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“ANPOCS« cede Nowa do PGodiggne Pei naa Diretoria Executiva ‘Marla Alice Redende de Carvalho (PUC-Rio) ~ Presiderite ‘Cfoero Araujo (USP) - Secretirio Execution Julio Assis Simées (USP) — Seeretiri Adjunto Diretores Carlos Artusi (UFRGS); Maria Stela Grossi Porto (UnB) Rogerio Proenga Leite (UFPE) ‘Conselho Fiscal Lea Freitas Perez (UFMG); Ricardo Silva (UFSC) ‘Ruth Vasconcelos Ferreira (UPAL) Equipe Administrativa Berto de Carvalho Bruno Ranieri Cristina Savio ‘Mirian da Silveira Acompanhamento Editorial Mirian da Silveira Associagao Nacional de Pés-Graduacdo e Pesquisa em Ciéncias Sociais Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 ~ Cidade Universitéria ~ Butanté ‘CEP: 05508-010 Sao Paulo ~ SP Tel. (11) 3091-4664/ 3091-5043 E-mail: anpocsanpocs org br POR UMA HISTORIA DO POLITICO Pigrre ROSANVALLON Faneis Copyright © 2010 Pierre Rosanvalion Cet oworage, publié dans le cadre iu Programme aAide la Publication Carlos Drummond de Andrade de la Médiathéque de la Maison de Prance, bénéfcie du soutien du Ministére Frangais des Afjuires Etrangeres et Europbennes, Este livro, publicado no ambito do programa de participagio a publicagio Carlos Drummond de Andrade da Mediateca da Maison de France, contou com 6 apoio do ‘Ministério Francés das Relagdes Exteriores e Europeias. ‘Traduglo dos textos de Pierre Rosanvallon: Christian Edward Cyril Lynch Publishers: Joana Monteleone/ Harolde Ceravolo Sereza/ Roberto Cosso Faigfa: Jaana Monteleone Editor Assstente: Vitor Roctigo Donottio Auda: Projeto ardfico e diagramagtia: Patricia Jatoba U. de Olveira Reviséio: Maria da Gléria Galante de Carvalho/ Alexandra Colontini Capa: Patricia Jatobé U. de Olvetra Imagem da capa: Detaihe de Embaixadores {1533}, de Hons Holbein CIPBRASIL. CATALOGACAO.NA-FONTE. SINDICATO NACIONAL 00S EDITORES DE LIVROS. RI R712 Rosenvallon. Plame, 1948- FOR Un HTN BO FLIED Fens Rusorivaion: racuao de Cnstin kawerd Gye Lynch, S60 Paulo: Alomeda, 2010, 1049. ISBN 978-85-7909-0855, 1. Ciéncia pola. 2. Demoeracio. | Thu. to-444s, Dp: 320 cou: 32 o2ia03 ‘Auasieon Casa EoroRia Ruc Conselheiro Ramatho, 694- Bele Vista (CEP 1825-000 -Sa0 Paulo - SP Tel. (11) 3012-2400 www.alamedaeditorial.com.or SUMARIO A democracia como problema Pierre Rosanvalion e a escola francesa do politico Por Christian Edward Cyril Lynch Por uma histéria filoséfica do politico Por Pierre Roscnvallon Por uma histéria conceitual do politico Conteréncia de Pierre Rosanvalion 37 A DEMOCRACIA COMO PROBLEMA Pierre Rosanvallon e a Escola Francesa do Politico Por Christian Edward Cyril Lynch* * Doutorem Ciénca Politica pelo JUPERY, Profestr da Escola de Cnc Politic da Universidade Federal do Estado do Rin Ae Sanvimn (UNIRIO). Professor do Programa de Pés-Graduocio em Direitoe Socclngia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor do Programa de Pés- Graduagéo em Dielto da Universidade Gama Filho (UGP). Prortssor Do Corécto ps Franga, Pierre Rosanvallon é um dos mais importantes politélogos e historiadores da atualidade. ‘Autor de mais de doze livros, quase todos traduzidos em di- versos idiomas, é de se lamentar que apenas dois deles tenham sido traduzidos no Brasil. Contendo seus dois principais textos metodolégicos no lume intenta contribuir para amenizar essa situacdo e encora- Ambito da histéria do politico, 0 presente vo- jar a traducao de suas obras maiores. Refiro-me em particular & sua primeira trilogia, versando sobre a histéria da democracia francesa - Le sacre du citoyen, Le peuple introurvable e La démocra- tie Inachevée - e sua nova trilogia sobre a teoria da democracia, cujas duas primeiras partes jé vieram & luz - La contre-démocratie © La legitimité démocratique, De natureza mais informativa que reflexiva, 0 texto seguinte no ambiciona mais que apresentar © pensamento de Rosanvallon no contexto daquela que chamo a Escola francesa do politico, de que é ele hoje, ao lado de Marcel Gauchet, 0 mais eminente e conhecido representante. PERE ROSANVALION Na verdade, o conceito do politico hegeménico no campo da histéria e das ciéncias sociais francesas foi produzido no ambi- to dos pesquisadores integrantes do Centro de Pesquisas Politicas Raymond Aron (CRPRA), sediado na Escola de Altos Estudos em Ciéncias Sociais (EHESS). Esse centro se originou da fusao, em 1992, do setor de politica do Centro de Estudos Transdisciplinares: Sociologia, Antropologia e Politica (CETSAP), dirigido por Claude Lefort, com 0 Instituto Raymond Aron, fundado em 1984 por Francois Furet - ambos ex-militantes comunistas e criticos contundentes da experiéncia soviética. Fundado hé quase vin- te anos por aquelas duas personalidades e seus discipulos, o Centro Aron veio a ser a matriz da Escola francesa do politico. Entre seus atuais pesquisadores, podemos encontrar alguns dos historiadores, socidlogos e politélogos mais destacados da cena contemporénea. Além do préprio Lefort, hoje com 86 anos (Furet morreu em 1997 aos 70, durante uma partida de ténis), podemos citar historiadores do porte de Mona Ozouf (vitiva de Furet), Ran Halévi e Patrice Gueniffey, e politélogos eminentes como Pierre Manent, Philippe Raynaud e Bernard Manin. No entanto, na geragio posterior & Lefort e Furet, 0s pesquisado- res mais conhecidos hoje no cenério internacional da politologia internacional, sd0, indubitavelmente, Marcel Gauchet e Pierre Rosanvallon. Compreender a emergéncia dessa escola requer, todavia, retragar o quadro tedrico em que ela emergiu e os seus respectivos personagens principais. POR UMA HISTOR DO POUTICO Tocqueville € o retorno do liberalismo: Aron e Furet Alexis de Tocqueville (1805-1859) ¢ 0 patrono mais remoto dessa teoria politica francesa renovada pela histéria: A democracia na América e O Antigo Regime ¢a revoluedo representam referéncias quase obrigatérias para.quase-tados 0s pesquisadores daquele instituto, Trés de wa a ie pre com particular rele- vancia em seus trabalhos. Primeiro/a compreenséo da democra- cia como o regime politico moder: 3 apreeni enguanto forma social e politica caracterizada pela igualdade de condigées entre os individuos; segundo, o fato de que ela resulta de um longo, penoso e inevitavel processo de erosdo ou destrui- do voluntéria da ordem aristocratica, baseada na liberdade ena hictarquia terveiro, que esse piocesso pode conduzir alternati- vamenté a um regime auto‘ liberalismo. Diversas das hipéteses politoldgicas e historiografi- cas dos membros do Centre Aron representam desdobramentos daqueles trés eixos explicativos. No entanto, a pré-historia daquela instituicio também passa pela propria recuperagao da heranga intelectual de Tocqueville, 1 a outro, compativel.com 0 marginalizada na Franga depois do firmamento da Terceira Repiblica, juntamente com a dos outros liberais que haviam atuado na cena piblica desde a Restauragio, como Mme. de Stel, Constant, Royer-Collard, Guizot, Duvergier de Hauranne, Rémusat, Laboulaye e Prévost-Paradol. Associando o liberalis- mo.& monarquia constitucional, os republicanos preferiram rei- vindicar outros autores e historiografias, de matizes positivistas FERRE ROSARALLON Gules Ferry), ou neojacobinas (Jean Jaurés).> Em outras palavras, prevalecia entre os republicanos a orientac&o de que a democracia deveria ser produzida a partir de materiais ideolégicos diferentes daqueles que haviam orientado 0 liberalismo da Restauragdo e da Monarquia de Julho. Algumas décadas depois, o liberalismo daqueles autores voltaria a ser condenado como idealista por rea listas como Ostrogorski, Pareto e Michels: para quem a concep¢ao de democracia elaborada pelos libcrais nada teria a ver cum seu efetivo funcionamento, a luz da ciéncia social. O golpe de miseri- cérdia foi a condenacdo dos liberais pelo marxismo hegeménico do pés-guerra, comprometidos que estariam com a produgo de uma ideologia antirrevolucionéria destinada a encobrir do prole- tariado a realidade inegavel da dominacao burguesa. Sobrevivendo apenas nos Estados Unidos como uma espécie de primeira testemunha europeia da exceléncia do sistema de go- verno norte-americano e profeta de sua futura grandeza nacional, apenas na década de 1950, Tocqueville viria a ser resgatado, na Franga como te6rico da democracia, gracas ao cientista social e historiador liberal Raymond Aron (1905-1983). Aron era, entéo, Praticamente o tinico intelectual de porte a combater o marxis- ‘mo politico e académico hegeménico da época, fortemente es- talinista, em obras polémicas como O Opio dos Intelectuais e De uma Sagrada Familia a Outra. Relendo Tocqueville conforme suas obras completas eram publicadas pela editora Gallimard Aron 3 Nicones, Claude (1992), L'idée républicaine em France (1789-1924): essai ‘histoire critique. Paris: Gallimard. 4 Foner, Frangois (1988). Aron Réintroducteur de Tocqueville. In: Jean- Claude Chamboredon. Raymond Aron, la philosophie de histoire et les sciences sociales, Paris: Editions Rue d’Ulm, p. 28. = POR UMA HSTGRA DO FOLINCO percebeu o alcance daquela que Ihe parecia a principal tese toc- quevilleana: a de que a modemidade nao se caracterizaria.nem nem pelo capitalismo pela industria, como preten ¢ pela luta de classes, como postulara Marx, e sim pela “igial- dade social”, pela “igualdade de condigies’.° A redescoberta da teoria de Tocqueville colaborou expressivamente para que Aron desenvolvesse uma reflexao contraposta aquela desenvolvida pe- Jos tedricos marxistas de seu tempo, que acusavam a democracia liberal (“burguesa”) como verdadeira burla do ideal democrati- co, Dai que, em As etapas do pensumento socioldgio, Axon incluisse Tocqueville na qualidade de sucessor de Montesquieu no interior de uma linhagem de indole liberal das ciéncias sociais, alternativa a matrizes entdo hegeménicas: a marxista e a positivista (Comte/ Durkheim) Por outro lado, Aron néo podia sendo simpatizar com a orientago historiografica de O Antigo Regime e a revolugo na medida em que, livre de determinismos préprios a filosofia da histéria entéo em voga, aberta causalmente & contingéncia, aos valores a atores individuais, ela parecia sintonizada com a de Weber - outro ator central no pensamento aroniano” Por fim, ‘Aron participou ativamente no grande debate sobre o fendmeno totalitério, de onde emergiu a oposicao por ele estabelecida entre 5 Aupmn, Serge (2004). Raymond Aron: la démocratie conflictuelle, Paris: Mi- chalon, p.52. 6 Anon, Raymond (2003). As etapas do pensamento socioligico. Coleco Topi- 0s, 6* ed. So Paulo: Martins Fonts. 7 Anon, Raymond (1986). introduction la philesophie de U histoire : essai sur les limites de Vobjetivité historique, Paris: Gallimard. e FERRE ROSAMVALLON 0 regimes “constitucionais pluralistas” e aqueles marcados “de Partido monopolistico” * Esse golpe vibrado por Aron na constituicdo de uma reflexdo sobre a modernidade democratica, alternativa ao padrao mar- xista no campo das ciéncias sociais, encontrou o seu equivalente no campo historiografico na obra produzida por Francois Furet (1927-1997). Foi depois, na virada da década de 1950 para a se- gulnte, com seu desligamento do partido comunista, que o futu- ro autor de Pensando a Revolugao Francesa se aproximou de Aron, Cujas posicdes ele adotou mesmo em obras polémicas como O assado de uma ilusto — ensaio sobre a ideia comunista no século XX. Quando da morte de Aron em 1983, partiu de Furet, entao pre- sidente da Escola de Altos Estudos em Ciéncias Sociais, a inicia- tiva de criacéo de um instituto que, tendo por acervo o arquivo daquele socidlogo se destinasse aos estudos de filosofia ¢ histé- ria politica. Surgiu, entao, 0 Instituto Raymond Aron, de que se tomnou o primeiro diretor (1984-1992). Em idéntica sentido, are- flexdo historiografica de Furet se caracteriza por uma constante referéncia a Tocqueville que data pelo menos de 1971, quando Publicou Tocqueville e 0 problema da Revolucéo Francesa. A histo- riografia tocquevilleana teria sido praticamente a tinica a pro- por “uma conceitualizagéo rigorosa da Revolugdo Francesa”? Nao causa espanto, pois, que seu oficio se desenvolvesse intima- mente relacionado com aquele da histéria intelectual, tal como 8 Anon, Raymond (2007). Démocrate et totalitarisme, Paris: Gallimard, 9 Foner, Frangois (1989), Pensando a Revoluglo Francesa. Tradtusio de Luiz Mar- {ques e Martha Gambini, 2 ed. So Paulo: Paz e Terr, p. 12. 1 POR UMA HSTORIA DO POLITICO praticado pelos politélogos, no intento de devolver & tarefa his- toriografica a dimensao politica de que havia sido privada pelos marxistas e pela Escola dos Anais: Eu advogo que a histéria politica seja ao mesmo tempo a histéria das ideias, nao apenas de sua re- cepeao social. E, alids, dentro dessa perspectiva, eu advogo uma alianca da histéria com a filosofia. Mi- nha ideia central, o que eu faco no Instituto Aron, é juntar os historiadores e os filésofos. E tentar nek litar nao apenas a histéria do politico, mas também a histéria das ideias, que foi praticamente arruinada pela Escola dos Anais." Aprofundando as pegadas de Aron, Furet entendeu que nao bastava recuperar a obra de Tocqueville. Sendo a sua tarefa, a0 contrério, ade reler a trajet6ria politica francesa de uma perspec- tiva ndo-marxista, que implicava rejeitar a matriz historiogrdfica jacobina, 0 coordenador do Dicionério critica da Revolueio Francesa fomentou vivamente a recuperagio de toda a cultura politica li- eral francesa do século XIX. Tendo desarticulado pega por pega a historiografia jacobina reivindicada pelos mardstas, que nela enxergavam tum protétipo da futura revolusio comunista, Euret passou a apresentar a Revolugio como umm longo ¢ softido pro- cesso de quase um século de passagem da Franga & democracia 10 Foner, Frangois (1988). 0 historiador e a historia (entrevista). Estudos His- toricos, Rio de Janeiro, n? 1, p. 148-61. PEE ROSANALLON Uberal. Nesse quadro, a persisténcia da cultura politica jacobina deixa de ser percebida como uma gloria para ser vista Gomo um Obstdculo & constitui¢ao de uma cultura politica democrética; da mesma forma, a Revolugéo deixa de ser um patriético lugar de ‘meméria, para ser encarada como um problema a ser enfrentado pela filosofia politica," Aemergéncia do politico: Claude Lefort As reflexes acerca “do politico” propriamente dito devem ser atribuidas, porém, a filosofia de Claude Lefort (1924). Ele situa a sua reflexdo num plano filosdfico & maneira aristotélica, que Ihe permite considerar o politico como abarcando a totalt- dade do social valendo-se, simultaneamente, de todos os ins- trumentos disponiveis para tanto oriundos dos mais diversos campos do conhecimento social. Daf que o seu itinerério into. Jectual seja marcado peto mais impressionante exercicio de in- tetdisciplinaridade: vai da fenomenologia de Merleau-Ponty a literatura antropolégica de Marcel Mauss, Pierre Clastres, Malinowski ¢ Evans-Pritchard, passando pela teologia pol fica de Emst Kantorowicz e pelas grandes intezpretacbes da Revolucdo produzidas por Edgar Quinet e Michelet” As refo- éncias a Tocqueville, Furet e Aron também estio presentes, a despeito de sua preocupacso em esclarecer suas eventuais di- vergéncias em relagio as perspectivas desses autores. Assim, do ee 11 Foner, Francois (1988). La Rénlution Francice, Paris: Machete, 12 Poutren, Hugues (1997). & i ee igues (1997). Claude Lefort: la découverte du politique. Paris: Edi FOR UMA MSTORIA D0 POUTCO autor das Lembrangas de 1849 Lefort louva a leitura do advento da modernidade como ruptura com a sociedade monérquica em Reversibilidade: liberdade politica e liberdade do individuo e Da igualdade @liberdade a leitura do advento da modernidade como ruptura com a sociedade mondrquica. © didlogo com o segundo emerge em Perssando a revolugdo na Revolueo Francesa, ocasiao om que clogia o desejo manifestado por Furet de “redescobrir a andlise do politico”. No mesmo sentido, conforme se depreen- de de artigos como “Raymond Aron e o fenémeno totalitério”, Lefort compaxtilha com Aron a tese de que a compreensio da democracia enquanto regime moderno passa, necessariamente, pelo estudo do totalitarismo."* Mas, afinal, 0 que ¢ ¢ de onde veio 0 “pensamento do poli- tico”? A primeira vista, 0 conceito parece remeter & reflexdo do texto homénimo de Carl Schmitt, publicado alguns anos antes da subida do nazismo ao poder. De fato, tanto Lefort quanto o autor de A ditadura concebem 0 politico como duutinio transcendente dos limites da politica entendida como subsistema social, a arti- cular a existéncia comunitéria. Para ambos, a politica nao passa de um subsistema entre outros ~ comio 0 juridico, o econdinigs e o religioso -, que surge com o advento da modemnidade e, como tal, permanece & sombra do politico. As semelhangas, porém, nao vo além, Calcado na oposigio entre amigo e inimigo, o conceito schmittiano do politico destina-se a superar uma categorizagao 13 Laront, Claude (1991). Pensando o politico: ensaiva sobre demoeraca, revolute liberdade. Tradtuco de Eliana Souza. So Paulo: Paze Terra, p.115. 14 Leronr, Claude (2007). Le temps présent érits 1945-2005, Paris: Belin, p-969. FERRE ROSAMALLON da politica vinculada ao liberalismo, que o alemao reputava inar- tedavelmente anacrénica em virtude de dois fatores. O primeito Tesidia na emergéncia da democracia de massas enquanto forma de organizacao sociopolitica que exigia a unidade substantiva do Povo consigo mesmo, em ruptura com a tradig&o liberal pluralis- {2 O segundo fator estaria na decadéncia do idedrio liberal paci- fista e universalista, a revelar com ela a existéncia de oposigées radicais entre os diversos grupamentos humanos, que s6 pode- it 5 ' si, m ser resolvidas em tiltima andlise pela eliminagdo de uns ou outros. Ora, 0 conceito do politico desenvolvido por Lefort pa- Tece neste sentido construido deliberadamente contra aquele de Schmitt, i i } na medida em que, associando-o ao totalitarismo, recu- Pera o elemento liberal da democracia que o autor de O guardido da constituicto havia repelido. No entanto, é preciso ésclarecer que esta comparagio perma: nece no plano da abstragio: embora manifestamente critico do eee © “pensamenitu do Politico” articulado por Lefort nao parece fer sido elaborado tendo por negative aquele de Carl Schmitt, com quem, alids, ele nao dialoga expressamente em ne- nhum de seus trabalhos mais relevantes. Se Hobbes ¢ o clAssico a quem Schmitt se refere preferencialmente para articular o pré- Prio trabalho, aquele a partir do qual Lefort extraiu sua nogio do “politico” foi o Maquiavel da Primeira década de Tito Livio. Como ‘se esta informagao jé no bastasse para situar o quadro intelectual a 15 Scurry, Carl (1992), La notion du politique, Théorie du partisan, Traduzi- do do alemo por Marie-Louise Steinhauser, Prefécio de Julian Freun, inhauser, Pret i id. POR UMA HISTORIA D0 POUICO em que se move 0 autor de A invengiio democritica, 0 modelo de totalitarismo que Lefort tem sempre diante de si ndo é o nazista, mas 0 bolchevista. Ademais, o “pensamento do politico” lefortia~ no busca compreender 0 funcionamento do social fenomenologi- camente, isto 6, a partir dos dados da experiéncia — aspecto este que explica a centralidade por ele conferida a historia. “O exame das sociedades antigas pela literatura antropol6gica por ele empreendido nos comegos de seus estudos cedo 0 levou a indagar acerca dos mecanismos que tornam possivel a instituicio da vida coletiva, ow seja, que permitem a um conjunto de indivi- duos imaginarem-se, ao cabo de certo tempo, participes de uma mesma comunidade politica. O passo decisive na compreensao desse mecanismo de instituigao do social, que é justamente o que ele denomina'v politica, foi dado durante a confeccao de sua tese de doutoradg sobre Maquiavel, de cuja obra, conforme referido, Lefort apreendeu a dimensio politica do social."“ Sua tese passa pela afirmagio de que ndo existe sociedad sem referéncia a um lugar de poder; pela ideia de que 0 poder politico consiste numa precondigio da vida social na medida em que é ele que conforma a sociedade, que do contrario nao passaria de uma dj dao. Nao se trata de afirmar banalmente que a sociedade precisa de © a sociedade é da politica para subsistir, ¢ sim de su: produto de um trabalho prévie~dé Stia cor um lugar de poder, qye€onstitui o epicentro daquilo que Lefont politico é, deste modo, anterior ao social; ¢ denomina o politico. / 16 Larons, Claude (1991). Pensando o politico: ensaias sobre democracia, revoli- fo e Hberdade. Traducio de Eliana Souza. Sao Paulo: Paz. ¢ Terra, p. 253 PERE ROSAWALLON 4 sua arquitetura que toma este iltimo possivel. Além disso, per- meia sua obra a crenca na itredutibilidade da divisto social, ou seja, da oposicio entre os fortes e os mais fracos. Enquanto instin- cia que garante a unidade na pluralidade, ele € distinto e superior a0 social, a fim de arbitrar as divisdes que caracterizam este tilt mo. O politico remete, assim, a um dominio anterior e superior de todos 08 dutros modos de vinculacio social, que acaba pot Permitir conformé-lae, como tal, gerir as suas divisdes; em outras Palavras, ele é um “modo de instituico do social”.” Combinadas, ambas as diretrizés IeVam & conclusio de serem ut6picas quais- quer tentativas de supressio do cardter mediador ou refratario da instancia politica — aquilo a que ele e seus discfpulos chama- #40 “as ilusdes da transparéncia” do social no politico, sejam elas oriundas do liberalismo ou do democratismo extremado, sejam elas advindas dos totalitarismos de esquerda ou de dircita, A.compreensio do politico atinente ao modo de instituigdo de cada tipo de sociedade depende, por sua vez, de uni proced! to comparativo. Assim € que a apreenséo da forma peculiar de instituigdo da democracia liberal enquanto regime moderno de- pende de sta comparacio com a forma social que a antecedew, a monarquia, ¢ com aquela forma que tentou ultrapassé-la,o totali- tarismo. Ao contrario da monarquia, cujo fundamento originério era transcendente ena qual a pessoa do monarca servia de instru ‘mento por que a multido se tomava sociedade, na democracia o “lugar do poder” fica vazio. Nao sendo mais possivel instituir 0 social apelando a uma ordem anterior e superior, pela mobilizagao ee 17 Larort, Claude (1972). Le travail de Voewore Machiavel. Paris Gallimard. POR UMA HISTORIA DO POLNCO da religido ou da tradigéo, as normas de organizagio da democta- cia ficam sujeitas 0 perpétuo questionamento por seus cidadaos, Daj o caréter inarredavelmente indeterminado e probleméttico do regime politico moderno bem como a inviabilidade de qualquer tentativa de “resolvé-o” ou “solucioné-lo” em definitive. Com efeit,o toalitarismo estava de antemio fadado ao fracass0jus- tamente porque seu motor radicava na veleidade de aietalta diferenca entre a sociedade e o lugar de poder que a constitui, movido pela ilusdo de conseguir fazer 0 social transparecer no politico. © papel deste é justamente o de servir de espelho capaz derefrataraimagem da multidao e converté-1aem sociedad; por iss0 meso, & que o politico no poderia se exradicado pelo social, sob pena deste tiltimmo mesmo desfazer-s juntamente. A tentativa totalitaria de suprimir a instancia de mediagao de moldea repre: sentar 0 povo como em unidade consigo mesmo s6 poderia por isso ter resultado no que resultou: o terror, decorrente do esforgo do partido tinico em erigir-se em modelo substantivo de unidade, aparadigma de “sociedade ideal” a parti do qual é a sociedade real que precisa ser modelada, por mais altos que sejam os custos sociais."* E nesse ponto que a filosofia politica de Lefort sa fealte: laga com a historiografia de Furet: ambos véem no jacobinismo reyolucionario.um totalitarismo embriondrio.=2-nao st casei da qual haveria de sair a “verdadeira demacracia”\—a-socialista ~ como queriam os marxistas. 18 Leroy, Claude (1987). A ivenga democrtia os limites da dominagiottal- tiria. Traducao de Isabel Marva Loureiro. 2* ed. So Paulo: Brasiliense. PEREE ROSANGALLON Sequéncias do politico: Gauchet e Rosanvallon Os expoentes mais destacados da Escola Francesa do Politico na cena académica contempordnea si0 Marcel Gauichet (1946-) ¢ Pierre Rosanvallon (1948-). Suas obras so profundamente mar- cadas pela filosofia politica de Lefort, de quem foram discipulos. Esse débito pode ser medido, por exemplo, no recurso ao politico como instancia de apreensdo do fendmeno atinente & sociedade 4 politica, a tese de irredutibilidade da democracia, e sua con- traposicao face a6 totalitarismo." Ja 0 peso de Furét pode ser ava- liado pela importancia do papel por eles assinalado & histéria, re- putado instrumento incontornavel de reconstrugio de uma teoria capaz de conferir inteligibilidade & politica moderna. Do mesmo mode, ele os animou na perspectiva de uma histéria renovada das ideias politicas, Uma vez. que o liberalismo representava para ele e Lefort um elemento essencial do fendmeno democratico, 19 Arespeito de Lefort, diz. Gauchet: “Foi o tinico professor que me marcou verdadeiramente ao longo de meus estudos universitarios. Ele no era fi- ésofo, institucionalmente, mas socidlogo. Fle ensinava sociologia geral ¢, nese quadro, falava de Maquiavel, de Marx, de Tocqueville, um pouco como fazia Aron na mesma época. Ele superava todas os outros, inclusive ‘humanamente. Pela primeira vez na minha vida, vi com 06 meus olhos ¢ escutei com os meus ouvidos alguém que era habitado por wm pensamen- to, Bu tinha vinte anos. Ele me foi uma revelacSo, certamente o encontro {intelectual mais importante da minha existéncia”. Vide: Gavciter, Marcel (2003), La condition historique. Paris: Stock, p. 22. Rosanvallon também ex- plica sua aproximagéo intelectual com Lefort ao fato de ser ele “tum filéso- {fo da politica que partia de uma compreensdo bastante realista e bastante substantiva das difivuldales da democracta”. ROSANVALLON, Mierte (2006). “Tiinéraire et role de Vintellectuel”. Revista de Libros. Reprodugo no site do Collge de France. Madri, 28 sotembro de 2006 POR UMA HESTOR DO POLTCO tornava-se imperioso aos pesquisadores recuperar a reflexo po- litica produzida por seus representantes no século XIX. Assim, enquanto Aron e Puret se responsabilizavam pela ressurreicio de Tocqueville como tedrico da democracia, Gauchet e Rosanvallon encarregaram-se de retirar do limbo as reflexes desenvolvidas pelos outros dois liberais franceses fundamentais do perfodo pos- revolucionério: Benjamin Constant e Frangois Guizot™ As seme- thancas e afinidades decorrentes da socializagio comum nao bas- tam, porém, para erradicar as visiveis divergencias entre os dois autores. Gauchet propée uma abordagem eminentemente filosé- fica do politico que incursiona, em escrita por vezes pedregosa, pelos campos da religiao, da pedagogia, da clinica médica e da psicandlise. Por sua vez, devido & sua formagao ligada as cién- cias sociais aplicadas e & politica sindical, ou seja, & dimensdo em- pirica da politica, Rosanvallon adota uma perspectiva mais terra- aterza, enveredando para a histdria social, as politicas piblicas € os problemas de gestdio num estilo literdrio clara e sofisticado, a 20 Gavexss, Marcel (1997). Benjamin Constant: I'ilusion hucide du libéra- lisme. In: Benjamin Constant Ecrits Politiques, Marcel Gauchet, nova edi- fo revista e ampliada, Paris: Gallimard. RosanvatLon, Pierre (1985). Le ‘mement Guizot. Paris: Gallimard. 21 Assim, por exemplo: Gaucusr, Marcel (1980). Le pratique de Uesprit rumain: L'institution asilaire et ta révolution démocratique (em colabo- rago com Gladys Swain), Gallimard, Paris. Gaucuer, Marcel (1992), L’inconscient cérébral, Paris: Editions du Seuil. Gaucur, Marcel (1994). Diatogue avec Winsensé. A la recherche d'une autre histoire de Ia folie (em colaboragio com Gladys Swain). Paris: Gallimard, Gavcusr, Mar- cel (2008) Les conditions de I’éducation. Paris: Stock. Gaucwet, Marcel (2009). Histoire du sujet et théorie de la personne. PU, Rennes. FERRE ROSAMVALLON cocultar a erudigao de seus trabalhos. Da mesma forma, a reflexio dle Gauchet parece se circunscrever mais claramente no espago da experiéncia europeia, ao passo que Rosanvallon expande aque- les horizontes para aprender a democracia enquanto fenémeno planetério, adotando enfoques comparatistas e dialogando com praticamente todos os setores das ciéncias sociais, em especial a briténica e a norte-americana. Marcel Gauchet entende 0 politico como 0 conjuntos de me- canismos ou representacdes primordiais que, projetadas para o campo da politica, sustentam a vida de uma comunidade, per- mitindo-the pensar a si mesma como unidade, sem renunciar 8 pluralidade Sua tese central é de que a democracia moderna resulta de um longo proceso por meio do qual a religido dei- xou paulatinamente de constituir 0 principio ordenador do po- litico® Os trés novos pilares do regime democratico moderno teriam se destacado da velha forma religiosa por intermédio de trés revolucdes sucessivas: a da politica, no século XVI; a do di- reito, no século XVII e da histéria, no século XIX Dai que suas obras mais diretamente politicas se debrucem sobre cada um desses pilares de sustentagio moderna do politico, ai inclusa a neces- sidade de um poder politico imparcial que represente mais cla- 22 Gaver, Marcel (2003). Le condition historique. Entretiens avec Francois Azouoi et Syloain Piron. Paris: Editions Stock, p. 76. 23 Gaucrer, Marcel (1985). Le désenchentément dit monde histoire politique de la religion. Paris: Gallimard. 24 Gauci, Marcel (2007).L’avénement de la démocratie, Tome I: La Révolu- tion Moderne. Paris: Gallimard. oR ro UMA HsTORIA D0 POLITCO ramente 0 cardter refratario do Estado sobre 0 social. As crises sofridas pela democracia so também explicadas a partir dos diversos momentos desse processo cada vez mais acentuado de caida da religio”. Estas produzem as “crises de paradigma” da democracia liberal a partir do desarranjo no equilibrio neces sitio que deve ser mantido entre aqueles trés pilares. f devido a esse motivo que 0 totalitarismo é percebido como uma “religio secularizada”, em que 0s pilares historicos e politicos foram ma- ximizados em detrimento do juridico, no contexto de crise do Iiberalismo - em sociedades onde a perda da forma religiosa de organizagao levou ao medo generalizado de dissolugio do social Hoje vivenciarlamos outra crise, atravessada por uma sensagao de esvaziamento civico simulténeo & explosao de um demandismo individualista, cuja causa residiria justamente na climinagao dos tltimos residuos de organizagio do politico a partir da religiio.” Note-se que, nessa hipétese sobre a passa~ gem de um mundo marcado pela organizacio hiesérquica a par- tir da religido e aquele do crescente nivelamento social e plena 2B Sobre a emergéncia dos direitos individuais: Gaucnet, Marcel (1989). Le révolution des droits de homme. Paris: Gallimard, Sobre a organizagéo do Estado democrético e a nevessidade de um “terceiro poder organizador”: Gaver, Marcel (1995). La révlution des pouois : la souverninet, le peuple et Ia représentation, 1789-1799, Pars: Gallimard. Sobre “opilaxhistOrco": Gau- crt, Marcel (2008). La condition historique. Pati: Stock. 26 Gavcust, Marcel (1998), La religion dans in dimocratie: parcours de ta tact. Paris; Gallimard. Gaucwex, Marcel (2007). Liavénement de ta démocratie. ‘Tome I: La Révolution Moderne, Paris: Gallimard, Gavexer, Marcel (2007). {27 Gaver, Marcel (2007). La démocratie d'une crise & autre. Paris: Cécile Défaut. 29 ERE ROSANYALION laicidade, é facilmente identificdvel, ainda que tremendamen- te dilatado, o esquema explicativo de passagem a modernidade politica estabelecido por Tocqueville ~ a quem Gauchet pagou 0 inevitavel tributo em Tocqueville, ‘Amérique et nous: sur la génese dés societés démocratiques.® Pierre Rosanvallon, por sua vez, partilha da mesma concep- cio basica do politico, quando define o mundo da politica como segmento do mundo do politico, operado pela mobilizagao dos me- canismos simbélicos de representacao.” No entanto, ele discorda de Gauchet no diagnéstico. Para ele, a democracia nao experi- mentaria qualquer crise nos dias de-hoje ~ a0-contrario, a.crise seria da teoria politica tradicional, a qual nao teria se dado conta do carter permanentemente aberto daquela forma politico-social ¢ por isso teria perdido a capacidade de dar conta das transfor- mages por ela softidas nas iiltimas décadas. Dai a necessidade de remodelar a teoria recorrendo, ndo mais a categorias abstratas, mas ~ fiel & ligdo de Lefort — & histéria e a0 comparatismo, meios finicos de aprender a democracia em suas formas conecretas.” Ao recusar a oposigéo enire democracia direta e democracia re- presentativa, em que o debate se-polarizava quando da publica- go de suas primeiras obras, Rosanvallon j4 revelava um trago constante de sua obra: a crenca de que o politico é um fendmeno que s6 poderia ser compreendido a partir das dificuldades e dos 28 Gaucur, Marcel (2005). La condition politique, Paris: Gallimard 29 Rosanvatton, Pierre (2002). Pour une histoire conceptuelle du politique. Pa- ris: Colldge de France. 30 Rosavatton, Pierre (2006). La contre-démocratie: la politque a W'ige de la Aéfiance. Pars: Le Seuil, p.31. ae POR UMA HISTORIA D0 POLNCO problemas substantivos da vida democratica, Esta caracteristica faria dele um critico consideravel da teoria normativa que domi- nava o cenério intelectual internacional pelo intermédio de au- tores como John Rawls e Jiirgen Habermas. Motivado assim por tum enfoque histérico ou sociolégico da democracia, Rosanvallon envidou esforcos pela reabilitago dos autores realistas da pri- meira metade do século, relancando as obras classicas de Michels e Ostrogorski sobre os partidos politicos. Em 1992, Rosanvallon assumiu a diregao do Centro Aron, posto por ele ocupado duran- te mais de dez anos, quando passou ao Colégio de Franca. Deum modo geral, pode-se dizer que sua reflexdo até o inicio da presente década girou em tomo dé trés eixos central, que Ihe per- mitiram acumuiar o capital intelectual que ele julgava indispensa- vel para reestruturar a teoria da democracia. O primeiro deles passa pela interpretagio.e evolugio das instituigdes de solidariedade social e da teoria da justica. Segundo Rosanvallon, a reflexao democratica 4 insepardvel da discussdo sobre as condigées priticas do contrato social, que hoje passam, inevitavelmente, por um acérdo Sobre a re- distribuigio da renda e pelos problemas da solidariedade em geral™ segundo eixo de sua reflexdo reside na hist6ria do que acabou por denominar o “modelo politico francés”, que, no contexto de de- dlinio do marxismo e, concomitante, proximidade do bicentenario da Revolugio Francesa, no intento de melhor aprender a cultura 31 Rosanvatiox, Pierre (1976). L’age de Vautogestion. Paris: Le Seuil. Ro- “SaNVALLON, Pierre (1981). La crise de I'état-providence, Paris: Le Seuil. Este Liltimo foi traduzido no Brasil: RosaNvALLON, Pierre (1997). A crise does- tado-providéncia, Tradugio de Joel Ulhoa. Goiania: UFG. Sobre o mesmo assunto: La nouvelle question sociale: repenserI‘état-providence (1995). os PERE ROSAMWALLON liberal, 0 impeliu ao se debrucar desde a natureza do capitalismo até a trajetéria do Estado na Franca? O eixo mais notério de sua obra, entretanto, foi aquele dedicado & reconstituico da historia intelec- tual da democracia francesa e sua correspondente cultura politica desde 1789. Foi ele que deu origem ao famoso tritico sobre a cida- dania, a representagao e a soberania, que 0 consagrou no circuito internacional.” Ao cabo de vinte anos estudando o Estado ea cultu- 1a politica, Rosanvallon julgou que jé poderia retomar seu objetivo inicial de reconstruir a teoria geral da democracia. Partiu, entio, para a elaboragéo de uma nova trilogia, destinada a abordar as transfor- mages da atividade democritica, da legitimidade politica e da base territorial do Fstado-nagao.* Os dois primeiros volumes jé vieram a lume, faltando o terceiro, que deve ser lancado em 2011. 32 Rosanvatron, Pierre (1979). Le ctpitalisme utopique: histoire de Widée de ‘marché. Paris: Le Seuil. Esse livro foi traduzido no Brasil como: RosaN- vvatzow, Pierre (2002). literalismo econdmico: histéria da ideia de mercado, ‘Tradugio de Anténio Penalves Rocha, Bauru: Edusc. Sobre o mesmo as- sunto: Rosawvaitow, Pierre (1985). Le moment Guizot, Paris: Gallimard; ‘e Rosanvatzon, Pierre (1994), La monarchie impossible. Histoire des chartes de 1814 et 1830. Paris: Fayard. Hé ainda duas obras, digamos, programé~ ticas: Rosanvatron, Pierre (1990). L'Eiat en France, de 1789 a nos jours. Paris: Le Seuil; ¢ Rosaxvatton, Pierre (2004), Le modele politique francais: Ia socitté civile contre le jacobinisme de 1789 a nos jours, Paris: Le Seuil. 33. Rosanvatton, Piette (1992). Le saore du citoyen: histoire du sufrage universel ent France Paris: Gallimard, RossNvaLion, Pierre (1998). Le peuple introuoa- Dies histoire de a eprésentation démocratique en France. Paris: Gallimard, Ro- sawvazton, Pierre (2000). La démocratie inachenée: histoire de la souveraineté du peuple en France. Paris: Gallimard. 34 Rosaxvattow, Pierre (2006). La contre«iémocratie: a politique a age de la dé- fiance, Paris: Le Seuil. Rosanvatton, Pierre (2008). La légitimité démocrati- ‘que: impartialit,réflexioite, proximité, Paris: Le Seuil. 32 POR UMA HISTORIA DO POLMICO Rosanvalion, historiador do politico Das reflexes ou notas de trabalho escritas e divulgadas por Rosanvallon ao longo de seu trabalho como historiador emergiram os dois artigos que compéem o presente volume: “Por uma histé- ria filos6fica do politico” e “Por uma historia conceitual do politi- co". O primeiro deles é essencialmente metodolégico e representa «uma consolidagSo expandida de um artigo anterior, chamado “Por ‘uma histéria conceitual do politico - nota de trabalho”, publicado em 1996 na Revue de Synthese. J4 o segundo artigo foi redigido por Rosanvallon como conferéncia para servir de ligdo inaugural a chtedra de Histétia Moderna e Contemporinea do Politico do Colégio de Franca, que passou a ocupar em 2002. Para além da rea- firmagéo metodolégica, o texto contém o seu programa de pesqui- sa da disciplina naquela instituigéo, atualmente em plena e exata execugio.# Nio fica clara, no entanto, a razfo que levou o autor de ‘um artigo a trocar a qualificago de sua abordagem historiogrética de “filoséfica” para “conceitual”. Esta ahservagin parece necessé- ria, entre outros motivos, porque o “filoséfico” remete ao conceito lefortiano do politico, ao passo que o “conceitual” sugere uma in- clinagio para a Begriffegeschichte de Koselleck. A diferenga parece, todavie, ndo guardar maiores significados. Primeiro, porque Rosanvallon emprega as duas expresses demodo intercambiével. Além disso, sob uma expresso ou outra, ele jamais se distancia das postulagies de Lefort, ao paso que assinalou allu- res.as diferencas entre sua historia do politico e aquela praticada na 35. KOSANVALLON, Pierre (2002). Carew hibtuire mere et contemporaine du poli tique, Legon inaugurle fut le jeudi 28 mars 2002. Peis: Collége de France. 33 PRR ROSANVALLON Alemanha pelo falecido autor de Critica e crise. Rosanvallon queria fazer “uma histéria compreensiva das ideias e desenvolver uma compreensio da racionalidade dos atores politicos. Nunca preten- di separar uma histéria renovada das ideias de uma historia pro- priamente politica”. Ainda em materia tedrico-metodolégica, em Por uma historia filocofica do politico, Rosanvallon deixa entrever as diferencas de sua abordagem tanto em relagio ao contextualismo linguistico de Quentin Skinner quanto do normativismo de Rawls e Habermas: “Nao é possivel se contentar com uma abordagem nor- mativa que nos fornega uma visio puramenite ideal da politica e da democracia”, ele reitera noutro lugar. “E preciso redefinir 0 enfo- que normativo para suprimir o hiato existente entre a histéria e a teoria’.* Rosanvallon esclarece assim a sua posicio intermédia en- tre aqueles autores, na medida em que, enxergando na historia uma ferramenta indispensdvel para uma reflexio realistica do politico, se vé compelido a se afastar tanto dos excessos do historicismo, que dispensam a reflexdo do presente, quanto do normativismo teérico, _gue, ao rechagar a histéria, rechacaria a realidade. Para Rosanvallon, a tarefa do historiador é a de tentar restituir 490 passado sua dimensao de presente, isto é, de indeterminacdo, Para tanto, é preciso resgatar a experiéncia politica dos atores, seus sistemas de aco, representacao e contradi¢aio, de tal sorte que © presente do passado nos ajude a melhor refletir sobre 0 nos- so presente e nao apenas a explicar simplesmente o presente ou 36 Rosawvarzow, Pierre (2006), “Itingraire et role de V'intellectuel”. Revista de Libvos. Reprodugio no site do Collége de France. Madri, 28 de setem- bro de 2006(a. POR UMA HISTORIA DO POLITICO ‘0 que ele foi. Meio de compreender os dilemas da democrada essa histéria filosdfica ou conceitual do politico se estabelece a pattt dos vinculos conceituais entre as questdes candentes de uma so” ciedade e suas representacées politicas no decorrer da historia Sujeito ¢ titular da democracia, 0 povo somente afirma sua exis téncia politica através das ideias que ele faz de si mesmo, que! dizer, na medida em que seus componentes se percebem come um todo coerente. As representacdes dat decorrentes se refletet! diretamente nas concepgies institucionais adotadas, pois sao elas que conferem visibilidade as ideias que o povo nutre a respeito do exercicio legitimo do poder. A tarefa de recuperar essas for mas histdricas de auto-representago impée, por conseguinte, # recusa em distinguir 0 espago para onde, de um lado, convergt a representagio ~ a politica -, e, de outro, aquele onde a rept” sentagao é produzida ~ o politico. Como experiéncia concreta § historia social e a historia intelectual sao insepardveis: 0 mundodi politica nao passa de um segmento do mundo do politico, que opet® pela mobilizacao dos mecanismos simbélicos de representaci@ Esperamos que a publicacao dos presentes textos em lingua poF tuguesa contribua para a maior difusao das reflexdes dessa Esco? Erancesa do Politico, ainda incipientes entre nés. 35 POR UMA HISTORIA FILOSOFICA DO. POLiTICO* Por Piorre Rosanvalion “Tradugho de Chestan Eaward Cyst Lynch. 1 Nos Uurmmos ViNTE ANOS TEMOS TESTEMUNHADO um “retorno a0 politico”, frase hoje ja banalizada pelo uso. Tal retomo pode ser explicado pela concorréncia de dois fatores. Primeiro, ele perter- ce a um momento na historia quando, simultaneamente, desco- brimos a centralidade do tema da democracia e de sua proble- matica natureza. Até 0 final da década de 1960, a visto de uma divisdo ideolégica fundamental serviu para organizar 0 espayy intelectual em tomo da oposicao entre duas vis6es hegeménices de mundo: a marxista e a liberal. Os advogados da democracia parlamentar classica e os campedes da “verdadeira” democracia, cada um de sua parte, acreditavam que os modelos cujos méri- tos proclamavam correspondiam a um ideal completamente re- alizado, Na década de 1970, uma nova verséo da critica do tota- litarismo alterou essas conviegdes, Ievando a uma anélise mais profunda do problema da democracia. Desde 0 fim dos anos 1980, num contexto caracterizado pela ascensdo do nacionalismo e pela crise do Estado de Bem Estar, a necessidacle de um novo 39 FERRE ROSANVALLON conirato social prolongou essa busca, contribuindo para tornar as questées politicas novamente centrais. Mas 0 “retorno do po- Itico” também tem uma dimensdo metodolégica: ele acompanha © desencantamento com as ciéncias sociais, visivel na década de 1980. Postas de lado, de certa forma, a sociologia e a antropologia, a filosofia pareceu a alguns oferecer um caminho melhor para, a0 ‘mesmo tempo, entender e formular os problemas das sociedades contemporaneas. E nesse contexto que se pode apreciar melhor a emergéncia daquilo que chamo a histéria filos6fica do politico. Neste ensaio abordo tal questo tornando explicita a aborda- gem metodolégica e as intengdes subjacentes de certo ntimero de publicagdes de minha autoria, em particular L’état em France: de 1789 4 nos jours, bem como Le sacre dy citoyen.t Um ponto pre- liminar, todavia, merece énfase. A identificagéo de uma nova historia filosdfica do politico reside em uma definicdo do domi- nio politico distinta daquela geralmente assumida pela ciéncia politica, para a qual a politica constitui uma subarea do sistema social como um todo. Max Weber, por exemplo, considerava que a ordem politica, entendida como o exercicio do monopélio le- gitimo da violéncia, estava em oposigao & economia e & ordem social. Cada esfera de atividades estaria sujeita a instituigdes e principios reguladores proprios. Seria possivel mencionar mui- {as outras definig&es do que seja a politica. Mas 0 que caracteri- za as ciéncias sociais é que elas a considera em termos de sua 1 Pierre Rosanvallon, L’état en France: de 1789 @ nos jours (Paxis, 1990); Pierre Rosanvallon, Le sacre du citoyen — histoire du suffrage universel em France (Paris, 1992). 40 POR UMA HISTORA DO PoLIICO. especificidade: a coeréncia inerente do dominio politico emana de uma qualidade particular do poder como um meio de mol- dar a organizacao e a hierarquia da fabrica social. Na contramio dessa definigéo, a histéria filoséfica do politico “implica por outro lado a nogéo de um principio ou um conjunto de principios engendrando es relagSes que as pessoas mantéi en- treelasecom omundo” Vista deste éngulo, tomando como ponto de referéncia a dimensao simbdlica caracteristica da sociedade, nao se trata apenas de desenhar uma linha entre o que é politico eo que 6 social. Embora a insergao do politico no interior dessa estrutura simbélica seja incontestAvel (e, diga-se de passagem, é este 0 fato que torna fundamental a relacio entre o politico e 0 religioso), é necessdrio, porém, ser ainda mais exato. Aqui podemos nos referir as observagdes muito esclarecedoras de Claude Lefort, que define © politico como 0 conjunto de procedimentos a partir dos quais desabrocha a ordem social. Interpretado nesse sentido; o politico © 0 social sao indissoliveis, este derivando daquele seu significa- do, sua forma e sua realidade. Essa definigo do politico baseia-se numa dupla premissa: a primeira é o reconhecimento da natureza problemitica da elaboragao das regras por meio das quais a comu- nidade pode viver em paz, evitando desse modo o dissenso e sua prépria ruina, na perspectiva de uma guerra civil. A definigao clas- sica de Aristoteles na Politica é aqui apropriada: “Quando hé uma azo para a igualdade e uma razo para a desigualdade, entio entramos no reino da diivida e da filosofia politica”? 2 Claude Lefort, Essat sur la politique, XIXe-XXe sites (Panis, 1980), p. 8. 3. Aristételes, Politics (IL, 1282 B 21), 4 PERE ROSANALLON Compreendido dessa forma, o politico pode ser definido como uma esfera de atividades caracterizada por conflitos irre- dutiveis. O politico resulta da necessidade de estabelecer uma norma para além do ordinario, norma que, entretanto, nao pode de modo algum ser derivada de algo natural. O politico pode, portanto, ser definido como 0 processo que permite a constitui- do de uma ordem a que todos se associam, mediante delibe- ragao das normas de participacao e distribuigdo. “A atividade politica”, como observa Hannah Arendt em idéntica linha, “est subordinada & pluralidade da atividade humana... A ativi politica diz respeito & comunidade e com o modo pelo qual ser diferente afeta as respectivas partes” + 1 Podemos aempre comegar com casa definigso cldssica do po- litico. Mas é também necessério enfatizar que ela adquire um novo significado na sociedade moderna. De fato, na definicao de Aristételes, 0 aspecto problematico da participacao e da dis- tribuigdo é mantido dentro de certos limites pela crenga, que ela pressupSe, numa certa ordem natural das coisas e da socieda- de. Nesse caso, o sistema de diferengas é, em parte, um dado ja presente. Em contraste, o politico nas sociedades modernas ésta sendo ampliado ~ pode-se dizer, inclusive, que ele esta sendo li \berado. Ha duas razées para isso. A transicfo de uma sociedad 4 Hannah Arendt, Qu’est-ce que la politique? (Paris, 1995), p. 31. POR UMA HEsTORIA DO OLIMCO corporativa para uma sociedade de individuos produz, em pri- meiro lu Zo. Desse modo, 0 politico é convocado a ser o agente que “representa” uma socie- dade cuja natureza ndo esté dada de forma imediata. Segundo Marx, na Idade Média as classes sociais eram imediatamente meiro lugar, um tipo de d politicas.’ Nas sociedades modernas, em contraste, medidas po- sitivas tém sido tomadas no sentido de promover a representa- so da sociedade, face a necessidade de que uma sociedade de individuos se tome visivel e notavel, e que assim o povo adqui- ra.uma face. O imperativo da representacao, portanto, distingue a politica moderna da antiga, Ao mesmo tempo, deve-se chamar ¢ a atengao para uma segunda diferenga fundamental, a diferenca que deriva do principio de igualdade ligado ao advento de uma visio da ordem social como produto de convengdes (0 que im- plica a igualdade entre individuos perante a lei). Nas socieda- des modernas ja nao hé limites que possam ser impostos ~ soja pela natureza, seja pela histéria — contra processos igualitérios, A igualdade subverte todas as tentativas de legitimar as diferen- gas em razo de alguma ordem natural, A vida social é caracteri- zada por dois processos, baseados em novas reivindicagées por igualdade econémica e pela redugao das diferencas antropold- gicas. Esses dois aspectos da modernidade levam assim a uma ampliagdo consideravel do dominio pratico do politico, quando comparado & perspectiva aristotélica. 5 CEK. Manx, Critique of Hegel's ‘Philosophy of right’, edited by J. O'Malley (Cambridge, 1970), p.723. PEE KOSAMWALLON Visto desta perspectiva, 0 objetivo da historia filoséfica do po- Litico é promover um entendimento acerca do modo por que sio projetados e se desenvolvem os sistemas representativos, que per- item aos individuos ou grupos sociais conceber a vida comuni- tiria Na medida em que essas representagSes nascem de um pro- cesso em que a sociedade esta constantemente se reexaminando, € que elas nfo sio exteriores as consciéncias dos atores, a histéria filoséfica do politico objetiva, primeiramente, entender como uma época,uin pas ox um grupo social tenta construr respostas pera aquilo que, com maio¥ ou menor precisao, elas percebem conio um es, ¢ das formas de elacionamento e de controle social. Ela é uma histéria filoséfica porque lida com conceitos incorporadas & auto- ncas decorrentes da transformagio das institui representagao da sociedade, tais como igualdade, soberania, de- mocracia, etc., que permitem organizar e verificar a inteligibilidade dos eventos e seus princ{pios subjacentes. Tal définicao jistifica por ‘que privilegiar dois grandes momentos histéricos: a perda de auto- nomia da ordem social entendida como um organismo corporativo 6 O termo histéria politica & preferido & histérie intelectual porque o tetmo ‘histria intelectual possi um sentido muito estrito no mundo anglo-sa- que trata a histéria como sendo uma dimensio separada da pro- dugao intelectual e dos circulos intelectuais. = POR UMA HSTORIA BO POLITICO ~ahist6ria do politico na medida em que este esté relacionado com © afrouxamento da representacdo orginica da ordem social - e 0 subsequente periodo democratico. Esses dois grandes momentos so muito diferentes um do outro, Um consiste na historia da ori- gem das formas contemporaneas do politico, do Estado, paralela- mente & emergéncia do individuo; 0 outro é a histéria do que se pode chamar “experiéncia democrattica”, Contrariamente & historia das ideias cléssicas, 0 material para essa hist6ria filos6fica do politico nao pode ser limitado a uma and- lise e comentario de grandes textos, muito embora, em certos casos, eles possam justificadamente ser considerados centrais na medida em que ilustram as questées suscitadas em determinado perfodo historico e as respostas entao oferecidas. A histitia filoséfica do po- Iitico segue a histéria das mentalidades, ao preocupar-se em incor- pporar todos os elementos que produzem este objeto complexorque Esta tarefa certaiienife includ o modo por que grandes textos tedricos so lidos, mas também a atencao as obras literdrias, a imprensa e os movimentos de opinio, panfletos e dis- cursos parlamentares, emblemas e signos. Ainda mais largamente, a histéria dos eventos e instituigies deve ser apreendida como algo ‘em permanente construgéo, de tal modo que, assim considerada, no ha objeto que possa ser considerado alheio para.esse tipo de historia do politico. Ela consiste em reunir todos aqueles materiais empregados, cada um de modo separado, por historiadores das ideias, das mentalidades, das instituigées e dos eventos. Por exem- plo, a relagdo entre liberalismo e democracia durante a Revolugao Francesa no pode ser resalvida camo um debate de alto nivel travado entre Rousseau e Montesquieu. Deve-se fazer um esforco an PERE ROSANVALLON para entender o que as pessoas que citaram estes autores como au- toridades leram de fato nas obras deles; estudar 0 calhamaco das petigdes enviadas 4 Assembleia Nacional; imergir no mundo dos Panfletos, inclusive os satiricos; reler debates parlamentares, fami- liarizar-se com as praticas dos clubes e comités. Também 6 necessé- tio estudar a historia das Palavras e o desenvolvimento da lingua- ‘gem (democracia ndo significa a mesma coica em 1789 @ 1793, por exemplo). Essa histéria é naturalmente multifacetada. Como analisar ultiplicic lesses varios niveis? Essa é uma questio importante porque frequentemente a historia do Politico (quando confundida com a historia das ideias) & recri- minada por ser apenas uma histéria dos grandes autores. Como se pode lidar com essa questio da histéria vista de cima ou de baixo? Aqui mais uma vez devemos nos aperceber do significado dos textos classicos. Se certo ntimero de textos parecem ser cru Ciais, ndo é apenas porque sio expressdes do pensamento, mas Porque eles representam a formeliza,au-de-um, momento histo- ico, politico ou filoséfico espectfico, Nao se trata simplesmente de realizar uma leitura do Contrat social ao estilo de Leo Strauss ~ Du contrat social como contribuigao filoséfica — algo interessante em si mesmo ~ mas de mostrar como Du contrat social representa uma das formas de expresso da questo da construgo da or dem social no século XVIIL Se os grandes textos gozam de um Status particular nessa historia, é porque a sua peculiar qualidade é precisamente, a de estabelecer uma conexdo entre um texto e uum problema. Mas, obviamente, ninguém pode se restringir aos Srandes textos. Se, por exemplo, queremos entender como emer- ge a visio moderna da representacao politica, nao hé como se POR UMA HISTOR 00 POLITCO desincumbir dessa tarefa fazendo referéncia apenas a Sieyés ou Barnave, ou mesmo & oposicao entre uma visio antiga da repre- sentagio, como a de Montesquieu, ¢ a sua critica radical, como a de Rousseau. E necessdrio também analisar de que modo uma sociedade em geral se coloca a mesma questo, levando em consi- deracao panfletos, iconografia e nvisicas. Assim, quando escrevi Le sacre du citoyen, tentei nao separar os textos cldssicos daqueles materiais de origem intelectualmente menos nobre. Procurei co- locar a andlise de documentos iconogréficos lado a lado com um comentario classico sobre diferentes textos. Nesse sentido, a hist6ria filosfica do politico representa uma tentativa de dar um novo significado a0 projeto de Fernand Braudel de uma hist6ria total. Devemos, de fato, nosmaver na di- rego de uma histéria politica total a fim de construir 0 sentido do politico em toda sua complexidade. Hoje so muitas as vias pelas qiais a histéria se renova. Nesse aspecto, os debates contempo- raneos sobre as fronteiras entre historia e ficgo, a renuvacau da abordagem biografica para o conhecimento da ordem social ou a renovacao da micro-histéria sao todas significativas. A historia vive dessas questies e dessas mudangas. A nova historia filosé- fica do politico deve ser compreendida no interior deste conjun- to maior de inovagées na disciplina. E essa nova histéria que se apropria, de um modo distinte, 6 antigo projeto de uma historia se separam os di- total — uma histéria na qual, em principio, n ferentes instrumentos das especialidades historicas. Nesse senti- do, a histéria do politico -extrair conhecimentos.da histéria cultural, da histéria_ soci classica histéria das instituigdes politicas e da historia das ideas Entretanto, o que Ihe confere a FRE ROSAMVALLON coeréncia nao é apenas a variedade de instrumentos de que ela pode dispor, e sim o seu objeto préprio. E a particularidade de seu objeto que a distingue de outras areas da histéria. A originalidade dessa histéria filoséfica do politico reside tan- to na sua abordagem e como no seu contetido, Sua abordagem é, a0 mesmo tempo, interativa e compreensivailinterativa, pois ela consiste em analisat 0 modo pelo qual uma cultura politica, suas instituig6es e eventos interagem para estabelecer formas politicas mais ou menos estaveis. Isso é feito|mapeando as sobreposicées, divergéncias, distorgdes, convergéncias e lacunas que caracterizam a formagao de modelos politicos e determina o que é equivoco ou ambiguo acerca deles ou, ainda, em suas realizagdes. A historia fi- loséfica do politico também compreensiva, porque seu objetivo central é apreender uma questio situando-a no contexto de sua emergéncia, Sob tais condigées é impossivel manter uma ‘perspec- tiva objetivista, que creia ser possivel ao historiador, de uma posi- so externa, pesquisar e controlar um objeto passivo. A abordagem compreensiva busca apreender a histéria em seu fazer-se, ou seja, enquanto ela mantém suas potencialidades ~e antes, portanto, que elase| efetive no modo histérig5e passivo, como um fato necessiri No sentido proposto por Max Weber, a compreensao no campo da hist6ria implica reconstruir 0 modo pelo qual os atores entendem sua propria situagio, redescobrindo as afinidades e as oposicées a artir das quais eles projetam suas agées, configurando genealo- gias de possibilidades e impossibilidades que, implicitamente, es- truturam seus horizontes, Esse é wim método baseado na empatia, Jd que pressupSe a caparidade de seu operador de ve dirigir a um objeto, colocando-se na situagio em que este emergiu. Mas esta ¢ ro POR UMA HSTORIA DO POUMCO naturalmente uma forma de empatia limitada em razao de uma distancia que permita também compreender os pontos cegos € as contradigées dos atores e autores. Trata-se, pois, de uma empatia controlada, por assim dizer. m ‘Tais comentarios gerais acerca da definico do contetido e da abordagem de uma histéria conceitual do politico ndo importam na rejeigdo dos métodos tradicionais da historia das ideias, dos eventos e das instituig6es — nem da histéria das mentalidades, mais recente -, ¢ sim reavaliar os temas de pesquisa proprios a clas, a partir de uma perspectiva nova. Tal reavaliacZo pode, em alguma medida, implicar 0 risco de uma volta ao passado. Isso & particularmente verdadeiro no que diz respeito a histéria das ideias, Esse campo foi abandonado ha tanto tempo pelos acadé- micos franceses, que muitas vezes foi preciso comegar por uma reconstrugao histérica mais tradicional antes de se tentar uma abordagem propriamente conceitual. E importante aqui enten- der a conexao entre essa histéria do politico e aquela vista como propria & Ecole des Annales. A distancia entre ambas apareceu de forma exagerada nos anos 1980, por conta do inevitével sentido de redescoberta oritindo de uma reavaliagao de um campo acadé- mico que havia sido negligenciado por tempo demais. O resulta- do foi que o retomno a uma tradigio anterior da histéria das ideias foi por algum tempo considerade como correspondente a uma nova abordagem do politico. Uma vez. que esse momento em que - PERRE ROSANVALION redescoberta e inovagio pareceram superpostos parece ter che- gado ao fim, fica claro que a historia do politico se insere numa Petspectiva.mais de ampliagao e renovacio do que de ruptura “com a escola histérica francesa, O camino adiante ainda é incer- to e experimental, Por isso entendo que essa tentativa possa, por vezes, parecer daquelas que opdem a hist6ria de cima para baixo a hist6ria de baixo para cima, Em termos de objetivos e métodos, 6 ai que no caminho deste ambicioso projeto, reside o maior obs- téculo. & preciso adotar uma trilha entre aquilo que poderia se tomar uma simples histéria das ideias, ainda que melhorada, e aquilo que seria meramente filosofia politica. Longe de estar isolada de outros campos da pesquisa histéri- ca, a histéria filos6fica do politico, se encontra, ao conirdrio, facil- mente reconciliada com eles. Além do mais, certos historiadores vém descobritido por si miesmos a dimensio do politico, partindo de sua prépria perspectiva histérica. Eo que ocorre com a histéria social, se tomarmos como evemplo 0 trabalho de Jacques Julliard,” ‘Também é 0 caso da histéria dos simbolos, tal como praticada por Pierre Nora em Les lieux de mémoire® Lhistoire de France, puiblica- da por Le Seuil ¢ editada por André Burguire e Jacques Revel, tem contribuido para um intercambio muito frutifero também? As condigées para um didlogo produtivo, com a colaboragio de 7 ‘J. Julliard, Autonomic ouoridre. Etudes sur le syndicalisme d'action directe (Paris, 1988), 8 R.Nora, Les liewx de mémoire (Paris, 1984-6), ef. especialmente o livro l,La République’ e o volume TL, liveo I, ‘La nation’, onde a politica ocupa um ‘espaco bastante considerdvel. 9 André Burguitre e Jacques Revel (eds), L’histoie de france (Paris, 1989-93). — POR UMA HSTORA DO FOLIC historiadores, filésofos e socidlogos, vém dessa forma emergindo firmemente, O trabalho com juristas tem ampliado ainda mais as possibilidades de troca. Em raziio de sua propria natureza, 0 €s- tudo do politico toma de diversos caminhos, com a consequente desmontagem de estreitas fronteiras disciplinares. Levando 0 argumento mais adiante, 0 propésito desse em- preendimentn é romper com a divisao entre histéria politica e filosofia politica, de modo a alcangar um ponto de convergéncia entre ambas. As razdes dessa ambig&o se radicam no pressuposto importante de que a historia deve ser considerada um material da filosofia politica e um objeto sobre o qual ela reflete. Hannah Arendt vai nessa diregao: em Between past and future, ela observa que “o proprio pensamento emerge de incidentes da experiincia viva e a eles deve continuar vinculado, na medida em que sdo 0s Linicos guias de quem é possivel obter orientagao” *° Aqui emer- ge uma das principais marcas da filosofia politica: ela pode ser caracterizada primariamente por sua relagdo nccesoaria, intrane- ponivel e sempre problemitica com as-experiéncias opinides presentes em um dado momento-na politica al de-uma comni- dade em geral. Assim, de modo nenhum a filosofia politica pode ser encarada como uma provincia da filosofia. Pelo contrério, ela constitui um modo particular de filosofar, j4 que seus objetos 10 H. Arendt, ‘Preface’. In: Between Past and Future. Eight Exercises in Political Thought (Harmondsworht, 1978), p. 14. 11 CHL Arendt, “Truth and politics’. In: Arendt, Between past and future. esse panto eu corroboro 00 excelente comentérios de Philippe Raynaud no artigo ‘Philosophie politique’. In: Philippe Raynaud e Stépahne Rials (eds. Dictionnaire de philosophie politique (Pati, 1996). PERE ROSAMALLON resultam diretamente da vida da comunidade, juntamente com a totalidade dos argumentos e controvérsias que a atravessam. Nessa petspectiva, & necessério insistir no fato de que nenhum conceito politico (seja ele democracia, liberdade ou outros) pode ser dissociado de sua historia. Entendida dessa maneira, a experiéncia politica constitui de fato o tema da filosofia politica, fato que oxige, da mesma for- ma, que esta tiltima acompanhe o movimento da primeira, por assim dizer. A consequéncia é considerar a histéria da politica ‘como uma forma de pesquisa na qual nds estamos imersos, in- dependentemente das intengSes e dos propésitos. Com efeito, se por um lado a democracia seré sempre a tinica solucao aparen- te para 0 problema moderno da constituicdo da ordem social, por outro ela permaneceré sempre uma questéo por responder, na medida em que ela jamais se esgotaré numa resposta perfei- tamente adequada. Essa historia filosdfica do politico envolve, Pportanto, retrabalhar constantemente as antinuutias cunstitu- tivas da experiéncia moderna, na tentativa de desvendar o fio historico das questées, perplexidades ¢ inovagies, de molde a compreender a histéria em seu fazer-se como parte da experién- cia. Em sintese, trata-se de escrever-uma histdria que possa ser qualificada como compreensiva A abordagem compreensiva pode ser justificada pela-pressu- Posigao de que ha uma invarifncia entre a nossa propria situacéo eaquela do autor ow ator que esté sendo estudado, Para os soci6- Jogos weberianos, tal invariénda é da propria natureza humana. No caso de wut histéria conceitual das ideias, ela é uma fungio da nossa imerséo consciente nas questies investigadas pelos préprios - OR UMA HsTORIA BO POUTICO autores. 0 trabalho do historiador pode assim se abrir na diregéo de um novo tipo de comprometimento intelectual: Fste-ato no implica investir nossas ideias, préferéncias oursuposighes a priori num texto ou numa posigéo, tampouco tomar por realidade a re- presentagdo de grupos saciais ou autores com. quem 0 intéxprete esteja mais identificado. O objetivo é tomar a historia conceitual um meio para compreender o presente. £ possivel que isso soe um_ Iugar-comum: o que é interessante na histéria do passado é sua capacidade de langar luz sobre.o presente, Olhando a questao mais de perto, porém, as coisas nao sao t&o simples. Com efeito, muitos livros de histéria preferem seinterpretar a histéria a partir dos ter- mos do presente, ou mesmo do futuro, conforme imaginam que ele serd, Essa inversio dos termos de compreensao me parece particu- larmente surpreendente no campo da historia politica = a da Revoluigio Tomemos um exemplo da histéria pol Francesa. O livto de Aulard,"* que nesse tema continua sendo 0 trabullio uldssico de referéncia, produz uma andlise do movimen- to politico da Revolusao relacionando constantemente os discur- sos € as instituigdes politicas a partir do que ele julga ser uma democracia, tomando-a como ideia resolvida e estabelecida.” [Assim ele traga os avangos e reveses da democracia entre 1789 41799 tendo sempre por norte a sua propria visio de democracia (governo para o povo e através do sufrégio universal). Ble faz julgamentos sobre esse perfodo tomndo o presente como ponto 12. A. Aulard, Histoire politique de La révolution francaise Paris, 1901). 13 Osubtitulo daobra de Award ~“Origines et développement de la démocra- tie et dela république” ~é ele proprio uma ilustragio desse ponto de vista, 5 FERRE ROSAMVALLON fixo de referéncia. Esse tipo de historia, ao mesmo tempo gradua- lista e linear, enxerga como um dado e um fato incontestvel (su- fragio universal = democracia) 0 que, na verdade, é 0 cerne de um problema (a gradual reduco da ideia de democracia a ideia do voto), Aulard age como se a presente ideia democratica estivesse ali desde o inicio, impedida apenas de emergix completamente em razio de circunsténcias, insuficiente discernimento dos atores en- volvidos ou do impacto da luta de classes entre povo e burguesia. A historia lida dessa maneira & sempre de grande simplicidade: cla é 0 territorio onde forgas apostas se chocam (agid é Feacdo, 0 progressista ¢ 6 7éacionério, o moderno eo arcaico, o burgués eo popular), os avangos ¢ os reveses da ideia sendo explicados come resultantes daqueles éntrechoques. O passado’é julgado do ponte de vista do presente, que em si mesmo nao é objeto de reflexao. Nessas condig6es, a histéria se torna um obstéculo genuino para ‘© entendimento do presente. A historia filosdfica do politico.na sua forma compreensiva nos permite, por outro lado, superar a barreira entre histétia politica e filosofia politica. Entender 0 pagsado ¢ investigar o presente faz. parte de um_mesmo.provesso intelectual. Além disso, a histéria flos6fica possibilita um ponto interpretagéo/comentatio (essayisme) ¢ erudi- fas freq rente vistas como inconcilidveis. A eruc cio éa condigao vital para compreender o trabalho de histéria (a quantidade de informagées a coligir e de textos a ler é, de fato, consideravel quando se leva a cabo um estudo compreensivo), a0 ‘passo que o comentario, forma de intervengao sobre o presente, & © motor por trés das questdes subjacentes ad desejo de conhecer e compreender. Esta nao é uma historia “engajada” (na qual o POR UMA HsTORIA DO POUTICO escritor projeta suas paixdes e preferencias pessoais), tampouco Suma historia whig, cuja chave e a inteligibilidade possuimos de , anteméo. Trata-se de uma histbria das ressonfincias entre nossaex- periéncia e aquela do passado. Essa maneira de conceber a atividade do historiador nos per- mite, portanto, reconsiderar a relagio entre trabalho intelectual € a envolvimento ctvico e politico. A forga dessa histéria do politico consiste em considerar a vida académica de modo que ela se tor- ne parte integral da experiéncia civica. Isso conduz em diregio a uma nova forma de comprometimento civico, de um tipo mais substantivo, diferente daquele determinado pela posi¢ao do inte- Jectual (ou seja, a autoridade conferida a ele em fungio de seu se- ber especializado). De certo modo, éa propria natureza do traba- tho intelectual que produz. esse novo comprometimento politico. Se a preocupagio com a vida civica pode assumir formas outras que 0 combate politico ordinasio, ou a adesio a certos valores ou utopias, ela pode ser pensada como a capacidade de aprender de forma liicida as antinomias decorrentes das circunstancias em que 0 povo se encontra e as questées que delas podem surgit. ‘Assim, o trabalho do historiador do politico é parte e parcela des- se processo civico, © conhecimento torna-se entéo ‘uma forma de cdo, que torna 0 trabalho intelectual per si uma forma de préti- «a politica, Trata-se de uma forma de entencimento politico que, pela sua ‘contribuicéo a elucidagéo das antinomias, participa da tentativa de definir 0 que pertence propriamente ao dominio do politico. O que esté em jogo aqui é a conexao entre erudicio © envolvimento, entre o compromisso do trabalho e 0 compromis- s0 no trabalho. A histéria filoséfica do politico € capaz de forjar 5S PERE ROSHANALLON simultaneamente os instrumentos de entendimento e as ferra ‘mentas para o envolvimento pratico. O objetivo é alcancar o pon. to em que a distincao entre conhecimento e agao desaparece. Isc quer dizer participar do processo pelo qual a sociedade venha a nao mais separar 0 conhecimento da ago em si do conhecimento das causas que contribuiram para ela. O projeto de uma histéria filosétfica do politico é, portanto, ba- seado em uma tese forte. Ele pretende reconstruir, em novas linhas, as relagbes entre trabalho intelectual e politica. O trabalho intelec- tual nao é uma forma de capital disponivel para ser reinvestido em outros campos gracas ao grau de visibilidade assegurado pelo renome académico (que confere credibilidade ao discurso politico por si mesmo). Ao contrario, ele € 0 contetido mesmo do traba- Iho intelectual que possui uma dimensio civica. Falando de forma mais pessoal, é em razio disso que nao detecto uma diferenca dara entre as minhas publicagées mais académicas e aquilo que escrevo enquanto engajamento social e politico mais direto. Embora haja diferenca entre ensaio e trabalho especializado, o primeiro é resul- tado do investimento intelectual sério do segundo, Naturalmente, hd diferentes niveis e formas de escrever. Pode-se esctever como um académico ou um ensaista; pode-se também se expressar em diferentes niveis de complexidade, lidando-se com um leque bas- tante variado de fontes. Contudo, entendo que o curto ensaio inter pretativo nao deve ser considerado muito diferente do denso tomo académico que leva o selo de erudigao, tendo em vista que ambos fluem certamente da mesma fonte de aprendizado. Eu mesmo me esforco por combinar os dois géneros. Nesse ponto, hé uma nature- za experimental em mea trabalho. Mas tento, sobretudo, escrever 56 PR UMA HSTORA DO POLE livros sobre politica de um tipo diferente, a fim de encontrar meios de conjugar o comum interesse pelo trabalho académico e pelos temas da vida civica. Reconhego de antemao que esta € uma posi- (ao minoritéria na academia, o que nao me parece, porém, torné-la menos digna de ser defendida. Vv Depois de delineado o programa, tentarei agora responder ‘a certo ntimero de objegdes frequentemente suscitadas contra essa abordagem, e tentar definir com mais preciso a relagao en- tre ela ¢ outras abordagens. Uma das principais objecdes contra a histéria filoséfica do politico é apresentada pelo historiador Roger Chartier, que tem criticado 0 retorno.a0 9 uma banal e idealistica tentativa de restaurar a velha filosofia (0 a8 ciéncias sociais haviam des- do sujeito livre, cuja reputa ae moralizado.§* No seit enteridér, a hist6ria filosdtica do politico equivoca-se ao distinguir entre 0 discursivo e 0 nio-discursivo, Semelhante critica pareceria justificada caso se tentasse, aqui, opor as ciéncias sociais & velha concepgao da histéria das ideias, Mas é precisamente da esséncia da histéria filoséfica do poli- tico considerar que as representacées sociais niio podem ser equiparadas as ideologias, nem Feduzidas & condigdo de pre- conceitos que espelhariam determinado estado das relagSes 1d Ver a discussdo de Jeremy Jonning a rospeitn da posicao de Chartier em seu capitulo nesse volume. 57 RR ROSAMWALLON sociais. A histéria filoséfica do politico postula que, para além das ideologias e preconceitos, ha representagbes positivas or ganizando 0 campo intelectual no qual existe um deierminado conjunto de possibilidades em dado momento histérico. Essas represeniagdes precisam set levadas a sério, pois constituem re- ais ¢ poderosas infra-estruturas sociais. Contrariamente a uma visio idealista, que desconsidera o3 determinantes cconémicos € sociais que estruturam o campo da agdo humana, essa abor- dagem propée enriquecer ¢ tornar mais complexa a nogdo de determinag&o. Ao lado de representacdes passivas, é necessirio evar em conta todas aquelas representacdes ativas que moldam a ago, encerram 0 campo de possibilidades a respeito do que é possivel pensar e determinam as questdes do momento. Longe de tomar uma posigao contra a histéria social, essa his- t6ria filos6fica do politico se; tico segue o seu prograifia tentando; no en- tanto, ir além, As ideias que ela leva em conta constituem ima Importante parte da realidade, desde que essas ideias sejath de- finidas como temos tentado fazé-lo. Pode'se mesmo reconhecer que ela incorpora o que hd de mais profundo e decisive na expe- rigncia social. Com efeito, nas sociedades modernas as formas de vida comunal registram inelutavelmente uma tensio permanen- te com suas préprias representagdes, dado que a estrutura social nao é mais um produto da natureza ou da histéria, precisando, por isso, ser continuamente construida e criticada, Nao rejeito as abordagens usadas na histéria social, preferindo 08 grandes autores ou oradores parlamentares as massas silencio- sas e sofredoras. Nem desprezo a histéria material (que de fato pratico em meu trabalho). Por exemplo, ¢ importante retracar a OR UMA HISTORIA DO PoUICO historia das cédulas ou das cabines eleitorais (a cabine australia- na). Mas os fatos da histéria apenas revelam o seu significado quando colocados em um contexto ou inseridos numa histéria conceitual. Esta, por sua vez, nao se restringe & andlise de grandes autores - muito embora a leitura deles constitua frequentemente ‘um meio ideal de acesso a cultura politica de seu tempo. A hist6- ria social e a histéria conceitual possuem o mesmo tipo de rela- cionamento que aquele existente entre os tempos ordinarios e os periodos revohicionarios. Os conflites entre forgas do progresso e da reacdo, entre povo ¢ elite, entre governantes e governados, © choque entre interesses privados e preconceitos, constituem como que 0 lado cotidiano da histéria, um cenério cotidiano in- cansavelmente repetido e revisitado através de formas sucessivas de obedidncia e dominagio, liberdade e opressio. Mas esse pa- dtdo ordindrio 56 adquire significado quando devidamente inse- ido no processo de transformago das instituigdes e dos modos de pensar. Do contxério, haver cempre presente uma ameaga de anacronismo que pode se infiltrar e perturbar nosso julgamento. ‘A histéria filoséfica do politico pretende manter as duas extre- midades da cadeia sob controle. Ag buscar identificar de modo exaustivo as intersecgSes entre os conflites humanes-e.guas re- presentagdes do mundo, essa histéria filos6fica considera 0 poll- tico como o terreno em que a sociedade transforma a si, mesma. Recordemos! dbjetivos & métodos nao podem estar dissociadgs~ Nio se trata, portanto, de fazer uma simples histéria das ideias, mas de entender o pano de fundo contra 0 qual as categorias que raclas; de analisar como surgem as questées ¢ elas se refletem na ordem -_ eRe ROSAMALLON social, tragando uma estrutura de possibilidades, delineando sis- temas de oposicao e tipos de desatios. Com efeito, a histéria po- litica nfo deve ser entendida como um desenvolvimento mais ou ‘menos linear, que apresenta uma sucessio de conquistas e dero- fas antes de nos conduzirem ao fim da histéria, com a democracia enfim celebrada ou a liberdade organizada. Em sintese: nao hd ‘uma histéria hegeliana do politico, Nao se reivindica essa abar- dagem em funco apenas de uma exigéncia metodolégica, mas porque ela também é congruente com a esséncia mesma do politi 0, definido que é pela interrelagao entre 0 filoséfico e os eventos, © efeito do social sobre © conceitual, e a tentativa de inventar 0 futuro por meio da distingo entre o velho e o novo. Outra questao que tem sido ventilada ¢ a da relagdo entre meu trabalho e 0 de Michel Foucault. Neste ponto, desejo ser bastante claro: 0 projeto da histéria filoséfica do politico recupera a inten- 40 original de Foucault, tal como foi manifestada claramente, 20 (que me parece, na Histoire dela alive, talver ainda mais, em Le mots ¢ les choses." Foucault também esté interessado em capturar racio- nalidades politicas (vide a sua nogio de épistémé) a partir de uma perspectiva total. Entretanto, o entendimento de Foucault sobre © politico me parece bastante limitado. Ele entende o politico em termos fisicos e bioldgicos: opde forcas, processos de ago e rea- Gio, etc. A esse respeito, Foucault permanece prisioneiro de uma abordagem ainda muito estrita do fenémeno do poder. Para ele, © politico consiste em uma luta pela emancipagdo, pressupondo 15 M, Foucault, Histoire de ta folie & ge classique (Pasis, 1972) ; Foucault, Le rots ets chases (Paris, 966) 60 POR UMA HSTORIA GO POLINCO uma racionalidade da dominacio. A questao do politico se resu- ie, assim, & questio do poder, apreendido quase inteiramente em termos de acdo estratégica. Embora nfo se deva negligenciar esse aspecto do politico, talvez ele nfo seja 0 mais importante: 0 campo politico nfo é somente organizedo por forgas claramente determinadas (paixBés,interesses); ele ¢ também o territério de expafifientos e exploragio. Em suma, pode-se argumentar que a democracia nao é somente uma solugdo, cuja histéria pode ser re- duzida a uma confrontagio entre progresso e reacdo, que € As ve~ zes brutal es vezes sutil Foucault deu uma grande contribuigao ao lancar luz sobre esses aspectos suis). A democracia é também ‘um problema, sentido como tal pelos atores sociais. [Apesar de compartilhar dos interesses de Foucault sua preoct pagio em se libertar dos limites de sua disciplina, sua preocupasio tem ser ao mesmo tempo historiador, fildsofo e dado ~-meu traba- Thoseestabelece no Ambito de um entendimento diferente arespeito dda natureza da experiéncia politica. Finalmente, é possivel esclarecer a abordagem da hist6ra flo- séifica do politica em relacko a hist6ria contextual das ideias de- finida por Quentin Skinner. Autor do excelente The Joundations of ‘modern political thought, Skinner tem buscado ir além do confit, particularmente manifesto nos pafses anglo-saxGes: ou uma Te tura filos6fica de grandes autores, baseada em uma perspectiva e autosuficiente” ou uma leitura do texto como algo completo [6 Q Skinner, The foundations of madere politcal tnnught @ vol, Cambridge, 1978) 47 Cf, em particular como representative dessa escola, Leo Strauss ¢ J Cropscy que sintetizam bem seu pusly de vista em History of politica philosophy (Chicago, 1963). 6t PRR ROSAMVALLON histérica com conotagdes marxistas ~ que tende a reduzir os escri- tos politicos & condigao de meros produtos ideol6gicos, que sur- gem de circunstancias definidas e sao por elas de todo determina- dos. Influenciado pelo trabalho de J. L. Austin,” inclusive na sua preocupagio em nao se restringir aos grandes autores, Skinner bbuscou ler os textos como atos linguisticos inscritos em universos de significado convencionalmente reconheciveis. Textos sao lidos como discursos cujos objetivos nao podem ser entendidos caso as intengGes dos autores nao sejam contextualizadas no interior das convengées predominantes. Essa conduzido a uma ampla renovagio da histo: bilitando um didlogo entre historiadores e filésofos, mas cuja ca- racteristica inovadora, a meu Ver, fém sido limitada, porém, pela falta de distingao adequada eritze o problema dos temas perenes da filosofia ¢ aquile resultante das questdes contemporaneas re- levantes. Os termos em que o debate metodologico na historia das ideias tem sé desenvolvido nos Estados Unidos e na Inglaterra!” tem levado Skinner a tornar demasiadamente sistematica a cone- xo entre os projetos de uma philosophia perennis e todas as outras 18 Ci. John Austin, How to do things with words (Oxford, 1962). Para Austin, permita-nos recordar, a linguagem ¢ uma atividade que realiza coisas; ela ndo ¢ apenas um operador de significado passivo. 19H uma imensa bibliografia acerca desse debate que tem ecoado muito na Franca. Para avalié-lo, dois artigos fundamentais merecem ser lidos:].G.A. Pocock, “The history of political thought: a methodological enquiry”. In Peter Laslet (ed), Philosophy, politics and societies, 2. Série (Oxford, 1962); Peter L, Janssen, ‘Political thought as traditionary action: the critical res- ponse to Skinner and Pocock, History and theory, 24,2 (1985). aD POR UMA HISTOR DO POLTICO tentativas de ver a relac&o entre questdes presentes e passadas.” ‘As condigées sobre as quais ele desenvolveu sua critica 4 tradicio- nal histéria das ideias o tem impedido de dar o passo decisivo no sentido de abragar uma hist6rica filos6fica do politico. Sua contri- uigéo, contudo, permanece inestimavel e reconhego prontamen- te meu débito para com ele. ‘Uma diltima palavra a titulo de concluséo. A histéria filoséfica do politico nao tem uma receita que possa ser aplicada mecani- camente a fim de se escrever um livro ilustrativo das aspiragdes subjacentes ao seu programa - que, na melhor das hipéteses, nao passaria de uma desajeitada declaragio de intengbes, Cada parte do trabalho nao é mais que uma tentativa frégil de produzit, por meio da escrita, os meios adicionais para tornar inteligivel a ma- téria ~ nesse assunto, talvez, mais que em qualquer outro. 20 Este aspecto suscita 0 problema de como lidar com a modernidade en- quanto érea de questdes caracteristicas relativamente constantes. Essa questio justficaria um debate voltado para a pertinéncia do coneceito de modernidade na filosofia politica. 63. POR UMA HISTORIA CONCENUAL DO. PoLitico* Conferéncia de Piere Rosanvalon -Tradugo de Chistian Edward Cys Lyne. (AULA INAUGURAL PROFERIDA NA QUINTAFEIRA 28 DE MARCO DE 2002 No Conicio pe Franca Na cAreDRA DE Historia MODENA E ContemporAnea po Potfrico) Senhor diretor, Meus caros colegas, Agradego-thes por me receberem entre os senhores. Hoje, neste ‘momento inaugural, estou absolutamente consciente da responsa- bilidade que me incumbe diante da decisaio tomada pelos senhores de incluir em seu ensino 08 mais fundamentais problemas da polis contempordnea, Nao obstante, interessa-me ainda mais a formida- vel possibilidade que deste modo me foi dada, naquele que espero ser o meio de minha carreira; possibilidade de insuflar um novo alento as minhas pesquisas, inscrevendo-as a partir de agora num lugar intelectual tinico por sua radical liberdade, independente de quaisquer programas prevslabelecidos, sem qualquer preocupa- cdo de fomecer graus e diplomas, e dispensado de submeter seus 67 PIERRE ROSAMALION trabalhos as habituais barreiras disciplinares. Dai que esta possibi- lidade de um novo inicio nao poderia se apresentar diante de mim com o aspecto ambiguo e melancélico de um balango, que inevita- velmente ligamos a ideia de uma “honra académica”, ou seja, um posto destinado geralmente a festejar uma obra considerada encer- ada, a0 menos no seu essencial. Por isso, farei minhas as palavras de Roland Barthes: “Minha entrada no Colégio de Franca é uma alegria mais do que uma honra; pois a honra pode ser desmereci- da, mas a alegria no 0 é jamais’! Evidentemente, esta alegria se deve ao fato de ser aqui possfvel falar das pesquisas no momento ‘mesmo em que elas sio feitas; alegria que nasce diante de um de- safio instigador, diante de uma obrigacio positiva, Dirijo meus agradecimentos em particular a Mare Fumaroli, que Ihes apresentou 0 projeto desta cétedra de histéria moderna € contemporanea do politico. Devo 0 fato de me encontrar entre 0s senhores esta noite, em primeiro lugar, & extensdo de seus inte- esses € sua eloquente conviccao. Gostaria também, senhoras e senhores, de incluir sem mais demoras nesta lista de agradecimentos alguém que nao esta aqui esta noite para me escutar: Frangois Furet. No comeco da década de 1980, ele me ajudou a dar um passo decisivo ao me acolher na Escola de Altos Estudos em Ciéncias Sociais. Recém doutorado, ainda encontrava-me entre dois mundos, a margem da universi- dade, numa posigéo intelectual de franco-atirador e em situagao algo precaria. Francois Furet me permitiu entéo conferir certa 1. Colégio de Franga, Cétedra de semiologia literdria, Liglo inaugural feita na sexta-feira, 7 de janeiro de 1977, pelo Sr. Roland Barthes, p. 6. eR POR UMA HISTORIA DO FOMTICO unidade @ minha vida e realizar aquilo a que aspiram todo ho- mem e toda mulher: fazer de sua paixao um meio de vida. Junto dele e de Claude Lefort—aquele historiador, este filsofo —apret™ dia trabalhar & margem das rotinas académicas e das modas i telectuais, Ambos foram para mim mestres ¢, indissociavelmen te, amigos e companheiros de trabalho, Sabem também o ae thes devo os membros do Centso de Pesquisas Politicas Raymo™ ‘Aron, com quem nos propusemos, ha quase vinte anos, renovar oestudo do politico, entio esquecido, Fico feliz que essa pequen comunidade de historiadores, socidlogos e filésofos possa veF @ originalidade de seu trabalho refletida de algum modo no a ‘Ainda que seja bastante longa a lista de agradecimentos devido® limitar-me-ei, entretanto, a uma mengéo particular ao grande me dievalista que foi Paul Vignaux, um dos pais do sindicolismo e mocrético na Franga. Foram provavelmente os lagos de amizade fraternal que com ele mantive desde o inicio dos anos setenta (4° levaram aquele jovem militante que eu era a tomar progressive consciéncia — na contramAo de boa parte da geracéo de i E de que uma vida consagrada & rigorosa compreensao do ae implicava a capacidade de transformé-lo; que havia uma p complementaridade entre a vita actioa e a vita contemplatioa. i d Histéria moderna e contemporinea do politico. Ainda que de encontrou seu lugar neste modo lateral, 0 estudo do politico Colégio, sob denominacies mais obliquas. &, naturalmente, PTe- 7 a dlises ciso mencionar aqui em particular um dos pioneiros das an‘ 69 ERE ROSANNALION leitorais neste pais, André Siegfried, autor do Quadro politico da Franca cidental e titular de uma cétedra de “geografia econdmica e politica’. Da mesma forma, as questdes relativas ao poder ¢ sua génese estiveram no centro dos cursos vinculados a sociolo- gia ow a filosofia. Basta recordar os trabalhos de Raymond Aron e de Michel Foucault, que tanto influenciaram minha geragio, ainda que de maneiras bastante diferentes, Sabemos também do papel decisivo mais recentemente desempenhado por Maurice Agulhon em seus estudos das mentalidades e das culturas poli- ticas do século XIX francés. Ainda que esses antecedentes imediatos nao constituam pro- priamente uma genealogia, esta nova catedra se inscreve nessa histéria. Fla também se aproxima, sendo no contetido pelo menos no espitito, de algumas disciplinas ministradas aqui no século XIX. Penso especialmente na preocupacao de Michelet de esclare- cer as vicissitudes do presente retracando a génese do Estadoe da nagao na Franca. Devo também, claro, fazer referéncia a Renan. Mesmo sendo titular de uma cétedra muito especializada como a de Iinguas hebraicas, caldeu e sirio, o grande sabio tinha tam- bém a preocupagio de refletir sobre a orientacdo da polis a longo prazo, esclarecendo e interpelando sua época sobre suas ilus6es ¢ possibilidades. Em muitos aspectos, a perspectiva de minhas Pesquisas nao esta muito distante dessa “filosofia da histéria con- temporanea” que ele desejava alcangar. Por fim, Edgar Quinet. Ele também entra no Colégio - em 1841 ~ encarregado de uma Por UMA HISTORIA DO POUTCO disciplina tradicional. Contudo, os cursos desse ardente republi- cano logo se aventuram para terrenos mais arriscados, ja que cle se ocupou sucessivamente dos jesuitas (tal como Michelet), do ultramontanismo e, posteriormente, das relaces entre 0 cristia- nismo e a Revolugao Francesa. Alids, me sinto muito bem diante de uma das célebres méximas do autor de Le Revolution: “A de- mocracia francesa perdeu suas bagagens. Ela precisa refazer toda sua bagagem de ideias’ + Com efetto, aduto de bom grado esse programa de Quinet e me sinto préximo de sua preocupasao de ajudar a fundar o futuro, enraizando, na compreensdo dos infor thinios do passado, a inteligencia do presente. Com a apreciével diferenga de que a questo s6 poderia adquirir sentido daqui por diante caso ampliada num quadro comparativo mais largo. Nao a primeira vez, stricto sensu que o termo “politica” figue ra no titulo de uma citedra no Colégio. Mas agora se considera 6 objeto politico modemo e contemporneo como centro de um programa, Ao mesmo tempo em que ele se inscreve nessa cont nuidade que acabamos de mencionat, 0 rojeto de wma historia do politico possui, contudo, uma originalidade, Convém precisé- Ia atendo-se a propria definigao de seu objeto. Compreendo o politico ao mesmo tempo a sim campo e a tar tra- bulho. Como campo, ele designa o lugar em que se entrelagam 0s 2 Bagar Quinet, Critique debe Révoltion (1867). ir: La Révoluion, * 64. Paris, 1868, 1, p. 1. n eR ROSAIWALLON miiltiplos fios da vida dos homens e mulheres; aquilo.queconfer um quadro geral a seus discursos e agSes;ele remete-eexisténci, de uma “sociedade” qué, aos olhos de seus participes, aparea como um todo dotado de sentido. Ao ps 30 qué; como trabalho, o Politico qualifica 0 processo pelo qual um agrupamento humano, que em si mesmo nao passa de mera “populacao”, adquire pro- gressivamente as caracteristicas de uma verdadeira comunidade, Ela se constitui gracas ao proceso sempre conflituoso de elabora> 80 de regras explicitas ou implicitas acerca do participavel e do compartilhavel, que dao forma a vida da polis. Nao se pode apreender o mundo sem conceder um lugar a essa ordem sintética do politico, a nao ser que se adote um pon- to de vista falsamente reducionista. Com efeito, a compreensao da sociedade nao poderia se limitar & adigio e & articulagdo de seus diversos subsistemas de agdo (0 econémico, 0 social, o cul- tural, etc.) que, longe de serem imedialamente inteligiveis, ape- nas 0 so quando relacionados a um quadro interpretative mais amplo. Para além das tomadas de decisao culturais e sociais, das variaveis econémicas e das légicas institucionais, a sociedade nao pode ser entendida em seus nticleos essenciais se nao atualizar- ‘mos esse centro nervoso de que decorre a sua propria instituicao. ‘Um ou dois exemplos bastardo para nos convencer. Para compreender a especificidade de um fendmeno como 0 nazismo, nao basta analisar as diferentes tenses ¢ os miiltiplos bloqueios da Alemanha da década de 1930 ~ a nao ser que para- doxalmente o banalizemos, considerando-o simples resposta exa- cerbada & crise do regime de Weimar. Enquanto tentativa patol6- gica de fazer surgir um povo uno e homogéneo, o fundamental = FOR uma HsTORA DO POLITICO do nazismo nao se tomna inteligivel sendio quando relacionado as condigées de perversa ressimbolizagao e de restabelecimento da ordem global do politico que ele tentou empreender. Tomando tum exemplo mais préximo de nés, pode-se dizer que a atual crise atravessada pela Argentina néo pode ser interpretada simples- mente a partir dos fatores econémicos e financeiros que sio sua causa imediata. Bla s$ adguire sentido quando situada na longa historia de um declinio ligado a dificuldade recorrente de fundar anagio no reconhecimento de obrigagdes compartithadas, “Portanto, convém analisar as coisas num nivel que poderia- sos qualificar de “globalizante” a fim de esclarecer de maneira proficua questdes contempordneas cruciais. Seja pensando as for- ‘mas futuras da Europa ou analisando as transformagées da de- moctaciana era da globelizacdo; apreendendo o destino da forma nagio ou compreendendo as mutagées do Estado de Bem Estar; ou avaliando as condigdes em que podem ser considerados os problemas de longo ptazo em sociedades submetidas & ditadura do presente, & sempre a questao chave do politico que se volta ‘nossas inquietacdes. 2 do politico, qualifico desse modo, nossas atuais perplexi Ao falar substantivam: tanto uma modalidade de existéncia da vida comum, quantouma forma de ago coletiva que se distingue implicitamente do exer- politica, Referir-se 20 politico e ndo a politica, € falar do do Estado e da naga, da igualdade e da justica, da jidentidade e da diferenca, da cidadania e da civilidade; em suma, de tudo aquilo que constitui a polis para além do campo imediato da competigao partidaria pelo exercicio do poder, da agéo gover- namental cotidiana e da vida ordindria das instituicbes. FERRE ROSANVALLON, Esta questo adquire grande importancia nas sociedades democraticas, isto é, em que as condigdes da vida comum néo so definidas a priori, porque fixadas por uma tradigao ou im- postas por uma autoridade, Com efeito, em fungdo das ten- ses e das incertezas a ela subjacentes, a di © politico mam campo amplamente aberto. Se hé mais de dois sécuilos ia aparece como principio organizador incontornavel de toda ordem politica moderna, o imperativo que traduz esta evidéncia tem sido sempre to intenso quanto impreciso. Por ser fundadora de uma experiéncia de liberdade, a democracia nunca deixa de constituir uma solucao problemética para insti- tuir uma polis de homens livres. Nela se unem hé muito tempo 0 sonho do bem e a realidade da indeterminacao. O que ha de particular a essa coexisténcia, é que nao se trata de um ideal longinquo sobre o qual todos estariam de acordo; as divergén- cias acerca de sua definigéo remetem aos meios empregados para realizé-la. Rissa 6 uma das razGes pelas quais nao pode se reduzir a historia da democracia aquela de uma experiéncia contrariada ou de uma utopia traida. Mas hé outras. Longe de corresponder a uma simples incer- teza pratica sobre os meios de seu estabelecimento, o cardter vacilante da democracia participa mais profundamente de sua propria esséncia. Ela sugere um tipo de regime que jamais dei- xa de resistir a uma categorizacio livre de discussdes. E dai, aliés, que provém a particularidade do mal-estar subjacente a sua histéria. O cortejo de decepgies e a sensacdo de traigao que desde sempre a acumpantiam tém sido tao intensos justa- mente pelo fato de que sua definigao permanece incompleta ae POR UMA HISTORIA DO POUIICO ‘Tal vacilagao constitui o impulso de uma busca e de uma insa- tisfacdo que se esforcam simultaneamente por se, explicitar. E necessério partir dai para compreender a democratia: nela se entrelagam a historia de um desencantamento e a historia de uma indeterminacao. Feta indeterminagao se enraiza em um sistema complexo de equivocos e de tensbes que, como demonstra o estudo das revo- lugGes inglesa, americana e francesa, estruturam a modernidade politica desde a origem dela. Equivoco, em primeiro lugar, sobre 0 sujeito mesmo desta democracia, pois povo 86 existe através das representagdes aproximativas e sucessivas de si mesmio. O povo é um senhor indissociavelmente imperioso e inapreensi- vel; ele é um “nés” cuja figuracdo permanece sempre conflituo- sa, constituindo sua definigo a0 mesmo tempo um problema e um desafio. Tensio, em segundo lugar, entre o néimero e a razao, a ciéncia e a opinio, porque o regime moderno institu através do sufragio universal a igualdade politica, ao mesmo tempo em que pstula 0 advento de um poder racional cuja objetivi- dade implica a despersonalizagao. Incerteza, em terceiro lugar, sobre as formas adequadas.do poder social, j4 que a soberania do povo se exprime através de instituicdes representativas que nao logram encontrar a maneira de pd-la em prética. Dualidade, enfim, relativa A ideia moderna de emancipacio, que remete a . \dividuos (com 0 direito como um desejo de autonomia dos vetor privilegiado), mas também a um projeto de participacao no exer poder social (que coloca a politica em posicao de comando). Em outras palavras, uma dualidade entre liberdade ¢ poder, entre o liberalismo e a democracia. a PERE ROWNALION Esta concepoio do politico tia a abordagem histérica con- digo necesséria de sua completa compreenséo, Com efeito, sé se pode apreender o politico, tal como acabo de defini-lo, restituin« do-Ihe de modo expressivo a espessura e a densidade das contra- digdes a ele subjacentes. Desse modo, minha ambig&o é pensar a democracia retomando 0 fio de sua historia, Contudo, nao st trata somente de dizer que a democracia tem uma histéria; 6 pre ciso considerar, de modo mais radical, que a democradia é ums historia e, como tal, indissocidvel de um trabalho de exploragio ¢ experimentacio, de compreensao e elaboracao de si mesma. O objetivo é, portanto, é 0 derefazer a extensa genealogia das questdes politicas contemporaness para tornésJas plenamente in- teligiveis. A historia nao consistesomente em apreciar o peso das herangas, em “esclarecer” simplemente o presente a partir do pas- sado, mas em tentar reviver a sucessao de presentes, assumindo-os como experiéncias que informamas nossas. Trata-se de reconstruir ‘0 modo por que os individuos eo: grupos claboraram a compreen- sio de suas situagdes; de enfrentar os rechacos e as ades6es a par- tir dos quais cles formularam seus objetivos; de retracar de algum modo a maneira pela qual suas visSes de mundo limitaram e oxga- nizaram 0 campo de suas ages. 0 objeto desta histéria, em outras palavras, é 0 de seguir 0 fio das experiéncias e das tentativas, dos conflitos e das controvérsias, através dos qui a polis tentou en- contrar sua forma legitima. Ela consiste, para dar uma iistragio, em publicar 0 verdadeiro texto do drama em que se acham as su- cessivas encenagies da vida comunitiria. Na procura desse fio con- dutor, acabo segundo, em parte, os passos daqueles publicistas ¢ istoriadores do século XIX~ como Guizot, Quinet ou Tocqueville, 7. POR UMA HSTORA DO POLIO para citar apenas trés nomes - que buscavam esclarecer seus con- temporaneos desenvolvendo 0 que eles chamavam uma historia da civilizacéio. Compartilho com eles uma mesma preocupacéo de escrever uma histéria que possa ser qualificada de global. A historia assim concebida é.0 laboratério em atividade do nos- so presente e nao apenas a iluminacao de seu pano ‘de fundo. Por esca raeo, a atengdo aos problemas rontemporaneos mais, explosivos e mais urgentes nao poderia estar dissociada de uma meticulosa reconstrugao de sua génese. Este deve ser o método desenvolvido para dar a profundidade indispensavel as and- lises do politico: partir de uma questéo contempordnea para reconstruir sua genealogia, antes de fazé-la voltar ao término dessa investigagdo rica em ensinamentos do passado. E desse didlogo permanente entre 0 passado e 0 presente que 0 pro- cesso instituinte das sociedades pode se tornar legivel; ¢ dele que pode surgir uma compreensio sintética do mundo. Postulo assim uma histéria que poderia ser qualificada como compre- ensiva, em cujo quadro a intelecc4o do passado e a interrogacéo uma sobre o presente partilham de uma mesma abordagem. historia que atualiza as ressonancias entre nossa experiéncia do politico e a dos homens ¢ mulheres que fos precedéram. Dé- se assim um sentido mais forte a expressao de Marc Bloch: “A incompreensdo do presente nasce fatalmente da ignorancia do passado”.’ De fato, é preciso ir por partes, de modo estrutu- ral, entre a preocupagio apaixonada da atualidade e o cuidado 3. Mare Bloch, Apologie pour l'histoire ou métier d'kistorien, 7* ed. Paris: Amane Colin, 1974, p. 47, EME ROSAMVALLON escrupuloso em relacdo & histéria, Trata-se de uma histéria que, mais do que descrever modelos, tem por fungao restitui pro- blemas, Seu, trabalho termina por mesclar-se de certa maneira com o da filosofia politica, Antes de mais nada, proposta com semelhante espirito, a histéria do politico distingue-se entéo, pelo préprio objeto, da histéria da politica propriamente dita, Além da reconstrugio da sucesso cronolégica ¢ dos acontecimentos, esta ultima analisa © funcionamento das instituigées, disseca os mecanismos de to- mada de decisbes piblicas, interpreta os resultados das eleicées, lana luz sobre a razo dos atores ¢ 0 sistema de suas interasbes, descreve os ritos e simbolos que organizam a vida. A histéria do politico incorpora evidentemente essas diferentes contribuigées. Com tudo o que ela acarreta de batalhas subaltemas, de rivali- dades de pessoas, de confusées intelectuais, de célculos de curto ptazo, a atividade politica stricto sensu & de fato, o que ao mesmo tempo limita e permite, na pritica, a realizagao do politico. Ela é a0 mesmo tempo uma tela e um meio. As deliberacdes racionais @ a3 #Flexdes filoséficas ndo podem ser dissociadas das paixdes e dos interesses. O majestoso teatro da vontade geral esta atraves- sado permanentemente por cenas retiradas da comédia do poder. Por isso, nao é nos refugiando num suposto céu apaziguado de ideias que poderemos compreender verdadeiramente os meca- nismos e as dificuldades da instituigao da polis. Eles 6 podem set apreendidos num exame de contingéncias ordinarias, dado que sempre envoltos na trama dos acontecimentos, Isso deve ser dito claramente. Mas ¢ necessério a0 mesmo tempo deixar claro que, para se resolver enigma do politico, nao se pode ficar por FOR UMA HSTORA 00 POUNICO ai. Nao seria possivel, por exemplo, compreender a instabilidade estrutural de um regime conformando-se com o relato das crises ministeriais ocorridas na zona visivel da cena‘ De maneira mais geral, tal como pretendo praticé-la, a histéria do politico se nutre dos aportes oriundos de diferentes ciéncias so- ciais, procurando unificar seus procedimentos. Ao mesmo tempo, cia explora particulasmente um conjunto de fatos e de problemas situados naquilo.que.se poderia chamar seu “Angulo morto”. Para compreendlé-lo, sem secorrer a consideragées metodol6gicas dema siado abstratas, torna-se dil mostrar, a partir de uns poucos exemr plos, como esta abordagem propde uma contribuicio @ inteligéncia que se distingue daquelas da historia social, de nossas sociedades, da sociologia e da teoria politieas;bem camo da historia das deias. Em primeiro lugar, « historia social Aojenfatizar a interpreta- : «Go dos contlitos de poder e de oposicio de interesses, ela fornece uma grade explicativa que conecta as posigbes € 0s comportax mentos no campo propriamente politico ~aquele das eleicdes ou das posigées partidarias, por exemplo ~ com as varidvels cultu- ais, econémicas ou sociais que caracterizam diferentes grupos. | Bexatamente por essa razo que os historiadores dos Annales nao se interessavam pela politica. £ por esse mesmo motivo que Durkheim nfo considerava que a politica strictu sensu constituisse um objeto ppertinente para a sociologia. “As guerras, 08 tratadas, as intrigas, 05 gabinetes ou as assembleias, 08 atos dos homens de Estado”, escreve, “sao combinagées que jamais se parecem a si mesmas; nao se pode fazer no parecem surgir de nenhuma lei defini- 1903 escrito em colabo- outra coisa que narré-las, da” (“Sociologie et sciences sociales”, texto de 1! nk ragdo com Paul Fauconnet. Tn: Emile Durkheim, Testes Patis Eitions de Minuit, 1975, 1, p. 147 [grifos meus]. = PERRE ROSANVALLON © problema ¢ que esta abordagem s6 da conta de uma parte da realidade. Tomemos o exemplo da conquista do sufrigio univer- sal. Uma histéria social tragard o conflito entre as “impaciéncias” do povo e 0s “temores” das elites; ela descreverd as estratégias das forcas presentes no momento, Pode-se efetivamente analisar nesses fermos o movimento pela reforma eleitorel que, durante a Monarquia de Julho, polariza a atencan em sucessivas oportunic dades. Mas a interpretagdo continua parcial: ela nao dé conta da posigio dos ultras, nem dos legitimistas que nesse momento se erguem como campedes da soberania do povo. Ela néo explica também a vacilagao de todo um segmento do campo republicano, perceptivel na defesa, feita por alguns deles, do sufrégio em dois graus, ou mesmo na hesitacdo constante em empregar a expres- so sufrigio universal, preferindo-se a formula da reforma cleito- ral — fato que exprime uma incerteza sobre o objetivo imediato a alcangar, endo apenas uma prudéncia tatica. A histéria, nesse caso. no somente é atravessada por um conflita entre os altos ¢ os baixos da sociedade. Ela é igualmente estruturada por uma tensio subjacente 4 nogio mesma de sufrdgio politico; tenséo en- tre o sufragio enquanto simbolo de inclusao social, expresséo da igualdade entre os cidadios (e que, portanto, reivindica impera- tivamente sua universalizagio) e 0 suftégio enquanto expresso do poder social, forma do governo da saciedade (e que, déstavez, convida a repor na ordem do dia as relagies entre o miimezo ea razio, o direito ea capacidade). Esta tltima historia pode ser qua- lificada te ees necessério reconstrui-la também. C4 sociologia politictapropée de sua parte “desencantar” a poli- tica, trazendo a luz'os mecanismos sociais reais que estruturam POR UMA HSTORIA DO POUNCO seu campo a margem das doutrinas enunciadas, dos discursos dos atores e do funcionamento visivel das instituigdes. No comego do século XX, algumas obras pioneiras tragaram 0 quadro da disci plina, Robert Michels foi o primeiro a desenvotver uma exposislo mminuciosa das condigdes através das quais um poder oligarquico inevitavelmente se instala dentro das organizagdes democraticas. Por sua ver, noutra obra fundadora, Moisei Ostrogorski mostrou como o advento ea ampliagdo dos partidos politicos levaram amu- dar, na prética, todo sentido do governo representative. No caso de sce reconstituir a formacio desta disciplina, também poderiam ser Jembradas as obras de Max Weber e outros. Ninguém se atreveria aa contestar a fecundidade cientifica e importincia delas no émbi- to da cidadania. Alguns dos “pessimistas publicos” (a expressao & dde Michels) acima referidos foram valios0s professores de lucidez, sendo que ex mesmo contribut para, na década de 1970, tornar no- vamente disponiveis algumas dessas obras. Mas esta abordagem também deixa escapar algo. Tomemos, por exemplo, a anlise do funcionamento real do governo representativo que esté no cemeda saior parte delas. A sociologia politica desvela os modos de confis: cagéo do poder, as formas de manipulagéo desenvolvidas a sombra domecanismo representativo, mas nose ocpa daquilo que cons- titai, de alguma maneira, o centro do problema da representacio modema: a dificuldade de figuracio da democracia. Sacralizando ‘a vontade contra a ordem da natureza ou da hist6ria, a politica mo- ema confia ao povo o poder ao mesmo tempo em que o projeto de emancipagéo por ela veiculado converte o social numa abstracao. © desenvolvimento das convengdes e das fiecies juridicas esti li- gado, desse modo, & preocupacio de assegurar uma igualdade de a FEE ROSANWALLON tratamento e de instituir de um espaco comum para homens ¢ mu- Iheres que so, contudo, bastante diferentes entre si. A abstracao, nesse sentido, é uma condigéo de integracao social num mundo de individuos, ao passo que, nas sociedades tradicionais, ao contrario, as diferencas concretas sao fatores de insergao (a ordem hierdrquic ca tendo por principio reunir tanto as particularidades quanto as complementaridades). A verdade & que a democracia se inscreve duplamente na ordem da ficgao. Primeiro, sociologicamente, a0 re- agrupar simbolicamente um corpo artificial de pessoas. Segundo, tecnicamente, jé que o desenvolvimento de um Estado de direito pressupée “generalizar 0 social”, ou seja, tomé-lo abstrato a fim de governé-lo por regras universais. Se este formalismo constitui um principio positivo de construgio social na democracia, ele também torna mais incerta a constituigio de um povo concreto. Emerge assim uma contradigao que se instala entre o principio politico da democracia e seu principio sociolégico: o principio politico consagra © poder de um sujeito coletivo cujo principio socioldgivu tende a dissolver a sua consisténcia ¢ a reduzir a sua visibilidade. " E do ponto de vista desta outra “contradicio interna” que a histéria do politico, tal como aqui proposta, aborda a questo do governo representativo, Por exemplo, ela estuda também a histé- ria das técnicas eleitorais como uma sucesso de tentativas para dar uma resposta a esse défcit originério de figuracio, Esse enfoque apresenta ademais a vantagem de ultrapassar certa contradigéo estrutural da sociologia politica e das cién- cias sociais em geral: de fato, quando pretendem dar conta do funcionamento social, elas 0 consideram implicitamente em condigées de estabilidade, isto é, em sua regularidade. Para FOR UMA HISTORIA DO POLITICO compreender a mudanca, portanto, é necessério mobilizar ou- tros conceitos, e por isso a histéria do politico entrelaca as duas dimensées, estrutura e histéria (esta caracteristica formal cons- tituiu por muito tempo um dos principais atrativos analiticos do marxismo, diga-se de passagem). Em terceiro lugar, gostaria de destacar em que medida meu projeto difere daquele(da teoria politica” pelo menos do modo como ela é compreendida hoje de maneita dominante. Tomando uma referéncia acessivel a todos, penso aqui nas obras de Rawls ede Habermas, que deram uma nova centralidade a este enfoque nas décadas de 1970 e 1980. Tais obras sdo essencialmente morma- tivas na medida em que elas pretendem estipular o que deveria ser uma deliberacao racional, o que se deveria entender por sobe- rania do povo, quais seriam os critérios universalmente aceitos da justiga, ou sobre quais deles deveria repousar a legitimidade das regras juridicas. Sabemos todos do papel salutar desempenha- do por esses textos, que xecolocaram na ordem do dia questiies acerca das quais as ciéncias sociais nao viam mais utilidade. Elas constitu‘ram 0 eixo de uma inegdvel renovacéo do pensamento politico, levando, em razdo disso, a que por vezes se falasse de um “retorno do politico” na década de 1970. Ocorre, todavia, que tais empreendimentos intelectuais nao se ocupam da esséncia aporética do politico. Prova disso é que sua perspectiva essen- cialmente procedimentalista os direcionou para 0 direito e a mo- ral, caracleristica visivel nos autores citados. Dai que semelhante visio racionalizadora do estabelecimento do contrato social os tenha lavado a “formalizar’ a realidade. Em Rawls, aquele que decide submetido ao véu da ignorancia adota 0 ponto de vista PERE RoSAMVALLON ‘mais universal-racional, ainda que praticamente nao disponha de quaisquer informagées sobre o mundo real. A razao 86 se afirma znesse campo na proporsao da abstracio, isto é, da distancia frente a0s ruidos e &s paixdes do mundo. Ao contrério, partir da complexidade do real e de sua dimen- sdo aporética nos leva a nos interessarmos sobre a “coisa prépria” do politico. Tora-se indispensdvel considerar entio, em primei- ro lugar, 0 cardter problematic do regime politico modemo para apreendé-lo em seu: movimento ~ endo tentar dissipar o seu enig- ‘ma por uma imposigao normativa, como se uma ciéncia pura da Jinguagem ou do direito pudesse indicar aos homens a solugao razodvel diante da qual eles haveriam forcosamente de se confor- sar. Tentar exorcizar a complexidade mutavel da questo demo- ctética por meio de um exercicio tipolégico ~ este também é um falso caminho. O interessante nao est em distinguir entre varios tipos de governos representativos ou em tentar ajustar em casos bem definidos as posicdes dos atores ou as caracteristicas das ins- tituigdes. Ao contrério, o interesse estd em tomar como objeto a caracteristica sempre aberta e "sob tensfio” da experiéncia demo- crética. O propésito nao &, tampouco, opor de maneira banal 0 uuniverso das praticas ao das normas, e sim partir das antinomias constitutivas do politico, cujos caracteres s6 se revelam no curso da historia, Se tomarmos o exemplo da justica social, ser necessé- rio demonstrar, através da histéria do Estado-providéncia, como evoluram na pratica as percepodes de uma redistribuigdo con- siderada legitima e os determinantes dessas percepgées. Assim, partir-se-4 da contradigao-matriz do problema: por um lado, 0 principio de cidadania impée o reconhecimento de uma divida POR UMA HISTORIA 00 POLITICO social “objetiva’; por outro, os principios de autonomia e respon- sabilidade pessoais valorizam os comportamentos individuais “eubjetivos”. Nesse caso, uma vez mais, 6 unicamente a historia que pode levar ao “conceito”. A histéria ¢ por isso a miaterie ¢ a forma necesséria de um pensamento total do politico, Os conceitos politicos (que tratam da democracia, da liberdade, da igualdade, etc.) 86 podem ser compreendidos nesse trabalho histérico de se colocar & prova ¢ na sua tentativa de elucidagao. Nessa medida, sinto-me préximo do projeto de “fenomenologia empirica”, lem- brado ultimamente por Anne Fagot-Largeault.* Enfim, em quarto lugar, esta histéria do politico se situa bem distante da hisiéria das ideias e das doutrinas. Ambas, certamente, se Triteressam pelas mesmas obras fundamentais. Mas essas obras ino sio mais apreendidas em si mesmas, como simples “teorias” auténomas, carcacas imponentes de navios naufragados em rios do passado. Flas deyem ser analisacias como,elementos de um imaginério social mais global, como casos exemplares pelo seu valor testemunhal e gue devem, por isso, ser reinseridos num contexto mais géral de interpretagao e de exploracao. Nessa pers- jes @ as “ideias” constituem a matéria es- pectiva, as representag truturante da experiencia social. Ao invés de serem organizadas de forma auténoma em estreitas genealogias, ou consideradas no ciréaite fochado dé sia’ TelAGbeS Gu Uiferencas, essas repre- sentagoes constituem realidades e poderosas “infra-estruturas” 5 Colegio de Franca, Catedra de filosofia das ciéncias biolégicas © mé- dicas, Aula inaugural proferida na quinta-feira 1° de maryu por Anne Fagot-Largeault, p. 29. fo esa EOSAMVALLON na vida das sociedades. Para além de uma visio desencamada, que se recusa a levar em conta as forgas que modelam as ages dos homens, o objetivo aqui ¢, ao contrario, enziquecer e tornar mais complexa a nogdo de “determinacao”, Trata-se de destacar todas essas representagies “ativas” que orientam a aco, limitam © campo de possibilidades através do pensavel e delimitam 0 quadro de controvérsias e de conflitos. “Da mesma forma que 0s fetiales romanos”, Michel de Cerieau observa sugestivamente, “os relatos caminham antes das praticas para abrir-Lhes um campo”. Eis uma férmula da qual, prazenteiro, me aproprio: “Os relatos ¢ as representagdes tém, com efeito, uma clara fungao possivel de abrir um teatro de legitimidade as agdes efetivas’.? Contrariamente 8 histéria das ideias, a matéria desta histéria do politico, qualificada como “conceitual”, nao pode, portanto, se limitar & anélise e ao comentario de grandes obras — ainda que es- tas possam ser frequentemenie consideradas, e com justiga, como “grandes atwutentus” que cristalizam tanto as quest6es de uma poca quanto as respostas que ela busca alcancar. Ela toma de em- préstimo ~ notadamente a histéria das mentalidades — a preocu- Paco de incorporar o conjunto de elementos que compdem este objeto complexo que é uma caltura politica: o modo de leitura dos ‘grandes textos tedricos, a recepedo de obras literdrias, a andlise da imprensa e dos movimentos de opiniao, o destino dos paniletos, a construgao de discursos de circunstancia, a presenga de imagens, a 6 Michel de Certeau. L'invention du quotidien. t. 1. Aris de faire, él. Parise Gallimard, 1990, p. 185. 7 Tbidem, p.183. POR UMA HISTORIA DO POUICO pregndincia dos ritos e mesmo o efémero rastro das cangbes. Nesta abordagem, pensar o politico e fazer a histéria ativa das represen- 2s da vida comum sio tarefas.sobrepostas: é a um nivet “bas- tardo” que se deve apreender 0 politico, no entrelagamento, das praticas e das representagées. F. sempre na situagdo de posto a prova que se pode decifrar 0 politico, Sua historia passa assim, em primeiro lugar, pela aten- 0 ao mecanismo de suas antinomias, pela analise de seus li- mites e de seus pontos de equilibrio, e exame das decepgées e desordens que ele suscita. Por essa razo, meu trabalho privilegia o inacabado, as fra- turas, as tensdes e as negagées que desenham a imagem incon- sistente da democracia. Com efeito, o fundo do politico somente se derxa apreender de verdade nesses momentos ¢ situagdes que demonstram que a vida da democracia néo é a confrontagio com um modelo ideal, mas a exploracao de um problema a resolver. JA mencionei brevemente algumas das antinomias estruturan- tes da democracia que tive a oportunidade de estudar, HA mui- tas outras. Penso especialmente em tudo o que se vincula com as “contradigdes de formas”, que até hoje nao tém sido devidamen- te exploradas, Seria necessério aprender, de maneira minuciosa, aquilo a que chamo 0 problema do “terceiro organizador”. E que a experiéncia coletiva é praticamente inconcebivel sem que nela intervenha certa exterioridade. Por exemplo: nao ha eleigoes pos- siveis sem candidaturas prévias, que constrangem de antemio, RHE ROSAMALLON automaticamente, as escolhas dos cidadios. Ha dois séculos essa impossibilidade ldgica de uma democracia imediata e direta foi objeto de muiltiplas interrogacdes, cuja histéria mereceria ser re- construida. Ela conduziria a uma melhor apreciacao do sentido que convém atribuir ao cardter consequentemente reflexive do regime tepresentativo, e permitiria apreciar os fundamentos da legitimidade democratica de uma nova maneira Entretanto, gostaria de chamar a atengo principalmente para outra questo de forma que ainda nao mereceu suficiente atengéo: a das relagies da demoer 1 1po. Com efeito, o estudo do politico é geralmente focado sobre uma andlise dos atores, dos procedimentos e das instituigSes que considera o tempo uma va- riével essencialmente neutra (a duragéo). Se a democracia define um regime de auto-instituigo do social, me parece, ao contrario, fundamental apreender o tempo como uma varivel ativa e cons- trutiva. Com efeito, a politica também est formada no tempo so- cial, simultaneamente marcado pelo trabalho da memiéria ¢ pelas impaciéncias da vontade; ela. enraizamento e invengio,/Dai que seria ainda desejével compreender a democracia a partir do exame de suas aporias, a partir da fensdo entre tempo-recurso e tempo- obrigacio. A questo é colocada de modo exemplar jé no fim do século XVIII, quando do grande debate sobre o sentido dos direitos do homem travado por Edmund Burke e por Thomas Paine. Este iltimo formula o programa moderno de uma emancipagao radical da tradig2o ao se opor as opinides do primeiro: “E impossivel que exista em algum tempo ou em algum pais um Parlamento que te- nha o direito de atar a posteridade até 0 fim dos eéculos [...] Cada século, cada geracao deve ter tanta liberdade de agir, em quaisquer POR UMA HISTORIA 00 FOUCO casos, quanto nos séculos e nas geragdes que a precederam”? A afirmacio da vontade geral pressupde para os revolucionarios americanos ou franceses uma capacidade permanente ~ pelo me- nos geracional - de invenglo do futuro, de tal maneira que aquilo que uma geracio tiver escolhido livremente no se converta em um destino inexordvel para as seguintes. Dai o debate, central dos dois lados do Atlantico durante o século XVIII, acerca do bom uso de um texto constitucional, a fim de que ele ndo assuma a forma de um pré-contrato para os pésteros (0 problema continua atual, @ julgax pelos termos por que a questao do caréter demoeratico do controle de constitucionalidade continua a ser abordada). Desse ‘modo, todas as democracias fizeram suias as inguietacées de Marx, quando ele se queixou que “a tradicao de todas as geragdes morias ppesa como um pesadelo sobre 0 cérebro dos vivos”? A atragdo pelo custo prazo, que muitos deploram atualmente, no provém, pois, somente de uma espécie de aceleragéo da his- téria artificialmente impulsionada pelas impaciéncias do mundo mididtico. Na realidade, trata-se de um fendmeno estrutural. Para dar forga substantiva & vontade geral, a democracia é constante- mente tentada a valorizar o “capricho do instante” (a expressao é de Renan), que por sua vez. se impée como um amo destruider. Por outtro lado, o direito - percebido por todos como uma pro- tegio necessiria ~ s6 pode tomar forma a0 introduzir uma tem- poralidade longa na vida da comunidade, Vivemos num mundo ee pee ee eT ee a ‘Thomas Paine, Les droits de Vhomme (1791). Paris: Berlim, 1987, p. 74 9 Karl Manx, Le 18 Brumasre de Louts Nupules (1082). Panic: Editions Soria- les, 1969, p. 15. Ro FERRE ROSANVALLON cuja vitalidade econémica esté ligada & capacidade de planejar politicas puiblicas sobre periodos cada vez mais extensos (em ma- téria de pesquisa, entre outras), e nas quais a consideracéo dos problemas ambientais leva a considerar horizontes muito mais dilatados do que aqueles préprios aos ritmos eleitorais. 0 tempo da democracia aparece assim suscetivel de uma dupla defasa- gem: excessivamente imediato para problemas de longa prazo, excessivamente lento para a gestdo da urgéncia. Nos dois casos, a pertinéncia da ideia de vontade geral é posta emi xeque. Essa tensio de temporalidades nao deixa de se aprofundar e alimentar todo um conjunto de perplexidades e conflitos. As po- sides podem oscilar entre uma visdo radicalmente instantaneista da democracia, suscetivel, em consequéncia, de se abismar num poder executivo que se tornaria auténomo baseado no argumen- to da excepcionalidade, ¢ uma justificagéo contrétia do poder dos especialistas, tidos como os tinicos capazes de “representar” 06 interesses sociais de longo prazo, em nome du wnhecimento por eles detido. A longa histdria desses conflitos permitiria escla- recer numerosas questdes contemporanees, abrindo o caminho para uma apreensio renovada da democracia como conjugagio de tempos. Gostaria de demonstrar que o sujeito da democracia precisa ser compreendido como um sujeito indissociavelmente juridico (0 povo de cidadaos-eleitores) ¢ histérico (a nagéo que vincula a meméria e a promessa de um futuro compartilhado). Mas as formas da democracia se xelacionam também com a pluralidade do tempo. Para além de uma abordagem univoca baseada simplesmente no procedimento da legitimagao eleitoral, a perspectiva de uma complexificagéo das formas de soberania POR UNA HISTORIA DO POLNTCO (desde a mera contestacao até a instituigio dessa espécie de me- méria da vontade geral, que é a constituicdo) segue lado a lado com a consideragio eo tratamento das miiltiplas temporalidades ses diferentes aspectos da indeterminagao democratica se prolongam numa crise permanente da linguagem politica, Com efeito. a definigio de nogies essenciais - a igualdade, a cidada- nia, a soberania, 0 povo ~ geram problemas. Esse desarranjo das palavras foi dramaticamente percebido durante a Revolugio Francesa: no momento em que langa, ao lado de Sieyés, seu Journal d’instrution sociale (1793), Condorcet constata que “a alte- racéo do sentido das palavras indica uma alteracio nas préprias coisas” " Um dos observadores mais perspicazes do Terror pode também notar a respeito de Robespierre e seus amigos que “eles tiraram de todas as palavras da lingua francesa seu verdadeiro sentido”, enquanto que Brissot, por sua vez, volta-se com vee- méncia contra aqucles que ele denomina “ladrdes de palavras”.? E por essa razo que Camille Desmoulins fixa como programa em 10 Condorcet, “Sur le sens du mot révolutionnaire”, Journal d’istrucion so- ciale, n° 1, de junho de 1796, p. 10. 11. Edme Petit, “Discours du 28 fructidor an TI (14 septembre 1794)", Archi- ves palementaires, 18 série, t. XCVIL, p. 175, "Depois de terem espalhado por toda a parte o desastre, a incerteza e a ignorancia ~ ele continua -, cles introduziram na lingua uma infinidade de novas palavras, de de- nominagSes com as quais designam sua vontade aos homens ¢ as coisas segundo 0 édio ou o amor do povo enganado” (Ibider). 12 C£. Beissot, “De quelques erreurs dans les idées et dans le mots relatifs ‘la Révolution francaise”, La chronique du mois ow les cahiers patriotiques, vol. V, margo, 1793. EE ROSAMVALION Le viewx cordelier fazer da liberdade de imprensa o ponto chave da construgio da experiéncia democrdtica a partir da confrontagio permanente entre as palavras ¢ as coisas por ela produzida. A ca- racteristica da repuiblica”, ele destaca entdo, “é chamar os homens eas coisas por seu nome’.”” Aquilo que se chama ideologia é, a0 contrario, a manifestagao mais evidentemente perversa de um di- vércio calculado ou consentido entre as palavras e as coisas. A ideologia, com efeito, nega e dissimula as contradigSes do mundo sob-a-aparente coeréncia das doutrinas; ela se libera da realidade ao pér em cena uma ordem fantasmagérica e deixar patente o artificio de sua instauragao. . © trabalho do historiador passa entao por atualizar essas, questées e tentativas com o fito de apreender 0 movimento da democracia em sua defi a ‘40 problematica. F nessa medida que © seu caminho pode se cruzar com aqueles que tém por missio explorar as palavras e dominar uma realidade opaca, por meio da linguagem. Se a literatura e a poesia tém por finalidade nos abrir o mundo pelo meio instavel das palavras, ambas encon- tram, com efeito, no interior das incertezas da era democratica, uma nova razio de ser. O romancista e o poeta, cada qual ao seu modo, sao os topégrafos das ambiguidades e os decifradores de siléncios, permanecendo abertos As contradigies do mundo sem jamais permitirem que o conceito exaura a substincia da rea- Jidade. Desse modo, a histéria do politico, tal como a literatu- 1a, trabalha nos intersticios das ciéncias sociais, que participam 13 Camille Desmoulins, Le Vieux cordetier, ig 5s 1 87, edi i Paris: Berlim, 1987, p. 123. ———— POR UMA HSTORA 00 POUTCO assim de movimento aparentado de decifragao, Seria impossi- vel, aliés, esquecer 6 lugar octipado pela escrita em tantos his- toriadores do século XIX: através de sua linguagem e estilo, foi Michelet quem melhor soube dizer aquilo que, por vezes, seus documentos mal conseguiam explicar. Esta é uma histéria de aporias, mas também de limites e de fronteiras, S40 nesses momentos de ruptura, nos seus pontos de retrocesso, que a cada momento a questdo da democracia se ilu- mina em sua brutal nudez. A partir da consideracio do fato tota- Jitério, todo um processo de renovacio do pensamento politico se operou entre as décadas de 1950 a de 1970, de Hannah Arendt ‘a Claude Lefort. Distante das abordagens puramente descritivas, que nele somente enxesgavam 0 ressurgimento agravado das fi- guras conhecidas da tirania ou da ditadura, a originalidade des- ces autores esteve em mostrar que 0s regimes totalitarios deviam ser compreendidos como formas desviadas da modemidade de- mocrdtica, como uma espécie de sua realizacio negativa. Pode-se efetivamente analisar o fantasma ativo de um poder que absorve totalmente a sociedade ~ caracteristica maior do totalitarismo ~ como uma exacerbagio utépica do principio representativo; exa- cerbacio esta que, de um s6 golpe, pretende construir de modo artificial uma sociedade perfeitamente legivel na sua unidade e tum poder de todo identificado a ela, de molde a extinguir na ori- gem a separacio entre 0 socal ¢ 0 politico. O motor do empreety dimento totalitério deriva dessa pretensio, que se prolonga na utopia, de dar vida a um poder que se confunde com @ socieda- de, sem qualquer forma de dissociagéo em face dela. por isso que o poder totalitério & comandado por uma imperiosa lgica de ann PIERRE ROSAWALLON identificagao: ao radicalizar e tornar absoluta a figura do partido de classe, ele pretende superar as aporias primeiras da represen- tagio e instituir um poder que “realmente represente” a socieda- de. Eo Partido que se encarrega de fazer a perfeita encarnagio do povo a partir do biré politico e mesmo de seu primeiro secretério ~aquele que Soljenitsin chamava o Egocrata, Nesse caso, o partido excede a funco da representacio: ele se toma a propria substin- cia do povo. Desse modo, a apreens4o dos limites do politico consistiu até agora essencialmente na exploragio das zonas tempestuosas ¢ dos desviosem quea democracia se precpitava Essa “exploracao pelos abismos” continua a ser uma perspectiva de compreensio privile- siada, Naturalmente, as pesquisas nesta direco devem continua, pois os acontecimentes nos convidam urgentemente a fazé-o. Sei disso e faco a minha parte. Nao obstante, é preciso reconhecer que hoje nos deparamos, nfo mais com uma exacerbaclo do politico, sas, inversamente, com o seu desgaste. Experimentamas wma aparente dissolugio © uma diluigo: sensacio de um declinio da soberania, percepgio de uma diluicao da vontade e de um aumen- to paralelo das forgas de direita ou do mercado. As fronteiras do govemno e da administracio, da gestdo e da politica se tomam mais fluidas, E claro que seria necessério precisar este diagnéstico. O es- sencial, porém, é que a partir de agora devemos abordar 0 politico partindo destas zonas cinzentas, considerando essas escassas ener- gis, essas derivas inamoviveis, essas decomposicdes discretas. Contudo, 0s sobressaltos do mundo contemporaneo nao in- Mi sohre as formas limitas-do-politico. E também o espaco do politico que hoje se encontra submetido a citam somente a refleti oR UMA HsTORIA BO POUTICS consideraveis provas. HA vinte anos essa questo vem sendo abordada por varios autores, que constataram @ dissociacao e a diferenciacio crescente das relagies de poténcia ¢ de territ6rio, vyinculadas outrora & figura do Estado soberano. So bem conhe- cidos esses trabalhos de cigncia politica ou juridica sobre a de- composigio externa da soberania e sua disseminaga0. Mas ainda info se conferiu atengao suficiente & tendéncia concomitante de fragilizagio interna dos Estados-nagio pelo enfraquecimento do contrato social ¢ do estreitamento das identidades coletivas. ‘A aceleragio dos movimentos de secesso constitui a mani- festacéo mais evidente daquele ferdmeno. Com efeito, o mimero de Estados tende a crescer ao passo que os motives desta multi- plicagio mudaram de natureza. As cifras so eloquentes: 08 4 Estados de 1850 tonaram-se apenas pouco mais de 60 as véspe- ras da Segunda Guerra Mundial. Sao os processos de descoloni- zagio das décadas de 1950 e 1960 e de decomposigao da Unio Soviética a partir de 1989 que constituiram até hoje 0 vetor de uma extraordindria decomposigao de Estados, que eram 118 em 1963 e 196 no ano 2000. O movimento prossegue intensificado pe- los numerosos conflitos étnicos e religiosos. Os especialistas em relacGes internacionais observam com preocupacio este fendme- no; contudo, seria mais conveniente analisé-lo relacionando esse proceso de segmentacao estatal & dimensao de “secessao social” {que desempenha papel crescente nos dias de hoje. Muitas dessas desconstrugdes decorrem de uma recusa de certas entidades em continuar a vida em comum, com tudo que esta tiltima acarretava om matéria de redistribuicZo para administrar as diferengas re- conhecidas. Esses mecanismos de retragio do politico servem para ie PIERRE ROSAWALON testar 0s limites do contrato social, o que deve ser urgentemente considerado em toda sua amplitude. Este fendmeno decisivo ain- dando foi bem avaliado. De fato, o paradoxo est no fato de que o deciinio contemporaneo do Estado nacéo ~ como forma social - se dissimula por detrés da multiplicagao dos Estados-nagio como entidades soberanas. Os conflitos de reparticéo que se resolviam normalmente dentro dos compromissos saciais internos se conver- tem nao raro em conflitos de identidade que “se externalizam” atravessando as fronteiras. Em outras palavras, a légica agregrado- rade outrora, da conquista e defesa de direitos, tomna-se frequen- temente segregadora. A eclosio atual dos nacionalismos repre- senta 0 recuo do modelo histérico da nagéo, endo sua difusio. As nagées originalmente consideradas como tiniversos reduzidos s80 substitufdas cada vez mais por tipos de nacSes concebidas como pparticularidades antpliadas. Trata-se de um fendmeno que deve ser analisado com urgéncia e preciso, no caso de se tentar impedir seus efeitos deletérios. Também se faz necessério articular uma andlise “interna” e uma andlise “externa” do politico, no sentido de abrir a abordagem das relacdes intemacionais para uma ané- lise orientada do ponto de vista do contetido do contrato social e das formas de identidade coieliva € de solidariedade, que.sejam percebidas como pertinentes, Portanto, as antinomias, os limites, mas também, as decepgdes. Parece-me ainda necessario abordar a compreensio do politico por um terceiro aspecto: explorando o fenémeno da decepgio de- mocratica. Uma grande parte das interrogacées contemporaineas € alimentada pelo diagnéstico de um desaparecimento perigoso: declinio da vontade, decomposi¢ao da soberania, desagregacio POR UMA HETORIA DO POLTICO das figuras do coletivo, etc. Ocorre que, mesmo em eal Bes renovadas, essas questoes nada tém de inéditas. Antes de mais nada, certa decepgio diante do regime moderno encontra sua fonte na impossibilidade de dissociar 0 politico e @ politica. Reconhecondo ser simples separar onobre do vulgat; os pequenos célculos egoistas e as grandes ambigbes, a linguagem afirmativa da verdade e as asticias da seducao e da manipulagio, a atengéo conferida ao longo prazo e a submissao as urgéncias. Ainda que seja necessétio refletir e tracar uma fronteira entre elas, a verdade é que tal divisao permanecerd sempre mével eflutuante, le nada que é pelo prisma dos interesses e condenada, como tal, As divergéncias de opini ; Nasce assim, em torno do politico, uma demanda que nao pode ser saisfeita de uma maneiza definitiva, Tudo se passa como se houvesse ao mesmo tempo demasiada e insuficiente politica, expressdo de uma expectativa ¢ manifestacao. een Se Desejo de politica como aspiragao a um dominio da coletivida- de por si mesma, como desejo de uma cuutuniclade em que baja lugar para todos, mas também rechaco aos enfrentamentos esté- reis, e & busca simultanea.deuma felicidade ie.somente privada. Sentimos ao mesmo tempo uma exasperacao frente a um excesso ¢ uma nostalgia em relagéo a um declinio. A politica se nos apa- rece simultaneamente como um tipo de resfduo constrangedor, que em tese deveria ser eliminado, e como uma dimensio tag camente ausente, uma grandeza de que temos saudade, Pretendo assim, em meu trabalho nesta casa, tragar a historia dessa decepeao, bem como das tentativas para superé-la: de um lado, a busca de politioas racionats ¢, de outro, a exaltagao das 7 PERE ROSANVALLON culturas do voluntarismo. O objetivo é pensar a democracia pai- tindo de uma anilise da sensacdo de sua auséncia. De Roederer a Auguste Comte, de Auguste Jullien a Saint-Simon, vé-se for- mular, assim, no primeiro quartel do século XIX, o programa de uma ciéncia social, uma ciéncia da ordem ou de uma politica positiva que aspiram a operar a passagem de um dificil governo dos homens para uma supostamente apaziguada administracéo das coisas. Ao contririo dessas utopias “cientificistas” de um arrefecimento radical do politico, que decretama sua dissolucao como fim desejével, so também periodicamente expressas as aspiragdes & sua exaltagio sob as formas de todo um conjun- to de cultos da vontade. A histéria desses ciclos ainda estd por ser feita, possuindo uma dimensio que podemos sem diivida qualificar de “social”. As recordagdes do Terror determinaram © horizonte mental de todos aqueles que aspiravam, depois do ‘Termidor, a um governo impessoal da razao; ao revés, foi a es- treiteza e a irresolucéo de um regime de rotina que, meio sé- culo mais tarde, em 1848, alimentaram as convocacées de um voluntarismo criador. No entanto, ndo podemos nos contentar com essa abordagem simplificadora, mesmo porque as mesmas forcas expressaram as vezes as duas visdes a0 mesmo tempo (vide 0 elogio dos cozinheiros especialistas em gestao, lado a lado com o voluntarismo mais exacerbado no comunismo do século XX). E necessério mostrar que a decepcao nasce da difi- culdade de vivificar na realidade cotidiana o ideal democritico. Este ideal nunca deixou de oscilar entre 0 medo do conflito ea anguistia de sua auséncia, entre a aspiracdo & autonomia indivi- dual ea busca de uma participagio na vida coletiva. OR UMA HISTORIA BO POLES ‘As interrogagSes contempordneas acerca da dissolugao do po- pois, ser apreendidas apenas pela andlise das itico ndo poderiam, Litico nao p aes formas de disserinago e recomposicao da soberania, . acima. Flas estdo inscritas igualmente numa histéria continua do desencantamento democratico, que talvez seja apenas a outra face de uma historia do 6dio a democracia, dio este que Bae frequéncia cresce disfargado pela condenacéo de sua forma dita ‘niporal” ou “burguesa’. Isso implicaria escrever, por assim dizet, uma histéria negativa da democracia. / sta tarefa de uma hist6ria do politico alcanga sua maior im poriancia nessa aurora do tercezo milénio, quando com crescente inquietagdo percebemos que, para retomar uma fainose expresso \istéria nos morde a nuca”, A titulo de ilustracao, basta lJembrar como a globalizagao econémica modifica o espaco da democracia dificulta a busca do interesse geral, constatar o advento de um (" pulverizadas e disse- universo no qual as formas de “governanga’ sninadas substituem cada ver. mais 0 exercicio legivel e responsi vyel da soberania, mencionar as perturbagdes causadas pela pressdo recordar 0s conflitos ligados a crispagao entre e evocar 08 problemas decorrentes desse do tempo miditico, ic les nacionais, eae em que todos 0s dias se afirma 0 peso Ge poderes to inapreensiveis quanto terrivelmente ameagadores # en en de questées ungentes desse tipo que se organizam hoje - = merosas pesquisas nas ciéncias sociais. A histéria do politic, como por mim delineada, pode trazer uma contribuiglo espesifica ‘a compreensio destas questées, reinserindo-as uma ae Tonga ealargada. Fla pode vencer as tentages hoje tao as ee fagiar-se mum reco desiicdido ou de preguicosamente baie 99. ERE ROSAMALLON © governo do mundo nas méos dos automatismos supostamente autossuficientes do mercado, ou & forga isolada do diteito. “Em matéria de ciéncias”, notava Marcel Mauss, “nenhu- ma lentidao é suficiente; em matéria de pratica, nao se pode esperar’.!* Estou longe de esquecer que essa diferenca nao po- deria ser abolida sem prejuizos. Considerando que tratamos de problemas contemporéneos universalmente debatidos, é muito grande o risco de ver desaparecer a diferenca entre o trabalho Paciente eo comentario apressado ~ numa palavra, entre ciéncia € opinido. Mas a histéria moderna e contemporanea do politico nao poderia se por a parte e encerrar-se num recinto a salvo, por- que inacessivel, aos movimentos da vida. Ela ambiciona, ao con- trétio, dirigir-se a arena civica para Ihe trazer um suplemento de inteligibilidade, um aumento de lucidez. Fla deve propor uma leitura critica e serena do mundo, ali onde muito frequentemen- te predomina o clamor das paixdes, a versatilidade das opinides © 0 conforto das ideologias. Portanto, o trabalho cientifico mais Tigotoso ¢ as aquisigdes mais pacientes da erudi¢ao participam diretamente da atividade cidada, nascem da confrontagéo com 0 acontecimento, e a ele permanecem vinculados. Pretendo inscre- ver-me com modéstia, mas também com firme determinacao, na trilha daqueles sabios que o foram também por sua obra de infa- tigdveis cidadaios, e que nao deixaram de unir 0 pessimismo da 14 Marcel Mauss, Ewvres, t. II, Paris, 1969, p. 579. oR LMA HISTORIA DO POLIICO A ymain cia ao otimismo da vontade. Esta expresso de Rot no durante muito tempo Rolland, popularizada por Gramsci, servi nha geragao. ia a uma grande parte de min / ; al oi = a especificidade dos cussos que tinham I~ ar Michelet observava: “Nao é s desta instituicao, anne to. £ 0 exame das gran- em absoluto um ensino propriamente dit fae des questdes diante do piblico. Nao se fala a alunos, jue do cur- 8 Ha seguramente algo de ilusério nesse extfugue iguais’ ss = {bblico, que néo funciona da mesma forma para as diferentes 0 publico, iso saudavel disciplinas. Nao obstante, ela corresponde a uma vise a oe do desafio particular que constitui o tipo de fala arriscade 9 cessas paredes. Talver.esteja,aliés, nesse desafio, ae poet - : a vel encontrar a origem da alegria por mim mencionada ae i io defini-la: participar de uma = desse entdo defini-la: p desta ligo, sem que ja pu at i topia académica que vale a pena manter para vivificar a pois. utopi Agradego-lhes pela atencao. 15 Michelet, Cun Colldge de France, t. 1, 1838-1844. Paris: Gallimard, 15 Mic jury a 1995, p. 20, 401

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