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o Direito como sistema de garantias!

LUIGI FERRAjOLl
Professor da Universidade de Camerino, Itália

7.1. Crise do Direito e crise da razão jurídica.


O modelo garantista

Assi~timoshoje, mesmo nos países de mais avançada demo-


. cracia, a uma crise profunda e 'crescente do Direito, que se mani-
festa sob várias formas e em múltiplos níveis. Distinguirei,
esquematicamente, três aspectos desta crise.
O primeiro aspecto é o que chamarei crise da legalidade, ou
seja, do valor vinculativo associado às regras pelos titulares dos
poderes públicos, que se exprime na ausência ou na ineficácia dos
controles, e portanto na variada e espetacular fenomenologia da
ilegalidade do poder. Na Itália - mas em medida menor, parece-
me, também na França e na Espanha - foi trazido à luz do dia
nestes Últimos meses, por numerosos inquéritos judiciais, um gi-
gantesco sistema de corrupção que envolve a política, a adminis-
tração pública, as finanças e a economia, e que se desenvolve como
uma espécie de Estado paralelo, gerido pelas burocracias dos par-
tidos e por lobbies de negócios, regido por códigos próprios de
'comportamento, deslocado para sedes extra-institucionais e extra-
legais. Na Itália, ainda por cima, a ilegalidade pública manifesta-se
também sob.a forma de crise constitucional, isto é, na progressiva
erosão do valor das regras do jogo institucional e do conjunto dos
limites e dos vínculos por elas impostos ao exercício do poder
público: basta pensar nos abusos de poder que levaram a pedir a
acusação do ex-Presidente da República por atentado à Constitui-
1 Publicado originalmente em ]lIeces para la Democracia, IllformaciólI y debate, nO. 16-17.
Tradução do original italiano por Eduardo Maia Costa.

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ção, ao esvaziamento do papel do Parlamento, aos conflitos entre mova-se em direção à superação dos velhos e cada vez menos
o Poder Executivo e o Poder J'"1dicialporque o primeiro não su- legitimados e legitimáveis Estados nacionais e das tradicionais
porta a independência do segllrdo, para não falar das conexões fronteiras estaduais dos direitos de cidadania, isso está por ora
entre a política e a Máfia e dq papel subversivo, até agora em pondo em crise, na ausência de um constitucionalismo de Direito
grande parte obscuro, desemperhado desde há dezenas de anos Internacional, a tradicional hierarquia das fontes, Pense-se na cria-
pelos serviços secretos. ',' , ção de novas fontes ,de produção, como asdo Direito europeu
O segundo aspecto da criSe, sobre o: qual existe literatura comunitário - diretivas, regulamentos, e, depois do tratado, de
abundante, é o da inadequação estrutural das formas do Estado de Maastricht, decisões em matéria econômica eaté militar - subtraí-
Direito às funções do Welfare State, agravada pela acentuação do das ao controle parlamentar e, simultaneamente, a vínculos cons~
seu caráter seletivo e desigual, em conseqüência da crise do Estado, titucionais, quer nacionais, quer supranacionais. ,
Social. Uma tal crise, como é sabido, foi por muitos associada a É evidente que esta tríplice crise do Direito corre o risco de
uma espécie de contradição entre o paradigma clássico do Estado transmutar-se em crise da democracia. Ela equivale, de fato, em
de Direito, que consiste num conjunto de limites e de proibições todos os três aspectos. ora enumerados, a uma crise do princípio
impostos ao poder público de maneira certa, geral e abstrata, para da legalidade, isto é, da sujeição à lei dos poderes públicos, prin-
tutela dos direitos e liberdades dos cidadãos, e o estado social que, cípio esse sobre o qual se fundam quer a soberania popular, quer
ao contrário, exige aos mesmos poderes a satisfação de, direitos o paradigma do Estado de Direito; e permite a reprodução, no seio
sociais mediante prestações positivas, nem sempre predeter- dos nossos ordenamentos, de formas neo-absolutistasde poder
mináveis de forma geral e abstrata,'e portanto eminentemente dis- público, isentas de limites e de controles' e governadas por interes-
cricionárias ou contingentes, subtraídas aos princípios da certeza ses fortes e ocultos.
e da estrita legalidade e confiadas à mediação burocrática e parti- Uma leitura hoje bastante difundida de uma tal crise é a que,
dária. Tal crise manifesta-se na inflação legislativa provocada pela a interpreta como crise da própria capacidade reguiadora do Di-
pressão de interesses setoriais e corporativos, na perda de genera- reito, originada pela elevada "complexidade" da sociedade con-
lidade e abstração das leis pela crescente produção de leis-provi- temporânea. A multiplicidade das funções deferidas ao Estado
dência (leggi-prouuedimento), no processo de descodificação e no Social, a inflação legislativa, a pluralidade das fontes normativas,
desenvolvimento de uma legislação avulsa, até em matéria' penal, a sua subordinação aos imperativos sistêmicos de tipo econômico,
sob o signo da emergência e da exceção. Trata~se,como é eyidente, tecnológico e político e, por outro ládo, a ineficácia dos controles
de um aspecto da crise do Direito que favorece o precedente. A e a larga margem de irresponsabilidade do poder público gerariam
deterioração da forma da lei, a incerteza gerada pela incoerência - segundo autores como'Luhmann, Teubner e 2010 uma crescente
e pela inflação normativa e, sobretudo, a falta de elaboração de um incoerência, falta de plenitude (incompletezza), opacidade e ineficá-
sistema de garantias dos direitos sociais, comparável, pela capaci- cia do sistema jurídico. Daí resultaria um enfraquecimento da pró-
dade de regulação e de controle, ao sistema das garantias"tradicio- pria função normativa do Direito e, em particular, a falênCiadas
nalmente disponíveis para a propriedade e a liberdade, representa suas funções de, limite e de vínculo à política e ao mercado, e
de fato, não só um fator de ineficácia dos direitos, mas ,também o portanto de garantia dos direitos fundamentais, quer de liberdade,
terreno mais fecundo para a corrupção e para o arbítrio. quer sociais'.
Há depois um terceiro aspecto da crise do Direito, que está 2 LUHMANN, N. Rechtssoziologie (1972), tr. it. de A. Febbarjo, Sociologia deI Diritto.
ligado à crise do Estado Social e que se manifesta na deslqcação dos Bad-Rorna: Laterza, 1977, p.24-S-254j Id., "11Welfare State come problema politico e teorico",
lugares de soberania, na alteração do sistema das fontes e, portan- in: Transformazione:e crisi deI Welfare State,organizado por E. Fano, S. Rodotà e G.
Marramao, Angeli, 1983, p.352i Id.,"The unHy of the.legal system", in: The Self-Reproduc-
to, num enfraquecimento do constitucionalismo. O processo de tion af the Law, Atas do Colóquio sobre "Autopoiesis in Law ana Society". Florena: Instituto
integração mundial, e especificam.ente,européia, desloc?~ para Universitário Europeu, 1984; Id., "Some problems with 'Reflexive Law', loco cit.; TEUBNER,
fora das fronteiras dos estados naCIOnaiSas sedes de deClsaotra- G. organização), Dilemmas of Law in the Welfare State. Berlim-Naya Iorque:. De Greuyter,
1984; Afier Legal Instrumentalism?, loco cit.; WILKE, H.; TEl)BNER;G. "Kontex.und Auto-
dicionalmente reservadas à sua soberania: em matéria militar, de nomie: Gesellschaftliche Selbststeuerung durch reflexive Recht", em Zeits~hrift fur.Rcchts-
política monetária e de políticas sociais. E embora este processo soziologie, 1984, 6, no 1; ZOLO, D. "Ragione, dirHto.e morale nella teoria dei garanHsmo",

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.. Parece-me que um tal diagnóstico arrisca-se a sucumbir numa
espécie de falácia naturalista ou, mais precisamente, determinista:
jurídica de reordenar e reconstruir o próprio objeto em função dos
valores da certeza e da garantia dos direitos; basta pensar na opo-
sição de Savigny e da Escola Histórica aos projetos de codificação
os nossos sistemas jurídicos seriam como são porque não 'pode-
riam ser de outra maneira. É esta passagem irrefletida do ser ao e, do outro extremo, à incompreensão e à desvalorização por parte
dever ser - pouco importa se em sede determinista ou apologética de Jeremy Bentham da Declaração Francesa dos Direitos do Ho-
- o perigo que me parece presente em muitas teorizações atuais mem de 1789.
sobre a descodificação, sobre a deslegificação e a desregulação. É Hoje, o desafio que à razão jurídica é feito pelas formas múl-
certamente indispensável uma abordagem realista do Direito e do ' tiplas da crise do Direito não é mais difícil do que o que enfrentou,
funcionamento concreto das instituições jurídicas se não queremos há dois séculos, o iluminismo jurídico, quando foi empreendida a
cair na oposta e não menos difundida falácia, idealista e norma ti- obra da codificação sob o signo do princípio da legalidade. Aliás,
vista, de quem confunde o Direito com a realidade, as normas com em relação à tradição juspositivista clássica, a razão jurídica de
hoje tem a vantagem que lhe provém dos progressos do constitu-
os fatos, os Manuais de Direito com a descrição do efetivo funcio-
cionalismo deste século, que permitem configurar e construir o
namento do próprio Direito. E todavia o Direito é também uma
Direito - hoje bastante mais do que no velho estado liberal - como
realidade não-natural, mas artificial, construída pelos homens, in-
um sistema artificial de garantias constitucionalmente preordenado
cluídos os juristas, que aliás aí têm uma parte não diminuta de
à tutela dos direitos fundamentais.
responsabilidade. E não há nada de deterministicamente necessá-'
Este papel de garantia do Direito tornou-se hoje possível pela
rio nem de sociologicamente natural na ineficácia dos direitos e na
específica complexidade da sua estrutura formal, que é marcada,
violação sistemática das regras por parte dos titulares dos poderes
públicos. Nem há nada de inevitável e de irremediável no caos nos ordenamentos de constituição rígida, por uma dupla artificia-
lidade: não só pelo caráter positivo das normas produzidas, que é
normativo, na proliferação das fóntes e na conseqüente incerteza
a característica específica do positivismo jurídico, mas também pela
e incoerência dos ordenamentos, com os quais é habitualmente
sua sujeição ao Direito, que é a característica específica do Estado
representada, pela sociologia jurídica sistêmica, a crise moderna Constitucional de Direito, onde a própria produção jurídica é disci-
do Estado de Direito. plinada por normas, já não apenas formais, como também subs-
Creio que hoje os perigos para o futuro dos direitos funda- tanciais, de Direito positivo. Se em virtude da primeira
mentais e da sua garantia dependem não só da crise do Direito, característica, o ser ou a existência do Direito já não deriva da
mas também da crise da razão jurídica; não só do caos normativo I
moral nem se encontra na, natureza, pois é precisamente "posto"
e da ilegalidade generalizada aqui referidos, mas também da per- .\
ou "feito", pelos homens e é como os homens o querem e ainda
da de confiança naqueia artificial reason que é a razão jurídica antes o pensam, em virtude da segunda característica também o
moderna, que erigiu esse singuiar e extraordinário paradigma teó- "dever ser" do Direito Positivo, ou seja, as suas condições de "va-
riéo e normativo que é o Estado de Direito. A situação do Direito lidade", resulta positivado por um sistema de regras que discipli-
própria do ancien régime era bastante mais "complexa", irracional nam as próprias opções com que o Direito é pensado e projetado,
e desregulada do que a de hoje. A selva das fontes, o pluralismo estabelecendo os valores ético-políticos - a igualdade, a dignidade
e a sobreposição dos ordenamentos, a inflação normativa e a ano- da pessoa, os direitos fundamentais - que devem enformar aquelas
mia jurídica dos poderes que tiveram de enfrentar os clássicos do regras. São, em suma, os próprios modelos axiológicos do Direito
jusnaturalismo e do iiuminismo, de Hobbes a Montesquieu e a Positivo, e não só os seus conteúdos contingentes - o seu "dever
Beccana, formavam um quadro seguramente mais dramático e ser", e não apenas o seu "ser" - que no Estado Constitucional de
desesperante do que aquele que surge aos nossos olhos. E mesmo Direito são incorporados no ordenamento, como Direito sobre o
então, nas origens da modernidade jurídica, fóram muitas e auto- Direito, sob a forma de limites e vínculos jurídicos da produção
rizadas as vozes que se ergueram contra a pretensão da razão jurídica. Daí resultou uma inovação na própria estrutura da lega-
in: GIANFORMAGCIO, L. (organização) Le ragioni dei garantismo, Turim: Giappichelli, lidade, que é talvez a conquista mais importante do Direito con-
1983; Id., "Cittadinanza de;mocratica e giurisdidone", Questione Giustizia. temporâneo: a regulação jurídica do próprio Direito Positivo, não
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só quanto. às fo.rmas, de pro.dução., m~s também quanto. ao.s co.l1teú: do.,Direito.. Segundo. a co.ncepção. prevalecente entre o.Smáximo.s
..
do.s pro.duzido.s. , , ' , teórico.s do. Direito.- de Kelsen a Hart ea Bo.bbio. - a "validade" das
Graças a esta dupla artificialidade - do. seu "ser" e da seu no.rmas identifica-se, qualquer que seja 0., seu éo.nteúdo., Co.m a sua
"dever ser" - a legalidade positiva ou fo.rmal do. Estado. Co.nstitue existênéia: o.u seja, com a sua integração. nUm dado. o.rdena-
cio.nal de Direito. mudo.u de natureza: já não. é só co.ndicio.nante, mento., determinada pela suaco.!,fo.rmidade co.m as no.rmas, po.r
mas também é ela própria co.ndicio.nada po.r vínculo.s jurídico.s não sua vez integrantes desse o.rdenamento., que disciplinam a sua,
só fo.rmais, co.mo. também substanciais. Po.demo.s chamar "mo.delo." pro.dução.. Estaco.ncepção. puramente fo.rmal da validade é, a meu
o.U "sistema garantista", em o.pbsição. ao. paleo.-juspo.sitivismo., a ver, fruto. .de uma simplificação., que, po.r sua vez, deriva de uma
este sistema de legalidade, a que esta dupla artificialidade co.nfere inco.mpreensão. da co.mplexidade da legalidade no. Estado Co.ns-,
um papel de garantia relativamente ao. Direito. ilegítimo.. Graças a tittlcio.nal de Direito. a que no.s referimo.s. O sistema das no.rmas
ele, o.Direito. co.ntempo.râneo. não. pro.grama so.mente as suas formas so.bre a pro.dução. das no.rmas, -estabelecido. geralmente, no.s no.s-
de pro.dução. através de no.rmas pro.cedimentais so.bre a fo.rmação. so.s o.rdenamento.s, em nível co.nstitucio.nal - não. se compõe efeti-
das' leis e do.so.utrosato.s no.rmativo.s. Pro.grama ainda o.s seus vamente' só de no.rmas fo.rmais so.bre a co.mpetência o.u so.bre o.
conteúdos substanciais, vinculando.-o.sno.rmativamente ao.S princí- pro.cedimento.de criação. das leis. Esse sistema inclui !am-
pio.s e ao.s valo.res inscrito.s nas co.nstituições, mediante técnicas de bémno.rmas subst"nciais, Co.mo. o. princípio. da igualdade e o.S
garantia que é o.brigação. e respo.nsabilidade da cultura jurídica direito.s fundamentais, que de diversas fo.rmas limitam e vinculam
elabo.rar. Daí resulta uma alteração. no.utro.s,níveis do. mo.delo. jus- o. Po.der Legislativo., vedando.-Ihe o.U impo.ndo.-Ihe determinado.s
po.sitivista clássico.: a) ao. nível da Teo.ria do. Direito., o.nde esta co.nteúdo.s. Po.r isso. uma no.rma - po.r exemplo. uma lei que vio.le o.
dupla artificialidade co.mpo.rta uma revisão. da teo.ria da validade, princípio. co.nstitucio.nal da igualdade - embo.ra fo.rmalmente
baseada so.bre a disso.ciação. entre validade e vigência e so.bre uma existente o.U vigente, po.de ser inválida' e co.mo. tal susceptível de
no.va relação. entre a fo.rma e substância das decisões; b) ao. nível anulação., po.r co.ntrariar uma no.rma substancial so.bre a sua pro.-
da teo.ria po.lítica, o.nde co.mpo.rta uma revisão. da co.ncepção. pura- dução.; , , '
mente pro.cessual da demo.cracia e o. reco.nhecimento. da sua di- HansKelsen tento.u, co.mo. é sabido., reso.lver esta apo.ria sus-
mensão. substancial; c) ao. nível da teo.ria da interpretação. e da tentando. a validade das no.rmas, co.ntidas po.r exemplo. em leis
aplicação. da lei, o.nde co.mpo.rtaumaredefinição. do. papel do. juiz o.rdinárias, cujo.sco.nteúdo.s estejam em co.ntradição. co.m no.rmas
e uma revisão. das fo.rmas e das co.ndições da sua sujeição. à lei; d) superio.res, po.r exemplo. co.nstitucio.nais: estas no.rmas, escreveu,
ao. nível, enfim, da metateo.ria do. Direito., e po.rtanto. do. papel da "mantêm-se válidas até serem declaradas inválidas pela fo.rma de-
ciência jurídica, que é investida de uma função. já não. simplesmen- terminada pelo. próprio. o.rdenamento. jurídico."'. Desta forma, ele
te descritiva, mas também crítica e criativa (progettuale) em relação. co.nfundiu a anulação. co.m a revo.gação. e, o. que é mais grave,
ao. seu o.bjeto..' so.brepôs o. dever ser ao. ser do. Direito., co.nfirmando., co.m uma
espécie de pres"nção. geral de legitimidade, to.das as no.rmas vi-
gentes Co.mo.válidas. Herbert Hart, mais co.nseqüentemente, ne-
7.2. Racio.nalidade fo.rmal e racio.nalidade substancial go.u a validade de tais no.rmas, co.lo.cando. no. mesmo. plano. as
, no. paradigma garantis ta da validade no.rmas substanciais so.bre a sua produção. e as fo.rmais em matéria
de co.mpetência, o.btendo. o.resultado., ainda mais insustentável, de
Co.mecemo.s pela primeira alteração. pro.duzida pelo. mo.delo negar a existência das no.rmas fo.rmais, mas não. substancialmente,
garantistano. esquema juspo.sitivista clássico.: a que afeta a Teo.ria co.nfo.rmes às que regem so.bre a sua pro.dução. e, po.rtanto., de
3 Estas quatro implicações do modelo garantista serão desenvolvidas de maneira mais analítica so.brepo.r o. ser ao. dever ser do. Direito. e de tratarco.mo. não.-vigen-
c rigorosa num trabalho de Teoria, do Direito a publicar proximamente. Cf., entretanto, para
maior aprofundamento, DirHto e raggione. Teoria ,dei garantismo penale. Roma-Bati: Laterzá,
1989, p.348-362, 551-556, 898-922, e "Note eritiche e autoeritiche intorno alia diseussione 5U 4 KELSEN, H. General Theory af Law and State (1945), tr. it. de S. Catta e Treves, G. Teoria

'Diritto e ragione"', in: GIANFORMAGGIO, L, oh. eit" parágrafos 1 e 3. generale de] diritta, Milão: Edizioni di Comunità, 1959, p. 118.

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tes as normas inválidas e todavia aplicadas até intervir a anula- I das segundas por parte das primeiras, configura-se no prime~ro
•• - 5
çao. ... I casoco~oaplicação (oudEêsaplicaç~o)e:,o segundo co~o ,:oeren-
Estas aporias desaparecem se se abandonar esta concepção: cia (ou contnldição). Não.teria senlldo dizer que uma lei nao pro'
paleopositivista da validade, ligada a uma estrutura simplificada mulgada ou um testamento desprovido de for~a escdta _são
da legalidade, que ignora a sujeição não só formal, como támbém incoerentes ou contraditórios com as normas formaiS que lmpoem
substancial ao Direito, das fontes de produção jurídica nos orde-' a promulgação. das leis ou a forma escrita par~ os. testamentos;
namentos dotados de constituição rígida. A existência de.normas
inválidas só pode ser facilmente explicada se se distinguirem duas
II assimcomo.'não teria sentido dizer que uma lei leSiva do habeas
corpus oU do princípio da igualda.de não é subsu~ível nas (ou
dimensões da regularidade. ou legitimidade das normas: a que desaplica as) normas constituciona~s lJ.';leela cont.ra~lz. .
podemos chamar a "vigência" ou a "existência", que respeita à O paradigma do Estado ConslituclOnal de Dlreilo - ou seja, o
forma dos atos normativos e que depende da sua conformidade ou. modelo garantista - mais não é do que esta dúplice sujeição do
correspondência com as normas formais sobre a sua formaçãá; e.a Direito ao Direito que afeta ambas ~stas dimensües de cadafen.ô-
validade propriamente dita ou, se se trata de leis, a "constitucionali- meno normativo:.a vigência e"avalidade, a forma e a substancJa,
dade", que se refere ao seu significado ou conteúdo e que depende os sinais 'e os significadoS, a' legitimação formal e a legitimação
da sua coerência com as normas substanciais sobre a sua produção. substancial ou, se se quiser, as Weberianas' "tacionalidade.formal"
Trata-se efetivamente de dois conceitos assimétricos e inde- e "racionalidade material". Graças à dissociação entre estas duas
pendentes: a vigência, respeitando a f01'ma dos atos normativos, é dimensões e à sua' sUjeiçãoa dois. tipos de regras distintas, já não
uma questão de correspondência ou subsunção das formas dos atos é verdade que a validade do Direito depende, como ent..endla,Kel-
ge~adores de normas relativamente às previstas pelas normas for- sen, unicaménte de requisitos formais, nem que a razao ]ufldlCa
mais sobre a sua formação; a validade, respeitando ao seu significa- moderna é apenas,comá pensava Weber, uma "racion~lidade for-
do, é antes uma questão de coerência ou compatibilidade das mai"; nem sequer que ela está ameaçada, como receiam mUitos
normas produzidas com as substanciais sobre a sua produção. Em teóricos atuais da crise, pelo enxerto de Uma "racionalidade mate-
termos kelsenianos: a relação entre normas produzidas e normas
sobre a produção é, no primeiro caso, de tipo nomodinâmico e, no I rial" orientada para certos fins, como seria a do moderno Estado
Social. Todos os direitos fundamentais - e não só os direitos sociais
segundo, de tipo nomostático; e a observância (ou a inobservância) e os deveres positivos por eles impostos ao Estado, mas também
I os direitos de liberdade eas correspondentes proibições negativas
5 HART, H. the concept af Law, tr. it. de M. Cattaneo, Il cancetto di diritto, Turim:' Eunaudi, que limitam a intervenção daquele - e.quivale:n a vínculos d~ subs-
1965, capo IV, parágrafo 30, p.82-85. Também Bobbio, cómo Kalsen e Hart, identifica a
validade com a "existência" e assim se preclui a possibilidade de dar conta d':l existência de
normas 'inválidas. É no entanto verdade que ele distingue entre "validade formal" e'''vali-
I tânéia e não de forma, q'ue condiCionam a validade substancial das
normas produzidas e exprimem; ao mesmo tempo, osfins pa;a q~e
da de material", identificando esta última com a coerência lógica da norma "com outras' está orientado esse moderno artifício que éo Estado ConslituclO-
normas válidas no ordenamento", ("Sul ragionamento dei giuristi", in: Rivista di diritto
civil e, 1, 1955, também publicado em COMANDUCCI, r.i GUASTlNI" R. L'analisi deI
nal de Direito.
ragionamento giuridico, Turim: Giappichelli, 1989, voi. 11, p.167-169). Todavia, a sua iden-
tificação da validade com a existência obriga.o, a propósito da norma formal, mas não
substancialmente válida porque "incompatível com uma norma hierarquicamente supe-
rior", a falar de "revogação implícita" da primeira por parte da segunda, no mesmo sentido
7.3. Democracia formal e democraCia substancial
em q,:e se. afirma que uma norma é implicitamente revogada por uma norma posterior, de
conteudo mcompatível com a anterior (Teoria deUa norma giuridica, TUrim: Gíappic heBi, Compreende-se - e com isto chego à segunda inovação intro-
1958, p.37-38). Desta maneira não é claro se para Bob~io uma tal norma, incompatível com
uma norma superior geralmente anterior, existe {corneie'para Kelsen} até a sua implícita
duzida no modelo paleopositivista pelo modelo garantista - que
~~vO~~ÇãOpor parte do intérprete, ou não existe (como para Bart), estando aborígine uma tal dimensão substancial do Estado de Direito traduz-se
ImplicItamente revogada. Em ambos os casos não é explicado o fenômeno da norma invá- numa dimensão substancial da própria democracia. Os .direitos
lida e todavia vigente (ou existente) até ao momento da declaração de invalidade: à qual
não consiste, na realidade, numa revogação implícita por via de interpretação semelhante
fundamentais, de fato, formam a base da moderna igualdade, que
à da norma revogada por outra posterior do mesmo nível hierárquico, antes constitui um é precisamente uma igualdade en droits, na medida em que exibem
alo jurisdicional que anula formalmente a existência da norma inválida. duas características estruturais :que os diferenciam de todos os
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outros direitos, a começar pelo de propriedade: antes de mais, a de legitimação, mas também, e sobretudo, de deslegitimação das
sua universalidade, pois respeitam. a todos e em igual medida, decisões ou das não-decisões.
contrariamente aos direitos patrimoniais, que são direitos exclu- Naturalmente uma tal estrutura do Estado Constitucional de
dendi alíos, dos quais um sujeito pode ser ou não ser titular e dos Direito está destinada, pela sua natureza, a um grau mais ou me-
quais cada um é titular com exclusão dos outros; em segundo nos elevado de ineficácia: devido à possível incoerência provocada
lugar, a sua indisponibilidade e inalienabilidade, quer ativa quer por normas inválidas contraditórias .comproibições impostas por
passiva, que os subtrai ao mercado e à decisão política, limitando normas superiores à esfera do decidível ou, ao contrário, devido
a esfera do decidível de um e de outra e vinculando-se à sua tutela à possível falta de plenitude, provocada pela não-produção de nor-
e satisfação. mas ou decisões impostas à mesma esfera. São estes os dois pos-
Sendo assim, a constitucionalização rígida destes direitos ser- síveis .vícios do ordenamento: as antinomias e as lacunas,
ve para enxertar uma dimensão substancial não só no Direito, determinadas respectivamente, em virtude da sua diversa estru-
como também na democracia. E o constitucionalismo, de que on- tura,. pelos direitos de líberdade, que consistem em expectativas
tem Neil MacCormick fez uma apaiXonada defesa, é não tanto, negativas a que correspondem limites negativos, e pelos direitos
como ele disse, um elemento arifitéticO.à democracia (política e sociais, que, pelo contrário, consistem em expectativas positivas a
formal), como sobretudo o seu n cessário complementosubstan- que correspondem vinculas positivos para os poderes p1Íblicos.
daI. As duas classes de normas obre a produção jurídica acima É claro que estes dois tipos de vícios são em certa medida
distinguidas - as formais que condicionam a vigência, e as substan- fisiológicos, e seria ilusório acreditar na sua total eliminação. Um
ciais que condicionam a validade -, garantem de fato outras tantas Estado Constitucional de Direito.é, pela sua própria natureza, um
dimensões da democracia: a dimensão formal da "democracia poli- ordenamento imperfeito, sendo impensável, por causa do funda-
tica", que respeita ao quem e ao como das decisões e que é garantida mento nomodinâmico da vigência das normas, uma perfeita coe-,
pelas normas formais que disciplinam as formas das decisões,.as- rência e plenitude do sistema nos seus diversos níveis. Mais: a sua
segurando com elas a expressão da vontade da maioria; e a .dimen- possível imperfeição é paradoxalmente o seu maior mérito. Uma
são material daquilo a que podemos chamar "democracia perfeita coerência e plenitude e uma total ausência de antinomias
substancial", dado que respeita ao qu.e não pode ou deve ser deci- e de lacunas só seriam efetivamente possíveis se não fosse incor-
dido pela maioria, e que é garantida pelas normas substanciais que porado nas normas sobre a produção nenhum vínculo substancial:
das mesmas decisões disciplinam a substância ou o significado, vin- . que é o que acontece no estado absoluto - pouco importa se poli-
culando-as, sob pena de invalidade, ao respeito dos direitos fun- ticamente democrático - onde qualquer norma existente; desde
damentais e dos outros princípios axiológicos por elas que produzida segundo as formas estabelecidas pelo ordenamen-
estabelecidos. to, é, só por isso, válida.
Deste modo, os direitos fundamentais configuram-se como Assim, uma concepção exclusivamente procedimental ou for-
outros tantos vínculos substanciais impostos à democracia políti- mal da democracia é solidária com uma concepção igualmente
ca: vínculos negativos, os gerados pelos direitos de liberdade, que formal da validade das normas como mera vigência ou existência;
nenhuma maioria pode violar; vínculos positivos, gerados pelos que da primeira representa, por assim dizer, o pressuposto; en- .
direitos sociais, que nenhuma maioria pode deixar de satisfazer. E quanto uma concepção substancial da democracia, garante dos
a democracia política, como de resto o mercado, acaba por identi- direitos fundamentais dos cidadãos e não simplesmente da oni-
ficar-se com a esfera do decidível, por eles delimitada e vinculada. potência da maioria, requer que se admita a possibilidade de an-
Nenhuma maioria, nem sequer a unanimidade, pode legitimamen- tinomias e de lacunas geradas pela introdução de limites e
te decidir a violação de um direito de liberdade ou não decidir a vínculos substanciais -sejam eles negativos, como os direitos de
satisfação de um direito social. Os direitos fundamentais, pre- liberdade, ou positivos, como os direitos sociais - como condições
cisamente porque igualmente garantidos a todos e subtraídos à de validade das decisões da maioria. Neste sentido, diremos, a
disponibilidade do mercado e da política, formam a esfera do l1lde- possibilidade do "Direito Inválido" ou "lacunoso" - ou seja, da
cidivel que e do indecidível que não; e operam como fatores não só distinçã.oentre normatividade e efetividade, entre dever ser e ser
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.. do Direito - representa a condição prévia tanto do Estado Consti-
tucional de Direito como da dimensão substancial. da democracia.
constitucional-garantista,um dogma ligado à mera existênciaformal
da lei, mas uma sua qualidade contingente ligada à coerência - mais
Aliás, dentro de certos limites, os vício.sda incoetência e da" ou menos opinável eseinpre.'subrrietidaà valoração do juiz - dos
falta de plenitude são redutíveis, através de garantias idôneas. As seus significados com a constituição. Daí deriva que a interpreta-
garantias mais não são do que técnicas criadas pelo ordenamento ção judicial da lei é também sempre um juízo sobre a própria lei,
para reduzir a divergência estrutural entre normatividade e efeti- relativamente à qual o juiz tem o dever e a responsabilidade de
vidade, e portanto.para realizar a máxima efetividade do.sdireito.s escolher somente os significados válidos', ou seja, compatíveis com
fundamentais em coerência co.ma sua estatuição constitucional. as normas constitucionais substanciais e com os direitos funda-
Refletem.por isso a diversa estrutura dos direitos fundamentais mentais por elas estabelecidos. Era'isto, e não outra coisa - diga-se
para cuja tutela ou satisfação são criadas: as garantias liberais, sen- de passagem - oqúe entendíámos há vinte anos com a expressão
do destinadas a assegurar a tutela dos direitos de liberdade, .con- "jurisprudência alternativa", em torno da qual tantos equívocos
sistem essencialmente em técnicas de invalidação ou de anulação surgiram: interpretação da lei conforme a. constituição e, quando
dos' atos (provvedimenti) proibidos que os violam; as garantias so- a contradição é insanável, dever do juiz de declarar a invalidade
eiais, sendo destinadas a assegurar a tutela dos direitos sociais, constitucional; portanto, já hão uma sujeição à lei de tipo acrítico
consistem antes em técnicas de coerção e/ou de sanção contra a e incondicional, mas sim sujeição, antes dé mais, à constituição,
omissão das medidas que os satisfazem. Em todos os casos, o que impõe ao juiz a crítÍca' das leis inválidas por meio da sua
garantismo de um sistema jurídico é uma questão de grau,que reinterpretàção em sentido constitucional ou a sua denúncia por
depende da precisão dos vínculos positivos ou negativos impostos inconstitucionalidàde. . .
aos poderes públicos pelas normas constitucionais e pelo sistema . É nestà sujeição do juiz à constituição, e portanto no seu papel
de garantias que a esses vínculos asseguram uma taxa maior' ou de garantir os direitos fundamentais constitucionalmente estabe-
menor de efetividade. lecidos, que reside o principal fundamentO atual da legitimação da
jurisdição e da independência do Poder Judiciário frente aos Po-
deres Legislativo e Executivo, embora estes sejam - e até porque o
7.4 O papel do juiz e a legitimação democrática
da sua independência são - poderes assentes na maioria. Precisamente porque os direitos
fundamentais em que se baseia a democracia substancial são ga-
Esta concepção da validade das normas do Estado Constitu- rantidos incondicionalmente a todos e a cada um, ll.esmo contra a
cional de Direito; e também da relação entre o que eu chamei maioria, eles constituem o fundamento, bem mais do que o velho
"democracia política" (ou "formal")e "democracia substancial", re- dogma juspositivista da sujeição à lei, da independência do Poder
flete-se ainda n)im reforçado papel da jurisdição e numa nova e Judiciário, que para a sua garantia está especificamente vocacio-
mais forte legitimação do poder judicial e da sua independência. nado. Daí resulta que o fundamento da legitimação do Poder Ju-
É esta a terceira' implicação do modelo garantista: os desníveis diciárioe da sua independêncialTIais não é do que o valor da
entre as normas, que estão na base da existência de normas invá- igualdade, enquanto igualdade(,mfir(!its\visto que os direitos fun-
lidas e, por outro lado, a incorporação, em nível constitucional, damentais são de cada um e de todos, a sua garantia exige um juiz
dos direitos fundamentais' alteram a relação entre o juiz e a lei e terceiro e independente, subtraído a ~ualquer vínculo com os po-
atribuem à jurisdição um papel de.garantia do cidadão contra as deres assentes na maioria, ~ em Cdcdições de poder censurar,
violações da legalidade, a' qualquer nível, por parte dos poderes como inválidos ou como ilícitos, os latos praticados no exercício
públicos.:-:"':!! :-0 . desses poderes. É este o sentido da f~se "há tribunais em Berlim":
A sujeição do juiz à lei já não é de fato, como no velho para- . tem de haver um juiz independente ue possa intervir para repa-
digma juspositivista, sujeição à letra dalei, qualquer que seja o seu rar as injustiças sofridas, para tutelar o indivíduo mesmo quando
significado, mas sim sujeição à lei somente enquanto válida, ou a maioria e até a totalidade dos outr s se coligam contra ele, para
seja, coerente com a constituição. E a validade já não é, no modelo absolver no caso de falta de prova_( mesmo quando a opinião
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pública exige a condenação, ou para condenar, havendo .prova,. mismo, alimentando, como recordei no início, por muitas análises
quando a mesma opinião é favorável à absolvição. atuais da crise do Direito.
Esta legitimação não tem nada a ver com a da democracia' Incoerência e falta de plenitude, antinomias e lacunas, disse-
política, ligada à representação, pois não deriva da vontade da . mos,são, dentro de certos limites, vícios insuprimíveis no Estado
maioria. O seu fundamento é unica\TIente a intangibilidade dos Constitucional de Direito, ligados aos desníveis normativos em
direitos fundamentais. E todavia é uma legitimação democrática, que se articula a sua própria estrutura formal. É, nO entanto, ver-
dade que estes vícios, para além de tais limites, podem tornar-se
que os juízes recebem da sua função de garantia dos direitos fun-
damentais, sobre os quais se baseia aquilo a que chamamos "de- e
patológicos redundar numa crise da democracia. Mas isso nijó
mocracia substancial". Neste sentido, os princípios da igualdade e depende, como lamentam os que vêefil neles os sintomas da falên-
da legalidade conjugam-se - como a outra face da mesma moeda cia do papel normativo do Direito, de uma sua suposta incompa-
- com o segundo fundamento político da independência do juiz: a tibilidade com as formas - na verdade, bastante mais complexas
sua função de averiguação, segundo as garantias de um processo do que as paleopositivistas e classicamente liberais - do Estado
justo, da verdade processual. '., Constitucional de Direito. Pelo contrário, como procurei demons-
trar, a própria eventualidade daqueles vícios representa o traço
Aqui, de novo, o princípio da maioria não tem cabimento. distintivo e até, paradoxo aparente, o maior mérito do .Estado de
Mais: ele não só é estranho, mas está em contradição com O espe- Direito Democrático: o qual, pela sua natureza, exclui formas de
cífico fundamento da legitimação do Poder Judiciário. Nenhuma legitimação absoluta e permite sempre, bem mais do que a legiti_
maioria pode tornar verdadeiro o que é falso, ou falso o que é mação, a deslegitimação do exercício dos poderes públicos por
verdadeiro, nem por isso pode legitimar com o seu consenso uma violação ou descumprimento das promessas formuladas nas suas
condenação infundada, porque pronunciada sem provas. Por isso normas constitucionais.
parecem inaceitáveis e perigosas para as garantias do processo O que realmente o paradigma garantis ta põe em crise é o
justo, e acima de tudo as do processo penal, aquelas doutrinas esquema juspositivista tradicional da ciência e do conhecimento
!!consensualistasl! ou "discursivasll
da verdade que nascidas nou:- jurídico. Uma legalidade complexa.como a que foi aqui sumaria-
tros contextos disciplinares, como a filosofia das ciências naturais mente ilustrada, com os dois eventuais vícios - as antinomias e as
(Kuhn), ou a filosofia moral e política (Habermas) - alguns pena- lacunas - a ela virtualmente ligados, retroage de fato sobre.a ciên-
listas e processualistas gostariam hoje de importai- para o processo cia do Direito, conferindo-lhe um papel crítico e criativo na relação
penal, talvez para justificação desses aberrantes institutos proces- com '0 seu objeto, papel esse desconhecido da razão jurídica, pró-
suais que são as. negociações da pena (patteggiamenti). Nenhum pria do velho juspositivismo dogmático e formalista: a tarefa, si-
consenso nem o da maioria, nem o do argüido - pode valer como multaneamente científica e política, de descobrir as antinomias e
critério de produção da prova. As garantias dos direitos não são as lacunas existentes e de propor de dentro as .correções previstas
derrogáveis nem disponíveis. Aqui,. no processo penal, não há pelas técnicas garantistas do que o ordenamento dispõe,ou então.
outros critérios que não sejamos propostos pela lógica da indução: de elaborar e sugerir de fora novas formas de garantia idôneas a
a pluralidade ou não das provas ou confirmações, a ausência ou a reforçar os mecanismos de autocorreção. Precisamente, enquanto
presença de contraprovas, a refutação ou não das hipóteses alter- o vício da incoerência atribui .à ciência jurídica (bem como à
nativas à da acusação. jurisprudência) um papel crítico em relação ao Direito vigente, o
da falta de plenitude confia-lhe ainda um papel de elaboração e
concepção (progettazione) de novas técnicas e de mais vinculativas
7.5. A ciência jurídica e o desafio da complexidade condições de validade.
Que a incoerência do ordenamento faça da crítica do Direito o
A quarta e última alteração introduzida no modelo paleopo- papel primeiro da ciência jurídica depende do fato de o jurista não
sitivista pelo modelo garantista é a que diz respeito ao papel da poder ignorar nenhum dos dois níveis normativos a que perten-
cultura jurídica. Ela permite, a meu ver, reagir ao excessivo pessi- cem as normas em conflito. O reconhecimento deste conflito -

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virtualmente provocado pelos limites negativos, corno os direitos Social de Direito comparável ao velho Estado de Direito liberal e
••

de liberdade, impostos pelas constituições corno condições de vali- deixaram que o Estado Social se desenvolvesse de fato, através do
dade das narinas postas em vigor '- ilide a presunção geral de mero alargamento dos espaços de discricionariedade dos apa-
validade de que, segundo as teorias normativistas~ goza todo o relhos administrativos, do jogo desregulado dos grupos de pres-
ordenamento: presunção essa reforçada, corno se viu, pelas teorias são e das clientelas" da proliferação, das discriminações e dos
da democracia que identificam afundamento da sua legitimidade privilégios e do desenvolvimento desse caos normativo que hoje
democrática com O ,simples respeito das regras processuais' sobre' elas denunciam e contemplam comq "crise da capacidade regula-
a forma majoritária do "quem" e ',do "corno",das decisões; Ilidida dorado Direito". '
urna tal presunção, é precisamente o "Direito inválido" ou "ilegítimo" Além da incoerência e da falta de plenitude provocadas pelas
produzido pela contradição com normas superiores e, portanto, violações, positivas e negativas, da legalidade constitucional, há
pela violação dos limites negativos impostos ao poder normativo, ainda um terceiro vício que recordei no início, corno sendo o ter-
que se torna o objeto privilegiado da ciência jurídica. E é a crítica ceiro aspecto da crise atual do Direito: a crise do constitucionalis-
do Direito inválido, tendo por objetivo a sua anulação, que 'se mo, conseqüência da alteração do sistema das fontes de, caráter
torna a principal tarefa, simultaneamente científica e política, da ' internacional. É claro que a criação de, um sujeito político novo
ciência jurídica. corno é a Comunidade Européia, onde foram instituídos organis-
Pelo contrário, a falta de plenitude impõe à ciência jurídica mos executivos cujas decisões prevalecem - ou pelo menos preten-
um dever acima de tudo de inovação e de criação. O reconheci- de'm prevalecer - sobre as leis, e por vezes sobre as próprias
mento das lacunas provocadas pelo não-cumprimento das obriga- constituiçoes dos estados-membros, arriscaCsea deformar a estru-
ções positivas constitucionalmente impostas ao legislador assinala tura constitucional das nossas, democracias que, corno se viu, está
de fato, geralmente, urna omissão não só de normas, mas também na base do próprio papel do Direito corno sistema de garantias.
de técnicas apropriadas de garantia. É o caso da maior parte dos Mas isto quer. dizer que hoje é,tarefa urgente da cultura jurídica e
direitos sociais - à saúde, à educação, à siubsistência, à assistência, política avançar, corno exigência primeira e inadiável" a estipula-
etc. - cujas violações por parte do Estado não são sanáveis com ção de urna constituição européia. Creio que esteja contido na
técnicas de invalidação jurisdicional análogas às criadas para as lógica do atual processo de integração européia que se chegue, a
violações dos direitos de liberdade, requerendo a instituição de prazo mais ou menos longo, a urna unificação jurídica da Europa
técnicas de garantia diferentes e geralmente mais complexas. O e, talvez, à emanação de urna constituição européia. Mas depende
paradigma garantista é todavia ,o mesmo: a incorporação de vín- da cultura jurídica dos nossos países que isso venha a acontecer
culos substanciais consistentes, quer em deveres positivos (de fa- através de um processo constituinte não confiado exclusivamente
zer), quer' negativos, (de não fazer), às decisões dos poderes à classe dos juristas, mas eni,geral das forças da cultura e dos
públicos. Em alguns casos pense-se no salário mínimo garantido, movimentos sociais - e, sobretudo, rigidamente orientado para a
nas pensões de reforma, na educação ou na assistência sanitária salvaguarda e a garantia dos 'valores democráticos do nosso tem-
gratuita - a técnica garantista é relativamente simples, fundando- po: a igualdade, os direitos 'de liberdade, os direitos sociais, o
se em obrigações ex lege impostas aos poderes públicos. Noutros direito ao ambiente, etc. Depende essencialmente da cultura jurí-
casos, corno em todos aqueles em que a satisfação dos direitos dica e politológica, em particular, que seja superada a antinomia,
sociais requer a mediação burocrática e a criação de aparelhos que afeta toda a história dos direitos fundamentais; entre direitos
adequados à sua satisfação, urna técnica garantista não existe ou do homem e direitos do cidadão, e que os direitos fundamentais
existe sob formas assaz rudimentares. Devemos realmente reco- sejam finalmente garantidos, fora do velho esquema estatista, mes-
nhecer que para a maior parte de tai!;'dire'Hos"anossa tradição mo contra os próprios estados.
jurídica não elaborou técnicas de garantia tão eficazes quanto, as Nesta perspectiva, o empenho por um constitucionalismo eu-
criadas para os direitos de liberdade e de propriedade. Mas,isso , ropeu liga-se ao empenho por um constitucionalismo mundial.
resulta sobretudo de um atraso das ciências jurídicas e políticas, Creio que hoje já não é possível falar decentemente de democracia,
que até agora ainda não teorizaram nem conceberam um Estado de igualdade, de garantias, de direitos humanos e de universe li-
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dade dos direitos, se não \omarmps finalmen\e "a sério': - s~undo , do Illl.\ndo.Mas gostaria de recordar que,aqui em Espanha, depois
a feliz fórmula de Ronald Dworldn - a,Declaração Universal dos' do ,descobrimento da,América" Francisco de Vitória, nas suas Re-
Direitos do Homem da ONU de 1948eosPactos sobre Direitos de lectionesJie Indis recenter inventis expostas na Universidade çleSa-
1966; se nos fecharmos nas fron\elras das nossas democracias, alar- laman,ca,em, 1539, formulou a primeira doutrina' orgânica dos
gadas talvez às da "fortaleza Eurppa"; se continuarmos a dissociar, direitos t;lilturais,proclamando como direitos universais de todos,
direitos do homem e direitos do cidadão, preocupando-nos só com os homens e de todos os povos o juscommlmicationis, o jus migran-
estes e não com aqueles. Depois fia queda dos muros e do fim dos di, o jus peregrinandi in illasprovincias et illic degendi , bem como de
blocos, já não há álibis para que a democracia, cujos triunfos cele- accipire, domicilium in aliqua civitate illorum7.Nessa época, quando
bramos, não se realize finalmente asi própria. eram concretamente desiguais e assimétricos, a afirmação daque-
Realizar a demoéracia, levar a sério os direitos fundamentais, les direitos ofereceu ao Ocidente a legitimação jurídica da ocupa-
do homem, tal como são solenemente proclamados nas nossas ção do Novo Mundo e depois, durante ciT!cOséculos, de
constituições e nas declarações il'\ternacionais, quer dizer hoje põe colonização,e da exploração do planeta inteiro. Hoje, que a situa-
fim'a esse grande apartlleid que exclui da sua fruição quatro quin- ção inverteu-se - que são os povos do terceiro mundo a, serem
tos do gênero humano. E isto significa, por: sua vez, duas coisas. empurrados pela fOmepara os nossos países opulentos - só com o
Significa antes de mais reconhecj!r o caráter supra-estatal dos di- preço da perda de credibilidade de todos os valores jurídicos e
reitos fundamentais e portanto driar, em sede internacional, ga- políticos em que se baseiam as nossas democracias é que, esses
rantias idôneas para tutelá-los e satisfazê-los mesmo contra 01.\ direitos podem ser renegados e transformados em direitos de ci-
sem os estados: um código penal internacional contra os crimes dadania.
contra a humanidade; uma reforlTIada atual jurisdição internacio- A superação do caráter ilimitado da soberania estatal e, por
nal que estabeleça o caráter não apenas voluntário, mas obrigató- outro lado, de a cidadania ser condição para o gozo de direitos
rio, e a competência para decidir .sobre a responsabilidade dos fundamentais, é indispensável ,para o desenvolvimento de um
estados e dos seus governantes pelas violações dos direitos funda- constitucionalismo mundial. A crise atual - em si salutar e de
mentais dos seus cidadãos; um sistema de obrigações internacio- qualquer forma imparável - do Estado nacional não pode ser en-
nais imposto para tutela dos direitos sociais mesmo nos países frentada,nesta direção, apenas repensando os tópicos do constitu-
mais pobres; o progressivo desarmamento dos estados membros cionalismo, dentro e fora dos nossos ordenamentos, e com eles os
da ONU, acompanhado da instauração do monopólio da força tópicos aos quais confiar a rigidez normativa dos direitos funda-
legal pelos organismos ínternacionais democraticamente repre- mentais e das suas garantias. Não é evidentemente pensável uma
sentativos'. reforma do sistema de fontes que reproduz a a velha hierarquia
Em segundo lugar, levar a sério os direitos fundamentais quer vertical, baseada no primado das fontes centrais relativamente às
dizer hoje ter a coragem de dissociá-los da cidadania: tomar cons- locais e periféricas. Essa hierarquia bem pode ser invertida, para
ciência de que a cidadania, dos nossos países ricos representa o tutela das autonomias a todos os níveis, desde que seja preservado
último privilégio de status, o último resíduo pré-modemo das di- o rígido primado, sobre qualquer outra fonte, das normas que
ferenciações pessoais, o último fator de exclusão e discriminação garantem direitos fundamentais.
e não - como o foi na origem dos estados-membros - de inclusão Tudo isto é, naturalmente, uma tarefa, mais do que da cultura
e parificação, a última contradição não resolvida com a proclama- jurídica, da política. Mas é também, se levarmos a .sério o Direito
da universalidade dos direitos fundamentais. É claro que a efetiva e os direitos fundamentais; uma tarefa e uma responsabilidade
universalização de tais direitos, a começar pela liberdade de resi- nossa, da ciência jurídica; a qual, como escreveu recentemente
dência e de circulação, criaria problemas enormes para os nossos 7 VITÓRIA, Francisco de. Relectiones de Inclis recenter inventis, (1539), in: De indis et de
jure beUi relectiones, organizado por Emest Nys, Nova Iorque: Oceana, 1964, 'JIl, 3-5,
países, hoje assediados pela pressão da imigração de todo o resto í p.256-260. Para uma análise mais profundôl das teses de Francisco de Vitória e do paradigma
6 Sobre estes problemas, ver FERRAJOLI, L.; SENESE, S. "Quattro proposte per la pace", in:
i de legitimação por ele inaugurado, cf. o meu "La conquista dell' America e la nascita dei
diritto internazionale", in: Meridiana, Rivista di storia e scienze sociali, nll 15, 1992.
Democrazia e diritto, 1992, 1, p. 243-257.

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Letizia Gianformaggio, pode ser hoje concebida, à semelhança da inválidas; a plenitude, que exige a identificação das violações do
jurisdição; como uma "garantia":' precisamente como uma meta- ordenamento e portanto a criação de garantias idôneas aptas a
',' garantia relativamente às garantias jurídicas eventualmente inope'- impedi-las; a unidade, que requer li elaboração de um constitucio-
ran~es, ou ineficazes ou insuficientes, que opera mediante i nalismo mundial adequado a"restaurar uma hierarquia minima-
venficação e a'cenSura extrema do Direito inválido ou incompleto, mente certa e racional das fontes no quadro da unidade do
Compreende-se que um tal papel pragmático - crítico e criativo '- ordenamento internacional.
da ciência jurídica contradiz o dogma kelseniano e weberiaho do Compreende-se que uma ciênc;ia jurídica assim entendida
seu,caráter não-valorativo e puramente formal. Mas s6 assumindo confina e entrelaça-se com a política do Direito; melhor, com a luta
um tal papel, a razão jurídica estará em condições de compreender pelo Direito e pelos direitos levados a sério. Pode também dar-se
a específica complexidade do seu obje'to.Es6 voltando a ciência' o cas'o de uma tal perspectiva basear-se numa excessiva confiança
jurídica a ser como escrevia Gaetano Filangieri há dois séculos, no papel garantista do Direito. Mas eu penso que, inde-
quarido identificava não no Direito existente, mas no que de\>e' pendentemente do nosso otimismo ou pessimismo, para a crise do
Direito não há outra resposta ,senão o,p~6prio Direito; e que não
existir, o "objeto comum daqueles que pensam'" - "crítica do Direi'
existem, para a razão jurídica"alternativas possíveis. Ela é a única
to" existente e simultaneamente "ciência da legislação" e "ciência'
via para, responder à, complexidade social e para salvar, com o
dasconsfituições", éla poderá responder com sucesso ao difícil
futuro do Direito, também o futuro, da democracia.
desafio colocado pela moderna complexidade social., "'
Pod'embs portanto continuar a assumir, como tarefa da 'ciên-
cia jurídica, a,indicada por Norberto Bobbio há mais de quarenta
anoS, num séu célebre ensaio de 1950:'0 a realização da unidade, '
d~ coerência e da plenitude do ordenamento, Com a condição que
seja' claro que esta unidade, esta coerência e esta' plenitude - sob
este' aspecto têm inteira razão os críticos realistas do Direito -
realmente não existem. Não existe a coerência, estruturalmente "

excluída pela produção eventual de normas vigentes, mas inváli-


das porque em contradição com os princípios de liberdade consti-
tueio~almente estabelecidos. Não existe a plenitude, igualmente
exclUldapela eventual não-produção das normas ou dos atos im-
postos pelos direitos' sociais; também eles de nível constitucional.
E não 'existe sequer a unidade, dado que o sistema das fontes foi
per~u~badopela int~r,ven.çãode fontes supra ou extra-estatais, cujo
pO~'C1onamentono mterlOr do ordenamento é até agora incerto e
opmá"el. Mas o fato de 'estas qualidades não existirem e de talvez
nunc~ poderem ~ir a existir integralmente não significa que não
constItuam os obJetiVOS, mesmo que nunca totalmente realizáveis
da ciência jurídica: a coerência, perseguível através da crítica in~
terna do Direito vigente, dirigida a exigir a anulação das normas
8 GIANFORMAGGIO, L. HDiriUo e ra~ion"etra~sscrc .e':àbili::~~;~re;'~
o~. cit., p. ~4-27.
9 FlLA~GIER~, G. La scien~adella. Jegislnzione, (1783) ln: La scien~adella legislazione e gli
opuscoh scelh, Bruxelas: Tipografia della Società Belgica, 1841, Introdução, p. 57.
1080B810, ~', "Scienza .del diritto c nnalisi dellinguaggio", in: Rivista trimestrale di dirÚto
procedura clVlle, organtzado por Umberto Scarnelli Milão: Edizioni di Comunità 1976 p
287-324. "r ' , ,.

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