As crianças não desejadas, que são rejeitadas antes mesmo
do nascimento, assim como as que não são bem aceitas pelos pais (especialmente durante a primeira infância) costumam apresentar problemas que são motivo de preocupação para psicólogos e orientadores. A rejeição, de acôrdo com Symonds, pode ser estudada clImo sentimento ou como comportamento. O sentimento de rejeição refere-se ao ódio e hostilidade que certos pais experimentam pelo filho. Quase sempre os motivos, ou melhor, as motivações pro- fundas que determinam êsse sentimento, são inconscientes: uma antiga rivalidade para com um irmão ou contra o próprio pai, às vêzes completamente esquecida, é reavivada e projetada no filho; êste pode lembrar certas características físicas ou psíquicas de algum membro da família pelo qual experimentaram sentimentos negativos em sua infância. Dessa forma, o ódio ou a hostilidade reprimidos são deslocados para o próprio filho. Outras vêzes os pais não rejeitam a "pessoa" do filho, mas certas características da personalidade que odeiam em si mesmos. Essa não-aceitação do filho, com suas qualidades e defeitos implica, igualmente, a rejeição. Nesses casos, o sentimento de culpa disfarça, 94 A CRIANÇA REJEITADA A.B.P.j4
cuidadosamente, a atitude hostil, que se apresenta velada e se mani-
festa apenas em forma de críticas quando ~ses pais se referem a seus filhos. N as entrevistas psicológicas, verificamos que certas mães fazem críticas severas do que elas chamam de defeitos graves dos filhos e que, muitas vêzes, são apenas manifestações mais ou menos negativas, correspondentes a comportamentos passageiros que podem ser considerados perfeitamente normais no desenvolvimento evolutivo da criança. O motivo da rejeição pode ser também material e imediato, como dificuldades econômicas, condições precárias ou inadequadas de moradia, exigências do trabalho dos pais, etc. Quanto à rejeição como comportamento pode adotar várias formas, umas passivas, e outras, ativas. Entre as primeiras, é fre- qüente encontrar atitudes de fastio e indiferença, adotadas pelos pais na presença do filho. Costumam, êsses pais, justificar tal atitude alegando falta de disposição, cansaço, incapacidade para suportar o barulho e as manifestações próprias da criança, física e psiquica- mente sadia quando age com espontaneidade. Da mesma forma, os pais que afastam o filho do lar colo- cando-o num internato "para seu bem"; os que procuram seu afasta- mento do lar, mesmo na época de férias, providenciando sua partici- pação sistemática em colônias de férias, viagens, etc; os que procuram confiar sempre seus filhos 'a mãos de terceiros; os que estabelecem comparações pejorativas do filho com os próprios irmãos, ou outras crianças; os que humilham o filho e o ridicularizam, mediante obser- vações desnecessárias na presença de estranhos, ou mesmo de pessoas da própria família. Todos êles adotam um comportamento hostil que envolve atitude mais ou menos velada de rejeição. Por vêzes, a hostilidade é aberta, ostensiva e se manifesta em forma de agressões físicas e punições completamente inadequadas ao estímulo que as originou. Essa hostilidade não é, contudo, tão pre- judicial à criança como a hostilidade secreta, oculta atrás de uma serena indiferença. A mãe indiferente costuma descansar o cuidado dos filhos na avó, numa irmã mais afetiva, na babá, etc. A ausência completa da mãe, especialmente seu desa- parecimento, costuma ter conseqüências graves; essa gravidade aumenta tanto mais quanto menor fôr a idade da criança (Porot). A.B.P./4 A CRIANÇA REJEITADA 95
As conseqüências desta carência afetiva se manifestam, de ime-
diato ou mais tardiamente, de arôrdo com a resistência física e psíquica da criança. Spitz emprega o nome de "hospitalismo" para designar as alterações específicas do doente quando confinado por muito tempo num hospital. Faz extensível êsse têrmo ao efeito nocivo experimentado pela criança quando internada muito nova em insti- tuições. Todos os psicólogos, que tenham trabalhado para instituições clêste tipo, conhecem bem os sintomas da criança que sofre de carên- cia efetiva. Em nossa experiência de alguns anos com a Fundação Romão Duarte, pudemos constatar que, apesar do esfôrço das irmãs que abnegadamente dedicam suas vidas a essas crianças, apresentam elas sinais inconfundíveis de apatia e indiferença afetiva, falta de concentração, lentidão de reações, vocabulário paupérrimo e retarda- mento mental. Sua inteligência social é nula, razão porque até as que apresentem Q. I. normal fracassam, quando entram em contato com o ambiente externo. Êste síndrome, embora atenuado, pode apresentar-se também no ambiente familiar quando a mãe se encontra real ou afeti- vamente ausente. Assim, Heuyer nos fala de "hospitalismo familiar", têrmo usado para definir os sintomas precoces da criança com ca- rência afetiva. Temos encontrado síndromes tardios conseqüentes a essa mesma carência afetiva, que envolve uma rejeição princi- palmente da figura materna.
Na revisão dos dados anamnésicos dessas crianças, verifi-
camos que existem fases críticas em seu desenvolvimento evolutivo, durante as quais os pais se mostram mais propensos a rejeitá-los: a) faE.e uterina durante a gestação, a mãe é muitas vêzes tomada de um intenso sentimento de mal-estar perante a idéia de tornar-se mãe. Dessa forma, age ativa ou passivamente para destrun' o feto; b) o nas- cimento, quando o sexo da criança não corresponde às expectativas dos pais; c) entre os 2 e 3 anos, quando o pequeno ser começa a se afirmar e apresenta os primeiros sinais de independência; d) na fase escolar, quando experimenta as primeiras dificuldades frustrando a vaidade dos pais. Dentro da fase escolar existem duas épocas parti- cularmente críticas: o período de alfabetização e a fase preparatória da admissão ao curso ginasial, sendo esta. particularmente ingrata por coincidirem as pressões escolares com as primeiras dificuldades da fase puberal. 96 A CRIANÇA REJEITADA A.B.P.j4
Quanto às crianças, reagem perante essa rejeição familiar
e, principalmente, materna, como em face de outras frustrações: com agressividade. Essa agressividade pode ser canalizada pela criança de diversas formas: contra si mesma, contra o ambiente, ou de ma- neira oscilante. No primeiro caso adotará um comportamento pas- sivo, submisso, acompanhado, quase sempre de regressão emocional. Os pais poucas vêzes reagem a essa atitude que encontram cômoda, a não ser que tal passividade comprometa gravemente o rendimento escolar ou vital. . Procuram entretanto as clínicas e institutos de orientação infantil, quando a criança descarrega sua agressividade no ambiente, definindo-se por um comportamento instável, quase sempre com características pré-delinqüenciais (furtos, mentiras, fugas, etc.), sem falar nas desordens psicopáticas da conduta que envolvem distúrbios profundos da afetividade. Tais crianças fracassam ao estabelecer seus primeiros contatos sociais. Além da falta de capacidade para dar e receber afeto, assim como para estabelecer vínculos afetivos normais, mostram-se hostis, descontroladas, desatentas e impenetráveis; os castigos ou as recompensas não os afetam. São realmente tocantes os resultados que estas crianças apresentam nos testes de personalidade. No teste de Rorschach, os protocolos se caracterizam pela constante ausência de respostas cro- máticas. Mais do que uma repressão, esta falta de respostas de côr, parece representar uma verdadeira incapacidade afetiva, como se êsse importante aspecto da personalidade se encontrasse morto. Goldfarb (citado por Porot) assinalou semelhanças notáveis entre os protocolos do teste de Rorschach apresentados por crianças de instituições e por esquizofrênicos da mesma idade. Apresentamos a seguir um caso, que nos parece signifi- cativo para ilustrar êste trabalho. Trata-se de uma criança de 11 anos, caçula numa família de dois irmãos. O primogênito está com 13 anos. O Oro segue o curso de admissão e foi trazido ao ISOP pelos seguintes motivos: furta há dois anos, mente, falsifica a assinatura dos pais, tem conduta irregular, comportamento muito agressivo e rendimento precário no colégio; é irrequieto, desatento e ultimamente sujeito à tiques. , !
A.B.P./4 A CRIANÇA REJEITADA 97
Planejamos para o estudo do caso, além do exame médico,
duas provas de personalidade e o Binet-Terman para avaliação de .seu coeficiente intelectual. Os dados principais da entrevista com a mãe foram os seguintes: Ficou grávida do Oro quando o primogênito estava com um ano e 3 meses. Não desejava ter outro filho, pois já não estava preparada para receber o primeiro . Jamais gostou de crianças, não tem jeito para lidar com elas, não sabe dar afeto. , I,
Tomou vários remédios para abortar, sem contudo conse-
guir seu intento. Em conflito consigo mesma, chegou ao têrmo da gravidez. Passou mal durante o período da gestação, chegando a ficar internada durante o mês que precedeu ao nascimento do Or., quando ficou frustradíssima ao saber que era outro menino. Foi desmamado precoce e bruscamente, um mês após o nascimento quando a mãe resolveu trabalhar fora. Durante o primeiro ano de vida sofreu tôdas as doenças imagináveis, ao ponto de o médico achar que não sobreviveria. Com 12 meses ainda não sentava, não pronunciava uma única sílaba e não tinha dentes. Durante a primeira infância era excitadíssimo, mexia em tudo, não se fixava em nada. Todavia, "ap~nhou tanto que, no lar, não deu mais trabalho. Ficou apático, indiferente, sem participar de nada ou entusiasmar-se com coisa alguma". No colégio, nos primeiros anos, mostrava-se mais alegre e expansivo chegando a ganhar prêmios por comportamento e aplica- ção; gostava da professôra, beijando-o à entrada e à saída da escola. No 2.° ano primário, mudou de professôra. Esta era ríspida e estabelecia comparações pejorativas com o irmão de quem também fôra professôra durante 3 anos. A partir de então, o Or. começou a apresentar sensíveis sinais de desajustamento que pioraram de ano para ano. Furta di- nheiro do pai e tira brinquedos e doces das lojas e revistas dos jorna- leiros, repartindo entre os colegas, negando que tenha furtado. Não faz os deveres do colégio, não presta atenção na aula, dando a impressão de estar sempre alheio. :t!:le próprio assina os bilhetes que a professôra manda para a mãe, pois aprendeu a falsi- ficar a assinatura dos pais. 98 A CRIANÇA REJEITADA A.B.P.j4
Mente muito, sem motivo e sem alterar a voz ou o sem-
blante, ao ponto de a mãe duvidar se está meniido ou não. O pai chega a espancá-lo, quando furta ou falsifica a assinatura, sem con- tudo conseguir fazê-lo chorar, apenas geme quando recebe os golpes. Após as surras, fica de olhos sêcos, muito abertos, dando a impressão de olhar sem ver. A mãe tem formação superior, 33 anos, trabalha fora do lar e tem vida social muito intensa. Não se preocupa com os pro- blemas de casa, descansa esta responsabilidade em mãos de empre- gados. Teve uma infância triste, seu pai era alcoólatra, e tinha um caráter violento; estudava o curso secundário, interna, quando os pais se separaram. Tem um único irmão, 3 anos mais nôvo, doente mental (esquizofrênico). O pai do ar. é sêco e pouco comunicativo; todavia, tem adoração pela espôsa e admira o primogênito que acha parecidíssimo com êle. Não compreende o ar.: não entende porque furta, "em casa sempre teve brinquedos e comida sobrando". Suspeita que o filho é deficiente. Quer saber a verdade a êste respeito e está dis- posto a colaborar, prometendo seguir à .l'Ísca a orientação do ISOP . . Não suporta a vergonha das queixas que recebe do filho. A entrevista com o ar. não trouxe maiores esclarecimentos. Respondia por monossílabos, mostrando-se indiferente e distraído.
Quanto aos testes o resultado foi o seguinte:
Inteligência:
Binet-Terman: Q. I. = 110. Falhou na memória, tanto
, para números quanto para frases, palavras e formas. Personalidade:
No PMK apresenta uma base fraca e componentes dis-
rítmicos. No teste de Rorschach, manifesta uma forte afirmação : agressiva, mas considerando a orientação predominantemente jntro- versiva de sua personalidade, sugere uma interiorização dessa agres- sividade o que desperta no ar. intensa ansiedade. Tal ansiedade pa- rece ligada à figura humana. A.BP./4 A CRIANÇA REJEITADA 99
o resultado do exame médico foi normal. Na entrevista
de aconselhamento, o pai sentiu-se orgulhoso ao constatar que o filho possuía um Q. I. normal. Aproveitamos esta disposição para desper- tar sua sensibilidade em relação com o Or. fazendo-lhe compreender até que ponto o filho precisava do seu afeto e estímulo; da necessidade de proporcionar ao Or. um pouco de segurança emocional e calor afetivo para colaborar com o tratamento psicoterápico que julgamos necessário para a sua recuperação. Sugerimos também a conveniên- cia de um tratamento psicanalítico para a mãe.
Conclusões: o caso em estudo, assim como todos os que
constam nos arquivos do ISOP, sob o rótulo "crianças rejeitadas", confirmam o já observado por outros psicólogos: (Borwin, Spitz, Heuyer, Durfee e Wolf, Roudinesco e Appel, Adler, Stekel, Ada H. Arlitt, Maurice Porot, Anne Freud, Symonds, Artur Ramos etc.) :
a) as crianças não desejadas, quando intensamente rejei-
tadas pela mãe durante a fase da gestação, costumam apresentar forte predisposição para enfermar física ou psiquicamente;
b) a deficiente incorporação das figuras parentais, e muito
especialmente da mãe, origina marcas indeléveis na personalidade da ciança;
c) as carências afetivas primárias, quando não com-
pensadas a posteriori, determinam desajustamentos de gravidade variável;
d) a gravidade dêsses desajustamentos dependerá da
resistênci:a psíquica da criança, das condições fenotípicas e das taras hereditárias;
e) o prognóstico é sempre seno quando não se tomem
providências enérgicas para a recuperação emocional da criança. Todavia, em muitos casos, apesar de tõdas as medidas, a criança não reage, mostrando-se impenetrável; não é possível recuperá-la afeti- vamente porque sua afetividade foi totalmente destruída. Como muito bem afirma Maurice Porot, "não se pode capturá-los afeti- vamente porque não há por onde. Elas não ocultam porque nada têm para ocultar". 100 A CRIANÇA REJEITADA A.B.P./4
BmLIOORAFIA
- FLÜGEL, J. C., PS'icoanalísis de la família, Buenos Aires, Editorial Paidós, 1952.
- SYMONDS, PERCIVAL M. e outr'os, Las relaciones familiares, Buenos Aires, Editorial Paidós, 1965. - STEKEL WILHELM, La educación de los padT'es, Buenos Aires, Ediciones lman, 1947. - STEKEL, WILHELM, Cartas a una madre, Buenos Aires, Ediciones Imar, 1947. - PoROT, MAURICE, A criança e a família, Rio de Janeiro, Editôra Fundo de Cultura, 1958. - WINN B. RALPH, Enciclopedia de educación infantil, Buenos Aires, Editorial Pai- dós, 1946. - LooSLI USTERÍ, MARGARITA, Los ninos difici~es y su medio ambiente familiar, Madrid, Espa.'la Calpe, 1938. - ADLER, A .. Guiando ai nino, Buenos Aires, Editorial Paidós, 1948. - RECA, TELMA, Personalidad y conduta dei nino, Buenos Aires, Libreria y Editorial el Ateneo, 1947. :- WALLON, H.,Les origines du caractere chez l'enjant, Paris, B,oivin, 1934. - MANCILLE, O., L'enfance moralement abandonnée, Bruxelas, Bulletin d'orientation scolaire et professionnelle, 1961. - RAMOS, ARTHUR, A criança problema, Rio de Janeiro, Livraria Editôra da Casa do Estudante do Brasil, 1954. ~ SPITS, }lOSPITALIS ME , Sauyegarde, 4,6-33, n.O 36, dec. 1949. _ HEUYER, O., Iniroduction à la psychiatrie infantile, I VoI. Paris, Presses Urti- versitaires de France. Paris. 1952. _ ROGERS, CARL, R., The clinica! tl'3atment oj the problem child.