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Gragoatá

n. 23 2o semestre 2007

Política Editorial
A Revista Gragoatá tem como objetivo a divulgação nacional e internacional
de ensaios inéditos, de traduções de ensaios e resenhas de obras que representem
contribuições relevantes tanto para reflexão teórica mais ampla quanto para a
análise de questões, procedimentos e métodos específicos nas áreas de Língua e
Literatura.

ISSN 1413-9073

Gragoatá Niterói n. 23 p. 1-236 2. sem. 2007


© 2008 by Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense
Direitos desta edição reservados à EdUFF – Editora da Universidade Federal Fluminense
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Periodicidade: Semestral
Tiragem: 500 exemplares
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
G737 Gragoatá. Publicação do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade
Editora Federal Fluminense.— n. 1 (jul./dez. 1996) - . — Niterói : EdUFF, 1996 – 26 cm; il.
filiada Organização: Silvio Renato Jorge e Solange Vereza
à Semestral
ISSN 1413-9073.
1. Literatura. 2. Lingüística.I. Universidade Federal Fluminense. Programa de
Pós-Graduação em Letras.
CDD 800

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Vilma Arêas (UNICAMP)
Walter Moser (Univ. de Montreal)
Gragoatá
n. 23 2º semestre 2007

Sumário
Apresentação .................................................................................... 5

ARTIGOS

Semiótica e retórica ..........................................................................9


José Luiz Fiorin
Lanterna na proa: sobre a tradição recente nos estudos da
lingüística . ......................................................................................27
Maria Margarida Martins Salomão
Uma (re)leitura contemporânea do imaginário português:
as mezinhas de Dom Duarte .........................................................53
Mariangela Rios de Oliveira, Sebastião Josué Votre e Kátia Eliane
Santos Avelar
Tirando os véus, velando o outro: Bakhtin e os diálogos
multiculturais contemporâneos ...................................................65
Valéria Rosito Ferreira
A semiótica tensiva e o nouveau roman
de Nathalie Sarraute .......................................................................79
Renata Mancini
Condicionais reportadas e flexibilidade de ponto de vista . ...95
Lilian Ferrari
A literatura, hoje: crônica de uma morte anunciada .............. 111
Sérgio Luiz P. Bellei
Reflexões sobre a poesia como abertura ...................................135
Juliana P. Perez
A conquista do “entre-lugar”: a trajetória
do romance histórico na América .............................................. 149
Gilnei Francisco Fleck
Ideograma e pensamento selvagem: a arte e
a ciência do yãmîy maxakali . ..................................................... 169
Charles Bicalho
A literatura marginal e a tradição da literatura: o prefácio-
manifesto de Ferréz, “Terrorismo Literário” ........................... 189
Luciano Barbosa Justino
Ruínas e memória: Dois irmãos
e um “novo’ regionalismo ...........................................................205
Nádia Regina Barbosa da Silva

RESENHAS
GRANDIS, Rita de. Reciclaje cultural y memoria
revolucionaria: la práctica polémica
de José Pablo Feinmanni .......................................................... 225
Silvia Cárcamo
Apresentação

A proposta deste número vinte e três da Revista Gragoatá


é privilegiar reflexão teórica que aponte para o modo como
determinadas correntes interpretativas contemporâneas revi-
sitam aspectos da tradição, reconfigurando-os ou não, para, a
partir daí, estabelecer diálogos e atravessamentos. Para além
disso, buscamos incluir textos que, ao se dedicarem a comentar
obras literárias ou um corpus lingüístico específicos, acabam
por evidenciar a recorrência a novos paradigmas teóricos e a
presença, neles, de um diálogo com a tradição. Buscamos, assim,
compreender o que se apresenta como um legado dos estudos
lingüísticos e literários para o século que se inicia e estimular a
análise interpretativa e a leitura do contemporâneo.
O legado enfocado por José Luiz Fiorin, no artigo que abre
a revista, é o da retórica. Em Semiótica e retórica, o autor propõe
que herdamos a retórica sob a perspectiva dos problemas teóricos
da atualidade, considerando séculos de reflexão em torno das
questões abraçadas por esse campo de pensamento. Inicialmente
mostrando que a retórica trata dos “procedimentos discursivos
que possibilitam ao enunciador produzir efeitos de sentido
que permitem fazer o enunciatário crer naquilo que foi dito”,
o autor passa a examinar como a semiótica francesa tem incor-
porado tanto a dimensão tropológica quanto a argumentativa
dos estudos retóricos. Esse movimento de resgate da retórica
significaria, dessa forma, abordá-la à luz das questões teóricas
da contemporaneidade, em que o discurso surge como núcleo
central da produção de sentidos. É dentro dessa perspectiva que,
em um segundo momento, conceitos próprios da semiótica são
examinados no artigo.
Maria Margarida Salomão procura, em suas próprias
palavras, “acender uma lanterna na popa” para reler a tradição
na produção contemporânea nos “mares da Lingüística”. Essa
“lanterna” aponta para a enunciação de três teses norteadoras,
interrelacionadas, que são desenvolvidas no artigo Lanterna na
Proa: sobre a tradição recente nos estudos da Lingüística. A primeira
tese é a de que a lingüística do século XX seria um “enorme
sucesso como empreendimento político e científico”. A segunda
propõe que o advento das novas tecnologias, juntamente com
a consolidação das ciências cognitivas cria, para as práticas ca-
nônicas, “uma tensão insuportável”. E, em último lugar, e como
conseqüência das teses anteriores, a autora sugere que haja, na
tradição recente nos estudos da linguagem, um “redesenho
disciplinar da lingüística”.

Niterói, n. 23, p. 5-9, 2. sem. 2007 5


Mariângela Rios, Sebastião José Votre e Kátia Avelar em
seu artigo Uma (re)leitura contemporânea do imaginário português
– as mezinhas de Dom Duarte, apresentam uma proposta de re-
leitura contemporânea do imaginário português, com foco nas
tradições culturais. Releituras, segundo os autores, podem ser
compreendidas como “exercícios de análise do conteúdo e rein-
terpretação, na ótica situada no hoje, de produtos e processos
culturais do passado”. O foco específico da releitura proposta é
o cuidado com as pessoas, sob a luz de seus valores culturais e
linguageiros e “em suas práticas alimentares e terapêuticas”. A
análise dos textos escolhidos, um conselho/regimento e duas
mezinhas de Dom Duarte, se detém nos aspectos reveladores de
traços de estabilidade e de continuidade nas práticas discursivas
e culturais registradas, que permitem a identificação de “uma
mesma língua e universo cultural cunhados, pelo menos, há
cinco séculos no imaginário português”.
Em Tirando os véus, velando o outro: Bakhtin e os diálogos
multiculturais contemporâneos, Valéria Rosito Ferreira revisita o
pensamento do teórico russo em torno do conceito de polifonia,
procurando articulá-lo à crítica cultural da contemporaneidade.
A autora, em sua reflexão, mostra a riqueza e adequação dessa
articulação, principalmente no que se refere à interface entre
Teoria da Literatura e Lingüística. O fenômeno contemporâneo
específico sobre o qual Valéria se debruça é o multiculturalismo,
examinado e problematizado a partir do exame da linguagem
cinematográfica de A Maçã de Samira Makhmalbaf, de 1998. A
partir dessa reflexão, a autora aponta os riscos que o privilégio
das ‘vozes de dentro’ pode acarretar para o “fenômeno do multi-
culturalismo e da globalização na produção cultural e acadêmica
contemporâneas”.
Renata Mancini, em seu artigo A semiótica tensiva e o nouveau
roman de Nathalie Sarraute, examina a semiótica tensiva de Claude
Zilberberg e Jacques Fontanille como um importante desenvol-
vimento recente da semiótica greimasiana. Os trabalhos nessa
linha, segundo a autora, contemplam os elementos sensíveis
característicos da geração de sentidos os quais, cifrados como
categorias, dariam conta do tratamento do texto como processo.
De acordo com a autora, apesar de essa abordagem não alterar
os procedimentos clássicos da análise semiótica greimasiana,
mostra-se “particularmente produtiva no tratamento de textos
contemporâneos, que trazem como uma de suas marcas a ma-
nipulação sensível do enunciatário”. Esse é o caso do texto de
Sarraute analisado, cujo efeito de sentido, segundo a autora, “não
pede apenas para ser compreendido”, mas, sobretudo, para ser
‘vivenciado’.”
Em seu artigo Condicionais reportadas e flexibilidade de ponto
de vista, Lilian Ferrari lança mão da teoria dos Espaços mentais
para examinar as construções condicionais no português brasi-
6 Niterói, n. 23, p. 5-9, 2. sem. 2007
leiro. Essa proposta afasta-se da noção tradicionalmente aceita de
uniformidade de postura epistêmica, que vê esse fenômeno como
sendo unificado e coerente. Segunda a autora, a noção tradicional
não explicaria os casos de condicionais encaixadas no discurso
indireto, que pode ser mais bem compreendido por meio de
primitivos discursivos, tais como Base, Ponto de Vista e Foco.
Lilian Ferrari argumenta que a exigência de uniformidade nas
construções condicionais não seria de natureza inerentemente
sintática, mas decorreria de fatores discursivo-pragmáticos, que
poderiam ser tratados adequadamente pelo arcabouço teórico-
analítico da teoria dos espaços mentais.
Em A literatura, hoje: crônica de uma morte anunciada, Sérgio
Luiz P. Bellei retoma a discussão em torno da “morte da litera-
tura”, conforme proposta pelo que se convencionou chamar de
a “Era da Teoria” e que corresponde aos anos que se seguiram
à década de sessenta, para problematizá-la diante das transfor-
mações ocorridas nos últimos quarenta anos, sobretudo a con-
siderarmos aspectos sócio-culturais e tecnológicos. Para tanto,
relê elementos da teorização desenvolvida no período, interro-
gando os conceitos de autor, texto, leitor e arte, para identificar,
nos últimos anos, a presença de questionamentos alternativos,
responsáveis por indicar a relevância social e cultural do literário
no momento em que vivemos.
Juliana P. Perez, em Reflexões sobre a poesia como abertura,
investiga o conceito de abertura nos textos de Paul Celan, para,
a partir daí, compreender a abertura como uma das condições
de possibilidade da própria poesia. Desta forma, a pesquisadora
desdobra o conceito em três níveis - o lingüístico, o cognitivo e
o ético -, apresentando-o como instrumento capaz de assinalar
a disponibilidade da linguagem ao incomensurável do outro, a
percepção do homem como ser efêmero e o estabelecimento de
um ethos que se configura em plenitude no amor.
A conquista do “entre-lugar”: a trajetória do romance histórico na
América, artigo apresentado por Gilnei Francisco Fleck, apropria-
se de já conhecido conceito estabelecido por Silviano Santiago na
década de setenta – o entre-lugar – para pensar a trajetória do
romance histórico na América. Este gênero, caracteristicamente
híbrido, encontra-se, ao aqui chegar, com realidades históricas
singulares, como afirma o próprio autor. Seus romancistas, ao
interagirem com essas realidades e estabelecerem uma pers-
pectiva que busca dar voz ao colonizado, encaminham-se para
a constituição de uma releitura crítica do passado, esboroando
a forma como ele fora fixado pelo olhar europeu. Tal procedi-
mento o constitui, sintomaticamente, como espaço inovador e
fundamental para a reflexão acerca da história do continente, já
aqui interrogado por aqueles que o habitam.
Em Ideograma e pensamento selvagem – a arte e a ciência do
yãmîy maxakali, Charles Bicalho busca aproximar Teoria Lite-
Niterói, n. 23, p. 5-9, 2. sem. 2007 7
rária e Antropologia, estabelecendo relações entre o conceito
de ideograma, principalmente como postulado por Haroldo de
Campos, e a idéia de pensamento selvagem, elemento central no
pensamento de Lévi-Strauss. Esta aproximação, delineada a
partir da observação de uma manifestação performática, com
ênfase em seu aspecto verbal, que se insere no rol dos sistemas
simbólicos dos índios Maxakali de Minas Gerais, recorre, ain-
da, a outros aparatos teóricos, como a semiótica de Peirce e os
estudos de Clifford Geertz, para reconhecer o ideograma como
“a expressão por excelência do pensamento selvagem”.
Em A literatura marginal e a tradição da literatura: o prefácio ma-
nifesto de Ferréz, Terrorismo Literário, escrito por Luciano Barbosa
Justino, o prefácio-manifesto produzido pelo escritor paulista é
tomado como objeto privilegiado para o entendimento da litera-
tura marginal e da forma singular como esta produção se relacio-
na com a tradição literária. Para tanto, convoca a especificidade
do lugar de escrita ocupado por esse autor – morador de uma
favela na periferia de São Paulo – para destacar a perspectiva
étnica e política presente em tal interlocução.
Nádia Regina Barbosa da Silva, em Ruínas e memória: Dois
irmãos e um “novo” regionalismo, parte da leitura do romance Dois
irmãos, de Milton Hatoum, para discutir as aproximações entre o
texto e o modelo do romance regionalista, destacando, sobretudo,
o modo como tal romance investe na constituição de matéria
híbrida, por recorrer a contribuições próprias de matrizes urba-
nas – clássicas ou modernas – de nossa literatura. Desta forma,
segundo a autora, o texto de Hatoum reexamina os conteúdos
regionais, ao mesmo tempo em que enfoca as relações presentes
nos seio da família, recuperando uma identidade específica que
parece evitar transformação multicultural mais abrangente.
Por fim, Silvia Cárcamo apresenta uma resenha de Reciclaje
cultural y memoria revolucionaria: la práctica polémica de José Pablo
Feinmanni, livro publicado por Rita de Grandis em Buenos Ai-
res, em 2007, pela editora Biblos. Na resenha, a autora destaca o
desafio assumido pela obra ao se propor a pensar a reciclagem
cultural e a memória revolucionária como fenômenos simultâ-
neos, para, a partir delas e considerando a inserção de José Pablo
Feinmann, discutir o campo intelectual argentino.

Silvio Renato Jorge e Solange Vereza (Org.)

8 Niterói, n. 23, p. 5-9, 2. sem. 2007


Semiótica e retórica
José Luiz Fiorin

Recebido 16, jul. 2007/Aprovado 20, set. 2007

Resumo
Este trabalho, depois de mostrar que a retórica
estuda os procedimentos discursivos que possi-
bilitam ao enunciador produzir efeitos de sentido
que permitem fazer o enunciatário crer naquilo
que foi dito, propõe que as diferentes teorias do
discurso devem herdar a retórica, levando em
consideração séculos de estudos já realizados. Her-
dar a retórica quer dizer lê-la à luz dos problemas
teóricos enunciados na atualidade, investigar as
questões abordadas por ela segundo o ponto de
vista das questões teóricas modernas. Em seguida,
examina-se a maneira como a semiótica francesa
está tratando, de um lado, a chamada retórica
das figuras; de outro, a denominada retórica
argumentativa, num processo de incorporação
teórica das aquisições dos retores antigos. Expõe-
se o que são figuras e argumentos da mistura e
da triagem, figuras da valência da intensidade,
figuras da valência da extensidade e argumentos
implicativos e concessivos.
Palavras-chave: Figuras da mistura. Figuras da
triagem. Intensidade. Extensidade. Implicação.
Concessão.

Gragoatá Niterói, n. 23, p. 9-26, 2. sem. 2007


Gragoatá José Luiz Fiorin

“Esthloû patròs paî, kautòs ōn néos potè


glōssan mèn argòn, kheîra d’eîkhon ergátin;
nŷn d’eis élenkhon exiōn horō brotoîs
tēn glōssan, oukhì tárga, pánth’ēgouménēn.”1
(Sófocles, Filoctetes, v. 96-99)

Aristóteles, seguindo uma longa tradição, divide os ra-


ciocínios em necessários e preferíveis (1991, I, 2, 1356b-1358a;
2005, I, 1; II, 27). O primeiro é aquele cuja conclusão decorre
necessariamente das premissas colocadas, ou seja, sendo verda-
deiras as premissas, a conclusão não pode não ser válida. O tipo
perfeito de raciocínio necessário era, para o filósofo, o silogismo
demonstrativo:
Todos os metais são bons condutores de eletricidade.
Ora, o mercúrio é um metal.
Logo, o mercúrio é um bom condutor de eletricidade.
Como é verdadeiro que os metais são bons condutores de
eletricidade e que o mercúrio é um metal, não pode não ser ver-
dade que o mercúrio é um bom condutor de eletricidade. Nesse
caso, a conclusão não depende de valores, da visão de mundo,
de posições religiosas, de sentimentos, etc.
Os raciocínios preferíveis são aqueles cuja conclusão é
possível, provável, plausível, mas não necessariamente verda-
deira, porque as premissas sobre as quais ela se assenta não são
logicamente verdadeiras. O silogismo dialético ou retórico é um
exemplo desse tipo de raciocínio.
Os bancos antigos são sólidos.
Ora, X é um banco antigo.
Logo, X é sólido.
Nesse caso, é possível, é provável, é plausível, mas não lo-
gicamente verdadeiro, que X seja sólido, uma vez que os bancos
antigos não são necessariamente sólidos. Nesse caso, a admissão
de certas premissas e, portanto, de determinadas conclusões
depende de crenças e de valores.
Os raciocínios necessários pertencem ao domínio da lógica
e servem para demonstrar determinadas verdades. Os preferíveis
são estudados pela retórica e destinam-se a persuadir alguém
1
Ó filho de nobre pai, de que uma determinada tese deve ser aceita, porque ela é mais
eu também, quando era
jovem, outrora, conser-
justa, mais adequada, mais benéfica, mais conveniente e assim
vava a língua inativa por diante. Nos negócios humanos, não há, na maioria das vezes,
e as mãos ocupadas.
Agora, tendo atingido
verdades lógicas. Por exemplo: o aborto é um direito ou um cri-
a experiência, vejo que, me; a parceria civil de pessoas do mesmo sexo é a reparação de
entre os mortais, é a
palavra e não a ação que uma situação de iniqüidade ou uma aberração; deve-se fazer o
tudo conduz.

10 Niterói, n. 23, p. 9-26, 2. sem. 2007


Semiótica e retórica

que é conveniente ou o que é justo? Nenhuma dessas conclusões


é logicamente verdadeira, porque elas dependem de valores, de
crenças, de temores, de anseios, etc.
A persuasão faz-se, segundo Cícero, pelo convencimento,
quando se mobilizam argumentos para levar a aceitar uma tese;
pela comoção, quando isso é feito insuflando o estado de espí-
rito do destinatário, suas paixões, seus preconceitos, etc.; pelo
encantamento, pelo deleite (1966, II, 28, 121). No plebiscito sobre
a proibição da venda de armas de fogo, a campanha para o sim
foi feita fundamentalmente pelo convencimento; a campanha
para o não foi realizada basicamente pela comoção, jogando com
a sensação de insegurança da população.
Os argumentos são os raciocínios que se destinam a persu-
adir, isto é, a convencer ou a comover, ambos meios igualmente
válidos de conduzir à admissão de determinada idéia.
Muitas ciências têm seus mitos fundadores. Conta Roland
Barthes que a retórica surge, por volta de 485 a. C., depois que
uma sublevação democrática derrubou os tiranos da Sicília
Gelon e Hieron, que, durante seu governo, tinham expropriado
muitas terras com a finalidade de distribuí-las a seus soldados.
Depois da vitória dos insurretos, os proprietários espoliados
reclamaram a devolução de suas propriedades. Esses processos
mobilizavam grandes júris populares, que precisavam ser con-
vencidos da justiça da reivindicação. A eloqüência necessária
para impelir o ânimo dos jurados tornou-se objeto de ensino. Os
primeiros professores foram Empédocles de Agrigento, Córax,
seu aluno em Siracusa e o que inaugurou a cobrança pelas lições
ministradas, e Tísias (Barthes, 1975, p. 151). Foi Córax quem
começou a codificação das partes da oratio, criando uma “retórica
do sintagma” (Barthes, 1975, p. 151). Ele estabeleceu o pólo
sintagmático da retórica, que é a ordem das partes do discurso,
a táxis ou dispositio (Barthes, 1975, p 153).
A retórica é, sem dúvida nenhuma, a disciplina que, na
História do Ocidente, deu início aos estudos do discurso. Tira
ela seu nome do grego rhéseis, que quer dizer “ação da falar”,
donde “discurso”. Rhetoriké é a arte oratória, de convencer pelo
discurso. A emergência da primeira disciplina discursiva traz
consigo a consciência da heterogeneidade discursiva. Com efei-
to, desde o seu princípio, estava presente nos ensinamentos de
Córax que todo discurso pode ser invertido por outro discurso,
tudo o que é feito por palavras pode ser desfeito por elas, a
um discurso opõe-se um contradiscurso. Conta-se que Córax
dispôs-se a ensinar suas técnicas a Tísias, combinando com ele
que seria pago em função dos resultados obtidos pelo discípulo.
Quando Tísias defendesse a primeira causa, pagar-lhe-ia se ga-
nhasse; se perdesse, não lhe deveria nada. Terminadas as lições,
o aluno entra com um processo contra o mestre. Nessa primeira
demanda, ele ganharia ou perderia. Se ganhasse, não pagaria
Niterói, n. 23, p. 9-26, 2. sem. 2007 11
Gragoatá José Luiz Fiorin

nada por causa da decisão do tribunal. Se perdesse, não deveria


nada por causa do acordo particular entre eles. Córax constrói
seu contradiscurso, retomando a argumentação de Tísias, mas
invertendo-a. Se Tísias ganhar o processo, deve pagar por causa
do acordo particular; se perder, deve pagar por causa da decisão
do tribunal. Nos dois casos, deve pagar (Plantin, 1996, p. 5).
Os sofistas continuaram a impulsionar a nova disciplina.
Devem-se a eles quatro noções discursivas:
a) a antifonia, ou seja, a prática sistemática da oposição
entre discursos: a cada discurso corresponde um outro
discurso, produzido por um outro ponto de vista2;
b) o paradoxo, que mostra que, diferentemente do que
pensa o senso comum, a linguagem não é transparente,
sua ordem não é homóloga à da realidade, ela tem uma
ordem própria, autônoma em relação à realidade3;
c) a probabilidade, ou seja, a idéia de que, no que diz respeito
às realidades humanas, não existe apenas o verdadeiro
e o falso, o certo e o errado4;
2
Veja-se um exemplo d) a dialética, que conduz à tese de que a interação discursiva
de antifonia. Alguém
foi ferido por um dardo
é a realidade em que se estabelecem as relações sociais
num ginásio. Trata-se de (Plantin, 1996, p. 6-7).
saber quem é o respon-
sável. Ponto de vista 1: Górgias de Leontium chegou a Atenas em 427. Foi professor
o responsável é quem
lançou o dardo. Ponto de Tucídides e é o interlocutor de Sócrates no diálogo de Platão
de vista 2: o responsá-
vel é a vítima, que não
que leva seu nome. Começa ele a discutir as figuras de retórica,
respeitou as instruções fundando as bases do pólo paradigmático da retórica, a léxis ou
de segurança do giná-
sio (PLANTIN, 1996,
elocutio (Barthes, 1975, p. 152-153).
p. 6). Uma disputa grande entre a retórica, a dialética e a filosofia
3
Por exemplo: Tudo o
que é raro é caro.
está na base dessas três disciplinas humanísticas fundamentais.

Um cavalo barato é No Górgias, de Platão, opõe-se Górgias a Platão, ou seja, a retó-
raro.

rica à filosofia. Uma discussão fundamental é a diferença entre
Portanto, um cavalo
barato é caro.
elas: a filosofia visa à verdade, enquanto a retórica, ao resultado

A mor é u m fogo (­stochastiké) e, por conseguinte, não pode ser uma techné (1935,
que arde sem se ver” 463a). Uma mediação entre as duas disciplinas provinha da dialé-
(Camões, 1988, p. 270).
4 tica, que teve como figura emblemática Sócrates. Ao contrário da
Um exemplo. É prová-
vel que o homem tenha retórica, ela, assim como a filosofia, considera basilar a distinção
batido na mulher (pro-
babilidade de primeiro
entre o verdadeiro e o falso; mas, ao contrário da filosofia, julga
nível). No entanto, como central a formulação dos conceitos. O ponto de vista de Sócrates
a mulher sabe, em vir-
tude da probabilidade e da dialética é bem expresso no Mênon, de Platão: “Ora, parece-
de primeiro nível, que me que o que caracteriza esse espírito (a dialética) não é somente
as suspeitas vão recair
sobre o homem, ela é dizer a verdade, mas é também fundar seu dizer naquilo com
que bateu nele (proba-
bilidade de seg undo
que o interlocutor possa concordar” (1935, 75d).
nível). Esse conceito, Aqui entra uma questão fundamental para o analista do
como nota Plantin, mar-
ca a emergência de uma
texto. Se a filosofia está voltada para a obtenção da verdade e esta
análise dos estereótipos não é relativa, a filosofia tem uma concepção não heterogênea
do comportamento hu-
mano (1996, p. 9). da linguagem. Na medida em que a retórica visa a resultados,

12 Niterói, n. 23, p. 9-26, 2. sem. 2007


Semiótica e retórica

seja por um caminho lógico, o do convencimento (fidem facere)5,


seja pelo humor do auditório, o da comoção (animos impellere)
(Barthes, 1975, p. 184), tem a nítida noção da heterogeneidade
discursiva, da idéia de que um discurso se constitui em oposição
a outro discurso.
A Retórica, de Aristóteles, compreende três livros. O pri-
meiro trata do enunciador, de como ele concebe os argumentos,
de como constrói seu éthos na enunciação; o segundo analisa
o enunciatário, como ele recebe os argumentos em função do
5 páthos; o terceiro estuda a mensagem, como se expressam os
É interessante no-
tar que fides significa argumentos.
a credibilidade, o que
demon st ra o ca ráter
A retórica antiga continha cinco operações, embora so-
ideológico da interpre- mente as três primeiras fossem realmente objeto de estudos
tação, uma vez que o
crer precede o saber
mais acurados:
(Greimas, 1983, p. 115-
134). Cf., por exemplo, 1. inventio héuresis invenire quid dicas
nas Metamorfoses, de
Ovídio: at ille/ dat ge- 2. dispositio táxis inventa disponere
mitus fictos commen-
taque funera narrat/ et
lacrimae facere fidem 3. elocutio léxis ornare verbis
(VI, 564-566) (porém ele
(Tereo) emite gemidos
fingidos e narra-lhe uma
4. actio hypócrisis agere et pronuntiare
morte imaginária e as
lágrimas deram credi- 5. memoria mnéme memoriae mandare
bilidade).
6
Como nota Barthes, a (Barthes, 1975, p. 182)6
inventio é o ato de encon-
trar argumentos e não A retórica conhece grande importância em Roma, com
de inventá-los. Extraem-
se argumentos de um Cícero, Quintiliano, etc.
lugar (tópos), onde já
estão (1975, p. 183).
Na Idade Média, a base de toda a educação é o septennium,
7
A estrutura do sep- que prepara para a teologia, que reina soberana sobre as sete
tennium é codificada artes liberais, súmula do conhecimento humano desinteressa-
no séculos V e VI por
Marciano Capella, com do. Essas artes são divididas em dois grupos: um que estuda a
base numa alegoria: as
núpcias de Mercúrio
linguagem, o trivium (gramática, dialética e retórica) e outro que
e da Filologia. Esta é perscruta a natureza, o quadrivium (música, aritmética, geometria
prometida àquele e re-
cebe como presente de e astronomia).7 A retórica é a “arte do discurso eficaz” (ars bene
casamento as sete ar- dicendi)8. Ao longo de dez séculos, a proeminência passou de
tes liberais, cada uma
apresentada com seus uma para outra das disciplinas do trivium. No entanto, sempre
símbolos. A Gramática
é uma velha senhora,
se manteve uma consciência da heterogeneidade discursiva. Por
trajando roupas roma- exemplo, a disputatio, com seus sic et non, sed contra, respondeo, é o
nas e portando um pe-
queno cofre, com uma exercício de construção de discursos contraditórios sobre uma
lima e uma faca para dada tese, é um exercício em que um discurso se constrói em
corrigir as faltas dos
filhos. A Retórica é uma oposição a outro discurso.
bela mulher, com vestes
ornadas, empunhando
Mais tarde, a retórica torna-se apenas um estudo de figuras
armas para ferir os ad- (Genette, 1975, p. 129-146), cai num quase total esquecimento,
versários (Barthes,
1975, p. 164).
perde o prestígio de que desfrutava e é relegada a segundo plano.
8
Nota Rener que, en- Lembremo-nos da célebre afirmação de Victor Hugo: Guerre à la
quanto a retórica era
chamada ars bene di-
rhétorique, paix à la syntaxe.
cendi, a gramática era Se, de um lado, é verdade que a retórica foi tomada do que
a ars recte dicendi e
a dialética, a ars vere Genette denominou “fúria de nomear” (1972, p. 17), o que con-
dicendi (1989, p. 147). duziu à elaboração de taxionomias cada vez mais exaustivas de

Niterói, n. 23, p. 9-26, 2. sem. 2007 13


Gragoatá José Luiz Fiorin

casos particulares; de outro, é também certo que buscou estudar,


com bastante precisão, os mecanismos discursivos que permitem
“provocar ou incrementar a adesão dos espíritos às teses que
lhes são apresentadas” (Perelman, 1970, p. 25). Hoje, embora
concordemos integralmente com o enunciado que expõe o obje-
tivo da retórica, apresentá-lo-íamos em outra linguagem: estuda
os procedimentos discursivos que possibilitam ao enunciador
produzir efeitos de sentido que permitem fazer o enunciatário
crer naquilo que foi dito. As diferentes teorias do discurso de-
vem herdar a retórica no estudo dos procedimentos discursivos,
levando em consideração séculos de estudos já realizados.
Que significa herdar a retórica? Lê-la à luz dos proble-
mas teóricos enunciados na atualidade. Quando se disse que
a concepção da heterogeneidade lingüística já estava presente
na criação da retórica, não se quis dizer que a retórica é uma
prefiguração da Análise do Discurso, pois uma visão teleológi-
ca da ciência não se sustenta. O que se estava fazendo é ler os
temas abordados pela retórica sob a ótica das questões teóricas
modernas.
Claude Zilberberg observa que o problema da afetividade,
do sensível foi deixado de lado na constituição da lingüística. Isso
correspondeu a sua “desretorização” (2006, p. 179). A semiótica
narrativa e discursiva tem como fontes principais a lingüística,
a antropologia estrutural e a narratologia de Propp. Buscou
também contribuições na fenomenologia e na psicanálise. No
entanto, ignorou a retórica. Hoje é preciso voltar à retórica e
incorporá-la à semiótica. Para Zilberberg, isso corresponde à
inclusão dos afetos na teoria, ao abarcamento da dimensão es-
tésica do discurso. Afinal, a retórica tinha entre seus objetivos,
não apenas docere ou probare, que concerne ao componente inte-
ligível do discurso, mas também delectare ou placere e movere ou
flectere (Cícero, 1921, I, 21, 69; Quintiliano, 1980, XII, 2, 11),
que dizem respeito ao componente afetivo do discurso.
A semiótica tensiva, um dos últimos desenvolvimentos teó-
ricos da semiótica9, busca construir um modelo para descrever os
fenômenos contínuos, diretamente associados ao universo sensí-
vel. Depois da importância que o primeiro estruturalismo deu à
descontinuidade, é preciso agora dar lugar à continuidade, pois
essas são as duas maneiras pelas quais o sentido se apresenta.
Na verdade, o que é pertinente nessa orientação da semiótica é a
direção da continuidade, ou seja, o aumento e a diminuição. Por
isso, dá-se um espaço particular ao aspecto, que não é senão “a
análise do devir ascendente ou descendente de uma intensida-
de” (Zilberberg, 2006, p. 167). Se se fala em devir, leva-se em
9
Nossa exposição so- conta a velocidade e o andamento. Com efeito, uma semiótica
bre a semiótica tensiva é
tributária de Fontanille; dos acontecimentos deve mostrar o papel relevante dos anda-
Zilberberg (2001) e Zil-
berberg, (2006).
mentos não só no sistema, mas também no processo. Todas as
grandezas lingüísticas analisam-se em termos de intensidade e
14 Niterói, n. 23, p. 9-26, 2. sem. 2007
Semiótica e retórica

de extensidade. Tensividade é a categoria semântica que engloba


esses dois termos em oposição. O primeiro é o lugar da afetivi-
dade, dos estados de alma, do sensível; o segundo, o dos estados
de coisas, do inteligível (Zilberberg, 2006, p. 167). Essas duas
articulações da tensividade constituem valências e a associação
de uma valência intensiva com uma extensiva produz o valor.
A intensidade, por sua vez, articula-se em duas subdimensões:
o andamento e a tonicidade; a extensidade, também em duas: a
temporalidade e a espacialidade. A intensidade concerne à força,
à energia presente numa grandeza, enquanto a extensidade diz
respeito à extensão do campo controlado pela intensidade no
tempo e no espaço.
Essas duas valências mantêm relações conversas (quanto
mais... mais; quanto menos... menos) ou inversas (quanto mais...
menos; quanto menos... mais). Por exemplo, diz o provérbio que
“o amor faz passar o tempo e o tempo faz passar o amor”. Note-se
que o anexim mostra que há uma relação inversa entre intensida-
de e temporalidade (quanto mais intenso o amor menos longo é
o tempo; quanto mais longo é o tempo menos intenso é o amor).
O produto do andamento e da tonicidade é um valor de impacto,
ou seja, da superlatividade; o resultado da maior expansão no
espaço com a maior extensão no tempo é um valor de universo,
uma universalidade. Entre os valores de impacto, de absoluto,
e valores de universo existem tanto relações conversas como
inversas. Se elas forem conversas, a um aumento dos valores de
absoluto corresponde uma ampliação dos valores de universo e
a mesma coisa ocorre com a diminuição; se elas forem inversas, a
um arrefecimento dos valores de absoluto equivale um acréscimo
dos valores de universo e assim sucessivamente.
Essas considerações são suficientes para explicar os objeti-
vos da semiótica tensiva. Vamos agora mostrar como ela incorpo-
ra a retórica. A retórica antiga era geral, pois comportava tanto
uma dimensão tropológica como uma dimensão argumentativa.
Aliás, essa diferença só faz sentido atualmente, já que para os
antigos os tropos eram formas de argumentar. Pouco a pouco,
ocorre o que Genette chama a redução tropológica (In: COHEN,
1975, p. 131). Diz Perelman que a “retórica dita clássica, que se
opõe à antiga, tinha-se reduzido a uma retórica das figuras,
consagrando-se à classificação das diferentes maneiras como
10
Quintiliano, desde o se podia ornar o estilo” (1977, p. 10). Paulatinamente, criam-
início de sua obra fala
em ratio dicendi, “ciência se duas retóricas, uma da argumentação e uma das figuras
ou arte do dizer (I, Pr, (Klinkenberg apud Meyer, 1990, p. 115-137). A semiótica
1) e define a retórica
também como bene di- tensiva procura integrar ambas, no seu campo teórico.
cendi scientia (II, 15, 34),
determinando seu fim
Vamos dar alguns exemplos dessa incorporação da retórica
e sua eficácia última no na semiótica. O que é preciso notar é que esta necessita expli-
simples “falar bem”, ou
seja, falar com eficácia: car os fenômenos sobre os quais aquela se debruça, a partir de
finis eius et summum est seus pressupostos teóricos e não daqueles da ars [...] bene dicendi
bene dicere (II, 15, 38).
(Quintiliano, 1980, II, 17, 37)10.
Niterói, n. 23, p. 9-26, 2. sem. 2007 15
Gragoatá José Luiz Fiorin

Para uma semiótica das figuras


Tomemos um exemplo para mostrar que a semiótica não
pode aceitar certos postulados da retórica. Todos os manuais
de retórica aludem à dificuldade de sistematizar as figuras de
pensamento (Cf. Lausberg, 1976, v. 2, p. 190). Lausberg e o
grupo de Liège (DUBOIS et al., 1974, p. 174-201), por exemplo,
apesar de suas diferenças, partem do mesmo fundamento para
estabelecer uma organização dessas figuras e de todas as ou-
tras: a quadripertita ratio, que se compunha de quatro operações,
adiectio, detractio, immutatio e transmutatio (Quintiliano, 1980,
I, 5, 38-41). No entanto, assim que começam a sistematizá-las,
diversas dificuldades se apresentam. Uma delas é o fato de uma
figura poder ser constituída de outra ou de outras figuras. Por
exemplo, uma antítese pode constituir-se de duas hipérboles
(Dubois et al., 1974, p. 191). Isso significa que essas duas figuras
não pertencem à mesma ordem de fenômenos, mas a domínios
distintos de fatos.
O grupo de Liège, em sua Retórica geral, parte do princí-
pio de que as figuras constituem desvios (DUBOIS et al., 1974,
p. 62-64). Ao estudar os metalogismos (as chamadas figuras de
pensamento), defende que o critério para percebê-los é uma
referência necessária a um dado extralingüístico, pois eles se
fundam no espaço exterior que se estabelece entre o signo e o
referente. Só o conhecimento da realidade permite apreendê-
los. O metalogismo consiste numa “falsificação ostensiva” da
correspondência entre o signo e o referente, “transgride a re-
lação normal entre o conceito e a coisa significada”, “contesta a
verdade dos fatos”. A norma em relação à qual o metalogismo é
um desvio constitui a verdade do referente (Dubois et al., 1974,
p. 174-187). Além disso, o metalogismo é sempre particular, está
sempre ligado a um circunstancial egocêntrico e, por isso, nunca
aparece dicionarizado (Dubois et al., 1974, p. 174-177).
É preciso admitir que os efeitos de sentido produzidos
pelos chamados metalogismos são sempre circunstanciais e,
portanto, nunca dicionarizados. Isso ocorre porque pertencem
à perfórmance discursiva, estando ligados, por conseguinte, ao
ego-hic-nunc da enunciação.
Entretanto, não é possível aceitar a tese de que os meta-
logismos constituam um desvio em relação a um referente, a
um dado extralingüístico, e que sua norma seja a verdade dos
fatos, pois isso seria admitir que os discursos se constroem so-
bre a realidade e não sobre outros discursos e que existe uma
homologia entre a ordem do discurso e a do mundo. Esses pres-
supostos contrariam os princípios teóricos em que se assenta a
semiótica. Ademais, a própria noção de desvio é extremamente
problemática, na medida em que pressupõe uma norma dada

16 Niterói, n. 23, p. 9-26, 2. sem. 2007


Semiótica e retórica

como algo natural. Na verdade, tanto norma como desvio são


efeitos de sentido gerados pelo discurso.
Figuras da mistura e da triagem
Fontanille e Zilberberg mostram que os valores tomam
forma e circulam no discurso, levando em conta o princípio de
exclusão e o da participação (2001, p. 27). Esses princípios criam
dois grandes regimes de funcionamento das grandezas discur-
sivas. O primeiro é o da exclusão, cujo operador é a triagem.
Nele, quando o processo atinge seu termo, leva à confrontação
do exclusivo e do excluído. As grandezas reguladas por esse
regime confrontam o puro e o impuro. O segundo regime é o
da participação, cujo operador é a mistura, o que leva ao con-
fronto do igual e do desigual. A igualdade pressupõe grande-
zas intercambiáveis; a desigualdade implica grandezas que se
opõem como superior e inferior (Fontanille; Zilberberg,
2001, p. 29).
A triagem e a mistura variam em termos de tonicidade:
átona e tônica. Há triagens mais ou menos drásticas e misturas
mais ou menos homogêneas, o que daria o seguinte esquema
(Fontanille; Zilberberg, 2001, p. 33):

Triagem Mistura
Tônica unidade/nulidade universalidade
Átona totalidade diversidade

Cada um desses regimes opera com um tipo de valor dife-


rente: o da triagem cria valores de absoluto, que são valores da
intensidade; o da mistura, valores de universo, que são valores
da extensidade (Fontanille; Zilberberg, 2001, p. 53-54).
O discurso opera, em qualquer gênero, com triagens e mis-
turas. Numa sintaxe extensiva, triam-se as misturas, visando a
um valor de absoluto, e misturam-se as triagens, visando a um
valor de universo (Zilberberg, 2006, p. 192-193). Metáfora e
metonímia são dois processos de transferência semântica. Nelas,
sempre um sentido substitui outro. A metáfora constrói-se com
a mistura de duas grandezas, que, no caso, são duas isotopias,
que mantêm entre si uma relação de analogia, de similari-
dade, de intersecção. No poema Jogos frutais, de João Cabral,
estabelece-se uma analogia entre as isotopias da feminilidade
e das qualidades sensoriais das frutas (MELO NETO, 1994, p.
262-268). A metonímia realiza a triagem de um traço para deno-
tar um dado significado. Esse traço pertence à mesma isotopia
do significado expresso, havendo entre os dois sentidos uma
relação de implicação: contigüidade, coexistência, pertença, na
metonímia em sentido estrito, ou inclusão e englobamento, na

Niterói, n. 23, p. 9-26, 2. sem. 2007 17


Gragoatá José Luiz Fiorin

sinédoque, que é um tipo de metonímia11. No entanto, lembra


Jakobson que, em poesia, “toda metonímia é ligeiramente me-
tafórica e toda metáfora tem um matiz metonímico” (1969, p.
149), ou seja, toda triagem contém uma mistura e toda mistura
encerra uma triagem.
No soneto É a vaidade, Fábio, nesta vida, de Gregório de Matos
(apud Candido; Castello, 1973, p. 73-74), o poeta explica o
que é a vaidade por meio de três metáforas: rosa, planta e nau.
Nos dois quartetos e no primeiro terceto, expõe a analogia que
fundamenta essas figuras. No último terceto, pergunta-se “Mas
ser planta, ser rosa, nau vistosa, / De que importa, se aguarda
sem defesa / Penha a nau, ferro a planta, tarde a rosa?” Penha
(causa) significa “naufrágio” (efeito); ferro (instrumento = ma-
chado, indicado pelo material de que é feito) quer dizer “corte”
(ação); tarde (momento) denota o “fenecer” (acontecimento). São
três metonímias, que, ao contato com as metáforas do texto,
metaforizam-se e passam a significar “morte”. Amalgamam-se
as isotopias do humano e do não humano e a triagem passa a
conter uma mistura. O soneto trata dos temas da inutilidade
da vaidade diante da fugacidade da vida e da inexorabilidade
da morte.
Estamos acostumados a considerar a metáfora e a meto-
nímia figuras de palavras. No entanto, não é relevante na sua
determinação a dimensão em que operam. Podem, portanto, ter
a dimensão de uma palavra, de uma frase, de um texto (veja-se,
por exemplo, o texto Um apólogo, de Machado de Assis). Além
disso, se essas duas figuras funcionam com a mistura ou a tria-
gem isotópica, pode-se dizer que as diferentes leituras que um
texto admite também são metafóricas ou metonímicas. A parte
final do poema Alguns toureiros, de João Cabral, em que se fala
de Manuel Rodriguez, permite pelo menos três leituras: a do
tourear, a do poetar e a do viver no Nordeste brasileiro. Essas
leituras relacionam-se metaforicamente, pois há uma interseção
11
Observe-se o predi-
cado cujo objeto direto é
de sentido entre elas: a contenção das emoções. As anedotas, as
duas garrafas, nas frases frases maliciosas, de duplo sentido, os textos humorísticos jogam
“O vinho era tão bom
que ele bebeu duas gar- também com dois planos de leitura. Neles, lê-se o que pertence a
rafas” e “O vinho era tão um plano em outro. Muitas vezes, a relação entre os dois planos
bom que ele comprou
duas garrafas”: no pri- de leitura é metonímica, porque os diferentes sentidos triados,
meiro caso, temos uma
metonímia, porque o
selecionados, coexistem num mesmo lexema ou numa mesma
continente expressa o expressão.
conteúdo, ele bebeu o
vinho contido em duas A metáfora e a metonímia não são processos apenas da
garrafas e, nesse caso, linguagem verbal (Jakobson, 1969, p. 63). Em todas as outras
temos uma relação de
coexistência; no segun- linguagens (a pintura, a publicidade, etc.) usam-se metáforas e
do ca so, temos u m a
si nédoque, porque a
metonímias. Os signos de orientação de usuários em locais públi-
parte denota o todo, ele cos ou nas estradas (indicação de restaurantes, de banheiros, etc.)
comprou o vinho em seu
recipiente e, nesse caso,
são em geral metonímicos. É o caso de uma placa com talheres,
temos uma relação de que indica a existência de um restaurante, ou com uma cama,
inclusão.
que aponta para a presença de um lugar para alojar-se. Nesse
18 Niterói, n. 23, p. 9-26, 2. sem. 2007
Semiótica e retórica

caso, houve a triagem de um elemento para significar outro. O


quadro Guernica, de Picasso, é metonímico. Ele é constituído de
elementos que se implicam para mostrar o horror da guerra. Já o
quadro Sono, da Dali, é metafórico. Nele, mostra-se uma cabeça
segura por frágeis forquilhas.
Como mostra Jakobson, todos os processos simbólicos
humanos, sejam eles sociais ou individuais, organizam-se meta-
fórica e metonimicamente (1969, p. 65-66). Agatha Christie criou
dois detetives que têm grande importância em sua obra porque
aparecem como figuras-chave em vários romances: Poirot e Miss
Marple. O processo de descoberta dos dois é completamente
diverso. O de Poirot é metonímico: a partir de um dado indício,
ele reconstrói o crime, por meio de uma série de implicações.
Começa por uma triagem. O de Miss Marple é metafórico: ela
percebe analogias entre o crime que está investigando e um outro
já ocorrido. Ela mistura os diferentes crimes. Termina sempre
afirmando que o mal é sempre igual12.
Jakobson sugere que os tópicos de um texto podem encade-
ar-se metafórica e metonimicamente (1969, p. 61), o que significa
que também a progressão textual pode ser metafórica ou meto-
nímica. É o que se observa, por exemplo, no primeiro capítulo
de O guarani, de José de Alencar, em que relações de analogia
(portanto, misturas) vão construindo a progressão textual. Já o
início do primeiro capítulo de O cortiço, de Aluísio Azevedo, em
que se apresentam a figura de João Romão, uma relação de causa
e conseqüência, bem como uma de sucessão (portanto, triagem)
é que presidem à evolução do texto.
As misturas e triagens ocorrem em diferentes níveis e
de diversas maneiras na constituição de distintas grandezas
discursivas. O procedimento chamado enumeração caótica é a
mistura num texto de elementos sem nenhuma relação aparente
entre si para produzir um dado efeito de sentido. Alberto Caei-
ro, heterônimo de Fernando Pessoa, vale-se dessa construção
bastante utilizada por Whitman, para exprimir o dinamismo e
a simultaneidade da vida moderna: “Obter tudo por suficiência
divina -/ As vésperas, os consentimentos, os avisos,/ As cousas
belas da vida -/ O talento, a virtude, a impunidade,/ A tendência
para acompanhar os outros a casa,/ A situação de passageiro/
A conveniência em embarcar já para ter lugar,/ E falta sempre
uma coisa, um copo, uma brisa, uma frase,/ E a vida dói quanto
mais se goza e mais se inventa” (PESSOA, 1969, p. 306).
12
Talvez pudéssemos O oxímoro é a mistura, numa única grandeza, de elementos
tirar conclusões sobre
os estereótipos sociais semânticos contrários ou contraditórios. É o caso do verso “O
a respeito dos papéis mito é o nada que é tudo”, de Fernando Pessoa (1959, p. 25); da
tradicionais da mulher
e do homem, quando definição do sertanejo como “Hércules-Quasímodo”, feita por
vemos, na obra da escri-
tora inglesa, que este ra-
Euclides da Cunha (1982, p. 81); da expressão “inocente culpa”,
ciocina por implicações presente no poema Elegia a uma pequena borboleta, de Cecília
e aquela, por analogia.
Meireles (1985, p. 318); dos versos “Foste tu que partiste,/ - Meu
Niterói, n. 23, p. 9-26, 2. sem. 2007 19
Gragoatá José Luiz Fiorin

amargo prazer, doce tormento!”, do poeta Carlos Queirós (1950,


p. 64); no verso “Aquela triste e leda madrugada” do soneto 19,
de Camões (1988, p. 272).
A palavra-valise é a mistura de duas palavras, para expri-
mir uma realidade em que os conceitos designados pelos dois
termos se acham inextricavelmente ligados. É o que ocorre no
poema Jaguadarte, de Lewis Carroll (1980, p. 197).
A antanáclase é uma figura da triagem, pois é a retomada
de uma palavra em acepções diferentes no mesmo enunciado;
nela selecionam-se e distinguem-se os diferentes sentidos. Um
exemplo clássico é a famosa máxima de Pascal “O coração tem
razões que a própria razão desconhece”. Em Camões, há o verso
“Novos mundos ao mundo irão mostrando” (II, 45, 8).
Figuras da valência da intensidade
Há uma série de figuras que se colocam na valência da
intensidade: na subdimensão da tonicidade, aparecem, por
exemplo, a hipérbole, que é tônica, e o eufemismo, que é átono.
Outras figuras constroem-se no processo de decadência, ou seja,
de atenuação, ou de ascendência, ou seja, de tonificação. A grada-
ção ascendente mostra um processo de aumento da tonicidade:
“[...] os vales aspiram a ser outeiros, e os outeiros a ser montes, e
os montes a ser Olimpos e a exceder as nuvens” (Vieira, 1959,
t. 11, p. 372); “Deu sinal a trombeta castelhana / Horrendo, fero,
ingente e temeroso” (Camões, 1988, IV, 28, 1-2).
O texto abaixo, retirado do Sermão histórico e panegírico nos
anos da Rainha D. Maria Francisca Isabel de Sabóia, de Vieira, é
constituído de uma série de gradações ascendentes. Para ficar
apenas numa delas, observe-se que o orador diz que a guerra
é um monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas. A
gradação mostra a ordem crescente dos prejuízos que a guerra
causa: acaba com os bens materiais, deixa pessoas feridas e
mutiladas, tira vidas.
Começando pela desconsolação da guerra, e guerra de tantos
anos, tão universal, tão interior, tão contínua: oh que temerosa
desconsolação! É a guerra aquele monstro que se sustenta das
fazendas, do sangue, das vidas, e quanto mais come e consome,
tanto menos se farta. É a guerra aquela tempestade terrestre,
que leva os campos, as casas, as vilas, os castelos, as cidades, e
talvez em um momento sorve os reinos e monarquias inteiras.
É a guerra aquela calamidade composta de todas as calami-
dades, em que não há mal algum, que, ou se não padeça, ou
se não tema; nem bem que seja próprio ou seguro. O pai não
tem seguro o filho, o rico não tem segura a fazenda, o pobre
não tem seguro seu suor, o nobre não tem segura a honra, o
eclesiástico não tem segura a imunidade, o religioso não tem
segura sua cela; e até Deus nos templos e sacrários não está
seguro. (1959, t. 14, p. 361)

20 Niterói, n. 23, p. 9-26, 2. sem. 2007


Semiótica e retórica

Figuras da valência da extensidade


O procedimento de construção de determinadas figuras é
a extensão de determinadas grandezas lingüísticas no tempo ou
no espaço. Se a expansão será no tempo ou no espaço, depende
da natureza da linguagem em que se constitui a figura. Como
a linguagem verbal se manifesta no tempo, será temporal a
extensão supramencionada. Na pintura, seria ela, em princípio,
espacial.
A assonância e a aliteração são expansões, respectivamente,
de um determinado fonema ou traço vocálico ou de um dado
fonema ou traço consonântico. No poema A onda, de Manuel
Bandeira (1983, p. 354), aliterações e assonâncias contribuem
para recriar, no plano de expressão, o movimento das ondas. A
expansão da nasalidade, ao longo de todo o soneto Hão de chorar
por ela os cinamomos, de Alphonsus de Guimaraens (1960, p. 258),
cria o efeito de sentido de plangência.
O homeoteleuto é a extensão de finais iguais de palavras
colocadas umas junto das outras: “A memória trazia-lhe o sabor
do perigo passado. Eis aqui a terra encoberta, os dous filhos
nados, criados e amados da fortuna” (Assis, 1979, p. 974).
A extensão pode dar-se com quaisquer grandezas lin-
güísticas É o caso de amplificação, em que se expande um
determinado significado, por meio de formulações lingüísticas
diversas, em geral sinônimas, com a finalidade de dar ênfase à
idéia desenvolvida. Nesse caso, ocorre uma correlação conversa
entre a extensão no tempo e a tonicidade. A maior expansão
temporal corresponde a uma maior tonicidade. É o que acon-
tece num passo do livro Leão-de-chácara, de João Antônio, em
que a enumeração de uma enorme lista de sinônimos do termo
dinheiro dá ênfase às dificuldades da infância da personagem
(1975, p. 63-64).
Há um trecho célebre de A cantora careca, de Ionesco, deno-
minado O resfriado (1993), em que se faz uma amplificação das
indicações das relações de parentesco por meio de uma constru-
ção recursiva. No entanto, o “absurdo” consiste no fato de que
nela há uma relação inversa entre extensão e tonicidade: a uma
extensão imensa no tempo não corresponde nenhum significado,
há uma absoluta atonia de sentido, pois toda longuíssima enu-
meração das relações de parentesco serve para afirmar que uma
dada pessoa “pegava, às vezes, no inverno, como todo mundo,
um resfriado (1954, p. 61-63). Essa peça é baseada num manual
de conversação franco-inglês e, portanto, como em todos os di-
álogos construídos para “aprender” vocabulário, o sentido é o
que menos importa. O que conta realmente é que uma palavra
seja pretexto para o aparecimento de outra. E, por isso, muitas
frases são absolutamente despropositadas no contexto.

Niterói, n. 23, p. 9-26, 2. sem. 2007 21


Gragoatá José Luiz Fiorin

Argumentos implicativos e concessivos


Como se mostrou acima, a retórica, além de sua vertente
tropológica, tem também um lado argumentativo. A argumen-
tação opera com implicações e concessões. A lógica implicativa é
a de fazer o que se pode (fez, porque é possível; não fez, porque
não é possível); a concessiva é a da impossibilidade (fez, apesar
de não ser possível; não fez, apesar de ser possível). A implicação
fala das regularidades, a concessão rompe as expectativas e dá
acesso à descontinuidade do que é marcante na vida (Zilber-
berg, 2006, p. 196-197).
Os argumentos repertoriados pela retórica são majorita-
riamente implicativos. Entram nesse rol, por exemplo, todos os
argumentos causais: os que indicam causas mediatas e imediatas,
os que evocam causas imediatas para ocultar as mediatas; os
que minimizam as causas imediatas para tirar a responsabi-
lidade do presente; os que apontam as causas finais. Num dos
seus Sermões do Mandato, Vieira define o amor fora da lógica
implicativa. Se ele tiver causa (porquê), não é amor; se ele tiver
finalidade (causa final: para quê), não é amor:
Definindo S. Bernardo o amor fino, diz assim: Amor non qua-
erit causam, nec fructum. O amor fino não busca causa nem
fruto. Se amo, porque me amam, tem o amor causa; se amo,
para que me amem, tem fruto: e amor fino não há de ter porquê,
nem para quê. Se amo, porque me amam, é obrigação, faço o
que devo; se amo, para que me amem, é negociação, busco o
que desejo. Pois como há de amar o amor para ser fino? Amo,
quia amo, amo, ut amem: amo, porque amo, e amo para amar.
Quem ama porque o amam, é agradecido, quem ama, para que
o amem, é interesseiro: quem ama, não porque o amam, nem
para que o amem, esse só é fino. E tal foi a fineza de Cristo,
em respeito a Judas, fundada na ciência que tinha dele e dos
demais discípulos. (1959, t. 4, p. 336)
Podem-se também estudar os argumentos do ponto de
vista da articulação dos mecanismos de mistura ou de triagem.
Todos os que se fundam na analogia, por exemplo, são argu-
mentos de mistura. São argumentos da triagem, por exemplo, o
chamado argumento da partição, em que se separa cada um dos
aspectos de uma idéia complexa para fins argumentativos.
Conclusão
Os exemplos dados constituem uma pálida idéia do que
pode fazer a semiótica para incorporar no seu arcabouço te-
órico as aquisições da retórica. Seria preciso, no entanto, ao
final, responder uma objeção que pode ter surgido na mente
dos que lêem este texto: o que a semiótica está fazendo é ape-
nas estabelecer novos princípios de classificação. Sim e não.
Ela está determinando, de acordo com suas bases teóricas, os
princípios de construção de argumentos e figuras e, por isso

22 Niterói, n. 23, p. 9-26, 2. sem. 2007


Semiótica e retórica

mesmo, classificando-os. No entanto, cabe lembrar que o que as


teorias devem fazer é tornar-se cada vez mais compreensivas,
explicando, da mesma maneira, fenômenos cujas relações não
eram percebidas. O que faz a semiótica tensiva é mostrar que
todas as grandezas lingüísticas, sejam elas conceitos sobre a
realidade, tropos, argumentos, etc., constroem-se segundo os
mesmos princípios. Por exemplo, a metonímia, os argumentos
fundados na partição, mas também a matéria de um sermão (por
exemplo, Vieira, no Sermão da Sexagésima, diz que a homilia deve
ter um só assunto) são definidos pelo mecanismo da triagem.
A metáfora, os argumentos baseados na analogia, mas também
os princípios que regem a cultura brasileira são determinados
pelo procedimento da mistura. Com efeito, a cultura brasileira
sempre se descreveu como uma cultura da mistura. Louva-se
a tendência brasileira à assimilação do que é significativo e im-
portante das outras culturas. Não é sem razão que Oswald de
Andrade erigiu a antropofagia como o princípio constitutivo
de nossa cultura (1990). Com Casa grande e senzala, de Gilberto
Freyre (1954), começa-se a considerar eufórica a mistura: a colo-
nização portuguesa é vista como tolerante, aberta, o que levou à
mestiçagem racial, que não ocorreu nos lugares de colonização
inglesa ou francesa, por exemplo. O Brasil celebra a mistura da
contribuição de brancos, negros e índios na formação da nacio-
nalidade, exaltando o enriquecimento cultural e a ausência de
fronteiras de nossa cultura. De nosso ponto de vista, o mistu-
rado é completo; o puro é incompleto, é pobre. Observe-se que
se está falando de autodescrição da cultura brasileira. Há então
todo um culto à mulata, representante por excelência da “raça”
brasileira; do sincretismo religioso, sinal de tolerância; do con-
vívio harmônico de culturas que se digladiam em outras partes
do mundo, como a árabe e a judaica.
A incorporação da retórica à semiótica implica descrever os
procedimentos retóricos por meio de princípios mais amplos do
que aqueles então utilizados e, ao mesmo tempo, uma recusa a
pontos de vista que não estejam de acordo com as base teóricas
sobre as quais se erigiu a semiótica.

Abstract
In this paper, after showing that rhetoric
studies the discursive procedures that
allow the enunciator to produce effects of
meaning that permit the enunciatee to be-
lieve what is said, I show that the different
­theories of discourse should inherit Rheto-
ric, taking into account centuries of studies
already developed. By “inherit Rhetoric” I
mean that it should be read in light of the

Niterói, n. 23, p. 9-26, 2. sem. 2007 23


Gragoatá José Luiz Fiorin

theoretical problems currently addressed,


and that the issues approached by rhetoric
should be investigated from the perspective
of the questions raised by modern theories.
Following that, I examine the way French
Semiotics has been addressing the so-called
Rhetoric of Figures and Argumentative
Rhetoric, in a process of theoretical incor-
poration of the tools of ancient rhetoricians.
I show figures and arguments of mixture
and of triage, figures of valence of ­intensity,
figures of valence of extent, as well as im-
plicative and concessive arguments.
Keywords: Figures of mixture. Figures
of triage. Intensity. Extent. Implication
Concession.

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26 Niterói, n. 23, p. 9-26, 2. sem. 2007


Lanterna na proa:
sobre a tradição recente nos
estudos da lingüística
Maria Margarida Martins Salomão

Recebido 20, jul. 2007/Aprovado 20, set. 2007

Resumo
Revisão da história recente da lingüística do
ponto de vista dos desenvolvimentos contem-
porâneos desta disciplina: o amadurecimento
das ciências cognitivas (especialmente das
tecnologias da informação e das neurociên-
cias) determina uma profunda reorganização
metodológica das práticas disciplinares da
Lingüística, vetoriadas agora para a interdis-
ciplinaridade, para o trabalho em equipe e para
o compromisso de verificação empírica de suas
análises, a partir de evidências teoricamente
independentes.
Palavras-chave: História da lingüística.
Desenvolvimentos disciplinares. Ciências
cognitivas. Tecnologias da informação. In-
terdisciplinaridade.

Gragoatá Niterói, n. 23, p. 27-52, 2. sem. 2007


Gragoatá Maria Margarida Martins Salomão

1. Reler a tradição é tarefa indispensável a todos nós que


nos aventuramos pelos mares da lingüística. Tão volumosa e
dispersiva é a produção contemporânea que se torna difícil ao
navegador achar um norte. Assim, é tentador proceder como o
memorialista e acender uma lanterna na popa. Afinal, a filoso-
fia ensina que a ave de Minerva só alça seu vôo ao entardecer.
De histórias, mesmo recentes, os estudos da linguagem estão,
entretanto, bem servidos. Resta, então, fazer um balanço com o
atrevimento da profecia. Deslocar o foco para a frente e contar
o que aconteceu do ponto de vista do que ainda vai acontecer.
Nenhum profeta, no entanto, prescinde de um ponto de
vista. A mim, o que me dá régua e compasso é a minha forma-
ção em lingüística cognitiva e o meu gosto (decorrente) pela
sintaxe e pela semântica. Mais especificamente, pela semântica
da sintaxe.
Não pretendo, portanto, fazer justiça. Fazer justiça não é
da natureza do desenvolvimento de nenhum campo disciplinar,
que, simplesmente por sê-lo, configura-se como área específica
de disputa e exercício de poder. Haja vista, no estreito escopo da
lingüística americana, a magra fortuna crítica da lingüística de
Sapir frente à de Bloomfield, tornada definidora do programa
analítico hegemônico nos Estados Unidos; mais infausta ainda é
a sorte de Sidney Lamb, um lingüista brilhante, completamente
eclipsado pelo sistema solar chomskyano. Uma boa ilustração
das peculiaridades destes processos sociais que se expressam
como debates teóricos é o livro de Geoffrey Huck e John Gol-
dsmith, publicado em 1995, Ideology and linguistic theory: Noam
Chomsky and the deep structure debates.
No presente texto pretendo enunciar e desenvolver três
teses gerais, fortemente interrelacionadas:
• A lingüística do século XX é um enorme sucesso como
empreendimento político e científico.
• O advento das novas tecnologias da informação e a
consolidação do jovem campo das ciências cognitivas,
especialmente das neurociências, criam para as práticas
disciplinares canônicas uma tensão insuportável.
• Procede daí um redesenho disciplinar da lingüística entre
os estudos da linguagem.
2. Em outro escrito, que tive a satisfação de comparti-
lhar com o grande lingüista brasileiro Luis Antônio Marcuschi
(Marcuschi; Salomão, 2004, p. 13-26), propomos que uma
marca dos estudos lingüísticos do século XX é a sua dilemati-
zação entre as “lingüísticas do significante” e as “lingüísticas
da significação”. Não cabe dúvida que, neste cenário, as “lin-
güísticas do significante” se estabeleceram como amplamente
hegemônicas e majoritárias. Nos termos postos,
28 Niterói, n. 23, p. 27-52, 2. sem. 2007
Lanterna na proa: sobre a tradição recente nos estudos da lingüística

[... ] as lingüísticas do significante, herdeiras das principais


tradições pré-estruturalistas (dos comparatistas e neo-gra-
máticos), dos estruturalistas e gerativistas, são desde logo as
mais exitosas e respondem pelo sucesso acadêmico-político da
lingüística como campo disciplinar. Incluem em sua folha de
serviços prestados a reivindicação da oralidade como objeto
de estudo, a descrição de um número considerável de línguas
das mais diferentes famílias genéticas e tipológicas, a iden-
tificação de fenômenos nos planos fônico e morfossintático,
dantes jamais vislumbrados, o desenvolvimento de poderosas
metalinguagens para tratar teoricamente seu objeto [... ]. (p.
24-5)
De fato, foi a análise formal da linguagem (transforma-
da, com a emergência da lingüística gerativa, em análise da
linguagem como sistema formal) que produziu a autonomia
disciplinar da lingüística, por ter sido capaz de demonstrar a
possibilidade de estudar a linguagem como sistema descontex-
tualizado (ou como competência modular).
Desde então, o treinamento básico de um lingüista supõe
o reconhecimento de unidades sistemáticas identificadas via
oposições distintivas (manifestadas através de pares mínimos) e
o estabelecimento de categorias sintagmáticas via regularidades
distribucionais (através dos testes bem conhecidos da substi-
tuição, do deslocamento e da coordenação). A partir dos anos
cinqüenta do século passado, esta heurística passou a assumir de
forma programática a participação de julgamentos introspectivos
sobre a boa-formação das expressões-objeto da análise.
Esta metodologia levou à descrição circunstanciada de
vinte por cento do total das línguas hoje conhecidas (um feito
significativo considerada a brevidade do empreendimento).
Muitas das línguas investigadas careciam de expressão escrita e
apresentavam características inteiramente distintas das famílias
lingüísticas cujo estudo alimenta a tradição dos estudos gramati-
cais do Ocidente. Sua descrição constituiu, portanto, importante
ampliação do conhecimento científico sobre a linguagem. Basta
lembrar que os principais insights sobre a semântica do movimen-
to (a proposição dos esquemas imagéticos e sensório-motores
que constituem a tabela periódica desta semântica) devem-se
à análise feita por Leonard Talmy de uma língua californiana,
o Atsugewi, que apresenta um repertório formidável de afixos
lexicalizadores do movimento (vide TALMY, 1972, 1975, 2000).
Este mesmo esforço compreende o florescimento dos estu-
dos da variação da linguagem, que, sob a liderança de William
Labov, seus alunos e interlocutores, conheceu patamar inédito
de sofisticação metodológica e abrangência descritiva, sempre
confinada, entretanto, aos aspectos formais da linguagem (vide
LABOV, 1972a, 1972b, 1994, 2001).
Tais trabalhos de investigação da variedade interlingüística
e da variação intralingüística seguem-se da legitimação dos
Niterói, n. 23, p. 27-52, 2. sem. 2007 29
Gragoatá Maria Margarida Martins Salomão

usos falados da linguagem, em processo de reabilitação cien-


tífica e ideológica (pelos românticos) já no decorrer do século
XIX. Tal inflexão valorativa, disseminada disciplinarmente pela
lingüística, tem um poderoso impacto sobre as pedagogias da
linguagem praticadas na segunda metade do século XX, que é
quando se mundializam as políticas lingüísticas de universali-
zação de acesso à escrita. Haja vista a influência do clássico labo-
viano de 1972 Language in the Inner City, que, no Brasil, repercute
principalmente através da voz de Magda Soares em Linguagem
e Escola (SOARES, 1986).
É claro que hoje trataríamos esta incorporação da oralidade
à descrição lingüística como ainda um pouco anêmica devido à
sua negligência da prosódia e da expressão gestual, e, mesmo,
devido à descontextualização do dado lingüístico em relação
ao discurso. Posta em perspectiva, entretanto, esta evolução é,
na verdade, ruptura gigantesca com uma tradição milenar de
exclusão da fala da reflexão gramatical.
A descrição lingüística assim praticada recebe de Chomsky
(1975b, 1957, 1959, 1965), em meados da década de cinqüenta, o
tratamento formal que vai determinar o refinamento analítico e
epistemológico característico da lingüística gerativa. O estudo da
sintaxe vai atingir um grau de sofisticação teórica que levará ao
próprio questionamento do modelo e ao desenvolvimento, nesta
esteira, de “trinta milhões de teorias da gramática”, na irreverente
expressão de James McCawley (1982). Não cabe dúvida que sem
um contínuo impulso em direção à análise de fenômenos formais
cada vez mais intrincados, não disporíamos hoje de uma agenda
problemática que prioriza o sentido ao tratar da linguagem. Nas
palavras de Fauconnier,
[... ] as linguists advanced further and further in their study of
form, they kept stumbling more and more often on questions
of meaning. There were two types of responses to this episte-
mological quandary. One was to narrow the scope of syntax
so as to exclude, if possible, the troublesome phenomena from
the primary data. The other was to widen the scope of inquiry
so that issues of form and meaning could be encompassed
simultaneously. But it was now clear, in any event, that the
time had come to break away from a science of language cen-
tered exclusively on syntax and phonology; it was urgent to
concentrate on the difficult problem of meaning construction
[…]. (Fauconnier, 1997, p. 7)
O quadro que caracterizamos não estaria completo se não
assinalássemos como traços associados à tentação monopolista
do empreendimento gerativista (malgrado a persistente defecção
de aliados de primeira hora e/ou discípulos destacados como
Paul Postal e John Ross e, subseqüentemente, Joan Bresnam e Ray
Jackendoff) o relativo desfavorecimento dos estudos diacrônicos
neste contexto e, de outra parte, o forte desenvolvimeto dos estu-

30 Niterói, n. 23, p. 27-52, 2. sem. 2007


Lanterna na proa: sobre a tradição recente nos estudos da lingüística

dos psicolingüísticos (já que o tema da aquisição da linguagem


evoluiu para a condição de evidência crítica).

3. As “lingüísticas da significação”, por sua parte, em


nenhum momento, exibiram, em seu âmbito, algum processo
de disputa de hegemonia, menos por cultivarem conduta mais
generosa e sim por lhes faltar sequer uma metalinguagem con-
sensual que permitisse um confronto organizado de posições.
É fato que, movidos por diversa deriva epistemológica,
tanto o estruturalismo europeu (e seu desconstrutivismo) como o
estruturalismo americano (e seu comportamentalismo) caracteri-
zam-se como práticas de análise do significante. O advento do
gerativismo estabelece uma ruptura teórica com o estruturalismo
americano através do expresso mentalismo/cartesianismo de
sua direção ideológica mas não modifica o foco no significante
como principal vertente da análise. Daí que, quando, já no final
do século XX, a lingüística se dispõe a tratar a significação, os
lingüistas vão ter de recorrer a formulações extradisciplinares
para estabelecer uma semântica lingüística.
Entre os que elegem o estudo da significação a partir do
foco no discurso, haverá os que recorrerão às ciências sociais (à
antropologia lingüística e à sociologia interacional) para produzir
suas categorias analíticas: esta é, por excelência, a tradição anglo-
americana de análise do discurso. Já outros (a tradição européia
continental) buscarão na reflexão foucaultiana e althusseriana,
eventualmente cruzada com os grandes russos pós-formalistas
Bakhtin e Vygotsky, o ferramental para suas.
Entre os primeiros, destacam-se, de um lado, os praticantes
da antropologia lingüística e os herdeiros do legado goffmania-
no de análise de situações institucionais, que introduzem na
lin­güís­tica o importantíssimo conceito de frame interacional.
(vide, a esse respeito, Goffman, 1961, 1967, 1974; Gumperz,
1982a, 1982b; Tannen, 1984, 1989; Schiffrin; Tannen;
Hamilton, 2001, entre outros. ) De outro lado, os analistas
da conversação importam a contribuição da etnometodologia
para apresentar à lingüística um exame refinado de dados
naturalísticos da interação conversacional. (Garfinkel, 1967;
Sacks; Garfinkel 1970; Sacks; Schegloff; Jefferson,
1974; JEFFERSON, 1989, 1992; SCHEGLOFF, 2006; GOODWIN,
1981, 2003). No Brasil, vale mencionar com relação a esta última
vertente o trabalho realizado por Marcuschi e seus associados.
De toda forma, o entrelaçamento deste temas com os interes-
ses da lingüística textual vão representados em obras como as
de Beaugrande (1984), Brown e Yule (1983), van Dick (1997) e
Renkema (2004).
A linha européia é representada pela chamada “análise do
discurso francesa” (Pecheux, 1969, Maingueneau, 1984),

Niterói, n. 23, p. 27-52, 2. sem. 2007 31


Gragoatá Maria Margarida Martins Salomão

que tem vasto acolhimento no Brasil, e que, diferentemente da


versão anglófona, concentra sua atenção em discursos escritos,
fora da vertente da “alta cultura”( literatura ou filosofia, por
exemplo). Empregando categorias analíticas que muito devem
a estudos sobre ideologia e ordem discursiva (Foucault, 1969,
1971; Althusser, 1970) em grande voga no final dos anos ses-
senta, o ponto forte desta linha de estudos é o desvelamento das
relações entre linguagem e poder, especialmente como é que
padrões discursivos (narrativos ou argumentais) organizam-se
como “objetos sociais” e convertem-se em forças poderosas, ope-
rativas nos jogos políticos. Pelo seu foco nas macrorrelações entre
linguagem e sociedade, estes estudos aproximam-se da “história
das mentalidades”e dos chamados “estudos culturais”.
Em qualquer de suas vertentes, a análise do discurso lin-
güístico rompe com a auto-suficiência disciplinar da lingüística
e importa distintas metalinguagens para enfrentar a questão da
significação.
Uma outra tradição, impregnada pela crise da teoria da
sintaxe descrita na citação de Fauconnier, recorre à semântica
filosófica para resolver seus problemas. As duas grandes linhas
da filosofia analítica comparecem neste cenário.
Em termos cronológicos, a primeira emergência é da lógica
formal, de inspiração fregeana, que toma de assalto as deriva-
ções transformacionais propostas pela semântica gerativa. Esta
solução foi logo superada no interior das “guerras lingüísticas”
(vide HARRIS, 1983) pela sua implausibilidade psicológica e
pela tensão que impunha à versão corrente (àquela época) da
gramática gerativa (Chomsky, 1971, 1972, 1975a; Jacken-
doff, 1969, 1972). A lógica formal retorna domesticada pela
proposição da forma lógica, nível de descrição admitido pela
ortodoxia chomskyana no modelo dos Princípios e Parâmetros
(Chomsky, 1981).
O outro aproveitamento da lógica formal se dá pela in-
corporação da semântica montagueana (MONTAGUE, 1974)
praticada por algumas das formulações entre os “trinta milhões
de teorias da gramática”, notadamente as “constraint-based
grammars”, que assumem uma versão da “semântica das situ-
ações” (Barwise; Perry, 1984). É o caso da GPSG e da HPSG
propostas por Gazdar, Pollard, e Sag nas décadas de oitenta
e noventa (Gazdar et al., 1985; Pollard; Sag, 1994; Sag;
Wasow, 1999).
A outra linha de aproveitamento da filosofia analítica se
dá pelo neo-pragmatismo dos praticantes da chamada “filo-
sofia da linguagem cotidiana”, que tem como seus expoentes
Wittgenstein, Austin, Grice e, mais tarde, Searle. Temas que já
freqüentavam as proposições da semântica gerativa (atos de fala,
implicaturas, e pressuposições) são enriquecidos pelo debate
sobre a natureza das categorias conceptuais, temas presentes no
32 Niterói, n. 23, p. 27-52, 2. sem. 2007
Lanterna na proa: sobre a tradição recente nos estudos da lingüística

pensamento de Wittgenstein (categorizações via “ar de família”)


e no de Austin (categorizações contrafactuais como em fake gun
ou inerentemente complexas, caso de good mother versus good
government). Para os leitores familiarizados com esta literatura,
é fácil reconhecer aí a genealogia da “lingüística cognitiva”, que
é, em grande parte, semântica cognitiva.
A lingüística cognitiva, uma evolução da semântica ge-
rativa que desistiu da semântica formal (segundo formulação
do próprio Lakoff [2001], emerge pela proposição de que as ca-
tegorias lingüísticas exibem efeitos de prototipia, à imagem
das categorias cognitivas e culturais estudadas por Eleanor
Rosch (1977), Brent Berlin, Paul Kay e colaboradores (BERLIN,
1968; BERLIN; KAY, 1968; Berlin; Breedlove; Raven, 1974).
Representa esta tendência o trabalho de George Lakoff sobre os
processos lingüísticos de categorização (LAKOFF, 1987). Emerge
também pela proposição da semântica de frames por Charles
Fillmore (FILLMORE, 1977a, 1977b, 1982, 1985), na esteira de
seus esforços anteriores para postulação de uma “gramática de
casos”, e a partir da contribuição de Minsky (1975) sobre frames
na Inteligência Artificial, e de formulaçoes de Bateson (1972) e
de Rumelhart (1975) sobre a natureza das estruturas do conhe-
cimento. Emerge, ainda, com a forte influência que a psicologia
da gestalt desempenha sobre as teorizações de Talmy (1978,
1983) e Langacker (1987, 1991). Em outras palavras, a lingüís-
tica cognitiva, que propõe a continuidade entre competência
lingüística, as outras capacidades cognitivas e as práticas
sociais que lhes correspondem, é fortemente tributária, já no
seu nascedouro, da psicologia, da antropologia, da filosofia e
das ciências cognitivas.
Há uma espécie de divisão do trabalho entre as “lingüísti-
cas da significação do discurso”e as “lingüísticas da significação
da sentença”. As primeiras, que contribuem com densas aborda-
gens no que concerne à fenomenologia da situação comunicativa
e às determinações não lingüísticas da interpretação, pouco têm
a dizer sobre semântica lexical ou sobre a semântica das constru-
ções gramaticais. Já as últimas, requintadas nas suas descrições
do léxico e (um pouco menos) da gramática, mantêm-se bem
pouco efetivas para tratar do discurso. O cisma na origem (re-
curso à teoria social, de um lado, e à psicologia e à filosofia, de
outro) continua repercutindo na evolução científica dos estudos
do sentido, sem que haja, de parte a parte, um esforço em favor
da articulação destas investigações que representam esforços
complementares.
Uma tentativa interessante de reelaboração destas duas
tradições é o trabalho de Gilles Fauconnier, Eve Sweetser e
Mark Turner, que, para isso, empregam a teoria dos espaços
mentais (e do processo cognitivo de mesclagem), vinculando-a
à gramática das construções, como forma de promover uma
Niterói, n. 23, p. 27-52, 2. sem. 2007 33
Gragoatá Maria Margarida Martins Salomão

abordagem integrada da significação lingüística desde a gramá-


tica até o discurso. (Fauconnier, 1994, 1997; Fauconnier;
Sweetser, 1996; Fauconnier; Turner, 2002; Dancygier;
Sweetser, 2006).

4. Outro ponto a ser ressaltado nestas abordagens é a concen-


tração do foco analítico nos conteúdos significativos “accessíveis
à consciência”. Diferentemente das análises do significante
que historicamente se definem como tratamento de sistemas
computacionais subconscientes (vide sobre isso a interessante
discussão travada por JACKENDOFF, 1987, p. 20-23), os estudos
da significação, talvez por sua origem extralingüística, relutam
em reconhecer os elementos significativos posicionados aquém
do nível de accessibilidade que Jackendoff designa como “mente
fenomenológica”. Em outras palavras as lingüísticas da signi-
ficação encaram com reservas os elementos significativos que
sejam lingüísticamente “inefáveis”, ou seja, que não se expressem
como discurso lingüístico.
Boa parte das críticas dirigidas à teoria conceptual da
metáfora partilham deste caráter (peças deste debate incluem
Lakoff, 1983; Lakoff; Johnson, 1980, 1999, 2002; Rakova,
2002; Krzeszowski, 2002). São críticas dirigidas ao suposto
reducionismo biologizante desta abordagem, que, na literatura
produzida, reivindica-se como “cognição incorporada” (em-
bodied cognition), conceito aparentado ao neo-materialismo
dos Churchland (vide Churchland, 2000) e às abordagens
enativistas de Varela, Thompson e Rosch (1991), Gunther (2003),
Noë (2004) e Gallagher (2005). O fato é que a teoria conceptual
da metáfora, em sua versão mais recente, radicaliza o tema da
“base experiencial da metáfora” em termos de uma presumida
“base neural da metáfora”. Nosso intrínseco dualismo (renegado
mas persistente) contorce-se diante desta blasfêmia.
E é neste ponto que o debate chega literalmente ao impas-
se. Toda a discussão sobre a significação na lingüística, embora
tributária da reflexão extradisciplinar, trava-se com argumentos
tipicamente lingüísticos e, por esta razão, está condenada ao
fracasso. Como bem sabem os pragmatistas, inclusive em sua
encarnação pré-socrática originária (MARTINS, 2004, p. 439-
473), a significação é elusiva e irredutível a alguma específica
paráfrase lingüística.
Wittgenstein, em texto clássico sobre a dor (Wittgens-
tein, 1953), trata do discurso da dor, da expressão da dor, que
constitui, para ele, o conceito de dor. Como discurso sobre a
dor, a expressão da dor é inexaurível: transforma-se, de fato,
em plataforma para uma galáxia de novos discursos que são
incapazes, porém, de suprimir o substrato neural da dor, de
eliminá-la do corpo. A rigor, o fato de que seja possível cons-
cientemente falar sobre a dor assinala, contraditoriamente, a
34 Niterói, n. 23, p. 27-52, 2. sem. 2007
Lanterna na proa: sobre a tradição recente nos estudos da lingüística

indizibilidade deste conceito. A dor, infelizmente, não é para


ser dita; é para ser doída. O discurso da dor não a esgota e nem
esgota sua descrição. (No máximo pode conseguir mitigá-la pelo
concurso da solidariedade que mobilizar). Fenômenos como o
da dor, ou da percepção da cor do mar, ou a estimativa distraída
que faço sobre quantas pessoas estão hoje na sala de aula são
experiências pré-lingüísticas e, tecnicamente, pré-conceptuais.
A lingüística, sozinha, não tem condições de dar conta destes
aspectos da significação. Por isso é aqui que começa a próxima
seção de nossa viagem.

5. Os avanços nas neurociências, gigantescos nos últi-


mos quinze anos, foram propiciados pela disponibilização de
tecnologias não invasivas de investigação do cérebro humano.
A linguagem como capacidade cognitiva especificamente hu-
mana foi a área mais beneficiada por estas descobertas. Áreas
comparativamente muito melhor estudadas, como é o caso da
cognição visual, utilizavam técnicas de experimentação com
animais irreplicáveis em sujeitos humanos. (Uma discussão
informativa desta problemática e uma representação do estado
da arte é oferecida em CRICK, 1994; CHURCHLAND, 2002;
FELDMAN, 2006; AHLSÉN, 2006).
Embora possamos dizer que quase tudo ainda está por
ser descoberto, o conhecimento acumulado até agora serve para
nos dissuadir, por exemplo, da possibilidade da existência de
um “órgão da linguagem” no cérebro, o que talvez justifique
a antipatia de Chomsky às investigações sobre este assunto
(CHOMSKY, 2002).
No que se refere à significação, prospectivas importantís-
simas evoluíram da descoberta dos “neurônios-espelho” (­mirror
neurons), tratados como a base material das experiências huma-
nas da intersubjetividade e da empatia (Rizzolati; Craigh-
ero; Fadiga, 2001; Ferrari et al., 2003; Gallese; Lakoff,
2005; Braten, 2007). Em 2001, Giacomo Rizzolatti e seus colabo-
radores descobriram acidentalmente em seu laboratório que os
mesmos grupos neurais ativados no córtice frontal de macacos
manipulando um objeto vinham a ser ativados quando estes
mesmos indivíduos (macacos) observavam algum outro ator
manipular os mesmos objetos. Tais neurônios não disparavam
quando os macacos simplesmente observavam os objetos, sem
que estes fossem manipulados.
Estavam descobertos os “neurônios-espelho” (mirror neu-
rons), cuja existência foi posteriormente confirmada também
para os seres humanos (Buccino et al., 2001). Nas palavras de
Jerome Feldman (2006, p. 68),
“[…] The fact that specific human motor circuits are activated when
we see or hear about the associated motions provides direct support

Niterói, n. 23, p. 27-52, 2. sem. 2007 35


Gragoatá Maria Margarida Martins Salomão

for the Neural Theory of Language Hypothesis that meaning is


embodied [...]”.
Mais do que isso, a existência dos neurônios-espelho fa-
vorece a hipótese de que a compreensão (verbal e nãoverbal)
opera por simulação imaginativa, largamente inconsciente, e
modelada evolucionariamente pelas propriedades de nossos
corpos em sua interação com outros corpos. Decorre daí uma
explicação para a insistência no argumento de Fauconnier e
Turner (2002) de que os processos de interpretação requeiram a
construção conceptual em escala humana. Deixa também de
ser imotivada a precedente reivindicação de Lakoff e Johnson
(desde 1980) de que a razão humana é constitutivamente ima-
ginativa. Em outra clave, integra-se a explicação de Tomasello
(1999, p. 94-133), para a explosão do processo de aprendizagem
lingüística das crianças, a partir dos dez meses de idade, por
conta do amadurecimento de sua capacidade de operar projeções
intersubjetivas e de compartilhar atenção.
Na verdade, a descoberta dos neurônio-espelho desloca
epistemologicamente tanto o imperialismo da subjetividade
cartesiana (monádica, desencarnada e autocentrada) como a
hipótese piagetiana sobre a egocentridade como ponto de par-
tida da aprendizagem humana. (cf Braten, 2007). O fato é que
as descobertas das neurociências, mescladas às postulações
da lingüística cognitiva, anunciam para o próximo futuro “a
emergência de uma neurociência cognitiva” (Feldman, 2006,
p. 338), que pode mudar, em profundidade, a maneira como hoje
tratamos analiticamente o cérebro, a mente e a linguagem.
As principais hipóteses que resultam deste cenário são as
seguintes:
• O pensamento abstrato emerge de experiências concretas
corporificadas, tipicamente experiências somato-sensó-
rias e sensório-motoras.
• A gênese do pensamento abstrato procede pela projeção
metafórica dos esquemas conceptuais e imagéticos que
estruturam estas experiências cotidianas.
• Isso também se aplica à conceptualização das signifi-
cações gramaticais (como Aspecto): especificamente,
hipostasia-se que significações gramaticais são “cogs”,
isto é, resultam do aproveitamento parcial de estruturas
cerebrais na região sensório-motora (Gallese; Lakoff,
2005; Lakoff, 2006, 2007).
• A gramática consistiria de circuitos neurais que pareiam
estruturas conceptuais com padrões sígnicos (fônicos). A
gramática não é uma capacidade cognitiva isolada mas con-
siste de sistemas corporificados (fônicos e ­conceptuais).

36 Niterói, n. 23, p. 27-52, 2. sem. 2007


Lanterna na proa: sobre a tradição recente nos estudos da lingüística

• A criança aprende a gramática pareando, a partir do


uso, combinações fônicas com experiências familiares
(Chang, 2005; Tomasello, 2003; Goldberg, 2006;
Fauconnier; Turner, 2002).

6. Estas possibilidades são também objeto de pesquisa na


área da psicologia cognitiva, agora equipada com tecnologias
muito mais sofisticadas de registro videogravado de situações
naturalísticas ou experimentais. Verificam-se, aqui, as condições
de parceria assinaladas por Gibbs (2007, p. 3-18) e Nuñez (2007,
p. 87-118), que requerem que os lingüistas estejam dispostos
a rever aquilo que têm tradicionalmente computado como
evidência empírica. Uma lista de metáforas acompanhada de
exemplos lingüísticos é, nestas novas condições, não mais que
uma lista de hipóteses de trabalho a serem testadas do ponto
de vista tanto das atividades neurais documentadas como dos
comportamentos humanos correlativos.
Não é o caso que os lingüistas abram mão de seu traba-
lho na formulação de hipóteses lingüísticas, a partir de suas
intuições especificamente treinadas, e passem a substituir com
pior competência neurocientistas ou psicólogos. Será, porém,
necessário que os lingüistas se preparem para compreender e
avaliar as descobertas feitas nestes campos do ponto de vista da
formulação de teorias especificamente lingüísticas.
Trabalhos interessantes sobre evidências nãolingüísticas
da existência de metáforas conceptuais têm sido levados a efeito
pelo próprio Gibbs sobre esquemas imagéticos estruturadores da
transferência metafórica (vide Gibbs, 2006), por Lera Boroditsky
sobre a realidade psicológica das metáforas temporais (Boro-
ditsky, 2000, 2001), por Teenie Matlock sobre o movimento dos
olhos quando o sujeito processa movimento fictício (Matlock
et al., 2004 a, 2004b). De outro lado, lingüistas como Benjamin
Bergen e vários colaboradores têm desenvolvido experimentos
para checar a base corporificada da semântica dos verbos de
movimento (Bergen, 2007; BERGEN; CHANG, 2005; BERGEN;
CHANG; NARANAYAN, 2003). Há uma produção florescente na
área de semântica de simulações amplamente apoiada em evi-
dências não lingüísticas (vide Feldman, 2006 sobre este ponto).
Outra literatura que vem se acumulando dedica-se às
linguagens gestuais (aquisição, sintaxe, semântica, discurso)
como evidência para as hipóteses cognitivistas sobre a lingua-
gem. Eve Sweetser, que tem pesquisado com êxito iconicidade e
metaforicidade na gesticulação paralingüística (vide Nuñez e
Sweetser 2006), faz em Sweetser, 2007 (p. 201-24), um valioso
levantamento do estado da arte dos estudos da gestualidade
como expressão lingüística.

Niterói, n. 23, p. 27-52, 2. sem. 2007 37


Gragoatá Maria Margarida Martins Salomão

7. Articulada às investigações nas áreas de neurociências


e de psicologia cognitiva, os trabalhos de modelagem compu-
tacional da linguagem, desenvolvidos a partir das tentativas
conexionistas dos anos oitenta (Rumelhart; McClellan,
1986; Elman, 1991), têm-se tornado progressivamente mais
ambiciosos e hoje oferecem soluções complexas para a simula-
ção dos processos de produção e compreensão verbal, a partir
de hipóteses postuladas por lingüistas cognitivos. Refiro-me
particularmente à chamada Teoria Neural da Linguagem, pro-
posta por um grupo de cientistas da computação liderados por
Jerome Feldman em Berkeley, que, desde a década de noventa,
vem testando hipóteses lingüísticas de Talmy e Lakoff através
de simulações robóticas que empregam redes neurais
O primeiro destes trabalhos foi a tese de doutoramento de
Terry Regier (publicada em REGIER, 1996) que modelou a apren-
dizagem do léxico do espaço em várias línguas (inglês, bengalês,
russo, mandarim), isto é, simulou a aquisição de palavras que
designam relações espaciais simples entre um Trajetor e um
Marco. Para isso, construiu um modelo conexionista híbrido,
composto de duas partes: um modelo das estruturas neurais do
sistema visual no cérebro para aprender parâmetros espaciais
que estruturam relações topológicas (contato, inclusão/exclusão,
posição superior/inferior, etc) e um modelo conexionista padrão
(operando por Processamento Paralelo Distribuído) de apren-
dizagem via retropropagação de erros. Dados os parâmetros
fornecidos pelo primeiro componente do modelo, o objetivo deste
constructo seria associar os parâmetros visuais aos itens lexicais
adequados: diante de diversos cenários ilustrando relações to-
pológicas, o modelo deveria apontar aquele que correspondesse
a uma dada descrição verbal, ou ainda, diante de diversas pala-
vras do repertório do léxico espacial, o modelo deveria escolher
aquela que se aplicasse a uma situação a ser descrita.
O experimento de Regier, inteiramente bem-sucedido,
exibe algumas características que merecem ser ressaltadas. Em
primeiro lugar, o modelo representa como é que categorias con-
ceptuais e lingüísticas (esquemas espaciais e/ou itens lexicais
associados a estes esquemas) podem ser aprendidas a partir
do aparato perceptual do sistema visual, sugerindo, como
conseqüência, que a hipótese epistemológica da dissociação
entre categorias perceptuais e conceptuais não seja mais que
um factóide.
Em segundo lugar, os parâmetros empregados neste
“treinamento” correspondem aos esquemas identificados pela
semântica talmyana do movimento. É possível, pois, que os
Parâmetros (e respectivos Valores de Parâmetros) que operam
para a estruturação dos comportamentos e das experiências
neste campo correspondam aos Elementos dos Frames identi-

38 Niterói, n. 23, p. 27-52, 2. sem. 2007


Lanterna na proa: sobre a tradição recente nos estudos da lingüística

ficados por Talmy para propósitos de descrição lingüística. Em


outras palavras, a operatividade destes elementos analíticos na
modelagem computacional de processos cognitivos aumenta a
possibilidade de que eles sejam psicologicamente reais.
Tal hipótese recebe confirmação adicional da tese doutoral
de Joseph Bailey, defendida em 1997, que modelou a aprendi-
zagem de verbos de movimento, não só do ponto de vista de
sua compreensão e produção, mas também do ponto de vista
da execução das ações nomeadas. (Tratou-se do treinamento
de um robô virtual chamado Jack que aprendeu a executar
movimentos com a mão correspondentes a verbos como pegar,
agarrar, segurar, empurrar, puxar, apertar, pressionar (uma tecla), tocar,
digitar, etc). O treinamento, mais uma vez, empregou falantes de
várias línguas (inglês, farsi, russo, hebreu), e lançou mão de uma
versão adaptada das redes Petri, um método bastante usado nos
estudos computacionais.
O experimento de Bailey, também exitoso, supera difi-
culdades encontradas no modelo de Regier, particularmente a
lentidão da aprendizagem via retropropagação, que é um traço
biologicamente pouco plausível. Bailey emprega um processo
de aprendizagem por recrutamento de estruturas cognitivas
preexistentes que permite que a aprendizagem possa acontecer
a partir da instanciação única de uma situação, situação fre-
qüente na aprendizagem humana. O ponto mais interessante do
trabalho de Bailey é a demonstração computacional de que as
estruturas que servem para conhecer são as mesmas recrutadas
para agir. Vale lembrar que este experimento é de 1997 e ante-
cede em quatro anos a descoberta dos neurônios-espelho que
evidenciam materialmente a conexão neural entre movimento
e percepção do movimento.
O coroamento deste conjunto de descobertas é a tese
doutoral de Srinivas Naranayan, também de 1997. Naranayan
trabalhou com Bailey desenvolvendo um modelo computacio-
nal de esquemas de execução (“esquemas-X”) dos movimentos
com a mão que Bailey ensinou ao robô a reconhecer, produzir
e praticar. No caso de Naranayan, avançamos ainda mais, já
que os esquemas-X, desenvolvidos para modelar movimentos
autocausados (andar, rastejar, engatinhar, correr, etc) aplicam-se
também para a compreensão metafórica de situações abstra-
tas no domínio, por exemplo, da economia política. De fato, o
programa elaborado por Naranayan, de nome K. A. R. M. A, foi
capaz de interpretar textos jornalísticos sobre economia política
publicados nas seções especializadas do The Economist, do Wall
Street Journal e do New York Times, processando sentenças tais
como “A economia da Índia entrou num período de estagnação. ” ou
“A França tropeçou num inesperado processo inflacionário. ”, etc.
Naranayan estabelece o que, a posteriori, parece absolu-
tamente óbvio, ou seja, que todos os esquemas de alto nível de
Niterói, n. 23, p. 27-52, 2. sem. 2007 39
Gragoatá Maria Margarida Martins Salomão

controle motor (isto é, acima do nível da sinergia motora) têm


exatamente a mesma estrutura sistêmica :
• Preparação
• Situação Inicial
• Processo de Iniciação
• Processo Principal (Duradouro ou Instantâneo)
• Opção de Parar
• Opção de Recomeçar
• Opção de Continuar o Processo ou de Repeti-lo
• Verificação se o Objetivo foi Atingido
• Processo de Finalização
• Situação Final
Tais fases, que organizam seqüencialmente a realização
de qualquer movimento corporal, constituem um esquema de
controle, familiar a qualquer estudioso da categoria lingüística
de Aspecto (cf. Vendler, 1967; Comrie, 1976; Talmy, 1988
[2000]): como é sabido, esta categoria corresponde à estrutura
temporal interna de qualquer evento ou situação.
Metáforas primárias tais como AÇÃO É MOVIMENTO, ou
como MAIS É PARA CIMA medeiam as conexões semânticas
modeladas computacionalmente, ligando o domínio da econo-
mia política ao domínio fonte do movimento corpóreo.
A hipótese explicativa geral para este fenômeno, nos termos
de Lakoff e Johnson (1999: 583), é que
The physical language in the news story activates a mental
simulation of physical action, using neural control structures
(with muscle control assumed to be inhibited). The results of
the physical simulation are then projected back via metaphorical
connections to the domain of economics, constituting inferences
about economics made by means of motor-control simulations. […]
Naranayan’s result does not prove that such abstract reasoning about
economics using physical metaphors is actually done via our system
of motor control. It is, however, another existence proof. Our
neural capacities for motor control can be used to carry our abstract
reasoning. The same neural circuitry that can move the body
can be used to reason with. (Grifos nossos)
O conjunto de descobertas que sumariei estão na base da
propositura da Teoria Neural da Linguagem (Feldman, 2006),
que oferece um outro campo de testagem a hipóteses postuladas
para lidar com os fatos lingüísticos.

8. Talvez a maior tranformação disciplinar que a lingüísti-

40 Niterói, n. 23, p. 27-52, 2. sem. 2007


Lanterna na proa: sobre a tradição recente nos estudos da lingüística

ca venha presentemente sofrendo decorra da recente disponibi-


lização de vastos corpora eletrônicos, associada a ferramentas
especializadas de busca dos dados lingüísticos.
A área que terá registrado em primeiro lugar este desafio
foi a pesquisa lexicográfica que, já na década de oitenta, come-
çou a usar as tecnologias da informação em diversos projetos de
descrição dos léxicos das línguas européias, de caráter acadêmico
ou por iniciativa comercial. (Um histórico e revisão destes em-
preendimentos encontra-se em ATKINS; ZAMPOLLI, 1994).
Daí resulta uma nova metodologia de análise lingüística,
denominada lingüística de corpus, que se ocupa de grandes
bases de dados coligidas eletronicamente e manejadas através
de softwares, capazes de produzir “concordâncias”(listas de co-
ocorrências do dado lingüístico pesquisado), ou a etiquetagem
de funções sintáticas ou de papéis semânticos para determinados
conjuntos de textos, ou tabelas de frequências de tokens ou tipos
dos dados, inúmeras possibilidades de acesso aos fatos lingüís-
ticos atestados, inimagináveis ao tempo em que Chomsky (1965,
p. 26) decretou a inanidade das análises baseadas em corpus.
(Boas apresentações deste tipo de trabalho são BERBER SARDI-
NHA, 2004; MITTELBERG; FARMER; WAUGH, 2007, p. 19-52).
A versatilidade das opções de abordagem resultantes extrapola
a análise do léxico e permite também estudos de gramática e
do discurso.
No que se refere ao léxico, um influente desdobramento
destes estudos é o projeto FrameNet, liderado por Charles Fill-
more e em desenvolvimento há dez anos para o léxico do inglês,
tomando como base, inicialmente, o British National Corpus. No
momento, o projeto estende-se também para os léxicos do ale-
mão, do japonês e do espanhol e está em fase de implantação
para o léxico do português. (vide <www. framenet. icsi. berkeley.
edu>).
No que se refere à gramática, uma inspiração teórica
precursora destes estudos é a tendência, programática no
funcionalismo americano, de encarar a gramática como um
sistema dinâmico emergente do uso discursivo (Givon, 1979;
Hopper, 1998). Os estudos tipológicos de feição quantitativa,
desenvolvidos por Bybee e vários colaboradores desde meados
da década de oitenta (Bybee et al., 1994; Bybee, 2001; 2007),
acabam desaguando nos estudos lingüísticos baseados-no-uso
(Barlow; Kemmer, 2000) que encontram pronta adesão de
gramáticos construcionais de diversas estirpes (Vide sobre este
ponto as coletâneas editadas por ÖSTMAN; FRIED 2005; FRIED;
ÖSTMAN, 2005).
Obviamente, a condição de acesso e manejo de amplas ba-
ses de dados atestados contribui para que estes estudos ganhem
em precisão analítica. De outra parte, a possibilidade de discutir
sobre “dados reais” cria uma condição objetiva de aproximação
Niterói, n. 23, p. 27-52, 2. sem. 2007 41
Gragoatá Maria Margarida Martins Salomão

entre lingüistas cognitivistas e funcionalistas, de modo a reme-


diar a relativa anemia da base “discursiva” dos primeiros e, de
outra parte, prover os últimos com hipóteses testáveis sobre a
gramática que não se dissolvam em um punhado de observações
“interessantes”.
Imediatamente beneficiários destas novas condições me-
todológicas são os estudos diacrônicos, especialmente aqueles
desenvolvidos nos últimos vinte cinco anos sob a designação
genérica de estudos da “gramaticalização”. As revisões analíticas
promovidas por lideranças no campo, destacadamente Elizabeth
Traugott (vide a nova edição de HOPPER; TRAUGOTT, 2003;
TRAUGOTT; DASCHER, 2005; BRINTON; TRAUGOTT, 2005),
respondem não só aos desafios postos para o paradigma no curso
destas duas décadas (cf. Campbell, 2001), mas aproveitam a
disponibilização de vastos corpora diacrônicos para promover,
por exemplo, uma profunda revisão da história dos auxiliares
modais em inglês com base nos dados tornados accessíveis.
É fato que as novas condições criadas de acesso aos dados
requerem também uma nova sofisticação em termos de análises
quantitativas. Nesta vertente é que têm prosperado os estudos
chamados “colostrucionais” que não só estudam as freqüências
de ocorrência das construções (lexicais ou gramaticais) em certos
ambientes, mas mensuram também os índices de “atração” ou
“repulsa” entre itens lexicais e as construções que eles virtu-
almente preencheriam, ou entre itens lexicais que podem ser
co-ocorrentes em uma dada distribuição (vide Gries; Hampe;
Schonefeld, 2005; Gries; Stefanowitsch, 2006).
Outra área que registra impacto dos estudos de corpora é
a da investigação sobre a aquisição da linguagem. As evidências
sobre os enviesamentos da aprendizagem correspondentes à
recém-descoberta “opulência do estímulo” seriam inimagináveis
à luz da “pobreza” dos dados empíricos anteriormente conside-
rados (TomasellO, 2003; Goldberg, 2006).

9. Todos os fatos computados nos levam a um inevitável


redesenho disciplinar da lingüística. Esta orgulhosa e bem-
sucedida aventura intelectual que formou a tantos de nós cede
lugar a uma outra “ordem discursiva”, definida pelo advento de
novas tecnologias da informação e por avanços consideráveis
nas áreas científicas em que se situam nossos interlocutores
preferenciais.
Não é possível ignorar o amadurecimento das ciências cog-
nitivas, das ciências da computação, das neurociências. Notícias
bem-vindas que antecipam abordagens do “ïnconsciente cogni-
tivo” a que até agora só nos atrevíamos especulativamente.
De outro lado, a disponibilização de grandes bases de da-
dos e a operacionalidade de seu manuseio nos levam a esperar

42 Niterói, n. 23, p. 27-52, 2. sem. 2007


Lanterna na proa: sobre a tradição recente nos estudos da lingüística

por abordagens mais sistemáticas e exaustivas do léxico e da


gramática das línguas que já têm sido descritas e, além disso,
pela análise em condições tecnicamente muito mais afortunadas
das línguas que ainda aguardam descrição.
Outra perspectiva tornada realista é o enfrentamento de
temas disciplinarmente “exilados”, como é o caso do tema da
“origem da linguagem” ou de temas até agora “impossíveis” no
estreito escopo da prática disciplinar, como é o caso do tema do
“processamento da linguagem”.
É claro que estas transformações repercutirão na formação
do lingüista. Tanto em termos do domínio das tecnologias que
hoje compõem a área designada “lingüística computacional”
como em termos da exigência de cultura geral no campo das
ciências cognitivas e das ciências sociais. Acabou a gloriosa
auto-exclusão. Junto com a “autonomia da linguagem” morre a
“autonomia da lingüística”.
Em termos práticos, é fácil profetizar novas práticas de
cooperação não só na relação interdisciplinar, o que parece um
fatalidade, mas dentro das próprias fronteiras da lingüística: o
montante de trabalho vinculado às novas metodologias convoca
os pesquisadores à colaboração recíproca de modo que a agenda
a ser cumprida resguarde todos os desejáveis requisitos de rigor
e completude.
Por outro lado, a experiência nas frentes mais avançadas
do desenvolvimento econômico mundial nos leva a imaginar
outras possibilidades de profissionalização do lingüista,
trabalhando ombro a ombro com informatas e engenheiros de
computação, desenvolvendo o que começa a ser chamado de
“engenharias de linguagem”. Isso sem contar os desdobramen-
tos que se vislumbram em cooperação com as ciências sociais
na análise de cenários institucionais de intervenção (educação,
saúde, atendimento a público).
No plano estritamente científico, o cenário que se vislumbra
é o do refinamento dos compromissos empíricos da lingüística,
que precisará formular hipóteses testáveis contra campos de
verificação até muito recentemente indisponíveis. Sem exage-
ros, é de outra disciplina que se trata. Não obstante, esta nova
disciplina perscruta novos horizontes, de pé, sobre o ombro de
gigantes, dos quais deve guardar a lição do atrevimento.

Niterói, n. 23, p. 27-52, 2. sem. 2007 43


Gragoatá Maria Margarida Martins Salomão

Abstract
Review of the recent history of linguistics from
the viewpoint of its current developments: the
ripening of the young field of cognitive sciences
(specially, technologies of information and neu-
rosciences) leads to substantive methodological
revisions in linguistic analysis, which tends to
become more interdisciplinary, more collegial
and more committed to empirical verification by
theoretical-independent classes of evidence.
Keywords: History of linguistics. Disciplinary
developments. Cognitive sciences. Information
technology. Interdisciplinarity

Referências

AHLSÉN, E. Introduction to neurolinguistics. Amsterdam: John


Benjamins, 2006.
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Uma (re)leitura contemporânea do
imaginário português –
as mezinhas de Dom Duarte
Mariangela Rios de Oliveira
Sebastião Votre
Kátia Eliane Santos Avelar

Recebido 12, jul. 2007/Aprovado 12, set. 2007

Resumo
O objetivo deste trabalho é apresentar e discutir
uma proposta de releitura contemporânea do
imaginário português, com foco nas tradições cul-
turais, em dois campos específicos: o dos cuidados
com a saúde e o da codificação lexical e morfos­
sintática na língua portuguesa. Oferece-se robusto
suporte e nova evidência para a hipótese da esta-
bilidade cultural e lingüística, assim como prova
empírica de mudança na ética dos cuidados.
Palavras-chave: Mezinhas. Idade Média, Mor-
fofonêmica. Morfologia derivacional.

Gragoatá Niterói, n. 23, p. 53-64, 2. sem. 2007


Gragoatá Mariangela Rios de Oliveira, Sebatião Votre e Kátia Eliane Santos Avelar

Introdução
Propomos uma releitura da tradição do imaginário portu-
guês, com foco nos usos lingüísticos, na fitoterapia e no cuidado
do corpo, tendo como referência algumas mezinhas1 escritas por
Dom Duarte, que foi rei de Portugal na primeira metade do
século XV e registrou os saberes de seus conselheiros e seus
próprios saberes durante 15 anos (1423 a 1438).
Para os efeitos deste trabalho, releituras se assumem como
exercícios de análise do conteúdo e reinterpretação, na ótica si-
tuada no hoje, de produtos e processos culturais do passado. No
nosso caso, do último século da Idade Média. O termo tradição é
compreendido em seu aspecto metonímico, como abrangendo
os diferentes setores da produção cultural da época selecionada.
Nosso recorte é o cuidado com as pessoas, compreendidas em
seus valores culturais e linguageiros, em suas práticas alimen-
tares e terapêuticas. O termo imaginário social (DURAND, 1999,
1996), aqui compreendido como equivalente a representações
sociais (MOSCOVICI, 2003), aponta para a produção de conhe-
cimento do senso comum, atitudes, interpretações e avaliações
sobre itens e elementos da cultura que são relevantes para os
membros dos grupos sociais que mantêm estreita interação entre
si. O termo se tem estendido para abarcar os valores, crenças e
atitudes de um estado ou mesmo de uma nação. É neste sentido
que falamos do imaginário português sobre a saúde. Poderíamos
falar do imaginário desse povo sobre a saudade, as navegações, o
sonho do quinto império, o sebastianismo, entre outros enfoques
ou outras perspectivas.
Portanto, releituras da tradição medieval via escritos do
rei Dom Duarte leva-nos a percorrer a superfície textual escrita
desse rei, que recolhe conselhos, recodifica-os, rearruma-os e
os reúne aos seus próprios valores e aos valores da família real,
com o fim explícito de orientar seus leitores para que alcancem
uma vida mais plena, naquele contexto vivencial, da primeira
metade do século XV.
Nossa tese, neste trabalho, é que a cultura se produz e
reproduz em interação contínua dos indivíduos, se codifica na
linguagem que, por sua vez, condiciona e direciona as manifes-
tações culturais da comunidade. Dessa interação interindividual
resulta um quadro de referência que se transmite de geração
em geração, via oralidade e escrita, em que os saberes se man-
têm e se renovam. Em outros termos, na trajetória histórica das
manifestações culturais e verbais, é possível a identificação de
padrões de continuidade, de variabilidade e de mudança, que
nos permitem falar de tradição renovada ou redimensionada,
1
Terminologia popular como procuramos fazer no contexto deste artigo, a partir do
para remédios caseiros;
derivação: medicinas > imaginário português.
meicinas > meizinas >
mezinhas.

54 Niterói, n. 23, p. 53-64, 2. sem. 2007


Uma (re)leitura contemporânea do imaginário português – as mezinhas de Dom Duarte

Do ponto de vista teórico, no campo lingüístico, no sub-


domínio dos estudos de gramaticalização e de gramática das
construções (HOPPER; TRAUGOTT, 2003; OLIVEIRA; VOTRE
2004; VOTRE, 2006)2, acolhemos a tese da persistência de alguns
traços morfossintáticos e de itens do léxico da saúde, identifica-
dores do imaginário medieval português nos domínios cultural
e lingüístico contemporâneos; atestamos, por outro lado, persis-
tência das dificuldades de representação gráfica de segmentos
fonológicos similares, sobretudo nos casos de arquifonemas
nasais e sibilantes.
No campo sócio-antropológico, fundamo-nos na teoria
da estruturação reflexiva, formulada por Anthony Giddens
(2002, 2000 e 1995), segundo a qual os indivíduos, reflexivos,
agentes, monitoram e organizam seus eventos comunicativos,
ajustando-os aos interesses e perspectivas de seus interlocutores,
em situação real de comunicação. Esta proposta de Giddens, de
ampla aceitação nos ambientes acadêmicos envolvidos com as
teorias da modernidade reflexiva, oferece suporte para estudos
empíricos em que indivíduos de prestígio, em posição singular,
configuram seu mundo circunstancial, interferem nos valores
e representações da cultura e no imaginário coletivo. No caso
deste estudo, o indivíduo tomado como referência é um rei culto,
atento aos anseios e interesses de seu povo, que ouve e registra,
cuidadosamente, os conselhos de seus pares e de sábios de seu
reino, registra esses conselhos, bem como os que ele próprio
formula. Assim, consideramos os textos aqui tratados e seu
contexto de produção como modelos de representação, usos
exemplares que, via legitimação e prestígio, marcaram e marcam
as práticas alimentares e terapêuticas da comunidade de língua
portuguesa, além de revelar muito acerca dos usos lingüísticos,
em sua tensão entre a mudança, a inovação, e, por outro lado, a
estabilização gramatical.
Os resultados do estudo oferecem evidência favorável,
também, às postulações de Hanna Arendt (2005), sobre o caráter
único da contribuição dos indivíduos na construção e consolida-
ção de cada produto cultural; oferece, de outra parte, suporte à
tese de Michel Foucault (2004, 2005), sobre a tecnologia política
dos indivíduos.
Por fim, o trabalho representa uma evidência da postulação
de Bakhtin (1988), sobre a mudança semântica e a presença da
ideologia nas manifestações dos valores da cultura.
Para os objetivos aqui traçados, selecionamos fragmentos
de receitas em que se nomeiam algumas das plantas fitoterápi-
cas e os usos das mesmas. Nesses fragmentos identificamos, em
seus traços básicos, a morfofonêmica, a sintaxe e a morfologia
2
Procuramos referir
derivacional do século XV. Detemo-nos nos aspectos revela-
os autores pelas edições dores de traços de estabilidade e de continuidade nas práticas
mais recentes.
discursivas e culturais registradas, destacando, para além das
Niterói, n. 23, p. 53-64, 2. sem. 2007 55
Gragoatá Mariangela Rios de Oliveira, Sebatião Votre e Kátia Eliane Santos Avelar

trajetórias de mudança e de marcas de variabilidade, evidências


de persistência nas práticas referidas, que nos permitem iden-
tificar uma mesma língua e universo cultural cunhados, pelo
menos, há cinco séculos no imaginário português.
O imaginário português
Destacamos dois aspectos do imaginário português que até
hoje permanecem na nossa cultura: o da estabilidade lingüís­
tica e o das crenças e valores associados às plantas medicinais,
cuja procedência encontra-se documentada no período arcaico
da língua e que se pode concluir a partir da análise crônicas e
relatos sobre mitos e ritos da cultura lusitana.
Consideramos que as releituras da tradição favorecem o
trabalho, no contexto acadêmico universitário, com textos (ou
fragmentos deles) fundantes da nossa cultura, que correspondem
ao final da Idade Média. A grafia desses textos é fonte preciosa
para a compreensão do sistema fonológico da língua e das ten-
tativas de sistematização, antes da existência de normas oficiais
de ortografia. Aspectos relevantes do léxico e da morfossintaxe
registrados nessas fontes apontam padrões em uso no português
contemporâneo, o que permite classificar os textos de Dom Du-
arte como legítimas produções portuguesas.
Ademais, observamos que o poder das plantas na tradição
medieval européia se atesta nesses textos de Dom Duarte sobre
medicina e farmacopéia, com ênfase para aqueles relacionados à
produção de mezinhas para as mais variadas doenças, a exemplo
de peste, dores nos olhos, dores no estômago, diarréia, dores
de dentes, gota, ciática, febres, doenças resultantes do parto. O
autor fornece conselhos práticos sobre como conservar a saúde
e apresentar bom aspecto, nos quais se manifesta o imaginário
português, em que se incluem a superstição e as crendices po-
pulares.
Mudança e estabilidade
As línguas e as culturas mudam em uns aspectos, variam
em outros e no geral tendem a conservar-se, não por inércia, mas,
no quadro teórico deste trabalho, por ação e reação de agentes
autônomos, reflexivos, dotados de vontade, valores e crenças,
que procuram manter o legado dos antepassados, no que lhes
parece relevante.
Nesse contexto, mostramos em alguns fragmentos do texto
de Dom Duarte, em confronto com textualizações atuais, como
se mantém o tripé da cultura, dos usos lingüísticos e das suas
representações. Sobre um cerne que se mantém, uma parte varia
e outra muda.
Na abordagem funcionalista da linguagem, o cotejo de
usos antigos ou arcaicos com outros correspondentes contem-
porâneos tende a investigar, precipuamente, trajetórias de mu-

56 Niterói, n. 23, p. 53-64, 2. sem. 2007


Uma (re)leitura contemporânea do imaginário português – as mezinhas de Dom Duarte

dança categorial, ou gramaticalização, e derivações de sentido,


ou polissemia. Tal investigação assenta-se, respectivamente, na
tese de que há um continuum unidirecional através do qual as
categorias migram do léxico para a gramática ou de um status
menos para um mais gramatical, e na de que o processo de abs-
tratização, motivado por maior freqüência de uso ou fatores de
ordem cognitiva ou pragmático-discursiva, leva os sentidos mais
concretos, como o espacial, a serem usados para a codificação de
domínios mais abstratos, como o temporal e o textual. A clássica
teoria localista, conforme se encontra em Batoréo (2000), é um
típico exemplo dessa concepção.
Assim, durante décadas, as pesquisas funcionalistas se
detiveram no levantamento de fenômenos que tentavam com-
provar a mudança ou evidências de processo de mudança nas
línguas. Por outro lado, recentes trabalhos com base em corpora
latino e português, de distintas sincronias, numa perspectiva
pancrônica3, têm mostrado que, ao lado da derivação semântica
e categorial, há muito de estabilização, de usos que se mantêm,
em alguns casos, como aponta Ferreira (2000, 2003), pelo menos
desde o século II a.C, em que a autora atesta o emprego modal
do verbo poder em peças de Plauto. Outros trabalhos, como os
de Oliveira (2000), Votre (1999), Rodrigues (2002) e Sousa (2007)4,
na mesma linha, confirmam padrões de sentido e de forma mais
estáveis na trajetória do português. Esses achados fizeram com
que, na fase atual da pesquisa de orientação funcionalista, sejam
considerados ou integrados à análise usos mais regulares.
Para dar conta dessa reorientação teórico-metodológica,
Votre (2006) tem desenvolvido o princípio de extensão imagética
instantânea, complementar à gramaticalização, em que, num viés
desvinculado da dimensão unidirecional ou temporal, trata os
usos lingüísticos, e sua derivação de sentido e de forma, em
3
A pancronia diz res-
função dos contextos pragmático-discursivos e das pressões
peito à conjugação das cognitivas em ação no momento dessas ocorrências. Como
abordagens sincrônica
e diacrônica, rompendo tais pressões não se relacionam especificamente a um marco
a clássica dicotomia com temporal, mas à esfera situada e contingenciada das interações
que as duas vertentes
são, em geral, tratadas, humanas, linhas unidirecionais clássicas do tipo léxico > gramá-
em prol da observação
de padrões de regulari-
tica ou espaço > tempo > texto, por exemplo, não são relevantes ou
dade ou irregularidade condição necessária para a análise interpretativa das práticas
num viés translingüís­
tico ou numa mesma
linguageiras. Assim compreendidos, usos mais sistemáticos e
língua. contínuos de conteúdo e de expressão, como os textos de Dom
4
Nesses estudos, os
autores atestam esta-
Duarte, podem ser interpretados como representações que re-
bilidade, pelo menos velam equilíbrio e estabilidade.
desde o período arcaico
da língua, nos usos de
onde (OLIVEIRA, 2000),
Regimentos e mezinhas de Dom Duarte
de verbos cog nitivos
(VOTRE, 1999), de ago- A seguir, apresentamos os textos utilizados para análise.
ra (RODRIGUES, 2002) Escolhemos um conselho/regimento e duas mezinhas de Dom
e da complementação
oracional introduzida Duarte para ilustrar os cuidados com a saúde no seu tempo.
por se (SOUSA, 2007). Tanto o regimento como as receitas são específicas para males
Niterói, n. 23, p. 53-64, 2. sem. 2007 57
Gragoatá Mariangela Rios de Oliveira, Sebatião Votre e Kátia Eliane Santos Avelar

que afligiam os seus súditos de então e que continuam a afligir


os cidadãos de hoje. O primeiro é um documento datável de
1433-1438, intitulado Regimento pera teremos boa compleisão (p.
268):
(1) Regimento que o homem deve de ter pera auer em pouco
tempo boa lena, e he este o qual deu a el rey noso senhor
mossem Joam marsala e lhe dise que o ouuera do seniscal
de frança.
Primeiramente leuante se bem cedo pola manhã, e tome h~ua
onça d açúcar rosado e destempere a com agoa frya e beba a em
Jejum. Ao Jantar coma continoadamente ujanda asada e pouca
potaJem, e coyma sempre carne de carneiro asada ou outras
boas carnes asadas, de pena, e guarde se de comer muyto pão
e asy de sal e de salsas e beba pouco ao Jantar e non beba de
dia senão da água sobre dita se neçesidade ouver e guarde sse
de dormyr de dia.

Aa çea coma pouco de boas viandas asadas e despois que ou-


vver comydo asy a çea como ao Jantar coma huma fatya de pão
torrada sem beber, e quando se lançar a noite na cama beba da
dita agoa çuquarada se for uerão, e se for Jnuerno coma huma
talhada de pão torrada e molhe a em ujnho branco e entom
tome huma toalha e cubra bem o rostro e asy Jaça toda a noite
non embargando que o começo seJa forte, e o dia seguynte ande
com o capelo bem abafado e traga calças e botas bem grosas
e bem ataqadas e enton ande de pe este pouco asentado, e se
esto fizer avera brevemente boa lena.

Qada quatro ou cinqo dias coma huma vez quando poder, e


cabo d hum pouco tome hum traguo d agoa morna e destem-
pere a mea onça d açafrã e deite lhe hum pouco d azeite ou
mel e entam beba a e loguo lançara quantos maos humores
tiuer no estomaguo, e laue loguo a boca com agoa çucarada
sobre dita.
A seguir, transcrevemos na íntegra duas mezinhas para
gota, que selecionamos por serem breves:
(2) Mezinha pera giolho jnçhado de gota ou ciática
Jngoento agripa e Jngoento tostinho, e olio costum e olio de
macela, mesturando os olios a sua parte, e os jngoentos sobre
sy e poer os olios quentes e em cima os jngoentos.

(3) Mezinha pera gota e maçamento


Pera a gota gomos de mieyro estilado e aquela agoa quente
com panos huns trás os outros onde mitigua a dor. Pera o
maçamento agoa fria continuada dous ou tres dias preserva
da postema e mitiga a dor.

58 Niterói, n. 23, p. 53-64, 2. sem. 2007


Uma (re)leitura contemporânea do imaginário português – as mezinhas de Dom Duarte

Análise do regimento e das mezinhas


De ponto de vista dos cuidados com a saúde, mantém-se
parte do que se propõe no regimento e se preserva integralmente
a receita presente nas mezinhas.
Os três parágrafos do regimento ilustram bem as caracte-
rísticas de estabilidade, variabilidade e mudança na releitura da
tradição. Enquanto os dois primeiros se mantêm válidos, aceitos
e recomendados hoje, com pequena variação, para quem quer
manter boa compleição, o terceiro parágrafo mostra hábitos e
costumes que eram aceitos na França, de onde veio o conselho,
e que o rei houve por bem divulgar para seu povo. O que aqui
se propõe pertence atualmente ao campo semântico de bulimia/
anorexia. Hoje, se por um lado reconhecemos a presença da bu-
limia, associada a hiperfagia, como aumento anormal do apetite,
e a preocupação de comer sem o risco de engordar, temos con-
senso em que se trata de uma prática nociva ao organismo, que
prejudica o trato, provoca úlceras, pelo efeito negativo dos ácidos
gástricos. Podemos falar, portanto, em preservação e mudança
da tradição. É inconcebível, hoje, aconselhar a bulimia do ponto
de vista ético e responsivo.
Quanto às mezinhas, o tratamento tópico com emplastros,
com o uso de água gelada ou quente, continua a ter recomenda-
ção, nem sempre consensual, mas com defesa bem argumentada
para cada alternativa. Quem não recomenda gelo para prevenir
a inflamação, aliviar a dor, retirar o sofrimento? Enfaixamos a
parte ferida, protegemo-la do vento, do sol, do contato com a
poeira, com os insetos, com a água e com a terra.
A análise dos textos escritos pelo rei permite identificar
alguns casos de morfofonêmica, com os metaplasmos mais
recorrentes, que não impedem a compreensão do sentido dos
textos, como ausência da letra m (asy), duplicação da vogal (aa
regra), indefinição entre –am e –ao (esto fação), crase de –ee para e
(podes entender), verbo pôr na forma –oer (poer), anteposição de
–r- (detrimyna), anteposição de –i-(contrayro), uso de porende.
O registro de variabilidade na grafia é apenas ilustrativo,
como em cousas e coussas, façam e facão. A produtividade de alguns
morfemas derivacionais muda, no curso do tempo, conforme
se mostra, no registro de morfemas derivacionais presentes no
texto arcaico (comunalmente, eruanço, candyl, sobegidom) em con-
fronto com os morfemas que ocorrem no quadro derivacional
contemporâneo.
Do ponto de vista discursivo, os textos de Dom Duarte são
representantes legítimos e atuais do gênero relato de procedimento,
constituídos por seqüências tipológicas (MARCUSCHI, 2002)
basicamente do tipo injuntivo ou expositivo. Portanto, trata-se de
arranjos muito similares aos dos dias atuais, quando, em intera-
ção lingüística extremamente ritualizada e freqüente, trocamos

Niterói, n. 23, p. 53-64, 2. sem. 2007 59


Gragoatá Mariangela Rios de Oliveira, Sebatião Votre e Kátia Eliane Santos Avelar

receitas ou ensinamos práticas para cuidados de beleza e saúde.


Alguns usos lingüísticos evidenciam esse fazer textual estável,
como o advérbio primeiramente, que abre (1), além das ocorrências
de entom/n, também em (1), da preposição pera, do uso reiterado
do conector e, bem como de formas verbais imperativas (coyma,
levante se, cubra, ande etc), entre outros. Tais usos são responsáveis
pela articulação da seqüencialidade característica desse tipo de
texto, estratégia gramatical5 em relatos de procedimento.
Em termos morfossintáticos mais estritos, ao lado de al-
gumas evidências de mudança e variação, encontramos usos
mais estáveis, em consonância com os praticados no português
contemporâneo, como: a ordenação dos advérbios de modo e in-
tensidade6 – pospostos a verbo (levante se bem cedo; cubra bem; coma
continoadamente; comer muyto pão; beba/coma pouco) e antepostos
a adjetivo (botas bem grosas e bem ataqadas; capelo bem abafado); as
expressões temporais em torno do infinitivo (ao jantar; quando
se lançar a noite).
Também por conta de se tratar de receitas, e não por
motivação temporal, os sentidos articulados são basicamente
concretos. Há uma profusão de termos relativos ao campo da
alimentação, da botânica, além de verbos que expressam o fazer,
questão central nesse tipo de texto.
Não vamos proceder aqui a uma listagem exaustiva das
plantas, suas propriedades e técnicas de preparo, que se podem
depreender e inferir do Livro dos Conselhos. Antes, nos limi-
tamos a registro de algumas das plantas nomeadas por Dom
Duarte (e suas propriedades) e identificação das mesmas com
termos atuais, com menção das dificuldades e perspectivas de
identificação das plantas.
Uma listagem das principais plantas, processos e proprie-
dades, citadas nas mezinhas de Dom Duarte, inclui: açafran, agri-
pa, almecega, amora, anacardo (cajueiro), asphodelus, avicena,
5
azebre (sumo ou suco de qualquer planta), barbasco, canafrecha,
De acordo com a con-
cepção funcional que costo (raiz aromática), dialtea, erva ruberte, escabiosa, eufór-
assumimos (FURTADO bio, funcho, lentisco, linho, loureiro, macela (marcela galega),
DA CUNHA et al., 2003),
entendemos gramática marmelo, mostarda, murta, noz gradiorem (noz moscada), alho
como o conjunto de usos
consagrados e relativa-
porro (poró), tormentila, tostinho, verde gris (provavelmente,
mente estabilizados no cogumelo).
trato social, assim, os
arranjos sistemáticos e Atualidade dos conselhos do Rei
convencionais por meio
dos quais produzimos
textos também são en- A leitura das mezinhas, com menções de sumos, sucos,
tendidos como grama- pós, infusões e ungüentos, mostra que se conservou a tradição.
ticais.
6
No Brasil, os padrões
A listagem dos procedimentos, lá e cá, inclui: infusão, decocção,
de ordenação dos ad- maceração, suco, sumo, xarope, inalação, gargarejo, compressa,
vérbios de modo e de
intensidade têm sido es- cataplasma e banho.
tudados de modo mais Junto a alunos universitários, fizemos um breve levanta-
específico por Martelot-
ta (2006). mento de mezinhas caseiras e verificamos, a partir da consulta
feita a suas famílias, qual o uso que fazem das plantas medici-
60 Niterói, n. 23, p. 53-64, 2. sem. 2007
Uma (re)leitura contemporânea do imaginário português – as mezinhas de Dom Duarte

nais, quais plantas estão envolvidas e como se fazem as receitas,


com vistas a favorecer a comparação com as receitas de Dom
Duarte.
Eis as principais plantas mencionadas e seus processos de
preparação: chá de pitanga, chá de semente de romã, gargarejo
de romã, chá de boldo, infusão de carqueja, raiz de catuaba e
cipó cravo, chá de louro com casca de cebola, chá de capim limão,
chá de erva-doce, chá de erva cidreira, chá de alface, de dente
de leão, de folha de goiabeira, de capim-limão, de broto de folha
de caju, de folha de laranjeira, de guaco, de poejo ou menta, de
broto de pinheiro, maceração de ameixas, de flores de colônia,
de caroço de abacate, de arnica de campo, eucalipto e cânfora,
impregnação de cuia de castanha do pará.
Assim como nos conselhos do Rei Dom Duarte, nos dias
atuais, há uma grande preocupação por parte das autoridades
médicas com a saúde da população. Isso se deve principalmente
ao crescente aumento de doenças diretamente ligadas aos há-
bitos alimentares. Como campeã nos problemas relacionados à
má alimentação está a obesidade, uma vez que esta é condição
predisponente para o aumento do risco de morbidade para do-
enças crônicas como hipertensão, dislipidemia, diabetes, doença
coronariana, alguns tipos de câncer e colecistite.
É consenso em todos os manuais para uma vida saudá-
vel, como os manuais de nutrição da OMS7 e outros tratados
de medicina, que só é possível atingir uma condição de vida
saudável a partir de hábitos alimentares adequados. Diante
dessa preocupação, são várias as recomendações para mudanças
alimentares e, também, no estilo de vida, na busca de melhores
condições de saúde.
Em um trabalho recente, publicado por pesquisadores
da área de nutrição, foram propostas dez recomendações para
a garantia de uma vida saudável, que são listadas a seguir: 1)
Consuma alimentos variados, em 4 refeições ao dia. 2) Mante-
nha um peso saudável e evite ganhar peso após os 20 anos. 3)
Faça atividade física todos os dias. Inclua na sua rotina andar a
pé, subir escada, jogar bola, dançar, passear e outras atividades.
Evite o excesso de álcool e o fumo. 4) Coma arroz e feijão todos
os dias, acompanhados de legumes e vegetais folhosos; 5) Coma
quatro ou cinco porções de frutas, todos os dias, na forma natu-
ral; 6) Reduza o açúcar. Evite tomar refrigerantes. 7) Para lanches
coma frutas ao invés de biscoitos, bolos e salgadinhos; 8) Coma
pouco sal. Evite alimentos enlatados e produtos como salame,
7
Cf. Doenças-crônico
degerativas e obesidade:
mortadela e presunto, que contêm muito sal. Evite adicionar sal
estratégia mundial sobre à comida já preparada. Aumente o uso de alho, salsinha e ce-
alimentação saudável,
atividade física e saúde.
bolinha. Alimentos ingeridos na sua forma natural como feijão,
Brasília, DF: Organiza- arroz, frutas, grãos e verduras têm pouquíssimo sal; 9) Use óleos
ção Pan-Americana da
Saúde 2003. 60p. e azeite no preparo de bolos, tortas e refeições; 10) Tome leite e

Niterói, n. 23, p. 53-64, 2. sem. 2007 61


Gragoatá Mariangela Rios de Oliveira, Sebatião Votre e Kátia Eliane Santos Avelar

coma produtos lácteos com baixo teor de gordura, pelo menos


três vezes por dia (SICHIERI et al., 2000).
Os conselhos do rei Dom Duarte para uma vida saudável
podem, em sua absoluta maioria, ser comparados às recomenda-
ções atuais. Podemos parafrasear seus regimentos como voltados
para o desenvolvimento sustentável da saúde, para a conservação
dos alimentos e para o cultivo dos cereais e das ervas necessárias
às mezinhas e ao preparo dos alimentos saudáveis.
A obra, síntese dos saberes compilados por um rei culto
e piedoso, é registro precioso do imaginário de um povo, de
suas preocupações, crenças, valores e atitudes, ações guerreiras,
disputas territoriais e alianças com outros reinos. Pela riqueza
de detalhes com que aborda cada tema importante do cotidiano
da corte, é fonte primária para uma releitura das mentalidades
no ocidente da península ibérica. É fonte única também para o
conhecimento do imaginário letrado da época quanto ao modo
de ler convenientemente, de interpretar os textos (sagrados), aos
cuidados e critérios que se deve ter ao traduzir do latim para o
português (tornar em lingoajem), ditado per latym e lingoajem
d el rey pera outros príncipes e senhores e, por fim, lyuros que
el rey tinha asy de latim como lingoajem, que merecem um
estudo de releitura da comunicação escrita na primeira metade
do século XV.
Considerações finais
A tradição se mantém e se revigora. As plantas medicinais
voltam a figurar entre os ingredientes do mundo contemporâ-
neo, tanto nos países do primeiro mundo quanto nas nações
emergentes. A volta à natureza, a valorização dos produtos de
origem vegetal, os sucos de clorofila e de todas as frutas, a volta
aos hortigranjeiros, o culto aos produtos orgânicos, tudo aponta,
a nosso ver, para uma releitura da tradição, para um resgate dos
valores, saberes e sabores dos tempos antigos.
A hipótese da continuidade da língua e da cultura se re-
afirma e se robustece. Convive-se, assim, com o novo e com o
tradicional. Com o antigo e com o moderno, quase sempre em
sintonia, por vezes com reformulação, rejeição ou reprovação
do passado. Num certo sentido, reinventamos as tradições, com
mais ingredientes conservados do que costumamos imaginar.
As imagens que nos povoam a mente, e que configuram nosso
imaginário, fortemente ressonam o imaginário português me-
dieval.

Abstract
The aim of this article is to present and discuss a
proposal of contemporary reading of the Portugue-
se Imaginary, with focus on cultural traditions, in

62 Niterói, n. 23, p. 53-64, 2. sem. 2007


Uma (re)leitura contemporânea do imaginário português – as mezinhas de Dom Duarte

two specific fields: of health care linguistic


codification of the Portuguese language,
at the lexical and morphosyntactic levels.
Solid support and new evidence are offered,
favoring the hypothesis of cultural and lin-
guistic stability, as well as empirical proof
supporting change in the ethics of care.
Keywords: Medicines. Middle Age. Mor-
phophonemics. Derivational morphology.

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64 Niterói, n. 23, p. 53-64, 2. sem. 2007


Tirando os véus, velando o outro:
Bakhtin e os diálogos multiculturais
contemporâneos
Valéria Rosito Ferreira

Recebido 5, jul. 2007/Aprovado 26, set. 2007

Resumo
Este artigo articula considerações clássicas de
Mikhail Bakhtin em torno do conceito de polifonia,
formuladas na primeira metade do século XX, à
crítica cultural contemporânea. A revisitação da
tradição crítica inaugurada pelo teórico russo e
cara aos estudiosos de Teoria da Literatura, de
Sociolingüística, de História Cultural, dentre
outros, prova-se extremamente fértil hoje. Trocas
simbólicas mais complexas e céleres confundem
lugares de enunciação nos conflitos ou negociações
identitárias locais e globais. Se crescentes co-
produções cinematográficas prestam testemunho
temático e econômico à intensificação do trânsito e
das parcerias multiculturais, expressos pela emer-
gência das ‘vozes de dentro’ e/ou auto-represen-
tações, por outro lado deixam transparecer certa
dificuldade em elaborar perguntas produtivas
sobre possibilidades concretas de diálogo inter/
multicultural. Dicotomias simplistas e longevas
entre o novo e o velho ou maniqueísmos mais
perversos que lhes façam corresponder o bem e o
mal parecem contribuir antes para a univocidade
que para a tensão polifônica, como descrita por
Bakhtin. Nosso trabalho específico configura-se
pelo exame da linguagem cinematográfica de A
Maçã, de Samira Makhmalbaf, de 1998. Procura-
mos compor nosso objeto sobre uma base descritiva
articulada entre o iconográfico e o verbal, proce-
dendo à visão de mundo mais ampla, subjacente
a este “bem cultural” franco-iraniano.
Palavras-chave: Linguagem cinematográfica.
Multiculturalismo. Polifonia. Mikhail Bakhtin.
A Maçã.

Gragoatá Niterói, n. 23, p. 65-77, 2. sem. 2007


Gragoatá Valéria Rosito Ferreira

1. Introdução
No plano da comunicação, a aceleração da globalização
vem gerando o uso pródigo dos prefixos poli- e multi-, num es-
forço lexical para reconhecer diferenças e afirmar a diversidade
num mundo ‘sem fronteiras’. No âmbito da produção cinema-
tográfica contemporânea, este multiculturalismo vem sendo
alavancado por capital transnacional, responsável por parcerias
presumivelmente empenhadas em trazer o distante para perto,
em debater ‘alteridades’, procedendo, metodologicamente, à
exaltação de lugares de enunciação que, outrora, eram reificados
como o lugar do outro. Estes novos agentes de enunciação podem
ser encarnados por nosso próprio vizinho, como já encenado no
espetaculoso Cidade de Deus1, ou por civilizações mais remotas,
como no caso do celebrado filme franco-iraniano A Maçã, de
Samira Makhmalbaf, de que trataremos adiante. Roland Barthes
diria que descortinamos o momento climático – embora perverso
- da exposição “A Grande Família do Homem”. O objeto do ataque
do crítico francês era integrado por uma coleção de fotografias
levada dos EUA para a França durante os anos da Guerra Fria.
Povos distantes eram retratados em seu dia-a-dia, demonstran-
do “a universalidade dos gestos humanos na vida cotidiana de
todos os países do mundo: nascimento, morte, trabalho, saber,
jogos impõem por toda a parte os mesmos comportamentos”
(BARTHES, 1975, p. 113-116). Segundo o teórico dos mitos, de
uma miríade de diferenças e de costumes inicialmente expostos,
surge, como que por mágica, uma inexplicável unidade, fato que
o leva a recear que “a justificação final de todo esse academicismo
seja dar à imobilidade do mundo a caução de uma ‘sabedoria’
e de uma ‘lírica’ que só eternizam os gestos do homem para
melhor os tolher” (BARTHES, 1975, p. 115-116). 2
1 A pergunta que impele nossa investigação se dá num
Cf. capítulo 3 da tese
de Doutorado Ferreira momento histórico em que particulares e universais, dentro ou
(2004, passim).
2
fora dos espaços acadêmicos, se imbricam de forma distinta.
Ratificando tal hi-
pótese a partir de uma Os termos da proposição barthesiana parecem se inverter, pois
perspectiva antropoló- os pressupostos correntes apontam para a valorização final das
gica, as pesquisadoras
Lutz e Collins relatam diferenças. Em princípio, estaríamos rumando a um horizonte
que um quinto de todas
as fotos publicadas na
de expectativas contrário àquele que descreveu Barthes nos anos
revista americana Na- 50. Entretanto, sua crítica à sociedade burguesa parece-nos atu-
tional Geo­g raphic do
pós-guerra a meados al, uma vez que a sustentação do status quo continua exigindo,
dos anos 80 pertencem senão o apagamento das alteridades, sua domesticação, através
ao naipe ritualístico,
a t r avé s d o q u a l “o de estratégias discursivas que realizam o que se propõem a
não-ocidental vem a
ser retratado como um
desmontar. Ao contrário da produção cultural do pós-guerra, a
performer de rituais, celebração de alteridades hoje vem ainda legitimada por vozes
embutidos (talvez haja
quem leia encrostados)
até então silenciadas: as dos próprios sujeitos representados.
em tradição e vivendo Perspectivas femininas e/ou infantis, por exemplo, aparentemen-
em um mundo sagrado
(há quem diga supersti- te como ‘sujeitos do discurso’ em mundos fortemente dominados
cioso)” (apud ROSITO, pelo olhar masculino, desfraldam sua heterogeneidade interna,
2006, p. 169).

66 Niterói, n. 23, p. 65-77, 2. sem. 2007


Tirando os véus, velando o outro: Bakhtin e os diálogos multiculturais contemporâneos

antes desconhecida das grandes bilheterias. Para dar conta


deste debate, recorremos ao conceito bakhtiniano de polifonia,
especialmente derivado de suas teorizações sobre o fenômeno
da enunciação à luz do marxismo e de seus desdobramentos
na apreciação da obra de Dostoievski. Peter Burke, historiador
cultural contemporâneo, observa que, ao contrário da ampla
recepção das idéias do filósofo em Cultura popular na Idade Média
e no Renascimento, suas reflexões sobre gêneros da fala e formas
de polifonia não atingiram ainda a merecida projeção fora do
campo literário (BURKE, 2005, p.71-72). Pretendemos, com tais
instrumentos, iluminar nossa análise de A Maçã, dirigido por
uma jovem cineasta iraniana, que pretende reivindicar, para
mulheres e crianças suas conterrâneas, novos lugares de fala no
palco multicultural contemporâneo.
2. Princípios da filosofia bakhtiniana de linguagem
Em Marxismo e Filosofia de Linguagem, Bakhtin consolida
a aproximação entre atividade mental e linguagem, argumen-
tando em favor da precedência da interação entre interlocutores
concretos sobre o desenvolvimento da consciência individual.
Contrariamente à noção idealista de que consciência e pensa-
mento antecedem sua expressão, o teórico russo postula catego-
ricamente que “fora de sua objetivação, de sua realização num material
determinado (o gesto, a palavra, o grito), a consciência é uma ficção”
(BAKHTIN, 2006, p. 122). Na formulação de sua semiótica, ou
teoria dos signos, o estudioso reorganiza os domínios da psico-
logia e da ideologia com base na contigüidade entre interior e
exterior, refutando linhas radicalmente fisiológicas e mecanicis-
tas, que clivam a psicologia da ideologia, reduzindo o indivíduo
ao circuito fechado da fisiologia ou da biologia. Em cristalino
antagonismo aos postulados saussureanos sobre a arbitrariedade
do signo lingüístico, Bakhtin insiste que o signo – o elo entre
o referente e sua forma conceitual - não pode ser reificado, tra-
tado como uma coisa, uma vez que são dinâmicos e históricos
os seres vivos que dele participam: o indivíduo e o corpo social.
É inegável que o filósofo distingue duas identidades mutantes
integrantes de um núcleo mínimo de significação. Os ‘falantes’
de uma determinada língua são os que se apropriam significa-
tivamente de um sistema abstrato para interagirem concreta e
socialmente. A interlocução, como lugar de troca e de doação
de sentido, presume a co-participação de identidades distintas
num processo contínuo de apropriação do código lingüístico
por sua ressignificação contingente ou histórica, determinada
por lugares de onde se fala ou lugares de enunciação. Em outros
termos ainda, a esfera simbólica - do plano mais interiorizado
ao mais exteriorizado em crenças, religiões e ideologias - só se
torna possível pela palavra dirigida a outrem, pelo reconhecimento
de outra consciência, de outro eu, co-partícipe da interlocução. Na
Niterói, n. 23, p. 65-77, 2. sem. 2007 67
Gragoatá Valéria Rosito Ferreira

pontificação de sua filosofia de linguagem à doutrina marxista,


Bakhtin elabora a seguinte síntese sobre a natureza contraditória
do signo:
O ser, refletido no signo, não apenas nele se reflete, mas tam-
bém se refrata. O que é que determina esta refração do ser no
signo ideológico? O confronto de interesses sociais nos limites
de uma só e mesma comunidade semiótica, ou seja: a luta de
classes.

Classe social e comunidade semiótica não se confundem. Pelo


segundo termo entendemos a comunidade que utiliza um
único e mesmo código ideológico de comunicação. Assim,
classes sociais diferentes servem-se de uma só e mesma língua.
Conseqüentemente, em todo signo ideológico confrontam-se índices
de valor contraditórios. (BAKHTIN, 2006, p. 47)

3. Da dialética constitutiva do ser


ao dialogismo inerente à troca simbólica
Segundo Bakhtin, esses “índices de valores contraditórios”
presentes no mesmo signo lingüístico traduzem-se por apro-
priações, deslocamentos de sentido, ressignificações do código
comum, compreensíveis somente à luz de novos referenciais
teóricos alicerçados pelo filósofo. Contra o “objetivismo abstrato”
estruturalista, o teórico abre duas frentes de investigação: [1] ara
o terreno para o desenvolvimento da sociolingüística, cujo objeto
caracteriza-se pela língua em uso e [2] rompe, na crítica literária,
com os limites do formalismo, do sociologismo, e da estilística,
seja pela natureza “isolante” da primeira corrente, ou “reflexiva
mecânica” da segunda, no que diz respeito às possíveis relações
entre os domínios individual e social. Em especial, critica a
estilística pela inobservância da “relação dialógica que possa
existir entre uma palavra em um contexto e a mesma palavra
no contexto de outra fala, nos lábios de outra pessoa” (BAKHTIN,
1981, p. 174). A obra de Dostoievski lhe serve como base princi-
pal para uma análise metodologicamente formal dos diálogos
e teleologicamente social onde a “refração do ser” na sociedade
burguesa se deixa capturar.
Se em Marxismo e Filosofia de Linguagem Bakhtin se volta
para a dialética da constituição do ser, desmontando o mito
romântico do gênio, da origem ensimesmada da consciência e
dos elos transcendentais do indivíduo, em Problemas da Poética
de Dostoievski, publicada também em 1929, o pensador se ocupa
da aplicação exemplar dos princípios organizados lá sobre a
materialidade da constituição dos personagens dostoievskianos
em seus discursos, ou seja, em sua objetivação social. Cabe uma
ênfase especial no discernimento entre os termos recorrentes
dialética e diálogo, com assiduidade marcante no primeiro e no
segundo textos, respectivamente. Ainda que atentemos para os

68 Niterói, n. 23, p. 65-77, 2. sem. 2007


Tirando os véus, velando o outro: Bakhtin e os diálogos multiculturais contemporâneos

problemas procedentes das traduções consultadas, o emprego


por Bakhtin do termo dialética envolve basicamente o resultado
sintético da interiorização e da formação da individualidade –
produto do choque entre tese e antítese, entre o contínuo discur-
sivo social e os recortes interiorizados pelo indivíduo em forma
de consciência; diferentemente, o emprego do termo diálogo,
nos termos do próprio teórico, é “a contraposição do homem ao
homem enquanto contraposição do ‘eu’ ao ‘outro’ ” (BAKHTIN,
1981, p. 223). Entende-se porque Bakhtin postula que as relações
dialógicas são extralingüísticas e topológicas, embora insepará-
veis do campo do discurso (BAKHTIN, 1981, p. 158). Examinemos
uma passagem ilustrativa da irredutibilidade do diálogo à lógica
meramente gramatical ou mesmo semântica:
“A vida é boa”. “A vida não é boa”. Estamos diante de dois juí-
zos revestidos de determinada forma lógica e de um conteúdo
concreto semântico (juízos filosóficos acerca do valor da vida)
determinado. Entre esses juízos há certa relação lógica: um é
a negação do outro. Mas entre eles não há nem pode haver
quaisquer relações dialógicas, eles não discutem absoluta-
mente entre si (embora possam propiciar matéria concreta e
fundamento lógico para a discussão). Esses dois juízos devem
materializar-se para que possa surgir relação dialógica entre eles ou
tratamento dialógico deles. Assim, esses dois juízos, como uma
tese e uma antítese, podem unir-se num enunciado de um
sujeito, que expresse posição dialética una deste em relação a
um dado problema. Neste caso não surgem relações dialógicas.
Mas se esses juízos forem divididos entre dois enunciados
de dois sujeitos diferentes, então surgirão entre eles relações
dialógicas. (BAKHTIN, 1981, p.159, grifos nossos)
Não cabe neste espaço a revisão mais extensa da análise do
crítico russo sobre a poética de Dostoievski. Basta-nos somente
reiterar, para nossos propósitos, que seu foco analítico incide
sobre uma constelação de formas em que o diálogo se configura,
seja pela introjeção da fala do outro, pela antecipação da réplica,
pela inclusão de elementos parodísticos, para citar somente algu-
mas das possibilidades subjacentes ao conceito de polifonia, todos
relacionados a uma topologia discursiva até então negligenciada.
Fundamentalmente, portanto, Bakhtin organiza as bases para
uma semiótica abrangente de códigos qualitativamente distin-
tos - verbais e não verbais – cuja expressão material no discurso
encarna a contradição de desejos e interesses próprios de uma
sociedade de classes, que Bakhtin denomina de “refração do
ser” (BAKHTIN, 2006, p. 50). A esta altura, parece-nos clara a
ressonância do cinema sobre as considerações teóricas do filósofo
russo sobre a polifonia em Dostoievski. Simultaneidade de vozes
e tempos narrativos, sofisticação das relações de ponto de vista,
espacialização da narrativa, consciência exacerbada da clivagem
entre história e discurso são categorias analíticas realizadas es-
pacialmente pela técnica de montagem cinematográfica. Temos

Niterói, n. 23, p. 65-77, 2. sem. 2007 69


Gragoatá Valéria Rosito Ferreira

aqui, portanto, o mote para passarmos à discussão de nosso


objeto à luz dos princípios de articulação de vozes como requer o
conceito de polifonia.
4. Teoria do conhecimento ou civilizações reificadas?
Na primeira seqüência do filme deparamo-nos com as
irmãs Zahra e Massoumeh, então com treze anos, tomadas sob
a tutela do Estado iraniano. Denúncias de vizinhos deflagram
a ação interventora junto ao pai das adolescentes, que as man-
tinha impedidas de qualquer contato e trânsito fora do espaço
interno de sua casa desde os dois anos de idade. O confinamento
do corpo e do espírito das meninas – má alimentação, privação
de banhos de água e sol e de convívio social – causa, desde es-
tranhamento e revolta, até incômodo físico aos de sua própria
comunidade. A justificativa paterna para o isolamento das filhas
deriva de sua percepção sobre o que seria a guarda e a proteção
das meninas. A mãe de suas filhas é cega e presumida incapaz
de dividir, com ele, em sua ausência, o controle das filhas diante
do possível assédio dos meninos das redondezas. Devolvidas à
família em condições probatórias, as meninas recebem visitas
regulares de uma agente do Ministério do Bem-Estar Social, que
as encoraja a ocuparem cada vez mais os espaços externos do
quintal, da rua e do bairro. A troca entre interior e exterior vai
atuando sobre o desenvolvimento de seus movimentos, lingua-
gem e integração social.
Num primeiro momento, a história das irmãs engrossa o
repertório de teses sobre teorias do conhecimento e da aprendi-
zagem. A literatura científica, leiga e o próprio cinema já nota-
bilizaram histórias de crianças que, isoladas do convívio social
em estágios precoces de desenvolvimento, foram incapazes de
elaborar linguagem e, conseqüentemente, de se reintegrarem
em práticas sociais subseqüentemente. No caso de nossas per-
sonagens, a narrativa de ‘desenvolvimento’ e de ‘conhecimento’
vai sendo sedimentada pela exposição verbal e pictórica de su-
peração deste estado original de precariedade generalizada. Seu
balbuciar animalesco no lugar de linguagem, amplificado durante
todo o filme, o não-reconhecimento de seus próprios nomes,
das figuras de pai e mãe, seu caminhar instável, suas línguas
constantemente postas para fora da boca, para citar somente
as características mais marcantes de sua retratação inaugural,
prestam testemunho à trajetória ideologicamente constituída do
território fora do logos para a História. Já na abertura do filme,
os corpos das adolescentes são excluídos do raio de visão das
câmeras, que nos permitem somente a contemplação de um gesto
repetido, cujo contexto nos é dado somente nas cenas seguintes.
Um braço com uma tigela d’água se estica até a altura de um
vaso com planta para molhá-lo. Se não vemos o impedimento

70 Niterói, n. 23, p. 65-77, 2. sem. 2007


Tirando os véus, velando o outro: Bakhtin e os diálogos multiculturais contemporâneos

ao movimento mais livre, no caso, as grades atravessadas pelo


braço – imaginamos o que está ausente, pelo esforço do braço e
pela regularidade do movimento, envolvendo a mesma altura
e o mesmo ponto de chegada.
As imagens seguintes que prenunciam o ingresso das
irmãs na ordem simbólica são as da contemplação do sol – ain-
da literalmente por detrás das grades – a percepção auditiva
do choro de um bebê – procedente da janela da vizinha de
cima – e o cantar de um galo. Pela primeira vez ouvimos delas
a expressão de uma palavra significativa: ‘flores’; não ao acaso,
numa curiosa brincadeira com tinta preta, lambuzam suas mãos
e imprimem suas marcas sobre as paredes brancas do interior
de sua casa, esboçando uma escrita incipiente que as levará às
trocas mais amplas. A ocupação de seu quintal torna-se bastante
significativa como espaço vestibular entre interior e exterior. Ao
ouvirem o menino sorveteiro do lado de fora, uma das irmãs
‘escala’ o alto portão da rua, estabelecendo uma comunicação
bastante desequilibrada com o vendedor. O sorveteiro mirim
conduz a negociação até o ponto em que a carência da moeda
de troca por parte da menina impede a realização da transação.
A cena é reelaborada no dia da visita da assistente social, que
as impele para fora do quintal, assinalando assim a tomada de
um espaço mais exteriorizado ainda. A seqüência da rua é ain-
da notável pela forte interação das protagonistas com todos os
seres – humanos ou não. Ao mesmo tempo em que se compraz
com o lamber do sorvete, uma de nossas personagens passa a
dividi-lo com uma cabra e, em seguida, com sua irmã.
5. Espelhos e maçãs: iconologia do desejo e do conhecimento
Iconograficamente, dois emblemas contundentes permeiam
a trajetória das protagonistas ‘das trevas à luz’: espelhos e ma-
çãs, presentes da assistente social. No plano da narrativa deste
filme, tais ícones, verdadeiros elementos coesivos da matéria
ideológica, parecem cristalizar, ainda mais, clichês relativos aos
processos de individuação, no primeiro caso, e de aprendizado,
no segundo, funcionando, no plano discursivo, como organi-
zação iconológica. Espectadores de um filme, ele próprio nosso
espelho do mundo, contemplamos, através dos reflexos no pe-
queno espelho redondo que cada irmã tem em mãos, as trocas
simbólicas que vão se estabelecendo entre elas e o mundo. É de
forma espectral, portanto, que observamos a cabra lambendo o
sorvete, como é assim também que fruímos o prazer em suas
faces com o correr da água de uma mangueira jorrando por
cima do espelho. Além de devolver-lhes a imagem invertida do
mundo, que lhes havia sido seqüestrado, o espelho também é
usado como moeda de troca, no momento em que uma das jovens
recebe, do vendedor mirim, os sorvetes finalmente pagos pela

Niterói, n. 23, p. 65-77, 2. sem. 2007 71


Gragoatá Valéria Rosito Ferreira

vizinha de cima. O reconhecimento de si e do outro pela ação


da troca demarca territórios de primeira e de segunda pessoa,
sugerindo a emergência da alteridade pela socialização.
Como sugerido, a maçã, cuja relevância é comprovada por
intitular o próprio filme, divide com o espelho, a primazia de
leit motifs da narrativa: “O que querem? Maçã? Hoje trouxe um
outro presente a vocês”, pergunta a assistente social às gêmeas.
Há momentos no filme em que ambos os ícones se justapõem,
sendo a própria maçã refletida no espelho em cena que des-
creveremos adiante. Já nas cenas iniciais do filme, quando são
levadas sob a custódia do Estado iraniano, uma das meninas é
flagrada com uma maçã na mão, que pende um tanto ‘disfuncio-
nal’ de seu braço inerte ao longo de seu corpo. A fruta ‘proibida’
volta à cena quando o menino do andar de cima prende uma
maçã na ponta de uma vara, provocando as gêmeas, que saltam
incansavelmente da calçada, agora com corpos ‘desejantes’, na
tentativa de agarrar a maçã. Temos aí o início de uma seqüência
relativamente longa em que o garoto desce de sua casa e guia
as gêmeas, sempre com a maçã visível na ponta da vara à frente
delas, até o mercado, onde todos são instruídos sobre o preço do
quilo da maçã. A figura do pai é evocada pelos comerciantes
como aquele a quem devem recorrer para obter a moeda de
troca, indispensável para a satisfação de seu desejo.
Ainda sobre a onipresença da maçã, observamos que, ao
se distanciarem mais ainda de sua casa/cárcere, as meninas,
sempre de posse de uma maçã, são então acolhidas por outras
meninas de sua idade, com quem, desajeitadamente, brincam de
amarelinha, passeiam pela cidade e ‘conversam’. A maçã, este
fruto do conhecimento que lhes foi proibido é, mais uma vez,
objeto mediador entre as amigas, que não partilham o mesmo
código de comunicação. Com sua ‘mão pesada’, sem domínio
da coordenação motora fina, uma das gêmeas parece agredir a
recém-conquistada amiga, batendo-lhe com a maçã na cabeça,
quando, para o atordoamento desta, oferece-lhe a fruta, em se-
guida, presumivelmente um gesto sociável de partilha.
6. A história e os discursos: iconografia e iconologia
Antes de comentarmos as demais inserções iconográficas
formadoras do eixo ideológico que vai rumando a um clímax
imagético com a última cena, lembremos que, para Bakhtin,
as condições básicas para a polifonia são estabelecidas pela
identificação de duas consciências que se dirigem uma à outra,
ambas intercambiáveis como primeiras pessoas. Como nos exemplos
já discutidos, da mesma forma que dois enunciados ‘idênticos’
em lugares de enunciação distintos podem delinear a emer-
gência do diálogo, dois enunciados opostos não garantem tal
afloramento, necessariamente. Para articularmos a aplicação
desses princípios à elaboração do filme A Maçã, precisamos
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Tirando os véus, velando o outro: Bakhtin e os diálogos multiculturais contemporâneos

então formular as seguintes questões: [1] que oposições ideoló-


gicas estão sendo firmadas ao longo da narrativa por lugares de
enunciação distintos? [2] que discursos ou formas de expressão
vão ganhando coerência na medida em que a história se enreda
pelos elos iconográficos reiterados?
Seymour Chatman nos lembra que, na visão estruturalista,
o encadeamento dos conteúdos, mythos, na concepção aristotélica,
“é precisamente a operação realizada pelo discurso” (CHAT-
MAN, 1978, p. 43). A operação discursiva então, se entendemos
a tese topológica da enunciação de Bakhtin, torna-se materia-
lizável na medida em que relações múltiplas entre idéias vão
sendo manifestadas na interlocução, seja no plano sintagmático,
das relações horizontais, das frases, ou no plano paradigmático,
das relações verticais, ambos enredados significativamente no
sistema complexo do mythos. Ícones, emblemas e motivos orga-
nizados no plano composicional da narrativa cinematográfica
organizam-se em visões de mundo na medida em que os espec-
tadores inferem causalidade, seqüência e hierarquias, doando
sentido e formando valores sobre conteúdos que, fora do âmbito
da prática social, seriam meros significantes ‘em estado puro’,
dessimbolizados - mutilados de seu corpo signico, sempre rela-
cional e ideológico. É a passagem da esfera meramente gráfica
dos ícones para a esfera produtiva da significação que transforma
a percepção iconográfica em organização iconológica. No caso
específico dos ícones e motivos pictóricos já apontados, maçã e
espelho circulam com a força de clichês simbólicos consolidados,
em relação intertextual comprobatória ou contratual, reiterativa
de seus usos em outros contextos (FIORIN, 2004, p. 45). Nesse
sentido é que vemos um certo esvaziamento da tensão, choque
3 ou polêmica gerada pela diferença ideológico-topográfica con-
No plano da psicolo-
gia do desenvolvimen- dicional para a manifestação do fenômeno da polifonia.
to e da aprendizagem,
lembremos que uma das
Até agora, vimos apontando a forma como ícones imagéti-
maiores críticas recebi- cos cristalizados iconologicamente vão sendo colocados a serviço
das por Piaget se deveu
à sua aplicação genera-
de uma narrativa que, da perspectiva meramente psicologista
lizada dos estágios de do ‘desenvolvimento e da aprendizagem’,3 ilustra um rito de
desenvolvimento cog-
nitivo de forma desvin- passagem nos moldes platônicos: das trevas à luz. Literalmente
culada da base cultural prisioneiras em uma caverna sombria por detrás de grades, as
de seus sujeitos ‘cog-
noscentes’ observados. irmãs vão atingindo estágios cada vez mais promissores rumo
Julgar a cultura alheia
pelos padrões culturais
à razão e ao conhecimento e, em última análise, à sua humani-
de nossa cultura, como zação. Ou seja, a história singular de seu progresso desvela sua
foi o caso de crianças
não francesas avaliadas natureza tão epistemológica quanto ontológica. No plano da
por Piaget nas bases de história, a oposição entre trevas e luz inegavelmente se dá dentro
observação das crianças
francesas, compromete de uma mesma comunidade/civilização, fato que, num primei-
os resultados encontra-
dos, da mesma forma
ro momento, resiste à homogeneização: uma metáfora para o
que a questão episte- poder emancipatório da mulher muçulmana, segundo a maior
mológica pode tornar-se
perigosamente dirigida parte da crítica recebida pelo filme. Forças ‘progressistas’, não ao
por interesses e desejos acaso predominantemente femininas, limitam e se contrapõem
políticos dominantes.
a forças retrógradas, plasmadas na figura do pai das meninas.
Niterói, n. 23, p. 65-77, 2. sem. 2007 73
Gragoatá Valéria Rosito Ferreira

Leitor literal das metáforas do Corão, crê proteger e zelar pela


honra das filhas como flores que, para desabrocharem, devem ser
protegidas do sol. Sinceramente chocado com as notícias jornalís-
ticas sobre seu tratamento ‘criminoso’ das filhas, o pai-carcereiro
encarna, portanto, a essência de todo um universo em vias de
desejável superação. Significativamente, sua atividade principal é
a de ‘curandeiro’; sua remuneração pelas rezas requisitadas, epi-
sódica e fora de seu controle - quase uma caridade alheia. Aqui
também percebe-se acento notável na inoperância de formas
produtivas pré-capitalistas nas relações contemporâneas entre
capital e trabalho. A inexorabilidade do ‘progresso’, marcado por
um tempo que não é mais o da natureza nem tampouco o da
tradição, encontra no relógio de pulso, que uma das filhas deseja
para si, seu correlato pictórico mais contundente. A menina traja
uma camiseta cor-de-rosa atravessada pelo significante Guess,
grife norte-americana renomada, que trai, como um ato falho,
a indissolubilidade entre história pessoal e história cultural. O pai é
tomado pela mão pelas filhas com suas novas amigas, que cami-
nham, na seqüência final, para o centro da cidade, ao encontro
do vendedor ambulante que aguarda o momento de mais uma
troca, desta vez, a de um novo paradigma temporal.
Em ostensivo contraste, cega, ocultada pela burka, que lhe
cai sobre todo o rosto e corpo, e sozinha em casa devido à saída
de todos em busca do ‘tempo do relógio’, a mãe das meninas
tateia seu caminho até o portão de saída, passando pelo quintal
e atingindo o espaço público da rua. No trajeto do interior para
o exterior, a personagem desajeitada – tanto quanto as filhas na
abertura do filme – é refletida pelo espelho redondo de uma
delas, pendurado, significativamente, no limiar entre o inte-
rior da casa e o quintal. Murmurando uma súplica para que o
marido lhes traga as filhas de volta, a mulher se coloca debaixo
da janela do menino vizinho, que repete a provocação feita às
gêmeas, raspando a maçã presa por um cordão à ponta de uma
vara perto na cabeça da mãe atordoada. Sem objetivar agarrar a
maçã – pois não a deseja, ao contrário de suas filhas – a mulher
empurra o objeto que a toca, ostentando sua ‘cegueira múltipla’:
é cega fisicamente e é ‘cegada’ pela indumentária tradicional,
que lhe isola do mundo e do conhecimento. Finalmente, o mo-
vimento de sua mão para cima em direção à maçã, congelado
em fotograma como a última imagem do filme, vem evidenciar
o que pensamos ser o desejo de saber, vetado às mulheres mu-
çulmanas e as crianças muçulmanas.
Dentro da perspectiva da polifonia de Bakhtin, quais se-
riam as ‘vozes’ em diálogo no filme? A resposta mais evidente
e apressada apontaria para a oposição binária entre gêneros e
faixas etárias, tornado o feminino e o infantil o campo privile-
giado para a realização polifônica no diálogo com o dominante
masculino e tradicional. Recorrendo às considerações da inte-
74 Niterói, n. 23, p. 65-77, 2. sem. 2007
Tirando os véus, velando o outro: Bakhtin e os diálogos multiculturais contemporâneos

lectual indiana Gayatri Spivak sobre as possibilidades de fala


dos subalternos, entendemos que o status do sujeito ocidental é
o de iniciador da História, no chamado ‘processo civilizatório’.
Sua autoridade para falar em nome de outrem abre espaço para
uma série de discursos protecionistas e de práticas tutelares
como desejo dos próprios nativos, vítimas de uma ordem que não
escolheram ou que não seriam capazes de escolher. Em Os subal-
ternos podem falar? Spivak explora a criminalização pelos ingleses
da imolação das viúvas na Índia, realçando que a adoção e um
objeto de proteção – neste caso a mulher – gera o entendimento
de que “os homens brancos estão salvando as mulheres pardas
dos homens pardos” (SPIVAK, 1988, p. 297). Ideologicamente,
justifica-se a colonização (ou o neocolonialismo) como projeto
de resgate. O diálogo formal, na visão de Bakhtin, subsume-se
ao monologismo, pois o lugar de enunciação privilegiado não
encontra um outro eu onde o ser se refrate. Mais especificamente,
parece-nos ser alinhavado um discurso unificador que estende a
toda uma civilização as especificidades perversas da subalterni-
dade da mulher árabe, sem que as relações de subalternidade da mulher
em nossa própria cultura sejam analisadas fora da lupa etnocêntrica e
monológica.
Efeitos perversos do etnocentrismo ao longo de todo o
século XX vêm beirando o absurdo desde o 11 de setembro. O
risco que a complexidade e riqueza de civilizações das mais
antigas do mundo, como a iraniana, sejam equivocadamente
traduzidas como entraves ao ideal de liberdade, supervalorizado
pelas culturas hegemônicas do ocidente, pode ser confirmado
pela crítica que, condicionada pela lógica de uma só consciência,
se presume multicultural para reforçar o etnocentrismo. Vale
manter em mente que o conceito de liberdade, como construído
a partir da Revolução Francesa ou, como preferem alguns, re-
volução burguesa, é circunscrito à noção de indivíduo, de cons-
ciência egocêntrica, de vontade original - um sonho romântico
extremamente conveniente à expansão do capitalismo. Como
várias intelectuais muçulmanas vêm reiterando, se já houve um
tempo em que o Chador foi emblema de opressão feminina, o
mesmo Chador, neste momento de acirramento das intervenções
externas sobre a ordem simbólica islâmica, é ressignificado como
expressão identitária, espontaneamente envergado por muitas
mulheres árabes.
Em conclusão, esperamos ter dado movimento ao que
julgamos ser a base conceitual da teoria clássica de Mikhail
Bakhtin sobre a polifonia e de tê-la problematizado à luz de uma
amostra cinematográfica contemporânea, marcantemente de na-
tureza culturalista. Pensamos ter demonstrado a vitalidade dos
fundamentos teóricos do pensador russo para a crítica cultural
contemporânea, especialmente no que diz respeito ao trespasse
dos limites estritamente disciplinares da Lingüística e da Teoria
Niterói, n. 23, p. 65-77, 2. sem. 2007 75
Gragoatá Valéria Rosito Ferreira

da Literatura. Finalmente, esperamos ainda ter materializado


alguns dos riscos que o privilégio das ‘vozes de dentro’ pode
agregar ao fenômeno do multiculturalismo e da globalização,
em amplo circuito na produção cultural e acadêmica contem-
porâneas.

Abstrct
This paper articulates classical considerations by
Mikhail Bakhtin on the concept of polyphony, for-
mulated in the first half of the twentieth century,
to contemporary cultural criticism. Revisiting
the critical tradition set forth by the Russian
theoretician and dear to scholars from Literary
Theory, Sociolinguistics, and Cultural History,
among others, proves to be extremely fertile today.
Complex symbolic exchanges mix up enuncia-
tion places in conflicts or identity negotiations
at local or global levels. If, on the one hand, an
increasing number of film co-productions pay
thematic and economic testimony to the intensi-
fication of multicultural traffic and partnerships,
expressed in the emergence of ‘inside voices’ and/
or self-representations, on the other hand, they
reveal some difficulty in formulating productive
questions on concrete dialogic possibilities on an
inter/multicultural basis. Simplistic and long-
lived dichotomies between the new and the old or
more perverse correspondences between the good
and the evil contribute a lot more to univocity
than to the polyphonic tension, as conceptuali­zed
by Bakhtin. Our specific aim is to exam the film
language in A Maçã by Samira Makhmalbaf,
1998. We have attempted to construct our object
on a descriptive basis located between the icono-
graphic and the verbal to prompt a broader ideo-
logical view, underlying to this French-Iranian
‘cultural good’.
Keywords: Film language. Multiculturalism.
Polyphony. Mikhail Bakhtin. A Maçã.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Rio de


Janeiro: Forense Universitária, 1981.

76 Niterói, n. 23, p. 65-77, 2. sem. 2007


Tirando os véus, velando o outro: Bakhtin e os diálogos multiculturais contemporâneos

BAKHTIN, Mikhail; VOLOCHINOV, V. Marxismo e filosofia da


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Niterói, n. 23, p. 65-77, 2. sem. 2007 77


A semiótica tensiva e o nouveau roman
de Nathalie Sarraute
Renata Mancini

Recebido 9, jul. 2007/Aprovado 6, set. 2007

Resumo
Entre os vários desenvolvimentos da semiótica
greimasiana nos anos recentes, os trabalhos de
Claude Zilberberg e Jacques Fontanille têm se
caracterizado pela tentativa de criação de um
quadro teórico que possa abrigar os elementos
sensíveis que participam da geração de sentido
do texto. Nessa nova vertente teórica – conhecida
como semiótica tensiva –, conteúdos sensíveis são
cifrados em termos de categorias contínuas, como
andamento, tonicidade, intensidade etc., de onde
se abre a possibilidade de tratar o texto enquanto
processo. Embora esse novo quadro teórico nada
altere o procedimento clássico de análise, ele se
mostra particularmente produtivo no tratamen-
to de textos contemporâneos, que trazem como
uma de suas marcas a manipulação sensível
do enunciatário. A obra da escritora francesa
Nathalie Sarraute é um bom exemplo disso. No
presente ensaio, propomos uma análise de “Je ne
comprends pas” (em L’usage de la parole, 1980),
em que enunciador e enunciatário são deslocados
de sua posição “clássica” e passam a interagir em
primeiro plano. Mostraremos que essa estratégia
de construção do texto resulta de um certo em-
baralhamento de vozes dos actantes discursivos
(enunciador/enunciatário, narrador/narratário,
interlocutor/interlocutário), de modo a fazê-los
compartilhar de um mesmo ritmo do conteúdo.
Daí o efeito de sentido de obra que não pede apenas
para ser compreendida, mas, sobretudo, para ser
“vivenciada”.
Palavras-chave: Semiótica francesa. Tensivi-
dade. Ritmo. Enunciação. Literatura contempo-
rânea.

Gragoatá Niterói, n. 23, p. 79-93, 2. sem. 2007


Gragoatá Renata Mancini

«Ce sont des mouvements indéfinissables, qui glissent très


rapidement aux limites de notre conscience; ils sont à l’origine
de nos gestes, de nos paroles, des sentiments que nous ma-
nifestons, que nous croyons éprouver et qu’il est possible de
définir. Ils me paraissaient et me paraissent encore constituer
la source secrète de notre existence.»
(Nathalie Sarraute)

1. Introdução
Dentre as muitas re-elaborações teóricas pelas quais a
semiótica francesa vem passando nas últimas décadas, os estu-
dos sobre a tensividade ocupam certamente papel de destaque.
Esta vertente epistemológica, inicialmente proposta por Jacques
Fontanille e Claude Zilberberg, representa uma abertura teórica
para as questões relacionadas à participação dos elementos con-
tínuos na construção do sentido. De fato, o universo sensível já
era uma preocupação de Greimas em obras como Semiótica das
Paixões (GREIMAS; FONTANILLE, 1993) e Da Imperfeição (GREI-
MAS, 2002), de modo que a semiótica tensiva nada mais faz do
que dar continuidade às preocupações do criador da semiótica
francesa com o universo afetivo, atribuindo ao componente
sensível o status de ponto de partida para a organização dos
processos de significação.
O problema que está na origem da semiótica tensiva é
construir um modelo descritivo dos fenômenos contínuos, di-
retamente associados ao universo sensível. Fundados sobre os
conceitos de valência e valor, intensidade e extensidade, anda-
mento, percepção etc., os estudos tensivos propõem uma sintaxe
que visa a dar conta dos movimentos e inflexões que servem de
base para a construção discursiva. Daí a centralidade da noção
de ritmo para esta abordagem.
Ao conceber o texto como “uma totalidade rítmica” (ZIL-
BERBERG, 2004, p. 23), a semiótica tensiva oferece uma via de
acesso aos seus movimentos internos. Segundo esse ponto de
vista, parece possível desvendar um ritmo do discurso – a pró-
pria pulsação da interlocução buscada na tensão ininterrupta
entre a implicação (i.e. lógica do previsível, que se pauta pela

80 Niterói, n. 23, p. 79-93, 2. sem. 2007


A semiótica tensiva e o nouveau roman de Nathalie Sarraute

fórmula “se...então”) e a concessão (i.e. lógica do inesperado –


baseada na fórmula “embora...”).
Tomada a partir dessa perspectiva dinâmica, a semiótica
parece contar com um alicerce conceitual suficientemente sólido
para que possa se voltar para o texto entendido como processo, de
modo a dar conta da dimensão da experiência vivenciada, assim
como dos diferentes modos de adesão que o contrato enunciati-
vo propõe aos seus leitores. Com isso explicita os mecanismos
de formação de sentido dos textos – notadamente dos textos
contemporâneos – que cada vez mais impõem novos desafios à
teoria. As propostas apresentadas neste trabalho procuram se
integrar a esse momento da semiótica greimasiana.
2. A emergência do sensível
Ao destacar o papel desempenhado pelo acontecimento
concessivo em qualquer obra de arte – de onde a surpresa, o
espanto, a comoção –, Claude Zilberberg afirma a autoridade do
sensível sobre o inteligível e promove a afetividade à condição
de centro do discurso.
De fato, Zilberberg e Fontanille operam um deslocamento
acentual: os estados de coisas (inteligível) passam a ser átonos e
os estados de alma (sensível) tônicos. Este deslocamento de acento
proposto pela semiótica tensiva encontra ressonância na esté-
tica de Nathalie Sarraute, uma vez que ela procura transportar
o leitor a lugares onde a intelecção recebe apenas um estatuto
secundário, fazendo com que a dimensão sensível assuma papel
de destaque. Foi precisamente essa possível convergência que
nos levou a analisar um texto de Sarraute contando com o auxílio
das ferramentas tensivas.
Nathalie Sarraute é uma das figuras mais importantes e
talvez a de maior expressão do Nouveau Roman francês. Sua busca
incessante de uma nova linguagem para o romance resulta do
questionamento das formas romanescas tradicionais e de sua
recusa em manter estruturas de texto consagradas. A unidade
desse movimento literário – apesar de sua heterogeneidade – é
garantida exatamente por um esforço comum de colocar o leitor
em contato direto com o próprio ato de escrita. Trata-se de uma
nova experiência de leitura, uma vez que o escritor se coloca em
presença do leitor, trazendo para primeiro plano os movimentos
da composição que se desdobra diante de seus olhos.1
Em outras palavras, as coisas são deixadas em condição
de “estarem sendo feitas”, ao invés de serem tratadas como uma
1
Cf. Sturrock (1969, p. sucessão de formas acabadas. Essa escolha tem duas conseqüên-
4): «The property com- cias dignas de nota: (1) a coerência textual torna-se mais frouxa,
mon to all nouveaux ro-
mans is that they embo- no sentido de que as relações entre os eventos tornam-se menos
dy the creative activity
of the novelist – they
previsíveis; (2) é estabelecida uma relação de maior proximidade
display the novelist at entre o enunciador e o enunciatário, uma vez que este tem um
work».

Niterói, n. 23, p. 79-93, 2. sem. 2007 81


Gragoatá Renata Mancini

acesso maior ao trabalho de construção do texto, cuja concepção


é mais de compartilhamento de uma dada experiência que de
uma construção ficcional clássica. Trata-se, na verdade, de uma
interação “direta”, por assim dizer, até mesmo por basear-se na
manipulação da dimensão sensível do enunciatário.
A produção de Nathalie Sarraute concentra-se exatamente
nessa experiência compartilhada. Sua concepção de base é che-
gar aos movimentos interiores comuns a todos – que denomina
tropismos – e que nos unem numa identidade compartilhada, a
partir da qual nos construímos enquanto singularidade. Nas
palavras da autora:
O interessante mesmo não é o personagem em si, mas sim o
que acontece de anônimo e de idêntico em qualquer um [...]

É o real, mas que não é restrito à forma de um personagem


[...] O real que se mantém anônimo, que se mantém o máximo
possível no nível das sensações de todos. (BENMUSSA, 2002,
p.157, tradução nossa)
O texto é concebido, então, para transportar o leitor a lu-
gares onde a intelecção recebe apenas um estatuto secundário
e a dimensão sensível assume papel de destaque.
3. Je ne comprends pás
O texto de Sarraute escolhido para nossa análise é “Je ne
comprends pas”, um dos capítulos da obra L’usage de la parole,
publicada em 1980.
Nossa estratégia de análise pode ser dividida em três eta-
pas. Na primeira delas, trataremos da desconstrução figurativa, seja
dos personagens, seja do seu entorno. Num segundo momento,
mostraremos como a autora cria, no nível discursivo, uma am-
bientação acolhedora para essa aproximação do enunciador/
enunciatário pelo embaralhamento de vozes criado a partir do hábil
uso dos mecanismos de projeção dos actantes discursivos no
enunciado, assim como pelo uso dos discursos direto e indireto
livre. Por fim, mostraremos que o fio condutor da narrativa é a
própria pulsação dos fatos, pulsação esta assegurada pela mani-
pulação sensorial do enunciatário e para a qual o instrumental
tensivo se mostra particularmente eficaz.
3.1. A profundidade figurativa
Não podemos subestimar a importância que Nathalie
Sarraute atribui à desconstrução dos personagens em sua obra,
uma vez que estes nunca apresentam caracterização onomástica,
nem tampouco descrição física ou psicológica. São personagens
cuja densidade sêmica (BERTRAND, 2003, p.210) é mínima e
cuja vocação principal parece ser a de atuar apenas como meio
de acesso para chegar aos tais movimentos anônimos, comuns
a todos. É o que a autora chama de “real não restrito à forma de

82 Niterói, n. 23, p. 79-93, 2. sem. 2007


A semiótica tensiva e o nouveau roman de Nathalie Sarraute

um personagem” (BENMUSSA, 2002, p. 157). Na mesma linha


de pensamento, ela insiste na importância de escrever sobre
situações anódinas, situações quotidianas banais, cujo interesse
não tem qualquer razão de ser aparente.
Trata-se de um movimento de desestabilização da figura-
tividade em direção a um tipo de “desrealização”, colocada em
prática pela recusa de um universo icônico compartilhado so-
cialmente. Com isso, a autora rejeita uma figuratividade de simi-
litude e inclina-se em direção a um universo sensível fundador
que, ao mesmo tempo, rege o compartilhamento figurativo.
Precisamos compreender as conseqüências de tal situação,
porém sem cair na armadilha de conceber a figuratividade como
“uma vestimenta da abstração, [pois] é a abstração que é fictícia
e fabulatória, vestimenta desbotada de uma figuratividade origi-
nal” (BERTRAND, 2003, p. 218). Sarraute parece querer explorar
essa figuratividade original, fundada na mobilidade inerente ao
processo perceptivo. É uma busca pelo que Bertrand diz situar-se
na “intersecção do sensível e do figurativo, no momento vacilante
do figurável” (p. 246).
Trata-se de caminhar em direção a um universo movente,
onde não há lugar para uma figuratividade bem delineada, por
assim dizer. A análise a ser feita depende, assim, da relação
entre o figural e o figurativo, isto é, entre os regimes profundos
responsáveis pela organização de um movimento, de um fluxo,
no interior do qual os papéis actanciais tomam forma e se ma-
nifestam discursivamente. Do ponto de vista figural, os papéis
actanciais podem ser entendidos como ‘vivências de significação’
tributárias da configuração valencial do campo de presença2. Esta
configuração é determinada pela direção do fluxo fórico-modal
e, como afirma Zilberberg, “do ponto de vista tensivo a ascen-
2
dência e a descendência são as direções suscetíveis de serem
O campo de presença,
noção inspirada na feno- analisadas de maneira canônica” (ZILBERBERG, [2007])3, o que
menologia de Merleau- abordaremos na terceira etapa desta análise.
Ponty, é a arena percep-
tiva do sujeito onde este Assim sendo, os traços que no nível discursivo compõem
se relaciona com o obje-
to, sendo que a própria
as figuras, no nível tensivo poderiam ser entendidos como sendo
constituição de ambos os vetores responsáveis por indicar a orientação das valências
se dá na simultaneidade
da presença de um para
constitutivas do campo de presença. Um dos ganhos deste ponto
o outro. Entendido des- de vista é o fato de que os modos de existência dizem respeito
sa maneira, o campo de
presença nada mais é do tanto às relações assumidas pelo sujeito no enunciado, quanto
que a contrapartida ten- àquelas estabelecidas pelo sujeito da enunciação. Desse modo,
siva das relações juntivas
entre sujeito e objeto. Dito referem-se tanto ao devir dos actantes debreados no enunciado,
de outro modo, é onde
o ser se constrói na pas-
quanto à interação dinâmica que se estabelece entre enunciador
sagem por um percurso e enunciatário.
que é delimitado por sua
própria percepção. Para No texto de Sarraute domina o modo de existência realizado,
um aprofundamento isto é, opera-se na plenitude da conjunção entre sujeito e objeto,
maior desta noção, ver
Fontanille; Zilberberg no caso, entre enunciação e enunciado. Ambos estão unidos no
(2001).
3
corpo do texto, o que nos permite dizer que o sujeito da enun-
Verbete: «Direction».
ciação se “presentifica” com o estabelecimento do contato direto
Niterói, n. 23, p. 79-93, 2. sem. 2007 83
Gragoatá Renata Mancini

entre enunciador e enunciatário criado pela obra. Isto porque ela


extrapola os limites do enunciado em si e passa a englobar em
primeiro plano a manipulação sensível que o enunciador faz do
enunciatário para construir seu efeito de sentido final.
Para isso, o enunciatário é mobilizado a engajar-se num
tipo de interação com a obra, em que suas próprias reações e
expectativas são trazidas para o âmbito de pertinência da cria-
ção de sentido. Dito de maneira resumida, o traço característico
desse texto é sua abertura para a dimensão pragmática, em que
enunciador e enunciatário são chamados a interagir em primeiro
plano.
3.2. O embaralhamento de vozes no nível discursivo
Se considerarmos apenas os temas e figuras superficiais
do nível discursivo, “Je ne comprends pas” parece ser, num pri-
meiro momento, um texto sobre o nada. A autora se mantém fiel
a sua característica de desacelerar o ritmo das ações, de modo
a se concentrar em seus pequenos detalhes, em seu desenrolar
miúdo, procurando mostrar “as pulsações secretas da vida por
detrás de aparências inofensivas e normais” (ROSENTHAL,
1975, p.116). Trata de uma situação completamente banal: duas
pessoas conversam sentadas em um banco de jardim. Uma delas
fala incessantemente, enquanto a outra, pacientemente, a escuta.
Um observador que se posta por vezes externamente à situação
e por vezes no seu interior nos relata o desenrolar da ação.
Na verdade, é até mesmo difícil falarmos em desenrolar da
ação, posto que esta se restringe a um pequeno desdobramento
da situação que acabamos de descrever. Parece claro que em “Je
ne comprends pas” a ação propriamente dita não assume um
papel preponderante. A escassa descrição do início, ponto de
partida da narrativa, não se altera até o fim e a determinação
física, psicológica, de caráter etc. das personagens parece não ter
importância. É, em suma, um texto que no início se apóia em uma
situação frouxamente definida, apenas para poder se expandir
na indefinição de seu desenvolvimento. É uma estratégia que
precisa ser entendida em seus próprios termos.
No desenrolar da narrativa estabelece-se uma alternância
entre debreagens (projeções do sujeito da enunciação) enuncivas
(terceira pessoa) e enunciativas (primeira e segunda pessoas).
Essa alternância é habilmente combinada tanto com o uso do
discurso indireto livre, quanto do discurso direto, o que acaba
por criar um efeito de confusão entre os papéis de narrador e
interlocutor.
No início do texto (p.147) o narrador se projeta em primeira
pessoa “je” (“Je ne l’ai fait moi-même...”), o que caracteriza uma
debreagem enunciativa. Quando descreve a situação da qual fala,
ao contrário, lança mão de uma debreagem enunciva (“Deux per-
sonnes assises sur un banc de jardin...”). No entanto, logo a seguir
84 Niterói, n. 23, p. 79-93, 2. sem. 2007
A semiótica tensiva e o nouveau roman de Nathalie Sarraute

instaura-se uma indefinição, quando um “alguém” é debreado


como “on” (Quand on se rapprochait...”). Dado que “on” pode
assumir seja o papel de pronome indefinido de terceira pessoa,
seja o de pronome definido da primeira pessoa do singular “je”,
seja o de pronome definido da primeira pessoa do plural “nous”,
cria-se uma indefinição quanto à voz a que se refere.
Desse modo, o narrador sincretiza os papéis actanciais
discursivos de narrador e interlocutor4. Isso porque o discurso
indireto livre faz com que haja uma “mistura” das vozes das duas
enunciações em questão, uma vez que não subordina o discurso
citado ao citante (como no discurso indireto), assim como não
mantém demarcações nítidas entre as vozes (como no discurso
direto) (Cf. FIORIN, 1999, p. 81-4).
4
Segundo Fiorin (1999) Vale ressaltar que em várias instâncias (ver, por exemplo,
“narrador/narratário
são actantes da enun- o segundo parágrafo da página 148) há o uso abundante do
ciação enunciada, o que discurso indireto livre. Não por acaso, o discurso indireto livre
corresponde ao segun-
do nível da hierarquia somado às reticências, exclamações e interrogações cria, ao
enunciativa, logo após
o primeiro nível enun-
longo de todo texto, um efeito curioso relacionado ao plano de
ciador/enu nciat á r io. expressão textual: cria um mimetismo da fala, com um ritmo
Trata-se da instalação
no enunciado do desti- pontuado por pausas mais ou menos abundantes e geralmente
nador/destinatário (p. por períodos fragmentados, mas sempre reproduzindo uma
65). Os actantes discur-
sivos interlocutor/inter- certa respiração da fala que, de certo modo, acaba por organizar
locutário correspondem
ao terceiro nível da hie-
a contínua troca de vozes. É como se para além do jogo entre as
rarquia discursiva. Este vozes do narrador/narratário e interlocutor/interlocutário, esse
nível instala-se quando
o narrador dá voz a um
simulacro de dicção oral na expressão textual presentificasse o
actante do enunciado” diálogo entre enunciador/enunciatário. Em outras palavras, o
(p. 67).
5
“E se este a quem es-
uso peculiar do plano da expressão textual, aproximando-o da
sas palavras são envia- dicção oral, permite ao enunciador explorar a dimensão sensível
das fosse de repente...
algumas palavras são
do enunciatário, o que faz com que também essa interlocução
suficientes...Mas você venha à tona. De fato, é essa manipulação sensível que dá supor-
vai ter a coragem de
lhe dizer?...Tenho von- te ao suspense, responsável pela manutenção do fio narrativo.
tade de empurrá-lo... Transcrevemos a seguir um breve excerto do texto para que fique
que o faça, então, que
ouse...nós o faríamos em claro nosso argumento:
seu lugar... Faríamos?..
Realmente?...sejamos Et si celui à qui ces paroles sont envoyées allait tout à coup...
si nceros...Nós ou s a- il suffit de quelques mots...Mais va-t-il avoir le courage de les
ríamos?...chegamos a
fazê-lo?...Nós teríamos dire?...On a envie de le pousser...qu’il fasse donc, qu’il ose...
ousado a interromper nous le ferions à sa place...Nous le ferions ?...Vraiment ?...soyons
firmemente nas mesmas sincères...Nous oserions ?...il nous est arrivé de le faire ?...Nous
condições?...Você ousou
a pronunciar estas pa- avons osé dans les mêmes conditions interrompre ferme-
lavras, você disse “não ment ?...Vous avez osé prononcer ces paroles, vous avez dit:
estou entendendo”? [...]
Mas nesse caso, você « Je ne comprends pas » ? [...] Mais ici vous savez bien quels
sabe bem quais são os sont les risques. Qu’il dise tout à coup, je tremble déjà et me
riscos. Que ele diga de recroqueville...qu’il dise à celui qui lui parle, qu’il lui dise sur
uma vez, eu já estre-
meço e me encolho... ce ton digne et sûr qui convient : « Je ne comprends pas »...ne
que diga àquele que lhe me dites pas que vous ne savez pas ce qui peut se produire...
fala, que lhe diga com (SARRAUTE, 1980, p.152-3) 5
o tom digno e seguro
que convém ‘Não estou
entendendo’...não me Esse efeito de fala aliado ao fato de o discurso indireto
diga que você não sabe livre não permitir o estabelecimento de uma hierarquia entre
o que pode acontecer...”
(tradução nossa).

Niterói, n. 23, p. 79-93, 2. sem. 2007 85


Gragoatá Renata Mancini

as enunciações envolvidas cria uma zona de livre acesso, por


assim dizer, em que os actantes discursivos se entrecruzam e
se confundem. A decorrência imediata de tal estratégia é uma
permeabilidade entre as vozes do narrador/narratário, interlo-
cutor/interlocutário, enunciador/enunciatário, cuja interação
frutífera faz valer a máxima de que esse tipo de discurso é ca-
racterístico de uma enunciação que não concebe uma imagem
de si mesma fixa, estável e acabada (Cf. BAKHTIN, 2002, p. 150;
FIORIN, 1999, p. 81-84).
Vale também observar que a frase “Je ne comprends pas”
é sempre introduzida em discurso direto, pelo uso das aspas,
o que caracteriza a demarcação nítida da voz que a pronuncia.
Se “mapearmos” o uso da expressão “Je ne comprends pas”6
ao longo do texto, notaremos uma alternância entre a voz do
narrador/interlocutor, a voz do segundo interlocutor “pessoa
sentada ao banco” e uma voz generalizada, um alguém hipo-
tético, a voz de qualquer um. Se aliarmos a essa alternância o
fato de que essas vozes são embaralhadas umas às outras, como
mencionado acima, veremos que a autora procura trazer o leitor
a compartilhar as coisas que são comuns a todos, certas expe-
riências pelas quais todos passamos e que mostram o quanto
nossa individualidade é tributária de características gerais,
simplesmente não originais.
Em suma, o que importa aquilatar parece ser o quão pre-
ponderante é o papel do outro na construção do eu, e o quanto
um está presente no outro. E para isso, Sarraute procura colocar
ambos em contato direto. O texto, então, parece ser apenas um
meio pelo qual se realiza a interação entre enunciador e enun-
ciatário, um pretexto para o engajamento dessa interlocução, um
acontecimento lingüístico centrado no contato entre as partes, à
maneira da função fática (Cf. BENVENISTE, 1974, p. 86-88).
A diferença entre o suspense criado aqui e qualquer outra
narrativa que, no fundo, se estrutura nesse mesmo esquema ca-
nônico, é exatamente o fato de que aqui ele é tratado em primeiro
plano. Não é subjacente ao desenrolar dos fatos narrativos, mas
sim é o fato propriamente dito. O ponto de pertinência do texto
é exatamente a criação de uma tensão, que vai aumentando até
o ponto em que sua resolução é inevitável. O engajamento direto
entre enunciador e enunciatário é o fato preponderante. Tanto
é assim, que o enunciatário é mobilizado sensorialmente. É por
isso que, num primeiro momento, o texto parece versar sobre
nada que pudesse ser considerado relevante. Há apenas uma
situação inicial que serve de ponto de partida para o engajamento
da interlocução. A partir daí, o texto visa ao estabelecimento de
uma relação em primeira mão entre enunciador e enunciatário
mediada por uma produção lingüística.
6
Ver ocorrências nas Cabe, finalmente, a pergunta: o que criou a tensão, o sus-
páginas 152, 153 e 154.
pense e, principalmente, o que manteve a atenção do enunciatá-
86 Niterói, n. 23, p. 79-93, 2. sem. 2007
A semiótica tensiva e o nouveau roman de Nathalie Sarraute

rio ao longo de páginas e páginas, sem que nenhuma situação ou


idéia nova fosse introduzida ou desdobrada? Em outras palavras,
o que prende o leitor até o momento em que a silenciosa pessoa
sentada ao banco finalmente se manifesta e interrompe o des-
conforto da situação de se ver imóvel pela ausência de sentido
naquilo que seu interlocutor dizia? É exatamente o já mencionado
simulacro da fala criado com o texto que, por mimetizar a fala
no plano da expressão escrita, faz com que haja um engajamento
sensível por parte do enunciatário. Esse expediente desacelera a
narrativa e exige do enunciatário um compartilhamento direto
da interlocução, por assim dizer, uma vez que o desenrolar
dos fatos é vivenciado instante a instante... palavra a palavra.
É precisamente este engajamento sensível do enunciatário que
podemos tratar à luz da abordagem tensiva.
3.3. O engajamento sensível
Uma das características mais marcantes da literatura con-
temporânea é a grande ênfase dada aos modos de exploração
perceptiva do mundo. Ao contrário das obras que testam os
limites da percepção num universo da instantaneidade, em que
o ato perceptivo tem de construir uma identidade em sua rela-
ção com um mundo acelerado, “Je ne comprends pas” explora a
hipertrofia da percepção pela desaceleração, o que produz um
sujeito “destacado” do mundo da ação. Dito de outro modo, ao
invés de explorar o desligamento do ato perceptivo pela acele-
ração, criando, desse modo, um sujeito praticamente inerte, no
texto de Sarraute a percepção é posta à prova pela desaceleração.
Com isso, abre-se uma nova dimensão perceptiva criada a partir
da lentidão, o que permite ao sujeito sentir a pulsação dos fatos,
antes mesmo que as ações a sobrepujem.
Se, por um lado, “Je ne comprends pas” tematiza um
apagamento da individualidade, por outro, coloca em primeiro
plano uma dimensão pragmática, sem a qual seria impossível
compreender seu sentido. Esse veio pragmático – criado, entre
outras coisas, pela busca de uma oralidade no plano de expressão
do texto – é responsável por forjar (à maneira da função fática)
uma interação entre enunciador e enunciatário, interação esta
que vai delineando, no transcorrer do enunciado, um perfil do
sujeito da enunciação. Isso faz com que o ato de leitura passe
a ser muito mais dependente da percepção individual da obra
ou, melhor ainda, de sua vivência propriamente dita, visto que
esse tipo de texto trata mais de “modelos de experiência [que
de] histórias” (ROSENTHAL, 1975, p. 119).
A análise semiótica de um texto ancorado sobre essa di-
mensão pragmática tem de poder contar com procedimentos
que dêem conta do desenrolar da narrativa em sua “respiração
própria”. Como nos diz a própria Sarraute, muitas das balizas
temático-figurativas que garantiriam uma certa chave de leitura
Niterói, n. 23, p. 79-93, 2. sem. 2007 87
Gragoatá Renata Mancini

são retiradas, fazendo com que o leitor se veja à mercê de sua


própria interação com a obra.
Assim, o leitor está no interior, no próprio lugar onde o autor
se encontra, numa profundidade onde nada que diga respeito
a essas balizas cômodas, com a ajuda das quais se constroem
os personagens, subsiste. Ele está mergulhado e é mantido até
o fim numa matéria anônima como o sangue, num magma
sem nome, sem contorno […]. Nenhuma reminiscência de
seu mundo familiar, nenhuma preocupação convencional de
coesão ou de verossimilhança desvia sua atenção e tampouco
freia seu esforço. (SARRAUTE, 1956, p.76)
Partindo da premissa de que “o discurso é uma ‘totali-
dade rítmica’” (ZILBERBERG, 2004, p. 23), a semiótica tensiva
oferece uma via de acesso aos movimentos de um texto como
“Je ne comprends pas”. A partir da abordagem tensiva, parece
possível desvendar o ritmo do discurso – a própria pulsação da
interlocução buscada por Sarraute. Isso porque o espaço tensivo
é a arena do movimento, da foria, que pode ser analisada como
vetores orientados responsáveis pelo desenrolar discursivo.
Claude Zilberberg salienta que os valores semióticos se
constroem a partir do entrecruzamento de valências da intensidade
e da extensidade. Enquanto estas dizem respeito ao inteligível, aos
estados de coisa, aquelas dizem respeito ao sensível, aos estados
de alma. Dado que Nathalie Sarraute privilegia a manipulação
sensorial do enunciatário como estratégia de construção de
sentido de sua obra, daremos ênfase ao estudo das valências da
intensidade no interior do texto com vistas a obter a chave de
acesso de sua dimensão sensível.
A intensidade é um sincretismo entre andamento e tonicidade,
ou ainda, “a intensidade une o andamento e a tonicidade” (ZIL-
BERBERG, 2002, p. 116). Porém, qualquer que seja a dimensão
escolhida, o procedimento de análise deve reconhecer, além
destas subdimensões, uma outra baliza conceitual, a dos foremas,
tripartidos em direção, intervalo e elã (ZILBERBERG, 2006, p. 60).
As figuras elementares da foria – os foremas – são toma-
das na semiótica tensiva “mais como particípio presente que
como particípio passado, mais como vetores que como traços”
(ZILBERBERG, [2007])7. São elas, portanto, que determinam o
contorno do movimento do fluxo fórico, dado que garantem a
análise de seu movimento (elã), de seu intervalo percorrido (in-
tervalo) e direcionamento (direção). Assim, do entrecruzamento
entre as subdimensões e os foremas resultam as subvalências
cuja interação delineia os movimentos, o ritmo que constrói um
dado discurso.
Dadas as especificidades de “Je ne comprends pas” e dados
os limites deste trabalho, trataremos em nossa análise apenas
7
Verbete: «Phorème  » das subvalências resultantes do entrecruzamento das subdi-
(tradução nossa)

88 Niterói, n. 23, p. 79-93, 2. sem. 2007


A semiótica tensiva e o nouveau roman de Nathalie Sarraute

mensões andamento e tonicidade com os foremas elã e direção. No


que diz respeito ao andamento, deixemos Zilberberg nos mostrar,
em suas próprias palavras, sua pertinência para o contexto des-
ta análise: “O andamento é senhor, tanto de nossos pensamentos,
quanto de nossos afetos, dado que ele controla despoticamente os
aumentos e as diminuições constitutivas de nossas vivências”
(ZILBERBERG, 2002, p. 114).
Se nos debruçarmos sobre o texto “Je ne comprends pas”
observaremos que ele é construído em torno da paixão da im-
paciência, que nada mais é do que a apropriação pragmática da
temporalidade pelo sujeito. Seu andamento inicial é lento, pouca
ação acontece e quase nada muda de lugar após a proposição
da situação inicial. Trata-se de um estado de coisas construído
sobre a permanência, sobre um quase não-desenrolar da nar-
rativa, decorrente de sua extrema lentidão. Esta lentidão – que
se manifesta seja no plano da expressão textual, com a mimese
da oralidade, seja no plano do conteúdo, com a dilatação da
duração das “ações” – guarda em si o germe de sua própria
transformação, uma vez que serve como ponto de partida de
um movimento, de uma reação do sujeito para pôr fim a essa
quase-imobilidade.
Essa apropriação temporal pelo sujeito da enunciação pode
ser mais bem compreendida se partirmos da análise do forema
do elã que, além de ser elemento pressuposto para a semiótica
tensiva, é precisamente a figura da foria que trata da “apropria-
ção prática, pragmática, da temporalidade pelos sujeitos” (ZIL-
BERBERG, 2006, p. 63). O direcionamento desse movimento é
ascendente, dado que “a ascendência tem como ponto de partida
a permanência” (ZILBERBERG, 2006, p. 18). Ou seja, parte-se de
um “estado” cujo andamento é, por definição, lento e se desen-
volve em um movimento ascendente que, no limite, transforma
o estado em acontecimento, cuja “subtaneidade é a ‘variedade’
acelerada do fato” (ZILBERBERG, 2006, p. 81).
Analisaremos inicialmente o resultado do entrecruza-
mento do elã com as duas subdimensões da intensidade – o
andamento e a tonicidade – e, da mesma forma, verificaremos o
entrecruzamento com o forema direção, termo pressuponente
que determina o elã. Este movimento ascendente será analisado
tendo como balizas as categorias aspectuais propostas por Zil-
berberg (2006, p.70): minimização, atenuação, restabelecimento
e exacerbação, nesta ordem8.

8
Optamos por seguir a
tradução de Zilberberg,
2002, feita por L. Tatit,
I. Lopes, W. Beividas.
“Síntese da Gramática
Tensiva”. In. Significa-
ção, 2006.

Niterói, n. 23, p. 79-93, 2. sem. 2007 89


Gragoatá Renata Mancini

Andamento :

minimização atenuação restabelecimento exacerbação


elã inércia lentidão rapidez vivacidade

direção “traîner” desaceleração aceleração precipitação


(ir muito lentamente)

Tonicidade :

minimização atenuação restabelecimento exacerbação


elã estado repouso movimento ataque
direção extenuação atonização tonificação avultação

O texto de Sarraute parece explorar com maior ênfase dois


momentos desse processo, quais sejam a atenuação e a exacerba-
ção. Isto porque parte de uma situação cujo andamento é lento,
sem que haja, neste início, qualquer esboço de mudança. Nestes
termos, no que diz respeito à subdimensão do andamento, o elã
se configura pela lentidão e a direção pela desaceleração. No que
tange à tonicidade, este início configura uma situação de repouso,
para o elã, e de atonização para a direção. Este estado de coisas se
refere tanto às relações entre os atores discursivos projetados no
enunciado – seja a pessoa sentada ao banco em estado de parali-
sia sendo bombardeada pelo jorro de palavras sem sentido de seu
interlocutor, seja o observador/narrador atônito com o que pre-
sencia –, quanto à relação entre enunciador e enunciatário, dado
que este se vê em contato com um texto desacelerado pelo efeito
de oralidade do plano de expressão e por uma duração dilatada
no plano do conteúdo. Num primeiro momento, o enunciador
parece não intentar nada além do estabelecimento do contato
com o enunciatário, mantido às custas de uma expectativa criada
em relação a uma possível conseqüência desastrosa que proferir
as palavras “Je ne comprends pas” poderia trazer.
No entanto, no momento em que o interlocutário final-
mente diz “Je ne comprends pas”, toda a expectativa criada até
então se desfaz. Segue uma lógica concessiva (que instaura uma
surpresa), segundo a qual embora tivéssemos sido preparados
para uma reação adversa do interlocutor, este se mostra exultante
pela coragem de seu interlocutário de se revoltar contra o que
acreditava ser um uso indevido da palavra, qual seja, seu simples
uso fático. Essa reação imprevista acelera a narrativa, a ponto
mesmo do observador/narrador não ter ocasião de narrar e co-
mentar os fatos por ele observados e ter de deixá-los se apresentar
por si mesmos. Contando com o auxílio da mistura de vozes, o
enunciatário se precipita como observador da interlocução que
se desenrola sem intermediação diante de seus olhos.

90 Niterói, n. 23, p. 79-93, 2. sem. 2007


A semiótica tensiva e o nouveau roman de Nathalie Sarraute

Ah bravo, Ah merci... si vous saviez... je perdais déjà l’espoir,


c’est si rare, ça ne se produit presque jamais... j’ai beau m’effor-
cer, accumuler les absurdités, l’incohérence...prendre au hasard
et assembler des mots sans suite... j’ai beau emprunter sans
vergogne aux plus éhontés de nos charlatans, aller jusqu’aux
extrêmes limites, il n’y a rien à faire, personne ne bronche,
tout le monde accepte, acquiesce... Mais vous !... Ah, c’est une
chance... (p. 156)
Essa quebra de expectativa cria o que Zilberberg denomina
de o insólito, a prevalência de um contraprograma conjuntivo
sobre um programa disjuntivo, ou seja, trata-se de uma conjun-
ção concessiva que traz em si um “valor de acontecimento” (Cf.
ZILBERBERG, 2006, p. 83). O narrador chega mesmo a afirmar
que essa situação, de tão estranha, poderia fazer crer que se
trata de um sonho: “si l’on perdait de vue que ce que les rêves
nous montrent de plus invraisemblable n’est rien, quand on le
compare à ce que nous offre parfois ‘la réalité’” (p. 155).
Ao lançar mão desse andamento acelerado, que porta o elã
para o domínio da vivacidade, e dessa mudança de tonicidade, em
que o elã é configurado pelo ataque, Sarraute parece conseguir
trazer para primeiro plano a sensação enquanto acontecimento
singular (Cf. ZILBERBERG, 2006, p. 92). Ou seja, a autora parece
levar a cabo a exploração da apreensão sensível do sentido do
texto. Mas, como qualquer acontecimento traz em si o germe
para sua dissolução em um estado, a direção passa a se caracte-
rizar como precipitação, no que concerne ao andamento, e como
avultação, no que diz respeito à tonicidade. Em outras palavras,
as subvalências paroxísticas naturalmente instauram um demais
sobre o qual incidirá uma inflexão. É exatamente o que ocorre
no texto.
Após a mudança brusca de expectativa que o inesperado
impôs ao sujeito, desfaz-se a tensão, a rigor, responsável pela
manutenção dessa narrativa que, apesar de sua economia de
ações ou de complexos desdobramentos passionais, mantém o
engajamento do enunciatário.
No entanto, no momento em que ambos os interlocutores
concordam que o “bom uso” da palavra diz respeito às situações
em que está sendo utilizada para transmitir idéias de alta com-
plexidade – em oposição aos discursos construídos apenas com
o intuito de se fazer existir, ao uso da palavra feito apenas para
estabelecer uma relação intersubjetiva, aqui considerado desres-
peitoso –, o engajamento direto entre enunciador/enunciatário é
interrompido, engajamento este mediado pelo texto que parece
ter sido construído exclusivamente com a função de servir a este
contato. Por isso mesmo, o narrador habilmente reclama sua
prerrogativa e renova o pacto enunciativo para dizer que toda
essa auspiciosa experiência de respeito, quase de reverência à
palavra (i.e. o dever renegar a validade do uso meramente fático

Niterói, n. 23, p. 79-93, 2. sem. 2007 91


Gragoatá Renata Mancini

da palavra) não pode existir ou mesmo fazer sentido, senão em


um conto de fadas. Neste momento, o texto perde sua função e
se desfaz na ironia deixada por seu rastro.
4. Para finalizar
Procuramos evidenciar, neste trabalho, o que acreditamos
ser o ponto de união entre uma metodologia de análise que
tem na afetividade a base da construção do sentido – e que não
esconde seu fascínio pela dimensão concessiva do acontecimento
– e uma obra cujos experimentos se voltam precisamente para
a exploração sensorial, para a “primazia do suportar sobre o
agir”.
Acreditamos que com viés tensivo a semiótica amplia suas
possibilidades na tarefa de entender e explicitar os mecanismos
de formação de sentido dos textos que, cada vez mais, chamam
a teoria a dar conta da dimensão da experiência vivenciada.
Nesse sentido, Claude Zilberberg parece fazer coro com Natha-
lie Sarraute quando se pergunta: “o que interessa comunicar ao
enunciatário, em uma palavra, sobre o que interessa discorrer,
a não ser o surpreendente que ele ignora?”9

Abstract
Amongst the new developments of the French
Semiotics in recent years, the works of Claude
Zilberberg and Jacques Fontanille have ­attempted
(also) to acknowledge sensitive contents in the
processes of generation of text meaning. This new
theoretical field – known as tensive semiotics –
explains sensible contents in terms of conti­nuous
categories such as tempo, tonicity, intensity etc.,
paving the way for approaching the text as a proc-
ess. Although this new conceptual framework does
not introduce any drastic change in the classic
analytical procedures, it has been showing to be
particularly productive for treating contemporary
texts whose main feature appears to be the sensi-
tive manipulation of the enunciatée. The work of
French writer Nathalie Sarraute seems to follow
these very guidelines. In this essay we present
an analysis of “Je ne comprends pas” (in L’usage
de la parole, 1980), in which the enunciator and
the enunciatée are skewed from their “classical”
9
Zilberberg ([200-]), positions and are immersed into a first hand
vrbete «Evénement»  : interaction. We intend to show that the strategy
« q u ’e s t - c e q u i e s t
à com mun iquer à behind this text comes as a result of an entangle-
l’énonciataire, en un ment of the discourse actant voices (enunciator
mot à discourir, sinon ce
survenu qu’il ignore?» / enunciatée, narrator / narratée, interlocutor

92 Niterói, n. 23, p. 79-93, 2. sem. 2007


A semiótica tensiva e o nouveau roman de Nathalie Sarraute

/ interlocutée) in a way to force them to


share the same content rhythm. Here lies
the effect of meaning of a piece of work
intended to be “experienced” rather than
being simply understood.
Keywords: French semiotics. Tensivity.
Rhythm. Enunciation. Contemporary
literature

Referências

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CITEC: Annablume, 2002.
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BERTRAND, D. Caminhos da semiótica literária. Bauru, SP: EDUSC,
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FIORIN, J. L. As astúcias da enunciação. São Paulo: Ática, 1999.
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______. Glossaire. acessado em 16/5/2007. Disponível em: <www.
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______. Précis de Grammaire Tensive. Tangence, Quebec, n. 70,
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Niterói, n. 23, p. 79-93, 2. sem. 2007 93


Condicionais reportadas e flexibilidade
de ponto de vista
Lilian Ferrari

Recebido 11, jul. 2007/Aprovado 19, set. 2007

Resumo
Este trabalho propõe uma nova perspectiva de
investigação das construções condicionais no
português brasileiro. Com base na teoria dos
espaços mentais, a análise mostra que a noção tra-
dicionalmente aceita de uniformidade de postura
epistêmica em construções condicionais precisa
ser revista para explicar os casos de condicionais
encaixadas no discurso indireto que podem não
apresentar a referida uniformidade. Argumenta-
se que primitivos discursivos tais como Base,
Ponto de Vista e Foco podem fundamentar uma
explicação unificada tanto para os casos em que a
postura epistêmica se mantém a mesma na prótase
e na apódose, como também para os casos de rup-
tura, em que prótase e apódose exibem posturas
epistêmicas diferentes.
Palavras-chave: Condicionais. Discurso repor-
tado. Ponto de vista

Gragoatá Niterói, n. 23, p. 95-109, 2. sem. 2007


Gragoatá Lilian Ferrari

1. Introdução
O reconhecimento de que a postura epistêmica do falante
determina escolhas modo-temporais constitui uma das impor-
tantes contribuições da investigação sobre as construções condi-
cionais (FILLMORE, 1990; SWEETSER, 1990, 1996; DANCYGIER,
1993; DANCYGIER; SWEETSER, 2005). Sendo postura epistêmica
definida como a associação ou dissociação mental do falante
com o mundo descrito na prótase, os estudos têm demonstrado
que as condicionais diferenciam-se de construções similares por
exibirem postura hipotética ou contrafactual (FILLMORE, 1990).1
Quando o falante mantém uma postura epistêmica hi-
potética, a condicional sinaliza neutralidade (não há associação
nem dissociação mental com o evento ou estado de coisas ex-
presso na prótase P). É o que ocorre em construções como “Se
eu terminar o trabalho cedo, farei compras”. Já nos casos que
evidenciam postura epistêmica contrafactual, a condicional si-
naliza distanciamento (o falante assume que há divergência entre
o estado de coisas descrito em P e o mundo real). Por exemplo,
“Se eu terminasse o trabalho cedo, faria compras” refere-se a
uma situação presente ou futura, em que o falante considera
improvável que termine o trabalho cedo.
Como ilustram os exemplos acima, a postura epistêmica é
tradicionalmente tratada como um fenômeno unificado e coerente:
uma vez que se estabelece uma postura hipotética ou contra-
factual para a prótase P, a mesma postura é conseqüentemente
herdada pela apódose Q. Em condicionais hipotéticas, a escolha
do futuro do subjuntivo em P (por ex, “Se eu terminar o trabalho
cedo”) costuma requerer a escolha do futuro do indicativo em Q
(“farei compras”).2 Sendo assim, construções como “Se eu terminar
o trabalho cedo, faria compras” não são normalmente atestadas.
Por outro lado, em condicionais contrafactuais, o uso do pretérito
1
As construções tem- imperfeito do subjuntivo (“Se eu terminasse o trabalho cedo”) não
porais exibem postura
real ou assumida, em
indica passado cronológico, mas distância epistêmica. Coeren-
que o falante associa-se temente, a apódose preserva a postura epistêmica de distancia-
mentalmente ao mundo
descrito na prótase (ex.
mento através do uso do futuro do pretérito (“faria compras”).
Quando eu terminar Mais uma vez, em função da pressão por coerência, sentenças
o trabalho, farei com-
pras). como “Se eu terminasse o trabalho cedo, farei compras” também
2
Outras escolhas são não costumam ser atestadas em textos falados ou escritos.
possíveis em Q, tais
como o futuro perifrás-
O objetivo deste artigo é demonstrar que, embora a unifor-
tico (“Se eu terminar midade de postura epistêmica pareça ser a situação não marcada,
o trabalho cedo, vou
fazer compras”) ou o é possível relativizar essa generalização nos casos em que a cons-
presente (‘Se eu termi- trução condicional ocorre no discurso reportado. Assim, quando
nar o trabalho cedo, faço
compras”). Em ambos existe um Espaço de Fala no qual a condicional se encaixa, parece
os casos, ent retanto,
mantém-se a coerência
haver graus adicionais de liberdade. Em casos como “Ele disse
de postura epistêmica, que se P, Q”, verifica-se uma dupla possibilidade de encaixe, que
já que ambos os tempos
verbais são compatíveis tanto pode ser marcado através da conformidade dos verbos do
com postura epistêmica espaço condicional à estrutura do espaço passado (“Ele disse que
neutra.

96 Niterói, n. 23, p. 95-109, 2. sem. 2007


Condicionais reportadas e flexibilidade de ponto de vista

se terminasse o trabalho cedo, faria compras”), quanto através da


não-assimilação da estrutura temporal do espaço passado pela
condicional encaixada (“Ele disse que se terminar o trabalho
cedo, fará compras”). Além disso, há ainda a possibilidade de
flexibilização do referido encaixe, de modo que a prótase não
assimile a estrutura temporal de passado, enquanto a apódose
demonstre conformidade a essa mesma estrutura (“Ele disse
que se terminar o trabalho cedo, faria compras”).
No caso de construções complexas como as condicionais,
observa-se que a assimilação ou não da estrutura temporal do
Espaço de Fala pela construção condicional encaixada decorre
de diferentes possibilidades de estabelecimento do Ponto de
Vista (PV). Com base nessa observação, este artigo organiza-se
em torno dos seguintes argumentos principais:
a. o PV pode ser mantido na Base, de onde são criados os
Espaços P e Q (ex. Ela disse que se terminar o trabalho
cedo, fará compras).
b. o PV transfere-se para o Espaço de Fala Passado, de onde
são criados os espaços P e Q ( ex. Ela disse que se terminasse
o trabalho cedo, faria compras).
c. o Espaço P é criado tomando a Base como PV, enquanto que
o espaço Q adota o Espaço de Fala Passado como PV (ex.
Ela disse que se terminar o trabalho cedo, faria compras)
Nos casos “a” e “b” acima (em que a estrutura temporal
da condicional não sofre assimilação, mas mantém-se vinculada
ao espaço Base ou em que a estrutura temporal da condicional
é assimilada pela estrutura temporal de passado do Espaço de
Fala, respectivamente), verifica-se a manutenção do ponto de
vista em um único espaço e a decorrente uniformidade de pos-
tura epistêmica. Entretanto, no caso “c”, verifica-se flexibilização
do ponto de vista, que se desloca da Base para o Espaço de Fala
Passado, acarretando uma estrutura epistêmica não uniforme.
Essas possibilidades serão detalhadas nas seções 3 (itens a
e b) e 4 (item c) do presente artigo, com base em exemplos cole-
tados em sites de busca na internet. Antes, porém, os principais
conceitos teóricos que sustentaram a análise serão detalhados
na próxima seção.
2. Condicionais e espaços mentais
Na teoria dos espaços mentais, a compreensão e a produção
da linguagem envolvem a construção de domínios cognitivos
organizados e interconectados, que são independentes da lin-
guagem, mas dos quais a linguagem depende para a interpre-
tação do significado. As expressões lingüísticas são concebidas
como manifestações superficiais dessas construções subjacentes,

Niterói, n. 23, p. 95-109, 2. sem. 2007 97


Gragoatá Lilian Ferrari

altamente abstratas; as sentenças fornecem instruções parciais


e altamente subespecificadas para: a construção de domínios;
a subdivisão e o fracionamento da informação em diferentes
domínios; a estruturação dos elementos e relações dentro de
cada domínio; e a construção das conexões entre elementos em
domínios diferentes e conexões entre esses mesmos domínios.
A interpretação do discurso resulta da construção de
uma configuração de espaços hierarquicamente relacionados
e interconectados. À medida que cada sentença é produzida, a
configuração de espaços é dinamicamente atualizada, baseada
em pistas lexicais e gramaticais fornecidas pela sentença.
Os espaços são pragmaticamente elaborados pelo conhe-
cimento subjacente formatado em “Frames” (recortes no inte-
rior de uma determinada cena, sob a perspectiva das escolhas
lexicais) e “Modelos Cognitivos Idealizados” (MCIs) (FILLMORE,
1990; ­LAKOFF, 1987). Além disso, são também elaborados por
processos de inferenciação e raciocínio.
Com o desenrolar do discurso, novos espaços são criados
em função de pistas fornecidas por “construtores de espaços”
(space-builders), por marcadores gramaticais tais como tempo e
modo, ou por informação pragmática. Os construtores de espaços
apresentam-se de formas variadas: sintagmas preposicionais,
conectivos, cláusulas que exigem complementos (por exemplo,
na foto, em 1995, na escola, se ___, Rogério disse que ____, João
acredita que ____.).
No caso das condicionais, verifica-se a criação de uma
configuração de espaços que serve como um tipo de moldura
informacional com potencial dedutivo. Ao atuar como constru-
tora de espaço mental, a prótase da condicional funciona como
um operador sobre o discurso subseqüente, abrindo um domí-
nio discursivo por enquadramento específico. Sweetser (1990)
­as­sinala que em condicionais do tipo “Se P, (então) Q”, o evento
P é uma condição suficiente (e, em alguns casos, necessária) para
a ocorrência do evento Q.3 Visto que as noções de necessidade
e suficiência relacionam-se semanticamente à noção de causa-
lidade, pode-se concluir que as construções condicionais são
projeções virtuais de manifestações causais diretas.
3
Segundo a autora, a Tais projeções, segundo a autora, podem atuar em três
noção de “suficiente” é
estabelecida levando- domínios distintos: de conteúdo, epistêmico e pragmático. Nas
se em conta o mundo condicionais de conteúdo, a realização do evento ou estado de
real, não possuindo o
sentido lógico de (ne- coisas descrito na prótase é uma condição para a realização do
cessário e) suficiente.
Embora muitas vezes
evento ou estado de coisas descrito na apódose. Essa condição
as condicionais sugiram pode ser conceptualizada de modo neutro (“Se Pedro ligar, sua
uma leitura do tipo “se
e somente se”, Comrie namorada ficará feliz”) ou de modo distanciado (“Se Pedro
(1986) argumenta que ligasse, sua namorada ficaria feliz”). No domínio epistêmico,
essa leitura não é parte
da semântica da conjun- as condicionais expressam a idéia de que o conhecimento do
ção se, mas resulta de
uma implicatura con-
versacional.

98 Niterói, n. 23, p. 95-109, 2. sem. 2007


Condicionais reportadas e flexibilidade de ponto de vista

evento ou estado de coisas expresso na prótase seria uma condi-


ção suficiente para o estabelecimento da conclusão expressa na
apódose (“Se Maria não compareceu à reunião, (então) ela está
querendo irritar seu chefe”). As condicionais pragmáticas, por
sua vez, expressam a realização de um ato de fala representado
na apódose, com base no estado de coisas descrito na prótase
(“Se for possível, venha aqui hoje à tarde”).
No que se refere às condicionais de conteúdo, Fillmore
(1990) propôs a noção de postura epistêmica, que indica a su-
posição do falante sobre a realidade descrita em P.4 Segundo o
autor, a relação epistêmica que o falante estabelece com o mundo
representado na condicional, poderá ser de dois tipos: o falante o
concebe como distinto do mundo real, ou exime-se de indicar se
esse mundo alternativo representado na condicional encaixa-se
em uma ou outra categoria. Os exemplos abaixo ilustram essas
possibilidades, respectivamente:5
4
Fillmore não associou (1) Se o Botafogo ganhasse a Copa do Brasil, jogaria a Liber-
inicialmente a noção
de postura epistêmi- tadores.
ca às condicionais de
conteúdo, já que não
havia ainda uma classi-
(2) (Eu não sei, mas) se o Botafogo ganhar a Copa do Brasil,
ficação das condicionais jogará a Libertadores.
nos moldes que seriam
propostos em seg ui- Em estudos recentes em Lingüística Cognitiva, as cons-
da por Sweetser (1990).
Entretanto, como seus truções condicionais têm merecido análises baseadas em con-
exemplos envolvem o figurações de espaços mentais, que incluem normalmente três
que Swe et ser t ratou
como condicionais de primitivos discursivos: Base, Ponto de Vista e Foco. Esses primitivos
conteúdo, pode-se con-
siderar que o fenômeno
podem ser assim definidos (DINSMORE, 1991; CUTRER, 1994;
da coerência de postura FAUCONNIER, 1997):
epistêmica foi inicial-
mente postulado para Base – funciona como âncora da configuração; em geral,
as condicionais de con- é o espaço que serve de ponto de partida para o discurso, e ao
teúdo. Tendo em vista
que estudos posteriores qual se pode sempre retornar.
demonstraram que as
restrições temporais nas
Ponto de Vista – é o espaço a partir do qual outros espaços
condicionais de conteú- são criados ou acessados.
do são mais rígidas do
que nas epistêmicas e Foco – é o espaço ao qual se adiciona conteúdo.
pragmáticas (DANCY- Retomemos os exemplos (1) e (2), representando-os dia-
GIER, 1998; DANCY-
GIER; SWEETSER, gramaticamente:
2005), a discussão que
proponho neste artigo (1) Se o Botafogo ganhasse a Copa do Brasil, jogaria a Liber-
visa a demonstrar que
mesmo nas condicionais tadores.
de conteúdo, a coerência
de postura epistêmica
não é categórica.
5
Há também a pos-
sibilidade de que o fa-
lante conceba o mundo
representado na prótase
como sendo compatí-
vel com o mundo real.
Nesse caso, entretanto,
utilizaria uma constru-
ção temporal (Quando o
Botafogo ganhar a Copa
do Brasil, seus torcedo-
res comemorarão).

Niterói, n. 23, p. 95-109, 2. sem. 2007 99


Gragoatá Lilian Ferrari

Diagrama 1 – Configuração do exemplo (1) em termos de espaços mentais

O diagrama acima evidencia o fato de que, tomando-se a


Base como PV, o Espaço P é construído a partir de uma postura
epistêmica contrafactual. Além disso, é o espaço ao qual inicial-
mente se adiciona estrutura (Foco), podendo ser co-temporal
ou futuro em relação à Base. O Espaço Q é então construído no
interior do domínio condicional, mantendo-se o PV na Base, e
adicionando-se nova estrutura a esse espaço (Foco`).
(2) Se o Botafogo ganhar a Copa do Brasil, jogará a Liberta-
dores.

B
PV PV

P (“ganhar”)
P.Epist.Neutra
Foco
Q( “jogará”)
F’

Diagrama 2 – Configuração do exemplo (2) em termos de espaços mentais

100 Niterói, n. 23, p. 95-109, 2. sem. 2007


Condicionais reportadas e flexibilidade de ponto de vista

O diagrama acima assemelha-se ao anterior em termos


de construção dos Espaços P e Q e de alocação de PV e Foco.
A diferença entre os dois diagramas reside no fato de que, no
Diagrama 2, o Espaço P é construído a partir de uma postura
epistêmica neutra.
2.1. Discurso Reportado e Ponto de Vista
Em se tratando do discurso reportado, Cutrer (1994) de-
monstrou que percursos temporais específicos são criados na
configuração de espaços mentais. Segundo a autora, os verbos
dicendi estabelecem espaços que fracionam o conteúdo do que é
dito, dentro dos seguintes moldes:
a. O Ponto de Vista é preenchido pelo falante ou pelo ex-
perienciador do evento de fala reportado;
b. O Espaço de Fala e todos os espaços subordinados ao
Espaço de Fala constituem um Domínio de Fala, de modo
que configurações contendo um Domínio de Fala têm
dois Pontos de Vista inerentes, um da Base e outro do
Espaço de Fala.
c. Os espaços do Domínio de Fala têm status de FATO ou
PREDIÇÃO em relação ao Espaço de Fala.
d. Os espaços do Domínio de Fala podem ser acessados
através dos seguintes percursos temporais: diretamente
do Espaço de Fala, diretamente da Base, da Base passando
pelo Espaço de Fala.
Com relação aos tipos de acessos descritos acima, desta-
quemos os seguintes exemplos, adaptados de Fauconnier (1997,
p. 89-92):
• Acesso ao Domínio de Fala diretamente do Espaço de
Fala:
(3) João anunciará à meia-noite que ele queimou os docu-
mentos duas horas antes.
Em (3), o evento de fala (anúncio de João) é posterior à Base,
tendo o status de predição; portanto, é codificado pelo futuro do
indicativo (anunciará). Com relação ao evento reportado (quei-
ma dos documentos), o Espaço de Fala passa a ser o PV, como
evidencia o uso do pretérito perfeito (queimou).6 Esse percurso
6 temporal pode ser assim representado:
Se o PV permanecesse
na Base, a codificação
teria que ser “terá quei-
(I) Base (PV) --→Espaço de Fala Futuro (PV`) ---→Espaço do
mado”; mas essa escolha Evento
é incompatível com a
locução dêitica “duas
horas antes”, que toma (anunciará) (queimou)
o Espaço de Fala Futuro
como PV. • Acesso ao Domínio de Fala diretamente da Base:

Niterói, n. 23, p. 95-109, 2. sem. 2007 101


Gragoatá Lilian Ferrari

(4) João anunciou no início da semana que ele queimará os


documentos amanhã.
Em (4), o evento de fala (anúncio de João) é anterior à Base,
tendo o status de fato. Com relação ao evento reportado (queima
dos documentos), a Base continua sendo o PV, como evidencia
a escolha do futuro do indicativo (queimará).7 Nesse caso, o
percurso temporal é o seguinte:
(II) Base (PV) ----→Espaço de Fala Passado -----→Espaço do
Evento Reportado
(anunciou) (queimará)
Como os esquemas (I) e (II) indicam, o trabalho de Cutrer
(1994) abriu caminho para a compreensão das relações entre
escolhas modo-temporais e ponto de vista em construções de
estrutura argumental simples encaixadas em espaços de fala.
Nas seções a seguir, analisar-se-á fenômeno semelhante em um
novo contexto sintático: o das construções condicionais encaixa-
das em espaços de fala.
3. Condicionais reportadas e uniformidade
de postura epistêmica
Com relação a sentenças que apresentam estrutura argu-
mental simples, como “Fábio chegará às duas”, o que se verifica
é que tais sentenças podem ser posteriormente reportadas
mantendo-se o Ponto de Vista na Base ou deslocando-o para o
7
Espaço de Fala Passado (“Ela disse que Fábio chegará às duas”
Se o PV fosse deslo-
cado para o Espaço de
ou “Ela disse que Fábio chegaria às duas”). No segundo caso, o
Fala Passado, a codifica- uso da forma “chegaria” demonstra que, na construção encai-
ção verbal teria que ser
“queimaria”. xada, o verbo herdou a marcação temporal do Espaço Passado
8
Se a referência tem- estabelecido por “Ela disse que”. Em termos de configuração de
poral do evento “che-
gar às duas” é passado
espaços mentais, isso significa que é nesse Espaço Passado, e não
em relação ao Espaço na Base, que se estabelece o PV. No primeiro caso, a escolha da
Base e futuro em rela-
ção ao Espaço de Fala, forma “chegará”indica que o PV mantém-se na Base.8
o ponto de vista terá Com relação às condicionais encaixadas, a situação torna-
neces­s ariamente que
ser estabelecido no Es- se um pouco mais complexa, já que há dois espaços (P e Q)
paço de Fala (Ela disse
que Fábio chegaria às
subordinados ao Espaço de Fala. A situação não marcada é que
duas). Mas se o evento os espaços P e Q sejam tratados de forma uniforme (criados a
for futuro em relação
ao Espaço Base e ao Es- partir do mesmo PV). Como no caso de encaixe de sentenças
paço de Fala, verifica-se com estrutura argumental simples, os novos espaços podem
dupla possibilidade de
alocação do ponto de ser criados a partir do Espaço Base ou do Espaço Passado. Se
vista : no Espaço Base
(“Ela disse que Fábio
o PV é mantido na Base, a estrutura temporal da condicional
chegará às duas”) ou permanece inalterada em relação à sua estrutura original, como
no Espaço de Fala (Ela
disse que Fábio chegaria
ilustra o exemplo a seguir:
às duas). Nesse caso, a
escolha do falante pa- (5) Talvez seja por isso que Jesus disse que se não nos tornarmos
rece ser influenciada por como crianças não entraremos no reino dos céus ... (<www.
fatores pragmáticos, que
mereceriam um estudo jesusvoltara.com.br/ sermoes/bullon57_dificil_crer.htm
à parte. - 30k>)
102 Niterói, n. 23, p. 95-109, 2. sem. 2007
Condicionais reportadas e flexibilidade de ponto de vista

O exemplo acima mescla elementos de discurso indireto


e direto. Com relação à estrutura dêitica, verifica-se que a con-
dicional reportada é alterada com relação ao dêitico de pessoa
“nos” e aos sufixos verbais de 1ª pessoa do plural (tornarmos,
entraremos), já que a fala original não poderia ter utilizado
esses elementos (provavelmente, o que foi dito foi algo como
“Se não vos tornardes como crianças, não entrareis no reino
dos céus”). Entretanto, com relação à estrutura temporal, como
ocorreria em caso de discurso direto, a fala reportada mantém
os tempos verbais da fala original (futuro do subjuntivo/futuro
do presente).
No exemplo (5), portanto, a condicional encaixada exi-
be postura epistêmica neutra e uniforme, uma vez que o PV
mantém-se na Base, conforme o Diagrama 3 a seguir:

Diagrama 3 – Configuração referente ao exemplo 5 (Jesus disse que


se não nos tornarmos como crianças, não entraremos no reino dos céus)

É interessante notar que a manutenção do PV na Base não


impede que P seja reportado indiretamente, enquanto Q seja
reportado diretamente. É o que ilustra o exemplo a seguir:
(6) O líder do PFL no Senado, Agripino Maia, disse que, se o de-
poimento for retardado, “não tem alternativa senão a CPI do
Silvinho” (<www2.uol.com.br/oimparcial/090520061caderno.
htm>)

Niterói, n. 23, p. 95-109, 2. sem. 2007 103


Gragoatá Lilian Ferrari

Em (6), observa-se que P e Q não são assimilados ao Espaço


de Fala, mas mantêm-se vinculados ao PV da Base. Embora o
exemplo mescle o PV do redator e o PV do falante reportado,
mantém-se a uniformidade de postura epistêmica. Isso é possível
porque tanto redator quanto falante reportado adotam postura
epistêmica neutra e ambos os pontos de vista partem da Base.
Outra possibilidade de manutenção de ponto de vista é a
assimilação completa da estrutura temporal da condicional pelo
Espaço Passado. Há casos em que o PV tem que ser mantido
no passado porque o evento descrito não tem mais validade no
presente. O exemplo a seguir ilustra esse fenômeno:
(7) Disse que se conseguisse o emprego tatuaria o logotipo da em-
presa no braço para mostrar lealdade ... (<www.curriex.com.
br/centro_carreira/ guia_entrevistas5.asp - 90k>)
Em relação ao exemplo acima, o contexto indica que a re-
constituição adequada da condicional originalmente pronuncia-
da seria “Se conseguir o emprego, tatuarei o logotipo da empresa
no braço para mostrar lealdade”. A estrutura neutra “Se P (futuro
do subjuntivo), Q (futuro do indicativo)” funcionou como ponto
de partida adequado para a implementação de uma camada
de passado no momento do encaixe, gerando a estrutura “Se P
(pretérito imperfeito do subjuntivo), Q (futuro do pretérito”). O
Diagrama 4 representa o encaixe:

Diagrama 4 – Configuração referente ao exemplo 7 (“...disse que se conse-


guisse o emprego, tatuaria o logotipo da empresa no braço para mostrar lealdade)

104 Niterói, n. 23, p. 95-109, 2. sem. 2007


Condicionais reportadas e flexibilidade de ponto de vista

Diferentemente do que ocorreu no exemplo (7) acima, o


evento descrito na condicional poderia ser futuro não só em
relação ao Espaço de Fala, mas também em relação ao Espaço
Base (“hoje”). Nesse caso, haveria a opção entre manter o PV na
Base ou deslocá-lo para o Espaço de Fala. No exemplo (8) abaixo,
em que o evento descrito na condicional é também futuro em
relação ao Espaço de Fala, escolheu-se o deslocamento do ponto
de vista para o passado:
(8) Através da “ABC”, Downer disse que se Hicks aceitasse o
“acordo de culpabilidade”, em troca de o promotor não recomen-
dar a pena mais severa, poderia ser beneficiado cumprindo o
castigo na Austrália. (br.noticias.yahoo.com/s/27032007/40/
politica-australiano-sentenciado-semana-terrorismo.html)
No exemplo acima, seria perfeitamente aceitável um
encaixe do tipo “Downer disse que se Hicks aceitar o “acordo
de culpabilidade” em troca de o promotor não recomendar a
pena mais severa, poderá ser beneficiado cumprindo o castigo
na Austrália”. É possível que a opção de manutenção do PV no
espaço passado esteja relacionada a fatores pragmáticos, como
por exemplo a sinalização da “voz” do falante reportado como
distinta da “voz” do jornalista. Em termos de configuração de
espaços mentais, o exemplo (8) comporta-se de forma semelhante
ao exemplo (7) e sua representação diagramática.
Por fim, é possível que o uso do pretérito imperfeito do
subjuntivo na prótase da condicional reflita apenas a não-as­
similação da estrutura temporal da condicional. Isso pode
ocorrer quando a condicional originalmente pronunciada já
9 apresentava estrutura distanciada, como é o caso do exemplo
Como demonstram
Dancygier e Sweetser a seguir: 9
(2005), é possível usar
a morfologia de passa- (9) (Ele)Disse que se tivesse que escolher entre o anti e o pró, escolhia
do com camadas “du-
plas” para indicar tem-
o pró. E que é isso que está fazendo: está fazendo!
po passado e postura
epistêmica distanciada. (<www.novae.inf.br/fsm2005/revolucao_digital2.htm>)
Entretanto, uma outra
camada de morfologia
temporal não costuma
ser herdada de um Es- Em (9), o contexto discursivo demonstra que o redator re-
paço de Fala Passado
se a postura epistêmica
portou a condicional originalmente distanciada “se eu tivesse
distanciada já estiver que escolher entre o anti e o pró, escolhia o pró”. Nesse caso, o
marcada na condicional
(Se João jogasse na lote- PV continua na Base; a diferença com relação a exemplos análo-
ria, ficaria rico/ Maria gos é que a condicional encaixada já exibia postura epistêmica
disse que se João jogasse
na loteria, ficaria rico), negativa.
ou se postura epistêmi-
ca distanciada e tempo 4. Flexibilidade de ponto de vista
passado já estiverem co-
dificados na condicional
(Se João tivesse jogado
Na seção anterior, analisamos as relações entre localização
na loteria, teria ficado do PV e escolhas modo-temporais nos casos em que se mantém a
rico/ Maria disse que
se João tivesse jogado
uniformidade de postura epistêmica. A presente seção abordará
na loteria, teria ficado uma outra possibilidade: a de que a mudança de PV da Base
rico).

Niterói, n. 23, p. 95-109, 2. sem. 2007 105


Gragoatá Lilian Ferrari

para o Espaço de Fala Passado acarrete não-uniformidade de


postura epistêmica (ainda que a estratégia de discurso indireto
seja uniformemente utilizada):
(10) Hans comentou que se Santa Maria assumir toda a manutenção,
a equipe atual poderia ser alocada a outros projetos, provavel-
mente em outras Unidades. (<www.cgi.unicamp.br/zope/
database/pdf/atas/reuniao_02-10-2002.pdf>)

O exemplo (10) atesta a possibilidade de que a postura


epistêmica não seja uniforme. Na introdução da prótase, o PV
é mantido na Base (espaço compartilhado por redator e falante
reportado); para a apódose, entretanto, o redator desloca o PV
para o Espaço de Fala Passado (restrito ao falante reportado),
conforme ilustra o Diagrama 5:

Diag rama 5 – Representação do exemplo 10 (“...Hans comentou


que se Santa Maria assumir toda a manutenção, a equipe atual pode-
ria ser alocada a outros projetos, provavelmente em outras Unidades)

É possível que o redator compartilhe com o falante re-


portado (Hans) a hipótese de que (ainda hoje) é viável que a
“Santa Maria assuma toda a manutenção”, mas não queira se
comprometer com o desdobramento sugerido por Hans de que
“a equipe atual poderá ser alocada a outros projetos”.

106 Niterói, n. 23, p. 95-109, 2. sem. 2007


Condicionais reportadas e flexibilidade de ponto de vista

5. Conclusão
O presente trabalho enfocou construções condicionais
encaixadas no discurso reportado, com o objetivo de rediscutir
a noção de uniformidade de postura epistêmica, tradicional-
mente aceita na literatura referente a condicionais. Com base em
exemplos atestados, a análise demonstrou que a exigência de uni-
formidade não é uma restrição sintática inerente às construções
condicionais, mas decorre de fatores discursivo-pragmáticos que
podem ser tratados adequadamente com base nas ferramentas
teóricas oferecidas pela teoria dos espaços mentais.
Demonstrou-se que há três relações possíveis entre ponto
de vista e postura epistêmica para o encaixamento de condi-
cionais em espaços de fala, a saber: a. uniformidade de postura
epistêmica com ponto de vista na Base; b. uniformidade de
postura epistêmica com ponto de vista no Espaço de Fala; c.
heterogeneidade de postura epistêmica com deslocamento de
ponto de vista da Base para o Espaço de Fala.
Os fatores que influenciam a escolha de cada uma dessas
opções no discurso merecem investigação detalhada. Parece que,
embora em alguns casos a escolha reflita restrições de caráter
puramente temporal (cronológico), na maioria das vezes, os fa-
tores relevantes parecem ser de natureza pragmático-discursiva,
cuja compreensão poderá lançar luz sobre as relações entre
condicionalidade, discurso reportado e subjetividade.

Abstract
This paper proposes a new perspective on
the investigation of conditional construc-
tions in Brazilian Portuguese. Based on
mental space theory, the analysis shows
that the traditionally accepted notion of
coherent epistemic stance has to be re-
viewed in order to account for embedded
conditional constructions which occur
in indirect reported speech. Since non-
coherent epistemic stance may also occur,
it is argued that discourse primitives such
as Base, Viewpoint and Focus can provide
a general explanation for the occurrence of
both coherent and non-coherent embedded
conditionals.
Keywords: Conditionals, reported speech,
viewpoint.

Niterói, n. 23, p. 95-109, 2. sem. 2007 107


Gragoatá Lilian Ferrari

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Niterói, n. 23, p. 95-109, 2. sem. 2007 109


A literatura, hoje:
crônica de uma morte anunciada
Sérgio Luiz P. Bellei

Recebido 18, jul. 2007/Aprovado 27, set. 2007

Resumo
Examinada sob uma perspectiva histórica, a
questão da possível morte da literatura no mo-
mento contemporâneo deve ser entendida tanto
no contexto da Era da Teoria, período que vai de
meados da década de sessenta aos inícios da déca-
da de noventa, como no contexto das mudanças
culturais, econômicas, sociais e tecnológicas dos
últimos quarenta anos. Afetada a partir do interior
do campo literário por uma vigorosa teorização
iconoclasta que colocou em xeque os conceitos de
autor, texto, leitor e arte, e a partir de mudanças
históricas externas que abalaram seus suportes
institucionais, a literatura como instituição dá si-
nais de progressivo enfraquecimento. Nos últimos
dez anos, contudo, questionamentos alternativos
sugerem que a afirmação da morte do literário pode
ter sido precipitada, dada a sua relevância social e
cultural no momento contemporâneo.
Palavras-chave: Morte da literatura. Teoria
literária. História da literatura.

Gragoatá Niterói, n. 23, p. 111-134, 2. sem. 2007


Gragoatá Sérgio Luiz P. Bellei

1. Dessacralização e Morte
Rumores sobre a enfermidade e a morte da literatura,
acompanhados dos lamentos e celebrações de costume, não
são recentes. Em livro apropriadamente intitulado A Morte da
Literatura, Alvin Kernan registra que, já na década de sessenta,
o conceito nietzscheano da morte de Deus ia sendo, aos poucos
e de forma localizada, adaptado à literatura1 (KERNAN, 1990,
p. 33). Em 1982, o crítico canadense Leslie Fiedler, admirador
confesso da cultura popular, podia já escrever um livro sob o
título de What Was Literature (FIEDLER, 1982). Um ano depois,
Terry Eagleton conclui o best-seller Teoria da Literatura: Uma In-
trodução, sugerindo que a morte da literatura poderia até trazer
consigo algo de positivo, se desse lugar ao aparecimento de
outras formas culturais com potencial mais significativo para
o avanço de transformações sociais.2 Note-se que se trata, aqui,
não apenas de apresentar um rumor ou de uma opinião sobre o
que está ocorrendo ou vai ocorrer com a literatura, mas de fazer
uma constatação (“a literatura está morta”) a ser seguida por
um juízo de valor negativo sobre a falecida. Dez anos depois,
John Beverley reforçaria esse julgamento valorativo em livro
voltado para o estudo da tradição cultural hispano-americana
e publicado sob o título de Against Literature (BEVERLEY, 1993).
Implícita na tese de Beverley está a idéia de que, caso a litera-
tura não esteja ainda morta, seria melhor que estivesse. É que
a literatura, na opinião do autor, “não exerceu apenas um pa-
pel central na auto-representação das elites e da classe média
alta da sociedade latino-americana”, mas foi, também, “uma
das práticas sociais que possibilitaram a essas classes sociais
constituírem-se como dominantes” (BEVERLEY, 1993, p. ix).
Repressora de “energias sociais” libertadoras, a prática literá-
ria foi algo pernicioso porque promoveu “o estado moderno e
as condições para manter e redefinir a hegemonia capitalista,
particularmente em contextos históricos de dominação colonial
ou neocolonial” (BEVERLEY, p. ix-x). Críticos filiados a outras
orientações ideológicas (que não devem ser pensadas em termos
da simplificação problemática de esquerda e direita), por outro
lado, lamentaram a perda. Exercendo, em 1999, a função de presi-
dente da Modern Language Association, Edward Said expressou
a sua frustração diante do “desaparecimento da literatura dos
currículos universitários” e denunciou a “fragmentação de áreas
de estudos” que preencheram o vazio por ela deixado (SAID,
1999, p. 3). Mas foi Sven Birkerts quem registrou, sistemática e
eloquentemente, o sentimento de perda de valores ocasionado
pelo desaparecimento da tradição literária, particularmente
no momento presente, de crescente hegemonia da tecnologia
digital. Trata-se, para Birkerts, de uma perda cultural de pro-
porções catastróficas, porque o que está em vias de desaparecer

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A literatura, hoje: crônica de uma morte anunciada

representa um sistema de valores éticos e estéticos específicos


e únicos, socialmente indispensáveis e insubstituíveis. Perde-
se nada mais nada menos do que o sistema de conhecimento
responsável, em grande parte, pelo vigor da verticalidade da
sabedoria (em contraste com a horizontalidade da informação ou
do conhecimento científico) e pela sobrevivência do humano e
do humanismo na cultura ocidental. Desaparecendo a sabedoria,
que é o entendimento “das verdades da natureza humana e dos
processos da vida”, permanece apenas a indigência dos fatos e
da informação (BIRKERTS, 1994, p. 74).
A questão da iminência da morte da literatura, a partir da
década de sessenta, clama por elucidações de natureza histórica.
Nesse contexto, importa indagar a respeito das forças culturais
e institucionais que, no presente momento, tornam possível o
pensamento da morte do literário. É possível entender produtiva-
mente o poder corrosivo de tais forças em termos de sua atuação
tanto a partir do interior do campo literário, como a partir do
seu exterior, contanto que se faça a ressalva de que a distinção
tem algo de arbitrário e artificial, já que implica a separação
problemática e, no limite, pouco justificável, entre um fora e
um dentro. Aceita a distinção, contudo, pode-se postular que a
literatura começa a morrer quando certas formações discursivas
corrosivas emergem no interior da própria área de estudos que
a sustenta. Somam-se a estas as forças institucionais, culturais,
econômicas e tecnológicas, que surgem do real histórico exterior
ao campo literário, mas que são capazes de nele produzir altera-
ções profundas. Para designar as novas formações discursivas
emergentes no interior, empresto de Roland Barthes a expressão
“dessacralização do literário”, que deve ser aqui entendida, con-
tudo, no contexto da “Era da Teoria”. Barthes definiu, em 1977,
o processo de dessacralização da literatura como o “momento
de um apocalipse moderado” em que os “anjos e dragões” que,
anteriormente, tinham defendido a sua autoridade sagrada já
não mais estavam presentes, o que colocava o literário não tanto
prestes a ser destruído, mas na condição de “desprotegido” (BAR-
THES, 1977, p. 475-76). As forças externas ao literário, por outro
lado, devem ser entendidas como processos sócio-culturais e
econômicos que, tendo operado como suporte para as práticas li-
terárias a partir do século XVIII, sofrem modificações profundas,
que acabam por afetar a literatura. A formação da nacionalidade
é um desses processos, a da instituição universitária é outro.
A Era da Teoria cobre o curto período que vai, aproxi-
madamente, de meados da década de sessenta aos inícios da
década de noventa. É o momento histórico marcado pelas
contribuições teóricas maiores de pensadores da estatura de
Raymond Williams, Michel Foucault, Jacques Derrida, Louis
Althusser, Jacques Lacan, Jurgen Habermas, Julia Kristeva,
Fredric Jameson, Edward Said, Pierre Bourdieu, entre outros. E
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Gragoatá Sérgio Luiz P. Bellei

o que tais pensadores oferecem é um pensamento radical, por


via de regra indissociável de questões políticas maiores: seus
escritos operam, com freqüência, como denúncia de situações
políticas como o racismo, a violência da psiquiatria, a guerra
na Indochina, a opressão patriarcal ou os condicionamentos da
tradição logocêntrica. O vigor desse pensamento radical, como
lembrou Terry Eagleton, deu lugar a formas de pensamento,
frequentemente associadas aos Estudos Culturais, que não po-
dem senão parecer, quando comparados à intensidade teórica
anterior, marcadamente diluídos. “Pouco do que foi escrito
após [a Era da Teoria]” diz Eagleton, “conseguiu chegar perto da
ambição e da originalidade [de seus] pais e mães fundadores”
(EAGLETON, 1983, p. 1). A geração posterior aos fundadores,
na opinião de Eagleton, não tendo conseguido produzir os
seus próprios sistemas de idéias originais, viu-se condenada a
repetir, aplicar, criticar ou, na melhor das hipóteses, expandir
o legado dos mestres da teoria. E o desenvolvimento da nova
área de Estudos Culturais, para agravar o problema, nem sempre
conseguiu evitar a trivialização, particularmente na escolha de
objetos de estudo. “Em alguns círculos culturais”, diz Eagleton,
“a política da masturbação atrai mais interesse do que a política
do Oriente Médio”, e “a história dos pelos púbicos” acaba por
ser mais relevante do que a história da miséria da metade da
população do planeta, que sobrevive “com menos de dois dólares
por dia” (EAGLETON, 1983, p. 2, 6).
Nos estudos literários, os esforços políticos e teóricos da
Era da Teoria, hoje aparentemente em fase de declínio, con-
tribuíram para dessacralizar e, no dizer de Barthes, tornar a
literatura “desprotegida”. Nos inícios da década de sessenta, os
conceitos de obra literária, autor e leitor não mereciam discussões
sistemáticas porque o consenso que se formara a seu respeito
dispensava aprofundamentos. Vale dizer, a sua aceitação, sem
questionamentos, tornara-se ideologicamente naturalizada e
automatizada. Grandes obras literárias eram expressões univer-
sais e supremas do espírito humano, selecionadas e sacralizadas
em uma tradição, pelo seu mérito humano e estético. Percebidas
como valores sociais inquestionáveis, mereciam a atenção séria
e reverente de parte de pessoas e instituições sociais, particular-
mente dessa instituição guardiã do saber que é a universidade.
E porque eram marcadas por uma incomum complexidade de
sentido, quando comparadas a outras formas de expressão, exi-
giam, para a sua leitura, uma rigorosa divisão de trabalho entre
aqueles intérpretes e críticos competentes capazes de revelar,
de forma objetiva, o seu sentido ou sentidos, e o leitor comum
que, sem esse suporte explicativo, correria o risco de produzir
interpretações subjetivas, errôneas ou irrelevantes. O autor das
grandes obras, por outro lado, separava-se tanto do intérprete
profissional como do leitor comum, pela imaginação criadora (ou
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A literatura, hoje: crônica de uma morte anunciada

seja, aquela que nunca copia porque, mesmo copiando, inova e


inventa) que poderia elevá-lo, em casos limites, à categoria de
gênio. Para um autor moderno como Ezra Pound, esses conceitos
de autoria genial e obra de valor universal eram tão óbvios que
mereciam ser explicitados apenas em um manual didático, para
leitores principiantes. Tendo celebrado, em ABC of Reading, a
grande literatura como “a novidade que permanece nova” e como
“linguagem carregada de significado no mais alto grau possível”,
Pound tenta orientar os iniciantes a encontrá-la separando, entre
os autores, o joio do trigo. A melhor literatura deve ser encon-
trada nos “inventores” (que “descobrem um novo processo”), ou
nos “mestres” (escritores que “combinaram um certo número
de tais processos”). As outras práticas literárias, mais distantes
dessas formas de genialidade, são inferiores porque se afastam
das grandes obras na prática da diluição, da mediocridade, ou da
exploração de particularismos irrelevantes: são as práticas dos
“diluidores”, dos “bons escritores sem qualidades excepcionais”,
ou dos “beletristas” que, além de nada inventar, não conseguem
proporcionar ao leitor uma “representação completa da vida ou
da época em que vivem” (POUND, 1951, p. 28- 29, 39-40).
Essa crença consensual em grandes obras e gênios originais
torna-se sistematicamente questionada na Era da Teoria, o que
leva à transformação em profano do que era antes sagrado. O
autor genial do passado, responsável pela imaginação criadora
capaz de dar origem a grandes obras, vai, aos poucos, perdendo
a sua autoridade à medida que a Teoria declara a sua morte ou
restringe a sua atividade anteriormente sagrada a uma “função
autoral”, que pode bem representar mais a atividade de colagem
de textos culturais existentes do que a atividade produtora de
obras. A morte ou a transformação do autor genial, autoritário
e, em certa medida, controlador do sentido, por sua vez, abre
caminho para o nascimento de um novo leitor, que se transfor-
ma, de consumidor passivo de sentido, em produtor ativo de
significados. E o texto lido, agora transformado em intertexto,
já não pode mais reportar-se à autoridade de uma origem fun-
dadora. Reduzido à orfandade, o discurso literário mostra seus
efeitos mais como dispersão e disseminação de sentidos do que
inseminação de sementes sagradas. Dizendo de outra forma, a
literatura, a obra e o autor, tendo perdido a segurança de uma
essência transcendental manifestada nos conceitos de “obra
unificada”, de “objeto estético autônomo e autotélico” e de “gênio
criador”, transformam-se em produções culturais destinadas a
exercer certas funções em certos contextos históricos. A literatura
torna-se, agora, indissociável de outras práticas discursivas e de
forças culturais, políticas e econômicas. Os estudos literários
que ocorriam, antes, em um contexto de idealização, passam a
ocorrer em um contexto de utilitarismo, e a pergunta a ser feita
sobre o literário não mais diz respeito à questão do gênio e da
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Gragoatá Sérgio Luiz P. Bellei

obra genial, do mistério do seu aparecimento e da sua natureza


intrínseca, mas a respeito de seus usos e da sua constituição
enquanto objeto que mais mistifica do que ilumina.
Um dos textos mais exemplares, principalmente pela sua
vasta repercussão na área de estudos literários, para a ilustração
da passagem do literário do sagrado para o profano foi publicado
nos inícios da década de oitenta. O livro, que prometia introduzir
o seu leitor aos estudos literários, acabava por dizer, em suas
páginas finais, que a promessa deveria ser lida mais como um
“obituário” do que como uma “introdução”. É que, ao ser intro-
duzido à literatura e aos estudos literários, o leitor acabava por
perceber que estava sendo iniciado a pensar tais conceitos não
apenas como problemáticos, mas também como ilusórios. Para
realmente significar alguma coisa além de uma ilusão, os estudos
literários deveriam ter um objeto de estudo, a literatura. Mas o
conceito de “literatura”, quando examinado com rigor, mostrava
que a literatura não pode ser pensada como um objeto de estudo.
O objeto da teoria literária é de natureza fantasmática, e a sua
perseguição uma empreitada sem sentido. O obituário da teoria
e da literatura, contudo, acaba por ser entendido como um final
feliz, pelo menos em parte. São estas as palavras que concluem
o livro Literary Theory: an Introduction (1983), escrito pelo crítico
marxista Terry Eagleton: “Vou concluir com uma alegoria. Nós
sabemos que o leão é mais forte do que o domador, e o domador
também sabe. O problema é que o leão não sabe. Não está fora
de cogitação a possibilidade de que a morte da literatura ajude
a acordar o leão” (EAGLETON, 1983, p. 217).
Há algo errado, para Eagleton, na postura perversa de
domadores e estudiosos da literatura que usam estratégias de
domesticação artificiais e ilusórias (porque o leão é mais forte)
para controlar e tornar servil e inofensiva a força da vida cultu-
ral e literária, transformando-a em um “objeto” (a “literatura”)
que, como uma fera enjaulada, permanece isolado da vida social
circundante e não pode atuar sobre ela ou modificá-la. Vale a
pena lembrar, de passagem, que o que Eagleton chama de “do-
madores” equivale ao que Barthes chamara anteriormente de
“protetores”, o que aponta para as formas alternativas de pensa-
mento radical na Era da Teoria. Seja como for, para Eagleton, o
leão enjaulado é apenas um espetáculo, ou um artefato estético,
apresentado para uma platéia despreocupada e segura, por um
domador que precisa ter seu poder confirmado por uma ilusão
de controle. Corrigir o erro significaria pensar a possibilidade
do desaparecimento dessa prática perversa e mistificadora e a
sua substituição por outras práticas com potencial de liberação
e não, apenas, de controle e domesticação. O resultado seria a
revelação de uma força positiva e produtiva, capaz de restituir o
poder legítimo a quem o tem e não o sabia e, como conseqüência,
tornar possível a esse poder alterar o mundo que existe além das
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A literatura, hoje: crônica de uma morte anunciada

grades. O domador perverso e pervertido ou desapareceria, ou


cederia seu lugar para um “domador” de outro tipo, capaz de
liberar mais do que reprimir o poder natural em sua plenitude.
Nesse caso, a platéia poderia ver o leão pelo que ele é realmente, e
não como o resultado do que fizeram dele. Talvez não seja de todo
irrelevante, a essa altura, expandir um pouco a alegoria circense
de Eagleton e complementá-la com uma outra, também circense
e ligeiramente alterada, contanto que se faça uma ressalva para
o sentido profundamente reacionário do texto original: a alegria
do (bom) domador é ver o circo pegar fogo.
Seja como for, um dos grandes méritos do livro de Eagleton,
particularmente relevante para as reflexões do presente trabalho,
é o rigoroso esforço para repensar o significado da literatura no
momento histórico da sua agonia e possível morte. É o momento
para rever e desmistificar as ilusões do passado, tomar pé no
presente, e imaginar as possibilidades de um futuro modifica-
do e, se possível, melhor. É o momento, em outras palavras, de
instalar a prática da dúvida sistemática, de forma a tornar cada
vez mais difícil retornar aos tempos felizes de consenso das
décadas passadas. Equipado com o instrumental teórico da
hermenêutica da suspeita (muito embora seja um instrumental a
ser aplicado mais ao discurso dos outros do que ao próprio), Ea-
gleton entrega-se, com vigor e humor, ao trabalho de demolição
dos conceitos de “literatura” e “teoria literária”, particularmente
quando tais conceitos são pensados em termos de uma marca
essencial e não como uma função histórica:
Como diriam os filósofos, “a literatura” [é um termo] mais
funcional do que ontológico: [fala] do que nós fazemos mais do
que da natureza permanente das coisas... do papel exercido por
um texto... em um contexto social, das relações de proximidade
e diferença diante do mundo ao seu redor, das formas como
se comporta, dos fins para os quais pode ser utilizada, e das
práticas humanas circundantes. (EAGLETON, 1983, p. 9)
Eagleton denuncia, portanto, o equívoco epistemológico da
procura por estruturas essenciais mostrando o parco resultado
das tentativas de “definir” a literatura, por exemplo, em termos
dos binarismos de fato e ficção, norma e desvio, interesse e de-
sinteresse estético. Definir a literatura em termos da ficcionali-
dade ou do imaginário, em contraste com o fatual, parece uma
proposta convincente até o momento em que se tenta separar,
historicamente, as duas categorias, e percebe-se, por exemplo,
que os noticiários da mídia podem bem ser entendidos como
ficção. A idéia de desvio da norma seria interessante, contanto
que fosse possível definir, em sua essência, o que é o que não é
normativo, e o que conta como literariedade e efeito de estranha-
mento. E definir a literatura (ou a arte em geral) como um objeto
estético a ser contemplado de forma desinteressada não é uma
boa proposta: qualquer visita a um museu ou a uma biblioteca de
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Gragoatá Sérgio Luiz P. Bellei

livros raros revelaria, de imediato, que a arte e a cultura não se


separam do econômico; e qualquer objeto normalmente marcado
por interesses óbvios pode ser entendido de forma desinteressa-
da. Como diz Eagleton, “se eu examinar atentamente um horário
de trem, não para me informar sobre o destino da viagem, mas
como um estímulo para reflexões gerais sobre a complexidade
da vida moderna, então eu bem poderia estar lendo o texto in-
formativo como literatura (EAGLETON 1983, p. 9).
A prioridade atribuída à natureza funcional da literatura
tem conseqüências, tanto para a literatura como para a teoria
literária. A literatura já não pode mais, por exemplo, ser pensada
como marcada por uma vida eterna e por uma universalidade
transcendente. Estas, particularmente após o momento de quebra
de consenso da Era da Teoria, começam a ser percebidas como
mitologias mistificadoras, produzidas por discursos ideológicos
que têm por objetivo, para retornar por um momento à alegoria
de Eagleton, conter o leão domesticado em sua jaula e ignorante
de sua força. É o caso dos discursos da estética e da natureza
autotélica da literatura, que tornariam possível isolar certas
propriedades essenciais na obra de, digamos, Shakespeare, para
depois defini-lo como um gênio universal a ser lido e apreciado,
com proveito, por todos os povos e culturas. Essa aceitação da
genialidade universal do bardo complica-se a partir do momento
em que se indaga se, digamos, no século XIX ou XX, estamos
falando do mesmo Shakespeare, ou de alguma essência per-
manente de sua obra que, imutável, percorre os séculos. Muito
embora possamos estar interessados em Shakespeare porque
algumas de suas preocupações, no momento renascentista, po-
dem ser semelhantes às nossas, não é possível dizer que estamos
lendo, hoje, o dramaturgo do passado:
“Nosso” Homero não é idêntico ao Homero da Idade Média,
e o “nosso” Shakespeare não é aquele que existiu para os
contemporâneos. Na realidade, períodos históricos diversos
construíram, para atender a seus próprios objetivos, Homeros e
Shakespeares diferentes, e neles encontraram aspectos para se-
rem ou não valorizados, ainda que não houvesse coincidência
na valorização de tais aspectos ontem e hoje. Toda obra literária
é “reescrita”, ainda que inconscientemente, pela sociedade que
a lê...; e é por esse motivo que o que chamamos de literatura é
algo reconhecidamente instável. (EAGLETON, 1983, p. 12)
Se a literatura, a de Shakespeare ou outra qualquer, existe
para funcionar de formas diversas ou incompatíveis, em diversos
contextos históricos, então é preciso pensá-la, em sua materia-
lidade instável e transitória, como qualquer outro evento que
ocorre no tempo e que existe para atender a certas exigências e
funções. Desaparecendo tais exigências e funções, a literatura
pode sofrer mutações, dando lugar a outras práticas, literárias
ou não, ou mesmo desaparecer. Em outras palavras, operando

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A literatura, hoje: crônica de uma morte anunciada

como uma prática material na temporalidade, a literatura tem


uma vida útil e funcional e pode, esgotada essa utilidade, morrer.
Como sugere Eagleton, “é perfeitamente possível que, dada uma
transformação suficientemente profunda em nossa história, seria
possível a produção de uma sociedade futura incapaz de fazer
qualquer uso de Shakespeare”. E conclui:
A sua obra poderia, então, parecer desesperadamente alienada,
repleta de formas de pensamento e de sensibilidade a serem
percebidos por tal sociedade como limitadas ou irrelevantes.
Em tal situação, Shakespeare não teria mais valor do que os
grafites contemporâneos. E muito embora muitos pudessem
considerar essa conjuntura social tragicamente empobrecedo-
ra, parece-me dogmático não admitir também a possibilidade
de que pudesse estar ela associada a um avanço da condição
humana em geral. (EAGLETON, 1983, p. 11-12)

2. Vida e Morte no Real Histórico


É nesse contexto de uma dessacralização da literatura,
que se torna parte da temporalidade e da finitude histórica,
que devem ser entendidos os rumores da morte do literário,
particularmente a partir da década de sessenta. O que está para
morrer é a função literatura como inventada em certo momento
histórico recente e que pôde, por algum tempo, imaginar-se como
imortal, protegida que estava por exercícios culturais de sacra-
lização. Exorcizada a sacralização, a literatura, por assim dizer,
cai no real histórico, torna-se parte dele e é por ele sustentada,
ou não. Estamos falando, aqui, não mais da sustentação propor-
cionada por forças idealizantes internas ao campo literário, mas
de forças externas que com ele se relacionam e lhe dão, ou lhe
negam, suporte e vida secular e finita. Importa, nesse contexto,
indagar a respeito do que é essa função literária transitória que,
hoje, chamamos de “literatura”, qual o momento histórico espe-
cífico que tornou possível a sua origem, quais forças culturais
sustentaram a sua vida secular, e que outras ameaçam o seu
desaparecimento.
Nesse contexto de indagações históricas, é necessário
explicitar, de saída, o que significa dizer que a literatura, como
a entendemos hoje, é uma invenção recente. O problema já foi
trabalhado de forma exaustiva, e pode ser, aqui, apresentado
de maneira esquemática. O trabalho pioneiro de Raymond Wi-
liams mostrava, já no final da década de setenta, que o conceito
de literatura em seu sentido moderno aparece no século XVIII,
intimamente ligado à “palavra impressa e, principalmente, [ao]
livro” (WILLIAMS, 1980, p. 47). O contexto histórico da inven-
ção da imprensa como suporte material para a existência da
literatura, particularmente a partir do século XVIII, deve ser
enfatizado, porque traz consigo conseqüências importantes. A
invenção de Gutenberg inaugura, no século XVI, aquele processo

Niterói, n. 23, p. 111-134, 2. sem. 2007 119


Gragoatá Sérgio Luiz P. Bellei

a que Benjamin daria o nome, mais tarde e em outro contexto,


de “reprodução mecânica” (BENJAMIN, 1969, p. 217). Textos
que, anteriormente, circulavam de forma limitada, porque a
sua produção dependia do lento e penoso trabalho manual do
copista, podiam agora ser produzidos em massa e circular mais
extensivamente, graças a uma tecnologia em que, ao contrário
do que ocorria nos métodos artesanais do passado, cada cópia
era uma réplica idêntica de todas as outras, produzida meca-
nicamente e em grande quantidade. A nova tecnologia abre
caminho para mudanças históricas profundas. Constituem parte
dessas mudanças eventos que vão desde a formação de um novo
mercado de livros e de uma nova comunidade de leitores até a
revolução protestante, passando por uma mudança nos hábitos
de leitura, à medida que as culturas predominantemente orais
se transformavam em culturas do texto impresso. Esse processo
de mudança, evidentemente, não ocorre do dia para a noite, e
afeta áreas culturais diversas de forma diferente: Alvin Kernan
observa que, na Europa Ocidental, a mudança de uma cultura
oral para a cultura da imprensa só ocorre, de forma definitiva,
aproximadamente trezentos anos após a invenção de Gutenberg.
É somente no século XVIII que
[...] a imprensa, mecânica e democratizante, faz com que as
pressões por mudanças já existentes em outras áreas ocorram
também nas áreas da poesia e das belas letras tradicionais,
centralizadas nas cortes monárquicas, que perduraram desde
Dante e Petrarca até os dias de Pope e Swift. A imprensa [no
século XVIII] criou um mercado aberto para livros e idéias,
tornou a censura e o mecenato economicamente inviáveis,
transferiu poder literário para um público cada vez maior de
“leitores comuns”, como os chamava Samuel Johnson, e moti-
vou o aparecimento de um novo tipo de escritor profissional
que ganhava a vida e a reputação fabricando um produto com
valor de compra no mercado. Samuel Johnson na Inglaterra,
Jean-Jacques Rousseau na França, Gothold Lessing na Alema-
nha representaram, de formas diversas, a classe dos novos
escritores profissionais da Era da Imprensa, que incluía em
seu meio, pela primeira vez, algumas mulheres: Hester Piozzi,
Hannah More, Frances Burney... (KERNAN, 1990, p. 12)
A “literatura” anterior ao século XVIII, na forma de “poesia
e ... belas letras tradicionais” não deve, portanto, ser confundida
com a literatura em sua conceituação moderna. Esta deve ser
entendida como uma nova formação discursiva que absorve
algumas funções textuais anteriores e vai, aos poucos, adicio-
nando novas funções e significados, em um processo que só se
consolida no século XIX, com o Romantismo. No processo que
Williams chama de “especialização” conceitual, a antiga função
da “imaginação criadora”, que pertencia antes apenas à poesia,
passa a fazer parte da “literatura”, que começa, ao mesmo tempo,
a separar-se de significados anteriores. A nova formação dis-

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A literatura, hoje: crônica de uma morte anunciada

cursiva especializa-se e já não pode designar, como no passado,


“qualquer produção escrita séria”, “qualquer coisa escrita”, ou
mesmo, quando usado como um atributo (“um homem de lite-
ratura”), uma pessoa letrada, ou de vastas leituras (KERNAN,
1990, p. 12-13). E o produto da imaginação criadora começa a
cristalizar-se como arte e beleza e, como tal, a ser merecedor de
conceituação no contexto de uma nova área disciplinar, a estética.
Note-se, de passagem, que a estética ou, mais precisamente, a ide-
ologia do estético, iria colaborar para que essa formação histórica
da literatura fosse apagada para dar lugar ao essencialismo uni-
versalizante como um conceito constitutivo da literatura. Como
lembra Eagleton, é “pouco provável que a Ilíada fosse percebida
como arte da mesma forma que uma catedral do medievo era
entendida como um artefato, ou da mesma forma que a obra de
Andy Warhol é por nós considerada como arte”. Mas o efeito da
Estética, particularmente na forma como se constituiu em uma
disciplina, a partir do século XVIII, foi justamente “suprimir
essas diferenças históricas” (EAGLETON, 1983, p. 21).
Consolidando-se como uma forma discursiva marcada
pela imaginação criadora, a literatura incorpora ainda, no século
XIX, a noção do poeta enquanto gênio. Com o aparecimento
desse conceito tipicamente romântico, à especialização do pro-
duto enquanto efeito da imaginação criadora acrescenta-se a
especialização do criador enquanto gênio. E a especialidade do
gênio criador torna-se, particularmente a partir do Romantismo,
apresentar à sociedade um discurso capaz de revelar a beleza que
ainda existe oculta no mundo, apesar dos efeitos devastadores da
industrialização, do “progresso” e do mercado enquanto forças
desumanizadoras da sociedade burguesa. Uma das marcas da
literatura européia maior do período é, justamente, a denúncia
dessa sociedade que está em vias de se perder em um mundo
de dinheiro, urbanismos decadentes e injustos, máquinas e
fábricas. Existe uma força capaz de destruir o espírito huma-
no na Yonville de Flaubert, na metrópole londrina que Blake
percebe como satânica, na sociedade parisiense de Balzac, na
Coketown de Charles Dickens e, mais adiante, naquilo que T. S.
Eliot chamaria de “cidade irreal”, no poema “The Waste Land”.
Se há algo de bom no horror desse mundo burguês em fase de
deterioração, cabe ao poeta descobri-lo através do exercício da
imaginação criadora. O poeta romântico Wordsworth chama-
ria esses momentos de revelação, produzida pela imaginação
genial, de “pontos no tempo” (“spots of time”), James Joyce de
“epifanias”. E a imaginação genial, no momento histórico da
hegemonia do racionalismo científico, tem por função mergu-
lhar nas profundezas intuitivas do ser individual para de lá
trazer para o mundo um sentido novo, sempre a contrapelo dos
sentidos produzidos pela mente racional, em seus laboratórios e
computadores, ou pelos meios de comunicação de massa. A vida
Niterói, n. 23, p. 111-134, 2. sem. 2007 121
Gragoatá Sérgio Luiz P. Bellei

útil dessa literatura tornada possível pela imprensa e fabricada


pela imaginação criadora, em franca oposição ao materialismo
burguês e ao consumismo, vai adquirindo, no tempo histórico,
outros suportes materiais e institucionais que lhe garantem a
sobrevivência. Os nacionalismos do século XIX, por exemplo,
tornaram obrigatório, na medida do possível, associar uma
grande literatura a uma grande nação, quer se tratasse de gran-
deza no presente ou no futuro. E a antiguidade da literatura em
questão tornava-se marca de superioridade da cultura nacional,
o que colocava em desvantagens as novas nações das Américas,
obrigadas a correr atrás do prejuízo porque encontravam apenas
em um passado recente a produção do literário. Na Inglaterra,
como lembra Kernan, a existência de um texto como “Beowulf,
com data de origem no século VII ou VIII (recentemente revi-
sada para o ano 1000, aproximadamente) colocava os ingleses
em clara posição de vantagem em relação à Alemanha, que não
podia, para seu profundo pesar, encontrar nenhum texto com
data tão antiga” (KERNAN, 1990, p. 34). E a literatura nacional,
uma vez descoberta e sacralizada em uma listagem canônica,
adquiria imediatamente o suporte institucional e a garantia de
fazer parte de um sistema educacional encarregado de marcar,
sempre e de forma privilegiada, a sua presença, pela repetição
constante nos programas de ensino. Parte importante desse sis-
tema educacional, a universidade tomava para si, aos poucos, a
tarefa de garantir a continuidade da instituição literária nacional
através da profissionalização do seu estudo e da formação de
quadros de especialistas em literatura. Note-se, de passagem,
que a transformação da literatura em disciplina universitária não
se fez sem problemas, particularmente naqueles momentos em
que, pressionados pelo prestigio da ciência e de seus métodos de
estudo, os profissionais da área de literatura esforçaram-se por
transformá-la em “objeto” de estudo científico. Se a empreitada
tivesse sucesso, seria possível transformar a literatura em um
estudo tão merecedor de atenção quanto aqueles estudados pelas
ciências duras. Os resultados, no geral, não foram produtivos,
como mostrariam, mais tarde, os teóricos da Era da Teoria: a
sistematização teórica para o estudo da literatura proposta por
Northrop Frye em The Anatomy of Criticism, ou a tentativa feita
por Jakobson para definir a natureza da “literariedade” têm,
hoje, mais significado histórico do que metodológico propria-
mente dito.
Se a literatura tem suas origens no século XVIII, como a for-
ma de conhecimento típica da imaginação criadora, viabilizada
pela invenção da imprensa e fortalecida tanto por sacralizações
como por forças culturais como a constituição da nacionalidade
e a instituição universitária, resta indagar sobre o seu destino
no momento histórico contemporâneo, em que o desgaste dessas

122 Niterói, n. 23, p. 111-134, 2. sem. 2007


A literatura, hoje: crônica de uma morte anunciada

forças de suporte manifesta-se com intensidade crescente. A


dessacralização do literário, por exemplo, abriu caminho para
a perda do que poderia ser denominado a “singularidade” da
literatura entre os objetos culturais, produzindo, no campo da
cultura, um nivelamento que permitia olhar para o literário
como para apenas mais um produto entre outros, e não como
o objeto sagrado por excelência, a ser privilegiado a todo custo
como forma de conhecimento. O movimento crítico conhecido
como “Materialismo Cultural”, nas palavras de um de seus re-
presentantes, Jonathan Dollimore, “recusa-se a privilegiar a lite-
ratura na forma como o fez a crítica literária até o presente; como
mostrou Raymond Williams... ‘não podemos separar a literatura
e a arte de outros tipos de práticas sociais, de forma a torná-las
dependentes de regras distintas e específicas’”. (DOLLIMORE,
1985, p. 4; WILLIAMS, 1980, p. 44). E se a literatura é apenas uma
prática social entre outras, não há razão para que essas outras
práticas não mereçam a cuidadosa atenção analítica que era
antes privilégio da literatura. Justifica-se, portanto, a existência
do que se conhece hoje como Estudos Culturais, área discipli-
nar que, progressivamente, ganha adeptos e passa a ser tão ou
mais importante do que os estudos literários. A tecnologia do
livro impresso, por sua vez, começa a perder a hegemonia que
teve durante quase meio século, enquanto modo de produção
de textos, para dar lugar a crescente hegemonia de textualida-
des digitais. Apesar da discrepância de opiniões a respeito do
que acontecerá com a literatura, no contexto dessa mudança de
modos de produção do texto para o hipertexto, existe um con-
senso que indica que o literário já não será mais o mesmo. Sven
Birkerts lembra que, se o que consideramos boa literatura é, por
via de regra, difícil de ler, exigindo do leitor atenção intensa,
disciplina, e domínio de uma certa bagagem cultural, então o
seu desaparecimento é mais do que provável em um contexto
cultural dominado “pela cultura do livro de bolso e pela psicolo-
gia do reducionismo”. E conclui com um olhar pessimista para
o mercado da grande literatura, particularmente no momento
histórico da cultura digital:
Muito embora obras importantes estejam ainda sendo escritas,
é cada vez mais difícil a sua publicação; ou, se são publicadas,
é difícil divulgá-las; e, quando divulgadas, é difícil vendê-las;
ou, quando vendidas, é difícil fazer com que sejam lidas. E
muito embora a leitura séria ainda exista e demonstre uma
louvável independência, – é graças a ela que a literatura ainda
está viva – concentra-se ela na faixa mais adulta da população.
A compra e a leitura de livros caiu radicalmente na população
abaixo dos trinta anos. E quem poderá prever o número de
leitores nas novas gerações? ...É perfeitamente compreensível
que as editoras de olho no mercado estejam rapidamente
diversificando sua produção e lançando no mercado livros

Niterói, n. 23, p. 111-134, 2. sem. 2007 123


Gragoatá Sérgio Luiz P. Bellei

gravados, cd-roms, ou qualquer outra coisa que venha a


compensar as perdas causadas pelos produtos impressos.
(BIRKERTS, 1994, p. 190)
Bolter e Crusin, por outro lado, são menos pessimistas.
Propõem que o que ocorre quando se passa da hegemonia de
um meio de comunicação para outro é uma “remidiação” (“re-
mediation”), o que significa que o meio anterior adapta-se à nova
tecnologia, ao mesmo tempo sofrendo alterações e produzindo
mudanças na nova forma de comunicação. “O meio eletrônico”,
dizem os autores, “não se contrapõe à pintura, à fotografia, ou
à imprensa; antes, o computador apresenta-se como uma nova
forma de obter acesso a essas formas mais antigas, de forma que
o conteúdo do meio de anterior se mistura ao novo” (BOLTER;
CRUSIN, 1999, p. 45). Mesmo nessa perspectiva mais otimista,
contudo, resta definir o que predomina na remidiação: o meio
antigo ou o mais recente.
A questão da nacionalidade literária e da universidade são
temas complexos e podem aqui ser abordados apenas de forma
sumária e escolar. Com o advento dos processos de globalização3,
particularmente a partir da década de setenta, as questões da
nação e da nacionalidade sofreram modificações profundas. No
contexto da nova ordem cultural, política e econômica global,
o que aconteceu não foi, simplesmente, o desaparecimento do
Estado-nação e do Estado de Bem-Estar (nas suas formas mais
e menos desenvolvidas ao norte e ao sul do Equador, respecti-
vamente). O Estado-Nação transformou-se para assumir, prio-
ritariamente, uma função gerencial e facilitadora da economia
financeira global que precisa, agora, fazer circular mais rápida
e extensivamente o capital e, para tanto, torna necessária a fle-
xibilização das fronteiras nacionais anteriormente vigentes. O
preço que a nação deve pagar, ao assumir essa função gerencial
do capital global, é uma certa perda de autonomia, seja ela na
economia, na política, ou na cultura. Vale dizer, a nação já não
pode interferir, com a mesma intensidade que interferia no pas-
sado, nas esferas econômica ou cultural, com o objetivo de gerar
valores sociais ou culturais. Dizendo de outro modo, valores e
saberes culturais vigentes no momento histórico de nações mais
ou menos avançadas em seus projetos de construção da nacio-
nalidade podem bem tornar-se irrelevantes ou obsoletos no mo-
mento histórico da globalização. Esta constitui os seus próprios
valores e saberes, a serem estabelecidos em escala planetária,
muito embora de formas diversas em situações geopolíticas di-
versas. A literatura enquanto parte de um projeto de construção
da nacionalidade, nesse contexto de globalização, pode bem estar
destinada a tornar-se um saber obsoleto ou menos relevante, em
contraste, por exemplo, com os Estudos Culturais, que podem
bem ser pensados como um saber mais afinado com o mercado

124 Niterói, n. 23, p. 111-134, 2. sem. 2007


A literatura, hoje: crônica de uma morte anunciada

global de circulação de idéias. É importante destacar, ainda nes-


se contexto de globalização diversificada, que inclui nações em
que o projeto de construção da nacionalidade já foi concluído, e
outras, em que esse projeto permanece inconcluso, que nestas
últimas uma resistência cultural maior à irrelevância do saber
literário venha a ocorrer. Em tais casos, faz sentido imaginar
que o desejo de que um projeto nacional em andamento venha
a enfatizar, mais do que em outros contextos culturais, a neces-
sidade da literatura como saber a ser preservado.
A universidade, por sua vez, não deixa de sofrer, também,
os efeitos da globalização e da reorganização de saberes que a
acompanha, e que tende a promover uma nova hierarquia de
conhecimentos úteis em que a literatura tende a perder força ins-
titucional. O recente trabalho de Bill Readings sobre a mudança
de rumo da universidade moderna, com o objetivo de adaptar-se
ao mundo globalizado, ajuda a entender a questão. Moldada no
pensamento de Humboldt, que a definiu em termos de ensino
e pesquisa, a universidade moderna afirma a idéia de cultura,
e particularmente a cultura nacional, como sistema central de
valores. Torna-se, no dizer de Readings, “a instituição responsá-
vel pela guarda da vida espiritual do povo e do estado nacional
... [e pela tarefa de] dar um sentido à vida cotidiana do povo,
preservando suas tradições e evitando o modelo destrutivo e
sangrento da Revolução Francesa” (Readings 15). É esse modelo
de universidade, em que a instituição se volta necessariamente
para o Estado, a cultura e a sociedade, e é por eles definida e
limitada, que perdura até a década de sessenta do século passa-
do. Começam a aparecer, então, os indícios de deterioração do
paradigma, ao mesmo tempo em que se estabelecem as bases de
movimentos sócio-culturais e econômicos que viriam a ser poste-
riormente entendidos como “pós-modernismo” e “globalização”.
Com essa mudança histórica, o valor central da cultura que nor-
teava a universidade, e que justificava a existência privilegiada de
disciplinas, práticas e nomenclaturas, começa a perder força. É o
caso da filosofia, que Readings considera em fase de extinção, e
da literatura. São disciplinas que, até bem pouco tempo, tinham
prestigio suficiente para justificar que instituições ostentassem
os seus nomes. As antigas Faculdades de Filosofia, Letras e Ci-
ências Humanas representavam ainda, em um tempo não muito
distante, a vigência das vertentes idealistas humboldtianas. O
tempo se encarregaria de transformá-las, por exemplo, em Cen-
tros de Comunicação e Expressão, onde a mudança de “letras”
para “comunicação” aponta para uma reorganização ideológica
do saber que tem muito a ver com a proliferação generalizada
de objetos culturais que já não podem ser, claramente, valori-
zados como algo diverso de um objeto de consumo, quer seja o
consumo dirigido para um livro de Guimarães Rosa, quer para
um filme produzido em Hollywood.
Niterói, n. 23, p. 111-134, 2. sem. 2007 125
Gragoatá Sérgio Luiz P. Bellei

Com o processo de globalização, de acordo com Readings,


a universidade torna-se dominada pelo mercado. Essa presen-
ça do mercado significa, para introduzir o problema de forma
simplificada, uma redefinição generalizada de formas e funções
em que, por exemplo, invertem-se hierarquias de forma a privi-
legiar administradores mais do que docentes e pesquisadores;
enfatiza-se a percepção do aluno como consumidor, e do profes-
sor (devidamente rebatizado como “servidor”) como vendedor
de pacotes prontos para entrega; e, por fim, institui-se a redu-
ção drástica do que se conhecia anteriormente como educação,
ou seja, formação ética do indivíduo para a cidadania e para o
exercício das práticas sociais responsáveis, a formas rápidas e
“produtivas” de adestramento. Entre nós, Marilena Chauí des-
creveu concisamente esse processo em termos da universidade
transformada em supermercado, definido certeiramente como
o espaço em que “estantes de produtos ocultam todo o trabalho
que ali se encontra: o trabalho da fabricação, da distribuição,
do arranjo, da colocação de preços” (CHAUÍ, 2000, p. 112-113).
Diz a autora:
[...] entram os felizes consumidores, ignoram todo o trabalho
contido numa aula, num seminário, numa dissertação, numa
tese, num artigo, num livro. Recebem os conhecimentos
como se estes nascessem dos toques mágicos de varinhas de
condão. E, no momento das provas, ou querem regatear os
preços ou querem sair sem pagar ou abandonam o carinho
com as compras impossíveis, xingando os caixas [...]. É assim
a universidade? Se o for, nossa produtividade será marcada
pelo número de produtos que arranjamos nas estantes, pelo
número de objetos que registramos nos caixas, pelo número
de fregueses que saem contentes, pelo número de carrinhos
que carregamos até os carros no estacionamento, recebendo
até mesmo gorjeta por fazê-lo. (CHAUÍ, 2000, 112-113)
A transformação da universidade de forma a adaptá-la ao
mercado requer o desenvolvimento de um aparato conceitual
capaz de garantir o seu funcionamento após a perda dos siste-
mas éticos centralizadores (a Razão, a Cultura) que, no passa-
do, lhe davam um sentido e orientavam o seu funcionamento.
Um dos méritos maiores do livro de Readings é, justamente,
definir com rigor esse aparato, em termos da idéia de “exce-
lência”. Destituída de seus centros anteriores, a universidade
para o mercado transformou-se em centro de “excelência”. Para
­Readings, o termo designa um conceito vazio, não ideológico
e sem conteúdo próprio, operando apenas a partir de critérios
exteriores definidos arbitrariamente e de forma quantitativa.
Vale dizer, o conceito de excelência, esvaziado de um centro
ideológico ou ético capaz de separar o joio do trigo, reduz-se
a uma forma de quantificação e contabilidade, de acordo com
parâmetros definidos arbitrariamente, e pode aplicar-se a tudo,

126 Niterói, n. 23, p. 111-134, 2. sem. 2007


A literatura, hoje: crônica de uma morte anunciada

ou quase tudo. É convenientemente flexível, em particular, para


atender ao mercado e para o gerenciamento de mercadorias ou,
no caso do ensino, para o tratamento de questões que podem
ser quantificadas e medidas. Mas revela-se impotente para
tratar das questões não quantificáveis que, para Readings, são
justamente as de maior relevância. E as áreas encarregadas, na
universidade do passado, de formular tais perguntas de forma
mais intensa e sistemática vão, aos poucos, tornando-se obso-
letas: as humanidades, a literatura, a filosofia e as artes. São
áreas que, desrespeitando a exigência básica determinada pela
“excelência”, ou seja, a exigência de proteger o poder burocráti-
co e o gerenciamento contábil, devem, no limite, ser relegadas
a segundo plano ou mesmo excluídas. No momento em que a
universidade for efetivamente transformada em uma questão
de compra e venda de mercadorias a preços módicos, e o aluno
em alguém que quer consumir e não pensar ou, mais precisa-
mente, consumir para não pensar, a sua adesão à universidade
como mercado será natural e inevitável. E essa adesão pode bem
significar o declínio, ou mesmo o fim, do exercício dessa forma
de pensar que conhecemos como literatura. Consumir, afinal de
contas, é mais fácil e, por que não dizer, mais gostoso e atraente
do que pensar, como mostra o sucesso editorial de coleções do
tipo “primeiros passos”.
3. Morte e Ressurreição?
Os rumores sobre possíveis exageros nos anúncios da
morte da literatura, ou, caso a morte tenha realmente ocorrido,
sobre a possibilidade de uma certa ressurreição são relativamente
recentes. O livro de J. Hillis Miller, publicado em 2002, afirma
em seu parágrafo introdutório:
O fim da literatura está próximo. Chegou a hora. É uma ques-
tão de tempo (“It is about time”). Vale dizer, é uma questão
de tempos diferentes e de meios diversos de comunicação. A
despeito do fim que se aproxima, contudo, a literatura é pere-
ne e universal. Vai sobreviver a todas as mudanças históricas
e tecnológicas. A literatura é uma característica de todas as
culturas, em todos os tempos e lugares. Essas duas premissas
contraditórias deverão guiar todas as reflexões sérias sobre a
literatura nos dias de hoje. (MILLER, 2002, p. 1)
A proposta de afirmar e negar a morte da literatura ao
apresentá-la, ao mesmo tempo, como histórica e universal, não
se faz sem problemas, particularmente no momento imediata-
mente posterior à Era da Teoria. Movimentando um conside-
rável arsenal teórico, os representantes maiores desse período
desenvolveram uma hermenêutica da suspeita capaz de colocar
seriamente em dúvida tudo o que períodos anteriores conside-
ravam realidades universais e eternas: o autor, a grande obra,
o gênio, a capacidade humanizante do literário. Não há como,

Niterói, n. 23, p. 111-134, 2. sem. 2007 127


Gragoatá Sérgio Luiz P. Bellei

hoje, não levar a sério o poder desmistificador da hermenêutica


da suspeita. Miller reconhece esse poder, ao mesmo tempo que
afirma a necessidade e a utilidade, nos dias de hoje, de leitores
preparados para suspeitar de tudo e tudo desmistificar. “Não
queremos mais”, diz Miller, “ser enganados pela literatura”
(MILLER, 2002, p. 126). Seguindo o exemplo de Nietzsche, que
entendeu a verdade, a cultura e a literatura em termos de um
“exército móvel de metáforas” a ser combatido com a força igual-
mente bélica da crítica bem armada, esses leitores devem estar
sempre preparados para denunciar, desmistificar e dessacralizar.
Foram, justamente, esses leitores que ajudaram a preparar o fu-
neral para o literário. Mas se é necessário, concordando com tais
leitores, afirmar a premissa da morte da literatura, é igualmente
importante afirmar, também, a da eternidade e da imortalidade.
Como conciliar tal contradição, sem a qual não existiria, hoje,
a possibilidade de uma reflexão séria sobre o literário? A res-
posta aparece na tentativa de estabelecer uma distinção entre
dois tipos de leitura de texto e dois tipos de entendimento do
literário para, a seguir, tentar a difícil ou impossível prática de
exercitar-se em ambos. Miller propõe que a leitura desmistifica-
dora seja caracterizada como aquela que ocorre no ritmo musical
conhecido como “lento”. Lendo o texto em ritmo “lento”, o leitor
crítico tenta mostrar como a literatura opera, descrevendo o seu
mecanismo discursivo (a sua forma, o seu contexto histórico de
produção e recepção) e a forma como ela se presta para certos
usos em momentos históricos específicos (suas associações, por
exemplo, com questões de raça, de sexo, de classe social ou de
política). “Concluída uma leitura feminista de Paradise Lost”, diz
Miller, “o sexismo de Milton mostra-se como realmente é (‘Ele
[Adão] servindo a Deus somente, ela [Eva] a Deus através dele’)”
(MILLER, 2002, p. 125). A essa leitura crítica contrapõe-se uma
leitura menos analítica e mais inocente, a ser praticada no ritmo
musical conhecido como “allegro”. Trata-se da leitura em que o
leitor, recusando-se a distanciar-se da obra, a ela entrega-se “por
completo, de corpo e alma, e em seus sentimentos e imaginação,
sem reservas” (MILLER, 2002, p. 118). Como essa entrega implica
uma “suspensão da suspeita” (“suspension of disbelief”), a leitura
“allegro”, a rigor, não é compatível com a leitura crítica. É antes
uma leitura em que, para Miller, “a relação entre o leitor e a es-
tória lida é como um encontro amoroso, uma questão de entrega
ao outro sem reservas”, que traz consigo riscos, inseguranças e
incertezas: “nunca se sabe para onde a declaração amorosa vai
levar [o amante], da mesma forma que nunca se sabe “para onde
a leitura de um dado livro vai levar o leitor” (MILLER, 2002, p.
120). O crítico que não suspende a suspeita, por outro lado, sabe
muito bem para onde vai: não é preciso muito esforço para per-
ceber, de saída e aprioristicamente, que uma leitura feminista

128 Niterói, n. 23, p. 111-134, 2. sem. 2007


A literatura, hoje: crônica de uma morte anunciada

de Milton vai, de forma programática, apontar para o problema


do sexismo no Paraíso Perdido.
É a experiência dessa aventura permeada de incertezas, a
partir do encontro com o que Miller chama a “realidade virtual”
oferecida pela literatura, que marca o literário como inseparável
da condição humana, que só pode privar-se dela sob pena de
deixar de ser o que é. Manifestações históricas dessa experiência
podem desaparecer, como é o caso dessa formação discursiva
conhecida como literatura nos últimos dois séculos, mas a ne-
cessidade dessa experiência permanece e deve ser atendida,
de uma forma ou de outra. “O ser humano”, Miller insiste, tem
uma necessidade irreprimível de “habitar universos imaginá-
rios”, e caso essa necessidade não seja satisfeita pela literatura,
terá que ser substituída “por jogos de computador, filmes, ou
música popular em vídeo”. O que conhecemos como “litera-
tura, no sentido moderno que o termo tem no Ocidente, é uma
importante forma de imaginário” (MILLER, 2002, p. 81). Miller
não explora, sistemática e comparativamente, as razões por que
a literatura é particularmente importante quando comparada a
outros meios de expressão. Mas uma leitura atenta das caracte-
rísticas do literário, particularmente no que se refere à questão
dos riscos, inseguranças e incertezas inseparáveis do ato de
ler, abre caminho para essa reflexão sistemática e comparativa,
muito embora esse caminho possa aqui ser apenas comentado
esquematicamente. De que forma se poderia, então, definir a
importância do imaginário literário quando comparado a outras
formas de imaginário? Qualquer resposta deve levar em conta
a natureza do ato “allegro” de ler como um evento, e a condição
de imprevisibilidade e incerteza a ele associados.
Dizer que o ato de ler em “allegro” é um evento significa
afirmar que ele tem a marca de uma singularidade que não
pode ser repetida e que, portanto, não pode ser definida em
termos absolutos. Se um evento só pode ser pensado enquanto
uma relação entre uma estrutura (digamos, uma página escrita)
e um acontecimento (o ato de ler a estrutura de signos), então
o evento de ler um texto nunca poderá ser repetido da mesma
forma: a minha leitura atenta de um texto, em um momento
qualquer, nunca será idêntica a outras leituras atentas, minhas
ou de outros, no passado ou no futuro. É por isso que o leitor
de textos literários é constantemente surpreendido, em cada
nova leitura, por algo que escapara à sua atenção em leituras
anteriores. Percebida como um evento, a literatura é sempre o
encontro do leitor com uma alteridade irredutível que se recusa
a ser possuída como um objeto e que não pode ser revelada, de
uma vez por todas, em uma mensagem. Não se trata de dizer
que, na leitura do evento literário em “allegro”, não tenha existido
antes uma preparação para a leitura, o que seria impossível e

Niterói, n. 23, p. 111-134, 2. sem. 2007 129


Gragoatá Sérgio Luiz P. Bellei

ingênuo. Mais acertado é dizer que, qualquer que tenha sido


essa preparação, ela é sempre insuficiente, está sempre aquém ou
além do texto a ser lido. No dizer preciso de Derek Attridge, “só
posso acolher uma obra em sua alteridade se estiver preparado
para essa possibilidade, mas o evento para o qual me preparei só
acontecerá se puder ir além de todas as minhas preparações, e
me pegar de surpresa” (ATTRIDGE, 2004, p. 83). Pensado nesses
termos, evidentemente, o evento não se deixa descrever de uma
vez por todas, ou seja, não se deixa definir por meio de um concei-
to que dê conta de todas as suas ocorrências. Da literatura como
evento só se pode dizer que ela é, ou então dela dar testemunho,
confirmando a sua ocorrência enquanto a manifestação, sempre
diversa, do imprevisto no encontro com a alteridade. A literatura,
enquanto evento, é e acontece, sem que seja possível conceituar
o que acontece a não ser de forma genérica e tautológica: o que
acontece é o imprevisto, aquilo que está por vir e que não sei
ainda o que é. Desse dar testemunho do mistério irredutível da
alteridade, por outro lado, existe farta evidência na história da
literatura, a começar pelo próprio livro de Miller, que não só dá
o seu próprio testemunho, mas também aponta para uma breve
história testemunhal na literatura da modernidade.
On Literature é, sobretudo, um memorial cuidadoso do ato
de ler de um crítico literário que teve sua primeira experiência
significativa de uma realidade virtual ao ler, ainda jovem, um
livro de aventuras intitulado The Swiss Family Robinson. Nessa
primeira experiência de leitura em “allegro”, não interessa ao
jovem leitor, mergulhado na realidade virtual, saber se existia ou
não um autor do romance. No momento em que escreve o livro
Sobre a Literatura, por outro lado, o crítico se declara “mais velho
e mais sábio”, e sabe que “The Swiss Family Robinson fora escrito
em alemão, por um autor suíço, John David Wyss (1743-1818)”, e
que a leitura estava sendo feita em uma tradução para o inglês
(MILLER 2002, p. 15). Qual a diferença entre as duas leituras?
Furtando-se a uma explicação detalhada, Miller entrega ao leitor
a responsabilidade da resposta. Qualquer que seja essa resposta,
deverá levar em conta o que está implícito na pergunta, ou seja,
que o leitor jovem tem um relacionamento direto com a lingua-
gem ficcional, o leitor “mais velho e mais sábio” com um contexto
biográfico e histórico que situa e explica o objeto literário. Trata-
se de um encontro mais direto e imediato em um caso, menos
em outro. Para Miller, é essa experiência mais direta e menos
mediada com a linguagem que ajuda a entender o significado e
a importância da literatura. É que, nessa experiência de leitura, a
literatura se apresenta, mais vigorosamente, como um discurso
que, ao mesmo tempo, revela e oculta, ou que revela ocultando.
“Uma das características essenciais da literatura”, diz Miller, “é
ocultar segredos que jamais serão revelados” (MILLER, 2002,
p. 40). A literatura é esse discurso que se especializa em dizer
130 Niterói, n. 23, p. 111-134, 2. sem. 2007
A literatura, hoje: crônica de uma morte anunciada

sempre mais, ou sempre menos, do que quer dizer. O efeito, no


leitor, desse discurso extra-vagante é aquele de uma experiência
de plenitude e falta, de segurança e insegurança, de que algo
foi dito e de que muito deixado ainda por dizer. Experimentar,
portanto, a literatura como evento implica, para o leitor, enfrentar
uma dupla força desestabilizadora: a do evento propriamente
dito, em que o leitor é sempre assombrado pelo inesperado, e
para o qual não há preparação possível; e a do vazio e do silêncio
do não dito, que assombra o que está dito e explícito. Além de
dar seu próprio testemunho sobre esse evento desestabilizador,
Miller aponta para a sua presença, de formas diferentes, em es-
critores maiores dos séculos XIX e XX: Dostoievski, Henry James,
Marcel Proust, Anthony Trollope, Maurice Blanchot.
É essa força desestabilizadora sempre presente na lite-
ratura experimentada como evento que, ao que tudo indica,
marca uma singularidade que não pode ser, provavelmente,
encontrada em outros meios de expressão, marcados mais pelo
previsível e pelo programável, do que pelo imprevisto. Nas for-
mas de expressão típicas dos meios de comunicação de massa,
como o cinema e a televisão e, mais recentemente, nos meios de
comunicação digital, o que tende a ocorrer, por via de regra, é
mais uma tentativa de controle e manipulação das condições de
contato do leitor com o texto do que a experiência do imprevisto
e do incontrolável. O problema não passou despercebido por
teóricos atentos às mudanças históricas da modernidade, como
é o caso de representantes da Escola de Frankfurt, Adorno em
particular, que estudaram os efeitos da Indústria Cultural, e de
pensadores como Lyotard e Levinas. Para Lyotard, por exemplo,
a experiência estética tradicional da literatura e da arte deve ser
entendida em termos de uma comunicação não mediatizada com
uma alteridade que torna possível a experiência da “passibilida-
de”, que exclui a possibilidade de programação, de controle e de
atividade direta de um sujeito sobre um objeto:
A passibilidade enquanto a possibilidade de vivenciar (pa-
thos) pressupõe uma dádiva. Se estamos em um estado de
passibilidade, é porque algo acontece conosco, e quando essa
passibilidade assume uma condição fundamental, a própria
dádiva se torna fundamental e originária. O que acontece co-
nosco não é algo que foi de antemão controlado, programado,
definido por um conceito [Begriff]. Se assim não fosse, se aquilo
diante do qual somos passíveis tivesse sido antes planejado
conceitualmente, de que forma poderia se apropriar de nós?
Como seríamos postos à prova [nessa experiência] se já sabe-
mos, ou se pudermos saber – do que, com o que, para que foi
feita? (LYOTARD, 2000, p. 60)
Lyotard coloca em dúvida a possibilidade da existência
dessa dádiva, que acontece ou deve acontecer na experiência
estética, repetir-se nas formas de expressão tornadas possíveis

Niterói, n. 23, p. 111-134, 2. sem. 2007 131


Gragoatá Sérgio Luiz P. Bellei

pelas novas tecnologias. “Obras produzidas pela nova techne”,


diz Lyotard, “necessariamente, e em graus diversos, trazem
consigo evidências de terem sido projetadas para apresentar-se
como um cálculo, ou cálculos, seja na sua constituição ou recu-
peração, seja na sua distribuição” (LYOTARD, 2000, p. 61). E é
esse cálculo que pode bem eliminar a possibilidade da surpresa
e do imprevisto que ocorre na experiência do aqui e agora do
evento de leitura do literário. Lyotard conclui seu ensaio com
indagações que, se levadas a sério, não podem deixar de ser
preocupantes:
A questão a ser levantada pelas novas tecnologias, no que toca
ao seu relacionamento com a arte, é a questão do aqui e agora.
Qual o significado de “aqui” no telefone, na televisão, no visor
de um telescópio eletrônico? E o ‘agora’? Será que a partícula
“tele” não destrói, necessariamente, o ‘aqui e agora’ das formas
e da sua recepção “carnal”? O que é um lugar, um momento,
se não estão ancorados na ‘paixão’ imediata do que acontece?
Será que um computador pode, de alguma maneira, estar aqui
e agora? Será que algo pode acontecer com ele? Será que algo
pode acontecer a ele? (LYOTARD, 2000, p. 67)
Em um contexto mais pedagógico do que filosófico, Levinas
questiona a hegemonia, na cultura ocidental, da metodologia
educacional voltada para o controle da alteridade. Dada a vi-
gência de uma tal pedagogia não apenas nas ciências, mas em
todas as formas de conhecimento, desaparece a possibilidade
da surpresa, já que o objetivo é o controle absoluto do objeto
de estudo. Para Levinas, tal pedagogia é mais um descaminho
do que um caminho, já que o verdadeiro ensino e a verdadeira
aprendizagem podem apenas ocorrer quando somos surpreen-
didos pelo outro, ou seja, por aquilo que não se deixa reduzir
ao desejamos que ele seja (LEVINAS, 1981, p. 124-135). É que,
no encontro com a alteridade, literária ou outra qualquer, o que
está em questão é, precisamente, os limites dos meus poderes
enquanto agente racional capaz de pensar, julgar e agir.
Se levarmos a sério, como creio que é necessário, particu-
larmente no momento presente, reflexões como as de Lyotard
e Levinas, então será possível detectar uma certa pressa tanto
na apresentação da morte da literatura como um fato, como nas
celebrações que acompanham o funeral. É bem possível que
a literatura não venha a morrer, ou pelo menos não de todo,
enquanto for necessária e indispensável a experiência da insta-
bilidade no encontro com o outro. Não custa lembrar que essa
instabilidade é sempre um dos recursos que tem a condição
humana de experimentar as incertezas do tempo, da história,
e da mortalidade. Se, por outro lado, a literatura vier a morrer,
é bem provável que o seu desaparecimento deixe, como sugere
Lyotard, um vácuo que dificilmente poderá ser preenchido
com as formas dominantes de comunicação cultural do mundo

132 Niterói, n. 23, p. 111-134, 2. sem. 2007


A literatura, hoje: crônica de uma morte anunciada

contemporâneo, frequentemente marcadas pela previsibilidade


e pelo cálculo programático.

Abstract
Historically understood, the question of
the death of literature must be approached
both in the context of the Age of Theory,
the period that goes from the mid sixties
through the early nineties, and in the con-
text of the cultural, economic, social and
technological changes of the last 40 years.
Exposed both to a vigorous iconoclastic
theorizing coming from inside the area of
literary studies, and to historical changes
in cultural, economic, social and technolo-
gical affairs, literature as an institution has
been showing signs of progressive fatigue.
In the last ten years, however, alternative
proposals have been suggesting that the an-
nouncement of the death of literature may
have been premature, given its cultural and
social relevance at the present moment.
Keywords: death of literature, literary
theory, literary history

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Gragoatá Sérgio Luiz P. Bellei

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134 Niterói, n. 23, p. 111-134, 2. sem. 2007


Reflexões sobre a poesia como abertura
Juliana P. Perez

Recebido 5, jul. 2007/Aprovado 26, set. 2007

Resumo
O objetivo deste trabalho é compreender a concep-
ção de abertura em textos de Paul Celan (1920-
1970). Celan não define seu conceito de abertura
de forma filosófica ou teórica, mas aborda a questão
em diferentes níveis: no nível lingüístico, a aber-
tura pode ser compreendida como um processo
de questionamento e cisão da linguagem usual,
através do qual abandonam-se os clichês e abre-se
a linguagem à incomensurabilidade do outro; no
nível cognitivo, a abertura significa a possibilidade
de conhecimento e de percepção da efemeridade do
homem; no nível ético, ela designa uma postura,
um ethos, cuja máxima manifestação é o amor.
No nível da reflexão poetológica, a abertura pode
ser definida como uma das condições da possibi-
lidade da poesia, mais especificamente, como sua
condição ética.
Palavras-chave: abertura, Paul Celan, poeto-
logia

Gragoatá Niterói, n. 23, p. 135-148, 2. sem. 2007


Gragoatá Juliana P. Perez

Instigantes, tristes, mordazes são os poemas de Paul Ce-


lan, poeta judeu de língua alemã, nascido em Cernowitz (atual
Ucrânia) em 1920 e falecido em Paris, no ano de 1970. Ainda
muitas vezes considerados “herméticos”, sem que se questio-
nem os pressupostos desta categoria crítica, os textos de Celan
oferecem-nos, ao invés, a possibilidade de pensar a poesia como
abertura e certamente constituem um dos casos em que a reflexão
sobre uma poesia impregnada por acontecimentos históricos
aparentemente distantes da realidade contemporânea revela
toda sua atualidade.
Mas não nos iludamos – Celan sobreviveu à perseguição
nazista, sofreu sob novas formas de anti-semitismo que come-
çavam a surgir na França e na Alemanha pouco após o término
da II Guerra e denunciou incansavelmente qualquer tipo de
ameaça de aniquilação do “humano” (“das Menschliche”, em
suas palavras). Um travo amargo sempre acompanha, por isso,
o élan positivo implícito nas imagens de abertura.
Assim, o ponto de partida desta reflexão é o contraste entre
o caráter evidentemente negativo e polêmico da poesia de Celan e
passagens positivas, que aparecem aqui e ali, em verso ou prosa,
sobre a possibilidade de palavras francas, abertas, de falar um ao
outro humanamente sem fugir ao drama das diferenças. Leitura
após leitura, fortalece-se a impressão de que essas passagens –
mais raras, em relação às negativas – revelam algo importante
para a compreensão da poesia de Celan, sobretudo porque o
campo semântico da abertura está presente em livros como Spra-
chgitter (Grades da língua) (CELAN, 2002), Die Niemandrose (A rosa
de ninguém) (CELAN, 2001), no discurso de Bremen (Cf. CELAN,
1
Com o objetivo de 1983), em sua correspondência com escritores, amigos e editores,
facilitar a leitura, serão
citados aqui os textos e no discurso Der Meridian (O Meridiano) (CELAN, 1999).1 Os
de Celan em português,
traduzidos por João Bar-
poemas de A rosa de ninguém, detalhadamente analisados em
rento (Cf. CELAN, 1996), outra ocasião (Cf. PEREZ, 2005), bem como nas anotações para
apenas com a indicação
da página, ou pela auto- O Meridiano, discurso proferido por Celan ao receber o prêmio
ra, quando não houver Georg Büchner, são o pano de fundo da presente reflexão. Não
tradução do texto cita-
do para o português. cabe aqui repetir tais análises, mas revisitar algumas idéias-
Acrescente-se que, nes-
te caso, haverá a indi-
chave a fim de sistematizar as diversas nuances da poesia como
cação entre colchetes abertura e encontro.
(J.P.) e que a tradução
não possui nenhuma Expressões como “o aberto” (“Offenes”), “o que está aberto”
pretensão estilística, (“offenstehend”), “o que está livre” (“Freies”), “abertura” (“Offe-
apenas pretende tornar
os textos em alemão nheit”), “abrir-se” (“sich auftun”), “aberto ao tempo” (“zeitoffen”),
parcialmente acessíveis
ao leitor do português.
“poemas abertos” (“offene Gedichte”), que recorrem em poemas,
Também julgo útil citar nos rascunhos e no texto definitivo de O meridiano sugerem qua-
os trechos no original,
nas notas de fim, por sua
se espontaneamente as perguntas: O que isso significa? Como
dificuldade de acesso no Celan compreende a questão da abertura? Estas conduzem, por
Brasil (apenas alguns
dos livros citados estão sua vez, a mais reflexões: além do impulso destrutivo haveria
disponíveis da Biblio- realmente um élan positivo na poesia de Celan? Seria permi-
teca da Faculdade de
Letras da Universidade tido ver algo positivo em uma poesia tão ligada à Shoah? E o
de São Paulo). que isto significaria no panorama da literatura alemã do pós-
136 Niterói, n. 23, p. 135-148, 2. sem. 2007
Reflexões sobre a poesia como abertura

guerra, cujo mundo, na época de redação de Die Niemandsrose,


ainda não se havia dividido nos pólos engajamento versus Nova
Subjetividade?
Quase sem querer, as perguntas tocam o coração de um
problema metodológico: elas pressupõem a aceitação de uma
perspectiva hermenêutica – um ponto de vista talvez antiqua-
do, de que duvidam diversas teorias das últimas décadas. Na
pesquisa mencionada, a procura pelo melhor caminho para
interpretar os textos de Celan levou à decisão de observar a
gênese dos poemas, ou seja, de procurar reconstruir, tão exa-
tamente quanto possível, o processo de criação de cada poema
através de dados presentes nas edições críticas. À reconstrução
específica da gênese do texto foi acrescentada a reconstrução
de outros dados, uma vez que traduções, pensamentos, leitu-
ras e encontros também fazem parte do processo de criação e
podem contribuir para a compreensão de uma expressão ou
de um contexto. Não se tratava, porém, de estabelecer um nexo
causal exaustivo entre biografia e texto, mas de reconstruir, tão
precisamente quanto possível, o sentido em que Celan usa uma
determinada palavra e a quê ou a quem pretende responder.
Assim, por mais demodé que possa parecer, a tradicional per-
gunta hermenêutica pelo significado do texto e a reconstrução
de tantos dados – que não é nem possível nem adequada a todos
os escritores –, revelaram-se naquela ocasião o melhor caminho
para fugir a confusões metodológicas e para verificar como Celan
compreende a questão da abertura, uma vez que ela faz parte
de sua reflexão sobre a poesia.
Do ponto de vista de sua poetologia, parece não haver
diferença entre traduzir outros escritores, observar a situação
política da época, encontrar um filósofo famoso ou um antigo
amigo: cada um desses elementos pode ser, em igual medida,
o impulso necessário para a criação de um poema e para a
lenta elaboração de uma concepção de poesia. A imagem da
poesia como abertura, por exemplo, parece iniciar com Grades
da língua, publicado em 1959, e se desenvolver principalmente
durante a redação de A rosa de ninguém. No último, a questão é
explicitamente tematizada em poemas que ocupam uma posição
fundamental no livro, a saber, no início e no final de cada um
dos quatro ciclos que o compõem. Nesses e em outros poemas,
observam-se diversas nuances da abertura: ela se apresenta ora
como resultado de um processo de abertura da língua, ora como
possibilidade de conhecimento, como ethos, como amor e como
percepção da efemeridade da pessoa.
Assim, a abertura pode ser facilmente definida como uma
das condições de possibilidade da poesia de Celan. Mas quando
vislumbramos sua relação com a presença humana, é necessário
afirmar com mais precisão: constitui sua condição ética.

Niterói, n. 23, p. 135-148, 2. sem. 2007 137


Gragoatá Juliana P. Perez

Abertura e linguagem
O poema: aberto/ poroso,/ esponjoso – 2
Desde a criação dos textos de Grades da língua, em meados
dos anos 50, Celan imagina que o poema possui uma estrutura
aberta: ele apresenta aberturas, pátios, vazios, cesuras, espaços
livres através dos quais a realidade exterior pode ser percebida.3
(Cf. PEREZ, 2004) A escrita é comparada a grades através das
quais acontece um diálogo; sua criação acontece como a formação
de um mineral, um cristal (Cf. SENG, 1998, p. 174; GELLHAUS,
1995, p. 52); o poema é “aberto, poroso, esponjoso”: através
dele, que absorve os dados históricos concretos, uma realidade
desconhecida entra na língua. O poema torna-se um lugar de
acolhida no interior da linguagem. Em outra anotação, Celan
descreve-o como algo que está unido, mas preserva lacunas.4 A
própria multiplicidade das imagens utilizadas por Celan revela
que, nesse período, a idéia da abertura ainda está a se formar.
Em A rosa de ninguém, a imagem ganha outras nuances e
linhas mais definidas. Paul Celan compreende a abertura do
poema tanto do ponto de vista estrutural quanto do ponto de
vista metafórico: do ponto de vista da estrutura, ele se refere aos
intervalos rítmicos e interrupções sintáticas dos versos, como se
2
“Das Gedicht: offen/ vêem em “Zürich, zum Storchen”, “Mit allen Gedanken”, “Ko-
porös,/ spongiös –“ (CE- lon”, entre outros. Neste último, mostra-se o caráter metafórico
LAN, 1999, p. 104, n.
236) das aberturas: as pausas trazem consigo a verdade da língua
3
A s pa l av ra s “r e a- (“Doch du, Erschlafene, immer/ sprachwahr in jeder der Pau-
lidade”, “percepção”,
“conhecimento”, entre sen”)5, graças a elas o discurso ideológico é quebrado. Quando
outras, são utilizadas
aqui no seu sentido mais
se fala metaforicamente da abertura da linguagem, trata-se dos
comum, não no sentido momentos em que um uso irrefletido ou ideológico da língua é
filosófico dos termos.
4 colocado em questão e deve ser abandonado ou destruído.
“ –i- Das Gedicht als
das keineswegs lücken- A abertura parece possuir dois significados: por um lado,
los Gef üg te, a ls das
Lückenhafte, Besetz-
ela corresponde à denúncia de Celan contra discursos e tradições
bare, Pörose: (à toi de que se enrijecem e, por isso, podem obscurecer a realidade e
passer, vie!)” (CELAN,
1999, p. 103, n. 233)
levar à violência; por outro, ela indica a desproporção existente
5
“S e quer a m ão entre a língua e a realidade, é a descoberta “do abismo entre o
varada/à luz da vigília/
da palavra.//Mas você,
signo e o designado”.6
adormentada, sempre/ A questão vai muito além da “indizibilidade” da Shoah.
ve r i lo qu a z em c ada
uma/das pausas://por/
Celan trata da relação entre língua e realidade em si mesma: na
quanto do todoempar- medida em que ressalta uma insuperável diferença entre eles,
tes/você se arma para
outra viagem:/o leito/ Celan configura tal relação como um drama, um tenso diálogo
da memór ia!//Si nta, entre um eu e um tu. Em sua poetologia, não há tentativas de
jazemos/brancos das
várias/cores, dos vari-/ identificação entre o eu, a língua e a realidade, mas eles estão em
lóquios ante o/tempo
alísio, ano d’hausto, co-
relação recíproca: o eu só percebe a realidade mediante a língua;
raçãonunca.” (Trad. de sua forma de falar, que surge desta percepção, aparece, por sua
Mau r ic io Mendon z a
Cardoso). vez, somente “unter dem Neigungswinckel seiner Existenz”, “sob
6
“-i- Freilegung – Ent- o ângulo de incidência de sua existência” (p. 56), como Celan
deckung – des Abgrun-
ds zwischen Zeichen
escreve em O meridiano. Ciente do caráter aproximativo do que
und Bezeichnetem”. afirma, o eu deve comparar seu esboço com a realidade, em um

138 Niterói, n. 23, p. 135-148, 2. sem. 2007


Reflexões sobre a poesia como abertura

7
“sprachliche Wahr- processo contínuo de verificações, questionamentos, correções
nehmung, Gespräch mit e novas tentativas de apreendê-la mediante a língua. Trata-se,
dem ihm Gegenüber-,
dem ihm Entgegens- portanto, de um diálogo sem tréguas. Em uma anotação de
te he nde n, G e spräc h
mit dem Anderen und
um ensaio sobre Ossip Mandelstam, Celan escreve: “percepção
Fremden, Gespräch mit lingüística, diálogo com o que está à sua frente, está contra ele,
de m Me n s c he n u nd
Dingen, Gespräch mit diálogo com outro e com o estranho, diálogo com os homens
dem Erschei nenden, e as coisas, conversas com o que aparece, e com isso, também
mithin auch Gespräch,
fragendes Gespräch mit diálogo, diálogo questionador consigo mesmo – em meio a isto
sich selbst – inmitten
ebendieses ihm Erschei-
que aparece”. (J. P.) 7
nenden.” (CELAN, 1999, Nesse sentido, cada palavra do poema é um passo reflexivo
p. 71, n. 59)
8 que não acontece por uma associação arbitrária e espontânea,
“Keine um irgendei-
ne Assoziationstheorie nem por um esquema pré-concebido, mas pela atenção contí-
bereicherte Syllog is-
tik, keine Logistik wird
nua à relação entre língua e realidade: “nenhuma silogística
dem Faktum “Gedicht” enriquecida por uma teoria qualquer da associação, nenhuma
jemals gerecht werden
können – das vermein- lógica poderá jamais ser adequada ao fato “poema” – o suposto
tliche Denk- oder Spra- esquema de pensamento ou de língua do poema nunca está
chschema des Gedichts
ist niemals “fertig”. (CE- ‘pronto’.” (J. P.)8
LAN, 1999, p. 103, n.
229).
O contínuo abrir-se da língua pode ser definido, portanto,
9
“Diese Diese Gedi- como uma das mais importantes premissas da poesia de Celan.
chte sind die Gedichte Ele se mostra nos elementos estruturais mencionados e em ima-
eines Wahrnehmenden
und Au fmerksamen, gens que o representam metaforicamente e possuem caráter po-
de m E r s c h e i n e nde n
Zugewandten, das Ers-
etológico: cavar a terra, aprofundar-se na terra, o colo a se abrir,
cheinende Befragenden a perda das palavras, a explosão do sol, a palavra a se abrir, as
und Ansprechenden;
sie sind Gespräch. Im rosas que se abrem, as pausas, o olhar como uma janela.
Raum dieses Gesprächs A exigência de abertura, que se revela no questionamento
konstituiert sich das
Angesprochene, verge- de um uso irrefletido ou ideológico da linguagem e na dramati-
genwärtigt es sich, ver-
sammelt es sich um das
cidade das imagens, conduz à questão do conhecimento. Assim
es ansprechende und Celan formula o problema em seu ensaio sobre Mandelstam:
nennende Ich. Aber in
diese Gegenwart bringt Estes poemas são poemas de alguém que percebe e que está
das Angesprochene und atento, que está voltado ao que surge, que questiona e inter-
durch Nennung gleich-
sam zum Du Gewor- pela o que surge; eles são diálogo. No espaço deste diálogo
dene sein Anders- und constitui-se o que foi interpelado, atualiza-se, reúne-se em
Fremdsein mit. Noch im torno do eu que o interpela e nomeia. Mas a esta presença o que
Hier und Jetzt des Gedi-
chts, noch in dieser Un- foi interpelado e, ao mesmo tempo, tornou-se um tu por causa
mittelbarkeit und Nähe da nomeação, traz o seu ser outro e estranho. Ainda no aqui e
läßt es seine Ferne mits-
prechen, bewahrt es das agora do poema, ainda nesta imediatez e proximidade ele deixa
ihm Eigenste: seine Zeit. falar a sua distância, ele conserva o que é mais característico
/ Es ist dieses Span- de si: seu tempo. / É uma relação de tensão dos tempos, o
nu ngsverhä lt n is der
Zeiten, der eigenen und próprio e o do outro, que concede ao poema de Mandelstamm
der fremden, das dem aquele vibrato doloroso e mudo em que o reconhecemos. (Este
m a ndel st a m m’s c hen
Gedicht jenes schmer-
vibrato está em todo lugar: nos intervalos entre as palavras e as
zlich-stumme Vibrato estrofes, nos pátios, em que as rimas e assonâncias surgem, na
verleiht, an dem wir es pontuação: tudo isso tem relevância semântica.) As coisas vêm
erkennen. (Dieses Vi-
brato ist überall: in den umas ao encontro das outras, mas neste estar juntos também
Intervallen zwischen fala a questão de seu “de onde” e “para onde” – uma pergunta
den Worten und den que está aberta, que não tem fim, que aponta para o aberto e
Strophen, in den Höfen,
in denen die Reime und ocupável, ao vazio e livre”. (J. P.)9
Assonanzen stehen, in
der Interpunktion: All Retornam aqui os aspectos que estavam dispersos nos po-
das hat semantische Rele-
vanz.) Die Dinge treten emas: a capacidade de acolhimento do poema e o diálogo com

Niterói, n. 23, p. 135-148, 2. sem. 2007 139


Gragoatá Juliana P. Perez

a realidade; o tempo como sinal maior da presença do outro,


o poema como um esboço, a tentativa de interpelar o outro, a
consciência de uma diferença abissal e insuperável entre o eu e
o tu. Outro fator se acrescenta a esses: através da abertura lin-
güística, pergunta-se pelo “de onde e para onde” das coisas – e
assim configura-se a relação entre abertura e conhecimento.
Abertura e conhecimento
O trecho citado retorna em O Meridiano com algumas va-
Continuação Nota 9: riações: permanece a atenção do eu que escreve, mas a tensão do

zueinander, aber noch relacionamento torna-se um “diálogo desesperado”. Se o tempo
in diesem Beisammen-
sein spricht die Frage do outro é percebido e reatualizado no poema, então volta-se à
nach ihrem Woher und
Wohin mit – eine “offen-
pergunta sobre a origem e o destino das coisas: o seu “de onde”
bleibende”, “zu keinem e “para onde”:10
Ende kommende”, ins
Offene und Beseztbare, O poema torna-se – e em que condições! – o poema de um
ins Leere und Freie wei- sujeito que insiste em ser sujeito de percepção, atento a todos
sende Frage.” (CELAN,
1999. p. 216) os fenómenos, e interrogando e apostrofando esses fenómenos:
10
Das Gedicht wird e torna-se diálogo, muitas vezes um diálogo desesperado. /Só
– unter welchen Bedin- no espaço desse diálogo se constitui o que é apostrofado, e se
gungen! – zum Gedi-
cht eines – immer noch
concentra à volta do Eu que a ele se dirige e nomeia. Mas essa
– Wa h r n e h m e n de n , entidade apostrofada, como que transformada em Tu pela no-
de m E r s c h e i n e nde n meação, introduz também nessa presença o seu Ser-outro. Até
Zugewandten, dieses
Erscheinende Befragen- no aqui e agora do poema – e o poema dispõe sempre apenas
den und Ansprechen- deste único e pontual presente –, até nesta imediaticidade e
den; es wird Gespräch proximidade ele deixa falar aquilo que é mais próprio dele,
– oft ist es verzweifel-
tes Gespräch./Erst im desse Outro: o seu tempo. / Quando assim falamos com as
Raum dieses Gesprächs coisas, confrontamo-nos sempre com a questão de saber de
konstituiert sich das
Angesprochene, ver- onde vêm e para onde vão elas: uma questão “em aberto”, “que
sammelt es sich um das não leva a conclusão nenhuma”, que aponta para um espaço
es ansprechende und aberto e vazio e livre – estamos muito longe, “lá fora”. / O
nennende Ich. Aber in
diese Gegenwart bringt poema, creio, procura também este lugar. (p. 58)
das Angesprochene und
durch Nennung gleich- A pergunta – um instrumento de conhecimento em si
sam zum Du Geworde-
ne auch sein Anders-
mesma – permanece aberta, não tem fim, e aponta para algo
sein mit. Noch im Hier “aberto”, “vazio” e “livre”: também se trata de uma orientação
und Jetzt des Gedichts
– das Gedicht hat ha da poesia, que não por acaso sempre retornará em O meridiano
immer nur diese eine, na paronomásia “Richtung/Dichtung” (direção/poesia).
einmalige, punktuelle
Gegenwart –, noch in Em 1958, Celan já falava da poesia como a linguagem de
dieser Unmittelbarkeit
und Nähe läßt es das
um eu “que fala a partir do ângulo particular de sua existência,
i h m , de m A nde r e n , para o qual é importante definir um perfil e uma orientação”, e
Eigenste mitsprechen:
dessen Zeit. /Wir sind, como um instrumento para “delimitar o campo do que é dado
wenn wir so mit den e do que é possível”. (p. 30) O caráter de orientação – ou, melhor
Dingen sprechen, im-
mer auch bei der Frage dizendo – de conhecimento da poesia de Celan é confirmado
nach ihrem Woher und
Wohin: bei einer “offen-
mais uma vez no discurso de Bremen: Celan teria escrito “...
bleibenden”, “zu keinem para me orientar, para saber onde me encontrava e onde isso
Ende kommenden”, ins
Offene und Leere und iria me levar, para fazer o meu projeto de realidade.” (p. 33)
Freie weisenden Frage – Mais a frente, ele afirma que os poemas “têm um rumo./ Para
wir sind weit draußen./
Das Gedicht sucht, glau- onde? Em direção a algo de aberto, de ocupável, talvez a um tu
be ich, auch diesen Ort.”
(CELAN, 1999, p. 10 par.
apostrofável, a uma realidade apostrofável. Penso que, para o
36c) poema, o que conta são essas realidades.” (p. 34).

140 Niterói, n. 23, p. 135-148, 2. sem. 2007


Reflexões sobre a poesia como abertura

Em Celan, a questão da abertura diz respeito a um proble-


ma complexo: o conhecimento de uma realidade que permanece
estranha à língua, mas não pode ser compreendida sem ela. Sem
se deixar abarcar pelo entendimento humano, a realidade é sen-
tida como algo a ser conhecido e que pode ser interpelado, mas
que nunca será dominado. A pergunta sobre o “de onde e para
onde” das coisas não possui uma resposta pronta: a realidade
sempre deve ser conhecida novamente – nesse sentido, ela está
em um espaço aberto, vazio e livre e, por não ser redutível a
uma imagem pré-concebida, preserva sua “escuridão”: o obscuro
corresponde ao que ultrapassa o entendimento – nos termos do
poeta, seria possível falar em “mistério” (“Geheimnis”).
Inúmeras anotações para a redação de O meridiano mos-
tram que Celan não fala de “escuridão da poesia” no sentido
de Hugo Friedrich: com amarga ironia em relação a críticos de
literatura e outros escritores ou com relativa serenidade, Celan
sempre recusou o suposto “hermetismo” da poesia moderna.
(Cf. CELAN, 1999, p. 72, n. 60) Importante é notar que, em suas
reflexões, escuridão e abertura são duas dimensões de um só
fenômeno: o mistério da existência humana – obscuro, pois sua
origem e seu fim permanecem inescrutáveis, mas aberto, pois é
perceptível e apostrofável.
O caráter existencial de tais perguntas não pode ser ignora-
do: Celan questiona, em uma carta de 1959 a Gleb Struve sobre
Mandelstam, onde “nos grandes poemas, não se fala das coisas
últimas” (“Aber wo ist, in großen Gedichten, nicht von letzten
Dingen die Rede?”) (CELAN em HAMACHER, 1988, p. 12, trad.
J. P.). Em outra anotação, ele compara a escuridão do poema à
escuridão da morte. (CELAN, 1999, p. 89, n. 130). Não se trata
porém de uma questão metafísica no sentido de uma represen-
tação genérica de um além: fiel à sua atenção a “este” lado, Celan
interessa-se pela percepção de um mistério no mundo físico, ou
11
seja, ele trata do que permanece ignoto nos dados concretos.
“Es gibt, dieseits und
jenseits von Esoterik,
O poema insere-se no horizonte do conhecimento, repre-
Hermetik u.ä. eine Dun- senta um Studium, como diz Celan em outra ocasião (Cf. CELAN
kelheit des Gedichts.
Auch das exoterische, em HAMACHER, 1988, p. 321). Ele é um rascunho, um esboço do
auch das offenste Ge- que o eu apreende da realidade, ele desenha seus aspectos obscu-
dicht – und ich glaube,
daß heute, zumal im ros e abertos, documenta o encontro entre o eu e a realidade – e
Deutschen, auch sol-
che, stellenweise sogar
acontece no mistério do encontro, como se lê em O Meridiano. Nesse
ausgeprochen poröse, sentido, Celan fala em “outro”, “o que está em frente”, da atenção
durchaus lichtdurch-
lässige Gedichte ge- do poema ao que vem ao seu encontro e, mais além, do “caráter
schrieben werden – hat fenomenal” da imagem. (Cf. CELAN, 1999, p. 87, n. 121). Como
seine Dunkelheit, hat
sie als Gedicht – kommt, documento de um processo de conhecimento, o poema nunca
weil es das Gedicht ist,
dunkel zur Welt. Eine
é pré-determinado; daqui ele recebe sua “escuridão” específica,
kongenitale, konstituti- tema sobre o qual Celan pretendia escrever um ensaio.11
ve Dunkelheit also, die
das Gedicht heute hat.“ A concepção de Celan tem outras implicações filosóficas,
(CELAN, 1999, p. 84, n. que não podem ser discutidas aqui, mas que devem ao menos
103)
ser mencionadas: em uma espécie de inversão da concepção
Niterói, n. 23, p. 135-148, 2. sem. 2007 141
Gragoatá Juliana P. Perez

iluminista, a realidade não depende da razão humana; o conhe-


12
“Gedichte sind Ges- cimento não é alcançável conforme a vontade do sujeito, mas
chenke. Mir erscheint es
noch heute wunderbar,
vem até ele quando e se ele estiver disponível. O poeta procura
dass dieses Gedicht zu exatamente não suspender o paradoxo e fixar no poema essa
mir kam; hätte ich, wie
vor zwei Jah ren, die tensão. A questão da abertura também se estende ao âmbito
Frage zu beanworten, ob da ética, uma vez que, para reconhecer a amplidão da realidade
ich die “Jeune Parque”
für übersetzbar hielte, e compreender o poema como documentação de um processo
ich würde das, wie da-
mals, verneinen. Gedi-
imprevisível de conhecimento, o próprio eu deve se abrir. A
chte – ja, Gedichte sind abertura é a atitude daquele que deseja conhecer a realidade e
Geschenke; Geschenke
– aus wessen Hand?“ se torna, por isso, um ethos.
Carta de Celan a Werner
Weber, de 26 de março Abertura e ethos
de 1960 (GELLHAUS;
LOHR, 1997, p. 397-99).
13
Talvez um dos mais importantes textos de Celan sobre
Denn die Sprachen,
so sehr sie einander zu
o “ethos do poema” seja uma carta em que agradece a Werner
entsprechen scheinen, Weber pelo artigo sobre sua tradução de “La Jeune Parque”, de
sind verschieden – ges-
chieden durch Abgrün- Válery. Retornam ali as várias nuances da abertura. A imprevi-
de. Freilich, es gibt auch sibilidade do poema, que surpreende o próprio poeta com a sua
heute nicht nach so vie-
len Gedichten! – die Vie- “vinda”, aparece na definição da poesia como “presente”.12 Em
len (darunter eine ganze
Reihe von Pseudophi-
seguida, surge mais uma vez a consciência da diferença na lin-
lologen), die, wenn sie guagem, do outro, da estranheza que deve permanecer inscrita
Übertragungen von Ge-
dichten lesen, irgendein no poema. A tensão entre língua e realidade mostra-se como
vermeintlich ‘höheres tensão entre as línguas.13 Mas, após um breve comentário sobre
Esperanto’ im Auge ha-
ben, und zwar – ich habe a tradução, Celan introduz, inesperadamente, um pensamento
das oft beobachtet – am
‘deutlichsten’- da n n,
que não diz respeito somente à dificuldade lingüística, mas ao
wenn sie weder die eine necessário esforço pessoal implicado na tradução. Trata-se de um
noch die andere Sprache
beherrschen.) Ja, das Ge-
empenho, um “exercício” espiritual para compreender a língua
dicht, das übertragene como um esboço da verdade e agir de acordo com ela – em dois
Gedicht, muss, wenn
es in der zweiten Spra- sentidos: viver conforme a verdade reconhecida e esboçada e
che noch einmal dasein saber libertar-se do próprio esboço.14 Celan continua seu pensa-
will, dieses Anders- und
Verschiedenseins, die- mento sem interrupções: a verdade do poema não consiste em
ses Gesch ieden sei n s
ei ngeden k bleiben.
projetar a subjetividade sobre o real, mas em perceber o poema
(GELLHAUS; LOHR, como sinal da presença humana. Mas isto só é alcançado pela
1997, p. 397).
14
Darf ich hier auch
aceitação do paradoxo: deve-se saber calar com a palavra; sentir
noch sagen, dass die- o desejo do mundo e do infinito; querer ganhar e saber perdê-
se Überseztung auch
für mich eine Übung
lo; olhar a libertação e a morte das palavras para perceber o
war, ein ‘exercice’? Ja, caráter único da presença humana.15 A carta prossegue com o
es war ein Exerzitium,
es waren Exerzitien, es comentário irônico sobre a concepção de poesia da época e critica
war, wenn ich hier ein exatamente o desaparecimento da presença humana por causa
Wort Martin Heideggers
mitsprechen lassen darf, da técnica: Celan opõe-se a esta tendência na medida em que a
ein Warten auf den Zus-
pruch der Sprache. Ihre
sua poesia se abre para a percepção do humano. Os elementos
Gedanken zum ‘Augen- estruturais “abertos” servem ao conhecimento que, por sua vez,
blick’ des Gedichts: das
berührt mich, inmitten pressupõe um ethos: a abertura ao “mistério da unicidade” da
all des in der letzten Zeit presença humana.
Erfahrenen und Wahr-
genommenen (und im A posição de Celan concede a muitos poemas um momento
Hinblick auf das wohl
noch Wahrzunehmen-
gestual, em que parece se apontar para o ser humano ou em que
de), besonders. Sprache, se celebra a sua presença. Muitos versos em que Celan parece
zumal im Gedicht, ist
Ethos – Ethos als schick- brincar com as formas verbais ou com as sílabas podem ser
salhafter Wahrheitsen lidos como se fossem “exercícios espirituais” que se dirigem à
142 Niterói, n. 23, p. 135-148, 2. sem. 2007
Reflexões sobre a poesia como abertura

presença humana e exigem o aprendizado de uma nova língua


(Cf. também CELAN, 1999, p. 76, n. 74).
Gestos discretos e decididos também se mostram nos
poemas em que a abertura não é explicitamente abordada mas
que apontam para a presença humana: através da observação de
uma pessoa a falar neste momento; em uma figura que não pode
mais ser nomeada no poema; na defesa polêmica do ser humano
que pode ser aniquilado; na aceitação de uma canção marginal;
Continuação Nota 14: na procura da figura humana desprezada, na prova do cami-

t wurf. (Und wen n nho poético escolhido, na homenagem dirigida ao homem, nas
es nur diese – gewiss
nicht einer kleinräu- palavras revolucionárias, no ethos do olhar, no preço a ser pago
migen ‘Subjektivität’
zuzuschreibende – Er-
pela poesia. Tais gestos surgem quando o “incomensurável do
fahrung gäbe: dass man outro”, ou “o mistério do singular” é percebido. A abertura como
der Wahrheit des Gedi-
chts nachleben muss, ethos da poesia toca, portanto, o eu, que percebe uma presença
- wen n es nu r diese humana, defende-a e a homenageia a qualquer preço. Não por
Erfahrung gäbe (und
es gibt sie!), sie könnte acaso trata-se de uma atitude muito próxima à do amor.
genügen. (GELLHAUS;
LOHR, 1997, p. 398. Cf. Abertura e amor
também Celan (1999, p.
120, n. 351): “Gedichte
sind Daseinsentwürfe:
A reflexão sobre a abertura como amor é dificilmente
man muß ih nen, um separável da abertura como ethos e talvez seja apenas seu de-
ihrer Wahrheit willen,
nachleben”. senvolvimento. Porém, o amor pode ser entendido como uma
15
Aber wieviele sind intensificação do ethos de abertura imaginado por Celan, pois
es denn heute, die sol-
che Aspekte des Di-
aqui ele alcança seu ponto máximo: trata-se da percepção da
chterischen überhaupt unicidade de uma pessoa amada que, pressupõe, de forma ainda
wahrnehmen? Die das
Gedicht wahrnehmen mais dramática, a percepção de sua efemeridade. A abertura
als menschliche – und como ethos certamente exige que a presença humana seja afir-
mithin einmalige und
vom G ehei m n i s de r mada apesar de sua efemeridade; a abertura como amor leva a
Einmaligkeit begleite-
te – Präsenz? Wieviele
afirmação do outro às últimas conseqüências: mesmo se contra a
sind es wohl, die mit aniquilação for necessária uma palavra que pode trazer a morte
dem Wort zu schweigen
wissen, bei ihm bleiben,
de quem a diz, ela precisa ser dita.
wenn es im Intervall Também há outra diferença de intensidade com relação à
steht, in seinen ‘Höfen’,
in seiner – schlüssel- abertura como ethos: ali, o eu e a língua devem se abrir à presença
fernen – Offenheit, das humana, aqui, eles o desejam. A liberdade da pessoa se vê nas
Stimmhafte aus dem
Stimmlosen fällend, in ações: em vários poemas, Celan atribui a este tu amoroso as ações
der Systole die Diastole
verdeutlichend, welt-
de aprender, receber, abrir-se, beber, armar-se, colher rosas para
u nd u nendlich keits- o eu. Não são numerosos os textos em que a figura da amada
süchtig zugleich – Spra-
che, wie Valéry einmal aparece – mas em todos eles o amor coincide com a reflexão sobre
sagt, in statu nascendi, a língua e com a resistência a uma situação ameaçadora.
freiwerdende Sprache,
Sprache der Seelenmo- Lucile, personagem do drama A morte de Danton, de Georg
nade Mensch – und,
wen n ich auch noch
Büchner, é o modelo poetológico por trás de tais poemas. Ao
das hinzufügen darf, final da peça de Büchner, Lucile observa atônita a morte de seu
Sprache in statu morien-
di, Sprache dessen, der amado, Camille Demoulins, um dos revolucionários, e, ao per-
Welt zu gewinnen sucht, ceber que o mecanismo ideológico da Revolução extermina os
weil er – ich glaube, das
ist ein uralter Traum que a defenderam, ela diz: “Viva o Rei!”. Aparentemente a favor
der Poesie – weltfrei
zu werden hofft, frei
do ancién regime, Lucile condena-se ao mesmo fim de Camille.
von Kontingenz. (GEL- Em O meridiano, Paul Celan evoca sua figura como símbolo de
LHAUS; LOHR 1997, p.
398 et seq.).
resistência à ideologia e representação da própria poesia: “Viva
o Rei!”/ E que palavra, depois de todas as que foram ditas da
Niterói, n. 23, p. 135-148, 2. sem. 2007 143
Gragoatá Juliana P. Perez

tribuna (que é o cadafalso!)./ É uma contra-palavra, é uma pa-


lavra que faz romper o “arame”, a palavra que já não se curva
diante dos “cavalos de parada nem dos pilares da História”, é um
acto de liberdade. É um passo.”16 (p. 45). A abertura de Lucile é
desejada; a personagem não pode ser compreendida sem o seu
“viva o Rei!”. Assim, ela se torna não somente a figura mais alta
da abertura, que se reflete no tu amante dos poemas de A rosa
de ninguém, mas quase se transforma em uma alegoria da poesia
– e que não seja possível falar em alegoria em termos absolutos
deve-se à própria concepção de Celan de que essa representação
também é apenas um esboço.
Lucile aparece nas passagens mais importantes de O
meridiano: após uma discussão sobre a arte (parágrafos 5 e 23);
quando se louva a majestade do absurdo (par. 6-8); após o longo
trecho sobre Lenz e a arte (par. 20); e depois que Lenz quer andar
de cabeça para baixo (par. 25). Seguem-se os pensamentos sobre
o poema, e Lucile surge na própria contra-palavra de Celan: “Entra
antes com a arte no que em ti próprio há de mais acanhado. E
liberta-te” (p. 59). Por fim, quando Celan fala da utopia, Lucile
também o acompanha:
Duas vezes, quando Lucile disse viva o rei, e quando o céu se
abriu como um abismo sob os pés de Lenz, parecia estar pre-
sente aquela mudança de respiração. Talvez também quando
eu tentei agarrar-me àquele lugar distante e à espera de ser
preenchido, e que acabou por apenas se tornar visível na figura
de Lucile. E estivemos outra vez, quando falamos da atenção
dada às coisas e à criatura, na proximidade do aberto e da
liberdade. E por fim na proximidade da utopia. (p. 60)
A figura de Lucile condensa os aspectos da abertura men-
cionados antes: a sua contra-palavra franca, aberta, destrói os
discursos sobre a arte; mas ela só se pronuncia quando se torna
consciente da tensão entre a sua palavra e a morte de Camille
– ela sabe que não poderá salvá-lo com o seu protesto. Mesmo
assim, ela lança à criatura amada a sua atenção, apreende o
paradoxo da situação em que se encontra: tudo exige a vida, e
a morte se impõe. Em Celan, domina o paradoxo: Lucile louva
a majestade do absurdo e seu gesto testemunha a presença do
ser humano: sem ele, não haveria nem paradoxo nem absurdo
16
“Es lebe der König!”/ e, portanto, não haveria a possibilidade de afirmar sua presença
Nach allen auf der Tri-
büne (es ist das Blut- como o mais alto valor.
gerüst) gesprochenen
Wor te n – welc h ei n
Abertura como amor significa, assim, resistência contra a
Wort!/ Es ist das Ge- aniquilação e afirmação incondicional da presença humana. A
genwort, es ist das Wort,
das den ‘Draht’ zerreißt, rosa de ninguém também alcança aqui seu ápice: em cada poema,
das Wort, das sich nicht Celan repete o gesto anárquico contra o correr da história: cada
mehr vor den ‘Eckste-
hern und Paradegäulen poema representa o gesto de Lucile – e revela o mistério do
der Geschichte’ bückt,
es ist ein Akt der Frei-
humano como sua maior paixão.
heit. Es ist ein Schritt”
(CELAN, 1999, p. 3)

144 Niterói, n. 23, p. 135-148, 2. sem. 2007


Reflexões sobre a poesia como abertura

Abertura e tempo
Como amor, a abertura traz consigo a melancólica consci-
ência da efemeridade humana, nuance que determinará tanto
alguns poemas de A rosa de ninguém quanto outros textos poe-
tológicos. Embora uma pesquisa detalhada sobre o significado
do tempo nos textos de Celan ainda deva ser feita (até onde foi
possível verificar, não parece haver muitos trabalhos publicados
sobre o assunto), é possível afirmar que a percepção da efemeri-
dade está ligada à percepção da presença humana.
Ligada tanto ao caráter cognitivo quanto ao caráter ético,
a abertura ao efêmero se mostra de formas diversas: o poema
abre-se ao tempo histórico, ou seja, ele acolhe em si, implícita
ou explicitamente, dados históricos em que a existência do ser
humano foi ameaçada. O poema conserva a memória dos gestos
revolucionários, momentos e poetas que defenderam e celebra-
ram a presença humana. No último ciclo de A rosa de ninguém,
por exemplo, também aparece a imagem do meridiano: como
linha imaginária a unir lugares, tempos e pessoas distantes, o
meridiano é uma linha da memória – une em si qualquer pessoa
que tenha afirmado a presença humana, ameaçada de formas
diversas conforme as circunstâncias históricas.
Em A rosa de ninguém, a efemeridade é o maior sinal do hu-
mano: não se trata da mera consciência da morte – Celan deseja
inverter os valores que normalmente servem à celebração de uma
pessoa: para a sua homenagem, ele escolhe o frágil, o marginal, o
desprezado, a criatura curvada, os loucos, os exilados – e, portan-
to, também o que é mortal e efêmero. A abertura à efemeridade
significa celebrá-la – ou, em outras palavras: aprender a amá-la.
Paul Celan escreve, nesse sentido, sobre o “brilho majestoso do
efêmero” (CELAN, 1999, p. 137, n. 459).
As relações entre o tempo e a abertura não podem ser
melhor analisadas aqui – para tê-las diante dos olhos em toda
sua profundidade, dever-se-ia perguntar pelo “de onde” e “para
onde” da poesia de Celan, estudar mais do que foi possível seu
gesto de Lucile –, pois as raízes de A rosa de ninguém e os pontos
cardeais de seu meridiano estão mais profundamente arraigados
no tempo – em um tempo em que se estabeleceu um modo de
pensar racionalista – e são a tentativa de olhar o mistério da
presença humana – amorosamente.

Abstract
The present study deals with the issue of openness
in texts of Paul Celan (1920-1970). Celan does
not define his concept of openness from a philoso-
phical or theoretial point of view, but approaches
the problem at different levels: at the linguistic
level, openness may be understood as a process
Niterói, n. 23, p. 135-148, 2. sem. 2007 145
Gragoatá Juliana P. Perez

of questioning and splitting ordinary language,


when clichés are abandoned and language is open
to the non-commensurability of the other; at the
cognitive level, openness means the possibility
of knowledge and perception of the ephemeral
nature of man; at the ethical level, it designates
an attitude, an ethos, whose utmost expression
is love. At the level of poetological reflection,
openness can be defined as one of the conditions
for the possibility of poetry, more particularly, as
its ethical condition.
Keywords: openness, Paul Celan, poetology

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148 Niterói, n. 23, p. 135-148, 2. sem. 2007


A conquista do “entre-lugar”:
a trajetória do romance histórico
na América
Gilnei Francisco Fleck

Recebido 13, jul. 2007/Aprovado 14, set. 2007

Resumo
Este trabalho tem por objetivo destacar que o
romance histórico teve na América uma trajetó-
ria que passou por todas as etapas que o gênero
conheceu em solo europeu, desde suas origens com
Walter Scott (1819) até as suas configurações
contemporâneas. Aqui na América, contudo, tal
gênero narrativo híbrido encontrou um universo
cujas realidades históricas são singulares e que,
ao serem ficcionalizadas pelos romancistas pre-
ocupados em dar voz ao povo colonizado, gerou
obras que imprimiram aos modelos antecedentes
novas configurações, especialmente pela releitura
crítica que propõem do passado registrado apenas
sob a visão dos europeus. A escrita do romance
histórico em terras americanas efetiva, assim, com
sua trajetória inovadora, a conquista de um espaço
significativo dentro do mundo literário atual – um
espaço que Silviano Santiago (1970) definiu como
o “entre-lugar”.
Palavras-chave: Romance histórico. Novo
romance histórico. Metaficção historiográfica.
Romance histórico contemporâneo de mediação.
“Entre-lugar”

Gragoatá Niterói, n. 23, p. 149-167, 2. sem. 2007


Gragoatá Gilnei Francisco Fleck

Uma das mais significativas contribuições do Movimento


Romântico do século XIX para a literatura foi, sem dúvida, o
surgimento do romance histórico. Um modelo de narrativa que
conjuga elementos ficcionais com eventos históricos, explorado
de forma nova e consciente por Walter Scott, em sua obra Ivanhoé
(1819), possibilitou, inclusive, renovar o próprio romance. Ao
analisar o romance histórico tradicional, Lukács (1977) coloca que
não se trata de reviver pura e simplesmente o passado pelo único
fato de revivê-lo, mas sim no sentido de recriar o comportamento
dos seres humanos que atuaram nos fatos que configuram este
passado. Isso contribuiu para que tal forma narrativa pudesse
manter-se, até a contemporaneidade, como um dos gêneros mais
apreciados pelo público mundial. Carlos García Gual (2002,
p. 24-25) chama, neste aspecto, a atenção para o fato de que o
romance histórico tem uma clara vocação popular, já que nele
parece existir um acordo entre autores e público que comparti-
lham jogos de fantasia, vacilando entre testemunhos de caráter
verídico e a ficção. Estas narrações de caráter híbrido, segundo
o autor, impulsionam o público a olhar para o passado com uma
nova simpatia, pois nelas podem ser vistos aspectos obscuros
ou ignorados pelas crônicas oficiais, imagens mais coloridas e
uma grande vivificação de figuras solenes e também daquelas
marginalizadas pelos relatos precedentes. O passado torna-se,
assim, exótico, e as regras de ação mais claras e mais propícias a
uma espécie de aventura pessoal, pois proporcionam um maior
envolvimento do leitor com a matéria narrada.
O esquema estrutural de quase todos os romances históri-
cos de Scott, bem como da maioria de seus seguidores imediatos,
compunha-se, segundo Márquez Rodríguez (1991, p. 21), de
quatro características fundamentais, a saber:
1- Presença de um “pano de fundo” cuja ambientação é feita
com base em um período histórico real, mais ou menos
distante do tempo do romancista. Este “pano de fundo”
é constituído de um rigoroso caráter histórico, apresen-
tando figuras históricas bem conhecidas cujos nomes
autênticos são mantidos, os quais agem segundo as nor-
mas de sua época, conservando traços físicos, emocionais
e psicológicos que lhe foram concebidos pelo discurso
histórico e agindo sempre em situações historicamente
comprovadas.
2- Ao “pano de fundo” se sobrepõe uma trama ficcional na
qual personagens e ações artisticamente compostos, mas
que se ajustam às características de existência comum
dados por aqueles da época real do “pano de fundo”,
vivenciam suas aventuras que são o centro da narrativa.
Desta forma, estes seres ficcionais não ocasionam ne-
nhuma estranheza ao leitor já que seus valores e demais
150 Niterói, n. 23, p. 149-167, 2. sem. 2007
A conquista do “entre-lugar”: a trajetória do romance histórico na América

elementos ideológicos, etc, não se diferenciam daqueles


reais do ambiente e da atmosfera histórica aí reproduzida,
impossibilitando, deste modo, uma separação simples
entre ambas as categorias de personagens envolvidos no
enredo da obra.
3- Via de regra, e mantendo-se dentro dos padrões e prin-
cípios da escola romântica, a grande maioria das obras
de Scott, e de seus sucessores, apresenta, nessa trama
ficcional em primeiro plano, uma história de amor
problemática, cujo desfecho pode ser tanto feliz quanto
trágico.
4- A trama ficcional é o componente essencial da obra e nela
se concentra a atenção tanto do autor como do leitor. O
contexto histórico real constitui somente “pano de fundo”,
não significando isso que não tinha qualquer valor já que
nele é que se encontram configurados todos os elemen-
tos fundamentais que determinam o tempo e o espaço,
o ambiente e a atmosfera da obra. É do enfrentamento
entre os personagens principais, de caráter ficcional, e dos
secundários, históricos e de extração real, que se origi-
nam alguns dos argumentos fundamentais da diégese e,
assim, estes possibilitam a análise dos comportamentos
tanto de uns quanto de outros.
Os parâmetros estabelecidos pelos romances de Scott
constituíram regra para certo período, em maior ou menor grau,
segundo a aceitação do público e o momento histórico. Assim, na
Europa, começaram a ser rompidos ainda no Romantismo, em
1826, quando Alfred de Vigny publicou seu Cinq Mars, onde, ao
contrário dos romances de Scott, a ação principal era constituída
por fatos históricos que não eram apenas pano de fundo, como
nos de seu antecessor, ficando o fictício em segundo plano. Pode-
se considerar que esta ruptura estabelecida por Alfred de Vigny
pode ser constatada no romance histórico latino-americano
desde as suas origens.
Neste sentido, o primeiro romance histórico latino-ame-
ricano, Xicoténcatl, de autor anônimo, é publicado no mesmo
ano em que de Vigny publica a sua obra acima referida. É, pois,
interessante observar que ambas apresentam uma estrutura
que destoa do modelo scottiano. Em Xicoténcatl o núcleo cen-
tral também se assenta em personagens e episódios históricos
reais e traz as figuras de Hernán Cortés e Malinche como pro-
tagonistas. Reconta a história do encontro de dois mundos, na
qual se exaltam os tlaxcaltecas e os espanhóis são severamente
denunciados, tema que seguirá repetindo-se largamente no
romance latino-americano. Este primeiro romance histórico
hispano-americano, volta-se para a valorização da cultura oral

Niterói, n. 23, p. 149-167, 2. sem. 2007 151


Gragoatá Gilnei Francisco Fleck

que não desaparece quando os nativos americanos adquirem


o domínio da linguagem escrita. Assim, na trama novelesca,
o jovem Xicoténcatl, aprendeu dentro da cultura oral de seu
povo, especialmente de seu pai, o suficiente para desempenhar
um papel fundamental nos episódios da conquista do México,
efetuada por Hernán Cortés e Malinche, com quem divide o
espaço protagônico da obra.
Outras transformações no modelo tradicional de Scott fo-
ram surgindo com o passar do tempo na Europa. Victor Hugo, a
princípio tradutor e seguidor de Scott, agrega um novo elemento
ao romance histórico europeu: a coletividade. Em várias de suas
obras o povo começa a agir como protagonista no lugar dos he-
róis isolados, como fora costume até então, marca que também
já se fazia presente no primeiro romance histórico produzido na
América, mas que, ao longo da sua existência, compartilharam
com personagens históricos singulares a posição de protagonis-
tas das obras enquadradas nesse subgênero.
Na América do norte destaca-se, nesta fase em que traduzir
e imitar o modelo era a ação mais recorrente, a obra de James
Fenimore Cooper, Mercedes of Castile or the Voyage to Cathay (1840).
Cooper mantém as características do romance histórico tradi-
cional nesta narrativa que traz como pano de fundo o período
da consolidação do Estado Espanhol e personagens históricas
como Cristóvão Colombo e os reis Católicos Fernando e Isabel. A
trama inclui o passado histórico do descobrimento da América
e da unificação dos reinos de Castela e Aragão para a formação
da atual Espanha.
Como “pano de fundo”, o romance de Cooper trata dos Reis
Católicos, enfocando o seu noivado, o seu casamento, a conse-
qüente união das terras de Castela e Aragão e seu reinado. Em
seguida, são introduzidos os heróis fictícios da narrativa: Luis
de Bobadilla e Mercedes de Valverde. Ao seu lado teremos o vi-
sionário, Cristóvão Colombo. Estes são os personagens de maior
destaque na narrativa. A história de amor de Luis e Mercedes,
como a de Ivanhoé e Rovena, personagens do mais conhecido
romance histórico de Scott, passará por uma série de provas
antes de conhecer a felicidade almejada.
Relata, assim, o narrador que após conseguir o patrocínio
dos Reis Católicos, Colombo parte em sua viagem em busca de
uma rota ocidental para a China e leva consigo Luis de Boba-
dilla, que pretende provar ser um homem valoroso e merecedor
da mão de Mercedes. Após muito tempo navegando, Colombo
finalmente encontra terra firme. Durante a estadia nas novas
terras, Luis de Bobadilla encontra uma nativa muito bonita, Oze-
ma, parecida com Mercedes. Após salvá-la de diversos perigos,
decide levá-la para a Espanha. O fato de levar Ozema para a sua
terra quase acaba com a possibilidade de seu casamento com
Mercedes, pois todos pensaram que ele esquecera de seu amor
152 Niterói, n. 23, p. 149-167, 2. sem. 2007
A conquista do “entre-lugar”: a trajetória do romance histórico na América

por Mercedes e se apaixonara pela nativa das terras encontradas.


Felizmente o mal entendido é esclarecido e, ao final da narrativa,
Luis e Mercedes conseguem realizar seu desejo de união.
Este exemplo nos mostra que em solo americano todas as
modalidades que o romance histórico conheceu na Europa foram
aqui também exploradas, porém, suas maiores transformações
ainda estavam por ocorrer. De acordo com Silviano Santiago
(2000, p. 16-17), grande parte da história da literatura latino-
americana é este simulacro que se quer mais e mais semelhante
ao original, quando sua originalidade não se encontraria na
cópia do modelo original, mas na sua origem, apagada com-
pletamente pelos conquistadores. Assim “pelo extermínio dos
traços originais, pelo esquecimento da origem, o fenômeno de
duplicação se estabelece como a única regra válida de civiliza-
ção” (SANTIAGO, 2000, p. 16-17). Em outros países americanos
tal situação foi ainda mais marcante que no norte do continente
que hoje impõe uma situação de poder e dominação.
No Realismo europeu é Flaubert, com seu romance Sa-
lamnbó (1862), que introduz outras importantes inovações no
subgênero ao situar as ações do romance na Cartago antiga, e
não na Idade Média de seu país, e impregnando-se nas ideolo-
gias, não de então, mas sim a vigente no século XIX. A obra de
Flaubert também incrementou uma das principais características
do romance histórico que é a reconstrução minuciosa de uma
época passada. Tal aspecto é uma espécie de arqueologia que
se faz presente como marca de verossimilhança e componente
básica dos romances históricos que, necessariamente, devem
ambientar-se em uma época passada, a qual os escritores bus-
cam reconstituir através da descrição de lugares, cenas, hábitos,
costumes, tradições, etc.
Ainda no século XIX, outra transformação sensível nos ru-
mos do romance histórico é feita pelo escritor russo Tolstoi que,
no seu clássico Guerra e paz, publicado entre 1864 e 1869, apresenta
uma mescla de história e ficção numa narrativa distinta, onde a
influência de Scott é mínima. Na busca do avivamento de uma
consciência nacional o romance histórico ganha, aí, matizes que,
sob distintas formas, doses e com certa ironia, vem se mantendo
na narrativa atual latino-americana. Como assinala Márquez
Rodríguez (1991, p. 13), aparece um modo singular de narrar no
qual o entrecruzamento do ficcional com a veracidade histórica
resulta muito mais fluída e vital, desenvolvendo ao máximo,
deste modo, o que nos romances de Scott já era evidente e que
em solo americano produziriam obras que, pelas características
inovadoras e pelo uso diferenciado do material histórico, seriam
consideradas modelos até mesmo pelas antigas metrópoles co-
lonizadoras.
Tantas e tão profundas alterações no modelo scottiano
fazem surgir um novo romance histórico, com novos represen-
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Gragoatá Gilnei Francisco Fleck

tantes, características e funções. Alterações e rupturas que foram


aparecendo em obras literárias escritas por mestres e consagra-
das pelo público e pela crítica, passaram, de igual modo, a ser
incorporadas pelos demais expoentes do subgênero, embora
todas elas reverenciem ao criador, Walter Scott.
Em nosso continente, o romance histórico encontrou um
dos solos mais férteis. Na mente de nossos literatos, ele não só
aflorou como também adquiriu uma força de expressão como em
nenhuma outra parte do mundo. Suas características peculiares
conheceram também os processos de simbiose e hibridez, típicos
de nossa cultura. Assim, estes se mesclaram, por exemplo, aos
elementos do real maravilho, fazendo com que tal subgênero
romanesco não seguisse aqui padrões pré-estabelecidos em
terras distantes.
As rupturas que aqui se deram são, em parte, também con-
seqüência do tipo de história que nós vivemos. Há pouco mais
de meio milênio fomos descobertos pelos europeus que anos
mais tarde nos colonizaram. A nossa história passa, então, a ser
escrita por eles, descobridores e colonizadores, em sua grande
maioria, com o seu modo de ver, sentir, analisar e registrar. Nes-
te contexto o romance histórico tradicional, ou mesmo aquele
com certas rupturas que apareceu na Europa, não perduraria
por muito tempo.
Entre as produções romanescas hispano-americanas ainda
atreladas às características da escritura regionalista e costum-
brista do Realismo/Naturalisno, que ainda imperavam nas
décadas de 30 e 40, surge El reino de este mundo (1949), de Alejo
Carpentier, o qual chama a atenção, entre outras características
peculiares, pela forma distinta de manejo do material históri-
co inserido na tessitura da obra. Este romance, analisado pela
crítica, passou a ser considerado a obra que inaugurou o que se
costuma chamar de “novo romance histórico latino-americano”.
Uma modalidade que ganhou, a partir desta obra de Carpen-
tier, novos adeptos entre os romancistas do chamado “boom”
da literatura latino-americana, como Gabriel García Márquez,
Mario Vargas Llosa, Carlos Fuentes, Augusto Roa Bastos, entre
outros, e se intensifica nas décadas de 70 e 80, mantendo-se no
cenário das produções romanescas contemporâneas, juntamente
com outras modalidades do subgênero.
As características principais dessa nova modalidade de
escrita dentro do universo do romance histórico foram anali-
sadas por Fernando Ainsa em dois artigos: “El proceso de la
nueva narrativa latinoamericana. De la historia y la parodia”,
publicado no diário El Nacional de Caracas em 1988 e “La nueva
novela latinoamericana”, publicado em 1991. Neles o crítico tenta
sistematizar as principais inovações destas obras em relação às
que as antecederam e, por conseqüências, as diferenciam dos
modelos canônicos.
154 Niterói, n. 23, p. 149-167, 2. sem. 2007
A conquista do “entre-lugar”: a trajetória do romance histórico na América

Fernando Aínsa aponta, dez características que tornam


certos romances históricos hispano-americanos das décadas
de 70 e 80 diferentes de seus antecessores. Estas características
inovadoras presentes na produção romanesca americana foram
também estudadas por Seymour Menton (1993) em um vasto
corpus que inclui romances representativos de todas as regiões
da América. O estudioso canadense adota um sistema de classi-
ficação que reúne as obras com tendências mais tradicionais em
um grupo e aquelas nas quais se evidenciam as características
inovadoras, apontadas por Ainsa (1988-1991), em outro. As pecu-
lariedades encontradas por Ainsa (1988-1991) nas produções dos
romancistas históricos latino-americanos das décadas de 70 e 80
são, por sua vez, reavaliadas e reagrupadas por Menton (1993, p.
42-46) em um conjunto de seis características mais eminentes,
como se pode ver a seguir:
1- A apresentação mimética de determinado período his-
tórico se subordina, em diferentes graus, à apresentação
de algumas idéias filosóficas, segundo as quais é prati-
camente impossível se conhecer a verdade histórica ou a
realidade, o caráter cíclico da história e, paradoxalmente,
seu caráter imprevisível, que faz com que os aconteci-
mentos mais inesperados e absurdos possam ocorrer;
2- A distorção consciente da história mediante omissões,
anacronismos e exageros;
3- A ficcionalização de personagens históricos bem conhe-
cidos, ao contrário da fórmula usada por Scott e alguns
de seus seguidores;
4- A presença da metaficção ou comentários do narrador a
respeito do processo de criação;
5- Grande uso da intertextualidade, nos mais variados
graus;
6- Presença dos conceitos bakhtinianos de dialogia, carna-
valização, paródia e heteroglossia.
Segundo Menton (1993), tanto El reino de este mundo, de
Carpentier como Yo el Supremo (1974), de Roa Bastos, são cita-
dos pelos críticos como marcos iniciais das grandes inovações
dentro do subgênero ocasionados por esta nova modalidade
denominada novo romance histórico latino-americano. Não se
trata aqui, então, de definir quem fundou a nova modalidade.
Podemos, no entanto, seguindo o raciocínio de Menton, atribuir
a Carpentier o pioneirismo, tendo estabelecido os seus funda-
mentos. A atuação decisiva de Roa Bastos, bem como de Carlos
Fuentes e Mario Vargas Llosa, entre outros, são contribuições
de suma importância para o desenvolvimento e proliferação

Niterói, n. 23, p. 149-167, 2. sem. 2007 155


Gragoatá Gilnei Francisco Fleck

desta modalidade do romance histórico que, da mesma forma


como as demais, contribui para a formação de uma verdadeira
consciência latino-americana.
Esta trajetória do romance histórico na América em ne-
nhum momento ocasionou o completo desaparecimento de
qualquer uma das modalidades mais tradicionais. Pelo contrário,
o que se percebe em solo americano é a convivência de múltiplas
modalidades do subgênero que, submetido aos projetos estéticos
e ideológicos dos romancistas deste continente, segue propenso
às inovações.
Deste modo, o romance histórico das últimas décadas do
século XX, ao negar as características dos modelos tradicionais,
por sua vez, imprime à modalidade do novo romance histórico
traços que superam as características relacionadas por Ainsa
(1988, 1991) e Menton (1993). Segundo Larios (1997, p. 133), tais
expressões romanescas contemporâneas já não mais se preocu-
pam em estabelecer dissensões com o discurso histórico oficial
e, nas novas perspectivas sob as quais reelaboram o passado,
percebem-se suas intenções de, junto com a história, recuperar
o passado, incluindo em sua reconstituição também o que não
foi ou aquilo que poderia ter sido. Tal atitude fica demonstrada
em seu laborioso e imenso acervo documental que chega a se
sobrepor ao nível ficcional e, a preferência por personagens
históricos bem conhecidos em primeiro plano, como protago-
nistas das obras, possibilita uma profunda rede intertextual
de conhecimentos prévios que, entre outros aspectos, acabam
questionando o próprio fazer histórico, além do fazer literário.
Conforme Larios (1997, p. 135) “[...] de esta manera descreyendo
en la forma literaria de la vieja novela, atributada por el costum-
brismo y el realismo, se descree también en la legitimación del
metarrelato llamado historia”. Trata-se de um posicionamento
que, analisado hoje sob o ponto de vista do conquistador, nas
palavras de Celia Fernández Prieto (2003), adquire uma nova
dimensão. A estudiosa espanhola entende que a “outra” história
da conquista, com suas versões e interpretações, imagens e en-
tonação próprias de conquistados, seguia pendente, e uma das
vias possíveis para expressá-las foi encontrada pelos romancistas
históricos, pois em suas obras
[…] los escritores buscaron las vías para dar voz a esa memoria
viva de sus pueblos y para exponer no sólo lo que significó para
ellos la llegada de los españoles y los europeos, sino también lo
que pensaban de aquella civilización que destruyó su mundo
y su cultura. Y una de estas vías la encontraron en la novela
histórica. (FERNÁNDEZ PRIETO, 2003, p. 156)
Essas vozes que expressam a memória dos povos coloni-
zados e explorados manifestam-se nas produções romanescas
históricas americanas contemporâneas em múltiplas perspec-

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A conquista do “entre-lugar”: a trajetória do romance histórico na América

tivas e, segundo Larios (1997), elas são descrentes do passado


histórico oficial, abandonando e condenando, de forma ainda
mais explícita e feroz, os procedimentos comuns de exaltação e
legitimização adotados pela historiografia tradicional. A recria-
ção do passado com seus personagens se dá com base mais em
sua humanidade que em seu misticismo ou heroísmo, através de
meios que lhe são peculiares e preciosos e que vem a facilitar a
invenção essencial às obras de arte, especialmente no contexto
hispano-americano.
A crise que se instaurou no seio da própria história e que
abalou os alicerces da história positivista com seu caráter cien-
tífico, conseguido em meados do século XIX, e que nos anos 70
do século XX viu-se obrigada a rever e reestruturar as bases do
seu discurso, fazendo surgir os movimentos da nova história,
é, sem dúvida, também propulsora destas novas modalidades
de romance histórico que passam a questionar, além de outros
pontos essências da história tradicional, o seu “cientificismo”
uma vez que esta é, da mesma forma como a literatura, uma
construção discursiva que só existe em função da linguagem.
Novas aproximações entre literatura e história são admitidas
neste período, especialmente pelos pressupostos da nova história
que tem como um de seus principais representantes o historiador
medievalista francês Jacques Le Goff (1978, p. 261), que propõe
“fazer uma História não automática mas problemática”.
A história, neste sentido e conforme Peter Burke (1991,
p. 287-293), advoga, pelos princípios da nova história, por uma
conciliação entre os dois métodos – o narrativo e o estrutural –
em razão da dificuldade de se estabelecer uma distinção clara
entre acontecimentos e estruturas. Nesta nova concepção de
história, também se considera o problema da narração. Esta é
avaliada não somente como um tipo de discurso que apresenta
características particulares, mas, fundamentalmente, como uma
forma de inteligibilidade, como uma estrutura sem a qual não
seria possível apreender o caráter temporal da existência hu-
mana, nem compreender a ação dos indivíduos, configurados
também sob formas narrativas. Contribuem para tais discussões
as teorias de Hayden White (1978, 1979), Northrop Frye (1978),
Luiz Costa Lima (1986), Roger Duby (1986), Michel de Volvelle
(1987), Roland Barthes (1988), Mario Vargas Llosa (1990), Peter
Gay (1990), Roger Chartier (1990), entre outros e que, em síntese,
buscam evidenciar o caráter lingüístico discursivo da história,
com base na “interpretação” particular do passado, que compõe
o fazer da história.
Retomando a proposição de Peter Burke (1991, p. 287 – 293)
de aproximar narrativa e ficção, vemos que o romance, ao expor
os mecanismos de ficcionalização revelados, como apontam os
estudos de Gérard Genette [s.d.], pelo acesso direto à subjetivida-
de das personagens através dos monólogos interiores, pelo uso
Niterói, n. 23, p. 149-167, 2. sem. 2007 157
Gragoatá Gilnei Francisco Fleck

do discurso indireto livre e de verbos estritamente relacionados


com sentimentos e pensamentos, acaba produzindo uma história
já contada por outros discursos. Esse caráter hipertextual, que
se revela como renarrativização dos eventos do passado, passa,
no presente, a ser uma metanarração.
O termo “metaficção historiográfica” foi proposto por Linda
Hutcheon, em 1988, em sua obra A poetics of posmodernism: history,
theory, fiction, na qual a autora expõe que na contemporaneida-
de percebe-se a existência de obras nas quais a metanarração
constitui-se um nível de sentido global do texto, determinando
também a sua estrutura e as opções narrativas. Entende-se por
metanarração os procedimentos adotados pelo narrador de um
romance com o objetivo de evidenciar os mecanismos de caráter
ficcional que sustentam sua própria narração, seus artifícios,
estratégias e procedimentos que são revelados ao leitor. A meta-
narração tem como objetivo principal manter o leitor consciente
de que está diante de um mundo de construção discursiva, que
está lendo uma obra literária, impedindo-lhe, assim, de evadir-
se para um espaço ilusório que o leve a crer na ficção como se
esta pudesse constituir-se em um mundo real.
Ao valer-se dos procedimentos metanarrativos, usa-os para
questionar ou diluir os limites entre a ficção e a história. Deste
modo, a metanarração historiográfica assume o valor histórico e
os conceitos relativos e mutáveis de história e ficção, já que ambas
são, em nossa cultura, meios, ou sistemas, de dar sentido ao real,
diferenciáveis apenas em seus sentidos pragmáticos.
A volta ao passado, empreendida pela metaficção his-
toriográfica é, na verdade uma espécie de “presentificação”
problemática e um intenso diálogo com este passado registrado
pela história oficial, que nos foi sempre apresentado sob o signo
da “verdade”. Assim, como aponta Linda Hutcheon (1991), não
podemos conhecer realmente os eventos do passado, pois o que
chega até nós são os fatos registrados por alguém através do uso
da linguagem, ou seja, um discurso. Sob esta perspectiva, na qual
se concebem os discursos histórico e ficcional como “construções
de realidade” apoiadas nas fórmulas que regulam a narração,
acabam-se diluindo as fronteiras impostas pela historiografia
tradicional entre o real e o fictício. Tal fato possibilita que ambas
as leituras, a de caráter histórico e científico, bem como a de ca-
ráter ficcional e artístico, possam ser vistas como interpretações
de um mesmo passado. Um ponto de vista de Linda Hutcheon
(1991) que é também compartilhado por Leenhardt e Pesavento
(1998). Neste sentido, Hutcheon (1991, p. 141) destaca o papel
fundamental da verossimilhança para ambas as áreas, já que
[...] as duas obtêm suas forças a partir da verossimilhança,
mais do que a partir de qualquer verdade objetiva; as duas são
identificadas como construtos lingüísticos, altamente conven-
cionalizados em suas formas narrativas, e nada transparentes

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A conquista do “entre-lugar”: a trajetória do romance histórico na América

em termos de linguagem ou de estruturas e parecem ser igual-


mente intertextuais, desenvolvendo os textos do passado com
sua própria textualidade complexa. Mas esses também são os
ensinamentos implícitos da metaficção historiográfica.
Deste modo, dentro desta concepção de uso e limites da
linguagem, tanto pela ficção como pela história, muitos novos
romances históricos adotaram procedimentos de metanarração,
podendo ser, assim, considerados romances históricos meta-
ficcionais. Contudo, nem todos estes podem ser considerados
metaficções historiográficas, segundo a concepção proposta pos
Linda Hutcheon (1991). A presença da metaficção ou comentá-
rios do narrador a respeito do processo de criação – uma das
características do novo romance histórico apontada por Menton
(1993) – não é, pois, elemento suficiente para fazer de uma obra
uma metaficção historiográfica. Isso lhe garante, sem dúvidas,
o emprego do adjetivo “metaficcional”.
O que caracteriza as obras essencialmente de metaficção
historiográfica, e que diferenciam tais obras das concebidas
dentro da modalidade do novo romance histórico, é, em es-
sência, a profunda autoconsciência com que o narrador exibe
e assume o conhecimento de que história e ficção são, ambas,
construções discursivas, sistemas de dar sentido ao real. Um
conhecimento que se revela na própria tessitura da obra e que
mostra a natureza discursiva e intertextual do passado, aliado
ao seu caráter paradoxal que se apóia nos confrontos, segundo
Hutcheon (1991, p. 106), de dicotomias como ficção/representa-
ção histórica, particular/geral, presente/passado. Nestas obras,
como já mencionamos, a metaficção não é apenas uma estratégia
ou recurso narrativo; ela se constitui no sentido global do texto,
sendo que é ela que determina as suas estrutura e as opções
narrativas. Para tanto, vale-se dos mecanismos e estratégias da
metanarração para questionar ou mesmo eliminar os limites
entre a ficção e a realidade, ou seja, entre a literatura e a histó-
ria. O emprego dos mecanismos de metanarração, entre várias
outras características compartilhadas, aproxima as metaficções
historiográficas e os novos romances históricos. Tal fato causa,
inclusive, dificuldades em classificar determinadas obras, pois,
como história e ficção são construções discursivas que se inter-
polam, o novo romance histórico e a metaficção historiográfica
são modalidades narrativas que compartilham muitas carac-
terísticas e podem, em determinados momentos, fundir-se em
suas fronteiras bastante permeáveis.
A trajetória do romance histórico na América, de acor-
do com nossas pesquisas, inclui manifestações variadas que
acompanham as evoluções tanto dos estudos literários, como
das transformações no campo da história como ciência. Já no
parecer de Fernández Prieto (2003, p. 150), o romance histórico
latino-americano contemporâneo “[...] se distribuye en dos líneas
Niterói, n. 23, p. 149-167, 2. sem. 2007 159
Gragoatá Gilnei Francisco Fleck

básicas: una que mantiene en sus rasgos esenciales el modelo


genérico tradicional, y la otra que altera esos rasgos y a la que
se denomina nueva novela histórica o novela histórica post-
moderna”. Se, contudo, analisarmos tal produção em sua real
diversidade e riqueza, essa distribuição da teórica espanhola
não condiz com nossa realidade. Os estudos que temos feito nos
têm mostrado que, de fato, o romance histórico produzido em
solo americano na contemporaneidade tem se manifestado, de
forma geral, dentro de três tendências principais. Estas tendên-
cias não são, de modo algum, delimitações fixas, uma vez que
há confluências de características de uma modalidade para com
as outras em inúmeras obras contemporâneas. Este permanente
processo de auto-renovação, cremos, ser uma das principais
fontes energizadoras e revitalizadoras do subgênero romanesco
aqui abordado. Isso faz com que ele siga se mantendo entre as
leituras mais prestigiadas do momento. Relacionamos, a seguir,
as principais modalidades, ou tendências, nas quais o romance
histórico tem se manifestado em nosso continente:
1- A linha genérica tradicional: oriunda ainda dos modelos
europeus do século XIX, se apresenta com certas reno-
vações estruturais que se manifestam especialmente na
subjetivação que ocorre ao filtrar-se o material histórico
pela interioridade das personagens. Desta forma o passa-
do histórico se filtra pela voz e visão da personagem que
lhe imprime um efeito de experiência pessoal e o discurso
é transpassado pelos seus sentimentos e emoções com as
quais o leitor tende a se identificar, eliminando a distância
temporal que separa a experiência histórica do perso-
nagem e o cotidiano do leitor. Estas produções não pos-
suem a essência questionadora dos registros do passado
presente nas outras modalidades de romances históricos
aqui mencionados. Assim, os romances da linha genérica
tradicional muitas vezes, acabam, na contemporaneidade,
avalizando o discurso histórico hegemônico sob o qual
o passado reconstruído foi anteriormente registrado. É
o caso que ocorre com o romance do brasileiro Paulo
Novaes (2006), A caravela dos Insensatos – um passeio pela
Renascença, que difere discursivamente dos demais roma-
nes históricos da poética do descobrimento produzidos
na América latina nos últimos anos.
2- O novo romance histórico e a metaficção historiográfi-
ca: nestas modalidades, cujas características principais
elencamos acima, incluem-se uma série de romances
experimentalistas, que, além do intenso trabalho com a
linguagem, buscam a distorção dos materiais históricos
ao incorporá-los na diégese ficcional pelo emprego de
histórias alternativas, apócrifas, anacrônicas. Nestes ro-
160 Niterói, n. 23, p. 149-167, 2. sem. 2007
A conquista do “entre-lugar”: a trajetória do romance histórico na América

mances há uma multiplicação de anacronismos, o uso da


paródia, da intertextualidade, da ironia, da dialogia, da
polifonia, entre outros recursos, que possibilitam novas
perspectivas aos eventos do passado. Entre estes, como
representantes da modalidade do novo romance histórico
poderíamos citar os romances La guerra del fin del mundo
(1997) de Mario Vargas Llosa, Cristóbal Nonato (1997), de
Carlos Fuentes e Vigilia del Almirante (1992), de Augusto
Roa Bastos. Como excelente modelo de metaficção his-
toriográfica podemos citar a obra Santa Evita (1997) de
Tomás Eloi Martínez. Neste romance, marcado pela pa-
ródia, a intertextualidade, a heteroglossia, o pastiche, etc,
encontram-se dois eixos argumentais interrelacionados
e interdenpendentes que, aliado a outros elementos, evi-
denciam as diferenças marcantes entre uma modalidade
e outra. Por um lado temos a narrtiva da própria escritura
do romance, feita em primeira pessoa que busca identi-
ficar o narrador desta história com o autor que escreve a
obra: Tomás Eloy Martínez. É, pois, Tomás Eloy Martínez
quem explica a seus leitores como foi que elaborou este ro-
mance, as peripécias de suas investigações, as motivações
que o levaram a tal aventura e como neste projeto estéti-
co confluem e se entrecuzam outros empreendimentos
literários seus e de outros escritores. Entramada com o
outro eixo narrativa, este primeiro causa a fragmentação
da narrativa e o deslocamento temporal – estratégias
que buscam produzir no leitor os mesmos efeitos que o
projeto estético causou ao narrador/autor (confundir e
romper as barreiras entre ambos é o propósito da narra-
tiva). No segundo eixo, aparece o intento de reconstruir a
história de Eva Perón. Este eixo caminha em duas linhas
temporais – uma volta-se para o passado e outra para o
futuro. Numa se vai revelando a biografia de Eva Perón
e na outra são narradas as peripécias do translado do
corpo mumificado de Eva Perón de um local a outro. As
narrações das duas linhas temporais se interpolam e são,
várias vezes, interrompidas com as reflexões e comentá-
rios metanarrativos do narrador/autor do primeiro eixo.
Este registra suas opiniões sobre a credibilidade ou não
das fontes examinadas ou dos testemunhos ouvidos e
que sustentam, como fontes referencias, a produção do
romance. Isso faz com que o leitor se depare com um
entramdo de versões contraditórias, pois os informantes
ouvidos pelo narrador já não distinguem mais entre o
ocorrido e o imaginado, possibilidades se tornam fatos,
imaginação transforma-se em documento, etc. Tudo isso
leva o narrador a uma conclusão, que poderíamos clas-
sificar de metaficcional: “Si la historia es – como parece
Niterói, n. 23, p. 149-167, 2. sem. 2007 161
Gragoatá Gilnei Francisco Fleck

– otro de los géneros literarios ¿por qué privarla de la


imaginación, el desatino, la indelicadeza, la exageración
y la derrota que son materia prima sin la cual no se con-
cibe la literatura?” (MARTÍNEZ, 1997, p. 146). A obra de
Tomás Eloy Martínez se insere dentro dos pressupostos
da metaficção historiográfica, apontados por Hutcheon,
pois (1991, p. 121), além de constituir-se no sentido global
da obra, “[...] ele reinsere os contextos históricos como
sendo significantes, e até determinantes, mas, ao fazê-lo,
problematiza toda a noção de conhecimento histórico”.
Uma obra que, ao nosso ver, encontra-se nos limites das
duas modalidades aqui conjugadas é Los perros del paraíso (1983)
de Abel Posse. Nela há um desejo de repensar o passado e suas
relações com o presente instigado pelo emprego de técnicas
narrativas que lhe conferem muitos dos efeitos das próprias
metaficções historiográficas, pois, de acordo com Linda Hutche-
on (1991, p. 121), “hoje pensar historicamente é pensar crítica e
contextualmente”.
3- Romance histórico contemporâneo de mediação: é a
tendência surgida mais recentemente na América latina.
Costumo denominá-la de “romance histórico de media-
ção” porque nela se percebe a manifestação de tentati-
vas de conciliação entre as modalidades antecedentes.
Em sua elaboração não se abandonam os processos que
constituem as características essenciais do novo romance
histórico latinoamericano, por exemplo o emprego de
estratégias como o da paródia e toda a “sinfonia bakhti-
niana”, descrita por Menton (1993), além de algumas das
questões fundamentais da metaficção historiográfica;
porém o texto volta a ser mais linear, já que o emprego
das estratégias que constituem os modelos mais experi-
mentalistas passa a ser mais moderado. Isso torna seu
processo de leitura mais acessível ao leitor comum, pois
não há nele o exagero experimental que caracteriza o
modelo de romance histórico das décadas de 80 e 90,
especialmente no contexto latino-americano. Exemplos
desta vertente são, entre outros, os romances da poética
do descobrimento da América lançados nos últimos anos:
The Accidental Indies (2000), do canadense Robert Finley;
El último crimen de Colón (2001), do argentino Marcelo
Leonardo Levinas; El Conquistador (2006), do também
argentino Federico Andahazi e La Tumba de Colón (2006),
do espanhol radicado na República Dominicana Miguel
Ruiz Montañez.
A literatura latino-americana ao longo dos séculos vem
tentando se libertar do jugo dos países dominantes. Ela segue
buscando na contemporaneidade, por meios da “destruição sis-
162 Niterói, n. 23, p. 149-167, 2. sem. 2007
A conquista do “entre-lugar”: a trajetória do romance histórico na América

temática de valores”, segundo menciona Santiago (2000), seus


modos próprios de expressão, incorporando as influências como
substâncias mesmas de sua expressividade, reaproveitando,
como se percebe pela trajetória do romance histórico, muitos
dos elementos que, no passado, constituíram elementos ou mo-
vimentos de vanguarda. Estes, embora considerados superados
por grande parte da crítica, seguem auxiliando, ao lado de outras
e novas estratégias, a elaboração de grande parte dos projetos
estéticos dos romancistas em nosso continente. Uma prática
constante, especialmente para o escritor latino-americano que,
como revela Silviano Santiago (2000, p. 20) “[...] brinca com os
signos de um outro escritor, de uma outra obra”. Deste modo a
reescritura paródica torna-se, para este escritor, um ato de prazer,
conforme descreve Santiago (2000, p. 20), ao mencionar que “[...]
as palavras do outro têm a particularidade de se apresentarem
como objetos que fascinam seus olhos, seus dedos e a escritura do
segundo texto é em parte a história de uma experiência sensual
com o signo estrangeiro”. Tal atitude volta-se para a conquista
de um espaço próprio dentro da nossa história que foi escrita
pelos outros. Um intento que se manifesta de forma única nas
palavras de Silvino Santiago (2000, p. 26), ao revelar que o escritor
latino-americano já encontrou o meio e o modo de fazê-lo:
Entre o sacrifício e o jogo, entre a prisão e a transgressão, entre
a submissão ao código e a transgressão, entre a obediência e
a rebelião, entre a assimilação e a expressão – ali, nesse lugar
aparentemente vazio, seu templo e seu lugar de clandestini-
dade, ali, se realiza o ritual antropófago da literatura latino-
americana.
Este “ritual antropófago” vale-se, entre outros meios, da
carnavalização e da paródia. A convivência simultânea das
diferentes correntes do romance histórico americano aqui men-
cionadas revela a atualidade deste processo. As configurações
atuais do romance histórico na América, resultado de toda a
sua trajetória, são, pois, exemplos claros desta luta dos países
outrora colonizados e da atual conquista, ao menos em parte,
de nosso “entre-lugar”.
Proposto por Silviano Santiago nos anos 70, este conceito de
“entre-lugar” transpassou as fronteiras e tem sido utilizado em
diversos países com diferentes nomenclaturas, segundo registra
Núbia Hanciau (2005, p. 127). Em nosso caso, este conceito pode
ser aplicado para designar o território imaginário no qual as
sociedades periféricas latino-americanas realizam o seu ritual
antropófago cultural que lhes permite se expressar apesar da
“angústia da influência”. Na contemporaneidade pode-se dizer
que os latino-americanos aprenderam a angustiante lição da
escrita, expressada por Harold Bloom (1991, p. 17) em sua obra
A angústia da influência: “[...] o desvirtuamento do passado é o

Niterói, n. 23, p. 149-167, 2. sem. 2007 163


Gragoatá Gilnei Francisco Fleck

mais valioso instrumento de sobrevivência poética, já a carga


de anterioridade, enquanto ameaça de mera repetição, é o maior
impedimento à formação do poeta”.
Neste sentido, o modo como a reescritura paródica torna-
se muito mais que simples cópia é anunciado, entre outros, por
exemplo, na voz do narrador de Vigilia del Almirante (1992), de
Augusto Roa Bastos (1992, p. 123): “[...] salvo que este imponga
el orden de su espíritu a la materia informe de las repeticiones,
imparta a la voz extraña su propia entonación y la impregne
con la sustancia de su sangre, rescatando lo propio en lo ajeno”.
Esse “resgate” é muitas vezes, para o escritor latino-americano,
como menciona Silviano Santiago, (2000, p. 26), um “ritual antro-
pófago”, no qual o texto alheio torna-se o alvo a ser impregnado
com o sangue de quem o “devora”, (re)utilizando a metáfora de
Santiago (2000, p. 25), quando este menciona que “[...] o escritor
latino-americano é o devorador de livros de quem os contos de
Borges nos falam com insistência.” Assim, a tradição que ou-
trora nos oprimia passou a ser substância incorporada, matéria
impregnada com o “sangue” criativo de nossos romancistas
históricos que souberam trilhar novos rumos a partir dos mo-
delos canônicos das metrópoles, gerando, deste modo, o grande
“entre-lugar” que abriga a qualidade de nossas criações literárias
contemporâneas, entre as quais se destaca o romance histórico
em suas múltiplas vertentes. Da tradição à renovação, do expe-
rimentalismo à conciliação, este subgênero expressa de forma
singular as releituras da tradição em terras americanas.
Abstract

This paper has as maim purpose to show that the


genre of the historical novel has had in America a
trajectory which has passed through all the ways
this literary genre has known in Europe since
its beginning with Walter Scott (1819), until its
contemporary configuration. Here in America,
however, this hybrid narrative genre found a uni-
verse in which the historical realities are so unique
that once they are turned into fiction by novelists
worried about giving the right to voice to those
people who were colonized, it has generated works
of art which have printed new configurations
to the old models. This is done especially by the
kind of critic reading such novels try to promote
by retelling the past registered only under the
European colonizers’ perspectives. The written
of historical novels in America effectuates, in
this way and by its especial renewed trajectory,
the conquest of a symbolic and significant space

164 Niterói, n. 23, p. 149-167, 2. sem. 2007


A conquista do “entre-lugar”: a trajetória do romance histórico na América

inside the nowadays literary world – a


space which Silviano Santiago defined as
the “space-in-between”.
Keywords: Traditional historical novels.
New historical novel. Historical metafic-
tion. Contemporary historical novels of
mediation. The “space-in-between”.

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Ideograma e pensamento selvagem – a
arte e a ciência do yãmîy maxakali
Charles Bicalho

Recebido 4, jul. 2007/Aprovado 3, set. 2007

Resumo
Este artigo aborda um gênero de poesia tradi-
cionalmente oral dos índios Maxakali de Minas
Gerais. Apresenta a transcriação, nos padrões
estabelecidos por Haroldo de Campos, como pro-
posta de tradução dos cantos-poemas indígenas
da língua maxakali para a língua portuguesa.
Sugere que tais cantos-poemas, ou yãmîys, como
são chamados na língua maxakali, apresentam um
método ideogrâmico de composição no que tange à
teoria do ideograma segundo Ezra Pound, e pos-
teriormente também desenvolvida por Haroldo de
Campos. Compara o yãmîy a um gênero, também
tradicionalmente oral, de poesia africana, estudado
e transcriado por Antônio Risério: o oriki. E, por
fim, realiza uma interseção entre a Teoria Literária
e a Antropologia, mais especificamente o conceito
de pensamento selvagem de Lévi-Strauss, com
vistas a reconhecer também o caráter científico
imbricado neste tipo de texto.
Palavras-chave: Ideograma. Pensamento selva-
gem. Maxakali. Literatura.

Gragoatá Niterói, n. 23, p. 169-187, 2. sem. 2007


Gragoatá Charles Bicalho

1. Introdução
Este trabalho se constitui na tentativa de relacionar dois
campos de conhecimento ou dois conceitos centrais de discipli-
nas que, se em muitos termos são afins, em outros são bastante
díspares. Tais disciplinas são a Teoria Literária e a Antropologia.
A inter-relação entre os estudos antropológicos e a Lingüística
(área muito afim aos estudos literários, ainda que divergências
existam entre as duas) já está sedimentada, mas as afinidades
com a literatura ou a crítica literária foram esboçadas, porém
pouco desenvolvidas.
Este trabalho se propõe, portanto, a relacionar um conceito
central à Teoria Literária (Ideograma, sobretudo o desenvolvi-
mento que lhe dá Haroldo de Campos) e uma idéia, igualmente
central na Antropologia (o Pensamento Selvagem, de Lévi-Strauss).
Como uma espécie de amálgama a unir estes dois elos da cor-
rente que nos propomos forjar, faremos uso da Semiótica de
Peirce. Outros autores, caros tanto à Antropologia quanto à Te-
oria Literária, cuja atuação se insira nos domínios teóricos aqui
abordados, deverão dar apoio à nossa argumentação. Assim, na
Antropologia, Clifford Geertz, com seu “Selvagem Cerebral”,
sobre a obra de Lévi-Strauss, nos será proveitoso; bem como, no
campo literário, Ezra Pound, mentor e principal realizador em
poesia do chamado “método ideogrâmico de compor”.
Nossa proposta é, pois, realizar tal interseção entre duas
ciências que muitas vezes se confundem com o discurso artístico,
dele explicitamente se fazendo valer, para observarmos certa
manifestação performática, com ênfase em seu aspecto verbal,
que se insere no rol dos sistemas simbólicos dos índios Maxakali
de Minas Gerais.
O que motivou tal empreitada é a afinidade existente entre
as duas concepções ou teorias, uma do campo da Teoria Literária,
outra da Antropologia, e a percepção de que o yãmîy maxakali
(gênero discursivo indígena) é uma expressão privilegiada de
ambas.
2. Os Maxakali
Os Maxakali vivem no nordeste de Minas Gerais, preci-
samente no Vale do Mucuri. São em torno de mil indivíduos
vivendo numa reserva pouco maior que cinco mil hectares.
Segundo os lingüistas, sua língua pertence à homônima família
Maxakali, que por sua vez pertence ao tronco Macro-Jê. Macro-Jê
e Tupi são os dois principais troncos lingüísticos indígenas do
Brasil. Os Maxakali surpreendem por ainda manterem intacta
não só sua língua, mas quase toda sua cultura, incluindo a reli-
gião, a organização social, os costumes, etc. Como nos ensinam
os antropólogos, são um povo tradicionalmente semi-nômade,
caçadores e coletores. Costumavam vagar por ampla área que

170 Niterói, n. 23, p. 169-187, 2. sem. 2007


Ideograma e pensamento selvagem – a arte e a ciência do yãmîy maxakali

se estende do sul da Bahia ao norte do Espírito Santo, abran-


gendo todo o nordeste de Minas. Depois de trágica história de
contato com o chamado mundo civilizado, cujo início se registra
há pouco mais de trezentos anos, acabaram por ter o território
restringido à reserva que hoje se conhece. São duas as aldeias
em que se dividem suas terras: Pradinho e Água Boa. A primeira
pertencente ao município de Bertópolis, a segunda, ao de Santa
Helena de Minas.
Yãmîy quer dizer “canto” em Maxakali. E também “espí-
rito”. Yãmîy é a concepção central para se entender a cultura e
a religião Maxakali. Para o Maxakali o trabalho com a palavra
é o cerne da vida, da religião e da cultura. Em sua concepção o
ser humano nasce com um koxux (fala-se algo como “kochui” -
palavra que designa qualquer idéia ou manifestação de imagem:
seja um desenho, uma fotografia, a sombra, e a própria alma).
Quando morre, o ser humano deve ter seu koxux transformado
em yãmîy. Para isso deve-se “colecionar” yãmîys-cantos ao longo
da vida (ALVARES, 1992).
Mais especificamente os yãmîys são cantos sagrados; ver-
dadeiras composições poético-musicais cantadas nos rituais. Os
yãmîys-cantos referem-se aos yãmîys-espíritos. Ou seja, para
cada espírito do panteão Maxakali há pelo menos um canto
correspondente.
Tais espíritos incluem desde animas terrestres, como a
paca, o tatu; voadores, como o morcego, o gavião, o papagaio; os
insetos, como a cigarra; figuras míticas, dentre as quais o mais
famoso provavelmente é Inmõxã, fera que caça humanos à noite
nas matas, normalmente metamorfoseado em onça; e as almas
dos humanos mortos, os parentes (ou xape em Maxakali).
Segundo Alvares (1986), “a escatologia Maxakali divide a
pessoa em dois aspectos: o cadáver – xukxax – ‘coisa morta’ e o
espírito vivo – koxuk – que também recebe o epíteto de – yina
xe’e – ‘palavra verdadeira’. Para escapar ao seu destino de onça
canibal, o cadáver deverá ser cercado por uma série de precau-
ções rituais que inscrevem-se no complexo de ‘abstinência do
sangue’. O koxuk transformar-se-á em yãmiy – ‘os donos do canto’
– a Palavra por excelência” (p. 95).
3. Da oralidade à escrita
A escrita foi introduzida na língua maxakali por Harold
Popovich, missionário do Summer Institute of Linguistics – SIL,
órgão norte-americano que patrocina catequeses mundo afora.
Popovich conviveu com os maxakalis na década de 60, apren-
deu sua língua, e se admirou com sua cultura. Prova disso é o
trabalho realizado por ele acerca do vasto mundo dos espíritos
maxakalis. Dotados de um método eficiente, em pouco tempo os
membros do SIL aprendem a língua de povos tradicionalmente
ágrafos, instituem uma escrita, alfabetizam alguns índios e
Niterói, n. 23, p. 169-187, 2. sem. 2007 171
Gragoatá Charles Bicalho

finalmente traduzem a Bíblia, no intuito de arrebanhar mais


almas para o Cristianismo. Com os Maxakali, no entanto, isso
não se deu. Eles ainda mantêm intacta sua própria religião. Seu
complexo panteão vive.
Hoje em dia o lingüista maxakali é Sandro Campos, da
Faculdade de Letras da UFMG, e seu propósito é laico.
A Constituição Brasileira, em seu artigo 210, parágrafo se-
gundo, dispõe: “O ensino fundamental regular será ministrado
em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas
também a utilização de suas línguas maternas e processos
próprios de aprendizagem.” E no artigo 231: “São reconhecidos
aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e
tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicio-
nalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e
fazer respeitar todos os seus bens.” Com base aí tiveram início
em todo o Brasil programas de educação diferenciada para os
povos indígenas. Em Minas se criou o Programa de Implantação
de Escolas Indígenas de Minas Gerais – PIEI-MG. Como parte
do Programa objetiva-se a elaboração de material didático a ser
usado pelos índios em suas escolas: cartilhas de alfabetização,
livros de Geografia, Matemática, História e naturalmente obras
literárias. Esta produção, no caso maxakali, costume ser bilín-
güe. E sua literatura, antes exclusivamente oral, agora surge
em livros. É assim que vemos nascer um novo e rico acervo
literário a ser consumido também pela sociedade envoltória. “O
produto final”, revela Maria Inês, “aponta para um modelo de
texto cuja leitura demandaria antes os cinco sentidos do corpo,
ao invés de um modelo logocêntrico, racional. Existe, portanto,
a possibilidade de uma leitura semiótica dos livros indígenas,
na medida em que, para os leitores/escritores pataxós, krenaks,
maxakalis e xacriabás, pude observar que o texto verbal não
tem predominância absoluta na produção de sentidos, como se
dá normalmente com a literatura escrita. Podemos sobrepor, ao
conceito de livro, o de projeto gráfico, considerando este termo
na sua literalidade, livrando-o do peso vocabular técnico: o livro,
como projeto e grafias, pode ser desculturalizado, retornando
ao seu estado de coisa, para ser recolocado na cultura indígena”
(ALMEIDA, 2000, p. 48).
4. Transcriando yãmîys
Como professor do PIEI-MG, participo da elaboração do
material didático das escolas maxakalis. Esse material costuma
ser bilíngüe e, para isso realizamos traduções. Naturalmente os
subsídios para a produção dessa nova literatura, como em qual-
quer cultura, é buscado em sua mitologia. Narrativas tradicionais
e cantos religiosos são frequentemente escritos, traduzidos e
publicados. No caso Maxakali, os cantos sagrados são chama-
dos yãmîy, que, uma vez publicados em livros em sua forma
172 Niterói, n. 23, p. 169-187, 2. sem. 2007
Ideograma e pensamento selvagem – a arte e a ciência do yãmîy maxakali

exclusivamente escritural, podem muito bem ser considerados


como poemas.
No processo de tradução de yãmîys primeiro são elabora-
das versões prosaicas traduzidas palavra por palavra, em cola-
boração com os índios na reserva. Depois, com calma, busca-se
a reprodução dos sons, a musicalidade dos versos, com certo
ritmo; tentam-se criar algumas imagens que se compatibilizem
com a profusão metafórica natural da língua indígena. E outros
elementos que fazem de um texto um texto poético.
Eu não falo Maxakali, mas o que aprendi da língua nestes
quase dez anos de contato, muita troca e aprendizado, me per-
mite traduzir, em colaboração com os índios, seus textos e, no
caso de seus cantos ou poesia, buscar uma transcriação.
A transcriação de poesia é a tentativa, como escreve Ha-
roldo de Campos, de captar o “espírito” do texto poético. Em
suas palavras: “ser fiel ao ‘espírito’, ao ‘clima’ particular da peça
traduzida” (CAMPOS, 1970, p. 26):
Numa tradução dessa natureza, não se traduz apenas o sig-
nificado, traduz-se o próprio signo, ou seja, sua fisicalidade,
sua materialidade mesma (propriedades sonoras, da imagé-
tica visual, enfim tudo aquilo que forma, segundo Charles
Morris, a iconicidade do signo estético, entendido por signo
icônico aquele ‘que é de certa maneira similar àquilo que ele
denota’). O significado, o parâmetro semântico, será apenas
e tão-somente a baliza demarcatória do lugar da empresa re-
criadora. Está-se pois no avesso da chamada tradução literal.
(CAMPOS, 1970, p. 24)
Assim, o que se pretende no caso de yãmîys é se deixar cair
na tentação de captar ou capturar o “espírito da coisa” no texto
maxakali; sendo o espírito o significado e a coisa, o significante,
para usarmos da terminologia semiótica. Aqui não é o símbolo
que determina. É sim o ícone, que indetermina.
Vamos a um exemplo:
O yãmîy seguinte foi registrado por Sandro Campos, lin-
güista da UFMG que pesquisa a língua maxakali.
‘Õnyãm
‘õnyãm tuthi xux mãhã
‘õnyãm kutet xux mãhã
‘õnyãm ah hãm tu yãyhi ah
‘õnyãm mîm mõg yîmu yãy hih
‘õnyãm toktet xux mãhã
‘õnyãm ‘ãto kopa mõyõn
‘õnyãm mîm kox kopa mãm hu mõyõn
‘õnyãm a hãm tu mõ ka’ok
‘õnyãm ‘upip ‘uxãm xi pip ‘uxãm ‘oknãg
‘õnyãm nãg upnok xi xepnak um
Numa tradução prosaica temos:

Niterói, n. 23, p. 169-187, 2. sem. 2007 173


Gragoatá Charles Bicalho

O ouriço

o ouriço come folhas de embaúba


o ouriço come folhas de bambu
o ouriço não anda de dia
o ouriço anda em cima do galho da árvore
o ouriço come folhas de mamona
o ouriço dorme dentro do feixe de cipós
o ouriço fica dentro do oco do pau e dorme
o ouriço não anda rápido no chão
tem ouriço que tem espinho e outros que não têm espinho
o ouriço tem rabo e pêlos brancos
No entanto, se se persegue a poeticidade inerente a pratica-
mente todo texto maxakali, e especialmente aos yãmîys, pode-se
elaborar algo um pouco diferente.
Vejamos.
Não há o que fazer nos três primeiros versos. Já há inclu-
sive uma assonância espontânea entre “embaúba” e “bambu” e
o ddd de “anda de dia” do terceiro verso não é mal. No quarto
verso podemos sintetizar “anda em cima do galho da árvore”
em “caminha no galho da árvore”, em que os dígrafos nh e lh
reverberam-se. O sexto verso, traduzido por “dorme dentro do
feixe de cipós” (Sandro explica em pé de página que ‘âto em
Maxakali designa “feixe de cipós cujo interior é usado pelo ou-
riço como abrigo”), pode ser adaptado para “dorme num ninho
de cipós”, onde as consoantes nasalizantes m e n, duplicadas,
mais o nh, amaciam sonoramente o leito do ouriço. “No oco
do toco”, do sétimo verso, reproduz a aliteração do k no verso
original, kox kopa, literalmente “dentro do buraco ou oco”. Na
língua maxakali, kox aparece, por exemplo, na composição de
konãgkox, vocábulo para “rio”, que é a junção de konãg (“água”) +
kox (“buraco”). Ou seja, “um oco ou buraco onde corre a água”.
Sonora e visualmente, a palavra “toco” acolhe literalmente o
“oco” dentro de si. O oitavo verso tenta se comparar, pela alitera-
ção dos ss, em “vai suave sobre o solo”, ao original, também com
aliteração, só que em m. O verso seguinte mantém a repetição
pip ‘uxãm xi pip ‘uxãm oknãg, que literalmente em maxakali quer
dizer “tem espinho e tem espinho pequeno” (oknãg quer dizer
pequeno, diminuto), mas apresenta um verso mais sintético e
harmonioso: “com espinho e sem espinho”. Por fim, o último
verso traduz o quase anagrama do original, entre upnok xi xep-
nak (xi em maxakali é a conjunção e), em uma rima assonante
interna: “rabo” com “claro”.
Sendo assim, temos a transcriação:
O ouriço

o ouriço come folhas de embaúba


o ouriço come folhas de bambu
o ouriço não anda de dia

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Ideograma e pensamento selvagem – a arte e a ciência do yãmîy maxakali

o ouriço caminha no galho da árvore


o ouriço come folhas de mamona
o ouriço dorme num ninho de cipós
o ouriço dorme no oco do toco
o ouriço vai suave sobre o solo
tem ouriço com espinho e sem espinho
o ouriço tem um rabo e pêlo claro
Pode-se dizer que a transcriação aqui se funda no “equí-
voco” de que fala Eduardo Viveiros de Castro, “uma categoria
propriamente transcendental da antropologia, é uma dimensão
constitutiva do projeto de tradução cultural próprio da discipli-
na” (p. 07). Traduzir é sempre contactar o outro, sua língua, sua
cultura. E aqui parece que mais uma vez a literatura intuitiva-
mente já sabia o que a ciência viria a descobrir. Pois a literatura
já sabia da impossibilidade da tradução, sobretudo a literária. É
então que ela propõe a transcriação haroldiana, consciente da
impossibilidade de se suprimir o “equívoco”. A literatura sabe
que apreender o outro é impossível. Só cabendo encontrar o
outro, contactá-lo e se deixar contaminar por ele, e a partir daí
se deixar levar um pouco por ele, pois “traduzir é presumir que
há desde sempre e para sempre um equívoco; é comunicar pela
diferença, em vez de silenciar o Outro ao presumir uma univo-
calidade originária última – uma semelhança essencial – entre
o que ele e nós ‘estávamos dizendo’” (VIVEIROS DE CASTRO,
2005, p. 07). Da mesma maneira que se sabe, como explicita
Viveiros, “a antropologia, então, ‘trata de equívocos’”, sabemos
da impossibilidade da tradução literal. Não cabe nos casos de
transcriações, seja de que língua e/ou literatura for, buscar os
erros, pois esses sempre e abundantemente haverão, entendi-
dos como equívocos: “um equívoco não é apenas um ‘defeito
de interpretação’, mas uma deficiência no compreender que as
interpretações são necessariamente divergentes, e que elas não
dizem respeito a modos imaginários de ‘ver o mundo’ mas aos
mundos reais que estão sendo vistos” (p. 08). Da mesma forma
que um poema ou qualquer outro tipo de texto é único em sua
língua e para ele não há tradução que o mensure, mas sim que
o compare (p. 08), pois a relação com o outro, sua língua e sua
cultura se dará sempre em termos de equívoco: “um equívoco
não é um erro, um engano, um logro ou uma falsidade, mas o
fundamento mesmo da relação que o implica, e que é sempre
uma relação com a exterioridade. Um erro ou um engano só
podem se determinar como tais dentro de um dado jogo de
linguagem, enquanto o equívoco é o que se passa no intervalo
entre jogos de linguagem diferentes” (p. 08).
Assim, da mesma maneira que, como quer Jakobson, poesia
é justamente aquilo para o qual não existe tradução, determi-
nadas práticas culturais não se traduzem nem se explicam em
outras culturas. Cabe, portanto, àqueles que contatam outras

Niterói, n. 23, p. 169-187, 2. sem. 2007 175


Gragoatá Charles Bicalho

culturas, não traduzir (no sentido estrito do termo) suas práticas


culturais, mas antes buscar as transcriações dessas práticas. Algo
que equivalha, na cultura de chegada, àquilo que se encontra
na cultura de partida.
5. Ideogramaxakali – ou a montagem artística do yãmîy
Os ideogramas são os caracteres da escrita chinesa e
japonesa, dentre outras culturas orientais. Uma característica
muito comum neste tipo de grafia é o uso de dois caracteres pré-
existentes no intuito de criar um novo. Sendo assim, fundem-se
duas idéias ou conceitos básicos num só. Desta união surgem
operações mentais de conciliação, comparação, analogias, me-
táforas, condensação, síntese, etc.
Com base nisto é que se derivou o método ideogrâmico de
composição poética, ou simplesmente ideograma, que se consti-
tui numa “juxtaposition of seemingly unrelated particulars capable of
suggesting ideas and concepts through their relation” (GÉFIN, 1982,
p. 27). Basicamente significa colocar lado a lado duas ou mais
coisas. Seu principal teórico e realizador foi Ezra Pound, autor
de The Cantos.
Em termos lingüísticos a parataxe define o ideograma.
Parataxe, em oposição à hipotaxe, pressupõe a ausência de
conectores lógicos (tais como as conjunções: mas, porém, sendo
assim, então... enfim todos os recursos que dão aos discursos seu
caráter argumentativo) entre as orações. Em poesia, portanto, a
parataxe ou ideograma se caracteriza por uma listagem de coi-
sas, características ou fatos, sem uma concatenação aparente de
causa e efeito entre eles. Cabe, para gerar o sentido neste caso, ao
leitor ou receptor da mensagem a percepção das relações entre
as coisas apresentadas.
Analisando uma manifestação discursiva tipicamente afri-
cana, o oriki (assim como o yãmîy maxakali, são também cantos
sagrados), Antônio Risério explica: ele não é oração, “o rito oral
milenar do fiel que se endereça ao seu deus, pedindo proteção,
saúde, dinheiro, paz na família”. É sim uma “figuração paratática
do orixá”. Entende-se a parataxe por oposição à hipotaxe. Décio
Pignatari esclarece:
a parataxe é a organização por coordenação, e o seu pivô é o
conjunto das chamadas conjunções coordenativas; a hipotaxe
é a organização por subordinação, que se articula graças às
conjunções subordinativas. No Ocidente, domina ampla-
mente a hipotaxe, desde quando os árias, saindo do norte da
Índia, falando sânscrito, e caminhando para o ocidente, se
transformaram nos gregos, que produziram a fissão nuclear
da linguagem e das cabeças, ao criar e desenvolver o sistema
predicativo da língua (sujeito/predicado/objeto ou comple-
mento), especialmente quando o verbo ser é aplicado: tal coisa
é tal coisa. Daí nasceu a lógica ocidental, que já tomou conta de
todo o planeta. (PIGNATARI, 1995, p. 161)

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Ideograma e pensamento selvagem – a arte e a ciência do yãmîy maxakali

Vejamos um exemplo de oriki. Trata-se do “Oriki de Oxu-


marê”, transcriado por Risério:
Oxumarê, braço que o céu atravessa
Faz a chuva cair na terra
Extrai corais, extrai pérolas.
Com uma palavra prova tudo
Brilhante diante do rei.
Chefe que veneramos
Pai que vem à vila velar a vida
E é tanto quanto o céu.
Dono do obi que nos sacia
Chega na savana ciciando feito chuva
E tudo vê com o seu olho preto. (RISÉRIO, 1996, p. 154)
O oriki, assim como o yãmîy, é também um canto a um
deus. No caso, deus africano: o orixá. Segundo Risério, citando
o Dicionário de Cultos Afro-Brasileiros de Cacciatore: “cântico de
louvor que conta os atributos e feitos de um orixá” (RISÉRIO,
1996, p. 93).
Paratático, portanto, é o oriki, - e, segundo nossa hipótese,
também o yãmîy - no sentido de que o discurso que o estrutura
prescinde de conectores lógicos, como as conjunções, e não se
organiza em períodos compostos por subordinação, o que dá à
fala ou à escrita seu caráter hierarquizante, como normalmente
acontece no discurso ocidental.
Com a hipotaxe ontológica, [...] onde as frases se montam por
subordinação hierárquica (oração principal, orações secun-
dárias), você pode montar argumentos, numa seqüência de
causas e efeitos. [...] Já com a parataxe, todas as frases estão em
pé de igualdade. Não há orações secundárias ou subordinadas:
todas são principais. São frases que podem ser justapostas e
encaixadas ad infinitum. (PIGNATARI, 1995, p. 162)
Tal é uma característica não só do oriki, mas também do
yãmîy maxakali. Vemos que o poema maxakali aqui trans-
criado não apresenta “frases que se montam por subordinação
hierárquica” numa “seqüência de causas e efeitos”. Ele se mostra
muito mais como um texto em que “as frases estão em pé de
igualdade”, sem orações subordinadas, em que as frases “podem
ser justapostas e encaixadas ad infinitum”. É certo que o fato de
ser o yãmîy um gênero tradicionalmente oral exerce influência
neste aspecto.
Cada verso se coloca como uma idéia ou imagem comple-
ta, sem conectores que os concatenem. Cada verso é uma frase
completa. O paralelismo que há no poema, principalmente pela
repetição do sintagma “o ouriço” a iniciar cada um dos versos
reforça tal concepção.
Analisando o mesmo procedimento presente no oriki,
Risério diz: “O oríkì é sobretudo uma espécie de montagem de
atributos do objeto que tematiza. Uma construção epitético-

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Gragoatá Charles Bicalho

ideogramática. O que importa é isso: montagem de atributos,


colagem de predicados, justaposição de particularidades e em-
blemas”. E mais à frente: “O método de montagem. Um oríkì de
Omolu, por exemplo, é uma espécie de ideograma do senhor
das pestes” (RISÉRIO, 1996, p. 93).
Montagem, ideograma, eis o princípio que rege também
o yãmîy maxakali.
“Do nosso ponto de vista, estas são frases de montagem.
Séries de tomadas” (CAMPOS, 1994, p. 153) acrescenta Eisenstein
sobre o haicai. É como se cada verso fosse a tomada de uma cena
num filme. Entre um e outro há um corte. Como se cada verso
fosse um fotograma. Ou, como diz Modesto Carone em seu
estudo sobre a poesia de Georg Trakl, “[…] as imagens isoladas
do poema se comportam como as ‘tomadas’ ou os fotogramas
montados num filme […]” (CARONE NETTO, 1974, p. 15) O
mesmo se dá no caso dos poemas maxakalis: cada verso pode
ser visto como a tomada de uma cena, como se o poema fosse
um roteiro sintético. Vejamos o exemplo da “Canção do martin-
pescador pequeno”:
O martin-pescador pequeno está na árvore seca
Ele desce no rio
Ele entra na água
Ele sai com um peixe
Ele está parado comendo o peixe
Ele corta caminho entre dois morros
Ele vai rio abaixo
Ele vai rio acima
Ele voa entre o céu e a terra
Ele desce no rio grande.
(MAXAKALI, 2004, p. 8-17)
Em associação com aos desenhos, tem-se, através dos ver-
sos, praticamente um storyboard! Com o livro maxakali em mãos,
esta sensação é ainda mais nítida.
Lévi-Strauss em “A eficácia simbólica”, ao analisar a esti-
lística de um canto xamanístico dos índios Cuna do Panamá,
chama a atenção para algo parecido usado como recurso de
memorização. Ele reconhece, intuitivamente, a técnica ideogrâ-
mica empregada no poema indígena: ao tratar das descrições
minuciosas de determinadas situações que se repetem no poe-
ma, ele escreve que é “como se fossem, dir-se-ia, filmados ‘em
câmara lenta’” (Antropologia estrutural, p. 223). Transcrevemos
aqui a passagem para que se possa comparar:
A parteira dá uma volta dentro da cabana;
A parteira procura pérolas;
A parteira dá uma volta;
A parteira põe um pé diante do outro;
A parteira toca o solo com seu pé;
A parteira coloca o outro pé para a frente;
A parteira abre a porta de sua cabana; a porta de sua cabana

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Ideograma e pensamento selvagem – a arte e a ciência do yãmîy maxakali

estala;
A parteira sai… (p. 222)
Trata-se do mesmo paralelismo, a mesma concisão, e a
mesma parataxe encontradas no yãmîy.
O que temos no yãmîy é o que é chamado de “montagem
de atributos”. No caso, atributos de um totem, o martin-pescador
pequeno. Nos dizeres de Géfin: “the very basis of the ideogramic
method, Pound’s ‘intuitive affinity for description by particulars’”
(GÉFIN, 1982, p. 5). Da mesma maneira que no método ideogrâ-
mico poundiano, os yãmîys maxakalis também apresentam os
atributos dos seres cantados. O yãmîy maxakali é um ideograma
que presentifica um deus ou totem. Sua estruturação se dá basi-
camente por montagem. A mesma montagem que é pressuposto
do haicai e do oriki de Risério e que no cinema de Eisenstein,
é uma “atividade de fusão ou síntese mental, em que porme-
nores isolados (fragmentos) se unem, num nível mais elevado
do pensamento, através de uma maneira desusada, emocional,
de raciocinar – diferente da lógica comum” (CARONE NETTO,
1974, p. 103).
O yãmîy é no âmbito maxakali o que o oriki é no âmbito
africano. Assim como os orikis, que Risério reconhece como
um gênero de poesia, os yãmîy são uma espécie de avatar que
também expressa a concretização de um espírito ou totem na
terra através do método da montagem ou ideograma.
Deriva daí que a formação de imagens é ponto nevrálgico
deste tipo de composição. A metáfora lingüística é um bom
termo de comparação. Imagens surgem naturalmente quando
se usam palavras em sentido figurado.
Ideograma não é somente um método de composição poé-
tica, mas também de ciência. Ezra Pound explicita essa comum
eficácia do método. Em análise da teoria, Géfin esclarece que o
método poético é um procedimento semelhante ao dos biólogos
(mais complexo), que partem de centenas ou milhares de amos-
tras de espécies, para, a partir das informações necessárias por
elas providas, derivarem definições gerais em formas de axio-
mas. Para Pound, o axioma é uma forma de ideograma, baseado
nas relações entre características funcionais objetivamente jus-
tapostas (GÉFIN, 1982, p. 32). Géfin afirma que Pound insiste na
existência de fortes afinidades entre a ciência e a arte por causa
de tais características, desde que se considere a ciência em sua
forma empírica, que baseia suas premissas na observação.
Ideograma é uma forma de composição poética, mas é
também um método de aproximação a um objeto da realidade.
Este método descreve o objeto em suas características e parti-
cularidades e o dá a conhecer aos indivíduos de determinada
comunidade.

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Gragoatá Charles Bicalho

Assim, há muito do método ideogrâmico não só na arte mas


também na ciência. Quando se colocam coisas lado a lado para
ser fazer uma comparação e daí tirar-se uma conclusão, está-se
realizando o método ideogrâmico. Talvez por isso Lévi-Strauss
reconhece a correspondência entre a estética e a classificação:
“[...] la existencia de organización es una necesitad común al arte y a la
ciência y que, por consecuencia, ‘la taxonomia, que es el poner en orden
por excelência, posee um inminente valor estético’” (p. 30).
O ideograma é então uma concepção que se aproxima mui-
to do que Peirce tem em mente quando ele diz que “o trabalho
do poeta ou novelista não é tão profundamente diferente do
trabalho do homem de ciência” (PEIRCE, 2005, p. 17).
6. Ideograma e Pensamento Selvagem – uma interseção
De acordo com Geertz, o cerne do pensamento selvagem
é “a idéia de que a totalidade dos costumes de um povo sempre
forma um todo ordenado, um sistema” (GEERTZ, 1992, p. 292).
Ainda segundo Geertz, para formar tais sistemas,
las sociedades humanas, lo mismo que los seres humanos individuales,
nunca crean partiendo de un todo sino que meramente eligen ciertas
combinaciones de un repertorio de ideas que les eran anteriormente
accesibles. Temas fundamentales son interminablemente dispuestos
y vueltos a disponer en diferentes esquemas: expresiones variadas de
una estrucctura representativa subyacente que sería posible recons-
truir si poseyéramos suficiente ingenio e inventiva. (p. 292)
O trabalho do etnólogo consistiria em descrever as “confi-
guraciones superficiales” e reconstruir as estruturas mais profun-
das de que aquelas são feitas e classificar tais estruturas em um
esquema analítico.
Depois, conclui ele, citando Lévi-Strauss, “‘todo los que nos
quedaría por hacer sería reconocer aquellas (estructuras) que (determi-
nadas) sociedades adoptaron’” (GEERTZ, 1992, p. 292).
Trata-se da “ciência do concreto”, como quer Lévi-Strauss,
segundo a qual os instrumentos conceituais acessíveis aos sel-
vagens configuram um universo fechado com o qual eles devem
construir suas formas culturais. Dentro desse universo fechado
tais instrumentos conceituais seriam recombinados constante-
mente na elaboração de novos conceitos.
Ao construir seus modelos da realidade (da natureza, de
si mesmos, da sociedade), os selvagens o fazem não como certos
homens de ciência que, “integrando proporciones abstractas en un
marco de teoría formal”, sacrificam o caráter vívido daquilo que é
percebido pela generalização dos sistemas conceituais. Antes o
fazem ordenando as particularidades percebidas em totalidades
imediatamente inteligíveis. “La ciencia de lo concreto ordena direc-
tamente realidades percibidas” (GEERTZ, 1992, p. 292). Lévi-Strauss
enfatiza a importância do papel da percepção.

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Ideograma e pensamento selvagem – a arte e a ciência do yãmîy maxakali

As diferenças, por exemplo, entre cangurus e avestruzes,


inundação e seca, percurso do sol e fazes da lua, se convertem
em “modelos estruturais que representam a ordem subjacente
da realidade de uma maneira analógica” (GEERTZ, 1992, p.
292). Esta maneira analógica é um dos fatores que aproxima tal
“ciência do concreto” ou pensamento selvagem do ideograma.
Géfin, em Ideogram, escreve: “the message was that the poets should
abandon logic as the principle of poetic organization” (p. 26). Claro
que o abandono desta lógica implica na adoção de uma outra,
que podemos deduzir seja analógica, uma vez que o processo
de justaposição pressupõe a existência de analogias entre os
elementos combinados como no método ideogrâmico. Segundo
Horoldo de Campos, o “modelo chinês” serviria para renovar o
pensamento ocidental, privilegiando o poético contra a lógica
aristotélica, propondo uma “lógia da analogia ou da imagina-
ção” (1994, p. 45).
Ainda citando Lévi-Strauss, Geertz acrescenta: “el pensa-
miento salvage extiende su captación por medio de imagines mundi.
Modela construcciones mentales que hacen inteligible el mundo en la
medida en que tales construcciones logran parecérsele” (GEERTZ,
1992, p. 292).
A clara associação desta “ciência do concreto” a um forte
caráter perceptivo e analógico, com a abundante formação de
imagens (imagines mundi), a aproxima da idéia de diagrama em
Peirce. “Muitos diagramas não se assemelham, de modo algum,
com seus objetos, quanto à aparência; a semelhança entre eles
consiste apenas quanto à relação entre suas partes” (PIERCE,
2005, p. 66).
Como sistemas de relações abstratas, os yãmîys formam
diagramas, no sentido que lhes dá Peirce. Ao listar as atribui-
ções e feitos de algum ente espiritual ou totem, o poema yãmîy
representa (ou reapresenta!) tal ente, fazendo uma construção
análoga do mesmo. O poema yãmîy apresenta seu tema de
maneira metonímica ou indicial, por partes, até que a junção de
todas essas partes componham um todo orgânico, analogamente
à coisa representada. Na capacidade de representar tal ente por
uma imagem o diagrama é um ícone, ainda que a relação entre
suas partes seja de natureza indicial e o que forma estas partes
sejam símbolos em forma palavras.
Escreve Haroldo citando Peirce:
“Um diagrama é, sobretudo um ícone, um ícone de relações
inteligíveis”; “‘um diagrama – embora possa ter normalmente
traços simbolóides, assim como traços de natureza próxima
à dos índices, é, não obstante, acima de tudo, um ícone das
formas de relações na constituição de seu objeto”. (PIERCE,
2005, p. 81)

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Gragoatá Charles Bicalho

Ainda segundo Haroldo,


a noção peirciana de ‘diagrama’ permite trasladar (‘traduzir’),
para o âmbito das línguas fonético-alfabéticas (ou da poéti-
ca dessas línguas, onde o lado palpável do signo assume o
primeiro plano), a concepção fenollosiana (e poundiana) do
ideograma e do método ideogrâmico de compor (sintaxe relacional,
paralelística, paratática)… (CAMPOS, 1994, p. 82)
Outra aproximação que se pode fazer entre a “ciência do
concreto” de Lévi-Strauss e o ideograma é que ambos operam no
nível da primeiridade peirciana, que também é regida por uma
“lógica das sensações” ou dos sentimentos. A idéia de primeiro
em Peirce está associada a uma lógica da qualidade, “que é abso-
lutamente simples em si mesma e, no entanto, quando encarada
em suas relações percebe-se que possui uma ampla variedade
de elementos” (PEIRCE, 2005, p. 14). A primeiridade peirciana
se constitui numa lógica da percepção das qualidades do objeto,
baseada nas sensações. E sobre o método ideogrâmico escreve
Géfin: “The principle is the juxtaposition of particular objects or their
linguistic counterparts, and this juxtaposition establishes a mental
energy field which generates a vision of unseen relations – of qualities,
concepts, ideas” (1982, p. 31).
Por sua vez, Lévi-Strauss, vai dizer que sua “ciência do
concreto” é “una ciencia a la que preferimos llamar ‘primera’ más que
primitiva” em que a intuição, regida por “una lógica de la sensación”,
desempenha papel fundamental (1984, p. 35).
“Es la (ciência) que comúnmente se designa con el término de
bricolage”, define L-S. E o que é o trabalho do bricoleur, se não uma
espécie de procedimento ideogrâmico de composição? O bricoleur
faz uso de elementos prévios e os ajunta ou justapõe:
su universo instrumental está cerrado y la regla de su juego es siempre
la de arreglárselas con ‘lo que uno tenga’, es decir um conjunto, a cada
instante finito, de instrumentos y de materiales, heteróclitos además,
porque la composición del conjunto no está en relación con el proyecto
del momento, ni, por lo demás, con ningún proyecto particular, sino
que es el resultado contingente de todas las ocasiones que se le han
ofrecido de renovar o de enriquecer sus existencias, o de conservarlas
con los residuos de construcciones y de destrucciones anteriores [...]
Cada elemento representa un conjunto de relaciones, a la vez, con-
cretas y virtuales…(LÉVI-STRAUSS, 1984, p. 37)
Como no mito. Lévi-Strauss chama a atenção para o caráter
mitopoético do bricolage:
De tal manera, se comprende que el pensamiento mítico, aunque
esté enviscado en lás imágenes, pueda ser generalizador, y por tanto
científico: también él opera a fuerza de analogía y paralelos, aun si,
como en el caso del bricolage, sus creaciones se reducen siempre a un
ordenamiento nuevo de elmentos cuya naturaleza no se ve modificada
según que figuren en el conjunto instrumental o en la disposición
final… (1984, p. 41)

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Ideograma e pensamento selvagem – a arte e a ciência do yãmîy maxakali

E quando ainda Lévi-Strauss afirma, sobre a poesia do


bricolage, que ela “fala” não só com as coisas, mas também por
meio delas, mostrando o bricoleur, por intermédio das escolhas
que efetua entre possíveis limitados, seu caráter e vida, pondo
sempre algo de si mesmo, como um autor… Estamos de fato
frente à concepção de Função Emotiva da linguagem, como for-
mulada por Jakobson. Esta que é um dos corolários da linguagem
poética.
L-S reconhece que a arte está a meio caminho entre o co-
nhecimento científico e o conhecimento mítico ou mágico. Com
meios artesanais o bricoleur confecciona objetos materiais que
são, ao mesmo tempo, objetos de conhecimento.
Os yãmîys maxakali são tais objetos, na medida em que
podem ser compreendidos, simultaneamente, como sistemas
de relações abstratas e objetos de contemplação estética (LÉVI-
STRAUSS , 1984, p. 48).
O ideograma é a expressão não só da arte, mas também do
pensamento científico indígena, entendido este, de acordo com
Lévi-Strauss, no Pensamento Selvagem, como a expressão de uma
ciência do concreto. Ou seja, o ato de justapor elementos para,
a partir de sua correlação, derivar o conhecimento. O método
ideogrâmico, que o próprio Pound aventara como uma forma
de colocar elementos lado a lado para comparação e síntese,
é, no caso indígena, expressão de todo tipo de construção do
conhecimento, seja artístico ou científico. O que faz com que,
mais do nunca, a indistinção apontada por Peirce entre ciência
e arte, seja verdadeira.
O yãmîy, além de literatura, canto, teatro, dança, música,
ou seja, arte em todas as suas modalidades, é também ciência.
Como tradicionalmente nas sociedades indígenas não se sepa-
ram as formas de apreensão do mundo como costumamos fazer
em nossa sociedade, podemos reconhecer no yãmîy não só uma
forma de entretenimento, ou uma maneira de se relacionar no
âmbito da espiritualidade, ou um processo de estruturação
social, mas também uma ciência do mundo. A maneira que
os Maxakali apreendem o mundo, o estudam e produzem seu
conhecimento.
De fato o yãmîy funciona como uma forma ou atitude
perante as coisas do mundo. É uma aproximação e reconheci-
mento do objeto que busca uma espécie de descrição do que vê.
Funciona assim como um método de apreensão da realidade
circundante, um método de coleta de dados.
Tugny por exemplo reconhece que os yãmîys, “todos eles
encerrando textos que demonstram um imenso conhecimento
da fauna e flora” (2005, p. 02), “denotam uma acuidade muito
grande na observação geográfica e dos animais. Descrevem
pormenorizadamente as partes e cores dos corpos, formas e
movimentos de vôo dos pássaros, localidades onde circulam
Niterói, n. 23, p. 169-187, 2. sem. 2007 183
Gragoatá Charles Bicalho

os animais, etc. São verdadeiros tratados de ecologia, meio-


ambiente e biodiversidade” (p. 03). Por fim: “Os conhecimentos
perenizados nas letras das músicas comprovam o forte elo dos
Maxakali com os animais e, sobretudo, a vitalidade da sua
atividade simbólica. As músicas preservam o conhecimento de
espécies que seu território não possui mais” (p. 03).
N’O Pensamento Selvagem, Lévi-Strauss (1984, p. 16) cita
exemplos da organização do conhecimento por povos “primi-
tivos”.
Quando Geertz diz do pensamento selvagem que “as
sociedades humanas, lo mismo que los seres humanos individuales,
nunca crean partiendo de un todo sino que meramente eligen ciertas
combinaciones de un repertorio de ideas que les eran anteriormente
accesibles” (GEERTZ, 1992, p. 292), podemos pensar que se trata
da mesma lógica do método ideogrâmico.
Concluímos, portanto, que o ideograma é a expressão por
excelência do pensamento selvagem, sendo este, como nos mos-
tra Lévi-Strauss, expressão não só dos indígenas, mas também
nossa, configurando, ao lado do pensamento científico, uma das
formas do pensamento humano.
7. Conclusão
Este trabalho pretendeu lançar as bases para uma compara-
ção entre os conceitos de Ideograma e Pensamento Selvagem, re-
conhecendo alguns pontos em comum em suas formulações.
Tanto o pensamento poético ideogrâmico segundo Pound,
quanto a lógica concreta do pensamento selvagem como for-
mulado por Lévi-Strauss, colocam a concretude do signo, seu
significante, em primeiro plano, privilegiando-o. Em ambos os
casos trata-se de perceber através de uma “lógica das relações”
(Peirce). Trata-se da mesma lógica de relações entre coisas con-
cretas que, segundo L-S, para com a qual pensamento ocidental
é negligente, em prol de puras abstrações; o que não se dá no
pensamento oriental, representado pela lógica do ideograma.
Trata-se em ambos os casos de uma lógica combinatória,
criadora de analogias e paralelismos. Haroldo de Campos diz
que
a verdade é que a propensão do chinês [...] para as construções
paratáticas e para os esquemas paradigmático-paralelísticos,
inspirados numa ‘lógica da correlação’, parece coincidir com
a tendência da própria linguagem poética ocidental a romper
com a lógica tradicional, para reger-se por uma lógica outra,
a ‘lógica da imaginação’ de Eliot (o poeta do ‘correlativo ob-
jetivo’), a ‘lógica concreta’ da pensée sauvage de Lévi-Strauss,
a lógica da analogia ou ‘analógica’ (que tem sido estudada
por D. Pignatari, na conjunção de Valéry e Peirce) (CAMPOS,
1994, p. 77).

184 Niterói, n. 23, p. 169-187, 2. sem. 2007


Ideograma e pensamento selvagem – a arte e a ciência do yãmîy maxakali

Geertz ao tratar do pensamento selvagem explicita a apro-


ximação pelo viés do paralelismo: “En el totemismo se postula (de
manera enteramente inconsciente) un paralelo lógico entre dos series,
una natural y una cultural” (“Salvaje cerebral”, p. 293).

Abstract
This article is about a tradicional oral poetic
genre of Maxakali indigenous people from
Minas Gerais. It presents the “transcria-
ção”, as stablished by Haroldo de Campos,
as a purpose of translation for the indige-
nous songpoems from Maxakali language
to the Portuguese language. It suggests
that those songpoems, or yãmîy, as they are
called in maxakali language, have an ideo-
gramic method of composition, in relation
to the Ezra Pound’s ideogramic theory. It
compares the yãmîy to another tradicional
oral genre: the African oriki, studied and
translated by Antônio Risério in Brazil. At
last does an intersection between Theory of
Literature and Anthropology, specifically
on the Lévi-Strauss concept of pensée sau-
vage, in order to recognize the scientific
character of this kind of text.
Keywords: Ideogram. Pensée sauvage.
Maxakali. Literature.

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Niterói, n. 23, p. 169-187, 2. sem. 2007 187


A literatura marginal e a tradição
da literatura: o prefácio-manifesto
de Ferréz, “Terrorismo Literário”
Luciano Barbosa Justino

Recebido 18, jul. 2007/Aprovado 27, set. 2007

Resumo
Este texto tem como objetivo observar, no prefácio-
manifesto de Ferréz, “Terrorismo literário”, como
a literatura marginal, articulada a um forte sen-
tido de pertença de quem escreve a partir de uma
determinada posição, o morador da periferia e da
favela da grande cidade brasileira, inventa um
novo estatuto da literatura bem como estabelece
uma maneira singular, de natureza étnica e polí-
tica, de lidar com a tradição literária.
Palavras-chave: Literatura marginal. Tradição.
Identidade. Pertença.

Gragoatá Niterói, n. 23, p. 189-203, 2. sem. 2007


Gragoatá Luciano Barbosa Justino

Inserida no debate sobre o pós-modernismo, a literatura


tem sido pressionada a rever alguns de seus fundamentos. Tanto
questões imanentes, como o debate sobre os gêneros literários
como gêneros do discurso, sobre as formas da poesia nos meios
eletrônicos e sobre os novos estatutos semióticos do romance
contemporâneo, por exemplo, quanto questões que dizem res-
peito ao campo literário como espaço de saber social e a respeito
de suas relações com as formas hegemônicas do poder político e
com as elites intelectuais e econômicas estão postas na mesa.
A ascensão dos estudos culturais dentro dos estudos li-
terários criou uma expansão que vem acompanhada de uma
profunda crise. Tal ambigüidade, dor e delícia dos profissionais
da literatura, tem gerado duas espécies de pesquisadores: de um
lado, os que não se interessam pelas propriedades imanentes do
texto, objetivam apreender os conteúdos mais pelas verdades
ou pelas configurações ideológicas que enunciam do que por
sua configuração estética e não raro dão a sensação de que as
obras literárias acabam sempre por dizer a mesma coisa, aquela
procurada pelo pesquisador; por outro, uma defesa apaixonada,
quando não intolerante, da literatura como espaço do saber dife-
renciado, acima e além da contingência histórica. Harold Bloom
(1995, p. 25-49), representante quase caricato desta segunda ten-
dência, chamou os culturalistas de “escola do ressentimento”. Os
mais acalorados questionam até a pertinência e a existência da
literatura nas próximas décadas e, na esteira de Michel Foucault
(2001, p. 137-174), dizem que a literatura não tem mais que dois
séculos de existência efetiva e coincide com a sociedade burguesa
moderna etc. Outros levantam suas armas para enunciar que a
literatura é “imorrível”; não é difícil encontrar em nossa época
estes novos quaresmas que já não defendem as “raízes nacionais”,
como o herói de Lima Barreto, mas a literatura por si mesma.
Enfim, é na tensão entre os estudos culturais e os estudos
de poética que quero situar o problema da tradição da literatura
na contemporaneidade na medida em que um diálogo fecundo
entre culturalistas e teóricos da literatura parece ainda não ter
se dado de forma a produzir uma releitura verdadeiramente
crítica da tradição literária. As duas faces da moeda ora osci-
lam entre a negação pura e simples dos “grandes autores”, em
busca da literatura de gays, mulheres, índios, negros etc., ora
torcem o nariz para as aberturas, sobretudo naquilo que pode
ser chamado de uma política literária, em defesa da tradição
como espaço do sagrado.
Com o intuito de evitar o erro dos binarismos excessivos
e infrutíferos, que acabam dizendo mais sobre os atores da
contenda do que sobre o próprio objeto de análise e de disputa,
e notando a necessidade de articular os estudos de poética aos
estudos culturais naquilo que eles têm de mais fecundo, parto
da hipótese teórico-metodológica de que os estudos literários
190 Niterói, n. 23, p. 189-203, 2. sem. 2007
A literatura marginal e a tradição da literatura: o prefácio-manifesto de Ferréz, “Terrorismo Literário”

no Brasil não podem dissociar-se do debate sobre a identidade


nacional e sobre suas rupturas e novas configurações. Antonio
Candido, em um texto bastante conhecido e citado, chegou a
dizer que “diferentemente do que sucede em outros países, a
literatura tem sido aqui, mais do que a filosofia e as ciências
humanas, o fenômeno central da vida do espírito” (CANDIDO,
2000, p. 119). De outra perspectiva, Fabio Lucas sugeriu algo
análogo: “os sinais da identidade gravam-se na sua expressão
mais intensiva e duradoura que é a literatura” (LUCAS, 2002, p.
28). Lúcia Helena (2000), se referindo à obra de José de Alencar,
chamou-a de “pedagogia da vontade de ser nação”:
Uma pedagogia da vontade de ser nação em que, ao contrário
de vítimas sacrificiais, constroem personagens suficientes e
necessariamente rasas para que possam carregar, sem dese-
quilíbrio maior uma instabilidade fundadora: personagens
nos quais e através dos quais se pode recordar e esquecer,
enquanto formas libertadoras de identificação nacional, a
memória da História, para reconstruí-la na fábula de um texto
cuja vocação fundamental é parecer que re-inaugura, no tempo
imemorial da lenda, a comunidade imaginada possível para
uma sociedade contraditória e não-harmônica, não orgânica,
não liberal. (HELENA, 2000, p. 90)
Embora não se possa mais dizer, em tempos de audiovisão,
que a literatura “é o fenômeno central da vida do espírito”, a tra-
dição literária brasileira está umbilicalmente ligada à identidade
nacional como construída pelo Estado-nação e o questionamento
da tradição empreendido pelos culturalistas se deve sobretudo
às novas demandas de identidade não totalizadoras, de base ét-
nica, de classe, sexualidade e região. Se a identidade construída
pelo Estado-nação é monopolista e “monológica”, só uma visada
plural, um esfacelamento positivo desta identidade, será capaz
de dar conta das múltiplas facetas do nacional. Esta hipótese me
parece fundamental para que se consiga observar a pluralidade
da produção literária contemporânea no Brasil à luz da leitura
da tradição, visto ser ela capaz de ajudar na compreensão tanto
destas novas demandas que se efetivam sob a forma da escrita
quanto da necessidade de discutir uma tradição coletiva que
não pode ser descartada pura e simplesmente como se fosse
coisa de um passado morto e que não nos pertence. Os novos
estatutos da literatura reenviam para uma nova construção de
memória coletiva a partir de novos agentes, novas tradições, e
a necessidade de outro olhar sobre as velhas.
Para situar minha posição quanto à necessidade de releitu-
ra da tradição, tomo como texto norteador o prefácio-manifesto
de Ferréz ao livro que reúne autores da periferia das grandes
cidades brasileiras, intitulado “Terrorismo literário” (FERRÉZ,
2005, p. 9-14). “Terrosismo literário” coloca de maneira contundente
a relação entre um lugar de pertença, a favela e a “perifa”, e a

Niterói, n. 23, p. 189-203, 2. sem. 2007 191


Gragoatá Luciano Barbosa Justino

posição de quem escreve quanto ao público consumidor da lite-


ratura e a desigualdade na distribuição dos bens culturais e na
sua hierarquização. Neste sentido, na medida em que reconfigura
a própria noção de literatura e suas práticas, o texto de Ferréz,
contém um posicionamento sobre a tradição literária.
Ao contrário do bandeirante que avançou com as mãos sujas
de sangue sobre nosso território e arrancou a fé verdadeira,
doutrinando nossos antepassados índios, e ao contrário dos
senhores das casas-grandes que escravizaram nossos irmãos
africanos e tentaram dominar e apagar toda a cultura de um
povo massacrado mas não derrotado. Uma coisa é certa, quei-
maram nossos documentos, mentiram sobre nossa história,
mataram nossos ancestrais. Outra coisa também é certa: men-
tirão no futuro, esconderão e queimarão tudo o que prove que
um dia a periferia fez arte. [...] Mas estamos na área, e já somos
vários, e estamos lutando pelo espaço para que no futuro os
autores do gueto sejam também lembrados e eternizados.
Neste primeiro ato, mostramos as várias faces da caneta que
se manifesta na favela, pra representar o grito do verdadeiro
povo brasileiro. (FERRÉZ, 2005, p. 8)
Quero crer que só uma abordagem que leve em conta tanto
as novas demandas de tradição que o Prefácio-manifesto propõe
de modo contundente, sobretudo no que diz respeito à posição
do escritor em relação a sua memória coletiva, bem como a sua
escrita e a seu público, quanto as conquistas da teoria literária
e da poética, enquanto ciência da literatura, pode lançar novas
luzes sobre a tradição da literatura no Brasil e seus relações com
os diversos grupos que compõem a nação e hoje têm a literatura
como objeto de disputa. Para minimizar os riscos do conteudis-
mo e a improdutividade dos estudos literários “puros” encanta-
dos com a “obra-prima”, é preciso unir a cultura às propriedades
semióticas da literatura.
Se é um princípio elementar da história das invenções
humanas que todo novo “meio” lança nova luz sobre o anterior,
este ensaio tenta observar como o prefácio-manifesto dialoga,
rompe e sustém a tradição da literatura no mesmo ato em que
se propõe “arrombá-la”. Neste sentido, a Literatura marginal
inventa um outro consumo que é uma outra “produtividade
da tradição” (Cf. CERTEAU, 1994), bem como de seus pressu-
postos de elaboração, arquivamento e circulação, o que ajuda a
compreender as polêmicas contemporâneas em torno dos novos
estatutos do texto literário no chamado “pós-modernismo”.
O próprio percurso que o projeto da Literatura marginal
perfaz, organizado e compilado por Ferréz, que vai da escrita
na comunidade, passando por uma revista de circulação na-
cional com fortes conotações contra-hegemônica, como é Caros
Amigos, até se transformar em um livro publicado por uma
grande editora, é aferidor de que a questão que se coloca aqui
é não exclusivamente literária e/ou estética. Qualquer critério
192 Niterói, n. 23, p. 189-203, 2. sem. 2007
A literatura marginal e a tradição da literatura: o prefácio-manifesto de Ferréz, “Terrorismo Literário”

de valoração da obra situado no plano estritamente literário ou


estético não poderá apreender o valor que o projeto da Literatura
marginal atribui a si mesmo. Contudo, um percurso analítico que
descarte pelo menos dois séculos de poética literária e pesquisas
em literatura será puro diletantismo empobrecedor.
Assim, parece evidente que o Prefácio-manifesto de Ferréz
negocia uma cidadania cultural pela literatura, com implicações
não exclusivamente culturais ou literárias, mas de natureza po-
lítica e social e que exigem uma definição alargada de cultura e
da literatura dentro dela. Marilena Chauí propõe quatro pers-
pectivas para a definição de cidadania cultural que ajudam na
compreensão das demandas abertas por Terrorismo literário:
1) Uma definição alargada da cultura, que não a identifi-
casse com as belas artes, mas a apanhasse em seu miolo
antropológico de elaboração coletiva e socialmente di-
ferenciada de símbolos, valores, idéias, objetos, práticas
e comportamentos pelos quais uma sociedade interna-
mente dividida, e sob hegemonia de uma classe social,
define para si mesma as relações com o espaço, o tempo,
a natureza e os humanos;
2) uma definição política da cultura pelo prisma democrá-
tico e, portanto, como direito de todos os cidadãos, sem
privilégios e sem exclusões;
3) uma definição conceitual da cultura como trabalho da
criação: trabalho da sensibilidade, da imaginação e da
inteligência na criação das obras de arte; trabalho de
reflexão, da memória e da crítica na criação de obras de
pensamento. Trabalho no sentido dialético de negação das
condições e dos significados imediatos da experiência por
meio de práticas e descobertas de novas significações e da
abertura do tempo para o novo, cuja primeira expressão
é a obra de arte ou a obra de pensamento enraizadas na
mudança do que está dado e cristalizado;
4) uma definição dos sujeitos sociais como sujeitos históri-
cos, articulando o trabalho cultural e o trabalho da me-
mória social, particularmente como combate à memória
social una, indivisa, linear e contínua, e como afirmação
das contradições, das lutas e dos conflitos que constituem
a história de uma sociedade. (CHAUÍ, 2006, p. 72)
A cidadania cultural em seus quatro eixos – antropológico,
político, conceitual e histórico-social – consiste num debate a
respeito do próprio valor “literatura” bem como numa redefi-
nição de seus agentes de construção de hegemonia. A noção de
tradição literária precisa ser ampliada para abarcar um objeto
agora em franca expansão disseminadora, o que significa um

Niterói, n. 23, p. 189-203, 2. sem. 2007 193


Gragoatá Luciano Barbosa Justino

objeto capaz de inventar novas tradições e de propor uma re-


invenção de antigas.
Se toda tradição é em certo sentido “inventada”, como suge-
riu Eric Hobsbawm (1997, p. 9), a nossa relação com os clássicos
precisa ser problematizada, eles devem voltar a causar em nós
um estranhamento produtivo, que tanto permite desencobrir
seus substratos profundos, ideológicos, de classe, étnicos, de
valor etc., e ao mesmo tempo seja capaz de alargá-los para dar
conta da diversidade, “das contradições, das lutas e dos conflitos
que constituem a história de uma sociedade” e que fundamenta
a apreensão de trabalho criativo humano, além de questionar
critérios de hierarquização e valor cultural. Uma releitura da
tradição no Brasil tem que substituir o singular pelo plural, pois
num país multiétnico e intercultural só é possível falar de tra-
dições, aquelas incluídas e subalternizadas na própria tradição
hegemônica, o passado dos vencedores, para lembrar Walter
Benjamin, e aquelas soterradas, as tradições-tabus, “a cultura
de um povo massacrado mas não derrotado”, nas palavras de
Ferréz.
Neste sentido, melhor que descartar o cânone, um outro
nome para a tradição hegemônica, nacional e internacional, é
lê-lo sob novo ângulo, procurando outras coisas, buscando en-
contrar aquilo que ele não quis conter e representar. Este é um
sentido forte de reler. E encontrar este vazio, este relampejar dos
mortos em tempo de perigo iminente (Cf. BENJAMIN, 1994).
Pensar na tradição como um espaço saturado, inclusive por uma
falta que se insinua e toma corpo.
Das expansões da memória
A expansão da literatura brasileira contemporânea se
situa, grosso modo, em dois grandes eixos: um para dentro da
literatura (verticalização) e outro para fora (horizontalização).
O primeiro aponta para o patrimônio da literatura depois de,
no mínimo, dois séculos de dominância da escrita e do livro no
ocidente, em que ela se transformou no “paradigma estético ide-
ologicamente dominante” (JAMESON, 1996, p. 92), a expressão
cultural de maior tradição no ocidente. O outro eixo diz respeito
ao papel da literatura na própria sociedade enquanto discurso
construtor de uma identidade coletiva e de sentidos de pertença,
bem como, no caso do Manifesto-prefácio de Ferréz, a crítica a
esta mesma identidade.
As duas disseminações são fruto do tumultuado e fecundo
processo que vai dos primeiros posicionamentos do marginal ro-
mântico até a fundação moderna da poética por Roman Jakobson
e seu grupo de cientistas-poetas. Um campo tornado autônomo,
com seus agentes de circulação, escritores famosos, livreiros e
livrarias, leitores fiéis e combativos, pesquisadores da arte e da
estética, se dissemina a tal ponto que a própria literatura passa
194 Niterói, n. 23, p. 189-203, 2. sem. 2007
A literatura marginal e a tradição da literatura: o prefácio-manifesto de Ferréz, “Terrorismo Literário”

a ser, em certo momento e sob certo aspecto, o inimigo número


um de si mesma, as relações entre o texto literário e a poesia
sonora demonstram cabalmente isto. A busca, fundamental na
poesia sonora, de estágios pré-fonéticos e pós-verbais aliados à
alta tecnologia de som e a experimentos de vanguarda do teatro
e da música concreta demonstram que o caminho percorrido
pela literatura se adensa de tal forma que a noção de escrita
literária passou a ser questionada dentro da própria literatura.
Os experimentos da poesia concreta e visual embaralham e
refundam os conceitos do que seja sonoro, visual, verbal, bem
como, o que parece mais importante, as relações indissociáveis
que mantém entre si. O que dizer das complexas teias que a
narrativa contemporânea constrói exigindo um leitor altamente
aparelhado, conhecedor das formas de narrar da modernidade e
de seus textos fundadores, como a Clarice Lispector de Água viva
e o Osman Lins do belíssimo Avalovara e sua tensão constante
com a tradição da literatura?
Do outro lado da mesma moeda, a democratização rela-
tiva do acesso à escrita, ao ensino médio e à Universidade no
Brasil a partir da abertura política, meados dos anos 80, satura
a homogeneidade do valor literário e a idéia de canonicidade se
abre para um relativismo no mínimo multiplicador e de várias
faces. O campo unificado e construído primeiramente por um
patriarcado rural e posteriormente por uma burguesia urbana
toma a forma de um caleidoscópio não de estilos ou de expe-
rimentos, mas sobretudo de grupos sociais pressionando de
diversos modos e posições a escritura literária: favelados, gays,
índios, mulheres pescadoras, rapers, operários, desempregados,
camponeses.
Lugar por excelência das tradições modernas, a literatura é
um “discurso constituinte” e implica um “valor-literatura”. Para
Dominique Maingueneau (2006, p. 60-64) discursos constituintes
são “discursos que se propõem como discursos de Origem, va-
lidados por uma cena de enunciação que autoriza a si mesma”
e precisam “elaborar um dispositivo em que a atividade enun-
ciativa integre um modo de dizer, um modo de circulação de
enunciados e um certo tipo de relacionamento entre os homens”.
Sobre o “valor-literatura”, Pascale Casanova, em A república mun-
dial das letras (2002), argumenta que
Valéry acha possível a análise de um valor específico que só
teria cotação nesse “grande mercado dos negócios humanos”,
avaliável segundo normas próprias do universo cultural,
sem medida comum com a “economia econômica”, mas cujo
reconhecimento seria indício certo da existência de um espaço,
jamais denominado como tal, universo intelectual, onde se
organizariam intercâmbios específicos. A economia literária
seria, portanto, abrigada por um “mercado”, para retomar os
termos de Valéry, isto é, um espaço onde circularia e se per-

Niterói, n. 23, p. 189-203, 2. sem. 2007 195


Gragoatá Luciano Barbosa Justino

mutaria o único valor reconhecido por todos os participantes:


o valor literário. (CASANOVA, 2002, p. 28)
E Antoine Compagnon, em um capítulo de título sugestivo,
Que fim levou nossos amores?:
Identificar a literatura com o valor literário (os grandes escri-
tores) é, ao mesmo tempo, negar (de fato e de direito) o valor
do resto dos romances, dramas e poemas, e, de modo mais
geral, de outros gêneros de verso e prosa. Todo julgamento
de valor repousa num atestado de exclusão. Dizer que um
texto literário subentende sempre que um outro não é. O es-
treitamento institucional da literatura no século XIX ignora
que, para aquele que lê, o que ele lê é sempre literatura, seja
Proust ou uma fotonovela, e negligencia a complexidade dos
níveis de literatura (como há níveis de língua) numa sociedade.
(2001, p. 33)
Pierre Bourdieu, que nos ajudou a observar a literatura a
partir de uma outra dimensão, afirma que
As categorias utilizadas para perceber e apreciar a obra de arte
estão duplamente ligadas ao contexto histórico: associadas a
um universo social situado e datado, elas são objeto de usos
também eles marcados socialmente pela posição social dos
utilizadores que envolvem, nas opções estéticas por elas permi-
tidas, as atitudes constitutivas de seus habitus. (2000, p. 293)
O sociólogo francês chama habitus a uma “postura” que é
tanto metafísica quanto prática. Aplicada à literatura e à arte,
permite demonstrar o quanto a prática e o pensamento sobre
a literatura estão imbuídos de uma espécie de mito fundador
e uma atitude perante a vida e a linguagem, ligados a certos
papéis sociais, lentamente construídos ao longo de dois séculos:
a tradição literária e o cânone, que se funda numa autonomia e
independência, postulada quase total, entre os valores da lite-
ratura e da arte e os valores da vida social.
As categorias da percepção, ingenuamente consideradas como
universais e eternas, que os amadores de arte de nossas so-
ciedades aplicam à obra de arte, são categorias históricas, das
quais é preciso reconstituir a filogênese, pela história social
da invenção da disposição “pura” e da competência artísticas,
e a ontogênese, pela análise diferencial da aquisição dessa
disposição e dessa competência. (BOURDIEU, 2002, p. 348)
“Reconstituir a filogênese do campo literário pela história
social da invenção da disposição pura”. A Literatura marginal
excede e ao mesmo tempo não alcança, excede por não alcançar,
pode-se dizer, o valor em literatura, e parece não ter isso muita
importância, visto o manifesto assinado por Ferréz ser intitula-
do, não à toa, “Terrorismo literário”. O texto negocia de maneira
tão tensa e claramente desigual com o valor literatura, que a
negociação assume a forma ambígua do ataque, “terrorista”, e
da vontade de participar, de assumir para si o valor literário.

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A literatura marginal e a tradição da literatura: o prefácio-manifesto de Ferréz, “Terrorismo Literário”

A horizontalização aponta para um outro uso da literatura.


Ao contrário da busca pela obra singular e de ruptura estética,
fundamento do modernismo, o que estas escritas postulam é ou-
tra coisa. São textos “fáticos”, enviam mensagens imediatamente
para o interlocutor, que não flutua, assume uma identidade de
relação, como opositor ou parceiro do mesmo: “boa leitura, e
muita paz se você merecê-la, senão, bem vinda à guerra” (FER-
RÉZ, 2005, p. 13). Na medida em que Terrorismo literário demarca
com clareza um espaço de pertença, a “função poética” assume
uma dimensão política imediata. Tal dimensão, ao postular o
resgate, a retirada do seqüestro, de espaços coletivos de memó-
ria e a construção de uma nova tradição que consiga dar conta
do caráter multidimensional da história, no caso específico da
história brasileira, conecta a literatura aos movimentos sociais,
ou melhor, questiona o individualismo do gênio para edificar
um passado coletivo cuja pluralidade é proporcional às muitas
demandas que carrega.
Em outro lugar (JUSTINO, 2007, p. 13-28) me detive na fac-
ticidade da Literatura marginal como um todo; por ora, quero
me deter no Prefácio-manifesto de Ferréz, observando-o à luz
das três características básicas que Manuel Castells disse possuir
todo movimento social:
Creio que seja apropriado incluí-los [os movimentos sociais] em
categorias nos termos da tipologia clássica de Alain Touraine,
que define movimento social de acordo com três princípios: a
identidade do movimento, o adversário do movimento e a visão
ou modelo social do movimento, que aqui denomino meta
societal. Em minha adaptação (que acredito estar coerente com
a teoria de Touraine), identidade refere-se à autodefinição do
movimento, sobre o que ele é, e em nome de quem se pronun-
cia. Adversário refere-se ao principal inimigo do movimento,
conforme expressamente declarado pelo próprio movimento.
Meta societal refere-se á visão do movimento sobre o tipo de
ordem ou organização social que almeja no horizonte histórico
da ação coletiva que promove. (CASTELLS, 2001, p. 95)
A identidade permite ao grupo se autodefinir e a autodefi-
nição se dá como construção de uma tradição coletiva que remete
à construção de um passado comum, neste caso um passado
de exclusão e diferença. Pode-se dizer que a idéia de identida-
de aqui condensa as duas temporalidades, do presente como
consciência de posicionamento e do tempo passado enquanto
história comum que dá coesão ao grupo, aquilo que faz dele um
movimento social. Sem a construção de uma identidade estraté-
gica, a meta societal não pode ser formulada nem a delimitação
do adversário que a impede. Assim, a construção da identidade
nos movimentos sociais funciona como contra-hegemonia, pois
implica na pluralização da tradição congelada pela hegemonia da

Niterói, n. 23, p. 189-203, 2. sem. 2007 197


Gragoatá Luciano Barbosa Justino

história dos vencedores. Ela arranca a tradição do conformismo


(BENJAMIN, 1994, p. 224) e a obriga a sair da esfera do Um.
Por hipótese, situo na posição que o escritor ocupa não
apenas no campo literário, mas na sociedade, ou melhor, na
relação entre a escrita, seus gêneros e suportes, e a posição de
quem escreve, um caminho instigante para observar em que
medida a tradição da literatura se mantém, enquanto valor não
de todo “insignificante”, visto ser colocado a todo momento, e
sofre um ataque demolidor, único capaz de incluir os novos
agentes e suas metas.
Por outro lado, os movimentos sociais possuem um dina-
mismo, inclusive em seus poderes dirigentes, que não pode ser
aceito no mesmo grau por outras instituições, como a institui-
ção literária, a não ser a custa da relativização de seus valores,
de seus critérios e da autoridade de seus agentes de validação
(DOWNING, 2002, p. 55). A interdependência dialética e não
hierárquica que os movimentos sociais estabelecem entre a
esfera da cultura e das relações econômicas, entre a super e a
infraestrutura, para falar como o marxismo clássico, a faz diferir
quanto ao modo de produção, de circulação e de consumo dos
seus equivalentes em literatura. Daí que para avaliar a que se
propõe a Literatura marginal são necessários novos parâmetros
de aferição, quiçá um novo método de abordagem literária,
para dar conta de uma escrita que nasce de um outro lugar e
se propõe algo um tanto diverso, pelo menos em seus aspectos
mais importantes, do que comumente se chama de literatura.
O critério político, inclusive com reivindicações próprias do
direito alternativo, é tão importante quanto o critério estético
e/ou literário. Pode-se dizer (para espanto dos literatos) que a
Literatura marginal, como proposta por Ferréz em parceria com
a Revista Caros Amigos, se insere como ação democratizante ao
monopólio do campo literário e, sobretudo, como inserção da
literatura nos espaços abertos do direito alternativo e da cida-
dania cultural, cujo objetivo maior é a refundação da tradição
em tradições múltiplas e democráticas.
Senão vejamos, comparativamente, trechos do prefácio
de Ferréz e de fragmentos da “Elegia para o cânone” (1995), de
Harold Bloom, que podemos considerar um representante e um
defensor apaixonado da tradição da literatura. Bloom, num quase
manifesto, inserido num livro claramente anglocêntrico, mas
com momentos de brilhantes reflexões críticas sobre a literatura,
afirma, dentre outras “preciosidades”, que
A crítica cultural é mais uma triste ciência social, mas a crítica
literária, como uma arte, sempre foi e sempre será um fenôme-
no elitista. Foi um erro acreditar que a crítica literária podia
tornar-se uma base para a educação democrática ou para a
melhoria da sociedade.

198 Niterói, n. 23, p. 189-203, 2. sem. 2007


A literatura marginal e a tradição da literatura: o prefácio-manifesto de Ferréz, “Terrorismo Literário”

O valor estético pode ser reconhecido ou experimentado, mas


não pode ser transmitido aos incapazes de apreender suas
sensações e percepções. Brigar por ele é sempre um erro.

Exorto uma obstinada resistência, cuja única meta é preservar


a poesia tão plena e puramente quanto possível.

De Píndaro até hoje, o escritor que combate pela canonicida-


de pode lutar por uma classe social, como fez Píndaro pelos
aristocratas, mas basicamente todo escritor ambicioso luta por
si mesmo, e muitas vezes trairá ou esquecerá sua classe para
promover seus próprios interesses, que se centram inteira-
mente na individuação. (grifo do autor)

O movimento de dentro da tradição não pode ser ideológico


nem colocar-se a serviço de quaisquer objetivos sociais, por
mais moralmente admiráveis que sejam. A gente só entra no
cânone pela força poética, que se constitui basicamente de um
amálgama: domínio da linguagem figurativa, originalidade,
poder cognitivo, conhecimento, dicção exuberante.

Ler a serviço de qualquer ideologia é, em minha opinião, não


ler de modo algum. A recepção da força estética nos possibilita
aprender a falar a nós mesmos e a suportar a nós mesmos. A
verdadeira utilidade de Shakespeare ou Cervantes, de Homero
ou Dante, de Chaucer ou Rabelais, é aumentar nosso próprio
eu crescente. (grifo do autor)

Para cada Shelley ou Brecht há uma dezena de poetas ainda


mais poderosos que gravitam naturalmente para o partido
das classes dominantes em qualquer sociedade.

Estamos destruindo todos os padrões intelectuais e estéti-


cos nas humanidades e ciências sociais, em nome da justiça
social. Nossas instituições mostram má fé no seguinte: não
se impõe quota alguma a neurocirurgiões ou matemáticos.
O que foi desvalorizado foi o ensino enquanto tal, como se
a erudição fosse irrelevante nos campos do julgamento e do
erro de julgamento.

Sem Shakespeare, não há cânone, porque sem Shakespeare não


há eus reconhecíveis em nós, quem quer que sejamos. Devemos
a Shakespeare não apenas nossa representação da cognição,
mas muito de nossa capacidade de cognição. (BLOOM, 1995,
p. 25-49)
Em Terrorismo literário, lê-se:
Literatura de rua com sentido, sim, com um princípio, sim, e
com um ideal, sim, trazer melhoras para o povo que constrói
esse país, mas não recebe sua parte.

Somos mais, somos aquele que faz a cultura, falem que não
somos marginais, nos tirem o pouco que sobrou, até o nome,
já não escolhemos o sobrenome, deixamos para os donos da
casa-grande escolher por nós, deixamos eles marcarem nossas

Niterói, n. 23, p. 189-203, 2. sem. 2007 199


Gragoatá Luciano Barbosa Justino

peles, por que teríamos espaço para um movimento literário?


Sabe duma coisa, o mais louco é que não precisamos de sua
legitimação, porque não batemos na porta para alguém abrir,
nós arrombamos a porta e entramos.

Estamos na rua loco, estamos na favela, no campo, no bar, nos


viadutos, e somos marginais mas antes somos literatura, e isso
vocês podem negar, podem fechar os olhos, virar as costas,
mas, como já disse, continuaremos aqui, assim como o muro
social invisível que divide este país.

Jogando contra a massificação que domina e aliena cada vez


mais os assim chamados por eles de “excluídos sociais” e para
nos certificar de que o povo da periferia/favela/gueto tenha
sua colocação na história, e que não fique mais quinhentos
anos jogado no limbo cultural de um país que tem nojo de
sua própria cultura, a literatura marginal se faz presente para
representar a cultura de um povo, composto por minorias, mas
em seu todo uma maioria.

Mas estamos na área, e já somos vários, estamos lutando pelo


espaço para que no futuro os autores do gueto sejam também
lembrados e eternizados, mostramos as várias faces da caneta
que se faz presente na favela, e pra representar o grito do ver-
dadeiro povo brasileiro, nada mais que os autênticos.

Hoje não somos uma literatura menor, nem nos deixamos


taxar assim, somos uma literatura maior, feita por maiorias,
numa linguagem maior, pois temos as raízes e as mantemos.

Cansei de ouvir:

- Mas o que cês tão fazendo é separar a literatura, a do gueto


e a do centro.

E nunca cansarei de responder:

- o barato já ta separado há muito tempo, só que do lado de cá


ninguém deu um gritão, ninguém chegou com a nossa parte,
foi feito todo um mundo de teses e de estudos do lado de lá, e
do cá mal terminamos o ensino dito básico.

Boa leitura, e muita paz se você merecê-la, senão, bem-vindo


à guerra. (FERRÉZ, 2005, p. 9-13)
A “guerra literária”, que é também cultural e política, im-
plícita em Bloom e explícita em Ferréz, torna patente o fosso que
separa as duas visões, as duas práticas, as duas funções, enfim,
as duas tradições da literatura que nada mais são que duas me-
mórias coletivas diversas senão antagônicas. Terreorismo literário
esfacela o ângulo fechado do objeto literatura. Aos valores de
individualidade, originalidade, universalidade, atemporalidade,
implícitos nos argumentos de Bloom, Ferréz contrapõe um lu-
gar, a favela, o gueto, a periferia. Ao valor estético, põe em cena

200 Niterói, n. 23, p. 189-203, 2. sem. 2007


A literatura marginal e a tradição da literatura: o prefácio-manifesto de Ferréz, “Terrorismo Literário”

valores de natureza étnica, identitária, de emancipação. Uma


tradição “poética” é contraposta a uma tradição cotidiana em
que a escrita assume todas as conotações da oralidade. Terrorismo
literário quer “entrar no cânone” por uma outra espécie de força
que não a “força poética” de Bloom.
Se o ato terrorista é a violência produzida por meu opo-
nente e por meu inimigo, sendo o terrorista sempre o outro que
ameaça minha integridade, neste caso, ao contrário do debate
sobre o terrorismo nas relações internacionais, o epíteto é de
auto-atribuição: o terrorista não é o outro, sou eu mesmo. Claro
está que a singularidade de uma tal atitude se deve em parte
aos riscos sociais menores, pelo menos a curto prazo, do terro-
rismo na literatura do que na relações internacionais. Contudo,
a auto-atribuição é também a demarcação de um espaço social,
diferente, para não dizer opositor, do espaço da tradição literária
e de sua função política e de memória coletiva.
Dominique Maingueneau usou o termo “paratopia” para
designar o caráter problemático da posição do escritor em lite-
ratura, “uma negociação difícil entre o lugar e o não-lugar, uma
localização parasitária, que vive da própria impossibilidade de
se estabilizar” (2001, p. 78), e que consiste na não estabilidade
do escritor, que possui um “lugar”, mas não um “território”,
uma estabilidade e uma segurança na ordem, pois é sua não-
estabilidade, seu não pertencimento a um espaço claramente
demarcado, condição sine que non para produzir “obras primas”.
Se a literatura é uma espécie de não-lugar, estando o escritor da
grande literatura acima e além de sua classe social, como sugere
Bloom, no prefácio de Ferréz não se separam escrita e posição
de quem escreve, pois em “Terrorismo literário” é justamente
o território que permitiu a produção da “obra”; a obra não tem
razão de ser se não posicionar ou demarcar o território: o gueto,
a favela, a periferia. A marginalidade neste caso, a paratopia,
não é estética, é política e social. Trata-se de uma outra modali-
dade de paratopia. Porém, ao contrário do lugar a que se refere
Maingueneau, o campo propriamente literário, o território aqui
só é fundante porque é problemático e não literário. É território
de exclusão, onde não há o que “recordar”, mas o que conquistar.
A própria recordação é uma refundação.
Na mesma medida em que demarca seu próprio espaço
de ação, o terrorista demarca seu inimigo: “vocês”. Os agentes
do campo literário? Os leitores de literatura erudita? A classe
dominante? Uma hegemonia cultural? A própria literatura?
Há que se notar, por fim, a utopia de fundo, a meta so-
cietal de que fala Castells. A auto-legitimação demolidora não
apaga um apego àquilo que se quer destruir ou “arrombar”, não
se trata de uma negação pura e simples, mas de uma negação
afirmativa, que reconhece o valor-literatura e a tradição literária.
A violência contra a tradição da literatura se dá como projeto
Niterói, n. 23, p. 189-203, 2. sem. 2007 201
Gragoatá Luciano Barbosa Justino

de inclusão nela. Em termos semióticos, a constante oscilação


entre a linguagem de rua e a linguagem da literatura, entre a
gíria e os rituais da norma culta, demonstram cabalmente isto.
Há uma utopia do reconhecimento. Nas palavras de Zygmum
Bauman,
O reconhecimento de tal direito é, isso sim, um convite para um
diálogo no curso do qual os méritos e deméritos da diferença
em questão possam ser discutidos e (esperemos) acordados, e
assim difere radicalmente do fundamentalismo universalis-
ta que se recusa a reconhecer a pluralidade de formas que a
humanidade possa assumir. (2002, p. 74)
Terrorismo literário transforma a literatura num espaço de
luta política contestatória em que sobressaem os interesses co-
letivos e de pertença comunitária em tudo opostos aos valores
literários da personalidade, da autoria, da originalidade etc. A
literatura se transforma numa arena em que diversos grupos
situados em diferentes lugares da distribuição do patrimônio
cultural e do direito à literatura disputam tanto a manutenção
de suas tradições quanto a reinvenção da memória coletiva
nacional e individual. Terrorismo literário exige que a tradição
reconheça “a pluralidade de formas” que a literatura contem-
porânea configura.
Abstract
This paper aims to investigate the “Literacy ter-
rorism” in Ferréz’s manifest-preface as the side
literature related to a strong domain sense on the
part of those who write from a certain position –
the slum dweller in a big brazilian city who creates
a new literature rule and sets a particular style to
deal with the literacy tradicion.
Keywords: Tradition. “Literacy terrorism”.
Identity.

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Niterói, n. 23, p. 189-203, 2. sem. 2007 203


Ruínas e memória: Dois irmãos
e um “novo” regionalismo
Nádia Regina Barbosa da Silva

Recebido 20, jul. 2007/Aprovado 19, set. 2007

Resumo
Leitura do romance Dois Irmãos, de Milton Ha-
toum, que tem como cenário a alegórica cidade de
Manaus. Enfoque especial às relações de identi-
dade e diferença entre os indivíduos que habitam
a mesma casa. Este lugar da família, entretanto,
se estende ao espaço de Manaus e ao o porto à
margem do Rio Negro: a cidade e o rio, metáforas
das ruínas e da passagem do tempo, acompanham
o andamento do drama familiar. Há nuances nessa
narrativa, em que o autor se avizinha, de maneira
distinta e com muita sutileza, de uma vertente
clássica da ficção brasileira, o regionalismo. Par-
tindo de contribuições pertencentes a matrizes
urbanas clássicas, modernas e contemporâneas, já
incorporadas à ficção brasileira, o autor reexamina
conteúdos regionais, compondo um tecido híbrido
que mantém vivas suas fontes e, dessa maneira,
recupera uma identidade específica, cujo processo
parece prevenir-se de uma transformação multi-
cultural mais radical.
Palavras-chave: Identidade. Diferença. Memória
e regionalismo.

Gragoatá Niterói, n. 23, p. 205-221, 2. sem. 2007


Gragoatá Nádia Regina Barbosa da Silva

A fecundação da memória é um traço que perpassa Dois


irmãos, o segundo dos três romances do amazonense Milton
Hatoum. O texto lança luzes sobre o processo de modernização
da região amazônica conjuntamente à imigração árabe que se
estende do começo do século XX à década de 60, para a cidade
Manaus, auxiliando a sua compreensão. Este, portanto, o locus
da história.
E Dois irmãos, o narrador é filho de uma índia estuprada
por um descendente libanês. Nada mais caracteriza o sujeito
narrador do que sua condição de fora da família, o passar do
tempo e a instabilidade da “cidade flutuante” (COSTA LIMA,
2002, p. 317).
O narrador busca a identidade de seu pai entre os homens
da casa e entre os restos de outras histórias. Tenta reconstruir os
cacos do passado, ora como testemunha, ora como quem ouviu
e guardou, mudo, as histórias dos outros. Num jogo de inventar
memória, tenta transformá-la em ponto de convergência do pas-
sado: “Isso Domingas me contou. Mas muita coisa do que acon-
teceu eu mesmo vi, porque enxerguei de fora aquele pequeno
mundo. Sim, de fora e às vezes distante. Mas fui observador desse
jogo e presenciei muitas cartadas, até o lance final” (HATOUM,
2000, p. 29). Essa estratégia incluiria a obra de Hatoum entre
aquelas que procuram uma solução estética, transformando em
linguagem literária sujeitos socialmente excluídos, o que o autor
faz de maneira sensivelmente distinta.
Manaus não será, nessa narrativa, apenas cenário, mas
um espaço sociocultural, que, sem determinismos, faz flutuar,
na memória fértil do narrador, a sua chuva, o seu calor, a sua
culinária, a sua paisagem e o seu sotaque de palavras cujo som e
significado por si constituem um enunciado – “osga”, “pitiú”, “ca-
bocas”, “lagrimar”, “encafuados”, “jambu”, “mururé”, “mucura”,
“cotoco”, etc. Nesse espaço, sujeitos se movem, num tempo desen-
freado, que transforma as feições da cidade e desestabiliza a vida
daqueles que presenciam essas mudanças. A cidade se mistura
ao que chega de fora: a comida, o cheiro, a cor. Desprende-se de
suas raízes. Torna-se singular e tudo parece desmoronar sem
deixar rastros, não fossem as lembranças catadas pelo narrador.
Veja-se no texto:
O Café Mocambo fechara, a praça das Acácias estava
virando um bazar. Sozinho à mesa, ele ia contando
suas andanças pela cidade. A novidade mais triste de
todas: o lupanar lilás, também fora fechado. “Manaus
está cheia de estrangeiros, mama. Indianos, coreanos,
chineses...O centro virou um formigueiro de gente do
interior...Tudo está mudando em Manaus. (HATOUM,
2000, p. 223)
Domingas, a índia estuprada por um dos dois irmãos, faz
as vezes da gente da terra, um primeiro estrato. A personagem,

206 Niterói, n. 23, p. 205-221, 2. sem. 2007


Ruínas e memória: Dois irmãos e um “novo” regionalismo

mãe do narrador, fora arrancada de uma comunidade indígena


pelas religiosas que a “domesticaram” para servir às famílias
de Manaus:
[...] Domingas, a cunhatã mirrada, meio escrava, meio ama,
“louca para ser livre”, como ela me disse certa vez, cansada,
derrotada, entregue ao feitiço da família, não muito diferente
das outras empregadas da vizinhança, alfabetizadas, educadas
pelas religiosas das missões, mas todas vivendo nos fundos
da casa, muito perto da cerca ou do muro, onde dormiam com
seus sonhos de liberdade. (HATOUM, 2000, p. 67)
A família de imigrantes aludiria a um estrato com alguma
posse econômica, o agente estrutural de extermínio.
Outros tipos flutuantes, tal qual a cidade, que povoam a
narrativa, configurariam uma subjetividade lumpem, periférica,
resultante da peculiar modernização de Manaus: peixeiros,
vendedores de frutas, donos de biroscas, moradores de barcos
encalhados, mendigos, enfim, os nativos derrotados que circun-
davam, pacificamente, a família razoavelmente afortunada.
Embora com posse econômica, a família também não
escapará da instabilidade provocada pela chegada dos tempos
modernos. Algumas, que ainda viviam dos restos da ostentação
do antigo ciclo da borracha, ao final, são humilhadas pela leva
de novos-ricos. Assim, a lógica utilitária se cumpre, num tempo
apressado que usa, avança e descarta.
No romance, uma família de árabes imigrantes amplia em
Manaus uma riqueza trazida do Líbano, inclusive de cheiros e
sabores, que se misturariam aos da Amazônia, “No Mercado
Municipal, escolhia uma pescada, um tucunaré ou um matrixã,
recheava com farofa e azeitonas, assava-o no forno de lenha e
servia-o com molho de gergelim” (HATOUM, 2000, p. 47). Por-
tanto, uma riqueza não material apenas.
Suas essências preciosas se misturariam, também, com o
cheiro de lama e de água estagnada, com o cheiro da miséria
da cidade, que, sem raízes, necrosa e fede. Essa é a ambiência
do lugar da narrativa: a da mistura. No texto, as marcas locais
são mantidas à sombra, pela linguagem carregada de sotaque
e de expressões regionais trazidas pela memória – “Uma brisa
soprava do rio, trazendo o pitiú de peixe, o cheiro de frutas e
pimenta [...]” (HATOUM, 2000, p.71) –, sem que escapem, en-
tretanto, da vulnerabilidade que as expõe às expropriações e
reapropriações, em vista daqueles que chegam e transformam o
desenho do cenário, com traços que assinalam uma degradação
universal, na cidade e em sua gente:
[...] Vendia de tudo um pouco aos moradores do Educandos,
um dos bairros mais populosos de Manaus, que crescera muito
com a chegada dos soldados da borracha, vindos dos rios mais
distantes da Amazônia. Com o fim da guerra, migraram para
Manaus, onde ergueram palafitas à beira dos igarapés, nos

Niterói, n. 23, p. 205-221, 2. sem. 2007 207


Gragoatá Nádia Regina Barbosa da Silva

barrancos e nos clarões da cidade. Manaus cresceu assim: no


tumulto de quem chega primeiro. (HATOUM, 2000, p. 41)
Por outro lado, a presença renitente do estrato primeiro, a
índia Domingas, co-responsável pelas memórias narradas, “A
minha história também depende dela, Domingas” (HATOUM,
2000, p. 25), diz o narrador, tentando preservar, a duras penas,
os traços dessa cultura que se transforma e persiste: “Recortei
o rosto de minha mãe e guardei esse pedaço de papel precioso,
a única imagem que restou do rosto de Domingas. Posso reco-
nhecer seu riso nas poucas vezes que ela riu, e imaginar seus
olhos graúdos, rasgados e perdidos em algum lugar do passado”
(HATOUM, 2000, p. 263).
Essa periferia afastada do país, lugar de gente esquecida
e anônima, que atrai fugitivos e deslocados do mundo inteiro,
alude a um processo de construção de relações de identidade
e diferença desse lugar, que no texto é sustentado pela metoní-
mia que a família de árabe incorpora e pela particular figura
do narrador:
Nos primeiros meses depois da chegada de Yaqub, Zana
tentou zelar por uma atenção equilibrada aos filhos. Râ-
nia significava mais do que eu, porém menos do que os
gêmeos. Por exemplo: eu dormia num quartinho construí-
do no quintal, fora dos limites da casa. Rânia dormia num
pequeno aposento, só que no andar superior. Os gêmeos
dormiam em quartos semelhantes e contíguos. Com a
mesma mobília; recebiam a mesma mesada, as mesmas
moedas, e ambos estudavam no colégio dos padres. Era
um privilégio [...]. (HATOUM, 2000, p. 29-30)
No romance de Hatoum, o peso maior da história da
família é dado ao decurso de seu enraizamento e posterior de-
gradação (COSTA LIMA, 2002, p. 319), sinalizado na epígrafe da
narrativa, numa citação de alguns versos de Drummond:
A casa foi vendida com todas as lembranças
todos os móveis todos os pesadelos
todos os pecados cometidos ou em vias de cometer
a casa foi vendida com seu bater de portas
com seu vento encanado sua vista do mundo
Seus imponderáveis [...]. (apud COSTA LIMA, 2002, p. 319)
Contudo, esse “lugar” da família se estende ao espaço
de Manaus, o porto à margem do Rio Negro: a cidade e o rio,
imagens de ruínas e da passagem do tempo que acompanham
o drama familiar. Tempo que vai e volta, na narrativa, na lem-
brança, num ritmo do esforço que faz o narrador catar pedaços
soltos de memória. A cada pedaço encontrado no mar perdido
de esquecimento, resgata-se e tenta esgotá-lo em seus ecos re-
verberantes e turvos, na lembrança do narrador, que precisa
autenticá-lo na voz de um de seus personagens:

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Ruínas e memória: Dois irmãos e um “novo” regionalismo

A intimidade com os filhos, isso o Halim nunca teve.


Uma parte de sua história, a valentia de uma vida, nada
disso ele contou aos gêmeos. Ele me fazia revelações em dias
esparsos, aos pedaços, “como retalhos de um tecido”. Ouvi esses
retalhos, e o tecido, que era vistoso e forte, foi se desfibrando até
esgarçar. (COSTA LIMA, 2002, p. 51-52, grifos nossos)
Halim, um vendedor de porta em porta, tímido e embria-
gado, conquista com gazais decorados o amor de Zana, filha de
Galib, um comerciante árabe bem sucedido. Zana, o grande amor
de Halim, será a esposa a ser perdida com a vinda dos filhos,
digo, de um dos filhos gêmeos, Omar. A casa será formada pela
índia doméstica, Domingas, acolhida “como se” fosse da família
– traço de brasilidade que marca o autoritarismo legitimado pela
cordialidade de nossa cultura –; por Zana, a árabe-manauense;
Halim, o marido de boa conversa que cuida da loja, e pelos três
filhos, os gêmeos Yaqub e Omar, este o Caçula, porque nasceu
por último, e Rânia, a filha. Os gêmeos se detestam desde criança.
O primeiro, Yaqub, sério, decidido, equilibrado, um racionalista,
“[...] feito osga em parede úmida, compensava a ausência dos
gozos do sol e do corpo aguçando a capacidade de calcular, de
equacionar” (COSTA LIMA, 2002, p. 32). O Caçula, Omar, um
mimado, desajuizado, transgressor, o “corpo sem órgãos” dos
gêmeos, uma atualização “macunaímica” de Dionísio, sedento
de desejos sem deferimentos, “Num dia que o caçula passou a
tarde toda de cuecas deitado na rede, o pai o cutucou e disse,
[...]’Não tens vergonha de viver assim? Vais passar a vida nessa
rede imunda, com essa cara?’” (COSTA LIMA, 2002, p. 33).
Yaqub e Omar são os opostos que se complementam. Nes-
sa condição, aludem a conduta de uma sociedade insegura dos
valores que importa – o racionalismo e a cultura do dinheiro.
Yaqub é a razão intrumentalizada e calculada que vigia o alegre
cemitério dos mortos da terra sem raízes (COSTA LIMA, 2000,
p. 320). É ele, Yaqub, que garantirá ao filho da índia doméstica
a condição de narrador, sem o qual não seria lembrado. Omar
é o “noivo cativo” da mãe, aquele que pode tudo, menos casar
e ter uma mulher:
Mas Omar cometia o erro de trair a mulher que nunca o havia
traído. Zana se remexeu na cadeira ao ver o filho aproximar-
se de Dália, o foco de luz da lanterna crescendo no rosto da
dançarina, até que, exibicionista e enamorado, beijou teatral-
mente a amante no meio da sala e depois pediu aplausos para
ela. Todos bateram palmas ao som de um batuque tocado
pelo viúvo Talib. Só Zana ficou alheia a tanta homenagem.
(HATOUM, 2000, p. 102)
A mulher a quem se refere o narrador é Zana, que espera
o momento certo para se vingar.
Por outro lado, o Dioniso destroçado amplia-se, como mito,
diante da figura do civilizado Yaqub, que deixa a província e

Niterói, n. 23, p. 205-221, 2. sem. 2007 209


Gragoatá Nádia Regina Barbosa da Silva

torna-se um calculista bem-sucedido. Este, mais tarde, volta


a Manaus contratado por um novo imigrante, dono agora da
casa em que o engenheiro viveu na infância, para elaborar um
projeto de hotel. Omar, em vários momentos da narrativa, some
mas retorna, “Os olhos fundos e acesos davam a impressão de
um ser à deriva, mesmo sem ter perdido totalmente a vontade
ou a força de recuperar uma coisa perdida” (HATOUM, 2000,
p. 259). Yaqub simplesmente morre. À morte do gêmeo Omar,
que sempre retorna, o narrador não faz referência. O pai morre
desamparado e de velhice. A mãe enlouquece e não sobrevive.
Rânia sobrevive estéril como foram os irmãos. O filho da índia
doméstica transforma a história em romance, com fragmentos
de memória cuja figura de Omar, o destroçado, dá sustentação
a essa narrativa de destruição, da qual todos faziam parte como
agentes.
A qualidade desse texto passa pela escolha do elemento
responsável pela urdidura da narrativa, isto é, a releitura de um
mito que se alarga e se transforma em romance. Um romance de
um lugar que rompe com suas bases e fica à deriva entre razão
calculada e afetos desenfreados:
Lembro-me de que estava ansioso naquela tarde de meio-céu.
Eu acabara de dar minha primeira aula no liceu onde havia
estudado e vim a pé para cá, sob a chuva, observando as valetas
que dragavam o lixo, os leprosos amontoados, encolhidos de-
baixo dos outizeiros. Olhava com assombro e tristeza a cidade
que se mutilava e crescia ao mesmo tempo, afastada do porto
e do rio, irreconciliável com seu passado. (HATOUM, 2000, p.
264, grifos nossos)
Milton Hatoum utiliza como motivo de sua narrativa o
drama familiar, a casa que se desfaz. O autor lança mão de
um narrador que, depois de trinta anos, quando todos já estão
mortos, resolve contar uma história que também é sua. Este
procura descobrir, entre os homens dessa família, aquele que
é seu pai. Esse narrador observador, testemunha privilegiada,
tenta reconstruir sua própria identidade em meio aos estilhaços
das histórias dos outros, que ouviu e guardou, ou dos fatos que
presenciou, do seu quartinho afastado no fundo do jardim:
Naquela época, tentei, em vão, escrever outras linhas. Mas as
palavras parecem esperar a morte e o esquecimento; perma-
necem soterradas, petrificadas, em estado latente, para depois,
em lenta combustão, acenderem em nós o desejo de contar
passagens que o tempo dissipou. E o tempo, que nos faz esque-
cer, também é cúmplice delas. Só o tempo transforma nossos
sentimentos em palavras mais verdadeiras [...].(HATOUM,
2000, p. 244-245)
Desses relatos surgem as figuras de Omar e Yaqub, os gê-
meos inimigos, um dos quais pode ter engravidado sua mãe; a
relação incestuosa de Rânia com seus dois irmãos; a dedicação

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Ruínas e memória: Dois irmãos e um “novo” regionalismo

desmedida, que também beira o incesto, da matriarca Zana ao


preferido Omar; o desalento de Halim, seu marido, preterido
por esse amor excessivo.
Dois irmãos, à medida que dá um mergulho vertical na
memória, sempre falha e “gaga”, para sondar as inconclusões
do passado e tentar refazer o desfeito, por meio de um exame
minucioso de cada elemento que dele emerge – perfumes e odo-
res, sons e silêncios, luzes e sombras, palavras ditas e caladas,
gestos concluídos ou rascunhados e vozes legitimadoras – segue
os passos desse passado que se estendem horizontalmente por
muitos anos de atos e fatos. Assim, o vertical e o horizontal te-
cem a trama de tempos, por meio de uma delicada composição
lingüística que não permite um sentido único e definitivo, visto
que trabalha com dois eixos, o anúncio e o segredo (Perrone-
Moisés, 2000), que se alternam e se complementam:
Minha mãe quis sentar na mureta que dá para o rio escuro.
Ficou calada por uns minutos, até a claridade sumir de vez.
“Quando tu naceste”, ele disse, “seu Halim me ajudou, não
quis me tirar da casa...Me prometeu que ias estudar. Tu eras
neto dele, não ia te deixar na rua. Ele foi ao teu batismo, só ele
me acompanhou. E ainda me pediu para escolher teu nome.
[...] Com o Omar eu não queria...Uma noite ele entrou no meu
quarto, fazendo aquela algazarra, bêbado, abrutalhado...Ele
me agarrou com força de homem. Nunca me pediu perdão.
(HATOUM, 2000, p. 241)
Dessa trama, disfarçado, também avulta um tempo que se
amplia da história peculiar daquela região para a história brasi-
leira, iluminando a época do processo de modernização do país,
que reverberou na região norte, talvez mais do que em outros
lugares, e revelando, com crueza, as marcas da convivência de
progresso e atraso, de avanço e estagnação, de permanência e
mudança. Veja-se no texto:
A euforia, que vinha de um Brasil tão distante, chegava a Manaus
como um sopro amornado. E o futuro, ou a idéia de um futuro pro-
missor, dissolvia-se no mormaço amazônico. Estávamos longe da
era industrial e mais longe do nosso passado grandioso. (HATOUM,
2000, p. 128)
Manaus é o espaço privilegiado, a cidade ilhada pelo rio
e pela floresta, que, desde o fim da belle époque da borracha,
adaptou-se, no possível, a cada nova circunstância dada pelo
desenvolvimento. Nesse sentido, pode ser compreendida como
uma alegoria da história do país, uma parte, num pequeno
mundo, a ele circunscrita, a gerar valores humanos específicos,
fazendo, dessa forma, a passagem do local para o universal. Um
espaço sócio-cultural e histórico, formado por estratos humanos
que se cruzam e se misturam, quase desaparecendo: o estrato
indígena, o do imigrante estrangeiro, o do migrante de outras
regiões do país:

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Gragoatá Nádia Regina Barbosa da Silva

O indiano falava pouco [...]. Ele vivia em trânsito, construindo


hotéis em vários continentes. Era como se morasse em pátrias
provisórias, falasse línguas provisórias e fizesse amizades
provisórias. O que se enraizava em cada lugar eram negócios.
(HATOUM, 2000, p. 226)
No enredo que tem como foco uma realidade humana,
extraída da observação direta, estão os imigrantes libaneses, que
se estabeleceram no norte do país, para reconstituir ou ampliar
a riqueza trazida de longe e integrar-se a uma comunidade
diversificada, e que sobrevivem aos faustos arruinados do ciclo
da borracha, até serem tangidos pela leva dos novos ricos da
modernização industrial.
Porém, há nuances nessa narrativa. Com ela, Milton Ha-
toum avizinha-se, de maneira distinta e com muita sutileza, de
uma vertente clássica da ficção brasileira, o regionalismo. Partin-
do de contribuições pertencentes a matrizes urbanas clássicas,
modernas e contemporâneas, já incorporadas à ficção brasileira,
o autor reexamina conteúdos regionais, compondo um tecido
híbrido que mantém vivas suas fontes e, dessa maneira, recupera
uma identidade específica, cujo processo parece prevenir-se de
uma transformação multicultural mais radical.
Imagino que, para quem não conhece a região, a Amazônia
apareça como um universo “outro”, por vezes, exótico, com seu
calor e sua chuva, suas águas, frutas, pássaros e peixes, seu chei-
ro e sua floresta. Para quem não a conhece, são fartos os apelos
aos sentidos, em seqüências que descrevem com preciosismo
a paisagem, a chuva, o calor, o cheiro, as coisas peculiares da
região. Veja-se uma delas:
[...] passeava ao léu pela cidade, atravessava as pontes metálicas,
perambulava nas áreas margeadas por igarapés, os bairros que se
expandiam àquela época, cercando o centro de Manaus. [...] O porto
já estava animado àquela hora da manhã. Vendia-se tudo na beira
do igarapé de São Raimundo: frutas, peixes, maxixe, quiabo, brin-
quedos de latão [...] Mas a visão de dezenas de catraias alinhadas
impressionava mais. No meio da travessia já se sentia o cheiro de
miúdos e vísceras de boi. Cheiro de entranhas. Os catraieiros rema-
vam lentamente, as canoas emparelhadas pareciam um réptil imenso
que se aproximava da margem. Quando atracavam, os bucheiros
descarregavam caixas e tabuleiros cheios de vísceras [...] e o cheiro
forte, os milhares de moscas, tudo aquilo me enfastiava [...]. Mirava
o rio. A imensidão escura e levemente ondulada me aliviava, me
devolvia por um momento a liberdade tolhida. Eu respirava só de
olhar o rio. (HATOUM, 2000, p. 80-81)
Nesse sentido, a relativização do exótico, presente na leitura
de quem não o conhece, remete-nos à questão do regionalismo,
vertente das mais fecundas que alimenta a história da literatu-
ra brasileira. Mas, será que o fato de o autor situar suas tramas
numa região tão específica do país, com detalhes de seus traços
marcantes, pintados num espaço que a caracteriza com cores e

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Ruínas e memória: Dois irmãos e um “novo” regionalismo

sotaque peculiares, povoado de cunhantãs, botos, curumins,


peixeiros, caboclos e regatões, impregnados pelo perfume das
açucenas, do cheiro do Pará e do sabor do cupuaçu, onde se
espraia uma vista ao longo do rio, que se perde no meio das
palafitas que cheiram a lodo, seria o bastante para inserir o
romance no veio regionalista?
Observa-se, nos trechos citados, uma ambiência que per-
tence a um território único, com sua história e geografia próprias,
espaço real e simbólico, no qual as pessoas se encontram e se
desencontram, entretecendo suas relações de identidade, que,
naturalmente, são diversas das de outros territórios com outras
configurações histórico-geográficas.
Ao meio físico representado no texto corresponde uma
composição étnica, uma produção econômica dominante, um
sistema social, componentes culturais produzidos e transmi-
tidos dentro desses marcos e, sobretudo, a expansão de uma
espécie de subcultura que estabelece comportamentos, valores
e hábitos (Angel Rama, 1982, p. 61 apud PELLEGRINI, 2004,
p. 61). Nesse universo, reconhecem-se usos culinários, manejos
lingüísticos, crenças interiorizadas pela comunidade, que per-
mitem um reconhecimento de si mesma e que a diferenciam
em relação a outros territórios. Se seguirmos essa trilha teórica,
encontraremos no romance uma inclinação regionalista.
Na literatura brasileira, a ficção regionalista representa
uma das possibilidades de oposição entre o local e o universal,
entre o particular e o geral ou ainda entre a periferia e o centro,
que a alimentam desde os seus primórdios. Essa terminologia,
que varia de acordo com cada enfoque teórico, parece expressar
a dificuldade de explicitar a tensão que liga o nacional e o es-
trangeiro, componentes próprios das culturas pós-coloniais.
Sabemos que a ficção brasileira efetivamente nasceu como
resposta a uma busca de expressão nacional. Desde o século XIX,
com José de Alencar, passando por Machado de Assis, Aluísio
Azevedo, chegando a Lima Barreto, Monteiro Lobato e outros
(salvaguardadas todas as diferenças entre eles), tanto o “campo”
quanto a “cidade” procuravam retratar um país que se formava,
diferente da metrópole. Essa busca da expressão nacional con-
tinua durante o Modernismo (Zilberman, 1994).
Dos meados dos anos 60 do século passado para cá, essa
distinção urbano/regional enfraqueceu. Assim, os temas ligados
à terra, à natureza, ao misticismo, ao clã familiar, ao sincretismo
religioso, peculiares a uma narrativa de fundamento telúrico,
tornaram-se raros. A industrialização crescente desses anos
veio mudando a geografia humana do país e, em certa medida,
deu força à ficção centrada na vida das grandes cidades, daí a
ênfase em todos os aspectos que compreendem esse outro tipo
de vivência, relacionados aos problemas sociais e existenciais
postos nesse outro território.
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Gragoatá Nádia Regina Barbosa da Silva

Se considero, portanto, as reflexões de Angel Rama, no


que tange à natureza de uma ficção regionalista, e penso, nessa
perspectiva, o romance de Hatoum, não posso deixar de atribuir
a essa narrativa um caráter originalíssimo: o que se vê nessa
escritura é a reinserção de elementos regionalistas fragmen-
tados, que sobrevivem numa ambiência peculiar, construída
pela memória e amparada, ao mesmo tempo, na lembrança e
no esquecimento.
Dessa maneira, as peculiaridades do universo amazônico,
que sugerem ao outro que está fora delas questões mais mar-
cadamente “brasileiras”, pois a narrativa se passa em Manaus,
centro importante no norte do país, em meio à floresta, cujos
estereótipos dizem respeito sobretudo à cultura indígena,
esbatem-se numa atmosfera quase onírica, dada pelo fluir de
um tempo construído pelos narradores, que lembram o que
sabem ou supõem saber e imaginam o que não sabem. Assim,
inserida nesse território único e “outro”, cuja aura de exotismo
– queira-se ou não já faz parte das representações simbólicas do
resto do país e do mundo –, o narrador situa mais um território,
a Manaus imaginária da sua memória, e ainda um outro, não
menos exótico para quem não o conhece, o das famílias libanesas
ali radicadas, seu núcleo afetivo principal (PELLEGRINI, 2004).
Veja-se no texto: “A vida do Mercado Municipal e seus arredo-
res, isso o velho Halim apreciava. As frutas e peixes, os paus e
troncos podres, pedaços de uma natureza morta que teima em
renascer por meio do cheiro” (HATOUM, 2000, p. 133).
Tem-se conhecimento de que essas famílias começaram
a chegar à Amazônia na primeira década do século XX e con-
tinuaram a chegar durante a época áurea da borracha. Como
regatões, dedicaram-se ao comércio ribeirinho. Depois, passaram
a atuar nos principais centros urbanos, criaram estabelecimentos
fixos ou ambulantes, o que fez com que ascendessem social e
economicamente. Estabelecidos, mudaram-se, em Manaus, para
os bairros mais novos, livres de uma ligação maior com o Rio
Negro e com os igarapés que cruzavam a periferia da cidade.
A própria construção de suas casas refletia essa ascensão e o
distanciamento em relação às populações mais pobres. Eram
casarões situados em terrenos enormes, por vezes chácaras. No
estilo dessas casas, na disposição de pomares e jardins luxuo-
sos, via-se a diversidade da origem dos moradores e o convívio
entre parentes, vizinhos e amigos, em festas e comemorações
de caráter religioso ou não (Daou, 2000).
Em, 2004, entrevistado pela revista Cult, Milton Hatoum
revelara que
Um território, mínimo que seja, pode ser um mundo de muitas
culturas, é um lugar que tem uma história, com suas relações
de identidade. Uma casa num bairro de Manaus, as minhas
viagens ao Rio Negro, ao Amazonas, são esses os territórios

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Ruínas e memória: Dois irmãos e um “novo” regionalismo

onde vivem meus personagens, imigrantes e nativos, alguns


em trânsito [...],
territórios concêntricos: a Manaus real e seu duplo, a Ma-
naus imaginária; dentro, a colônia libanesa, em cujo centro as
casas das famílias surgem como espaço privilegiado. Desses
territórios fecundos, aos quais corresponde a própria forma
narrativa, montada com relatos que saem uns de dentro dos
outros, Hatoum extrai sua matéria, constituída por uma teia
cultural variada e típica, em que se relacionam imigrantes, es-
trangeiros e nativos, que estabelecem relações de identidade e
de estranhamento com um mundo diverso, no qual um difuso
sentido de perda está sempre presente.
Na verdade, esses territórios concêntricos comportam
um descentramento enraizado que movimenta a narrativa: o
estrangeiro adaptado a uma outra cultura com a qual negocia,
num jogo em que se alternam o lugar e o não-lugar da própria
identidade, visto que, no fundo, subsiste o estranhamento.
Dessa maneira, pode-se arriscar dizer que Hatoum atu-
aliza, numa estética romanesca contemporânea a linguagem
do regionalismo. Um regionalismo rarefeito, fragmentado,
“negociado”, na medida em que o autor mistura aos elementos
que pulsam da variedade da matéria dada por uma região espe-
cífica, outros, originários de matrizes narrativas de inspiração
européia e urbana, plasmados por seu olhar que repousa num
outro tempo.
Talvez essa atualização colabore para acentuar, dentro
da estrutura geral da sociedade brasileira, as particularidades
culturais forjadas em determinadas regiões que contribuíram
para definir sua “outridade”, reinserindo-as no seio da cultura
nacional como um todo, por meio de sua temática universal. Nes-
sa perspectiva, o romance procura manter intactas na memória,
como fontes de referência, o que hoje são as ruínas dos aspectos
do passado que ajudaram no processo de singularização cultural
da Amazônia e, conseqüentemente, do Brasil. Para isso, a solução
encontrada pelo texto foi a exploração de um longo segmento
temporal que privilegia várias décadas e suas transformações.
Por essa razão, o que se vê com mais evidência no romance
é o sentido de busca de uma identidade: manauara, brasileira,
mestiça, libanesa ou tudo isso ao mesmo tempo, expressa, so-
bretudo, na figura do narrador. Essa questão é elaborada na
narrativa ao assinalar-se, de um lado, o registro de uma cultura
presente na comunidade manauara, em permanente mutação,
constituída de valores particulares, historicamente elaborados,
ou seja, os elementos indígenas, os mestiços e os resultantes dos
vários fluxos migratórios; de outro, a força criadora que move
essa cultura, transformando-a em algo para além do conjunto
de normas, comportamentos, crenças, culinária e objetos, visto

Niterói, n. 23, p. 205-221, 2. sem. 2007 215


Gragoatá Nádia Regina Barbosa da Silva

que atua com desenvoltura e cria nexos profundos e originais


no interior da narrativa.
Essa construção ficcional obriga a uma linguagem que dê
conta da pluralidade dos enfoques. Para tanto, de forma equi-
librada e dinâmica, Hatoum se vale de termos que migraram
para a língua portuguesa pelo contato com a cultura árabe, com
o tupi e outras línguas. Uma algaravia de línguas povoa as ruas
e o porto de Manaus, dando a medida das identidades parti-
culares geradas na região e aludidas no universo do romance.
Boa parte desses termos diz respeito à culinária, enfatizando o
paladar como uma das formas mais importantes de apreensão
e conhecimento do mundo, mas é o seu sentido de expropriação
e reapropriação que chama atenção.
O homem que deixara a clientela do restaurante manauara
com água na boca já era um exímio cozinheiro na sua Biblos
natal. Cozinhava com o que havia nas casas de pedra de Jabal
al Qaraqif, Jabal Haous e Jabal Laqlouq, montanhas onde a
neve brilhava sob a intensidade do azul. [...] E quando visi-
tava uma casa à beira mar, Galib levava seu peixe preferido,
o sultan Ibrahim, que temperava com uma mistura de ervas
cujo segredo nunca revelou. No restaurante manauara ele
preparava temperos fortes com a pimenta-de-caiena e a mu-
rupi, misturava-as com tucupi jambu e regava o peixe com
esse molho. Havia outros condimentos, hortelã e zatar, talvez.
(HATOUM, 2000, p. 63)
Observa-se que esse território híbrido criado pelo relato é
construído com base na história das culturas aí mencionadas,
na língua e na literatura que as expressam.
Assim, o autor parte de uma forma de narrativa já consa-
grada, amplia-a e tenciona-a, sobretudo no recurso às histórias
“em pedaços”, que exigem um trabalho cuidadoso com os nar-
radores e remetem tão longe quanto às Mil e uma noites. Esse
componente da tradição literária, aparentemente conservador,
é o que sustenta o tema central, dramas humanos. O aspecto
inovador que surge do relato que dá vida a uma região “brasi-
leira” é o sentido crítico em duas direções: uma que identifico
na forma da escritura, outra, no conteúdo, ou seja, por um lado,
no que tange a um tipo de paródia, que o texto incorpora, do
clássico canônico europeu, como estratégia político-ideológica
de apropriação da cultura dominante branca, masculina, eu-
rocêntrica – a indicação de dependência com o uso do cânone
revela, ironicamente, sua rebelião em relação ao abuso desse
mesmo cânone; por outro, no ressaltar do tema do conflito entre
as regiões interiores e a “modernização”, que orienta capitais e
portos, projetada pelas elites dirigentes urbanas, das regiões
mais desenvolvidas, movidas pela ideologia do progresso a
qualquer preço. Em Dois irmãos, tem-se “um certo gêmeo” de

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Ruínas e memória: Dois irmãos e um “novo” regionalismo

Manaus, São Paulo dos anos 50, de onde o “gêmeo estético”, que
lhe presta alusão, manda notícias:
Com poucas palavras, Yaqub pintava o ritmo da vida paulista-
na. A solidão e o frio não o incomodavam; comentava os estu-
dos, a perturbação da metrópole, a seriedade e a devoção das
pessoas ao trabalho. De vez em quando, ao atravessar a Praça
da República, parava para contemplar a imensa seringueira.
Gostou de ver a árvore amazônica no centro de São Paulo, mas
nunca mais a mencionou. [...] Agora não morava numa aldeia,
mas numa metrópole. (HATOUM, 2000, p. 60)
Nesse processo, confrontam-se o calor e o atraso do norte
do país e o frio e o progresso do sul/sudeste. E é a ânsia por
esse progresso que completa a derrocada da família, cuja casa
é transformada em uma grande loja de “quinquilharias impor-
tadas de Miami”. Veja-se:
Não chegou a ver a reforma da casa, a morte a livrou desse e
de outros assombros. Os azulejos portugueses com a imagem
da santa padroeira foram arrancados. E o desenho sóbrio da
fachada, harmonia de retas e curvas, foi tapado por um ecle-
tismo delirante. A fachada, que era razoável, tornou-se uma
máscara de horror, e a idéia que se faz de uma casa desfez-se
em pouco tempo.

Na noite da inauguração da Casa Rochiram, um carnaval de


quinquilharias importadas de Miami e do Panamá encheu as
vitrines. (HATOUM, 2000, p. 255)
Sob o arco temporal da narrativa, está ainda a inauguração
de Brasília e o discurso da integração nacional seguido pela
“modernização” do regime militar.
O pai reclamava que a cidade estava inundada, que havia
correria e confusão no centro, que a Cidade Flutuante estava
cercada por militares.“Eles estão por toda a parte”, disse, abra-
çando o filho. “Até nas árvores dos terrenos baldios a gente vê
uma penca de soldados...” “É que os terrenos do centro pedem
para ser ocupados”, sorriu Yaqub. “Manaus está pronta para
crescer... (HATOUM, 2000, p. 196)
Nesse contexto, a utopia que rondava o “paraíso” amazô-
nico, incorporada pelo personagem francês Antenor Laval, um
professor socialista que teve grande importância na vida dos
gêmeos, morre com ele, em praça pública:
Foi humilhado no centro da praça das Acácias, esbofeteado
como se fosse um cão vadio à mercê da sanha de uma gangue
feroz. Seu paletó branco explodiu de vermelho e ele rodopiou
no centro do coreto, as mãos cegas procurando um apoio, o
rosto inchado voltado para o sol, o corpo girando sem rumo,
cambaleando, tropeçando nos degraus da escada até tombar na
beira do lago da praça. Os pássaros, os jaburus e as seriemas
fugiram. A vaia e os protestos de estudantes e professores do
liceu não intimidaram os policiais. Laval foi arrastado para um

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Gragoatá Nádia Regina Barbosa da Silva

veículo do Exército, e logo depois as portas do Café Mocambo


foram fechadas. Muitas portas foram fechadas quando dois
dias depois soubemos que Antenor Laval estava morto. Tudo
isso em abril, nos primeiros dias de abril. (HATOUM, 2000,
p. 190)
A propósito ainda do professor socialista, também poeta,
Drummond novamente é citado pelo narrador, ao referir-se
ao personagem, “Seus poemas, cheios de palavras raras, insi-
nuavam noites aflitas, mundos soterrados, vidas sem saída ou
escape” (HATOUM, 2000, p. 193).
Outro vestígio de tradição, já citado, observado na escri-
tura de Hatoum, diz respeito aos dois eixos que ela sustenta,
o anúncio e o segredo. A narrativa prende a atenção do leitor,
por meio de indícios aqui e ali disseminados pelos narradores,
cujas identidades, a princípio, não se conhecem; aos poucos,
novas chaves vão sendo introduzidas que adiam o desenlace.
Esses recursos narrativos tomados pelo texto, o “reconheci-
mento” e a “peripécia”, assinalados por Aristóteles, que, para
Perrone-Moisés (2000), parecem ter sido redescobertos como
uma demanda permanente do ser humano, podem também
ser compreendidos como suportes de um tipo de paródia que o
romance incorpora.
Isso confirmaria a dimensão mítica da costura narrativa,
ao dialogar com o mito clássico de Dioniso, o Caos impelidor
da poesia trágica, mil vezes destroçado, que morre e desaparece
com seus filhos, para retornar eternamente, impulsionado pelo
desejo. Esse mito se amplia na clivagem dos gêmeos opostos,
partes de uma mesma unidade que se rompe num tempo: lugares
e sujeitos que se descentram e se dilaceram; eterno retorno de um
mito, a dar sustentação a outro, o literário, ora como metáfora,
ora como metalinguagem.
Nesse raciocínio, os narradores que detêm o poder do
segredo e do anúncio funcionam como verdadeiros oráculos,
que decifram os indícios ao seu redor. Estes, recuperados pela
memória ou reconstruídos na imaginação, orientam os caminhos
da leitura, sendo responsáveis por toda a fabulação romanesca.
Veja-se no texto:
Eu não sabia nada de mim, como vim ao mundo, de onde tinha
vindo. A origem: as origens. Meu passado, de alguma forma
palpitando na vida dos meus antepassados, nada disso eu
sabia. Minha infância sem nenhum sinal de origem. É como
esquecer uma criança dentro de um barco num rio deserto, até
que uma das margens a acolhe. Anos depois, desconfiei: um
dos gêmeos era meu pai. (HATOUM, 2000, p. 73)
Outro aspecto que merece atenção, no que tange à presença
de elementos tradicionais no romance, diz respeito aos perfis dos
personagens. Ao contrário do que ocorre com boa parte das nar-
rativas contemporâneas, em que personagens, estrategicamente,

218 Niterói, n. 23, p. 205-221, 2. sem. 2007


Ruínas e memória: Dois irmãos e um “novo” regionalismo

não verticalizados, vagam na história, surgem e desaparecem,


alteram suas identidades e movimentam-se na narrativa, em
Dois irmãos o que se vê são personagens bem-estruturados, com
perfis densos e profundos, que permitem viver dramas intensos.
São personagens altamente verossímeis, com pés fincados em
solo amazônico, cujos traços, articulados à própria história da
região, ainda não se apagaram na memória dos narradores. Aqui,
quem vaga é a “cidade flutuante”, metáfora maior de um desen-
raizamento das origens, rumo ao futuro, que dilacera, divide e
alude a uma subjetividade conflitante, complexa, tensa, própria
do sujeito que resulta desse processo. No romance, esse sujeito
está radicalmente partido na figura dos gêmeos: dois que, na
verdade, são um. Gêmeos que incorporam a interface dos dois
tipos inumanos: a criança e o homem do desenvolvimento, no
sentido observado por Lyotard (1989, p. 9-15).
Pela riqueza da obra, essa escritura se abre para outras pos-
sibilidades de leitura. Há, entre essas possibilidades, um paralelo
plausível com um outro romance da literatura brasileira, Esaú
e Jacó, de Machado de Assis. Este mais centrado na história dos
dois irmãos gêmeos, Pedro e Paulo, opostos que se completam
na figura de Flora, cujas diferenças e identidades parecem alu-
dir a questões relacionadas à história do país e suas peculiares
transformações, ao final do século XIX. Flora é o movimento,
o trânsito, é o que se abre ao “outro”, ao futuro, inventor de
eternos “agoras”. Flora não quer um dos gêmeos, mas os dois,
“Há contradições explicáveis”, diz o título de um dos capítulos,
“Coisas passadas coisas futuras”, diz outro; lacerações geradas
pela subjetividade moderna, digo eu.
É na virada do século XIX para o XX, tempos de Machado
que passa ao fundo do romance Esaú e Jacó, que as sementes da
modernização começam a se movimentar neste país periférico,
aproximadamente cinco décadas antes de alcançar a periferia
dessa periferia, narrada no romance de Hatoum. Aires, alter-ego
do escritor mestiço, é quem narra, em seu memorial, a história
de Pedro e Paulo e o mestiço filho da índia estuprada, a de Ya-
qub e Omar.
Mas o conflito entre gêmeos tem sido fartamente explora-
do em todas as culturas e em todos os gêneros, desse modo, é
também um mito ameríndio, e isso reforça o toque regionalista
da obra esboçado pela escolha de um narrador específico. Sobre
isso, o próprio autor já se manifestou, ao afirmar que “Por exem-
plo, entre os índios kaapor, tão amados por Darcy Ribeiro, os
irmãos Maíra e Micura representam o bem e o mal, juntos, sem
o maniqueísmo de um certo ocidente” (Laub, 2000, p. 25).
Seja como for, Hatoum consegue fazer um romance pós-
moderno, ao combinar, de maneira muito original, traços urba-
nos, universais pertencentes às narrativas de todos os tempos,
com traços regionais, locais, extraídos da cultura amazônica.
Niterói, n. 23, p. 205-221, 2. sem. 2007 219
Gragoatá Nádia Regina Barbosa da Silva

Ao rever conteúdos regionais, o autor cria um rico tecido


híbrido, sem abrir mão da herança recebida de suas fontes. He-
rança por ele renovada, num passado recuperado e resguardado
em ruínas de memória, que ainda avivam as marcas de uma
identidade, por vezes, resistente a um possível caráter multi-
cultural do texto.
Nesse sentido, ao escolher a cidade de Manaus como palco
de sua narrativa, Hatoum consegue lembrar e resgatar, em ter-
mos artísticos, os impasses gerados pela profunda desigualdade
da vida social e pela diversidade da cultura brasileira – em movi-
mento contínuo que expõe suas marcas e ruínas a expropriações
e reapropriações de termos heterogêneos –, numa síntese de
significado humano e político. Isso seria, talvez, o maior mérito
dessa escritura.

Abstract
The article is on the romance Dois Irmãos, by
Milton Hatoum, which has as background the
allegoric city of Manaus. The special focus of
the analysis is on the identity relationships and
the difference among people who live in the same
house. However, this place of the family extends
to the space of Manaus, the port on the margin
of the river Rio Negro. The city and the river are
metaphors of the ruins and the time, and follow
the development of the family drama. There are
nuances in this narrative that the author sur-
rounds, in a different way and subtly, a classical
approach of the Brazilian fiction: the regionalism.
Based on the contributions of the urban classic ref-
erences, modern and contemporary, incorporated
by the Brazilian fiction, the author reexamines
regional contents, composing a hybrid weave
which maintains his sources alive. Therefore, he
recovers a specific identity, and this process seems
to prevent from a more radical multicultural
transformation.
Keywords: Identity. Difference. Memory. Re-
gionalism.

Referências

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Niterói, n. 23, p. 205-221, 2. sem. 2007 221


Resenhas
GRANDIS, Rita de.Reciclaje cultural y memoria revolucionaria. Buenos Aires: Biblos, 2007.

GRANDIS, Rita de. Reciclaje cultural y memoria revolucionaria: la


práctica polémica de José Pablo Feinmann. Buenos Aires: Biblos,
2007.
Silvia Cárcamo (UFRJ)
Em Reciclaje cultural y memoria revolucionaria: la práctica
polémica de José Pablo Feinmann, Rita de Grandis incursiona em
importantes zonas pouco estudadas do campo intelectual ar-
gentino com o propósito de interpretar aspectos essenciais dos
processos culturais das últimas décadas. A conexão dos dois
sintagmas do título (“reciclaje cultural” e “memoria revolucio-
naria”) expressa acertadamente o desafio assumido pela autora:
pensar como fenômenos simultâneos a reciclagem cultural, um
novo modo de “transmissão e produção cultural” e a memória
revolucionária, através da análise da obra e da atuação de José
Pablo Feinmann (1943), um dos intelectuais mais polêmicos do
país. Essa articulação, que implica relacionar cultura e política,
alta literatura e cultura de massa, constitui o ponto de partida
da problematização do campo intelectual argentino.
A escolha de um autor cuja obra literária, jornalística, de
divulgação filosófica e de cinema tem vigência durante um longo
período de tempo, de um escritor que é consagrado pelo público
leitor sem, no entanto, pertencer ao cânon, merece por parte de
Rita De Grandis uma justificativa: “é um intelectual da nova
esfera pública que combina política e literatura; um profissional
colaborador do jornalismo da era democrática que se formou e
emergiu daquelas culturas políticas e ideológicas dos anos 70 e
que conscientemente fazem das mesmas um programa de ação
moral e intelectual” (p. 18). A descrição e a interpretação do en-
contro da cultura com a política no processo histórico concreto e
não como especulação teórica levaram a autora a indagar acerca
do fenômeno mais singular e mais debatido da política argentina
contemporânea: o peronismo. De Ernesto Laclau provém a idéia
de considerar o populismo principalmente nos seus aspectos
formais do que nos ideológicos para encontrar esses aspectos
nos traços da escritura de Feinmann. O “populismo estético”,
a noção de Fredric Jameson, que vem a complementar a teoria
de Laclau, permite-lhe visualizar o apagamento, ao menos nas
intenções, das fronteiras entre a cultura de elite e a de massa
ou comercial que o crítico norte-americano observa na pós-
modernidade e Reciclaje cultural y memoria revolucionaria estuda
na obra de Feinmann.
Sem dúvida, Feinmann convoca à reflexão sobre fenômenos
atuais, cujo estudo requeria uma noção de cultura adequada a
tal propósito. Em primeiro lugar, era obrigatório tomar distan-
cia do binarismo cultura de elite/cultura de massa, e pensar, a
partir da orientação aberta por W. Benjamin, que “as mudanças
técnicas no âmbito da cultura têm o seu correlato nas transfor-

Niterói, n. 23, p. , 2 225-228. sem. 2007 225


Gragoatá Silvia Cárcamo

mações sensoriais, nos modos de perceber e experimentar a


realidade social” (p. 172). Por outra parte, fazia-se preciso não
apenas considerar a obra (os ensaios, os romances, as crônicas de
Feinmann) mas também todos os componentes que configuram
os complexos circuitos da cultura, e, dentre esses componentes,
o leitor. É interessante salientar que Reciclaje cultural y memoria
revolucionaria repara no modo como Feinmann inscreve nos
seus textos a figura do público jovem que lê as suas crônicas e
os seus ensaios. Segundo sugere Rita De Grandis, aquele que
foi um jovem peronista (Feinmann), que acreditou na revolu-
ção nos anos 70, assume no período pós-ditatorial, como se ele
se reciclasse a si próprio, a missão de dialogar com as novas
gerações que herdaram os traumas do passado sem haver sido,
no entanto, protagonistas da história dos fracassos acontecidos
nas últimas décadas.
O período que se seguiu à ditadura militar coincidiu com
o reordenamento cultural sob a hegemonia da cultura de massa
audiovisual e com a derrota dos projetos revolucionários; Rita
de Grandis leva em conta esse quadro em Reciclaje cultural y
memoria revolucionaria. Parece-nos exemplar da sua proposta
crítica o capítulo IV em que é analisado o roteiro escrito por
Feinmann para o filme Eva Perón. Mito na vida política, símbolo
re-significado constantemente desde a sua morte ocorrida em
1952, Eva Perón é também um dos mitos mais produtivos da
literatura argentina contemporânea. Examinando essa tradição,
Rita salienta a singularidade da Eva de Feinmann, que recicla
as elaborações anteriores do mito “sem abandonar a natureza
política de Eva que, como o grande intertexto dos mitos sociais
e culturais argentinos, continua interpelando o presente no
contexto dos novos conflitos e movimentos sociais” (206).
Estimamos que o estudo da ensaística de Feinmann repre-
senta outra contribuição valiosa do livro. Ao mesmo tempo que
enriquece o conhecimento do gênero na Argentina, mostra ou-
tros modos de “reciclagem cultural”. Para interpretar os grandes
ensaios do autor (Filosofia y nación e La sangre derramada), Rita De
Grandis os situa na trajetória de textos nacionalistas de décadas
anteriores, recuperando autores cujo estudo foi negligenciado
pela crítica do ensaio argentino apesar do interesse que o gêne-
ro suscitou nos últimos anos. A autora resgata, por exemplo, os
livros de orientação nacionalista e antiimperialista de Arturo
Jauretche (1901-1974) como antecedente do tipo de ensaio po-
lêmico e de intervenção pública de Feinmann. Ernesto Laclau
escreveu no seu comentário de contracapa de Reciclaje cultural y
memoria revolucionaria que “seu minucioso detalhe, e ao mesmo
tempo a sua compreensão das grandes linhas evolutivas do pe-
ríodo, fazem desta obra uma referência obrigatória da história
intelectual do novo fin de siècle”. A identificação dessas grandes
linhas às que se refere Laclau requeria a ampliação do arquivo
226 Niterói, n. 23, p. , 225-228. sem. 2007
GRANDIS, Rita de.Reciclaje cultural y memoria revolucionaria. Buenos Aires: Biblos, 2007.

para encontrar nas zonas cinzas da cultura as chaves de compre-


ensão do presente. O ensaio nacionalista, re-significado através
de Feinmann, projeta a sua luz sobre o debate atual da questão
nacional no contexto da globalização e dos nacionalismos em
épocas de políticas neoliberais. O ensaio de Feinmann também
é a ocasião não só para estudar as operações comprometidas nas
migrações da alta cultura à cultura de massa na atualidade, mas
também para examinar os procedimentos de reciclagem cultural.
Quase ao final do Capítulo I, dedicado ao ensaio, Rita De Grandis
apresenta o que é, no nosso critério, uma síntese da sua perspec-
tiva teórica e de seu modo de análise. Com a intenção de explicar
a utilização da sociologia, da filosofia ou da história nos textos
de Feinmann, a autora assinala que “(Feinmann) submete estes
materiais a um processo de neutralização da sua especificidade
material e formal, criando uma massa cultural de resíduos arcai-
cos, novos e emergentes que circulam e re-circulam, favorecendo
uma concepção de referente como um significante saturado de
representações. Nesse risco da re-utilização, Feinmann reforça
ou privilegia a estrutura binária própria do gênero melodramá-
tico que, incorporado ao ensaio, fala dos usos e dos abusos da
literatura dentro da cultura geral dos meios” (p. 85). Cremos que
esse fragmento evidencia a pertinência da “reciclagem cultural”
de Walter Moser como uma das noções de base para o estudo de
Feinmann; no caso do ensaio, permite compreender a presença
da filosofia e de saberes sofisticados num autor que transita tão
comodamente pela cultura de massa.
Ao se debruçar sobre o passado com as preocupações do
presente, essa pesquisa não poderia ter sido divulgada em mo-
mento mais adequado. Na Argentina atual, a revisão do passado,
alentada inclusive pelo próprio Estado, através da sua política da
memória e de crítica aos projetos neoliberais da década menemis-
ta, coincide com o crescente interesse por questões vinculadas
às identidades culturais que colocam na agenda de discussão
assuntos da atualidade: globalização e migrações, império da
cultura audio-visual e política como espetáculo, desmovilização
e novas maneiras de reagrupamentos identitários.
O livro de Rita de Grandis é um exemplo do bom apro-
veitamento dos estudos culturais por parte da crítica literária.
Como é notório, a perspectiva e as preocupações dos estudos
culturais foram penetrando nos estudos literários durante as
últimas décadas, em parte porque, para usar as palavras de Be-
atriz Sarlo, ninguém poderia negar que “o lugar dos discursos,
seu uso e a sua produção estão mudando. E, entre os discursos,
o lugar da literatura”. Poderíamos dizer que Reciclaje cultural y
memoria revolucionaria é tributária das visões introduzidas pelas
pesquisas das últimas décadas sobre as culturas populares e as
suas transformações na modernidade e na pós-modernidade
(Néstor García Canclini, Jesús Martín-Barbero), mas é evidente
Niterói, n. 23, p. , 2 225-228. sem. 2007 227
Gragoatá Silvia Cárcamo

também a marca da tradição crítica literária (Ángel Rama, An-


tonio Candido, Antonio Cornejo Polar) que vinculou literatura
e vida social, literatura escrita e produções orais, as esferas do
culto e do popular na América Latina.
Acreditamos que a obra representa, por outra parte, uma
síntese de tradições acadêmicas. Sua autora, argentina por ori-
gem e formação, pertence há trinta anos à academia canaden-
se, tendo-se destacado nos estudos literários e culturais como
professora e pesquisadora na UBC de Vancouver, Canadá. No
Brasil, foi responsável junto com Zilá Bern pelo livro Imprevisíveis
Américas. Questões de hibridação cultural nas Américas, publicado
em 1995 em português.
Embora Reciclaje cultural e memoria revolucionaria tenha sido
escrito para ser publicado na Argentina, as notas destinadas
a esclarecer dados específicos da cultura local indicam que a
autora previu também um leitor estrangeiro para o seu livro.
Certamente, ele pode interessar não só para entender as trans-
formações do campo intelectual argentino dos últimos anos, mas
também como um modelo de análise que, circunscrito a uma
cultura nacional e a um autor, é capaz de enxergar as grandes
questões da cultura contemporânea a partir de um horizonte
teórico e uma experiência latino-americana.

228 Niterói, n. 23, p. , 225-228. sem. 2007


Colaboradores CHARLES BICALHO
deste Número Possui graduação em Letras em língua portuguesa (1997) e língua alemã
(2000) pela Universidade Federal de Minas Gerais e mestrado em Master Of
Arts - University of New México (2004), EUA. Atualmente, faz doutorado na
Universidade Federal de Minas Gerais. Presta consultoria para a Secretaria
de Estado da Educação de Minas Gerais e é professor de graduação licen-
ciado da Faculdade de Filosofia e Letras de Diamantina - FAFIDIA. Atua
principalmente nos seguintes temas: Literatura Indígena, Poética, índios de
Minas Gerais, Teoria Literária, Literatura Brasileira e Cinema.

GILMEI FRANCISCO FLECK


Doutorando em Letras pela UNESP de Assis, é professor de Literaturas
Hispânicas da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, em
Cascavel. Publicou “Olhares dialógicos sobre o passado em Vigília del Almi-
rante (1992)”, na Revista Línguas e Letras – v.7. nº.13 (EDUNIOESTE, 2006) e “As
aventuras do descobrimento da América em El último crimen de Colón (2001)”,
em obra organizada por CARLOS, A. M. e ESTEVES, A. R., com o título de
Ficção e História – leituras de romances contemporâneos (FCL- UNESP,2007).

JOSÉ LUIZ FIORIN


É Doutor em Lingüística pela Universidade de São Paulo (1983). Fez pós-
doutorado na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (Paris) (1983-1984)
e na Universidade de Bucareste (1991-1992). Atualmente é Professor Associado
do Departamento de Lingüística da FFLCH da Universidade de São Paulo.
Foi membro do Conselho Deliberativo do CNPq (2000-2004) e Representante
da Área de Letras e Ligüística na CAPES (1995-1999). Tem experiência na
área de Lingüística, com ênfase em Teoria e Análise Lingüística, atuando
principalmente nos seguintes temas: enunciação, estratégias discursivas,
procedimentos de constituição do sentido do discurso e do texto, produção
dos discurso sociais verbais.

JULIANA P. PEREZ
Juliana P. Perez é professora adjunta do Departamento de Letras Anglo-Ger-
mânicas da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro e
doutora em Língua e Literatura Alemã pela Universidade de São Paulo. Tem
publicados artigos sobre poesia e sobre a obra de Paul Celan, com destaque
para: “À margem do abismo: uma leitura poetológica de Zürich, zum, Stor-
chen, de Paul Celan” (Pandemonium Germanicum, n°. 10, 2006) e “Abertura e
hermetismo na poesia de Paul Celan” (Terceira Margem, n°. 15, 2006).

Kátia Eliane Santos Avelar


Possui graduação em Farmácia e Bioquímica pela Universidade Federal de
Juiz de Fora (1993), Mestrado em Ciências (Microbiologia) pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) (1996) e Doutorado em Ciências (Microbiolo-
gia) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2002). Atua como Professor
e Pesquisador na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e Centro Universitário
Augusto Motta (UNISUAM). Tem experiência na área de Microbiologia, com

Niterói, n. 23, p. 229-232, 2. sem. 2007 229


ênfase em Bacteriologia. Atualmente, desenvolve projetos ligados à biologia
de Leptospira, Bacteroides e Clostridium. Atua, também, na área interdisci-
plinar, em Desenvolvimento Local, com projetos voltados para o estudo de
plantas medicinais e tóxicas do Estado do Rio de Janeiro.

LILIAN FERRARI
Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(1980), mestrado em Lingüística pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(1985), doutorado em Lingüística pela University of Southern California/
Universidade Federal do Rio de Janeiro (1994) e pós-doutorado na University
of California, Berkeley. Atualmente é professora do Departamento de Lin-
güística e do Programa de Pós-Graduação em Lingüística da Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Tem experiência na área de Lingüística, com ênfase
em Lingüística Cognitiva, atuando principalmente nos seguintes temas:
construções condicionais, dêixis, discurso reportado e subjetividade.

LUCIANO BARBOSA JUSTINO


É Diretor Adjunto do Centro de Educação e Professor Titular do Departa-
mento de Letras e Artes e do Mestrado em Literatura e Interculturalidade
da UEPB. Em 2007, publicou “Por uma ecologia poética”, na Revista Diadorim
da UFRJ; “Drummond e Augusto de Campos: dialogia de uma tradição con-
temporânea”, na Revista O Eixo e a Roda da UFMG; “Gênero a marginalidade
na literatura contemporânea”, no livro Literatura e lingüística: teoria, análise e
práticas”, publicado pela EDUFPB.

MARIA MARGARIDA MARTINS SALOMÃO


Doutora em Linguística pela Universidade da California, Berkeley, onde
desenvolveu sua tese sobre redes construcionais como solução para casos de
polissemia, com a supervisão de um comite composto por Charles Fillmore
(principal orientador), George Lakoff e Paul Kay. Foi Visiting scholar na mes-
ma Universidade, no perÍodo 2006-2007, trabalhando na area de linguística
cognitiva, com apoio da CAPES. Líder do grupo de pesquisa GRAMÁTICA
E COGNIÇÃO, é Professora Associada da Universidade Federal de Juiz de
Fora, onde atua nos Programas de Graduação em Letras e de Pós Graduação
em Linguística. Pesquisa em desenvolvimento na área de Linguística Cog-
nitiva, sub-área Gramática das Construcões (redes, estruturas argumentalis,
aspecto e modalidade). No momento, está iniciando uma cooperação com
o ICSI/ University of California, Berkeley, no propósito de desenvolver a
versão da Frame Net para o Português.

MARIANGELA RIOS DE OLIVEIRA


Possui graduação em Letras / Português Literaturas pela Universidade Fe-
deral do Rio de Janeiro (1981), mestrado em Letras (Letras Vernáculas) pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (1987) e doutorado em Letras (Letras
Vernáculas) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1994). Atualmente é
professora associada da Universidade Federal Fluminense, onde coordena o
Curso de Pós-Graduação em Letras e preside o Conselho Editorial da Revista

230 Niterói, n. 23, p. 229-232, 2. sem. 2007


Gragoatá. É coordenadora do Grupo de Estudos Discurso & Gramática - UFF.
Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Língua Portuguesa, atuan-
do principalmente nos seguintes temas: língua portuguesa, funcionalismo,
gramaticalização, ensino e morfossintaxe.

NÁDIA REGINA BARBOSA DA SILVA


Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense
(2006) e mestra em Literatura Brasileira e Teorias da Literatura pela Uni-
versidade Federal Fluminense (2001). Possui graduação em História pela
Universidade Federal Fluminense (1989), especialização em História Social
pela Universidade Federal Fluminense. Cursou graduação em Economia pela
Universidade Federal do Pará (1982). Atualmente é professora da Universida-
de Estácio de Sá, no curso de Letras. Tem experiência na área de Literatura
Brasileira e Teorias da Literatura, com ênfase nos temas: contemporaneidade,
pós-modernidade, subjetividade, globalização, violência e literatura, lingua-
gem, educação e poesia.

RENATA MANCINI
Possui graduação em Ciências Biológicas pela Rutgers University (1995), mes-
trado em Ciências Biológicas (Microbiologia) pela Universidade de São Paulo
(1998) e doutorado em Lingüística pela Universidade de São Paulo (2006).
Atualmente é Professora da Universidade Federal Fluminense, onde minis-
tra disciplinas de Lingüística e desenvolve pesquisa na área de Semiótica
aplicada à canção brasileira, à linguagem cinematográfica e à publicidade.

SEBASTIÃO JOSUÉ VOTRE


A carreira acadêmica de professor e pesquisador, iniciada na UNIJUI em 1968,
privilegia duas áreas do conhecimento, com vários pontos em comum, no
estudo da atividade humana: Lingüística e Análise do Discurso. Na primeira
área adquiriu a formação básica (UFSM), com especialização e mestrado
(PUC-RS), doutorado (PUC-RJ) e livre-docência (UFRJ), bem como estágios
de pós-doutorado, nas universidades da Pensilvânia, Filadélfia (1980, com
William Labov); da Califórnia, Los Angeles (1986, com Sandra Thompson);
de Essex, Inglaterra (1988, com Peter Trudgill); de Laval, Québec (1992, com
Diane Vincent) e da Califórnia, Santa Bárbara (1999, com Sandra Thompson).
Na área de análise do discurso da atividade humana, com foco na atividade
esportiva, a partir de 1986, pesquisa as relações entre linguagem verbal e
linguagens não-verbais. Fez estágio de pós-doutorado na Universidade de
Strathclyde, Escócia (em 1999, com Anthony Mangan). Atuou na fundação
da Associação de estudos da linguagem do Rio de Janeiro; do Programa de
estudos do uso da língua e do Grupo de estudos discurso & gramática, na
UFRJ; do Laboratório do imaginário e das representações sociais e do grupo
de estudos semiótica das atividades humanas, na UGF.

SÉRGIO LUIZ PRADO BELLEI


Sérgio Luiz Prado Bellei concluiu seu Ph. D. em Literatura Anglo-Americana
na Universidade do Arizona, nos Estados Unidos, e completou dois trabalhos

Niterói, n. 23, p. 229-232, 2. sem. 2007 231


de pós-doutoramento, também nos Estados Unidos. Seus textos recentes
mais importantes incluem o ensaio intitulado “Brazilian Anthropophagy
Revisited”, que faz parte da coletânea de ensaios publicada no livro Cani-
balism and the Colonial World, de 1998, publicado pela Cambridge University
Press, na Inglaterra, e o livro O Livro, a Literatura e o Computador, publicado
em 2002. É atualmente Professor Titular de Teoria Literária no Programa
de Pós-Graduação em Inglês da Universidade Federal de Santa Catarina e
pesquisador nível 1A do CNPq.

SILVIA CÁRCAMO
Possui graduação em Letras pela Universidad Nacional de Rosario (1974) ,
mestrado em Letras Neolatinas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(1985) e doutorado em Letras Neolatinas pela Universidade Federal do Rio
de Janeiro (1993). Atualmente é Professora da Universidade Federal do Rio
de Janeiro e membro do corpo editorial da revista Alea - Estudos Neolatinos.
Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literaturas Estrangeiras
Modernas, atuando principalmente nos seguintes temas: Literatura Argen-
tina, Literatura anos 70-80, Literatura e Política.

VALERIA ROSITO FERREIRA


Possui mestrado em Estudos Literários pela State University of New York
at Buffalo (1982) e doutorado em Literatura Comparada pela Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (2004). Atualmente é professora concursada de
Língua Portuguesa e Literaturas do Curso Normal Superior do Instituto
Superior de Educação do Rio de Janeiro. Lecionou Teoria da Literatura na
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e na Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (UERJ). Suas pesquisas contemplam regimes visuais de
produção de sentido e suas interfaces com a produção literária. Sua prática
docente e publicações privilegiam Estudos Subalternos, Literatura Brasileira
e Linguagem Cinematográfica.

232 Niterói, n. 23, p. 229-232, 2. sem. 2007


UNIVERSIDADE
FEDERAL FLUMINENSE
Normas de apresentação de trabalhos
Instituto de Letras
1 A Revista Gragoatá, do Programa de Pós-graduação em Letras da
Revista Gragoatá UFF, aceita originais sob forma de artigos inéditos e resenhas de
Av. Visconde do Rio
Branco s/nº interesse para estudos de língua e literatura.
Campus do Gragoatá - 2 Os textos serão submetidos a parecer da Comissão Editorial, que
Bloco C - Sala 501
24220-200 - Niterói - RJ poderá sugerir ao autor modificações de estrutura ou conteúdo.
e-mail: gletras@vm.uff.br
Telefone: 21-2629-2608
3 Os textos não deverão exceder 25 páginas, no caso dos artigos, e 8
páginas, no caso de resenhas. Devem ser apresentados em duas
cópias impressas sem identificação do autor, bem como em disquete,
com indicação do autor, no programa Word for Windows 7.0, em
fonte Times New Roman (corpo 12, espaço duplo), sem qualquer
tipo de formatação, a não ser:
3.1 Indicação de caracteres (negrito e itálico).
3.2 Margens de 3 cm.
3.3 Recuo de 1 cm no início do parágrafo.
3.4 Recuo de 2 cm nas citações.
3.5 Uso de sublinhas ou aspas duplas (não usar CAIXA ALTA).
3.6 Uso de itálicos para termos estrangeiros e títulos de livros e perí-
odicos.
4 As citações bibliográficas serão indicadas no corpo do texto, entre
parênteses, com as seguintes informações: sobrenome do autor em
caixa alta; vírgula; data da publicação; abreviatura de página (p.) e
o número desta. (Ex.: SILVA, 1992, p. 3-23).
5 As notas explicativas, restritas ao mínimo indispensável, deverão
ser apresentadas no final do texto.
6 As referências bibliográficas deverão ser apresentadas no final do
texto, obedecendo às normas da ABNT(NBR-6023).

Livro: sobrenome do autor, título do livro (itálico), local de publicação,


editora,data.
Ex.: SHAFF, Adan. História e verdade. São Paulo: Martins Fontes,
1991.

Artigo: nome do autor, título do artigo, nome do periódico (itálico),


volume e nº do periódico, data.
Ex.: COSTA, A.F.C. da. Estrutura da produção editorial dos periódi-
cos biomédicos brasileiros. Trans-in-formação, Campinas, v. 1, n.1,
p. 81-104, jan./abr. 1989.

7 As ilustrações deverão ter a qualidade necessária para uma boa re-


produção gráfica. Deverão ser identificadas, com título ou legenda,
e designadas, no texto, de forma abreviada, como figura (Fig. 1, Fig.
2 etc).

Niterói, n. 23, p. 233-236, 2. sem. 2007 233


8 Os textos deverão ser acompanhados de resumo em português e
abstract, em inglês, que não ultrapassem 250 palavras, bem como de
3 a 5 palavras-chave também em português e em inglês.
9 Os autores deverão encaminhar, em folha separada, sua identifica-
ção (nome do artigo, nome do autor, instituição de vínculo, cargo,
últimas publicações etc.) em texto que não ultrapasse 6 linhas. Na
mesma folha, devem constar o endereço, o telefone e o e-mail.
10 Os colaboradores terão direito a 2 exemplares da revista.
11 Os originais não aprovados não serão devolvidos.

Próximos números
Número 24
Tema: Brasil e África: trajetórias, rostos e destino
Organizadores: Laura Padilha e Lucia Helena
Prazo para entrega dos originais: 15 de janeiro de 2008
Ementa: Literatura, política e ideologia no cenário do neoliberalismo. Nação e narração na
estrutura pós-colonial contemporânea do Brasil e da África. O Brasil e a África
em suas literaturas e linguagens: paradoxos, identidades, dilemas e problemas.
O discurso e a construção da subjetividade e das formas estéticas. Literatura e
outras artes. As perspectivas da crítica e a questão da teoria no Brasil e na África.
Línguas em contato e política lingüística. Reflexão, história, antropologia e filosofia
na cultura brasileira e africana contemporânea. Literatura, crise e utopias.

Número 25
Tema: Transdisciplinaridades
Organizadores: Claudia Roncarati e Vera Lucia Soares
Prazo para entrega dos originais: 30 de junho de 2008
Ementa: Relações entre perspectiva teórica e abordagem prática na investigação lingüística
e na literária. Implicações e conflitos entre princípios analíticos e metodologias
de pesquisa. Inter e transdisciplinaridade – contribuições e problemas na pós-
modernidade.

Número 26
Tema: Metáfora – o cotidiano e o inaugural
Organizadores: Solange Coelho Vereza e Lívia de Freitas Reis
Prazo para entrega dos originais: 15 de janeiro de 2009
Ementa: A metáfora no discurso cotidiano e na produção literária. O rotineiro e o insólito
nos processos de metaforização. A trajetória da abstratização dos sentidos – recortes
sincrônicos e diacrônicos. Fatores motivadores da linguagem metafórica. Fronteiras
conceituais e analíticas: literalidade e figuratividade. Metáfora e alegoria.

234 Niterói, n. 23, p. 233-236, 2. sem. 2007


UNIVERSIDADE
FE­DE­RAL FLUMINENSE
General Instructions for Submission of Papers
Instituto de Letras
1 The Editorial Board will consider both articles and reviews in the
Revista Gragoatá areas of language and literature studies.
Av. Visconde do Rio
Branco s/nº 2 In considering the submitted papers, the Editorial Board may
Campus do Gragoatá - suggest changes in their structure or content. Papers should be
Bloco C - Sala 501
24220-200 - submitted in floppy disks together with two printed copies, typed
Niterói - RJ- Brazil
e-mail: pgletras@vm.uff.br
in Word for Windows 7.0, double-spaced, Times New Roman font
Telefone: 12, without any other formatting except for:
+55-21-2629-2608

2.1 bold and italics indication;


2.2 3cm margins;
2.3 1cm identation for paragraph beginning;
2.4 2cm identation for long quotations;
2.5 underlining or double inverted commas (NEVER UPPERCASE)
for emphasis;
2.6 italics for foreign words and book or journal titles.

3 Papers should be no more than 25 pages in length and reviews no


more than 8 pages.

4 Authors are requested to resort to as few footnotes as possible,


which are to be placed at the end of the text. As for references in
the body of the article, they should contain the author’s surname
in uppercase as well as date of publication and page number
in parentheses (eg.: JOHNSON, 1998, p. 45-47).

5 Bibliographical references should be placed at the end of the text


according to the following general format:

Book: author’s surname and first name, title of book (italics), place of
publication, publisher and date (eg.: ELLIS, Rod. Understanding se-
cond language acquisition. Oxford : Oxford University Press, 1994).
Article: author’s surname and first name, title of article, name of journal
(italics), volume,number and date (eg.: HINKEL, Eli. Native and
nonnative speakers’ pragmatic interpretations of English texts.
TESOL Quarterly, v. 28, no. 2, p. 353-376, 1994).

6. Tables, graphs and figures should be identified, with a title or legend,


and referred to in the body of the work as figure, in abbreviated
form (eg.: Fig. 1, Fig. 2 etc.).

7. Papers should contain two abstracts (a Portuguese and an English


version), no more than 5 lines in length. In addition, between 3 to
5 keywords, also in Portuguese and in English, are required.

Niterói, n. 23, p. 233-236, 2. sem. 2007 235


8 Authors are requested to send in an abridged CV (name, institution,
post, degrees, titles, latest publications, research interests, etc.), no
more than 5 lines in length.

9 Authors, whose articles are accepted for publication, will be entitled


to receive 2 copies of the journal. Originals will not be returned.

236 Niterói, n. 23, p. 233-236, 2. sem. 2007


Este livro foi composto na fonte Book antiqua.12
Impresso na Flama,
em papel offset 75g (miolo) e Cartão Supremo 250g (capa)
produzido em harmonia com o meio ambiente.
Esta edição foi impressa em julho de 2008.
Tiragem: 500 exemplares

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