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UNIVERSIDADE DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE LETRAS E ARTES


MESTRADO EM MÚSICA BRASILEIRA

A MÚSICA EXPERIMENTAL DE HERMETO PASCOAL E GRUPO (1981-


1993): CONCEPÇÃO E LINGUAGEM

LUIZ COSTA-LIMA NETO

RIO DE JANEIRO, 1999


A MÚSICA EXPERIMENTAL DE HERMETO PASCOAL E GRUPO (1981-
1993): CONCEPÇÃO E LINGUAGEM

por
Luiz Costa-Lima Neto

Dissertação submetida ao Programa de


Mestrado em Música Brasileira do Centro
de Letras e Artes da UNI-RIO, como
requisito parcial para a obtenção do grau de
Mestre sob a orientação da Profa. Dra.
Martha Tupinambá de Ulhôa.

RIO DE JANEIRO, 1999


RESUMO

Neste estudo buscamos esclarecer a gênese, a concepção dos elementos

experimentais da linguagem ou sistema musical do compositor e instrumentista Hermeto


Pascoal. Tomamos como objeto de análise um determinado repertório gravado entre 1981

e 1993, pelo músico e o grupo que o acompanhou neste período: Itiberê Zwarg, Jovino

Santos Neto, Antônio Luís Santana, Carlos Daltro Malta e Márcio Villa Bahia. Para
elucidar como determinados elementos harmônicos, melódicos, rítmicos e timbrísticos

foram constituídos no nível da linguagem, nos orientamos através do tempo buscando as

raízes da concepção musical de Hermeto desde sua infância, para então acompanharmos

o desenvolvimento do músico, até encontrarmos novamente o período por nós almejado


no início. São de especial importância em nossa busca determinados modelos sonoros
não convencionais que foram incorporados musicalmente por Hermeto desde garoto,

como os sons de ferros percutidos, da natureza e dos animais e da fala humana.


Investigando as fronteiras entre interpretação, improvisação e composição e a fim

de verificar como ocorria a dinâmica de trabalho de Hermeto e Grupo, reconstituímos


ainda o processo de criação e ensaio de cada música analisada, até sua gravação em

estúdio.
ABSTRACT

In this study, we looked for the genesis and the conception of the experimental

elements in the musical language of Hermeto Pascoal's composer and instrumentalist. We


take as our object of analysis a certain repertoire recorded between 1981 e 1993 by the

composer and the group that accompanied him in this period: Itiberê Zwarg, Jovino

Santos, Antônio Santana, Carlos Malta and Márcio Bahia. For clarifying how certain
harmonic, melodic, rythmical and timbre elements were constituted, at the level of

language, we searched, through time, the roots of Pascoal's musical conception, since his

childhood. We went on his musical development up to the point we got in touch again

with the period we had stressed, at beginning. In our research, it is of special relevance,
the relationship between sound and image and certain non-conventional sound patterns,
musically merged by Pascoal since a child, such as the sounds of percussed metals,

sounds that belonged to nature, to animal and human voices.


By investigating the borders of interpretation, improvising and composition and

in order to verify Pascoal's and group work dynamics, we still rebuilt the process of
creation and research in each analysed composition, up to its recording at studios.
1

1 - INTRODUÇÃO

Hermeto Pascoal, com cerca de 50 anos de carreira, 13 discos autorais gravados e

31 outros onde atua como produtor, intérprete, arranjador e compositor,1 é hoje um nome

expressivo no cenário da música nacional e mundial.

Esta pesquisa se debruça sobre alguns aspectos de sua concepção e linguagem e,

para tanto, analisaremos um determinado repertório composto e gravado por Hermeto no

período compreendido entre 1981 e 1993. Neste período, um quinteto de músicos

acompanhou e foi liderado por Hermeto, aliando um excelente padrão de performance

individual à singular concepção estética do compositor alagoano: Itiberê Luis Zwarg

(baixo elétrico, tuba e bombardino), Jovino Santos Neto (piano, teclados, flautas),

Antônio Luís Santana - apelidado de Pernambuco - (percussão), Carlos Daltro Malta

(saxes, flauta, flautim) e Márcio Villa Bahia (bateria e percussão).

Empregamos 'linguagem' e 'concepção' no sentido usual dos termos. Linguagem é

o termo geral que engloba os sistemas de signos, i.e., de elementos não naturais (os sons

integrados a uma escala musical naturalmente a ela não pertencem, ou os que formam

uma palavra naturalmente não significam), pelos quais os homens se expressam e se

comunicam. Concepção é o ato de originar, de criar. No caso, trata-se de analisar a

concepção de uma linguagem ou sistema musical.

Duas questões portanto, nos movem. A primeira, de ordem mais geral, diz

respeito à concepção experimental de Hermeto: como ele a elaborou, quais suas origens e

seus traços mais importantes. Para respondê-la, retornamos à infância do compositor para

em seguida acompanhar sua trajetória profissional. A segunda questão se refere a como

1 Dados aproximados apresentados com base na discografia feita pelo amigo de Hermeto e Grupo,
Mauro Wermelinger. Por causa da precariedade da catalogação das obras de determinados músicos
2

esta concepção foi transformada em linguagem musical pelo próprio Hermeto e pelo

quinteto que o acompanhou no período já mencionado. Tentamos responder a esta

segunda questão traçando um pequeno perfil biográfico de cada um dos músicos da

banda e reconstituindo o processo de criação e ensaio das músicas por nós escolhidas, até

sua gravação em estúdio.

O repertório selecionado para análise é uma amostragem do trabalho

desenvolvido por Hermeto e Grupo, sendo as músicas escolhidas especialmente

adequadas aos objetivos do presente estudo, por nos terem parecido exemplos ricos em

aspectos experimentais diversos.

A definição de música experimental de que nos servimos, é baseada naquela

apresentada por Paul Griffiths em seu livro Enciclopédia da Música do Sec. XX:2

(...) costuma-se usar a palavra experimental para a música que se afasta significativamente
das expectativas de estilo, forma ou gênero canonizadas pela tradição - exceto a tradição
experimental. Alguns compositores, sobretudo em fins de 60 e início da década de 70, quando a
música experimental estava no auge, faziam uma útil distinção entre a vanguarda, que trabalhava
dentro da tradição e dos canais aceitos de comunicação (casas de óperas, concertos orquestrais,
universidades, empresas de radio-difusão, gravadoras), e os compositores experimentais, que
preferiam trabalhar de outras formas. (...) Na verdade, o trabalho experimental foi muito mais uma
característica da música americana e inglesa do que do continente europeu. (GRIFFITHS, 1995 : 150)
3

Griffths está se referindo ao mundo artístico da música erudita, mas sua definição

aplica-se perfeitamente à tradição da música popular. É interessante a distinção entre

experimental e vanguarda, pois como discute Howard Becker, em seu artigo seminal

brasileiros, a discografia total de Hermeto carece de pesquisa que escapa aos limites desta dissertação e
certamente é bem maior que a por nós apresentada.
2 São Paulo: Martins Fontes, 1995.
3 A própria gênese do conceito de "música experimental", tal como este é apresentado por
Griffiths, tem muito a ver com a trajetória de Hermeto. O surgimento deste último como compositor (fato
que se concretiza com o lançamento de seu primeiro disco solo em 1971), ocorre justamente no auge da
música experimental e sintomaticamente, nos E.U.A., onde Griffiths diz ter sido, muito mais do que a
Europa (com a exceção da Inglaterra), o palco principal da música experimental. Cf. Michael Nyman,
Experimental music: Cage and beyond. London : Studio Vista, 1974.
3

"Mundos artísticos e tipos sociais",4 a vanguarda apesar "de enfrentar sérias dificuldades

para ver o seu trabalho realizado", o que às vezes "pode chegar a não ocorrer" (p. 15),

acaba geralmente por ser absorvida pela tradição e seus canais convencionais. Isto

porque, segundo Becker: "os inconformistas vieram de um mundo artístico, foram

treinados nele e, num grau considerável, continuam voltados para ele. A intenção do

inconformista parece ser a de forçar o seu mundo artístico de origem a reconhecê-lo,

exigindo que, em vez dele se adaptar às convenções impostas por esse mundo, seja este

que se adapte às convenções por ele próprio estabelecidas para servir de base a seu

trabalho. Isto porque os inconformistas não renunciam a todas e nem mesmo a muitas das

convenções de sua arte" (idem).

O conceito apresentado por Griffiths nos parece adequado a Hermeto não só

porque ele definitivamente possui um estilo experimental, que se afasta da tradição e do

convencional, mas também porque o meio que elege para atuar não é o meio da

vanguarda erudita, nem popular. A Tropicália, que é um exemplo de vanguarda na

música brasileira popular, foi um movimento com o qual Hermeto manteve poucos elos

de ligação.

Hermeto teve e tem que construir um espaço próprio (o do experimentador auto-

didata), para a concretização de seu projeto artístico, mesmo no campo da música

instrumental, que inclui ainda o choro, o jazz, etc.5

Analisamos as seguintes músicas: "Série de Arco", "De bandeja e tudo",

"Magimani Sagei", "Briguinha de músicos malucos no coreto", "Cores" do LP Hermeto

Paschoal e Grupo (Som da Gente, 1982); "Papagaio alegre" do LP Lagoa da Canoa,

4 In Gilberto Velho (org.), Arte e Sociedade- ensaios de sociologia da arte. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1977, p. 9 - 25.
5 Ver especialmente o capítulo III, para aprofundamento histórico-biográfico.
4

Município de Arapiraca (Som da Gente, 1984); "Arapuá", LP Brasil Universo (Som da

Gente, 1987) e "Aula de Natação" do CD Festa dos Deuses (Polygram, 1992)6.

Estudamos este repertório tanto a partir de seus aspectos estruturais (revelados

pela análise das partituras e gravações), como do ponto de vista de seu processo de

gênese e criação, além das diferentes nuances de interpretação (apreendidas através da

transcrição e descrição das performances gravadas em disco).

1.1 A concepção e linguagem de Hermeto Pascoal: primeiras considerações

Numa posição que desafia rótulos e fronteiras delimitadoras, a linguagem de

Hermeto Pascoal o situa entre a música popular e a erudita. Ora é muito inovador nos

parâmetros formulaicos do popular, ora é demasiadamente popular nos parâmetros

estruturais eruditos. O projeto experimental de Hermeto Pascoal é por isso único.

(...) Eu não posso dizer qual o tipo de música que eu faço. Eu faço música, isto é tudo. Eu
toco uma infinidade de ritmos, de sons, de harmonias, de gêneros, de estilos... Eu adoro tocar música
"clássica" (eu coloco um rótulo porquê as pessoas gostam disso. Eu detesto!) e de repente mudo para
um frevo do carnaval do Recife ou um baião do nordeste. (HERMETO, Jazz Magazine: 1984)

Hermeto é, de fato, criador de uma linguagem bastante pessoal, no qual às

harmonias dissonantes do jazz, misturam-se ritmos e melodias populares, freqüentemente

do nordeste brasileiro, região onde o músico nasceu, em 1936. No entanto sua linguagem

é multidirecional, contendo também elementos que são comuns à música erudita

contemporânea, como poliacordes, polirritmias, uso não convencional de instrumentos

convencionais e exploração de ruídos e novas possibilidades tímbricas através de um

arsenal percussivo variado, constituído de objetos sonoros os mais diversos.

6 Além destas músicas, analisamos brevemente no capítulo IV, a peça "Ferragens", para piano
solo. "Ferragens" foi composta, mas não gravada no período estudado.
5

Outra característica importante na música de Hermeto Pascoal é a improvisação.

É inegável a influência do jazz americano, embora a improvisação praticada por

Hermeto não se limite (tal como ocorre geralmente no jazz tradicional) à capacidade de

reinvenção melódica sobre uma mesma estrutura harmônica. Ele pode, por exemplo,

(como na música "Magimani Sagei"), sobrepor ostinatos de baixo e bateria, vários

cachorros latindo, uma pessoa falando palavras desconexas, e considerar tudo isso como

sendo a "base harmônica" sobre a qual diversas flautas improvisarão livremente, ao

mesmo tempo fundindo seus timbres aos latidos dos cachorros e às onomatopéias e

grunhidos da voz através de frulatos, glissandos e outros recursos, como cantar dentro

das flautas simultaneamente à emissão de notas. Estes tipos de exploração sonora

utilizados por Hermeto ultrapassam o modelo de improvisação do jazz tradicional,

assemelhando-se mais às experimentações ocorridas a partir do free jazz americano da

década de 60.7

A fim de tentar verificar como o compositor experimenta e inova em sua

linguagem é necessário perceber também quais são seus limites. Como exemplo,

podemos citar a recusa de Hermeto em "atualizar-se" tecnologicamente, ao recusar os

sintetizadores, computadores, samplers e similares. Apesar de ser um pioneiro na procura

de novos timbres e sonoridades, Hermeto age desconfiadamente com relação à

maquinaria sonora, adotando uma posição que poderia ser considerada conservadora, ao

restringir a eletrônica em sua música somente aos instrumentos amplificados como piano

e baixo elétricos.

O que Hermeto parece detestar nos sintetizadores é a possibilidade - perversa - da

criação ser substituída pela padronização, já que na maioria dos teclados eletrônicos, os

timbres são pré-"setados", ou seja, vêm prontos da fábrica. A alternativa possível para

7 Sobre a relação estabelecida por Hermeto com o jazz americano, ver cap. III.
6

esta limitação imposta pela tecnologia dos teclados, que seria a criação de timbres através

de computadores, não parece ser por sua vez uma opção buscada por Hermeto.

Por outro lado, seu arsenal timbrístico é muitíssimo variado e nem um pouco

conservador. Consiste de objetos sonoros acústicos como panelas, chaleiras, bules,

baldes, bacias, garrafas, máquina de costura, calotas de carro, sinos, berrantes, buzinas,

brinquedos sonoros, etc., etc.

Além do instrumental sonoro sempre renovável, o uso dos sons dos mais diversos

animais, "afinados" com a música, já se tornou uma assinatura estilística de Hermeto.

Como exemplo, podemos mencionar os grunhidos de porcos do LP Slave Mass (WEA,

1977), latidos de cachorros e silvos de cigarras no LP Hermeto Pascoal e Grupo (Som da

Gente, 1982), gritos de papagaios no LP Lagoa da Canoa, Município de Arapiraca (Som

da Gente, 1984), cacarejar de galos e galinhas no LP Brasil Universo (Som da Gente,

1985), zumbidos de abelhas e zurros de jumentos no LP8 Só não toca quem não quer

(Som da Gente, 1987), canto de pássaros diversos no CD Festa dos Deuses (Polygram,

1993), além de outros. Os limites que Hermeto estabeleceu para si mesmo ao recusar

alguns dos novos recursos tecnológicos não parecem ter afetado sua capacidade de

invenção e experimentação.

Mas como exatamente Hermeto concebeu e consolidou em sua linguagem as

características por nós acima mencionadas de sua música experimental?

1.2 A surpreendente versão "nativa"

Inicialmente, para explicar as características "anfíbias" de Hermeto, supomos ter

havido um contato íntimo entre este compositor e a música erudita. No entanto, já em

8 A partir deste LP de 1985, os discos gravados por Hermeto e Grupo na gravadora Som Da Gente
até Festa dos deuses (Polygram, 1992), passaram a ser lançados simultaneamente em CD.
7

nossa primeira entrevista com um dos músicos de sua banda no período 1981-1993, o

pianista Jovino Santos Neto, esta hipótese foi contestada com veemência:

Não, não, não, não, quer dizer, o que eu sei dessa estória (do contato de Hermeto com a
música erudita contemporânea) é que quando ele tocava na Rádio Jornal do Comércio em Recife,
tinha um pianista que tocava muito bonito música clássica, e ele ficava olhando o cara ensaiar (...)
Quer dizer, uma análise estrutural da música contemporânea ele nunca teve (...) eu sei que quando ele
esteve com o Edu Lobo lá em Los Angeles, o Edu ficava mostrando umas partituras do Stravinsky
para ele, e ele fala sempre: - Ah, eu não tava muito interessado nisso não. (JOVINO, 1997)9

A revelação de Jovino Santos era surpreendente. Imaginávamos o contato de

Hermeto com a música erudita como um fato certo, lógico, que a nós bastaria localizar

em termos de data, pessoas envolvidas, professores, escolas, etc. Estávamos enganados.

Jovino nos sugeriu que antes procurássemos os embriões da concepção de Hermeto em

sua infância em Lagoa da Canoa, município de Arapiraca, no distante sertão de Alagoas.

É possível que, com a capacidade de percepção e retensão auditiva aguçadas de

Hermeto, estes breves contatos com músicas eruditas contemporâneas tenham sido

suficientes para o músico incorporá-las a seu repertório sonoro. Contudo nossa hipótese

inicial, vinculando a linguagem experimental de Hermeto a um presumível contato com a

música erudita, se tornara, com o depoimento de Jovino, uma possibilidade pouco

consistente. Vejamos então, porque Jovino sublinha a importância de retornarmos à

infância do compositor para entendermos sua concepção musical.

Segundo Jovino, a linguagem harmônica de Hermeto não se resume, mas se

baseia quase totalmente, em estruturas triádicas superpostas de maneira não funcional.

Jovino levanta a possibilidade deste procedimento harmônico ter se originado da sanfona

9 Em entrevista posterior, realizada em 06/03/1999, perguntamos a Hermeto sobre esta


experiência com a música de Stravinsky e ele nos falou sobre ela com interesse. A pergunta nos parecia
importante porque, apesar de Jovino ter dito que Hermeto manifestou pouco interesse pela música de
Stravinsky, nos chamava a atenção a semelhança entre alguns acordes presentes na música de Hermeto e na
do compositor russo. Apesar de ter ouvido Stravinsky uma única vez, Hermeto demonstrou ter entendido
8

de oito baixos (também chamada no nordeste de pé-de-bode), que foi o primeiro

instrumento do compositor alagoano depois das flautas de galho de mamona e dos

pedaços de ferro percutido. A pé-de-bode possue dois sistemas de botões. O primeiro

sistema produz notas e serve para o instrumentista executar melodias. O segundo sistema

de botões, produz acordes maiores, menores e dominantes, que servem para o

acompanhamento. Por não ser cromática, a sanfona de oito baixos não possui todos os

tons, sendo por isso um instrumento bastante limitado. Jovino nos relata que, na infância

de Hermeto, este ia para o "monturo" (o ferro-velho) de seu avô ferreiro, e, batendo nos

diferentes pedaços de ferro procurava suas notas fundamentais na sanfona, bem como os

harmônicos que estas produziam.

Então ele pegava aqueles pedaços de ferro e batia neles, fazia (imita o som do ferro), e
buscava os harmônicos daqueles pedaços de ferro na sanfoninha, que notas são aquelas, porque um
sino, um pedaço de ferro quando bate tem várias notas, dá a principal, a fundamental e toda uma série
harmônica que dependendo das características do ferro vão ser totalmente atonais ou não. (JOVINO,
1997)

É necessário que façamos um breve parêntesis para esclarecer alguns

problemas referentes à terminologia acústica.

Um corpo sonoro ao vibrar, produz não apenas uma nota, mas uma série de outros

sons derivados dela, denominados harmônicos e parciais. A nota que ouvimos é, por isso,

apenas a freqüência fundamental, de outras notas (os harmônicos ou parciais), mais

agudas e geralmente com menos amplitude (volume) que a freqüência fundamental.

Harmônicos e parciais são ambos componentes senoidais produzidos por uma

freqüência qualquer. Distinguimos um termo do outro a partir do tipo de espectro sonoro

que integram. Espectro por sua vez, é o nome dado ao conjunto dos componentes

sonoros, constituído como já dissemos, da freqüência fundamental e seus harmônicos ou

bem a maneira como Stravinsky trabalhava superpondo tonalidades e, mesmo admitindo algumas
semelhanças harmônicas, não reconheceu influência alguma do último em sua linguagem.
9

parciais. Usaremos o termo 'harmônicos' em se tratando dos sons com o espectro de

mesmo nome - espectro harmônico - e 'parciais' em relação aos sons de espectro

inarmônico.

Assim sendo, podemos compreender o som como um continuum trifásico: os sons

senoidais; aqueles com espectro harmônico; e os com espectro inarmônico.10

As senóides são sons que não são harmônicos nem inarmônicos, pois suas ondas

sonoras são desprovidas de harmônicos ou parciais. Por isso também, as senóides são

chamadas de som puro. No entanto, tão logo esta onda pura é transformada em vibração

atmosférica, distorções acrescentam-se a ela, provenientes do aparelho difusor, da

reflexão do local de escuta e do próprio órgão auditivo. Ou seja, a simples propagação

atmosférica e a recepção auditiva modifica a "pureza senoidal", o que a torna de certa

forma, uma abstração acústica.11 Por serem sons absolutamente definidos em relação à

altura, as senóides estão numa ponta do continuum sonoro, que tem na outra extremidade,

o ruído branco, o qual explicaremos mais à frente.

Por causa da ênfase concedida ao parâmetro altura no sistema tonal e a

conseqüente necessidade de temperamento intervalar, a maioria dos instrumentos

musicais no Ocidente, com exceção somente de alguns dos instrumentos de percussão,

têm espectro harmônico. Neste tipo de espectro, os harmônicos obedecem a uma relação

de proporcionalidade, determinada pela multiplicação por números inteiros que operam

sobre a freqüência fundamental. Por isso nos sons harmônicos, ouvimos a fundamental

claramente e com altura bem definida. Os harmônicos fundem-se nela, apenas

modificando sua cor, seu timbre. O timbre de um som dependerá do material que

10 De acordo com a terminologia proposta por Dennis Smalley em 'Spectro-morphology and


Structuring Process', The Language of eletroacustic music, Simon Emmerson (editor). London: Macmillan
Press, 1986, ps. 69 - 93. Aprofundamos as considerações acústicas e psico-acústicas no cap. IV da presente
dissertação.
10

constitui sua fonte emissora e das formas de ataque, além da relação entre seus

componentes espectrais.

Já nos sons inarmônicos como os produzidos por sinos, pedaços de ferro e objetos

metálicos, os parciais que integram seu espectro não estão numa relação de números

inteiros entre si, tal como nos sons harmônicos. Na multiplicação que os parciais operam

sobre a fundamental aparecem também números fracionários e, por isso, o espectro

inarmônico é formado de freqüências diferentes do espectro harmônico. O efeito

auditivo, no que diz respeito à clareza absoluta de identificação da freqüência

fundamental, não é mais possível, pois nos sons inarmônicos, os parciais não se fundem à

freqüência fundamental como nos sons harmônicos.

Se o fracionamento na multiplicação dos parciais sobre a fundamental for

incrementado teremos o que se entende na acústica por ruído. Nos ruídos, os parciais

inarmônicos estão dispostos tão irregularmente, que a identificação de uma única altura

(como ocorre nos espectros harmônicos), ou mesmo a percepção desta altura combinada

a alguns de seus parciais (tal como ocorre nos espectros inarmônicos de sinos, ferros e

objetos metálicos), se torna impossível. Os ruídos por sua vez, são de diferentes tipos. A

noção de cor nos ruídos está ligada às regiões freqüenciais neles presentes. Um maior

âmbito freqüencial, produz o ruído branco, que, ao ser filtrado em bandas de freqüência

mais estreitas, torna-se ruído colorido.12

Tentando reproduzir nas tríades e notas isoladas da sanfona de oito baixos, as

sonoridades inarmônicas dos ferros, Hermeto teria assim iniciado, segundo Jovino, sua

linguagem harmônica. Este "idioma" prematuramente experimental, não só combinava

11 Ver Flô Menezes (org.), Música Eletroacústica: história e estética. São Paulo: Edusp, 1996.
12 Idem, ps. 240-241.
11

notas e acordes de uma maneira heterodoxa, como aproximava os sons harmônicos (da

sanfona) e os inarmônicos (dos ferros, dos bichos e da natureza).

A partir destas experiências ocorridas na infância de Hermeto, Jovino crê que o

músico desenvolveu e consolidou uma linguagem harmônica parcialmente baseada em

tríades, as quais ele superpõe umas às outras, gerando agrupamentos verticais de maior

ou menor complexidade e tensão intervalar.

Nesse processo, você tem uma elasticidade dos acordes, que você pode pegar um acorde
absolutamente careta, normal, e você [imita o som de algo rasgando] abre ele (...) Você pode alongar
este acorde até ele ficar absolutamente atonal, e voltar. (JOVINO, 1997)

A superposição de estruturas triádicas não é exatamente uma invenção original.

Tanto a música erudita, através da politonalidade, como o jazz, utilizam-se deste

procedimento. Se concordamos com Jovino, porém, o caminho que Hermeto seguiu até

sua descoberta, bem como o uso que dela fez e faz, são parte unicamente de sua trajetória

pessoal. No jazz, a utilização desta ferramenta harmônica encontra muitos limites

relacionados às tensões disponíveis nas escalas de acordes. As notas proibidas, assim

consideradas por produzirem dissonâncias que descaracterizariam melodia e harmonia,

acabam por reduzir este idioma consideravelmente, como podemos verificar através da

citação abaixo extraída do método de arranjo popular de Ian Guest:

As escalas de acorde (utilizadas nas tríades) são deduzidas da análise harmônica e das notas
melódicas. (...) É recomendado que o trecho escolhido para TES (tríades de estrutura superior) seja o
clímax do arranjo, e só por tempo limitado. É próprio a momentos de grande riqueza harmônica e
melodia não muito ativa. (GUEST, 1999 : 35/36)13
Já a música erudita fez dela um uso mais amplo desde Debussy e Stravinsky e

sua utilização foi decisiva para a emancipação posterior da dissonância. O famoso acorde

13 Ian Guest está se referindo a uma técnica específica de arranjo, TES, na qual cada nota da
melodia é harmonizada em bloco com tríades. Estas tríades são denominadas 'tríades de estrutura superior'
porque são tocadas pelo naipe de cordas, madeiras ou metais, acima da base harmônica, tocada geralmente
pelo piano. O importante é observar que, de acordo com Ian, as TES são deduzidas das escalas de acorde
12

de Petrushka é a superposição de dois acordes perfeitos maiores, Dó maior e Fá

sustenido maior, e nos "Augúrios Primaveris" da Sagração da Primavera, o acorde de Mi

maior aparece sobreposto ao de Mi bemol maior acrescido de sétima. (Barraud, 1968:

51/53) Se Stravinsky serve-se desta técnica em trechos com vários compassos de

duração, Hermeto entretanto não o faz. Em Hermeto, esta técnica gera superposições

constantes quase tempo a tempo, o que bastaria para defini-la não como politonal, mas

antes, poliacordal. Os acordes individuais destas sobreposições variam tão

freqüentemente que não chegam a estabelecer centros tonais nem politonais. Como

explica Persichetti:

A poliharmonia é raramente politonal. A politonalidade está presente somente quando os


acordes individuais que integram a estrutura se aderem a centros tonais separados. Os poliacordes não
politonais são consideravelmente mais flexíveis e versáteis; as áreas harmônicas dos acordes
individuais que os integram variam muito freqüentemente. (PERSICHETTI, 1985 : 138)14

Jovino lançava assim a possibilidade de Hermeto ter construído determinados

elementos musicais de sua linguagem - comuns à música erudita contemporânea - de

maneira autônoma, independentemente de um contato real com escolas e professores

eruditos.

O auto-didatismo de Hermeto, no aprendizado da música, é de fato um dado

concreto, como poderemos constatar ao longo desta dissertação. Este auto-didatismo

encontra sua justificativa em grande parte na deficiência visual determinada pelo

albinismo de Hermeto, que ao lhe impedir desde a infância de estudar leitura musical, ao

mesmo tempo que o afastou dos professores e escolas, o fez, por outro lado, desenvolver

uma concepção e linguagem próprias.

da harmonia base, não podendo conter notas estranhas a esta. Esta orientação estabele os limites de seu uso
no jazz e na música popular.
14 Salvo quando mencionado, todas as traduções são nossas.
13

De qualquer forma, é necessário ponderar que a "virgindade" das primeiras

experiências musicais ocorridas na infância de Hermeto e sua inegável importância para

entendermos a futura concepção musical deste compositor, devem ter sido consolidadas e

ampliadas ao longo do tempo, durante a trajetória profissional de Hermeto, depois de

Lagoa da Canoa. Por isso, faremos no capítulo III, uma pequena biografia de Hermeto (e

dos integrantes do Grupo que o acompanhou de 1981 a 1993), a fim de perceber como

sua concepção musical se constituiu ao longo das fases de sua carreira, até à gravação do

repertório que analisaremos em seguida.

Antes de fazê-lo, porém, iniciemos a discussão bibliográfica dos aspectos que nos

interessam em relação a Hermeto, com o intuito de enriquecer e ampliar os pontos

levantados inicialmente. Voltaremos à entrevista com Jovino durante a discussão que se

segue.

Nesta, comentamos as dissertações de mestrado: Música de Invenção, defendida

na UNI-RIO em 1998 por Pretextato Taborda, e Um estudo da improvisação na música

de Hermeto Paschoal: transcrições e solos improvisados, defendida em 1996 na

UNICAMP por José Carlos Prandini. Dialogamos simultaneamente com diversas

reportagens e matérias feitas com Hermeto, para finalmente voltarmos à entrevista feita

com Jovino, a fim de ampliar a discussão.

Os três capítulos seguintes constituem-se na verdade de um grande e único

capítulo analítico, que tenta perspectivizar o objeto de maneiras complementares:

No capítulo III, abordamos nosso objeto com base em informacões collhidas

através de entrevistas realizadas por nós e apresentamos uma rápida biografia de

Hermeto15 e Grupo até o início da formação estudada (1981). Descrevemos o processo de

15 Com o auxílio de algumas fontes bibliográficas que citaremos oportunamente.


14

criação das músicas selecionadas para análise e verificamos a relação entre escrita e

improvisação em Hermeto Pascoal.

O capítulo IV introduz o capítulo seguinte. Neste capítulo consideramos mais

aprofundadamente algumas noções acústicas que utilizaremos na análise. O ruído é

tratado por nós como uma metáfora social, além de um fenômeno acústico. Analisamos

brevemente a peça "Ferragens", para exemplificar como Hermeto dialoga com os

espectros sonoros harmônicos e inarmônicos em sua linguagem musical.

No capítulo V, as informações obtidas nas entrevistas relativas ao processo de

criação de cada uma das músicas escolhidas para análise, são comparadas com suas

partituras, transcrições e gravações. As análises que fazemos visam perceber a estrutura

musical do repertório escolhido por nós (sua forma, instrumentação, linguagem rítmico-

harmônica, etc.), mas sem perder de vista os aspectos biográficos e conceituais

relacionados.

Depois de fazermos entrevistas com o compositor e o grupo, discutirmos a

bibliografia pertinente ao tema presente em dissertações de mestrado, reportagens e

matérias, culminando na análise das partituras e gravações das músicas selecionadas, no

capítulo VI apresentaremos nossas respostas às questões lançadas na introdução.

2 - DISCUSSÃO BIBLIOGRÁFICA
15

Os trabalhos acadêmicos sobre Hermeto Pascoal são escassos e pode-se dizer que

sua extensa obra é um objeto ainda inexplorado pela musicologia.16 Já na imprensa

nacional e internacional, a quantidade de artigos, reportagens e matérias sobre Hermeto é

bem mais numerosa.

No entanto, o interesse sobre o compositor alagoano gradativamente aumenta nos

círculos acadêmicos, fato que pode ser comprovado através de algumas dissertações de

mestrado recentes.

Passemos à discussão desta produção acadêmica recente, dialogando ao mesmo

tempo com jornais e revistas, apresentando trechos de diversas entrevistas feitas com o

compositor.

2.1 De um ponto de vista erudito

Na dissertação de mestrado, Música de Invenção, defendida na UNI-RIO em

1998, Tato Taborda analisa a produção de alguns artistas brasileiros, a fim de ilustrar sua

hipótese em relação à formação de um território híbrido (o território que Tato denomina

de música de invenção), constituído principalmente a partir do contato entre o universo

erudito e o popular.

Tato relaciona alguns aspectos da concepção e linguagem do compositor Hermeto

Pascoal ao ruidismo futurista de Luigi Russolo e à música concreta de Pierre Schaeffer. O

pesquisador aponta várias características comuns em Hermeto e Schaeffer: a pesquisa

16 O volume exato é uma incógnita. O pianista e compositor Jovino Santos Neto possui cerca de
1200 músicas compostas por Hermeto. Porém desde 1993, quando o pianista saiu da banda, Hermeto já
compôs mais quantas músicas? Em 1997 por exemplo, Hermeto realizou seu projeto de compor uma
música por dia para homenagear todos os aniversariantes do planeta. Mencionamos este projeto não pelo
seu lado pitoresco, mas apenas para ilustrar nossa impossibilidade em avaliar o volume real da produção do
músico alagoano.
16

feita com diversos objetos sonoros cotidianos, a abertura a novas sonoridades, a atração

pelos ruídos, etc.

A comparação feita pelo pesquisador, entre Hermeto e Schaeffer serve

eficazmente para realçar alguns traços da concepção do músico alagoano.

Uma semelhança importante entre a "Musique Concrète" de Schaeffer e Hermeto,

corretamente observada por Taborda, é a recusa do som sintetizado. De fato, no período

em que se baseia nosso estudo (1981-1993), Hermeto restringirá o elétrico em sua banda

ao piano e ao baixo. Um sampler com sons pré-gravados de porcos, galinhas, cachorros e

outros bichos foi testado pelo músico alagoano, mas sem muito êxito.

Estou experimentando o instrumento (o sampler), mas ele não está aprovando. Só funciona
como gravador de sons de animais, já gravei o bode, o carneiro, o boi. Mas, na hora de gravar um
som mais agudo, o sampler reproduz aquele som de sintetizador horrível, que não sintetiza coisa
nenhuma. (...) Eu não chamo isso de sampler, mas de gravador de teclados. Eu até usei o gravador de
teclados em algumas faixas do disco que estou fazendo, mas não ponho o nome nos créditos porque
ele não faz nada, só grava o som. Se é um instrumento é pra eu usá-lo, e não para eu ser usado por
ele. Não vou fazer propaganda da fábrica. (HERMETO, O Globo: 19/05/98)

Em outro trecho de sua dissertação e a partir de uma citação de Schaeffer, Tato

faz um paralelelo interessante entre o compositor francês e Hermeto:

Março - Voltando a Paris, eu começo a colecionar objetos. Vou ao Serviço de Sonoplastia da


Radio Francesa e encontro claquetes, cascas de côco, bombas para encher pneus de bicicleta. Eu
organizo uma escala de bombas. (...) Saio de lá com a alegria de uma criança, com os braços cheios
de bugigangas .

4 de Abril - Brusca iluminação: fundir um elemento de som ao ruído ou seja: associar a


elementos de percussão o elemento melódico. Daí, a idéia de madeiras cortadas em diferentes
comprimentos e de tubos mais ou menos afinados em uma escala. Primeiras tentativas. (Schaeffer in
TABORDA, 1998)

O ludismo de Schaeffer à cata de objetos sonoros ("saio de lá com com a alegria

de uma criança, com o braço cheio de bugigangas "), de fato pode ser relacionado a

Hermeto, comprovado ladrão dos brinquedos sonoros de seus netos e das panelas e bacias

da cozinha de Dona Ilza, sua mulher.


17

O pianista Jovino já havia sugerido, como mencionado no capítulo I, que as raízes

da concepção musical de Hermeto devem inicialmente ser procuradas em sua infância, na

experiência inarmônica com os sons dos ferros do avô ferreiro, nas flautas feitas de galho

de mamona, nos sons dos pássaros e dos bichos, na música nordestina de seu pai

sanfoneiro, etc.

Como bem assinala Tato, o experimentalismo em Hermeto está bastante

relacionado à espontaneidade e ao prazer. A nosso ver, isso se deve ao fato da exploração

sonora de Hermeto estar associada fortemente ao brincar. A música, desde Lagoa da

Canoa, sempre foi para Hermeto seu maior brinquedo. Privado das brincadeiras sobre o

sol com as outras crianças, Hermeto parece ter canalizado seu ludismo totalmente para as

brincadeiras sonoras . Ainda hoje, a busca de Hermeto pelo inusitado é alegre e não tem a

seriedade de algumas correntes contemporâneas, que racionalizam muito o experimento.

No verso da capa do LP Cérebro Magnético (WEA Brasil, 1980), que é um

desenho feito por Hermeto, o compositor escreve:

(...) Após o término das gravações deste Lp, todas as coisas ficaram em minha mente, som,
cores, luzes, notas musicais, caroços de milho, couro de tambor, chifre de boi, pedras, água, vozes,
teclas, cordas, botões, sustenidos e fisionomias (...) Então resolvi desenhar o que fotografei da minha
mente, que é a capa deste LP. (HERMETO)

Misturando figuras que sugerem trenzinhos coloridos, peixes, pipas e bandeiras, o

desenho de Hermeto reúne brincadeira e fantasia. A posição destes e outros elementos

flutuando livremente no espaço, o uso de cores vivas e luminosas parecem sugerir a

leveza, o movimento e a graça de um desenho infantil. Neste desenho aparecem notas


18

escritas num sistema de sete linhas cuja ausência de clave impede que precisemos suas

alturas. As notas estão dispostas sempre em intervalos de 3ª. 17

A paisagem mental pintada por Hermeto tentando representar os sons e imagens

do LP recém-gravado, sinaliza também para outro importante aspecto de sua concepção:

a relação entre o som e a escrita.

A atitude de Hermeto para com a escrita é mencionada por Tato como semelhante

à praticada por Schaeffer:

Na composição musical tradicional, parte-se de uma configuração mental do som,


representado posteriormente em um suporte gráfico através de uma partitura ou diagrama, para
finalmente se materializar em som através do processo de execução. Já a Música Concreta faz o
percurso oposto, partindo de uma materialidade sonora dita "concreta", coletada diretamente da
realidade através de microfones e posteriormente manipulada, através de um processo nitidamente
experimental, até finalmente chegar à sua forma sonora definitiva, sem o auxílio imprescindível da
representação gráfica. O discurso sonoro
de Hermeto também é um discurso musical dos objetos, destacados de suas atribuições originais e
cotidianas através da mesma ferramenta que, no conjunto de valores gerados por Schaeffer também
ocupa posição privilegiada: L'oreille . Esses objetos são selecionados e individuados, através de
características únicas e insubstituíveis, que tornam aquela panela específica, aquela máquina de
costura, aquele par de tamancos, aquele trem elétrico ou aquele determinado porco um objeto sonoro
absolutamente único. (TABORDA, 1998 : 105).

Taborda está correto quando compara o processo schaefferiano de coleta e criação

com objetos sonoros à pesquisa e uso que Hermeto faz de determinados sons. É

interessante verificar no entanto, que motivações teve a intenção de escuta de Hermeto

para se dirigir tão espontaneamente ao não-convencional, pois não encontramos nenhuma

evidência de que tenha havido um contato efetivo seu com a música de Schaeffer.

Verificamos através de diversas entrevistas com o compositor e o grupo, que em

virtude da já mencionada deficiência visual causada pelo albinismo e da conseqüente

recusa (ocorrida desde sua infância em Lagoa da Canoa) dos professores em ensinar

música a um garoto que só podia ler com bastante dificuldade, Hermeto, ao invés de

desistir da música, tomou a situação desfavorável como estímulo e auto-didataticamente

17 Sobre o uso melódico-harmônico das tríades na música de Hermeto, ver cap. IV e V.


19

tornou-se um multi-instrumentista virtuose, além de compositor e arranjador. Dessa

maneira, não só Hermeto provaria para aqueles que não acreditaram na sua capacidade

que ele podia tocar tão bem ou melhor que outro qualquer, como também passaria a

questionar desde então, as fronteiras daquela música escrita, cujas portas lhe foram

fechadas.

Em entrevista recente, muitos anos depois de ser recusado por professores que

consideravam aptos para a música apenas aqueles que podiam lê-la, Hermeto ainda

parece estar se dirigindo a músicos com idéias semelhantes, quando diz: "Música não é

teoria. Teoria é uma escrita. Se você não tiver música na sua cabeça, não consegue

escrever música, música não é para entender, é para sentir. Como é que você vai entender

o vento?" (Backstage, 1998).

Esse incorformismo quanto à convenção e ao padrão, faz com que Hermeto

busque os sons e timbres mais diversos, explorando os instrumentos convencionais de

forma não convencional (por exemplo tocando o sax barítono junto da esteira da caixa ou

a flauta debaixo d'água) ou o inverso (afinando acondicionadores plásticos de alimentos,

tocando berrante com bocal de bombardino), sem esquecer dos sons de animais.

Recentemente, ele passou a usar a fala humana como matéria-prima musical,

considerando-a uma melodia a ser devidamente harmonizada e arranjada pelo

compositor. Este tipo de composição foi denominado por Hermeto de "música da aura",

sendo que uma das primeiras tentativas feitas por Hermeto, a música "Tiruliluli" do LP

Lagoa da Canoa, Município de Arapiraca (Som da Gente, 1984), Tato analisa em sua

dissertação. A simplicidade aparente do procedimento que caracteriza a "música da

aura", no entanto, revela muito sobre a concepção de Hermeto. Com a "música da aura",

ele demonstra onde chegaram os limites sonoros de seu território estético: ao falarmos

cantamos e, por isso, todos nós fazemos música o tempo todo.


20

O estudo de Tato resulta bastante proveitoso, pois através de paralelos com a

música (pré) concreta de Pierre Schaeffer e o ruidismo de Luigi Russolo, o pesquisador

faz um perfil estético de Hermeto Pascoal, pondo em relevo importantes traços do

compositor. Antes de aprofundarmos nossas conclusões sobre a dissertação do

pesquisador carioca, passemos à dissertação seguinte.

2.2 Uma perspectiva jazzística

A dissertação de mestrado, Um estudo da improvisação na música de Hermeto

Paschoal: transcrição de solos improvisados, defendida na Unicamp em 1996 por José

Carlos Prandini, analisa alguns solos improvisados por Hermeto. A metodologia analítica

utilizada pelo pesquisador pretende não apenas transcrever estes solos ou considerá-los

somente a partir da relação harmonia-melodia (solo), como também analisá-los de modo

a verificar a "construção e estruturação de elementos internos, motivos ou unidades ainda

menores de texto" (Prandini, 1996: 18). Ou seja, o pesquisador busca tratar do improviso

não se contentando em meramente transcrevê-lo, ou ainda em analisá-lo utilizando

somente ferramentas do tipo escalas de acorde, (vide harmonia funcional), mas antes

considerando-o como uma composição com motivos específicos, variações, repetições

modificadas, desenvolvimentos, etc.

A proposta é sem dúvida interessante, apresentando a noção de improvisação

como uma composição não escrita. Embora não queiramos criticar tal noção

detidamente, mas antes ampliar seus limites, visando a melhor compreender o significado

do conceito improvisação em relação a Hermeto Pascoal, ainda assim, poderíamos a

questionar, perguntando até que ponto a improvisação, tal como é entendida por Prandini,

pode e deve ser considerada uma estrutura semelhante ou igual à estrutura musical

elaborada através da escrita. A nosso ver, a escrita é um medium que afeta a construção
21

de uma obra, pois possibilita diversos tipos de manipulação do material musical, (como

variações, retrogradações, condensações, seqüenciamentos, repetições, etc.) os quais são

menos facilmente utilizados quando o compositor-intérprete depende unicamente de sua

memória, tal como ocorre durante a improvisação.

No texto, Escuta e eletroacústica: composição e análise,18 Carole Gubernikoff

parece concordar com nossa linha de raciocínio, ao tratar do papel da escrita na música

ocidental:

A civilização que se autodenominou ocidental, a partir de um certo momento, na Idade


Média, acreditou que fosse necessário encontrar uma forma de grafar a memória sonora, por natureza
evanescente. (...) Não apenas foi necessário discretizar um contínuo, mas também definir medidas e
distâncias, transformar um sensível sonoro, sem imagem e sem conceito, numa representação gráfica
que introduziu um novo percurso no pensamento musical. Em vez de passar do ouvido para a boca
através da memória, que poderíamos chamar de vocalidade, a intermediação dos olhos e das mãos
inventou novas dimensões, curiosidades, jogos intelectuais. (...) A própria idéia de forma musical ,
certamente baseada na reiteração de elementos auditivos, no reconhecimento de configurações através
da memória, mas também na manipulação dos elementos musicais observados através da notação,
possibilitou a idéia de desenvolvimento, [...] e o aparecimento das grandes formas. (os grifos em
itálico são nossos) (GUBERNIKOFF, 1997 : 29)

Por isso acreditamos ser apenas parcialmente proveitosa uma análise que

considerará um tipo de discurso musical - oral - somente com as mesmas ferramentas

utilizadas na avaliação da notação. A nosso ver, a eficácia desse tipo de análise

dependerá do músico - ou seja, de como as improvisações são desenvolvidas por cada

intérprete; bem como do tempo de duração da improvisação - que afetará por sua vez, a

capacidade de memorização do intérprete e a utilização de elementos musicais

recorrentes; o espaço onde foi feito o solo improvisado e a participação do público (com

gritos, assobios, palmas, etc.) - que pode sugerir para o músico materiais inteiramente

imprevistos de início e etc. Porém esta não é a questão que nos interessa no momento.

18 Em Debates, Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Música, Iº número. Rio de Janeiro:


Centro de Letras e Artes UNI-RIO, 1997.
22

Vejamos como Prandini inicialmente distingue a improvisação na música popular

moderna (leia-se, no jazz), em relação à praticada no período barroco, clássico e

romântico:

Nas consultas bibliográficas ao verbete improvisação encontramos referências ao assunto


relacionadas aos períodos barroco, clássico e romântico. Tais referências tratam o termo como um
conjunto de técnicas de construção musical voltado basicamente para o que se convencionou chamar
de ornamentação. Nesse tipo de improvisação, a criação do intérprete é bastante circunscrita à
modificação (variação) de um texto melódico conhecido. Por outro lado, no panorama da música
popular improvisada moderna, observamos que esse enfoque é apenas uma das técnicas possíveis na
criação de um solo improvisado, sendo utilizado raramente ou em pequenos trechos no decorrer da
obra. (...) Muito mais frequente é a criação de melodias inteiramente novas, através da invenção de
toda uma coleção de novos motivos, variações e desenvolvimentos. Esse conjunto de procedimentos
[praticados atualmente na música popular] vai alguns passos além do procedimento anterior.
(PRANDINI, 1996 : 10/13)

Assim, tentando tratar a improvisação de Hermeto como "a criação de uma

melodia interamente nova", José Carlos transcreve e analisa solos de quatro músicas

gravadas por Hermeto e Grupo no período 1985 - 1992: "Ilha das gaivotas", "O tocador

quer beber", "Ginga carioca" e "Surpresa".

Em "Ilha das gaivotas", Prandini transcreve o solo analisando-o como uma

composição e da maneira já descrita por nós. Nele identifica seis motivos, determinadas

repetições e desenvolvimentos, nos quais não nos detemos, pois a análise harmônica que

o pesquisador faz será mais útil para entendermos os limites de sua abordagem.

Prandini se restringe em sua análise aos modelos da harmonia funcional e seus

cruzamentos com a concepção de melodia como um desdobramento das bases

harmônicas, perspectiva adotada pelas escolas americanas de jazz.

Por exemplo, o motivo ostinato que serve como base harmônica para o solo em

"Ilha das gaivotas", é equivocadamente analisado pelo pesquisador como: "um único

acorde, com função tônica: Fá sustenido menor com 7ª, 9ª e 11ª" (Prandini, 1996: 31).

Ex. 1: "Ilha das Gaivotas" (harmonia para o solo)


23

Limitado pelas fórmulas harmônicas tradicionais, Prandini percebe apenas uma

sugestão de cadência à dominante no fraseado do baixo (comp. 4), mas na verdade a

situação harmônica sugere uma interpretação adicional. O ostinato permanece inalterado

na mão direita com as notas la2, si2, mi 3, sol#3, mas o baixo caminha cromática e

dissonantemente 'entortando' o acorde da mão direita.19 Além do acorde mencionado por

Prandini, temos assim um outro no segundo compasso, usado por Hermeto também em

outras músicas como "Cores", "Briguinha de músicos malucos no coreto" e "Ferragens".

Em "Ilha das gaivotas", o acorde está anotado no pentagrama, mas nas outras peças

aparece cifrado como A2 5 7+ . 20


F6
Ex. 2: "Ilha das gaivotas" (2º compasso)

Este tipo de cifragem utilizado por Hermeto, com dois acordes superpostos,

ocorre em situações harmônicas não convencionais e tem a vantagem de indicar um

posicionamento exato das notas na cifra.

A2 5 7+ , uma estrutura interválica idiomática em Hermeto Pascoal, consiste


F6

19 No vocabulário utilizado por músicos populares, 'entortar' significa introduzir notas estranhas a
um determinado contexto harmônico ou melódico.
20 A estrutura interválica deste acorde é mantida nas outras peças através de transposições. Cf.
capítulo V.
24

nas notas Fá e Ré no grave (mão esquerda do piano) e lá, si, mi, e sol# na mão

direita. Poderíamos pensar num poliacorde, Ré menor (com baixo em Fá) + Mi maior, ou

ainda num único acorde, Fá maior com 6ª, 7ª maior, 9ª e 11ª aumentadas.

Como podemos constatar, Prandini não considerou a ambiguidade da harmonia

em ostinato, do riff21 criado por Hermeto:

(...) Restrita a apenas um acorde (...), a peça oferece possibilidades limitadas de construção
melódica (...), e fica evidente, ao longo de toda a peça (o solo improvisado), a intenção francamente
diatônica e horizontal, da composição, pelo uso constante das três escalas menores de Fa#m. (O grifo
e a explicação em parêntesis são nossos). (PRANDINI, 1996 : 31)

O pesquisador não identifica o constante jogo de tensão, dissonância e

relaxamento proporcionado pela relação das três escalas menores (natural, harmônica e

melódica) de Fa#m usadas no solo, seguidamente harmonizadas por F#m 7 9 11 e F/6 +

A2 5 7M no acompanhamento. Ao nosso ver, todo o solo deveria ser analisado a partir

desta relação "luz-sombra", "claro-escuro", sugerida pela harmonia, que Prandini

desconsiderou. A concepção dita jazzística de Hermeto é complicada pelo fato de ele

"caminhar" por uma base harmônica movediça, que ultrapassa os limites do jazz

convencional.

Em "O tocador quer beber", o pesquisador paulista faz uma boa análise do solo de

Hermeto na sanfona, apontando a unidade de seus "motivos", as características modais de

melodia e harmonia, etc. Porém a análise do solo de Hermeto será interrompida

justamente no melhor da festa, quando o músico resolve tornar dissonante a harmonia

simples (IV7 - I) de seu forró, ao mesmo tempo que fala: "Isso é um sanfoneiro metido à

21 'Riff' é um termo do rock e jazz adotado pela música popular, que denomina um determinado
desenho rítmico-melódico curto, executado geralmente por bateria e baixo ou ainda por bateria, baixo e
guitarra elétrica.
25

besta, querendo tocar moderno, olha a mão esquerda dele, sanfoneiro muito besta"

(Hermeto, 1985)22.

Nesse ponto, Prandini infelizmente interrompe sua análise, mas sem o solo ter

terminado. Hermeto continuará improvisando acompanhado por diversos galos e

galinhas, segundo ele, "afinados com os instrumentos".23 Inicialmente, manterá a mesma

escala mixolídia em cima da nova harmonia e depois 'entortará' o próprio solo,

introduzindo glissandos, resfolegados da sanfona em clusters, rapídissimos desenhos

rítmico-melódicos cromáticos e em 4as., etc. O forró virara free jazz, e o "sanfoneiro

metido a besta" terminará seu solo em duo atonal com as galinhas e galos.

Apesar de Prandini ter analisado satisfatoriamente a maior parte do solo de

Hermeto, ao interromper sua análise justamente quando o solo sai do esquema estilístico

do forró, o pesquisador deixa de observar uma importante característica dos solos, bem

como da concepção de Hermeto: a maneira como elementos da linguagem popular

brasileira e nordestina (modalismo, instrumentação com sonoridade regional),

combinam-se com elementos do jazz (rearmonizações dissonantes) e free jazz

(aleatorismo, atonalismo) americanos. O uso de sons de animais como galos e galinhas

"afinados com os instrumentos", por sua vez constitui, como dissemos no capítulo

anterior, uma assinatura estilística de Hermeto, somando-se aos outros sons de animais já

utilizados pelo compositor alagoano.

É necessário questionar o conceito de improvisação utilizado por Prandini,

estendendo-o para além da capacidade de um intérprete criar novas melodias a partir de

um esquema harmônico pré-estabelecido. E quando não há esquema harmônico pré-

estabelecido (como no caso do forró free jazz)? Ou quando o esquema harmônico é ele

22 LP Brasil Universo, faixa "O tocador quer beber", Som da Gente 1985.
23 Cf. o encarte do cd Brasil Universo.
26

mesmo movediço, constituído de poliacordes (como no caso de "Ilha das Gaivotas")? A

improvisação praticada por Hermeto ultrapassa em ambos os exemplos acima citados, os

limites traçados pelo próprio pesquisador paulista.

A nosso ver, a improvisação em Hermeto deve ser compreendida não apenas no

contexto da interpretação, mas também no nível composicional e estético.24 Pois Hermeto

é um músico que tem, conforme Tato Taborda bem observou, como uma de suas

principais características, a busca sistemática e alegre do inusitado, da surpresa. E essa

característica marcante vai se refletir tanto na sua atuação como intérprete, como

também, na de compositor.

Como dizia aos seus músicos: "é necessário compor e escrever como se fosse

improviso, e tocar improvisado como se fosse escrito" (Jovino, 1997). Mais do que a

capacidade de criar novas melodias a partir de um esquema harmônico x, y ou z, a

improvisação para Hermeto é garantia de organicidade e fluidez musical, e mais do que

um recurso estilístico, tem status existencial.25

2. 3 Conclusão dos trabalhos acima discutidos

Nossa conclusão em relação às duas dissertações de mestrado, em certa medida é

uma só: a concepção e linguagem de Hermeto é realmente desafiadora, porque múltipla.

Questionando ao mesmo tempo os rótulos da indústria cultural e os limites do universo

erudito e popular, Hermeto desafia aqueles que querem estudá-lo, pondo em dúvida sua

própria capacidade de explicar-se e definir-se, (embora na citação abaixo, acabe

parcialmente por fazê-lo):

24 Para maiores aprofundamentos sobre a relação entre improvisação e escrita em Hermeto


Pachoal, ver capítulo seguinte.
25 Idem anterior.
27

Sou um músico versátil e não dá para ninguém me definir. Nem eu mesmo consigo explicar
o trabalho que faço. Porque não faço um só tipo de coisa. (...) Uma apresentação minha é a
possibilidade de encontro com várias músicas, da clássica ao coco, de todos os universos. Nada
premeditado. (HERMETO, Revista Manchete: 1985)

Ao combinar signos de códigos distintos, Hermeto cria uma linguagem que


permanentemente instaura um ruído 26 na comunicação de sua mensagem,

problematizando conseqüentemente o fenômeno de sua interpretação. Vejamos quais os


problemas que a concepção e linguagem de Hermeto Paschoal engendram.

2.3.1 Jazz?

O trabalho de Prandini cumpre o que promete apenas parcialmente, tanto do ponto

de vista da relação solo-harmonia, como no que diz respeito à análise dos solos

improvisados por Hermeto com as mesmas ferramentas usadas para a análise dos motivos

de composições escritas.

Os solos de Hermeto são transcritos do disco pelo pesquisador, para depois serem

analisados seus motivos específicos, desenvolvimentos, a relação entre melodia e

harmonia, etc. Porém, as dificuldades encontradas na análise são muitas. Começam na

análise harmônica de, por exemplo, "Ilha das gaivotas", e continuam nos solos atonais,

free ("O tocador quer beber"), onde a utilidade das escalas de acorde simplesmente deixa

de existir, o que faz com que o pesquisador abandone a análise do solo sem este ter

terminado, ao invés de ampliar suas próprias ferramentas analíticas.

Uma outra observação que podíamos fazer sobre o trabalho de Prandini é sobre a

propriedade do repertório por ele escolhido para análise. Por que não foram escolhidos

para análise solos sobre esquemas harmônicos mais dissonantes ou mesmo atonais (como

26 Ver a noção de ruído em Jacques Attali no capítulo seguinte.


28

por exemplo, o de "Arapuá"), ou ainda solos gravados ao vivo (e não no estúdio)?.27 O

próprio Hermeto já afirmou que preferiu enfatizar o arranjo à improvisação nas gravações

que fez em estúdio no período escolhido pelo pesquisador paulista.28 Sem dúvida, os

solos improvisados por Hermeto ao vivo, são bem diferentes dos gravados em estúdio,

começando pelo (maior) tempo de duração, a maior espontaneidade do próprio Hermeto,

inclusive explorando a voz simultaneamente com o instrumento, solando alternadamente

em instrumentos diferentes, os sons do ambiente e as interferências e reações eventuais

do público influenciando o solo, etc. Estas circunstâncias e características tão peculiares

ao universo popular, ao mesmo tempo que dificultariam, certamente poderiam enriquecer

o estudo de Prandini, ampliando sua abordagem e interpretação.

A impressão final do trabalho do pesquisador paulista é que ele tenta encaixar

Hermeto numa perspectiva semelhante às praticadas por determinadas escolas americanas

de jazz, mas os elementos harmônico-melódicos da linguagem do músico alagoano

resistem a esta perspectiva como a uma camisa de força, sempre parecendo escapar aos

limites por ela impostos.

2.3.2 Música concreta?

A dissertação Música de Invenção, de Tato Taborda, faz um perfil bastante

interessante de Hermeto, sublinhando como já dissemos, traços significativos do músico

alagoano. A dificuldade parece estar no como Hermeto alcançou, através de sua música,

um grau de experimentalismo semelhante ao encontrado na música erudita, sem ter

27 O único disco ao vivo de Hermeto foi gravado no Festival de Jazz de Montreux. Talvez por
Hermeto estar acompanhado de uma outra formação de músicos, parcialmente diferente do período 1981-
1993, Prandini não tenha querido usar os solos gravados neste disco, o que de qualquer forma é uma pena,
porque Hermeto e os músicos apresentam uma performance verdadeiramente histórica e com improvisos
memoráveis. Em Montreux, os músicos Jovino Santos, Itiberê Zwarg e Antônio Santana que integram
também a formação que estudamos (1981-1993), já faziam parte da banda de Hermeto. Ver discografia.
29

dependido de um contato efetivo com correntes eruditas, como a música concreta ou o

ruidismo futurista.

A principal vertente formadora do território da música de invenção, é segundo

Tato, o contato entre músicos populares e eruditos.

A intervenção de músicos eruditos contemporâneos, subsidiando músicos populares com


técnicas e conceitos, é o vetor mais importante na formação desse território fronteiriço, aqui chamado
música de invenção. [TABORDA, 1998 : 119-120]

O quarteto de agentes influenciadores: H.J. Koellreutter, concretistas paulistas,

Hélio Oiticica e Cursos Latino-americanos de Música Contemporânea, é, segundo o

pequisador, a "árvore genealógica" principal da qual descendem vários artistas, dentre os

quais, aqueles que Tato abordará.

Entretanto, Hermeto é o único dos quatro músicos escolhidos - Caetano Veloso

(na Tropicália e em Araçá Azul), Jards Macalé e Chico Mello - que representa uma

exceção neste "vetor mais importante" da música de invenção.

Caetano encontra a música erudita primeiramente através dos Seminários da

Bahia, e das figuras de H. J. Koellreuter e Walter Smetak. Mais tarde, durante a

Tropicália, o contato erudito-popular se dá com o envolvimento de Caetano com os

irmãos Campos, a poesia concreta e músicos de formação erudita como Rogério Duprat,

Damiano Cozzela, etc.

Macalé, paralelamente às influências rockeiras da década de 60, teve "aulas com

os compositores Edino Krieger e Esther Scliar, ex-membros do grupo Música Viva, com

quem aprofundou seus conhecimentos da linguagem musical erudita, especialmente a

contemporânea." (p. 73).

28 O que não era comum no início de sua carreira, quando os discos eram bem mais improvisados.
Ver capítulo III.
30

Em Chico Mello, "a formação erudita vem das aulas de composição com José

Penalva, dos Cursos Latino-americanos de Música Contemporânea e, principalmente, do

extenso contato com H.J.Koellreutter" (p. 90).

Mas e Hermeto, foi aluno de quem? Sua formação autodidata e popular, ao

contrário dos outros músicos acima citados, não parece estar relacionada ao contato com

H. J. Koellreuter, os Cursos Latino-americanos de Música Contemporânea, o grupo

Música Viva, os irmãos Campos e, menos ainda, à Tropicália. Estas pessoas, grupos e

movimentos não tiveram uma influência direta em Hermeto. Por isso, para não fugir

totalmente da principal vertente formadora do território da música de invenção, que é o

contato de músicos eruditos "subsidiando músicos populares com técnicas e conceitos",

Tato relaciona Hermeto a Pierre Schaeffer, especialmente, e a Luigi Russolo.

Ao realizar um encontro interessante, mas não justificado biograficamente, entre a

música de Schaeffer, iniciando as pesquisas que o levariam à música concreta e o (não

menos) brincalhão Hermeto, o trabalho de Tato adquire uma feição hipotética. Mesmo

que o pesquisador carioca ressalte que as comparações feitas por ele "não significarão

estabelecer entre a obra estudada e a de referência uma causalidade direta", e que,

"servirão, principalmente, para exemplificar que a atitude de disponibilidade criada pela

experimentação pode levar criadores de ambientes diferentes a gerar resultados sonoros

muito próximos, ainda que obtidos por métodos e percursos bastante diversos" (p. 7), não

seria mais apropriado se Taborda fosse buscar - como fez em relação a Caetano Veloso,

Jards Macalé e Chico Mello - em algo próximo a Hermeto, as influências para sua

linguagem inventiva ? Como, por exemplo, no universo da música popular, através da

atividade de arranjador, ou ainda no free jazz, que por ser "o segmento mais experimental

do jazz" (p. 17), é incluído pelo próprio Tato dentro do espaço da música de invenção,

como um de seus "territórios análogos" (idem).


31

Contudo, o pesquisador não aposta na relação fundamentada biograficamente,

entre Hermeto e o (free) jazz preferindo relacionar o compositor alagoano à música

concreta. Apesar da escolha de Tato não ter sido gratuita, pois o paralelo entre Schaeffer

e Hermeto resulta proveitoso, por que não incluir neste campo de possibilidades outros

compositores com os quais Hermeto apresenta determinadas semelhanças, como o

iconoclasta Charles Ives (que na infância teve experiências com os sons inarmônicos de

objetos metálicos), Béla Bartok (influenciado pelos ritmos, melodias e harmonias da

música popular húngara), Scriabin (a relação sinestésica entre sons e cores), Stravinsky (a

politonalidade), Messiaen (o uso de sons de animais) e outros?

Porque, se há semelhanças entre Schaeffer e Hermeto, há também diferenças

marcantes, como, por exemplo, a recusa do último em processar eletronicamente os

objetos sonoro-musicais, além de não isolar os ruídos da maneira schaefferiana,

combinando-os aos sons instrumentais.

A concepção musical de Hermeto é tão contemporânea que permite as

aproximações mais diversas. É necessário porém, que sua especificidade seja

corretamente compreendida para que as aproximações feitas não reduzam as

características intrínsecas ao próprio Hermeto, mas revelem, através da comparação, o

que estas características possuem de particular.

As características do free jazz, que serão aprofundadas no capítulo seguinte

foram: a livre incursão na atonalidade; a dissolução do metro, do beat ; a pesquisa com

timbres e ruídos; a improvisação extásica e coletiva; a abolição da forma; etc. Hermeto

assimilou alguns dos procedimentos relacionados acima, senão todos, na década de 70,

quando viajou e morou nos E.U.A. Sem perder no entanto, as referências da música

brasileira e da música nordestina de sua infância especialmente, Hermeto parece ter


32

encontrado no efervescente mundo do jazz americano experimental, um território onde

pôde desenvolver sua própria linguagem.

Mas as conexões coincidentes ou não com técnicas e conceitos experimentais não

se resumiram ao free jazz. Assim como o pioneiro do free jazz, o saxofonista Ornette

Coleman, que já tinha uma maneira e linguagem próprias antes de encontrar-se com o

músico erudito Günter Schuller, o qual passaria a influenciar e ser influenciado por

Coleman, também Hermeto trazia consigo toda uma gama de informações musicais,

assimiladas desde muito antes do contato com o jazz e o free jazz americanos. Foi

justamente esta bagagem musical que Hermeto levou para os E.U.A., que possibilitou um

rico diálogo entre sua música e a de importantíssimos jazzmen americanos. A viagem de

Hermeto para os E.U.A e sua relação com o jazz, serão abordadas de forma mais

completa no capítulo seguinte.

Voltemos então à entrevista com Jovino, brevemente comentada na introdução,

para abordar outros dois aspectos correlacionados à concepção e linguagem de Hermeto

Paschoal e anteriores à sua viagem aos E.U.A. Estaremos assim ampliando a discussão

bibliográfica antes iniciada. O primeiro aspecto é sua abertura para o mundo sonoro não

considerado tradicionalmente musical, e o segundo, sua busca de inspiração musical

através de correspondências sinestésicas com os outros sentidos, mais particularmente, a

visão.

2.4 O sonoro e o musical.

Então tudo isso (o som daquele sino batendo, rede rangendo, passarinho cantando, pessoa
falando ou até um padre rezando), são elementos que inspiraram, inspiram ele (Hermeto) ainda para
criar uma coisa musical, ao contrário de outros músicos que se inspiram para a música pela música.
Então ele sempre compara o fato de um pintor que quer fazer um quadro, e ao invés do cara ir numa
paisagem linda, num bosque, no rio, no mar, e pintar, ele olha para uma outra pintura e pinta o que vê
de uma outra pintura. E na música é a mesma coisa, se tudo que te inspira para a música é a música,
33

então você está muito limitado, porque a música é um retrato de tudo que "rola" no mundo, na vida de
todos nós, e cada um com sua experiência. (JOVINO : 1997)
A música está em todo o lugar, tudo é música. Uma porta que bate, a faca que espalha a
manteiga sobre um biscoito, um golpe na mesa. Isso não significa que basta fazer barulho para fazer
música. Ser músico é saber utilizar estes ruídos. (HERMETO, Jazz Magazine: 1984)

De acordo com Jovino, a atitude de Hermeto extrair do universo sonoro cotidiano

materiais para sua linguagem musical, o leva ao desenvolvimento de uma concepção que,

partindo do popular, confunde-se com a música erudita contemporânea. Segundo Jovino,

o conhecimento que Hermeto tinha desta última era pouco ou nenhum, antes dele chegar

a determinados procedimentos comuns ao universo erudito. É através da abertura

(precoce) para o universo sonoro, que Jovino explica a concepção harmônica poliacordal

e sua notação em cifras.29 Da mesma forma, as pesquisas de ritmos e timbres não-

convencionais inspirados na fala, nos sons de animais e no universo sonoro cotidiano.

Ele sempre fala, e eu já ouvi ele falar várias vezes, que o desenvolvimento harmônico dele
foi formado por essa busca de sons nas coisas que já existiam naturalmente.
(...) Então este tipo de coisa faz com que ritmicamente você seja livre e ele passa a utilizar
inclusive elementos rítmicos da voz humana e de outras coisas como carros, máquinas e bichos.
(JOVINO, 1997)

Como exemplo, Jovino menciona uma música do disco Zabumbê-bum-á (WEA

Brasil, 1978) denominada "Rede", que o pianista havia estudado durante meses, sem se

dar conta que Hermeto havia utilizado os andamentos, ritmos e as notas da rede rangendo

para os instrumentos e, por isso, a música possuía aquele título.

Muitos outros exemplos ainda, podem ser acrescidos a este. Uma narração de uma

partida de futebol pelo locutor Osmar Santos, uma fala do ex-presidente Collor, uma aula

de natação e um poema declamado por Mário Lago, já serviram de inspiração para

Hermeto criar estruturas musicais que tentavam melodizar as diferentes alturas

produzidas pela fala e, ao mesmo tempo, seguir suas durações diferentes e irregulares. E,
34

como já havíamos mencionado, sons de animais como cachorros, galinhas, pássaros,

cigarras, jumentos, abelhas, também são uma constante nas músicas de Hermeto.

Importante é notar que a abertura de Hermeto para o reino dos sons não

considerados tradicionalmente musicais, inclui também uma relação musical com a

imagem. A transposição visão-audição, além de ser um dado esteticamente importante,

sinaliza ainda para interessantes possibilidades sinestésicas, que analisaremos a seguir.

2.5 Sinestesia

Hermeto, apesar de ter a visão muito prejudicada pelo albinismo, se expressa

freqüentemente em termos visuais quando fala de sua música, e diz se inspirar, para o

fazer musical, não só a partir da música, mas também, das imagens:

Sou um pintor sem preferência por uma cor, como o Van Gogh gostava do amarelo. (...)
Eu não consigo dizer uma cor só, quando digo que meu som tem cor e querem saber qual é a
cor dele. Porque essas cores variam muito rapidamente. (HERMETO, Revista Manchete: 1985)30
Eu me inspiro mais nas outras coisas para fazer música. Eu não escutei música para compor.
(...) Não. Eu me inspiro mais na pintura, no timbre de uma voz. (HERMETO, Rádio MEC: 1998)31
Para avaliarmos o papel que a inter-relação som-imagem tem na linguagem de

Hermeto, é necessário que tratemos da sinestesia. Sinestesia é uma condição na qual um

estímulo de um sentido provoca automaticamente uma percepção correspondente em

outro. Como por exemplo ocorre quando alguém ouve o som de um instrumento e

imediatamente vê uma cor.

No texto, On colored-hearing Synesthesia,32 o estudioso Lawrence Marks

apresenta os resultados de pesquisas recentes sobre a sinestesia audição-visão,

29 Ver Cap. IV para aprofundamentos.


30 Em entrevista com Renato Sérgio.
31 Em entrevista com Luiz Carlos Saroldi.
32 Lawrence E. Marks. "On colored-hearing synesthesia" in Simon Baron-Cohen and John E.
Harrison, Synesthesia: classic and contemporary readings. Massachusets: Blackwell Publishers, 1997, p.
49 - 98.
35

comparando-os aos de outras pesquisas como as feitas por Köhler (1910), Hornbostel

(1931), Karwosky (1942), Bruner (1964), Paivio's (1971) e outros, bem como a farto

material bibliográfico relacionado ao tema.

Em linhas gerais, Lawrence chegará às seguintes conclusões sobre a sinestesia,

envolvendo os sentidos visão e audição:

a) A percepção de altura está relacionada à sensação de brilho e luminosidade.

Quanto mais aguda for a nota, mais ela será percebida como luminosa e vice-versa,

quanto mais grave for, mais escura ela parecerá.

b) No entanto, a dinâmica do som, sua amplitude, influenciará também na

percepção da cor de um som: sons fortes, independentemente do fato de serem graves ou

agudos, freqüentemente foram percebidos como mais brilhantes que sons com baixa

amplitude. Uma mesma nota em crescendo terá assim seu brilho intensificado, e sua cor

alterada.33

c) A sinestesia audição-visão ocorre também em relação à textura, à massa do

som: sons graves foram relacionados freqüentemente à maior ou menor espessura e

largura, enquanto que sons agudos aparecem relacionados à transparência.

Segundo Lawrence, a sinestesia é mais comum na infância do que na idade adulta.

Muitos adultos se lembram de experiências sinestéticas na infância, mas que, a partir de

certo momento, pararam de ocorrer. Assim, o autor analisa, especialmente, a hipótese da

sinestesia ser um processo de cognição pré-verbal, que com o crescimento é substituído

por um outro modo de cognição mais flexível: a linguagem abstrata e verbal. Bruner

(1964) viu neste processo uma transição entre o icônico e o simbólico.34 A sinestesia

33 O que é perfeitamente condizente com a acústica, pois num crescendo a ativação dos parciais
harmônicos é diferenciada a cada momento, mais e mais parciais harmônicos agudos vão sendo vibrados à
medida que a amplitude sonora cresce, daí a conseqüente modificação do timbre, da cor deste som.
34 Citado por Lawrence E. Marks, op. cit. p. 89.
36

seria justamente um modo de representação icônico (o qual poderia ser classificado

genericamente de imagético),35 que diminui à medida que a representação abstrata da

linguagem cresce, e Paivio's, em 1971,36 estudará como os processos imagéticos que

precedem a linguagem continuam a desempenhar um importante papel na cognição

adulta.

Lawrence distinguirá, então, duas formas de expressão de relações inter-

sensoriais: a metafórica e a poética. A primeira sinaliza para a sinestesia sensorial e

expressa relações inter-sensoriais intrínsecas,37 o que não ocorre na maneira poética, que

cria correspondências sensoriais originais e de forma extrínseca às sensações imediatas.

Assim o autor distingue correspondências verdadeiramente sinestésicas das não

sinestésicas. As primeiras tendem a ser fixas e inflexíveis (observando um padrão de

associações recorrentes), enquanto as segundas são muito mais relativas e flexíveis.

Concluindo, as correspondências sinestésicas remeteriam a uma origem primitiva

contendo relações fixas, a um modo de cognição pré-verbal, que a linguagem abstrata

modificará, flexibilizando o ícone sinestético ("metafórico), ao símbolo linguístico

("poético").

Se Lawrence, respaldado por outros pesquisadores, estiver correto sobre a

possibilidade de todos nós termos sido sinestésicos quando crianças, os sinestésicos

adultos são simplesmente aqueles que não perderam com o crescimento, a condição

perceptiva que tinham antes da representação abstrata da linguagem ter se imposto sobre

a percepção sinestética.

Esta hipótese mereceria uma discussão cujo aprofundamento escapa aos nossos

objetivos. Ela, no entanto, parece em vários aspectos adequada a Hermeto e sua

35 No original, imagery.
36 Idem, p. 89.
37

concepção musical. Por que é que Hermeto (e os músicos que com ele tocaram), se

referem tanto à sua infância, sublinhando a importância que esta teve para sua linguagem

musical? E por que ele insiste com tanta veemência que música não é nem a escrita, nem

a teoria, apesar de que estas têm sua importância?

O depoimento abaixo, além de exemplificar o que dizemos a respeito de Hermeto,

é em certa medida, auto-biográfico:

(...) Quando falo em música, não estou falando de teoria. Teoria eu acho que tem que se
aprender sim. Mas não as crianças. (...) Para mim, ensinar teoria para uma criança é a mesma coisa
que ensinar inglês a uma criança brasileira vivendo aqui no Brasil. Não. Tem que deixar a criança
falar errado. Errado porque a gente chama de errado, porque não tem nada de errado. Existe apenas o
não convencional, o não padronizado. (...) Deixa a criança tocar. Ensina a criança a tocar fisicamente.
Não dê nada para ela ler. Ela vai ler e aprender. De repente, para o instrumento, [com a leitura] vai
aprender até mais rápido. Mas o sentir ela vai perder. (O grifo é nosso) (HERMETO, Backstage :
1998)

Poderíamos fazer um paralelo entre a sensibilidade sinestésica pré-verbal que é

perdida (ou transformada segundo Paivio's), e o aparecimento da linguagem abstrata de

um lado, e a tradição musical oral (e popular) - que Carole Gubernikoff assinalou como

marcada pela vocalidade - e a tradição escrita (ou "culta", "erudita"), de outro. Mais

adiante (p. 31), Carole pergunta-se se "não sacrificamos a escuta neste processo", ou seja,

no processo da representação escrita do som.

O caso de Hermeto nos parece muito adequado para discutirmos o relacionamento

dos aspectos sensíveis e intelígiveis os quais, segundo Carole, são os dois pólos presentes

em todo processo de representação e criação (Gubernikoff, 1997: 28).

Devido à já mencionada deficiência de sua visão, causada pelo albinismo,

Hermeto adotou uma postura francamente favorável à esfera do sensível. Já que os

professores de música não tinham paciência em ensinar um garoto albino com muitas

37 Idem, p. 90.
38

dificuldades em ler música, Hermeto elaborou sua linguagem independentemente da

tradição erudita, privilegiando a intuição ao conhecimento e a prática à teoria.

Sua concepção sonora parece responder afirmativamente à pergunta lançada por

Carole, sobre se não haveríamos perdido algo ao confinarmos e condicionarmos nossa

percepção aos domínios da escrita.38 Desconfiando de uma certa pretensão etnocêntrica,

que considera a tradição culta do Ocidente superior ou mais evoluída que outras culturas

musicais orais, Carole insinua uma pergunta que Hermeto parece responder de maneira

ferozmente bem-humorada: "quem não improvisa neste mundo, no outro será

improvisado".39 Para Hermeto, a improvisação será o alfa e o ômega de todo o seu

processo de criação, antecedendo e sucedendo a escrita musical, que ele domina e utiliza,

mas que nunca é tomada como ponto de partida.40

A concepção de Hermeto é ternária: parte inicialmente da livre exploração do

som (seja este harmônico ou inarmônico41), para somente depois representá-lo através da

escrita, que será tornada por sua vez, uma estrutura-base para outras improvisações, num

ritornello infinito.

Este ritornello é experimentado pelo próprio compositor com relação à sua

concepção musical lúdica, bem como à sua própria vida. Não por acaso, Hermeto

escolheu o distante bairro do Jabour na Zona Oeste da capital carioca para morar. Bem

próximo a Bangu, onde se verificam as temperaturas máximas de todo o estado, o Jabour

de certa forma lembra o quente sertão alagoano da infância do compositor. Cercado pelo

som das cigarras, cachorros, galinhas e galos que conseguem sobreviver ao rápido

38 Cf. Carole Gubernikoff, texto citado, p. 31.


39 Conforme depoimento do compositor alagoano a Luiz Carlos Saroldi em entrevista realizada na
Rádio MEC, 1997.
40 Para maiores aprofundamentos sobre a improvisacão e a escrita em Hermeto, ver o capítulo
seguinte.
41 Para maiores aprofundamentos sobre os espectros sonoros harmônicos e inarmônicos ver cap. IV.
39

crescimento do bairro, Hermeto mantém ainda algo da paisagem sonora de sua infância,

que ele permanentemente transpõe para sua linguagem musical, ao sobrepor os sons dos

animais aos sons instrumentais do Grupo.

Desta maneira, a sinestesia som-imagem é mais um "departamento" da

personalidade de Hermeto Pascoal. Além de manter vivo o universo sonoro, cultural e

geográfico de sua infância, ele parece ter podido conservar, ao longo da sua vida madura,

algumas características de sua percepção ampliada, que Lawrence Marks denomina de

cognição pré-verbal .

As músicas de Hermeto que analisamos não por acaso têm títulos como "Arapuá"

(uma música feita para o sax barítono, cujo timbre e textura foram associados à abelha

com esse nome, de zumbido também grave), "Cores" (na qual Hermeto une os

instrumentos convencionais aos silvos das cigarras e a chapas de ferro percutido), "Série

de Arco" (uma música originalmente feita para uma coreografia de ginástica olímpica) e

"Aula de Natação" (uma "música da aura", tipo de composição criada por Hermeto e que

ele define como uma fotografia do som).

Da concepção de sinestesia apresentada, o que parece mais pertinente no caso de

Hermeto é a percepção ampliada de tudo à sua volta. A relação imagem-som em Hermeto

não se resume e nem sempre se configura como sinestésica, de acordo com as definições

apresentadas. Em "Série de arco" por exemplo, a transposição do ritmo do movimento

coreográfico nos parece uma atitude deliberada e não uma reação sensorial sinestésica.

Contudo, a relação imagem-som, entendida de maneira ampla, parece de fato ter

um importante papel na linguagem de Hermeto Pascoal, por trazer para o plano sonoro,

referências visuais estranhas à ele, assim fazendo com que sua linguagem musical seja

transformada pelo contágio imagético. Examinamos mais detidamente, nos capítulos


40

seguintes, as implicações desta inter-relação e da abertura para o universo sonoro

considerado não-musical.

3 - O PROCESSO CRIATIVO DE HERMETO E GRUPO

3.1 De Lagoa da Canoa aos E.U.A., dos E.U.A. ao mundo: uma pequena biografia

de Hermeto Pascoal em busca de sua concepção musical

Hermeto Pascoal, alagoano de Olho D'água, um pequeno povoado perto da cidade

de Lagoa da Canoa, município de Arapiraca, nasceu em 22 de junho de 1936. Desde

menino, seu pendor musical se revela. Suas primeiras experiências musicais são tocar
41

pifes (pífanos), feitos pelo próprio garoto com folha de mamona e abóbora e compor

pequenas músicas percutindo os pedaços de ferros de seu avô ferreiro:

Pequenininho, com meus 7 anos, já estava em contato com a música. (...) Meu pai tocava
harmônico de oito baixos, o pé de bode, um tipo de sanfona, e eu tocava pife (pífano) que eu mesmo
fazia, lá no mato, com cano de mamona. Por ser albino, eu não podia pegar sol. Eu era teimoso, sumia
no mato, quando meu pai ia para a roça trabalhar. Eu era assim como os índios, mas um índio
diferente. (...) Como eu tinha musicalidade, sentia aquela vontade de tocar. E queria saber se os
passarinhos gostavam disso ou não. Quando meu pai me levava para a roça, no carro de boi, eu
tratava de fazer umas flautinhas para tocar com os passarinhos. E quando ele voltava, via a árvore
cheia de aves. Até hoje, quando toco num lugar que tenha passarinho, consigo me comunicar com
eles. (HERMETO, O Globo, 1998)
Os sapos... Os sapos eram um público maravilhoso. O público mais fiel e sensível que existe
é o sapo. Eles são muito inteligentes. Os sapos de beira de estrada já estão acostumados ao barulho do
motor, mas, mesmo que você desligue o motor e ande na direção deles, eles vão perceber que tem
alguém indo para o lado deles. Um sapo pode servir para dar um aviso. Ele sente tudo. Eles já me
conheciam porque eu ia sempre à mesma lagoa. Os sapos tem orquestras perfeitas. (HERMETO,
Backstage: 1998)
(...) Todos os pedaços de ferro que ele [o avô de Hermeto] cortava, eu escondia. (...) Eu batia
um de encontro ao outro e achava bonitinho o som. Os meus brinquedos eram no campo, os
passarinhos, os animais e lá em Lagoa da Canoa, os ferrinhos. (...) Aí tinha a dispensa, que era onde
guardava carnes, comidas ... (neste momento, Hermeto esbarra no microfone da Rádio onde concedia
a entrevista e desculpando-se aos ouvintes, compara o barulho do esbarrão aos sons dos animais de
sua infância:) Quem escutou o barulho em casa, pense num sapinho cantando na lagoa.
[continuando] Aí minha mãe chamou meu avô e disse: Papai, que que está acontecendo que o quarto
lá da dispensa está cheio de ferro? E meu avô: - É que o Hermeto pega todos os pedaços de ferro e
está escondendo lá. Aí eles ficaram desgostosos porque pensaram que eu tivesse ficando louco com
alguma coisa, isso com oito anos de idade. Aí me chamaram, eu peguei os pedacinhos de ferro, eu já
tinha juntado, já tinha feito uma, duas músicas batendo nos ferros (...) Quando eu bati nos pedaços de
ferro meu amigo, minha mãe chorou, meu avô chorou, foi todo mundo de emoção, de alegria, né? (...)
Aí sabe o que acontece, meu avô me deu tanto ferro para eu guardar, que não tinha mais lugar para
botar. (HERMETO, Rádio MEC: 1997)42

Com aproximadamente 8 anos de idade, começa a tocar a sanfona de oito baixos

de seu pai, (também chamada no nordeste brasileiro de pé de bode) e a partir dos 12, a

sanfona de 32 baixos. A pé-de-bode tem um sistema de duas colunas de botões. A

primeira coluna é formada de oito "baixos" que produzem um pequeno número de

acordes maiores, menores e dominantes, usados no acompanhamento. O outro sistema de

botões contém notas isoladas, usadas nas melodias. A pé-de-bode não é cromática, ao

contrário de suas irmãs mais velhas, as sanfonas de 32 e 80 baixos. Com o pai e o irmão,

Hermeto passa então a tocar em festas de casamento e forrós em Alagoas.


42

Desde a infância, o universo sonoro foi para Hermeto fonte constante de prazer e

um forte estímulo tanto para a brincadeira como para a criação. Sua concepção

harmônica e sua linguagem devem muito a estas primeiras experiências musicais, quando

o garoto buscava reproduzir na sanfona pé-de-bode, as sonoridades inarmônicas dos

ferros percutidos na oficina do avô. Misturando e superpondo as diferentes tríades dos

oito baixos da sanfona às notas isoladas do outro sistema de botões, assim Hermeto

prematuramente iniciava suas experiências sonoras.

O pianista Jovino, que acompanhou Hermeto durante 15 anos, sugeriu a

interessante hipótese, por nós já comentada, da linguagem harmônica de Hermeto ter sido

influenciada precocemente no contato com os espectros sonoros inarmônicos. Segundo

Jovino, Hermeto continuaria ainda hoje "combinando as tríades e notas isoladas da

sanfona de oito baixos" a partir de modelos sonoros naturais. Questionando as fronteiras

entre os sons ditos "musicais" (os sons harmônicos), os sons inarmônicos dos ferros, da

natureza e dos bichos, Hermeto organizaria estas tríades e notas "arquetípicas" de sua

infância, de forma não funcional e, por isso, as sonoridades harmônicas e melódicas por

ele obtidas fugiriam do convencional.

O albinismo e a conseqüente deficiência visual, tornaram o contato de Hermeto

com o universo sonoro ainda mais intenso, pois um sentido era parcialmente compensado

através de outro. Como já dissemos anteriormente, Hermeto afirmará repetidas vezes que

não compõe música só através da música, mas que se inspira também nas imagens para

criar música, além dos sons cotidianos e da natureza. Isso parece esclarecer muito sobre

sua concepção musical, pois, ao traduzir sua percepção visual em termos sonoros,

Hermeto sinaliza para o fato de sua música ser afetada pelas características algo difusas

das imagens percebidas por sua visão.

42 Em entrevista já citada realizada por Luiz Carlos Saroldi.


43

Em 1950, a família Paschoal transferiu-se para Recife PE. Com José Neto, seu

irmão, Hermeto passa a tocar na Rádio Tamandaré. O músico Sivuca, também albino e

amigo de Hermeto, tocava na Rádio Jornal do Comércio. Os três amigos costumavam

unir suas sanfonas e tocar juntos, e um dia, o dono da Rádio Jornal do Comércio os viu e

vislumbrando um potencial comercial no estranho conjunto albino, resolveu contratar

Hermeto e o irmão, batizando o trio de "O mundo pegando fogo", por causa da cor

avermelhada dos três músicos.

Apesar de sua pouca familiaridade com a sanfona - "o Sivuca carregava a gente

nas costas" 43 - os frevos e baiões de "O mundo pegando fogo" conseguem o suficiente

para Hermeto comprar uma outra sanfona, agora de 80 baixos, permanecendo nesta Rádio

mais 2 anos. Nas rádios em Recife, Hermeto vê e ouve pela primeira vez as orquestras de

rádio regidas pelo maestro Clóvis Pereira e por Guerra-Peixe. Apesar de ter visto apenas

poucos ensaios, Hermeto se refere às orquestras de rádio de Recife muito elogiosamente:

"Era quase uma sinfônica, tinha cordas, metais, percussão, uma maravilha. Estas

sonoridades orquestrais foram registradas por Hermeto "porque minha mente é como um

gravador infinito."44

Em Recife, Hermeto começa também a tocar piano nas boates, convidado por seu

amigo e violonista Heraldo do Monte, o qual integrava o Regional da Rádio Jornal do

Comércio. Preocupado por causa do fato da técnica da mão esquerda no piano ser

bastante diferente da sanfona, Hermeto foi no entanto estimulado por Heraldo que não só

o tranquilizou dizendo que o baixista daria conta do que a ainda inábil mão esquerda de

Hermeto não conseguisse fazer, como também que via em Hermeto um potencial técnico-

43 De acordo com afirmação do próprio compositor em entrevista a nós concedida, querendo dizer
que nesta época, ele e o irmão não tocavam bem a sanfona, diferentemente de Sivuca, que um pouco mais
velho que Hermeto, já tinha mais desenvoltura neste instrumento.
44 Em entrevista conosco realizada em 06/03/1999.
44

estético que certamente o faria suplantar aquelas dificuldades. Cerca de 40 anos depois,

podemos afirmar que Heraldo estava duplamente certo. O aprendizado técnico de

Hermeto em diversos instrumentos foi de lá para cá espantosamente rápido e o "potencial

estético" que Heraldo vislumbrou em Hermeto, efetivamente tornou aquele garoto

instrumentista inexperiente em um compositor original.

Nas boates recifenses, Hermeto tocava entre outros estilos, jazz e na Rádio, além

de música nordestina, choro e seresta, acompanhando ao acordeon, calouros e cantores

famosos como Nélson Gonçalves e Orlando Silva. A experiência no Regional da Rádio (e

na noite), teve o mérito de obrigar Hermeto a se desenvolver harmonicamente:

O cara que toca em regional, (...) você acompanha em Fá e o cantor diz: hoje eu estou
gripado, então toca meio tom abaixo, (...) e você não pode dizer que não, porque os programas eram
ao vivo, (...) quando era meio-tom até dava para "enrolar", mas eu, como queria aprender, fazia
questão de dar o tom pro cara, justamente para me desenvolver. (HERMETO, 1997) 45

Terminado o contrato, a Rádio dispensa o trio albino argumentando "que eles não

davam para música"... Em 1952, Hermeto, então com 16 anos de idade, vai para Caruaru

PE, Sivuca para Garanhuns, e José Neto, para o Rio de Janeiro. Em Caruaru, depois da

demissão por "incompetência", Hermeto resolve se desenvolver e começa a estudar

leitura e teoria musical por conta própria, porque devido à deficiência de sua visão, os

professores e amigos músicos não tinham paciência para ensinar-lhe.

Os breves contatos com os maestros e músicos das orquestras de rádio

conscientizaram Hermeto que seu ouvido era absoluto, porém, a curiosidade com que

Hermeto foi tratado inicialmente pelos músicos eruditos, não foi suficiente para que lhe

ensinassem teoria. Com 16 anos de idade, Hermeto foi apresentado por um colega ao

maestro Laranjeiras da rádio Difusora de Caruarú, para que com ele tivesse aulas de

teoria musical. Porém, quando o maestro percebeu a deficiência visual de Hermeto,


45

desistiu da tarefa de ensinar-lhe argumentando que não poderia colocá-lo numa classe de

50 alunos, porque teria que conceder atenção especial a Hermeto. Diante da negativa do

maestro, Hermeto comprou o método de acordeon e teoria musical de Alencar Terra.

Durante um ano Hermeto levou este método para todos os lugares onde ia. Como

Paschoal só conseguia enxergar o que era escrito em letras grandes, depois de aprender as

notas musicais, as figuras rítmicas e outras noções básicas, o músico largou o método e

começou a pôr em prática uma maneira própria de abordar a música que o acompanharia

durante sua carreira: "minha vida toda foi deduzir." Os primeiros estudos teóricos eram

complementados pela intensa prática musical dos regionais das rádios e na noite.

A deficiência visual foi uma das motivações para o auto-didatismo de Hermeto,

bem como um estímulo constante - porque resultante de um dano permanente - para a

elaboração de uma concepção sonora e composicional que, sistematicamente, privilegia a

prática à teoria, o sentir ao saber, a intuição à lógica. Por outro lado, a experiência de ter

sido empregado numa importante Rádio de Recife, para depois ser demitido "porque ele

não dava para a música", fará com que Hermeto tome o julgamento e a condenação de

seu patrão como estímulos extras para desenvolver-se autodidaticamente no estudo da

música.

A demissão é também um importante antecedente de sua conhecida ojeriza à

sudordinação exercida por patrões tão diferentes como donos de Rádios, casas noturnas, e

posteriormente, das gravadoras dos discos em que gravou ao longo de sua carreira. O

desejo de emancipação da condição subalterna de intérprete contratado, terá, como

veremos mais à frente, implicações na própria linguagem de Hermeto e na maneira como

as mais diversas influências - do forró ao free jazz, da música erudita ao côco - nela são

45 Em entrevista conosco realizada em 10/11/1997.


46

combinadas. Sem pertencer a nenhuma escola específica e a nenhum patrão, o território

estético traçado por Hermeto tem propositadamente limites movediços.

Em 1956, Hermeto retorna para Recife e em 1958, vem para o Rio de Janeiro.

Um ano após, junta-se ao irmão José Neto para tocar acordeon na Rádio Mauá carioca,

com o regional de Pernambuco do Pandeiro e com os conjuntos de Fafá Lemos e

Copinha.46 Em 1961, vai para São Paulo, onde permanece aproximadamente até 1967,

ganhando a vida como pianista de boates e casas noturnas (Chicote, Stardust e outras),

tocando entre outros estilos, choro, bossa-nova, samba, e jazz.

Em São Paulo, começa também a praticar flauta e sax, integrando o conjunto Som

Quatro, com Papudinho (piston), Dilson (bateria) e Azeitona (contra-baixo), e em 1964, o

Sambrasa Trio, com Claiber (contra-baixo) e Airto Moreira (bateria),47 este último, um

músico e amigo que terá grande importância para o início da carreira de Hermeto como

compositor, arranjador e instrumentista, fato que ocorrerá mais tarde, em 1971, nos

E.U.A.. Em 1965, Hermeto participa como instrumentista no LP Caminho, do cantor

Walter Santos.48

O aprendizado de vários instrumentos por Hermeto foi possível não apenas por

seu talento, mas por sua dedicação intensa ao estudo e prática. Como podemos verificar

através do relato abaixo:

(...) Eu estudava flauta no banheiro da boate, no oitão da Igreja da Consolação, eu subornava


o guardador de carros pra ele me deixar estudar ali, porque tinha uns vizinhos chatos. (...) Mais tarde

46 Segundo o pianista Jovino, há gravações raras de Hermeto com o regional de Pernambuco do


Pandeiro, e com o conjunto de José Pascoal Neto, além do Sambrasa Trio e Som quatro. Não possuímos os
dados referentes às gravadoras destes discos, códigos fonográficos, nem a data exata das gravações.
47 Idem anterior.
48 Parte dos dados sobre Hermeto foram coletados em entrevistas com o músico e os integrantes e
ex-integrantes de seu Grupo. Outros dados podem ser encontrados na edição atualizada da Enciclopédia da
Música Brasileira, erudita, folclórica e popular. São Paulo: PubliFolha, 1998, p. 606/607. Os dados
apresentados na Enciclopédia no entanto devem ser verificados, pois algumas informações são inexatas.
Por exemplo, segundo a Enciclopédia , o LP com Walter Santos teria sido o primeiro disco no qual
Hermeto figura como instrumentista, quando as primeiras gravações que Hermeto fez em disco são
anteriores a este LP.
47

eu me trancava no quarto estudando e falava pra dona da pensão que era pra ninguém me chamar e
subornava o vigia da Rádio pra ficar no estúdio tocando. (HERMETO, Pipoca Moderna)49

A noite e os Regionais das Rádios serão para Hermeto uma importantíssima

escola, na qual ele aprenderá oralmente um vocabulário musical variadíssimo, da música

nordestina, passando pelas serestas, choros, sambas, música cigana e bossa-nova, aos

standards do jazz.

Das roças de Lagoa da Canoa às casas noturnas e hóteis de Rio e São Paulo, a

intuição, a desenvoltura técnica, o ouvido (absoluto) e a sensibilidade, parecem ter sido

de fato, os guias primordiais de Hermeto. Hermeto tinha origem social humilde e não

podia contar com eventuais ajudas paternas. Sua deficiência visual adiava o domínio da

escrita musical. Estando desde a infância mais próximo de Hermeto, o universo popular

pôde servir como meio de sobrevivência do músico, além de constituir uma escola onde

se forjaria parte do estilo de Hermeto como instrumentista, arranjador e compositor.

A trajetória de Hermeto desde quando saiu de Lagoa da Canoa acompanhou estas

três etapas; instrumentista, arranjador e compositor.50 Durante o período 1950-1966,

Hermeto tinha sido um músico instrumentista, contratado por Rádios e boates. A partir de

1964, começa paralelamente a integrar algumas bandas fora do esquema Rádio-boate

(Som Quatro e Sambrasa Trio). Lentamente, Hermeto começava a se libertar dos limites

econômicos que lhe eram impostos, bem como dos limites estéticos estabelecidos pela

ótica dos patrões que o contratavam. Neste sentido, podemos dizer que a necessidade de

49 Em entrevista com Mauro Dias, não sabemos a data exata da publicação.


50 Com certeza Hermeto não concorda com a ordem que apresentamos. Em nossa última
entrevista com o músico, ele nos disse que sua primeira composição musical foi o choro ao sair da barriga
da mãe. Aparentemente fazendo uma piada, este comentário de Hermeto é coerente com sua própria
concepção musical. Ver no cap. V e VI, a definição apresentada pelo músico para a "música da aura".
Mantemos a ordem acima; instrumentista, arranjador e compositor, apenas como orientação cronológica
geral.
48

tornar-se arranjador e compositor para Hermeto, foi não só uma tendência natural de sua

personalidade musical, como também, um caminho de ascensão profissional e social.

Contudo não foi um caminho fácil. Hermeto não teria se tornado o que é hoje,

sem um comportamento minimamente aguerrido, combinado à forte personalidade que o

caracteriza. Ele ensaiou a libertação de sua condição de intérprete contratado,

gradativamente, negociando e ao mesmo tempo assustando o poder, através de uma

linguagem musical que já insistia em fugir às convenções.

No livro Noise: The Political Economy of Music,51 Jacques Attali apresenta

algumas premissas adequadas para ilustrar muito brevemente, o paralelo que fazemos

entre a linguagem musical e a trajetória profissional de Hermeto.

1) A música para Attali, pode tornar-se um espelho do tempo em que foi

produzida, e da relação entre homem e sociedade. Como espelho da sociedade, a música

é mais que um objeto de estudo em si mesma, é um meio de perceber o mundo, um

instrumento de conhecimento.

2) Para a música cumprir plenamente sua função comunicadora, é imprescindível

no entanto, que nos tornemos conscientes de suas entrelinhas, e que ouçamos também os

seus ruídos e diferenças (sua ação crítica), bem como o que ela não diz, seu silêncio.

3) A música é também um atributo do poder político e religioso, possuindo por

outro lado, uma ação potencialmente subversiva, porque sendo concebida como

ordenação do ruído (em outras palavras, como controle da desordem), possui em si

mesma o germe da revolta.

A abertura para o não-escrito, o intuitivo, fazia com que Hermeto inventasse

acordes, ritmos e melodias que constantemente surpreendiam os músicos com quem

tocava. Esta surpresa causada por Hermeto, e o ruído por ela causado ou era motivo de
49

susto e desdém para os donos das Rádios e boates e para músicos "bem-comportados" ou

de admiração, para os mais abertos. O reconhecimento tornou amigos vários dos músicos

que tocaram com Hermeto, alguns dos quais desempenharam sem dúvida, papel

importante na carreira do compositor alagoano. Assim foi com Sivuca e Heraldo do

Monte em Recife, e depois, com o percussionista Airto Moreira e a cantora Flora Purim,

que fizeram a "ponte" para Hermeto ir para os E.U.A..

Antes de ir para os Estados Unidos, Hermeto viverá sua primeira experiência

(oficial) simultaneamente como compositor e arranjador, entrando no Trio Novo em

1966, que com sua entrada, torna-se Quarteto Novo. O Quarteto Novo será na trajetória

de Hermeto, o meio do caminho entre o músico instrumentista contratado de Rádios e

boates, e o arranjador e compositor com fama internacional. Do Quarteto Novo faziam

parte, além do próprio Hermeto (flauta e piano), os músicos Heraldo do Monte (viola

caipira e guitarra), Téo Barros (violão e baixo), e Airto Moreira (bateria). Em 1967, o

conjunto grava pela Odeon o importante LP Quarteto Novo (Odeon, 1967), no qual

aparece a primeira composição gravada do compositor alagoano, O ovo, um baião para o

qual Hermeto faria mais tarde uma letra que remete a tradição popular poética da

natureza encantada e abundante, de fartura hiperbólica, como observou a profª Dra.

Elizabeth Travassos na defesa dessa dissertação:

"Tenho uma galinha que põe cem ovo por mês,


mas não consigo entender, porquê vem três de cada vez. [bis]

No meu quintal tinha cinqüenta mil galinhas,


vendi tudo pra vizinha Mariquinha.
Agora só fiquei com um pintinho novo,
começei tudo de novo,
com um ovo."

51 University of Minnesota Press, 1985.


50

Em 1969, o grupo se dissolve. Apesar de sua meteórica carreira, o Quarteto Novo

afetou toda uma geração de músicos, de Edu Lobo52 a Tom Jobim, ao combinar

percussão, viola caipira, violão, flauta, bateria, piano e guitarra. A proposta original do

Quarteto Novo veio de Geraldo Vandré. Segundo ela, o Quarteto deveria trabalhar

exclusivamente com a música brasileira. Segundo Hermeto, a proposta nacionalista de

Vandré foi um dos motivos para que o Quarteto durasse tão pouco tempo: "Quando eu

dava um acorde bem moderno, as pessoas falavam criticando: acorde de jazz não pode.

Mas não era acorde de jazz, era minha cabeça que estava querendo. A música é do

mundo. Nós não somos donos dela. Querer que a música do Brasil seja só do Brasil, é

como ensacar o vento e ninguém consegue ensacar o som."

De 1966 até 1970, Hermeto terá uma importantíssima escola de arranjo com os

Festivais da Canção. Nesta época, Hermeto já sabia as notas e figuras rítmicas, mas como

não sabia fazer grades de arranjo, escrevia, já transpondo, instrumento por instrumento a

partir da harmonia. É importante observar que Hermeto tinha e tem um ouvido harmônico

muito acurado, que já o permitiu compor para uma orquestra sinfônica por exemplo, sem

instrumentos:"Eu posso estar escrevendo uma nota aqui e estou com quatro caras tocando

e eu escutando e escrevendo sobre aqueles quatro instrumentos." 53

Em 1970, Airto e Flora Purim levam Hermeto para os E.U.A., para arranjar as

músicas dos discos Natural Feelings e Seeds on the ground (Buddah Records, 1971).

52 Compositor que o Quarteto Novo acompanhou em 1967, no III FMPB, realizado na TV


Record, São Paulo SP, com a música Ponteio (de Edu Lobo e Capinam), vitoriosa no mesmo Festival. Cf.
Enciclopédia da Música Brasileira.
53 Segundo o próprio Hermeto nos disse em entrevista, isto ocorreu quando ele compôs para a
orquestra sinfônica de Berlim. A composição foi feita nesta cidade alemã em apenas 32 horas e Paschoal
usou o piano em apenas 16 destas 32 horas, ou seja, compôs aproximadamente metade da partitura
orquestral sem instrumento algum que o auxiliasse. O músico brasileiro teve que passar para o maestro o
papel de fabricação alemã no qual escrevera a música, pois o regente não acreditou que ele havia composto
tão rápido e sem instrumento algum, dias apenas antes do concerto. Convencido e impressionado com a
habilidade de Hermeto, o regente pediu a este último que o fato fosse relatado ao público antes das
apresentações, porque, segundo o maestro, era digno de nota.
51

Neste último disco, Hermeto grava e arranja uma música criada por seus pais

aproximadamente em 1941, em Alagoas, enquanto trabalhavam na lavoura.54 O "Gaio da

roseira", foi considerada uma das melhores músicas do ano pela crítica inglesa.55

Os anos de 1970 e 1971 seriam bastante intensos para Hermeto. Além dois dois

LPs com Airto e Flora como compositor, arranjador e multi-instrumentista, Hermeto faria

ainda o LP Cantiga de Longe (Elenco, 1970) com Edu Lobo, como arranjador e

instrumentista, o LP Live Evil (Sony, 197256) com Miles Davis como compositor e

instrumentista e um solo de flauta no disco Tide (A&M, 1970) de Tom Jobim.

A experiência nos E.U.A. parece ter tido de fato importância no desenvolvimento

tanto da carreira como da concepção de Hermeto. Foi lá que a concepção e o lado

experimental de Hermeto puderam aflorar mais totalmente. Misturando o "Gaio da

roseira" de sua infância às experimentações aparentemente influenciadas pelo free jazz

americano, em Seeds on the Ground, Hermeto foi pela primeira vez reconhecido

internacionalmente.

Façamos um parêntesis para esclarecer o termo free jazz. Este apareceu pela

primeira vez intitulando o disco de 1960 de Ornette Coleman, e a partir daí "passou a ser

utilizado para denominar uma nova forma que alguns jazzmen norte-americanos já

vinham experimentando hà algum tempo, como Cecil Taylor, Albert Ayler, ou mesmo

Charles Mingus e Sonny Rollins." (Callado, 1990). Revolucionando totalmente a

linguagem do jazz, as características básicas do free jazz foram assim resumidas pelo

crítico alemão Joachim - E. Berendt:

1. entrada no campo livre da atonalidade;

2. dissolução da simetria rítmica, do "metro" e do beat ;

54 Pascoal José da Costa e Divina Eulália Oliveira.


55 Cf. Enciclopédia da Música Brasileira.
52

3. incorporação de elementos musicais de diversas culturas internacionais;

4. maior intensidade na execução instrumental, chegando ao "êxtase"

improvisatório e;

5. o ruído passa a fazer parte do som musical"57

Dez anos depois do disco de Coleman, as características acima citadas se

assemelham de fato às encontradas em algumas músicas compostas e arranjadas por

Hermeto na década de 70 (como por exemplo, o "Gaio da roseira" em Seeds on the

Ground, ou "Velório" em Hermeto Paschoal: Brazilian Adventure (CBS, 1971) e é

possível supor que o músico as tenha absorvido durante sua estada na Califórnia e em

Nova York, com o casal Airto e Flora Purim. O pesquisador Carlos Callado verificou

como nós, resultados bem próximos na música e linguagem de Hermeto, com o free jazz :

É curioso como estruturando seu trabalho musical a partir de ritmos brasileiros tradicionais
como o frevo, o baião e o choro, jamais abrindo mão do recurso da improvisação, Hermeto chega em
vários momentos a resultados bem próximos do free jazz - especialmente quando rompe o andamento
regular e ingressa na atonalidade. Recusando sempre as qualificações de jazz, free ou mesmo "música
popular brasileira", ele prefere o termo "música livre" ("música universal" é ainda um outro termo que
Hermeto utiliza para definir sua música). (CALLADO, 1990 : 249)

Salvo menções biográficas que nos sejam desconhecidas, talvez seja mais

pertinente supor o aparecimento na linguagem de Hermeto a partir de alguns

procedimentos composicionais - como a atonalidade, o rompimento com a regularidade

do andamento, a improvisação "extásica", o uso musical dos ruídos, etc. - mais pela via

free jazz, do que pela da música erudita contemporânea.

De qualquer forma, o free jazz constitui apenas uma das várias facetas da

linguagem de Hermeto na década de 70. Pois como Callado observou, o compositor

alagoano recusa este rótulo (free jazz), assim como todos os outros já utilizados para

56 Lançado em 1972, mas gravado em 1970, segundo consta no encarte do CD. Ver discografia.
53

definir o tipo de música que faz. O que, de alguma forma, parece justo, já que a

linguagem de Hermeto é realmente múltipla, integrando e ultrapassando o próprio

modelo experimental do free jazz, ao combiná-lo com a música brasileira folclórica ou

alternando na mesma música trechos improvisados a la free jazz, com outros totalmente

convencionados e arranjados.

Em relação às origens do free jazz, faríamos uma leitura parcialmente diferente da

realizada por Tato Taborda,58 que nos será útil para tratarmos da relação que Hermeto

parece ter tido com a música americana e com diferentes estilos do jazz. Vejamos por

exemplo quando Tato cita um trecho do livro de Júlio Medaglia, Música Impopular ,59

tentando ilustrar a importância do contato do saxofonista Ornette Coleman, com o

músico erudito Günter Schuller, para o surgimento do free jazz:

Coleman vinha de uma família paupérrima do sul do Texas, que nem sequer dinheiro para a
compra de um instrumento possuía. Por fim, conseguiu ganhar um velho saxofone todo quebrado e,
se identificando com ele, começou a tirar sons que nada tinham a ver com o que se chamava música
na época. Ele apitava, grunhia, sussurrava ao instrumento mas ninguém queria ouvi-lo, muito menos
os band leaders engajá-lo em suas orquestras. Aquele som primitivo e anárquico que tinha a ver com
a sua própria vida nos slums do fim do mundo onde nascera, foi detectado e valorizado pela primeira
vez quando Coleman, um simples ascensorista de Nova Iorque, cria coragem e apresenta-se para
Günther Schuller, o diretor da Lenox School of Jazz. Schuller o aceita em sua escola e passa a
orientá-lo, mostrando-lhe que atrás daquela anarquia e agressividade sonora havia uma grande
sensibilidade que motivaria o surgimento de um novo estilo jazzistico (Medaglia in TABORDA,
1998: 119/120).

O episódio acima mencionado, traz duas informações que se sucedem. A

primeira, refere-se à linguagem incomum desenvolvida por um músico de origem

bastante humilde, Coleman, linguagem esta concebida autodidaticamente num saxofone

quebrado, e a segunda, o contato posterior de Coleman com Günter Schuller. É através

deste último e do contato com a música erudita contemporânea que o saxofonista

encontraria ecos de sua própria linguagem experimental. A partir do relato acima parece

57 Joachim E. Berendt, O Jazz: do Rag ao Rock. São Paulo: Perspectiva, 1975, p. 36.
58 Ver Tato Taborda, Música de Invenção, p. 17.
59 Cf. Taborda, op. cit.
54

incontestável que o contato e a amizade com o músico erudito devem ter influenciado

Coleman em alguma medida, mas o(s) detalhe(s) é que não só este contato foi uma via de

mão dupla, pois Coleman influenciaria o próprio Schuller,60 mas também que o

saxofonista já tinha muito antes de seu contato com o músico erudito, uma maneira

própria de tocar e de conceber música.

Os relatos a seguir mostram até que ponto a concepção experimental de Coleman,

não dependeu de um contato com a música erudita contemporânea apresentada ao

saxofonista por Günter Schuller em 1959:

Eu me lembro da primeira vez que eu peguei em meu saxofone. [com aproximadamente 15


anos de idade, ou seja em 1945] Me lembro de ter pensado então, como estava escrito no livro, que as
primeiras sete letras do alfabeto eram as primeiras sete letras da música, ABCDEFG. Então eu pensei
que o dó que eu estava tocando no saxofone era A. Mais tarde eu percebi que isto ocorria porque no
sax alto em Mi bemol, quando você toca o la natural, soa dó (transposto). Então eu estava certo de
uma maneira e errado de outra - quero dizer do ponto de vista sonoro, eu estava certo. Então eu
comecei a analisar porque as coisas existem da maneira que existem e, desde esse dia, eu percebi mais
e mais que todas as coisas que são construídas segundo uma lógica estrita somente são aplicadas se
forem contra alguma outra coisa; ou seja, a lógica não é a única maneira de fazer as coisas. Em outras
palavras, se você pega um instrumento e encontra uma maneira de expressar seu próprio sentimento,
esta maneira se torna sua própria lei. (...) Eu costumava tocar uma nota durante o dia todo, tentando
encontrar quantos sons eu poderia obter usando somente a embocadura. (...) (Ainda estou procurando
por essa "mágica" da embocadura). (...) Eu ouvia tantas notas e sons... (Coleman in LITWEILER,
1984 : 31/32)

Por volta de 1957, ou seja, dois anos antes do encontro com Günter Schuller,

Coleman encontra alguns dos músicos (Don Cherry, Billy Higgins e Charlie Haden) com

quem gravaria seus primeiros discos, e assim descreve algumas experiências que ele

próprio liderava :

Então, quando nós estávamos juntos, a parte mais interessante era: O que você irá tocar
depois da melodia, se esta não tiver nada a acompanhando? (...) Usualmente, quando você toca uma
melodia, você tem padrões pré-estabelecidos para saber o quê você pode fazer enquanto as outras
pessoas estão fazendo outra coisa. Mas neste caso, quando nós tocávamos a melodia, ninguém sabia
para onde ir ou o que fazer para mostrar que sabia para onde estava indo. Eu já tinha desenvolvido
uma maneira de tocar assim naturalmente. [o grifo é nosso] (Coleman in LITWEILER, 1984 : 34)

60 Cf. Taborda, op. cit., p. 17.


55

Em 1958, Coleman grava seu primeiro disco, Something Else! No texto da

contra-capa, o saxofonista já apresenta de forma completa o que dois anos após seria

conhecido como free jazz:

Eu creio que um dia a música será um pouco mais livre. Então, o padrão61 para um tema, por
exemplo, será esquecido e o próprio tema será o padrão e não terá que ser forçado dentro de modelos
convencionais. A criação da música é tão natural como o ar que respiramos. Eu acredito que a música
é realmente livre e você pode gostar dela da maneira que for. (Coleman in LITWEILER, 1984 : 34)

Somente em 1959, Coleman irá conhecer John Lewis e Günter Schuller,

professores da Lenox Jazz School, em Lenox, Massachussets, quando o saxofonista já

havia consolidado tanto sua concepção como sua linguagem musical. Para não parecer

que estamos diminuindo a importância do contato de Coleman com os músicos acima

citados, vejamos o que John Lewis, professor da Lenox School e integrante do

importante grupo Modern Jazz Quartet, disse a respeito de Coleman, apenas poucas

semanas após a entrada deste último na Lenox School , na qual lecionavam ainda, outros

jazzmen de destaque como Milt Jackson, Max Roach e Bill Russo, além do próprio Lewis

e Günter Schuller:

Ornette Coleman é a primeira pessoa a realizar algo de novo no jazz desde Charlie Parker e
Dizzy Gilespie em meados dos anos 40 e desde Thelonius Monk" (John Lewis in E. BERENDT,
1987: 106)

Neste ponto, podemos relacionar a trajetória autodidata e solitária de Ornette

Coleman até a consagração e absorção de sua música nos círculos jazzísticos (via John

Lewis) e eruditos (via Günter Schuller), à experiência que o também autodidata Hermeto

Paschoal teve nos E.U.A. O fato de futuramente Coleman ter passado a compor para

formações eruditas - o que efetivamente ocorreu, demonstrando que foi influenciado por

Schuller - esta influência além de ser tardia (após 1960), parece ser uma questão menor, e

61 No original pattern. A tradução literal significaria modelo ou padrão. Coleman parece estar se
referindo tanto ao contexto harmônico, como ao formal, ambos pré-estabelecidos tradicionalmente. É esta
pré-determinação que o saxofonista quer abolir. O novo modelo-padrão proposto por Coleman é um anti-
56

a nosso ver super-enfatizada por Tato, porque na verdade: "Ornette Coleman (...) só teve

conhecimento das experiências atonais da música erudita por volta de 1959/1960, época

em que conheceu John Lewis e Günther Sculler; nessa ocasião a sua contribuição musical

já estava dada e era conhecida internacionalmente. (E. Berendt, 1987: 38).62

Se a década de 70, quando o free jazz estava no auge, parece ter de fato

influenciado a linguagem de Hermeto, contudo esta influência não deve ser

compreendida uniteralmente. Assim como o contato com Günter Schuller apenas um ano

antes de Coleman gravar o disco Free Jazz (Atlantic-WEA, 1960), não pode explicar

totalmente a linguagem não-convencional do saxofonista, o contato de Hermeto com a

música americana, também apenas um ano antes dele gravar nos E.U.A. o seu primeiro

disco autoral, não explica suficientemente o experimentalismo praticado por Hermeto.

Isto porque tanto Hermeto como Coleman, já tinham linguagens próprias, desenvolvidas

autodidaticamente, e autônomas em relação aos universos do jazz e da música erudita

contemporânea, respectivamente, antes de serem afetadas por estes.

Assim como a música de Coleman seria legitimada por Lewis e Schuller, as

experiências musicais de Hermeto também o foram nos E.U.A., encontrando na

vanguarda do jazz americano, um território propício e fecundo para sua consolidação

artística e comercial. Assim, o músico-intérprete somente de outros artistas, contratado

por Rádios e boates, aos poucos conquistou um lugar somente seu, dentro da indústria

cultural da música popular.

Isto ocorreu mais completamente - o "Gaio da roseira" foi o ponto de partida -

quando da gravação do primeiro disco autoral de Hermeto, o LP Hermeto Paschoal:

modelo, aberto continuamente à mudanças harmônico-melódicas imprevistas e desconhecidas pelos


próprios intérpretes.
57

Brazilian adventure (Coblestone, 1971), produzido pelos amigos Flora Purim e Airto

Moreira. Neste LP, Hermeto aproveita ao máximo o orçamento apertado da gravadora

Buddah Records, escrevendo para orquestra de cordas, madeiras e metais e contando

ainda com a participação de Ron Carter no baixo e Airto Moreira na bateria e percussão.

O próprio Hermeto completava a "cozinha",63 tocando piano elétrico e flautas.

Além de ser um marco na carreira de Hermeto, a gravação do disco proporcionou

um certo "retorno de mídia" para o compositor estreante. Voluntária ou

involuntariamente, Hermeto provocou um certo alvoroço no meio musical nova-iorquino,

ao presentear com garrafas, músicos como Hubert Laws, Art Farmer e Ron Carter, no

início de uma das sessões de gravação no estúdio. O motivo para tal recepção é que

Hermeto compusera uma música64 para 40 garrafas afinadas, que seriam tocadas pelos

músicos da big-band. Em outro momento da gravação do disco, na primeira vez que uma

orquestra tocava uma música sua, Hermeto interrompeu a regência logo nos primeiros

acordes, "não sabia mais o que fazer com as mãos. Elas ficaram paradas no ar. Depois

baixei as mãos, (...) estava tão bonito que fiquei sem ação." (A gazeta, Vitória ES, 1990).

Após alguns segundos de silêncio e hesitação, os músicos pediram finalmente que

Hermeto continuasse regendo, mas, ao invés disso e para o susto de todos, o músico

jogou as partituras para o alto, e rolando com elas pelo o chão, ria sem parar. Sem saber

se chamavam a ambulância, e enquanto Hermeto ainda rolava sobre as partituras, os

músicos americanos tiveram que ser tranqüilizados por alguém que disse que aquele

62 Op. cit., ver também Mark C. Gridley, Jazz Styles: history and analysis. New Jersey: Prentice-
Hall, Inc., 1985 (2ª edição), ps. 226-234 e W. Royal Stokes, The Jazz Scene: an informal history from New
Orleans to 1990. New York: Oxford University Press, 1991.
63 "Cozinha" é um termo usado na música popular e se refere a formação instrumental básica
constituída geralmente de baixo, bateria e percussão.
64 A faixa 'Velório".
58

comportamento era comum no Brasil. "Que aqui rolávamos no chão quando estávamos

contentes". (Idem).

A fama de músico criativo e excêntrico, talvez tenha começado de fato nestes

episódios em 1971. Outros fatores ainda, somavam-se ao comportamento do brasileiro na

composição de sua fama. A figura de Hermeto, albino, branco, de estatura baixa e

cabelos muito compridos e avermelhados, já então parecido com um "bruxo" (termo que

a imprensa nacional adotoria anos depois para denominá-lo), deve provavelmente ter

contribuído para aumentar a curiosidade dos americanos sobre o músico alagoano,

triplamente impressionados com sua linguagem musical, comportamento e figura algo

exóticas.

Aspectos menos importantes, como a aparência e o comportamento de Hermeto,

podem ser considerado totalmente irrelevantes para alguns, porém não para nós. Neste

momento, é a gênese do "experimentador carismático", do "bruxo" Hermeto Pascoal, que

nos interessa. Por isso, não descartamos o papel que o visual particular de Hermeto

desempenhou junto aos americanos (e à mídia atual) e que contribuiu na construção de

sua imagem pública de criador irreverente e experimental. "Louco".

Referindo-se ao episódio comentado acima, quando jogou as partituras para o

alto na frente de uma orquestra atônita, Hermeto diz simplesmente: "Eu não dei uma de

louco. Na verdade eu sou louco mesmo! Sempre fui!" (idem). Hermeto não parece fugir

da fama inspirada por seu comportamento, e nega que este tenha sido, ou seja ainda hoje,

um artifício construído e manipulado visando a fins sensacionalistas e comerciais. Não

seria necessário dizê-lo, pois a rapidíssima projeção de Hermeto no exterior só pode ser

explicada realmente através do talento e capacidade do próprio músico. Se levarmos em

conta que o recém-chegado Hermeto Pascoal era totalmente desconhecido nos E.U.A. e

não tinha gravadoras, mecenas, nem padrinhos, podemos constatar que seu
59

reconhecimento nos círculos musicais americanos ocorreu numa velocidade realmente

vertiginosa, que somente o "exotismo" não pode explicar. Airto conhecia - via Miles

Davis - importantes jazzmen norte-americanos e aparentemente abriu de fato algumas

"portas" profissionais importantes para Hermeto, mas estas nada teriam sido se Hermeto

não conquistasse efetivamente os músicos americanos com sua música. O que de fato

ocorreu.

No mesmo ano da gravação de seu disco, Hermeto conhece e toca com jazzistas

americanos de renome como Chick Corea, Herbie Hancock, Joe Zawinul, Wayne Shorter

e John McLaughlin, entre outros, além de um dos mais importantes músicos populares

americanos do século: o trumpetista Miles Davis.

Airto tocava com Miles nessa época e foi através dele que Miles e Hermeto se

conheceram:

(...) As músicas que eu gravei com ele, (Miles Davis) eu mostrei pra ele no violão, cantando
e tocando violão. (...) Aí bicho, eu toquei um monte de música para ele, umas 9 ou 10 músicas, e ele
sentado, e o Airto ficava naquela tensão né... (...) Eu nem tava olhando para ele (para Miles), estava
ligado no meu som, porque quando eu tava tocando para ele escutar, eu não estava tocando pensando
em arrumar trabalho, porque eu já tinha ido para lá com trabalho. (...) Aí ele disse assim: "ah, se eu
pudesse gravar estas músicas todas, pena que não dá para gravar todas num disco", olha o papo dele...
Quando o Airto traduziu para mim, eu disse, agora vamos ver como ele é. [Airto] fala para ele que eu
vim (para os E.U.A) também gravar, para fazer meu disco e que se ele acha que eu vou dar estas
músicas todas para ele gravar, quê é isso ? Aí virou brincadeira cara, porque foi de brincadeira que eu
falei. E ele sacou isso. (...) A partir deste dia, aí que ficou bonita aquela simpatia que nós tínhamos
um pelo outro. (HERMETO, 1997) 65

Os dois passam a nutrir uma forte admiração mútua e a parceria consolida-se na

participação de Hermeto como compositor e instrumentista em duas faixas do disco Live

Evil (Sony, 1972) de Miles Davis: "Igrejinha" e "Nem um talvez".66 Hermeto chegou a

ser convidado por Miles para substiuir o tecladista Chick Corea, que não podia viajar

para uma tournée no Japão com a banda de Miles. A burocracia brasileira no entanto,

65 Em entrevista por nós realizada.


60

atrasou os documentos de Hermeto e quando ele enfim chegou à Nova York, Miles e

banda já tinham seguido viagem.67 A experiência com o consagrado trumpetista Miles

Davis e os músicos ligados a ele, além de Airto e Flora Purim, teve o mérito de começar

a divulgar o nome de Hermeto no meio jazzístico americano e internacional, além de

certamente ter incentivado o músico alagoano, aumentando-lhe a auto-confiança no

desenvolvimento de seu próprio trabalho e carreira.

Tom Jobim falava anos atrás, que, infelizmente, o melhor caminho para o músico

brasileiro era o aeroporto. Não parece ter sido diferente com Hermeto. Porém, mais do

que tudo, os E.U.A. foram um ritual de passagem, um importante turning point

consagrador na carreira de Hermeto. Lá, este consolida sua habilidade como arranjador

escrevendo para big-bands, ao mesmo tempo em que é legitimado por músicos com

renome internacional, afirmando-se rapidamente nos cenários musicais americano e

europeu como um improvisador virtuoso no piano, flauta e sax e como arranjador e

compositor de concepção original.

É importante observar que na época que Hermeto tocou com Miles no disco Live

Evil (Sony, 1972), o estilo que Miles vinha trabalhando era o fusion, combinando o jazz

com o rock. O fusion nada tinha a ver com as duas músicas compostas por Hermeto e

gravadas no disco de Miles. Por que então este gravou as músicas de Hermeto num disco

que seguia outra linha completamente diferente? O depoimento aparentemente pouco

modesto de Hermeto sobre sua ida aos E.U.A., talvez não o seja de todo:

Acredito que influenciei todas estas pessoas [Miles Davis, Chick Corea, Herbie Hancock,
Wayne Shorter e Joe Zawinul]. Por exemplo, quando eu gravei meu primeiro disco solo nos E.U.A.,
havia na orquestra 40 garrafas com partitura especialmente criada para elas. Isso impressionou muito
Herbie Hancock. Logo depois ele também gravou com garrafas. Mas ele fez isso com espírito

66 As quais foram lançadas curiosamente como sendo de autoria do pistonista norte-americano.


Ver o encarte do CD, no qual não consta o nome de Hermeto como compositor em nenhuma das duas
faixas mencionadas.
67 Em entrevista por nós realizada em 10/11/1997.
61

sensacionalista. As pessoas ouviam seu disco e exclamavam: "Oh, as garrafas". Para mim, as garrafas
eram como os outros instrumentos, nem mais nem menos importantes que as flautas ou a guitarra. Fui
aos E.U.A. com o meu jeito de trabalhar e a vontade de mudar o hábito que obrigava os brasileiros a
irem lá para aprender com os músicos norte-americanos. No Brasil, a tendência é achar que só é bom
o que vem dos E.U.A.. Os músicos brasileiros vão lá, ouvem jazz, depois voltam ao Brasil e fazem
um disco que é cópia de um dos seus ídolos. Eu quis mostrar outra coisa que não é jazz, nem samba,
nem bossa-nova, pois tudo isso me cansa! (...) Sim eu faço música e sou brasileiro. Que entendam
como quiserem. (HERMETO, Jazz Magazine, 1984)

Realmente, apesar de indiscutivelmente influenciado pelo jazz - embora no trecho

acima citado, não assuma - Hermeto não confinou sua linguagem, nos discos gravados

nos E.U.A. e mesmo fora dele, em nenhum estilo específico, nem no jazz.68 Foi

justamente a heterogênea mistura de E.U.A. com nordeste brasileiro, (ocorrida desde o

"Gaio da Roseira"), e da música "clássica com o côco", somadas ao virtuosismo

interpretativo, que reservaram a Hermeto um lugar singular nos círculos musicais

americanos e europeus. Ele não pegou "carona" num dos muitos rótulos da indústria

cultural, ele criou o seu próprio, um anti-rótulo, que, à maneira de uma pistola giratória,

afirma não pretender respeitar limites nem de gênero, nem de estilo, em seu projeto

experimental.

Em 1972, excursiona pelos E.U.A. e México, e em 1973, grava no Brasil seu

segundo disco autoral, A música livre de Hermeto Paschoal (CBS, 1973). Voltando aos

E.U.A., grava em seguida o terceiro disco, Slave Mass (CBS, 1977), onde pela primeira

vez utiliza animais em suas composições. Um duo de porcos "afinados" e com registros

vocais diferenciados: um animal grunhia agudo e o outro, grave.

A partir de Slave Mass, alternando Rio de Janeiro e Nova York, Hermeto fará um

disco por ano: os LPs Zabumbê-bum-á (WEA Brasil, 1978), Hermeto Pascoal ao vivo

em Montreux (WEA Brasil, 1979), e Cérebro magnético (WEA Brasil, 1980).

68 Em nossa última entrevista com Hermeto (06/03/1999), ele nos disse que o jazz influenciou sua
música harmonicamente, mas que do ponto de vista rítmico, se comparado à rítmica brasileira, este estilo é
muito pobre. Quanto a improvisação jazzística, Hermeto lembra que há outros modelos que o
influenciaram igualmente, como por exemplo os cantadores de embolada e os repentistas nordestinos.
62

Em 1980, com 44 anos de idade, depois de muitas idas e vindas internacionais,

Hermeto retorna de vez ao Brasil. E de 1981 até 1993, constitui, após algumas tentativas

frustradas, um grupo permanente de músicos que se apresenta inúmeras vezes no Brasil e

no exterior, gravando seis LPs e alcançando reconhecimento internacional. Nossa

dissertação trata justamente deste período de Hermeto e Grupo, escolhendo para análise

um determinado repertório por eles gravado.

Com este grupo, Hermeto desenvolveria um estilo diferente em sua carreira. Se

até o Quarteto Novo, Hermeto trabalhava essencialmente com o universo popular

brasileiro (com ênfase na música nordestina), com algumas poucas influências do jazz - a

improvisação tradicional deste estilo por exemplo, com solos estruturados sobre uma

harmonia pré-estabelecida, além das (re-)harmonizações dissonantes - as influências

jazzísticas seriam, a partir dos E.U.A., mais fortememente assimiladas em sua linguagem,

na forma de longas improvisações atonais, dissolução do metro, pesquisa de timbres e

com ruídos, etc.

No período que estudamos contudo, Hermeto reserva a improvisação para o

processo de criação, para os shows e bem menos para os discos, que passaram a ter uma

ênfase maior na escrita. Os discos com longas improvisações coletivas ou solo, haviam

cedido lugar a uma outra concepção, que manteria no entanto algumas das características

dos períodos anteriores, como por exemplo, as harmonizações dissonantes e mesmo

atonais e a pesquisa com timbres obtidos não convencionalmente e ruídos, a exploração

de sons de animais, etc. O papel da escrita torna-se então mais importante que antes de

1981, conferindo a essa formação de Hermeto e Grupo determinadas características

camerísticas .
63

É com este grupo de músicos ainda, que Hermeto aos poucos abandona o papel de

intérprete e solista de seu próprio trabalho, passando a se dedicar mais ao arranjo e à

composição, inclusive de obras sinfônicas.69

Os músicos que o integraram foram: Itiberê Luis Zwarg (baixo elétrico, tuba e

bombardino), Jovino Santos Neto (piano, teclados, flautas), Antônio Luís Santana -

apelidado de Pernambuco - (percussão),70 Carlos Daltro Malta (saxes, flauta, flautim) e

Márcio Villa Bahia (bateria e percussão).

3.2. Dados biográficos dos integrantes do grupo

3.2.1 Itiberê Luiz Zwarg: nascido em 24 de janeiro de 1950 em São Paulo,

capital. Filho de família de músicos populares, os primeiros estudos foram iniciados aos 7

anos de idade em piano clássico. Troca de professor aos 10 anos, e aos 14, inicia o estudo

do violão, que é o instrumento que realmente "fisga" o músico, pois até então, os

professores de piano queriam ensinar-lhe leitura e teoria musical, das quais ele não

decididamente não gostava: "eu queria tocar" (Itiberê, 1998). O pai lhe mostra então os

primeiros acordes no violão, ao mesmo tempo que Itiberê sente-se atraído pela bossa-

nova e suas harmonias dissonantes, cujo repertório passa a aprender. Com 16 anos,

ganha um exótico baixo acústico de 3 cordas (lá - 1, ré 1, sol 1) que seu irmão, também

músico (pianista), comprara no Morro do S na Freguesia do Ó,71 para presenteá-lo.

Contra-baixo e piano, Itiberê e irmão passam então a tocar em duo, pois essa tinha sido a

69 Já executaram obras orquestrais de Hermeto, por ele chamadas de "arranjos para sinfônica", as
orquestras sinfônicas de Nova Iorque, Dinamarca, França e Berlim. Em Macedo Rodrigues, "Uma música
por dia". Rio de Janeiro: O Globo, 18/09/1990.
70 Infelizmente não pudemos entrevistar o percussionista.
71 Apenas como curiosidade, anos depois de ter ganho o baixo de seu irmão, Itiberê comporia um
choro chamado justamente, "Morro do S, Freguesia do Ó", explorando o S e o Ó desta localidade como
sinais musicais de repetição.
64

finalidade do presente. Cerca de 8 meses depois, o próprio Itiberê compra um baixo de 4

cordas.

Logo em seguida, o músico começa a tocar em bailes com o pai, e a partir dos 18,

na noite paulista. Em 1975, conhece e trabalha com Hermeto numa gravação de um jingle

em um estúdio em São Paulo, que havia contratado Hermeto como arranjador.72

Dois anos depois, em 1977, Hermeto encontrava-se sem baixista em sua banda e

uma amiga comum lembrou então de Itiberê, que imediatamente foi contactado por

telofone por Hermeto. Itiberê não só aceitou como disse: "daqui a pouquinho estou aí".

Dito e feito, pegou uma ponte aérea e três horas depois do telefonema de Hermeto, já

estava no Rio de Janeiro, bairro do Jabour. Isto ocorreu há 21 anos e nunca mais Itiberê

voltou. É o integrante mais antigo do grupo, tendo entrado 5 anos antes da formação que

pretendemos estudar. Nestes 5 anos, Itiberê (juntamente com o pianista Jovino Santos

Neto e o percussionista Pernambuco) gravou com Hermeto os discos Zabumbê-bum-á

(WEA Brasil, 1978). Hermeto Paschoal ao vivo em Montreux (WEA Brasil, 1979) e

Cérebro Magnético (WEA Brasil, 1980).

Permanece como baixista da banda de Hermeto até hoje.

3.2.2 Jovino Santos Neto: Nasceu em 18 de setembro de 1954, no Rio de Janeiro.

Aos 12 anos, seu pai compra um piano para a irmã de Jovino praticar. Jovino passa então

a ter aulas de piano clássico com a mesma professora da irmã. Este aprendizado durará

no entanto somente seis meses, pois Jovino se aborrecerá com a metodologia e o

repertório da professora.

72 Este estúdio era dos mesmos donos da futura gravadora de Hermeto e Grupo: a gravadora Som
da Gente.
65

Estimulado pelos bailes dos anos 70, e ao som dos Beatles e Rolling Stones,

Jovino passa a tentar reproduzir as harmonias rockeiras no velho piano. De ouvido

grudado no gravador de rolo que seu pai (rádio-amador) havia comprado, Jovino aprende

rock, blues, baladas, etc.

Em 1974, vai para o Canadá fazer faculdade de biologia. Lá conhece e toca com

músicos de jazz e integra uma banda progressiva. Em 1977, ao se formar, volta ao Brasil

querendo dar continuidade à sua carreira de biólogo. Quase indo para Manaus fazer o

mestrado e já com bolsa e moradia garantidas, conhece então Hermeto, que o chama para

dar uma canja num show. 73

Talvez nem seja necessário dizer que Jovino não só não foi para Manaus, como

também que gostou tanto da canja que resolveu repetir a dose por mais 15 anos. Somente

em 1992, desliga-se do grupo para iniciar carreira solo nos E.U.A..74

3.2.3 Carlos Alberto Daltro Malta: nascido no Rio de Janeiro em 25 de

fevereiro de 1960. Por volta de 1972, na casa de um amigo, Carlos Malta abriu uma

revista teen-age chamada Pop, numa reportagem intitulada "Leve a vida na flauta", que

curiosamente tinha a foto de Hermeto Pascoal dentre a de outros músicos. A maneira

como a flauta era descrita na reportagem, um instrumento extremamente portátil, ideal

para ser tocado no mato e na natureza, atraíram o garoto Malta, que pediu então à sua avó

uma flauta doce de presente.

Presente atendido, pouco tempo depois Malta compra um pífano de plástico

marca Yamaha que foi devidamente reafinado depois de um polimento artesanal feito a

73"Canja" é uma participação musical com caráter esporádico. Pode ocorrer por exemplo, quando
um músico é convidado para tocar uma ou duas músicas num show de outro artista ou ainda num disco,
como convidado especial.
66

faca pelo próprio garoto. E em 6 de setembro de 1975, aos 15 anos de idade, o músico

será presenteado com sua primeira flauta transversa.

A partir daí, começa a tocar em diversas bandas, e em 1977 compra um flautim,

também Yamaha, com o dinheiro ganho profissionalmente com a flauta transversa. Em

1979, já tocando com Maria Creuza, Antonio Carlos e Jocafi e um pouco depois com

Johnny Alf, tirará enfim a carteira de músico profissional da Ordem dos Músicos.

Com Johnny Alf, Malta viaja no projeto Pixinguinha tocando flauta e seu

primeiro sax, o soprano. Depois de um rápido e frustrado ingresso na Faculdade de

Comunicação, Malta faz o vestibular para a Escola de Música, e passa numa das três

vagas oferecidas para o curso de flauta. Fica seis meses na Escola, dos quais se lembra

mais especialmente das aulas com o flautista Celso Wotzenlogel, e das práticas de

orquestra, do que das aulas de teoria, das quais gostava bem menos. Algum tempo

depois, ingressará na Escola de Música Villa-Lobos para ter aulas de saxofone com Paulo

Moura.

Durante as férias, os alunos pediram que Paulo Moura continuasse se possível a

dar aulas. Assim num dia de janeiro de 1981, depois de uma visita à casa de Hermeto,

Paulo Moura comentava com os alunos sua surpresa com o que tinha visto, ouvido e

tocado no Jabour. Coincidentemente, alguns dias depois o próprio Malta será levado por

Virgínia Carvalho - uma amiga comum a ele e a Jovino - à casa de Hermeto, onde passará

a tarde tocando. Daí em diante, durante 11 anos, Malta integrará a banda de Hermeto. Em

1993, desliga-se do grupo para iniciar carreira solo.

74 Segundo informação de Márcio Bahia, o percussionista Pernambuco entrou no grupo no mesmo


ano que Jovino.
67

3.2.4 Márcio Villa Bahia: nascido em Niterói - RJ, em 18 de dezembro de 1958.

Em 1976 ingressa na Escola de Música Villa-Lobos dirigida então por Aílton Escobar.

Inicialmente Márcio pretendia estudar bateria, mas o curso ministrado pelo famoso

mestre Bituca, era de percussão orquestral. Destacando-se bem no curso, em 1977 Márcio

ingressará na Orquestra do Teatro Municipal como estagiário e, em 1978, será efetivado.

Participa da Orquestra durante dois anos, atuando também no grupo de percussão da

Escola de Música Villa-Lobos em diversos concertos e como solista em concursos.

Ainda em 1978, Márcio foi convidado pelos professores para integrar o grupo de

percussão da Rádio MEC num concerto da série "Concertos da Juventude". O programa

seria contituído de uma peça de Marlos Nobre, Ritmetron, executada pelo conjunto de

percussão da Rádio MEC, e na 2ª parte, Hermeto Pascoal e Grupo.

Para este concerto, Hermeto escolhera um repertório propositadamente mais

erudito, constituído entre outras músicas, de duas suítes; a Suíte Paulistana, e a Suíte

Norte-Sul-Leste-Oeste. Na ocasião, Márcio conhece pessoalmente Itiberê, Jovino,

Hermeto e Pernambuco, além do baterista da época, Nenê, de quem Márcio depois

comprará alguns pratos de bateria.

Em dezembro de 1980, Márcio se desliga da Orquestra do Teatro Municipal, para

se dedicar mais à bateria. O grupo de Hermeto estava sem baterista na época, pois Nenê

havia saído, e Alfredo Dias Gomes, que o sucedera, chegando a gravar o Lp Cérebro

Magnético, permanecera somente cerca de onze meses na banda. Assim, em janeiro de

1981, o percussionista Pernambuco com quem Márcio havia travado amizade desde o

"Concerto da Juventude", liga para Márcio convidando-o informalmente para vir tocar

com o grupo e dar uma canja, sem compromisso nenhum. Na verdade, Pernambuco

queria que o amigo Márcio entrasse na banda, mas tudo dependeria da avaliação final de

Hermeto. O baterista pensou duas vezes antes de aceitar o convite, pois não se
68

considerava apto para tocar com um músico como Hermeto, nem numa canja, mas

finalmente topou.

Coincidindo com a segunda visita de Carlos Malta, de quem Márcio era amigo,

durante três dias seguidos a formação que estudamos em nossa dissertação, se reuniu

tocando junta pela primeira vez. Era janeiro de 1981. Ao fim do quarto dia, Hermeto

perguntou a Márcio e ao saxofonista Carlos Malta se eles queriam entrar na banda.

Hermeto ainda tentou ponderar que, dada à grande distância que eles teriam que percorrer

até o bairro do Jabour, bastaria que viessem três vezes por semana, ao que Márcio e

Malta responderam em uníssono: "não, a gente quer todo dia".

Com seis meses de banda, a fim de amenizar a distância, baterista e saxofonista

passaram a repartir uma casa no Jabour, para tornar mais confortável a rotina diária de

ensaio, de segunda a sexta, seis horas por dia. Rotina que foi iniciada duas semanas após

terem entrado na banda.

3.3 Hermeto e Grupo de 1981 a 1993

3.3.1 Convivência, metodologia de ensaio e aprendizado

Durante 12 anos (1981-1993), esse foi o padrão de trabalho desenvolvido por

Hermeto e Grupo.75 Podemos perguntar se houve neste período, no panorama da música

brasileira, popular ou erudita, exemplo comparável ao desta formação, no tocante à forma

como dedicação e seriedade profissionais se traduziram em disciplina de ensaio. A rotina

diária consistia de ensaios das 14:00 às 20:00 hs., precedidos de trabalho matinal, quando

cada músico estudava suas partes individuais.

75 E apesar de Itiberê e Márcio Bahia tocarem com Hermeto até hoje, essa dinâmica de ensaio
praticada de 1981 à 1993, não mais se realiza, porque os dois novos integrantes da banda residem em São
Paulo.
69

De todas as formações que trabalharam com Hermeto, esta decididamente foi a

que mais ensaiou. Excelentes músicos, como Mauro Senise, Zeca Assumpção, Nenê,76

Márcio Montarroyos, Cacau, Alfredo Dias Gomes, Zabelê e outros, já haviam tocado

com Hermeto em suas bandas anteriores, mas se em nenhum deles faltava habilidade ou

talento, muito pelo contrário, o mesmo não se pode dizer da disponibilidade e tempo que

possuíam para ensaiar, viajar, gravar, etc.77

Com Itiberê, Jovino, Pernambuco, Carlos Malta e Márcio, Hermeto teve pela

primeira vez um grupo de intérpretes trabalhando diariamente juntos, durante anos. Em

1981, Itiberê tinha 31 anos de idade, Jovino, 27, Carlos Malta, 21, Márcio, 23. Se estes

jovens músicos não tinham a experiência dos outros músicos que tocaram com Hermeto,

possuíam em contrapartida, uma capacidade de doação que transcendeu todas as

formações anteriores a 1981. Essa dedicação foi fruto sem dúvida da admiração

despertada nos jovens músicos por Hermeto Pascoal78 e a possibilidade de tocar em sua

banda representou não só uma excelente oportunidade de aprendizagem e auto-

desenvolvimento, como também, o real início de suas carreiras. O relato do baixista

Itiberê é esclarecedor:

O Hermeto poderia ter tocado com medalhões desde o começo da carreira dele. (...) Ele sabia
que se tocasse com um Tony Williams, um Ron Carter, Herbie Hancock, Miles Davis, ou não sei
quem mais, ia ficar bonito é claro. (...) Mas é um monte de medalhões entende? Cada um ia puxar
para um lado e de repente o Hermeto não ia ter a liberdade nem a facilidade de colocar, porque ele
tinha uma coisa para dizer, uma linguagem e ele precisava dizer esta linguagem musical fazendo a
cabeça devagarinho de cada músico da banda, um por um. (...) Então isso aí é um trabalho muito
sério, e vingou, tanto é que tá eu aqui, o Malta, o Jovino, tá o Márcio Bahia, quer dizer cada um de
nós aqui está mostrando que é verdade e no futuro vai dizer mais ainda, porque a gente está
começando, como eles dizem, nosso trabalho solo. Que é uma coisa que eu discuto, porque meu
trabalho solo é dentro do grupo também. Eu não desvinculo isso aí. (...) Mas o pessoal acha que você

76 Estes três músicos integrariam mais tarde a banda de outra figura importante da música
instrumental brasileira: Egberto Gismonti.
77 Com exceção do baterista Nenê, que tocou com Hermeto por cerca de 10 anos.
78 O qual em 1981, tinha 45 anos de idade, e já possuía uma considerável experiência nacional e
internacional tendo tocado com músicos como Miles Davis, Ron Carter, Chick Corea, Herbie Hancock e
outros.
70

tem que ter um nome grandão com letras piscantes, pra poder dizer que este é teu trabalho solo. São
chavões da mídia. (ITIBERÊ, 1998)79

Como mais um exemplo de dedicação ao trabalho que abraçaram com unhas e

dentes, todos os integrantes da banda passaram a morar próximo à casa de Hermeto no

distante bairro do Jabour, somente para não perderem tempo nas idas e vindas diárias.

Além de serem membros do mesmo grupo, passaram também a ser vizinhos e dois deles,

Itiberê e Márcio, chegaram a constituir laços familiares com Hermeto. O primeiro elegeu

Hermeto e sua mulher Ilza, como padrinho e madrinha de seus filhos e o segundo, casou

com uma das filhas do compositor.

A estreita convivência entre os músicos da banda e o compositor, proporcionou

além de fortes laços de amizade e uniões familiares, uma intimidade com a composição

criada para aqueles músicos. Não que Hermeto simplificasse de alguma forma as

dificuldades técnicas dos intérpretes. Ao contrário, seu padrão de exigência foi altíssimo

desde o início. Desde o primeiro disco gravado por Hermeto e Grupo (Gravadora Som da

Gente, 1981), encontramos as peças "Série de Arco", e "Briguinha de músicos malucos

no coreto", ambas extremamente difíceis.

Um exemplo de como o conhecimento musical mútuo e a amizade partilhada

entre Hermeto e seus músicos era transformada em música, ocorreu quando o baixista

Itiberê teve que se ausentar por algumas semanas da banda, para fazer companhia à sua

mulher que estava adoentada em São Paulo. Ao voltar de viagem, Itiberê foi presenteado

com uma (difícil) linha de baixo, que Hermeto compôs tentando se por no lugar do

baixista, e imaginando o tipo de técnica, toque, articulação e fraseado que caracterizavam

o estilo de seu músico e amigo.80

79 Em entrevista conosco realizada em 04/10/1998.


80 Esta linha de baixo está registrada na faixa "Irmãos Latinos", Festa dos Deuses, CD. Polygram,
1992.
71

A intimidade a que nos referimos, facilitou sem dúvida que Hermeto desse vazão

à sua linguagem e assim, o compositor pôde levar os músicos a um patamar musical

progressivamente mais alto, fazendo de cada composição um estudo técnico-pessoal.

A rapidez com que os resultados foram sendo obtidos por Hermeto e Grupo

resultava destes três fatores: a intensa convivência entre compositor e grupo, a aplicação

e auto-superação contínua dos intérpretes e o desenvolvimento de uma metodologia de

ensaio que tentava combinar disciplina e prazer.

Pode parecer que toda esta "rotina" fosse sentida pelos músicos pesadamente,

como algo árduo que infelizmente eles tinham que se conformar, aceitar e conviver

durante anos. Mas não é verdade. Esta triste imagem, este "vale de lágrimas", não existiu

absolutamente. Hermeto era carinhosa e respeitosamente chamado pelos músicos, de

"Campeão". Multi-instrumentista e virtuose, compositor e arranjador, possuíndo o

carisma natural de líder, que exercia de forma amigável, Hermeto condensava em si todas

as capacidades de um grande professor e mestre (apesar dele negar estes "títulos"),

completadas por uma metodologia muito interessante:

A gente tinha uma metodologia muito legal (...), fomos aprendendo esta metodologia, o
Campeão sempre orientando. De manhã todo mundo limpar as partes individuais em casa e à tarde,
depois do almoço lá no ensaio, pra juntar. Então ele ensinou a gente a fazer só piano e baixo, todo
mundo olhando de fora entende (...), todo mundo marcando para ver se a polirritmia está perfeita, ou
se está pegando (se está errada), se tem nota suja, se não tem (...) depois piano e bateria, piano, bateria
e baixo, agora linha de saxofone, agora entra percussão... (ITIBERÊ, 1998)81

Uma das grandes coisas que eu aprendi lá, foi que eu aprendi a estudar. E apesar de tocar
uma música tão difícil porque era uma música rápida, uma música ligeira e tal, eu justamente aprendi
o quanto é importante você trabalhar devagar. Estas foi uma das grandes lições que eu tive lá no
Jabour, (...) como é que você aprende a chegar num brrrrrrrrrrr (imita o som de semifusas) que nem
o vento. Você tem que saber cada centímetro que você passou, cada nota, o som de cada nota, a
emissão de cada nota, como é que ela soa dentro de um compasso, dentro da frase, dentro de uma
parte da música, e nela inteira. (...) Você aprender a ver devagar uma coisa que vai passar em dois
minutos, você conseguir ter uma visão panorâmica daquilo alí, durante uma manhã inteira. (...) Então
eu acho que para você fazer qualquer coisa bem feita, você tem que ter esta calma, esta tranqüilidade
[...] e esta necessidade de você vencer todas as dificuldades, até mesmo "pô", você suando, 42º

81 Em entrevista realizada por nós em 04/10/1998.


72

(graus) alí na "mufa" (cabeça), você suando, mas falando (para si mesmo): enquanto eu não tocar este
pedaço direito eu não paro. (Carlos MALTA, 1998)82.

Eu estudava tanto os arranjos, as passagens difíceis, que aquilo ia ficando na cabeça. (...)
Chegou uma época que eu estudava a minha parte de percussão sozinho e cantarolava o arranjo
todinho. (...) Eu tocava a minha parte e sabia o que cada um estava fazendo em relação aquela minha
parte, o que o baixo fazia, o que o piano fazia, o que o saxofone fazia. (...) Eu desenvolvi isso no
grupo. (Márcio BAHIA, 1998)83

Ao invés de cansar, o processo de estudo e ensaio individual das músicas

possibilitava uma contínua realimentação das energias envolvidas no trabalho. O fato dos

ensaios serem diários conferia, sem dúvida, um sentido prático para o estudo solitário de

cada músico. Com Hermeto diariamente orientando, tocando junto com eles, criando para

eles, com os shows e as apresentações em Festivais nacionais e internacionais de jazz, os

discos, etc., é difícil imaginar que o tempo e esforço gastos no estudo do difícil repertório

não fossem recompensados de alguma forma.

Mesmo assim, a metodologia de trabalho de Hermeto e Grupo foi realmente única

e muitíssimo diferente da normalmente encontrada em formações eruditas ou nos

conjuntos populares de música instrumental. Talvez apenas através de subvenções e

patrocínios, um grupo no Brasil atual pudesse manter uma metodologia de trabalho como

foi a desta formação de Hermeto e Grupo durante doze anos. Porém, não havia

subvenções e patrocínios de qualquer tipo, o sustento vinha unicamente dos discos, das

temporadas no Brasil e no exterior principalmente. Mas a moeda que recompensava todo

este trabalho não era exatamente o dinheiro.

3.3.2 O processo de ensaio e criação das músicas: composição improvisada e

improvisação escrita ?

82 Em entrevista realizada por nós em 26/03/1998.


83 Em entrevista realizada por nós em 12/02/1998.
73

Todo mundo, papel e lápis. (...) Ele (Hermeto) já subia a escada com uma idéia na cabeça. Aí
ele sentava no piano e, (se dirigindo ao saxofonista) Malta toca isso aqui, aí o Malta tocava. Agora
fica tocando que eu vou fazer um negócio em cima. Aí, páááá, punha um negócio no piano em cima
daquilo, agora eu vou fazer o baixo, segura vocês dois (pianista e saxofonista fiquem repetindo o que
Hermeto tinha acabado de compor) (...) Aí ele chegava e tocava no grave do piano, ou do teclado, ou
no que fosse, aí eu pegava a minha linha. Tá bom... Por último ele sempre fazia bateria e percussão.
Agora escreve isso aí, e todo mundo escrevia, agora vamos para frente. E ia de pedaço em pedaço.
Chegava no final do dia ele tinha feito um tremendo dum arranjo. Ele compunha a música e já fazia o
arranjo de uma vez só. (o grifo é nosso) (ITIBERÊ, 1998).

O mesmo espaço que servia aos ensaios do repertório do grupo, era dividido com

a criação e o arranjo de novas músicas. Não cremos que esta "coabitação" ocorresse à toa.

De acordo com o que o baixista Itiberê narra acima, podemos concluir que mesmo

que Hermeto eventualmente "já subisse a escada (que levava ao 2º andar de sua casa,

onde se realizavam os ensaios) com idéias na cabeça", estas eram apenas gérmes iniciais

cujo desenvolvimento era sempre inesperado. O saxofonista Carlos Malta disse em

entrevista à nós concedida, referindo-se à maneira como Hermeto compunha e arranjava:

"nós fomos seqüenciadores vivos para ele". Malta quis dizer que, parcialmente, os

músicos da banda funcionavam como gravadores (seqüenciadores) que reproduziam

aquilo que tinha acabado de ser criado por Hermeto. Instrumento por instrumento,

seqüencialmente, as músicas iam assim sendo feitas em tempo real. Com ou sem uma

idéia inicial pré-estabelecida, a criação partia improvisadamente. Neste caso, intérprete,

compositor e arranjador fundiam-se em um só indivíduo.

A improvisação ocorre no agora e tem como destino desaparecer ou permanecer

viva através do registro da partitura, de recursos audio-visuais, ou ainda, na memória.

O que distingue no caso de Hermeto, o território do improvisado em relação ao

composto à primeira vista parece ser somente a escrita. Ao ser "congelado" em partitura

pelos músicos, o devir improvisatório passava a ser composição. E a composição feita

por Hermeto para cada instrumento e depois anotada e executada pelos músicos, era por
74

sua vez tornada uma estrutura sobre a qual Hermeto e os músicos novamente

improvisariam.

Porém, talvez seja mais próprio pensar num território distinto entre improvisação

e composição, a partir do papel que a escrita tem no processo criador. Ao registrar o que

era espontaneamente criado por Hermeto, seja para que instrumento fosse, a partitura

permitia um certo jogo formal, oferecendo uma gama de possibilidades no trato e

manipulação do material anotado, inclusive de modificações posteriores, que a

improvisação pura e simples dificilmente proporcionaria. Quem faz a distinção é o

próprio Hermeto:

- Porque eu faço na minha vida (...) praticamente uma música por dia, escrita. Então isso não
é improviso. Justamente para eu poder improvisar quando eu for tocar.
- Então a música que você toca está escrita?
- Não, a que eu toco não. A que o grupo toca, a que eles tocam está escrita, mas eles
improvisam muito também. (HERMETO, Jornal Catacumba, 1992)
Por isso dissemos acima que a coabitação no mesmo espaço entre a criação e a

improvisação por um lado e a repetição do já feito, por outro, não ocorria por acaso. Pois

se a composição e o arranjo não eram estruturados de antemão pelo compositor, mas sim

criados improvisadamente durante os ensaios para depois serem grafados e se mesmo as

músicas depois de escritas, servirão por sua vez para futuras improvisações, tanto por

Hermeto como pelos outros músicos, o processo como um todo é caracterizado por uma

tendência constante e consciente ao inesperado e à surpresa.

Mesmo sofrendo a influência da escrita e destinando-se à técnica de um

instrumento específico, no processo de criação de Hermeto a improvisação será o alfa e o

ômega, sempre antecedendo e sucedendo o escrita.

Talvez agora fique mais clara a diferença entre o conceito de improvisação como

é entendido por Hermeto, em relação àquele praticado pelas escolas jazzísticas

americanas, da qual a dissertação de José Carlos Prandini, por nós comentada no cap. II,

é exemplo:
75

Porque a improvisação é uma coisa gozada. (...) O americano acha que a improvisação é
uma coisa preparada. E não é. É liberdade. (...) Eu gosto de improvisar, eu gosto de criar na hora. Eu
gosto de me surpreender para surpreender as pessoas. (...) Você sabe o que é novidade para mim? É
acreditar em si, acreditar sem medo. Não precisa premeditar. Se você cria não precisa premeditar.
Quem é um criador médio premedite, e quem é um criador solto não premedite. Tenha coragem, tenha
vontade de fazer. (HERMETO, Jornal Catacumba, 1992)

A improvisação para Hermeto não se limita à construção de novas melodias sobre

um esquema harmônico pré-estabelecido, "o americano acha que a improvisação é uma

coisa preparada. E não é." A improvisação é um ato de coragem mais total que a mera

reinvenção melódica fazendo uso de escalas de acorde, é antes, um mergulho no

desconhecido. É ela ainda, que distinguiria para Hermeto, o "criador médio do criador

solto".

Dessa maneira, já numa das primeiras apresentações do baterista Márcio Bahia

com a banda, Hermeto pediu que o baterista simplesmente entrasse no palco e solasse

livremente usando somente a caixa da bateria... Em todos os shows de que participamos

neste período não houve um que não fosse pedido ao baterista praticamente o mesmo. E

não só a ele como também a todos os demais integrantes do grupo, pois os músicos se

alternavam improvisando tanto sem acompanhamento como acompanhados, neste último

caso, freqüentemente em "chorus" bastante longos. Neste sentido, é de se lamentar que

não haja um só disco ao vivo desta banda com Hermeto (como por exemplo, Hermeto

Paschoal ao vivo em Montreux, WEA, 1979) pois sua performance ao vivo era

completamente diferente da do estúdio de gravação. Ao vivo, o repertório gravado era

acrescido constantemente de improvisações criadas no calor do contato com o público. O

espaço para a improvisação individual dos músicos, bem como do próprio Hermeto, era

sem dúvida, mais plenamente exercido ao vivo que no estúdio de gravação.

Esse disco novo eu escrevi praticamente ele todo, escrevi as partes de cada um dos
instrumentos pro grupo todo. O espaço prás improvisações existe, mas é muito pouco. Eu acho que o
arranjo funciona mais no caso do disco. Quer dizer, eu penso isso agora. Antigamente não,
76

antigamente eu improvisava demais nos discos. Aí fui vendo, fui vendo, que pra improvisar é muito
melhor ao vivo. (HERMETO, Jornal Catacumba, 1989)

No estúdio, Hermeto e Grupo improvisarão menos e o compositor trabalhará mais

sua veia de arranjador, aproveitando as possibilidades proporcionadas por recursos de

gravação como o play-back, que o permite superpor um número maior de instrumentos e

vozes que ao vivo. Por isso, nos discos gravados desta fase, o band-leader Hermeto será

sempre o principal improvisador e solista, diferentemente do que ocorria ao vivo. O

pouco espaço para improvisações nos discos não pareceu contudo, ter desestimulado os

músicos. Por que?

3. 3. 3 A participação dos músicos no processo de criação

Talvez a verdadeira chave do total envolvimento dos músicos no processo de

ensaio e criação, esteja no próprio Hermeto e na sua maneira de ensinar, convidando o

intérprete a participar da música como um co-criador.

Eu não sou bem um professor do pessoal do grupo, porque eu também aprendo com eles. Por
exemplo, se eu ensino um negócio pro músico, eu não imponho a ele uma condição de fazer como eu
faço. Eu faço e digo "toca aí pra ver como é que você toca, como é que você sente isso". Aí eu dou
uma rebarbadinha em qualquer problema rítmico, uma coisa assim. Mas o sentimento do cara, esse eu
não quero mexer, interferir. (HERMETO, Jornal Catacumba, 1989]

Por isso, os músicos da banda não eram somente "seqüenciadores", reproduzindo

como gravadores sem personalidade e sentimento as idéias de Hermeto, mas eram por

Hermeto encorajados a não só improvisarem como a buscarem seu próprio estilo:

Estar juntos, criar juntos, não quer dizer criar igual. Andar juntos sim, para criar, para formar
coisas. (HERMETO, Jornal Catacumba, 1992)

Hermeto estimulava não a reprodução ou cópia de um modelo que podia ser ele

mesmo ou outro músico qualquer, mas a auto-descoberta estilística individual.


77

Mas, já que o processo de criação ocorria num espaço comum a compositor e

intérprete, até que ponto os músicos contribuíam com idéias para a criação ou

interpretação da música?

O baixista Itiberê resume a participação dos músicos e sua interação com

Hermeto, como um processo que exigia responsabilidade e maturidade por parte dos

intérpretes e que esse espaço foi sendo conquistado lentamente, à medida que cada

músico se desenvolvia. Hermeto era o líder, e a relação do grupo com ele marcava-se

naturalmente por um certo respeito somado à admiração. Nem por isso, devemos

imaginar um cenário estático constituído de dois diferentes patamares dispostos

verticalmente: o criativo (representado pelo compositor), e o meramente reprodutor

(constituído pelos músicos):

Não existe ninguém que toca e deixa tocar mais que o Hermeto. Ele é um criador, e um
criador só pode se dar bem com quem cria também. Agora, criar é sinônimo de responsabilidade. É
muito fácil você ser irresponsável tocando uma música livre. (...) Difícil é você tocar livre, ouvindo
todo mundo, procurando os espaços vazios para colocar as suas coisas, ouvindo harmonicamente, se
inspirando, conseguindo estimular quem está tocando do seu lado e ser estimulado pelo que você está
ouvindo. (...) A coisa veio acontecendo gradualmente, eu vim a ter responsabilidade, mas sem deixar
de criar. Então a cada disco que eu fazia eu ficava mais solto. Ele (Hermeto) em vez de escrever tudo
para mim, passou a escrever somente a cifra e assim foi com os outros também (os demais integrantes
da banda). (ITIBERÊ, 1998)

De acordo com o depoimento acima citado, podemos notar que ao longo dos anos,

os músicos foram ganhando espaço para a criação individual, traduzida em improvisação.

Pode-se notar esse aumento de espaço parcialmente através dos próprios discos. Se no

primeiro disco, o de 1981, nenhum dos músicos (com exceção de Hermeto) improvisa, a

partir do disco de 1984, o espaço e os "chorus" (trechos com determinado número de

compassos e harmonia pré-estabelecida), para algumas improvisações individuais

aparecerão. Porém, como já dissemos, este espaço foi sempre pequeno.

Na verdade, isso importa pouco, pois de acordo com o que foi exposto acima por

Itiberê, a própria performance, o ato de tocar em grupo era uma atividade criadora. A
78

prática de conjunto de Hermeto solicitava do intérprete bem mais que o simples

cumprimento de diretrizes estabelecidas a priori. Se determinados limites necessários à

manutenção da estrutura musical concebida por Hermeto eram mantidos, estes limites

não significavam, contudo, a exclusão das contribuições individuais de cada intérprete e

de sua participação performática e improvisada como co-criador. Neste sentido, o espaço

para os solos do grupo nos discos gravados no período por nós estudado parece ser

limitado somente em aparência. É a concepção de solo que parece inadequada.

Convencionalmente, solo significa um único instrumentista criando uma melodia sobre

uma base harmônica pré-estabelecida. No entanto, de disco em disco, os músicos da

banda de Hermeto adquiriram liberdade para interpretar as partes escritas por Hermeto

como se fossem elas mesmas, solos. Assim, a interpretação individual se integrava

organicamente a uma estrutura musical coesa, mas ao mesmo tempo aberta e permeável à

contribuição de cada músico.

Podemos pensar que sempre houve espaço para a criação individual na banda de

Hermeto também no que diz respeito aos arranjos das músicas. Como as partituras

revelam, há sempre um maior ou menor grau de criação dos músicos nas composições de

Hermeto. Em determinados trechos das partes, há somente a indicação de um estilo

(frevo, baião, marcha, etc.), cujas levadas e desenhos rítmicos seriam criados à vontade

do baterista. Na 2ª parte da música "Arapuá" por exemplo, enquanto piano, sax barítono

e baixo lêem as partes, o baterista está improvisando livremente na bateria.

Em todas as partes manuscritas que coletamos para baixo, piano, sax ou flauta e

bateria, raramente aparecem sinais de dinâmica. Ao anotar as idéias que Hermeto ia

ditando, os músicos se preocupavam mais em registrar os dados referentes à altura e

duração do que outros como dinâmica, articulação, fraseado, etc. Como, obviamente, os

músicos não tocavam na mesma dinâmica todo o tempo, o acabamento posterior destas
79

partes era em grande parte realizado pelos próprios músicos em ensaios, que podiam ou

não contar com a presença de Hermeto. Por sinal, tornou-se comum que, com o passar

dos anos, Hermeto subisse cada vez menos para ensaiar os músicos, à medida que estes já

possuíam uma metodologia, uma prática de conjunto eficiente e um repertório vasto para

trabalhar:

Esse grupo para mim é tudo que eu estou fazendo agora. É um pessoal que não mede
vontade de trabalhar, de tocar, de estudar. É uma família, e eu poderia falar sem parar sobre todos
eles, todos eles estão aqui no meu coração. Nós ensaiamos todos os dias de duas da tarde até oito,
nove horas da noite, menos sábados e domingos. Mesmo quando eu saio fica tudo programado,
certinho. Agora por exemplo, eu estou aqui e o ensaio tá rolando lá. (HERMETO, Jornal Catacumba,
1989)

Enquanto os músicos ensaiavam no segundo, as novas músicas eram compostas

(sem instrumentos) por Hermeto no primeiro andar. Assim, diariamente, novas partituras

chegavam para os músicos, silenciosamente postas por debaixo da porta do segundo

andar. Hermeto não subia porque queria improvisar e compor, mas os músicos estavam

ensaiando. Isso fez com que algumas vezes os músicos falassem entre si, em tom de

brincadeira, ao vê-lo chegando, "ih, lá vem o chefe atrapalhar nosso trabalho" (Malta,

1998).

Por outro lado, a manutenção constante de um repertório de muitas músicas, que

passou a independer da presença de seu criador, possibilitou que Hermeto abrisse uma

frente para si mesmo. Data daí, o início mais sistemático de composições para orquestra,

possibilitado pelo diminuição do tempo de trabalho com o grupo.

3.3.4 Considerações finais sobre a "escola" de Hermeto e o papel do Grupo na

consolidação da linguagem deste último


80

É importante observar que o aprendizado destes grupo de músicos não se

restringiu ao desenvolvimento estritamente técnico-instrumental. Hermeto queria ter ao

seu lado não só músicos que simplesmente executassem bem um difícil repertório, mas

também improvisadores e criadores. Do ponto de vista técnico, os integrantes da banda

sem dúvida aprenderam algo do Hermeto multi-instrumentista, pois ao longo dos anos a

paleta sonora do grupo será acrescida de novos instrumentos que os músicos foram

somando aos que tocavam inicialmente. Itiberê tocará além do baixo elétrico, tuba e

piano. Malta, todos os saxes e flautas. Jovino, além do piano e diversos teclados, flauta e

flautim. Márcio irá incorporar à sua bateria conjuntos variados de percussões como o

jererê (um naipe de tupperware84), campanas (címbalos) e pequenos sinos com diversas

notas.

A "escola" não se resumiu a isso. O convite à criação por sua vez, frutificou

durante estes onze anos de convivência e estes intérpretes não só evoluíram nos

instrumentos que tocavam ao entrar no grupo, como aprenderam outros instrumentos,

além de se tornarem também, compositores e arranjadores.85

Quando um músico entra no meu grupo, geralmente ele sabe tocar um instrumento. Pouco a
pouco, eu lhe encorajo a pegar outros, o que pode levar a trocar totalmente de instrumento. Em todo o
caso, isso só vai enriquecer sua criatividade. Praticar música implica em pesquisa e aprendizado
permanentes. Quando um músico integra meu grupo, eu quero que ele saiba bastante sobre música e
rapidamente ele perceberá que, na verdade, sabe muito pouco e tem muito a aprender. Ele não é
obrigatoriamente um compositor quando chega no grupo, mas em 2 ou 3 anos, ele será capaz de
escrever uma partitura de nosso repertório e, sobretudo, de voar com suas próprias asas, fazer um
disco solo. (HERMETO, Revista Jazz Magazine, 1984)

É necessário que façamos justiça ao papel que estes músicos tiveram para a

carreira do próprio Hermeto. Pois foi através destes aplicadíssimos músicos que Hermeto

pôde projetar-se definitivamente no cenário nacional e internacional da música popular,

84 Acondicionadores de alimentos feitos de plástico.


85 Ver na discografia, os trabalhos-solo de Jovino Santos e Carlos Malta.
81

consolidando e expandindo o lugar conquistado lentamente desde o "Gaio da Roseira"

em 1971. Além disso, acreditamos que Itiberê, Jovino, Pernambuco, Carlos Malta e

Márcio Bahia, não só possibilitaram que Hermeto realizasse sua concepção de forma

mais completa que antes, como também que estes mesmos músicos contribuíram com

suas bagagens individuais para a elaboração e realização das músicas do repertório.

Além do tempo diariamente dedicado ao ensaio de um repertório difícil - fator

que é sem dúvida um diferenciador desta formação em relação às anteriores à 1981, pois

é lógico supor uma certa proporção entre o aprimoramento técnico-interpretativo e o

tempo investido na prática e estudo - todos os integrantes do grupo (com exceção do

percussionista Pernambuco), além da formação popular, tinham pelo menos passagens

pela música erudita. Márcio Bahia foi percussionista de orquestra antes de ser baterista de

Hermeto e o saxofonista e flautista Carlos Malta tinha estudado com Celso Wotzenlogel

na Escola de Música da U.F.R.J. e com Paulo Moura na Escola de Música Villa-Lobos.

Itiberê e Jovino tiveram aulas de piano clássico e todos abandonaram a erudição para se

concentrar na música popular.

Este dado é importante, pois foi justamente a capacidade de ler e escrever música

fluentemente, somada, como já dissemos, ao talento e aplicação de cada um dos

integrantes da banda, à convivência diária e "semi-tribal" de compositor e grupo, etc.,

que os ajudou a manterem seu lugar na banda. A maneira como Hermeto compunha,

improvisando e depois pedindo que os músicos escrevessem o que ele acabara de criar,

exigia de fato uma escrita bastante rápida.

O fato de Márcio Bahia ter sido percussionista de orquestra antes de ser baterista

do grupo de Hermeto, tornou possível que Hermeto criasse as partes de bateria da

maneira erudita. A leitura fluente de Márcio somada à sua dedicação ao estudo, fez com

que Hermeto pudesse criar ritmos complexíssimos, como por exemplo um desenho "em
82

que o chimbáu está em tercina, o bumbo em semicolcheia e o prato em colcheia" (Jovino,

1997).86 As possibilidades que o novo baterista com formação popular e erudita pôs à

disposição de Hermeto, contribuíu sem dúvida, para a cozinha (baixo-bateria-percussão)

do grupo de Hermeto ter uma "cara" diferente das bandas anteriores à 1981.

Carlos Malta por sua vez, já tocava na época de sua entrada na banda, flauta e sax

soprano, o que, somado ao aprendizado posterior de outros instrumentos, permitiu que

Hermeto fosse aos poucos cedendo o lugar dos instrumentos de sopro da banda para

Malta, ao mesmo tempo que dedicava-se mais à composição.

Através deste grupo de multi-instrumentistas e com uma variada paleta sonora à

sua disposição, Hermeto pôde exercitar como nunca sua veia de arranjador. O trabalho

constante nos arranjos instrumentais do Grupo parece ter encontrado um

desenvolvimento nas composições para orquestra. Esta nova frente na carreira do próprio

Hermeto, ocorreu simultaneamente à seu trabalho com o Grupo.

Concluindo, Hermeto e Grupo, compositor e intérpretes, concepção e realização,

não podem ser entendidos satisfatoriamente se não verificarmos que sua trajetória 1981-

1993 foi uma via de mão dupla, cujo dinamismo alimentou trocas recíprocas.

3.3.5 Fim de ciclo/começo de outro

Em 1993 se encerra o período que estudamos, com a saída de dois integrantes, o

pianista Jovino e o saxofonista Carlos Malta, que deixam o grupo de Hermeto para iniciar

carreira solo. Vemos suas saídas como uma conseqüência natural do crescimento

individual dos dois músicos. Mesmo que suas saídas tenham marcado o fim de uma fase,

para nós histórica na música brasileira, após respectivamente quinze e doze anos de

intensa convivência, troca e aprendizado com Hermeto, era justificável que Jovino e

86 Ver as análises no cap. V.


83

Carlos Malta tenham sentido necessidade de construírem um espaço pessoal e comercial

próprios. Afinal, essa foi a luta do próprio Hermeto, desde as Rádios, passando pelas

boates e as gravadoras multi-nacionais, até alcançar merecido renome internacional.

Em 1997, Jovino Santos grava nos E.U.A. com um quarteto instrumental seu

primeiro disco autoral, o CD Caboclo (Liquid City, 1997), ao mesmo tempo que divulga

a obra de Hermeto Paschoal, para duos, trios, quartetos, grupos de câmara, conjuntos

instrumentais acústico-eletrônicos87 e orquestras. Carlos Malta já gravou três discos solo

desde 1993, atuando ainda como intérprete com outros artistas brasileiros.88

Ambos foram substituídos por outros músicos (André Marques - piano e Vinícius

Dorim - sax)89 e os demais intérpretes continuam tocando com Hermeto até hoje,

desenvolvendo paralelamente diversos projetos solo, onde atuam como intrumentistas

(Márcio Bahia) e arranjadores e compositores (Itiberê Zwarg).

87 Como por exemplo o grupo americano Bang on the Can, que gravou a música "Arapuá" de
Hermeto no disco, Cheating, Lying, Stealing. SONY, 1996, SNY 62254-2.
88 Ver discografia.
89 O flho de Hermeto, Fábio Paschoal, passou a integrar o grupo como percussionista a partir de
cerca de 1990.
84

4 - CONSIDERAÇÕES SOBRE ACÚSTICA E PSICO-ACÚSTICA

4.1 Um ruído constante

Vimos no capítulo anterior como a trajetória de Hermeto Pascoal - de Lagoa da

Canoa, passando por rádios do nordeste, regionais e casas noturnas no Rio de Janeiro e

São Paulo, até o Quarteto Novo e os discos no exterior - permitiu que o músico tivesse

diversas experiências profissionais, incorporando vários estilos e elementos musicais em

sua linguagem: música nordestina folclórica e popular (1936 - 1949); serestas, choro e

jazz (1950 - 1960); bossa-nova, samba, swing e música cigana (1961 - 1969).90 Vimos

também que Hermeto começou a ser reconhecido internacionalmente e a se legitimar

como instrumentista, arranjador e compositor, a partir de sua estadia nos E.U.A. em

1970/71.

Conforme verificamos, a linguagem de Hermeto sempre apresentava alguma

diferença na maneira como combinava códigos musicais e na inovação que operava sobre

eles. Desde o LP Quarteto Novo (1967), passando por Seeds on the ground (1970), até

seu primeiro disco solo, Brazilian Adventure (1971), o músico alagoano se destacava

permanentemente como um artista que já tinha uma maneira própria de tocar e conceber

música.

90 Esta lista é bastante abreviada


85

Se a linguagem de Hermeto, tal como foi apresentada desde seu primeiro disco

solo em 1971 não se limitava aos estilos com que o músico travou contato antes desta

data, nem a outros, como o jazz americano por exemplo, onde então devemos buscar as

fontes da concepção da linguagem constantemente transgressora de Hermeto?

Entendendo a diferença ou ruído como uma ruptura ocorrida tanto no nível

musical como no sócio-econômico,91 pudemos verificar na condição que Hermeto

ocupava como intérprete contratado por Rádios e boates, certos limites profissionais, que

o músico rompeu se tornando arranjador e compositor, além de instrumentista. Assim

sendo, a diferença da linguagem musical de Hermeto encontrava uma correspondência na

relação estabelecida por ele com a sociedade.

Como bem observou a profª Dra. Elizabeth Travassos na defesa dessa dissertação,

"a rebeldia de Hermeto encontra uma justificativa nas tradições sócio-culturais de sua

própria vida, sobre as quais o músico exerce a experimentação. A tradição popular

nordestina da música como uma atividade artesanal e autônoma, com base nas unidades

familiares, parece explicar parcialmente a desconfiança de Hermeto com a tecnologia

("não vou fazer propaganda da fábrica de sampler", diz ele) e, principalmente, a rebeldia

constante frente aos donos de rádio, casas noturnas e gravadoras. Como resquício da

autonomia do sanfoneiro agricultor que não se enquadra como músico empregado,

Hermeto recusa ser mão-de-obra fácil para a indústria cultural. Da mesma forma ele

retoma a tradição de fazer música em família, opondo ao anonimato da mão-de-obra

empregada pela indústria, a formação de uma comunidade constituída através de laços de

vizinhança e parentesco com os músicos do grupo". Segundo Elizabeth Travassos, dessa

maneira o ruído da linguagem musical de Hermeto encontra uma correspondência na

relação estabelecida pelo músico com a sociedade: seria o espelho de um embate entre
86

modos de produção diferenciados, i.e., o artesanal e rural por um lado, e o industrial e

urbano, por outro. 92

Como um simulacro desta relação, o território musical traçado por Hermeto

adquire limites só aparentemente pouco claros, por não se filiar com exclusividade a

nenhuma escola, tendência ou estilo específicos, e nem a nenhum patrão. Mas não é por

isso mesmo que Hermeto define sua música como "música livre", ou ainda, "música

universal"? Como pudemos observar no capítulo anterior, a liberdade que ele reinvidica é

tanto estética como profissional:

Hoje em dia entendo que a mídia não alcança o trabalho sério. E isso no mundo todo. Por
isso grandes músicos se desesperam, como Herbie Hancock, Chick Corea, todos meus amigos, o
próprio Miles Davis. (...) Eles foram na onda. Como se o povo não estivesse gostando do que eles
faziam. Eu penso justamente o contrário. (...) estou com o povo que me quer. O povo que me quer é
aquele que não está procurando saber o que vai querer. É o povo que está querendo querer.
(HERMETO, Backstage, 1998)

A retomada de tradições artesanais e rurais, mesmo que entendida num sentido

amplo - pois segundo Elizabeth T., Hermeto faz desta retomada um gesto de rebeldia

diante da indústria musical - não esclarece suficientemente, do ponto de vista musical, a

diferença de sua linguagem. Pois se por um lado ele continua sendo um artesão, ligado às

tradições sócio-econômicas do nordeste, por outro lado, no entanto, sua música não se

resume às influências da música popular de tradição oral. Sua insubmissão e rebeldia não

significaram, por exemplo, a opção musical pelo regionalismo de inspiração

nacionalista.93 No seu projeto de música "livre" e/ou "universal", o público-alvo é, como

diz Hermeto, "aquele que está querendo querer."

91 Ver Jacques Attali, op. cit.


92 Elizabeth Travassos lembra ainda de outra tradição que Hermeto parece dar continuidade: a dos
deficientes visuais músicos do Nordeste, como por exemplo os rabequistas, repentistas e cantadores como
Cego Oliveira, Cego Aderaldo, etc.
93 Já mencionamos anteriormente a posição crítica de Hermeto com relação à orientação
nacionalista de Geraldo Vandré durante o Quarteto Novo.
87

A abordagem marxista sugerida pelo texto de Attalli, que estabelece a luta de

classes como modelo geral de interpretação teórica, nos foi útil para verificarmos como

as tensões econômicas ocorridas dentro das hierarquias músico-profissionais serviram de

pano de fundo na trajetória de Hermeto. As atividades de intérprete, arranjador e

compositor (poderíamos acrescentar ainda, a figura do regente), constituem níveis

hierárquicos de legitimação dentro da música popular instrumental. Contudo, no que diz

respeito à remuneração na música popular em geral, o mais comum é que a situação

anterior se inverta. Ou seja, o intérprete passa a ocupar o alto da hierarquia econômica e o

compositor, a base, a não ser que este acumule também a função de intérprete de suas

próprias composições, o que ocorre com freqüência.

O caminho que Hermeto percorreu profissionalmente, acumulando as funções de

intérprete, arranjador e compositor, marcou-se por um conflito constante com seus

patrões, fossem eles donos de Rádios, boates ou gravadoras. O músico galgou estes três

níveis movido por uma contingência interna de ordem muito mais estética do que sócio-

econômica, pois o caminho mais promissor do ponto de vista comercial não foi o

escolhido por Hermeto. Apesar de ser reconhecido internacionalmente e de ter tido várias

chances de morar no exterior e ganhar muito dinheiro - tocando com Miles Davis (!) por

exemplo - Hermeto sempre abriu mão do "estrelato subalterno", preferindo a via mais

difícil, mas que era a única que lhe satisfazia. Desenvolver seu próprio trabalho, sem

fazer concessões comerciais, que, ao mesmo tempo, lhe trariam status econômico e

social, lhe privariam de liberdade.

Novamente perguntamos então: a que se deve a constante diferença na linguagem

musical de Hermeto, verificada desde o início de sua carreira? Os estilos que o músico

tocou e assimilou antes de seu primeiro disco solo foram incorporados à sua linguagem,

mas esta sempre apresentava uma diferença que ultrapassava estes estilos. Por outro lado
88

seria absurdo lado achatar o projeto artístico de Hermeto, tomando-o como resultado de

uma ambição de ascensão social e ganho pecuniário, pois está claro que o

experimentalismo de sua linguagem musical anda na contra-mão do sucesso fácil e bem

remunerado.

Se não encontramos nos estilos que Hermeto tocou ao longo de sua carreira, nem

na dinâmica estabelecida pelo músico com a sociedade, justificativas que esclareçam

suficientemente sua linguagem musical, como então e onde, poderemos encontrar a

resposta para seu ruído e diferença?

Todos os integrantes do Grupo e o próprio Hermeto, apontam numa direção fixa:

a infância do músico alagoano.94

Como eu fazia? Na primeira vez [com 7 anos de idade] amarrei com barbante, e através de
um buraquinho, um ferrinho no outro. Só que não tinha som. De repente a imaginação me diz: Olha,
amarre com um arame fininho, porque ele não abafa o som. Segui a intuicão e comecei a bater os
ferrinho uns de encontro aos outros. Depois começei a descobrir música, fazer melodias.
(HERMETO, Backstage, 1998)
Quando eu era pequenininho tocando a oito-baixos, com 8, 9 anos de idade eu tava tocando
forró e era assim: meu irmão tocava e eu tocava pandeiro, depois agente revezava. Tocava para
dançar em baile, casamento e quando eu pegava na oito-baixos eu já "entortava" a oito-baixos. Aí
muita gente chegava correndo e dizia: tira esse galego aí, deixa o irmão dele tocar e ele toca pandeiro
porque ele (Hermeto) está tocando umas músicas muito doidas. Eu extraía dos ferros, das pancadas
que eu dava nos ferros, aquelas harmonias. (HERMETO)95
(...) Até os 14 anos fiquei em Lagoa da Canoa, (Alagoas) minha terra, em contato com a
natureza. Todo mundo acha que a natureza é só isso. Não é. Ela pode estar até mesmo dentro de um
carro, na Avenida Brasil, em hora de trânsito, com chuva. A natureza pra mim é tudo o que você vê
pela frente. É o cotidiano. (HERMETO, Backstage, 1998)

De fato, estas experiências combinando os sons harmônicos (da sanfona e das

flautinhas feitas de galho de mamona) e inarmônicos (dos ferros percutidos, dos bichos e

da natureza), parecem ter constituído modelos composicionais para a linguagem de

94 Todos os músicos são unânimes neste ponto. O baixista Itiberê acrescentou à busca de modelos
musicais nos sons da natureza e do cotidiano, a criação musical a partir de imagens, lugares e ambientes.
Como exemplo citou a música "Montreux" gravada no LP com o mesmo nome. Esta música foi feita por
Hermeto horas antes de ser tocada (e gravada) no Festival de Jazz de Montreux na Suíça. Hermeto estava
sentado de frente à janela de seu quarto olhando para o lago em frente ao hotel, e escreveu sem
instrumentos, em guardanapos que estavam sobre a mesa do quarto, a música que à noite seria tocada e lida
89

Hermeto, que são refletidos musicalmente de maneira consciente através de várias

"citações sonoras auto-biográficas". Ver por exemplo, a lista apresentada por nós no Cap.

I contendo a relação de vários sons de animais que Hermeto já utilizou em suas músicas.

Em relação aos sons de ferros percutidos, Hermeto já fez referência à eles diretamente na

música "Cores", que analisaremos mais à frente, além de compôr músicas, como a peça

"Ferragens", na qual as harmonias tentam reproduzir as sonoridades inarmônicas dos

ferros.

O pianista Jovino sugeriu no Cap. I, que a linguagem harmônica de Hermeto

freqüentemente superpõe tríades e outros elementos harmônicos de maneira não

funcional, por causa do mecanismo da sanfona de oito baixos que Hermeto utilizava para

tocar os sons inarmônicos de sua infância. Assim, segundo o pianista, Hermeto teria

desenvolvido uma linguagem harmônica própria, independente de escolas ou estilos

musicais, com que o músico só teria contato posteriormente durante sua carreira.

Verifiquemos então de que maneira determinadas experiências sonoras ocorridas

na infância de Hermeto podem ter influenciado sua linguagem harmônica e sua

concepção musical como um todo. É necessário que, antes de iniciarmos as análises,

aprofundemos algumas noções acústicas apresentadas brevemente no capítulo I, a

respeito dos sons harmônicos e inarmônicos. Estas noções serão utilizadas em diferentes

momentos das análises que faremos em seguida. Consideremos o fenômeno sonoro

acusticamente para depois relacioná-lo à música de Hermeto.

nos mesmos guardanapos, por Hermeto (na flauta transversa), Jovino (no piano) e Itiberê (no baixo
elétrico).
95 Em entrevista conosco realizada em 06/03/1999.
90

4.2 Tipologia espectral 96

No cap. I, dizíamos que a tipologia espectral do som pode ser compreendida

acusticamente de maneira tripartite: sons senoidais, harmônicos e inarmônicos. Com

exceção dos sons senoidais 97 que não geram (pelo menos não teoricamente)98

harmônicos ou parciais, os espectros são definidos de acordo com a relação entre seus

componentes, ou seja, a freqüência fundamental e seus harmônicos ou parciais.

Harmônicos e parciais são os termos que denominam os componentes senoidais, de

acordo com o tipo de espectro sonoro que integram. Usaremos o termo 'harmônicos' em

relação aos componentes senoidais dos espectros sonoros harmônicos, e 'parciais' quando

estivermos tratando dos componentes senoidais dos espectros sonoros inarmônicos.

Da senóide até a massa indistinta dos ruídos, há uma gama grande de sons. Estes

integram um continuum sonoro, no qual em uma das pontas está o som senoidal - a

freqüência absolutamente definida do ponto de vista da altura (porque desprovida de

harmônicos e parciais) - e na outra ponta, o denominado ruído branco. O ruído branco

ocorre quando todas as freqüências que integram nosso âmbito auditivo estão misturadas

muito irregularmente. O ruído colorido corresponde a uma determinada banda ou região

frequencial filtrada do ruído branco. Assim, pode-se dizer que o som senoidal consiste no

menor segmento de um ruído branco ou num ruído de colorido extremamente estreito.99

96 Ver Dennis Smalley em Simon Emmerson (editor). 'Spectro-morphology and structuring


process', The language of Eletroacustic music. London: Mcmillan Press, 1986, ps. 61 - 96.
97 Na tipologia espectral de Dennis Smalley, note proper. Op. cit.
98 A "pureza" senoidal tem um caráter algo abstrato, porque do ponto de vista de nossa percepção,
logo que as senóides vibram na atmosfera, elas são modificadas pelos meios de difusão sonora, as
condições acústicas do espaço e pelo nosso próprio aparelho auditivo.
99 Ver Stockhausen in Menezes (org.), op. cit. p. 63.
91

O Continuum senóide-ruído branco

/------------------------------/-----------------------------------/------------------------/
(som senoidal) (ruído branco)

Senóides Espectros Espectros


harmônicos inarmônicos

(ondas sonoras despro- (presentes na maioria (instrumentos de


vidas de harmônicos dos instrumentos musicais percussão, ruídos
obtidas apenas em do ocidente) orgânicos, da natureza e
laboratório) cotidianos,100 ou ainda
produzidos eletroni-
-camente, ruído colorido
e branco)
4.2.1 Espectros harmônicos

Os sons de espectro harmônico são aqueles em que os harmônicos relacionados a

uma determinada freqüência fundamental obedecem a uma mesma proporcionalidade.

Todos são múltiplos inteiros do som mais grave. A maioria dos instrumentos musicais do

Ocidente apresenta este tipo de espectro e a própria noção de som "musical" que vigorava

absoluta até o início do sec. XX, está intimamente relacionada às características

espectrais harmônicas. Estas características possibilitaram tanto o sistema modal como o

tonal, ao fornecerem a matéria sonora ideal para um discurso musical baseado

prioritariamente nas alturas.

No exemplo abaixo, o som nº 1 é a freqüência fundamental, e os demais números

são os harmônicos a ela relacionados:101

Ex. 3: A Série harmônica

100 Exemplos de ruídos orgânicos podem ser encontrados no som da respiração e do batimento
cardíaco. Na natureza, o som do vento, das ondas do mar, o farfalhar das folhas, os trovões e relâmpagos,
etc. Os ruídos cotidianos também são variados: o som dos carros, aviões, eletrodomésticos, o chiado da
televisão etc. Alguns destes sons de máquinas e eletrodomésticos são harmônicos ou, ainda, mesclas de
ruído e de sons com alturas definidas.
101 Dissemos que uma freqüência fundamental está relacionada a outras freqüências mais agudas
que ela, as quais denominamos harmônicos, no caso dos espectros sonoros com o mesmo nome, e parciais,
no caso dos espectros inarmônicos. Pesquisas feitas em estúdio comprovaram que se retirarmos a
freqüência fundamental de um determinado espectro sonoro harmônico, mas mantermos os seus
harmônicos, continuaremos a ouvi-la, mesmo sem esta estar efetivamente presente. Por isso, não podemos
denominar a freqüência fundamental como geradora. Quem gera é o corpo sonoro vibrante.
92

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16
(a) 131 262 393 524 655 786 917 1048 1179 1310 1441 1572 1703 1834 1965 2096
Do2 Do3 Sol3 Do4 Mi4 Sol4 Sib4 Do5 Re5 Mi5 Fa#5 Sol5 La5 Sib5 Si5 Do6
(b) 131 262 392 523 659 784 923 1046 1175 1319 1430 1568 1760 1855 1976 2093

A linha (a) mostra as freqüências dos harmônicos de Dó2 (a frequência fundamental), que
são obtidos multiplicando 131 (a freqüência em Hertz de Dó 2), por 1, 2, 3, 4 etc, até 16 (números
inteiros). Para fins de comparação a linha (b) lista as freqüências das notas próximas à estes
harmônicos no sistema temperado. Os harmônicos sublinhados em negrito tem afinação
imprecisa.102

Todos os sons de espectro harmônico estão baseados nas relações intervalares do

exemplo acima. O dó 2 fundamental (som 1), tem como harmônicos na seqüência: sua

oitava (harm. 2, Do3); depois sua 5ª 103 (harm. 3, Sol3); sua oitava (harm. 4, Do4); sua 3ª

maior (harm. 5, Mi4); sua 5ª (harm. 6, Sol4); 7ª abaixada (harm. 7, Sib4); oitava (harm. 8,

Do5); nona (harm. 9, Re5), e assim por diante.

Percebemos o som com espectro harmônico com uma altura definida,

correspondente à freqüência fundamental. Os harmônicos fundem-se nela apenas

modificando sua cor e timbre, que será claro ou escuro conforme o espectro sonoro tenha

mais ou menos harmônicos agudos.104

102 Exemplo retirado de Robert Cogan, Sonic Design. New Jersey: Prentice-Hall, 1976, p. 438.
103 A partir do 3º harmônico, os intervalos entre eles e o som gerador passam a ser compostos.
104 É a maior ou menor presença de harmônicos agudos, além de outros fatores que
mencionaremos, que distingue por exemplo, o timbre de uma flauta e o de um violino. No espectro sonoro
da flauta, os harmônicos agudos tem menos amplitude que os mais graves, ao contrário do que ocorre no
violino. Isto faz com que este último seja percebido como mais brilhante, e a flauta mais escura. Cf.
Menezes (org.) e Cogan, op. cit. p. 347 - 400.
93

4.2.2 Espectros inarmônicos

Nos sons inarmônicos, como os de sinos, carrilhões, ferros, objetos metálicos,

ruídos naturais e de máquinas, instrumentos de percussão etc., os harmônicos são

chamados simplesmente de parciais,105 porque não mais obedecem à proporcionalidade

dos sons harmônicos, multiplicando a fundamental não somente por números inteiros,

mas também por números fracionários. Como veremos a seguir, os parciais dos sinos não

se fundem à freqüência fundamental da maneira que ocorre nos sons harmônicos. Por

isso, as alturas percebidas e o timbre ou cor do som dos sinos são qualidades mais

dinâmicas e mutáveis que no outro tipo de espectro.

No sec. XX, a estética hegemônica das alturas, prioritária dos sons harmônicos,

passou a ser questionada por diversas correntes, do ruidismo futurista de Luigi Russolo à

música concreta de Pierre Schaeffer, passando pela música eletrônica dos compositores

ligados ao Estúdio de Colônia, até a música eletroacústica e espectral. Contudo o uso

musical do ruído não foi um fenômeno restrito à experimentações ocorridas dentro da

música erudita contemporânea. A ruidificação da paisagem sonora foi um processo

verificado na sociedade moderna industrializada como um todo e na música popular

conseqüentemente, através do chiado do dial das rádios, agulhas de toca-discos e

televisão fora do ar, das transformações sonoras por síntese e digitalização postas à

disposição do público com a comercialização dos teclados eletrônicos,106 dos pedais e

câmeras de eco, filtragem e distorção do som, do zumbido amplificado da guitarra

elétrica, das baterias de Escolas de samba, uivos roucos dos bluesmen, dos overtones

arranhados dos trumpetistas e saxofonistas, etc., etc., etc.

105 Cf. Menezes, op. cit. p. 233.


106 O teclado sintetizador pioneiro foi o Yamaha DX-7 na década de 70.
94

Antes de analisarmos como os sons inarmônicos foram incorporados à música de

Hermeto Pascoal, vejamos quais as características dos espectros sonoros de objetos

metálicos, tais como os sinos. Estas características nos serão úteis quando considerarmos

as experiências que Hermeto teve com os sons de ferros percutidos bem como suas

implicações estéticas.

Abaixo, os resultados da análise do espectro inarmônico de um sino Hemony,

fabricado em meados do séc. XVII na Holanda, apresentados por Pierce:107

__________________________________________________________
Parcial Relação com f p, ou freqüência percebida

Parcial residual 0.5 f p (uma oitava abaixo)

Primeiro f p (freqüência percebida ou fundamental)

Terceiro 1.2 f p (uma terça menor composta)


Quinto 1.5 f p (uma 5ª composta)

Oitavo 2 f p (uma 8va. composta)

Nono 2.5 f p (uma 8va. composta mais uma terça maior)

O espectro acima é um pouco diferente daquele apresentado no exemplo 1 (o

espectro harmônico). Além de conter um parcial residual uma 8va. abaixo da freqüência

fundamental ou freqüência percebida (0.5 da f p), o espectro inarmônico do Hemony Bell

apresenta também a terça menor (3º parcial) e a terça maior (9º parcial) da f p. Apesar da

distância entre os dois parciais, o efeito de sua superposição pode ser percebido

claramente.108

107 John R. Pierce.The Science of music sound. New York: W. H. Freeman and Company, 1983,
p. 204. Não colocamos o exemplo em partitura porque o autor não especifica as freqüências envolvidas,
apenas a relação entre elas.
108 Esta característica dos espectros dos sinos fez durante muito tempo que os fabricantes
tentassem construir sinos que produzissem, como nos espectros dos sons harmônicos, a 3ª maior ao invés
da menor, ou das duas juntas, o que era ainda pior. Isto só se tornou possível muito recentemente, através
95

Outro pesquisador a trabalhar com sons de sinos foi o compositor espectral

Jonathan Harvey. Harvey estudou o grande sino tenor da Catedral de Winchester que

emite uma poderosa nota secundária em 347 Hz (o Fá 3), com um forte elemento de

batimento.109 "Batimentos" resultam de duas ondas sonoras simultâneas com freqüências

ligeiramente diferentes.110 Os batimentos do som do grande sino tenor fazem com que

"suas vibrações possam ser ouvidas mesmo longe da catedral através de um efeito

trêmulo e pertubador" (Harvey, 1986). Este efeito ocorre como resultado da superposição

inarmônica dos parciais de dó (a freqüência fundamental) somados aos de Fá (a nota

secundária de ataque), e dos batimentos ocorridos nesta superposição, como podemos

verificar no exemplo abaixo.

Ex. 4: Espectro do sino tenor da Catedral de Winchester111

de pesquisas sobre a relação do formato do sino e seu espectro sonoro. Para detalhes ver The Science of
music sound, p. 203.
109 Cf. Jonathan Harvey em Simon Emerson, op. cit. p. 175 - 190.
110 Os batimentos são efeitos psico-acústicos que ocorrem diferentemente em cada registro
sonoro, dependendo ainda dos instrumentos ou fontes sonoras que estiverem os produzindo. Sobre
"batimentos" e efeito de "máscara", ver Cogan, op. cit. p. 370 - 385.
111 Ver Harvey, op. cit. p. 182.
96

No exemplo acima, os parciais de Dó 2 (frequência fundamental) estão

sobrepostos aos de Fá 3 (nota secundária de ataque). Estes últimos estão assinalados no

exemplo dentro de quadrados.

Mais uma vez podemos notar nesta segunda análise espectral dos parciais

inarmônicos dos sinos, a presença da 3ª menor e maior,112 a primeira com maior

amplitude (volume). O espectro sonoro da nota secudária atacada (347 Hz ou Fá 3), se

sobrepõe ao da freqüência fundamental (Dó 2), proporcinando um efeito ainda mais

dissonante que o do Hemony Bell. Os módulos de oscilação dos parciais tornam-se muito

complexos no momento do ataque e somente à medida que o som decresce e os parciais

mais agudos diminuem em amplitude, podemos ouvir com clareza a freqüência mais

grave do espectro (a nota Dó 2), que é a última a extinguir-se. Este efeito comum nos

sons de sinos, címbalos, gongos e objetos metálicos em geral, denomina-se efeito de

"máscara" e consiste no ocultamento momentâneo da freqüência fundamental por parciais

com mais amplitude que ela mesma. Se nos espectros harmônicos a altura da freqüência

fundamental é percebida clara e definidamente, nos sons inarmônicos dos sinos os

componentes espectrais se distendem diferentemente no tempo.

Por causa do tipo de envelope sonoro característico dos sinos (ataque seguido de

decrescendo longo113), as freqüências percebidas variam durante a extinção do som

(devido ao fracionamento inarmônico dos parciais e ao efeito de "máscara"), variando

por isso, consequentemente, a cor e timbre. O momento de maior luminosidade e

densidade textural ocorre justamente no ataque do som do sino e durante o decrescer

sonoro esta luminosidade pouco a pouco será escurecida, e sua massa compacta se

112 A 3ª maior com altura aproximada.


113 "Open attack decay". Ver Smalley, op. cit., p. 69.
97

tornará mais transparente,114 até o "desmascaramento" completo do componente mais

grave daquele espectro, a freqüência fundamental.

Observe-se ainda que a inarmonicidade e o temperamento acentuadamente

imprecisos dos parciais do espectro do sino da Catedral de Winchester, ocorrem como já

dissemos, por que eles não estão numa relação de números inteiros. Assim, a "escala"

formada pelos parciais deste espectro inarmônico é diferente e muito menos temperada

que a encontrada nos espectros harmônicos (ver exemplos anteriores). Isto explica

também porque os sons harmônicos foram considerados até o início do sec. XX como os

sons "musicais" por excelência. Como a ênfase no sistema modal e tonal recaía sobre as

alturas era necessário um material sonoro que pudesse ser moldado e controlado pelo

compositor de acordo com o idioma musical vigente. Este material sonoro foi constituído

como já dissemos, prioritariamente por sons harmônicos, com altura precisa, cujas

exceções eram os intrumentos de percussão.

4.3 Morfologia espectral 115

Dennis Smalley estabelece além da tipologia espectral acima apresentada, uma

morfologia correspondente, a partir das formas de ataque do som, que integram um

continuum temporal semelhante ao apresentado em relação às alturas (o continuum

senóide-ruído branco):

114 Ver a discussão sobre 'sinestesia' no cap. II, especialmente as implicações táteis-visuais do
som.
115 Ver Smalley, op. cit, p. 68 - 73.
98

No primeiro estado, os ataques dos sons estão separados por pausas. No segundo,

estes ataques se comprimem e os sons passam a constituir um "objeto" único, sem

interrupções. Quando os ataques-impulsos tornam-se ainda mais compactos, passamos da

iteração para a percepção de grão, onde os ataques perdem quaisquer vestígios de

identidade separada. No estágio final deste contínuo temporal, a compressão é tão

extrema que as qualidades sonoras granulares adquirem outra morfologia, dando lugar ao

que Smalley chamou de estado eflúvio.116

A tipologia espectral e a morfologia acima apresentadas integram um só termo -

espectromorfologia. As duas partes deste termo se referem aos espectros sonoros

harmônicos ou inarmônicos e as formas que estes adquirem no transcorrer do tempo -

morfologia.

4.4 O som unitário

A velocidade das vibrações, a multiplicação por números inteiros e fracionários

que os harmônicos e parciais operam sobre a freqüência fundamental, a maior ou menor

densidade com que os impulsos sonoros chegam ao ouvido são relações temporais, que

possibilitam à nossa percepção identificar tanto as diferentes alturas, durações, timbres e

intensidades, como a multiplicidade dos sons harmônicos e inarmônicos. Como afirma

Karlheinz Stockhausen no texto 'A unidade do tempo musical':

116 "Effluvial state".


99

(...) as diferenças da percepção acústica são todas no fundo reconduzíveis a diferenças nas
estruturas temporais das vibrações. (...) Às relações de vibrações aperiódicas que denominamos por
"ruído", correspondem (...) ritmos aperiódicos sem uma métrica reconhecível. Por isso, a assim
chamada dissonância no âmbito das vibrações corresponde à síncopa no âmbito das durações [os
grifos são nossos]. (STOCKHAUSEN em Menezes, 1996 : p. 142)

O que K. Stockhausen quer sublinhar é que a divisão tradicional dos quatro

parâmetros sonoros como entidades isoladas e estanques é arbitrária, já que psico-

acusticamente os parâmetros são fenômenos inter-relacionados. O timbre está ligado à

altura, que está, por sua vez, relacionada à duração e esta à dinâmica ou intensidade.

Na tabela abaixo, consideramos os espectros e parâmetros sonoros vistos pela

lente comum do tempo:

Dessa maneira, podemos interligar um fenômeno sonoro específico, por exemplo

o grão, com os diferentes parâmetros e espectros sonoros.


100

Do ponto de vista do timbre, o grão foi relacionado por Pierre Schaeffer à

aspereza e aos sons obtidos através do raspar e friccionar.117

Do ponto de vista da altura, a noção de grão pode ser relacionada à aperiodicidade

(dissonância) das freqüências que constituem determinadas combinações harmônico-

melódicas, bem como à disposição também aperiódica (fracionária), dos parciais dos

espectros sonoros inarmônicos.

Do ponto de vista da duração, o grão é percebido quando os ataques sonoros são

produzidos numa tal velocidade que os sons individuais perdem sua identidade, deixando

de ser impulsos separados ou quando os impulsos sonoros não possuem uma métrica

reconhecível estando combinados de forma muito irregular e compacta.

O envelope sonoro da dinâmica de um som pode por sua vez contribuir para a

percepção de grão, como por exemplo no momento exato do ataque dos sons dos sinos,

quando os parciais ativados têm mais amplitude e o timbre é mais luminoso e

texturalmente mais espesso.

A percepção de grão pode ainda ocorrer através de recursos instrumentais como

trinados, trêmulos, frulatos, rulos de percussão, figurações rítmicas rápidas (ataques-

impulos sem interrupção) e combinações texturais densas com saturação decorrente de

amplitude forte.

É a partir desta perspectiva sonora que consideramos a seguir a concepção e

linguagem de Hermeto.

4.5 A percepção ampliada de Hermeto

117 Pierre Schaeffer, Tratado dos objetos musicais. Brasília: Edunb, 1993.
101

A terminologia acústica citada acima e as pesquisas sonoras feitas em laboratório

por compositores eruditos com sons de sinos, senóides e ruídos, provavelmente são

estranhas e desconhecidas por Hermeto, pois como já dissemos, a trajetória que o músico

seguiu até à descoberta dos ruídos dos animais e da natureza e dos complexos sonoros

inarmônicos dos ferros percutidos, bem como o uso musical que deles fez, não dependeu

do contato com correntes eruditas como a música concreta, eletrônica, eletroacústica e

espectral. Abordamos a terminologia acústica e as pesquisas de laboratório unicamente

com o intuito de nos aprofundarmos no universo sonoro percebido por Hermeto.

Dotado de uma audição acuradíssima, com ouvido absoluto, o músico alagoano

não só é capaz de relacionar com precisão as diferentes freqüências sonoras aos nomes de

suas notas musicais correspondentes, como também consegue ouvir dentro do som,

fazendo aproximadamente o que as análises espectrais acima apresentadas realizaram

através de equipamentos. É esta percepção ampliada que parece ter transformado as

experiências sonoras ocorridas na infância de Hermeto em modelos harmônicos,

melódicos, rítmicos e timbrísticos que o inspiram ao longo de sua vida madura e

influenciam constantemente sua linguagem musical.

Vejamos por exemplo, o início do 1º movimento da música "Ferragens"118 feita

para piano-solo,119 na qual Hermeto tenta reconstituir a ambiência sonora dos ferros.

Ex. 5: "Ferragens" (1º compasso)

118 Composta, mas não gravada no período que estudamos.


119 O qual apesar de ser muitíssimo utilizado na música tonal, é um instrumento inarmônico, por
causa das cordas duplas que percutidas pelos martelos, geram simultaneamente espectros ligeiramente
diferentes.
102

Note-se na mão direita, uma melodia que é uma série de dez notas diferentes,

harmonizadas por sua vez por acordes com 2as. ajuntadas, indefinidos do ponto de vista

tonal e com os quais as notas da melodia não configuram relação de funcionalidade. Ao

contrário, as relações entre harmonia e melodia neste primeiro compasso se aproximam

do grão e do ruído colorido.

Como já nos detemos suficientemente sobre a noção de grão, consideremos

brevemente o ruído colorido. Este é filtrado do ruído branco, no qual todas as freqüências

que integram o âmbito de nossa percepção, estão misturadas de maneira extremamente

irregular. A percepção de cor nos ruídos coloridos se dá porque os parciais que integram

seus espectros estão compreendidos numa determinada banda ou região freqüencial

(filtrada do ruído branco) e, apesar de estarem nela dispostos muito irregularmente e com

amplitudes diferentes, ainda assim podem ser percebidos como cor.


103

Relacionamos os complexos sonoros inarmônicos de "Ferragens" ao ruído

colorido, pois os espectros sonoros dos sinos e, dos ferros percutidos estão na fronteira

entre o som harmônico e o ruído.120 Como K. Stockhausen expõe a seguir:

Cada som complexo [ou inarmônico] pode então, ser considerado de duas maneiras: por um
lado, como uma composição de sons parciais e, por outro lado, como um "ruído colorido".
(STOCKHAUSEN em Menezes, 1996 : 63/66)

O perfil harmônico constituído de 2as. maiores e menores ajuntadas (clusters) e

outros intervalos dissonantes de "Ferragens", a nosso ver se aproxima da

espectromorfologia do grão e dos ruídos coloridos, por causa dos batimentos provocados

por estes intervalos no momento do ataque dos acordes. Nestes "batimentos", as

freqüências estão próximas umas às outras e oscilam rápida e desigualmente,

ocasionando um efeito "trêmulo" semelhante ao som do sino da Catedral de Winchester.

A percepção de uma freqüência fundamental, por assim dizer, harmônica - do ponto de

vista acústico - que corresponderia às funções hierarquizantes da tônica no sistema tonal,

cede lugar em "Ferragens" à colorística dos espectros ruidosos e à morfologia dos grãos.

O envelope sonoro característico dos sinos (ataque seguido de queda longa)

também está presente em "Ferragens" pois os acordes da mão esquerda são arpejados

(atacados) uma única vez somando-se às notas da mão direita, também tocadas uma única

vez. O tempo de duração da última das três notas de cada grupo de tercinas será

prolongado à vontade do intérprete (fermata), assim como o acorde arpegiado pela mão

direita. Ambos soarão simultaneamente durante o decrescendo sonoro. O pedal do piano,

120 Ver a noção de 'nódulo' em Smalley, op. cit. Enquanto os sons dos sinos são inarmônicos, mas
permitem a identificação de diferentes alturas durante o envelope sonoro, os espectros dos ferros, tais como
a placa percutida na música "Cores", são ainda mais complexos que os dos sinos. A noção de 'nódulo'
apresentada por Smalley, que corresponde ao que Stockhausen denomina 'ruído colorido', não se aplica aos
sinos, mas se adequa perfeitamente ao espectro sonoro nodular e ruidoso dos ferros.
104

por sua vez, estará abaixado até o instrumentista passar para o tempo seguinte, de

maneira a garantir a sustentação e o prolongamento do som atacado pelas duas mãos.

Como vimos nos exemplos dos sons de sinos, os parciais multiplicam a

freqüência fundamental por números inteiros e fracionários, o que faz com que seus

espectros sonoros contenham a 3ª menor e maior e os intervalos entre os parciais e o som

gerador sejam diferentes e muito menos temperados que os dos espectros harmônicos. A

presença simultânea da 3ª menor e maior da freqüência fundamental121 por si só já abala a

noção de tonalidade, pois é o 3ª grau que define o estado dos acordes maiores e menores.

O choque ou batimento de parciais é incrementado ainda pelas das notas secundárias de

ataque, que geram elas mesmas outra série de parciais que se sobrepõe à da freqüência

fundamental .

Algumas destas características podem ser constatadas em "Ferragens",

especialmente através dos complexos sonoros verticais presentes na peça, formados por

segundas maiores e menores e outros intervalos dissonantes, sobrepostos às notas

melódicas da mão direita, as quais, por sistematicamente não dobrarem as notas dos

acordes (da mão esquerda), parecem delas independer totalmente, assim como as notas

secundárias de ataque do som dos sinos. As tercinas fermatadas reforçam ainda mais este

efeito simulando o ritmo oscilante da freqüência fundamental somado às notas

secundárias de ataque. A primeira nota de cada grupo de tercinas corresponderia à nota

121 Como ilustramos anteriormente no exemplo 4 e no espectro do sino holandês Hemony, apesar
da 3ª menor e 3ª maior estarem separadas uma da outra por outros parciais dentro do espectro, e de
possuírem diferentes amplitudes, mesmo assim podemos perceber com clareza o efeito dissonante e
indefinido tonalmente de sua superposição interválica
105

fundamental produzida no momento do ataque do som do sino e as outras duas seriam as

notas secudárias, que passam a reverberar ondulantemente depois do primeiro ataque.122

"Ferragens" é um bom exemplo de como Hermeto percorre o contínuo senóide-

ruído, combinando os sons inarmônicos aos sons de instrumentos convencionais e

criando um diálogo permanente entre os diferentes espectros. Neste caso, e em muitos

outros semelhantes, Hermeto realizará uma interseção, uma fusão entre os diferentes

espectros sonoros. Em "Ferragens" contudo, esta fusão é realizada apenas pelo piano. No

repertório que analisamos em seguida, o modelo de "Ferragens" é desenvolvido para os

outros instrumentos do Grupo.

Neste momento, a hipótese lançada por Jovino no Cap. 1, que serviu de pista em

nossa pesquisa ao mesmo tempo que sofria diversos acréscimos, será ainda mais

ampliada. O pianista sugeriu que a concepção harmônica de Hermeto encontra suas raízes

na infância do compositor, quando ele combinava as tríades e notas isoladas da sanfona

aos sons dos ferros percutidos. Vejamos como esta ferramenta harmônica específica foi

utilizada em "Ferragens".

Abaixo exemplificamos os poliacordes encontrados no primeiro e último tempo

do 1º compasso de "Ferragens".

Ex. 6: "Ferragens" (1º comp., primeiro tempo)

122 O efeito de superposição inarmônica que os sinos exemplificam, se tornou possível a Hermeto
graças ao pequeno "carrilhão" de ferros pendurados em fila num arame, instrumento construído e tocado
106

La 2, Do 3, Fa 3
e 4 (Fa maior)

Reb 2, Sib 2 (Sib


menor invertido)

Neste exemplo, as duas tríades que integram o poliacorde se entrecruzam na

região média do piano (la 2, sib 2, do 3). Os clusters serão idiomáticos nesta peça,

fazendo o duplo papel de "máscara" sonora dificultando a percepção das alturas e de

sonoridades-limite entre harmonia e timbre.

Já no exemplo seguinte (1º comp., quinto tempo), as duas tríades que integram o

poliacorde estão mais separadas. O acorde formado pelas notas da mão esquerda sugere

Si menor com 7ª no baixo e 9ª menor (si, re, fa#, la, do) ou ainda Re maior com 7ª e 6ª.

Interessante notar que a terça maior de Si está na tríade da mão direita (a nota mib - ou

re# enarmônico), da mesma maneira que ocorre nos espectros sonoros de sinos, nos quais

a presença da 3ª menor e maior da freqüência fundamental é uma constante.

Ex. 7: "Ferragens" (1º comp., quinto tempo)

sol 3, sib 3 e mib 4


(Mib maior)

si 2, re 3, fa# 2, la
1, do 3 (Si menor
com 7ª e 9ª menor)

pelo próprio músico quando garoto. Cf. entrevista citada no início do capítulo III.
107

No primeiro, segundo e quarto tempos do compasso seguinte, podemos notar

diferentes tríades arpegiadas melodicamente.

Ex. 8:

Como estas tríades (Mi menor, Solb maior e Do maior) não estabelecem nenhuma

relação tonal entre si, nem com os acordes da mão esquerda, pode-se dizer que elas estão

em alguma medida camufladas na densa textura harmônica. Contribui ainda para a

descaracterização da sonoridade triádica as notas estranhas assinaladas dentro de

quadrados no exemplo acima, que são articuladas depois ou entre as tríades, soando

conjuntamente a elas.

Podemos perceber nos (poli)acordes da mão esquerda, algumas tríades

superpostas em posição cerrada. Nos dois exemplos abaixo, separamos as tríades e

enarmonizamos algumas de suas notas.


108

Ex. 9: (compasso 2, 1º tempo)

Reb maior
+ (tétrade)
Ré maior

Ex. 10: (compasso 2, 2º tempo)

Fá diminuto
+ (tétrade)
Dó maior
(com baixo em mi)

O resultado destas superposições triádicas (e tetrádicas) na harmonia e melodia é:

no 1º tempo do 2º compasso, Ré maior + Réb maior (harmonia) + Mi menor (melodia) e,

no tempo seguinte do mesmo compasso; Dó maior + Fá diminuto (harmonia) + Solb

maior (melodia).

Quando Jovino se refere à presença constante de tríades superpostas na linguagem

harmônica de Hermeto, é difícil pensar como o resultado sonoro obtido pelo músico

alagoano pode ser não-convencional, já que as tríades são estruturas-modelo do sistema

tonal. No entanto, Hermeto não usa as tríades tonalmente, pois, inspirado nas sonoridades

inarmônicas dos ferros, batimentos provenientes das notas secundárias de ataque e

destemperamento acentuado, Hermeto combina as tríades de forma não-funcional, junto a

outras combinações interválicas como os acordes e fragmentos melódicos em 4as. e

trítonos, com segundas acrescentadas e suas inversões, sextas e etc., presentes em

"Ferragens".
109

Pode-se dizer que os espectros inarmônicos dos sons dos ferros e dos bichos, são

filtrados culturalmente pelo músico alagoano através das tríades. O fascinante é o

paradoxo da situação: elementos harmônicos simples como as tríades irão constituir

combinações harmônicas complexas, nas quais perdemos de vista seus elementos

originários. Estas combinações harmônicas formam um véu, uma máscara sonora que

desenha um tênue limite entre a linguagem e a concepção de Hermeto.

Concordando com o próprio compositor, Jovino reconhece determinadas

influências que as experiências sonoras com os ferros tiveram na linguagem harmônica

do músico alagoano. Devemos acrescentar a esta observação importante do pianista que

as influências das experiências com os sons inarmônicos não parecem ter se limitado à

maneira como tríades e outras combinações intervalares ocorrem na harmonia de

Hermeto. A nosso ver, as influências destas sonoridades podem ser verificadas também

nos aspectos timbrísticos-texturais, melódicos, dinâmicos e rítmicos da música de

Hermeto, pois a forma articulada pelos diferentes elementos de sua linguagem musical

está subordinada a uma concepção que engloba estes elementos.

O som é concebido por Hermeto de forma integrada. Os espectros e parâmetros se

relacionam como se fossem correspondências sinestésicas e espelhos uns dos outros.

Hermeto solfeja os ruídos e outros sons inarmônicos com seu ouvido absoluto,

classificando-os e utilizando-os como se fossem sons com altura precisa. Dessa maneira

ele filtra o grão do grito de um papagaio, dos latidos dos cachorros ou zurros de um

jumento, nele percebendo alturas exatas, que estavam no entanto ocultas na massa

"indistinta" daqueles sons de animais. Da mesma forma, Hermeto poderá fazer uma

música para naipe de tamancos, caçarolas com areia, conjunto de canos metálicos, água

percutida com as mãos, etc.


110

Pelo caminho oposto, o músico alagoano fará os instrumentos convencionais

serem eles mesmos produtores de mesclas de ruído e sons com altura definida - fazendo

por exemplo, o sax barítono tocar junto à esteira da caixa da bateria, tocando flauta e

berrante debaixo d'água, cantando dentro de uma chaleira, envolvendo as cordas do piano

com fita crepe e jornal, etc.

Apesar dos gérmes da concepção de Hermeto, bem como do ruído e diferença de

sua linguagem, serem encontrados primeiramente na infância do músico, é importante

ressaltar que as experiências sonoras ocorridas há décadas atrás em Lagoa da Canoa, são

permanentementes atualizadas por Hermeto nas cidades grandes. O ouvido absoluto, a

capacidade de percepção dos sons inarmônicos, ou seja, a percepção ampliada que se

evidenciou já na infância do músico alagoano, o acompanha onde ele estiver. Como

Hermeto afirmou na citação feita no começo deste capítulo: "Até os 14 anos fiquei em

Lagoa da Canoa, minha terra, em contato com a natureza. Todo mundo acha que a

natureza é só isso. Não é. Ela pode estar até mesmo dentro de um carro, na Avenida

Brasil, em hora de trânsito, com chuva. A natureza pra mim é tudo o que você vê pela

frente. É o cotidiano. (Hermeto, Backstage, 1998)


111

5. ANÁLISES SELECIONADAS

5.1 Breve descrição do repertório

Os diferentes aspectos que abordamos anteriormente em relação à concepção e

linguagem de Hermeto - como por exemplo a sinestesia, a abertura para o universo

sonoro inarmônico considerado tradicionalmente não-musical, as polirritmias e

assimetrias inspiradas no ritmo da fala e dos animais, as pesquisas com timbres e ruídos,

a linguagem harmônica poliacordal, a influência da música nordestina, a importância da

improvisação no processo criador, a irreverência e o lúdico, etc, aparecem em diferentes

momentos das análises que fazemos a seguir.

As primeiras cinco músicas que analisamos, foram gravadas no disco inicial de

Hermeto Pascoal e Grupo, intitulado Hermeto e Grupo (Som da Gente, 1982).

Menos de um ano após a entrada de Carlos Malta e Márcio Bahia no grupo, o

repertório apresentado neste primeiro disco já revela um alto grau de coesão e nível

técnico-interpretativo. Verdadeiras tours de force são as músicas "Série de Arco" e

"Briguinha de músicos malucos no coreto". Na primeira, o músico mais exigido sem

dúvida, é o pianista Jovino Santos, seguido do baterista Márcio Bahia, mas em

"Briguinha", Hermeto não poupa nenhum membro do grupo.

"De bandeja e tudo" tem harmonia modal sobre um baixo ostinato em mi,

combinados à levada123 também sincopada e polirrítmica da bateria. Os acordes

construídos à maneira dos organa medievais, causam uma impressão solene e mística,

que se dissolve no solo virtuosístico de flauta de Hermeto, na parte central.

123 'Levada' é um termo usado na música popular para denominar um determinado desenho
rítmico ou rítmico-harmônico que se repete durante trechos da música, servindo de base para temas e/ou
solos improvisados.
112

"Cores" é uma melodia tocada alternadamente e depois em uníssono, por sax,

violão flauta transversa e bombardino, em diversos andamentos, do lento ao andante.

Hermeto combinará os sons instrumentais aos sons de cigarras e uma placa de ferro

percutido, cujo espectro inarmônico o compositor transcreve para o piano no final da

peça. O título da música ("Cores") sinaliza ainda para a sinestesia som-imagem, por

causa da dimensão colorística aberta pelo uso dos sons inarmônicos do ferro percutido e

das cigarras combinados aos instrumentos da banda.

"Magimani Sagei", ao contrário das outras músicas acima citadas, foi uma peça

feita na bateria, explorando este instrumento percussivo como se fosse melódico. As

peças do instrumento foram livremente reafinadas e a partir das notas obtidas, sete

levadas rítmico-melódicas foram criadas por Hermeto. O uso melódico de um

instrumento essencialmente rítmico, como ocorre na música "Magimani Sagei" é mais

um indicador de como Hermeto transita entre os diferentes parâmetros e espectros

sonoros, fazendo constantemente a travessia entre eles e os fundindo.

A música "Papagaio Alegre" foi composta em 1981 e gravada no LP Lagoa da

Canoa, Município de Arapiraca (Som da Gente, 1984), o segundo de Hermeto e Grupo.

"Papagaio Alegre" foi feita por Hermeto em um só dia, durante o ensaio com o Grupo.

Com linguagem harmônico-melódica modal e rítmica nordestina, depois de gravada a

música, Hermeto acrescenta o som do papagaio em ritmo de Coco.

"Arapuá" é do LP Brasil Universo (Som da Gente, 1985) e foi feita depois de uma

viagem à Europa, na qual foram adquiridos o sax barítono e o teclado DX-7. Hermeto

compôs esta música explorando os sons dos novos instrumentos, que conferiu à "Arapuá"

um caráter de estudo para sax e todos os outros instrumentos da banda. Por causa da

exploração dos registros graves, a música foi intitulada "Arapuá", uma abelha de

zumbido também grave.


113

"Aula de natação", do CD Festa dos Deuses (Polygram, 1992), é um exemplo do

que Hermeto chama de "música da aura". Esta consiste basicamente na noção de que a

fala é uma melodia não convencional, na qual o músico da aura percebe as alturas e

durações (a "melodia"), harmonizando-as à vontade. A "música da aura" seria a foto

sonora de uma imagem invisível aos olhos. Só a sensibilidade poderia captá-la.

5. 2 Partituras gráficas e convencionais

Nenhuma das músicas que analisamos, com exceção apenas de "Arapuá" e

"Papagaio Alegre" tiveram seus arranjos escritos em grades.124 Isto se deve ao processo

de criação de Hermeto e Grupo, em que as partes instrumentais eram compostas

seqüencialmente, uma após a outra, com cada músico anotando apenas sua própria parte.

Geralmente, Hermeto começava pelo piano ou pelos instrumentos de sopro, para depois

fazer baixo, bateria e percussão.

Determinadas partes instrumentais deste repertório não foram encontradas no

arquivo do compositor e mesmo as que o foram são, na maioria das vezes, esquemáticas.

Estas contêm, além das indicações relativas à altura e duração, outras rabiscadas nos

cantos de página geralmente fazendo referência às diferentes seções musicais, suas

respectivas convenções rítmico-harmônicas, etc. Escritas ou simplesmente anotadas, as

partes acabavam sendo decoradas por cada músico.

Por causa da oralidade que caracterizava o processo de criação de Hermeto e

Grupo, optamos por fazer partituras gráficas das oito músicas escolhidas para análise.125

124 As grades de "Arapuá" e "Papagaio Alegre" foram escritas pelo pianista Jovino Santos depois
deste ter saído da banda.
125 Por ser "Arapuá" uma música longa, e por termos a grade de seu arranjo (feita pelo pianista
Jovino), não fizemos sua partitura gráfica. Visando diminuir as lacunas deixadas abertas pela falta das
partes de todos os instrumentistas, além das partituras gráficas realizamos também algumas transcrições.
114

Estas representarão, aproximadamente, o resultado sonoro gravado em disco. Nelas

estabelecemos um eixo temporal de cada parte ou seção musical, sob o qual as entradas

instrumentais são assinaladas.

Usaremos os sinais abaixo retirados de Smalley (1986), para representar a

morfologia dos diferentes tipos de ataque sonoro:

Estes quatro estados morfológicos podem aparecer combinados ou ainda com

ligeiras variações. Como o tempo de duração da queda de um som varia de acordo com o

instrumento e com a intensidade do ataque, os ataques-impulsos separados podem

aparecer de diferentes maneiras, como por exemplo:

Além disso, nos sons sustentados como os dos instrumentos de sopro, a queda e o

perfil sonoro serão controlados pelo músico de forma diferente que nas cordas

dedilhadas, piano e a bateria. Diversas representações poderão ocorrer dependendo da

dinâmica empregada pelo intérprete:

Listamos, no início de cada música analisada, as partes manuscritas originais coletadas com os músicos e
115

Muito úteis para a análise das combinações texturais e timbrísticas, estes sinais

apresentam como desvantagem, no caso da música de Hermeto, a imprecisão na notação

das alturas. Apesar disso, através das partituras gráficas podemos verificar, ainda que

aproximadamente, como os parâmetros sonoros estão relacionados entre si. Esta relação

será completada, comparando as partituras gráficas às convencionais e extraindo das

últimas, exemplos musicais manuscritos por Hermeto e pelos músicos durante o período

estudado.126

As partituras gráficas assinalam ainda as improvisações feitas na gravação e não

registradas anteriormente pelos músicos.

Nestas partituras, indicamos verticalmente os instrumentos que participam da

música. Acima deles, temos o eixo do tempo que contém três informações principais: a

duração total das partes ou seções da peça; de segmentos menores e membros auxiliares

de forma; a mudança de uma parte para outra, ou outros eventos sonoros.

Exemplo:

Título da Música: "Série de Arco"


Duração total: 3.52 (Três minutos e cinquenta e dois segundos)
Forma: Ternária (A B A')

com o compositor.
126 Ver também o CD em anexo com as músicas utilizadas na análise gravadas por Hermeto e
Grupo.
116

____________________ A _______________

____________________1.39 (tempo de duração da parte ou seção da música -


A)

------------------- 0.16 ------------ (assinala a duração de partes menores da música)

0.00 0.16 (assinala o começo e final das partes e subpartes e membros


auxiliares de forma ou ainda indicações da partitura original e outras de interesse).

Abaixo das informações relativas aos tempos da música, temos um eixo

correspondente de dinâmica, que assinala as intensidades produzidas conjuntamente por

Hermeto e Grupo durante a performance. Os sinais de dinâmica e acento podem ainda

ocorrer nas linhas individuais dos instrumentos, quando estes estiverem numa intensidade

diferente do todo.

Utilizamos ainda as seguintes abreviações:

. U.T. - Unidade de tempo


. c. - Compasso

. c.1 - Compasso 1 ou 1º compasso


. c.1.1 - 1º compasso, primeiro tempo
. c. 1.1.1 - 1º compasso, 1º tempo, 1ª metade de tempo

. m.d., m.e - Mão direita e mão esquerda

5.3 - Análises musicais selecionadas

5.3.1 "Série de Arco", LP Hermeto Pascoal e grupo (Som da Gente, 1982)127

127 CD SDG- 010/92.


117

Processo de criação: A música foi inicialmente feita para piano solo. A irmã do

pianista Jovino era ginasta olímpica e tinha que executar uma série coreográfica com

arco. De Jovino partiu a idéia de Hermeto compor a música para esta série de sua irmã.

Os dois foram para o ginásio ver a coreografia e Hermeto pediu que Jovino fosse

cronometrando o tempo de cada seqüência de movimentos. Com a duração de cada

seqüência dentro da série olímpica, Hermeto compôs depois em casa a 1ª versão de

"Série de Arco", para piano solo, peça-estudo que Jovino tocaria e gravaria para a

coreografia de sua irmã.

A partitura manuscrita de Hermeto mostra bem a sincronia desejada entre a

composição musical e a coreografia olímpica. As diferentes seções musicais são

indicadas na partitura por letras minúsculas (de 'a' até 'e') que sugerem uma

correspondência entre os tempos musicais e os coreográficos, anotados durante a ida ao

estádio. Esta correspondência é ainda importante para compreendermos a elasticidade de

sua construção rítmica e harmônica.

Os outros integrantes do grupo sugeriram ampliar a música em um arranjo para

todos e assim foi feito; a flauta foi o primeiro instrumento a ser acrescentado à parte de

piano solo, baixo e bateria foram os últimos.

Dados registrados em partitura: As partes de piano e bateria que Jovino e

Márcio ainda possuíam. As demais partes não foram encontradas no arquivo do

compositor.

Não tem armadura de clave, a exemplo das outras músicas de Hermeto que

analisamos, o que indica, no caso de "Série de Arco", que o idioma harmônico utilizado

pelo compositor não é tonal.


118

Forma esquemática: Ternária (A B A')

(U.T. ca. 40 em A)

Duração Total : 3.53

Instrumentação: Flauta, flautim, sax soprano, piano, harmônio, baixo elétrico,

bateria e percussão.

Partitura gráfica da música gravada :

p mp f mf
119

mp mf f mf f

rrr...

"Série de arco" é praticamente toda escrita. Não há solos, no sentido atribuído ao

termo no jazz tradicional, ou seja, a criação (improvisação) melódica feita por um

instrumentista a partir de uma base harmônica pré-estabelecida. As dinâmicas das

diferentes partes da música não estão escritas e devem ter sido convencionadas oralmente

durante os ensaios que antecederam a gravação.

Os sons percussivos são utilizados com parcimônia nesta música e aparecem

relacionados a diferentes momentos de sua construção. Por exemplo, nos cs. 10 e 11 (ver

exemplo 16), enquanto a flauta executa trinados (em 2a. menor) em sua região mais

aguda, e o piano faz clusters também na região aguda e em trinados, a voz é usada

percussivamente com um som de "erres" (rrrrr), produzido na região aguda com a língua

tremulando rapidamente no céu da boca. O grão tímbrico destes sons frulados se combina

com os clusters do piano e trinados cromáticos da flauta (c.10 e 11), confirmando a

relação que fizemos anteriormente entre timbre, altura, duração, e intensidade, e de como

a percepção de grão ocorre nestes diferentes parâmetros.


120

Como podemos perceber claramente através da partitura gráfica, a forma textural

desta composição é crescente, o clímax ocorrendo na última parte (A'), de maneira

semelhante à maioria das músicas do repertório que analisamos.

"Série de arco" é um ótimo exemplo de como Hermeto trabalha com tríades e

poliacordes, pois eles estão presentes em quase toda a peça. Tal como a definição de

Persichetti, citada no Cap. I, havia mencionado em relação à mudança rápida dos

poliacordes não politonais, os poliacordes de "Série de Arco", se modificam quase tempo

a tempo, gerando um ambiente harmônico extremamente fluido e movediço, relacionado

aos movimentos e ritmos coreográficos.

Podemos notar em A, já no c.1.3.1, em pedal em Láb (em desenho ostinato em

5as., lab, mib, sib na mão esquerda do piano + Sol maior e, em 1.3.2, Lá b + Do maior.

Em 1.4.1, Lab (lab, mib, fa, sol)+ Re maior (enarmonizando a nota solb) e, em 1.4.2, Lab

+ Dob maior:

Ex. 11: 1º compasso, trecho de 'a' (0'.00'' - 0'.05'')

O fator complicador da superposição triádica de "Série de arco" é a dificuldade

em se precisarem os acordes de cada combinação. Em determinadas situações


121

harmônicas, várias leituras são possíveis. Por exemplo, no terceiro tempo do 2º compasso

podemos considerar a nota si na mão direita como a terça do acorde de Sol maior, assim

como podemos também considerar a nota sol como a terça invertida de Mib maior. No

primeiro caso, o acorde de Sol maior estaria sobreposto ao de Ré maior (arpejado e

assinalado no exemplo em feixes), e, no segundo caso, teríamos Mib maior (com a terça

no baixo) na mão esquerda + Si menor com 7ª na mão direita. Preferimos esta segunda

possibilidade. No tempo seguinte do mesmo compasso (c. 2.4), o acorde na mão esquerda

(Mib maior invertido) permanecerá inalterado, enquanto a mão direita arpejará fa#, la,

do, re, fa bequadro.

Ex. 12: 2º compasso, continuação de 'a' (0'.6" - 0'.11")

O intervalo de 4ª acrescido de 2ª é usado melodicamente nos exemplos acima

(motivos assinalados em círculos). Nos exemplos a seguir, os intervalos de 4ª estarão

dispostos verticalmente:

Ex. 13: trecho de 'b' (0'.16" - 0'.19")


122

Ex. 14: trecho de 'c' (0'.32" - 0'.37")

No exemplo abaixo, os acordes quartais com 2ª ajuntada da mão direita são

transpostos uma 7ª maior descendente na mão esquerda, resultando um crescendo em

direção ao clímax de tensão de A com os clusters (tocados em trêmulos) da mão direita

no c. 10 e 11, exemplo 16.


123

Ex. 15: 8º compasso, continuação de 'c' (0'.37 - 0'.42")

Ex. 16: 10º e 11º compasso, trecho de 'd' (0'.47" - 0'.56")

O processo de criação de Hermeto se caracteriza pela adição sucessiva de

"camadas" instrumentais. Consideremos então, o segundo instrumento a ser feito em

"Série de arco", a flauta em do.

Na 1ª parte, este instrumento inicia em uníssono com a melodia do piano (c. 1 a

3). No c. 4 adquire maior independência rítmico-melódica com uma frase modal em sol

dórico.
124

Ex. 17: 4º compasso (0'.16" - 0'.19")

No c. 5, a flauta volta a ter o mesmo ritmo do piano, mas com outras notas e no c.

6 ocorre uma citação da música nordestina da juventude de Hermeto, com a escala de lá

mixolídio com 11ª aumentada, um modo "nordestino". A harmonia que acompanha o

fraseado modal da flauta, é poliacordal e estabelece uma relação bastante dissonante com

a melodia tocada pela flauta. Mi b maior com 2a. ajuntada na mão direita + Lab M

invertido (c. 6.1 e 6.3) e Mib maior + Sib M também invertido na mão esquerda (c. 6.2 e

6.4).
125

Ex. 18: 6º compasso (0'.27" - 0'.32")

O flautim é usado esporadicamente, dobrando a flauta 8va. acima.

Na 2ª parte, a flauta é substituída pelo sax soprano. A 2ª parte de "Série de arco" é

o momento de maior contraste rítmico-melódico entre sopros e piano. Os procedimentos

polirrítmicos ocorrerão entre piano, cujo ritmo o baixo geralmente dobra, sax e bateria.

O contraste timbrístico, com a substituição da flauta pelo sax, e a entrada de baixo e

bateria, e o tensionamento rítmico desta parte intermediária é sublinhado ainda pela

maior dinâmica sonora.

A 3ª parte é uma reexposição da 1ª, modificada pela entrada de baixo e bateria e

pelo aumento de velocidade do andamento. A música é finalizada com uma pequena coda

em estilo free jazz.

A correspondência desejada entre música e coreografia é um indicador da relação

imagem-som em Hermeto, que faz surgir em "Série de arco", uma escrita que tenta

representar a agilidade, fluidez e contrastes constantes da coreografia olímpica. Por isso,

os poliacordes varíam tão freqüentemente, assim como se alternam de maneira


126

igualmente rápida, as figurações rítmicas que subdividem a unidade de tempo (semínima

ca. 40) em 2, 3, 4, 6, 8, 12 e 16 partes.

Aos contrastes rítmicos correspondem determinados contrastes de altura. Por

exemplo, já nos dois primeiros compassos da música, o motivo em semicolcheias do

piano é constituído, como dissemos, de intervalos de quarta com 2ª ajuntada e tem

direção descendente, enquanto que as fusas do c. 1.3 e 1.4 e as quiálteras de doze tempos

do c.2.3 e 2.4, são estruturas poliacordais e tem direção ascendente (c.1) e alternada (c.2).

As direções dos motivos estão assinaladas com setas no exemplo abaixo:

Ex. 19: 1º e 2º compassos (0'.00" - 0'.10")


127

Assim, o diálogo que se estabelece entre motivos com diferentes direções passa a

ser um dos pontos focais da peça, diálogo este que encontra sua inspiração na alternância

e exploração coreográfica dos planos baixo, médio e alto.

Como o próprio modelo rítmico do piano, que foi o primeiro instrumento a ser

feito, é polirrítmico (ver por exemplo já nos primeiros dois compassos, o padrão em

semicolcheias na mão esquerda combinado a fusas e seisquiálteras na mão direita), os

outros instrumentos partilham e incrementam esta polirritmia. Principalmente a bateria, a

partir de sua entrada em B, ora executa simultaneamente os mesmos padrões rítmicos do

piano, ora faz um contra-ponto a estes, superpondo polirritmicamente divisões binárias e

ternárias. Observe-se que no exemplo a seguir, a acentuação no surdo ocorre de quatro

em quatro seisquiáteras, o que torna o desenho não apenas polirrítmico, mas também

polimétrico, por causa da superposição defasada dos quartos e oitavos de tempo de piano

e flauta, com os sextos de tempo - acentuados a cada quatro sextos - da bateria.

Ex. 20: A', 34º compasso (2'.26" - 2'.28")


128

A polirritmia em "Série de arco" faz com que os apoios rítmicos incidam

sistematicamente sobre diferentes partes de tempos dentro do compasso. As rápidas

mudanças harmônicas, os movimentos melódicos contrastantes e a polifonia polirrítmica

e polimétrica parecem estar relacionados à gestualidade elástica dos movimentos de

contração e expansão, ascensão e descida do solo coreográfico da irmã de Jovino.

5.3.2 "Briguinha de músicos malucos no coreto", LP Hermeto Paschoal e Grupo

(Som da Gente, 1982)

Processo de criação: Feita inicialmente para bombardino e acompanhamento,

com fraseado adequado ao instrumento. A primeira partitura manuscrita é para piano, a

mão direita fazendo a melodia, e, a esquerda, as cifras com divisão rítmica indicada.

Posteriormente Hermeto fez várias variações. Uma das variações é a 2ª parte canônica, e

a 3ª parte frevada.
129

Segundo o saxofonista Carlos Malta, a idéia desta 2ª parte surgiu durante os

ensaios, quando os músicos diminuíam o andamento para estudar mais lentamente as

difíceis partes individuais. A melodia composta originalmente em semicolcheias com

andamento rápido (U.T. ca. 100), ficava descaracterizada de sua vivacidade natural, pois

tinha que ser executada muito mais lentamente que em seu andamento original. Malta nos

relatou em entrevista que assim teria surgido a idéia de tocar a música em diferentes

velocidades. Hermeto teria gostado da idéia e assim concebeu a 2ª parte da música onde

cada integrante entraria tocando um depois do outro e as entradas sucessivas produziriam

uma espécie de stretto cujo efeito musical sugeriu finalmente o título da música.

Dados registrados em partitura: A partitura original de Hermeto consiste como

já foi dito, de harmonia com divisão rítmica indicada e melodia. Uma outra partitura para

piano, manuscrita pelo próprio pianista, com o desenho rítmico-harmônico da 1ª e 3ª

partes da música foi conseguida com o próprio instrumentista. Não temos a parte do

baixo, mas, na gravação, este instrumento acompanha os acordes do piano baseado nas

notas mais graves indicadas nas cifras. A bateria da 2ª parte está totalmente escrita,

enquanto que a 3ª parte é indicada na partitura do baterista apenas com a denominação

estilística FREVO. Segundo esta indicação, o baterista improvisa uma levada neste estilo.

Como dissemos no capítulo três, à medida que os discos se sucediam, indicações como

essa passaram a aparecer com mais freqüência para todos os integrantes do grupo.128

128 Márcio Bahia nos revelou em entrevista que durante os anos em que tocou com Hermeto, ele
(Márcio) foi gradativamente registrando levadas dos mais diversos ritmos. Estas levadas anotadas pelo
baterista passaram a integrar seu próprio repertório sonoro, constituindo um vocabulário partilhado por
compositor e intérprete.
130

Forma esquemática: Ternária (A A' A'')

Duração total: 4.48

Instrumentação: Bombardino, sax soprano, piano(s) acústico(s), baixo elétrico,

bateria, percussão (pandeiro, reco-reco), e voz.

Partitura gráfica da música gravada:

mp

mp mf p
131

mf f pp

Podemos verificar pela partitura gráfica que o grau de densidade tímbrico-textural

causada pela maior proximidade dos ataques sonoros instrumentais de A é diluída em A'

e incrementada em A". Isto ocorre porque na 2ª parte da música (A'), o tema é variado

por aumentação no bombardino.

As entradas sucessivas do mesmo tema à maneira de uma "fuga", deslocam as

linhas que em A eram simultâneas e paralelas e que, por isso, produziam textura

homofônica. Em A', as entradas em "fugato", defasadas umas quanto às outras por curtas

pausas, produzem uma imagem trêmula com contornos que se entrelaçam

polifonicamente no tempo de maneira não convencional.

A parte A é executada por piano solo, bombardino e sax soprano na melodia e

outro piano no acompanhamento. O tema é constituído de duas partes:


132

Ex. 21: (0'.00" -1'.01")


133

Na 2ª parte, a mais extensa da peça, entra a bateria com desenho rítmico bastante

sincopado, juntando-se ao "cânone" com entradas individuais em stretto. Esta 2ª parte é

dificílima, pois os músicos têm que executar durante aproximadamente dois minutos

partes individuais complicadas ao mesmo tempo ouvindo cada um dos outros músicos, à

frente ou atrás do que estão fazendo. O resultado é uma polirritmia total cujo efeito

sonoro foi associado ao título da música: "Briguinha de músicos malucos no coreto".

Após esta 2ª parte, há uma breve 'convenção instrumental'129 antes da reexposição

modificada do frevo da 1ª parte, agora acrescido de bateria e percussão (pandeiro), e

tocado em andamento ainda mais rápido que no início (U.T. = 120/130), num tutti

virtuosístico.

A parte original manuscrita por Hermeto, contém uma harmonia que só será

executada na 2ª parte da música. Na 1ª e 3ª partes, a harmonia gravada no LP é uma

variação desta parte manuscrita, e foi feita posteriormente pelo compositor. Dessa forma

podemos verificar que o resultado final registrado na gravação não era sequer imaginado

por Hermeto no início da composição de "Briguinha". O processo de criação e elaboração

musical de Hermeto e Grupo, como verificamos no capítulo III, era sempre dinâmico. Por

isso, as partes das músicas que analisamos são esboços de um "desenho" movediço e

129 'Convenção' é um termo usado na música popular para indicar um determinado trecho musical
geralmente curto, pré-determinado (convencionado) e executado por um ou mais intérpretes. A 'convenção'
funciona como abertura ou ligação entre as seções musicais.
134

sempre defasado em relação ao que ocorria depois de serem escritas. Em suma, o

resultado final de "Briguinha" depende inteiramente de um processo dinâmico, onde os

músicos sugerem idéias às inicialmente lançadas por Hermeto, desta comunicação

surgindo a estrutura musical ternária e os arranjos gravados no LP.

5.3.3 "Magimani Sagei" LP Hermeto Paschoal e Grupo (Som da Gente, 1982)

Processo de criação: Ao contrário das outras músicas, "Magimani Sagei" foi

feita na bateria, explorando o instrumento melodicamente. O compositor e o baterista

afinaram as peças do instrumento, bumbo, ton-tons e caixa, em diferentes notas - do

registro grave ao médio. Sem preconceber as alturas desejadas, obtiveram uma

determinada seqüência "agradável aos ouvidos de ambos".130 Em seguida, o compositor

sentou-se ao instrumento e começou a criar diferentes frases, que o baterista Márcio

Bahia ia anotando na partitura. Foram feitas ao todo sete frases rítmico-melódicas que

foram utilizadas como levadas.131 O passo seguinte foi a transcrição das notas da bateria

para o baixo, que passa a tocar em uníssono com a bateria ou em outros momentos

respondendo a ela. Por último, foram compostos os sopros (flauta em dó e flautim), os

chocalhos e guizos da percussão e as convenções onde os músicos gritam

"selvagemente". No estúdio, foram acrescentadas as palavras "indígenas" inventadas pelo

técnico de gravação e os latidos dos cachorros foram gravados na casa de Hermeto,

depois da gravação feita em estúdio.

Dados registrados em partitura: Existem partes do baterista, da flauta e do

flautim. A estrutura geral da peça está representada em partitura com as diferentes

seqüências da bateria dispostas, como já dissemos, em riffs com o baixo. A melodia da

130 Conforme o baterista Márcio Bahia nos relatou em entrevista.


131 Estas levadas tornam-se 'riffs' a partir da parte A'.
135

flauta se combina à estes riffs, num diálogo que ora os reforça ritmicamente, ora silencia

enquanto bateria e baixo continuam. As partes contêm ainda "breques" instrumentais para

todo o conjunto, nos quais aparece a indicação "gritos".

Forma esquemática: Binária (A A')

(U.T. ca. 80)

Duração total: 4.46

Instrumentação: Flauta baixo, flauta transversa em Dó, flautim, flautas de

bambú, ocarina, cavaquinho, baixo, bateria, percussão (flecha, guizos, chocalhos, apitos),

voz, cachorros)

Partitura gráfica da música gravada:

e7

mp mf
136

e4

mf f

e7

mf f cresce pouco
137

Essa é a música mais improvisada de todo o disco de 1982. A estrutura escrita

consiste somente de bateria, baixo, flauta e flautim. Todo o resto foi criado no estúdio.

Em trechos alternados da música, Hermeto sobrepõe aos ostinatos de baixo e bateria, três

cachorros latindo, o técnico Zé Luiz imitando um índio falando e considera tudo isso

como sendo a "base harmônica" sobre a qual as flautas de bambu, a flauta baixo e as

ocarinas estabelecem um diálogo improvisado. O timbre granulado dos latidos dos

cachorros Spock, Princesa e Bolão, as onomatopéias e gritos dos integrantes do Grupo

combinam-se com os frulatos, trinados e glissandos das flautas, num crescendo rítmico-

textural que alcança o clímax no final da música com o desenho rítmico-melódico das

levadas 6 e 7. Antes de apresentarmos as sete frases rítmico melódicas da bateria

(levadas), convém explicar a notação do instrumento empregada por Márcio Bahia:

Ex. 22
138
139

O tema de A' tem caráter percussivo e pontua as frases rítmico-melódicas da

bateria e baixo elétrico apresentadas em A (ver exemplos acima). As pausas constantes

da flauta e cavaquinho possibilitam o diálogo com baixo e bateria:

Ex. 23: A', (1'.44" - 2'.24" e 2'.54" - 3'.12")


140

Estes vinte compassos do tema ocorrem durante as quatro primeiras levadas da

bateria em A'. As notas pedais tocadas por baixo e bateria serão sib, fa, lab, sib. Somadas

ao modo de sib dórico (c. 1 a 11) e à escala de tons inteiros a partir de sib, tocada pela

flauta e terçada pelo cavaquinho (c. 15 a 20), teremos uma gama escalar mista e

alternada, onde à maior tensão intervalar - da escala de tons inteiros - corresponde uma

maior compressão rítmica (c. 15 a 20). A partir do c. 20, a flauta reforça os ostinatos

rítmicos da bateria, como podemos verificar no exemplo abaixo, quando a flauta

reproduz o desenho da levada 7:

Ex. 24: (4'.03" - 4'.31")

A estrutura formal binária de "Magimani Sagei" é construída por semelhança e

derivação. Na Parte A, as sete levadas da bateria são expostas seguidamente, mas na


141

Parte A', as levadas são dispostas em três grandes grupos: o primeiro é constituído pelas

levadas 1, 2, 3 e 4, acompanhadas pelo tema da flauta (exemplo 2). Depois do breque

instrumental, o segundo grupo é um ritornello do primeiro, para então, após novo breque

instrumental, termos o grupo final, com as levadas 5, 6 e 7, acompanhadas pela flauta em

desenhos rítmicos-melódicos ostinatos cada vez mais compactados (exemplo 3).

A flauta baixo, as diversas flautas de bambu, as ocarinas, os latidos dos cachorros,

os gritos e as palavras "indígenas", foram acrescentados em play-back pelo compositor e

músicos no estúdio. Os cachorros ou "cães vocalistas" (como são denominados no

encarte do LP), Spock, Bolão, e Princesa, foram gravados na casa de Hermeto e

acrescentados aos instrumentos depois de feita a gravação. As palavras "indígenas" (oirê,

ôgorecotara, tanajura, etc.) foram inventadas pelo técnico de estúdio Zé Luiz a pedido

de Hermeto. Todos os integrantes do grupo tocam apitos e eventualmente falam palavras

desconexas, fazendo sons onomatopaicos e gritando. O resultado alude ao tribal, ao

ambiente e à paisagem sonora da índia e cabocla Magimani Sagei, que dá nome à música.

A cabocla "Magimani Sagei" é um alter-ego de Hermeto e a ambiência sonora indígena

da música se relaciona, no imaginário do compositor, à sua infância em Lagoa da Canoa.

Porém o mais interessante é verificar como esta transferência ou projeção, para

usar o jargão psicanalítico, ocorre musicalmente. A rica exploração tímbrica presente em

"Magimani Sagei", que as partituras gráficas ilustram de maneira aproximada, demonstra

como as sonoridades harmônicas e inarmônicas convivem na linguagem musical de

Hermeto. O uso de sons de animais pelo músico alagoano representa um rompimento dos

limites convencionais do material sonoro harmônico, dito "musical". Mais que pitoresca,

a inclusão feita por Hermeto de sons de animais e outros sons não convencionais dentro

dos territórios musicais, representa ao mesmo tempo uma transgressão violenta e uma

reimersão prazerosa do particular - a música - no universal - o som. Em "Magimani


142

Sagei", esta reunião é alcançada através da festa dionisíaca, na qual o corpo é solicitado

para o movimento crescente da dança tribal que a música sugere.

5.3.4 "Cores", LP Hermeto Pascoal e grupo (Som da Gente, 1982)

Processo de criação: Esta música foi encontrada casualmente no verso da

partitura de outra música de Hermeto. Foi inicialmente tocada por sax soprano e piano,

depois juntaram-se baixo e bateria. Progressivamente, diversas convenções instrumentais

foram criadas com base nesta partitura primeira, assim como as diferentes levadas de

cada parte. Depois de gravados os instrumentos, Hermeto acrescentou o som da cigarra

gravada no jardim de sua casa.

Dados registrados em partitura: Melodia, harmonia e ritmo antes da Coda. Na

parte do pianista, além de melodia e harmonia há indicações para cada parte da música

com divisão rítmica (B') ou, à maneira da bateria, apenas a indicação de um estilo, no

caso, o baião (B''). Ainda na parte do piano há um acorde que foi escrito por Hermeto, a

fim de reproduzir os parciais do ferro que é percutido na Coda. A parte de bateria é a

mais detalhada de todas.

Forma esquemática: A B A' B' A'' B''

(U.T. ?)

Duração total da música: 5.27

Instrumentação: Cigarra, bombardino, sax soprano, baixo, violão ovation, piano

acústico e elétrico, percussão e bateria.

Partitura gráfica da música gravada:


143

p mp p mp p mp

mf f
144

mp mf f

mf forte

Como podemos verificar pela partitura gráfica, o som da cigarra gravado por

Hermeto é complexo e percorre quase toda a gama dos tipos morfológicos que antes
145

abordamos. Inicia com ataques-impulsos separados por pausas curtas, passando pela

iteração até o grão, para finalmente se estender num som sustentado de altura perceptível.

O som da cigarra de "Cores" percorre o contínuo senóide-ruído de trás para frente, ou

seja, principia como ruído para depois tornar-se som harmônico.

A própria música no entanto seguirá o caminho oposto, i.e., estará mais próxima

do ruído na longa coda final que é o momento de maior complexidade textural,

timbrística e harmônica. Hermeto nos disse em entrevista que gravou a cigarra por que

seu silvo agudo se parecia com o som produzido pelos amoladores de faca. A música foi

finalmente denominada "Cores", porque, segundo Hermeto, "o arco-íris tem a ver com o

som da cigarra, o arco-íris como visual e a cigarra como som. Cada cor tem várias

tonalidades. Quem tem a percepção de alcançar os sons da cigarra, os harmônicos", vê

um arco-íris sonoro "que passa pelas comas dividindo os semitons". Hermeto compara a

percepção auditiva dos harmônicos e parciais do som da cigarra (e do amolador de faca)

às camadas coloridas do arco-íris.

As seções gravadas em disco são variações da parte original encontrada pelos

músicos. A estrutura musical sugere a forma rondó, ao som da cigarra se seguirá sempre

o tema instrumental, que, a cada repetição, aparece variado.

A parte A (0'.0" - 0'.10"), introduz o som ligeiramente destemperado de uma

cigarra em la4 (aproximadamente), acompanhado por piano acústico. A cigarra foi

gravada por Hermeto em sua casa depois da música ter sido registrada no estúdio de

gravação. Interessante observar que a nota da cigarra é a 5ª do acorde de Re maior com 7ª

maior e 9ª, um pedal agudo que se choca com a nota lab do sax, que dá início à melodia.

Dissonâncias de 2ª aparecem em "Cores" sempre relacionadas às intervenções da cigarra.

Estas intervenções são acompanhadas ainda dos sons inarmônicos de sinos chacoalhados,

apitos e da placa de ferro percutida na Coda final. Contudo como a sensação de


146

dissonância depende em grande parte do contexto harmônico-melódico que ela se insere -

para não falar do contexto cultural - em "Cores", a reiteração constante do som da cigarra

e dos acordes dissonantes e sons percussivos inarmônicos que a acompanham, criará uma

ambiência harmônica bastante não convencional, mas que Hermeto faz parecer natural e

cotidiana.

A parte B tem andamento lento, sendo acompanhada por piano e solada

alternadamente por sax soprano (c. 1 a 3 - 0'. 11" - 0'.33" - e c. 10 - 1'.15" - 1'.22"), violão

ovation (c. 4 a 5 - 0'.35" - 0'.45" e c. 8 a 9 - 1'.03" - 1'.11" ) e flauta baixo (c. 6 a 7 -

0'.48" - 1'.01"). O tema é desmembrado coloristicamente (as entradas instrumentais

alternadas estão indicadas na partitura gráfica com setas), e a sucessão de timbres e

articulações instrumentais passa a constituir um dos ponto focais de interesse. A melodia

escrita é ornamentada com apogiaturas e bordaduras, em andamento lento e tempo

bastante flexível. A textura rarefeita se torna homofônica no c. 11 (1'.23'') com os

instrumentos tocando o fim do tema em uníssono. A harmonia do piano reforça o

contraste textural com acordes ricos em dissonâncias.

No exemplo abaixo, o tema tem caráter tonal. A 1ª frase apresentada nos cs. 1 a 3

servirá de material para a construção de todo o tema e está em Reb maior. O 2º c. da 1 ª

frase ligeiramente modificado em seu ritmo, é condensado e sequenciado nos cs.4 a c.7

durante a 2ª frase. A 4ª e última frase do tema (c. 14 a 16) apresenta como material novo

o ritmo em semicolcheias e o perfil angular e ascendente dos cs. 15 e 16 contrastando

com o perfil ondulado anterior.

A harmonia do tema não sublinha seu caráter tonal e foi escrita em cifras

encimadas pelo ritmo em que deverão ser tocadas. Explicaremos a notação não

convencional de algumas das cifras de "Cores" depois do exemplo a seguir:

Ex. 25: (0'.11" - 2'.08")


147
148

"Cores" cita sonoramente todos os germes da concepção musical de Hermeto - o

som dos animais e dos ferros percutidos - e demonstra como esta concepção foi traduzida

em linguagem musical por Hermeto Pascoal e Grupo.

Em vários momentos do tema (c. 2.3, 3.3, 5.4.1, 7.2 e c. 11 a 13), as cifras

aparecem dispostas umas sobre às outras. Este tipo de notação, que não existe na música

popular, nem no jazz, foi inventado pelo próprio Hermeto:

Ex. 26
c. 5.4.1

G5+
7

Ex. 27
149

F7

Nestas cifragens, o acorde inferior da cifra tocado pela m.e. conterá apenas uma

nota grave a partir da qual os intervalos assinalados são superpostos. Por exemplo, na

cifragem convencional, a cifra G indica a tríade de Sol maior, mas na cifragem utilizada

por Hermeto nos exemplos acima, 'G', se estivesse, como já dissemos, na parte inferior da

cifra, seria simplesmente a nota sol na mão esquerda. Se esta mesma letra 'G' estivesse

acompanhada de números (2, 4, 5-, 7+, 9-, etc.) ao lado, acima ou abaixo dela, estes

números constituiriam determinados intervalos a partir da nota sol. Já a parte superior da

cifra tocada pela mão direita pode ser anotada por Hermeto tanto da maneira

convencional como de acordo com a notação criada pelo músico.

No exemplo 26, D_ significa, na mão direita, a tríade de Re maior (re, fa#,


G5+7
la) e , na mão esquerda, as notas Sol (o baixo), re# (a 5ª+ de sol) e fa (a 7ª menor).

Importante observar que estas combinações interválicas nem sempre são poliacordais,

pois, em alguns casos, Hermeto omite a 3ª do(s) acorde(s), o que não impede no entanto,

que caracterizemos tais combinações como resultantes de superposições tríadicas

incompletas.
150

A razão destes tipos de combinação harmônica não serem comuns nos universos

da música popular brasileira e do jazz, pode ser encontrada nas relações interválicas

dissonantes das notas dentro dos próprios acordes e destas em relação às notas da

melodia. Os acordes dos exemplos 26 e 27 contém a sétima maior e menor

respectivamente dos baixos sol e fá, separadas por intervalo de nona menor. A presença

simultânea da sétima maior e menor e a dissonância provocada pelo intervalo de nona

menor que as separa no interior de cada acorde, são mais que suficientes para contrariar a

linguagem harmônica popular que considera convencionalmente tais combinações como

"erros" de harmonia.

Em passagens como a do exemplo a seguir, Hermeto, primeiro transpõe a mesma

estrutura interválica (c. 11), para depois escrever ambas as cifras de acordo com a

notação por ele inventada (c. 12). Note-se que a partir deste trecho, a melodia será

propositadamente tocado em uníssono por sax soprano, bombardino, flauta e violão,

depois de estes instrumentos terem se alternado, com exceção do bombardino, tocando

trechos do tema nos cs. 1 a 10. Ao constraste instrumental, ou seja, de timbre,

corresponde o contraste harmônico. Se nos cs. 1 a 10 as cifras não convencionais eram

esporádicas, no trecho abaixo elas ocorrerão a cada tempo:

Ex. 28: c. 11 e 12 do tema (1'.22" - 1'.44")

Cifragem não convencional


tanto nas cifras inferiores
Poli-acordes como nas superiores
transpostos Idem
151

Depois de apresentado o tema, segue-se um trecho harmônico-melódico breve

que tem o caráter duplo de extensão da última frase do tema e ponte para 'A'.132 Esta

passagem é importante porque apresenta parte do material harmônico que será utilizado

na extensa Coda final, quando o som da cigarra e de uma placa de ferro, cujos parciais

serão transpostos para o piano, são sobrepostos ao tutti instrumental.

Ex. 29: (2'.08" - 2'.17")

Neste trecho, o sax soprano encabeça o naipe em bloco formado por violão,

bombardino, além de outro sax acrescentado em play-back, todos os instrumentos na

região grave. A melodia executada pelo sax 1 e dobrado pelo violão uma 8va. abaixo se

caracteriza pelo cromatismo e está, assim como as outras notas do naipe em bloco, numa

relação bastante dissonante com a harmonia de dupla cifragem.

132 Na partitura manuscrita por Hermeto, este trecho aparece indicado simplesmente como 'Ponte'.
152

A textura densa dessa ponte se dissolve em A', quando ouvimos novamente a

cigarra do início, com seu silvo agudo em la4 (aproximadamente). Sinos chacoalhados e

apitos somam-se aos acordes executados pelo primeiro e segundo pianos, tocados

respectivamente por Jovino e pelo baixista Itiberê. O piano elétrico toca a mesma

harmonia do exemplo anterior uma oitava acima, em síncopes, com o piano acústico que

toca em mínimas:

Ex. 30: (2'.18" - 2'.25")


A
Cig.

Pno.
1

+ sons de apitos e pequenos sinos chacoalhados


.. .
...
.
Pno.
2

B' tem andamento um pouco mais rápido que B e, nesta parte, entram bateria e

baixo. Bateria fazendo ritmo em fusas na caixa com o bumbo em contra-tempo. O baixo

em semínimas e colcheias (o mesmo ritmo do piano). Continua também o piano elétrico

que entrou na ponte para A', fazendo inversões da harmonia do piano acústico, sempre

em síncopes. O ritmo criado pelos dois pianos lembra o galope nordestino, e vira frevo no

final desta parte da música. A melodia é executada por sax soprano e dobrada à oitava

pelo violão do convidado Heraldo do Monte, e pelo bombardino de Hermeto. Novamente


153

um outro breque instrumental (A''), constituído do som da cigarra e acompanhado

somente de percussão e flauta baixo em stacatto, separa uma seção musical da outra.

Num crescendo rítmico contínuo, em B'', o baixo executa desenhos rítmicos mais

subdivididos que em B e B' e o piano acústico está em ritmo de baião.

Ex. 31

Em contra-ponto ao ritmo do piano, a bateria executa o desenho a seguir:

Ex. 32: (3'.32" - 4'.07")

O tema é tocado em uníssono por sax, violão e bombardino tal qual em B'.

Com andamento mais rápido que na parte anterior, e intensidade também mais

forte, a música chegará ao clímax e relaxamento subseqüentes na Coda, o ponto de maior

complexidade harmônica, textural e timbrística de toda a música. Na Coda, ouvimos

seguidas vezes o som da cigarra, que torna-se um pedal agudo em la4, sobre o solo de

bombardino improvisado por Hermeto. Inicialmente a harmonia possui o mesmo material

harmônico de A' (exemplo 5), uma seqüência de quatro acordes cifrados não

convencionalmente e com baixo pedal em do#:


154

Ex. 33: (4'.29" - 4'.36")

Em seguida, o primeiro destes quatro acordes é repetido uma 8va. acima durante

quatro compassos (4'.36" - 4'.50"). O acorde que o sucede foi escrito por Hermeto

transpondo para o piano os parciais do espectro sonoro inarmônico da placa de ferro que

é percutida em toda a Coda e que Hermeto distinguiu com sua audição acurada.

Ex. 34

Este acorde é tocado com o seguinte ritmo, preparando o clímax posterior:


Ex. 35

forte
Sobre esse ostinato do piano 1, reforçado pelo ritmo subdividido de frevo da

bateria improvisado por Márcio Bahia, ocorre o clímax de toda a peça. Todos os

instrumentos estão em dinâmica f ou ff, o sax acima da cigarra combina-se ao acorde do


155

piano 2 que é o mesmo do piano 1, transportado uma 8va. acima na mão esquerda e uma

8va. abaixo na mão esquerda. Note-se o deslocamento na acentuação natural dos tempos

que as síncopes instauram na linha do sax, do piano 2 e da placa de ferro.

Ex. 36: (4'.57" - 5'.10")

Clímax da
Coda
Sax soprano

Cigarra

Piano 2

Piano 1

Placa de
ferro
156

8va.

A música finaliza com um fade-out geral a partir do último acorde do exemplo

acima, quando ouvimos, pela última vez, o silvo da cigarra a capella.

"Cores" é um excelente exemplo de como Hermeto transita entre a harmonicidade

e a inarmonicidade espectral. As intervenções breves e repetidas da cigarra são

apresentadas durante a música somente com acompanhamento de piano (ou ainda de

instrumentos de percussão), como se Hermeto quisesse por em relevo o som e o timbre da

cigarra, em contraste com os timbres instrumentais.

Na Coda, Hermeto finalmente unirá o silvo agudo e destemperado da cigarra com

os outros instrumentos. O não-temperamento da cigarra funciona como uma porta para a

inarmonicidade e ruidosidade finais. "Cores" é por isso, uma música em corrosão

contínua. O som da cigarra parece infiltrar progressivamente a irregularidade inarmônica

no tecido harmônico instrumental. E, importante observar, a escolha dos sons de animais


157

que Hermeto grava depois das músicas estarem prontas, não é gratuita. Cada som

produzido por um animal específico, se relaciona a uma música em particular, que guarda

com este som relações de similaridade e contraste. Esta relação em "Cores" é

exemplificada especialmente na maneira como Hermeto manipula o material harmônico -

e inarmônico - cifrado não convencionalmente. A mescla de nota e ruído da cigarra põe

em relevo o que ocorre na própria música.

5.3.5 "De bandeja e tudo", LP Hermeto Pascoal e grupo (Som da Gente, 1982)

Processo de criação: Como a música "Cores", "De bandeja e tudo" é uma

composição feita por Hermeto anos antes e retrabalhada para o disco de 1982.

Originalmente era tocada no harmônio ao invés do piano. Na nova versão, baixo, melodia

e acompanhamento já estavam compostos anteriormente e a bateria foi o último

instrumento a ser utilizado.

Durante anos, esta música passeou pelo repertório de Hermeto, e o pianista Jovino

Santos foi guardando as partes dos diversos arranjos feitos. Uma destas partes é

justamente a variação que ouvimos no final da reexposição, da qual Hermeto já nem se

recordava mais. Com toda a música já gravada durante uma sessão no estúdio, Jovino

lembrou a Hermeto da antiga variação que os músicos apelidaram de "diabinhos", que foi

então acrescentada em play-back por piano, flauta e flautim.

Dados registrados em partitura: A parte de piano, em compasso 7/4, contendo

melodia e baixo na mão esquerda (tema com 16 compassos) e a parte de bateria. Não há

registro da harmonia da ponte entre os temas ou da harmonia sobre a qual Hermeto

improvisa na flauta baixo.

Forma esquemática: Ternária (A B A')


158

(U.T. ca. 110)

Duração total: 5.48

Instrumentação:

Sax soprano, flauta baixo, flauta em dó e flautim,, voz, piano acústico, clavinetes

(Jovino e Hermeto), guitarra, baixo, bateria, percussão

Partitura gráfica da música gravada:

p mp mp p

p mp mf mp f
159

p mp mf f p

mp mf f f

A introdução de quase um minuto de duração foi improvisada pelo amigo

nordestino Heraldo do Monte na guitarra e por Hermeto nas percussões. Esta introdução

tem três partes; a 1ª (0'.00'' - 0'.15'') e a 3ª (0'.55'' - 1'.03'') exploram um cromatismo

acentuado (cuja unidade mínima - o intervalo de 2ª menor - caracterizará também o início

do tema em Mi frígio de A e A'), enquanto que a 2ª parte desta introdução (0'.36'' - 0'.54'')

fará uma citação breve do nordeste através de escala mixolídia com a 11ª aumentada. O

ambiente cromático alterna diferentes dinâmicas e o suspense que inspira é


160

complementado por sons percussivos granulados produzidos pelo prato de bateria, apitos

e risadas guturais.

Construída parcialmente com material derivado do tema, a introdução criará o

clima para a entrada deste último, com o baixo oitavando a mão esquerda do piano, e

melodia no piano, guitarra e sax soprano.

Ex. 37: Tema, c.1 a 8 (1'.15" - 1'.45" e 2'.02" - 2'.32")


161
162

O tema (c. 1 a 4 e ritornello) tem inicialmente característica modal (mi frígio), e

cada nota, neste início e durante todo o tema (c. 1 a 8), é harmonizada por um acorde

cujas notas extremas são oitavadas, acrescidas da 4ª e 5ª justas (que Hermeto chamará de

1-4-5-8). Este acorde tem grande força, pois as notas que o constituem são harmônicos

bastante próximos (a 8º, a 5º, e como conseqüência de sua inversão, a 4º) da nota mais

grave (a freqüência fundamental). Sua sonoridade parece ter efeito imponente, solene e

místico, provavelmente por este acorde ter uma história longa dentro do vocabulário

musical do Ocidente. Ele se assemelha aos dos primeiros organa medievais, onde a voz

principal era dobrada à 5ª ou 4ª pela voz organal (vox organalis). Posteriormente as 5as.

seguidas foram consideradas erros no encadeamento harmônico renascentista, barroco e

clássico. Apenas na música moderna reapareceriam, com C. Debussy (em "La Cathédrale

Engloutie" por exemplo) e Erik Satie. Desde então, sua sonoridade típica e algo pesada

foi incorporada pelo jazz, e mais especialmente pelo rock, nos assim denominados,

"power chords".
163

Nos compassos 5 e 6, o baixo pedal permanece em mi (mi - si -mi), porém a mão

direita está em ré frígio, e nos compassos 7 e 8, em fá dórico. A superposição, mi -si

(baixo pedal na mão esquerda) + ré frígio e fá dórico (na mão direita), reforça a

tendência do idioma harmônico de Hermeto em trabalhar simultaneamente com pólos

distintos, neste caso modais.

A mão esquerda no piano é dobrada à oitava inferior pelo baixo elétrico, sempre

com desenho rítmico bastante sincopado e como já dissemos, tendo a nota mi como pedal

ostinato. A bateria acompanha piano e baixo com um único desenho rítmico em colcheias

no bumbo, caixa e contra-tempo, que se repete durante todo o tema, em contraponto com

os outros instrumentos. O tema é ouvido duas vezes na primeira e segunda partes, sempre

separado por uma ponte breve (não anotada no exemplo acima).

A seção central (B), a mais longa de toda a música, é um improviso de Hermeto

na flauta baixo, com harmonia simples e ritmo ainda em 7/4. Hermeto explora sua

habilidade na flauta, usando frulatos, trinados e diversos recursos multifônicos como

produzir notas com a boca e tocar simultaneamente.

Finalmente é reexposta a parte A, com andamento ligeiramente mais rápido e com

a superposição da já mencionada variação melódica no final, tocada pela flauta (os

"diabinhos"). O trecho abaixo é o momento texturalmente mais denso de toda a música,

reforçado pelas dinâmicas em mf e f além das tensões e dissonâncias harmônico-

melódicas:

Ex. 38: (5'.14" - 5'.43")


164
165

Durante a música, Hermeto incrementa progressivamente a textura do tema,

adicionando em play-back, outras vozes que o dobram, à 5ª e 8va. Era comum por

exemplo Hermeto pedir para Carlos Malta, que depois de gravada a melodia escrita para

um instrumento transpositor, que o saxofonista tocasse e gravasse a mesma melodia sem

transposição, recurso que produz uma textura bastante densa, além de combinações

harmônicas não convencionais.


166

5.3.6 "Papagaio Alegre", LP Lagoa da Canoa, Município de Arapiraca (Som da

Gente, 1984)133

Processo de criação: "Papagaio Alegre" foi feita em 1981, logo depois da

entrada de Carlos Malta e Márcio Bahia na banda. Foi composta e arranjada num só dia

durante um ensaio que durou até tarde da noite. Seu título original era, "Está bom de

acabar, já são dez horas", que foi o que Ilza, a mulher de Hermeto falou, pois o marido e

os músicos tinham se alongado no horário normal de ensaio. O papagaio foi gravado na

casa de Hermeto e acrescentado depois da gravação feita.

Dados registrados em partitura: As partes de cada músico foram dispostas em

grade, pelo pianista Jovino Santos. Na grade feita por Jovino aparece uma linha para

bombardino não gravada no disco.

Forma esquemática: Ternária (A B A')

(U.T. ca. 80)

Duração total: 5.29

Instrumentação: Sax tenor, bombardino, piano CP 80, baixo elétrico, jererê e

triângulo.

133 CDSDG- 011/92.


167

Partitura gráfica da música gravada:

mf

pa pa pa pa pa ga io (idem) (idem)

f mf cresce f

(sons variados de papagaio)


168

f p

A música se inicia com o som do papagaio de Hermeto aproximadamente na nota

si3, cuja célula rítmica sincopada (3 colcheias pontuadas, uma colcheia, uma

semicolcheia e duas colcheias) recorda o côco nordestino. (0'.00" - 0'.02"):

Os acentos ritmados do som do papagaio combinam-se com os instrumentos do

Grupo durante a música, como a partitura gráfica acima exemplifica.

O tema 'a' tem característica modal e Hermeto utiliza o modo (nordestino)

mixolídio de Sol com 11ª aumentada, cuja estrutura interválica também apareceu em

"Série de arco" (c. 6) e "De bandeja e tudo" (introdução 2). Note-se o contraponto que a

linha do baixo faz com a melodia principal tocada pelo sax tenor e oitavada pelo flautim:
169

Ex. 39: (0'.10" - 0'.26")


170

O tema 'b' é constituído das mesmas notas que 'a', mas o pólo escalar incide sobre

a 4ª aumentada de sol, ou seja, a nota dó #. Passamos de um modo nordestino para a

escala superlócria, uma escala exótica.134

134 Ver Vicent Persichetti, op. cit., p. 42.


171

Ex. 40: (0'.26" - 0'.42")

Note-se no 2º tetracorde (a partir da última nota do 1º tetracorde) da escala

superlócria, os intervalos consecutivos de 2a. maior que conferem à esta gama intervalar

uma sonoridade semelhante à escala de tons inteiros.


172

Ex. 41

'B' contrasta com 'a' não apenas do ponto de vista da altura (das diferentes escalas

que contituem estas seções do tema), mas também no tocante ao ritmo e ao timbre. Em 'b'

o ritmo do flautim, sax e piano é contituído basicamente de colcheias, enquanto que, em

'a', as semicolcheias estão mais presentes. A partir de 'b' e reforçando a atmosfera

"exótica" estabelecida pela escala super-lócria, o baterista Márcio Bahia toca o jererê,

com desenhos rítmicos ostinatos em semicolcheias.135

Em 'c1', o contexto harmônico novamente é modificado. O baixo encontra-se em

Do mixolídio com a 11ª aumentada, enquanto o piano acrescenta à gama mixolídia em

Do, a 9ª menor e a 9ª aumentada (reb e mib). Este trecho é o auge da compactação rítmica

do tema. O piano dobra o desenho rítmico do flautim e do sax soprano enquanto que o

baixo tem maior liberdade rítmico-melódica, mudando ainda seu registro para uma 8va.

acima.

135 "Papagaio alegre" é a primeira das músicas que analisamos que utiliza sonoramente os
domésticos tupperware, acondicionadores de alimento feitos de plástico. Ao levar camarão dentro dos
tupperware para a casa de Hermeto, um dia, o baterista Márcio estava casualmente conversando e
batucando nas embalagens já esvaziadas de seu conteúdo. Hermeto gostou do som e assim um conjunto de
tupperware de diversos tamanhos foi constituído. Márcio chegou a ter vários destes pendurados ao lado de
sua bateria durante o período 1982-1992, incorporando-os definitivamente à sua bateria combinada com
arsenal percussivo. O instrumento foi batizado de jererê. Exemplificaremos a sua escrita na música a
seguir, "Arapuá", onde este instrumento também foi utilizado por Hermeto.
173

Ex. 42: (0'.43" - 0'.58")

A escala formada pelas notas de piano e baixo em 'c1' é denominada simétrica ou

simplesmente semi-tom, tom, semi-tom:


174

Ex. 43

'C2' será o clímax textural de todo o tema com quatro camadas distintas, enquanto

que do ponto de vista rítmico representa um afrouxamento de 'c1', apresentando

figurações também em colcheias, além de semi-colcheias. As notas de baixo e piano (m.d

e m.e.) permanecem relacionadas à escala simétrica de 'c1', mas o sax tenor apresenta um

desenho triádico e ascendente muito interessante:

Ex. 44: (0'.59" - 1'.15")


175

O contexto harmônico do exemplo acima é o mais dissonante de todo o tema. O

baixo está em Do mixolídio com 11ª aumentada, o piano na escala simétrica de Do,

enquanto que o sax tenor sobe em arpejos de tríades sucessivas (que se originam da nota
176

la; la, do, mi, sol, sib, re, fa#, la) e desce na escala simétrica. Os arpejos sucessivos do

sax introduzem as tensões de 9ª e 13ª em relação ao baixo em Do mixolídio com 11+,

enquanto que a escala simétrica, contém a 9ª menor e aumentada de Do, além da 13ª:

Ex. 45: (0'.59" 1'.07")

La menor Sol menor Re maior

Separada de A por uma rápida convenção instrumental antes apresentada na

introdução, onde destacam-se os ataques do som do papagaio em ritmo de côco e na nota

si, a seção central (B) de "Papagaio alegre" é um improviso de Hermeto na flauta

transversa sobre uma harmonia simples e levada de forró. Depois do improviso, a parte A

é reexposta de maneira abreviada (sem a repetição de 'c1' e 'c2'), e na coda ouvimos

novamente o som do papagaio a capella.

5.3.7 "Arapuá", LP Brasil Universo (Som da Gente, 1986)136

Processo de criação: Feita para os instrumentos recém-comprados - dentre

outros, o teclado DX-7 e o sax barítono - após viagem em turnê para a Europa. Hermeto

pretendia com "Arapuá" explorar os recursos e sonoridades destes instrumentos. O

136 CDSDG- 012/93.


177

compositor, no entanto, acabou preferindo o piano acústico ao teclado eletrônico, mas o

sax barítono foi mantido. O piano e o sax barítono foram os primeiros a serem feitos,

durante os ensaios coletivos. Logo em seguida vieram o baixo e finalmente, percussão e

bateria.

Essa é uma das composições mais atonais de Hermeto. Segundo o pianista Jovino

as notas de sax, piano e baixo não estão numa relação de funcionalidade, mas de

complementariedade textural. Segundo Jovino, Hermeto foi formando os acordes iniciais

de "Arapuá" com sonoridade quartal, pensando em cada nota como um complemento

tímbrico à textura do todo e não do ponto de vista funcional.

É importante ressaltar o caráter de estudo que "Arapuá" tem. Ao escrever uma

música especialmente para o sax barítono, Hermeto fez dela um exercício técnico

explorando toda a tessitura do instrumento e mais especialmente, a região grave.

Mas não só a parte do saxofonista Carlos Malta era difícil. Na 1ª parte por

exemplo, o baterista Márcio Bahia substitue as peças da bateria pelo jererê, instrumento

criado por Hermeto com acondicionadores plásticos de alimento de diferentes tamanhos.

Depois de gravada a música, a textura de piano, sax barítono e baixo, todos na

região grave, foi associada por Hermeto à abelha Arapuá, de zumbido também grave, que

acabou por emprestar seu nome à música.

Dados registrados em partitura: Toda a grade do arranjo,137 a transcrição do

solo improvisado de sax soprano, as partes de jererê e bateria.

Forma esquemática: Ternária (A B A') / U.T. ca. 160

Duração total: 6.38

137 Reconstituída pelo pianista Jovino Santos.


178

Instrumentação: Piano, sax barítono, sax soprano, berrante, baixo, bateria,

percussão (jererê) .

Descrição do resultado gravado:

A B A'
_______________________7.35______________________________
------3.30 ----- ----- 1.37 ------ ----- 2.28 ----
0.00 - 03.30 3.31 - 5.06 5.07 - 7.35
Solo de berrante
Sax soprano Sax soprano
Sax barítono Sax barítono Sax barítono
Harmônio Harmônio
Piano Piano Piano
Baixo Baixo Baixo
Percussão (jererê) Bateria Bateria

A música consiste basicamente de três grandes seções. A 3ª é uma reexposição da

1ª variada pela substuição do jererê pela bateria, e a seção central é uma levada em 6/4,

na qual Hermeto improvisará um solo no berrante de boi tocado debaixo d'água.

Esta forma ternária com a seção central improvisada, ocorre também em outras

músicas que analisamos, como por exemplo "Série de Arco", "De bandeja e tudo" e

"Papagaio alegre". Em "Arapuá" no entanto, Hermeto não se contentará em improvisar

no berrante somente na 2ª parte, improvisando virtuosisticamente no sax soprano também

durante a 1ª e 3ª partes.

O jererê é de uma dificuldade extrema, por causa do andamento rapidíssimo e da

sincopação. As diferentes configurações rítmicas estão distribuídas nas diferentes peças

do instrumento, como se este fosse um instrumento melódico. Esta aspecto da escrita de

Hermeto para percussão e bateria é fundamental para a compreensão da particularidade

do estilo do compositor e tem como exemplos não só "Arapuá", mas também "Série de

Arco", "Briguinha de músicos malucos no coreto", e, principalmente, "Magimani Sagei",

além de outras composições de Hermeto. Sempre questionando as fronteiras entre os sons


179

harmônicos e os inarmônicos, Hermeto pensará a bateria rítmica e também

melodicamente.

Do ponto de vista da textura, esta música alterna trechos monofônicos,

polifônicos e heterofônicos. O início da 1ª parte tem textura monofônica, piano, baixo e

sax barítono, estão em bloco na região grave em movimento paralelo, iniciando uma

longa subida em arpejos, à maneira dos estudos técnicos. O acorde com sonoridade

quartal produzido por sax barítono, baixo e piano permanece inalterado em suas notas

mais graves, enquanto suas pontas vão se abrindo progressivamente em direção ao agudo:

Ex. 46: cs. 1 a 17 (0'.00" - 0'.23")


180
181
182

Durante este trecho, Hermeto improvisa no harmônio acompanhando a subida

instrumental com acordes sustentados que mudam a cada dois compassos, formados por

dois trítonos (nos cs.1 e 2 por exemplo, si2 e fa3 na m.e e sol3 e do#4 na m.d.).

Como em vários outros trechos de "Arapuá", o sax barítono e a voz mais aguda do

piano estão numa relação de 9ª menor. O acorde-base com sonoridade quartal do

exemplo acima é:

Ex. 47: c. 1

m.d. piano
m.e. piano

baixo elét.
sax barítono

Se formarmos um acorde por condensação das notas pedais arpejadas nos cs. 1 a

16, perceberemos porque Hermeto relacionou esta música ao zumbido grave da abelha

arapuá. A justaposição das notas na região grave dificulta a percepção das alturas
183

envolvidas, ao mesmo tempo que produz uma massa sonora entre o som harmônico e o

ruído grave produzido pelas abelhas:

Ex. 48: c. 1 - 16

Após a subida inicial, do compasso 18 a 22 (0'.24" - 0'.34") os instrumentos

executam frase com tendência descendente ainda baseados no acorde do ex. 47, para

depois alternarem momentos de maior ou menor sincopação e polirritmia.

Note-se no exemplo a seguir, as quatro camadas texturais constituídas

respectivamente pela mão direita e esquerda do piano, a terceira pelo baixo elét. e o sax

com quase o mesmo ritmo e a quarta pelo jererê. A polirritmia ocorre em cada linha, a

mão direita do piano em quiálteras e a esquerda em colcheias pontuadas, enquanto sax e

baixo têm figurações rítmicas menos rápidas e estão construídos predominantemente por

movimento contrário.
184

Ex. 49: c. 23 e 24 (0'.35" - 0'.38")

No exemplo a seguir, a polifonia é acentuada e cada linha tem um desenho

rítmico-melódico próprio. Observe-se como Hermeto superpõe notas estranhas à

harmonia simples da m.e. do piano:

Ex. 50: c. 57 a 60 (1'.28" - 1'.34")


185

O baixo é tratado nesta música melodicamente e como uma das vozes do naipe

formado por sax barítono e piano. Isto é importante porque evidencia uma exploração

não convencional do instrumento pelo compositor. Ao contrário de "Cores" ou

"Briguinha de músicos malucos no coreto", onde o baixo caminha preferencialmente

sobre as "cabeças"138 dos acordes cifrados, em "Arapuá" o baixo participará ativamente

da trama monofônica e polifônica, como um instrumento melódico.

O início da parte B exemplifica bem o uso que Hermeto faz deste instrumento. Os

quatro compassos abaixo são na verdade um pequeno solo de baixo de Itiberê e, apesar

do andamento ser a metade do inicial (U.T. ca. 88), as figurações rápidas em

semicolcheias e seisquiálteras na região aguda do instrumento são de dificílima

execução:

138 "Cabeças" dos acordes, ou seja, as notas mais graves indicadas nas cifras.
186

Ex. 51, B, c. 99 a 102 (2'.31" - 2'.43")

A segunda parte de "Arapuá", é basicamente uma levada em 6/4, sobre a qual

Hermeto improvisará no berrante. A harmonia desta levada é construída com material de


187

A - acordes de sonoridade quartal - sempre articulados sincopadamente. Os dois

compassos abaixo são tocados durante um minuto aproximadamente enquanto Hermeto

sola no berrante:

Ex. 52: 'B', c. 108 e 109 (3'.00" -

O uso que Hermeto faz do berrante de boi, transformará este típico objeto da

cultura popular, em um instrumento com duas oitavas (sol 2 a sol 4), graças ao bocal de

bombardino. A harmonia está em do mixolídio (cifra C7) e Hermeto está em sol dórico

explorando este modo nordestinamente. Com um timbre rascante e granulado e com as

alturas semi-temperadas, o berrante é usado por Hermeto como um instrumento de sopro,

com frulatos, diversos recursos multifônicos como por exemplo cantar e tocar

simultaneamente e ainda percussivamente, com glissandos, etc, etc. O timbre natural do

berrante é modificado, pois Hermeto o toca dentro de um balde cheio d'água, da mesma

forma que o sax barítono tocado por Carlos Malta próximo à esteira da caixa da bateria,

fazendo-a vibrar com as notas do sax, assim modificando o timbre do instrumento,

rebatizado como "Baricaixa".

A 3ª parte é, como já dissemos, uma reexposição da 1ª, em andamento mais

rápido. Na reexposição, o baterista, que havia tocado o jererê na 1ª parte, não segue

partitura alguma, sendo deixado à vontade para criar livremente. O desafio será no fim
188

das contas, duplo: tocar uma dificílima parte para tupperware na 1ª parte, e na

reexposição, improvisar na bateria.

O exemplo seguinte é o final da música. Sax e baixo estão em suas regiões mais

graves. O sax é tocado com uma sonoridade rascante e "buzzing", literalmente fazendo o

instrumento zumbir.139 Note-se que o acorde do piano (Fa# ou Mi maior com 6ª, 9ª e 11ª
E

aumentada), é transportado seguidamente meio-tom acima e abaixo e está sobre as notas

do sax e do baixo:

Ex. 53: A', c. 84 a 97, (6'.17" - 6'.35")

139 "Buzzing" é um termo do jazz que se refere a um tipo de articulação e emissão sonora própria
dos metais e mais especialmente do saxofone. A sonoridade 'buzinada' ou 'zumbida' deste instrumento foi
um recurso muito apreciado por jazzmen como o contra-baixista, arranjador e compositor Charles Mingus
por exemplo, para não falar de Ornette Coleman e John Coltrane. A sonoridade agressiva, "buzzing", foi
empregada por estes e outros saxofonistas como uma alternativa ao som macio e flautado que o sax tinha
no jazz tradicional.
189

FIM

O acorde complexo formado pela sobreposição das notas dos três instrumentos no

exemplo acima, nos remete novamente ao espectro inarmônico dos sinos, pois contém a

3ª (e a 7ª) menor e maior, além da 5ª aumentada e da 9ª menor. Pode-se dizer que este

acorde é resultado de um procedimento sistemático da linguagem harmônica de Hermeto,

resultado da superposição de tríades simples (no exemplo abaixo as tríades foram obtidas

por enarmonização):
190

Ex. 54

Fa# maior
Mi maior com
Mi maior
6ª, 9ª e 11ª+
+
Do menor Do menor

Do menor-maior
com 5+, 7 e 7M, 9-
e
11+

"Arapuá" pode ser considerada um grande estudo, uma música em que todas as

partes são bastante difícieis e foi junto com "Briguinha de músicos", uma das peças que

mais deram trabalho para todos integrantes do grupo. Com 7 minutos e meio de duração,

U.T. a 165 na 1ª e 3ª partes, harmonia atonal, freqüente uso de polirritmos e sincopação

variada, "Arapuá" é uma verdadeira tour de force, com certeza um dos ápices do período

que estudamos, onde composição e interpretação se equilibram em dificuldade, riqueza e

virtuosismo.

5.3.8 "Aula de natação", CD Festa dos deuses (Polygram, 1992)140

Processo de criação: Dando seguimento ao que denominou "música da aura",

cujos exemplos registrados anteriormente em disco foram feitos com trechos de narrações

radialísticas de futebol,141 em "aula de natação" Hermeto gravou uma aula de sua filha

Fabíola, professora de natação, na piscina de sua casa no bairro do Jabour em janeiro de

1992.

140 PLGBR 510407-2.


141 Ver Tiruliluli e Vai mais garotinho em "Brasil Universo", Som da Gente, 1984.
191

Ainda neste disco de 1992, Hermeto fará a "música da aura" de um discurso do

ex-presidente Fernando Collor de Mello e de um poema com autoria de Mário Lago,

declamado pelo próprio autor. No poema de Mário Lago, Hermeto sobrepõe às alturas da

voz falada, melodias modais nordestinas acompanhadas no harmônio. A zabumba e o

triângulo lembrarão o trio típico do forró, se somando ao harmônio para seguir a métrica

do poema, alternando os diferentes andamentos que o poeta utiliza em sua interpretação.

Em "Aula de Natação", Hermeto transpõe as diferentes durações e alturas da voz

falada em prosa para o piano, resultando uma melodia totalmente atonal e de ritmo

assimétrico.

Dados registrados em partitura: Não possuímos a partitura, pois, apesar de ter

sido Jovino o intérprete da música no disco, ele não possuía a partitura. Segundo o

pianista nos relatou, o próprio Hermeto não considera a "música da aura" como sendo de

sua autoria, mas de quem fala, daí ele não ter passado a parte para o pianista. A parte

também não foi encontrada no arquivo pessoal do compositor.

Forma esquemática: Binária (A A')

Duração total: 0.56

Instrumentação: Voz da professora e dos alunos, harmônio, sampler, som de

água.

Partitura gráfica da música gravada:


192

mf f mf f mf

mf f mf f mf

Esta música foi gravada durante noites seguidas por Jovino e Hermeto num

sampler. Em um canal estava a voz gravada e, nos outros, os teclados que a

acompanharam. O trabalho em estúdio foi nenhum, pois o material sonoro já havia sido

todo gravado e mixado na casa de Hermeto. O local e a maneira como "Aula de natação"

foi gravada, constituem exceção no repertório que analisamos, pois conforme

verificamos, nenhuma das demais músicas foi gravada fora do estúdio. Como esta música

requeria apenas um intérprete e por causa da dificuldade de sua execução, Hermeto e

Jovino preferiram trabalhar sozinhos.


193

Depois de Hermeto ter escrito as notas da fala da professora de natação (a sua

filha Fabíola), esta melodia foi dividida em quatro segmentos, cujas durações anotadas na

partitura funcionavam apenas como um guia aproximado dos ritmos aperiódicos da voz

falada. Por causa da liberdade rítmica da fala dificilmente grafável em partitura

convencional e da rapidez com que a melodia atonal se sucedia, Jovino diz ter sido muito

trabalhosa a perfeita sincronia da música com a fala. A solução, segundo ele, foi seguir a

notação de maneira intuitiva.

Durante a música, ouvimos inicialmente a aula de natação com a voz da

professora, das crianças e o som de água na piscina (0'.00" - 0'.27"). Depois, o mesmo

trecho é repetido com o piano tocando cada nota falada e o harmônio harmonizando-as. O

resultado é completamente atonal, e assimétrico ritmicamente. "Aula de natação" é

bastante diferente do poema "Três coisas", declamado por Mário Lago no mesmo cd e

também auralizado por Hermeto. O fato do resultado sonoro de "Aula de natação"

diferir de "Três coisas", ocorre porque se o poema de Mário Lago obedece uma certa

métrica rimada e as alturas permanecem num âmbito restrito, em "Aula de natação" a fala

é coloquial, e por isso, os ritmos não são passíveis de metrificação, além das alturas

variarem de forma muito mais irregular que num poema. Dessa maneira, Hermeto mais

uma vez demonstra como sua linguagem musical incorpora elementos não convencionais

extraídos do cotidiano e da natureza.

A denominação "música da aura" foi criada por Hermeto e representa um

importante desdobramento na linguagem do compositor, além de explicitar muito

claramente sua concepção musical. Em entrevistas recentes, o compositor se referiu à

"música da aura" como sendo a "música do futuro", assim reconhecendo a importância

que esta tem para ele. Consideramos a "música da aura" como um desdobramento lógico
194

da concepção de Hermeto, cujos esboços podem ser encontrados em algumas das peças

que analisamos compostas no período 1982-1992.142

A "música da aura" revela como Hermeto, com seu ouvido absoluto, recebe os

fenômenos sonoros cotidianos. O familiar é tornado exótico e vice-versa, num jogo que é

fonte constante de criação e deleite estético. A "música da aura" é um outro exemplo de

transição de som inarmônico para harmônico, pois se baseia na noção de que quando

falamos, estamos na verdade cantando de forma não convencional.

O cantar das pessoas, na minha concepção, o cantar de cada um de nos, é o que chamamos
de fala. Assim como os pássaros, nós somos pássaros também. (PASCHOAL, 1998) 143

Mas que espécie de pássaros seríamos nós? E porque Hermeto considera tão

importante a "música da aura"? Talvez a resposta para estas duas perguntas seja uma só:

para Hermeto, somos pássaros da percepção, ou melhor, nos tornamos pássaros através

da percepção. Mas como?

Segundo Hermeto, a "música da aura" funciona como uma máquina fotográfica

que registra a imagem do som. No entanto, esta imagem não é um mero registro. Assim

como a revelação do negativo fotográfico depende da sensibilidade e técnica do fotógrafo

e por isso nem todos revelam igual, o músico sempre criará algo ao revelar sua

"sonofotografia". Na própria dimensão horizontal e melódica da fala-canto, está

espalhada a harmonia - para usar uma metáfora do próprio Hermeto - como se cada nota

melódica fosse uma uva de um cacho de uvas, harmônico e virtual, que cabe ao

compositor reconhecer e reorganizar criativamente. O fator complicador é que este

"cacho virtual" é constituído não apenas das notas da fala, como também dos parciais por

142 E mesmo muito antes deste período. Ver por exemplo, o 1º disco de Hermeto como
compositor, Brazilian adventure (toda a big-band tocando com garrafinhas), o disco Slave Mass (com a
participação dos famosos porcos), a experimental "O galho da roseira", no disco Seeds on the ground, com
Airto Moreira e Flora Purim. Ver conclusão.
195

elas produzidos, que raramente são percebidos pela maioria das pessoas. O mesmo se

pode dizer em relação ao ritmo, ou seja, na própria fala-melodia podemos deduzir um ou

vários padrões rítmicos periódicos e aperiódicos.

O músico da aura é ao mesmo tempo o fotógrafo, o revelador, e o criador. É

aquele que captura o momento sonoro através da gravação, revela o negativo do som

capturado - decodificando as alturas, durações, timbres e intensidades da fala - e aquele

que cria, transforma, filtra e modifica a imagem sonora revelada, imprimindo sua própria

imaginação no resultado final.

143 Em entrevista já citada com Luiz Carlos Saroldi.


196

6. CONCLUSÃO

6.1 - Síntese das análises musicais

No capítulo anterior, identificamos alguns dos elementos que integram a

linguagem musical de Hermeto Pascoal. Estes elementos foram no entanto apresentados

isoladamente, em cada uma das oito músicas analisadas. Antes de respondermos às

questões lançadas no capítulo I, a respeito da concepção da linguagem musical de

Hermeto Pascoal, é necessário que compreendamos conjuntamente os elementos e os

signos desta linguagem, que apareceram dispersos no capítulo anterior.

Relacionamos a seguir os aspectos musicais levantados nas análises, agrupando-

os em cada parâmetro sonoro. O procedimento que adotamos ao agrupar separadamente

fenômenos sonoros integrados, é uma estratégia metodológica que visa apenas fornecer

um esquema geral dos signos musicais que Hermeto utiliza. É imprescindível lembrar

que os parâmetros estão relacionados e, por isso, não são entidades isoladas, nem

autônomas umas em relação às outras. Assim, o atonalismo de "Arapuá" e da coda de

"Cores" - incluídos no parâmetro 'altura' - se relaciona tanto à polirritmia (de "Arapuá") e

à arritmia (da coda de "Cores") - incluídos no parâmetro 'duração' - como também, no

parâmetro 'timbre', à exploração não convencional de instrumentos convencionais (em

"Arapuá") e ao uso de fontes sonoras não convencionais (a cigarra e a placa de ferro

percutida de "Cores").144

144 Os conceitos de periodicidade e aperiodicidade por nós apresentados no capítulo IV, visam
justamente superar os limites da abordagem tradicional, compreendendo os parâmetros unitariamente,
como emanações do tempo. Cf. Karlheinz Stockhausen em Menezes (org.), op. cit.
197

Altura

. Melodias tonais rearmonizadas dissonantemente: "Cores (B, B' e B") e

"Briguinha de músicos no coreto maluco".

. Modalismo: "Série de arco" (apenas uma citação breve com a escala mixolídia

com b7 e #11), "Magimani Sagei" (mixolídia), "Papagaio alegre" (mixolídia com b7 e

#11), "Arapuá" (sol dórico no solo de berrante).

. Polimodalismo: "De bandeja e tudo".

. Escalas "exóticas": "Magimani Sagei" (escala de tons inteiros), "Arapuá",

(idem), "Papagaio alegre" (escala superlócria e simétrica).

. Gamas pentatônicas: "Série de arco".

. Atonalismo: "Arapuá" (A e A'), "Série de arco", "Aula de natação", "De bandeja

e tudo" (intro. 1 e 3 e coda), "Magimani Sagei "(na coda free), "Cores" (nas pontes e na

coda final).

. Sons não temperados: Sons de animais, sons percussivos, voz falada de

"Magimani Sagei" e, "Aula de natação".

. Poliacordes e poliacordes com 2as. ajuntadas: "Série de arco", "Cores",

"Briguinha de músicos malucos no coreto" e "Arapuá".

. Acordes quartais e acordes quartais com 2as. ajuntadas: "Arapuá", "Série de

arco", "De bandeja e tudo" (acordes 1, 4, 5, 8).

. Clusters: "Série de arco"

Duração

. Ritmos brasileiros nordestinos; frevo, baião, maracatú, galope, côco e embolada,

em "Briguinha de músicos", "Cores", "Magimani Sagei" e "Papagaio alegre".


198

. Polirritmia e polimetria: "Série de arco", "Briguinha de músicos malucos no

coreto", "De bandeja e tudo", "Papagaio alegre" e "Arapuá".

. Arritmia: nas codas a la free jazz em "Série de arco", "Cores", "Magimani

Sagei" e na voz coloquial de "Aula de natação".

Timbre

. Uso não convencional de instrumentos convencionais:

- bateria afinada, flauta e ocarinas imitando sons de animais em "Magimani

Sagei"

- sax barítono tocado junto a esteira da caixa ("baricaixa") em "Arapuá".

- flauta em C, G e flauta baixo; sons produzidos pelos dedos percutindo os

buracos das flautas, soprando sem produzir notas, em glissandos curtos com ou sem

frulatos, harmônicos simples e simultâneos produzidos pela embocadura e digitações não

usuais do instrumento: em "Magimani Sagei", "De bandeja e tudo (solo)" e "Papagaio

Alegre (solo)".

. Uso de fontes sonoras não convencionais:

- Jererê: "Papagaio alegre" e "Arapuá".

- Ferros percutidos: "Cores".

- Berrante com bocal de bombardino tocado dentro d'água: "Arapuá".

- Animais: cachorros em "Magimani Sagei", cigarra em "Cores", papagaio em

"Papagaio alegre". "Arapuá" é uma música que não contém nenhum som de animal, mas

o título faz referência ao zumbido grave da abelha arapuá. A associação ocorreu por

causa do timbre do sax barítono e pela textura produzida pelos instrumentos na região

grave. "Arapuá" é uma música construída a partir da textura e do timbre.


199

- Voz usada percussivamente fazendo uso de encontros consonantais, sons

soprados, palavras desconexas emitidas guturalmente, risos, gritos, notas emitidas em

falsetes ao mesmo tempo tremulando a língua no céu da boca, alterando a emissão sonora

com o auxílio das mãos, etc.: em "Série de arco", "De bandeja e tudo" (introdução) e

"Magimani Sagei".

- Voz falada/cantada, música da aura: "Aula de natação".

Outros aspectos

. Relação imagem-som: "Série de arco", "Cores", "Arapuá" e "Aula de natação".

. Participação dos músicos no processo de criação: "Briguinha de músicos

malucos no coreto". De acordo com o que mencionamos no capítulo três, é difícil

precisar quais exatamente foram as contribuições de cada músico para o arranjo final das

músicas analisadas. A partir da música "Papagaio alegre" e "Arapuá", o Grupo adquirira

tal dinâmica de ensaio que a presença constante de Hermeto não se fazia tão necessária

como no início. Enquanto Hermeto compunha, o Grupo ensaiava em outro espaço e

nestes ensaios, aspectos não escritos em partitura, relativos à dinâmica, articulação

sonora, levadas e convenções musicais, eram criados pelos músicos. Obviamente

Hermeto daria a opinião final. "Briguinha de músicos" é um exemplo único no repertório

analisado porque, segundo o que Carlos Malta nos relatou, a idéia de tocar o tema na

parte B - a mais extensa de toda a música, cujo efeito musical inspirou o próprio título -

com as diferentes entradas separadas por pausas curtas, teria surgido dos músicos do

grupo.
200

Estes elementos musicais compreendidos conjuntamente demonstram porque

Hermeto é considerado um músico com uma linguagem original. O uso de material

modal, polimodal, tonal e atonal, freqüentemente combinando mais de um desses idiomas

numa mesma música, somado à rítmica variada, à exploração de fontes sonoras não

convencionais e exploração não convencional de instrumentos convencionais, fazem de

Hermeto um compositor com estilo próprio. O fato do músico ser multi-instrumentista e

dos elementos do Grupo passarem a tocar mais de um instrumento ao longo dos anos,

garantiu combinações instrumentais diversificadas às músicas que analisamos, que

contribuíram, por sua vez, para a riqueza dos arranjos. A desenvoltura técnica e a

interpretação virtuosística de Hermeto e Grupo se conjugam aos fatores acima

mencionados e, desta forma, composição, improvisação e interpretação, se equiparam

entre si, garantindo um resultado que consideramos único na música instrumental

brasileira deste século.

6.2 - A trajetória de Hermeto e Grupo: considerações finais

"O ato criador é misterioso... É um ato tão complexo, motivado por tantos impulsos - tão
remoto e impessoal como a teia de toda a história conhecida e tão remoto e intensamente pessoal
quanto a soma de toda a experiência de um homem - que as evidências materiais são pouco mais que
relances ocasionais de um profundo, contínuo processo." (Kramer in Sloboda, 1985)

Esta dissertação segue o rumo apontado por Kramer, ou seja, considera o produto

final - no nosso caso, as gravações das músicas que analisamos no último capítulo - como

o ponto de chegada de um processo anterior. Para analisar um determinado corpus

musical gravado entre 1981 e 1993 por Hermeto Pascoal e Grupo, nos orientamos em

marcha-a-ré através do tempo à infância de Hermeto Pascoal, para então acompanharmos

o desenvolvimento do músico, até encontrarmos novamente o período por nós almejado

no início. Além disso, fizemos uma pequena biografia dos músicos do Grupo e
201

reconstituímos o processo de criação de Hermeto e Grupo e de cada uma das músicas que

analisamos.

Não acreditamos que a trajetória que percorremos seja imprescindível a toda e

qualquer análise musical. Assim fizemos unicamente porque nosso objeto de estudo

apontou este caminho como indispensável para sua compreensão. Em nosso caso, a

análise musical pura e simples (formal, harmônica, rítmica, etc.), não esclarecia nem no

nível da concepção, nem no da linguagem, uma música intrigante e hermética pela

carência de estudos e bibliografia.

A falta de bibliografia sobre nosso objeto contribuíu sem dúvida para que a

pesquisa de campo se revelasse como indispensável na tarefa analítica. Sem esta frente de

trabalho, não teríamos informações suficientes, nem subsídios, que nos permitissem

analisar as músicas que escolhemos. A perspectiva de nos movimentarmos apenas no

nível do signos e não dos significados, prometia como fim não mais que uma descrição

das obras analisadas. Porém, queríamos passar da descrição superficial para a densa, e,

para tanto, não nos restava outra alternativa senão a de conhecer as versões 'nativas' sobre

as questões por nós levantadas no capítulo I, para depois interpretarmos estes relatos.145

Mais do que criar uma alternativa à carência de bibliografia, era necessário nos prevenir

em relação a determinados riscos previstos tanto por Carole Gubernikoff em A pretexto

de Claude Debussy,146 como por Umberto Eco em Interpretação e Superinterpretação.147

Enquanto Carole critica algumas correntes da análise musical contemporânea,

especialmente quando nelas "o método se substitui às trocas ou ao 'encontro' com a obra,

145 Clifford Geertz, tomando emprestado noções apresentadas por Gilbert Ryle, estabelece dois
tipos de descrição etnográfica: a superficial - que simplesmente narra os fatos tal qual eles se apresentam, e
a densa - que interpreta o que eles significam. Cf. Clifford Geertz, A interpretacão das culturas. Rio de
Janeiro: LTC, 1989.
202

ou, mais grave ainda, quando a mediação substitui o objeto," (Gubernikoff, 1993), Eco

insiste em que podemos reconhecer a superinterpretação de um texto sem

necessariamente conseguirmos provar que uma determinada interpretação é a correta ou

nem mesmo aderir à crença de que deve existir uma leitura correta. Segundo Eco, "a

intenção da obra é fonte de significados que não se reduzem à intenção pré-textual do

autor, mas mesmo assim estabelece determinados limites à liberdade do leitor" (Eco,

10/11) e do analista por conseqüência.

Como a ausência de bibliografia sobre nosso objeto implicava uma grande

margem de erro para a nossa interpretação, buscamos estabelecer como ponto de partida

da análise, as informações nativas, pois a rigor, "somente um 'nativo' faz a interpretação

de primeira mão: é a sua cultura" (Geertz, 1989).

A trajetória analítica que percorremos é deste ponto de vista, bastante simples.

Através de entrevistas com os integrantes do Grupo e com Hermeto, buscamos esclarecer

a gênese e a concepção de uma linguagem musical, espelhada num determinado

repertório, gravado entre 1981 e 1993, para o qual influenciaram ainda, os músicos do

Grupo que com Hermeto tocavam. Apresentamos os resultados de tal procura a seguir.

Hermeto começa na música cedo. Aos 7 anos, em Lagoa da Canoa, brinca

tocando flautas com os animais e percutindo pedacinhos de ferro. Aos 8 anos, começa a

tocar sanfona de oito baixos e pandeiro com seu irmão nas festas de casamento e forrós.

Seria impossível entender como a concepção musical de Hermeto se originou, sem voltar

à sua infância. Pois as primeiras experiências musicais ocorridas dos 7 aos 14 anos de

idade, foram absorvidas profundamente por Hermeto, lhe fornecendo modelos sonoros e

146 Carole Gubernikoff, A pretexto de Claude Debussy, um dos capítulos da tese de doutorado
defendida pela analista musical na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. In
Cadernos de Estudo: Análise Musical 8/9. São Paulo: Atravez, p. 83
147 Umberto Eco. Interpretação e Superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 1997 (2ª tiragem).
203

composicionais que apareceriam novamente a partir dos 35 anos de idade, quando o

músico começa sua carreira solo.

Entre 14 e 35 anos de idade, ou seja, durante 21 anos, Hermeto forma sua

linguagem musical e se desenvolve autodidaticamente como intérprete e arranjador, ao

mesmo tempo que trava contato com formações instrumentais como conjuntos, regionais,

big bands e orquestras de rádio, além de aprender diversos estilos tocando nas rádios e

casas noturnas de Recife, Rio e São Paulo.

Entre 35 e 45 anos de idade, Hermeto lança-se em carreira solo acumulando as

funções de compositor, arranjador e intérprete, gravando sete discos no Brasil e no

exterior.

Os doze anos seguintes, 1981 a 1993, são um período de maturidade na carreira

do músico. Hermeto, então com 45 anos de idade, sete discos gravados e já conhecido

internacionalmente, lidera o grupo formado por Itiberê Zwarg, Jovino Santos,

Pernambuco (Antônio Luís), Carlos Malta e Márcio Bahia. Neste período, Hermeto

resgata todos os aspectos relacionados à concepção musical que apareceram

primeiramente em sua infância em Lagoa da Canoa. Representemos graficamente a

trajetória que acabamos de descrever:

Dos 14 aos 31 anos (1950 - 1967)


204

O período de aquisição e desenvolvimento da linguagem


- Sanfona de 32 e de 80 baixos, piano - sons cotidianos
flauta, sax, percussão e bateria,etc. urbanos.
- conhece e/ou toca com regionais,
orquestras de rádio, trios e quartetos
de jazz, etc.)
- rudimentos da teoria musical (localização
das notas, figuras rítmicas, agógica, etc..),
aprendidos auto-didaticamente.
- música nordestina (+ frevo), música
clássica, choro, seresta, jazz, samba,
bossa-nova, swing, música cigana, etc.
- toca em regionais das rádios e com
conjuntos instrumentais na noite em
Recife, Caruarú, Rio e São Paulo.
- intérprete

Dos 31 aos 35 anos (1967 - 1971)


A escola de arranjo e o desenvolvimento da escrita
- instrumentos anteriores (mais trumpete, violão?)
- integra o Som Quatro e o Sambrasa
Trio.
- desenvolve a escrita musical nos arranjos
dos Festivais da canção.
- Festivais da canção e Quarteto Novo.
- intérprete e arranjador (primeira composição gravada, "O Ovo").

Dos 35 aos 45 anos(1971 - 1981)


205

O início da carreira solo


- estilos anteriores + free jazz e fusion e - inicia a recuperar aspectos
breve contato com a música erudita relacionados à concepção;
contemporânea de I. Stravinsky, ouvida sonoridades dos animais
via Edu Lobo em Los Angeles. dos ferros percutidos e
elementos iniciais da
linguagem (música popular
e folclórica nordestina)
- Como arranjador nos discos de Airto - "O gaio da roseira"
e Flora Purim
- O primeiro disco solo, The Brazilian Adventure. - combina música nordestina
com jazz e free jazz.
- No disco Slave Mass. - pela primeira vez utiliza
sons de animais (porcos) em
sua música.

- Outros discos solo. Entrada de Itiberê,


Jovino e Pernambuco no Grupo.

Dos 45 aos 57 anos (1981 - 1993)


Maturidade
- O Grupo se completa com a entrada de - recupera todos os aspectos
Carlos Malta e Márcio Bahia. da concepção, inclusive a
- seis discos solo. "música da aura", superpondo
- intérprete, arranjador e compositor. o universo sonoro-cultural
- primeiras composições para orquestra de sua infância, aos outros
("arranjos sinfônicos). estilos e informações de
fases posteriores de sua
carreira.

Pelo esquema apresentado acima, podemos verificar que no período que

estudamos (1981 - 1993), Hermeto gozava de uma relativa maturidade em sua carreira.

Em 1981, sua carreira solo já tinha dez anos, e Hermeto já era um músico bem conhecido

na Europa e nos E.U.A.. Porém a formação constituída por Itiberê, Jovino, Pernambuco,
206

Malta e Bahia, foi única na carreira de Hermeto, por causa da convivência de 12 anos

com um mesmo grupo, inédita em sua carreira. Hermeto foi antes de tudo um professor

para todos eles, mas é inegável, como já dissemos no capítulo III, que "os meninos da

banda" (como Hermeto às vezes os chamava carinhosamente), não só proporcionaram

uma certa tranqüilidade e segurança a Hermeto, como também contribuíram para a

linguagem musical do último. A dinâmica de ensaios diários estabelecida neste doze anos

possibilitou o aprimoramento técnico-interpretativo dos jovens músicos do Grupo e, a

Hermeto, a possibilidade de compor e arranjar mais, pois sua presença nos ensaios passou

a não ser indispensável, já que o Grupo adquirira uma metodologia de ensaio eficiente,

além de ter um repertório extenso a ser trabalhado. A autonomia do Grupo liberou

relativamente Hermeto da função de intérprete e solista, o fazendo incrementar sua

produção como compositor de obras para o Grupo e para formações diversas chegando

até a compor obras para orquestra sinfônica, enquanto os integrantes do Grupo se

desenvolviam como arranjadores e compositores.

Contudo, a manutenção de uma metodologia de trabalho bastante produtiva,

infelizmente não foi traduzida em gravações comerciais. A maior parte do repertório

ensaiado e apresentado publicamente durante estes doze anos não foi lançado

comercialmente. Lembramos que Hermeto e Grupo geralmente gravavam bem mais do

que cabia num Lp, por isso, a extinta gravadora Som da Gente tinha em seu arquivo

músicas inéditas deste período. Onde está este material precioso e por que não lançá-lo?

O trabalho desenvolvido nestes doze anos representou para os integrantes do

Grupo o início real de suas carreiras profissionais, enquanto que para Hermeto foi um

período de consolidação de sua posição no Brasil e no exterior. Juntos gravam seis

discos, participando anualmente em Festivais e excursionando pela América Latina,

E.U.A, Canadá e diversos países europeus.


207

Tanto pelo nível técnico dos músicos como pela singularidade da concepção

musical de Hermeto Pascoal, a formação de Hermeto e Grupo entre 1981 e 1993 teve um

caráter que reafirmamos histórico na música instrumental brasileira.

6.3 Uma entrevista final com Hermeto Pascoal

Realizamos em 6 de março de 1999, uma entrevista final com Hermeto para

verificarmos alguns dos resultados a que havíamos chegado em nossa pesquisa, bem

como para complementarmos determinados dados e informações biográficas colhidos nas

entrevistas com os músicos ou através da pesquisa do material bibliográfico publicado na

imprensa.

Discutimos abaixo apenas alguns trechos desta entrevista a fim de concluir nosso

trabalho, lançando eventualmente luzes e/ou complementando aspectos anteriormente

abordados relacionados à trajetória de Hermeto e, principalmente, à sua concepção e

linguagem musicais.

Começemos pelo controvertido aspecto do autodidatismo de Hermeto.

Verificamos nesta entrevista com o músico que a nossa perplexidade inicial e mesmo

incredulidade quanto à sua trajetória autodidata, já tinha sido partilhada por muitas

pessoas. É interessante observar como Hermeto lidou com este fato:

Todo mundo me elogia como multi-instrumentista autodidata no mundo todo e eu vi que


tinha gente que não tava acreditando nisso. Que eu poderia ter algum professor. Foi nessa época (com
aproximadamente 40 anos de idade) que eu me senti órfão. Porque eu acho tão legal você dizer... pô,
se eu tivesse aprendido com algum professor ou escola, eu teria o maior prazer de falar e eu bem que
tentei (...) Às vezes o pai é um bandido e o filho cresce e quer conhecer o pai. Pois mesmo que meu
professor de música fosse um bandido eu queria conhecê-lo. (...) Aí eu sempre dizia, que com meu
nome aparecendo muito nos jornais, quem é que não gostaria de ser meu professor, chegar agora e me
desmentir, de dizer que me ensinou alguma coisa? (HERMETO)148

148 Todas os trechos citados neste capítulo, são transcrições da entrevista que fizemos com
Hermeto em 06/03/1999.
208

Hermeto tem razão, ele tornou-se autodidata não por vontade própria, mas porque

sua deficiência visual desestimulava os professores. Se por um lado seu desenvolvimento

é motivo natural de orgulho para o músico, por outro, isto lhe causa problemas junto às

pessoas que não acreditam nele, além de causar-lhe também, certa dor, porque sua

trajetória foi vitoriosa, mas solitária.

Temos no entanto que ter cuidado com este ponto. Pois Hermeto, apesar de não

ter passado por nenhuma instituição de ensino musical, ou pela mão de professores, foi

um músico que viveu cercado de outros músicos e absorveu intensamente as diversas

experiências musicais que teve ao longo de sua vida. Auxiliado por sua percepção

acurada, que ele já definiu como "um gravador infinito", a escola de Hermeto foi

eminentemente prática, as rádios, a noite, os Festivais da canção, etc. e muito de sua

linguagem se deve às experiências profissionais que o músico teve durante 1950 e 1971.

O próprio Hermeto nos disse que não acredita que exista algo na música que não

tenha sofrido influência de alguma outra coisa. Os regionais, conjuntos, big bands e

orquestras, contribuíram sem dúvida para a formação do Hermeto arranjador e

compositor. Inclusive ele se refere às suas composições para orquestra como "arranjos

sinfônicos", talvez porque na música popular das rádios de Recife, Caruaru e Rio de

Janeiro, as orquestras regidas por músicos importantes como Guerra-Peixe149 tocavam

principalmente arranjos de músicas populares. Perguntado por nós sobre a experiência

com as orquestras de rádio, Hermeto falou delas com prazer e lembrou dos ensaios que

assistiu em 1950, na rádio Jornal do Comércio em Recife com a orquestra da rádio regida

por Guerra-Peixe:

Ele não me ensinou nada diretamente, mas eu com 14 anos de idade estava no auditório lá,
ninguém me conhecia e eu não conhecia ninguém, acanhado, tímido, lá na última cadeira, o auditório
vazio e a orquestra ensaiando. (...) Tinha quase uma sinfônica lá, era uma maravilha, cordas, era

149 Em 1950 na Rádio Jornal do Comércio.


209

misturado cordas com metais, além da big band que tinha lá. (...) Então eu não preocupava em não me
esquecer daquele ensaio, porque eu sabia que tinha uma coisa na minha mente gravando, eu não
precisava me preocupar. Eu acredito muito nisso, aquilo que a gente se lembra mais é o que a gente
sabe menos, sobre aquilo que a gente está se lembrando. (HERMETO)

Desta maneira, as sonoridades orquestrais ficaram guardadas por Hermeto no seu

inconsciente, constituindo uma camada subterrânea de sua formação, que ele resgataria a

partir de 1971, em seu primeiro disco solo e mais especialmente a partir de1981, ao

compor com mais regularidade para orquestras.

Perguntado sobre os espectros sonoros dos pedacinhos de ferro com que brincava

em sua infância, Hermeto definiu de maneira muito interessante sua concepção de

tonalidade e atonalidade:

O que chamam de música atonal, porque eles dão uns nomes que só funcionam na palavra,
mas não funcionam na prática. A música chamada de atonal chega a ser quase a música que eu chamo
de som da aura. Mas a música atonal, na minha maneira de ver, nenhum instrumento convencional
está capacitado para tocar, eles falam, mas está errado (...). Tem muita gente que acha que do, mi, sol,
do é natural, mas não, é apenas o convencional. Porque o atonal é a coisa mais natural que existe. (...)
Eu sou o inverso de muitas escolas, a maioria das coisas que eles chamam tonal, eu chamo atonal, eu
chamo o contrário. Para minha percepção se você fizer: [canta] sib1, mi3, lab2, mi2, sib1, la2, isso é
natural, para isso tem o som da aura. (HERMETO)

O trecho acima é esclarecedor. O acorde de dó maior seria exótico e a melodia

atonal do Uirapuru, familiar e natural. O conceito de atonalidade, como é entendido por

Hermeto, revela uma posição contrária à tradicional. À denominação 'série harmônica' é

acrescentada com freqüência, a palavra 'natural', como se a série harmônica e os sons

musicais fossem 'naturais', e os sons inarmônicos fossem "artificiais" ou diferentes do

"natural". Esta é uma inversão construída e manipulada historicamente, pois na verdade,

os sons musicais não são 'naturais', tanto é que tiveram que ser temperados num sistema

preciso de alturas. A maioria dos sons que nos cercam cotidianamente no campo ou na

cidade, são inarmônicos ou mistos - como o som da cigarra da música "Cores" por

exemplo. Por isso, ambos os espectros são naturais. Invertendo essa distinção
210

equivocada, Hermeto faz com que as mais complexas e dissonantes combinações

harmônicas de suas músicas nos pareçam familiares, pois "o atonal é a coisa mais natural

que existe".

Na resposta acima, Hermeto passa do som atonal dos ferros para a noção de

"música da aura", uma estrela de primeira grandeza no universo de signos do músico

alagoano. Na verdade, até esta entrevista não entendíamos porque Hermeto atribuía tanta

importância a ela. A música da aura surgiu ao mesmo tempo que os sons dos ferros e dos

bichos. Ela integra junto com eles um conjunto de eventos sonoros relacionados, atonais:

Os ferrinhos já tinham a ver com a música da aura. A minha mãe estava conversando com
uma amiga dela e de repente eu dizia: "mãe, ela está cantando" e minha mãe, "meu filho quê isso, tá
aluado" (maluco)? Então, entre 45 e 50 anos de idade eu fiquei preocupado achando que tinha um
problema de audição. Será que esse som da aura que eu acho desde pequenininho que as pessoas
cantam invés de falar, será que é só a minha cabeça que acha isso?" (HERMETO)

A "música da aura", primeiramente gravada em 1984,150 foi o último resgate que

Hermeto fez do universo sonoro de sua infância e este resgate significou também a

superação de dúvidas antigas a respeito de sua capacidade auditiva (!). Desde pequeno, a

percepção de Hermeto foi motivo de preocupação para seus parentes, que chegaram a

temer por sua sanidade mental. Hermeto foi chamado de "louco" pela primeira vez por

sua própria família, obviamente porque a mesma percepção que o faz distinguir os sons

com tanta precisão, eventualmente também lhe causa problemas junto àqueles que não

partilham de tal capacidade. O trecho abaixo ilustra bem outras dificuldades encontradas

por Hermeto, causadas neste caso, pela mudança constante de diapasão permitida pela

tecnologia dos teclados eletrônicos:

150A faixa "Tiruliluli" do lp Lagoa da Canoa, Município de Arapiraca (Som da Gente, 1984), na
qual Hermeto faz a "música da aura" de uma narração futebolística. Ver a análise feita por Tato Taborda,
op. cit.
211

Com estes teclados eletrônicos, o cara que tem ouvido absoluto sofre, porque dependendo do
la diapasão, o sib é quase si natural ou lá. Por isso eu digo, se for la diapasão 440 é isso e se for 442 é
aquilo. (HERMETO)

Em nossa última entrevista com Hermeto tivemos a oportunidade de comprovar a

capacidade auditiva do músico alagoano. Levamos para a entrevista um pequeno sino "de

mesa", de tamanho pequeno, que produzia a nota Fa#5, além de uma freqüência

secundária de ataque em aproximadamente Sol5. O batimento das duas freqüências

próximas e agudas era claro e perceptível, apesar das amplitudes distintas pois o Fa#5

tinha maior intensidade. Solicitado por nós que identificasse as freqüências do sininho,

Hermeto, sentado em frente ao seu piano elétrico, pôs imediatamente o dedo sobre o

Fá#5, dizendo que era aquela nota que ele estava ouvindo no sino. O interessante é que

ele apertou a tecla umas cinco vezes, mas esta não produzia som algum porque o piano

(elétrico) estava desligado. Depois de rirmos, Hermeto ligou o piano e rapidamente

identificou o Sol5, precisando porém que este não era exatamente um Sol5, mas uma

freqüência entre o Fa#5 e o Sol5 do sistema temperado...

Voltando à "música da aura", a fala que é tão familiar a todas as pessoas, é

percebida pelo músico em seu contorno rítmico-melódico. As alturas não temperadas da

voz e sua complexidade rítmica, fazem das melodias da "aura" estruturas não

convencionais do ponto de vista musical, uma espécie de "canto dado" atonal. Apesar do

material ser não convencional do ponto de vista melódico e rítmico, o tratamento dado

por Hermeto é tradicional, ou seja, o músico não renuncia à noção de melodia

acompanhada instrumentalmente.

O "som da aura" coincidiu com a época em que Hermeto se tornou consciente de

determinadas fronteiras entre o sonoro e o musical, ou, usando suas palavras, entre a

"música e a teoria":
212

Foi por volta dos 45 anos de idade, que eu descobri que a teoria, não a música, tem doze
notas. (...) Mas como é que eu descobri isso? Eu tenho uma bandola que é um instrumento com seis
cordas duplas, não é uma corda grave e outra aguda, tipo a viola que tem uma corda grossa e outra
fina. (...) Eu afinei aquelas doze cordas cada uma numa nota, e aí cadê mais nota? Deu a oitava de
novo. Eu fiquei preso. Aí eu me decepcionei e por um momento me deu um branco na cabeça. Meu
Deus, quer dizer que tudo que eu faço é com essas doze notas? Eu me esqueci de pensar que nas cores
você tem o azul claro, o azul escuro, você tem a areia branca, a areia vermelha e nessa hora não me
veio que na música eu tenho as oitavas, tenho as quartas, as quintas, para me tranquilizar. Mas de
qualquer forma são doze notas, a não ser botando as comas e aí é que eu te falo, as doze é porquê é
convencional, se não não seria doze só. (...) Mas ficou chato naquela noite porque eu queria fazer uma
composição e na minha cabeça tinha notas que não tinha na [notação] convencional. (...) Foi uma
peste eu saber disso e eu não quis mais. O que eu faço não depende dessas doze notas só. Depende da
minha imaginação. (...) Tem coisas que não dá para botar num instrumento convencional. Porque que
tem a percussão, os sons dos bichos? É por isso. Na música erudita eles separam as coisas, como se
fosse um preconceito, mas na minha música não, eles tem lugar, o percussionista também é um
solista. (HERMETO)

A "música da aura", os sons de animais, dos ferros e percussivos, são gamas não

temperadas que Hermeto utiliza ao lado de instrumentos convencionais intencionalmente.

O fato "da música atonal não poder ser tocada com instrumentos convencionais", não

impede que Hermeto transite ludicamente do som harmônico para o inarmônico e vice-

versa.

Alguns exemplos de transição de som inarmônico para harmônico, são a bateria

tratada como um instrumento melódico em "Magimani Sagei", os sons "afinados" dos

cachorros de "Magimani Sagei", cigarras de "Cores" e papagaios em "Papagaio alegre".

A linguagem harmônica de Hermeto, constituída de poliacordes, tríades

superpostas ajuntadas de 2as., acordes de sonoridade quartal, pedais e harmonias

dissonantes, clusters, será o melhor exemplo de transição de som harmônico para

inarmônico. Incorporando sistematicamente complexos verticais não-funcionais, a

harmonia de Hermeto é um território movediço, entre a altura e o timbre.

As propriedades táteis-visuais do som somadas à percepção dos espectros sonoros

confundem não só os limites entre altura e timbre, como também os limites entre os

sentidos físicos. Assim, uma das justificativas para um acorde "errado" do ponto de vista

da teoria tradicional, mas que soa bem para os ouvidos de Hermeto, pode ser encontrada
213

no fato de este acorde ser não só escutado como também visto pelo músico. Por isso,

determinadas características sonoras que só raramente são objeto de atenção na escuta,

como a massa dos sons, a maior ou menor luminosidade dos timbres instrumentais e dos

sons da natureza e do cotidiano, suas cores, etc, influenciam ou até determinam a escolha

e elaboração do material que será utilizado musicalmente por Hermeto. A "música da

aura" não parece se resumir às melodias que Hermeto percebe na fala e nos sons de

animais. A "música da aura" sinaliza ainda para a relação audição-visão e, mais

fundamentalmente, para a percepção aural do próprio som, em seu contínuo senóide-

ruído.

A desterritorialização promovida pelo músico faz também com que ele misture

os estilos que conheceu ao longo da carreira, pois, assim como sua concepção, a

linguagem musical de Hermeto é múltipla e não linear. A mesma lógica que rege sua

concepção - evidenciada no diálogo entre o sonoro e o musical e com as propriedades

táteis-visuais do som, diálogo este possibilitado pela percepção ampliada e imagética de

Hermeto - ocorre também no nível da linguagem. Um repente, côco, frevo, maracatú ou

baião pode misturar-se, experimentalmente, ao choro, jazz, free jazz e à música "erudita",

da mesma maneira que um ruído pode ser utilizado como uma nota de altura definida, ou

o contrário.

Podemos fazer ainda um paralelo entre o experimentalismo da música de Hermeto

e a esfera social de sua produção musical. Por exemplo, o desdém de Hermeto pelo

comercialismo o colocou em permanente conflito com as grandes gravadoras

multinacionais com as quais ele gravou em diferentes períodos de sua carreira (EMI em

1967; Polygram em 1973 e 1992; WEA de 1978 a 1980). Sete anos após o rompimento

do contrato do último CD de Hermeto e Grupo, Festa dos Deuses, produzido pela

Polygram em 1992, o CD Eu e eles (MEC, 1999) foi lançado graças a subsídios estatais
214

da Rádio MEC, a rádio oficial do Ministério de Educação e Cultura, e cinco dos seis LPs

gravados entre 1981 e 1993 foram produzidos pelo selo independente paulista Som da

Gente. Estes exemplos indicam alguns dos problemas que Hermeto teve e tem para

consolidar seu projeto artístico na arena comercial. Não é a toa que Hermeto foi

apelidado de “bruxo” pela imprensa nacional. Apesar de jornais e revistas especializadas

tratarem Hermeto algo simpaticamente - o que fez com que o músico alagoano dedicasse

cada faixa do LP Só não toca quem não quer (1987) a um jornalista diferente - seu

discurso crítico, no entanto, não é suficientemente contemplado pela imprensa. De fato, a

imprensa tende a filtrar os aspectos heréticos da persona xamânica do “bruxo” Hermeto

Pascoal, reduzindo-os a excentricidades pitorescas ou a caricaturas agradáveis aos

leitores das praias da Zona Sul carioca e da classe média urbana em geral, mesmo que

Hermeto não seja um nativo do Rio de Janeiro, não viva na Zona Sul, e nem possa ir à

praia.

O experimentalismo do compositor alagoano também pode ser percebido em seu

relacionamento com o Grupo constituído de Itiberê Zwarg, Jovino Santos Neto, Antonio

Santana (Pernambuco), Márcio Bahia e Carlos Malta. Com este Grupo, Hermeto recriou

as tradições rurais nordestinas dos núcleos familiares de agricultores, artesãos e músicos

de sua infância em Alagoas. Se, por um lado, esta vivência em comunidade serviu para

fortalecer os laços entre os músicos, por outro, também marcava a rejeição a sociedade de

consumo e ao anonimato da mão-de-obra contratada pela indústria. Além disso, o estilo

de liderança do compositor alagoano não colocava seus colaboradores no papel de meros

reprodutores de partituras; antes ele os encorajava a criar novos papéis para si mesmos.

Assim como os sons inarmônicos ruidosos presentes nos sons de animais e nas ferragens

percutidas da infância de Hermeto não seguem a ordem matematicamente precisa dos

sons harmônicos de altura definida, de maneira semelhante Hermeto e Grupo


215

subverteram sistemas hierárquicos estabelecidos, atuando coletivamente como

intérpretes, arranjadores e compositores.

A música livre de Hermeto Pascoal (1973), Lagoa da Canoa, Município de

Arapiraca (1984), Brasil Universo (1985), Mundo Verde Esperança (1989), estes são

alguns dos títulos dos discos de Hermeto Pascoal. Eles indicam as coordenadas locais,

internacionais e “universais” que ele atribui a sua música: “local” porque profundamente

enraizada na cultura nordestina rural mais especificamente, e na música popular urbana,

em geral; internacional” porque aberta a estilos de todo mundo; e “universal” porque o

sistema musical de Hermeto emprega parâmetros organizacionais derivados dos

princípios acústicos (universais) do som, filtrados culturalmente pelo músico alagoano.

Assim, criando um espaço simbólico que sobrepõe o “natural” e o “convencional”, o

rural e o urbano, o local e o universal, as características desterritorializantes do repertório

de Hermeto Pascoal e Grupo ultrapassaram fronteiras estéticas, geográficas e

econômicas, afirmando sua singularidade na música brasileira do século XX.

7. FONTES

7.1 Bibliografia

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RIO em 1998.

TRINDADE, Mauro. Tribuna da Imprensa, 19/05/1989.

7.1.1 - Revistas e jornais sem entrada por autor ou data

DIAS, Mauro. Pipoca moderna.

Jazz Magazine (com tradução de Lena Zwarg), março de 1984.


219

Jornal Catacumba, 01/1989.

Globo, "Hermeto escala seu time no rival", 24/01/1991.

Jornal Catacumba, 1992.

Backstage, Audio/Música/Instrumentos. Rio de Janeiro: H. Sheldon de Mkt., nº. 39,


fev./1998, p. 46 - 59.

Jornal do Brasil, "As máximas do mago", 19/05/1998.

7.2 - Entrevistas

BAHIA, Márcio Villa. 12/02/1998 e 02/10/1998.

MALTA, Carlos Daltro. 26/03/1998.

NETO, Jovino Santos. 10/06/1997 e 18/08/1998.

PASCOAL, Hermeto. 10/11/1997 e 06/03/1999.

ZWARG, Itiberê Luis. 04/10/1998.

E entrevista realizada por Luís Carlos Saroldi com Hermeto Pascoal no programa "Ao
vivo entre amigos" na rádio M.E.C. do Rio de Janeiro em 1997, gentilmente cedida por
Murilo Reis Saroldi.

7.3 - Discografia
7.3.1 - Discos solo de Hermeto Pascoal

Hermeto Pascoal: Brazilian Adventure. CD. Muse Records, MCD 6006, 1971.

A música livre de Hermeto Pascoal. LP. Polygram, PLG BR 8246211, 1973.

Slave Mass. CBS, 1977.


220

Zabumbê-bum-á , grav. WEA Brasil, 1978.

Hermeto Pascoal ao vivo em Montreux. LP. WEA Brasil, 20.052/53, 1979.

Cérebro Magnético. LP. WEA Brasil, 30.127, 1980.

Hermeto Pascoal e Grupo. CD. Som da Gente, SDG 010/92, 1982.*

Lagoa da Canoa - Município de Arapiraca. CD. Som da Gente, SDG 011/92, 1984.*

Brasil Universo. CD. Som da Gente, SDG 012/93, 1985.*

Só não toca quem não quer. CD. Som da Gente, SDG 001/87, 1987.*

Mundo Verde Esperança. Som da Gente, não lançado comercialmente, 1989.*

Festa dos Deuses. CD. Polygram, PLGBR 510 407-2, 1992. *

Por diferentes caminhos, LP. Som da Gente, 1994.

* Todos os CDs assim assinalados foram gravados no período contemplado nesta


pesquisa.

7.3.2 - Discos como intérprete e arranjador

Walter Santos. Caminho. LP. 1965.

Edu Lobo. Cantiga de Longe. LP.


Quarteto Novo. Quarteto Novo. CD. EMI, "Série dois em um", EMIBR 827 497 -2, 1993.

Airto e Flora Purim. Natural Feelings. Skye Records.


221

Tom Jobim. Tide. LP. A&M, 1970.

Airto e Flora Purim. Seeds on the ground. CD. One way Records, OW 30006, 1971.

Miles Davis. Live Evil. CD. Sony, SCRS 5715-6, 1972.

* A partir do LP com o Quarteto Novo, Hermeto atua também como compositor.

7.3.3 - Discos solo dos integrantes do Grupo

Carlos Malta e Daniel Pezzotti. Rainbow. CD. Produção independente, fabricação Sony,
107.592, 1993.

Carlos Malta. O Escultor do Vento. CD. Produção Independente, fabricação


Microservice,
AJA7. 172/473833, 1998.

____ . Carlos Malta e Pife Muderno. CD. Rob digital, RD 017, 1999.

Jovino Santos Neto. Caboclo. CD. Liquid City, LC 344512, 1997.

7.3.4 Outros

Ornette Coleman. Something else! CD. Fantasy, OJC 163-2, 1958.

____ . Free Jazz. CD. Atlantic-WEA, ATL 1364-2, 1960.

Bang on the Can. Cheating, Lying, Stealing. CD. Sony, SNY 62254-2, 1996.

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