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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE ARQUITETURA - FAUFBA


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO
MESTRADO EM ARQUITETURA E URBANISMO

ADONIRAN DA SILVA SANTOS

ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO:


PRAÇA LUIZ SANDE E CAMAROTE SALVADOR

Salvador
2014
ADONIRAN DA SILVA SANTOS

ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO:


PRAÇA LUIZ SANDE E CAMAROTE SALVADOR.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Faculdade
de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal
da Bahia, para obtenção do grau de Mestre em
Arquitetura e Urbanismo.

Orientadora: Profa. Dra. Naia Alban Suarez

Salvador
2014
S237 Santos, Adoniran da Silva.
Entre o público e o privado: Praça Luiz Sande e Camarote Salvador /
Adoniran da Silva Santos. 2014.
108 f. : il.

Orientador: Profa. Dra. Naia Alban Suarez.


Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Faculdade de
Arquitetura, 2014.

1. Arquitetura - Espaços públicos - Salvador (BA). 2. Planejamento urbano -


Praças - Salvador (BA). I. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de
Arquitetura. II.Suarez, Naia Alban. III. Título.

CDU: 712.253(813.8)
ADONIRAN DA SILVA SANTOS

ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO:


PRAÇA LUIZ SANDE E CAMAROTE SALVADOR.

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre


em Arquitetura e Urbanismo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade
Federal da Bahia.

Aprovada em 03 de novembro de 2014.

Naia Alban Suarez – Orientadora ___________________________________


Doutora pela Universidad Politécnica de Madrid, Madrid, Espanha.
Universidade Federal da Bahia

Urpi Montoya Uriarte ____________________________________________


Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo – USP, São
Paulo, Brasil.
Universidade Federal da Bahia

Sérgio Luis Abrahão _____________________________________________


Doutor em Estruturas Ambientais Urbanas pela Universidade de São Paulo –
USP, São Paulo, Brasil.
FIAM-FAAM Centro Universitário
Ao meu pai, Antônio, por sua dedicação em me fazer
ver e entender o mundo, não por seus olhos, e sim
por minha própria percepção.

(in memoriam)
AGRADECIMENTOS

À Monica, pelo carinho de dividir com este trabalho, parte da minha vida.

À professora, Naia Alban Suarez, pela generosidade.

Ao professor Angelo Serpa, por uma luz de conhecimento.

Aos professores Urpi Uriarte, Angelo Serpa e Sérgio Abrahão pelas provocações
nas qualificações.

Aos meus filhos, irmãos, familiares e amigos, por momentos de alegria e


contentamento que ajudaram a dar sentido a tudo que tenho feito até aqui.

Ao Renato por estender nossa amizade à vida acadêmica.

À professora Elyane Lins, pela sensível experiência da docência que me


proporcionou.

À equipe do PPGAU, com especial carinho à nossa Silvandira, sempre presente,


com palavras acolhedoras.
“As cidades são um imenso laboratório
de tentativa e erro, fracasso e
sucesso, em termos de construção e
desenho urbano. É nesse laboratório
que o planejamento urbano deveria
aprender, elaborar e testar suas
teorias”

Jane Jacobs (2003, p, 5)


SANTOS, Adoniran da Silva. Entre o público e o privado: Praça Luiz Sande e
camarote Salvador. 108 p. il. 2014. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014.

RESUMO

As relações sociais, nos grandes centros urbanos, deterioram-se, não por uma
vocação, mas por uma inércia no trato do que é público e deveria ser o lugar de uma
transformação qualitativa dessas mesmas relações. É preciso atinar para a
deterioração dos espaços públicos urbanos e para os novos usos que o capitalismo
enxerga em toda porção de território que dê margem a uma nova expressão, seja
ela arquitetônica, econômica, artística, pois, muitas vezes, esses processos chegam
como formas de desconstruir um cotidiano de usos e práticas sedimentados por
parcelas da coletividade que permaneceram muito tempo naqueles locais e neles
perpetuaram essas mesmas expressões em formas e escalas diferenciadas. Em
outras situações, os usos são substituídos ou suprimidos, tornando os espaços
públicos locais desarticulados das práticas e dos usos coletivos, para que possam
atender ao consumo ou à especulação, enfraquecendo os conceitos de coletivo e
público, em favor de uma privatização sistemática do espaço urbano coletivo. As
praças se constituem em um elemento universal nas estruturas urbanas,
independentemente da escala que essas estruturas urbanas apresentam. As praças
são espaços coletivos, públicos, que proporcionam diversas das condições
necessárias às interações entre os seus usuários, mas também podem ser
transformadas em espaços de segregação, a partir de interferências e dos usos aos
quais sejam direcionadas. Este trabalho busca discutir o uso privado de um espaço
público, a Praça Luiz Sande, que se transforma conforme as diferentes formas de
uso coletivo.

Palavras-Chave: Espaço Público, Público, Privado, Praças.


SANTOS, Adoniran da Silva. Between the public and the private: Luiz Sande Square
and Camarote Salvador. 108 p. il. 2014. Master Dissertation – Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014.

ABSTRACT

In large urban centers, social relations deteriorate, not by vocation, but due to inertia
in addressing what is public and should be the place for qualitative transformation of
those relations. Thus, it is necessary to comprehend the deterioration of urban public
spaces and interpret new uses that capitalism identifies in every portion of territory,
permitting either new architectural, economic or artistic expression, often, because
these processes occur as forms that deconstruct part of collectivity’s everyday uses
and sedimented practices that have remained over a long in those places and
perpetuated the same expressions in different forms and scales. In other situations,
the uses are replaced or deleted, turning public spaces into places that are disjointed
from collective practices uses, in order to comply with consumption or speculation,
weakening the concepts of collective and public in favor of a systematic privatization
of urban collective space. Squares constitute a universal element in urban structures,
regardless of the scale, which these urban structures present. The squares are
collective and public spaces, which provide many of the necessary conditions for the
interactions among their users, but can also be transformed into spaces of
segregation, corresponding to interferences and uses to which they are directed. This
work aims to discuss the private use of a public space, the Luiz Sande Square, which
transforms itself according to the different forms of collective use.

Keywords: Public Space, Public, Private, Squares.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 - Situação atual do Bairro de Ondina .............................................................................. 39
Figura 2 - Reprodução da planta do loteamento cidade balneária de Ondina – Fonte
Plandurb ............................................................................................................................................. 40
Figura 3 - Limites do bairro de Ondina – Fonte Google Earth..................................................... 47
Figura 4 - Lona do Circo Troca de Segredos no Bairro de Ondina – Reprodução do Correio
da Bahia .............................................................................................................................................. 50
Figura 5 - Praça Luiz Sande entre 1981 e 2010 – Fonte Google Earth ..................................... 67
Figura 6 - Praia de Ondina - 2012 - Fonte Google Earth ............................................................. 68
Figura 7 - Uso do solo em Ondina 1973. Scheinowitz, 1998, p. 97............................................ 69
Figura 8 - Praça Luiz Sande – 2013 – Fonte Google Earth ......................................................... 78
Figura 9 - Vista interior do camarote Salvador – Fonte Premium Empreendimentos – Site da
Empresa ............................................................................................................................................. 81
Figura 10 - Visão geral da praça e limite do camarote na cor vermelha – Google Earth ........ 82
Figura 11 - Acesso ao Circo Troca de Segredos em dia de show – Reprodução Correio da
Bahia ................................................................................................................................................... 91
Figura 12 - Interior do Circo Troca de Segredos em dia de show. Lazo Matumbe –
Reprodução Correio da Bahia ......................................................................................................... 92
Figura 13 - Folheto de divulgação do programa Salvador, Esporte e Cidadania. .................... 97
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 - Evolução da ABL (milhões de m2) ............................................................................... 37
LISTA DE FOTOS
Foto 1 - Loteamento cidade Balneária de Ondina - 1972 - Fonte Fundação Gregório de
Matos .................................................................................................................................................. 42
Foto 2 - Ocupação popular em Ondina - retirada em 1969 – Fonte Fundação Gregório de
Mattos ................................................................................................................................................. 43
Foto 3 - Visão geral da orla de Ondina – 1972 – Fonte Fundação Gregório de Mattos .......... 44
Foto 4 - Lanchonete SPEED e Banca de Revistas que atendem na Praça 24 horas – Acervo
Pessoal ............................................................................................................................................... 48
Foto 5 - Quiosques que comercializam coco e bebidas – Acervo Pessoal ............................... 49
Foto 6 – Visão geral do Camarote Salvador – Acervo Pessoal .................................................. 79
Foto 7 – Visão geral da Praça Luiz Sande – 2014 – Acervo Pessoal ........................................ 79
Foto 8 - Estrutura metálica do camarote Salvador montada na Avenida Oceânica – Acervo
Pessoal ............................................................................................................................................... 80
Foto 9 – Automóvel, com isopor para a venda de bebidas – Acervo Pessoal .......................... 96
Foto 10 - Alunos do programa Salvador Esporte e Cidadania – Acervo Pessoal .................... 98
Foto 11 - Coordenador do projeto passa instruções aos alunos – Acervo Pessoal ................. 99
Foto 12 - Vista dos sanitários da Praça Luiz Sande – Acervo Pessoal ................................... 100
LISTA DE ABREVIATURAS
ABL Área Bruta Locável

ABRASCE Associação Brasileira de Shoppings Centers

CREA Conselho Regional de Engenharia

DENATRAN Departamento Nacional de Trânsito

DMER Departamento Municipal de Estradas de Rodagem

DPU Defensoria Pública da União

IPTU Imposto Predial e Territorial Urbano

ISBA Instituto Social da Bahia

MP Ministério Público

OSCIP Organização da Sociedade Civil de Interesse Público

PDDU Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano

PL Projeto de Lei

PLANDURB Plano de Desenvolvimento Urbano

PMS Prefeitura Municipal de Salvador

PPP Parceria Público Privada

RENURB Companhia de Renovação Urbana de Salvador

SEDHAM Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano, Habitação e Meio


Ambiente

SEFAZ Secretaria da Fazenda do Município

SPJ Secretaria de Parques e jardins

SPU Superintendência do Patrimônio da União

SUCOM Superintendência de Controle e Ordenamento do Uso do Solo do Munícipio

SURCAP Superintendência de Urbanização da Capital

TAC Termo de Acordo e Compromisso

UFBA Universidade Federal da Bahia

ZEIS Zonas Especiais de Interesse Social


Sumário

Introdução........................................................................................................................................... 15
1. Coletivo, público e privado ....................................................................................................... 18
1.1. Usos cotidianos .................................................................................................................. 21
1.2. Níveis e dimensões ........................................................................................................... 31
2. As ocupações em Ondina: Praça Luiz Sande da lona ao camarote .................................. 37
2.1. O Bairro de Ondina............................................................................................................ 39
2.2. Programas de Remanejamento da Orla Marítima ........................................................ 45
2.3. A praça, entre a ordem e a (des)ordem. ......................................................................... 58
2.4. Políticas Públicas de desenvolvimento ........................................................................... 70
3. A Praça e a Cidade ................................................................................................................... 77
3.1. Perspectiva dos usos na Praça Luiz Sande................................................................... 77
3.2. Escalas de apropriação da Praça.................................................................................... 89
3.3. Uma Paisagem Midiatizada .............................................................................................. 94
3.4. Coletivo, usuários e consumidores ................................................................................. 95
Considerações Finais ..................................................................................................................... 101
Referencial ....................................................................................................................................... 104
Introdução

Este trabalho traz uma reflexão sobre os conflitos que se estabelecem hoje
nos espaços públicos no Brasil, mais detidamente na Bahia e, especificamente, na
cidade de Salvador, onde se processa uma transformação das relações entre o
Estado, o capital e a sociedade no que se refere aos espaços públicos, como âmbito
do coletivo. Esses processos atingem, de modo geral, a gestão, mas também a
conceituação e a teorização do que passaremos a chamar de “estatutos” de público
e privado, para efeito deste texto.

Entende-se, pelo senso comum, que público e privado sejam polarizações


entre elementos antagônicos que se anulam e não poderiam estar no mesmo
contexto espacial, entretanto, a realidade teórica é que esses estatutos são mais
miscíveis que possamos imaginar e, cada vez, torna-se menos evidente a sua
limitação um em relação ao outro, principalmente, quando considerada a
sobreposição do estatuto privado, sobre o público.

Ao longo dos últimos anos, a produção e a manutenção de espaços públicos


atraíram o interesse e a ação do capital privado, que descobriu nos espaços
públicos, possíveis espaços privados de uso coletivo, um mercado em crescimento a
ser explorado, no qual passou a investir. Entretanto, optando por uma visão
privatista e não coletivizante desses espaços, numa evidente referência ao lucro,
mas também às garantias (segurança, conforto, etc.), segregando esses espaços ao
definir seu uso para certos grupos ou para certas classes sociais. Essas
transformações, com relevância aos espaços públicos para o capital privado, têm
amparo nas transformações dos estatutos de público e privado, além da forma como
se considera o que seja coletivo.

O primeiro capítulo trará a sedimentação de coletivo como o inverso de


individual, o que poderia definir público e privado como outras categorias análogas a
essa inversão, contudo, trataremos coletivo como um todo que contém, como
instâncias de uma estrutura maior, o público e o privado.

Considerando a natureza coletiva da cidade e da sociedade, podemos


perceber que nelas estão contidos aspectos de público e de privado, não sendo
simples, em muitos momentos, separá-los. Outra questão surge na leitura do social
15
como sinônimo de coletivo, em relação ao território, ao uso do solo, e à forma de
definição do que é próprio, mas também da propriedade do que é facultado ao uso
comum, o que evidencia a sedimentação dos estatutos de público e privado como
instâncias de poder sobre o uso do espaço, seja público ou privado.

Nesse sentido, escolheu-se como ambiente de estudo a Praça Luiz Sande,


para identificar, em suas raízes, um episódio que demonstra a transformação das
relações sociais e do homem com o lugar, caracterizada pela retirada das pessoas
de suas casas (moradores da ocupação de Ondina) por terem sido erguidas em um
terreno público, ou seja, apesar de coletivo, aquele espaço não está disponível a
todos os usos. Para sustentar a espoliação dos moradores da ocupação de Ondina,
coube o argumento do interesse turístico, como um interesse coletivo. Estaríamos,
assim, diante do conflito de interesses coletivos, em que a propriedade cumpriu um
papel de regulação, demonstrando a sua capacidade de definir o que tem uso
privado, pela titularidade e o que não tem, pela falta dela.

Ao longo do segundo capítulo, teremos a oportunidade de descrever e discutir


esse processo de transformação da Fazenda Areia Preta, no atual bairro de Ondina.
A cidade balneária de Ondina é o marco a partir do qual delimitamos o núcleo do
bairro (1932) que se consolida, e onde nasce Parque Zoobotânico Getúlio Vargas
(1956), e parte do campus da Universidade Federal da Bahia – UFBA.

Em 1973, surge uma proposta de zoneamento do bairro, a partir do Programa


de Remanejamento da Orla Marítima, que vai definir diversas zonas determinando,
inclusive, uma para equipamentos de praia. Todavia, somente em 1981 foram
implantados equipamentos desse gênero na área que atualmente corresponde à
Praça Luiz Sande, sedimentando um espaço público e de serviços, que abrigará
uma ocupação inusitada em 1983, o circo, mas também trará discussões sociais
após sua reforma e requalificação em 2011, por abrigar um empreendimento,
parceria entre a empresa Premium Entretenimento e a Prefeitura Municipal de
Salvador – PMS -, que permite à empresa exploração da praça durante o carnaval
para implantação de um camarote que causa a interdição de toda a praça por 3
meses.

Desse ponto em diante, o terceiro capítulo irá traçar os parâmetros dessa


parceria público (PMS)/ privada (Premium Entretenimento) e discutir as implicações
16
e as alegações que cercam esse processo, seus conflitos e consensos, pelos pontos
de vista de alguns atores e sob a ótica do que podemos denominar de uma forma de
privatização do espaço público. O que não define privatização como algo bom ou
ruim, mas a percebe como um fenômeno que deve ser acompanhado pela
sociedade.

A ocupação do sítio da Praça Luiz Sande percorre um caminho de gradação,


que se inicia com a implantação de boxes comerciais passa pela ocupação da praia
por barracas, pela ocupação da lona do circo e culmina na construção do camarote.
Essa trajetória tem um caráter evolutivo da ocupação do espaço da praça, talvez
não qualitativo, mas, essencialmente, quantitativo, que não deve ser considerado do
ponto de vista da simples ocupação, e sim da transformação dessas relações ao
longo do tempo, e no espaço da cidade de Salvador.

Finalmente, serão feitas considerações sobre a privatização de espaços


públicos que vêm ocorrendo, sob certo aspecto, em função da oportunidade
proporcionada pela administração pública, diante de interesses muito mais políticos
que sociais, bem como, pela forma como o capital privado vê o espaço urbano como
um nicho de negócios, principalmente nas cidades costeiras, abundantes em
recursos naturais, vocação turística, mão de obra barata.

17
1. Coletivo1, público e privado

O Espaço urbano, a cidade, pode ser admitido como um espaço coletivo em


que os cidadãos, reunidos, constroem e administram suas relações cotidianas.

“A cidade”, à maneira de um nome próprio, oferece assim a capacidade de


conceber e construir o espaço a partir de um número finito de propriedades
estáveis, isoláveis e articuladas uma sobre a outra. Nesse lugar organizado
por operações “especulativas” e classificatórias, combinam-se gestão e
eliminação. De um lado uma diferenciação e uma redistribuição das partes
em função da cidade, graças a inversões, deslocamentos, acúmulos, etc.;
de outro lado, rejeita-se tudo aquilo que não é tratável e constitui, portanto,
os “detritos” de uma administração funcionalista (anormalidade, desvio,
doença, morte, etc.)2.

Nesse sentido, a cidade seria a articulação de “um número finito de


propriedades” com as práticas e os usos de seus cidadãos em seus processos
cotidianos, públicos e privados, já aí considerada uma cossubordinação do público e
privado aos cidadãos (coletivo) e vice-versa.

Contudo, a noção de coletivo se mantém, cada vez mais, à margem desse


cotidiano, apesar de encher as discussões em torno do destino de ocupações cada
vez mais extensas e complexas e de suas populações, menos capazes de gerenciar
suas necessidades de modo sustentável.

Coletivo é uma noção que se associa a uma ideia de todo, conjunto dos
entes. Ao falarmos de urbano, pode ser o conjunto dos cidadãos, dos moradores de
um bairro, uma associação de moradores. Além disso, coletivo não tem grau, é
comum a todos com a mesma intensidade, mesmo quando delimitamos parte
desses entes em certas categorias, em certos contextos, essas delimitações não os
desarticulam da noção de coletivo.

Se pensarmos em público e privado como estados contidos em coletivo,


estados que se alternam, que se sucedem ou convivem, para dessa forma
subcategorizá-los ao sentido de coletivo, há uma subjetividade nessa objetivação,
em estar desse ou daquele lado de um limite que é invisível. Ser público ou privado
define uma transição dentro de coletivo, pois na realidade ambos estão contidos

1
Nesse texto, coletivo não pode ser admitido como sinônimo de público, conforme o verbete – público – do
minidicionário de sinônimos e antônimos, Edições Melhoramentos, 1994, p. 504.
2
Certeau, Michel de, 2013, p.160 e 161.
18
nele, denominados conforme uma realidade prévia em relação aos conceitos sociais,
que coexistem dentro do urbano; num contexto histórico; num processo hegemônico;
no imaginário de certo grupo ou na sociedade como um todo, que busca definir esse
limite entre público e privado, conforme suas necessidades.

Mas essa definição opera, ainda, conforme as castas e estratificações sociais


e/ou econômicas operem suas práticas para conformar o espaço físico da cidade,
impondo aos indivíduos uma atitude ou uma inércia em relação a esse espaço físico
a partir da forma como apreendem os conceitos dados de público e privado que, ao
longo do tempo, a arquitetura, depois o urbanismo, tornaram instrumentos para essa
conformação, teorizando as relações dos indivíduos e não do coletivo com o espaço
das cidades.

O indivíduo, desse modo, perde uma condição privilegiada ao buscar o seu


lugar nessa trama, respeitadas as relações sociais e econômicas. De início, balizado
pelas religiões e, posteriormente, por poderes laicos, findando no surgimento e
consolidação do capitalismo moderno, e nos fundamentos de público e privado e sua
evolução, como estatutos sob os quais se discute a questão da propriedade. Desse
modo, podemos pensar que a cidade já teve um sentido muito mais coletivo e o
desmembramento de espaço coletivo, em privado e público, no século XIX, a
transformou e distanciou dos indivíduos.

Outra questão seria, segundo Escóssia e Kastrup, a utilização do conceito de


coletivo, “para designar uma dimensão da realidade que se opõe a uma dimensão
individual”3 dentro dos processos psicológico e sociológico das relações que marcam
visões de diversos autores, inclusive Hanna Arendt, quando “critica o sentido
atribuído ao político na modernidade, bem como a oposição efetuada entre o privado
e o social”4.

Em, “O Declínio do Homem Público”, Sennett sugere que analisar uma


cronologia dos termos público e privado seria uma forma de situá-los na cultura
ocidental. Público sendo denominado enquanto bem comum, o que é manifesto e
aberto à observação geral. Tal denominação concorda com um senso comum de
público e o significado de público como algo ao alcance da observação de qualquer

3
Escóssia, Liliana da; Kastrup, Virgínia, 2005, p. 295.
4
Ibidem.
19
pessoa. O termo privado, por sua vez, está relacionado à intimidade, à região
protegida da vida, da família, dos amigos. Visões do senso comum que ele nos
apresenta, claro, de forma introdutória à discussão, mais fáceis de acatar por
intentar o consenso.

No significado de privado, encontramos o sentido daquilo que é tratado como


íntimo, particular, restrito, que não pertence ao Estado, direcionado ao individual,
enquanto o público está direcionado ao que é coletivo, ao alcance de um conjunto
de pessoas, o que está aberto a qualquer pessoa, mas, nisto reside uma questão
importante: não a qualquer uso. Essa característica se intensifica no domínio do
Estado sobre o que se diz coletivo.

O sentido dessas palavras transparece ainda seu caráter antagônico e os


conflitos provenientes do antagonismo se apresentam de forma difusa, provável
consequência de uma cultura do privado em que os cidadãos abrem mão do
consenso pela disputa do espaço urbano que possua denominação de coletivo, mas
também é público e privado, em que, o que é privado não está ao alcance de todos
os cidadãos e o que é público está para ser alcançado, sob a tutela do Estado.

Entre esses dois contextos surgem ações dos indivíduos que intentam o uso
do coletivo, mas nem como público, nem com tutela do Estado, tampouco como
privado, limitados por sua incapacidade de dispor do espaço urbano como
propriedade privada. E isso marca também certa relação de valor, em que o senso
comum é de que o que é privado, por ter um proprietário, passa a tem um valor e o
que é público não teria um valor, pois não é de ninguém. Esse contexto beneficiaria
um crescimento pela busca do privado e pelo desconhecimento do público como
instância de uma vida pública.

Na modernidade, tem se apresentado um conflito entre poderes políticos,


econômicos e sociais, para se estabelecer e cumprir as demandas ou expandir o
raio de ação sobre o espaço urbano. Razão pela qual muitas questões transitam da
ordem privada para a ordem pública e vice-versa, em que se questiona como
“alcançar um uso do espaço quando a lei da concorrência (hoje, a competitividade)
sugere uma utilização cada vez mais privatista”5. Como resposta, talvez seja
possível que o conflito entre as demandas do mundo e do lugar constituam uma luta

5
Santos, Milton, 1996, p. 270
20
permanente, na qual forças díspares se enfrentam, mas também pode ser entendido
como um campo, em que se disputa por expansão e contração, como se
estivéssemos numa bolha, um pequeno limite pessoal de domínio de um espaço
material e simbólico.

1.1. Usos cotidianos

Do ponto de vista desses limites pequenos e sensíveis que construímos ao


redor de nós mesmos, para balizar nossa fruição entre os espaços urbanos,
podemos dizer que a membrana social que nos reveste não permite uma osmose
plena com o ambiente. Nossa troca é, em muitos casos, com outros que possuem
membranas semelhantes, disso decorrendo uma proximidade dos iguais, no
contexto dos grupos que repercutem no espaço por eles ocupado.

A proximidade de certos grupos, de um ponto de vista da determinação e da


estruturação de um plano estratégico por parte do Estado, tutor do espaço coletivo,
tem como objetivo metas de efetivação e efeitos em curto prazo para áreas
específicas determinando a aplicação de recursos de forma a agregar mais valor
onde ele já existe. Tal articulação não se baseia em uma noção de coletivo, mas, em
certos casos, em demandas públicas e ou privadas, que,

com a “fuga” do Estado para fora do Direito Público, com a transferência de


tarefas da administração pública para empresas, estabelecimentos,
corporações, encarregados de negócios semi-oficiais, mostra-se também o
lado inverso da publicização do Direito Privado, ou seja: a privatização do
Direito Público. Os critérios clássicos do Direito Público tornam-se caducos
uma vez que a administração pública se utiliza de meios do Direito Privado
mesmo em suas funções de distribuir, prover e fomentar /31/. [...] Esta
esfera não pode ser entendida completamente nem como sendo puramente
privada nem como sendo genuinamente pública; também não pode ser
univocamente classificada no âmbito do Direito Privado ou do Direito público
/32/6.

Dessa forma, a leitura dos estatutos de público e privado se torna um desafio


que nem sempre se cumpre com a devida excelência, deixando margens aos
equívocos por parte dos gestores da coisa pública. Assim, o uso e a ocupação do

6
Habermas, Jürgen, 2003, p. 180.
21
espaço urbano passam a ser balizados por regras e princípios que se coadunem
com as demandas do privado.

Podemos dizer que o uso determinado, e não o uso efetivo, estabelece os


critérios de denominação do estatuto dos espaços urbanos nas cidades brasileiras,
pois a cada dia é mais difícil, a certas parcelas da população, efetivar o uso dos
espaços urbanos, o que estabelece constantes conflitos.

É o uso determinado pelo poder público, dentro de parâmetros privados, e


não aquele vivenciado pelos cidadãos, que trará aos espaços coletivos uma
dimensão de espaço público, o que causa uma distorção desses espaços em suas
características mais relevantes à coletividade. A praça, ao servir de exemplo do
espaço urbano, onde podem ocorrer estatutos diferentes de publicização ou
privatização, que pode alterar seus usos para coletivos ou restritos, demonstra que o
critério pode não estar balizado pela frequência, mas pela proximidade que certos
grupos têm desse espaço. As sucessivas urbanização e requalificação da Praça Luiz
Sande têm sua afirmação nessa referência de proximidade, diferentes grupos locais,
mesmo diante da diversidade, partilham interesses, podendo exercer certas ações
sobre o destino daquele espaço, o que vai ser diluído pelos limites a partir da
expansão e contração dos grupos.

Se, por outro lado, pensarmos a cidade como fixo no espaço, mas não no
tempo, podemos considerar que essa mobilidade é temporal e nela a ausência de
dinâmicas das estruturas podem promover necessidade em se estabelecer
dinâmicas nas estruturas. Nessa relação, o espaço público é o espaço
“desocupado”, livre para o uso, onde se construíram menos funções materiais e
onde elas podem ser alteradas, sem grandes constrangimentos, onde se pode
ocupar com diferentes formas de expressão do viver e do conviver; possível espaço
do hibridizar, numa ação contínua e fluída. Ligações e caminhos possíveis aos que
trocam usos, sem lhes atribuir valores restritivos e determinantes. Espaço de
proximidades.

Desse modo, os espaços públicos estão vulneráveis a ação de todos os


usuários que, em dado momento, articulam formas de exploração do espaço, em
detrimento da fruição, aproveitando a sua proximidade para compor usos, trocas, em
práticas conjuntas.

22
Pensado a partir dos conceitos ordem e desordem, publico e privado, coletivo
e os usos múltiplos apropriados, buscamos questionar: são os usos que definem as
noções de espaço? Essas noções podem e devem ser dinâmicas? Caso sejam,
cabem como prática tanto no espaço público como privatização quanto no privado
como publicização? Questões conduzidas ao ambiente em estudo.

No ambiente da Praça Luiz Sande temos, de forma mais marcante, duas


ocupações, a do circo e a do camarote, como objetos da análise deste trabalho.
Ambas utilizando e modificando o espaço, permitindo novos usos em diferentes
escalas. Em primeiro lugar, a menos conflitiva, por permitir usos concebidos e
vivenciados do espaço público, que se privatiza e publiciza, permitindo ao mesmo
tempo, os usos públicos e os usos privativos. Em segundo, a mais restrita e
intensamente conflitiva, por implicar numa ocupação que impede outros usos,
segregando o espaço e excluindo parcelas da população, que, apesar de alterar as
relações do espaço com outros usuários em certo período, não impede a presença
de uma diversidade de usos marcados pelas temporalidade e espacialidade, por
eles construídas.

Contudo, em escala mais próxima ao espaço da praça, temos ocupações que


sugerem uma adaptação ou integração dos ocupantes do e ao espaço. São elas, a
ocupação permanente dos sanitários públicos por moradores de rua, e a ocupação
do estacionamento por ambulantes que, de modo desviante, estabeleceram um local
de comércio e convívio que concorre com o comércio e o espaço de convivência
formal.

Retomando o espaço público e concordando com Vaz quando o define como


“conjunto de lugares de domínio do coletivo”7, entendemos como característica do
espaço público o livre acesso garantido a todos os cidadãos, e que o coletivo a que
ele se refere seriam os cidadãos, de uma forma indiscriminada, fato pelo qual seria
“proibida a sua utilização privada, o que não impede que estas mesmas áreas
tenham o uso permitido ao setor privado através de concessão”8. Esse conceito
possibilita deduzir, segundo esse autor, que coletivo é algo que pode ser público ou
privado, permitindo a existência de lugares privados de uso coletivo, que sejam fruto

7
Nelson Popini Vaz in: http://soniaa.arq.prof.ufsc.br/arq5605/Espacospublicos.htm
8
Nelson Popini Vaz in: http://soniaa.arq.prof.ufsc.br/arq5605/Espacospublicos.htm
23
da privatização do espaço público e ainda da publicização de espaços privados a
exemplo dos shoppings, centros comerciais, mercados, etc.

Agrega a esse raciocínio a definição de Macedo sobre os espaços livres


quando os conceitua como, “aqueles não contidos entre as paredes e tetos dos
edifícios construídos pela sociedade para sua moradia e trabalho”9. Esses espaços
livres são passíveis de múltiplos usos, dentre esses os coletivos e públicos, que
permitam a mobilidade, o lazer e a contemplação. Entretanto, a difusão do modelo
de parcerias público-privadas, entre capital e estado, possibilitou novas alternativas
a tais espaços, antes relacionadas a dispositivos menos flexíveis de concessão,
além do fato da visibilidade que esse modelo obteve no final da última década no
Brasil.

Os espaços públicos são locais em que se pressupõem haver interações


intensas na definição de uma apropriação simbólica e, de modo mais complexo, na
apropriação social, não simplesmente provenientes de uma transitória permanência
e apropriação espacial. Isso se orientado pelo conceito de apropriação como uma
atitude fundada num ato que altera a realidade de modo efetivo, transformando-a em
um novo estar, possibilitando, assim, pensar tanto a forma coletiva quanto a
individual, definidas como apropriação do espaço em suas múltiplas possibilidades.
Se para o policial trata-se de jurisdição, para o morador de rua pode ser relacionado
ao lar, enquanto para o artista de rua, o palco - tudo isso em função do mesmo
espaço, contudo,

A forma do espaço social é o encontro, a reunião, a simultaneidade. O que


se reúne? O que é reunido? Tudo o que há no espaço, tudo o que é
produzido, seja pela natureza, seja pela sociedade, - seja por sua
cooperação, seja por seus conflitos. Tudo: seres vivos, coisas, objetos,
obras, signos e símbolos10.

Tendo uma visão do espaço como um substrato necessário, que se permite


apropriar e expropriar sistematicamente, para diversos usos, apesar das
transitoriedades que possam comportar. O exemplo citado acima vincula-se ao tipo
de uso, que no caso em específico, é produzido por uma ocupação ou apropriação

9
Macedo, Sílvio Soares, 1995, p.16.
10
Lefebvre, Henri, A Produção do Espaço – Tradução de Doralice Barros e Sérgio Martins (do original: La
production de l’espace, 4 ed. Paris Editions Anthropos, 2001, primeira versão início – fev.2006)
24
que, para Lefebvre, é descrito como desvio que, mesmo ao passar de uso comercial
para residencial, não ocorre modificação da natureza, mas, na função.

Diante do exposto, considerando os espaços edificados e livres, cada qual


desenvolve uma relação com os corpos que cativa ou liberta pelo uso. Essa relação
tem uma ordem, que pode estar estabelecida no limiar entre um e outro desses
espaços, sem ser possível rompê-los e transbordá-los, em quaisquer dos sentidos,
pois seus limites são materiais. Já no concernente ao que seja público ou privado,
esses (público e privado) tendem à complementaridade e à harmonização, ao
contrário dos anteriores, permitem rompimentos e transbordos.

É necessário perceber que o privado e o público podem ser miscíveis, ou


seja, publicizáveis e privatizáveis, parcial ou totalmente, segundo a forma como
estejam constituídos e quanto ao contexto das ações e relações sociais que os
constituem, no espaço urbano em que se constrói sua leitura. Essas noções não
atribuem ao espaço uma característica imutável, estão próximas a uma ordem dos
usos que nasce da ação dos agentes.

Quanto aos espaços coletivos, esses, mesmo os públicos, podem passar ao


âmbito do privado. Ocorrem, assim, diversos usos nos espaços urbanos coletivos
que se alteram entre espaço urbano coletivo público, determinado pela ação do
Estado que define, aparelha e conserva tais espaços, e o espaço urbano coletivo
privado, aquele dos empreendimentos comerciais e espaços de serviços.

No caso da Praça Luiz Sande, ela irá conter as duas formas, tendo sua
cronologia dividida entre os meses de ocupação pelo camarote, em que seu uso é
restrito, e o resto do ano quando permanece acessível a todos os cidadãos.

Na verdade, o conceito de coletivo antecede o conceito de público ou mesmo


privado, entretanto, é coerente pensar que o público seja originário do coletivo. No
instante em que se define o privado, busca-se dar ao que era coletivo uma
nomeação distintiva, de algo pessoal, mas também garantir que seu uso não é livre.
Diante disso, o que não é privado é propriedade do Estado. O crescimento dos
conceitos de público e privado obscureceu a noção de coletivo num movimento em
que as partes se tornaram maiores que o todo.

Do ponto de vista jurídico e institucional, é possível, sim, determinar a


natureza do espaço. Porém, nas práticas dos especialistas, como nas dos
25
indivíduos, já se consolida uma confusa discussão quanto a essas noções, quanto
ao que possa ser público ou privado. É preciso perceber as características que lhes
garantem a condição estatutária, mediante a qual, são reconhecidos, assim se pode
evitar um possível equívoco, dada a forma como ambos se tornaram
complementares, mesmo considerando seu processo dialético.

É a razão pela qual, ao falar desses dois domínios, é necessário pensá-los


como uma molécula: são modos de expressão humana concorrentes,
localizados em diferentes situações sociais, e que são corretivos um do
outro11.

Encontramo-nos hoje diante de uma reconfiguração dos sentidos clássicos


de público e privado, sobretudo se considerarmos os países ocidentais, e,
talvez estas denominações históricas não consigam abarcar as diversas
práticas urbanas contemporâneas. Mesmo nomeado como público, muitas
vezes um espaço é usado ou incorporado por alguns de forma privada 12.

Hoje, a convivência urbana nos traz pequenos dilemas diários que estão
marcados nos conflitos entre nossos espaços privados e os espaços públicos, cada
vez mais intensos e variados em seus usos. Há uma disputa crescente pelo espaço
externo aos nossos espaços privados, evidente na quebra do silêncio, nos usos
comerciais em áreas residenciais, na invasão de calçadas e ruas, que também se
estabelece na privatização de espaços públicos por condomínios e residências.

Richard Sennett nos apresenta uma visão sobre os estatutos do público e do


privado a partir da consolidação da burguesia na Europa e da determinação de uma
diversidade no âmbito do que seria público. As cidades se tornam o espaço de um
indivíduo cosmopolita aquele que absorve as diversas realidades que lhe são
apresentadas e que, mais recentemente, tem que unir culturas diversas, consumindo
uma produção mercadológica, não só de novos produtos, mas de possibilidade de
novos usos e inserções, nos mais variados mercados, pelas vias da globalização.
Os espaços públicos se caracterizaram, naturalmente, como aptos a servir de reduto
e principalmente de vitrine dos novos comportamentos, antes restritos aos salões e
seus saraus.

Arendt (2007) estabelece dois sentidos para público, o que se relaciona com
este texto é aquele em que,

11
Sennett, Richard, 1998, p. 120.
12
Silva, Breno e Ganz, Louise, 2009, p.10
26
o termo <<público>> significa o próprio mundo, na medida em que é comum
a todos nós e diferente do lugar que nos cabe dentro dele. Este mundo,
contudo, não é idêntico à terra ou à natureza como espaço limitado para o
movimento dos homens e condição geral da vida orgânica. Antes, tem a ver
com o artefato humano, com o produto de mãos humanas, com os negócios
realizados entre os que, juntos, habitam o mundo feito pelo homem. [...] A
esfera pública, enquanto mundo comum, reúne-nos na companhia uns dos
outros e contudo evita que colidamos uns com os outros, por assim dizer13.

Para Arendt, a natureza das relações público e privado ecoa desde os gregos,
até nossos dias, reverberando conceitos, podendo ser percebida como definitiva
para as estruturas espaciais das relações humanas. O homem necessita definir seus
espaços, pois essa compartimentalização faz parte de sua concepção de mundo e
da realidade contida nele. “Todas as atividades humanas são condicionadas pelo
fato que os homens vivem juntos; mas a ação é a única que não pode sequer ser
imaginada fora da sociedade dos homens.”14. Essas ações passam a ser
dinamizadas e condicionadas pela construção de uma estrutura de informação que
permite definir, para a maioria, o modo e a forma de viver, com a globalização
tornando esses processos um verdadeiro fetiche global.

Podemos inferir que essa ação, que decorre da sociedade dos homens, tem
um domínio espacial que deve ser definido, ou como no caso dos estados de
exceção, rechaçado. Além disso, percebemos que na construção do espaço urbano
se faz necessária a existência de um domínio em que o político se encontre com o
coletivo, e esse se torne político, estabelecendo as bases para a ação, que de outro
modo irá se constituir clandestina, pois é inerente ao ser humano e aos processos
sociais.

Nos dicionários da língua francesa compostos no século XIX, ou seja, no


momento em que a noção de vida privada adquiria seu pleno vigor,
descubro de início um verbo, o verbo privari, significando domar, domesticar
e o exemplo dado por Littré, “um pássaro privado”, revela o sentido; extrair
do domínio selvagem e transpor para o espaço familiar da casa. Descubro
em seguida que o adjetivo privado, considerado de maneira mais geral,
também conduz á ideia de familiaridade, agrega-se a um conjunto
constituído em torno da ideia de família, de casa, de interior. entre os
exemplos que escolheu, Littré cita a expressão que se impunha em seu
tempo; "A vida privada deve ser murada” e por esta glosa, em minha opinião

13
Arendt, Hannah, 2007, p.62
14
Ibidem, p.31
27
bastante expressiva: “Não é permitido procurar e dar a conhecer o que se
passa na casa de um particular”. Todavia, e é isso que marca bem o termo
particular, em seu sentido primeiro, mais direto, mais comum, o privado se
opõe ao público. Assim, no Littré, estas duas citações, uma Vauvenargues:
“Aqueles que governam cometem mais faltas que os homens privados”; e
outra de Massillon: “Nada é privado na vida dos grandes, tudo pertence ao
público”.
Eis-me então remetido à palavra público. Definição de Littré: “o que
pertence a todo um povo, o que concerne a todo um povo, o que emana do
povo”. Portanto, a autoridade e as instituições que sustentam essa
autoridade, o estado. Esse primeiro sentido evolui para uma significação
paralela: diz-se público o que é comum, para uso de todos, o que não
constituindo objeto de apropriação particular, está aberto, distribuído,
resultando a derivação no substantivo o público, que designa o conjunto
daqueles que se beneficiam dessa abertura e dessa distribuição. Muito
naturalmente, o deslocamento do sentido prossegue: é dito público o
ostensivo, o manifesto. Assim, o termo vem opor-se, de um lado, a próprio
(o que pertence a tal ou qual), do outro, a oculto, secreto, reservado (o que
é subtraído).15

Nos espaços públicos se desenrolaria a odisseia das razões humanas, pois a


razão só é dada em público, ao privado, resta conspirar contra a variedade dos
discursos que profana, na distância da conveniência, na distância do que está
confinado, sob o manto obscuro do determinismo.

Na visão de Habermas, “a decomposição da esfera pública, que é


demonstrada na alteração de suas funções políticas, está fundada na mudança
estrutural das relações entre esfera pública e setor privado”16. Essas transformações
devem interferir na comunicação, entre os estatutos de público e privado e
conformar uma conjunção em que o posterior realinhamento desses estatutos trará
uma racionalização ao cotidiano social. Dessa forma, “a partir do momento em que
as leis do mercado, dominam a esfera dos negócios e do trabalho, penetram
também na vida privada dos indivíduos, “reunidos” artificialmente em um “espaço
público””17, com a degeneração da ação em consumo. A desqualificação e
artificialização de praças e ruas, agora dotados de facilidades e serviços facultados
pela publicização dos espaços privados em substituição das formas convencionais
do urbano é o fenômeno que melhor traduz os espaços de uma nova vida pública.
Que se forma em meio

15
Duby, Georges, 2009, p. 18-19.
16
Habermas, Jürgen, 2003, p. 170-171.
17
Serpa, Angelo, 2007, p.17.
28
[...] a um ‘intercâmbio de gostos e preferências’ e são determinadas
grupalmente. Em geral a família, o grupo das pessoas com a mesma idade,
os conhecidos no local de trabalho e na vizinhança – com as suas
estruturas específicas de orientação da opinião e de prestigio da opinião,
assegurando a natureza coercitiva das opiniões grupais – são o focus para
essa camada de opiniões movidas de fora18.

A análise comportamental e adequação dos citadinos a esses novos espaços,


demonstra que os hábitos são alterados, em relação aos espaços públicos ou
privados para favorecer o consumo. Passamos a consumir espaços seguros,
organizados e que possuem opções de consumo, numa metalinguagem do
consumo. O consumo do espaço privado de uso coletivo é a forma e o conteúdo do
consumo. Ele nos expõe a um consumo característico de espaços, serviços e
produtos que implica na escassez do espaço, em sua pulverização entre muitos e
diversos usos, e em sua capacidade de atrair com esses usos o cotidiano das
pessoas. Nesse sentido, Santos (1993) nos afirma que:

No mundo de hoje, cada vez mais as pessoas se reúnem em áreas mais


reduzidas, como se o habitat humano minguasse. Isso permite
experimentar, através do espaço, o fato da escassez. A capacidade de
utilizar o território não apenas divide como separa os homens, ainda que
eles apareçam como se estivessem juntos19 .

Isso ocorre à medida que o território20, a partir de determinados usos,


segrega-se, definindo limites ou apresentando estigmas, em que um muro, ou um
simples comportamento, separa grupos e coletividades que dividem um mesmo
espaço, enquanto, simbolicamente, outros são apartados pelo discurso dominante
ou mesmo a ação política. A proximidade não confere às coletividades, por vezes
direcionadas por forças sociais e econômicas diversas, as mesmas condições de
acesso e uso do espaço urbano.

Segundo Debord, “o esforço de todos os poderes estabelecidos, após a


experiência da Revolução Francesa, para manter a ordem nas ruas culminou

18
Habermas, Jürgen, 2003, p. 285.
19
Santos, Milton, 1993, p.59.
20
(...) a territorialidade é definida por Sack como “a tentativa, por um indivíduo ou grupo, de atingir/afetar,
influenciar ou controlar pessoas, fenômenos e relacionamentos pela delimitação e afirmação do controle sobre
uma área geográfica. Esta área será chamada território” (1986:6). Enquanto isso Raffestin, numa visão bem mais
ampla, considera territorialidade “o conjunto de relações estabelecidas pelo homem enquanto pertencente a uma
sociedade, com a exterioridade e a alteridade através do auxílio de mediadores ou instrumentos” (1988:265)
(Haesbaert, Rodrigo, 2011, p. 86 e 87).
29
finalmente na supressão da rua”21. Essa supressão não tem sentido num contexto
urbano capitalista contemporâneo, pois nele ocorre definição de ruas para certos
grupos, espaços mediados por um valor de troca e não de uso, em que o consumo
multiplica a produção de novos usos, que multiplicam o consumo.

Desse modo, a praça pública – como lugar de reunião e encontro da cultura


– simplesmente desapareceu e todas as atividades que nela se
congregavam (um espaço aberto onde as pessoas se comunicavam e
compartilhavam suas experiências) foram substituídas por uma nova
arquitetura, a do centro comercial, inscrita no mundo do consumo. Uma
nova maneira de se relacionar vital e espacialmente esta se impondo22.

O desaparecimento desses espaços abertos, lócus das reuniões, lazer e


trocas paulatinamente substituídos por mercados cobertos, a exemplo dos
shoppings centers, trazem a disfunção dos espaços públicos, que não podem
proporcionar tais estruturas de consumo, nem mantê-las seguras. Na opinião de
Kostof apud Silva Pinto, “a depender do uso previsto para a praça, é necessário um
programa de revitalização”23, o que muitas vezes não passa de uma simples
atualização dos materiais utilizados ou da reconstrução da praça, o que não
consegue torná-la um equipamento diferenciado com a condição adequada “de
incentivo para que a população sinta-se atraída pelo local, fato ocorrido pela
disseminação dos shoppings centers, com seus inúmeros atrativos”24. É como se os
espaços privados, ao proporcionar a fruição, objetivada ao consumo, simulassem o
espaço ideal para a vida pública e, com isso, um espaço de vivências, uma
experiência das ruas de forma simultânea.

Ali, a família pode se dedicar a inúmeras situações de modo individual ou


coletivo, além disso, os eventos têm o suporte das formas variadas de remuneração
dos serviços e a variedade de produtos e facilidades adquiridas produzem uma
crença na sua eficácia pela constante adesão de novos itens e pela evolução de
suas estruturas, produtos diferenciados, inovação e tecnologia. Essa sedução faz
parte de uma cultura do valor agregado, na qual estamos inseridos e pela qual, em
muitos casos, o importante é a quantidade e não a qualidade do que possamos
vivenciar nesses espaços.

21
Córtes, José Miguel G., 2008, p.86.
22
Córtes, José Miguel G., 2008, p.86 e 87.
23
Silva Pinto, Renata. 2011, p. 244.
24
Silva Pinto, Renata. 2011, p. 244.
30
1.2. Níveis e dimensões

O uso do espaço urbano demanda estratégias e táticas que, por um lado,


envolvam a consolidação de estruturas e a hegemonia de grupos dominantes que
vão estabelecer sua permanência através das práticas que programam o uso do
espaço, ou, por outro lado, representam a capacidade do indivíduo de opor-se em
suas práticas e fazê-lo, na inserção ou na dispersão do corpo aos processos
hegemônicos em que vive, por ocasião de um ordenamento espacial e ou temporal.
Assim, “uma reapropriação do corpo ligada à reapropriação do espaço faz parte
integrante de todo projeto atual, utópico ou realista, se ele evita a mediocridade pura
e simples”25. Entretanto, há situações nas quais há uma apropriação pela inserção,
de modo que os indivíduos habilitem comportamentos que os auxiliem a conviver em
estruturas hegemônicas.

Os vínculos nas estruturas urbanas estão para os corpos de tal forma que
qualquer intervenção que os desloca da realidade cotidiana, já predeterminada e
aliada ao desejo de vencer a todo custo os obstáculos e de cumprir nossas rotinas,
os faz cair num espiral, num fluxo descendente condicionado à invisibilidade, em que
qualquer interação é rarefeita. Assim ocorreria naqueles espaços esquecidos do
comportamento individualizado e disperso dos projetos hegemônicos de controle e
padronização. Se por um lado podem existir esses comportamentos individuais de
dispersão, por outro existem estruturas e estratégias de formação e consolidação de
uma prisão dos corpos.

A sociedade urbana se articula dentro de um espaço urbano em que os níveis


podem ser distintos, conforme Lefebvre, seriam três esses níveis: o global que
decorre da vontade e da representação; o misto relacionado ao edificado ou não; o
privado que indica o habitar e o habitat. E mais as dimensões: (1) da projeção das
relações sociais no solo; (2) do confronto entre estratégias; (3) das práticas urbanas,
além de dimensões simbólicas, paradigmáticas e sintagmáticas, passíveis aos
processos do espaço urbano, o que resume um arsenal de práticas e processos,
individuais e coletivos, que vão desde caminhar na calçada ou fora dela, num

25
Lefebvre, Henri, (Tradução de Doralice Barros e Sergio Martins do original: La production de l’espace, 4 ed.
Paris Editions Anthropos, 2001, primeira versão início – fev.2006)
31
deliberado ato de indisciplina, até as ações institucionais que definem o direito dos
cidadãos em certos locais da cidade.

No nível global, Lefebvre traduz a presença de uma estratégia e de uma


ideologia na ação dos que detêm esse poder, sendo que a ideologia pode ser a de
um grupo ou de um indivíduo. Os acordos entre grupos políticos e empresariais,
segundo ações neoliberais ou neodirigistas, de ocupação da cidade pertencem, para
ele, às formas principais de estratégia nos países capitalistas, em que “se exerce o
poder, o Estado, como vontade e representação”26.

As relações da apropriação e do uso devem ser consideradas, segundo as


maquinações do Estado, entre as necessidades do cidadão, e, como tudo pode ser
manipulado, em situações distintas, com parcelas crescentes e decrescentes de
participação de ambos os lados (capital e estado), considerando-se o Estado e o
cidadão como agentes que se estranham, no decorrer do processo. O Estado como
figura de força ideológica e hegemônica que dispõe do espaço urbano, interpõe
estratégias e instrumentos para seu disciplinamento conforme lhe seja conveniente.
O cidadão pode ser pensado enquanto um possível agente contra hegemônico aos
usos determinados, utilizando suas táticas de ação e reação, para viabilizar o uso
segundo critérios pessoais e criativos, inclusive para sua sobrevivência.

[...] a tática é movimento “dentro do campo de visão do inimigo”, como dizia


von Bullow, e no espaço por ele controlado. Ela não tem portanto a
possibilidade de dar a si mesma um projeto global nem de totalizar o
adversário num espaço distinto, visível e objetivável. Ela opera golpe por
golpe, lance por lance. Aproveita as “ocasiões” e delas depende, sem base
para estocar benefícios, aumentar a propriedade e prever saídas27.

Taticamente, portanto, age-se para conquistar um espaço de uso na cidade,


compondo artesanalmente sua ocupação espacial. E nesse processo de construção,
manifesta-se uma cultura, ideologia ou socialização própria aos indivíduos ou grupos
de resistência ou ainda, a dispersão do corpo aos estratagemas do Estado.

Desse modo, dentro dessa estrutura maior resultante da ação do Estado,


poderíamos perceber não só as construções que ocorrem por força dessa ação, mas
também aquelas que surgem de processos isolados e, no caso do próprio cotidiano,

26
Lefebvre, Henri, (Tradução de Doralice Barros e Sérgio Martins do original: La production de l’espace, 4 ed.
Paris Editions Anthropos, 2001, primeira versão início – fev.2006)
27
Certeau, Michel de, 1998, p. 100.
32
das ações momentâneas e fugazes daqueles que não podem materializar de forma
definitiva novos processos ou sustentá-los, diante das limitações ao uso ou à
permanência em espaços públicos ou coletivos - o que seria possível de analisar a
partir da confrontação entre o edificado e o não edificado do nível misto.

No nível misto, entre espaços edificados e não edificados, tem-se a


necessidade de ocupar a cidade, dentre esses os espaços públicos. Espaços que,
em graus diferenciados, encontram-se fragilizados a uma ocupação por diversos
usuários, como também, no âmbito das transformações do espaço urbano, para
proporcionar serviços e viabilizar a logística da cidade em processos que acumulam
importância cotidiana, determinando os caminhos para a apreensão do urbano, e
analisados esses aspectos e construídas as discussões da materialidade, que para
Lefebvre,

[...] persiste sob olhar da reflexão conserva uma forma relacionada com o
sítio (o meio imediato) e com a situação (o meio distante, condições globais)
Esse conjunto especificamente urbano apresenta a unidade característica
do “real” social, o agrupamento: formas-funções-estruturas28.

A acomodação entre esses fatores passa a produzir uma realidade


determinada e limitada, que é reproduzida pelos diversos agentes em escalas
compatíveis com sua realidade econômica e social. Cada vez mais, as pessoas
ajustam sua realidade pessoal e cotidiana ao que assimilam de uma realidade que
lhe é atribuída ou até mesmo imposta. Em toda sua construção material, a tradução
do discurso abstrato sobre o espaço gera uma entropia no espaço real. Todos
querem uma porção da realidade abstrata do discurso urbano, mas, para isso, é
necessária uma parcela material desse espaço, que se traduz para muitos na
desigualdade de acesso e na falta de oportunidade de ocupar.

Considerando o proposto por Lefebvre, a apropriação do espaço natural, se


materializa na figura das ocupações, invasões, em muitos casos numa
(re)apropriação que se multiplica por lotes industriais, terras devolutas, e no entorno
de loteamentos e condomínios. Nesses locais, firma-se uma tática de ocupação e
uso, que marcou profundamente a estrutura urbana de Salvador. Espaços sem
infraestrutura de lazer e serviços públicos, onde espaços coletivos, quando ocorrem,

28
Lefebvre, Henri, 1999, p. 80.
33
não participam de programas ou projetos do Estado, resultando da iniciativa das
comunidades, lideranças e particulares.

O nível privado é o mais determinante de uma ocupação relativa ou efetiva,


considerando que pode ser resultado de uma sequência variável de fatos, que se
distribuem por uma rede de ações e projetos e que por conter o nível global e misto,
suas manifestações traduzem ações em ambos. Lefebvre discute essa
complexidade no habitar, só que no sentido do necessário recolhimento em face de
uma privacidade para a alma, entretanto, afirma sua importância ao destacar que:
“Antes do habitat, o habitar era uma prática milenar, mal expressa, insuficientemente
elevada à linguagem e ao conceito, mais ou menos viva ou degradada, mas que
permanecia concreta”29.

Para o cidadão, o urbano se torna aquilo que é apropriado de forma concreta


e definitiva. “O ser humano não pode deixar de edificar e morar, ou seja, ter uma
morada onde vive sem algo a mais (ou a menos) que ele próprio: sua relação com o
possível como com o imaginário.”30 Assim, ele precisa apropriar o espaço da cidade,
por mais precária que seja a forma. Contudo, essa relação, na massa dos
indivíduos, determina as inferências da construção do “real”, conformando também o
externo, o não edificado, pois esse faz parte do imaginário e daquilo que o possível
nos coloca como alternativa a cada ponto do tempo, em cada parte do espaço.

A praça é um local de simbolismos, de conquistas antigas e novas, marcos,


símbolos cívicos. A praça representa, em nossa cultura ocidental, a materialização
dos conflitos no espaço da cidade. É a partir da praça, que se formam movimentos
urbanos, nela eles se concentram. Ela se faz presente quase que indistintamente,
como um importante espaço público, nas estruturas urbanas atuais, seja de
pequenas cidades ou grandes metrópoles.

Gomes ressalta que uma concepção do espaço público que, além da ideia
de liberdade e igualdade, tenha como base a separação do privado ou a
delimitação jurídica, ou mesmo a garantia do acesso livre, é insuficiente
para definir o caráter fundamentalmente político de seu significado. Para
Gomes, “os atributos de um espaço público são aqueles que têm relação
com a vida pública [...] E, para que esse lugar opere uma atividade pública,

29
Lefebvre, Henri, 1999, p. 80.
30
Ibidem.
34
é necessário que se estabeleça, em primeiro lugar, uma copresença de
indivíduos”31.

Sem garantir o acesso, se entende não haver a interação entre os indivíduos,


necessária, para efeito de estabelecer o estatuto público do espaço urbano. Alex
(2011) cita três tipos de acesso, para poder apropriar e usar um espaço: o físico, o
visual e o simbólico ou social.

“Acesso físico refere-se à ausência de barreiras espaciais ou arquitetônicas


(construções, plantas, água, etc.) para entrar e sair de um lugar. No caso do
espaço público, devem-se considerar também a localização das aberturas,
as condições de travessia das ruas e a qualidade ambiental dos trajetos.
Acesso visual, ou visibilidade, define a qualidade do primeiro contato,
mesmo a distância, do usuário com o lugar. Perceber e identificar ameaças
potenciais é um procedimento instintivo antes de alguém adentrar qualquer
espaço. Uma praça no nível da rua, visível de todas as calçadas, informa
aos usuários sobre o local e, portanto, é mais propicia ao uso.
Acesso simbólico ou social refere-se à presença de sinais, sutis ou
ostensivos, que sugerem quem é e quem não é bem-vindo ao lugar.
Porteiros, guardas na entrada podem representar ordem e segurança para
muitos e intimidação e impedimento para outros. Construções e atividades
também exercem o controle social de acesso, principalmente aos espaços
fechados, em que decoração, tipos de comércio e política de preços são
frequentemente conjugados para atrair ou inibir determinados públicos”32.

A despeito de se pensar, conforme Gomes e Sun, o acesso, deve-se pensar


de igual forma que as estruturas a se acessar tenham a capacidade de produzir uma
continuidade cultural e social indistinta, que possibilite a ligação do ambiente
edificado com a realidade natural ou artificial que o cerca e, de modo definitivo, que
todo esse processo traduza as necessidades e produza efeitos sobre as
possibilidades dos diversos grupos em interação naquele espaço.

Poderíamos pensar nesse conjunto de características como aquelas que se


devem ou se possam esperar de um espaço público, capazes de atender às
demandas que se apresentam para as cidades e o variado perfil das populações
urbanas brasileiras, principalmente, em relação ao contexto de desigualdade e
segregação que vivem hoje.

Pensando dessa forma, poder-se-ia concluir que teríamos de ter espaços tão
variados quanto os diversos grupos que povoam nossas cidades e que esses
espaços exigiriam uma proximidade aos diversos grupos que não só seria afetada

31
Alex, Sun, 2011, p. 19.
32
Ibidem, p. 25
35
pelas diferenças sociais, mas, contudo pela dimensão que alcançaram as cidades,
sendo necessários espaços diferenciados para comunidades diferentes.

Como pensar os espaços públicos? Como pensar a copresença no espaço


público? Certamente, pensando-os como espaços coletivos, tendo a coletividade
como alvo, entendendo coletividade como algo que se aproxima mais da ideia de
cidadão e cidadania e menos da ideia de uma indeterminação que ameaça ou
amplia direitos, entendo que, mesmo quando ligado de alguma forma a algum
elemento ou ação privada, deva manter sua essência de público. Devemos
considerar que a presença do privado possa ser limitada a ações que tenham por
objetivo a retribuição ao coletivo e não a sua segmentação em coletivos –
denominando grupos ou parcelas da sociedade – destacando-os dos demais.

36
2. As ocupações em Ondina: Praça Luiz Sande da lona ao camarote

Em sua cronologia, o sítio da Praça Luiz Sande conta com um histórico de


usos diferenciados e até peculiares. Originalmente, foi uma ocupação popular,
caracterizada como uma invasão pelo poder municipal e transferida para uma área
menos valorizada (Boca do Rio), no final da década de 1960. As intervenções
posteriores, ao longo do tempo, conformaram suas atuais características, após a
urbanização com a instalação de equipamentos esportivos, quiosques e outros
aparelhos (banheiros, rampas, bancos).

Contígua à praia, na Av. Oceânica33, num bairro de contrastes, onde


empreendimentos de luxo convivem com comunidades de baixa renda, constituindo
verdadeiros enclaves urbanos a exemplo do Calabar e do Alto de Ondina, ambas
classificadas como ZEIS – Zonas Especiais de Interesse Social - pelo Plano Diretor
de Desenvolvimento Urbano (PDDU), a praça serve como exemplo, no contexto
contemporâneo, da fragmentação que ocorre na cidade, segregada, gradativamente
esvaziada da vida pública. A estrutura de comércio e serviços, e o acesso aos
mesmos, inclusive por moradores de outros bairros, promovem intensa circulação de
pessoas nos espaços públicos nesse bairro, com um crescimento relativo da
violência urbana.

Nesse e em outros pontos próximos, na orla urbana, a agorafobia decorrente


do sentimento de insegurança provém do medo midiatizado que causa a constante
impressão de perigo, precarizando, consequentemente, a utilização do espaço
público, não mais entendido enquanto local de pertença. Souza (2008), já em sua
introdução, diz que o que predomina e prevalece é o “medo – sempre um inimigo da
liberdade. Em que vão se transformando tantas e tantas grandes cidades de hoje,
convertidas em verdadeiras “fobópolis” (gr. phóbos = medo), em cidades do medo”.
Nesse sentido, cresce a demanda por espaços privados, onde as pessoas podem se
reunir coletivamente sem temor dessa violência e suas consequências.

Nos shoppings, os cidadãos, convertidos em consumidores, passam a


construir relações associadas ao consumo, principalmente de serviços. Graça
enfatiza que os centros comerciais representam hoje “um papel central no cotidiano

33
Antes Avenida Presidente Vargas, aberta ainda no período de J.J. Seabra.
37
urbano do cidadão europeu, que em média visita um centro comercial [shopping] 17
vezes por ano, ou seja, aproximadamente de 3 em 3 semanas [...] sendo visível o
peso destes espaços enquanto estrutura de divertimento e lazer”. A nossa realidade
não deixa de se assemelhar e, desde meados da década de 1970, os shoppings
centers fazem parte do imaginário baiano, com o emblemático empreendimento do
Shopping Center Iguatemi - até a atualidade, um dos maiores da cidade e também
dos mais representativos do país, com médias de mais de 130 mil visitantes diários.

Transparece, nessas observações, que há condições locais e globais que


influenciam e sedimentam os comportamentos dos usuários do espaço urbano, de
forma inversamente proporcional do espaço público para o privado.

Tabela 1 - Evolução da ABL (milhões de m2)

SHOPPING CENTERS NO BRASIL 2013

FATURAMENTO TRÁFEGO DE PESSOAS


Nº DE ABL (MILHÕES DE
ANO LOJAS (EM BILHÕES DE EMPREGOS (MILHÕES VISITAS /
SHOPPINGS M2)
REAIS/ANO) MÊS)
2006 351 7,492 56.487 50 524.090 203
2007 363 8,253 62.086 58 629.700 305
2008 376 8,645 65.500 64,6 700.650 325
2009 392 9,081 70.500 74 707.166 328
2010 408 9,512 73.775 91 720.641 329
2011 430 10,344 80.192 108 775.383 376
2012 457 11,403 83.631 119 877.000 398
2013 495 12,94 86.271 129 843.254 415

(1) Novo critério: A série inclui apenas shoppings já inaugurados;

(2) Os dados referentes a Número de Lojas, Salas de Cinema e Empregos foram calculados com base em uma
amostra de shoppings e não terão atualização mensal;

(3) Alguns dados referentes a 2009 foram revistos com base nos resultados do Censo do Setor, da Price
Waterhouse Coopers;
Fonte: ABRASCE - As s oci a çã o Bra s i l ei ra de Shoppi ng Centers

Dados da Associação Brasileira de Shoppings Centers (ABRASCE)


demonstraram um incremento, entre 2006 e 2013, da ordem de 70% nas unidades
construídas o que demandou 60% de aumento da Área Bruta Locável (ABL), em

38
metros quadrados. Nesse mesmo período, o tráfego de pessoas nessas unidades
teve um crescimento superior a 100%, passando de 203 para 415 milhões mensais.

O crescimento desses empreendimentos trouxe, a reboque, uma evolução na


estrutura implantada nos espaços públicos que passam a ter maior valorização,
conforme os equipamentos ali instalados, não só as qualidades estéticas, mas
também as infraestruturas de serviços passam a compor as características que
esses espaços devem proporcionar aos seus usuários, o que significou, a partir de
1980, também um processo de valorização dos espaços públicos, dos bairros da
Orla Atlântica.

2.1. O Bairro de Ondina

Figura 1 - Situação atual do Bairro de Ondina

39
Na urbanização de Ondina, é relevante o registro da implantação do
loteamento Cidade Balneária de Ondina34, que ocorre em 1932, realizado pela
construtora Magalhães e Cia, numa área de quase 190 mil metros quadrados, na
Avenida Adhemar de Barros, onde foram delimitados 156 lotes, com uma média de
600 m2. Para os lotes foi definida uma taxa de ocupação de 40%. O loteamento que
consta do Decreto 1029/52 da Prefeitura Municipal localiza-se numa área quase em
frente à Praça.

Figura 2 - Reprodução da planta do loteamento cidade balneária de Ondina – Fonte Plandurb

A conformação de um contexto de segregação, na ocupação do solo em


Salvador, representou uma realidade em que a população de baixa renda foi e ainda
vem sendo transferida de áreas, alcançadas pela valorização imobiliária, num ciclo
que, a partir dos anos 50,

viria a se intensificar até comprometer grande parcela do território municipal


com novos loteamentos, numa oferta de terrenos para edificação muito

34
PLANDURB, Inventário de Loteamentos, 1976, p. 35.
40
superior à demanda efetiva de espaço para moradia e outros usos, mesmo
considerando o significativo contingente de excluídos desse mercado
imobiliário em função das limitações de renda da maioria da população
local.35

Os conflitos entre o poder municipal e os habitantes de lotes não


regularizados, como a ocupação de Ondina, onde hoje se localiza a Praça Luiz
Sande, ocorreu ao ser definida como área de interesse público; deu-se através da
Lei 2181/68 e do processo de alienação de terras públicas para ocupação do
município em função da Reforma Urbana, regulamentada pelo Decreto 3.684/69,
conduzindo a uma sistemática erradicação do que, na época, era descrito como
ocupações irregulares, o que ocasionou uma lei específica. Assim, a “lei 2.222/69,
também viria tratar [...] da erradicação de favelas localizadas em áreas valorizadas e
de interesse turístico”36, tornando-se um instrumento para a desocupação e
transferência das famílias para o bairro da Boca do Rio.

A Reforma Urbana objetivava abolir práticas fundiárias, herdadas do período


pré-republicano, abrindo espaço às novas estruturas e conformações jurídicas e
cartorárias, de forma a recompor as relações de ordem e poder sobre o território,
permitindo a implantação e desenvolvimento de atividades ligadas ao projeto da
nova cidade, além da preocupação com espaços urbanos valorizados, ainda
ocupados e sem perspectiva de apropriação pelo capital imobiliário. Apesar dos
parâmetros de organização legal e de planejamento do uso e ocupação do solo,
nem sempre se adotou o zoneamento sugerido por tais planos.

A reurbanização da margem contígua à praia, na Av. Oceânica, e a instalação


de empreendimentos institucionais e de serviços como o Centro Espanhol, Prefeitura
da Aeronáutica e empreendimentos hoteleiros (Salvador Praia Hotel, Othon, Ondina
Apart Hotel), ocorreu após remoção das habitações ali existentes. Segundo
Vasconcelos (2002, p.360), em conformidade com Scheinowitz, a localização e
vocação turística do lugar, a partir do programa de remanejamento da orla marítima,
especializou o bairro no seguimento da hotelaria.

35
SEDHAM, 2009, p.45
36
SEDHAM, 2009, p.47 e 48
41
Foto 1 - Loteamento cidade Balneária de Ondina - 1972 - Fonte Fundação Gregório de Matos

A desocupação da Invasão37 de Ondina, conforme adotemos a visão do


sociólogo francês Henri Lefebvre que afirma que para apropriar é necessário ter
“modificado para servir as necessidades e possibilidades de um grupo”38, um espaço
natural, foi o ponto inicial para uma transformação dos critérios de utilização da orla
em Ondina.

As fotos 2 e 3, a seguir, mostram respectivamente o local onde foi instalada a


Praça Luís Sande. Através delas, é possível perceber a qualidade construtiva das
habitações demolidas e a demolir, denotando, consequentemente, a existência de
um núcleo urbano consolidado nessa área até 1969. Dos idos de 1969 a 1972, e
assim sucessivamente, a expansão do sistema viário que possibilitasse tanto a
consolidação quanto a necessária mobilidade, especialmente por veículos

37
Apesar de não considerar a ocupação popular em Ondina, uma invasão, para efeitos de referencia aos fatos da
época, seguiremos utilizando esse termo.
38
Lefebvre, Henri, (Tradução de Doralice Barros e Sérgio Martins do original: La production de l’espace, 4 ed.
Paris Editions Anthropos, 2001, primeira versão início – fev.2006)
42
automotores, tornou-se objetivo principal dos planos urbanísticos para dotar a cidade
de uma rede de circulação que desafogasse o centro antigo e o ligasse a partir das
avenidas de vale, como o Vale do Canela, Av. Garibaldi, Mario Leal Ferreira, dentre
outras, a outros pontos da urbe.

Foto 2 - Ocupação popular em Ondina - retirada em 1969 – Fonte Fundação Gregório de Mattos

Atente-se, a título de referência, que o número de veículos, segundo


Scheinowitz, aumentou exponencialmente. Seus estudos sobre o
macroplanejamento da cidade do Salvador demonstram que “Em 1967, vendem-se
60 carros por semana; em 1968, o numero é de 120 e, em 1969, ultrapassa 200. Em
1970, chega-se a 320 veículos semanalmente. Este incremento tem se mantido,
sendo que nesta cidade, o número de automóveis passou de 375.911, em 2002,
para 785.527, em 2013”39. Razão de se pressupor que o amplo estacionamento,
planejado, lindeiro à avenida, tem, dentre suas funções, atender ao mercado
automobilístico, à liberdade de ir e vir, função do transporte individual e mesmo aos
interesses mercadológicos à época (expansão imobiliária com valorização dos

39
http://www.denatran.gov.br/
43
espaços abertos). Veja-se que um posto de abastecimento de gasolina já se
encontrava instalado no local, favorecendo tal interpretação.

Foto 3 - Visão geral da orla de Ondina – 1972 – Fonte Fundação Gregório de Mattos

Nesse caminho, também, a construção civil acompanha pari passu o


movimento expansionista em que novas ruas emergem em vazios urbanos, locais
até então pouco habitados ou em áreas de interesse da cidade, a exemplo da
Ondina, em que sua frente marítima é descortinada numa compreensão de
visibilidade da paisagem natural e de valorização da terra. Assim, vias de acesso à
orla foram implantadas a partir de 1949, em conformidade com o Decreto-Lei nº 701,
de 1948, ocasionando forte transformação da cidade, tendo em vista a busca por
interligação entre os bairros existentes e novos, como também, pela abertura de
espaço às residências e serviços em suas extensões.

Com a abertura da ligação Barra/Rio Vermelho (1912-1922) e a


Amaralina/Itapuã (1942-1949) a Orla Atlântica foi aberta para os
loteamentos residenciais. Entre 1932-1939 foram implantadas as Cidades
Balneárias de Ondina e de Amaralina, assim como o Loteamento Cidade da
Luz (Pituba)40.

40
Vasconcelos, Pedro, 2011, p. 358.
44
No que se refere à valorização e uso do solo a partir da facilidade de acesso e
localização, muito presente no planejamento urbano e na especulação imobiliária,
conforme uma releitura pormenorizada e guardada as devidas proporções e
períodos temporais, que distinguem políticas e ações urbanísticas de cada época,
concordamos com Scheinowitz ao afirmar que com a “densificação da malha urbana
e consequente valorização dos terrenos localizados perto das grandes
concentrações demográficas e de fácil acesso, houve uma transformação de uso do
solo que ainda está em curso”.

2.2. Programas de Remanejamento da Orla Marítima

Notadamente, o planejamento da orla já vinha sendo abordado e atenções


sendo direcionadas aos seus potenciais: econômico, social e ecológico. Postos em
prática, entretanto, esses potenciais, como hoje, eram disputados de maneira
incompatível e conforme interesses adversos que se sobrepunham aos da
coletividade. Para Scheinowitz, a fim de resolver as querelas urbanas, a sociedade
moderna estabeleceu uma série de leis no intuito de atenuar as divergências
territoriais. Foi a partir do planejamento urbano que países como Noruega, Grã-
Bretanha, França, dentre outros, buscaram soluções para a organização da orla.

Esse autor, na primeira abordagem verifica que,

A Bahia, por sua vez começa a refletir sobre o problema, em 1973, e


produz, em abril, um documento preliminar relativo ao “remanejamento da
Orla Marítima – Trecho compreendido entre a Barra e a foz do rio Pojuca”.
Nessa primeira abordagem consta-se que “A ocupação desordenada do
litoral de Salvador se dirige aceleradamente para o comprometimento
definitivo de uma larga faixa de vocação natural para ser equipada como
área de lazer da população da cidade, representando por outro lado, uma
ameaça, a curto prazo, à preservação do seu potencial turístico-
paisagístico.
Assim, a falta de um plano diretor para a área, o aparecimento caótico de
loteamentos, a poluição das praias, a devastação da fauna e flora
provocam, em consequência, o agravamento dos problemas de
desenvolvimento urbano e acarretam uma sobrecarga nas finanças do
poder público com obras corretivas ou restaurantes41.

41
Scheinowitz, A.S., 1998, p. 80.
45
No caso de Ondina, a requalificação da orla marítima, compreendendo o
trecho Barra/Pituba, já se encontrava bem servido de infraestruturas, estando a
circulação de veículos definida e interligada por avenidas de vale ao novo sistema
viário. Por outro lado, verificado o fortalecimento turístico da época, especialmente a
partir de 1990, observa-se, como afirmado por Silva (2004), que

“as cidades turísticas brasileiras encontram-se, nesse contexto,


pressionadas pela necessidade de manter a atratividade e de tentar
solucionar ou amenizar os conflitos urbanos comuns à realidade nacional,
que têm sua raiz em problemas estruturais históricos, sobretudo na má
distribuição de renda. Todos esses conflitos só poderão ser resolvidos por
meio de ações e politicas igualmente estruturais e que demanda longo
prazo. Na paisagem, porém, eles revelam de maneira evidente e imediata,
tornando necessária a busca de soluções contingenciais. De fato, em
muitas cidades turísticas as obras de melhoria urbanas têm um caráter
embelezador, que objetivam evidenciar aspectos visuais mais desejáveis e
atraentes da paisagem e do espaço urbano, condizentes com uma estética
do lazer. Os lugares explorados pelo turismo são, em grande parte,
vendidos como cenários produzidos sobre uma base paisagística
preexistente que, associada a aspectos culturais, históricos e geográficos,
constitui matéria-prima para o processo contínuo de produção e consumo
do espaço” 42.

Se verificada essa premissa, pode-se aventar que as ações públicas de


embelezamento da orla da cidade, como as que ocorreram e ainda ocorrem em
Salvador, buscavam, em sua maioria, atender aos anseios econômicos, vinculados
ao turismo, setor imobiliário e de serviços em que a comercialização e
mercantilização da faixa de terra lindeira à frente marítima representava, como ainda
representa, forte atrativo à expansão e valorização urbana.

No caso especifico do Bairro de Ondina, as ações públicas executadas pela


prefeitura em 1981 podem ser consideradas a primeira intervenção nessa área livre,
servindo como projeto piloto a praia de mesmo nome, dotando aquele espaço de
equipamentos de lazer, esporte, paisagismo e manutenção das áreas de
estacionamento já existentes. Fato registrado em matéria do Jornal Correio da Bahia
de 1981: “A quadra de patinação e hóquei possui dimensões oficiais, como as
outras, e é a primeira do gênero na Bahia construído em área publica”43. (grifo
nosso)

42
Silva, Maria da Gloria Lanci, 2004, p. 21.
43
CORREIO DA BAHIA, 19/03/1981.
46
Figura 3 - Limites do bairro de Ondina – Fonte Google Earth

Provavelmente, objetivando valorizar a praça com serviços, em 1983, a


Companhia de Renovação Urbana de Salvador – RENURB - disponibilizou, através
de licitação, uma cessão de uso devidamente legalizada com alvará de
funcionamento, para a instalação da infraestrutura necessária ao comércio de
alimentos e bebidas para os banhistas. Assim surge o Speed Lanches, numa
demonstração do interesse municipal em proporcionar maior conforto àquele local
de convivência. O interessante é que, em 1994, o concessionário recebeu proposta
para concessão de alvará definitivo, da prefeitura, através da aquisição do ponto
comercial e da posse do terreno na praça. O que causa estranheza e levanta a
questão da relação entre espaço público e atividade privada, nesses espaços.

47
Foto 4 - Lanchonete SPEED e Banca de Revistas que atendem na Praça 24 horas – Acervo Pessoal

É possível perceber, já naquele momento, a fragilidade das relações entre o


que era público e o que era privado quando o próprio município oferece parte de
uma área pública de forma definitiva ao possuidor de uma concessão pública.

No interesse de manter seu comércio e visando à manutenção dos seus


direitos futuros sobre a posse, de forma precavida, esse concessionário registrou-a
no Sistema de Cadastramento Imobiliário. Cabe salientar que, em função da
inscrição no referido cadastro e respectivo lançamento para recolhimento do IPTU, a
posse foi regularizada e tem facultado sua permanência ainda hoje no espaço
público da praça de Ondina. Em suas palavras:

- Depois de dez anos me obrigou a comprar (RENURB), se transformou em


aluguel, esse arrendamento, me obrigou a comprar o imóvel.
- Eu questionei a legalidade da venda, se eu compro o módulo o que me dá
garantia, (tenho tudo documentado), o que lhe garante permanecer no local
é o seu alvará, concedido pela SEFAZ, (nem tinha SUCOM).
- Meu alvará é definitivo44.

Conforme o cessionário, a legalização foi o que evitou sua retirada, pois, em


2010, quando da licença concedida para edificação do camarote, ele sequer foi
notificado, sendo surpreendido pela montagem do tapume que isolava tanto o
espaço da praça como seu estabelecimento comercial.

44
Falas do proprietário da lanchonete existente na praça desde 1983.
48
Foto 5 - Quiosques que comercializam coco e bebidas – Acervo Pessoal

No mesmo período em que ocorreu a disponibilização do módulo comercial,


1983, ergue-se uma lona, na área da arena e parte da praça torna-se picadeiro do
Gran Circo Troca de Segredos, resultado da iniciativa do grupo de teatro amador
Troca de Segredos em Geral e pelas mãos de Paulo Conde e da professora de
dança Maria Tereza. Também fizeram parte da construção desse espaço cultural:
Carlos Monteiro, Margareth Menezes, Chica Carelli, João Elias, Fernando Fulco e
Edmundo Viana. Nutridos pela oportunidade de compor um espaço artístico
alternativo, refletindo experiências como a do Circo Voador no Rio de Janeiro,
espetáculos de teatro, shows de grandes nomes da música popular local e nacional,
e presença marcante do meio musical amador baiano, tornaram-se uma constante.

Essa ocupação pode ser traduzida como mais um uso privado não
relacionado a usos tradicionais nas praias do litoral Atlântico de Salvador (barracas,
ambulantes, etc.). Posteriormente, o uso da arena da praça se transfere ao Circo
Picolino, uma escola de artes circenses que propõe disseminar a arte do picadeiro e
atender menores em situação de risco, até sua desocupação em 1988 quando “O
Circo Troca de Segredo foi ao chão. Junto com a lona, desabou também um dos
espaços culturais mais badalados da cidade e toda uma história de grandes ideias e
programação criativa.”45.

45
TRIBUNA DA BAHIA, 28/08/1988.
49
Figura 4 - Lona do Circo Troca de Segredos no Bairro de Ondina – Reprodução do Correio da Bahia

Se por um lado há uma efetiva trama econômica fundamentada no turismo e


na exploração da paisagem, parece-nos que essa visão encontra-se desvinculada
aos tipos de “olhar”, ressaltados por Urry. Seriam eles o conceito romântico e o
coletivo. No primeiro, é enfatizada a natureza em que o intocado é valorizado,
enquanto no segundo, nas grandes cidades são privilegiados os locais públicos,
aglomerações de pessoas. Trata-se da valorização a partir da frequência desses
lugares. É dessa forma que Silva (2004, p.36) expõe a produção e o consumo dos
espaços turísticos e que nessa cidade, também, apresenta-se consolidada.

Veja-se que o lugar (Ondina) teve suas funções e paisagem alteradas a partir
do planejamento urbano. Sua fruição foi gradativamente suplantada; público e
privado em conflito pelo espaço, na praça; o descortinamento da natureza e, ao
mesmo tempo, na edificação de hotéis, o encobrimento da paisagem, em parte
desse bairro, a partir de um dos segmentos que fomentou as condições de
desenvolvimento do turismo, da habitação de alto padrão - que no mercado, juntos,
favorecem novas maneiras de uso e vivencia na cidade e trazem o paradoxo da
atividade que destrói sua base de edificação.

Talvez seja possível inferir que, entre as transformações que sucederam a


ocupação de Ondina pelos moradores da Invasão de Ondina; a praça; a ocupação
privada para produção cultural; ocupações que não aconteceram somente a partir
dos moradores da comunidade, relocados para o bairro da Boca do Rio, estes sim,
transformadores do natural, conforme a definição de apropriação criada por
Lefebvre. Seria a ocupação pelo circo a que representa uma forma de
50
transformação, que busca adequar a praça para dela se servir em suas
necessidades e possibilidades, o que poderia ser uma forma de apropriação.

Considerando a ocupação inicial, quando ainda havia casarios e habitantes


na borda, é possível cogitar que, em função da proposta de atividades culturais e
econômicas ali exercidas, houve produção de um espaço diferencial. É nesse lugar
de criação e fantasia, na ocupação e construção de relações com a comunidade e
entorno a fim de interagir e de propagar a arte, que se encontra divisada a dialética
do publico e privado, em que,

O lugar é o quadro de uma referencia pragmática ao mundo, do qual lhe


vem solicitações e ordens precisas de ações condicionadas, mas é também
o teatro insubstituível das paixões humanas, responsáveis, através da ação
comunicativa, pelas mais diversas manifestações de espontaneidade e de
criatividade. 46

Milton Santos define o convívio, no urbanizado, a partir do que se condiciona


como nexo econômico e produtivo que deve nortear a vida urbana, mas também
como convulsão criativa das paixões humanas que, ao permitir uma espontânea
manifestação criativa, possibilita o imprevisível. Entretanto, ao mesmo tempo em que
encerra um aspecto de troca criativa, não apenas capitalista, de ocupação e uso dos
lugares, implícita a uma atividade que se constitui de sobrevivência, presume-se,
também, relações de troca entre os indivíduos e o espaço que os envolve - modo
pelo qual assume característica heterotópica47, de abrir um espaço dentro do
espaço, de tempo paralelo ao da ordem da cidade, numa conotação de espaço
paralelo, inusitada.

O circo implicou numa experiência de ocupação, privada, em que os fazeres


de um grupo conseguiu se estabelecer sob os estatutos da legalidade e
normatividade do espaço público operacionalizado pelo município. Entretanto, não
deixa de estar sob seus próprios estatutos uma liberdade de ocupar48, materializada

46
Santos, Milton, 1996, p. 258
47
Essas heterotopias não estão orientadas para o eterno; bem pelo contrário, são de uma absoluta cronicidade, são
temporais. É o que encontramos nas feiras e nos circos, sítios vazios colocados nos limites da cidade que duas
vezes por ano, pululam com barraquinhas, montras, objetos heteróclitos, lutadores, mulheres serpentes, pessoas
que leem o futuro nas mãos, entre muitos outros. De outros espaços – conferência proferida por Michel Foucault
no Cercie d’Études architecturales, 14 de março de 1967 (publicado igualmente em Architeture, Movement,
Continuité, 5, 1984)
48
Entenda-se que esta liberdade é característica do empreendimento circense, neste caso a atividade é fixa,
definitiva até a queda da lona, mas ele tem a qualidade itinerante, pois sua estrutura, provisória, pode ser
transferida a qualquer momento por não ser edificação fixa.
51
em sua característica mobilidade; porém sobrevive aos determinismos do capital,
amealhando a prata do povo, no espaço que privatizou. Naquele momento, uso e
consumo dividiram o mesmo suporte. Sob a lona e no picadeiro esses processos
foram instantâneos.

Dois espaços diversos e contíguos: o abstrato e o diferencial emergem na


praça. Segundo Lefebvre, “Tais espaços”, as Praças, dentre outros, “abundam, ainda
que não seja sempre fácil dizer em que e como, por quem e para quem, eles foram
apropriados”49. Seria correto afirmar, então, que a praça construída pelo município,
em parte, é ocupada pela lona do circo, considerando ser a ação do município
dissociada de necessidade e possibilidade, em sentido material, tendo em vista não
haver uso pelo município, havendo só a construção de um valor simbólico. Podemos
considerar que implicou ocupação e uso por um grupo, “‘maneiras de fazer’ que
seriam aquelas [...] práticas pelas quais usuários se reapropriam do espaço
organizado pelas técnicas da produção sócio-cultural”50

Nesse sentido, a mais relevante característica do circo, para esse trabalho, é


sua ocupação do espaço, tendo em vista que ele se instala em terrenos que podem
ser privados, entretanto, passam momentaneamente a um status de uso coletivo. De
certa forma, o uso condiciona o estatuto do espaço, alterando-o momentaneamente,
mesmo que sob a anuência de seu proprietário.

Nesse espaço, uma nova discussão ocorre em 2012, agora pautada pela
ocupação de camarote na mesma praça. Num processo licitatório, a Prefeitura de
Salvador, através da Superintendência de Controle do Ordenamento e Uso do Solo
– SUCOM-, concedeu à empresa Premium Entretenimento, por cessão de uso,
direito a requalificar a área de 9.837m² do antigo Parque de Ondina. Dentre as
condições dessa Parceria Publico Privada51, a empresa ocuparia a praça por período
de cinco anos, durante o carnaval. A empresa, para retribuir essa cessão de uso,
passa a ser responsável pelo projeto e execução de requalificação, obras,

49
Lefebvre, Henri, (Tradução de Doralice Barros e Sérgio Martins do original: La production de l’espace, 4 ed.
Paris Editions Anthropos, 2001, primeira versão início – fev.2006)
50
Certeau, Michel de, 1998, p. 41.
51
De acordo com Mukai (2006), a regulamentação das parcerias público-privadas pela Lei federal no 11.079, de
30.12.2004, veio contribuir com suas disposições para ampliar as discussões e alimentar o fogo em que são
aquecidos os ingredientes que fazem da mistura interesse público e interesse privado material antagônico de alta
combustão. Se durante séculos foram antagonistas, já há algum tempo vêm vivendo um processo de
aproximação, inevitável, mercê do crescimento das necessidades do Estado.
52
manutenção e pagamento de uma taxa anual no valor de R$250.000,00 em
contrapartida ao uso da praça e construção de uma estrutura de camarote durante o
carnaval52.

Essa ocupação sazonal privatiza, de modo provisório, a praça em sua


totalidade, não permitindo outros usos, de modo diverso à ocupação do circo que,
apesar de permanente à época, não restringia outras atividades, a exemplo do uso
das quadras, tampouco a circulação. Apesar do diferencial, devemos lembrar que as
escalas, épocas e usos são distintos em dimensão e que aqui não se objetiva
estabelecer maiores críticas a PPP ou traça comparações entre os eventos. O que
se pondera nesse momento é a ocupação da praça, desde o momento da colocação
das estruturas até completa retirada após a festa momesca, que suprime da
coletividade o direito de uso por aproximadamente dois meses. Essa supressão foi a
razão que culminou numa manifestação da sociedade civil denominada Movimento
Desocupa53 marcada por protestos, publicações em periódicos impressos e digitais,
em que a devolução da praça aos cidadãos, porque não dizer à cidade, fez-se
permanente.

Cabe mencionar que a ocupação esteve marcada por inúmeros


descompassos, primeiro com a Superintendência do Patrimônio da União – SPU/BA-
, por ocupar, sem autorização desse órgão, 6.000m² da União, área pública e de uso
comum. Posteriormente, com o Ministério Publico/BA, pelo não cumprimento dos
prazos de reforma e devolução do espaço ao público e pela morosidade na sua
devolução após o fim do carnaval. Finalmente, com a Defensoria Pública da
União/BA onde foi registrada denúncia que originou a ação civil pública nº 0004552-
17.2012.4.01.3300. Essa também gerou denúncias, ações e discussões da
sociedade e entre órgãos em instâncias municipal, estadual e federal.

No pedido, motivado após denúncias de setores da sociedade civil, a


DPU/BA solicita, em caráter liminar, a restituição da área pública ao uso
comum do povo e a remoção imediata da estrutura construída, sob pena de
multa diária de R$ 200 mil reais. “No período da festa, a praça pública (grifo
nosso) costumava ser frequentada por trabalhadores, catadores de lata e

52
As informações acima constam do Diário Oficial do Município de Salvador, 16/09/2011.
53
O Movimento surge a partir da ocupação da Praça de Ondina pelo luxuoso Camarote Salvador, com o aval do
poder público ante pagamento de R$250 mil por ano (uma esmola diante do faturamento de cerca de R$66
milhões previstos) e uma reforma na Praça. Pouco tempo depois de ter finalizado a reforma, a empresa fechou a
Praça com tapumes para a “obra do Camarote Salvador”, quase três meses antes do carnaval.
Fonte: http://movimentodesocupa.wordpress.com/historico/
53
todos os demais cidadãos. A área utilizada deveria estar disponível à
população de baixa renda, que disputa espaços no Carnaval da Bahia”,
concluiu o defensor54.
Nesse ínterim, a empresa concessionária da Prefeitura, conseguiu articular
ação judicial que produziu efeitos de proibições e sanções a indivíduos e
organizações da sociedade civil que exerciam seus direitos de manifestar e de ir e
vir, com a obstrução de qualquer ato público na região de Ondina, na Av. Oceânica,
em frente ao camarote. A partir de então, as ações perpetradas pela sociedade civil
organizada e por órgãos de defesa do patrimônio público foram caracterizadas como
atos contra o Carnaval de Salvador.

A presença da lona e do camarote nessa praça são condições conflitivas que,


mesmo em função da escala para maior ou menor, expõem conceitos e
pensamentos que aplicamos, por vezes orientados por um senso comum, do que
possa ser espaço, uso, público, privado, coletivo, por vezes equivocados.

Inúmeros autores discutem sobre tais conceitos. No concernente ao estatuto


do público e do privado, esses são, na maioria das vezes, vistos sob uma ótica
confusa de sobreposição o que faculta manifestações de ambos num mesmo lugar.
Essa hibridização causa certa dificuldade na leitura, principalmente do que possa ser
público. Talvez, uma condição proporcionada pela natureza do que possa ser
coletivo e pela associação ao conceito de uso livre, que por ser público é tido com
pertencente a todos, logo de uso comum. Todavia, a generalização conceitual não é
saudável, pois, a partir de uma visão equivocada, constroem-se falácias que
resultam em privatização, mesmo que temporária, do espaço55 público, como o do
camarote e de outros que deveriam estar acessíveis à coletividade e não restritos a
grupos determinados que passam a arbitrar o uso e a mobilidade nessas partes da
cidade.

As alterações, no decorrer do tempo, são marcadas por uma maior presença


do município determinando e concebendo novos usos na urbe, agora não em função
de elementos simbólicos, como o veículo automotor, mas segundo necessidades
estratégicas de definir uma imagem para a praça que pode ser explorada, ligada aos
equipamentos esportivos, por exemplo, ou de lazer e serviços e mesmo estéticos e

54
DPU/BAHIA.
55
Em Geografia conceitos e temas, Correa utiliza também a definição de Lefebvre em que o espaço é o lócus de
reprodução das relações sociais e de produção.
54
artísticos (esculturas, fontes) em decorrência de interesses adversos, imobiliários,
turísticos, como é possível perceber a partir de matérias de jornal, em propaganda
acerca das ações do município, pois “O predomínio do Global, do lógico e do
estratégico, ainda faz parte do “mundo invertido” que é preciso reinverter”56.

No caso do Circo Troca de Segredos, montada a lona, há uma nova forma de


uso daquele espaço que não se articula com os predeterminados pelo Estado. É um
espaço vivenciado por um grupo norteado por uma vivência artística e pela
percepção de vazios que podiam ser preenchidos no espaço institucional. É possível
pressupor um espaço de confluência, que tem uma lógica da semelhança, nele os
elementos socialmente compartilhados produzirão reconhecimento entre grupos
distintos, através de manifestações culturais. Há um distanciamento entre a cena da
produção cultural - numa iniciativa pioneira e alternativa, restrita a parte da praça
numa convivência com outras ocupações, bem diferente na forma de uso, em função
da escala - e aquilo que constitui ocupação do camarote, que não permite presença,
co-presença ou confluência de grupos diferenciados.

A apropriação do espaço da praça que já passa a contar com fluxos externos


e com grande visibilidade mercadológica é uma articulação política entre público e
privado no intuito de atingir a expectativa almejada57 por um público externo, já aí
pontuando a presença de necessidades e possibilidades materiais que servirão a
esses agentes, mas caracterizando um valor de troca. Segundo níveis do fenômeno
urbano, seria um habitat edificado e produzido segundo políticas públicas de uso
restrito, que corresponde a um planejamento estratégico (ideológico e hegemônico)
voltado a conformar espaços que representem valorização imobiliária e introduzam
padrões, por vezes, externos à nossa realidade.

Esses processos são condizentes ao desenvolvimento de um valor agregado


que uniformiza o produto cidade. O camarote traz ao carnaval o lócus do consumo,
com sua estrutura climatizada e controlada, concebida para reproduzir o espaço dos
shoppings. Ele é o shopping no carnaval, considerando a semelhança de espaço
privado de uso coletivo e a ligação ao consumo de serviços, num mix semelhante ao

56
Lefebvre, Henri, 1999, p. 83 e 84.
57
O carnaval constitui evento de grande monta que abarca em seu conjunto investimentos e resultados
expressivos ao turismo, geração de emprego e renda e da imagem da cidade destacando a cidade no cenário
mundial nessa categoria.
55
que se faz em shoppings centers, na expectativa de prever e atender o desejo e as
necessidades de um determinado público consumidor.

Esses aspectos, visíveis na concepção de um produto que não reúne


somente características da festa carnaval, promovem outros gêneros musicais e
agregam uma série de ações mercadológicas que permitem ampliar a permanência
e a frequência do seu target58 que, invariavelmente, irá consumir o produto camarote,
segundo um critério de segregação que limita os que podem estar ali. Observe-se,
inclusive, que o camarote é implantado na praça, sem maiores preocupações com
outros usuários, mobilidade, direitos ou dinâmicas. Talvez, o simples fato de
integração física com o Ondina Apart Hotel, quase uma extensão, de certo modo,
deixe-o alheio à visão da coletividade por estar camuflado por essa estrutura, ao
ponto de não causar o incomodo que poderia ou deveria causar quando da
privatização de um espaço público tão extenso.

A utilização do espaço público é uma das prerrogativas da cidadania. “O


conceito de cidadania guarda uma concretude que possui, na sua origem, íntima
relação com a cidade, na condição de realidade histórica”59. Entretanto, ao
considerá-la “como uma prática historicamente construída, delimitada por um poder
de Estado que busca estabelecer os contornos de suas possibilidades de
realização”60, deve-se perceber o risco de que tais contornos assumam uma forma
sutil e dissimulada de opressão, que suprime direitos para garantir direitos, como os
que ocorrem na Praça Luiz Sande, que assume, sob o emblema da representação, a
condição de determinar necessidades e possibilidades ao cidadão, suprimindo a
capacidade de apropriar-se de si (corpo) e da cidade (espaço), inclusive
distanciando-os.

Desse modo, as dimensões globais do fenômeno urbano vêm a ser caminhos


que convergem para o mesmo ponto, formas diversas que o aparato simbólico
assume para embotar o senso e contaminar o imaginário, estabelecendo, através de
instrumentos e ações do município e das instituições, dentre elas a Mídia, “verdades
e realidades” que podem não passar de mitos, furtando o exercício da cidadania ao
promover uma ideia preconceituosa sobre a urbanidade ou sobre certas partes dela,

58
Expressão da propaganda que designa grupos de consumidores
59
Oliveira, Márcio Pinon, 2011, p.178 (In: A Produção do Espaço Urbano)
60
Oliveira, Márcio Pinon, 2011, p.178 (In: A Produção do Espaço Urbano.)
56
ou ainda, ao propagar os “monstros” dessa mitologia urbana presentes na violência
e na segregação socioespacial que distancia os habitantes.

Observemos que, de forma específica, espaços públicos podem ser alvo de


mitos, como os descritos anteriormente, que asseguram ao Estado o dever e o
direito de alterar os estatutos desses espaços de forma arbitrária. O Parque de
Ondina nos serve como exemplo dessa situação, um equipamento carente de
manutenção que, por seu abandono, passou a sofrer frequências indesejáveis de
uma forma mais intensa. A falta de manutenção (iluminação) e segurança restringia
a presença de usuários, principalmente ao cair da noite. O que bem caracterizou o
responsável pela SUCOM, em janeiro 2012, quando qualificou a praça como “[...]
área usada inclusive para o tráfico de drogas”61.

Veja-se que o Estado, ao não intervir diretamente nessa manutenção, justifica


o direito de facultar o uso privado naquele espaço, de forma provisória, através de
sua parceria público privada que restringe a alguns cidadãos esse direito. Estaria
assim a resgatar um espaço apropriado por uma atividade marginal que não pode
conviver com a cidadania. Essas situações levam a ponderar que os conflitos de
usos, especialmente em áreas privilegiadas, podem estar relacionados com a
sobreposição dos mesmos por atividades econômicas variadas em pontos que se
contrapõem e conflitam com interesses que se processam de forma desarticulada
nesse espaço: urbanização, especulação imobiliária, lazer, turismo e usos.

A conciliação entre resgate do espaço público e desenvolvimento de uma


atividade privada nos demonstra que o objetivo principal desse processo não é o
bem comum e sim a iniciativa individual característica do negócio capitalista. Não
passa tempo que nos traga relações mais equilibradas entre o capital e a terra, em
última instância, essa sempre irá compor como suporte à empresa, daqueles que
melhor manipulam os favores da política e os subterfúgios do poder.

61
http://bahiatododia.com.br/index.php?artigo=10751
57
2.3. A praça, entre a ordem e a (des)ordem.

A ordem seria a diminuição da possibilidade de aleatoriedade dos fatos e


comportamentos dentro do contexto do urbano, ao menos no que se refere ao nosso
texto, no sentido do que está posto, do concebido, daquilo que é recebido pronto,
arestado, sendo a desordem um contrário possível ou presumível, diante da
suposição de que lhe cabe a existência desse contrário. A desordem seria também
entendida, como uma contraposição à ordem, suas possíveis limitações e
castrações.

“A visão de ordem nos conduz, explica BAUMAN, a de pureza, a de estarem


as coisas nos lugares “justos” e “convenientes”. É uma situação em que cada
coisa se acha em seu justo lugar e em nenhum outro. [...] Explica BAUMAN
que ‘ordem’ significa um meio regular e estável para os nossos atos; um
mundo em que as probabilidades dos acontecimentos não estejam
distribuídas ao acaso, mas arrumadas numa hierarquia estrita – de modo que
certos acontecimentos sejam altamente prováveis, outros menos prováveis,
alguns virtualmente impossíveis62.

Utilizamos como referência o conceito que o autor constrói a partir da visão de


Bauman, ele inclusive se colocando contra essa lógica e entendendo-a como solo
fértil à produção de estados de exceção e à construção de regimes totalitários. E a
reflexão nos indica a necessidade de um diapasão para as relações no espaço
urbano, que se faz bem mais complexo que o simples certo ou errado, de uma
ordem que pode degenerar em injustiça.

A construção da ordem coloca os limites à incorporação e à admissão. Ela


exige a negação dos direitos e das razões de tudo que não pode ser
assimilado – a deslegitimação do outro. Na medida em que a ânsia de por
termo à ambivalência comanda a ação coletiva e individual, o que resultará
é intolerância – mesmo que se esconda, com vergonha, sob a máscara da
tolerância (o que muitas vezes significa: você é abominável, mas eu sou
generoso e o deixarei viver) 63.

A ideia de ordem e desordem, estabelecida na cidade burguesa do século


XIX, é, por Pechmam, descrita como surgida com as propostas de reordenação do
espaço público com o estabelecimento de normas direcionadas a solução dos

62
Jr Lopes, Aury – in: http://atualidadesdodireito.com.br/aurylopesjr/ 2014/01/20/sobre-os-rolezinhos-os-concentos-
de-ordem-desordem-e-pureza/
63
Bauman, Zigmunt, 1999, p. 16.
58
problemas da urbe. Era preciso promover a funcionalidade, principalmente da rua,
que se transformava em espaço de circulação da produção, como da salubridade da
cidade.

A presença das multidões nas ruas das grandes cidades, a provocação à


ordem e a ameaça latente de revolta se constituem num grande desafio à
redefinição de uma ordem pública. E a ordem pública passa a ser percebida
a partir da necessidade de reordenação do espaço público64. (grifo nosso).

Transformada a ordem social e reestruturada a forma da cidade, criou-se um


modelo que satisfizesse às necessidades da sociedade burguesa. “Pensava-se
tratar de poções, remédios, panaceias para cidade doente, mas ao final do processo
admite-se que era uma questão de lei, de estrutura, de princípio”65 que juntas
objetivavam o ordenamento dos usos, permitindo o controle, pois as atividades da
população não se harmonizavam aos interesses da burguesia.

As propostas de ordenamento urbano desenvolvidas a partir de meados do


séc. XIX prepararam o campo conceitual para as transformações espaciais
que se estabeleceram na cidade do séc. XX. Exemplos como a intervenção
monumental na cidade de Paris, empreendida pelo então prefeito George-
Eugène Haussmann (1853-70); o projeto de expansão da cidade de
Barcelona, idealizado pelo engenheiro Ildefonso Cerda (1859) e as utopias
socialistas, com suas propostas de configurações urbanas, consolidaram
princípios urbanísticos arraigados à crença de transformação social e
construção de um novo mundo66.

Esses ordenamentos e o estabelecimento de boas práticas, com a remoção


dos comerciantes informais, com criação e manutenção das vias de circulação livres,
dentre outras, promoveram a segregação desses grupos populares, que “se nutriam
da “desordem” calcada na ocupação indiscriminada do espaço público”67. Por outro
lado, “a colaboração mais direta do urbanismo moderno, à cidade tradicional, não
está contida dentro dos limites dos espaços livres públicos e sim dentro do lote e da
quadra urbana, onde o edifício isolado dos demais é considerado como um
padrão”68. Pois,

Limpando a rua da presença popular e elevando a vida privada a uma


conquista da humanidade, o urbanismo quer ter, com suas práticas de
intervenções e suas representações legitimadoras da ordem urbana
organizado cientificamente a cidade, colocando cada coisa em seu lugar e

64
Pechman, Robert Moses, 1993, p. 31.
65
Gille, Didier (apud Pechman, Robert Moses, 1993, p. 32.)
66
Caldeira, Júnia Marques, 2007, p. 197.
67
Pechman, Robert Moses, 1993, p. 32.
68
Macedo, Sílvio Soares, 1995, p. 39.
59
em cada lugar uma coisa, evitando os aglomerados por um lado e os
perigos do vazio por outro69.

Esses espaços vazios aqui apresentados, também, enquanto espaços livres,


utilizados como instrumentos de organização e de controle no reordenamento do
edificado, guardaram características que lhes eram inerentes e ainda o são em
cidades por todo o mundo. Ao final, a rua acabará por não permanecer destituída
dessa presença, mas as práticas e usos se alteram e estabelecem meios de
relações estéreis, pois deixam de ser utilizados para a fruição e interação, para uma
relação decorrente do trânsito de pessoas e da produção, proporcionado pelo
pensamento positivista que, também, (re)ordena valores e princípios.

Espaços Livres – muitas são as acepções que podem ser dadas a este
conjunto de palavras, que são utilizadas indistintamente pelos mais diversos
grupos sociais para se referir ora a ruas, ora a jardins ou até mesmo e
exclusivamente às áreas de lazer. Podemos, de um modo preciso, definir
espaços livres como aqueles não contidos entre as paredes e tetos dos
edifícios construídos pela sociedade para sua moradia e trabalho70.

Assim, a praça se torna “um espaço livre público cuja principal função é o
lazer”71. Ela possibilita as dinâmicas do uso e acata a possibilidade do diverso, do
diferente, sem, contudo, promover a quebra de continuidade. Jane Jacobs72
descreveu essa descontinuidade nos parques urbanos de Nova York, onde, ao se
ordenar os usos, afastaram-se os usuários das ruas e comportamentos habituais,
que ficaram restritos aos parques.

A análise do New York Times de setembro de 1959 revela que todos os


crimes cometidos por bandos de adolescentes em Nova York, durante a
última década, foram realizados dentro de parques. Mais: observa-se, cada
vez mais frequentemente, não só em Nova York, mas em outras cidades,
que as crianças que participaram desses delitos moravam nesses grandes
conjuntos, precisamente onde seus jogos cotidianos foram banidos da rua,
ou até mesmo, a própria rua foi suprimida73.

Jacobs discutiu muitos aspectos míticos do que sejam espaços públicos, ao


analisar os parques urbanos: sua relação com as comunidades; a natureza de seus
projetos; seus usos. E afirma,

69
Pechman, Robert Moses, 1993, p.33
70
Macedo, Sílvio Soares, 1995, p. 19.
71
Loboda, Carlos R.; De Angelis, Bruno Luiz D, 2005, p.133.
72
Jacobs, Jane, 1961 (apud. Choay, Françoise, 2003, p. 297.)
73
Choay, Françoise, 2003, p. 297.
60
os parques urbanos não conseguem de maneira alguma substituir a
diversidade urbana plena. Os que têm sucesso nunca funcionam como
barreira ou obstáculo ao funcionamento complexo da cidade que os rodeia.
Ao contrário, ajudam a alinhavar as atividades vizinhas diversificadas,
proporcionando-lhes um local de confluência agradável; ao mesmo tempo,
somam-se à diversidade como um elemento novo e valorizado e prestam
um serviço ao entorno, como a Rittenhouse Square e qualquer outro bom
parque74.

O Estado tem uma visão prática quanto aos espaços públicos, relacionados
com o nível global que, segundo Lefebvre, constitui representação e vontade
daqueles que se utilizam do poder para impor uma ideologia espacial hegemônica,
provavelmente uma visão subjetiva que se agrega ao pensamento comum. Na
concepção do uso e estruturação desses ambientes, eles podem sofrer influência
desse ordenamento em sua forma, orientação vocacional, localização, etc., mas no
caso da praça, ainda lhe cabe certa flexibilidade conforme a possibilidade de
múltiplos usos e relações identitárias, como as existentes no âmbito do habitar
enquanto forma criativa como destacado por Lefebvre.

Delgado, ainda em relação aos usos, ressalva que a apropriação dos espaços
públicos provém das necessidades e desejos, razão pela qual enfatiza “que el
espacio público es escenario de situaciones altamente ritualizadas pero
impredecibles, protocolos espontâneos”75, e que, na praça, essas necessidades e
desejos ocorrem a partir de apropriação e representação, quando alguém lê seu
jornal, crianças ou adolescentes brincam, pessoas se exercitam, dentre outros usos,
em que a interação ocorre em função de um fio condutor que os relaciona com o
espaço.

Nesse processo, é possível pensar essa relação em escalas diversas. No


caso presente, analisaremos a ocupação de um espaço em relação a sua escala
local e global de influência política, o que não impede que apropriações em seus
níveis variados possam interligar as escalas, que podem apresentar dimensões mais
generosas, ao atingir pequenas porções da urbe. Pensando a praça em seus
múltiplos usos e níveis, global, misto, privado, e interligando as dimensões variadas
no espaço, por sua característica de fomento ao convívio, podemos considerar,

74
Jacobs, Jane, 2001, p. 110.
75
Delgado, Manuel, 1999, p. 119.
61
ainda, ser essa, essencialmente, um espaço que guarda certa ancestralidade de
espaço público, contemporânea ao urbanismo.

Essa ancestralidade relacionada ao traço urbano propicia um ambiente de


reunião, de encontro com o outro, uma identidade estabelecida, de forma distinta
que vem “substituindo antigos terrenos baldios e várzeas, antes livremente utilizados
por para o [plantio e mesmo] lazer, e, que pouco a pouco, cedem lugar à
urbanização em expansão”76. Essa identidade está ligada a um contexto local, a
tradições, aos costumes e, como no passado, a uma vivência do espaço, que,
conforme evolui a ocupação dos espaços residuais nas cidades, altera-se.

Essa temática explorada por Serpa (2001), da produção do espaço periférico


metropolitano, traz questões acerca da apropriação social do espaço, da importância
do bairro77 como unidade morfológica da cidade, demonstrando, inclusive, que esse
“se presta como ‘recorte espacial’ adequado para a análise do sistema de espaços
livres de edificação de uso coletivo e as diferentes formas de apropriação social
dessas áreas”78. Uma determinante da vivência da praça, presente nos bairros
periféricos de Salvador, é o transpor da porta para a rua, em que o espaço livre de
uso coletivo não é necessariamente definido por estatutos, mas por vivências, o que
lhe facilita a mistura e variedade de usos.

No caso do bairro de Ondina, o relato de um comerciante sugere que essas


apropriações podem ter dimensões em outro contexto, não apenas de fruição, mas
também de controle, tais como a da segurança e acessibilidade aos equipamentos79.
Segundo ele, um grupo de moradores propôs, ao município, assumir a manutenção
da praça, contratar vigilância privada, cuidar dos sanitários, hoje ocupados por
moradores de rua, tornando-os indisponíveis. Entretanto, a burocracia do Estado
coíbe qualquer intervenção particular, proveniente dos anseios da comunidade local,
mesmo diante do abandono institucional que propicia o vandalismo e amplia a
delinquência no lugar.

76
Macedo, Sílvio Soares, 2001, p.159.
77
Bairro é a porção do território que reúne pessoas que usam o mesmo equipamento, que mantém, relações de
vizinhança e que reconhecem seus limites pelo mesmo nome.
78
Serpa, Angelo, 2001, p. 28.
79
Esse se deve à impossibilidade de uso dos banheiros públicos edificados na parte posterior da praça que,
segundo relatos, permanece a maior parte do tempo sob o controle de moradores de rua.
62
Nesse mesmo caminho, matéria recente80 versa sobre o esvaziamento dos
bairros de classe média da orla atlântica de Salvador com o cair da noite, e segue:
“Cultura? Medo da violência? Falta de transporte, opções de lazer e serviços? Fato é
que, depois que o sol se vai, a Salvador que poderia vibrar nos espaços públicos se
torna uma cidade fantasma”, condição que, segundo reportagem, dada a
insegurança e criminalidade que propicia, conforme Souza, e “medo generalizado”
que se apresenta em diversas cidades, afasta as pessoas das ruas e as aproxima
de lugares fechados como shoppings e condomínios fechados.

Agora, se pensarmos no nível global é possível ainda compreender, como


sugerido por Lefebvre, o que é a norma urbana, constituída por planos diretores,
códigos de obras, etc., que definem o uso do solo inscrevendo certos espaços em
planos, limitando as opções de ocupação e apropriação, a partir de zoneamentos e
restrições. Entretanto, esses mesmos instrumentos, quando isolados, não
conseguem garantir a efetiva utilização dos espaços públicos, necessitando, para
isso, de um aparato de gestão e manutenção que gradativamente substitua a
morosidade do Estado, por práticas, muitas vezes consolidadas pelo mercado, pois,

“A não formalização de um sistema completo de espaços livres para lazer,


adequados, dimensionados, acessíveis e seguros se observa como
resposta à internalização do lazer em praças, parques e clubes privados,
que sob a forma de condomínios, de quadras e lotes fechados cumprem as
funções antes destinadas prioritariamente aos espaços públicos”81
(grifo nosso)

A tentativa de assumir a gestão da praça, apresentada anteriormente, faz-se


presente, não apenas pelo uso, mas principalmente pela proximidade do
equipamento que em seu abandono, conforme habitantes/proprietários, em face da
insegurança, que desvaloriza o lugar. Devido a esse quadro de insegurança, novos
empreendimentos imobiliários, a partir de uma estrutura de mercado, intensificaram
a importância das áreas comuns como solução à ausência de espaços públicos e
não tão somente como forma de agregar valor comercial. Essa cultura tem atingido,
em Salvador, especialmente os bairros considerados nobres, onde prédios ou
grupos de prédios são protegidos por muros e gradis, estando suas próprias vias e
praças estabelecidas, já a partir do projeto. Em conjuntos habitacionais populares,

80
Correio da Bahia 27/10/2013.
81
Macedo, Sílvio Soares, 1995, p.49.
63
essas práticas consistem numa mimetização dos conceitos do condomínio fechado,
em alguns casos, incorporando áreas públicas e trechos de ruas, em substituição a
espaços públicos que não favorecem uma fruição ou à inexistência deles.

Se considerarmos que no Brasil a praça teve como característica o fato de


que,

“[...] abre um território especial, uma região teoricamente do “povo”. Uma


espécie de sala de visitas coletiva, onde se situam em nichos especiais o
poder de Deus, cristalizado na Igreja matriz ou Igreja central,
frequentemente a primeira a ser fundada naquele local que deu origem à
cidade, e o poder do Estado, manifesto no palácio do governo82.

Ela se apresenta, então, enquanto representação expressiva do espaço, o


que por certo período marcou a própria estrutura urbana colonial. Ela era o local ao
qual todos tinham acesso ao urbano mais possível de ser socializado, local de
contemplação, onde, a partir dos costumes e representações do lugar e do
sentimento de pertencimento, pode-se até mesmo se entrecruzar o enxergar na
expressão do outro. Contudo, as praças, que por muito tempo constituíram ponto
dos acontecimentos na cidade, da convergência espacial, passaram a lugar de
passagem, de fluxos que se tocam e cambiam informações de modo sutil.

Elas, as praças, em certos casos, são apreendidas como elementos de


valorização fundiária, complemento estético do planejamento estratégico83 da cidade,
no contexto urbano. Considere-se ainda que em parte do país existem poucos
“programas reais de implementação de sistemas de espaços livres de edificação
destinados seja ao lazer, à conservação de mananciais ou encostas, sendo que, em
parte dos casos, nem estão contidos em planos urbanísticos”84. Notadamente, essa
escassez se faz na efetivação tendo em vista a existência de legislação específica
que, posta em prática, poderia reverter tal quadro.

Contemporaneamente, alguns episódios mostraram populações em


movimentos reivindicatórios reunidas em suas praças, tal qual centros nervosos de
uma ordem a ser estabelecida. Em Salvador, como em tantas outras cidades, as

82
DaMatta, Roberto, 1991, p. 49 e 50.
83
Concentración en temas críticos – La planificación estratégica supone una concentración de esfuerzos e las
atividades y los problemas clave de la ciudad, donde las actuaciones tienem más potencial de alcazar objetivos.
Así, um plan estratégico oferece la opoertunidad de observar más allá de las preocupaciones cotidianas, y
distingue entre las decisiones verdadeiramente importantes y las que presentan impacto meramente coynuntural.
(Guell, José Miguel Fernández, 2006, p. 57.)
84
Macedo, Sílvio Soares, 1995, p. 48.
64
reivindicações aconteceram em contraposição aos desígnios do Estado, numa clara
reivindicação da manutenção de direitos.

No concernente à Praça Luiz Sande, as manifestações ocorreram em


protesto contra sua apropriação no carnaval, que, apesar de propiciar benefícios
decorrentes de uma espécie de Parceria Publico Privada – PPP, suprime totalmente,
por período aproximado de três meses85, o uso de um espaço coletivo.

Em contraposição a essa ordem pública, pode ocorrer a (des)ordem.


Enquanto uma pode implicar no êxodo, face ao ordenamento incipiente dos
espaços, a outra pode representar uma viabilidade espontânea o que significa dizer,
no caso do uso coletivo, abordagens diferenciadas da mesma realidade, pois essa
pode vincular-se ao olhar criativo, à possibilidades e necessidades de um uso
individual e, principalmente, coletivo.

Aproveitando a visão de Pechmam, a desordem consiste num uso livre,


descrito por ele como “usos e abusos” no cotidiano da população europeia no
período de consolidação da burguesia. É possível, ainda, considerar, as relações
entre o habitar enquanto prática milenar, “mal expressa, insuficientemente elevada à
linguagem e ao conceito, mais ou menos viva ou degradada, mas que permaneceria
concreta, ou seja, ao mesmo tempo funcional, multifuncional, transfuncional”, como
apresentado por Lefebvre.

Se observada a palavra desordem, em seu sentido etimológico, verifica-se,


ainda, que essa se forma pelo antepositivo (des-), com ideia de oposição, mais
(ordo), “arranjo de elementos feito conforme certos critérios”, “exigência de
disposição regrada de elementos, comando”, relacionado ao verbo ordiri, “ordenar,
mandar”. Atentemos, entretanto, que sua aplicação nesta dissertação nada tem a ver
com uma teoria do caos, ou mesmo com algum processo de desestabilização, tendo
em vista que o indivíduo ou mesmo a coletividade não pretende desestabilizar o
Estado, mas agir em prol de uma ordem pessoal, emergente, de uma necessidade
que precisa ser posta em prática e podendo, inclusive, estender-se à coletividade.

A (des)ordem possibilita o apropriar-se com a ocupação dos interstícios do


espaço urbano, dominado pela formalidade urbanística e arquitetônica, que busca
85
É o período que o Camarote Salvador ocupa desde sua montagem até a desmontagem que o movimento
Desocupa questiona, justamente pela usurpação do direito de uso coletivo, sem omissões ou constrangimento
durante esse tempo.
65
impor-se ao corpo e controlá-lo, “são as formas arquitetônicas que, com seus
projetos espaciais, são responsáveis pela observação e espionagem; uma
arquitetura vigilante que tem objetivos disciplinares e que institucionaliza a
tecnologia do poder”86.

Tudo que está no espaço urbano se encontra regido pela ordem e a


sociedade busca a própria ordem, uma contra-ordem, uma desordem, uma liberdade
de uso como apresentado por Pechmam. Desse modo, é possível considerar que a
evolução do espaço da Praça Luís Sande, entre 1978 e 2010, possa demonstrar
essa transformação, certa (des)ordem em espaço de ordem pública, em que a
ocupação proceda pelo ordenamento institucional, sob efeito de leis e normas,
seguindo uma leitura preestabelecida, que através de um processo abstrato,
apropria e, em seu nome, predetermina os usos do espaço por sabê-lo necessário
ao indivíduo e entender que, ao exercer um controle sobre um, poderá controlar o
outro.

A praça, em 1978, é uma porção de terreno com características distintas da


atualidade. Não há grandes construções à beira-mar, deixando plena visibilidade da
paisagem da costa, hoje, sensivelmente prejudicada por construções com gabaritos
elevados ao longo de toda faixa litorânea. Entretanto, apesar dessa situação, esse
lugar aprazível, ainda em nossos dias, tem a praia frequentada, intensamente,
estando todo o espaço de praia disponível ao uso coletivo.

Ao que parece, no uso daquele espaço, a inexistência de equipamentos


públicos, somente implantados em 1981, talvez não dificultasse os usos, até os
favorecesse.

Excepcionalmente, nos bairros da Ondina ao Rio Vermelho, a ocupação por


empreendimentos hoteleiros, principalmente, tomam áreas próximas a faixa de areia
o que comprometeu a estética natural, consequência de uma legislação diferenciada
que beneficiou esses empreendimentos.

Até 2010, percebe-se que a configuração implantada em 1981, quadras de


esportes, rinque de patinação, a arena, são mantidas. Esses elementos
permaneceram até o final da primeira década desse século, quando ocorre
requalificação, nos moldes das que ocorreram na Praça Nossa Senhora da Luz na

86
Córtes, José Miguel G., 2008, p. 42.
66
Pituba e nas Praças do Comércio. Nessa época não estão presentes as barracas de
praia, suprimidas pelo reordenamento da orla atlântica, definido por sentença
judicial.

Figura 5 - Praça Luiz Sande entre 1981 e 2010 – Fonte Google Earth
Conforme Scheinowitz:

No que concerne aos equipamentos, a situação, em 1973 pode ser


resumida de maneira seguinte. Inexistência de equipamentos de praia.
Presença de esgotos pluviais com ligações sanitárias clandestinas nas
praias. Carência de serviços e sanitários públicos. Pequena extensão das
áreas de belvedere e passeios a beira mar. Inexistência de áreas verdes
equipadas, inadequação e insuficiência de equipamentos comerciais
servindo as praias87.

87
Scheinowitz, A.S., 1998, p.87
67
Foto 5 - Praia de Ondina – 1978 – Autor Desconhecido

Figura 6 - Praia de Ondina - 2012 - Fonte Google Earth

A Figura 7, mapa de uso e ocupação do solo de Ondina, produzida por


Scheinowitz, anterior às edificações hoteleiras atuais, demonstra onde as diversas
68
zonas, áreas verdes e fluxo de circulação de pedestres deveriam ser implantados à
época. Nele, o complexo hoteleiro está na Avenida Adhemar de Barros (amarelo),
zona residencial em letra set (azul), zona de comércio em letra set (marrom) na via
principal da Avenida Presidente Vargas, zona de equipamento de praia na porção
posterior a pista em frente à praia em letra set (azul claro), provável localização do
Instituto Social da Bahia – ISBA-, zona universitária em letra set (cinza) e área de
circulação para pedestre (marrom escuro).

Nesse mapa, destinado a orientar o Plano Diretor da Orla Marítima, através do


Decreto 23.662, de 3 de setembro de 1973, fica patente que nada do proposto foi
efetivado, sendo as áreas (re)zoneadas de maneira aleatória, indo, inclusive na
contramão dos planos efetivados em outros países como citado anteriormente.

Figura 7 - Uso do solo em Ondina 1973. Scheinowitz, 1998, p. 97


Assim,

“Examinando os pontos críticos do trecho Barra Pituba, o plano constata


que, do ponto de vista da regulamentação, a fixação imprecisa e insuficiente
dos gabaritos das construções, impedindo a consolidação da imagem
69
turística urbana, e sublinha que é crescente o processo de apropriação do
litoral pra uso privado (clubes, hotéis e outros), em alguns casos
desvirtuando o sentido da função recreacional e turística do sítio”88

Considerando o referido estudo e verificada a aplicação do mesmo a partir da


Figura 7, pode ser inferido que a inabilidade gestora da coisa pública, interesses
mercadológicos ou ambas conduziram à opção pela mudança dos sítios para
instalação dos equipamentos e zoneamento, numa reorientação espacial que
comprometeu a paisagem pelo acortinamento de trecho da frente marítima deste
bairro, desde a Prefeitura da Aeronáutica até o Ondina Apart Hotel. Atualmente, com
a instalação do Camarote no carnaval, temos ampliada a obstrução da paisagem e a
supressão da praça, dos usos coletivos, em sua plenitude, para um uso particular
que atende aos interesses, anseios e possibilidades de alguns.

Vale salientar que as possibilidades aventadas na proposta de zoneamento


do plano de 1973 conceberam uma distribuição das necessidades de ocupação
comercial e de serviços que as mantinha afastadas da faixa litorânea, cedendo
destaque para o trato da paisagem, preservando-a como área não edificada, da qual
se havia retirado uma comunidade consolidada, (Invasão de Ondina), considerada
uma ocupação irregular. Hoje o adensamento, principalmente por empreendimentos
hoteleiros, implicou no comprometimento visual, de contemplação da paisagem
natural, restrita aos hospedes da hotelaria. Talvez este comprometimento atinja,
mesmo, a própria fruição dos habitantes desta cidade.

2.4. Políticas Públicas de desenvolvimento

Gestão e organização das cidades demandam produção, aplicação e aferição


de um conjunto de leis, normas e programas urbanísticos a se cumprir pelo esforço
de articulação capaz de produzir elementos conceituais (planos e programas),
operacionais (procedimentos e praticas), funcionais (determinação de
responsabilidades de recursos materiais e financeiros) e desburocratizados (a partir
de uma estrutura célere de atendimento).

Na gestão publica, Salvador, tem se notabilizado, principalmente, por práticas


e investimentos que visam atender espaços públicos em áreas de interesse turístico

88
Scheinowitz, A.S., 1998, p.87.
70
ou com vocação para expansão imobiliária. Conforme Santos (2007), “a orla de
Salvador é considerada no PL apenas como área destinada às atividades voltadas
ao turismo, priorizando a hotelaria, além de promover a especulação imobiliária”89.
Este posicionamento é reforçado por Scheinowitz ao comentar sobre o plano
urbanístico da orla de 1973, que em sua visão, dada a imprecisão e insuficiência dos
gabaritos, impede a consolidação de imagem turística urbana.

Essa prática se consolida nos anos 80 e alcança seu ápice na década


seguinte. Os investimentos tomaram por base as tendências internacionais do
planejamento estratégico e a construção de uma marca para as cidades, fundada no
modelo Barcelona90, o que representa uma realidade de inúmeras cidades
brasileiras, sem, contudo, conduzi-las a uma filtragem que as adeque às
necessidades locais.

O final do século 20 marca uma nova referencia na constituição da


paisagem brasileira, que assume novas configurações morfológicas, na
medida em que exprime e representam as intenções sociais e
contemporâneas da sociedade nacional, então em um franco processo de
transformação e liberação econômica.91

De igual modo, a estratégia urbanística de espaços públicos, em Salvador


tem contemplado os parques metropolitanos com requalificação, como da
concessão de licenças para serviços e demais necessidades que possam dar
suporte a programas culturais destinados à consolidação do uso. Modo pelo qual “O
discurso oficial defende a ideia de que os novos equipamentos tem fomentado um
novo comportamento nas atividades de lazer dos baianos (até então restritas à
praia)”92. Apesar desta condição a gestão incipiente de alguns parques tem
produzido efeitos inversos, baixa frequência e abandono, proveniente da falta de
manutenção e proteção de suas poligonais, o que permite ocupações e apropriação
por parte de posseiros e grileiros urbanos e fomenta a insegurança.

89
Santos, Jonas Dantas dos - Análise do projeto de Lei N.°216/2007 Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano
do Município do Salvador – PDDU – CREA-BA, 2007, p. 13.
90
A ideia de se criar uma nova Barcelona a partir da criação e intervenção em espaços públicos era tese do
arquiteto Oriol Bohigas, aceleradas em sua passagem pela Diretoria de Planejamento de Barcelona no período de
entre 1980 e 1984, e que foi abraçada pelo geografo e sociólogo Jordi Borja durante sua passagem pela prefeitura
de Barcelona no período de 1983 a 1995. Há em Jordi forte convicção que o espaço público é um instrumento
urbanístico fundamental para o resgate da cidade democrática contemporânea, seriamente ameaçada pela
dissolução, fragmentação e privatização de seus espaços. Abrahão, Sérgio Luis, 2008, p. 45.
91
Macedo, Silvio Soares, 2001, p. 145.
92
Serpa, Angelo, 2007, p. 51.
71
Os programas de adoção de espaços públicos, decreto: 11.579–11/04/97 –
Programa Municipal de Adoção de Praças, Áreas Verdes, Monumentos e Espaços
Livres, iniciado em 1997, compreende, dentre tantas alternativas, a manutenção
destes espaços. Em que,

A parceria se dá de três formas. A prefeitura tem os projetos, que podem


ser elaborados pela Secretaria do Planejamento ou pela Superintendência
de Parques e Jardins (SPJ). O adotante assume esse projeto em convênio
com SPJ. A partir daí se definem as obrigações entre as partes. Nesse
caso, a inciativa privada executa e cuida da manutenção. Outra forma é o
empresário se propor a fazer o projeto sozinho, executando e ficando
responsável pela manutenção. O projeto, porém, tem que ser analisado pela
equipe técnica da SPJ para sua aprovação. No terceiro caso, o empresário
ou a prefeitura elabora o projeto, sendo a execução e manutenção dividida
entre os dois. Qualquer alteração no projeto só poderá ser feita com a
permissão da SPJ93

Os decretos 15.629 – 02/05/2005 – Programa Nossa Praça e 19.852 -


08/2009 – Reedição do Programa Nossa Praça, substituíram o texto anterior,
11.579–11/04/97, pouco alterando seu teor quanto aos equipamentos, projetos e
prazos de requalificação, além de ordenar a divulgação por placas fixadas nos
locais, com dimensões preestabelecido, de forma a evitar a propaganda
indiscriminada ou desvio da natureza desses espaços. Iniciativa esta que perdura no
Decreto Nº 23.820 de 21 de março de 2013 – VERDE PERTO, que mantem os texto
das gestões anteriores, divergindo apenas no Art. 12., em que, o espaço público
adotado não poderá ter seu uso impedido.

É importante salientar que os espaços sugeridos pela municipalidade para os


programas tendem a estar, majoritariamente, em áreas centrais e da orla atlântica
de Salvador. Nelas constantemente se fazem investimentos públicos, inclusive com
grandes campanhas publicitárias que propiciam a visibilidade dos projetos e ações
concretas, tão almejada por estas administrações.

Não obstante outros processos e ações se somam para fortalecer a


apropriação não só desses espaços, mas, também ao alinhamento estratégico
orientado ao consumo, suplantando à simples fruição do uso casual ou constante,
em função da produção ou adequação de manifestações culturais, esportivas e
religiosas ao contexto da cidade, objetivando, com isso, proporcionar a visitantes e
cidadãos uma dinâmica de mercado pautada na cidade produto. Estratégia que visa

93
Jornal A tarde 22/08/1999
72
agregar valor a estas comunidades, propiciando a descentralização do uso e do
consumo.

Pode ser verificar nas imagens anteriores, como no referencial, que a


qualidade ambiental da orla Atlântica de Salvador foi comprometida, desde a
abertura de grandes vias que direcionaram fluxos de investimentos, atraindo para a
borda atlântica maior densidade populacional e empreendedorismo, muitas vezes
incompatíveis com as dinâmicas de usos concorrentes que ampliam a fragilidade do
ecossistema costeiro. Nesta cidade os planos urbanísticos, interferem diretamente
na silhueta e paisagem urbana. Empreendimentos diversos foram e estão sendo
implantados em áreas contiguas as praias obstruindo parcialmente o contato com
este elemento da paisagem natural.

No caso do bairro de Ondina, apesar da densidade significativa, como em


outras áreas da orla, vem sofrendo franca ocupação e requalificação imobiliária,
valorizadas com a inserção de novos equipamentos como da manutenção dos
existentes e, principalmente, com alteração do PDDU que ampliou os índices do
gabarito. Nele duas praças se fazem mais visíveis, a Bahia Sol projeto piloto para
portadores de necessidades especiais e a Praça Luiz Sande definida como projeto
piloto na década de 80, proveniente de programa de requalificação na Orla Atlântica
executado pela Superintendência de Urbanização da Capital – SURCAP; Secretaria
de Parques e Jardins - SPJ e Departamento Municipal de Estradas de Rodagem -
DMER.

A localização do bairro e seu potencial paisagístico contribuíram, conforme


Scheinowitz para a implantação de programas urbanísticos de ocupação,
especialmente o segmento de hotelaria que se mantem em franca atividade. A
Praça Luiz Sande, objeto do estudo, foi construída com o objetivo de proporcionar
uma completa infraestrutura esportiva e de serviços aos frequentadores. Esse
formato vigora como uma tendência contemporânea de “especialização radical de
usos das praças públicas” proporcionando uma paisagem padronizada. Em outras
localidades “algumas prescritas como verdadeiras praças de alimentação e uma
grande maioria delas produzidas como espaços para recreação, especialmente para
práticas esportivas”94.

94
Macedo, Silvio Soares, 2001, p. 166.
73
Dentre os programas e políticas aplicadas aos espaços públicos, surgem
projetos que tendem a privilegiar certos usos, transformando-os, por vezes, em
áreas com maior carga estética que funcional, pois não apresentam equipamentos
que favoreçam a permanência prolongada a exemplo de abrigos, bancos, condição
que limita sua utilização, talvez consistindo em estratégia de segregação espacial,
tornando-os insípidos e em certas condições hostis aos usuários.

Para Serpa as “posições socioeconômicas equivalentes, onde as relações e


representações estão “socialmente referenciadas””95 , marcam as ações e
concepções do espaço, direcionando-o a um uso estabelecido, na forma adotada de
implantação de equipamentos ou facilidades, que venham a atender as
reinvindicações de grupos específicos. Este raciocínio pode se estender a outras
formas de ação de um grupo hegemônico sobre a totalidade, presente “no conceito
de habitus, naquilo que concerne aos comportamentos das classes médias ao se
apropriarem do espaço público contemporâneo”96.

Retomando os espaços livres, estes “[...] representam alegorias do tempo e


dos poderes que os conceberam”97. Isso corrobora com o pensamento de Lefebvre
sobre a vontade e representação do nível global, que atinge o espaço da cidade.
“Esse nível global é o das relações as mais gerais, portanto, as mais abstratas e, no
entanto, essenciais: mercado de capitais, política do espaço. Ele não deixa de reagir
mais e melhor no prático-sensível e no imediato”98, se projetando por vezes no
edificado e nos espaços livres.

Compor a paisagem urbana de espaços livres e com isso produzir visibilidade


é uma estratégia de mercado, que, aliada à produção do espaço edificado, a partir
da composição entre Capital e Estado, produz uma abordagem direta e com sua
proximidade pode constituir um diferencial aos empreendimentos, loteamentos ou
bairros novos, presentes na Orla atlântica, como na Ondina em que há franca oferta
de investimentos em unidades habitacionais para as classes de maior renda.

Neste sentido, “a distribuição, mas, sobretudo, a frequentação dos parques e


jardins públicos em Salvador podem revelar, todas as nuances da organização sócio

95
Serpa, Angelo, 2007, p. 21.
96
Ibidem. p. 21.
97
Ibidem, p. 69.
98
Lefebvre, Henri, 1999, p. 79.
74
espacial da metrópole”99, o que privilegia certas regiões da cidade em detrimento de
outras. Esta condição configura uma perspectiva política de valorização de
potenciais turísticos e imobiliários que caminha na contramão dos critérios
democratizantes para instituição de espaços livres e de valorização, presentes na
articulação do espaço urbano a partir do fim de 1960, em Salvador, como na maioria
das grandes cidades,

O crescimento urbano se caracteriza pela suburbanização intensiva tanto de


bairros ricos como populares e por um processo de verticalização de porte,
fruto de uma indústria de construção e imobiliária em expansão, que
transforma extensas áreas e, portanto, paisagens consolidadas em novas
paisagens, alterando de um modo expressivo a hierarquia e a constituição
de seus espaços públicos e privados.100

A despeito do que se possa ler em documentos oficiais e matérias de jornais,


a realidade do espaço público é auxiliar na construção da imagem do espaço
privado, agregando valor no projeto da expansão imobiliária, que cresce, através da
urbanização verticalizada (Macedo), principalmente na faixa litorânea de Salvador,
onde os terrenos valorizados asseguram o investimento na construção de número
maior de itens de lazer e unidades.

Outro aspecto é o posicionamento que o Estado assume em relação aos


espaços livres.

Nas grandes cidades do Brasil e do mundo ocidental, a palavra de ordem é,


portanto, investir em espaços públicos “visíveis”, sobretudo os espaços
centrais e turísticos, graças às parcerias entre os poderes públicos e as
empresas privadas. Esses projetos sugerem uma ligação clara entre
“visibilidade” e espaço público. Eles comprovam também o gosto pelo
gigantismo e pelo “grande espetáculo” em matéria de arquitetura e
urbanismo101.

O trecho acima se materializa nas ações, em curso, para revitalização de


nove pontos da orla desta cidade.102 Os projetos, propostos de forma verticalizada,
não refletem a necessidade dos usuários, tão pouco a necessidade dos espaços em

99
Serpa, Angelo, 2007, p. 90.
100
Macedo, Silvio Soares, 2001, p. 149.
101
Serpa, Angelo, 2007, p. 26.
102
São Thomé de Paripe, Tubarão, Ribeira, Barra, Jardim de Alah/Armação, Rio Vermelho, Boca do Rio, Piatã e
Itapuã. Neles com um investimento de pouco mais de 110 milhões, serão implantados 50 mil m² de novas
calçadas, 16 mil m² de espaço compartilhado entre pedestres e carros, seis quilômetros de ciclovias, 10 km com
nova iluminação pública, além de quadras, praças e restaurantes. Essas informações fazem parte do vídeo
publicado no site Youtube pela Prefeitura Municipal de Salvador, em junho de 2013.
75
que se implantam. Outra questão relevante é que eles não refletem um cotidiano
para o qual, em certos casos, trarão mudanças sensíveis. Toda carga simbólica e
identidade preexistentes nesses locais são descartadas em prol do projeto. Disso
pode nascer uma precariedade dos espaços de uso coletivo.

Ondina, apesar de não fazer parte desse projeto, conta hoje com a
implantação de mais um espaço público, o Bosque das Aroeiras, fruto de um acordo
entre a Prefeitura Municipal de Salvador e a Construtora Ondina Lodge, responsável
pela obra do empreendimento Costa Espanha, que irá arcar com os custos da
urbanização e requalificação da área em frente à Prefeitura da Aeronaútica, como
parte de um TAC – Termo de Acordo e Compromisso – com o Ministério da
Aeronaútica, somado à concessão do habite-se do Costa Espanha.

A lei estabelece que não haja impedimento para a fruição dos bens comuns,
“os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças”103
pertencem a todos os cidadãos, este direito esta assegurado, cabe aos gestores
públicos, proporcionar as garantias para que se faça esse uso, com segurança,
higiene e mobilidade, de forma a preservar o cidadão e sua família. Criar espaços de
uso coletivo, não significa simplesmente implantar praças, parques e outros
equipamentos, mas na adoção de políticas integradas de lazer, mobilidade,
segurança e saúde pública, dentro de um planejamento urbano que articule o
Estado, as comunidades e os parceiros privados, no intuito de produzir ações de
curto, médio e longo prazo.

Nas recentes ações de requalificação, a prefeitura atinge determinadas áreas


da orla atlântica e da cidade, mas apenas a Barra e Piatã, conforme o projeto
apresentado, sofrerão profundas transformações em sua mobilidade e serviços. Dos
mais de 110 milhões, orçados para a totalidade do projeto, 75 milhões serão
investidos nestes dois pontos da orla, ou seja, quase 3/4 dos recursos, enquanto os
investimentos na Baia de Todos os Santos, relativo a áreas como o subúrbio
ferroviário, que conta com diversas praias, pouco mais de 10%, algo em torno de 13
milhões serão destinados.

103
Art. 99 do Código Civil
76
3. A Praça e a Cidade

3.1. Perspectiva dos usos na Praça Luiz Sande

Os critérios para entendimento do que seja espaço público, de modo a


lastrear as ações dos gestores públicos, considerando o aparato legal cabível, é o
Plano Diretor do Desenvolvimento Urbano - PDDU -104 e toda legislação
hierarquicamente superior em relação à instância e abrangência legais, que sejam
requeridas para sua elaboração e cumprimento, qual sejam, Constituições Federal e
Estadual, Lei Orgânica do Município e Estatuto das Cidades.

No PDDU de Salvador, as praças estão previstas como Espaços Abertos


Urbanizados – EAU -105. São esses os locais para a vida pública da cidade. O PDDU
também prevê a extensão do acesso, o aproveitamento do potencial e a ampliação e
diversificação da oferta desses espaços para lazer, esporte e recreação em seu
artigo 113, capítulo VI, parágrafos I, II e III. Além disso, possibilita que sejam
estabelecidos convênios e parcerias com a iniciativa privada para a manutenção e
promoção de eventos nesses espaços.

O ambiente costeiro tem qualidade de coisa pública, espaço comum a todos,


por ser patrimônio da União, logo, presumidamente, pertencente ao povo. Interferir
na paisagem litorânea, a partir da praia, denota uma necessidade de apropriar
institucionalmente, em outro nível, algo que já produz efeitos como espaço público,
como espaço coletivo, espaço a habitar, a partir dos conceitos de Lefebvre.

É, pois, através de práticas cotidianas que os cidadãos vivenciam esses


espaços de forma simples e criativa, bastando, para isso, o acesso. Considerando
as dificuldades de mobilidade numa cidade carente de espaços públicos, cabe
questionar se não seria mais sensato ocupar aqueles espaços que não estão
prontos, ou que não permitem usos diversos por carecer de infraestrutura, mas que
estão próximos às comunidades. Parece óbvio que, em cidades com muitas
carências e recursos limitados, a mobilidade seja o ponto de partida. Ela pode

104
Lei 7400/2008 Dispõe sobre o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano do Município do Salvador – PDDU
2007.
105
Correspondente a área pública urbanizada destinada ao convívio social, ao lazer, à prática de esportes e à
recreação ativa ou contemplativa da população, correspondendo aos parques de recreação, às praças, largos,
mirantes e outros equipamentos públicos de recreação e lazer.
77
inclusive promover a inclusão em muitos sentidos, principalmente se observada do
ponto de vista da consolidação dos percursos e não só da sua produção.

Figura 8 - Praça Luiz Sande – 2013 – Fonte Google Earth

A Praça Luiz Sande, na Avenida Oceânica em Ondina, está localizada no


Trecho 7 da Borda106 Atlântica da cidade de Salvador/BA. Conforme o PDDU,
compreende a faixa litorânea de Ondina até a Praia da Bacia das Moças. Nela,
existem diversos equipamentos urbanos destinados ao uso coletivo, quadra

106
Área de contato ou proximidade com o mar, que define a silhueta da Cidade, representada pela faixa de terra
entre as águas e os limites por trás da primeira linha de colinas ou maciços topográficos que se postam no
continente.
78
poliesportiva, estacionamento, lanchonete, quadras de futebol, sanitários, boxes e
quiosques destinados ao comércio de coco, tendo ainda vegetação composta por
coqueiral. O acesso à praia pode ser realizado por rampa lateral ou pela própria
praça, que se estabelece em níveis diversos até a areia, como é percebido na
imagem a seguir.

Essa praia é frequentada, principalmente, por moradores do bairro e entorno,


turistas, mas, de modo geral, por pessoas de toda cidade. É um espaço para os
atletas cotidianos que buscam vencer uma vida sedentária, jovens e idosos, que
praticam a caminhada matinal, pessoas aposentadas e outras em plena atividade
que aproveitam a praça como local para o alongamento ou um breve descanso,
apreciando o mar, antes de prosseguir no retorno para casa. E ainda, aproveitam
como local de passeio.

Tem, além dos pontos regulares como quiosques e boxes a presença de


comerciantes ambulantes que vendem doces, cervejas e água mineral. Notabilizou-
se como espaço do carnaval e apoteose dos festejos do circuito Barra/Ondina.

Foto 6 – Visão geral do Camarote Salvador – Acervo Pessoal

Foto 7 – Visão geral da Praça Luiz Sande – 2014 – Acervo Pessoal

79
Foto 8 - Estrutura metálica do camarote Salvador montada na Avenida Oceânica – Acervo Pessoal

Os camarotes, no circuito Barra/Ondina, já garantiram seu destaque, o que


ocorreu pelo incremento e profissionalização, atingidos ao longo dos últimos anos,
especialmente, para os vinculados aos empreendimentos hoteleiros locais. O
Camarote Salvador, serve como exemplo dessa condição. Apesar de surgir em
2000, como espaço particular utilizado por um grupo para brincar o Carnaval, em
2007, evoluiu para um espaço coletivo privado, citado por seus produtores como “o
mais exclusivo para brincar o Carnaval de Salvador”. Ele reúne diversos atributos
que lhe garantem o status de camarote mais procurado pelos turistas.

Ao que parece, a parceria com a empresa Premium Entretenimento, em 2009,


produziu a ampliação do negócio, agora vinculado às ações do Hotel Salvador 107,
alterando a dimensão, bem como o modelo organizacional, conduzindo à
reconfiguração das estratégias, transformando-o num evento interior ao evento
Carnaval. Se inicialmente atendia-se cerca de 3000 pessoas/dia, atualmente têm-se
informações em site institucional de atender a aproximadamente 20 mil pessoas
durante o período do carnaval, verificando-se um acréscimo de quinze por cento. A
107
Hospedagem de luxo que promove pool parties durantes os dias de folia, com muita mordomia e serviços
exclusivos, como salão de beleza, customização de abadás e massoterapia. (Disponível em: <
http://glamurama.uol.com.br/saiba-da-historia-de-um-dos-camarotes-mais-badalados-do-brasil/>. Acessado em:
05 fev. 2014).
80
imagem abaixo, da área interna do camarote, permite-nos perceber, mesmo que
parcialmente, as dimensões do equipamento, bem como a organização que
demanda.

Figura 9 - Vista interior do camarote Salvador – Fonte Premium Empreendimentos – Site da Empresa

A ocupação que esse equipamento, como tantos outros, faz do espaço


público, na medida em que implica alguma forma de privatização ou que contempla
algum processo político ou econômico, acaba se chocando com as tipologias de
usos esperadas do sistema de práticas urbanas em suas funções predominantes:
circulação, permanência, lazer, visitação (Popini). No caso do Camarote Salvador,
sua dimensão chama atenção por ocupar o espaço público em sua totalidade, tanto
da praça como do estacionamento.

Verificando tal situação, temos reconhecida tendência a permitir o uso de


espaços públicos urbanos por atividades e interesses privados, ou ainda, a
tendência a buscar, na PPP, condição de manutenção e conservação desses
espaços. Inobservadamente, a supressão desses espaços, praças e ruas, resultam,

81
conforme “qualquer possibilidade de identificação ou reconhecimento por parte de
seus habitantes”108.

Figura 10 - Visão geral da praça e limite do camarote na cor vermelha – Google Earth

A preocupação quanto à presença e manutenção desses espaços está


relacionada à sua importância como “fóruns tradicionais de troca de opiniões e de
um jeito civilizado de liberar as tensões de classe”109, compreendendo espaços
coletivos que não entrincheiram grupos nem marginalizam minorias. Limitar aos
espaços coletivos privados uma fruição de grupos selecionados pode produzir uma
série de fenômenos dentre os quais os já conhecidos e reprimidos rolezinhos110.

No caso da Praça Luiz Sande, não é a supressão dos espaços públicos,


tampouco os efeitos da instituição de um uso coletivo privado, mas a sobreposição e

108
Abrahão, Sérgio Luis, 2008, p. 51.
109
Ibidem, p. 55.
110
(diminutivo de rolê ou rolé, em linguagem informal, significa "fazer um pequeno passeio" ou "dar uma
volta") é um neologismo para definir um tipo de flash mob ou coordenação de encontros simultâneos de centenas
de pessoas em locais como praças, parques públicos e shoppings. Os encontros são marcados pela internet, quase
sempre por meio de redes sociais como o Facebook.
82
a momentânea alteração da natureza de uso, de coletivo público para coletivo
privado, que deve ser observada. Apesar de atribuído pelas práticas e operações de
seus usuários costumeiros, o caráter público de um lugar, que poderia ser
considerado como garantia de efetivação dos usos futuros, cede sob pressões
exercidas por novos usos, alterando os usos futuros num horizonte mais distante,
porém não menos possível de serem alcançados.

A análise da ocupação da Praça pelo Camarote serve como exemplo dessa


pressão sobre o espaço público urbano. A natureza sazonal dessa ocupação não
inviabiliza trazê-la como objeto de investigação desse processo, tão pouco sua
relação com o contexto do Carnaval, uma vez que o camarote já assumiu certo
protagonismo, quanto à sua relação com a festa. A natureza da apropriação e a
quem ela representa, podem, também, ser relevantes, e os valores do camarote per
si, feminino para todos os dias da festa R$ 4.590 e masculino 6.790, demonstram
coerência dessa afirmativa.

Agora, se consideradas as características desse sítio, de estar na jurisdição


do município e da União, temos uma (re)leitura bastante interessante do que ocorre
na praça, pois permite tanto visualizar, quase que de forma geral, como o estatuto
da coisa pública é visto jurídica e socialmente por níveis de governo e por escalas.

O Carnaval já acumula aspectos relacionados à segregação socioespacial,


amplamente discutidos, ao ser associada à privatização (itinerante) ocasionada
pelos blocos; às relações trabalhistas dos cordeiros; aos ambulantes entre
licenciados e clandestinos; à informalidade variada durante a festa. A isso tudo se
soma a privatização de espaços públicos urbanos que atinge calçadões e ruas, em
ambos os circuitos.

As formas de ocupação, ao longo do tempo, permitem ainda uma leitura dos


modos como esses estatutos foram alterados para satisfazer interesses distintos.
Em Ondina, considerando a trajetória de reapropriação e posterior requalificação a
partir da retirada das famílias da Invasão da Areia Preta, as pressões sobre esse
espaço foram de ordem ambiental, urbanística, econômica e social. Para aquelas
pessoas, a relocação para a Boca do Rio, a reterritorialização em lugar distante
representava perdas significativas que interferiam na vida, no cotidiano, no
sentimento de pertença e nas relações sociais construídas no lugar e entorno.

83
A (des)(re)territorialização pode ser entendida como a incapacidade do grupo
excluído de se representar perante a sociedade, pode ser resultado de interesses ou
bem coletivo, justificados pelos “benefícios” a uma coletividade já segregada em sua
espacialidade, e em sua capacidade de resiliência. Hoje, as audiências públicas que
se fazem por conta de projetos que, inevitavelmente alterarão territórios e cotidianos,
independente dos seus resultados ou de possíveis mitigações, representam bem
essa condição.

Entretanto, mesmo sabendo que,

desterritorialização, ao contrário de “exclusão social”, não tem uma


valoração exclusivamente negativa (ver, no seu extremo oposto, algumas
proposições de Deleuze e Guatari, que vêem na desterritorialização como
“linha de fuga” um sentido amplamente positivo, por seu potencial
transformador, criador, de “devir”111

Não se quer dizer, com isso, que desterritorializar não signifique excluir e que
aqueles retirados de suas casas, mesmo em troca de novos lotes e promessas de
uma nova condição de vida, não estejam, em última instância, sofrendo uma ação
negativa sob o aspecto de suas relações individuais e coletivas, considerando que
não foi efetivada nenhuma proposta de reurbanização para os relocados.

De modo contrário, no Rio de Janeiro, quase à mesma época, ocorre uma


experiência conduzida pelo grupo do arquiteto Carlos Nelson Ferreira dos Santos na
Favela Brás de Pina, no Estado da Guanabara. Apesar do movimento ter
conquistado a permanência (1969) e a urbanização do local ser executada, em seu
retorno, ao analisar a urbanização de Brás de Pina por ocasião de sua dissertação
de mestrado (1979):

Carlos Nelson reconheceu que as questões reveladas na urbanização de


Brás de Pina, sobretudo com relação à dificuldade dos seus moradores em
se articularem em torno de um espaço permanente de participação e
reivindicação de direitos – espaço público político – não eram reflexos de
uma crise de caráter urbano, mas consequência da maneira como as
cidades, sob o domínio do autoritarismo, foram apropriadas pelo modelo
desenvolvimentista capitalista brasileiro e transformadas pelos pressupostos
urbanísticos progressista-racionalista112.

111
Haesbaert, Rogério, 2011, p. 312.
112
Abrahão, Sérgio Luis, 2008, p. 115 e 116.
84
Em seu texto dissertativo, Carlos Nelson descreve o desenvolvimentismo
brasileiro como um modelo que, para os grandes centros urbanos, criou forte
atração de mão de obra, sem, contudo, haver a devida contrapartida de recursos e
projetos de inclusão para essas pessoas, e sinaliza seu surgimento e evolução a
partir da industrialização. Ele também entendia que o momento histórico
proporcionava ao autoritarismo recursos e mecanismos que apoiavam um poder
ilimitado e anulava oposições. E, se considerarmos ainda a condição da cidade, “[...]
sempre política, ela constitui o meio mais favorável à constituição de um poder
autoritário”113 que, invariavelmente, age por um grupo ou grupos de poder e força
com o intuito de manutenção da hegemonia, que, numa associação público privada,
pode significar a alienação de parte dos conceitos associados a um dos estatutos.

Diante dessa condição, Eulálio afirma que,

para Habermas, na sociedade industrial organizada como Estado-social


novas normas são introduzidas, normas do assim chamado Direito Social e,
consequência disso é que à medida que o setor público se imbrica com o
setor privado, o modelo de separação rígida entre o público e o privado se
torna inútil. Surge uma esfera social repolitizada e porque não dizer
potencialmente promíscua114.

Abrahão, por sua vez, argumenta acerca da importância que tem o espaço
público enquanto espaço político e de representação, que serve à problematização
coletiva das questões cotidianas e à hierarquização das necessidades de todos, no
sentido de estabelecer prioridades comuns e auxiliar a composição de uma unidade
de interesses e ações que promove a articulação de indivíduos e grupos. Ele afirma
que,

a partir das formulações de Arendt observa-se que o grau zero do mundo


público imposto pelo totalitarismo induz a um isolamento social que
corresponde a um espaço desolado, habitado por indivíduos supérfluos,
justamente sem lugar, que só pode ser vencido pela ação da vida em
público. Para Otília Arantes (1995: 115), tais formulações implicam em “um
certo número de imagens espaciais sugestivas da correspondência entre a
reflexão sobre a condição humana moderna e a organização social do
espaço”115.

113
Lefebvre, Henri, 1999, p. 89.
114
Eulálio, Marcelo Martins, 2009, p. 47.
115
Abrahão, Sérgio Luis, 2008, p. 23.
85
O totalitarismo, contudo, não parece ser a única via para promover essa
desolação. Ela ganhou outros contornos e se modificou, assumiu uma condição
mais ardilosa e, assim como talvez não sejamos tolos ao ponto de nos deixar
dominar, talvez não sejamos hábeis ao ponto de nos mantermos livres de suas
influências.

Com a urbanização da orla do bairro de Ondina retomou-se relação direta sob


a perspectiva do mar e seus benefícios estéticos. Sua inclusão no Plano Diretor da
Orla Marítima de 1973 evidenciou amplo interesse em preservar a paisagem.
Conforme se analisa o zoneamento indicado, à época, é possível compreender ser
destinado o lado oposto ao mar às zonas residenciais, comerciais e de serviços. O
que não correspondeu à efetiva ocupação do bairro, provável desvio dos princípios
de gestão e organização espacial, como pode ser observado na Figura 7 de uso do
solo (página 68).

A não adesão ao plano e a modificação dos critérios urbanísticos nele


estabelecidos favoreceram intensa ocupação da frente marítima, alavancando o
bairro como cluster hoteleiro, definindo a degradação da paisagem natural,
sedimentando uma paisagem artificial, dificultando a relação visual com o mar,
aspecto que valoriza a localização da Praça Luiz Sande na Praia de Ondina como
resquício espacial ao qual se pode recorrer como espaço de possibilidades, lugar de
vivenciar relações espontâneas e processos criativos, que cada vez mais não
encontram lugar, em toda cidade.

É importante ressaltar que a simples visão de um espaço aberto já evoca ao


indivíduo a ideia de estabelecer certo uso, possivelmente associada a necessidades
e possibilidades mais iminentes, talvez, daí, a formulação de Lefebvre de que o uso
para atender tais processos caracterize a apropriação, não sendo, contudo, obrigado
que o substrato a ser apropriado seja um espaço natural.

Veja que, já nos anos 80 do século XX, intensificava-se uma discussão sobre
a vida pública e os espaços para sua fruição. Abrahão traz a referência dos textos de
Brill (1989) e Rivlin (1992): o primeiro, para o qual pesam o zoneamento e legislação
como depreciadores da vida pública e, a segunda, que definiu uma confluência de
forças sociais, funcionais e simbólicas como modeladoras desses espaços. Para
Brill, a transferência dos espaços públicos, para o que ele “identificou genericamente

86
como ‘canais de comunicação’: internet, jornais locais, programas de tevê, etc.” 116
recrudescia a vida pública americana.

Quanto a isso, Sennett afirma que “a atomização da cidade colocou um fim


prático num componente essencial do espaço público: a superposição de funções
dentro de um mesmo território, o que cria complexidade de experiências naquele
determinado espaço”117, necessárias às relações do trabalho e da família que,
compartilhadas, aproximam a sociabilidades e propiciam os encontros impessoais.

Na praia de Ondina, a experiência da multiplicidade de usos foi enriquecida


em 1983 a partir da instalação do Circo Troca de Segredos na Praça Luiz Sande.
Justificou-a, Paulo Conde, em matéria do Correio da Bahia:

E por que não o teatro? Por que justamente naquele período, Salvador
passava por mais uma etapa de urbanização [...] “Foram as duas primeiras
praças da orla. No Bico de Ferro, teve até resistência e algumas casas
foram derrubadas com trator. Lá, passou a se chamar Jardim dos
Namorados, e aqui em Ondina, pouca gente sabe, mas a praça recebeu o
nome de Jardim da Paquera”, conta com memória de menino o vendedor de
água-de-coco Luiz Fernando Souza de Brito, 47. [...] A reforma transformou
o chão que abrigava os barracos da Areia Preta em quadras de futebol e
patinação, e criou ainda uma arena com arquibancada de cimento,
destinada a abrigar eventos culturais. Na época, ninguém sabia, mas era ali
que o circo Troca de Segredos seria instalado118.

Arte, música, teatro, grandes públicos e uma intensa relação com movimentos
de renovação do cenário artístico baiano marcaram a presença do circo na praça.
Passados 30 anos, ainda se comenta essa presença e a repercussão desse espaço
na vida cultural do bairro de Ondina e da cidade. A ocupação pelo circo é a
apropriação da praça e do espaço público por uma forma de exploração privada que,
por seis anos, produziu um valor de troca, mas proporcionou um valor de uso
coletivo, sem, contudo, evitar outras formas de utilização da Praça Luiz Sande.

A Praça, em sua configuração mais recente, foi fruto da PPP entre Prefeitura
Municipal de Salvador – PMS - e a empresa Premium Entretenimentos. O objetivo foi
requalificar e promover sua manutenção. Entretanto, a discussão que se faz sobre
os elementos conceituais e práticos referentes ao espaço urbano de uso coletivo e a
aderência dos conceitos de público e privado, presentes e efetivos nessa relação, é

116
Abrahão, Sérgio Luis, 2008, p. 146.
117
Sennett, Richard, 1988, p. 362.
118
Jornal Correio da Bahia, 19/03/2006, p. 04 – Arena Urbana.
87
que se fazem relevantes. Justificar a ocupação por 3 meses da totalidade da praça
em contrapartida aos 9 meses de espaço liberado e conservado, parece não ser
entendido como um pacto perfeito por alguns, mas se conforma como um arranjo
satisfatório que agrada e atende a outros.

Os movimentos e discussões originados na efetivação da apropriação e as


ramificações jurídicas, econômicas, sociais, oriundas do processo, referem relações
entre o espaço público urbano e o capital privado na maioria das capitais brasileiras,
e por que não dizer no mundo, presentes nos questionamentos de urbanistas,
sociólogos, geógrafos e demais especialistas que lidam com o tema cidade. Elas
refletem os desafios para construir relações mais equitativas e para elucidar e
consolidar conceitos como público, privado e coletivo e suas conexões e
intersecções.

O que Lefebvre trata por apropriar e pela relação do individuo com a natureza,
do homem com a terra, é o costume, a tradição, e não implica intermediações.
Talvez possa ser entendido como uma condição de privado, não no sentido
individualizado que perturba as relações, mas no sentido de guardar uma condição
natural, de guardar permanências, para as quais o público seria o desenvolvimento
da cultura, conhecimento, mediação, transformação em função de uma
superestrutura.

Por outro lado, conforme Sennett, “uma comunidade é também uma


identidade coletiva”119. Essa condição produz, quando necessário, uma ação coletiva
que aproxima os indivíduos. “Em geral podemos dizer que o ‘senso de comunidade’,
de uma sociedade que tem uma forte vida pública, nasce [...] do eu coletivo
compartilhado”120. Podemos entender esse eu coletivo como antagônico à
superestrutura que afasta os indivíduos e causa a erosão, mesmo que parcial da
vida pública. Mas Sennett percebeu que “o imaginário compartilhado se torna um
freio à ação compartilhada [daí] a única transação que poderia engajar o grupo é a
purificação, a rejeição e o castigo daqueles que não são ‘como’ os outros”121.

119
Sennett, Richard, 1995, p. 275.
120
Sennett, Richard, 1995, p. 275.
121
Ibidem, 1995, p. 276
88
3.2. Escalas de apropriação da Praça

A escala, do ponto de vista espacial, implica “traço fundamental da ação


humana, relacionada a práticas que se realizam em âmbitos espaciais mais
limitados ou mais amplos, mas não dissociados entre si”122. Dessa forma, as
transformações são ocasionadas por um processo contextualizado que atinge certa
parcela do espaço urbano, muitas vezes por ocasião de um alinhamento ou
coerência que pode se estabelecer no âmbito da cidade. A praça possui um histórico
no qual podemos identificar três modos diversos - ocupação, apropriação e
privatização - a partir da presença de três equipamentos distintos: o módulo
comercial, o circo e o camarote.

A implantação do módulo comercial, onde funciona o SPEED Lanches, é


limitada, em suas perspectivas de intervenção, por sua concessão de uso (alvará),
sendo permitido à lanchonete explorar economicamente apenas uma atividade, sem
lhe facultar a liberdade de arbitrar usos diversos para aquele espaço. Há, contudo,
nessa apropriação, uma função para a praça, proporcionando serviços que atendam
seus usuários o que o torna parte do microcosmo da praça.

Esse módulo foi determinação do poder público (RENURB), articulado por


uma tendência e orientado por um processo administrativo e político que definiu um
objetivo (alimentação), uma forma (tamanho, localização), um modo de ação ou
prática (licitação, alvará, licença) para a sua instalação que, apesar da condição
definitiva, mantém a qualidade de espaço coletivo privado, onde o uso é público e o
resultado, no âmbito das relações com a cidade, ocorre de modo mais intenso no
bairro, mas também integra pessoas e turistas - nem todos que frequentam a praça
consomem no módulo; há uma elegibilidade no uso do módulo.

Essa apropriação não implica maiores questões para a cidade. A privatização


ocorrida com o módulo comercial é uma simples condição de ocupação e uso
privado do espaço coletivo, mas, em relação, por exemplo, às antigas barracas de
praia, conta menos no sentido da invasão dos estatutos ou da quebra dos limites,
pois é quase que assimilada no projeto da praça. Esse foi instituído pelo município

122
Correa, Roberto Lobato, 2011, p. 41.
89
como suporte às atividades e ao funcionamento da praça como equipamento
público.

Uma vez que o município não tem como prover tais serviços, a partir de sua
própria estrutura, essa concessão apresenta natureza de parceria entre o Estado,
limitado por seus estatutos, e o concessionário, que é autorizado, naquele espaço
público, por sua capacidade particular de mobilização e manutenção de um
empreendimento e da atividade que dele decorre, a suprir a necessidade da
sociedade. Assim, o módulo faz parte do contexto dessa praça.

De certa forma, o módulo está para a praça como a praça está para a cidade,
numa gradação dos valores de uso contidos no cerne dessa relação, que não ferem
o processo socioespacial, pois o uso do equipamento não subordina o uso do
espaço.

Já a apropriação do Circo Troca de Segredos, iniciativa que privatizou a arena


da praça para produzir eventos culturais e musicais por seis anos, apesar de
funcionar como negócio, cobrando ingressos para venda de serviços, reivindicou um
estatuto de espaço cultural. Sua estrutura era particular, mas contou com apoio da
Prefeitura de Salvador que permitiu a ocupação e uso e, além disso, doou as
ferragens da estrutura.

Suas relações estavam no âmbito da cidade, promovendo eventos que


traziam pessoas de diversos bairros, conforme depoimento de um frequentador:
“Nós nos encontrávamos para ver o show no Troca de Segredos. Eu descia da
Federação e os outros vinham do Nordeste, Liberdade, Pau Miúdo, Ribeira e Boca
do Rio”123.

Sua frequentação era variada em função da diversidade de atrações e


gêneros musicais que apresentava, além de teatro e outras atividades culturais.

Nesse caso, a frequência do circo não se fazia em função da praça, e sim foi
constituída uma polarização entre praça e circo, exemplo disso é o depoimento do
proprietário da lanchonete Speed: “Nos dias de maior movimento no circo, as
vendas chegavam a ser cinco vezes maiores que o normal”124. Apesar da polarização
e dos usos concorrentes entre os frequentadores da praça e do circo, ainda assim,

123
Informação prestada por frequentador do circo, em entrevista.
124
Jornal Correio da Bahia, 19/03/2006, p. 07 – Arena Urbana
90
havia convívio entre formas diversas de uso e sua característica de espaço coletivo
público era simultânea ao espaço coletivo privado do circo.

A privatização que vem com o circo alcança a cidade em uma escala


significativa, principalmente considerando a Salvador de trinta anos passados, onde
as relações ainda eram muito localizadas e enquanto ainda se saia de um regime
autoritário. Arte, música, eram expressões que tomavam outra forma. Passariam a
privar de uma liberdade, não só de expressar, mas de construir formas de
expressão. Nesse contexto, o circo assumiu uma perspectiva de espaço alternativo,
mas também de espaço inusitado, de experimentação.

Figura 11 - Acesso ao Circo Troca de Segredos em dia de show – Reprodução Correio da Bahia

O circo também tinha um caráter de elemento estranho à praça, por sua


permanência, por suas parcerias e patrocínios numa relação direta com a iniciativa
privada. Porém, mesmo diante desse processo maior e de certas circunstâncias
especificas, o circo não tem a mesma relação que o módulo comercial. De outra
forma, ele exerce alguma subordinação sobre a praça, diante das grandes
audiências externas que reunia, além do seu espaço original.

A apropriação promovida pelo Camarote é a privatização mais facilmente


percebida do espaço da Praça Luiz Sande e, apesar de ser encoberta parcialmente
pela presença do Carnaval, é visível a uma parcela que tem informação e que lida
com o dia a dia da gradativa privatização da cidade. “Estamos verificando que a

91
cidade como sistema de serviços públicos se enfraquece, tende a se privatizar, com
tudo o que isso pode significar de negação da cidadania e conversão em um fator de
ruptura da estrutura social”125.

Figura 12 - Interior do Circo Troca de Segredos em dia de show. Lazo Matumbe – Reprodução
Correio da Bahia

Se por um lado a privatização produz uma dissociação do sentido coletivo por


ocasião da restrição do uso e do acesso à praça, por outro, é necessário atentar
para o fato de a parceria entre o município e a empresa de entretenimento produzir
uma requalificação e manutenção da praça pública. Nesse sentido, essa
privatização traz um elemento novo, a contrapartida ao uso do espaço público. Isso
não se estabelece nos processos anteriores, sendo que o primeiro implica apenas
na prestação de serviços e o segundo implicou na produção de um valor simbólico,
cultural, contudo não se traduziu em infraestrutura ou manutenção dos
equipamentos existentes.

O camarote exerce uma forma complexa de privatização em que o município


e a empresa se unem para produzir um espaço coletivo privatizado, com seu uso
mediado pelo consumo do produto camarote, segregando o uso da praça. A
discussão nos conduz aos usos que povoam as relações com o espaço público
urbano, por força do individualismo que reina nas relações que se constroem na
cidade. Podemos considerar a referência que Abrahão faz de Lipovetsky, de que,

125
Córtes, José Miguel G., 2008, p. 98.
92
Sem o polo público a privatização urbana havia se tornado um instrumento
de autonomização das pessoas, ou ainda, de uma vida privada mais livre,
onde a sociabilidade se resumia em alguns casos a mero encontro de
massa (metrô, por exemplo), e em outros a uma sociabilidade do espetáculo
e do divertimento126.

A história de apropriação, da lanchonete ao camarote, pode demonstrar


sociabilidades associadas a algum tipo de evento, a uma forma mais complexa de
apropriação e uso, envolvendo algum modo de consumo.

Nomear o Ondina Apart Hotel como equipamento urbano127 da praça nos


guiando por uma visão do uso coletivo não é absurdo, nem equivocado, pois o uso
coletivo pode ser privado, o apart hotel é um equipamento urbano128, e ele está
localizado na praça, ao menos sua lateral é contígua a esse espaço. Não implica,
contudo dizer que seu uso está disponível a qualquer cidadão, uma vez que é
mediado por uma relação de consumo, pois o hotel presta um serviço de
hospedagem.

A praça também é um equipamento urbano, mas, nela, as mediações são


feitas pela sociabilidade para a qual foi destinada e não pelo consumo, o que
também não implica dizer que sociabilidade e consumo não possam estar ligados ou
interligados.

O fato de ser temporário não anula do camarote a característica de ser um


equipamento de uso coletivo, em que as relações são mediadas pelo consumo,
nesse caso seu próprio consumo. Sua sobreposição à praça, o equipamento urbano,
o espaço coletivo público, a faz não existir e não permite nenhuma relação com a
cidade, pois deve extrair o melhor retorno do espaço ocupado para quem tem a
concessão. Podemos dizer, na visão do capital, não só tempo, mas espaço é
dinheiro.

Quando Anne Buttimer (1979, p. 279) observa que “entre as preocupações


centrais para a geografia moderna encontra-se a organização do espaço e
do tempo”, seu objetivo não é explicitamente uma descoberta da
experiência humana total, mas, antes, da experiência técnica, ou da

126
Abrahão, Sergio Luis, 2008, p. 148.
127
Equipamentos Urbanos - Todos os bens públicos ou privados, de utilidade pública, destinados à prestação de
serviços necessários ao funcionamento da cidade, implantados mediante autorização do poder público, em
espaços públicos ou privados (NBR 9284).
128
Equipamentos urbanos – instalações públicas ou privadas destinadas ao apoio às necessidades da comunidade
atendida localizada dentro de uma área urbana (PDDU Salvador).
93
utilização racional do espaço-tempo, visando assegurar eficácia econômica
à administração dos investimentos129.

Desse modo, é essa eficaz administração dos recursos, inclusive aqueles que
pertencem à coletividade, mas estão disponíveis de modo sazonal, e estão ao
alcance da argúcia do capitalista e de suas estruturas de exploração, que deve
prevalecer e não uma visão preocupada “com todas as formas de existência”, pois é
possível a essa administração, cada vez mais, produzir o tempo necessário à sua
ação no espaço pela necessidade de garantir o lucro. O Camarote, que no primeiro
Carnaval, em 2011, demandou quatro meses entre montagem e desmontagem,
demorou pouco mais de dois meses no Carnaval de 2014, economia alcançada pelo
uso de técnicas, materiais e equipamentos diferenciados.

3.3. Uma Paisagem Midiatizada

No carnaval, a paisagem no entorno do circuito é alterada para servir aos interesses


de entidades e instituições que montam estruturas nos espaços livres ou em vazios
ou ainda sobrepostas às estruturas arquitetônicas e urbanas existentes. Forma-se,
então, um conjunto de fachadas e de grandes empenas que servirão de suporte à
informação do carnaval e à promoção das marcas que participam do evento.

Nesse sentido, o valor alegórico do carnaval de Salvador foi gradualmente


substituído pela publicidade e os camarotes se tornaram a materialização e a
representação mais extrema desse processo que se iniciou nas laterais dos trios
elétricos e passou a ocupar fantasias e vestimentas (abadás) do Carnaval. Hoje, o
camarote é um equipamento publicitário, símbolo de um status de consumo, de
poder e de diferenciação entre os foliões, como o bloco já foi.

O crescimento dos camarotes implicou uma expansão da demanda por


espaços no circuito Barra/Ondina que atinge não só os espaços privados, ocupando
os hotéis e demais construções existentes, mas também os espaços livres contíguos
a esses, chegando também ao espaço público da praça.

Ao contrário do que ocorre no carnaval do Rio de Janeiro, apesar da


propaganda, o alegórico ganhou um espaço cada vez mais crescente para uma
129
Santos, Milton, 1996, p. 40.
94
representação artística mais elaborada do carnaval com os carnavalescos
assumindo uma posição de destacada importância como elementos de ligação entre
a cultura do samba e as redes de tecnologia e cultura acadêmica.

Em Salvador, o que ocorreu foi justamente a adesão a um projeto


mercadológico que, de modo crescente, ocupou o espaço da população e cunhou
uma nova forma para a imagem do Carnaval baiano, inclusive influenciando sua
espacialidade. Nesse processo, a transferência do carnaval dos clubes, em virtude
do enfraquecimento de tais instituições a partir da década de 1970 e a ascensão dos
blocos na década de 1980, foi determinante para a popularização do carnaval de rua
entre as classes mais altas, promovendo a elitização da festa.

Na década de 1990, surge uma demanda para espaços fechados, ligados,


principalmente, a ações promocionais de artistas e empresas, dentro dos circuitos.
Essa utilização de espaços fechados cresce e passa a se tornar uma atividade
integrante do evento, marcada pela presença cada vez maior de celebridades e
artistas, e com músicos com atuações em diferentes estilos, do sertanejo ao funk ou
pop. Mais do que uma eclética condição de convívio entre estilos, essa é uma
necessidade que os promotores viram de trazer ao seu público jovem uma variedade
de atrações, para encher suas ações promocionais. E é essa necessidade de mais e
maiores ações promocionais que aqueceu um mercado novo, popularizando os
camarotes, já presentes em ações que compunham o arsenal de outros eventos e
estilos musicais, ampliando sua presença em Salvador.

3.4. Coletivo, usuários e consumidores

A noção de coletivo que perpassa o uso do espaço público não se altera pela
natureza desses usos e dos usuários, contudo, não se comporta da mesma forma
sob o aspecto daqueles que sejam usuários/consumidores. Isso por que os
consumidores requerem relações complexas de consumo que são inerentes ao
capitalismo e conformam sua estrutura formal. Diante disso, é possível entender, ao
menos para efeito do espaço público de uso coletivo, todo consumidor sendo
usuário, mas nem todo usuário sendo consumidor, o que pode ou não se aplicar ao

95
espaço privado de uso coletivo, por ocasião das práticas que ali ocorram, apesar da
tendência atual de massificação do consumo nesses espaços.

Pessoas passam pela calçada; outras param para tomar água de coco; umas
descem até a praia; outras ainda praticam esportes nas quadras, na areia; algumas
fazem refeições na lanchonete; compram jornais ou simplesmente, param seus
carros no estacionamento, sem nem notar a paisagem ou a praça. Todas essas
situações, que também podem ocorrer de forma simultânea para algumas desas
pessoas, podem ser práticas diárias para muitas.

A praia de Ondina foi point na década de 1990, sofreu um déficit em sua estrutura de
atendimento, na areia praia, com a remoção das barracas de praia, mas continua
atraindo banhistas, esportistas de fim de semana, praticantes de corridas matinais,
geralmente moradores das proximidades, jovens, turistas, um público muito
diversificado, composto por pessoas que vêm das comunidades do entorno, em
momentos distintos do dia.

Foto 9 – Automóvel, com isopor para a venda de bebidas – Acervo Pessoal

Os comerciantes estabelecidos formalmente convivem com a presença de


ambulantes como Andrade, todos os dias, caso não chova, que faz de seu
automóvel uma fonte extra de renda, vendendo cervejas, refrigerantes e água

96
mineral, parando-o no estacionamento da praça. Mesmo aposentado, ele completa o
salário com sua atividade na praia, para pagar as contas e sustentar a família.

- Venho todos os dias a quase sete anos, só não venho se chover, mas se
estiver só nublado eu venho.
- Vendo umas cervejas, refrigerantes, trago tudo no isopor... depois comecei
a trazer os banquinhos, tenho alguns clientes de todo dia.
- Os malandros me respeitam e quando estou aqui eles evitam encostar.
- Não consigo ficar em casa, ai venho para a praia vender minha
mercadoria130.

Figura 13 - Folheto de divulgação do programa Salvador, Esporte e Cidadania.

Uma atividade, desenvolvida na Praça é a presença do programa da


organização “De peito aberto”, uma OSCIP, sediada em Minas Gerais, que atende, a
partir de um convênio com o município, crianças de comunidades próximas a
Ondina, com idades entre os 7 e os 17 anos, com atividades desportivas de futsal e

130
Falas do Sr. José Andrade, aposentado do serviço público estadual e ambulante na Praça Luiz Sande.
97
handebol, através do projeto “Salvador Esporte e Cidadania”131. As atividades
acontecem nas quadras de Ondina em dias alternados de segunda a sexta, pela
manhã e pela tarde em turno contrário ao da frequência do aluno à escola.

Foto 10 - Alunos do programa Salvador Esporte e Cidadania – Acervo Pessoal

O coordenador do projeto em Salvador, Ricardo Santana (foto), atentou para


a importância do projeto e para a procura efetiva pelas comunidades próximas. Foi
possível acompanhar uma manhã de atividades, turno em que, segundo os
instrutores, há maior ocorrência de alunos: os alunos, separados por faixa etária,
com camisas patrocinadas pelo Camarote Salvador, num momento, corriam na
quadra da arena, em outro estavam sentados ouvindo as preleções de seus
instrutores. Com aquele grupo, foi possível acompanhar não só jogos e exercícios,
mas também brincadeiras e a interação entre eles, favorecida pelo amplo espaço da
praça.

131
Lançado no 2º semestre de 2013, o projeto Salvador Esporte e Cidadania atua nas comunidades de São
Lázaro, Alto de Ondina e Calabar, em Salvador (BA), oferecendo aulas de futsal e handebol a dezenas de
crianças. Com atividades orientadas por profissionais de Educação Física, o projeto atende a 100 crianças e
adolescentes de 7 a 17 anos que estejam matriculados em escola regular. Ainda, a iniciativa beneficia 100
adultos, entre pais e acompanhantes, com aulas de alongamento, caminhada e corrida de rua.

98
Foto 11 - Coordenador do projeto passa instruções aos alunos – Acervo Pessoal

O outro instrutor do programa, que faz parte da comunidade de São Lazaro, e


alegou ser participante da entidade de moradores do bairro, elogiou o apoio do
Camarote e sinalizou também, positivamente quanto à reforma da Praça Luiz Sande.
Ele afirma que, com a reforma, a praça melhorou, não só esteticamente, mas
também se tornou mais funcional para os usuários.

Além desses ocupantes e usuários no estacionamento e nas quadras,


respectivamente, acontece outra forma de comércio na praça, o aluguel de parte do
espaço dos sanitários, permanentemente ocupados, por moradores de rua, onde é
feita a guarda de material de trabalho dos ambulantes da praia. Presenciei o
trabalho e a saída para casa, de um dos ambulantes da praia que deixa seus
pertences do dia a dia sob a vigilância dos ocupantes dos sanitários. Em cada
sanitário há uma família que mora e explora uma parte do equipamento público
como um depósito.

Essas pessoas transformaram a dificuldade dos antigos barraqueiros, que


hoje exercem seu comércio de forma precária na praia, pois tiveram suas barracas
de praia demolidas, em uma fonte de renda.

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Foto 12 - Vista dos sanitários da Praça Luiz Sande – Acervo Pessoal

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Considerações Finais

Ao abordar a ocupação da Praça Luiz Sande, foi possível perceber que as


opiniões se dividem, alguns cidadãos apresentam preocupação com geração de
renda, manutenção dos espaços públicos, mas, principalmente com o uso privado
de espaços públicos e sua indisponibilidade, mesmo que temporária. Em comum,
apresentam a necessidade mais intensa do Estado na produção e manutenção
desses espaços.

A Praça Luiz Sande representa um potencial ambiental e turístico a ser


explorado, um elemento coadjuvante e reserva potencial destinada à ampliação da
ocupação imobiliária e cluster econômico, já amadurecido em suas perspectivas de
sedimentação e ampliação em unidades de receptivo hoteleiro consolidado. Diante
das possibilidades, tanto moradores, quanto comerciantes, prestadores de serviço e
investidores entendem esse lugar como fonte de oportunidades.

Muitas dessas oportunidades, contudo, podem significar interferências nas


condições preexistentes como comprovado pela ocupação que sedimentou o uso do
solo no bairro de Ondina, que cedeu margem à intensa ocupação. Ao desconsiderar
planejamentos, a exemplo daqueles da década setenta, que previam mais cautela
no planejar a urbe, deixou espaço remanescente, que apesar de diminuto diante da
extensão apropriada para edificações diversas (hotelaria e habitações verticais),
serve, em sua completude, ao usufruto da sociedade como as praças Luiz Sande e
Bahia Sol, sobras das proposições urbanísticas de ampla valia ao uso coletivo.

Ao longo do tempo, nem mesmo os potenciais ambiental e turístico de Ondina


favoreceram uma preservação mais esmerada, como os qualifica o PDDU. Apesar
da preocupação reconhecida e presente no plano de 1973, com a efetiva proteção
da área em questão, essas foram preocupações que, ao não se traduzirem em ação,
legaram um pesado passivo social.

Hoje, a discussão do espaço ocupado na praça reflete essas ações de 40


anos atrás e demonstram o prejuízo que um zoneamento frágil pode trazer ao
contexto da cidade. Talvez, se propostas do plano de 1973 tivessem derivado em
ações concretas, efetivadas ao longo desses anos, não se estivesse a discutir o

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destino dos espaços coletivos de Ondina. Não é possível afirmar, mas, ao menos
sob certo aspecto, teríamos uma preservação mais ampla da paisagem costeira.

A intensa ocupação é um fator que restringe as transformações ao longo do


tempo por salientar fatores econômicos e sociais que necessitam ser superados em
virtude de grandes transformações do espaço urbano edificado, o que direciona a
forma como se desenvolverão os fenômenos urbanísticos. Desse modo, pode haver
dificuldade em definir os limites dos conceitos que podemos ou devemos aplicar ao
espaço urbano, quase sempre com prejuízo ao público e ao coletivo. Contudo, ao
zonear, apesar de não se resolverem todos os problemas, cria-se, com o
zoneamento, uma ferramenta que poderá auxiliar a discussão quanto aos usos
possíveis e efetivos do espaço.

As diversas ocupações em Ondina, na praça, demonstram uma presença do


Estado na determinação e manutenção, na cooperação e no subsídio, na permissão
e concessão de atividades, formas diversas de ocupação em que há variados graus
de privatização. Demonstram o decréscimo do coletivo público, valendo salientar
que coletivo não implica em público. Coletivo passa a ser um espaço de tudo,
indivíduos e usos diversos. Percebesse, daí, o crescimento do espaço coletivo
privado no espaço público. Os espaços podem ter usos coletivos, que podem se
configurar em público ou privado, seja no espaço público ou no privado, mas, no
caso do espaço público, essa configuração requer a anuência do Estado e se baseia
em um acordo ou consenso jurídico e institucional que, na praça, apresentam-se em
escalas diversas.

O aspecto das relações que ocorrem em espaços públicos de uso coletivo se


alterou, e essas relações e representações se transferiram a outros lugares,
principalmente por influência do consumo nos espaços privados de uso coletivo que
produzem um efeito de atração, a partir do valor agregado de serviços e facilidades.
Em contraponto, o Estado tem diminuído seu investimento em espaços coletivos
públicos e amparado ações do capital privado para criação de seus espaços de
consumo.

Essas relações, a partir das parcerias público-privadas, estão promovendo um


processo de privatização cada vez mais significativa do espaço público, que se torna
privatizado, mas preserva uma característica de coletivo, contudo mediado pelo

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consumo, o que pode implicar em segregação, como a que ocorre com o Camarote
Salvador na Praça Luiz Sande.

Outra questão relevante é a aderência desses conceitos nos projetos da


gestão pública, que se alastram pelo país e, em diversas capitais, mudaram
profundamente a capacidade de articulação do capital com o Estado em detrimento
da capacidade de articulação e reação de grupos e organizações que lutam pelos
direitos coletivos, pela inclusão social e pelo direito à cidade.

Cada vez mais a privatização institucionalizada por governos cooptados a um


projeto de desenvolvimento que alcance os horizontes de uma cronologia política,
circunscrita a mandatos e reeleições, descredibiliza as relações com a sociedade, ao
fragilizar a participação popular, ao transgredir a legislação que permite a construção
de um consenso na destinação dos espaços urbanos e na sua habilitação a usos
coletivos e possíveis a qualquer cidadão.

Os usos, apesar de não definirem as noções de espaço, definem os espaços


no sentido das necessidades de seus usuários. As práticas dos usuários constituem
uma forma de domínio que se estabelece em função de um momento ou período de
fruição, que se aplica ao espaço coletivo seja em suas formas privada ou pública.

A dinâmica das noções de espaço estão presentes na ordem, na desordem,


no público e no privado e, como todos esses elementos estão contidos do coletivo,
esse último também é um princípio dinâmico. Essa dinâmica é que permite a
transposição entre público e privado, que promove a privatização e publicização de
espaços que assumem formas em níveis graduais ou absolutos.

Os espaços podem ser resultantes de estatutos que se somam e estão entre


a percepção do indivíduo e sua ação sobre eles e sobre si mesmo. Assim, os
movimentos dos indivíduos na sociedade marcam um caminho como um rastro na
grama, o que leva outros a seguirem essas impressões, em direção ao consenso e
ao dissenso entre o concebido e o percebido, para a construção do vivido.

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