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Nadir Zago

Marilia Pinto de Carvalho


Rita Amélia Teixeira Vilela
(organizadoras)

ITINERÅRIOS DE PESQUISA
Perspectivas qualitativas em Sociologia da EducaGä0

Agnås Van Zanten


Alda Judith Aves-Mazzotti
Geraldo Romanelli lnés
Assunqäo de Castro Teixeira
Lea Pinheiro Paixäo
Leila de Alvarenga Mafra
Magali de Castro
Manuel Jacinto Sarmento
Maria de Lourdes Rangel Tura

editora
Itinerários de pesquisa
Perspectivas quahtativas em Sociologta da Educação
Mariha Pinto de Carvalho
Nadar Zago
Rita Amélia Tetxeira Vllela (orgs.)

Revisão de provas
Alexandre Arbex Valadares

Projeto gráfico e diagramação


Fernanda Costa e Silva

Capa
Yornar Augusto

Gerência de produção
Maria Gabriela Delgado

CIP. EkASIL.
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, R]

186

Itinerários de pesquisa: perspectivas qualitativas em sociologia da


educação / Nadir Zago, Marília Pinto de Carvalho. Rita Amélia
Teixeira Vilela (orgamudoras). — Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

Inclui bibliografia
ISBN

l. Pesqutsa educacional. 2. Sociologia educacional. I. Zago, Nadir. II.


Carvalho, Manlla Pinto de. III. Vilela, Rita Alnéha Teixeira.

CDD 370.78
CDU 37.015.4
de dignidade: assimctrias e tensões em pcsquisa no lixão.
In.: M.P.E.; VILELA, R.A.T. (orgs). Itinerários de
pesquisa: sociologia da educação. Rio de Janeiro: DP&A,
2003.
(p.

CATADORAS DE DIGNIDADE: ASSIMETRIAS E TENSÕES


EM PESQUISA NO LIXÃO
Lea Pínllciro Paixão*

Qualquer trabalho de pesquisa coloca tensões que nem a experiência


anterior conl este tipo de atividade nem a familiaridade com a literatura
sobre metodologia e estudos produzidos por outros pesquisadores
eliminam. Essas tensões nos mobilizam do ponto de vista profissional e
pessoal. Neste capítulo exponho algumas que enfrentei ao imciar uma
pesquisa com catadoras de um lixão. Ao buscar estabelecer os pnmeiros
contatos, a realidade de vida do grupo me interpelou de forma intensa.
Experimentei um certo sentimento de culpa por viver num mundo tão
desigual, que leva indivíduos a buscar sobrevivência em condições tão
cruéis. Por outro lado, o contato pessoal me mostrava mulheres de vida
dura porém alegres, gentis, críticas. Minhas inseguranças me levaram a
adotar algunuus estratégias de aproximação que se mostraram
equivocadas. O mal—estar inicial foi dirninuindo na medida em que o
assumi e em que, a partir de conversas informais com catadoras e de
leituras sobre o lugar que ocupam na sociedade brasileira, fui
compreendendo o significado desse tipo de trabalho para a sociedade
contemporânea e para elas, e assim tive condições de estabelecer relações
mais propícias à escuta ativa, compreensiva e metódica das catadoras. O
caminho seguido no enfrentamento das tensões revela opções teórico-
metodológicas na direção de buscar entender o indivíduo pela articulação
de subjetividades e pelo lugar que ocupa no mundo social.
A contextualização do grupo contribt.nu também para reonentar as
discussões que haviam balizado a construção do projeto de pesquisa, na
medida em que mostrou que o trabalho no hx50 não é um trabalho como
outro qualquer. Especificidades desse tipo de tmbalho estio inscntas no
Inodo de viver (ou sobreviver) e de ler o mundo. Algumas delas, que
serão aqui apontadas, indicam eixos a serem explorados no tratamento
das entrevistas e mostram que o grupo não pode ser dissolvido nas
generahzações de carnadas populares ou

• Federal Flununen% (UFO.


ITINERARIOS DE PESQUISA
266

Na primeira parte, falo de dificuldades enfrentadas nos pnmeiros

dimensões do lugar social dos catadores de II.xo no Brasil atual.

A aproximação - sintomas de assimetrias


Iniciei a pesquisa ao final de 1999, buscando analisar di:nensões de
escolarização em um grupo de catadoras de lixão do Rio de Janeiro. Meu
Interesse por-aas nascetúlo Qlocumentáno "Boca do lixo", do cineasta
Eduardo Coutinho. Suas imagens são impactantes: os catadores aparecem na
dureza da tarefa que executam. Inas tatnbém falando de suas alegnas, de
hi«tórias de amor, de prazeres, com humor. Tais imagens surpreendem
porque nos acostumamos a vê-los representados cotno pobres nuserávels sem
história. No campo das Ciências Sociais, eles têm tido visibilidade como
atores que v:vem na nuséna, num cotidlano marcado pela violência,
envolvidos no tráfico de drogas e no qual o trabalho infantil é generalizado.
Meu olhar sobre o grupo se balizou por meus interesses acadêmicos no campo
da Sociologia da Educação — relaçôes entre escolarização e fanlílias de
camadas populares. Gostaria de entender o sentido que a escola assume ou
pode assunlir para eles. A decisão por entrevistar apenas tnulheres explica-se.
São elas, em geral, que acompanham a escolarização dos mais Jovens.
Sabemos que a relação que se estabelece na pesqtnsa entre pesquisador
e pesquisado é uma relação social cujos efeitos se Inscrevem nos resultados
da pesquisa. E, em pnncíp10, uma relação assimétrica, na medida em

que o pesquisador donuna a situação e conhece os objeuvos do trabalho, Já


que os definiu. Outra dimensão dessa assirnctna diz respeito aos lugares
sociais ocupados pelos atores em questão: pesquisadores e pesquisados.
Na pesquisa aqui tratada, sintomas dessa assirnetria se manifestaram,
logo de início, numa questão aparentemente simples: co:no entrar
contato com elas? O mundo das catadoras é muito distante do
meu. Nunca unha ido a um lixão. Não sabia como funcionava, não
conhecia as regras de entrada, e havia pouca literatura disponível
sobre o tema.
Estabeleci contatos Inicia:s com urna professora de História que
mora no Inumcí1)10 onde se localiza o lixão, e participei, em
seguida, de uma reunião com representantes de secretarias
municipais, dirigentes de creches, de órgãos asqstenciais, de outros
órgãos públicos e de ONGs cuJ0 objetivo principal era planeJar
ações de apojo aos catadores.
ASSIMETRIAS E TENSÕES PESQUISA
CATADORAS DE DIGNIDADE: EM NO 267

Participaraln dessa reunião um grupo de catadoras e um catador. Foi o


primeiro contato que tive com elas. A participação do g-upo, feita de silêncios e
poucas intervenções, forneceu indícios de diferenças na avaliação de prioridades.
Os representantes institucionais buscavam centralizar discussões sobre a
necessidade de eliminar a parnapação de crianças no trabalho de catação, o que
parecia obter uma adesão muito tímida por parte delas. Mas não havia dúvidas
quanto à força da adesão quando se tratou de creches e de postos de saúde. Nessa
ocasião, conversei com algumas catadoras; uma delas tinha sido eleita presidente
da cooperativa ainda em formação. Vou chamá-la Ivete. Falei-lhes do meu trabalho
de pesquisa e senti desconfiança por parte de algumas e simpatia reticente por
parte de outras. Ouvi delas críticasyprofissionais que falavam do lixão sem nunca
ter entrado lá. Apesar disso, busquei o espaço onde me sentia mais confortável: o
escolar. Tinha conhecido, na reunião referida. a diretora de uma creche que atende
a filhos de catadores. Ela falou sobre o cotidiano no lixão e sobre as âmílixs que
vivem do trabalho de catação. Um de seus comentários me surpreendeu: algumas
mulheres preferiam coVocar filhos de mais de 6 anos na creche do que em escolas
de Ensino Fundamental por temerem que o Estado, em dccorrêncu dos indícios
dc que as crianças trabalhavam no lixão, tomasse seusfilhos. Por isso, as creches
do local, segundo ela, recebiam uma população cuja idade variava entre O e 14
anos.
Programei uma primeira entrevista, no espaço dessa creche. com uma
ex-catadora que trabalhava lá, onde o seu filho estava matnculado. Ela
não compareceu ao nosso encontro. Minha proposta de dar urna
retribuição monetária pela entrevista surtiu efeito contráno. segundo
interpretação da diretora. Minha intenção. ao propor de 20
reais por entrevista, estava pautada em uma questão de ordem éuca. Já
que a pesquisa fazia parte de minhas atiwdades de trabalho e justificava
meu salário. Fiquei surpresa com a interpretação dessa diretora. Como a
entrevista combinada não aconteceu, entrevistei, nessa ocasião. outra
ex—catadora que estava na creche para uma reunião. Nós conversamos
enquanto eu esperava para realizar a entrevista que não aconteceu. Juntas.
ajudarnos na de cesta básica que seria dvstnbuida à população
pela creche em nome de seu mantenedor, um político local. Informada da
situação anterior e da explicação da diretora. aceitou ser entrevistada e
ficou satisfeita ao receber urna quantu pela entrevista. Estava sem
trabalhar. Mas o comentário que se seguiu — "eu nio orgulhosa"
26S

nio aliviou meu mal—estar. Suas respostas, de certa forma,


mostravam um nítido empenho em passar u:na avaliação positiva do
trabalho realizado na creche e em ressaltar a figura da diretora.
ITINERARIOS DE PESQUISA
Provavelmente, buscava resguardar o lugar do filho na creche. Após
essa tentativa, resolvi realizar as entrevistas no lixão.
Na primeira vez em que fui lá. tive a companhia de uma orientanda.
Todo o entorno do lixão fala da atividade de catação: a presença das
pequenas empresas de atravessadores que colnpram dos catadores o
material coleado. a das pequenas fabricas de reciclagem, a movimentação
de canunhões que chegam para despejar ILxo.
Na entrada, Kincionários da empresa responsável pela administração
terceirizada controlam o acesso ao lixão. Dali até o terreno onde são
deixados os resíduos e se encontram os catadores pleno trabalho há
um pequeno percurso. Adentrando nele já sentia um cheiro forte e
desagradável. Chegando ao lixão, a visão de adultos, de jovens e de
crianças remexendo dejetos, de caminhões despejando carga, de
animais à cata de alimentos provocou um forte impacto em nós duas.
Senti um mal-estar acompanhado de grande constrangimento e de um
certo medo. Medo deste universo de pobreza desconhecido, desta
pobreza que nos acostumamos a olhar como "satanizada".
Confesso que a visão do lixão me deixou paralisada. Eu e minha
orientanda queríamos sair correndo de lá, mas resistimos. Perguntamos pela
Ivete, que em seguida apareceu e nos recebeu com um largo sorriso. Mal
ouvíamos o que ela nos dizia. C01nbinamos de voltar dias mais tarde. Mas
eu, pessoalrnente, precisei de tempo para "destilar as emoções' Pensei
desistir, mas me sentia covarde. Após dois meses, retomei o trabalho de
campo e combinei entrevistar Ivete em pleno terreno onde se faz a catação.
Fazia um calor intenso. O barulho dos caminhões e a presença de outros
catadores a redor comprometiam nunha concentração.
Após esta primeira entrevista, refleti de forma mais tranqüila sobre
a melhor maneira de conduzir a coleta de informações, considerando
os objetivos do trabalho e as tensões das relações. Tomei duas
decisões.
Em primeiro lugar resolvi solicitar a colaboração de
Ivete comp_ intermediária. Ela é conhecida e respeitada pelos catadores,
conhece bem o espaço local, a composição do grupo e as relações entre os
catadores. Com ela, eu decidiria que catadoras seriam entrevistadas. Ela
conversaria previamente com a colega e marcaria horános para a entrevista.
Discuti com ela a pertinência de pagar pelas entrevistas. Relatei minha
experiência
C ATADORAS DE DIGNIDADE: oa NO UuO 269

anterior. Expliquei o significado da pesquisa como parte de meu


trabalho e de meu salário como professora universitária. Esse
ASSIMETRIAS E TENSÕES PESQUISA
argumento não pareceu convincente. Ela perguntou sobre a origem do
dinheiro que utilizaria no pagamento, queria saber se eu estaria usando
recursos do meu próprio bolso. Só após compreender que havia verba
para financiamento da pesquisa (Fapeo) aprovou a idéia. Considerando
a luta diária de uma catadora pela sobrevivência e valores do rnundo
atual, essa reação não deixa de ser surpreendente. O pagamento pela
entrevista estana sendo visto como um doni sem contrapartida? Falar
de sua propna vida não deve ser. aos olhos das catadoras, uma forma
de trabalho. Nesse caso o dom pode humilhar. corno lembra Zaluar
(1997). apoiando-se em Mauss. Esse fato é revelador de distâncias de
ordem simbólica que geraram tensões.
A conversa com Ivete propiciou o estabelecimento de relações
claras, cordiais e respeitosas entre nós, mas não anulou as distâncias
sociais que nos separa:n. Acertei com Ivete uma quantia como
contrapartida pelo seu trabalho de intermediação. Combinamos. a
partir da avaliação do tempo médio de duração das entrevistas, que
cada entrevistada receberia 20 reais.
Novas tensões emergiram em decorrência dessas decisões. O fato
de eu retribuir por entrevista levou catadores a me procurar
espontaneamente_pedindo para serem
entrevistados. Na medida do possível e dos interesses da pesquisa eu
atendi. Uma das profissionais da empresa administradora do lixão me
comunicou seu temor de que, no frturo, os catadores solicitassem
retribuição para fornecer informaçÕes consideradas necessárias às
atividades da empresa. Insistiu que eu fosse muito clara sobre os
motivos que me levaram axetribuir e a origem dos recursos. Eu já o
fazia. Ao iniciar cada entrevista, além de expor os objetivos do meu
trabalho, explicava o porquê da retribuição e a origem do dinheiro.
Essas tensões provavelmente se acentuariam se o trabalho de coleta de
informações se prolongasse.
Decidi, também, realizar as entrevistas no galpão
à entrada do lixão onde estava sendo construída a usina de reciclagem.
Local tranqüilo, silencioso e ao abrigo do sol. dentro do espaço do lixão,
onde eu colocava as cadeiras que trazia no carro. Combinava
previamente com Ivete a pessoa a ser entrevistada,
a data e o horário da entrevista. Ao chegar ao ga]pão ligava para o
celular dela, que então avisava a da minha presença.
270
ITINERARIOS DE PESQUISA
Outras opiniões eniitidas por catadoras tambétn pareciam inusitadas.
Apesar de expressaretn expectativa de encontrar outra fornia de trabalho
''Inais lilnpo", Inenos estiglnatizado, costumavatn acrescentar: ''desde que
eu possa obter ganhos semelhantes ou melhores". Dissera:n preferir o
trabalho no lixão ao de doméstica em casa de "tnadatue". Duas ditnensões
desta observação me deixaram intngada. Etn pri:neiro lugar, a opção em
si. Como cotnpreender que elas considerassem trabalhar no lixão melhor
que trabalhar de dotnéstica casa de farnília? E, etn segundo lugar, o fato•de
que isso supunha, ainda que em lituites muito estreitos, possibilidades de
exercer opção.
Essa lógica, diferente da minha e do círculo a que pertenço, de ilnediato
provocou certa inibição de minha parte na realização de entrevistas. Tinha
receio de colocar questões que me interessavam tuas que pudessem ser
mal interpretadas. Tinha receio de magoar utilizando termos vistos, por
elas, como discrirninatórios e eivados de avaliação negativa. Lixão ou aterro
sanitário? Nas primeiras conversas sentia-me trabalhando eni terreno de
areia movediça. Procurei captar os tertnos que elas próprias empregavam
para designar os espaços e as
situações ate entao
desconhecidos por milil.
Além de urna escuta atenta e respeitosa do discurso das catadoras,
continuei a buscar uma literatura que me ajud.nse a compreender este
Inundo, procurando referências além daquelas fornecidas, de maneira
i:nediata, pelas catadoras,já que elas próprias não têm, enl parte em
decorrência de suas condições de vida, acesso aos princípios de seus
problemas. Estas referências dizem respeito ao lugar que esse grupo
ocupa na sociedade. Não poderia cornpreender os relatos individuais que
estava coletando sem atentar para as redes que os ligam entre si e para a
sociedade nnais ampla. Compreender supõe articular indivíduo e
sociedade. Os indivíduos são construídos e se constroem numa trama
complexa, constituída de dimensões particulares, pessoais, de
diversidade de redes e de fortes imposições associadas ao lugar que eles
e as redes ocupam na sociedade. Assim, a vida, o cotidiano dos
catadores, seus projetos de futuro para os filhos e suas expectativas de
escolarização são balizados por sua classe

social e pelas redes a que estão associados onde a conjuntura


econômicosocial é fundadora._"Os acontecimentos biográficos se
definem como colocações e deslocamentos no espaço social (...)"
(BOURDIEU, 1996, p. 190) Tal postura epistemológica supõe tuna
ITINERARIOS DE PESQUISA
atenção cuidadosa ao espaço social que não se contente com o emprego
de
DIGNIDADE: ASSIMETRIAS E TENSÕES EM PESQUISA
CATADORAS DE NO LIXAO 271

substantivos desutnanizantcs, como instrumentos de trabalho, Quer se fale


de função ou dc estrutura, de papel ou de de economia ou de cultura,
a significação dc todos estes conceitos só raramente reflete suas Ivçõcs conl a
configuração de homens específicos (EMAS, IY)I, p. 159). Atenta às tensões do
binómio indivíduo-sociedade, busquei elementos para compreender 0 lugar
social dos catadores no Brasil atua].

Opulência do lixo e novas formas de sobrevivência na


sociedade contemporânea
O trabalho de catação não é um trabalho como outro qualquer.

Ele é sintoma de diferentes ditnensões da sociedade contemporânea. Há a


dimensão simbólica do lixo: rebotalho da sociedade. Há a dimensão
a:nbiental: ele veni constituindo um yande problema nos centros urbanos,
sendo tema central no campo dos estudos sobre o meio ambiente. Há
dimensões econÔmicas: o trabalho no lixo é sintoma, de um lado, da
diminuição de empregos formais na sociedade globalizada, e de
outro, da reciclagc:n como negócio.
Pouco se teni escnto sobre grupos sociais como o dos catadores.
Parece que, marginalizados sociahnente, também permanecem na
penumbra no campo acadêrnico. No entanto, pela exclusão do mundo

formal do trabalho e pela tarefa que executam, são testemunhas de


dimensões económicas e sociais que marcam o mundo contemporâneo.
Desemprego e abundância de lixo são duas marcas da sociedade atua]. O
lixo é sujo e cheira mal; deixa sujos e malcheirosos os que nele trabalham.
Há uma relação cruel entre rejeitos fisicos e rejeitos humanos:

Esse imbncamento entre os rejeitos fisicos (lixo) e humanos (excluídos)


da sociedade revela uma dimensão perversa da modernidade: o aumento
da produção de bens com componentes cada vez mais descartáveis,
paralelamente ao aumento da produção de desempregados, dois
elementos dialeticamente conexos. A vida no e do lixo é o corolário,
nesse sentido. de um processo económico que valoriza a reciclagem dc
materiais para um florescente negócio industrial. ao mesmo tempo em
que desvaloriza o trabalho das populações que são jogadas no meio da
rua (BURSZTYN, 2000. p. 21).
270 ITINERÁRIOS DE PESQUISA
A "sociedade involucral" atua] produz o descartável e o supérfluo.
A qualidade total, ironicamente. gera produtos com pouco tempo de
vida útil e com valor de uso decrescente.
Outras opiniões emitidas por catadoras também pareciam inusitadas.
Apesar de expressarem expectativa de encontrar outra forma de trabalho
mais limpo", menos estigmatizado, costumavam acrescentar: "desde
que eu possa obter ganhos semelhantes ou melhores". Disseram preferir
o trabalho no lixão ao de doméstica em casa de "madame". Duas

dimensões desta observação me deixaram intrigada. Em primeiro lugar,


a opção em si. Como compreender que elas considerassem trabalhar no
lixão melhor que trabalhar de doméstica em casa de família? E, em
segundo lugar, o fato•de que isso supunha, ainda que em limites muito
estreitos, possibilidades de exercer opção.
Essa lógica, diferente da minha e do círculo a que pertenço, de
imediato provocou certa inibição de minha parte na realização de entrevistas.
Tinha receio de colocar questões que me interessavam mas que pudesse:n ser
mal interpretadas. Tinha receio de magoar utilizando tennos vistos, por elas,
con10 discriminatórios e eivados de avaliação negativa. Lixão X' ou aterro
sanitário? Nas primeiras conversas sentia-me trabalhando etn terreno de areia
movediça. Procurei captar os tennos que clas próprias empregavam para
designar os espaços e as situações ate entao desconhecidos por mim.
Além de unia escuta atenta e respeitosa do discurso das catadoras,

procurando referências além daquelas fornecidas, de maneira imediata,


pelas catadoras,já que elas próprias não têm, enl parte decorrência de suas
condições de vida, acesso aos princípios de seus problemas. Estas
referências dizetn respeito ao lugar que esse grupo ocupa na sociedade.
Não poderia compreender os relatos individuais que estava coletando sem
atentar para as redes que os ligam entre si e para a sociedade Inais a:npla.
Cornpreender supõe articular indivíduo e sociedade. Os indivíduos são
construídos e se constroem numa trama coinplexa, constituída de
dimensões particulares, pessoais, de diversidade de redes e de fortes
imposições associadas ao lugar que eles e as redes ocupam na sociedade.
Assim, a vida, o cotidlano dos catadores, seus projetos de futuro para os
filhos e suas expectativas de escolarização são balizados por sua classe
social e pelas redes a que estão associados onde a conjuntura
econômico social é fundadora._"Os acontecimentos biográficos se
definem como colocações e deslocamentos no espaço social (...)"
(BOURDIEU, 1996, p. 190) Tal postura epistemológca supõe urna
CATADORAS DE DIGNIDADE: ASSIMETRIAS E TENSÕES EM PESQUISA NO 271
atenção cuidadosa ao espaço social que não se contente com o e:nprego
de
uxA0

substantivos desumanizantes, como instrumentos de trabalho. Quer se file


de fimção ou de estmtura, de papel ou de organização, de economia ou de
cultura, a significação de todos estes conceitos só raramente reflete suas
ligições com a configuração dc homens específicos (ELIAS, 1991, p. 159).
Atenta às tensões do binôtnio indivíduo-sociedadevbusquei elementos
para compreender o lugarspcial_dos catadores no Brasil atualz

Opulência do lixo e novas formas de sobrevivência na


sociedade contemporânea
O trabalho de catação não é um trabalho con10 outro qualquer.
Ele é sintoma de diferentes dilnensões da sociedade contemporânea.
Há a dimensão simbólica do lixo: rebotalho da sociedade. Há a
dimensão

ambiental: ele vem constituindo um gande problema nos centros urbanos,


sendo tema central no campo dos estudos sobre o meio ambiente. Há
di:nensões económicas: o trabalho no lixo é sintoma, de um lado, da
diminuição de empregos formais na sociedade globalizada, e de outro, da
reciclagem como negócio.
Pouco se tem escrito sobre grupos sociais como o dos catadores. Parece
que, marginalizados socialmente, tambétn permanecem na

penumbra no campo académico. No entanto, pela exclusão do mundo


formal do trabalho e pela tarefa que executam. são testemunhas de
dimensões econômicas e sociais que marcam o mundo contemporâneo.
Desemprego e abundância de lixo são duas marcas da sociedade atua].

O lixo é sujo e cheira mal; deixa sujos e malcheirosos os que nele trabalham.
Há uma relação cruel entre rejeitos fisicos e rejeitos humanos:
Esse imbricamento entre os reritos fisicos (lixo) e hununos (excluídos) da
sociedade revela uma dunerü) perversa da modemidadc: o aumento da
produção de bens com componentes cada vez mais descartávets,
paralelamente ao aumento da produção de desempregados. dois elementos
dialeticamente conexos. A vida no e do 11.xo é o corolário, nesse sentido.
de um proceso económico que valoriza a reciclagem de materiais para um
florescente negócio industrial, ao mesmo ternpo em que desvaloriza o
trabalho das populações que são Jogadas no meio da rua (BURSZTYN. p.
21).
272 ITINERÁRIOS DE PESQUISA
A "sociedade involucra]" atua] produz o descartável e o supérfluo. A
qualidade total. ironicamente, gera produtos com pouco tempo de vida
únl e com valor de uso decrescente.
No passado pré-industrial, os procedimentos alongavam a vida dos objetos:
eram figuras comuns da paisagenl urbana o sapateiro, o remendão, a
cerzideira, o latoeiro etc. Os inventários relacionavam as roupas do defunto
no monte a ser dividido pelos herdeiros. Na pós-modernidade,
contrapartida, as coisas são desvalorizadas no momento da compra,
estimulando a idéia do descartável como comporta:nento adequado e
desejável do consumidor. Em simultâneo, abrem-se novas brechas a partir da
multiplicação do descartado O pobre urbano é uni mestre no remendo e na
reciclagem Hoje o lixo cada vez mais opulento da pós-modernidade oferece
campo para uma estratégia de sobrevivência ligada à coleta do reciclável do
descarte urbano. Na perspectiva do pobre urbano, o lixo é fonte renovável de
recursos naturais, na qual ele gtnmpa e cna Inercadorias (LLSSA, 2000, p.
15).

O lixo se constitui em um grande proble:na para a sociedade. No


Brasil são despejadas, diariamente, 125 mil toneladas de rejeitos na
natureza, ameaçando o me:o ambiente. A produção média diána per

capita é de I kg e, nos municípios da Região Sudeste com mais de 100 mil


habitantes, a produção média diária, per capita, atinge 1,82 kg. O destino
desse lixo pode ser uni lixão a céu aberto, um aterro controlado, um aterro
sanitário, uma usina (de cotnpostage:n, de reciclagenm, de incineração), ou
espaços mistos (lixão + coznpostageln; usina de reciclagem + aterro). I
O trabalho dos catadores é indispensável sob o ponto_de vis@
económico e sob o ponto de vista social. Economicamente, porque a

catação do lixo reduz os gastos das prefeituras que pagam etnpresas


por tonelada de lixo recolhido e os das indústrias que, ao usarem
lnaterial reciclado, gastanl menos com insumos (energia, água etc.).
Do ponto de vista social, o lixo gera trabalho para uma grande parcela
da população que está fora do mercado dc trabalho (1 1 milhões de
pessoas, pelo cálculo do IBGE em 2001). O lixo teni sido visto por
alguns como fonna de inclusão de parcelas da população que, de outra
fonna, não teriam co:no sobreviver.
Segundo dados de pesquisa realizada em municípios brasileiros — pela Unicef o desuno do
lixo, ean 64% dos mumcíplos analisados, é um luxio a céu aberto; 13%. um aterro sanltáno;
etn 13%, um aterro controlado; em uma usina de reciclagem + aterro. LIXÃO é uni local onde
se deposita o lixo. proJeto ou cuidado conl a saúde pública. Aterro sanitário é o local onde,
segundo criténos santtános e de cngenhana. longe dc lençóis d'água e de centros urbanos, o lixo
é colocado em ca:nadas, C01npactadO e dunamcnte recobcrto conj terra. havendo controle do
e do chorunle liberados no processo natural de decolnposlção. O lixão onde rcahzo a pesquisa
Ve:n passando por um processo de transfonnaç50 em aterro samdno.
CATADORAS DE DIGNIDADE: ASSIMETRIAS E TENSÕES EM PESQUISA NO 273
LIXAo

Não se sabe, ao certo, quantos são os catadores no Brasil, já que se trata de


uma atividade irregular. O Compromisso Empresarial pela Reciclagem
(Cempre) calculou que existiam, no Brasil, em 1999, 200 mil catadores de rua,
freqüentemente explorados por atravessadores. Mas nem todos que vivem do
lixo conlpartilham a mesma realidade. Existem categorias diferentes de
catadores. E possível encontrar pessoas que, temporariamente, enfrentam tal
atividade como forma de complementar a renda familiar. Porém, para a
atividade tem sido contínua e sistemática. Duas orientações os
distingue&n: os_que catam nas ruas e aqueles que exploram os lixões.
Um busca o reciclo na origem (zonas da cidade geradoras de descarte de
papel e de embalagens) e o outro se desloca para zonas de destino final
do lixo. O catador de rua é considerado o mais bem-sucedido entre os
grupos que vivem nas, ruas,_ Pesquisa com catadores de lixo seco nas
ruas de Brasília revela que são pessoas versáteis (alternam atividades),
criativas (trabalhadores habilidosos e polivalentes), empreendedoras,
perspicazes, resignadas, pouco associativas e com visão a curto prazo. Mantêm
vínculos com a origem (boa parte é constituída de migrantes de zona rural
nordestina). vivem ein famílias amplas e estruturadas, cm moradias próximas ao
local de processamento de sua produção, em condições de higiene e de
infraestrutura de saneamento precárias, e revelam aspirações de consumo de
populações urbanas de baixa renda. Por circularem pelas ruas, sabem se valer da
rede de hospitais e serviços dc bombeiros. Enquanto trabalhadores, revelam
características de coerência com o trabalho na pós-modernidade: são seus
próprios patrões, sensíveis às mudanças do mercado, adaptam suas atividades,
mantêm relações regulares, mas não formais. com compradores, e revelam baixo
nível de expectativa em relação ao poder público. A atividade de catação nas
ruas, nos termos que o yupo estudado em Brasília realiza, requer investimentos
matenais, corno adquirir um cavalo e uma carToça. Alguns catadores podem ser
considerados pequenos empresários, quando se tornam proprietários de mais de
um veículo. Grande parte dos filhos desses catadores está fora da escola CZ4%-
das fimílias tinhanl filhos_pa faixa etária de escolarização fora da escola).

Os pais alcgam que são obrigados a se mudar com rantafrcqüêntia que não se
sentem motivados a inscrever seusfilhos na escola (BURSZTI'N, 2000, p. 252).
Streb (2001), em pesquisa realizada no distrito de Barão Geraldo, em
Campinas, encontrou 19 catadores de rua. Entre eles, dois tinham curso
superior e estavam desempregados. Apenas dois eram analfabetos.
Os demais tinham escolaridade correspondente ao Ensino Médio
completo (um) e incompleto (dois), de nível Kindamental completo
(quatro) e incompleto (oito). São proprietários de casa (33%), de
automóveis (58%) e a quase totalidade possui telefone celular. Recebem,
em média, por mês, 350 reais, quantia que constitui a média de renda dos
campineiros, e 66% tiveram emprego formal e na época da pesquisa
estavam desempregados.
274 ITINERÁRIOS DE PESQUISA
Questionados sobre o que pensam de suas atividades, os catadores
advogam que catar lixo é um trabalho como outro qualquer, mas ao mesmo
tempo reclamam de sua condição de exclusão. Muitos afirmam estar
exercendo esta atividade motivados pera crise social e econômica que o
país vem enfrentando nas últimas décadas, que se refletiu em altos índices
de desemprego. Alguns destes jovens afirmam que perderam junto com
seus empregos o status social a eles associados e queixam-se de ter perdido
muitos amigos após terem ingressado nesta atividade. Concomitante,
alguns catadores vangloriam-se de estar contribuindo para uma melhor
qualidade do meio ambiente por coletarem resíduos que tradicionalmente
não seriam coletados (...) (id., ib., p. 50-1).
Alguns autores afirmam que os catadores têm rendimentos acima da
média da população no Brasil. Como era de se esperar, observam-se
discrepâncias regionais. Os catadores de Brasília, pesquisados por
Bursztyn (2000), distinguem-se dos catadores ca:npineiros analisados por
Streb (2001), em termos de níveis de escolarização. Há, no entanto, entre
eles, independentemente da região, um sentimento de mal-estar com seu
status e com a discriminação social de que se sentem objeto.

Catadores do lixão
O catador do lixão enfrenta situações semelhantes às do catador de
rua, mas apresenta especificidades. Tem moradia fixa no
próprio lixão, em
ou em bairros em torno da região do lixão, em
geral em moradias localizadas em terrenos também sem sanea:nento.
Trata-se de favelas. O intermediáno vai ao lixão negociar a compra do
material coletado ou está fixado nas redondezas do lixão, onde é
proprietário de pequenas fabricas que trabalham conl reciclage:n. Isso
diminui a margenl de negociação do preço por parte dos catadores.
No Rio de Janeiro, entre lixões e aterros, existem cerca de cem
pontos (O Globo, 27 rnaio 1999). Neles, os catadores enfrentan)
condições de insalubridade que propicia:n doenças. A aspiração de
poeira
CATADORAS DE DIGNIDADE: ASSIMETRIAS E TENSOES EM PESQUISA NO 275
uxA0

contaminada, levantada pelos caminhões que descarregam lixo, pode


provocar bronquites e alergias. São freqüentes, entre os catadores, os
casos de parasita (o berne, comum entre os animais, pode penetrar nas
cnanças por meio da mosca varejeira), de venninoses e de hepatite A
(pela sujeira acumulada nas mãos, pela ingestão de comida
contaminada), de Aids, de hepatite B e C (em decorrência de acidentes
com agulhas ou recipientes contendo sangue contaminado), de
infecções na pele provocadas pela sujeira. Também são expressivos os
acidentes com carninhões e cortes com vidros e outros materiais
encontrados no lixo.
Os hxões corustituem uma das grandes preocupações dos
Degradam a paisagem, contaminam o solo e os recursos hídricos
superficiais e subterrâneos, e agravam problemas sanitários. A maténa
orgânica em decomposição no lixão libera gases e chorume (líquido que
contamina o solo e recursos hídricos). A solução para os lixões tem sido
sua transformação em aterros sanitários. No Brasil, o destino de 88% do
lixo é o lixão a céu aberto, sem tratamento. Segundo dados do Unicef,
37,04% das capitais brasileiras têm catadores no lixão.
Orgãos oficiais, ONGs, setores ligados à Igreja e ao próprio
movimento de catadores vêm apontando a necessidade de extinção
da catação direta nos lixões.1 Mas o que fazer dessas pessoas se os
lixões desapareceGéii1VA eliminação dessa forma de catação requer
a adoção de políticas que incorporem processos de qualificação e de
encarninhamento para outras formas de coleta de lixo e que
promovam a organização dos catadores em cooperativas, como vem
acontecendo entre os catadores de rua (COMLURB/ENGEFIX,
1993).
A descrição feita até agora aponta dimensões da precariedade, da
periculosidade e do estigma do trabalho no lixão. Mas, no contexto atua!
de diminuição dos postos de trabalho em decorrência da reestruturação
capitalista, enl geral, e das orientações de política económica seguidas
pelo Brasil, o trabalho no lixão revela conveniências para muitas pessoas.
Para elas, é a única forma de trabalho nesta sociedade performática, na
qual têm poucas chances por credenciais serem, em geral. insuficientes.

1 Esta é urna das rcinvmdicaçóes contidas na Carta de Brasnu. documento produado no


Congesso Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveú Oun. 2001): 1.6. da
I
erradltaçüo dos em todo o país, ag«urando rrrunos públitos que neles efmanciametlto pra que
possam ser implantados dc prir dil coleta seletiv•a. Essa Carta é finalizada com as palavras:
dos ILIôes! catddors, já!
276 ITINERÁRIOS DE PESQUISA
Não é possível fazer generalizações. Algpns dados de
pesquisas apontarn que se trata de uma população com baixos níveis de
escolarização. E o que concluíram as autoras de uma pesquisa que
analisa informações recolhidas entre os catadores de Campos dos
Goytacazes, Rio de Janeiro: foram expulsos precocemente do espaço da
cducaçüofonnal (...) e muitos (34,7%) nunca tiveram nem oportunidade
de entrar na escola, seja por falta de escola no local onde viviam seja por
terem de trabalhar. E, hoje, alguns consideram que voltar à escola é muito
dificil (JUNCA, GONÇALVES e AZEVEDO, 2000, p. 68). Começarani
a trabalhar muito cedo, 49% antes dos 10 anos e 44,9% entre 10 e 15 anos.
Isso se deu, para a maioria, pela necessidade de ajudar na manutenção da
fanúlia. Desde então, o trabalho prevalece na perspectiva da
sobrevivência. Muitos deles, antes de buscar sobrevivência no trabalho
conu o lixo, tivera:n ocupações de serventia doméstica (babás, faxineiras.
arrmnadeiras, jardineiros, lavadeiras), na construção civil e cotno
anibulantes.
Dados coletados em 2000 entre os catadores do lixão onde realizo
minha pesquisa revelam a existência de uma população constituída de
36_çrianças, 59 adolescentes e 288 adultos (158 hounens). A maior
parte dos adultos teni entre 31 e 40 anos e boa parte dos delnais tetn
entre 21 e 30 anos. Quanto às mulheres, entre as ocupações Inais
freqüentes, antes de trabalhar no lixão, encontranl—se profissões de
serventia dotnéstica (empregada, faxineira. cozinheira), outras
associadas ao co:nércio e à pesca. Mas urn grupo significativo senipre
trabalhou no lixão. Ele é um dos Inais antigos do Rio de Janeiro. daí
estaretn no grupo duas gerações de f.unílias que vive:n do lixo. pequeno
grupo teve elnprego no mercado fonnal, etn particular na t-abnca de
sardinha que existe nas proxilnidades. Entre os hotnens, foranu
encontradas atividades já relacionadas à catação (tnanobrista de ca:ninh.io
de lixo, gari. trabalhador da ernpresa que se ocupa do transporte do luxo,
da elnpresa de reciclagenl). à serventia doniéstica (Vigia. segurança,
copeiro, cozinheiro. jardineiro. faxineiro), ao cotnércio (Ih)'. auxiliar de
serviços, balconista, counerci.ino, garço:n, contínuo, cobrador). à
construção civil (eletricista, nnrceneiro. pedreiro, bo:nbeiro,
eslnerilhador), à indústria (tuetalárgico. industnário, operário da fibrica de
vassoura), ao cotnércio ambulante. a biscates vanados. Sena necessária a
realização de uni cadastr.unento sistenútico dessas categonas para se ter
idéta mais precisa do significado do trabalho no Itx.io na tr.yetória dos
catadores. A hipótese tnats provável é que, nunt dado tnomento. etn
decorrência de seus niveis de
LIXAo 277
CATADORAS DE DIGNIDADE: ASSIMETRIAS E TENSÕES EM PESQUISA NO
escolarização e de qualificação profissional e da retração do mercado de
trabalho, ficaram desempregados e não conseguiram novo emprego.
Também é possível encontrar entre eles pessoas que dizem estar ali
temporariamente, enquanto não encontram trabalho. e pessoas que
associam o trabalho no lixo a outras atividades (biscates, criação
de porcos, pesca, cotnércio a:nbulante).
Para esse grupo, expulso de outras atividades, o lixão acaba se
constituindo em utna fonte de renda que, ao contrário de outras do
Inercado de trabalho, parece segura. E visto, pelos catadores, como um
campo relativamente aberto e cotno um porto seguro para
desempregados, para aqueles que não encontram :nais chances de
trabalho: no lixão pinga, n:as não falta, resu:niu urna entrevistada. Tal
representação está distante da avaliação de econo:nistas corno Paul
Singer que considera frágil a situação deles, Já que se trata de uni
n:emado n:uito aberto, pis não cxiee tapital nun qualificação e são
poucos os cornpradorrs (lomal do Brasil on-hne, 6 jun. 2001).
Há uma segunda vantagenl, apontada por entrevistadas, que se
relaciona à organização do trabalho: o catador aprende a valonzar a

autono:nia no trabalho. Apesar de atravessarem, quase sempre. longas


e penosxs jornadas de trabalho, eles se refere:n, cotn freqüência, à sua
autonotnia coni0 utn valor a ser preservado: não têm horário. não têm
que obedecer a uni patrão ou a ulna patroa. ISO nos permite
cotnpreender um pouco :nais a infor:naç.io anterior. relacionada a uma
cem rejetç,io ao trabalho enl casa de ' 'Inadame". Tainbélli expresatn
orgulho quanto à administração de seu horário de trabalho. Este tipo
de yalorizaç.io da autononlia no trabalho também foi por
Juncá, Gonçalves e Azevedo (2000), cogn referência aos catadores de
Campos dos Goytacazes.
Uma terceira vantagem apontada, de fortna direta ou ind:reta,
refere-se aos rendilnentos obtidos coni essa atividade, em comparação
aos obtidos coni sua ocupação antenor. Dados levantados pela
adininistradora do lixão mostram que a Iti.uoria das cnanças ganha
entre 40 e 80 reais por Inês, outras (16%) 80 reais, chegando 6% a
ganhar 160 reais. Entre os adolescentes os ganhos são de 40 reais
(27%'). acima de 90 reais (35%), e mais de 200 reais (12%). A maior
parte dos adultos declarou ganhar, eni média, 150 reais; outros (15%)
reats. e uma nunona (2%) acitna de 500 reais. Não fica claro se tais
dados se referetn à renda fatuiliar e. se for o caso. quantos foram os
mernbtos da faniflla que contribuiratll para a renda.
Do ponto de vista da economia de sobrevivência, o lixão constitui-se
também em fonte de renda indireta. Ali, obtêm-se produtos que serio
utilizados na alimentação: frutas, legumes, laticínios, carnes e cereais
278 ITINERÁRIOS DE PESQUISA
com prazo de validade vencido e objetos para uso doméstico, como
móveis, relógios, ventiladores, utensílios de cozinha.
Em entrevista, quando perguntadas sobre a possibilidade de deixar o
trabalho no lixão, muitas respondem que gostariam de deixá-lo. Mas
quase sempre complementaram sua resposta colocando dois
condicionantes: desde que possam obter, no mínimo, o mesmo
rendimento que obtêm com a catação no lixo e desde que consigam um
trabalho em que continue resguardada sua autonomia.

Inclusão precária e luta pela identidade


Mereceria um aproñlndamento, que não será realizado aqui, a
discussão sobre o significado de um termo freqüentemente utilizado
quando se fala de catadores: exclusão. Ele aparece algumas vezes neste
capítulo.
Pode-se considerar o catador um excluído? Que vantagens
epistemológicas a utilização desse termo pode trazer para a pesquisa?
Termo polissêmico, "exclusão" pode se referir a um amplo e
diversificado conjunto de situações, como mostra a literatura sobre o
tema.3 O grau efetivo de exclusão é diferente, por exemplo, quando se
considera a situação de países centrais e periféricos.
Ainda que existam elementos conwns à sensação de exclusão e à exclusão
efetiva (...) , a existência nos países ricos de mecanismos públicos de bem-
estar social faz que o conceito de exclusão relevante para eles possa ser,
em alguma medida, descolado daquele de pobreza; o que não me parece
pertinente no caso de países nos quais os cidadãos não dispõem dessa rede
de proteção (DUPAS, 2000, p. 16).
Assim, não é possível tratar a exclusão desarticulada do contexto que
a produz. Martins caminha na mesma direção quando diz que o uso dessa
categoria imprecisa pode levar a uma visão reducionista do problema,
substituindo a idéia sociológica do processo de exclusão. Para esse autor,
"rigorosamente falando, não existe exclusão: existe contradição,

Ver. entre outros: Buarque (1994); Castell (1999); Dupas (2000); Fontes (1995); Greli e
wet-y (1993); Karsz (2000); Martins (1997); Nasci,nento (1994. 1995); (1996); Ribeiro
(1999): Sawaua (1 999); Schehr (1999); Schnapper (2001).

uno 279

existem vítimas de processos sociais, políticos e econÔnucos


excludentes; existe o conflito pelo qual a vítima dos processos
CATADORAS DE DIGNIDADE: ASSIMETRIAS E TENSÕES EM PESQUISA NO
excludentes proclama seu inconformismo, seu mal-estar". As políticas
atuais implicam a inclusão 'precária, instável e marginal" (MARTINS,
1997, p. 14).
Considerando o contexto brasileiro, os catadores podem ser
relacionados como excluídos? Depende das balizas teóricas assumidas
para a análise. Escorel considera que não é possível colocar os
catadores

entre os excluídos, já que eles desempenham um trabalho considerado


útil e integram "sua participação, ainda que constituindo o elo mais
frágil, em uma cadeia produtiva em franca expansão — a da indústria de
reciclagem (...)" 1999, p. 84). Asurnindo, no enanto, a definição de
exclusão de Singer (2000), os catadores podem_ser_considerados
excluídos na medida em que sua situação revela falta de vínculos com

Instituições formais (direitos trabalhistas, posse regular de terreno,


aceso a serviços públicos, entre outros).
Parece-me pertinente não abandonar a discussão de findo ao uatar das
catadoras. Discussão que coloca em foco as mudanças globais na
reorganização do sistema capitalista e suas conseqüências na organização da
sociedade. Para a pesquisa isso significa qualificar a situação das catadoras
no contexto das conseqüências perversas das mudanças na sociedade
brasileira contemporânea sem reificações simplificatórias. Sou sensível ao
argumento de Paugan que, apesar de reconhecer a polissemia do tenno,
defende sua utilização na medida em que permitiria dar visibilidade a "uma
realidade social que os pesquisadores do campo das Ciências Sociais não
podem ignorar". Mais ainda, ele diz que a exclusão constitui paradigma a
partir do qual a sociedade toma consciência de si própria" (PAUGAN, 1996,
p. 566).
Prefiro, no entanto, utilizar um terrno empregado por Martins —
inclusão precana. eguindo ainda trilhas de Martins, há um outro
elemento a • scnssão—so re exclusão ou inclusão precária que
constitui uma ferramenta epistemológica fecunda para analisar a
situação dos catadores. Diz ele: "A exclusão não se explica apenas pelo
fenómeno em si, mas
também e sobretudo pela interpretação que dele faz
Esse é um outro aspecto da exclusão. que sugere a importância e a
necessidade de uma fenomenologia dos processos sociais excludentes"
(MARTI>S, 1997, p.
21).
278 ITINERARIOS DE PESQUISA
Do ponto de vista da econol)lia de sobrevivência, o lixão constitui-
se também em fonte de renda indireta. Ali, obtê:n-se produtos que serão
utilizados na alirnentação: frutas, legumes, laticínios, carnes e cereais
com prazo de validade vencido e objetos para uso doméstico, corno
móveis, relógios, ventiladores, utensílios de cozinha.
Em entrevista, quando perguntadas sobre a possibilidade de deixar
o trabalho no lixão, Inuitas respondem que gostariam de deixá-lo. Mas
quase sempre comple:nentaram sua resposta colocando dois
condicionantes: desde que possam obter, no nrímmo, o mesno
rendimento que obtêm com a catação no lixo e desde que consigam um
trabalho em que continue resguardada sua autonornia.

Inclusão precária e luta pela identidade


Mereceria um aprúndamento, que não será aqui, a discussão sobre o
significado de um termo freqüentemente utilizado quando se fala de
catadores: exclusão. Ele aparece algumas vezes neste capítulo.
Pode-se considerar o catador uln excluído? Que vantagens
epistemológicas a utilização desse tenno pode trazer para a
pesquisa?
Termo polissênuco, "exclusão" pode se referir a um amplo e
diversificado conjunto de situações, como mostra a literatura sobre o
tema.3 O grau efetivo de exclusão é diferente, por exemplo, quando se
considera a situação de países centrais e periGricos.
Ainda que existam elementos comuns à sensação de exclusão e à
exclusão efetiva (...), a existência nos países ricos de mecanismos públicos
de bem-estar social faz que o conceito de exclusão relevante para eles
possa ser, em alguma medida, descolado daquele de pobreza; o que não
me parece pertinente no caso de países nos quais os cidadãos não dispõem
dessa rede de proteção (DUPAS, 2000, p. 16).
Assim, não é possível tratar a exclusão desarticulada do contexto que
a produz. Martins caminha na mesma direção quando diz que o uso dessa
categoria imprecisa pode levar a uma visão reducionista do problema,
substituindo a idéia sociológica do processo de exclusão. Para ese autor,
"rigorosamente falando, não existe exclusão: existe contradição,

Ver, entre outros: Buarque (1994); Castel] (1999); Dupas (2000); Fontes (1995); Grell
e Wery (1993); Karsz (2000); Martins (1997); Nascimento (1994, 1995); Paugan
(1996); Ribeiro (1999); Sawaua (1999); Schehr (1999); Schnapper (2001).
uxA0
CATADORAS DE DIGNIDADE: ASSIMETRIAS E TENSÕES EM PESQUISA NO 279
existem vítinaas de processos sociais, políticos e econômicos
excludentes; existe o conflito pelo qual a vítima dos processos
excludentes proclama seu Inconformismo, seu Inal-estar". As políticas
atuais implicam a inclusão 'precária, instável e marginal" (MARTINS,
1997, p. 14).
Considerando o contexto brasileiro, os catadores podem ser
relacionados con10 excluídos? Depende das balizas teóricas assumidas
para a análise. Escorel considera que não é possível colocar os catadores

entre os excluídos, já que eles desempenham um trabalho considerado


útil e integram ''sua participação, ainda que constituindo o elo mais

frágil, em uma cadeia produtiva em franca expansão — a da indústria de


reciclagem (...)" (ESCOREL, 1999, p. 84). Assumindo, no entanto, a
definição de exclusão de Singer (2000), os catadores podem ser considerados
excluídos na medida em que sua situação revela falta de vínculos com

Instituições formais (direitos trabalhistas, posse regular de terreno,


acesso

a serviços públicos, entre outros).


Parece-me pertinente não abandonar a discussão de fundo ao ü-atar
das catadoras. Discussão que coloca em foco as mudanças globais na
reorganização do sistema capitalista e suas conseqüências na
orgamzação da sociedade. Para a pesquisa isso significa qualificar a
situação das catadoras no contexto das conseqüências perversas das
mudanças na sociedade brasileira contemporânea sem reificações
simplificatórias. Sou sensível ao argumento de Paugan que, apesar de
reconhecer a polissemia do termo, defende sua utilização na medida em
que permitiria dar visibilidade a "uma realidade social que os
pesquisadores do campo das Ciências Sociais não podem ignorar". Mais
ainda, ele diz que 'a exclusão constitui paradigma a partir do qual a
sociedade toma consciência de si própria" (PAUGAN, 1996, p. 566).
Prefiro, no entanto, utilizar um termo empregado por Martins —
inclusão precána. eguindo ainda trilhas de Martins, há um outro elemento
a iscussão-so re exclusão ou inclusão precária que constitui uma
ferramenta epistemológica fecunda para analisar a situação dos catadores.
Diz ele: "A exclusão não se explica apenas pelo fenÔmeno em si, Inas

também e sobretudo pela interpretação que dele faz a vítimad...). Esse


é um outro aspecto da exclusão, que sugere a importância e a
necessidade de uma
280 ITINERARIOS DE PESQUISA
fenomenologia dos processos sociais excludentes" (MARTI,hS, 1997,
p. 21).
Outros autores tanibém apontam dimensões de sofrimento simbólico
dos chamados "sobrantes": dos que perderam empregos, dos jovens que
não conseguem lugar no mercado de trabalho ou daqueles que foram
rebaixados em decorrência da retração nos postos de trabalho.
Não há como ignorar essa dimensão simbólica de sofrilnento ao
ouvir relatos individuais de catadoras e ao ler a pauta de reivindicações
do movimento social organizado por essa categoria de trabalhadores.
Eles lutam, à sua maneira, para serem reconhecidos como trabalhadores.
E são, de fato, trabalhadores socialmente
produtivos. Mas não se vêem reconhecidos pela sociedade como
tais,

pois, formahnente, a maior parte não o é. Há um nítido sofrirnento de


ordem moral decorrente desta falta de reconhecimento social que lhes

nega a identidade de trabalhadores. São trabalhadores que têm, ainda,


utar pela própria identidade.
Ressentem-se também do estigma dg_viver do lixo. Se para as
catadoras o trabalho no lixão parece ter dimensões positivas,
considerando evidentemente suas alternativas no mundo atual, elas
ressentem-se do estigma que a sociedade confere à sua atividade.
Duas entrevistadas, por exemplo, deaararam esconder de familiares
sua ocupação porque têm vergonha do que fazem. Sofrem com
imagens divulgadas pela imprensa escrita e pela TV que as apresentam
como animais disputando lixo com outros animais, sujas em suas roupas
de trabalho. Hoje em dia muitas delas não pennitem filmagens ou
fotografias.
Os catadores desejam, não só obter renda propiciada pela coleta seletiva,
mas lograr que a reciclagem seja encarada como valor cultural positivo.
de importância capital para a preservação do meio ambiente. São
estratégias para subverter a identidade negativa do trabalhador da
catação, propiciando sua inclusão social. Não querem ser vistos como
mendigos ou rebotalhos sociais (...). Desejam ser reconhecidos
legalmente como categoria profissional, incluídos em programas
municipais de coleta seletiva, e obter a criação de linhas de financialnento
específicas para cooperativas-associações de catadores e a criação de
mecamsmos (tributários etc.) que incentivem a indústria nacional de
reciclagem (Jomal do Brasil on-line, 6 jun. 2001, p. I l).
CATADORAS DE DIGNIDADE: ASSIMETRIAS E TENSÕES EM PESQUISA NO 281
As cooperativas indicarn resultados na luta pela construção dessa
identidade, e vêm, nu:n Inovimento amplo, reunindo catadores pelo
282 ITINERARIOS DE PESQUISA

Brasil.4 A prinmeira cooperativa de catadores, a Coopamare


(Cooperativa de Catadores de Papel, Aparas e Materiais
Reaproveitáveis) foi criada em 1989, em São Paulo. Tem-se notícia da
existência de cooperativas e associações em diversos municípios do
Brasil. Há resistêncixs, por parte de alguns catadores, à idéia de
cooperativa, mesmo em municípios onde a orgamzação está mais
avançada. Rejeitam a idéia de receber apenas no fim do mês, preferindo
continuar autônomos e contar com o dinheiro cotidianamente.
Essas observações mostram aspectos significativos do lugar que
esse tipo de trabalhador ocupa na sociedade brasileira. Se por um lado
a precariedade do trabalho aproxima o catador de outras categorias de
trabalhadores tarnbém hoje expulsas do mercado formal, confrontadas
com duras condições de trabalho e vivendo em condições precárias,
por outro ele tem que se fazer reconhecido como üabalhador e tem de
lutar contra o estigma de ter o lixo como fonte de ü•abalho. A dimensão
da pobreza material, que é fundamental em suas vidas, acrescenta-se
um

forte sentimento de sofrimento de ordem simbÓlica, relacionado à


imagem

que sabe que a sociedade faz a seu respeito.

Revendo o ponto de partida


Iniciei este capítulo revelando tensões enfrentadas na primeira
etapa de uma pesquisa com catadoras. Tensões que me mobilizaram
pessoal e profissionalmente e que dizem respeito a distâncias,
inerentes à própria

natureza da relação de pesquisa e de padrões culturais, de ã-ajetórias, de

valores, de convicções, dos lugares sociais dos atores envolvidos.


Minhas experiências anteriores de pesquisa me colocaram em relação
com profissionais cuja atividade e universo simbólico me erain familiares,
CATADORAS DE DIGNIDADE: ASSIMETRIAS E TENSÕES EM PESQUISA NO LIXAO283

Existem. na Grande São Paulo, pelo menos associações. Em Porto Alegre, as cooperativas de
catadores, via orçamento participauvo. vêm obtendo recursos que aplicam na criação de novas

associações, na compra de equipamentcx e na capacitação


(Folha de S. Paulo, 20 maio 2001. p. C2). Em Belo Horizonte. em maio de 1990, dez
catadores criaram a Asmare (Associação dos Catadores de Papel, Papelão e Material
Reaproveitável de Belo Horizonte), que atualmente conta com mais dc mil associados.
Em 1998. foi criado o Forum Nacional Lixo & Cidadama. A categona tem hoje uma
cadeira no Conama (Corselho Nacional do Meio Ambiente). Uma das principus
frentes de luta do movimento é o reconhecimento da profissio, o que o reconhecuuento
pelo INSS (Instituto Naciorul do Seguro Social) e melhoraria a auto-estinu. Em junho,
em cerca de I .500 trabalhadores se reururam para o primeuro Congeso Nxional dos
Catadores e realinram a Marcha Nacional da População Rua.
como protaoras primánas e catedráticos de universidade. Na pesquisa
de que trato aqui, no entanto, encontrei-me em mundo muito diferente
do meu. A aproximação das catadoras fez-me defrontar cotn uma
realidade que me interpelou profundarnente. Num deter:ninado momento,
o impacto daquela realidade quase me desmobilizou. O meu desconforto
pessoal foi intenso e se retleuu nas tentativas de aproximação das
catadoras.
O primeiro movimento que fiz para continuar o trabalho atenta à
hecessária vigilância epistemológica foi adminr nunhas inseguranças
e o meu sofrimento. Em seguida, reconhecera insuficiência de
infonnações gue tinha sobre o universo deste tipo de trabalhadora.
Leituras que abordam mars diretamente os catadores e informações
obtidas em entrevistas permitiram esboçar um mapeamento provisóno
sobre o lugar dos catadores na sociedade brasileira, resumido
anteriormente. Ao compreender um pouco melhor as funções que a
catação significa para a sociedade como um todo e para a saúde do meio
ambiente, passei a olhar as catadoras com outros olhos. Aprendi a
respeitá-las como trabalhadoras. Compreendi o significado de sua luta
pessoal e coletiva para serem reconhecidas como trabalhadoras inseridas
na sociedade de contradições e injustiças. Contradições e injustiças de
que nem todas são conscientes. O respeito por elas ganhou em densidade,
favorecendo o estabelecimento de contato com Ivete, em primeiro lugar,
e depois com outras catadoras. Passei a me sentir mais à vontade nas
entrevistas, com menos receio das palavras

e da minha própria curiosidade sobre elas e sobre o mundo do lixão.


284 ITINERARIOS DE PESQUISA

As opiniões que colhera e que continuava a colher começaram a


fazer mais sentido: a prioridade na demanda pela creche e pelo posto de
saúde, as atitudes que me pareceram ambivalentes em relação ao
trabalho no lixão, as críticas aos profissionais da mídia e aos que falam
do lixão sem nunca lá ter entrado. Seria interessante retomar os impactos
vividos no início do trabalho e relê-los à luz do que foi dito, em seguida,
sobre os catadores. Isso será objeto de outro texto. Impactos que, como
acontece no trabalho de pesquisa, tiveram repercussões na construção do
objeto.
As questões que orientaram o projeto de pesquisa traziam as marcas
de uma literatura sobre relação entre escola e camadas populares. Vinha
trabalhando, como professora de Sociologia da Educação e como
onentadora, em uma bibliografia sobre essas relações, e conhecia um
conjunto de estudos relacionados ao tema no âmbito das Ciências
Sociais.
Grande parte dela privilegia a análise de famílias operánas, em geral
assalariadas, ou traz u:na influência de análises produzidas em países do
capitalismo central que desconhecem formas de sobrevivência próximas
à das catadoras. Há análises disponíveis sobre relações soaais em fivelas
e morros, tomando como eixo o tráfico de e a violência urbana, sem
focalizar, como interessava à pesquisa, um grupo social como o dos
catadores. A partir, basicamente, dessas referências, o prorto fot
elaborado. O contato com a realidade mostrou que elas eram
insuficientes. Con10 foi aqui tnostrado, o trabalho e a vida da catação
não podem ser confundidos com outros tipos de trabalho e de vida.
Mas há poucas infonnações sobre catadores em geral. São quase
ausentes da literatura
do campo da educação. Encontrei as
primeiras referências específicas sobre catadores no campo
teórico que trata do lixo — os estudos sobre o meio ambiente. Só
no ano seguinte ao do início da pesquisa foram publicados dois
livros que focalizam catadores: o de Juncá, Gonçalves e Azevedo

O quadro de referência sobre os catadores esboçado anteriormente


mostrou a necessidade de reorientar questões e de priorizar outros eixos.
O que foi exposto acirna aponta, em particular, para a necessidade de
aprofunda:nento das próprias experiências de escolarização das
catadoras e das suas trajetórias profissionais, de especificidades das
catadoras como parte desse grupo social, do trabalho infantil, das
estratégias de escolarização dos seus filhos, da questão identitária que
se associa à sobrevivência no precário. Entrevistas fornecem indícios,
CATADORAS DE DIGNIDADE: ASSIMETRIAS E TENSÕES EM PESQUISA NO LIXAO285

por exemplo, de que há uma prenunciada expectativa de que a escola


ensine valores. comportamentos sociais e formas de expressão oral
considerados "mais adequados". Estratégias identitárias desse tipo
parecem constituir demanda até mais forte que as instrumentais (VAN
ZANTEN, 1996)- Essa pista, que será explorada, mostra a necessidade
de aprofundar a discussão_sobre processos identitários e expectativas de
escolarização dos fdhos e das filhas.

Neste capítulo foram colocados elementos para a compreensão do


que Kauffmann (1994) chamou de "os quadros sociais de
identificação". Segundo ele, há duas faces no processo de identificação
que devem ser consideradas: os quadros sociais de identificação e os
procesos identitários individuais, ou seja, a seqüência de posições no
campo social (escolar, profissional), que concerne a como o sujeito é
definido, ao que dizem que ele é e à sua história pessoal. cujo relato
atuahza visões dele e do mundo. A análise do corpus das entrevistas
mostrará dimensões individuais e subjetivas desse processo.
Além desa dimensão identitária, há outras especificidades do
trabalho e da vida das catadoras que merecem ser considerad;us, mas que
não serão aqui exploradas, como por exe:nplo: a temporalidade, o lixo
como extensão da casa e espaço de socialização dos filhos, as
dificuldades na

concffação dos horários de trabalho com o cuidado dos filhos, a


sobrevivência na precariedade. O interesse que os resultados de um
trabalho como este pode oferecer para o campo da Educação e, em
especial, para a Sociologia da Educação, é buscar entender como essas
especificidades repercutem nas traJetÓrias escolares dos filhos e nas
expectativas de escolarização que e as formulanl e em que se distinguem.
neste aspecto, por exernplo, dos operários analisados por Guedes (1997)
e dos grupos que foram objeto de pesquisa de Zago (2()0()).
Algutnas tensões enfrentadas no início da pesquisa puderam ser
amenizadas, administradas e propiciaram a realização das entrevistas.
Há, no entanto, um tipo de tensão que não pode ser amenizada. Como
enfrentar o rnal-estar decorrente de se defrontar com a situação de
i:yustlça

em que vivem as catadoras? Na verdade, essa foi a tensão mais— forte


provocada pelo encontro com catadoras do lixão. Como
como deixar de se indignar conl a constatação de uma
realidade tão dura, tão perversa.
286 ITINERARIOS DE PESQUISA

Como pesquisadora do ca:npo da educação, no entanto, espero que o


resultado final do trabalho possa contnbuir para entender a escola
privilegiando os interesses desse grupo pouco visível em nossos
trabalhos e em nosso campo. Ouso pensar que ele pode ter significado
social nos tennos postos por José de Souza Martins:
Há nisso uma proposta metodológica e teÓnca: observar a sociedade a partir da
margem, do mundo cinzento daqueles aos quais as contradições da vida social
deram a aparência de insignificantes e que como insignificantes são tratados
pcla ciência. E, no entanto, sc 'novcm... (2000, p. 135).

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A ENTREVISTA E SEU PROCESSU

REFLEXÕES COM BASE NA EXPERIÊNCIA


PRÁTICA DE PESQUISA
Nadir Zago•

Os sociólogos deveriam se senar livres para Inventar os métodos capazes de


resolver os problemas das pesquisas que estio fazendo. É como

corustrução, n.io há dois lugares iguais. não há dois arquitetos que trabalhem
d. stna tuanclra e não ha OIS propnetanos com as mes:nas necessidades.
Assini, as soluções para os pro cnx.us e construção têm sempre que ser
itnprovisadas. Estas decisões não podeni Ignorar pnncípws gerats
itnportantes, Inas os princípios gerais em SI não podem resolver os
problelnas desta construção (...) (BECKER, 1997)

Neste capítulo pretendo reunir algurnas reflexões decorrentes de


pesquisas que venho realizando sobre a escolarização de filhos de famflias
oriundas de catnadas populares. Confonne a proposta deste livro, tal
reflexio se volta para os procedi:nentos teórico-lnetodológicos adotados na
prática concreta da pesquisa, cotn tlin enfoque maior sobre a produção dos
dados coin base na entrevista. Como vere:nos posteriormente, os
Instnnnentos adotados na coleta de dados somente ranharn sentido quando
articu ac os , pre_iletnática de estudo. E nesse sentido que apresento,

de pesquisa, nu:na perspectiva qualitativa.


Dentro do telna acilna Inencionado, tenho privilegiado estudos que
pertnit.iln tanto quanto possível Ine aproxitnar da realidade dessa
populaç.io no que diz respeito à relação que esta estabelece cotn a
educação fortn.il. Esses estudos dizeni respeito ao valor social da
educação. às práticas fanuliares de escolarização. à relação dos jovens cotu
a escola, a seus projetos sociais e profissionais. O objetivo geral é poder
avançar na coinpreens.io das trajetórias e dos resultados escolares etn
contextos nos quais os indicadores econôtnicos c sociais sio bastante
desfavoráveis à petlnanência no slstenl.l de ensino.
ITINERARIOS DE PESQUISA

Centro de Santa Catanna (VISC),


288

Prosseguir cotn a pesquisa dentro de um quadro de preocupações


Ili.us ou menos circunscrito proporcionou alguns desdobrarnentos conmo
resultado de novas questões que vão sendo definidas, reelaboradas,
perniitindo problernatlzar realidades já bastante pesquisadas (por
exemplo, os fenÔlnenos de reprovação e/ou evasão escolar ou, ainda, a
relação estudo-trabalho e suas itnplicações na escolaridade) c outras que
somente etn épocas Inais recentes têtn despertado o mteresse dos
sociólogos da educação (con10 é o caso da mobilização escolar, tanto dos
pais quanto dos próprtos alunos ou, ainda, do êxito nos estudos em tneios
sociocultura:nente desfavorecidos). Essa dinâmica produzida pela
continuidade da pesquisa num mesmo carnpo de interesse pennite
aguçar o olhar do pesquisador, afinar arestas, duvidar das formulações
genéricas, enfim, alnphar o campo de connpreensão de um detcnninado
fenÔ1neno soctal, neste caso o das relações que as camadas populares
estabelecem com a escola e, nu:n sentido mais atnplo, com a educação
formal.
Uma autude presente nas pesquisas nas quais tenho envolvido é um
certo ceticismo diante de análises reducionistas que interpretam a
realidade em relação à escolarização pelo estabelecitnento de uma relação
mecanica de causa e efeito e, ainda, que tomam as camadas sociais de
forma Indiferenciada e os sujeitos (pais e alunos) como meros
reprodutores da ordem hegemónica. Diretamente relacionada a esse
ceticismo, está a preocupação em ultrapassar a focalização no chamado
fracasso escolar para compreender a escolaridade numa perspectiva que
leve em conta os processos que configuram uma determinada carreira
escolar e, conseqúentemente, a ação dos atores sociais. Conforme lembra
Charlot (1996, p. 51), "compreender um processo é compreender que uma
transformação não é o efeito de um nem imprevisto" e um
A predonnnánc:a de estudos voltados para o fracasso
escolar, tal como mostra a literatura consultada,' reforça a idéia de
um "pretenso urnÚno" da dinân»ca escolar nos meios populares.
Diferente tendência, podc:nos Identificar o crescimento de uma
produção no campo da Sociologia da Educação, sobretudo a partir dos
anos 1980,
a literatura sobre a escolandade nos tnc:os sociais
chamados populares. de estudos voltados para o quc
tctn "do chatnado dc qu.e parece ter chcpdo ao
esgotamento a rqxtição das fenótneno, conforme
o observou (2001).

A ENTREVISTA E SEU PROCESSO DE CONSTRUÇAO 289

que tem mostrado avanços na discussão conceitual. 2 Entre esses avanços


estão o reconhecimento das transformações nas demandas da população no
que conceme à educação formal e uma atenção sobre as diferenças
qualitativas em termos dos investimentos dos atores somais.
Seguindo essa tendência, a problemática que tenho perseguido está
apoiada em uma prática de pesquisa voltada para realidades concretas de
escolarização e em uma Sociologa que permite observar e interpretar a rede
complexa das relações com a escola e com os estudos. Com base em
pesquisas que seguem urna abordagem qualitativa, tenho procurado
conhecer as lógicas das carreiras escolares e estudar, igualmente, os
processos

de exclusão e de "sobrevivência" no sistema de ensino (ZAGO,


A pesquisa se volta então para dimensões mais restritas da
realidade social, ao mesmo tempo em que procura manter a relação
entre os planos macro e microssocial. Ao lado das condições escolares
e sociais da população, não se podem ignorar questões estruturais da
sociedade bem como as políticas educacionais que ainda não deram
conta de a democratização do acesso ao ensino, em todos os seus
níveis, e ao saber escolar.
Com essas preocupações, realizei o estudo que constituiu minha tese
de doutorado sobre a participação de crianças e jovens no trabalho familiar
rural e os projetos escolares e profissionais para os filhos dos pequenos
produtores rurais. No caso específico desse estudo, diversos elementos
indicam que as questÕes estudadas não poderiam ser tratadas em blocos
monolíticos: as condições do pequeno produtor, como sua condição IVIda
à posse ou não da terra, a extensão da propriedade, o nível técrnco e tipo
de produção e outras especificidades ligadas à orglmz.ação famfllar (como
o número, o sexo e a idade de seus membros) e. num outro plano. às
condições de ensino nas áreas rurais (ZAGO. 1989). Es.sa preocupação de
não estudar a relação dos estudantes com a instituição de ensino e o saber
escolar como um bloco indiferenciado norteou também meus estudos
posteriores.'
Num outro contexto, caso um bairro da penfena urbana. uma estratégia que em
um pnmeiro momento evidenciou pertinente para
ITINERARIOS DE PESQUISA

e Vn Zzfen (l Z);
290

diversificar a população segundo sua condição social foi a moradia: um


grupo com residência na favela e outro de moradores de habitações
populares.' No local estudado, esse critério se revelou importante pois
permitiu reunir famílias cujos pais ocupavam posições distintas no
mundo do trabalho formal e informal, ao mesmo tempo que ofereceu a
oportunidade de incluir uma população onunda de outros municípios e
regiões do Estado* Assim, os critérios qualitativos adotados
favoreceram a seleção de um grupo heterogéneo dentro de um bairro
popólar. O significado dessa heterogeneidade está relacionado à
dimensão socioeconómica e simbólica. No mesmo bairro, os lugares
sociais do morador da favela e daquele que tem unia habitação mais em
conformidade com os padrões dominantes, mesmo com renda não
superior a de seus vizinhos, são distintos. Esses ele:nentos que conferem
uma posição hierárquica a certos segmentos da população em relação a
outros têm efeitos importantes nas práticas de discriminação e
segregação e, conseqüente:nente, nas relações sociais entre moradores
e entre estes e a escola (ZAGO, 1997).
Em outra pesquisa com Jovens onundos de meios populares que
freqüentavam o Ensino Médio, os alunos foram selecionados com base
em denominadores comuns do ponto de vista socioeconÔrnico e
cultural: pais com renda até três salános mínimos e escolaridade não
superior ao Ens:no Fundamental. Nessa últirna pesquisa, a população
era co:nposta de alunos de dois estabelecimentos de ensino e foi
diferenciada também pelo tipo de curso que freqüentava (formação
para o vestibular e magistério).
Nessas pesquisas corn pais ou com alunos, foram levantados dados
sobre a realidade escolar do coryunto dos irmãos. Considero esse
critério fundamental se quisermos afinar a análise sobre os processos
de escolarização, tal como já foi aludido. Nesse sentido, não se pode:n
desprezar as possíveis vanações no mtcnor de utn gnes:no grupo social
e mes:no fanuliar. Nu:n pólo encontratnos famílias cujos filhos
detinham urn histórico escolar altarnentc defasado na relação idade-
série e, muitos deles, com interrupção dos estudos antes de concluir o
Ensino Fundamental. No outro, Identifica:nos famílias cujos filhos
freqücntaval)i a escola, sem atraso i:nportante. Entre esses dois pólos
extre:nos. existc:n
de padrão popular pela C'*jpcrativa da
A' ocupasócs que deram ongclll á favela estudada datanj do gnioo dos anos I'YÀ) e parte da
oriunda de dJfcrcntcs do
A ENTREVISTA E SEU PROCESSO DE CONSTRUÇÃO 291

muitas variações. Uma pesquisa sociológica numa perspectwa


qualitativa deve possibilitar a compreensão dessa realidade
heterogénea, contraditória, sem cair em determinismos
sociologizantes ou psicolo$zantes.
Além das condições socioeconômicas e culturais, a composição
fimiliar, considerando o número de filhos, o sexo e a faixa etária de
cada um deles, entre outras de natureza objetiva e simbólica, tem
implicações na vida escolar. Como observa Lahire:
Quando mudamos o foco da objetiva e pretendemos considerar as
diferenças entre famílias que normalmente se tomam equivalentes nas
pesquisas estatísticas (...) por sua semelhança do ponto de vista de
propriedades sociais gerais (por exemplo. capital escolar. capital
económico), então nos damos conta de que não há nada mecánico
e. com isso, nada simples nos processos que conduzem às úcilidades ou
às dificuldades escolares (1997, p. 32).
Os casos que apresento abaixo, conforme pesquisas já citadas,
permitem mostrar variações não apenas entre estratos da população mas
também no interior de um mesmo gupo amiliar. Há portanto limites
para os resultados da pesquisa quando tomamos os dados escolares de
apenas um dos filhos e, com base neste, tiramos conclusões K)bre a
situação escolar de um grupo social.
Considerando dados objetivos como a relação idade-série,
poderíamos deduzir que a situação escolar dos irmãos Mário' (18 anos, Y
série do Ensino Médio), Wilson (15 anos, 8a série) e Luiza (12 anos, 6a
série),' é muito próxima, sobretudo se considerarrnos que nenhum deles
havia interrompido os estudos e apenas o segundo havia sido reprovado.
No entanto, quando nos aprofundamos em cada caso em particular,
tentando compreender o significado e as práticas escolares. as diferenças
ficam mais evidentes: Máno, desde o Ensino Fundamental. teve sempre
resultados favoráveis e conduzia sua vida escolar com determinação,
enquanto Wilson e Luiza rnantinham uma relação ma:s distante com a
escola e com seus estudos. Nos dois casos, as recuperações foram urna
constante.'

em Zago
292

dc atlibos tr.ijctÓrlA Inulto próxnna até a (111,1tt'i sérjc do Enstno


rcprovaçôes e conj 1'011) (Icscrnpctlll() escolar, Illas após csse nível
totil.tr,iln rutnos difercnci.ldos. PASSOtl a ter tilna
problel)l.ítlca após '4/ sér1C. reprovou 11,1 .5a, na (P c 11'1 74 sénes e
Illtcrrotnpeu os cstudos sclll conclu:r o EtlM1i0 Ftllld,uncntdl.

distinto do irtnâo, concluiu o Enqno Fundarncntal c 11)éd10 coill


sUccsso e titiha projcto de conuntlldade dos estudos.
O que fica evidente nesscs casos é que os Irlll.ios tiño pcrccbegn da
mestna forrna a utilidade que ten) para eles o fato (le estudar. O objetivo
aqul n.io é tentar cxpllcar csscs escolares, Illas cha:nar a atenç,io
para as irnphcações nos resultados da pcsqu:sa. segundo as questÕcs que

adotados para conhecer dctenninado universo social.


Com a definiçio dos pnncípios até aqui assinalados, volto a atenç.io
para o que constituill o principal instrutnento de coleta de dados de

de urn trabalho de ca:npo é sernprc uma expenência singular e esta.


escapa frequenterncnte à racionalidade descrita nos Inanuais de
metodologa. Sobre vale reto:nar a observaç.io de Beckcr (1997, p. 12):
"Os gera1S encontrados hvros e artlgos sobre rnetodologia
s.io unta ajuda, Illas. sendo genéncos, nao levarn etn consideração as
variaçôes locars e peculiaridades que tornam este arnblente e este
problema aquilo que sio de Inodo único". Sendo úntco, multas respostas
às questÕes que se apresentanl na fase de coleta de dados vio sendo
encontradas na prática concreta e na dilúnnca que o pesqtnsador vai
dando ao seu próprio trabalho. Nesse senudo, llá uma relaç.io dl.lléuca
permanente entre a realidade social identificada no trabalho de carnpo
e o referencial adotado para a Interrogar. É nesse quadro que passo a
destacar utn conjunto de preocupasões e procedunentos que nortcaratn
a prática da pesquiq empírica a que acitna rne rcfcn e,
conseguentetnente, da produção dos dados.

Entrando no campo da pesquisa empírica


O pesquisador expenrnent.i, etn novo csrudo. o que acredito
ocorrcr tnestno cont aqueles nu:s expenentes c habilidosos, urna certa
A
tenoo, Esse estado é stvenctado espectaltnente na fase da coleta t stu

(l.ulot. a qual é geralntcntc (le 'l'ivi(l IS, ton•aelas fotatll ag aecttadas? o


toteiro de (l.i ('tifita do que se quer cstudar? sfio para f.vcr do aceltar.ìo
partl( (lo esttltlo?
POIS nctn todos os que rrctcndctltos illdtnr no tt.il'.llho aos olyetlvos
da pcsqtnsa. Entre outr,iS razòcs. de c.lt,itet pessorll
(scntinjcntos tclactonadog à stl.l condiçào soc ial. tctnor da que o
dcronnento possa causar etc.) fazetn COI!) que celtas rccusclll a
particjpar do cstudo. Nctn scntpre avall,itnos quc o podc n.io ser
titna figura bcnqutsta na eqeola, no bairro, na farnill,l ou outro local de
estudo. A intcnç,io n.io é dcsannn,ar os que est,ìo Itnci,llldo sua formaç.io
em pesqtltsa. ao contr,irio.' é ch.unar-lhes a atençào par,' multiplicidadc de
fatores que rodent cxercer sobrc• os resultados obtidos. Isso significa d17cr
que o traba1110 de eatnpo dlficllmetlte VAI se desenrolar confortne
plancjado e (lesse 1110110 esti scucito a sofrcr un) processo de constante
construç.io. Nossos Infonti.ante•s podett) se Iltostrar acolhedores e multo
engajados quando os interrog.itnos. Para obter èxtto precisamos construir
crcdlbilidade e intercue pelo que (azt•mos. o que — diga-se de passagctn —
é sempre evidente n." Clènci,ts Soctats. Precisamos encontrar urn terreno
que favorcça a produsào dos (Indos e csta busca pode exigir mais tempo do
que o prevtsto. l)lfictllttades. etn mmor ou mcnor grati. incv:tavelmente
exi%tern.
Espcclficamcnte no meu modo particlllar de trabalho, etn cada
pesquisa procuro cntrar cm contato com ressoas quc, pela pos1ç50 que
ocupam ou conhecimento que detèrn do local estud.ldo. podem auxlhar no
mapeamento do campo e d.as pcssoas—chave para o estudo e, quando
poçsivel, intermedur contatos para factlltar cntrxd.l Prefiro essa
pritica à de selecsorur Ûrnmas ,ltravés da escola por acreditar que por
interrnédso desta podemos controlar facdrrtente indicaçôc•s tendenaous,
sobretudo cm se traundo rnews poputares sobre os qua;s sabcmos recair muias
estereécpç%.
E nesse terreno de e de de•É0Eert.xs que passo a
Situar alg•umas questòe•s que corrsz:cairam pnncipws fundzdores da
produçlo da cm espect„.J a ruturrza da entrevkt.a. a relas;o entre
cntrevtsta e OE.ervaçio e com os si41f;cados e com as prit;cas

294
ITINERARIOS DE PESQUISA
A entrevista como instrumento principal da pesquisa
A literatura voltada à metodologia da pesquisa nas Ciências
Hulnanas e Sociais tem dedicado atenção à entrevista, a suas diferentes
modalidades, a seus limites e possibilidades na compreensão da
realidade. Embora essa produção possa representar um auxiliar
importante para aqueles que elegem a entrevista como recurso de
trabalho, dela não podemos esperar encontrar receitas que possam ser
transpostas diretamente para todas as situações. A regra é respeitar
princípios éticos e de objetividad_e na pesquisa, bem como garantir
as condições que favoreçam uma melhor aproximação da realidade
social estudada, pois sabemos que nenhum método dá conta de captar
o problema em todas as suas di:nensões. Apesar desses cuidados
reiterados nos livros de metodologia, não ignoramos que parte
considerável da produção da entrevista e do aprendizado adquirimos
sobre sua condução se opera no processo concreto do_ investigação.
Aproprio-me de uma citação presente em Oliveira (1998), POIS
sintetiza o que aqui quero dizer. "O melhor aprendizado da pesquisa
social é fazê-la; mas, preferencialmente, 'fazê-la sabendo-se o_que se
faz"' (COHN, ap. OLIVEIRA, 1998, p. 22). Nessa perspectiva e em
outras que serão aqui apresentadas sobre a pesquisa qualitativa, é que
situo o modo como venho conduzindo o trabalho de campo, tendo a
entrevista como principal instrumento de coleta de dados.
Amplamente utilizada nas Ciências Humanas e Sociais, a entrevista é
empregada conforme diferentes perspectivas teóricas, razão pela qual
também se diferencia quanto aos objetivos e modalidades de condução.9
Portanto, a escolha pelo tipo de entrevista, como é também o caso de outros
instrumentos de coleta de dados, não é neutra. Ela se justifica pela
necessidade decorrente da problemática do estudo, pois é esta que nos leva
a fazer determinadas interrogações sobre o social e a buscar as estratégias
apropriadas para respondê-las. Definimos então a nagureza da entrevista e
a maneira como ela será conduzida para melhor se ajustar às nossas
preocupações. Tais considerações apontam para uma variedade no método,
variedade esta que acaba ficando encoberta quando utilizamos a
denominação genérica de entrevista. Cito Kaufmann (1996, p. 15) para
reforçar essa idéia: "Cada pesquisa produz uma construção particular do
objeto científico e uma utilização adaptada dos instrumentos: a entrevista
não deveria jamais ser empregada exatamente da mesma maneira' .
A Intenção não é estender esta questão. Para isso recomendo a leitura de Haguette (1997)
e Blanchet (1985), entre outros. que tratam dos fundamentos da entrevista.
A ENTREVISTA E SEU PROCESSO DE CONSTRUÇAO 297
Dentro dessa abordagem o pesquisador se apropria da entrevisã não
como uma técnica que transpõe mecanicamente para uma situação de coleta
dados, mas como parte integrante da construção socioló$ca do objeto de
estudo. Essa construção implica uma interdependência dos diversos
procedimentos associados ao processo de produção dos dados, o que inclui
sua problematização inicial, passando pelo da realidade e pela análise dos
resultados. Desse modo, embora possa ser adaptada a uma diversidade de
situações e campos disciplinares, a utilização da entrevista se inscreve em
um quadro conceitual específico (BEAUD e WEBER, 1998).
Considerando a variedade de entrevistas e a peculiaridade de cada
situação em que é utilizada, procuro aqui descrever como tenho me
apropriado desse instrumento nas pesquisas sobre escolarização. Ogymo_
que o trabalho foi tomando tem relação com as descobertas que a própria
realidade pesquisada proporciona, ao mesmo tempo que questões
teóricometodológicas, apoiadas nas novas abordagens da Sociologia da
Educação, problematizavam tanto a busca de informações quanto a forma
de interpretar seus resultados. Sabemos que a construção da problemática
estudada sofre um processo de amadurecimento, demanda um trabalho de
grandef61cgo, conw nos disse Bourdieu (1989, p. 27), "que se realiza pouco
a pouco, por retoques sucessivos, por toda uma série de correcções, de
emendas, sugeridos por o que se chama o oficio, quer dizer, esse conjunto
de princípios práticos que orientam as opções ao mesmo tempo minúsculas
e decisivas".
Passo então a definir os contornos da entrevista, o que não corresponde
de forma alguma à idéia de modelo pronto a ser utilizado. Está claro
também que as simples denominações de entrevista seniidiretiva,
semiestruturada, entre outras, não são suficientes para qualificá-la quando
estas se referem aos aspectos práticos ou técnicos de condução. Uma das
características da pesquisa qualitativa e, dentro desta, da entrevista
compreensiva, IO é permitir a construção da problemática de estudo

durante o seu desenvolvimento e nas suas diferentes etapas. Em razão


disso, a entrevista compreensiva não tem uma estrutura rígidá, isto é, as
questões previamente definidas podem sofrer alterações conforme o
direcionamento que se quer dar à investigação. Esta é uma das principais
características que me aproxima desse recurso nos estudos que tenho
realizado.

10 0 termo "compreensvo•• é adotado no sentido w&riano (KAUFMANN. 1996).


296

A entrevista compreensiva define um modo de fazer pesquisa que


difere do modelo clássico, estandardizado: definição da problenaática na
fase inicial, com instrumentos padronizados, totalrnente definidos na fase
que antecede à coleta de dados e voltados para o teste e co:nprovação de
ITINERARIOS DE PESQUISA
hipóteses; amostragem tendendo para a representatividade, corn questões
estabilizadas; posição itnpessoal do pesquisador que, centrado no rigor do
método, trabalha com pouca rnargem de vanação de uma entrevista a outra
(KAUFMANN, 1996). Na entrevista coinpreensiva, o pesquisador se
engaja formalmente; o objetivo da investigação é a compreensão do social
e, de acordo conl este, o que interessa ao pesquisador é a riqueza do material
que descobre. Por todas essas diferenças, como observa Kaufmann (1996,
p. 20), a entrevista compreensiva "inverte as fases da construção do objeto:
a pesquisa de campo não é u:na instância de verificação de tilna
problemática preestabelecida mas o ponto de partida desta
problematização". Apoiada nesse mesmo autor (1996, p. 8), ainda destaco:
a lógica do conjunto do método deve ser compreendida, antes que este ou
aquele eleznento seja utilizado separadamente; campo, método e teoria não
são carnisas-de-força que do:ninarn o pesquisador e impede:n descobertas
de novos ca:ninhos.
Mas se tais características proporcionam margem de liberdade na
produção do instruinento utilizado, Kaufinann adverte que a orientação daí
advinda difere das tendências espontaneístas, que protestam contra o
fonnalis:no luetodológico para assil)l abandonar todo esforço de rigor e se
deixarei)) levar pelo ilnpressioni.qno e intuição sem controle. Ao contrário,
diz o autor (1996, p. 23), o interesse é "produzir uni esforço contínuo, para
poder construir unia objetivação, 111as segundo modalidades diferentes
daquelas dos Illétodos quantitativos"
Convém ainda le:nbrar que o :nétodo é aqui entendido não em
oposição à teoria ou corno um conjunto de técnicas de pesquisa. O sentido
dado é o da orientação teÓrico-metodolÓgica que sustenta e dá sentido aos
caminhos adotados pelo trabalho de investigação. O método como observa
Oliveira (1998, p. 21), "envolve, si:n, técnicas que evenu estar sintonizadas
conl aquilo que se propõe; mas, alézn disso, diz respeito a [undamentosg
processos, nos quais se apóia a reflexão'

Na seqüência da perspectiva qualitativa aqui adotada, vou me deter


em três questões que considero ilnportantes nesta reflexão sobre a
entrevista e sua utilização nos estudos sobre a relação dos atores sociais e
a educação, sabendo que estas podem ser ampliadas para outras situações.

cwentrcyistas a realizar. Segundo

respond er a esta pergunta


este capítulo, não é possível matemático. O nútnero a considerar não é
A ENTREVISTA E SEU PROCESSO DE CONSTRUÇAO 299
independente dos propósitos do estudo, de sua proble:nática e seus
funda:nentos. Por isso :nesrno, observam Beaud e

num nmesnl() plano entrevistas conl status muito diferentes.com


objetivos diferentes. Ao adotarmos a entrevista em profundidade, a
intenção não é produzir dados quantitativos, e nesse sentido as
entrevistas não precisam ser nu:nerosas. Se o que nos interessa é a
representatividade, nesse caso, dizenl os nlesrnos autores (1998, p.
177), precisa:nos "fazer entrevistas que cubra:n todo o leque do Ineio
pesquisado". Nessa mesma direção, Kaufinann (1996) observa que o
erro a evitar é a generalização com

seleção, sabendo que a a:nostra não será representativa em uma pesquisa


qualitativa.

Portanto, as respostas sobre a delin)itação do número de entrevistus


depende:n do método escolhido (confornne acepção anterior) e, uma vez
escolhido, deve-se entrar na sua lógica. Se considerarmos que "cada
Inétodo corresponde a utna maneira de pensar e de produzir saber que
lhe é próprio", temos então que entrar na lógica do método qualitativo e,
desse Inodo, não podemos pretender a aplicação dos mes:nos
procedilnentos das interpretaçÕes estatísticas. A entrevista "se inscreve
em outro modelo de construção do objeto" (id., ib., p. 26).
Com esta última observação, não estou querendo dizer que os
dados de natureza quantitativa devam ser abandonados, pois assinl
recairíamos nurna dicotonlia entre quantitativo/qualjtativo, posiçãojá
suficientemente criticada (BOURDIEU, 1989; BEAUD e WEBER
1998; BRANDÃO, 2000).
Etn um estudo recente comjovens do Ensino Médio, pretendi
ampliar o conhecimento sobre a situação da população mediante um
questionário aplicado a um número maior de alunos para, num segundo
momento, aprofundar as informações cotn entrevistas, que se
distingue:n do questionário quanto aos seus objetivos. Uma das
características da entrevista é assegurar informações em maior
profundidade do que poderia

Coni0 exetnplo de distorção na co:nposição da amostra, o autor h:potcucamente um estudo que


se propusesse a falar do comportatnento dos franceses abrangendo u:na população constituída
unicatnente por Jovens.
300 ITINERARIOS DE PESQUISA

garantir um instrumento com questões fechadas. Dados estatísticos sobre


a realidade mais global dosjovens assim como resultados de outras
pesquisas se revelam importantes para estabelecer aproximações e
diferenças nos resultados obtidos, no sentido da citação abaixo:
Os métodos qualitativos têm por função compreender mais do que
descrever sistematicamente ou de medir: não se deve pois procurar fazer
cotn que eles digam mais do que podetn sobre um cmnpo que não é o seu.
Por outro lado, os resultados devern ser regulannente cruzados e
confrontados com o que é obtido por outros métodos, notadamente
estatísticos (KAUFMANN, 1996, p. 30).

Outros autores vêm reforçar a importância de mobilizar recursos


pertinentes à elaboração da problemática em estudo, mesmo que se trate
da "mais clássica análise estatística com um conjunto de entrevista em
profundidade ou observações etnográficas!" (BOURDIEU, 1989, p. 26).
No entanto, essa liberdade de poder associar procedimentos
aparentemente incompatíveis somente se justifica se observannos,
conforme acrescentou o mesmo autor, ''urna extrema vigilância das
condições de utilização das técnicas, da sua adequação ao problema
proposto e às condições do seu emprego" (BOURDIEU, 1989, p. 26), isto
é, o rigor necessário na pesquisa.
Com essas considerações, passo para argunda questãb: a relação inse
arável entre entrevista e observa ão. A entrevista encontra-se apoiada
em outros recursos cuja função é complementar informações e ampliar os
ângulos de observação e a condição de produção dos dados. Nesse sentido,
não há separação entre as duas, uma vez que é no quadro da pesquisa que
se define o que cabe a cada uma delas (BEAUD e WEBER, 1998, p. 177).
Em meus estudos, essa relação de complementaridade entre os dois
recursos está diretamente relacionada à escolha do local da pesquisa. Uma

das opções metodológicas nos estudos com as famílias e também com


jovens consiste em realizar, sempre que possível, a entrevista em suas
residências. Por se tratar de uma relação interpessoal e ser realizada no
local de moradia dos pesquisados, a entrevista oferece um material de
observação bastante rico. O local é uma condição importante na
produção dos dados, podendo facilitar ou produzir constrangimentos. Os
efeitos dessa escolha serão certamente distintos se o encontro ocorrer na
casa do informante, na escola ou no seu local de trabalho. Assim, uma
das vantagens de a entrevista se realizar nas residências dos informantes
é
A ENTREVISTA E SEU PROCESSO DE CONSTRUÇAO 301

reduzir ao máximo as interferências exteriores na produção do discurso e, ao


meslno tempo, facilitar a conversação para que esta possa ocorrer mais
livremente. Outra vantagem dessa escolha é a obtenção de dados sobre as
condições sociais e econÔmicas das famílias. Considerando a renda
freqüentemente irregular em virtude do caráter de informalidade cada vez luais
freqüente nas relações de trabalho, muitas informações são reveladas pela
observação. Um outro recurso vem se agregar à entrevista e à observação: um
questionário para registro dos dados que caracterizam

a população estudada, tornando-se desnecesSário lembrar a importância


dessa contextualização nos estudos sociológicos. 2
Cabe ainda destacar o uso freqüente do gravador nas pesquisas
apoiadas em entrevistas, prática essa que exige uma com o informante,
para obter sua aprovação. A gravação do material é de fundamental
importância pois, com base nela, o pesquisador está mais livre para
conduzir as questões, favorecer a relação de interlocução e avançar na
problematização. Esse registro tem uma função também importante na
organização e análise dos resultados pelo acesso a um material mais
completo do que as anotações podem oferecer e ainda por permitir
novamente escutar as entrevistas, reexaminando seu conteúdo.
A ra tercei ues - refere-se
apreender além dos
significados e das fonnas de investimento escolar. Estas podem ser
apreendi as por meio da entrevistai3 e por perguntas intencionalmente
dirigidas do tipo "como isso acontece?" " oderia nos

fornecer um exemplo", entre outras táticas. A atenção sobre essa dimensão


leva-nos a perceber a coerência entre as práticas e opiniões, além de explicitar,
de forma mais clara, o modo de participação das fanulias na educação de seus
filhos e também destes em sua vida escolar.
O estudo sobre as práticas permite desmistificar idéias infundadas
como a desmobilização escolar ou a resignação das camadas populares
diante da educação. Os termos "participação" e "interesse" são bastante
vulgarizados no meio educacional e, com freqüência, tomam-se como
referência valores e comportamentos típicos dos estratos mais
favorecidos da sociedade, desconsiderando-se práticas diferenciadas
segundo a condição social e cultural de seus membros. Nese sentido, o

2 Em Zaia Brandão (2000) podem-se encontrar outros exemplos da associação entre


entrevista e questionáno.
Um exemplo de estudo dx práticas ânuliares de escolarização. por meio da pode ser
encontrado em Lahire (1997).
302 ITINERARIOS DE PESQUISA

uso genérico do termo "participação" para detimr uma forma de os pats


se relacionarem com a escolarização dos filhos não está Isento de
preconceitos. E necessário então contestar 0 modelo hegemÔnico,
pensando os espaços sociais de outra fomtd, ou seja, relacionalmente
(BOURDIEU, 1989), duvidando das categorias Já existentes, conforme
tem sido mostrado:
A sociologia cultural" nos ensinou que as práticas dos "dominados" são
quase sempre interpretadas pela ótica do olhar dos "dominantes": elas são vistas
de cima, sejam desvalorizadas sejam idealizadas (populismo). A etnografia,
graças à imersão do pesquisador no meio estudado (...), permite o cruzamento
de diversos pontos de vtsta sobre o objeto, ilumina a comploada&
revela sua densidade (BEAUD e WEIIER, 1998, p. 9). Essa mudança de
perspectiva sugerida por Grignon e Passeron faz o pesquisador considerar
famílias e alunos concretos, contextualizados e não idealizados. Somente assim
é possível "enxergar" que muito do que eles fazem são também investimentos
escolares, modos de participação, embora nem sempre em consonância com o
que é considerado pela escola.
É preciso então romper com os enquadramentos abstratos de idéias
como ''interesse" e "participação" para que ganhe visibilidade a luta
daqueles que não estão resignados diante dos mecanismos de produção
das desigualdades sociais. A ausência de investimento dos pais na
escolaridade dos filhos, deduzida aprioristicamente, pode dar lugar então
ao entendimento de outros modos de intervenção. Sem entrar nos casos
que, pela singularidade das práticas envolvidas, se revestem de um caráter
mais excepcional, é possível citar exernplos recorrentes nos estudos
realizados: as mães que procurava:n prolongar a idade de ingresso do(a)
filho(a) no trabalho para não prqudicar seus estudos ou de muitas outras
que. diante do baixo grau de instrução, não acompanhavam diretamente os
deveres escolares, mas adotavam outras forrnas de se fazer presentes, fosse
no plano Inats subjetivo, como a Inqsténc:a em transrnitir o valor social
da educação para encorajar a na escola, fosse controlando a
assiduidade e o cumpnmento das tarefas de casa. Ta:nbém não pode:n ser
aqtll esquecidos aqueles que luta:n por uma bolsa dc

0 autor referência ao livro et


de e (198").
estudos ou investem na escolha de um estabelecimento público para
aumentar suas chances de acesso ao Ensino Superior. Olhar "nunl outro
plano" representa esse esforço do pesquisador em problenutizar o que lhe
A ENTREVISTA E SEU PROCESSO DE CONSTRUÇAO 303

ts
é familiar (VELHO, 1978) para colnpreender a realidade social sem
metamorfoseá-la.

Entrevista: uma relação social singular


Uma relação de confiança
A entrevista se desenvolve em uma relação social. Nesse sentido,

o pesquisador não pode ser interpretado como se elénão tosse tal pessoa, não
pertencesse a tal sexo, etnia e profissão, ou ainda. como se não ocupasse
determinado lugar na sociedade. A entrevistag,wessa realidades, sentimentos e
cumplicidades_que um instrumento com respostas poderia ocultar,_
evideyyciando a infundada neutralidade científica daquele que pesquisa. O
encontro com um interlocutor exterior ao universo social do entrevistado
representa, em vános cxos, a oportumdade de este ser ouvido e poder falar de
questões sociais que lhe concernem diretamente. Essas questões podem dizer
respeito ao contexto circundante, como as relações sociais no bairro, mas
também a problemas mais abrangentes como a violência, o efeito das greves do
ensino público, as incertezas sobre o futuro. Concordo assim com Beaud e
Weber (1998, p. 180) quando dizem que o problema na pesquisa não está no
fito de o pesquisador ser um elemento estranho ao grupo pesquisado. ao
contrário: justamente por não fazer parte do mesmo universo (socral, familiar,
de vizinhança etc.), essa condição o coloca em uma posição objetiva favorável.
Não raro nossos infomuntes nos územ confidências, nos têm como seus
interlocutores, porta—vozes de suas reivindicações. conforme se vê em alguns
exemplos extraídos do meu diário de campo. Cito algumas situações para
ilustrar esg observação:
Um pai entrevistado gcstaria obter uifonnaçio sobre procedimentos para doar
ór*os em de morte (DO nwrnento a mídla fazia pande campanha para
sensibilizar a opimão pública); um dos entrevistados

45), —o
Confonne Vefro prcxmxs
(l (578. p. egranhar o fanulur torna—se pcnsivel quando capazes de
confrontar Intelectualmente. e mesmo emocionalmente. e a
gtu»ções"

pretendia fazer vasecto:nia e solicitava informações sobre as


possibilidades de realizá-la no hospital universitário; uma mãe que
gostaria de saber como poderia conseguir óculos para um dos filhos; e
outra solicitou que seu nome fosse indicado caso alguém necessitasse de
serviços de doméstica (Diário de campo).
Experiências como as acima descritas nos colocam frente a situações
ern relação às quais não podemos fazer de conta que nada ouvilnos ou,
304 ITINERARIOS DE PESQUISA

ainda, dar uma resposta evasiva para garantir o distanciamento necessário


na pesquisa. Durante as pesquisas realizadas, não me furtei a responder
seus questionamentos e indicar, quando do meu conhecimento,
alternativas possíveis para o que procuravam. Corno conseguir o
engajamento reivindicado na pesquisa se ao mesmo tempo nos Inante:nos
calados, numa posição de reserva frente às questões dos interlocutores?
Também sempre me apresento como professora universitária e respondo
às perguntas que surgem sobre meu trabalho e minha pessoa.
Beaud e Weber (1998, p. 217) lembram que, em vez de se deixar
paralisar pela noção de neutralidade, o pesquisador deve estar
preocupado em obter a confiança do entrevistado, condição
fundamental na situação da entrevista e de sua produtividade. Nessa
mesma direção, Blanchet e Gotman (1992, p. 21) afirmam que a
interação que se estabelece entre entrevistador e entrevistado decide o
desenvolvimento da entrevista e a natureza das informações
produzidas.segundo os autores, ao conduzir

uma entrevista como se fosse um questionáno, não instaurando uma


situação de interação, o pesquisador corre o nsco de não atingir seu
objetivo (1992, p. 22). Há um consenso — do qual participo — entre
diversos autores sobre a idéia de que as boas entrevistas estariam menos
relacionadas às questões das técnicas de condução e mais à capacidade
de obter a confiança dos pesquisados: "E esta relação de confiança que
o entrevistador consegue estabelecer que conduzirá à coleta de um
material suficientemente rico para ser interpretado" (BEAUD e
WEBER, 1998
p. 208).
O grau de implicação do informante depende muito da confiança
que ele deposita na pessoa do pesquisador e, evidentemente, de como
se sente na situação da entrevista. Garantir essa qualidade tão
necessária não é tarefa simples, uma vez que em seu desenvolvimento
vários fatores estão implicados, parte deles relacionados à pessoa do
pesquisador (curiosidade, criatividade, discrição, si:nplicidade etc.) e
outros que extrapolam sua atuação. Por outro lado, a relação de
confiança não está dada desde o início da conversação, mas vai sendo
pouco a pouco construída. Desde o momento inicial é fundamental
esclarecer os objetivos da pesquisa, o destino das informações, o
anonimato de pessoas e lugares, além do horário do encontro e tempo
provável de duração. Esses esclarecimentos e compromissos fazem
parte do acordo inicial entre
A ENTREVISTA E SEU PROCESSO DE CONSTRUÇAO 305

pesquisador e pesquisado, que é preciso respeitar. Também não são sem


importância a apresentação pessoal do pesquisador e a maneira como
desenvolve a entrevista, isto é, a dinâmica de sua condução.

Para possibilitar maior confiança na relação entrevistador/ cada


momento é acompanhado de uma observação cuidadosa que vai dando as
coordenadas sobre a melhor forma de conduzir a conversação. E preciso não
esquecer que entrevistado o lugar central do encontro e, por isso mesmo, um
elemento é a manifestação de interesse pela sua pessoa e o seu discurso. Esse
interesse é indissociável da capacidade da escuta do que é dito e de não—
julgamento. Para mvorecer a produção do discurso "gyesquisador deve
esquecer totalmente suas próprias opiniões e categorias de pensainento. Pensar
somente em uma coisa: há uln mundo a descobrir, cheio de riquezas
desconhecidas" (KAUFMANN, 1996, p. 52).
Esses princípios, que fundamenta:n o trabalho de campo, auxiliam o
estabelecimento da confiança tão necessária e, por isso mesmo, sempre
lembrada nos livros de metodologia da pesquisa. Minhas experiências têm
mostrado que, a partir do momento em que o pesquisado compreende o
objetivo do trabalho e tem confiança na pessoa que o efetua, ele
coopera, não se furtando a responder e a argumentar Sobre as questões da
pesquisa.

Organização e dinâmica da entrevista


A margem de liberdade necessária à produção do discurso não
corresponde a uma condução anárquica da entrevista. A flexibilidade faz
parte da lógica do método qualitativo e da entrevista compreensiva, mas
é importante demonstrar, na sua condução, aonde o pesquisador quer
chegar. Daí a importância de termos um ponto de partida e garantirmos
essa condição mediante um roteiro de questões. Em minhas pesquisas
organizo temas e, dentro destes, questões mais específicas. Esse

processo auxilia na definição da problemática, ajuda a hierarquizar


assuntos ou temas, separando o que é central do que é periGrico na
investigação.
Procuro conduzir a entrevista de forrna a torná-la próxima de uma
discussão, esclarecendo desde o início que aquele encontro não é para
levantar conhecimentos do tipo escolar mas para falar de questões que os
informantes vivenciam cotidianamente. A riqueza das respostas está
diretamente ligada ao interesse que os temas e o desenvolvimento da
entrevista representam para a pessoa. Para facilitar a conversação
introduzo inicialmente questões mais gerais de interesse da pesquisa,
306 ITINERARIOS DE PESQUISA

procuran o assegurar um grau de maior descontração, para então passar


pan_aquelas mais específicas sobre a escolaridade. Com os pais, lanço

inicialmente algumas perguntas para contextualizar o grupo familiar, com


interesse de conhecer a história da família, sua procedência geográfica,
entre outras, enquanto que com os jovens é dado um tempo para falar de
suas ocupações não—escolares, como o trabalho, o lazer, para depois
introduzir questões mais específicas sobre seu histórico escolar, relação
com a instituição de ensino e seus projetos.
Freqüentemente o encontro com o entrevistado se amplia para além
do que foi previsto, produzindo uma conversação rica em detalhes. Por
isso, o tempo de duração de cada entrevista de tipo qualitativo é variável.
Embora não existam normas a respeito,í0 tempo um elemento importante
para permitir o aproâmdamento do que está sendo investigado e tem
também a Kinção embram Beaud e Weber (1998, p. 195), de reduzir
progressivalllente o ntvel de censwa do entrevistado.
Mesmo não estando todo o tempo voltado para os temas previstos, o
encontro como um todo faz parte do processo de construção da entrevista.
Muitas vezes o início ganha um tom mais formal, sendo necessário intervir
além do desejável para depois transcorrer de forma mais descontraída a
ponto de a presença do gravador não parecer um obstáculo. Não raro,
quando aparentemente concluímos a entrevista e damos um tempo para
uma conversa mais despretensiosa, surgem dados importantes sobre a
escolaridade, entre outros relacionados à problemática em questão. Em
situações como a que se segue não hesito em retomar a gravação para não
perder a informação:
Cheguei na casa de Ana por volta das 14h e lá fiquei durante mais de duas
horas. Em outras o tempo de permanência foi menor. A entrevista ocorreu
em um momento politicamente efervescente no bairro, com pressões de
todos os lados para impedir a permanência das famflias que ocupavam a
área. Como pessoa atuante no movimento, Ana tinha muito
A ENTREVISTA E SEU PROCESSO DE CONSTRUÇÃO
o que contar. Neste caso foi possível observar o peso dos deslocamentm
geográficos sobre a escolaridade dos filhos quando os recursos econÓmicos
são reduzidos. A participação de mivantes de outras repões do forneceu
evidências dessa relação. Desliguei o gavador e em certas ocasiões voltei a
li$-lo para não perder o matenal prec:ow que Ala fala revelava (Diário de
campo).

Segundo Kaufrnann, quando o quadro forrnal da é como que


esquecido, se aproximando de uma conversação, podern«x dizer que o
nível de profundidade foi atin$do. Mas ao mesmo tempo adverte:
Para atingir as informações essenciais, o pesquisador deve, com efeito. se
aproximar do estilo da conversação sem entrar numa verdadeira conversação:
a entrevista é um trabalho, que exige um esforço de to"— os instantes. O ideal
é romper a hierarquia sem cair an urna equivalência de posições: cada um dos
interlocutores mantém um papel diferente (...). O pesquisador entra no mundo
do inforrnante sem ocupar o seu lugar (1996, p.

O pesquisador, segundo o mesmo autor, deve "se convencer de que ele


pode a cada instante fazer melhor, aprúndando sua pesquisa no interior dela
mesrna" (KAUFMANN, 1996, p. 49). Para encontrar a boa questão é
necessário rnanter uma escuta atenta, interessada, conforrne já foi
assinalado, e refletir durante a 61a do outrp, relacionando as questões com
o discurso dos informantes. Por Isso mesmo, colocar boas questões não se
toma tão evidente POIS estas não estão no roteiro.
Uma entrevista que começa mal, sem interesse da parte do entrevistado,
pode depois de uma boa pergunta tomar um outro ntmo e Interesse. Entre o
início e o desenrolar da entrevista podemos noar esa mudança.
Como recurso que é recriado numa relação interpessoal, a
entrevista não se processa numa relação de "sentido único", não segue
uma ordem linear. Esta é a razão pela qual o roteiro, conforme já
assinalado, não

segue uma estrutura rígida pois representa um guia egüo_genuaprctensao

de ser conduzi&Õcomo se fose um questionário- Seguir um roteiro

fechado impede todo o imprevisto e o desencadearnento de urna dmãmica que


é própria a cada encontro (BEAUD e WEBER. 1998, p. 206).
Tratando—se de uma relação social, temos que contar com esta

realidade viva sujeita a imprevistos, os quais, com freqüência,


oferecem pistas importantes para a compreensão do fenómeno
estudado. Esas pistx revelam a singularidade de cada entrevista.
Dependendo da importância
308 DE PESQUISA
ITINtRARtOS

que senti:nos etn esclarecê-las e aprofundá-las. vatnos multo além do


que foi prevtsto no roteiro Inicial. Porém, cuidados são senu»re
necessários. Não se trata sitnplestnente de estender a entrevista a todas
as direções. O interesse é acrescentar questões que a situação sugere
quando estas têtn relação cotn a probletnática da pesquisa. O ideal é
''desencadear unia din.illlica de conversação ruais rica do que a si:nples
resposta às perguntas fortnuladas. ao mesmo tetnpo per:nanecendo no
tenia" (KAUFMANN, 1996, p. 44).
O pesquisador propõe um tema e intervétn para encoraJar e relançar
as questões, solicitar luais esclarecilnentos do que é dito. Segundo cada
caso particular, solicita infortnações complementares, por exemplo
retomando fatos, expressões que possibilitem a continuidade do discurso
ou ainda para esclarecer utna contradição. Mesmo com um plano, a
condução da entrevista teni um processo de construção, demanda um
certo nútnero de ajustamentos e redefinições (BLANCHET e GOTMAN,
1992, p. 22), possibilitados pela reflexão ou (pnini)intcrprctações
(BEAUD e WEBER, 1998, p. 219-20) elaboradas com base no que
dizeln os informantes. Para chegar a esse nível é necessário ter uma boa
assimilação da entrevista, saber o que se quer alcançar, conhecer be:n seu
roteiro para justamente não ficar restrito a ele.
A medida que a pesquisa avança. adquirimos maior domínio na
condução da entrevista, desenvolvendo-a com malor liberdade,
dispensando a consulta estrita ao roteiro. No meu caso específico, no
final sempre consulto esse mesmo roteiro para ver se permaneceram
questões não contempladas, pois sei que terei dificuldades em recuperá-
las. Assim considerada, a entrevista não se limita à escuta e ao registro
de infonnações, não se reduz, comojá foi observado, à pura manipulação

de técmcas nem a um encontro como qualquer outro. Ao coletar os dados,


o pesquisador estabelece relações, tira conclusões parciais e, para tanto, e
Importante submeter seu roteiro regulannente_ê crítica, como sugere
Kaufinann (1996, p. 46). Nesse sentido, o pré-teste doilstrumento é um
começo importante nesse trabalho de revisão.
O trabalho de campo vai sendo submetido a uma análise constante.
Tendo realizado as primeiras entrevistas, é irnportante dar um tempo* rever
o material para afinar questões previamente definidas. Com o objetivo
A ENTREVISTA E SEU PROCESSO DE CONSTRUÇÃO
de melhorar a condução das entrevistas, um procedimento importante é
escutar a entrevista gravada e transcrevê-la. Podemos assim
307

reavaliar a produção da entrevista, tnodificar certas for:nulações, verificar


aspectos aos quais não (lantos suficiente atenção e ainda evitar a prática que
consiste ent cortar a palavra gno:ncntos inapropnados, sugerir respostas ou
não dar a devida ilnportância a u:na idéía nova e qtle Inereceria ser explorada.
Outro cuidado é não introduzir um número excessivo de questões para não
desencadear respostas breves e superficjats, seni engajatnento pessoal
(KAUFMANN, 1996, p. 45). Por toda essa atenção e unpregnação do
pesquisador nutll trabalho de campo dessa natureza, não considero produtivo
realizar, num só período, muitas entrevistas.

A prática do trabalho tem mostrado que, ao mesjno tempo eni que


est.•unos revendo os instrutnentos e a conduçao da coleta dé daabs.
reordenanlos o objeto segundo uma lógica cada vez mais elaborada. Esses
mornentos de reflexão sobre os dado; obtidos são freqüentemente ricos e
parece:n essenciais para finnar os procedi:nentos do campo ao Ineslno
tenlpo que a entrevista e a problemática ganham em precisão.
A literatura sobre entrevista é bastante atnpla. Este capítulo que
elaborei não teve por objetivo fazer um apanhado dessa produção, mas
articular utn certo número de princípios que considero findamentais nulna
entrevista com a experiência concreta de sua realização. Com isso tive
especialmente as seguintes intenções: a) desmistificar os modelos
normativos que muitas vezes paralisam os pesquisadores iniciantes; b)
reforçar a idéia de entrevista como parte de um conjunto de questões e que,
como tal, não pode ser pensada isoladmnente dos fundamentos da pesquisa;
c) reafirmar o compromisso da pesquisa social com a ética na produção do
conhecimento e com os sujeitos da investigação.
Resta ainda dizer que, ao organizar este capítulo, retomei vários autores
e, como sempre ocorre, foi preciso fazer escolhas, efetuar um recorte e dar o
corte para poder concluir o trabalho. Ao fazê-lo, certmnente deixei de trazer
contribuições importantes com quais, quem sabe, revisaria parte de meus
escritos. Pesquisar é isso. E um itinerário, um caminho que trilhamos e com
o qual aprendemos muito, não por acaso, mas por não podennos deixar de
colocar em xeque ''nossas verdades" diante das descobertas reveladas, seja
pela leitura de autores consagrados, seja pelos nossos informantes, que têm
outras formas de marcar suas presenças no mundo. Eles também nos ensinam
a olhar o outro, o diferente, com outras lentes e perspectivas. Por isso, não
saímos
310 DE PESQUISA
ITINERÁRIOS

de uma pesquisa do mesmojeito que entramos porque, como


pesquisadores, somos tambélü atores sociais desse processo de
elaboração. A citação com a qual encerro o presente capítulo
complementa a mesrna idéia:
A pesquisa de campo consiste enl defrontar-se coni os fatos, discutir conl os
informantes, compreender melhor os indivíduos e os processos sociais. Seni
esta sede de descobrir, sem esta vontade de saber, de tudo esmiuçar, o traba ho
e canipo torna-se uma fonnalidade, mero exercício acadêmico, sem interesse
(BEAUD e WEBER, 1998. p. 16).

Referências bibliográficas
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