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Este texto é o rascunho de um artigo ainda incompleto que explora uma possível suplementação da metapsicologia a
partir da filosofia de Alain Badiou. Disponibilizo aqui a versão inacabada - o levantamento crítico está quase todo
rascunhado, é a construção suplementar que ainda precisa ser consolidada - para que colegas possam adicionar
comentários, ideias e críticas, a partir das quais pretendo retomar o trabalho. Agradeço desde já àqueles que se
dispuserem a dar uma ajuda (e peço desculpas pelas notas de rodapé carcomidas!)
Estratégia
O presente artigo parte de duas constatações e de uma proposta. Primeira constatação: de Freud a
Lacan, a psicanálise nunca elaborou um conceito de “ideia" distinto do conceito de “ideal” - de
modo que damos dignidade metapsicológica ao segundo, mas tratamos o primeiro apenas como
uma formação significante de propriedades triviais. Segunda observação: da mesma maneira, até
hoje não temos uma teoria consistente da relação entre a produção do espaço da clínica psicanalítica
e a eficácia da interpretação sob transferência - isso é, uma forma de pensar o engajamento com a
hipótese do inconsciente, por parte tanto dos analistas quanto dos analisandos, como uma condição
para a “atualização" do inconsciente num dado processo analítico. Por fim, a aposta deste texto é
que esses dois pontos estão associados: apenas um conceito metapsicológico de ideia - capaz de
atrelar a lógica significante ao engajamento regrado com o mundo sem comprometer a teoria da
singularidade do desejo - poderia assegurar-nos de que entender a psicanálise como um dispositivo
de produção de subjetividade não implica no tamponamento da indeterminação constitutiva do
desejo.
Assim, buscaremos introduzir aqui uma estratégia geral - apenas as primeiras linhas de demarcação,
o que já é muito - para que a distinção entre ideais e ideias possa ser articulada de maneira
intrínseca ao pensamento psicanalítico. Isso porque, como constatamos acima, um dos efeitos desse
déficit conceitual na psicanálise lacaniana é a promoção de uma relação precária, ainda que
necessária, com outros campos do pensamento - como a arte, a ciência e a política. Retornaremos
mais a frente a esse ponto.
!1
A estratégia que vamos apresentar aqui, como todo plano, pode ser definida por três pontos. O
primeiro, mais complicado, diz respeito à ontologia e à natureza, pois a distinção entre ideia e ideal
esbarra, antes de mais nada, nos pressupostos ontológicos da psicanálise. O que está em jogo aqui é
a questão: a indeterminação é uma propriedade exclusiva do ser falante?1 A resposta corriqueira é
que “sim”: o significante introduz a falta no mundo, a falta constitutiva do desejo, e o desejo é
aquilo que é próprio ao ser falante. A significação dessa falta, lá no modelo freudiano de Psicologia
das Massas, é operada pelo par “ideal do eu” e “eu ideal”2 . Lacan, mais tarde, suplementa esse
modelo com seu avesso: se o ideal localiza a falta a partir da identificação, o superego, que emerge
quando o ideal não consegue distribuir o que é do “eu” e do “outro”, vai operar pela via da angústia
e da demanda de sentido3. Pois bem, o que nós vamos propor aqui, sem prejuízo para a teoria do
ideal, é que não é possível deduzir da tese de que há algo de faltoso no ser falante o corolário de
que só há indeterminação no desejo humano. Pelo contrário: para superarmos “a filosofia
espontânea da psicanálise”, que está mais para uma teologia, um imperativo que diz “não
perguntarás sobre a origem do significante”4 , o que precisamos é menos uma teoria da
excepcionalidade do ser humano do que uma teoria da precariedade do mundo e da natureza. Ou
seja, uma ontologia que dissemine a indeterminação no ser, ao mesmo tempo generalizando uma
certa dimensão da metapsicologia para além de seus confins atuais e nos convidando a “mais um
esforço” para distinguir a região singular do mundo que é o desejo humano.
Atravessada essa tarefa hercúlea, o segundo ponto no nosso plano de trabalho pertence mais ao
campo da epistemologia e, até por isso, é um pouco menos polêmico. Munidos agora do espaço
para afirmar que a alteridade não é propriedade exclusiva da relação do homem com o mundo e
consigo mesmo, cabe a nós então reconstruir o modelo freudiano da massa primária, que serve de
base para a teoria dos ideais na psicanálise, a partir dessa afirmação. Lacan já fez boa parte do
trabalho para nós ao retornar à noção de “traço unário”, encontrada na obra de Freud, elevando-a à
dignidade de conceito5 . Esse trabalho conceitual é essencial não só por ter encontrado ali a chave
para a relação entre o gozo e a identificação - esclarecendo o que está em jogo no “je ne sais quois”
do líder, por exemplo - mas também por ter articulado esse retorno em termos da dialética do Um e
Por sorte - e esse é o nosso terceiro e último ponto - não é necessário tirar esse esquema alternativo
da cartola. O filósofo Alain Badiou, que se auto-intitula apropriadamente um “platonista do
múltiplo”6, propõe uma teoria da ideia que, diretamente condicionada pela psicanálise, faz uso
justamente de uma ontologia da indeterminação, na linha daquela que introduzimos aqui. As ideias,
para Badiou, expõem o ser falante àquilo que é indeterminado na própria tecitura das situações7 . Ao
invés de distribuir o mundo, como é tarefa do ideal, de acordo com os “complexos do eu” e do
“outro”, para citar o Freud do Projeto de uma Psicologia Científica, as ideias orientam a construção
de um trajeto que, não produzindo nenhuma totalização desses dois complexos, nenhum princípio
fusional, no entanto não pode ser classificado nem como pertencendo ao eu, nem ao outro8.
Notemos, no entanto, que a novidade aqui não é tanto que haja algo que se subtrai à divisão entre o
dentro e o fora: a teoria da ideia badiouiana tem muito a ver com a teoria psicanalítica do "objeto a",
sua novidade é, na verdade, pensar essa subtração em termos de uma trajetória, de uma
continuidade, e não apenas da ruptura ou da interrupção. Ou, como Badiou nos desafia, trata-se de
pensar o real não apenas como causa, mas também como consistência9.
Sem ideia
Entendendo um pouco melhor o caminho que nos aguarda, e suas enormes dificuldades, é
importante voltarmos, por um momento, às nossas considerações iniciais. Sem uma boa razão,
acessível a todos, é difícil encontrar fôlego tanto para empreender essa tarefa, quanto para
questionar os pressupostos atuais da psicanálise. Assim, concluindo nossa introdução, gostaria de
apresentar as duas principais motivações por trás desta linha de pesquisa. A primeira diz respeito ao
que acontece quando não temos uma teoria da ideia na psicanálise, a segunda, ao que poderíamos
fazer caso elaborássemos uma.
Comentamos anteriormente que um certo déficit conceitual é visível na forma dos laços que a
psicanálise estabelece com outros campos do pensamento. Conceitos como o de “sublimação”, de
“transmissão integral”, de “práxis”, todos eles utilizados, de uma maneira ou outra, para navegar a
articulação social do gozo, seja pela via da singularidade das produções do desejo, de sua estrutura
formal ou de seu encaminhamento clínico, fazem uso de um procedimento comum: são importações
advindas não da arte, da matemática e da política, mas da filosofia da arte, da ciência e da política, e
que, em seguida, são utilizadas como argumento contra a própria filosofia, “jogando fora” a escada
pela qual subimos, por assim dizer. O que acontece então é que, por causa dessa distorção do papel
da filosofia, mobilizada pela psicanálise como uma mediação tão ubíqua quanto silenciosa,
acabamos por tomar a concepção de arte, de ciência e de política mediada por uma filosofia
específica pela própria expressão dos limites intrínsecos do pensamento artístico, científico ou
político. Vejamos:
2. Se a gente simplesmente aceita que a epistemologia desenvolvida na França dos anos 6012 exaure
o que é a ciência moderna, fica difícil separar lógica e matemática, o que é um traço fundamental do
desenvolvimento matemático recente, ou separar matematização e mecanicismo, e aí não podemos
entender os avanços reais da biologia contemporânea13.
Chegamos assim à situação paradoxal em que o campo que mais tomou conceitos de empréstimo de
outros se arvora o direito de não conhecer esses interlocutores em seus próprios termos por causa
dessas mesmas importações. Essa situação chega ao limite do absurdo no caso da própria filosofia,
pois esse uso particular que fizemos do pensamento filosófico é, em seguida, considerado inerente à
própria estrutura da filosofia16: não fomos nós, analistas, que usamos a filosofia para “tapar
buracos” da teoria analítica, é a filosofia que tem essa obsessão de sair por aí, sem ser chamada,
tapando os buracos do universo17!
Isso nos leva à segunda razão que gostaria de mencionar antes de seguirmos em frente. Se tudo isso
acontece por conta da forma com que a psicanálise realiza esses trâmites conceituais, a gente tem
que se perguntar, afinal, o que esses aportes estão vindo suprir - e mais, por que a gente preferiria
estabelecer esse tipo de relação atravessada com o pensamento não-psicanalítico ao invés de
Mencionei en passant que tanto a sublimação, que oferece uma espécie de teoria da passagem entre
o sexual e o assexual18, quanto a teoria da formalização como transmissão integral19 e a concepção
de práxis como “tratamento do real pelo simbólico”20 , têm algo a ver com a “articulação social do
gozo”. Essa é, evidentemente, uma expressão meio complicada, já que o gozo, não servindo pra
nada, promoveria justamente um empuxo à singularização, subtraindo a gente dos universais, das
comunidades, etc. Mas aceitando a premissa de que o modo de gozo de cada um é absolutamente
singular, a gente encontra três perguntas difíceis de responder: como é que pudemos reconhecer a
existência daquilo que não participava, até nós psicanalistas aparecermos, da esfera do
reconhecimento? Como que pudemos afirmar a singularidade de algo se só temos meios universais
ou particulares de afirmar qualquer coisa? E, por fim, como uma prática pode intervir na
singularidade sem ofuscá-la, aplicando padrões normativos de atuação e verificação? Nos três
casos, o que está em jogo não é apenas explicar como inscrevemos socialmente aquilo que é, em
algum sentido, associal, mas também dar conta do tipo de procedimento que foi capaz de organizar-
se em torno daquilo que não tinha lugar no mundo até essa mesma organização surgir.
Isso nos traz, finalmente, ao cerne desse segundo problema. Sem uma compreensão intra-
psicanalítica da operação que implica o psicanalista na inscrição da hipótese do inconsciente no
comum da cultura, ou, como define Badiou, “projeta a exceção no comum das existências”24, o que
nos sobra é um debate ao mesmo tempo improdutivo e insuperável. Ou bem a psicanálise tem um
potencial emancipatório, por não esperar nada da cultura, ou é fundamentalmente normativa e
alienante, por reproduzir padrões culturais específicos. Para nos subtrairmos desse debate estéril,
precisamos de uma psicanálise que se preocupe menos com ter um ideal de ciência ou com ser um
ideal para a ciência25 , e mais com afirmar e inscrever a ideia de psicanálise no mundo. Parece meio
simplista, mas é somente quando reconhecermos esse movimento dentro de nosso próprio campo de
pensamento que seremos capazes de reconhecê-lo também na militância política, na criação artística
e na inventividade propriamente científica.
Mas seria viável uma teoria da ideia compossível com o inconsciente? Quem diz “inconsciente” diz
“sem ideia”?
Mal-estar na Natureza
Por mais que não possamos desenvolver em detalhes essa ideia aqui, é muito importante entender a
diferença entre negar a necessidade de uma proposição - no caso, o princípio de que a falta é
23A razão pelo qual o nome dessa dimensão não é “desejo” é discutida no texto Vers Un Signifiant Nouveau. Ruda:
ideia de ideia
24 A Hipótese Comunista
25 Ref a Ciencia e Verdade e a Milner
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propriedade exclusiva do ser falante - e afirmar a necessidade de uma outra - por exemplo, que ser
indeterminado é algo comum a todos os seres vivos, ou à natureza enquanto tal, ou à uma dada
região do ser. O segundo caso, em que afirmamos uma tese alternativa àquela vigente, é mais fácil
de entender: ou bem defendemos uma coisa ou outra, ou bem defino o desejo pela falta, ou refino
minha definição - o desejo seria falta-a-ser e mais alguma outra propriedade. É o primeiro caso, o
de negarmos a necessidade de uma tese, que é um pouco menos intuitivo.
O campo que melhor trabalha com essa ideia é a matemática moderna, que dá muito valor a provas
capazes de demonstrar que uma dada proposição, até então considerada fundamental, é na verdade
independente de um sistema de pensamento26 . Uma proposição é dita “independente” quando
podemos retirá-la da lista de proposições fundamentais de um sistema de axiomas sem portanto
tornar o sistema contraditório. Ou seja, a consistência interna é independente da assunção ou
rejeição daquela proposição: afirmá-la introduz uma restrição extrínseca, e não intrínseca, àquela
forma de pensamento, determinando apenas o tipo de modelo que satisfará nossos axiomas27. Uma
consequência importante é que, uma vez provado que uma dada proposição é independente de um
dado sistema, não é mais necessário, para apresentarmos uma proposição alternativa, refutar a
anterior. Trata-se de um momento propriamente subjetivo das ciências formais, pois o que está em
questão aqui é uma decisão - já que, do ponto de vista da consistência do sistema, nada nos leva a
afirmar uma ou outra proposição - e a subsequente extração das consequências da nova afirmação28.
Caso encontremos uma contradição, então essa nova proposta não poderá ser integrada ao sistema
axiomático, mas caso nosso exame não revele nenhuma incoerência interna, então não há nada que
nos impeça de afirmá-la.
Estamos todos avisados de que aqui não faremos mais do que delinear uma estratégia geral, e que,
no que tange a questão dos pressupostos ontológicos da metapsicologia freudiana, vamos nos focar
aqui apenas num ponto. Ou seja, vamos rapidamente averiguar se há ou não contradição em
suspender nosso compromisso com o caráter exclusivamente cultural da indeterminação em um
ponto localizado: o tratamento dado por Freud ao “objeto externo” em seu esquema da massa
primária, na Psicologia das Massas e Análise do Eu.
29 Ref a Dunker
30 Ref a Psi das Massas
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A fórmula diz respeito a um tipo de massa específica, aquela que “tem um líder e não pôde adquirir
secundariamente (…) as características de um indivíduo”31 , como seria o caso das “massas
artificiais”, como o exército e a igreja. Freud propõe ainda que a massa primária é também o
modelo da massa “primeva”, por assim dizer, aquele que se baseia na relação entre o pai primevo e
a horda32 . A definição da massa primária proposta por Freud é a seguinte:
“uma massa primária desse tipo é uma quantidade de indivíduos que puseram um único objeto
no lugar de seu ideal do Eu e, em consequência, identificaram-se uns com os outros em seu
Eu”33
A gente pode “desenhá-la” por cima do esquema gráfico, enfatizando os componentes da operação
como uma espécie de legenda:
É importante chamarmos atenção para esses dois componentes porque a tal “proposição
independente” que mencionamos anteriormente incide justamente na relação entre eles. E trata-se
de uma relação difícil de compreender. Primeiro, o que é esse objeto fora do circuito identificatório?
Freud não nos diz muito sobre isso - e mais, parece que essa indagação poderia até mesmo ofender
34“Eine solche primäre Masse ist eine Anzahl von Individuen, die ein und dasselbe Objekt an die Stelle ihres Ichideals
gesetzt und sich infolgedessen in ihrem Ich miteinander identifiziert haben” [grifo nosso]
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os limites epistemológicos da psicanálise35 . Ao mesmo tempo, Freud pressupõe uma espécie de
hiância, um lugar vazio, que pode ser ocupado pela representação desse objeto no processo de
identificação - ou seja, um lugar que não é ele mesmo uma representação. Aqui o limite
epistemológico não é tão sensível, uma vez que essa hiância, esse não-saber, é tido como uma
dimensão constitutiva do desejo. Ou seja, do lado do “x”, o não-saber tem a qualidade de um limite
para o pensamento - não podemos saber do que se trata - do lado do círculo vazio, trata-se de uma
limitação perfeitamente pensável - isso é, um não-saber chamado castração36 .
O que chamamos de “princípio da exclusividade da falta” é a proposição de que o tal objeto externo
- seja ele o que for - não pode ser ele mesmo faltoso ou indeterminado, pois essa falta é o que é
próprio ao desejo humano. O curioso é que, à primeira vista, esse parece ser um princípio de
prudência, uma maneira de evitar propostas estapafúrdias ou comprometidas com um ponto de vista
exageradamente transcendental, dando positividade demais ao desejo, ou retirando a contingência
do real. No entanto, trata-se de uma posição efetivamente assertiva: não é dito que não sabemos se
há indeterminação no mundo, nós afirmamos saber que só há indeterminação no desejo.
Nossa proposta alternativa é a de romper com essa suposta prudência, que, na verdade, esconde a
ambiciosa afirmação de que aquilo que não é o desejo não pode ser indeterminado. Nossa posição,
bem mais humilde, é a de que simplesmente não podemos afirmar isso. Quem sabe, talvez, um
acontecimento insuspeito possa tornar uma situação, em seu próprio ser, indecidível…
Podemos concluir esse primeiro passo em nosso percurso retornando ao esquema freudiano e
adicionando, além do círculo que marca o lugar vazio a ser ocupado por uma determinação ideal,
um outro círculo, para marcar que não sabemos se tudo o que é indeterminado no mundo é
simplesmente reflexo de nossa própria finitude e limitação:
35 Ref a lacanianos
36 Ref à Freud e Lacan
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Mas o que significa orientar-se no desejo ali onde o mundo não produz vestígio ou traço algum?
Antes de seguirmos em frente, é necessário notar que, em certo sentido, estamos chovendo no
molhado. Retornemos mais uma vez a análise comparativa que fizemos entre a fórmula freudiana
da massa primária e sua representação gráfica. Simplificando um pouco, podemos dizer que o ponto
em que a fórmula excede a representação - e que adicionamos aqui como um círculo vazio - Lacan
chamou de falta37. Enquanto que o ponto em que a representação excede a fórmula - e que foi
marcado por Freud com um “x” - transformou-se na teoria lacaniana do traço unário38 . Além do
mais, os dois momentos principais do esquema de Freud - um que liga o objeto ao ideal do eu, e
outro que liga um eu ideal a outro eu - se tornaram, na obra de Lacan, respectivamente a dimensão
da identificação simbólica e da identificação imaginária39.
Parece uma reformulação redundante, mas já aqui a dialética do Um e do Outro mostra seu valor
conceitual, pois nos permite esclarecer a articulação entre o lugar vazio e o ideal do eu. Se a falta é
o que é outro em mim, e se a unidade do eu se constrói em oposição ao outro, então essa distinção
precisa ser operada - e o ideal do eu é justamente o nome dessa operação de partição42 que, tratando
o que é outro em mim como uma distinção ainda por ser estabelecida entre o eu e o outro, media a
relação entre o desejo (o outro no um) e a representação dos objetos (o “um" do outro). Essa mesma
dialética também nos permite articular os conceitos de ideal do eu e de supereu. Se, por um lado, o
ideal do eu substitui o que é outro em mim pelo o que é outro de mim, num processo de unificação
do outro, por outro lado, se algo do eu ideal aparece no campo do outro - o que Freud chamou de
Mas a dialética do Um e do Outro, da continência e da heterogeneidade, não serviu apenas para que
Lacan esclarecesse conceitos já desenvolvidos por Freud. No caso do pólo oposto do esquema da
massa, no fatídico “x” do objeto externo, foi mérito de Lacan encontrar um termo perdido em
Psicologia das Massas e torná-lo um componente-chave na compreensão do processo
identificatório. A teoria do “traço unário”, o einzige zug, é a solução lacaniana para o problema que
apontamos acima - a relação entre o objeto externo e a falta constitutiva do desejo - e trata-se de
uma solução que, mais uma vez, confirma quão frutífero é tomar a dialética do Um e do Outro
como gramática conceitual.
A grande intuição por trás do conceito de traço unário é que, como Lacan explicou em seu
seminário dedicado ao tema da identificação, não se trata aqui de unidade ou unificação - Einheit -
mas de unicidade - Einzigkeit47. O traço unário é “um” por ser único, diferente dos demais, por
demarcar um conjunto, tornando discernível o próprio múltiplo que conta, e não por ser
"unificante", como é o caso de uma propriedade comum a uma série de elementos, cuja
apresentação substitui a apresentação do múltiplo subjacente. A grande vantagem dessa perspectiva
é que, assim, Lacan pode nos dizer um pouco mais sobre a articulação entre esse “x” e aquilo que é
outro em mim, a falta. A limitação que encontrávamos anteriormente é que, comprometidos com
uma concepção energética do aparelho psíquico, podíamos pensar em representações mais ou
menos investidas de libido, mas as representações permaneciam associações essencialmente
positivas - e aí nosso problema era explicar como uma associação positiva poderia representar uma
falta, uma ausência de representação: como se articulariam essas duas dimensões? É outra maneira
43 Ref a O estranho
44 Ref a O estranho
45 Ref a Lacan - onde?
46 Ref a sem 17 e 20
47 Ref a sem 9
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de colocar a questão da relação entre o lugar e o ideal que ocupa esse lugar. A resposta freudiana
estava associada ao fator energético, a uma descarga excessiva de excitação48 . A proposta lacaniana
reformula essa mesma lógica, mas sem o pressuposto de uma substância que se distribui de maneira
desigual pelas representações. Ao invés, a teoria do traço unário nos permite distinguir entre duas
maneiras que uma representação pode se constituir: ou de maneira inteligível, isso é, quando se
articula positivamente com outras representações, produzindo sentido, ou de maneira legível, como
um hieróglifo ou um garrancho, quando a representação não se articula com as demais, mas ainda
assim tem “significância”49, destaca-se do mundo.
Essa segunda forma, em que o traço tem unicidade, mas não unificação50, é uma espécie de vestígio
que “contém” algo de outro: ao mesmo tempo separa-se da alteridade do mundo e a preserva51 . Ora,
um traço que é só uma diferença, que só representa “outra coisa”, por sua vez irrepresentável, é um
traço que pode representar algo que não é uma representação, uma falta. Para Freud, essa “outra
coisa” era um investimento libidinal excessivo, e esse excesso se preserva na proposta lacaniana - o
que se transforma é que, ao invés de uma teoria da substância libidinal, que nos levaria em seguida
ao problema de como libido e representação se articulam, temos uma teoria em que libido e
representação estão sempre articuladas, uma teoria do espaço da representação52.
Para resumir, o traço unário é o um-no-outro - o surgimento de uma distinção que não elimina a
alteridade que distingue - e é isso que possibilita que se associe com o outro-no-um. Essa expressão
“um-no-outro” parece uma tradução razoável das expressões que Lacan usa para definir o traço
unário: “unidade distintiva”53 e, mais importante para nós, “multiplicidade atual”54.
“Multiplicidade atual” é um termo que retomaremos mais a frente na nossa investigação, pois -
desde Platão, lá no Parmênides - é considerado o ponto de contato entre essa dialética do Um e do
48 Onde?
49 Ref a Nancy e Labarthe
50 Ref a Chiesa
51 Ref a Derrida e sem 18
52 Comentário sobre geometrização da matéria
53 ref a sem 9
54 Ref a sem 9
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Outro com a questão da multiplicidade pura, isso é, aquilo que é irredutivelmente outro55 . Mas antes
disso, é importante perceber que a razão pela qual Lacan pode falar um pouco mais sobre aquilo que
se dá fora do circuito das representações, sem portanto cair num discurso que dependa de uma
substância energética, é que ele reconheceu a capacidade do pensamento matemático de pensar a
multiplicidade sem obliterá-la56. Ou seja, não há impostura em nos “achegarmos” à alteridade pela
via do pensamento. A denúncia de que o pensamento não poderia apreender nada do ser porque o
pensamento abstrai e unifica enquanto o ser é múltiplo e disseminado57 é superada justamente ao
corrigirmos nossa teoria do pensamento - coisa que a matemática vem insistentemente fazendo
também desde Platão58.
Fazendo referência à Cantor e à teoria dos conjuntos, Lacan foi capaz de afirmar que não
precisamos explicar a passagem do objeto externo para o ideal do eu nem em termos de pura
aleatoriedade nem em termos de descargas excitatórias. O traço unário, aquilo que desponta como
diferença pura em meio à alteridade indiferente do mundo, articula-se com o que é outro-no-eu
(desejo) por ser-outro, como minha falta, mas também ser-único, como o eu.
Antes de seguirmos em frente, vale a pena reconstruir, mais uma vez, o esquema freudiano, dessa
vez a partir das articulações dialéticas que tentamos introduzir com a ajuda de Lacan:
Podemos agora dar alguns passos importantes na direção de uma definição de ideia que não
extrapole os confins da metapsicologia lacaniana. Já sabemos que, tal com o ideal, a ideia também é
uma operação, e que, tal como o ideal, é uma operação que pode ser articulada em termos de uma
dialética, proposta já utilizada por Lacan em seu retorno à Freud. Vamos tentar pensar agora no que
o ideal e a ideia são operações diferentes. Isso implica retornarmos mais uma vez ao “objeto
externo” no esquema de Freud: já vimos que a teoria das “multiplicidades atuais” permitiu que
Lacan localizasse o traço unário dentro do campo do outro (trata-se do "um-no-outro"), extendendo
o alcance do pensamento analítico, e para pensar a operação da ideia nós precisaremos investigar se
é possível ainda que a própria falta de vestígio, a alteridade enquanto tal (o que é "outro-no-outro"),
produza consequências no aparato psíquico.
Quando analisamos a teoria lacaniana do “traço unário”, notamos que o uso das modulações
dialéticas - um-do-outro, um-no-outro, etc - possibilitou que o psicanalista francês avançasse na
compreensão das condições que permitem que um significante represente um sujeito. Como vimos,
a questão aqui é entender como uma representação poderia se ligar à falta constitutiva do sujeito -
como poderia, afinal, uma ausência de determinação estar implicada em uma rede de relações
diferenciais determinadas? A solução de Lacan pode ser divida em duas etapas. Primeiro, mostrar
que, com a ajuda da matemática, podemos conceber a unicidade - isso é, uma forma de
determinação que preserva algo do não-determinado. Em seguida, mostrar que a identificação
simbólica é uma articulação pela alteridade, a produção de uma implicação entre essa alteridade
preservada pelo traço e a alteridade da falta no desejo62 . Como sugerimos, à guisa de definição, o
ideal do eu é justamente a operação através da qual a unicidade do outro dá estofo à alteridade no
seio da unicidade do desejo. E é a possibilidade de conceber essa relação entre traço e desejo que
nos permite, por fim, conceber também um novo campo de intervenções clínicas: a teoria
metapsicológica do traço unário nos autoriza a intervir sobre a consolidação do ideal do eu,
entendida agora como uma tentativa contingente de dar sentido ao enigma do desejo através da
identificação com um outro, substituindo o impasse de nossa própria alteridade pela questão de uma
alteridade externa a nós.
Se a teoria do traço unário nos permite conceitualizar essa dupla articulação entre Um e Outro, a
teoria do objeto a, por outro lado, visa pensar o outro-no-outro - a instância que está em jogo, por
exemplo, na famosa expressão lacaniana: “em ti mais do que tu”63 . Ou seja, não se trata do
movimento através do qual o enigma do desejo é localizado fora de nós, mas de pensar a
62 Transferential materialism
63 Ref ao sem 11
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constituição do próprio desejo, em suas duas dimensões - seguindo nosso último esquema: o desejo
como outro-do-um (outro desejo, objetos, etc) e como outro-no-um (falta, angústia, etc). Já vimos
que o ideal vem “suturar”64 essas duas faces do desejo pela mediação de um traço - isso é, através
do “um-no-outro” - mas ainda não temos uma teoria da divisão subjetiva, daquilo que cinde o
desejo e que, portanto, causa esse remendo identificatório.
Para além do “outro-no-um” - da alteridade do sujeito pensada a partir da unidade do Eu, da sua
apresentação como falta ou excesso - abre-se então a questão do estatuto daquilo que faz do outro
irredutivelmente outro. O problema é que pensar a alteridade sem o recurso à unidade não é nada
fácil. Existem muitas dicotomias que podem nos conduzir a essa dificuldade: diferente/mesmo,
múltiplo/um, parte/todo, etc. Em todos os casos o problema aparece da mesma forma: como pensar
o diferente, o múltiplo, o parcial, sem pressupor o mesmo, o um, o todo? Por exemplo: podemos
negar a unidade em nome da multiplicidade, mas o que é o múltiplo? Um rápido exame daquilo que
intuitivamente chamamos de “múltiplo” revela que o múltiplo é… a soma de muitas unidades . E
assim estamos de volta no ponto de partida. O mesmo acontece com o problema da diferença: se o
“mesmo” é o produto de uma rede diferencial, o que é a diferença enquanto tal? À primeira vista,
não é nada senão sempre a mesma diferença, etc. A tentativa de negar um termo e definir
intrinsecamente seu oposto revela a dependência do segundo no primeiro. E se aceitamos esse
limite como uma prova de que o pensamento está intrinsecamente atrelado às categorias da
identidade, da unidade e da totalização, de modo que só podemos pensar seus opostos fazendo uso
desses mesmos conceitos, então a diferença, o múltiplo, a parte enquanto tais só podem ser, no
melhor dos casos, categorias vazias que delimitam um operador crítico, uma espécie de “passo
atrás” metodológico em relação às categorias que organizam o pensamento. O “múltiplo” seria, por
exemplo, outro nome para a posição crítica em relação à unidade - é um operador que abre o espaço
para a multiplicidade, mas sempre em relação ao Um, uma vez que a multiplicidade tomada
enquanto tal pelo pensamento torna-se apenas uma outra figura da unidade, “escondida” sob o
pressuposto de que multiplicidade não é nada senão uma pluralidade de “uns”.
Considerado a partir desses limites, o objeto a, enquanto ""diferença absoluta"65 , como cisão que
precede aquilo que é dividido, delimita uma posição que nos permite transformar mais uma vez o
escopo e qualidade das intervenções clínicas: não é necessário tomar a emergência do enigma do
64 Teoria da Sutura
65 Lacan, sem 11
!20
desejo como ponto final de uma análise, é possível, ainda, questionar a maneira como nos
implicamos nesse enigma - isso é, historicizar a própria forma com que aprendemos a desejar. A
teoria do objeto a nos convida a escutar o desejo não apenas do ponto de vista do sintoma - daquilo
que atrapalha a consistência do Eu e revela uma relação mais profunda com o outro - mas também
da perspectiva da fantasia - da própria constituição da alteridade do desejo como sinal de um objeto
perdido, de uma contra-parte faltosa. Por outro lado, uma vez aceita a premissa de que o
pensamento é incapaz de tocar na alteridade sem unidade, esse avanço clínico se depara com um
limite conceitual: para o pensamento, resta compreender o objeto a negativamente, como
interrupção das identificações, das totalidades e das unidades - ou até mesmo como interrupção do
próprio pensamento. É, em última instância, a razão pela qual o inconsciente, para Lacan, é uma
instância ética66 e não ontológica: não há pensamento capaz de apreender o múltiplo enquanto tal,
há apenas um posicionamento crítico capaz de assumir sua existência. Em outras palavras, aquilo
que é outro na alteridade - o que chamamos de “outro-no-outro” - tem estatuto ontológico apenas na
clínica, enquanto permanece um limite epistemológico na teoria67.
No mesmo ano em que definiu o estatuto do inconsciente como ético e “pré-ontológico”68 , Lacan
também afirmou que o inconsciente está “do lado de fora”69 . Em nossa reconstrução da teoria do
ideal na psicanálise, nos esforçamos para pensar o lado de fora, demonstrando que a teoria do traço
unário é justamente um avanço nesse sentido, mobilizando uma dimensão do significante que
preserva algo da exterioridade do mundo. Chamamos essa dimensão de “um-no-outro”. Mas, em
nossa esquematização, nós localizamos também aquilo que estaria mais além da própria
significância, o mundo externo, indiferente, heterogêneo e múltiplo:
66 Lacan, s 11
67 Essa discrepância entre os compromissos ontológicos e os limites epistemológicos também tem efeitos sobre a
metapsicologia e suas bases conceituais. O principal deles é que, se não podemos pensar a alteridade irredutível,
também não podemos pensar a distinção entre discursos racionais e irracionais a cerca dessa alteridade. Se o “outro-no-
outro” é estruturalmente impensável, então torna-se igualmente impensável refutar a fundamentação mística ou vitalista
dessa categoria - isso é, discursos que tomam o limite epistemológico de pensarmos a alteridade absoluta como uma
propriedade ontológica positiva do absoluto. Ver Quentin Meillasoux
68Sem 11 - que agora sabemos significar: separado da reciprocidade supostamente necessária entre o “um” e o “ser” no
pensamento
69 Sem 11
!21
O gênio de Lacan aparece aqui com clareza, uma vez que sua solução para a “origem” da alteridade
da falta é também a solução para o problema do “objeto externo” freudiano - uma solução que, mais
uma vez, substitui a substancialidade de uma outra dimensão pelos efeitos de uma torção formal,
isso é, de uma alteração no espaço mesmo das articulações entre unidade e alteridade. Primeiro,
como vimos, a teoria do objeto a traz à tona a questão da alteridade do próprio desejo:
Esse é o ponto de impasse em que nos encontrávamos anteriormente, quando apenas havíamos
reconstruído o problema da alteridade radical do mundo em relação às representações - já presente
em Freud - dentro de nossa teoria do sujeito. Mas é aqui que a estratégia lacaniana encontra sua
!22
resolução, operando, por fim, a coincidência entre os pontos de impasse da unidade. Podemos
esquematizá-la assim:
Dessa maneira, o “mais íntimo” e o “lá fora” coincidem num ponto igualmente excluído do interior
e do exterior, entendidos como regiões distinguíveis (pois articuladas ao “Um” da inteligibilidade).
Novamente, a dialética do Um e do Outro nos permite entender por que, estruturalmente, “outro-no-
outro” do desejo e o “outro-no-outro” do objeto externo não poderiam senão coincidir: a alteridade
sem unidade não pode se distinguir de uma outra alteridade - isso significaria que ela é outra do um-
do-outro” - e nem pode ser outra da alteridade disseminada - ou seja, outra do “outro-no-outro”, o
que significaria aceitar um ponto de vista previamente refutado como fantasioso. Em suma, não
havendo “outro-do-outro”, não é possível distinguir diferentes instâncias do “outro-no-outro”. No
entanto, ao mesmo tempo que a dialética nos ajuda a pensar, pela via do impossível de separar, a
coincidência da alteridade radical do desejo e do objeto externo, a referência ao pensamento
dialético parece também encontrar aqui seu limite para Lacan, e pela seguinte razão: a dialética do
Um e do Outro reservaria para a coincidência do “outro-no-outro” - conhecida como a figura da
identidade especulativa70 - a afirmação de que o “outro-no-outro”... é Um. Daí a sugestão de que a
teoria do objeto a seria, essencialmente, anti-dialética71 , uma vez que o pensamento dialético não
seria capaz de apresentar a alteridade radical senão sob o signo da unidade, da identidade ou da
totalidade. Retornaremos a esse ponto mais à frente.
70 Hegel
71 Exemplo
!23
Por um lado, a proposta de Lacan nos permite operar a partir do objeto a, discernindo uma posição
clínica para o analista orientada pela estranheza, sem que isso implique o discernimento de um
conceito. Afinal, a estranheza, entendida como sinal de um curto-circuito entre o dentro e o fora,
também sinaliza um curto-circuito entre determinações conceituais, sua única função teórica é
manter-nos avisados da qualidade fantasiosa dos sistemas de pensamento, da totalização, etc72 . Essa
separação entre o posicionamento clínico e a determinação conceitual da técnica garante à clínica a
autonomia da escuta frente a ameaça de transformá-la num mero dispositivo de confirmação das
proposições teóricas já estabelecidas73. No entanto, ao mesmo tempo, essa coincidência tópica do
“outro-no-outro” não deixa de carregar uma certa ambiguidade, pois é possível dar prevalência para
aspectos de uma das duas “pontas” que fizemos equivaler através dessa torção. Isso é, uma vez
operada essa coincidência ou identidade, o que é que vai prevalecer: as propriedades definidoras da
alteridade indiferente do “objeto externo” ou àquelas que definem a alteridade como causa do
desejo? Responder “mas são as mesmas propriedades!” é simplesmente evitar enfrentar um conflito
que decorre do fato de não termos partido da teoria do "outro-no outro", mas chegado à ela através
de construções conceituais com pressupostos que não temos como analisar. E, consequentemente,
uma vez que, epistemologicamente, a metapsicologia só dá inteligibilidade ao objeto-causa e não ao
objeto-externo, a coincidência proposta por Lacan acaba por ser sobredeterminada pelo primeiro
termo, que contagia a apreensão do segundo: na medida que o objeto-causa está ligado à
indeterminação a partir da qual se trama a singularidade do desejo de um dado sujeito - a maneira
como cada um constitui, das contingências irredutíveis da sua vida, a sombra de um destino
determinado - decorre, não por elaboração, mas por oposição, que aquilo que não contribui para
essa singularização não pode ser indeterminado.
72 Exemplo de lacaniano
73 Ver Vers Un Signifiant Nouveau
!24
Análise finita e transfinita
No entanto, essa combinação de um limite teórico e uma abertura prática torna a psicanálise incapaz
de decidir-se quanto as consequências mais abrangentes da teoria do objeto a. Colocamos essa
ambiguidade indecidível nos seguintes termos: ou bem a alteridade radical do sujeito é aquilo que
marca a sua singularidade em relação ao mundo, o ponto do extraordinário, ou bem trata-se antes da
imersão do sujeito naquilo que é mais comum e mundano, ou seja, aquilo que não deixa vestígio
justamente por ser radicalmente ordinário. O que é importante notar também é que a primeira
posição naturaliza a limitação teórica que encontramos: o limite do pensável é também a abertura
para a alteridade singular de cada sujeito - em suma, o impensável é a marca do ser singular. Ora,
isso significa que mesmo se houvessem avanços no campo da matemática e das ciências tão
importantes quanto aqueles mobilizados por Lacan, autorizando o pensamento a aproximar-se da
alteridade enquanto tal, ainda assim a psicanálise os rechaçaria - pois tornar algo pensável seria
comprometer o acesso à singularidade74.
74Um rechaço necessariamente sem fundamentação racional, pois para falar sobre os limites absolutos do pensável seria
necessário “poder transitar pelos os dois lados desse limite”, como diria Wittgenstein.
!25
A segunda posição, por outro lado, trata essa limitação como um limite histórico. Isso significa
fazermos um uso negativo do ponto de impasse atual da psicanálise: os limites atuais do
pensamento analítico tornam-se o sítio de um trabalho ainda por realizar - o lugar onde podem
surgir novos conceitos, ou mesmo novas relações entre a psicanálise e outras disciplinas. É
justamente nesse sentido que a obra de Alain Badiou nos oferece recursos para continuar, trazendo à
tona o desafio de pensar a compossibilidade do pensamento analítico com o avanço das
matemáticas contemporâneas, nos colocando a questão: o que a renovação do pensamento
matemático nos autoriza pensar em psicanálise?
Badiou é um filósofo e não um psicanalista. Isso significa que, ainda que seu trabalho seja
profundamente condicionado pelo desafio de “atravessar” a anti-filosofia lacaniana, desafio que
considera uma prova incontornável para qualquer filósofo contemporâneo75 , seu objetivo final não é
o de fazer avançar a própria psicanálise. Apesar, ou talvez até mesmo por causa, dessa distância, o
projeto de Badiou se revela simultaneamente compatível com a metapsicologia analítica e
indiferente a sua ideologia - isso é, à transformação de seus limites atuais em limitações estruturais.
Sua preocupação com a retomada de um discurso filosófico do ser que seja compossível, ou
condicionado, pelas inovações da psicanálise o leva, na verdade, a regionalizar as categorias
analíticas, defendendo que certamente nenhum discurso mais geral vai poder desconsiderá-las, mas
ao mesmo tempo não poderá tomar os limites dessa região do pensamento como indícios positivos
de tudo o que pode ser pensado.
Como veremos a seguir, no campo propriamente teórico, essa posição está intimamente ligada a
uma escolha fundamental do filósofo, que é a de privilegiar a dialética do "finito" e do "infinito"
sobre a dialética do "um" e do “outro” como gramática fundamental do pensamento. Isso é, ao invés
de construir a relação entre a finitude e a infinitude a partir do par um/outro ou um/múltiplo, Badiou
aquiesce à estratégia imanente ao próprio pensamento matemático e, em especial, à teoria
axiomática dos conjuntos, que constrói as oposições, diferenças e alteridades a partir da asserção da
infinitude76 . É justamente por essa via que encontraremos suporte para dar mais um passo na
compreensão da infra-estrutura do “outro-no-outro”.
75
76É interessante notar que, ao contrário dos dois outros grandes conceitos da filosofia contemporânea - “o Outro” e “a
Diferença” - os avanços que caracterizam a doutrina moderna do infinito não têm origem em impasses éticos e políticos,
mas no desenvolvimento de problemas internos à própria matemática - por exemplo, a tarefa separar a teoria da análise
do suporte intuitivo da geometria. Ou seja…
!26
O primeiro capítulo de sua principal obra, o Ser e Evento77 , é dedicado às “condições a priori de
toda ontologia possível”, isso é, à análise tudo aquilo que nós já sabemos que deve ser atendido por
qualquer discurso que ainda - apesar de tudo - se pretenda dizer o “ser enquanto ser”. O ponto de
partida de Badiou é justamente o impasse da dialética do Um e do Outro, ou do Um e do Múltiplo,
que vimos na seção anterior: “a reciprocidade do um e do ser é certamente o axioma inaugural do
discurso filosófico”78 - ou seja, o pensamento não consegue se aproximar do "ser" a não ser
pressupondo que o que é é “um”. Como vimos, mesmo afirmar que tudo o que se apresenta como
“um" é, no seu ser, “múltiplo”, não nos ajuda muito, pois se agora tentamos pensar essa
multiplicidade subjacente, descobrimos que ela é, no seu ser, composta de “uns”! Para Badiou, não
se trata portanto de escolher o múltiplo ou o heterogêneo, ao invés do um, pois quem escolhe o
múltiplo está também escolhendo o um - trata-se, ao invés, de rejeitar ambos. Como afirma o
filósofo: “estamos prontos para uma decisão, a de romper com os arcanos do um e do múltiplo,
onde a filosofia nasce e desaparece.”79 O importante é que, para Badiou, essa decisão responde a
uma condição ou desafio levantado pelo próprio Lacan:
“Essa decisão não tem outra fórmula possível senão essa: o um não é. Não se trata,
contudo, de ceder quanto ao que Lacan prende ao símbolo como seu princípio: há Um.
Tudo se decide no controle do descompasso entre a suposição (que é preciso rejeitar) de
um ser do um, e a tese de seu ‘há'. O que pode haver que não seja?”80
77 Ref
78 Red SE p29
79 ibid
80 ibidem
!27
opinião do ‘vários’”81. E apresenta então sua formulação lapidar: “se o Um não é, nada é”82. É aqui
que Badiou propõe uma primeira intervenção: o nada - que surge para o pensamento ali onde o não-
ser do Um é assumido em sua radicalidade - não é o sinal de uma interdição do pensável, pelo
contrário: é justamente o nome próprio da multiplicidade pura83. Vemos aqui uma espécie de
inversão do fundo e da figura, que faz do limite teórico que encontramos anteriormente, o limite de
apreender o “outro-no-outro” sem pressupor o Um, ele mesmo um novo caminho para o
pensamento. O caminho parece interrompido - não havendo nada a pensar para além do Um, nos
restaria então apenas desautorizar qualquer ambição sistematizadora, ou mesmo preferir a gnose
que toma o impensável como sinal de transcendência? Nem uma coisa, nem outra: há ainda o nada
a se pensar, o vazio enquanto sutura do múltiplo puro ao pensamento84. Mas tudo bem que o nada se
apresente (ou melhor, não se apresente) como o ponto em que o pensamento tocaria na
multiplicidade pura - o ganho aqui é a formulação de um desafio, não tanto sua superação: resta
ainda saber se há algum pensamento capaz de pensar o nada sem que isso signifique não estar
pensando nada. Aqui intervém, finalmente, a decisão “metaontológica” de Badiou: ora, há um
pensamento que trabalha apenas com múltiplos e cuja consistência - isso é, cuja maneira de evitar
os paradoxos do absolutamente múltiplo, do múltiplo inconsistente e totalmente disseminado - é
assegurada pela afirmação axiomática de que há um múltiplo de nada. Trata-se justamente da
matemática, mais precisamente, da teoria axiomática dos conjuntos.
Em suma, Badiou afirma que (a) se for possível pensar o nada, estaremos pensando com ainda mais
proximidade ao múltiplo puro, à alteridade radical, do que a filosofia supunha possível e (b) a
matemática moderna, com a elaboração do método axiomático e da teoria dos conjuntos, se mostrou
capaz de modelar o nada através do conjunto vazio. Pois bem, o que isso significa para nós? Em
primeiro lugar, a decisão metaontológica de Badiou nos autoriza a buscar na matemática - repetindo
o gesto do próprio Lacan - recursos para afirmar que, mais além da “unidade distintiva” do traço
unário, é possível ainda supor a extensão de um campo operatório. Isso é:
81 Parmênides
82 Parmênides
83A densa formulação de Badiou merece ser citada: é só pensando até o fim o não-ser do um que fazemos sobrevir o
nome do vazio como única apresentação concebível do que, inapresentável, suporta, enquanto multiplicidade pura, toda
apresentação plural, isto é, todo efeito de um”.
84 Teoria da sutura: sujeito ou múltiplo
!28
É claro que nós, psicanalistas ressabiados, poderíamos facilmente rejeitar uma proposta dessas: é
possível tanto desconsiderá-la por excesso de desconfiança, na medida em que a psicanálise há
muito aprendeu a suspeitar dos postulados de um “outro do outro”, uma alteridade completa e
separada do mundo - que é, afinal, o recheio preferido de nossas fantasias - quanto por altivez, na
medida em que esse “nada” já teria sido pensado por Lacan em sua teoria do objeto a, por Freud na
figura da contingência do trauma, etc. Em resposta àqueles que temem uma naturalização da
fantasia, seria necessário demonstrarmos de que maneira a teoria dos conjuntos localiza o vazio
como marca da falta de fundamento dos múltiplos, e não como uma espécie de átomo primordial da
matéria ou algo assim. Demonstrar que não há espaço para “homúnculos" (um-únculos?) aqui.
Enquanto que para aqueles que estão satisfeitos com o tratamento da alteridade radical proposto por
Lacan, nos caberia demostrar que trata-se, acima de tudo, de dividir a teoria lacaniana do objeto
causa do desejo, e não de superá-la ou algo assim. Ou seja, a questão seria a demonstração de que,
do ponto de vista da dialética conjuntista, há uma diferença metapsicológica entre tomar a finitude
ou a infinitude do homem como causa do desejo: ou bem a castração é aquilo que distingue a
humanidade - sua determinação específica - ou bem é o ponto de indistinção com o resto do mundo.
Vale notar que já ensaiamos essa distinção duas vezes no curso desse texto: primeiro, quando
sugerimos que o “princípio da exclusividade da falta” seria uma “proposição independente” do
sistema metapsicológico, o que nos autorizaria a considerar as consequências de afirmar,
alternativamente, que a indeterminação é uma propriedade intrínseca da natureza; e reencontramos,
!29
de maneira menos especulativa, essa mesma questão quando, reconstruindo a teoria do objeto a a
partir da dialética do um e do outro, vimos que essa gramática não tem recursos para decidir se o
“outro-no-outro” é o ponto de não-ser do sujeito porque é o real do desejo ou se é o ponto de real do
desejo porque é onde o sujeito partilha do não-ser, como tudo mais o que é (e que não é).
Vamos deixar a elaboração dessas duas “demonstrações" para o adendo final desse texto, uma vez
que demandam um nível de resolução formal e argumentativa que destoa do nível de detalhe que
estamos dando aos demais momentos de nossa elaboração. Sigamos em frente, então, munidos de
duas proposições, por enquanto infundadas, que extraímos da filosofia de Alain Badiou e, mais
especificamente, de sua aposta na matemática como “discurso do ser enquanto ser": (a) a teoria
axiomática dos conjuntos nos autoriza a afirmar que o múltiplo puro pode ser racionalmente
pensado sob a figura do nada ou do vazio, e (b) uma condição de possibilidade dessa capacidade do
discurso matemático é que, no sistema de axiomas em questão, a gramática do infinito se mostra
mais geral do que a gramática da alteridade.
Nossa tarefa, então, é analisar as consequências que decorreriam da afirmação - que fundamenta a
maneira como localizamos o “múltiplo puro” no esquema acima - de que a indeterminação sem
vestígios subjetivos é pensável. Ora, o tema da falta de vestígio em metapsicologia está
profundamente ligado ao papel do trauma - então é por aí que precisamos começar.
85 Ref
!30
ainda a pergunta “por que (há um) eu?”: o acontecimento no corpo dá corpo ao acontecimento de
um corpo86 . Poderíamos talvez localizar essas "duas intrusões” da seguinte maneira:
Na verdade, existem três razões para preferirmos o termo “acontecimento” ao invés de “trauma”,
definindo o segundo a partir do primeiro. A primeira é que isso nos permite assumir um ponto de
vista ontológico de onde é possível distinguir entre eventos que diferenciam um sujeito e eventos
que são indiferentes à subjetividade - ou seja, uma distinção entre acontecimentos traumáticos e
acontecimentos não-traumáticos, ou insignificantes. O segundo motivo é que a filosofia de Badiou
se orienta exatamente pela aposta de que eventos insignificantes podem produzir consequências
próximos passos:
- retomar questão da indecidibilidade do objeto como condição positiva da afirmação de uma ideia
- axiomática e proposições independentes
- angústia e coragem
- ideia e desejo do analista
- esquematização da teoria da ideia
87 Em matematês:
88 Em matematês:
89 Explicação
!34
que só é admitida a existência do conjunto vazio e daquilo que pode ser construído a partir dessa
existência, a única coisa que pode conter o conjunto vazio, isso é, unificar o múltiplo, é outro
conjunto - novamente, uma multiplicidade. Estamos, finalmente, munidos de um discurso racional
que, mantendo totalmente indeterminado seu objeto, é capaz de escrever o nome próprio daquilo
que é absolutamente heterogêneo.
Retornemos ao nosso ponto principal, a redução dos operadores “no” e “do” ao operador da
pertença. Trata-se de uma redução ontológica, e não operacional, pois é perfeitamente possível
estabelecer duas maneiras de um conjunto se relacionar com outro dentro desse sistema formal:
podemos dizer que X pertence à Y, ou seja, que X é elemento de Y, mas podemos também dizer que
X está incluído em Y, que X é parte de Y. Não é de forma alguma a mesma coisa: se temos um
conjunto W com os elementos {A, B, C}, posso dizer que A pertence a W, mas não que o conjunto
{A, B} pertence a W. Fosse esse o caso, o conjunto teria que ser escrito {A, B, C, {A, B}}. O que
posso dizer, no entanto, é que {A, B} está incluído em W - é parte de W. Há uma diferença entre
dizer “X pertence a Y” e “X está incluído em Y”, entre ser-elemento e ser-parte. E quando
consideramos que há um axioma que proíbe a pertença a si mesmo (Y não pode pertencer a Y),
vemos que decorre daí que se X pertence a Y, então Y é outro de X (pois se há pelo menos um
elemento em X que não está também em Y, então esses dois conjuntos são diferentes). Ao mesmo
tempo, se considerarmos que a inclusão é uma maneira de registrar aquilo que é parte de um
conjunto, todos os conjuntos possíveis feitos a partir dos elementos de um conjunto prévio, vemos
também que o conjunto das partes de um dado múltiplo W - digamos {A, B, C} - conterá não só
{A}, {B} e {C}, mas também {A,B}, {B, C}, {A, C}, e - o crucial - o próprio conjunto {A, B, C} e
o conjunto vazio, {} - o que significa que um conjunto é parte de si mesmo, bem como o é o vazio
(que é, na verdade, parte de qualquer conjunto). Não nos parece um grande passo reconhecer que a
pertença e a inclusão são capazes de absorver, sob condições que analisaremos mais à frente, a
distinção operacional entre o x-de-y e o x-em-y.
O que é realmente importante, no entanto, é notar que para a teoria dos conjuntos, ainda que
trabalhemos com dois operadores, apenas um dos dois é primitivo ao sistema formal: é possível
definir a inclusão a partir da pertença, como o faz na verdade um dos axiomas, o "axioma da
potência”. Esse axioma afirma: se A pertence a W então, para qualquer Y que pertença a Z, Y
pertencerá ao conjunto P. O chamado “conjunto potência” de W, notado P(W), terá Z como membro
se tudo o que é elemento de Z for também elemento de W. Para esclarecer um pouco, retornemos ao
!35
nosso conjunto exemplo W = {A, B, C}. O conjunto potência P(W) irá conter Z, o que quer que isso
seja, se os elementos de Z também forem elementos de W. Ora, se Z fosse {A, B}, seus elementos A
e B também seriam membros de W, então Z = {A,B} pertence a P(W). Se Z fosse {B, C}, o mesmo
aconteceria - então {B, C} pertence a P(W). E o mesmo vale para Z = {A, B, C} e Z = {}. Esse
último caso é meio contra-intuitivo, mas basta perceber que, se dois conjuntos são diferentes apenas
se tiverem elementos diferentes (como afirma o axioma da extensionalidade), que elemento é esse
que o conjunto vazio teria que não está em W? Assim sendo, o axioma do conjunto potência
estabelece, usando apenas a relação de pertença, um novo conjunto P(W) a partir de W - e a relação
de inclusão pode ser totalmente definida a partir desses dois conjuntos: diremos de um conjunto-
membro de P(W), uma vez que ele é construtível a partir dos elementos de W, que ele está incluído
em W. Não há o conjunto Z ={A, B} em W = {A, B, C}, mas, por pertencer ao conjunto P(W), Z
"está incluído" em W. Ou seja, ainda que tenhamos duas operações diferentes, a pertença e a
inclusão, que estabelecem relações complexas e fundamentais entre si, temos apenas um operador
primitivo na teoria. Ainda que seja capaz de preservar a diferença importante entre “ser distinto de”
e “ser distinto em”, a teoria dos conjuntos consegue aprofundar ainda mais a articulação entre as
instâncias com as quais trabalhamos até aqui.
***
Pois bem, ao afirmar que a teoria matemática e axiomática dos conjuntos é capaz de pensar - , na
imanência de sua prática, isso é, na medida em que a matemática trabalha, tece deduções e teoremas
- o vazio, Badiou está deixando tanto os psicanalistas quanto os próprios filósofos numa situação
embaraçosa. Por um lado, a teoria do pensamento pressuposta pela psicanálise, que coloca a
consistência da razão do lado das determinações e a inconsistência do lado do indeterminado, de
modo que o pensamento só pode ir até onde as determinações vão, é confrontada pela capacidade da
matemática carregar o nome próprio da alteridade radical “grudado na sola do sapato”90 dos
axiomas, sem que essa articulação possa ser rechaçada como uma operação de recalque91 . Mas, por
outro, a afirmação badiouiana de que a matemática pensa o ser em sua indeterminação radical -
Retornemos agora para o tema central de nossas preocupações: dar um passo a mais na
compreensão do “outro-no-outro” tal como esse ponto aparece na teoria do objeto a na psicanálise
lacaniana. A contribuição de Badiou, ao nosso entender, está diretamente ligada à tese
“metaontológica” de que a matemática é a ontologia e ao entrelaçamento entre o vazio e a
multiplicidade-sem-um que Badiou reconhece nesse pensamento. Isso por duas razões: primeiro,
porque ao reconhecer na teoria dos conjuntos um pensamento da indeterminação, Badiou está
também invertendo a relação entre o domínio do outro e o domínio do infinito, uma vez que a
matemática trabalha com o último e constrói um conceito local de alteridade radical a partir da
“gramática” da infinitude, e segundo, porque, ao fazê-lo, a própria referência de Lacan à teoria dos
conjuntos, como autorização para pensar o traço unário como uma “unidade distintiva” acaba por se
transformar numa autorização para ainda mais um passo - mais além da diferença pura, pensar a
pura indiferença.
Mas vamos por partes - literalmente. Uma condição para entender como a teoria dos conjuntos pode
nos oferecer recursos para espiar o que está além do significante - a insignificância - de maneira
consequente e sem imposturas é entender, antes de mais nada, o que quer dizer pensar a alteridade a
partir da infinitude, e não o inverso.
92 Ref Badiou
!37
A teoria dos conjuntos teve início com a invenção de uma maneira de operar matematicamente
sobre quantidades infinitas. Isso permitiu, por exemplo, que Georg Cantor93 provasse que a
infinitude dos números naturais tem a mesma cardinalidade (“tamanho”) que a infinitude dos
números racionais (há tantas frações, compostas de dois números naturais, quanto números
naturais), ou ainda, que a infinitude dos números reais é maior que a infinitude dos naturais (há
mais pontos num segmento de reta do que números naturais para contá-los)94 . A magnitude desse
acontecimento não pode ser menosprezada: para o nosso senso comum, falar em infinitude é se
referir a algo que escapa de qualquer limite, que está sempre em excesso ao que podemos apreender
- e, portanto, em excesso ao discernimento conceitual - como seria possível, então, um tratamento
definido e rigoroso daquilo que está em excesso à toda definição?
Na Grécia antiga, o infinito era mesmo chamado de aperion, isso é, de “ilimitado”, ou “indefinido”,
e por isso o “outro” da perfeição, que estava, por sua vez, ligada à continência de um ser ao seu
conceito ou seus limites95 - um pouco como hoje dizemos que a perfeição é “ser você mesmo”. No
mundo cristão, essa oposição se transformou radicalmente, e o excesso ganhou um novo estatuto,
pois tornou-se possível conceber o encontro do ilimitado e da limitação na figura de Deus, que é
Uno e infinito96. Ainda assim, a relação entre o infinito e o pensamento permaneceu problemática,
pois o pensamento, finito e determinado, está em Deus - tal qual o finito passa a estar no infinito,
entendido como lugar da finitude - e portanto não pode acessar a infinitude na qual habita97. Em
certo sentido, a doutrina matemática dos infinitesimais faz uso da intuição do infinito produzida
com o cristianismo, uma vez que o cálculo diferencial, ainda que não lide com números infinitos, é
capaz de trabalhar consistentemente com distâncias infinitas dentro de limites determinados98. Com
a teoria cantoriana do infinito, no entanto, encontramos um pensamento totalmente laico e ordinário
do infinito, desatrelado tanto da teologia quanto da filosofia, em que a infinitude não pode mais ser
oposta à limitação - uma vez que é possível efetuar operações determinadas entre o finito e o
Não podemos entrar nesse ponto aqui de maneira pormenorizada, mas para entender um pouco
como a infinitude pode ser pensada sem esbarrar nos limites da gramática da alteridade - que pensa
o infinito como “outro do finito” - seria necessário entender o que significa a distinção matemática
entre cardinalidade e ordinalidade, isso é, entre pensar conjuntos a partir de seu tamanho ou a partir
de seu lugar. Quando os números são pensados a partir de sua ordem - por exemplo, seu lugar na
reta dos números reais: x vem “antes” ou “depois” de y? - o infinito realmente só parece ser
pensável como o “outro”: é a nossa noção comum de que, se cada número numa série é “outro” do
número que sucedeu, o infinito é o “outro” dessa série, sua negação, seu caráter in-terminável, in-
definido, etc. Mas as provas cantorianas todas dependem de outra perspectiva, a da cardinalidade.
Não é tão intuitivo quanto parece dar prevalência à quantidade sem pressupor a ordenação.
Perguntar se dois conjuntos tem o mesmo tamanho sem se questionar “o que” está nos conjuntos -
números naturais, reais, complexos, números que vem antes ou depois um do outro, etc - significa
priorizar a correlação de conjuntos sobre a sucessão. Dois conjuntos serão o mesmo conjunto se,
para cada elemento em um deles, pudermos correlacionar um elemento no outro, e serão diferentes
se sobrar ao menos um elemento em um deles sem correlato no outro100. Ora, aqui a questão de se
dois conjuntos são “o mesmo” ou se o primeiro é “outro” do segundo não é uma questão primitiva,
mas derivada de uma análise anterior, em que a finitude ou infinitude é tratada como tamanho ou
densidade, e não como lugar numa série. Foi o acesso a essa perspectiva, estritamente imanente à
teoria dos conjuntos, que permitiu a Cantor e outros matemáticos elaborar provas que correlacionam
conjuntos infinitos, demonstrando - com uma linguagem "de segunda ordem” àquela em que a
prova efetivamente se dá, e portanto derivativa - que é o conjunto infinito dos números naturais é
“outro” do infinito dos números reais.
99 Badiou
100A linguagem natural é “forte” demais para nomear a sutileza com que o axioma da extensionalidade trata a
identidade e a diferença: acabamos falando de maneira circular, pressupondo a diferenciação na hora de demonstrar
como conjuntos passam a contar como diferentes a partir de sua cardinalidade. Badiou: “No vocabulário natural, e
inadequado, que distingue ‘elementos’ e ‘conjuntos, vocabulário que dissimula que só há múltiplo, o axioma diz ‘dois
conjuntos são idênticos se têm os mesmos elementos’. Mas sabemos que ‘elemento’ não designa nada de intrínseco (…)
O axioma da extensionalidade equivale, portanto, a dizer que, se todo múltiplo apresentado na apresentação de a é
apresentado na de b, e inversamente, então esses dois múltiplos a e b são os mesmos. A arquitetura lógica do axioma se
apóia na universalidade da asserção, e não na recorrência do mesmo.” (SE, 57)
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Vimos anteriormente que Lacan se interessou pela matemática cantoriana, e menciona a teoria dos
conjuntos como uma autorização para que pensemos a “unidade distintiva” do traço unário - a
unicidade de uma conta que preserva a multiplicidade do que é contado, e que Lacan chama
também de “multiplicidade atual”. Na obra de Lacan e de seus principais difusores encontramos, de
fato, uma série de comentários a respeito da teoria dos conjuntos e de sua importância. O curioso é
que essas elaborações em geral se concentram nos limites da matemática: os limites da consistência
matemática, no caso do paradoxo encontrado por Russell na teoria de Frege101, e no caso do
teorema da incompletude dos sistemas formais “fortes”, formulado por Gödel, que encerrava assim
as pretensões formalistas de David Hilbert102. Em geral, são comentários que não se interessam pela
continuação do pensamento da infinitude na matemática tanto quanto pelas supostas provas de que a
matemática não tem mais o que oferecer à psicanálise além daquilo que Lacan já se apropriou103.
Ou seja, o que encontramos são, em geral, comentários que implicitamente fazem um “uso
positivo” dos limites atuais do pensamento analítico, utilizando esses impasses como um critério
transcendental de averiguação dos limites dos demais campos do pensamento.
Quando Lacan evoca Cantor, em busca de uma autorização para nos aventurarmos um pouco mais
além do tecido das representações (do um-do-outro), rumo a um tipo de distinção que não subsume
o que diferencia (o um-no-outro), o nome que ele dá para a invenção cantoriana é “multiplicidade
atual”, que é na verdade uma mistura de dois termos diferentes utilizados por Cantor. O matemático
usa a oposição entre multiplicidades consistentes e inconsistentes para dividir as multiplicidades
que podem ser distintas por uma fórmula bem construída (por exemplo, o conjunto de “todas as
vogais contidas neste texto”) daquelas que, apesar de existirem, não podem ser separadas por uma
fórmula (famosamente, o conjunto de "todos os conjuntos que não pertencem a si mesmos” é um
desses). A oposição entre multiplicidades atuais e potenciais aparece em outro contexto, no
problema dos números transfinitos: múltiplos atuais são aqueles que “existem” no espaço teórico do
sistema formal em questão - seja porque são afirmados diretamente por axiomas (é o caso do
conjunto vazio), seja porque são derivados através de outros axiomas (como o axioma da união e o
axioma da extensionalidade, etc) - enquanto um múltiplo potencial seria algo como um conjunto
que poderia ser construído, mas ao qual não podemos chegar nem pelos axiomas existenciais nem
pelas regras de derivação de um dado sistema. Mencionamos que no sistema de axiomas da teoria
Se a questão da inconsistência de certos conjuntos é o que costuma causar mais “frisson" entre os
psicanalistas, é a questão da atualidade dos conjuntos transfinitos que realmente divide a filosofia
da matemática - é “legítimo” (e o sentido dessa legitimidade é o grande debate filosófico) afirmar a
existência de um conjunto infinito? Boa parte das correntes de filosofia da matemática podem ser
distinguidas pelo estatuto que dão ao infinito atual: se o garantem pela pura consistência formal
(formalistas), se o negam por contradizer o ato finito de pensar (intuicionistas), se o afirmam pela
sua realidade como objeto ideal (platonistas), se o desconsideram por ser impossível construí-lo a
partir de axiomas de um sistema finito (construtivistas), etc. O próprio Lacan, em seu seminário Ou
pior, sugere que o avanço representado pelo infinito cantoriano, enquanto infinitude acessível ao
pensamento, é na verdade um “engodo”104, não passando de um objeto imaginário105.
A expressão “multiplicidade atual” nomeia, para Lacan, a “unidade distintiva” dos conjuntos, a
capacidade da teoria dos conjuntos de separar múltiplos como {X, Y, Z} onde tanto X quanto Y e Z
são eles mesmos múltiplos, de modo que a heterogeneidade dos conjuntos-elemento é não só
preservada, mas mobilizando essa mesma heterogeneidade, o conjunto dos conjuntos-elemento
pode ser tomado como Um. No entanto, o que define essa propriedade distintiva dos conjuntos não
é tanto a "atualidade" da multiplicidade (em oposição àquelas que não podem ser construídas num
dado sistema de axiomas), mas a consistência axiomática da teoria: é por não contar com nenhuma
definição de “elemento” - trata-se apenas da posição de um conjunto em relação à outro: mesmo
que chamemos esse conjunto {X, Y, Z} de N, não haverá diferença ontológica entre N, X, Y ou Z:
seja “por cima” ou “por baixo”, o conjunto em questão é composto e compõe outros conjuntos -
nem com uma definição de “conjunto” - os axiomas dizem quais conjuntos existem ou podem
existir, mas nunca explicitam “o que é” um conjunto, o que seria, na verdade, contraditório - e nem
O primeiro candidato para servir de modelo para uma insignificância operativa - ou seja, para uma
indiferença que produza consequências - é, evidentemente, o conjunto vazio. Porém, do ponto de
vista dos demais conjuntos finitos, o conjunto vazio funciona quase exclusivamente como suporte
das demais distinções entre conjuntos - trata-se de um "conjunto de nada”, certamente, mas que
estabelece a força construtiva do aparato formal: mesmo funcionando como um múltiplo e não uma
unidade, sua relação com os demais conjuntos finitos deriváveis a partir dos outros axiomas é
essencialmente distintiva. O vazio é, na verdade, uma determinação indeterminada, trata-se da
marca de uma falta106 (da falta qualquer elemento que possa cair sob esse conjunto) que faz parte de
todo conjunto (tanto por ser o único conjunto finito afirmado pela teoria quanto porque pertence ao
conjunto potência de qualquer conjunto107 ): podemos efetivamente afirmar - daí a determinação, a
marca - que nada é apresentado pelo conjunto vazio, mas não podemos apresentar essa
indeterminação ela mesma.
A coisa começa a ficar interessante quando aceitamos a existência “atual” do conjunto infinito - o
conjunto afirmado como a multiplicidade composta de todos os conjuntos finitariamente
construtíveis através da regra de sucessão, conjunto normalmente chamado de “aleph zero”. Uma
vez que aquilo que é separado pelo transfinito não pertence ao espaço das operações finitas (não é
acessível a partir da iteração dos operadores desse sistema de axiomas), trata-se de algo
inconstrutível e portanto indeterminado do ponto de vista dos demais axiomas, porém, ao mesmo
tempo, todo o conteúdo dessa indeterminação é apresentado: não há nada oculto ou inacessível em
cada um de seus conjuntos-elementos - são todos eles conjuntos finitos e bem determinados. Tudo é
apresentado, menos o nome do conjunto transfinito, sua marca - essa só pode ser introduzida por um
axioma, uma pura nomeação.
Jacques-Alain Miller, por sua vez, também fez - principalmente no começo dos anos 90 - extenso
uso da passagem da série de sucessivos números naturais para o (primeiro) conjunto transfinito
(sim, existem infinitos deles!) como um recurso para pensar a travessia da fantasia ao fim de uma
análise108. A análise se daria no plano do deslocamento finito, mas interminável, de uma série de
significantes, enquanto que a intervenção analítica visaria tocar na “lei da série”, num nome capaz
de atualizar o deslocamento potencialmente infinito dos significantes em um conjunto que incluiria
o próprio movimento (ou objeto) do deslocamento: o gozo - que é “outro” de todo significante, ou
seja, "outro" do ""um-do-outro"" - dentro de si. Apesar de arriscar formulações como “de certo
ponto de vista, o ‘a’ de Lacan é o aleph zero [primeiro conjunto transfinito] de Cantor”109 , há aqui
um problema que levaria, mais tarde, o próprio Miller a abandonar essa “aventura”. Como vimos, o
conjunto infinito tal como é introduzido pelo axioma do infinito realmente nomeia não só partes
determinadas (já que é composto apenas de números finitos) mas também a própria operação de
sucessão (todo sucessor de um número que pertence a esse conjunto também pertencerá a ele), o
que faz de seu “conteúdo” simultaneamente apresentável e indeterminado. Mas, além disso, o
conjunto infinito pode ele mesmo se articular com outros conjuntos também infinitos: através da
aplicação de alguns axiomas, podemos construir um conjunto infinito maior que ele, chamado de
“conjunto potência” (ou conjunto das partes) do primeiro conjunto transfinito, ou “aleph um”. Isso
significa que, do ponto de vista do que vem “depois” do primeiro transfinito, já não há nada mais de
indeterminado em jogo: toda uma série de regras de sucessão, já aplicáveis ao finito, voltam a valer
aqui, com aleph zero fazendo o mesmo papel que o vazio fazia em relação aos números finitos -
trata-se de um conjunto cujo traço especial é “não suceder” nenhum número, pois é o primeiro
conjunto na sua série. Essa súbita recomposição da tecitura das determinações é o que leva Lacan a
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concluir que o transfinito “nada mais é do que saber”110, e com a reformulação do lugar do saber no
quadro conceitual de Miller, rebaixando esse saber frente às transformações no próprio modo de
gozo (na regra da série), a busca por recursos matemáticos capazes de nos autorizar a dar um novo
passo no pensamento do significante estancou que nem o próprio aleph zero.
***
As primeiras meditações de Ser e Evento111 são dedicadas à elucidação da tese de que a matemática
é o discurso do ser enquanto ser - e já aqui nós encontramos uma leitura inovadora de alguns dos
recursos anteriormente utilizados por Lacan e retomados em nossa reconstrução da teoria do ideal e
do objeto causa do desejo. A estratégia de Badiou pode ser dividida em três partes. Primeiro, retoma
o problema do múltiplo puro e da dificuldade de pensá-lo, na medida em que o pensamento parece
incapaz de avançar rumo à multiplicidade sem pressupor a unidade - como vimos, o múltiplo seria
ou único (um múltiplo) ou uma composição de elementos (múltiplo de uns). Nesse contexto, Badiou
retorna ao Parmênides de Platão e à última hipótese investigada no diálogo, justamente a
possibilidade do não-ser do Um. Partindo da hipótese de que o Um não é, Parmênides, Sócrates e
Zenão se perguntam, nesse último movimento do diálogo, qual seria, nesse caso, a extensão do
pensamento - o que está em jogo é precisamente a relação do pensamento com o heteros, o
absolutamente outro. A conclusão a que chega Platão, atravessando justamente as chicanas da
pluralidade - isso é, do múltiplo que pressupõe a unidade - é a de que “sem o um, é impossível ter
opinião do ‘vários’”112 . E apresenta então sua formulação lapidar: “se o Um não é, nada é”113 .
É aqui que Badiou propõe uma primeira intervenção: o nada - que surge para o pensamento ali onde
o não-ser do Um é assumido em sua radicalidade - não é o sinal de uma interdição do pensável, pelo
contrário: é justamente o nome próprio da multiplicidade pura114. Vemos aqui uma espécie de
inversão do fundo e da figura, que faz do limite teórico que encontramos anteriormente, o limite de
apreender o “outro-no-outro” sem pressupor o Um, ele mesmo um novo caminho para o
112 Parmênides
113 Parmênides
114A densa formulação de Badiou merece ser citada: é só pensando até o fim o não-ser do um que fazemos sobrevir o
nome do vazio como única apresentação concebível do que, inapresentável, suporta, enquanto multiplicidade pura, toda
apresentação plural, isto é, todo efeito de um”.
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pensamento. O caminho parece interrompido - não havendo nada a pensar para além do Um, nos
restaria então apenas desautorizar qualquer ambição sistematizadora, ou mesmo preferir a gnose
que toma o impensável como sinal de transcendência? Nem uma coisa, nem outra: há ainda o nada
a se pensar, o vazio enquanto sutura do múltiplo puro ao pensamento115 .
De fato, a capacidade da teoria dos conjuntos de falar de maneira racional sobre o conjunto vazio
depende de seu caráter axiomático - e isso, a princípio121, a distinguiria de um pensamento dialético,
pois ainda que um sistema axiomático “deixe de fora” outras regras de operação e só trabalhe com a
existência daquilo que a própria axiomática afirma, essa relação entre o fora e o dentro do sistema
não configura uma negação122 . Aquilo que não é afirmado pelos axiomas permanece absolutamente
indeterminado, não deixa vestígios. Em certo sentido trata-se não tanto da diferenciação entre o
pensável e o impensável, dentro de um dado sistema, mas da absoluta indiferenciação, do ponto de
vista do sistema, daquilo que não se apresenta ali. E como o que buscamos é justamente preservar a
alteridade inapresentável - isso é, impossível de articular-se com o Um - mantendo dela apenas o
nome próprio, encontramos na teoria axiomática dos conjuntos um ponto de partida especialmente
apropriado.
No entanto, o axioma do conjunto vazio não é a única proposição existencial nesse sistema formal -
há ainda o axioma do infinito, que enuncia: “existe um conjunto B tal que o conjunto vazio pertence
a B e, se um conjunto X pertence a B, então o conjunto Y também pertence a B, sendo que Y é o
conjunto que tem X como elemento - isso é, Y é seu sucessor”123. O axioma do infinito não seria
necessário para garantir a infinitude dos conjuntos. Seria possível, por exemplo, definir - como na
axiomatização da aritmética, por Peano124 - a regra de sucessão infinita de um conjunto para o
outro, de qualquer X para “X+1”. Um universo que contém o conjunto vazio e uma regra de
formação de sucessores do vazio já seria potencialmente infinito, pois poderíamos criar quantos
conjuntos quiséssemos, indefinidamente. O axioma do infinito faz mais que isso, ele afirma que
esse horizonte - efetivamente inalcançável através das operações que constróem novos conjuntos a
partir do conjunto vazio - existe e é ele mesmo pensável. Ou seja, trata-se da afirmação de que
existe um infinito atual, um conjunto B dentro do qual a passagem de qualquer X para seu sucessor
Y acontece.
No entanto, Lacan considerava - como toda uma corrente da filosofia da matemática, chamada
intuicionismo125 - que o axioma do infinito é ilegítimo, pois postula a existência de algo que não
podemos construir a partir de meios finitos126. Ou seja, do ponto de vista de uma situação
essencialmente discreta - simbólica - não existem meios para “chegar” ao infinito: há uma lacuna
intransponível, e infinitamente postergável, entre a sequência numérica construtível através de
operações sucessivas e o conjunto infinito em que essa sequência, em sua completude, estaria
contida127. O interesse de Lacan parece ter sido mais no caráter inacessível do infinito a partir do
finito do que as consequências da infinitude enquanto tal, o que se comprova pela maneira com que
utiliza a definição de “inacessibilidade”128 na teoria dos números para afirmar que a lacuna entre o
finito e o infinito seria a mesma que a lacuna que separa o número 1 do 2: definido o domínio que
contém os números 0 e 1, e as operações de soma e multiplicação, é impossível construir o número
2129. Há uma pequena polêmica aqui130 , que não poderemos debater em detalhes, pois Lacan passa
sem explicações da infinitude cardinal do conjunto transfinito (cardinal, quer dizer: diz respeito ao
tamanho do conjunto) para a finitude ordinal dos números 0 e 1 (ordinal, quer dizer: considerados
em termos de suas posições singulares dentre os números inteiros). Considerados enquanto números
cardinais, tamanhos de conjuntos com “zero” e “um” elementos, não há nada que nos impeça de
Mais uma vez, reencontramos aqui as duas posições que podemos tomar em relação aos limites do
pensamento analítico, dessa vez na forma concreta de duas interpretações filosóficas sobre a
doutrina dos conjuntos infinitos. Ou bem o conjunto infinito não existe, porque não pode ser
construído a partir do finito, ou bem o conjunto infinito existe, porque assumí-lo não produz
inconsistências com os demais axiomas. A primeira posição, conhecida como intuicionista, define a
existência pela capacidade de construir finitariamente o existente, a segunda, conhecida como
platônica, associa existência e consistência formal. Há uma diferença fundamental entre elas. A
decisão intuicionista utiliza a filosofia para avaliar resultados que a matemática é no entanto capaz
de produzir - ou seja, parte da filosofia para condicionar a prática matemática, questionando a
validade não só do infinito atual, mas também da prova pelo absurdo132. A posição platônica - e
nisso ela merece mesmo esse nome - parte da premissa de que é a matemática que condiciona a
filosofia, re-abrindo o horizonte do pensável a partir daquilo que podemos formular de maneira
consistente, tenha essa formulação matemática realidade ou não, seja ela reflexo do nosso mundo ou
não.
Deixando de lado, por um momento, a predileção filosófica de Lacan, o que ocorre se então
assumimos o axioma do infinito? Duas consequências interessantes. Primeiro, a total banalização
do infinito: quando afirmamos que há um conjunto infinito, a questão da inacessibilidade do infinito
pelo finito deixa de ser a questão da existência do infinito e passa a ser um problema distinto, o da
relação entre dois domínios igualmente existentes. Existe o infinito e existe o finito - qual a relação
entre os dois? Não é uma relação construtiva, já sabemos. Mas a prova da inacessibilidade deixa de
ser também a “prova” da inexistência. Ser ou não acessível a partir de um domínio é uma
propriedade regional de um dado múltiplo, e não tem o poder de terminar a existência desse
múltiplo. De fato, se assumimos que só o finito é pensável, então o pensamento não “alcançar” o
infinito é também prova de que o infinito é impensável. Se o infinito é pensável, então provar que,
do ponto de vista da finitude, não se chega ao infinito, significa pensar uma propriedade da relação
entre os dois regimes. Seguindo uma indicação de Slavoj Zizek, poderíamos dizer que a diferença
A segunda consequência de acatarmos que os axiomas da teoria dos conjuntos informam uma
ontologia do múltiplo puro é que podemos ver o poder e o caráter das provas de consistência
intrínseca: afinal, ao aceitar esse segundo axioma existencial, nós não “provamos” o infinito a partir
de um sistema formal que contava apenas com conjuntos finitos, o que fizemos foi provar que
afirmar a existência do infinito não contradiz o resto da teoria134. É um tipo totalmente diferente de
relação entre uma proposição e um sistema de pensamento do que a prova de um teorema deduzido
a partir de premissas anteriores135.
É aqui, finalmente, que o passo para além da teoria do ideal, e para além da interpretação do objeto
a como teoria do limite do ideal, pode finalmente ser dado. Pois o que Badiou demonstra em Ser e
Evento é que, se o conjunto vazio sutura o discurso matemático ao múltiplo inconsistente,
produzindo um discurso consistente sobre multiplicidades-sem-um, e se o axioma do infinito nos
permite pensar, dentro da consistência desse discurso, na absoluta banalidade da infinitude, então
temos a nossa disposição o material necessário para a construção de um subconjunto muito especial
nesse universo, o subconjunto de uma multiplicidade genérica136. Trata-se da construção de uma
parte infinita da situação que não pode ser totalizada sob nenhum predicado disponível no universo
dos conjuntos a partir do qual ela é construído. Esse é a terceira das "decisões fundamentais" que
mencionamos anteriormente.
Badiou dedica quase metade do livro - a metade dedicada ao “evento” - ao exame da matemática do
“filtro genérico”e do “forçamento”, aspectos da técnica desenvolvida por Paul Cohen nos anos 60 e
cujo resultado complementou o trabalho de Gödel sobre a hipótese do contínuo, finalmente
estabelecendo sua independência em relação aos axiomas clássicos da teoria dos conjuntos137 . O
que nos interessa aqui é que a multiplicidade genérica apresenta as seguintes propriedades: (1) trata-
Digo “é possível” pois a ontologia não nos obriga a deduzir esse resultado, ela simplesmente não o
proíbe. Essa autorização Badiou chama de um “evento”145 : a legibilidade contingente, ali onde nada
Antes de uma recapitulação já nos termos da dialética que vínhamos utilizando, vale notar uma
última coisa: o papel da prova da incompletude dos sistemas formais “fortes” na ontologia
matemática de Badiou. Afinal, a resposta usual dos psicanalistas às propostas que dependem da
matemática pra fazer avançar o pensamento é de que isso implicaria numa vontade de totalização,
de querer “dizer tudo”, de “formalizar tudo” - e que essa vontade já foi frustrada por Kurt Gödel
com seus famosos (mas pouco discutidos) teoremas da incompletude147. Ora, é justamente o caráter
indecidível do formalismo conjuntista - sua incapacidade de determinar através de um procedimento
recursivo148 se há ou não um múltiplo genérico - que escreve, na ontologia, o lugar da aposta, da
decisão e do engajamento149. Mais do que interpretar o sujeito como o valor de verdade de uma
negação não-matemática em jogo no formalismo - traduzindo: como aquilo que é suturado entre
duas proposições consistentemente encadeadas no discurso matemático150 - Badiou encontra na
matemática apenas o pensamento da possibilidade de um sujeito: a escrita rigorosa, sempre
renovada pelo avanço histórico da matemática, de pontos em que não há vestígio de se, ali, o
pensamento deveria frear ou continuar. Hic Rodus, hic salta! - para citar os grandes.
Antes de recapitular tudo o que vimos até agora e extrair daí algumas consequências para o
pensamento psicanalítico, é importante fazer um último “pit stop”.
Não entramos em detalhes sobre isso, mas Lacan utiliza dois grandes aparatos matemáticos em sua
teoria do objeto causa do desejo: por um lado, faz constantes referências à topologia, mobilizando
O caso da invariância topológica é mais comentado - uma vez que está em jogo justamente na
operação de “coincidência” dos pontos de alteridade do esquema freudiano, analisando
anteriormente - mas é o caso da série de Fibonacci que mais nos interessa aqui, pois demonstra de
maneira exemplar a predileção de Lacan por pensar o incontável a partir da inacessibilidade. O
número áureo, um número real, participa da série de números naturais como uma espécie de limite
interno: sempre presente, porém nunca definido - implicado no horizonte da sequência
potencialmente infinita, mas nunca inteiramente pensável. Mais importante ainda é notar que, no
caso da série de Fibonacci, o que é apresentado é a relação entre o campo dos números naturais e
um número real singular. Ou seja, ainda que Lacan dê um passo aqui na direção da formalização do
objeto a, autorizado pela matemática a pensar a incomensurabilidade entre a série de objetos do
desejo e a causa do desejo, essa formalização carrega o pressuposto de que essa
incomensurabilidade só pode ser propriamente pensada a partir do campo dos conjuntos finitos,
contáveis e transitivos (os números naturais).
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