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MEDITACOES CONCERNENTES A PRIMEIRA FILOSOFIA NAS QUAIS.A EXISTENCIA DE DEUS E A DISTINCAO REAL ENTRE A ALMA EO CORPO DO HOMEM SAO DEMONSTRADAS PRIMERA MEDiTAgAo'> Das Coisas que se Podem Colocar em Divida \. Ha ja algum tempo cu me aper- cebi de que, desde meus primeiros anos, recebera muitas falsas opiniées como verdadeiras, e de que aquilo que depois eu fundei em principios (20 mal assegurados no podia ser senao mui duvidoso e incerto: de modo que me era necessario tentar seriamente. uma vez em minha vida, desfazer-me de sodas as opinides a que até entao dera crédito, ¢ comegar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse esta- belecer algo de firme ¢ de constante gas ciéncias. Mas, parecendo-me ser muito grande essa empresa, aguardei stingir uma idade que fosse tao madu- ra que nao pudesse esperar outra apés cla, na qual ev estivesse mais apto para executa-la: o que me fez diferi-la por (Zo longo tempo que doravante acredi- taria cometer uma falta se empregasse ainda em deliberar 0 tempo que me resta para agir. * 4 primeira Meditagao tem como peculiaridade © fats de nip se tralar af de “estabelecer verdade apenas ile me desfazer desses antigos (Sétimas Resposias,) Sua composigao & 2 weguamte: Al §$1-3:0 principio da duvida hiperbolica: Bi $§3-13: argumentos que estendem ¢ radice- ticam a davida, 4$3); argumento dos eros dos sentidos: (§§4-9): argumento do sonhos &§9-13); argumento que estende a ivida 40 valor objetivo das essén- cias matemAticas, em duas etapas: @ Deus enganador: Génici Maligno. 2. Agora, pois, que meu espirito esta livre de todos os cuidados, ¢ que consegui um repouso assegurado numa Pacifica solidao, aplicar-me-ei seria- mente e com liberdade em destruir em geral todas as minhas antigas opinioes. Ora, nao sera necessario, para aican- gar esse designio, provar que todas elas sao falsas, o que talvez nunca levasse a cabo; mas, uma vez que a razao ja me persuade de que nao devo menos cuidadosamente impedir-me de dar crédito as coisas que nao sao inteira- mente certas e indubii do que as que nos parecem manifestamtente ser falsas, 0 menor motivo de dévida que eu nelas encontrar bastara para me levar a rejeitar todas’ *. E, para isso, nao é necessério que examine cada uma em particular, 0 que seria um Lra- balho infinito; mas. visto que a ruina dos alicerces carrega necessariamente consigo tado o resto do edificio, dedi- car-me-ei inicialmente aos principivs sobre os quais todas as minhas antigas opiniGes estavam apoiadas. 3. Tudo o que recebi, até presente- mente, como o mais verdadeiro e segu- to, aprendi-o dos sentidos ou pelos + A diivida assim posta em agio: a) distinguir-se @ da divida vulgar polo fato de ser ongendrada no por experiéncia, mas por uma decisio; b) seri ri rhélica”, isto €, sistematica ¢ generalizada; ¢) consisura. pois. em iratar como falso o que ¢ apenas duvidoso, como sempre enganadot o que alguma ver me enganou. 34 DESCARTES sentidos: ora, experimentei algumas vezes que esses sentidos eram engano- sos, ¢ é de prudéncia nunca se fiar inteiramente em quem ja nos enganou uma vez" 5. 4. Mas, ainda que os sentidos nos efiganem as vezes, no que se refere as coisas pouco sensiveis e muito distan- tes, encontramos talvez muitas outras, das quais nao se pode razoavelmente duvidar, embora as conhecéssemas por intermédio deles: por exemplo, que eu esteja aqui, sentado junto ao fogo, ves- tido com um chambre, tendo esie papel entre as mos ¢ outras coisas desta natureza. E como poderia eu negar que estas mos € este corpo sejam meus? A nao ser, talvez, que eu me compare e esses insensatos. cujo cérebro esta de tal modo perturbado e ofuscado pelos negros vapores da bile que constante- mente asseguram que sao reis quando sao muito pobres; que est&o vestidos de ouro ¢ de pirpura quando estéo inteiramente nus; ou imaginam ser cantaros ou ter um corpo de vidro. Mas qué? Sao loucos e eu nao seria menos extravagante se me guiasse por seus exemplos, 5. Todavia, devo aqui considerar que sou homem! © e, por conseguinte, que tenho © costume de dormir ¢ de Tepresentar, em meus sonhos, as mes- mas Coisas, ou algumas vezés menos verossimeis, que esses insensatos em vigilia. Quantas vezes ocorreu-me so- nhar, durante a noite, que estava neste ugar. que estava vestido. que estava junto ao fogo, embora estivesse inteira- mente nu dentro de meu Iéito? Parece- me agora que nao é com olhos adorme- cidos que contemplo este papel; que esta cabega que eu mexo nao esta dor- *® Argumento do erra do sentido, primeiro grau da diivida. E insuficiente para nos fazer duvidar siste- thaticamente de nossas percepgdes sertsiveis. ** Aqui comega o argumento do sonho, segundo grau da divide, que ira estendé-la a todo conhesi- ‘mento sensivel, ou pefo menas a seu conteiilo, mente; que & com designio e propdsite deliberado que estendo esta mao ¢ que a sinto: 0 que ocorre no sono nao pare- ce ser tao claro nem tao distinto quan- to tudo isso. Mas, pensando cuidado- samente nisso, lembro-me de ter sido muitas vezes enganado, quando dar , por semelhantes ilusdes. E, deten- do-me neste pensamento, vejo tao manifestamente que nao ha quaisquer indicios concludentes, nem marcas assaz certas por onde se possa distin- guir nitidamente a vigilia do sono, que me sinto inteiramente pasmado: e meu pasmo é tal que € quase capaz de me persuadir de que estou dormindo. 6. Suponhamos, pois, agora, que estamos adormecidos e que todas essas particularidades, a saber. que abrimos os olhos, que mexemos a cabega. que estendemos as mos, € coisas semie- lhantes, nao passam de falsas ilusdes: € pensemos que talvez nossas mos. assim como todo o nosso corpo. 120 sao tais como os vemos. Todavia, ¢ preciso ao menos confessar que as coi. Sas que nos sao representadas durante © sono séo como quadros € pinturas, que nao podem ser formados sendo 4 semelhanga de algo real ¢ verdadeiro: 6 que assim, pelo menos, essas coisas gerais, a saber, othos, cabega, maos © todo o resto do corpo, 120 sao coisas imaginarias, mas verdadeiras ¢ existen- tes. Pois, na verdade, os pintores, mesmo quando se empenham com o maior artificio em representar sereias & satiros por formas estranhas e extraas- dinarias, nZo Ihes podem, todavia, ati buir formas ¢ naturezas inteiramente novas, mas apenas fazem certa mistura € composigao dos membros de diver: SOs animais; ou entao, se porvenrara sua imaginagao for assaz extravagante para inventar algo de tao novo, que iz mais tenhamos visto coisa semelhante. e que assim sua obra nos represente uma coisa puramente ficticia e absolu MEDITAGOES 95 tamente falsa, certamente ao menos as cores com que eles a compéem devem ser verdadeiras. 7. E pela mesma razao, ainda que essas coisas gerais, a saber, olhos, cabega, maos e outras semelhantes, possam ser imaginarias. € preciso, todavia, confessar que ha coisas ainda mais simples e¢ mais umiversais, que sdo verdadeiras e existentes; de cuja mistura, nem mais nem menos do que da mistura de algumas cores verdadei- ras, S40 Tormadas todas essas imagens das coisas que residem em nosso pensamento, quer verdadeiras e reais, quer ficticias e fantasticas. Desse géne- ro de coisas € a natureza corpérea em geral, ¢ sua extensdo; juntamente com a figura das coisas extensas, sua quan- tidade, ou grandeza. e seu niimero; como também © Jugar em que est4o, o tempo que mede sua duragao e€ outras coisas semelhantes' ’. 8. Eis por que, talvez, dai nés nao concluamos mal se dissermos que a Fi- sica, a Astronomia, a Medicina e todas as outras ciéncias dependentes da consideragao das coisas compostas sao muito duvidosas e incertas; mas que a Aritmética. a Geometria e as ou- tras ciéncias desta natureza, que nao iratam senio de coisas muito simples e muito gerais, sem cuidarem muito em se elas existem ou nao na nfatureza, contém alguma coisa de certo e indubi- tavel. Pois, quer eu esteja acordado, quer esteja dormindo, dois mais trés formarao sempre o nimero cinco e o °* © segundo argumento encontra, pois.o seu limi ce: ele nao me permite por em divida as compo- nenles de minhas percepedes, a saber, as "naturezas simples”, indecomponiveis (Mgura, quantidade, es- ago, Lempo), que #40 o abjeto da Matematica. Tais elementos “escapam, contrariamente aos objetos nsiveis. a todas ax raxdes nalurais de duvidar”, sublinba Guéroult, apojando-se no texto da Quinta Meditagio: “A natureza de meu espirito € tal que eu nio me poderia impedir de julga-ias verdadeiras exquanto 4s concebo clara e distintamente”. Dai a necessidade de recorrer ao lerceiro argumento que abalard esta certeza “natural”. quadrado nunca tera mais do que qua- tro lados; € nao parece possivel que verdades tao patentes possam ser sus- Peitas de alguma falsidade ou incerte- Za. 9. Todavia, ha muito que tenho no meu espirito certa opinido'® de que ha um Deus que tudo pode ¢ por quem fui criado e produzido tal como sou. Ora, quem me podera assegurar que esse Deus nao tenha feito com que nao haja nenhuma terra, nenhum céu, nenhum corpo extenso, nenhuma figura, nenhu- ma grandeza, nenhum lugar ¢ que, nao obstante, eu tenha os sentimentos de todas essas coisas ¢ que Ludo isso nao me parega existir de maneira diferente daquela que eu vejo? E, mesmo, como. julgo que algumus vezes os outros se enganam até nas coisas que eles acre- ditam saber com maior certeza, pode ocorrer que Deus tenha desejado que eu me engane todas as vezes em que fago a adigfo de dois mais trés, ou em que enumero os tados de um quadrado, ou em que juigo alguma coisa ainda mais facil, se € que se pode imaginar algo mais facil do que isso. Mas pode ser que Deus nao tenha querido que eu seja decepcionado desta maneira, pois ele é considerado soberanamente bom. Todavia. se repugnasse 4 sua bondade fazer-me de tal modo que eu me enga- Masse sempre, pareceria também ser- the contrario permitir que eu me enga- ne algumas vezes ¢, no entanto, nao posse duvidar de que cle mo permi- tate. 10. Havera talvez aqui pessoas que preferirao negar a existéncia de um Deus tao poderoso a acreditar que 2 Essa “opiniao” € sustentada pelos tedlogos das, Segundas Objecdes: Deus, dada sua onipotencis, peale nos enganar, Nao ¢ 9 parecer de Descartes: 0 engano em Deus constituiria nao sé um sinal de malignidade, mas de aao-ser. (Col. com Burman.) Isso redunda em afirmar 0 valor tio-somente meto- doligico dessa suposigao antinatural. >? A consideragao da bondade, por si si, niio-basta pura invalidar «suposigao. Cf. a nola precedente 96 DESCARTES todas as outras coisas séo incertas. Mas no thes resistamos no momento ¢ suponhamos, em favor deltas, que tudo quanto aqui é dito de um Deus seja uma fabula. Todavia, de qualquer maneira que suponham ter eu chegado a0 estado € a0 ser que possuc, quer o atribuam a algum destino ou fatali- dade, quer © refiram ao acaso, quer queiram que isto ocorra por uma conti- fua série e conexao das coisas, é certo que, j@ que falhar ¢ enganar-se é uma espécie de imperfeigao, quanto menos poderoso for o autor a que atribuirem minha origem tanto mais sera provavel que eu seja de tal modo imperfeito que me engane sempre. Razdes as quais nada tenho a responder, mas sou obri gado a confessar que, de todas as opi: nides que recebi outrera em minha ctenga como verdadeiras, nao ha ne- nhuma da qual nao pessa duvidar atualmente, nado por alguma inconside- ra¢ao ou leviandade, mas por razdes muito fortes ¢ maduramente considera- das: de sorte que é aecessdrio que interrompa e suspenda doravante meu juizo sobre tais pensamentos, e¢ que nao mais thes dé crédito, como faria com as coisas que me parecem eviden- temente falsas, se desejo encontrar algo de conslante e de seguro nas ciéncias?®. Il. Mas nao basta ter feito tais consideragdes, é preciso ainda que cuide de lembrar-me delas; pois essas antigas € ordinarias opinides ainda me yoltam amitide ao pensamento, dan- do-lhes a longa ¢ familiar convivéncia que tiveram comigo o direito de ocu- par meu espirito mau grado meu € de tormarem-se quase que sethoras de minha crenga. E jamais perderei 0 cos- tume de aquiescer a isso e de confiar nelas, enquantO as considerar como sao efetivamente, ou seja, como duvi- 28 A divide é agora universalizeda. dosas de alguma maneira, como aca- bamos de mostrar, e todavia muito Pprovaveis, de sorte que se tem muito mais razao em acreditar nelas do que em nega-las. Eis por que penso que me utilizarei delas mais prudentemente se, tomando partido contrario, empregar todes os meus cuidados em enganar- me a mim mesmo, fingindo que todos esses pensamentos sao falsos ¢ imagi- narios; até que, tendo de tal modo sopesado meus prejuizos, eles nao pos- sam inclinar minha opiniao mais para um lado do que para o outro, € meu juizo nfo mais séeja doravante domi- nado por maus usos ¢ desviado do reto caminho que pode conduzi-lo av co- mhecimento da verdade. Pois estou se- guro de que, apesar disso, nao pode haver perigo nem erro nesta via e de que nao poderia hoje aceder dema- siado 4 minha desconfianga, posto que nao se trata no momento de agir, mas somente de meditar ¢ de conhecer. 12. Suporei, pois, que hé nao um verdadeiro Deus, que é a soberana fonte da yerdade, mas certo génio maligno?’, nao menos ardiloso e enga- nador do que poderoso, que empregou toda a sua inddstria em enganar-me. Pensarei que o céu, 0 ar, a terra, aS cores, as figuras, os sons € todas as coisas exteriores que vemos sao apenas ilusGes e enganas de que ele se serve para surpreender minha credulidade. Considerar-me-ci a mim mesmo abso- lutamente desprovido de mias, de olhos, de carne, de sangue. desprovido de quaisquer sentidos, mas dotado da falsa crenga de ter todas essas coisas. Permanecerei obstinadamente apegado a @sse pehsamento; ¢ se, por esse meio, 2" A fungio'do Deus enganador ¢ do Génio Mali no € a.mesma: porém © Génio Maligno € um artifi: i pressionando mais a minha 8 tomar a diivida mais 4 sérig ea inscrevé-la melhor em minha memoria (" precise ainda que cuide de tembrar-me dela), MEDITACOES a nao esté em meu poder chegar ao conhecimento de qualquer verdade, ao menos esta a0 meu alcance suspender meu juizo. Bis por que cuidarei zelosa- mente de nao receber em minha crenga cenhuma falsidade, e prepararei tao bem meu espirito a todos os ardis. desse grande enganador que, por pode- roso € ardiloso que seja, nunca podera impor-me algo. 13. Mas esse designio é 4rduo e trabaihoso?? ¢ certa preguig¢a arrasta- me insensivelmente para o ritmo de minha vida ordinaria. E, assim como um escravo que gozava de uma liber- dade imaginaria, quando comega a suspeitar de que sua liberdade € apenas um sonho, teme ser despertado ¢ cons- pira com essas ilusdes agradaveis para ser mais longamente enganado, assim eu reincido insensivelmente por mim mesmo em minhas antigas opinides e evito despertar dessa sonoléncia, de medo de que as vigilias laboriosas que se sucederiam 4 tranqiilidade de tal repouso, em vez de me propiciarem al- guma luz ou alguma clareza no conhe- cimento da verdade, nao fossem sufi- cientes para esclarecer as trevas das dificuldades que acabam de ser agita- das. 22 Esta insisténcia na dificuldade de exercer uma diivida to radical nao é enfatiea, quanto mais a da- vida for vivida como radical, mais as certezas que se impuserem, em seguida. se apresentario como inabalaveis. Tomar a divida levianamente ¢ expor- se a nada compreender da seqiléncia das Medita sdes. A este propisito, cf. 203, — “Nio ha erro mais grave”. diz Alain, “do que julgar que esta dii- vida € fingida. Nio 4 também erro mais comum, Porque poucos homens jogam este jogo seriamen- te" MepITAGAO SEGuNDA2? Da Natureza do Espirito Humano; e de como Ele ¢ Mais Facil de Conhecer do que o Corpo 1. A Meditagdo que fiz ontem en- cheu-me o espirito de tantas dividas, que doravante nao esta mais em meu alcance esquecé-las. E, no entanto, nao vejo de que maneira poderia resolve- las; e, como se de sUbito tivesse caido em aguas muito profundas. estou de tal modo surpreso qué nao posso nem fir- mar meus pés no fundo, nem nadar para me manter a tona. Esforcar-_me-ei, nao obstante, ¢ seguirei novamente a mesma via que trilhei ontem, afastan- do-me de tudo em que poderia imagi- nar a menor davida. da mesma manei- ra como se eu soubesse que istd fosse absolutamente falso; e continuarei sempre nesse caminho até que tenha encontrado algo de certo, ou. pelo menos, s¢ outra coisa nao me for possi- 21 Plano da Meditagio: A) §§4-9: da naiurera do espirito huma- = conquists ds primeira certeza: {§§1-3}: procura de ama primeira cerjeza: (§4):""Eu sou, eu exista”: §§5-9: reflexao sobre esta primeira certe ‘zae conquista da segunda: (G§ 5-8): quem sou eu, cu que estan. certo que sou? Uma coisa pensante. Determinagin da essén- ciado Eu (89); desctigiio da “coisa pensante” © distingio entre © pensamento {atriburo. principal dests substan cia} é suas outras faculdades, B) §910-18: ...¢ de camo ele & mais facil de conhecer do que 0 corpo: ‘Contraprova da segunda certeza ( pe dago de cera) 2 canquista da. terceira cortez. vel, até que tenha aprendido certa- mente que nao ha nada no mundo de certo. 2. Arquimedes, para tirar o globo. terrestre de sev lugar e transporta-lo para outra parte, nao pedia nada mais exceto um ponto que fosse fixo € segu~ ro. Assim, terei o direito de conceber altas esperangas, se for bastante feliz para encontrar somente uma coisa que seja certa ¢ indubitavel? +. 3. Suponho, portanto, que todas as coisas que vejo sao falsas; persuado- me de que jamais existiu de tudo quan- to minha memoria referta de mentiras Me representa: penso nao possuir ne- nhum sentido; creio que o corpo. a figura, a extensio, o movimento e o lugar sao apenas ficgdes de meu espiri to, O que poder, pois, ser considerado verdadeiro? Talvez nenhuma outra coisa a nao ser que nada ha no mundo de certo, 4 4, Mas que sei eu. se nado ha nenhu- ma outra coisa diferente das que acabo de julgar incertas, da qual nao se possa ter a menor divida? Nao havera algum Deus, ou alguma outra poténcia, que me ponha no espirito tais pensamen- jos? Isso nao € necessario; pois talvez seja cu capaz de produzi-los por mim mesmo. Eu entao, pele menos, nao serei alguma coisa? Mas ja neguei que 24 A primeira venteza adquirida nao seri. pois, 9 mais alta; deve apenas inaugurar a cadeia das razdes. 100 tivesse qualquer sentido ou qualquer corpo. Hesito no entanto, pois que se segue dai? Serei de tal modo depen- dente do corpo e dos sentidos que nao possa existir sem eles? Mas eu me per- suadi de que nada existia no mundo, que nao havia nenhum céu, nenhuma terra, éspiritos alguns, nem corpos alguns: nao me persuadi também, por- tanto, de que eu nao existia? °? Certa- mente nao, eu existia sem divida, se € que eu me persuadi, ou. apenas. pensei alguma coisa. Mas ha algum, nao sei qual, enganador mui poderoso e mui ardiloso que emprega toda a sua indis- tria em enganar-me sempre. Nao ha. pois, diivida alguma de que sou, se cle me engana; &, por mais que me engane, nado podera jamais fazer com que eu nada seja. enquanto cu pensar ser algu- ma coisa? ®, De sorte que, apés ter pen- sado bastante nisto e de ter examinado cuidadosamente todas as coisas, cum- pre enfim concluir € ter por constante que esta proposigao, ex sou, eu existo, & necessariamente verdadeira todas as ¥% Retomemos o racigcinio. No ponto em que exlou, nao poderia eu (er a cettezs da existencia de “algum Dens! Nao. nada o exige (© um dos principios ds andlise dos geimeiras ¢ 0 de néo temiontar s uma verdade superior aquela com que ei invocar a certeza de minha existéncia como individuo. sujeito concreio? Nao. nada 0 permite, vivio que pus em divida a exi ‘éncia de tudo 0 que ha "no mundo”... Mas cuida do! A “hesitagio” aqui é ditada pelo medo de ama confusao: fel 4 regra da chivida, nfo tenho motive de abrir excegao em favor do bomem concrete que spu; mas, aquém deste, ha algo que ira resistir & d6- vida. & doravante » Eu nav sera mais este Eu de chambre ¢ so pé do fogo que a Primeita Meditagao evocava (como indica Goldschmidt, Congresso Descartes de Royaumont, pag. $3). 3 Essa frase evidencia bem o papel do “Grande Embusiziro”; impor a meus pensamentos uma prova de tal ordem que aquele que Ihe resistit seja, quando ndo garantidy como verdadeira (é impos sive! antes da prova da existincin de Deus), pelo menos revebido come certo. Se nao fasse arrancado, extorquide ao Génio Maligno. o Cogito nao passa ris de ums banalidade. Sobre a origimalidade do Cogito, cf. 0 fim do opiscule de Pascal: De! Esprit Géométrique. DESCARTES vezes que a enuncio ou que a concebo em meu espirito? *, 5. Mas nao conhego ainda bastante claramente © que sou, eu que estou certo de que sou; de sorte que dora- vante é preciso que eu atente com todo cuidado, para nao tomar imprudente- mente alguma outra coisa por mim, € assim para nao equivocar-me neste conhecimento que afirmo ser mais certo e mais evidente do que todos os que tive até agora?*, 6. Eis por que considerarei de novo 0 qué acreditava ser, antes de me empenhar nestes tiltimos pensamentos; e de minhas antigas opinides suprimi- rei tudo o que pode ser combatido pelas razdes que aleguei ha pauco, de sorte que pefmane¢a apenas precisa- mente o que é de todo indubitavel. O que, pois, acreditava eu ser até aqui? Sem dificuldade, pensei que era um homem. Mas que ¢ um homem? Direi que é um animal racional? Certamente nao: pois seria necessario em scguida pesquisar o que é animal e o que é racional e assim, de uma sO questao, cairiamos insensivelmente numa infini- dade de outras mais dificeis ¢ embara- gosas, € cu nao quereria abusar do pouco tempo e lazer que me resta empregando-o em deslindar seme: 2? O fim da frase indica que ela 96 € verdadcira cada vez que penso nele aruatmente. £ também uma iransigao, pois permitira responder a pergunta que agora bavera de colocar-se: qual é 2 natureza deste Eu-existente que acabo de afirmar? 2* Bu nao conheco, ainda, o. contetido desta exis- téncia que acabo de afirmar. Import, pois, encon: triclo pela exclusiva andlise dos dados do problema, isto¥é. por determinagio. tevando em conta tudo > gue € dado, mas exclyindo tudo o que néo 0 & (a referéncia 4 Regra X1i ¢ aqui indispensave!). Notar 4 frase “€ preciso que'eu atente com todo euidado para no tomar imprudentemente alguma outra coisa por mim”, que seria absurde no plano da Pst cologia ¢ que se justifica apenas au nivel de una At zebra das nogdes, comparavel a “Algebra dos comprimentos” das Regula. MEDITACOES thantes sutilezas?*. Mas, antes, deter- me-ei em considerar aqui os pensa- mentos que anteriormente nasciam por si Mesmos em meu espirito ¢ que eram inspirados apenas por minha natureza, quando me aplicava & consideragdo de meu ser. Considerava-me, _ inicial- mente, como provido de rosto, maos, bragos e toda essa maquina composta de ossos € care, tal como ela aparece em um cadaver, a qual eu designava pelo nome de corpo. Considerava, além disso, que me alimentava, que caminhava, qué sentia e que pensava e relacionava todas essas agdes A alma3°; mas néo me detinha em pen- sar em que consistia essa alma, ou, se © fazia, imaginava que era algo extre- mamente raro € sutil, como um vento, uma flama ou um ar muito ténue, que estava insinuado ¢ disseminado nas minhas partes mais grosseiras. No que se referia ao corpo, nao duvidava de maneira alguma de sua natureza; pois pensdva conhecé-ta mui distintamente €, se quisesse explicd-la segundo as nogées que dela tinha, té-la-ia descrito desta maneira: por corpo entendo tudo @ que pode ser limitado por alguma figura; que pode ser compreendido em qualquer lugar e preencher um espaco de tal sorte que todo outro corpo dele seja excluido; que pode ser sentido ou pelo tato, ou pela visio, ou pela audi- ao, ou pelo olfato; que pode ser movi- do de muitas maneiras, nao por si mesmo, mas por algo de alheio pelo #1 Sobre este método de determinagio do pro- blema por segregaglo, ef. o didlogo: Recherche de fa Vérvé (Pleiade, pays. 892-94). Ao interlocutor smurdido que acaba de responder: “Diria. portanto, que sou um hamem”, o cartesiano replica: "Ndo prestals alencdo ao que perguntel ¢ a tesposta que apresemiais, embora vos pareca simples, Jangar- yos-ia em questées muito arduas e muito cmbarago- 45,8 eu quisesse aperti-las por menos que seja.. 2p eatendestes bem a minha pergunta ¢ respandeis & mais coisas da que vos perguntei... Dizei-me, pois, 0 que sois propriamente. na medida em que tuvidats” >” CF. Respostas, $08, 101 qual seja tocado e do qual receba a impressdo. Pois nao acreditava de modo algum que se devesse atribuir a natureza corpérea vantagens como ter de si 0 poder de mover-se, de sentir e de pensar; a0 contrario, espantava-me antes ao ver que semethantes faculda- des se encontravam em certos cor- pos?! 7. Mas eu, o que sou eu, agora que suponho?? que ha alguém que é extre- mamente poderoso e, se ouso dizé-lo, malicioso e ardiloso, que emprega todas as suas forgas e toda a sua indis- tria em enganar-me? Posso estar certo de possuir a menor de todas as coisas que atribui ha pouco a natureza corpé- rea? Detenho-me em pensar nisto com atengao, passo ¢ repasso todas essas coisas em meu espirito, ¢ nao encontra nenhuma que possa dizer que exista em mim. Nao é necessario que me de- more a enumerd-las, Passemos, pois, aos aiributos da alma e vejamos se ha alguns que existam em mim. Os pri- meiros sao alimentar-me ¢ caminhar; mas, se € verdade que nao possuo corpo algum, é verdade também que nZo posso nem caminhar nem alimen- tar-me. Um outro é sentir; mas nao se pode também sentir sem o corpo; além do que, pensei sentir outrora muitas coisas, durante 0 sono, as quais reco- nheci, ao despertar, nao ter sentido efetivamente. Um outro é pensar; ¢ verifico aqui que o pensamento é um atributo que me pertence; s6 ele nao $* Este conhecimento “natural” que eu tenho de mim mesmo antes da prova da divida sera inteira- mente (also? Nao. Se 8 alma é concebida & maneira dos escolasticos, em troca a distingfio entre 0 corpo € 0 espirito {indispensavel a Fisica) esta ai presente, mas a tito de opiniao provavel, sem fundamento. CE. Respostas, 204. >2 Mudanga de plano, Do pensamento inspirado por “minha natureza” passamos 4 sd idéia de mim Tmesmo compativel com a instauragao da divida, da indeterminagao psicolégica a detcrminagao metali- sica. 102 pode ser separado de mim. Eu sou, eu existo: isto € certo; mas por quanto tempo? A saber, por todo o tempo em que eu penso??; pois poderia, talvez, ocorrer que. sé eu deixasse de pensar, deixaria a0 mesmo tempo de ser ou de existir. Nada admito agora que nao seja necessariamente verdadeiro: nada sou, pois. falando precisamente. senio uma coisa que pensa, isto é, um espiri- to, um entendimento ou uma razao, que sao termos cuja significagao me era anteriormente?* —desconhecida. Ora, eu sou uma coisa verdadeira € verdadeiramente existente; mas que coisa? Ja o disse: uma coisa que pensa. E que mais? Excitarei ainda minha imaginagdo para procurar saber se nao sou algo mais. Eu nao sou essa reuniao de membros que se chama o corpo humano; nao sou um ar ténue ¢ pene- trante. disseminado por todos esses membros: no sou um vento, um sopro, um vapor, nem algo que posso fingir € imaginar, posto que supus que tudo isso nao cra nada e que, sem mudar. essa suposigao, verifico que no deixo de estar seguro de que sou algu- ma coisa 3 §. &. Mas também pode ocorrer que essas Mesmas coisas, que suponho nao. 29 Batre todas a§ faculdades: 1) da. corpo — 2) du alma, uma 95, 0 pensamento, resiste & exctusto. Vemnos aqui a importancia do fim do § 4: “Esta Proposic¢ao — €u sou, eu existo — € necessaria mente verdadeira sempre que cu a pronuncio au que au a concebo em meu espirito”. E ao refletir sobre esta inseparabilidade — inico dado que se encontra em minha posse — que obtenho inediatamente a nalureza “daguilo gue sou”. Trata-se da primeira verdade du cadeia de razées 3¢ “Anteriormente”, isto ¢, nO plino em que nos solocava o pardgrafo precedente, eu podia proferit estas palavras. mas sem thes ter determinada o sen- Lido, portanto sem conhecé-o, 2 Sobre w lim desse paragrafo, ef: 50S ¢ segs. N5o ha necessidade alguma de ir procurar em autre Parte uma resposta, visto que deé 4 linica resposta que respeitava os dados do problema: “Eu sou ura, ois que pensa”. Mas “o homem natural” sente-se lentado a recorrer it imaginagao a fim de completar esta resposta. Ha nisso uma inclinagZo que 0 para grafo seguince ira desenraizar DESCARTES existirem, j4 que me sao desconhe- cidas, nado sejam efetivamente diferen- tes de mim, que ev conhego? Nada sei a respeito; nao o discuto atualmente, nao posso dar meu juizo senao a coisas que me sao conhecidas: reconheci que eu era, € procure © que sou, cu que reconheci ser. Ora, é muito certo que essa nogao e conhecimento de mim mesmo, assim precisamente tomada, nao depende em nada das coisas cuja existéncia ndo me é ainda conheci- da?®; nem, por conseguinte, ¢ com mais razio de nenhuma daquelas que sao fingidas e inventadas pela imagina- go. E mesmo esses termos fingir Imaginar advertem-me de meu erro; pois cu fingiria efetivamente se imagi- nasse ser alguma coisa, posto que ima- ginar nada mais é do que contemplar a figura ou a imagem de uma coisa cor- poral. Ora, sei ja certamente que eu Sou, € que, ao mesmo tempo, pode ocorrer que todas essas imagens e, em geral, todas as coisas que se relacio- nam 4 natureza do corpo sejam apenas sonhos ou quimeras. Em seguimento disso, vejo claramente que teria tao Pouca raz4o ao dizer: excitarei minha imaginagao para conhecer mais distin- tamente o que sou, como se dissesse: estou atualmente acordado e percebo algo de real e de verdadeiro; mas, visto que nao 0 percebo ainda assaz nitida- mente, dormiria intencionalmente a fim de que meus sonhos mo represen- tassem com maior verdade e evidéncia. E, assim, reconhecgo certamente que nada, de tudo o que posso com- preender por meio da imaginagao, per- tence a este conhecimento que tenho de mim mesmo ¢ que é necessario Jembrar ** © contraditor que retorquisse haver talvex em mim alguma outra faculdade descanhecida situar- ‘e-ia no plano da Psicologia ¢ nao das raxies meta- fisicas. Um dos principios da andlise ¢ que azo tenho © direito de argiiir propriedades ainda desco- nhecidas para combater as que se acham agora estabelecidas. MEDITAGOES ¢ desviar o espirito dessa maneira de conceber a fim de que ele préprio possa reconhecer muito distintamente, sua natureza> ”. 9. Mas o que sou eu, portanto? Uma coisa que pensa. Que é uma coisa que pensa? E uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que nao quer, que imagina tam- bém e que sente?*. Certamente nao é pouco se todas essas coisas pertencem 4 minha natureza. Mas por que nao the pertenceriam? N&o sou eu préprio esse mesmo que duvida de quase tudo, que. no entanto, entende e concebe certas coisas, que assegura e afirma que somente tais coisas sao verdadeiras, que nega todas as demais. que quer e deseja conhecé-las mais, que nao quer ser enganado, que imagina muitas coi- sas, Mesmo mau grado seu, ¢ que sente também muitas como que por inter- médio dos érgaos do corpo? Havera algo em tudo isso que nao seja tao ver- dadeiro quanto é certo que sou e que existo, mesmo se dormisse sempre e ainda quando aquele que me deu a existéncia se servisse de todas as suas forcas para enganar-me? Havera, tam- bém, algum desses atributos que possa ser distinguido de meu pensamento, ou que se possa dizer que existe separado >> Em virtude desse principio, nia me € dado abso- jutamente © direita de recorrer 4 imuginagéo, pois “tudo quanto posso compreender por seu meio” for excluido pela divida. Por ai eu sei, a0 mesmo tempo, que minha natureza é puro pensamento exclusive de (oda elemento corporal, & a segunda verdade, a qual nao se deve confundir com a distin- io real entre alma e 0 corpo. estabelecida somen- fe na Meditagiv Sexta CF. 510. 7* Cumpre observar a diferenga relativamente it definigao do § 7: “Isto é, um espirito, ur entendi- mento ou ums razéo”. Ai determinava-sc u evséncia a substineta “coisa pensante”; aqui ela é deserita cevestida de seus diferentes modos. Desse novo posto de vista, reintegra-se na “coisa pensante” o jue fora excluido de sua esséncia. Todos esses modos (imaginar, sentir, querer), embara no per- tengam & minha natureza, néo podem ser postos em Sivida, na medida ein que se beneficiam da certeza $0 Cogito. 103 de mim mesmo? Pois é por si tao evi- dente que sou eu quem duvida, quem entende e quem deseja que nao é neces- sario nada acrescentar aqui para exp! calo. E tenho também certamente 0 poder de imaginar; pois, ainda que Ppossa ocorrer (como supus anterior- mente) que as coisas que imagino nao sejam verdadeiras, este poder de imagi- far ‘nao deixa, no entanto, de existir realmente em mim e faz parte do meu pensamento. Enfim, sou 0 mesmo que sente, isto €, que recebe e conhece as coisas como que pelos érgaos dos sen- tidos, posto que, com efeito, vejo a luz, ougo © ruido, sinto 0 calor. Mas dir- me-A0 que essas aparéncias sao falsas que cu durmo. Que assim seja: toda- via,.ao menos, é muito certo que me parece que vejo, que ougo € que me aquego; © & propriamente aquilo que em mim se chama sentir e isto, tomado assim precisamente, nada é senao pen- sar. Donde, comeco a conhecer o que sou, com um pouco mais de luz e de distingao do que anteriormente?®. 10. Mas nZo me posso impedir de crer que as coisas corpéreas*°, cujas imagens se formam pelo meu pensa- mento, € que se apresentam aos senti dos, sejam mais distintamente conheci- das do que essa nao sei que parte de mim mesmo que nao se apresenta @ imaginagao: embora, com efeito, seja uma coisa bastante estranha que coisas que considero duvidosas e distantes sejam mais claras ¢ mais facilmente conhecidas por mim do que aquelas 29 A saber, um pensamenta: a) distimo dos corpos, se 05 houver; b) distinta das faculdades nao propria- meme intelectuais, como a imaginagao, que sO me pertencem porque implicam este pensamento puro. 49 Novo assalto de pensamento imaginative ine renite a "minha nguuceza” e de qual no passo ainda me desprender: estou convencido, mas no persua~ dido. Dai a necessidade de uma contraprova gue servird para estabelecer a terceire verdade. Como todas as figuras de retérica das Meditagdes, esia integra-se na ordem, 104 que sao verdadeiras e certas e que per- tencem a minha propria natureza. Mas vejo bem o que seja: meu espirito apraz-se em extraviar-se ¢ nao pode ainda conter-se nos justos limites da verdade. Soltemos-the, pois, ainda uma vez, as rédeas a fim de que, vindo, em seguida, a libertar-se delas suave ¢ oportunamente, possamos mais facil mente domina-{o e conduzi-lo**. 11. Comecemos pela consideragio das coisas mais comuns e que acredi- tamos compreender mais distinta- mente, a saber, Os corpos que tocamos e que yemos. Nao pretendo falar dos corpos em geral, pois essas nogdes ge- rais séo ordinariamente mais confusas, porém de qualquer corpo em particu lar. Tomemos, por exemplo, este peda- go de cera que acaba de ser tirado da colmeia: ele ndo perdeu ainda a dogura do mel que continha, retém ainda algo do odor das flores de que foj recolhida; sua cor, sua figura, sua grandeza, sao patentes; é duro, é frio, tocamo-lo e, se nele batermos, produzira algum som. Enfim, todas as coisas que podem distintamente fazer conhecer um corpo enconiram-se neste. 12. Mas eis que, enquanto falo, é aproximado do fogo: o que nele resta- va de sabor exala-se, o odor se esvai, sua cor se modifica, sua figura se alte- Fa, Sua grandeza aumenta, ele toma-se Hiquido, esquenta-se, mal o podemos tocar ¢, embora nele batamos, nenhum som produziraé. A mesma cera perma- nece apds essa modificagao? Cumpre confessar que permanece: é ninguém o pode negar. O que é, pois, que se conhecia deste pedago de cera com tanta distingao? Certamente nao pode ser nada de tudo o que notei nela por intermédio dos sentidos, posto que ++ Em outros termos: fagamos de conta que inter- rompemos.a ordem a-fim de seguir o senso commun emt seu proprio terreno. Sabre o fato de ser esta ransgressao apentas aparente, cf. o importantissimo § 515 das Respostas DESCARTES todas as coisas que se apresentavam ao paladar, ao olfato, ou a visao, ou ao tato, ou a audigao, encontram-se mu- dadas e, no entanto, a mesma cera per- manece, Talvez fosse como penso atualmente, a saber. que a cera nao era nem essa dogura do mel, nem esse agradavel odor das flores, nem essa brancura, nem essa figura, nem esse som, mas somenle um corpo que um pouco antes me aparecia sob certas formas e que agora se faz notar sob outras. Mas o que sera, falando preci- samente, que eu imagina quando a concebo dessa mianeita? Considere- mo-lo atentamente e, afastando todas as coisas que nao pertencem a cera, vejamos o que resta. Certamente nada permanece sendo algo de extenso, flexi- vel e mutavel. Ora, o que é isto: flexi- vel © mutavel? Nao estou imaginando que esta cera, sendo redonda, é capaz de se tormar quadrada e de passar do quadrado a uma figura triangular? Certamente nao, nao é isso, posto que a concebo capaz de receber uma infini- dade de modificagées similares e eu nao poderia, no entanto, percorrer essa infinidade com minha imaginagao e, por conseguinte, essa concepgao que tenho da cera nao se realize através da minha faculdade de imaginar *?, 13. E, agora, que € essa extensao? Nao sera ela igualmente desconhecida, j4 que na cera que sé funde ela aumen- ta e fica ainda maior quando esta intei- ramente fundida ¢ muito mais ainda quando o calor aumenta? E eu nao conceberia claramente € segundo a ver- dade o que é a cera, se nao pensasse que € capaz de receber mais variedades 4? Raciocinio em duas partes: I.° o que me permite reconhecer a mesma cera é sua identidade na medi da em que # cera é coisa extensa; 2,° mas este con- tetido 86 pode ser idéia ¢ nao imagem da extensao que © corpo ocups atualmente ou daquetas (em a mero finito) que poderia ocupar em seguida. CT. Quintas Resposias: “As faculdudes de entender ¢ de imaginar diferem ndo 56 segundo o mais € 0 menos, porém como duas maneiras de agir totalmente diferentes”. MEDITACOES 105 segundo a extensao do que jamais ima- ginei, E preciso, pois, que eu concorde que nao poderia mesmo conceber pela imaginagao o que é essa cera e que somente meu entendimento € quem o concebe*?; digo este pedago de cera em particular, pois para a cera em geral € ainda mais evidente, Ora, qual @ esta cera que nao pode ser concebida senZo pelo entendimento ou pelo espi- rito? Certamente é a mesma que vejo, que taco, que imagino € a mesma que conhecia desde o comego. Mas o que é de notar € que sua percepgao, ou a agao pela qual € percebida, nao é uma visio, nem um tatear, nem uma imagi- nagao, ¢ jamais o foi, embora assim o parecesse anteriormente, mas somente uma inspecdo do espirito, que pode ser imperfeita © confusa, como era antes, ou clara é distinta, como € presente- mente, conforme minha atengao se di- rija mais ou menos as coisas que exis- tem nelae das quais € composta. (4. Entretanto, eu nao poderia es: pantar-me demasiado ao considerar o quanto meu espirito tem de fraqueza e de pendor que @ leva insensivelmente ao erro. Pois, ainda que sem falar eu considere tudo isso em mim mesmo, as palavras detém-me, todavia. e€ sou quase enganado pelos termos da lin- guagem comum; pois nds dizemos que vemos a mesma cera, se no-la apresen- lam, e naa que julgamos que é a mesma, pelo fato de ter a mesma cor e a mesma figura: donde desejaria quase concluir que se conhece a cera pela visao dos olhos e nao pela tao-so ins- pegao do espisito, se por acaso nao olhasse pela janela homens que pas- sam pela rua, a vista dos quais nao deixo de dizer que vejo homens da mesma maneira que digo que vejo a cera; €, entretanto, que vejo desta jane- +3 Par onde fice provado nao s que a imaginayao alo pode me dar a conhecer a natureze dos corpos que s¢ Ihe apresentam (© que cra o objetivo da contraprova), mas ainda que o pensamento pura € 0 Unico canaz de fazé-to. la, sendo chapéus e casacos que podem cobrir espectros ou homens ficticios que sé movem apenas por molas? Mas julgo que sao homens verdadeiros ¢ assim compreendo, somente pelo poder de julgar que reside em meu espirito, aquilo que acreditava ver com meus alhos. 15. Um homem que procura elevar seu conhecimento para além do comum deve envergonhar-se de apro- veitar ocasides para duvidar das for- mas ¢ dos termos do falar do vulgo; prefiro passar adiante ¢ considerar se eu concebia com maior evidéncia € perfeigdo 0 que era a cera, quando a percebi inicialmente e acreditei conhe- cé-la por meio dos sentidos exteriores, ou ao menos por meio” do senso comum, como o chamam, isto é, por meio do poder imaginativo. do que a concebo présentemente, apds haver examinado mais exatamente o que ela é e de que maneira pode ser conhecida. Por certo, seria ridiculo colocar isso em divida, Pois, que havia nessa pri- meira percepg¢ao que fosse distinto e evidente e que nao pudesse cair da mesma maneira sob os sentidos do menor dos animais? Mas quando dis- tingo a cera de suas formas exteriores €, como se a tivesse despido de suas yestimentas, considero-a inteiramente nua**. € cerio que, embora se possa ainda encontrar algum erro em meu juizo. néo a posso conceber dessa forma sem um espirito humano * ®. ** CE 513, onde Descanes se defende de ter. pre- tendido “abstrair » conceito da cera de seus aciden- tes” “Os. atidentes séo contingentes em celagio & substéncia, mas nio a acidentatidade”. especifica Guérouk, (Descartes, 1. pig. $6.) ** Tal € 0 sentido exato do “pedago de cera’: eu nada posso conhecer através da percepeao ou da imaginagao sem compreender (ou reconhecer), ara- vés do pensamento, # esséncia da coisa. Tenho ou niio razio de reconhecer esfa exséncia? Nao sei ainda, Pois niio se trata aqui de saber se eu dispo- tiho efétivamente do conhecimento da esséncia do corpo. Mas de saber em quais condigies posso estar seguro de possuir a idéia clara € distinta desce corpo. Cf. Guéroult, op. cit. pigs. 144-45, 106 16, Mas, enfim, que direi desse espi- Fito, isto é, de mim mesmo * ®? Pois até aqui nao admiti em mim nada além de um espirito. Que declararei, digo, de mim, que parego conceber com tanta nitidez e-distingao este pedago de cera? Nao me conhecgo a mim mesmo nao sé com muito mais verdade ¢ certeza, mas também com muito maior distingao e nitidez? Pois, se julgo que a cera é ou existe pelo fato de eu a ver, sem divida. segue-se bem mais evidentemente que eu proprio sou, ou que existo pelo fato de eu a ver. Pois pode acontecer que aquilo que eu vejo nfo seja, de fato, cera; pode também dar-se que eu-ndo tenba olhos para ver coisa alguma: mas nao pode ocorrer, quando vejo ou (coisa gue nao mais distingo) quando. Penso ver, que eu, que penso, no seja alguma coisa. Do mesmo modo, se Julgo que a cera existe, pelo fato de que a toco, seguir-se-A ainda a mesma coisa, Ou seja, que eu sou: € se 0 julgo porque minha imaginacio disso me persuade. Ou por qualquer outra causa que seja. concluirei sempre a mesma coisa. E o que notei aqui a respeito da cera pode aplicar-se a todas as outras coisas que me sao exteriores ¢ que se encontram fora de mim, 17. Ora, se a nogao ou conheci- mento da cera parece ser mais nitido e mais distinto apds ter sido descoberto nao somente pela visio ou pelo tato, mas ainda por muitas outras causas, com quao maior evidéncia. distingdo ¢ 4* Passamos, com este) pardgrafo, & confirmagio da segunda verdade: quando percebo 0 pedago de cera, seja compreendenda clara c distintamente sua natureza, seja apenas imaginanido-o ou 1ocando-0, 56 uma coisa é certa, no ponte em yue me cncontro. E que eu penso percebé-lo.... Mostrando due este “pensamento” eta indispensdvel a0 conhecimento ds coisa, a analise precedente dev confirmagiio « esta verdude, DESCARTES nitidez nao deverei eu conhecer-me* 7, posto que todas as razGes que servem para conhecer ¢ conceber a natureza da cera, ou qualquer outro corpo, pro- vam muito mais facil e evidentemente a Matureza de meu espirito? E encon- tram-se ainda tantas outras coisas no proprio espirito que podem contribuir ao esclarecimento de sua natureza, que aquelas que dependem do corpo (como esta) Nao merecem quase ser enumera- das. 18. Mas, enfim, eis que insensivel- mente cheguei aonde queria; pois, ja que é coisa presentemente conhecida por mim que, propriamente falando, sO concebemos os corpos pela laculdade de entender em nés existente e nao pela imaginagao nem pelos sentidos, e que nao os conhecemos pelo fato de os ver ou de toca-los, mas somente por os conceber pelo pensamento, reconhego com evidéncia que nada ha que me seja mais facil de conhecer do que meu espirito. Mas, posto que @ quase impossivel desfazer-se tao prontamente de uma antiga opiniao, sera bom que cu me detenha um pouco neste ponto, a fim de que, pela amplitude de minha meditagao, cu imprima mais profunda- mente em minha memoria este novo conhecimento. 4? £ a terceira verdade: o espitito & mais facil de conhecer do que 0 corpo, Com feito, obtenho imediatamente © conhecimento da existéncia € da natureza de meu espirito, ao passo que o meu pensa- mento me proporciona apenas a iléia clara e dis tinta dos corpos cuja existéncia ainda € problema tica, Guéroult comenta: “Quando Descartes dectara que © conhecimento da alma é © mais ficil dos sonhecimentas, quer dizer que € 4 mais facil das verdades cientificas ¢ 0 primeiro dos conhecimentos na ordem da ciéncia. Nao quer dizer que a ciéncia é€ mais facil do que o conhecimento vulgar. A passa- gem do senso comum & cigncia € com efeito, a mais diffeil das ascensdes”. (Op. eii., pag. 128.)

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