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refletir sobre conjuntos de relações estabelecidas entre os indígenas e os demais atores e forças
sociais que com eles interagiam. Não é possível entender as estratégias e performances indígenas
ignorando as interações que mantêm com os contextos reais em que vivem […] A história, em suas
múltiplas escalas e temporalidades, não pode ser concebida como algo exterior e acidental, mas “um
fato constitutivo, que preside à própria organização interna e ao estabelecimento da identidade de
um grupo étnico” (PACHECO DE OLIVEIRA, 1988:58). (pag 7)
Ao não tomar como objeto da etnografia e da teoria etnológica as formas concretas pelas
quais as coletividades indígenas conseguiram sobreviver ao genocídio e aos múltiplos mecanismos
de dominação e subalternização, as investigações exclusivamente culturalistas tornaram-se
incapazes de compreender como os indígenas vieram a se assumir hoje como portadores de direitos,
perseguindo ativamente formas de empoderamento e outras modalidades de cidadania na
construção de Estados nacionais.
Uma anistia aos aspectos violentos da colonização foi, assim, autodecretada pelos
intelectuais não indígenas, impondo a invisibilidade etnográfica da tutela e transformando o
relativismo em ferramenta única de seu horizonte ideológico. Aceitando tacitamente as condições
de uma pesquisa realizada em um contexto colonial, os etnógrafos evitaram investigar sobre a tutela
e os processos de dominação sofridos pelos indígenas, considerando as suas manifestações
socioculturais como se procedessem de uma essência permanente e imutável, por completo imune
às relações locais e aos
contextos políticos concretos. (pag. 16)
A conhecida pintura de Victor Meirelles, A primeira missa no Brasil […] É a mais forte
autorrepresentação do Brasil, inculcada pela escola e naturalizada por toda a população letrada.
Nela, os índios, bastante estetizados, parecem fundir-se com a natureza, não sendo efetivamente
protagonistas – mas apenas testemunhas – da história da nação e de seu próprio destino.
Contra as autorrepresentações idealizadoras, caudatárias da crença em uma missão
civilizatória do homem branco, o investigador atual precisa remontar de outra maneira ao passado,
buscando compreender o surgimento das estruturas de geração de riqueza, desigualdade e expansão
territorial daquilo que identificamos como o Brasil real. (pag. 16)
Ao contrário da ambição por riqueza material ou por atingir a virtude, o desejo por esta
modalidade de poder não faz parte das motivações originais dos colonizadores, mas resulta da
experiência vivida na situação colonial. É esta que engendra a possibilidade de que um indivíduo,
na condição de membro de um grupo, venha a exercer sobre outro, na condição de membro de um
outro coletivo, uma relação de sujeição quase absoluta e a desenvolver práticas de desfrute e
representação virtualmente ilimitadas. (pag. 20)
Desde o século XVI até o XVIII, foram bastante comuns as representações dos continentes
feitas sempre através de figuras femininas. (pag. 20)
O extremo poder da autoridade masculina não veio apenas do modelo patriarcal europeu;
ele resulta do fato da conquista, que propicia e supostamente legitima processos civilizatórios
resultantes da guerra, da criminalização e do preconceito, aplicados então a componentes femininas
do próprio núcleo familiar. (pag. 21)
O racismo oficial perante os negros e indígenas não podia operar apenas por marcas
biológicas ou culturais (isto é, de “civilização europeia”), como seria o caso em regimes de
apartheid, mas precisava conviver com intrincadas histórias de famílias, que apresentavam
genealogias desconcertantes e impuras. Nesse contexto, o nome de família ou o vínculo com uma
pessoa de destaque e poder eram indicadores importantes para a estratificação social e para os
direitos a ela reconhecidos pelas autoridades ou por outros colonos. Uma dominação de tipo
patrimonial, centrada da figura de um “patrão” e manifestada mediante variadas formas de relação
com ele, acabou por instalar um permanente estilo paternalista,13 que servia como uma cômoda
ideologia que mascarava a desigualdade na vida econômica e política, e parecia nuançar as práticas
repressivas e disciplinarizantes (pag. 24)
A atribuição de uma primitividade aos indígenas, como se pode ver, não foi um registro
contemporâneo aos primeiros contatos, mas foi algo produzido posteriormente, derivado de novos
interesses econômicos e de outras concepções políticas e morais. (pag 27)
O segundo regime de memória procede a uma rigorosa separação entre o índio colonial e o
índio bravo, apontando nitidamente os cenários e contextos sociais em que cada um deles pode ser
encontrado. (pag. 27)
O terceiro regime de memória opera com uma imagem do indígena sempre remetida ao
passado – é o autóctone, aquele que precedeu ao colonizador português. Fortemente estetizado e
enobrecido
em seus costumes, foi transformado em personagem trágico da literatura indianista e das
artes românticas (IMAGENS 23 – 26). (pag. 28)
Quarto, o indigenismo republicano retoma a postura do indianismo do século XIX, falando
do indígena sempre de maneira bastante romântica e idealizada. À diferença do indianismo, porém,
este indígena não se encontra no passado, mas nas regiões mais remotas do Brasil atual,
numa espécie de coração ou núcleo da nacionalidade, no meio das florestas intocadas, que
reproduzem a natureza do país antes do descobrimento (IMAGEM 29). (pag. 28)
Não é correto considerar as performances e estratégias indígenas como idênticas àquilo que
os seus contemporâneos registraram e pensaram sobre eles. Um regime de memória propicia relatar
uma
história; mas, para compreender a organização e o funcionamento de tais sociedades, o
pesquisador não pode fixar-se em um só ponto de vista: deve buscar as muitas histórias e o seu
entrelaçamento. Por isso, o investigador não deve se limitar a uma documentação produzida por
fonte oficial e que reflita uma perspectiva supostamente canônica em relação àquele assunto:
precisa explorar a diversidade de fontes e a multiplicidade de relatos possíveis, beneficiando-se do
resultado de pesquisas antropológicas e históricas atuais. (pag, 29)
Nas últimas três décadas, um conjunto de antropólogos de diferentes países tem procurado
em suas pesquisas estabelecer um diálogo continuado com os historiadores, constituindo um campo
que aqui chamamos de “antropologia histórica”. Se os seus esforços criativos remetem a
linhas investigativas e conceitos intitulados de forma bastante variada – antropologia política,
antropologia crítica, antropologia histórica, estudos pós-coloniais, antropologia engajada, economia
moral, antropologias do Sul, antropologias mundiais –, todos estes20 convergem no desconforto
quanto ao antigo olhar imperial da disciplina, propondo novos objetos e cânones de investigação,
sempre inspirados numa aproximação com a história e com os movimentos de descolonização e
outras dinâmicas sociais libertárias. (pag 31)
DESAFIOS E INSTRUMENTOS
CAPÍTULO 1.
O NASCIMENTO DO BRASIL: REVISÃO DE UM PARADIGMA
HISTORIOGRÁFICO*
O PARADIGMA EVOLUCIONISTA
Uma constatação imprescindível é a de que essa narrativa que aqui combatemos não foi de
maneira alguma contemporânea aos fatos do século XVI, mas uma produção do século XIX. Não
do universo renascentista ou do mundo colonial, mas do evolucionismo e sobretudo, do Segundo
Império. Desde então, reina como absoluta entre pensadores de direita ou de esquerda, entre
historiadores, sociólogos e filósofos. (pag. 48)
E só no Segundo Império, quando o projeto de nação se elabora a partir dos debates sobre a
migração e o fim da escravatura, sem atribuir aos indígenas qualquer outra função que a de símbolo
da terra, que essa narrativa se estrutura, ganha autor (a monumental história geral de Varnhagen) e
instituição mantenedora (o IHGB do Rio de Janeiro e, posteriormente, suas sedes provinciais),
internalizando-se no pensamento da elite e de setores populares. (pag. 49,50)
O momento de fundação da colônia não foi de maneira alguma o ano de 1500 (o mesmo de
seu “achamento”), mas a implantação de um governo-geral, a instalação de uma sede e de um
aparato administrativo na Bahia de Todos os Santos e a definição de um projeto civilizatório. É
possível visualizar com nitidez a mudança de postura da Coroa portuguesa quanto ao Brasil no
Regimento de 17 de dezembro de 1548, outorgado a Tomé de Souza, primeiro governador- -geral.
Não se tratava mais de aproveitar dos jardins do paraíso, mas de tomar providências urgentes para
ganhar uma guerra (que estava sendo perdida) contra os indígenas e seus aliados franceses. (pag.
52)
Não é assim porém que a versão consagrada da história descreve. Acompanhando as fontes
oficiais da época, que raciocinavam em termos diplomáticos e do Tratado de Tordesilhas, os
franceses
eram qualificados como “invasores”, e os indígenas que com eles estabelecem alianças,
como “traidores”. A este historicismo ingênuo e extremado veio paradoxalmente associar-se um
“presentismo” do século XIX, bastante etnocêntrico, e que não reconhecia aos indígenas qualquer
protagonismo no relacionamento com as nações europeias. (pag. 52,53)
Se o lado mais heroico da fundação da colônia, aquele que será apropriado e retomado pela
narrativa convencional, é o das lutas contra os franceses, existe uma face velada, que decorre de
uma avaliação real quanto à necessidade de uma submissão definitiva das populações autóctones.
(pag. 54)
A GUERRA DE CONQUISTA:
A FUNDAÇÃO DA COLÔNIA
A capitania da Bahia, como sede do governo-geral, foi o lugar onde mais nitidamente se
expressaram as intenções do projeto colonizador. Os moradores da antiga vila do Perreira vieram a
receber não apenas o governador, mas todo um staff dirigente, que incluía ouvidor, provedor,
missionários, soldados, um mestre de obras e artífices. Eram 600 colonos e 400 degredados
(SOUSA, 2000:89-101), que em pouco tempo tiveram que produzir toda uma infraestrutura
governativa (Casa de Governo, Audiência, Câmara, Alfândega, Fazenda, fortes e casernas,
cadeia, a capela de Nossa Senhora da Conceição, armazéns, ferrarias e habitações para os colonos).
Tudo
isso em terreno previamente cercado e dotado de baluartes com artilharia. (pag. 56)
Foi indiscutivelmente com base no trabalho indígena que esse crescimento demográfico,
econômico e territorial ocorreu. As novas aldeias criadas acompanhavam a implantação de fazendas
e engenhos, dispondo-se de 20 a até 180 km de Salvador. Os índios assentados nas aldeias jesuíticas
correspondiam a mais de cinco vezes o conjunto de moradores portugueses anotados por Gândavo
para a década seguinte. (pag. 57)
O avanço da colonização não se fez, porém, sem conflitos e resistência por parte dos
indígenas. A primeira mobilização ocorreu em 1554, e durou quase dois anos. […] Pouco tempo
depois, surgiram notícias de que seis aldeias Tupinambás teriam se reunido e feito um cerco a um
engenho de um dos mais destacados colonos.[…] Numa terceira fase, no ano seguinte, em
decorrência da persistência de focos de conflito, o governador ordenou que fossem destruídas todas
as aldeias em que houvesse cercas (entendidas como preparativos bélicos voltados contra os
portugueses). Os
Tupinambás se submeteram, jurando lealdade a El Rey e comprometendo- se ao
pagamento de tributos (COUTO, 1996:265). (pag. 58)
A CONQUISTA DE PERNAMBUCO
A força de trabalho não especializada, altamente discriminada e que sempre teve um baixo
valor econômico, que serve como um antídoto para a pobreza dos cidadãos comuns, estava, nesse
momento, apenas iniciando sua trajetória na história do Brasil. (pag. 66)
Apesar da enorme redução populacional que sofreram, os indígenas da faixa atlântica não
foram extintos ao longo do século XVI, como supõem expectativas e preconceitos ainda vigentes.
As
pesquisas realizadas pelos antropólogos na última década identificaram a presença de mais
de três dezenas de coletividades que se autoidentificam como indígenas nos sertões e na faixa
atlântica do Nordeste, incluindo populações litorâneas que foram extensamente objeto de crônicas e
de ações coloniais, como os Potiguaras, os Tupinambás e os Tupiniquins (PACHECO DE
OLIVEIRA, 2004:39-42). (pag. 66)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O primeiro é que todos os discursos relativos aos indígenas passam necessariamente pela
polaridade proteção versus extermínio.[…] Essa dualidade remonta já aos primeiros escritos dos
jesuítas no Brasil, se torna muito mais rígida e impositiva no século XVII (sobretudo com os
escritos do Padre Antônio Vieira), e norteia todas as narrativas históricas subsequentes sobre o
indígena, atingindo o século XX e estendendo-se aos dias atuais. Ela não se expressa somente na
oposição entre jesuítas e colonos, mas também entre missionários e diretores (no período do
Diretório Pombalino de 1755, continuando a se impor por várias décadas após a sua extinção formal
em 1798), ou entre militares e extrativistas (já no período republicano). (pag. 68)
Diferentemente do que poderia parecer a uma visão polarizadora que vimos criticando, que
pretende opor um humanismo cosmopolita a um tosco egoísmo local, a atividade missionária e as
ações punitivas caminharam juntas no século XVI e se integraram como constitutivas da
conquista das populações autóctones e da implantação da ordem colonial. (pag. 68)
[…] Os tempos atuais exigem outros instrumentos de convivência social, que apostem não
na repressão, mas na participação; instrumentos que tenham como desafio superar as exclusões
sociais, incorporar aos diferentes e às diferenças em estruturas plurais. Os ndígenas tiveram – e
terão – um papel importante nesse processo. (pag. 71)