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Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

Universidade de São Paulo

Visões do Alto

Discussão sobre a representação do ponto de vista social e da experiência periférica


na literatura brasileira contemporânea

Bruno Gavranic Zaniolo

Trabalho apresentado para a disciplina de Correntes Críticas I


2015

“Todo silêncio é uma sentença a ser


cumprida. Uma escuridão a atravessar.”

Paulo Lins, Cidade de Deus

“Vista assim do alto, mais parece um céu no


chão...”

Hermínio Bello de Carvalho e Paulinho da


Viola, Sei Lá Mangueira

A formulação ou escolha de um estilo, na arte, sempre vem ancorada, quer


consciente ou inconscientemente, em um processo de elaboração mental, por parte
do realizador, de uma experiência cuja origem está na sociedade. A obra de arte,
assim, tenta ser uma formulação capaz de conferir um sentido à experiência social
anterior, mas, como contrapartida, a chave para a compreensão dos sentidos que
organizaram a elaboração formal dessa obra se encontra na mesma sociedade à qual o
artista quis decifrar. Nesse jogo duplo onde as esferas do que é objeto e o que é
representação, de encontrar o que nos ajuda a enxergar o que, há um mediador
importantíssimo de quem depende em primeira instância todo o processo: o artista, e
a expressão de um ponto de vista específico. Assim como a obra que elaborou, o
artista é também um produto de uma experiência social específica e de uma posição
determinada a respeito de seu lugar na sociedade e da relação estabelecida com o seu
objeto de estudo e representação. Esse processamento da experiência concreta em
produto artístico é o que se pode entender, por exemplo, da famosa formulação de
Adorno ao dizer que forma é conteúdo sócio histórico decantado. Ou, para dizer em
outras palavras, a citação de Mário de Andrade de que toda obra de arte é social.

Do ponto de vista da literatura de um país como o Brasil, os processos de


elaboração são atravessados por dois caminhos diferentes, que se encontram
justamente na especificidade de nossa formação histórica. Em toda a história de nossa
literatura, percebe-se um balanço constante entre a influência das formas recebidas da

1
literatura europeia - ou, hoje em dia, também da literatura norte americana – e a
aclimatação dessas mesmas formas à matéria social brasileira. Textos já canônicos da
crítica literária brasileira, como “Literatura e Cultura de 1900 a 1945” de Antonio
Candido ou “Nacional Por Subtração”, de Roberto Schwarz, demonstram que essa
relação entre influência recebida e produção nacional se deu sempre como um
processo, através do qual o sujeito brasileiro foi construindo uma imagem ora mais
real ora de maior idealização, ora mais positiva ou mais negativa, de si próprio.
Momentos como o Romantismo ou o Modernismo expressam períodos dessa relação,
e marcam diferentes posicionamentos dos escritores brasileiros em relação à matéria
nacional que procuravam dar forma.

Neste processo, a obra de Machado de Assis é um ponto essencial para nossa


literatura. Dialogando com os erros e acertos da experiência literária anterior – o
romance romântico de Alencar e Macedo, assim como a narrativa malandra de Manuel
Antônio de Almeida - e assumindo procedimentos formais de outras referências
estrangeiras à nossa tradição – o humorismo inglês de Laurence Sterne – Machado foi
capaz de reorganizar a expressão da experiência brasileira em nossas leras através da
compreensão de um problema que era anterior a qualquer discussão de fundo
literário. O narrador da obra madura de Machado de Assis parte da percepção dos
aspectos ambivalentes de nossa sociedade, do discurso político que buscava aliar o
Brasil a uma economia moderna e progressista sem abrir mão das práticas
conservadoras que formaram a base de nossa origem enquanto nação, como a
escravidão, o clientelismo e a dependência.

Nos dois excertos utilizados como ponto de partida para esse trabalho, Paulo
Arantes e Roberto Schwarz discutem o surgimento do narrador machadiano. 1 No
primeiro, ao citar a problematização do ponto de vista narrativo como consequência
dos acontecimentos de 1848, na França, citando Lukács, Paulo Arantes fala em
“honestidade narrativa posta em questão pelo novo estágio europeu da luta de
classes”. O surgimento da literatura naturalista, e do método de descrição objetiva que
Lukács opõe à atitude narrativa realista, revela uma “ambivalência objetiva” que, do

1
Excerto 1: trecho de Sentimento da Dialética, Paulo Arantes (1992). Excerto 2: trecho de “Sobre a
Formação da Literatura Brasileira, de Roberto Schwarz, em Sequências Brasileiras (1999).

2
lado brasileiro, expressa “uma sociedade bidimensional como a nossa”, ou seja, uma
experiência social de caráter ambivalente e contraditório. Roberto Schwarz, no
segundo excerto, traça uma linhagem de influências na literatura que permitiu o
desvelamento da problemática da “honestidade narrativa” como um processo de
consideração, por parte dos autores, da tradição anterior recebida, ao mesmo tempo
em que uma elaboração da matéria social através de uma nova proposição de
fórmulas que rompiam com essa mesma tradição. No caso francês, traça uma
linhagem mais equilibrada entre Stendhal, Balzac e, como ponto de culminância,
Flaubert. No caso brasileiro, O narrador de Machado surge dos erros e acertos do
romance de Alencar, mas oferece um salto maior. Segundo um processo de
racionalização da tradição e de procedimentos outros, Machado pôde concretizar em
forma literária a ambivalência percebida em nossa sociedade. O salto aqui
representado é a diferença entre um narrador profundamente ligado com as
ideologias da sociedade que ao mesmo tempo deseja criticar – como é o caso do
narrador de Senhora, de Alencar, e a questão da mercantilização das relações humanas
– e a criação de uma voz narrativa que emula o ponto de vista ideológico da elite para,
através do uso da ironia e do humor como procedimentos formais, desvendar essas
ideologias e suas contradições em ação no processo social.

Machado, em outras palavras, assume, em sua literatura uma atitude também


ambivalente: de um lado, se apropria do discurso da elite nacional; de outro, se
distancia, ainda que de dentro, para criticá-la através de seu próprio veneno. O feito é
notável e extremamente significativo se considerarmos o posicionamento do próprio
Machado em relação ao meio literário da época. Como mulato e pobre em uma
sociedade ainda imperial e escravagista, os leitores que Machado poderia encontrar
eram os membros da mesma elite à qual ele atacava. Assim, Machado aproximou-se
dessa elite para, de dentro dela, revelar seus contrastes. O ponto de vista posicionado
à distância em relação à estrutura da fábula – Bentinho Santiago na velhice e Brás
Cubas depois da morte – possibilita ao narrador uma manipulação mais livre dos
acontecimentos e a meditação sobre os fatos a posteriori, o que traz uma visão
historicizada sobre o vivido na esfera do particular. A reflexão, acompanhada de toda
forma de erudição, comparação, símbolos e frases feitas, serve, em escala menor, ao

3
narrador na sua intenção de dominar e manipular completamente os fatos e a
consideração de todos os outros personagens a seu favor e com o objetivo de causar
uma boa figura de si mesmo; em uma escala maior, serve ao autor possibilitando uma
exposição da voz narrativa no processo de manipulação dos fatos e dos outros ao seu
redor, refletindo, assim, um processo social onde uma classe centraliza uma teia de
relações de dependência, submissão e consideração ideológica.

A grande questão colocada por essa exposição da fórmula machadiana, e que


se sente como uma herança cada vez mais determinante, diz respeito à honestidade,
na elaboração da voz narrativa, em relação à matéria social à qual ela dá forma, e ao
fato de ser meio de exposição e realização dos objetivos de autor e obra. O que essa
questão acarreta é uma consideração da problemática dos limites enfrentados pela
convenção literária, ou, em outras palavras, pela forma que expressa um processo de
convencionalização, na relação com a matéria abordada. Essa limitação, cuja origem
pode ser buscada em aspectos interiores à obra, como no autor ou nos procedimentos
utilizados, em instância maior é imposta por um caráter extrínseco à obra, por dizer
respeito à experiência social com a qual a obra procura dialogar. A complexidade dessa
problematização e da influência desses limites cresce à medida em que as matérias se
diversificam e se afastam do domínio restrito do autor.

O feito de Machado foi fundador, de certo modo, para a expressão de uma


consciência artística e de classe como pano de fundo da expressão literária. O seu
movimento foi da periferia para o centro, o de um autor mulato em uma sociedade
racista e desigual, observando e revelando o funcionamento da elite que era, a um só
tempo, produtora, protagonista e receptora do sistema literário da época. Com o início
do processo de modernização nacional, acarretando um crescimento urbano
desordenado e o surgimento dos problemas dele recorrentes, em fins do século XIX, a
literatura se volta para o movimento contrário ao feito por Machado, o olhar do centro
para a periferia. A literatura nacional, assim, começa a considerar a pobreza das
classes inferiores como foco de representação literária autônoma. Acompanhando
esse movimento da modernidade nacional, a problematização do ponto de vista
através do qual se estruturará essa representação, surge como um obstáculo a ser

4
enfrentado e ultrapassado por nossa literatura, refletindo a questão da ocupação do
lugar do marginal em nossa sociedade.

Em “Narrar ou Descrever?”, Georg Lukács diz: “Os novos estilos, os novos


modos de representar a realidade não surgem jamais de uma dialética imanente das
formas e sentidos do passado. Todo novo estilo surge como uma necessidade
histórico-social da vida e é um produto necessário da evolução social.” Mais para
frente, quase ao fim de seu texto: “A concepção do mundo própria do escritor não é,
no fundo, outra coisa que não a síntese elevada a certo grau de abstração da soma das
suas experiências concretas”.2 Assim, as necessidades histórico-sociais exigem a
elaboração de novas formas, como respostas a novos problemas colocados, e o
processamento dessa elaboração passa obrigatoriamente pela visão de mundo dos
autores ao lidarem com os problemas que a história coloca.

Para refletir aqui sobre a elaboração de um ponto de vista narrativo capaz de


dar conta de expressar a experiência periférica moderna nos grandes centros urbanos
no Brasil, dois romances serão utilizados como objeto: Cidade de Deus, de Paulo Lins
(1997) e Inferno, de Patrícia Melo (2000). As duas obras tratam de um tema em
comum, a criminalidade nas favelas, a organização interna própria dessas
comunidades em torno do crime e da contravenção, como uma forma de sociabilidade
paralela às relações estabelecidas no centro, e o modo como essa organização
funciona e forma novos membros para seu funcionamento. O tema, à época de
publicação dos dois romances, fins do século XX, surgia como o grande problema social
em evidência nos centros urbanos brasileiros, mais especificamente no Rio de Janeiro,
cenário das duas obras. Mas para perceber o quanto essa questão é abrangente em
nossa sociedade, basta pensarmos, em São Paulo nos conflitos entre as organizações
de presidiários e o poder do Estado para entendermos como a relação de confronto
direto entre a organização da periferia e o modo de vida oficial da sociedade brasileira
é uma problemática histórico-social a exigir elaboração em forma literária, à época –
com desdobramentos ainda hoje.

2
Lukács, respectivamente páginas 53 e 80 de “Narrar ou Descrever?” (Ver bibliografia).

5
Se fizermos uma breve periodização da representação da pobreza em nossa
literatura, veremos que o assunto foi tratado de maneiras diversas, seguindo
diferentes ideologias e preocupações por parte dos escritores. O primeiro momento se
dá com o naturalismo, em fins do século XIX. A solução dos autores foi a adoção de um
ponto de vista científico, e às vezes, com ares de reportagem, que se colocava como
observador de um universo tomado como um objeto a estudar, uma espécie de viveiro
social – com todo grau de preconceito que essa expressão pode acarretar. Na
literatura de 1930, com o surgimento do romance engajado, dois problemas surgiam:
de um lado, no romance regionalista, a representação da desigualdade regional do
país através da miséria dos trabalhadores rurais assolados pela fome, a seca e a falta
de condições básicas de sobrevivência; de outro, no romance urbano, a necessidade da
revolução política, da transformação das condições de vida e trabalho dos operários.
Na década de 1930, é essencial destacar, também, a problematização da figura do
escritor, do intelectual como herdeiro de uma elite tradicional fadada ao
desaparecimento, em seu confronto com a realidade sócio-histórica desigual, cuja
origem sua classe tem responsabilidade. Na década de 1970, em plena ditadura
militar, a representação dos meios de vida paralelos à oficialidade do Estado repressor
começa a surgir como tema, através dos marginalizados urbanos, mendigos e ladrões,
e mesmo com o surgimento de certa literatura policial, caso de algumas obras de
Rubem Fonseca. O que se percebe é a representação do crime, da contravenção como
um aspecto interno específico à configuração social brasileira. É o momento, também,
do realismo cru de Plínio Marcos no teatro, em contraposição ao modernismo
conservador de Nelson Rodrigues - à época, já transformado em pastiche no cinema de
chanchada.

Já em fins do século XX, e chegando aos romances em questão neste trabalho,


se detecta a identificação do crime não mais como simples aspecto, mas quase como
outra instituição da sociedade brasileira, em um confronto direto com o espaço de
convivência e domínio das instituições tradicionais regidas pela elite. Esse confronto é
vivenciado no coração das cidades, partindo das comunidades periféricas onde a
economia nacional o esconde, em direção ao centro. A relação estabelecida entre
periferia e centro, classes baixas e elites, se dá em mais uma chave de ambivalência

6
dentro da problemática da constituição da esfera social brasileira. Ao mesmo tempo
em que a elite condena e persegue os meios de vida da periferia, com um grande
desenvolvimento de uma economia ilegal e criminosa, ela estimula esse tipo de
organização, ao consumir a droga comercializada nas favelas, ou mesmo estabelecer
outros tipos de relação de negócios, como vemos no romance de Paulo Lins, por
exemplo, do detetive Belzebu, que fornece armas para serem revendidas ilegalmente
aos assaltantes que ele mesmo persegue em Cidade de Deus, ilustrando assim um
círculo de relação próxima e direta entre lei e criminalidade, ordem e contravenção. Se
estabelecermos essa relação sob os termos de “ordem” e “desordem”, veremos
reposta a relação que Antonio Candido lê como estruturante das Memórias de Um
Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida, em seu clássico ensaio “Dialética
da Malandragem”. Ou seja, o assunto é a evolução de uma problemática nacional já
antiga, que toma uma nova forma no complexo das relações sociais e, por
consequência, precisa encontrar um novo meio de expressão literária.

Na passagem estabelecida, a malandragem que era um meio de vida adotada


no contexto urbano do Rio de Janeiro de início do século XIX de modo quase ingênuo,
inconsciente, ao sabor da maré das relações entre as rodas de batucada tranquilas e as
batidas do Major Vidigal, se torna uma espécie de opção necessária para os “bichos-
soltos” em fins do século XX, uma atitude que se encontra próxima da revolta, da não
aceitação de um prospecto de vida miserável como pequeno trabalhador assalariado
ou mesmo de subempregos como empregadas domésticas, ambulantes, engraxates ou
outras ocupações marginalizadas, como a prostituição ou o contrabando. Nessas
situações, a elaboração de um foco narrativo capaz de dar conta da representação da
realidade das favelas cariocas se torna uma questão a ser formulada como uma
elaboração formal específica. Talvez, porém, o necessário não seja forjar uma resposta
estilística que se traduzirá em um formalismo com intenções de dar corpo, em
literatura, da experiência em um lugar específico como a favela. A resposta necessária
se torna o surgimento de uma voz narrativa que venha de dentro do espaço a ser
representado. Se a organização da vida nas comunidades dos morros é uma estrutura
paralela à sociabilidade vivenciada nos espaços centrais das cidades brasileiras, a
melhor maneira de representá-la se mostra, em nossa experiência, através de um foco

7
narrativo forjado da familiaridade direta com esse espaço, o que possibilita não só um
tratamento menos convencional, como também mais específico do assunto, da
linguagem e da estrutura a ser erguida com a manipulação da forma romanesca.

É essa a diferença que se pode constatar ao confrontar os dois romances


citados acima. O contraste entre os pontos de vista que estruturam as duas obras pode
ser sentido desde a capa: enquanto o romance de Patrícia Melo assume a atitude
unidirecional de configurar, de saída, o espaço da favela carioca sob a alegorização do
título de “Inferno”, Paulo Lins ao assumir a toponímia do cenário como título de sua
narrativa, cria um símbolo que confunde nossa percepção vinda de fora, ao olhar para
essa cidade que é “de Deus”. Enquanto a caracterização do espaço marginal da favela
como “infernal” traz um tom moralista e estrangeiro ao lugar, a denominação da
cidade “de Deus” joga com os sentidos de titulação oficial no mapa do espaço urbano
e com questionamentos de repercussão simbólica. Tudo no romance vira “de Deus”:
os policiais vão fazer a ronda na “de Deus”, Fulano mora na “de Deus”, e assim por
diante. A religiosidade, aliás, é retratada como um aspecto extremamente importante
na experiência e no cotidiano das personagens. Cada corpo morto amanhecido na rua
é seguido pelo ritual obrigatório da disposição de velas acesas ao redor para lhe
iluminar os caminhos da alma, assim como cada “bicho-solto” em fuga de um policial
firma o pensamento pedindo proteção a sua pomba-gira ou seu preto-velho, ou canta
pra Ogun, também provando ser “de Deus”.3

Do título, e ainda na superficialidade, podemos passar para a epígrafe assumida


por cada autor. Enquanto Patrícia Melo continua formulando sua alegoria citando
Virgílio, em trecho da Eneida em que o poeta latino do século I AC – nada mais erudito
e mais distante - fala sobre a descida aos infernos, Paulo Lins traz uma estrofe de Paulo
Leminski sobre a expressão de quem vem “pelo caminho difícil” através da palavra que
“quebra uma esquina”. A problematização da linguagem capaz de expressar a “linha
que bate na pedra” é constituinte também da poética de Paulo Lins, e está
diretamente relacionada com a consideração do estatuto de consciência que, na

3
Seria interessante, aliás, estudar com mais atenção a representação simbólica do espaço periférico dos
grandes centros urbanos na literatura contemporânea através da insistência nos elementos
emprestados do discurso religioso. Basta lembrar, por exemplo, do romance do paulistano Ferréz,
Capão Pecado (2000).

8
comparação entre os romances, cada autor confere ao universo que representa. Na
trajetória de Reizinho, protagonista de Inferno, a demonstração da ilusão infantil,
através da fantasia e do sonho, é constituinte do romance. Os sonhos que Reizinho
tem com o pai desconhecido quebram a todo instante a narrativa. Por extensão à
fantasia infantil, a influência da televisão e do mundo das celebridades extrapola o
caráter negativo do sonhar acordado para todas as famílias, em todas as casas do
Morro do Berimbau. Em Cidade de Deus, a relação entre fantasia, ou ilusão, e
realidade é estabelecida como um confronto que faz o autor quebrar sua narrativa
logo de início, para poder continuar a realizá-la.

A primeira cena do livro abre com duas crianças conversando à toa, na beira do
rio, sobre a possibilidade de um deles ser fotógrafo. A conversa é interrompida quando
o olhar-íris de Busca-Pé focaliza um cadáver que a correnteza carrega em suas águas
vermelhas: “Era a guerra que navegava em sua primeira premissa” (pág. 14). A
recapitulação nostálgica do surgimento da comunidade é povoada, junto com os
primeiros habitantes, pela descrição de diversas brincadeiras executadas pelas
primeiras crianças do lugar, e é nesse instante que o autor interrompe sua narrativa
para sentenciar “...Mas o assunto aqui é o crime, eu vim aqui por isso...” (pág. 20). O
parágrafo que se segue, é uma fala direcionada à Poesia – à maneira da evocação com
a qual os poetas épicos gregos abriam suas epopeias. Nessa evocação o narrador pede
licença à sua “tia” Poesia, dizendo que arrisca a prosa “mesmo com balas atravessando
os fonemas”. A matéria de sua literatura parece ser pouco afeita para uma expressão
puramente poética. A palavra, no ambiente de Cidade de Deus, não tem a aura
encantada das epopeias dos tempos antigos ou da expressão das intimidades
românticas burguesas, mas “massacrada no estômago com arroz e feijão a quase-
palavra é defecada ao invés de falada.” A sentença é definitiva: ”Falha a fala. Fala a
bala.” (pág. 21). Porem, mesmo após quebrar a linha narrativa e dialogar com a Poesia
para expressar um caráter outro de consciência, o narrador assume às vezes uma fala
de caráter sonoro, ritmado e rimado – próprios à expressão poética – assim como não
abandona algumas descrições de brincadeiras infantis, como o anúncio dos tempos de
pipa, que persiste por todo o romance. O pedido de licença à Poesia foi o anúncio do
emprego de uma linguagem de caráter mais sonoro e criativo, na concatenação de

9
som e sentido e efeito musical e rápido, uma linguagem própria da utilizada pelos
rappers e MC´s da cultura do funk e do hip hop, expressões periféricas e urbanas por
excelência.

A linguagem utilizada pelo narrador de Paulo Lins muitas vezes se apropria da


expressão da voz periférica urbana para misturar o verbo dessa voz à linguagem
tradicional do meio de expressão da forma romanesca que se utiliza para contar a
história de seu lugar. Essa linguagem, às vezes mais presente, em outras com maior
concessão a uma linguagem mais “literária”, confere um caráter identitário à voz que
narra a história, e a exposição de procedimento expressa no parágrafo citado acima,
revela uma consciência de forma e conteúdo, de forma verbal em relação íntima com a
cena a ser descrita, seja ela de crianças soltando pipa ou sendo esquartejadas membro
a membro como vingança de um marido à esposa adúltera. No Inferno de Patrícia
Melo, a tônica dominante é a da infância com a mão baleada, sem oblívios ou diversão.
Para narrar a escalada de Reizinho como chefe do tráfico a autora faz uso de um
procedimento narrativo que procura ser vertiginoso. As quase quatrocentas páginas do
livro se desenvolvem em parágrafos onde é constante o uso de enumerações, imagens
encavaladas, diálogos que irrompem do meio de uma descrição, sem aspas ou
travessão, tudo com frases muito curtas e diretas. Ao que parece, a expressão do
“inferno” só poderia ser obviamente caótica, já que é difícil, talvez, ao olhar
estrangeiro, encontrar um princípio ordenador no acumulado de casebres, gente e
objetos a ocupar o mesmo espaço sobre o declive do morro. Os recursos da prosa de
Patrícia Melo, assim, se ligam mais à expressão formal de uma literatura moderna, ou
pós-moderna, no caso. A fragmentação, a incapacidade do olhar e constituir uma linha
de organização temporal clara na relação entre os objetos e os seres que se encontram
sobre o mesmo espaço, aliás, o peso da vivência do espaço físico sobre o raciocínio
ordenador da experiência do indivíduo, faz lembrar as análises do pós-moderno no
ensaio de Fredric Jameson4, o que nos leva a pensar em uma escolha de estilização
formal criativa, por parte da autora, como procedimento narrativo.

4
Ver “A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio”, em Pós-Modernismo – A Lógica Cultural do Capitalismo
Tardio, de Fredric Jameson, Editora Ática, 1996, tradução de Maria Elisa Cevasco e Iná Camargo Costa.

10
Roberto Schwarz, em texto escrito no lançamento de Cidade de Deus5, chama a
atenção para a importância decorrente de o romance representar a “ativação e um
ponto de vista de classe diferente”. Ao realizar a passagem, dos dados recolhidos para
um projeto de pesquisa antropológica na qual Paulo Lins participou como assistente,
para um romance, ou seja, da pesquisa documental sociológica para, não só um relato
ficcionalizado, mas literatura de fato, o autor realizou a passagem de objeto de estudo
para ponto de vista constitutivo de uma narrativa. Roberto Schwarz, ao descrever essa
passagem, diz que essas aproximações com o material narrado, a vizinhança com o
estudo, com a pesquisa social e de linguagem traz atitudes “que não cabem na noção
acomodada de imaginação criadora que a maioria dos nossos escritores cultiva” (pág.
168). Essa noção de criatividade autoral é o que se percebe na estilização “de fora”
realizada por Patrícia Melo na linguagem de sua narrativa, como solução pessoal para
um problema de origem social e exterior, e ajuda a demarcar a distância que a autora
e, por conseguinte, sua obra, tem em relação à matéria que representa.

A diferença do posicionamento entre os dois autores, e as duas vozes


narrativas, pode ser ilustrada, também, na consideração da paisagem, através da
utilização de um mesmo procedimento narrativo, o da enumeração. O primeiro
parágrafo de Inferno abre com uma lista de coisas observadas no Morro do Berimbau:
“Sol, piolhos, trambiques, gente boa, trapos, moscas, televisão, agiotas, sol, plástico,
tempestades, diversos tipos de trastes, funk, sol, lixo e escroques infestam o local”.6
Em seguida, segue-se uma enumeração de nomes que não se encontram na favela – os
nomes “comuns”, “normais”, - e os que se encontram no lugar desses, nomes em
inglês tirados de estrelas da música pop e do cinema, repercutindo, de maneira séria,
um dos grandes clichês da classe média em relação às classes populares, hoje piada
pronta de programas humorísticos de televisão. Em Cidade de Deus, ao narrar a
chegada das famílias de desabrigados das enchentes que foram os primeiros

5
“Cidade de Deus”, em Sequências Brasileiras (Ver bibliografia). Originalmente publicado no Caderno
Mais! do jornal Folha de São Paulo, em 1997.
6
Com o uso do verbo “infestar” para a ação das coisas enumeradas, como apresentação de um cenário,
é impossível não lembrar o famoso parágrafo que encerra o primeiro capítulo de O Cortiço, de Aluísio
Azevedo: “E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou a
minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar
espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se como larvas de esterco.” (pág. 30 da edição da
Nova Fronteira para o Saraiva de Bolso, Rio de Janeiro, 2011)

11
habitantes da comunidade, segue-se uma longa enumeração das coisas trazidas por
eles.7 Na lista, objetos - “lixo”, “lata”, “jesus cristos em cordões arrebentados”,
“lamparina de azeite para iluminar o santo”... – se misturam a crenças – “exus e
pombagiras em guias intocáveis”, “orixás enroscados em pescoços”, “missa de sétimo
dia” – , aspectos físicos, do próprio corpo dos habitantes – “as pernas para esperar
ônibus, as mãos para o trabalho pesado”, “lombo para polícia bater” - , atitudes
comportamentais e sentimentais – “soco antigo para ser descontado”, “traição”,
”coragem para virar a esquina” – e hábitos – “forró quente para ser dançado”. Ao fim
da enumeração: “Transportaram também o amor para dignificar a morte e fazer calar
as horas mudas”. A relação de aspectos concretos – objetos, membros do corpo – com
aspectos abstratos – crenças, sentimentos, atitudes, reações – fecha um círculo de
significação do espaço representado e dos habitantes deste espaço, numa relação em
duas vias, de coisificação da vida, através da esfera dos objetos que se acumula, e
expressão profunda de uma cultura própria que se forma específica ao lugar. Na
enumeração que abre Inferno, a esfera mais determinante é o aspecto coisificado do
espaço de convivência transformado em mero lixão a céu aberto da sociedade
capitalista, e o único aspecto cultural é o ridículo da reprodução de nomes famosos
nos próprios filhos.

Há uma diferença de base que deve ser apontada entre as duas obras. Inferno,
por mais que se preste à representação do ambiente onde se passa a história, e de vez
em quando assuma brevemente pontos de vista de outros personagens, é a história de
Reizinho. Em uma espécie de romance de formação no narcotráfico, a narrativa
acompanha o personagem desde sua infância, seu encanto pelos bandidos, a prática
de ver do alto, para observar a chegada de possíveis policiais, como primeira tarefa na
hierarquia do tráfico, o desenvolvimento de uma raciocínio calculista na prática de
lidar com dinheiro e mercadorias até o momento em que assume o posto de chefe do
tráfico. Como um típico romance burguês, é a trajetória de formação de um indivíduo
e seu confronto com a sociedade que o rodeia na sua busca por felicidade e realização.
Cidade de Deus assume um objetivo mais amplo, de caráter coletivo. Originado no

7
Págs. 16 e 17.

12
trabalho de assistência às pesquisas sobre a história do desenvolvimento da
criminalidade periférica no Rio de Janeiro, da antropóloga Alba Zaluar, Paulo Lins tenta
constituir uma discussão sobre a origem e o desenvolvimento não só da prática da
criminalidade, mas de toda uma cultura periférica ao redor da contravenção, paralela e
ao mesmo tempo entranhada na expressão cultural da sociedade fluminense do século
XX – além do tráfico, estão lá o carnaval, o samba, as imigrações de nordestinos para o
trabalho na construção civil, a convivência entre a religiosidade afro-brasileira e as
religiões neopentecostais, etc.

Ainda que organizado em três partes, cada uma levando o nome de um


personagem do romance – respectivamente, as histórias de Inferninho, Pardalzinho e
Zé Miúdo – não há um personagem principal em torno do qual gravitam todos os
outros inúmeros moradores de Cidade de Deus, e as pequenas e grandes situações e
dramas que vivenciam. Talvez a única figura que possa se destacar, mas por um
aspecto temático que reflete um procedimento formal, é Busca-Pé. O mesmo menino
que no início da narrativa está na beira do rio com seu amigo Barbantinho, ao crescer
vai se envolvendo cada vez mais na atividade de fotógrafo. Ainda assim, Busca-Pé não
está como um protagonista. Mas o olhar de sua câmera, voltado para o centro da
comunidade onde nasceu e vive, reflete de certa forma, o olhar do próprio narrador,
que tenta traçar uma panorâmica da história da constituição do lugar e, por
consequência, o olhar do próprio autor, como alguém que empreende a tarefa de
registrar essa história não no âmbito do registro histórico ou acadêmico, mas através
do discurso de elaboração de uma obra literária, inscrevendo, assim, o espaço social de
Cidade de Deus – e com ela, de outras comunidades semelhantes – no imaginário da
representação da paisagem nacional contemporânea. Esse olhar, como bem destaca
Roberto Schwarz, é dotado de força específica justamente por ser “interno e
diferente”, o que o afasta “do exotismo ou do sadismo da literatura comercial de
assunto semelhante” (Roberto Schwarz, pág. 167).

Para citar ainda Lukács, podemos ver o esforço do romance como uma
narrativa que funciona como uma visada histórica do cenário para o qual volta o seu
olhar. Em oposição aos procedimentos descritivos de uma tradição literária naturalista,
mais afeita à observação – conforme Lukács discute no já citado “Narrar ou

13
Descrever?” – o procedimento de recapitulação histórica de Cidade de Deus opera
também, em uma escala de distanciamento temporal menor, mais próxima do
presente, uma seleção objetiva dos fatos e personagens da comunidade para montar
um processo de formação do lugar. Para falar nos termos de Lukács, mostrar o
passado como “pré-história do presente”. Ao focalizar um passado de quase trinta
anos atrás, ou seja, historicamente recente, Paulo Lins apenas segue a linha possível
para desvendar uma problemática social da modernidade mais pulsante no país, ainda
que de raízes antigas em nossa sociedade.

Talvez, o que não é de maneira nenhuma antigo é o ponto de vista “interno e


diferente”- definido por Schwarz – ocupar espaço de atenção e centro no cenário da
literatura nacional. Durante uma tradição da literatura sobre a periferia e a pobreza, os
autores em sua maioria eram filhos das elites ou das classes médias que se
interessavam pela temática dos espaços marginalizados da sociedade e assumiam um
ponto de vista interno a essas classes, ainda que estando do lado de fora. Pesando
mais a mão da linguagem narrativa – como nos romances densamente líricos e
excessivamente poetizados, ainda que belos, do jovem Jorge Amado – ou menos – o
ponto de vista internalizado, dinâmico e preciso do Graciliano de Vidas Secas – o
processo de forjar um foco narrativo que se colocasse no lugar do outro formou uma
tradição em nossa literatura, que se questionava sobre um problema que surgia duplo:
a construção do ponto de vista do excluído ao mesmo tempo em que uma
problematização do papel do intelectual como alguém também “de fora” – do
processo de enriquecimento e domínio das elites ao mesmo tempo em que de fora
também dos círculos marginalizados que tentava representar.

Em fins do século XX, o que se pode ver no Brasil é o surgimento e o


crescimento de uma literatura que já ganhou, inclusive, o título de periférica – entre
outros, em diferentes espaços, grupos e expressões, como marginal, maloqueira, etc.
Em todo caso, o que se vê é um processo de ampliação da possibilidade de origem do
ponto de vista narrativo como um aspecto transformador da expressão formal literária
brasileira em si, através de um processo de alargamento da consideração dos
personagens, lugares e fatos merecedores de protagonismo, ambientação narrativa e
registro e representação histórica e, por consequência, literária. Um processo que dá

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conta, de uma maneira mais direta, ampla e honesta – para recuperar o termo de
Paulo Arantes usado acima – das ambivalências e complexidades da sociedade
brasileira como um todo, a partir de diversos possíveis pontos de localização e
referência da voz que elabora a expressão literária de uma experiência social direta e
familiar. Uma expressão, enfim, sem mediadores na relação entre experiência social e
formalização literária.

BIBLIOGRAFIA:

LINS, Paulo, Cidade de Deus, 2002, 2ª edição revista pelo autor, Companhia das Letras,
São Paulo

MELO, Patrícia, Inferno, 2000, Companhia das Letras, São Paulo

LUKÁCS, Georg, “Narrar ou Descrever?”, in Ensaios Sobre Literatura, tradução de Giseli


Vianna Konder, 1968, 2ª edição, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, págs. 43-94

SCHWARZ, Roberto, “’Cidade de Deus’”, in Sequências Brasileiras, 1999, Companhia


das Letras, São Paulo, págs. 163-171

________________, “A Importação do Romance e Suas Contradições em Alencar”, in


Ao Vencedor As Batatas – forma literária e processo social nos inícios do romance
brasileiro, 1977, Duas Cidades, São Paulo, págs. 35-79

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