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Internados à força A polêmica do infanticídio

REVISTA DO CURSO DE JORNALISMO DO IESB

REdemoinho

www.iesb.br
Junho 2015
Brasília
IESB – Instituto de Educação Superior de Brasília ANO 06 . NÚMERO 08

A dor e o peso de

ver a mãe
na cadeia

Ana (*) é uma das crianças que


semanalmente se submetem
às revistas na penitenciária,
para se sentir “em família”
2015.
42 capa
Índice
Meninas e meninos privados da

Mães atrás das grades


companhia da mãe enfrentam
uma rotina de submissão e
revistas para passar apenas alguns
minutos com elas na cadeia

04 Internados à força
O drama de quem perdeu a liberdade e foi
afastado da sociedade pelos familiaress em
função da autodestruição pelo uso de drogas

36 Infanticídio
Tradição polêmica mantém cultura
indígena, apesar de todas as gritas dos
defensores dos direitos humanos

09 Os invisíveis das ruas Nas calçadas


brasilienses, histórias de quem não tem
moradia e carrega um estigma social
52 ‘Malucos’ de estrada Com mochilas nas
costas e o mundo pela frente, eles abrem
mão do conforto em busca de aventuras

13 A dor do aborto Os traumas de perder


o filho antes mesmo de dar à luz
atinge cerca de 15% das gestantes
57 Cultura em movimento Grupos lutam por
espaço e buscam apoio financeiro com
performances variadas e ações de cidadania

16 Tirados de nós Famílias que têm a vida


alterada por conta do desaparecimento
ou assassinato de entes queridos
62 Empoderamento negro Valorização
de elementos estéticos é parte
importante na construção da identidade

20 Avós como pais Sem desânimo,


homens e mulheres se dedicam ao
cuidado da terceira geração da família
67 Futebol sem glamour Rotina da
maioria dos jogadores inclui trabalho
apenas por três meses no ano e menos

24 Amas de leite Amamentação voluntária de 2 salários mínimos mensais


traz riscos e é condenada pelo Ministério
da Saúde, mas ainda assim mulheres se
arriscam na prática em pleno século 21
70 Parceria com ETs Grupo com
1.500 pesquisadores garante que
existe vida em outros planetas e que

28 Luta pela vida O jovem Lucas Neres estabelece comunicação com eles
dribla as dificuldades para conseguir um
transplante de pulmão por meio de nova técnica
desenvolvida por um brasileiro no Canadá
76 Múltiplo Paranoá Lago construído
junto com Brasília é parte da identidade
candanga e agrega usos que vão do esporte

32 A vida nos mosteiros Largar tudo e se dedicar e reabilitação, ao ganho do sustento e lazer
ao louvor divino foi a opção para homens e
mulheres que optaram pela clausura no DF 82 11 anos de indefinições Disputa entre
gestores públicos e ocupantes da orla

48 Vendem-se armas Comércio ilegal já vem sendo travada desde 2004


movimenta periferia e aumenta estatísticas
de violência no Distrito Federal
REDEMOINHO REVISTA DO CURSO DE jornalismo do IESB

EDITORIAL

Expediente
redemoinho . ano 06 . número 08

Coordenação editorial e edição: Alzimar Ramalho, Cândida Mariz, José Marcelo dos Santos e Leila Herédia. Projeto Gráfico: Iara Rabelo e Suzana Guerra.
Capa, diagramação e direção de arte: Luciana Lobato. Conselho editorial: Alzimar Ramalho, Cândida Mariz, Daniella Goulart, Daniel Farias, José Marcelo dos
Santos e Leila Herédia. Coordenação do curso de jornalismo: Daniella Goulart. Direção geral do Iesb: Eda Coutinho Machado. Tiragem: 1.000 exemplares.
Redação: (61) 3445-4577. Repórteres e fotógrafos do quinto semestre de jornalismo: Andrew Simek. Beatriz Matos. Danielle Feitosa. Gessiara de Carvalho
. Guilherme Marques. Jaqueline Marinho. Jivago Cavalcanti. Kelvin Taumaturgo. Lécio Luiz. Lucas Tiveron. Luís Adriano Salimon. Luiza Brasiel. Marcos de Souza.
Matheus Leadebal. Nayara Oliveira. Natália Queiroz. Nathália Garcia. Nathália Gonçalves . Paula Faria. Pedro Paulo Teixeira. Priscilla Junqueira. Thais Evangelista.
Vanessa Ferreira. Vera Lúcia Teixeira. Yuri Moura Guarino.

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A descober ta do ser repór ter é um desafio para
quem ainda está na faculdade. O trabalho de olhar o
mundo, encontrar boas histór ias que valham a pena
ser contadas e dar voz a quem não tem espaço para
falar exige muito mais do que acreditamos ser capa-
zes em um pr imeiro momento. M edo, insegurança e
superação são sentimentos- chave para quem vive, in-
tensamente, o quinto semestre de jor nalismo do Iesb.
S aímos da sala de aula para ir às ruas, no desafio co -
tidiano de exercer a profissão que escolhemos, como
contadores de histór ias de mazelas ainda ocultas. Ide -
alistas, que resgatam o faro da empatia por meio des-
sa fer ramenta de transfor mação social.

Para seguir a leitura pelas próximas páginas, após


esses quatro meses de trabalho, será preciso enten-
der, antes de tudo, que elas tratam de momentos de
precioso aprendizado. S ão os relatos de quem foi in-
ter nado à força pelos familiares como medida ex trema
para tentar vencer a autodestruição; de meninas e me -
ninos que, pr ivados da companhia da mãe, enfrentam
uma rotina de submissão e revistas para passar ape -
nas alguns minutos com elas na cadeia; do universo
dos indígenas, que mantêm a cultura do infanticídio
apesar de todas as gr itas dos defensores dos direitos
humanos.

Entre tantas histór ias densas, também trazemos a


leveza dos aventureiros de estrada, dos avós que se
dedicam a cuidar da terceira geração da família, do
empoderamento das mulheres por meio da estética,
dos grupos culturais que sonham com um lugar ao sol.
E ainda a rotina dos pesquisadores de vidas ex trater-
redemoinho . ano 06 . número 08

restres e a impor tância do Paranoá, com seus múlti-


plos usos, para a identidade candanga. B em-vindos a
uma R edemoinho de vivências. No mais, à complexida-
de do ser humano por meio de palavras, emprestadas
e apropr iadas por nós, sinceros aprendizes.

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Internação
involuntária
O drama de famílias que decidem
internar à força parentes com
problemas provocados pelo abuso
de drogas, como LSD, crack e álcool
redemoinho . ano 06 . número 08

Guilherme Marques

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E
ra madrugada quando Chi- quentes e a demonstrar comporta- O que diz a lei
có, 20 anos, invadiu a casa mentos agressivos. Certa vez, ele ba-
de um vizinho. O morador teu na irmã de 14 anos e chamou-a de Internação voluntária
da residência, ao ouvir os “puta” quando viu sangue na calcinha
barulhos, decidiu levantar- da menina: ela havia menstruado pela A pessoa que solicita
-se para ver o que ocorria. primeira vez. O jovem passava dias voluntariamente a própria
Pensava ser um ladrão. Ao sem dormir e, constantemente, dizia internação, ou que a consente, deve
entrar no quarto, encontrou o jovem, que queria fazer uma “bomba de kryp- assinar, no momento da admissão,
que já tinha avistado pela vizinhan- tonita”. Na ocasião mais grave, após ter uma declaração de que optou
ça, fazendo exercícios vigorosamente desaparecido durante toda uma noite, por esse regime de tratamento. O
com os halteres que estavam guarda- foi encontrado em um matagal perto término da internação se dá por
dos no aposento. Não foi a primeira e de casa na manhã seguinte, estirado solicitação escrita do paciente
nem última vez em que Chicó apre- ao chão, com o corpo coberto de he- ou por determinação do médico
sentou um comportamento inusitado matomas e o ânus assado. responsável. Uma internação
entre novembro e dezembro do ano Foi apenas durante o período em voluntária pode, contudo, se
passado. Os constantes surtos do garo- que estava internado que a família e transformar em involuntária e o
to foram tão preocupantes para a mãe os médicos souberam a causa dos pro- paciente, então, não poderá sair
e a madrinha que, para tentar ajudá-lo, blemas: ele tomou doses abusivas de do estabelecimento sem a prévia
as duas o internaram à força em um NBOMe, conhecido como “doce”, uma autorização.
hospital psiquiátrico quando soube- droga alucinógena que gera alterações Internação involuntária
ram que os delírios poderiam ter sido sensoriais e, principalmente, psicológi-
É a que ocorre sem o consentimento
causados pelo uso de alguma droga. cas. Apesar de não causar dependên-
do paciente e a pedido de terceiros.
O caso de Chicó pode até ser peculiar, cia física, pode acabar desencadean-
Geralmente, são os familiares que
mas a procura por internações involun- do um quadro psicótico em alguns
solicitam a internação do paciente,
tárias no Distrito Federal é corriqueira: usuários, como aconteceu com Chicó.
mas é possível que o pedido venha
em 2014, Por “di-
de outras fontes. O pedido tem que
84 ações "Ele me pedia para não deixá-lo ve r s ã o ”, ser feito por escrito e aceito pelo
foram mo- como ele
médico psiquiatra. A lei determina
vidas pela naquele lugar. Mas não tinha mais m e s m o
que, nesses casos, os responsáveis
Defenso-
ria Pública
jeito. Antes ele lá do que morto" dconsumiu efine,
técnicos do estabelecimento de
saúde têm prazo de 72 horas para
regional. Nilce Aparecida, madrinha de Chicó, p e d a c i -
informar ao Ministério Público
Quase to- sobre a internação do afilhado nhos da
do estado sobre a internação e os
das são substân-
motivos dela. O objetivo é evitar
de famílias que procuram ajuda para cia praticamente todos os dias durante
a possibilidade de esse tipo de
parentes que têm problemas com dro- três semanas seguidas. O jovem expli-
internação ser utilizado para o
gas, provocados, na maioria das vezes, ca que, apesar das boas sensações, de
cárcere privado.
pelo abuso de crack ou álcool. muita felicidade e energia, o abuso o
Segundo dados da Secretaria de levou a ter surtos durante pouco mais Internação compulsória
Saúde, mais de 50 pessoas foram inter- de um mês, do qual pouco se lembra.
Nesse caso não é necessária a
nadas involuntariamente no ano pas- “Comecei a ter dificuldade em organi-
autorização familiar. A internação
sado. Apesar de a Defensoria Pública zar os pensamentos e rolou essa ba-
compulsória é sempre determinada
ter um papel importante nesse tipo gunça toda”, afirma.
pelo juiz competente, depois de
de internação, não há exigência legal Diferente, porém igualmente pre-
pedido formal, feito por um médico,
para que se envie uma solicitação para ocupante para a família, é o caso de
atestando que a pessoa não tem
o órgão durante esse processo. Basta Gabriel, 30 anos, que sofre de alcoo-
domínio sobre a própria condição
que um psiquiatra analise as condições lismo desde os 16. Segundo a mãe,
psicológica e física. O juiz levará em
do paciente, assine um laudo deter- Célia Flores, 50, no começo parecia
conta o laudo médico especializado,
minando o tratamento e que a clínica algo normal, quando ele tomava vinho
as condições de segurança do
responsável envie uma notificação ao no fim de semana com os amigos. Dois
estabelecimento, quanto à
Ministério Público em um período de anos depois, porém, Gabriel come-
salvaguarda do paciente, dos
até 72 horas. O médico avalia, dentre çou a namorar uma garota que bebia
redemoinho . ano 06 . número 08

demais internados e funcionários.


outros fatores, se o estado mental do constantemente e, por influência dela,
indivíduo oferece risco de vida a si pró- passou a tomar bebidas mais fortes, Fontes: Lei 10.216/2001, Ministério
prio ou a terceiros, a principal prerro- como cachaça e vodka. “Acabou que da Justiça; Associação Brasileira
gativa para uma internação involun- em plena segunda-feira ele aparecia de Psiquiatria; e Cartilha Direito à
tária, que está prevista em lei desde em casa alcoolizado, sem controle. Saúde Mental, do Ministério Público
abril de 2001. Chegava agressivo, falando muito alto, Federal e da Procuradoria Federal
Parecia ser o caso de Chicó, que e começou a ser assim diariamente”, dos Direitos do Cidadão.
passou a ter surtos cada vez mais fre- conta Célia. A situação era ainda pior

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Chicó, em frente à casa
da madrinha, segura os
documentos que autorizaram
sua internação: ele achou
a medida injusta

porque a outra filha, de 23 anos, tem requisitos da internação involuntária, do NBOMe, perdendo o contato com
síndrome de down e sempre ficou as- nós buscamos uma ordem judicial que a realidade”.
sustada com o estado do irmão. Ga- obriga o Estado a custear o tratamento Não era a situação de Gabriel, que
briel abandonou os estudos no ensino dela em uma clínica particular”, diz. tinha consciência do próprio vício, mas
fundamental e, desde então, passou A cabeleireira Nilce Aparecida, 56 não conseguia largá-lo. Ele chegou a
por alguns poucos empregos, mas não anos, madrinha de Chicó, foi ao CAPs frequentar terapias em grupo no CAPs,
conseguiu ficar por muito tempo por para explicar a situação do afilhado e mas não ía com a frequência adequada
conta do vício em álcool. receber orientações. Para ela, estava e acabou deixando de lado. “Ele já me
Segundo o defensor público Fer- claro que o jovem precisava de passar disse muito que ía parar de beber, mas
nando Henrique Honorato, a primeira por um período de tratamento mais nunca parou, então comecei a sugerir
medida recomendada para casos de intensivo. “Ele estava falando coisas de que ele procurasse uma internação,
pessoas que estão com problemas doido mesmo, coisas desconexas. Fi- só que ele não queria. Como ele não
com drogas é que os responsáveis cou totalmente fora de controle”, con- levava os tratamentos a sério, resolvi
busquem uma unidade do Centro ta. Lá, ela recebeu a informação de que procurar por uma internação involun-
de Atenção Psicossocial (CAPs), uma o caso dele não poderia ser tratado por tária”, conta Célia. Ela buscou ajuda na
instituição governamental sur- Defensoria Pública e, quatro
gida em 1992 com o objetivo No mesmo dia em que saiu da meses depois, conseguiu uma
de atendê-las. “Lá, uma equipe ordem judicial para que o rapaz
especializada vai analisar a si- clínica, onde passou seis meses, fosse para uma clínica particu-
tuação e dar orientações para a Gabriel apareceu em casa lar. Como Célia acreditava que
família sobre como proceder”, não conseguiria levá-lo, uma
afirma. Ele destaca que a inter- alcoolizado ambulância foi agendada para
nação não é necessária em to- buscar Gabriel em casa. “Os
dos os casos. “É uma medida extrema, uma clínica. “Me disseram que ele pre- enfermeiros e seguranças chegaram
que deve ser tomada apenas quando cisaria ser levado para o HPAP”, conta e disseram a ele que o levariam para
outras formas de tratamento já foram a cabeleireira, se referindo ao Hospital ser internado em uma clínica. Ele não
feitas para ajudar a pessoa”. Os CAPs, de Pronto Atendimento Psiquiátrico, resistiu. Trocou de roupa e foi. Antes
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contudo, não realizam internações. um sanatório público para pessoas de sair, olhou para mim e disse: 'é, a
Fernando explica que no Distrito Fe- com transtornos mentais. O médico senhora conseguiu mesmo'”, conta,
deral não há clínicas públicas para in- psiquiatra Caio César de Araújo expli- emocionada.
ternar dependentes químicos, e que a ca que este tipo de encaminhamento Com Chicó, foi diferente. Ele conta
Defensoria Pública atua exatamente é feito em casos que não são de de- que, como não esperava pela interna-
em casos de famílias que não têm con- pendência química. “Provavelmente, ção, a mãe, que preferiu não conversar
dições financeiras para isso. “Quando ele teve um quadro de surto psicótico com a reportagem, o acordou certo
a situação da pessoa se encaixa nos desencadeado pelo consumo abusivo dia dizendo que o levaria para uma

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consulta em um psicólogo. Levou-o e mulheres. A diária custa cerca de 500
ao HPAP, onde junto com ele e Nilce, reais. Gabriel nunca tentou fugir. Há
conversaram com uma médica so- dois meses, ele foi liberado do local,
bre os acontecimentos das últimas quando médicos afirmaram para Cé-
semanas. A psiquiatra determinou a lia que o rapaz estava “firme” e que
internação imediatada do jovem. “Eu sentiam segurança da parte dele. No
chorei muito, ele me pedia para não mesmo dia em que saiu, porém, ele
deixá-lo naquele lugar. Mas não tinha apareceu em casa alcoolizado. “Fiquei
mais jeito. Antes ele lá do que morto”, arrasada. Agora, eu não sei mais o que
resume Nilce. fazer”, conta, em lágrimas. “Eu falo para
Enquanto clamava pela mãe e a ele que ele tem que criar vergonha na
madrinha, dois enfermeiros renderam cara, que ele já tem 30 anos e já esta na
Chicó, um em cada braço. O rapaz lem- hora de me dar um pouco de sossego”.
bra que aplicaram nele uma injeção de
Eficácia
medicamento antipsicótico e o amar-
raram em uma maca para levá-lo à ala Segundo o psiquiatra Caio César
de internação. Ele passou 40 dias no de Araújo, que durante cinco anos tra-
HPAP, junto com cerca de outros 30 pa- balhou exclusivamente com depen-
cientes com transtornos psiquiátricos. dentes químicos, as internações de
Chicó diz ter se sentido profundamen- pessoas com problemas com drogas
te triste com a mãe e a madrinha e que, são estritamente necessárias quan-
por vezes, quando as duas passavam do estas oferecem risco à própria vida
alguns dias sem visitá-lo, pensou que ou a de outras por conta do uso. No
seria esquecido lá dentro. Durante a caso de álcool, por exemplo, é válido
internação, participou de uma rebelião se o uso abusivo gera um quadro de
com outros pacientes, quando tocou insuficiência hepática no indivíduo ou
fogo em colchões “só pela zoeira mes- quando a substância desencadeia um
mo”, e tentou fugir cerca de seis vezes. quadro psicótico no usuário, como foi
Todas sem sucesso. o caso de Chicó.
Após algumas semanas conver- O psiquiatra afirma que a interna-
sando diariamente com médicos e ção, porém, tem pouca eficácia quan-
ingerindo medicamentos estabili- do se trata de situações de vício. “Há
zadores de humor, apresentou um vários estudos que demonstram que usuário
comportamento mais tranquilo e são, a grande maioria das internações para de maconha,
Thiago Souza foi
acostumou-se com o ambiente e che- dependência química não funcionam, internado contra
gou a fazer dois amigos. Ele insiste que, sejam elas involuntárias ou não”, diz. a vontade, sem
desde que tinha entrado, estava muito Ele explica que isso acontece porque, que apresentasse
melhor do que os outros internos. “Era em praticamente todos os casos, a os requisitos para
o tratamento
todo mundo muito doido mesmo, pa- pessoa não tem um problema com a involuntário
recia The Walking Dead (seriado norte- droga, e sim com ela mesma. “O que
-americano de zumbis). No começo, leva as pessoas a usarem drogas é um
eu achei que estava no inferno, mas desconforto existencial. A pessoa tem
depois fiquei mais de boa. O chato é uma depressão e usa crack para fugir ternações têm sido pouco eficazes da
que não tinha nada pra fazer”. dos problemas, por exemplo. Não é a forma como funcionam hoje”.
Gabriel não quis conversar com a droga que faz a pessoa ficar proble- Apesar de reconhecer a melhora
reportagem para contar sobre os seis mática, o problema já existe antes e a que teve durante o tempo em que fi-
meses em que ficou internado pelo pessoa busca a substância na tentativa cou no HPAP, Chicó considera injusto
alcoolismo. Lá, como na maioria das de aliviá-lo”, destaca. ter sido internado sem o consentimen-
clínicas de reabilitação, os pacientes É exatamente pelo fato de a raiz do to. “Foi a pior experiência da minha
realizam atividades físicas como fute- problema não ser tratada que é muito vida. Não acho que eu tenha causado
bol, academia e natação, e recebem comum que pessoas sejam internadas esse sofrimento todo. Foi uma decisão
atendimento de psiquiatras, psicólo- por bastante tempo. Em vários casos, muito precipitada”, afirma. Já Nilce diz
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gos, assistentes sociais e terapeutas por mais de uma vez e sem conseguir que se o afilhado não tivesse passado
ocupacionais, além da administração se livrar do vício. “É preciso, principal- pelo HPAP, provavelmente teria conti-
de medicamentos antidepressivos. O mente, uma abordagem familiar para nuado usando a droga. “Ele não per-
local é uma espécie de chácara, com tentar preencher o vazio que aquela cebia mais o que estava fazendo com
40 mil m², disposta de bastante área pessoa sente. Tentar fazer com que ela a própria vida e a da família”, diz. Hoje,
verde e de quartos individuais ou du- busque novos hábitos, descubra novos o jovem deixa claro que não tem mais
plos para os internos, que totalizam prazeres. É realmente muito difícil, mas vontade de tomar a substância que o
cem pessoas, divididas entre homens a experiência nos mostra que as in- levou a ser internado.

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Polêmica
Caio César observa que as deses- começamos a discutir. Quase chorei”,
truturações familiares são notáveis nas afirma. A permissão legal para a inter-
duas situações relatadas. Chicó não co- Thiago fuma diariamente até hoje, nação involuntária é causadora de
nhece o pai e, desde a infância, mora mas garante que nunca teve surtos ou muita controvérsia entre especialis-
com as duas irmãs, a mãe, que trabalha quadros de agressividade pelo uso de tas, principalmente no que tange à
o dia inteiro, e o padrasto, com o qual maconha. Ainda assim, na época, o perda de autonomia do internado.
diz nunca ter tido uma boa relação. médico que o analisou designou sua “É muito comum que o usuário, ao
Ele começou a fumar maconha aos internação, e ele ficou na clínica du- perceber que lhe foi tirado o direito
14 anos, por influência de amigos e, rante dois meses. A mãe, Lúcia Souza, de escolha, fique revoltado e tenha
no ano passado, tomou NBOMe pela que afirma ter pagado cerca de 300 ainda mais vontade de usar a dro-
primeira vez em uma festa de música reais por todo esse tempo, diz que ha- ga”, afirma Caio. A médica neuro-
eletrônica, novamente por influência. via, sim, urgência de internar o filho. logista Adriana Farroupilha, porém,
“O pessoal falou que era massa, que “O Thiago fumava muito, andava com discorda. “Um dependente químico
ia me deixar feliz e eu ia curtir uma más companhias e eu recebi recla- está com sua autonomia deteriora-
lombra legal”, conta o jovem. Já o pai mações sobre o rendimento dele na da, ele se tornou escravo da subs-
de Gabriel, que o adotou quando ele escola. A gente pedia para ele parar, tância. Então esse pensamento da
ainda era bebê, também é alcoólatra. mas ele dizia que não queria”, conta. O autonomia precisa ser relativizado.
“Desde criança, o Gabriel via ele be- psiquiatra alerta para a importância de A internação, muitas vezes, salva a
bendo. Muitas vezes ele era obrigado tratamentos involuntários que sigam vida do usuário. Ela não deve ser en-
pelo pai a ir comprar bebida”, xergada com algo ruim”,
conta Célia. Especialistas divergem sobre eficácia argumenta.
A assistente social Ca-
Necessidade de internação involuntária para roline Garcia, do Serviço
Como esclarecido pelo dependentes químicos de Atenção a Usuários de
defensor público Fernando Álcool e outras Drogas,
Henrique, a internação involuntária protocolo médico, que inclui alterna- acredita que internar um usuário
deve ocorrer apenas quando várias tivas anteriores à internação. “Sem isso sem que ele queira não ajuda. “É es-
tentativas de outros tratamentos já não há a menor necessidade. Nenhum sencial convencê-lo a querer ser tra-
foram feitas para ajudar o usuário. No médico em sã consciência autoriza”, tado. O primeiro passo para se livrar
entanto, isso nem sempre acontece. acredita. do vício é ter vontade disso”, afirma.
Foi o caso do artista de rua Thiago O promotor de justiça Renato Ba- Ela explica que, mesmo que a inter-
Souza, 26, que aos 17 anos foi interna- rão afirma que, não havendo um lau- nação aconteça, é importante que
do contra a vontade porque fumava do médico e o envio de notificação exista uma atenção familiar depois
maconha. Aos 14 anos, a mãe encon- ao Ministério Público, a internação in- desse processo. “Muitas pessoas
trou uma trouxinha da droga no quar- voluntária pode ser considerada um encaram a internação como todo o
to dele e começou a ameaçá-lo com crime de cárcere privado. No entanto, tratamento. Isso não é verdade, ela é
uma internação, até o dia em que ela ele assume que mesmo que todas es- apenas uma parte dele. Uma pessoa
aconteceu. “Meus pais me disseram sas documentações estejam em dia, que sofre de dependência quími-
que me levariam para fazer alguns é possível que ocorram excessos. “O ca precisa ser tratada pelo resto da
exames. A viagem de carro demo- Ministério Público analisa cuidadosa- vida, principalmente, por meio da
rou muito e comecei a estranhar. Um mente todos os casos para que abusos reintegração social, do auxílio das
hora eles me contaram a verdade e sejam evitados”, explica. pessoas que convivem com ela”.
redemoinho . ano 06 . número 08

hospital são Vicente de Paula, conhecido com


HPAP, em Taguatinga, abriga cerca de 30 internos

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Sem lar e sem
visibilidade
Estar em situação de rua vai além da falta de moradia. É ter sua
história escondida por trás de um estigma social
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Matheus Leadebal
Nayara Oliveira

9
J
á se imaginou dormindo
no relento, passando frio,
com o estômago roncando
de fome? Pior ainda. Já se
imaginou não poder dor-
mir em paz e ter que deixar
uma faca embaixo do tra-
vesseiro para se defender no momen-
to de ser atacado por alguém? E ao
acordar? Imagine você levantando e
pessoas perambulando para lá e para Fabrício e Magali
cá sem sequer lhe notar. Descrições durante ação da
que acabou de ler são um pouco do “Fraternidade Universalista
da Divina Luz Crística”
cotidiano de quem tem as ruas como
moradia.
Ser um morador de rua no DF é Warley Fabrício
ir além da falta de abrigo: fome, frio,
violência e preconceito são enfrenta- Warley Silva, 37 anos, é amigo de - Fabrício Fernandes Dantas, mas
dos diariamente por quem vive sem Magali há mais de 20 e relata “que foi prefiro que me chame de Fabrício F.
teto. E eles aprendem a lidar com to- criado pelo mundo”. Os pais morre- Dantas, por favor.
das as adversidades para conseguir ram em um acidente de carro quando - Certo, mas conte sua história,
algo básico: sobreviver. Tire cinco ele era criança. Warley afirma que é Fabrício F.
minutos do seu tempo para falar um viajante e já visitou quatro países: - Minha história dá um livro, mas
com um deles. Alguns têm prazer em México, Uruguai, Bolívia e Argentina. escreva na reportagem em forma de
conversar! Eles fazem amizade entre Agora está indo para Manaus aprovei- resumo. Nasci em Goiânia e estou
si, andam em grupos. Tudo isso para tar a festa de Parintins. em Brasília há um mês. Vim atrás
evitar que sejam roubados ou até - Mas como você vai comprar a dos meus primos, mas eles me re-
mesmo mortos madrugada adentro. passagem? ceberam mal. Disseram que não são
Quem vive em situação de rua tam- - Ué, eu vou pedir dinheiro por aí. muito fãs da minha mãe e não me
bém é solidário e vigia os pertences Ao longo da conversa, também quiseram.
do outro. Alimentar-se e agasalhar-se diz ser músico. Mais na frente, jorna- - E agora?
torna-se algo coletivo (desde que haja lista. Ao final do encontro, ele informa - Agora vou voltar para Goiânia,
amizade). que seu aniversário será um dia após mas lá também não sou bem rece-
“Como essas pessoas foram parar a entrevista e todos cantam parabéns. bido pelo pessoal da família. Aliás,
nessa situação?”, você deve se per- Após a comemoração, Magali chega você sabe onde tem um albergue
guntar. As histórias são as mais va- no cantinho e fala que não era aniver- para eu ficar? E um local para traba-
riadas. As que estão descritas neste sário dele, mas tudo bem. Mesmo as- lhar? Ah, se puder me ajudar com
texto vêm do Setor Comercial Sul, no sim, ali foi comemorado algo no qual algo para a passagem de volta para
centro de Brasília. Aliás, lugar onde o Warley se alegrou. Alegrou-se muito. Goiânia…
“cidadão comum” estaciona o carro
ou desce na parada mais próxima, vai
atrás de seus interesses e volta para Números dE moradores de rua no df
casa com suas vitórias ou derrotas,
conquistas e aprendizados do cotidia-
no. Mas que também serve de mora-
dia para muita gente.
Magali
Magali Vidal, 53 anos, morava
em Anápolis (GO) e veio para Brasí-
lia tentar tirar o filho, agora preso, do
mundo do crack. “Eu tenho uma filha
redemoinho . ano 06 . número 08

que mora lá em Anápolis e vim para


cá pelo meu filho, mas não tem jei-
to de tirar ele da cadeia não”, explica
Magali, com  Mailon, o cachorro com-
panheiro, no colo. Opa! Mailon Vidal.
Magali faz questão de citar o nome e
sobrenome do cãozinho que, de tão
Pesquisa realizada pela UnB em 2011 - número oficial da SEDHS
próximo, tornou-se da família.
2.500 moradores

10
ENTRELAÇANDO HISTÓRIAS
No começo a iniciativa de levar há um ano e já auxiliou dezenas de
Cristiane tem propriedade para comida e roupas a quem utiliza os pessoas a largarem os vícios. “Traba-
falar sobre pessoas em situação de prédios do Setor Comercial Sul não foi lhamos junto às instituições de recu-
rua. Faz parte de um projeto volta- fácil. “No primeiro dia da janta, chega- peração. Dentro do nosso projeto, te-
do para esse público. A Fraternidade mos lá para servir e de cara conhece- mos um programa para cuidar dessas
Universalista da Divina Luz Crística* mos a Magali [uma das moradoras de pessoas. É um trabalho que fazemos
serve comida e doa roupas nas noites rua]. Ela foi nos ensinando como fazer. muitas vezes na rua, com música e
dos primeiros sábados de todo mês, Não é só chegar e oferecer comida. ação cultural”, explica Felipe.
no Setor Comercial Sul. A organização Eles se assustam, acham que é mentira. Ele também conta que está ten-
não está ligada a nenhuma religião Magali nos ensinou a ir em grupo para tando transformar o projeto em ONG,
ou governo, mas quer, por não sermos hostilizados. A e para isso ainda precisa de dinheiro.
meio do universalismo ecu- “Ninguém mesa com alimentos fica O “Menos de Mim” realiza campanhas
mênico, ensinar o amor ao no corredor e saímos pe- para arrecadação de roupas e acessó-
próximo e a si mesmo. quer saber las marquises dos prédios rios que serão vendidos em bazar. “A
Maio de 2013. Cristiane convidando os moradores”, gente está em um processo de regula-
de Paula, 32 anos, estacio- o meu nome explica. rização e é claro que isso tem um custo,
nou no Setor Comercial Sul ou o que eu Cristiane conta que já desde a gasolina até a documentação
e foi comprar o presente de chega falando da ação para necessária para tudo funcionar”.
dias das mães em um sho- sou nesse eles não acharem que o
pping próximo. Ao sair do grupo da Fraternidade irá
carro, a moça foi abordada mundo” roubá-los. Quando estão
Flanelinha do Setor dormindo, a equipe  expli- Felipe Bassul,
por um flanelinha. criador do
Comercial Sul
- Certo, pode olhar meu ca baixinho para ver se os projeto “Menos
carro. Mas qual é seu nome moradores acordam e vão de Mim”
mesmo? se alimentar. Se isso não acontece, o
- Meu nome? E eu te perguntei grupo deixa o alimento próximo. “A
qual é o seu nome, seu trabalho e sua maioria dorme junto com uma faca,
idade, por um acaso? por medo de sofrer violência ou rou-
- Não. Mas eu respondo. Sou Cris- bo, por isso chegamos de mansinho”,
tiane, contadora e tenho 32 anos. E explica.
qual o seu nome? A maioria do pessoal que mora no
“Naquele momento o rapaz ficou Setor Comercial Sul já sabe da ação
calado por um tempo, mas depois me da Fraternidade e aprova a ideia. “Eles
disse: Sabe o que é, moça, é que nin- nos chamam de abençoados e agrade-
guém quer saber o meu nome ou o cem. Muitos apagam seus cachimbos
que eu sou nesse mundo. Ele chora- de droga quando estamos chegando
va”, relata Cristiane. perto. Eles sentem vergonha de serem
Para a moça, ver o flanelinha se usuários e estar nessa situação”.
sentir esquecido  foi a gota d’água. “A
Menos de Mim *A Fraternidade Universalista
partir daí a gente ficou conversando
um tempão. Depois fui ao shopping A situação de vulnerabilidade da Divina Luz Crística: existe
e comprei um presente para o rapaz nas ruas também abre portas para o há cinco anos e há dois realiza a
dar a sua mãe. Algum tempo depois consumo de drogas, seja para fugir Caravana São Vicente de Paulo, que
voltei lá, o encontrei e ele me disse da difícil realidade, seja por diversão. serve a janta no Setor Comercial
que queria confessar não ter dado Percebendo essa questão e sendo um Sul. Desde o início do  trabalho,
o presente à mãe e ter trocado por ex usuário, Felipe Bassul, organizador a Fraternidade  encaminha para
droga, mas que precisava ser honesto do projeto “Menos de Mim”, resolveu albergues aqueles que tenham
comigo. Firmamos ali uma amizade”. trabalhar pela causa. O grupo atua interesse.
* Centro POP: O DF conta com
duas unidades do Centro de
redemoinho . ano 06 . número 08

Morador de rua dormindo


nos arredores do hospital
Referência Especializado para
de base, em Brasília População em Situação de
Rua - Centro POP em Brasília e
Taguatinga, que ofertam espaço
para higiene, lavanderia, guarda
de pertences, convivência e
acompanhamento especializado
por assistentes sociais, psicólogos e
educadores sociais.

11
DE ROUPA NOVA APOIO DO ESTADO
No Distrito Federal há uma
secretaria especializada no apoio
ao morador de rua. A Secretaria
Mesmo com pouco de Estado de Desenvolvimento
tempo de existência,
o “Brechó de Rua” já
Humano e Social (Sedhs) é o
ajudou dezenas de órgão responsável pela gestão
pessoas nessa situação de política social e possibilita o
acesso de moradores de rua à
rede de serviços públicos. A Sedhs
faz o trabalho de abordagem e
busca de pessoas que utilizam
o espaço público como
moradia. Em março de 2015,
as equipes realizaram 4,7 mil
abordagens sociais e mais de 800
encaminhamentos para a rede
de serviços públicos (defensoria
pública, saúde, educação, entre
outros).
A Sedhs também atua junto
com as unidades do Centro
“Muitos deles nem sabem o nú- Ela confirma que as pessoas em de Referência Especializado
mero do calçado ou da roupa que situação de rua são solidárias umas de Assistência Social (Creas) e
vestem”, explica o professor Wagner com as outras. “Muitos preferem to- visa prestar apoio, orientação
Galvão, 38 anos. Com a esposa Julia- mar banho antes de experimentar as e acompanhamento a famílias
na Sangoi, 31, e mais 18 colaborado- roupas, fazem uma fila e só pegam com um ou mais de seus
res, fazem parte do “Brechó de Rua”, aquilo que precisam. Teve gente que membros em situação de
projeto que renova o guarda-roupa a nem pegou as 10 peças disponíveis ameaça ou violação de direitos.
quem está em situação de rua. para deixar para o outro ter oportu- As pessoas em situação de rua
O Brechó é uma ideia nascida na nidade de vestir algo bacana.” são público alvo dos CREAS.
África e reestruturada para pessoas do Desde que foi criado, o Brechó de
DF. A “loja” ao ar livre é mantida por Rua já realizou sete ações. O dia é mar-
meio de doações.“A gente costuma cado conforme o estoque de peças e
pedir para o pessoal doar aquilo que o número de roupas doadas varia pela COMO AJUDAR?
usaria, e não o que não gosta mais. É quantidade de pessoas atendidas. So-
um ato de amor ao próximo: deixá-los bre o que motiva o casal a realizar este Além dos projetos citados,
bonitos, de roupa novinha e com a au- trabalho, Wagner já tem a resposta existem diversas iniciativas que
toestima lá em cima”, explica Juliana. na ponta da língua: “Havia um tem- precisam de ajuda. O site da
A primeira ação do Brechó acon- po que eu queria retribuir de alguma Sedhs oferece um arquivo com as
teceu em 2014, no Centro Pop*. Ju- forma tudo que a vida me oferece. É entidades inscritas no Conselho
liana conta que passou um mês per- dar cidadania a eles”. de Assistência Social do Distrito
guntando aos moradores de rua se Juliana expõe outro ponto: “Des- Federal (CAS-DF). Você também
eles realmente utilizavam o espaço de pequena eu aprendi que se deve pode ajudar diretamente a
fornecido pelo governo. Dessa for- viver em comunidade. As pessoas têm Fraternidade, o Menos de Mim e
ma, o projeto recebeu 143 pessoas preconceito e isso não é viver junto. o Brechó de Rua.
e cada uma podia escolher 10 peças A partir do momento em que você
Fraternidade Universalista da
de roupa, dois pares de sapato, pelo convive com o seu diferente, o estig-
Divina Luz Crística: 8133-9904
menos um acessório (bolsa, bijuterias, ma cai. E ainda mais quem vive nas
(Cristiane) ou 8130-3099 (Carla)
cinto) e um presente embalado em ruas. Acho que é enxergar alguém
redemoinho . ano 06 . número 08

um papel bonito, conforme manda que muitas vezes é invisível diante Menos de Mim: 8148-6172
a tradição. da gente”. (Felipe)
Juliana também nota organização Ela relembra um momento que a
Brechó de Rua: 9627- 2067
entre os próprios beneficiados.“Como o emocionou: “ Vi uma colega abraçar
(Juliana) 9161-6837 (Mariana)
frio aperta muito para quem dorme na um morador, que chorou ao dizer que
rua, eles se organizam para que todo há oito anos não era abraçado. Você ou visite as páginas dos projetos
mundo possa, pelo menos, sair do bre- consegue imaginar o que é uma pes- no Facebook.  
chó com algo de manga comprida”. soa ficar 8 anos sem um abraço?”

12
Traumas da perda
A dor de perder um filho antes mesmo de dar a
luz atinge cerca de 15% das gestantes, estima o
Ministério da Saúde. Para especialistas, encarar o
luto é a melhor maneira de evitar os traumas

Gessiara de Carvalho
Yuri Moura Guarino

A
gestação é um mo- Daniela pensou que estava entrando esse tipo de perda, explica que esse
mento especial na em trabalho de parto, mas descobriu processo é normal. “Elas precisam pas-
vida daquelas que que as dores não significavam que o sar por esse luto de forma suave, tran-
sempre sonharam seu filho queria vir ao mundo e, sim, quila ou de forma mais densa. Apesar
em ser mãe. A gravi- que ele tinha morrido. Ela teve que de não ter dado prosseguimento na
dez é uma experiên- fazer um parto induzido após sentir vida, é um filho, independente de estar
cia única não só para fortes dores em casa. vivo ou não”, diz.
a mulher, mas também para o futuro O Ministério da Saúde estima que Dois anos depois, Daniela Farias
pai e família como um todo. O momen- cerca de 15% das gestantes sofrem engravidou novamente e já está no
to traz novas experiências, mudanças, aborto espontâneo ou passam pelo seu quinto mês de gestação. Ela espera
emoções e descobertas que só a no- processo de parto induzido. O núme- por uma menina, a qual não decidiu se
tícia de ser mãe pode proporcionar. ro de óbitos de mulheres atribuído ao dará o nome de Sophia ou Vitória. Sua
Porém, essa mistura de sentimen- aborto passou de terceiro para quinta gravidez não apresenta nenhum risco
tos e emoções muitas vezes é inter- causa de mortalidade materna de 1990 e tudo indica que o bebê vai nascer
rompida. Tristeza, descrença, angús- a 2012 e, no mesmo período, caiu de em setembro.
tia, solidão. É praticamente impossí- 16,6 para 2,8 o número de mortes por
Aborto x parto induzido
vel descrever tudo o que uma mulher 100 mil nascidos vivos, uma queda de
pode sentir ao enfrentar o fim do so- 83%. Mas o fato dos números terem Lucila Nagata, chefe da gineco-
nho de ser mãe. O evento, geralmen- melhorado não ameniza o trauma de logia obstetrícia do Hospital Materno
te comemorado com muita alegria, quem vivencia o episódio da perda. Infantil de Brasília (HMIB), diz que as
torna-se um pesadelo a ser esquecido. Apesar de ter recebido todo o perdas durante a gestação podem
De acordo com o Ministério ser ocasionadas por diversos
da Saúde, nascem em média Você recebe a notícia que está motivos, entre eles, problemas
no Brasil 2,9 milhões de bebês
por ano, sendo que, a cada mil
grávida e cria uma expectativa. cromossômicos, hormonais ou
processos infecciosos. Ela res-
nascidos, 10,3% morrem ainda Entra em trabalho de parto, mas salta que não existe uma causa
no útero. mais frequente e que na maioria
“É a pior sensação do sai do hospital sem o seu filho” dos abortos espontâneos não se
mundo. Você recebe a notícia descobre o porquê da paciente
Daniela Farias
que está grávida e cria uma ter abortado. “A gente acredita
expectativa. Entra em traba- que uma grande maioria é por
redemoinho . ano 06 . número 08

lho de parto, mas sai do hospital sem o apoio psicológico e familiar, Daniela alterações genéticas, mal formações
seu filho. Eu me senti a pessoa mais in- relata que não foi fácil superar o aborto que não foram detectadas, mas, mais
capaz e humilhada ao ver tantas mães e que após voltar para casa se apegou de 90% não tem uma justificativa”, sa-
no hospital com seus filhos nos braços ao enxoval do bebê. Ela lembra que lienta.
e eu não”, lembra a secretária Daniela demorou mais de seis meses para se A doutora explica que quando
Farias, 36 anos. desapegar das coisas e se livrar de vez uma mulher perde o bebê nas 12 pri-
Ela enfrentou o trauma de perder delas. A psicóloga Juliana Benevides, meiras semanas de gestação é con-
o bebê após 38 semanas de gestação. que atende mulheres que sofreram siderado um aborto precoce. Depois

13
de 12 semanas acontecem os aborta- mente pela pequena Marina, já com
mentos tardios, que vão até a 20ª, 22ª o enxoval praticamente completo.
semana. Perdas após esse período são Porém, chegando ao 8° mês de ges-
classificadas como parto prematuro tação, Josciane estava prestes a viver
extremo, quando é necessário induzir um dos maiores traumas da sua vida.
a mulher ao parto através de medica- Ela recorda que, um dia antes de ir ao
mentos para a retirada do feto morto. pré-natal, estranhou não ter sentido o
Quando a perda acontece nas bebê mexer. Sem sentir dores ou san-
doze primeiras semanas de gravidez grar, ela apenas estranhou o formato
o próprio organismo já tenta eliminar da barriga. Em hipótese alguma pas-
o material da placenta. Acontece uma sou em sua cabeça que o bebê que ela
eliminação natural e só se faz o contro-
le da hemorragia se houver necessida-
acreditava estar vivo já estava morto
dentro de sua barriga.
homenagem
de. No caso do aborto retido, onde a Já na clínica, ela lembra que o
paciente perde o bebê e o organismo médico, ao tentar ouvir o coração do Muitos pais costumam registrar
não reconhece a perda, é feito o esva- bebê, mandou ela fazer uma ecogra- o momento da chegada do filho
ziamento uterino através da aspiração fia, sem falar que sua filha já não tinha na hora do parto para eternizar
ou curetagem, raspagem da cavidade mais vida. Só na ecografia ela recebeu o momento. Mas Richard e Emily
uterina para a retirada do material pla- a terrível notícia que Marina estava Staley, um casal da Califórnia,
centário. morta há cerca de três dias e que só nos Estados Unidos, decidiram
O HMIB, hospital de referência da não tinha entrado em decomposição homenagear a filha mesmo
rede pública no atendimento a ges- por causa do líquido amniótico que ela tendo nascida morta, e
tantes de alto risco, realiza em média ainda conservava a criança. fizeram um ensaio fotográfico
400 partos por mês. De janeiro a março “Eu fiquei arrasada, triste, chorei emocionante com ela.
deste ano a unidade já teve que reali- pra caramba. É uma notícia que você O bebê morreu dentro do útero
zar 102 procedimentos de curetagens não está esperando. Você está espe- com 30 semanas de gestação. O
ou aspirações e registrou 25 casos de rando a sua filha viva, nos seus braços. fato foi descoberto após a mãe
natimortos, fetos que morreram den- Se tivesse falado pra mim: ‘vai pro hos- não sentir o bebê mexer. Um
tro do útero ou durante o parto. pital que você vai ter a sua filha agora’, ultrassom revelou a morte da
talvez seria o momento mais feliz da pequena Monroe Faith Staley.
Atestado de óbito
minha vida, mas aquele momento foi
A ginecologista Lucila Nagata a pior notícia do mundo”, conta. O ensaio fotográfico do casal
destaca ainda que só é emitido ates- A estudante teve que fazer um com a filha morta foi feito pela
tado de óbito para fetos acima de 500 parto induzido. Porém, os medica- fotógrafa Lindsey Natzic-Villatoro,
gramas. Esse foi o caso da estudante mentos demoraram a fazer efeito e que acompanhou a cesárea
Josciane Cardoso, 29 anos. Ela conta Josciane ainda teve que ficar por mais para retirada do bebê. As fotos
que sua primeira gravidez não foi pla- sete dias com a criança morta no útero, rodaram o mundo. O casal da
nejada, mas que o desejo de ser mãe correndo risco de morte, quando só Califórnia quis divulgar a sua
sempre existiu. então começou a sentir dores. história na esperança de levar
A estudante lembra que teve uma Ela deu a luz a um natimorto e algum conforto para famílias que
gestação normal, sem complicações e após receber alta e o atestado de óbito também perderam seus filhos.
que ela e a família esperavam ansiosa- da filha, realizou o enterro da pequena
Marina. Depois, entrou em depressão
pós-parto, a ponto de não poder ver “Às vezes não é nem a depressão
um bebê. Ela teve que passar por tra- pós-parto clássica. A gente diria que
tamento, mas não foi fácil a superação. é uma depressão após o parto. É um
Alessandra Arrais, psicóloga do pouco diferente porque ela é rea-
Centro Obstétrico (CEO) do HMIB, de- tiva a uma perda que, às vezes, até
senvolve um trabalho de atendimento se confunde com o luto, mas pode
especial às mulheres que perdem o acontecer, sem dúvida, mesmo de-
filho durante a gestação. Ela diz que pois de um aborto. Vai depender de
casos de perda gestacional são trata- cada caso, mas é uma reação até es-
redemoinho . ano 06 . número 08

dos com prioridades no CEO, para que perada”, observa.


as mulheres possam ter um amparo
Luto
para enfrentar o ocorrido. Ela destaca
que a depressão pós-parto é um dos Ao contrário do que muitos pen-
Alessandra Arrais, psicóloga
do Centro Obstétrico do HMIB: traumas sofridos por quem enfrenta sam, é importante que as mulheres
equipes de saúde precisam ter essa situação e ressalta que a doen- que perderam o filho durante a ges-
sensibilidade para casos de aborto ça não se restringe às mulheres com tação passem por todo o processo de
filhos vivos. luto. Até mesmo aquelas que perde-

14
ram no início da gravidez precisam incentivadas a escreverem uma carta lidar com esse tipo de caso.
se despedir do filho para evitar os de despedida e colocarem dentro de “Há um despreparo da equipe
traumas. uma caixa tudo o que comprove que de saúde, de uma forma geral e eu
A psicóloga Alessandra Arrais ex- aquela vida existiu, desde o teste de incluo os psicólogos nisso. A gente
plica que as mães que perderam o gravidez a alguma roupa do enxoval. não está nas equipes de saúde nesses
filho nas primeiras semanas de ges- E que depois essa caixa seja enterrada casos de aborto”, diz Juliana. “É muito
tação podem sofrer tanto ou até mais simbolizando um enterro. importante que as equipes tenham
do que aquelas que perdem prestes Nos casos de parto induzido, as sensibilidade pra esses casos”, con-
a dar à luz, pois, a partir do momento mães são aconselhadas a realizarem corda Alessandra.
que a mulher recebe o diagnóstico da todos os rituais fúnebres. “São formas
Recomeço
gravidez, o que para o médico é um concretas de ajudar nessa elaboração
embrião, para a mãe já é um bebê, e do luto. O que não pode é fingir que Passar pelo processo fúnebre, re-
ela já começa a se vincular. nada acontece. É isso que traz o trau- ceber o apoio da família, não ignorar a
Foi o que aconteceu com Tha- ma”, explica Alessandra. perda de um filho durante a gestação
mirys Cypriano, 26 anos. A primeira Em Brasília, apenas o HMIB desen- são passos importantes para enca-
gravidez da analista do Ministério do volve um trabalho especial voltado rar uma nova gravidez. Há também
Desenvolvimento Social não evoluiu para esse tipo de perda. O protocolo quem busque ajuda espiritual.
e após sentir fortes dores e sangrar, de luto foi desenvolvido pela psicólo- Ao lembrar como se recuperou
ela perdeu o filho na sétima semana ga Alessandra Arrais, que se inspirou do trauma de perder a filha no oitavo
de gravidez. Apesar do pouco tempo no projeto desenvolvido pela Univer- mês de gestação, Josciane Cardoso
de gestação, ela sofreu muito com a sidade Federal de São Paulo (Unifesp), diz que a superação veio após ela ou-
perda, pois o desejo de ser mãe sem- que realiza um pré-natal psicológico vir uma mensagem do Padre Marcelo
pre foi nato. antes que as mulheres iniciem o parto Rossi em uma rádio que disse: você
Mesmo com o trauma da primeira induzido. que não conseguiu ter a sua filha, ela
gestação, Thamirys está grávida no- Já a psicóloga Juliana Benevides, não veio ao mundo porque ela era um
vamente. Sua gestação já está na 10ª se inspirou no trabalho da Dra. Ales- anjo muito bom e não conseguiria vi-
semana, mas ela ainda não superou sandra e desenvolveu em seu consul- ver nas maldades existentes na terra.
a primeira perda. “O que eu faço para tório, na capital federal, dois grupos de “Aquilo me confortou de uma forma
esquecer é tentar me apegar mais na terapia para atender casos de perda que nada que a psicóloga falou tinha
gravidez atual e esquecer todos os gestacional. Os encontros dos ‘grupos me confortado”, afirma.
momentos ruins do aborto, a dor, o de luto’ acontecem uma vez por sema- Josciane tem hoje um filho de
sofrimento, o sentimento de impo- na e tem duração de duas horas. dois anos. Ela lembra que sofreu com-
tência”, diz. As duas psicólogas lamentam o plicações durante a nova gestação,
Alessandra Arrais diz que existe pouco amparo que a rede de saúde mas que, conseguiu dar à luz ao Ga-
uma ideia errônea de que as mulheres pública e privada dão a esses casos. briel e garante que os traumas ficaram
que perdem o filho durante a gesta- Elas reconhecem que falta preparo, no passado.
ção sofrem menos do que as que per- tanto do Sistema Único de Saúde “Meu filho é meu tudo. Ele mu-
dem após. Para ela, a sociedade não (SUS) como dos hospitais particulares, dou a minha vida para melhor. Tudo
valoriza esse tipo de perda porque e defendem que os médicos e psicó- o que eu faço é pensando nele. Meu
há uma ideia errada de que, como ela logos sejam melhor orientados para filho é a minha vitória”, declara.
não conviveu com o bebê, ela sofre
menos do que uma mãe que tenha
convivido com o filho. “Isso é um mito.
Essa mulher, além de perder o filho,
perdeu o sonho de ser mãe. Por isso
ela precisa de uma atenção especial,
porque há pouco respaldo social pra
ela poder viver esse luto”. Josciane
Cardoso e
Enterrar é preciso o filho Gabriel,
de dois anos.
No CEO do HMIB é realizado um “Meu filho é meu
trabalho conhecido como protocolo
redemoinho . ano 06 . número 08

tudo. Ele mudou


de luto, com o objetivo de prevenir os a minha vida
traumas e o luto patológico, quando a para melhor”.
pessoa não admite que a morte ocor-
reu. Além de orientar a família para
que não evite falar do assunto em
casa, no caso de aborto retido, onde
o feto é tratado apenas como uma
matéria e é incinerado, as mães são

15
vidas alteradas
Familiares de vítimas de violência e de desaparecidos
tentam encontrar maneiras de superar o trauma
redemoinho . ano 06 . número 08

Nathália Gonçalves

16
D
esde dezembro de dou a ONG Convive e o programa go-
2012, a família Pas- vernamental Pro-Vítima para ajudar
choali revive o mes- quem perdeu pessoas amadas para a
mo dia, a mesma es- violência urbana.
perança, a mesma Os pais de Artur nunca desisti-
dor. Arthur, o filho ram de procurar pelo filho, apesar da
caçula de Susana e pouca ajuda recebida das autorida-
Wanderlan, desapareceu nessa data. des brasileiras. O que se repete são
Na época, ele tinha 19 anos e viajava as histórias e as pistas falsas sobre o
pela América Latina. A busca pelo ra- paradeiro do rapaz. A mais conhecida
paz já consumiu R$ 200 mil e dois anos é a de que ele teria sido sequestrado e
da vida da família. Dor semelhante é vendido como escravo no Peru. Wan-
a que enfrenta Valeria de Velasco. Em derlan retornou ao Peru para continu-
1993, Marco Antônio, na época , com ar a busca pelo filho. “É muito difícil
16 anos, foi brutalmente assassinado quando o meu marido viaja, é ele
por uma gangue de menores de ida- quem me distraí e me ajuda a seguir
de, formada praticantes de artes mar- em frente”, conta Susana.
ciais. Explicar o vazio causado pela Taíssia Velasco, irmã de Marco An-
ausência de um ente querido, retira- tônio, foi a última a ver o adolescente
do do convívio da família, não e fácil. vivo. “Eu cheguei em casa mais tarde
Esperar por alguém que não volta é do trabalho. Estava almoçando quan- Segundo Susana, o
uma dor sem fim. Uma dor descrita do o Marquinho me pediu um ticket filho nunca se encaixou
nas palavras de Chico Buarque, em para comprar pão”, lembra. Mais cedo, no funcionamento
“Pedaço de mim”. “A saudade é o pior naquele dia, Marco Antônio havia ido capitalista da sociedade
tormento. É pior que o esquecimento. à delegacia, acompanhado pela mãe,
É pior do que se entrevar”. para denunciar colegas de escola que depois da morte do irmão, Taíssia ain-
“Eles mataram o meu filho para o haviam ameaçado. “Ele disse que ia da sofre com as consequências desse
demonstrar força. Perguntaram se ele me contar tudo que tinha aconteci- trauma. “Não tem um dia em que eu
sabia quanto tempo demorava para do, quando voltasse da padaria. Meia não pense no meu irmão. Em como
quebrar um braço”, conta Valéria de hora depois, ouvi batidas fortes na ele estaria hoje, se ele teria se casa-
Velasco. Marquinhos, do, tido filhos, se ele
como era chamado pela A violência não afeta apenas aqueles que a teria ficado careca.
família, tinha saído para Aqueles assassinos
comprar pão, quando foi recebem diretamente, ela modifica a vida de não tiraram só a vida
pego pelos assassinos. todos que estão ao redor presente do meu
As famílias Paschoali irmão, eles destruí-
e de Velasco lidam todos ram tudo aquilo que
os dias com uma ausência injustificá- porta e, quando abri, tava um amigo ele poderia ter sido”, diz.
vel. Susana vive a incerteza de não co- do meu irmão me contando que ti- Susana também não sabe quem
nhecer o paradeiro do filho e Valeria nham pegado ele”, conta. o filho é hoje. “Se soubesse que ele
a dor de saber que o dela nunca mais Os responsáveis pela morte do desencarnou, seria mais fácil. Não sa-
entrará pela porta da casa. Ambas jovem foram levados a julgamento ber onde ele está, se está sofrendo,
usaram a dor como combustível para e punidos, em maior ou menor grau, se está doente, isso é o pior”, explica.
lutar por justiça. A busca por Artur é pelo crime cometido. No entanto, a Para o psicólogo Rafael Assis, o de-
liderada pela mãe, que se mobilizou noção de injustiça não deixa as fa- saparecimento é mais cruel psicolo-
para ajudar outros que também têm mílias daqueles que perderam a vida gicamente, para a família da vítima,
parentes desaparecidos. Valeria fun- de maneira tão brutal. Quase 22 anos do que a morte. “Quando sabemos
redemoinho . ano 06 . número 08

O violão e o tigre de
pelúcia são os objetos
que fazem Valéria sentir
a presença do filho

17
A ONG Convive, criada
por Valéria, lançou várias
campanhas em combate
a violência urbana e
pró-desarmamento

o que aconteceu, por mais terrível os objetos mais preciosos. “Guardei


que seja, começamos o processo de o violão e um brinquedo de quando
superação do trauma. Ao perder um ele era pequeno. O quarto desfiz e as
filho, a mãe passa por todos os ritu- roupas doei porque aquilo estava me
ais de luto. Se um filho desaparece, consumindo”, conta Susana.
a mãe continua a botar um prato a Uma das palavras mais difíceis de
mais na mesa, a arrumar o quarto e se traduzir da língua inglesa é closu-
esperar pelo retorno que, na maio- re. A ideia invocada por essa palavra
ria das vezes, nunca chega”, explica. está relacionada a fechamento ou
No caso da família Paschoalli, eles resolução. Para o sociólogo Glaúcio
escolheram doar quase tudo que Ary Dillon Soares, esse é o termo que
pertencia ao filho e manter apenas melhor define o momento em que
o processo de cura, após um evento
traumático, se inicia. “Todo mundo
conhece alguém que demorou para
UNICEF aceitar a morte de um ente querido.
Em caso de desaparecimento, isso é
Segundo projeções do Fundo das muito comum. Não se inicia o pro- estava planejando se mudar para a
Nações Unidas para a Infância cesso de cicatrização porque a ferida Austrália. “Eu tinha feito intercâmbio
(Unicef), até 2016, 37 mil jovens está sempre aberta”, explica. O soci- e minha família australiana queria
brasileiros serão vítimas da ólogo afirma que rituais fúnebres são muito que eu voltasse. Não tinha nada
violência urbana. Apesar do essenciais para que se possa alcançar pra mim aqui e eu só estava juntando
lançamento da nova página de o closure. uma grana pra poder ir bem. Eu não
Cadastro de Desaparecidos, no Taíssia ainda lembra do momento conseguia ficar longe da minha mãe
em que soube que o irmão não vol- depois do que aconteceu. Em outros
redemoinho . ano 06 . número 08

final de 2014, o Governo Federal


ainda não consegue fornecer taria. “Quando eu vi a camisa ensan- momentos da minha vida, pensei em
números reais sobre o número guentada do amigo do Marquinhos, ir embora, mas sempre teve algo que
de desaparecidos no Brasil. eu sabia que já estava tudo perdido. me manteve aqui”, conta.
As vítimas da violência e os No hospital, meus pais e minhas ir- Valéria lida diariamente com o
desaparecidos são, muitas vezes, mãs ainda tinham alguma esperança tipo de dor que ela nunca conseguiu
tratados como invisíveis pelas e eu não conseguia nem falar nem me esquecer. “Os familiares nos procuram
autoridades. mexer”, relembra. Na época em que para ter ajuda psicológica e, muitas
Marco Antônio foi assassinado, Taíssia vezes, legal”, explica. Ela conta que

18
Marco
Antônio de Instituições
Velasco morreu
aos 16 anos.
Ele é mais uma
de apoio
vítima da cultura
de violência Pró-Vítima
Fundado em 2009, o
Programa de Assistência
Multidisciplinar a Vítimas
de Violência (Pró-Vítima) é
uma das ferramentas usadas
pelo GDF para combater a
crescente epidemia de violência
na capital. O programa
oferece acompanhamento
psicológico, social e jurídico às
vítimas e familiares de vítimas
de homicídio, latrocínio,
estupro, violência no trânsito,
violência doméstica, roubo
com restrição da liberdade
não foi uma escolha começar e desaparecimento. A nova
o trabalho com a família das gestão planeja expandir o
vítimas e sim algo que acon- programa nos próximos quatro
teceu naturalmente. “Como anos
o caso do meu filho chamou
Desaparecidos do Brasil 
muita atenção, as pessoas
passaram a me procurar. Eu A ONG foi fundada em 1997.
não tive escolha, precisava Desde então, formou uma
ajudar”, diz. Taíssia lembra da grande rede de voluntários
época em que Marco Antô- e não parou de crescer.  Os
nio foi assassinado. “Eu fiquei milhares de casos que passam
sem chão, quase catatônica anualmente pelo cadastro do
por meses. Minha mãe não, site mostram que de15% a 20%
desde daquele dia no hospi- dos desaparecidos são vítimas
tal, ela sempre se movimen- do tráfico humano. Em 2011, a
tou para conseguir justiça”, ONG elaborou a Rota do Tráfico
conta. de Bebês de Santa Catarina e
Para Felipe Paschoali, ir- Primavera da Paz foi uma
Paraná, iniciando uma árdua
mão de Artur, ver a mãe sofrer com a campanha, organizada pela Convive, busca pelas mães dos bebês
falta de resolução é difícil. “Cada vez a favor do desarmamento traficados nos anos 80/90 e
que meu pai viaja, cada pista que não luta pelo resgate dos direitos
dá em nada, é muito difícil para ela. Ela Uma das teorias mais adotadas, perdidos.
tem esperado o Artur voltar há mais dentro da psicologia, para se falar so-
de dois anos, mas, até agora, nada”, bre o luto é o modelo de Kubler-Ross,
conta. Para a psicoterapeuta Ana Pau- que se divide em cinco estágios: ne- to com o caçula. Enquanto Artur não
la Rocha, uma das maneiras de se lidar gação, raiva, negociação, depressão voltar para casa, Susana e Wanderlan
com a ausência é se envolver em pro- e aceitação. Alcançar esse último es- não vão desistir de encontra-lo. A vio-
jetos pessoais. “Quando iniciamos um tágio talvez nunca seja possível. “Eu lência não afeta apenas aqueles que a
projeto social, acabamos colocando sei que eu nunca vou aceitar o que recebem diretamente, ela modifica a
nossa dor em perspectiva. Ajudar o aconteceu com o meu irmão. Não vou vida de todos que estão ao redor. “É
redemoinho . ano 06 . número 08

próximo faz com que o sofrimento perdoar os assassinos e nem verei isso um buraco que não tem fundo. Se eu
vá se diluindo. É dar sentido para o como algo que Deus fez porque sabe achasse que matar cada um dos as-
que não faz sentido algum”, alega a o que é melhor. Para mim, nada vai sassinos traria meu irmão de volta, eu
psicoterapeuta. Susana usa o traba- justificar ou explicar o que aconteceu mataria com minhas próprias mãos”,
lho como forma de esconder a dor. com ele”, afirma Taíssia. afirma Taíssia. “A dor de ter perdido
“Eu trabalho cada dia mais, procuro A dor da perda não pode ser me- meu filho nunca vai passar. Eu não sei
ocupar minha cabeça para não ficar dida quantitativamente. A família Ve- quem ele seria, só posso imaginar”,
pensando só no Artur”, relata. lasco nunca irá esquecer o que foi fei- conta Valéria.

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20
redemoinho . ano 06 . número 08
Meus avós são meus pais
Incapacidade dos filhos, problemas familiares e gravidez Nathália Garcia
precoce fazem aumentar naJustiça o número de pedido
de guarda da terceira geração da família

A
vida da funcionária bastante cansativo, ainda, mais por No Distrito Federal, 13% dos casos de
pública Maria Alice*, não ter apoio dos familiares paternos pedidos de guarda são feitos pelos
54 anos, passou por de Bruno. Como a filha sofre de pro- avós, segundo dados da Secretaria
uma reviravolta em blemas psicológicos, ela é quem cria de Atendimento às Famílias com Ação
2001, ao descobrir o neto. "Comprei todo o enxoval do Civil (Seraf).
que a filha mais ve- Bruno* sozinha. Acordei várias vezes O advogado especialista na área
lha, Bianca*, estava durante a madrugada para trocar a familiar Roberto Augusto Martins
grávida, aos 16 anos. Maria Alice havia fralda dele. Acompanho todas as visi- conta que os pedidos de guarda e
acabado de se divorciar e assumir a tas ao médico e também participo das responsabilidade são aprovados de
guarda das duas adolescentes. A me- reuniões escolares", conta Maria Alice. acordo com cada situação. Os avós
nor estava com 14 anos. A situação, Com tanto envolvimento, ela diz que
que já estava difícil, tomou propor- a companhia de neto é motivo de fe-
ções ainda maiores, depois que Bian- licidade e alegria constantes da casa.
ca* começou a ter crises emocionais, Embora tenha assumido a res-
que se configuraram em transtorno ponsabilidade pelo neto em 2001, foi
psicológico. Depois que o neto nas- só em 2008 que, orientada por uma
ceu, Maria Alice teve de cuidar do colega,Maria Alice entrou com um
bebê, por causa da incapacidade da processo que reconhecido Bruno*
filha e da ausência do pai e dos avós como dependente financeiro. O pedi-
paternos da criança. Com o tempo, a do foi negado pelo Tribunal Superior
servidora se viu obrigada a integrar do Trabalho (TST), onde ela atua. Com
um grupo que só cresce nas Varas medo de comprometer o desenvolvi-
de Família da Justiça brasileira: a dos mento do garoto, Maria Alice* entrou
avós que têm de recorrer ao juiz para com um novo pedido, desta vez, o da
pedir a guarda dos netos e reassumir guarda e responsabilidade. Só depois
um papel que já havia sido cumprido. de três anos ela foi atendida.
Eles se tornam pais da terceira gera- Para a secretária psicossocial judi-
ção da família. ciária de Brasília, Marília Lobão Ribeiro,
A rotina de oito horas de trabalho quando os avós entram com esse tipo
ganhou uma segunda jornada, ain- de requerimento, eles estão dando um
da mais dura. "Foi um período difícil, atestado de incapacidade dos próprios
porque eu trabalhava bastante. Tinha filhos. "Eles pedem para o Estado para
que cuidar de um neto que estava a assinar um documento que comprova
caminho e de uma filha que precisa- que o filho é incapaz de exercer a fun-
va de atenção dobrada", conta Maria ção de pai/mãe", afirma. A pilha de
processos mostra
Alice. O reflexo da responsabilidade Casos como o de Maria Alice se que número
assumida pelo neto se manifesta no acumulam e transitam sob sigilo na de pedidos
comportamento do garoto de 14 Justiça brasileira. É uma forma que o de Guarda e
anos. Embora faça questão de desta- Judiciário encontrou para preservar Responsabilidade
tende a crescer
car que é a avó do menino, Maria Alice a intimidade das pessoas. Quando a cada ano
diz que o respeito que ele demonstra esses pedidos são aceitos, os avós
por ela é maior do que o que sente passam a ser responsáveis legais pelo
redemoinho . ano 06 . número 08

pela mãe. Os papéis se inverteram. neto, até que ele atinja a maioridade.
É uma consequência da assistência Um levantamento feito pelo site Jus-
material, educacional, afetiva e mo- brasil.com.br, mostra que o número
ral, dada pela avó, desde a gestação. de processos dessa natureza, em todo
Passar novamente pelo processo de território brasileiro, chegou a 30.032,
maternidade mexeu com os senti- entre os anos de 2002 e 2015. Em mé-
mentos da servidora. Ela conta que dia, são 2.310 casos por ano, mas em
viver com esse tipo de situação é 2014 esse número saltou para 6.151.

21
podem vir a substituir pais falecidos, Para Terezinha, se
despreparados e imaturos, depen- não tivesse assumido
dentes químicos, pessoas com defici-
ências ou transtornos mentais, abu- responsabilidade
sadores ou que não consigam suprir
as necessidades básicas da criança, pelo neto, nunca
como assistência médica e escolar. teria superado a
No caso de Maria Alice, ele diz que
apesar da demora, foi uma decisão morte da filha
fácil porque a avó já era responsável
tanto psicologicamente como finan-
ceiramente pelo neto.
O que a Justiça leva em conta
O tempo para o juiz decidir so-
bre a guarda de uma criança varia,
de acordo com o caso. É que é pre-
ciso ouvir avós, pais e até amigos e
professores. Em alguns casos, o maior
desafio é justamente localizar os pais
das crianças. Em todos os casos é
fundamental apresentar os motivos
que comprovem a incapacidade de- correu à Justiça e ganhou a causa. Fe- çula, assim como a Deyse era. Deus,
les para criar os filhos. A Justiça tam- rida no mesmo acidente de carro que me deu outra oportunidade de ser
bém faz um estudo multidisciplinar matou a filha, Terezinha se aposentou mãe. Sou eternamente grata por isso”,
psicossocial, para orientar a decisão, da carreira de professora para criar e conclui.
segundo o psicólogo Cassiano Rama- educar o neto, que depois de passar
Sempre no papel de mãe
lho Salim, membro da equipe mul- pela Aeronáutica faz faculdade de en-
tidisciplinar da Secretaria Psicosso- genharia. Mas a retomada do papel À primeira vista a história da dona
cial Judiciária do Tribunal de Justiça de mãe, aos 62 anos, na época, pesou. de casa Marizeth Dantas, 64 anos, faz
do Distrito Federal e dos Territórios Os apertos foram crescendo e, pensar que se trata de uma senhora
(TJDFT). por conta da idade, os problemas de viciada em ser mãe; a história de uma
Além de psicólogos, psiquiatras e saúde também. Devido a uma trom- mulher que não aprendeu a desem-
assistentes sociais integram a equipe bose, ela teve que amputar uma das penhar outro papel no mundo. Ela
que avalia o melhor ambiente para o pernas, o que dificultou em realizar acaba de pedir a guarda do bisneto,
desenvolvimento da criança. A análise tarefas do cotidiano. A questão finan- de 6 anos, filho de Sabrina Dantas,
é feita a partir de entrevistas e aten- ceira nunca foi um problema, mas em hoje com 26 anos e estudante de di-
dimentos realizados com todos os compensação o emocional foi bastan- reito, que Marizeth teve de assumir
membros envolvidos, e podem tam- te afetado. “Sofria ao ver meu neto assim que a menina nasceu. Sabrina é
bém ser acompanhados de visitas à sofrer com a ausência da mãe. Eu pre- fruto do primeiro casamento do filho
casa e à escola da criança. cisava ser forte, mesmo com a dor e a mais velho de Marizeth, na época com
Na hora de decidir pela guarda, saudade”, ela conta. 19 anos e sem condições financeiras.
quando algum dos pais morre, até o O garoto nunca perdeu contato A menina ficou sob a responsabilida-
interesse pela pensão do falecido é com o pai ou os avós paternos, um de da avó desde o primeiro mês.
levado em conta. Foi por isso que o mecanismo importante, segundo Te- Em determinada situação, a dona
juiz negou o pedido ao pai de Carlos rezinha, para o neto sabera verdadei- de casa se viu na responsabilidade de
Gabriel Diniz, hoje com arcar com a criação da neta
21 anos. Com menos de "Em 2007, quando tudo parecia e assumir um papel de mãe.
dois anos ele perdeu a Mas foi um acidente domés-
mãe. Quando tinha 4, ele resolvido, a avó percebeu que teria de tico que levou a avó a pedir
teve o pedido de guarda que a Justiça oficializasse, em
feito pelo pai, mas a Justi- voltar a ser mãe, mais uma vez" 1990, uma situação que ela
redemoinho . ano 06 . número 08

ça entendeu que o rapaz Marizeth Dantas, dona de casa já vinha desempenhando. E


tentou se beneficiar da desde os 4 anos, Sabrina se
pensão e dos benefícios tornou responsabilidade da
que receberia, segundo a avó mater- ra historia e se estruturar emocional- avó, também no papel.
na, Terezinha Moura, 82 anos. mente. Para Terezinha, se não tivesse Em 2007, quando tudo parecia
Na época, com medo de perder o assumido essa responsabilidade do resolvido, a avó percebeu que teria
único neto para um pai que não dava neto, nunca teria superado a morte de voltar a ser mãe, mais uma vez.
suporte emocional ao garoto, ele re- da filha.“ Ele se tornou meu filho ca- Foi com a descoberta de que Sabri-

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na estava grávida, aos 18 anos. “Eu e quem leva os netos para passear e do neto, que está com 16 anos, mas
meu marido apoiamos. Ela era como não aquela que tem que se preocu- está sob a responsabilidade dos avós
uma filha e só podia contar conosco", par com formação. “Isso é dever dos desde que nasceu. O menino foi re-
conta. Como o pai da criança nunca pais”, diz. jeitado pela mãe, ao nascer. A filha de
deu assistência, e como a neta não Os avós se sentem, de alguma dona Aparecida teve depressão seve-
tinha estrutura financeira, os bisavós forma, fracassados com a vida dos ra e hoje está internada em uma clíni-
assumiram tudo e, foram pedir ao juiz filhos e se vêem no direito de zelar ca de reabilitação psiquiátrica. “Minha
para serem “pais” do bisneto. por aquela criança. Muitos desses pe- filha implorava para eu tirar Lucas*
Para Marizeth, passar novamente didos de guarda e responsabilidade de perto dela. Ela não conseguia ficar
por esse processo foi natural. Por ter são fundamentados pelos avós acha- perto do próprio filho", relata.
se casado aos 16 anos, e ser impedida rem que eles são mais qualificados Hoje, a adolescência do neto faz
pelo marido de estudar e ter ingres- para cuidar dos netos. Eles tiram dos dona Aparecida ter outras madruga-
sar em uma profissão, o que a tornou filhos o direito de assumir responsa- das em claro. Se as primeiras eram
responsável no cuidado da casa e da bilidades e amadurecer. “Uma criança consequência das cólicas do bebê, as
família. O “vício” pela maternidade é deve ser criada pelos próprios pais, de agora são fruto das saídas do rapaz
demonstrado também pelo fato de aqueles que o colocaram no mundo." e do medo de envolvimento do neto
ela ter adotado outras duas crianças. diz a psicóloga. com drogas e com a violência. Esta é
Porém, há casos justificados. "Já justamente a fase mais difícil para a
Responsabilidade que desgasta
trabalhei com casos em que a mãe dona de casa. "Como qualquer mãe,
Reassumir o papel de pais da se- tentou trocar o filho de dois anos, por fico acordada de madrugada esperan-
gunda geração da família é desgas- uma pedra de crack". Nesse caso, a do ele chegar das festas", conta.
tante para quem já criou os próprios participação dos avós é totalmente Quando questionada se essa práti-
filhos, segundo a psicóloga e tera- necessária. Quando os pais apresen- ca é saudável para os netos, a psicólo-
peuta familiar Jussara Teixeira. Além tam algum tipo de doença mental ga Jussara Teixeira diz que depende da
da frustração pela incapacidade dos ou uso de drogas, a criança corre um situação e da família. "Se os avós forem
filhos, isso tira deles a alegria de ser risco maior, e ser criados pelos avós mais saudáveis que os pais da criança,
avós. “Ser avó é uma coisa que deve se torna a única solução, ela concluiu. mentalmente, não existe problema".
ser prazerosa. Esse é verdadeiro papel Queda na qualidade de vida física Para serem considerados saudáveis
dos avós, curtir os netos", ressalta. A e emocional, são as principais recla- mentalmente os avós precisam ocupar
avó, segundo a psicóloga, é aquela mações da dona de casa Aparecida o lugar como avós, e não como pais,
que prepara um monte de bolo e Pereira*, 60 anos ao assumir a criação segundo a terapeuta.

DUAS FAMILIAS E HISTÓRIAS SEMELHANTES

redemoinho . ano 06 . número 08

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Amas de leite
do século 21
Mulheres ainda se voluntariam para amamentar filhos de outras
mulheres. Prática é arriscada e condenada pelo Ministério da Saúde

Paula Faria

A
pesar da existên- de engenho. O problema é que a cha- desespero da amiga que não tinha lei-
cia dos bancos de mada amamentação cruzada oferece te suficiente, se compadeceu. “Nunca
leite humano, que riscos à saúde do bebê, que pode ser tinha pensado na ideia. Foi quando
alimentam 2.829 contaminado por doenças que vão de minha amiga de trabalho se queixou
crianças por dia do hepatite à Aids. que estava sem leite e não sabia mais
Distrito Federal e das Em geral as mães que não conse- o que fazer. Aí pensei: porque não?”,
recomendações dos guem ou não podem amamentar têm conta.
pediatras para que as mães comple- pouco leite ou doenças infecciosas. Denise revela que foi muito pra-
mentem a alimentação dos recém- As mais comuns são varicela, herpes zeroso poder amamentar duas crian-
-nascidos com leites em pó especiais, com lesões mamárias, tuberculose ças ao mesmo tempo e poder fazer
em caso de insuficiência, ainda exis- não tratada, HIV e HTLV. Como têm uma ação solidária. “Poder ajudar
redemoinho . ano 06 . número 08

tem mulheres que amamentam os fi- de tomar remédios fortes, prejudiciais minha amiga que estava em uma si-
lhos de outras mulheres. São as mães à criança, muitas vezes elas recorrem tuação tão complicada foi muito bom.
de leite que, diariamente, alimentam à ajuda das amas de leite. Ainda mais que sempre fico sabendo
bebês de amigas ou até mesmo de A enfermeira Denise Seganfredo da menina (Bárbara), como ela está,
desconhecidas, e repetem um ritual resolveu ser ama de leite aos 31 anos, vejo fotos... Eu consegui estabelecer
que remete à época do Brasil Colônia, após o nascimento da segunda filha. um vínculo com ela, mesmo que pe-
quando as escravas atuavam como Ela conta que não tinha interesse em queno. Uma experiência maravilho-
amas de leite dos filhos dos senhores se tornar ama de leite, mas ao ver o sa”, diz.

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Riscos para a saúde da criança
pode estabelecer uma vinculação
Apesar do ato humanitário de com a ama durante a amamentação,
amamentar uma criança que não é através do olhar e do cheiro”, afirma
filha biológica e aceitar ajudar outras a psicóloga Clarissa Telles.
mães que não conseguem, ou não po- Estudante de medicina, Anna Lui-
dem realizar o aleitamento materno, za Almeida teve filho aos 15 anos e
a utilização de amas de leite não é re- resolveu se tornar ama ao perceber
comendada pelo Ministério da Saúde. que tinha mais leite do que a criança
A amamentação cruzada é proibida conseguia mamar. Mas não foi uma
desde 1993, através da portaria 1.016. escolha fácil. Durante os meses em
A especialista em amamentação Lívia que foi ama de leite, a estudante diz
Maria Pozzeti, explica que através do ter enfrentado sérios problemas com
leite, inúmeras doenças podem ser a mãe biológica do neném que ama-
passadas. “O leite pode transmitir do- mentava. “A mãe sentia um ciúmes
enças virais maternas, tais como He- muito grande, fazendo questão de
patite A, B e C, herpes vírus, sarampo, sempre estar presente durante a ama- Após 23 anos, a ama de
caxumba, rubéola, Aids, tuberculose, mentação e tirar a Vitória do meu colo leite Denise Seganfredo
entre outras”, conta. sempre que acabava. Ela fazia ques- (direita) realiza encontro
A especialista também explica tão de enfatizar que eu só estava ali com a mãe biológica (Maria
Helena Monteiro- esquerda)
que o leite materno sofre mudan- para alimentá-la”, diz. e menina que amamentou
ças durante o crescimento do bebê, Apesar do ciúme enfrentado (Bárbara Monteiro – sentada)
pois ele se adapta às necessidades da pela mãe da criança, Anna Luiza, que
criança, e por tal motivo a utilização conheceu a recém- nascida Vitória
das amas de leite pode ser prejudicial. através de um casal de amigos, clas- rados à dieta da criança até os dois
“O conteúdo do leite se altera durante sifica como maravilhosa a sensação anos de idade ou mais. Segundo Na-
o dia e ao longo dos meses, passando de poder alimentar outro bebê, du- der, cerca de 75% de toda a formação
por três fases distintas: colostro (con- rante cinco meses. “A sensação de cerebral ocorre até o segundo ano de
tém grandes quantidades de anticor- amamentar, por si só, já é magnífica vida, de modo que nutricionalmente
pos), leite de transição e leite maduro e, estar amamentando uma criança falando, esse cérebro “bem alimenta-
(que possui baixo teor de gordura e é que não era meu filho biológico foi do” dá à criança plenas condições de
rico em lactose, açúcares, proteínas, radiante. É algo indescritível. Você cria desenvolvimento intelectual, quando
vitaminas, minerais e água). Por isso laços com a criança só pelo fato de alimentado pelo seio materno.
não se deve deixar que outra mulher estar em um momento tão singular e Crianças que são amamentadas
amamente seu filho, pois às vezes ela particular com ela. É um vinculo sadio exclusivamente até o sexto mês de
está em outra fase do leite, que não é e encantador”, acredita. vida têm uma menor chance de ter
o essencial para a idade/mês da outra doenças como pneumonia, otite,
Amamentação exclusiva
criança, o que pode resultar na carên- infecções respiratórias e urinárias. O
cia de vitaminas”, diz. De acordo com as recomenda- pediatra afirma que além das doenças
O pediatra Cristiano Nader alerta ções da Sociedade Brasileira de Pedia- citadas acima, as crônicas não patoló-
que a amamentação cruzada não é tria, a amamentação deve ser ofereci- gicas também são evitadas pela ama-
ruim para o bebê apenas por este mo- da de modo exclusivo até o sexto mês mentação. “Obesidade, hipertensão
tivo, mas também porque a criança de vida e conjuntamente com outros e diabetes podem ser atenuadas em
consegue sentir a diferença entre o alimentos, que devem ser incorpo- crianças que recebem o aleitamento
leite da própria mãe para o da ama.
“O leite materno adquire o gosto dos
alimentos que a mãe ingere, e o bebê
está habituado a estes sabores desde Porquê amamentar
o útero. Fora que a alimentação da
mulher influência diretamente a rea- A amamentação é importante tanto para a mãe quanto para o bebê
ção do leite sobre o neném”, afirma. porque o leite materno contém as vitaminas necessárias e anticorpos
capazes de proteger o organismo da criança contra infecções de todo
Ciúmes
redemoinho . ano 06 . número 08

tipo, além de evitar diarreias e outras doenças. Do ponto de vista


Nem sempre ter o filho amamen- psicológico, o processo também é fundamental. Segundo Clarissa, a
tado por outra mulher é confortável amamentação é um momento fundamental para a construção do
para a mãe, que percebe os laços afe- vínculo entre a mãe e a criança. “Além da necessidade física, que seria
tivos que começam a ser criados entre a alimentação, o bebê tem uma necessidade emocional e precisa do
o bebê e a mãe de leite. O fenômeno amor e afeto da mãe enquanto é amamentado. A voz e as carícias
é explicado pela psicologia. “O neném recebidas durante o ato proporcionam uma sensação de prazer e
consegue, sim, diferenciar a mãe bio- acolhimento muito grande para a criança”, afirma.
lógica da ama de leite, mas também

25
criança. “Os testes realizados com os
leites que são doados é de suma im-
portância. Avaliamos a coloração, o
cheiro, o teor calórico e o teor ácido.
Qualquer exame que dê fora do nor-
mal, o leite é descartado, pois priori-
zamos a qualidade do alimento para
o bebê”, afirma.
Aquelas mulheres que desejam
doar leite é necessário, além de ter
uma quantidade suficiente, que dê
para o próprio filho e ainda sobre, pre-
encher uma ficha, em que são avalia-
dos as condições do nascimento da
Através do leite doenças como criança, as condições de pré-natal e
Hepatite, tuberculose, sarampo os resultados dos exames feitos no
e Aids podem ser transmitidas
último trimestre de gestação de HIV,
sífilis e hepatite. Essa avaliação é re-
materno exclusivo até a idade ne- redução da mortalidade infantil. Se- alizada de quatro em quatro meses,
cessária. Isto se deve às várias fases gundos dados do Instituto Brasileiro para garantir que a mulher doadora
que o leite materno sofre durante a de Geografia e Estatística (IBGE), o esteja saudável.
amamentação”,diz. Brasil tem diminuído a taxa de morta- Quem quiser doar leite pode ligar
Nader alerta que as mulheres lidade infantil, caindo de 29,02 crian- no Disque saúde. O número é 160, op-
que não conseguem ou não podem ças mortas por mil vivas, para 13,82, ção quatro. Se aprovada, uma vez por
amamentar, o ideal seria recorrer aos do ano de 2000 para 2015. No Distrito semana o Corpo de Bombeiro vai até
Bancos de Leite Humano (BLH). “O Federal, o número chega a 15,8. a casa dela recolher as embalagens
banco de leite é a melhor saída nes- A representante médica do Banco cheias.
tes casos. A pasteurização que o leite de Leite do Hospital Regional de Ta- Sandi explica que o número de
recebe quando chega ao banco elimi- guatinga (HRT), pioneiro e centro de doações para o Banco de Leite do
na a possibilidade de transmissão de referência do Distrito Federal, Sandi HRT, está insuficiente para a deman-
doenças e infecções, embora elimi- Yurika, explica que vários testes são da de nenéns e que sempre precisa
ne também a proteção imunológica feitos para ter certeza que o leite de doações. “Infelizmente, o número
intrínseca do leite”, afirma. Porém, doado esta apto para o consumo da de mulheres que realizam doações de
aquelas que não conseguem pegar
leite dos BLH, Nader recomenda a
utilização dos leites em pó, próprios Os leites que são doados aos Banco de Leite Humano passam por
para recém-nascidos, vendidos em diversos testes para garantir a qualidade do alimento para o bebê
farmácias e supermercados. “Entre a
utilização da fórmula infantil e amas
de leite, a recomendação é que se uti-
lize a fórmula. Apesar de não possuir
todos os nutrientes que o leite mater-
no tem, o em pó industrializado não
oferece tantos riscos à saúde do bebê
quanto às amas de leite”, diz.
“Mães infectadas podem conta-
minar bebês e lactantes infectados
podem também contaminar mulhe-
res sadia”, alerta a especialista Lívia
Maria Pozzeti.
Bancos de Leite Humano
redemoinho . ano 06 . número 08

Os Bancos de Leite Humano e os


Postos de Coleta de Leite Humano
têm como missão proteção e apoio ao
aleitamento materno. Além de reali-
zar o processamento e distribuição de
leite, os BLH também fazem a seleção
e classificação do leite bom para o
consumo de uma criança, visando a

26
Onde encontrar
Bancos de Leite
1- Banco de Leite Humano do Hospital
Estoque do Banco de Leite Regional de Taguatinga: Setor C - Area
do HRT está insuficiente para Especial Norte, 24. Taguatinga. Telefone:
a demanda de nenéns que 61-3353-1122 - Fax: 61-3352-6900
necessitam das doações
2- Banco de Leite Humano do Hospital
Materno Infantil de Brasília: Avenida L2
Sul Quadra 608 Modulo A SGAS, s/n. Asa
leite é muito pouco. Mês passado fo- cebiam os filhos na própria casa, as Sul. Telefone: 61-3345-7597
ram doados apenas 150 litros de leite, amas externas. 3- Banco de Leite Humano do Hospital
o que é pouco se comparado com o Muitas negras que virariam amas Regional de Ceilândia: Área Especial,
número de bebês que precisam desse de leite internas eram obrigadas a 01 - QNM 17 . Ceilândia Sul. Telefone: 61-
3372-9652
leite. Torcemos para que o número de abandonar o próprio filho, muitas
doações cresça”, afirma. vezes nas portas dos asilos. A mulher 4- Banco de Leite Humano do Hospital
No Distrito Federal existem 15 era enganada pelos proprietários Regional de Planaltina: Avenida W/L4
Setor Setor Hospitalar, 00. Planaltina -
Bancos de Leite Humano. Para saber que se o filho fosse abandonado, ele Telefone: 61-3388-9794
mais o processo realizado em um BLH conseguiria ter uma vida digna e não
5- Banco de Leite Humano do Hospital
e dicas de como armazenar o leite que de escravidão. O médico Francisco Regional do Gama: Área Especial, 01
será doado, a maneira correta de or- Moura (1874, p.26), em tese de 1874 - Setor Central. Gama. Telefone: 61-3384-
denhar, e outros assuntos basta entrar afirmou: “A ama escrava, quando é 0337
no site http://www.redeblh.fiocruz.br. alugada, não leva em sua companhia 6- Banco de Leite Humano do Hospital
o seu filho; ela é obrigada pelo senhor, Regional de Brazlândia: Área Especial, 06
Vende-se: “Preta, com bom leite e - Setor Tradicional Brazlândia - Telefone:
a fim de dar um aluguel maior, a aban-
carinhosa” 61-3479-9643
doná-lo, portanto ela vai contrariada
e odeia a família que a aluga, e princi- 7- Banco de Leite Humano do Hospital
Regional de Sobradinho: Quadra 12 -
Amas de leite eram mulheres palmente a inocente criança a quem Área Especial, s/n. Sobradinho. Telefone:
negras escravizadas, que eram com- ela vai fazer as vezes de mãe”. Porém, 61-3387-3993 - Fax: 61-3487-9332
pradas, vendidas ou alugadas para algumas amas internas, tinham re-
8- Banco de Leite Humano do Hospital
amamentar crianças de famílias pro- ceio de abandonar o filho nos asilos, Regional da Asa Norte:  SMHN Quadra
prietárias. Na tentativa de conseguir e por tal motivo, contratavam amas 101 Area Especial, s/n - 2º andar. Asa
uma ama de leite, muitos proprietá- externas mais pobres para cuidar da Norte. Telefone: 61-3325-4207
rios partiam para anúncios nos jornais criança, prática que gerava uma “bola 9- Banco de Leite Humano do Hospital
locais onde priorizavam por uma ama de neve”. Universitário de Brasília:  L2 Norte-QD,
de leite com ‘bons costumes’ ou ‘obe- A prática de amamentação por 604. Asa Norte. Telefone: 61-3448-5585 -
Fax: 61-3448-5391
diente’, e que fosse ainda ‘carinhosa mulheres negras, já foi associada à
e fiel’, para a garantia de que o bebê precocidade sexual de homens bra- 10- Banco de Leite Humano do Hospital
das Forças Armadas: Estrada Parque
estaria em boas mãos. sileiros que foram amamentados e Contorno do Bosque, s/n. Cruzeiro Novo.
Havia dois modos de trabalho das criados por amas de leite. É o que o es- Telefone: 61-2107-5304
amas: as que eram contratadas para critor e sociólogo Gilberto Freyre dá a 11- Banco de Leite Humano do Hospital
trabalharem no domicílio da família, entender em seu livro “Casa Grande & Santa Lúcia: SHLS, 716 - CjC Blocos A.B,C.
as amas internas, e aquelas que re- Senzala”, de 1993: “Já houve quem in- Asa Sul. Telefone: 61-3445-0319
sinuasse a possibilidade 12- Banco de Leite Humano do Hospital
de se desenvolver, das re- Anchieta: Área Especial 8/9/10, s/n - Setor
lações íntimas da criança C Norte. Taguatinga. Telefone: 61-3353-
9136
branca com a ama de lei-
te negra, muito do pen- 13- Banco de Leite Humano do Hospital
Brasília: QMSW 04 Lote 1. Sudoeste.
dor sexual que se nota Telefone: 61-3315-1018
pelas mulheres de cor,
por parte do filho-família, 14- Banco de Leite Humano do Hospital
Regional de Santa Maria:  Santa Maria,
nos países escravocratas”,
redemoinho . ano 06 . número 08

Quadra AC , 102 - Conj. A, B, C e D. Santa


afirma. Maria. Telefone: 61-3392-6287
15- Banco de Leite Humano do Hospital
Regional de Paranoá: Quadra 02 Conjunto
K Lote 01 Área Especial Setor Hospitalar,
Foto do site “São
01. Paranoá. Telefone: 61-3369-9981
Paulo Antiga”, em que
retrata anúncios de Fonte: Rede Brasileira de Bancos de Leite
escravas amas de leite Humano- Fiocruz - http://www.redeblh.fiocruz.
em jornais do século 19 br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=432

27
"Prazer, meu nome
é Lucas Neres e
quero viver"
Nova técnica cirúrgica desenvolvida por um médico brasileiro que
vive no Canadá é a única chance para o menino sobreviver

Thais Evangelista
Kelvin Taumaturgo

L
ucas Neres tem 18 anos governo brasileiro não autorizou o foi reanimado por um policial militar.
e mora no bairro Arapo- procedimento. Na recepção do hospital, o médico
anga, em Planaltina, ci- Conta a mãe, Irani Neres que, residente, Carlos Zaconeta, que esta-
dade localizada a 50 km ainda bebê, Lucas apresentava si- va de saída de um plantão, observou
de Brasília. Quando tinha nais de cansaço e dificuldade para o estado da criança e retornou para
pouco mais de um mês respirar. Na época, eles moravam em atendê-lo.
de vida, foi diagnosticado Cristalina(GO), região do entorno do Após uma bateria de exames, Za-
com Bronquiolite Obliterante. Desde DF e chegou a procurar o Hospital coneta descobriu a doença de Lucas,
então começou sua luta diária, para Regional de Planaltina. O médico pe- e informou que o quadro de saúde
sobreviver. A esperança está em fazer diu um Raio-X e prescreveu um me- dele podia piorar se ele não fosse in-
um transplante de pulmão fora do dicamento “difícil de ser encontrado ternado com urgência em uma unida-
redemoinho . ano 06 . número 08

país. Em 2013, uma das médicas que nas farmácias” e também o uso de de de terapia intensiva neonatal (UTI).
trata de Lucas Neres, em São Paulo, nebulização. Foram oitenta dias de internação e
conheceu o médico MarceloCypel, Durante a madrugada o quadro durante esse período, Lucas sofreu
pneumologista formado na PUC do de saúde do menino piorou, e dona várias paradas cardíacas, contraiu
Rio Grande do Sul, que trabalha no Irani decidiu levá-lo para o Hospital pneumonia e infecções.
Hospital General Universitário de Materno Infantil de Brasília (HMIB). Ao O caso chegou à médica Luciana
Toronto, no Canadá, que se dispôs chegar à rodoviária do Plano Piloto Vellozo Monte, que entrou em con-
a realizar a cirurgia, mas até hoje o teve a primeira parada cardíaca, mas tato com o Cypel, e explicou o caso

28
de Lucas, enviando o histórico e os O que é a doença
exames. Após checar os resultados,o
próprio médico se propôs a vir ao Bra- A bronquiolite obliterante é dependerá da gravidade e da
sil, mas não foi autorizado a realizar uma doença obstrutiva crônica evolução do quadro
a cirurgia, pelos seussuperiores, por das vias aéreas e que ocorre
Poderá haver necessidade de
causa das condições climáticas do preferencialmente em lactentes do
realização de algum tipo de
país. Lucas é apto para o transplante, sexo masculino, após um quadro
tratamento cirúrgico em qualquer
mas precisa fazer o procedimento no infeccioso decorrente de qualquer
fase da evolução dessa doença.
Canadá,porque as baixas tempera- agente - os mais frequentes são
turas garantem maiores chances de os vírus e, desses, o principal O tratamento cirúrgico não irá
sucesso. é o Adenovírus e o segundo o curar a bronquiolite obliterante,
Desde então uma nova corrida Haemofilus influenza. mas irá tratar as lesões pulmonares
começou para salvar a vida do meni- (bronquiectasias e dilatação/
Clinicamente ocorre tosse
no. Toda a junta médica que acom- bolha) secundárias e, com isso, a
persistente, estertores,
panha o caso, com o apoio de ou- evolução deverá ser mais favorável
taquidispneia e sibilos por mais
tros profissionais que trataram dele, e com menores quadros de infecção
de duas semanas e que se inicia
fizeram o pedido aos ministérios da respiratória no decorrer da vida do
após um quadro agudo de
Saúde e Justiça. Entretanto, os ór- recém-nascido ou da criança.
infecção. Além desses, pode haver
gãos negaram por causa do valor do
o hipocratismo digital, cianose
procedimento: R$ 1,5 milhão. Mais Fonte: http://pediatrica.drmalucelli.
e insuficiência respiratória. Tudo
adiante, o ministério da Saúde auto- com.br/
rizou que o procedimento fosse feito
na Santa Casa de Porto Alegre, pelo
doutor Marcelo, desde que ele fosse descoberta do procedimento que realidade do paciente, conseguindo
auxiliado pelo ex-diretor da unidade, pode salvar a vida de Lucas. A cada até ajuda financeira, sob a forma de
José Camargo. Porém em 2007 este ano novo, problemas como artrose, doações dos participantes, para con-
mesmo médico havia se negado a osteoporose, hipertensão, redução seguir reunir o dinheiro para o proce-
fazer um procedimento parecido no do cálcio e afunilamento na caixa dimento no Canadá.
adolescente. torácica apareceram. Toda a junta
A descoberta da cura
Segundo Luciana Velozo, no Bra- médica, que acompanha o caso do
sil, os únicos hospitais que têm es- garoto, se preocupa porque a cada Pesquisa liderada pelo médico
trutura física para tal procedimento dia o problema pulmonar se agrava diplomado na PUCRS Marcelo Cypel,
são o Sírio Libanês e o Albert Einstein, e a necessidade do transplante é 38 anos, tem grande impacto na área
ambos em São Paulo, cujo valor se- urgente. dos transplantes de pulmão. Tema de
ria o mesmo da viagem ao exterior. O caso do brasiliense ganhou reportagem de capa da revista Scien-
Entretanto, o Ministério da Saúde se repercussão nacional e internacio- ce Translational Medicine de outubro
nega arcar com as despesas da cirur- nalmente em vários congressos de de 2009, o estudo foi desenvolvido no
gia – nem aqui, nem no Canadá. medicina, onde os médicos pro- Serviço de Cirurgia Torácica e Trans-
Já se passaram dois anos desde a curam levá-lo para mostrarem a plante Pulmonar da Universidade de

redemoinho . ano 06 . número 08

Lucas precisa
fazer o transplante de
pulmão no Canadá
que custa 1,5 milhão.

29
Palmeirense de carteirinha,
Lucas adora exibir suas camisas
doadas pelo jogadores do clube

O jovem, apesar da
doença, tem uma do órgão e sua implantação. Os re- car na cama, mas tenho que levantar
vida “normal”. Brinca,
estuda, vai à igreja
sultados contribuem para amenizar me arrumar e ir estudar”.
a falta de doadores diante do gran- Lucas enfrenta uma rotina diária
de número de pacientes em lista de com aulas e intervalos especialmente
espera por órgãos para transplante. programados para que ele receba a
Toronto (CA). A equipe conseguiu No hospital canadense, aumentou em medicação dada pela mãe. Ele gosta
grande avanço com o uso da terapia 20% o número de procedimentos fei- de matemática e tira boas notas nos
gênica visando tratar e reparar pul- tos ao ano. trabalhos e provas.
mões que não tinham função sufi- A convivência com os colegas de
Simpatia e bom humor
ciente para serem destinados a outros turma é tranquila. “Rola uma bagunça
pacientes. Dez horas depois do proce- Quem vê esse rapaz de 18 anos, entre a gente. Às vezes quando não
dimento, os órgãos atingiram melho- com balão de oxigênio durante 24 ho- me sinto bem, todos ficam preocu-
ra significativa a ponto de poderem ras, andando, brincando, indo para a pados”. Perguntado sobre a profis-
ser transplantados. Foram mantidos escola e missa, não imagina que ele são que quer seguir, Lucas respondeu:
num sistema de perfusão, também tem um problema de saúde grave. Se “Quero ser policial da Rotam. Como
desenvolvido pelo grupo de Cypel, acha que ele está prostrado em uma não posso correr, quero trabalhar na
preservando-os fora do corpo sem a cama esperando a morte chegar, está área de informática ou dirigir uma
necessidade de refrigerá-los, proces- totalmente enganado. Apesar deusar viatura”.
so que impediria o sucesso da técnica, o balão de oxigênio durante 24 horas Lucas é torcedor fanático do Pal-
pó isso a inviabilidade de ser feito em e fazer o uso continuo de mais de 18 meiras e não perde uma partida pela
um país tropical como o Brasil. tipos de medicamentos, Lucas tem TV. O futebol pelo vídeo game tam-
Na nova terapia, o gene que o uma vida social agitada. bém virou passatempo. Apaixonado
vírus espalha nos pulmões é respon- Durante três dias, a equipe de re- pelo verdão, o jovem veste a camisa
sável pela produção de proteína in- portagem teve o prazer de conviver do time e dá um verdadeiro baile em
terleucina-10. Produzida dentro das com “Luquinhas”, apelido dado cari- quem tenta disputar uma partida com
células do órgão tratado, ela inibe nhosamente por dona Irani e repetido ele no jogo digital. “Às vezes dou uma
inflamações induzidas pela extração por todos que o conhecem. Logo na colher de chá pra quem não sabe jo-
chegada fomos bem recebidos pelos gar muito. Deixo fazer uns gols”, disse
dois. Dona Irani logo passou um café sorrindo. Com o olhar atento ao moni-
e começamos a conversar. tor, que fica em cima de uma cômoda
Durante a semana, o garoto vai no quarto decorado de verde para
para a escola onde está cursando o todo lado, entre adesivos, bonecos,
primeiro ano no Centro de Ensino lençóis e toalhas, o rapaz se diverte
redemoinho . ano 06 . número 08

Médio 2, em Planaltina. Ele confessou muito. Um dos seus tesouros, guar-


que não gosta muito de acordar cedo. dados em uma de suas gavetas, são
“Às vezes dá uma preguiça, quero fi- as camisas do time, algumas doadas
pelos jogadores do clube.
Entre uma partida e outra, Lu-
O médico brasileiro Marcelo Cypel cas fica de olho no celular. Ele quer
desenvolveu, junto com sua equipe, saber sobre as mensagens do grupo
a técnica de transplante de pulmão de amigos que a todo minuto manda
que pode salvar a vida de Lucas

30
e conversam com o garoto. A missa
começa às 19 horas e em todo o mo-
mento ele presta atenção no sermão
bíblico e participa dos cânticos. Os
olhos e ouvidos ficam atentos a tudo
que é pregado. No final ele recebe
a benção do padre Alceu e volta de
carona para casa.
O padre conta que se preocupa
com Lucas, e apesar do problema de
saúde ele é o fiel mais assíduo da mis-
sa e dos trabalhos da igreja. O padre
relata que quando ocorre do menino
faltar, ele próprio visita o jovem para
Dona Irani acredita no sucesso da cirurgia de saber o motivo. “Recentemente Lucas
Lucas e tem fé que seu filho será curado
teve dengue e alguns féis da paróquia
foram ajudá-lo, porque ele é muito
importante para nós e para Deus”.
Guerreira e, acima de tudo, mãe
Dona Irani a todo o momento
um recado. Entre piadas, novidades e a igreja!”. Entre uma comemoração e está atenta para o estado de saúde do
paqueras, sempre perguntam como outra pelos gols, o menino responde: único filho. A luta diária dela começa
está a saúde dele. “Tenho muita gen- “Calma mãe, está terminando o se- bem cedo para ministrar os primei-
te, desde colegas da escola a algumas gundo tempo”. Após o banho, vaido- ros medicamentos antes de ir para a
pessoas bem conhecidas na TV aqui na so, gosta de se arrumar bem. Roupa escola. Ela prepara o café da manhã
cidade, sempre preocupadas comigo”. passada, perfume, ele tem todo cui- sempre estimulando o garoto a se
Enquanto jogava a partida de dado em deixar o cabelo bem pente- alimentar antes de sair. O seu olhar,
futebol no videogame no quarto, ado. Gel e secador não podem faltar com aparência de cansaço, está sem-
dona Irani fez um desabafo: na se- para completar o visual. pre atento nas reações do organismo
mana anterior o filho havia tido uma De família religiosa, acompanha- de Lucas.
crise na escola e precisou de cadeira mos os dois à missa, na paróquia do Protetora, enfermeira, amiga, ze-
de rodas porque ele não conseguia Divino Espírito Santo que fica algu- losa, carinhosa, guerreira são alguns
se locomover. Ao entrar em contato mas quadras de onde moram. No dos adjetivos. Mesmo nas horas difí-
com a médica, ela afirmou que é o trajeto, que na maioria das vezes é ceis em que o filho está debilitado, a
organismo dele que não está mais de descida, Lucas reclamou apenas fé não a deixa abater e procura passar
reagindo aos medicamentos, e que uma vez de cansaço e pediu a sua segurança e tranquilidade. O coração
ele necessita o mais rápido possível mãe para diminuir a velocidade dos dela está sempre cheio de esperança:
desse transplante. passos. “Mãe, espera só um pouco, “Eu ainda vou ver meu filho curado
Lá fora, Irani chama: “Lucas está vamos mais devagar”. Na chegada e sei que o meu Deus está ao nosso
na hora de tomar banho para ir para à igreja, muitos fiéis se aproximam lado a todo o momento”.

O Jovem tem grande


esperança e fé que o
Futebol Solidário
transplante dará certo e
que ele será curado Atualmente a família também
conta a ajuda da torcida Mancha
Verde do Palmeiras, que promove
diversos meios para arrecadar
o dinheiro necessário para o
transplante do jovem torcedor. A
família já conseguiu R$ 250 mil,
redemoinho . ano 06 . número 08

frutos das doações que vieram dos


congressos de medicina, além de
jogos beneficentes e da sociedade,
sensibilizada por reportagens
exibidas em alguns programas de
televisão.
Informações sobre as doações estão
no site www.lucasneres.com.br,
criado pela Mancha Verde.

31
clausura nada
romântica

A rotina de homens e
mulheres que largaram tudo
para viver exclusivamente
redemoinho . ano 06 . número 08

em função do louvor divino


nos mosteiros do DF Andrew Simek

32
U
ma vida de clausura,
abdicações e solidão.
Esta foi a escolha fei-
ta por 18 homens
que decidiram bus-
car Deus por meio da
vida monástica, e que
hoje vivem em comunidade no Mos-
teiro de São Bento, localizado na Er-
mida Dom Bosco. Assim como eles, a
pouco menos de 2 km do monastério,
estão 17 irmãs Carmelitas Descalças
que, embora tenham regras pareci-
das com as dos beneditinos, mostram
características bem peculiares. Junto
Madre superiora Maria
com as Clarissas, eles fazem parte de Izabel abdicou da vida mundana
um grupo de três ordens religiosas há 15 anos, e hoje acredita
monásticas de Brasília. não ter feito escolha melhor.
“A vocação me completa”
A perda de vínculos familiares e
sociais é considerada uma das etapas
mais dolorosas e difíceis de serem su-
peradas pelos monásticos, indepen-
dentemente do segmento religioso. por três meses, como um período de sentado Benício Euclides já visitou o
Por esses e outros motivos, as regras experiência. Após ser comprovada a mosteiro duas vezes, e acredita que
para admissão no Mosteiro de São aptidão, entra no período de postu- é um local bem frequentado por ser
Bento são bem claras: o candidato, lado, que dura aproximadamente um mais contemplativo. “É um ambiente
que deve ter no mínimo 18 anos e en- ano, e passa a experimentar a rotina tranquilo e menos agitado que uma
sino médio completo, não pode ter da casa. Depois, o ingressante pede paróquia, fato que me traz uma paz
nenhum tipo de compromisso finan- para ser recebido como noviço. Se for interior muito grande”, avalia.
ceiro ou afetivo, tem de ser solteiro aceito, fica cinco dias em um retiro de Durante os intervalos, os cenobi-
ou viúvo, além de gozar de equilíbrio preparação e volta para a comunida- tas, como eles também são chamados,
emocional e boa saúde física. “A vida de onde recebe o nome de um santo, fazem as tarefas de casa e trabalham,
em um mosteiro não é para qualquer escolhido pelo superior, dentre três com a produção de pão e imagens.
um. A pessoa precisa ter vocação es- que ele pode sugerir, além de roupas, Esses são os principais preceitos da
piritual, em primeiro lugar, e depois chamadas de hábito monástico. regra de São Bento, que diz “ora et
estar ciente dos sacrifícios e das coisas A rotina nunca muda. Em meio labora” (“ora e trabalha”). “Sou católico
que terá de abdicar. Mas o caminho é à natureza, todos os dias, por volta desde criança, e aqui é um lugar onde
recompensador”, relata o irmão Ber- das 5h, os monges do Mosteiro de São eu encontro com Deus de uma forma
nardo Maria. Bento se levantam para fazer a primei- única, por meio de orações mais inten-
O processo de acompanhamen- ra oração, chamada de vigília, quando sas”, comenta o estudante de filosofia
to vocacional para saber se a pessoa o sino é tocado pela primeira vez. A Matso Henrique. Após o término dos
realmente está disposta a buscar oração dá início a uma série de encon- dois anos de noviciado, o integrante
Deus por meio da vida monástica é tros espirituais intercalados e abertos da comunidade pode entrar com o
iniciado pessoalmente, por e-mail ou ao público, que só terminam às 19h30, processo de admissão na profissão
carta. Caso seja aprovado, o candi- com as horas completas - última mis- temporária, na qual ele se vincula à
dato é convidado a ficar na clausura sa do dia, após o pôr-do-sol. O apo- sociedade monástica por mais três
anos. Passado o período, ele pode
pedir a profissão solene, e faz votos
perpétuos de estadia no monastério.
Com isso, tem a chance de se eleger
para o cargo de Prior, responsável por
gerir a casa, cuidar das tarefas de cada
redemoinho . ano 06 . número 08

membro e da parte financeira. Atual-


mente, Dom André Rocha Neves está
na função. No caso das Carmelitas,
quem responde é a madre superiora
Maria Izabel.
Irmão O procedimento de admissão no
Bernardo
Maria diz que Carmelo Nossa Senhora do Carmo é
vida monástica o mesmo do Mosteiro, adicionado
exige muitos
sacríficios, mas é
recompensadora
33
Ordens
monásticas
no mundo
O monasticismo, de uma forma
geral, representa a libertação
Vitral de costumes “mundanos” em
marca teto
do Mosteiro
prol da prática religiosa. Por
Carmelo Nossa mais que os tipos de adoração
Senhora do sejam diferentes, várias religiões
Carmo como o budismo, hinduísmo e
jainismo, além do cristianismo,
apenas um ano para que a profissão último sábado do mês livre. “Mesmo apresentam diversas
solene seja feita. A idade mínima para assim, não temos o costume de sair características monásticas
entrada é 18 anos, e a máxima 35. A porque quebra o ritmo. Só saímos muito semelhantes, como pode
diferença é que a clausura das monjas para o necessário, como idas ao mé- ser observado abaixo:
não é parcial, como a dos beneditinos. dico, visitas a familiares hospitalizados Budismo
Elas devem ficar atrás das grades por etc”, comenta Bernardo.
toda a vida, a partir do momento em Já a vida das Carmelitas é diferen- A maioria dos monges budistas
que fazem o voto de estabilidade. No te. Elas não podem deixar o mosteiro estão espalhados pela Ásia, em
primeiro ano, é permitida apenas a de forma alguma, exceto, também, em mosteiros ou no meio da cidade.
visita dos familiares. Depois, amigos casos de saúde. A madre superiora, de Sem renda fixa, grande parte
podem frequentar o mosteiro e con- 51 anos, abdicou da vida mundana sobrevive pedindo dinheiro
versar com as noviças, no locutório aos 36. Antes, trabalhava como cuida- nas ruas. A principal filosofia
– uma sala normal, com grades e ca- dora de crianças, fazia programações é estudar e ensinar a religião,
deiras - uma vez por mês. culturais e frequentava paróquias. Ela baseada nos ensinamentos
diz que a parte mais difícil foi se afas- propostos por Sidarta
Sacrifícios Gautama, mais conhecido
tar da família e acostumar-se `a roti-
Graduado em literatura, irmão na. “A vocação te completa, mas não como Buda.
Bernardo Maria, de 34 anos, está na significa que você não sinta falta dos Hinduísmo
vida monástica desde os 17. Primei- parentes. Agora eu tenho uma nova
ramente, ele entrou na ordem agos- família”, afirma. Os monges hinduístas
tiniana, que é religiosa com um viés De acordo com a Arquidiocese de reúnem vários estilos de vida
missionário, e depois seguiu para os Brasília, todos os mosteiros têm autori- e acreditam em vários deuses.
beneditinos, que adotam regime de zação de funcionamento do arcebispo Eles surgiram antes dos monges
clausura parcial. Neste período, dos do DF, mas seguem suas próprias re- cristãos, tendo como a principal
23 aos 30 anos, ficou fora do mosteiro, gras. Situado em uma região privile- característica o isolamento
pois decidiu ter uma experiência de giada do Lago Sul, o Mosteiro de São e a meditação profunda.
“vida normal”, quando entrou na fa- Bento possui 32 celas (quartos) com Tradicionalmente, eles moram
culdade e trabalhou em uma empresa. cama e escrivaninha. Alguns mais mo- em mosteiros e comunidades.
Para ele, não se tratou de crise de ap- dernos, com banheiro próprio. Além Jainismo
tidão, mas, sim, de amadurecimento. de cozinha, refeitório, biblioteca com
Já o superior acreditou que ele estava títulos essencialmente religiosos, salas É uma das religiões mais
jogando fora a vocação. “Eu precisava de encontros, espaço para missa, hos- antigas da Índia, na qual os
disso. Como entrei muito cedo na vida pedaria e um cemitério ainda não utili- monges são vegetarianos, pois
monástica, pulei várias etapas e não zado, porque nenhum irmão morreu. acreditam que uma planta ou
vi o outro lado da vida. Na verdade, a A estrutura do Carmelo é similar à um animal tem o mesmo valor
redemoinho . ano 06 . número 08

experiência fez com que eu quisesse dos beneditinos, mas com um número no mundo que um ser humano.
ainda mais ainda estar aqui”, comenta. menor de dependências e sem hospe- Diferentemente do budismo,
Mas, o monge ressalta que a daria. No total, são 25. No cemitério o jainismo nunca teve um viés
vida de clausura exige muito sacrifí- das monjas, uma irmã já foi enterrada, missionário. Eles também vivem
cio. O dele, por exemplo, foi deixar há pouco menos dois anos. Ela morreu em comunidades isoladas na
os amigos e os hábitos culturais de aos 92 anos, por problemas respirató- Índia, tendo alguns adeptos na
lado, como ir ao teatro, a shows e ao rios. Ambos os mosteiros também dis- América do Norte e na Europa.
cinema. No entanto, os irmãos têm o põem de aparelhos de TV e telefones,

34
raramente usados. “Só assistimos o do monastério em uma casa afastada, em regime de abstinência e celibato.
programa partidário, em ano eleitoral, no meio do mato, com vista para o Uma das características dos cenobitas
porque temos que votar. Se ficamos Paranoá, são idênticos às celas que os cristãos, que os difere dos demais, por
muito no telefone, quebramos a clau- cenobitas vivem. exemplo, é que eles estão dispostos a
sura. Não é permitido”, conta a madre O local é capaz de abrigar até 70 receber pessoas, mas não deixam o
superiora. pessoas, em mais de 20 quartos. É o mosteiro para buscar novos fiéis.
Muitas pessoas procuram os tipo de alojamento para quem procu- O teólogo Marcos Franchini critica
mosteiros com uma visão romântica ra paz espiritual, pois uma das regras este tipo de atitude, pois acredita que
da vida de clausura, e acabam se de- para estadia é o silêncio absoluto. A para evangelizar, é necessário sair em
cepcionando durante o processo de diária sem alimentação custa R$ 50, e campo. “O número de pessoas que
admissão. “Nós temos regras, e elas pela hospedagem com as quatro re- podem ter acesso à palavra divina é
pensam que vão conviver com anjos feições do dia é cobrado o valor de R$ muito menor quando se fica enclau-
e santos, mas não é bem assim. Somos 100. Não existem restrições. Um casal, surado”, comenta. Franchini tam-
seres humanos”, ressalta o por exemplo, pode ficar na bém reitera que os primeiros mon-
irmão Bernardo Maria. O mesma cela e até mesmo ges acreditavam que a libertação de
processo de desistência “Só assistimos levar crianças. “Grupos de coisas mundanas os livraria de pagar
é relativamente tranqui- o programa Igreja nos procuram mais, pelos erros cometidos, e que com o
lo até a profissão solene. principalmente pela forte isolamento eles voltariam a ter certo
Depois, os pedidos vãos partidário, espiritualidade que o mos- tipo de inocência. “O conceito foi se
para a Santa Sé, em Roma. teiro traz”, comenta Dom reformulando, e hoje os monges es-
Até hoje, em mais de 20 em ano Lázaro Pereira, hospedei- tão diretamente ligados a uma busca
anos de existência dos eleitoral, ro. Além disso, diariamen- espiritual mais intensa e à caridade”,
monastérios em Brasília, te produzem pães, biscoi- afirma.
não houve qualquer caso porque temos tos e licores, vendidos a R$
de expulsão, mas os supe-
que votar” 10, R$ 3,50 e R$40, respec-
riores relatam que cons-
tantemente aconselham a
tivamente, para o público
madre superiora que frequenta as missas. HORÁRIO DOS
ENCONTROS
Maria Izabel
saída, quando notam que As carmelitas se susten-
eles não têm vocação para tam por meio da venda de
a vida monástica. esculturas de santos, dinheiro arreca-
dado em festas e doações. Ofício divino
História Segundo o teólogo Alberto Fei- Horário das vigílias: Domingo a
São Bento dizia que o verdadeiro tosa, existem vários tipos de vida mo- sexta: 5h20. Sábado: 6h20.
monge é o que vive dos trabalhos de nástica. A cristã nasceu logo no início
Laudes
suas mãos. Naquele tempo, dentro do cristianismo, com retiros para o
do contexto da Igreja, o monge de- deserto e a criação de comunidades Domingo a Sexta às 6h20.
veria trabalhar dentro do mosteiro, religiosas isoladas. “Foi quando as Sábado às 7h20 (com Missa)
com moinhos, lavouras e hortas para igrejas começaram a se voltar para as
Noa
ter sua própria subsistência sem sair coisas do mundo e algumas pessoas
da clausura. Hoje, a hospedaria é um rejeitaram isso, buscando o recolhi- Segunda a Sábado às 15h.
dos principais meios de sustento dos mento”, explica. A diferença entre um Domingo e solenidades às 16h.
beneditinos, e uma tradicional ca- monge cristão, budista e hindu, em
Vésperas
racterística, desde a Idade Média. Os geral, é o tipo de adoração, já que to-
quartos, que ficam no mesmo prédio dos buscam a vida de oração e entram Todos os dias, às 18h
Completas

Na loja do Mosteiro Todos os dias, às 19h30


de São Bento são
comercializados pães,
 Missa conventual
biscoitos e licores, que  Segunda a Sexta 6h20. Sábado
custam entre R$ 10 e R$ 75,
além de artigos religiosos. 7h20. Domingo 10h
redemoinho . ano 06 . número 08

A venda de produtos
é um dos principais
meios de subsistência da ENDEREÇOS:
comunidade monástica
Mosteiro de São Bento: SHDB
QL 32, Conj. 1, Bl. B, Lago Sul
Carmelo Nossa Sra. do Carmo:
SHDB QL 30, Parque Ermida Dom
Bosco, Lago Sul

35
tradição que
gera polêmica
Infanticídio indígena ainda acontece em
algumas aldeias do Brasil, dividindo opiniões
entre os defensores dos direitos humanos
e da preservação de costumes étnicos
redemoinho . ano 06 . número 08

Luiza brasiel

36
O
direito à vida
está garantido na
Constituição Fe-
deral. O artigo 5˚.
prevê que todos
são iguais e defi-
ne, ainda, como
invioláveis a liberdade e a segurança.
O direito de preservar a tradição e os
costumes indígenas, o que na prática
permite o infanticídio, também está
garantido na Constituição, no Artigo
231. Entre a legalidade e a cultura, so-
bra polêmica. Se, para os índios, matar
crianças que nascem com deficiência,
são gêmeas, filhas de mães solteiras
ou fruto de uma relação fora do casa-
mento é um ato natural em muitas et-
nias, para quem está de fora, a prática
provoca horror. “Se uma criança com
deficiência continuar sobrevivendo
na aldeia vai dividir a aldeia inteira,
pois vai ter gente do lado do pajé
querendo que o recém-nascido seja
enterrado, e vai ter gente do outro
lado, que já foi ‘missionarizado’”, ex-
plica o antropólogo Martiniano Neto,
que também é etnólogo.
Apesar do profundo estranha-
mento que o ato possa causar, a mor-
te destas crianças, como esclarece a
indigenista Elizabeth Bergonha, não
é um ato pacífico e deixa marcas pro-
fundas nas mães. A prática, na visão
dos indígenas, não está ligada a tortu-
ra e maldade. “Quando isso acontece
na aldeia, não é motivo de se orgu-
lhar, é bastante deprimente para todo
mundo”. A tradição, contudo, existe
há séculos, antes mesmo de qualquer
colonizador habitar este país. Para
alguns indígenas, sacrificar crianças
com deficiência ou que nascem gê-
meas, ainda hoje, é uma maneira de
preservar o seu povo e a sua cultura.
E, para cada etnia, há uma história e
uma crença por trás desses sacrifícios.
Elizabeth observa que eles não enter-
ram por enterrar, mas, na visão deles,
estão impedindo que aquela criança
sofra no futuro.
As gêmeas Márcia e Lúcia Guaja-
redemoinho . ano 06 . número 08

jara podem ser consideradas sobrevi-


ventes desta prática. Lúcia, a segunda
a nascer, seria sacrificada. Os Guaja-
jaras acreditam que, neste caso, um
representa o bem e outro o mal. Em
geral, a mãe vai sozinha para a floresta
e lá mesmo enterra uma das crianças
gêmeas. Lúcia escapou ao ser levada

37
e uma menina, apenas o filho
é preservado entre os Guajaja- A prática resiste
ras, já que eles acreditam que a
mulher já nasce castigada por Há falta de dados confiáveis
vir na mesma gestação que o sobre a prática do infanticídio.
homem. A solução encontra- O pouco que se sabe provém
da foi separar as gêmeas. Lúcia de fontes como estudos
foi levada para a Aldeia Ara- antropológicos, missionários
ribóia. Márcia ficou na Guaja- religiosos ou de algum
jara, ambas no Maranhão. Até coordenador de posto de
alguns anos atrás, não se co- Distrito Sanitário Especial
nheciam. “Eu só fui conhecer Indígena (DSEI).
a minha irmã há pouco tempo.
Não chega a ter nove anos que Por questões culturais ou de
a gente se conhece. O povo proteção, a prática resiste
sempre falou que nós somos entre as seguintes etnias:
idênticas”, diz Márcia, que hoje Waiwai – Localizada no Pará.
mora em Brasília, no Santuário
Guajajara – Localizada no
dos Pajés, no Noroeste.
Maranhão
Para algumas etnias, como
os Waiwai (PA), a criança só é Swuruahá – Localizada no
considerada com vida após Amazonas
Muwaji Suruwahá saiu da
ser amamentada pela mãe.
aldeia para evitar a morte e garantir Yanomami – Localizada em
tratamento para a filha Iganani Então, matar recém-nascidos
Roraima
não é considerado crueldade,
pois, na visão deles, os bebês
enterrados não possuem vida. se tente entender.
para outra aldeia logo após o nasci- De acordo com a cultura desta tribo, Para Gjargleo, enterrar recém-
mento. Apesar de a tradição entre os a criança que nasce com alguma de- -nascidos gêmeos ou deficientes for-
Guajajaras ser de que ao nascerem ficiência não vai conseguir ser um talece o povo Waiwai, por questões
duas crianças no mesmo ventre, am- guerreiro forte, e por isso, não poderá religiosas e espirituais. “O nosso povo
bas têm o mesmo espírito e apenas se proteger e nem proteger a aldeia, acredita que não existe a morte. En-
a primeira deve sobreviver, elas são tornando-se mais um “peso” na hora tão, quando eu morrer, meu corpo
filhas de pajés. Havia dúvida em qual de fugir, caso a tribo perca a guerra. vai ser enterrado em pé, porque eu
delas o espírito residia. “Meu pai não “Essa prática não é uma coisa para ser vou reviver em outra criança, e essa
sabia qual de nós estava herdando mudada, mesmo que para os direitos criança vai ter o meu nome”, explica o
a sua espiritualidade, então ele não humanos seja uma coisa cruel”, afirma índio Waiwai. O infanticídio na aldeia
poderia mandar enterrar nós duas de Gjargleo Waiwai, 32 anos, casado com dos Waiwai está ligado a essa crença,
uma vez”, conta Márcia. Márcia. Os índios reivindicam respeito pois, para eles, um espírito não vai
Além disso, as duas são do sexo às religiões e crenças deles e criticam habitar dois corpos ao mesmo tempo
feminino. Quando nasce um menino o julgamento do infanticídio, sem que (no caso de gêmeos), e se a criança

" Prática não é


uma coisa para
ser mudada,
mesmo que
para os direitos
redemoinho . ano 06 . número 08

humanos seja
uma coisa cruel"
Gjargleo Waiwai, 32 anos

38
nasce com alguma deficiência, é sinal chorava muito”, conta Muwaji. Iganani lhava com o povo Suruwahá há mais
de que os espíritos não quiseram que foi levada pela mãe até a capoeira, de 20 anos.
ela viesse ao mundo e tentaram atra- local onde são enterrados os índios. Comovidos pela história dela, Ed-
palhar, mas não conseguiram. Então, Jajawai, mãe de Muwaji e avó da son e Márcia criaram a ONG Atini, uma
elas são sacrificadas, para que pos- criança, se comoveu com o desespero instituição sem fins lucrativos, que
sam nascer sem a interferência desses da filha. Foi até à capoeira e trouxe abriga famílias indígenas que saíram
espíritos. “Se não fosse essa e outras o bebê. Após dar banho, Iganani foi de suas aldeias para cuidar dos filhos
práticas, o nosso povo não existiria levada novamente para os braços que nasceram com alguma deficiên-
mais, então dentro do que se vê, é da mãe. A partir daquele momento, cia e, por isso, não seriam aceitos pelo
preferível continuar com essa seu povo. Muwaji nunca mais
prática e nosso povo existir, do Caso Muwaji se tornou referência retornou à aldeia, mas planeja
que o povo morrer”, desabafa uma visita em breve. A índia
Gjargleo. mundial e inspirou Ong Atini, conta que seria complicado
Quando se fala de infan- que abriga famílias indígenas que cuidar da sua filha por lá. “Não
ticídio, o caso de Muwaji Sa- tem banheiro na aldeia. É di-
rawahá, da Amazônia, se tor- fugiram do infanticídio fícil de cuidar de uma criança
nou emblemático e ganhou lá, não dá para usar a cadeira
repercussão mundial. Em maio de Muwaji se encantou com o bebê e de rodas e dar banho, porque o rio é
2005, ela deixou sua aldeia para cui- decidiu que não iria abandonar a filha. longe e a cadeira de rodas não chega
dar da filha Iganani, que nasceu com Ela lembra que o irmão dela queria até lá”, afirma Muwaji.
paralisia cerebral. A índia é da etnia dar veneno para a criança, mas não Após a história de Muwaji ganhar
Suruwahá, considerada povos semi- deixou. repercussão, o então deputado Hen-
-isolados, aqueles que não têm muito A Suruwahá teve a ajuda da Fun- rique Afonso (PT-AC) apresentou o
contato com a chamada sociedade dacão Nacional de Saúde (Funasa) Projeto de Lei 1057/2007, que “visa
branca. Muwaji conta que, quando para sair da aldeia. Muwaji levou Iga- coibir práticas tradicionais nocivas às
Iganani nasceu, ninguém percebeu nani para fazer tratamento em São crianças indígenas.” A proposta ficou
nada. “Depois que ela cresceu um Paulo e em Manaus. Em 2006, veio conhecida como “Lei Muwaji”. O texto
pouquinho, a perna ficava cruzada. para Brasília com os missionários Már- sugere que qualquer pessoa com co-
Depois que ela cresceu mais um pou- cia e Edson Suzuki, que foram cha- nhecimento de casos que coloquem
co, a perna dela ficou dura e quando mados para traduzir e ajudar Muwaji em risco a vida de crianças indígenas
a gente tentava abrir, ela chorava... durante o tratamento. O casal traba- tenha a obrigação de relatar o fato à

Polêmica no cinema
"Hakani: A história de uma do docudrama, a história foi baseada
sobrevivente" é um filme lançado em em fatos e eventos reais, porém foi feito
2008 pela ONG Atini. Produzido com por índios de etnias diferentes.
o apoio do grupo de missionários
O Ministério Público Federal no
Jovens com uma Missão (Jocum), em
Distrito Federal (MPF/DF) pediu à
30 minutos aborda o infanticídio pela
justiça, em maio deste ano, para que
ótica da ficção. Segundo informações
o docudrama seja retirado do ar, pois,
no site do filme (www.hakani.org), o
para o órgão o curta pode aumentar o
documentário não retrata eventos
preconceito contra os povos indígenas,
reais, mas é um docudrama, uma
além de incitar o ódio. Na ação civil
representação baseada em fatos reais.
pública, a procuradora da República pegam uma situação de um grupo
O “docudrama’’ gerou revolta por parte Ana Carolina Alves Roman pediu que indígena específico e fazem com que
de muitas pessoas que acreditaram o material deixe de ser exibido, que as isso seja verdade de todos os grupos”,
se tratar de fatos reais. No próprio entidades sejam proibidas de expor opina o antropólogo. Para Martiniano,
site, vários internautas criticaram a imagens de crianças indígenas e,
redemoinho . ano 06 . número 08

de maneira geral o vídeo vai continuar


prática. Os indígenas que tomaram ainda, que sejam condenadas a pagar circulando, mas a proibição é positiva.
conhecimento do filme também se R$ 1 milhão de indenização por danos Vagner, uma das lideranças da ONG
sentiram ofendidos. O curta trata da morais coletivos. Atini – Voz pela vida, afirmou que a
história da índia Hakani de forma advogada da ONG está tomando as
O antropólogo Martiniano Neto diz
fictícia. A menina, de menos de 5 anos, devidas providências sobre o assunto.
que o ideal seria as pessoas assistirem
era considerada em sua aldeia uma A Atini só vai se pronunciar quando for
ao documentário e conseguir perceber
criança sem alma. Segundo os autores intimada.
que ele “deturpa a realidade”. “Eles

39
A chácara da ONG fica localizada no Gama, no
DF, e abriga atualmente três famílias indígenas

Fundação Nacional do Índio (Funai). suidores de crenças próprias e, como nada por algo que desconhece.  “Os
A pena para quem se omitir é de seis solução para diminuir ou até mesmo índios aceitam argumentos e contra
meses a um ano de prisão, além de erradicar o infanticídio, o voluntário argumentos, não é necessária uma lei
multa. do Cimi afirma que o correto seria es- impositiva dizendo que vai mandar
Na justificativa do PL, o ex-par- tabelecer um diálogo inter-religioso para a cadeia o índio que enterrar a
lamentar argumenta que cumpre com os indígenas. “A forma mais efi- criança. Isso é menos eficaz do que
recomendação da ONU e destaca o ciente de proteger a vida é assegurar chegar algum profissional e argumen-
artigo 227 da Constituição Federal, aos povos indígenas os seus territó- tar, dizendo que está ali para isso”,
que garante o direito à vida e a saú- rios tradicionais, e suas formas pró- afirma Neto.
de a todas as crianças. “É inaceitável prias de organização social, sua auto- A maioria dos povos que está em
uma interpretação desvinculada de nomia, sua cultura e seus projetos de constante contato com a chamada
todo ornamento jurídico do artigo vida”, esclarece. sociedade branca, ditos não isolados,
231, o qual reconhece as tradições e Segundo o índio Traiú Assalu já abandonaram essa prática, após a
os costumes aos indígenas”, opina, Mehinaku, 19 anos, do Alto Xingu interferência de missionários e órgãos
no documento. A proposta, lançada (MT), as aldeias do Parque do Xingu do governo, como a Fundação Nacio-
há oito anos, está pronta para nal do Índio (Funai) e a Secre-
ser votada na Câmara dos De- Voluntário do Cimi, Saulo Feitosa taria de Saúde Indígena (Sesai,
putados, mas ainda é alvo de
críticas por parte de antropó-
defende diálogo inter-religioso para antiga Funasa). A conscientiza-
ção nas aldeias é sempre por
logos e etnólogos e alguns diminuir ou erradiciar infanticídio meio do diálogo, como lembra
missionários. Traiú. “Eles mandavam repre-
O professor de bioética e volun- coibiram essa prática por meio da sentantes e faziam palestras, dizendo
tário do Conselho Indigenista Missio- conversa com órgãos do governo e que não podia fazer isso, porque era
nário (Cimi), Saulo Feitosa, afirma que da saúde, fortalecendo as críticas em crime”. De acordo com o indígena,
o PL 1.057 é preconceituoso, racista relação a PL. Etnólogos atestam que em 2010 ficou definido, na região do
e inócuo. “Não há razão para se criar o projeto de lei é civilizador. Marti- Xingu, depois de muitas assembleias
uma nova lei específica para indíge- niano Neto ressalta que a proposta é e reuniões, que não seria mais permi-
nas. Para mim, trata-se de uma propo- contraditória, pois, no fim das contas, tido enterrar crianças com deficiência
sição legislativa de inspiração racista”. se o foco é conscientizar, há outros ou gêmeos. “De agora em diante tem
redemoinho . ano 06 . número 08

Feitosa nega que a sociedade brasilei- meios para isso, como, por exemplo, gêmeo na aldeia, eu mesmo tenho
ra só teve conhecimento da prática o diálogo. “Chega lá e conversa com sobrinhos gêmeos”, conta Traiú.
em razão do trabalho da Atini. “Há o índio, argumenta com ele, ele não Um dos líderes da ONG Atini, Vag-
várias publicações de missionários é boçal. Tentar conversar e conven- ner Amauri acredita que há uma pres-
indigenistas católicos que relatam o cê-lo é conscientizar, não precisa de são social dentro da aldeia na qual a
problema, e as tentativas de ajudar uma lei impositiva dizendo que não criança com deficiência é sacrificada,
os índios a abandonarem a prática”. pode”, explica o antropólogo. Para pois foi assim que eles aprenderam
Os povos indígenas já são pos- ele, uma pessoa não pode ser conde- com os antepassados. “Nós, ociden-

40
tais, aprendemos a cuidar dos nos-
sos filhos, independente da forma
de como eles vem ao mundo. (O in-
fanticídio) é uma prática nociva que
traz malefícios para a aldeia, na visão
nossa, como branco”. De acordo com
Vagner, a ideia do PL 1.057 é obrigar
o Estado a trabalhar na conscienti-
zação e amparar essas famílias que
se recusam à prática do infanticídio.
“Os indígenas não tiveram a educação
que nós tivemos, então eles não sa-
bem que isso é crime. Como você vai
criminalizar um indígena se ele não
tem conhecimento do que é isso?”,
questiona Amauri.
Coordenador da área de estudos
sobre violência da Faculdade Latino-
-Americana de Ciências Sociais (FLAC-
SO) e autor do Mapa da Violência no
Brasil, Júlio Jacobo constatou o au-
mento no número de homicídios na
cidade Caracaraí, centro-sul de Rorai-
ma, na pesquisa de 2014. A localidade
ficou no topo no ranking como a mais
violenta do país. Após detectar o au-
mento no número de homicídios de
recém-nascidos, entre zero e seis dias,
o pesquisador descobriu que as 35 Desde 2010, etnia Mehinaku,
do Alto Xingu (MT), proibiu
mortes tinham acontecido na área in-
prática do infanticídio. "Eu
dígena dos Yanomami. Jacobo conta mesmo tenho sobrinho
que não tinha conhecimento da prá- gêmeos", conta Traiú
tica antes de concluir essa pesquisa,
pois ele não trabalha com infanticídio.
Apesar da surpresa com os números,
ele acredita que não se pode interferir
em uma cultura. “O Estado tem que
fazer alguma coisa, e não trocar uma
cultura, mas sim criar creches. Mas ao aspectos defendidos por Elizabeth. A Funai não reconhece a prá-
invés disso, o Estado nega a existência “A evolução cultural se dá em todas tica do infanticídio e defende que
do infanticídio”, opina Jacobo. as sociedades, inclusive na nossa, não cabe à entidade opinar sobre o
no tempo daquela sociedade. Ela modo de vida dos povos indígenas
Papel do Estado
não pode ser imposta”, ensina. A e, sim, cumprir a missão de “proteger
O papel do Estado perante es- pesquisadora considera que os po- e promover os direitos destes povos
sas populações também é destaca- vos indígenas que ainda cometem o no Brasil”. Por meio da assessoria, es-
do pela jornalista e pós-graduanda infanticídio de recém-nascidos com clarece, ainda, que  desde a Consti-
em indigenismo e desenvolvimento deficiência fazem isso como uma prá- tuição de 1988, com a instauração de
sustentável Elizabeth Begonha. “Por- tica de proteção, não só da aldeia. “Eu um novo marco conceitual, o modelo
que nós somos tão arrogantes com a compreendo que não é fácil, para nós, político pautado nas noções de tutela
nossa cultura, como se ela fosse um aceitar, mas quando você compreen- e de assistencialismo foi substituído
grande exemplo em relação às outras de aquele universo, você se sente na pelo de pluralidade étnica como di-
culturas, sobre as quais tempos pouco obrigação de, no mínimo, respeitar”, reito. Neste sentido, eles atuam de
redemoinho . ano 06 . número 08

conhecimento?”, questiona. Para ela, diz Elizabeth. forma a reconhecer a organização


há hipocrisia e a prática existe na so- Em geral, lembra ela, as índias social, costumes, línguas, crenças e
ciedade quando o Estado omite aju- passam por episódios depressivos tradições dos povos indígenas, bus-
da a uma criança pobre, que precisa após enterrar as crianças. “Algumas cando o alcance da plena autonomia
passar por uma cirurgia de urgência, não conseguem lidar com o que acon- e autodeterminação dos povos indí-
e não consegue, por exemplo. teceu e acabam fugindo para a mata genas no Brasil, contribuindo para a
A importância de não interferir e desaparecem. Não se sabe se elas “consolidação do Estado democrático
em uma cultura diferente é um dos fugiram ou se cometeram suicídio”. e pluriétnico”.  

41
Minha mãe está
na cadeia

42
redemoinho . ano 06 . número 08
Os filhos das presidiárias
precisam aprender a lutar para
enfrentar as dificuldades de uma
vida transformada pela dor e
pela sensação de abandono

Vanessa Ferreira

redemoinho . ano 06 . número 08

43
A
dor da vida na ca- drogas. Quase sempre essas mulhe-
deia não é exclusiva res foram aliciadas pelos parceiros.
de quem está atrás Às quintas-feiras, dia de visita na pe-
das grades. A famí- nitenciária da Colmeia, Patrícia vai
lia que fica em casa ver a mãe, num encontro que pode
também sofre com durar cinco horas e mistura a alegria
a situação que pre- do reencontro ao constrangimento
cisa enfrentar, após a prisão de um da revista íntima.
parente. Para os filhos que convivem Na entrada, a primeira fila é de-
com a sensação de desamparo e a di- terminada pela ordem das senhas,
ficuldade de explicar a situação para distribuídas às 7h30, para uma visita
os amigos, a dor é ainda mais intensa. que só começa às 9. Na segunda fila
Quando o pai é preso, a mãe, geral- é feita a revista íntima, quando até
mente, consegue dar o apoio afetivo o corpo dos visitantes, inclusive as
para os filhos. Mas quando é ela quem crianças, é minuciosamente averigua-
vai para trás das grades, a família se do. A roupa branca é uma exigência
despedaça emocionalmente. O dra- da administração da penitenciária,
ma dos que convivem com a falta da para facilitar o trabalho. Só depois, os
mãe é inexplicável para quem vê a filhos, acompanhados de um adulto,
situação de fora. responsável legal, entram na terceira
A psicóloga Hellen Vieira, espe- fila para, finalmente, reencontrar a
cialista em terapia para crianças e mãe. “É complicado ter que aguentar
adolescentes, destaca que a separa- a grosseria dos agentes. O ambiente é
ção da mãe pode gerar problemas muito tenso”, descreve Patrícia. Falar da condição das mães
psicológicos nos filhos, principal- Para um filho enfrentar a notícia é um drama semelhante para
todos os filhos de presidiárias,
mente quando são crianças e não de que a mãe será presa, sem mesmo por isso, eles tentam se
entendem a situação com clareza. entender como aquilo aconteceu, é refugiar nas lembranças
“Agressividade, retraimento, medo, difícil e dramático. A esperança é o
dificuldade para se desenvolver na que fica, ao vê-la partir rumo à prisão. sava que eu ia crescer e ficar mais com
escola, dificuldade de se relacionar Foi a sensação vivida por Luana*, 9 minha mãe. Mas ela saiu, eu fiquei
com os coleguinhas, por exemplo”, anos, ao ver a mãe ser presa, há cerca um pouquinho com ela e depois ela
pontua. de um ano, por tráfico de drogas. Foi voltou para cá [para a penitenciária].
Pensar que a mãe vai viver em um a segunda vez, em 12 meses, que Te- Eu fiquei triste”, lamentava a menina,
ambiente superlotado, sob o constan- reza* foi para a cadeia, pelo mesmo enquanto aguardava na fila, do lado
te risco de rebelião e em situações motivo. E esta segunda prisão trau- de fora da Colmeia, para a visita do
sub-humanas apavora os filhos. A matizou mais ainda a menina, que dia das mães.
estudante Patrícia*, 16 anos, conhe- teve frustradas as esperanças de ter A vida sem a mãe, mesmo quan-
ce bem a situação, desde os 12. “Lá uma rotina normal ao lado da mãe. do a mãe traz problemas, como as
dentro é um inferno”, classifica a filha Luana sonha com um dia permeado drogas, é mais dura. “Eu fico mais
da mulher que, assim como a maioria por café da manhã, almoço, jantar e triste. Não gosto de nada, mas está
das detentas, foi presa por tráfico de um boa noite, antes do sono. “Eu pen- tudo bem”, tenta se confortar Luana,

“Depois que ela foi


presa, a gente está
brincando menos.
redemoinho . ano 06 . número 08

Lá dentro [da
penitenciária, no
dia de visita] a gente
brinca com ela, de
pique-pega”

44
que tem outros dois irmãos, e a es-
perança de que a mãe vai mudar de
comportamento e de vida quando
sair da penitenciária. “Eu confio, com
fé em Deus, que ela vai ficar melhor
e parar de mexer com coisa errada”,
aposta a menina.
A esperança de Luana é um pon-
to positivo, na avaliação da psicóloga
Hellen Vieira. Junto com a esperança,
é importante ter orientação da famí-
lia, para evitar traumas mais graves.
“Deve se tomar muito cuidado com a
orientação para a criança, para a situ-
ação não ficar pior”, adverte a psicó-
loga. Foi o que aconteceu com a so-
brinha de Fabrine Moraes, de 26 anos.
A menina, de 4 anos, foi separada da
mãe há dois. A família falava que a
mãe estava na escola. O sofrimento
começou quando a criança passou a
estudar e ser atormentada pelo medo
de também não poder voltar para
casa, depois da aula. “A gente falava
que a mãe dela estava na escola, mas
como nas visitas ela não saia junto
com a gente para ir embora, minha
sobrinha achava que a gente ia deixar
ela também”, conta Fabrine. Um traço comum entre os filhos
das detentas é o retraimento, mesmo
Uma das principais lacunas afeti- quando são bem cuidados, pelo
vas de quem tem a mãe na cadeia é impacto emocional que sofrem
a falta de apoio emocional, na hora
de dividir os problemas. Não ter a
conselheira em casa é o que faz Éri-
ka Ferreira Pires, de 20 anos, marcar As histórias das prisões de mães e eles fiquem juntos. Ele também é o
presença semanalmente no dia de vi- de sensação de abandono dos filhos pai da minha irmã mais nova, mas o
sita da penitenciária onde a mãe está se repetem, mas cada dor é diferente. pai do meu irmão morreu”, conta.
presa, há dois anos. “Eu sofro muito. Aos 7 anos, Manuela* é madura para a
Comportamento muda, com a prisão
Sempre uma filha desabafa com a idade que tem. A mãe foi presa após
mãe. Às vezes eu quero desabafar ou denúncias de tráfico drogas. “Eu já da mãe
quero uma ajuda e não tenho com sabia que ela estava andando com
As drogas viraram a vida de
quem [contar]”, confessa. A jovem não essas pessoas. Minha vó falava para
Manuela e dos irmãos, de 5 e 11 anos,
tinha conhecimento do crime, até o ela parar de andar com eles, mas ela
de cabeça para baixo. As crianças
momento da prisão da
foram morar com a avó,
mãe. “Na hora foi um cho- “Deve se tomar muito cuidado com principal destino dos filhos das
que, foi ali que eu perdi
meu chão. Uma filha ficar a orientação para a criança, para a presidiárias. “Os avós possuem
legitimidade para ingressar
sem mãe é a pior coisa do
mundo”, afirma. situação não ficar pior ” judicialmente pleiteando a
A mãe de Érika foi adverte psicóloga Hellen Vieira guarda da criança”, assegura o
advogado criminalista Willamys
presa por tráfico, e cum-
Ferreira Gama. A menina
pre pena de 7,6 anos. “Porque ela foi não queria”, lembra a menina. A vida
redemoinho . ano 06 . número 08

agradece porque a avó cuida bem da


levar droga para meu irmão na ca- de Manuela é cheia de sonhos. Ela
família, mas a falta da mãe mudou
deia”, revela. “Ela fala que foi o maior passa os fins de semana com o pai,
o comportamento dos três irmãos.
arrependimento da vida dela, mas que se separou da mãe. “Ele pergunta
“Depois que ela foi presa, a gente
que pelos filhos dela faria de novo”, muitas coisas dela, porque ama muito
está brincando menos. Lá dentro
conta a filha, decepcionada. Quando ela, só que eles se separaram, não sei
[da penitenciária, no dia de visita] a
a mãe sair, Érika já sabe o que fazer. o porquê. É o segredo deles” conta,
gente brinca com ela, de pique-pega”,
“Penso em dar muitos conselhos para com esperança de um dia ter a família
conta, entusiasmada. A avó Maria
ela não fazer mais isso”. completa novamente. “Eu quero que

45
Filhos com a mãe na cadeia
se confortam com as lembranças
e esperança para os momentos
que virão após a liberdade

Deusa Rodrigues confirma que os


assassinato do pai, que era policial. casa que era do pai e vive da pensão
netos ficaram mais retraídos.
No entanto, ela garante a inocência dele. Para a psicóloga Hellen Vieira,
A carência é um traço comum da mãe, ao alegar que, na verdade, o essa busca por liberdade é um reflexo
entre os filhos das detentas, mesmo policial foi vítima de latrocínio. Desde das responsabilidades que chegaram
quando são bem cuidados, como Ma- então, ela assumiu a função de mãe cedo. “Pode ser medo de sofrer no-
nuela e os irmãos. A mais nova, Ana*, para cuidar do irmão adolescente. vamente construindo uma família”,
de 5 anos, se recusa a falar sobre a Mesmo com o peso da responsabili- alerta a profissional.
mãe e dar entrevista, mas demonstra dade que tem de carregar, Andressa
A dor da volta
necessidade de afeto durante toda a não desiste. “Eu continuo amando
conversa, quando se agarra à repór- muito minha mãe. Ela é tudo para Nem todo filho de presidiária so-
ter, chama de tia, e insiste em mandar mim”, declara. E apesar de não estar nha em ter a mãe de volta em casa.
recados para a mãe, dizendo que to- em casa para acompanhar o cresci- Apesar de sentirem saudades, Sa-
dos a amam muito. mento, a mãe de Andressa ainda é o muel*, de 11 anos, e Sarah*, 6, temem
Falar da condição das mães é ou- porto-seguro da filha. “Ela ainda me que Gildete volte para o crime, ao sair
tro drama semelhante para to- da penitenciária. É que a
dos os filhos. “As pessoas ficam “Foi ali que eu perdi meu chão. Uma convivência com o sub-
perguntando toda hora. Tenho mundo faz parte da his-
só três amigas favoritas que filha ficar sem mãe é a pior coisa do tória da família. O irmão
sabem, porque elas guardam de Gildete foi morto por
mais segredo”, revela Manuela, mundo” uma gangue, num acerto
estudante do terceiro ano do Érika Ferreira Pires, 20 anos de contas. Condenada a
ensino fundamental, já dou- 12 anos de prisão, por se-
trinada também em outro assunto: aconselha, eu conto as coisas para questro, ela está há dois anos e meio
o comportamento na penitenciária, ela, a diferença é que ela não está em na Colmeia e perdeu o direito ao regi-
nos dias de visita. “Lá dentro eu só casa”, conta a jovem. me semi-aberto depois de fugir após
converso com minha mãe. Não posso Os planos para o futuro de An- um dia de trabalho fora da cadeia.
redemoinho . ano 06 . número 08

falar com estranhos”, conta. dressa estão traçados. Ela diz que não Os dois filhos de Gildete são de
quer formar uma família, ou ter filhos, pais diferentes e por isso moram se-
Dor dupla
e deseja ser aprovada em um concur- parados, mas se encontram nos fins
Andressa Abreu, de 22 anos, so- so público para necropsia, curso em de semana e nos dias de visita na
freu um drama maior do que ter a que se formou cerca de um ano após prisão. Quando perguntados sobre
mãe presa. Aos 16, enfrentou a sepa- a sentença da mãe. “Eu só quero a como vai ser a vida quando a mãe
ração dos pais. Dois anos depois, a minha independência. Só isso”, afir- voltar, os filhos demonstram a falta
mãe foi acusada de ser mandante do ma a jovem, que atualmente mora na de esperança. “Aí é que vai ser ruim

46
mesmo. Quando eu fui na casa dela,
tinha muita bebida lá”, conta a mais
nova. Samuel acha que a mãe não
A fé na justiça
vai mudar. “Uma hora está no grupo
dos crentes [na cadeia], depois anda Um dos maiores exemplos de no hospital, o juiz se surpreendeu
com gente errada. É difícil”, explica o que muitos filhos de presidiários com a situação. “Aquilo não era
menino. sonham com um futuro melhor razoável, ainda que se seguissem
Allef*, de 10 anos, se esforça na ao ver a condição dos pais os protocolos de segurança da
escola para ter um futuro diferente. O vem de Santa Catarina. Foi Secretaria de Estado. Então, como
garoto sabia que a mãe era trafican- lá que, em abril, um menino, juiz, fiz o que me cabia. Concedi
te, assim como o pai, que foi quem a de 11 anos, escreveu ao juiz prisão domiciliar, mandei tirar a
levou para o crime. Pai e mãe estão João Marcos Buch, da Vara de algema e autorizei que, quando
presos há quatro anos. Mas o medo Execuções Penais de Joinville, da alta, a detenta pudesse ser
ainda persiste. “Eu peço para ela sair para agradecer pela liberdade levada para seu lar”, explica o
logo. Acho que vai ser mais ou menos da mãe para passar os últimos magistrado.
diferente. Tenho medo dela começar meses de vida em casa. A mulher
Por e-mail o juiz defendeu uma
a mexer com isso de novo, mas acho estava em estado grave, e ainda
ação mais humanitária da Justiça
que ela se arrepende” torce o menino assim, algemada à cama no
para amenizar a dor dos filhos das
tímido, por causa das consequências hospital. “HIV positivo, do qual
mulheres presas. ‘Se pudermos
da vida difícil. decorreu toxoplasmose, que
evitar que as crianças sofram,
A avó de Allef, Maria José de Sou- resultou em lesão cerebral com
tanto melhor. Se não, então que
za, comenta que o menino é forte. metade do corpo paralisado”,
tentemos reduzir esse sofrimento”,
“Quem sofre mais é a irmã dele, de 14 explica o juiz. Em visita à mulher
afirma.
anos, ela já era mais consciente quan-
do tudo aconteceu. Ele sofre, mas ela
demonstra muito mais”, revela. Dona
Maria precisou se aposentar do em- ficar uma auto realização em manter Sempre presente no presídio
prego de auxiliar de serviços gerais, o controle de algumas situações ruins para atender as clientes, o advogado
após a prisão da filha. “Depois que que já experimentou”, explica. O que Willamys Ferreira Gama diz que além
ela veio para cá entrei em depressão”, eles querem é afastar qualquer pos- da superlotação ser um transtorno
conta. Ela diz que se a filha não mudar, sibilidade de voltar a conviver com o constante, a assistência que é dada às
vai abandoná-la mas ficar com os ne- ambiente carcerário. “É muito ruim lá famílias é falha. “A penitenciaria não
tos. “Se ela não mudar eu abandono. dentro”, garante Samuel. está preparada. O ambiente prisional
Quando ela sair, eu só passo a guarda por si só não é adequado para enfren-
Sofrimento atrás das grades
dos filhos de volta se ela tiver respon- tar esse tipo de situação”, considera.
sabilidade”, avisa dona Maria. Segundo dados do Ministério Pú- Mas, para ele, a o problema é ainda
blico, a Penitenciária Feminina do Dis- maior. “Há um conflito aparente de
Para mudar o mundo
trito Federal tem capacidade máxima interesses e direitos”.
O futuro das crianças que têm a para 428 detentas, mas abriga quase
mãe na cadeia ainda pode ser mu- o dobro: 763. Os estados com a pior
dado, e a vontade de transformar o situação são Roraima e Rio Grande do (*) Nomes fictícios, usados para pre-
mundo é o que não falta. Assim como Norte, onde a superlotação passa de servar a identidade dos entrevistados, em
Andressa, que se formou em necrop- 160% da capacidade. função da vulnerabilidade social.
sia, a maioria das crianças entrevis-
tadas pensa em seguir uma carreira
em segurança ou algo relacionado
à saúde, ao cuidado com os outros.
Samuel quer ser delegado. “Sem-
pre foi meu sonho”, conta o menino,
que é campeão juvenil de jiu-jitsu no
DF. A irmã, Sarah, quer fazer medicina.
“Vou ser médica”. Maria Manuela tam-
redemoinho . ano 06 . número 08

bém quer ser médica. “Ou veteriná-


ria, porque eu gosto dos animais, mas
também quero cuidar das pessoas”,
afirma, decidida. Filhos precisam
de apoio psicológico
O desejo de atuar nessas áreas,
para viver a infância
para a psicóloga, é uma forma de co- com a luta diária
locar em prática a esperança de se pro- de lembrar que a
teger e proteger o outro. “Pode signi- mãe está presa

47
contrabando
da morte
redemoinho . ano 06 . número 08

Em cada 10 mortes ocorridas no DF neste ano,


7 foram provocadas por armas de fogo; ainda
assim venda segue livre na periferia, onde um .38
pode ser encontrado por cerca de R$ 2 mil Beatriz Matos

48
C
omprar uma arma no da à perícia para fins de investigação”,
mercado ilegal não é afirma.
uma tarefa difícil. Em Jander* opina que é mais rentável
feiras de trocas livres para agentes corruptos comercializar
e nas esquinas “cer- as armas ilicitamente a fazer a devo-
tas” é possível chegar lução na delegacia. Com agilidade
facilmente até um e domínio do assunto, afirma como
contrabandista. “Se você quisesse, eu quem não teme represálias: “Polícia é
te vendia um oitão agora, de 1.900 tudo fascista. Quando estão fardados
real”, afirma Rubens*, em uma boca são uma pessoa, quando não estão,
de fumo a céu aberto, em Samam- são outra.” Para o Capitão Michelo,
baia. Os motivos que levam pessoas a da Comunicação da Polícia Militar, a
comprar e possuir armas são distintos, ação criminosa não é uma vantagem
desde uma possível autodefesa até a para agentes de polícia, que corre-
prática de crimes. riam grandes riscos em nome de um
A cada hora, cinco pessoas foram pequeno valor. Ao negar esse tipo de
mortas por armas de fogo no Brasil ação por parte dos militares, ele acres- O especialista em segurança
em 2012, de acordo com o levanta- centa que não há qualquer registro ou pública, Antonio Flavio Testa,
mento feito pelo Mapa da Violência denúncia neste sentido. “Além de ser avalia ser interessante rediscutir
a lei de armas no país.
de 2015. Foram registra- uma quantidade irrisória e
das mais de 42 mil mortes Dinheiro o policial poder pegar 30
após disparos. Do número é a senha anos de prisão, essa arma
de homicídios contabiliza- pode ser usada contra
dos no DF em 2015, cerca fácil para ele mesmo futuramente”,
de 70% foram cometi- opina.
dos com armas de fogo, conseguir O especialista em se-
segundo a Secretaria de comprar uma gurança pública Antônio
Segurança Pública. Isso Flávio Testa diverge. Para Ranking
significa dizer que, nos arma no ele, a polícia tem, sim,
772 armas foram apreendidas
quatro primeiros meses participação no comércio
deste ano, 226 pessoas mercado de armas. "Temos várias
em todo o DF só nos primeiros
quatro meses de 2015.
morreram e 772 armas de fronteiras, o contrabando
fogo foram apreendidas ilegal funciona, é só observar a
em todo o DF, segundo quantidade de armas no
CIDADE TOTAL DE ARMAS
apuração feita pela Divisão de Aná- país. Tem armas que são contraban-
lise Criminal da Polícia Militar do DF. deadas pela própria polícia ou rou- Ceilândia 133
Quando a pergunta se trata da badas do Exército", afirma. Apesar de Planaltina 103
facilidade em se obter armas ilegal- agir em desacordo com a lei, Jander*
mente, a resposta é imediata: basta acredita que as motivações de um Samambaia 78
ter dinheiro. Assim afirma Jander*, “cidadão de bem” para adquirir uma
de 27 anos, desempregado, morador arma são a autodefesa, a defesa da
de Samambaia. De acordo com ele, família e do patrimônio. O único cri-
boa parcela das armas ilegais vem de
quem mais deveria agir em função da
segurança pública, a própria polícia.
“Nós compramos arma do mercado
negro mesmo. Geralmente chega
pela polícia, que prende aqui e ven-
de ali. Eles dão revista diferenciada,
às vezes agindo até em excesso - com
abuso de autoridade - atrás de revól-
ver”, conta.
redemoinho . ano 06 . número 08

De acordo com o delegado-chefe


da 32ª Delegacia de Polícia de Sa-
mambaia, Wilson Peres, o rumo dado
às armas apreendidas pela polícia va-
ria de acordo com ocorrência e análise Com dinheiro e os
sobre a procedência. “Se a arma de contatos certos, obter
fogo vem de uma pessoa que matou uma arma se torna
alguém, por exemplo, ela é submeti- tarefa simples, caso
de Gabriela*, que disse
ter sido "presenteada"
por um amigo

49
tério de compra é financeiro, como
garante. “O crime é o seguinte, nóis tá
ali na bocada e chega perguntando:
quem tem cano pra vender? Aí dizem:
o maluco ali tem. Não precisa conhe-
cer, só basta ter a ponte”, diz.
Alterado e inquieto pelo uso de
drogas, Rubens*, 25 anos, desempre-
Para o empresário Joel*,
gado, também morador de Samam- armas não são compradas
baia, anuncia um revólver calibre .38, para autodefesa, mas, sim,
de seis tiros. A rotatividade é gran- para matar. "Quem quer
de. Permanecer por longos períodos defesa compra um colete à
prova de balas", opina ele
com a arma não é do interesse dele
nem de ninguém neste ramo. “É mais
negócio, tá ligado? Eu compro um
oitão por R$ 1.800 e já vendo por
R$ 2.200, pra tirar o meu também”, encontrou empecilhos para adquirir Além de ser a favor da liberação
revela. Como destaca, os agentes o artefato. “Tendo dinheiro se compra de armas para o “cidadão de bem”,
de polícia não estão imunes à cor- quase tudo”, explica. Joel* também é favorável a penas
rupção. “Esses polícia é safado, é os Diferente de Camilo*, em outro mais duras para crimes por arma de
que mais vende. Tem um polícia ali cenário, Joel* adquiriu uma pistola fogo. Ele acredita que a grande polê-
que é toda hora, é só ligar”, garante calibre 380 por vias legais. O morador mica que envolve o tema seja causada
o rapaz. Não há acusações formais e de Brasília, de 40 anos, empresário, pelo fato de as leis no País serem ma-
concretas contra a PM. Segundo o não possui o documento necessário leáveis. “O cara faz uma merda com
Capitão Michelo, os casos de corrup- para portá-la, mas prefere arriscar. “Eu arma de fogo e não acontece nada,
ção na corporação são raros. “Se tiver sei que é ilegal, mas eu prefiro estar fica nessa morosidade, que é o que
algum caso, não é do nosso conheci- vivo e responder por um processo de acontece com bandido hoje”, afirma.
mento. E se houver, que seja levado à homicídio porque reagi a um assalto, Gabriela*, 24 anos, vendedora,
corregedoria para que providências do que passar por situações que já mora em Samambaia e, segundo ela,
sejam tomadas”, diz. passei, de o cara ficar engatilhando suas duas armas “frias” de pequeno
Camilo*, 26, morador de Samam- a arma na minha cara e eu não ter porte, sem registro ou documentos,
baia, trabalha como biscateiro. Sem a oportunidade de reagir”, afirma. foram presentes de um amigo. O
rodeios, garante já ter comprado pelo Apesar de gostar de tiro desportivo, destino de quem é pego portando
menos três revólveres das mãos de Fernandes viu no título de coleciona- ilegalmente uma arma é a delegacia
policiais, por intermédio de amigos. dor que adquiriu um atalho para se mais próxima, como conta o Soldado
Despreocupado e com ar de debo- munir. “Você não compra uma arma Brunaci, do Quadro Policial Comba-
che, diz utilizar as armas para cometer para defesa, isso não existe, você tente. “O procedimento padrão é re-
crimes, de roubos a acerto de contas, compra uma arma para matar antes colher a arma, levar até a delegacia e
em casos mais extremos. “Segurança de ser morto, o que pode ser consi- o delegado responsável dará um fim
também, mas mais pra fazer o corre, derado uma defesa. Mas quem quer adequado a ela”, explica.
ou pra se alguém mexer comigo”, ex- defesa compra um colete à prova de As armas não ficam na delega-
plica. Em nenhuma das ocasiões ele balas”, diz. cia, mas podem permanecer até o
exame pericial. “Quando a arma está
envolvida em algum evento, é peri-
ciada e o juiz determina a devolução
O que muda com o projeto? ao órgão ou a destruição da arma de
fogo”, explica o delegado Wilson. Em
relação aos agentes responsáveis pela
Além do porte e da facilidade na aquisição de armas, as principais
apreensão, a regra é clara: “Não exis-
normas são:
te gratificação, prêmio, recompensa
- Número máximo de armas para cidadãos vai de seis para nove; ou qualquer benefício material para
quem apreende arma de fogo no
redemoinho . ano 06 . número 08

- Fim dos testes periódicos que comprovam a aptidão para continuar


Distrito Federal”, garante o delegado-
usando arma;
-chefe. As penas para quem é captu-
- Número de munições que podem ser compradas anualmente vai de rado com armas de fogo ilicitamente
50 para 600 podem variar, dentre outros fatores,
de acordo com o status da arma. “Vai
- Redução da idade mínima para solicitar porte de arma de 25 para
depender se a arma é de uso permiti-
21 anos
do ou de uso restrito”, afirma.

50
Estatuto em debate
rança. Isenta o Estado de sua respon- dois parlamentares também discor-
Motivo de debate, o Estatuto sabilidade e joga no cidadão”, afirma. dam quanto aos efeitos práticos, caso
do Desarmamento, Lei 10.826/2003, O objetivo principal do projeto a iniciativa seja aprovada. Um aponta
dispõe sobre registro, posse e co- é eliminar o chamado “poder de dis- a redução da criminalidade. Outro, diz
mercialização de armas de fogo e cricionariedade” da Polícia Federal. que apenas vai se criar uma falsa sen-
munição, definindo crimes e outras Ou seja, o cumprimento dos critérios sação de segurança. “Não sei quantos
providências correlatas. Na direção técnicos impostos por lei para adqui- buscarão por armas, mas essa liber-
contrária ao estatuto, que impõe rir uma arma serão suficientes. “Hoje, dade deve ser concedida ao cidadão
barreiras para a compra e venda de depois de todos os critérios estabe- que quiser e se preparar conforme
armas, há o Projeto de Lei 3.722 de lecidos, o processo, ainda assim, pas- determina a lei”, afirma Peninha. “É
2012, do deputado federal Rogério sa pela subjetividade da escolha do preciso desmitificar a segurança que
Peninha Mendonça (PMDB-SC), que delegado federal responsável”, argu- uma arma pode dar, porque uma pes-
altera o Estatuto do Desarmamento, menta o deputado. Na nova norma, soa quando está armada tem menos
facilitando o acesso às armas de fogo. há uma desburocratização do sistema. noção de risco, se sente mais empo-
O projeto armamentista conta com “No meu Projeto de Lei, a pessoa passa derada e pode agir de maneira mais
uma Comissão Especial para debatê- por todos os processos técnicos e, uma arriscada do que se não estivesse ar-
-lo. Dos 33 titulares da comissão, 17 vez passado por esses critérios, ela vai mada”, rebate Érika.
vieram de corporações das polícias ter a posse e o porte de armas. Essa é O especialista em segurança pú-
Militar, Civil e Federal; do Exército e a essência da nossa mudança“, pontua. blica Antônio Flavio Testa julga ser
dos Bombeiros. Na visão da petista, porém, a es- um debate interessante a se fazer.
De acordo com o autor da pro- sência está em interesses econômi- "Eu acho que temos que ver quem
posta, Peninha, integrante da cha- cos. “O que se estimula pela indústria está por trás disso, quem ganha e
mada "Bancada da Bala”, o objetivo da bala, que financiou uma série de quem perde, ambas as campanhas
é aprovar a norma até o fim do ano. mandatos, é armar a população. Ba- são muito emocionais", diz. Apesar
“O cidadão tem que ter a liberdade temos de frente com o financiamen- das mudanças sugeridas ao estatuto,
para poder fazer a escolha de ter ou to privado de campanhas, onde as Testa acredita que a alteração da lei
não uma arma”, afirma. Contrária à pessoas eleitas com os recursos de não traria uma facilidade tão grande
proposta, a deputada Érika Kokay (PT/ empresas privadas e grupos econô- para a obtenção de armas. "Enten-
DF) opina que o texto, na prática, re- micos respondem a eles”, diz. do que na prática não facilitará tanto
voga o Estatuto, o que representaria Peninha defende uma análise assim a compra de armas, primeiro
um retrocesso. “Armar significa criar rápida do PL pelo Congresso Nacio- pelo preço e depois pela burocracia.
um Estado absolutamente envolto na nal com aprovação até outubro pelo Mas se as pessoas tiverem mais acesso
barbárie, onde cada uma e cada um plenário, para que seja transformado às armas, provavelmente terão mais
pode dispor da vida do outro e será em lei. Érika aposta na mobilização armas, é interessante rediscutir o uso
responsável pela sua própria segu- popular para impedir a medida. Os da arma", conclui.

“Armar significa
criar um estado
absolutamente
envolto na
barbárie”
Deputada Érika Kokay (PT/DF)

“O cidadão tem
redemoinho . ano 06 . número 08

que ter a liberdade


para escolher
ter ou não uma
arma”
Deputado Peninha, PMDB/SC

51
Uma mochila
nas costas
e o mundo
pela frente

Os malucos de estrada não


se encaixam em nenhuma
definição pré-existente e
querem que a arte de rua seja
reconhecida e respeitada

Lucas Tiveron
redemoinho . ano 06 . número 08

52
B
asta passar por um es- mam pagar fortunas por mercadorias
paço público mais movi- industrializadas e se esquecem que "Tenho a impressão
mentado para perceber não há matéria-prima mais perfeita
a presença deles, que na que a natureza”, afirma ele, que além de estar mais
maioria das vezes osten- do arame faz trabalhos com cerâmicas,
tam os cabelos grandes sementes, penas, pedras e até folhas conectada com o
ou cobertos por  drea- de bananeira. mundo, por sair
dlocks, roupas simples e mãos sem- Daniela é nova na estrada. Des-
pre calejadas. Ao chão, um pedaço de janeiro na rua, ela diz que não é da minha zona de
de pano ou um painel feito com ca- menos feliz ou menos realizada pela
nos PVC mostram a arte manual que pouca experiência no novo estilo de conforto e me entregar
garante o sustento do sonho de uma vida, mas afirma que se encontrou na ao desconhecido”
existência nômade. Há quem ainda arte de rua e por isso abandonou o Daniela, cabeleleira
insista em classificá-los como “hip- curso de Letras e a antiga profissão.
pies”, numa referência ao movimento Daniela era cabelereira em Brasília. “Eu
cultural dos anos 1970. Mas os “malu- trabalhava com cabelo, mas já fazia ao desconhecido”, afirma. “Acho que
cos de estrada”, como se autodeno- artesanato e era fascinada pela ‘ma- quando você se liberta da rotina, toda
minam, têm uma identidade cultural lucada’. Decidi sair e viver do que eu situação parece estar favorável a você.
e filosófica próprias. São movimentos gosto. Tenho a impressão de estar mais Sei que tem alguma hora dificuldades
diferentes, mas não divergentes. Os conectada com o mundo, por sair da virão, mas todo mundo passa por al-
malucos de estrada se assemelham minha zona de conforto e me entregar gum tipo de dificuldade”, conta.
aos hippies ao defender um mundo
com menos posse e mais desapego
de bens materiais.
Muitos malucos de estrada dei-
xam para trás o sobrenome da família.
Não raro, eles adotam uma nova iden-
tidade, uma nova maneira de ocupar
um espaço no mundo. “Os hippies
viviam em comunidade e produziam
as próprias roupas e cultivavam a
própria comida. Não precisavam fa- Vinicius viaja
zer arte para se sustentar. Eles já se com a argentina
Andressa desde que
sustentavam”, explica Kayan, que saiu se conheceram, no
do aconchego de casa há quase sete Acre, ha três anos.
anos. Para ele, uma vez na rua o ma- Expondo na UnB, o
luco é forçado a superar os limites e casal esta em Brasilia
ha duas semanas
garantir a sobrevivência, um dia após
o outro, e tem de ser sempre cons-
ciente de que precisa se virar com o
que tem. “Posso ser ‘hippie’ quando
estou viajando. Mas quando estou na
rua, expondo minha arte, com certeza
sou artesão”, diz.
Para sobreviver, os malucos de
estrada levam a sério o lema que diz
que “a privação é a mãe da criação”.
Nas mãos deles, com a ajuda de um
alicate, um pedaço de arame se trans-
forma em um colar, um brinco, um anel
ou uma obra de arte para decoração.
A técnica é individual e o resultado
redemoinho . ano 06 . número 08

único. Patrick Montenegro é “maluco”


há 20 anos, e nesse tempo passou a
observar o ambiente com um olhar
clínico voltado para a arte, e diz que
ela está nos olhos de quem a aprecia.
“Tudo na natureza se transforma. O
que é considerado lixo para alguns,
para outros é arte. As pessoas costu-

53
Vinicius Cabral tem 28 anos e Natural de São
é artesão há 12. Natural do Espírito Paulo, Ju Brasil é
Santo, o capixaba diz que já era fas- maluca há 15 anos.
Mesmo viajando
cinado pela ideia de uma sociedade com frequência,
alternativa. Os conflitos familiares o a artesã preferiu
fizeram sair de casa. “Quando você alugar uma casa em
tá em casa, dentro do seu mundo, Alto Paraíso – GO
você tem uma visão diferente da rua.
Quando você tá na margem, as coisas
se esclarecem”, diz. Foi na estrada
que o rapaz conheceu a argentina
Andressa, que também é artista. Ele
garante que foi amor à primeira vista.
Desde o encontro, no Acre, há três
anos, o casal viaja junto. Vinicius con-
fessa que, após muitos anos sozinho,
a companheira o deu um ‘gás a mais’
para continuar na BR. “Viajar sozinho
tem outra vibe, você curte o seu ‘eu’.
Mas estar acompanhado de quem
ama é ainda melhor”. O artesão não
sabe se algum dia vai se manter fixo
em algum lugar, mas pretende desa-
celerar o ritmo se a família aumentar.
“Nunca se sabe.”
Ju Brasil se preparava para expor
o artesanato, na Chapada do Veadei-
ros, quando foi abordada pela repor-
tagem. Natural de São Paulo, a artista
está na estrada há 15 anos. O encan- trada. “Acho que a partir do momento tou fazendo um colar, e o nome dessa
tamento dela pelo estilo de vida na que você sai de onde nasceu, você pedra é ágata de fogo. Cada uma tem
estrada começou na infância. Ainda já está na estrada. Saí de casa para uma propriedade”, diz. Ao ser indaga-
criança Ju acompanhava o pai, cami- sobreviver, e daí conheci o artesana- do sobre o que o levou a estar ali, o
nhoneiro, nas viagens que ele fazia. to. Durante a jornada engravidei, e artesão diz que foi a coragem. “Saí aos
Depois de longos anos e uma coleção hoje estou aqui em Alto. Mas ainda 16 anos. Queria ter contato com pes-
de histórias na estrada, a paulista quis viajo, de carro, sozinha ou com meus soas. Mas no início foi mais difícil que
“desacelerar”, mas mantém o espírito filhos", diz. pensei. Quando você está na rua, de
que a tirou de casa. Atualmente mora Basta ver toda a atenção do co- madrugada, dormindo num pedaço
em Alto Paraíso. Ainda assim, a artesã lombiano Andrez Ospina, 25, com um de papelão, você pensa na cama que
se afirma como andarilha e garante pedaço de arame entrelaçando uma deixou pra trás”, admite. Ainda assim,
que não deixou de ser maluca de es- pedra para saber que é artesão. “Es- Andrez diz que não se arrepende da
decisão. “O principal é que não acho
que eu teria a cabeça que tenho hoje
se tivesse ficado em casa.”
Vulnerabilidade
Patrick Montenegro Estar sozinho e levar a “casa” nas
e formado em Historia e costas é uma experiência vulnerável
Geografia. Desacreditado
da carreira de professor, por si só. Os malucos de estrada estão
o artesão vive das artes sujeitos não apenas ao julgamento
plástica, cênica e visual alheio, mas também à violência
redemoinho . ano 06 . número 08

tanto da polícia quanto de grupos


armados. Foi o que aconteceu com o
colombiano Andrez, na Índia. “Éramos
30 pessoas dormindo na rua, entre
malucos e mendigos, e chegaram
lá matando todo mundo. Sobrevivi
porque me fingi de morto, e fui um
dos seis que saíram vivos. Peguei
minha mochila e saí correndo o mais

54
VOCABULÁRIO
MALUQUÊS
Trampo: trabalho
Maluco: artista, viajante
Pedra de maluco: local de
exposição
Pano de maluco: painel para
exposição
Mangueio: chamar atenção de
quem está passando, negociar A arte do colombiano
Andrez Ospina, que saiu
Mocó: uma espécie de cama de casa aos 14 anos
improvisada
Favozeiro: o “falso” maluco, que
não faz arte e vive de favores peguei muita carona, mas a mais ex- do, por saber que não vou conseguir
trema foi, sem dúvidas, uma de barco. almoçar. Algumas pessoas doam al-
O homem queria me levar para uma guma refeição, me ajudam liberando
rápido possível, e demorou muito ilha. Fiquei tensa, mas consegui criar um espaço no quintal para acampar.
tempo pra eu conseguir me recuperar uma história e convencê-lo a me dei- Mas sei que isso não é uma regra. Te-
do trauma.” xar no porto”, revela, com um suspiro nho que estar preparado para tudo”,
Andrez chegou a pensar em de alívio. “Foi muita sorte.” diz Vinicius.
desistir da vida nômade, mas forçado Além do perigo de estar na rua,
Na Justiça, para ser maluco
pela distância da terra natal, ele se viu sem qualquer tipo de apoio, a vida
obrigado a continuar como artesão dos malucos depende do humor das Os malucos não são reconheci-
para sobreviver e seguir viajando pessoas. Alguns levantam a bandeira dos como parte da diversidade cul-
pelo mundo. O colombiano tural brasileira e por isso estão
também lembra que já perdeu “Acho que a partir do momento sempre Como
na mira da fiscalização.
mudam com frequência,
um companheiro de viagem
para as drogas, o que ele que você sai de onde nasceu, você eles não têm autorização para
considera o momento mais vender os produtos na rua. As
já está na estrada", prefeituras das grandes cidades
difícil de toda a jornada, até Ju Brasil, artesã têm realizado um trabalho cons-
agora. “Viajávamos há quatro
anos. Quando chegamos à tante para retirá-los dos espaços
Bolívia, país onde as drogas são muito contra o sistema capitalista, mas to- públicos. A briga mais notória foi de-
presentes, ele se perdeu na cocaína e dos entram em acordo com assunto é flagrada contra a prefeitura de Belo
acabou morrendo”, conta. um só: dinheiro. Por mais que estejam Horizonte (MG), que desde 2005 co-
à margem da sociedade, os malucos meçou uma operação dessa natureza.
Para as mulheres, a vulnerabilida- de estrada dependem desse recurso Como forma de reação, alguns “malu-
de é ainda maior, segundo Ju Brasil. comum. “O quanto eu vendo durante cos” passaram a documentar a ação
“Na maioria das vezes, viajando sozi- o dia, me permite comer melhor ou
nha, fico à mercê não só do machis- até dormir numa pousada. Às vezes
mo da sociedade, como também dos tomo um café da manhã bem reforça-
próprios malucos homens”, admite.
Ela chega a mudar o tom de voz ao
Andrez está “descansando”
falar sobre os abusos que já viu con-
em Brasília. Na cidade há três
tra mulheres que estão viajando. "Já meses, o artista expõe na UnB
redemoinho . ano 06 . número 08

55
“Enquanto você
Se esforça pra ser
Um sujeito normal
E fazer tudo igual
Eu do meu lado
Aprendendo a ser louco
Um maluco total
Na loucura real”
Raul Seixas – Maluco Beleza

dos fiscais e da polícia, que muitas já perdeu a paciência, nos episódios Ao guardar os “trampos” e se pre-
vezes usam de violência no trabalho. de falta de respeito, e reconhece que parar para encerrar mais um dia de
Com as gravações nas mãos, eles parte do problema está justamente trabalho, Ju Brasil acrescenta que a
procuraram o Ministério Público e as na conduta de alguns malucos, que arte faz parte de quem ela é. “Tenho
corregedorias da Polícia Militar e da mancham a imagem dos demais. “O meu espaço no mundo, minha iden-
Prefeitura de BH. Três audiências públi- maluco tem que saber chegar e sa- tidade, e minha arte espalhada por
cas já foram feitas, em busca de acor- ber sair. Tem que ter respeito mútuo aí. As pessoas compram não só um
do. A Defensoria Pública do Estado de também. Hoje em dia sei me impor objeto, mas também uma parte de
Minas Gerais, em nome dos artesãos, quando preciso, e essa é a lição mais mim. Hoje meu trabalho é reconhe-
processou o município e conseguiu valiosa que a estrada me proporcio- cido. Quero ir até onde minha arte
uma liminar que garante a eles o di- nou”, conclui Ju. permitir.”
reito de se manifestar artisticamente
Maluco pra sempre Coletivo Beleza da Margem
e vender nas ruas da capital mineira.
“Na rua não temos voz. Somos É a combinação de anseio por li- A partir de 2009, o movimento
discriminados e tudo acaba sendo berdade, inquietação pessoal e von- dos malucos de estrada passou a ga-
jogado à nós, por estarmos mais vul- tade de conhecer o mundo que faz nhar espaço, por meio do coletivo
neráveis, à margem da sociedade”, diz com que uma pessoa opte pela vida Beleza da Margem. Formado por ar-
Vinicius. Ele comenta que sofre pre- na estrada. Por isso, que adota o estilo, tesãos, o grupo idealizou e criou uma
conceito todos os dias, em todos os em geral, não se imagina fazendo ou- série de documentários sobre os que
lugares. “Me incomoda a generaliza- tra coisa. “Eu conheço 15 países. Sinto optaram por este estilo de vida. Além
ção dos malucos. Em todo meio tem que nunca chegaria tão longe se não de afirmar a identidade cultural do
gente boa e gente ruim. Não gosto de fosse pela minha arte. Eu venho de “maluco de estrada”, o grupo se de-
chegar a um lugar e ser cobrado por uma família muito pobre, do interior dica a pesquisas e registros a respeito
alguma besteira que outro maluco fez da Colômbia, e não teria outra opor- dessa reconfiguração do movimento.
antes”, protesta. Em Brasília, Vinícius tunidade para conhecer o mundo”, O financiamento é coletivo e o
diz que um dos melhores lugares para comenta Andrez. Vinicius não pensa projeto já percorreu mais de 20 es-
redemoinho . ano 06 . número 08

expor e vender é na UnB. “O pessoal nem duas vezes antes de garantir que tados e 80 municípios.  O objetivo
costuma dar valor ao nosso trabalho. não voltaria para casa. Ao mostrar o é eliminar o estereótipo, explorar o
Nunca perdi nada aqui”, conta. trabalho que fazia com um pedaço movimento e legitimá-lo no Instituto
Se autoproclamando sortuda, Ju de bambu, ele diz que a filosofia de do Patrimônio Histórico e Artístico
Brasil ainda não perdeu o artesanato vida que escolheu já está enraizada Nacional como um patrimônio ima-
para fiscalização. “Graças a Jah [abre- na mente. “Eu pretendo viver o resto terial brasileiro. O material pode ser
viação de Jeová, em hebraico]”, come- da vida na estrada, fazendo o meu assistido no perfil do projeto: face-
mora a artista. No entanto, ela diz que artesanato e sendo livre”, conclui. book.com/belezadamargem.

56
A gente quer dinheiro,
diversão e arte
Grupos culturais sonham com um lugar ao sol. Em busca de apoio
financeiro apresentam performances variadas, ao mesmo tempo em
que fomentam ações de cidadania e respeito entre as pessoas

Vera Lúcia Teixeira


Pedro Paulo Soares
Foto: Divulgação

redemoinho . ano 06 . número 08

57
S
ão muitos os grupos
culturais em Brasília que
além de divulgar arte
e cultura desenvolvem
projetos sociais por meio
de oficinas, espetáculos
e cursos voltados a um
público menos favorecido como jo- Momento
vens, crianças e adultos das periferias. de reflexão de
Sem apoio, a maioria desses grupos Andreoni Cabral e
os jovens, além da
enfrenta muitas dificuldades em seu
dança, aprendem
dia a dia e não conseguem manter cidadania
seu trabalho de levar cultura e educa-
ção, que são direitos constitucionais
esquecidos pelo governo.
De acordo com o produtor au-
diovisual e gestor cultural, Marcelo
Fonteles, a área cultural de produção A divulgação do trabalho de An- o Pellinsky não possui um local fixo
de eventos vive um momento de du- dreoni, como assim é conhecido, se para ensaiar e Andreoni ressalta que
alidade. Por um lado, com o bloqueio dá geralmente quando ele é cha- a cada mudança de governo a inse-
e remanejamento de recursos da área mado a substituir um professor que gurança toma conta do grupo. “Pre-
cultural para outros compromissos eventualmente não pôde ir dar aula. cisamos de mais centros culturais”,
governamentais no início de 2015, os Nesse momento, ele conversa com adverte o coreógrafo.
projetos fomentados por apoio finan- os adolescentes e ensina os primeiros Seu envolvimento com a ONG é
ceiro ou incentivo fiscal ficaram estag- passos. Também utiliza as redes so- intenso, por isso não teve tempo para
nados, aguardando o pagamento dos ciais como ferramenta de divulgação. fazer faculdade e não possui o regis-
contratos. As danças se diversificam nas ca- tro profissional. Por esse fato sente
Por outro lado, segundo o pro- tegorias: cigana, de rua, de salão, sam- discriminação por parte de algumas
dutor, a classe artística tem se unido. ba, carimbo, ludun marajoara, dança pessoas. Mas isso nunca desanimou
“Mesmo com limitação de recursos, os do ventre, bale clássico, entre outros. Andreoni, que possui grande vivência
artistas tem criado e se mantém pro- Em 1997, Andreoni se encantou com o em direção de espetáculos, tendo
duzindo arte e cultura na capital de boi bumbá e o nomeou o carro chefe recebido vários prêmios. “Nada me
uma forma cada vez mais crescente e das suas apresentações. O boi é uma fez desistir, o que faço é por paixão,
com muita criatividade. É uma carac- homenagem aos bois de Parintins, porque quero que os jovens se tor-
terística própria, mesmo sem muitos Garantido e Caprichoso, oriundos da nem pessoas melhores”.
recursos para os grandes projetos e Amazônia. “Fiz uma legítima expres- A situação vivida por Andreoni
eventos culturais em Brasília”, afirma. são do folclore brasiliense estilizado também é compartilhada pelo pro-
No Distrito Federal, atualmen- que constituiu uma expressão can- fessor de artes, diretor e ator de teatro
te existem cerca de 250 projetos danga”, explica. Valdeci Moreira, 44 anos, e fundador
culturais no DF, dos quais 120 foram Para Andreoni o amor é a princi- da Cia Semente de Teatro, com sede
contemplados em 2014 por meio de pal ferramenta do seu trabalho: “aju- no Gama. Criada em 2007, a compa-
patrocínios de incentivo a cultura. do na passagem de ônibus, aulas de nhia tem o objetivo de promover
Dentre os grupos não contem- reforço e refeições”. Apesar de toda cultura e se relaciona com diversos
plados com os patrocínios está o dedicação aos jovens e ao projeto, artistas da cidade em busca de contri-
Pellinsky de Dança. Andreoni Cabral
é coreógrafo, dançarino, professor
fundador e presidente do Pellinsky Coreografia perfeita e
há 29 anos. O grupo leva cultura comprometimento com a arte
por meio da dança a jovens de sete na apresentação dos jovens
escolas públicas e particulares do Cru- dançarinos do Pellinsky
zeiro. O objetivo principal do trabalho
é conscientizar os jovens a utilizarem
redemoinho . ano 06 . número 08

seu tempo livre no aprendizado de


coreografias de danças culturais.
Com o passar do tempo, o coreógrafo
criou uma ONG, a Associação para o
Desenvolvimento Humano, Artístico
e Social (ADHAS), ampliando, assim,
as ações do grupo, que já beneficiou
mais de 18 mil estudantes.

58
buir para o desenvolvimento da arte a adaptação do ambiente custaram Como um
local e para o acesso da população a cerca de 35 mil reais bancados por
diversos eventos culturais, tanto de Valdeci, com pequenas contribuições projeto é
música, como teatro, poesia, dança de colegas e amigos.
e outros. “A periferia clama por socorro a aprovado
Valdeci se apaixonou pelo teatro nível cultural. É a identidade de um
ainda jovem, há 25 anos. Vindo de povo e precisa ser valorizada”, excla- com incentivo
uma família humilde, trabalhava no ma Valdeci. Para ele não é do inte-
Plano Piloto como engraxate. E entre resse do Estado investir em cultura, cultural?
umas escapadas e outras do serviço uma vez que contribuindo fomentará
se deparou com a arte. “Entrava no uma população ainda mais crítica e  Primeiramente, é realizada
cinema, no teatro escondido, para ver questionadora do governo. pela Secretaria de Fomento
o povo ensaiando. Ali já começava a Apesar das dificuldades, o diretor e Incentivo à Cultura (Sefic) a
brotar essa questão artística dentro de teatro nem pensa em desistir, pois análise de admissibilidade da
de mim”, lembra o artista. Sua relação acredita no poder da arte em trans- proposta cultural, que promove
com o teatro se consolidou ainda no formar as pessoas: “Esse trabalho é a verificação documental e o
ensino médio, com um professor que, o remédio da minha alma. O espa- exame preliminar. Em seguida,
segundo ele, mostrou o universo da ço chama-se Semente. Imagine você a proposta é transformada em
arte. abrir um buraquinho e plantar uma projeto e segue para a unidade
Hoje ele busca brotar esta se- semente que daqui a 15 ou 20 anos técnica de análise correspondente
mente artística em outras pessoas. renderá frutos”. ao segmento cultural do produto
Sua companhia oferece oficinas de Assim o grupo segue transfor- principal (Funart, Ibram, Iphan,
forma gratuita à comunidade do mando a vida de muitas pessoas, não Palmares, Fundação Casa de Rui
Gama e do entorno do DF. Qualquer só das que participam das oficinas, Barbosa ou Fundação Biblioteca
pessoa pode participar das oficinas como das que assistem aos espetá- Nacional).
mesmo sem nenhuma experiência. E culos e demais atrações oferecidas no
após um trabalho de cerca de um ano espaço, que na maioria das vezes são  Recebido o projeto, a unidade
de oficinas, estudos e ensaios tem a gratuitas. “A nossa maior satisfação técnica analisa o projeto em até
oportunidade de participar dos espe- é ouvir uma senhorinha falar que foi 30 dias corridos, podendo esse
táculos da cia, que são sempre inspi- pela primeira vez na vida a um teatro, prazo ser estendido quando
rados em grandes obras da literatura. em um espetáculo, no nosso espaço”, o projeto for de recuperação
Sem nenhum apoio externo, to- revela Marli Trindade, produtora da de patrimônio histórico ou
dos os gastos com figurino, cenários, cia e esposa de Valdeci. de construção de imóvel.
alimentação, maquiagem, o espaço Durante esse processo, a
Verbas culturais unidade técnica homologa o
onde se apresentam, além de coisas
mais simples, como o dinheiro da Após passar pelas mesmas difi- parecer técnico emitido por
passagem de participantes das ofi- culdades do Pellinsky e da Cia Semen- um parecerista e retorna o
cinas, saem do bolso de Valdeci. A te de Teatro, hoje com seu trabalho processo para o Ministério da
sede do grupo foi a única contribui- consolidado após 15 anos de luta, o Cultura. Independentemente
ção até o momento. O artista recebeu Patubatê , grupo que realiza espe- da recomendação técnica pela
uma concessão de espaço por um táculos performáticos de percussão aprovação (total ou parcial) ou
ano, onde funcionava a antiga Casa utilizando objetos alternativos como pelo indeferimento, o projeto
dos Artesãos do Gama e que estava instrumentos, já obteve sucesso na é encaminhado à Comissão
abandonado. A reforma do espaço e obtenção de verbas culturais. Nacional de Incentivo à Cultura
(CNIC), que se manifesta e
recomenda decisão.
Depois da manifestação
“O professor Andreoni da CNIC, o projeto cultural
é submetido à decisão do
é especial, batalhador, secretário de Fomento e
Incentivo à Cultura, da qual o
daquelas pessoas que em
redemoinho . ano 06 . número 08

proponente é notificado em até 5


um milhão você encontra dias úteis por meio do Sistema de
Apoio às Leis de Incentivo (Salic).
uma. O que sou agradeço Em caso de aprovação total ou
parcial, a decisão é ratificada
a ele" pela Portaria de Autorização
Rolando Diniz Vargas, dançarino para Captação de Recursos
e monitor do Pellinskys
Incentivados, publicada no
Diário Oficial da União.

59
Criado em 1999 por professores tar e dançarino no grupo há oito.“O
e alunos da Escola de Música de Bra- professor Andreoni é especial, bata-
sília, o grupo promove em Planaltina lhador, daquelas pessoas que em um
projetos sociais como os Catadores de milhão você encontra uma. O que
Arte que aproveitam materiais não sou agradeço a ele”, complementa
convencionais como baldes, latas, o aluno.
correntes e escapamentos, transfor- Karine Gabriela da Silva Rocha, 19
mando-os em instrumentos. Também anos, dançarina do Pellinsky há oito,
desenvolvem oficinas de percussão, fala que seu ingresso no grupo fez
figurinos de dança, de penteados com que as notas na escola melho-
afros e trabalhos com hortas comu- rassem, “e muito”, porque para fazer
nitárias para a comunidade de Planal- parte da equipe não poderia reprovar.
tina e nos locais onde se apresentam “O grupo é uma família, fiz amigos, ir-
"A preocupação maior é de gerar um mãs, alegria e tenho muita satisfação
outro tipo de renda para eles, tocan- de estar aqui. Não tive tempo para
do em vários lugares e recebendo um desviar minha atenção às coisas fá-
cachê ou uma ajuda de custo”, infor- ceis da vida. O Andreoni, além de
ma o produtor executivo, Frederico professor, faz o papel de nosso pai, é
Magalhães. nosso conselheiro do bem”, enfatiza.
Nos últimos anos o grupo rece- Assim como outros jovens, a aluna
beu verba cultural principalmente já é professora também. Além disso,
do Fundo de Apoio a Cultura (FAC) colabora com as costureiras na pro- “O governo está
e de empresas governamentais. Para dução das roupas e nas faxinas nos
Magalhães ainda falta o apoio da ini- locais de ensaios. iniciando o seu
ciativa privada. “Os empresários ain- “É uma sensação de dever cum- mandato, ainda não
da tem muita resistência, preferem prido, ainda mais fazendo algo que
patrocinar os famosos para obter um gostamos e temos paixão que é o está sabendo lidar
rápido retorno.” Frederico Magalhães teatro. E isso é muito gratificante.
não considera as leis de incentivos Daqui um tempo é possível que não muito bem com esse
perfeitas. Apesar das falhas, a verba estejamos mais aqui, mas sabemos assunto"
recebida pelo grupo já patrocinou que plantamos uma semente na vida João Cabral, produtor cultural
apresentações e oficinas em diversas de alguém”, relata o arte-educador
cidades do Brasil e no exterior. e ator, há um ano e meio na Cia Se-
Para Marcelo Fonteles, produtor mente de Teatro, João Camargo. “Eu
e gestor cultural, um dos principais sempre lembro de uma música do nipulação do governo”, complementa.
problemas da não viabilização dos Milton Nascimento que diz que todo Em 2015, foi a primeira vez, em
patrocínios é a não formalização des- artista deve ir até onde o povo está”, sete anos, que João Cabral, produtor,
ses grupos. É necessário que haja uma complementa. solicitou apoio à Secretaria de Cultura,
forma concreta de comprovação das mas seu projeto não foi aprovado. Ele
Dinheiro difícil
ações e eventos que são criados para acredita que a cultura é vista como
que possam se enquadrar nos editais. Andreoni Cabral, do grupo uma área secundária em razão da crise
"A formalização" é a comprovação da Pellinsky, considera “uma burocracia econômica que a capital está atraves-
atuação artística. Muito grupos de conseguir patrocínio e verba pública sando. “ O governo está iniciando o
Brasília atuam há muitos anos e tem para a cultura”. Tentou várias vezes seu mandato, ainda não está sabendo
um trabalho maravilhoso, mas por parceria com o Ministério da Cultura e lidar muito bem com esse assunto”,
não terem espaço nas mídias, pas- chegou a conclusão que pelo fato de comenta.
sam por desconhecidos da grande “não encher linguiça” no escopo das Cabral é produtor cultural há três
população", conclui. suas propostas, não consegue a verba anos do Fórum do Rock, movimento
de patrocínio. Mantêm o grupo por sociocultural que tem como objeti-
Reconhecimento
meio dos cachês das apresentações, vo promover a diversidade musical
“Eu estava sem rumo na adoles- uma pequena ajuda dos familiares dos por meio do reggae, happy e blues.
cência, tinha 15 anos quando descobri alunos e, na maioria das vezes, por Artistas locais de Sobradinho I, II e
redemoinho . ano 06 . número 08

o grupo na minha escola. Terminava autofinanciamento. Fercal se apresentam mensalmente


o ensino médio, com muitas expecta- “ O Estado não está presente na em praças, ruas e avenidas da região.
tivas para o vestibular, numa fase de questão financeira. Existe o Fundo Semestralmente, fraldas geriátricas e
descobertas de coisas boas e ruins. de Apoio a Cultura (FAC), mas é uma alimentos não perecíveis dão lugar aos
O grupo Pellinsky me ajudou muito burocracia”, afirma Valdeci Moreira, da ingressos dos shows. As arrecadações
porque se não fosse ele talvez eu ti- Cia Semente. “A sociedade grita por são distribuídas em asilos, orfanatos e
vesse num caminho ruim", comenta arte e o Estado se torna omisso: socie- abrigos, promovendo, assim, ações de
Rolando Diniz Vargas, 23 anos, mili- dade mais culta representa menos ma- cidadania.

60
Solução
a cidade está se estruturando e no
Para o produtor e gestor cultural caminho certo para oferecer condi- Lei Rouanet
Marcelo Fonteles, diante das dificul- ções de se viver de arte na capital. "A
dades como a suspensão temporária cultura está em constante evolução", A promoção de ações
das principais formas de apoio gover- enfatiza. de cidadania que os
namental, a classe artística deve se O Sesc cede espaços qualificados, grupos desenvolvem não
reinventar, buscando novas formas equipamentos adequados, promove interfere na avaliação dos
de fazer e sobreviver da cultura. “São eventos, facilita a produção local e projetos culturais que são
vários os caminhos: nas empresas ajuda na formação de um mercado encaminhados ao Ministério
particulares que cada vez mais estão de trabalho. “Por não possuir fins lu- da Cultura. De acordo com
lançando editais próprios, ou por crativos, nosso objetivo é justamente os critérios estabelecidos
meio de outros editais do governo fomentar e formar uma plateia. Onde pela Lei Federal de Incentivo
federal, como a Funarte, Ancine, e até a cultura é forte, as pessoas são mais à Cultura, conhecida
mesmo editais de organismos inter- educadas. Tendo informação, você como Lei Rouanet, os
nacionais como o da Organização dos questiona, reivindica e aumenta sua projetos, independente
Estados Iberamericanos”. cidadania e isso é fundamental”, com- da manifestação cultural,
O produtor cultural indica ainda plementa Torquato. são aprovados ou não, de
outras formas de conseguir patrocí- Apenas em 2011 o Sesc realizou acordo com a complexidade
nios de menores vultos, como os sites mais 2,5 mil espetáculos nas moda- de cada um.
de “crowdfunding” (sites colaborati- lidades de teatro, música, cinema e
vos), ou incentivadores de start-ups, dança; mais de 200 mostras e expo- Fazem parte da pauta de
que estão crescendo juntamente com sições; e sete concursos culturais, incentivos da Lei Rouanet
a visão de que a economia criativa já que receberam em torno de 1,2 mil os seguintes segmentos e
é uma realidade, e que seu potencial inscritos. Mais de 2,4 milhões de aten- manifestações culturais:
faz com que já seja uma das maiores dimentos na área de cultura aconte- música, óperas e musicais;
economias mundiais e em pleno cres- ceram no mesmo ano, nos sete es- teatro; manifestações
cimento. paços culturais, cinco bibliotecas, 11 circenses; artes visuais;
Fonteles acredita que um bom unidades e espaços públicos do Sesc. audiovisual; livro e leitura;
projeto e uma boa rede de contatos “Estamos no 13o ano do Festival culturas populares e
na área cultural possibilitam a viabili- Palco Giratório considerado o mais tradicionais; patrimônio
zação das parcerias. Destaca, ainda, importante projeto de circulação de material e imaterial cultural,
que qualquer grupo pode conseguir artistas. Há também o Festival Inter- histórico e artístico, arquivos
apoio. “O importante é estar bem nacional de Palhaços, considerado, e demais acervos; dança;
informado e não desistir nunca de também, o mais importante da Amé- rádio e televisão desde que
transformar seus sonhos em realida- rica Latina”, ressalta Rogério Torquato. tenha caráter educativo
de", conclui, Fonteles. Os artistas locais podem participar de ou cultural; pesquisa,
Para Rogero Torquato, coordena- outros festivais culturais de projeção informação, documentação
dor do Núcleo de Cultura do Serviço nacional e até internacional da arte e qualificação em gestão
Social do Comércio (Sesc) do Distrito promovidos pelo Sesc. Além disso, cultural; artesanato; cultura
Federal (DF) , que é um dos maio- muitas das vezes, esses artistas são digital, artes digitais e
res apoiadores do fomento à cultura, remunerados. eletrônicas.

Cia Semente de
Teatro apresenta
peças ao menos
favorecidos levando
arte e cidadania,
mas nunca recebeu
incentivos do governo
redemoinho . ano 06 . número 08

61
O empoderamento
negro através
da estética
redemoinho . ano 06 . número 08

A valorização de elementos estéticos na construção da identidade

Jivago Cavalcanti
Jaqueline Marinho

62
E
O Movimento Black no Brasil
mpoderar, segundo o di- e desrespeito. Uma das iniciativas
cionário Michaelis online que busca expor as opiniões nega- Não é de hoje que existem ações
aparece como um sinô- tivas em relação à população negra da sociedade para ressignificar a pre-
nimo de “apoderar” (dar é o projeto '#AhBrancoDáUmTem- sença negra na sociedade. Nos anos
poderes, ou se apossar po!, inspirado na campanha “I, too, 1960 começou nos Estados Unidos o
de). Segundo o educador Am Harvard”, realizada por alunos movimento 'Black Power”, que tinha
Paulo Freire, que dedi- negros da Universidade de Harvard como objetivo unir os negros ame-
cou parte de sua obra “Pedagogia do (EUA) cansados de couvir declara- ricanos em um partido que elegesse
Oprimido” à definição desse termo, ções preconceituosas de colegas. representantes para defender seus
empoderar vai além de tomar ou ofe- Vendo isso e se identificando com interesses. Na mesma época, surgiu
recer poder. Para Freire as pessoas, a causa, a vlogueira e aluna de Ci- o grupo Panteras Negras[quadro 1],
grupos ou instituições empoderadas ências Sociais, Lorena Monique, le- revolucionários armados que patru-
têm uma característica única, a de vou a ideia para a Universidade de lhavam as periferias americanas para
terem sido elas próprias a realizar as Brasília (UnB). O projeto consiste em defender a população afrodescen-
mudanças e transformações que as alunos que posam para fotos segu- dente da violência policial que, pos-
fortaleceram e as levaram a evoluir. rando cartazes com as frases racistas teriormente, se transformou em um
É a partir desse pensamento que mi- que ouvem cotidianamente. “Achei partido político que buscava eleger
litantes negros, através da internet o projeto sensacional por ser muito negros que defendessem a causa.
ou da mobilização nas ruas, univer- simples e empoderador. Espero que Mas não foi em 60 que o ativismo ne-
sidades e espaços públicos em geral, ele ajude na reflexão acerca das mi- gro americano, historicamente pio-
debatem a importância da estética cro agressões que pessoas negras neiro, se iniciou. Desde os anos 1920,
afrodescendente na construção do enfrentam cotidianamente, não só o comunicador e empresário Marcus
empoderamento em todo o Brasil. nas universidades, mas também na Garvey já defendia um rompimento
A princípio, a ideia de que seja família, na escola e no trabalho”, com os padrões de beleza eurocên-
necessário um trabalho com os ne- torce Lorena. Hoje, a iniciativa da tricos.
gros e negras do país para que seus estudante já se espalhou pelo país No Brasil, o auge do movimento
cabelos crespos e acessórios étnicos e foi reproduzida em outras univer- foi nos anos 70 quando, influenciados
sejam vistos como “normais” pode sidades como a UFJF, de Juiz de Fora pela soul music norte-americana, can-
parecer um exagero. Mas, não fal- (MG), e a Universidade Federal da tores brasileiros como Wilson Simonal,
tam casos de racismo, intolerância Bahia (UFBA). Gerson King Combo e Toni Tornado

Fotos tiradas na campanha


#AhBrancoDáUmTempo!
Realizada no Brasil pela
redemoinho . ano 06 . número 08

estudante Lorena Monique.


Fotos: Divulgação

63
Raoni Vieira, stilyst
brasiliense. Produzindo modelo
negra para editorial

passaram a animar bailes black no Rio estrangeiras que tentavam ir para as mais simplesmente adaptar os mode-
de Janeiro. Tornado, que passou uma capas de revistas eram chamadas de los de países como França, Espanha e
temporada próximo aos Panteras Ne- “bonitas bonecas de piche”, os ne- Inglaterra: “É fundamental trazermos
gras foi um dos cantores mais expo- gros famosos no Brasil eram estrelas, referências da cultura afro, até porque
entes da época e até hoje é lembrado ditavam moda e influenciavam mui- estamos no Brasil, e a raça negra é
pelas suas apresentações no Festival tas pessoas. predominante aqui, não faz sentido
Internacional da Canção com as mú- Mas, para o stylist brasiliense Ra- ignorar isso”, conclui Raoni.
sicas BR-3 e Black is beautiful. Essa úl- oni Vieira, a moda tem seus próprios Esse não é um caminho fácil. Entre
tima, foi cantada em parceria com Elis caminhos e nem sempre a ideologia os anos de 2009 e 2011, o Ministério
Regina. Na apresentação, Tornado saiu está por trás do sucesso de elemen- da Previdência Social (MPS) e a Lumi-
preso após levantar os braços e cerrar tos étnicos encontrados nas peças nosidade (empresa responsável pelo
os punhos, fazendo alusão ao famoso e acessórios: “Na moda brasileira, São Paulo Fashion Week e o Fashion
gesto dos Panteras, em plena ditadura infelizmente, a cultura afro não traz
militar no ano de 1971. essa pegada da consciência negra. Na
verdade é uma questão de tendência
A influência negra na moda
internacional que começa na Europa Quem eram
Esses e outros personagens brasi- e vai se diluindo nos mercados meno-
leiros de resistência negra problema- res”, explica. os Panteras
tizaram a questão estética ao assumir A desvalorização da beleza ne-
seus cabelos e também um vestuá- gra em detrimento de padrões vindos Negras?
rio que era tido como excêntrico à de culturas distintas é um dos pon-
época. Eles se tornaram lendários tos principais dos atuais militantes da O grupo surgiu nos Estados
por fazerem muito sucesso e não se causa. Apesar de não estarem tão en- Unidos em 1966 com a
adequarem ao padrão estético então volvidos nos debates, profissionais de finalidade de patrulhar bairros
vigente no Brasil. Enquanto as negras moda já percebem que não podem predominantemente ocupados
por negros para proteger seus
moradores contra a violência
policial. No final da década de 60
A primeira modelo no mundo que teve seu ápice chegando a 2 mil
sairia na capa de uma revista foi
redemoinho . ano 06 . número 08

membros e escritórios espalhados


Marsha Hunt, que posou para a por todo o país. Após diversos
Vogue britânica em 1969. Marsha, conflitos com a polícia que
que era símbolo do movimento culminaram com uma crescente
“Black is Beautiful”, foi alvo do perseguição pelo FBI, o partido
conservadorismo da época que se dissolveu completamente no
impediu que suas fotos fossem início dos anos 80. Teve como
destaque. No texto da matéria, ela foi principais líderes Huey Newton e
mencionada como “a boneca de piche Bobby Seale.
mais linda de Londres”.

64
Rio) assinaram um termo
em que 10% das modelos
nesses desfiles deveriam
necessariamente ser ne-
gras ou descendentes in-
dígenas. A Luminosidade
afirmou, através de sua
assessoria, que apesar do
acordo não estar mais em
vigor, a recomendação
dada às empresas parti-
cipantes do evento é que
tentem alcançar esse per-
centual. Entretanto, como
eles não são os responsá-
veis por esses contratos,
a participação segue bai-
xíssima. De acordo com O cabeleireiro Felipe
números divulgados pela Schuman no espaço Lolla Lab. e
Pelluqueiro, brechó e salão, que
blogueira e consultora de divide com o sócio Raoni Vieira
moda Lillian Pacce, dos 35
desfiles da última tempo-
rada paulista de moda,
nove não tiveram a participação de nante. Os estilos estão cada vez mais químico a cada dois meses, queimar
nenhum modelo negro. diversificados, assim como são os o couro cabeludo, viver de chapinha.
Mesmo assim, os mais novos ta- cabelos na sociedade brasileira que, “Quando você não sabe como cuidar
lentos da moda, como Raoni, ainda sabidamente, é uma das mais misci- é complicado, mas é questão de tem-
acreditam que esse cenário possa genadas do mundo. po”, garante.
ser mudado: “Eu uso elementos afros Entretanto, essa miscigenação As crianças também não ficam à
por uma questão natural, de refe- não garante o respeito à estética ne- parte desse movimento. Cada vez mais
rência familiar mesmo. O nome da gra, como mostram campanhas como cedo, as meninas e meninos negros de
minha loja é Llolla Lab. Referência a #AhBrancoDáUmTempo! levando à todo o mundo têm escolhido ou sido
ao nome da minha avó, negra, que criação de vários espaços de debate influenciados pelos pais a deixarem
defendia o movimento. Estamos no das questões afro seus cabelos natu-
Brasil, a raça negra é predominante nas mídias sociais “É fundamental rais e se orgulharem
aqui. Querendo ou não, existe influ- como a página do
ência em todos os âmbitos, é como facebook “Desenro-
trazermos referências disso. “Esse é um
processo em que,
se fosse uma consciência inconscien- lando”, criada pelo da cultura afro, até normalmente, os
te”, completa. estudante e ativista pais assumiram seus
“Quem tem black, tem coroa”
negro pernambu- porque estamos no cabelos naturais, se
cano Joeb Andra-
Se a moda dita as tendências nas de. Ele passa cerca
Brasil e a raça negra aceitaram e, a par-
tir desse momento
passarelas e lojas, a estética capilar faz de quatro horas por é predominante ficaram seguros de
o caminho inverso. É cada vez maior dia pesquisando mostrar pra criança
o número de mulheres negras que assuntos referen- aqui. Não faz sentido que não é necessá-
abandonaram os procedimentos de tes aos negros, in- rio alisar o cabelo”,
transformação química dos cabelos e cluindo discussões
ignorar isso” explica o cabeleirei-
Raoni Vieira
passaram a assumi-los naturalmente históricas, como as ro Felipe Schuman.
crespos, indo contra os padrões es- polêmicas em torno E é com o intui-
tipulados pela mídia. O cabeleireiro do 13 de maio. A principal bandeira to de fortalecer cada vez mais a cons-
Alessandro Akiní que, junto com sua defendida pelo jovem é o empode- ciência coletiva de que a estética negra
mãe Ana comanda um salão em Bra- ramento através da estética. Joeb é linda, que pessoas como Joeb estão
redemoinho . ano 06 . número 08

sília, já percebe há alguns anos uma mostra imagens de negros e negras engrossando o coro de ativistas, “Nos-
mudança no gosto de suas clientes: utilizando cabelos afros de maneiras so cabelo é lindo, nós somos lindos.
“Antes muitas vinham para o salão diferentes e incentiva seus seguidores Uma vez fizeram uma campanha rápi-
alisar os cabelos ou colocar trança a não utilizarem produtos que modi- da no facebook onde meninas negras
rastafári, tudo muito discreto e pa- fiquem a forma dos cabelos. “Muita tiravam fotos com a legenda ‘Quem
dronizado. Hoje em dia a consciência gente acredita que cabelo crespo é tem black, tem coroa’, foi genial! Nós
do quanto é importante assumir na difícil de cuidar e, na verdade, não é somos nossos reis, e devemos nos tra-
estética sua identidade é impressio- mesmo! Difícil é passar por processo tar como tal”.

65
A valorização estética
e consciência negra
O professor Nelson Inocêncio da Silva, doutor
em Arte Contemporânea e membro do Núcleo
de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade de
Brasília, fala da importância do empoderamento
negro através da história como forma de
conquista de espaço e combate ao racismo

No seu entendimento, quais fatores foram mais


influentes para o aumento do número de pessoas
negras assumindo o cabelo afro, crespo, na atualidade?
Qual o conceito de empoderamento?
Não é a primeira vez que vemos a população negra, em
Empoderamento é uma palavra que tomamos particular a juventude, manifestar-se contra os padrões
emprestada do inglês empowerment. O termo está estéticos impostos pelas classes dominantes brancas.
relacionado às lutas das chamadas minorias por Pertenço à geração soul music que me proporcionou
reconhecimento e respeito no contexto estadunidense. Em experiências inesquecíveis a começar pelo processo de
algumas discussões ele refere-se à liberação psicológica, assumir e valorizar o próprio cabelo afro, isso há cerca de 40
por exemplo, uma pessoa que foi ‘empoderada’ a agir anos. Devemos considerar a autodeclaração como um fator
em benefício próprio (subentende-se que ela adquiriu importante, mas sem o oportunismo daqueles indivíduos que
condições para tal realização). Em outras circunstâncias jamais se assumiriam como negros não fosse a existência
a expressão pode estar relacionada à capacidade pessoal das políticas de cotas raciais. Sem dúvida, a ampliação da
ou grupal de lutar por uma agenda. Empoderamento consciência negra é um fato. A autodeclaração também
tem sido muito utilizado para as discussões sobre raça e chegou aos cabelos resgatando o legado da juventude negra
pobreza. Também é possível fazer uma associação com dos anos 70. Simultaneamente ao sucesso do cabelo estilo
segmentos historicamente preteridos, em particular os black power, veio a era dos blocos afros, inaugurada pelo
negros, no que alude a conquista de cargos ou espaço Grupo Cultural Ilê Ayiê em 1974 na Bahia, as influências do
político nas estruturas de poder, bem como às políticas reggae na cultura afro-brasileira estimularam o uso dos dread
públicas direcionadas a estes grupos. (ex: políticas de locks pelos amantes (negros em sua maioria) da cultura
ações afirmativas). jamaicana contemporânea no Brasil. Tudo isso aconteceu
Quão importante é a estética nesse processo? quase ao mesmo tempo para evidenciar a versatilidade dos
cabelos crespos que, a despeito do que muitos imaginavam,
A valorização estética possui sua importância enquanto não deveriam ficar confinados à prisão do alisamento, o que
alimento da autoestima coletiva. Uma coletividade que representaria uma submissão estética.
conhece suas qualidades, inclusive estéticas, se capacita
para enfrentar as opressões. Se parcelas expressivas da O senhor acredita que a estética seja um ponto
população negra conseguem enxergar em seus cabelos, fundamental no enfrentamento ao racismo?
nos lábios, narizes e peles, qualidades, e não defeitos, A meu ver, existem outros problemas que começam com
encontramos aí uma situação propícia ao fortalecimento o alisamento de cabelo, passam pelo “loirismo” (a última
da consciência de grupo na luta cotidiana contra o coqueluche global), por cirurgias plásticas para ‘correção’
racismo. de narizes e bocas considerados ‘muito africanos’ e chega
O fato de pessoas negras alisarem os seus cabelos ao medonho skin bleaching, processo que implica no uso de
pode ser considerado negação estética em relação cremes ‘milagrosos’ para promover o clareamento de pele. As
redemoinho . ano 06 . número 08

ao grupo de pertencimento ou uma reprodução do populações negras do mundo têm sido as cobaias preferidas
racismo? de uma indústria cultural interessada em ocidentalizar o
planeta. Enquanto achamos que as escolhas são nossas os
Estou propenso a acreditar na primeira possibilidade, empreendedores que controlam esta indústria se deliciam
posto que, tomar a segunda como referência seria uma com o sucesso das porcarias que lançam no mercado. Não
crueldade conosco. O processo de anulação estética é algo me parece muito difícil a compreensão de que no combate ao
historicamente construído. Portanto, eu compreendo a racismo o corpo negro, na sua plenitude, incluindo o cabelo,
sua existência, embora esteja determinado a trabalhar adquire o status de signo político. Ao não enxergarmos
para sua desconstrução. A questão que envolve o cabelo este aspecto tornamos simples e superficial algo que é
crespo não é simples. extremamente complexo.

66
O lado nada
glamOUroso
do futebol
Maioria dos jogadores ganha menos Marcos de Souza
de dois salários mínimos, só tem
emprego três meses por ano e alguns
chegam a trabalhar como ajudante
de pedreiro para sobreviver

redemoinho . ano 06 . número 08

67
I
ates, mansões, carros de luxo e Ex-jogador do Botafogo do DF e
fama. A imagem que o noticiário hoje estudante de saúde coletiva na
esportivo vende dos jogadores Universidade de Brasília (UnB), José
de futebol que atuam nos gran- Henrique Rocha foi uma das vítimas
des clubes do Brasil e do exterior, da realidade do futebol brasileiro. Ele
em nada se parece com a realida- conta que ao jogar a segunda divisão
de vivida por 80, entre cada 100 do campeonato brasiliense, em 2011,
rapazes que optaram pela carreira. percebeu a dificuldade que os joga-
Dados do Bom Senso FC, movimento dores passam. “A questão do salário
formado por atletas que atuam no é muito complicada. Nós fazemos um
futebol nacional, e que tem como contrato e eles não conseguem cum-
objetivo a melhora do futebol bra- prir”, conta Henrique, que na ocasião
sileiro, mostram que dos cerca de 20 foi avisado de que só teria três meses
mil atletas profissionais registrados e de contrato e receberia apenas R$ 3
com carteira assinada que atuam no mil pelo período. E mesmo assim, o
Brasil, cerca de 16 mil recebem menos pagamento nunca era feito em dia.
de dois salários mínimos por mês. E “Sempre atrasava. Às vezes recebía-
o mais grave é que por mos bicho por jogo, em
causa do calendário
instituído pela CBF, eles
Cerca de 85% torno de uns R$ 100,
R$200. E o que havia no
Para os jogadores cada partida
é mais do que apenas um jogo. E
ficam desempregados dos times ficam contrato eles não paga- na luta para se manter no emprego
esforço e dedicação são essenciais
por pelo menos seis vam” revela.
meses no ano. Entre os inativos por O ex-jogador do
atletas de Brasília a situ- Botafogo do DF lembra partida. “A preocupação e a angústia
ação ainda é pior.
mais de seis ainda a situação de um são muito grandes. Não pensando
Para sobreviver nos meses no ano amigo, que disputava apenas em si, mas também na famí-
meses sem jogos, os ra- a primeira divisão do lia que você tem de sustentar”, relata
pazes que sonham com campeonato candango Rondon.
fama e fortuna são obrigados a fazer e na época estava construindo uma O jogador passou por diversos
trabalhos temporários e nada gla- casa para a família. Ao final do cam- clubes, como o Chapecoense, Misto,
morosos. Eles atuam como garçons, peonato, para não ficar no prejuízo, o Palmas, União Rondonópolis e os clu-
frentistas de postos de combustíveis rapaz teve de aceitar tijolos e cimento bes do DF. Apenas em 2010, na pri-
e até como serventes de obras, na no lugar do salários atrasados. meira passagem pelo Gama, Eduardo
construção civil do DF. Para não ofus- Se para os torcedores, cada par- diz que teve um calendário comple-
car o sonho, nenhum deles admite, tida é apenas mais um jogo do time, to para disputar, porque o time tinha
publicamente, exercer tais funções, para os atletas, cada jogo significa um uma vaga garantida na série D. O em-
nem se deixam fotografar em outras fim de semana a mais no emprego. prego durou de janeiro a outubro. “É
atividades. Pedem para dizer que é Campeão candango com o Gama em uma situação muito triste. No país que
um amigo ou conhecido quem está 2015, o lateral direito Eduardo Ron- é conhecido como o país do futebol, a
nessa situação. don passou por essa situação a cada situação deveria ser tratada de forma
mais séria”, reclama o jogador.
Demais afetados pelo calendário
Mas não são apenas os jogado-
res que ficam sem emprego no fim
dos campeonatos. Toda a equipe é
dispensada. Apaixonado por futebol
e pelo Gama, mas sem talento com a
bola, Edivanir Silva é roupeiro da equi-
pe durante três meses, mas o sustento
mesmo vem do emprego de auxiliar de
limpeza no Superior Tribunal de Justiça
redemoinho . ano 06 . número 08

(STJ), para onde foi, depois de insistir no


mundo esportivo, mesmo em clubes
e no futebol amador. “Eu fazia muito
bico quando o campeonato terminava.
Trabalhava em clubes como a AABB,
no futebol amador, e fazia um trabalho
aqui e um outro ali, para poder pagar as
contas no final do mês”, relata

68
Dirigentes, massagistas e toda rem de portas abertas. As 11 equipes
a equipe de apoio também acabam do DF sabem que para ter um ano in-
dispensados a cada fim de campeo- teiro de atuação, a única alternativa é
nato. O massagista Gilvan de Souza, ganhar o campeonato, porque o resul-
que trabalha há 16 anos no Gama e tado dá direito a uma vaga na série D
que também já passou por diversas do campeonato Brasileiro. As demais
dificuldades, é mais uma vítima da 10 equipes encerram as atividades
instabilidade no esporte do DF. “Se eu sempre em abril.
fosse depender somente do futebol Se a situação da série A do can-
eu estaria passando dificuldades. Eu só dangão já é preocupante, a série B
sobrevivi devido à condição financeira apresenta mais problemas ainda. Em
da minha família, que me ajuda”, conta 2014 cinco das 11 equipes que disputa-
o massagista. vam a competição tiveram de se retirar
Para Gilvan, que trabalhou na base do campeonato porque não tinham
do Gama por 13 anos, e que sonha em dinheiro nem para pagar o transpor-
se tornar técnico de futebol, disputar te da equipe até o local dos jogos. Na
um campeonato pelo ano inteiro sig- época, a Federação Brasiliense de Fu-
nificaria independência financeira. tebol (FBF) não repassou os R$ 50 mil
“Quando o time não está disputando prometidos e os times entraram na do Estado e começou no dia 20 de
competições durante o ano ele é obri- Justiça e suspenderam o campeonato. março, quando a presidente Dilma
gado a fechar as portas. E com isso eu Crítico ferrenho da atual gestão da Rousseff assinou a Medida Provisória
tenho de voltar para as categorias de FBF e da CBF, o dirigente do Gama afir- 671, também chamada de a MP do
base”, conta. ma que o futebol em Brasília é muito Futebol.
Para os clubes, o calendário de- difícil, por falta de apoio. “A CBF para A MP trata da reformulação do
terminado pela CBF também é um mim é a maior culpada do esporte es- calendário de competições e da rene-
transtorno. Fechados e sem renda, tar dessa forma. Eu acho ela omissa no gociação da dívida dos clubes, além
muito vêm as despesas aumentar e só futebol brasileiro. Do dinheiro que ela de criar novas divisões e tratar do que
renovam a esperança a cada início de arrecada, quase nada é investido na vem sendo chamado de “democrati-
ano. “É uma parada total. Até o corte estrutura do futebol”, diz o dirigente. zação das Federações e da CBF”, que
da grama para”, diz o diretor de futebol terão de abrir espaço nos conselhos
Possível solução
do Gama Vilson de Sá. técnicos, assembleias gerais e elei-
A saída para salvar os times en- ções internas aos atletas. A proposta
CBF e Federações
volve várias frentes. Uma delas é de- ainda enfrenta resistência da CBF e
A incerteza de futuro no futebol fendida pelo movimento Bom Senso das Federações afiliadas, as mais be-
também atinge os times, que precisam FC: esticar o calendário nos estados e neficiadas com a atual situação do
de bons resultados para permanece- criar mais competições. A outra vem esporte no Brasil.

Fora dos holofotes da


mídia, Edvanir é apenas
um dos vários profissionais
que trabalham nos
bastidores do esporte
que têm seus empregos
ameaçados pela falta de
um calendário anual
redemoinho . ano 06 . número 08

69
Foto: Assessoria Projeto Portal

Cientistas quebram
paradigmas em
parceria com ETs

U
m grupo com cerca O grupo denominado Projeto o conhecimento adquirido. Também
de 1.500 pesquisa- Portal é uma associação fundada criam projetos sociais e atuam junto
dores vem desen- em outubro de 1997 pelo pesquisa- à comunidade. “O povo precisa de
volvendo estudos dor e ufólogo Urandir Fernandes de ajuda, direcionamento, informação
que fogem do pa- Oliveira, 52 anos. Hoje, a associação e dignidade. Nós temos um trabalho
drão científico. São conta com núcleos de pesquisa em muito importante com os esquecidos
engenheiros, físicos, cinco países e 11 estados brasileiros, do sistema”, diz Urandir.
geólogos, geneticistas, psicólogos e onde os participantes se reúnem para A sede do Projeto Portal fica no
redemoinho . ano 06 . número 08

historiadores que admitem a existên- trocar conhecimento e participar de município de Corguinho, Mato Grosso
cia de vida em outros planetas e afir- cursos, palestras e seminários. do Sul, a 120 km da capital Campo
mam estabelecer comunicação verbal Além da teoria, eles também Grande. O espaço compreende a sede
e visual com seres extraterrestres. A aplicam os conhecimentos na prá- da fazenda com mais de 100 casas, 9
partir desse contato, os pesquisado- tica em viagens expedicionárias, ar- iglus, alojamentos com capacidade
res dizem receber orientações para os queologia interpretativa e realização para cerca de 170 pessoas e refeitó-
estudos seguindo informações passa- de eventos direcionados ao público rios; Zigurats, a cidade autossusten-
das por eles. externo com o objetivo de propagar tável que está sendo construída com

70
Com orientação extraterrestre recebida por
meio de contato físico e verbal, e métodos
científicos pouco tradicionais, grupo de
pesquisadores revela informações ocultas
Natália Queiroz
Priscilla Junqueira

recursos próprios e já possui 67 casas menos ufológicos”, diz Urandir Fer-


e uma pirâmide de 63 metros de base nandes, e explica que é assim que são
e altura que está sendo erguida; e o diferenciados da ufologia casuística,
Centro Tecnológico Zigurats (CTZ), que estuda apenas relatos. “Nosso
que reúne dados astronômicos, me- objetivo é responder o que a ciência
tereológicos e geológicos através de tradicional não consegue, evidenciar
software e tecnologia desenvolvida fatos ocultos e passar conhecimento
pela equipe de técnicos. O local cha- que proporcione melhor qualidade
redemoinho . ano 06 . número 08

Será um espaço cultural


ma atenção pelo grande número de de vida para a população”, afirma o
que contará com salas de
incidências ufológicas e já foi visitado fundador da associação.
cinema, museu e auditórios
por mais de 370 mil pessoas. O Projeto Portal surgiu quando,
para eventos ministrados por
Os associados mantêm encontros aos 29 anos, Urandir aceitou o com-
membros do Projeto Portal,
periódicos para desenvolver pesqui- promisso proposto pelos extrater-
além de salas temáticas
sas e conversar com extraterrestres. restres, que consistia em despertar
ufológicas como centro de
“Mostramos a simplicidade com que pessoas para que se tornem conscien-
pesquisa desses fenômenos.
podemos provocar contatos e fenô- tes de uma nova realidade e de suas

71
potencialidades. “Eu aceitei com uma das ciências paralelas (ver box) pois O que são
condição: de que os seres se manifes- conta com um sistema de tecnologia
tassem de forma física para que eu de ponta livre de manipulações. As- ciências
pudesse comprovar a existência deles sim, os pesquisadores podem revelar
e do trabalho que venho realizando informações não convencionais base- paralelas?
quando fosse necessário”, conta. ados em métodos científicos válidos.
A crença na existência de vida O casal de engenheiros começou De acordo com o Projeto Portal,
inteligente fora da Terra não é res- a trabalhar em parceria com o Projeto as ciências paralelas são as que
trita ao grupo. De acordo com uma Portal há 15 anos e conta que obteve estudam as manifestações que
pesquisa feita em 22 países pelo ins- resultados incontestáveis nos expe- estão fora da compreensão
tituto francês Ipsos, um em cada cinco rimentos iniciais, o que os motivou a humana. Dentro desta
cidadãos do mundo - cerca de 20% desenvolver outros estudos, divulgar concepção, os chamados
- acredita em seres alienígenas. O Bra- os testes e trabalhar para provar a ve- milagres seriam fenômenos
sil aparece em sexto lugar onde essa racidade das afirmações ditas pelos próprios da manipulação
crença existe, com 24%, empatado ET’s. Um desses testes, consistiu em das leis universais e naturais
com os Estados Unidos. Os campeões captar a frequência emitida por uma do ser humano, mas esse
são Índia (45%) e China (42%). nave extraterrestre. “Nos a vimos no poder foi incompreendido
Além disso, a céu e captamos a e bloqueado pelos sistemas
Força Aérea Brasi- frequência que esta-
leira (FAB) tem 618
“Nosso objetivo é va acima do espec-
vigorantes até hoje. As pesquisas
englobam vários campos do
casos de avista- responder o que a tro audível usando conhecimento tradicional
mentos de OVNIs um aparelho recep- como astronomia, física
(objeto voador não ciência tradicional não tor de banda aber- quântica, química, geografia,
identificado) regis-
trados por pilotos
consegue, evidenciar ta”, explica Alessan-
dro, que deixou o
arqueologia, história, biologia
aos estudos da paranormalidade,
entre os anos de fatos ocultos e passar emprego fixo no Tri- desenvolvimento mental,
1952 e 2010. As re- bunal de Justiça do interações com dimensões,
giões Sul, Sudoes- conhecimento" Rio Grande do Sul realidades paralelas e ufologia.
te e Centro-Oeste Urandir Fernandes de Oliveira, para morar na sede
fundador do Projeto Portal
tiveram o maior do Projeto Portal.
número de apari- Há quase dois guimos captar tantas imagens da lua,
ções e 50% das ocorrências teriam anos, os pesquisadores do CTZ traba- como ninguém tinha visto antes?”,
sido presenciadas por mais de uma lham com o mapeamento geológico questiona Santos.
pessoa. lunar e a análise de imagens publi- O astrônomo explica que é difícil
cadas por agências espaciais oficiais comprovar algo quando somente um
Centro Tecnológico Zigurats
comparando-as com as observadas grupo afirma enxergar tal imagem.
Em 2010, o Projeto Portal cons- pelos telescópios deles. Uma das Segundo ele, é muito provável que
truiu o Centro Tecnológico Zigurats recentes descobertas foi a de uma a estátua seja uma montagem de
(CTZ), equipado com telescópios, estátua na lua com tamanho estima- algum “ufólogo fanático”, na deses-
computadores e antenas parabólicas do de 14 km de altura. Ela teria sido perada busca por provar a vida fora
e o primeiro observatório astronô- localizada na região Reiner Gamma da terra. “Não conheço ninguém que
mico do Estado do Mato Grosso do e poderia ser vista até pelo Google prove a veracidade dessa informa-
Sul. De acordo com os engenheiros Earth [software gratuito que fornece ção”, conclui.
elétricos e pesquisadores do CTZ, informações geográficas obtidas por Alessandro e Vanessa contestam
Alessandro e Vanessa Oliveira, o ob- satélites e sondas espaciais]. a irredutibilidade do astrônomo e afir-
servatório contribui para o progresso O astrônomo Fábio Santos se re- mam que pessoas tendem a ser incré-
cusou a assistir ao vídeo publicado dulas quando se deparam com algo
Centro de pesquisa de monitoração pelo Projeto Portal sobre a descober- que esteja fora da zona de conforto
climático, sísmico e astronômico em ta pois está convicto que não há essa delas. “Se as imagens são montagens,
Zigurats; Observatório astronômico; possibilidade. “Eu acho improvável quem está forjando são as agências
e Telescópio newtoniano de 350 mm
equipado com montagem equatorial
que realmente exista essa estátua. Se oficiais, pois elas não foram captadas
ela está lá há tanto tempo e já conse- somente pelos nossos telescópios
redemoinho . ano 06 . número 08

robotizada do observatório
Fotos: Breno Ottoni Fragiorge

72
Foto: Reiner gamma by NASA -
Created using the USGS PDS
Foto: Assessoria Projeto Portal

Estátua vista com zoom e contraste.


Segundo pesquisadores do CTZ ela está
com os braços cruzados em frente ao corpo
e tem tamanho estimado em 24 km.
Região Reiner Gamma na Lua
onde a estátua pode ser vista

como também por outros e por son- Minas Gerais, dessa vez na Lagoa desafia o casal. “Nós usamos métodos
das espacias”, completa o casal. Três Marias, foram realizados testes científicos que podem ser reaplicados
em parceria com uma equipe local de e comprovados”, afirmam.
Terra convexa
especialistas na manipulação do GPS Quando os testes forem conclu-
Uma das mais polêmicas teorias geodésico, que é usado em monito- ídos, um livro e um documentário
propostas por um extraterrestre que ramento de estruturas na engenharia serão lançado para o público. Neles,
contacta os participantes do Projeto devido a altíssima precisão. Os GPS’sos testes estarão descritos de forma
Portal foi acatada pelos cientistas que foram posicionados em três pontos mais aprofundada com demonstra-
se empenharam em desenvolver tes- diferentes e apresentaram a mesma ção das metodologias aplicadas para
tes a fim de provar a afirmação de que altitude. “Os geólogos, engenheiros eque possam ser compreendidos, re-
a Terra é convexa nos continentes e cartógrafos não conseguiam explicar petidos e comprovados por outras
plana nos oceanos. os resultados obtidos, eles não acredi-
pessoas. “Quando todos os testes
O engenheiro Alessandro Olivei- tavam”, diz Alessandro, que conta queda Terra convexa forem concluídos,
ra explica que um dos testes documentados e divulgados,
consistia em posicionar duas
equipes na margem do lago
“Muitas pessoas nos questionam não terá como nenhum cien-
tista contestar”.
Titicaca, situado na frontei- sobre a veracidade das informações,
Habilidades mentais
ra entre o Peru e Bolívia, de
forma que um grupo ficasse mas não provam o contrário” A Associação Projeto
alinhado com o outro. A dis- Alessandro e Vanessa Olivera, pesquisadores do CTZ Portal trabalha também com
tância entre as duas equipes estudos e acompanhamento
separadas pelo lago era de 35 da parapsicologia. Esse ramo
km em linha reta, o que, levando em o mesmo teste foi feito em cidades do que estuda os fenômenos paranor-
conta o raio da Terra admitido pela Rio Grande do Norte por dois geólo- mais, no Projeto, está diretamente
ciência tradicional, resultaria em uma gos do Instituto Nacional de Coloni- ligado às ciências paralelas e suas ma-
curvatura de 18 metros. zação e Reforma Agrária (Incra), que nifestações. Segundo Charles Ferreira,
Entretanto, um laser colocado em também não souberam explicar. parapsicólogo integrante da Associa-
um suporte específico foi apontado Para Alessandro e Vanessa a so- ção, a parapsicologia é considerada
de uma margem para a outra e não ciedade está condicionada a acreditar uma ciência não oficial, mas quando
houve variação de altitude entre elas. no que é imposto pela ciência tradi- se fala em ocultismo, ela é a ciência
“Se a Terra fosse redonda, o lago teria cional. “Muitas pessoas nos questio- mais próxima da convencional. “Se
que acompanhar a curvatura da Terra nam sobre a veracidade das informa- você chega e fala assim ‘aconteceu
e não teria como um feixe de luz che- ções, mas não provam o contrário”, um fenômeno paranormal comigo,
gar à mesma altura do outro lado”,
conclui o engenheiro.
Um teste semelhante foi feito na
Lagoa dos Patos, em Minas Gerais.
Dessa vez com ondas de rádio de
antenas direcionais, que possuem só
uma direção na emissão de informa-
redemoinho . ano 06 . número 08
Foto: Assessoria Projeto Portal

ção. Apesar da curvatura nesse local


ser menor, segundo Alessandro, po-
sicionadas uma em cada margem do
lago, com o mínimo de curvatura não
seria possível estabelecer conexão
entre elas. Todavia, a conexão foi feita. Ilustração
Em outra situação, também em da Terra convexa
proposta pelo grupo

73
contatos como manifestações de-
moníacas, pois não entende o que
podem ser as habilidades mentais ou
os contatos com outros seres. “A igreja
católica se fechou para essa realidade
há muitos anos. Existem casos de san-
tos que admitiram ter tido contatos
Teste da Terra paranormais, mas foram calados pela
convexa com lasers religião”, conclui.
Saúde e bem-estar
O Projeto Portal desenvolve es-
tudos no campo da saúde. Pesquisa-
doras da associação elaboraram dois
uma coisa diferente’ e a pessoa é lei- Genuíno Abreu está convicto de que produtos gerados a partir da fórmula
ga, ela vai associar à parapsicologia e nada disso faz sentido e que tudo que teria sido passada por inteligên-
vai buscá-la”, explica Charles. está ligado a alguns fenômenos sim, cias superiores. O OX3 e MultiOX são
“Muitas vezes os paranormais mas de contato com o “mal”, ou seja, complexos vitamínicos que, segundo
são considerados loucos ou esquizo- com fenômenos ligados ao ocultis- as pesquisadoras, atuariam no retar-
frênicos”, afirma o parapsicólogo do mo demoníaco. “Para a igreja católica, damento do processo de morte ce-
Projeto Portal, que atribui isso à falta diante de qualquer sinal de que você lular e trabalham para chegar a um
de conhecimento que a população tenha experiências paranormais, você ponto de regeneração.
tem e ao condicionamento em cren- pode estar sujeito a sofrer um exorcis- “O OX3 potencializa a ação da en-
ças religiosas. “O certo seria orientar mo, pois relacionamos esses tipos de zima superóxido dismutase (SOD)”,
pessoas com habilidades afloradas. acontecimentos com manifestações diz a geneticista Paula Helena Ortiz,
Pois se ela aprende a controlar, ela do mal”, alega o padre. responsável pelas pesquisas realiza-
pode manipular, desenvolver e usar “As pessoas confundem parap- das no Instituto Dante Pazzanese de
as habilidades a seu favor”. sicologia com espiritismo”, afirma Cardiologia (IDPC), em São Paulo. Ela
Dentro do grupo, eles acreditam Carlos Leite, integrante da Federação explica que essa enzima é responsá-
que as habilidades para- vel por proteger as células das
normais podem ser de- “Jesus Cristo foi o maior paranormal reações danosas causadas pelo
senvolvidas com técnicas ácido barbitúrico, que lesiona
e práticas. “O poder da que já existiu, ele manipulava as leis a membrana das células, pro-
mente é incrível e é para vocando morte celular e conse-
ser usado. Jesus Cristo foi
universais”, quente envelhecimento.
Charles Ferreira, parapsicólogo
o maior paranormal que A farmacêutica bioquímica
já existiu, ele manipulava Patrícia Caram participou das
as leis universais”. Um exemplo de do- Espírita Brasileira (FEB) há 15 anos. pesquisas e afirma que, entre outros
minação da habilidade mental é mover Leite explica que o espiritismo é uma benefícios, o MultiOX pode prolon-
objetos com a força do pensamento, doutrina espiritualista, já a parapsico- gar a vida do corpo humano por pelo
habilidade denominada telecinesia. logia é uma ciência e, co­mo tal, nada menos 50 anos se forem seguidas as
No entanto, para o psicólogo Vic- tem a ver com a posição filosó­fica ou recomendações. “Ele atua de maneira
tor Azevedo, que tem especialização religiosa que a doutrina segue. intensa no fortalecimento do sistema
em parapsicologia, não é possível que “Os espíritos podem se manifes- imunológico e livra o corpo de muitas
alguém adquira uma habilidade pa- tar de várias maneiras. Chamamos doenças”, garante.
ranormal. “Duvido muito que alguém esses contatos de ‘mediúnicos’, afir-
entre em algum grupo hoje e depois ma. Essa realidade de poder ver ou
saia possuindo habilidades paranor- se comunicar com as almas, designa Complexos vitamínicos elaborados por
mais que não tinha antes. Habilidades um conjunto de manifestações para- pesquisadoras do Projeto Portal seguindo
mentais não são adquiridas, ou você normais, de ordem física e psíquica, fórmula fornecida por ET's (Priscilla Junqueira)
tem ou não tem. Você pode traba- que se produzem por meio de um
lhar para aprimorá-las, mas você não sensitivo a quem é dado o nome de
redemoinho . ano 06 . número 08

vai dormir e de um dia para o outro médium. O espiritismo explica que


acordar mexendo um objeto com a a partir daí podem surgir várias ha-
força do seu pensamento”, afirma o bilidades mentais, que os médiuns
psicólogo. aprendem a controlar com ajuda da
Ouvir vozes, mexer objetos, en- doutrina espírita.
xergar vultos ou coisas “do além” Carlos Leite explica que, por a
podem erroneamente ser relaciona- igreja católica não aceitar a comuni-
dos a fenômenos religiosos. O padre cação paranormal reconhece esses

74
Maria Costa, aposentada de 68
anos, não é associada ao Projeto Por-
tal, mas faz uso contínuo dos dois
produtos há três anos e garante que
os efeitos são reais. “Notei os efeitos
desde o começo, me senti com mais
disposição e até mais inteligente. En-
tre outras coisas, notei que os pelos
da minha sobrancelha aumentaram
e voltaram a cor natural”, relata Maria.
O MultiOX, OX3 e outros itens da
“Dourado Alimentos”, linha de alimen-
tos produzidos pelo Projeto Portal,
que comercializa produtos enrique-
cidos com vitaminas e minerais, sem
conservantes e/ou aditivos químicos
estão disponíveis para venda no web
site da marca ou com os representan-
tes espalhados pelo Brasil.
O que a ciência pensa
Poderes paranormais e
Para Alexandre Silva, doutor em amizade com ETs
física do centro de pesquisas em ciên-
cias exatas do Conselho Nacional de Urandir Fernandes de Oliveira, raio X posteriormente.
Desenvolvimento Científico e Tecno- conhecido como UFO (acrônimo
Depois disso, começou a fazer
lógico (CNPq), informações provindas do seu nome), nasceu no
shows exibindo os fenômenos
de fontes extraterrestres não compro- município de Marabá Paulista,
de efeito mental que produzia.
vadas cientificamente não são válidas. interior de São Paulo, em 1963.
Participou de programas populares
Ele explica que as ciências exatas são Filho de comerciantes cearenses,
de televisão como Ratinho (SBT),
aquelas que possuem métodos e apli- desde cedo se diferenciava
Brasil Verdade (Band) e Globo
cações lógicas, que podem ser repro- das outras crianças. Uma
Repórter, onde fez demonstração
duzidas por diferentes estudiosos e das primeiras manifestações
de seus poderes movimentando
que sempre alcançarão os mesmos paranormais aconteceu quando
objetos, ligando e desligando
resultados precisos. aos quatro anos foi pego
lâmpadas e TV’s.
Urandir diz não se importar com o acariciando uma cobra urutu sem
preconceito da comunidade científica ser picado. Em seguida, outros Aos 29 anos, quando Oliveira
pois, segundo ele, o trabalho desen- fenômenos também começaram resolveu assumir o compromisso
volvido pretende impactar pessoas a acontecer. Urandir entortava oferecido pelos extraterrestres,
interessadas e de mente aberta que talheres, lia pensamentos, sonhou com o local onde deveria
tiram conclusões pelas próprias ex- interferia em aparelhos ser instituído um espaço onde
periências. “O convite está aberto a eletrônicos e curava com o toque, ele pudesse reunir pessoas
qualquer pessoa que queira conferir habilidade essa que lhe conferiu o interessadas em treinar habilidades
de perto, seja por real interesse, seja apelido de “santinho”. paranormais, desenvolver
por curiosidade. Até hoje, ninguém pesquisas, fazer contato com ETs,
Nas vésperas do seu aniversário
provou o contrário”, afirma o presi- entre outras atividades. No dia
de 13 anos, Urandir conta que foi
dente da associação. “Trabalhamos seguinte, aceitou convite para
abduzido pela primeira vez. Ele
para que as pessoas desenvolvam trabalhar em uma companhia
lembra que estava sozinho no
seus potenciais de forma racional e mineradora no Mato Grosso do Sul
quarto e uma luz violeta surgiu.
inteligente”, completa. para encontrar minérios com o uso
Então, ele levitou e atravessou
E alega ainda que os participan- dos poderes paranormais.
o telhado da casa e logo viu-se
tes do grupo estão satisfeitos com o Depois de três anos, quando o
no interior de uma nave. Na
conhecimento que estão adquirindo
redemoinho . ano 06 . número 08

ocasião, três seres com aparência contrato foi encerrado, Urandir


e a melhora na qualidade de vida em estava voltando para São Paulo
humana, exceto pela íris dos
todos os campos que estão obtendo. com o sócio, mas resolveu conceder
olhos na vertical, teriam colocado
“Estamos abrindo caminho para uma carona para uma família. Depois de
implantes na região da nuca
nova era, uma nova maneira de pensar desviar cerca de 20 km da rota que
para amplificar as habilidades
e de agir que rejeita qualquer forma de deveria fazer, a paisagem vista era
paranormais dele. O objeto
controle, seja pelo medo, pela imposi- igual a sonhada por Urandir. Hoje,
implantado em seu pescoço foi
ção, pelo dogma ou pela guerra.” é a sede do Projeto Portal.
identificado por meio de exame de

75
as Águas da
identidade
candanga
Lago Paranoá, construído
junto com Brasília para
amenizar o clima, gerar
energia e diluir esgoto, hoje
faz parte do imaginário
local e agrega múltiplos
usos , que vão do comércio
e sustento, inclusive de
pescadores, à prática de
esportes, lazer e reabilitação

Luís Adriano Salimon


redemoinho . ano 06 . número 08

76
A
ndré dos Reis é ma- Agenor faz a parte dele toda
rinheiro contratado vez que mergulha, apesar de o lixo
da rede de hospitais sólido não representar perigo para
Sarah Kubitschek, e a cidade em uma escala maior. Com
trabalha na náutica, pé-de-pato e máscara, ele vai até o
situada na ponta do fundo do lago e se diverte retirando
Lago Norte, desde objetos estranhos. “Acho lata, garrafa
a inauguração, há 13 anos. Um dos quebrada, já achei um óculos zera-
trabalhos de André é acompanhar as do, cordão e relógio. Hoje achei uma
atividades de reabilitação dos pacien- camisa original do Brasil da época
tes, que acontecem dentro do lago do penta!”, mostra. Agenor acredita
Paranoá. Por meio da canoagem, vela que quem só vê o lago por cima não
e caiaque, a reabilitação física e psi- imagina o que tem por baixo desse
cológica acontece de forma lúdica. manancial docew, limpo e de tempe-
“A náutica é a porta do hospital para ratura amena. “Para sair do estresse e
o lago, e vice versa. Somos esses pro- da monotonia, eu pego a bicicleta e
fissionais que fazem essa ligação”, diz. venho dar o rolê aqui, ver o fundo do
A reabilitação de pacientes é apenas lago que é a parada mais doida”, opi-
um dos múltiplos usos do Paranoá. O na. Afundada nas águas candangas
espelho d’água artificial que tem 37 está parte da história da cidade, na
quilômetros quadrados de superfície forma de vilas abandonadas, objetos
e mais de cem quilômetros de orla, antigos e novos que com o tempo são
garante orientação e simbologia à Ca- esquecidos e, finalmente, resgatados
pital Federal. Mais que isso. É parte por mergulhadores.
da identidade da Capital Federal, da A atividade do mergulho em Brasí-
cultura e da economia. “Eu memorizo lia é forte pela facilidade de acesso ao
com facilidade e a identidade da cida- Lago Paranoá. “No mar tem-se toda
de de Brasília pelo lago”, sintetiza o uma logística, de marés, ventos e chu-
professor de arquitetura e urbanismo vas. No Paranoá, não”, conta o instrutor
da UnB, Frederico Holanda. de mergulho Frank Bastos, fundador
O passar dos anos e dos gover- de uma das oito escolas de mergulho
nos de Brasília deu nova cara e fun- licenciadas no DF, que forma mais de
ção para o lago artificial, que abraça 40 mergulhadores por mês. Segundo
todo o lado leste do Plano Piloto e é ele, nos pontos de mergulho é possível
abastecido por 21 córregos de cinco registrar até cem mergulhadores por
bacias diferentes. Iniciado em 1956, semana. Frank já fez vídeos do fun-
junto com a construção de Brasília, o do do lago, e hoje acumula mais de
Paranoá originalmente tinha a função trinta gigas de material. Registros de
Agenor mostra objetos retirados do
de diluir o esgoto da cidade, ameni- lugares históricos como a Vila Amaury fundo do lago, dentre eles, garrafas de vidro,
zar o clima seco no Planalto Central e e a pedreira da Barragem do Paranoá ferros retorcidos, camisas e sacolas plásticas
gerar energia elétrica. Ao longo dos são raros pela dificuldade do acesso a
anos, ganhou outros usos. Holanda esses locais, cuja profundidade pode
Frank Bastos leva turma de mergulho
lembra que os corpos hídricos das chegar a até 45 metros e não há mais para treinamento perto da Ilha dos Clubes
cidades têm peso do ponto de vista incidência de luz solar.
simbólico e imagético. “A paisagem
mais forte do Recife é a imagem do
centro da cidade cortado pelo rio Ca-
pibari e suas pontes”, exemplifica.
A prática esportiva, o comércio
local e a paisagem hoje movimentam
a vida na água e na orla. Para quem
faz uso do lago é um privilégio ter
redemoinho . ano 06 . número 08

um espelho d’água presente no coti-


diano. Este é o caso do ciclista Agenor
Bento que todos os finais de sema-
na pedala da Vila Telebrasília, onde
mora, até a Península dos Ministros
ou o Parque Ermida dom Bosco para
se refrescar.

77
Fernando de Melo e o filho, que ajuda
nos negócios, ganham a vida vendendo
os alimentos no Deck da Asa Norte

A pressa para deixar o lugar onde sos pela subida do nível da água. Para mingueiros”, mas também para quem
hoje está o lago deixou submersas trás, ficaram pratos, sapatos, tigelas, passa por ali de carro cotidianamente,
memórias da origem da Capital Fe- bonecas, garrafas e restos de estrutu- e sabe que pode encontrar um lanche
deral. A vila dormitório, batizada de ras das casas que hoje abrigam peixes feito com carinho. “Tem gente que vai
Amaury, abrigava os trabalhadores no lugar dos candangos. para Sobradinho e Planaltina, desvia
da construção civil, que foram expul- Frank também trabalha com tec- o caminho e vem aqui para comer al-
nologia da informação, mas a maior guma coisa”, relata.
parte do sustento dele vem da esco- Quando Fernando começou a
História la de mergulho, que é responsável
por 60% da renda. Diferentemente
vender no calçadão, ainda não havia
o deck de madeira. “Se você olhar no
de Frank, outros profissionais fazem google maps, já tem a barraquinha do
No momento do concurso do
das águas do Paranoá o ganha-pão paulista aqui”, diz. Romero Moraes é
Plano Piloto, o Lago ainda não
de forma exclusiva. O comerciante dono de um estande de aluguel de
existia. Porém, todos os projetos já
Fernando de Melo, mais conhecido pedalinhos, caiaques, pranchas de
levavam em conta a existência do
como Paulista, veio morar em Brasília stand-up paddle e barcos para pas-
Paranoá, de forma que a relação
em 2001 e tem um trailer de lanches seio. “Às vezes, fico só eu aqui. Mas
da cidade com o lago, no projeto
estacionado no calçadão da Asa Nor- comércio é insistência, tem que vir e
de Lúcio Costa, foi favorecida
te. Um dos vendedores mais antigos e marcar ponto todo dia”, ensina. Ele
pelo relevo. “Brasília se manteve
assíduos do calçadão, o Paulista con- tem 12 pedalinhos e, aos sábados,
praticamente equidistante do
ta que não vende só para quem vem leva toda a frota, que não para um
Lago Paranoá em toda a sua
passear nos finais de semana, os “do- instante. O público difere de acordo
longitude”, conta o professor de
urbanismo Frederico Holanda
O Paranoá é o único lago tropical
urbano que teve seu processo
de eutrofização completamente
revertido. As estações de
tratamento da Caesb, antes de
se equiparem com o tratamento
terciário, não retiravam o
fósforo da água, que permitiu a
redemoinho . ano 06 . número 08

proliferação de algas que davam


cheiro desagradável à agua e
matavam peixes. “Somos exemplo
para o mundo todo. Os japoneses Augusto Braga
vêm conhecer o lago, os alemães conta que é comum
encontrar tilápias e
vem conhecer o lago, ver essa tucunarés e até carpas
experiência que foi feita aqui com com mais de 8kg
grande sucesso”, conta.

78
A eutrofização é o processo de
com o dia. Aos sábados e domingos, a fertilização da água por meio de e a norte, têm impacto direto no Pa-
clientela é majoritariamente familiar. nutrientes químicos despejados ranoá. A grande mudança, segundo
“Na semana, é o pessoal que gosta de no lago, alguns deles presentes Rios, se deu no ano 2000, quando a
beber, fumar... Nada contra, mas são no esgoto tratado pelas antigas CEB, responsável pelo controle das
públicos diferentes”, relata. Romero instalações da Caesb. comportas e pelo nível da água do
cobra 20 reais por meia hora de stand- lago, realizou um “flush”, ou seja, uma
-up paddle, e segundo ele, a renda, descarga excepcional. “Com isso, a
que prefere não revelar, é suficiente nutrientes que favoreciam a eutro- camada superficial com a sujeira foi
pra viver com hábitos simples. “Não fização. “As estações foram criadas eliminada, mandada barragem abai-
dá para rasgar dinheiro, mas dá para para o tratamento terciário. As obras xo”, explica.
comer, beber, e viver a vida normal- ficaram prontas em 2004 e a situação Junto às comportas da barragem
mente, graças à Deus”, agradece. foi melhorando devagarzinho”, rela- do Paranoá existe uma pequena hi-
Em Brasília, além da abundância ta. Das nove estações existentes no drelétrica que funciona sob coman-
de árvores frutíferas em áreas públi- Distrito Federal, apenas duas, a sul do da CEB Geração, responsável pela
cas, a pesca no lago Paranoá sempre
foi permitida em toda a extensão, ex-
ceto com uso de tarrafas, que amea-
çam o ecossistema. Isso permite que
qualquer brasiliense que tenha uma
vara e isca não morra de fome. Au-
gusto Braga é segundo sargento do
Exército, e pesca no Paranoá desde
antes da virada do século. “Aprendi
com um cara que pescava há muitos
anos aqui. Ele me ensinou a fazer a
massa, e desde então nunca mais pa-
rei”, conta Augusto, que usa como isca
uma mistura de maizena com suco de
maracujá, que resulta em uma massa
cheirosa, diferente das comumente
utilizadas.
O militar conta que é possível
voltar para casa com até cinco quilos
de peixe. O mais comum de se pes-
car no lago é a tilápia, mas segundo
Augusto, com sorte, é possível fisgar
carpas de até oito quilos. De acordo
com registros de pescadores e am-
bientalistas, mais de 60 espécies de
peixes, entre endêmicas e introduzi-
das, vivem dentro do lago. Além de
tilápia e carpa, tucunaré, bagre, traíra,
peixe-gato e acará são encontrados.
Para Augusto, o peixe do lago Pontos de Lançamento de Águas Pluviais
é bom para se consumir. “Na época Lançamento de Esgoto Tratado
que eu comecei a pescar aqui, não Locais monitorados para
era bom. Hoje, quando você limpa o Afluentes do Lago
balneabilidade:
peixe, ele nem fede”, explica. A qua-
lidade dos pescados e da água do Balneabilidade
lago, segundo o superintendente de 04 Prainha (ao lado da ponte Costa e Silva)
Estudos, Programas, Monitoramento Excelente 10 Quiosque do Calçadão
e Educação Ambiental do Instituto
redemoinho . ano 06 . número 08

Muito boa 18 Área de lazer Norte


Brasília Ambiental (Ibram), Luiz Rios,
se deve ao conjunto de esforços do Satisfatória 19 Piscinão Norte
GDF e da Caesb. Entre os anos 90 e 22 Praia da Ermida Dom Bosco
Imprópria
2005, explica ele, investiram no aper- 24 Ciclovia do Lago Sul
feiçoamento tecnológico das Esta- Área de uso restrito
ções de Tratamento de Esgoto (ETEs) 26 Pontão
Lago Paranoá
capacitadas para o tratamento secun- 31 Calçadão da Asa Norte
dário, que, na época, não eliminava os Parques
32 Ponte JK

79
produção de mais de 120 mil mega-
watts anuais. Além de gerar energia
para consumo populacional, a unida-
de garante segurança energética para
o núcleo político e governamental da
cidade, a Esplanada dos Ministérios.
O período mais intenso de funciona-
mento é durante a época chuvosa.
Segundo a engenheira Priscilla Men-
donça, a energia gerada pela hidrelé-
trica abastece 58 mil casas, conside-
rando o consumo médio residencial.
A delimitação da área de risco, nas
épocas de abertura das comportas
do vertedouro, acontece por meio
de boias amarelas. A unidade conta
com o serviço de porteiros 24h por
dia, que dispõem de um megafone e
uma sirene para alertar nadadores e
marinheiros.
Para Rios, a desocupação das Áre-
as de Proteção Permanente (APPs) ao
redor do Paranoá é fundamental no
sentido de manter o controle sobre
os dutos de esgoto que correm pa-
ralelamente à orla e alimentam as
estações de tratamento. “Se tiver um
entupimento na rede (de esgoto) fica
difícil os técnicos da Caesb intervirem
de forma eficiente. Tem um muro que
não deixa a escavadeira passar, um
cachorro, uma quadra de cimento”,
explica.
Também em defesa da desocu-
pação das APPs estão os Amigos do
Lago Paranoá, um movimento de ca-
ráter não governamental formado por
ambientalistas que defendem o uso
público e sustentável do manancial.
Liderados pelo sociólogo Guilherme
Scartezini, defendem o uso público e
sustentável do lago e acreditam que
a única explicação para que as APPs
ainda não tenham sido desocupadas
é a articulação política dos mora-
dores. “Isso deixa claro que o metro
quadrado mais caro do DF tem um
grande poder de barganha capaz de
resistir até a um processo tramitado
e julgado que é de interesse do GDF
que seja executado”, reclama Scarte-
zini. Ele se refere à decisão da justiça
redemoinho . ano 06 . número 08

Junto às comportas
que determina a derrubada das cercas
da barragem do Paranoá,
uma pequena hidrelétrica que impedem o acesso à orla do lago.
produz mais de 120 mil Os Amigos do Lago trabalham com
megawatts anuais e abastece informação e promoção de debates
58 mil casas, além do núcleo
sobre o uso público e sustentável do
político e governamental na
Esplanada dos Ministérios Paranoá. O grupo já realizou, em anos
passados, mutirões de limpeza em
locais como a Península dos Ministros,

80
Parque Ermida Dom Bosco e Barra- te nesse artigo. Não há que se discutir com um viés esportivo. Segundo ele,
gem do Paranoá. mais esses 30 metros”, conclui. não há preço que pague a sensação
Do outro lado da briga está um Após se afastar de suas funções positiva trazida pelos resultados dos
grupo de moradores do Lago Sul e profissionais em uma fábrica de tacos pacientes. “Quando entrei aqui no
ocupantes da orla, a Associação dos de sinuca devido a uma mielite trans- Sarah, eu não sabia ao certo o que
Amigos do Lago Paranoá (Alapa), um versa, infecção na medula espinhal esperar. Hoje eu gosto mais do que
movimento liderado pelo empresário que compromete os movimentos, o imaginava poder gostar”, conta.
e morador do bairro Marconi de Sou- rondoniense Samuel Lima mudou-se As práticas náuticas oferecidas
za. Contrário à desocupação, com o para Brasília em busca de tratamen- pelo Sarah aos pacientes trazem de
argumento de que a máquina pública to. Ele é um dos pacientes do Sarah volta a paixão pelo esporte, muitas ve-
não consegue manter a segurança, que utilizam o Paranoá em busca de zes perdida nos casos de paraplegia
ao menos dos pontos de acesso pú- reabilitação. No caso de Samuel, o tra- ou amputação de membros inferiores.
blico ao lago já existentes. “Somos a tamento diferenciado inclui a mesma Para Fred, no país do futebol, onde a
favor do uso democrático do lago, só canoa usada pelo príncipe Harry em cultura da bola no pé é tão forte, qual-
não somos a favor de abrir a orla do sua visita ao hospital em 2014. “Aqui quer limitação nas pernas pode ser di-
lago sem a oferta de um projeto de eu aprendi a lidar com a limitação no fícil de ser encarada. “O fato de ir pra
segurança e de manutenção do meio dia-a-dia”, conta. Samuel tem agora uma cadeira de rodas impede a prática
ambiente”, esclarece. Marconi explica como objetivo cursar uma faculdade, desse esporte simbólico, e as ativida-
que as liminares concedidas pela jus- apesar de ainda não ter preferência des na água trazem uma nova paixão
tiça, para impedir a decisão da derru- de curso. “Eu quero achar qualquer e novas metas”, opina.
bada das invasões situadas na beira uma que seja a melhor para mim, que- Frequentador assíduo do lago,
do lago, se baseiam no artigo 62 do ro estudar, e não ficar parado”, sonha. Fred percebe um aumento anual na
Código Florestal, que estipula que as A companhia de Samuel e de presença dos brasilienses no lago.
Áreas de Proteção Permanente, para muitos outros pacientes é o profis- Para ele, é fantástica a velocidade
bacias artificiais com finalidade de sional de educação física Frederico com que surgem novos pontos de
geração de energia e abastecimen- Ribeiro, que está na Rede Sarah ha remo, natação e vela e outros espor-
to, são definidas pela distância entre dez anos. Ele é responsável pela ad- tes náuticos. “Eu uso bastante o lago.
o nível médio e máximo da água do ministração e atividades da náutica, Menos do que eu gostaria pelas tare-
lago. “O lago se encaixa perfeitamen- e pratica terapia com os pacientes fas do dia a dia”, reclama.

redemoinho . ano 06 . número 08

Próximo à popa da canoa está Samuel e atrás Fred, em exercício de reabilitação


dos pacientes da Rede Sarah Kubitschek, que inclui, ainda, remo e vela. A canoa
de número 52 foi usada pelo príncipe Harry, na visita dele ao Sarah, em 2014

81
APP: 11 anos de
indefinições no
Lago Paranoá

Disputa entre gestores públicos e ocupantes Danielle Feitosa


da orla já vem sendo travada desde 2004 Lécio Luiz

A
ocupação irregular também usufruem de áreas irregula- e que ainda se deve dar o primeiro
da orla do Lago Para- res e chegam até a ultrapassar o limite passo. “Acredito que seja o acesso
noá é um dos assun- das orlas, com decks que chegam a às áreas públicas. As questões que
tos que mais causam invadir até dez metros da água. Resul- conflitam com eventual direito de
dor de cabeça aos tado? De um lado, órgãos do governo propriedade, com edificações mais
gestores do Distrito tentam desocupar de qualquer forma, complexas, com limites dos lotes de
Federal. Em uma es- por meio da Agência de Fiscalização clubes até o espelho d'água continu-
pécie de cabo de guerra, desde 2004 do Distrito Federal (Agefis) e, do ou- arão sendo discutidas no âmbito da
decretos são instituídos e derrubados tro, os moradores, administradores de mediação".
quase que imediatamente. Para estar clubes e donos de comércio, querem Entre o governo atual e o ante-
de acordo com a Área de Preservação de qualquer jeito continuar no local. rior, houve diversas divergências que
Permanente (APP), prevista no Códi- A equipe de reportagem da Re- acabaram alterando o texto original
go Florestal, definida pelo Ministério vista Redemoinho do IESB tentou do decreto e travando as ações legais
Público do Distrito Federal e Territó- entrar em contato com a Agefis, para que possibilitariam a desocupação.
rios e a Procuradoria-Geral do Distri- explicar as irregularidades que a orla Para assegurar a originalidade do tex-
to Federal (PGDF), as mansões que apresenta, mas não houve retorno. to, o Ministério Público entrou com
beiram a orla do lago deveriam estar, Porém, em entrevista realizada para ação direta de inconstitucionalidade
no mínimo, a 30 metros de distância a Agência Brasília, o portal de notícias contra as mudanças. "A sentença tem
da margem. do Governo Federal, o procurador do abrangência maior e nós vamos cami-
E não somente as casas infringem Distrito Federal Daniel Mesquita, in- nhar na negociação até o término de
a Lei Ambiental. Clubes e comércios forma que a desocupação é complexa seu cumprimento. Neste ano (2015),

A gangorra 2005: Houve acordo entre Ministério


Público e Justiça para que a
redemoinho . ano 06 . número 08

da orla desocupação fosse concluída

2004: No governo Joaquim Roriz é 2005 – 2012: Período em que


instituído em 30 de março o Decreto aconteceram diversos impasses
24.499 que define parâmetros para e complicações entre órgãos
ocupação regular do Lago Paranoá competentes e justiça, inviabilizando
as ações de desocupação

82
A península dos ministros
localizada no lago é um espaço
público, porém se encontra
com portões fechados

depois do processo de negociação, o Distrito Federal e Territórios (TJDFT) pontos turísticos. Com a chegada de
governador Rodrigo Rollemberg re- concedeu liminar que suspendeu o pessoas dos diversos estados do Bra-
vogou o decreto anterior para garan- acordo de desocupação da orla do sil, seja para trabalhar ou para morar,
tir os 30 metros", disse Roberto Carlos Lago Paranoá firmado entre o GDF e diversas moradias foram construídas
Batista, titular da 1ª Promotoria de o Ministério Público, alegando haver ao redor do local e, com isso, também
Justiça de Defesa do Meio Ambiente necessidade que o tema seja "melhor surgiram os problemas.
e Patrimônio Cultural do MPDFT. esquadrinhado" até o julgamento fi- Para o ambientalista Tony Lo-
Em agosto do ano passado, a ju- nal do mérito, que não tem data para pes, idealizador e co-fundador da
íza substituta da Vara ONG “Ocupe O Lago”, um
do Meio Ambiente do “Temos que partir de um princípio que dos maiores problemas na
Distrito Federal, Caroli- gestão do espaço é a fal-
ne Santos Lima, deter- aquela área que está sendo utilizada por ta de área pública na orla
minou que o Distrito para os moradores do DF
Federal esclarecesse, alguns é de todos nós" aproveitarem. “Temos que
Tony Lopes da ONG Ocupe O Lago
de forma objetiva, o partir de um princípio que
cronograma para re- aquela área que está sendo
moção das edificações particulares ser realizado. A Agefis foi notificada utilizada por alguns é de todos nós.
construídas ilegalmente em áreas para que não atue até o fim do im- A desocupação dos locais irregulares
públicas da região. A petição exigia o bróglio judicial. que já foram detectados pelos órgãos
reconhecimento do descumprimento competentes é uma forma de devol-
Pró-lago
das indicações do Ministério Público, ver para a população brasiliense um
de modo a respeitar a APP e a Zona de O lago Paranoá foi preparado em direito que lhe pertence”, afirma.
Preservação da Vida Silvestre (ZPVS). 1894, mas concretizado em 1960 com Em respeito à concepção original
O processo ainda está em andamento. a construção de Brasília, no governo de Brasília, como cidade planejada
No dia 17 de abril deste ano, a 3ª de Juscelino Kubitschek e é patrimô- e referência em qualidade de vida,
Vara Cível do Tribunal de Justiça do nio da cidade e um dos principais uma das causas mais sólidas da ONG

2012: Justiça determina que o 2015 (março): Em 6 de março de


redemoinho . ano 06 . número 08

Governo do Distrito Federal cumpra 2015, o governador do Distrito Federal


o prazo de sessenta dias para Rodrigo Rollemberg manteve a
promover a desocupação de todas as redação original e o Decreto 24.499
construções feitas ao longo do Lago voltou a valer, acrescentando o limite
Paranoá, nos lados Sul e Norte dos 30 metros
2014: Após novo impasse, o texto
do Decreto 24.499 é alterado e há 2015 (abril): No dia 17 de abril, o
suspensão das ações de desocupação TJDFT suspende a decisão.

83
é a “Desocupe a Orla, Ocupe o Lago”,
que lida com questões ambientais e
sociais. “A desocupação é bem rece-
bida por praticamente toda a popula-
ção brasiliense. Isso servirá como uma
demonstração prática aos incrédulos
de que ainda existe espírito público
na nossa sociedade”.
Constrangimento ambiental
Outro problema comum entre
os frequentadores das áreas públicas
da orla é a proibição de acesso por
Residências em condomínio
meio de portões fechados. Por mais do Lago Sul não cumprem a lei
que a QL 12 do Lago Sul, onde ficam de ocupação e invadem a água
o Parque Ecológico Península Sul e o
Parque Vivencial do Anfiteatro Natu-
ral do Lago Sul; a QL 2 do Lago Norte, dessa forma, nunca conseguiremos tal, e os próprios moradores tiveram
onde ficam o Parque de Uso Múltiplo consolidar as medidas de preserva- a palavra para colocar suas principais
do Lago Norte, o Monumento Natural ção”, afirma. preocupações, entre elas a segurança
Dom Bosco, o Parque Ecológico Bos- Ele também refuta algumas ati- e o abandono das áreas após a der-
que, o Parque Ecológico das Garças, tudes que o governo tem tomado em rubada.
a Praia do Lago Norte, Parque dos relação a toda a situação de ocupa- Para quem reside às margens do
Escoteiros (e a área vivencial no SHIS ção irregular da orla. “Aquelas cons- Lago Paranoá, a situação é constran-
QL 14/16 e os refúgios de vida silves- truções sempre foram irregulares e gedora. Sueli Bornhofen, empresária
tre Copaíbas e Garça Branca) sejam não deveriam nem ter sido feitas. Eu e moradora há 15 anos em um con-
consideradas áreas de preservação queria ver se fossem pessoas pobres domínio do Lago Norte, mostra o
ambiental, todos estes locais estão morando ao redor do Lago Paranoá, outro lado da moeda. “Nunca recebi
sendo invadidos por particulares. provavelmente estariam todas as ca- nenhuma notificação oficial explican-
Para o professor Mário Jorge Ca- sas no chão”, lamentou. do a situação ou solicitando a remo-
bral, especialista em Engenharia Am- ção. É complicado, nos veem como
O outro lado
biental, essa situação é lamentável pessoas que estão agindo contra a
e fere os parágrafos da Constituição No início de março deste ano, lei, mas tenho todos os documentos
que asseguram a preservação das diversos moradores do Lago Sul e que provam que a compra do local foi
áreas ambientais. “É um crime. A lei Norte se reuniram na administração legítima e que tínhamos o direito de
9.605 (crimes ambientais) demonstra do Lago Sul, junto a representantes construir em toda a extensão do terri-
claramente. Não só a população, mas do governo, para discutir a situação. tório”. Sobre o decreto que pode limi-
a própria vida selvagem correm sérios Entre vaias e protestos, foi explicado tar a extensão de sua casa, ela é cate-
perigos. Enquanto o homem conti- como seria feita a retirada das irregu- górica: “É uma pena. A minha família
nuar agredindo a nossa fauna e flora laridades ao espelho d’água da capi- está estruturada no local. Pagamos
por um território que pode não ser
mais nosso. Quem irá nos ressarcir?
condomínios exploram O governo? Acho difícil”. Ela também
a orla para construir áreas
de lazer particulares
desabafa: “Temos construções pagas
e liberadas pela fiscalização. Porque
permitiram que nós construíssemos
para agora retirar?”
Com dificuldades em solucionar o
problema que já vem sendo discutido
há anos sobre as ocupações irregu-
lares, o governo do Distrito Federal
estuda projeto que prevê cobrança
redemoinho . ano 06 . número 08

pelo uso ilegal das áreas, que, pode


ser feita por meio de concessão. Ou
seja, os moradores que estiverem
ocupando terrenos públicos vão pa-
gar pela ocupação. Essa cobrança se
for permitida poderá render milhões
aos cofres públicos.

84

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