quando alguém “descobre” um medianeiro que o impressione, e pelo qual sinta admiração, não vê a
hora de mandá-lo a um amigo, para que este também “veja” o formidável que é sua descoberta; mais.
comum ainda é ver-se o “descobridor” colocar o médium “debaixo do braço” e correr com ele todos
os lugares a que tenha acesso, para que seu pupilo faça ou diga maravilhas, a fim de afastar a vaida-
de de seu novo dono. E infelizmente existem muitos médiuns que se prestam de boamente a esse papel
de saltimbancos da espiritualidade, pretendendo manejar seus guias como marionetas, a fim de que
ele e seu “protetor” não “fiquem mal”. Organizam-se verdadeiras funções teatralizadas, para as
quais se convidam com insistência os curiosos, não importa se crentes ou descrentes, se propensos a
acreditar ou apenas cépticos para zombar. E o pobre médium, em geral sem experiência, sobretudo no
início de sua carreira, a tudo se presta humilde e serviçal.
Mas, depois de certo tempo sente o vazio dessas sessões e então apresentam-se dois caminhos diante
dele:
a) ou sucumbe à vaidade dos aplausos fáceis e dos endeusamentos que afagam, e continua a exibir-
se, perdendo aos poucos seus dons ou atraindo para seus trabalhos espíritos levianos;
b) ou verifica que essas exibições são improdutivas (quando não contraproducentes) e vai recusando
delicadamente até afastar-se de todo.
No primeiro caso, torna-se joguete influenciável nas mãos incautas dos interesseiros, até que se vê
abandonado, quando cessa a curiosidade da novidade.
No segundo caso, os elementos que gostariam de continuar a explorá-lo, se afastam, dizendo que “ele
se tornou vaidoso e cheio de si”, quando não afirmam categoricamente que “está obsidiado”, e por
isso não mais os atende; no entanto, embora sob zombarias e doestos, o médium soube escolher o ca-
minho certo, e portanto progredirá.
Esse foi o exemplo de Jesus: diante da curiosidade de Herodes, quando podia deslumbrá-lo com pou-
cos gestos e nenhum trabalho, prefere ver-se humilhado pelos sarcasmos, mas não cede. A dignidade
do silêncio é Sua resposta a tudo, mesmo que, com essa maneira de agir, irrite as autoridades e con-
firme as acusações: “Ele se diz o enviado, mas nenhum poder tem: são invenções do povo ignorante e
crédulo”.
Lição preciosa, bem aplicável a nossos dias: não devemos ceder à tentação de utilizar os poderes psí-
quicos nem os espirituais com a finalidade de agradar a quem quer que seja, nem tampouco para de-
fender-nos de acusações, quando desafiados a fazê-lo, por mais que nosso silêncio e nossa recusa
acarretem acusações e descrenças: “Felizes os que creram sem ver” (João, 20:29). São estes os que
interessam, porque realmente estão no caminho.

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C. TORRES PASTORINO

2.º INTERROGATÓRIO
Luc. 23:13-16
13. Convocando, então Pilatos os principais sacerdotes e as autoridades e o povo,
14. disse-lhes: Conduzistes-me este homem como desviando o povo, e eis que examinan-
do-o diante de vós, eu nenhuma culpa encontrei neste homem, das que o acusais.
15. Nem mesmo Herodes, pois o reenviou a nós. E eis que nada digno de morte foi feito
por ele.
16. Castigando-o, então, o soltarei.

Também este segundo interrogatório é privativo de Lucas.


Com a devolução que Herodes lhe fez do acusado, sem que o tenha condenado, mais se firma a con-
vicção de Pilatos de que Jesus é inocente. Torna a chamar, pois, os acusadores e reitera sua primitiva
sentença favorável ao réu. Nenhuma das acusações adquiriu foros de veracidade, nem diante dele nem
diante de Herodes, que o devolveu sem fazer carga acusatória.
A solução dada por Pilatos revela sua preocupação de agradar às autoridades Judaicas, propondo que
irá mandá-lo “castigar” (paideúsas, termo derivado de pais, paidós, “menino”): trata-se da flagelação,
que talvez Pilatos ache merecida, pelo menos por causa da imprudência no agir, contrariando as auto-
ridades de seu povo e ocupando-lhe o tempo. E termina dizendo que, depois de castigá-lo, mandará
soltá-lo, pois não há crime nele.

Aqui observamos que a autoridade civil reconhece a inocência do réu, mas apesar disso resolve atri-
buir-lhe uma pena, embora menor que a solicitada. A injustiça é flagrante, clama aos céus. Não obs-
tante a vítima não reclama: aceita-a como clara manifestação de uma ordem de coisas superior e, sem
protexto, acata a decisão da autoridade.
O exemplo estimula-nos a calar e aceitar, mesmo nos casos menores, quando somos envolvidos. Não
temos capacidade para julgar o que precisamos sofrer, o que merecemos ou não merecemos. Se uma
autoridade decide, mesmo de modo que nos pareça injusto, que devemos suportar um castigo, acei-
temo-lo submissos e silenciosos, para não nos opormos à vontade superior.
Nesse caso, a conformação humilde é a única posição que podemos e devemos ter. Pode ser que inti-
mamente sintamos a dor da injustiça. Mas em nenhuma hipótese podemos sentir revolta, nem mesmo
no fundo do coração.
Não se trata, pois, apenas de calar o protesto, mas precisamente de não sentir sequer laivos de rebeli-
ão. A aceitação tem que ser total, absoluta, íntima, compreensiva, com aquela frase sincera: “Faça-se
a tua, não a minha vontade (Luc. 22:42).

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SABEDORIA DO EVANGELHO

3.º INTERROGATÓRIO

Mat. 27:15-23 Mar. 15:6-14

15. Ora, em cada festa costumava o governador soltar 6. Em cada festa soltava-lhes um preso
o preso que o povo queria. que pedissem.
16. Tinham então prisioneiro um famoso chamado 7. Havia o chamado Barabas, algemado
(JESUS) Barabas. com os sediciosos, os quais no motim
cometeram um homicídio.
17. Congregados eles, pois, disse-lhes Pilatos: Quem
quereis que vos solte? (JESUS) Barabas ou Jesus, o 8. E, levantando-se, o povo começou a
denominado Cristo? pedir, como lhes fazia.
18. Pois sabia que por inveja o haviam entregado. 9. Pilatos respondeu-lhes dizendo:
Quereis que vos solte o rei dos Ju-
19. Estando ele sentado no tribunal, enviou-lhe sua
deus?
mulher dizendo: Nada (haja) entre ti e esse justo,
pois muitas coisas experimentei hoje em sonho por 10. Porque sabia que por inveja o havi-
causa à dele. am entregado os principais sacerdo-
tes.
20. Mas os principais sacerdotes e os anciãos persua-
diram ao povo que pedisse Barabas e perdesse 11. Contudo os principais sacerdotes
Jesus. agitaram o povo para que lhes sol-
tasse antes Barabas.
21. Respondendo, pois, o governador disse-lhes: Qual
dos dois quereis que vos solte? Eles disseram: Ba- 12. Mas Pilatos respondendo de novo,
rabas. disse-lhes: Que farei então do que
chamais rei dos judeus?
22. Disse-lhe Pilatos: Que farei então de Jesus, chama-
do o ungido? Disseram todos: Crucifica! 13. Eles de novo clamaram: Crucifica-o!
23. Ele então falou: Mas que mal fez? Mas eles grita- 14. Então Pilatos disse-lhes: Mas que
ram mais alto: Crucificai! mal fez e1e? Eles gritaram mais:
Crucifica-o!

Luc. 23:18-23
João 18:38b-40

18. Mas gritaram todos juntos: Tira esse, e solta-nos


Barabas. 38. b E dizendo isso, saiu de novo para
os judeus e disse-lhes: Eu não encon-
19. O qual, por causa de uma sedição que houvera na
tro nenhuma culpa nele.
cidade, e homicídio, fora lançado ao cárcere.
39. Há um costume vosso, que eu vos
20. De novo Pilatos, querendo soltar Jesus, grilou-lhes,
solte um, na páscoa. Quereis, então,
21. mas eles gritavam mais: crucifica-o, crucifica-o! que vos solte o rei dos judeus?
22. Pela terceira vez disse-lhes: Que mal, pois, fez 40. Gritaram, então, de novo, dizendo:
este? Nenhuma causa de morte encontro nele; cas- Não este, mas Barabas. Barabas era
tigando-o, portanto, o soltarei. salteador.
23. Mas eles instavam com grandes gritos, pedindo
que fosse crucificado, e prevaleciam os gritos deles.

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C. TORRES PASTORINO

Vers. 17 (Lucas)
Antes de começarmos o comentário geral, anotemos que, em alguns códices de Lucas, de menor im-
portância, aparece um versículo 17: “Era costume libertar para eles um preso em cada festa”. Nos papi-
ros e nos melhores códices falta, tornando clara uma interpolação, trazida de palavras semelhantes dos
outros evangelistas. Como comprovação, a crítica interna nos fornece a conjunção dé no versículo 18,
que o liga ao 16. Caso houvesse um vers. 17 entre eles, o versículo 18 deveria ter gár ou oún.
* * *

BAR ABBAS
O nome significa simplesmente “filho do pai”, sendo de muito frequente emprego àquela época.
Mas a questão maior é que alguns códices (theta, 1, 118, 209, 241, 299) e as versões siríacas (palesti-
nense e sinaítica) e armênia, e o escritor sacro Anastácio, registram como nome do criminoso “JESUS
BARABBAS”.
Há uma hipótese, levantada por Orígenes latino, que afirma: in multis exemplaribus non continetur
quod Barabbas etiam Jesus dicebatur, et forte recte, ut ne nomen Jesus conveniat alicui iniquorum; et
puto quod in haeresibus tale aliquid super additum est, ut habeant aliqua convenientia dicere fabulis
suis de similitudine Jesu et Barabbae, ou seja: “em muitos exemplares não se contém que Barabas
também seja chamado Jesus e, talvez, com razão, para que o nome de Jesus não se aplique a um cele-
rado; e julgo que entre os hereges esse nome foi acrescentado, para que tenham, por alguma conveni-
ência, o que , dizer em suas fábulas, acerca da semelhança de Jesus e Barabas”.
Alguns comentadores anotam que falta um paralelismo perfeito, o que comprovaria a hipótese do
acréscimo “criminoso”. Argumentam que, se figurasse no original, deveria aparecer a palavra legóme-
nos: “Jesus chamado Barabas e Jesus chamado o ungido”; não simplesmente seguidos os dois nomes:
“Jesus Barabas e Jesus chamado o ungido”.
Não obstante, muito mais fácil, óbvio e compreensível é que se tenha omitido, na maioria das cópias, o
nome “Jesus”, exatamente pelo respeito que se devota a esse nome santo. Donde a argumentação de
Orígenes constituir a revelação do contrário do que afirma: é mais lógico que os cristãos tenham su-
primido o nome “Jesus” em relação a Barabas, do que terem tido os hereges acesso aos códices para
acrescentá-lo.

LIBERTAÇÃO DE PRESO
Temos notícia do hábito de fazer graça a um preso, em certas ocasiões segundo a vontade do povo.
Isso constituía um “costume”, que não constava de leis. Comprovação desse hábito encontramos em
Tito Lívio (5, 13) que diz que na festa das Lectisternia, vinctis quoque dempta in eos dies vincula, isto
é, “as cadeias também eram rompidas aos encarcerados naqueles dias”. Encontramos ainda, o papiro
61 (cfr. Girólamo Vitelli, “Papiri Greco-Egizi”) do primeiro século A.D., que registra as palavras de
Gaius Septimius Vegetus, prefeito do Egito, dirigidas a um tal Phibion: “mereceste ser flagelado, mas
perdôo-te, em atenção ao povo”. Daí a possibilidade de ocorrer o mesmo por ocasião da páscoa, em
Jerusalém, embora nada tenha dito Flávio Josefo a esse respeito talvez por lhe não interessar o registro
de algo que favorecesse aos romanos.
No caso de Jesus, isso teria constituído uma abolitio, ou suspensão de processo, pois a autoridade re-
conhecera oficialmente não ter encontrado nenhuma culpa no réu, e não uma indulgentia (“perdão”),
usada quando havia culpa, como ocorreu com Barabas. João o classifica apenas de “salteador”, en-
quanto, Lucas esclarece que estava na cadeia por ter feito uma sedição na cidade e ter cometido um
homicídio.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

O SONHO
Mateus registra que a esposa de Pilatos, que figura com o nome de Cláudia Prócula como “santa” no
hagiológio grego, mandou um emissário ao esposo enquanto este se encontrava sentado na cadeira de
juiz, solicitando-lhe que “não se envolvesse com aquele justo” ou, literalmente, que “nada houvesse
entre os dois” (mêdèn soì kaì tôi dikaiôi ekeínôi). E a razão foi dada: “muitas coisas experimentei em
sonho por causa dele” (pollà gàr épathon kat'ónar di’autón).
As traduções comuns interpretam páthein, aqui como alhures, por “sofrer”. Mas já vimos (vol. 4 e vol.
5) que páthein exprime realmente “experimentar”. Conta a tradição que Cláudia era admiradora de
Jesus, do qual conhecia os ensinamentos, embora, por sua posição, não pudesse segui-Lo abertamente.
Ora, que páthein não pode significar “sofrer”, bastará um raciocínio normal para entende-lo. Como
admitir que Jesus ou qualquer espírito que O acompanhasse, tivesse o sadismo de fazer a pobre criatu-
ra sofrer em sonhos, como que ameaçando-a caso o marido condenasse Jesus? Isso teria sido a negação
completa de toda a lógica, e nenhum espiritualista esclarecido conseguirá entender comportamento tão
estranho. Que ela tivesse tido “experiências” reveladoras da missão de Jesus, é plenamente aceitável.
Mas, há um ponto a observar. Que teria ela solicitado? Que Pilatos não condenasse Jesus? Não, abso-
lutamente. Foi pedido que não se envolvesse pessoalmente no caso, deixando que as determinações
divinas se desenrolassem como deviam. Fora previsto e predito que Jesus tinha que ser sacrificado, e
esse passo iniciático não podia ser evitado. Imaginemos que Pilatos, convicto de Sua inocência, bates-
se o pé e O libertasse! Estaria tudo arruinado. Então, qual teria sido o sentido real do pedido de Clau-
dia? A nosso ver, pediu ela que Pilatos não se envolvesse e, com sua autoridade, salvasse Jesus da
morte, pois esta constituía uma necessidade e o cumprimento do que estava escrito nas profecias a Seu
respeito.
E só havia um meio de ser isso conseguido: era que Pilatos, embora convicto da absoluta inocência de
Jesus, não se baseasse em sua autoridade de governador para salvá-Lo da morte, pois todo o drama
profetizado e indispensável ruiria por terra. Então, que “não se envolvesse com ele”, e deixasse que se
cumprissem as Escrituras. Que não O condenasse, que reconhecesse de público Sua inocência e incul-
pabilidade absolutas, mas não evitasse Seu destino, que parecia infamante aos olhos do público, mas
que seria gloriosa vitória sobre a morte.
Como bom romano, Pilatos devia acreditar em sonhos premonitórios, mesmo que no momento não se
lembrasse do conhecidíssimo sonho de Calpúrnía, esposa de Júlio César, que nos idos de março supli-
cara que ele não saísse de casa, pois sonhara que o vira coberto de sangue. E como conhecia o valor de
um aviso onírico, logo após ter recebido o aviso da esposa, declara que não vê culpa no acusado, e
após algumas tentativas mais, para tranquilizar sua consciência, lava as mãos, simbolicamente de-
monstrando sua não-interveniência naquela condenação, mas O entrega aos judeus. E o próprio Jesus
diz a Pilatos que ele comete um erro bem menor que o dos judeus que O entregaram, justificando-o e
quase absolvendo-o de culpa em Sua morte.
Só a interpretação que damos, apesar de totalmente nova e original, diferente de todas as que foram
dadas nestes últimos dois mil anos, consegue explicar o modo de agir de Pilatos, que com uma palavra
poderia ter libertado Jesus das mãos dos judeus sem que nada pudesse realmente temer por isso. E não
o fez exatamente - é o que transparece da narrativa - por causa do aviso que recebeu da esposa. Talvez,
em sonho, esta tivesse visto o grande benefício para Jesus e para toda a humanidade, se as coisas cor-
ressem segundo os planos preestabelecidos pelos Espíritos Superiores, com a aprovação do Pai.
O Concílio Vaticano II colocou o problema em seus devidos termos, quando escreveu (“Declaratio de
Ecclesiae Habitudine ad Religiones Non-Christianas”, 28-10-1965, n.º 4): Etsi auctoritates Judaeo-
rum cum asseclis mortem Christi urserunt (cfr. Jo. 19.8) tamen ea quae in passione Ejus perpetrata
sunt nec omnibus indistincte judaeis tune viventibus, nec judaeis hodiernis imputari possunt. Licet
autcm Ecclesia sit novus populus Dei, judaei tamen neque a Deo reprobati neque ut maledicti exhibe-
antur quasi hoc ex Sacris Litteris sequatur. ... Ceterum Christus, uti semper tenuit et tenet Ecclesia,
propter peccata omnium hominum voluntarie passionem Suam et mortem, immensa caritate obiit, ut
OMNES salutem consequantur, isto é: “Embora as autoridades dos judeus com seus sequazes tivessem

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C. TORRES PASTORINO

reclamado a morte de Cristo, não obstante o que se fez em Sua paixão não pode ser imputado indistin-
tamente nem a todos os judeus que viviam então, nem aos judeus de hoje. Ainda que a igreja seja o
novo povo de Deus, não se assinalem os judeus como reprovados nem malditos por Deus, como se isso
se deduzisse das Escrituras. ... De resto, Cristo, como sempre sustentou e sustenta a igreja, enfrentou
voluntariamente, por amor imenso. Sua paixão e morte, por causa dos pecados de TODOS os “ho-
mens”.

FLAGELAÇÃO
Segundo lemos em Flávia Josefo (Bell. Jud. 2, 14, 9 e 5, 11, 1) todos os condenados à crucificação
eram flagelados diante do tribunal, prô toú bêmatos. E tanto esse castigo, quanto a crucificação só
podiam ser infligidos a escravos ou pessoas não-romanas, segundo as leis Porcia (195 AC) e Sempro-
nia (123 AC), jamais a cidadãos romanos (cfr. At. 22:25).
O flagelo (flagellum) era um chicote com tiras (flagrum) munidas de pontas de osso (scorpiones) ou
com pequenas bolas de chumbo (plumbata) que deixavam sobre a pele do paciente sulcos sangrentos e
dolorosos.

OCORRÊNCIAS
Depois de esclarecidos esses pontos, podemos estudar como ocorreram os fatos neste terceiro interro-
gatório.
Pilatos estava convicto da inocência do réu e tudo fazia para salvá-Lo, pois SABIA que O estavam
entregando por ciúme (ou inveja, ou despeito). E teve uma idéia que lhe deve ter parecido genial: lem-
brava-se das aclamações que o povo fizera a Jesus, ainda no domingo precedente, e julgou que o povo
se achava constrangido diante da pressão do clero; e supôs que, diante do Governador, se manifestaria
livremente.
Deve, pois, ter tido íntima alegria ao pensar na derrota fragorosa daquele clero antipático e hipócrita,
quando o povo procurasse libertar da prepotência clerical, aquela vítima injustiçada e perseguida jus-
tamente por causa dos benefícios que prestava ao povo.
Aproveitando-se do costume implantado, põe esse benfeitor dos pobres em confronto com um saltea-
dor e assassino vulgar, e pergunta qual dos dois devem libertar Para ele era certo que o povo preferiria
Jesus. Mas ignorava que ali não estava o povo bom de Jerusalém, mas a malta reunida e dominada pelo
clero, seus empregados e servos.
E os sacerdotes ali presentes, fanatizados como todos os dessa classe, cheios de ódio e despeito, come-
çaram a gritar quais energúmenos, pedindo a libertação de Barrabás.
A essa altura já recebera o aviso de Cláudia, sua esposa, e começava a perceber as coisas, embora tal-
vez não atinasse bem com sua razão de ser. Os sacerdotes “berravam” (ékrazon, Mat, e ekraúgesen,
João), e Pilatos teve que também gritar para ser ouvido: “E que farei com Jesus, o ungido”? E ouviu
horrorizado o grito e viu os gestos descompostos daquelas “autoridades” e do povo que as imitava,
fazendo eco: “Crucifica-O! Crucifica-O!”
Pilatos resolveu mandar executar a primeira parte do rito sacrificial, mandando flagelar o prisioneiro.

Os tempos mudaram! De que nos podemos queixar, hoje, quanto ao combate que nos move o clero de
qualquer religião, diante do que foi feito a nosso Mestre? Hoje o combate é até suave e inócuo, pois
quase não nos atinge fisicamente, a não ser em ambientes muito atrasados em civilização e cultura.
Vivemos num mar de rosas, e a liberdade que desfrutamos é imensa. Se em alguns países ainda são
encarcerados os pregadores da verdadeira doutrina do Cristo, isso constitui exceção vergonhosa no
século atual, e tende a desaparecer aos poucos, à proporção que essas nações se civilizam.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

No entanto, o exemplo que nos deixou Jesus é consolador: “Não é o discípulo mais que o Mestre, nem
o servo mais que seu Senhor; se perseguiram vosso Senhor e Mestre, muito mais o farão a vós (Mat.
10:24, Luc. 6:40) e ainda: “Felizes sois quando vos injuriarem, vos perseguirem e, mentindo, disse-
rem todo o mal contra vós por minha causa” (Mat. 5:11). Quem neste planeta vive cercado de aplau-
sos da maioria, não é nem pode ser discípulo do Cristo: Este será o eterno incompreendido, o louco, o
perseguido. Vivendo de modo diferente da massa, mas mergulhado nela, sofre-lhe os impactos de re-
jeição, como todo elemento estranho que penetra no corpo humano. As células o expulsam e matam
(fazem-no necrosar-se), negando-lhe alimentos, até que o vejam eliminado como intruso indesejável.
Na humanidade de hoje, aquele que vive o Cristo é igualmente expurgado, pois a tônica de sua sinto-
nia difere de modo absoluto da nota emitida pela grande maioria.
Segundo os evangelistas, Pilatos compreende que a raiva contra Jesus é produto de ciúme ou, talvez
melhor, do despeito. Na realidade, esse é o sentimento predominante que, não apenas a massa, mas
sobretudo os “profissionais da religião” nutrem, contra os seguidores fiéis do Cristo. Estes revelam,
no exemplo de sua vida, um teor de espiritualização que jamais aqueles atingem, preocupados que
estão com o predomínio social e político, com o progresso financeiro, com o bem-estar pessoal, com o
número e a subserviência de seus seguidores. Então, qualquer pessoa que revele atitude crística se
torna, pelo próprio comportamento, viva condenação daquilo que eles pregam, mas não praticam.
Embora afirmem o contrário, preferem a convivência com criminosos que lhes não façam sombra:
Barrabás é ótimo, Jesus atrapalha. Porque Barrabás os faz parecer aos olhos da massa, quando esta
estabelece confrontos, seres superiores e perfeitos. Sejam soltos os Barrabás, mas morram aqueles
que se querem identificar com Jesus! Só assim a vida lhes será tranquila e sem atropelos, subindo
eles, cada vez mais, no conceito popular.
Nesse ímpeto, não titubeiam em tomar as atitudes mais inoportunas, pois tudo “é para a maior glória
de Deus”! E se o próprio Jesus se arriscasse a regressar hoje à Terra, naquela Sua mesma posição de
operário carpinteiro, dizendo o que disse, pregando o que pregou, fazendo o que fez, as igrejas que
“se dizem” cristãs O perseguiriam outra vez implacavelmente como impostor e blasfemo, pois “se fez
Filho de Deus”! Ora quem!? Um operário sem títulos acadêmicos, que não pertence ao clero organi-
zado e oficial! Que petulância, que presunção! CRUCIFICA-O!
E são os fatos que o provam, Gandhi, O maior cristão do século XX, embora não tivesse pertencido a
qualquer igreja cristã, vivia os ensinos do Cristo. Mas não foi recebido em Roma, em 1931, pelo papa
Pio XI, somente porque não quis vestir uma casaca de gala: alegou que não na tinha e recusou-se a
alugá-la por ter voto de pobreza, não podendo despender dinheiro com vaidades. O “representante”
de Jesus na Terra não o recebeu, e não teria recebido o próprio Jesus, se ali chegasse com Sua humil-
de indumentária de carpinteiro: Jesus teria que vestir uma casaca para ser recebido por Seu repre-
sentante! Cristãos! Mas não seguidores e menos ainda discípulos do Cristo. No entanto, desde que se
apresentem em casaca, são recebidos com sorrisos os grandes criminosos, esses que são tão grandes
que escapam a qualquer condenação terrena; os assassinos que não sujam suas mãos com o sangue
de uma vítima, mas ordenam massacres de milhões de cristãos nas guerras de ambição e ganância; os
fabricantes de armas mortíferas; os financiadores de conflitos sangrentos; enfim, todos os “Barra-
bás” modernos, salteadores e assassinos, porque esses não fazem sombra. Gandhi, com sua grandeza
espiritual, seu voto REAL de pobreza e sua humildade, teria sido uma bofetada com luva de pelica na
face do representante de Jesus, a nadar em ouro e púrpura, quando o Mestre “não tinha uma pedra
onde repousar a cabeça.. (Mat. 8:20, Luc. 9:58).
Não aprendemos as lições do Mestre, apesar de ouvi-las há dois mil anos: buscamos riquezas, menti-
mos para escapar ao sofrimento e depois, cinicamente, nos dizemos cristãos!

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C. TORRES PASTORINO

REI ESCARNECIDO

Mat. 27:27-30 Marc. 15:16-19 João 19:1-3

27. Então os soldados do go- 16. Os soldados conduziram-no 1. Então Pilatos tomou Jesus e
vernador, conduzindo para dentro do átrio, que é (mandou) flagelar.
Jesus ao Pretório, reuniram o Pretório, e reuniram toda 2. E os soldados, entrelaçando
em torno dele toda a corte a corte. uma coroa de acácia, puse-
28. e, despindo-o, envolveram- 17. E o vestem de púrpura e, ram (-na) na cabeça dele e
no com uma capa escarlate, tecendo(-a), lhe põem uma revestiram(-no) com um
coroa de acácia. manto de púrpura,
29. e entrelaçando uma coroa
de acácia, puseram(-na) na 18. E começaram a saudá-lo: 3. e chegavam-se a ele e dizi-
cabeça dele e um caniço na Salve, rei dos judeus! am: Salve, o rei dos judeus!
(mão) direita e, ajoelhando- 19. E batiam na cabeça dele e davam-lhe bofetadas.
se diante dele zombavam, com um caniço e cuspiam
dizendo: Salve, rei dos ju- nele e, dobrando os joelhos,
deus! o adoravam.
30. E cuspindo nele, apanha-
ra;” o caniço e batiam na
cabeça dele.

Ordenada a flagelação, foi o réu conduzido a um pátio interior, ficando entregue à soldadesca rude e
grosseira. Tratava-se de soldados romanos, que alimentavam desprezo pelos judeus, para eles “raça
inferior de bárbaros”; e quando podiam por as mãos numa vítima, davam vazão a seus baixos instintos
de sadismo. Com Jesus, deviam estar sendo flagelados os dois ladrões que com Ele foram crucificados,
pois, como vimos, era um prelúdio inevitável. Os evangelistas não falam no assunto porque a flagela-
ção era em local reservado, não sendo assistida pelo público.
Não vemos esclarecido se a lei mosaica foi obedecida: esta ordenava que a flagelação tivesse o máxi-
mo de quarenta chicotadas nas costas nuas do condenado. Por segurança, o Talmud ordenava que só
fossem dadas trinta e nove, por segurança de alguma falha na contagem. Mas a. lei romana não esta-
belecia limite de golpes. De qualquer forma, jamais batiam de modo a enfraquecer demais o réu, a fim
de que pudesse ainda reservar energias para a crucificação.
Após a flagelação, logo que cansados, passaram às zombarias. Ele se dissera “rei dos judeus”. Pois
como tal o tratariam. Apanharam uma de suas capas vermelhas e puseram-Lha sobre os ombros; outro
teve a idéia de apanhar um caniço para colocá-lo na mão direita, à guisa de cetro; um terceiro correu
para fora colheu um ramo de acácia, entrelaçando-o à maneira de coroa, aplicando-a à cabeça: estava
Jesus ridiculamente paramentado como um rei de circo.
Desfilaram, então, diante Dele, genufletindo e saudando-O como costumavam ouvir que se fazia “o
imperador: “Ave, Caesar Auguste”!, e eles diziam: “Salve, o rei dos judeus”! Depois, alguém teve a
idéia de tomar-lhe o caniço das mãos e com ele bater-lhe na cabeça, fazendo que os acúleos penetras-
sem no couro cabeludo e na fronte. Outros ainda, com mais baixos instintos, cuspiam-Lhe no rosto.
Cena deprimente, reveladora do sadismo de gente bruta.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

A coroa é dita, no original, de ákanta, que é o nome comum da Mimosa Nilótica. Sobre essa planta,
escreveu Teofrasto (História Plantarum): “O ákanto (ou acácia do Egito) tem esse nome porque é todo
coberto de espinhos (akantôdês) exceto no tronco; as próprias folhas são espinhosas”. A madeira é leve
e durável, tanto que se presta para a confecção de móveis. Em hebraico é denominada sittáh (plural
sittim), em latim, setim. Foi com a acácia que Moisés recebeu ordem de construir o Tabernáculo (Êx.
25:10 e 37:1); os varais (Êx. 25:13); a mesa da proposição (Êx. 25:23) e seus varais (Êx. 25:28); as
diversas peças do Tabernáculo (Êx. 26:15) e suas travessas (Êx. 26:26) o altar dos holocaustos (Êx.
27:1) e seus varais (Êx. 27:6).

Figura “AMEAÇAS” – Desenho de Bida, gravura de Hédouin

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C. TORRES PASTORINO

A tradução comum “coroa de espinhos” é expressão vaga. De fato, ákanta em grego significa também
“espinho”, mas é o nome de uma árvore. Dizer “coroa de espinhos” dá a impressão de que a coroa ti-
vesse sido construída apenas com espinhos, quando na realidade, foi tecida com os ramos de uma árvo-
re espinhosa. E essa árvore, abundantíssima na região, era precisamente a acácia, que, por ser muito
espinhosa (akantôdês) era denominada popularmente de ákanta.

Mesmo nos momentos mais cruciais e dolorosos da Vida dos Mestres, sempre existe o simbolismo com
suas lições proveitosas para toda a humanidade.
Vimos que Jesus não negara, antes até, indiretamente confirmara que era “rei”, embora seu “reino
não fosse deste mundo”; tampouco, por conseguinte, seria um reino particular, com autoridade ape-
nas sobre determinada nação, mesmo que se tratasse do “povo escolhido”.
Todavia, não tendo negado o adjunto “dos 'judeus”, até mesmo escrito sobre o madeiro da cruz, dei-
xou-nos o Mestre a porta aberta para interpretar que, naquela romagem terrena. Ele estabelecera que
“de fato e de direito” sua autoridade se baseava nas Escolas Iniciáticas de Judaísmo (cfr. “a salva-
ção vem dos judeus”, João 4:22). A universalização viria posteriormente, depois que os “empregados
da vinha” tivessem expulsado os enviados do Rei e tivessem assassinado seu filho (cfr. Mat. 21:33-
43), quando então, a vinda seria entregue a outros agricultores.
Então, “de fato e de direito”, rei era Ele, porque atingira esse grau e, dentro de horas, subiria a Seu
trono em forma de cruz, de cima da qual poderia estender Seu olhar percuciente por sobre toda a hu-
manidade. E como as autoridades e os “grandes”, cheios de empáfia, O não queriam aceitar, os hu-
mildes O reconheceriam e os desequilibrados, por causa da própria ignorância, embora com sarcas-
mo, Lhe atribuíram o título. E assim, de vez que Sua autoridade inconteste não foi reconhecida, com
seriedade pelos doutos, eis que a ralé social o fez a título de zombaria.
E simbolicamente, como “varão das dores que experimentara as fraquezas” (Is. 53:3), Ele se consti-
tuiu Rei dos sofredores e dos mendigos, isto é, de todos os que, tendo ingressado na Senda, renuncia-
ram a seu eu vaidoso, tomaram sua cruz e O seguiram, nada possuindo, embora cercados de tudo,
esquecidos de si mesmos para sacrificialmente ajudarem aos outros.
O manto escarlate ou púrpura, característica dos soldados, ou seja, dos homens que empreendem a
guerra sem tréguas a seu eu personalístico, e o símbolo do plano atrasado da humanidade terrestre,
que envolveu o puríssimo Espírito de Jesus com sua carne “opositora” (satânica).
Em Sua mão, o caniço (cfr. Mat. 12:20 não quebrara o caniço rachado”, também em Isaías 42:3),
símbolo da autoridade. E na cabeça a coroa de acácia, símbolo da soberania.
Já vimos, no primeiro comentário, a parte científica relativa à acácia, ou “mimosa nilótica”. Resta-
nos ver o simbolismo que essa planta representa desde a remota antiguidade, e que ainda hoje con-
serva vivíssimo na Ordem Maçônica.
São quatro os principais significados atribuídos à acácia:
1.º - incorruptibilidade, em vista de sua madeira não ser atacada por nenhuma espécie de insetos e,
além disso, de não apodrecer com a umidade, nem mesmo quando diuturnamente mergulhada na
água. Alguns autores dizem que, por isso, foram encerrados os membros de Osíris num caixão de acá-
cia, lançado, depois, nas águas do Nilo.
2.º - imortalidade, deduzida de sua durabilidade excepcional, muito além de outras madeiras comuns.
Segundo Tiele (Histoire des Antiques Religions”, Paris, 1882), em certas procissões, quatro sacerdo-
tes egípcios levavam uma arca, donde saía um ramo de acácia, com a inscrição: “Osiris ressuscitou”.
Com efeito, também no episódio de Hiram, como no de Osíris, como no de Jesus, a acácia exprime
que a morte não é a destruição total, mas simplesmente uma renovação e uma metamorfose. Daí seu
terceiro significado:
3.º - iniciação, pois a imortalidade é o apanágio dos adeptos e iniciados. Assim. no Antigo Testamen-
to, eram feitos de acácia a Arca da Aliança, o Altar dos Holocaustos, a Mesa dos Pães da Proposição,

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SABEDORIA DO EVANGELHO

etc. Talvez baseado nisso, F. Chapuis (“L 'Acacia”, in “bulletin des Ateliers Supérieurs”, 1398, após
citar o “Recueil Précieux de la Maçonnerie Adonhiramique”, Paris, 1787), citado por Jules Boucher
(“La Symbolique Maçonnique”, Dervy, Paris, 1953, pág. 271) tenha afirmado que também a cruz de
Jesus era de acácia. Mas a razão e o bom senso repelem essa hipótese: nenhuma cruz especial foi
confeccionada para receber Jesus que, como réu comum, foi pendurado nas cruzes já existentes. Ora,
a madeira, utilizada era o pinho. De acácia, porém, era com certeza - pelo testemunho dos evangelis-
tas - a coroa. Quando os iniciados se levantavam (“ressurgiam”) do “caixão” ou “barco” de Osíris,
feito de acácia, proferiam a conhecida frase: “Estive no túmulo, triunfei da morte, ingressei na vida
permanente”, que era a vida espiritual do “'homem novo” (cfr. vol. 6).
4.º - inocência, por três motivos:
a) porque, em virtude dos espinhos, representa aqueles que se não deixam tocar por mãos impuras,
repelindo os ataques dos inimigos mal intencionados;
b) porque, sendo da família “mimosa” (como a nossa “sensitiva”), fecha as folhas ao ser tocada;
c) e finalmente porque seu nome específico, em grego (“akakía) exprime a ausência de maldade ou
malícia (“a+kakía”), apresentando, essa palavra, em grego, o duplo sentido de “inocência” (cfr.
Demostenes, 59,81; Aristóteles, Rhetorica, 1389 b 9; Job (LXX), 2:3) e de acácia (cfr. Dioscóri-
des, “De Materia Medica”, 1, 101 e Aretaeus, CD, 2 (Chroniôn Nousôn Therapeutikón).

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C. TORRES PASTORINO

ESFORÇO PARA SALVAR


João 19:4-15
4. E saiu de novo Pilatos ao pórtico e lhes disse: Eis que vo-lo trago, para que saibais
que nenhuma culpa acho nele.
5. Saiu então Jesus ao pórtico, trazendo a coroa de acácia e o manto de púrpura. E dis-
se-lhes: Eis o homem!
6. Então, quando o viram, os principais sacerdotes e os oficiais gritaram: Crucifica!
Crucifica! Disse-lhes Pilatos: Tomai-o vós e crucificai-o, porque eu não acho culpa
nele.
7. Responderam-lhes os judeus: Nós temos uma lei, e segundo a lei deve morrer, porque
se fez a si mesmo Filho de Deus.
8. Quando então ouviu essa palavra, Pilatos temeu.
9. E entrou no Pretório de novo e disse a Jesus: Donde és tu? Mas Jesus nenhuma res-
posta lhe deu.
10. Disse-lhe então Pilatos: Não me falas? Não sabes que tenho poder para te soltar e po-
der para te crucificar?
11. Respondeu-lhe Jesus: “Não terias nenhum poder sobre mim, se não te fosse dado pelo
Alto; por isso, quem me entregou a ti tem maior erro”.
12. Depois disso. Pilatos procurava liberá-lo; mas os judeus gritavam, dizendo: Se o liber-
tas, não és amigo de César: todo aquele que se faz rei, contradiz a César!
13. Então Pilatos, ouvindo essas palavras, conduziu para fora Jesus e sentou-se no tribu-
nal, no lugar chamado Litóstrotos, em hebraico Gábbatha.
14. Era a Parasceve da páscoa, era a hora quase sexta. E disse aos judeus: Eis vosso rei!
15. Estes então gritaram: Tira, tira, crucifica-o! Disse-lhes Pilatos: Crucificarei vosso rei?
Responderam os principais sacerdotes: Não temos rei senão César.

Pilatos continua afirmando convictamente que não encontra culpa no réu a ele apresentado. Essas
afirmativas são veementes e reiteradas (cinco vezes em João, 18:32 e 38 e 19:4, 6 e 12; quatro vezes
em Lucas, 23:4, 14, 20 e 22; Mateus só cita duas, 27:23 e 24 e Marcos, uma, 15:14); ao todo, lemos,
nos quatro Evangelhos, DOZE declarações de inocência, proferidas pela autoridade civil em favor do
acusado.
Neste capítulo, privativo de João, encontramos o episódio conhecido com o título de “Eis o Homem”
(Ecce Homo) tão frequentemente reproduzido pelos artistas plásticos. Pilatos quer libertá-Lo, mas o
clero insiste em que seja crucificado. O governador romano resolve colocá-Lo nas mãos do clero. con-
sentindo que eles mesmo O crucifiquem, não obstante não ser a crucificação a pena de morte da lei
judaica.
Teria sido, como dizem alguns, covardia de Pilatos, para evitar ser acusado perante o Imperador? De
nosso lado vemos, antes, tremendo conflito interno: Pilatos O vê inocente, e SABE que o réu nada fez.
No entanto, recebe aviso da esposa, que não se envolva e deixe que as coisas sigam seu caminho pre-
determinado: era ceder diante das exigências descabidas de gente invejosa e despeitada. Que fazer?

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Com a solércia própria das autoridades clericais de todas as religiões organizadas de todos os tempos,
os sacerdotes lançam mais um argumento teológico: “Tem que morrer, porque se fez Filho de Deus:
esta é nossa lei”. Realmente encontramos essa afirmativa de Jesus nos sinópticos (cfr. Mat. 26:63-66;
Marc. 14:61-64: Luc. 22:67-71) e em João (5:18 e 10:33-36). A lei referida pelos sacerdotes está em
Lev. 24:16, mas não fala específica, e sim genericamente: “Aquele que blasfemar o nome de YHWH
certamente será morto: toda a congregação o apedreiará (não se fala em crucificação!). Será morto
tanto o estrangeiro como o nativo (de Israel) quando blasfemar o nome”. Ora, dizer-se “Filho de
YHWH” era considerado blasfêmia.
Pilatos comove-se e se amedronta com esse argumento, pois, como bom romano, conhecia a teologia
de sua religião (aquilo que os cristãos chamam depreciativamente “mitologia”) e sabia que os Grandes
Espíritos (a que eles denominavam “deuses”) podiam unir-se sexualmente às mulheres “humanas”,
tendo filhos terrenos - teoria que alguns evangelistas aproveitaram, afirmando (Mat. 1:20 e Luc. 1:32)
exatamente isso, que Maria engravidou de um deus (o Espírito Santo), de forma a ser interpretado as-
sim segundo a letra.
Pilatos assustou-se, porque sentiu que podia estar diante de um desses espécimes sobre-humanos. En-
tra, pois, novamente no Pretório, e solicita que o réu esclareça “DONDE É”, se de pais terrenos ou se
foi gerado por um deus. Mas Jesus silencia, porque não pretende revelar a um profano os arcanos ini-
ciáticos.
O governador aborrece-se com esse silencio e, plenamente dentro de sua tônica vibratória terráquea,
lança a ameaça que, para as personagens, é decisivo: “Tendo poder (exousía) para soltar-te e para cru-
cificar-te”. O princípio do Direito Romano estabelecia precisamente isso: Nemo qui condemnare po-
test, absolvere non potest (Ulpiano, Digesto, 1,17,37), isto é, “quem pode condenar, pode absolver”.
Aproveitando a frase, Jesus muda de assunto e dá uma lição extensível a todas as autoridades, ensinan-
do-nos a respeitar todo e qualquer poder legitimamente constituído pois, qualquer que seja ele, é sem-
pre concedido pelo Alto, e seus atos, por mais que humanamente pareçam injustos, recebem a inspira-
ção e a chancela de Quem o concedeu ou lhe permitiu o manuseio das rédeas governamentais.
Daí a conclusão óbvia: o clero judaico - pelo menos suas principais figuras que O entregaram para ser
supliciado – “tem maior erro” que Pilatos, pois deliberadamente iniciou o processo de condenação.
Esta, embora predita pelos profetas, poderia ter sido resolvida de modo menos cruel, sem que se per-
dessem seus efeitos espirituais. Mas a cegueira e o sadismo fanático do clero, como em geral ocorre –
e que se repetiu à saciedade e com requintes ainda mais sádicos durante a “santa” inquisição - não
permitiram nenhum abrandamento, quanto mais o perdão reiteradamente sugerido e quase exigido pela
autoridade civil romana.
A hesitação diante daquela luta de consciência faz pender a balança para o lado do perdão. As palavras
do réu, judiciosas e serenas, apesar de estar ali preso, e a justificação que trouxeram a Pilatos, reconhe-
cendo-o menos culpado em Sua condenação que o clero fanático, evidenciaram Seu equilíbrio perfeito.
E o governador resolve fazer os últimos esforços e enfrenta os sacerdotes judeus dispostos a forçar que
prevaleçam seu ponto de vista.
Mas a argúcia clerical é tremenda e quase invencível, porque se trata de uma classe que não tem escrú-
pulos, já que aceita a liceidade da máxima; “os fins justificam os meios”; o “fim” era livrar-se de
Jesus; qualquer “meio”, por mais mentiroso e falso, podia ser empregado. E eles o utilizam, ameaçan-
do o governador (que sabia bem com quem estava lidando!): “Se o libertas, não és amigo de César”.
O título de “Amigo de César” era quase oficial, como podemos deduzir de diversas fontes: nas inscri-
ções de Thyatira (C.I.G. 3499, 4); em Flávio Josefo (Ant. Jud. 14, 8, 1), em Epicteto (3.4.2 e 4.18); e
também encontramos documentação do contrário, “Não ser amigo de César”; Suetônio, (Tibério, 58):
judicia majestatis atrocissime exercuit “(castigou atrozmente os crimes de lesa-majestade”) e Tácito
(Annales, 3, 38): majestatis crimen omnium accusationum complementum (“o crime de lesa-majestade
era complemento de todas as acusações”). E Pilatos já sofrera por isso, conforme lemos extensamente
narrado em Philon (“A Embaixada a Gaio”, 38:299 a 305).

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C. TORRES PASTORINO

Diante de todas essas pressões políticas, Pilatos resolve sentar-se no Tribunal, erguido no lugar que
João chama Litóstrotos (“calçado de pedras”), acompanhado de Jesus, e apresenta-o aos sacerdotes:
“Eis vosso rei”!
Mas a gritaria continuava ininterrupta e esganiçada: Crucifica-o! Intrigado, pergunta Pilatos: “Crucifi-
carei vosso rei”?
E o clero judaico, que jamais aceitara o domínio dos romanos, - porque dizia que seu único rei era
YHWH - esse mesmo clero cínico e fanático sai com uma afirmativa esdrúxula: “nosso único rei é
César”!
Até que ponto chega a baixeza humana, quando o fanatismo irracional domina as inteligências!

Aqui assistimos ao desenrolar de um dos dramas mais vergonhosos da humanidade, desses que levam
as criaturas equilibradas a envergonhar-se de pertencer ao gênero humano.
Mas tudo se torna compreensível, quando lemos a anotação de João: “Era a parasceve da páscoa, era
a hora quase Sexta”.
Nessas pequenas frases coordenadas assindéticas, encontramos a chave que explica o episódio, ilumi-
nando-o com a revelação do segredo iniciático do que se passava realmente. Não obstante ser inter-
pretado por todos como simples informação cronológica, essas duas frases, para quem conhece os
rituais cabalísticos das iniciações espirituais, são de clareza meridiana.
“Parasceve da Páscoa” interpreta-se como “preparação da páscoa”, ou seja, a véspera do sábado
em que se comemorava a páscoa, comendo ritualisticamente o Cordeiro Pascal. Mas, por que traduzir
“parasceve” e não traduzir “páscoa”? Se dermos atenção ao significado da palavra, sem que haja
influência de calendários eclesiásticos, vemos que “páscoa” significa, sem qualquer dúvida, PASSA-
GEM. Temos, então: “Era a preparação para a passagem”. Que passagem? De um plano vibratório a
outro. Todas as vezes em que subimos uma escada, há um átimo de tempo, entre o firmar o pé no de-
grau superior e levantar o outro do degrau inferior, em que o equilíbrio se torna instável: é o exemplo
do que sucede ao passar-se de um plano espiritual inferior a um plano espiritual superior, o que é
chamado exatamente INICIAÇÃO, porque o candidato INICIA sua vida em outro plano. Daí o engano
em que laboram tantos milhares de criaturas, quando julgam que “iniciação” é uma série de ritos
físicos ou materiais, de caminhadas, de tantas outras ações “simbólicas”, no plano físico, do que se
realiza no espiritual. Mas, se não houver a REALIZAÇÃO espiritual, torna-se vazio qualquer simbo-
lismo físico.
No plano espiritual, qualquer subida produz o mesmo impacto na criatura; e se esta for inepta a subir,
desequilibra-se e volta ao degrau inferior: mas se for apta, supera e vence o impacto e se firma no
degrau superior: venceu! dominou a “morte”, que se deu realmente no plano inferior, para renascer
vitorioso (ou “ressuscitar”) no plano superior. E de que consta esse “impacto”? Exatamente é tradu-
zido em sofrimentos morais e também, por vezes, em dores materiais, de origem muitas vezes insus-
peitada, e de consequências frequentemente não percebidas pela “consciência atual” da personagem
encarnada.
As autoridades legitimamente constituídas, com poderes concedidos pelo Alto, tentam, por vezes, evi-
tar ou minorar essas angústias (e o termo é precisamente esse: “angústia”, pois se trata de uma pas-
sagem ou “páscoa” estreita: “estreita é a porta e apertada a estrada que conduz à vida”, Mat. 7:13).
Mas aqueles que usurpam os poderes por conta própria, agem a serviço do pólo negativo, embora
autorizados pelas forças positivas do Bem, e procuram aumentar os sofrimentos. Estabelece-se então
a luta entre as duas facções, entre as quais permanece, vítima impoluta mas impotente, o candidato à
ascensão.
Estávamos, pois, na “preparação da passagem”, que se daria com a vítima pregada no madeiro da
cruz (encarnado na matéria), na qualidade - neste caso particular - de um rei-sacerdote, que passaria
ao grau de Rei-Sumo-Sacerdote (Hebr. 5:20). E essa passagem é preparada com todas as minúcias,

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para que nada falte às provas. Que - mister é reconhecê-lo - foram galhardamente vencidas pelo can-
didato ao Sumo-Sacerdócio.
Não menos significativa a anotação: “era quase a hora sexta”, que, na interpretação profana, se diz
ser “quase o meio-dia”. Mas o sentido espiritual é bem mais profundo: estávamos quase na penúltima
etapa. Interessante observar que a anotação seguinte não fala em “hora sétima”, finalização normal
das iniciações menores, e sim na “hora nona”, pois NOVE é o número típico do final da iniciação
maior, quando o candidato dá seu último passo na matéria.
Depois dessas considerações, podemos ainda meditar a respeito das duas apresentações que ao réu
faz o governador ao povo e ao clero.
Na primeira diz: EIS O HOMEM, e na segunda: EIS VOSSO REI.
A expressão HOMEM é típica da criatura que atingiu sua categoria máxima, “o estado de Homem
perfeito” (Ef. 4:32), mas ainda como tal é visto: ferido e maltratado em sua condição externa de per-
sonagem, vítima dos ódios humanos. Mas a expressão VOSSO REI já o mostra sob outro aspecto, na
condição interna da individualidade, que atingiu também o mais alto posto iniciático.
Dessa forma, temos o reconhecimento “oficial” dos dois aspectos do ser humano: a personagem (o
Homem) e a individualidade (o Rei), ambos como tendo atingido seu ápice.
Portanto, no passo iniciático prestes a ser dado, encontramos o ser completo, constituída essa unida-
de global pelo “humano” e pelo “divino” existentes em cada criatura encarnada.
E de acordo com o simbolismo iniciático mais rígido, Pilatos vai agir no “lugar chamado Litóstrotos
em grego e gábbatha em hebraico”, ambas as palavras exprimindo “pedra”, ou seja, compreensão
literal dos ensinos: só daí e só assim têm capacidade de falar os profanos, para quem o corpo consti-
tui o único ser “real”:
Diante da magnitude atingida pela criatura, a massa popular, dirigida pelo clero, pede que seja ela
retirada do meio deles, quais toupeiras que solicitassem que o sol se ocultasse diante de seus olhos
acostumados às trevas subterrâneas, em sua vivência do submundo. As expressões: “tira, tira”! ex-
primem exatamente esse desejo veemente de que seja retirado do ambiente humano aquele que, por ter
elevado sua sintonia interna, “desafina” com a tônica da humanidade, e não pode permanecer entre
os retardatários da caminhada evolutiva. São esses elementos superiores considerados “anormais”,
pois fogem da “aurea mediócritas” e constituem uma condenação viva do modo de agir comum: ego-
ísmo, cobiça, competição, preguiça, ódios, intemperança, maldades. dureza de coração, desvario em
tudo.
Induzida pelo clamor público, pela voz interna e até pelo aviso de sua esposa após a experiência oní-
rica, autoridade civil, ameaçada e amedrontada, cede diante da desordem e prefere deixar que se co-
meta a injustiça, a envolver-se em dificuldades terrivelmente prejudiciais à sua carreira política e
social. A contragosto embora, entrega o réu à voracidade canibalesca do clero, sem saber bem o que
se passava, sem ter conhecimento do papel que desempenhava em todo esse desenrolar de aconteci-
mentos desagradáveis e cruéis.
Prefere amordaçar sua consciência a ver-se amordaçado pela desgraça de perder a amizade de seu
protetor terreno, chefe supremo político de todo o mundo conhecido então, autoridade máxima e in-
contestável das personagens do mundo ocidental “civilizado”.
Outra passagem merecedora de meditação é a que afirma ter Jesus dito que “era Filho de Deus”. De
plena veracidade a frase. Pilatos não se arrisca a tratar desse assunto perante o público. Sabe da im-
portância real que isso pode implicar. Então, após haver declarado a inocência da personagem diante
do povo, retira-se com o réu a um local reservado, para que mais uma vez possa ter o privilégio de
entreter-se com Ele. E vai direto ao assunto. Não indaga da filiação terrena; antes, admitindo como
certa sua origem extraterrena, emprega palavras perfeitamente adequadas à circunstância: “Donde
ÉS tu” (póthen eí sy;). O verbo “vir” (eltheín) suporta uma cidade terrena, um local físico. Assim

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também o verbo “nascer (gígnomai) indagaria da filiação de pais humanos. Mas “ser” (eimi) supõe
tecnicamente uma origem diferente: “Donde ÉS tu, da Terra ou do Alto, és humano ou divino”?
Teria sido a indagação de Pilatos uma ânsia de conhecimento, ou simples curiosidade mórbida, insu-
flada pela vaidade de estar lidando com um ser superior? Pelo silêncio de Jesus, temos a impressão
de a segunda hipótese ser a mais viável: não interessada “dar pérolas a porcos nem coisas santas a
cães” (Mat. 7:6). Mesmo porque, se declarada fora sua proveniência verdadeira extraterrena, talvez
Pilatos fincasse pé e soltasse Jesus, quando era mister que seguisse até o fim seu caminho. Ou, quiçá,
desse ao governador a crença da realidade, com a esperança de vê-Lo escapar ao sacrifício, e depois,
diante das ocorrências, sua decepção o inabilitasse para futuros passos evolutivos.
Silêncio, pois, preservando o segredo. Mesmo porque não teria sido possível uma explicação satisfa-
tória para compreensão total da Verdade: Seu corpo nascera normalmente na Terra, Sua personagem
era terrestre, embora Seu Espírito, Sua Individualidade, proviessem de regiões distantes vibratoria-
mente, de planetas incomparavelmente superiores ao nosso pequeno e atrasado elétron do sistema
solar.
Digno de nota, ainda, para meditação, a assertiva: “Quem me entregou a ti, tem maior erro”. Evi-
dente que se trata do clero judaico, que O entregou a Pilatos. Mas ... não se tratava de antiquíssima
predeterminação de fatos indispensáveis, não apenas à evolução de Jesus, como à evolução da Huma-
nidade? Então, todos os atores desse divino drama sagrado estavam, logicamente, justificados em
suas atitudes. Como, pois, falar em “erros” maiores ou menores?
Esse é oportuno esclarecimento em torno da responsabilidade cármica de cada criatura. Ainda quan-
do se age “a serviço” e por determinação expressa das Forças Superiores, no sentido de reajustar
diretrizes e “cobrar” dívidas cármicas, ainda assim o agente está sujeito às penalidades legais (da
“Lei maior”), pois sua ação é produto de uma distorção de sua mentalização normal, e é essa distor-
ção mental que provocará o resultado doloroso de seu ato. Tanta assim que, se vencer a prova, adqui-
rirá “merecimento”: sua ação está sempre, em última análise, sujeita ao “livre-arbítrio”.
Procuremos traduzir mais simples e didaticamente este asserto, mediante um exemplo.
Uma criatura precisa, para sua evolução espiritual, de um sofrimento que se traduza em intensa per-
seguição psicológica de adversários, e que deverá ser superada pela paciência e pelo silêncio que
perdoa e beneficia, sem que o serviço jamais seja abandonado, nem mesmo sequer diminuído ou
afrouxado. A seu lado, em sua vida, é colocada uma criatura que, por atavismo, tenha contra a vítima
queixas do passado ou até da presente vida, por deficiências emocionais. O despeito cresce com o
perpassar dos dias, e a atuação contrária psicológica vai macerando e desbastando as resistências da
vítima que, nada obstante, a tudo resiste impávido e prossegue em sua tarefa. Inegável que o perse-
guidor está agindo “a serviço das Forças Superiores. Mas sua atuação é efeito de defeitos inatos e de
distorções mentais, que poderiam ser esclarecidas e modificadas, diante da atitude superior e amoro-
sa da vítima. Isso porém não ocorre, por cegueira do perseguidor, que não admite ele não pode com-
preender.
Ora, os resultados “dolorosos” que esse perseguidor sofrerá por seus atos (por seus “erros”, diga-
mos), serão consequência inevitável não tanto de suas ações (permitidas pelas Forças Superiores),
mas sim de sua personagem defeituosa e ainda cega. E esta necessitará passar inevitavelmente pelos
corretivos posteriores (“castigos” ou ainda “carmas negativos”) a fim de reajustar-se com a Lei e
poder evoluir, modificando sua mente (metánoia) a fim de “pensar certo” e sobretudo de “libertar-se
dos erros” (áphesin tôn hamartiôn).
Nesse sentido podemos admitir vulgar e profanamente a palavra “erros” maiores ou menores, mesmo
quando alguém age de acordo com as determinações das Forças do Bem e em cumprimento a tarefas
especificamente necessárias para evolução da vítima.
Pergunta-se: e se a criatura, colocada ao lado da vítima, seduzida pela bondade desta, modificar seu
comportamento e passar até a ajudá-la? Duas hipóteses poderão ocorrer: ou a Lei providenciará a
chegada de outra pessoa que termine o trabalho, ou a própria “conquista” e transformação espiritual

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do perseguidor constituirão prova de ter a vítima alcançado o grau evolutivo esperado e, além disso,
o mérito de haver contribuído para a evolução desse ser.

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PILATOS LAVA AS MÃOS

Mat. 27:24-26 Mar. 15:15 Luc. 23:24-25

24. Mas vendo Pilatos que 15. Mas Pilatos, querendo sa- 24. E Pilatos decidiu fosse feito
nada consegue, antes surgia tisfazer ao povo, soltou-lhes o pedido deles.
um tumulto, tomando água Barabas, e entregou Jesus, 25. Soltou-lhes, pois, o que pe-
lavou as mãos diante do flagelado, para que fosse diam, o que por causa da
povo, dizendo: Sou impune crucificado. sedição e do homicídio, fora
do sangue deste; vede vós. lançado na prisão, mas en-
25. E respondendo todo o povo tregou Jesus à vontade de-
disse: O sangue dele caia les.
sobre nós e sobre nossos
filhos.
26. Então soltou-lhes Barabas
e, tendo flagelado Jesus, en-
tregou(-o) para que fosse
crucificado.

O episódio de “lavar as mãos” era quase universal à época, tal como ainda hoje essa expressão, para
significar que nada temos com algum fato.
Entre os judeus, lemos no Deuteronômio (21:6-7): “Todos os anciãos dessa cidade, que sejam mais
próximos ao morto, lavarão as mãos sobre a novilha cujo pescoço foi quebrado no vale, e dirão: Nos-
sas mãos não derramaram esse sangue, nem nossos olhos o viram”.
Entre os gregos, lemos em Sófocles (Ajax, 654-656):
All’ eími pròs te loutrà kaì paraktíous
leimônas, hôs àn lymath’agnísas emá
mênin bareian exalyxômai theás,
ou seja, “mas vou às abluções, aos campos que margeiam o rio, para purificar minhas imundícies e
escapar à dura cólera da deusa”.
Também em Heródoto (1,35): es tàs sárdis anêr symphorêi echómenos kaì ou katharòs cheíras, isto é,
“chegou a Sárdis um homem. vítima de uma desgraça e com as mãos impuras e pediu que fosse purifi-
cado”.
Entre os romanos, encontramos Vergílio (En. 2,719): donec me flumine vivo abluero, que se traduz
“até que me lave no rio corrente”.
Apolônio de Rodes (4,693ss) também apresenta um trecho que confirma a tese, além de outros, cujas
obras não tivemos oportunidade de compulsar.
De qualquer modo, juntando as palavras ao fato, Pilatos se declara “impune” do sangue do réu, ou seja,
não merecedor de qualquer castigo, deixando tudo nas mãos dos judeus: “vede vós”!
E os sacerdotes aceitam o desafio, com uma frase que não é, em absoluto, uma imprecação, mas o as-
sumir da responsabilidade total: “Seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos”.

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Realmente Pilatos cometeu “erro menor”, apesar de haver, depois dessa cena patética, entregue Jesus
“às mãos (sujas de sangue e impuras) do clero judeu. Mas não havia outro recurso: qualquer passo em
falso, arruinaria o andamento normal do drama previsto com antecedência espantosa de séculos.

Figura “ECCE HOMO” – Desenho de Bida, gravura de W. Haussolier


A água sempre representou elemento de capital importância em qualquer rito iniciático, como símbolo
de purificação. Para isso era mister água corrente (flumine vivo), donde as representações plásticas
de um soldado a verter água sobre as mãos de Pilatos.
Aqui, o candidato à iniciação não necessita de purificar-se, pois é reconhecidamente inocente de
qualquer imperfeição. E se o governador romano pretende, com a ablução ritualística das mãos, ino-
centar-se do sangue da vítima, manifestou, sem percebê-lo, outra faceta do ato, pois fez compreender

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que, naquele gesto seu, estava implícita a interpretação alegórica do drama, na entrega da vítima, aos
verdadeiros verdugos: a personagem humana de Jesus representava alegoricamente a vítima, que
outrora era sacrificada sobre o altar do holocausto, o “Cordeiro de Deus”.
Não mais se tratava de um ser humano que fosse considerado, em julgamento normal, culpado ou ino-
cente, mas simplesmente de uma alegoria dos antigos sacrifícios, em que a vítima era sempre inocen-
te, e morria sacrificada sem qualquer espécie de julgamento, a isso levada pelo único motivo de um
rito propiciatório imposto pelas autoridades religiosas.
Mateus é o único a narrar esse episódio altamente significativo, quiçá para demonstrar ao povo ju-
daico o alcance terrível de seu gesto e a responsabilidade que sobre ele pesava no cômputo geral da
condenação de Jesus. E sua lembrança em fixar a cena e as palavras, serviu para nossa observação
dos acontecimentos históricos posteriores em relação ao povo israelita, embora tivesse influenciado,
outrossim, uma espécie de “justificação” esdrúxula das perseguições que os católicos romanos infli-
giram, durante séculos, aos judeus, sobretudo e mais acirradamente, na época da Inquisição.
Em vista da teimosia obcecada e das ameaças do clero judaico, dos gritos histéricos, do fanatismo
descontrolado, e da advertência de sua esposa após o aviso onírico, Pilatos sente-se impotente, apesar
de toda a sua autoridade, para libertar o acusado inocente. Mas segue à letra a recomendação da
esposa: não O condena, não “se envolve” com aquele justo (e ele sabia que o era), limitando-se a
retrair-se e a retirar-se da cena, levando as mãos.
Talvez por isso Tertuliano (Apologetica, 21, 21) tenha escrito: Ea omnia super Christo Pilatus, et ipse
jam pro sua conscientia Christianus, Caesari tunc Tiberio nuntiavit, ou seja, “Todas essas coisas sobre
o Cristo, Pilatos, também ele mesmo já Cristão em sua consciência, relatou a Tibério, então impera-
dor”.
Mas, conforme prometera, solta Barabas e entrega Jesus à sanha sádica dos sacerdotes, para que seja
crucificado.
Dessa maneira é que a Individualidade (Jesus) vai conduzir sua personagem a suportar o impacto do
holocausto sangrento, a fim de conquistar mais um passo na Senda evolutiva. E a personagem que
assim se submete, humilde e conformada, voluntária e ardente de amor, vai com isso merecer a imor-
talidade, após vencer a morte com denodo e coragem insuperáveis.
Os evangelistas não falam na sentença, mas essa, para ter força legal, devia ser escrita, não tendo
valor jurídico qualquer sentença verbal. A prova de que foi realmente escrita aparece mais adiante
(João, 19:22), quando Pilatos, ao responder a uma reclamação do clero, afirma que não retirará “o
que escreveu”.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

SIMÃO, O CIRENEU

Mat. 27:31-32 Luc. 23:26-32

31. E quando o escarneceram, despiram-lhe a 26. E como o levassem, tendo pegado certo Si-
capa e vestiram-no com sua veste e leva- mão cireneu que vinha do campo, impuse-
ram-no para ser crucificado. ram-lhe a cruz dele, para que a levasse por
trás de Jesus.
32. Tendo saído, encontraram um homem cire-
neu, de nome Simão, a quem obrigaram a 27. Seguia-o grande multidão de povo e mulhe-
tomar a cruz dele. res, que choravam e lamentavam.
28. Voltando-se para elas, Jesus disse: “Filhas
Marc. 15:20-21 de Jerusalém, não choreis sobre mim, antes
chorai sobre vós mesmas e sobre vossos fi-
lhos,
20. E quando o escarneceram, despiram-lhe a 29. porque eis que virão dias em que dirão:
púrpura e o vestiram com sua veste, e o le- Felizes as estéreis e os ventres que não gera-
vam para fora para que o crucifiquem. ram e os seios que não amamentaram.
21. E obrigam um passante, certo Simão cire- 30. Então começarão a dizer aos montes: cai
neu, que vinha do campo, pai de Alexandre sobre nós; e às colinas: escondei-nos;
e de Rufo, para que tomasse a cruz dele.
31. porque se fazem isto à madeira úmida, que
se não fará à seca?”
João, 19:16-17a 32. Eram também levados outros dois malfeito-
res com ele, para serem mortos.

16. Então o entregou a eles para que fosse cru-


cificado.
17. a Apanharam então Jesus. E carregando
sua cruz, saiu ...

Quando os sacerdotes judeus se certificaram de que Jesus estava entregue a eles, tiveram ímpetos de
alegria, lançaram ao ar gritos de vitória e levantaram um coro escarninho de impropérios e zombarias,
qual em geral ocorre quando uma pessoa de destaque perde sua posição e cai, antipatizada e malquista,
no desagrado do populacho.
Pelo costume romano, os condenados à crucificação seguiam nus até o lugar do suplício, pois a essa
altura os soldados já haviam distribuído entre si seus pertences. No entanto, Mateus e Marcos concor-
dam em afirmar que Jesus seguiu “com suas vestes”, segundo o hábito israelita de condenar a nudez,
embora não expliquem por que os soldados se comportaram dessa maneira.
O percurso do Pretório ao lugar da execução não era muito longo: de 500 a 600 metros. Todavia era
bem doloroso carregar aquele peso durante meio quilômetro, com os ombros já feridos. A própria ma-
deira era talhada a golpes de machado, irregular e cheia de arestas. No “Sudário de Turim” (cfr. Pierre
Barbet, “A Paixão de Cristo segundo o cirurgião”, Edições Loyola, S. Paulo, 1966) são vistos os coá-
gulos formados no ombro esquerdo, das escaras produzidas pelo peso da madeira, embora não se tra-
tasse da cruz inteira, mas apenas da trave superior.

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C. TORRES PASTORINO

Esse travessão, com 2,30 a 2,60 metros de comprimento, pesava em média 50 quilos. Como era arras-
tado pelo condenado, este suportava mais ou menos 30 a 40 quilos, o que não impedia, porém, que a
carne ficasse macerada nos ombros e omoplatas. Os termos latinos portare e bajulare e as palavras
gregas phérein e bastázein, no entanto, indicam mais “carregar” do que arrastar.

Figura “SIMÃO, O CIRINEU” – Desenho de Bida, gravura de Ed. Hédouin


Ao observarem a fraqueza do condenado, os soldados temeram que não resistisse. E, como conquista-
dores, gozavam do direito de requisitar qualquer pessoa para ajudá-los. Chamaram, então, um homem
que vinha do campo, talvez para o almoço e o repouso da sesta, e deram-lhe a incumbência de carregar
o travessão por trás (ópisthen) de Jesus; ou seja, não se tratava de segurar a ponta de trás do travessão
enquanto Jesus segurava a ponta da frente, mas de carregar sozinho, caminhando atrás de Jesus. Jerô-
nimo (Patrol. Lat. vol. 26 col. 209) escreveu: sed hoc intellegendum est, quod egrediens de Pretorio,
Jesus ipse portavit crucem suam; postea obvium habuerunt Simonem, cui portandam crucem impo-

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SABEDORIA DO EVANGELHO

suerint, isto é, “deve compreender-se que, ao sair do Pretório, o próprio Jesus tenha carregado sua
cruz; depois encontraram Simão, a quem impuseram a cruz para ser carregada”. Normalmente os con-
denados carregavam o patíbulo entre os sarcasmos da multidão (cfr. Plauto, Miles Gloriosus, 359;
Plutarco, De Sera num. vind., 9; Artemidoro Tarsense, Oneirocrit, 2,56).
Antes de impor a cruz a Jesus, tiraram a capa e provavelmente a coroa de acácia, pois os crucifixos, só
a partir do séc. XIII representam Jesus com a coroa.
Nada sabemos de positivo quanto à forma da cruz de Jesus, se era em T ou se a haste vertical superava
a trave horizontal. O mais provável era a forma em T. O argumento da “inscrição”, que leva alguns a
pensarem que possuía uma parte da haste acima da cabeça (crux immissa), não é suficiente a decidir a
respeito da forma da cruz, pois ao ser suspenso, o corpo arriava e ficava espaço suficiente na parte su-
perior para ser colocada a tabuleta.
A haste vertical permanecia fixa no local das execuções: era a stipes crucis (cfr. Cícero, Rabir. 11: in
Campo Martio ... crucem ad civium supplicium defigi et constitui jubes, “mandas levantar e plantar
uma cruz no Campo de Marte para o suplício dos cidadãos”). O travessão horizontal, chamado pati-
bulum, e em grego staurós ou skólops, era levado pelo condenado e colocado, depois que se pregava a
vítima, no côncavo da haste vertical, ou stipis furca, próprio para receber o patíbulum. A cruz inteira
era também denominada xylon dídymon, ou seja, “pau duplo”.
Apesar de suplício tipicamente romano, já era conhecida a crucificação entre os judeus, como lemos
em Josué (8:29): “suspendeu o rei deles no patíbulo até a tarde e o ocaso do sol. E Josué ordenou e
depuseram o cadáver dele da cruz”. A “invenção” desse suplício é atribuída aos persas.
Quanto a Simão, os três sinópticos coincidem nos dados: o nome Simão e a cidade de que era natural,
Cirene, no norte da África, para onde Ptolomeu Sóter (306-285 A.C.) atraíra mais de 100.000 judeus,
outorgando-lhes numerosos privilégios. Os judeus de Cirene formavam colônia tão importante, que
possuíam uma sinagoga própria em Jerusalém (cfr. Atos, 6:9) onde se reuniam os que de lá haviam
regressado à pátria e os que se achavam de passagem.
Marcos anota que Simão era o pai de Alexandre e de Rufo, que deviam ser bem conhecidos na comu-
nidade cristã de Roma, para quem foi escrito seu Evangelho, e também são citados por Paulo quando
escreve aos romanos (cfr. Rom. 16:13).
As palavras de Jesus dirigidas às mulheres “filhas de Jerusalém” são privativas de Lucas, que tem o
hábito de salientar o papel das mulheres na vida de Jesus (cfr. Luc. 1:39, 56; 2:36-38; 7:11-15 e 47-50;
8:1-3; 10:38-42). Essas mulheres não eram as galiléias, mas moravam em Jerusalém.
Diz o Talmud (b. Sanhedrim, 43 a) que as mulheres da sociedade preparavam o vinho com incenso (ou
mirra) e o levavam aos condenados. Jesus dirige-lhes palavras de bondade, relembrando sua previsão
da destruição de Jerusalém (cfr. Luc. 21:20-24). E repete as palavras de Oseas (10:8). A comparação
entre a madeira úmida e a seca (cfr. 1.ª Pe. 4:17-18) refere-se a facilidade com que queima a seca, en-
quanto a úmida arde com dificuldade.
Lucas também fala dos outros dois condenados que foram levados junto com Jesus, para que a escolta
fizesse de uma só vez as três execuções. Embora no Sanhedrim (6,4) esteja prescrito: “Não se execu-
tem dois homens no mesmo dia”, os romanos não possuíam em ruas leis nenhuma limitação, e quase
nunca realizavam uma só execução: as crucificações ascendiam, em alguns casos, a centenas.

Eis que prossegue o drama, a desenrolar-se paulatinamente.


O candidato tem que seguir para o altar do sacrifício. Durante o suplício da flagelação e o escárnio
que precederam ao holocausto, haviam recoberto a vítima com uma capa púrpura: era o momento da
catarse por meio da dor. Mas ao encaminhar-se para o ponto crucial da iniciação, a capa vermelha
lhe é retirada, sendo-lhe imposta a túnica branca com que viera vestido: é a cor típica do iniciando, a
candida vestis, que lhe dá o nome de candidato, manifestando a pureza de quem já superou a catarse e
está pronto para galgar sua exaltação. Inconscientemente, ou por sugestão mental do próprio Jesus,

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C. TORRES PASTORINO

os soldados lhe trocam as vestes, revestindo-o com a túnica branca inconsútil, isto é, sem costuras,
tecida de alto a baixo (cfr. João 19:23). E não devemos esquecer de que a vestimenta própria do
Sumo-Sacerdote era exatamente a túnica inconsútil (ho chitô árraphos), como nos revela Flavio Jose-
pho (Ant. Jud. 3, 7, 2).
Digno de meditação, ainda, o trabalho de Simão, o cireneu, que, por ser histórico, não perde seu si-
gnificado simbólico. Não competia ao iniciando o transporte do instrumento de tortura, pois era mis-
ter lhe fossem poupadas as forças, a fim de poder resistir melhor às hemorragias que seriam produzi-
das durante o suplício, e isso com vistas ao posterior refazimento rápido e perfeito dos tecidos epiteli-
ais e das energias vitais, quando o Espírito regressasse novamente e reassumisse o corpo físico, após
a visita ao hades, que durava 36 horas, ou seta, um dia e duas noites, abrangendo, na contagem da
época, três dias: sexta-feira, sábado e domingo. Para que no soerguimento (ressurreição) pudessem
ser aproveitadas ao máximo as forças físicas do iniciando, numa cerimônia iniciática sangrenta, in-
dispensável era poupar-lhe as energias.
Além disso, descobrimos outra lição prática: a da ajuda e do serviço, que qualquer ser humano deve
prestar a seu semelhante, sobretudo nos momentos de maior necessidade e angústia. Não nos é lícito
deixar que cada um suporte sozinho o peso de sua cruz, quando nos seja possível dar um auxílio efeti-
vo, ainda que isso seja pesado para nós, - como o foi a Simão o ter de carregar, por meio quilômetro,
a trave horizontal da cruz de Jesus.
Outro ensinamento: se podemos e devemos ajudar a carregar a cruz dos semelhantes, não nos cabe
ser crucificados em seu lugar: nem os Mestres podem substituir-se a seus discípulos, embora os auxi-
liem na caminhada, aliviando-os do peso excessivo que os esmagaria.
Dignas de nota as palavras de Jesus às mulheres “filhas de Jerusalém”, isto é, filiadas às religiões
personalísticas, que nada percebiam dos ritos iniciáticos. Por que lamentar a sorte de Jesus e de seu
corpo, se o que estava sofrendo serviria para sua elevação evolutiva, tornando-O Sumo-Sacerdote da
Ordem de Melquisedec (cfr. Hebr. 5:5-20)? Elas mesmas, sim, eram dignas de lamentação, bem como
seus filhos, em vista não apenas - como salientam os exegetas da próxima destruição de Jerusalém (40
anos depois), como sobretudo pelas reencarnações posteriores de todas elas, ainda tão atrasadas
evolutivamente e tão enoveladas nos meandros escuros do Anti-Sistema.
A citação das palavras de Oseas caracteriza o sofrimento que atingiria muitas vezes as raias do de-
sespero. E se a dor e os maus tratos eram insólitos e violentos em relação à madeira úmida, isto é, um
Homem permeado pelo Espírito divino, ungido (Christós) com o óleo sacerdotal, embebido com a
“água viva” da graça sublime em cada célula sua - o que não ocorreria à madeira seca daqueles em
que ainda não vibrava o Espírito (cfr. João, 7:39), aqueles que só conheciam a matéria densa de seus
corpos, julgando-os a única realidade de seus seres? Para estes, perder o corpo era perder tudo, era
acabar, era “finar-se”. Então, para eles, as dores e torturas constituíam o último ato de suas existên-
cias, pois quando seus espíritos passassem a viver no plano astral, nenhuma consciência mais teriam
de sua identidade, mas permaneceriam hebetados como que em estado de sonho. Só o contato com a
matéria densa lhes poderia reviver a consciência atual. O que explica o Grande número de espíritos
perturbados que frequentam as sessões espíritas, e o que nem sequer sabem quem são, nem se lem-
bram do que foram quando encarnados. Madeira seca, simples palha, sujeita ao “fogo inextinguível”
(cfr. Mat. 3:12 e Luc. 3:11) das múltiplas encarnações sucessivas e purificadoras, até que um dia che-
guem a tomar-se madeiras umidificadas e vivificadas pelo Espírito.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

A CRUCIFICAÇÃO

Mat. 27:33-38 Luc. 23:33-34

33. E chegando a um lugar denominado Gólgo- 33. E quando chegaram ao lugar chamado ca-
ta, que é chamado lugar da caveira, veira, aí o crucificaram e aos malfeitores,
um à direita e outro à esquerda.
34. deram-lhe de beber vinho misturado com
fel; e tendo provado, não quis beber. 34. e Jesus disse: Pai, perdoa-lhes, pois não sa-
bem o que fazem. E repartindo as vestes
35. Tendo-o crucificado, repartiram entre si
dele, lançaram sorte.
suas vestes, lançando sortes,
36. e sentados, o guardavam ali.
João, 19:17b-24
37. E puseram acima da cabeça dele a culpa
dele escrita: Este é Jesus, o rei dos judeus.
38. Então foram crucificados com ele dois sal- 17. b ... para o denominado Lugar da Caveira,
teadores, um à direita e outro à esquerda. que em hebraico se diz Gólgota,
18. onde o crucificaram, e com ele outros dois,
de cá e de lá, e Jesus no meio.
Marc. 15:22-28
19. Pilatos também escreveu um título e colo-
cou sobre a cruz; estava escrito: Jesus o Na-
22. E levam-no sobre o lugar Gó1gota, que é zoreu, o rei dos judeus.
interpretado lugar da caveira,
20. Muitos dos judeus então leram esse título,
23. e deram-lhe vinho com mirra, que não to- porque o lugar onde Jesus fora crucificado
mou. era próximo da cidade. E estava escrito em
24. E o crucificam e repartem entre si as vestes hebraico, romano e grego.
dele, lançando sorte sobre elas: quem toma- 21. Disseram, então, a Pilatos os principais sa-
ria o que. cerdotes dos Judeus: Não escrevas “o rei
25. Era a hora terceira quando o crucificaram, dos Judeus”, mas que “Ele disse: sou o rei
dos judeus”.
26. e estava sobre-escrito o título de sua culpa:
o rei dos judeus. 22. Respondeu Pilatos: O que escrevi, escrevi.

27. E com ele crucificaram dois salteadores, um 23. Os soldados, então, quando crucificaram
à direita, outro à esquerda dele, Jesus, tomaram as vestes dele e fizeram
quatro partes, uma para cada soldado, e a
28. e cumpriu-se a escritura que diz: e foi con- túnica. Mas a túnica era sem costura, tecida
tado entre os malfeitores. toda a partir de cima.
24. Disseram, então, uns aos outros: não a ras-
guemos, mas sorteemos, de quem será; para
que se cumprisse a escritura que dizia: re-
partiram entre si as minhas vestes e sobre
minha vestimenta lançaram sorte. E isso fi-
zeram, então, os soldados.

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C. TORRES PASTORINO

Vejamos alguns pormenores

GÓLGOTA
Significa literalmente “lugar do crânio”, em grego kraníon, em latim calva ou calvarium. O aramaico,
de fato, seria gólgoltha, e o hebraico gulgoleth, sempre com o sentido de crânio.
Orígenes (Patrol. Gr. vol. 13, col. 1777) seguido por Maimônides, diz que se tratava do local em que
fora enterrado o crânio de Adão. E nas cartas de Paula e Eustáquia a Marcela (Patrol. Lat. vol. 22, col.
485) está escrito: locus ... calvaria appellatur, scilicet quod ibi sit antiqui hominis calvaria cóndita, ut
secundus Adam, id est, sanguis Christi, de cruce stillans, primi Adam et jacentis protoplasti dilúeret,
ou seja: “o lugar se chama calvario, isto é porque aí está localizado o crânio do homem antigo, para
que o segundo Adão, isto é, o sangue de Cristo, gotejando da cruz, lavasse os pecados do primeiro
Adão e do primeiro homem caído” (isto é, Abel). Essa opinião foi aceita pelo pseudo-Atanásio (Patrol.
Gr. vol. 28, col. 208), por Ambrósio (Patr. Lat. vol. 15, col. 1832) por João Crisóstomo (Patr. Gr. vol.
59, col. 459) por Epifânio (Patr. Gr. vol. 41, col. 844) e outros, pois a sepultura de Adão era tradicio-
nalmente situada pelos Judeus no Hebron.
Entretanto Jerônimo (Patr. Lat. vol. 26, col. 209) põe as coisas em seu devido lugar: favorabilis inter-
pretatio et mulcens aurem populi, nec tamen vera ... Loca sunt in quibus truncantur capita damnato-
rum et calvariae, id est, decollatorum sumpsisse nomen, ou seja, “a interpretação é favorável e agradá-
vel ao ouvido do povo, mas não é verdadeira: são os lugares em que se cortam as cabeças dos conde-
nados, e tomou o nome de “caveiras”, isto é, dos degolados”.
A tradição nada diz. E parece que todas essas interpretações são falhas, pois seria inadmissível que o
rico José de Arimatéia erguesse para si um túmulo na vizinhança do lugar das execuções. O mais certo
é que o nome se deva à conformação do solo: trata-se de uma protuberância rochosa, que se eleva a
uns 5 metros, dando a impressão do tampo de uma caveira.

LOCALIZAÇÃO
Situa-se no Gareb, a noroeste da 2.ª muralha, lugar que foi reconhecido por Helena, esposa de Cons-
tantino, e onde se verificaram as profanações de Adriano, na época dos primeiros cristãos: a tradição a
respeito do local é antiquíssima e indiscutida. Recentes escavações no hotel russo de Santa Alexandra
e no templo protestante do Redentor comprovaram que ficava junto à 2.ª muralha, mas fora da cidade
(confirmando Mat. 27:32; Marc. 15:21; Luc. 23:21; João, 19:17; Hebr. 13:12 nas proximidades de uma
estrada pública (cfr. Mat. 27:39; Marc. 15:25 e João, 19:20).
A distância do pretório, em linha reta (a vol d’oieau) é de 600 metros, mas o percurso foi feito dando
voltas em ruas estreitas e apinhadas de povo por causa da páscoa. O percurso acompanha as sinuosida-
des da Segunda muralha, fazendo 150m em descida (a cota da Torre Antonia é de 750m) até o fundo
do Vale do Tiropeu (cota de 710m) e o resto em subida até o Gólgota (cota de 755m).

BEBIDA AMARGA
Em Strack e Billerbeck (vol. 1, pág. 1037, 38) encontramos a citação de Rab Chisda (+ 305): “A quem
vai ao suplício se dá pequeno pedaço de incenso com vinho, numa taça, a fim de embotar as sensações,
como está em Provérbios (31:6): Daí licores fortes a quem morre e vinho a quem tem a alma amargu-
rada”.
Em Jerusalém (cfr. Sanhedrim. 43 a) era tarefa de que as mulheres da sociedade se incumbiam; mas
quando não no podiam fazer, as mulheres do povo se encarregavam de preparar a beberagem.
Mateus diz que era “vinho misturado com bile” (cholé) ou fel, no sentido de coisa amarga, talvez por
influência do Salmo 66:22, onde os LXX escrevem exatamente cholé. Marcos escreveu “vinho (tempe-
rado) com mirra”, no original esmyrnisménon oínon (em latim, vinum myrrhatum). Parece haver em

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Marcos maior precisão de termos, já que a mirra é um odorante amargo (que o Talmud chama de in-
censo), com efeito anestesiante e ligeiramente anti-séptico. Jesus recusa essa bebida (Marcos) ou ape-
nas a prova (Mateus). Mais tarde, tomará o vinagre ou bebida acidulada (cfr. Mat. 27:48), em vista da
sede, provocada pelo suor e pela perda de sangue.

VESTES
Já vimos que Jesus fez o percurso do pretório ao Gólgota com suas vestes brancas. Mas como terá sido
crucificado? Lemos no Talmud (Sanhedrim 6, 3): “Quatro côvados antes de chegar ao lugar do suplí-
cio, é despido. Se é homem, é coberto pela frente; se é mulher, é coberto pela frente e por trás. Assim
diz o R. Judá (+ 150)”. (cfr. Strack e Billerberck, o.c. vol. 1. pág. 1038).
Segundo o costume romano, os condenados eram crucificados inteiramente nus, e essa hipótese é
aceita por Ambrósio, Atanásio, Agostinho e grande maioria dos “pais” da igreja, assim como por Sua-
rez (cfr. Mysteria Vitae Christ, disp. 36, sect. 4), e pelo Papa Bento XIV.
No entanto, a prescrição talmúdica talvez justifique a tradição do pano que cobre as partes sexuais de
Jesus nos crucifixos: os soldados romanos devem Ter cedido aos costumes israelitas, conforme afirma
Fl. Josefo (Contra Appion, 2.6.73): Romani subjectos non cogunt patria transcendere (1), ou seja, “os
romanos não coagem os (povos) submetidos a transgredir os direitos pátrios”. Já tendo sido dado a
Jesus um ajudante para carregar a cruz, e tendo sido permitida a oferta da bebida anestesiante, é per-
feitamente possível que acedessem a cobri-lo com um pano. No sepulcro, porém, (ve-lo-emos) estava
nu, conforme atesta a figura gravada no “Sudário de Turim” (cfr. Dr. Pierre Barbet, o.c., pág. 48).
(1) O “Contra Appion”, de 2,51 in fine, só existe in fine, só existe com o texto latino.
Já no grafitto, encontrado em 1857 no muro do Paedagogium, em Roma, (escola destinada aos escra-
vos do Palácio Imperial) e atualmente no Museu Kircher de Roma, está representado Jesus, com cabe-
ça de asno, numa cruz em T, e com o pano pendurado à barriga, e a inscrição: Alexámenos sébete theo
(“Alexámenos adora seu deus”).

A CRUZ COMO SUPLÍCIO


Segundo Cícero (in Verr. 5, 66, 169) era servitutis extremum summumque supplicium, “o último e o
maior suplício do escravo”, reservado a ladrões e malfeitores (cfr. Fl. Josefo, Ant. Jud. 20, 6, 2 e Bell.
Jud. 2, 12, 6; 14, 9 e 5, 11, 1). O Deuteronomio (21:23) declara “maldito o que é pendurado no lenho”,
e Cícero (Pro Rabirio, 16) escreve que “o próprio nome de cruz deve estar ausente do corpo dos cida-
dãos romanos” (nomen ipsum crucis absit ... a corpore civium romanorum). E declara (in Verr. 5,
170): facinus est vincire civem Romanum, scelus verberare, prope parricidium necare; quid dicam in
crucem tollere?, isto é, “é um ultraje encarcerar um cidadão romano, um crime flagelá-lo, quase um
parricídio matar; que direi suspender na cruz”?
Mas o costume em relação aos bárbaros era supliciar e depois crucificar: quid deinde séquitur? Verbe-
ra atque ignes et illa extrema ad supplicium damnatorum, metum ceterorum cruciatus et crux (in Verr.
5.14), ou seja, “que se segue depois? flagelações e queimaduras, e aqueles últimos, para suplício dos
condenados e medo dos outros, tortura e cruz”. FI. Josefo (Bell. Jud. 2,149 ) atesta: mástizin proaiki-
sámenos anestaúrôsen, “tendo-os flagelado, crucificou-os”.
No entanto, a partir do drama do Gólgota, a cruz passou a ser “o sinal típico do Senhor” (Cfr. Cle-
mente de Alexandria, Stromm. 6,11, Patr. Gr. vol. 9, col. 305: toú kyriakoú sêmeon typon; e Agosti-
nho, Tract, in Joannem, 118. Patr. Lat. vol. 35, col. 1950).
Mas a cruz era sempre representada sozinha. A primeira vez em que aparece a figura do crucificado
sobre ela, é no grafitto que citamos. assim mesmo em caricatura. Com seriedade, só aparece a figura
de Jesus sobre a cruz no século V: um na porta de madeira da igreja de Santa Sabina, em Roma; e a
outra em marfim, no British Museum, em Londres. Mas em ambos, Jesus está vivo, de olhos abertos, e
sem sinal de sofrimento no rosto, mas com o pano que cobre a região genital.

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A cruz utilizada para Jesus era, provavelmente igual a todas as outras, de pinho. Não a sublimis (de
4,5m de altura), mas a humilis (de 2,5m), pois as hastes já deviam estar todas fixadas no local destina-
do às execuções, conforme o hábito romano.

Figura “CRUCIFICAÇÃO” – Desenho de Bida, gravura de L. Flameng

ENCONTRO DA CRUZ
Conta a tradição, baseada na carta de Cirilo de Jerusalém ao imperador Constâncio (Patr. Gr. vol. 33
col. 52 e 1167; e col. 686/7) e na confirmação de Ambrósio (De óbitu Theod., 45-48; Patr. Lat. vol.
16, col. 1401) e de Rufino (Hist. Eccles. 1, 8, Patr. Lat. vol. 21. col. 476) que Helena, esposa do impe-
rador Constantino, encontrou a cruz de Jesus e reconheceu-a por causa da inscrição que lhe estava pre-
gada. A dúvida é sugerida porque Eusébio de Cesaréia, que narra todos os feitos de Helena, omite esse
pormenor, do encontro da cruz, que, no entanto, devia ser primordial em sua vida.

CRUCIFICAÇÃO
Os crucificadores eram quatro normalmente (o tetrádion, citado em At. 12:4 e no vers. 23 de João),
número que constituía “uma escolta”. Mas sabemos (por Mateus 27:54, Marc. 15:39 e Luc. 23:47) que
estava presente um centurião, talvez em virtude da importância religiosa e política do condenado, que
não era réu de crime comum. Essa escolta devia permanecer a postos até a morte da vítima.
O condenado era pregado pelos punhos (não pelas palmas das mãos) no patíbulo, que posteriormente
era suspenso e colocado acima da haste (donde ascendere in crucem e subire in crucem). A seguir
eram pregados os dois pés, um sobre o outro, com cravo (ou os dois separadamente, cada um com seu
cravo). Esse era o costume, conforme nos informam os autores profanos (2).

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SABEDORIA DO EVANGELHO

(2) Firmicus Maternus (De Errore Profanorum Religionum) diz: Suffixus in crucem, patibulum tolli-
tur, “pregado na cruz, patíbulo é suspenso”. Assim também Cícero (in Verr. 1, 7): quos ... in cru-
cem sustulit; (ib. 6,13): ab isto civem Romanum ... sublatum esse in crucem; (ib. 5,7): illum jussu
praetoris in crucem esse sublatum; (ib. 5,168): ut ... quamvis civis Romanus esset, in crucem tolle-
retur.
Os dois ladrões também foram pregados, segundo o costume, e não amarrados e suas cruzes eram da
mesma altura, iguais à de Jesus (cfr. João Crisóstomo, Hom. 5,5 in Cor. 1:26, Patr. Gr. vol. 61 col.
45). A tradição pictográfica estabelece diferenças para fazer subressair Jesus e seu martírio (3).
(3) Os testemunhos de autores profanos são numerosos nesse sentido, como Plauto (Persa, 295): te
cruci ipsum propediem adfigunt alii “outros em breve te pregam na cruz”; Plauto (Mostellaria,
359-360): ego dabo ei talentum, primus qui in crucem excucurrerit, sed ea lege, ut offigantur bis
pedes, bis bracchia, “darei um talento àquele que primeiro correr para a cruz, mas com a condição
de que sejam pregados os dois pés e os dois braços” (não “as duas mãos”). O verbo mais usual era
figere, adfígere ou suffigere, “pregar” ou “fixar”, como lemos em Sêneca (Hypp. 497) cruci suffi-
xus; César (Bell. Afric. 66) Jaba Numinas ... in cruce omnes suffixit: Horácio (Sát. 1, 3, 82): si quis
... in cruce suffigat; Catulo (99, 4), em sentido figurado: namque amplius horam suffixum in summa
me mémini esse cruce, e muitos outros passos e autores.

FIXAÇÃO DAS MÃOS


Segundo os estudos do cirurgião Dr. Pierre Barbet – que, aproveitando-se do Laboratório de Necropsia
(“autópsia”) onde dava as aulas, realizou numerosas experiências de crucificação em cadáveres recen-
tes, a fim de aprofundar estudos - os cravos eram fixados na flexão do punho (o. c., pág. 123) em pleno
carpo (pag 129) entre o semilunar, o piramidal e o grande osso (pag. 139) imediatamente antes da in-
terlínea de Lisfranc, na parte posterior do 2.º espaço intermetatarsiano (pág. 150). Nesse ponto é mode-
rada a efusão de sangue (pág. 142) ou seja, a hemorragia é de pouca importância, pois a rede circulató-
ria é quase unicamente venosa.
Uma vez metido o cravo, o polegar se dobra, opondo-se à palma da mão, em virtude da contração dos
músculos tenarianos. É atingido o tronco do nervo mediano, de grande sensibilidade, mas ficam intac-
tos os nervos do curto obdutor, do oponente e do curto flexor.

FIXAÇÃO DOS PÉS


Pelo estudo do sudário, o Dr. P. Barbet deduziu que realmente os pés de Jesus foram pregados o es-
querdo sobre o direito com um só cravo (o.c., pág. 145); e isso em vista das manchas sanguíneas dei-
xadas no pano; e ainda, que foram pregados diretamente na haste, e não no supedâneo (pág. 146).

SUPEDÂNEO
O supedâneo, pedaço de madeira que ficava sob os pés do crucificado, citado pela primeira vez no 6.º
século, por Gregório de Tours (De Glória Mártyrum 6, Patr. Lat, vol. 71, col. 711). Mas aparece no
grafitto supracitado.

SEDILE
O sedile consistia num pedaço de madeira, fixada na haste, e que sustentava o condenado entre as per-
nas, apoiando-se nele o períneo (donde a expressão equitare in cruce, “cavalgar na cruz”). Era usual e
indispensável, para evitar que o peso do corpo fizesse que os cravos rasgassem os tecidos. Em Sêneca
(Epist. Morales) lemos: sedere in cruce, “sentar-se na cruz, e em Justino (Diál. com Triphon. 91,2)
temos: kaì tò en tôi mésòi pegnymenon hôs kéras kaì autô exéchon estín, eph'hôi epochoúntai hoi stau-

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C. TORRES PASTORINO

roúmenoi, ou seja, “E, no meio, a estaca que é saliente, como chifre, sobre a qual se apoiam os crucifi-
cados”. A isso, Tertuliano chamava sedilis excessus (Ad Marcionem).

A HORA
Marcos é o único que afirma Ter sido realizada a crucificação na terceira hora. Mas como pode ter
sido na terceira hora, se Jesus foi apresentado por Pilatos aos Judeus na sexta hora, isto é, por volta do
meio-dia?
Eusébio, Jerônimo, Pedro Alexandrino, Severo de Antióquia, Amônio e muitos outros moderno, per-
guntam se não houve erro de copista, embora este tivesse que provir do original (o que é possível), já
que era fácil confundir o número 3 (representado pelo gamma, Γ) com o número 6 (representado pelo
digama F). Uma simples falha do traço horizontal inferior teria transformado o 6 em 3.
No entanto, temos que levar em conta que a 3.ª hora ia de 9 às 12 horas, a 6.ª, de 12 às 15 h; e a 9.ª, das
15 às 18 h, e isso sem a precisão exata e cronométrica dos relógios modernos; eram relógios solares ou
cálculo visual da altitude do sol. Nada impede, pois, que tomemos as palavras de Marcos lato sensu:
apresentado a Pilatos cerca da 6.ª hora (por volta do meio-dia) seguiu logo após para o Gólgota, a meio
quilômetro, onde deve ter sido cravado na cruz entre, no máximo, 13 e 14 horas, tendo parecido ao
jovem Marcos (ou a Pedro) que ainda não finalizara a hora terceira.

DIVISÃO DAS VESTES


A roupa do condenado pertencia tradicionalmente aos carrascos, que ficavam com todos os pertences
desde quando a vítima seguia para o suplício. Mas como Jesus fora novamente recoberto com suas
vestes, só fizeram a distribuição depois de crucificá-lo. João especifica que eram quatro (como vimos
acima) e que cada um ficou com uma parte: o manto, o cinto, a camisa, as sandálias. Todavia, como a
túnica era inconsútil, não quiseram cortá-la: foi então sorteada (cfr. Salmo 19:23). Também no Salmo
21:18 está escrito: “repartiram minhas vestes”.

O TÍTULO
A palavra latina títulus foi transliterado para o grego títlos, em lugar ao legítimo epígraphê ou mesmo
o pínax. Embora em essência os evangelistas digam o mesmo, as palavras variam:
O REI DOS JUDEUS (Marcos)
ESTE É O REI DOS JUDEUS (Mateus e Lucas)
JESUS O NAZOREU, REI DOS JUDEUS (João).
A tabuleta, com o resumo da sentença, era carregada pelo próprio condenado (cfr. Suetônio, Calígula,
32, 4: praecedenfe título qui causam poenac indicaret; e Dion Cassius, 54, 3).
Eusébio (Hist. Eccles. 5,1.; Patr. Gr. vol. 20, col. 425) cita a carta dos cristãos de Lyon, onde narram o
martírio de Áttalo, que também carregou uma inscrição (pínax) com as palavras: hoútos estin Áttalos,
ho christianos.
Conforme vimos, quando Helena encontrou a cruz de Jesus, identificou-a pela tabuleta que nela estava
pregada, e que ainda hoje se conserva na igreja de Jerusalém, em Roma. Devia ter mais ou menos 65 x
20 cm, era pintada de branco com as letras, de 3 cm de altura, vermelhas. Em 1492 já faltava o um da
palavra Judaeorum; em 1564 não havia mais as palavras Jesus e Judacorum. Hoje está reduzida a 23 x
13 cm, faltando muitos sinais: restam apenas alguns traços inferiores das letras hebraicas; a palavra
NAZARENOUS I (BASILEOS) do grego, sem o artigo, conforme é citado por João, que nos conser-
vou parece, a inscrição verdadeira do original; e NAZARENUS RE(X), do latim.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

Todas as palavras estão escritas da direita para a esquerda, o que é evidente prova da autenticidade da
tabuleta encontrada por Helena, já que a um falsário jamais ocorreria escrever errado. João cita
NAZÔRAIOS, certo; na tabuinha está NAZARENOUS, errado. E na época evangélica já ninguém
mais se lembrava, havia séculos, da escrita boustrophêdón (uma unha em cada direção alternadamente)
e muito menos da primitiva maneira de grafar o grego da direita para a esquerda, coisa que não ocorre-
ra com o latim. Portanto, quem escreveu a tabuleta devia ser um judeu, e grafou as línguas grega e la-
tim à maneira do hebraico (cfr. Sozômeno, Hist. Eccl. 2,1; Patr. Gr. vol. 67, col. 929).
O clero irritou-se quando leu a inscrição, ou logo à saída de Jesus do Pretório, ou depois que foi prega-
do na cruz. Não na aceitaram, porque Jesus não estava sendo crucificado porque era rei dos judeus,
mas porque se dissera tal. Pilatos, que preferira essa causa de condenação porque fora a que o levara, a
condenar o réu, para evitar que os judeus o denunciassem, respondeu secamente: o que escrevi, escre-
vi. Inegavelmente era o reconhecimento oficial da realeza iniciática de Jesus.
Restam-nos duas anotações:
1) O versículo 28 de Marcos; “E cumpriu-se a Escritura que diz; E foi contado entre os malfeitores”,
é omitido nos códices álef, A, B, C, D, X, psi, nos 1ecionários, na ítala d, e k, na siríaca sinaítica,
na copta sahídica e do manuscrito bohaírico, na favense, no texto do canon de Eusébio, em Amô-
nio, Nestle, Swete, Lagrange, Knáhenbauer, Huby, Alland, Pirot.
Mas aparece (em Luc. 22:37 e Is. 53:12) nos códices K, L, P, delta, theta e pi, nos manuscritos;
0112, 0250, f2, f13, 28, 33, 565, 700, 892, 1009, 1010, 1071, 1079, 1195, 1216, 1230, 1241, 1242,
1253, 1344, 1365, 1546, 1646, 2148 e 2174, nos lecionários bizantinos 10, 211, 883, 1642, nas
ítalas aur, e, ff2, l, n, r1, na vulgata, nas siríacas peschitto, palestinense, harcleense, na copta bohaí-
rica, na gótica, na armênia, na etiópica, na geórgia, no pseudo-Hipólito, em Orígenes, no manus-
crito do cânon de Eusébio, em Vigílio, Bodin, Von Soden, Merck.
2) O versículo 34 de Lucas, em sua primeira parte; “E Jesus disse: Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o
que fazem”, aparece nos códices: alef (original), A, C, D (2.ª mão), E, K, L X, delta, pi, psi, nos
manuscritos: 0117, 0250, f1, f13, 28, 33, 565, 700, 892, 1009, 1010, 1071, 1079, 1195, 1216, 1230,
1242, 1253, 1344, 1365, 1546, 1646, 2148, 2174, nos lecionários bizantinos nas ítalas aur., b, c, e,
f, ff2, l, r1, na vulgata, nas siríacas peschitto e palestinense, no manuscrito bohaírico da copta, na
armênia, na etiópica, na geórgia, e nos autores: Hegesipo, Marcion, Diatessaron, Justino, Irineu
(latino), Clemente, Orígenes (latino), Eusebio, no cânon eusebiano, no Ambrosiáster, em Hilário,
Basílio, nas Constitutiones Apostolicae, em Ambrósio, João Crisóstomo. Jerônimo, Agostinho, Te-
odoreto, João Damasceno e na maioria dos modernos.
Mas é omitida no papiro 75, em aleph (2.ª mão), B, D (original), W, theta, 0124, 1241, nas ítalas a e d,
na siríaca sinaítica, na copta sahídica, em Cirilo e Wescott e Hort.
Supõe-se que a omissão tenha sido devida por julgarem que a indulgência era demasiada. Perdão para
os romanos? ou para os judeus, induzidos a isso por seus preconceitos religiosos? Lemos nos Atos
(3:17 e 13:27) e em Coríntios (1.ª, 2:8) que eles agiram por ignorância, mas eram responsáveis. Como
perdoar-lhes ?

Assistimos, aqui, à execução da parte crucial da ação física do supremo holocausto a que são subme-
tidos os que realizam o quinto grau iniciático. A demonstração efetuada na pessoa humana de Jesus -
que é, não no esqueçamos, o símbolo da Individualidade para nós - representa o sacrifício máximo do
Espírito que perlustra os últimos passos de sua evolução terrena: sua crucificação na matéria densa,
por vontade própria, indispensável para ascender à unificação total e definitiva com a Divindade que
em todos reside, e que é a essência última de todos e de tudo.
Facilidades são oferecidas a quem se dispõe a palmilhar esta senda duríssima e árdua, para atingir
tal altitude evolutiva: o vinho com mirra, ou seja, o embriagamento dos sentidos, o que diminuirá o
sofrimento. Os “grandes” rejeitam esses paliativos externos: têm, em si mesmos, a capacidade e o
mérito de criar condições próprias, a fim de ajudar a superação das dores. Vimo-lo no revestimento

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da cristalização do ectoplasma. Mas isso, que constitui o pior sacrifício dos Espíritos Superiores (a
prisão num corpo de carne), apresenta-se como um dos maiores prazeres para aqueles que se encon-
tram no início da evolução, e que buscam avidamente a encarnação como a satisfação mais perfeita e
ampla de seus instintos ainda animalizados.
Se, para o Espírito evoluído, a permanência na cruz do corpo físico é sofrimento, para o espírito ape-
gado à matéria - única realidade para ele a estada na carne constitui a realização máxima de seu so-
nho: aí pode sentir-se realizado, experimentando as sensações gozosas do paladar, as emoções ine-
briantes do sexo, a alegria ilusória da posse, o prazer vaidoso do intelectualismo, a glória da fama
que incha, o aplauso das multidões que o enaltece, o gosto do domínio que o ilude, enfim, a satisfação
de todo o acerto que trouxe do reino animal, ainda vivamente degustado em sua mente. Daí suportar
heroicamente todas as dores, sofrimentos e aleijões, contanto que permaneça nessa “cruz” (para ele
“paraíso”) o maior tempo possível, jamais conseguindo compreender plenamente o que ele chama de
fenômeno insuportável de abandonar a carne. E quando a isso coagido, busca regressar a ela o mais
depressa que pode.
No entanto, para quem superou esses instintos, sobrepujando as sensações e dominando as emoções,
desprezando o intelectualismo balofo, porque já experimentou a superioridade indescritível da intui-
ção verdadeira, pois aprendeu a agir ligado diretamente à Fonte divina da inspiração espiritual, essa
crucificação se torna martírio atroz. Para estes, por isso, essa crucificação é vantagem, porque tal
martírio age em seu sentido etimológico de “testemunho” ou de “comprovação” de suas qualidades,
além de adaptar-se ao sentido vulgar de sofrimento violento.
Passam pelo mundo incompreendidos pelas massas e por aqueles mesmos que se lhes ligam afetiva-
mente, constituindo seu lar e seu parentesco: para todos é o orgulhoso, o convencido, o esquisito, o
diferente, o egoísta, o insensível e talvez até mesmo o mau. Diante do modo de agir “normal” para o
mundo, ele se torna o estulto, o desequilibrado, o idiota, o que não entende. Sua honestidade é falta de
inteligência: sua indiferença às ofensas que recebe, é desfibramento; seu perdão aos que lhe fazem
mal e o caluniam, é o máximo de covardia: sua paz, que o faz fugir de qualquer briga, é falta de per-
sonalidade; seu desejo de ajudar é intromissão que atrapalha; sua dedicação total é reflexo de seu
egoísmo; sua humildade amorosa que o faz realizar pessoalmente todos os serviços e atribuições de
empregados domésticos, para demonstrar seu amor, é prova de baixeza de ânimo; seu amor por todos
é o sinal evidente de que não ama a família; sua generosidade é pródigo desperdício; sua firmeza em
cumprir à risca seus menores e menos importantes deveres, é inferioridade mental; sua responsabili-
dade nos mínimos atos representa sua alma de escravo; e tudo isso demonstra no cômputo total, sua
absoluta inferioridade e seu atraso.
Assim enumerados, esses comportamentos parecem constituir a descrição fria de teorias. Quem, toda-
via, sente na carne, durante o dia e durante a noite, esses impactos, durante dias, meses e anos segui-
dos, provenientes das pessoas que mais ama, vai torturando sua alma, e são frequentes as vezes em
que de seu coração parte a exclamação: “minha alma está triste até a morte ... Pai, se é possível,
afasta de mim esta taça ... todavia, não o que quero, mas o que tu queres” (Mat. 26:38-39; Marc.
14:34-36; Luc. 22:42).
* * *
Trata-se, portanto, de uma crucificação que dura ANOS, e, por ser longa, nem por isso deixa de ser
dolorosa e difícil de suportar. Jesus, a Individualidade, reuniu numa cena de extrema violência todas
essas facetas, de forma que pudéssemos aprender, proporcionalmente, como agir em nossa crucifica-
ção diuturna e, sem dúvida, menos violenta. Embora, em certas ocasiões, o que sofre o Espírito
“acordado” que vive na carne, é correspondentemente violento, pelas terríveis humilhações e desafi-
os: se é tão confiante no Pai, por que Este não o socorre e ajuda na hora?
As zombarias são totais e a Terra, para ele, se apresenta sem a menor dúvida, o “Lugar da Caveira”,
o local em que todos querem, de fato, assistir a sua derrota, sua queda, seu sumiço, sua “caveira”,
literalmente. Sua presença incomoda: é mister livrar-se dele.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

E a razão principal de sua condenação, ou seja, a “sua culpa”, está marcada sobre sua cabeça: é “o
rei dos judeus”, isto é, um dos seres ou o ser mais elevado de sua raça, aquele que possui todas as
características morais, espirituais, psíquicas, intelectuais e até talvez mesmo físicas, para servir de
modelo e exemplo a todos, para ditar a orientação certa do rebanho, porque conhece todo o caminho
a perlustrar.
Rei! Rei que serve, coberta a cabeça com o véu da humildade e, na mão, qual cetro, os instrumentos
dos serviços mais humildes; rei vilipendiado e desprezado, pois todos os julgam com o direito de zom-
bar e de pisoteá-lo impunemente, “para maior glória de Deus”, porque ele não sabe reagir: perdoa
sempre! Pois, a atitude desse rei terá que ser sempre a que Jesus exemplificou: “perdoai-lhes, Pai,
porque não sabem o que fazem”! É o adulto que sorri quando uma criança de dois anos caçoa dele:
que segue em frente amável, ao receber uma assuada de meninos levados; que não se magoa se uma
menininha lhe vira as costas quando ela se dirige amorosamente: malcriações infantis são perdoadas,
“porque não sabem o que fazem”. Assim terá que agir o Evoluído em relação à massa involuída que o
cerca, pois ele também “foi contado entre os malfeitores”.
Rei dos judeus, dos religiosos, líder da religião devocional, perseguido exatamente pelo sacerdócio,
pretenso dono da religião, que jamais admite intromissões leigas em sua área de serviço, permane-
cendo atentos a qualquer tentativa de invasão de seu território, para defendê-lo com qualquer arma a
seu alcance: do combate oral sério às acusações mentirosas, da calúnia à ironia ferina, da persegui-
ção oculta ao assassinato, que hoje em dia é disfarçado de muitas maneiras, embora na antiguidade
fosse claro: “matem todos, Deus escolherá os seus”, dizia célebre inquisidor espanhol.
A crucificação de nossos Espíritos num corpo humano, a longo prazo, constitui experiência dolorosa,
mas indispensável à evolução.
* * *
Quanto às três cruzes, já os primeiros Pais da igreja as comparavam às árvores do “paraíso terres-
tre”: a árvore da ciência do bem e do mal e a árvore da vida, dizendo que eram três: a árvore da vida
no centro (Jesus), a árvore do bem de um lado (o “bom ladrão”) e a árvore do mal do outro lado (o
mau ladrão”).
Mas, podemos dar um passo à frente, na simbologia.
Assim como, na passagem do reino animal para o reino hominal, a criatura provou da árvore do bem
e do mal, perdendo por isso o paraíso da irresponsabilidade animal e adquirindo o livre-arbítrio, as-
sim também na passagem do reino hominal para o reino dos céus a criatura experimentará (páthein) a
árvore da vida, adquirindo a VIDA IMANENTE, também chamada, mais geralmente, VIDA ETERNA.
É a árvore do centro, a Cruz de Jesus, que proporciona a Vida, e por isso Ele foi classificado como “o
Salvador” ou ainda o “Redentor”. Embora a interpretação desse fato tenha sido deteriorada por ig-
norância da realidade; de qualquer modo esses atributos estão bem aplicados.
Não é, pois, Redentor no sentido de que sua paixão (páthein) tenha redimido por si só a humanidade,
mas sim no sentido de que foi o primeiro a conseguir passar, nesta Terra, de um estágio a outro,
abrindo o caminho (“eu sou o CAMINHO da Verdade e da Vida”, João 14:6 para que todos pudessem
segui-Lo, redimindo-se, também, cada um a si mesmo, porque, na estrada que abriu, como batedor ou
sapador, todos nós temos mais facilidade de seguir seus passos. Árvore da Vida, a Cruz de Jesus, que
simboliza a cruz do corpo humano, que para nós constitui o meio da redenção final, na estrada real
da evolução.
E no topo dessa cruz está a inscrição que inspiradamente foi ordenada por Pilatos: o rei dos judeus, o
hierofante da raça sacerdotal de toda a humanidade. Quando todos atingirmos essa graduação ine-
quívoca, esse ápice evolutivo do gênero humano, teremos conquistado a redenção final e estaremos
“salvos”, pois não necessitaremos mais ser crucificados, através das encarnações, no corpo de carne.
A tentativa do clero personalístico de inutilizar a frase de Pilatos fracassou, diante da vontade inflexí-
vel daquele que, embora julgado titubeante e facilmente influenciável pelos mais fortes como a biruta
ao vento, no entanto bateu o pé e mandou mantê-la. Era impossível descer do pedestal de sua autori-

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dade, porque aí não foi o homem Pilatos que agiu, mas a autoridade máxima que outorgada lhe fora
pelo Alto.
A sugestão de que fosse escrito: “Ele disse que era rei dos judeus” alerta-nos ainda para um fato
muito importante, e Pilatos acertou em não aceitar. Não é o fato de alguém SE DIZER rei ou hiero-
fante, que lhe ratifica o posto: este só pode ser conferido por quem tenha autoridade de fazê-lo, como
foi o caso de Pilatos, legitimamente constituído como Governador, tendo recebido, portanto, do Alto
sua investidura civil e religiosa, já que era delegado do Imperador-Pontífice Tibério César. Hoje,
muita gente ostenta títulos e nomes geralmente arrevezados por iniciativa própria, atribuídos a si por
eles mesmos ou por amigos que se reúnem em sistema de elogios mútuos, conferindo-se uns aos outros
títulos bombásticos e honoríficos, sem qualquer autoridade. São encontradiços vários “mestres”, al-
guns “sris”, outros “yogis” e mesmo “swamis”, além de muitos “anandas”. Uma vez revestidos des-
sas insígnias verbais, inflam o peito vaidosamente e se crêem grandes emissários das fraternidades
(sempre orientais), esquecidos de que o pior vício que afasta da Fonte é exatamente a vaidade que
exalta a personagem. Colocam sobre seus próprios ombros “missões” importantes e acreditam-se
grandes seres, embora suas palavras e ações (reveladoras dos mais íntimos pensamentos) contradi-
gam frontalmente o que pretendem aparentar.
Jesus jamais atribuiu a si mesmo qualquer título. Antes, recusou o atributo de BOM, afirmando ser
bom apenas o Pai, e negou ser MESTRE, ensinando que só o Cristo devia ser tido como Mestre (Mat.
23:10). Por que Lhe não seguirmos as pegadas? Por que não anularmos nosso eu personalístico e
vaidoso, convencendo-nos de que, se estamos encarnados neste planeta, isto significa que somos ape-
nas espíritos devedores, ainda carregados de carmas negativos, que precisamos expurgar, para po-
dermos ser merecedores de receber qualquer missão? Deixemos de lado os títulos e nomes exóticos, e
sejamos discípulos humildes e verdadeiros, enquanto estamos crucificados nesta carne transitória,
pois “a carne e o sangue não podem herdar o reino de Deus” (1.ª Cor. 15:50): só o Espírito o vive.
Por que pois pretender salientar a personagem terrena (carne e sangue) com nomes orientais pompo-
sos, que nada valem, mas ao contrário prejudicam, porque alimentam a vaidade íntima? Vivamos de
forma a poder dizer, no fim de nossa romaria terrena: “somos servos inúteis, cumprimos nosso dever”
(Luc. 17:10).
Aproveitamos a crucificação sem reclamar, como a soube aproveitar o “bom ladrão”, que se limitou
humildemente a solicitar auxilio.
E não nos preocupemos se nossas vestimentas forem divididas e sobre elas lançadas sortes, ficando
nós nus: que é a roupa para o corpo? Assim também, que é o corpo, veste do Espírito, em relação a
este? Que nos maltratem, nos firam e nos matem o corpo: o Espírito permanecerá vivo e progredirá;
temamos os que podem matar o Espírito, não os que só atingem o corpo físico e a personagem terrena
(cfr. Mat. 10:28); e tudo o que nos seja arrancado - objetos, propriedades, amigos, parentes e até o
corpo - constituem apenas agregações temporárias que poderão ser reconquistadas todas pelo Espí-
rito eterno. Aproveitemos a crucificação na Terra, para aprender a renúncia a tudo o que é externo,
só valorizando o Espírito.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

ZOMBARIAS

Mat. 27:39-44 Luc. 23:35-43

39. Os que passavam, porém, o insultavam, 35. E estava o povo olhando. Os principais sa-
meneando a cabeça deles. cerdotes torciam o nariz, dizendo: Salvou os
outros, salve a si mesmo, se este é o ungido
40. e dizendo: ó tu que destróis o santuário e
de Deus, o escolhido.
em três dias o contróis, salva a ti mesmo, se
és filho de Deus e desce da cruz! 36. Zombavam dele também os soldados, que se
aproximavam, oferecendo-lhe vinagre
41. Igualmente também os principais sacerdo-
tes, com os escribas e anciãos, escarnecendo, 37. e dizendo: Se tu és o rei dos judeus, salva a
diziam: ti mesmo.
42. Salvou os outros, a si mesmo não pode sal- 38. Estava também acima dele a inscrição: Este
var; se é rei de Israel, desça agora da cruz e é o rei dos judeus.
creremos nele ... 39. Um dos malfeitores pendurados o insultava,
43. confiou em Deus, que ele o livre agora se o dizendo: Não és tu o ungido? salva a ti
ama, pois disse: sou filho de Deus. mesmo e a nós.
44. Do mesmo modo também os salteadores, 40. Respondendo o outro, censurando-o, disse:
crucificados junto com ele, o insultavam. Não temes tu a Deus, por estares no mesmo
julgamento?
41. E nós, sem dúvida, justamente, porque re-
Marc. 15:29-32
cebemos o merecido do que fizemos; mas
este nada fez fora de lugar.
29. Os que passavam o insultavam, meneando 42. E disse: Jesus. lembra-te de mim quando
as cabeças deles e dizendo: Olá (tu que) des- estiveres no teu reino.
tróis o santuário e o constróis em três dias,
43. E disse-lhe: “Em verdade te digo, hoje co-
30. salva a ti mesmo, descendo da cruz. migo estarás no paraíso”.
31. Igualmente também os principais sacerdo-
tes, com os escribas, escarnecendo uns com
os outros, diziam: Salvou os outros, a si
mesmo não pode salvar ...
32. O ungido, o rei de Israel, desça agora da
cruz para que vejamos e creiamos. Também
os crucificados junto com ele o injuriavam.

O verbo blasphêmein tem dois sentidos básicas: o primeiro, mais popular, e “injuriar” ou “insultar”,
referindo-se a qualquer pessoa (cfr. Isócrates, 12, 65 e 15,2; Demóstenes, 51, 3, etc.); o segundo, mais
técnico, significa “falar profanamente das coisas iniciáticas”, ou proferir injúrias contra a Divindade ou
as coisas sagradas”, tendo sido, neste caso, transliterado para o português “blasfemar”; usado, também
nesse sentido por autores profanos (Vettius Valens, 58, 12 e 67, 20; Demóstenes, 25, 26; Platão, De
Legibus, 800 c.d), na versão dos LXX (Ezequiel, 35:12; Daniel 3:29 ou 96; 2.º Macabeus, 10:4 e 34) e
no Novo Testamenho (Mat. 9:3; 12:31; Marc. 3:29; 1.ª Cor. 10:30; Ef. 4:31).

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C. TORRES PASTORINO

As expressões “menear a cabeça” (kinoúntes tés kephalês, Mateus e Marcos) e “torcer o nariz” (exe-
mykterizôn, de myktêr, Lucas) se equivalem, como sinais de desaprovação, subentendendo ao mesmo
tempo, certo desprezo.
As palavras acompanham os gestos. Desafiam que desça da cruz, pois é isso que significa “salve-se a
si mesmo”. E volta o argumento da destruição do santuário (naós) e de sua reconstrução (oikodomôn)
em três dias, com aquela repetição dos mesmos argumentos, típica dos desequilibrados mentais com
monoideísmo, que se apegam a um só ponto, porque incapazes de raciocinar.
A libertação, ou descida da cruz, para eles seria uma prova de que o Pai o amava (thélei, literalmente
“quer”, no sentido de “querer bem”, que corresponde ao hebraico hafaz; a frase é tirada do Salmo 22;8,
que transcreveremos mais adiante na íntegra).
Diz Lucas que os soldados ofereceram a Jesus “vinagre”, ou seja, a conhecida bebida acre, que utiliza-
vam para dessedentar-se. Consistia em vinagre misturado com água, contendo, às vezes, ovos batidos
(cfr. Plauto, Miles, 836; Truculentus, 609; Plínio, História Naturalis, 27, 12 § 29; 28, 14 § 56; Suetô-
nio, Vitellius, 12).
O aceno de Lucas à inscrição sobre a cruz serve, apenas, como complementação de passagem à descri-
ção da cena, não se demorando o evangelista nesse pormenor.
Mateus e Marcos afirmam que os dois salteadores participaram do coro das zombarias; no entanto,
Lucas narra um episódio inédito e que impressiona (cfr. Agostinho, Patr. Lat. col. 36, col. 1190).
Um dos salteadores, a quem a tradição atribui o nome de DIMAS, repreende o companheiro severa-
mente, e, dirigindo-se a Jesus profere uma frase reveladora de correto conhecimento espiritual. Não
solicita que o liberte do suplício, nem que o faça viver, mas apenas que “se lembre dele, quando estiver
em seu reino”.
Jesus responde literalmente: “Em verdade te digo (amên soi légô) hoje mesmo (sêmeron) estarás co-
migo (met'emou ésêi) no paraíso (en tôi paradeísôi)”.
A palavra PARAÍSO, transcrição do persa pairi-daêza), é encontrada várias vezes no Antigo Testa-
mento, com o sentido de “jardim plantado”, de “bosque” ou “pomar” amenos, mas sempre no solo da
Terra. e não flutuando entre as nuvens. Foi a tradução encontrada pelos LXX para a palavra hebraica
eden raiz que significa “prazer, delícia, deleite, gozo (também sexual).
No Gênesis (2:8, 9, 10, 15, 16 e 3:1, 2, 3, 8, 10, 23 e 24) foi empregada para designar, segundo a ver-
são esotérica, o local onde Deus colocou Adão. No sentido esotérico expressa o estado da alma
(psychê) dos animais que, ainda não discernindo entre bem e mal, vivem no prazer permanente do
hoje, gozando a vida sem ontem e sem amanhã, deleitando-se no instante do agora.
Em outros passos no Antigo Testamento encontramos o termo parádeisos como local físico de deleite
ameno: “uma carta para Asaph, guarda do BOSQUE (paradeisou)”, (Neh. 2:8); “Fiz para mim jardins
(kêpous) e QUINTAIS (paradeísous) e neles plantei árvores frutíferas de todas as espécies” (Ecl. 2:5)
“Os teus renovos são um pomar (parádeisos) de romãs com frutos preciosos” (Cânt. 4:13).
Há ainda os que apenas designam “jardim” como lugar de repouso e prazer ameno: “E eu saí como um
canal do rio e como um aqueduto para um jardim (parádeison)” (Ecli. 24:30 nos LXX, 24:41 na Vul-
gata); “A graça como um jardim (parádeisos) em bênçãos” (Ecli. 40:17); “Nasceste nas delícias do
jardim de Deus (en têi tryphêi toú paradeísou toú theoú egenêthês)” (Ezeq. 28:13). Comparando a As-
síria a um cedro do Líbano, o profeta Ezequiel (31:8-9) assim se exprime: “Os cedros no JARDIM DE
DEUS (paradeísôi toú theoú) não o podiam esconder; os ciprestes não eram como seus ramos e os
plátanos não eram como seus galhos; nenhuma árvore no JARDIM DE DEUS se assemelhava a ele em
sua beleza, pela multidão de seus ramos e o invejavam as árvores do JARDIM (paradeísou) das delíci-
as de Deus”.
No Novo Testamento, além deste passo de Lucas, há dois outros que empregam essa palavra: 2.ª Cor.
12:4 diz: “E conheço esse homem (se no corpo, se fora do corpo, não sei: Deus sabe) que foi arrebata-
do ao JARDIM (eis tòn parádeison) e ouviu palavras impronunciáveis, que não é lícito o homem fa-

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SABEDORIA DO EVANGELHO

lar”. E Apoc, 2:7 onde lemos: “Ao vencedor dar-lhe-ei de comer da árvore da vida, que está no JAR-
DIM (en tôi paradeísôi) de Deus”.
Agostinho (Patr. Lat. vol. 35, col 1927) interpreta sempre como o “céu”, no sentido católico. Mas ou-
tros compreendem como o eden do Gênesis, o vulgarmente chamado “paraíso terrestre”, como Cirilo
de Jerusalém (Patrol. Gr, vol. 33, col. 809), João Crisóstomo. (Patr.Gr. vol. 49, cal. 409/410), Teofi-
lacto (Patr.Gr. vol. 123, col 1104) e Eutímio (Patr. Gr. vol. 129, col. 1092).
Segundo Henoch (60:8, 23 e 61:12) não se trata de “céu”, mas de Hades. Entretanto, temos que inter-
pretar o verdadeiro “paraíso” segundo o dizer de Ambrósio (Patr. Lat. vol. 15, col. 1834 ): vita enim
esse cum Christo; ideo, ubi Christus, ibi vita, ibi regnum, ou seja, “Com efeito, a vida é estar com
Cristo; por isso, onde está Cristo, aí está a vida, aí o reino”.

O trecho ensina-nos meridiana lição do modo como o mundo considera e trata os Emissários do Bem,
com suas zombarias e desafios, para que saia das dificuldades, como se os evoluídos se comprazes-
sem, qual os involuídos em facilidades e prazeres físicos e ausência de dores. Mal sabem que a dor é
exatamente a porta por onde se alcança o cume da montanha, na árdua e íngreme subida evolutiva.
Como em seu espírito de serviço os medianeiros levam a cura aos corpos enfermos dos outros, julga-
se que possuem os mesmos poderes em relação a si mesmos, esquecidos, ou ignorando, que, sendo
criaturas devedoras à Lei do Carma, também eles “precisam” expugar os pesados fluidos que agre-
garam a si em vidas pretéritas ou na mesma vida atual.
Esse, evidentemente, não era o caso de Jesus, que se situa em outra faixa, como também o de outros
seres elevados: a dor, nessa ambiência superior, é a escalada de mais um degrau evolutivo, o que se
não consegue sem esforço doloroso: toda iniciação em nova estrada requer readaptação, exigindo
sacrifício que inclui, por vezes, violência, não só espiritual como física.
Tudo isso é inconcebível para o vulgo em atraso, que julga bem e felicidade somente o que se relacio-
na com o corpo denso e o astral inferior (saúde, conforto, sensações de prazer, emoções felizes). O
essencial é saber receber com resignação, sendo com alegria, aquilo que nos chega com vistas à nos-
sa ascensão. Não importa se se trata quer de soldados broncos, quer de sacerdotes cultos: vale o es-
tágio espiritual em que se encontra a individualidade, não o grau cultural conquistado pela persona-
gem transitória.
E a prova disso é que um dos salteadores, crucificado com Jesus, percebeu o alcance do que se passa-
va, e pede que “Jesus se lembre dele quando estiver em seu reino”.
Alguns intérpretes supõem tratar-se do “céu” católico, da “bem-aventurança eterna”, como dizem. O
absurdo é palpável, quando sabemos que o próprio Jesus não subiu a esse “céu” nesse mesmo dia,
mas ao invés desceu ao “Hades”, e só quarenta e dois dias depois disse aos discípulos que “subiria
ao Pai”. Isso se entendermos “subir ao Pai” no sentido católico, o que não corresponde, nem isso, à
realidade dos fatos.
Como entender, então, esse pedido, falando em “reino”, quando o salteador via Jesus a estertorar
numa cruz a seu lado, um simples carpinteiro humilde?
Não podia, pois, tratar-se de reino material, na Terra. Será que ele teve, naquela hora, a revelação
interna do que se passava? Será que já ouvira de Jesus alguma explicação aos discípulos a esse res-
peito? Ou será que nesse passo de Lucas encontramos, na realidade, um simbolismo profundo, ocul-
tado sob a aparência de um fato?
Inegavelmente, o conhecido como o “bom ladrão” dá-nos maravilhosa lição a respeito da prece sin-
cera, que provém do âmago do coração nos momentos mais dolorosos de nossa jornada, enquanto
estamos crucificados na carne. Embora em dores atrozes, causadas pela necessidade de purificar-nos
de nossos sérios débitos do passado, tenhamos a certeza de que, a nosso lado, crucificado conosco,
porque, habitando dentro de nós, está o Cristo, que ouvirá e atenderá nossa prece, se realmente for a
expressão de nossos sentimentos íntimos.

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C. TORRES PASTORINO

No entanto, se nossa atitude for de rebeldia, como a do que chamamos “mau ladrão”, que nos adian-
tará estarmos crucificados com o Cristo, ao lado de Jesus? Qualquer revolta íntima dissintoniza com
o Cristo interno, e nossa dor se multiplicará, já que em nós mesmos não alimentamos qualquer espe-
rança.
Aí temos, portanto, duas lições: a da prece e a da resignação, humildemente reconhecendo que mere-
cemos o que estamos recebendo”.
A promessa de Jesus também requer meditação.
Segundo sabemos, cada um recebe segundo suas obras (cfr, vol. 5). Ora, a vida do “bom ladrão” não
havia transcorrido com ações positivas, pois ele mesmo reconhece: “recebemos o merecido do que
fizemos”. Logo, teria sido clamorosa injustiça, sua liberação total naquele momento.
Mais: é-nos dito que “todos chegaremos à medida da evolução do Cristo” (Ef. 4:32). Ora, por sua
vida na matéria, o “bom ladrão” não havia alcançado essa evolução crística. Logo, não possuía ga-
barito para obter a liberação total.
Concluímos, pois, que não há possibilidade de entender-se a frase de Jesus como prova de obtenção
“nesse dia” (“hoje”) da “bem-aventurança celeste”, antes de o próprio Mestre a ter conseguido.
Que há de verdadeiro na frase?
Se bem entendemos a doutrina longamente exposta nos Evangelhos, a finalidade primordial da encar-
nação da criatura humana é a obtenção da felicidade suprema do Encontro com o Cristo Interno, por
meio do MERGULHO no imo do coração, o que - quando permanente - constitui a liberação total.
Mas, muitas vezes experimentamos esse Encontro sublime em átimos de segundo, quer consciente-
mente, quer inconscientemente. É natural e inconsciente, por exemplo, no gozo inigualável do milio-
nésimo de segundo do orgasmo sexual - pois só unificados com o Cristo Interno, temos a capacidade
de tornar-nos “criadores”, à semelhança da ação criadora divina -. Daí ser tão forte esse impulso,
que leva a humanidade a superar todos os percalços e sofrimentos da gestação e o trabalho da ma-
nutenção e educação dos filhos. E esse prazer foi concedido aos seres humanos para que fossem expe-
rimentando aos poucos a satisfação dessa felicidade total (cfr. no vol. 2), as opiniões de Teilhard de
Chardin e de Paul Brunton).
Ora, o Encontro com o Cristo Interno faz que a criatura passe a conscientizar-se (“que entre”) no
“reino celeste”, abandonando, por instantes, o reino hominal terreno. Isso, sem dúvida, está dentro de
toda lógica, e pode compreender-se racionalmente; portanto, a promessa podia ser feita e cumprida:
hoje mesmo estarás comigo (terás um Encontro comigo, diz O Cristo) no jardim delicioso que supera
e anula as dores e dá a satisfação da felicidade, apesar de todo o sofrimento.
E talvez, com esse sofrimento da crucificação, Dimas também haja dado seu primeiro passo na senda
iniciática, tendo abertas diante de si as portas que conduzem à plenificação da Paz Interior.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

AO PÉ DA CRUZ

Mat. 27:55-56 Luc. 23:49

55. Estavam ali muitas mulheres, contemplan- 49. Mas todos os conhecidos dele estavam de
do de longe, as quais tinham acompanhado pé, ao longe, e as mulheres que o seguiam
Jesus desde a Galiléia, para servi-lo. desde a Galiléia, contemplando essas coisas.
56. Entre elas estavam Maria, a Madalena e
Maria, a mãe de Tiago e de José, e a mãe João, 19:25-27
dos filhos de Zebedeu

25. Estavam, porém, junto à cruz de Jesus, a


Marc. 15:40-41 mãe dele e a Irmã da mãe dele, Maria a (es-
posa) de Cleopas, e Maria a Madalena.
41. Estavam também ali umas mulheres, con- 26. Vendo, então, Jesus sua mãe e ao lado o
templando de longe, entre elas Maria, a discípulo que amava, disse à mãe: “Mulher,
Madalena e Maria a mãe de Tiago o menor eis teu filho”.
e de José, e Salomé, 27. Depois disse ao discípulo. “Eis tua mãe”. E
42. as quais, quando estava na Galiléia, o desde essa hora, tomou-a o discípulo como
acompanhavam e serviam, e muitas outras coisa própria.
que subiram com ele a Jerusalém.

Aqui encontramos a relação dos que se encontravam a contemplar a cruz, durante a permanência de
Jesus. A enumeração não é lisonjeira para os homens, pois o único presente, dos Seus amigos, parece
ter sido João, o “discípulo amado”. As mulheres citadas, em número de cinco, acompanharam Jesus
durante todo o Seu ministério. Temos então (cfr. vol. 2 e vol. 3).
1. MARIA, a mãe de Jesus.
2. MARIA, denominada a Madalena, do nome de sua aldeia natal Magdala (atual El-Medjdel) no lago
de Tiberíades, a quem Jesus dedicava tão grande amor, que a brindou com Sua primeira aparição.
após levantar-se do túmulo.
3. JOANA, irmã da mãe de Jesus, esposa de Cuza e mãe de Salomé (a esposa de Zebedeu), de Simão,
de Maria e de Suzana (?) ditos “irmãos de Jesus”.
4. MARIA, esposa de Clopas, que era irmão de José, e mãe de Tiago (o menor), de José e de Judas
Tadeu, também ditos “irmãos de Jesus”.
5. SALOMÉ, esposa de Zebedeu e mãe de Tiago (o maior) e de João o evangelista.

João cita as quatro primeiras, omitindo o nome de sua própria mãe, Salomé, talvez para não chocar os
leitores com a narração, a seguir, da entrega que a ele fez Jesus de uma segunda mãe, ou mesmo por
modéstia. Mateus e Marcos omitem o nome da mãe de Jesus e de Joana de Cuza, mas são unânimes
em registrar a presença de Salomé. Lucas não cita nomes.

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C. TORRES PASTORINO

Concordamos (vol 2) com Zahn, Loisy, Lagrange, Durand e Bernard, que a “irmã de Maria” não podia
ser “Maria de Clopas”, pois não se compreenderia duas irmãs com o mesmo nome. Daí nossa hipótese
de que a “irmã de Maria” era Joana, esposa de Cuza.
Todos mantinham-se “de pé” (eistêkeisan), fortes e corajosas.

Figura “AS MULHERES” – Desenho de Bida, gravura de J. Veyssarat

Foi quando Jesus cônscio de si e com todas as Suas energias, percorreu o olhar pelas pessoas ali pre-
sentes, e proferiu as frases curtas e incisivas: “Mulher, eis teu filho” (gynai, híde ho huiós sou). Com
isso nomeava João, o discípulo amado, como Seu substituto legal no afeto de Maria. Voltando-se, de-
pois, para João, ratifica o mesmo legado: “eis tua mãe” (híde hê mêtêr sou). E o evangelista acrescenta:
e desde essa hora, tomou-a o discípulo como coisa própria” (eis tà ídia), ou “a seu cargo”.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

A partir do século XII, apoiando-se em Orígenes (Comment. in Joannem, 1.4. 23), a tradição passou a
considerar válida a interpretação de Rupert de Deutz ou Rupertus (Comment. in Joannem, Patr. Lat.
vol. 169, col. 790): João representou, ao pé da cruz, todas as criaturas humanas, que se tornaram, ipso
facto, irmãs de Jesus.
Essa tradição foi sancionada por Leão XIII (Encíclicas Quamquam pluries, de 25-8-1889; Octobri
mense adveniente de 22-9-1591; Jucundum semper, de 8-9-1894; e Adjutricem populi christiani, de 5-
9-1895) e por Pio XI (Encíclica Rerum Ecclesiae, de 28-2-1926), onde se lê: Sanctissima Regina
Apostolorum Maria, cum homines universos in Callvaria habúerit materno animo suo commendatos,
non minus eos fovet ac diligit, qui se fuisse a Christo Jesu redemptos ignorant, quam qui ipsius benefi-
ciis fruuntur feliciter, ou seja: “Maria santíssima, rainha dos apóstolos, ao ter encomendados a seu
ânimo materno, no Calvário, todos os homens, não menos ama e acalenta aqueles que ignoram terem
sido redimidos pelo Cristo Jesus, do que àqueles que felizmente gozam dos benefícios Dele”.
Portanto, segundo o pensamento católico, todas as criaturas humanas, fiéis e infiéis, estão sob o manto
protetor e materno, de Maria, por delegação de Jesus.

A beleza deste capítulo é imensa, pois o vemos imbuído de delicadeza de sentimentos.


Em primeiro lugar salienta-se a fidelidade feminina, geralmente bem maior que a masculina, em vista
dos sentimentos mais apurados e do amor naturalmente materno e sacrificial. Apesar do ambiente
rude de soldados, do espetáculo horripilante e deprimente da cruel crucificação, do cansaço e dos
fortes impactos emocionais das últimas horas, não abandonaram o ser amado à sua sorte: permane-
ceram “de pé”, a confortar com seus olhares amorosos aquele que estava a sofrer pelo bem que es-
palhara e pelos profundos conhecimentos espirituais que demonstrara em Seus ensinamentos às mul-
tidões e ao grupo de Seus discípulos. E através do olhar, deveram também sustentá-Lo com seus flui-
dos de amor inigualável, diminuindo-Lhe a dor moral do abandona da maioria de Seus discípulos e
mantendo-O anestesiado às dores físicas.
A expressão “de longe contemplavam” (Mateus, Marcos e Lucas) é contraditada pelo testemunho
pessoal de João, ali presente: “junto à cruz de Jesus”. Temos que compreender um meio termo, pois
“de longe” nem poderiam ter ouvido as palavras proferidas por Jesus; mas também “junto” deve
pressupor “colados” à cruz, já que os soldados não teriam permitido proximidade exagerada, com
receio de ser prestada aos condenados ajuda indesejável.
Fora do círculo familiar da mãe, das duas tias e da irmã de Jesus (Salomé) e do sobrinho João, a úni-
ca não parenta era a Madalena, a grande apaixonada pelo Mestre, e que, uma vez tocada, jamais O
abanonara.
Em segundo lugar observamos a cena da entrega de Maria, Sua Mãe, ao discípulo amado, a fim de
que ele cuidasse de Maria em lugar do próprio filho Jesus.
Anotemos, de passagem, que se Maria tivesse tido outros filhos, ou mesmo enteados (filhos do primei-
ro matrimônio de José), esse gesto de Jesus tem ensanchas de magoá-los profundamente. Daí termos
aceitado, desde o início, a hipótese da expressão “irmãos de Jesus”, como sendo seus “primos irmãos”
(1).
(1) A palavra grega adelphós, “irmão”, referia-se também a “primos”, como lemos em muitos autores
profanos (cfr. Herodoto. 1.65; 4.147; 6.94. etc.; Thucidides. 2.101, etc.; Strabão, 10.5.6, etc.), dan-
do-se o mesmo com a palavra latina frater. Lemos em Cícero (De Fin; 5.1. 1): L. Cícero frater
noster, cognatione patruelis, amore germanus, ou seja, “Lúcio Cícero nosso irmão, pelo parentes-
co primo, pelo amor, irmão”. E a definição do Digesto (38. 10. 1, § 6): item fratres patrueles, soro-
res patrueles, id est qui quaeve ex duobus fratribus progenerantur, “da mesma forma, primos-
irmãos, primas-irmãs, os que e as que são gerados de dois irmãos”. Não esqueçamos que a palavra
portuguesa “irmão”, assim como a castelhana “hermano”, são derivadas do latim germanus (prove-
niente de gérmen) e exprime aqueles que são da mesma origem, do mesmo germe, conforme já le-
mos mesmo em Plauto (Menaechmi, 1102): spes mihi est vos inventuros fratres germanos duos

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C. TORRES PASTORINO

geminos una matre natos et patre uno uno die, isto é: “minha esperança é de que vos descobrireis
irmãos autênticos gêmeos nascidos de uma mãe e de um pai, no mesmo dia”.
Já o contrário podia dar-se, como se deu: embora estivesse presente Salomé, mãe de João, era per-
feitamente admissível que Jesus atribuísse o encargo de Sua mãe ao discípulo amado, sem que por
isso se sentisse magoada a mãe de João, grande e sincera discípula de Jesus. Antes, para ela consti-
tuía uma honra, pois demonstrava a confiança que o Mestre depositava em seu filho, ainda tão jovem
(João, a essa época, parece que contava cerca de 21 ou 22 anos).
A partir daí, João manteve Maria a seu lado, tendo-a levado para Éfeso, segundo a tradição, onde ela
veio a falecer muitos anos depois.

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SABEDORIA DO EVANGELHO

ÍNDICE REMISSIVO

Gólgota, 140
A
H
Acontecimentos daquela noite, 68
ACUSAÇÕES, 106 Hora, A, 144
ALEGRIA MÁXIMA, 31
Amônio, 14
Anastácio, 118
I
Ancidão dos Dias, 51 INTERROGATÓRIO OFICIAL, 90
Azpeitia-Gutierrez, 61 INTERROGATÓRIO, 1.º, 110
INTERROGATÓRIO, 2.º, 116
B INTERROGATÓRIO, 3.º, 117
INTERROGATÓRIO, PRIMEIRO, 82
Barrabas, 118
Basílio, 21
Bebida amarga, 140
L
Bossuet, 15 LAVA AS MÃOS, Pilatos, 132
Libertação de Preso, 118
C Localização, 140

Cardeal Estêvão Langton, 14


Cardeal Hugo de Saint-Cher, 14
M
CASA DE CAIFÁS, NA, 77 Melquisedec, 72
Chisda, Rab, 140 Mulheres, As, 153
Crucificação, 142
CRUCIFICAÇÃO, A, 139
Cruz como suplício, A, 141 N
NEGAÇÃO DE PEDRO, 1.ª, 79
D
Davies, J. G., 21 O
DESPEDIDA, 50 O “ADVOGADO”, 9
Divisão das vestes, 144 O “EU” PROFUNDO, 3
Ocorrências, 120
E ÓDIO DO MUNDO, 20
ORAÇÃO NO JARDIM, 58
Encontro da Cruz, 142 ORAÇÃO, A, 34
ENVIO A HERODES, 114 OUTRAS NEGAÇÕES, 85
ENVIO A PILATOS, 98
EPISÓDIO DE JUDAS, 101
ESFORÇO PARA SALVAR, 126 P
PÉ DA CRUZ, AO, 153
F Picchini, L., 61
PRISÃO MOVIMENTADA, 67
FACÕES, OS, 56
Filho Carnal de Deus, 93
Filho consubstancial de Deus, 93 R
FILHO DE DEUS, 91 REI ESCARNECIDO, 122
Filho por Adoção, 92 Riquelme Salazar, 61
Fixação das mãos, 143 Roberto Estienne, impressor, 14
Fixação dos pés, 143
Flagelação, 120
Flávio Josefo, 76 S
François-Marie Braun, 46
SAÍDA DO CENÁCULO, 54
Salvação, 52
G Sedile, 143
SIMÃO, O CIRENEU, 135
Gaius Septimius Vegetus, 118 Sonho, O, 119
Gandhi, o Mahatma, 17 Supedâneo, 143
Girólamo Vitelli, 118

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C. TORRES PASTORINO

T UNIFICAÇÃO COM DEUS, 39

Teodoro de Beza, 14
Teofrasto (História Plantarum), 123
V
Teresa d’Ávila, 46 Vestes, 141
Tito Lívio, 118 VISITA A ANÁS, 75
Título, O, 144
TRABALHO DO ESPÍRITO, 26
Z
U Zaragoza, 61
ZOMBARIAS, 149
UNIÃO COM CRISTO, 13

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Sabedoria do Evangelho - Índice Seqüencial por Volume

TÍTULO VOL PÁG MT MC LC JO


Introdução 1 2
Principais Manuscritos 1 5
Os Textos 1 5
Os Sinópticos 1 7
A Inspiração 1 7
Interpretação 1 8
Diversos Sentidos 1 9
Esquema Eterno da Missão de Jesus 1 11 1:1-18
O Prólogo de Lucas 1 16 1:1-4
Resumo da Teoria da Origem e do Destino do Espírito 1 17
O Cristo 1 21
Manifestação Crística 1 22
Objeções 1 23
A curva Involução-Evolução 1 26
Zacarias e Isabel 1 30 1:5-7
Predição do Nascimento de João 1 32 1:8-25
Anúncio à Maria 1 37 1:26-38
Visita à Isabel 1 43 1:39-56
Nascimento de João 1 47 1:57-66
O Cântico de Zacarias 1 49 1:67-80
Revelação à José 1 53 1:18-25
Nascimento de Jesus 1 57 2:1-7
Anjos e Pastores 1 60 2:8-14
A Visita dos Pastores 1 63 2:15-20
Genealogia de Jesus 1 65 1:1-17 3:23-38
Circuncisão 1 70 2:21
Apresentação 1 71 2:22-24
Cântico de Simeão 1 73 2:25-39
Visita dos Magos 1 78 2:1-12
Fuga para o Egito 1 84 2:13-15
Evolução Animal-Hominal 1 86
Massacre dos Inocentes 1 88 2:16-18
Regresso do Egito 1 90 2:19-23
Visita ao Templo 1 91 2:40-52
Simbolismo Cósmico 1 93
Ministério do Precursor 1 94 3:1-6 1:1-6 3:1-6
Instruções de João Batista 1 100 3:7-10 3:7-14
Anúncio do Messias 1 104 3:11-12 1:7-8 3:15-18
Respostas de João 1 106 1:19-28
O Mergulho de Jesus 1 107 3:13-17 1:9-11 3:21-22 1:29-34
Tentação de Jesus 1 117 4:1-11 1:12-13 4:1-13
Os Primeiros Discípulos 1 126 3:23 1:35-42
Volta à Galiléia 1 130 1:43-51

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Sabedoria do Evangelho - Índice Seqüencial por Volume

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As Bodas de Caná 1 134 2:1-11
Estada em Cafarnaum 1 139 2:12
Viagem a Jerusalém 1 140 2:13
Expulsão dos Exploradores 1 141 21:12-13 11:15-17 19:45-46 2:14-17
Discussão com as Autoridades 1 145 2:18-22
Os Primeiros Entusiastas 1 147 2:23-25
A Conversa com Nicodemos 2 2 3:1-15
Comentário do Evangelista 2 7 3:16-21
Jesus Mergulha 2 14 3:22-24
Último Testemunho de João 2 15 3:25-36
Prisão de João 2 18 14:3-5 6:17-20 3:19-20
Jesus Sai da Judéia 2 21 4:12 1:14 4:1-3
A Samaritana 2 22 4:4-26
Espanto dos Discípulos 2 28 4:27-38
Jesus com os Samaritanos 2 32 4:39-42
Visita a Nazaré 2 33 4:16-22 4:43 e 45
Cura do Filho do Oficial de Herodes 2 36 4:46-54
Jesus se Fixa em Cafarnaum 2 39 4:13-16
Convocação dos Discípulos 2 40 4:18-22 1:16-21 4:31a
Cura de um Obsidiado 2 42 1:21-28 4:31-37
Cura da Sogra de Pedro 2 44 8:14-15 1:29-31 4:38-39
Outras Curas 2 45 8:16-17 1:32-34 4:40-41
Oração 2 47 1:35-38 4:42-43
No barco de Pedro 2 49 5:1-3
Pescaria Inesperada 2 50 5:4-11
Jesus Percorre Galiléia 2 52 4:17 e 23 1:14-15 e 39 4:15 e 44
Cura do Leproso 2 54 8:2-4 1:40-45 5:12-16
Cura do Paralítico 2 58 9:1-8 2:1-12 5:17-26
Mateus É Chamado 2 63 9:9 2:13-14 5:27-28
O Banquete de Levi 2 65 9:10-13 2:15-17 5:29-32
A Questão do Jejum 2 67 9:14-17 2:18-22 5:33-39
A Questão do Sábado 2 70 12:1-8 2:23-28 6:1-5
Cura da Mão Atrofiada 2 74 12:9-14 3:1-6 6:6-11
Jesus Retira-se 2 77 12:15-21 3:17-12
4:24-25
A Escolha dos Doze 2 79 10:1-4 3:13-19 6:12-16
A Descida do Monte 2 84 6:17-19
O Sermão do Monte - As Bem-Aventuranças 2 85 5:1-12 6:20-26
- O Sal da Terra 2 96 5:13-16 9:50 14:34-35
- A Luz do Mundo 2 97 5:14-16 11:33-36
- Interpretação da Lei 2 99 5:17-20
- As Ofensas 2 101 5:20-26 12:54-59
- O Adultério 2 105 5:27-32 16:18

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- Os Juramentos 2 112 5:33-37
- A Não-Resistência 2 113 5:38-42 6:29-30
- Amor ao Próximo 2 116 5:43-48 6:27-28
6:32-36
- A Modéstia 2 119 6:1-4
- A Oração 2 121 6:5-15 11:25-26 11:1-4
- O Jejum 2 127 6:16-18
- Os Tesouros 2 128 6:19-24 12:32-34
- As Preocupações 2 131 6:24-34 12:22-31
- Os Julgamentos 2 135 7:1-5 5:37-38
5:41-42
- A Discrição 2 137 7:6
- Lei de Causa e Efeito 2 139 7:7-12 11:5-13
- Dificuldade na Evolução 2 141 7:13-14 13:23-30
- Frutos do Espírito 2 143 7:15-20 6:43-45
- Viver os Ensinamentos 2 145 7:21-27 6:46-49
Jesus Desce do Monte 2 147 7:28-29 7:1
8:1
Cura do Servo do Centurião 3 3 8:5-13 7:2-10
O Filho da Viúva 3 8 7:11-18
A Família de Jesus 3 10 12:46-50 3:20-21 8:19-21
3:31-35
João - Reencarnação de Elias 3 13 11:12-19 7:19-35
O Amor Salva 3 19 7:36-50
As Mulheres 3 23 8:1-3
A Parábola do Semeador 3 26 13:1-9 4:1-9 8:4-8
O Reino dos Céus 3 29 13:44-53
Razão das Parábolas 3 31 13:34-35 4:33-34
A Explicação das Parábolas 3 33 13:10-15 4:10-25 8:9-18
Ventania Acalmada 3 39 8:18 4:35-41 8:22-25
8:23-27
O Obsidiado de Gerasa 3 42 8:28-35 5:1-20 8:26-39
O Pedido de Jairo 3 48 9:18-19 5:21-24 8:40-42
Cura de Hemorragia 3 49 9:20-22 5:25-34 8:43-48
A Filha de Jairo 3 53 9:23-26 5:35-43 8:49-56
Jesus em Nazaré 3 56 13:54-58 6:1-6a 4:22b-30 4:44
Jesus Percorre a Galiléia 3 60 9:35-38 6:6b
Instruções aos Emissários - I 3 62 10:5-15 6:7-11 9:1-5
Instruções aos Emissários - II 3 67 10:16-23
Instruções aos Emissários - III 3 70 10:24-33 6:40
Instruções aos Emissários - IV 3 75 10:34-39 12:49-53
Instruções aos Emissários - V 3 79 10:40-42
Pregação 3 81 11:1 6:12-13 9:6

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A Morte do Batista 3 82 14:6-12 6:21-29
Regresso dos Emissários 3 86 6:30-31 9:10
Opinião de Herodes 3 87 14:1-2 6:14-16 9:7-9
Jesus É Seguido 3 90 14:13-14 6:32-34 9:11 6:1-4
Primeira Multiplicação dos Pães 3 93 14:15-21 6:35-44 9:12-17 6:5-13
Em Oração 3 99 14:22-23 6:45-46 6:14-15
Jesus Anda Sobre a Água 3 101 14:24-33 6:47-52 6:16-21
Em Genesaré 3 105 14:34-36 6:53-56
O Tributo do Templo 3 107 17:24-27
O Pão da Vida - O Cenário 3 109 6:22-25
- A Motivação 3 112 6:26-34
- Via Contemplativa 3 115 6:35-46
- Via Unitiva 3 121 6:47-58
- Desfecho 3 126 6:59-71
Cura no Templo 3 130 5:1-16
Cristo e sua Ação - I 3 136 5:17-29
Cristo e sua Ação - II 3 142 5:30-47
Hipótese Cosmogônica 3 148
Regresso à Galiléia 4 3 7:1
Dogmas Humanos 4 4 15:1-11 7:1-16
O Que Prejudica 4 8 15:12-20 7:17-23 6:39
Cananéia 4 13 15:21-28 7:24-30
O Surdo-Gago 4 17 7:31-37
No Mar da Galiléia 4 20 15:19-31
Segunda Multiplicação dos Pães 4 22 15:32-38 8:1-9
Pequena Viagem 4 25 15:39 8:10
O Fermento dos Fariseus 4 26 16:5-12 8:14-21
O Cego de Betsaida 4 28 8:22-26
A Confissão de Pedro 4 30 16:13-20 8:27-30 9:18-21
Predição da Morte 4 43 16:21-23 8:31-33 9:22
O Discipulato 4 47 16:24-28 8:34-38 e 9:23-27
9:1
O Homem no Novo Testamento 4 53
- A Concepção da Divindade 4 53
- Deus no Homem 4 53
- A Concepção do Homem 4 54
- Encarnação 4 55
O Emprego das Palavras 4 56
Textos Comprobatórios 4 62
- Individualidade-Personagem 4 63
- O Corpo 4 63
- A Alma 4 65
- A Mente 4 65

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- O Coração 4 66
Escola Iniciática 4 69
- Termos Especiais 4 70
- Tradição 4 72
- “Palavra Ouvida” 4 73
- Mistério 4 75
- O Processo 4 76
- No Cristianismo 4 77
- Textos do N.T. 4 79
- Culto Cristão 4 80
- Os Sacramentos 4 81
A Transfiguração 4 84 17:1-9 9:2-8 9:28-36
Reencarnação 4 93 17:10-13 9:10-13
A Cura do Epiléptico 4 96 17:14-18 9:14-27 9:37-43a
A Fé 4 101 17:19-21 9:28-29
Predição da Morte 4 104 17:22-23 9:30-32 9:43-45
Simplicidade 4 106 18:1-5 9:33-37 9:46-48
Tolerância 4 112 9:38-41 9:49-50
Conversa com os Irmãos 4 115 7:2-9
Viagem à Jerusalém 4 118 19:1 9:51 7:10
Fogo do Céu 4 121 9:52-56
Opiniões Desencontradas 4 123 7:11-13
Ainda a Cura no Templo 4 125 7:14-24
Mandato de Prisão 4 128 7:25-36
Água Viva 4 135 7:37-44
Missão Falhada 4 138 7:45-53 e
8:1
Discípulos Convidados 4 140 8:19-22 9:57-62
Os 72 Emissários 5 3 11:20-24 10:1-16
O Samaritano 5 9 10:25-37
Maria e Marta 5 14 10:38-42
O Regresso dos 72 5 16 11:25-30 10:17-24
13:16-17
Cura de um Obsidiado 5 22 12:22-30 3:22-27 11:14-23
Falar Contra o Espírito 5 26 12:31-37 3:28-30
Ação de Obsessores 5 31 12:43-45 11:24-26
O Elogio da Mulher 5 34 11:27-28
O Sinal Celeste 5 36 12:38-42 8:11-13 11:29-32
16:1-4
Almoço com o Fariseu 5 40 11:37-41
Os Sete Ais 5 43 23:13-36 11:42-52
Epílogo do Almoço 5 50 11:53-54
A Adúltera 5 51 8:2-11

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Luz do Mundo 5 56 8:12-20
Jesus Declara-se YHWH 5 61 8:21-30
A Gnose da Verdade 5 66 8:31-59
Cego de Nascença 5 76 9:1-41
A Porta das Ovelhas 5 86 10:1-9
O Bom Pastor 5 90 10:10-21
Pregar Sem Medo 5 95 12:1-12
A Avareza Egoísta 5 102 12:13-21
“Metanóia” 5 104 13:1-5
Produzir Frutos 5 106 13:6-9
Cura de uma Obsidiada 5 109 13:10-17
Mostarda e Fermento 5 113 13:31-33 4:30-32 13:18-22
A Semente 5 116 4:26-29
Um com o Pai 5 118 10:22-39
Volta à Transjordânia 5 123 19:1b-2 10:1 10:40-42
Cura de Dois Cegos 5 125 9:27-31
O Obsidiado Mudo 5 127 9:32-34
Recado a Herodes 5 129 13:31-33
Queixa de Jerusalém 5 132 23:37-39 13:34-35
Cura do Hidrópico 5 134 14:1-6
Os Primeiros Lugares 5 137 14:7-1
Os Convidados 5 139 14:12-14
Parábolas dos Convidados 5 141 22:1-14 14:15-24
Ser Discípulo 6 3 14:25-33
A Ovelha Perdida 6 7 18:12-24 15:1-7
A Dracma Perdida 6 9 15:8-10
O Filho Pródigo 6 11 15:11-32
O Administrador Não-Justo 6 18 16:1-17
O Rico e Lázaro 6 24 16:19-31
Trigo e Joio 6 28 13:24-30
Explicação da Parábola 6 30 13:36-43
Escândalos 6 34 18:6-10 9:42-48 17:1-2
- Escândalo 6 35
- Prova da Reencarnação 6 36
O Perdão 6 40 18:15-35 17:3-4
- Correção Fraterna 6 42
- Perdão 6 43
Servos Inúteis 6 46 17:7-10
Os Dez Leprosos 6 49 17:11-19
Dentro de Vós 6 53 17:20-21
O “Dia” do Filho do Homem 6 55 17:22-30
A Prece 6 59 18:1-8
Vaidade 6 62 18:9-14

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Sabedoria do Evangelho - Índice Seqüencial por Volume

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Libelo de Repúdio 6 66 19:3-12 10:2-12
- Hominização 6 72
Jesus e as Crianças 6 76 19:13-15 10:13-16 18:15-17
O Moço Rico 6 79 19:16-22 10:17-22 18:18-23
Dificuldade dos Ricos 6 84 19:23-30 10:23-31 18:18-30
Trabalhadores da Vinha 6 91 20:1-16
Ressurreição de Lázaro - (I) Doença de 6 97 11:1-16
Lázaro
- (II) Ressurgimento da Vida 6 100 11:17-27
- Hendíades 6 101
- (III) Encontro com Maria 6 103 11:28-37
- (IV) Lázaro Ergue-se 6 104 11:38-44
Decretação de Morte 6 112 11:45-54
Predição das Dores 6 116 20:17-19 10:32-34 18:31-34
Pedido Extemporâneo 6 120 20:20-18 10:35-45
Cura de Bartimeu 6 128 20:29-34 10:46-52 18:35-43
Zaqueu 6 131 19:1-10
Os Talentos 6 134 25:14-30 19:11-28
Onde Está Jesus ? 6 139 11:55-57
A Unção em Betânia 6 140 26:6-13 14:3-9 12:1-8
Contra Lázaro 6 144 12:9-11
A Caminho de Jerusalém 7 3 21:1-9 11:1-10 19:29-40 12:12-19
Destruição de Jerusalém 7 9 19:41-44
Na Cidade 7 11 21:10-11 21:14-17 11:11
A Figueira Sem Fruto 7 13 21:18-19 11:12-14
Ensino no Templo 7 17 11:18-19 19:47-48
21:37-38
A Figueira Seca 7 19 21:20-22 11:20-24 17:5-6
O Poder de Jesus 7 21 21:23-27 11:27-33 20:1-8
Os Dois Filhos 7 24 21:28-32
Os Lavradores Maus 7 28 21:33-46 12:1-12 20:9-19
A Moeda de César 7 34 22:15-22 12:13-17 20:20-26
A Ressurreição 7 39 22:23-33 12:18-27 20:27-39
O Grande Mandamento 7 44 22:34-40 12:28-34a
Filho de Davi 7 47 22:41-46 12:35-37 20:41-44
e 34b e 40
- I - Cristo Cósmico 7 48
- II - Cristo-Maytrea 7 49
Condenação do Clero 7 51 21:1-12 12:38-40 20:45-47
A Esmola da Viúva 7 55 12:41-44 21:1-4
Revelação aos Gregos 7 58 12:20-36
Prossegue a Revelação 7 63 12:44-50
e 36b

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Sabedoria do Evangelho - Índice Seqüencial por Volume

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Incredulidade dos Judeus 7 66 12:37-43
Destruição do Templo 7 69 24:1-2 13:1-2
Profecias 7 71 24:3-14 13:3-13 21:5-19
Dias Calamitosos 7 76 24:15-28 13:14-23 17:31-37
21:20-24
Vinda do Filho do Homem 7 80 24:29-31 13:24-27 21:25-28
Despertar do Sono 7 83 24:32-44 13:28-37 21:29-36
Servos Bons e Maus 7 92 24:45-51 12:35-48
As Dez Moças 7 96 25:1-13
Fim do Ciclo 7 100 25:31-46
Plano de Prisão 7 105 26:1-5 14:1-2 22:1-2
Proposta de Judas 7 107 26:14-16 14:10-11 22:3-6
Preparação para a Páscoa 7 111 26:17-19 14:12-16 22:7-13
- Páscoa 7 112
- As Três Marias 7 114
Início da Ceia 7 116 26:20 14:17 22:14
O Maior Serve ao Menor 7 117 22:24-30
O Lava-Pés 7 119 13:1-20
Judas É Indicado 7 124 26:21-25 14:18-21 22:21-23 13:21-32
Transubstanciação 7 128 26:26-29 14:22-25 22:15-20
O Novo Mandamento 7 137 13:33-35
Aviso a Pedro 7 139 26:31-35 14:27-31 22:31-34 13:36-38
O “Eu” Profundo 8 3 14:1-14
O “Advogado” 8 9 14:15-24
União com Cristo 8 13 15:1-17
Ódio do Mundo 8 20 15:18-27
O Trabalho do Espírito 8 26 16:1-15
Alegria Máxima 8 31 16:16-23a
A Oração 8 34 16:23b-33
Unificação com Deus 8 39 17:1-26
Despedida 8 50 14:27-31
Saída do Cenáculo 8 54 26:30 14:26 22:39 18:1a
Os Facões 8 56 22:35-38
Oração no Jardim 8 58 26:36-46 14:12-42 22:40-46 18:1b
Prisão Movimentada 8 67 26:47-56 14:43-52 22:47-53 18:2-12
Visita a Anás 8 75 18:13,24,14
Na Casa de Caifás 8 77 26:57-58 14:53-54 22:54 18:15-16
Primeira Negação de Pedro 8 79 26:69-70 14:66-68 22:55-56 18:17-18
Primeiro Interrogatório 8 82 18:19-23
Outras Negações 8 85 26:71-75 14:69-72 22:58-62 18:25-27
Interrogatório Oficial 8 90 26:59-68 14:55-65 22:63-71
- Filho de Deus 8 91
- I - Filho por Adoção 8 92

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Sabedoria do Evangelho - Índice Seqüencial por Volume

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- II - Filho Carnal de Deus 8 93
- III - Filho Consubstancial de Deus 8 93
Envio a Pilatos 8 98 27:1-2 15:1 23:1 28:28
Episódio de Judas 8 101 27:3-10
Acusações 8 106 23:2 18:29-32
Primeiro Interrogatório 8 110 27:11-14 15:2-5 23:3-5 18:33-38a
Envio a Herodes 8 114 23:6-12
Segundo Interrogatório 8 116 23:13-16
Terceiro Interrogatório 8 117 27:15-23 15:6-14 23:18-23 18:18b-40
- Bar Abbas 8 118
- Libertação do Preso 8 118
- O Sonho 8 119
Flagelação 8 120
- Ocorrências 8 120
Rei Escarnecido 8 122 27:27-30 15:16-19 19:1-3
Esforço para Salvar 8 126 19:4-15
Pilatos Lava as Mãos 8 132 27:24-26 15:15 23:24-25
Simão, O Cireneu 8 136 27:31-32 15:20-21 23:26-32 19:16-17a
A Crucificação - Gólgota 8 139 27:33-38 15:22-28 23:33-34 19:17b-24
- Localização 8 139
- Bebida Amarga 8 139
- Vestes 8 141
- A Cruz Como Suplício 8 141
- Encontro da Cruz 8 142
- Crucificação 8 142
- Fixação das Mãos 8 143
- Fixação dos Pés 8 143
- Supedâneo 8 143
- Sedile 8 143
- A Hora 8 144
- Divisão das Vestes 8 144
- O Título 8 144
Zombarias 8 149 27:39-44 15:29-32 23:35-43
Ao Pé da Cruz 8 153 27:55-56 15:40-41 23:49 19:25-27

9
Sabedoria do Evangelho - Índice por Assunto

TÍTULO VOL PÁG MT MC LC JO


A Adúltera 5 51 8:2-11
A Alma 4 65
A Avareza Egoísta 5 102 12:13-21
A Caminho de Jerusalém 7 3 21:1-9 11:1-10 19:29-40 12:12-19
A Concepção da Divindade 4 53
A Concepção do Homem 4 54
A Confissão de Pedro 4 30 16:13-20 8:27-30 9:18-21
A Conversa com Nicodemos 2 2 3:1-15
A Crucificação - Gólgota 8 139 27:33-38 15:22-28 23:33-34 19:17b-24
A Cruz Como Suplício 8 141
A Cura do Epiléptico 4 96 17:14-18 9:14-27 9:37-43a
A curva Involução-Evolução 1 26
A Descida do Monte 2 84 6:17-19
A Discrição 2 137 7:6
A Dracma Perdida 6 9 15:8-10
A Escolha dos Doze 2 79 10:1-4 3:13-19 6:12-16
A Esmola da Viúva 7 55 12:41-44 21:1-4
A Explicação das Parábolas 3 33 13:10-15 4:10-25 8:9-18
A Família de Jesus 3 10 12:46-50 3:20-21 8:19-21
3:31-35
A Fé 4 101 17:19-21 9:28-29
A Figueira Seca 7 19 21:20-22 11:20-24 17:5-6
A Figueira Sem Fruto 7 13 21:18-19 11:12-14
A Filha de Jairo 3 53 9:23-26 5:35-43 8:49-56
A Gnose da Verdade 5 66 8:31-59
A Hora 8 144
A Inspiração 1 7
A Luz do Mundo 2 97 5:14-16 11:33-36
A Mente 4 65
A Modéstia 2 119 6:1-4
A Moeda de César 7 34 22:15-22 12:13-17 20:20-26
A Morte do Batista 3 82 14:6-12 6:21-29
A Motivação 3 112 6:26-34
A Não-Resistência 2 113 5:38-42 6:29-30
A Oração 2 121 6:5-15 11:25-26 11:1-4
A Oração 8 34 16:23b-33
A Ovelha Perdida 6 7 18:12-24 15:1-7
A Parábola do Semeador 3 26 13:1-9 4:1-9 8:4-8
A Porta das Ovelhas 5 86 10:1-9
A Prece 6 59 18:1-8
A Questão do Jejum 2 67 9:14-17 2:18-22 5:33-39
A Questão do Sábado 2 70 12:1-8 2:23-28 6:1-5
A Ressurreição 7 39 22:23-33 12:18-27 20:27-39

1
Sabedoria do Evangelho - Índice por Assunto

A Samaritana 2 22 4:4-26
A Semente 5 116 4:26-29
A Transfiguração 4 84 17:1-9 9:2-8 9:28-36
A Unção em Betânia 6 140 26:6-13 14:3-9 12:1-8
A Visita dos Pastores 1 63 2:15-20
Ação de Obsessores 5 31 12:43-45 11:24-26
Acusações 8 106 23:2 18:29-32
Água Viva 4 135 7:37-44
Ainda a Cura no Templo 4 125 7:14-24
Alegria Máxima 8 31 16:16-23a
Almoço com o Fariseu 5 40 11:37-41
Amor ao Próximo 2 116 5:43-48 6:27-28
6:32-36
Anjos e Pastores 1 60 2:8-14
Anúncio à Maria 1 37 1:26-38
Anúncio do Messias 1 104 3:11-12 1:7-8 3:15-18
Ao Pé da Cruz 8 153 27:55-56 15:40-41 23:49 19:25-27
Apresentação 1 71 2:22-24
As Bodas de Caná 1 134 2:1-11
As Dez Moças 7 96 25:1-13
As Mulheres 3 23 8:1-3
As Ofensas 2 101 5:20-26 12:54-59
As Preocupações 2 131 6:24-34 12:22-31
As Três Marias 7 114
Aviso a Pedro 7 139 26:31-35 14:27-31 22:31-34 13:36-38
Bar Abbas 8 118
Bebida Amarga 8 139
Cananéia 4 13 15:21-28 7:24-30
Cântico de Simeão 1 73 2:25-39
Cego de Nascença 5 76 9:1-41
Circuncisão 1 70 2:21
Comentário do Evangelista 2 7 3:16-21
Condenação do Clero 7 51 21:1-12 12:38-40 20:45-47
Contra Lázaro 6 144 12:9-11
Conversa com os Irmãos 4 115 7:2-9
Convocação dos Discípulos 2 40 4:18-22 1:16-21 4:31a
Correção Fraterna 6 42
Cristo Cósmico 7 48
Cristo e sua Ação - I 3 136 5:17-29
Cristo e sua Ação - II 3 142 5:30-47
Cristo-Maytrea 7 49
Crucificação 8 142
Culto Cristão 4 80
Cura da Mão Atrofiada 2 74 12:9-14 3:1-6 6:6-11

2
Sabedoria do Evangelho - Índice por Assunto

Cura da Sogra de Pedro 2 44 8:14-15 1:29-31 4:38-39


Cura de Bartimeu 6 128 20:29-34 10:46-52 18:35-43
Cura de Dois Cegos 5 125 9:27-31
Cura de Hemorragia 3 49 9:20-22 5:25-34 8:43-48
Cura de um Obsidiado 2 42 1:21-28 4:31-37
Cura de um Obsidiado 5 22 12:22-30 3:22-27 11:14-23
Cura de uma Obsidiada 5 109 13:10-17
Cura do Filho do Oficial de Herodes 2 36 4:46-54
Cura do Hidrópico 5 134 14:1-6
Cura do Leproso 2 54 8:2-4 1:40-45 5:12-16
Cura do Paralítico 2 58 9:1-8 2:1-12 5:17-26
Cura do Servo do Centurião 3 3 8:5-13 7:2-10
Cura no Templo 3 130 5:1-16
Decretação de Morte 6 112 11:45-54
Dentro de Vós 6 53 17:20-21
Desfecho 3 126 6:59-71
Despedida 8 50 14:27-31
Despertar do Sono 7 83 24:32-44 13:28-37 21:29-36
Destruição de Jerusalém 7 9 19:41-44
Destruição do Templo 7 69 24:1-2 13:1-2
Deus no Homem 4 53
Dias Calamitosos 7 76 24:15-28 13:14-23 17:31-37
21:20-24
Dificuldade dos Ricos 6 84 19:23-30 10:23-31 18:18-30
Dificuldade na Evolução 2 141 7:13-14 13:23-30
Discípulos Convidados 4 140 8:19-22 9:57-62
Discussão com as Autoridades 1 145 2:18-22
Diversos Sentidos 1 9
Divisão das Vestes 8 144
Dogmas Humanos 4 4 15:1-11 7:1-16
Em Genesaré 3 105 14:34-36 6:53-56
Em Oração 3 99 14:22-23 6:45-46 6:14-15
Encarnação 4 55
Encontro com Maria 6 103 11:28-37
Encontro da Cruz 8 142
Ensino no Templo 7 17 11:18-19 19:47-48
21:37-38
Envio a Herodes 8 114 23:6-12
Envio a Pilatos 8 98 27:1-2 15:1 23:1 28:28
Epílogo do Almoço 5 50 11:53-54
Episódio de Judas 8 101 27:3-10
Escândalo 6 35
Escândalos 6 34 18:6-10 9:42-48 17:1-2
Escola Iniciática 4 69
Esforço para Salvar 8 126 19:4-15

3
Sabedoria do Evangelho - Índice por Assunto

Espanto dos Discípulos 2 28 4:27-38


Esquema Eterno da Missão de Jesus 1 11 1:1-18
Estada em Cafarnaum 1 139 2:12
Evolução Animal-Hominal 1 86
Explicação da Parábola 6 30 13:36-43
Expulsão dos Exploradores 1 141 21:12-13 11:15-17 19:45-46 2:14-17
Falar Contra o Espírito 5 26 12:31-37 3:28-30
Filho Carnal de Deus 8 93
Filho Consubstancial de Deus 8 93
Filho de Davi 7 47 22:41-46 12:35-37 20:41-44
e 34b e 40
Filho de Deus 8 91
Filho por Adoção 8 92
Fim do Ciclo 7 100 25:31-46
Fixação das Mãos 8 143
Fixação dos Pés 8 143
Flagelação 8 120
Fogo do Céu 4 121 9:52-56
Frutos do Espírito 2 143 7:15-20 6:43-45
Fuga para o Egito 1 84 2:13-15
Genealogia de Jesus 1 65 1:1-17 3:23-38
Hendíades 6 101
Hipótese Cosmogônica 3 148
Hominização 6 72
Incredulidade dos Judeus 7 66 12:37-43
Individualidade-Personagem 4 63
Início da Ceia 7 116 26:20 14:17 22:14
Instruções aos Emissários - I 3 62 10:5-15 6:7-11 9:1-5
Instruções aos Emissários - II 3 67 10:16-23
Instruções aos Emissários - III 3 70 10:24-33 6:40
Instruções aos Emissários - IV 3 75 10:34-39 12:49-53
Instruções aos Emissários - V 3 79 10:40-42
Instruções de João Batista 1 100 3:7-10 3:7-14
Interpretação 1 8
Interpretação da Lei 2 99 5:17-20
Interrogatório Oficial 8 90 26:59-68 14:55-65 22:63-71
Introdução 1 2
Jesus Anda Sobre a Água 3 101 14:24-33 6:47-52 6:16-21
Jesus com os Samaritanos 2 32 4:39-42
Jesus Declara-se YHWH 5 61 8:21-30
Jesus Desce do Monte 2 147 7:28-29 7:1
8:1
Jesus e as Crianças 6 76 19:13-15 10:13-16 18:15-17
Jesus É Seguido 3 90 14:13-14 6:32-34 9:11 6:1-4
Jesus em Nazaré 3 56 13:54-58 6:1-6a 4:22b-30 4:44

4
Sabedoria do Evangelho - Índice por Assunto

Jesus Mergulha 2 14 3:22-24


Jesus Percorre Galiléia 2 52 4:17 e 23 4:15 e 44
1:14-15 e 39

Jesus Percorre a Galiléia 3 60 9:35-38 6:6b


Jesus Retira-se 2 77 12:15-21 3:17-12
4:24-25
Jesus Sai da Judéia 2 21 4:12 1:14 4:1-3
Jesus se Fixa em Cafarnaum 2 39 4:13-16
João - Reencarnação de Elias 3 13 11:12-19 7:19-35
Judas É Indicado 7 124 26:21-25 14:18-21 22:21-23 13:21-32
Lázaro Ergue-se 6 104 11:38-44
Lei de Causa e Efeito 2 139 7:7-12 11:5-13
Libelo de Repúdio 6 66 19:3-12 10:2-12
Libertação do Preso 8 118
Localização 8 139
Luz do Mundo 5 56 8:12-20
Mandato de Prisão 4 128 7:25-36
Manifestação Crística 1 22
Maria e Marta 5 14 10:38-42
Massacre dos Inocentes 1 88 2:16-18
Mateus É Chamado 2 63 9:9 2:13-14 5:27-28
Metanóia 5 104 13:1-5
Ministério do Precursor 1 94 3:1-6 1:1-6 3:1-6
Missão Falhada 4 138 7:45-53 e
8:1
Mistério 4 75
Mostarda e Fermento 5 113 13:31-33 4:30-32 13:18-22
Na Casa de Caifás 8 77 26:57-58 14:53-54 22:54 18:15-16
Na Cidade 7 11 21:10-11 21:14-17 11:11
Nascimento de Jesus 1 57 2:1-7
Nascimento de João 1 47 1:57-66
No barco de Pedro 2 49 5:1-3
No Cristianismo 4 77
No Mar da Galiléia 4 20 15:19-31
O “Advogado” 8 9 14:15-24
O “Dia” do Filho do Homem 6 55 17:22-30
O “Eu” Profundo 8 3 14:1-14
O Administrador Não-Justo 6 18 16:1-17
O Adultério 2 105 5:27-32 16:18
O Amor Salva 3 19 7:36-50
O Banquete de Levi 2 65 9:10-13 2:15-17 5:29-32
O Bom Pastor 5 90 10:10-21
O Cântico de Zacarias 1 49 1:67-80
O Cego de Betsaida 4 28 8:22-26
O Coração 4 66
O Corpo 4 63

5
Sabedoria do Evangelho - Índice por Assunto

O Cristo 1 21
O Discipulato 4 47 16:24-28 8:34-38 e 9:23-27
9:1
O Elogio da Mulher 5 34 11:27-28
O Emprego das Palavras 4 56
O Fermento dos Fariseus 4 26 16:5-12 8:14-21
O Filho da Viúva 3 8 7:11-18
O Filho Pródigo 6 11 15:11-32
O Grande Mandamento 7 44 22:34-40 12:28-34a
O Homem no Novo Testamento 4 53
O Jejum 2 127 6:16-18
O Lava-Pés 7 119 13:1-20
O Maior Serve ao Menor 7 117 22:24-30
O Mergulho de Jesus 1 107 3:13-17 1:9-11 3:21-22 1:29-34
O Moço Rico 6 79 19:16-22 10:17-22 18:18-23
O Novo Mandamento 7 137 13:33-35
O Obsidiado de Gerasa 3 42 8:28-35 5:1-20 8:26-39
O Obsidiado Mudo 5 127 9:32-34
O Pão da Vida - O Cenário 3 109 6:22-25
O Pedido de Jairo 3 48 9:18-19 5:21-24 8:40-42
O Perdão 6 40 18:15-35 17:3-4
O Poder de Jesus 7 21 21:23-27 11:27-33 20:1-8
O Processo 4 76
O Prólogo de Lucas 1 16 1:1-4
O Que Prejudica 4 8 15:12-20 7:17-23 6:39
O Regresso dos 72 5 16 11:25-30 10:17-24
13:16-17
O Reino dos Céus 3 29 13:44-53
O Rico e Lázaro 6 24 16:19-31
O Sal da Terra 2 96 5:13-16 9:50 14:34-35
O Samaritano 5 9 10:25-37
O Sermão do Monte - As Bem-Aventuranças 2 85 5:1-12 6:20-26
O Sinal Celeste 5 36 12:38-42 8:11-13 11:29-32
16:1-4
O Sonho 8 119
O Surdo-Gago 4 17 7:31-37
O Título 8 144
O Trabalho do Espírito 8 26 16:1-15
O Tributo do Templo 3 107 17:24-27
Objeções 1 23
Ocorrências 8 120
Ódio do Mundo 8 20 15:18-27
Onde Está Jesus ? 6 139 11:55-57
Opinião de Herodes 3 87 14:1-2 6:14-16 9:7-9
Opiniões Desencontradas 4 123 7:11-13

6
Sabedoria do Evangelho - Índice por Assunto

Oração 2 47 1:35-38 4:42-43


Oração no Jardim 8 58 26:36-46 14:12-42 22:40-46 18:1b
Os 72 Emissários 5 3 11:20-24 10:1-16
Os Convidados 5 139 14:12-14
Os Dez Leprosos 6 49 17:11-19
Os Dois Filhos 7 24 21:28-32
Os Facões 8 56 22:35-38
Os Julgamentos 2 135 7:1-5 5:37-38
5:41-42
Os Juramentos 2 112 5:33-37
Os Lavradores Maus 7 28 21:33-46 12:1-12 20:9-19
Os Primeiros Discípulos 1 126 3:23 1:35-42
Os Primeiros Entusiastas 1 147 2:23-25
Os Primeiros Lugares 5 137 14:7-1
Os Sacramentos 4 81
Os Sete Ais 5 43 23:13-36 11:42-52
Os Sinópticos 1 7
Os Talentos 6 134 25:14-30 19:11-28
Os Tesouros 2 128 6:19-24 12:32-34
Os Textos 1 5
Outras Curas 2 45 8:16-17 1:32-34 4:40-41
Outras Negações 8 85 26:71-75 14:69-72 22:58-62 18:25-27
Palavra Ouvida 4 73
Parábolas dos Convidados 5 141 22:1-14 14:15-24
Páscoa 7 112
Pedido Extemporâneo 6 120 20:20-18 10:35-45
Pequena Viagem 4 25 15:39 8:10
Perdão 6 43
Pescaria Inesperada 2 50 5:4-11
Pilatos Lava as Mãos 8 132 27:24-26 15:15 23:24-25
Plano de Prisão 7 105 26:1-5 14:1-2 22:1-2
Predição da Morte 4 43 16:21-23 8:31-33 9:22
Predição da Morte 4 104 17:22-23 9:30-32 9:43-45
Predição das Dores 6 116 20:17-19 10:32-34 18:31-34
Predição do Nascimento de João 1 32 1:8-25
Pregação 3 81 11:1 6:12-13 9:6
Pregar Sem Medo 5 95 12:1-12
Preparação para a Páscoa 7 111 26:17-19 14:12-16 22:7-13
Primeira Multiplicação dos Pães 3 93 14:15-21 6:35-44 9:12-17 6:5-13
Primeira Negação de Pedro 8 79 26:69-70 14:66-68 22:55-56 18:17-18
Primeiro Interrogatório 8 82 18:19-23
Primeiro Interrogatório 8 110 27:11-14 15:2-5 23:3-5 18:33-38a
Principais Manuscritos 1 5
Prisão de João 2 18 14:3-5 6:17-20 3:19-20

7
Sabedoria do Evangelho - Índice por Assunto

Prisão Movimentada 8 67 26:47-56 14:43-52 22:47-53 18:2-12


Produzir Frutos 5 106 13:6-9
Profecias 7 71 24:3-14 13:3-13 21:5-19
Proposta de Judas 7 107 26:14-16 14:10-11 22:3-6
Prossegue a Revelação 7 63 12:44-50
e 36b
Prova da Reencarnação 6 36
Queixa de Jerusalém 5 132 23:37-39 13:34-35
Razão das Parábolas 3 31 13:34-35 4:33-34
Recado a Herodes 5 129 13:31-33
Reencarnação 4 93 17:10-13 9:10-13
Regresso à Galiléia 4 3 7:1
Regresso do Egito 1 90 2:19-23
Regresso dos Emissários 3 86 6:30-31 9:10
Rei Escarnecido 8 122 27:27-30 15:16-19 19:1-3
Respostas de João 1 106 1:19-28
Ressurgimento da Vida 6 100 11:17-27
Ressurreição de Lázaro - (I) Doença de 6 97 11:1-16
Lázaro
Resumo da Teoria da Origem e do Destino do Espírito 1 17
Revelação à José 1 53 1:18-25
Revelação aos Gregos 7 58 12:20-36
Saída do Cenáculo 8 54 26:30 14:26 22:39 18:1a
Sedile 8 143
Segunda Multiplicação dos Pães 4 22 15:32-38 8:1-9
Segundo Interrogatório 8 116 23:13-16
Ser Discípulo 6 3 14:25-33
Servos Bons e Maus 7 92 24:45-51 12:35-48
Servos Inúteis 6 46 17:7-10
Simão, O Cireneu 8 136 27:31-32 15:20-21 23:26-32 19:16-17a
Simbolismo Cósmico 1 93
Simplicidade 4 106 18:1-5 9:33-37 9:46-48
Supedâneo 8 143
Tentação de Jesus 1 117 4:1-11 1:12-13 4:1-13
Terceiro Interrogatório 8 117 27:15-23 15:6-14 23:18-23 18:18b-40
Termos Especiais 4 70
Textos Comprobatórios 4 62
Textos do N.T. 4 79
Tolerância 4 112 9:38-41 9:49-50
Trabalhadores da Vinha 6 91 20:1-16
Tradição 4 72
Transubstanciação 7 128 26:26-29 14:22-25 22:15-20
Trigo e Joio 6 28 13:24-30
Último Testemunho de João 2 15 3:25-36
Um com o Pai 5 118 10:22-39

8
Sabedoria do Evangelho - Índice por Assunto

União com Cristo 8 13 15:1-17


Unificação com Deus 8 39 17:1-26
Vaidade 6 62 18:9-14
Ventania Acalmada 3 39 8:18 4:35-41 8:22-25
8:23-27
Vestes 8 141
Via Contemplativa 3 115 6:35-46
Via Unitiva 3 121 6:47-58
Viagem a Jerusalém 1 140 2:13
Viagem à Jerusalém 4 118 19:1 9:51 7:10
Vinda do Filho do Homem 7 80 24:29-31 13:24-27 21:25-28
Visita a Anás 8 75 18:13,24,14
Visita à Isabel 1 43 1:39-56
Visita a Nazaré 2 33 4:16-22 4:43 e 45
Visita ao Templo 1 91 2:40-52
Visita dos Magos 1 78 2:1-12
Viver os Ensinamentos 2 145 7:21-27 6:46-49
Volta à Galiléia 1 130 1:43-51
Volta à Transjordânia 5 123 19:1b-2 10:1 10:40-42
Zacarias e Isabel 1 30 1:5-7
Zaqueu 6 131 19:1-10
Zombarias 8 149 27:39-44 15:29-32 23:35-43

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