Академический Документы
Профессиональный Документы
Культура Документы
O QUE É A ARQUITECTURA?
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
(Licenciada)
Júri:
Presidente: Doutor Michel Toussaint Alves Pereira
Vogal: Doutor José Duarte Centeno Gorjão Jorge
Este espaço é dedicado àqueles que deram a sua contribuição para que esta dissertação
fosse realizada. A todos eles deixo aqui o meu agradecimento sincero.
Em primeiro lugar agradeço particularmente ao meu pai, ao David, à Fernanda, ao
Armando e à minha Família e Amigos por todo o apoio, carinho e companhia.
Em segundo lugar, agradeço ao Prof. Doutor Pedro Marques Abreu a forma como
incentivou o meu trabalho. As notas dominantes da sua orientação, a utilidade das suas
recomendações e a cordialidade com que sempre me recebeu. Estou grata por ambas e
também pela liberdade de acção que me permitiu, que foi decisiva para que este trabalho
contribuísse para o meu desenvolvimento pessoal.
Gostaria ainda de agradecer ao Departamento de Filosofia da Universidade de Lisboa e a
todos os seus docentes e funcionárias pela incrível viagem que me proporcionaram, apoio e
disponibilidade com que sempre me receberam.
Deixo também uma palavra de agradecimento aos professores da FA/UTL pela forma
como me prepararam e despertaram para o mundo da Arquitectura. São também dignos de
uma nota de apreço todos os colegas que partilharam comigo as longas horas de trabalho,
mas também as de descontracção e alegria.
Finalmente, gostaria de deixar um agradecimento muito especial aos meus pais de
Lisboa e ao Dr. Tomás.
O QUE É A ARQUITECTURA? i
Gilles Deleuze e a Ontologia da Arquitectura
ÍNDICE
I. O USO DOS CONCEITOS DE DELEUZE POR PARTE DOS ARQUITECTOS ............................ xvi
DESENVOLVIMENTO
BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................................. 73
IMAGENS
REBSTOCKPARK: PETER EISENMAN ........................................................................................ 51
JEWISH MUSEUM BERLIN: DANIEL LIBESKIND ..................................................................... 55/56
BLOBWALL: GREG LYNN.................................................................................................... 57/58
A. GENEALOGIA DA INVESTIGAÇÃO
Martin Heidegger foi um dos mais influentes pensadores do século XX e o que mais
contribuiu para a disciplina da ontologia1 da arquitectura. A formulação de conceitos como o
de habitar ou o de poetar, despertaram nos arquitectos uma outra consciência acerca do
seu trabalho. A preocupação do filósofo com a condição de ser-no-mundo que caracteriza o
Homem, faz nascer uma arquitectura centrada na realização da existência no espaço.
1
A Ontologia é a disciplina que estuda o Ser, é um discurso acerca do Ser, isto é, debruça-se sobre a
natureza da existência, da realidade em geral, assim como das categorias do Ser e como estas se
relacionam entre si. A pergunta fundamental da Ontologia é: ‘que entidades existem?’, ou seja, como
podemos afirmar que existem entidades. Apesar da palavra ontologia só aparecer no século XVII, o
princípio que a define pode ser encontrado na obra de Aristóteles, a saber: “ (…) ciência que estuda o
ser enquanto ser (…)”(Metafísica, Γ, 1). Todavia, a filosofia contemporânea, especialmente depois de
Heidegger, considera a ontologia como compreensão do sentido do ser, na resposta à pergunta
porque existe o Ser e não o Nada?,em vez de a ver como uma «ciência». Ver
Stanford Encyclopedia of Philosophy. http://plato.stanford.edu/
O QUE É A ARQUITECTURA? vi
Gilles Deleuze e a Ontologia da Arquitectura
Ainda que tendo a filosofia de Gilles Deleuze como horizonte de investigação, a questão
fundamental da nossa dissertação é a pergunta: o que é a Arquitectura?
É com Heidegger que começa a extensão da ontologia e da hermenêutica à
Arquitectura. O texto Construir, Habitar, Pensar vem introduzir a noção do limite como o
lugar onde algo começa e não como espaço finalizado3. Aqui está implícita a crítica à
concepção espacial adoptada pela Modernidade e presente nas obras dos arquitectos que
se lançaram numa crítica ao Modernismo. A novidade do pensamento heideggariano está
na formulação de uma ontologia do habitar compatível com a sua concepção ontológica.
Heidegger devolve a dimensão existencial ao pensamento acerca da Arquitectura.
Depois de Heidegger, Emmanuel Levinas, seu discípulo, vem retomar o tema da casa e
do habitar na perspectiva da interioridade. O estar em casa é o estar consigo, é a criação do
lugar como espaço ontológico. O habitar é o processo pelo qual o eu se relaciona consigo e
com o outro. É exactamente a partir deste pensamento que o autor introduz a dimensão
ética na esfera da Ontologia. O ethos4 como costume ou hábito que levará ao pensamento
2
A morada é a condição primordial para representação da Natureza. O habitar não é aqui o modo
próprio de ser do Homem mas sim do próprio Ser. O estar em casa é o estar consigo mesmo, não
num espaço mas sim num lugar.
3
O limite é aquilo que vai permitir a construção do lugar, ou seja, é a partir da imposição de um limite
que podemos afirmar que aquele naquele traçado vai haver um território organizado e diferenciado
daquilo que é o caos do mundo natural. O limite inaugura a construção do mundo humanizado.
4
No livro II da Ética a Nicómaco, Aristóteles evidencia alguma hesitação relativamente à etimologia
do termo ‘êthike’. Em 1103a remete a questão da origem do termo para uma dupla raiz: ‘êthos’ ou
‘ethos’ (a diferença está no alongamento da vogal inicial). Ainda hoje os filólogos debatem esta
questão uma vez que na poesia arcaica os termos parecem intersubstituir-se sem grande critério. Em
Homero, por exemplo, o termo ‘êthos’ está definitivamente associado à ideia de ‘lugar’, ‘refúgio’ dos
animais, ‘local’ onde habitualmente os animais domésticos pernoitam; enquanto em Hesíodo o termo
‘ethos’ emerge associado mais à ideia de ‘costume’, de ‘hábito’ moral e cultural e, num terceiro
sentido, até de ‘disposição de carácter’. Em suma: não se sabe com rigor qual dos termos é mais
arcaico – mas actualmente a comunidade científica inclina-se para considerar o uso de ‘êthos’ em
O QUE É A ARQUITECTURA? vii
Gilles Deleuze e a Ontologia da Arquitectura
Homero mais arcaico. Note-se que ‘êthike’ vai ser mais tarde traduzido para latim por mos, mores – o
que denota uma perda completa do sua polissemia original. Vide: I. No sentido de ‘lugar’: Opp.H.1.93;
Hes.Op.167, 525, Hdt.1.15, 157, E.Hel.274, Pl.Lg.865e, Arist.Mu.398b33, Hdt. 2.142; Pl.Phdr.277a. II.
No sentido de ‘hábito’ ou ‘costume’: Hes.Op.137, Th.66, Hdt.2.30,35, 4.106, Th.2.61, Pl. Lg.896c. III.
No sentido de carácter: Hes.Op. 67,78, Arist.EN1139a1, Pl.Lg.792e, Arist.EE1220a39.
5
Em grego antigo a lógica que dilucidamos aqui é bem explícita. O alpha privativo do termo ‘a-peiron’
destaca a ideia de que para a consciência grega clássica e até arcaica aquilo que é sem limite não é,
simultaneamente, ordenado. E ao invés, aquilo que tem ‘peiros’, limite, é aquilo que já se encontra
cosmicizado, ordenado e inscrito no registo da harmonia total que perfaz o cosmos. Estruturalmente
esta articulação é bem visível no dito de Anaximandro que vai ser glosado na história, mais tarde, até
por M. Heidegger no seu Holzwege; diz o fragmento DK12 numa das suas formulações: ‘[…] disse
que o princípio e o elemento das coisas que existem era o apeiron, [indefinido, infinito ou informe]
tendo sido ele o primeiro a introduzir este nome do princípio material.’ Cf. Kirk; Raven; Schofield, Os
Filósofos Pré-Socráticos, trad. De Carlos A. L. Fonseca, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa,
1994, p. 106.
O QUE É A ARQUITECTURA? viii
Gilles Deleuze e a Ontologia da Arquitectura
constatamos a existência de algo a que chamamos Arquitectura, mas afinal como pode uma
ponte, um aqueduto, um palácio ser arquitectura se todos eles têm características
diferentes? Que coisa é essa que está presente em todos os objectos arquitectónicos que
os faz pertencer ao domínio da Arquitectura?
No fundo perguntamo-nos como podemos falar em arquitectura sem antes a definirmos?
Esta é uma questão que, muito embora tenha uma raiz filosófica, é também um problema de
Arquitectura. A História da Arquitectura constrói-se pela disposição cronológica dos estilos,
que se sucedem, renovam e reinventam, sem sair do patamar da estética. Por sua vez,
também a crítica adopta um discurso maioritariamente dedicado ao problema da forma da
Arquitectura, como se esta fosse um sucedâneo da escultura.
Se aquilo que uma coisa é, é imutável no seu fundamento, então é seguro dizer que a
Arquitectura não está presa à representação formal, no sentido em que não se resume a
uma expressão plástica do gosto de uma época.
Deste modo, só poderemos afirmar que estamos perante uma obra de arquitectura se já
tivermos definido o conceito de arquitectura.
Esta é uma questão que necessariamente, como acabámos de propor, antecede o
trabalho do projecto de arquitectura, mas cuja resposta podemos encontrar no processo que
o caracteriza. Isto é, também no projecto o arquitecto está à procura de respostas, apesar
da pergunta não ser o que é a Arquitectura, mas sim como pode algo ser Arquitectura
naquele lugar. Esta última, como prática enraizada no contexto de um lugar, de um sítio
único nas suas características, é simultaneamente objecto da especulação teórica e da
prática construtiva.
Uma vez que a pergunta pelo ser da Arquitectura é simultaneamente uma questão da
Filosofia e da Arquitectura, uma abordagem histórica ou exclusivamente dentro de uma
destas áreas não responde a esta pergunta pelo fundamento. Nenhuma delas tem as
ferramentas, individualmente consideradas, que permitam encontrar uma resposta. Assim
temos que recuar à natureza da pergunta de forma a encontrarmos o caminho para a sua
resposta. Desta forma, é no cruzamento entre estas duas disciplinas que vamos encontrar a
Ontologia da Arquitectura como a única capaz de fornecer o fundamento, isto é, uma
reposta a esta pergunta inaugural. No contexto da interdisciplinaridade que hoje caracteriza
todas as áreas do saber, encontramos na cooperação entre a disciplina filosófica da
Ontologia, que se ocupa do fundamento das entidades, e a da Arquitectura o domínio no
qual vamos poder prosseguir a nossa investigação.
O QUE É A ARQUITECTURA? ix
Gilles Deleuze e a Ontologia da Arquitectura
De um modo geral é consensual que não podemos produzir um objecto sem saber
aquilo que ele é. Isto quer dizer que não podemos fazer uma coisa sem saber «aquilo para
que serve», ou seja, o que fundamenta a sua existência. Eu não posso construir uma
cadeira se não souber o que é uma cadeira, para que serve ou porque preciso de uma.
Como podemos então afirmar a produção de Arquitectura se não sabemos o que ela é?
Respostas como casa ou abrigo não são satisfatórias, uma vez que nos reconduzem à
O QUE É A ARQUITECTURA? x
Gilles Deleuze e a Ontologia da Arquitectura
pergunta o que é uma casa ou um abrigo. Esta circularidade argumentativa não responde à
pergunta: o que é a Arquitectura, apenas desvia a questão para o campo da semântica e da
sinonímia. Assim parece-nos que é necessário olhar para o antes da produção
arquitectónica, para a sua génese.
O silêncio da Arquitectura face ao seu próprio fundamento vai levar a que os teóricos
procurem fora dela a resposta. Contudo, isto não pode ser sinónimo do abandono desta
disciplina. Se esquecemos a Arquitectura como núcleo da pergunta, então como iremos
encontrar o seu fundamento? Não estamos à procura de uma técnica, uma receita ou plano
mestre que forneça os cânones estéticos que irão permitir conceber a «verdadeira»
arquitectura. Ainda que de seguida surja a questão: como fazer Arquitectura, uma vez
encontrado o seu fundamento, a nossa pergunta é anterior a esta preocupação.
Partindo do princípio que a disciplina que trata do fundamento das entidades é a
Ontologia, faz todo o sentido juntar estas duas disciplinas, uma vez que nenhuma delas
pode por si responder à pergunta pelo ser da Arquitectura. Isto porque, se a Arquitectura
nada conhece sobre o domínio da Ontologia, por sua vez, esta última não tem conhecimento
algum acerca da primeira. É na sua intersecção que nasce a Ontologia da Arquitectura
como aquela capaz de, na junção dos dois saberes, encontrar uma resposta que possa
preceder o projecto de arquitectura.
B. PORQUÊ DELEUZE?
6
LYOTARD, Jean-François. “Il était la bibliothèque de Babel” in Libération,7, Novembro.1995.p.37.
O QUE É A ARQUITECTURA? xii
Gilles Deleuze e a Ontologia da Arquitectura
7
Ver p.47.
O QUE É A ARQUITECTURA? xiii
Gilles Deleuze e a Ontologia da Arquitectura
C. ESTADO DO CONHECIMENTO
8
Publicada em inglês com o título Earth Moves – The Furnishing of Territories, esta obra é dedicada a
Deleuze e publicada devido às referências que este faz a Cache na sua obra teórica.
O QUE É A ARQUITECTURA? xiv
Gilles Deleuze e a Ontologia da Arquitectura
Procuramos perceber como surge a pergunta pelo ser da Arquitectura e onde vem esta
necessidade de uma definição da disciplina que se encontra em estrita convivência com o
Homem há milénios. Reconhecendo Martin Heidegger como um dos principais nomes
dentro da disciplina da Ontologia da Arquitectura, percebemos que esta não se esgota neste
autor. Figura incontornável do pensamento do século XX, Heidegger marca o ponto
inaugural da pergunta pelo ser da Arquitectura ao estabelecer o conceito de habitar como
raiz ontológica da Arquitectura.
Muito sumaria e sinteticamente podemos dizer que o século XX começa manchado com
a crise da Revolução Industrial e a esperança lançada pelas Utopias sociais, nas quais a
Arquitectura tem um papel determinante. As duas Guerras Mundiais vão marcar a primeira
metade deste século que se lança a uma velocidade vertiginosa no domínio das novas
tecnologias e ciências. A Arquitectura vai ser o motor da reconstrução social e cultural de
uma Europa devastada e à beira da falência económica. A massificação da construção, para
fazer face às necessidades de alojamento, não deixa espaço para pensar ou perguntar se
aquela é a tarefa da Arquitectura ou da Engenharia. É com o colapso do Movimento
Moderno que surge a inquietação e a urgência da resposta à pergunta: o que é a
Arquitectura?
9
Referência a Martin Heidegger.
O QUE É A ARQUITECTURA? xv
Gilles Deleuze e a Ontologia da Arquitectura
1. ONTOLOGIA DA ARTE
10
KARATANI, Kojin. Architecture as Metaphor: language, number, money. 1997.
O QUE É A ARQUITECTURA? xvi
Gilles Deleuze e a Ontologia da Arquitectura
como ponto de comparação. Deste modo, as abordagens que procuram uma Ontologia da
Arquitectura, entram dentro do domínio da Arte, onde o filósofo inclui indiscriminadamente a
Pintura, a Escultura, a Literatura, o Cinema ou a Arquitectura, e dada a escassez de
referências acabam por se perder na construção de uma Ontologia da Arte.
Note-se porém que esta é uma construção teórica independente do trabalho de
Deleuze. Isto é, a constituição de uma Ontologia da Arte ou da Arquitectura só pode ser feita
como comentário crítico à posição original do autor.
H. DESMISTIFICAR DELEUZE
Não sendo a nossa ambição a de corrigir toda uma corrente que vê em Deleuze um
metafísico da arquitectura, procuramos ainda assim desmistificar o pensamento deste autor,
de forma a abrir caminho a uma nova forma de o incluir na disciplina da Arquitectura.
Na senda do rigor e da acuidade intelectual, parece-nos fundamental repor o papel de
Deleuze como um influente pensador no domínio das questões de projecto em arquitectura,
e não como um teórico da mesma. Há que redefinir a relação entre a arquitectura e filosofia,
de modo a que as duas áreas se complementem e não criem falsos pressupostos entre si.
Deleuze elabora toda uma série de considerações no campo da Arquitectura, que encara
enquanto modelo explicativo da sua Ontologia, que uma vez integradas na disciplina da
Ontologia da Arquitectura constituem um acrescento à procura do fundamento da
Arquitectura. De facto, o pensamento deste filósofo acrescenta-se ao discurso de Heidegger
e Levinas sob a forma de um importante contributo para pensar a fundamentação da
Arquitectura enquanto tal. Este filósofo abre re-inaugura a noção da Arquitectura como gesto
inaugural no território. Muito embora os arquitectos que reclamam a sua herança tenha esta
noção como pano de fundo à sua visão daquilo que deve ser a disciplina da arquitectura,
acabam por se perder ou desvincular do campo ontológico e centrar-se na procura de uma
gramática formal com base no discurso deleuziano.
O objectivo desta dissertação é a de mostrar que muito embora Gilles Deleuze não tenha
construído uma ontologia da arquitectura, lança toda uma série de caminhos que virão a ser
encarados como uma base para a construção desta disciplina. O facto de alguns arquitectos
reclamarem a filosofia de Deleuze como fundamento das suas opções de projecto justifica o
O QUE É A ARQUITECTURA? xviii
Gilles Deleuze e a Ontologia da Arquitectura
1. ESTRUTURA DA ARGUMENTAÇÃO
sublinhar, não enverede por esse caminho, as noções que cunha, especialmente em
parceria com o pensamento de Bernard Cache e na parceria com Félix Guattari, serão
fundamentais para entender a Arquitectura como a disciplina que dentro do fazer e do saber
humano recupera a raiz animal do Homem e se afirma como aquele primeiro movimento de
demarcação de uma território. É ela a responsável pela construção do habitat entendido
como espaço organizado e distinto da natureza caótica do mundo antes da sua
diferenciação. A Arquitectura impõe os limites daquilo que é o espaço sexuado, entendido
como base da sociedade e das relações, e daquilo que é o mundo sem ordem da natureza.
O QUE É A ARQUITECTURA? 1
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
11
Herberto Helder
I. ESTADO DO CONHECIMENTO
O ponto de partida para a nossa investigação, bem como o método a seguir na mesma
encontramo-lo na Tese de Doutoramento do Professor Doutor Pedro Marques de Abreu,
Palácios da Memória II: a revelação da arquitectura. No entanto há hoje diversas antologias
de textos, onde uma multiplicidade de autores se debate com a questão da essência da
arquitectura. É da urgência da resposta que surge uma vasta lista de bibliografia que aponta
os diversos caminhos possíveis de seguir para chegar a uma resposta consubstanciada e
coerente.
Autores como Neil Leach, Michael K. Hays e Kate Nesbit dotam-nos de uma perspectiva
ampla sobre em que ponto se situa actualmente a Teoria da Arquitectura na resposta à
pergunta “O que é a Arquitectura?”. Todos eles referem que só recentemente encontramos
entre os arquitectos e os teóricos a inquietação face ao papel e ao porquê da arquitectura.
Muito embora a forma da arquitectura nos possa suscitar diversas sensações e juízos
estéticos, Andrew Ballanthyne reafirma a intuição heideggeriana de que:
«Dwellings are caught up with our lives, and shelter our most intimate moments,
whereas monuments endure and show us the kind of things great civilizations can do at
their most inspired. »12
11
Herberto Hélder, in A Colher na Boca, 1961.
12
BALLANTHYNE, Andrew; What is Architecture?, p. 3.
O QUE É A ARQUITECTURA? 2
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
13
« Only if we are capable of dwelling, only then can we build. »
«That architecture is something more than a play of forms, should be evident from the
15
experiences of our daily life, where architecture ‘participates’ in most activities. »
Inaugura-se uma reflexão que contrasta com a prática comum da primazia dada aos
problemas formais. Em vez de se perguntar pelos princípios e intenção, apostava-se
exclusivamente no estudo do trabalho produzido em arquitectura.
Dentro desta nova lógica Robert Venturi, Denise Scott Brown16 e Edward Casey17,
introduzem um novo conceito no seio do debate ontológico. Parte-se da constatação que
todos nós estamos rodeados de lugares. O Homem é finalmente entendido no seu contexto.
Isto é, como ser-no-mundo. Mundo esse que não é, nem pode ser, entendido fora da
relação com o sujeito. O espaço é espaço para alguém. Não há aqui conjecturas sobre um
espaço abstracto e ideal. É neste virar da arquitectura para o sujeito da experiência
arquitectónica, na qual se insere aquele que a produz, o arquitecto, que se inclui a nossa
dissertação. Com as fundações nesta tradição que procura um sentido, o nosso caminho
não poderia fugir do sentimento de angústia e da dilaceração do sujeito enclausurado numa
selva de pedra e não num lugar. O ponto de chegada desde percurso será sempre na
direcção de uma recondução da consciência a si mesma, mostrando finalmente a
arquitectura tal como ela é na sua plenitude.
13
HEIDEGGER, Martin; Building Dwelling Thinking, David Farrel Krell (editor); 2002, p.361.
14
LEACH, Neil (Editor). Rethinking Architecture: A Reader in Cultural Theory.1997.
15
NORBERG-SCHULZ, Christian; Intentions in Architecture, p.85.
16
NESBITT, Kate (Editor). Theorizing a New Agenda for Architecture: Anthology of Architectural
Theory, 1965-95.1996.
17
CASEY, Edward. The Fate of Place: A Philosophical History. 1998.
O QUE É A ARQUITECTURA? 3
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
18
HEIDEGGER. Poetry, Language, Thought. Traduzido por A. Hofstadter. 1971.
19
SHARR, Adam. Heidegger for architects. 2007.
20
LEVINAS, Emmanuel, Totalidade e Infinito, Edições 70 , 2008.
21
COLEBROOK, Claire. Deleuze: a guide for the perplexed.2006.
O QUE É A ARQUITECTURA? 4
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
faz da sua obra, e a ontologia de Deleuze. Muito embora não ofereça uma ligação
fundamentada entre as duas, dá um passo importante no sentido de nos mostrar como o
arquitecto se apropria da linguagem deleuziana e a utiliza no contexto da criatividade dentro
do método de projecto.
Andrew Benjamin, no texto Time, Question and the Fold, em particular, entre no esforço
que tanto a Arquitectura como a Filosofia despendem no processo de conservação o ponto
de ligação entre ambas. Isto é, para este autor, a arquitectura para ser arquitectura tem que
se materializar, não na forma da teoria e da linguagem escrita, filosófica ou não, mas sim na
forma. A arquitectura não se pode deixar restringir a metáforas e imagens, é necessário que
seja casa e abrigo. Esta função ou o ser casa e abrigo, está sempre dependente e surge
contextualizada no espaço de uma rede de valores e relações de poder. A relação com esta
rede aparece sob a forma de uma ligação, articulada pela forma. Ou seja, estamos perante
as complexas interligações que trabalham na tarefa da conservação da arquitectura como
tal, do seu princípio, enquanto representam a forma da sua presença. Processo este que se
encontra também na filosofia. Quando consideramos a arquitectura e a filosofia
individualmente conseguimos ver o que as une, um elo que se traduz num modo de pensar
similar, uma posição crítica que embora assente no trabalho, produto final, está sempre
ligada e fundada na identidade em questão.
Estes dois autores, especialmente na sua constante referência ao comentário de John
Rajchman à obra de Eisenman, expandem o horizonte da pergunta pelo fundamento da
Arquitectura à obra do arquitecto Peter Eisenman. Este é um primeiro passo para a análise
da influência da filosofia de Deleuze nas obras de alguns arquitectos, como Greg Lynn ou
Daniel Liebeskind, discípulos de Eisenman. Contudo, J. Williams e A. Benjamin centram a
sua análise no conceito de dobra e no projecto desenvolvido no Rebstockpark.
Matthew Krissel23 publica em 2004 um artigo, Gilles Deleuze the architecture of space
and the fold, onde pergunta o que significa um espaço arquitectónico assente no conceito
deleuziano? Krissel inaugura assim uma breve discussão acerca da importância do conceito
de dobra na produção do espaço arquitectónico. A par das referências aos arquitectos Greg
Lynn e Daniel Liebeskind e das novas tecnologias de projecto, conclui que o edifício não é
só um espaço num lugar, mas sim uma diversidade de espaços dobrados em diversos
lugares. Mais uma vez não há aqui uma resposta clara à pergunta pelo fundamento da
22
RAJCHMAN, John. The Deleuze Connections.2000.
23
KRISSEL, Matthew. “GILLES DELEUZE the architecture of space and the fold.”
http://www.krisselstudio.com/ (acedido em 13 de Abril de 2010).
O QUE É A ARQUITECTURA? 5
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
Arquitectura no contexto da filosofia deleuziana, mas sim uma análise da influência deste
autor no decurso da elaboração do projecto de arquitectura.
É da obra Os Problemas Da Estética, de Luigi Pareyson24, que surge esta noção da
poética como o conjunto de pressupostos que antecede a obra de arte. A poética, ainda que
sugerida pelo filósofo, com base na estética, traduz, em termos normativos e operativos, um
determinado gosto, que por sua vez encarna a espiritualidade de uma determinada época
ou pessoa e que é projectado no campo da arte. É ela que regula a produção artística, sem
no entanto a criticar. Este entendimento vai-nos permitir classificar aquilo a que
chamaremos a poética de Deleuze no projecto de arquitectura.
Elizabeth Grosz25 é uma das últimas vozes a analisar a obra de Deleuze no contexto da
arquitectura. Como Eisenman afirma, esta é uma filósofa que fala dentro da filosofia acerca
da arquitectura. Isto vai permitir que estabeleça um diálogo com os arquitectos de forma a
perceber como estas duas áreas do saber se relacionam.26 Em Architecture from the
Outside - Essays on Virtual and Real Space, Grosz vai encarar a Arquitectura como
metafísica da presença e preocupar-se principalmente com a dimensão temporal e com as
utopias. Pois é o tempo ou duração que liga o futuro e o passado. Neste contexto, a utopia é
uma projecção do passado e do presente como futuro virtual, pelo que cita Camberra e
Brasília, ambas cidades funcionais mas inabitáveis.
Para esta autora Deleuze pode ajudar-nos a perceber melhor o edifício como não
estático, isto é, como uma interligação de espaços que se movem e mudam. O contributo
deste filósofo centrar-se-ia nessa ideia da mobilidade do edifício dentro do edifício, na noção
de que a estrutura construída não é estática, pois muda conforme o modo como é habitada.
Há que alertar, por isso, os arquitectos para os futuros usos e integrar no projecto a ideia de
que o espaço está aberto ao uso. O espaço arquitectónico é a contínua possibilidade dos
diferentes modos de ocupação.
Contudo é na obra Chaos, territory, art: Deleuze and the framing of the earth27, que
Elizabeth Grosz faz uma análise da ontologia de Gilles Deleuze no campo da Arte. A
novidade da análise desta autora dá-se no confronto real entre as afirmações de Deleuze
com o estudo levado a cabo pelo arquitecto Bernard Cache, aluno de Deleuze, acerca do
24
PAREYSON, Luigi. Os Problemas da Estética. Martins Fontes, São Paulo, 2001.
25
GROSZ, Elizabeth; Architecture from the Outside - Essays on Virtual and Real Space. 2001.
26
«Architectural models have always provoked philosophy. There are some interesting and
sometimes even profound metaphors within architecture that philosophy might be fascinated with (for
example, notions of “dwelling” or “habitation” that so captivated Heidegger; the idea of “foundation”
that fascinated Descartes and Kant; or “becoming” and “itinerancy” that beguiled Deleuze) but which
philosophy really hasn’t been able to come to grips with.» GROSZ, Elizabeth; Architecture from the
Outside - Essays on Virtual and Real Space. 2001.p.6.
27
GROSZ, Elizabeth; Chaos, territory, art: Deleuze and the framing of the earth. 2008.
O QUE É A ARQUITECTURA? 6
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
28
CACHE, Bernard. Earth Moves: The Furnishing of Territories.1995.
29
« (…) in no case does the identity of a site preexist, for it is always the outcome of a construction. »
CACHE, Bernard. Earth Moves: The Furnishing of Territories.1995.p.15.
30
«This small book is directed to questions about the ontology, that is, the material and conceptual
structures, of art. (... )I want to discuss the "origins" of architecture, music, painting—indeed, the arts in
general—but not the historical, evolutionary, or material origins of art, conformable by some kind of
material evidence or empirical research such as would interest an archaeologist, anthropologist, or
historian. Rather, I aim to explore the conditions of art's emergence, what makes art possible, what
concepts art entails, assumes, and elaborates. These, of course, are linked to evolutionary and
material forces, that is to say, to the historical elaboration of life, but are nevertheless metaphysically
or ontologically separable from them.» GROSZ ,Elizabeth. Chaos, territory, art: Deleuze and the
framing of the earth. 2008.p.10.
O QUE É A ARQUITECTURA? 7
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
31
Aristóteles, Ph. 209b16-17, tal como citado em CASEY, Edward. The Fate of Place: A Philosophical
History. 1998.p.52.
32
NORBERG-SCHULZ, Christian; Intentions in Architecture, p.85.
O QUE É A ARQUITECTURA? 8
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
Uma ontologia é um discurso que procura definir a realidade, isto é, o modo como das
entidades se pode dizer que existem. Esta articula as principais assumpções que definem a
realidade e pode ser classificada, de forma genérica, de acordo com o seu grau de
antropocentrismo.
Numa ontologia dita antropocêntrica é postulado que não existe nada fora da percepção
humana. Enquanto numa ontologia dita não-antropocêntrica é assumido que todos os
fenómenos existem de forma autónoma e igual independentemente da experiência humana.
De Deleuze diz-se que constrói uma ontologia não-antropocêntrica, a que chama
ontologia do real, pois rejeita toda e qualquer ideia de essência transcendental. Por
essências transcendentais entendemos que são as condições conceptuais, abstractas, que
definem os fenómenos. Exemplo mais emblemático é o das conhecidas ideias platónicas.
Esta posição inaugura uma dicotomia entre o mundo transcendental e o mundo fenoménico.
Por sua vez, Deleuze procura acabar com essa oposição entre o mundo transcendental e o
mundo fenoménico. Para ele, cada entidade tem apenas um equivalente ontológico, e isto
acaba com a ideia de um conceito transcendental que daria existência a uma série de
fenómenos que partilhassem as mesmas propriedades. Deste modo as entidades passam a
ser entendidas como o resultado da soma das suas partes. Os universais, por sua vez, só
podem ter como base as condições apresentadas pela realidade.
1. O MODELO DE HEIDEGGER
Heidegger adopta uma via intermédia entre o corpo e a mente, a sua preocupação
central é exactamente aquilo que acontece entre um e outro. No contexto do pensamento
metafísico, Heidegger vai encontrar no lugar o cenário onde o Ser se revela e a Verdade se
desvela. Muito embora seja a temporalidade, na primeira fase da sua obra, que
desempenha o papel fundamental na sua ontologia, Heidegger acaba por vir a considerar a
propensão para o habitar como o núcleo do carácter existencial do dasein33, sintetizada da
seguinte forma: « Only if we are capable of dwelling, only then can we build. »34
O mundo apresenta-se organizado de tal forma que o dasein reconhece nele as suas
próprias estruturas direccionais. Pelo que podemos afirmar que é pelo seu ser-no-mundo
que o dasein se posiciona face a tudo o que o rodeia. Só o dasein pode estar (em algum
33
O conceito de dasein em Heidegger traduz a situação em que se encontra o ser humano no
mundo.
34
HEIDEGGER, Martin; Building Dwelling Thinking; 2002, p.361.
O QUE É A ARQUITECTURA? 9
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
lado), estar esse que é sempre um estar no mundo, um mundo que não é criado por si mas
sim partilhado, público. O interesse de Heidegger não é no espaço físico. Ele preocupa-se
essencialmente com o espaço ontológico, particularmente com o seu surgimento no mundo
do dasein. O mundo não é espaço, mas o espaço existe no mundo. Este último, tem em
Heidegger um sentido de desbravar, fazer dos lugares selvagens lugares que permitam o
habitar. Nas palavras de Heidegger:
« Dasein's way of being-in consists in dwelling or residing, that is, being "alongside" (bei)
35
the world as if it were at home there. »
«That architecture is something more than a play of forms, should be evident from the
36
experiences of our daily life, where architecture ‘participates’ in most activities.»
2. O MODELO DE DELEUZE
Para Deleuze filosofia e ontologia são sinónimos, ou seja, toda a filosofia é uma
ontologia37. Ao contrário da geração do pós–estruturalismo, e tal como Levinas, também
Deleuze não fugirá à ontologia e ao pensamento metafísico. Este procura, na sua
investigação metafísica, pensar o processo e a metamorfose – devir – como o movimento do
real, ao invés de os pensar como passagem de um estado a outro, como eram até então
assumidos. Pensar o real como processo implica que se substituam as forças por
substâncias e coisas. Para Deleuze o real divide-se em dois processos intrínsecos e
interdependentes: o real e o virtual. Estes não existem separadamente um do outro. O real é
constituído pelos corpos na sua materialidade e diferença, enquanto o real virtual é
composto pelos eventos não materiais. Este último tem como natureza a actualização sem
que isto empobreça o real. Esta bifurcação não implica contudo uma sacralização da
35
CASEY, Edward. The Fate of Place: A Philosophical History.1998.p.246.
36
NORBERG-SCHULZ, Christian; Intentions in Architecture, p.85.
37
Como nos mostra Claire Colebrook ao afirmar que para este autor:« Philosophy is just this power to
create a general concept of life, giving form to the chaos of life.» que como já vimos é também a
tarefa da Ontologia. COLEBROOK, Clair. Gilles Deleuze.2002.p.13.
O QUE É A ARQUITECTURA? 10
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
«His project, though, is ultimately philosophical, for he allowed the creations of literature
and observations of science to make a repeated philosophical claim: a claim about the
very force of life in general. (…) Any truly philosophical thought, therefore, will strive to
think the whole of life: so it must encounter art and science but then go on to think the
38
world beyond art and science. »
Este pensador inaugura assim uma ontologia da multiplicidade, onde a diferença não é
tida como a diferença entre duas coisas, mas sim como a diferença de cada coisa em si. Ou
seja, não há um referente relativamente ao qual as coisas se diferenciam. Cada coisa
incorpora a diferença e a multiplicidade na sua caracterização e constituição – nos múltiplos
elementos que as constituem.
Ao contrário da tradição, Deleuze interessa-se por sistemas complexos como no caso da
diferenciação das células. Outra fonte para a formulação do pensamento de Deleuze é a
geometria, nomeadamente a que diz respeito às superfícies de Riemann39.
38
COLEBROOK, Clair. Gilles Deleuze.2002.p.13.
39
Riemann mostra que a curvatura de uma superfície bidimensional podia ser ligada à superfície em
si mesma, em vez de necessitar que o plano fosse inserido num espaço tridimensional. As
multiplicidades são virtuais e reais, a multiplicidade virtual, descrita como superfície ou plano, vai
permitir que se estabeleçam novas ligações entre os processos de produção heterogéneos de forma
a permitir o surgimento de uma nova forma.
O QUE É A ARQUITECTURA? 11
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
«For whatever comes to be must "come to be in a certain place." Compared with such
spatial necessity, time is secondary in status merely a "moving image of eternity" that is
40
devised by the Demiurge to keep track of the circular motions of the heavens. »
Esta noção vai ser ignorada até à Pós-Modernidade. É com autores como Norberg-
Schulz que vai ser recuperada a dimensão ontológica do lugar ligado à arquitectura. Para o
autor a arquitectura tem como propósito transformar o sítio em lugar, isto é de desvelar o
seu significado, pois embora o espaço seja estruturalmente mutável, o seu genius loci41 não
muda nem é perdido. Como nos diz Christian Norberg-Schulz:
« Man-made places are related to nature in three basic ways. Firstly, man wants to make
the natural structure more precise. That is, he wants to visualize his “understanding” of
nature, “expressing” the existential foothold he has gained. To achieve this, he builds
what he has seen. Where nature suggests a delimited space he builds an enclosure;
where nature appears “centralized”, he erects a Mal; where nature indicates a direction
he makes a path. Secondly, man has to symbolize his understanding of nature (including
himself). Symbolization implies that an experienced meaning is “translated” into another
medium. A natural character is for instance translated into a building whose property
42
somehow make the character manifest. »
40
CASEY, Edward; The Fate of Place: A Philosophical History; 1998.p.32.
41
Nesta expressão encontramos o lugar como categoria ontológica.
42
NESBITT, Kate (Editor); Theorizing a New Agenda for Architecture: Anthology of Architectural
Theory, 1965-95; 1996.p.421.
43
«To create "in the first place" is to create a first place. » CASEY, Edward; The Fate of Place: A
Philosophical History; 1998.p.7.
O QUE É A ARQUITECTURA? 12
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
44
CASEY, Edward. The Fate of Place: A Philosophical History. 1998.p. 152-53.
O QUE É A ARQUITECTURA? 13
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
Mas o que podemos entender por lugar? Qual a sua origem? O problema da génese
coloca-se no seio do entendimento do lugar como categoria ontológica. Do ponto de vista da
cosmologia, o conceito de lugar é especialmente difícil, na medida em que o mundo é tido
como um produto da criação. Dentro da cosmogonia, o lugar é o ponto onde se dá o
momento da criação e é essencial como proto-estrutura, uma vez que é através da noção de
lugar que é introduzida a ordem espacial no mundo. É o lugar que estabelece a ponte entre
a cosmologia e a cosmogonia.
A pergunta fundamental da cosmogonia é o onde, o lugar em que as coisas vieram a ser
a primeira vez. O que nos confronta com a possibilidade de um tempo em que as coisas não
existiam e introduz a ideia de um trazer à existência: ex nihilo. A história deste vir a ser é
narrada pela cosmogonia. A narrativa da criação enumera os lugares aos quais as coisas
pertencem. Estabelece uma ordem. O lugar é o espaço habitado e a garantia de coerência e
ligação entre as coisas e o mundo. É através do lugar que a realidade é alcançada e é por
meio da realidade que o lugar é mantido. O ser do lugar está na qualidade de ser causa, isto
é, de não ser inerte ou passivo, o lugar é causa de, e não causado por.45 Vejamos:
« The purpose of symbolization is to free the meaning from the immediate situation,
whereby it becomes a “cultural object”, which may form part of a more complex situation,
or be moved to another place. Finally, man need to gather the experienced meaning to
create for himself an imago mundi or microcosmos which concretizes his world.
45
CASEY, Edward. The Fate of Place: A Philosophical History.1998.p.3-23.
46
CASEY, Edward. The Fate of Place: A Philosophical History.1998.p.43.
47
Genius Loci.
O QUE É A ARQUITECTURA? 14
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
Já para Gregotti, o criar espaço é o primeiro acto da arquitectura, a origem, tal como o
lançar da primeira pedra é o acto inaugural da criação do lugar, do transformar um espaço
em arquitectura. O propósito da arquitectura é o de revelar a natureza através do
estabelecimento e trabalho do e no lugar onde se insere, o interesse de construir o sítio
reflecte o desejo de criar um lugar. É este contexto intelectual que ai permitir a Tadao Ando
afirmar que o seu trabalho como arquitecto é o de procurar aquilo que o lugar pede.49
É a filosofia de Martin Heidegger que melhor expressa o conceito de lugar como raiz
ontológica da arquitectura. Ao definir o habitar (dwell) como característica fundamental ao
binómio homem/lugar, Heidegger permite que cheguemos à ideia de que a identidade
humana e a liberdade estão ligadas ao pertencer a um lugar. A arquitectura como gesto
humano é a concretização do seu habitar. É esta que transforma o espaço é lugar, e aqui
não falamos da dimensão tectónica do lugar, o sítio, mas sim da ontológica. Nas palavras
de Casey:
48
NORBERG-SCHULZ, Christian; « The Phenomenon of Place » in Nesbitt, Kate (Editor); Theorizing
a New Agenda for Architecture: Anthology of Architectural Theory, 1965-95; 1996.p.421.
49
BALLANTYNE, Andrew. What is Architecture?. 2001.p.8-10.
50
CASEY, Edward. The Fate of Place: A Philosophical History.1998.p.283.
O QUE É A ARQUITECTURA? 15
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
7. A QUESTÃO DO HABITAR
51
«For dwelling or inhabiting is residing in the nearness of things: "As we preserve the thing qua thing
[sic] we inhabit nearness." On the basis of this insight, Heidegger wrote "Building Dwelling Thinking"
(1951), in which the topic of dwelling is at stake throughout. Proclaiming that "the fundamental
character" (Grundzug) of dwelling is "sparing and preserving" (Schonen), he observes that such
sparing is tetradic with respect to the differential destinies of earth, sky, gods, and mortals. At the
same time, dwelling is "always a staying with things." "Staying with" (Aufenthalt bei) (...).»CASEY,
Edward. The Fate of Place: A Philosophical History.1998.p.273.
O QUE É A ARQUITECTURA? 16
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
é possível ocuparmos os edifícios diariamente sem nunca nos sentirmos em casa dentro
deles.
É na palestra que dá em 1950, com o título «A Coisa», em que especula acerca do
habitar como aquele patamar que se instala entre as pessoas e aquilo que as rodeia. Mais
do que uma actividade este traduzia o sentimento de unidade com o mundo, sentir esse que
seria libertador. O habitar está, deste modo, directamente relacionado com a ideia de um
construir que potenciasse o cuidar. A actividade descrita pelo habitar é a de uma relação
duradoira que vai sendo construída ao longo do tempo e segundo diversas escalas.52
«(..) everything with which humanity is endowed must, in the [poetic] projection
[that “brings-into-being” or makes things newly intelligible], be drawn up from out
52
«Our lives and identities are constituted through our habits, and the special practices of dwelling are
intimately implicated in the places we inhabit. Nevertheless the places do not necessarily determine
what the special practices are, nor that be fixed. » BALLANTYNE, Andrew; «The Nest and the Pillar of
Fire» in Ballantyne, Andrew (Editor); What is Architecture?; 2001.p.32.
O QUE É A ARQUITECTURA? 17
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
of the closed ground [i.e., from the “earth” understood as the untapped
possibilities still concealed within the tradition] and set upon this ground.» 53
53
HEIDEGGER, Martin; Poetry, Language, Thought. A. Hofstadter, trans, 1971.p.75-6.
54
«A ontologia da arquitectura, enquanto obra de arte e monumento, caracteriza-se portanto por uma
repercussão subjectiva especificamente e essencialmente antropológica » ABREU, Pedro P. S. M.;
Palácios da memória II : a revelação da arquitectura. Tese de Doutoramento, 2007.p.159.
O QUE É A ARQUITECTURA? 18
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
Martin Heidegger55
55
Martin Heidegger, tal como citado em HAYS, K. Michael (Editor). Architecture theory since 1968.
1998.p.668.
56
Aqui os planos são sinónimo de desenhos de arquitectura, planeamento do edifício onde a
dimensão geométrica é enfatizada, mas também dos planos de custo e planeamento da obra nas
suas múltiplas dimensões. O discurso neste campo é sempre feito de forma pragmática e reporta-se à
construção, entendida como materialização do plano arquitectónico.
O QUE É A ARQUITECTURA? 19
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
Os afectos são o que nos acontece (repugnância, ou o contracção das narinas com o
cheiro de queijo, como exemplifica Deleuze). As afecções e as percepções na arte libertam
essas forças dos observadores espacialmente posicionados ou dos corpos que os
experimentam. São experiências ajuizadas na sua singularidade, libertadas de todos os
sistemas organizadores da representação, uma vez que a arte nos abre novas
possibilidades de afecção.
Por mais que estejam misturadas com outras funções, o facto é que as afecções
sensíveis na arte revelam algo sobre aquilo que o nosso pensamento pode fazer. Mostram-
nos que as nossas mentes não são só máquinas de informação ou comunicação, mas que
também desejam e trabalhar com a afecção.
O afecto é então o estado em que se encontra uma vida quando está imediatamente
antes da diferenciação natural que ocorre entre os seres que se formam. Ele é o estado
onde toda a forma se dilui e por isso pertence ao domínio do pré-individual, onde não há
57
« Le percept, c'est le paysage d'avant l'homme, en l'absence de l'homme. (..)C'est l'énigme
(souvent commentée) de Cézanne: “l'homme absent, mais tout entier dans le paysage”. Les
personnages ne peuvent exister, et l'auteur ne peut les créer, que parce qu'ils ne perçoivent pas, mais
sont passés dans le paysage et fon eux-mêmes partie du composé de sensations. » DELEUZE,
Gilles, e Felix GUATTARI. Qu’est-ce que la philosophie? 1991.p.159.
O QUE É A ARQUITECTURA? 20
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
uma distinção entre o animal e o vegetal, e no qual de todos os seres se diz serem
a-subjectivos. O afecto entendido como recriação do estado zero da criação, recomeço do
mundo, não é, ainda assim, visto como um regresso a um hipotético estado primitivo da
vida. 58
C. O QUE É A ARTE?
A tarefa da arte é a de produzir sinais (afectos e perceptos) que nos empurrarão para
fora dos nossos hábitos de percepção para as condições da criação. A arte não pode ser
reconhecida, só pode ser sentida. Ao considerar que o objectivo mais geral da arte é o de
produzir sensações, Deleuze conclui que os princípios genéticos da sensação são ao
mesmo tempo os princípios da composição das obras de arte, tal como de modo inverso,
são as obras de arte as mais capazes de revelar essas condições da sensibilidade. A arte
fala acerca da representação, conceitos ou juízo, esta define-se como o poder para pensar
em termos que não são tão cognitivos e intelectuais como afectivos. Como podemos ler na
obra O que é a Filosofia? :
« Les sensations, percepts et affects, sont des êtres qui valent par eux-mêmes et
excèdent tout vécu. IIs sont en l'absence de l'homme, peut-on dire, parce que l'homme,
tel qu'il est pris dans la pierre, sur la toile ou le long des mots, est lui-même un composé
de percepts et d'affects. L'oeuvre d'art est un être de sensation, et rien d'autre : elle
59
existe en soi. »
«Une histoire florale de la peinture est comme la création sans cesse reprise et continuée
des affects et des percepts de fleurs. L'art est le langage des sensations, qu'il passe par
les mots, les couleurs, les sons ou les pierres. L'art n'a pas cl' opinion. L'art défait la triple
organisation des perceptions, affections et opinions, pour y substituer un monument
composé de percepts, d' affects et de blocs de sensations qui tiennent lieu de
60
langage.»
58
« L'affect ne dépasse pas moins les affections que le percept, les perceptions. L'affect n'est pas le
passage d'un état vécu à un autre, mais le devenir non humain de l'homme. (…)ce n'est pas, dit-il,
que l'un se transforme en l'autre, mais quelque chose passe de l'un à l'autre.» DELEUZE, Gilles, e
Felix GUATTARI. Qu’est-ce que la philosophie? 1991.p.163.
59
Op.Cit. p.154.
60
DELEUZE, Gilles, e Felix GUATTARI. Qu’est-ce que la philosophie? 1991.p.166.
O QUE É A ARQUITECTURA? 21
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
Assim, podemos assumir que a arte é a matéria que se torna expressão. Expressão
essa que não coincide com a nossa experiência situada e organizada, mas que se
apresenta como poder para veicular uma experiência diferente e para além do nosso ponto
de vista situado. A arte é monumental no sentido em que vale por si mesma na produção de
sensações que já não estão assentes apenas num sujeito que percepciona ou num mundo
já constituído.
Deleuze não assume a existência de um sujeito do pensamento unificado61, isto é, que é
o mesmo que faz Filosofia, Arte ou Ciência, logo, também não aceita que todas as formas
de arte possam ser reconduzidas a um sujeito abstracto comum – cada afecto é único e
singular, irrepetível. Muito embora assuma que todas as formas de arte têm como finalidade
a experiência.
Na esteira da tradição do Romantismo, Deleuze verá a Estética como uma Filosofia da
Natureza, isto é, uma filosofia das propriedades, da auto-expressão, das formas naturais.
Assim, não pode deixar de afirmar que a Arte começa com o território, ela é em primeira
instância uma marca territorial. Ela é, por isso, o evento primeiro das formas naturais.
Ao encarar a Arte como produtora de sensações, Deleuze caminha no sentido de uma
teoria da estesia ou uma ontologia das sensações puras. Isto porque a Arte tem como
objectivo último a sensação pura, aquela que se encontra liberta do sentir humano, isto é, o
afecto puro que já não é uma afecção e o percepto puro que deixa de ser uma percepção
subjectiva. É daqui que nasce a associação da Arte com o devir62, bem como a definição
dos artistas como:
« (…)est montreur d'affects, inventeur d'affects, créateur d'affects, en rapport avec les
percepts ou les visions qu'il nous donne. Ce n'est pás seulement dans son oeuvre qu'il
les crée, il nous les donne et nous fait devenir avec eux, il nous prend dans le
63
composé.»
A Arte é expressão da vida não orgânica das coisas, de uma força da vida que só ela
consegue captar. Como escreve Deleuze:
61
Para Deleuze os conceitos abstractos como os de sujeito ou objecto não são explicativos por si,
eles carecem de uma explicação.
62
O devir é descrito como a experiência do absolutamente Outro, a alteridade, isto é, na ausência de
tudo aquilo que pode caracterizar alguém como um indivíduo singular. Ver. p. 64.
63
DELEUZE, Gilles, e Felix GUATTARI. Qu’est-ce que la philosophie? 1991.p.166.
O QUE É A ARQUITECTURA? 22
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
« Seule la vie crée de telles zones où tourbillonnent les vivants, et sew l'art peut y
atteindre et y pénétrer dans son entreprise de co·création. C'est que l'art vit lui-
même de ces zones d'indétermination, dès que le matériau passe dans la
sensation, comme dans une sculpture de Rodin. (…)II ne s'agit que de nous, ici
et maintenant; mais ce qui est animal en nous, végétal, minéral ou humain n'est
plus distinct»64
Tal como a Ciência e a Filosofia, também a Arte será encarada como uma forma de
pensamento. E é na dimensão da Arquitectura que isto se torna mais evidente, uma vez que
se relaciona com o gesto de organizar o caos que constitui o território65. Esta ideia vai fazer
nascer a noção, em O que é a Filosofia?, da Arte como espírito, como vida inôrganica das
coisas66. O espírito é a vida inorgânica do pensamento, a pura contemplação de si mesmo
sem conhecimento desse movimento.67 A arte como exercício transcendental, é
simultaneamente experiência, pensamento, e criação artística de uma vida que se entende
como imanente da sensação, ela é pré-filosófica. 68
64
DELEUZE, Gilles, e Felix GUATTARI. Qu’est-ce que la philosophie?1991.p.164-65.
65
« L'art n'est pas le chaos, mais une composition du chaos qui donne la vision ou sensation, si bien
qu'il constitue un chaosmos, comme dit Joyce, un chaos composé - non pas prévu ni préconçu. L'art
transforme la variabilité chaotique en variété chaoide (…)». Op. Cit. p.192.
66
« Tout organisme n'est pás cérébré, et route vie n'est pas organique, mais il y a partout des forces
qui constituent des micro-cerveaux, ou une vie inorganique des choses.» Op. Cit. p.200.
67
« On ne peut pas objecter que la création se dit plutôt du sensible et des arts, tant l'art fait exister
des entités spirituelles, et tant les concepts philosophiques sont aussi des “sensibilia”»Op. Cit. p.11.
68
« Si la philosophie commence avec la création des concepts, le plan d'immanence doit être
considéré comme pré-philosophique.» Op. Cit. p.43.
O QUE É A ARQUITECTURA? 23
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
69
Como nota Badiou, a posição de Deleuze não é assim tão díspar da de Heidegger. A verdadeira
razão da disparidade entre Deleuze e Heidegger, dentro da sua condenação compartilhada que a
filosofia assenta unicamente na pergunta pelo Ser, é a seguinte: para Deleuze, Heidegger não
sustenta a tese fundamental do Ser como Um até ao fim. Porque não assume as consequências da
univocidade do Ser. Heidegger evoca constantemente a máxima de Aristóteles: "o ser é dito de vários
modos," em várias categorias. É impossível para Deleuze consentir este "vário". Noutras palavras, é
num único e mesmo sentido que o Ser é dito de todas as suas formas. Ou, ainda novamente: os
atributos imanentes do Ser que exprimem o seu poder infinito de Uno "são formalmente distintos
[mas] todos eles permanecem iguais e ontologicamente um". Esta tese já supõe uma distinção crítica,
a importância da qual é normalmente subestimada quando cada um fala de Deleuze, apesar de, por
si só, explicar a relação (como não-relação) (qua nonrelation) entre o múltiplo e a unidade: a distinção
do formal e do verdadeiro. As múltiplas acepções do ser devem ser entendidas como um múltiplo que
é formal, enquanto só o Uno sozinho é verdadeiro/real, e só o real suporta a distribuição do sentido
(que é único). Ver BADIOU, Alain. Being and Event. 2005.
70
« (…) each power or potential to relate opens up its own world. I might perceive the mosquito that is
biting my arm, while the mosquito has some perception of my arm; but while my perception takes the
form of a visual image and a sensation on my skin, the mosquito's perceptual orientation is towards
the smell of acid and the surface of my arm. Beyond the world as I see it there are not only mosquito
worlds but plant worlds and molecular worlds (…) » COLEBROOK, Claire. Deleuze : a guide for the
perplexed. 2006.p.139
71
« (…) tandis que les événements sont la réalité du virtuel, formes d'une pensée-Nature qui survolent
tous les univers possibles. Ce n'est pas dire que le concept précède en droit la sensation: même un
concept de sensation doit être créé avec ses moyens propres, et une sensation existe dans son
univers possible sans que le concept existe nécessairement dans sa forme absolue.» DELEUZE,
Gilles, e Felix GUATTARI. Qu’est-ce que la philosophie?1991.p.168.
O QUE É A ARQUITECTURA? 24
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
« Les personnages ne peuvent exister, et l'auteur ne peut les créer, que parce qu'ils
ne perçoivent pas, mais sont passés dans le paysage et fon
eux-mêmes partie du composé de sensations. C'est bien Achab qui a les perceptions de
la mer, mais il ne les a que parce qu'il est passé dans un rapport avec Moby Dick qui le
fait devenirbaleine, et forme un composé de sensations qui n'a plus besoin de personne :
72
Océan. »
72
DELEUZE, Gilles, e Felix GUATTARI. Qu’est-ce que la philosophie? 1991.p.159-60.
O QUE É A ARQUITECTURA? 25
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
A vida é uma multiplicidade de poderes para diferir, de modo a que a matéria seja
expressiva não exclusivamente no seu encontro com o olhar humano (o que é
percepcionado ou percepção) mas também no seu poder autónomo, vibrante e não humano
(o percepto virtual, isto é, aquilo que está aí para ser percepcionado). É nesta linha de
pensamento que para Deleuze e Guattari toda a arte é um monumento e vale por si – o
vermelho num quadro é retirado do mundo vivido, mas a selecção retira a cor do seu
contexto e permite que seja percebida como tal. Deleuze olha para o modo como a arte
escolhe a matéria e a retira do contexto quotidiano da acção e do significado, para a levar
ao contacto com outra tendência da vida: o espírito. Em geral experienciamos a vida como
uma combinação destas duas tendências: o meu corpo material é organizado através da
minha intenção e percepção, de modo a que toda a matéria seja vivida, não por si, mas
como ela é para mim. No domínio da arte isto não acontece, a matéria é vivida como aquilo
que pode vir a ser espiritualizado.
Nesta linha argumentativa a vida é vista como tendo duas tendências. A primeira é a
matéria, que tende para o espaço e para a extensão e não existe em relação ou referência
ao seu potencial ou àquilo que pode vir a ser. A segunda é o espírito, que é aquilo que se
liga ao que ainda não foi actualizado e permite a relação de possibilidade e daquilo que
pode vir a ser. Na Arte podemos ver a matéria como ela é em si no contacto com a
expressividade ou poder de desdobrar as diferenças que não são dadas. A matéria é
expressiva em toda a Arte. Esta tem o poder abrir o virtual exactamente porque não está
presa à vida enquanto actualização, isto é, não se coordena com as nossas acções como
fazem os hábitos. Ao separar aquilo que é próprio da matéria do que é próprio do espírito, a
Arte liberta-nos da vida tal como ela é vivida no dia-a-dia, eficiente e produtiva, e abre-a
para aquilo que ela pode vir a ser.
É da libertação da sensação das relações que a produzem que chegamos à sensação
tal como ela se apresenta, como poder para diferenciar, a sensação em si. Deleuze e
Guattari rejeitam a ideia de que a arte operaria como forma de despertar a consciência por
modo a funcionar como síntese do mundo através do sujeito da experiência. Há aqui uma
clara demarcação e rejeição da ideia de que a obra de arte reconduziria o sujeito a uma
espécie de estado original ou primitivo do mundo com o qual haveríamos perdido contacto.
Porém a arte não é encarada como nostalgia ou caminho de regresso a um estado
embrionário da humanidade.
O Modernismo cultivava uma perspectiva segundo a qual o artista ou o artífice, o
arquitecto, devolveria a ordem ao mundo que se achava mergulhado no caos da ausência
de sentido. Esta recondução à origem, a uma espécie de génese da humanidade, apoia-se
O QUE É A ARQUITECTURA? 26
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
numa visão na qual a vida é encarada como significante e orientada para um fim. O
objectivo da Arte, através da sua materialidade, é extrair dos objectos e do sujeito o bloco
das sensações, o ser puro das sensações, da afecção e da percepção. Esta disciplina em
particular procura apresentar o mundo por nós percepcionado como aquilo que resulta do
que existe para ser percepcionado e sentido73.
A Arte alcança o seu potencial porque reflectimos através da percepção, e aquela pensa
do seu modo próprio, não representando aquilo que poderia ser representado por conceitos.
A arte liberta-nos da ideia de que existe um mundo que é em si mesmo percepcionado e
mediado pela percepção. Como podemos encontrar expresso na síntese de Elizabeth
Grosz:
« Art proper, in other words, emerges when sensation can detach itself and gain an
autonomy from its creator and its perceiver, when something of the chaos from which it is
74
drawn can breathe and have a life of its own. »
73
Deleuze rejeita a ideia de que há ideias ou qualidades por detrás do Ser, isto é, que há algo para
percepcionar para além do Ser. Para Deleuze o Ser é o poder de se exprimir na variação e na
diferença. Sobre a ontologia em Deleuze ver a obra Diferença e Repetição.
74
GROSZ, Elizabeth. Chaos, territory, art: Deleuze and the framing of the earth. 2008.p.7.
75
Ver nota 39 (p. 19)
O QUE É A ARQUITECTURA? 27
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
porque ela nos abre para outros mundos. O mundo é-nos dado no seu potencial de diferir:
há tantos mundos quantos aqueles que o potencial para diferir pode expressar.
G. O QUE É O CINEMA?
Deleuze não viu o Cinema apenas como outra forma de apresentar histórias e
informação. Para ele o modo próprio da forma cinemática alterou as possibilidades para
76
DELEUZE, Gilles. Cinema 1: L'Image-Mouvement. 1983. DELEUZE, Gilles. Cinema 2: Image-Temps.
1985.
O QUE É A ARQUITECTURA? 28
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
pensar e imaginar. Deleuze usa o cinema para teorizar o tempo, o movimento e a vida como
um todo.
O Cinema é possivelmente, como veremos aqui, um dos eventos mais importantes da
vida moderna. Só com este podemos pensar num modo de ver que não está ligado ao olho
humano. O cinema oferece uma percepção, isto é, uma recepção de dados que não está
localizada num sujeito. Contudo, Deleuze leva a possibilidade do cinema mais longe. Ele vai
utiliza-lo como exemplo do caminho pelo qual uma forma de arte pode transformar o
pensamento, muito embora, segundo o filósofo, a arte cinematográfica se assuma como
uma modalidade de pensamento.
Esta forma de arte não visa a representação de um mundo que já temos; ela cria novos
mundos. Não devemos criticar o modo como o Cinema constrói estereótipos, reforça
opiniões diárias ou nos leva para um falso sentido da realidade, pois, devemos vê-lo pelo
que ele pode ou poderá fazer, e não para aquilo que serve. Tal como a Filosofia e a intuição,
este não é acerca do ver as formas limitadas da vida; é sobre o reconhecimento do potencial
de transformação e devir de toda a vida.
O Cinema não é uma mera representação, ele é um evento da intuição que ultrapassa o
que é realmente dado à Ideia da imagem. Ele vê, não um mundo de coisas, não um mundo
distinto, mas o movimento das imagens do qual qualquer mundo percebido é possível. Mas
ele só consegue isto através dos conceitos de imagem-tempo e de imagem-movimento.
Deleuze não analisa o cinema do real – do mundo como é – mas sim o do virtual; aquele
que apresenta a imagem e os processos de conexão a partir dos quais qualquer mundo
pode ser percebido. Com o cinema « (…) c'est le monde qui devient sa propre image, et non
pás une image qui devient monde. »77
O Cinema produz novas possibilidades para o olho humano e para a percepção, ele cria
novas afecções. O próprio Cinema não é conceptual, ele apresenta-se como um desafio aos
nossos conceitos. É deste modo, que este permitiu à Filosofia e ao pensamento virem a ser.
Podemos então dizer, que a relação da Filosofia com qualquer Arte não é a de oferecer uma
teoria da arte ou estética, mas sim a proposta de que a Filosofia responda às novas forças
perceptivas ou afecções que a Arte permite.
77
DELEUZE, Gilles. Cinema 1 - L'Image-Mouvement. 1983.p.84.
O QUE É A ARQUITECTURA? 29
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
H. SOBRE A ARQUITECTURA
Ao afirmar que « L'art commence non pas avec la chair, mais avec la maison ; ce pourquoi
l'architecture est le premier des arts.»78, Deleuze, e em especial na sua colaboração com o
psicanalista Félix Guattari, vem afirmar que a arte tem uma origem pré-humana e que o seu
inicio se dá com a casa e a música79. O conceito de casa começa com o animal que procura
um território para construir a sua morada. Esta associação entre a delimitação de um
território e a construção de uma casa marca o início da ritualização de uma série de funções
sociais e orgânicas associadas à territorialização, como a procriação, a alimentação ou a
defesa do território. Este acto é, para os dois autores, artístico uma vez que marca a
emergência de uma série de qualidades sensoriais pela forma como trabalham os materiais,
as cores e as texturas. Como exemplo utilizam o ritual de um pássaro australiano que todas
as manhãs corta folhas, que coloca com a face mais contrastante com a terra virada para
cima, de forma a criar uma espécie de palco de onde entoa o seu chamamento. É só depois
de estabelecida a casa e delimitado o território que começa a sociabilização, como podemos
confirmar com a seguinte passagem:
« L'art commence peut-être avec l'animal, du moins avec l'animal qui taille un territoire et
fait une maison (les deux sont corrélatifs ou même se confondent parfois dans ce qu'on
appelle un habitat). Avec le système territoire-maison, beaucoup de fonctions organiques
se transfonnent, sexualité, procréation, agressivité, alimentation, mais ce n'est pas cette
transfonnation qui explique l'apparition du territoire et de la maison, ce serait plutôt
l'inverse: le territoire implique l'émergence de qualités sensibles pures, sensibilia qui
cessent d'être uniquement fonctionnelles et deviennent des traits d'expression, rendant
possible une transformation des fonctions. Sans doute cette expressivité est déjà diffuse
dans la vie, et l'on peut dire que le simple lis des champs célèbre la gloire des cieux.
Mais c'est avec le territoire et la maison qu'elle devient constructive, et dresse les
monuments rituels d'une messe animale qui cé1èbre les qualités avant d'en tirer de
nouvelles causalités et finalités. C'est cette émergence qui est déjà de l'an, non
seulement dans le traitement de matériaux extérieurs, mais dans les postures et couleurs
du corps, dans les chants et les cris qui marquent le territoire. C'est un jaillissement de
traits, de couleurs et de sons, inséparables en tant qu'ils deviennent expressifs (Concept
philosophique de territoîre). Le Scenopoïetes dentirostris, oiseau des forêts pluvieuses
d'Australie, fait tomber de l'arbre les feuilles qu'il a coupées chaque matin, les retourne
78
DELEUZE, Gilles, e Felix GUATTARI. Qu’est-ce que la philosophie?.1991.p.177.
79
« All that is needed to produce art is here: a house, some postures, colors and songs – on condition
that it all opens onto and launches itself on a mad vector as on a witch’s broom, a line of the universe
or of deterritorialisation.» DELEUZE, GUATARRI; Gilles, Felix; What is Philosophy?; 1994.p.184.
O QUE É A ARQUITECTURA? 30
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
pour que leur face interne plus pâle contraste avec la terre, se construit ainsi une scène
comme un ready·made, et chante juste au-dessus, sur une liane ou un rameau, d'un
chant complexe composé de ses propres notes et de celles d'autres oiseaux qu'il imite
dans les intervalles, tout en dégageant la racine jaune de plumes sous son bec : c'est un
artiste complet»80
80
DELEUZE, Gilles, e Felix GUATTARI. Qu’est-ce que la philosophie?1991.p.174.
81
« Tout commence par des Maisons, dont chacune doit joindre ses pans, et faire tenir des
composés, Combray, l'hôtel de Guermantes, le salon Verdurin, et les maisons se joignent elles-
mêmes suivant des interfaces, mais un Cosmos planétaire est déjà là, visible au télescope, qui les
ruine ou les transforme, et les absorbe dans un infini de l'aplat. » Op. Cit. p.179.
82
« Art is the sexualization of survival or, equally, sexuality is the rendering artistic, the exploration of
the excessiveness, of nature. » GROSZ, Elizabeth. Chaos, territory, art: Deleuze and the framing of
the earth. 2008. p.11.
83
No original cadre et plan que o inglês traduz como frame.
84
Ver nota 8 (p.157) em DELEUZE, Gilles. Le Pli. 7ª. Traduzido por Tom Conley. Paris: Editions de
Minuit, 1991.
85
No original cadrage que o inglês traduz como framing.
O QUE É A ARQUITECTURA? 31
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
«It is possible to define architecture as the manipulation of (...) the frame. Architecture,
the art of the frame, would then not only concern those specific objects that are buildings,
but would refer to any image involving any element of framing, which is to say painting as
86
well as cinema, and certainly many other things.»
« Strictly speaking, architects design frames. This can be easily verified by consulting
architectural plans, which are nothing but the interlocking of frames in every dimension:
plans, sections and elevations. Cubes, nothing but cubes.... In a text called 'Deblaiements
d'art,' Henry Van de Velde pointed to a parallelism between the historical evolution of the
shapes of the frames and that of architectural forms. Paintings would finalize, as it were,
the series of frames that make up a building. Through successive unframings, we would
pass from the canvas of the painting to the fresco on the wall, to the mosaic on the
ground, and finally to the stained glass window in the window frame. Thus the frame of a
87
painting would be residual, or better yet, a rudiment of architectural framing. »
Percebemos então que a Arquitectura é a mais primordial das artes e que o seu
trabalho é o de construir quadros e planos. A verdade é que ainda hoje, nas suas formas
mais complexas e sofisticadas, a sua tarefa resume-se sempre à construção de planos de
planos – planos que se entrelaçam, contêm ou se ligam a outros planos -, planos esses que
criam sólidos88. O plano separa, corta a envolvente ou o espaço, e constitui-se assim como
plano de composição. É este último que trará ordem ao caos, aos estados caóticos e aos
fragmentos, e que ao se constituir como grelha delimitadora formará uma estrutura onde
será possível submete-los ao tempo e ao espaço para que possam ser afectados e afectar
86
CACHE, Bernard. Earth Moves: The Furnishing of Territories. 1995.p.2.
87
CACHE, Bernard. Earth Moves: The Furnishing of Territories. 1995.p.22.
88
« (…) architecture is the creation of frames as cubes, interconnecting cubes, cubes respected or
distorted, cubes opened up, inflected or cut open. » GROSZ, Elizabeth. Chaos, territory, art: Deleuze
and the framing of the earth. 2008. p.13.
O QUE É A ARQUITECTURA? 32
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
outros corpos89. A criação do plano é o gesto que compõe, tanto no interior como no
exterior, tanto a casa como o território.
Este é o argumento que sustenta a perspectiva inaugurada por Bernard Cache e
adoptada por Deleuze, que afirma a partição como a forma mais elementar do quadro e do
plano, seja ela encarada na forma da parede ou do ecrã ou, na projecção horizontal, de
chão – sendo que esta última é análoga à primeira forma de territorialização humana.
Porém, ao afirmar que «a parede é a base da nossa co-existência»90 Cache reforça a ideia
de que é esta que se constitui como possibilidade da existência de um interior e de um
exterior, da divisão entre o que é habitável e o que não é (o caos), ou seja, da
transformação do território num espaço delimitado que pode ser encarado como abrigo ou
casa. 91Como o próprio afirma:
« The first architectural gesture is acted upon the earth: it is our grave or our foundation.
A plane against a surface of variable curvature, the first frame is an excavation. But
perhaps this is just the bedrock of western thought. Unlike our western architecture
whose first frame confronts the earth, Japanese architecture raises its screens to the
wind, the light, and the rain. Partitions and parasols rather than excavations: screens
92
emphasize the void. »
« L'art lutte effectivement avec le chaos, mais pour y faire surgir une vision qui l'illumine
un instant, une Sensation. Même les maisons... : c'est du chaos que sortent les maisons
ivres de Soutine, heurtant d'un côté et d'autre, s'entrempêchant d'y retomber; et la
maison de Monet surgit comme une fente à travers laquelle le chaos devient la vision des
93
roses. »
89
« Chaque territoire, chaque habitat joint ses plans ou ses pans, non seulement spatio-temporels,
mais qualitatifs : par exemple une posture et un chant, un chant et une couleur, des percepts et des
affects.» DELEUZE, Gilles, e Felix GUATTARI. Qu’est-ce que la philosophie?.1991.p.175.
90
«The wall is the basis of our co-existence. » CACHE, Bernard. Earth Moves: The Furnishing of
Territories. 1995.p.24.
91
« Or, ce qui définit la maison, ce sont les «pans », c'est-à-dire les morceaux de plans diversement
orientés qui donnent à la chair son armature: avant-plan et arrière-plan, pans horizontaux, venicaux,
gauche, droite, droits et obliques. rectilignes ou courbes ... , Ces pans sont des murs, mais aussi des
sols, des portes, des fenêtres, des pones-fenêtres, des miroirs, qui donnent précisément à la
sensation le pouvoir de tenir toute seule dans des cadres autonomes. Ce sont les faces du bloc de
sensation.» DELEUZE, Gilles, e Felix GUATTARI. Qu’est-ce que la philosophie?1991.p.170.
92
CACHE, Bernard. Earth Moves: The Furnishing of Territories. 1995.p.64.
93
DELEUZE, Gilles, e Felix GUATTARI. Qu’est-ce que la philosophie?1991.p.192.
O QUE É A ARQUITECTURA? 33
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
I. O CINEMA E A ARQUITECTURA
Como referimos anteriormente, Deleuze parece ter uma clara preferência pelo Cinema,
dentro do contexto das Artes, ao qual dedica uma obra em dois volumes. Sobre a
Arquitectura encontramos referências dispersas em todo o seu corpo teórico e pouco
sistematizadas. Na sua maioria surgem ora no contexto do discurso acerca do cinema ora
na discussão do conceito de plano. Contudo, Deleuze vem apontar que estas duas formas
de arte se encontram no modo similar com que trabalham o espaço, o movimento e o
tempo.
Na esteira de Bergson, nomeadamente da obra Creative Evolution, Deleuze e Guattari
seguem a ideia de que a sensação não é um mecanismo mas sim um acto de pura
contemplação. Tanto o cinema como a arquitectura vêm permitir que imaginemos um
determinado objecto artístico no contexto da temporalidade. No cinema os planos
seleccionam um determinado movimento que nos dá a percepção de um espaço, na
sucessão dos planos, que é definido pelos momentos que o atravessam. Não é um espaço
no qual as coisas se movem, mas sim uma sucessão de movimentos que dão origem a um
espaço não homogéneo. Este movimento de planos mostra-nos o movimento como poder
para produzir uma multiplicidade de relação numa multiplicidade de temporalidades. Por
exemplo, um close-up dar-nos-ia a imagem da cara que é afectada pela percepção, ao
mesmo tempo que deixa em aberto aquilo que o personagem está a sentir ou o que se
seguirá. Na arquitectura podemos encontrar esta noção de movimento na sucessão das
divisões da casa, elas estão, na generalidade, dispostas de forma a reproduzir uma série de
sensações que vão do espaço público amplo e público ao pequeno, interior e privado. O que
origina um espaço necessariamente heterogéneo em que as janelas assumiriam o papel
que o close-up desempenha no cinema.94
O que faz o cinema cinemático é esta libertação da sequência de imagens de qualquer
observador único, portanto o afectar característico do cinema traduz-se na apresentação de
94
« En faisant de l'architecture l'art premier du cadre, Bernard Cache peut énumérer un certain
nombre de formes cadrantes qui ne préjugent d'aucun contenu concret ni fonction de l'édifice: le mur
qui isole, la fenêtre qui capte ou sélectionne (en prise sur le territoire), le sol-plancher qui conjure ou
raréfie (“ raréfier le relief de la terre pour laisser libré cours aux trajectoires humaines”), le toit, qui
enveloppe la singularité du lieu (“ le toit en pente place l'édifice sur une colline… “) Emboîter ces
cadres ou joindre tous ces plans, pan de mur, pan de fenêtre, pan de sol, pan de pente, est un
système composé riche en points et contrepoints. Les cadres et leurs jonctions tiennent les composês
de sensations, font tenir les figures, se confondent avec leur faire· tenir, leur prope tenue. Là sont les
faces d'un dé de sensation. Les cadres ou les pans ne sont pas des coordonnées, ils appartiennent
aux composes de sensations dont ils constituent les faces, les interfaces. » DELEUZE, Gilles, e Felix
GUATTARI. Qu’est-ce que la philosophie?1991.p.177.
O QUE É A ARQUITECTURA? 34
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
qualquer ponto de vista ou posição. O nosso olhar diário para o mundo é sempre um ver da
nossa perspectiva interessada, personificada, inserida num corpo. Eu organizo o fluxo da
percepção 'no meu' mundo. Vejo isto como uma cadeira ou como uma mesa, e posso fazê-
lo apenas porque pressuponho um mundo (o meu mundo) no qual há mobília e todos os
esquemas de organização que esta crença me traz (um mundo do trabalho, escritórios e
assim por diante). O cinema, contudo, pode apresentar imagens ou percepções libertas
desta estrutura de organização da vida diária e ele faz isto maximizando o seu próprio poder
interno. A maximização de um poder interno é o contrário da convergência. O primeiro
reporta-se ao poder para diferir, ser diferente, enquanto o segundo exprime a repetição de
um modelo abstracto e transcendente. Regra geral a arquitectura assume o papel de
organizar o mundo e traduzir exactamente esse sistema de crenças e organização social,
porém, no domínio da ficção podemos encontrar esta arquitectura, entendida como
arquitectura cenográfica, que desafia as nossas noções comuns e nos lança para o mundo
do “impossível”.
Para Deleuze o cinema tem este poder de soltar de nós a tendência de organizar
imagens num mundo externo e compartilhado. Ele mostra-nos a imagem em si. Ou, mais
exactamente, que não há nenhuma organização nem nenhum pressuposto nós tal como não
existe uma apresentação da imagem. Se pudéssemos percepcionar sem impor o nosso
interesse ou selecção de imagens, então poderíamos ter um sentido daquilo que é a própria
imagem. Mais especificamente, Deleuze argumenta que a arte do cinema não é apenas a
sua liberdade da organização conceptual do ponto de vista interessado, mas sim as suas
imagens de tempo e movimento. O que faz o movimento parecido a uma máquina de
cinema é que a câmara pode ver ou perceber sem impor conceitos. Esta não organiza
imagens de um ponto de vista fixo, uma vez que também ela se move através dos
movimentos.
Na arquitectura não podemos reconhecer esta dimensão da imagem em si, mas
podemos fazer a analogia com o espaço. Ou seja, a arquitectura tem este poder de não
impor uma forma de ocupação, ela chama a si aquilo que é o próprio espaço. A nossa
percepção padrão do tempo é localizada e interessada, sendo que o passado é constituído
por aquelas imagens de que me lembro e me permitem viver o meu futuro. Além disso,
tendemos a pensar o tempo-movimento do nosso ponto fixo da observação e a usarmos o
tempo como diagrama das modificações ocorridas à nossa volta. O tempo,
convencionalmente, é pensado ou representado como um agora ou um tempo presente que
une vários momentos do movimento num total perceptível, motivo pelo qual tendemos a
espacializar o tempo, vendo-o como uma linha que une vários pontos de uma acção.
O QUE É A ARQUITECTURA? 35
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
O poder do cinema, para Deleuze, está na sua capacidade de nos dar imagens directas
e indirectas do próprio tempo, não de um tempo derivado do movimento. Segundo este,
adquirimos uma imagem indirecta do tempo através da imagem-movimento quando a
câmara se move ao mesmo tempo que o corpo e cria outro movimento através de outro
corpo que entretanto se move, o que faz com que não pensemos no movimento como uma
síntese de pontos dentro de uma linha única do tempo e o vejamos em toda a sua
diversidade, a partir da qual todos os pontos de vista são compostos. Na arquitectura este
poder é transmitido na forma como o espaço arquitectónico se apresenta, isto é, desligado
de uma sequência linear do movimento, ou seja, não determinando à partida um percurso
fixo e permitindo ao utilizador criar a sua própria sequência. Ao deixar em aberto o passo e o
caminho a seguir, a arquitectura mostra-nos, tal como o cinema, as infinitas possibilidades
da experiência do espaço, do tempo e do movimento.
O QUE É A ARQUITECTURA? 36
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
95
CACHE, Bernard. Earth Moves: The Furnishing of Territories.1995.p.21.
O QUE É A ARQUITECTURA? 37
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
isto é, que têm acesso ao plano imanente97. Porém é de notar que a arte nunca é vista como
sendo equivalente à filosofia, a primeira é sim um passo em direcção à segunda. É na arte
que se vêem revelados os problemas com os quais a filosofia se depara, já que é esta que
ausculta o mundo e a realidade. Este poder que é conferido à obra de arte coloca uma
responsabilidade nos artistas que o movimento moderno lhes havia retirado. Se Heidegger
surge como sendo o reabilitador da arte como aquela que traz a verdade ao mundo,
lembrando que o trabalho da fenomenologia assenta nessa emergência ligada à poesia,
Deleuze vai mais além na definição daquilo que é arte. Ao incorporar as novas tecnologias e
as descobertas da ciência no domínio da arte, este último expande o universo especulativo
da filosofia.
O encanto da filosofia de Gilles Deleuze encontra-se na superação da ideia de uma
ontologia transcendente, o que se traduz numa imanência que coloca o Ser no mundo, em
todas as entidades e eventos. Ao identificar o fundamento ontológico com o fenómeno vida,
entendida como criação e expressão da diferença, o filósofo recentra o enfoque da Filosofia,
da Ciência e da Arte na existência em geral. Tudo o que existe é produto da força
expressiva da vida, sem que para este entendimento seja necessário o recurso a uma
entidade abstracta postulada a priori. Numa época em que a Ciência lidera o pensamento e
a fundamentação da existência98, Deleuze torna-se pioneiro no campo da ontologia ao
colocar a Filosofia, a Ciência e Arte no mesmo patamar face ao conhecimento. Todas elas
são formas de pensamento, isto é, cada uma delas explica e mostra o mundo segundo a
sua perspectiva. Não há uma que se sobreponha à outra, o mundo não é o produto da soma
destes três saberes, mas sim aquilo que cada um deles mostra. Este é o exemplo mais
radical da interdisciplinaridade dos saberes. Contudo há que nunca esquecer que este autor
é acima de tudo um filósofo que afirma:
« L'an jouit alors d'un semblant de transcendance, qui s'exprime non pás dans une chose
à représenter, mais dans le caractère paradigmatique de la projection et dans le
96
Em Deleuze o plano ontológico não é transcendente mas sim imanente, ou seja, «The
transcendente is not the transcendental. Were it not for consciousness, the transcendental field would
be defined as a pure plane of immanence, because it eludes all transcendence of the subject and of
the object. Absolute immanence is in itself: it is not in something, to something; it does not depend on
an object or belong to a subject. » DELEUZE, Gilles. Pure Immanence - Essays on A Life. 2001.p.26.
97
« C'est de tout art qu'il faudrait dire : l'artiste est montreur d'affects, inventeur d'affects, créateur
d'affects, en rapport avec les percepts ou les visions qu'il nous donne. Ce n'est pás seulement dans
son oeuvre qu'il les crée, il nous les donne et nous fait devenir avec eux, il nous prend dans le
composé. Les tournesols de Van Gogh sont des devenirs, comme les chardons de Dürer ou les
mimosas de Bonnard. » DELEUZE, GUATARRI; Gilles, Felix; What is Philosophy?; 1994.p.166.
98
Veja-se no último livro do mais importante físico deste Einstein, Stephen Hawking, que começa
com a afirmação «(…) but Philosophy is Dead. Philosophy has not kept up with modern developments
in science, particularly physics. Scientists have become the bearers of the torch in our quest for
knowledge. » HAWKINGS; MLODINOW, Stephen; Leonard; The Grand Design. Bantam. 2010.p.5.
O QUE É A ARQUITECTURA? 38
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
99
DELEUZE, GUATARRI; Gilles, Felix; What is Philosophy?; 1994.p.183.
O QUE É A ARQUITECTURA? 39
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
C. RAIZ DO EQUÍVOCO
100
O conceito de metafísica da presença será longamente explorado por Derrida. Sumariamente
podemos dizer que este se refere à metafísica de raiz Ocidental que privilegia a presença. Seguindo
o pensamento de Heidegger que alerta para a constante apologia daquilo que é, o que aparece, e
descuido no inquirir sobre as condições de possibilidade desse mesmo aparecer, Derrida
argumentará que a fenomenologia, com raiz em Husserl, é uma metafísica da presença.
101
“Bodies are absent in architecture, but they remain architecture’s unspoken condition.” GROSZ,
Elizabeth. Architecture from the Outside - Essays on Virtual and Real Space. 2001.p.14.
102
Ver p. 28.
O QUE É A ARQUITECTURA? 40
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
Arquitectura. Para ele, tudo aquilo que existe é expressão da força criativa e diferenciadora
da vida. Portanto, quando utiliza conceitos como o de dobra, o mais popular entre os
arquitectos, não o liga à Arquitectura como fundamento da mesma. Conceitos como o de
plano, quadro ou territorialização são formas de descrever como se concretiza, no contexto
da prática arquitectónica, o fundamento ontológico na criação do mundo. E isto não supõe
ligação alguma com a fundamentação de uma Ontologia da Arquitectura ou com a
construção de uma espécie de tratado de Arquitectura onde se enunciariam os cânones
estéticos que melhor exprimiriam a Arquitectura como tal. Esta confusão é a raiz do
equívoco que levará muitos arquitectos a reclamarem a herança deleuziana.
Deleuze não apresenta a sua teoria como uma interpretação linguística da realidade,
mas sim através da elaboração de problemas formulados na sua singularidade. É neste
contexto que virá a analisar a Arte, o Cinema e a Arquitectura como forma de mostrar ao
leitor o processo através do qual a realidade se expressa, isto é, o modo particular como se
pensa o mundo.
A Arte apresenta-se como uma forma de pensar, pelo que, no contexto do pensamento
de Deleuze, o Cinema e a Arquitectura surgem como modelos explicativos deste processo
de pensamento. A Arte aparece como uma figura análoga à Filosofia e à Ciência, já que ela
também pensa e cria «conceitos», embora de forma diferente uma vez que se move no
campo da sensibilidade. A Arte prefigura uma outra forma de acesso ao mundo, pois, tal
como a Filosofia e a Ciência, obrigam o corpo a pensar. Como afirma Deleuze:
103
DELEUZE, Gilles, e Felix GUATTARI. Qu’est-ce que la philosophie? 1991.p.188.
O QUE É A ARQUITECTURA? 41
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
Para Deleuze, a criação não é um acto de variação acrescentado a uma vida que de
outra maneira era estável e inerte; a totalidade da vida é em si criação, mas segundo as
suas tendências específicas. Entendemos o que algo é não por olhar para a sua forma
invariável mas tentando discernir o seu modo específico de ser diferente ou criar o seu
problema específico.
104
Na sua teoria, Wittgenstein refere que os conceitos, nomeadamente o de arte, assumem contornos
esfumados, isto é, não são rígidos, logo apresentam-se como passíveis de ser reformulados,
acrescentados, reestruturados, etc… Há por base a ideia de uma imensa plasticidade e rejeição da
estaticidade das definições. Ver Tractatus Logico-Philosophicus.
105
Ver p. 40.
106
Ver p. 44.
O QUE É A ARQUITECTURA? 43
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
fenómeno vida, não faz sentido procurar outro fundamento especificamente para a
arquitectura, pois esta é tão-somente uma das formas de expressão da força criativa do
fenómeno vida, daí que se ligue em primeira instância ao território e à sexualidade. Contudo,
é de notar que ainda assim Deleuze se pode afirmar como um dos pensadores que vai
contribuir para a construção de uma Ontologia da Arquitectura. Ou seja, ao colocar a
arquitectura como a primeira instância da territorialização, isto é, como marcação do
território e inauguração do espaço do mundo Deleuze acrescenta ao conceito de habitar de
Heidegger e ao de morada de Levinas a dimensão inaugural desta disciplina. A Arquitectura
já não é só aquela que permite a relação do sujeito com o mundo e com o outro, mas em
primeira instância é ela que permite a própria existência do mundo e do reconhecimento do
outro. Recuando à raiz animal do Homem, este filósofo vem recolocar a ênfase na dinâmica
orgânica inerente ao fenómeno vida, ou seja, a construção de um território que permita que
a vida aconteça – na sua primeira instancia ligada à sexualidade. A Arquitectura é aquela
que constrói a casa, o ninho, a pátria.110
No contexto da Ontologia da Arquitectura o contributo de Deleuze é, ainda hoje,
silenciado. Há toda uma hiperbolização da dimensão expressiva e criativa da sua filosofia
em detrimento do contributo que de facto trouxe à disciplina. Ainda que o próprio não tenha
sentido a necessidade de construir uma ontologia da arquitectura, como Heidegger fez, na
sua obra deixa espalhadas diversas considerações, como vimos anteriormente, que se
apresentam como caminhos possíveis para esta disciplina.
110
Victor Hugo – Notre Dame de Paris. Livro IV, Capítulo III – “Immanis pecoris custos, immanior
ipse”, tal como citado em ABREU, Pedro Paulo da Silva Marques de. Palácios da memória II : a
revelação da arquitectura. Tese de Doutoramento, FAUTL, Lisboa: texto policopiado, 2007.p.13.
O QUE É A ARQUITECTURA? 45
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
111
LEROI-GOURHAN, Andre. Gesture and Speech. MIT Press.1993. p.318.
112
GIMBUTAS, Marija. The Language of the Goddess. New York: Thames & Hudson, 2001.
O QUE É A ARQUITECTURA? 46
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
« Nous restons leibniziens, bien que ce ne soit plus les accords qui expriment
notre monde ou notre texte. Nous découvrons de nouvelles manières de plier
comme de nouvelles enveloppes, mais nous restons leibniziens parce qu'il s'agit
113
toujours de plier, déplier, replier.»
113
Esta passagem, para além de introduzir a dimensão da crítica, essencial em Deleuze, no
argumento contra uma síntese universal, chama a si a dimensão temporal, que como sabemos é
central também na arquitectura. O tempo vai fazer emergir a possibilidade da confrontação em si.
Este tempo é o tempo existencial. O binómio tempo-existência é na sua pluralidade traduzido na sua
singularidade e inter-ligação. Neste contexto, são indissociáveis. Herdeiro do pensamento de
Heraclito e presente em Leibniz, segundo a análise de Deleuze, aquilo que observamos é esta co-
presença daquilo que é temporalmente e ontologicamente diferente. DELEUZE, Gilles. Le
Pli.1988.p189.
114
BENJAMIN, Andrew. “TIME, QUESTION, FOLD.” basilisk.
http://www.basilisk.com/V/virtual_deleuze_fold_112.html.
115
Nas leituras de Deleuze acerca de Leibniz é o elo entre o Barroco e o infinito que assume um
carácter central. Afastando-se da temporalidade cartesiana, Deleuze encontra em Leibniz um parceiro
para pensar uma ontologia da co-presença da diferença (em Leibniz o fundamento encontra-se na
natureza específica da forma de co-presença do infinito e do finito).
O QUE É A ARQUITECTURA? 47
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
A dobra deve ser entendida, não como um dispositivo técnico, mas sim como uma
ontologia do devir, da multiplicidade, da diferenciação, enquanto mantém uma continuidade.
Em relação à arquitectura, isto pode ser interpretado como uma série de potenciais
expressões do movimento puro, definido como diferenciação. Uma espécie de movimento
ou alteração onde não existem pontos de referência fixos, estáticos, ou sugestão de
identidade. A sugestão assenta num pensamento arquitectónico onde as relações se
fundam na incerteza e na diferença. A espacialidade como devir, sem mensurabilidade ou
finalidade no contexto da repetição, não se restringe à imitação. O conceito de dobra pode
promover um diálogo baseado na continuidade e reversibilidade.
Isto traduz-se num novo modo de encarar a relação entre a arquitectura e o território,
independente da concepção do modernismo. Trata-se de exortar ao dobrar das linhas como
meio para criar a incerteza face aos limites, em vez de os definir. Esta incerteza é criadora
do potencial da multiplicidade da dobra, isto é, de um reler da arquitectura do devir. Um
edifício não é só um espaço num lugar, mas sim uma diversidade de espaços dobrados em
diversos lugares. A arquitectura é concebida, nesta perspectiva, como o dobrar do espaço
em vários espaços. Isto é, uma multiplicidade onde tudo é lido e relido, mas que nunca é
completamente visto e onde se observa a primazia da leitura do espaço como uma
variedade das intensidades do movimento. É a reinvenção de um conceito de espaço que se
distancia do conceito de espaço cartesiano e o inaugura como “groundless depth from which
irrupts something that creates its own space and time.”116 Ou: “It is not the line that is
between two points, but the point that is at the intersection of several lines.”117
O espaço é então concebido, desenvolvido e executado segundo a experiência da
variação, logo, em oposição ao estilo tradicional na arquitectura, isto é, a experiência da
identidade. A dobra, num contexto arquitectónico abrange um conjunto que se diferencia
continuamente.
Estamos perante um processo arquitectónico de concepção espacial onde novas e
inesperadas possibilidades (dobrar, envolver e desdobrar) acontecem sem um fim pré-
determinado; um espaço que é topologicamente flexível e onde as ligações adquirem
vitalidade com a emergência de uma série de interacções possíveis que implicam múltiplos
limites indefinidos, isto é, o espaço que já não se encontra desligado do programa e do
evento.
Mas como pode este espaço existir para além da teoria ou do mundo da animação
computacional e ocorrer na nossa realidade tangível? Poderá haver uma resposta
116
RAJCHMAN, John. Constructions, 1998. p. 12.
117
DELEUZE, Gilles. Foucault, 2000. p. 118-19.
O QUE É A ARQUITECTURA? 48
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
Deleuze mostra uma clara preferência pela estética barroca, como o mesmo afirma em
Le Pli, onde podemos ler o seguinte:
« Ce qui rendra possible la nouvelle harmonie, c'est d'abord la distinction de deux étages,
en tant qu'elle résout la tension ou répartit la scission. C'est l'étage d'en bas qui se
charge de la façade, et qui s'allonge en se trouant, qui s'incurve suivant les replis
déterminés d'une matière lourde, constituant une pièce infinie de réception ou de
réceptivité. C'est l'étage d'en haut qui se ferme, pur intérieur sans extérieur, intériorité
close en apesanteur, tapissée de plis spontanés qui ne sont plus que ceux d'une âme ou
d'un esprit. Si bien que le monde baroque, comme l'a montré Wolfflin, s'organise selon
deux vecteurs, l'enfoncement en bas, la poussée vers le haut. C'est Leibniz qui fait
coexister la tendance d'un système pesant à trouver son équilibre le plus bas possible, là
où la somme des masses ne peut plus descendre, et la tendance à s'élever, la plus haute
aspiration d'un système en apesanteur, là où les âmes sont destinées à devenir
raisonnables, comme dans un tableau du Tintoret. Que l'un soit métaphysique et
concerne les âmes, que l'autre soit physique et concerne les corps, n'empêche pas les
deux vecteurs de composer un même monde, une même maison. Et non seulement ils
se distribuent en fonction d'une ligne idéale qui s'actualise dans un étage, et se réalise
dans l'autre, mais une correspondance supérieure ne cesse de les rapporter l'un à l'autre.
Une telle architecture de la maison n'est pas une constante de l'art, de la pensée. Ce qui
est proprement baroque, c'est cette distinction et répartition de deux étages. On
connaissait la distinction de deux mondes dans une tradition platonicienne. On
connaissait le monde aux étages innombrables, suivant une descente et une montée
s'affrontant à chaque marche d'un escalier qui se perd dans l'éminence de l'Un et se
désagrège dans l'océan du multiple: l'univers en escalier de la tradition néo-
platonicienne. Mais le monde à deux étages seulement, séparés par le pli qui se
répercute des deux côtés suivant un régime différent, c'est l'apport baroque par
excellence. Il exprime, nous le verrons, la transformation du cosmos en “mundus”.» 118
Os arquitectos por sua vez, vão ignorar esta referência e adoptar apenas alguns
conceitos que se adequam quer à galeria formal que procuram construir quer ao processo
de fundamentação teórica das suas ideias.
118
DELEUZE, Gilles. Le Pli.1988.p.40-41.
O QUE É A ARQUITECTURA? 50
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
1. PETER EISENMAN
119
RAJCHMAN, John. The Deleuze Connections.2000.
120
Op.Cit.
O QUE É A ARQUITECTURA? 51
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
contextualismo, esta atitude apresenta-se exclusivamente como uma resposta, numa moda
revolucionária, aos problemas de sobrelotação do solo e poluição consequente da
democratização do uso do automóvel.
No entanto, no entender de Eisenman, nenhum destes modos de encarar a arquitectura
explica a verdadeira complexidade do fenómeno. A regeneração operada pelo pós-
modernismo, de acordo com uma representação empática da aparência exterior e
preservação dos espaços sociais mais importantes, raramente consegue captar a energia
original e coesão social, uma vez que a sua causa não é exclusivamente espacial. Há uma
falha no tratamento da relação entre o velho e o novo, pois o pós-modernismo não
consegue operar uma transformação mútua. Alguns destes arquitectos centram-se na
continuidade ou cessação absoluta em detrimento da evolução. Finalmente, estes falham na
análise da relação entre o terreno e o edificado como um processo em permanente
evolução, a cada momento. Estas críticas ajudam-nos a perceber melhor a obra de
Eisenman.
A proposta modernista soluciona as solicitações contraditórias que são exigidas aos
arquitectos operando a separação entre o terreno e o edificado, unicamente para o ver
reemergir no problema criado pelos espaços vazios existentes entre os blocos modernistas.
A proposta de Eisenman assenta em desvanecer essa linha entre o terreno e o edificado.
Ele usa a dobra transversal e ao longo de linhas para introduzir a incerteza entre os limites
do local em Rebstock, bem como entre os espaços definidos pelos edifícios. A relação entre
o novo e o antigo é tornada explicita através da nova construção onde as dobras no plano,
na fachada e a relação entre o terreno e o edificado evocam tanto as antigas relações como
as novas. Os limites, novos e antigos, do terreno são alargados no âmbito do próprio sítio.
A propósito do conceito deleuziano de dobra e o seu uso por Eisenman, Rajchman
descreve a complexidade desta relação entre o filósofo e o arquitecto:
«Rebstock is folding in three dimensions. Hence one is not just dealing with an urban
‘pattern’; rather, it is the urban ‘fabric’ on which the pattern is imprinted that is folded
along this line, thereby becoming more complex […] The periphery of the plot thus
ceases to be its defining edge, and becomes instead one dimension of an uncentred
121
folding movement…»
121
RAJCHMAN, John, “Perplications”, in Re:working Eisenman, pp. 114-23, esp. 118. (como citado
por James Williams in Pli 9, 2000).
O QUE É A ARQUITECTURA? 52
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
122
Rebstockpark, http://www.rebstockpark-ffm.de/rebstockpark_eisenman_e.htm.
O QUE É A ARQUITECTURA? 53
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
2. DANIEL LIBESKIND
Daniel Libeskind é conhecido por ter introduzido uma nova espécie de discurso crítico na
arquitectura e pela sua abordagem multidisciplinar à disciplina do projecto.
“If architecture fails, if it is pedestrian and lacks imagination and power, it tells
only one story, that of its own making: how it was built, detailed, financed. But a
great building, like great literature or poetry or music, can tell the story of the
human soul. It can make us see the world in a wholly new way, change it
forever.” 123
Para este arquitecto que só vê o seu primeiro edifício construído aos 52 anos, a
experiência daquilo a que chama de mistério da arquitectura ocupa um lugar central no seu
trabalho. Para ele a arquitectura encontra-se no domínio do espiritual, assim, sem haver um
entendimento mais profundo do Ser, Libeskind considera impossível a existência de um
significado no edifício. No seu trabalho procura mostrar a alma humana. Segundo Marc
Schoonderbeek, Libeskind mostra um profundo desejo de inaugurar uma nova época da
experiencia arquitectónica. Ele procura a libertação do espaço. Partindo do conhecimento
que o mundo encerra, na literatura, na arte, na música, na filosofia e na matemática, procura
que seja a arquitectura a mapear este saber de forma criativa, ou seja, acrescentando-lhe
123
LIBESKIND, Daniel. Breaking Ground, 2004.p. 4.
O QUE É A ARQUITECTURA? 55
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
« What is more important to me is that each of them [os edifícios] captures and
expresses the thoughts and emotions that people feel. If designed well and right, these
124
seemingly hard and inert structures have the power to illuminate, and even to heal. »
124
LIBESKIND, Daniel. Breaking Ground, 2004.p. 288.
125
LIBESKIND, Daniel, http://www.daniel-libeskind.com/
O QUE É A ARQUITECTURA? 56
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
O QUE É A ARQUITECTURA? 57
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
3. GREG LYNN
Greg Lynn distingue-se no campo da arquitectura pelo uso inovador que faz do desenho
assistido por computador na produção de formas arquitectónicas biomórficas. Hoje em dia é
um dos grandes pioneiros do crescente implemento do uso dos programas de cálculo na
geração de novas expressões arquitectónicas. Trabalhando com a mais inovadora
tecnologia, combina o uso do computador com a arte contemporânea e a estética inspirada
pela ficção científica na criação de novas formas arquitectónicas. No centro do controverso
debate acerca do papel que tanto o design como o desenho digital devem ocupar na
produção arquitectónica, Greg Lynn, conjuga sem preconceitos nos seus projectos a alta
tecnologia e o trabalho minucioso de artesão que a indústria do cinema e da engenharia
aeroespacial utiliza.
Num trabalho conjunto com a Panelite, Lynn criou a Blobwall126, um objecto que se
assume como a redefinição do elemento mais básico da arquitectura, o tijolo. A Blobwall é
um objecto modular, passível de ser produzido em diversas cores, oco e feito de plástico
ultra-leve.
126
LYNN, Greg, http://www.glform.com/blobwall.pdf
O QUE É A ARQUITECTURA? 58
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
«In the renaissance, palaces were designed to have a mixture of the opulent and the
base, the elegant and the rustic. Stones were hewn so that they had planar faces for
stacking and bonding but their outward faces expressed on their façades were left cloven
and rustic. The BlobWall is a contemporary rusticated wall. The three lobed form of the
bricks is both so they can tuck together nose to forked tails as well as so that when
127
rotated in a gradient series they become more lumpy and articulated.»
127
ARCSPACE. “arcspace.” arcspace. 9 de Junho de 2008.
http://www.arcspace.com/exhibitions/blobwall/blobwall.html
O QUE É A ARQUITECTURA? 59
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
O QUE É A ARQUITECTURA? 60
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
O atelier de Lynn (Greg Lynn FORM) é responsável, hoje em dia, pela democratização
do uso do computador como ferramenta de investigação no processo de desenho. O seu
uso possibilita ao arquitecto um processo dinâmico de projecto em que a tomada de
decisões passa pela animação, a representação em 2D e 3D, as secções móveis, cortes
tridimensionais, entre outras possibilidades que são encaradas como parte integrante do
processo de geração de formas como resposta às diversas exigências programáticas.
Greg Lynn FORM afirma ser o único atelier a incorporar a mais inovadora tecnologia,
tanto em hardware como em software, como ferramentas na investigação arquitectónica.
Esta última tem por base um quadro conceptual teórico que avança na teoria da arquitectura
na exacta proporção das suas descobertas. Este arquitecto, como principal voz no
desenvolvimento destas ideias reconhece no seu trabalho a influência de Bateson, Deleuze,
Thompson, Irigaray, entre outros.
A influência do trabalho de Deleuze na arquitectura de Greg Lynn é especialmente
visível na forma como este arquitecto integra no seu trabalho conceitos importados da
Biologia e da Matemática. Tal como o filosofo francês, também Lynn assumirá a importância
da Ciência como modelo teórico capaz de, na interacção com o desenho arquitectónico,
criar novas soluções ao nível da prática. É também nesta promoção da interdisciplinaridade
que Lynn se assemelha a Deleuze.
Greg Lynn abraça o discurso deleuziano no que diz respeito à ideia de que os conceitos
são apenas instrumentos, e por isso não são rígidos. Ao criar o seu próprio material de
trabalho, a Blobwall, acima descrita, o arquitecto abraça esta atitude.
Contudo, temos que ter em atenção, e o próprio Greg Lynn admite, muito provavelmente
pela sua formação académica, que o seu trabalho nunca sai do contexto da forma.
« In the end it's geometry (...) Visualizing geometry and thinking abstractly was
something that came easily. When I went to college I got out of architecture for a while,
and majored in philosophy. Then I realized that all the philosophy I was reading was
128
really about form »
O uso da figura da dobra, teorizada por Deleuze, está presente neste arquitecto na
forma da superfície geométrica, como opção estética e não como fundamento teórico. É o
próprio Greg Lynn que reforça a ideia de que pretende que as pessoas se relacionem com a
sua obra por intermédio da estética. No nosso entender isto traduz-se na ideia de que a
128
LYNN, Greg; PRIZ, Eva (entrevistadora). "Interview." in: Index Magazine. 2005.
O QUE É A ARQUITECTURA? 61
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
«I like strong reactions; it’s definitely a sign that my work is not familiar. I’ve only
worked with people that need something new; people that want an image that is
unprecedented. That, I like. I wouldn’t want to design a bank that had to look like a
bank.»129
1. O CONCEITO DE DIFERENÇA
2. O CONCEITO DE DOBRA
131
O virtual pode ser entendido como o potencial que cada coisa tem, muito embora este não se
tenha actualizado. Ou seja: ao remeter para o passado puro, o virtual apresenta-se como o campo
das possibilidades que nunca se chegaram a realizar. Ver DELEUZE, Gilles; Différence et
Répétition.1968.
O QUE É A ARQUITECTURA? 64
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
tecer. O piso superior da casa barroca é fechado em si mesmo, não tem janelas ou outras
aberturas. Aqui estão as ideias inatas, as dobras da alma, ou, como explica Guattari, aquilo
que é o incorpóreo da subjectividade. Entre os dois pisos há ainda uma dobra. Esta última é
igual ao estilo da obra de arte. É neste sentido que Deleuze considera que o piso superior
contém, paradoxalmente, o todo do Mundo dobrado dentro de si. Este mundo é apenas um
entre as muitas possibilidades de mundos, cada qual diferenciado pelo ser que o expressa.
O mundo de um insecto é diferente do de um ser humano, nos cheiros, percepção da luz ou
a sensação táctil na procura de um esconderijo. Aqui não falamos da representação de
mundo que o insecto tem, mas sim a expressão do mundo, da dobra do insecto132.
Deleuze vai continuar com a temática da dobra para abrir a possibilidade de uma nova
harmonia, dobra, entre os dois pisos da nossa subjectividade. Esta nova espécie de dobra
implica uma abertura do piso superior, concomitante afirmação da diferença, contacto e
comunicação. A arte, na qual se inclui a arquitectura, é encarada como a descoberta de
novas combinações e modos de dobrar o mundo no eu, isto é, de novas formas de
subjectividade.
3. O CONCEITO DE CRIATIVIDADE
132
Ver DELEUZE, Gilles. Le Pli.1988.
O QUE É A ARQUITECTURA? 65
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
4. O CONCEITO DE DEVIR
Uma metáfora é uma descrição de algo como sendo outra coisa. A sua presença na
literatura e nas artes recua pelo menos até Platão e vem associada a uma significação
poética. Porém, mais recentemente encontramos um renascido interesse na metáfora como
um discurso criativo construtor de significado e conhecimento acerca do mundo.
Ao nível da metáfora podemos considerar uma divisão principal em metáforas
conceptuais e metáfora linguísticas. Uma vez que o nosso objectivo não é a elaboração de
um estudo acerca da metáfora, centramo-nos na breve referência à metáfora conceptual, já
que é que marca maior presença no processo criativo. Assim, segundo Lakoff e Johnson133,
as metáforas conceptuais podem ser divididas em três categorias, a saber: estruturais,
orientacionais e ontológicas. Por metáfora estrutural podemos entender os casos em que
um conceito é estruturado metaforicamente relativamente a outro, determinando o modo
como pensamos e argumentamos acerca das entidades. Uma metáfora orientacional é
aquela que organiza uma série de conceitos uns em relação aos outros. Por fim, uma
metáfora ontológica é aquela que vai permitir que conceptualizemos e falemos acercas das
133
Lakoff foi um dos fundadores da linguística gerativa dos anos 60 e da linguística cognitiva nos
anos 70 do século XX. É juntamente com Johnson que elabora uma teoria acerca do pensamento
metafórico expressa na obra Metaphors We Live By publicada em 1980.
O QUE É A ARQUITECTURA? 67
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
coisas, das experiências e dos processos, mesmo que estes sejam vagos ou abstractos, do
mesmo modo que falamos das coisas com propriedades físicas.134
O mundo, entendido como sendo determinado pela ordem e organização dos conceitos
humanos, encara a metáfora como a criação de novas combinações de conceitos, isto é,
uma nova forma de pensamento na qual a criatividade humana tem o papel principal na
tarefa de edificar um mundo inteligível e objectivo.
Este interesse verifica-se, genericamente, desde os anos 70 do século XX e vem
associado ao crescente interesse da ciência cognitiva pela relação de dependência entre os
conceitos, a razão e o corpo, bem como o alcance que a conceptualização, assente na
metáfora e na imagem, conquista.
Ainda que a metáfora seja encarada como processo criativo e subjectivo, ela é produtora
de significado e entendida como sendo objectiva. A sua importância na tradição filosófica,
em autores como Nietzsche, Heidegger, Merleau-Ponty, Bachelard, entre outros, baseia-se
no facto de cada um deles encarar a metáfora como uma estrutura ontológica que funciona
dentro da própria experiência. A metáfora encarada como um instrumento cognitivo é
criadora de novas perspectivas sobre os objectos, ela abre um novo ponto de vista acerca
das coisas. Como diria Deleuze, ela é criativa e por isso criadora. É deste modo que a
metáfora vem a ser assumida como princípio ontológico.
No contexto da nossa dissertação importa tomar nota que Karatani135 se refere à
arquitectura como uma metáfora, que se expressa na vontade de construir, e como um
sistema onde as suas diversas formalizações ocorrem. Neste sentido, o autor, vê a
arquitectura como o mecanismo através do qual a metafísica que fundamenta o pensamento
ocidental se expressa, isto é, vem a ser.
134
KNOWLES, MOON; Murray, Rosamund. Introducing Metaphor., 2006.
135
KARATANI, Kojin. Architecture as metaphor: language, number, money. Translated by Sabu
Kohso. 1997.
O QUE É A ARQUITECTURA? 68
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
No último texto que publica, L’immanence: une vie…, Gilles Deleuze debruça-se sobre
aquilo que durante toda a sua obra vinha a ser anunciado como fundamento ontológico: a
vida. Nestas últimas páginas, que muitos comentadores verão como uma espécie de
testamento filosófico, não encontramos senão a mesma audacidade e agudeza de escrita
característica deste filósofo. Este não é um artigo que saia fora do pensamento já
substanciado na sua vasta obra, é, isso sim, uma súmula, um derradeiro esclarecimento
sobre o fundo do pensamento deste autor. No contexto da nossa dissertação, o que importa
reter é a confirmação da vida como fundamento ontológico (incluindo o da Arquitectura).
Deleuze não se refere à vida individual das entidades vivas, capturada num corpo singular,
mas sim ao fenómeno da vida na sua totalidade, sem sequer considerar uma exclusividade
da vida biológica. Esta noção de (uma) vida, que como vimos anteriormente se reporta ao
plano da imanência e do virtual136, é exactamente esse campo onde todas as possibilidades
são possíveis, porque ela é a afirmação do poder criativo que se afirma por si e de si. É
porque a vida é auto-referente e imanente que se constitui como fundamento ontológico.
Esta atenção à vida, por parte de Deleuze, irá ter repercussões em todo o pensamento
do século XX, incluído no discurso da Arquitectura; não só com a reforçada atenção nas
questões ecológicas, como até na própria teoria.
136
Ver p. 40.
O QUE É A ARQUITECTURA? 69
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
B. DELEUZE E OS ARQUITECTOS
Ainda hoje se fala de uma crise encabeçada pelo desmoronar dos princípios do
Modernismo, que se revelaram desadequados à vivência em comunidade, contudo, talvez
devêssemos recuar, como sugere Karatani137, à descoberta dos livros sobre as normas do
fazer Arquitectura, escritos por Vitruvius, pois como o mesmo autor contemporâneo sugere,
é quando a Arqueologia vem desacreditar as normas vitruvianas que a Arquitectura entra
em crise, pois os pressupostos sobre os quais se havia edificado provaram ser falsos, e
aquilo que se pensava saber sobre a Arquitectura grega, o cânone para todos os
arquitectos, era uma interpretação errada, por parte de um arquitecto romano, dos vestígios
que a Grécia Clássica deixara. Todavia, Karatani é optimista e fala de uma sucessão de
crises, ou seja, postula a existência de um ciclo histórico em que a uma época de crise se
segue uma de descoberta. Porém, é no intervalo entre a crise e a descoberta que se instala
a necessidade de uma fundamentação capaz de justificar o abandono de um cânone em
detrimento de outro. Recentemente, no contexto da História da Arquitectura, surge a
necessidade de uma fundamentação que se assuma isenta da eterna reabilitação dos
estilos (Neo-Clássico, Neo-Gótico, Neo-Barroco, por exemplo) e seja capaz de formular um
fundamento universal. Esta é, sumariamente, a génese da disciplina da Ontologia da
Arquitectura.
Gilles Deleuze vai ser um dos filósofos para o qual a Arquitectura vai direccionar as suas
inquietações, na esperança de encontrar na sua obra teórica uma resposta. Eisenman é o
primeiro arquitecto que cunha uma nova corrente arquitectónica que se reclama herdeira do
pensamento deleuziano. No entanto, como já demonstrámos138, este último vai ser utilizado
de forma descontextualizada e desenraizada do seu núcleo conceptual, o que se vai traduzir
numa confusão entre a ontologia de Deleuze, a Ontologia da Arquitectura e os métodos de
projecto arquitectónico. Como já vimos, a ontologia não procura a fundamentação teórica de
um projecto em particular e muito menos a de um estilo arquitectónico. Um fundamento
metafísico, pela sua universalidade, pretende encontrar a essência daquilo que é cada uma
das entidades, ou seja, o seu modo particular de ser. Deste modo, não se limita à apologia
de uma forma em detrimento de outra e muito menos a uma abordagem processual.
Ao ver o seu pensamento ser abraçado pelo campo tecnológico, nomeadamente na
área da Arquitectura digital, a filosofia de Deleuze acabará por se revelar como sendo um
dos grandes impulsionadores do surgimento de novas formas em Arquitectura.
137
KARATANI, Kojin. Architecture as metaphor: language, number, money. 1997.
138
Ver p. 64.
O QUE É A ARQUITECTURA? 70
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
Arquitectos como Peter Eisenman, Daniel Liebskind ou Greg Lynn, vão reconhecer no
discurso deleuziano o impulso para o pensamento de novas formas arquitectónicas. Seja
porque ele exorta a uma exploração de formas mais orgânicas, ou porque sublinha a
necessidade do enfoque na criatividade e na imaginação; o chamado pós-estruturalismo ou
desconstrutivismo na Arquitectura reconhece no seu trabalho um aliado para o rompimento
integral com o passado, que inclui os modos de conceber e os cânones formais. Deleuze é,
como vimos anteriormente, um crítico da estacidade e um adepto do pensamento do fluxo e
do movimento; o seu pensamento abraça, em todas as áreas, a novidade e expressão da
diferença.
Ao ver a vida como uma força criativa na sua génese, todo o seu discurso vai ser
construído em torno da expressividade da força vital de cada uma das coisas. Esta ideia de
um devir que é em si um fluxo criativo, que se afirma na contínua diferenciação e repetição
dessa diferença, fala de perto ao arquitecto que procura um novo modo de fazer
Arquitectura, em sentido lato, isto é, baseando-se numa estética que deixe transparecer o
trabalho em conjunto com a máquina e não se esconda em soluções já testadas.
Tal como Deleuze pretende romper com a tradição, também os arquitectos do
desconstrutivismo vão procurar afastar-se das formas clássicas e procurar afirmar a sua
própria estética. Há da parte dos últimos uma necessidade de distanciamento e demarcação
face ao passado, que se vai traduzir na busca de uma nova forma de fazer Arquitectura e
cidade. Aquilo que outrora era do domínio da imaginação, da ficção científica ou do cinema,
passa a ser uma realidade. Esta nova Arquitectura não conhece limitações formais
duradouras, pois na época das mudanças vertiginosas, da comunicação e do fluxo de
informação, esta disciplina está sempre a impulsionar novas tecnologias de construção e
materiais. Deste modo, juntamo-nos ao Poeta, dizendo igualmente que «o Homem sonha, a
obra nasce», pois neste caso, Deleuze despoleta nos arquitectos o desejo de sonhar e de
concretizar sonhos.
C. DELEUZE E A ARQUITECTURA
Gilles Deleuze é um filósofo que fala dentro da Filosofia acerca da Arquitectura. Por isso,
temos que ter sempre em mente esta ideia de que a Arquitectura é um modelo explicativo e
exemplificativo de como podemos comprovar a ontologia que este filósofo concebe. Ele não
possui formação arquitectónica ou artística que permita que entre em detalhes específicos
destas duas disciplinas. O seu objectivo nunca é o de elaborar um tratado de Arquitectura
ou sequer de iniciar uma nova corrente arquitectónica. A preocupação de Deleuze é sempre
O QUE É A ARQUITECTURA? 71
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
FONTES PRIMÁRIAS
—. Conversações 1972-1990. Traduzido por Miguel Serras Pereira. Lisboa: Fim do Século,
2003.
—. Diferença e Repetição. Traduzido por Luíz Orlandi e Roberto Machado. Lisboa: Relógio
d’Água, 2001.
—. Imagem-Tempo - Cinema 2. Traduzido por Rafael Godinho. Assírio & Alvim, 2006.
—. Le Pli. 7ª. Traduzido por Tom Conley. Paris: Editions de Minuit, 1991.
—. Pure Immanence - Essays on A Life. Traduzido por Anne Boyman. NY: MIT Press, 2001.
DELEUZE, GUATTARI. O Anti-Édipo. Traduzido por Joana Moraes Varela e Manuel Maria
Carrilho. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004.
DELEUZE, GUATTARI; Gilles, Félix. Mil Planaltos. Traduzido por Rafael Godinho. Lisboa:
Assírio & Alvim, 2007.
FONTES SECUNDÁRIAS
BALLANTYNE, Andrew. Deleuze and Guattari for Architects (Thinkers for Architects).
Routledge, 2007.
BAUMANU, Zygmunt. Intimations of Postmodernity. London & New York: Routledge, 1992.
O QUE É A ARQUITECTURA? 75
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
CACHE, Bernard. Earth Moves: The Furnishing of Territories. Traduzido por Anne (tradutor)
Boyman e Michael (editor) Speaks. Cambridge, MA e London: MIT Press, 1995.
CASEY, Edward. The Fate of Place: A Philosophical History. University of California Press,
1998.
CAZEAUX, Clive. Metaphor and Continental Philosophy - From Kant to Derrida. New York:
Routledge, 2007.
COLEBROOK, Clair. Gilles Deleuze. London & New York: Routledge, 2002.
COLEBROOK, Claire. Deleuze : a guide for the perplexed. London - New York:
CONTINUUM, 2006.
DAVIES, Stephen, Kathleen Marie HIGGINS, Robert HOPKINS, Robert STECKER, e David
E. (Editores) COOPER. A Companion to Aesthetics. 2ª Edição. Blackwell Publishing, 2009.
GIMBUTAS, Marija. The Language of the Goddess. New York: Thames & Hudson, 2001.
GROSZ, Elizabeth. Architecture from the Outside - Essays on Virtual and Real Space.
Cambridge, London: The MIT Press, 2001.
—. Chaos, territory, art: Deleuze and the framing of the earth. Columbia University Press,
2008.
HAYS, K. Michael (Editor). Architecture theory since 1968. The MIT Press, 1998.
—. Poetry, Language, Thought. Traduzido por A. Hofstadter. New York: Harper & Row,
1971.
LEACH, Neil (Editor). Rethinking Architecture: A Reader in Cultural Theory. Routledge, 1997.
MASSUMI, Brian. A shock to thought: expression after Deleuze and Guatarri. London/New
York: Routledge, 2002.
O QUE É A ARQUITECTURA? 76
GILLES DELEUZE E A ONTOLOGIA DA ARQUITECTURA
OTTCHEN, Cynthia. “The Future of Information Modelling and the End of Theory: Less is
Limited, More is Different.” Architectural Design, March/April de 2009: 22-27.
PARR, Adrian (Editor). The Deleuze Dictionary. Edinburgh: Edinburgh University Press,
2005.
SUTTON, Damian, e David MARTIN-JONES. Gilles Deleuze: A Guide for the art Studants.
London: I.B.Tauris & Co. Ltd, 2008.
ARTIGOS
IMAGENS