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por
Luiz Costa-Lima Neto
e 1993, pelo músico e o grupo que o acompanhou neste período: Itiberê Zwarg, Jovino
Santos Neto, Antônio Luís Santana, Carlos Daltro Malta e Márcio Villa Bahia. Para
elucidar como determinados elementos harmônicos, melódicos, rítmicos e timbrísticos
raízes da concepção musical de Hermeto desde sua infância, para então acompanharmos
estúdio.
ABSTRACT
In this study, we looked for the genesis and the conception of the experimental
composer and the group that accompanied him in this period: Itiberê Zwarg, Jovino
Santos, Antônio Santana, Carlos Malta and Márcio Bahia. For clarifying how certain
harmonic, melodic, rythmical and timbre elements were constituted, at the level of
language, we searched, through time, the roots of Pascoal's musical conception, since his
childhood. We went on his musical development up to the point we got in touch again
with the period we had stressed, at beginning. In our research, it is of special relevance,
the relationship between sound and image and certain non-conventional sound patterns,
musically merged by Pascoal since a child, such as the sounds of percussed metals,
in order to verify Pascoal's and group work dynamics, we still rebuilt the process of
creation and research in each analysed composition, up to its recording at studios.
1
1 - INTRODUÇÃO
31 outros onde atua como produtor, intérprete, arranjador e compositor,1 é hoje um nome
(baixo elétrico, tuba e bombardino), Jovino Santos Neto (piano, teclados, flautas),
o termo geral que engloba os sistemas de signos, i.e., de elementos não naturais (os sons
integrados a uma escala musical naturalmente a ela não pertencem, ou os que formam
Duas questões portanto, nos movem. A primeira, de ordem mais geral, diz
respeito à concepção experimental de Hermeto: como ele a elaborou, quais suas origens e
seus traços mais importantes. Para respondê-la, retornamos à infância do compositor para
1 Dados aproximados apresentados com base na discografia feita pelo amigo de Hermeto e Grupo,
Mauro Wermelinger. Por causa da precariedade da catalogação das obras de determinados músicos
2
esta concepção foi transformada em linguagem musical pelo próprio Hermeto e pelo
banda e reconstituindo o processo de criação e ensaio das músicas por nós escolhidas, até
adequadas aos objetivos do presente estudo, por nos terem parecido exemplos ricos em
apresentada por Paul Griffiths em seu livro Enciclopédia da Música do Sec. XX:2
(...) costuma-se usar a palavra experimental para a música que se afasta significativamente
das expectativas de estilo, forma ou gênero canonizadas pela tradição - exceto a tradição
experimental. Alguns compositores, sobretudo em fins de 60 e início da década de 70, quando a
música experimental estava no auge, faziam uma útil distinção entre a vanguarda, que trabalhava
dentro da tradição e dos canais aceitos de comunicação (casas de óperas, concertos orquestrais,
universidades, empresas de radio-difusão, gravadoras), e os compositores experimentais, que
preferiam trabalhar de outras formas. (...) Na verdade, o trabalho experimental foi muito mais uma
característica da música americana e inglesa do que do continente europeu. (GRIFFITHS, 1995 : 150)
3
Griffths está se referindo ao mundo artístico da música erudita, mas sua definição
experimental e vanguarda, pois como discute Howard Becker, em seu artigo seminal
brasileiros, a discografia total de Hermeto carece de pesquisa que escapa aos limites desta dissertação e
certamente é bem maior que a por nós apresentada.
2 São Paulo: Martins Fontes, 1995.
3 A própria gênese do conceito de "música experimental", tal como este é apresentado por
Griffiths, tem muito a ver com a trajetória de Hermeto. O surgimento deste último como compositor (fato
que se concretiza com o lançamento de seu primeiro disco solo em 1971), ocorre justamente no auge da
música experimental e sintomaticamente, nos E.U.A., onde Griffiths diz ter sido, muito mais do que a
Europa (com a exceção da Inglaterra), o palco principal da música experimental. Cf. Michael Nyman,
Experimental music: Cage and beyond. London : Studio Vista, 1974.
3
"Mundos artísticos e tipos sociais",4 a vanguarda apesar "de enfrentar sérias dificuldades
para ver o seu trabalho realizado", o que às vezes "pode chegar a não ocorrer" (p. 15),
acaba geralmente por ser absorvida pela tradição e seus canais convencionais. Isto
treinados nele e, num grau considerável, continuam voltados para ele. A intenção do
exigindo que, em vez dele se adaptar às convenções impostas por esse mundo, seja este
que se adapte às convenções por ele próprio estabelecidas para servir de base a seu
trabalho. Isto porque os inconformistas não renunciam a todas e nem mesmo a muitas das
convencional, mas também porque o meio que elege para atuar não é o meio da
música brasileira popular, foi um movimento com o qual Hermeto manteve poucos elos
de ligação.
4 In Gilberto Velho (org.), Arte e Sociedade- ensaios de sociologia da arte. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1977, p. 9 - 25.
5 Ver especialmente o capítulo III, para aprofundamento histórico-biográfico.
4
pela análise das partituras e gravações), como do ponto de vista de seu processo de
Hermeto Pascoal o situa entre a música popular e a erudita. Ora é muito inovador nos
(...) Eu não posso dizer qual o tipo de música que eu faço. Eu faço música, isto é tudo. Eu
toco uma infinidade de ritmos, de sons, de harmonias, de gêneros, de estilos... Eu adoro tocar música
"clássica" (eu coloco um rótulo porquê as pessoas gostam disso. Eu detesto!) e de repente mudo para
um frevo do carnaval do Recife ou um baião do nordeste. (HERMETO, Jazz Magazine: 1984)
do nordeste brasileiro, região onde o músico nasceu, em 1936. No entanto sua linguagem
6 Além destas músicas, analisamos brevemente no capítulo IV, a peça "Ferragens", para piano
solo. "Ferragens" foi composta, mas não gravada no período estudado.
5
Hermeto não se limite (tal como ocorre geralmente no jazz tradicional) à capacidade de
reinvenção melódica sobre uma mesma estrutura harmônica. Ele pode, por exemplo,
cachorros latindo, uma pessoa falando palavras desconexas, e considerar tudo isso como
mesmo tempo fundindo seus timbres aos latidos dos cachorros e às onomatopéias e
grunhidos da voz através de frulatos, glissandos e outros recursos, como cantar dentro
década de 60.7
linguagem é necessário perceber também quais são seus limites. Como exemplo,
maquinaria sonora, adotando uma posição que poderia ser considerada conservadora, ao
restringir a eletrônica em sua música somente aos instrumentos amplificados como piano
e baixo elétricos.
criação ser substituída pela padronização, já que na maioria dos teclados eletrônicos, os
timbres são pré-"setados", ou seja, vêm prontos da fábrica. A alternativa possível para
7 Sobre a relação estabelecida por Hermeto com o jazz americano, ver cap. III.
6
esta limitação imposta pela tecnologia dos teclados, que seria a criação de timbres através
de computadores, não parece ser por sua vez uma opção buscada por Hermeto.
Por outro lado, seu arsenal timbrístico é muitíssimo variado e nem um pouco
baldes, bacias, garrafas, máquina de costura, calotas de carro, sinos, berrantes, buzinas,
Além do instrumental sonoro sempre renovável, o uso dos sons dos mais diversos
1985), zumbidos de abelhas e zurros de jumentos no LP8 Só não toca quem não quer
(Som da Gente, 1987), canto de pássaros diversos no CD Festa dos Deuses (Polygram,
1993), além de outros. Os limites que Hermeto estabeleceu para si mesmo ao recusar
alguns dos novos recursos tecnológicos não parecem ter afetado sua capacidade de
invenção e experimentação.
8 A partir deste LP de 1985, os discos gravados por Hermeto e Grupo na gravadora Som Da Gente
até Festa dos deuses (Polygram, 1992), passaram a ser lançados simultaneamente em CD.
7
nossa primeira entrevista com um dos músicos de sua banda no período 1981-1993, o
pianista Jovino Santos Neto, esta hipótese foi contestada com veemência:
Não, não, não, não, quer dizer, o que eu sei dessa estória (do contato de Hermeto com a
música erudita contemporânea) é que quando ele tocava na Rádio Jornal do Comércio em Recife,
tinha um pianista que tocava muito bonito música clássica, e ele ficava olhando o cara ensaiar (...)
Quer dizer, uma análise estrutural da música contemporânea ele nunca teve (...) eu sei que quando ele
esteve com o Edu Lobo lá em Los Angeles, o Edu ficava mostrando umas partituras do Stravinsky
para ele, e ele fala sempre: - Ah, eu não tava muito interessado nisso não. (JOVINO, 1997)9
Hermeto com a música erudita como um fato certo, lógico, que a nós bastaria localizar
Hermeto, estes breves contatos com músicas eruditas contemporâneas tenham sido
suficientes para o músico incorporá-las a seu repertório sonoro. Contudo nossa hipótese
sistema produz notas e serve para o instrumentista executar melodias. O segundo sistema
acompanhamento. Por não ser cromática, a sanfona de oito baixos não possui todos os
tons, sendo por isso um instrumento bastante limitado. Jovino nos relata que, na infância
de Hermeto, este ia para o "monturo" (o ferro-velho) de seu avô ferreiro, e, batendo nos
diferentes pedaços de ferro procurava suas notas fundamentais na sanfona, bem como os
Então ele pegava aqueles pedaços de ferro e batia neles, fazia (imita o som do ferro), e
buscava os harmônicos daqueles pedaços de ferro na sanfoninha, que notas são aquelas, porque um
sino, um pedaço de ferro quando bate tem várias notas, dá a principal, a fundamental e toda uma série
harmônica que dependendo das características do ferro vão ser totalmente atonais ou não. (JOVINO,
1997)
Um corpo sonoro ao vibrar, produz não apenas uma nota, mas uma série de outros
sons derivados dela, denominados harmônicos e parciais. A nota que ouvimos é, por isso,
que integram. Espectro por sua vez, é o nome dado ao conjunto dos componentes
bem a maneira como Stravinsky trabalhava superpondo tonalidades e, mesmo admitindo algumas
semelhanças harmônicas, não reconheceu influência alguma do último em sua linguagem.
9
inarmônico.
As senóides são sons que não são harmônicos nem inarmônicos, pois suas ondas
sonoras são desprovidas de harmônicos ou parciais. Por isso também, as senóides são
chamadas de som puro. No entanto, tão logo esta onda pura é transformada em vibração
forma, uma abstração acústica.11 Por serem sons absolutamente definidos em relação à
altura, as senóides estão numa ponta do continuum sonoro, que tem na outra extremidade,
têm espectro harmônico. Neste tipo de espectro, os harmônicos obedecem a uma relação
sobre a freqüência fundamental. Por isso nos sons harmônicos, ouvimos a fundamental
modificando sua cor, seu timbre. O timbre de um som dependerá do material que
constitui sua fonte emissora e das formas de ataque, além da relação entre seus
componentes espectrais.
Já nos sons inarmônicos como os produzidos por sinos, pedaços de ferro e objetos
metálicos, os parciais que integram seu espectro não estão numa relação de números
inteiros entre si, tal como nos sons harmônicos. Na multiplicação que os parciais operam
fundamental, não é mais possível, pois nos sons inarmônicos, os parciais não se fundem à
incrementado teremos o que se entende na acústica por ruído. Nos ruídos, os parciais
inarmônicos estão dispostos tão irregularmente, que a identificação de uma única altura
(como ocorre nos espectros harmônicos), ou mesmo a percepção desta altura combinada
a alguns de seus parciais (tal como ocorre nos espectros inarmônicos de sinos, ferros e
objetos metálicos), se torna impossível. Os ruídos por sua vez, são de diferentes tipos. A
noção de cor nos ruídos está ligada às regiões freqüenciais neles presentes. Um maior
âmbito freqüencial, produz o ruído branco, que, ao ser filtrado em bandas de freqüência
sonoridades inarmônicas dos ferros, Hermeto teria assim iniciado, segundo Jovino, sua
11 Ver Flô Menezes (org.), Música Eletroacústica: história e estética. São Paulo: Edusp, 1996.
12 Idem, ps. 240-241.
11
notas e acordes de uma maneira heterodoxa, como aproximava os sons harmônicos (da
tríades, as quais ele superpõe umas às outras, gerando agrupamentos verticais de maior
Nesse processo, você tem uma elasticidade dos acordes, que você pode pegar um acorde
absolutamente careta, normal, e você [imita o som de algo rasgando] abre ele (...) Você pode alongar
este acorde até ele ficar absolutamente atonal, e voltar. (JOVINO, 1997)
procedimento. Se concordamos com Jovino, porém, o caminho que Hermeto seguiu até
sua descoberta, bem como o uso que dela fez e faz, são parte unicamente de sua trajetória
acabam por reduzir este idioma consideravelmente, como podemos verificar através da
As escalas de acorde (utilizadas nas tríades) são deduzidas da análise harmônica e das notas
melódicas. (...) É recomendado que o trecho escolhido para TES (tríades de estrutura superior) seja o
clímax do arranjo, e só por tempo limitado. É próprio a momentos de grande riqueza harmônica e
melodia não muito ativa. (GUEST, 1999 : 35/36)13
Já a música erudita fez dela um uso mais amplo desde Debussy e Stravinsky e
sua utilização foi decisiva para a emancipação posterior da dissonância. O famoso acorde
13 Ian Guest está se referindo a uma técnica específica de arranjo, TES, na qual cada nota da
melodia é harmonizada em bloco com tríades. Estas tríades são denominadas 'tríades de estrutura superior'
porque são tocadas pelo naipe de cordas, madeiras ou metais, acima da base harmônica, tocada geralmente
pelo piano. O importante é observar que, de acordo com Ian, as TES são deduzidas das escalas de acorde
12
duração, Hermeto entretanto não o faz. Em Hermeto, esta técnica gera superposições
constantes quase tempo a tempo, o que bastaria para defini-la não como politonal, mas
freqüentemente que não chegam a estabelecer centros tonais nem politonais. Como
explica Persichetti:
eruditos.
albinismo de Hermeto, que ao lhe impedir desde a infância de estudar leitura musical, ao
mesmo tempo que o afastou dos professores e escolas, o fez, por outro lado, desenvolver
da harmonia base, não podendo conter notas estranhas a esta. Esta orientação estabele os limites de seu uso
no jazz e na música popular.
14 Salvo quando mencionado, todas as traduções são nossas.
13
entendermos a futura concepção musical deste compositor, devem ter sido consolidadas e
Lagoa da Canoa. Por isso, faremos no capítulo III, uma pequena biografia de Hermeto (e
dos integrantes do Grupo que o acompanhou de 1981 a 1993), a fim de perceber como
sua concepção musical se constituiu ao longo das fases de sua carreira, até à gravação do
Antes de fazê-lo, porém, iniciemos a discussão bibliográfica dos aspectos que nos
segue.
reportagens e matérias feitas com Hermeto, para finalmente voltarmos à entrevista feita
criação das músicas selecionadas para análise e verificamos a relação entre escrita e
tratado por nós como uma metáfora social, além de um fenômeno acústico. Analisamos
criação de cada uma das músicas escolhidas para análise, são comparadas com suas
musical do repertório escolhido por nós (sua forma, instrumentação, linguagem rítmico-
relacionados.
2 - DISCUSSÃO BIBLIOGRÁFICA
15
Os trabalhos acadêmicos sobre Hermeto Pascoal são escassos e pode-se dizer que
círculos acadêmicos, fato que pode ser comprovado através de algumas dissertações de
mestrado recentes.
tempo com jornais e revistas, apresentando trechos de diversas entrevistas feitas com o
compositor.
1998, Tato Taborda analisa a produção de alguns artistas brasileiros, a fim de ilustrar sua
erudito e o popular.
16 O volume exato é uma incógnita. O pianista e compositor Jovino Santos Neto possui cerca de
1200 músicas compostas por Hermeto. Porém desde 1993, quando o pianista saiu da banda, Hermeto já
compôs mais quantas músicas? Em 1997 por exemplo, Hermeto realizou seu projeto de compor uma
música por dia para homenagear todos os aniversariantes do planeta. Mencionamos este projeto não pelo
seu lado pitoresco, mas apenas para ilustrar nossa impossibilidade em avaliar o volume real da produção do
músico alagoano.
16
feita com diversos objetos sonoros cotidianos, a abertura a novas sonoridades, a atração
em que se baseia nosso estudo (1981-1993), Hermeto restringirá o elétrico em sua banda
outros bichos foi testado pelo músico alagoano, mas sem muito êxito.
Estou experimentando o instrumento (o sampler), mas ele não está aprovando. Só funciona
como gravador de sons de animais, já gravei o bode, o carneiro, o boi. Mas, na hora de gravar um
som mais agudo, o sampler reproduz aquele som de sintetizador horrível, que não sintetiza coisa
nenhuma. (...) Eu não chamo isso de sampler, mas de gravador de teclados. Eu até usei o gravador de
teclados em algumas faixas do disco que estou fazendo, mas não ponho o nome nos créditos porque
ele não faz nada, só grava o som. Se é um instrumento é pra eu usá-lo, e não para eu ser usado por
ele. Não vou fazer propaganda da fábrica. (HERMETO, O Globo: 19/05/98)
de uma criança, com o braço cheio de bugigangas "), de fato pode ser relacionado a
Hermeto, comprovado ladrão dos brinquedos sonoros de seus netos e das panelas e bacias
experiência inarmônica com os sons dos ferros do avô ferreiro, nas flautas feitas de galho
de mamona, nos sons dos pássaros e dos bichos, na música nordestina de seu pai
sanfoneiro, etc.
Canoa, sempre foi para Hermeto seu maior brinquedo. Privado das brincadeiras sobre o
sol com as outras crianças, Hermeto parece ter canalizado seu ludismo totalmente para as
brincadeiras sonoras . Ainda hoje, a busca de Hermeto pelo inusitado é alegre e não tem a
(...) Após o término das gravações deste Lp, todas as coisas ficaram em minha mente, som,
cores, luzes, notas musicais, caroços de milho, couro de tambor, chifre de boi, pedras, água, vozes,
teclas, cordas, botões, sustenidos e fisionomias (...) Então resolvi desenhar o que fotografei da minha
mente, que é a capa deste LP. (HERMETO)
escritas num sistema de sete linhas cuja ausência de clave impede que precisemos suas
A atitude de Hermeto para com a escrita é mencionada por Tato como semelhante
com objetos sonoros à pesquisa e uso que Hermeto faz de determinados sons. É
evidência de que tenha havido um contato efetivo seu com a música de Schaeffer.
recusa (ocorrida desde sua infância em Lagoa da Canoa) dos professores em ensinar
música a um garoto que só podia ler com bastante dificuldade, Hermeto, ao invés de
maneira, não só Hermeto provaria para aqueles que não acreditaram na sua capacidade
que ele podia tocar tão bem ou melhor que outro qualquer, como também passaria a
questionar desde então, as fronteiras daquela música escrita, cujas portas lhe foram
fechadas.
Em entrevista recente, muitos anos depois de ser recusado por professores que
consideravam aptos para a música apenas aqueles que podiam lê-la, Hermeto ainda
parece estar se dirigindo a músicos com idéias semelhantes, quando diz: "Música não é
teoria. Teoria é uma escrita. Se você não tiver música na sua cabeça, não consegue
escrever música, música não é para entender, é para sentir. Como é que você vai entender
forma não convencional (por exemplo tocando o sax barítono junto da esteira da caixa ou
tocando berrante com bocal de bombardino), sem esquecer dos sons de animais.
compositor. Este tipo de composição foi denominado por Hermeto de "música da aura",
sendo que uma das primeiras tentativas feitas por Hermeto, a música "Tiruliluli" do LP
Lagoa da Canoa, Município de Arapiraca (Som da Gente, 1984), Tato analisa em sua
aura", no entanto, revela muito sobre a concepção de Hermeto. Com a "música da aura",
ele demonstra onde chegaram os limites sonoros de seu território estético: ao falarmos
Carlos Prandini, analisa alguns solos improvisados por Hermeto. A metodologia analítica
utilizada pelo pesquisador pretende não apenas transcrever estes solos ou considerá-los
menores de texto" (Prandini, 1996: 18). Ou seja, o pesquisador busca tratar do improviso
somente ferramentas do tipo escalas de acorde, (vide harmonia funcional), mas antes
como uma composição não escrita. Embora não queiramos criticar tal noção
detidamente, mas antes ampliar seus limites, visando a melhor compreender o significado
questionar, perguntando até que ponto a improvisação, tal como é entendida por Prandini,
pode e deve ser considerada uma estrutura semelhante ou igual à estrutura musical
elaborada através da escrita. A nosso ver, a escrita é um medium que afeta a construção
21
de uma obra, pois possibilita diversos tipos de manipulação do material musical, (como
parece concordar com nossa linha de raciocínio, ao tratar do papel da escrita na música
ocidental:
Por isso acreditamos ser apenas parcialmente proveitosa uma análise que
intérprete; bem como do tempo de duração da improvisação - que afetará por sua vez, a
recorrentes; o espaço onde foi feito o solo improvisado e a participação do público (com
gritos, assobios, palmas, etc.) - que pode sugerir para o músico materiais inteiramente
imprevistos de início e etc. Porém esta não é a questão que nos interessa no momento.
romântico:
melodia interamente nova", José Carlos transcreve e analisa solos de quatro músicas
gravadas por Hermeto e Grupo no período 1985 - 1992: "Ilha das gaivotas", "O tocador
composição e da maneira já descrita por nós. Nele identifica seis motivos, determinadas
repetições e desenvolvimentos, nos quais não nos detemos, pois a análise harmônica que
o pesquisador faz será mais útil para entendermos os limites de sua abordagem.
Por exemplo, o motivo ostinato que serve como base harmônica para o solo em
"Ilha das gaivotas", é equivocadamente analisado pelo pesquisador como: "um único
acorde, com função tônica: Fá sustenido menor com 7ª, 9ª e 11ª" (Prandini, 1996: 31).
na mão direita com as notas la2, si2, mi 3, sol#3, mas o baixo caminha cromática e
Prandini, temos assim um outro no segundo compasso, usado por Hermeto também em
Em "Ilha das gaivotas", o acorde está anotado no pentagrama, mas nas outras peças
Este tipo de cifragem utilizado por Hermeto, com dois acordes superpostos,
19 No vocabulário utilizado por músicos populares, 'entortar' significa introduzir notas estranhas a
um determinado contexto harmônico ou melódico.
20 A estrutura interválica deste acorde é mantida nas outras peças através de transposições. Cf.
capítulo V.
24
nas notas Fá e Ré no grave (mão esquerda do piano) e lá, si, mi, e sol# na mão
direita. Poderíamos pensar num poliacorde, Ré menor (com baixo em Fá) + Mi maior, ou
ainda num único acorde, Fá maior com 6ª, 7ª maior, 9ª e 11ª aumentadas.
(...) Restrita a apenas um acorde (...), a peça oferece possibilidades limitadas de construção
melódica (...), e fica evidente, ao longo de toda a peça (o solo improvisado), a intenção francamente
diatônica e horizontal, da composição, pelo uso constante das três escalas menores de Fa#m. (O grifo
e a explicação em parêntesis são nossos). (PRANDINI, 1996 : 31)
relaxamento proporcionado pela relação das três escalas menores (natural, harmônica e
"caminhar" por uma base harmônica movediça, que ultrapassa os limites do jazz
convencional.
Em "O tocador quer beber", o pesquisador paulista faz uma boa análise do solo de
simples (IV7 - I) de seu forró, ao mesmo tempo que fala: "Isso é um sanfoneiro metido à
21 'Riff' é um termo do rock e jazz adotado pela música popular, que denomina um determinado
desenho rítmico-melódico curto, executado geralmente por bateria e baixo ou ainda por bateria, baixo e
guitarra elétrica.
25
besta, querendo tocar moderno, olha a mão esquerda dele, sanfoneiro muito besta"
(Hermeto, 1985)22.
Nesse ponto, Prandini infelizmente interrompe sua análise, mas sem o solo ter
metido a besta" terminará seu solo em duo atonal com as galinhas e galos.
Hermeto, ao interromper sua análise justamente quando o solo sai do esquema estilístico
do forró, o pesquisador deixa de observar uma importante característica dos solos, bem
"afinados com os instrumentos", por sua vez constitui, como dissemos no capítulo
anterior, uma assinatura estilística de Hermeto, somando-se aos outros sons de animais já
estabelecido (como no caso do forró free jazz)? Ou quando o esquema harmônico é ele
22 LP Brasil Universo, faixa "O tocador quer beber", Som da Gente 1985.
23 Cf. o encarte do cd Brasil Universo.
26
é um músico que tem, conforme Tato Taborda bem observou, como uma de suas
característica marcante vai se refletir tanto na sua atuação como intérprete, como
também, na de compositor.
Como dizia aos seus músicos: "é necessário compor e escrever como se fosse
improviso, e tocar improvisado como se fosse escrito" (Jovino, 1997). Mais do que a
erudito e popular, Hermeto desafia aqueles que querem estudá-lo, pondo em dúvida sua
Sou um músico versátil e não dá para ninguém me definir. Nem eu mesmo consigo explicar
o trabalho que faço. Porque não faço um só tipo de coisa. (...) Uma apresentação minha é a
possibilidade de encontro com várias músicas, da clássica ao coco, de todos os universos. Nada
premeditado. (HERMETO, Revista Manchete: 1985)
2.3.1 Jazz?
de vista da relação solo-harmonia, como no que diz respeito à análise dos solos
improvisados por Hermeto com as mesmas ferramentas usadas para a análise dos motivos
de composições escritas.
Os solos de Hermeto são transcritos do disco pelo pesquisador, para depois serem
análise harmônica de, por exemplo, "Ilha das gaivotas", e continuam nos solos atonais,
free ("O tocador quer beber"), onde a utilidade das escalas de acorde simplesmente deixa
de existir, o que faz com que o pesquisador abandone a análise do solo sem este ter
Uma outra observação que podíamos fazer sobre o trabalho de Prandini é sobre a
propriedade do repertório por ele escolhido para análise. Por que não foram escolhidos
para análise solos sobre esquemas harmônicos mais dissonantes ou mesmo atonais (como
próprio Hermeto já afirmou que preferiu enfatizar o arranjo à improvisação nas gravações
que fez em estúdio no período escolhido pelo pesquisador paulista.28 Sem dúvida, os
solos improvisados por Hermeto ao vivo, são bem diferentes dos gravados em estúdio,
resistem a esta perspectiva como a uma camisa de força, sempre parecendo escapar aos
alagoano. A dificuldade parece estar no como Hermeto alcançou, através de sua música,
27 O único disco ao vivo de Hermeto foi gravado no Festival de Jazz de Montreux. Talvez por
Hermeto estar acompanhado de uma outra formação de músicos, parcialmente diferente do período 1981-
1993, Prandini não tenha querido usar os solos gravados neste disco, o que de qualquer forma é uma pena,
porque Hermeto e os músicos apresentam uma performance verdadeiramente histórica e com improvisos
memoráveis. Em Montreux, os músicos Jovino Santos, Itiberê Zwarg e Antônio Santana que integram
também a formação que estudamos (1981-1993), já faziam parte da banda de Hermeto. Ver discografia.
29
ruidismo futurista.
(na Tropicália e em Araçá Azul), Jards Macalé e Chico Mello - que representa uma
irmãos Campos, a poesia concreta e músicos de formação erudita como Rogério Duprat,
os compositores Edino Krieger e Esther Scliar, ex-membros do grupo Música Viva, com
28 O que não era comum no início de sua carreira, quando os discos eram bem mais improvisados.
Ver capítulo III.
30
Em Chico Mello, "a formação erudita vem das aulas de composição com José
contrário dos outros músicos acima citados, não parece estar relacionada ao contato com
Música Viva, os irmãos Campos e, menos ainda, à Tropicália. Estas pessoas, grupos e
movimentos não tiveram uma influência direta em Hermeto. Por isso, para não fugir
menos) brincalhão Hermeto, o trabalho de Tato adquire uma feição hipotética. Mesmo
que o pesquisador carioca ressalte que as comparações feitas por ele "não significarão
muito próximos, ainda que obtidos por métodos e percursos bastante diversos" (p. 7), não
seria mais apropriado se Taborda fosse buscar - como fez em relação a Caetano Veloso,
Jards Macalé e Chico Mello - em algo próximo a Hermeto, as influências para sua
atividade de arranjador, ou ainda no free jazz, que por ser "o segmento mais experimental
do jazz" (p. 17), é incluído pelo próprio Tato dentro do espaço da música de invenção,
concreta. Apesar da escolha de Tato não ter sido gratuita, pois o paralelo entre Schaeffer
e Hermeto resulta proveitoso, por que não incluir neste campo de possibilidades outros
iconoclasta Charles Ives (que na infância teve experiências com os sons inarmônicos de
música popular húngara), Scriabin (a relação sinestésica entre sons e cores), Stravinsky (a
assimilou alguns dos procedimentos relacionados acima, senão todos, na década de 70,
quando viajou e morou nos E.U.A. Sem perder no entanto, as referências da música
se resumiram ao free jazz. Assim como o pioneiro do free jazz, o saxofonista Ornette
Coleman, que já tinha uma maneira e linguagem próprias antes de encontrar-se com o
músico erudito Günter Schuller, o qual passaria a influenciar e ser influenciado por
Coleman, também Hermeto trazia consigo toda uma gama de informações musicais,
assimiladas desde muito antes do contato com o jazz e o free jazz americanos. Foi
justamente esta bagagem musical que Hermeto levou para os E.U.A., que possibilitou um
Hermeto para os E.U.A e sua relação com o jazz, serão abordadas de forma mais
Paschoal e anteriores à sua viagem aos E.U.A. Estaremos assim ampliando a discussão
bibliográfica antes iniciada. O primeiro aspecto é sua abertura para o mundo sonoro não
visão.
Então tudo isso (o som daquele sino batendo, rede rangendo, passarinho cantando, pessoa
falando ou até um padre rezando), são elementos que inspiraram, inspiram ele (Hermeto) ainda para
criar uma coisa musical, ao contrário de outros músicos que se inspiram para a música pela música.
Então ele sempre compara o fato de um pintor que quer fazer um quadro, e ao invés do cara ir numa
paisagem linda, num bosque, no rio, no mar, e pintar, ele olha para uma outra pintura e pinta o que vê
de uma outra pintura. E na música é a mesma coisa, se tudo que te inspira para a música é a música,
33
então você está muito limitado, porque a música é um retrato de tudo que "rola" no mundo, na vida de
todos nós, e cada um com sua experiência. (JOVINO : 1997)
A música está em todo o lugar, tudo é música. Uma porta que bate, a faca que espalha a
manteiga sobre um biscoito, um golpe na mesa. Isso não significa que basta fazer barulho para fazer
música. Ser músico é saber utilizar estes ruídos. (HERMETO, Jazz Magazine: 1984)
materiais para sua linguagem musical, o leva ao desenvolvimento de uma concepção que,
o conhecimento que Hermeto tinha desta última era pouco ou nenhum, antes dele chegar
(precoce) para o universo sonoro, que Jovino explica a concepção harmônica poliacordal
Ele sempre fala, e eu já ouvi ele falar várias vezes, que o desenvolvimento harmônico dele
foi formado por essa busca de sons nas coisas que já existiam naturalmente.
(...) Então este tipo de coisa faz com que ritmicamente você seja livre e ele passa a utilizar
inclusive elementos rítmicos da voz humana e de outras coisas como carros, máquinas e bichos.
(JOVINO, 1997)
Brasil, 1978) denominada "Rede", que o pianista havia estudado durante meses, sem se
dar conta que Hermeto havia utilizado os andamentos, ritmos e as notas da rede rangendo
Muitos outros exemplos ainda, podem ser acrescidos a este. Uma narração de uma
partida de futebol pelo locutor Osmar Santos, uma fala do ex-presidente Collor, uma aula
produzidas pela fala e, ao mesmo tempo, seguir suas durações diferentes e irregulares. E,
34
cigarras, jumentos, abelhas, também são uma constante nas músicas de Hermeto.
Importante é notar que a abertura de Hermeto para o reino dos sons não
2.5 Sinestesia
freqüentemente em termos visuais quando fala de sua música, e diz se inspirar, para o
Sou um pintor sem preferência por uma cor, como o Van Gogh gostava do amarelo. (...)
Eu não consigo dizer uma cor só, quando digo que meu som tem cor e querem saber qual é a
cor dele. Porque essas cores variam muito rapidamente. (HERMETO, Revista Manchete: 1985)30
Eu me inspiro mais nas outras coisas para fazer música. Eu não escutei música para compor.
(...) Não. Eu me inspiro mais na pintura, no timbre de uma voz. (HERMETO, Rádio MEC: 1998)31
Para avaliarmos o papel que a inter-relação som-imagem tem na linguagem de
outro. Como por exemplo ocorre quando alguém ouve o som de um instrumento e
comparando-os aos de outras pesquisas como as feitas por Köhler (1910), Hornbostel
(1931), Karwosky (1942), Bruner (1964), Paivio's (1971) e outros, bem como a farto
Quanto mais aguda for a nota, mais ela será percebida como luminosa e vice-versa,
agudos, freqüentemente foram percebidos como mais brilhantes que sons com baixa
amplitude. Uma mesma nota em crescendo terá assim seu brilho intensificado, e sua cor
alterada.33
por um outro modo de cognição mais flexível: a linguagem abstrata e verbal. Bruner
(1964) viu neste processo uma transição entre o icônico e o simbólico.34 A sinestesia
33 O que é perfeitamente condizente com a acústica, pois num crescendo a ativação dos parciais
harmônicos é diferenciada a cada momento, mais e mais parciais harmônicos agudos vão sendo vibrados à
medida que a amplitude sonora cresce, daí a conseqüente modificação do timbre, da cor deste som.
34 Citado por Lawrence E. Marks, op. cit. p. 89.
36
adulta.
expressa relações inter-sensoriais intrínsecas,37 o que não ocorre na maneira poética, que
("poético").
adultos são simplesmente aqueles que não perderam com o crescimento, a condição
perceptiva que tinham antes da representação abstrata da linguagem ter se imposto sobre
a percepção sinestética.
Esta hipótese mereceria uma discussão cujo aprofundamento escapa aos nossos
35 No original, imagery.
36 Idem, p. 89.
37
concepção musical. Por que é que Hermeto (e os músicos que com ele tocaram), se
referem tanto à sua infância, sublinhando a importância que esta teve para sua linguagem
musical? E por que ele insiste com tanta veemência que música não é nem a escrita, nem
(...) Quando falo em música, não estou falando de teoria. Teoria eu acho que tem que se
aprender sim. Mas não as crianças. (...) Para mim, ensinar teoria para uma criança é a mesma coisa
que ensinar inglês a uma criança brasileira vivendo aqui no Brasil. Não. Tem que deixar a criança
falar errado. Errado porque a gente chama de errado, porque não tem nada de errado. Existe apenas o
não convencional, o não padronizado. (...) Deixa a criança tocar. Ensina a criança a tocar fisicamente.
Não dê nada para ela ler. Ela vai ler e aprender. De repente, para o instrumento, [com a leitura] vai
aprender até mais rápido. Mas o sentir ela vai perder. (O grifo é nosso) (HERMETO, Backstage :
1998)
um lado, e a tradição musical oral (e popular) - que Carole Gubernikoff assinalou como
marcada pela vocalidade - e a tradição escrita (ou "culta", "erudita"), de outro. Mais
adiante (p. 31), Carole pergunta-se se "não sacrificamos a escuta neste processo", ou seja,
dos aspectos sensíveis e intelígiveis os quais, segundo Carole, são os dois pólos presentes
professores de música não tinham paciência em ensinar um garoto albino com muitas
37 Idem, p. 90.
38
que considera a tradição culta do Ocidente superior ou mais evoluída que outras culturas
musicais orais, Carole insinua uma pergunta que Hermeto parece responder de maneira
processo de criação, antecedendo e sucedendo a escrita musical, que ele domina e utiliza,
som (seja este harmônico ou inarmônico41), para somente depois representá-lo através da
escrita, que será tornada por sua vez, uma estrutura-base para outras improvisações, num
ritornello infinito.
concepção musical lúdica, bem como à sua própria vida. Não por acaso, Hermeto
escolheu o distante bairro do Jabour na Zona Oeste da capital carioca para morar. Bem
de certa forma lembra o quente sertão alagoano da infância do compositor. Cercado pelo
som das cigarras, cachorros, galinhas e galos que conseguem sobreviver ao rápido
crescimento do bairro, Hermeto mantém ainda algo da paisagem sonora de sua infância,
que ele permanentemente transpõe para sua linguagem musical, ao sobrepor os sons dos
geográfico de sua infância, ele parece ter podido conservar, ao longo da sua vida madura,
cognição pré-verbal .
As músicas de Hermeto que analisamos não por acaso têm títulos como "Arapuá"
(uma música feita para o sax barítono, cujo timbre e textura foram associados à abelha
com esse nome, de zumbido também grave), "Cores" (na qual Hermeto une os
instrumentos convencionais aos silvos das cigarras e a chapas de ferro percutido), "Série
de Arco" (uma música originalmente feita para uma coreografia de ginástica olímpica) e
"Aula de Natação" (uma "música da aura", tipo de composição criada por Hermeto e que
não se resume e nem sempre se configura como sinestésica, de acordo com as definições
coreográfico nos parece uma atitude deliberada e não uma reação sensorial sinestésica.
um importante papel na linguagem de Hermeto Pascoal, por trazer para o plano sonoro,
referências visuais estranhas à ele, assim fazendo com que sua linguagem musical seja
considerado não-musical.
3.1 De Lagoa da Canoa aos E.U.A., dos E.U.A. ao mundo: uma pequena biografia
menino, seu pendor musical se revela. Suas primeiras experiências musicais são tocar
41
pifes (pífanos), feitos pelo próprio garoto com folha de mamona e abóbora e compor
Pequenininho, com meus 7 anos, já estava em contato com a música. (...) Meu pai tocava
harmônico de oito baixos, o pé de bode, um tipo de sanfona, e eu tocava pife (pífano) que eu mesmo
fazia, lá no mato, com cano de mamona. Por ser albino, eu não podia pegar sol. Eu era teimoso, sumia
no mato, quando meu pai ia para a roça trabalhar. Eu era assim como os índios, mas um índio
diferente. (...) Como eu tinha musicalidade, sentia aquela vontade de tocar. E queria saber se os
passarinhos gostavam disso ou não. Quando meu pai me levava para a roça, no carro de boi, eu
tratava de fazer umas flautinhas para tocar com os passarinhos. E quando ele voltava, via a árvore
cheia de aves. Até hoje, quando toco num lugar que tenha passarinho, consigo me comunicar com
eles. (HERMETO, O Globo, 1998)
Os sapos... Os sapos eram um público maravilhoso. O público mais fiel e sensível que existe
é o sapo. Eles são muito inteligentes. Os sapos de beira de estrada já estão acostumados ao barulho do
motor, mas, mesmo que você desligue o motor e ande na direção deles, eles vão perceber que tem
alguém indo para o lado deles. Um sapo pode servir para dar um aviso. Ele sente tudo. Eles já me
conheciam porque eu ia sempre à mesma lagoa. Os sapos tem orquestras perfeitas. (HERMETO,
Backstage: 1998)
(...) Todos os pedaços de ferro que ele [o avô de Hermeto] cortava, eu escondia. (...) Eu batia
um de encontro ao outro e achava bonitinho o som. Os meus brinquedos eram no campo, os
passarinhos, os animais e lá em Lagoa da Canoa, os ferrinhos. (...) Aí tinha a dispensa, que era onde
guardava carnes, comidas ... (neste momento, Hermeto esbarra no microfone da Rádio onde concedia
a entrevista e desculpando-se aos ouvintes, compara o barulho do esbarrão aos sons dos animais de
sua infância:) Quem escutou o barulho em casa, pense num sapinho cantando na lagoa.
[continuando] Aí minha mãe chamou meu avô e disse: Papai, que que está acontecendo que o quarto
lá da dispensa está cheio de ferro? E meu avô: - É que o Hermeto pega todos os pedaços de ferro e
está escondendo lá. Aí eles ficaram desgostosos porque pensaram que eu tivesse ficando louco com
alguma coisa, isso com oito anos de idade. Aí me chamaram, eu peguei os pedacinhos de ferro, eu já
tinha juntado, já tinha feito uma, duas músicas batendo nos ferros (...) Quando eu bati nos pedaços de
ferro meu amigo, minha mãe chorou, meu avô chorou, foi todo mundo de emoção, de alegria, né? (...)
Aí sabe o que acontece, meu avô me deu tanto ferro para eu guardar, que não tinha mais lugar para
botar. (HERMETO, Rádio MEC: 1997)42
de seu pai, (também chamada no nordeste brasileiro de pé de bode) e a partir dos 12, a
botões contém notas isoladas, usadas nas melodias. A pé-de-bode não é cromática, ao
contrário de suas irmãs mais velhas, as sanfonas de 32 e 80 baixos. Com o pai e o irmão,
Desde a infância, o universo sonoro foi para Hermeto fonte constante de prazer e
um forte estímulo tanto para a brincadeira como para a criação. Sua concepção
harmônica e sua linguagem devem muito a estas primeiras experiências musicais, quando
oito baixos da sanfona às notas isoladas do outro sistema de botões, assim Hermeto
interessante hipótese, por nós já comentada, da linguagem harmônica de Hermeto ter sido
entre os sons ditos "musicais" (os sons harmônicos), os sons inarmônicos dos ferros, da
natureza e dos bichos, Hermeto organizaria estas tríades e notas "arquetípicas" de sua
infância, de forma não funcional e, por isso, as sonoridades harmônicas e melódicas por
com o universo sonoro ainda mais intenso, pois um sentido era parcialmente compensado
através de outro. Como já dissemos anteriormente, Hermeto afirmará repetidas vezes que
não compõe música só através da música, mas que se inspira também nas imagens para
criar música, além dos sons cotidianos e da natureza. Isso parece esclarecer muito sobre
sua concepção musical, pois, ao traduzir sua percepção visual em termos sonoros,
Hermeto sinaliza para o fato de sua música ser afetada pelas características algo difusas
Em 1950, a família Paschoal transferiu-se para Recife PE. Com José Neto, seu
irmão, Hermeto passa a tocar na Rádio Tamandaré. O músico Sivuca, também albino e
unir suas sanfonas e tocar juntos, e um dia, o dono da Rádio Jornal do Comércio os viu e
Hermeto e o irmão, batizando o trio de "O mundo pegando fogo", por causa da cor
Apesar de sua pouca familiaridade com a sanfona - "o Sivuca carregava a gente
nas costas" 43 - os frevos e baiões de "O mundo pegando fogo" conseguem o suficiente
para Hermeto comprar uma outra sanfona, agora de 80 baixos, permanecendo nesta Rádio
mais 2 anos. Nas rádios em Recife, Hermeto vê e ouve pela primeira vez as orquestras de
rádio regidas pelo maestro Clóvis Pereira e por Guerra-Peixe. Apesar de ter visto apenas
"Era quase uma sinfônica, tinha cordas, metais, percussão, uma maravilha. Estas
sonoridades orquestrais foram registradas por Hermeto "porque minha mente é como um
gravador infinito."44
Em Recife, Hermeto começa também a tocar piano nas boates, convidado por seu
Comércio. Preocupado por causa do fato da técnica da mão esquerda no piano ser
bastante diferente da sanfona, Hermeto foi no entanto estimulado por Heraldo que não só
o tranquilizou dizendo que o baixista daria conta do que a ainda inábil mão esquerda de
Hermeto não conseguisse fazer, como também que via em Hermeto um potencial técnico-
43 De acordo com afirmação do próprio compositor em entrevista a nós concedida, querendo dizer
que nesta época, ele e o irmão não tocavam bem a sanfona, diferentemente de Sivuca, que um pouco mais
velho que Hermeto, já tinha mais desenvoltura neste instrumento.
44 Em entrevista conosco realizada em 06/03/1999.
44
estético que certamente o faria suplantar aquelas dificuldades. Cerca de 40 anos depois,
Nas boates recifenses, Hermeto tocava entre outros estilos, jazz e na Rádio, além
O cara que toca em regional, (...) você acompanha em Fá e o cantor diz: hoje eu estou
gripado, então toca meio tom abaixo, (...) e você não pode dizer que não, porque os programas eram
ao vivo, (...) quando era meio-tom até dava para "enrolar", mas eu, como queria aprender, fazia
questão de dar o tom pro cara, justamente para me desenvolver. (HERMETO, 1997) 45
Terminado o contrato, a Rádio dispensa o trio albino argumentando "que eles não
davam para música"... Em 1952, Hermeto, então com 16 anos de idade, vai para Caruaru
PE, Sivuca para Garanhuns, e José Neto, para o Rio de Janeiro. Em Caruaru, depois da
leitura e teoria musical por conta própria, porque devido à deficiência de sua visão, os
conscientizaram Hermeto que seu ouvido era absoluto, porém, a curiosidade com que
Hermeto foi tratado inicialmente pelos músicos eruditos, não foi suficiente para que lhe
ensinassem teoria. Com 16 anos de idade, Hermeto foi apresentado por um colega ao
maestro Laranjeiras da rádio Difusora de Caruarú, para que com ele tivesse aulas de
desistiu da tarefa de ensinar-lhe argumentando que não poderia colocá-lo numa classe de
50 alunos, porque teria que conceder atenção especial a Hermeto. Diante da negativa do
Durante um ano Hermeto levou este método para todos os lugares onde ia. Como
Paschoal só conseguia enxergar o que era escrito em letras grandes, depois de aprender as
notas musicais, as figuras rítmicas e outras noções básicas, o músico largou o método e
começou a pôr em prática uma maneira própria de abordar a música que o acompanharia
durante sua carreira: "minha vida toda foi deduzir." Os primeiros estudos teóricos eram
complementados pela intensa prática musical dos regionais das rádios e na noite.
prática à teoria, o sentir ao saber, a intuição à lógica. Por outro lado, a experiência de ter
sido empregado numa importante Rádio de Recife, para depois ser demitido "porque ele
não dava para a música", fará com que Hermeto tome o julgamento e a condenação de
música.
sudordinação exercida por patrões tão diferentes como donos de Rádios, casas noturnas, e
posteriormente, das gravadoras dos discos em que gravou ao longo de sua carreira. O
as mais diversas influências - do forró ao free jazz, da música erudita ao côco - nela são
Em 1956, Hermeto retorna para Recife e em 1958, vem para o Rio de Janeiro.
Um ano após, junta-se ao irmão José Neto para tocar acordeon na Rádio Mauá carioca,
Copinha.46 Em 1961, vai para São Paulo, onde permanece aproximadamente até 1967,
ganhando a vida como pianista de boates e casas noturnas (Chicote, Stardust e outras),
Em São Paulo, começa também a praticar flauta e sax, integrando o conjunto Som
Sambrasa Trio, com Claiber (contra-baixo) e Airto Moreira (bateria),47 este último, um
músico e amigo que terá grande importância para o início da carreira de Hermeto como
compositor, arranjador e instrumentista, fato que ocorrerá mais tarde, em 1971, nos
Walter Santos.48
O aprendizado de vários instrumentos por Hermeto foi possível não apenas por
seu talento, mas por sua dedicação intensa ao estudo e prática. Como podemos verificar
eu me trancava no quarto estudando e falava pra dona da pensão que era pra ninguém me chamar e
subornava o vigia da Rádio pra ficar no estúdio tocando. (HERMETO, Pipoca Moderna)49
nordestina, passando pelas serestas, choros, sambas, música cigana e bossa-nova, aos
standards do jazz.
Das roças de Lagoa da Canoa às casas noturnas e hóteis de Rio e São Paulo, a
de fato, os guias primordiais de Hermeto. Hermeto tinha origem social humilde e não
podia contar com eventuais ajudas paternas. Sua deficiência visual adiava o domínio da
escrita musical. Estando desde a infância mais próximo de Hermeto, o universo popular
pôde servir como meio de sobrevivência do músico, além de constituir uma escola onde
Hermeto tinha sido um músico instrumentista, contratado por Rádios e boates. A partir de
(Som Quatro e Sambrasa Trio). Lentamente, Hermeto começava a se libertar dos limites
econômicos que lhe eram impostos, bem como dos limites estéticos estabelecidos pela
ótica dos patrões que o contratavam. Neste sentido, podemos dizer que a necessidade de
tornar-se arranjador e compositor para Hermeto, foi não só uma tendência natural de sua
Contudo não foi um caminho fácil. Hermeto não teria se tornado o que é hoje,
algumas premissas adequadas para ilustrar muito brevemente, o paralelo que fazemos
instrumento de conhecimento.
no entanto, que nos tornemos conscientes de suas entrelinhas, e que ouçamos também os
seus ruídos e diferenças (sua ação crítica), bem como o que ela não diz, seu silêncio.
outro lado, uma ação potencialmente subversiva, porque sendo concebida como
tocava. Esta surpresa causada por Hermeto, e o ruído por ela causado ou era motivo de
49
susto e desdém para os donos das Rádios e boates e para músicos "bem-comportados" ou
de admiração, para os mais abertos. O reconhecimento tornou amigos vários dos músicos
que tocaram com Hermeto, alguns dos quais desempenharam sem dúvida, papel
Monte em Recife, e depois, com o percussionista Airto Moreira e a cantora Flora Purim,
1966, que com sua entrada, torna-se Quarteto Novo. O Quarteto Novo será na trajetória
parte, além do próprio Hermeto (flauta e piano), os músicos Heraldo do Monte (viola
caipira e guitarra), Téo Barros (violão e baixo), e Airto Moreira (bateria). Em 1967, o
conjunto grava pela Odeon o importante LP Quarteto Novo (Odeon, 1967), no qual
qual Hermeto faria mais tarde uma letra que remete a tradição popular poética da
afetou toda uma geração de músicos, de Edu Lobo52 a Tom Jobim, ao combinar
percussão, viola caipira, violão, flauta, bateria, piano e guitarra. A proposta original do
Quarteto Novo veio de Geraldo Vandré. Segundo ela, o Quarteto deveria trabalhar
Vandré foi um dos motivos para que o Quarteto durasse tão pouco tempo: "Quando eu
dava um acorde bem moderno, as pessoas falavam criticando: acorde de jazz não pode.
Mas não era acorde de jazz, era minha cabeça que estava querendo. A música é do
mundo. Nós não somos donos dela. Querer que a música do Brasil seja só do Brasil, é
De 1966 até 1970, Hermeto terá uma importantíssima escola de arranjo com os
Festivais da Canção. Nesta época, Hermeto já sabia as notas e figuras rítmicas, mas como
não sabia fazer grades de arranjo, escrevia, já transpondo, instrumento por instrumento a
partir da harmonia. É importante observar que Hermeto tinha e tem um ouvido harmônico
muito acurado, que já o permitiu compor para uma orquestra sinfônica por exemplo, sem
instrumentos:"Eu posso estar escrevendo uma nota aqui e estou com quatro caras tocando
Em 1970, Airto e Flora Purim levam Hermeto para os E.U.A., para arranjar as
músicas dos discos Natural Feelings e Seeds on the ground (Buddah Records, 1971).
Neste último disco, Hermeto grava e arranja uma música criada por seus pais
roseira", foi considerada uma das melhores músicas do ano pela crítica inglesa.55
Os anos de 1970 e 1971 seriam bastante intensos para Hermeto. Além dois dois
LPs com Airto e Flora como compositor, arranjador e multi-instrumentista, Hermeto faria
ainda o LP Cantiga de Longe (Elenco, 1970) com Edu Lobo, como arranjador e
instrumentista, o LP Live Evil (Sony, 197256) com Miles Davis como compositor e
americano, em Seeds on the Ground, Hermeto foi pela primeira vez reconhecido
internacionalmente.
Façamos um parêntesis para esclarecer o termo free jazz. Este apareceu pela
primeira vez intitulando o disco de 1960 de Ornette Coleman, e a partir daí "passou a ser
utilizado para denominar uma nova forma que alguns jazzmen norte-americanos já
vinham experimentando hà algum tempo, como Cecil Taylor, Albert Ayler, ou mesmo
linguagem do jazz, as características básicas do free jazz foram assim resumidas pelo
improvisatório e;
possível supor que o músico as tenha absorvido durante sua estada na Califórnia e em
Nova York, com o casal Airto e Flora Purim. O pesquisador Carlos Callado verificou
como nós, resultados bem próximos na música e linguagem de Hermeto, com o free jazz :
É curioso como estruturando seu trabalho musical a partir de ritmos brasileiros tradicionais
como o frevo, o baião e o choro, jamais abrindo mão do recurso da improvisação, Hermeto chega em
vários momentos a resultados bem próximos do free jazz - especialmente quando rompe o andamento
regular e ingressa na atonalidade. Recusando sempre as qualificações de jazz, free ou mesmo "música
popular brasileira", ele prefere o termo "música livre" ("música universal" é ainda um outro termo que
Hermeto utiliza para definir sua música). (CALLADO, 1990 : 249)
Salvo menções biográficas que nos sejam desconhecidas, talvez seja mais
do andamento, a improvisação "extásica", o uso musical dos ruídos, etc. - mais pela via
De qualquer forma, o free jazz constitui apenas uma das várias facetas da
alagoano recusa este rótulo (free jazz), assim como todos os outros já utilizados para
56 Lançado em 1972, mas gravado em 1970, segundo consta no encarte do CD. Ver discografia.
53
definir o tipo de música que faz. O que, de alguma forma, parece justo, já que a
alternando na mesma música trechos improvisados a la free jazz, com outros totalmente
convencionados e arranjados.
realizada por Tato Taborda,58 que nos será útil para tratarmos da relação que Hermeto
parece ter tido com a música americana e com diferentes estilos do jazz. Vejamos por
exemplo quando Tato cita um trecho do livro de Júlio Medaglia, Música Impopular ,59
Coleman vinha de uma família paupérrima do sul do Texas, que nem sequer dinheiro para a
compra de um instrumento possuía. Por fim, conseguiu ganhar um velho saxofone todo quebrado e,
se identificando com ele, começou a tirar sons que nada tinham a ver com o que se chamava música
na época. Ele apitava, grunhia, sussurrava ao instrumento mas ninguém queria ouvi-lo, muito menos
os band leaders engajá-lo em suas orquestras. Aquele som primitivo e anárquico que tinha a ver com
a sua própria vida nos slums do fim do mundo onde nascera, foi detectado e valorizado pela primeira
vez quando Coleman, um simples ascensorista de Nova Iorque, cria coragem e apresenta-se para
Günther Schuller, o diretor da Lenox School of Jazz. Schuller o aceita em sua escola e passa a
orientá-lo, mostrando-lhe que atrás daquela anarquia e agressividade sonora havia uma grande
sensibilidade que motivaria o surgimento de um novo estilo jazzistico (Medaglia in TABORDA,
1998: 119/120).
encontraria ecos de sua própria linguagem experimental. A partir do relato acima parece
57 Joachim E. Berendt, O Jazz: do Rag ao Rock. São Paulo: Perspectiva, 1975, p. 36.
58 Ver Tato Taborda, Música de Invenção, p. 17.
59 Cf. Taborda, op. cit.
54
incontestável que o contato e a amizade com o músico erudito devem ter influenciado
Coleman em alguma medida, mas o(s) detalhe(s) é que não só este contato foi uma via de
mão dupla, pois Coleman influenciaria o próprio Schuller,60 mas também que o
saxofonista já tinha muito antes de seu contato com o músico erudito, uma maneira
Por volta de 1957, ou seja, dois anos antes do encontro com Günter Schuller,
Coleman encontra alguns dos músicos (Don Cherry, Billy Higgins e Charlie Haden) com
quem gravaria seus primeiros discos, e assim descreve algumas experiências que ele
próprio liderava :
Então, quando nós estávamos juntos, a parte mais interessante era: O que você irá tocar
depois da melodia, se esta não tiver nada a acompanhando? (...) Usualmente, quando você toca uma
melodia, você tem padrões pré-estabelecidos para saber o quê você pode fazer enquanto as outras
pessoas estão fazendo outra coisa. Mas neste caso, quando nós tocávamos a melodia, ninguém sabia
para onde ir ou o que fazer para mostrar que sabia para onde estava indo. Eu já tinha desenvolvido
uma maneira de tocar assim naturalmente. [o grifo é nosso] (Coleman in LITWEILER, 1984 : 34)
contra-capa, o saxofonista já apresenta de forma completa o que dois anos após seria
Eu creio que um dia a música será um pouco mais livre. Então, o padrão61 para um tema, por
exemplo, será esquecido e o próprio tema será o padrão e não terá que ser forçado dentro de modelos
convencionais. A criação da música é tão natural como o ar que respiramos. Eu acredito que a música
é realmente livre e você pode gostar dela da maneira que for. (Coleman in LITWEILER, 1984 : 34)
havia consolidado tanto sua concepção como sua linguagem musical. Para não parecer
importante grupo Modern Jazz Quartet, disse a respeito de Coleman, apenas poucas
semanas após a entrada deste último na Lenox School , na qual lecionavam ainda, outros
jazzmen de destaque como Milt Jackson, Max Roach e Bill Russo, além do próprio Lewis
e Günter Schuller:
Ornette Coleman é a primeira pessoa a realizar algo de novo no jazz desde Charlie Parker e
Dizzy Gilespie em meados dos anos 40 e desde Thelonius Monk" (John Lewis in E. BERENDT,
1987: 106)
Coleman até a consagração e absorção de sua música nos círculos jazzísticos (via John
Lewis) e eruditos (via Günter Schuller), à experiência que o também autodidata Hermeto
Paschoal teve nos E.U.A. O fato de futuramente Coleman ter passado a compor para
formações eruditas - o que efetivamente ocorreu, demonstrando que foi influenciado por
Schuller - esta influência além de ser tardia (após 1960), parece ser uma questão menor, e
61 No original pattern. A tradução literal significaria modelo ou padrão. Coleman parece estar se
referindo tanto ao contexto harmônico, como ao formal, ambos pré-estabelecidos tradicionalmente. É esta
pré-determinação que o saxofonista quer abolir. O novo modelo-padrão proposto por Coleman é um anti-
56
a nosso ver super-enfatizada por Tato, porque na verdade: "Ornette Coleman (...) só teve
conhecimento das experiências atonais da música erudita por volta de 1959/1960, época
em que conheceu John Lewis e Günther Sculler; nessa ocasião a sua contribuição musical
Se a década de 70, quando o free jazz estava no auge, parece ter de fato
compreendida uniteralmente. Assim como o contato com Günter Schuller apenas um ano
antes de Coleman gravar o disco Free Jazz (Atlantic-WEA, 1960), não pode explicar
música americana, também apenas um ano antes dele gravar nos E.U.A. o seu primeiro
Isto porque tanto Hermeto como Coleman, já tinham linguagens próprias, desenvolvidas
por Rádios e boates, aos poucos conquistou um lugar somente seu, dentro da indústria
Brazilian adventure (Coblestone, 1971), produzido pelos amigos Flora Purim e Airto
ainda com a participação de Ron Carter no baixo e Airto Moreira na bateria e percussão.
ao presentear com garrafas, músicos como Hubert Laws, Art Farmer e Ron Carter, no
início de uma das sessões de gravação no estúdio. O motivo para tal recepção é que
Hermeto compusera uma música64 para 40 garrafas afinadas, que seriam tocadas pelos
músicos da big-band. Em outro momento da gravação do disco, na primeira vez que uma
orquestra tocava uma música sua, Hermeto interrompeu a regência logo nos primeiros
acordes, "não sabia mais o que fazer com as mãos. Elas ficaram paradas no ar. Depois
baixei as mãos, (...) estava tão bonito que fiquei sem ação." (A gazeta, Vitória ES, 1990).
Hermeto continuasse regendo, mas, ao invés disso e para o susto de todos, o músico
jogou as partituras para o alto, e rolando com elas pelo o chão, ria sem parar. Sem saber
músicos americanos tiveram que ser tranqüilizados por alguém que disse que aquele
62 Op. cit., ver também Mark C. Gridley, Jazz Styles: history and analysis. New Jersey: Prentice-
Hall, Inc., 1985 (2ª edição), ps. 226-234 e W. Royal Stokes, The Jazz Scene: an informal history from New
Orleans to 1990. New York: Oxford University Press, 1991.
63 "Cozinha" é um termo usado na música popular e se refere a formação instrumental básica
constituída geralmente de baixo, bateria e percussão.
64 A faixa 'Velório".
58
comportamento era comum no Brasil. "Que aqui rolávamos no chão quando estávamos
contentes". (Idem).
cabelos muito compridos e avermelhados, já então parecido com um "bruxo" (termo que
a imprensa nacional adotoria anos depois para denominá-lo), deve provavelmente ter
exóticas.
podem ser considerado totalmente irrelevantes para alguns, porém não para nós. Neste
nos interessa. Por isso, não descartamos o papel que o visual particular de Hermeto
alto na frente de uma orquestra atônita, Hermeto diz simplesmente: "Eu não dei uma de
louco. Na verdade eu sou louco mesmo! Sempre fui!" (idem). Hermeto não parece fugir
da fama inspirada por seu comportamento, e nega que este tenha sido, ou seja ainda hoje,
seria necessário dizê-lo, pois a rapidíssima projeção de Hermeto no exterior só pode ser
conta que o recém-chegado Hermeto Pascoal era totalmente desconhecido nos E.U.A. e
não tinha gravadoras, mecenas, nem padrinhos, podemos constatar que seu
59
vertiginosa, que somente o "exotismo" não pode explicar. Airto conhecia - via Miles
"portas" profissionais importantes para Hermeto, mas estas nada teriam sido se Hermeto
não conquistasse efetivamente os músicos americanos com sua música. O que de fato
ocorreu.
No mesmo ano da gravação de seu disco, Hermeto conhece e toca com jazzistas
americanos de renome como Chick Corea, Herbie Hancock, Joe Zawinul, Wayne Shorter
e John McLaughlin, entre outros, além de um dos mais importantes músicos populares
Airto tocava com Miles nessa época e foi através dele que Miles e Hermeto se
conheceram:
(...) As músicas que eu gravei com ele, (Miles Davis) eu mostrei pra ele no violão, cantando
e tocando violão. (...) Aí bicho, eu toquei um monte de música para ele, umas 9 ou 10 músicas, e ele
sentado, e o Airto ficava naquela tensão né... (...) Eu nem tava olhando para ele (para Miles), estava
ligado no meu som, porque quando eu tava tocando para ele escutar, eu não estava tocando pensando
em arrumar trabalho, porque eu já tinha ido para lá com trabalho. (...) Aí ele disse assim: "ah, se eu
pudesse gravar estas músicas todas, pena que não dá para gravar todas num disco", olha o papo dele...
Quando o Airto traduziu para mim, eu disse, agora vamos ver como ele é. [Airto] fala para ele que eu
vim (para os E.U.A) também gravar, para fazer meu disco e que se ele acha que eu vou dar estas
músicas todas para ele gravar, quê é isso ? Aí virou brincadeira cara, porque foi de brincadeira que eu
falei. E ele sacou isso. (...) A partir deste dia, aí que ficou bonita aquela simpatia que nós tínhamos
um pelo outro. (HERMETO, 1997) 65
Evil (Sony, 1972) de Miles Davis: "Igrejinha" e "Nem um talvez".66 Hermeto chegou a
ser convidado por Miles para substiuir o tecladista Chick Corea, que não podia viajar
para uma tournée no Japão com a banda de Miles. A burocracia brasileira no entanto,
atrasou os documentos de Hermeto e quando ele enfim chegou à Nova York, Miles e
Davis e os músicos ligados a ele, além de Airto e Flora Purim, teve o mérito de começar
Tom Jobim falava anos atrás, que, infelizmente, o melhor caminho para o músico
brasileiro era o aeroporto. Não parece ter sido diferente com Hermeto. Porém, mais do
consagrador na carreira de Hermeto. Lá, este consolida sua habilidade como arranjador
escrevendo para big-bands, ao mesmo tempo em que é legitimado por músicos com
É importante observar que na época que Hermeto tocou com Miles no disco Live
Evil (Sony, 1972), o estilo que Miles vinha trabalhando era o fusion, combinando o jazz
com o rock. O fusion nada tinha a ver com as duas músicas compostas por Hermeto e
gravadas no disco de Miles. Por que então este gravou as músicas de Hermeto num disco
modesto de Hermeto sobre sua ida aos E.U.A., talvez não o seja de todo:
Acredito que influenciei todas estas pessoas [Miles Davis, Chick Corea, Herbie Hancock,
Wayne Shorter e Joe Zawinul]. Por exemplo, quando eu gravei meu primeiro disco solo nos E.U.A.,
havia na orquestra 40 garrafas com partitura especialmente criada para elas. Isso impressionou muito
Herbie Hancock. Logo depois ele também gravou com garrafas. Mas ele fez isso com espírito
sensacionalista. As pessoas ouviam seu disco e exclamavam: "Oh, as garrafas". Para mim, as garrafas
eram como os outros instrumentos, nem mais nem menos importantes que as flautas ou a guitarra. Fui
aos E.U.A. com o meu jeito de trabalhar e a vontade de mudar o hábito que obrigava os brasileiros a
irem lá para aprender com os músicos norte-americanos. No Brasil, a tendência é achar que só é bom
o que vem dos E.U.A.. Os músicos brasileiros vão lá, ouvem jazz, depois voltam ao Brasil e fazem
um disco que é cópia de um dos seus ídolos. Eu quis mostrar outra coisa que não é jazz, nem samba,
nem bossa-nova, pois tudo isso me cansa! (...) Sim eu faço música e sou brasileiro. Que entendam
como quiserem. (HERMETO, Jazz Magazine, 1984)
acima citado, não assuma - Hermeto não confinou sua linguagem, nos discos gravados
nos E.U.A. e mesmo fora dele, em nenhum estilo específico, nem no jazz.68 Foi
americanos e europeus. Ele não pegou "carona" num dos muitos rótulos da indústria
cultural, ele criou o seu próprio, um anti-rótulo, que, à maneira de uma pistola giratória,
afirma não pretender respeitar limites nem de gênero, nem de estilo, em seu projeto
experimental.
segundo disco autoral, A música livre de Hermeto Paschoal (CBS, 1973). Voltando aos
E.U.A., grava em seguida o terceiro disco, Slave Mass (CBS, 1977), onde pela primeira
vez utiliza animais em suas composições. Um duo de porcos "afinados" e com registros
A partir de Slave Mass, alternando Rio de Janeiro e Nova York, Hermeto fará um
disco por ano: os LPs Zabumbê-bum-á (WEA Brasil, 1978), Hermeto Pascoal ao vivo
68 Em nossa última entrevista com Hermeto (06/03/1999), ele nos disse que o jazz influenciou sua
música harmonicamente, mas que do ponto de vista rítmico, se comparado à rítmica brasileira, este estilo é
muito pobre. Quanto a improvisação jazzística, Hermeto lembra que há outros modelos que o
influenciaram igualmente, como por exemplo os cantadores de embolada e os repentistas nordestinos.
62
Hermeto retorna de vez ao Brasil. E de 1981 até 1993, constitui, após algumas tentativas
dissertação trata justamente deste período de Hermeto e Grupo, escolhendo para análise
brasileiro (com ênfase na música nordestina), com algumas poucas influências do jazz - a
improvisação tradicional deste estilo por exemplo, com solos estruturados sobre uma
jazzísticas seriam, a partir dos E.U.A., mais fortememente assimiladas em sua linguagem,
processo de criação, para os shows e bem menos para os discos, que passaram a ter uma
ênfase maior na escrita. Os discos com longas improvisações coletivas ou solo, haviam
cedido lugar a uma outra concepção, que manteria no entanto algumas das características
de sons de animais, etc. O papel da escrita torna-se então mais importante que antes de
camerísticas .
63
É com este grupo de músicos ainda, que Hermeto aos poucos abandona o papel de
Os músicos que o integraram foram: Itiberê Luis Zwarg (baixo elétrico, tuba e
bombardino), Jovino Santos Neto (piano, teclados, flautas), Antônio Luís Santana -
capital. Filho de família de músicos populares, os primeiros estudos foram iniciados aos 7
anos de idade em piano clássico. Troca de professor aos 10 anos, e aos 14, inicia o estudo
do violão, que é o instrumento que realmente "fisga" o músico, pois até então, os
professores de piano queriam ensinar-lhe leitura e teoria musical, das quais ele não
decididamente não gostava: "eu queria tocar" (Itiberê, 1998). O pai lhe mostra então os
primeiros acordes no violão, ao mesmo tempo que Itiberê sente-se atraído pela bossa-
nova e suas harmonias dissonantes, cujo repertório passa a aprender. Com 16 anos,
ganha um exótico baixo acústico de 3 cordas (lá - 1, ré 1, sol 1) que seu irmão, também
Contra-baixo e piano, Itiberê e irmão passam então a tocar em duo, pois essa tinha sido a
69 Já executaram obras orquestrais de Hermeto, por ele chamadas de "arranjos para sinfônica", as
orquestras sinfônicas de Nova Iorque, Dinamarca, França e Berlim. Em Macedo Rodrigues, "Uma música
por dia". Rio de Janeiro: O Globo, 18/09/1990.
70 Infelizmente não pudemos entrevistar o percussionista.
71 Apenas como curiosidade, anos depois de ter ganho o baixo de seu irmão, Itiberê comporia um
choro chamado justamente, "Morro do S, Freguesia do Ó", explorando o S e o Ó desta localidade como
sinais musicais de repetição.
64
cordas.
Logo em seguida, o músico começa a tocar em bailes com o pai, e a partir dos 18,
na noite paulista. Em 1975, conhece e trabalha com Hermeto numa gravação de um jingle
Dois anos depois, em 1977, Hermeto encontrava-se sem baixista em sua banda e
uma amiga comum lembrou então de Itiberê, que imediatamente foi contactado por
telofone por Hermeto. Itiberê não só aceitou como disse: "daqui a pouquinho estou aí".
Dito e feito, pegou uma ponte aérea e três horas depois do telefonema de Hermeto, já
estava no Rio de Janeiro, bairro do Jabour. Isto ocorreu há 21 anos e nunca mais Itiberê
voltou. É o integrante mais antigo do grupo, tendo entrado 5 anos antes da formação que
pretendemos estudar. Nestes 5 anos, Itiberê (juntamente com o pianista Jovino Santos
(WEA Brasil, 1978). Hermeto Paschoal ao vivo em Montreux (WEA Brasil, 1979) e
Aos 12 anos, seu pai compra um piano para a irmã de Jovino praticar. Jovino passa então
a ter aulas de piano clássico com a mesma professora da irmã. Este aprendizado durará
repertório da professora.
72 Este estúdio era dos mesmos donos da futura gravadora de Hermeto e Grupo: a gravadora Som
da Gente.
65
Estimulado pelos bailes dos anos 70, e ao som dos Beatles e Rolling Stones,
grudado no gravador de rolo que seu pai (rádio-amador) havia comprado, Jovino aprende
Em 1974, vai para o Canadá fazer faculdade de biologia. Lá conhece e toca com
músicos de jazz e integra uma banda progressiva. Em 1977, ao se formar, volta ao Brasil
querendo dar continuidade à sua carreira de biólogo. Quase indo para Manaus fazer o
mestrado e já com bolsa e moradia garantidas, conhece então Hermeto, que o chama para
Talvez nem seja necessário dizer que Jovino não só não foi para Manaus, como
também que gostou tanto da canja que resolveu repetir a dose por mais 15 anos. Somente
fevereiro de 1960. Por volta de 1972, na casa de um amigo, Carlos Malta abriu uma
revista teen-age chamada Pop, numa reportagem intitulada "Leve a vida na flauta", que
para ser tocado no mato e na natureza, atraíram o garoto Malta, que pediu então à sua avó
marca Yamaha que foi devidamente reafinado depois de um polimento artesanal feito a
73"Canja" é uma participação musical com caráter esporádico. Pode ocorrer por exemplo, quando
um músico é convidado para tocar uma ou duas músicas num show de outro artista ou ainda num disco,
como convidado especial.
66
faca pelo próprio garoto. E em 6 de setembro de 1975, aos 15 anos de idade, o músico
1979, já tocando com Maria Creuza, Antonio Carlos e Jocafi e um pouco depois com
Johnny Alf, tirará enfim a carteira de músico profissional da Ordem dos Músicos.
Com Johnny Alf, Malta viaja no projeto Pixinguinha tocando flauta e seu
Comunicação, Malta faz o vestibular para a Escola de Música, e passa numa das três
vagas oferecidas para o curso de flauta. Fica seis meses na Escola, dos quais se lembra
mais especialmente das aulas com o flautista Celso Wotzenlogel, e das práticas de
orquestra, do que das aulas de teoria, das quais gostava bem menos. Algum tempo
depois, ingressará na Escola de Música Villa-Lobos para ter aulas de saxofone com Paulo
Moura.
dar aulas. Assim num dia de janeiro de 1981, depois de uma visita à casa de Hermeto,
Paulo Moura comentava com os alunos sua surpresa com o que tinha visto, ouvido e
tocado no Jabour. Coincidentemente, alguns dias depois o próprio Malta será levado por
Virgínia Carvalho - uma amiga comum a ele e a Jovino - à casa de Hermeto, onde passará
a tarde tocando. Daí em diante, durante 11 anos, Malta integrará a banda de Hermeto. Em
Em 1976 ingressa na Escola de Música Villa-Lobos dirigida então por Aílton Escobar.
Inicialmente Márcio pretendia estudar bateria, mas o curso ministrado pelo famoso
mestre Bituca, era de percussão orquestral. Destacando-se bem no curso, em 1977 Márcio
Ainda em 1978, Márcio foi convidado pelos professores para integrar o grupo de
seria contituído de uma peça de Marlos Nobre, Ritmetron, executada pelo conjunto de
erudito, constituído entre outras músicas, de duas suítes; a Suíte Paulistana, e a Suíte
se dedicar mais à bateria. O grupo de Hermeto estava sem baterista na época, pois Nenê
havia saído, e Alfredo Dias Gomes, que o sucedera, chegando a gravar o Lp Cérebro
1981, o percussionista Pernambuco com quem Márcio havia travado amizade desde o
"Concerto da Juventude", liga para Márcio convidando-o informalmente para vir tocar
com o grupo e dar uma canja, sem compromisso nenhum. Na verdade, Pernambuco
queria que o amigo Márcio entrasse na banda, mas tudo dependeria da avaliação final de
Hermeto. O baterista pensou duas vezes antes de aceitar o convite, pois não se
68
considerava apto para tocar com um músico como Hermeto, nem numa canja, mas
finalmente topou.
Coincidindo com a segunda visita de Carlos Malta, de quem Márcio era amigo,
durante três dias seguidos a formação que estudamos em nossa dissertação, se reuniu
tocando junta pela primeira vez. Era janeiro de 1981. Ao fim do quarto dia, Hermeto
Hermeto ainda tentou ponderar que, dada à grande distância que eles teriam que percorrer
até o bairro do Jabour, bastaria que viessem três vezes por semana, ao que Márcio e
passaram a repartir uma casa no Jabour, para tornar mais confortável a rotina diária de
ensaio, de segunda a sexta, seis horas por dia. Rotina que foi iniciada duas semanas após
diária consistia de ensaios das 14:00 às 20:00 hs., precedidos de trabalho matinal, quando
75 E apesar de Itiberê e Márcio Bahia tocarem com Hermeto até hoje, essa dinâmica de ensaio
praticada de 1981 à 1993, não mais se realiza, porque os dois novos integrantes da banda residem em São
Paulo.
69
que mais ensaiou. Excelentes músicos, como Mauro Senise, Zeca Assumpção, Nenê,76
Márcio Montarroyos, Cacau, Alfredo Dias Gomes, Zabelê e outros, já haviam tocado
com Hermeto em suas bandas anteriores, mas se em nenhum deles faltava habilidade ou
talento, muito pelo contrário, o mesmo não se pode dizer da disponibilidade e tempo que
Com Itiberê, Jovino, Pernambuco, Carlos Malta e Márcio, Hermeto teve pela
1981, Itiberê tinha 31 anos de idade, Jovino, 27, Carlos Malta, 21, Márcio, 23. Se estes
jovens músicos não tinham a experiência dos outros músicos que tocaram com Hermeto,
formações anteriores a 1981. Essa dedicação foi fruto sem dúvida da admiração
despertada nos jovens músicos por Hermeto Pascoal78 e a possibilidade de tocar em sua
Itiberê é esclarecedor:
O Hermeto poderia ter tocado com medalhões desde o começo da carreira dele. (...) Ele sabia
que se tocasse com um Tony Williams, um Ron Carter, Herbie Hancock, Miles Davis, ou não sei
quem mais, ia ficar bonito é claro. (...) Mas é um monte de medalhões entende? Cada um ia puxar
para um lado e de repente o Hermeto não ia ter a liberdade nem a facilidade de colocar, porque ele
tinha uma coisa para dizer, uma linguagem e ele precisava dizer esta linguagem musical fazendo a
cabeça devagarinho de cada músico da banda, um por um. (...) Então isso aí é um trabalho muito
sério, e vingou, tanto é que tá eu aqui, o Malta, o Jovino, tá o Márcio Bahia, quer dizer cada um de
nós aqui está mostrando que é verdade e no futuro vai dizer mais ainda, porque a gente está
começando, como eles dizem, nosso trabalho solo. Que é uma coisa que eu discuto, porque meu
trabalho solo é dentro do grupo também. Eu não desvinculo isso aí. (...) Mas o pessoal acha que você
76 Estes três músicos integrariam mais tarde a banda de outra figura importante da música
instrumental brasileira: Egberto Gismonti.
77 Com exceção do baterista Nenê, que tocou com Hermeto por cerca de 10 anos.
78 O qual em 1981, tinha 45 anos de idade, e já possuía uma considerável experiência nacional e
internacional tendo tocado com músicos como Miles Davis, Ron Carter, Chick Corea, Herbie Hancock e
outros.
70
tem que ter um nome grandão com letras piscantes, pra poder dizer que este é teu trabalho solo. São
chavões da mídia. (ITIBERÊ, 1998)79
distante bairro do Jabour, somente para não perderem tempo nas idas e vindas diárias.
Além de serem membros do mesmo grupo, passaram também a ser vizinhos e dois deles,
Itiberê e Márcio, chegaram a constituir laços familiares com Hermeto. O primeiro elegeu
Hermeto e sua mulher Ilza, como padrinho e madrinha de seus filhos e o segundo, casou
além de fortes laços de amizade e uniões familiares, uma intimidade com a composição
criada para aqueles músicos. Não que Hermeto simplificasse de alguma forma as
dificuldades técnicas dos intérpretes. Ao contrário, seu padrão de exigência foi altíssimo
desde o início. Desde o primeiro disco gravado por Hermeto e Grupo (Gravadora Som da
entre Hermeto e seus músicos era transformada em música, ocorreu quando o baixista
Itiberê teve que se ausentar por algumas semanas da banda, para fazer companhia à sua
mulher que estava adoentada em São Paulo. Ao voltar de viagem, Itiberê foi presenteado
com uma (difícil) linha de baixo, que Hermeto compôs tentando se por no lugar do
A intimidade a que nos referimos, facilitou sem dúvida que Hermeto desse vazão
A rapidez com que os resultados foram sendo obtidos por Hermeto e Grupo
resultava destes três fatores: a intensa convivência entre compositor e grupo, a aplicação
Pode parecer que toda esta "rotina" fosse sentida pelos músicos pesadamente,
como algo árduo que infelizmente eles tinham que se conformar, aceitar e conviver
durante anos. Mas não é verdade. Esta triste imagem, este "vale de lágrimas", não existiu
carisma natural de líder, que exercia de forma amigável, Hermeto condensava em si todas
A gente tinha uma metodologia muito legal (...), fomos aprendendo esta metodologia, o
Campeão sempre orientando. De manhã todo mundo limpar as partes individuais em casa e à tarde,
depois do almoço lá no ensaio, pra juntar. Então ele ensinou a gente a fazer só piano e baixo, todo
mundo olhando de fora entende (...), todo mundo marcando para ver se a polirritmia está perfeita, ou
se está pegando (se está errada), se tem nota suja, se não tem (...) depois piano e bateria, piano, bateria
e baixo, agora linha de saxofone, agora entra percussão... (ITIBERÊ, 1998)81
Uma das grandes coisas que eu aprendi lá, foi que eu aprendi a estudar. E apesar de tocar
uma música tão difícil porque era uma música rápida, uma música ligeira e tal, eu justamente aprendi
o quanto é importante você trabalhar devagar. Estas foi uma das grandes lições que eu tive lá no
Jabour, (...) como é que você aprende a chegar num brrrrrrrrrrr (imita o som de semifusas) que nem
o vento. Você tem que saber cada centímetro que você passou, cada nota, o som de cada nota, a
emissão de cada nota, como é que ela soa dentro de um compasso, dentro da frase, dentro de uma
parte da música, e nela inteira. (...) Você aprender a ver devagar uma coisa que vai passar em dois
minutos, você conseguir ter uma visão panorâmica daquilo alí, durante uma manhã inteira. (...) Então
eu acho que para você fazer qualquer coisa bem feita, você tem que ter esta calma, esta tranqüilidade
[...] e esta necessidade de você vencer todas as dificuldades, até mesmo "pô", você suando, 42º
(graus) alí na "mufa" (cabeça), você suando, mas falando (para si mesmo): enquanto eu não tocar este
pedaço direito eu não paro. (Carlos MALTA, 1998)82.
Eu estudava tanto os arranjos, as passagens difíceis, que aquilo ia ficando na cabeça. (...)
Chegou uma época que eu estudava a minha parte de percussão sozinho e cantarolava o arranjo
todinho. (...) Eu tocava a minha parte e sabia o que cada um estava fazendo em relação aquela minha
parte, o que o baixo fazia, o que o piano fazia, o que o saxofone fazia. (...) Eu desenvolvi isso no
grupo. (Márcio BAHIA, 1998)83
possibilitava uma contínua realimentação das energias envolvidas no trabalho. O fato dos
ensaios serem diários conferia, sem dúvida, um sentido prático para o estudo solitário de
cada músico. Com Hermeto diariamente orientando, tocando junto com eles, criando para
discos, etc., é difícil imaginar que o tempo e esforço gastos no estudo do difícil repertório
patrocínios, um grupo no Brasil atual pudesse manter uma metodologia de trabalho como
foi a desta formação de Hermeto e Grupo durante doze anos. Porém, não havia
subvenções e patrocínios de qualquer tipo, o sustento vinha unicamente dos discos, das
improvisação escrita ?
Todo mundo, papel e lápis. (...) Ele (Hermeto) já subia a escada com uma idéia na cabeça. Aí
ele sentava no piano e, (se dirigindo ao saxofonista) Malta toca isso aqui, aí o Malta tocava. Agora
fica tocando que eu vou fazer um negócio em cima. Aí, páááá, punha um negócio no piano em cima
daquilo, agora eu vou fazer o baixo, segura vocês dois (pianista e saxofonista fiquem repetindo o que
Hermeto tinha acabado de compor) (...) Aí ele chegava e tocava no grave do piano, ou do teclado, ou
no que fosse, aí eu pegava a minha linha. Tá bom... Por último ele sempre fazia bateria e percussão.
Agora escreve isso aí, e todo mundo escrevia, agora vamos para frente. E ia de pedaço em pedaço.
Chegava no final do dia ele tinha feito um tremendo dum arranjo. Ele compunha a música e já fazia o
arranjo de uma vez só. (o grifo é nosso) (ITIBERÊ, 1998).
O mesmo espaço que servia aos ensaios do repertório do grupo, era dividido com
a criação e o arranjo de novas músicas. Não cremos que esta "coabitação" ocorresse à toa.
De acordo com o que o baixista Itiberê narra acima, podemos concluir que mesmo
que Hermeto eventualmente "já subisse a escada (que levava ao 2º andar de sua casa,
onde se realizavam os ensaios) com idéias na cabeça", estas eram apenas gérmes iniciais
"nós fomos seqüenciadores vivos para ele". Malta quis dizer que, parcialmente, os
aquilo que tinha acabado de ser criado por Hermeto. Instrumento por instrumento,
seqüencialmente, as músicas iam assim sendo feitas em tempo real. Com ou sem uma
composto à primeira vista parece ser somente a escrita. Ao ser "congelado" em partitura
por Hermeto para cada instrumento e depois anotada e executada pelos músicos, era por
74
sua vez tornada uma estrutura sobre a qual Hermeto e os músicos novamente
improvisariam.
Porém, talvez seja mais próprio pensar num território distinto entre improvisação
e composição, a partir do papel que a escrita tem no processo criador. Ao registrar o que
era espontaneamente criado por Hermeto, seja para que instrumento fosse, a partitura
próprio Hermeto:
- Porque eu faço na minha vida (...) praticamente uma música por dia, escrita. Então isso não
é improviso. Justamente para eu poder improvisar quando eu for tocar.
- Então a música que você toca está escrita?
- Não, a que eu toco não. A que o grupo toca, a que eles tocam está escrita, mas eles
improvisam muito também. (HERMETO, Jornal Catacumba, 1992)
Por isso dissemos acima que a coabitação no mesmo espaço entre a criação e a
improvisação por um lado e a repetição do já feito, por outro, não ocorria por acaso. Pois
se a composição e o arranjo não eram estruturados de antemão pelo compositor, mas sim
músicas depois de escritas, servirão por sua vez para futuras improvisações, tanto por
Hermeto como pelos outros músicos, o processo como um todo é caracterizado por uma
Talvez agora fique mais clara a diferença entre o conceito de improvisação como
americanas, da qual a dissertação de José Carlos Prandini, por nós comentada no cap. II,
é exemplo:
75
Porque a improvisação é uma coisa gozada. (...) O americano acha que a improvisação é
uma coisa preparada. E não é. É liberdade. (...) Eu gosto de improvisar, eu gosto de criar na hora. Eu
gosto de me surpreender para surpreender as pessoas. (...) Você sabe o que é novidade para mim? É
acreditar em si, acreditar sem medo. Não precisa premeditar. Se você cria não precisa premeditar.
Quem é um criador médio premedite, e quem é um criador solto não premedite. Tenha coragem, tenha
vontade de fazer. (HERMETO, Jornal Catacumba, 1992)
coisa preparada. E não é." A improvisação é um ato de coragem mais total que a mera
desconhecido. É ela ainda, que distinguiria para Hermeto, o "criador médio do criador
solto".
com a banda, Hermeto pediu que o baterista simplesmente entrasse no palco e solasse
neste período não houve um que não fosse pedido ao baterista praticamente o mesmo. E
não só a ele como também a todos os demais integrantes do grupo, pois os músicos se
não haja um só disco ao vivo desta banda com Hermeto (como por exemplo, Hermeto
Paschoal ao vivo em Montreux, WEA, 1979) pois sua performance ao vivo era
espaço para a improvisação individual dos músicos, bem como do próprio Hermeto, era
Esse disco novo eu escrevi praticamente ele todo, escrevi as partes de cada um dos
instrumentos pro grupo todo. O espaço prás improvisações existe, mas é muito pouco. Eu acho que o
arranjo funciona mais no caso do disco. Quer dizer, eu penso isso agora. Antigamente não,
76
antigamente eu improvisava demais nos discos. Aí fui vendo, fui vendo, que pra improvisar é muito
melhor ao vivo. (HERMETO, Jornal Catacumba, 1989)
vozes que ao vivo. Por isso, nos discos gravados desta fase, o band-leader Hermeto será
pouco espaço para improvisações nos discos não pareceu contudo, ter desestimulado os
Eu não sou bem um professor do pessoal do grupo, porque eu também aprendo com eles. Por
exemplo, se eu ensino um negócio pro músico, eu não imponho a ele uma condição de fazer como eu
faço. Eu faço e digo "toca aí pra ver como é que você toca, como é que você sente isso". Aí eu dou
uma rebarbadinha em qualquer problema rítmico, uma coisa assim. Mas o sentimento do cara, esse eu
não quero mexer, interferir. (HERMETO, Jornal Catacumba, 1989]
como gravadores sem personalidade e sentimento as idéias de Hermeto, mas eram por
Estar juntos, criar juntos, não quer dizer criar igual. Andar juntos sim, para criar, para formar
coisas. (HERMETO, Jornal Catacumba, 1992)
Hermeto estimulava não a reprodução ou cópia de um modelo que podia ser ele
intérprete, até que ponto os músicos contribuíam com idéias para a criação ou
interpretação da música?
Hermeto, como um processo que exigia responsabilidade e maturidade por parte dos
intérpretes e que esse espaço foi sendo conquistado lentamente, à medida que cada
músico se desenvolvia. Hermeto era o líder, e a relação do grupo com ele marcava-se
naturalmente por um certo respeito somado à admiração. Nem por isso, devemos
Não existe ninguém que toca e deixa tocar mais que o Hermeto. Ele é um criador, e um
criador só pode se dar bem com quem cria também. Agora, criar é sinônimo de responsabilidade. É
muito fácil você ser irresponsável tocando uma música livre. (...) Difícil é você tocar livre, ouvindo
todo mundo, procurando os espaços vazios para colocar as suas coisas, ouvindo harmonicamente, se
inspirando, conseguindo estimular quem está tocando do seu lado e ser estimulado pelo que você está
ouvindo. (...) A coisa veio acontecendo gradualmente, eu vim a ter responsabilidade, mas sem deixar
de criar. Então a cada disco que eu fazia eu ficava mais solto. Ele (Hermeto) em vez de escrever tudo
para mim, passou a escrever somente a cifra e assim foi com os outros também (os demais integrantes
da banda). (ITIBERÊ, 1998)
De acordo com o depoimento acima citado, podemos notar que ao longo dos anos,
Pode-se notar esse aumento de espaço parcialmente através dos próprios discos. Se no
primeiro disco, o de 1981, nenhum dos músicos (com exceção de Hermeto) improvisa, a
Na verdade, isso importa pouco, pois de acordo com o que foi exposto acima por
Itiberê, a própria performance, o ato de tocar em grupo era uma atividade criadora. A
78
manutenção da estrutura musical concebida por Hermeto eram mantidos, estes limites
para os solos do grupo nos discos gravados no período por nós estudado parece ser
banda de Hermeto adquiriram liberdade para interpretar as partes escritas por Hermeto
organicamente a uma estrutura musical coesa, mas ao mesmo tempo aberta e permeável à
Podemos pensar que sempre houve espaço para a criação individual na banda de
Hermeto também no que diz respeito aos arranjos das músicas. Como as partituras
revelam, há sempre um maior ou menor grau de criação dos músicos nas composições de
(frevo, baião, marcha, etc.), cujas levadas e desenhos rítmicos seriam criados à vontade
do baterista. Na 2ª parte da música "Arapuá" por exemplo, enquanto piano, sax barítono
Em todas as partes manuscritas que coletamos para baixo, piano, sax ou flauta e
duração do que outros como dinâmica, articulação, fraseado, etc. Como, obviamente, os
músicos não tocavam na mesma dinâmica todo o tempo, o acabamento posterior destas
79
partes era em grande parte realizado pelos próprios músicos em ensaios, que podiam ou
não contar com a presença de Hermeto. Por sinal, tornou-se comum que, com o passar
dos anos, Hermeto subisse cada vez menos para ensaiar os músicos, à medida que estes já
possuíam uma metodologia, uma prática de conjunto eficiente e um repertório vasto para
trabalhar:
Esse grupo para mim é tudo que eu estou fazendo agora. É um pessoal que não mede
vontade de trabalhar, de tocar, de estudar. É uma família, e eu poderia falar sem parar sobre todos
eles, todos eles estão aqui no meu coração. Nós ensaiamos todos os dias de duas da tarde até oito,
nove horas da noite, menos sábados e domingos. Mesmo quando eu saio fica tudo programado,
certinho. Agora por exemplo, eu estou aqui e o ensaio tá rolando lá. (HERMETO, Jornal Catacumba,
1989)
(sem instrumentos) por Hermeto no primeiro andar. Assim, diariamente, novas partituras
andar. Hermeto não subia porque queria improvisar e compor, mas os músicos estavam
ensaiando. Isso fez com que algumas vezes os músicos falassem entre si, em tom de
brincadeira, ao vê-lo chegando, "ih, lá vem o chefe atrapalhar nosso trabalho" (Malta,
1998).
passou a independer da presença de seu criador, possibilitou que Hermeto abrisse uma
frente para si mesmo. Data daí, o início mais sistemático de composições para orquestra,
seu lado não só músicos que simplesmente executassem bem um difícil repertório, mas
sem dúvida aprenderam algo do Hermeto multi-instrumentista, pois ao longo dos anos a
paleta sonora do grupo será acrescida de novos instrumentos que os músicos foram
somando aos que tocavam inicialmente. Itiberê tocará além do baixo elétrico, tuba e
piano. Malta, todos os saxes e flautas. Jovino, além do piano e diversos teclados, flauta e
flautim. Márcio irá incorporar à sua bateria conjuntos variados de percussões como o
jererê (um naipe de tupperware84), campanas (címbalos) e pequenos sinos com diversas
notas.
A "escola" não se resumiu a isso. O convite à criação por sua vez, frutificou
durante estes onze anos de convivência e estes intérpretes não só evoluíram nos
Quando um músico entra no meu grupo, geralmente ele sabe tocar um instrumento. Pouco a
pouco, eu lhe encorajo a pegar outros, o que pode levar a trocar totalmente de instrumento. Em todo o
caso, isso só vai enriquecer sua criatividade. Praticar música implica em pesquisa e aprendizado
permanentes. Quando um músico integra meu grupo, eu quero que ele saiba bastante sobre música e
rapidamente ele perceberá que, na verdade, sabe muito pouco e tem muito a aprender. Ele não é
obrigatoriamente um compositor quando chega no grupo, mas em 2 ou 3 anos, ele será capaz de
escrever uma partitura de nosso repertório e, sobretudo, de voar com suas próprias asas, fazer um
disco solo. (HERMETO, Revista Jazz Magazine, 1984)
É necessário que façamos justiça ao papel que estes músicos tiveram para a
carreira do próprio Hermeto. Pois foi através destes aplicadíssimos músicos que Hermeto
em 1971. Além disso, acreditamos que Itiberê, Jovino, Pernambuco, Carlos Malta e
Márcio Bahia, não só possibilitaram que Hermeto realizasse sua concepção de forma
mais completa que antes, como também que estes mesmos músicos contribuíram com
que é sem dúvida um diferenciador desta formação em relação às anteriores à 1981, pois
pela música erudita. Márcio Bahia foi percussionista de orquestra antes de ser baterista de
Hermeto e o saxofonista e flautista Carlos Malta tinha estudado com Celso Wotzenlogel
Itiberê e Jovino tiveram aulas de piano clássico e todos abandonaram a erudição para se
Este dado é importante, pois foi justamente a capacidade de ler e escrever música
que os ajudou a manterem seu lugar na banda. A maneira como Hermeto compunha,
improvisando e depois pedindo que os músicos escrevessem o que ele acabara de criar,
O fato de Márcio Bahia ter sido percussionista de orquestra antes de ser baterista
maneira erudita. A leitura fluente de Márcio somada à sua dedicação ao estudo, fez com
que Hermeto pudesse criar ritmos complexíssimos, como por exemplo um desenho "em
82
1997).86 As possibilidades que o novo baterista com formação popular e erudita pôs à
do grupo de Hermeto ter uma "cara" diferente das bandas anteriores à 1981.
Carlos Malta por sua vez, já tocava na época de sua entrada na banda, flauta e sax
Hermeto fosse aos poucos cedendo o lugar dos instrumentos de sopro da banda para
sua disposição, Hermeto pôde exercitar como nunca sua veia de arranjador. O trabalho
desenvolvimento nas composições para orquestra. Esta nova frente na carreira do próprio
não podem ser entendidos satisfatoriamente se não verificarmos que sua trajetória 1981-
1993 foi uma via de mão dupla, cujo dinamismo alimentou trocas recíprocas.
pianista Jovino e o saxofonista Carlos Malta, que deixam o grupo de Hermeto para iniciar
carreira solo. Vemos suas saídas como uma conseqüência natural do crescimento
individual dos dois músicos. Mesmo que suas saídas tenham marcado o fim de uma fase,
para nós histórica na música brasileira, após respectivamente quinze e doze anos de
intensa convivência, troca e aprendizado com Hermeto, era justificável que Jovino e
próprios. Afinal, essa foi a luta do próprio Hermeto, desde as Rádios, passando pelas
Em 1997, Jovino Santos grava nos E.U.A. com um quarteto instrumental seu
primeiro disco autoral, o CD Caboclo (Liquid City, 1997), ao mesmo tempo que divulga
a obra de Hermeto Paschoal, para duos, trios, quartetos, grupos de câmara, conjuntos
desde 1993, atuando ainda como intérprete com outros artistas brasileiros.88
Ambos foram substituídos por outros músicos (André Marques - piano e Vinícius
Dorim - sax)89 e os demais intérpretes continuam tocando com Hermeto até hoje,
87 Como por exemplo o grupo americano Bang on the Can, que gravou a música "Arapuá" de
Hermeto no disco, Cheating, Lying, Stealing. SONY, 1996, SNY 62254-2.
88 Ver discografia.
89 O flho de Hermeto, Fábio Paschoal, passou a integrar o grupo como percussionista a partir de
cerca de 1990.
84
Canoa, passando por rádios do nordeste, regionais e casas noturnas no Rio de Janeiro e
São Paulo, até o Quarteto Novo e os discos no exterior - permitiu que o músico tivesse
sua linguagem: música nordestina folclórica e popular (1936 - 1949); serestas, choro e
jazz (1950 - 1960); bossa-nova, samba, swing e música cigana (1961 - 1969).90 Vimos
1970/71.
diferença na maneira como combinava códigos musicais e na inovação que operava sobre
eles. Desde o LP Quarteto Novo (1967), passando por Seeds on the ground (1970), até
seu primeiro disco solo, Brazilian Adventure (1971), o músico alagoano se destacava
permanentemente como um artista que já tinha uma maneira própria de tocar e conceber
música.
Se a linguagem de Hermeto, tal como foi apresentada desde seu primeiro disco
solo em 1971 não se limitava aos estilos com que o músico travou contato antes desta
data, nem a outros, como o jazz americano por exemplo, onde então devemos buscar as
ocupava como intérprete contratado por Rádios e boates, certos limites profissionais, que
Como bem observou a profª Dra. Elizabeth Travassos na defesa dessa dissertação,
"a rebeldia de Hermeto encontra uma justificativa nas tradições sócio-culturais de sua
nordestina da música como uma atividade artesanal e autônoma, com base nas unidades
("não vou fazer propaganda da fábrica de sampler", diz ele) e, principalmente, a rebeldia
constante frente aos donos de rádio, casas noturnas e gravadoras. Como resquício da
Hermeto recusa ser mão-de-obra fácil para a indústria cultural. Da mesma forma ele
relação estabelecida pelo músico com a sociedade: seria o espelho de um embate entre
86
adquire limites só aparentemente pouco claros, por não se filiar com exclusividade a
nenhuma escola, tendência ou estilo específicos, e nem a nenhum patrão. Mas não é por
isso mesmo que Hermeto define sua música como "música livre", ou ainda, "música
universal"? Como pudemos observar no capítulo anterior, a liberdade que ele reinvidica é
Hoje em dia entendo que a mídia não alcança o trabalho sério. E isso no mundo todo. Por
isso grandes músicos se desesperam, como Herbie Hancock, Chick Corea, todos meus amigos, o
próprio Miles Davis. (...) Eles foram na onda. Como se o povo não estivesse gostando do que eles
faziam. Eu penso justamente o contrário. (...) estou com o povo que me quer. O povo que me quer é
aquele que não está procurando saber o que vai querer. É o povo que está querendo querer.
(HERMETO, Backstage, 1998)
amplo - pois segundo Elizabeth T., Hermeto faz desta retomada um gesto de rebeldia
diferença de sua linguagem. Pois se por um lado ele continua sendo um artesão, ligado às
tradições sócio-econômicas do nordeste, por outro lado, no entanto, sua música não se
resume às influências da música popular de tradição oral. Sua insubmissão e rebeldia não
classes como modelo geral de interpretação teórica, nos foi útil para verificarmos como
compositor, a base, a não ser que este acumule também a função de intérprete de suas
patrões, fossem eles donos de Rádios, boates ou gravadoras. O músico galgou estes três
níveis movido por uma contingência interna de ordem muito mais estética do que sócio-
econômica, pois o caminho mais promissor do ponto de vista comercial não foi o
escolhido por Hermeto. Apesar de ser reconhecido internacionalmente e de ter tido várias
chances de morar no exterior e ganhar muito dinheiro - tocando com Miles Davis (!) por
exemplo - Hermeto sempre abriu mão do "estrelato subalterno", preferindo a via mais
difícil, mas que era a única que lhe satisfazia. Desenvolver seu próprio trabalho, sem
fazer concessões comerciais, que, ao mesmo tempo, lhe trariam status econômico e
musical de Hermeto, verificada desde o início de sua carreira? Os estilos que o músico
tocou e assimilou antes de seu primeiro disco solo foram incorporados à sua linguagem,
mas esta sempre apresentava uma diferença que ultrapassava estes estilos. Por outro lado
88
seria absurdo lado achatar o projeto artístico de Hermeto, tomando-o como resultado de
uma ambição de ascensão social e ganho pecuniário, pois está claro que o
remunerado.
Se não encontramos nos estilos que Hermeto tocou ao longo de sua carreira, nem
Como eu fazia? Na primeira vez [com 7 anos de idade] amarrei com barbante, e através de
um buraquinho, um ferrinho no outro. Só que não tinha som. De repente a imaginação me diz: Olha,
amarre com um arame fininho, porque ele não abafa o som. Segui a intuicão e comecei a bater os
ferrinho uns de encontro aos outros. Depois começei a descobrir música, fazer melodias.
(HERMETO, Backstage, 1998)
Quando eu era pequenininho tocando a oito-baixos, com 8, 9 anos de idade eu tava tocando
forró e era assim: meu irmão tocava e eu tocava pandeiro, depois agente revezava. Tocava para
dançar em baile, casamento e quando eu pegava na oito-baixos eu já "entortava" a oito-baixos. Aí
muita gente chegava correndo e dizia: tira esse galego aí, deixa o irmão dele tocar e ele toca pandeiro
porque ele (Hermeto) está tocando umas músicas muito doidas. Eu extraía dos ferros, das pancadas
que eu dava nos ferros, aquelas harmonias. (HERMETO)95
(...) Até os 14 anos fiquei em Lagoa da Canoa, (Alagoas) minha terra, em contato com a
natureza. Todo mundo acha que a natureza é só isso. Não é. Ela pode estar até mesmo dentro de um
carro, na Avenida Brasil, em hora de trânsito, com chuva. A natureza pra mim é tudo o que você vê
pela frente. É o cotidiano. (HERMETO, Backstage, 1998)
flautinhas feitas de galho de mamona) e inarmônicos (dos ferros percutidos, dos bichos e
94 Todos os músicos são unânimes neste ponto. O baixista Itiberê acrescentou à busca de modelos
musicais nos sons da natureza e do cotidiano, a criação musical a partir de imagens, lugares e ambientes.
Como exemplo citou a música "Montreux" gravada no LP com o mesmo nome. Esta música foi feita por
Hermeto horas antes de ser tocada (e gravada) no Festival de Jazz de Montreux na Suíça. Hermeto estava
sentado de frente à janela de seu quarto olhando para o lago em frente ao hotel, e escreveu sem
instrumentos, em guardanapos que estavam sobre a mesa do quarto, a música que à noite seria tocada e lida
89
"citações sonoras auto-biográficas". Ver por exemplo, a lista apresentada por nós no Cap.
I contendo a relação de vários sons de animais que Hermeto já utilizou em suas músicas.
Em relação aos sons de ferros percutidos, Hermeto já fez referência à eles diretamente na
música "Cores", que analisaremos mais à frente, além de compôr músicas, como a peça
ferros.
funcional, por causa do mecanismo da sanfona de oito baixos que Hermeto utilizava para
tocar os sons inarmônicos de sua infância. Assim, segundo o pianista, Hermeto teria
musicais, com que o músico só teria contato posteriormente durante sua carreira.
respeito dos sons harmônicos e inarmônicos. Estas noções serão utilizadas em diferentes
nos mesmos guardanapos, por Hermeto (na flauta transversa), Jovino (no piano) e Itiberê (no baixo
elétrico).
95 Em entrevista conosco realizada em 06/03/1999.
90
exceção dos sons senoidais 97 que não geram (pelo menos não teoricamente)98
harmônicos ou parciais, os espectros são definidos de acordo com a relação entre seus
acordo com o tipo de espectro sonoro que integram. Usaremos o termo 'harmônicos' em
relação aos componentes senoidais dos espectros sonoros harmônicos, e 'parciais' quando
Da senóide até a massa indistinta dos ruídos, há uma gama grande de sons. Estes
integram um continuum sonoro, no qual em uma das pontas está o som senoidal - a
ocorre quando todas as freqüências que integram nosso âmbito auditivo estão misturadas
frequencial filtrada do ruído branco. Assim, pode-se dizer que o som senoidal consiste no
/------------------------------/-----------------------------------/------------------------/
(som senoidal) (ruído branco)
Todos são múltiplos inteiros do som mais grave. A maioria dos instrumentos musicais do
Ocidente apresenta este tipo de espectro e a própria noção de som "musical" que vigorava
100 Exemplos de ruídos orgânicos podem ser encontrados no som da respiração e do batimento
cardíaco. Na natureza, o som do vento, das ondas do mar, o farfalhar das folhas, os trovões e relâmpagos,
etc. Os ruídos cotidianos também são variados: o som dos carros, aviões, eletrodomésticos, o chiado da
televisão etc. Alguns destes sons de máquinas e eletrodomésticos são harmônicos ou, ainda, mesclas de
ruído e de sons com alturas definidas.
101 Dissemos que uma freqüência fundamental está relacionada a outras freqüências mais agudas
que ela, as quais denominamos harmônicos, no caso dos espectros sonoros com o mesmo nome, e parciais,
no caso dos espectros inarmônicos. Pesquisas feitas em estúdio comprovaram que se retirarmos a
freqüência fundamental de um determinado espectro sonoro harmônico, mas mantermos os seus
harmônicos, continuaremos a ouvi-la, mesmo sem esta estar efetivamente presente. Por isso, não podemos
denominar a freqüência fundamental como geradora. Quem gera é o corpo sonoro vibrante.
92
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16
(a) 131 262 393 524 655 786 917 1048 1179 1310 1441 1572 1703 1834 1965 2096
Do2 Do3 Sol3 Do4 Mi4 Sol4 Sib4 Do5 Re5 Mi5 Fa#5 Sol5 La5 Sib5 Si5 Do6
(b) 131 262 392 523 659 784 923 1046 1175 1319 1430 1568 1760 1855 1976 2093
A linha (a) mostra as freqüências dos harmônicos de Dó2 (a frequência fundamental), que
são obtidos multiplicando 131 (a freqüência em Hertz de Dó 2), por 1, 2, 3, 4 etc, até 16 (números
inteiros). Para fins de comparação a linha (b) lista as freqüências das notas próximas à estes
harmônicos no sistema temperado. Os harmônicos sublinhados em negrito tem afinação
imprecisa.102
exemplo acima. O dó 2 fundamental (som 1), tem como harmônicos na seqüência: sua
oitava (harm. 2, Do3); depois sua 5ª 103 (harm. 3, Sol3); sua oitava (harm. 4, Do4); sua 3ª
maior (harm. 5, Mi4); sua 5ª (harm. 6, Sol4); 7ª abaixada (harm. 7, Sib4); oitava (harm. 8,
modificando sua cor e timbre, que será claro ou escuro conforme o espectro sonoro tenha
102 Exemplo retirado de Robert Cogan, Sonic Design. New Jersey: Prentice-Hall, 1976, p. 438.
103 A partir do 3º harmônico, os intervalos entre eles e o som gerador passam a ser compostos.
104 É a maior ou menor presença de harmônicos agudos, além de outros fatores que
mencionaremos, que distingue por exemplo, o timbre de uma flauta e o de um violino. No espectro sonoro
da flauta, os harmônicos agudos tem menos amplitude que os mais graves, ao contrário do que ocorre no
violino. Isto faz com que este último seja percebido como mais brilhante, e a flauta mais escura. Cf.
Menezes (org.) e Cogan, op. cit. p. 347 - 400.
93
dos sons harmônicos, multiplicando a fundamental não somente por números inteiros,
mas também por números fracionários. Como veremos a seguir, os parciais dos sinos não
se fundem à freqüência fundamental da maneira que ocorre nos sons harmônicos. Por
isso, as alturas percebidas e o timbre ou cor do som dos sinos são qualidades mais
No sec. XX, a estética hegemônica das alturas, prioritária dos sons harmônicos,
passou a ser questionada por diversas correntes, do ruidismo futurista de Luigi Russolo à
música concreta de Pierre Schaeffer, passando pela música eletrônica dos compositores
televisão fora do ar, das transformações sonoras por síntese e digitalização postas à
elétrica, das baterias de Escolas de samba, uivos roucos dos bluesmen, dos overtones
metálicos, tais como os sinos. Estas características nos serão úteis quando considerarmos
as experiências que Hermeto teve com os sons de ferros percutidos bem como suas
implicações estéticas.
__________________________________________________________
Parcial Relação com f p, ou freqüência percebida
espectro harmônico). Além de conter um parcial residual uma 8va. abaixo da freqüência
apresenta também a terça menor (3º parcial) e a terça maior (9º parcial) da f p. Apesar da
distância entre os dois parciais, o efeito de sua superposição pode ser percebido
claramente.108
107 John R. Pierce.The Science of music sound. New York: W. H. Freeman and Company, 1983,
p. 204. Não colocamos o exemplo em partitura porque o autor não especifica as freqüências envolvidas,
apenas a relação entre elas.
108 Esta característica dos espectros dos sinos fez durante muito tempo que os fabricantes
tentassem construir sinos que produzissem, como nos espectros dos sons harmônicos, a 3ª maior ao invés
da menor, ou das duas juntas, o que era ainda pior. Isto só se tornou possível muito recentemente, através
95
Jonathan Harvey. Harvey estudou o grande sino tenor da Catedral de Winchester que
emite uma poderosa nota secundária em 347 Hz (o Fá 3), com um forte elemento de
ligeiramente diferentes.110 Os batimentos do som do grande sino tenor fazem com que
"suas vibrações possam ser ouvidas mesmo longe da catedral através de um efeito
trêmulo e pertubador" (Harvey, 1986). Este efeito ocorre como resultado da superposição
de pesquisas sobre a relação do formato do sino e seu espectro sonoro. Para detalhes ver The Science of
music sound, p. 203.
109 Cf. Jonathan Harvey em Simon Emerson, op. cit. p. 175 - 190.
110 Os batimentos são efeitos psico-acústicos que ocorrem diferentemente em cada registro
sonoro, dependendo ainda dos instrumentos ou fontes sonoras que estiverem os produzindo. Sobre
"batimentos" e efeito de "máscara", ver Cogan, op. cit. p. 370 - 385.
111 Ver Harvey, op. cit. p. 182.
96
Mais uma vez podemos notar nesta segunda análise espectral dos parciais
dissonante que o do Hemony Bell. Os módulos de oscilação dos parciais tornam-se muito
mais agudos diminuem em amplitude, podemos ouvir com clareza a freqüência mais
grave do espectro (a nota Dó 2), que é a última a extinguir-se. Este efeito comum nos
com mais amplitude que ela mesma. Se nos espectros harmônicos a altura da freqüência
Por causa do tipo de envelope sonoro característico dos sinos (ataque seguido de
sonoro esta luminosidade pouco a pouco será escurecida, e sua massa compacta se
dissemos, por que eles não estão numa relação de números inteiros. Assim, a "escala"
formada pelos parciais deste espectro inarmônico é diferente e muito menos temperada
que a encontrada nos espectros harmônicos (ver exemplos anteriores). Isto explica
também porque os sons harmônicos foram considerados até o início do sec. XX como os
sons "musicais" por excelência. Como a ênfase no sistema modal e tonal recaía sobre as
alturas era necessário um material sonoro que pudesse ser moldado e controlado pelo
compositor de acordo com o idioma musical vigente. Este material sonoro foi constituído
como já dissemos, prioritariamente por sons harmônicos, com altura precisa, cujas
senóide-ruído branco):
114 Ver a discussão sobre 'sinestesia' no cap. II, especialmente as implicações táteis-visuais do
som.
115 Ver Smalley, op. cit, p. 68 - 73.
98
No primeiro estado, os ataques dos sons estão separados por pausas. No segundo,
extrema que as qualidades sonoras granulares adquirem outra morfologia, dando lugar ao
morfologia.
densidade com que os impulsos sonoros chegam ao ouvido são relações temporais, que
(...) as diferenças da percepção acústica são todas no fundo reconduzíveis a diferenças nas
estruturas temporais das vibrações. (...) Às relações de vibrações aperiódicas que denominamos por
"ruído", correspondem (...) ritmos aperiódicos sem uma métrica reconhecível. Por isso, a assim
chamada dissonância no âmbito das vibrações corresponde à síncopa no âmbito das durações [os
grifos são nossos]. (STOCKHAUSEN em Menezes, 1996 : p. 142)
altura, que está, por sua vez, relacionada à duração e esta à dinâmica ou intensidade.
melódicas, bem como à disposição também aperiódica (fracionária), dos parciais dos
produzidos numa tal velocidade que os sons individuais perdem sua identidade, deixando
de ser impulsos separados ou quando os impulsos sonoros não possuem uma métrica
O envelope sonoro da dinâmica de um som pode por sua vez contribuir para a
percepção de grão, como por exemplo no momento exato do ataque dos sons dos sinos,
amplitude forte.
linguagem de Hermeto.
117 Pierre Schaeffer, Tratado dos objetos musicais. Brasília: Edunb, 1993.
101
por compositores eruditos com sons de sinos, senóides e ruídos, provavelmente são
estranhas e desconhecidas por Hermeto, pois como já dissemos, a trajetória que o músico
seguiu até à descoberta dos ruídos dos animais e da natureza e dos complexos sonoros
inarmônicos dos ferros percutidos, bem como o uso musical que deles fez, não dependeu
não só é capaz de relacionar com precisão as diferentes freqüências sonoras aos nomes de
suas notas musicais correspondentes, como também consegue ouvir dentro do som,
para piano-solo,119 na qual Hermeto tenta reconstituir a ambiência sonora dos ferros.
Note-se na mão direita, uma melodia que é uma série de dez notas diferentes,
harmonizadas por sua vez por acordes com 2as. ajuntadas, indefinidos do ponto de vista
brevemente o ruído colorido. Este é filtrado do ruído branco, no qual todas as freqüências
irregular. A percepção de cor nos ruídos coloridos se dá porque os parciais que integram
(filtrada do ruído branco) e, apesar de estarem nela dispostos muito irregularmente e com
colorido, pois os espectros sonoros dos sinos e, dos ferros percutidos estão na fronteira
Cada som complexo [ou inarmônico] pode então, ser considerado de duas maneiras: por um
lado, como uma composição de sons parciais e, por outro lado, como um "ruído colorido".
(STOCKHAUSEN em Menezes, 1996 : 63/66)
espectromorfologia do grão e dos ruídos coloridos, por causa dos batimentos provocados
cede lugar em "Ferragens" à colorística dos espectros ruidosos e à morfologia dos grãos.
também está presente em "Ferragens" pois os acordes da mão esquerda são arpejados
(atacados) uma única vez somando-se às notas da mão direita, também tocadas uma única
vez. O tempo de duração da última das três notas de cada grupo de tercinas será
prolongado à vontade do intérprete (fermata), assim como o acorde arpegiado pela mão
120 Ver a noção de 'nódulo' em Smalley, op. cit. Enquanto os sons dos sinos são inarmônicos, mas
permitem a identificação de diferentes alturas durante o envelope sonoro, os espectros dos ferros, tais como
a placa percutida na música "Cores", são ainda mais complexos que os dos sinos. A noção de 'nódulo'
apresentada por Smalley, que corresponde ao que Stockhausen denomina 'ruído colorido', não se aplica aos
sinos, mas se adequa perfeitamente ao espectro sonoro nodular e ruidoso dos ferros.
104
por sua vez, estará abaixado até o instrumentista passar para o tempo seguinte, de
freqüência fundamental por números inteiros e fracionários, o que faz com que seus
gerador sejam diferentes e muito menos temperados que os dos espectros harmônicos. A
noção de tonalidade, pois é o 3ª grau que define o estado dos acordes maiores e menores.
ataque, que geram elas mesmas outra série de parciais que se sobrepõe à da freqüência
fundamental .
especialmente através dos complexos sonoros verticais presentes na peça, formados por
melódicas da mão direita, as quais, por sistematicamente não dobrarem as notas dos
acordes (da mão esquerda), parecem delas independer totalmente, assim como as notas
secundárias de ataque do som dos sinos. As tercinas fermatadas reforçam ainda mais este
121 Como ilustramos anteriormente no exemplo 4 e no espectro do sino holandês Hemony, apesar
da 3ª menor e 3ª maior estarem separadas uma da outra por outros parciais dentro do espectro, e de
possuírem diferentes amplitudes, mesmo assim podemos perceber com clareza o efeito dissonante e
indefinido tonalmente de sua superposição interválica
105
outros semelhantes, Hermeto realizará uma interseção, uma fusão entre os diferentes
espectros sonoros. Em "Ferragens" contudo, esta fusão é realizada apenas pelo piano. No
Neste momento, a hipótese lançada por Jovino no Cap. 1, que serviu de pista em
nossa pesquisa ao mesmo tempo que sofria diversos acréscimos, será ainda mais
ampliada. O pianista sugeriu que a concepção harmônica de Hermeto encontra suas raízes
aos sons dos ferros percutidos. Vejamos como esta ferramenta harmônica específica foi
utilizada em "Ferragens".
do 1º compasso de "Ferragens".
122 O efeito de superposição inarmônica que os sinos exemplificam, se tornou possível a Hermeto
graças ao pequeno "carrilhão" de ferros pendurados em fila num arame, instrumento construído e tocado
106
La 2, Do 3, Fa 3
e 4 (Fa maior)
região média do piano (la 2, sib 2, do 3). Os clusters serão idiomáticos nesta peça,
Já no exemplo seguinte (1º comp., quinto tempo), as duas tríades que integram o
poliacorde estão mais separadas. O acorde formado pelas notas da mão esquerda sugere
Si menor com 7ª no baixo e 9ª menor (si, re, fa#, la, do) ou ainda Re maior com 7ª e 6ª.
Interessante notar que a terça maior de Si está na tríade da mão direita (a nota mib - ou
re# enarmônico), da mesma maneira que ocorre nos espectros sonoros de sinos, nos quais
si 2, re 3, fa# 2, la
1, do 3 (Si menor
com 7ª e 9ª menor)
pelo próprio músico quando garoto. Cf. entrevista citada no início do capítulo III.
107
Ex. 8:
Como estas tríades (Mi menor, Solb maior e Do maior) não estabelecem nenhuma
relação tonal entre si, nem com os acordes da mão esquerda, pode-se dizer que elas estão
quadrados no exemplo acima, que são articuladas depois ou entre as tríades, soando
conjuntamente a elas.
Reb maior
+ (tétrade)
Ré maior
Fá diminuto
+ (tétrade)
Dó maior
(com baixo em mi)
maior (melodia).
harmônica de Hermeto, é difícil pensar como o resultado sonoro obtido pelo músico
tonal. No entanto, Hermeto não usa as tríades tonalmente, pois, inspirado nas sonoridades
"Ferragens".
109
Pode-se dizer que os espectros inarmônicos dos sons dos ferros e dos bichos, são
originários. Estas combinações harmônicas formam um véu, uma máscara sonora que
as influências das experiências com os sons inarmônicos não parecem ter se limitado à
Hermeto. A nosso ver, as influências destas sonoridades podem ser verificadas também
Hermeto, pois a forma articulada pelos diferentes elementos de sua linguagem musical
Hermeto solfeja os ruídos e outros sons inarmônicos com seu ouvido absoluto,
classificando-os e utilizando-os como se fossem sons com altura precisa. Dessa maneira
ele filtra o grão do grito de um papagaio, dos latidos dos cachorros ou zurros de um
jumento, nele percebendo alturas exatas, que estavam no entanto ocultas na massa
"indistinta" daqueles sons de animais. Da mesma forma, Hermeto poderá fazer uma
música para naipe de tamancos, caçarolas com areia, conjunto de canos metálicos, água
serem eles mesmos produtores de mesclas de ruído e sons com altura definida - fazendo
por exemplo, o sax barítono tocar junto à esteira da caixa da bateria, tocando flauta e
berrante debaixo d'água, cantando dentro de uma chaleira, envolvendo as cordas do piano
ressaltar que as experiências sonoras ocorridas há décadas atrás em Lagoa da Canoa, são
Hermeto afirmou na citação feita no começo deste capítulo: "Até os 14 anos fiquei em
Lagoa da Canoa, minha terra, em contato com a natureza. Todo mundo acha que a
natureza é só isso. Não é. Ela pode estar até mesmo dentro de um carro, na Avenida
Brasil, em hora de trânsito, com chuva. A natureza pra mim é tudo o que você vê pela
5. ANÁLISES SELECIONADAS
assimetrias inspiradas no ritmo da fala e dos animais, as pesquisas com timbres e ruídos,
repertório apresentado neste primeiro disco já revela um alto grau de coesão e nível
"De bandeja e tudo" tem harmonia modal sobre um baixo ostinato em mi,
construídos à maneira dos organa medievais, causam uma impressão solene e mística,
123 'Levada' é um termo usado na música popular para denominar um determinado desenho
rítmico ou rítmico-harmônico que se repete durante trechos da música, servindo de base para temas e/ou
solos improvisados.
112
Hermeto combinará os sons instrumentais aos sons de cigarras e uma placa de ferro
peça. O título da música ("Cores") sinaliza ainda para a sinestesia som-imagem, por
causa da dimensão colorística aberta pelo uso dos sons inarmônicos do ferro percutido e
"Magimani Sagei", ao contrário das outras músicas acima citadas, foi uma peça
peças do instrumento foram livremente reafinadas e a partir das notas obtidas, sete
"Papagaio Alegre" foi feita por Hermeto em um só dia, durante o ensaio com o Grupo.
"Arapuá" é do LP Brasil Universo (Som da Gente, 1985) e foi feita depois de uma
viagem à Europa, na qual foram adquiridos o sax barítono e o teclado DX-7. Hermeto
compôs esta música explorando os sons dos novos instrumentos, que conferiu à "Arapuá"
um caráter de estudo para sax e todos os outros instrumentos da banda. Por causa da
exploração dos registros graves, a música foi intitulada "Arapuá", uma abelha de
que Hermeto chama de "música da aura". Esta consiste basicamente na noção de que a
fala é uma melodia não convencional, na qual o músico da aura percebe as alturas e
"Papagaio Alegre" tiveram seus arranjos escritos em grades.124 Isto se deve ao processo
seqüencialmente, uma após a outra, com cada músico anotando apenas sua própria parte.
Geralmente, Hermeto começava pelo piano ou pelos instrumentos de sopro, para depois
arquivo do compositor e mesmo as que o foram são, na maioria das vezes, esquemáticas.
Estas contêm, além das indicações relativas à altura e duração, outras rabiscadas nos
Grupo, optamos por fazer partituras gráficas das oito músicas escolhidas para análise.125
124 As grades de "Arapuá" e "Papagaio Alegre" foram escritas pelo pianista Jovino Santos depois
deste ter saído da banda.
125 Por ser "Arapuá" uma música longa, e por termos a grade de seu arranjo (feita pelo pianista
Jovino), não fizemos sua partitura gráfica. Visando diminuir as lacunas deixadas abertas pela falta das
partes de todos os instrumentistas, além das partituras gráficas realizamos também algumas transcrições.
114
estabelecemos um eixo temporal de cada parte ou seção musical, sob o qual as entradas
ligeiras variações. Como o tempo de duração da queda de um som varia de acordo com o
Além disso, nos sons sustentados como os dos instrumentos de sopro, a queda e o
perfil sonoro serão controlados pelo músico de forma diferente que nas cordas
Listamos, no início de cada música analisada, as partes manuscritas originais coletadas com os músicos e
115
Muito úteis para a análise das combinações texturais e timbrísticas, estes sinais
das alturas. Apesar disso, através das partituras gráficas podemos verificar, ainda que
aproximadamente, como os parâmetros sonoros estão relacionados entre si. Esta relação
últimas, exemplos musicais manuscritos por Hermeto e pelos músicos durante o período
estudado.126
música. Acima deles, temos o eixo do tempo que contém três informações principais: a
duração total das partes ou seções da peça; de segmentos menores e membros auxiliares
Exemplo:
com o compositor.
126 Ver também o CD em anexo com as músicas utilizadas na análise gravadas por Hermeto e
Grupo.
116
____________________ A _______________
ocorrer nas linhas individuais dos instrumentos, quando estes estiverem numa intensidade
diferente do todo.
Processo de criação: A música foi inicialmente feita para piano solo. A irmã do
pianista Jovino era ginasta olímpica e tinha que executar uma série coreográfica com
arco. De Jovino partiu a idéia de Hermeto compor a música para esta série de sua irmã.
Os dois foram para o ginásio ver a coreografia e Hermeto pediu que Jovino fosse
"Série de Arco", para piano solo, peça-estudo que Jovino tocaria e gravaria para a
indicadas na partitura por letras minúsculas (de 'a' até 'e') que sugerem uma
todos e assim foi feito; a flauta foi o primeiro instrumento a ser acrescentado à parte de
compositor.
Não tem armadura de clave, a exemplo das outras músicas de Hermeto que
analisamos, o que indica, no caso de "Série de Arco", que o idioma harmônico utilizado
(U.T. ca. 40 em A)
bateria e percussão.
p mp f mf
119
mp mf f mf f
rrr...
diferentes partes da música não estão escritas e devem ter sido convencionadas oralmente
relacionados a diferentes momentos de sua construção. Por exemplo, nos cs. 10 e 11 (ver
exemplo 16), enquanto a flauta executa trinados (em 2a. menor) em sua região mais
aguda, e o piano faz clusters também na região aguda e em trinados, a voz é usada
percussivamente com um som de "erres" (rrrrr), produzido na região aguda com a língua
tremulando rapidamente no céu da boca. O grão tímbrico destes sons frulados se combina
relação que fizemos anteriormente entre timbre, altura, duração, e intensidade, e de como
poliacordes, pois eles estão presentes em quase toda a peça. Tal como a definição de
5as., lab, mib, sib na mão esquerda do piano + Sol maior e, em 1.3.2, Lá b + Do maior.
Em 1.4.1, Lab (lab, mib, fa, sol)+ Re maior (enarmonizando a nota solb) e, em 1.4.2, Lab
+ Dob maior:
harmônicas, várias leituras são possíveis. Por exemplo, no terceiro tempo do 2º compasso
podemos considerar a nota si na mão direita como a terça do acorde de Sol maior, assim
como podemos também considerar a nota sol como a terça invertida de Mib maior. No
assinalado no exemplo em feixes), e, no segundo caso, teríamos Mib maior (com a terça
no baixo) na mão esquerda + Si menor com 7ª na mão direita. Preferimos esta segunda
possibilidade. No tempo seguinte do mesmo compasso (c. 2.4), o acorde na mão esquerda
(Mib maior invertido) permanecerá inalterado, enquanto a mão direita arpejará fa#, la,
dispostos verticalmente:
3). No c. 4 adquire maior independência rítmico-melódica com uma frase modal em sol
dórico.
124
No c. 5, a flauta volta a ter o mesmo ritmo do piano, mas com outras notas e no c.
fraseado modal da flauta, é poliacordal e estabelece uma relação bastante dissonante com
a melodia tocada pela flauta. Mi b maior com 2a. ajuntada na mão direita + Lab M
invertido (c. 6.1 e 6.3) e Mib maior + Sib M também invertido na mão esquerda (c. 6.2 e
6.4).
125
polirrítmicos ocorrerão entre piano, cujo ritmo o baixo geralmente dobra, sax e bateria.
pelo aumento de velocidade do andamento. A música é finalizada com uma pequena coda
imagem-som em Hermeto, que faz surgir em "Série de arco", uma escrita que tenta
direção descendente, enquanto que as fusas do c. 1.3 e 1.4 e as quiálteras de doze tempos
do c.2.3 e 2.4, são estruturas poliacordais e tem direção ascendente (c.1) e alternada (c.2).
Assim, o diálogo que se estabelece entre motivos com diferentes direções passa a
ser um dos pontos focais da peça, diálogo este que encontra sua inspiração na alternância
Como o próprio modelo rítmico do piano, que foi o primeiro instrumento a ser
feito, é polirrítmico (ver por exemplo já nos primeiros dois compassos, o padrão em
em quatro seisquiáteras, o que torna o desenho não apenas polirrítmico, mas também
polimétrico, por causa da superposição defasada dos quartos e oitavos de tempo de piano
mão direita fazendo a melodia, e, a esquerda, as cifras com divisão rítmica indicada.
Posteriormente Hermeto fez várias variações. Uma das variações é a 2ª parte canônica, e
a 3ª parte frevada.
129
andamento rápido (U.T. ca. 100), ficava descaracterizada de sua vivacidade natural, pois
tinha que ser executada muito mais lentamente que em seu andamento original. Malta nos
relatou em entrevista que assim teria surgido a idéia de tocar a música em diferentes
velocidades. Hermeto teria gostado da idéia e assim concebeu a 2ª parte da música onde
uma espécie de stretto cujo efeito musical sugeriu finalmente o título da música.
já foi dito, de harmonia com divisão rítmica indicada e melodia. Uma outra partitura para
partes da música foi conseguida com o próprio instrumentista. Não temos a parte do
baixo, mas, na gravação, este instrumento acompanha os acordes do piano baseado nas
notas mais graves indicadas nas cifras. A bateria da 2ª parte está totalmente escrita,
estilística FREVO. Segundo esta indicação, o baterista improvisa uma levada neste estilo.
Como dissemos no capítulo três, à medida que os discos se sucediam, indicações como
essa passaram a aparecer com mais freqüência para todos os integrantes do grupo.128
128 Márcio Bahia nos revelou em entrevista que durante os anos em que tocou com Hermeto, ele
(Márcio) foi gradativamente registrando levadas dos mais diversos ritmos. Estas levadas anotadas pelo
baterista passaram a integrar seu próprio repertório sonoro, constituindo um vocabulário partilhado por
compositor e intérprete.
130
mp
mp mf p
131
mf f pp
causada pela maior proximidade dos ataques sonoros instrumentais de A é diluída em A'
e incrementada em A". Isto ocorre porque na 2ª parte da música (A'), o tema é variado
linhas que em A eram simultâneas e paralelas e que, por isso, produziam textura
homofônica. Em A', as entradas em "fugato", defasadas umas quanto às outras por curtas
Na 2ª parte, a mais extensa da peça, entra a bateria com desenho rítmico bastante
dificílima, pois os músicos têm que executar durante aproximadamente dois minutos
partes individuais complicadas ao mesmo tempo ouvindo cada um dos outros músicos, à
frente ou atrás do que estão fazendo. O resultado é uma polirritmia total cujo efeito
tocado em andamento ainda mais rápido que no início (U.T. = 120/130), num tutti
virtuosístico.
A parte original manuscrita por Hermeto, contém uma harmonia que só será
variação desta parte manuscrita, e foi feita posteriormente pelo compositor. Dessa forma
podemos verificar que o resultado final registrado na gravação não era sequer imaginado
musical de Hermeto e Grupo, como verificamos no capítulo III, era sempre dinâmico. Por
isso, as partes das músicas que analisamos são esboços de um "desenho" movediço e
129 'Convenção' é um termo usado na música popular para indicar um determinado trecho musical
geralmente curto, pré-determinado (convencionado) e executado por um ou mais intérpretes. A 'convenção'
funciona como abertura ou ligação entre as seções musicais.
134
Bahia ia anotando na partitura. Foram feitas ao todo sete frases rítmico-melódicas que
foram utilizadas como levadas.131 O passo seguinte foi a transcrição das notas da bateria
para o baixo, que passa a tocar em uníssono com a bateria ou em outros momentos
flauta se combina à estes riffs, num diálogo que ora os reforça ritmicamente, ora silencia
enquanto bateria e baixo continuam. As partes contêm ainda "breques" instrumentais para
bambú, ocarina, cavaquinho, baixo, bateria, percussão (flecha, guizos, chocalhos, apitos),
voz, cachorros)
e7
mp mf
136
e4
mf f
e7
mf f cresce pouco
137
consiste somente de bateria, baixo, flauta e flautim. Todo o resto foi criado no estúdio.
Em trechos alternados da música, Hermeto sobrepõe aos ostinatos de baixo e bateria, três
cachorros latindo, o técnico Zé Luiz imitando um índio falando e considera tudo isso
como sendo a "base harmônica" sobre a qual as flautas de bambu, a flauta baixo e as
combinam-se com os frulatos, trinados e glissandos das flautas, num crescendo rítmico-
textural que alcança o clímax no final da música com o desenho rítmico-melódico das
Ex. 22
138
139
bateria em A'. As notas pedais tocadas por baixo e bateria serão sib, fa, lab, sib. Somadas
ao modo de sib dórico (c. 1 a 11) e à escala de tons inteiros a partir de sib, tocada pela
flauta e terçada pelo cavaquinho (c. 15 a 20), teremos uma gama escalar mista e
alternada, onde à maior tensão intervalar - da escala de tons inteiros - corresponde uma
maior compressão rítmica (c. 15 a 20). A partir do c. 20, a flauta reforça os ostinatos
Parte A', as levadas são dispostas em três grandes grupos: o primeiro é constituído pelas
instrumental, o segundo grupo é um ritornello do primeiro, para então, após novo breque
ôgorecotara, tanajura, etc.) foram inventadas pelo técnico de estúdio Zé Luiz a pedido
ambiente e à paisagem sonora da índia e cabocla Magimani Sagei, que dá nome à música.
Hermeto. O uso de sons de animais pelo músico alagoano representa um rompimento dos
limites convencionais do material sonoro harmônico, dito "musical". Mais que pitoresca,
a inclusão feita por Hermeto de sons de animais e outros sons não convencionais dentro
dos territórios musicais, representa ao mesmo tempo uma transgressão violenta e uma
Sagei", esta reunião é alcançada através da festa dionisíaca, na qual o corpo é solicitado
partitura de outra música de Hermeto. Foi inicialmente tocada por sax soprano e piano,
foram criadas com base nesta partitura primeira, assim como as diferentes levadas de
parte do pianista, além de melodia e harmonia há indicações para cada parte da música
com divisão rítmica (B') ou, à maneira da bateria, apenas a indicação de um estilo, no
caso, o baião (B''). Ainda na parte do piano há um acorde que foi escrito por Hermeto, a
(U.T. ?)
p mp p mp p mp
mf f
144
mp mf f
mf forte
Como podemos verificar pela partitura gráfica, o som da cigarra gravado por
Hermeto é complexo e percorre quase toda a gama dos tipos morfológicos que antes
145
abordamos. Inicia com ataques-impulsos separados por pausas curtas, passando pela
iteração até o grão, para finalmente se estender num som sustentado de altura perceptível.
A própria música no entanto seguirá o caminho oposto, i.e., estará mais próxima
timbrística e harmônica. Hermeto nos disse em entrevista que gravou a cigarra por que
seu silvo agudo se parecia com o som produzido pelos amoladores de faca. A música foi
finalmente denominada "Cores", porque, segundo Hermeto, "o arco-íris tem a ver com o
som da cigarra, o arco-íris como visual e a cigarra como som. Cada cor tem várias
um arco-íris sonoro "que passa pelas comas dividindo os semitons". Hermeto compara a
músicos. A estrutura musical sugere a forma rondó, ao som da cigarra se seguirá sempre
gravada por Hermeto em sua casa depois da música ter sido registrada no estúdio de
maior e 9ª, um pedal agudo que se choca com a nota lab do sax, que dá início à melodia.
Estas intervenções são acompanhadas ainda dos sons inarmônicos de sinos chacoalhados,
para não falar do contexto cultural - em "Cores", a reiteração constante do som da cigarra
e dos acordes dissonantes e sons percussivos inarmônicos que a acompanham, criará uma
ambiência harmônica bastante não convencional, mas que Hermeto faz parecer natural e
cotidiana.
alternadamente por sax soprano (c. 1 a 3 - 0'. 11" - 0'.33" - e c. 10 - 1'.15" - 1'.22"), violão
No exemplo abaixo, o tema tem caráter tonal. A 1ª frase apresentada nos cs. 1 a 3
frase ligeiramente modificado em seu ritmo, é condensado e sequenciado nos cs.4 a c.7
durante a 2ª frase. A 4ª e última frase do tema (c. 14 a 16) apresenta como material novo
A harmonia do tema não sublinha seu caráter tonal e foi escrita em cifras
encimadas pelo ritmo em que deverão ser tocadas. Explicaremos a notação não
som dos animais e dos ferros percutidos - e demonstra como esta concepção foi traduzida
Em vários momentos do tema (c. 2.3, 3.3, 5.4.1, 7.2 e c. 11 a 13), as cifras
aparecem dispostas umas sobre às outras. Este tipo de notação, que não existe na música
Ex. 26
c. 5.4.1
G5+
7
Ex. 27
149
F7
Nestas cifragens, o acorde inferior da cifra tocado pela m.e. conterá apenas uma
nota grave a partir da qual os intervalos assinalados são superpostos. Por exemplo, na
cifragem convencional, a cifra G indica a tríade de Sol maior, mas na cifragem utilizada
por Hermeto nos exemplos acima, 'G', se estivesse, como já dissemos, na parte inferior da
cifra, seria simplesmente a nota sol na mão esquerda. Se esta mesma letra 'G' estivesse
acompanhada de números (2, 4, 5-, 7+, 9-, etc.) ao lado, acima ou abaixo dela, estes
cifra tocada pela mão direita pode ser anotada por Hermeto tanto da maneira
Importante observar que estas combinações interválicas nem sempre são poliacordais,
pois, em alguns casos, Hermeto omite a 3ª do(s) acorde(s), o que não impede no entanto,
incompletas.
150
A razão destes tipos de combinação harmônica não serem comuns nos universos
da música popular brasileira e do jazz, pode ser encontrada nas relações interválicas
dissonantes das notas dentro dos próprios acordes e destas em relação às notas da
respectivamente dos baixos sol e fá, separadas por intervalo de nona menor. A presença
menor que as separa no interior de cada acorde, são mais que suficientes para contrariar a
"erros" de harmonia.
estrutura interválica (c. 11), para depois escrever ambas as cifras de acordo com a
notação por ele inventada (c. 12). Note-se que a partir deste trecho, a melodia será
que tem o caráter duplo de extensão da última frase do tema e ponte para 'A'.132 Esta
passagem é importante porque apresenta parte do material harmônico que será utilizado
na extensa Coda final, quando o som da cigarra e de uma placa de ferro, cujos parciais
Neste trecho, o sax soprano encabeça o naipe em bloco formado por violão,
região grave. A melodia executada pelo sax 1 e dobrado pelo violão uma 8va. abaixo se
caracteriza pelo cromatismo e está, assim como as outras notas do naipe em bloco, numa
132 Na partitura manuscrita por Hermeto, este trecho aparece indicado simplesmente como 'Ponte'.
152
cigarra do início, com seu silvo agudo em la4 (aproximadamente). Sinos chacoalhados e
apitos somam-se aos acordes executados pelo primeiro e segundo pianos, tocados
respectivamente por Jovino e pelo baixista Itiberê. O piano elétrico toca a mesma
harmonia do exemplo anterior uma oitava acima, em síncopes, com o piano acústico que
toca em mínimas:
Pno.
1
B' tem andamento um pouco mais rápido que B e, nesta parte, entram bateria e
baixo. Bateria fazendo ritmo em fusas na caixa com o bumbo em contra-tempo. O baixo
que entrou na ponte para A', fazendo inversões da harmonia do piano acústico, sempre
em síncopes. O ritmo criado pelos dois pianos lembra o galope nordestino, e vira frevo no
final desta parte da música. A melodia é executada por sax soprano e dobrada à oitava
somente de percussão e flauta baixo em stacatto, separa uma seção musical da outra.
Num crescendo rítmico contínuo, em B'', o baixo executa desenhos rítmicos mais
Ex. 31
O tema é tocado em uníssono por sax, violão e bombardino tal qual em B'.
Com andamento mais rápido que na parte anterior, e intensidade também mais
seguidas vezes o som da cigarra, que torna-se um pedal agudo em la4, sobre o solo de
harmônico de A' (exemplo 5), uma seqüência de quatro acordes cifrados não
Em seguida, o primeiro destes quatro acordes é repetido uma 8va. acima durante
quatro compassos (4'.36" - 4'.50"). O acorde que o sucede foi escrito por Hermeto
transpondo para o piano os parciais do espectro sonoro inarmônico da placa de ferro que
é percutida em toda a Coda e que Hermeto distinguiu com sua audição acurada.
Ex. 34
forte
Sobre esse ostinato do piano 1, reforçado pelo ritmo subdividido de frevo da
bateria improvisado por Márcio Bahia, ocorre o clímax de toda a peça. Todos os
piano 2 que é o mesmo do piano 1, transportado uma 8va. acima na mão esquerda e uma
8va. abaixo na mão esquerda. Note-se o deslocamento na acentuação natural dos tempos
Clímax da
Coda
Sax soprano
Cigarra
Piano 2
Piano 1
Placa de
ferro
156
8va.
que Hermeto grava depois das músicas estarem prontas, não é gratuita. Cada som
produzido por um animal específico, se relaciona a uma música em particular, que guarda
5.3.5 "De bandeja e tudo", LP Hermeto Pascoal e grupo (Som da Gente, 1982)
composição feita por Hermeto anos antes e retrabalhada para o disco de 1982.
Originalmente era tocada no harmônio ao invés do piano. Na nova versão, baixo, melodia
Durante anos, esta música passeou pelo repertório de Hermeto, e o pianista Jovino
Santos foi guardando as partes dos diversos arranjos feitos. Uma destas partes é
recordava mais. Com toda a música já gravada durante uma sessão no estúdio, Jovino
lembrou a Hermeto da antiga variação que os músicos apelidaram de "diabinhos", que foi
melodia e baixo na mão esquerda (tema com 16 compassos) e a parte de bateria. Não há
Instrumentação:
Sax soprano, flauta baixo, flauta em dó e flautim,, voz, piano acústico, clavinetes
p mp mp p
p mp mf mp f
159
p mp mf f p
mp mf f f
nordestino Heraldo do Monte na guitarra e por Hermeto nas percussões. Esta introdução
do tema em Mi frígio de A e A'), enquanto que a 2ª parte desta introdução (0'.36'' - 0'.54'')
fará uma citação breve do nordeste através de escala mixolídia com a 11ª aumentada. O
complementado por sons percussivos granulados produzidos pelo prato de bateria, apitos
e risadas guturais.
clima para a entrada deste último, com o baixo oitavando a mão esquerda do piano, e
cada nota, neste início e durante todo o tema (c. 1 a 8), é harmonizada por um acorde
cujas notas extremas são oitavadas, acrescidas da 4ª e 5ª justas (que Hermeto chamará de
1-4-5-8). Este acorde tem grande força, pois as notas que o constituem são harmônicos
bastante próximos (a 8º, a 5º, e como conseqüência de sua inversão, a 4º) da nota mais
grave (a freqüência fundamental). Sua sonoridade parece ter efeito imponente, solene e
místico, provavelmente por este acorde ter uma história longa dentro do vocabulário
musical do Ocidente. Ele se assemelha aos dos primeiros organa medievais, onde a voz
principal era dobrada à 5ª ou 4ª pela voz organal (vox organalis). Posteriormente as 5as.
clássico. Apenas na música moderna reapareceriam, com C. Debussy (em "La Cathédrale
Engloutie" por exemplo) e Erik Satie. Desde então, sua sonoridade típica e algo pesada
foi incorporada pelo jazz, e mais especialmente pelo rock, nos assim denominados,
"power chords".
163
(baixo pedal na mão esquerda) + ré frígio e fá dórico (na mão direita), reforça a
A mão esquerda no piano é dobrada à oitava inferior pelo baixo elétrico, sempre
com desenho rítmico bastante sincopado e como já dissemos, tendo a nota mi como pedal
ostinato. A bateria acompanha piano e baixo com um único desenho rítmico em colcheias
no bumbo, caixa e contra-tempo, que se repete durante todo o tema, em contraponto com
os outros instrumentos. O tema é ouvido duas vezes na primeira e segunda partes, sempre
na flauta baixo, com harmonia simples e ritmo ainda em 7/4. Hermeto explora sua
melódicas:
adicionando em play-back, outras vozes que o dobram, à 5ª e 8va. Era comum por
exemplo Hermeto pedir para Carlos Malta, que depois de gravada a melodia escrita para
transposição, recurso que produz uma textura bastante densa, além de combinações
Gente, 1984)133
entrada de Carlos Malta e Márcio Bahia na banda. Foi composta e arranjada num só dia
durante um ensaio que durou até tarde da noite. Seu título original era, "Está bom de
acabar, já são dez horas", que foi o que Ilza, a mulher de Hermeto falou, pois o marido e
grade, pelo pianista Jovino Santos. Na grade feita por Jovino aparece uma linha para
triângulo.
mf
pa pa pa pa pa ga io (idem) (idem)
f mf cresce f
f p
si3, cuja célula rítmica sincopada (3 colcheias pontuadas, uma colcheia, uma
mixolídio de Sol com 11ª aumentada, cuja estrutura interválica também apareceu em
"Série de arco" (c. 6) e "De bandeja e tudo" (introdução 2). Note-se o contraponto que a
linha do baixo faz com a melodia principal tocada pelo sax tenor e oitavada pelo flautim:
169
O tema 'b' é constituído das mesmas notas que 'a', mas o pólo escalar incide sobre
superlócria, os intervalos consecutivos de 2a. maior que conferem à esta gama intervalar
Ex. 41
'B' contrasta com 'a' não apenas do ponto de vista da altura (das diferentes escalas
que contituem estas seções do tema), mas também no tocante ao ritmo e ao timbre. Em 'b'
"exótica" estabelecida pela escala super-lócria, o baterista Márcio Bahia toca o jererê,
Do, a 9ª menor e a 9ª aumentada (reb e mib). Este trecho é o auge da compactação rítmica
do tema. O piano dobra o desenho rítmico do flautim e do sax soprano enquanto que o
baixo tem maior liberdade rítmico-melódica, mudando ainda seu registro para uma 8va.
acima.
135 "Papagaio alegre" é a primeira das músicas que analisamos que utiliza sonoramente os
domésticos tupperware, acondicionadores de alimento feitos de plástico. Ao levar camarão dentro dos
tupperware para a casa de Hermeto, um dia, o baterista Márcio estava casualmente conversando e
batucando nas embalagens já esvaziadas de seu conteúdo. Hermeto gostou do som e assim um conjunto de
tupperware de diversos tamanhos foi constituído. Márcio chegou a ter vários destes pendurados ao lado de
sua bateria durante o período 1982-1992, incorporando-os definitivamente à sua bateria combinada com
arsenal percussivo. O instrumento foi batizado de jererê. Exemplificaremos a sua escrita na música a
seguir, "Arapuá", onde este instrumento também foi utilizado por Hermeto.
173
Ex. 43
'C2' será o clímax textural de todo o tema com quatro camadas distintas, enquanto
e m.e.) permanecem relacionadas à escala simétrica de 'c1', mas o sax tenor apresenta um
baixo está em Do mixolídio com 11ª aumentada, o piano na escala simétrica de Do,
enquanto que o sax tenor sobe em arpejos de tríades sucessivas (que se originam da nota
176
la; la, do, mi, sol, sib, re, fa#, la) e desce na escala simétrica. Os arpejos sucessivos do
enquanto que a escala simétrica, contém a 9ª menor e aumentada de Do, além da 13ª:
transversa sobre uma harmonia simples e levada de forró. Depois do improviso, a parte A
outros, o teclado DX-7 e o sax barítono - após viagem em turnê para a Europa. Hermeto
sax barítono foi mantido. O piano e o sax barítono foram os primeiros a serem feitos,
bateria.
Essa é uma das composições mais atonais de Hermeto. Segundo o pianista Jovino
as notas de sax, piano e baixo não estão numa relação de funcionalidade, mas de
música especialmente para o sax barítono, Hermeto fez dela um exercício técnico
Mas não só a parte do saxofonista Carlos Malta era difícil. Na 1ª parte por
exemplo, o baterista Márcio Bahia substitue as peças da bateria pelo jererê, instrumento
região grave, foi associada por Hermeto à abelha Arapuá, de zumbido também grave, que
percussão (jererê) .
A B A'
_______________________7.35______________________________
------3.30 ----- ----- 1.37 ------ ----- 2.28 ----
0.00 - 03.30 3.31 - 5.06 5.07 - 7.35
Solo de berrante
Sax soprano Sax soprano
Sax barítono Sax barítono Sax barítono
Harmônio Harmônio
Piano Piano Piano
Baixo Baixo Baixo
Percussão (jererê) Bateria Bateria
1ª variada pela substuição do jererê pela bateria, e a seção central é uma levada em 6/4,
Esta forma ternária com a seção central improvisada, ocorre também em outras
músicas que analisamos, como por exemplo "Série de Arco", "De bandeja e tudo" e
durante a 1ª e 3ª partes.
do estilo do compositor e tem como exemplos não só "Arapuá", mas também "Série de
melodicamente.
sax barítono, estão em bloco na região grave em movimento paralelo, iniciando uma
longa subida em arpejos, à maneira dos estudos técnicos. O acorde com sonoridade
quartal produzido por sax barítono, baixo e piano permanece inalterado em suas notas
mais graves, enquanto suas pontas vão se abrindo progressivamente em direção ao agudo:
instrumental com acordes sustentados que mudam a cada dois compassos, formados por
dois trítonos (nos cs.1 e 2 por exemplo, si2 e fa3 na m.e e sol3 e do#4 na m.d.).
Como em vários outros trechos de "Arapuá", o sax barítono e a voz mais aguda do
exemplo acima é:
Ex. 47: c. 1
m.d. piano
m.e. piano
baixo elét.
sax barítono
Se formarmos um acorde por condensação das notas pedais arpejadas nos cs. 1 a
16, perceberemos porque Hermeto relacionou esta música ao zumbido grave da abelha
arapuá. A justaposição das notas na região grave dificulta a percepção das alturas
183
envolvidas, ao mesmo tempo que produz uma massa sonora entre o som harmônico e o
Ex. 48: c. 1 - 16
executam frase com tendência descendente ainda baseados no acorde do ex. 47, para
respectivamente pela mão direita e esquerda do piano, a terceira pelo baixo elét. e o sax
com quase o mesmo ritmo e a quarta pelo jererê. A polirritmia ocorre em cada linha, a
baixo têm figurações rítmicas menos rápidas e estão construídos predominantemente por
movimento contrário.
184
O baixo é tratado nesta música melodicamente e como uma das vozes do naipe
formado por sax barítono e piano. Isto é importante porque evidencia uma exploração
O início da parte B exemplifica bem o uso que Hermeto faz deste instrumento. Os
quatro compassos abaixo são na verdade um pequeno solo de baixo de Itiberê e, apesar
execução:
138 "Cabeças" dos acordes, ou seja, as notas mais graves indicadas nas cifras.
186
sola no berrante:
O uso que Hermeto faz do berrante de boi, transformará este típico objeto da
cultura popular, em um instrumento com duas oitavas (sol 2 a sol 4), graças ao bocal de
bombardino. A harmonia está em do mixolídio (cifra C7) e Hermeto está em sol dórico
com frulatos, diversos recursos multifônicos como por exemplo cantar e tocar
berrante é modificado, pois Hermeto o toca dentro de um balde cheio d'água, da mesma
forma que o sax barítono tocado por Carlos Malta próximo à esteira da caixa da bateria,
rápido. Na reexposição, o baterista, que havia tocado o jererê na 1ª parte, não segue
partitura alguma, sendo deixado à vontade para criar livremente. O desafio será no fim
188
das contas, duplo: tocar uma dificílima parte para tupperware na 1ª parte, e na
O exemplo seguinte é o final da música. Sax e baixo estão em suas regiões mais
graves. O sax é tocado com uma sonoridade rascante e "buzzing", literalmente fazendo o
instrumento zumbir.139 Note-se que o acorde do piano (Fa# ou Mi maior com 6ª, 9ª e 11ª
E
do sax e do baixo:
139 "Buzzing" é um termo do jazz que se refere a um tipo de articulação e emissão sonora própria
dos metais e mais especialmente do saxofone. A sonoridade 'buzinada' ou 'zumbida' deste instrumento foi
um recurso muito apreciado por jazzmen como o contra-baixista, arranjador e compositor Charles Mingus
por exemplo, para não falar de Ornette Coleman e John Coltrane. A sonoridade agressiva, "buzzing", foi
empregada por estes e outros saxofonistas como uma alternativa ao som macio e flautado que o sax tinha
no jazz tradicional.
189
FIM
O acorde complexo formado pela sobreposição das notas dos três instrumentos no
exemplo acima, nos remete novamente ao espectro inarmônico dos sinos, pois contém a
3ª (e a 7ª) menor e maior, além da 5ª aumentada e da 9ª menor. Pode-se dizer que este
resultado da superposição de tríades simples (no exemplo abaixo as tríades foram obtidas
por enarmonização):
190
Ex. 54
Fa# maior
Mi maior com
Mi maior
6ª, 9ª e 11ª+
+
Do menor Do menor
Do menor-maior
com 5+, 7 e 7M, 9-
e
11+
"Arapuá" pode ser considerada um grande estudo, uma música em que todas as
partes são bastante difícieis e foi junto com "Briguinha de músicos", uma das peças que
mais deram trabalho para todos integrantes do grupo. Com 7 minutos e meio de duração,
variada, "Arapuá" é uma verdadeira tour de force, com certeza um dos ápices do período
virtuosismo.
cujos exemplos registrados anteriormente em disco foram feitos com trechos de narrações
radialísticas de futebol,141 em "aula de natação" Hermeto gravou uma aula de sua filha
1992.
declamado pelo próprio autor. No poema de Mário Lago, Hermeto sobrepõe às alturas da
triângulo lembrarão o trio típico do forró, se somando ao harmônio para seguir a métrica
falada em prosa para o piano, resultando uma melodia totalmente atonal e de ritmo
assimétrico.
sido Jovino o intérprete da música no disco, ele não possuía a partitura. Segundo o
pianista nos relatou, o próprio Hermeto não considera a "música da aura" como sendo de
sua autoria, mas de quem fala, daí ele não ter passado a parte para o pianista. A parte
água.
mf f mf f mf
mf f mf f mf
Esta música foi gravada durante noites seguidas por Jovino e Hermeto num
acompanharam. O trabalho em estúdio foi nenhum, pois o material sonoro já havia sido
todo gravado e mixado na casa de Hermeto. O local e a maneira como "Aula de natação"
verificamos, nenhuma das demais músicas foi gravada fora do estúdio. Como esta música
filha Fabíola), esta melodia foi dividida em quatro segmentos, cujas durações anotadas na
partitura funcionavam apenas como um guia aproximado dos ritmos aperiódicos da voz
convencional e da rapidez com que a melodia atonal se sucedia, Jovino diz ter sido muito
trabalhosa a perfeita sincronia da música com a fala. A solução, segundo ele, foi seguir a
professora, das crianças e o som de água na piscina (0'.00" - 0'.27"). Depois, o mesmo
trecho é repetido com o piano tocando cada nota falada e o harmônio harmonizando-as. O
bastante diferente do poema "Três coisas", declamado por Mário Lago no mesmo cd e
diferir de "Três coisas", ocorre porque se o poema de Mário Lago obedece uma certa
métrica rimada e as alturas permanecem num âmbito restrito, em "Aula de natação" a fala
é coloquial, e por isso, os ritmos não são passíveis de metrificação, além das alturas
variarem de forma muito mais irregular que num poema. Dessa maneira, Hermeto mais
uma vez demonstra como sua linguagem musical incorpora elementos não convencionais
que esta tem para ele. Consideramos a "música da aura" como um desdobramento lógico
194
da concepção de Hermeto, cujos esboços podem ser encontrados em algumas das peças
A "música da aura" revela como Hermeto, com seu ouvido absoluto, recebe os
fenômenos sonoros cotidianos. O familiar é tornado exótico e vice-versa, num jogo que é
transição de som inarmônico para harmônico, pois se baseia na noção de que quando
O cantar das pessoas, na minha concepção, o cantar de cada um de nos, é o que chamamos
de fala. Assim como os pássaros, nós somos pássaros também. (PASCHOAL, 1998) 143
Mas que espécie de pássaros seríamos nós? E porque Hermeto considera tão
importante a "música da aura"? Talvez a resposta para estas duas perguntas seja uma só:
para Hermeto, somos pássaros da percepção, ou melhor, nos tornamos pássaros através
que registra a imagem do som. No entanto, esta imagem não é um mero registro. Assim
e por isso nem todos revelam igual, o músico sempre criará algo ao revelar sua
espalhada a harmonia - para usar uma metáfora do próprio Hermeto - como se cada nota
melódica fosse uma uva de um cacho de uvas, harmônico e virtual, que cabe ao
"cacho virtual" é constituído não apenas das notas da fala, como também dos parciais por
142 E mesmo muito antes deste período. Ver por exemplo, o 1º disco de Hermeto como
compositor, Brazilian adventure (toda a big-band tocando com garrafinhas), o disco Slave Mass (com a
participação dos famosos porcos), a experimental "O galho da roseira", no disco Seeds on the ground, com
Airto Moreira e Flora Purim. Ver conclusão.
195
elas produzidos, que raramente são percebidos pela maioria das pessoas. O mesmo se
aquele que captura o momento sonoro através da gravação, revela o negativo do som
que cria, transforma, filtra e modifica a imagem sonora revelada, imprimindo sua própria
6. CONCLUSÃO
fenômenos sonoros integrados, é uma estratégia metodológica que visa apenas fornecer
um esquema geral dos signos musicais que Hermeto utiliza. É imprescindível lembrar
que os parâmetros estão relacionados e, por isso, não são entidades isoladas, nem
percutida de "Cores").144
144 Os conceitos de periodicidade e aperiodicidade por nós apresentados no capítulo IV, visam
justamente superar os limites da abordagem tradicional, compreendendo os parâmetros unitariamente,
como emanações do tempo. Cf. Karlheinz Stockhausen em Menezes (org.), op. cit.
197
Altura
. Modalismo: "Série de arco" (apenas uma citação breve com a escala mixolídia
e tudo" (intro. 1 e 3 e coda), "Magimani Sagei "(na coda free), "Cores" (nas pontes e na
coda final).
Duração
Timbre
Sagei"
buracos das flautas, soprando sem produzir notas, em glissandos curtos com ou sem
Alegre (solo)".
"Papagaio alegre". "Arapuá" é uma música que não contém nenhum som de animal, mas
o título faz referência ao zumbido grave da abelha arapuá. A associação ocorreu por
causa do timbre do sax barítono e pela textura produzida pelos instrumentos na região
falsetes ao mesmo tempo tremulando a língua no céu da boca, alterando a emissão sonora
com o auxílio das mãos, etc.: em "Série de arco", "De bandeja e tudo" (introdução) e
"Magimani Sagei".
Outros aspectos
precisar quais exatamente foram as contribuições de cada músico para o arranjo final das
tal dinâmica de ensaio que a presença constante de Hermeto não se fazia tão necessária
analisado porque, segundo o que Carlos Malta nos relatou, a idéia de tocar o tema na
parte B - a mais extensa de toda a música, cujo efeito musical inspirou o próprio título -
com as diferentes entradas separadas por pausas curtas, teria surgido dos músicos do
grupo.
200
numa mesma música, somado à rítmica variada, à exploração de fontes sonoras não
dos elementos do Grupo passarem a tocar mais de um instrumento ao longo dos anos,
contribuíram, por sua vez, para a riqueza dos arranjos. A desenvoltura técnica e a
"O ato criador é misterioso... É um ato tão complexo, motivado por tantos impulsos - tão
remoto e impessoal como a teia de toda a história conhecida e tão remoto e intensamente pessoal
quanto a soma de toda a experiência de um homem - que as evidências materiais são pouco mais que
relances ocasionais de um profundo, contínuo processo." (Kramer in Sloboda, 1985)
Esta dissertação segue o rumo apontado por Kramer, ou seja, considera o produto
final - no nosso caso, as gravações das músicas que analisamos no último capítulo - como
musical gravado entre 1981 e 1993 por Hermeto Pascoal e Grupo, nos orientamos em
no início. Além disso, fizemos uma pequena biografia dos músicos do Grupo e
201
reconstituímos o processo de criação de Hermeto e Grupo e de cada uma das músicas que
analisamos.
qualquer análise musical. Assim fizemos unicamente porque nosso objeto de estudo
apontou este caminho como indispensável para sua compreensão. Em nosso caso, a
análise musical pura e simples (formal, harmônica, rítmica, etc.), não esclarecia nem no
A falta de bibliografia sobre nosso objeto contribuíu sem dúvida para que a
pesquisa de campo se revelasse como indispensável na tarefa analítica. Sem esta frente de
trabalho, não teríamos informações suficientes, nem subsídios, que nos permitissem
nível do signos e não dos significados, prometia como fim não mais que uma descrição
das obras analisadas. Porém, queríamos passar da descrição superficial para a densa, e,
para tanto, não nos restava outra alternativa senão a de conhecer as versões 'nativas' sobre
as questões por nós levantadas no capítulo I, para depois interpretarmos estes relatos.145
Mais do que criar uma alternativa à carência de bibliografia, era necessário nos prevenir
especialmente quando nelas "o método se substitui às trocas ou ao 'encontro' com a obra,
145 Clifford Geertz, tomando emprestado noções apresentadas por Gilbert Ryle, estabelece dois
tipos de descrição etnográfica: a superficial - que simplesmente narra os fatos tal qual eles se apresentam, e
a densa - que interpreta o que eles significam. Cf. Clifford Geertz, A interpretacão das culturas. Rio de
Janeiro: LTC, 1989.
202
ou, mais grave ainda, quando a mediação substitui o objeto," (Gubernikoff, 1993), Eco
nem mesmo aderir à crença de que deve existir uma leitura correta. Segundo Eco, "a
autor, mas mesmo assim estabelece determinados limites à liberdade do leitor" (Eco,
margem de erro para a nossa interpretação, buscamos estabelecer como ponto de partida
repertório, gravado entre 1981 e 1993, para o qual influenciaram ainda, os músicos do
Grupo que com Hermeto tocavam. Apresentamos os resultados de tal procura a seguir.
tocando flautas com os animais e percutindo pedacinhos de ferro. Aos 8 anos, começa a
tocar sanfona de oito baixos e pandeiro com seu irmão nas festas de casamento e forrós.
Seria impossível entender como a concepção musical de Hermeto se originou, sem voltar
à sua infância. Pois as primeiras experiências musicais ocorridas dos 7 aos 14 anos de
idade, foram absorvidas profundamente por Hermeto, lhe fornecendo modelos sonoros e
146 Carole Gubernikoff, A pretexto de Claude Debussy, um dos capítulos da tese de doutorado
defendida pela analista musical na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. In
Cadernos de Estudo: Análise Musical 8/9. São Paulo: Atravez, p. 83
147 Umberto Eco. Interpretação e Superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 1997 (2ª tiragem).
203
mesmo tempo que trava contato com formações instrumentais como conjuntos, regionais,
big bands e orquestras de rádio, além de aprender diversos estilos tocando nas rádios e
exterior.
do músico. Hermeto, então com 45 anos de idade, sete discos gravados e já conhecido
Pernambuco (Antônio Luís), Carlos Malta e Márcio Bahia. Neste período, Hermeto
estudamos (1981 - 1993), Hermeto gozava de uma relativa maturidade em sua carreira.
Em 1981, sua carreira solo já tinha dez anos, e Hermeto já era um músico bem conhecido
na Europa e nos E.U.A.. Porém a formação constituída por Itiberê, Jovino, Pernambuco,
206
Malta e Bahia, foi única na carreira de Hermeto, por causa da convivência de 12 anos
com um mesmo grupo, inédita em sua carreira. Hermeto foi antes de tudo um professor
para todos eles, mas é inegável, como já dissemos no capítulo III, que "os meninos da
linguagem musical do último. A dinâmica de ensaios diários estabelecida neste doze anos
Hermeto, a possibilidade de compor e arranjar mais, pois sua presença nos ensaios passou
a não ser indispensável, já que o Grupo adquirira uma metodologia de ensaio eficiente,
produção como compositor de obras para o Grupo e para formações diversas chegando
ensaiado e apresentado publicamente durante estes doze anos não foi lançado
que cabia num Lp, por isso, a extinta gravadora Som da Gente tinha em seu arquivo
músicas inéditas deste período. Onde está este material precioso e por que não lançá-lo?
Grupo o início real de suas carreiras profissionais, enquanto que para Hermeto foi um
Tanto pelo nível técnico dos músicos como pela singularidade da concepção
musical de Hermeto Pascoal, a formação de Hermeto e Grupo entre 1981 e 1993 teve um
verificarmos alguns dos resultados a que havíamos chegado em nossa pesquisa, bem
imprensa.
Discutimos abaixo apenas alguns trechos desta entrevista a fim de concluir nosso
linguagem musicais.
Verificamos nesta entrevista com o músico que a nossa perplexidade inicial e mesmo
incredulidade quanto à sua trajetória autodidata, já tinha sido partilhada por muitas
148 Todas os trechos citados neste capítulo, são transcrições da entrevista que fizemos com
Hermeto em 06/03/1999.
208
Hermeto tem razão, ele tornou-se autodidata não por vontade própria, mas porque
é motivo natural de orgulho para o músico, por outro, isto lhe causa problemas junto às
pessoas que não acreditam nele, além de causar-lhe também, certa dor, porque sua
Temos no entanto que ter cuidado com este ponto. Pois Hermeto, apesar de não
ter passado por nenhuma instituição de ensino musical, ou pela mão de professores, foi
experiências musicais que teve ao longo de sua vida. Auxiliado por sua percepção
acurada, que ele já definiu como "um gravador infinito", a escola de Hermeto foi
linguagem se deve às experiências profissionais que o músico teve durante 1950 e 1971.
O próprio Hermeto nos disse que não acredita que exista algo na música que não
tenha sofrido influência de alguma outra coisa. Os regionais, conjuntos, big bands e
compositor. Inclusive ele se refere às suas composições para orquestra como "arranjos
sinfônicos", talvez porque na música popular das rádios de Recife, Caruaru e Rio de
com as orquestras de rádio, Hermeto falou delas com prazer e lembrou dos ensaios que
assistiu em 1950, na rádio Jornal do Comércio em Recife com a orquestra da rádio regida
por Guerra-Peixe:
Ele não me ensinou nada diretamente, mas eu com 14 anos de idade estava no auditório lá,
ninguém me conhecia e eu não conhecia ninguém, acanhado, tímido, lá na última cadeira, o auditório
vazio e a orquestra ensaiando. (...) Tinha quase uma sinfônica lá, era uma maravilha, cordas, era
misturado cordas com metais, além da big band que tinha lá. (...) Então eu não preocupava em não me
esquecer daquele ensaio, porque eu sabia que tinha uma coisa na minha mente gravando, eu não
precisava me preocupar. Eu acredito muito nisso, aquilo que a gente se lembra mais é o que a gente
sabe menos, sobre aquilo que a gente está se lembrando. (HERMETO)
inconsciente, constituindo uma camada subterrânea de sua formação, que ele resgataria a
partir de 1971, em seu primeiro disco solo e mais especialmente a partir de1981, ao
Perguntado sobre os espectros sonoros dos pedacinhos de ferro com que brincava
tonalidade e atonalidade:
O que chamam de música atonal, porque eles dão uns nomes que só funcionam na palavra,
mas não funcionam na prática. A música chamada de atonal chega a ser quase a música que eu chamo
de som da aura. Mas a música atonal, na minha maneira de ver, nenhum instrumento convencional
está capacitado para tocar, eles falam, mas está errado (...). Tem muita gente que acha que do, mi, sol,
do é natural, mas não, é apenas o convencional. Porque o atonal é a coisa mais natural que existe. (...)
Eu sou o inverso de muitas escolas, a maioria das coisas que eles chamam tonal, eu chamo atonal, eu
chamo o contrário. Para minha percepção se você fizer: [canta] sib1, mi3, lab2, mi2, sib1, la2, isso é
natural, para isso tem o som da aura. (HERMETO)
os sons musicais não são 'naturais', tanto é que tiveram que ser temperados num sistema
preciso de alturas. A maioria dos sons que nos cercam cotidianamente no campo ou na
cidade, são inarmônicos ou mistos - como o som da cigarra da música "Cores" por
exemplo. Por isso, ambos os espectros são naturais. Invertendo essa distinção
210
harmônicas de suas músicas nos pareçam familiares, pois "o atonal é a coisa mais natural
que existe".
Na resposta acima, Hermeto passa do som atonal dos ferros para a noção de
alagoano. Na verdade, até esta entrevista não entendíamos porque Hermeto atribuía tanta
importância a ela. A música da aura surgiu ao mesmo tempo que os sons dos ferros e dos
bichos. Ela integra junto com eles um conjunto de eventos sonoros relacionados, atonais:
Os ferrinhos já tinham a ver com a música da aura. A minha mãe estava conversando com
uma amiga dela e de repente eu dizia: "mãe, ela está cantando" e minha mãe, "meu filho quê isso, tá
aluado" (maluco)? Então, entre 45 e 50 anos de idade eu fiquei preocupado achando que tinha um
problema de audição. Será que esse som da aura que eu acho desde pequenininho que as pessoas
cantam invés de falar, será que é só a minha cabeça que acha isso?" (HERMETO)
Hermeto fez do universo sonoro de sua infância e este resgate significou também a
superação de dúvidas antigas a respeito de sua capacidade auditiva (!). Desde pequeno, a
percepção de Hermeto foi motivo de preocupação para seus parentes, que chegaram a
temer por sua sanidade mental. Hermeto foi chamado de "louco" pela primeira vez por
sua própria família, obviamente porque a mesma percepção que o faz distinguir os sons
com tanta precisão, eventualmente também lhe causa problemas junto àqueles que não
partilham de tal capacidade. O trecho abaixo ilustra bem outras dificuldades encontradas
por Hermeto, causadas neste caso, pela mudança constante de diapasão permitida pela
150A faixa "Tiruliluli" do lp Lagoa da Canoa, Município de Arapiraca (Som da Gente, 1984), na
qual Hermeto faz a "música da aura" de uma narração futebolística. Ver a análise feita por Tato Taborda,
op. cit.
211
Com estes teclados eletrônicos, o cara que tem ouvido absoluto sofre, porque dependendo do
la diapasão, o sib é quase si natural ou lá. Por isso eu digo, se for la diapasão 440 é isso e se for 442 é
aquilo. (HERMETO)
capacidade auditiva do músico alagoano. Levamos para a entrevista um pequeno sino "de
mesa", de tamanho pequeno, que produzia a nota Fa#5, além de uma freqüência
próximas e agudas era claro e perceptível, apesar das amplitudes distintas pois o Fa#5
tinha maior intensidade. Solicitado por nós que identificasse as freqüências do sininho,
Hermeto, sentado em frente ao seu piano elétrico, pôs imediatamente o dedo sobre o
Fá#5, dizendo que era aquela nota que ele estava ouvindo no sino. O interessante é que
ele apertou a tecla umas cinco vezes, mas esta não produzia som algum porque o piano
identificou o Sol5, precisando porém que este não era exatamente um Sol5, mas uma
voz e sua complexidade rítmica, fazem das melodias da "aura" estruturas não
convencionais do ponto de vista musical, uma espécie de "canto dado" atonal. Apesar do
material ser não convencional do ponto de vista melódico e rítmico, o tratamento dado
acompanhada instrumentalmente.
determinadas fronteiras entre o sonoro e o musical, ou, usando suas palavras, entre a
"música e a teoria":
212
Foi por volta dos 45 anos de idade, que eu descobri que a teoria, não a música, tem doze
notas. (...) Mas como é que eu descobri isso? Eu tenho uma bandola que é um instrumento com seis
cordas duplas, não é uma corda grave e outra aguda, tipo a viola que tem uma corda grossa e outra
fina. (...) Eu afinei aquelas doze cordas cada uma numa nota, e aí cadê mais nota? Deu a oitava de
novo. Eu fiquei preso. Aí eu me decepcionei e por um momento me deu um branco na cabeça. Meu
Deus, quer dizer que tudo que eu faço é com essas doze notas? Eu me esqueci de pensar que nas cores
você tem o azul claro, o azul escuro, você tem a areia branca, a areia vermelha e nessa hora não me
veio que na música eu tenho as oitavas, tenho as quartas, as quintas, para me tranquilizar. Mas de
qualquer forma são doze notas, a não ser botando as comas e aí é que eu te falo, as doze é porquê é
convencional, se não não seria doze só. (...) Mas ficou chato naquela noite porque eu queria fazer uma
composição e na minha cabeça tinha notas que não tinha na [notação] convencional. (...) Foi uma
peste eu saber disso e eu não quis mais. O que eu faço não depende dessas doze notas só. Depende da
minha imaginação. (...) Tem coisas que não dá para botar num instrumento convencional. Porque que
tem a percussão, os sons dos bichos? É por isso. Na música erudita eles separam as coisas, como se
fosse um preconceito, mas na minha música não, eles tem lugar, o percussionista também é um
solista. (HERMETO)
A "música da aura", os sons de animais, dos ferros e percussivos, são gamas não
O fato "da música atonal não poder ser tocada com instrumentos convencionais", não
impede que Hermeto transite ludicamente do som harmônico para o inarmônico e vice-
versa.
confundem não só os limites entre altura e timbre, como também os limites entre os
sentidos físicos. Assim, uma das justificativas para um acorde "errado" do ponto de vista
da teoria tradicional, mas que soa bem para os ouvidos de Hermeto, pode ser encontrada
213
no fato de este acorde ser não só escutado como também visto pelo músico. Por isso,
como a massa dos sons, a maior ou menor luminosidade dos timbres instrumentais e dos
sons da natureza e do cotidiano, suas cores, etc, influenciam ou até determinam a escolha
aura" não parece se resumir às melodias que Hermeto percebe na fala e nos sons de
ruído.
A desterritorialização promovida pelo músico faz também com que ele misture
os estilos que conheceu ao longo da carreira, pois, assim como sua concepção, a
linguagem musical de Hermeto é múltipla e não linear. A mesma lógica que rege sua
baião pode misturar-se, experimentalmente, ao choro, jazz, free jazz e à música "erudita",
da mesma maneira que um ruído pode ser utilizado como uma nota de altura definida, ou
o contrário.
e a esfera social de sua produção musical. Por exemplo, o desdém de Hermeto pelo
multinacionais com as quais ele gravou em diferentes períodos de sua carreira (EMI em
1967; Polygram em 1973 e 1992; WEA de 1978 a 1980). Sete anos após o rompimento
Polygram em 1992, o CD Eu e eles (MEC, 1999) foi lançado graças a subsídios estatais
214
da Rádio MEC, a rádio oficial do Ministério de Educação e Cultura, e cinco dos seis LPs
gravados entre 1981 e 1993 foram produzidos pelo selo independente paulista Som da
Gente. Estes exemplos indicam alguns dos problemas que Hermeto teve e tem para
consolidar seu projeto artístico na arena comercial. Não é a toa que Hermeto foi
tratarem Hermeto algo simpaticamente - o que fez com que o músico alagoano dedicasse
cada faixa do LP Só não toca quem não quer (1987) a um jornalista diferente - seu
leitores das praias da Zona Sul carioca e da classe média urbana em geral, mesmo que
Hermeto não seja um nativo do Rio de Janeiro, não viva na Zona Sul, e nem possa ir à
praia.
relacionamento com o Grupo constituído de Itiberê Zwarg, Jovino Santos Neto, Antonio
Santana (Pernambuco), Márcio Bahia e Carlos Malta. Com este Grupo, Hermeto recriou
de sua infância em Alagoas. Se, por um lado, esta vivência em comunidade serviu para
fortalecer os laços entre os músicos, por outro, também marcava a rejeição a sociedade de
reprodutores de partituras; antes ele os encorajava a criar novos papéis para si mesmos.
Assim como os sons inarmônicos ruidosos presentes nos sons de animais e nas ferragens
Arapiraca (1984), Brasil Universo (1985), Mundo Verde Esperança (1989), estes são
alguns dos títulos dos discos de Hermeto Pascoal. Eles indicam as coordenadas locais,
internacionais e “universais” que ele atribui a sua música: “local” porque profundamente
7. FONTES
7.1 Bibliografia
BECKER, Howard. "Mundos artísticos e tipos sociais", in Gilberto Velho (org.), Arte e
Sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1977.
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____ . Tropicália: A história de uma revolução musical. São Paulo: Editora 34, 1997.
ECO, Umberto. Interpretação e Superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 1997 (2ª
tiragem), p. 10 - 11.
GRIDLEY, Mark C. Jazz Styles: history and analysis. New Jersey: Prentice-Hall, Inc.,
1985 (2ª edição), ps. 226-234.
GRIFFTHS, Paul. Enciclopédia do Séc. XX. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
UERJ, 1993, in Cadernos de Estudo: Análise Musical 8/9. São Paulo: Atravez.
GUEST, Ian. Arranjo: método prático. Rio de Janeiro: Lumiar Edit., 1996, vol. 3, p. 27 -
37.
LITWEILER, John. The freedom principle: jazz after 1958. New York: William Morrow
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MENEZES, Flô (org.). Música eletroacústca: história e estéticas. São Paulo: Edusp,
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PERSICHETTI, Vincent. Armonia del siglo XX. Madrid: Real Musical, 1985.
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Company, 1983.
218
RODRIGUES, Macedo. "Uma música por dia". Rio de Janeiro: O Globo, 18/09/1990.
SÉRGIO, Renato. "O bruxo quer voar". Rio de Janeiro: Revista Manchete, 1985.
SLOBODA, John. The Musical Mind: the cognitive process of music. Oxford: Clarendon
Press, 1985.
STOKES, W. Royal. The Jazz Scene: an informal history from New Orleans to 1990.
New York: Oxford University Press, 1991.
7.2 - Entrevistas
E entrevista realizada por Luís Carlos Saroldi com Hermeto Pascoal no programa "Ao
vivo entre amigos" na rádio M.E.C. do Rio de Janeiro em 1997, gentilmente cedida por
Murilo Reis Saroldi.
7.3 - Discografia
7.3.1 - Discos solo de Hermeto Pascoal
Hermeto Pascoal: Brazilian Adventure. CD. Muse Records, MCD 6006, 1971.
Lagoa da Canoa - Município de Arapiraca. CD. Som da Gente, SDG 011/92, 1984.*
Só não toca quem não quer. CD. Som da Gente, SDG 001/87, 1987.*
Airto e Flora Purim. Seeds on the ground. CD. One way Records, OW 30006, 1971.
Carlos Malta e Daniel Pezzotti. Rainbow. CD. Produção independente, fabricação Sony,
107.592, 1993.
____ . Carlos Malta e Pife Muderno. CD. Rob digital, RD 017, 1999.
7.3.4 Outros
Bang on the Can. Cheating, Lying, Stealing. CD. Sony, SNY 62254-2, 1996.