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PENELOPE FAZER E DESFAZER A HISTORIA PUBLICAGAO QUADRIMESTRAL — N®8 - 1982 DIRECTOR A. M. HESPANHA REDACGAO Avaro Ferreira da Silva (re-un); Amélia Aguiar Andrade (rcs-un); Anténio Costa Pinto (ceHor- “tscTe); Anténio M. Hespanha (tes); Bernardo Vasconcelos @ Sousa (Fcst-unt); Carlos Fabio (F.t); Femando Rosas (rcst-unt); Helder A. Fonseca (ue); José Manuel Sobral (ics); Luts Krus (resi -un.); Lufs Ramalhosa Guerreiro; Mafalda Soares da Cunha (ue); Maria Alexandre Lousada (Fit); Nuno Gongalo Monteiro (ics); Nuno Severiano Teixeira (ve/ucr); Rui Ramos (cs); Valentin Alexandre (1s); Vitor Serr (FLuc); Secretério da Redacc&o: Jofo Carlos Cardoso Propriedade do titulo: Cooperativa Penélope. Fazer @ Desfazer a Histéria Subsidios A Redacgfo da J.N.I.C.T. @ S.E.C, Os originals recebides, mesmo quando solicitados, no serio devolvidos. Na capa: Estatueta do rei D. Afonso Henriques pertencente ao Museu Arqueolégico do Carmo. Cortesia a Associagdo dos ArqueSlogos Portugueses (Foto de Vitor Branco/Campiso Rocha) © Enicérs Cosmos € Cooperativa Penélope Reservados todos os direitos de acordo com a legislagao em vigor Capa Fotolitos: Joerma - Artes Grificas, Lat Impressio: Litografia Amorim Impressio ¢ acabamentos: Eindes Cosmos I* edigio: Outubro de 1992 Depé6sito Legal: 49152/91 ISSN: 0871-7486 Difusio Distribuigdo Lavranta Arco-fris Enicoes Cosmos Av. Jélio Dinis, 6-A Lojas 23 30 —P 1000 Lisboa Rua da Emenda, 111-1 — 1200 Lisboa Telefones: 795 51 40 (6 linhas) Telefones: 342 20 50 + 346 82 O1 Fax: (1) 796 97 13 » Telex 62393 vansus-P Fax: (1) 796 97 13 Abandono de Criangas, Infanticidio e Aborto na Sociedade Portuguesa Tradicional através das Fontes Juridicas Isabel Guimaraes S4 Instituto Universitério Europeu, Florenga «Assim se salvard a vida a huma multido de criangas, se tirard a ocasiao dos abortos, e infanticidios, se pro- curarfo vassalos para o Estado, e se evitaré 4 mulher, que teve huma fraqueza, a desgraca de ficar desonrada, tornando-se mais circunspecta para nio commetter segunda.»! Estas frases de um jurista portugués dos inicios do século XIX, a propésito das instituigdes de assistncia As criangas expostas, sintetizam 0 pensamento da época acerca de um fendémeno que desapareceu quase por completo nas sociedades pés- industriais: o abandono institucionalizado da crianga, Desde finais do século XVII € este o discurso patente na legislagdo e jurisprudéncia das nagdes europeias: eli- minando os abortos e infanticidios aumenta a populagio do Estado e através do abandono andénimo preserva-se a honra da mulher que cometeu uma falta. Na verdade, poucos aspectos so tio exemplificativos do «mundo que nés perdemos» como o abandono de criangas na Epoca Moderna e na primeira metade do século XIX. No mundo ocidental dos nossos dias este € ndo s6 excepcional como aberrante: a reproduciio envolve responsabilidades sociais ¢ individuais que tomam incompreensivel ao senso comum 0 abandono de recém-nascidos como pratica ins- titucionalizada. Passou-se de uma oferta desmedida de criangas a uma situagZo em que o controlo da natalidade Ihes concede um valor desconhecido até aqui na nossa sociedade. A valorizagaio da crianga tem implicado uma burocratizacao extrema dos processos de adopgio, enquanto no Antigo Regime se abandonavam frequentemente os filhos. Passou-se de uma superabundancia a uma rarefacgao de criangas, da qual decorre uma inversio de situagdes, Ao longo do século XVII e primeira metade do século XIX milhares de criangas foram abandonadas em todas as cidades da Europa. Trata-se de um fendmeno de 1 souSA, José Caetano Pereira e — Classes de crimes por ordem systemdtica com as penas correspondentes segundo a legislacao actual, Lisboa, Régia Officina Typographica, 1803, ecco Il, género Il, classe Il, espécie Il, n? 3, § 4, p. 296. 75 PENELOPE - FAZER E DESFAZER A HISTORIA Ambito europeu, com particular incidéncia na chamada Europa meridional. Portugal, a Espanha, a Franga napoleénica ¢ as unidades polfticas da peninsula itdlica conhe- ceram um abandono macigo de criangas, ao qual fizeram face através de prdticas assistenciais especfficas e diferenciadas. Como componente fundamental desses sistemas de assisténcia temos a consi- derar 0 corpo legislativo, que nao sé permitia como inclusivamente institucionali- zava 0 abandono, e que, naturalmente, regista variag6es de Estado para Estado. Trata-se de uma tarefa preliminar conhecer as leis que enquadravam a as téncia aos expostos para cada unidade politica considerada, sem efectivamente pretender afirmar que elas traduzem a realidade vivida ao nivel das instituigdes?. Para conseguirmos chegar a uma nogdo clara desta tiltima haverd que proceder a um estudo detalhado das diversas instituigdes implantadas no pais, tendo em conta diversos nfveis de andlise: — 0 corpo legislativo nacional — estamos aqui ao nivel de abstracgao mais geral, que representa o que a assist€ncia aos expostos deveria ser ¢ que postula uma realidade j4 existente que as leis pretendem formalizar e reformular. — 0 corpo de normas internas que regem a actividade de cada uma das insti- tuigdes consideradas, normalmente formado por um conjunto de estatutos e decisdes i¢Zio, subordinado, embora nao necessariamente coincidente, ao quadro legislativo nacional. — finalmente, a realidade ao nfvel das prdticas das instituigSes, s6 detectavel através da andlise das séries documentais relativas 4 entrada de expostos e sua criago, subordinada também aos dois corpos normativos anteriormente referidos, mas podendo no s6 nao ser coincidente como também entrar em nitida contradigao com estes’. As prdticas so antes de mais moldadas pela forma como as instituigdes sto utilizadas pelas pessoas envolvidas no seu funcionamento, situadas em posigdes especificas e que usam as instituigdes segundo formas adequadas aos seus interesses e nio raramente envolvem modalidades contrarias 4s proprias regras. No caso das instituigdes de abandono, varios tipos de «utilizadores» temos a considerar: os admi- nistradores da instituigdo de assisténcia; os indivfduos que abandonam as criangas e 20 presente trabalho baseia-se numa investigacio preliminar sobre os textos de lei sobre abandono, em que a legislacdo foi analisada com detalhe, segundo uma ordenagao cronol6- gica. V. 0 capitulo «Os expostos na legislagio civil portuguesa» integrado na dissertagio de mestrado por nés apresentada 4 Faculdade de Letras da Universidade do Porto em Abril de 1987, sob o titulo «A assisténcia aos expostos na cidade do Porto (1519-1838). Aspectos institucionais». O estudo da legislagao civil portuguesa sobre abandono de criangas destinou- -se precisamente a fornecer um quadro formal ao exercicio da actividade da Casa da Roda, do Porto, posteriormente confrontado com as priticas intemnas. 3 Sobre a distincia entre as regras codificadas ¢ a pritica social veja-se Bourdieu, Pierre — «La codification», «Communication présentée A Neuchatel em Mai 1983», publicada no volume Choses dites, Paris, Les Editions de Minuit, 1987, pp. 94-105. 76 Estupos finalmente aqueles para quem a instituigo representa uma fonte de rendimento, ou seja as famflias que criam as criancas mediante um pagamento. O segundo e¢ 0 terceiro tipo de utilizadores conduzem-nos imediatamente a outra instituiga0 — a familia — que, embora tendo recebido nos dltimos anos grande atengiio por parte da demografia hist6rica e da hist6ria social, nfo parece ter sido objecto de estudos recentes por parte dos historiadores do direito. E sempre na unidade familiar que se joga o destino da crianga, quer se opere a exclusio de um individuo de uma determinada unidade familiar e a sua integragdo noutra— caso do exposto — quer a sua supressio através do infanticidio, aborto e supressdo de parto. Dai a pertinéncia de alargar estudos deste tipo a todas as condicionantes da constituicdo da unidade familiar como entidade juridica, como detentora de patriménio ¢ individualidade econémica e a sua interacc4o com as instituigdes de assisténcia: como, quando e porqué estas tiltimas sAo utilizadas pelas familias que abandonam ou recolhem criangas. No presente trabalho limit4mo-nos ao primeiro nivel de andlise relativamente ao caso portugués, sem pretender inventariar e analisar exaustivamente as leis existentes, porquanto tal tarefa foi levada a cabo por um jurista do século XIX, Ant6nio Gouveia Pinto, numa obra que pretendia no s6 compilar e comentar as leis em vigor sobre 0 assunto mas também comparé-las com o direito de outras nagdes europeias®. O Ambito cronolégico considerado foi escolhido em fungio daquela que consideramos ser uma componente fundamental do abandono na sociedade portu- guesa do antigo regime: a possibilidade de efectuar sistematicamente 0 abandono de recém-nascidos de forma an6nima. Esse anonimato era fundamental num sistema em que varias categorias de indivfduos eram desresponsabilizadas face 4 obrigagiio de criar filhos nascidos em condigdes especfficas. O abandono legal e anénimo pro- cessou-se entre as Ordenag6es Manuelinas e 0 decreto que suprimiu as «rodas» em 21 de Novembro de 1867, transformando-as em casas-hospicios onde as criangas 4 No entanto, continuam a ser fundamentais para o estudo de aspectos juridicos da hist6ria da familia as numerosas obras de Paulo Mereia ¢ Cabral Moncada, publicadas entre os anos 20 e 60 do nosso século. 5 PINTO, Ant6nio Joaquim de Gouveia — Exame critico e histérico sobre os direitos estabelecidos pela legislacdo antiga e moderna, tanto pdtria como subsididria, e das nagées ‘mais vizinhas e cultas, relativamente aos expostos e engeitados, Lisboa, Tipografia da Academia Real das Ciéncias, 1828. Esta obra manifesta uma influéncia evidente do dircito francés pés-revolucionfrio, também ele manifestamente permissivo relativamente & institu- cionalizagao do abandono de criancas. Veja-se a obra de M. Loiseau, Traité des enfants naturels, adultérins, incestueux et abandonnés..., Paris, J. Antoine, 1811. a cheat ied Manuelinas, Liv. 1, tit. 67, § 10; decreto de 21 de Novembro de 1867 in Vasconcelos, José Maximo Leite — Collecgdo official de legislagao portugueza. Anno de 1867, Lisboa, pp. 890-903. Temos consciéncia de que atravess4mos varios periodos da his- t6ria juridica portuguesa ao longo deste estudo; sobre periodizaggo da historia das instituigdes v. HESPANHA, Anténio Manuel — Histdria das instituigdes. Epocas medieval e moderna, Coimbra, Livraria Almedina, 1982, pp. 36-50. 77 PENELOPE - FAZER E DESFAZER A HISTORIA eram admitidas depois de uma selec¢o prévia, da qual resultava a identificag4o dos pais para verificar a necessidade de confiar a crianga a assisténcia publica. Procurdmos focar os seguintes aspectos: 1. responsabilidade social e particular na criagdo de criangas desamparadas (ilegitimas, 6rfas e enjeitadas), procurando caracterizar sucintamente as modalidades de abandono; 2. o infanticidio e o aborto no direito portugués; 3. finalmente, procurémos determinar o estatuto jurfdico do exposto, no sentido de tentar compreender o que significava ser exposto a face da lei. 1. Criagaéo e Cura de Criangas Desamparadas Sem entrar em detalhes sobre a numerosa legislacgao sobre o assunto, caracteri- zaremos sucintamente 0 que a lei previa relativamente a criangas desamparadas: — seriam criadas em primeiro lugar pelos pais, as mies e os restantes parentes; se estes, por serem casados, ou terem ordens sacras, 0 nao pudessem fazer, seriam criadas 4 custa das rendas dos hospitais, e, em tltimo caso, pelas rendas dos concelhos’; — nas principais cidades portuguesas existiriam contratos entre as Camaras e as Misericérdias locais, que concediam a administrag4o do hospital dos expostos a estas tiltimas, continuando as despesas a serem suportadas pelas cAmaras, conforme 0 disposto na lei*; 7 Ordenacoes Manuelinas, Livro I, tit. 67, § 10; Ordenacées Filipinas, Livro t, tit. 88, § 11. As mesmas Ordenacées autorizavam os concelhos a langar fintas, sem autorizago, superior: «E se o dito concelho quizer langar finta para seguir algum feito e demanda, que com outrem haja em alguma das nossas relagdes, o screverao ao juiz, ou juizes do feito, os quaes Ihe dardo carta para fintar com autoridade do regedor, ou governador, até & quantia que neces- sdrio thes parecer. Porém se a finta no houver de ser mais que até quatro mil réis poderao screver ao corregedor da comarca, o qual lhe dard ligenca para a dita finta, na maneira que em seu titulo 58 he conteudo. E sem a dita carta de cada hum dos sobreditos nao poderao 0s officiaes da camera nem 0 concelho lancar finta para cousa alguma, salvo para a creagao dos meninos engeitados, segundo se contém no titulo 88: Dos Juizes dos Orfaos.» (Idem, tit. 66, § 41, sublinhado nosso). Em 1783, quando a ordem circular de Pina Manique ordena a criagio de estruturas de acolhimento aos expostos em todas as cidades do reino, confirmava- -se que o financiamento das mesmas seria efectuado pelas rendas do concelho e que na falta das mesmas far-se-ia pelo «cabego das sizas» (Ordem Circular de 24 de Maio de 1783 in AADP., Livro 1 do Registo, fis. 150-152). § Foram efectuados contratos desse teor em Lisboa (1635), Porto (1688), Coimbra (1708). V. respectivamente RIBEIRO, Vitor — A Santa Casa da Misericdrdia de Lisboa in «Historia ¢ Memérias da Academia Real das Ciéncias de Lisboa», Nova Série, 2* classe, Ciéncias sociais e politicas e Belas-letras, t. 1X, Parte Il, Lisboa, Tipografia da Academia, 1902, p. 396; A.A.DP. Livro 1 do Registo, fs. 15-31v.; ANJO, A. César — Assisténcia as criangas expostas em Portugal, «Amatus Lusitanys. Revista de Medecina ¢ Cirurgia», Lisboa, vol. vit, n. 10, Outubro de 1950, p. 427. Em Evora os expostos parece terem deixado de ser recothidos no Hospital de S. Lazaro daquela cidade em 1567 ou’ 1568, para passarem 78 Estupos — 08 expostos estariam a cargo do hospital ou do concelho até aos sete anos de idade, findos os quais seriam entregues aos juizes dos érfaos da terra. De infcio nao € regulamentado 0 termo da responsabilidade desses juizes no que respeita aos expostos, 0 que se verifica em 1775, quando se declara que os expostos s4o eman- cipados aos vinte anos de idade®; —a situagao do exposto é distinta da do érfao, uma vez que esta tiltima desig- nacdo engloba criangas em situag%o muito diversificada'®. O juiz dos érffios apenas teria a seu cargo a integrag4o do exposto no mercado de trabalho e/ou a sua atri- buigdo a uma familia"; — a roda” € 0 instrumento do abandono utilizado em todo o pafs. Essa utili- zagao, a principio nao especificada nas leis, passa a ser posteriormente referida nas a ser socorridos pela Misericérdia, V. RIBEIRO, Vitor — Histéria da beneficéncia piiblica em Portugal, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1907, p. 102. Alvard de 31 de Janeiro de 1775 in SILVA, Ant6nio Delgado da — Colleccdo da legislacdo portuguesa, desde a itima copilacéo das Ordenagées, Lisboa, Tip. Maijeuse, Vi vol. 11, , § Vil. 1 Oy ‘juizes dos 6rfios poderiam ter a seu cargo filhos legitimos, ilegitimos e expostos, sem que essas categorias se excluissem mutuamente. Uma crianga podia ser ilegitima e nto ser exposta e vice-versa. Mesmo entre os ilegitimos podemos encontrar varias categorias, podendo ser naturais ou espirios, sendo os primeiros provenientes de «coito ilicito» e os segundos de «coito danado». Por «coito ilfcito» se entende aquele efectuado por individuos sobre os quais nfo pesa qualquer impedimento canénico, enquanto no «coito danado» se verifica a existéncia desses impedimentos (um dos copuladores era casado, os dois eram parentes entre si, um deles tinha ordem sacra, etc.). V. CARNEIRO, Manuel Borges — Direito atl da tomo It «Das Couzas», Lisboa, Tipografia da Madre de Deus, 1858, pp. 1 A maior parte das obras juridicas sobre 6rfaos, os «tratados orfanolégicos», concede muito pouca atengo aos expostos, o que prova a especificidade de tratamento destes tiltimos: sem pais conhecidos, sem bens a herdar, pouco interesse tém nestes casos, em que as obras se destinavam a esclarecer essencialmente problemas de partilhas. Fazem mengdes aos expostos as seguintes obras: ALMEIDA, Jerénimo Femandes Morgado Coucciro de — Tratado orphanolégico e pratico, formado com as disposigées das Leis Pétrias, Lisboa, Tip. JEM. de Campos, 1820, pp. 103-105 (1* edig’o em 1794); LEYVA, Anténio Joaquim Ferreira d'Eca — Memérias thedricas e préticas do direito orphanolégico, Porto, Tipografia Comercial, 1842, cap. vil, pp. 69-75; SECCO, Francisco Henriques de Sousa — Tractado de orphanologia practica para uso dos principiantes, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1864, parte 1, eap. 1, sesgdo 1. 12%. pp. 279-280, Nao eneontrémos referéncia & expostos nos seguintes tratados: GUERREIRO, Diogo Camacho de Aboym — De munere judicis orphano- rum opus, Coimbra ¢ Lisboa, 1699 ¢ 1735; PONA, Ant6nio de Paiva e— Orphanologia pré- tica em que se escreve tudo que respeita aos inventarios, partilhas e mais dependéncias dos pupillos..., Lisboa, Officina de José Lopes Ferreira, 1713; CAMPOS, Manuel Anténio de — Tratado prético jurfdico civil e criminal..., Lisboa, 1765 e 1768; CARVALHO, José Pereira de — Primeiras'linhas sobre o processo orfanolégico, Lisboa, Impressao Régia, 1814. 1 Trata-se de um cilindro de madeira, oco, girando sobre um eixo, colocado numa janela, com uma abertura tnica, que impede a visibilidade entre o interior ¢ 0 exterior do edi- ficio, O agente do abandono ‘necessariamente membro da familia do abandonado) coloca a crianga no seu interior e avisa, por intermédio de uma campainha situada na parede, que acaba de o fazer. Em seguida, a pessoa do servigo dentro da casa gira 0 cilindro ¢ recolhe 79 PENELOPE - Fazer £ DESFAZER A HisTORIA mesmas", a ponto de se passarem a designar por «rodas» as instituigdes destinadas A assisténcia a expostos; — 0 anonimato e a legislagdo vigente, mesmo eclesidstica’*, concorrem para operar uma desresponsabilizag4io da paternidade ilegitima, desencorajando as inda- gages de paternidade e favorecendo os partos secretos'’. Sem pretendermos afirmar que a totalidade dos expostos seria ilegitima, a verdade é que a lei nfo colocava quaisquer obstdculos ao abandono de filhos ilegitimos; — entre a «reté6rica» presente nos textos de lei a partir do século XVII sobre expostos encontramos dois temas recorrentes: 1) a necessidade de evitar a ocorréncia de infanticidios; 2) a vantagem «demogrdfica» da salvaguarda da vida das criangas, num reino considerado despovoado — daf a preocupagio com a elevada mortalidade registada no interior das rodas'* ¢ o interesse de que as criangas comegam a ser alvo por parte da medicina no século XIX, que introduz a vacinagio e 0 ensaio de formas artificiais de aleitamento”; prontamente a crianga, sem que tivesse pos ido ver quem a trazia. Pelas suas caracteristicas a «roda» era o garante essencial do abandono anénimo ¢ da rapidez da aes a0 exposto, diminyindo o isco de morte da crianga em consequéncia da ex 3"A Ordem Circular da Intendéncia da Policia de 10 de Maio de 1783, destinada a Taner assisténcia aos expostos em todo o reino, embora mencione a palavra «roda», teferindo-se as rodas jé existentes, néo ordena expressamente a sua criagio, utilizando antes © termo «casas» de expostos. Apesar disso refere a necessidade de nio identificar os porta- dores de expostos (A. Livro I do Registo, fls. 150-152). No entanto, uma circular da Intendéncia de 1800 refere-se-lhe como tendo ordenado a criagao de rodas em todas as vilas do reino (circular de 5 de Julho de 1800 in A.MP., Livro 154 das Préprias, fs. 63, 63 v). As constituigdes sinodais tendem a dispensar os pérocos do registo do nome do pai do tho ilegitimo no assento de baptismo do registo paroquial, enquanto a mie é identificada, a nfo ser que também haja perigo ¢ escandalo. V. Constituigoens sinodaes do Arcebispado de Braga, Lisboa, Officina de Miguel Deslandes, 1697, titulo 1, constituigao Vil ordenadas por D. Sebastiio de Matos ¢ Noronha em 1639, citadas por AMORIM, Maria Norberta — Gui- mardes 1580-1819. Estudo demogréfico, Lisboa, Instituto Nacional de Investigacao Cienti- fica, 1987, pp. 40 ¢ 250. As constituigées sinodais do Porto confirmam esta norma (Consti- tuigoes sinodais do bispado do Porto, Joseph Ferreira, 1690, tit. 11, constituigao XII, vers. V1). 'S Refere-se & possibilidade de se realizarem partos secretos nas instituiges de assisténcia 0 alvaré de 18 de Outubro de 1806 (SILVA, Antonio Delgado da — op. cit., vol. V, § VIN, p. 416). 16 Circular da Intendéncia da Policia de 5 de Julho de 1800 (A.H.MP., Livro 154 das Préprias. fls. 63-63 v); «Circular de 6 de Dezembro de 1802 acerca da criagao de engeitados», AHMP., Livro 154 das Préprias, fl. 70. 17 Na falta de amas, uma circular de Pina Manique aconsetha a utilizagio de cabras: circular da Intendéncia da Policia de 5 de Julho de 1800 (A.H.MP., Livro 154 das Préprias, fls. 63-63 v). O primeiro vinténio do século assiste também a um crescente interesse cientifico pelos expostos, doravante objecto de estudos de pediatria, assim como se verifica uma ten- déncia geral para a claboragao de estatisticas globais. A Ordem Régia de 24 de Outubro de 1812 ilustra estas duas atitudes, na medida em que pedia aos provedores que enviassem & Intendéncia-Geral da Policia uma lista dos médicos ¢ cirurgiées que exercessem a profissio 80 Estupos — 0 aleitamento artificial, no entanto, foi praticado de forma precéria e insufi- ciente até & I] Guerra Mundial, pelo que era indispensdvel 0 recurso a amas de leite para alimentar a grande maioria dos expostos, que consistia em criangas recém- -nascidas, Embora as amas recebessem um estipéndio pelo aleitamento dos expostos, desde o século XVI que a lei Ihes concedeu privilégios destinados a acrescentar vantagens no pecuniarias A sua criacdo. De inicio essas regalias diziam respeito 4 isen¢io de encargos impostos pelos concelhos"*; no século XVII os privilégios concedidos tém por objecto isentar os maridos e filhos das amas do recrutamento militar’; nos séculos XVIII e XIX visam essencialmente promover a integragaio defi- nos hospitais da sua circunscri¢ao, incluindo os estabelecimentos de assisténcia a expostos. Por sua vez devia o pessoal hospitalar elaborar uma relagdo mensal das doencas verificadas nos respectivos estabelecimentos declarando as causas provaveis e o tratamento das mesmas. Essas relagSes seriam entregues ans provedores das comarcas, que por sua vez as remeteriam ao intendente-geral da Policia sendo posteriormente enviadas & Secretaria de Estado do Reino, para serem publicadas no Jornal de Coimbra (A.H.CP., RES — 73, fl. 131). 18°A primeira carta de privilégios a amas de expostos data de 1502, no reinado de D. Manuel I, concedendo importantes privilégios que vigorariam nos trés primeiros anos em que ama tivesse a crianga em seu poder. Trata-se de uma longa lista de isengGcs, respeitantes sobretudo a encargos impostos pelos concelhos: «... que ndo pague em nenhumas peitas, fintas, talhas, pedidos, servigos, empréstimos, que pelo concelho onde for morador sejam, langados, por qualquer guisa e maneira que seja, nem v4 com prezos, nem com dinheiros, nem seja tutor, nem curador de nenhumas pessoas que sejdo, salvo se as tutorias forem idimas, nem sirva em nenhuns outros cargos, nem servidoens do dito concelho, nem seja official delle contra sua vontade, nem pouzem com elle em suas cazas de morada, adegas, nem cavalhe- ices, nem lhe tomem seu po, vinho, roupa, palha, cevada, lenha, galinhas, nem besta de cella, nem d'albarda, nem outra alguma couza contra sua vontade.» (Citado por PINTO, Anténio Joaquim de Gouveia — Exame critico e histérico..., pp. 187-188). De notar que a carta se destinava apenas as amas do Hospital de Todos os Santos de Lisboa, que receberiam igualmente o salério que lhes era pago por essa instituigao; ndo sabemos em que medida 0 Testo do pais beneficiou de regalias semelhantes. Estes privilégios foram-se progressivamente alargando: em 1532 o tempo em que vigoravam estendeu-se até aos seis anos da criagdo dos expostos, por carta de 29 de Janeiro (Idem, pp. 188-189). No entanto, em carta régia de 1576, apesar de se conservarem muitos destes privilégios, faziam-se-lhes algumas ressalvas tais como: «... pagar em bolsa e em fazimento e refazimento de muros, pontes, fontes, calga- das...», podendo ainda ser «... Juizes, Vereadores, Almotacés e Procuradores do Concelho, ¢ Ihe poderdo ser tomadas as bestas, carros, carreatas que trouxerem ao ganho, por seu dinheiro € pelo estado da terra.» (PINTO, Antnio Joaquim ide Gowen ‘op. cit., p. 189 e TOMAS, fanuel Fernandes — Repertério ou Indice Alfabético das Leis Extravagantes..., vol. 1, Coimbra, Real Imprensa da Universidade, 1815, p. 49). 19 Em 1654 surge um alvaré concedendo aos maridos das amas dos enjeitados o pivtesio da isengo da guerra, respondendo a uma solicitag4o do Provedor ¢ irmaos da iseric6rdia de Lisboa «... para que com isto ndo faltem as amas que as criem, nem a estas criancas os meyos para poderem viver, e ndo virem a morrer ao desamparo, como pode suceder por esta cauza, Hey por bem que os maridos das amas dos engeitados enquanto os criarem sejdo isentos dos encargos da guerra, sem que tenho outra obrigagao que de terem armas ¢ acudirem aos alardes gerais que se fazem duas vezes cada anno em cada huma comarca deste reyno.» (Ordenacées Filipinas, 5* edigio, Lisboa, Mosteiro de S. Vicente de Fora, 1747, pp. 395-396 — sublinhado nosso). Algumas décadas mais tarde seriam também 81 PENELOPE - FAZER E DESFAZER A HISTORIA nitiva do exposto na famflia da ama”. A falta de amas que se fazia sentir em certas instituigdes obrigou a criagZo de motivos suplementares a criagdo de expostos, para além do interesse meramente pecunidrio. Por outro lado, como os privilégios diziam Tespeito nao apenas as amas como também aos seus maridos e filhos, a criagZo de expostos passava a possibilitar 0 desenvolvimento de um jogo de estratégias familiares, uma vez que a criagSo dos enjeitados podia beneficiar varios dos seus membros. isentos do servigo da guerra os filhos das amas «... porque desta concesso se pode esperar que mais promptamente queirAo sujeitar-se A criago de taes engeitados, evitando-se também © nao faltarem a estas criangas os meyos para poderem viver e nao virem a morrer a0 desamparo, como muitas vezes acontece...» (Idem, «Alvaré em que se concedeu o mesmo privilégio aos filhos das amas dos engeitados», p. 396). Também neste caso respondeu o rei a pedidos dos administradores do Hospital de Todos os Santos. Em 31 de Margo de 1787 confirmam-se aos maridos e filhos das amas de expostos os privilégios respeitantes aisengbes do servico militar, mencionando-se uma vez mais unicamente a Casa dos eee de Lisboa, nao alterando o disposto anteriormente em outras leis (Alvar4 de 31 de Margo de 1787 in SILVA, Anténio Delgado da — op. cit., vol. m1, pp. 430-431). 2 Q facto de estes privilégios serem exclusivos das amas de Lisboa ou extensiveis a todo © rein permanece ainda obscuro e somente um estudo detalhado das vérias instituigdes de assisténcia 0 poderia esclarecer. No entanto, a julgar pelo contetdo de duas circulares da Intendéncia da Policia dirigidas aos provedores das comarcas, pelo menos desde 0 inicio do século XIX se assiste a uma vontade de os fazer observar em todo o reino. Nessas circulares sdo mencionados nomeadamente os alvarés de 29 de Agosto de 1654 ¢ de 22 de Dezembro de 1695 que, como vimos, isentavam da {ropa ‘os maridos ¢ filhos das amas (Circular da Intendéncia de 5 de Julho de 1800 in A.HMP., Livro 154 das Préprias, fls. 63-63 v. e Circular da Intendéncia de 6 de Dezembro de 1802 no mesmo livro, fl. 70). Estes privilégios receberam novas confirmagées régias em 1802, num alvard que voltava a mencionar exclusivamente os expostos da cidade de Lisboa (SILVA, Antonio Delgado da — op. cit., vol. V, alvard de 9 de Novembro de 1802, pp. 121-122). O alvara de 18 de Outubro de 1806 continha disposig¢des que alargavam claramente os privilégios das amas ¢ suas familias: estas passavam a ter preferéncia sobre terceiros na conservagao de expostos depois dos sete anos. A lei beneficiava ainda as familias de lavradores isentando os filhos destes do vane da tropa de linha, em ndmero igual ao de expostos criados por essa famflia (Alvar4 de 18 de Outubro de 1806, § X in SILVA, Ant6nio Delgado da — op. cit., vol. V, p. 417). Trata-se, além de mais, do pri- meiro texto de lei em que se afirma claramente que os referidos privilégios deveriam ser observados em todo o reino, O alvaré de 24 de Outubro de 1814, dizendo respeito & curadoria dos 6rfaos, continha providéncias que diziam respeito a expostos, uma vez que, como vimos, estes estavam sob a alcada do juiz dos érfaos desde os sete aos vinte anos, idade em que eram emancipados por lei. Lé-se no respectivo parégrafo Vii: «Para animar a caridade e humani- dade daqueles meus vassalos que se propuzerem a criar e amparar algum érffo ou érfaos sem vencer estipéndio e 0 mandar ensinar a ler e escrever nas Villas ¢ cidades, hei por bem que ‘© possa conservar até & idade de dezasseis anos, sem pagar-lhe soldada, sendo-lhe também Kcito offerecer no alistamento ¢ sorteamento em hoger de algum seu filho sorteado, observando os capitées mores este privilégio religiosamente» (SILVA, Ant6nio Delgado da — op. cit., vol. V1, p. 327). No entanto, as isenges militares parecem ter tido dificuldades em fazer-se cumprir, quer devido & conjuntura de guerra que o pais atravessou quer devido a0 facto de esses privilégios nfo serem confirmados no regulamento militar de 21 de oe de 1816, a avaliar pelo testemunho de Gouveia Pinto (Exame critico e histérico..., p. 192). 82 Estupos 2. Infanticidio, Aborto e Supressao de Parto Mas, por tradicao do direito romano, o abandono inscrevia-se entre os actos que colocavam em perigo a vida da crianca e era punido da mesma forma que o infan- ticidio € 0 aborto, ou seja com a pena de morte. Além disso, nas sociedades pré- -industriais em que no se aceitava a morte dos recém-nascidos por baptizar, era necessdrio que a jurisprudéncia estabelecesse uma barreira nitida entre abandono e infanticfdio e estabelecesse critérios que permitissem condenar uns actos e tolerar outros. Cabe notar que, para se chegar A quase total aceitacfio do abandono de criancas que se verifica no século XVII, foi necess4rio que a jurisprudéncia percorresse um longo caminho: foi no século XVII que se preparou o terreno juridico para a explosao do abandono institucional que se verifica a partir de meados do século seguinte. Essa passagem fez-se através de duas formas: em primeiro lugar, reservou-se a pena de morte apenas para aqueles pais que tinham provocado a morte das criangas através do abandono”!; em segundo, alguns autores, continuando a defender a pena de morte para os culpados de abandono de criangas, ressalvavam aqueles que abandonavam os filhos por serem pobres ou por correrem perigo de vida decorrente da perda da honra™, Para evitar a difamagdo, uma pessoa a cuja porta tivesse sido deixada uma crianga podia voltar a abandond-la noutro lugar, porque podiam dizer que era seu filho®. Estava assim aberto caminho a legitimac4o do abandono: no primeiro caso abria-se luz verde para os filhos legitimos de pais pobres; no segundo para os ile- gitimos, mesmo que fossem filhos de pais ricos, Desse modo, depois de provada a legitimidade do abandono quando nao havia intengdo de matar a crianca, e em casos de necessidade, a jurisprudéncia dos séculos XVII e XIX distinguia trés formas diferentes de atentar contra a vida das criancas: © infanticidio, 0 aborto e a supressio de parto. O infanticidio seria a morte premeditada de um filho nascido vivo, enquanto 0 aborto seria a morte provocada voluntariamente de um filho por nascer. A supressiio de parto tratar-se-ia de um delito de subtil definigao: designava especificamente os casos em que as gravidezes, escondidas ou do conhecimento publico, chegavam a termo sem que a comunidade tivesse conhecimento do destino da crianga. O facto de se esconder o nascimento de uma crianga deixaria em aberto trés hip6teses: o infanticfdio, o nascimento de um nado-morto ou de uma crianga morta pouco depois do parto e ainda a sua exposi¢ao ou abandono. A tinica forma de evitar este delito 21 MOSTAZO — De causis piis, Liber 1v, cap. x1, N. 77; VELASCO, Gabriel Alvares — De privilegiis pauperwn et miserabilium personarum, Madriti, apud viduam Tidephonsi Martin, 1630, p. 2, q. 65, § 2, n. 185. 2? FRAGOSt Regim is republicae christianae, Lugduni, 1641, part. 11, Lib. 1, 1m, epit. 126; VELASCO, G.A. — op. cit., p. 2, | 65, § 2, n. 180-182 e n, 207-214, B MOSTAZO, op. b. IV, cap. X1, n. 83 PENELOPE - FAZER E DESFAZER A HisTORIA seria fazer registar pelas autoridades a existéncia de mulheres solteiras gravidas, que seriam obrigadas a dar conta piiblica dos partos. Trata-se de um delito menor em telag&io aos dois primeiros, pelas penas de que era objecto, e que pressupunha claramente a existéncia de meios legais para abandonar as criangas. Como tivemos ocasiao de observar, 0 infanticfdio € muitas vezes encarado como uma alternativa ao abandono de criangas, sendo um tema abordado com fre- quéncia no debate publico que antecede a extingao das «rodas», as quais os seus opositores tendiam a considerar como «casas de infanticfdio legal»™. A frequéncia com que encontrémos esse conceito levou a que tent4ssemos analisar de perto as leis que existiam respeitantes ao assunto. No que respeita ao aborto provocado, uma lei romana equiparava-o ao infan- ticfdio, sendo este por sua vez equiparado ao parricidio, sendo portanto punidos com a mesma pena”. Encontramos uma referéncia 4s «movedeiras» (mulheres acusadas de «fazer mover outras com beberragens, ou por qualquer outra via»), muito suméria, no Regimento de Quadrilheiros promulgado por D. Sebastiaio em 1570. Este regimento passou 4s Ordenag6es Filipinas quase sem alterag6es, acres- centando-lhe porém os casos de supressdo de parto: «E saberdo se em suas quadrilhas ha casas de alcouce, ou de tabolagem, ou em que se recolham furtos, barregueiros casados, alcoviteiras, feiticeiras, para 0 que visitardo as estalagens e vendas de suas quadrilhas: ou mulheres que se tem infamadas de fazer mover outras, ou se andando alguma prenhe, se suspeite mal do parto, néo dando dele conta.»” Sao estes os tinicos pardgrafos que mencionam as referidas formas de atentar contra a vida das criangas. No entanto, como observaram alguns juristas, como Melo Freire e Gouveia Pinto, a legislag4o portuguesa é omissa no que respeita ao infan- ticfdio* propriamente dito, entendido como «a morte violenta e premeditada de um Esse debate inicia-se em Portugal com a publicagdo de um artigo de Tomés de Car- valho na «Gazeta Médica de Lisboa» em 1853. V. CARVALHO, Tomas de — Abaixo a Roda dos Expostos, «Gazeta Médica de Lisboa», Lisboa, n. 7, fasc. 1, Maio de 1853, pp. 99-104. L.4 ff. de Agnoscend Liber citada por PINTO, Ant6nio Joaquim de Gouveia — Com- Piite de providéncias que a bem da criagao e educagao dos Expostos ou Engeitados se tem ublicado e achdo espathadas em diferentes artigos de legislacao patria, a que acrescem cura , Lisboa, Impressiio Régia, 1820, + Colleceao cronolégica de varias leis, provisdes e regimentos de El-Rey D. Sebastido, Coimbra, Real Imprensa da Universidade, 1819. p22. 2 Ordenacoes Filipinas, Livro 1, tit. 73, § 4. Este pardgrafo foi mais tarde novamente invocado no alvaré de 18 de Qutubro de 1806, § Vi, em que novamente se determinou que as mulheres soltciras declarassem a gravidez ¢ dessem conta do parto as autoridades (v. SILVA, Anténio Delgado da — op. cif. vol. V, pp. 414-418). PINTO, Anténio Joaquim de Gouvei une critico e histérico..., p. 34 € FREIRE, Pascoal de Melo — Institutiones Juris Civilis et Criminalis Lusitani, t. 5, ), § 14, Apenas um jurista, Joaquim José Caetano Pereira de Sousa, menciona o infanticidio como estando sujeito & pena capital do parricidio, citando a Ord., Liv. 1, tit. 73, § 4 ¢ a do Liv. v, tit. 35, jue no entanto néo mencionam expressamente. (v. Classes de crimes..., Lisbot ficina Typogréphica, 1803, seccdo IL, género I, classe Il, espécie I, n* Ml, pp. 294-298). 84 Estupbos filho nascido vivo»®. Aplicavam-se aos casos de infanticidio 0 direito romano, em que este crime era equiparado ao parricfdio”. No entanto, as ordenagdes apenas referem o parricidio como morte dos pais pelos filhos e no em sentido inverso: «E 0 filho, ou filha, que ferir seu Pay ou May, com tengo de os matar, posto que n&o morro de taes feridas, morra morte natural»*!, Posteriormente as ordenagdes, um alvard de 1652 autorizava os corregedores a proceder contra os assassinos, ainda que estes ndo conseguissem a morte das suas vitimas**, Esta lei poderia ter conduzido @ que aqueles que tinham exposto os filhos fossem perseguidos em justiga, sob a acusagao de que tinham premeditado a sua morte através do abandono. No entanto, qualquer um dos autores que se pronunciaram sobre o infanticidio ressalvou os casos €m que as criangas tivessem sido abandonadas de forma que fosse evidente a inten- ¢4o de lhes conservar a vida, isto € em locais onde fossem prontamente socorridos, ou nos estabelecimentos expressamente vocacionados para o efeito”. Serd assim a suspeita de aborto ou supressao de parto, desde o inicio, uma atribuicao dos qua- drilheiros e mais tarde da Intendéncia da Policia*. Daf que a circular de Pina Mani- que se referisse ao perigo de infanticidio devido & falta de «rodas», uma vez que este justificava a ingeréncia da polfcia em matéria de abandono de criancas. Serd de Testo esta argumentacio a usada por Gouveia Pinto ao pretender justificar as atribui- g6es da polfcia em matéria de abandono de criangas, aliada ao facto de os expostos pertencerem a classe dos pobres e da sua exposicdo perturbar a ordem publica’. Como vemos, as leis portuguesas em vigor no século XVIII nao siio claras no que toca ao problema do infanticidio: existem contradig6es que provocam uma indeter- minagiio das mesmas e a0 mesmo tempo concedem uma grande margem de liberdade aos membros da justiga. Enquanto os expostos constituem uma realidade social que pressiona o poder a legislar, 0 mesmo nio se passa com 0 infanticidio. Daqui surgem naturalmente duas questdes: esta auséncia de leis dever-se-4 a inexisténcia de um numero suficiente de infanticidios de molde a preocupar as autoridades? Ou estaré 2° FODERE, Traité de Médecine légale et d’hygiéne publique ou de la santé, adapté aux codes de {Empire Francais et aux connaissances actuelles, 2*ed., t. 1, Paris, Imp. de Marne, Ponto, Anténio Joaquim de Gouveia — Compilagao das providéncias..., p. 14. 3! Ordenagées Filipinas, Livro V, tit. 41, § 1. >? «Alvar em que se determinou que pudessem os corregedores devassar dos assassinos © dos que dio bofetadas ¢ agoutes em mulheres», Colleccao cronolégica de leis extrava- gantes, tomo I de Leis e Alvarés, Coimbra, Real Imprensa da Universidade, 1819, pp. 554- 7555 (sublinhado nosso). FREIRE, Pascoal José de Melo, Institutiones Juris Criminalis Lusitani, t. V, tit. V, § 14; SOUSA, José Caetano Pereira — op. cit., secgdo 0, género Il, classe U, espécie HI, n® 3, $8, p. 298; FODERE, F.E. — op. cit., 2% ed., vol. IV, p. 398. ‘Os quadrithciros eram oficiais inferiores de justi¢a nomeados pelas cimaras para servir durante trés anos, posteriormente substituidos pela Intendéncia-Geral da Policia, a partir de 1760. 3 PINTO, Ant6nio Joaquim de Gouveia — Exame critico e histérico..., p. 239. 85 PENELOPE - FAZER E DESFAZER A HISTORIA apenas relacionada com a dificuldade de provar uma acusac¢io de infanticfdio, embora estes tenham sido frequentes? A estas perguntas somente uma andlise de séries documentais provenientes dos arquivos dos tribunais e da polfcia poderia for- necer respostas*. Parece-nos que, no caso do infanticfdio, existem apenas duas realidades possfveis: ou se tratava duma prética corrente anteriormente a existéncia de «rodas», demasiado frequente para ser passfvel de punig&o sistemdtica, ou, pelo contrario, a sua ocorréncia foi sempre excepcional. De qualquer forma, somente a partir do século XIX, com o desenvolvimento da medicina legal, se pSde comegar a determinar com alguma certeza a intencionalidade na morte de recém-nascidos. Até essa época 0 infanticfdio continuou a pertencer & categoria dos crimes «dificeis de constatar», como o classificou 0 Marqués de Beccaria™. Serd no perfodo liberal que surge entre nds uma legislac’o objectiva no que respeita ao aborto e infanti-cidio, agora definidos e penalizados de uma forma clara e com uma hierarquizacio evidente**, 3. O Estatuto Juridico do Exposto Nos séculos XVII e XVIII, a jurisprudéncia sobre a condigaio juridica do exposto mostra-se fragmentdria. Como os enjeitados se englobavam num grupo mais vasto, 0 dos pobres, isto € dos individuos que necessitavam de recorrer a caridade publica, tinham os privilégios inerentes a esta categoria: possibilidade de escolher como foro o tribunal régio, os que os colocava ao abrigo das arbitrariedades do foro privado; de apelar das sentengas sem limite de prazo e suspensio de dividas enquanto se man- tivesse a condig4o de pobre; em contrapartida, nao podiam testemunhar, porque nao eram considerados idéneos”. 36 Bxiste uma certa unanimidade entre os historiadores quanto & dificuldade de provar acusagdes de morte deliberada de recém-nascidos, nomeadamente quando esta assumia um cardcter acidental, como € 0 caso dos 6bitos devidos a sufocamento. V. LEBRUN, Fran —A vida conjugal no Antigo Regime, Lisboa, EdigSes Rolim, s/d, p. 143, e LANGER, William Lo = Infanuicide: a historical survey, History of Childhood Quaterly>, New York, 1973, p. 37 BECCARIA, C. — Traité des délits et des peines, Amsterdam, 1771, pp. 148-152. Sobre as primeiras técnicas de exame médico-legal de recém-nascidos, ver FODERE, op. cit., vol. Iv, pp. 377-526. 38 V. Cédigo penal por decreto de 10 de Dezembro de 1852..., Coimbra, Imprensa da Universidade, 1854, artigos 356 ¢ 358. O infanticidio € objecto de pena mais pesada do que © aborto, sendo o primeiro punido com a pena de morte e o segundo com a priséo maior tem- pordria. No que respeita & supressio de parto, esta no € expressamente mencionada, embora se considerem os crimes de subtracgdo e ocultago de menores (Idem, artigo 344). 39 HESPANHA, Anténio Manuel — op. cit., p. 228, nota 426. 86 Estupos Algumas quest6es eram objecto de divergéncia entre os autores, ocasionando Por isso confusdo no contetido dos textos. Entre essas questdes merece especial atengiio a determinagiio do tipo de filiagio do exposto; havia que optar entre presumi-los legitimos ou ilegitimos, uma vez que as indagagées de paternidade eram impraticdveis no contexto do abandono. Embora os juristas tendessem a considerar que os expostos deviam ser canalizados para a aprendizagem dos oficios mecdnicos ou para 0 exército"', tratava-se duma questiio fundamental, porque dela dependia o tipo de insergfio social do exposto, numa época em que ingressar nos quadros da igreja e da magistratura dependia da prova de filia- ¢4o legitima; por outro lado, era fundamental para determinar se o exposto podia receber herangas. A questo parece ter sido resolvida em situagaio de compromisso, aceitando-se a legitimidade presumida em caso de divida*, tanto mais que fora objecto de determinagZo papal, mas com algumas restrigdes®. Outra questo consistia em determinar se os pais que tinham abandonado os filhos tinham ou nao direitos sobre eles — 0 chamado patrio poder. Foi resolvida unanimemente através da determinagiio de negar o poder paternal, o que englobava © caso do senhor que tinha abandonado o escravo, que ao ser exposto passava a homem livre“. Outras quest6es controversas seriam a definigdo das instituigdes que deviam de facto encarregar-se da criagdo de expostos e se as despesas com estes eram ou nio teclamdveis; estes problemas, porque no tém incidéncia no estatuto juridico do exposto, nio serio aqui referidos, Nos infcios de oitocentos que a formalizagio do estatuto do exposto atinge a maturidade, segundo linhas tragadas desde as primeiras leis tocantes a Orftios € expostos. Gouveia Pinto preocupou-se em definir esse estatuto legal e politico, seguindo bastante de perto os princfpios enunciados pelo jurista francés Loiseau, que “ Nio fizemos uma leitura de todos os textos de jurisprudéncia acerca do assunto,; apenas dos autores mais frequentemente citados. O facto de as obras juridicas serem escritas em latim conduzia & sua fécil difusio internacional, tanto mais que nas primeiros 40 anos do século Portugal estava integrado nas possessdes espanholas. Assim citaremos alguns juristas espanh6is, como Mostazo ou Velasco. 4 MOSTAZO, F. 8 — De causis piis, Lugduni, 1700, Liber 1v, cap. x1, n. 59. ® MOSTAZO, F.— op. cit., Liber Iv, cap. XI, n. 73 a 76. FRAGOSO— op. cit.,t. IL, part. M1, Lib. 1, § 1, n. 133 e 134; PEGAS, Manuel A. — Tratactus de exclusione inclusion Lisboa, 1686, Pars Quinta, cap. LXM, n. 1, 2,3 € 7. * Essas restrigdes implicavam provas de filiagao legitima ou dispensa papal nos casos em que o exposto pretendia concorrer a uma heranga juntamente com filhos legitimos, de querer receber ordens ou de pretender ingressar na Teauisisto (MOSTAZO — op. cit., Liber IV, cap. XI, n. 75 ¢ 76). Ver ainda FREIRE, Pascoal José de Melo — /nstitutiones luris Civilis Lusitanae, t. 0, tit. V1, § Vi. “4 VELASCO, Gabriel Alvarez — op. cit., pars 2, q. 65, § 2, n.s. 192 a 194; FRAGOSO, op. cit., t I, part. 1, Lib. I, § i, n. 132; MOSTAZO, op. cit.,t. 1, Lib. IV, cap. XI, n. 78; PEGAS, Manuel Alvares — Tractatus de exclusione, inclusione..., Pars Quinta, cap. LXM, n. 6. 87 PENELOPE - FAZER E DESFAZER A HisTORIA publicou um tratado sobre as criangas ilegitimas e abandonadas em pleno império napolednico”. Baseando-nos nestes dois autores podemos esquematizar a condigao juridica do exposto do seguinte modo: 1. A situagiio de exposto é transit6ria — corresponde somente aos primeiros anos de vida, nos quais se encontra a cargo da sociedade, através das suas instituigdes publicas; 2. A partir dos sete anos de idade passa a gozar do mesmo estatuto dos 6rfaos, apenas com a diferenga de ser emancipado cinco anos antes destes tiltimos, aos vinte anos de idade. 3. O exposto encontra-se no grau zero da sua prpria genealogia; sendo os seus pais desconhecidos, presume-se ser legitimo e como tal € tratado pela lei, tendo direitos iguais a estes tiltimos*. 4. A naturalidade do exposto € a do local em que foi abandonado*. O abandono numa instituigio adquire o cardcter de um segundo nascimento, através do qual o exposto ganha uma pitria e pais putativos (a instituig&o que 0 acolhe, ou, num sentido mais lato, passa a ser filho do Estado). 5. O exposto pode herdar qualquer tipo de bens, observando-se as disposig6es legais vigentes para a generalidade dos individuos, podendo receber legados de toda a pessoa capaz de testar*. 6. O exposto € um homem livre: em caso algum poderd ser reduzido a escra- vatura, mesmo sendo filho de escravos. Esta impossibilidade de reduzir 0 exposto & condigdo de escravo baseia-se no Cédigo de Justiniano, onde foi pela primeira vez enunciada®. Serd talvez esta condigio a tinica que se encontrava ultrapassada ao tempo de Gouveia Pinto, uma vez que a segunda metade do século XVII tinha assistido a um esforgo de Pombal no sentido de extinguir progressivamente a escra- vatura em Portugal continental®. Encontramo-nos aqui a um nivel meramente tedrico; no entanto € assim que as leis enunciam o estatuto legal do exposto, quer entre nds quer nas préprias leis 45 LOISEAU, M. — Traité des enfants naturels, adultérins, incestueux et abandonnés..., Paris, J. Antoine, 1811, pp. 768-804. 4 PINTO, Anténio Joaquim de Gouveia — Exame critico e histérico..., pp. 242-244; LOISEAU, M. — op. cit., pp. 768-769, 795 ¢ 798. cad INTO, Ant6nio Joaquim de Gouveia — op. cit., p. 241; LOISEAU, Jean-Simon — op. cit., p. 796. 48 LOISEAU, Jean-Simon — op. cit., p. 801. 49 LANGER, William L. — art. cit., p. 363 (a legislagao data de 529). 50 RUSSEL-WOOD, A.J.R.— Iberian expansion and the issue of black slavery, «American Historical Review>, vol. 83, 1978, n. 1, p. 41. Um édito de 1761 estipulava que, a contar seis meses depois da data da sua publicagdo, os escravos negros desembarcados em Portugal seriam automaticamente libertados. Em 1773 um decreto real abolia a escravatura na metrépole. 88 Estupos napolednicas. E interessante notar que os dois autores fazem uma sintese entre os autores seiscentistas e setecentistas, eliminando os pontos de tensio no sentido de beneficiar a condig’o do exposto, a ponto de o declararem em situagio privilegiada face d do filho ilegitimo*'. Por exemplo, Gouveia Pinto afirmava que nada impedia um exposto de tomar ordens sem necessidade de dispensa papal. Foi este, em tragos largos, 0 quadro juridico do abandono em Portugal, que, como vimos, ndo registou variages significativas ao longo de mais de trés séculos. No entanto, resta-nos percorrer um longo caminho: saber como se efectuou 0 didlogo entre as priticas sociais e o poder, de que modo direitos e costumes se adaptaram a nivel local ds diferentes conjunturas econdmicas e sociais que a legislagdo atravessou. Novembro de 1988 Abreviaturas utilizadas A.A.D.P. — Arquivo da Assembleia Distrital do Porto. A.H.M.P. — Arquivo Histérico Municipal do Porto. 89

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