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O fragmento 12(1) pode ser lido como uma continuidade muito singular da seção
6 de GT, pois ainda que haja uma estreita afinidade temática entre os dois textos, há,
curiosamente, uma diferença significativa no modo de abordagem. Pode-se
compreender este escrito como uma retomada da reflexão elaborada na seção 6, na qual
Nietzsche discute a relação entre música e vontade, a fim de esclarecer como uma forma
de arte, a música, pode aparecer e se manifestar através da vontade, esta entendida, no
sentido de Schopenhauer, como o "não-artístico em si". Nietzsche ressalta a importância
da distinção entre essência e manifestação para a compreensão desta questão. Se a
música, segundo sua essência, jamais pode ser vontade, ela pode, entretanto, engendrar
imagens como exemplos de seu conteúdo universal. Embora este seja também o tema
do fragmento 12(1), neste Nietzsche diferencia sua concepção de vontade da concepção
de Schopenhauer, aproximando a vontade do domínio das representações. Neste
fragmento, Nietzsche não apenas deixa claro, em uma atitude bastante diferente daquela
adotada em GT, a diferença de sua reflexão em relação a de Schopenhauer, como
explicita o distanciamento do conceito central desenvolvido em sua primeira obra, o de
Uno Primordial, em relação à metafísica da vontade. Diferentemente desta concepção,
na qual a libertação do sofrimento só é possível a partir da negação da vontade, como
resignação passiva, a concepção de Nietzsche é caracterizada pela libertação do
sofrimento em uma ativa e prazerosa criação da aparência [4]. A vontade, compreendida
por Schopenhauer como vontade metafísica, passa a ser compreendida como a forma
mais universal da aparência, como um momento do processo de objetivação do Uno
Primordial. Embora Nietzsche mantenha, no fragmento 12(1), o caráter ontológico do
conceito de Uno Primordial, este conceito é testemunha de um movimento crítico de seu
pensamento, dos confrontos e reflexões nos quais se forma sua primeira filosofia.
Pretendo mostrar, a seguir, como a crítica ao conceito de vontade, assim como ao de
sentimento, está articulada a uma reflexão sobre a natureza simbólica da linguagem. Na
parte final deste trabalho, será desenvolvida uma análise das versões preparatórias ao
fragmento 12(1), a fim de explicitar o questionamento que, desde o primeiro período,
Nietzsche desenvolveu em relação à filosofia de Schopenhauer.
Neste contexto é importante explicitar a distinção feita por Nietzsche entre objeto
e origem da música. A vontade, caracterizada como forma mais universal da aparência,
simboliza, enquanto objeto da música, aquele fundamento "conceitual e figurativamente
insondável". Mas a origem da música não reside na vontade, reside antes "no seio
daquela força que, sob a forma da ‘Vontade’ produz a partir de si um mundo de visões:
a origem da música jaz além de toda individuação" [12(1), p.6]. Nesta passagem
Nietzsche separa, claramente, sua concepção de Uno Primordial da concepção de
vontade de Schopenhauer. O filósofo coloca em questão o caráter ontológico do
conceito schopenhauriano, caracterizando a vontade como a forma mais universal da
aparência. A vontade, juntamente com as sensações de prazer e desprazer, tornam-se
exteriorizações figuradas, símbolos de algo para nós indecifrável. Diferentemente da
versão final de GT, onde Nietzsche dá um nome a este fundamento, o de Uno
Primordial, neste fragmento o filósofo prefere caracterizá-lo de um modo indireto. O
fundamento originário é descrito como "invisível", "figurativamente insondável", "além
de toda individuação" e, ao mesmo tempo, como uma força que "produz a partir de si
um mundo de visões". Enquanto para Schopenhauer a música reproduz imediatamente a
vontade, para Nietzsche ela simboliza esta força, ao mesmo tempo, não-figurativa e
produtora de imagens.
Nietzsche assim comenta esta relação entre o poema e a música: "Portanto, não se
pode falar de uma relação necessária entre canção e música; pois os dois mundos aqui
postos em relação, do tom e da figura, se encontram demasiado distantes para contrair
uma ligação mais que exterior;" [12(1), p.7]. O símbolo expressa justamente o caráter
arbitrário e incongruente da relação entre tom e figura, caracterizada até mesmo como
uma relação de exterioridade. A canção, como observa Nietzsche em GT, não pode
dizer nada que não esteja, no mais alto grau de universalidade, contido na música. Tanto
a poesia do lírico, nascida da música, quanto o poema de Schiller, cantado pelo coro na
Nona Sinfonia, não possuem nenhum significado comparado ao mundo de "relações
inconscientes" [9] revelado pela música. Enquanto a palavra comunica um conteúdo
determinado conceitualmente, e, por isto, está ligada à forma e à visibilidade, o tom é
sem forma ou conceito. Diferentemente dos limites da forma, o som está ligado às
sensações de prazer e desprazer, que, como vimos, acompanham todas as
representações. A sensação é descrita como a raiz, o subsolo tonal da linguagem, a base
a partir da qual se desenvolve a diversidade das línguas. A sensação está associada ao
som pois permanece irredutível ao conteúdo conceitual que compõe o sentimento. É
justamente este caráter indivisível da sensação que Nietzsche procura ressaltar em sua
reflexão sobre o caráter não-conceitual do tom:
"E o que nos diz o próprio Beethoven, ao fazer introduzir esse cântico coral por
meio de um recitativo? "Ah, amigos, não esses tons, mas deixai-nos entoar mais
agradáveis e jubilosos!" (...). O sublime mestre lançou mão não da palavra, mas do som
"mais agradável", não do conceito, mas do tom mais intimamente rico em alegria"
[12(1), p.8].
[1] NIETZSCHE, F. Vom Ursprung der Sprache in: Nietzsche Werke. Kritische Gesamtausgabe.
2. Abteilung , 2. Band: Vorlesungsaufzeichnungen (SS 1869 - WS 1869-1870). Berlin / New York, De
Gruyter, 1993.
[2] NIETZSCHE, F. Sämtliche Briefe. Kritische Studienausgabe in 8 Bänden, org. por. G. Colli u.
M. Montinari. Vol. 3, München, 1986, p. 194.
[3] Cf. reconstituição feita por MONTINARI, M. Nietzsche, F. Sämtliche Werke. Kritische
Studienausgabe (KSA), ed. G. Colli/M.Montinari. De Gruyter, 1980, vol.14, pp.41-43 e por
KOHLENBACH, M. "Die ‘immer neuen Geburten’; Beobachtungen am Text und zur Genese von
Nietzsche Erstlingwerk ‘Die Geburt der Tragödie aus dem Geiste der Musik’ " in BORSCHE, T. (Hg)
"Centauren-Geburten"; Wissenchaft, Kunst und Philosophie beim jungen Nietzsche. Walter de Gruyter,
1994, pp. 363-377.
[4] Cf. REIBNITZ, B.. Ein Kommentar zu Friedrich Nietzsche „Die Geburt der Tragödie aus dem
Geist der Musik".Stuttgart-Weimar, Metzler, 1992, p.142.
[5] Cf. KSA, op. cit., Vol.7, p 360. Ao longo do trabalho será utilizada a tradução do fragmento
12(1) de GIACÓIA, JÚNIOR, O. im Mimeo, p. 2. Para as citações da tradução serão indicados o número
do fragmento, seguido do número da página.
[6] Cf. FIGL, J. Die Dialektik der Gewalt. Patmos Verlag, 1984, p.154. Para as próximas citações
DG.
[7] Em 1871, ano de redação de O Nascimento da Tragédia, Nietzsche releu o ensaio Do Belo
Musical do crítico musical vienense E. Hanslick. Esta leitura foi fundamental na elaboração da noção de
sentimento desenvolvida no fragmento 12(1). Para um detalhado estudo da recepção de Nietzsche deste
ensaio ver meu artigo "Nietzsche e a leitura de Do Belo Musical de Eduard Hanslick", a ser publicado em
Cadernos Nietzsche , São Paulo, nr. 16, maio de 2004 e LANDERER, Chr. e SCHUSTER, M.O.
Nietzsches Vorstudien zur Geburt der Tragödie in ihrer Beziehung zur Musikästhetik Eduard Hanslick,
Nietzsche-Studien 31 (2002).
[8] KSA, op.cit, Vol. 7, fr. nr. 8(7).
[9] KSA, Vol. 1, p 140.
[10] "Sie erscheint als ‘Wille’, das Wort im Schopenhauerischen Sinne genommen, (...) denn die
Musik kann, ihrem Wesen nach, unmöglich ‘Wille’ sein" Ver NIETZSCHE, F. Kritische Gesamtausgabe
Werke (KGW) III, 5/1. Michael Kohlenbach/Marie-Luise Haase. Nachbericht zur dritten Abteilung. Unter
Mitarbeit von Elisabeth Kuhn/Franz Göth. Berlin-New York, 1997, p. 235.
[11] Os grifos são de Nietzsche. "Sie erscheint als Wille, das Wort im Schopenhauerischen Sinne
genommen, (...). denn die Musik kann, ihrem Wesen nach, unmöglich Wille sein" in KSA 1, GT 6, p. 50.
A tradução é de minha autoria.
[12] "Auch das gesammte Triebleben, kurz was Schopenhauer ‘Wille’ nennt, ist uns, bei
genauester Selbstprüfung nur als Vorstellung bekannt: und wir dürfen wohl sagen, dass [selbst] der
‘Wille’ nichts als die [allgemeinste] Erscheinungsform eines uns übrigens gänzlich Unentzifferbaren ist"
in KGW, III, 5, p.1083.
[13] Os grifos são meus. "Auch das gesammte Triebleben, das Spiel der Gefühle Empfindung
Affekte Willensakte ist uns – wie ich hier gegen Schopenhauer einschalten muss - bei genauester
Selbstprüfung nur als Vorstellung, nicht seinem Wesen nach, bekannt: und wir dürfen wohl sagen, dass
selbst der ‘Wille’ Schopenhauers nichts als die allgemeinste Erscheinungsform eines uns übrigens
gänzlich Unentzifferbaren ist" in KSA 7, p.360-361.
[14] "Diese allgemeinste Erscheinungsform, aus der [und unter der] wir alles Werden und alles
Wollen einzig verstehen, hat nun auch in der Sprache ihre eigene symbolische Sphäre, (...)"in KGW, III,
5, p. 1083.
[15] Os grifos são meus. "Diese allgemeinste Erscheinungsform, aus der und unter der wir alles
Werden und alles Wollen einzig verstehen und fuer die wir den Namen ‘Wille’ festhalten wollen, hat nun
auch in der Sprache ihre eigene symbolische Sphäre (...)"in KSA, Vol 7, p. 361.
[16] KSA, Vol 7.
[17] Sobre as aspas em Nietzsche ver ABEL, G. "Nominalismus und Interpretation. Die
Überwindung der Metaphysik im Denken Nietzsches" In SIMON, J. Nietzsche und die philosophische
Tradition. Bd. 2. Würzburg, Königshausen und Neumann,1985, pp. 50-51.