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Logic, Language and Knowledge.

Essays on Chateauriand’s Logical Forms


Walter A. Carnielli and Jairo J. da Silva (e

CDD: 149.7

Considerações sobre a definição de eternidade na Ética


de Espinosa
MARCOS ANDRÉ GLEIZER
Departamento de Filosofia
Universidade do Estado do Rio de Janeiro/Pesquisador CNPq
RIO DE JANEIRO, RJ
gleizer@uerj.br

Resumo: O artigo apresenta uma análise do significado da definição de eternidade proposta por Espinosa
na primeira parte da Ética (EI def.VIII), com o intuito de defender a legitimidade da aplicação unívoca
dessa noção a Deus e aos modos. Para tal, o artigo procura mostrar como a formulação dessa definição
autoriza uma distinção entre o que é eterno em virtude de sua própria essência e o que é eterno em virtude
de sua causa eterna, e que essa distinção, por sua vez, não remete a dois tipos distintos de eternidade, mas
antes a duas causas ou razões distintas para a atribuição de um só e mesmo tipo de eternidade a coisas
distintas. Para esclarecer esse ponto crucial, o artigo se baseia no exame da articulação existente entre o
conceito de eternidade e o de existência necessária, procurando evidenciar como a teoria da eternidade ganha
inteligibilidade à luz de sua articulação com o necessitarismo defendido por Espinosa.

Palavras chave: Espinosa. Eternidade. Existência necessária. Imanência. Univocidade.

Abstract: The paper offers an analysis of Spinoza’s definition of eternity proposed in the first part of the
Ethics (EI def. VIII), trying to establish the legitimacy of its univocal application to God and its modes.
For that purpose, the paper tries to show how the formulation of that definition authorizes a distinction
between what is eternal in virtue of its own essence and what is eternal in virtue of its eternal cause, showing
also that this distinction does not concern two distinct kinds of eternity, but just two distinct causes or
reasons for the attribution of one and the same kind of eternity to different things. To clarify this crucial
point, the paper deals with the connections existing between the concept of eternity and that of necessary
existence, trying to show how Spinoza’s theory of eternity can be illuminated by its articulation with his
necessitarianism.

Keywords: Spinoza. Eternity. Necessary existence. Immanence. Univocity.

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 19, n. 1, p. 37-60, jan.-jun. 2009.
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1. Introdução
A teoria da eternidade da mente, formulada por Espinosa no pon-
to culminante de sua Ética demonstrada à maneira dos geômetras, constitui o
fundamento da concepção de beatitude que Espinosa propõe em substi-
tuição às concepções metafísicas e religiosas tradicionais, concepções
estas que repousam sobre as crenças na imortalidade pessoal e na exis-
tência de um Deus pessoal. Embora essa teoria tenha sido amadurecida
ao longo de todo o percurso reflexivo de Espinosa e forneça a resposta
final à demanda de eternidade que se manifestava desde a primeira for-
mulação de seu projeto filosófico 1 , as múltiplas e complexas dificuldades
interpretativas que ela suscita continuam ainda hoje alimentando intensas
controvérsias entre os principais comentadores. Essas dificuldades dizem
respeito a aspectos centrais da teoria, dentre os quais cabe destacar os
seguintes: (1) o significado da própria definição de eternidade e a deter-
minação de seu âmbito legítimo de aplicação; (2) a compatibilidade entre
a prova da existência de uma parte eterna da mente, a saber, o intelecto, e
a tese de que a mente é a idéia do corpo existente em ato 2 ; (3) a possibili-
dade de caracterizar a parte eterna da mente como dotada de algum tipo
de individualidade que não se confunde com a identidade pessoal baseada
na memória 3 ; (4) a possibilidade de uma ampliação progressiva do conte-

1 Cf. T.R.E. §1: “resolvi, enfim, indagar se existia algo que fosse o bem

verdadeiro, e pelo qual unicamente, rejeitado tudo o mais, o ânimo fosse afeta-
do; mais ainda, se existia algo que, achado e adquirido, me desse pela eternida-
de [in aeternum] o gozo de uma alegria contínua e suprema”.
2 Trata-se do problema de compatibilizar a teoria da eternidade da mente

com o que se convencionou chamar de “tese do paralelismo”, segundo a qual a


mente e o corpo são duas expressões distintas de uma só e mesma coisa (cf.
EIIP7 esc.).
3 Alguns intérpretes consideram que a despersonalização do intelecto equi-

vale à abolição de toda e qualquer individualidade real e sustentam que Espi-


nosa acaba por reduzir a parte eterna da mente a uma mera coleção anônima
de idéias adequadas, ou então, em contradição direta com as exigências de seu
naturalismo racionalista, que a consciência da eternidade se realiza mediante

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 19, n. 1, p. 37-60, jan.-jun. 2009.
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údo da parte eterna da mente e sua correlação com o aumento das apti-
dões corporais ao longo da duração 4 ; (5) a natureza peculiar dos afetos
ativos (o contentamento interior e o amor intelectual de Deus) que, por
serem engendrados a partir da parte eterna da mente, não parecem poder
ser dotados da natureza transitiva que define os afetos na Ética III 5 ; (6) a
explicitação da forma como a consciência de nossa eternidade e seus efei-
tos afetivos nos reconcilia durante a vida com nossa condição mortal. 6
Essa seqüência de dificuldades se articula segundo uma ordem de
dependência unilateral, de modo que qualquer tentativa de formular uma
interpretação global para a teoria da eternidade da mente precisa enfren-
tá-las sucessivamente. Com o intuito de avançar na direção dessa inter-
pretação global, pretendo, nesse artigo, me limitar exclusivamente ao e-
xame de alguns aspectos da primeira dificuldade. Mais precisamente, pre-
tendo apresentar uma análise da definição de eternidade formulada por

uma fusão ou dissolução mística do sujeito na substância divina. Assim, para


evitar a supressão da realidade do sujeito da experiência da eternidade é preciso
mostrar que e como a despersonalização do intelecto não acarreta a eliminação
completa de sua individualidade.
4 Cf. EVP39: “quem tem um corpo apto para um grande número de coisas,

tem uma mente cuja maior parte é eterna”.


5 Cf. EIII def.3: “Por afeto entendo as afecções do corpo, pelas quais a po-

tência de agir desse corpo é aumentada ou diminuída, favorecida ou entravada,


e ao mesmo tempo as idéias dessas afecções. Quando, por conseguinte, pode-
mos ser a causa adequada dessas afecções, por afeto entendo uma ação; nos
outros casos, uma paixão.”
6 É famosa a tese de Espinosa segundo a qual “o homem livre em nada

pensa menos que na morte, e sua sabedoria não é meditação da morte, mas da
vida” (EIVP67). Essa tese é derivada do fato de que a atividade racional só
pode engendrar afetos ativos, e estes são necessariamente alegres. Assim, o
homem racional, enquanto racional, não tem jamais sua conduta motivada pelo
medo. No entanto, apesar da sabedoria ser meditação da vida, o tema da morte
reaparece nas proposições 38, 39 e 40 da parte final da Ética. Como exatamen-
te é preciso interpretar o retorno deste tema e o significado ético dessas de-
monstrações à luz da concepção espinosista da eternidade?

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Espinosa na primeira parte da Ética, com o intuito de defender a legitimi-


dade de sua aplicação unívoca a Deus e aos modos infinitos e finitos.

2. A interpretação restritiva da EI definição VIII


Como se sabe, Espinosa oferece uma única definição de eternida-
de na Ética, à qual ele acrescenta uma importante explicação:
Por eternidade entendo a própria existência enquanto concebida como
seqüência necessária da mera definição de coisa eterna [ex sola rei aeternae
definitione necessario sequi concipitur]. Explicação: Pois que tal existência se
concebe, assim como a essência da coisa, como uma verdade eterna, daí
resulta que não pode ser explicada pela duração ou pelo tempo, ainda que
se conceba a duração sem começo nem fim” (EI def. VIII).

A explicação toma clara e firme posição a favor de uma compre-


ensão da eternidade como atemporalidade, opondo-se a uma compreen-
são da mesma como sempiternidade ou omnitemporalidade. 7
No entanto, seria prima facie plausível pensar que a definição de e-
ternidade como “seqüência necessária da mera definição de coisa eterna”
aplica-se propriamente apenas a Deus, isto é, à substância absolutamente
infinita. Afinal, não apenas essa definição é formulada na primeira parte
da Ética, cujo título é De Deo, mas Espinosa demonstra nessa parte que
Deus é o único ente cuja existência decorre necessariamente de sua pró-

7 Cabe observar que Espinosa estabelece uma distinção entre as noções de

tempo e duração. O tempo é apenas um ente de razão, isto é, um modo de


pensar meramente subjetivo que serve para explicar a duração mediante pro-
cedimentos comparativos (cf. Pensamentos Metafísicos, Parte I, cap.1). A duração,
por sua vez, é a continuação indefinida na existência (cf. EII def.5), ou seja,
uma forma de existência real distinta da existência eterna. Assim, o uso que
muitos comentadores fazem da expressão ‘atemporalidade’ para referir-se à
eternidade não deve ser tomado como significando apenas a impossibilidade
de medir uma duração que seria sem começo nem fim, mas como significando
que se trata de uma forma de existência desprovida de duração.

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pria essência, sendo, por isso mesmo, causa sui. 8 Dessa leitura restritiva da
definição segue-se imediatamente que a atribuição da eternidade aos mo-
dos (infinitos e finitos) efetuada por Espinosa na Ética torna-se extrema-
mente problemática, e ela convida a formular um tipo geral de interpreta-
ção segundo a qual a eternidade que os modos seriam capazes de adquirir
como efeitos imanentes da substância divina deveria ser caracterizada, na
melhor das hipóteses, como um tipo fraco de eternidade em que esta se
manifestaria sob a forma degradada da sempiternidade. 9 Assim, para dar
conta da atribuição da eternidade aos modos seríamos obrigados a distin-
guir entre diferentes tipos de eternidade e a negar que Espinosa faça um
uso unívoco dessa noção em sua aplicação à Natureza Naturante (a subs-
tância constituída pelos infinitos atributos) e à Natureza Naturada (o con-
junto dos modos infinitos e finitos).
Esse tipo geral de interpretação da eternidade dos modos não é e-
videntemente desprovido de apoio textual. Em especial, ele parece suge-
rido pelos seguintes fatores:
(1) A plausibilidade inicial da leitura restritiva da definição VIII mencio-
nada acima.
(2) O uso que Espinosa faz de certas expressões para qualificar a atribui-
ção da eternidade aos modos, tais como: sub specie aeternitatis e sub quadam
specie aeternitatis.
(3) O uso de expressões temporais em certas passagens para referir-se à
eternidade dos modos infinitos e finitos, dentre as quais destacamos as
seguintes:

8 Por causa de si (causa sui) Espinosa entende “aquilo cuja essência envolve

a existência, ou seja, aquilo cuja natureza não pode ser concebida senão como
existente” (EI def. I). Para a demonstração de que a substância é causa de si,
cf. EIP7 e EIP11.
9 Esse tipo geral de interpretação é adotado, com variações e nuances par-

ticulares, por comentadores tão diversos quanto Martial Gueroult (1968), Ber-
nard Rousset (1968) e Martha Kneale (1979).

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(3.1) Modos infinitos – O uso do advérbio ‘semper’ no enunciado da


proposição em que Espinosa introduz a prova da existência dos modos
infinitos imediatos. 10 Esse uso parece encontrar reforço na afirmação,
contida na própria demonstração da proposição, de que tudo que resulta
“necessariamente da natureza absoluta de um atributo de Deus não pode
ter duração determinada, mas é eterno em virtude do mesmo atributo”.
Essa afirmação exclui explicitamente apenas uma duração determinada,
isto é, limitada, mas não uma duração ilimitada que permitiria qualificar a
eternidade dos modos infinitos como sempiternidade.
(3.2) Modos finitos – A existência de passagens na Ética V em que Espi-
nosa adota uma linguagem temporal ao referir-se à eternidade da mente
humana. A primeira dessas passagens ocorre na EVP20S, quando da in-
trodução do tema da eternidade da mente: “Com essas coisas terminei
tudo o que diz respeito à vida presente. [...] É, pois, tempo agora de pas-
sar àquilo que diz respeito à duração da mente sem relação com o cor-
po”. A expressão “vida presente” parece contrapor-se a uma “vida futu-
ra”, e essa leitura temporal pode ser ainda reforçada pela formulação sub-
seqüente de uma “duração da mente sem relação com o corpo”. A se-
gunda passagem consiste na afirmação de que “a mente humana não po-
de ser absolutamente destruída com o corpo, mas alguma coisa dela per-
manece [remanet] que é eterna” (EVP23). Lida à luz da EVP20S, a expres-
são ‘remanet’ é facilmente interpretada como significando a permanência
temporal de uma parte da mente que continuaria a existir após a destrui-
ção do corpo. Por fim, essa leitura é reforçada por uma passagem do es-
cólio da última proposição da Ética: “o sábio, enquanto considerado co-
mo tal, dificilmente tem o ânimo perturbado. Em vez disso, consciente
de si mesmo, de Deus e das coisas, em virtude de uma certa necessidade
eterna, nunca deixa de ser, mas desfruta, sempre, da verdadeira satisfação do
ânimo” (EVP42S. Grifos meus).

10 Cf. EIP21: “tudo o que resulta da natureza absoluta de qualquer atributo

de Deus deve ter existido sempre e ser infinito [semper et infinita existere debuerunt], ou,
por outras palavras, é eterno e infinito pelo mesmo atributo” (grifo meu).

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Apesar das dificuldades colocadas por essas passagens, o tipo geral


de interpretação mencionado acima me parece fundamentalmente equi-
vocado. Em primeiro lugar, ele colide de forma violenta com a explicação
fornecida pela única definição de eternidade oferecida na Ética e com as
passagens em que Espinosa a reitera explicitamente ao enfatizar o caráter
atemporal não apenas da eternidade que é atribuída a Deus 11 , mas tam-
bém da que é atribuída à mente humana. 12 Em segundo lugar, ao caracte-
rizar a eternidade da mente como uma continuação da existência post mor-
tem, esse tipo de interpretação tende a atenuar (ou mesmo a dissolver) a
distinção radical que Espinosa pretende estabelecer entre sua teoria da
eternidade da mente e a doutrina tradicional da imortalidade da alma,
pretensão cujo claro indício se manifesta na própria recusa em preservar
o termo “imortalidade” no léxico da Ética. 13 Por fim, esse tipo de inter-
11 Em relação a Deus, cf., por exemplo, a EIP33S2: “Como na eternidade

não há quando, nem antes, nem depois, segue-se daqui […] que Deus não exis-
te anteriormente às suas decisões nem sem elas pode existir”. Essa insistência
no caráter atemporal da eternidade divina é importante, pois, ainda que de
forma extremamente rara, Espinosa usa excepcionalmente formulações tem-
porais para referir-se a eternidade de Deus. É o que ocorre na seguinte passa-
gem da EIP17S: “Mas penso ter demonstrado, de forma bastante clara (veja-se
a EIP16) que, da mesma maneira que da natureza do triângulo se segue, desde
a eternidade e por toda a eternidade, que a soma dos seus três ângulos é igual a
dois retos, da suprema potência de Deus, ou seja, de sua natureza infinita, ne-
cessariamente se seguiram – ou melhor, se seguem sempre com a mesma ne-
cessidade – infinitas coisas, de infinitas maneiras, isto é, tudo. Portanto, a oni-
potência de Deus tem existido em ato, desde a eternidade, e assim permanece-
rá eternamente”.
12 Em relação à mente humana, cf., especialmente, a E5P23S (“não pode

suceder que nos recordemos de ter existido antes do corpo, visto que não po-
de haver no corpo nenhum vestígio disso, nem a eternidade pode ser definida
pelo tempo, nem pode ter nenhuma relação com o tempo”) e a E5P34S (os
homens “têm consciência da eternidade da sua mente, mas a confundem com
a duração [...]).
13 Evidentemente, esta consideração terminológica não pretende ser uma

prova da distinção radical entre essas duas teorias, prova que precisa ser esta-

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pretação me parece incompatível com certos princípios e teses capitais do


sistema espinosista. Em particular, ela contraria a exigência de univocida-
de que decorre da adoção do princípio da inteligibilidade integral do real,
marca distintiva do racionalismo absoluto de Espinosa, bem como a teo-
ria da imanência com a qual ele estabelece o vínculo íntimo entre Deus e
seus modos. Com efeito, ao contrário do que ocorre com a concepção
neoplatônica da causa emanativa, a noção espinosista de causa imanente
exclui que a produção dos modos na e pela substância absoluta seja pen-
sada como acarretando qualquer degradação ontológica. 14
Entretanto, para demonstrar o caráter equivocado desse tipo de
interpretação não basta fazer afirmações de princípio ou contrapor-lhe
passagens inconsistentes. É preciso atacar a raiz do problema procurando
mostrar como uma análise minuciosa da EI definição VIII, e de outras
passagens pertinentes, autoriza – e mesmo exige – a elaboração de uma
interpretação não-restritiva da definição que torne plenamente inteligível
a aplicação unívoca da noção de eternidade à substância divina e aos mo-
dos. É essa interpretação que deverá fornecer a base sólida para, em um
segundo momento, podermos explicar o sentido das expressões que qua-
lificam a eternidade e superar a dificuldade produzida pelas passagens em
que a referência à eternidade aparece temporalizada.
Nesse artigo, meu objetivo se restringe à elaboração dessa base só-
lida, isto é, a mostrar que a definição VIII pode e deve ser lida como au-
torizando uma distinção entre o que é eterno em virtude de sua própria
essência (eterno por si) e o que é eterno em virtude de sua causa eterna, e
que essa distinção, por sua vez, não remete a dois tipos distintos de eter-

belecida mediante uma análise pormenorizada da Ética, mas apenas apresentar


um forte indício dessa distinção, indício cuja importância salta aos olhos quan-
do se tem em vista a presença do termo ‘imortalidade’ nos Pensamentos Metafísi-
cos e no Breve Tratado.
14 Para uma discussão aprofundada das semelhanças e diferenças existentes

entre a causa emanativa neoplatônica e a causa imanente espinosista, cf. De-


leuze (1968), cap. XI.

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nidade (um forte e outro fraco), mas a duas causas ou razões distintas de
um só e mesmo tipo. Para esclarecer esse último ponto pretendo exami-
ná-lo à luz do conceito de necessidade, o que se justifica tanto pelo fato
da definição de eternidade remeter à noção de existência necessária quan-
to pelo fato de Espinosa estabelecer igualmente uma distinção entre o
que é necessário em virtude de sua própria essência e o que é necessário
em virtude de sua causa (EIP33S1). Assim, a teoria da eternidade ganha
maior inteligibilidade à luz de sua articulação com o necessitarismo de-
fendido por Espinosa.

3. A interpretação não-restritiva da definição VIII


3.1. Análise da definição VIII
Examinemos, portanto, a definição de eternidade como “a própria
existência enquanto concebida como seqüência necessária da mera defi-
nição de coisa eterna”.
Uma análise minuciosa dessa definição deve dar conta da presença
de quatro elementos:
(i) A referência ao termo ‘coisa’ (que abarca tanto a substância quanto os
modos) e não exclusivamente ao termo ‘substância’.
(ii) A inexistência de artigo definido ou indefinido no latim, o que torna
possível traduzir a expressão “ex sola rei aeternae definitione” seja por “da
mera definição da coisa eterna” seja por “da mera definição de uma coisa
eterna”.
(iii) A caracterização da existência eterna como “seqüência necessária da
mera definição” e não como “seqüência necessária da mera essência”.
(iv) A presença do adjetivo ‘eterna’ na própria definição de eternidade.
A plausibilidade inicial da leitura restritiva repousa em grande parte
sobre a desatenção às nuances introduzidas pelos elementos (i), (ii) e (iii),
o que conduz muitos comentadores a assimilar imediatamente a eterni-
dade de uma coisa à existência necessária em virtude da essência da pró-
pria coisa, isto é, à interpretá-la como a existência necessária por si que se
segue apenas da essência da substância.

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É o que ocorre, por exemplo, com a interpretação proposta por


Martial Gueroult. Desde a primeira frase de sua análise da definição ele
afirma que “a definição VIII é aquela da eternidade, definida como a e-
xistência necessária por si de uma certa natureza”. 15 Essa afirmação res-
tringe imediatamente a atribuição legítima da eternidade apenas à subs-
tância, pois só a natureza da substância existe necessariamente por si. Em
virtude desse passo inicial, Gueroult é logicamente conduzido a afirmar
que a atribuição da eternidade aos modos é um “pecado contra o rigor
terminológico”. 16 Em seu esforço subseqüente para atenuar esse pecado
e legitimar a atribuição de alguma forma de eternidade aos modos, Gue-
roult adota o tipo geral de interpretação que mencionamos acima, pois
acaba por aproximar excessivamente a posição de Espinosa do neoplato-
nismo ao afirmar que a eternidade atribuída aos modos deve ser caracte-
rizada como uma simples perpetuidade ou sempiternidade: “Essa eterni-
dade, que a coisa recebe, não dela mesma, mas de sua causa, eternidade
de empréstimo, própria do que é sempre sem sustenta-se a si mesmo,
simples duração infinita, coextensiva à eternidade de sua causa, não é, à
rigor, senão perpetuidade ou sempiternidade”. 17
Essa interpretação, no entanto, não é compatível com o resultado
da análise empreendida por Gueroult para dar conta do significado da
presença do adjetivo ‘eterna’ na definição VIII, e para explicar, à luz da
articulação interna que sua análise revela existir entre os conceitos de e-
ternidade, verdade e necessidade, a extensão da atribuição da eternidade
aos modos. 18 Com efeito, Gueroult mostra, com base na explicação da

15 Cf. Gueroult (1968), p.77-78. Cf. também p.79: “a eternidade é efetiva-

mente definida, e ela é definida pela existência por si”.


16 Idem, p.81-82. Cf. também p.309: “Sendo o próprio do que existe por si,

a eternidade, a rigor, não poderia pertencer ao modo, que existe por um ou-
tro”.
17 Ibidem, p.309.
18 Ibidem, p. 81-82. A análise dessa articulação o leva a propor uma carac-

terização da eternidade como a “imutabilidade absoluta da afirmação que a


necessidade lógica, intrínseca, de toda verdade impõe de dentro” (grifo meu).

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definição VIII fornecida por Espinosa, que a referência ao termo ‘eterna’


tem por objetivo ressaltar que a existência eterna, assim como a essência
de uma coisa, é uma verdade eterna, ou seja, uma verdade absolutamente
necessária, de modo que esse status lógico permite evitar qualquer confu-
são entre a eternidade e a duração sem começo nem fim. 19 Ao reconhe-
cer em seguida que toda verdade, segundo Espinosa, é absolutamente
necessária, e ao afirmar, com base na EIP25S, que “a necessidade pela
qual Deus produz todas as coisas é idêntica àquela pela qual ele produz a
si mesmo”, Gueroult afirma acerca dos modos que “conhecer as coisas
como verdadeiras será conhecê-las como necessárias, e sua necessidade
será uma verdade eterna ao mesmo título que a necessidade da existência de
Deus”, e conclui: “Natureza Naturante e Natureza Naturada formam,
portanto, uma só e mesma verdade eterna”. 20 Ora, a identidade expressa
nessa conclusão, como veremos mais adiante, obriga a reconhecer não
apenas a legitimidade da aplicação da noção de eternidade aos modos,
mas também a univocidade dessa aplicação. Ela equivale, portanto, a re-
cusar a caracterização dos modos como sempiternos. Para ser coerente
com sua conclusão, no entanto, Gueroult deveria ter revisto o passo ini-
cial de sua leitura da definição VIII, a saber, a redução imediata da eterni-
dade à existência necessária por si.
Com efeito, só a atenção à totalidade dos elementos da definição
permite evitar essa redução e a atribuição a Espinosa de qualquer pecado
capital contra o rigor terminológico. Um primeiro passo nessa direção é
dado pela análise de Alexandre Matheron. Atento particularmente aos
elementos (i) e (ii), Matheron mostra que a tradução do latim mediante o
uso do artigo indefinido (“uma coisa eterna”) autoriza uma dupla leitura
da definição VIII em conformidade com a qual ela pode legitimamente
ser aplicada à substância e aos modos. De acordo com a primeira leitura,

Essa caracterização se aplica igualmente a todas as verdades, logo também às


verdades sobre os modos.
19 Ibidem, p.80.
20 Ibidem, p.82. Grifos meus.

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a existência de uma coisa é eterna na medida em que ela é concebida co-


mo seqüência necessária da mera definição da própria coisa. Trata-se da
eternidade imediata ou por si da substância. De acordo com a segunda, a
existência de uma coisa é eterna na medida em que ela é concebida como
seqüência necessária da mera definição de uma outra coisa que é ela mesma
eterna por si. Trata-se da eternidade dos modos, eternidade mediata ou
derivada a partir de uma outra coisa eterna por si. 21
Essa dupla leitura permite a Matheron afirmar que a definição VI-
II não pretende opor as coisas que possuem a eternidade àquelas que não
a possuem, mas antes indicar que “se a eternidade é a própria existência
considerada sob um certo aspecto (isto é, um certo aspecto de toda existên-
cia), todas as coisas, de uma maneira ou de outra, devem apresentar essa
característica; a única questão é de saber se ela basta ou não para esgotar
sua existência. Se sim, elas são eternas sem restrição [é o caso da substân-
cia e dos modos infinitos]; se não, elas têm ao menos algo de eterno [é o caso
dos modos finitos]”. 22
A interpretação de Matheron, como salienta Chantal Jaquet, mos-
tra que a escolha do artigo indefinido ou definido por parte do tradutor
não é de forma alguma indiferente, na medida em que ela torna legítima a
atribuição da eternidade também aos modos. Porém, Jaquet formula uma
objeção de ordem hermenêutico-metodológica quanto ao peso de argu-
mentos fundados nesse tipo de consideração. Segundo ela, é preciso re-
conhecer que “essas considerações não constituem argumentos decisivos
e dependem de um parti-pris de tradução, arbitrário na medida em que
não é o texto que determina a grade de leitura, mas o inverso”. 23 Essa
objeção levanta um complexo problema acerca das relações existentes
entre a tradução e a interpretação de um texto filosófico, e parece supor
que é possível traduzir passagens ambíguas de um texto sem adotar ne-
nhuma suposição interpretativa (suposição esta que, evidentemente, deve

21 Cf. Matheron (1986), p.7.


22 Idem, grifos do autor.
23 Jaquet (1997), p.91.

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ser fundada sobre a leitura do texto tomado em sua totalidade). Não é


possível discutir aqui esse problema hermenêutico-metodológico e as
dificuldades envolvidas na suposição de Jaquet. No entanto, embora a
tradução de Matheron não me pareça de forma alguma arbitrária – tendo
em vista que sua grade de leitura encontra respaldo na tradu-
ção/interpretação de outras passagens da Ética – cabe reconhecer que,
por si só, ela não é decisiva, e que ela pode e deve ser complementada
por outras considerações. É precisamente o que faz a própria Jaquet ao
chamar a atenção sobre a importância do elemento (iii) presente na defi-
nição VIII.
Com efeito, a defesa de uma dupla leitura dessa definição ganha
um importante reforço com sua análise da função exercida pela ligação
da eternidade da existência não mais diretamente à essência de uma coisa,
como ocorria nos Pensamentos Metafísicos, mas sim à definição de uma coi-
sa. Qual é a diferença? A primeira vista, não parece haver nenhuma dife-
rença entre a definição adequada de uma coisa e a sua essência. Espinosa,
aliás, passa freqüentemente de uma a outra. No entanto, com base na
teoria da definição genética elaborada por Espinosa no Tratado da reforma
do entendimento, e na regra da reciprocidade contida na definição do que
pertence à essência de uma coisa, formulada por ele na Ética II 24 , Jaquet
mostra que há uma diferença capital. Segundo a teoria da definição gené-
tica, a definição perfeita deve “explicar a essência íntima da coisa” (§95), e
esse tipo de explicação engloba dois casos: o de uma coisa incriada e o de
uma coisa criada. 25 Enquanto no primeiro caso, que se aplica à substân-

24 Cf. EII def.II: “Digo pertencer à essência de uma certa coisa aquilo que,

se dado, a coisa é necessariamente posta e que, se retirado, a coisa é necessari-


amente retirada; em outras palavras, aquilo sem o qual a coisa não pode existir
nem ser concebida e vice-versa, isto é, aquilo que sem a coisa não pode existir
nem ser concebido”. Graças a essa regra, Espinosa pode mostrar que não há
nenhuma confusão entre a essência de Deus e as essências dos modos (cf. EI-
IP10 escólio).
25 Cf. §92: “é necessário que cada coisa seja concebida ou só por sua essên-

cia ou pela sua causa próxima. Se uma coisa existe em si ou, como se diz co-

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cia, a definição faz referência apenas à essência da própria coisa, no se-


gundo, que se aplica aos modos, a definição envolve necessariamente a
referência ao conhecimento (logo, à definição) da causa próxima da es-
sência da coisa, a saber, Deus. 26 Essa referência necessária ao conheci-
mento da causa, por sua vez, não acarreta nenhuma confusão entre a es-
sência do efeito, isto é, do modo, e a essência da causa, ou seja, de Deus,
pois, graças à aplicação da EII def.II, Espinosa pode mostrar que, embo-
ra os modos não possam ser nem ser concebido sem Deus, Deus pode
ser e ser concebido sem os modos, de forma que a distinção de essência
entre eles é inteiramente preservada. Como afirma Jaquet:

A definição perfeita deve revelar a essência íntima da coisa exibindo sua


causa. No caso dos modos, a definição deve englobar sua causa próxima,
a saber, Deus. Em compensação, a essência designa “aquilo sem o que a
coisa não pode ser nem ser concebida e, inversamente, que sem a coisa
não pode ser nem ser concebido”. Espinosa enuncia essa condição de re-
ciprocidade a fim de evitar o erro subjacente às definições tradicionais
que, limitando-se ao primeiro membro do enunciado, dão a entender que
Deus pertence à essência da coisa. A essência de um modo depende, cer-
tamente, de Deus, mas não o contém a título de propriedade. A partir
disso, a razão pela qual Espinosa substitui a palavra “essência” por aquela
de “definição” ao longo de sua análise do conceito de eternidade torna-se
límpida. A causa próxima não está incluída na essência, enquanto ela está
incluída na definição, o que faz toda a diferença do mundo. Se a eterni-
dade não pode se deduzir da essência do modo, pois ele não envolve a
existência, ela pode, em compensação, resultar de sua definição. Com e-
feito, tendo em vista que a definição do modo envolve a sua causa pró-
xima, ele pode, pela essência de Deus, envolver a existência e assim ser
eterno. Por conseguinte, ao substituir a palavra “substância” por “coisa
eterna” e o termo “essência” pelo termo “definição”, Espinosa permite o

mumente, é causa de si mesma, ela deverá ser entendida só pela sua essência;
se, porém ela não existe em si, mas requer uma causa para existir, então deve
ser compreendida pela sua causa próxima. Pois na verdade o conhecimento do
efeito nada mais é que adquirir um conhecimento mais perfeito da causa”.
26 A nota de Espinosa ao §92 deixa claro que nada na Natureza, isto é, ne-

nhum modo, pode ser compreendido sem que ao mesmo tempo “tornemos
mais amplo o conhecimento da causa primeira, isto é, Deus”.

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Considerações sobre a Definição de Eternidade na “Ética” de Espinosa 51

alargamento dessa propriedade outrora reservada a Deus a seres que não


possuem por eles mesmos a existência necessária. 27

Vemos, assim, como a atenção conferida pelas análises de Mathe-


ron e Jaquet aos elementos (i), (ii) e (iii) da definição VIII permite dar
conta da extensão legítima do termo “eternidade” aos modos. Ela permi-
te também completar a explicação de Gueroult para a função exercida
pelo elemento (iv). Se para Gueroult a presença do adjetivo “eterna” na
definição VIII tem por função identificar a natureza da existência eterna
à natureza atemporal da verdade eterna, impedindo, assim, sua confusão
com uma duração sem começo nem fim, a presença de uma distinção
implícita entre a eternidade imediata e a eternidade mediata, revelada pela
dupla leitura da definição VIII, torna imperativo, como salienta ainda
Jaquet, indicar que essa última “decorre da definição de uma coisa que é
ela mesma eterna; a presença deste adjetivo é, portanto, plenamente justi-
ficada”. 28

3.2. Eternidade, necessidade e univocidade


Embora as análises da definição VIII propostas por Matheron e
Jaquet me pareçam inteiramente satisfatórias, elas pedem um esclareci-
mento adicional quanto à questão de saber se a distinção entre o que é
eterno por si e o que é eterno em virtude de sua causa deve ser compre-
endida como uma distinção entre dois sentidos (ou tipos) de eternidade
ou entre duas razões distintas para a atribuição de um só e mesmo tipo
de eternidade. A primeira leitura, mesmo reconhecendo a legitimidade
terminológica da atribuição da eternidade aos modos, recusa a univocida-
de dessa atribuição. A segunda, por sua vez, insiste sobre essa univocida-
de.
É bem verdade que o simples fato de Espinosa ter oferecido uma
única definição de eternidade numa obra construída em conformidade

27 Jaquet (1997), p.92.


28 Idem.

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com o modelo de precisão conceitual da matemática sugere por si só a


correção da segunda leitura. No entanto, é preciso fortalecer essa suges-
tão com uma consideração conceitual mais robusta.
Essa consideração se encontra no aprofundamento do exame da
articulação interna apontada por Gueroult entre os conceitos de eterni-
dade e necessidade. Com efeito, a eternidade envolve a existência neces-
sária e essa, assim como aquela, comporta igualmente uma distinção entre
o que é necessário em virtude de sua essência e o que é necessário em
virtude de sua causa:
uma coisa é necessária, quer em razão de sua essência, quer em razão de
sua causa. Com efeito, a existência, seja do que for, resulta necessaria-
mente ou da respectiva essência e definição, ou de uma dada causa efici-
ente. Por estas razões se diz também que qualquer coisa é impossível, a
saber: ou porque a respectiva essência ou definição envolve contradição,
ou porque não existe qualquer causa externa que seja determinada a pro-
duzir tal coisa. (EIP33S1)

Essa passagem afirma explicitamente que há duas razões para algo


ser necessário, e não que há dois tipos diferentes de necessidade. No en-
tanto, alguns comentadores acreditam que a primeira distinção acarreta a
segunda, o que os leva a interpretar essa passagem como propondo uma
distinção de estilo leibniziano entre uma necessidade lógica e uma neces-
sidade causal.
Em um artigo dedicado à elucidação da natureza do necessitaris-
mo de Espinosa 29 procurei refutar essa interpretação mediante o exame
crítico dos principais argumentos oferecidos pelo seu mais proeminente
defensor, a saber, Edwin Curley. Nesse artigo, procurei mostrar que as
bases textuais apresentadas por Curley estão longe de autorizar essa leitu-
ra, e que ela engendra mais problemas do que soluções para a compreen-
são global da metafísica de Espinosa. Em particular, essa leitura tem co-
mo conseqüência a afirmação de que os modos infinitos deveriam ser

29 Cf. Gleizer (2003), p.59-87. Os parágrafos seguintes retomam algumas

das conclusões obtidas nesse artigo, aplicando-as ao caso da eternidade.

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Considerações sobre a Definição de Eternidade na “Ética” de Espinosa 53

causa sui. Com efeito, se a “necessidade em virtude da essência” for iden-


tificada a um tipo específico de necessidade, a saber, a “necessidade lógi-
ca”, e se o uso que Espinosa faz da noção de conseqüência for tomado
como equivalendo à implicação lógica moderna, então, uma vez que tudo
o que se segue incondicionalmente de algo que é logicamente necessário
deve ser logicamente necessário, os modos infinitos deveriam ser neces-
sários no mesmo sentido da substância divina, isto é, deveriam ser neces-
sários em virtude de suas respectivas essências, o que significa dizer que
eles deveriam ser causa sui. No entanto, como Curley evidentemente re-
conhece, os modos infinitos, como todos os modos produzidos pela
substância divina, têm sua necessidade derivada de sua causa. Assim, a
identificação da distinção proposta em EIP33S1 como uma distinção
entre tipos de necessidade conduz a uma conclusão incompatível com o
sistema de Espinosa.
Ora, essa conclusão só pode ser evitada se entendermos que: (i)
não se pode considerar o uso espinosista da noção de conseqüência co-
mo equivalendo à implicação lógica moderna, pois, para a lógica modal
moderna, afirmar que “x implica y” significa apenas afirmar que não há
mundo possível no qual x seja verdadeiro e y falso. Para Espinosa, no
entanto, afirmar que “y segue-se de x” implica em afirmar também que
“x é causa de y”. A relação é indissoluvelmente lógica e causal; (ii) essa
indissolubilidade significa que Espinosa propõe uma interpretação causal
do discurso modal em conformidade com a qual a natureza do único tipo
de necessidade que perpassa a totalidade do real (substância e modos)
engloba tanto a exigência formal de não-contradição quanto a exigência
de uma razão suficiente que explique a gênese ou produção de algo. 30
Essa interpretação causal do discurso modal, por sua vez, encontra seu

30 Que Espinosa adota uma interpretação causal do discurso modal é mani-

festo pelo uso positivo que ele confere à expressão “causa sui” para designar
precisamente aquilo que é necessário em virtude de sua própria essência, isto é,
aquilo cuja essência é a causa ou razão interna (causa sive ratio) de sua existência
necessária.

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fundamento metafísico último na identificação operada por Espinosa


entre a potência e a essência de Deus (EIP34), aliada à exclusão da atribu-
ição de intelecto e vontade a essa essência (EIP31) e à demonstração da
identidade existente entre intelecto e vontade como modos do atributo
pensamento (EIIP49 cor.). Essas teses centrais do sistema espinosista
impedem qualquer distinção de estilo leibniziano entre o princípio que
rege o intelecto divino, a saber, o princípio de não-contradição (funda-
mento das verdades absolutamente necessárias acerca das essências), e
aquele que rege sua vontade, a saber, o princípio de razão suficiente (fun-
damento das verdades causalmente necessárias acerca das existências);
(iii) é exatamente porque a distinção proposta por Espinosa na EIP33S1
não é uma distinção entre diferentes tipos de necessidade, mas entre dife-
rentes razões para a atribuição de um só e mesmo tipo, que é possível
entender que, embora a mesma necessidade seja sempre transmitida do
antecedente ao conseqüente, a sua causa ou razão não pode evidente-
mente ser transmitida. Assim, os modos (infinitos e finitos) são dotados
da mesma necessidade absoluta que a substância, embora essa necessida-
de não seja derivada de sua própria essência, mas herdada da essência de
sua causa.
Não cabe aqui retomar todas as análises e argumentos amplamente
desenvolvidos no artigo, mas é importante citar algumas passagens de
Espinosa que corroboram claramente essa interpretação da univocidade
da necessidade. Na EIIP3S Espinosa afirma que:
Mostramos, ainda, na EIP16, que Deus age pela mesma necessidade [ea-
dem necessitate agere] pela qual compreende a si próprio, isto é, que assim
como se segue da necessidade da natureza divina que Deus compreende
a si próprio (como, unanimemente, afirmam todos), também se segue da
mesma necessidade [eadem etiam necessitate sequitur] que Deus faça infinitas
coisas, de infinitos modos. Demonstramos, além disso, na EIP34, que a
potência de Deus não é senão sua essência atuante. Portanto, é tão im-
possível conceber que Deus não age quanto que ele não existe.

Essa passagem reitera com ênfase que é a mesma necessidade, de-


rivada da essência atuante de Deus, que determina sua existência, sua

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Considerações sobre a Definição de Eternidade na “Ética” de Espinosa 55

autocompreensão e sua ação. Ora, os efeitos necessários dessa ação são


os modos (dentre os quais está incluído o intelecto infinito de Deus, isto
é, o modo infinito imediato do pensamento pelo qual Deus compreende
a si mesmo). Logo, a existência necessária que se aplica aos modos é a
mesma que se aplica a Deus. É o que Espinosa afirma de forma ainda
mais cristalina no importante escólio da EIP25 citado também por Gue-
roult em sua análise: “para dizer numa palavra, no mesmo sentido em que se
diz que Deus é causa de si deve-se dizer também que ele é causa de todas
as coisas” (grifo meu). A necessidade de todas as coisas causadas por
Deus, a saber, as essências e as existências dos modos, é dita no mesmo
sentido da necessidade da existência de Deus, isto é, no sentido da neces-
sidade absoluta do único ser cuja essência envolve a existência. 31 No en-
tanto, a univocidade da necessidade afirmada nessas passagens não faz
com que os modos sejam necessários em virtude de sua própria essência,
ou seja, sua existência, embora absolutamente necessária, não é uma pro-
priedade constitutiva nem tampouco derivada de sua essência. Isso signi-
fica, mais uma vez, que a distinção entre diferentes causas ou razões que
explicam a atribuição da existência necessária a algo não acarreta nenhu-
ma distinção entre diferentes tipos de necessidade.
Essa conclusão fica ainda mais clara quando se tem em mente que
Espinosa, contrariamente ao que ocorre na lógica modal moderna, não
identifica a essência de uma coisa com o conjunto de suas propriedades

31 Há também uma importante passagem dos Pensamentos Metafísicos que a-

testa claramente a univocidade da noção de necessidade: “Também dizemos


que a necessidade de existir realmente não se distingue da necessidade da es-
sência (cap.9, parte II), isto é, quando dizemos que Deus decretou que o triân-
gulo deve ser, só queremos dizer que Deus estabeleceu a ordem da Natureza e
das causas de tal modo que a tal instante o triângulo deva ser necessariamente.
Conseqüentemente, se conhecêssemos a ordem das causas tal como foi estabe-
lecida por Deus, descobriríamos que o triângulo deve existir realmente em tal
instante com a mesma necessidade com que descobrimos agora, com relação à sua
natureza, que seus três ângulos devem ser iguais a dois retos” (cap.3, parte I.
Grifo meu).

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necessárias. Com efeito, em seu sistema ele distingue entre as proprieda-


des necessárias que constituem a essência de uma coisa 32 , isto é, que fa-
zem com que uma coisa seja o que ela é, fixando a sua identidade, as
propriedades necessárias que, sem fazerem parte da essência da coisa, se
seguem exclusivamente dessa essência (os próprios), as propriedades ne-
cessárias que uma coisa partilha com outras (propriedades comuns) e as
propriedades necessárias que uma coisa possui em virtude de sua intera-
ção com outras coisas. Assim, embora toda propriedade essencial seja
necessária, nem toda propriedade necessária é essencial, o que explica que
a afirmação de que os modos existem necessariamente não implica de
forma alguma a afirmação de que sua essência envolva a existência. 33
Ora, o que vale para a existência necessária vale igualmente para a
eternidade. Assim, a univocidade da primeira repercute sobre a segunda,
e assim como a existência necessária dos modos não é uma propriedade
incluída ou derivada de sua própria essência, mas derivada de sua causa,
assim também a eternidade que os modos possuem não é uma proprie-
dade incluída ou derivada de sua própria essência, mas derivada de sua
causa primeira, causa esta, por sua vez, que é eterna por si. Essa conclu-
são é endossada pelo que Espinosa afirma na EVP30D: “A eternidade é
a própria essência de Deus, enquanto esta envolve a existência necessária

32 O termo “propriedade” está sendo utilizado nesse artigo em um sentido

bastante amplo para designar tudo o que pode ser afirmado de algo, qualquer
que seja a natureza do que é afirmado e a forma da afirmação. Nesse sentido
bastante amplo, os atributos divinos, que, segundo Espinosa, são irredutíveis a
meros adjetivos e possuem uma natureza simultaneamente substantiva e ver-
bal, podem ser caracterizados como propriedades essenciais da substância.
Com efeito, para os objetivos desse artigo não é necessário entrar na difícil
discussão acerca da natureza específica dos atributos divinos e da forma de sua
atribuição à substância. O fundamental aqui é reconhecer que eles são afirma-
dos verdadeiramente da substância como elementos constitutivos de sua es-
sência.
33 Essa interpretação também foi defendida recentemente por Jarrett

(2009), p.131-132.

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Considerações sobre a Definição de Eternidade na “Ética” de Espinosa 57

(pela EI def.VIII). Conceber, portanto, as coisas sob a perspectiva da


eternidade é concebê-las enquanto são concebidas, por meio da essência
de Deus, como entes reais, ou seja, enquanto, por meios da essência de
Deus, envolvem a existência”.
Por fim, cabe enfatizar que a atribuição unívoca de certas proprie-
dades à substância divina e aos modos não acarreta nenhuma confusão
entre suas respectivas essências. A demonstração da compatibilidade en-
tre univocidade, imanência e distinção de essência foi realizada por De-
leuze em sua bela análise dos atributos divinos. 34 Com efeito, com base
na regra da reciprocidade formulada na EI def.II, Deleuze demonstrou
que os atributos divinos são formas comuns a Deus, cuja essência eles
constituem, e aos modos, cujas essências eles não constituem, mas as
quais eles contêm e nas quais eles estão univocamente envolvidos ou im-
plicados. 35 Ora, a compatibilidade entre univocidade, imanência e distin-
ção de essência evidenciada em sua análise me parece poder se estender
perfeitamente a certas propriedades não essenciais. Afinal, se os atributos,
que são formas ativas infinitas constitutivas da essência da substância,
podem ser afirmados univocamente da substância divina e dos modos,
por que certas propriedades necessárias não essenciais não poderiam ser
compartilhadas? No meu entender, o fato de Espinosa não identificar a
essência de uma coisa com o conjunto das suas propriedades necessárias
facilita ainda mais a compreensão de que a atribuição unívoca de certas
propriedades necessárias à substância e aos modos não acarreta nenhuma
confusão entre suas respectivas essências. Se esta consideração for corre-
ta, a existência necessária e a eternidade podem e devem ser compreendi-
das, como sugere Jaquet, como propriedades comuns universais que, exa-
tamente por serem comuns, podem ser igualmente partilhadas por todas

34 Deleuze (1968), cap. II.


35 Idem. Cf. em especial as páginas 38-41.

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as coisas (incluindo a substância) sem constituírem a essência de nenhu-


ma delas. 36

4. Conclusão
Se as análises acima desenvolvidas estão corretas, Espinosa não
cometeu nenhum pecado contra o rigor terminológico ao atribuir a eter-
nidade aos modos, pois a análise da definição VIII mostra que ela é per-
feitamente passível de uma interpretação não-restritiva que legitima essa
atribuição ao distinguir entre o que é eterno por si e o que é eterno em
virtude de sua causa eterna. Além disso, o exame da articulação entre os
conceitos de eternidade e de existência necessária permitiu esclarecer o
significado dessa distinção, iluminando o caráter unívoco da atribuição da
eternidade à substância divina e aos modos. Por fim, a aplicação da tese
deleuziana da compatibilidade entre univocidade, imanência e distinção
de essência ao caso de propriedades não essenciais como a eternidade
permitiu reforçar a interpretação, proposta por Jaquet, da eternidade co-
mo uma propriedade comum universal igualmente presente na substância
e nos modos. A principal conseqüência dessa leitura é que a eternidade
que os modos são passíveis de possuir deve ser ter um significado tão
atemporal quanto a da substância, de forma que a sempiternidade que
lhes é atribuída pelas leituras de inspiração neoplatônica deve ser descar-
tada. No entanto, vimos que Espinosa utiliza expressões temporais para
se referir à eternidade dos modos. Assim, partindo do resultado alcança-
do em nossa análise será preciso formular uma interpretação do signifi-
cado dessas expressões que não reintroduza sub-repticiamente as leituras

36 Cf. Jaquet (1997), p. 93-94. Jaquet defende essa interpretação para o caso

da eternidade, mas o seu raciocínio vale igualmente para a existência necessá-


ria. Cabe observar que a interpretação da eternidade na Ética como uma pro-
priedade comum universal, e não como um próprio de Deus, significa que
Espinosa se afasta em sua obra final da posição adotada no Breve Tratado (cf.,
por exemplo, Primeira Parte, cap.VII, ponto 6).

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 19, n. 1, p. 37-60, jan.-jun. 2009.
Considerações sobre a Definição de Eternidade na “Ética” de Espinosa 59

de tipo neoplatônico. Este é o grande desafio que pretendemos enfrentar


em um próximo artigo dedicado ao tema.

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60 Marcos André Gleizer

SPINOZA, B. Tratado da Correção do Intelecto. São Paulo: Abril Cultural,


1979. (Coleção Os Pensadores)

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