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Um estudo sobre a relação entre o Estado e

a propriedade privada a partir de John


Locke

Vladimir da Rocha França

Sumário
1. Introdução. 2. Estado da natureza e esta-
do de guerra. 3. Origem, natureza, limites e fins
da propriedade. 4. Governo civil: limites e fun-
ções. 5. A insuficiência da perspectiva individua-
lista da propriedade.

1. Introdução
Na realidade capitalista dos dias atuais,
o sistema de produção e circulação de ri-
quezas vem sofrendo grandes transforma-
ções em sua estrutura, procurando adequar
o modo de produção que hoje domina a mai-
oria das nações, quebrando e deixando de
lado processos ultrapassados pela tecnolo-
gia, de modo a pôr em seu lugar métodos
mais informatizados e eficientes de produ-
ção, circulação e acumulação de riqueza.
Contudo, a essência do sistema capita-
lista tem-se mantido similar, acreditamos,
ao momento quando foram lançadas as pri-
meiras sementes do Estado Liberal, próxi-
mo do apagar das luzes do absolutismo e
do mercantilismo.
Não é preciso muito para se identificar,
na era da globalização, a manutenção da
separação entre as classes sociais, basica-
mente, entre os proprietários dos meios de
produção e os proprietários estritos da for-
ça de trabalho. Embora se possa constatar a
Vladimir da Rocha França é Mestre em
presença de outras classes e grupos sociais
Direito Público pela Faculdade de Direito do como a “classe média” e o maior acesso do
Recife (UFPE) e Doutorando em Direito do proletariado aos bens de consumo, vitrine
Estado pela PUC/SP. do sistema capitalista, a propriedade como
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elemento indicador de status social e influ- cas: a ciência formal do direito, a ciência
ência junto aos seus semelhantes se man- social do direito e a ciência filosófica do di-
tém intacta, ao nosso ver. reito.
Para compreender a propriedade priva- Cabe à ciência formal do direito, mais
da, essência do sistema capitalista, é preci- conhecida por dogmática jurídica, determi-
so partir daqueles que indicaram os primei- nar as diretrizes formais da concretização
ros preceitos filosóficos e políticos do Esta- judicial ou administrativa de normas jurí-
do Liberal. Entre os pensadores que se des- dicas preexistentes e que compõem um or-
tacam entre os “fundadores” do liberalis- denamento jurídico sistematizado e coeren-
mo econômico, temos John Locke. te, oferecendo solução para todos os confli-
John Locke é considerado como um dos tos levados à apreciação do Estado ou ou-
primeiros construtores do pensamento libe- tras instâncias reconhecidas pelo ordena-
ral, que ainda possui forte influência na so- mento jurídico (cf. Souto, 1992, p. 10-11 e
ciedade. O “Segundo Tratado do Governo Adeodato, 1995, p. 44).
Civil”, de 1690, representa um dos marcos A ciência social do direito “é aquela que
do pensamento político moderno, como “a investiga através de métodos e técnicas de
primeira e mais completa formulação do Es- pesquisa empírica (isto é, pesquisa baseada
tado liberal”(Bobbio, 1992, p.37). na observação controlada dos fatos) o fenô-
Entre as questões tratadas pelo filósofo meno social jurídico em correlação com a
inglês, destaca-se a propriedade, entendida realidade social” (Souto, 1992, p. 11).
por ele como um dos próprios fundamentos Lembra Cláudio Souto (1992, p. 12), que
da existência do Estado. No presente traba- cabe à ciência filosófica do direito o apro-
lho, centraremos nossa análise da relação fundamento dos estudos sobre o fenômeno
do Estado com a propriedade segundo os sócio-jurídico, a partir do conhecimento ci-
postulados construídos por Locke, para ten- entífico-empírico e científico-formal, pois,
tar compreender a perspectiva individualis- “no ponto onde a ciência empírica do direi-
ta da propriedade, e, no momento seguinte, to encerra as suas explicações por não po-
confrontar a visão liberal da propriedade com der ir mais longe – se inicia o trabalho que
as exigências da interdependência social. vai além do investigado, agora em vôos mais
Mas antes de entrarmos na análise das largos, soltos, vôos nem comprovados, nem
idéias de Locke, é preciso fazer algumas ad- comprováveis, por métodos e técnicas de
vertências para a compreensão do presente ciência empírica”.
trabalho. Adverte João Maurício Adeodato (1995,
Partimos de um conceito de direito que p. 39, cf. Souto, 1992, p. 12-13), que a filoso-
procura privilegiar a coesão e a interdepen- fia do direito não deve ser limitada ao cien-
dência social como finalidades básicas do tífico-empírico, mas também pode (e deve)
controle social exercido pelo direito, para a partir de perspectivas mais complexas,
conservação da espécie (mesmo correndo o como a ética.
risco de sermos acusados de jusnaturalis- O jusfilósofo pernambucano aponta três
tas). Se é certo que o direito tem a função de campos de atuação da filosofia do direito:
distribuir a violência legítima e neutralizar “A filosofia do direito envolve pelo
os conflitos, bem como a de fornecer a base menos três lados:primeiramente o cien-
argumentativa para as decisões jurídicas do tífico, na falta de melhor nome, isto é, a
poder (cf. Adeodato, 1995, p. 45), pode toda descriçãodefenômenos,objetos,fatos,re-
a Jurisprudência existir apenas em razão lações,comosequeirachamaramultipli-
dessa tarefa? cidadedepercepções,incluindooproces-
Consoante as lições de Cláudio Souto sodeestabelecerlaçosconceituaisentreos
(1992, p. 9), há três ciências jurídicas bási- objetos observados dentro de uma teoria

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emcertamedidacoerente,sistematizável, ria e ilimitada. Os homens são regidos por
transmissível, como dito. Em segundo direitos naturais, informados pelas leis da
lugar a filosofia vezes cuida do lado natureza e da razão, que delimitam e atri-
ético, pode-se até dizer existencial, com buem a cada um o poder de controlar a con-
o objetivo pragmático de nortear o ser duta de seus semelhantes em prol da huma-
humano para viver o mais adequada- nidade:
mente possível, segundo parâmetros “(...) o homem desfruta de uma liber-
que ele próprio elege, em suas intera- dade total de dispor de si mesmo ou
ções com seus semelhantes, auxilian- de seus bens, mas não de destruir sua
do a decidir conflitos, a agir no mun- própria pessoa, nem qualquer criatu-
do. E, finalmente, uma perspectiva que ra que se encontre sob sua posse, sal-
podemos denominarmetafísica, no pla- vo se assim o exigisse um objetivo mais
no das ‘idéias’ de que falava Kant, a nobre que a sua própria conservação”
filosofia ocupa-se daquelas questões (Locke, 1994, p. 83).
que o filósofo sabe não poder respon- Rege-se o estado da natureza
der definitivamente mas que, inobs- “(...) por um direito natural que se im-
tante, inquietam um bom número de põe a todos, e com respeito à razão,
seres humanos” (Adeodato, 1995, p. que é este direito, toda a humanidade
39, grifo do autor). aprende que, sendo todos iguais e in-
Procuramos, aqui, permanecer no primei- dependentes, ninguém deve lesar o
ro campo de atuação da filosofia indicado, outro em sua vida, sua saúde, sua li-
na busca da compreensão do proprietaris- berdade ou seus bens; todos os homens
mo, ou seja, a fé na propriedade privada, e a são obra de um único Criador todo-
sua relação com o Estado, a partir das idéi- poderoso e infinitamente sábio, todos
as de John Locke1. servindo a um único senhor sobera-
no, enviados ao mundo por sua ordem
2. Estado da natureza e estado de guerra e a seu serviço; são portanto sua pro-
priedade, daquele que os fez e que os
Consoante John Locke, antes do surgi-
destinou a durar segundo sua vontade
mento do poder político, os homens viviam
em plena liberdade e igualdade, regidos e de mais ninguém” (Locke, 1994, p. 83).
pelas leis da natureza e da razão. Estes, na- Locke (1994, p. 84) nega a existência de
tureza e razão, como concessões de Deus à uma hierarquia entre os homens, que auto-
sua criatura. rizasse a destruição mútua e a instrumenta-
Na condição natural do homem, há ab- lização de um homem por outro homem, tal
soluta liberdade para decisão e disposição como se faz com os animais.
sobre as suas ações, pessoas e bens, delimi- A violação dos direitos alheios é impedi-
tada por um “direito natural”, independen- da pelo poder concedido a cada um de nós
te do arbítrio de outro homem (cf. Locke, de aplicar a lei da natureza, de “punir aque-
1994, p. 83). les que a transgridem com penas suficientes
Junto à liberdade, existe também um es- para punir as violações” (Locke, 1994, p. 85).
tado de igualdade, determinado pela reci- Não se trata de um poder arbitrário ou
procidade e pela equiparação entre os ho- absoluto, mas sim de uma prerrogativa con-
mens no uso e gozo das faculdades e vanta- cedida ao homem para preservar a comuni-
gens concedidas pela natureza (Locke, 1994, dade natural, exercendo-a na proporção do
p. 83). necessário para reparar ou prevenir a viola-
Mas o estado de natureza não constitui ção da lei da natureza:
um “estado de permissividade”, em que o “(...) Tratando-se de uma violação
poder dos homens se faz de forma arbitrá- dos direitos de toda a espécie, de sua

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paz e de sua segurança, garantidas Hobbes (p. 103), reitera que quem “dese-
pela lei da natureza, todo homem pode ja viver num estado tal como o estado de
reivindicar seu direito de preservar a liberdade e do direito de todos a tudo, con-
humanidade, punindo ou, se neces- tradiz-se a si mesmo”, pois “todo o homem,
sário, destruindo as coisas que lhe são por necessidade natural, deseja o seu pró-
nocivas; dessa maneira, pode reprimir prio bem, a que esse estado é contrário, por-
qualquer um que tenha transgredido que assenta no combate entre homens por
essa lei, fazendo com que se arrepen- natureza iguais e capazes de se destruírem
da de tê-lo feito e o impedindo de con- uns aos outros”.
tinuar a fazê-lo, e através de seu exem- Giorgio del Vecchio (1979, p. 93-94),
plo, evitando que outros cometam o aponta como falha do pensamento de Hob-
mesmo erro. E neste caso e por este bes ao estabelecer o egoísmo como única face
motivo, todo o homem tem o direito de da natureza humana. Lembra o jusfilosófo
punir o transgressor e ser executor da italiano que o altruísmo é tão natural ao ho-
lei da natureza” (Locke, 1994, p. 86). mem como o egoísmo, havendo em cada ser
Transgredida a lei da natureza, o preju- vivo um espírito de autoconservação que o
dicado pode buscar a reparação do dano impele à compaixão e ao convívio social,
injusto, que constitui, ao contrário da puni- pois “a vida social, com todas as exigênci-
ção do crime para a prevenção (direito de as, com todas as limitações que ao indiví-
todos), direito exclusivo da vítima (cf. Lo- duo impõe, é a primeira condição necessá-
cke, 1994, p. 87). ria para o homem poder existir”, sendo co-
Quanto à existência real do estado da natural ao homem o instinto social.
natureza na história, Locke (1994, p. 89) acre- Quanto mais desenvolvida e complexa
dita que os governantes absolutistas e inde- a divisão das funções sociais, mais a coesão
pendentes viviam neste estado em toda a social se torna um fator essencial para a in-
sua plenitude, estejam ou não vinculados tegração geral da sociedade (cf. Durkeim,
entre si. Lembra o pensador inglês que “não 1980, p. 102); justamente pela necessidade
é toda convenção que põe fim ao estado de do homem em se manter na sociedade por
natureza entre os homens, mas apenas aque- ter afinidades e necessidades similares a
la pela qual todos se obrigam juntos e mutu- outros homens, bem como de satisfazer an-
amente a formar uma comunidade única e seios e aptidões diferentes dos demais, cuja
constituir um único corpo político”. realização depende do intercâmbio de ser-
É interessante notar no pensamento do viços2.
filósofo inglês que há harmonia entre os É certo que o homem não representa tão-
homens no estado da natureza, ao con- somente um poço de virtudes generosas e
trário do que pensa Thomas Hobbes (p. abundantes, possuindo naturalmente um
102): lado vil, autodestrutivo e egoísta. Mas os
“(...) os homens têm por natural ten- homens são naturalmente submetidos ao
dência ofenderem-se uns aos outros, impulso da conservação individual e da
que, além disso, o direito de cada ho- espécie, procurando adaptar-se ao meio fí-
mem a cada coisa permite a cada um sico-químico, biológico e social no qual está
usurpar com direito, e ao outro com obrigado a viver (cf. Souto, Anuário..., p. 63).
direito resistir, os homens vivem as- Embora alguns homens vejam somente em
sim numa desconfiança perpétua e si mesmos os requisitos necessários a sua
empregam-se a encontrar os meios de subsistência, fatalmente são chamados ou
se surpreenderem uns aos outros; o sentem-se atraídos pela demanda por uma
estado do homens nesta liberdade interdependência social estável e pacífica.
natural é o estado de guerra”. Bem ou mal, o homem é socializado e ins-

186 RevistadeInformaçãoLegislativa
truído de suas funções, deveres e prerroga- estado de guerra, haja ou não um juiz
tivas dentro do corpo social (cf. França, 1997, comum”.
p. 464-465). Justamente na prevenção do estado de
Voltemos à Locke (1994, p. 83): guerra, “que exclui todo apelo exceto ao céu,
“E temos aqui a clara diferença e onde até a menor diferença corre o risco de
entre o estado de natureza e o estado chegar, por não haver autoridade para deci-
de guerra, que, embora alguns homens dir entre os contendores”, Locke (1994, p.
confundam, são tão distintos um do 94), explica uma das razões mais importan-
outro quanto um estado de paz, boa tes para o abandono do estado da natureza
vontade, assistência mútua e preser- e a reunião do ser humano em sociedade,
vação, de um estado de inimizade, constituindo uma autoridade terrena para
maldade, violência e destruição mú- assegurar a prevenção e a reparação causa-
tua. Homens vivendo juntos segundo da pelo homem aos seus semelhantes.
a razão, sem um ser superior na terra
com autoridade para julgar entre eles, 3. Origem, natureza, limites e
eis efetivamente o estado da nature- fins da propriedade
za. Mas a força, ou uma intenção de-
Desde o momento do nascimento do ho-
clarada de força, sobre a pessoa de
mem, este teria o direito a sua preservação.
outro, onde não há superior comum
Deus concedeu o mundo aos homens em
na terra para chamar por socorro, é
comum, bem como a razão, para que possa
estado de guerra: e é a inexistência de
subtrair da terra “o maior benefício de sua
um recurso deste gênero que dá ao
vida e de suas conveniências” (Locke, 1994,
homem o direito de guerra ao agres-
p. 97). Os bens se apresentam originariamen-
sor, mesmo que ele viva em sociedade
te em seu estado natural, necessitando sua
e se trate de um concidadão. Assim,
apropriação de um meio que os tornem pro-
este ladrão, a quem não posso fazer
veitosos.
nenhum mal, exceto apelar para a lei,
Para o filósofo inglês, é por meio do tra-
se ele me roubar tudo o que possuo,
balho que pode haver a apropriação dos
seja meu cavalo ou meu casaco, eu bens da natureza, convertendo-os em parti-
posso matá-lo para me defender quan- culares (Locke, 1994, p. 98):
do ele me ataca à mão armada; por- “Ainda que a terra e todas as cria-
que a lei, estabelecida para garantir turas inferiores pertençam em comum
minha preservação contra os atos de a todos os homens, cada um guarda a
violência, quando não pode agir de propriedade de sua própria pessoa;
imediato para proteger minha vida, sobre esta ninguém tem qualquer di-
cuja perda é irreparável, me dá o di- reito, exceto ela. Podemos dizer que o
reito de me defender e assim o direito trabalho de seu corpo e a obra produ-
de guerra, ou seja, a liberdade de ma- zida por suas mãos são propriedade
tar o agressor; porque este não me dei- sua. Sempre que ele tira um objeto do
xa tempo para apelar para nosso juiz estado em que a natureza o colocou e
comum e torna impossível qualquer deixou, mistura nisso o seu trabalho e
decisão que permita uma solução le- a isso acrescenta algo que lhe perten-
gal para remediar um caso em que o ce, por isso o tornando sua proprie-
mal pode ser irreparável. A vontade dade. Ao remover este objeto do esta-
de se ter um juiz comum com autori- do comum em que a natureza o colo-
dade coloca todos os homens em um cou, através do seu trabalho adicio-
estado de natureza; o uso da força sem na-lhe algo que excluiu o direito co-
direito sobre um homem provoca um mum dos outros homens. Sendo este

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trabalho uma propriedade inquestio- Mas a apropriação de uma parcela de
nável do trabalhador, nenhum ho- terra pelo trabalho demanda a existência de
mem, exceto ele, pode ter o direito ao outras parcelas de terra que possibilitem sua
que o trabalho lhe acrescentou, pelo apropriação por outros homens, não viabi-
menos quando o que resta é suficiente lizando de forma alguma os benefícios a
aos outros, em quantidade e em quali- serem auferidos pelo trabalho na terra.
dade”. Para Locke (1994, p. 101), é inconcebível
Não é preciso o consentimento dos ou- que Deus tenha criado o mundo para que a
tros homens para que se possa transformar terra permanecesse inerte, sem as comodi-
um bem no estado natural, por meio do tra- dades da vida que ela oferece aos homens
balho, em direito privado. Pois, se “fosse exi- dispostos a investir o seu trabalho para se
gido o consentimento expresso de todos apropriar de um bem da natureza que nas-
para que alguém se apropriasse individu- ceu de todos:
almente de qualquer parte do que é conside- “Ele a deu para o uso industrioso e
rado bem comum, os filhos ou os criados racional (e o trabalho deveria ser o títu-
não poderiam cortar a carne que seu pai ou lo), não para satisfazer o capricho ou
seu senhor lhes forneceu em comum, sem ambição daquele que se mete em quere-
determinar a cada um sua porção particu- las e disputas” (Locke, 1994, p. 101).
lar” (Locke, 1994, p. 99). O trabalho retira A extensão do trabalho humano e a con-
das mãos da natureza o bem comum e o veniência da vida constituem a medida da
transforma em propriedade. propriedade natural:
A vontade irrestrita não justifica inteira- “(...) ouso corajosamente afirmar que
mente a retirada do bem da natureza e sua a mesma regra de propriedade, ou
conversão em propriedade individual: seja, que cada homem deve ter tanto
“Tudo o que um homem pode uti- quanto pode utilizar, ainda permane-
lizar de maneira a retirar uma vanta- ceria válida no mundo sem prejudi-
gem qualquer para sua existência sem car ninguém, visto haver terra bastante
desperdício, eis o que seu trabalho para o dobro dos habitantes, se a in-
pode fixar como sua propriedade” venção dinheiro e o acordo tácito en-
(Locke, 1994, p. 100). tre os homens para estabelecer um
O que exceder a esse limite não pode ser valor para ele não tivesse introduzi-
apropriado individualmente e deve perma- do (por consentimento) posses maio-
necer no domínio, pois “Deus não criou res e um direito a elas” (Locke, 1994,
nada para que os homens desperdiçassem p. 103).
ou destruíssem” (Locke, 1994, p. 100). Os homens só podem se apropriar, por
Os frutos da terra e os animais que nela meio do trabalho, daquilo que possam efeti-
subsistem podem ser apropriados pelo tra- vamente utilizar em seu benefício. Consiste
balho, tal como a própria terra que os con- num desperdício de recursos naturais tomar
tém. O trabalho constitui uma imposição ou produzir mais do que o realmente neces-
divina, decorrente das limitações do homem, sário para sua própria subsistência, e, por
pois aquele que: conseguinte, um atentado à lei comum da
“(...) em obediência a este comando natureza e uma invasão do direito dos ou-
divino, se tornava senhor de uma par- tros homens em retirar da mesma as condi-
cela de terra, a cultivava e a semeava, ções de sua subsistência. Em face disso, os
acrescentava-lhe algo que era sua pro- homens, ao se agruparem em cidades, co-
priedade, que ninguém podia reivin- meçaram a desenvolver limites e leis inter-
dicar nem tomar dele sem injustiça” nas que disciplinaram a apropriação dos
(Locke, 1994, p. 101). bens comuns da natureza.

188 RevistadeInformaçãoLegislativa
O trabalho constitui o elemento que atri- é mais do que a humanidade utiliza.
bui o verdadeiro valor do bem apropriado, No início, a maior parte dos homens
desde que aliado à busca das efetivas con- contentava-se com o que a natureza
dições de subsistência do homem: oferecia para as suas necessidades; e
“Tudo isso evidencia que, embora embora depois, em algumas partes do
as coisas da natureza sejam dadas em mundo (onde o aumento do número
comum, o homem, sendo senhor de si de pessoas e das reservas, com o uso
mesmo e proprietário de sua própria do dinheiro, tornaram a terra escassa
pessoa e das ações de seu trabalho, e por isso de algum valor), as várias
tem ainda em si a justificação princi- comunidades tenham estabelecido os
pal da propriedade; e aquilo que com- limites de seus distintos territórios e,
pôs a maior parte do que ele aplicou por leis internas, tenham regulamen-
para o sustento ou o conforto de sua tado as propriedades particulares de
existência, à medida que as invenções sua sociedade, e desta forma, por con-
e as artes aperfeiçoaram as condições venção e acordo, determinado a pro-
de vida, era absolutamente sua pro- priedade iniciada pelo trabalho e pela
priedade, não pertencendo em comum indústria – e os tratados que foram
aos outros” (Locke, 1994, p. 108). feitos entre vários estados e reinados,
Embora, como Karl Marx (1993, p. 183), seja expressa ou tacitamente, renun-
visse no trabalho a essência da proprieda- ciando a toda reivindicação e direito
de, Locke acreditava ser perfeitamente acei- sobre a terra em posse do outro, puse-
tável a apropriação do bem da natureza por ram de lado, por consentimento co-
meio do trabalho alheio, fruto talvez de sua mum, todas as suas pretensões a seu
origem social. Numa época de pré-capita- direito comum natural, que original-
lismo, ainda não se encontravam rijos e in- mente tinham em relação àqueles pa-
contestáveis os alicerces que possibilitari- íses; e assim, por um acordo positivo,
am a ascensão futura e definitiva da bur- estabeleceram em partes e parcelas
guesia no controle dos meios de produção e distintas da terra – embora ainda exis-
do poder político emanado pelo governo ci- tam vastas extensões de terra cujos
vil; assim como não se vislumbravam ainda habitantes não se juntaram ao resto
as transformações e efeitos que a vitória po- da humanidade para concordar com
lítica (Revolução Francesa) e econômica (Re- o uso da moeda comum; elas perma-
volução Industrial) da burguesia traria para necem baldias, e são mais do que as
aqueles que ocupavam os setores mais hu- pessoas que ali habitam utilizam ou
mildes da população. podem utilizar, e assim ainda conti-
Mas de qualquer modo, ao colocar no tra- nuam sendo terra comum; mas isso
balho o valor e a essência da propriedade, o ocorre raramente naquela parte da
filósofo logrou uma afirmação de certa for- humanidade que consentiu no uso do
ma revolucionária para o seu tempo. dinheiro”.
Locke (1994, p. 109) explica desse modo O excedente da produção retirada da na-
a transformação que o direito de proprieda- tureza padecia do risco de que não imedia-
de sofreu no processo de evolução e desen- tamente consumida ou trocada por outra,
volvimento das sociedades humanas: provocou a necessidade da convenção de
“Assim, no começo, por pouco que valor sobre uma mercadoria que, embora em
se servisse dele, o trabalho conferia um si mesma não necessária para a subsistên-
direito de propriedade sobre os bens cia do homem, poderia ser por um longo
comuns, que permaneceram por mui- tempo para que pudesse ser trocada pela
to tempo os mais numerosos, e até hoje mercadoria demandada. A partir daí,

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“(...) podia guardar com ele a quantida- acúmulo de propriedade privada além das
de que quisesse desses bens duráveis, necessidades de subsistência do homem
pois o excesso dos limites de sua justa acabou-se gerando uma nova classe domi-
propriedade não estava na dimensão nante, liberta dos laços divinos e aristocrá-
de suas posses, mas na destruição inú- ticos que justificavam a deificação do poder
til de qualquer coisa entre elas. Assim e da intangibilidade daqueles que acredita-
foi estabelecido o uso do dinheiro – al- vam na sua superioridade devido à sua fa-
guma coisa duradoura que o homem mília ou nome.
podia guardar sem que se deteriorasse O dinheiro permitiu que qualquer um al-
e que, por consentimento mútuo, os cançasse status social elevado no corpo po-
homens utilizariam na troca por coi- lítico. Lembra Karl Marx (1993, p. 234), que
sas necessárias à vida, realmente úteis, o dinheiro representa um poder que rompe
mas perecíveis” (Locke, 1994, p. 110). os laços sociais do indivíduo, eliminando
E, também, a invenção do dinheiro aca- toda a possibilidade de se manter entida-
bou viabilizando a expansão das posses: des imutáveis ou sacras, pois constitui
“(...) é evidente que o consentimento “(...) a inversão geral das individuali-
dos homens concordou com uma pos- dades, transformando-as nos seus
se desproporcional e desigual da ter- opostos e associando qualidades con-
ra; através de um consentimento táci- traditórias com as suas qualidades”.
to e voluntário, eles descobriram e con- Marx (1993, p. 235), define como preci-
cordaram em uma maneira pela qual são a realidade trazida pelo dinheiro:
um homem pode honestamente pos- “O que para mim existe através do
suir mais terra do que ele próprio pode dinheiro, aquilo que eu posso pagar,
utilizar seu produto, recebendo ouro isto é, o que o dinheiro pode comprar,
e prata em troca do excesso, que po- sou eu, o próprio possuidor do dinhei-
dem ser guardados sem causar dano ro. O poder do dinheiro é o meu pró-
a ninguém; estes metais não se deteri- prio poder. As propriedades do dinhei-
oram nem perecem nas mãos de seu ro são as minhas – do possuidor –
proprietário. Esta divisão das coisas próprias propriedades e faculdades.
em uma igualdade de posses particu- Aquilo que eu sou e posso não é, pois,
lares, os homens tornaram praticável de modo algum, determinado pela
fora dos limites da sociedade e sem minha própria individualidade. (...) O
acordo, apenas atribuindo um valor dinheiro é o bem supremo, e deste
ao ouro e à prata, e tacitamente con- modo também o seu possuidor é bom.
cordando com o uso do dinheiro. Pois Além disso, o dinheiro poupa-me ao
nos governos as leis regulam o direito esforço de ser desonesto; por conse-
de propriedade, e a posse da terra é qüência, sou tido na conta de hones-
determinada por constituições positi- to; sou estúpido, mas o dinheiro cons-
vas” (Locke, 1994, p. 112). titui o espírito real de todas as coisas:
O direito “natural” de propriedade, fru- como poderá ser o seu possuidor es-
to do trabalho e da apropriação de bens da túpido? Ademais ele pode comprar
natureza para a subsistência humana, aca- para si as pessoas talentosas: quem
bou sendo descaracterizado pela própria tem poder sobre as pessoas inteligen-
evolução das relações sociais que giravam tes não será mais talentoso do que
em torno da apropriação privada dos “bens elas? Eu, que por meio do dinheiro
comuns a todos”. posso tudo o que o coração humano
Se antes o trabalho determinava exclusi- ambiciona, não possuirei todas as ca-
vamente a propriedade, com a admissão do pacidades humanas? Não transfor-

190 RevistadeInformaçãoLegislativa
mará assim o dinheiro todas as mi- Logo no início de seu Segundo Tratado
nhas incapacidades em contrário?”. sobre o Governo Civil, o pensador já adverte
Não há resposta em Locke para essas in- (Locke, 1994, p. 82):
dagações. “Por poder político, então, eu en-
O dinheiro e sua posse, o que pode com- tendo o direito de fazer leis, aplican-
prar, bastam para superar o problema do do a pena de morte, ou por via de con-
desperdício e da exclusão do resto da socie- seqüência, qualquer pena menos se-
dade no acúmulo de propriedade privada vera, a fim de regulamentar e de pre-
para além das necessidades de subsistên- servar a propriedade, assim como de
cia humana? empregar a força da comunidade para
O pensamento de Locke influenciou pro- a execução de tais leis e a defesa da
fundamente a disciplina jurídica das rela- república contra as depredações do
ções jurídicas entre o Estado e a proprieda- estrangeiro, tudo isso tendo em vista
de, principalmente em países de tradição apenas o bem público”.
anglo-saxônica, como os Estados Unidos. Legitimado pela convenção entre os ho-
Tanto que o direito natural de propriedade mens, o governo civil deve construir as leis
faz parte do corpo formal de quase todas positivas em compatibilidade com os direi-
constituições revolucionárias dos estados tos naturais do homem, por meio da tripar-
norte-americanos, por ocasião de sua inde- tição dos poderes de elaborá-las (poder le-
pendência (Cunliffe, 1978, p. 4-5). gislativo), aplicá-las (poder executivo) e ga-
Sob influência de Locke, a palavra pro- rantir a segurança da comunidade civil (po-
priedade passou a designar todos os direi- der federativo). Locke é apontado como um
tos naturais, com um conteúdo valorativo precursor da teoria da separação dos pode-
neutro ou intrinsecamente bom, indicando res investidos no Estado, bem como do con-
os requisitos indispensáveis para uma exis- tratualismo (Bobbio, 1992, p. 37-42 e Adeo-
tência digna (Cunliffe, 1978, p. 5). Dentro dato, 1989, p. 49-51). Não nos aprofundare-
do pensamento liberal vigente naquele tem- mos aqui sobre questões relacionadas com
po, “pouca preocupação havia quanto à im- esse aspecto de sua obra, pois o que nos inte-
plicação de cobiça na palavra propriedade”, ressa aqui é examinar como o pensador in-
parecendo natural “equacionar a indepen- glês tratou as relações entre a propriedade e o
dência nacional e individual com a posse e governo civil, como prefere denominá-lo.
o desenvolvimento da terra pertencente a No estado civil, os homens estabelecem
cada um”, pois somente quem “tivesse al- por meio do consentimento uma sociedade
guma propriedade seria verdadeiramente política, em que superam as instabilidades
senhor de si”. Ou seja: como propriedade e e precariedade do estado da natureza, facil-
personalidade estavam intrinsecamente li- mente convertido em estado de guerra. A
gadas, o homem valia pelo que possuísse sociedade política passa a acumular o po-
der natural de todos os seus membros, tor-
(Cunliffe, 1978, p. 6).
nando-se o árbitro de todas as controvérsi-
as, baseado em regras imparciais cuja exe-
4. Governo civil: limites e funções cução está autorizada a intentar:
O estado de natureza confere aos homens “Aqueles que estão reunidos de
os poderes paterno (família), político (pro- modo a formar um único corpo, com
priedade) e despótico (guerra)3. Para a me- um sistema jurídico e judiciário com
lhor preservação da liberdade prescrita pe- autoridade para decidir controvérsi-
las leis da natureza, os homens renunciam as entre eles e punir os ofensores, es-
tais faculdades naturais em favor do gover- tão em sociedade civil uns com outros;
no civil. mas aqueles que não têm em comum

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nenhum direito de recurso, ou seja, so- que alguém me diga que estado de
bre a terra, estão ainda no estado da natureza e sociedade civil são uma
natureza, onde cada um serve a si única e mesma coisa, mas ainda não
mesmo de juiz e de executor, o que é, encontrei ninguém tão defensor da
como mostrei antes, o perfeito estado anarquia para afirmá-lo”.
de natureza” (Locke, 1994, p. 133). Locke era adversário do Estado Absolu-
Constitui tal fato, para Locke, a origem tista. Para o pensador inglês, não podia ser
dos poderes executivo e legislativo, o julga- admissível que tanto poder pudesse ser acu-
mento por meio de leis estabelecidas para mulado nas mãos de um só homem, pondo
punir os atentados cometidos no seio da so- em perigo a vida e os bens dos homens, e
ciedade política, determinando, nenhuma das teorias construídas para justi-
“(...) por meio de julgamentos ocasio- ficar o absolutismo, então predominante, en-
nais fundamentados nas presentes contravam fundamento em sua teoria, pois,
circunstâncias de fato, a que ponto as “(...) a menos que se queira fornecer
injustiças de fora devem ser vingadas, argumentos àqueles que acreditam
em ambos os casos empregando força que todo governo terrestre é produto
de todos os membros sempre que for apenas da força e da violência, e que
necessário” (Locke, 1994, p. 134). em sua vida em comum os homens
O poder no qual é investido o estado ci- não seguem outras regras senão as dos
vil não é absoluto. Dependerá sempre do animais selvagens, em que o mais for-
consentimento entre os membros da comu- te é quem manda, e assim justificando
nidade social em partilhar as mesmas leis e para sempre a desordem e a maldade,
se submeter ao julgamento e execução des- o tumulto, a sedição e a rebelião (coi-
sas normas, em igualdade de condições, sas contra as quais protestam tão vee-
consoante a decisão de sua maioria 4. Por mentemente os seguidores dessa hi-
isso lembra Locke (1994, p. 138): pótese), será preciso necessariamente
“Por este meio, cada pessoa consi- descobrir uma outra gênese para o
derada individualmente, igual às ou- governo, outra origem para o poder
tras, mesmo às mais humildes, ficou político e oura maneira para designar
sujeita a leis que ela mesma estabele- e conhecer as pessoas que dele estão
cia, como parte integrante do legisla- investidas”(Locke, 1994, p. 82).
tivo; e ninguém, por sua própria auto- O governo civil, segundo Locke (1994, p.
ridade, podia escapar à força da lei 156-157), tem por finalidade máxima a de-
estabelecida ou por qualquer preten- fesa e manutenção da propriedade dos ho-
são de superioridade solicitar isenção mens, cujo gozo no estado da natureza é
de seus próprios erros ou daqueles de precário e vulnerável ao estado de guerra,
seus dependentes. Nenhum homem da afastada das vicissitudes do exercício irre-
sociedade civil pode ser imune às suas gular e incerto do poder natural de cada um
leis. Se houver um homem que se veja de nós. Lembra Marcus Cunliffe (1978, p. 8),
no direito de fazer o que lhe apraz, que, na formação dos Estados Unidos,
sem que se possa evocar qualquer re- “(...) a aquisição de propriedade por
curso sobre a terra para reparar ou li- indivíduos era bem vista, desde que
mitar todo o mal que ele fará, gostaria cumpridas algumas pré-condições,
que me dissessem se não é verdade entre as quais a igualdade de acesso
que ele permanece no estado de natu- aos cargos políticos, à eleição e à opor-
reza sob sua forma perfeita e que por- tunidade econômica. O maior núme-
tanto não pode se integrar de maneira ro de indivíduos deveria ter a oportu-
nenhuma à sociedade civil; a menos nidade do benefício da propriedade,

192 RevistadeInformaçãoLegislativa
e isso, por sua vez, beneficiaria a socie- ação privada dos bens materiais5. Se há o
dade”. aumento da interdependência social, neces-
Os homens renunciam em favor do go- sariamente toma-se o impulso de integrar
verno civil a dois poderes que lhe são ine- todos os homens numa dada sociedade aos
rentes no estado da natureza: ao poder de ditames de um ordenamento jurídico infor-
fazer tudo o que achar conveniente para sua mado por uma maior sensibilidade quanto
própria preservação e a da espécie, subme- às questões sociais. Nas tentativas de que-
tendo-se à disciplina estabelecida pelas leis bra dessa interdependência social, todas as
da sociedade política e à restrição da liber- pretensões nesse sentido tendem a instabi-
dade ditada pela lei da natureza; e, ao de lizar a própria sociedade e tornar insegura
punir pessoalmente e segundo seu arbítrio a preservação da propriedade.
os atentados a sua vida e ao seus bens, con- Se a posse privada de bens materiais não
fiando ao poder executivo da sociedade po- traz tensão e nem compromete a coesão so-
lítica a preservação da integridade de sua cial, o uso, gozo e disposição da proprieda-
pessoa e de seus bens (Locke, 1994, p. 158). de privada não representa um risco para a
sociedade. Pode-se até opor que a própria
5. A insuficiência da perspectiva propriedade privada constitui uma violência
individualista da propriedade ou um fator que afasta os homens dos benefí-
cios da vida coletiva, mas todos a desejam.
A perspectiva individualista da propri-
Com a queda dos regimes que procura-
edade vem sendo contraditada pela força
ram abolir a propriedade privada, acaba-
da interdependência social, acelerada pe-
ram enfrentando uma dura realidade. Ao
los novos e mais ágeis processos de intera-
expropriar os homens dos bens materiais
ção social.
cuja posse, de certo modo, estimulavam-nos
Embora Locke tenha alertado quanto à
a crescer e a produzir para a sociedade, co-
instabilidade social que poderia ser provo-
letivizando tudo o que não for de estrito con-
cada quanto ao desperdício do bem apro-
sumo pessoal, tais nações comprometeram
priado, não levou em consideração o impac-
sua vida econômica produtiva. Os homens
to que sua injusta utilização poderia ter na
não se sentiam mais estimulados para pro-
preservação da espécie humana, mesmo
gredir, pois sabiam que nasceriam e morre-
quando a propriedade se encontra legitima-
riam do mesmo modo, com as mesmas pos-
da pelo “trabalho honesto” e pelas leis do
ses, com o mesmostatussocial.
governo civil; trabalho que hoje encontra
Ao se retirar a propriedade de um ho-
ainda subjugado essencialmente ao conde-
mem, certamente, parte de sua personalida-
nado por Karl Marx (1993, p. 157-172). de fica prejudicada. É a propriedade priva-
Adverte Duguit (1996, p. 16), que consti- da que satisfaz o impulso egoísta do homem
tui uma abstração o e o liberta da inveja, cobiça e da desordem.
“(...) homem natural, que nasce livre e Dá também dignidade, possibilitando o
independente de outros homens, e acesso aos bens culturais e econômicos que
com direitos constituídos por essa são indispensáveis à sua vida.
mesma liberdade e essa mesma inde- Por outro lado, a propriedade pode atra-
pendência”, pois “nascem partícipes ir tensão, conflito e desordem social, sola-
de uma coletividade e sujeitos, assim, pando os alicerces do ordenamento jurídi-
a todas as obrigações que subenten- co, se houver a manutenção da instituição
dem a manutenção e desenvolvimen- da propriedade privada a custo da coesão
to da vida coletiva”. social.
Em si mesma, a perspectiva individua- A propriedade não se justifica em si mes-
lista é insuficiente para justificar a apropri- ma como fazem Locke e os defensores do

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liberalismo econômico, como algo inerente- tima de quem produz e constrói para si e
mente bom e virtuoso. Não se pode falar em para a sociedade.
um direito natural de propriedade pois ele Mais do que um discurso retórico, a fun-
se encontra tão condicionado e submetido ção social da propriedade pode representar
às leis estatais. Não raras vezes, a proprie- uma nova fase de evolução do regime capi-
dade mais obriga do que atribui faculdades. talista, tornando-se melhor adaptado às
Vivemos numa era em que os povos ten- novas tensões entre as classes sociais e os
dem a uma maior interdependência. Nos interesses político-econômicos divergentes
novos tempos de globalização, como atri- nos novos tempos de globalização.
buir legitimamente a propriedade a um ho- O que definirá, ao nosso ver, a legitimi-
mem excluindo todos os demais? dade jurídica da propriedade privada será
Não pretendemos nesse estudo estabe- justamente o atendimento da função social
lecer o que é ou não direito natural, ou mes- que lhe é imposta pela sociedade. O proble-
mo discutir se eles existem ou não, mas ape- ma central da regulação jurídica da propri-
nas pôr em dúvida a tese de que o direito de edade privada é justamente o critério a ser
propriedade é absoluto, perpétuo e incon- utilizado para definir sua finalidade social,
dicionado. que não pode estar distante da utilização
Reiteramos: a estabilidade da proprieda- de métodos e técnicas de ciência.
de privada não depende de si mesma. Se Como bem diz Adeodato (1995, p. 40):
efetivamente bastasse possuir para plenitu- “O conhecimento, sobretudo o ci-
de do direito de propriedade diante da Ju- entífico que se pretende mais digno
risprudência, como admitir os latifúndios de crédito do que nossas outras for-
improdutivos que provocam a migração do mas de contato com o mundo, assume
campo para as cidades, o desperdício de ter- enorme importância, significando ao
ras férteis e os conflitos de terra e o surgi- mesmo tempo saber, poder, legitima-
mento de movimentos radicais? Há legiti- ção, eficácia, substituindo a religião
midade jurídica somente no possuir, sem para definir a verdade”.
qualquer preocupação ou sensibilidade Locke acreditava que, em face da abun-
para o conjunto da sociedade? dância da natureza, sempre haveria sobra
A cegueira liberal a tudo que lembrasse de propriedade para todos. Entretanto, a
vagamente e arbitrariamente o coletivismo propriedade hoje se encontra escassa, não
estatal não tem mais razão para existir. Em- porque haja pouca quantidade, mais sim
bora reconhecido em nosso ordenamento ju- porque há poucos proprietários.
rídico, na Constituição Federal, que a pro- A melhor forma de defender os benefíci-
priedade deve atender a sua função social, os da instituição da propriedade privada
ainda se insiste em desconsiderar a força e para a sociedade é democratizar o seu aces-
a potencialidade dessa prescrição. Esque- so, dificultando a posse antijurídica dos
cem-se que, sem o compromisso social, a pro- bens materiais, e, desse modo, assegurando
priedade e seu regime jurídico fica vulnerá- a manutenção e a estabilidade do sistema
vel à contestação das massas e de movimen- capitalista. Ao se tentar isolar ou elevar a
tos sociais organizados, trazendo desordem propriedade privada em relação à sua fun-
institucional. ção social, está-se comprometendo sua pró-
Não deixa de ser o governo civil um de- pria existência.
fensor da propriedade quando a limita ou a Excluídos sempre existiram, e a segrega-
expropria. Agressão maior à propriedade ção social faz parte do sistema capitalista.
vem justamente de quem se utiliza de modo Destina-se também a função social da pro-
irresponsável ou negligente, diante de sua priedade à manutenção de um nível tolerá-
função social, comprometendo a posse legí- vel de excluídos para que não se compro-

194 RevistadeInformaçãoLegislativa
meta a permanência da opção feita pela Bibliografia
maioria do mundo civilizado. Não há nada ADEODATO, João Maurício. Filosofia do direito e
de revolucionário querer aumentar o núme- dogmática jurídica. In: Direito em Debate. Ijuí :
ro de proprietários. [s. n.], a. 5, n. 5, 1995.
Tanto melhor se os mais fortes forem os ADEODATO, João Maurício. O problema da legiti-
mais justos (cf. Bobbio, 1995), e, por conse- midade : no rastro do pensamento de Hanna
Hrendt. Rio de Janeiro : Forense, 1989. p. 49-51.
guinte, mais inteligentes. Do contrário, so- BOBBIO, Norberto. A teoria do ordenamento jurídico.
mos uma espécie condenada à extinção pe- 6. ed. Tradução por Maria Celeste Cordeiro dos
las nossas próprias mãos, algo hoje perfei- Santos. Brasília : Editora UnB, 1995.
tamente viável pela tecnologia atual. BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento
de Emanuel Kant. 2. ed. Tradução por Alfredo
Fait. Brasília : Editora UnB, 1992.
CUNLIFFE, Marcus. Liberdade, propriedade e Es-
Notas tado. Tradução por Jorge Arnaldo Fortes. In:
Diálogo. Rio de Janeiro : [s. n.], 11(4), 1978.
1
O termo “proprietarismo” é de Marcus Cunli- DUGUIT, León. Fundamentos do Direito. Tradução
ffe (1978, p. 4), “Na tentativa de indicar a mistura por Mário Pugliesi. São Paulo : Ícone, 1996.
de elementos que compõem a fé americana na pro- DURKEIM, Emile. Divisão do Trabalho social e di-
priedade privada, cunhei a palavra ‘proprietaris- reito. Tradução por Maria Inês Mansinho e
mo’, que para mim tem várias conotações, todas Eduardo Farias. In: FALCÃO, Joaquim; SOU-
intimamente ligadas quais sejam: individualismo, TO, Cláudio (orgs.). Sociologia do direito : leitu-
liberdade pessoal, oportunidade de adquirir pro- ras básicas de sociologia jurídica. São Paulo :
priedade”. Pioneira, 1980.
2
Duguit (1996, p. 23), define a primeira hipóte- FRANÇA, Vladimir da Rocha. Instituição da pro-
se como solidariedade por semelhança e, a segun- priedade e sua função social. In: Revista da Es-
da, solidariedade por divisão de trabalho. Cf. Vla- cola Superior de Magistratura do Estado de Per-
dimir da Rocha França (1997, p. 458-464). nambuco. Recife : ESMEP, v. 2, n. 6, out./dez.
3
“(...) deve-se distinguir o poder de um magis- 1997. p. 458-464.
trado sobre um súdito daquele de um pai sobre HOBBES, Thomas. Elementos do direito natural e
seus filhos, de um patrão sobre seu empregado, de político. Tradução por Fernando Couto. Porto
marido sobre sua esposa e de um senhor sobre seu Alegre : Resjurídica, s./d. p. 102.
escravo. Considerando-se que uma mesma pessoa, LOCKE, John. Segundo Tratado sobre Governo Civil e
levando-se em conta todos os seus relacionamen- outros escritos. Tradução por Magda Lopes e
tos, exercesse simultaneamente todos esses pode- Marisa Lobo da Costa. Petrópolis : Vozes, 1994.
res distintos, isto pode nos ajudar a distinguir uns MARX, Karl. Manuscritos econômicos-filosóficos. Tra-
dos outros e mostrar a diferença entre o dirigente dução por Artur Mourão. Lisboa : Edições 70,
de uma sociedade política, um pai de família e o 1993. p. 183.
capitão de uma galera”(John Locke, op. cit., p. 82). SOUTO, Cláudio. Modernidade e pós-modernida-
Sobre a diferença entre os poderes paterno, político de científicas quanto ao Direito. In: Anuário do
e despótico, ver Locke (1994, p. 187-190). Mestrado em Direito. Recife : [s. n.], n. 6, s./d.
4
Cf. Locke, 1994, p. 139-155. “(...) quando a SOUTO, Cláudio. Ciência e ética no Direito : uma
maioria não pode decidir pelo resto, as pessoas não alternativa de modernidade. Porto Alegre :
podem agir como um único corpo e este imediata- SAFE, 1992. p. 9.
mente entra em dissolução” (Locke, 1994, p. 41).
5
Mas pondera Duguit (1996, p. 13): “As nos-
sas leis e códigos inspiram-se, em sua maior parte,
nesta doutrina. A doutrina individualista, embora
não absolutamente exata em seus fundamentos,
prestou imensos serviços e inspirou consideráveis
progressos, levando a conceber, pela primeira vez,
a limitação dos poderes do Estado pelo direito”.

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