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TOM CLANCY

Sem remorso
Título original americano
WITHOUT REMORSE
Tradução: Ronaldo Sergio de Biasi
© 1993 by Jack Ryan Limited Partnership
Todos os direitos reservados.
Esta é uma obra de ficção. Os eventos aqui descritos são imaginários: os cenários e
personagens são fictícios e não têm a intenção de representar lugares específicos ou pessoas
vivas.
Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa para o Brasil adquiridos pela
DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A.
Rua Argentina 171 — 20921-380
Rio de Janeiro, RJ — Tel.: 585-2000
que se reserva a propriedade literária desta tradução
Impresso no Brasil
ISBN 85-01-04190-4
Agradecimentos

Como sempre acontece, há pessoas a quem agradecer: Bill, Darrell e Pat, por seus conselhos
"profissionais"; C.J., Craig, Curt, Gerry e Steve, pelo mesmo motivo; Russell, por sua
inesperada contribuição.
E por uma ajuda extra postfacto da maior importância: G.R. e Wayne, por encontrá-la; Shelly,
que fez o trabalho; Craig, Curt, Gerry, Steve R, Steve R. e Victor, que me ajudaram a
compreender.
Em amorosa memória de Kyle Haydock
5 de julho de 1983-1º de agosto de 1991
Penso onde começa e termina a glória do Homem.
E digo que minha glória foi ter os amigos que tive.
WILLIAM BUTLER YEATS

Arma virum que cano*.


PUBLIUS VERGILIUS MARO

*As armas e o varão canto

Cuidado com a fúria do homem paciente.


JOHN DRYDEN
Prólogo

LOCAIS DE ENCONTRO

NOVEMBRO

Um espetáculo e tanto, pensou Kelly com um sorriso, enquanto mergulhava de costas.


Debaixo d'água era diferente. Era sempre diferente, mas agradável, também. A superfície
ondulada filtrava a luz solar, produzindo cortinas variáveis de luz que lambiam as pernas da
plataforma. A visibilidade era excelente. As cargas C4 já estavam no lugar; eram blocos de
quinze centímetros de lado por sete centímetros e meio de altura, amarrados nas vigas de aço.
As espoletas tinham sido colocadas de tal forma que a força da explosão seria dirigida para
dentro. Kelly examinou-as uma por uma, começando pelo primeiro grupo, três metros acima do
fundo do mar. Trabalhava rapidamente, pois não queria ficar lá embaixo mais tempo que o
necessário, nem ele nem os outros. Os homens atrás dele cuidavam do rastilho, enrolando-o nos
blocos. Os dois eram mergulhadores locais quase tão experientes quanto Kelly. Ele verificou o
trabalho deles e eles verificaram o seu, pois a cautela e a meticulosidade eram a marca
registrada daqueles homens. Terminaram o primeiro grupo em vinte minutos e foram subindo
devagar até o último grupo, apenas três metros abaixo da superfície, onde o processo foi
repetido, de forma lenta e sistemática. Quando se está lidando com explosivos, é melhor não se
apressar e não deixar nada ao acaso.
O coronel Robin Zacharias estava concentrado na tarefa que tinha diante de si. Existia uma
base de SA-2 logo depois da colina seguinte. Já haviam disparado três mísseis, dirigidos contra
os caças-bombardeiros que lhe cabia proteger. No assento traseiro do F-105G Thunderchief
estava Jack Tait, o seu "urso", um tenente-coronel especialista no campo de supressão de
defesas. Os dois ajudaram a inventar a doutrina que agora estavam implementando. O coronel
pilotava o caça Wild Wease de forma exibicionista, procurando atrair um disparo e depois
esquivando-se, enquanto se aproximava da base de lançamento. Era um jogo cruel e mortal, não
de caçador e presa, mas de caçador e caçador — um pequeno, rápido e delicado, outro
volumoso, imóvel e reforçado. A base estava deixando loucos os homens da sua esquadrilha. O
comandante era simplesmente bom demais no radar; sabia quando ligá-lo e quando deixá-lo
desligado. Fosse quem fosse o filho da mãe, já derrubara dois Weasels da esquadrilha de Robin
na semana passada e, por isso, o coronel fizera questão de assumir o comando da missão
quando chegara a ordem de atacar novamente a região. Era a sua especialidade: diagnosticar,
penetrar e destruir defesas aéreas — um vasto e frenético jogo tridimensional no qual o prêmio
da vitória era a sobrevivência.
Estava voando baixo, a menos de duzentos metros de altitude, os dedos controlando o manche
de forma semiautomática enquanto os olhos de Zacharias esquadrinhavam os picos das
montanhas e seus ouvidos escutavam o que dizia o colega do banco de trás.
— Ele está na posição de nove horas, Robin — afirmou Jack. — Ainda está mudando de
rumo, mas não nos localizou. Descreva uma linda espiral.
Não vamos tentar abatê-lo, pensou Zacharias. Tinham feito isso da última vez e não dera
certo. O erro lhe custara um major, um capitão e uma aeronave... Al Wallace, que, como ele,
nascera em Salt Lake City... droga! Procurou tirar o pensamento da cabeça.
— Vou atiçá-lo de novo — disse Zacharias, puxando o manche para trás. O caça entrou no
raio de alcance do radar da base e ficou ali, à espera. O comandante da base provavelmente
tinha sido treinado na Rússia. Não sabiam quantos aviões o homem já derrubara — apenas que
o número era bem maior do que gostariam —, mas devia estar orgulhoso disso, e orgulho podia
ser fatal naquela profissão.
— Lançamento... dois, dois lançamentos confirmados, Robin — preveniu Tait, atrás dele.
— Só dois? — perguntou o piloto.
— Talvez ele tenha que pagar pelos mísseis que lança — sugeriu Tait, friamente. — Estão na
posição de nove horas. Trate de fazer alguma mágica, Rob.
— Como esta? — Zacharias rolou para a esquerda para mantê-los no campo de visão e
mergulhou. Tinha planejado bem a manobra e acabou escondido atrás de um morro. Nivelou a
aeronave a uma altitude perigosamente baixa, mas os mísseis SA-2 Guideline perderam a sua
pista e passaram mil metros acima.
— Acho que está na hora — declarou Tait.
— Acho que tem razão. — Zacharias fez uma curva fechada para a esquerda e ligou o sistema
de armas. O F-105 passou pelo cume e mergulhou de novo, enquanto os olhos do piloto
examinavam o pico seguinte, a dez quilômetros e cinquenta segundos de distância.
— O radar ainda está ligado — informou Tait. — Ele sabe que estamos a caminho.
— Mas só lhe resta um míssil. — A menos que os remuniciadores hoje estejam trabalhando
mais depressa do que de costume. Ora, não se pode prever tudo.
— Fogo antiaéreo na posição das dez horas. — Estava longe demais para preocupá-los, mas
servia de advertência para que não fossem naquela direção.
— Lá está o platô.
Talvez pudessem vê-lo, talvez não. Talvez fosse apenas um pontinho em movimento em uma
tela cheia de chuviscos que o operador de radar lutava para decifrar. O caça era mais rápido em
baixa altitude do que os modelos anteriores, e a camuflagem, bem eficiente. Estavam
provavelmente olhando para cima. Havia agora uma barreira de interferência, parte de um plano
que traçara para o outro Weasel; a tática normal para os americanos seria uma aproximação em
altitude média e um mergulho final. Entretanto, tinham feito isso duas vezes e fracassado, de
modo que Zacharias resolveu tentar outra coisa. Voando baixo, bombardearia o lugar e o outro
Weasel se encarregaria de terminar o serviço. Sua missão era destruir o caminhão de comando e
o comandante que estava lá dentro. Balançou o caça para a esquerda e para a direita, para cima
e para baixo, procurando dificultar a pontaria dos que estavam no solo. Ainda tinha que se
preocupar com os canhões antiaéreos.
— Achei a estrela! — exclamou Robin.
O manual do SA-6, escrito em russo, falava em seis lançadores reunidos em torno de um
ponto central de controle. Com todos os fios de ligação, uma base típica lembrava uma estrela
de davi, o que parecia uma blasfêmia ao coronel, mas a ideia apenas pairou na periferia de sua
mente enquanto enquadrava o caminhão de comando na alça de mira.
— Preparando para lançar bombas — disse em voz alta, confirmando a ação para si próprio.
Durante os últimos dez segundos, manteve a aeronave firme como uma rocha. — Tudo parece
em ordem... lançar... agora!
Quatro dos cartuchos nada aerodinâmicos se desprenderam do caça e se abriram em pleno ar,
espalhando milhares de pequenas cargas explosivas na região. O caça já estava longe da base
quando as bombas chegaram ao solo. Robin não tinha visto ninguém correr para as trincheiras,
mas continuou voando baixo e fez uma curva fechada para a esquerda, olhando para trás para se
certificar de que acertara o alvo. A cinco quilômetros de distância, viu uma imensa nuvem de
fumaça no centro da estrela.
Isso é pelo Al, permitiu-se pensar. Nenhum grito de vitória, apenas um pensamento, enquanto
nivelava a aeronave e escolhia uma rota para deixar o local. A força de ataque podia entrar em
ação, agora que aquela bateria de mísseis terra-ar estava fora de combate. Muito bem. Escolheu
um ponto na crista das montanhas e rumou para lá a pouco menos que Mach-1, mantendo um
curso estável agora que o perigo ficara para trás. Vou passar o Natal em casa.
Os traçadores vermelhos que irromperam do pequeno desfiladeiro à frente o assustaram. Não
deviam estar ali. Não mudavam de direção; vinham direto para ele. Levantou o nariz do caça,
como o artilheiro havia previsto que faria, e a aeronave passou bem no meio do rio de fogo.
Estremeceu violentamente e em menos de um segundo a sua sorte estava decidida.
— Robin! — soluçou uma voz no intercomunicador, mas foi abafada pelo ruído dos alarmes,
e Zacharias percebeu que a aeronave estava condenada. Antes que pudesse esboçar qualquer
reação, a situação piorou ainda mais. O motor explodiu em chamas e o caça começou a girar,
descontrolado. Outro soluço o fez olhar para trás no momento em que estendia a mão para a
alavanca de ejeção, mesmo sabendo que o gesto era inútil. A última visão que teve de Jack Tait
foi a do sangue que pairava debaixo do assento como uma trilha de vapor, mas nesse momento
sentiu uma dor tão forte que não pôde pensar em mais nada.

— OK — disse Kelly, disparando um foguete de sinalização. Outro barco começou a jogar na


água pequenas cargas explosivas para manter os peixes afastados. Ele observou e esperou
durante cinco minutos; depois, olhou para o homem da segurança.
— A área está limpa.
— Fogo no buraco — disse Kelly, e repetiu o mantra mais três vezes. Em seguida, girou a
alavanca do detonador. O resultado foi imediato. A água em volta das pernas virou espuma no
momento em que as pernas da plataforma foram cortadas em dois lugares. A queda foi
surpreendentemente lenta. A estrutura inteira escorregou em uma direção. Houve um enorme
estrondo quando a plataforma se chocou com a água e por um momento incongruente a estrutura
de aço deu a impressão de que iria flutuar. Naturalmente, isso era impossível. O esqueleto
metálico afundou e desapareceu. Mais um trabalho terminado com êxito.
Kelly desligou os fios do gerador e colocou-os de lado.
— Duas semanas antes do prazo. Acho que você realmente queria aquela bonificação —
observou o executivo. Um ex-piloto de caça sabia admirar um trabalho feito com rapidez e
precisão. — Dutch estava certo a seu respeito.
— O almirante é um bom sujeito. Fez muito por mim e por Tish.
— Sabia que voamos juntos durante dois anos? Era um piloto e tanto. É bom saber que as
coisas boas que ele disse são verdadeiras. — O executivo gostava de trabalhar com pessoas
que tinham tido experiências semelhantes à sua. Esquecera quase por completo o terror dos
combates. — O que é isso? Faz algum tempo que estou para lhe perguntar. — Apontou para a
tatuagem no braço de Kelly, uma foca vermelha, sentada nas nadadeiras traseiras e rindo
cinicamente.
— Uma coisa que todos fizemos na minha unidade — explicou Kelly, com a maior
naturalidade que conseguiu.
— Que unidade era essa?
— Não posso contar. — Kelly procurou abrandar a negativa com um sorriso.
— Aposto que tem algo a ver com a forma como Sonny escapou, mas deixe para lá. — Um
ex-oficial da Marinha tinha que respeitar as regras. — Bem, o cheque vai estar na sua conta
antes de os bancos fecharem, Sr. Kelly. Vou mandar um rádio a sua mulher para que ela possa
apanhá-lo.

Tish Kelly estava fazendo uma cara de "eu também" para as outras mulheres na Stork Shop.
Ainda não completara três meses de gravidez e portanto podia vestir o que quisesse — bem,
quase tudo. Era cedo para comprar roupas especiais, mas estava com tempo livre e queria
conhecer as opções. Agradeceu à vendedora, decidindo que voltaria com John à noite e o
ajudaria a escolher alguma coisa para ela, porque era assim que ele gostava. Agora estava na
hora de ir buscá-lo. A caminhonete Plymouth que trouxeram de Maryland estava estacionada do
lado de fora, e Tish já dirigia com desembaraço nas ruas da cidade costeira. Era bom escapar
por uns tempos da chuva fria de outono e estar ali na Costa do Golfo, onde era verão durante
boa parte do ano. Tirou a caminhonete da vaga e tomou a direção sul, rumo aos escritórios da
companhia de petróleo. Até os sinais luminosos pareciam estar do seu lado. Um deles mudou
para verde de forma tão oportuna que nem precisou encostar o pé no freio.
O motorista de caminhão franziu a testa quando o sinal mudou para amarelo. Estava atrasado,
e dirigindo um pouco depressa demais, mas o fim da viagem de mil quilômetros desde
Oklahoma estava próximo. Pisou na embreagem e no freio com um suspiro que logo se
transformou em um grito de surpresa quando os dois pedais chegaram juntos ao fim do curso. A
estrada estava livre e o motorista seguiu em frente, mudando para uma marcha menor para
reduzir a velocidade e tocando desesperadamente a buzina a ar. Oh, meu Deus, por favor, não...
Tish não chegou a ver o caminhão. O motorista jamais se esqueceria do perfil daquela jovem
desaparecendo sob o capô e, depois, do horrível solavanco quando o veículo esmagou a
caminhonete sob as rodas dianteiras.

O pior de tudo era não sentir. Helen era sua amiga. Helen estava morrendo e Pam sabia que
devia sentir alguma coisa, mas não sentia nada. O corpo estava amordaçado, mas isso não
impedia que emitisse alguns sons enquanto Billy e Rick faziam o que estavam fazendo. Soltou o
ar, e embora sua boca não pudesse se mover, os sons foram os de uma mulher prestes a deixar a
vida, mas a viagem tinha um preço que precisava ser pago primeiro, e Rick, Billy, Burt e Henry
estavam fazendo a cobrança. Tentou convencer-se de que estava em outro lugar, mas aqueles
sons abafados não deixavam que seu olhar e sua consciência se desviassem da realidade. Helen
era má. Helen tentara fugir e isso eles não podiam tolerar. Tinham explicado a todos, mais de
uma vez, e agora estavam explicando de novo, disse Harry, de uma forma que teriam dificuldade
para esquecer. Pam apalpou o lugar onde um dia haviam quebrado suas costelas, lembrando-se
da lição. Quando os olhos de Helen se fixaram no seu rosto, sentiu que não havia nada que
pudesse fazer. Tentou retribuir o olhar com simpatia; não ousava fazer mais do que isso. Logo
depois, Helen ficou quieta e tudo terminou, pelo menos por algum tempo. Agora podia fechar os
olhos e pensar quando chegaria sua vez.

Os soldados acharam muito engraçado. Levaram o piloto americano, todo amarrado, para
perto do canhão que o havia derrubado. Menos engraçado era o que o prisioneiro fizera, e
expressaram seu desprazer com punhos e botas. Tinham recolhido o outro corpo, também, e
colocaram-no ao lado dele, divertindo-se com sua expressão de tristeza e desespero ao ver o
amigo morto. O oficial do serviço de informações de Hanói estava ali, comparando o nome do
homem com uma lista que trouxera com ele, curvando-se para ler o nome. Devia ser alguém
especial, pensaram os artilheiros, pela forma como reagira, pelo telefonema urgente que dera.
Depois que o prisioneiro desmaiou de dor, o oficial tirou um pouco de sangue do morto e
esfregou no rosto do vivo. Em seguida, tirou algumas fotografias. Isso deixou os soldados
intrigados. Era quase como se quisesse que o prisioneiro vivo parecesse tão morto quanto o
outro. Muito estranho.

Não era o primeiro corpo que tinha que identificar, mas Kelly imaginara que aquela fase da
vida havia ficado para trás há muito tempo. Outras pessoas estavam ali para ampará-lo, mas não
cair não era a mesma coisa que sobreviver, e não havia consolo possível em um momento como
aquele. Saiu da sala de emergência. Todos os olhos, médicos e enfermeiras, o observavam. Um
padre foi chamado para encomendar o corpo e disse alguma coisa que, Kelly sabia, ninguém
escutou. Um policial explicou que a culpa não tinha sido do motorista. Os freios tinham falhado.
Um defeito mecânico. Na verdade, ninguém era culpado. Uma fatalidade. Todas as coisas que já
dissera outras vezes, em ocasiões semelhantes, tentando explicar a uma pessoa inocente por que
a parte mais importante do seu mundo terminara bruscamente, como se isso importasse.
Esse Sr. Kelly era um tipo rijo, pensou o policial, e ainda mais vulnerável por causa disso. A
esposa e o filho ainda não nascido, aos quais poderia ter protegido contra qualquer perigo,
estavam mortos por acidente. Ninguém era culpado. O motorista, que tinha mulher e filhos,
estava no hospital, sob o efeito de sedativos, depois de rastejar para baixo do caminhão na
esperança de encontrar alguém com vida. As pessoas para quem Kelly trabalhava no momento
estavam com ele e o ajudariam a cuidar de tudo. Não havia mais nada a ser feito por um homem
que teria trocado o inferno pelo que acabava de passar; porque ele havia visto o inferno.
Entretanto, havia mais de um inferno, e Kelly ainda não conhecera todos.
1

ENFANT PERDU

MAIO

Kelly não saberia explicar por que fizera aquilo. Simplesmente saiu da estrada e parou no
acostamento sem nenhum pensamento consciente. Ela não havia estendido a mão pedindo carona
ou algo semelhante. Estava simplesmente de pé à margem da estrada, olhando os carros
passarem em meio a nuvens de poeira, deixando para trás uma trilha de fumaça. Sua postura era
a de um carona, com uma perna esticada, a outra dobrada. As roupas estavam bem surradas e
uma mochila pendia frouxamente de um dos ombros. O movimento dos carros fazia balançar os
cabelos castanhos, à altura dos ombros. O rosto não tinha nenhuma expressão, mas Kelly não
percebeu isso até que já estava pisando com o pé direito o pedal do freio e rumando para as
pedras soltas do acostamento. Pensou em voltar para a estrada, mas concluiu que já estava
comprometido, embora não soubesse dizer ao certo com quê. Os olhos da moça acompanharam
o carro e, enquanto ele olhava pelo espelho retrovisor, deu de ombros sem nenhum entusiasmo
aparente e caminhou em sua direção. A janela do lado do passageiro já estava baixada, e em
poucos segundos ela estava ao lado do veículo.
— Para onde está indo? — perguntou.
Isso deixou Kelly surpreso. Pensava que a primeira pergunta — Quer uma carona? — tivesse
que ser sua. Hesitou por um ou dois segundos, olhando para ela. Vinte e um anos, talvez, mas
com uma expressão madura. O rosto não estava sujo, mas também não estava limpo, talvez por
causa do vento e da poeira da estrada interestadual. Usava uma camisa masculina de algodão
que não era passada há meses e o cabelo estava desgrenhado. Entretanto, o que mais o
impressionou foram os olhos.
Verde-acinzentados, muito atraentes, olhavam para além de Kelly, para... o quê? Já vira
aquele olhar algumas vezes, mas apenas em homens deprimidos. Ele mesmo já tivera aquele
olhar, lembrou-se Kelly, mas não saberia explicar o que seu olhos viam. Não lhe ocorreu que,
naquele exato momento, seu olhar não era muito diferente.
— De volta para o meu barco — respondeu, afinal, sem saber ao certo o que dizer.
Imediatamente, o olhar da moça mudou.
— Você tem um barco? — perguntou. Os olhos brilhavam como os de uma criança. Um
sorriso começava neles e se irradiava para o resto do rosto, como se Kelly tivesse acabado de
responder a uma pergunta muito importante. Notou notou que ela tinha um pequeno espaço entre
os dentes da frente.
— Uma lancha de quarenta pés, movida a diesel. — Apontou para a traseira do Scout, cujo
compartimento de carga estava cheio de caixas de comestíveis. — Quer vir comigo? —
perguntou, também sem pensar.
— Claro! — Sem nenhuma hesitação, a moça abriu a porta e jogou a mochila no piso do
carro, à frente do banco do carona.
Não era fácil voltar à estrada. Estreito e com pouca potência, o Scout não tinha sido
projetado para rodar em estradas de alta velocidade, e Kelly teve que se concentrar. O carro
não possuía velocidade suficiente para andar em nenhuma outra pista que não fosse a da direita,
e, com carros a toda hora entrando e saindo, era preciso prestar muita atenção, porque o Scout
não era suficientemente ágil para evitar todos os idiotas que se dirigiam para o oceano ou para
onde quer que as pessoas iam em um fim de semana de três dias.
Quer vir comigo?, perguntara ele, e ela respondera Claro!, informava o cérebro de Kelly. Que
diabo? Kelly franziu a testa, frustrado, porque não sabia a resposta, mas tinha havido muitas
perguntas sem resposta nos últimos seis meses. Disse ao seu cérebro para ficar quieto e se
preocupou com o tráfego, mas as perguntas continuaram como uma espécie de ruído de fundo. A
verdade é que o cérebro da gente quase nunca obedece aos seus próprios comandos.
Fim de semana do Memorial Day, pensou. Os outros carros estavam cheios de gente voltando
apressadamente para casa do trabalho ou que já tinha estado em casa para pegar a família. As
crianças olhavam pelas janelas traseiras. Uma ou duas acenaram para ele, mas Kelly fingiu não
notar. Era difícil não ter alma, especialmente quando você ainda se lembrava do tempo em que
ainda tinha uma.
Kelly passou a mão pelo queixo, sentindo a pele como uma lixa. A mão estava suja. Não
admira que o tivessem tratado daquele jeito na mercearia. Está se deixando abater, Kelly.
E quem se importa com isso?
Olhou na direção da moça e se deu conta de que ainda não sabia o nome dela. Estava indo
com ela para o barco e não sabia como se chamava. Incrível. Ela olhava para a frente, com uma
expressão serena. Tinha um rosto bonito, visto de perfil. Era magra — talvez esguia fosse a
palavra certa, o cabelo entre louro e castanho. As calças jeans estavam puídas e rasgadas em
alguns pontos, e tinham começado a vida em uma dessas lojas onde os fregueses pagavam um
pouco mais para comprar calças pré-desbotadas — ou o que quer que fizessem com elas. Kelly
não sabia mas estava interessado. Mais uma coisa que era melhor deixar de lado.
Cristo, como você foi acabar desse jeito?, perguntou seu cérebro; sabia a resposta, mas não
podia fornecer uma explicação completa. Diferentes segmentos do organismo chamado John
Terrence Kelly conheciam partes diferentes da história, mas, por alguma razão, elas nunca se
juntavam, deixando separados os segmentos do que uma vez havia sido um homem forte,
inteligente, decidido vagarem em confusão... e desespero? Ali estava um pensamento
confortador.
Lembrava-se do que havia sido um dia. Lembrava-se de todos os perigos a que sobrevivera,
surpreendia-se com isso. Talvez o maior tormento de todos fosse não compreender o que se
passara com ele. Claro que sabia o que acontecera, mas essas coisas ocorreram no mundo
exterior e, por algum motivo, perdera o controle da situação. Estava vivo, mas confuso e sem
objetivos. Funcionava no piloto automático. Sabia disso, mas não para onde o destino o estava
levando.
A moça não tentou puxar conversa, o que para ele estava ótimo, disse Kelly para si mesmo,
embora sentisse que havia alguma coisa que devia saber. Essa sensação chegou como uma
surpresa. Era uma coisa instintiva, e sempre confiara nos próprios instintos, nos arrepios de
advertência que às vezes sentia no pescoço e nos antebraços. Olhou em torno e não viu nenhum
perigo além dos carros com cavalos demais debaixo do capô e cérebros de menos atrás do
volante. Olhou de novo, com mais atenção, e não viu nada. O pressentimento, porém, continuou,
e Kelly se surpreendeu olhando pelo espelho retrovisor, enquanto a mão esquerda se esgueirava
para baixo do banco, à procura da Colt automática que conservava escondida ali. Sua mão
acariciava a arma antes que se desse conta do que estava fazendo.
Por que você foi fazer isso? Kelly tirou a mão e sacudiu a cabeça com uma careta de
frustração. Entretanto, continuou a olhar pelo espelho — apenas a precaução normal de um
motorista, mentiu para si mesmo durante os vinte minutos seguintes.
Na marina, a atividade era febril. O fim de semana de três dias, é claro. Carros passavam
para lá e para cá, correndo demais no pátio de estacionamento pequeno e mal pavimentado,
cada motorista tentando escapar do engarrafamento de sexta-feira que todos, naturalmente,
estavam ajudando a criar. Pelo menos ali o Scout levava vantagem. A maior altura e
visibilidade ajudaram Kelly a manobrar até a popa do Springer e entrou na vaga que deixara
seis horas antes. Foi um alívio levantar as janelas e trancar o carro. Sua aventura na estrada
estava encerrada e a segurança do mar o esperava.
O Springer era um iate de quarenta pés de comprimento, movido por um motor diesel,
construído por encomenda mas semelhante nas linhas e na disposição interior a um Pacemaker
Coho. Não era especialmente bonito, mas dispunha de duas cabines espaçosas e a sala de estar
a meia-nau podia ser facilmente convertida em uma terceira. Os motores diesel eram grandes
mas não turbinados, porque Kelly preferia um motor de grande porte, que trabalhasse folgado, a
um motor pequeno, que funcionasse no limite de sua capacidade. Dispunha de um radar
marítimo de boa qualidade, de todos os tipos de equipamentos de comunicações que podia usar
legalmente e de dispositivos de navegação normalmente reservados para pescadores de alto-
mar. O casco de fibra de vidro era imaculado e não havia um ponto de ferrugem nas amuradas
cromadas, embora Kelly tivesse deliberadamente dispensado o verniz tão apreciado pela
maioria dos donos de iate, por achar que não valia a pena perder tempo com a sua manutenção.
O Springer era um barco de trabalho, ou pretendia sê-lo.
Kelly e sua acompanhante saltaram do carro. Ele abriu o compartimento de bagagem e
começou a carregar as caixas para bordo. Observou que a moça tivera o bom senso de ficar fora
do caminho.
— Ei, Kelly! — chamou uma voz, da ponte do iate.
— Sim, Ed, o que foi?
— O defeito era no voltímetro. As escovas do gerador estavam um pouco gastas, e achei
melhor trocá-las, mas acho que o defeito era no voltímetro. Por isso, tive que trocá-lo também.
— Ed Murdock, o mecânico-chefe da marina, olhou para baixo e deu com a jovem quando
começou a descer a escada. Murdock tropeçou no último degrau e quase caiu de susto. O
mecânico avaliou a moça rapidamente e deixou transparecer sua aprovação.
— Mais alguma coisa? — perguntou Kelly, laconicamente.
— Enchi os tanques. Os motores estão quentes — disse Murdock, vultando-se para o freguês.
— Está tudo na sua conta.
— Certo. Obrigado, Ed.
— Oh, Chip me pediu para lhe dizer que apareceu mais uma proposta, caso você queira
vender...
Kelly interrompeu-o.
— Nada feito, Ed.
— É uma belezinha, Kelly — afirmou Murdock, recolhendo as ferramentas e afastando-se
sorrindo, satisfeito consigo mesmo pela frase de duplo sentido.
Kelly levou alguns segundos para compreender e soltou um resmungo atrasado de
reconhecimento enquanto carregava os últimos víveres para a sala de estar do barco.
— O que é que eu faço? — perguntou a moça. Estava ali parada, e Kelly teve a impressão de
que tremia um pouco e tentava esconder isso.
— Vá sentar-se lá em cima — respondeu Kelly, apontando para a ponte. — Vou levar alguns
minutos para arrumar as coisas.
— Está bem. — A moça endereçou-lhe um sorriso capaz de derreter gelo, como se soubesse
exatamente qual era uma de suas necessidades.
Kelly foi para sua cabine, que ficava na popa, satisfeito por manter o barco em ordem. O
dono da cabine também estava razoavelmente em ordem, e se surpreendeu olhando-se no
espelho e perguntando:
— Muito bem, e agora, o que é que você vai fazer?
Não houve nenhuma resposta imediata, mas achou que pelo menos podia lavar o rosto. Dois
minutos depois, entrou na sala de estar. Verificou que as caixas de mantimentos estavam no lugar
e foi para fora.
— Eu, hum, me esqueci de lhe perguntar uma coisa... — começou.
— Meu nome é Pam — disse a jovem, estendendo a mão. — E você, como se chama?
— Kelly — respondeu, novamente embaraçado.
— Para onde estamos indo, Sr. Kelly?
— Prefiro que me chame de Kelly — corrigiu, preferindo manter uma certa distância, pelo
menos por algum tempo. Pam fez que sim com a cabeça e sorriu de novo.
— Está bem, Kelly, para onde estamos indo?
— Tenho uma pequena ilha a uns cinquenta...
— Você é dono de uma ilha? — A moça arregalou os olhos.
— Isso mesmo. — Na verdade, a ilha era apenas alugada, e isso acontecera há tanto tempo
que Kelly não dava mais nenhuma importância ao fato.
— Então, vamos! — exclamou Pam, com entusiasmo, olhando para o cais.
Kelly deu uma risada. — Vamos!
Ligou os exaustores. O Springer tinha motores a diesel, e na verdade não precisava se
preocupar com o acúmulo de gases, mas, apesar do relaxamento adquirido nos últimos tempos,
Kelly era um homem do mar e sua vida na água seguia uma rotina estrita, que significava
observar todas as regras de segurança que foram escritas no sangue de homens menos
cuidadosos. Depois dos dois minutos previstos, apertou o botão para ligar o motor de bombordo
e depois o de boreste. Os dois possantes motores Detroit Diesel pegaram imediatamente. Kelly
olhou para os mostradores. Tudo parecia bem.
Deixou a ponte para recolher os cabos de amarração. Em seguida, voltou e empurrou os
aceleradores para a frente a fim de tirar o iate do cais, verificando a maré e o vento — que, no
momento, praticamente não existiam — e observando as outras embarcações. Kelly empurrou
um pouco mais o acelerador de bombordo enquanto girava o leme, fazendo o Springer
descrever uma curva fechada no canal estreito, até ficar apontado para fora. Depois, empurrou o
acelerador de boreste, aumentando a velocidade para uns modestos cinco nós enquanto
passavam pelas filas de iates a vela e a motor. Pam também estava olhando para os barcos,
principalmente na direção da popa, e seus olhos se detiveram no estacionamento por alguns
segundos antes que olhasse de novo para a frente, o corpo relaxando um pouco.
— Sabe alguma coisa de barcos? — perguntou Kelly.
— Não muito — admitiu a moça, e pela primeira vez Kelly reparou no seu sotaque.
— De onde você é?
— Do Texas. E você?
— De Indianapolis, mas saí de lá há muito tempo.
— O que é isso? — perguntou Pam, estendendo a mão para tocar na tatuagem no antebraço
dele.
— É de um dos lugares onde estive — respondeu Kelly. — Não era dos mais simpáticos.
— Ah, esse lugar — disse ela, em tom de quem havia compreendido.
— Esse mesmo — confirmou Kelly, secamente. Já estavam fora da marina e ele aumentou um
pouco a velocidade.
— O que você fazia lá?
— Nada que valha a pena contar a uma dama.
— O que o faz pensar que eu sou uma dama?
Kelly se sentiu um pouco desconcertado, mas começava a se acostumar. Também estava
descobrindo que conversar com uma garota, sobre qualquer assunto que fosse, era uma coisa de
que precisava há muito tempo. Pela primeira vez, correspondeu ao sorriso de Pam com outro
sorriso.
— Não seria muito cavalheiresco de minha parte supor que você não é.
— Estava tentando adivinhar quanto tempo levaria para sorrir. — Você tem um belo sorriso,
dizia o tom de voz da moça.
Acreditaria se lhe dissesse que é a primeira vez que sorrio em seis meses? Kelly teve
vontade de dizer. Em vez disso, começou a rir, principalmente para si mesmo. Era outra coisa
que estava precisando lazer.
— Desculpe. Acho que não tenho sido uma boa companhia. — Virou-se para olhá-la e viu
compreensão em seus olhos. Apenas uma expressão tranquila, muito humana e feminina, mas
deixou Kelly comovido. Podia sentir aquilo acontecer, e ignorou a parte da consciência que lhe
dizia que era algo de que necessitava há meses. Era uma coisa que não precisava ouvir,
especialmente de si mesmo. A solidão era suficientemente triste sem que refletisse a respeito. A
moça estendeu de novo a mão, ostensivamente para tocar a cicatriz, mas não era isso que seu
gesto significava. Era espantoso como seu toque era quente, mesmo sob o sol da tarde. Talvez
fosse uma indicação de quão fria sua vida se tornara.
Kelly, porém, tinha um barco para pilotar. Havia um cargueiro mil metros à frente. Os
motores já estavam funcionando a plena potência e as aletas da popa tinham sido acionadas
automaticamente no momento em que a velocidade atingira dezoito nós, deixando a embarcação
em um ângulo eficiente de aquaplanagem. Quando chegaram à marola deixada pelo cargueiro, o
Springer começou a balançar para cima e para baixo. Kelly desviou um pouco para a esquerda.
O navio cresceu diante deles como um rochedo.
— Onde posso me trocar?
— Minha cabine é a da popa. Pode ficar com a da proa, se quiser.
— Ah, é? — A moça riu. — Por que eu faria isso?
— Hein? — fez Kelly, sem graça. Ela conseguira de novo.
Pam desceu para a cabine com a mochila, apoiando-se no corrimão. Não estava usando muita
roupa. Reapareceu minutos depois, usando menos ainda: shorts muito curtos e uma frente-única.
Estava descalça e visivelmente mais descontraída. Tinha pernas de bailarina, finas e muito
femininas. Eram também muito brancas, o que o deixou surpreso. A blusa estava folgada, com
pregas nas bordas. Talvez tivesse emagrecido recentemente, ou então comprara de propósito um
número maior do que o seu. Fosse qual fosse o motivo, uma boa parte dos seios estava de fora.
Kelly se surpreendeu desviando os olhos e censurando-se por olhar daquela forma para a
jovem. Mas Pam não estava ajudando. Segurou-o pelo braço e sentou-se a seu lado. Olhando
para baixo, ele podia ver até onde quisesse.
— Gosta deles? — perguntou a moça.
O cérebro e a boca de Kelly entraram em pane. Deixou escapar alguns sons
incompreensíveis; antes que achasse o que dizer, a jovem começou a rir. Mas não estava rindo
dele. Acenava para os tripulantes do cargueiro, que acenaram de volta. Era um navio italiano, e
um dos homens que estavam debruçados no parapeito (eram mais ou menos meia dúzia) jogou-
lhe um beijo. Pam jogou um beijo de volta.
Kelly sentiu ciúme.
Girou de novo o leme para bombordo, fazendo o barco atravessar a marola de proa do
cargueiro, e quando passou à frente no navio tocou o apito. Era o que mandava o regulamento,
embora poucos comandantes de embarcações pequenas se dessem ao trabalho de cumpri-lo.
Àquela altura, o vigia do navio estava olhando de binóculo para Kelly — na verdade, para Pam,
é claro. Virou-se e gritou alguma coisa para a ponte de comando. Momentos depois, o enorme
apito do cargueiro soltou uma nota grave, quase fazendo a moça cair do assento.
Kelly deu uma gargalhada. Pam acompanhou-o e enrolou os braços com força no seu bíceps.
Sentiu um dedo acompanhar a tatuagem.
— Não estou sentindo...
Kelly fez que sim com a cabeça.
— Eu sei. As pessoas pensam que vão sentir uma camada de tinta.
— Por que você...
— ...por que me deixei tatuar? Todo mundo na minha unidade se tatuou. Até mesmo os
oficiais. Acho que era falta do que fazer. Uma grande bobagem.
— Pois eu acho bonita.
— Bonita é você.
— Que coisa gentil de se dizer. — Pam se moveu levemente, roçando os seios no seu
antebraço.
Kelly manteve a velocidade constante em dezoito nós enquanto saía do porto de Baltimore. O
cargueiro italiano era o único navio à vista e o mar estava calmo, com ondas de menos de meio
metro. Ele acompanhou o canal principal de navegação até a baía de Chesapeake.
— Está com sede? — perguntou a moça, quando mudaram de rumo, tomando a direção sul.
— Estou. Há uma geladeira na cozinha. Está na...
— Eu já vi. O que vai querer?
— Pegue duas de qualquer coisa.
— Está bem — respondeu a moça. Quando se pôs de pé, a sensação de maciez subiu pelo
braço de Kelly até o ombro.
— O que é aquilo? — perguntou Pam, ao voltar. Kelly olhou na mesma direção e estremeceu.
Estava tão satisfeito com a companhia da moça que se esquecera de prestar atenção ao tempo.
"Aquilo" era uma tempestade, uma massa gigantesca de cúmulos-nimbos que chegava a dez ou
quinze quilômetros de altura.
— Parece que vai chover — disse, aceitando a cerveja que a moça lhe oferecia.
— Quando eu era pequena, aquilo queria dizer um ciclone.
— Pois aqui não quer dizer, não — replicou Kelly, olhando em torno para se certificar de que
não havia nada solto. Lá embaixo, tinha certeza de que estava tudo no lugar, porque sempre
estava. Em seguida, ligou o receptor de rádio. Pegou imediatamente uma previsão de tempo, que
terminou com a advertência habitual.
— Esta é uma embarcação pequena? — quis saber Pam.
— Tecnicamente, sim, mas não se preocupe. Sei o que estou fazendo. Já trabalhei como
segundo contramestre.
— O que é isso?
— Um tipo de marinheiro. Além do mais, nosso barco não é dos menores. Pode jogar um
pouco, mas é só. Se está preocupada, há uma depósito de salva-vidas debaixo do banco onde
você está sentada.
— Você está preocupado? — perguntou Pam.
Kelly sorriu e fez que não com a cabeça. A moça voltou à posição anterior, com o peito
encostado no braço dele, a cabeça apoiada no seu ombro, uma expressão sonhadora no olhar,
como se antecipasse alguma coisa que estava para acontecer, com ou sem tempestade.
Kelly não estava preocupado — pelo menos, não com a tempestade —, mas também não
estava totalmente despreocupado. Depois de passar por Bodkin Point, continuou para leste,
cruzando o canal de navegação, Não virou para o sul para não entrar em águas rasas demais
onde uma onda maior poderia virar a embarcação. De vez em quando, levantava os olhos para
observar a tempestade, que estava se aproximando com uma velocidade de uns vinte nós. Já não
era possível ver o sol. Uma tempestade que se deslocava com rapidez provavelmente queria
dizer uma tempestade violenta e, viajando para o sul, seriam fatalmente alcançados por ela.
Kelly terminou a cerveja e achou mais prudente não tomar outra. A visibilidade ficaria cada vez
pior. Apanhou um mapa plastificado e estendeu-o na mesa, à direita do painel de instrumentos.
Marcou a posição do iate com um lápis e procurou certificar-se de que o curso não os levaria
para águas perigosamente rasas — o Springer tinha um metro e quarenta centímetros de calado,
e para Kelly qualquer profundidade menor que dois metros e quarenta era perigosa. Satisfeito,
anotou o curso que acabara de determinar e relaxou. Seu treinamento era a defesa que possuía
tanto contra o perigo como contra a complacência.
— Agora não vai demorar — observou Pam, com um traço de apreensão na voz, enquanto se
agarrava a ele.
— Talvez seja melhor você descer — disse Kelly. — Vai chover, ventar... e jogar um bocado.
— Mas não há nenhum perigo.
— Não, a menos que eu faça uma grande bobagem. Vou procurar não fazer.
— Posso ficar aqui e ver como é? — perguntou a moça, relutando em se afastar dele, embora
Kelly não soubesse por quê.
— Vai se molhar toda...
— Não tem importância — Ela sorriu e segurou-lhe o braço ainda com mais força.
Kelly diminuiu um pouco a velocidade, fazendo a embarcação aproximar-se da água. Não
havia pressa. Também não havia necessidade de manter as duas mãos nos controles. Abraçou a
jovem, a cabeça de Pam se aninhou automaticamente de volta no seu ombro, e, apesar da
tempestade que se aproximava, tudo pareceu novamente em ordem no mundo. Ou pelo menos era
o que as emoções de Kelly lhe diziam. Sua razão lhe dizia algo bem diferente e os dois pontos
de vista não queriam chegar a um acordo. A razão lhe lembrava que a garota a seu lado era... o
quê? Não sabia. As emoções lhe asseguravam que isso não tinha a menor importância. Ela era
exatamente aquilo de que estava precisando. Entretanto, Kelly não era um homem guiado por
emoções, e o conflito o fez olhar de cara feia para o horizonte.
— Alguma coisa errada? — quis saber Pam.
Kelly começou a dizer alguma coisa, mudou de ideia e lembrou a si mesmo de que estava
sozinho em seu iate com uma linda garota. Deixou a emoção levar vantagem, para variar.
— Estou um pouco confuso, mas, pelo que sei, não há nada de errado.
— Podia apostar que você...
Kelly sacudiu a cabeça.
— Esqueça. Seja o que for, pode esperar. Relaxe e aproveite o passeio.
A primeira lufada de vento chegou logo depois, desviando o barco alguns graus para
bombordo. Kelly ajustou o leme para compensar. A chuva chegou rapidamente. As primeiras
gotas foram logo seguidas por uma cortina espessa que caiu sobre a baía de Chesapeake. Um
minuto depois, a visibilidade estava reduzida a algumas centenas de metros e o céu tão escuro
como se fosse quase noite. Kelly acendeu as luzes de navegação. As ondas começaram a
castigar o iate, impelidas pelo que parecia um vento de trinta nós. O vento e as ondas atingiam o
barco quase de frente. Kelly achou que podia seguir viagem, mas estava em um bom local para
ancorar e não encontraria outro nas cinco horas seguintes. Olhou de novo para o mapa e ligou o
radar para verificar a posição. Três metros de profundidade e um fundo de areia que o mapa
classificava como HRD e portanto seguraria bem a âncora. Colocou o Springer bem de frente
para o vento e diminuiu a potência dos motores até os hélices fornecerem apenas o impulso
suficiente para compensar a força do vento.
— Assuma o leme — disse a Pam.
— Mas eu não sei o que devo fazer!
— Não tem importância. Mantenha o curso e faça o que eu mandar. Tenho que ir lá na frente
baixar as âncoras. Está bem?
— Tome cuidado! — gritou a moça, fazendo-se ouvir com dificuldade por causa do barulho
do vento. As ondas já eram de quase dois metros e a proa da embarcação estava pulando para
cima e para baixo. Kelly apertou com a mão o ombro da moça e afastou-se.
Tinha que ser cauteloso, é claro, mas os sapatos eram providos de solas antiderrapantes e
Kelly sabia o que estava fazendo. Contornou a superestrutura, segurando-se com firmeza no
corrimão, e em um minuto estava no convés de proa. Dispunha de duas âncoras, uma Danforth e
uma de arrasto, tipo CQR, ambas grandes demais para o tamanho do iate. Lançou primeiro a
Danforth, fazendo em seguida um sinal a Pam para que aliviasse um pouco o leme para
bombordo. Depois que a embarcação se moveu uns quinze metros para o sul, lançou também a
CQR. As duas cordas já estavam ajustadas para o comprimento apropriado, e depois de
verificar que estava tudo em ordem, Kelly voltou para a ponte.
Pam parecia nervosa até o momento em que ele se sentou novamente no banco forrado com
vinil. Àquela altura, estava tudo coberto de água e as roupas de ambos encharcadas. Kelly
colocou os motores em ponto morto, permitindo que o vento empurrasse o Springer uns trinta
metros para trás. As duas âncoras já tinham se enterrado no fundo. Kelly franziu a testa,
insatisfeito com a posição das âncoras. Preferia que estivessem um pouco mais afastadas. Na
verdade, porém, uma única âncora era suficiente. A segunda estava ali apenas por precaução.
Finalmente, desligou os motores.
— Poderia enfrentar a tempestade, mas achei melhor não fazê-lo — explicou.
— Então vamos passar a noite aqui?
— Isso mesmo. Pode ir para sua cabine e...
— Quer que eu vá embora?
— Não... isto é, se não está gostando de ficar aqui...
Pam estendeu a mão para o rosto de Kelly. Ele mal conseguiu ouvir as palavras da moça por
causa do vento e da chuva.
— Estou adorando ficar aqui.
Por alguma razão, isso não parecia estranho.
Um momento depois, Kelly se perguntou por que levara tanto tempo. Todos os sinais estavam
ali. Houve outra breve discussão entre a emoção e a razão e a razão foi novamente derrotada.
Não havia nada a temer, apenas uma pessoa tão solitária quanto ele próprio. Era tão fácil
esquecer... A solidão não lhe revelava o que perdera, mas apenas que alguma coisa estava
faltando. Era preciso uma ocasião como aquela para definir o vazio. A pele da moça era macia,
molhada de chuva, mas tépida. Tão diferente do amor de aluguel que tentara duas vezes no
último mês, apenas para sentir nojo de si mesmo logo depois.
Agora era diferente. Era de verdade. A razão gritou mais uma vez que não era possível, que
ele pegara a moça na beira da estrada, que se conheciam há apenas algumas horas. A emoção
argumentou que isso não linha a menor importância. Como se estivesse observando o conflito
que se travava na mente dele, Pam tirou a blusa. A emoção venceu.
— Eles são lindos — declarou Kelly. Tocou-os delicadamente. A sensação era agradável.
Pam pendurou a blusa no leme e encostou o rosto no dele, as mãos puxando-o de encontro ao
seu corpo, tomando a iniciativa de uma forma muito feminina. Por algum motivo, sua paixão não
parecia animalesca. Alguma coisa a fazia diferente. Kelly não sabia o que era, mas não estava
disposto a perder tempo pensando nisso, não no momento.
Os dois se levantaram. Pam escorregou e quase caiu, mas Kelly a amparou, colocando-se de
joelhos para ajudá-la a tirar os shorts. Então foi a vez de a jovem desabotoar-lhe a camisa
depois de colocar as mãos de Kelly em seus seios. A camisa dele permaneceu onde estava por
um longo instante, porque nenhum dos dois queria que as mãos dele se movessem, mas afinal foi
retirada, uma manga de cada vez, logo seguida pela calça. Kelly livrou-se dos sapatos. Os dois
ficaram abraçados, castigados pela chuva e pelo vento, balançando junto com o barco. Pam
pegou-lhe a mão e conduziu-o até um canto do convés, onde o fez deitar-se de costas. Deitou-se
sobre ele. Kelly tentou se sentar, mas a moça não permitiu. Em vez disso, inclinou-se para a
frente, enquanto seus quadris se moviam com suave violência. Kelly estava tão despreparado
para isso quanto estivera para tudo mais durante aquela tarde e seu grito pareceu mais forte que
o trovão. Quando abriu os olhos, o rosto da moça estava a centímetros do seu e o sorriso era
como o de um anjo de igreja.
— Desculpe, Pam, eu...
A moça o interrompeu com uma risada.
— Você é sempre tão bom assim?
Minutos depois, os braços de Kelly envolviam o seu corpo esguio e ficaram assim até a
tempestade passar. Parecia estar com medo de largá-la, com medo de que tudo não passasse de
um sonho. Afinal, o vento começou a ficar gelado e decidiram descer. Kelly arranjou algumas
toalhas e enxugaram um ao outro. Tentou sorrir para Pam, mas a dor estava de volta, ainda mais
forte por causa da felicidade que sentira na ultima hora, e foi a vez de Pam se surpreender.
Sentou-se ao lado dele no piso da sala de estar, e quando apoiou a cabeça de Kelly no seu peito,
ele começou a chorar. Pam não perguntou por quê. Em vez disso, abraçou-o com força até que a
crise passasse e sua respiração voltasse ao normal.
— Desculpe — disse Kelly, depois de algum tempo. Tentou levantar-se, mas a moça não
deixou.
— Não precisa explicar nada, mas gostaria de ajudá-lo — afirmou Pam, sabendo que já o
fizera. Compreendera a situação desde o primeiro momento, no carro. Um homem forte,
profundamente ferido. Muito diferente dos outros homens que conhecera. Quando ele finalmente
falou, pôde sentir as palavras no próprio peito.
— Faz quase sete meses. Eu estava no Mississippi, a serviço. Ela estava grávida. Tínhamos
acabado de descobrir. Foi fazer compras e... apareceu um caminhão, um caminhão dos grandes.
O freio falhou. — Não conseguiu dizer mais nada, nem era preciso.
— Como se chamava?
— Tish... Patricia.
— Há quanto tempo vocês...
— Um ano e meio. E de repente ela não existia mais. Foi uma coisa totalmente inesperada.
Quero dizer: tive uma vida agitada, participei de muitas missões perigosas, mas isso é coisa do
passado, e de qualquer maneira fui eu, e não ela. Nunca pensei... — A voz falhou de novo. Pam
olhou para ele, à luz mortiça da sala de estar, vendo pela primeira vez as cicatrizes e
imaginando qual seria a sua origem. Não tinha importância.
Encostou o rosto na cabeça de Kelly. Àquela altura, ele poderia ser pai.
Poderia ser muita coisa.
— Até hoje, você não tinha desabafado com ninguém, não é?
— É verdade.
— Por que mudou de ideia?
— Não sei — murmurou Kelly.
— Obrigada. — Kelly olhou para ela, surpreso. — É a coisa mais bonita que um homem já
fez para mim.
— Não entendo.
— Entende, sim. E Tish entende, também. Você me deixou tomar o lugar dela. Ou talvez ela
tenha deixado. Ela o amava, John. Ela o amava muito. E ainda o ama. Obrigada por deixar-me
ajudá-lo.
Kelly começou a chorar de novo e Pam aninhou a cabeça do rapaz no seu colo, como se ele
fosse uma criança. Ficaram assim dez minutos, embora nenhum dos dois olhasse para o relógio.
Em seguida, Kelly beijou-a com uma gratidão que logo se transformou em paixão. Pam deitou-se
de costas, deixou-o tomar a iniciativa como precisava fazer agora que era de novo um homem
em espírito. Sua recompensa esteve à altura do que fizera por ele e, dessa vez, foram os gritos
dela que abafaram o ruído do trovão. Mais tarde, ele adormeceu a seu lado e Pam beijou-lhe o
rosto com a barba por fazer. Foi então que a moça começou também a chorar, admirando-se do
que o dia lhe trouxera depois do terror com que havia começado.
2

ENCONTROS

Kelly acordou na hora de costume, trinta minutos antes do amanhecer, ouvindo os grasnidos
das gaivotas e vendo a primeira luz avermelhada no céu. Ficou momentaneamente confuso ao
descobrir um braço atravessado no seu peito, mas outras sensações e memórias explicaram as
coisas em poucos segundos. Levantou-se e estendeu o cobertor para proteger a moça do frio da
madrugada. Estava na hora de cuidar do barco.
Ligou a cafeteira elétrica, vestiu um calção de banho e foi para o convés. Ficou satisfeito ao
ver que não se esquecera de ligar a luz de ancoragem. O céu havia clareado e o ar estava fresco
depois da tempestade da noite anterior. Foi até a proa e constatou, com surpresa, que uma das
âncoras tinha saído do lugar. Censurou-se por isso, embora não tivesse acontecido nada de
errado. A água estava lisa como um espelho e a brisa era suave. A leste, o brilho róseo da
primeira luz do dia decorava a linha da costa, semeada de árvores. No conjunto, era a manhã
mais linda que já vira. De repente, deu-se conta de que o que mudara não tinha nada a ver com o
tempo.
— Droga — murmurou para o dia que estava começando. Sentia o corpo enrijecido e fez
alguns exercícios de alongamento, percebendo aos poucos como era bom acordar sem estar de
ressaca. Levou ainda mais tempo para perceber quando tempo dormira. Nove horas? Tanto
assim? Não admira que se sentisse tão bem. O passo seguinte na rotina da manhã seria usar um
rodo para remover a água que se acumulara no convés de fibra de vidro.
O ruído surdo de um motor a diesel o fez virar a cabeça. Olhou para oeste, mas havia um
pouco de neblina naquela direção e não conseguiu ver nada. Foi até a ponte, pegou o binóculo e
levou-o aos olhos a tempo de receber o impacto de um holofote de vinte centímetros. Ainda
estava ofuscado pela luz, que desaparecera tão subitamente quanto havia aparecido, quando
ouviu o som de um megafone.
— Desculpe, Kelly. Não sabia que era você. — Dois minutos depois, a forma familiar de um
barco de patrulha de quarenta e um pés da Guarda Costeira apareceu ao lado do Springer. Kelly
dirigiu-se aos tropeções à amurada de bombordo para lançar os para-choques de borracha.
— Está querendo me matar? — perguntou, em tom coloquial.
— Desculpe. — O primeiro-sargento Manuel "Portagee" Oreza pulou de um barco para o
outro com facilidade. Apontou para os para-choques. — Considero isso uma ofensa.
— Além do mais, foi falta de cortesia — prosseguiu Kelly, aproximando-se do visitante.
— Já pedi desculpas — disse Oreza, estendendo a mão. — Bom dia, Kelly.
A mão estendida segurava um copo de isopor cheio de café. Kelly aceitou-o e riu.
— Está desculpado. — Oreza era famoso pelo seu café.
— Foi uma longa noite. Estamos todos cansados, e minha tripulação é inexperiente —
explicou o homem da guarda costeira, com ar fatigado. O próprio Oreza tinha apenas vinte e
oito anos, e era de longe o membro mais velho da tripulação.
— Tiveram problemas? — perguntou Kelly.
Oreza fez que sim com a cabeça e olhou em torno.
— Tivemos. Um idiota, que estava passeando de barco a vela, desapareceu depois daquela
pequena tempestade da noite passada, e até agora não conseguimos localizá-lo.
— O vento chegou a quarenta nós. Não foi brincadeira, Portagee — observou Kelly. — E
chegou de repente.
— É verdade. Já resgatamos seis barcos. Só resta esse. Viu alguma coisa fora do comum na
noite passada?
— Não. Saí de Baltimore por volta... por volta das quatro da tarde, acho. Levei duas horas e
meia para chegar aqui. Lancei âncora logo depois que a tempestade começou. A visibilidade
estava péssima e não vi praticamente nada antes de nos recolhermos.
— Nós — observou Oreza, espreguiçando-se. Foi até o leme, pegou a blusa ensopada e
jogou-a para Kelly. A expressão no seu rosto era neutra, mas havia interesse no olhar. Esperava
que o amigo tivesse encontrado alguém. A vida não tinha sido muito boa para ele.
Kelly devolveu o copo com uma expressão igualmente neutra.
— Passamos por um navio cargueiro — prosseguiu. — De bandeira italiana, cheio pela
metade de contêineres. Devia estar fazendo quinze nós. Alguém mais saiu do porto?
— Isso mesmo — concordou Oreza, falando com irritação profissional. — Estou preocupado
com isso. Esses malditos cargueiros seguindo em frente a toda velocidade, sem prestar atenção.
— Ora, quem está na chuva é para se molhar. Além do mais, ficar ancorado fora do porto
poderia violar algum regulamento do sindicato, certo? Talvez o seu amigo tenha sido atropelado
— observou Kelly, sombriamente. Não seria a primeira vez, mesmo em uma baía tão civilizada
como Chesapeake.
— Pode ser — concordou Oreza, olhando para o horizonte. Franziu a testa, não acreditando
na sugestão e cansado demais para esconder o fato. — Seja como for, se avistar um barco
pequeno com uma vela listrada laranja e branca, não deixe de me avisar, está bem?
— Prometo.
Oreza olhou na direção da proa e virou-se novamente para Kelly. — Duas âncoras para
aquela brisa de ontem à noite? E estão muito juntas. Pensei que você fosse mais caprichoso.
— Já fui suboficial — protestou Kelly. — Desde quando um guarda-livros se atreve a criticar
um marujo de verdade?
Era apenas uma brincadeira. Kelly sabia que Portagee era mais competente do que ele em
embarcações de pequeno porte. Só que apenas por uma pequena margem, e ambos sabiam disso,
também.
Oreza voltou sorrindo para o seu barco. Depois de subir a bordo, apontou para a blusa na
mão de Kelly.
— Não se esqueça de vestir a camisa, suboficial! Combina muito bem com você.
Oreza desapareceu dentro da casa do leme antes que Kelly tivesse tempo de replicar. Parecia
haver alguém lá dentro que não estava usando uniforme, o que deixou Kelly intrigado. Um
momento depois, os motores do cúter foram ligados e o barco de quarenta e um pés tomou o
rumo noroeste.
— Bom dia — disse Pam. — Quem era?
Kelly olhou para trás. Ela estava tão vestida quanto na hora em que a cobrira com o cobertor,
mas o rapaz já havia decidido que a única vez em que o surpreenderia de novo seria quando
fizesse algo previsível. O cabelo era uma massa desgrenhada de medusa e os olhos estavam fora
de foco, como se não tivesse dormido praticamente nada.
— A Guarda Costeira. Estão procurando um barco desaparecido. Dormiu bem?
— Dormi. — Aproximou-se dele. Os olhos tinham uma expressão suave, sonhadora, que
parecia estranha tão cedo pela manhã, mas não podia ser mais atraente para o marinheiro
totalmente desperto.
— Bom dia. — Um beijo. Um abraço. Pam abriu os braços e deu uma pirueta. Kelly segurou-
a pela cintura fina e levantou-a do chão.
— Que deseja no café da manhã? — perguntou.
— Não tomo café da manhã — respondeu Pam, estendendo os braços para ele.
— Oh. — Kelly sorriu. — Está bem.
Uma hora depois, Pam mudou de ideia. Kelly preparou ovos com bacon e Pam comeu tão
depressa que ele se julgou na obrigação de preparar uma segunda porção, apesar dos protestos
da moça. Pensando melhor, ela não eslava simplesmente magra; algumas das suas costelas eram
visíveis. Eslava subnutrida, uma observação que levava a mais uma pergunta sem resposta.
Entretanto, fosse qual fosse a causa, ali estava uma coisa que que se podia curar. Depois de Pam
consumir quatro ovos, oito fatias de bacon e cinco torradas, quase o dobro do que Kelly comia
normalmente de manhã, chegou a hora de começar o dia da forma apropriada. Pediu à moça para
arrumar a cozinha enquanto recolhia as âncoras.
Voltaram a navegar pouco antes das oito da manhã. Prometia ser um sábado quente e
ensolarado. Kelly colocou óculos escuros e recostou-se na cadeira, com uma caneca de café na
mão para manter-se alerta. Rumou a oeste, mantendo-se na margem no canal principal de
navegação para evitar as centenas de barcos de pesca que certamente sairiam dos vários portos
em um dia bonito como aquele.
— O que são essas coisas? — perguntou Pam, apontando para as boias que enfeitavam a água
a bombordo.
— Marcam o lugar das armadilhas para caranguejos. São como gaiolas. Eles entram e não
conseguem sair.
Kelly emprestou os binóculos a Pam e apontou para um barco que estava colhendo
caranguejos uns cinco quilômetros a leste.
— Eles prendem e matam os pobrezinhos?
Kelly riu.
— Pam, sabe aquele bacon que você comeu no café? Acha que o porco se suicidou?
A moça piscou para ele.
— Claro que não.
— Não se excite. Um caranguejo não passa de uma grande aranha aquática, embora seja
gostoso.
Kelly mudou de curso para evitar uma boia cônica vermelha. — Mesmo assim, parece uma
maldade.
— É a vida — observou Kelly, arrependendo-se instantaneamente.
A resposta de Pam foi tão sentida quanto a de Kelly.
— É, eu sei.
Kelly se controlou para não olhar para a moça. Havia uma carga emocional na maneira como
concordara, como se quisesse mostrar que ela, também, tinha seus demônios. O momento,
porém, passou rapidamente. Pam se ajeitou na espaçosa cadeira de comando, recostando-se nele
e fazendo com que tudo voltasse ao normal. Mais uma vez o instinto de Kelly avisou que alguma
coisa não estava certa. Mas não havia demônios lá fora, havia?
— É melhor você ir lá embaixo.
— Para quê?
— Hoje vai fazer um sol de rachar. Há um vidro de filtro solar no armário de remédios, no
reservado.
— Reservado?
— No banheiro!
— Por que nos barcos as coisas têm outros nomes?
Kelly riu.
— Para que os marinheiros se sintam donos da situação. Agora vá. E passe bastante, se não
quer ficar parecendo um pimentão.
Pam fez uma careta.
— Estou precisando de um banho. Algum problema?
— Pelo contrário — respondeu Kelly, sem olhar para a moça. — Não queremos assustar os
peixes.
— Muito engraçado! — Pam deu um tapinha no braço de Kelly e desceu.

— Ele simplesmente desapareceu! — lamentou-se Oreza, debruçado sobre um mapa na


estação de Point Thomas da Guarda Costeira.
— Devíamos dispor de cobertura aérea. Um helicóptero ou coisa parecida — observou o
civil.
— Não teria feito diferença. Não na noite passada. Não com aquela ventania!
— Pode ser, mas onde está o barco?
— Sei lá. Talvez a tempestade tenha acabado com ele. — Oreza olhou para o mapa de cara
feia. — O senhor disse que ele estava rumando para o norte. Verificamos todos esses portos e
Max cuidou da margem oeste. Tem certeza de que a descrição do barco que nos forneceu está
correta?
— Se tenho certeza? Bolas, só faltou comprarmos o maldito barco para eles! — O civil
estava irritadiço após vinte e oito horas de vigília sustentada a cafeína, ainda mais depois de
enjoar no barco de patrulha, para diversão dos tripulantes. Sentia como se o estômago estivesse
revestido de palha de aço. — Talvez tenha mesmo afundado — concluiu ironicamente, sem
acreditar por um instante nas próprias palavras.
— Isso não resolveria o seu problema? — A tentativa de desanuviar o ambiente lhe valeu um
rosnado e o primeiro-sargento Manuel Oreza recebeu um olhar de censura do comandante da
estação, um suboficial de cabelos grisalhos chamado Paul English.
— Sabem de uma coisa? — disse o civil, que parecia exausto. — Acho que não vou
conseguir nada, mas tenho obrigação de tentar.
— Senhor, nós todos tivemos uma noite extenuante. A menos que tenha uma razão muito boa
para permanecer acordado, talvez seja melhor deitar-se e descansar um pouco.
O civil levantou os olhos com um sorriso cansado para amenizar o desabafo anterior.
— Suboficial Oreza, esperto como é, devia ser oficial.
— Se sou tão esperto, como foi que deixei passar o nosso amigo a noite passada?
— Aquele sujeito que encontramos ao amanhecer?
— Kelly. Ex-suboficial da Marinha. Um homem de confiança.
— Parece jovem demais para ter sido suboficial, não acha? — comentou English, olhando
para uma fotografia não muito boa que tinha sido tirada à luz do holofote. Ele era novo na
estação.
— Kelly ganhou o posto junto com uma Cruz do Mérito Naval — explicou Oreza.
O civil levantou os olhos. — Você não acha que...
— Impossível.
O civil sacudiu a cabeça. Ficou parado por um momento e depois encaminhou-se para o
dormitório. Pretendiam sair de novo antes do alvorecer e até lá tentaria dormir um pouco.
— O que acha? — perguntou English, depois que o civil saiu.
— Esse sujeito está querendo demais, capitão. — Como comandante da estação, English tinha
direito ao título, ainda mais que deixava Portagee dirigir o barco a seu modo. — E dorme muito
pouco.
— Ele vai estar conosco por algum tempo. Quero que o trate bem.
Oreza apontou para o mapa com o lápis.
— Ainda acho que seria o lugar ideal para montarmos um posto de observação, e sei que
podemos confiar no sujeito.
— O homem disse que não.
— O homem não é um marinheiro, Sr. English. Não me importo que me diga o que fazer, mas
não sabe o suficiente para me dizer como fazer. — Oreza desenhou um círculo em torno do
ponto no mapa.
— Não estou gostando nada.
— Não precisa gostar — disse o homem mais alto. Abriu o canivete e cortou o papel grosso,
revelando um saco plástico cheio de um pó branco. — Trezentos mil por umas poucas horas de
trabalho. Acha pouco?
— E isso é apenas o começo — afirmou o terceiro homem.
— O que fazemos com o barco? — perguntou o primeiro homem. O mais alto levantou os
olhos do que estava fazendo.
— Já se livrou daquela vela?
— Já.
— Podíamos esconder o barco... mas talvez seja melhor afundá-lo. Sim, é isso que vamos
fazer.
— E Angelo? — Os três olharam para onde o homem estava deitado, ainda inconsciente,
sangrando.
— Vamos afundá-lo também — disse o mais alto, sem emoção. — Bem aqui.
— Em duas semanas, não restará nada. Os bichos cuidarão dele para nós — observou o
terceiro, apontando para o manguezal.
— Está vendo como é fácil? Nada de barco, nada de Angelo, nenhum risco e trezentos mil
paus. O que mais você quer, Eddie?
— Os amigos dele não vão gostar — replicou Eddie, mais para contrariar o outro do que por
convicção.
— Que amigos? — perguntou Tony, sem olhar para ele. — Ele deu com a língua nos dentes,
não foi? Quantos amigos tem um traidor?
Eddie se rendeu à lógica da situação e se aproximou do corpo inconsciente de Angelo. Ainda
saía sangue dos múltiplos ferimentos. O peito se movia lentamente quando ele respirava com
esforço. Estava na hora de pôr um fim ao seu sofrimento. Eddie sabia disso; estivera apenas
tentando adiar o inevitável. Tirou do bolso uma pequena pistola automática .22, encostou-a na
nuca de Angelo e disparou uma vez. O corpo teve um espasmo e depois ficou imóvel. Eddie
guardou a arma no bolso e arrastou o cadáver para fora, deixando o trabalho importante a cargo
de Henry e seu amigo. Tinham trazido uma rede de pescar, que ele enrolou no corpo antes de
jogá-lo na água, atrás da pequena lancha. Como era um homem cauteloso, Eddie olhou em torno,
embora a probabilidade de serem surpreendidos por um intruso fosse muito pequena. Afastou-se
na lancha até encontrar um local apropriado, a algumas centenas de metros de distância.
Desligou o motor, apanhou alguns blocos de concreto no fundo da lancha e amarrou-os à rede.
Seis foram suficientes para afundar o corpo de Angelo. A profundidade ali era de apenas dois
metros e meio e a água era transparente, o que deixou Eddie um pouco preocupado até que ele
viu os caranguejos. Eles acabariam com Angelo em menos de duas semanas. Era um grande
progresso em relação ao modo como geralmente faziam negócios, algo a ser lembrado no futuro.
Mais difícil seria livrar-se do pequeno barco a vela. Seria preciso encontrar um lugar mais
fundo, mas teria o dia inteiro para pensar a respeito.
Kelly desviou o barco para boreste para evitar um bando de lanchas de passeio. Já podia
avistar a ilha, uns oito quilômetros à frente. Não era ainda de impressionar, apenas uma pequena
saliência no horizonte, mas era sua, e tão isolada quanto um homem podia desejar. Uma das
poucas desvantagens era que a recepção de TV ali era péssima.
A ilha de Battery tinha uma história comprida mas sem brilho. O nome atual, mais irônico do
que apropriado, datava do início do século XIX, quando alguns milicianos esforçados tinham
decidido instalar lá uma pequena bateria de canhões para proteger uma passagem estreita na
baía de Chesapeake contra os ingleses, que estavam navegando em direção a Washington, D.C.
para punir a jovem nação que desafiara o poderio da maior armada do mundo de forma tão
imprudente. Um comandante de esquadra inglês observara uns poucos rolos inofensivos de
fumaça na ilha e, provavelmente mais surpreso do que zangado, mandara um dos navios
aproximar-se e disparar algumas salvas com os canhões do convés inferior. Os soldados
cidadãos que guarneciam a bateria não precisaram de muito incentivo para correr para os
barcos a remo e fugir para o continente. Pouco depois, um grupo de desembarque constituído
por marinheiros e uns poucos fuzileiros reais remou para a praia em uma pinaça para enfiar
pregos nos ouvidos dos canhões. Depois desse breve desvio, os ingleses continuaram a subir
sem pressa o rio Patuxent, de onde seu exército marchou até Washington, forçando Dolley
Madison a evacuar a Casa Branca antes de voltar para o rio. Em seguida, os ingleses foram para
Baltimore, onde uma sorte diferente os aguardava.
A ilha de Battery, cuja propriedade o governo federal assumira com relutância, tornou-se uma
embaraçosa nota de rodapé de uma guerra singularmente inútil. Sem contar nem ao menos com
um zelador para cuidar das fortificações, foi tomada pelo mato e permaneceu assim durante
quase um século.
Em 1917, os Estados Unidos se envolveram na primeira guerra de verdade contra outra nação
e a Marinha americana, diante da ameaça dos submarinos alemães, precisava de um local
abrigado para testar seus canhões. A ilha de Battery parecia o lugar ideal, pois ficava a apenas
algumas horas de barco de Norfolk. Assim, durante vários meses do outono naquele ano, os
canhões de 12 e 14 polegadas dos encouraçados castigaram a ilha, colocando quase um terço da
superfície abaixo do nível do mar e aterrorizando os pássaros migratórios, que há muito tempo
haviam chegado à conclusão de que não havia caçadores na ilha para incomodá-los. A única
coisa nova que aconteceu depois disso foi o afundamento, quilômetros ao sul, de mais de uma
centena de cargueiros, construídos na época da Primeira Guerra Mundial, e esses, logo cobertos
pelas algas, assumiram rapidamente a aparência de ilhas.
Uma nova guerra e novas armas trouxeram a ilha sonolenta de volta à vida. A base aeronaval
instalada nas vizinhanças precisava de um campo de provas para os pilotos. A feliz
coincidência da localização da ilha de Battery e dos navios afundados da Primeira Guerra
Mundial fazia da região uma escolha natural. Assim, três grandes casamatas foram construídas,
de onde os oficiais podiam observar os bombardeiros TBF e SB2C praticarem tiro ao alvo em
objetos que pareciam ilhas em forma de navio... e pulverizarem vários desses objetos, até que
uma bomba ficou presa no lançador exatamente o tempo necessário para obliterar uma das
casamatas, que afortunadamente se encontrava vazia na ocasião. O local da casamata destruída
foi limpo e a ilha transformada em base de salvamento, de onde um barco de socorro podia
responder a um acidente aéreo. Para isso, foi preciso construir um cais e uma garagem de
barcos, além de reformar as duas casamatas restantes. No geral, a ilha serviu muito bem à
economia local, se não ao orçamento federal, até que o advento dos helicópteros tornou
desnecessários os barcos de socorro e a ilha foi desativada. E assim a ilha permaneceu em um
registro de propriedades federais ociosas até que Kelly conseguiu alugá-la.
Quando se aproximaram da ilha, Pam estava deitada em uma toalha, debaixo do sol forte,
protegida por uma grossa camada de filtro solar. Na falta de trajes de banho, usava apenas
calcinha e sutiã. Isso não ofendia Kelly, mas deixava-o vagamente inquieto, por uma razão que
desafiava qualquer análise lógica. Fosse como fosse, sua tarefa no momento era dirigir a
embarcação. Poderia admirar o corpo da moça mais tarde, repetia para si mesmo a cada minuto
quando seus olhos se desviavam naquela direção para certificar-se de que ainda estava lá.
Aliviou o leme para a direita para desviar-se de um grande iate de pesca. Olhou novamente
para Pam. A moça baixara as alças do sutiã para bronzear-se melhor. Kelly aprovou.
O ruído deixou os dois assustados: apitos curtos, em rápida sucessão. Kelly olhou em torno e
concentrou sua atenção em um barco que estava duzentos metros a bombordo. Era a única
embarcação suficientemente grande para interessá-lo e também parecia ser a fonte do ruído. Na
ponte de comando, um homem acenava. Kelly manobrou em direção ao outro barco. Fosse quem
fosse aquele sujeito, não parecia ser um piloto experiente, e quando Kelly parou o Springer, a
cinco metros de distância, manteve a mão nos aceleradores.
— Qual é o problema? — perguntou, usando o megafone.
— Perdemos os hélices! — gritou de volta um homem moreno. — O que vamos fazer?
Remem, Kelly teve vontade de dizer, mas isso não seria muito educado. Aproximou-se para
investigar melhor a situação. Era um iate de pesca de porte médio, um Hatteras quase novo. O
homem que estava na ponte devia ter um metro e setenta de altura, cinquenta anos de idade, e
estava sem camisa. A mulher a seu lado também parecia muito aflita.
— Estão à deriva? — perguntou Kelly, quando chegou mais perto.
— Acho que batemos num banco de areia — explicou o homem. — Uns oitocentos metros
naquela direção. — Apontou para um lugar que Kelly evitara.
— Eu conheço esse banco. Posso rebocá-lo, se quiser. Tem cabo suficiente?
— Tenho, sim! — apressou-se a responder o homem, encaminhando-se para o armário de
cabos, na proa do barco. A mulher continuava parecendo aflita.
Kelly manobrou o Springer enquanto observava o outro "capitão", um termo que mentalmente
usou com ironia. O homem não era capaz de ler cartas de navegação. Não conhecia a forma
correta de atrair a atenção de outro barco. Nem mesmo sabia como chamar a Guarda Costeira.
Tudo o que fez foi comprar um iate Hatteras, o que depunha a seu favor. Kelly imaginou que a
escolha devia ter sido do vendedor. Logo em seguida, porém, o homem o surpreendeu. Manejou
as cordas com habilidade e acenou para que o Springer se aproximasse.
Kelly manobrou o barco até que ficasse com a popa virada para o iate e foi até o poço para
pegar o cabo, que amarrou no cunho do gio. A essa altura, Pam estava de pé, observando. Kelly
voltou para a ponte de comando e empurrou ligeiramente o acelerador.
— Deixe o leme na posição central até segunda ordem, OK? — disse ao dono do Hatteras.
— Entendido.
— Espero que sim — murmurou Kelly para si mesmo, empurrando os aceleradores até o
cabo ficar retesado.
— O que aconteceu a ele? — perguntou Pam.
— As pessoas se esquecem de que o mar tem um fundo. Quando você bate nele com força, o
prejuízo é inevitável. — Fez uma pausa. — Talvez seja melhor você vestir alguma coisa.
Pam deu uma risada e desceu para a cabine. Kelly aumentou a velocidade cautelosamente
para quatro nós antes de rumar para o sul. Já tinha feito tudo aquilo antes e resmungou para si
mesmo que, se tivesse que repetir mais uma vez, mandaria fazer um impresso com a conta.
Kelly conduziu o Springer até o cais com muito cuidado, preocupado com o barco que estava
rebocando. Correu até a amurada para lançar os para-choques e depois pulou em terra para fixar
um par de amarras antes de se dirigir para o Hatteras. O dono já estava com os cabos de
amarração preparados e jogou-os para Kelly no cais antes de lançar os para-choques. Puxar o
barco um metro e pouco era uma boa oportunidade de mostrar os músculos a Pam. Levou apenas
cinco minutos para colocar o iate na posição correta e depois fez o mesmo com o Springer.
— Ele é seu?
— É, sim — respondeu Kelly. — Bem-vindo ao meu banco de areia.
— Sam Rosen — disse o homem, estendendo a mão. Tinha vestido uma camisa, e embora seu
aperto de mão fosse firme, Kelly notou que mãos eram lisas e delicadas.
— John Kelly.
— Minha esposa, Sarah.
Kelly riu.
— Você deve ser a navegadora.
Sarah era baixinha, gorducha e os olhos castanhos hesitavam entre surpresa e embaraço.
— Alguém precisa agradecer a você por sua ajuda — observou, com sotaque de Nova York.
— É uma lei do mar, madame. O que aconteceu?
— A carta indica uma profundidade de seis pés no lugar em que atolamos. O calado deste
barco é de apenas quatro pés! E a maré vazante foi há cinco horas! — exclamou a mulher. Não
estava zangada com Kelly, mas ele era o alvo mais próximo, e o marido já tinha ouvido o que
ela pensava.
— Aquele banco de areia está crescendo desde as tempestades que tivemos no inverno
passado, mas as minhas cartas mostram menos que isso. Além do mais, o fundo é macio.
Pam chegou naquele momento, usando uma roupa quase respeitável. Kelly se deu conta de
que não conhecia o sobrenome da moça.
— Olá. Meu nome é Pam.
— Querem tomar alguma coisa? Temos o dia inteiro para discutir o problema.
Todos concordaram e Kelly mostrou-lhes o caminho da casa.
— Que diabo é isso? — perguntou Sam Rosen. "Isso" era uma das casamatas que tinham sido
construídas em 1943, com duzentos metros quadrados de área e um teto com um metro de
espessura. A estrutura era toda de concreto armado e quase tão resistente quanto parecia. Ao
lado ficava uma segunda, um pouco menor.
— Este lugar pertencia à Marinha — explicou Kelly. — No momento, está sendo alugado por
mim.
— Eles construíram um cais muito bom para você — observou Rosen.
— Não tenho do que me queixar — concordou Kelly. — Importa-se de me dizer o que faz na
vida?
— Sou cirurgião — respondeu Rosen.
— Ah, é? — Isso explicava as mãos.
— Professor de cirurgia — corrigiu Sarah. — Mas incapaz de pilotar um barco!
— As malditas cartas estavam erradas! — protestou o professor, no momento em que Kelly
abriu a porta. — Você não ouviu?
— Pessoal, isso é coisa do passado. Depois de um lanche e uma cerveja, as coisas vão
parecer bem melhores. — Kelly se surpreendeu com as próprias palavras. Nesse momento, seu
ouvidos captaram um crac seco, vindo de algum lugar ao sul. Era estranho como o som se
propagava sobre a água.
— Que foi isso? — Sam Rosen também tinha ouvidos aguçados.
— Provavelmente algum garoto atirando num rato com sua .22 — sugeriu Kelly. — Fora isso,
os vizinhos quase não incomodam. No outono, fica um pouco barulhento ao amanhecer... patos e
gansos.
— Estou vendo os chamarizes. Gosta de caçar?
— Gostava, mas parei.
Rosen olhou para ele com simpatia e Kelly decidiu reavaliá-lo pela segunda vez.
— Há quanto tempo?
— Há muito tempo. Como soube?
— Logo depois que terminei minha residência, fui servir em Iwo e Okinawa. Em um navio-
hospital.
— Hum... foi na época dos camicases?
Rosen fez que sim com a cabeça.
— Isso mesmo. Muito divertido. E você, onde serviu?
— A maior parte do tempo, rastejando no fundo do mar — respondeu Kelly, com um sorriso.
— UDT*? Você parece um homem-rã — observou Rosen. — Tive que remendar alguns.

*Underwater Demolition Teams, equipes de demolição subaquática.

— Mais ou menos a mesma coisa, só que mais monótono. — Kelly entrou com a combinação
na fechadura de segredo e abriu a pesada porta de aço.
Os visitantes ficaram surpresos com o interior da casamata. Quando Kelly alugara o lugar,
grossas paredes de concreto dividiam o espaço em três grandes aposentos praticamente nus.
Agora, porém, com as paredes pintadas e tapetes no chão, era quase como uma casa de verdade.
E mesmo o teto tinha sido pintado. As estreitas vigias eram o único sinal que restava da antiga
função do lugar. A mobília e os tapetes mostravam a influência de Patricia, mas a disposição
atual indicava que o local era habitado apenas por um homem. As coisas estavam todas nos seus
lugares, mas não da forma como uma mulher as arrumaria. Os Rosens também notaram que foi o
homem da casa que mostrou o caminho da cozinha e pegou a cerveja na geladeira enquanto Pam
circulava pela casa, de olhos arregalados.
— Aqui é bem fresco — observou Sarah. — Deve ser úmido no inverno.
— Não tanto quanto pensa. — Kelly apontou para os radiadores ao redor do perímetro da
sala. — Aquecimento a vapor. Isto aqui foi construído de acordo com as especificações do
governo. Tudo funciona e tudo custou mais do que deveria.
— Como foi que conseguiu um lugar assim? — perguntou Sam.
— Um amigo me ajudou a alugá-lo. Propriedade ociosa do governo.
— Um amigo e tanto — comentou Sarah, apreciando a geladeira embutida.
— Sim, um amigo e tanto.

O vice-almirante Winslow Holland Maxwell, da Marinha dos Estados Unidos, tinha um


escritório no Pentágono. O escritório dava para fora do prédio, oferecendo uma linda vista de
Washington... e dos manifestantes, pensou consigo mesmo, irritado. Assassinos de Crianças!,
dizia um dos cartazes. Havia até uma bandeira do Vietnã do Norte. Os sons, naquela manhã de
sábado, eram distorcidos pelo vidro grosso da janela. Podia ouvir a cadência, mas não as
palavras, e o ex-piloto de caça não saberia dizer qual das duas o aborrecia mais.
— Isso não é bom para você, Dutch.
— E eu não sei disso? — rosnou Maxwell.
— A liberdade para fazer isso é uma das coisas que defendemos — observou o contra-
almirante Casimir Podulski, sem muita convicção. Só estavam exagerando. O filho dele morrera
sobrevoando Haiphong em um caça-bombardeiro A-4. O caso chegara aos jornais graças à
filiação do jovem aviador. Tinham recebido onze telefonemas anônimos na semana seguinte,
alguns se limitando a rir, outros perguntando a sua pobre esposa para onde deveria ser mandado
o livro de registros. — Todos esses jovens simpáticos, pacíficos e sensíveis.
— Nesse caso, por que está tão bem-humorado, Cas?
— Isto aqui vai para o cofre, Dutch. — Podulski entregou ao outro uma grossa pasta. As
bordas tinham uma moldura de fita vermelha e branca. O nome de código BUXO VERDE era
bem visível.
— Vão nos deixar brincar com isso? — Era uma grande surpresa.
— Tive que ficar com eles até três e meia, mas consegui. Apenas para poucos de nós.
Estamos autorizados a executar um estudo completo de viabilidade. — O almirante Podulski
sentou-se em uma poltrona de couro e acendeu um cigarro. Seu rosto estava mais magro depois
da morte do filho, mas os olhos azul-cristal pareciam mais acesos do que nunca.
— Vão nos deixar seguir em frente e fazer o planejamento? — Maxwell e Podulski estavam
trabalhando para isso há vários meses, mas não tinham grande esperança de sucesso.
— Quem suspeitaria de nós? — perguntou o almirante nascido na Polônia, com um olhar
irônico. — Querem que a coisa seja feita em segredo.
— Jim Greer também? — perguntou Dutch.
— O melhor agente de que dispomos, a menos que você esteja escondendo o jogo.
— Semana passada ouvi dizer que ele tinha começado a trabalhar na CIA — advertiu
Maxwell.
— Ótimo. Precisamos de um bom espião e o terno dele ainda era azul da última vez que o vi.
— Desse jeito, vamos arranjar muitos inimigos.
Podulski apontou para a janela, para o lugar de onde vinha o ruído. Não mudara muito desde
1944 e o USS Essex.
— Com toda essa gente a trinta metros de distância, o que importam alguns inimigos a mais?

— Há quanto tempo tem esse barco? — perguntou Kelly, quando já tinham tomado metade da
segunda cerveja. O lanche era simples, frios e pão regados a cerveja em garrafa.
— Foi comprado em outubro, mas só começamos a usá-lo há dois meses — admitiu o
médico. — Mas fiz um curso de iatismo. Fui o primeiro da turma. — Ele era do tipo que tira
primeiro lugar em quase tudo que faz, pensou Kelly.
— Você é bom com as amarras — observou, mais para fazer o homem sentir-se melhor.
— Os cirurgiões também entendem de nós.
— A senhora também é médica? — perguntou Kelly, virando-se para Sarah.
— Farmacologista. Também dou aulas na Hopkins.
— Há quanto tempo você e sua mulher moram aqui? — perguntou Sam, provocando uma
pausa embaraçosa na conversa.
— Oh, acabamos de nos conhecer — revelou Pam, com simplicidade.
Naturalmente, quem ficou mais sem graça foi Kelly. O casal recebeu a informação com
naturalidade, mas Kelly temia que o vissem como um homem mais velho aproveitando-se de
uma mocinha. Os pensamentos ligados a esse tipo de comportamento pareciam girar em círculos
no seu cérebro até que se deu conta de que os outros não estavam atribuindo nenhuma
importância ao fato.
— Vamos dar uma olhada no hélice — propôs Kelly, levantando-se. Venha.
Saiu de casa e Rosen seguiu-o. O calor lá fora estava aumentando e era melhor fazer logo o
que tinha que ser feito. A segunda casamata servia de oficina para Kelly. Ele escolheu um par de
chaves inglesas e empurrou um compressor de ar sobre rodas na direção da porta.
Dois minutos depois, estacionou o compressor ao lado do Hatteras do médico e colocou na
cintura um cinto de chumbo.
— Quer que eu faça alguma coisa? — perguntou Rosen. Kelly sacudiu a cabeça e tirou a
camisa.
— Não é preciso. Se o compressor parar, logo ficarei sabendo, Além disso, pretendo descer
apenas um metro e meio.
— Nunca mergulhei com aparelhos.
Rosen olhou para o torso nu de Kelly com olhos de cirurgião, observando três cicatrizes
separadas que um cirurgião caprichoso podia ter escondido com relativa facilidade. Então se
lembrou de que um cirurgião de campo de batalha nem sempre tinha tempo de se preocupar com
a estética.
— Pois eu tenho feito isso de vez em quando, aqui e ali — afirmou Kelly, dirigindo-se para a
escada.
— Acredito — murmurou Rosen consigo.
Quatro minutos depois, pelo relógio de Rosen, Kelly estava subindo a escada de volta.
— Descobri qual foi o problema — declarou, depositando os restos dos dois hélices no cais
de concreto.
— Nossa! Em que foi que nós batemos?
Kelly sentou-se para tirar os pesos. Estava fazendo força para não rir.
— A culpada foi a água, doutor. Apenas a água.
— O quê?
— Mandou examinar o barco antes de comprá-lo?
— É claro. Foi uma exigência da companhia de seguros. Com o melhor especialista que pude
encontrar. Ele me cobrou cem paus.
— Ah, é? E quais foram os defeitos que encontrou? — perguntou Kelly, levantando-se e
desligando o compressor.
— Praticamente nenhum. Disse que havia alguma coisa errada com o zinco. Mandei um
bombeiro examinar os encanamentos, mas estava tudo em ordem. Acho que o sujeito tinha que
dizer alguma coisa para justificar o dinheiro que recebeu, certo?
— Ele falou em encanamentos?
— Não, só em zinco. Eu me lembro bem. O relatório por escrito está em algum lugar, mas ele
me passou a informação por telefone, e tenho certeza de que falou em zinco.
— Isso não tinha nada a ver com os encanamentos! — exclamou Kelly, rindo.
— O quê? — perguntou Rosen, zangado porque não estava entendendo aonde o outro queria
chegar.
— O que destruiu seus hélices foi a eletrólise. Uma reação galvânica. Acontece sempre que
dois tipos diferentes de metal são mergulhados na água salgada. Um dos metais foi corroído.
Tudo que o banco de areia fez foi completar o serviço. Os hélices já estavam em péssimo
estado. Não falaram nada sobre isso no curso de iatismo?
— Acho que falaram, mas...
— Mas acaba de aprender uma coisa, doutor Rosen. — Kelly pegou no chão um dos hélices.
O metal tinha a consistência de biscoito. — Isto aqui era feito de bronze.
— Droga! — O cirurgião tomou o hélice das mãos de Kelly arrancou um pedaço com
facilidade.
— O que o homem queria dizer era que você tinha que substituir anodos de zinco. São eles
que absorvem a energia galvânica. Devem ser trocados mais ou menos a cada dois anos e
protegem os hélices e o leme como se fosse por controle remoto. Não sei bem como a coisa
funciona, mas conheço os efeitos, certo? Vai ter que trocar o leme, também, mas não há muita
pressa. No momento, você precisa de dois hélices novos.
Rosen olhou para a água e franziu a testa. — Eu sou um idiota!
Kelly se permitiu um sorriso de simpatia.
— Doutor, se este foi o maior erro que cometeu no último ano, é um homem de sorte.
— Que é que eu vou fazer agora?
— Posso encomendar os hélices por telefone. Ligo para um cara que conheço em Solomons e
ele manda entregá-los aqui, provavelmente amanhã. Não é nada demais, certo? Agora gostaria
de dar uma olhada nas suas cartas.
Quando verificou as datas, descobriu que as cartas tinham mais de cinco anos.
— Cartas como essas só valem por um ano, doutor.
— Droga! — exclamou Rosen.
— Não fique tão aborrecido — disse Kelly, com outro sorriso. — Encare isto como uma
lição. E do melhor tipo: sem mortos nem feridos. Você aprende e segue em frente.
O médico finalmente se permitiu um sorriso.
— Acho que está certo, mas Sarah nunca vai me perdoar.
— Ponha a culpa nas cartas — sugeriu Kelly.
— Você apoiará minha história?
Kelly riu.
— Em momentos assim, os homens têm que ser solidários.
— Acho que vamos nos dar muito bem, Sr. Kelly.

— Onde está ela? — perguntou Billy, com irritação.


— Como vou saber? — replicou Rick, igualmente zangado... e com medo do que Henry iria
dizer quando voltasse. Os dois olharam para a mulher que estava com eles na sala.
— Você é amiga dela — afirmou Billy.
A vontade de Doris era sair correndo, mas sabia que isso não adiantaria nada. As mãos
estavam trêmulas, e quando Billy deu três passos em sua direção, encolheu-se mas não evitou a
bofetada que a atirou ao chão.
— Sua cadela! É melhor me contar tudo o que sabe!
— Não sei de nada! — gritou a jovem, sentindo uma ardência no lugar em que levara a
bofetada. Olhou para Rick, em busca de apoio, mas não viu nenhuma emoção no seu rosto.
— Você sabe de alguma coisa... e é melhor ir falando! — exclamou Billy. Abaixou-se para
desabotoar os shorts da moça e depois tirou o próprio cinto. — Mande as outras entrarem —
disse a Rick.
Doris ficou onde estava, nua da cintura para baixo, chorando baixinho, o corpo sacudido por
soluços que antecipavam a dor que estava para vir, com medo até mesmo de se encolher,
sabendo que não podia fugir. Não tinha para onde ir. As outras moças entraram lentamente, sem
olhar em sua direção. Doris sabia que Pam pretendia fugir, mas isso era tudo e sua única
satisfação quando ouviu o cinto cortar o ar foi que não podia revelar nada que prejudicasse sua
amiga. Por maior que fosse a dor, pelo menos Pam estava livre.
3

CATIVEIRO

Depois de guardar na oficina o equipamento de mergulho, Kelly levou um carrinho de mão de


duas rodas até o cais para descarregar os suprimentos. Rosen insistiu em ajudá-lo. Os hélices
novos chegariam de barco no dia seguinte, mas o cirurgião não parecia ansioso para deixar a
ilha.
— Então você ensina cirurgia? — perguntou Kelly.
— Há oito anos — respondeu Rosen, colocando uma caixa no carrinho.
— Você não tem cara de cirurgião.
Rosen pareceu não se ofender com o comentário.
— Nem todos podemos ser violinistas. Meu pai era pedreiro.
— O meu era bombeiro. — Kelly começou a empurrar o carrinho na direção do parapeito.
— Por falar em cirurgiões... — Rosen apontou para o peito de Kelly. — Você já passou por
algumas cirurgias. Aquela ali não deve ter sido agradável.
Kelly quase parou.
— É, fui muito descuidado daquela vez. Mas não foi tão ruim como parece. Só pegou um
pedacinho do pulmão.
Rosen fez um muxoxo.
— Entendo. Errou o seu coração por quase cinco centímetros. Nada demais.
Kelly começou a carregar as caixas para o depósito.
— É bom conversar com alguém que entende do assunto, doutor — comentou, sentindo um
arrepio ao recordar o incidente, lembrando-se da sensação de ser atingido por uma bala. —
Como eu disse, fui muito descuidado.
— Quanto tempo passou lá?
— No total? Talvez dezoito meses. Se contar o tempo de hospital.
— Vi uma Cruz do Mérito Naval pendurada na parede. Foi assim que a conquistou?
Kelly fez que não com a cabeça.
— Isso é outra história. Tive que ir até o norte buscar alguém, um piloto de A-6. Não fui
ferido, mas fiquei muito doente. Voltei com alguns arranhões, você sabe, de espinhos e coisas
assim. Eles infeccionaram por causa da água do rio, entende? Tive que passar três semanas no
hospital. Foi pior do que levar um tiro.
— Não deve ser um lugar muito agradável — comentou Rosen, enquanto voltavam para
buscar o último carregamento.
— Dizem que eles têm cem espécies diferentes de cobras. Noventa e nove são venenosas.
— E a outra?
Kelly passou uma caixa para o médico.
— A outra come você vivo. — Ele riu. — Não, não gostei de lá. Mas era o meu trabalho e
consegui resgatar o piloto. O almirante ficou tão satisfeito que me promoveu e me deu uma
medalha. Venha comigo. Quero que conheça o meu barco — disse, convidando o médico com
um gesto para subir a bordo.
A visita durou apenas cinco minutos, mas Rosen teve tempo de observar algumas diferenças.
Era um barco bem equipado, mas sem nenhum luxo. Kelly parecia ser um homem essencialmente
prático. Todas as cartas eram novas em folha. Kelly foi até a geladeira do barco e pegou uma
lata de cerveja para o médico e outra para si próprio.
— Como foi em Okinawa? — perguntou Kelly com um sorriso, cada homem avaliando o
outro e ambos gostando do que viam.
Rosen deu de ombros e respondeu:
— A tensão era muito grande. Trabalho era o que não faltava; os camicases pareciam pensar
que a cruz vermelha no casco era um excelente alvo.
— Vocês continuavam a trabalhar durante os ataques dos japoneses?
— Pessoas feridas não podem esperar, Kelly.
Kelly acabou a cerveja.
— Eu teria preferido atirar neles de volta. Deixe-me pegar as coisas de Pam e podemos
voltar para o ar condicionado. Foi até a popa e pegou a mochila da moça. Rosen já estava no
cais e Kelly jogou a mochila para ele. Rosen estava distraído, não conseguiu pegá-la e a
mochila foi parar no chão. Parte do conteúdo se espalhou no concreto e, de onde estava, a cinco
metros de distância, Kelly viu imediatamente o que estava errado, antes mesmo que o médico
olhasse para ele.
Havia um grande vidro marrom de remédio, mas sem rótulo. A tampa estava frouxa e dele
caíram algumas cápsulas.
Algumas coisas passaram rapidamente pela mente de Kelly. Ele saiu lentamente do barco.
Rosen pegou o vidro e guardou as cápsulas de volta antes de recolocar a tampa de plástico.
Depois, entregou-o a Kelly.
— Sei que não são suas, John.
— O que são, Sam?
O tom de voz não podia ser mais impessoal.
— O nome comercial é Quaalude. Metaqualona. É um barbitúrico, um sedativo. Uma pílula
para dormir. Muito forte. Na verdade, forte demais. Muita gente acha que devia ser proibido.
Não tem rótulo. Não foi comprado com receita médica.
Kelly de repente se sentiu velho e cansado. Traído, também.
— Entendo.
— Você não sabia?
— Sam, nós nos conhecemos há menos de vinte e quatro horas. Não sei nada sobre ela.
Rosen coçou a cabeça e olhou para o horizonte por um momento. — Muito bem. Agora vou
bancar o médico, OK? Já experimentou drogas?
— Não! Eu odeio drogas! Elas matam!
A reação de Kelly foi instantânea e violenta, mas não era dirigida a Sam Rosen.
O professor não se abalou. Foi a sua vez de agir com frieza.
— Vá devagar. As drogas viciam pessoas. Como, não importa. E não adianta perder a calma.
Respire fundo. Procure se controlar.
Kelly obedeceu e conseguiu rir do absurdo da situação.
— Você parece o meu pai falando.
— Os bombeiros são gente sensata. — Fez uma pausa. — Está bem, sua amiga pode ter um
problema. Por outro lado, parece ser uma boa moça, e é evidente que você sente atração por
ela. Então por que não tentamos resolver este problema como pessoas civilizadas?
— Acho que depende dela — observou Kelly, com amargura. Sentia-se traído. Começara a se
apaixonar de novo e agora tinha que encarar o fato de que talvez estivesse oferecendo o coração
às drogas ou ao que as drogas tinham feito do que poderia ter sido uma pessoa. Tudo isso
parecia uma enorme perda de tempo.
Rosen tornou-se mais severo.
— Pode ser, mas pode ser que dependa de você, também, pelo menos um pouco, e se começar
a agir como um idiota, não estará ajudando em nada.
Kelly estava admirado com a sensatez das palavras do outro.
— Você deve ser um bom médico.
— Sou mesmo — concordou Rosen. — Este não é o meu campo, mas Sarah é uma boa
médica, também. Pode ser que vocês estejam com sorte. Ela não é nenhuma criminosa, John.
Alguma coisa a incomoda. Está muito nervosa, caso você não tenha notado.
— Claro que notei, mas... — alguma parte do cérebro de Kelly disse: Viu?
— Mas se interessou mais pelo fato de que ela é bonita. Eu também já senti o que você está
sentindo, John. Vamos, temos muito trabalho pela frente. — Parou ao ver a expressão de Kelly.
— Existe mais alguma coisa. O que é?
— Perdi minha mulher há menos de um ano. — Kelly levou um minuto ou dois para explicar
o que acontecera.
— E você pensou que talvez essa moça...
— Isso mesmo. Fui muito ingênuo, não acha? — O próprio Kelly não sabia por que estava se
abrindo daquela forma. Por que não deixar Pam fazer o que quisesse? Mas essa não seria a
solução. Se fizesse isso, estaria usando a moça para as suas necessidades, descartando-a
quando não servisse para mais nada. Apesar dos reveses que sofrera no último ano, não podia
fazer isso, não era esse tipo de homem. Percebeu que Rosen estava olhando de novo fixamente
para ele.
Rosen sacudiu a cabeça, pensativo.
— Todos nós temos nossos pontos fracos. Você tem o treinamento e a experiência para lidar
com os seus problemas. Ela, não. Vamos, temos muito trabalho a fazer. — Rosen tomou o
carrinho nas mãos delicadas e começou a empurrá-lo na direção do parapeito.
O ar fresco no interior foi uma rajada surpreendentemente áspera de realidade. Pam estava
tentando fazer as honras da casa, sem muito sucesso. Talvez Sarah tivesse atribuído o fato à
complicada situação social, mas as mentes dos médicos estão sempre trabalhando, e ela
começava a olhar para a pessoa a sua frente com olhos profissionais. Quando Sam entrou na
sala, a esposa endereçou-lhe um olhar que Kelly foi capaz de compreender.
— ...e assim, saí de casa quando tinha dezesseis anos — estava dizendo Pam, em um tom
monótono que revelava mais do que ela pensava. Seus olhos se voltaram, também, fixando-se na
mochila que Kelly tinha nas mãos. Sua voz tinha um traço de fragilidade que ele não notara
antes.
— Ah, ótimo. Preciso de uma coisa que está aí dentro. — Pam aproximou-se, tirou o fardo
das mãos de Kelly e foi para o quarto. Kelly e Rosen esperaram que ela saísse e depois Sam
entregou à esposa o vidro de remédio. Ela compreendeu imediatamente do que se tratava.
— Eu não sabia — declarou Kelly, sentindo necessidade de defender-se. — Não a vi tomar
nada enquanto estava comigo. — Pensou um pouco, tentando lembrar-se das vezes em que a
moça ficara sozinha, e chegou à conclusão de que provavelmente tinha tomado pílulas duas ou
três vezes. Percebeu, então, o que significava aquela expressão sonhadora.
— Sarah? — perguntou Sam.
— Trezentos miligramas. Pode não ser um caso grave, mas ela precisa de ajuda.
Logo depois, Pam entrou na sala, dizendo a Kelly que esquecera alguma coisa no barco. Suas
mãos não tremiam, mas apenas porque as mantinha juntas para evitar que tremessem. Era óbvio,
agora que sabiam. A jovem estava tentando controlar-se, e quase conseguindo, mas Pam não era
nenhuma atriz.
— É isto aqui que está procurando? — perguntou Kelly. Mostrou o vidro à moça. Sua
recompensa pela pergunta áspera foi como uma merecida facada no coração.
Pam ficou alguns segundos sem responder. Seus olhos se fixaram no vidro marrom e a
primeira coisa que Kelly viu foi uma expressão faminta, como se em pensamento já estivesse
estendendo a mão para o recipiente, tirando uma ou mais cápsulas, antecipando o prazer que
extraía daquela maldita droga, sem se importar ou mesmo notar que havia outras pessoas
presentes. Depois veio a vergonha, a consciência de que a imagem que tentara passar para os
outros estava sendo rapidamente demolida. Mas o pior foi quando, depois de passar por Sam e
Sarah, seu olhar se concentrou novamente em Kelly, oscilando entre a mão e o rosto do rapaz. A
princípio, o desejo competiu com a vergonha, mas a vergonha venceu, e quando seus olhos
encontraram os de Kelly, a expressão da moça se tornou a de uma criança apanhada em falta,
para logo se transformar em algo diferente, ao compreender que o que poderia ter se
transformado em amor estava se transformando em desprezo e repugnância. Sua respiração
mudou, tornando-se mais rápida e depois irregular quando começaram os soluços e Pam
percebeu que a maior repugnância estava dentro dela própria, pois até mesmo um viciado em
drogas precisa encarar a si mesmo, e fazê-lo através dos olhos dos outros serve apenas para
tornar as coisas mais difíceis.
— S-s-into m-muito, Ke-Kelly. Eu n-não que-queria que soubesse que eu sou... — começou,
mas não conseguiu terminar. Pam pareceu encolher diante dos olhos deles quando viu o que
podia ser uma oportunidade de recomeçar a vida se evaporar, deixando apenas o desespero.
Pam virou o rosto, soluçando, incapaz de encarar o homem que começara a amar.
Estava na hora de John Terrence Kelly tomar uma decisão. Podia se sentir traído ou podia
mostrar a mesma compaixão que ela mostrara por ele há menos de vinte horas. Mais do que
tudo, o que o fez decidir foi a forma como a jovem olhara para ele, a vergonha tão evidente em
sua expressão. Não podia ficar ali parado. Tinha que fazer alguma coisa, ou a boa imagem que
fazia de si mesmo se dissolveria tão rapidamente quanto a de Pam.
Os olhos de Kelly também ficaram cheios d'água. Ele se aproximou e abraçou a jovem como
se ela fosse uma criança, encostando a cabeça dela em seu peito, porque agora estava na hora de
ser forte por ela, de pôr de lado, por um tempo, todo os maus pensamentos, e mesmo a parte
dissonante de sua mente se recusou a dizer bem que eu avisei nesse momento, porque havia
alguém sofrendo em seus braços e isso era tudo o que importava. Ficaram assim durante alguns
minutos enquanto o casal de médicos os observava com uma mistura de constrangimento pessoal
e interesse profissional.
— Tentei largar — afirmou Pam, afinal. — É verdade... mas estou tão assustada!
— Está tudo bem — disse Kelly, sem compreender muito bem as palavras da moça. — Você
me apoiou, e agora chegou a minha vez de apoiá-la.
— Mas... — Pam começou de novo a chorar e levou quase um minuto para prosseguir. —
Não sou quem você pensa.
Kelly se permitiu um leve sorriso enquanto prosseguia, ignorando a segunda advertência.
— Você não sabe o que eu penso, Pammy. Está tudo bem. De verdade. — Estava tão
preocupado com a moça que não notou que Sarah Rosen havia se aproximado.
— Pam, que acha de darmos uma volta? — Pam fez que sim com a cabeça e Sarah a levou
para fora, deixando Kelly e Sam sozinhos.
— Você é um cavalheiro — anunciou Rosen, satisfeito por constatar que a avaliação que
fizera anteriormente do caráter de Kelly estava correta. — Qual é a cidade mais próxima que
dispõe de uma farmácia?
— Solomons, acho. Ela não deveria ser internada?
— A palavra final será de Sarah, mas acho que não vai ser necessário.
Kelly olhou para o vidro que ainda tinha nas mãos.
— É melhor jogar fora esta porcaria.
— Não — protestou Rosen. — Deixe-as comigo. A polícia talvez possa descobrir de onde
vieram. Vou guardá-las no meu barco.
— O que fazemos agora?
— Esperamos.
Vinte minutos depois, Sarah e Pam voltaram de mãos dadas, como mãe e filha. Pam
caminhava de cabeça erguida, embora os olhos ainda estivessem úmidos.
— Ela é uma lutadora, rapazes — anunciou Sarah. — Está tentando largar há um mês, sem
ajuda de ninguém.
— Ela me disse que não é difícil — comentou Pam.
— Podemos tornar tudo muito mais fácil — assegurou-lhe Sarah. Passou um papel para o
marido. — Precisamos encontrar uma farmácia. John, vá aprontar o barco. Já.
— O que vamos fazer? — perguntou Kelly, trinta minutos e oito quilômetros mais tarde.
Solomons era uma linha verde e amarela no horizonte, a noroeste.
— A receita é simples. Vamos tratá-la com barbitúricos e reduzir aos poucos a dose.
— Pretendem tratá-la com drogas para livrá-la do vício das drogas?
— Isso mesmo. — Rosen fez que sim com a cabeça. — É assim que fazemos. O corpo leva
algum tempo para se livrar dos resíduos do tóxico. Ele se torna dependente, de modo que se um
viciado é privado subitamente dessas substâncias sofre efeitos adversos, como convulsões, esse
tipo de coisa. Uma vez ou outra, os efeitos chegam a ser fatais.
— O quê? — exclamou Kelly, alarmado. — Eu não sabia disso, Sam.
— Por que deveria saber? É o nosso trabalho, Kelly. Sarah acha que não vai ser um caso
difícil. Relaxe, John. Vamos tratá-la com... — Rosen tirou a lista do bolso — ...isso mesmo.
Como eu pensava. Vamos tratá-la com fenobarbital para atenuar os efeitos da abstinência.
Escute, você sabe como pilotar um barco, não sabe?
— Sei — concordou Kelly, sabendo o que viria a seguir.
— Deixe-nos fazer o nosso trabalho. OK?

O civil não estava com muito sono, como os homens da Guarda Costeira, contrariados,
tiveram ocasião de constatar. Antes que pudessem se recuperar das aventuras da véspera, estava
novamente de pé, tomando café na sala de operações, examinando de novo os mapas, usando a
mão para descrever círculos, que comparava com o curso do barco de patrulha.
— Qual é a velocidade máxima de um barco a vela? — perguntou a um sorumbático Manuel
Oreza.
— Daquele barco? Não é muito grande. Com uma brisa constante e mar calmo, cinco nós,
talvez. Um pouco mais, se o piloto for experiente. A regra prática é a seguinte: a velocidade
máxima é igual a um vírgula três vezes a raiz quadrada do comprimento do casco na linha-
d'água. No caso que estamos discutindo, isso quer dizer cinco ou seis nós. — Esperava que o
civil ficasse impressionado com essa demonstração de conhecimento náutico.
— Estava ventando muito a noite passada — observou o civil, de mau humor.
— Um barco pequeno não viaja mais depressa quando o mar está agitado, e sim mais
devagar. Isso porque passa mais tempo indo para cima e para baixo do que para a frente.
— Nesse caso, como conseguiu escapar de você?
— Ele não escapou de mim, está bem? — Oreza não sabia ao certo quem era aquele sujeito
nem qual a sua posição na hierarquia, mas não aceitaria esse tipo de provocação de um oficial
de verdade... se bem que um oficial de verdade não o provocaria daquela forma; um oficial de
verdade ouviria suas explicações e entenderia. O suboficial respirou fundo, desejando, para
variar, que houvesse um oficial presente para explicar as coisas. Os civis escutavam os oficiais,
o que revelava muita coisa a respeito da inteligência dos civis. — Foi o senhor que me disse
para esperar, não foi? Eu avisei que poderíamos perdê-lo no meio da tempestade, e foi o que
aconteceu. Esses velhos radares que usamos não valem nada com mau tempo, pelo menos no
caso de um alvo ridiculamente pequeno como aquele barco a vela.
— Você já disse isso.
E vou continuar repetindo até entrar na sua cabeça, Oreza teve que se conter para não
dizer, depois de captar um olhar de advertência de English. Portagee suspirou e olhou para o
mapa.
— Onde acha que ele está?
— Diabo, a baía não é tão larga assim, de modo que temos dois litorais para investigar. A
maioria das casas possui ancoradouros e existem todos esses canais. Se fosse eu, entraria em
um dos canais. São um esconderijo melhor do que um ancoradouro, certo?
— Está me dizendo que o perdemos? — observou o civil, de cara feia.
— Acho que sim — concordou Oreza.
— Três meses de trabalho jogados fora!
— Não há nada que se possa fazer. — O suboficial fez uma pausa. — Escute, ele
provavelmente foi para leste, e não para oeste, certo? Não seria louco de navegar contra o
vento. Até aí, tudo bem. O problema é que um barco pequeno como aquele pode ser tirado da
água, colocado em um reboque. A esta altura, poderia estar em Massachusetts.
O civil levantou os olhos do mapa.
— Droga. É exatamente o que eu queria ouvir!
— Quer que eu minta para o senhor?
— Três meses!
Ele não consegue aceitar a derrota, pensaram Oreza e English ao mesmo tempo. Era algo
que os dois tinham aprendido. O mar tomava uma coisa; você procurava com todo o empenho, e
na maioria das vezes encontrava, mas nem sempre. Às vezes, chegava uma hora em que era
preciso reconhecer que o mar levara a melhor. Nenhum dos dois gostava disso, mas era assim
que eram as coisas.
— Talvez o senhor possa conseguir um helicóptero para prosseguir com as buscas. A Marinha
tem uma base em Pax River — observou o suboficial English. A sugestão serviria para colocar
o sujeito para fora da estação, um objetivo que valia a pena perseguir com todo o empenho,
dado o incômodo que estava causando a English e seus homens.
— Está tentando se livrar de mim? — perguntou o civil, com um sorriso irônico.
— Como assim? — perguntou English, com fingida inocência. Uma pena, pensou o
suboficial, que o homem não seja um idiota total.

Kelly estava de volta ao seu ancoradouro pouco depois das sete. Deixou que Sam levasse os
remédios para terra enquanto cobria os painéis de instrumentos e preparava o barco para a
noite. A viagem de volta de Solomons tinha sido tranquila. Sam Rosen tinha facilidade para
explicar as coisas e Kelly era um bom perguntador. O que precisava saber descobrira durante a
viagem de ida; na volta, ficara a maior parte do tempo sozinho com seus pensamentos,
imaginando o que faria a seguir. Não era uma pergunta fácil de responder, e cuidar das tarefas
de bordo não o ajudou a pôr as ideias em ordem, como esperava que acontecesse. Levou mais
tempo que o necessário para verificar as amarras e fez o mesmo com o barco do médico antes
de se dirigir para a casa.

O Lockheed DC-130E Hercules voava bem acima da camada de nuvens, com tanta suavidade
e segurança quanto nas 2.354 horas de voo registradas desde que deixara a fábrica da Lockheed
em Marietta, Georgia, fazia alguns anos. Um dia agradável para voar, sob todos os aspectos. Na
espaçosa cabine, a tripulação de quatro homens observava o céu azul e os vários instrumentos
de bordo, como mandava o regulamento. Os quatro motores turboélices funcionavam com a
confiabilidade de costume, imprimindo à aeronave uma vibração constante que se transmitia aos
confortáveis bancos de espaldar alto e criava ondas circulares nos copos de café de isopor. No
conjunto, a atmosfera era de total normalidade. Qualquer um que observasse o exterior da
aeronave, porém, teria impressão oposta. Aquele avião fazia parte da 99ª Esquadrilha de
Reconhecimento Estratégico.
Atrás dos motores externos de cada asa do Hercules estavam pendurados dois pequenos
drones, aviões sem piloto, modelo 147SC. Projetados para servirem como alvos de alta
velocidade com o nome de Firebee-H, agora eram conhecidos pelo nome informal de "Caçador
de Búfalos". No compartimento de carga do DC-130E viajava uma segunda equipe que estava
agora abastecendo os dois aviões, depois de programá-los para uma missão tão secreta que
nenhum deles sabia do que se tratava. Não precisavam saber. Era simplesmente uma questão de
informar aos drones o que fazer e quando. O técnico-chefe, um sargento de trinta e um anos,
estava trabalhando em um pássaro cujo nome de código era Cody-193. O seu posto de trabalho
lhe permitia virar a cabeça e olhar por uma pequena vigia para inspecionar visualmente o
pássaro, o que fez, embora não houvesse um motivo real para fazê-lo. O sargento gostava
daquelas máquinas da mesma forma que uma criança apreciaria um brinquedo particularmente
engenhoso. Estava no programa de drones há dez anos; ajudara a lançar aquele drone em
particular sessenta e uma vezes, o que constituía um recorde.
O Cody-193 tinha um antepassado famoso. A fábrica que o construíra, a Teledyne-Ryan, de
San Diego, Califórnia, era a mesma que havia fabricado o Spirit of St. Louis. Entretanto, por
algum motivo, esse marco na história da aviação não contribuíra significativamente para o
progresso da companhia. Depois de conseguir, com esforço, alguns pequenos contratos, ela
finalmente atingira a almejada estabilidade financeira dedicando-se à produção de alvos. Nos
voos de treinamento, os aviões de caça tinham que praticar atirando em alguma coisa. O drone
Firebee nasceu exatamente assim, jato em miniatura cuja missão era morrer gloriosamente nas
mãos de um piloto de caça... só que o sargento jamais encarara as coisas dessa forma. Ele era
um controlador de alvos e seu trabalho, da forma como o via, consistia em ensinar uma lição
àqueles pilotos emproados, dirigindo o "seu" pássaro de tal forma que os mísseis jamais
acertassem o alvo. Por essa razão, os pilotos de caça o detestavam, embora a etiqueta da força
aérea os obrigasse a pagar-lhe uma garrafa de bebida cada vez que erravam. Então, alguns anos
antes, alguém comentara que se o Firebee era tão difícil de ser atingido pelos pilotos
americanos, o mesmo talvez acontecesse quando outros tentassem derrubá-lo por razões mais
sérias do que vencer a competição anual de tiro ao alvo. As tripulações das aeronaves de
reconhecimento adoraram a ideia.
O motor do Cody-193 estava funcionando com potência máxima, acrescentando alguns nós à
velocidade da nave-mãe. O sargento olhou para ele uma última vez antes de voltar sua atenção
para os instrumentos. Havia sessenta e um pequenos símbolos de paraquedas pintados do lado
esquerdo da fuselagem, logo à frente da asa, e, com sorte, em poucos dias estaria pintando o
sexagésimo segundo. Embora não conhecesse a natureza exata da missão, superar o adversário
era estímulo suficiente para que preparasse seu brinquedo pessoal com o máximo cuidado para
o jogo em curso.
— Cuide-se bem, rapaz — murmurou o sargento ao liberar o drone. O Cody-193 estava
entregue à própria sorte.

Sarah estava preparando um jantar leve. Kelly sentiu o cheiro antes mesmo de abrir a porta.
Entrou e viu Rosen sentado na sala de estar.
— Onde está Pam?
— Tomou remédio há pouco — respondeu Sam. — Deve estar dormindo.
— Está, sim — confirmou Sarah, passando pela sala a caminho da cozinha. — Acabo de ver.
Coitadinha, está exausta. Passou várias noites em claro. Precisa repousar.
— Mas se estava tomando pílulas para dormir...
— John, nosso corpo tem reações estranhas — explicou Sam. — Ele reage às drogas, ou pelo
menos tenta combater seus efeitos, ao mesmo tempo em que se torna dependente delas. Pam vai
ter dificuldade para dormir por um bom tempo.
— Há mais uma coisa — afirmou Sarah. — Ela está muito assustada com algo, mas não quis
me contar o que é. — Fez uma pausa, depois decidiu que Kelly tinha o direito de saber. — Ela
foi humilhada, John. Preferi não tocar no assunto, uma coisa de cada vez, mas alguém a tratou
muito mal.
— Oh? — fez Kelly, levantando os olhos do sofá. — O que quer dizer com isso?
— Quero dizer que ela sofreu uma agressão sexual — declarou Sarah, em uma voz calma e
profissional que não combinava com seus sentimentos pessoais.
— Quer dizer que ela foi estuprada? — perguntou Kelly, em voz baixa, enquanto os músculos
dos seus braços se retesavam.
Sarah fez que sim com a cabeça, sem poder mais disfarçar a revolta que sentia.
— É quase certo. Provavelmente mais de uma vez. Além disso, há sinais nas costas e nas
nádegas de que foi espancada.
— Não notei nada.
— Você não é médico — observou Sarah. — Como vocês se conheceram?
Kelly contou, lembrando-se do olhar mortiço de Pam e conhecendo agora a sua causa. Por
que não notara antes? Por que não notara um monte de coisas?
— De modo que ela estava tentando fugir... será que foi o mesmo homem que a viciou em
barbitúricos? — cismou Sarah. — Deve ser um tipo muito simpático.
— Está me dizendo que alguém abusou de Pam e a viciou em drogas? — perguntou Kelly. —
Mas por quê?
— Kelly, por favor, não me leve a mal... mas talvez Pam seja uma prostituta. Os proxenetas
controlam as moças dessa forma. — Sarah Rosen se odiou por dizer isso, mas Kelly tinha que
saber. — Ela é jovem, bonita e fugiu de casa. As agressões, a subnutrição, tudo combina.
Kelly baixou os olhos.
— Ela não é assim. Não compreendo. — Estava mentindo a si mesmo, pensou. A forma como
a moça despertara o seu desejo, o modo como tomara a iniciativa. Quanto daquilo era
simplesmente habilidade e quanto traduzia suas reais emoções? Era uma questão que preferia
não encarar. Qual a coisa certa a fazer? Seguir a sua mente? Seguir o seu coração? E aonde isso
levaria?
— Ela está disposta a reagir, John. Ela é corajosa. — Sarah sentou-se em frente a Kelly. —
Está nas ruas há mais de quatro anos, fazendo Deus sabe o que, mas ainda não desistiu de lutar.
Entretanto, não pode fazer isso sozinha. Precisa de você. Agora quero uma resposta sincera. —
Sarah olhou firme para ele. — Está disposto a ajudá-la?
Os olhos azuis de Kelly tinham a cor do gelo enquanto ele tentava analisar as próprias
emoções.
— Vocês dois estão realmente levando este caso a sério, não é?
Sarah tomou um gole da bebida que preparara. Era uma mulher baixinha, gorda e atarracada.
Fazia meses que os cabelos pretos não viam um cabeleireiro. O tipo de mulher que, ao volante
de um carro, desperta o ódio dos motoristas do sexo oposto. Entretanto, tinha um modo
apaixonado de falar e seus argumentos eram sempre lógicos.
— Faz ideia da gravidade que o problema está assumindo? Há dez anos, o número de
viciados em drogas era tão pequeno que eu raramente pensava no assunto. Oh, claro, eu sabia
que havia viciados, lia os artigos vindos de Lexington e de vez em quando tínhamos um caso de
heroína. De vez em quando. Era um problema dos negros, diziam as pessoas. Ninguém se
interessou de verdade. Agora estamos pagando por esse erro. Caso não tenha notado, as coisas
mudaram — e isso aconteceu praticamente da noite para o dia. Tirando o projeto em que estou
trabalhando, passo o tempo todo cuidando de crianças com problemas de drogas. Não fui
treinada para isto. Sou uma cientista especializada em interações adversas, estruturas químicas,
como podemos projetar novas drogas para usos específicos. Agora, porém, tenho que passar a
maior parte do tempo no hospital tentando manter vivas crianças que deveriam estar começando
a beber cerveja mas em vez disso se envenenam com uma porcaria que jamais deveria ter saído
do laboratório!
— E a coisa vai piorar — acrescentou Sam, sombriamente.
Sarah assentiu.
— Oh, sim, a cocaína vem aí com toda a força. Ela precisa de você, John — afirmou Sarah,
inclinando-se para a frente. Era como se estivesse cercada por uma nuvem carregada de
eletricidade. — Não a decepcione. Alguém fez uma grande sujeira com Pam, mas ela está
lutando. Há uma pessoa ali dentro.
— Sim, senhora — disse Kelly, com toda a humildade. Levantou os olhos e sorriu. Não se
sentia mais confuso. — Não precisa se preocupar. Já me decidi faz algum tempo.
— Ótimo — concordou Sarah, laconicamente.
— O que devo fazer?
— Mais do que qualquer coisa, ela precisa de descanso, boa alimentação e tempo para
eliminar os barbitúricos do sangue. Vamos continuar ministrando fenobarbital por algum tempo,
para prevenir sintomas de abstinência, mas acho que esse é o menor dos nossos problemas.
Examinei-a enquanto vocês dois não estavam. Os problemas de saúde de Pam se devem mais ao
cansaço e à desnutrição do que ao vício. Ela precisa ganhar uns cinco quilos. Vai tolerar muito
bem os sintomas de abstinência, se pudermos apoiá-la de outras formas.
— Está se referindo a mim? — perguntou Kelly.
— Principalmente a você. — Sarah olhou para a porta aberta de quarto e suspirou, relaxando
um pouco. — Bem, dadas as condições em que se encontra, o fenobarbital provavelmente a fará
dormir o resto da noite. Amanhã vamos começar um programa de exercícios e
superalimentação. Por hoje — anunciou Sarah —, é melhor cuidarmos dos nossos estômagos.
Durante o jantar, a conversa se concentrou deliberadamente em outros assuntos. Kelly se
surpreendeu fazendo um longo discurso a respeito da topografia do fundo da baía de
Chesapeake, seguido pelo que ele sabia a respeito dos melhores lugares para pesca. Logo ficou
decidido que os visitantes ficariam até segunda-feira à noite. O tempo foi passando e eram
quase dez horas quando se levantaram. Kelly tirou a mesa e depois entrou silenciosamente no
quarto para ouvir a respiração compassada de Pam.

Com apenas quatro metros de comprimento e uma massa de 1.400 quilos — da qual mais da
metade era combustível —, o Caçador de Búfalos mergulhou em direção ao solo enquanto
acelerava até atingir uma velocidade de mais de quinhentos nós. O computador de navegação,
fabricado pela Lear-Siegler, monitorava o tempo e a altitude, embora de forma limitada. O
drone era programado para seguir uma trajetória específica, cuidadosamente determinada por
sistemas que, pelos padrões atuais, seriam considerados absurdamente primitivos. Apesar
disso, o Cody-193 era uma máquina de rara beleza. Seu perfil lembrava o de um tubarão-azul,
com um focinho saliente e uma tomada de ar na parte inferior que fazia as vezes de boca — nos
Estados Unidos, costumavam pintar uma fila ameaçadora de dentes na fuselagem. Naquele
aparelho em particular, uma pintura especial — branca na parte de baixo, com manchas verdes e
marrons na de cima — tinha sido usada para dificultar sua localização tanto da terra quanto do
ar. Era também quase invisível ao radar. As superfícies das asas tinham sido revestidas com um
material que absorvia micro-ondas e a entrada de ar era coberta por uma tela para atenuar a
reflexão das ondas de radar pelas pás da turbina.
O Cody-193 cruzou a fronteira entre o Laos e o Vietnã do Norte às 11:41:38, hora local.
Nivelou pela primeira vez a cento e cinquenta metros de altura e rumou para nordeste,
diminuindo um pouco de velocidade agora que a densidade do ar, próximo ao solo, era maior. A
baixa altitude e o pequeno tamanho da aeronave tornavam-na um alvo difícil, mas não
impossível, e as posições mais avançadas do sofisticado sistema de defesa aérea do Vietnã do
Norte a localizaram. O Cody-193 voou em direção a uma recém-instalada bateria dupla de
37mm, cuja guarnição foi suficientemente ágil para girar os canhões e disparar vinte salvas, três
das quais passaram a poucos metros do alvo. A aeronave não tomou conhecimento dos disparos
e não tentou se esquivar ao fogo. Desprovida de cérebro, desprovida de olhos, continuou na
mesma trajetória, como um trem de brinquedo circulando em torno de uma árvore de Natal
enquanto seu novo dono tomava café na cozinha. Na verdade, estava sendo observado. Um
distante EC-121 Warning Star rastreava o 193 através de um transponder localizado no leme
vertical da aeronave.
— Continue assim, garoto — murmurou um major, observando a tela do radar. Conhecia a
missão, sabia como era importante e também por que ninguém mais deveria ter conhecimento de
sua existência. A seu lado estava o pequeno segmento de um mapa topográfico. O drone rumou
para o norte no momento correto, descendo para cem metros ao encontrar o vale correto,
acompanhando o curso de um pequeno afluente. Pelo menos os caras que o programaram sabiam
o que estavam fazendo, pensou o major.
A essa altura, o Cody-193 tinha queimado um terço do combustível e estava consumindo
rapidamente o restante, voando abaixo dos cumes invisíveis das montanhas à esquerda e à
direita. Os programadores tinham feito um bom serviço, mas mesmo assim a missão quase foi
por terra quando uma rajada de vento desviou a aeronave para a direita, fazendo-a passar a
menos de vinte metros de uma gigantesca árvore antes que o piloto automático tivesse tempo de
corrigir o curso. Dois milicianos que estavam nas proximidades dispararam seus fuzis, sem
sucesso. Um deles fez menção de sair correndo em busca de um telefone, mas o companheiro o
deteve com um grito, enquanto o 193 seguia em frente, sem tomar conhecimento da presença da
dupla. Até conseguirem se comunicar com a base, argumentou, a aeronave inimiga já estaria
longe. Além disso, tinham cumprido seu dever, tentando derrubá-la.

O coronel Robin Zacharias, da Força Aérea dos Estados Unidos, caminhava no que em outra
época e outras circunstâncias poderia ser chamado de campo de parada, mas ali não havia
desfiles de tropas. Prisioneiro há mais de seis meses, encarava cada dia como um desafio,
enfrentando um sofrimento mais negro e profundo do que qualquer coisa que jamais imaginara.
Tinha sido derrubado na sua octogésima nona missão, às vésperas de voltar para casa, uma
missão bem-sucedida transformada em desastre por nada mais significativo do que uma
sucessão de azares. Pior ainda, o seu "urso" estava morto. E talvez ele fosse o mais feliz dos
dois, pensou o coronel, enquanto atravessava a base escoltado por dois homens baixinhos, mal-
encarados, armados com fuzis. Estava com os braços amarrados atrás das costas e os tornozelos
acorrentados; mesmo assim, era vigiado o tempo todo pelos sentinelas das torres. Os pequenos
filhos da mãe morrem de medo de mim, pensou o piloto de caça.
Zacharias não se sentia nada perigoso. As costas estavam machucadas desde que acionara o
mecanismo de ejeção. Chegara ao solo quase sem poder andar e o esforço para evitar a captura
tinha sido pouco mais do que um gesto simbólico, cem metros de movimento em um período de
cinco minutos, para cair diretamente nos braços da guarnição da bateria antiaérea que abatera
sua aeronave.
A humilhação começara ali. Depois de passar por três aldeias, de ser cuspido e apedrejado,
acabara no lugar onde se encontrava. Onde quer que fosse esse lugar. Havia pássaros marinhos.
Talvez estivesse perto do mar, especulou o coronel. Mas a praça de Salt Lake City, a alguns
quarteirões do lugar onde morava quando criança, o fez lembrar que as gaivotas nem sempre
eram criaturas do mar. Durante meses tinha sido submetido a todo tipo de maus-tratos, mas nas
últimas semanas, estranhamente, as coisas tinham melhorado um pouco. Talvez estivessem
cansados de torturá-lo. E talvez Papai Noel existisse, disse Zacharias a si mesmo, olhando para
o chão de terra. Praticamente não tinha o que fazer ali. Havia outros prisioneiros, mas as
tentativas de se comunicar com eles fracassaram. A cela que ocupava era desprovida de janelas.
Tinha visto apenas dois rostos, dois rostos desconhecidos. Nas duas ocasiões, abriu a boca para
cumprimentá-los e imediatamente foi agredido e derrubado no chão por um dos guardas. Os dois
homens o viram, mas não disseram nada. Limitaram-se a sorrir e cumprimentá-lo com a cabeça.
Pareciam ser da sua idade e, supostamente, tinham uma patente igual a sua, mas isso era tudo o
que sabia. O mais assustador, para um homem que tinha muitos motivos para ficar assustado, era
que não tinha sido levado para o lugar onde, de acordo com todas as informações, deveria ter
sido levado. Ali certamente não era o Hilton de Hanói, o lugar onde os norte-vietnamitas
supostamente concentravam todos os prisioneiros de guerra. Fora isso, não sabia absolutamente
nada, e o desconhecido pode ser extremamente assustador, especialmente para um homem
acostumado, durante um período de vinte anos, a ser o senhor absoluto de seu destino. O único
consolo, pensou, era que as coisas estavam tão ruins que não podiam piorar. Logo descobriu que
estava enganado.
— Bom dia, coronel Zacharias — chamou uma voz. Levantou a cabeça e se deparou com um
homem mais alto do que ele, branco, e que usava um uniforme muito diferente do dos guardas. O
homem se aproximou com um sorriso. — Muito diferente de Omaha, não é?
Foi então que ouviu um ruído, um silvo agudo, vindo de sudoeste. Virou-se instintivamente —
um aviador sempre se interessa por aviões, esteja onde estiver. Ele apareceu logo depois, antes
que os guardas tivessem tempo de reagir.
É o Caçador de Búfalos, pensou Zacharias, aprumando-se, virando-se para vê-lo passar,
levantando a cabeça, vendo o retângulo escuro da janela da câmera, rezando para que o
aparelho estivesse funcionando. Quando os guardas perceberam o que ele estava fazendo,
golpearam-no no quadril com a coronha de um fuzil, fazendo-o cair. Engolindo uma imprecação,
tentou resistir à dor enquanto um par de botas aparecia em seu restrito campo de visão.
— Não fique muito excitado — disse o homem branco. — Ele está indo para Haiphong,
espionar os navios. Agora, meu amigo, precisamos nos conhecer melhor.
O Cody-193 continuou na direção nordeste, mantendo velocidade e altitude praticamente
constantes enquanto entrava no cinturão de defesa aérea que protegia o único porto importante
do Vietnã do Norte. As câmeras do Caçador de Búfalos registraram várias baterias antiaéreas,
pontos de observação e muitos soldados com rifles AK-47, todos os quais dispararam pelo
menos um tiro contra o drone, nem que fosse para constar. A única coisa que o Cody-193 tinha a
seu favor era o tamanho reduzido; continuou a voar em linha reta, enquanto as câmeras
funcionavam febrilmente, registrando as imagens em filme de 2,25 polegadas. A única coisa que
não dispararam contra ele foram mísseis terra-ar: Cody-193 estava voando baixo demais para
isso.
— É isso aí, garoto! — murmurou o major, a trezentos quilômetros de distância. Do lado de
fora, os quatro motores a pistão do Warning Star lutavam para manter uma altitude suficiente
para que o major pudesse acompanhar o progresso do drone. Seus olhos estavam grudados na
tela, acompanhando o ponto intermitente do transponder de radar. Outros controladores faziam o
mesmo com outras aeronaves americanas que também estavam em território inimigo, em
constante comunicação com o Red Crown, o navio da Marinha que comandava do mar as
operações aéreas. — Vire para leste, garoto... agora!
No momento certo, o Cody-193 fez uma curva fechada para a direita, diminuindo ligeiramente
de altitude e passando pelas docas de Haiphong a 500 nós, perseguido por centenas de projéteis
luminosos. Estivadores e marinheiros de vários navios levantaram os olhos com curiosidade,
irritação e mesmo um certo medo para assistir à passagem do pássaro metálico.
— Sucesso! — exclamou o major, alto o suficiente para que o sargento-controlador à
esquerda olhasse para ele de cara feia. Era proibido fazer barulho naquela sala. O major
apertou o botão do microfone para falar com o Red Crown. — Bingo para o Cody-um-nove-três.
— Roger, bingo para um-nove-três — responderam do navio. Era um uso inadequado da
palavra de código "bingo", que normalmente significava uma aeronave com pouco combustível,
mas era um termo tão comum que constituía um disfarce mais do que adequado. O pessoal do
navio logo tratou de alertar a tripulação de um helicóptero que sobrevoava a área.
O Cody-193 chegou à costa na hora prevista e continuou voando baixo por mais alguns
quilômetros antes de iniciar a subida final, consumindo quase todo o combustível restante para
atingir o ponto programado, a cinquenta quilômetros do litoral, onde começou a voar em
círculos. Nesse momento entrou em funcionamento um segundo transponder, sintonizado para os
radares de busca dos navios de patrulha da Marinha americana. Um deles, o destróier Henry B.
Wilson, localizou o alvo na posição esperada. O pessoal dos mísseis aproveitou a oportunidade
para praticar a rotina de interceptação, mas teve que desligar os radares de iluminação depois
de alguns segundos, porque o pessoal de resgate estava ficando nervoso.
Circulando a mil e quinhentos metros de altitude, o Cody-193 finalmente ficou sem
combustível e transformou-se em um planador. Quando a velocidade do ar caiu abaixo de um
determinado valor, cargas explosivas fizeram abrir um alçapão na parte superior da fuselagem,
liberando um paraquedas. O helicóptero da Marinha já estava a postos e não teve nenhuma
dificuldade para localizar o paraquedas branco. Àquela altura, a aeronave pesava apenas
setecentos quilos, o equivalente ao peso de uns oito homens. O vento e a visibilidade também
estavam colaborando. O paraquedas foi pescado na primeira tentativa e o helicóptero se dirigiu
para o porta-aviões USS Constellation, onde o Cody-193 foi cuidadosamente baixado em um
berço, encerrando assim a sua sexagésima segunda missão de combate. Antes que o helicóptero
tivesse tempo de pousar, um técnico já estava abrindo a tampa do compartimento da câmera e
removendo o pesado cartucho de filme. Levou-o imediatamente para o sofisticado laboratório
fotográfico do navio, onde o entregou a outro técnico. O processamento levou apenas seis
minutos; o filme, ainda úmido, foi enviado a um oficial de informações. O filme foi passado de
um carretel para outro sobre uma placa de vidro sob a qual havia um par de lâmpadas
fluorescentes.
— E então, tenente? — perguntou um capitão, com voz tensa.
— Espere um momento, senhor. — Fazendo girar o carretel, apontou para a terceira chapa. —
Aqui está nosso primeiro ponto de referência... aqui está o segundo... ele estava bem no curso...
muito bem, aqui está o ponto inicial. Seguiu o vale, passou pelo último morro... aqui está,
senhor! Temos duas, três chapas! Muito boas. O sol estava na posição ideal, a visibilidade era
excelente... sabe por que chamam essas belezinhas de Caçadores de Búfalos? É...
— Deixe ver! — O capitão quase empurrou o oficial júnior para o lado. Havia um homem na
foto, um americano, com dois guardas, e um quarto homem... mas era no americano que estava
interessado.
— Tome, senhor. — O tenente passou-lhe uma lente de aumento. — Acho que dá para ver o
rosto do homem. Mais tarde, podemos fazer uma ampliação. As fotos tiradas por essas câmeras
têm excelente resolução...
— Hmmmm... — O rosto no negativo estava escuro, o que sugeria um homem branco. Mas...
— Droga, não tenho certeza.
— Capitão, este é o nosso trabalho, certo? — Ele era oficial de informações; o capitão, não.
— Deixe por nossa conta.
— Mas ele é um dos nossos!
— Também acho, senhor. Deixe-me levar o filme de volta para o laboratório para fazer
cópias e ampliações. O comando aéreo também vai querer dar uma olhada nas fotos do porto.
— Eles podem esperar.
— Não podem não, senhor — protestou o tenente. Mesmo assim, pegou uma tesoura e
removeu as chapas em que o capitão estava interessado. O resto do filme foi entregue a um
suboficial, enquanto o tenente e o capitão se dirigiam ao laboratório fotográfico. O voo do
Cody-193 havia custado dois meses inteiros de trabalho e o capitão mal podia esperar para
começar a analisar as informações contidas naquelas três fotos de 2,25 polegadas.
Uma hora depois, tinha o que queria. Mais uma hora e estava embarcando em um voo para Da
Nang. Mais uma hora e estava voando para a base aeronaval de Cubi Point, nas Filipinas, de
onde pegou um avião para a base aérea de Clark, concluindo a viagem em um KC-135, que voou
direto para a Califórnia. Apesar do cansaço, o capitão quase não dormiu, excitado com o fato de
haver resolvido um mistério cuja solução podia mudar a política de seu governo.
4

PRIMEIRA LUZ

Kelly dormiu durante quase oito horas; quando foi acordado pelas gaivotas, Pam não estava a
seu lado. Foi para fora e a viu de pé no cais, olhando para a água, ainda abatida, ainda incapaz
de conseguir o repouso de que precisava. A baía estava calma, como era normal àquela hora da
manhã, a lisura da superfície quebrada apenas pelas ondulações produzidas por enchovas à
procura de insetos. Condições como aquelas pareciam ideais para começar o dia: uma brisa
suave, vinda de oeste, e um estranho silêncio que permitia escutar o ruído de um motor de barco
a uma distância tão grande que nem dava para ver o barco. Era o tipo de clima que convidava as
pessoas a ficarem sozinhas com a natureza, mas ele sabia que Pam se sentia simplesmente
sozinha. Aproximou-se em silêncio e tocou-lhe a cintura com as duas mãos.
— Bom dia.
A moça demorou para responder e Kelly ficou onde estava, segurando-a de leve, apenas o
suficiente para que o sentisse. Pam tinha vestido uma de suas camisas e Kelly não queria que o
toque fosse sensual, mas apenas protetor. Agora que sabia o que a moça sofrera, tinha medo de
ser mal interpretado.
— Então você já sabe — disse Pam, em voz baixa, sem coragem de se virar e encará-lo.
— Sei, sim — confirmou Kelly, também em voz baixa.
— O que acha? — perguntou a moça, com esforço.
— Não sei bem o que você quer saber, Pam — disse Kelly, resistindo à tentação de apertá-la
com força.
— O que acha de mim?
— De você? — Ele se permitiu aproximar-se um pouco e abraçá-la pela cintura. — Acho
você linda. Acho que foi uma sorte conhecer você.
— Sou viciada em drogas.
— O casal de médicos disse que está tentando largar. Para mim, é o que importa.
— Não é só isso. Fiz coisas que...
— Não precisa me contar, Pam. Também fiz coisas de que me arrependo. Mas você fez muito
por mim. Você me deu uma nova razão de viver, — Abraçou-a com mais força. — As coisas que
fez antes de me conhecer não interessam. Não está mais sozinha, Pam. Estou aqui para ajudá-la.
— Quando você descobrir...
— O que eu descobrir não vai fazer nenhuma diferença. Já conheço tudo o que importa. Eu
amo você, Pam. — Kelly ficou surpreso com as próprias palavras. Até então, não tivera
coragem de admitir o que sentia nem para si mesmo. Era algo totalmente irracional, porém mais
uma vez a emoção prevaleceu sobre a razão e a razão, desta vez, teve que concordar.
— Como pode dizer isso? — perguntou Pam.
Kelly a fez virar-se delicadamente e sorriu.
— Sei lá! Talvez seja o seu cabelo desgrenhado... ou o seu nariz escorrendo. — Tocou o
peito dela. — Não, acho que é o seu coração. Qualquer que tenha sido o seu passado, o coração
escapou intacto.
— Está falando sério, não está? — perguntou a moça. Houve uma longa pausa e depois Pam
sorriu para ele. Foi como se o dia estivesse nascendo de novo. O brilho alaranjado do sol
iluminou o rosto da moça e tingiu seu cabelo de dourado.
Kelly enxugou-lhe as lágrimas e a visão do rosto úmido da moça eliminou qualquer dúvida
que pudesse ter. — Vamos ter que arranjar roupas para você. Isso não é maneira de uma dama se
vestir.
— Quem foi que disse que eu sou uma dama?
— Eu.
— Estou tão assustada!
Kelly aninhou-a nos braços. — É natural que esteja assustada. Eu também costumava passar a
maior parte do tempo assustado. O importante é saber que você vai conseguir.
Começou a passar a mão para cima e para baixo nas costas da moça. Não pretendia que
aquele se transformasse num encontro sexual, mas foi ficando cada vez mais excitado até se dar
conta de que estava tocando em cicatrizes feitas por chicotes, cordas e outras coisas odiosas.
Então seus olhos se desviaram para o mar e foi bom que Pam não pudesse ver seu rosto.
— Você deve estar com fome — disse Kelly, afastando-se da moça.
Ela fez que sim com a cabeça.
— Estou faminta.
— Vamos dar um jeito nisso. — Segurou-a pela mão e foram juntos para a casa. No caminho,
encontraram Sam e Sarah, que estavam chegando de um passeio a pé ao outro lado da ilha.
— Como vão os dois pombinhos? — perguntou Sarah com um sorriso de contentamento, pois
já sabia a resposta, depois de observá-los à distância.
— Esfomeados! — respondeu Pam.

— Até que enfim terminamos — comentou Tony, bebendo um gole de café de um copo de
plástico.
— Onde está o meu? — perguntou Eddie, em tom irritado, por causa da falta de sono.
— Você me disse para levar a porra do fogareiro lá para fora, não foi? Pois vá buscar o seu
café!
— Acha que eu gosto de respirar fumaça? A gente pode morrer envenenado com essa merda
de monóxido de carbono, sabia? — retorquiu Eddie Morello, ainda mais agressivamente.
Tony também estava cansado; cansado demais para discutir com aquele tagarela.
— Está bem, cara, está bem, o café está lá fora. Os copos também.
Eddie resmungou alguma coisa e saiu. Henry, o terceiro homem, continuou a embalar o
produto e se manteve fora da discussão. Na verdade, as coisas estavam correndo melhor do que
planejara. Tinham engolido direitinho sua história a respeito de Angelo, eliminando assim um
sócio e um problema em potencial. Havia no mínimo trezentos mil dólares em drogas naqueles
sacos plásticos, prontos para serem entregues aos revendedores. Nem tudo se passara de acordo
com as previsões. As "poucas horas" de trabalho tinham se transformado em uma maratona que
varara a noite, quando os três descobriram que o que pagavam aos outros para fazer não era tão
fácil como parecia. As três garrafas de bourbon que consumiram não tinham ajudado em nada.
Mesmo assim, trezentos mil dólares de lucro por dezesseis horas de trabalho não era nada mau.
E isso era apenas o começo. Tucker estava só deixando que tomassem o gostinho.
Eddie ainda se preocupava com as repercussões da morte de Angelo. Entretanto, não havia
como voltar atrás, não depois de feito o serviço; o jeito era ficar do lado de Tony. Fez uma
careta enquanto olhava por uma vigia para uma ilha ao norte do que havia sido um barco. A luz
do sol se refletia nas janelas do que era provavelmente um luxuoso iate a motor. Não seria
ótimo ser dono de um iate daqueles? Eddie Morello gostava de pescar, uma vez ou outra
poderia até levar as crianças. Além disso, seria uma boa fachada para suas atividades, não
seria?
Que tal se dedicar à pesca de caranguejos? Afinal, sabia o que os caranguejos comiam. A
ideia o fez rir baixinho e depois estremecer. Estaria seguro, associado àqueles homens? Fazia
menos de vinte e quatro horas que eles — ele — tinham acabado com Angelo Vorano. Mas
Angelo não fazia parte da turma, como Tony Piaggi. Tony era a sua garantia, a sua ligação com
as ruas, a sua segurança... pelo menos por algum tempo. Contanto que Eddie permanecesse
alerta.
— Para que acha que servia este lugar? — perguntou Tucker a Piaggi, apenas para puxar
conversa.
— Como assim?
— Quando isto aqui era um barco, devia ser uma cabine ou coisa parecida — explicou,
fechando o último saquinho e colocando-o ao lado da caixa de cerveja.
— A cabine do capitão, talvez? — sugeriu Tony.
Era uma forma de passar o tempo.
— Pode ser. Fica perto da ponte. — Tucker se levantou, espreguiçou-se, pensou consigo
mesmo por que tivera que fazer todo o trabalho. A resposta foi imediata. Tony pertencia à
"família". Eddie queria pertencer à família. Mas nunca se tornaria um deles, e nem Angelo,
refletiu, satisfeito. Jamais confiara em Angelo, mas não precisava mais se preocupar com ele.
Uma vantagem dessa gente era que cumpria o que prometia... e continuaria a cumprir, enquanto
Henry fosse a ligação entre eles e a matéria-prima, e nem um momento a mais. Tucker não tinha
ilusões a respeito. Tinha sido muita gentileza de Angelo apresentá-lo a Tony e Eddie, e a morte
de Angelo tivera sobre Henry o mesmo efeito que sua própria morte teria sobre os outros dois,
isto é, nenhum. Todos os homens têm a sua utilidade, disse Tucker a si próprio, fechando a caixa
de cerveja. Além disso, os caranguejos precisam comer.
Com sorte, não precisariam matar mais ninguém no futuro próximo.
Tucker não tinha esse tipo de escrúpulos, mas sabia que toda morte podia trazer
complicações. Um bom negócio era aquele que funcionava sem chamar atenção e mantinha todo
mundo satisfeito, até mesmo os fregueses. Certamente aquela carga os deixaria felizes. Era
heroína asiática de primeira, cientificamente processada e temperada moderadamente com
ingredientes atóxicos para oferecer aos usuários uma viagem de primeira, seguida por um
retorno suave e sem traumas para a realidade, fosse qual fosse, da qual estavam tentando
escapar. O tipo de sensação que ansiariam por experimentar de novo; certamente voltariam a
procurar os fornecedores, que cobrariam um pouco mais por uma segunda dose do produto, cujo
nome comercial era "Doce Asiático".
Havia um certo perigo em ter o nome nas ruas. Isso dava à polícia um objetivo concreto, um
nome para procurar, perguntas específicas para fazer, mas era um risco inevitável para quem
dispunha de um produto quente; por esse motivo, escolhera os parceiros por sua experiência,
conhecimentos e estabilidade. O local do laboratório também tinha sido escolhido com cuidado.
A visibilidade era de quase dez quilômetros em todas as direções e dispunham de um barco
veloz para escapar. Sim, era perigoso, mas viver era perigoso e para ganhar dinheiro era
preciso correr riscos. A recompensa de Henry Tucker por um único dia de trabalho era de cem
mil dólares livres de impostos e ele estava disposto a correr um risco considerável para ganhar
esse dinheiro. Estava disposto a arriscar muito mais pelo que os amigos de Piaggi podiam fazer,
e agora tinha conseguido atrair o interesse deles. Em pouco tempo, estariam tão gananciosos
quanto ele próprio.

O barco com os hélices chegou de Solomons alguns minutos antes da hora prevista. O casal
não havia recomendado a Kelly que mantivesse Pam ocupada, mas isso parecia ser um bom
remédio para os problemas da jovem. Kelly empurrou o compressor portátil de volta para o
cais, ligou-o e ensinou a moça a regular a vazão de ar, baseando-se nas indicações do
mostrador. Em seguida, separou as ferramentas de que iria precisar e enfileirou-as no cais.
— Um dedo, esta aqui; dois dedos, aquela; três, aquela ali, está bem?
— OK — respondeu Pam, impressionada com a eficiência de Kelly. Ele estava enfeitando um
pouco as coisas, como todos sabiam, mas ninguém parecia se importar.
Kelly desceu a escada, mergulhou, e seu primeiro trabalho foi verificar as roscas dos eixos
dos hélices. Pareciam estar em bom estado.
Estendeu a mão para fora com um dedo levantado e foi recompensado com a ferramenta
correta, que usou para remover as porcas. A operação inteira levou apenas quinze minutos. Em
seguida, colocou os novos hélices no lugar e instalou novos anodos protetores. Deu uma olhada
no leme e chegou à conclusão de que provavelmente aguentaria mais um ano, embora Sam
devesse ficar de olho. Foi um alívio, como sempre, sair da água e poder respirar sem sentir
cheiro de borracha.
— Quanto lhe devo? — perguntou Rosen.
— Eu não fiz nada — afirmou Kelly, desligando o compressor.
— Não gosto que trabalhem de graça para mim — declarou o cirurgião, muito sério.
Kelly teve que rir.
— Vamos combinar uma coisa? Se um dia eu precisar fazer uma operação na coluna, você
não me cobra nada. Como é que chamam esse tipo de coisa?
— Cortesia profissional... mas você não é médico — objetou Rosen.
— E você não é mergulhador, Sam. Também não é um marinheiro, ainda, mas vamos dar um
jeito nisso hoje mesmo.
— Fui o primeiro da turma no curso de iatismo! — trovejou Rosen.
— Doutor, quando recebíamos os garotos da escola de treinamento, costumávamos dizer:
"Tudo bem, meu filho, mas isto aqui é um navio de verdade." Deixe-me guardar o equipamento e
vamos ver o que você sabe de navegação.
— Só falta dizer que entende mais de pescaria do que eu — comentou Rosen, ofendido.
— Daqui a pouco vão estar apostando para ver quem consegue mijar mais longe — observou
Sarah para Pam, em tom irônico.
— Claro que entendo — afirmou Kelly, com um sorriso nos lábios. Foi até a casa e dez
minutos depois estava de volta, usando camiseta e bermudas.
Plantou-se na ponte de comando e ficou observando o desempenho de Rosen, que preparava o
iate para a partida. O cirurgião se saiu melhor do que Kelly previa, especialmente com as
amarras.
— Da próxima vez, deixe os exaustores funcionarem um pouco antes de ligar o motor —
recomendou Kelly, depois que Rosen deu a partida.
— Mas o motor é a diesel!
— Mesmo assim. Ajuda a manter o hábito. Da próxima vez, pode estar lidando com um motor
a gasolina. A segurança em primeiro lugar, doutor. Nunca alugou um barco nas férias?
— Já aluguei, sim, mas...
— Na sua profissão não há algumas coisas que tem que fazer sempre do mesmo jeito? —
perguntou Kelly. — Mesmo quando não são realmente necessárias?
Rosen assentiu, pensativo.
— Tem razão.
— Ponha o barco em movimento — comandou Kelly, com um aceno de mão. Rosen
obedeceu, e com muita perícia, em sua própria opinião. Kelly, porém, parecia pensar o
contrário:
— Menos leme, mais potência. Nem sempre vai ter uma brisa para ajudar a manobra. Os
hélices empurram a água, enquanto que os lemes servem apenas para desviá-la. Os motores são
mais confiáveis, especialmente em baixa velocidade. Além disso, os lemes às vezes quebram.
Aprenda a passar sem eles.
— Está bem, capitão — resmungou Rosen. Era como ser de novo um interno, e Sam Rosen
estava acostumado a ser obedecido sem discussão. Aos quarenta e oito anos, pensou, estava
velho demais para voltar a ser estudante.
— O capitão é você. Sou apenas o piloto. Estas são as minhas águas, Sam. — Kelly virou-se
para olhar para o convés. — Nada de riso, senhoras. A vez de vocês vai chegar. Prestem
atenção! — E mais baixo: — Você está levando a coisa com espírito esportivo, Sam.
Quinze minutos depois, estavam flutuando preguiçosamente ao sabor da maré, as linhas de
pesca para fora do barco, sob um sol radioso. Kelly não estava interessado em pescar e ficara
de plantão na ponte de comando enquanto Sam ensinava Pam a colocar a isca no anzol. O
entusiasmo da moça surpreendeu a todos. Sarah tinha feito com que aplicasse uma boa camada
de Coppertone para proteger a pele clara, e Kelly imaginou se um pouco de bronzeado tornaria
as cicatrizes mais visíveis. Sozinho com seus pensamentos na ponte de comando, Kelly se
perguntou que tipo de homem espancaria uma mulher. Olhou com os olhos apertados para a
superfície da água, pontilhada de barcos. Quantas pessoas assim haveria nas vizinhanças? Por
que não era possível saber simplesmente olhando para elas?

Não foi difícil arrumar as coisas no barco. Estavam levando um bom suprimento de produtos
químicos, que teriam que repor periodicamente, mas Eddie e Tony conheciam uma companhia de
produtos químicos cujo dono tinha ligações ocasionais com a organização a que pertenciam.
— Quero vê-lo — disse Tony, no momento em que partiram. Pilotar o iate de dezoito pés nos
alagados não foi tão fácil como imaginavam, mas Eddie se lembrava muito bem do lugar e a
água ainda estava límpida.
— Minha nossa! — exclamou Tony.
— Vai ser um ano bom para pescar caranguejos — observou Eddie, satisfeito ao ver que o
outro ficara chocado. Uma vingança apropriada, pensou Eddie, mas não era uma visão
agradável. Os caranguejos já tinham encontrado o corpo. O rosto e um dos braços estavam
totalmente cobertos e outras criaturas se aproximavam, atraídas pelo cheiro de decomposição
que se difundia na água tão bem como no ar. Era assim que a natureza fazia propaganda. Se
estivessem em terra firme, em vez de caranguejos, seriam aves de rapina.
— Que tal? Daqui a duas ou três semanas, não haverá mais sinal de Angelo.
— E se alguém...
— É pouco provável — afirmou Tucker, sem olhar para o cadáver. — Aqui é raso demais
para os barcos a vela e os barcos a motor não têm razão para se aproximar. Há um canal um
quilômetro ao sul onde a pesca é bem melhor, pelo que dizem. Nem os pescadores de
caranguejos parecem gostar daqui.
Piaggi teve dificuldade para desviar os olhos, embora seu estômago já estivesse revirado. Os
caranguejos azuis da baía de Chesapeake, com suas tenazes, estavam desmanchando o corpo já
amolecido pela água morna e pelas bactérias, uma pequena fisgada de cada vez, rasgando a
carne, pegando os pedaços com as pinças menores e levando-os às estranhas bocas. Imaginou se
ainda haveria um rosto ali, olhos para encarar um mundo que ficara para trás, mas os
caranguejos cobriam aquela parte do corpo e por alguma razão lhe pareceu que os olhos seriam
o primeiro órgão a desaparecer. O mais assustador, naturalmente, era que se um homem podia
morrer daquele jeito, o mesmo podia acontecer a qualquer um; mesmo que Angelo já estivesse
morto, Piaggi achava que ser comido assim era pior do que simplesmente morrer. Teria
lamentado a morte de Angelo, só que negócios eram negócios, e além disso... Angelo fizera por
merecer. Era uma pena, de certa forma, que o destino de Angelo tivesse que ser mantido em
segredo, mas isso também fazia parte do negócio. Era assim que evitavam que a polícia ficasse
sabendo. Difícil provar que houve um crime de morte quando não se dispõe de um cadáver, e ali
eles tinham encontrado acidentalmente um meio de ocultar vários assassinatos. O único
problema era levar os corpos até lá... e não deixar que os outros ficassem sabendo, porque as
pessoas sempre acabam falando, disse Tony Piaggi a si próprio, como Angelo falou. Ainda hem
que Henry tinha descoberto a tempo.
— Vamos comer casquinha de siri quando voltarmos para a cidade? — perguntou Eddie
Morello, só para ver se conseguia fazer Tony vomitar.
— Vamos dar o fora daqui — replicou Piaggi, simplesmente, ajeitando-se no assento. Tucker
tirou o motor do ponto morto e tomou o caminho de volta para a baía.
Piaggi levou um minuto ou dois para tirar a imagem da cabeça. Esperava poder esquecer a
parte tétrica e lembrar-se apenas da eficiência do método. Afinal de contas, talvez precisassem
usá-lo outras vezes. Provavelmente dali a poucas horas estaria achando graça, pensou Tony,
olhando para a caixa de cerveja. Por baixo das quinze latas de National Bohemian havia uma
camada de gelo, e embaixo do gelo estavam vinte sacos de heroína. Caso alguém resolvesse
revistar o barco, o que era pouco provável, dificilmente desconfiaria do recipiente de cerveja, o
combustível predileto dos iatistas da baía. Tucker levou o barco para o norte e os outros
pegaram seus caniços, como se estivessem procurando um bom lugar para uma pescaria.
— Uma pescaria ao contrário — comentou Morello, rindo.
Piaggi se sentiu na obrigação de acompanhá-lo.
— Jogue uma cerveja para mim! — ordenou Tony entre duas gargalhadas. Afinal de contas,
ele pertencia à família e merecia respeito.

— Idiotas — murmurou Kelly consigo mesmo. Aquele iate de dezoito pés estava indo
depressa demais, perto demais das outras embarcações. Poderia arrastar algumas linhas e
certamente a marola incomodaria os vizinhos. Aquilo era falta de modos no mar, algo que
sempre incomodava Kelly. Navegar era muito fácil — bolas, a dificuldade era tão pequena que
nem merecia ser chamado de "fácil". Bastava comprar um barco e sair por aí. Nenhum exame,
nada. Kelly pegou o binóculo 7x50 de Rosen e apontou-o para a embarcação que se
aproximava. Três palhaços, um deles brandindo uma lata de cerveja à guisa de saudação.
— Sai pra lá, filho da mãe — resmungou entre dentes. Aqueles caras provavelmente já
estavam bêbados e ainda não eram nem onze da manhã. Observou-os por algum tempo e se
sentiu vagamente aliviado quando viu que passariam a mais de cinquenta metros. Reparou no
nome do iate: Henry's Eighth. Se visse aquele nome de novo, pensou Kelly, trataria de manter
distância.
— Peguei um! — exclamou Sarah.
— Cuidado! Estou vendo uma onda enorme a boreste! — gritou o marido.
A onda chegou um minuto mais tarde, fazendo o Hatteras inclinar-se mais de vinte graus,
primeiro para a esquerda e depois para a direita.
— Isso é o que eu chamo de falta de modos — comentou Kelly olhando para os outros três.
— É isso aí! — concordou Sam.
— Ainda bem que ele não escapou — comentou Sarah. Kelly viu quando ela recolheu o peixe
com muita habilidade. — É dos grandes!
Sam pegou a rede e inclinou-se para fora do barco. Um momento depois, tornou a aprumar-se.
A rede continha um bodião de cinco ou seis quilos, ainda se debatendo. O médico esvaziou a
rede em uma lata cheia d'água, onde o peixe ficaria até ser morto. Kelly achou aquilo uma
crueldade, mas era apenas um peixe, e já tinha visto coisas piores.
Pouco depois, a linha de Pam se retesou e ela começou a dar gritinhos. Sarah colocou sua
vara no suporte e foi ajudá-la. Kelly ficou observando. A amizade entre Pam e Sarah era tão
notável quanto a que existia entre ele e a jovem. Talvez Sarah estivesse assumindo o lugar da
mãe, que a negligenciara em afeto ou outra coisa qualquer. Fosse como fosse, Pam estava
aceitando muito bem os conselhos da nova amiga. Kelly reparou com um sorriso que Sam tinha
pegado um peixe e estava pescando de novo. Para Pam, aquilo era novidade; foi com muito
esforço que conseguiu recolher a linha. Mais uma vez, Sam se encarregou da rede, recolhendo
desta vez uma enchova de quatro quilos.
— Jogue de volta no mar — aconselhou Kelly. — Esse peixe não tem gosto de nada!
Sarah olhou para ele, zangada.
— Jogar fora o primeiro peixe que ela pescou em toda a sua vida? Quem é você, um nazista?
Escute, tem limão a bordo?
— Tenho, sim. Por quê?
— Nesse caso, vou lhe mostrar o que se pode fazer com uma enchova. — Cochichou alguma
coisa para Pam e a moça começou a rir. A enchova foi para o mesmo tanque, e Kelly ficou
pensando se ela e o bodião não iriam se estranhar.

Memorial Day, pensou Dutch Maxwell, saltando do carro oficial no Cemitério Nacional de
Arlington. Para muitos, era apenas o dia da corrida das quinhentas milhas de Indianapolis, um
feriado como outro qualquer ou o início tradicional da temporada de praia, como testemunhava
a relativa falta de movimento nas estradas que levavam a Washington. Mas não para Dutch e
seus colegas. Aquele era o seu dia, um dia para lembrar os companheiros mortos no campo de
batalha. O almirante Podulski saltou com ele e os dois caminharam lentamente e fora do passo,
como os almirantes costumam fazer. O filho de Casimir, primeiro-tenente Stanislas Podulski,
não estava ali, e provavelmente jamais estaria. De acordo com os relatos, seu A-4 tinha sido
derrubado por um míssil terra-ar, um impacto quase direto. O jovem piloto estava ocupado
demais para notar até o último segundo, quando deixou escapar uma exclamação de desagrado
pelo canal "protegido". Talvez uma das bombas que estava transportando tivesse explodido.
Fosse como fosse, o pequeno avião de bombardeio e ataque se dissolvera em uma nuvem oleosa
preta e amarela, deixando muito pouco para trás. Para completar, o inimigo não era conhecido
por respeitar os restos mortais de pilotos abatidos. Assim, ao filho de um bravo combatente
tinha sido negado o direito de repousar ao lado dos companheiros. Não era um assunto que Cas
gostasse de discutir. Podulski guardava esses sentimentos para si mesmo.
O contra-almirante James Greer estava no mesmo lugar onde estivera nos dois anos
anteriores, a uns cinquenta metros da alameda principal, colocando flores no túmulo do filho.
— James? — chamou Maxwell.
Greer virou-se e fez continência. Gostaria de poder sorrir para agradecer a solidariedade dos
outros dois em um dia como aquele, mas não conseguiu. Os três estavam usando uniformes azul-
marinho, porque era o que lhes parecia mais solene. As mangas com bordados a ouro brilhavam
ao sol. Sem dizer mais nada, os três oficiais se perfilaram em frente à sepultura de Robert White
Greer, primeiro-tenente do Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos. Fizeram
continência, lembrando-se de um menino que tinham carregado no colo, que costumava andar de
bicicleta na estação naval de Norfolk e na estação aeronaval de Jacksonville com o filho de Cas
e com o filho de Dutch. O menino se tornara um rapaz forte e orgulhoso, que ia esperar o pai no
cais quando voltava de viagem, que só falava em seguir suas pegadas, mas não muito de perto, e
cuja sorte terminara oitenta quilômetros a sudoeste de Da Nang. A praga daquela profissão,
como os três sabiam mas evitavam comentar, era que os filhos também se sentiam atraídos por
ela, em parte por causa da admiração que sentiam pelos pais, em parte por terem aprendido com
eles a amar a pátria, mas principalmente por amarem seus semelhantes. Da mesma forma como
os três homens ali presentes tinham assumido muito riscos, Bobby Greer e Stas Podulski tinham
corrido os seus. Infelizmente, a sorte não sorrira para dois dos três filhos.
Greer e Podulski repetiram para si mesmos, naquele momento, que o sacrifício dos rapazes
não tinha sido em vão, que a liberdade tinha um preço, que se não existissem homens dispostos
a pagar esse preço não haveria bandeira, não haveria constituição, não haveria um feriado cujo
significado as pessoas tinham o direito de ignorar. Entretanto, nos dois casos, essas palavras
não pronunciadas soaram vazias. O casamento de Greer havia fracassado, em grande parte
devido ao sofrimento causado pela morte de Bobby. A mulher de Podulski nunca mais seria a
mesma. Embora os dois homens tivessem outros filhos, o vácuo criado pela morte de um deles
era como um abismo intransponível, e por mais que se assegurassem de que, sim, valia a pena
pagar esse preço, nenhum homem capaz de racionalizar a morte de um filho mereceria ser
chamado de humano, e suas emoções reais eram reforçadas pelo mesmo sentimento que os
compelira a uma vida de sacrifícios. Isso era agravado pelo fato de que ambos tinham opiniões
a respeito da guerra que os mais educados chamariam de "dúvidas" e que eles próprios
chamavam de outra coisa, mas apenas quando estavam sozinhos.
— Lembra-se da vez que Bobby mergulhou na piscina atrás da filha menor de Mike
Goodwin... e salvou a vida da menina? — perguntou Podulski. — Acabei de receber uma carta
de Mike. Amy teve gêmeos na semana passada. Duas meninas. Ela se casou com um engenheiro
em Houston. Trabalha para a NASA.
— Eu nem sabia que Amy tinha se casado. Que idade deve ter agora? — perguntou James.
— Oh, mais de vinte. Vinte e cinco? Ainda me lembro do seu rosto sardento, por causa do sol
de Jax.
— É, o tempo passa, meu amigo — disse Greer. — As crianças crescem. — Talvez ela não
estivesse realmente se afogando naquele dia quente de julho, mas era mais uma coisa boa para
recordar a respeito do filho. Uma vida salva, talvez três... Isso era alguma coisa, não era?,
perguntou Greer a si mesmo.
Os três oficiais deram meia-volta e se afastaram do túmulo sem uma palavra, caminhando
lentamente em direção à alameda principal. Tiveram que parar. Um cortejo funerário estava
subindo a colina. Eram soldados Terceiro Regimento de Infantaria, a "Velha Guarda",
cumprindo a triste missão de levar mais um soldado para sua última morada. Os almirantes se
perfilaram de novo, fazendo continência para a bandeira que envolvia o caixão e para o homem
que estava ali dentro. O jovem tenente que comandava o destacamento imitou-os. Ele notou que
um dos almirantes usava a fita azul-celeste da Medalha de Honra, e a severidade de seu gesto
demonstrou seu respeito.
— Lá vai mais um — comentou Greer, com amargura, depois que o cortejo passou. — Meu
Deus, em nome de que estamos enterrando essas crianças?
— "Pagar qualquer preço, carregar qualquer carga, suportar qualquer sofrimento, ajudar
todos os amigos, combater todos os inimigos...” — recitou Cas. — Não faz muito tempo, não é?
Mas quando chegou a hora de pôr as cartas na mesa, onde estavam os filhos da mãe?
— Nós somos as cartas, Cas — replicou Dutch Maxwell. — Esta é a mesa.
Homens normais teriam chorado, mas aqueles não eram homens normais. Percorreram com os
olhos a terra pontilhada de lápides brancas. Ali ficava, antigamente, o jardim de Robert E. Lee
— a casa ainda existia, no alto da colina — e a escolha do local para servir de cemitério tinha
sido um gesto de crueldade de um governo que se sentira traído pelo general. E no entanto,
afinal, a casa de Lee era usada para prestar homenagem ao tipo de homem que o general mais
apreciava. Essa era a maior ironia daquela data, refletiu Maxwell.
— Como estão indo as coisas rio acima, James?
— Podiam estar melhores. Recebi ordens para fazer uma limpeza. Vou precisar de uma
vassoura tamanho família.
— Já sabe a respeito do BUXO VERDE?
— Não. — Greer olhou para eles e sorriu pela primeira vez naquele dia. Não era muito, mas
era alguma coisa, pensaram os outros. — Devo saber?
— Provavelmente vamos precisar da sua ajuda.
— Extraoficialmente?
— Sabe o que aconteceu com o PINO MESTRE. — observou Casimir Podulski.
— Eles tiveram muita sorte de escapar — concordou Greer, — Desta vez estão sendo mais
cautelosos, hein?
— Isso mesmo.
— Digam-me do que precisam. Farei o que puder para conseguir. Está de novo envolvido
com o "três", Cas?
— Acertou em cheio. — Qualquer nome de código terminado por 3 designava o departamento
de operações e planejamento, e Podulski tinha um talento especial para esse tipo de atividade.
Seus olhos brilhavam tanto quanto as Asas de Ouro do uniforme ao sol da manhã.
— Ótimo — observou Greer. — E o filho do Dutch, como vai?
— Atualmente, trabalha para a Delta. É copiloto, mas um dia será promovido a comandante, e
vou ser avô daqui a um ou dois meses.
— Verdade? Parabéns, amigo.
— Não o culpo por deixar a Marinha. Demorei um pouco para aceitar sua decisão, mas estou
conformado.
— Como se chama mesmo aquele SEAL que entrou em território inimigo para resgatá-lo?
— Kelly. Ele também saiu da Marinha — disse Maxwell.
— Acho que merecia a medalha, Dutch — afirmou Podulski. — Li a menção. O que ele fez
não foi brincadeira.
— Eu o promovi a suboficial. Não podia recomendá-lo para a medalha. — Maxwell sacudiu
a cabeça. — Não por salvar o filho de um almirante, Cas. Sabe como é a política.
— Sei. — Podulski olhou para o alto da colina. O cortejo funerário tinha chegado a seu
destino e o caixão estava sendo retirado da carreta. Uma jovem viúva acompanhava o enterro
do marido. — Sim, eu sei como é a política.

Tucker encostou o barco no cais. Desligou o motor e prendeu rapidamente as amarras. Tony e
Eddie desembarcaram com a caixa de cervejas enquanto Tucker arrumava algumas coisas e
cobria os instrumentos de bordo antes de se juntar a eles no estacionamento.
— Foi mais fácil do que imaginávamos — observou Tony. A caixa já estava no
compartimento de bagagem da camionete Ford Country Squire.
— Quem será que ganhou a corrida? — perguntou Eddie. Tinham se esquecido de levar um
rádio na viagem.
— Apostei cem paus em Foyt, só para tornar as coisas mais interessantes.
— Não torce por Andretti? — quis saber Tucker, — Ele é meu compatriota, mas dá um azar
danado. O jogo é um negócio como outro qualquer — declarou Piaggi, Angelo era coisa do
passado, e o modo como tinham se livrado do corpo era, pensando bem, até engraçada, embora
fosse passar um bom tempo sem ter vontade de comer casquinha de siri.
— É isso aí — disse Tucker. — Vocês sabem onde me encontrar. — Vai receber a sua parte
— prometeu Eddie. — No fim da semana, no lugar de sempre. — Pareceu refletir. — E se a
procura aumentar?
— Não se preocupe — assegurou Tucker, — Posso fornecer a quantidade que você quiser.
— Que diabo de fornecedores são esses que você arranjou? — perguntou Eddie, curioso.
— Angelo queria saber a mesma coisa, não é? Rapazes, se eu lhes contasse, não precisariam
mais de mim...
Tony Piaggi sorriu, — Não confia em nós?
— Claro que confio, — Tucker sorriu também. — Confio em vocês para distribuir a
mercadoria e dividir o dinheiro comigo.
Piaggi fez que sim com a cabeça.
— Gosto de parceiros espertos. Continue assim, É melhor para todos nós. Tem um banco de
confiança?
— Não, ainda não pensei no assunto — mentiu Tucker.
— É bom começar a pensar, Henry, Podemos lhe indicar um banco no exterior. É muito
seguro, com conta numerada, esse tipo de coisa. Pode mandar alguém de confiança verificar.
Não se esqueça de que gastar demais dá na vista. Seja discreto. Já perdemos muitos amigos
assim.
— Não gosto de correr riscos, Tony. Piaggi assentiu.
— É a forma certa de pensar. No nosso negócio, a gente tem que ser cauteloso. Os tiras estão
ficando cada vez mais sabidos.
— Sou mais sabido do que eles. — E também que os parceiros, claro. Mas uma coisa de
cada vez.
5

COMPROMISSOS

O embrulho chegou com um capitão exausto ao quartel-general do serviço de informações da


Marinha em Suitland, Maryland. Os técnicos de interpretação de fotos da casa foram auxiliados
por especialistas do 1127º Grupo de Atividades de Campo da Força Aérea em Fort Belvoir. O
processo completo levou vinte horas, mas as fotografias tiradas pelo Caçador de Búfalos
estavam extraordinariamente nítidas e os americanos no solo tinham feito o que deviam:
levantar a cabeça e olhar na direção da aeronave de reconhecimento.
— O pobre coitado teve que pagar um preço por isso — observou um sargento da Marinha a
um colega da Aeronáutica. Atrás do prisioneiro, a foto mostrava um soldado norte-vietnamita
com a coronha do fuzil levantada. — Gostaria de me encontrar com você em um beco escuro,
seu filho da mãe.
— O que acha? — perguntou o sargento da Aeronáutica, colocando uma fotografia 3x4 sobre
a primeira.
— Aposto que é a mesma pessoa. — Os dois especialistas achavam estranho que tivessem
recebido uma quantidade tão pequena de fichas para comparar com aquelas fotos, mas sem
dúvida a escolha tinha sido feliz. Haviam encontrado uma coincidência. O que não sabiam era
que estavam diante de uma série de fotografias de um morto.

Kelly a deixou dormir, satisfeito porque conseguira adormecer sem tomar nenhuma droga.
Vestiu-se, saiu de casa e correu duas vezes em torno da ilha — o perímetro tinha mais ou menos
mil e duzentos metros — para fazer um pouco de exercício, aproveitando o ar ainda fresco da
manhã. Sam e Sarah, que também eram de acordar cedo, esbarraram nele quando estava
descansando no cais.
— Você também parece mais bem-disposto — observou Sarah. Fez um pausa. — Como Pam
se portou na noite passada?
— O quê? — replicou Kelly, sem jeito, depois de passar alguns segundos engasgado.
— Ora, Sarah... — Sam desviou os olhos, com ar de riso. A esposa ficou rubra como um
pimentão.
— Ela me convenceu a não medicá-la antes de dormir — explicou Sarah. — Estava um
pouco nervosa, mas queria tentar e acabei concordando. Foi isso que eu quis dizer, John.
Desculpe.
Como podia explicar o que acontecera na noite anterior? A princípio, tivera medo de tocá-la,
medo de ser rejeitado, e Pam tomara isso como sinal de que perdera o interesse por ela.
Depois... tinham chegado a um entendimento.
— Pam pensa que eu... — Kelly interrompeu o que estava dizendo.
A moça podia conversar com Sarah a respeito, mas será que ficaria bem que ele abordasse o
assunto?
— Ela dormiu bem. Ontem teve um dia muito cansativo.
— Nunca vi uma paciente com tanta força de vontade — afirmou Sarah, espetando um dedo
no peito de Kelly. — E você está ajudando bastante, meu caro.
Kelly desviou os olhos, sem saber o que dizer. "O prazer é todo meu?" Parte dele ainda
acreditava que estivesse tirando vantagem da situação. Esbarrara em uma jovem com problemas
e... se aproveitara dela? Não, não era verdade. Ele amava Pam, mesmo que isso parecesse
estranho. Sua vida estava voltando ao normal... talvez. Estava ajudando a curá-la, mas Pam
também estava ajudando a curá-lo.
— Ela... ela acha que eu não vou aceitar... o passado dela. Não entende que isso para mim é
irrelevante. Você está certa. Pam é uma moça muito forte. Bolas, meu passado também não é
nenhuma maravilha. Eu não sou um santo, meus amigos.
— Deixe-a falar — aconselhou Sam. — Ela precisa disso. Para lidar com uma coisa
desagradável, é melhor discuti-la abertamente.
— Tem certeza de que não vai se deixar afetar? Alguns detalhes podem ser chocantes —
observou Sarah, olhando Kelly nos olhos.
— Mais chocantes do que a guerra? — Kelly sacudiu a cabeça. Achou melhor mudar de
assunto. — E quanto aos... remédios?
A pergunta deixou todos aliviados. Sarah voltou a falar em tom profissional.
— O pior já passou. Se tivesse que haver uma reação séria de abstinência, já teria
acontecido. Pam ainda pode passar por períodos de agitação, causados por fatores externos de
tensão, por exemplo. Nesse caso, é aconselhável administrar fenobarbital, e já escrevi
instruções para você nesse sentido, mas Pam está tentando evitar ao máximo tomar remédios.
Sua personalidade é muito mais forte do que ela própria imagina. Cabe a você avaliar se
realmente está precisando. Nesse caso, faça-a tomar um comprimido.
A ideia de forçar a moça a fazer alguma coisa deixou Kelly nervoso.
— Escute, doutora, eu não posso...
— Cale a boca, John. Não estou falando em empurrar o remédio garganta abaixo. Se disser a
Pam que é necessário, ela vai ouvi-lo, não vai?
— Quanto tempo essa fase vai durar?
— Mais uma semana, dez dias, talvez — respondeu Sarah, depois de pensar um pouco.
— E depois?
— Depois vocês dois podem começar a pensar no futuro — declarou Sarah.
— Quando pretende ir a Baltimore? — perguntou Sam.
— Daqui a duas semanas, talvez antes. Por quê?
Sarah se encarregou de responder:
— Pam não vai ao médico há muito tempo. Nós nos sentiríamos mais tranquilos se ela fosse
submetida a um exame completo. Quem você recomenda, Sam?
— Conhece Madge North?
— Bem lembrado. Kelly, por que você não aproveita e também faz um exame?
— Por quê? Pareço doente? — Kelly levantou os braços, permitindo que observassem o seu
corpo musculoso.
— Não diga bobagens — advertiu Sarah. — Vá com Pam. Quero ter certeza de que vocês
dois estão em perfeita saúde, ponto final. Entendeu?
— Sim, senhora.
— Mais uma coisa, e quero que preste muita atenção — prosseguiu Sarah. — Pam vai
precisar de um tratamento psiquiátrico.
— Por quê?
— John, a vida não é como nos filmes. As pessoas não deixam de repente todos os problemas
para trás e são felizes para sempre. A moça foi molestada sexualmente. Viciou-se em drogas.
Sua autoestima foi reduzida quase a zero. Pessoas nessa situação tendem a se culpar
pelos problemas. Uma terapia, quando bem feita, pode acabar com esse complexo de culpa. O
que você está fazendo é importante, mas Pam vai precisar também da ajuda de um profissional.
Entendeu?
Kelly fez que sim com a cabeça.
— Entendi.
— Ótimo — disse Sarah, olhando-o nos olhos. — Gosto do seu jeito. É um bom ouvinte.
— E eu tenho escolha? — perguntou Kelly, com um sorriso irônico.
Sarah riu. — Não, não tem.
— Ela é assim com todo mundo — observou Sam. — Devia trabalhar como enfermeira.
Todos esperam que os médicos sejam mais diplomáticos. São as enfermeiras que dão as ordens.
Sarah começou a rir e deu um tapinha no marido.
— Nesse caso, não gostaria de cair nas mãos de uma enfermeira — declarou Kelly, voltando
para casa com os dois.
Pam acabou dormindo mais de dez horas sem tomar nenhum remédio, embora acordasse com
uma forte dor de cabeça, que Kelly tratou com aspirina.
— Compre Tylenol — recomendou Sarah. — Sacrifica menos o estômago. — A
farmacologista examinou Pam novamente enquanto Sam arrumava as malas. Declarou-se
satisfeita com o resultado. — Mas, da próxima vez que nos encontrarmos, quero que esteja
pesando mais três quilos.
— Mas...
— E John vai levá-la para fazer um exame completo... daqui a duas semanas, digamos. Está
bem?
— Sim, senhora — concordou Kelly, resignado.
— Mas...
— Pam, não adianta discutir com eles. Eu também vou ser examinado — explicou Kelly.
— Vocês dois têm realmente que ir?
Sarah assentiu.
— Devíamos ter partido na noite passada, mas ninguém é de ferro. — Olhou para Kelly. —
Se não aparecer como prometeu, vou ligar para você e fazer um escândalo.
— Sarah, você é a mulher mais mandona que eu já conheci.
— Sam diz a mesma coisa.
Kelly foi com Sarah até o cais, onde o barco de Sam já estava com o motor ligado. Sarah e
Pam se abraçaram. Kelly fez menção de apertar a mão de Sarah, mas teve que se submeter a um
beijo. Sam saltou do barco para apertar-lhe a mão.
— Compre mapas novos! — lembrou Kelly ao cirurgião.
— Vou comprar, capitão.
— Deixe que eu solto as amarras.
Rosen estava ansioso para mostrar a Kelly o que aprendera. Deu marcha à ré, usando
principalmente o hélice de boreste e fazendo uma curva fechada com o Hatteras. Não se
esquecera da lição. Pouco depois, Sam aumentou a potência nos dois motores e se afastou do
cais, rumando diretamente para águas profundas. Pam ficou onde estava, de mãos dadas com
Kelly, até o barco ser apenas um pontinho no horizonte.
— Eu me esqueci de agradecer a Sarah — disse a moça, finalmente.
— Não, não se esqueceu. Apenas não colocou isso em palavras. Como está se sentindo hoje?
— A dor de cabeça passou. — Pam olhou para ele. O cabelo precisava ser lavado, mas os
olhos estavam límpidos e o aspecto geral era excelente. Kelly teve vontade de beijá-la e não
resistiu ao impulso.
— O que fazemos agora? — perguntou.
— Vamos conversar. Está na hora — respondeu Pam.
— Espere aqui. — Kelly foi até a oficina e voltou com duas cadeiras dobráveis. Apontou
para uma delas, convidando a moça a sentar-se. — Agora me conte tudo sobre você.
Pamela Starr Madden iria fazer vinte e um anos dali a três semanas, descobriu Kelly, que
finalmente também ficou sabendo o sobrenome da moça. Pertencia a uma família da classe
pobre, que morava no norte do Texas. O pai era o tipo de homem que levaria um ministro batista
ao desespero. Donald Madden compreendia a forma da religião, mas não a substância. Era
severo porque não sabia amar. Bebia porque se sentia frustrado com a vida e se censurava por
isso. Quando os filhos se comportavam mal, espancava-os, geralmente com um cinto ou um
pedaço de pau, até que a consciência o fizesse parar, o que nem sempre acontecia antes que o
cansaço o acometesse. Pam sempre tinha sido uma criança infeliz, mas a última gota ocorrera
um dia depois de fazer dezesseis anos, quando fora a uma reunião na igreja e depois resolvera
sair com alguns amigos, achando que tinha o direito de se divertir um pouco. Nem ao menos
beijara o rapaz que lhe fazia companhia, cuja família era quase tão rigorosa quanto a sua. Mas
nada disso importava a Donald Madden. Ao chegar em casa, às dez e vinte de uma noite de
sexta-feira, Pam encontrou nu luzes acesas, o pai enfurecido e a mãe totalmente acovardada.
— As coisas que ele disse... — Pam estava falando de olhos baixos. — Não fiz nada de mais.
Nem ao menos pensei em fazer, e Albert era tão inocente... aliás, eu também era, na época.
Kelly apertou-lhe a mão com força.
— Não precisa me contar mais nada, Pam. — Mas ela precisava continuar sua história, e
Kelly sabia disso, de modo que continuou a escutar.
Depois de levar a maior surra de sua vida, Pamela Madden pulara a janela de seu quarto e
caminhara seis quilômetros até o centro da cidadezinha onde morava. Embarcara em um ônibus
da Greyhound para Houston antes do amanhecer, só porque era o primeiro ônibus a deixar a
cidade, e não lhe ocorrera saltar durante o percurso. Até onde sabia, os pais não haviam
comunicado à polícia o seu desaparecimento. Depois de passar por uma série de empregos mal
renumerados, morando em péssimas condições, decidira tentar a sorte em outro lugar. Usara o
pouco dinheiro que conseguira economizar para comprar uma passagem de ônibus, desta vez da
Continental Trailways, para Nova Orleans. Assustada, miúda, infantil, Pam não sabia que havia
homens que se dedicavam a explorar meninas que fugiam de casa. Abordada por um homem bem
vestido e bem falante de vinte e cinco anos de idade, chamado Pierre Lamarck, aceitara a sua
oferta de abrigo e assistência depois que ele a convidara para jantar. Três dias depois, ele se
tornara seu primeiro amante. U ma semana mais tarde, uma bofetada no rosto obrigara a
adolescente de dezesseis anos à sua segunda aventura sexual, desta vez com um vendedor de
Springfield, Illinois, que o fazia lembrar-se de sua própria filha, tanto que a reservara para a
noite inteira, pagando a Lamarck duzentos e cinquenta dólares pela experiência. No dia seguinte,
Pam ingerira o conteúdo de um dos vidros de pílulas do proxeneta, mas apenas conseguira
vomitar e receber uma surra pelo atrevimento.
Kelly escutou a história com uma serena falta de reação, os olhos parados, a respiração
regular. Por dentro, a história era outra. As garotas com quem saíra no Vietnã, quase crianças, e
as poucas que procurara depois da morte de Tish. Nunca lhe ocorrera que aquelas jovens não
gostassem da vida que levavam, da profissão que haviam escolhido. Nem pensara no assunto,
aceitando as reações fingidas como se fossem sentimentos genuínos. Afinal, ele não era um
homem decente e honrado? Mesmo assim, pagara pelos serviços de jovens cuja história talvez
não fosse muito diferente da de Pam. Sentiu o remorso queimá-lo como uma tocha.
Com dezenove anos, Pam já havia escapado de Lamarck e outros três proxenetas, apenas para
cair na mão de mais um. Um deles, em Atlanta, gostava de espancar as moças na frente de
amigos, geralmente usando um fio elétrico. Outro, em Chicago, obrigara Pam a consumir
heroína, procurando com isso controlar melhor uma garota que considerava excessivamente
independente, mas a moça fugira na manhã seguinte, provando que ele tinha razão. Vira outra
garota morrer diante dos seus olhos depois de consumir uma dose excessiva de drogas, o que a
assustara ainda mais do que a possibilidade de ser espancada. Como não podia voltar para casa
— ligara uma vez e a mãe batera com o telefone antes que pudesse pedir ajuda — e não
confiava nos serviços de assistência social, que talvez a tivessem ajudado a levar uma vida
mais digna, finalmente fora parar em Washington, D.C. Àquela altura, já era uma prostituta de
rua experiente e viciada em drogas, que ajudavam a esconder o que pensava de si mesma. Mas
não totalmente. Isso, pensou Kelly, tinha sido provavelmente a sua salvação. Durante todo esse
tempo, tivera dois abortos, três casos de doença venérea e fora presa quatro vezes, sem nunca
chegar a ser julgada. Pam começou a chorar e Kelly sentou-se ao lado da moça.
— Está vendo agora quem eu sou?
— Estou, Pam. E o que estou vendo é uma moça muito corajosa. — Abraçou-a com força. —
Meu bem, não chore. Qualquer um pode fazer uma bobagem na vida, mas é preciso muita
coragem para mudar, e mais ainda para falar a respeito.
O capítulo final começara em Washington com um homem chamado Roscoe Fleming. Àquela
altura, Pam estava viciada em barbitúricos, mas continuava bonita e atraente quando alguém se
dava ao trabalho de torná-la assim, o suficiente para conseguir um bom preço no mercado do
sexo. Um dia, um traficante de drogas chamado Henry teve uma ideia. Interessado em expandir o
seu comércio, e sendo um tipo cauteloso, acostumado a fazer os outros correrem os riscos em
seu lugar, decidiu comprar garotas para distribuírem as drogas. Pagou à vista a proxenetas
conhecidos de outras cidades, entre eles Roscoe. Desta vez Pam tentou fugir quase
imediatamente, mas foi pega e espancada com tanta violência que quebrou três costelas, apenas
para descobrir mais tarde que Henry não costumava ser tão complacente com as moças que
tentavam escapar. Ele também usara a oportunidade para enchê-la de barbitúricos, o que serviu
tanto para mitigar a dor como para aumentar sua dependência. Como castigo adicional, Henry
oferecera a moça a todos os amigos que a desejassem. Com isso, conseguira o que os outros não
haviam conseguido: quebrar seu espírito.
Durante um período de cinco meses, a combinação de espancamentos, violências sexuais e
drogas a deixara em um estado quase catatônico, do qual fora tirada apenas quatro semanas
antes, ao tropeçar no corpo de um menino de doze anos estendido na rua, com a agulha ainda
espetada no braço. Embora permanecesse aparentemente dócil, Pam reduzira o consumo de
drogas. Os amigos de Henry não se queixaram. Tornara-se uma parceira mais participante, o que
tendiam a atribuir ao seu próprio desempenho na cama. A moça esperara por uma oportunidade,
por uma ocasião em que Henry estivesse viajando, porque os outros ficavam mais descuidados
quando ele não estava por perto. Há cinco dias, reunira seus poucos pertences e fugira. Sem um
tostão — Henry não permitia que carregassem dinheiro —, decidira pedir carona para sair da
cidade.
— Fale-me a respeito de Henry — disse Kelly, quando ela terminou.
— Trinta anos, negro, mais ou menos da sua altura.
— Alguma outra garota fugiu?
A voz de Pam tornou-se fria como gelo.
— Conheço uma que tentou. Acho que foi em novembro. Henry... Henry a matou. Acho que
ela pretendia denunciá-lo à polícia e... — olhou para o alto — ...matou-a na nossa frente. Foi
horrível.
— Mesmo assim você fugiu, Pam?
— Preferia morrer a continuar naquela vida — murmurou a moça. — Preferia morrer. Como
aquele menino. Sabe o que acontece? Você simplesmente para. Tudo para. E eu estava ajudando.
Ajudei a matá-lo.
— Como conseguiu escapar?
— Na noite anterior, eu... eu trepei com todos eles... para que não desconfiassem... para que
parassem de me vigiar. Agora você entende?
— Você fez o que era necessário para escapar — disse Kelly, esforçando-se para manter a
voz firme. — Graças a Deus.
— Não culparia você se não quisesse mais saber de mim depois do que lhe contei. Talvez
papai estivesse certo a meu respeito.
— Pam, você se lembra do tempo em que ia à igreja?
— Claro.
— Não se lembra daquela história da Bíblia que acaba com as palavras "Vai e não peques
mais?". Acha que nunca fiz nada de errado? Que nunca senti vergonha de mim mesmo? Que
nunca tive medo? Você não está sozinha, Pam. Não percebe que foi preciso muita coragem para
me contar tudo isso?
A voz de Pam àquela altura estava totalmente destituída de emoção.
— Você tinha o direito de saber.
— Pois já sei, e isso não mudou nada. — Kelly fez uma pequena pausa. — Não, não é
verdade. Sinto uma admiração ainda maior por você, querida.
— Tem certeza? E daqui para a frente?
— Daqui para a frente, a única coisa que me preocupa são esses sujeitos de quem você fugiu.
— Se me encontrarem... — A emoção estava de volta às palavras da moça. O medo que
sentia era evidente. — Toda vez que voltar à cidade, estarei correndo um risco.
— Seremos cautelosos — afirmou Kelly.
— Jamais poderei relaxar. Jamais.
— Pam, há duas maneiras de resolver este problema. Você pode continuar fugindo e se
escondendo ou pode ajudar a colocá-los atrás das grades.
A moça sacudiu a cabeça enfaticamente.
— A garota que mataram. Eles sabiam que pretendia denunciá-los. É por isso que não posso
confiar na polícia. Além do mais, não sabe como me deixam apavorada.
Sarah tinha razão, observou Kelly. Pam estava usando a frente-única e o rapaz podia ver que
o sol realçara as marcas nas suas costas. Havia lugares onde a pele ficara menos bronzeada.
Vestígios das surras que recebera. Tudo começara com Pierre Lamarck, ou melhor, com Donald
Madden, homens covardes e mesquinhos, que buscavam dominar as mulheres através da força.
Homens?, perguntou Kelly para si próprio.
Não.
Kelly disse à ela para ficar onde estava e foi até a oficina. Voltou com oito latas vazias de
cerveja e refrigerante, que colocou no chão, a uns dez metros de onde estavam as cadeiras.
— Tape os ouvidos com as mãos — pediu Kelly.
— Para quê?
— Por favor — insistiu o rapaz. Quando Pam o atendeu, a mão direita de Kelly se moveu
como um raio, sacando uma Colt automática .45 de sob a camisa. Segurou-a com a duas mãos e
girou o corpo da esquerda para a direita. Uma por uma, a intervalos de menos de meio segundo,
as latas tombaram de lado ou foram arremessadas para o ar, acompanhadas por detonações da
pistola. Antes que a última estivesse de volta ao chão depois do curto voo, Kelly já tinha
ejetado o pente vazio e estava inserindo outro. Sete das latas tornaram a se mexer. Ele se
certificou de que a arma estava descarregada e colocou-a no cinto antes de se sentar ao lado de
Pam.
— Não é preciso muita coisa para amedrontar uma jovem indefesa, mas é preciso um pouco
mais para me assustar. Pam, se alguém sequer pensar em fazer mal a você, ele terá que se ver
comigo.
A moça olhou para as latas e depois para Kelly, que parecia muito satisfeito consigo mesmo.
A demonstração de tiro ao alvo tinha sido uma forma de descarregar a tensão, e durante o breve
surto de atividade chegara a atribuir um nome ou um rosto a cada uma das latas. Entretanto,
podia ver que Pam não estava convencida. Ainda levaria algum tempo.
— OK. Você me contou a história da sua vida, certo?
— Certo.
— Ainda acha que isso vai modificar o que sinto por você?
— Não. Você me disse que não. Acho que acredito em você.
— Pam, nem todos os homens do mundo são como aqueles bandidos... na verdade, são
minoria. Você simplesmente não teve sorte. Não há nada de errado com você. As pessoas
adoecem ou se machucam em acidentes. No Vietnã, vi muitos companheiros morrerem por pura
má sorte. Quase aconteceu comigo. Não havia nada de errado com eles; simplesmente tiveram a
desventura de estar no lugar errado, de correr para a esquerda e não para a direita, de olhar na
direção que não deviam. Sarah quer que você procure com um psiquiatra e fale de seus temores.
Acho que ela está certa. Temos que cuidar de você até que fique totalmente curada.
— E depois? — perguntou Pam.
Kelly respirou fundo, mas agora era tarde para voltar atrás.
— Você... você quer ficar comigo, Pam?
A moça reagiu como se tivesse sido esbofeteada, deixando-o atônito.
— Não vai dar certo! Você está dizendo isso só porque...
Kelly se pôs de pé, levantou-a e segurou-a pelos braços.
— Preste atenção, OK? Você esteve doente. Está melhorando rapidamente. Sofreu o diabo,
mas não desistiu. Eu acredito em você! Vai levar um certo tempo, é claro, Mas, no final, vai se
sentir muito bem.
Largou-a e recuou um passo. Estava tremendo de raiva, não apenas causa do que acontecera
com Pam, mas também consigo, por estar tentando impor sua vontade.
— Desculpe. Eu não devia ter feito isso. Por favor, Pam... acredite um pouco em você
mesma.
— É difícil. Fiz coisas horríveis.
Sarah estava certa, Pam precisava da ajuda de um profissional. Ficou furioso consigo mesmo
por não saber exatamente o que dizer.
Os dias que se seguiram foram surpreendentemente tranquilos. Fossem quais fossem suas
outras qualidades, Pam revelou-se uma péssima cozinheira. Seus fracassos a fizeram chorar
duas vezes, embora Kelly fizesse questão de engolir tudo que ela preparava com um sorriso e
uma palavra gentil. Mas ela aprendia rapidamente, e na sexta-feira já conseguira fazer um
hambúrguer um pouco mais saboroso que um pedaço de carvão. Kelly estava presente o tempo
todo, encorajando-a, ao mesmo tempo em que procurava, em geral com sucesso, não se mostrar
excessivamente dominador. Uma palavra gentil, um toque suave e um sorriso eram os seus
instrumentos. Em pouco tempo, Pam estava imitando o seu hábito de se levantar antes do sol
nascer. Kelly também insistiu para que a moça se exercitasse, o que a princípio não foi fácil,
Embora fosse basicamente saudável, fazia anos que Pam não corria mais do que meio quarteirão
de uma vez, de modo que o rapaz a fez caminhar em torno da ilha, começando com duas voltas,
que no final da semana tinham sido aumentadas para cinco. A moça passava as tardes tomando
banho de sol, em geral apenas de calcinha e sutiã. Começou a ficar bronzeada, mas não parecia
notar as marcas claras nas costas, que deixavam Kelly furioso. Começou a prestar mais atenção
na própria aparência, tomando banho e lavando o cabelo pelo menos uma vez por dia. Kelly
estava sempre por perto para elogiá-la. Não mencionou nenhuma vez o fenobarbital que Sarah
deixara com ele para ser usado em caso de necessidade; se encontrara alguma dificuldade para
dormir, conseguira substituir as drogas por exercício, pois a rotina de sono-vigília voltara ao
normal. Seus sorrisos se tornaram mais confiantes e por duas vezes Kelly a surpreendeu
olhando-se no espelho com uma expressão que não era de angústia.
— Seu cabelo está lindo — disse Kelly no sábado à noite, logo depois que ela saiu do banho.
— Pode ser — admitiu Pam.
Kelly pegou um pente na pia e começou a pentear o cabelo molhado dela.
— Ele ficou bem mais claro por causa do sol.
— Levei algum tempo para conseguir tirar toda a sujeira — observou ela.
Kelly lutou com um emaranhado, procurando não puxar com muita força.
— Mas ela acabou saindo, não foi, Pammy?
— É, acho que sim — respondeu a moça para o rosto no espelho.
— Foi difícil dizer isso, querida?
— Muito difícil. — Um sorriso, um sorriso de verdade, com calor e convicção.
Kelly largou o pente e beijou-a no pescoço, deixando-a observá-lo no espelho. Depois, pegou
o pente de novo e continuou o trabalho. Não lhe parecia uma atividade muito masculina, mas
estava adorando.
— Pronto. Está todo desembaraçado.
— Você devia comprar um secador de cabelo.
Kelly deu de ombros.
— Nunca precisei de um.
Pam Virou-se e segurou-lhe as mãos.
— Acho que vai precisar, se ainda me quiser. .
Kelly ficou em silêncio por uns dez segundos. Quando falou, as palavras não foram
exatamente as que pretendia dizer, porque agora era ele que estava com medo. — Tem certeza?
— Você ainda...
— Claro que sim! — Foi difícil levantá-la com o cabelo molhado, ainda nua e com o corpo
úmido do chuveiro, mas um homem tinha que carregar sua mulher em um momento daqueles.
Pam estava mudando. As costelas apareciam menos. Ganhara peso, graças à alimentação
saudável, regular. Mas era o espírito que mais havia mudado. Kelly achou aquilo um milagre,
sem coragem de admitir que era um dos responsáveis, mas sabendo no fundo que era assim.
Após um momento, colocou-a no chão, admirando a alegria em seus olhos, orgulhoso por saber
que ajudara a colocá-la ali.
— Tenho meus defeitos, também — advertiu Kelly.
— Já conheço a maioria deles — assegurou-lhe a moça. Começou a acariciar-lhe o peito,
bronzeado e coberto de pelos escuros, marcado por cicatrizes adquiridas em operações de
combate em lugares distantes.
As cicatrizes de Pam ficavam do lado de dentro, mas algumas das de Kelly também, e juntos
ajudariam a curar um ao outro. Pam tinha certeza disso. Começava a pensar no futuro como algo
mais que um lugar escuro onde poderia se esconder e esquecer. Agora era principalmente um
lugar de esperança.
6

EMBOSCADA

O resto foi fácil. Fizeram uma rápida viagem de barco até Solomons, onde ¨Pam comprou
algumas coisinhas e cortou o cabelo em um salão de beleza. Quando completou a segunda
semana com Kelly, estava correndo regularmente e ganhara peso. Já podia usar um maiô de duas
peças sem mostrar as costelas. O tônus dos músculos das pernas melhorara muito; o que estava
flácido tinha ficado firme, como devia ser em uma mulher tão jovem. Pam ainda tinha seus
demônios. Por duas vezes, Kelly acordou e observou que estava tremendo, suando e
murmurando algo que não chegava a se transformar em palavras, mas era fácil de compreender.
Nas duas vezes, bastou tocá-la para que se acalmasse, mas não pôde deixar de se preocupar.
Decidiu ensiná-la a manejar o Springer e, fossem quais fossem as deficiências de sua educação,
Pam se revelou uma excelente aluna: aprendeu rapidamente a fazer coisas que a maioria dos
iatistas amadores nunca chegava a dominar perfeitamente. Levou-a para nadar e ficou surpreso
ao descobrir que Pam era uma excelente nadadora, embora tivesse nascido no meio do Texas.
O mais importante, porém, era que amava a visão, o som, o cheiro e principalmente o contato
de Pam Madden. Quando ficava sem olhar para ela por alguns minutos, sentia-se ligeiramente
ansioso, como se ela pudesse desaparecer de repente. Mas ela sempre estava lá, captando seu
olhar, respondendo com um sorriso. Quase sempre. Às vezes a surpreendia com uma expressão
diferente, permitindo-se olhar para trás, para a escuridão do passado, ou para a frente, para um
futuro diverso do que planejara para ela. Tinha vontade de poder entrar na mente de Pam e
remover as partes estragadas, mas sabia que essa missão teria que ficar a cargo de
especialistas. Nessas ocasiões, e em outras, encontrava uma desculpa para se aproximar e
passar as pontas dos dedos pelo ombro dela, só para mostrar que estava ali.
Dez dias depois da partida de Sam e Sarah, os dois executaram uma pequena cerimônia.
Kelly deixou a moça tirar o barco do cais, amarrar uma pedra no vidro de fenobarbital e jogar
no mar. O ruído que o vidro fez ao cair na água pareceu um final apropriado para um dos
problemas de Pam. Kelly ficou de pé atrás dela, envolvendo sua cintura com os braços
musculosos, observando os outros barcos que atravessavam a baía, e o futuro lhe pareceu cheio
de promessas.
— Você estava certo — disse Pam, acariciando os braços dele.
— Isso às vezes acontece — replicou Kelly, com um sorriso distante, apenas para ser
surpreendido pelo que a moça disse a seguir.
— Existem outras como eu, John, outras mulheres que Henry... como Helen, a garota que ele
matou.
— O que quer dizer com isso?
— Tenho que voltar. Preciso ajudá-las antes que Henry... antes que ele mate mais alguém.
— É muito perigoso, Pammy — disse Kelly, devagar.
— Eu sei... mas o que será feito delas?
Era um bom sinal, pensou Kelly. Pam se tornara de novo uma pessoa normal, e as pessoas
normais se preocupavam com os semelhantes.
— Não posso passar a vida me escondendo, não é? — Kelly sabia que ela estava com medo,
mas as palavras eram uma espécie de desafio.
Abraçou-a com mais força.
— Não, não pode. Aí é que está o problema. Não é fácil se esconder de tipos como aqueles.
— Acha que podemos confiar no seu amigo da polícia?
— Acho. É um tenente que conheço há muitos anos. Ajudei-o a encontrar umas armas
desaparecidas, de modo que me deve um favor. Além disso, acabei ajudando a treinar os
mergulhadores da polícia e fiz alguns amigos. — Kelly fez uma pausa. — Você não precisa fazer
isso, Pam. Se quiser se manter afastada, para mim está ótimo. Não preciso voltar a Baltimore
nunca mais, a não ser para falar com aquela médica.
— Estão fazendo com outras garotas tudo o que fizeram comigo. Como podemos assistir a
isso impassíveis?
Kelly refletiu sobre essas palavras e seus próprios demônios. Era simplesmente impossível
fugir de certas coisas. Ele sabia. Também havia tentado. A coleção de Pam era ainda pior do
que a sua, e para que o relacionamento entre os dois prosseguisse, aqueles demônios tinham que
ser postos para fora.
— Vou dar um telefonema.

— Tenente Allen — disse o homem ao telefone, no Western District. O ar-condicionado


aquele dia não estava funcionando direito e sua mesa eslava cheia de papéis para despachar.
— Frank? John Kelly — ouviu o detetive, e seu rosto imediatamente se iluminou com um
sorriso.
— Como vai a vida no meio da baía, cara? — Gostaria de estar lá com ele.
— Tranquila e preguiçosa. E a sua?
— Gostaria de poder dizer o mesmo — respondeu Allen, recostando-se na cadeira giratória.
Um homem corpulento e, como a maioria dos policiais de sua geração, veterano da Segunda
Guerra Mundial (no seu caso, artilheiro dos fuzileiros navais). Allen começou fazendo a ronda a
pé na East Monument Street e acabou no setor de homicídios. O trabalho não era tão exaustivo
quanto a maioria das pessoas pensava, mas a tensão associada ao fim prematuro de vidas
humanas era, naturalmente, um fardo pesado. Pelo tom de voz, Allen pressentiu que Kelly queria
alguma coisa. — O que posso fazer por você?
— Eu, hum, conheci alguém que talvez precise ter um conversa com você.
— Como assim? — perguntou o policial, enfiando a mão no bolso da camisa para pegar um
cigarro.
— A coisa é séria, Frank. Essa pessoa tem informações a respeito de um assassinato.
Os olhos do policial se estreitaram um pouco enquanto seu cérebro mudava de marcha.
— Quando e onde?
— Ainda não sei e não gostaria de falar a respeito por telefone.
— Não pode me dizer mais nada?
— Fica entre nós, por enquanto?
Allen fez que sim com a cabeça, olhando pela janela.
— Fica entre nós.
— É coisa dos traficantes de drogas.
O cérebro de Allen fez clic. Kelly disse que o informante era uma ''pessoa" e não um homem.
Estava claro que se tratava de uma mulher. Kelly podia ser esperto, mas não estava acostumado
com esse tipo de trabalho. Allen ouvira falar vagamente de uma quadrilha de traficantes que
usava mulheres para fazer as entregas. Nada mais do que isso. O caso não era seu. Estava sendo
investigado por Emmet Ryan e Tom Douglas, da delegacia do centro.
— No momento temos pelo menos três quadrilhas de traficantes na cidade — afirmou Allen.
— Bandidos da pior espécie. Conte-me mais alguma coisa.
— Essa pessoa não quer se envolver. Tem apenas algumas informações para você, Frank. Se
estiver interessado, podemos conversar pessoalmente.
Allen refletiu. Nunca investigara o passado de Kelly, mas o que sabia era suficiente. Kelly
era um mergulhador experiente, suboficial da Marinha que lutara no delta do Mekong apoiando
a 9ª de Infantaria; um polvo, mas um polvo muito competente, cujos serviços tinham sido
altamente recomendados por alguém do Pentágono e fizera um trabalho excelente de treinamento
dos mergulhadores da polícia, ganhando bom dinheiro pelo serviço. A "pessoa" tinha que ser
uma mulher; Kelly não se preocuparia tanto em proteger a identidade de um homem. Os homens
simplesmente não pensavam dessa forma a respeito de outros homens. O caso prometia ser no
mínimo interessante.
— Você não está brincando, está? — sentiu-se no dever de perguntar.
— Eu não sou disso, cara — assegurou-lhe Kelly. — Minhas regras: vou me limitar a lhe
passar as informações e tem que ser em um lugar discreto. OK?
— Sabe de uma coisa? Se fosse qualquer outro, eu diria para vir aqui ou nada feito. Mas está
bem. Afinal, me ajudou a resolver o caso Gooding. Nós conseguimos pegá-lo, você sabe. Prisão
perpétua mais trinta anos. Eu lhe devo essa. OK, vou fazer como você quer.
— Obrigado. Como está o seu horário?
— Esta semana estou no turno da noite. — Passava um pouco das quatro da tarde e Allen
acabara de entrar de serviço. Ele não sabia que Kelly já havia telefonado três vezes naquele dia
sem deixar recado. — Saio meia-noite e pouco, uma hora, por aí. Depende do movimento —
explicou.
— Amanhã à noite. Pego você na porta da frente. Podemos comer alguma coisa juntos.
Allen franziu a testa. Aquilo estava começando a parecer um filme de James Bond. Mas sabia
que Kelly era um homem sério, embora não conhecesse nada a respeito dos métodos da polícia.
— Até lá, então.
— Obrigado, Frank.
Kelly desligou e Allen voltou ao trabalho, depois de anotar o compromisso na agenda.
— Está assustada? — perguntou Kelly.
— Um pouquinho — admitiu Pam.
Ele sorriu.
— Isso é normal. Mas você ouviu o que eu disse. Ele não sabe nada a seu respeito. Ainda
pode desistir, se quiser. Estarei armado, mas vai ser apenas uma conversa. Resolveremos tudo
no mesmo dia... isto é, na mesma noite. Estarei com você o tempo todo.
— O tempo todo?
— A não ser quando for ao banheiro, querida. Lá dentro, terá que andar por si mesma.
Ela sorriu e pareceu se acalmar.
— Tenho que fazer o jantar — declarou, dirigindo-se para a cozinha. Kelly saiu de casa.
Alguma coisa lhe dizia para praticar tiro ao alvo, mas já tinha feito isso. Foi até a oficina e
pegou a .45 na prateleira. Primeiro, comprimiu o dedal-guia da mola recuperadora. Em seguida,
fez girar a manga, liberando a mola. Desmontou o conjunto cano-ferrolho e removeu o cano.
Com isso, a pistola estava desmontada parcialmente para limpeza. Segurou o cano perto da luz
e, como esperava, estava sujo. Limpou todas as superfícies, usando trapos, solvente e uma
escova de dentes, até não haver nenhum sinal de poeira. Depois, lubrificou a arma, evitando
usar muito óleo para não acumular sujeira, o que poderia fazer a pistola falhar em um momento
inconveniente. Terminada a limpeza, tornou a montar rapidamente a pistola. Era algo que podia
fazer de olhos fechados. Puxou a culatra móvel para trás algumas vezes para se certificar de que
estava montada corretamente. Uma inspeção visual confirmou que tudo estava em ordem.
Kelly tirou de uma gaveta dois pentes carregados e um cartucho. Colocou um dos pentes na
pistola e acionou o carregador para introduzir um dos cartuchos na câmara. Soltou o cão
devagar antes de ejetar o pente e recarregá-lo com o cartucho. Com oito cartuchos na arma e um
pente de reserva, dispunha de um total de quinze tiros para enfrentar possíveis perigos. Não
seria nem de longe o suficiente para uma passeio nas selvas do Vietnã, mas estaria ótimo para
uma volta pela cidade. Era capaz de acertar a cabeça de um homem a uma distância de dez
metros, de dia ou de noite. Jamais tremera diante do perigo e já matara algumas vezes. Fossem
quais fossem os riscos, estava preparado. Além do mais, não iria enfrentar os vietcongues.
Estaria agindo à noite e a noite era sua aliada. Haveria poucas pessoas por perto, e a menos que
o inimigo soubesse da sua presença — e não havia razão para supor que viesse a saber —, não
precisava se preocupar com uma emboscada. Bastava se manter alerta, e isso era fácil para ele.
O jantar foi galinha, algo que Pam sabia preparar. Kelly pensou em abrir uma garrafa de
vinho, mas mudou de ideia. Por que tentá-la com álcool? Talvez fosse melhor ele próprio parar
de beber. Não perderia grande coisa, e o sacrifício confirmaria seu compromisso com a jovem.
Durante o jantar, evitaram falar sobre assuntos sérios. Ele já tinha afastado os perigos da mente.
O excesso de imaginação podia ser prejudicial.
— Acha mesmo que vamos precisar de cortinas novas? — perguntou.
— As atuais não combinam com a mobília.
Kelly deu um muxoxo.
— Mesmo no caso de um barco?
— Isso aqui é meio monótono, não acha?
— Monótono? — repetiu Kelly, tirando a mesa. — Daqui a pouco você vai dizer que todos
os homens são iguais... — Kelly enrubesceu. Era a primeira vez que escorregava daquela forma.
— Desculpe...
Pam endereçou-lhe um sorriso malicioso.
— São mesmo, sob certos aspectos. E pare de ficar tão nervoso quando fala comigo sobre
certas coisas, está bem?
Kelly sentiu-se aliviado.
— Está bem. — Segurou a moça e puxou-a para perto de si. — Se é assim que você pensa...
então...
— Mmm. — Ela sorriu e aceitou o beijo dele. As mãos de Kelly acariciaram-lhe as costas e
ele percebeu que não havia um sutiã sob a blusa de algodão. Ela riu. — Imaginei quanto tempo
você levaria para perceber.
— As velas estavam na frente — explicou Kelly.
— As velas foram uma ideia ótima, mas deixaram um cheiro meio desagradável.
Tinha razão. A ventilação da casamata era insuficiente. Mais uma coisa para consertar. Kelly
viu pela frente um futuro muito atarefado enquanto passava as mãos para um lugar mais
agradável.
— Acha que já engordei o suficiente?
— Estou imaginando coisas ou...
— Bem, talvez só um pouquinho — admitiu Pam, segurando as mãos dele junto ao corpo.
— Precisamos comprar roupas novas para você — disse Kelly, observando o rosto dela, que
mostrava nova disposição. Insistira para que assumisse o leme. Estavam passando pelo farol da
ilha de Sharp, bem a leste do canal de navegação, que estava bem movimentado.
— Boa ideia — concordou Pam. — Mas não conheço nenhuma loja boa. — Consultou a
bússola, como um bom timoneiro.
— Isso é fácil. Basta observar o estacionamento.
— Hein?
— Lincolns e Caddys, querida. Significam roupas de excelente qualidade. Não falha nunca.
Ela riu. Era admirável, pensou Kelly, como ela parecia mais segura, embora ainda tivesse
longo caminho pela frente.
— Onde vamos passar a noite?
— No barco — respondeu Kelly, — Aqui estaremos seguros. — Pam fez que sim com a
cabeça, mas mesmo assim ele explicou: — Você mudou muito de aparência e eles não sabem
quem sou. Também não conhecem meu carro nem meu barco. Frank Allen não sabe seu nome.
Nem ao menos sabe se você é homem ou mulher. Isso se chama segurança operacional. Não
quero correr nenhum risco.
— Você pensou em tudo — afirmou Pam, sorrindo. A confiança no rosto dela esquentou o
sangue de Kelly e alimentou seu ego já inflado.
— Parece que esta noite vai chover — observou, apontando para as nuvens distantes. — Isso
também é bom. Diminui a visibilidade. Gostávamos de executar nossas missões na chuva. As
pessoas ficam mais distraídas quando estão molhadas.
— Você tem muita experiência nesse tipo de coisa, não é?
— Aprendi da maneira mais difícil, querida — respondeu ele, com um sorriso superior.
Três horas depois, chegaram ao cais. Kelly observou o estacionamento e certificou-se de que
o Scout estava no lugar de sempre. Mandou Pam descer para a cabine enquanto cuidava das
amarras e deixou-a esperando enquanto ia buscar o carro. Obedecendo a suas recomendações,
Pam caminhou diretamente do barco para o Scout, sem olhar para os lados, e Kelly afastou-se
rapidamente do local. Ainda era cedo e eles saíram da cidade, dirigindo-se para um centro
comercial em Timonium, onde Pam levou duas horas (tempo que, para Kelly, pareceu
interminável) para escolher três trajes diferentes, que ele pagou em dinheiro. Ela vestiu o que
mais lhe agradara, um conjunto discreto de saia e blusa que combinava bem com o paletó sem
gravata que Kelly estava usando. Pelo menos daquela vez, ele tinha se vestido de acordo com
sua situação financeira, que era folgada.
Jantaram nas vizinhanças do centro comercial, em uma mesa de canto de um restaurante de
luxo. Kelly jamais admitiria, mas estava precisando de uma boa refeição. Embora a galinha de
Pam não fosse de todo má, a moça tinha muito a aprender em matéria de cozinha.
— Você está com ótima aparência... descontraída, quero dizer — disse ele, acabando de
beber o café.
— Nunca pensei que me sentiria assim. E faz apenas... quanto tempo? Menos de três
semanas?
— Isso mesmo. — Kelly pôs a xícara na mesa. — Amanhã vamos falar com Sarah e seus
amigos. Daqui a alguns meses, tudo será diferente, Pam. — Segurou a mão esquerda da moça,
pensando que um dia gostaria de colocar uma aliança de ouro no seu dedo anular.
— Já estou começando a acreditar nisso. Sinceramente.
— Ótimo.
— O que vamos fazer agora? — perguntou ela. Tinham acabado de jantar e faltavam ainda
algumas horas para o encontro secreto com o tenente Allen.
— Por que não damos uma volta de carro? — propôs Kelly. Ele deixou o dinheiro em cima
da mesa e acompanhou Pam até o carro.
Estava anoitecendo e uma chuva fina começou a cair. Kelly tomou a York Road na direção da
cidade. Sentia-se bem alimentado, feliz e preparado para a missão que os aguardava. Ao entrar
em Towson, viu os trilhos de bonde recentemente abandonados que anunciavam a proximidade
da cidade e seus possíveis perigos. Imediatamente, todos os seus sentidos entraram em alerta.
Olhou rapidamente para a direita e para a esquerda, examinando ruas e calçadas, consultando os
três espelhos retrovisores a cada cinco segundos. Ao entrar no carro, colocara a Colt .45
automática no lugar de sempre, um coldre debaixo do banco do motorista, que podia alcançar
com maior rapidez do que se o levasse na cintura, além de permitir que dirigisse com mais
conforto.
— Pam? — chamou, depois de certificar-se de que as portas estavam trancadas, uma
precaução que, nas circunstâncias, podia ser considerada até exagerada.
— Sim?
— Você confia em mim?
— Sabe que confio, John.
— Onde você... onde você trabalhava?
— Como assim?
— Está escuro, está chovendo e eu gostaria de ir até lá dar uma olhada. — Não precisou
olhar para perceber que ela ficara tensa. — Escute, vou tomar muito cuidado. Se você vir
alguma coisa que lhe pareça perigosa, cairemos fora sem pensar duas vezes.
— Tenho medo — disse Pam, sem pensar. Depois, arrependeu-se, tinha ou não tinha
confiança em seu homem? John fizera tanto por ela! Salvara sua vida. Tinha que confiar nele...
mais do que isso, tinha que mostrar que confiava nele. Por isso, perguntou: — Promete que vai
tomar cuidado?
— Acredite, Pam — assegurou ele. — Iremos embora no momento em que você mandar.
— Nesse caso, está bem.
Era espantoso, pensou Kelly, cinquenta minutos mais tarde. As coisas que estão diante dos
seus olhos e você não vê. Quantas vezes passara de carro por aquela parte da cidade sem parar,
sem reparar. E no entanto, durantes vários anos, não tivera que reparar em tudo, em cada galho
quebrado, em cada canto de passarinho, em cada pegada na lama? Mas passara por aquele
bairro centenas de vezes e jamais prestara atenção ao que estava acontecendo, porque era uma
selva diferente, habitada por animais muito diferentes. Parte dele se limitou a dar de ombros e
dizer: O que você esperava? Outra parte observou que aquele lugar sempre tinha sido perigoso
e que ele deixara de perceber o perigo, mas os sinais não eram tão evidentes assim.
O ambiente era ideal. Um céu nublado, sem lua. A única iluminação vinha das esparsas
lâmpadas de rua, que criavam círculos solitários de luz nas calçadas. As pancadas de chuva iam
e vinham, algumas fortes, outras moderadas, mas suficientes para limitar a visibilidade e fazer
com que as pessoas mantivessem a cabeça baixa, limitando a curiosidade natural. Isso era útil
para Kelly, que estava circulando pelos quarteirões, observando o que mudara na segunda ou
terceira vez que passava pelo mesmo lugar. Reparou que nem todas as lâmpadas de rua estavam
acesas. Seria apenas descaso dos funcionários da prefeitura ou uma iniciativa
dos "comerciantes" locais? Talvez as duas coisas, pensou Kelly. Os homens que trocavam as
lâmpadas não podiam ganhar muito; uma nota de vinte dólares provavelmente os convenceria a
não se apressar para fazer o conserto, ou talvez não atarraxar a lâmpada até o fim. Fosse como
fosse, isso fazia com que as ruas ficassem ainda mais escuras, e a escuridão sempre fora amiga
de Kelly.
O bairro era muito... muito triste, pensou. Fachadas decrépitas do que tinham sido pequenas
mercearias, provavelmente levadas à falência por supermercados que mais tarde foram
saqueados durante os tumultos de 1968, deixando uma lacuna na estrutura econômica da região
que ainda não fora preenchida. O cimento rachado das calçadas estava coberto de detritos.
Alguém ainda morava ali? Quem eram essas pessoas? O que faziam? Quais eram seus sonhos?
Certamente nem todas eram criminosas. Será que se escondiam à noite? Nesse caso, o que
faziam durante o dia? Kelly aprendera uma lição na Ásia: ceda ao inimigo uma parte do dia e
ele tratará de garanti-la e depois expandi-la, porque o dia tem vinte e quatro horas e o inimigo
precisa de todas elas para suas atividades. Não, não se deve ceder nada ao inimigo, nem um
período do dia, nem um lugar, nada que ele possa usar com segurança. Era assim que se perdia
uma guerra, e ali estava sendo travada uma guerra. Só que os vencedores não eram as forças do
bem. O pensamento o deixou deprimido. Já participara de uma guerra destinada ao fracasso.
Os traficantes eram um grupo eclético, observou Kelly enquanto trafegava pela área de venda.
A postura arrogante demonstrava a confiança que sentiam. Àquela hora, eram os donos das ruas.
Podia haver uma certa competição, um processo darwiniano que determinasse quem controlaria
que pedaço de que calçada, quem teria direitos territoriais em frente desta ou daquela janela
quebrada, mas, como em todas as competições desse tipo, as coisas logo atingiriam um certo
grau de estabilidade e os negócios voltariam ao normal, porque o objetivo da competição, afinal
de contas, eram os negócios.
Dobrou à direita em uma rua nova. O pensamento o fez sorrir ironicamente. Rua nova? Não,
aquelas ruas eram muito velhas, tão velhas que as pessoas "boas" tinham deixado aquele lugar
há muitos anos, em busca de pastagens mais verdes, permitindo que outros menos afortunados
ocupassem o seu lugar. Esses, por sua vez, tinham se mudado, e o ciclo se repetira por algumas
gerações até que ocorrera alguma coisa realmente muito errada para criar o que estava vendo
agora. Levara mais ou menos uma hora para se dar conta de que havia gente ali, e não apenas
criminosos e calçadas cheias de lixo. Viu uma mulher se afastar de um ponto de ônibus com uma
criança pela mão. Imaginou de onde estariam chegando. Da casa de uma tia? Da biblioteca
pública? De algum lugar cujos atrativos justificassem a perigosa caminhada do ponto de ônibus
até em casa, passando por pessoas cuja simples existência constituía uma ameaça àquela
criança.
O corpo dele se retesou e seus olhos se estreitaram. Já vira aquilo antes. Mesmo no Vietnã,
um país que já estava em guerra antes de Kelly nascer, ainda havia pais, ainda havia filhos, e,
mesmo na guerra, ainda havia uma tentativa desesperada de manter uma certa normalidade. As
crianças precisavam brincar, precisavam ser abraçadas e amadas, precisavam ser protegidas
dos aspectos mais cruéis da realidade enquanto a coragem e o talento dos pais tomassem isso
possível. O mesmo acontecia ali. Em toda parte havia vítimas, todas inocentes em maior ou
menor grau, mas as crianças eram as mais inocentes de todas. Podia ver isso ali, a cinquenta
metros de distância, observando a jovem mãe atravessar a rua com o filho antes de chegar à
esquina onde o traficante fazia mais uma transação. Freou o carro para permitir que
atravessassem com calma, torcendo para que o amor e o cuidado que a mulher demonstrara
naquela noite fizessem alguma diferença para o filho. Será que os traficantes tinham visto os
dois? Será que os cidadãos comuns tinham alguma importância para eles? Eram considerados
como uma fachada? Como fregueses em potencial? Como um estorvo? Como uma presa? E a
criança? Será que se importavam? Provavelmente não.
— Que merda — murmurou baixinho, distraído demais para demonstrar abertamente sua
contrariedade.
— O que foi? — perguntou Pam. Ela estava sentada, muito quieta, o mais longe possível da
janela.
— Nada. Desculpe. — Kelly sacudiu a cabeça e continuou sua observação. Na verdade,
estava começando a se divertir. Era como uma missão de reconhecimento. Reconhecimento era
aprendizado e aprender era uma paixão para Kelly. Estava diante de algo totalmente novo. Claro
que era feio, mau, destrutivo, mas também era diferente, o que o tornava interessante. Suas mãos
coçavam ao volante.
Os fregueses também eram bem variados. Alguns moravam nas redondezas, como se podia
ver pela cor e pelas roupas surradas. Alguns eram mais viciados do que outros, e Kelly
imaginou o que isso significaria. Os mais bem-dispostos eram os viciados mais recentes? Os
farrapos humanos eram os veteranos da autodestruição, em uma trajetória irreversível para a
morte? Como uma pessoa normal podia olhar para eles e não se assustar com o que via? O que
levava as pessoas a procederem assim? O pensamento quase o fez parar o carro. Aqui era algo
que estava fora da sua experiência.
Havia também os outros fregueses, os que dirigiam carros dispendiosos, tão limpos que
tinham que vir dos subúrbios, onde os padrões eram respeitados. Passou perto de um desses
carros e deu uma espiada no motorista. Está usando gravata! Frouxa no colarinho, porque devia
estar suando em um bairro como aquele, usando uma das mãos para descer a janela enquanto a
outra se crispava no volante, o pé direito certamente pousado no acelerador, pronto para pisar
fundo ao menor sinal de perigo. Ele deve estar com os nervos à flor da pele, pensou Kelly,
observando-o no espelho. Não podia se sentir à vontade ali, mas isso não o impedira de vir.
Sim, ali estava ele. Passou o dinheiro rapidamente, recebeu algo em troca e se afastou tão
depressa quanto a rua movimentada permitiu Obedecendo a um impulso, Kelly acompanhou o
Buick por alguns quarteirões, dobrando à direita e depois à esquerda para entrar em uma artéria
importante, onde o carro tomou a pista da esquerda e se manteve nela, correndo o máximo que
era prudente para sair logo daquela parte soturna da cidade, mas sem despertar a atenção
indesejável de um guarda de trânsito com seu talão de multas.
A polícia, pensou Kelly, desistindo da perseguição. Onde está a polícia? A lei estava sendo
violada abertamente, mas não havia nenhum policial à vista. Sacudiu a cabeça e voltou para a
área do tráfico. A diferença entre aquele bairro e o lugar onde passara a infância, em
Indianapolis, de apenas dez anos, era descomunal. Como as coisas mudaram tão depressa? O
tempo que servira na Marinha e sua vida na ilha o haviam isolado de tudo. Era um caipira, um
inocente, um novato em seu próprio país.
Olhou para Pam. Parecia estar bem, embora um pouco tensa. Aquelas pessoas eram
perigosas, mas não para eles dois. Tomara cuidado para não se expor, dirigindo com cautela,
serpenteando pelos quarteirões dos traficantes sem um padrão definido. Não estava correndo
nenhum risco, repetiu para si mesmo. Enquanto observava os traficantes, não permitira que eles
o observassem. Se alguém olhasse demais para ele ou para o carro, certamente notaria. Além do
mais, ainda tinha uma .45 entre as pernas. Por mais truculentos que fossem esses marginais, não
eram nada em comparação com os norte-vietnamitas e os vietcongues com quem tivera que se
defrontar. Eles eram bons; ele tinha sido melhor ainda.
Havia perigos naquelas ruas, mas muito menores que os que enfrentara com sucesso em terras
distantes.
A cinquenta metros dali estava parado um traficante usando uma camisa de seda que podia ser
marrom ou amarela. Era difícil dizer, por causa da iluminação, mas o tecido tinha que ser seda
pela forma como refletia a luz. Seda natural, provavelmente, pensou Kelly. Aqueles bandidos
gostavam de ostentar. Não se contentavam em infringir a lei. Oh, não, tinham que mostrar aos
outros como eram poderosos e arrogantes.
Que tolice, pensou. Que tolice chamar atenção daquela forma. Quando você se envolve em
atividades perigosas, é melhor esconder sua identidade, disfarçar sua própria presença e
garantir pelo menos um caminho de fuga.
— É incrível que eles consigam fazer isso impunemente — murmurou Kelly consigo mesmo.
— Hein? — fez Pam, olhando para ele.
— Eles são tão estúpidos! — Kelly apontou para o traficante perto da esquina. — Mesmo
que os guardas não façam nada, o que acontece se alguém resolver... quero dizer, ele está com
um bom dinheiro, não está?
— Mil, pelo menos. Talvez dois mil — respondeu Pam.
— E se alguém resolver assaltá-lo?
— Isso às vezes acontece, mas ele está armado, e se alguém tentar...
— Oh... você se refere ao cara que está na entrada do edifício?
— Ele é que o verdadeiro traficante, Kelly. Você ainda não havia percebido? Aquele sujeito
de camisa de seda é o ajudante. É ele que cuida das... como é que se chama?
— Das transações — respondeu Kelly secamente, recriminando-se por ter deixado passar
alguma coisa, sabendo que permitira que o orgulho fosse maior do que a cautela. É um péssimo
hábito, pensou consigo mesmo.
Pam fez que sim com a cabeça.
— Isso mesmo. Observe... observe agora.
Ela tinha razão, pensou Kelly, acompanhando o que agora sabia ser a transação completa.
Alguém ao volante de um carro, outro visitante dos bairros de classe média, provavelmente,
passou dinheiro para o ajudante (Kelly na verdade não podia ver o que ele estava passando,
mas certamente não era um cartão de crédito). O ajudante tirou um objeto de dentro da camisa e
o entregou ao motorista. Depois que o carro foi embora, o homem de camisa de seda se afastou
do meio-fio e outra transação teve lugar nas sombras.
— Ah, agora estou entendendo. O ajudante entrega as drogas e recebe o pagamento, mas logo
passa o dinheiro para o chefe. O chefe supervisiona a operação com uma arma no bolso, para se
prevenir de qualquer surpresa. Eles não são tão tolos como parecem.
— Não. São muito espertos.
Kelly reconheceu que cometera pelo menos dois erros de avaliação. Entretanto, era para isso
mesmo que serviam as missões de reconhecimento.
Cuidado com o excesso de confiança, Kelly, disse a si próprio. Agora você sabe que são dois
bandidos, um deles armado e bem escondido na entrada do edifício. Ajeitou o corpo no assento
e fixou os olhos na cena, procurando registrar padrões de atividade. O homem que estava nas
sombras era o inimigo de verdade. O ajudante tinha um papel secundário. Provavelmente era
apenas um aprendiz que vivia de migalhas ou de uma pequena comissão. Isso estava de acordo
com uma antiga tradição, não estava? Sorriu, lembrando-se de um comissário político regional
do Exército do Vietnã do Norte. A missão tivera até um nome de código: CASACO DE
ARMINHO. Tinham seguido o filho da puta durante quatro dias, depois de identificá-lo, só para
ter certeza de que era mesmo a pessoa que queriam, conhecer os seus hábitos e descobrir a
melhor forma de despachá-lo para o outro mundo. Kelly jamais se esqueceria da expressão do
homem no momento em que a bala entrou no seu peito. Em seguida, tinham fugido a pé, correndo
cinco quilômetros até o ponto de recolhimento, enquanto os soldados inimigos tomavam a
direção oposta por causa de uma carga que ele detonou para despistá-los.
E se sua missão fosse eliminar aquele traficante? O que faria? Era um problema teórico
interessante. Sentia-se como uma águia, observando, catalogando, mas, acima de tudo, um
predador no ponto mais alto da cadeia alimentar, sem fome no momento, pairando calmamente
sobre as presas.
Sorriu, ignorando os avisos que a parte do seu cérebro que tinha experiência em combate
estava começando a enviar.
Hummm. Era a primeira vez que via aquele carro. Um modelo possante, um Plymouth
Roadrunner, vermelho como uma maçã caramelada, a meio quarteirão de distância. Havia algo
de estranho no modo como...
— Kelly... — Pam parecia nervosa com alguma coisa.
— O que foi? — Estendeu a mão para a .45 e retirou-a parcialmente do coldre, sentindo-se
mais seguro apenas por tocar na velha coronha de madeira. Entretanto, aquele gesto
representava uma mensagem que não podia ser ignorada. A parte cautelosa do cérebro começou
a predominar; seus instintos de combate falaram mais alto. Mesmo essa reação, porém, serviu
apenas para deixá-lo ainda mais orgulhoso de si mesmo. É bom saber que o velho instinto não
me abandonou, pensou.
— Eu conheço esse carro. É...
A voz de Kelly não se alterou.
— Está bem, vamos dar o fora daqui. Tem razão, já ficamos tempo demais. — Acelerou,
tomando a pista da esquerda para passar pelo Roadrunner. Pensou em dizer a Pam para se
abaixar, mas não era necessário. Em menos de um minuto estariam longe dali e...
Droga!
Era um dos fregueses ricos, alguém em um Karmann-Ghia conversível preto que acabara de
fazer uma compra e, ansioso para se afastar do local, saíra de trás do Roadrunner apenas para
frear bruscamente diante de alguém que estava fazendo praticamente a mesma coisa. Kelly pisou
fundo no freio para evitar uma colisão. Entretanto, isso fez com que o carro parasse ao lado do
Roadrunner, cujo dono tinha escolhido exatamente aquele momento para saltar. Em vez de seguir
em frente, o motorista optou por dar a volta por trás do carro, e assim seus olhos ficaram a
menos de um metro do rosto contraído de Pam. Kelly também estava olhando naquela direção,
pois considerava o homem um perigo em potencial, e ele viu sua expressão. Não havia dúvida
de que reconhecera Pam.
— OK, lá vamos nós — anunciou com uma voz estranhamente calma, sua voz de combate.
Girou o volante mais para a esquerda e pisou no acelerador, contornando o pequeno carro
esporte e seu motorista invisível. Chegou à esquina alguns segundos mais tarde e depois de
reduzir a marcha para ver se vinha alguém fez uma curva fechada à esquerda para sair do bairro.
— Ele me viu! — exclamou a moça, quase histérica.
— Tudo bem, Pam — replicou Kelly, olhando pelo espelho retrovisor. — O perigo já passou.
Você está comigo e está segura.
Seu idiota, disseram os instintos dele ao resto de sua consciência. Agora só lhe resta torcer
para não ser seguido. Aquele carro tem três vezes mais cavalos que o seu e...
Faróis baixos e muito fortes fizeram a mesma curva que Kelly executara vinte segundos antes.
Ele viu as luzes oscilarem para a esquerda e para a direita. O carro estava acelerando e
derrapando no asfalto molhado. Tinha faróis duplos. Não era o Karmann-Ghia.
Agora você está correndo perigo, disseram seus instintos, calmamente. Ainda não sabemos
se é sério, mas está na hora de acordar.
Mensagem recebida.
Kelly segurou o volante com as duas mãos. A pistola podia esperar. Começou a avaliar a
situação e não ficou muito satisfeito com as conclusões a que chegou. Seu Scout não tinha sido
fabricado para enfrentar aquele tipo de problema. Não era um carro esporte, não tinha muita
potência. Debaixo do capô, dispunha apenas de quatro pequenos cilindros. O Plymouth
Roadrunner tinha oito, todos bem maiores do que os seus. Pior ainda: o Roadrunner podia
acelerar rapidamente e fazer curvas fechadas, enquanto a especialidade do Scout era trafegar em
estradas de terra a vinte quilômetros por hora. A coisa não ia bem.
Os olhos de Kelly viajavam do para-brisa para o espelho retrovisor e vice-versa. A dianteira
não era grande e o Roadrunner se aproximava rapidamente.
Recursos disponíveis, começou a catalogar rapidamente seu cérebro. O carro não é um
desastre completo. Modelo extremamente robusto, com para-choques que parecem trilhos e uma
suspensão mais resistente que o normal, de modo que com toda a certeza levará vantagem em
caso de colisão. De que adianta uma lataria bonita? Aquele Plymouth talvez seja um símbolo de
status para os traficantes, mas seu Scout pode ser — é — uma arma, e você está acostumado a
usar armas. O cérebro de Kelly estava totalmente livre das teias de aranha.
— Pam — disse o rapaz, o mais tranquilamente que conseguiu —, você se importaria de se
deitar no chão?
— Eles estão... — a moça fez menção de olhar para trás, com o medo ainda bem visível na
voz, mas Kelly a empurrou para o fundo do carro com a mão direita.
— Parece que estão nos seguindo, sim. Agora deixe tudo por minha conta, OK?
A última parte do cérebro a se deixar afetar ainda estava orgulhosa da calma e confiança
demonstradas por Kelly. Sim, havia perigo, mas estava acostumado a lidar com o perigo, muito
mais do que os ocupantes do Roadrunner. Se eles estavam precisando de uma lição, tinham
procurado a pessoa certa.
As mãos de Kelly coçavam no volante quando ele chegou um pouco para a esquerda, freou e
fez uma curva fechada para a direita. Não podia fazer curvas tão bem quanto o Roadrunner, mas
aquelas ruas eram largas. Além disso, como estava na frente, levava vantagem em iniciativa.
Seria difícil livrar-se deles, mas sabia onde ficava a delegada mais próxima. Se conseguisse
chegar lá, eles abandonariam a perseguição.
Eles podiam atirar nos pneus, obrigando-o a parar, mas, se isso acontecesse, ainda dispunha
da .45, com um pente de reserva e uma caixa de munição no porta-luvas. Os traficantes deviam
estar armados, mas certamente não sabiam atirar tão bem quanto ele. Deixaria que se
aproximassem... quantos eram? Dois? Três, talvez? Devia ter verificado, pensou Kelly,
lembrando-se imediatamente de que não tivera tempo para isso.
Consultou o espelho retrovisor. Um momento depois, foi recompensado. Os faróis de outro
carro que passava iluminaram o interior do Roadrunner. Eram três. Imaginou quais poderiam ser
as armas deles. Uma escopeta, na pior das hipóteses. Pior ainda seria um rifle de tiro rápido,
mas traficantes de rua não eram soldados, de modo que essa hipótese lhe pareceu extremamente
improvável.
Pode ser improvável, mas não é impossível, argumentou o seu cérebro.
À pequena distância, sua Colt .45 podia ser tão mortal como um rifle. Congratulou-se por
praticar tiro ao alvo toda semana. Se for preciso, posso preparar uma emboscada para eles.
Kelly sabia tudo de emboscadas. Eles não teriam a menor chance.
O Roadrunner reduzira a distância para menos de dez metros. O motorista parecia estar
tentando decidir o que fazer.
Agora chegou a parte mais difícil, não é?, pensou Kelly, como se estivesse falando com os
perseguidores. Vocês podem chegar tão perto quanto quiserem que continuaremos cercados
por uma tonelada de metal. O que pretendem fazer agora? Bater em nós?
Não, o outro motorista não era um idiota. O para-choque traseiro do Scout tinha um engate
para trailer capaz de perfurar o radiador do Roadrunner. Que pena!
O Roadrunner chegou um pouco para a direita. Kelly viu a luz dos faróis mudar de ângulo
quando o motorista acelerou o possante motor V-8, mas estar na frente era uma grande vantagem.
Deu um golpe de direção para a direita, para impedir a passagem do outro veículo. Descobriu
que o outro motorista realmente estava com medo de danificar o carro. Ouviu o cantar dos pneus
quando o Roadrunner freou para evitar a colisão. Prefere não arranhar a pintura, não é? É
bom eu saber disso! O Roadrunner tentou ultrapassá-lo pela esquerda, mas Kelly foi mais
rápido e conseguiu impedir a manobra. Era como dois barcos a vela em uma regata, pensou.
— Kelly, o que está acontecendo? — perguntou Pam, quase sem voz. O rapaz respondeu com
a mesma voz calma que vinha usando desde que começara a perseguição.
— O que está acontecendo é que eles não são muito espertos.
— É o carro de Billy... ele adora correr.
— Billy, hein? Parece que Billy gosta muito desse carro. Se você quer realmente pegar
alguém, deve estar disposto a... — Só para mexer com eles, Kelly freou bruscamente. O Scout
quase parou, permitindo que Billy visse bem de perto o engate de trailer. Em seguida, Kelly
tornou a acelerar, observando a reação do Roadrunner. Ele quer me seguir de perto, mas posso
intimidá-lo facilmente, e ele não está gostando disso nem um pouco. Provavelmente é um
orgulhoso filho da mãe.
Vou usar isso a meu favor.
Decidiu evitar um confronto direto. Era melhor não complicar as coisas. Entretanto, tinha que
planejar tudo cuidadosamente. Seu cérebro começou a avaliar ângulos e distâncias.
Kelly acelerou demais ao fazer uma curva. O carro quase rodopiou, mas estava preparado e
apenas demorou para corrigir a trajetória para que Billy, que certamente se julgava um excelente
motorista, pensasse que estava dirigindo mal. O Roadrunner aproveitou para se aproximar ainda
mais, colocando-se quase ao lado de Kelly, à direita. Uma colisão deliberada agora deixaria o
Scout totalmente fora de controle. O Roadrunner estava a um passo de derrotá-lo. Pelo menos,
era o que o motorista pensava.
OK...
Kelly não podia desviar-se para a direita, porque o carro de Billy estava no caminho. Assim,
dobrou à esquerda, entrando em uma rua ladeada por terrenos baldios. Por ali passaria uma
estrada. As casas tinham sido demolidas e os porões aterrados. A chuva da noite deixara os
terrenos cheios de lama.
Kelly virou a cabeça para olhar para o Roadrunner. Hum. A janela do carona estava
descendo. Isso queria dizer que pretendiam atirar nele. Está arriscando demais, Kelly... Mas
isso, percebeu instantaneamente, podia ajudar. Deixou que o vissem, olhando fixamente para o
Roadrunner, agora de boca aberta, o medo claramente visível. Pisou nos freios e deu uma
guinada para a direita. O Scout passou por cima do meio-fio semidestruído, em manobra ditada
obviamente pelo pânico. O solavanco fez Pam gritar.
O Roadrunner tinha mais potência, melhores freios e pneus, e o motorista tinha excelentes
reflexos. Kelly sabia de tudo isso e era exatamente com isso que estava contando. Sua manobra
foi imitada com perfeição pelo Roadrunner, que também subiu na calçada em ruínas, seguindo o
Scout até um terreno lamacento e caindo na armadilha que preparara. O Roadrunner conseguiu
avançar apenas vinte metros.
Kelly já havia engrenado uma primeira. A lama devia ter mais de vinte centímetros de
profundidade e não queria que o Scout atolasse, mesmo que momentaneamente. Sentiu o carro
perder velocidade, sentiu os pneus afundarem alguns centímetros na superfície macia, mas os
pneus largos, com frisos profundos, recuperaram a tração. Pronto. Só então olhou para trás.
Os faróis contavam toda a história. O Roadrunner, que já tinha uma suspensão mais macia
para enfrentar as curvas fechadas da cidade, adernou violentamente para a esquerda enquanto os
pneus giravam em falso na superfície gelatinosa, criando sulcos cada vez mais profundos. Os
faróis afundaram rapidamente enquanto o potente motor simplesmente cavava o próprio túmulo.
Uma nuvem de vapor envolveu o carro quando o bloco quente do motor entrou em contato com a
lama.
A corrida terminara.
Três homens saltaram e ficaram ali parados, com lama pelos tornozelos, olhando
desconsolados para a forma como o carro, antes imaculadamente limpo, afundava na lama como
um porco velho. Fossem quais fossem os seus planos diabólicos, tinham sido frustrados por um
pouco de chuva e de lama. É bom saber que ainda não perdi a forma, pensou Kelly.
Foi então que os traficantes levantaram os olhos e deram com ele, a trinta metros de distância.
— Seus babacas! — gritou Kelly. — Até a vista, palhaços! — Pôs o carro em movimento,
sem tirar os olhos da trinca. Ganhara a corrida graças a três fatores, pensou. Prudência,
esperteza, experiência. Coragem, também, mas rejeitou esse quarto fator depois de um momento
de reflexão. Só precisara de um pouquinho de coragem.
Quando os pneus do Scout tocaram de novo o asfalto, mudou de marcha e se afastou,
escutando o barulho dos torrões jogados pelos pneus contra a superfície interna dos para-lamas.
— Pode se levantar agora, Pam. O perigo passou.
Pam obedeceu e olhou para trás. A visão de Billy, tão próximo, a fez empalidecer.
— O que foi que você fez?
— Deixei que me perseguissem até um lugar conveniente — explicou o rapaz. — Aquele
carro pode ser bom no asfalto, mas não funciona na lama.
Pam sorriu para ele, fingindo uma despreocupação que não sentia. Kelly olhou para o relógio.
Faltava ainda uma hora para a mudança de turno na delegacia. Billy e os amigos levariam muito
tempo para conseguir sair dali. O melhor era esperar em um lugar tranquilo até a hora da
entrevista. Além do mais, Pam precisava se acalmar um pouco. Dirigiu por mais alguns
quarteirões e depois encostou o carro.
— Como está se sentindo? — perguntou.
— Fiquei muito assustada — respondeu ela com voz trêmula.
— Se quiser, podemos voltar para o barco e...
— Não! Billy me violentou... e matou Helen. Se não for preso, vai fazer mal a outras pessoas
que eu conheço. — Kelly sabia que as palavras se dirigiam tanto a ele quanto a ela própria. Já
vira aquilo antes. Era coragem e andava de braço dado com o medo. Era o que fazia as pessoas
se envolverem em missões de alto risco. Pam conhecera a escuridão e, depois de encontrar a
luz, queria compartilhá-la com outras pessoas.
— Está certo, mas depois de falarmos com Frank, vamos cair fora.
— Estou muito bem — mentiu ela, sabendo que ele sabia que estava mentindo, e sentindo-se
envergonhada, porque não percebia até que ponto Kelly compreendia o que estava passando.
Eu sei o que está pensando, Kelly teve vontade de dizer. Em vez disso, fez uma pergunta.
— Quantas garotas havia lá, além de você?
— Doris, Xantha, Paula, Maria e Roberta... são todas como eu, John. E Helen... quando eles a
mataram, tivemos que assistir.
— Com um pouco de sorte, vamos libertar todas as suas amigas.
Kelly abraçou-a e depois de alguns momentos a jovem parou de tremer.
— Estou com sede — queixou-se.
— Há uma geladeira de isopor no banco traseiro.
Pam sorriu.
— É mesmo. — Inclinou-se para trás para pegar uma Coca-Cola...
Seu corpo ficou rígido. Abriu a boca e uma sensação familiar tomou conta de Kelly, como se
fosse um choque elétrico correndo em sua pele. A sensação de perigo.
— Kelly! — gritou a moça, olhando para trás e para a direita. Kelly estendeu a mão para a
arma e começou a virar o corpo, mas era tarde demais, e sabia disso. Pensou, horrorizado, que
cometera um erro grave, possivelmente fatal, mas não sabia qual, e não teve tempo de descobrir,
porque, antes que conseguisse sacar a arma, viu um clarão e sentiu um impacto na cabeça,
seguido pela escuridão total.
7

RECUPERAÇÃO

Foi uma patrulha de rotina da polícia que descobriu o Scout, O policial Chuck Monroe, há
dezesseis meses no emprego, na idade justa para ter um carro só dele, costumava rondar aquela
parte do bairro logo depois de sair para a rua. Não havia muita coisa que pudesse fazer com
relação aos traficantes — aquilo era trabalho para a divisão de narcóticos —, mas podia exibir
a bandeira, uma frase que aprendera no Corpo de Fuzileiros Navais. Com vinte e cinco anos,
recém-casado, ainda jovem o suficiente para se revoltar com o que estava acontecendo na
cidade e no bairro em que nascera, o policial observou que o Scout não era um carro comum
naquela vizinhança. Reduziu a marcha para anotar o número da placa e constatou, com surpresa,
que o lado esquerdo do veículo tinha marcas de balas. Parou o carro, ligou as lâmpadas
giratórias e chamou a central pelo rádio, comunicando a possível ocorrência de um crime e
pedindo para aguardarem um instante. Saltou do carro e passou o cassetete para a mão esquerda,
deixando a direita livre para usar o revólver, caso necessário. Só então se aproximou
cautelosamente do veículo, olhando em todas as direções.
— Droga!
Monroe voltou correndo para o carro, chamou outra radiopatrulha e uma ambulância e
comunicou à base o número da placa do carro. Depois, pegou o estojo de primeiros socorros e
tornou a se aproximar do Scout. A porta estava trancada, mas a janela do motorista tinha sido
reduzida a cacos. Enfiou a mão dentro do carro e levantou o pino. O que viu o deixou chocado.
A cabeça repousava no volante, juntamente com a mão esquerda, enquanto a mão direita
estava no colo. Havia sangue por toda parte. O homem ainda respirava, o que surpreendeu o
policial. O tiro de escopeta atingira a porta do Scout, a cabeça, pescoço e costas do motorista.
Havia muitos pequenos furos na pele exposta, dos quais brotava sangue. O ferimento era um dos
mais feios que já vira nas ruas ou no campo de batalha, mas mesmo assim o homem estava vivo.
Aquilo era tão incrível que Monroe decidiu não usar o estojo de primeiros socorros. A
ambulância não iria demorar e qualquer coisa que fizesse podia piorar a situação. Segurou o
estojo na mão direita como se fosse um livro e ficou olhando para a vítima com a frustração de
um homem de ação a quem a ação é negada. Felizmente o pobre coitado estava inconsciente.
Quem seria ele? Monroe olhou para o vulto inerte e achou que não faria mal examinar sua
carteira. Passou o estojo de primeiros socorros para a mão esquerda e enfiou a mão direita no
bolso interno do paletó. Estava vazio, mas o toque provocou uma reação. O corpo se mexeu
ligeiramente, o que não era bom. Procurou firmá-lo, mas a cabeça se moveu, também, e ele
sabia que a cabeça devia ficar parada, de modo que segurou-a instintivamente. Alguma coisa
roçou em outra e um grito de dor ecoou na rua deserta antes que o corpo ficasse novamente
flácido.
— Que merda! — Monroe olhou para os dedos sujos de sangue e limpou-os automaticamente
na calça azul do uniforme. Nesse momento, ouviu a sirene de uma ambulância dos bombeiros e
murmurou uma prece de agradecimento para as pessoas que sabiam o que estavam fazendo e que
em breve tirariam o problema de suas mãos.
Segundo depois, a ambulância dobrou a esquina. O veículo pintado de vermelho e branco
parou ao lado da radiopatrulha e os dois ocupantes foram falar com o policial.
— O que temos aqui... — Estranhamente, não soou como uma pergunta. Na verdade, o
paramédico não precisava perguntar. Naquela parte da cidade, àquela hora da noite, não podia
ser um acidente de trânsito. Só podia ser um "ferimento perfurante", no vocabulário frio da
profissão. — Minha nossa!
O outro paramédico já estava voltando para a ambulância quando outro carro da polícia
chegou.
— O que aconteceu? — perguntou o supervisor do turno.
— Ferimento de escopeta, à queima-roupa, e o cara ainda está vivo! — informou Monroe.
— Não gosto de ferimentos no pescoço — comentou, laconicamente, o primeiro paramédico.
— Colarinho duro? — perguntou o outro paramédico, da ambulância.
— É melhor. Se ele mexer a cabeça... droga. — O primeiro paramédico pôs as mãos em volta
da cabeça da vítima para mantê-la no lugar. — Sabe quem é? — perguntou o sargento.
— Estava sem documentos. Não tive tempo de procurar melhor.
— Comunicou o número da placa?
Monroe fez que sim com a cabeça.
— Ainda não houve resposta. Essas coisas levam um certo tempo.
O sargento iluminou o interior do carro com a lanterna para ajudar os bombeiros. Muito
sangue, mas nenhuma pista. Uma geladeira de isopor no banco traseiro.
— O que mais? — perguntou a Monroe.
— Quando cheguei aqui, o quarteirão estava deserto. — Monroe olhou para o relógio. —
Isso foi há onze minutos.
Os dois policiais recuaram para dar espaço aos paramédicos.
— Já tinha visto esse homem?
— Não, senhor
— Examine a calçada.
— Sim, senhor.
Monroe começou a andar em volta do carro.
— Gostaria de saber o que aconteceu aqui — disse o sargento a ninguém em particular.
Olhando para o corpo, para todo aquele sangue, ocorreu-lhe que talvez jamais soubessem.
Muitos crimes cometidos naquele bairro ficavam sem solução. Era uma coisa que deixava o
sargento irritado. Olhou para os paramédicos.
— Como está ele, Mike?
— Perdeu muito sangue, Bert. Ferimento de escopeta — respondeu o primeiro paramédico,
instalando o colarinho cervical. — Um monte de chumbo no pescoço, perto da espinha. Não me
agrada nem um pouco.
— Para onde vão levá-lo? — perguntou o sargento.
— O Hospital Universitário está lotado — informou o segundo paramédico. — Acidente de
ônibus no anel rodoviário. Vamos ter que levá-lo para o Hopkins.
— São dez minutos a mais de viagem — observou Mike, com ar contrariado. — Você dirige,
Phil. Diga a eles que temos um paciente em estado de choque e vamos precisar de um
neurocirurgião.
— Entendido.
A vítima foi colocada na maca. O corpo reagiu ao movimento e os dois policiais — três
outros carros da radiopatrulha tinham acabado de chegar — ajudaram a segurá-lo enquanto os
bombeiros o amarravam.
— Você passou por um mau pedaço, amigo, mas agora vamos levá-lo para o hospital — disse
Phil para o corpo, que podia estar ou não suficientemente vivo para ouvir as palavras. — Vamos
andando, Mike.
Colocaram a maca na parte de trás da ambulância. Mike Eaton, o paramédico sênior,
preparou uma garrafa de soro. Foi difícil instalar a intravenosa com o homem deitado de bruços,
mas ele conseguiu no momento em que a ambulância começava a se mover. Os dezesseis
minutos de viagem até o Hospital Johns Hopkins foram gastos tomando os sinais vitais — a
pressão sanguínea estava perigosamente baixa — e preenchenndo alguns formulários.
Quem é você?, perguntou Eaton, mentalmente. Estava em ótima forma física, observou. Vinte
seis ou vinte e sete. Coisa estranha para um provável viciado em drogas. Aquele sujeito devia
parecer um tipo durão antes do crime, mas não agora. Agora parecia mais uma criança
adormecida, com a boca aberta, recebendo oxigênio através de uma máscara de plástico
transparente, a respiração muito rasa e bem mais lenta do que Eaton gostaria.
— Ande mais depressa — disse ao motorista, Phil Marconi.
— As ruas estão muito molhadas, Mike. Estou fazendo o melhor que posso.
— Ora, vamos! Sei que vocês italianos dirigem como malucos!
— Mas não bebemos como vocês — replicou o outro, rindo. — Acabo de falar com o
hospital. Eles têm um especialista em pescoço esperando por nós. A noite está tranquila no
Hopkins. Nosso paciente vai ter toda a atenção de que precisa.
— Ótimo — comentou Eaton. Olhou para o ferido. Às vezes se sentia solitário, até um pouco
nervoso, na parte traseira da ambulância; nessas ocasiões, o som normalmente irritante da sirene
eletrônica era uma benção. O sangue pingava da maca no chão do veículo; as gotas corriam pelo
piso metálico como se tivessem vida própria. Era uma coisa com a qual jamais se acostumaria.
— Dois minutos — disse Marconi por cima do ombro. Eaton se encaminhou para a parte de
trás do compartimento, pronto para abrir a porta. Pouco depois, sentiu a ambulância fazer uma
curva, parar e depois recuar rapidamente antes de parar de novo. As portas traseiras foram
abertas violentamente antes que Eaton tivesse tempo de fazer alguma coisa.
— Vamos logo com isso! — exclamou o residente da emergência. — Enfermaria três,
rapazes! — Dois robustos enfermeiros tiraram a maca da ambulância enquanto Eaton soltava a
garrafa de soro do cabide e a carregava ao lado do corpo.
— Problemas no Hospital Universitário? — perguntou o residente.
— Acidente de ônibus — explicou Marconi, aproximando-se.
— De qualquer forma, estará melhor aqui. Minha nossa, o que aconteceu com ele? — O
médico se curvou para examinar o ferimento, sem parar de andar. — Deve haver centenas de
pedacinhos de chumbo aí dentro!
— Espere até ver o pescoço — disse Eaton.
— Merda... — murmurou o residente.
Levaram o ferido para a espaçosa sala de emergência, escolhendo um cubículo no canto. Os
cinco homens transferiram a vítima da maça para uma mesa de operação e a equipe médica
começou a trabalhar. Havia outro médico de plantão, acompanhado por duas enfermeiras.
O residente, Cliff Severn, removeu com cuidado o colarinho cervical, depois de se certificar
de que a cabeça estava sustentada por sacos de areia. Só precisou de uma olhadela rápida.
— Possível lesão na coluna — anunciou. — Mas primeiro temos que repor o sangue perdido.
Deu uma série de ordens. Enquanto as enfermeiras instalavam mais duas sondas, Severn tirou
os sapatos do paciente e passou um instrumento afiado pela sola do seu pé esquerdo. O pé se
mexeu, sinal de que não havia danos neurológicos imediatos. Muito bom. Algumas espetadelas
nas pernas também provocaram reação imediata. Excelente. Enquanto isso estava acontecendo,
uma enfermeira colhia sangue para a costumeira bateria de testes. Severn não precisava nem
olhar para a bem treinada equipe enquanto cada um fazia a sua parte. O que parecia ser à
primeira vista uma atividade frenética era na realidade como o movimento de jogadores da
defesa de um time de futebol, o resultado de meses de prática constante.
— Onde se meteu o neurologista? — perguntou Severn.
— Estou aqui! — respondeu uma voz.
Severn levantou os olhos.
— Oh... Professor Rosen.
Não disse mais nada. O residente podia ver que Sam Rosen estava exausto, depois de vinte e
quatro horas de trabalho ininterrupto. O que deveria ter sido uma operação de seis horas se
transformara em um esforço hercúleo para salvar a vida de uma velhinha que rolara um lance de
escadas, um esforço que terminara com a morte da mulher fazia menos de uma hora. A operação
devia ter dado certo, repetia Sam para si mesmo, (linda sem saber ao certo o que acontecera.
Mesmo cansado, recebia com satisfação a nova emergência: talvez desta vez conseguisse ganhar
a parada.
— Diga-me o que temos — ordenou, laconicamente.
— Ferimento de bala. Vários pedaços de chumbo perto da medula.
— OK. — Rosen inclinou-se sobre o paciente com as mãos atrás das costas. — O que são
esses cacos de vidro?
— Ele estava dentro de um carro — explicou Eaton, do outro lado do cubículo.
— Temos que limpá-lo. Precisamos raspar a cabeça, também — disse Rosen, examinando o
estrago. — Qual é a pressão?
— Cinco por três — comunicou uma enfermeira. — Pulso cento e quarenta, irregular.
— Vamos ter muito trabalho — observou Rosen. — Este sujeito está em choque. Humm. —
Fez uma pausa. — Por outro lado, seu estado geral parece razoável. O tônus muscular não foi
afetado. Vamos logo com esse soro. — Rosen viu duas sondas serem instaladas enquanto falava.
As enfermeiras da emergência eram especialmente competentes e ele fez que sim com a cabeça
em sinal de aprovação.
— Como vai seu filho, Margaret? — perguntou à mais velha.
— Passou para Carnegie. Começa em setembro — respondeu, ajustando o fluxo de soro.
— Vamos limpar esse pescoço, Margaret. Quero dar uma olhada.
— Sim, senhor.
A enfermeira usou uma pinça para pegar uma bola de algodão, que mergulhou em água
destilada. Depois, limpou o pescoço do paciente com delicadeza, removendo o sangue e
expondo o ferimento. Constatou imediatamente que não era tão ruim quanto parecia. Enquanto a
enfermeira trabalhava, Rosen foi trocar de avental. Quando voltou, Margaret Wilson já estava
com um estojo de instrumentos preparado. Eaton e Marconi ficaram em um canto, observando.
— Bom trabalho, Margaret — disse Rosen, colocando os óculos. — O que ele vai estudar?
— Engenharia.
— Muito bem. — Rosen levantou a mão. — Pinça. — A enfermeira colocou uma pinça na
mão do médico. — Este país precisa de bons engenheiros.
Rosen escolheu um pequeno buraco redondo no ombro do paciente, bem longe de qualquer
centro vital. Com uma delicadeza que parecia quase cômica em alguém com mãos tão grandes,
removeu com a pinça uma bolinha de chumbo. Observou-a de perto.
— Chumbo número sete, ao que parece. Alguém confundiu este sujeito com um pombo. É uma
boa notícia — informou aos paramédicos. Agora que conhecia o tamanho dos projéteis e a
provável penetração, podia examinar melhor o ferimento do pescoço.
— Humm... qual é a pressão agora?
— Estou verificando — disse outra enfermeira, do lado oposto da mesa. — Cinco vírgula
cinco por quatro. E subindo.
— Obrigado — agradeceu Rosen, ainda curvado sobre o paciente. — Quem foi que começou
a aplicar soro?
— Fui eu — respondeu Eaton.
— Bom trabalho, bombeiro. — Rosen levantou a cabeça e piscou para ele. — Às vezes acho
que vocês salvam mais vidas do que nós, médicos. Este aqui, por exemplo, não estaria vivo se
não fosse você.
— Obrigado, doutor. — Eaton não conhecia Rosen muito bem, mas ficou satisfeito com o
elogio. Não era todo dia que um professor titular se referia daquela forma a um paramédico. —
Acha que ele vai... quero dizer: que acha do ferimento no pescoço?
Rosen estava examinando de novo o paciente.
— Reações, doutor? — perguntou ao residente.
— Positivas. O Babinsky está ótimo. Não há nenhum indício de danos ao sistema nervoso
periférico — respondeu Severn. Aquilo era como um exame, e os exames sempre deixavam
nervoso o jovem residente.
— Pode ser menos grave do que parecia, mas vamos ter que limpar a área antes que o
chumbo comece a migrar. Que tal daqui a duas horas? — perguntou a Severn.
Rosen sabia que o residente tinha mais experiência do que ele em casos de trauma.
— Três seria melhor.
— Bom, vou tirar um cochilo. — Rosen olhou para o relógio. — Posso começar, digamos, às
seis.
— Quer tratar do caso pessoalmente?
— Por que não? Estou aqui. O procedimento é simples, exige apenas um pouco de cuidado.
— Rosen achava que tinha direito a um caso simples de vez em quando. Como professor titular,
cabiam-lhe sempre os casos complicados.
— Por mim, está bem.
— Sabemos quem é o paciente?
— Não, senhor — respondeu Marconi. — Mas a polícia não deve demorar.
— Ótimo. — Rosen espreguiçou-se. — Sabe, Margaret, pessoas como nós não deveriam
trabalhar a esta hora.
— Preciso do adicional de trabalho noturno — observou a enfermeira. Além do mais, ela era
a enfermeira-chefe daquele turno. — O que será isso? — perguntou, depois de um momento.
— Hein? — Rosen se juntou a ela do outro lado da mesa para ver o que era.
— Uma tatuagem no braço — explicou Margaret.
A reação do professor Rosen deixou-a espantada.

A transição do sono para a vigília costumava ser fácil para Kelly, mas daquela vez foi
diferente. Seu primeiro pensamento coerente foi de surpresa, mas não sabia por quê. Depois
veio a dor, mas não tanto a dor como o aviso distante de que sentiria dor, muita dor. Quando
percebeu que podia abrir os olhos, apressou-se em fazê-lo, apenas para descobrir que estava
olhando para um piso de linóleo cinzento. Umas poucas gotas de líquido refletiam as lâmpadas
fluorescentes do teto. Sentiu agulhadas nos olhos, e só então percebeu que as agulhas de verdade
estavam espetadas nos braços.
Estou vivo.
Por que isso me deixa surpreso?
Podia ouvir o barulho de pessoas em seu redor, conversas abafadas, campainhas distantes. O
ruído de vento podia ser explicado pela existência de saídas de ar condicionado, uma das quais
devia estar próxima, pois podia sentir o ar frio nas costas. Alguma coisa lhe disse que devia se
mexer, que ficar parado o deixava vulnerável, mas mesmo depois que enviou um comando para
os membros, nada aconteceu. Foi quando a dor anunciou sua presença. Como a ondulação
produzida nas águas de um lago pela queda de um inseto, teve início em algum ponto do ombro e
começou a se expandir. Levou um momento para conseguir classificá-la. Lembrava uma
queimadura de sol, porque todo o lado esquerdo do corpo, do pescoço ao cotovelo, parecia em
brasa. Sabia que estava se esquecendo de algo, provavelmente algo importante.
Onde será que eu estou?
Kelly julgou sentir a vibração distante de... de quê? De motores de barco? Não, não era bem
isso. Depois de mais alguns segundos, percebeu que era o som distante de um ônibus saindo de
um ponto. Não estava no barco e sim em uma cidade. Que diabo estou fazendo em uma cidade?
Uma sombra cruzou-lhe o rosto. Abriu os olhos para ver a metade inferior de um vulto
vestido de verde-claro. As mãos seguravam uma espécie de prancheta. Kelly não conseguiu
focalizar os olhos o suficiente para saber se se tratava de um homem ou de uma mulher, e não
lhe ocorreu nada para dizer antes que voltasse a dormir.
— O ferimento do ombro foi extenso mas superficial — disse Rosen à neurocirurgiã
residente.
— Mas ele perdeu muito sangue — observou a médica.
— Ferimentos a escopeta são assim mesmo. Só havia um pedacinho de chumbo ameaçando a
espinha. Levei um certo tempo para descobrir uma forma de removê-lo em segurança.
— Eram duzentos e trinta e sete fragmentos, mas parece que você conseguiu tirar todos. —
Ela segurou uma chapa radiográfica contra a luz. — O cara ficou apenas com uma bela coleção
de sardas.
— Levou mais tempo do que eu pensava — disse Sam, com ar cansado, sabendo que devia
ter deixado outro cirurgião cuidar do caso, mas, afinal de contas, ele se oferecera como
voluntário.
— O senhor conhece este paciente, não conhece? — perguntou Sandy O'Toole, chegando da
sala de recuperação.
— Conheço.
— Ele está voltando a si, mas vai levar algum tempo. — Passou-lhe um papel com os dados
vitais. — Parece bem, doutor.
O professor Rosen assentiu e explicou à residente:
— A sorte é que ele estava em ótima forma física. Os bombeiros conseguiram manter a
pressão em níveis razoáveis. Um bom trabalho. Ele quase sangrou até morrer, mas os ferimentos
não eram tão graves quanto pareciam. Sandy?
— Sim, doutor?
— Ele é meu amigo. Você ficaria ofendida se eu lhe pedisse...
— Para lhe dar uma atenção especial?
— Você é a melhor, Sandy.
— Alguma coisa que eu precise saber? — perguntou a moça, satisfeita com o cumprimento.
— Ele é um homem bom, Sandy — afirmou Sam, em um tom que j mostrava que estava
falando sério. — Sarah também gosta dele.
— Então ele deve ser legal. — A enfermeira voltou para a sala de recuperação, imaginando
se o professor estaria de novo querendo bancar o cupido.
— O que eu digo à polícia?
— Que vão ter que esperar no mínimo quatro horas. E eu quero estar presente. — Olhou para
a cafeteira e mudou de ideia. Se bebesse mais café, o excesso de ácido poderia perfurar seu
estômago.
— Quem é ele, afinal?
— Não sei muita coisa. Tive problemas com o barco na baía e ele me ajudou. Acabamos
passando o fim de semana na casa dele. — Sam achou melhor não dizer mais nada. Na verdade,
não sabia muito mais do isso, mas tirara muitas conclusões que o tinham deixado assustado.
Cumprira seu papel. Embora não tivesse salvado a vida de Kelly — isso devia ser creditado à
sorte e aos paramédicos —, tinha executado uma cirurgia com precisão, embora também tivesse
desagradado a residente, Dra. Ann Pretlow, não permitindo que fizesse muita coisa além de
assistir. — Preciso dormir um pouco. Não tenho nenhum compromisso para as próximas horas.
Pode cuidar da Sra. Baker?
— É claro.
— Mande alguém me acordar daqui a três horas — disse Rosen a caminho do escritório,
onde um sofá muito confortável o aguardava.

— Que belo bronzeado — observou Billy, com um sorriso cínico. — Como será que o
conseguiu? — Ninguém soube responder. — O que vamos fazer com ela?
Henry pensou um pouco. Descobrira há pouco tempo um meio excelente de se desfazer de
cadáveres, muito mais limpo e seguro que os tradicionais. Entretanto, envolvia uma longa
viagem de barco e seu horário estava meio apertado. Também não queria que ninguém mais
começasse a usar aquele método. Era um segredo bom demais para ser compartilhado. Sabia
que algum dos homens daria com a língua nos dentes. Aquele era um dos seus problemas.
— Qualquer lugar serve — disse, afinal. — Mesmo que ela seja encontrada, não vai fazer
muita diferença.
Olhou em torno, analisando as expressões que via. A lição tinha sido aprendida. Nenhuma
delas tentaria fazer a mesma coisa, pelo menos no futuro próximo. Não precisava dizer mais
nada.
— Esta noite? Será mais seguro à noite.
— Certo. Não há pressa.
A lição seria melhor ainda se ficassem o dia inteiro olhando para ela, ali deitada no meio da
sala. As pessoas tinham que aprender, e embora fosse tarde demais para uma delas, as outras
podiam aprender com o erro daquela. Especialmente quando as lições eram claras e firmes.
Mesmo as drogas não podiam evitar que tivessem consciência do que acontecera.
— E o sujeito? — perguntou a Billy.
Billy sorriu ironicamente pela segunda vez. Era a sua expressão favorita.
— Acabei com ele. Usei a dois canos, a três metros de distância. Não nos incomodará mais.
— OK.
Henry saiu. Tinha trabalho para fazer, dinheiro para recolher. Aquele pequeno problema era
coisa do passado. Uma pena, pensou, enquanto se dirigia para o carro, que nem todos os
problemas pudessem ser resolvidos com a mesma facilidade.
O corpo permaneceu onde estava. Doris e as outras também ficaram ali, sem poder tirar os
olhos do cadáver da amiga, aprendendo a lição, como Henry queria.

Kelly percebeu vagamente que estava sendo transportado para outro lugar. O chão se movia
debaixo dele. Ficou olhando as junções das lajotas passarem, como créditos de um filme, até
que o levaram para outro aposento, bem menor que o anterior. Desta vez, tentaram levantar-lhe a
cabeça e realmente ela se moveu alguns centímetros, o suficiente para que visse as pernas de
uma mulher. As calças verdes de hospital acabavam acima do tornozelo, e não havia dúvida de
que pertenciam a uma mulher. Ouviu um zumbido e seu horizonte se moveu para baixo. Depois
de um momento, percebeu que se encontrava em uma cama especial, pendurado entre dois aros
de aço inoxidável. Seu corpo estava preso à cama; enquanto a plataforma girava, podia sentir a
pressão das amarras que o mantinham no lugar. Não era uma sensação totalmente desagradável.
Finalmente, pôde ver a mulher. Era mais ou menos da sua idade, talvez um ano ou dois mais
moça, os cabelos castanhos escondidos debaixo de uma touca verde, olhos claros que brilhavam
de modo amigável.
— Olá — disse, com a voz meio abafada pela máscara cirúrgica. — Sou sua enfermeira.
— Onde estou? — perguntou Kelly, falando com dificuldade.
— No Hospital Johns Hopkins.
— O quê...?
— Alguém atirou em você — explicou a enfermeira, segurando-lhe a mão.
A suavidade do toque despertou alguma coisa em sua consciência entorpecida pelas drogas.
Por alguns momentos, Kelly não conseguiu entender. Era como uma nuvem de fumaça que girava
e se contorcia, formando uma imagem diante dos seus olhos. As peças que faltavam começaram
a se juntar, e embora soubesse que o que o aguardava não era nada agradável, sua mente lutou
para colocá-las no lugar. No fim, foi a enfermeira que fez isso para ele.
Sandy O'Toole deixara a máscara no lugar de propósito. Uma mulher atraente, achava, como
muitas enfermeiras, que os pacientes do sexo masculino gostavam da ideia de que alguém como
ela se interessasse pessoalmente por eles. Agora que o paciente, John Kelly, estava mais ou
menos acordado, tirou a máscara para lhe oferecer um sorriso feminino, a primeira coisa boa do
dia. Os homens apreciavam Sandra O'Toole, desde o corpo alto, atlético, até o espaço entre os
dentes da frente. Ela não sabia por que consideravam sexy aquele espaço (na sua opinião, só
servia para acumular restos de comida), mas, já que era assim, contribuía para o seu trabalho de
fazer as pessoas enfermas se sentirem melhor. Por isso, sorriu para Kelly, como estava
acostumada a fazer. O resultado, porém, foi totalmente inesperado.
O paciente ficou mortalmente pálido, não da cor da neve ou do linho, mas da cor manchada,
doentia, do isopor. A primeira ideia da enfermeira foi de que tivesse sofrido uma grave
hemorragia interna ou, talvez, uma embolia produzida por um coágulo. Tentou gritar, mas não
teve fôlego para tanto, e suas mãos ficaram flácidas. Os olhos estavam fixos nela, e depois de
um momento Sandy percebeu que ela própria era a causa da comoção. Seu primeiro instinto foi
dizer ao paciente que tudo estava bem, mas sabia instintivamente que isso não era verdade.
— Oh, não... oh, não... Pam!
A expressão no rosto dele era de desespero.
— Ela estava comigo — disse Kelly a Rosen alguns minutos mais tarde. — Sabe de alguma
coisa?
— A polícia vai chegar daqui a pouco, John. Não, não sei de nada. Talvez ela tenha sido
levada para outro hospital. — Tentou demonstrar esperança, mas sabia que era mentira, e se
odiou por mentir. Fez questão de medir os sinais vitais de Kelly, algo que Sandy podia ter feito
em seu lugar, antes de examinar as costas do paciente. — Você vai ficar bom. Como vai o
ombro?
— Ainda dói muito, Sam — respondeu Kelly, um pouco tonto. — Foi sério?
— Um tiro de escopeta. Fez um bom estrago, mas... a janela do carro estava levantada?
— Sim — respondeu Kelly, lembrando-se da chuva.
— Foi uma das coisas que salvaram a sua vida. Os músculos do ombro estão bem avariados
e você quase sangrou até morrer, mas não haverá danos permanentes, a não ser algumas
cicatrizes. Fiz o trabalho pessoalmente.
Kelly levantou os olhos.
— Obrigado, Sam. Posso aguentar bem a dor. Da última vez que eu...
— Chega de conversa, John — disse Rosen, em tom carinhoso, olhando o pescoço mais de
perto. Decidiu pedir uma nova série de radiografias para se certificar de que não deixara passar
nenhum pedacinho de chumbo, especialmente nas proximidades da coluna. — O analgésico logo
vai fazer efeito. Esqueça o heroísmo. Aqui não damos medalhas. Certo?
— Certo. Por favor... verifique nos outros hospitais se alguém tem notícias de Pam, OK? —
pediu Kelly, com esperança na voz, embora soubesse que estava se iludindo.
Dois policiais uniformizados estavam esperando há muito tempo que Kelly recuperasse os
sentidos. Minutos mais tarde, Rosen voltou com o mais velho dos dois. O interrogatório foi
breve, por ordem do médico. Depois de confirmar a identidade do rapaz, perguntaram por Pam;
já dispunham de uma descrição da moça, fornecida por Rosen, mas não conheciam o sobrenome,
que Kelly teve que informar. Os policiais anotaram que Kelly tinha um encontro marcado com o
tenente Allen e foram embora logo depois, quando o rapaz começou a se sentir sonolento. O
choque do ferimento e da cirurgia, ao qual devia ser adicionado o efeito dos analgésicos,
diminuiriam o valor do que ele dissesse dali em diante, observou Rosen.
— Quem é a garota, afinal? — perguntou o policial mais velho.
— Eu não sabia nem o sobrenome dela até vocês interrogarem Kelly — declarou Rosen,
sentado no seu escritório. Estava um pouco tonto de sono e sua facilidade de expressão também
tinha sido prejudicada. — Quando a conhecemos, era viciada em drogas... ela e Kelly estavam
vivendo juntos, suponho. Nós ajudamos a curá-la.
— Que quer dizer com nós"?
— Eu e minha esposa Sarah. Ela trabalha como farmacologista aqui no hospital, Podem
interrogá-la, se quiserem.
— Queremos, sim — assegurou-lhe o policial. — O que sabe sobre o Sr, Kelly?
— Foi da Marinha. Veterano do Vietnã.
— Tem alguma razão para acreditar que seja viciado em drogas?
— Nenhuma — respondeu Rosen, com um traço de irritação na voz, — Está em ótimas
condições físicas e vi sua reação quando soube que Pam estava tomando barbitúricos. Tive que
acalmá-lo. Tenho certeza de que não é viciado. Sou médico; ele não conseguiria esconder isso
de mim.
O policial não pareceu muito impressionado, mas aceitou a declaração de Rosen. Os
detetives iriam se divertir muito com aquele caso, pensou. O que parecia ser um simples assalto
na verdade envolvia, pelo menos, um sequestro. Boas novas.
— O que Kelly estava fazendo naquele bairro?
— Não sei — admitiu Sam. — Quem é esse tal de tenente Allen?
— Trabalha na Homicídios, no distrito ocidental — explicou o policial.
— Por que será que eles tinham um encontro marcado?
— Isso só o tenente poderá explicar, doutor.
— Acham que foi um assalto?
— Provavelmente. Tudo indica que sim. Encontramos a carteira de Kelly a um quarteirão de
distância. Nada de dinheiro, nada de cartões de crédito. Apenas a carteira de motorista. Ele
tinha uma pistola no carro. Quem o roubou provavelmente não viu a arma. A propósito: Kelly
não tinha licença para usá-la — observou o policial.
Outro policial entrou.
— Verifiquei de novo o nome... eu sabia que já tinha ouvido antes. Ele fez um trabalho para
Allen. Lembra-se do caso Gooding, no ano passado?
O guarda mais velho levantou os olhos de suas anotações.
— Claro! Ele é o cara que encontrou a arma?
— Exatamente. Acabou sendo contratado para treinar nossos mergulhadores.
— Isso ainda não explica que diabo estava fazendo naquela parte da cidade — observou o
policial.
— É verdade — admitiu o companheiro. — Mas é mais uma indicação de que foi uma vítima
inocente.
O policial mais velho sacudiu a cabeça.
— Havia uma garota com ele. Ela está desaparecida.
— Sequestro, também? O que sabemos dela?
— Apenas o nome. Pamela Madden. Vinte anos, ex-viciada, desaparecida. Temos também o
Sr. Kelly, seu carro, sua arma, e é tudo. Nenhum cartucho de escopeta. Nenhuma testemunha.
Uma garota desaparecida, provavelmente, mas uma descrição que pode se aplicar a dez mil
garotas da cidade. Assalto seguido de sequestro.
No conjunto, não era um caso fora do comum. Frequentemente dispunham de poucas pistas
para começar. Fosse como fosse, a principal decisão dos policiais foi a de que os detetives
deviam começar imediatamente a investigar o caso.
— Ela não era daqui. Tinha sotaque texano.
— O que mais? — perguntou o policial mais velho. — Vamos, doutor, qualquer coisa que lhe
venha à memória, OK?
Sam fez uma careta.
— A moça tinha sido submetida a violência sexual. Talvez tenha trabalhado como prostituta.
Minha esposa disse... não, eu mesmo vi cicatrizes nas costas. Foi chicoteada, vergastada,
alguma coisa assim. Não insistimos no assunto, mas pode ter sido prostituta.
— O Sr. Kelly tem estranhos hábitos e estranhas companhias, não é mesmo? — observou o
policial, fazendo anotações.
— Pelo que acaba de dizer, também gosta de ajudar a polícia, não é mesmo? — O professor
Rosen estava ficando zangado. — Mais alguma coisa? Tenho que fazer minha ronda.
— Doutor, o que temos aqui é uma tentativa de assassinato, provavelmente como parte de um
assalto, e talvez um sequestro. São crimes muito sérios. Como o senhor, preciso seguir o
regulamento. Quando acha que Kelly estará em condições de ser submetido a um interrogatório
de verdade?
— Amanhã, provavelmente, mas ainda vai levar alguns dias para se recuperar totalmente.
— Amanhã às dez está bem, doutor?
— Está.
Os guardas se levantaram.
— Alguém virá aqui amanhã de manhã, doutor.
Rosen ficou onde estava. Curiosamente, aquela era a primeira vez na vida em que se envolvia
de perto com uma investigação policial. Em geral, lidava com vítimas de acidentes de trânsito
ou de trabalho. Não podia aceitar o fato de que Kelly fosse um criminoso, mas isso parecia ser
exatamente o que os policiais estavam insinuando, ou será que não? Foi nessa altura que a Dra.
Pretlow entrou.
— Já temos o resultado do exame de sangue de Kelly. — Entregou o papel a Rosen. — Está
com gonorreia. Devia tomar mais cuidado. Recomendo penicilina. Ele é alérgico?
— Não. — Rosen fechou os olhos e praguejou baixinho. — Só faltava essa!
— Nada muito sério, doutor. Parece um caso bem recente. Quando estiver melhor, vou
mandar alguém do serviço social conversar com ele para...
— Não vai ser preciso — declarou Rosen, de cara amarrada.
— Mas...
— A garota de quem ele pegou gonorreia provavelmente está morta, e não podemos deixar
que se lembre dela dessa forma, entendeu?
Era a primeira vez que Sam admitia para si mesmo que havia pouca chance de que Pam
tivesse sobrevivido, e isso o deixou muito mal. Entretanto, era o que a intuição lhe dizia.
— Doutor, a lei exige...
Era demais. Rosen estava a ponto de explodir.
— Kelly é um homem bom. Apaixonou-se por uma moça que provavelmente foi assassinada,
e não vou permitir que se lembre dela como a pessoa que lhe passou uma doença venérea. Está
claro, doutora? Para todos os efeitos, a penicilina é para debelar uma infecção pós-operatória.
Escreva isso no prontuário.
— Não, doutor, não vou fazer isso.
O professor Rosen fez as anotações apropriadas.
— Pronto. — Levantou os olhos. — Doutora Pretlow, a senhora já domina todas as técnicas
cirúrgicas. Procure se lembrar de que os pacientes que operamos são seres humanos, com
sentimentos, está bem? Se fizer isso, seu trabalho será bem mais fácil. Além disso, a senhora se
tornará uma verdadeira médica, no sentido mais completo da palavra.
Qual o interesse do Dr. Rosen nesse caso?, perguntou-se a Dra. Pretlow, enquanto se
afastava.
8

DISSIMULAÇÃO

Tudo se deveu a uma combinação de fatores. O dia 20 de junho estava quente e monótono. Um
fotógrafo do Baltimore Sun recebera uma câmera nova, uma Nikon, para substituir sua
venerável Honeywell Pentax, e embora lamentasse a perda da antiga, a nova câmera, como um
novo amor, tinha muita coisa para ser explorada e apreciada. Uma delas era uma coleção
completa de teleobjetivas que fora fornecida como brinde. A Nikon era um modelo novo, que a
companhia estava interessada em vender à comunidade jornalística; por isso, vinte fotógrafos
em várias cidades do país tinham recebido aquelas lentes de graça. Bob Preis recebera as suas
por causa do prêmio Pulitzer que ganhara fazia três anos. No momento, estava em seu carro, no
Druid Lake Drive, ouvindo o rádio da polícia, à espera de que algo interessante acontecesse.
Entretanto, nada acontecia, de modo que começou a brincar com a nova câmera, verificando
quanto tempo levaria para trocar a lente. A Nikon era uma obra-prima de mecânica de precisão,
e como um soldado aprende a desmontar e limpar seu fuzil em total escuridão, Preis estava
trocando as lentes guiando-se unicamente pelo tato, forçando-se a olhar para fora do carro
apenas como um meio de desviar os olhos de uma rotina que deveria tornar-se tão natural e
automática como fechar o zíper da calça.
Foram os corvos que atraíram sua atenção. Em um dos cantos do lago havia um chafariz.
Longe de ser uma maravilha arquitetônica, não passava de um cilindro de concreto que se
projetava uns dois metros da superfície do lago e de onde saíam uns poucos jatos de água mais
ou menos verticais, embora no momento o vento estivesse espalhando a água em todas as
direções. Os corvos voavam em torno do chafariz e de vez em quando tentavam pousar, mas
eram frustrados pelos borrifos d'água, que pareciam assustá-los. Em que estariam interessados?
O fotógrafo pegou a lente de 200mm, atarraxou-a na câmera e levou a câmera aos olhos.
— Minha nossa!
Preis bateu dez chapas em rápida sucessão. Só depois falou no rádio do carro, pedindo ao
escritório do jornal que avisasse imediatamente à polícia. Trocou de novo a lente, desta vez
escolhendo uma teleobjetiva de 300mm, a maior de que dispunha. Depois de acabar com um
rolo de filme, carregou outro, desta vez um filme colorido de 100 ASA. Apoiou a câmera na
janela do velho Chevy e gastou outro rolo inteiro. Viu quando um dos corvos criou coragem e
desafiou os respingos, pousando no...
— Oh, não...
Porque o que estava ali, afinal, era um corpo humano, o cadáver de uma jovem, branco como
alabastro. Com o auxílio da lente, podia ver o corvo bem próximo, as garras aduncas cravando-
se no corpo, os olhos negros e implacáveis examinando o que, do seu ponto de vista, não
passava de uma refeição abundante e variada. Preis pôs a câmera de lado e engrenou o carro.
Infringiu duas leis de trânsito ao se aproximar o máximo possível do chafariz e, no que para ele
era um caso raro de vitória do sentimento sobre o profissionalismo, enfiou a mão na buzina,
tentando afugentar o pássaro. O corvo levantou os olhos, mas não viu nenhum perigo evidente
associado ao ruído e por isso voltou a escolher o primeiro pedaço da sua refeição. Preis
resolveu tentar outra coisa. Piscou os faróis do carro, o que fez o corvo pensar melhor e afastar-
se imediatamente. Afinal de contas, podia ser uma coruja, e a comida não ia fugir. O pássaro
esperaria que o inimigo se afastasse antes de voltar para comer.
— O que foi? — perguntou um policial, estacionando ao lado do fotógrafo.
— Há um corpo no lago. Olhe — disse Preis, passando-lhe a câmera.
— É mesmo! — exclamou o guarda, devolvendo a câmera depois de um momento de choque.
Chamou a central enquanto Preis tirava novas fotos. Os carros de polícia chegaram um a um,
como se fossem corvos, até que havia oito em volta da fonte. Dez minutos depois, foi a vez de
um carro de bombeiros, juntamente com alguém do Departamento de Recreação e Parques, cuja
caminhonete levava um barco a reboque. O barco foi rapidamente colocado na água. Logo
chegaram os legistas com um caminhão-laboratório e se prepararam para ir até a fonte. Preis
pediu para acompanhá-los (podia fazer um trabalho melhor que o fotógrafo da polícia) mas sua
oferta foi recusada, de modo que continuou a documentar o evento da margem do lago. Não
ganharia outro Pulitzer com aquele trabalho. Podia ganhar, pensou. Para isso, porém, teria que
imortalizar o ato instintivo de uma ave de rapina descarnando o corpo de uma jovem no meio de
uma grande cidade. E nenhum prêmio compensaria os pesadelos. Já tinha pesadelos suficientes,
pensou.
Havia uma multidão no local. Os policiais se reuniam em pequenos grupos, trocando
comentários em voz baixa e tentando fazer piadas de humor negro. Um caminhão da televisão
chegou, vindo do estúdio da Television Hill, ao norte do parque, onde também ficava o
zoológico da cidade. Era um lugar que Bob Preis costumava frequentar com os filhos pequenos.
Eles gostavam especialmente do leão, que atendia pelo nome pouco original de Leo, dos ursos
polares e de todos os outros predadores que, para segurança dos visitantes, estavam confinados
atrás de barras de aço e paredes de pedra. Ao contrário de certas pessoas, pensou, enquanto os
legistas colocavam o corpo em um saco plástico. Pelo menos o tormento da moça estava
terminado. Preis trocou o filme mais uma vez para registrar o momento em que o corpo era
colocado no rabecão. Um repórter do Sun já chegara ao local. Ele se encarregaria das perguntas
enquanto Preis verificava se a nova câmera era realmente boa no laboratório da Calvert Street.

— John, ela foi encontrada — disse Rosen.


— Está morta? — perguntou Kelly, sem coragem de olhar para o médico. O tom de voz de
Sam já dizia tudo. Não era nenhuma surpresa, mas ainda guardava um fio de esperança.
Sam fez que sim com a cabeça.
— Está.
— Como foi?
— Ainda não sei. A polícia me telefonou há poucos minutos e vim para cá imediatamente.
— Obrigado, doutor.
Se alguém pudesse soar como um cadáver, disse Sam a si mesmo, era o que Kelly estava
fazendo agora.
— Sinto muito, John. Eu... sabe que eu gostava de Pam.
— Sei. Não foi sua culpa, Sam.
— Você não está comendo — observou Rosen, apontando para a bandeja de comida.
— Não estou com fome.
— Se quer ficar bom, vai precisar se alimentar.
— Para quê? — perguntou Kelly, olhando para o teto.
Rosen se aproximou e segurou a mão direita de Kelly. Não havia muito o que dizer. O
cirurgião não teve coragem de olhar para o rosto do homem Podia deduzir que Kelly estava
culpando a si mesmo pela morte da garota e não sabia o suficiente para discutir o assunto. A
morte era uma velha companheira do médico Sam Rosen. Neurocirurgiões tratavam ferimentos
graves em uma parte extremamente delicada da anatomia humana e, frequentemente, a medicina
não tinha recursos para cuidar deles. Entretanto, a morte inesperada de uma pessoa conhecida
pode ser um golpe para qualquer um.
— Há alguma coisa que eu possa fazer? — perguntou, depois de um minuto.
— Não no momento, Sam. Obrigado.
— Quer que eu chame um padre?
— Não, agora não.
— Não foi sua culpa, John.
— De quem foi, então? Ela confiou em mim, Sam, e estraguei tudo.
— A polícia quer lhe fazer mais perguntas. Eu disse que amanhã de manhã estaria bem.
Naquela manhã, Kelly tinha sido interrogado pela segunda vez e contou boa parte do que
sabia. O nome completo da moça, sua cidade natal, a forma como tinham se conhecido. Sim,
tinham tido relações. Sim, ela trabalhou como prostituta depois de fugir de casa. Sim, tinha sido
espancada. Entretanto, deixara algumas coisas de fora. Não teve coragem de revelar certos
fatos, porque para isso teria que admitir em público a dimensão de seu fracasso. Assim, não
respondeu a algumas perguntas, alegando que sentia dor, o que era verdade, mas não justificava
a omissão. Sabia que os policiais não simpatizavam com ele, mas não tinha importância. No
momento, também não estava simpatizando muito consigo mesmo.
— Tudo bem.
— Posso... posso aumentar a dose dos seus remédios. Sabe que sou cauteloso com essas
coisas, mas talvez esteja precisando, John.
— Está falado em me dopar? — Kelly levantou a cabeça, e a expressão nos seus olhos era
algo que Rosen não gostaria de ver de novo. — Acha que isso faria alguma diferença, Sam?
Rosen desviou o olhar.
— Você já pode passar para uma cama comum. Vou mandar transferi-lo daqui a pouco.
— OK.
O médico queria dizer mais alguma coisa, mas não conseguiu encontrar as palavras certas.
Afinal, retirou-se em silêncio.
Sandy O'Toole precisou da ajuda de dois enfermeiros para carregá-lo, com todo o cuidado,
para uma cama comum de hospital. Ela levantou a cabeceira para aliviar a pressão no ombro
ferido.
— Já soube o que aconteceu — disse a ele. A tristeza de Kelly a incomodava. Talvez fosse
um daqueles homens que preferiam chorar sozinhos, mas estava certa de que isso ainda não
acontecera. E, no entanto, era necessário, pensou. As lágrimas serviam para expelir o veneno
interior, um veneno que, se não fosse liberado, podia ser tão mortal quanto o real. A enfermeira
se sentou ao lado da cama.
— Sou viúva — informou.
— Vietnã?
— Acertou em cheio. Tim era capitão na 1ª Divisão de Cavalaria.
— Sinto muito — disse Kelly, sem virar a cabeça. — Uma vez eles salvaram minha vida.
— É difícil, eu sei.
— Semana que vem vai fazer um ano que perdi Tish, e agora...
— Sarah me contou. Sr. Kelly...
— John — corrigiu o rapaz. Por alguma razão, era impossível ser ríspido com ela.
— Obrigada, John. Meu nome é Sandy. A má sorte não torna urna pessoa má — afirmou, com
sinceridade na voz, embora as palavras soassem falso.
— Não foi falta de sorte. Ela me disse que era um lugar perigoso e mesmo assim eu a levei
até lá porque estava curioso.
— Quase foi morto tentando protegê-la.
— Não a protegi, Sandy. Não, eu a matei. — Os olhos de Kelly agora estavam bem abertos,
virados para o teto. — Fui um irresponsável e a matei.
— Foram outras pessoas que a mataram e tentaram matar você também. Você é uma vítima.
— Não, não sou uma vítima. Sou um idiota.
Isso pode ficar para depois, disse Sandy para si mesma.
— Que tipo de garota ela era, John?
— Do tipo que não teve sorte na vida.
Kelly tentou encarar a enfermeira, mas isso tornou as coisas ainda piores. Fez então um breve
relato da vida de Pamela Starr Madden.
— Então, depois que todos aqueles homens a magoaram ou abusaram dela, você lhe deu algo
que nunca teve antes. — Sandy fez uma pausa, esperando uma resposta, mas ele permaneceu em
silêncio. — Você lhe deu amor, não foi?
— Foi. — Kelly estremeceu. — É verdade. Eu a amava.
— Ponha para fora — disse a enfermeira. — É preciso.
Primeiro, ele fechou os olhos. Depois, sacudiu a cabeça.
— Não consigo.
Estava diante de um paciente difícil, disse Sandy a si mesma, O culto da masculinidade
sempre tinha sido para ela um mistério, Um bom exemplo era o marido, que serviu no Vietnã
como tenente e depois voltou como comandante de companhia. Ele não queria ir, mas não
recusara a missão. Era parte do seu trabalho, como explicou na noite de núpcias, dois meses
antes de partir. Um trabalho estúpido, destrutivo, que lhe custara o marido e, provavelmente, sua
própria vida. Quem ligava para o que estava acontecendo do outro lado do mundo? No entanto,
Tim achava importante. Fosse qual fosse a força que o impelia, o que deixara como legado era o
vazio, e não tinha mais significado para ela do que a dor que via no rosto daquele paciente.
Sandy teria compreendido melhor aquela dor se pudesse levar a cadeia de pensamentos um
pouco mais longe.

— Isso foi uma grande bobagem.


— Pode ser — admitiu Tucker. — Mas não posso deixar que as garotas deem o fora sem
pedir permissão, posso?
— Já ouviu falar em enterrá-las?
— Qualquer um pode fazer isso.
O homem sorriu na escuridão e olhou para a tela. Sentavam-se na última fila de um cinema no
centro da cidade, um palácio cinematográfico de 1930 que estava se transformando, aos poucos,
num prédio em ruínas e passou a começar as sessões às 9 da manhã só para pagar a conta da
pintura. Ainda era um bom lugar para se encontrar discretamente com um informante, e esse
encontro assim apareceria na agenda do policial.
— Deixar o cara vivo também foi um erro.
— Ele vai criar problemas? — perguntou Tucker.
— Não. Ele não viu nada, viu?
— Você é que devia saber.
— Já não lhe disse que não posso me aproximar do caso? — O homem parou para comer
pipoca e mastigou com irritação. — Ele é conhecido do departamento. Já foi da Marinha,
trabalha como mergulhador e mora em algum lugar da margem oriental. Pelo que ouvi dizer, está
muito bem de grana. O primeiro interrogatório não deu em nada. Ryan e Douglas estão
começando a trabalhar no caso, mas parece que não têm muito o que relatar.
— Foi o que ela disse quando "conversamos". Ele a pegou na estrada e andaram se
divertindo juntos, mas o estoque de pílulas acabou e ela pediu que o cara a trouxesse à cidade
para conseguir mais. Quer dizer que não houve nenhum prejuízo para nós?
— Provavelmente não, mas vamos ver se a coisa fica como está, OK?
— Quer que eu acabe com ele no hospital? — perguntou Tucker. — Posso dar um jeito.
— Não! Seu idiota, queremos que todos pensem que foi um assalto. Se acontecer mais alguma
coisa, só vai servir para chamar atenção. É exatamente o que não queremos. Deixe-o em paz.
Ele não sabe de nada.
— Quer dizer que ele não vai criar problemas? — Tucker queria deixar aquele ponto bem
claro.
— Não. Mas procure se lembrar, daqui para a frente, de que não se pode abrir uma
investigação de assassinato se não existir um corpo.
— Tenho que manter as garotas na linha.
— Ouvi falar do que você fez com ela...
— Tenho que mantê-las na linha — insistiu Tucker. — A garota serviu de exemplo. Não terei
mais problemas por um bom tempo. Isso não é seu departamento. Por que não deixa por minha
conta?
Outro punhado de pipoca ajudou-o a se render à lógica do momento.
— O que você tem para mim?
Tucker sorriu na escuridão.
— O Sr. Piaggi está começando a gostar de fazer negócio comigo.
Um muxoxo no escuro.
— Eu não confiaria nele.
— A coisa é complicada, não é? — Tucker fez uma pausa. — Por outro lado, preciso dos
contatos dele. Vamos ampliar nossas atividades.
— Quando?
— Em breve — afirmou Tucker, prudentemente. — O próximo passo será mandar o material
para o norte. Para dizer a verdade, Tony está lá neste momento, combinando os detalhes.
— E por agora? Alguma coisa interessante?
— Que tal três caras com uma tonelada de erva? — perguntou Tucker.
— Eles sabem de você?
— Não, mas eu sei deles. — Isso era o mais importante, afinal de contas, a organização a que
pertencia era impenetrável. Apenas um pequeno grupo de pessoas sabia quem ele era, e essas
pessoas sabiam o que aconteceria se falassem demais. O uso da força é indispensável para
manter a disciplina.

— Vá com calma — recomendou Rosen, do lado de fora do quarto particular. — Ele ainda
não se recuperou de todo dos graves ferimentos que sofreu e está tomando vários remédios. Não
está no melhor de sua forma.
— Tenho meu trabalho para fazer também, doutor. — Era um policial novo no caso, um
sargento detetive chamado Tom Douglas. Tinha uns quarenta anos e parecia tão cansado quanto
Kelly, pensou Rosen, e igualmente mal humorado.
— Eu compreendo, é claro. Mas além dos ferimentos, ele também passou por um grande
choque ao saber o que aconteceu com a namorada.
— Quanto mais depressa eu conseguir as informações de que preciso, mais depressa
chegaremos aos responsáveis. O seu dever é com os vivos, doutor; o meu, com os mortos.
— Na minha opinião de médico, ele não está em condições de ser interrogado em particular.
Passou por muita coisa, está muito deprimido, física e mentalmente, e tenho a obrigação de
cuidar para que sua convalescença não seja prejudicada.
— Está me dizendo que quer assistir ao interrogatório? — perguntou Douglas. Era só o que
faltava, um Sherlock amador para nos vigiar. Mas era uma batalha de cartas marcadas, de
modo que nem se deu ao trabalho de tentar.
— Assim ficarei mais tranquilo. Vá com calma — repetiu Rosen, abrindo a porta.
— Com licença, Sr. Kelly — disse o detetive. Depois de apresentar-se, abriu o caderno de
notas. O caso tinha chegado a suas mãos porque era considerado importante. A foto em cores na
primeira página do Evening Sun chegava o mais perto da pornografia que a imprensa séria
podia se permitir, e o prefeito ligara pessoalmente para pedir uma investigação completa. Em
consequência, Douglas assumira o caso, imaginando quanto tempo duraria o interesse do
prefeito. Não mais que alguns dias, pensou o detetive, A única coisa que ocupava a mente de um
político por mais de uma semana era conseguir votos. Aquele caso era complicado, mas era seu,
e a pior parte estava para começar.
— Há duas noites o senhor esteve com uma jovem chamada Pamela Madden?
— Estive. — Os olhos de Kelly estavam fechados quando Sandy, a enfermeira, entrou com a
dose matinal de antibiótico. Ela ficou surpresa ao ver os visitantes e parou na porta, sem saber
se devia interrompê-los.
— Sr. Kelly, ontem à tarde foi encontrado o corpo de uma jovem que corresponde à descrição
da Srta. Madden. — Douglas pôs a mão no bolso do paletó.
— Não faça isso! — exclamou Rosen, levantando-se da cadeira.
— É ela? — perguntou Douglas, segurando a foto diante dos olhos de Kelly.
— Que droga! — O médico segurou o policial pelos ombros e empurrou-o contra a parede,
fazendo-o deixar cair a foto, que foi parar no peito do paciente.
Os olhos de Kelly se arregalaram. Seu corpo se retesou contra as amarras que o mantinham
preso à cama. Em seguida, deixou-se cair de volta, branco como cera. Todos os presentes
desviaram os olhos, exceto a enfermeira.
— Escute, doutor, eu... — tentou explicar Douglas.
— Saia já do meu hospital! — berrou Rosen. — Você pode matar alguém com esse tipo de
choque! Por que não me disse que pretendia...
— Precisávamos de uma identificação...
— Eu podia ter identificado a moça!
Sandy ouviu os dois homens crescidos brigarem como crianças no recreio, mas sua
preocupação era com John Kelly. Ainda com o antibiótico na mão, tentou tirar a fotografia da
vista de Kelly, mas seus olhos foram primeiro atraídos pela imagem e depois repelidos por ela
enquanto Kelly se apossava da foto e a segurava a poucos centímetros dos olhos. Foi a sua
expressão que passou a atrair o interesse da enfermeira. Sandy teve um breve sobressalto com o
que viu, mas Kelly se recompôs rapidamente e disse:
— Tudo bem, Sam. Ele está apenas fazendo seu trabalho. — Kelly olhou para a foto pela
última vez. Depois, fechou os olhos e entregou-a à enfermeira.
As coisas tinham se acalmado para todos, menos para Sandy. Esperou que Kelly engolisse a
cápsula e saiu do quarto. Voltou para a sala das enfermeiras, sem poder tirar da lembrança o que
apenas ela tinha visto. Primeiro, a reação de Kelly, ficando tão pálido que chegara a pensar que
estivesse em choque; depois, a discussão entre o Dr. Rosen e o policial, enquanto ela se
aproximava do paciente. Em seguida... o quê? Não tinha sido como da primeira vez. O rosto de
Kelly se transformara. Tudo ocorrera apenas por um instante, como uma porta que se abrisse e
logo tornasse a se fechar, mas nesse breve intervalo tinha visto uma coisa diferente. Uma coisa
muito antiga, muito selvagem, muito feia. Os olhos não estavam arregalados, mas focalizados em
algo que a enfermeira não podia ver. A palidez no rosto dele não era mais de choque e, sim, de
ódio. As mãos se transformaram em punhos de pedra. De repente, o rosto de Kelly tornou a
mudar. O ódio cego desapareceu e foi substituído pela compreensão, mas o que veio em seguida
foi a visão mais assustadora que Sandy jamais contemplara, embora não soubesse explicar
exatamente o que era. Então a porta foi fechada. Kelly cerrou os olhos e, quando tornou a abri-
los, seu rosto estava estranhamente sereno. A sequência completa não levara mais que alguns
segundos; tudo se passara enquanto Rosen e Douglas estavam discutindo. Kelly passara da
tristeza para o ódio, do ódio para a compreensão e da compreensão para a dissimulação, mas o
que ocorrera entre a compreensão e a dissimulação deixava-a mais assustada.
O que viu no rosto daquele homem? Levou algum tempo para encontrar a resposta. A Morte.
Sim, a Morte. Controlada. Planejada. Disciplinada.
Mesmo assim, era a Morte, vivendo na mente de um homem.
— Não gosto de fazer este tipo de coisa, Sr. Kelly — disse Douglas, ajeitando o paletó. O
detetive e o cirurgião trocaram um olhar embaraçado.
— John, você está bem? — perguntou Rosen, aproximando-se e tomando-lhe o pulso. Ficou
surpreso ao vergue estava normal.
— Tudo bem — afirmou Kelly. Olhou para o detetive. — É ela mesma. É Pam.
— Sinto muito — disse Douglas, com evidente sinceridade —, mas não há uma maneira fácil
de fazer isso. Nunca houve. O que aconteceu aconteceu, e nosso dever é identificar e prender os
responsáveis. Para isso, precisamos da sua ajuda.
— É claro — concordou Kelly, calmamente. — Onde está Frank? Por que ele não veio?
— Ele não pode participar da investigação — explicou o sargento Douglas, olhando de
soslaio para o médico — porque conhece o senhor. Assim, é preferível que se mantenha
afastado do caso. — Não era exatamente a verdade (aliás, não tinha muita coisa a ver com a
verdade), mas parecia uma explicação razoável. — O senhor chegou a ver quem...
Kelly sacudiu a cabeça, olhando para o vazio, e quando falou foi apenas com um fio de voz.
— Não. Estava olhando para o outro lado. Ela disse alguma coisa que não entendi. Pam me
chamou, olhei para a direita, e depois tentei olhar para a esquerda. Não cheguei a completar o
movimento.
— O que estava fazendo na ocasião?
— Observando. Escute, você falou com o tenente Allen, não falou?
— Falei — confirmou Douglas.
— Pam testemunhou um assassinato. Eu a estava levando para conversar com Frank sobre o
crime.
— Prossiga.
— Ela estava ligada a um bando de traficantes quando uma garota foi morta. Eu disse a Pam
que precisávamos fazer alguma coisa. Fiquei curioso para saber como eles eram — contou
Kelly, com voz monótona, ainda remoendo a culpa enquanto rememorava os fatos.
— Como se chamavam?
— Não sei.
— Ora, vamos! — insistiu Douglas, inclinando-se sobre o paciente. — Ela deve ter contado
mais alguma coisa!
— Eu não quis pressioná-la. Achei melhor deixar a investigação com vocês... com Frank.
Pretendíamos nos encontrar com ele naquela mesma noite. Tudo o que sei é que se trata de uma
quadrilha de traficantes que usa mulheres para alguma coisa.
— Isso é tudo que você sabe?
Kelly encarou-o.
— É tudo o que sei. Não ajuda muito, não é?
Douglas esperou alguns segundos antes de prosseguir. O que podia ter sido uma pista
importante num caso importante se revelava um fracasso total, de modo que estava na hora de
mentir novamente, começando com uma meia-verdade para tornar as coisas mais fáceis.
— Há uma dupla de assaltantes agindo na parte oeste da cidade. Dois homens negros, de
estatura mediana. A descrição termina aí. Usam uma escopeta. Costumam roubar pessoas que se
dirigem àquela área para comprar drogas, de preferência gente rica. Provavelmente a maioria
das vítimas nem dá queixa à polícia. Já são suspeitos de dois assassinatos. Talvez este seja o
terceiro.
— Já terminou? — perguntou Rosen.
— Latrocínio é um crime muito sério, doutor.
— Mas podia ter acontecido com qualquer um!
— É uma maneira de encarar as coisas — concordou Douglas, virando-se para a testemunha.
— Deve ter visto algo, Sr. Kelly. Afinal, que diabo estava fazendo naquele bairro? A Srta.
Madden estava tentando comprar alguma...
— Não!
— Escute, não faz mais diferença nenhuma. Ela está morta. Pode me contar. Preciso saber.
— Já lhe disse que ela estava ligada a esse bando e... acredite ou não, eu não sei nada sobre
drogas! — Mas pretendo aprender, pensou.
Sozinho na cama, sozinho com seus pensamentos, Kelly olhou calmamente para o teto,
examinando a superfície branca como se fosse uma tela de cinema.
Em primeiro lugar, a polícia está errada, disse a si mesmo. Não sabia como podia ter tanta
certeza, mas tinha, e pronto. Não foram assaltantes, foram eles, os homens de quem Pam estava
fugindo.
O que aconteceu combinava com o que Pam contara. Era algo que eles tinham feito antes.
Permitira que a encontrassem... duas vezes. O sentimento de culpa ainda o incomodava, mas não
podia mudar o passado. Quem quer que tivesse feito aquilo com Pam ainda estava à solta, e seja
matou pelo menos duas vezes, tornaria a matar no futuro. Mas não era isso que realmente
ocupava seus pensamentos por trás daquela máscara de indiferença.
Eles vão ver, pensou. Eles vão ver. Nunca encontraram ninguém como eu.
Preciso recuperar a forma, disse a si mesmo o suboficial John Terrence Kelly.
Os ferimentos tinham sido graves, mas sobreviveria a eles. Conhecia cada passo do processo.
A convalescença seria penosa, mas faria o que mandassem, até com um pouquinho de exagero,
para que se sentissem orgulhosos de seu paciente. Então começaria a parte realmente difícil. As
corridas, a natação, os pesos. Depois, a prática de tiro. Em seguida, a preparação mental... mas
esta já havia começado, pensou.
Oh, não. Eles jamais encontraram alguém igual a mim, nem nos seus piores pesadelos.
O apelido que recebeu no Vietnã surgiu do passado.
Cobra.
Kelly apertou a campainha. Sandy apareceu em menos de dois minutos.
— Estou com fome — disse.

— Espero nunca mais ter que fazer isso — disse Douglas a seu superior. Não era a primeira
vez.
— Como foi?
— Aquele professor ameaçou dar queixa de mim. Acho que consegui dissuadi-lo, mas com
aquele tipo de gente nunca se sabe.
— Kelly sabe de alguma coisa?
— Nada de útil — respondeu Douglas. — Ainda está muito abalado para ser coerente, mas
não chegou a ver ninguém, nem a... bolas, se tivesse visto algo, provavelmente teria feito algo.
Cheguei a mostrar-lhe a foto, tentando sacudi-lo um pouco. Pensei que o pobre fosse ter um
ataque do coração. O médico ficou uma fera. Não sinto nenhum orgulho do que faço, Em.
Ninguém devia ter que fazer coisas assim.
— Incluindo nós dois, Tom, incluindo nós dois. — O tenente Emmet Ryan levantou os olhos
de uma grande coleção de fotos, metade delas tirada no local em que o corpo fora encontrado,
metade na sala do médico-legista. O que via nas fotos o deixava chocado apesar de todos
aqueles anos de trabalho na polícia, especialmente porque não era um crime de loucura ou
paixão. Não, tinha sido cometido com um propósito bem definido, por homens friamente
racionais. — Conversei com Frank. Esse Kelly é um sujeito prestativo, ajudou-o a resolver o
caso Gooding. Nunca respondeu a processo. Os médicos dizem que não é viciado em drogas.
— Alguma informação sobre a garota? — Douglas não precisou dizer que aquela podia ter
sido a pista de que necessitavam. Se pelo menos Kelly tivesse telefonado para eles em vez de
ligar para Allen, que não sabia de nada a respeito do caso que estavam investigando. Mas as
coisas tinham se passado de outra forma, e agora a possível fonte de informações estava morta.
— A ficha dela já chegou. Pamela Madden. Foi presa por prostituição em Chicago, Atlanta e
Nova Orleans. Nunca foi julgada. Nunca chegou a cumprir pena. Os juízes simplesmente
mandaram libertá-la. Crime sem vítimas, certo?
O sargento se controlou para não xingar os juízes idiotas que agiam daquela forma.
— Isso mesmo, Em, crime sem vítimas. De modo que não estamos mais perto de pegar
aqueles caras do que estávamos há seis meses, não é? Precisamos colocar mais homens no caso
— disse Douglas, afirmando o óbvio.
— Para descobrir o assassino de uma prostituta de rua? — perguntou o tenente. — O prefeito
não gostou da foto que saiu nos jornais, mas já lhe disseram quem ela era, e daqui a uma semana
as coisas vão voltar ao normal. Acha que conseguiremos descobrir alguma coisa em uma
semana, Tom?
— Que tal contar a ele...
— Não. — Ryan sacudiu a cabeça. — Ele falaria. Já conheceu algum político que soubesse
guardar um segredo? Eles têm alguém dentro deste prédio, Tom. Quer mais gente no caso? Onde
vamos arranjar homens de confiança?
— Eu sei, Em — admitiu Douglas. — Mas nossa investigação não está levando a lugar
nenhum.
— Talvez a divisão de narcóticos apareça com alguma novidade.
— Claro. — Douglas fez um muxoxo.
— Kelly pode nos ajudar?
— Não. O idiota estava olhando na direção errada.
— Então faça o acompanhamento de costume, só para ter certeza de que está tudo em ordem,
e encerre sua parte. O relatório da perícia ainda não chegou. Pode ser que eles descubram
alguma coisa.
— Sim, senhor — respondeu Douglas.
Como acontecia frequentemente no trabalho da polícia, estavam esperando que o outro lado
cometesse um erro. Aqueles caras pareciam ser mais espertos que a média. Mais cedo ou mais
tarde, porém, todos os bandidos acabavam deixando alguma pista, pensaram os dois policiais.
Difícil era ter paciência para aguardar que isso acontecesse.
O tenente Ryan olhou para uma das fotos.
— Dá para ver que eles se divertiram com ela antes de matá-la. Como fizeram com a outra.

— Estou gostando de ver.


Kelly levantou os olhos do prato quase vazio.
— O policial estava certo, Sam. Acabou. Preciso superar o que aconteceu, concentrar-me em
outra coisa, certo?
— O que pretende fazer?
— Não sei. Podia voltar para a Marinha ou coisa parecida.
— Precisa encarar de frente a sua dor, John — afirmou Sam, sentando-se ao lado da cama.
— Não há problema. Já fiz isso antes, lembra? — Levantou os olhos. — Mudando de assunto,
o que contou à polícia a meu respeito?
— Como nos conhecemos, esse tipo de coisa. Por quê?
— O que fiz no Vietnã é segredo, Sam. — Kelly parecia envergonhado. — A unidade a que
eu pertencia não existe oficialmente. As coisas que fizemos, bem, elas jamais aconteceram, se
entende o que eu quero dizer.
— Não me perguntaram nada sobre isso. Além do mais, você não chegou a me contar nenhum
detalhe — afirmou o cirurgião, intrigado. Ficou mais intrigado ainda ao perceber que o paciente
parecia aliviado com a resposta.
— Cheguei à polícia recomendado por um cara da Marinha, com a missão de treinar os
mergulhadores. O que eles sabem é apenas o que tive permissão de contar. Não é exatamente o
que eu fiz, mas impressiona.
— OK.
— Ainda não lhe agradeci por cuidar tão bem de mim.
Rosen levantou-se e caminhou até a porta, mas parou de repente e olhou para Kelly.
— Pensa que me engana?
— Estou vendo que não, Sam — respondeu o rapaz, cautelosamente.
— John, passei a vida inteira usando estas mãos para consertar pessoas. A gente tenta se
manter distante, procura não se envolver, porque, se o fizer, pode perder o controle, perder a
concentração. Nunca fiz mal a ninguém em toda a minha vida. Está me entendendo?
— Sim, senhor.
— O que pretende fazer?
— É melhor você não saber, Sam.
— Quero ajudá-lo. Estou falando sério. Eu também gostava de Pam.
— Sei disso.
— O que posso fazer por você, então? — perguntou o médico. Por um momento, teve medo
de que Kelly lhe pedisse alguma coisa contra seus princípios; mais medo ainda de que
concordasse com o pedido.
— Ajude-me a ficar bom.
9

TRABALHO

Era quase patético, pensou Sandy. O estranho era que ele estava se revelando um ótimo
paciente. Não reclamava. Não se queixava. Fazia tudo o que mandavam. Havia um traço de
sadismo em todos os fisioterapeutas. Tinha que haver, já que o trabalho deles, como o dos
técnicos esportivos, era obrigar as pessoas a superarem seus limites. Um bom fisioterapeuta
encoraja os fracos e intimida os fortes; não hesita em bajular e envergonhar os pacientes, tudo
em nome da saúde. Para isso, tinha que extrair alguma satisfação do sofrimento alheio, o que
Sandy jamais poderia fazer. Entretanto, com Kelly era diferente. Fazia o que esperavam dele; se
o fisioterapeuta pedia mais, fazia mais, e mais, e mais, até que o fisioterapeuta deixava de se
orgulhar com o resultado dos esforços e começava a se preocupar.
— Pode descansar agora — disse o fisioterapeuta.
— Por quê? — perguntou Kelly, um pouco ofegante.
— O seu pulso está em cento e noventa e cinco. — E tinha estado nos últimos cinco minutos.
— Qual é o recorde?
— Zero — respondeu o fisioterapeuta, muito sério.
Kelly riu e diminuiu o ritmo na bicicleta. Dois minutos depois parou relutantemente de
pedalar.
— Vim buscá-lo — anunciou Sandy.
— Ótimo. Leve-o daqui antes que quebre alguma coisa.
Kelly desceu da bicicleta e enxugou o rosto, satisfeito por ver que a enfermeira não trouxera
uma cadeira de rodas ou algo do gênero. — A que devo a honra, madame?
— Minha missão é cuidar de você — respondeu Sandy. — Está querendo nos mostrar como é
valente?
Kelly se sentiu levemente lisonjeado, mas respondeu, muito sério: — Enfermeira, todos
querem que eu pare de pensar nos meus problemas, certo? Pois a melhor maneira é me exercitar.
Com um braço na tipoia, não posso correr, nem fazer flexões, nem levantar peso. Mas posso
pedalar. Entende?
— Entendo. — Apontou para a porta. Quando estavam na anonimidade barulhenta do
corredor, disse: — Sinto muito o que aconteceu com sua amiga.
— Obrigado, madame. — Kelly virou a cabeça, um pouco tonto por causa do exercício, e
continuou a caminhar. — Os militares têm rituais. Toques de corneta, bandeiras, salvas de tiros.
Isso faz bem aos homens, ajuda-os a acreditar que valeu a pena. A cerimônia pode ser triste,
mas é uma maneira formal de dizer adeus. Aprendemos a lidar com a morte dos companheiros.
Mas o que aconteceu com você foi diferente, e o que acaba de acontecer comigo foi diferente. O
que devemos fazer? Trabalhar até a exaustão?
— Terminei meu mestrado. Trabalho como enfermeira. Dou aulas. Preocupo-me com os
pacientes. — Aquela era a vida de Sandy depois que enviuvara.
— Pois não precisa se preocupar comigo, OK? Conheço meus limites.
— Onde estão seus limites?
— Muito longe — respondeu Kelly, com a sugestão de um sorriso que logo se extinguiu. —
Como estou me saindo?
— Muito bem.
As coisas não estavam correndo tão bem assim, e ambos sabiam disso. Donald Madden voara
para Baltimore para reclamar o corpo da filha, deixando a mulher em casa e se recusando a
falar com Kelly, apesar dos apelos de Sarah Rosen. Não estava interessado em conversar com
um fornicador, disse ao telefone. Sandy sabia do comentário, mas nem ela nem Sam haviam
contado ao rapaz. O cirurgião lhe falara da moça, e aquele era simplesmente o capítulo final de
uma vida curta e trágica, algo que o paciente não precisava saber. Kelly perguntou pelo funeral
e os dois lhe disseram que não estava em condições de sair do hospital para assistir à
cerimônia. Para surpresa da enfermeira, aceitou o argumento sem discussão.
O ombro esquerdo ainda estava imobilizado e a enfermeira sabia que devia doer muito. Ela e
os outros podiam vê-lo contrair os músculos, especialmente quando estava perto da hora de
tomar o analgésico, mas Kelly nunca se queixava. Mesmo agora, ainda ofegante depois de trinta
minutos de esforço na bicicleta, estava caminhando o mais depressa que podia, como um atleta
treinado.
— Por que está andando tão depressa? — perguntou a enfermeira.
— Não sei. Tem que haver uma razão para tudo? É assim que eu sou, Sandy.
— Suas pernas são mais compridas do que as minhas. Vá mais devagar, está bem?
— Claro. — Kelly diminuiu o passo e logo depois chegaram ao elevador. — Existem muitas
garotas com o mesmo problema de Pam?
— Muitas. — Sandy não conhecia as estatísticas, mas sabia que elas eram consideradas uma
classe especial de pacientes, de tão numerosas.
— Quem é que cuida delas?
A enfermeira apertou o botão do elevador.
— Ninguém. Há programas para ajudá-las a deixar o vício, mas não para combater as
verdadeiras causas, o ambiente familiar e suas consequências. Existe um termo novo para isso:
"desvio de comportamento". Se você é um ladrão, há programas. Se molesta crianças, há um
programa. Essas garotas, porém, são ignoradas pela sociedade. Ninguém se preocupa com elas.
Só os grupos religiosos tentam fazer alguma coisa. Se alguém dissesse que é uma doença, talvez
as pessoas prestassem mais atenção.
— É uma doença?
— John, não sou médica, apenas uma enfermeira, e não é a minha especialidade. Faço o pós-
operatório de pacientes submetidos a cirurgias. Está certo, converso com os colegas no almoço
e sei alguma coisa a respeito. É surpreendente o número de moças que aparecem mortas.
Excesso de drogas, acidental ou deliberado, quem sabe? Outras se envolvem com a pessoa
errada ou são espancadas pelo proxeneta e vêm parar aqui. O estado geral de saúde não ajuda
em nada; muitas não conseguem sobreviver. Hepatite por causa de agulhas contaminadas,
pneumonia causada pela desnutrição. Acrescente a isso um ferimento traumático e terá uma
combinação mortal. Será que ninguém vai fazer alguma coisa? — perguntou Sandy, no momento
em que o elevador chegou. — Gente moça não devia morrer assim.
— É verdade — concordou Kelly, fazendo um gesto para que a enfermeira entrasse primeiro
no elevador.
— O paciente é você! — protestou Sandy.
— Mas você é a dama — insistiu Kelly. — Desculpe, foi assim que me ensinaram.
Quem é esse sujeito?, perguntou-se Sandy. Estava cuidando de mais de um paciente, é claro,
mas o professor lhe dera ordens para... bem, não exatamente, mas um "pedido" do Dr. Rosen era
praticamente uma ordem, especialmente porque tinha grande respeito por ele como amigo e
conselheiro... o professor lhe pedira para dedicar atenção especial a Kelly. Não tentou bancar o
cupido, como tinha chegado a suspeitar. Kelly ainda estava muito ferido, e ela também, embora
não gostasse de admitir. Que homem estranho! Parecido com Tim sob vários aspectos, porém
muito mais reservado. Uma mistura esquisita de gentileza e brutalidade. Não se esquecera do
que viu nos olhos dele na semana anterior, mas aquilo não tornou a acontecer. Sempre a tratava
com respeito e bom humor. Nunca fez nenhum comentário malicioso sobre seu corpo, como
muitos pacientes (e ela se fingia de ofendida). Era tão infeliz e ao mesmo tempo tão esforçado!
A forma incansável como se dedicava aos exercícios de fisioterapia, o jeito agressivo... Como
conciliar isso com uma conduta irrepreensível?
— Quando vou ter alta? — perguntou Kelly, em tom quase casual, mas não o suficiente.
— Daqui a uma semana — respondeu Sandy, saindo com ele do elevador. — Amanhã vamos
tirar essa atadura do braço.
— É mesmo? Sam não me disse nada. Então vou poder usar o braço de novo?
— Vai doer, no princípio — advertiu a enfermeira.
— Já está doendo, Sandy — disse Kelly, rindo. — Por isso, não vai fazer diferença.
— Deite-se — ordenou a enfermeira. Antes que Kelly pudesse objetar, ela já tinha enfiado
um termômetro na sua boca e estava tomando o pulso. Depois, verificou a pressão sanguínea. Os
números que anotou foram 36,9; 64; 10,5/6. Os dois últimos eram surpreendentes, pensou. O
paciente estava se recuperando rapidamente. Gostaria de saber por que a pressa.
Mais uma semana, pensou Kelly depois que ela saiu. Tenho que pôr este maldito braço para
funcionar.

— Então, o que descobriu para nós? — perguntou Maxwell.


— Tenho boas e más notícias — respondeu Greer. — A boa notícia é que as forças terrestres
do inimigo a uma distância perigosa do alvo são bem reduzidas. Identificamos três batalhões.
Dois estão treinando para ir para o sul. O outro acaba de voltar de uma missão. Está em péssima
forma, no processo de reorganização. Os treinamentos de costume. Nada de significativo em
termos de armas pesadas. As formações mecanizadas de que dispõem estão bem longe daqui.
— E as más notícias? — indagou o almirante Podulski.
— Preciso dizer? Eles têm canhões antiaéreos suficientes ao longo da costa para fazer o céu
ficar negro. Baterias SA-2, aqui, aqui e provavelmente aqui, também. Vai ser quase impossível
para os aviões, Cas. Helicópteros? Um ou dois, talvez, mas uma operação de grande escala é
outra história. Passamos por tudo isso quando planejamos PINO MESTRE, lembra-se?
— Fica a apenas cinquenta quilômetros da praia.
— Quinze ou vinte minutos de helicóptero, voando em linha reta, o que não vai ser possível,
Cas. Examinei pessoalmente os mapas das defesas. Para a melhor rota que consegui identificar
(é a sua área, Cas, mas eu também entendo um pouco do assunto, OK?), o tempo de viagem seria
de vinte e cinco minutos e eu não aconselharia um missão diurna.
— Podemos usar os B-52 para abrir um corredor — sugeriu Podulski. Ele jamais fora
conhecido por sua sutileza.
— Pensei que esta seria uma operação discreta — observou Greer. — Escute, o pior é que
ninguém está muito entusiasmado com esse tipo de missão. O PINO MESTRE fracassou...
— A culpa não foi nossa! — protestou Podulski.
— Eu sei, Cas — concordou Greer, pacientemente.
— Deve haver algum jeito — rosnou Cas.
Os três se debruçaram sobre as fotos de reconhecimento. Era uma boa coleção. Duas tinham
sido tiradas por satélites, duas por aviões SR-71 Blackbird e as três mais recentes, de baixa
altitude, tinham sido obtidas por um Caçador de Búfalos. O campo tinha a forma de um
quadrado perfeito, com duzentos metros de lado. Certamente fora construído de acordo com as
especificações de um manual soviético. Em cada vértice do quadrado havia uma torre de guarda
com exatamente dez metros de altura. As torres dispunham de telhados de zinco, cujo objetivo
era proteger da chuva as metralhadoras, que eram de um modelo muito usado pelo Exército do
Vietnã do Norte, baseado em antigo projeto dos russos, já obsoleto. No interior do campo havia
três edifícios grandes e dois pequenos. Dentro de um dos edifícios maiores estavam, ao que
se supunha, vinte oficiais americanos, todos com patente igual ou superior à de tenente-coronel,
pois aquele era um campo especial.
As primeiras fotos a chegar ao conhecimento de Greer tinham sido as do Caçador de Búfalos.
Em uma delas era possível identificar um rosto, o do coronel Robin Zacharias, da Força Aérea
dos Estados Unidos. Seu F-105G Wild Weasel fora derrubado quatorze meses antes; ele e seu
operador de sistemas de armas tinham sido dados como mortos. Uma fotografia do corpo
chegara a ser publicada. Aquele campo, cujo nome de código, SINAL VERDE, menos de
cinquenta homens e mulheres conheciam, era diferente do conhecido Hilton de Hanói, visitado
por civis americanos, onde, desde a espetacular mas mal sucedida operação PINO MESTRE
contra o campo de Song Tay, quase todos os prisioneiros de guerra americanos tinham sido
concentrados. Localizado em uma região remota, quase inacessível, não reconhecido
oficialmente pelo Vietnã do Norte, SINAL VERDE era uma afronta. Fosse qual fosse o resultado
da guerra, os Estados Unidos queriam seus pilotos de volta. Ali estava um lugar cuja própria
existência sugeria que talvez alguns daqueles prisioneiros jamais fossem devolvidos. Uma
análise estatística das baixas revelara uma estranha anomalia: o número de oficiais da Força
Aérea mortos em combate era maior entre os oficiais mais graduados do que entre os menos
graduados. Sabia-se que o inimigo dispunha de boas fontes de informações, muitas delas dentro
do movimento americano de "paz". Era, portanto, provável que dispusessem de informações
completas a respeito dos oficiais graduados da Força Aérea: quem eram, o que sabiam, onde
haviam trabalhado. Talvez esses oficiais tivessem sido levados para um campo secreto e os seus
conhecimentos estivessem sendo usados pelos norte-vietnamitas para barganhar com os russos.
Os conhecimentos dos prisioneiros em áreas de interesse estratégico poderiam ser trocados por
um apoio mais eficaz por parte de um país que, com a nova atmosfera de détente, começava a
perder o interesse por aquela guerra que se arrastava ano após ano.
— Meu Deus — murmurou Maxwell. As três ampliações mostravam o rosto do homem, que
em todas elas estava olhando diretamente para a câmera. A última surpreendera um dos guardas
no ato de bater com a coronha de um fuzil nas costas do prisioneiro. Não havia dúvida possível.
Era mesmo Zacharias.
— Este cara aqui é russo — afirmou Casimir Podulski, apontando para as fotos tiradas pelo
drone. O uniforme era inconfundível.
Sabiam o que Cas estava pensando. Filho do ex-embaixador da Polônia nos Estados Unidos,
herdeiro do título de conde, descendente de um grupo que lutara do lado do rei John Sobieski,
metade de sua família tinha sido dizimada pelos nazistas, juntamente com o resto da nobreza
polonesa, e a outra metade pelos russos, na floresta Katyn, onde dois irmãos foram assassinados
depois de travarem uma guerra curta e fadada ao fracasso contra os invasores. Em 1941, um dia
depois de se formar na Universidade de Princeton, Podulski se alistara na Marinha dos Estados
Unidos como aviador, adotando um novo país e uma nova profissão. Servira a ambos com
orgulho e eficiência. E com raiva, também. Que agora estava ainda mais forte, porque em breve
seria forçado a passar para a reserva. Greer podia ver a razão. As mãos surpreendentemente
delicadas do oficial estavam retorcidas pela artrite. Por mais que tentasse esconder o fato,
jamais conseguiria passar no próximo exame médico, e Cas teria que ir para casa com as
memórias de um filho morto e uma esposa sobrevivendo à custa de tranquilizantes, depois de
uma carreira que provavelmente rotularia como um fracasso, apesar de todas as medalhas.
— Temos que descobrir um meio — declarou Podulski. — Se não fizermos alguma coisa,
jamais tornaremos a ver aqueles homens. Sabe quem talvez esteja lá, Dutch? Peter Francis e
Hank Osborne.
— Pete trabalhou para mim quando eu comandava o Enterprise — admitiu Maxwell. Os dois
olharam para Greer.
— Estou começando a concordar com a sua teoria a respeito do campo. Até agora, tinha
minhas dúvidas. Zacharias, Francis e Osborne são nomes em que eles estariam interessados. —
O oficial da Força Aérea servira em Omaha, participando do grupo encarregado de escolher os
alvos das armas estratégicas, e seu conhecimento dos planos de guerra mais secretos dos
Estados Unidos era enciclopédico. Os dois oficiais da Marinha também partilhavam de
informações importantes, e embora todos três fossem corajosos, dedicados e obstinadamente
decididos a negar, esconder e disfarçar, eram humanos, e homens tinham limites; e o inimigo
tinha tempo. — Escute, se quiser, posso tentar vender a ideia a certas pessoas, mas não estou
muito otimista quanto aos resultados.
— Se não fizermos nada, estaremos traindo nossa gente! — exclamou Podulski, dando um
soco na mesa. Mas Cas tinha outros objetivos em vista, também. A descoberta daquele campo e
a libertação dos prisioneiros deixariam claro que o Vietnã do Norte mentira publicamente. Isso
poderia fazer fracassar as negociações de paz, forçando Nixon a adotar um plano alternativo
preparado por outro grupo de trabalho do Pentágono: a invasão do norte. Seria a mais
americana das operações militares, um ataque conjunto das três armas, sem precedentes em
termos de ousadia, magnitude e perigos em potencial: tropas desembarcadas de aviões
diretamente em Hanói, uma divisão de fuzileiros invadindo as praias do dois lados de
Haiphong, ataques aéreos no meio, apoiados por tudo que os Estados Unidos conseguissem
reunir na tentativa de quebrar a resistência do norte capturando sua liderança política. Aquele
plano, cujo nome de código mudava todo mês (no momento, era CORNETIM CERTO), se
tornara o Santo Graal para todos os militares que durante seis anos tinham visto o país se
debater em erros e indefinições enquanto seus filhos eram sacrificados do outro lado do mundo.
— Acha que penso diferente? Osborne trabalhou para mim em Suitland. Fui com o capelão
entregar o maldito telegrama, OK? Estou do seu lado, homem! — Ao contrário de Cas e Dutch,
Greer sabia que CORNETIM CERTO jamais passaria de um estudo teórico. Simplesmente não
podia ser posto em execução, não sem o Congresso ser informado, e era impossível informar o
Congresso sem que a notícia transpirasse. Uma possibilidade em 1966 ou 67, talvez mesmo em
1968, uma operação desse tipo era impensável agora. Por outro lado, talvez fosse viável
resgatar os prisioneiros de SINAL VERDE.
— Vá com calma, Cas — aconselhou Maxwell.
— Sim, senhor.
Greer voltou a examinar o mapa.
— Sabem de uma coisa? Às vezes vocês não pensam na solução mais óbvia.
— Como assim? — perguntou Maxwell.
Greer apontou para uma linha vermelha que ia de uma cidade costeira até as proximidades do
campo. Nas fotos aéreas dava para ver que era uma estrada asfaltada.
— As forças de defesa estão aqui, aqui e aqui. A estrada passa por aqui, acompanhando o
curso do rio. Existem baterias antiaéreas por toda parte, servidas pela estrada, mas, como
sabem, de nada serve a artilharia antiaérea contra forças terrestres.
— Está falando de uma invasão — observou Podulski.
— E desembarcar duas companhias aerotransportadas não seria uma invasão?
— Sempre achei que você era esperto, James — disse Maxwell. — Sabe de uma coisa? Meu
filho foi derrubado nessa região. Aquele SEAL resgatou-o bem aqui — afirmou o almirante,
indicando um ponto no mapa.
— Alguém que já conhece o terreno? — perguntou Greer. — Pode ser muito útil para nós.
Quem é ele?
— Pode.
— Olá, Sarah. — Kelly convidou-a ase sentar com um gesto. Ela parecia mais velha, pensou.
— É a terceira vez que venho aqui, John. Das duas primeiras, você estava dormindo.
— Tenho dormido muito. É normal — tranquilizou-a. — Sam tem vindo me ver várias vezes
por dia. — Estava se sentindo pouco à vontade. O mais difícil é encarar os amigos, pensou
Kelly.
— Pois eu tenho trabalhado muito no laboratório — disse Sarah. — John, desculpe ter
pedido a você que viesse à cidade. Pam não precisava se consultar com Madge. Conheço um
ótimo médico em Annapolis que... — não conseguiu terminar a frase.
Quanto remorso, pensou Kelly.
— Não teve culpa do que aconteceu, Sarah — afirmou, quando a outra parou de falar. — Foi
uma boa amiga para Pam. Se a mãe dela tivesse sido como você, talvez...
Era como se não tivesse dito nada.
— Pelo menos, eu podia ter esperado um pouco. Se tivesse marcado a consulta para outro
dia...
Nisso ela estava certa, pensou Kelly. Quantas variáveis! E se tivesse escolhido outro
quarteirão para estacionar? E se não tivesse sido visto por Billy? E se tivesse ficado no meu
canto e deixado em paz o filho da puta? Um outro dia, uma outra semana... O passado acontecia
porque cem pequeninas coisas se encaixaram exatamente de uma certa forma, exatamente numa
certa ordem, e enquanto era fácil aceitar os bons resultados, a tendência era sentir uma imensa
frustração com os resultados desfavoráveis. E se tivesse escolhido um caminho diferente para ir
até o cais? Se não tivesse visto Pam à beira da estrada? Se não tivesse parado para oferecer
carona? Se não tivesse descoberto o vidro de remédio? Se não tivesse se importado, ou se
tivesse ficado furioso a ponto de abandoná-la? A moça ainda estaria viva? Se o pai tivesse sido
um pouquinho mais compreensivo, e ela não fugisse de casa, jamais se encontrariam. Isso teria
sido bom ou ruim?
Nesse caso, o que era importante? Seria tudo o resultado de mero acaso? O problema é que
não havia como saber. Talvez se fosse Deus e pudesse ver as coisas de cima, os acontecimentos
passassem a fazer algum sentido, mas do seu ponto de vista as coisas se limitavam a
acontecer, pensou Kelly, e se fazia o melhor que podia e se tentava aprender com os próprios
erros para saber como agir quando o próximo evento aleatório o atingisse em cheio. Mas será
que isso fazia sentido? Droga, será que alguma coisa fazia sentido? Era uma pergunta complexa
demais para um ex-suboficial da Marinha deitado em uma cama de hospital.
— Você não teve culpa, Sarah. Fez tudo o que estava ao seu alcance para ajudá-la. Como
podia adivinhar?
— Pam ia ficar boa, Kelly!
— Eu sei. Mas fui eu que a trouxe aqui e não tomei as precauções necessárias. Sarah, todo
mundo fica repetindo que a culpa não foi minha, e de repente você chega aqui e diz que a culpa
foi sua. — A careta foi quase um sorriso. — Isso poderia me deixar muito confuso, se não fosse
por uma coisa.
— Não foi um acidente, foi? — perguntou Sarah.
— Não, não foi.

— Ali está ele — comentou Oreza, mantendo o binóculo apontado para o vulto distante. —
Exatamente como você disse.
— Venha para o papa— murmurou o policial na escuridão.
Era apenas uma feliz coincidência, pensou o policial. Os elementos que estavam seguindo
eram donos de uma fazenda de milho em Dorchester, mas no meio do milho plantavam maconha.
Um método simples e eficiente, como dizia o ditado. Uma fazenda queria dizer celeiros e
depósitos e queria dizer também isolamento. Naturalmente, não queriam transportar o produto
de caminhão pela Bay Bridge, onde o tráfego de verão era frequentemente interrompido e, além
disso, um guarda do pedágio, mais atento, ajudara a polícia estadual a apreender um
carregamento fazia menos de um mês. Eram suficientemente espertos para se tornarem uma
ameaça em potencial para o seu amigo. Tinham que ser detidos.
Para não ter que passar pela ponte, estavam usando um barco. Essa coincidência feliz dava à
Guarda Costeira a oportunidade de participar de uma apreensão, o que contribuiria para
aumentar ainda mais o seu prestígio dentro da organização. Já se aproveitara deles para acabar
com Angelo Vorano e poderia usá-los outras vezes, pensou o tenente Charon, v sorrindo, na
ponte de comando.
— Vamos pegá-los agora? — perguntou Oreza.
— Vamos, As pessoas a quem estão fornecendo a droga são nossos informantes. É melhor não
contar isso a ninguém — acrescentou. — Não queremos comprometê-los.
— Está certo. — O primeiro-sargento acelerou os motores e girou o leme para boreste. —
Vamos acordar, pessoal — disse à tripulação.
O aumento da potência fez a popa da embarcação afundar na água. O ronco dos motores a
diesel era música aos ouvidos do capitão. A pequena roda metálica vibrava em suas mãos
enquanto estabelecia o novo curso. Já antegozava a surpresa que os bandidos teriam. Embora a
Guarda Costeira fosse o principal órgão de policiamento no mar, sua atividade principal sempre
fora a de busca e salvamento, e poucos sabiam que isso havia mudado. O que era uma pena,
disse Oreza para si mesmo. Encontrara uns poucos subordinados fumando maconha nos últimos
anos, e sua indignação até hoje era comentada pelos colegas.
Agora o alvo estava bem visível, um barco de pesca de trinta pés de fabricação local, igual a
centenas que singravam as águas da baía de Chesapeake e provavelmente equipado com um
velho motor de Chevy, o que queria dizer que não poderia escapar do cúter da Guarda Costeira.
Era ótimo dispor de um bom disfarce, pensou Oreza com um sorriso, mas não era tão esperto
apostar a vida e a liberdade em uma única carta, por melhor que ela fosse.
— Não façam nada fora do normal — recomendou o policial.
— Olhe à sua volta — replicou o primeiro-sargento. A tripulação estava em alerta, mas de
forma discreta, com as armas nos coldres. O curso do barco o levaria diretamente à estação de
Thomas Point; se fossem notados pelo outro barco (e no momento eles não estavam olhando),
provavelmente pensariam que o cúter de quarenta e um pés estava simplesmente voltando para
sua base. Faltavam apenas quinhentos metros. Oreza acelerou os motores ao máximo, para
ganhar um ou dois nós a mais de velocidade.
— Lá vai o Sr. English — comentou um tripulante. O outro barco de quarenta e um pés da
estação de Thomas Point tinha deixado o cais e se dirigia quase em linha reta para um farol que
também era apoiado pela estação.
— Eles não são muito espertos, não é mesmo? — observou Oreza.
— Se fossem espertos, não seriam criminosos.
— Isso é verdade.
Faltavam trezentos metros agora, e uma cabeça se virou para olhar para a forma branca e
reluzente do pequeno cúter. Havia três pessoas a bordo da embarcação, e a que olhara na
direção deles se inclinou para dizer algo ao sujeito que estava no leme. Era quase cômico
observá-los. Oreza podia imaginar cada palavra do que estavam dizendo. Há um barco da
Guarda Costeira se aproximando. Não percam a calma, talvez estejam apenas trocando os
barcos, o outro acabou de sair... Oh-oh, não estou gostando... Calma, calma! Eu realmente não
estou gostando. Calma, eles não acenderam os holofotes e a estação fica logo ali.
Agora falta pouco, pensou Oreza. Falta muito pouco para eles dizerem: Merda!
Quando aconteceu, ele teve que rir. O sujeito que estava ao leme se virou e sua boca abriu e
fechou, depois de dizer exatamente a palavra que o primeiro-sargento previra. Um dos
tripulantes leu os lábios do homem e também riu.
— Acho que eles já sabem, capitão.
— Acendam os holofotes! — ordenou Oreza.
— Sim, senhor!
O barco dos bandidos deu uma guinada e rumou para o sul, mas o outro cúter mudou de curso
para cercá-lo e logo ficou claro que os barcos da Guarda Costeira eram muito mais velozes.
— Deviam ter usado o dinheiro para comprar alguma coisa mais potente, rapazes —
comentou Oreza baixinho, sabendo que os criminosos também aprendiam com os próprios erros
e comprar uma embarcação mais veloz do que um cúter de quarenta e um pés não era tão difícil
assim. Desta vez seria fácil. Perseguir outro pequeno barco a vela seria fácil, se aquele maldito
policial os deixasse fazer a coisa direito, mas os casos fáceis não se repetiriam para sempre.
O barco dos bandidos reduziu a marcha, encurralado entre os dois cúteres. O suboficial
English se manteve a algumas centenas de metros de distância enquanto Oreza se aproximava.
— Olá — disse o primeiro-sargento ao megafone. — Somos da Guarda Costeira e estamos
exercendo o direito de realizar uma inspeção de rotina em seu barco. Por favor, fiquem todos
onde estão.
Era como ver os jogadores de um time de futebol que tivessem acabado de perder uma
partida decisiva. Sabiam que não podiam mudar as coisas, fizessem o que fizessem. Sabiam que
era inútil resistir, e por isso permaneceram imóveis, abatidos e resignados. Oreza se perguntou
quanto tempo aquilo ia durar. Quanto tempo levaria até que alguém fosse suficientemente tolo
para atacá-los?
Dois dos marinheiros de Oreza passaram para o outro barco, enquanto dois outros na popa do
cúter lhes davam cobertura. O Sr. English se aproximou com seu barco. Era um bom piloto,
observou Oreza, e estava com os tripulantes no convés para dar cobertura, também, caso os
bandidos tentassem alguma coisa. Enquanto os três homens continuavam parados, torcendo para
que se tratasse de fato de uma inspeção de rotina, os dois homens de Oreza entraram na cabine
de proa. Tornaram a sair em menos de um minuto. Um deles levou a mão à pala do quepe,
sinalizando que estava tudo bem, e depois deu um tapinha na barriga. Sim, havia drogas a bordo.
Cinco tapinhas: o barco estava repleto de drogas.
— Temos uma apreensão, senhor — observou Oreza, calmamente.
O tenente Mark Charon, da divisão de narcóticos do departamento de polícia de Baltimore,
apoiou-se no batente da porta (ou escotilha, ou o que quer que os marinheiros chamassem
aquilo) e sorriu. Usava roupa esporte e poderia ser facilmente confundido com um membro da
Guarda Costeira com o salva-vidas laranja exigido pelo regulamento.
— Cuide do caso, então. Como vai aparecer nos livros?
— Estávamos fazendo uma inspeção de rotina e descobrimos que, oh, eles tinham drogas a
bordo! — declarou Oreza, com um ar fingido de surpresa.
— Perfeito, Sr. Oreza.
— Obrigado, senhor.
— Não há de quê, capitão.
Ele já havia explicado o procedimento a Oreza e a English. A fim de proteger seus
informantes, todo o crédito pela apreensão deveria ir para os membros da Guarda Costeira, o
que não chegava exatamente a desagradar ao suboficial e primeiro-sargento. Oreza pintaria no
mastro (se é que chamavam de mastro aquela coisa que sustentava o radar) um símbolo de
vitória, uma folha de maconha estilizada, e os tripulantes teriam algo de que se orgulhar.
Poderiam até mesmo passar pela aventura de testemunhar em uma corte federal —
provavelmente não, já que esses tipos insignificantes certamente se confessariam culpados em
troca de uma pena reduzida. Dariam a entender que foram denunciados pelas pessoas a quem
estavam fazendo a entrega. Com sorte, essas pessoas poderiam até ficar assustadas e fugir, o que
tornaria seu trabalho ainda mais fácil. Haveria uma brecha na ecoestrutura das drogas — outra
palavra bonita que Charon gostava de usar. Pelo menos, um concorrente em potencial nessa
ecoestrutura tinha sido posto fora de combate. O tenente Charon ganharia do seu chefe um
tapinha no ombro e cartas floreadas de agradecimento da Guarda Costeira e do Departamento de
Justiça, para não falar dos parabéns por comandar uma operação tão discreta e eficiente, que
não comprometera seus informantes. Um dos nossos melhores homens, diria o capitão mais uma
vez. Como consegue informantes tão bons? Capitão, o senhor sabe como a coisa funciona,
tenho que proteger essa gente. Claro, Mark, eu entendo. Continue assim.
Vou tentar, chefe, pensou Charon consigo mesmo, olhando para o sol poente. Não se
interessou em ver os tripulantes algemarem os suspeitos e lerem seus direitos constitucionais em
um cartão plastificado, sorrindo enquanto o faziam, já que para eles aquilo era um jogo muito
divertido. Acontece que, no fundo, a mesma coisa se podia dizer de Charon, também.

Onde estavam os malditos helicópteros?, perguntou Kelly a si mesmo.


Tudo naquela missão estava errado, desde o primeiro momento. Pickett, seu companheiro
habitual, aparecera com uma violenta disenteria e Kelly tivera que ir sozinho. Não era um bom
presságio, mas a missão era muito importante e eles tinham que cobrir todas as pequenas aldeias
ou villes. Assim, estava sozinho, avançando com muita, muita cautela na água malcheirosa
daquele... bem, o mapa chamava de rio, mas não era largo o suficiente para que Kelly pensasse
nele como um rio.
Naturalmente, aquela era a ville onde eles estavam, os filhos da mãe.
FLOR DE PLÁSTICO, pensou, olhando e escutando. Quem será o maluco que escolheu esse
nome?
FLOR DE PLÁSTICO era o nome de código de um grupo de ação política do Exército do
Vietnã do Norte. O grupo tinha vários outros nomes, nenhum dos quais elogioso. Certamente não
se pareciam em nada com os ativistas políticos que costumavam circular pelas ruas nos dias de
eleição em Indianapolis. Não aqueles homens, que tinham aprendido em Hanói as técnicas para
conquistar corações e mentes.
O líder, chefe, prefeito ou coisa parecida da ville era apenas um pouquinho corajoso demais
para ser chamado de qualquer coisa além de tolo. Estava pagando por essa tolice diante dos
olhos distantes do suboficial J.T. Kelly. O grupo chegara à uma e meia da manhã e, de forma
muito ordeira e quase civilizada, entrara em todos os casebres, despertando a população de
fazendeiros, levando-os à praça central para ver o pobre herói, com a esposa e três filhas,
sentados no chão, os braços cruelmente amarrados atrás das costas. O major que comandava o
FLOR DE PLÁSTICO convidou-os a se sentarem com uma voz amável que chegou ao ponto de
observação de Kelly, a menos de duzentos metros de distância. A ville precisava de uma aula
sobre a inutilidade de resistir ao movimento de libertação popular. Não que fossem maus;
estavam apenas mal-informados, e o major esperava que aquela aula os ajudasse a reconhecer
seus erros.
Começaram pela mulher do chefe. Gastaram vinte minutos com ela.
Tenho que fazer alguma coisa!, disse Kelly a si mesmo.
Eles são onze, idiota. Embora o major fosse um sádico filho da puta, os dez soldados que o
acompanhavam não tinham sido escolhidos unicamente por suas convicções políticas. Deviam
ser soldados confiáveis, experientes e esforçados. Um homem podia ser esforçado mesmo
quando estava executando missões como aquela; isso era uma coisa que Kelly não tinha
pretensão de compreender, mas não podia se dar ao luxo de ignorar.
Onde estaria o maldito grupo de apoio? Ele os chamara mais de quarenta minutos antes e a
base ficava a apenas vinte minutos de helicóptero. Precisavam daquele major. O resto do grupo
também poderia ser útil, mas queriam o major vivo. Ele sabia onde estavam os líderes políticos
locais, aqueles a quem os fuzileiros não tinham aniquilado em um ataque relâmpago há seis
semanas. Aquela incursão, tão perto de uma base americana, era provavelmente uma resposta ao
ataque dos fuzileiros, uma forma de dizer: não, vocês ainda não acabaram conosco, e nunca vão
acabar.
E provavelmente estavam certos, pensou Kelly, mas isso não tinha nada a ver com a missão
daquela noite.
A filha mais velha tinha talvez quinze anos; era difícil de dizer, pois quase todas as mulheres
vietnamitas eram pequenas e delicadas. Estava sendo torturada há vinte e cinco minutos, mas
ainda respirava. Os gritos atravessavam o descampado e chegavam ao úmido posto de
observação de Kelly, fazendo-o apertar a coronha de plástico da sua CAR-15 com tanta força
que, se estivesse prestando atenção, ficaria preocupado com a possibilidade de quebrá-la.
Dos dez soldados que acompanhavam o major, dois permaneciam na praça e os outros
vigiavam o perímetro da aldeia. Eles se revezavam, para que todos pudessem participar das
festividades noturnas. Um dos soldados usou uma faca para acabar com o sofrimento da menina.
A filha do meio tinha no máximo doze anos.
Kelly olhou para o céu nublado, rezando para ouvir o zumbido característico de um rotor
Huey de duas pás. Havia outros sons. O troar dos 155 na base dos fuzileiros, a leste. Jatos
passando lá em cima. Nenhum desses ruídos era suficientemente forte para abafar os gritos
agudos da criança, mas eles eram onze, Kelly estava sozinho, e mesmo que Pickett estivesse
com ele, o desequilíbrio de forças não permitiria nenhuma ação efetiva. Kelly estava armado
com um fuzil CAR-15, um pente de trinta cartuchos no lugar, outro preso com fita adesiva,
invertido, na extremidade do primeiro, e mais dois conjuntos semelhantes. Dispunha ainda de
quatro granadas de fragmentação, duas granadas de fósforo branco e duas bombas de fumaça.
Sua arma mais perigosa era o transmissor de rádio, mas já chamara duas vezes e por duas vezes
tinham respondido dizendo que aguardasse.
Era fácil dizer isso lá na base, não era?
Doze anos, no máximo. Jovem demais para passar por aquilo. Não, ninguém, de qualquer
idade, deveria passar por aquilo, pensou, mas não podia fazer nada sozinho, e de nada
adiantaria acrescentar sua morte à daquela família.
Como podiam proceder daquela forma? Não eram homens, soldados, guerreiros profissionais
como ele próprio? Alguma coisa podia ser importante a ponto de justificar aquelas atrocidades?
O que estava vendo era impossível. Não podia ser. Mas era. À distância, a artilharia continuava
a martelar alguma possível rota de suprimentos. Uma esquadrilha de aviões passou no céu,
talvez tropas de invasão dos fuzileiros se preparando para desembarcar em um objetivo
qualquer, provavelmente uma floresta deserta, porque aquele país era constituído
principalmente de florestas desertas. Ali, onde estava, era diferente, havia até inimigos, mas
isso não adiantava muito, adiantava? Aqueles camponeses tinham apostado a própria vida e a de
suas famílias em alguma coisa que não estava funcionando, e talvez o major pensasse que estava
sendo misericordioso ao eliminar apenas uma família com requintes de crueldade em vez de
acabar com toda a aldeia da forma mais eficiente possível. Além do mais, homens mortos não
falam, e aquela era uma história que o major queria que fosse repetida. O terror era uma coisa
que eles sabiam usar muito bem.
O tempo se arrastava inexoravelmente, e afinal a menina de doze anos parou de gritar e foi
posta de lado. A terceira e última filha tinha oito anos, observou Kelly de binóculo. A
arrogância dos filhos da mãe, fazendo uma grande fogueira. Não queriam que ninguém perdesse
o espetáculo.
Oito anos! Não tinha idade suficiente nem para gritar direito. Observou a mudança da guarda.
Dois dos soldados deixaram o perímetro e se dirigiram para o centro da ville. Aquilo era a
diversão dos homens do grupo de ação política, que não podiam fazer como Kelly e passar
alguns dias de licença em Formosa. O homem que estava mais próximo de Kelly ainda não
tivera oportunidade de participar e provavelmente não teria. O chefe da aldeia não tinha filhas
suficientes, ou talvez esse soldado estivesse na lista negra do major. Fosse qual fosse a razão,
tinha ficado chupando dedo e devia estar muito frustrado. Olhava agora para o centro da aldeia,
onde os companheiros se divertiam com algo que lhe fora negado. Talvez da próxima vez... mas
pelo menos podia olhar... e era o que estava fazendo, pensou Kelly, esquecendo-se do dever
pela primeira vez naquela noite.
Kelly estava na metade do caminho antes de se dar conta do fato, rastejando o mais
silenciosamente que podia, auxiliado pelo terreno úmido. Mantinha o corpo colado ao solo, ao
mesmo tempo movido e atraído pelos gemidos que vinham das proximidades da fogueira. /
Devia ter feito isso antes, Johnnie-boy.
Antes não era possível.
Ainda não é possível, droga!
Foi então que o destino interveio na forma do ruído de um Huey, provavelmente mais de um,
vindo do sudeste. Kelly foi o primeiro a ouvir, enquanto se levantava cautelosamente atrás do
soldado, com a faca na mão. Eles ainda não tinham ouvido quando Kelly atacou, cravando a
faca na nuca do homem, no lugar onde a espinha se encontra com a base do cérebro. Torceu a
faca, quase como se fosse um saca-rolha, enquanto tapava com a outra mão a boca do soldado.
Funcionou. O corpo ficou flácido em suas mãos e ele o depositou suavemente no chão, não por
qualquer sentimento nobre, mas para não fazer barulho.
Mas havia outro barulho no ar. Os helicópteros estavam próximos demais para não serem
notados. O major levantou a cabeça, olhou para sudeste e reconheceu imediatamente o perigo.
Gritou uma ordem para que os homens se agrupassem e deu um tiro na cabeça da menina assim
que um dos soldados saiu de cima dela.
O grupo levou apenas alguns segundos para se reunir em formação. O major fez uma
contagem rápida e automática, deu pela falta de um soldado e olhou na direção de Kelly, mas
tinha passado muito tempo Olhando para o fogo e tudo o que pôde ver foi um vago movimento.
— Um, dois, três — contou Kelly, depois de puxar o pino de uma das granadas. Os rapazes
do 39 SOG (Grupo de Operações Especiais) preparavam pessoalmente os detonadores; não
confiavam nas velhinhas da fábrica. Aqueles detonadores duravam exatamente cinco segundos, e
no "três" a granada foi lançada. A superfície metálica refletiu a luz alaranjada da fogueira. Foi
cair no meio do grupo de soldados. Um arremesso quase perfeito. Quando tocou o solo, Kelly já
tinha se deitado de bruços. Ouviu o grito de alarme, que veio tarde demais para ajudar alguém.
A granada matou ou feriu sete dos dez homens. Kelly se levantou com a carabina e derrubou o
oitavo com três tiros na cabeça. Seus olhos nem se detiveram para ver o sangue que jorrava,
porque esta era a sua profissão, não um passatempo. O major ainda estava vivo, deitado no
chão, mas tentando apontar a pistola até levar cinco balas no peito. A morte dele transformou a
noite num sucesso. Agora, tudo o que Kelly tinha a fazer era escapar vivo. A revolta o fizera
cometer uma tolice e agora tinha que aguentar as consequências.
Kelly correu para a direita, segurando a carabina acima da cabeça. Havia pelo menos dois
soldados norte-vietnamitas atrás dele, zangados e confusos demais para baterem em retirada,
como seria normal. O primeiro helicóptero chegou e jogou uma granada luminosa, o que fez
Kelly soltar uma praga, porque no momento a escuridão era sua melhor amiga. Localizou e
abateu um dos soldados inimigos, descarregando a arma no vulto em movimento. Ainda
correndo para a direita, recarregou a arma e começou a procurar o último soldado, mas seus
olhos foram atraídos para o centro da ville. Alguns camponeses pareciam ter sido feridos pela
granada, mas não podia se preocupar com isso agora. Seus olhos se fixaram nas vítimas. Pior,
foram ofuscados pelo fogo e, quando se virou para continuar a fuga, a imagem da fogueira
continuou em seus olhos, alternando entre imagens alaranjadas e azuis que estragavam sua visão
noturna. Podia ouvir o ruído dos rotores de um Huey preparando-se para pousar perto da ville,
O barulho era suficiente para abafar os gritos dos camponeses. Escondeu-se atrás de um casebre
e manteve os olhos longe da fogueira, piscando-os repetidamente para ver se a visão melhorava.
Havia ainda um soldado inimigo em algum lugar, e certamente não estaria correndo em direção
ao helicóptero. Kelly continuou a se deslocar para a direita, agora mais devagar. Havia um
espaço de uns dez metros entre aquele casebre e o seguinte, como um corredor iluminado pela
fogueira, Olhou primeiro e depois começou a correr, mantendo a cabeça baixa. Percebeu uma
sombra em movimento e quando se virou para olhar, tropeçou em alguma coisa e caiu.
Uma bala se cravou no chão a seu lado; não conseguiu ver de onde tinha vindo o tiro. Rolou
para a esquerda para evitar os disparos, mas o movimento o levou para mais perto da luz.
Agachou-se e recuou de costas até um dos casebres, os olhos varrendo freneticamente a cena em
busca dos clarões dos disparos. Ali! Levantou o CAR-15 e apertou o gatilho no exato momento
em que duas balas calibre 7.62 o atingiram no peito. O impacto o fez cambalear e mais dois
tiros destruíram a a arma em suas mãos. Quando voltou a si, estava deitado de costas e o
silêncio voltara à aldeia. Tentou levantar-se, mas a dor foi muito forte. Então sentiu no peito a
pressão de um cano de fuzil.
— Aqui, tenente! — E logo depois: — Médico!
O mundo se moveu quando o arrastaram para perto da fogueira. A cabeça de Kelly pendeu
para a esquerda enquanto ele observava os soldados se espalharem pela ville. Dois deles
desarmaram e examinaram o soldado norte-vietnamita.
— O filho da mãe ainda está vivo — comentou um deles.
— Ah, está? — O outro se afastou do corpo da menina de oito anos, encostou o cano do seu
rifle na testa do soldado inimigo e disparou.
— Droga, Harry!
— Parem com isso! — berrou o tenente.
— Veja o que eles fizeram, senhor! — gritou Harry de volta, ajoelhando-se para vomitar.
— Qual é o seu problema? — perguntou o médico a Kelly, que não conseguiu responder. —
Merda! — exclamou. — Tenente, este deve ser o sujeito que nos chamou!
Mais um rosto apareceu, provavelmente o do tenente que comandava a equipe azul, e o
distintivo no ombro era da 1ª Divisão de Cavalaria.
— Tenente, está tudo limpo. Completando a inspeção do perímetro! — gritou uma voz mais
velha.
— Todos mortos?
— Afirmativo, senhor!
— Quem é você? — perguntou o tenente, olhando de novo para baixo. — Malditos fuzileiros!
— Sou da Marinha! — disse Kelly, com esforço, respingando um pouco de sangue no médico.

— O quê? — perguntou Sandy.


Kelly arregalou os olhos. Levou a mão direita ao peito, enquanto a cabeça girava para
examinar o quarto. Sandy O'Toole estava no canto, lendo um livro sob a claridade da lâmpada
de mesa.
— O que está fazendo aqui?
— Ouvindo seu pesadelo — explicou a moça. — É a segunda vez. Sabe de uma coisa? Você
devia...
— Sim, eu sei.
10

PATOLOGIA

ESTOU AQUI

— A sua arma está no banco de trás — disse o sargento Douglas. — Descarregada. De agora
em diante, conserve-a assim.
— Alguma coisa sobre a morte de Pam? — perguntou Kelly, da cadeira de rodas.
— Temos algumas pistas — respondeu Douglas, sem se dar ao trabalho de disfarçar a
mentira.
Isso dizia tudo, pensou Kelly. Alguém deixara vazar para os jornais a informação de que Pam
tinha sido presa várias vezes como prostituta e o caso deixara de ser importante.
Sam levou o Scout pessoalmente até a entrada do hospital, na Wolfe Street. O estragos na
lataria foram consertados e o vidro da janela do lado do motorista tinha sido trocado. Kelly saiu
da cadeira de rodas e deu uma boa olhada no Scout. A porta e a coluna adjacente tinham
quebrado com a força do tiro, salvando-lhe a vida. Má pontaria de alguém, na verdade, depois
de uma tocaia cuidadosa e eficaz... ajudada pelo fato de que não se dera ao trabalho de olhar no
espelho retrovisor. Como pudera ser tão descuidado?, perguntou-se pela milésima vez. Uma
coisa simples, algo que sempre fizera questão de enfatizar para os calouros do 3- SOG: cuidado
com a retaguarda, porque pode haver alguém seguindo você. Um conselho tão fácil de lembrar...
Mas isso era coisa do passado, e o passado não podia ser mudado.
— Vai voltar para a sua ilha, John? — perguntou Rosen. Kelly fez que sim com a cabeça.
— Vou. Tenho um trabalho à minha espera e preciso recuperar a forma.
— Quero vê-lo de volta daqui a, hum, duas semanas, para uma revisão.
— Sim, senhor. Está combinado — disse Kelly. Agradeceu a Sandy O'Toole e foi
recompensado com um sorriso. Nos últimos dezoito dias, tinham ficado quase amigos. Quase?
Talvez já fossem amigos, se Kelly se permitisse pensar nesses termos. Entrou no carro e
colocou o cinto de segurança. As despedidas nunca tinham sido o seu forte. Sorriu para eles,
cumprimentou-os e foi embora, dobrando à direita em direção à Mulberry Street, sozinho pela
primeira vez desde que chegara ao hospital.
Finalmente. Ao seu lado, no banco do carona onde vira Pam com vida pela última vez, levava
um envelope de papel pardo onde estava escrito, na letra apressada de Sam Rosen:
Prontuário/Despesas.
— Meu Deus — murmurou Kelly, rumando para oeste. Não estava observando apenas o
trânsito. A cidade nunca mais seria a mesma para John Kelly. As ruas eram uma mistura curiosa
de atividade e ócio; seus olhos varreram a paisagem em um hábito que se permitira esquecer,
fixando-se em pessoas cuja inatividade parecia trair um propósito. Levaria tempo, pensou, para
aprender a distinguir os lobos dos cordeiros. O movimento de carros era pequeno e, de qualquer
maneira, as pessoas não gostavam de passar muito tempo naquelas ruas. Kelly olhou à direita e
à esquerda para ver que outros motoristas mantinham os olhos fixos na rua à frente, ignorando
tudo o que se passava à volta, como ele próprio costumava fazer, parando nervosamente nos
sinais vermelhos que não podiam avançar com segurança e pisando com força no acelerador
quando o sinal abria, na esperança de que pudessem deixar tudo aquilo para trás, de que os
problemas permanecessem ali e jamais se espalhassem para os bairros onde moravam as
pessoas de bem. De certa forma, era o Vietnã ao contrário, não era? No Vietnã, as coisas ruins
ficavam fora da cidade e você queria evitar que elas entrassem. Kelly percebeu que voltara para
casa para ver o mesmo tipo de loucura e o mesmo tipo de derrota em um tipo bem diferente de
lugar. E tinha sido tão tolo e tão culpado quanto qualquer um.
O Scout dobrou à esquerda, dirigindo-se para o sul. Passou por outro hospital, um edifício
grande, pintado de branco. Centro financeiro, bancos e escritórios, palácio da justiça,
prefeitura, uma parte da cidade onde os homens de bem chegavam de manhã e iam embora
depressa ao anoitecer, todos juntos, porque se sentiam mais seguros no meio da multidão. Bem
policiada, porque sem essas pessoas e o seu dinheiro a cidade certamente morreria. Ou algo
parecido. Talvez não fosse uma questão de vida ou de morte, no final das contas, mas
simplesmente de velocidade.
Dois quilômetros e meio, pensou Kelly. Tanto assim? Teria que consultar um mapa. De
qualquer forma, uma distância perigosamente pequena entre essas pessoas e o que temiam.
Parado em um cruzamento, podia ver bem longe, porque as ruas da cidade, como aceiros, eram
túneis estreitos e compridos. O sinal abriu e ele prosseguiu.
Vinte minutos depois, chegou à marina, onde encontrou o Springer no lugar de costume. Tirou
a bagagem do carro e subiu a bordo. Dez minutos depois, os motores a diesel tinham sido
ligados, o ar-condicionado também, e estava de volta à sua pequena bolha de civilização,
pronto para navegar. Liberado dos analgésicos e sentindo necessidade de uma cerveja para
relaxar — apenas um retorno simbólico à realidade —, mesmo assim resolveu deixar o álcool
de lado. O ombro esquerdo ainda estava desagradavelmente rígido, apesar de fazer quase uma
semana que voltara a usá-lo. Deu várias voltas na sala de estar, balançando os braços em
círculos largos e fazendo uma careta por causa da dor do lado esquerdo, antes de subir ao
convés para se fazer ao mar. Murdock saiu para observá-lo, ficou parado na porta da oficina,
sem dizer nada. A aventura de Kelly tinha sido publicada nos jornais, mas não seu envolvimento
com Pam, que por alguma razão não havia chegado ao conhecimento dos repórteres. Os tanques
de combustível estavam cheios e todos os sistemas do barco pareciam estar funcionando, mas
não encontrou nenhuma conta pelos serviços da marina.
Kelly teve dificuldade com as amarras porque o braço esquerdo se recusava a responder aos
comandos do cérebro com a costumeira eficiência. Finalmente, as amarras foram todas
recolhidas e o Springer deixou o cais. Depois de sair da marina, Kelly foi para o posto de
controle interno, estabelecendo um curso direto para fora da baía no conforto do ar
condicionado e na segurança da cabine fechada. Só depois de deixar o canal de navegação, uma
hora mais tarde, foi que tirou os olhos da água. Um refrigerante o ajudou a engolir dois
comprimidos de Tylenol. Era o único remédio que se permitira tomar nos últimos três dias.
Recostou-se na cadeira do capitão e abriu o envelope que Sam deixara para ele, enquanto o
piloto automático mantinha o rumo sul.
Apenas as fotografias foram deixadas de lado. Vira uma delas, o que era suficiente. Um
bilhete manuscrito — cada página no envelope era uma fotocópia — demonstrava que o
professor de patologia havia obtido as cópias com seu colega, o médico examinador do estado,
sugerindo que Sam deveria ser cuidadoso ao utilizá-las. Kelly não conseguiu ler a assinatura.
B* Os quadradinhos "morte suspeita" e "homicídio" na folha de abertura estavam ambos
assinalados. A causa da morte, dizia o relatório, tinha sido estrangulamento manual; havia uma
série de marcas finas e profundas no pescoço da vítima. A gravidade dessas marcas sugeria que
a morte cerebral ocorrera por privação de oxigênio antes mesmo que o esmagamento da laringe
impedisse a chegada de ar aos pulmões. Estrias na pele sugeriam que o instrumento usado tinha
sido provavelmente um cadarço de sapato; pelos hematomas na garganta, aparentemente
causados pelos nós dos dedos de um homem, o assassino cometera o ato quando a vítima estava
deitada de costas. Em outras cinco páginas datilografadas em espaço um, o relatório explicava
que a vítima havia sido submetida a vários tipos de violência antes de ser assassinada, tudo
descrito em pormenores na fria linguagem forense. Um relatório em separado informava que a
moça fora estuprada; a região genital mostrava lacerações e outros sinais de violência. Uma
quantidade anormalmente grande de sêmen tinha sido encontrada na vagina, o que mostrava que
o assassino não fora o único a estuprar a vítima. ("Tipos sanguíneos O+, O- e AB-, de acordo
com o exame sorológico anexo.") Cortes e hematomas encontrados nas mãos e antebraços eram
descritos como "tipicamente defensivos". Pam lutara pela vida. Seu maxilar estava fraturado,
juntamente com três outros ossos, entre eles uma fratura exposta do cúbito esquerdo. Kelly teve
que pôr o relatório de lado e olhar para o horizonte antes de continuar a leitura. Suas mãos não
estavam trêmulas e ele não disse uma só palavra, mas precisava afastar os olhos por um
momento da crua terminologia médica.
"Sam, como pode ver pelas fotos", dizia um bilhete escrito a mão, "isto foi feito por pessoas
muito doentes. A moça deve ter sido torturada durante várias horas. Em um ponto, porém, o
relatório é omisso. Observe a foto n9 6. O cabelo dela foi penteado ou escovado, quase com
toda a certeza depois que estava morta. O patologista que a examinou não comentou nada a
respeito. Ele é apenas um garoto. (Alan estava viajando quando o corpo chegou, senão teria
cuidado do caso pessoalmente.) Parece um pouco estranho, mas a foto não deixa margem a
dúvidas. É engraçado como se pode deixar passar uma coisa tão óbvia. Provavelmente era a
primeira vez que o rapaz tinha que cuidar de um caso tão escabroso, e se preocupou apenas com
os detalhes mais importantes. Ouvi dizer que você conhecia a moça. Sinto muito, meu amigo."
Estava assinado "Brent", de forma mais legível do que na folha de abertura. Kelly colocou as
folhas de volta no envelope.
Abriu uma gaveta do painel e pegou uma caixa de munição .45 ACP.
Carregou dois pentes para a automática, que guardou de volta na gaveta. Havia poucas coisas
mais inúteis que uma pistola descarregada. Em seguida, foi até a cozinha e pegou a maior lata
que conseguiu encontrar nas prateleiras. Voltando ao posto de controle, sentou-se, segurou a lata
com a mão esquerda e continuou a fazer o que vinha fazendo há quase uma semana, usando a lata
como um haltere, movimentando-a para cima e para baixo, para a frente e para trás, dando boas-
vindas à dor, saboreando-a enquanto os olhos varriam a superfície do mar.
— Nunca mais, Johnnie-boy — disse em voz alta, como se estivesse falando com outra
pessoa. — Não vamos cometer mais nenhum erro. Nunca mais.

O C-141 aterrissou na Base Aérea Pope, perto de Fort Bragg, Carolina do Norte, pouco
depois da hora do almoço, encerrando um voo de rotina que começara a mais de doze mil
quilômetros de distância. O pouso do jato de transporte de quatro turbinas não foi nada suave. A
tripulação estava cansada, apesar das paradas, e não havia necessidade de nenhum cuidado
especial com os passageiros. Em voos como aquele, raramente os passageiros estavam vivos.
Os soldados que voltavam do teatro de operações costumavam usar os "pássaros da liberdade",
quase sempre aviões fretados das linhas comerciais em que as aeromoças distribuíam sorrisos e
bebidas de graça durante a demorada viagem de retorno ao mundo real. Tais prazeres não eram
necessários nos voos para Pope. A tripulação comia rações padrão da força aérea e, ao
contrário do que era comum em outras rotas, quase não brincava em serviço.
Chegando ao final da pista de pouso, a aeronave entrou em uma pista secundária, enquanto a
tripulação se espreguiçava. O piloto, um capitão, conhecia a rotina de cor, mas mesmo assim
havia um jipe pintado de cores berrantes à sua espera, e ele o seguiu até o centro de recepção.
Fazia muito tempo que ele e o resto da tripulação tinham deixado de se preocupar com o que
faziam. Era um trabalho, um trabalho necessário, e ponto final, pensaram todos ao deixar o
avião para o descanso regulamentar, o que significaria, depois de um breve relatório dos
contratempos que porventura tivessem ocorrido durante a viagem de trinta horas, uma ida ao
clube de oficiais para tomar uns drinques, em seguida um banho e uma noite de sono na base.
Nenhum deles olhou para trás. Tornariam a ver a aeronave mais cedo do que gostariam.
A natureza rotineira da viagem era uma contradição. Na maioria das guerras anteriores, os
americanos tinham sido enterrados nas proximidades do campo de batalha, como podiam
testemunhar os cemitérios americanos na França e em outros países. No caso do Vietnã, porém,
era diferente. Era como se as autoridades compreendessem que nenhum americano gostaria de
ficar ali, vivo ou morto, e todos os corpos recuperados eram enviados para casa. Depois de
passar por uma unidade de processamento nos arredores de Saigon, cada corpo seria agora
processado novamente antes de ser despachado para a cidade que enviara aquele jovem para
morrer em uma terra distante. As famílias tiveram tempo suficiente para decidir onde seria o
funeral, e as instruções correspondentes esperavam pelos corpos, identificados nominalmente no
manifesto da aeronave.
Os agentes funerários civis aguardavam pelos corpos no centro de recepção. Aquela era uma
especialidade que não existia nas forças armadas. Um oficial uniformizado estava sempre
presente para confirmar a identificação, pois isso era responsabilidade das forças armadas,
assegurar que o corpo certo fosse enviado para a família certa, embora os caixões que deixavam
aquele lugar em geral estivessem selados. Os ferimentos recebidos no campo de batalha, mais
os estragos causados pelo clima tropical até que o corpo fosse recuperado, não eram algo que
as famílias quisessem ou precisassem ver nos entes queridos. Em consequência, a identificação
dos restos mortais não era algo que pudesse ser verificado mais tarde, e era exatamente por esse
motivo que os militares levavam a tarefa muito a sério.
Era um aposento espaçoso, onde muitos corpos podiam ser processados simultaneamente,
mas o movimento já tinha sido bem maior. Os homens que trabalhavam ali não estavam acima
das piadas de humor negro, e alguns chegavam a escutar as previsões do tempo naquela parte do
mundo para tentar prever em que estado chegariam os corpos na semana seguinte. Bastava o
cheiro para manter afastados os curiosos; raramente se viam por ali oficiais superiores, e muito
menos civis do departamento de defesa, cujo equilíbrio poderia ficar seriamente comprometido
caso fossem expostos àquelas cenas. Entretanto, as pessoas se acostumam com odores, e o dos
produtos químicos usados para conservar os cadáveres era muito melhor do que outros cheiros
associados à morte.
Um daqueles corpos, o do especialista de quarta classe Duane Kendall, tinha vários
ferimentos no tronco. Ele chegara a ser atendido em um hospital de campanha, como o agente
funerário pôde observar. Algumas das marcas refletiam claramente o trabalho desesperado de
um cirurgião de combate; incisões que teriam deixado histérico o chefe de serviço de um
hospital civil eram muito menos vívidas que as marcas deixadas pelos fragmentos de uma mina
terrestre. O cirurgião passara talvez vinte minutos tentando salvar a vida daquele homem,
pensou o agente funerário, imaginando por que teria fracassado. Pela localização e tamanho das
incisões, chegou à conclusão de que o responsável provavelmente tinha sido o fígado. Era
impossível alguém viver sem o fígado, por melhor que fosse o médico. Entretanto, o homem
estava mais interessado numa etiqueta branca localizada entre o braço direito e o peito, e que
confirmava a marca aparentemente aleatória do lado de fora do recipiente em que chegara o
corpo.
— Identificação confirmada — disse o agente funerário para o capitão que estava fazendo a
ronda, acompanhado por uma prancheta e um sargento. O oficial comparou os dados sobre o
morto com os registros que tinha em seu poder e se afastou com um aceno de cabeça, deixando o
agente funerário entregue a seu trabalho.
Havia a quantidade usual de tarefas a serem executadas e o agente funerário se dedicou a elas
sem pressa nem indolência, levantando a cabeça para certificar-se de que o capitão se
encontrava do outro lado da sala. De repente, puxou uma linha dos pontos feitos por outro
agente funerário do outro lado do mundo. Os pontos se desfizeram quase instantaneamente,
permitindo que enfiasse a mão no interior do cadáver e removesse quatro saquinhos de pó
branco, que guardou na sua maleta antes de costurar novamente o corpo de Duane Kendall. Era a
terceira e última vez que fazia isso naquele dia. Depois de passar meia hora cuidando de mais
um corpo, chegou ao fim da jornada de trabalho. O agente funerário caminhou até o carro, um
Mercury Cougar, e saiu da base. Parou em um supermercado Winn-Dixie para comprar um pão
de forma, e na saída do supermercado colocou algumas moedas em um telefone público.
— Sim? — disse Henry Tucker, atendendo na primeira vez que o telefone tocou.
— Oito.
O telefone foi desligado.
— Ótimo — disse Tucker, na verdade para si mesmo, enquanto colocava o fone no gancho.
Aquele homem recebera oito quilos. O outro recebera sete. Um não conhecia a existência do
outro, e as entregas eram feitas em dias diferentes da semana. As coisas começariam a
andar depressa agora que os problemas de distribuição estavam quase resolvidos.
A aritmética era simples. Cada quilo tinha mil gramas. Cada quilo seria diluído com
substâncias atóxicas, como lactose, que os amigos conseguiam em uma fábrica de derivados do
leite. Depois que os dois pós estivessem bem misturados, para garantir a homogeneidade do
produto, o suprimento seria dividido por outras pessoas em pequenas "trouxas", para
comercialização. A qualidade e boa reputação do produto garantiam um preço ligeiramente
maior que o normal, que se refletia na quantia que os amigos brancos lhe pagavam no atacado.
Em pouco tempo estaria diante de um problema de escala. A operação começara devagar,
pois Tucker era um homem cauteloso e não queria despertar a cobiça de ninguém com o vulto
dos seus negócios. Breve, , porém, não teria mais como esconder a verdade. Seu suprimento de
heroína pura era muito maior do que os sócios desconfiavam. No momento, estavam satisfeitos
com a excelente qualidade do produto, e pretendia revelar-lhes aos poucos o volume do
suprimento, sem fornecer nenhuma pista quanto ao método de envio, pelo qual se congratulava
regularmente. A simplicidade e elegância do processo eram assombrosas, mesmo para ' ele. De
acordo com as estimativas do governo (gostava de acompanhar essas coisas), a quantidade de
heroína contrabandeada da Europa, através da conexão "França" ou "Sicília", pois o governo
não parecia ter chegado a um consenso quanto à terminologia a ser empregada, era de
aproximadamente uma tonelada por ano. A tendência, na opinião de Tucker, era de que a
demanda ultrapassasse em muito esse número, já que o consumo de drogas estava ficando cada
vez mais popular nos Estados Unidos. Se conseguisse obter uns meros vinte quilos da droga por
semana (e seu método permitiria atingir essa meta sem muita dificuldade), conseguiria vender
mais do que todos os fornecedores europeus juntos, e isso sem ter que se preocupar com os
fiscais da alfândega. Tucker montara sua organização com um olho na questão da segurança.
Para começar, nenhum dos seus auxiliares diretos era viciado em drogas. Consumir qualquer
tipo de droga significava a morte, um fato que demonstrara logo de saída, da forma mais simples
e objetiva. Apenas seis membros da sua equipe trabalhavam no Vietnã. Dois adquiriam a droga
no mercado local. A segurança da operação era garantida da forma de costume: grandes somas
em dinheiro pagas as pessoas certas. Os quatro agentes funerários encarregados de despachar a
mercadoria também ganhavam muito bem e eram pessoas confiáveis, escolhidas a dedo. A
Força Aérea dos Estados Unidos cuidava do transporte, reduzindo os custos e dores de cabeça
do que era, em geral, a parte mais complexa e perigosa do processo de importação. Os dois
agentes funerários que recebiam a droga também eram homens cautelosos. Mais de uma vez,
segundo eles próprios, tinham sido forçados a deixar a heroína nos corpos, que foram
sepultados com ela. Isso implicava um certo prejuízo, é claro, mas era melhor do que colocar
em risco a segurança da operação; os lucros eram tão grandes que a perda de uma remessa ou
outra não chegava a fazer muita diferença. Além disso, aqueles dois sabiam o que aconteceria se
sequer pensassem em desviar alguns quilos de heroína para vender o produto por conta própria.
Daquele ponto em diante, era simplesmente uma questão de transportar a heroína de carro
para um local conveniente, o que era feito por um auxiliar de confiança, que jamais excedia o
limite de velocidade. Fazer negócios na baía, pensou Tucker, entre dois goles de cerveja,
assistindo a um jogo de beisebol, fora seu golpe de mestre. Além de todas as outras vantagens
que o local oferecia, tinha feito os novos sócios acreditarem que as drogas eram
contrabandeadas a bordo de navios que entravam na baía de Chesapeake a caminho do porto de
Baltimore (o que consideravam como uma estratégia genial), quando na verdade recebia a droga
do seu emissário em um local combinado. Angelo Vorano era uma prova de que eles
acreditavam piamente naquela teoria; se não fosse assim, não teria comprado um pequeno barco
a vela e se oferecido para ir buscar uma remessa. Tinha sido fácil convencer Eddie e Tony de
que Angelo os denunciara à polícia.
Com um pouco de sorte, conquistaria todo o mercado de heroína da Costa Leste e o manteria
enquanto os americanos continuassem a morrer no Vietnã. Também era tempo, disse para si
mesmo, de fazer planos para o dia, ainda distante, em que as tropas voltassem para casa. Nesse
ínterim, precisava descobrir um meio de expandir o sistema de distribuição. O sistema de que
dispunha no momento, embora estivesse funcionando a contento e tivesse chamado a atenção dos
novos sócios, estava rapidamente ficando ultrapassado. Era muito pequeno para suas ambições
e em breve teria que ser reestruturado. Entretanto, uma coisa de cada vez.

— OK, é oficial — afirmou Douglas, colocando a pasta na mesa e olhando para o superior.
— O que é oficial? — perguntou o tenente Ryan.
— Em primeiro lugar, ninguém viu nada. Segundo, ninguém conhecia aquele cafetão para
quem ela trabalhava. Terceiro, ninguém sabe quem era ela. O pai bateu com o telefone depois de
dizer que não falava com a filha há quatro anos. O namorado não viu porra nenhuma, antes ou
depois de atirarem nele.
O detetive se sentou.
— E o prefeito não está mais interessado — observou Ryan.
— Sabe, Em, não me importo de participar de uma investigação sigilosa, mas ela não vai
aparecer no meu currículo. E se acharem que estou trabalhando pouco? Isso não vai atrapalhar
minha promoção?
— Muito engraçado, Tom.
Douglas sacudiu a cabeça e olhou pela janela.
— Já pensou se tiver sido mesmo a Dupla Dinâmica? — perguntou. A dupla de assaltantes
que usava uma escopeta atacara de novo na noite anterior, desta vez assassinando um advogado
de Essex. O crime fora testemunhado por alguém que estava dentro de um carro a cinquenta
metros de distância e que confirmava que os bandidos eram dois, o que não chegava a ser
propriamente uma novidade. Havia também uma tese muito popular na polícia de que o
assassinato de advogados devia ser considerado um ato de utilidade pública, mas naquele
momento nenhum dos dois detetives estava com vontade de brincar.
— Até parece que você acha isso possível — disse Ryan.
Os dois, naturalmente, sabiam que não era verdade. Aqueles dois eram meros ladrões.
Cometeram vários assassinatos, e por duas vezes tinham dirigido o carro da vítima por alguns
quarteirões, mas em ambos os casos se tratava de um carro esporte de luxo, e provavelmente
estavam a fim, apenas, de um pequeno passeio em um belo automóvel. A polícia conhecia-lhes a
estatura, a cor e pouco mais do que isso. Entretanto, eles estavam atrás de dinheiro, e quem quer
que tivesse matado Pamela Madden queria mandar um recado a alguém; ou, então, estavam
diante de um novo tarado sexual, uma possibilidade que tomava ainda mais complicada a vida
já extenuante dos dois detetives.
— Estávamos quase lá, não estávamos? — comentou Douglas. — Aquela garota era uma
testemunha. Ela podia nos fornecer nomes e descrições.
— Mas nós só soubemos que ela existia depois que aquele cabeça-dura estragou tudo —
disse Ryan.
— Agora, ele sai do caso e nós voltamos à estaca zero — lamentou-se Douglas, pegando a
pasta e voltando para sua mesa.

Já estava escuro quando Kelly lançou as amarras do Springer. Levantou a cabeça para
observar um helicóptero que passava, provavelmente a serviço da base aeronaval que ficava ali
perto. Pelo menos, voava em linha reta, como se tivesse um destino certo. O ar estava pesado,
úmido e quente. Dentro do parapeito estava ainda mais abafado. Levou mais de uma hora para o
ar-condicionado começar a fazer efeito. Pela segunda vez em um ano, a "casa" parecia mais
vazia do que antes, os cômodos automaticamente maiores sem um segunda pessoa para ajudar a
ocupar o espaço. Kelly andou ao acaso por uns quinze minutos, até que se surpreendeu olhando
para as roupas de Pam. Então se deu conta de que estava procurando por alguém que não estava
mais ali. Pegou as peças de roupa e amontoou-as em cima da cômoda que pertencera a Tish e
que, talvez, viesse a pertencer a Pam. Talvez o mais triste de tudo fosse o número reduzido de
peças. Os shorts, a frente-única, algumas peças mais íntimas, a blusa de flanela que ela usara
para dormir, os sapatos muito gastos no topo da pilha. Tão poucas lembranças!
Kelly sentou-se na beira da cama, olhando para as roupas de Pam, Quanto tempo havia
durado? Três semanas? Só isso? Não era uma questão de contar os dias no calendário, porque o
tempo na verdade não era medido daquela forma. O tempo era algo que enchia os espaços
vazios da vida, e as três semanas que passara com Pam tinham sido mais longas e profundas do
que todo o tempo que decorrera desde a morte de Tish. Mas isso acontecera há muito tempo. A
estada no hospital lhe parecia um mero piscar de olhos, mas era como se fosse um muro entre a
parte mais preciosa de sua vida e o que existia agora. Podia aproximar-se do muro e olhar para
o passado, mas nunca mais poderia estender a mão e tocá-lo. A vida podia ser cruel e a
memória podia ser uma tortura, uma lembrança irônica da felicidade que desfrutara e poderia
ainda estar desfrutando se tivesse agido de outra forma. Pior que tudo, o muro entre o que era e
o que poderia ter sido fora construído por ele próprio, da mesma forma como momentos antes
empilhara as roupas de Pam porque não serviam mais para nada. Podia fechar os olhos e vê-la.
No silêncio, podia ouvi-la, mas não podia tocá-la nem sentir o seu perfume.
Estendeu a mão e alisou a blusa de flanela, pensando na forma como a desabotoara
desajeitadamente para encontrar o seu amor, mas agora não passava de um pedaço de pano
vazio. Pela primeira vez desde que soubera da morte de Pam, Kelly começou a chorar. O corpo
estremeceu com a realidade da perda; sozinho entre as paredes de concreto, gritou o nome da
moça, rezando para que de algum modo pudesse ouvi-lo e perdoá-lo pela estupidez que
cometera. Talvez agora estivesse em paz. Rezou para que Deus compreendesse que Pam nunca
tivera uma oportunidade, que reconhecesse a bondade do seu caráter e a julgasse com
misericórdia, mas isso era um mistério cujas soluções estavam totalmente fora do seu alcance.
Os olhos de Kelly estavam limitados pelas paredes do quarto e retornavam involuntariamente à
pilha de roupas.
Os miseráveis não tinham nem mesmo permitido ao corpo da moça a dignidade de estar
resguardado dos elementos e da curiosidade mórbida dos homens. Eles queriam que todos
soubessem que a haviam possuído e jogado fora como um resto de comida. Pam Madden não
tinha sido nada para eles, a não ser, talvez, um instrumento a ser usado em vida, e talvez na
morte, para demonstrar sua onipotência. Por importante que tivesse sido para ele, Kelly, nada
significara para aqueles bandidos. Uma demonstração: desafie-nos e sofrerá as consequências.
E se os outros ficassem sabendo, melhor. Tal era a dimensão do orgulho que sentiam.
Kelly deitou-se na cama. Sentia-se exausto depois de um dia de movimento após passar tanto
tempo no hospital. Ficou olhando para o teto, com as luzes acesas, esperando que o sono o
vencesse, torcendo para sonhar com Pam, mas seu último pensamento consciente foi totalmente
diverso.
Se o seu orgulho podia matar, por que não o orgulho deles?
Dutch Maxwell chegou ao escritório às seis e quinze, como de hábito. Embora como subchefe
de operações aeronavais não pertencesse mais à hierarquia de comando, ainda era vice-
almirante e seu trabalho atual exigia que pensasse em cada aeronave da Marinha dos Estados
Unidos como se fosse sua propriedade. Assim, o item principal na pilha de papéis daquele dia
era um sumário das operações aéreas realizadas na véspera no Vietnã. Na realidade, o sumário
se referia àquele mesmo dia, mas era considerado como o dia anterior graças aos caprichos da
Linha Internacional de Data, algo que sempre lhe parecera ridículo, embora tivesse travado uma
batalha praticamente com um pé de cada lado daquela linha invisível que cortava o oceano
Pacífico.
Lembrava-se muito bem: fazia menos de trinta anos, pilotando um caça F4F-4 Wildcat do
porta-aviões Enterprise, no posto de guarda-marinha, ainda com cabelo na cabeça e uma esposa
nova em folha a esperá-lo em casa, cheio de entusiasmo e com trezentas horas de voo. Em
quatro de junho de 1942, no início da tarde, avistara três aviões de bombardeamento em
mergulho japoneses, da classe "Vai", que deviam ter seguido o resto do grupo aéreo Hiryu no
ataque ao Yorktown mas tinham se perdido e acabaram se aproximando do Enterprise. Dutch
derrubara dois deles logo depois de atacá-los de surpresa, saindo de dentro de uma nuvem. O
terceiro levara mais tempo, mas podia lembrar-se perfeitamente do reflexo do sol nas asas do
avião inimigo e dos projéteis luminosos cortando o céu, em uma tentativa inútil de afugentá-lo.
Ao pousar no porta-aviões, quarenta minutos mais tarde, reclamara para si três aviões abatidos,
ante os olhos incrédulos do comandante da esquadrilha, o que tinha sido confirmado pelas
câmeras de bordo. Da noite para o dia, o nome que aparecia na sua caneca "oficial" foi mudado
de "Winnie" — um apelido que detestava — para DUTCH, gravado na porcelana em letras
vermelho-sangue, um nome de guerra que usaria durante o resto de sua carreira.
Quatro novas missões de combate tinham contribuído com mais doze marcas na fuselagem do
seu avião, e no devido tempo passara a comandar uma esquadrilha de caças, depois um grupo
de esquadrilhas, depois um porta-aviões, depois um grupamento, até se tornar comandante das
forças aéreas da Frota do Pacífico, antes de assumir a posição atual. Se tivesse sorte, ainda
chegaria a comandante de frota. O escritório de Maxwell estava à altura de sua posição e
experiência. Na parede, à esquerda da grande escrivaninha de mogno, tinha sido pendurada uma
parte da fuselagem do F6F Hellcat que pilotara no mar das Filipinas e perto da costa do Japão.
Quinze bandeiras com o sol nascente estavam pintadas contra o fundo azul-marinho, para que
ninguém se esquecesse de que o mais velho dos aviadores da Marinha também servira em
combate, e melhor do que a maioria. A velha caneca do antigo Enterprise também estava ali,
embora não fosse mais usada para algo tão trivial como tomar café, e muito menos para guardar
lápis.
O cargo importante que ocupava devia ser motivo de permanente regozijo para Maxwell, mas
naquela manhã bateu com os olhos no relatório diário de baixas da Yankee Station. Dois
bombardeiros leves Corsair A-7A tinham sido dados como perdidos e a anotação dizia que
eram do mesmo navio e da mesma esquadrilha.
— O que sabe a respeito? — perguntou ao contra-almirante Podulski.
— Já investiguei — respondeu Casimir. — Provavelmente foi uma colisão. Anders era o
elemento líder, e o ala, Robertson, apenas um novato. Alguma coisa deu errado, mas ninguém
sabe o que foi. Não há notícia de mísseis terra-ar e estavam voando alto demais para serem
atingidos por fogo antiaéreo.
— Algum paraquedas foi avistado?
— Não. — Podulski sacudiu a cabeça. — O líder da divisão viu a bola de fogo. Só restaram
pequenos pedaços das aeronaves.
— Qual a natureza da missão?
A expressão de Cas dizia tudo.
— Um possível depósito de caminhões. O ataque prosseguiu, o alvo foi atingido mas não
foram observadas explosões secundárias.
— Quer dizer que foi tudo uma grande perda de tempo. — Maxwell fechou os olhos,
imaginando o que haveria de errado com as duas aeronaves, com a escolha da missão, com sua
carreira, com a Marinha, com o país inteiro.
— Não diga isso, Dutch. Alguém achou que era um alvo importante.
— Cas, não me venha com essa conversa logo de manhã, OK?
— Sim, senhor. O CAG, o grupo aéreo de porta-aviões, está investigando o caso e
provavelmente vai fazer alguma recomendação inócua. Em minha opinião, o culpado foi
Robertson. Ele era apenas um garoto e devia estar nervoso; era a sua segunda missão de
combate. Na certa pensou que tinha visto alguma coisa, tentou se desviar e acabou colidindo
com Anders. Como faziam parte do último elemento, ninguém viu o choque. Dutch, nós já vimos
isso acontecer antes.
Maxwell assentiu.
— O que mais?
— Um A-6 foi atingido por um míssil terra-ar ao norte de Haiphong, mas conseguiu voltar
para o porta-aviões. A façanha valeu uma condecoração tanto para o piloto como para o
controlador de voo — informou Podulski. — Fora isso, foi um dia tranquilo no mar do sul da
China. No Atlântico, nenhuma novidade. No Oriente Médio, parece que os sírios estão ficando
excitados com os novos MiG, mas ainda não nos causaram nenhum problema. Temos um
encontro com o pessoal da Grumman amanhã, e depois vamos ao Capitólio falar com nossos
valorosos servidores públicos a respeito do programa do F-14.
— O que acha do novo caça?
— Gostaria de ser jovem de novo para pilotá-lo, Dutch. — Cas sorriu. — Por outro lado,
naquela época poderíamos construir um porta-aviões com o dinheiro que ele está nos custando.
— É o progresso, Cas.
— Deve ser — concordou Podulski. — Outra coisa. Recebi um chamado de Pax River.
Parece que o seu amigo voltou pata casa. Pelo menos, o barco dele está no ancoradouro.
— Por que não me disse logo?
— Não era urgente. Ele é um civil, não é? Provavelmente dorme até as nove ou dez da manhã.
— Isso deve ser ótimo — comentou Maxwell, de cara amarrada. — Um dia desses vou
experimentar.
11

FALSIDADE

Oito quilômetros podem ser uma grande distância para ser percorrida a pé. São sempre uma
grande distância para ser percorrida a nado. São uma distância muito grande para ser percorrida
por um nadador solitário e que não se exercita há várias semanas. Kelly tomou consciência
desse fato antes de chegar à metade do caminho, mas embora a água a leste da sua ilha fosse tão
rasa que dava pé em vários lugares, não parou nem diminuiu o ritmo. Mudou as braçadas para
sobrecarregar ainda mais o lado esquerdo, considerando a dor como sinal de progresso. A
temperatura da água estava perfeita: suficientemente fria para refrescá-lo e suficientemente
morna para não roubar energia do corpo. Quando estava a um quilômetro da ilha, começou a
diminuir a velocidade, mas foi buscar novas forças em algum reservatório interno e aumentou de
novo o ritmo das braçadas até que, quando tocou a lama da margem oriental da ilha de Battery,
mal conseguia se mexer. Instantaneamente, os músculos ficaram duros e Kelly teve que fazer um
grande esforço para se pôr de pé e começar a andar. Foi então que viu o helicóptero. Já o ouvira
duas vezes enquanto estava nadando, mas não prestara atenção. Estava muito acostumado com
helicópteros; para ele, o som dos rotores era como o zumbido de um inseto. Entretanto, não era
comum que um helicóptero pousasse em sua praia, e caminhou na direção do aparelho até que
uma voz vinda do parapeito o fez mudar de ideia.
— Aqui, Kelly!
Deu meia-volta. A voz era familiar e, depois de esfregar os olhos, deparou-se com o uniforme
branco de um oficial de marinha de alta patente, a julgar pelas dragonas douradas que faiscavam
ao sol da manhã.
— Almirante Maxwell! — Kelly ficou satisfeito com a visita, mas suas pernas estavam sujas
de lama. — Devia ter me avisado com antecedência, senhor.
— Eu bem que tentei. — Maxwell aproximou-se e apertou-lhe a mão. — Faz dois dias que
estamos ligando para cá. Onde você estava? Fazendo algum serviço?
O almirante ficou surpreso com a mudança de expressão no rosto do rapaz.
— Não exatamente.
— Por que não vai se lavar enquanto eu tomo um refrigerante?
Só então Maxwell viu as cicatrizes recentes nas costas e no pescoço de Kelly.
Jesus!
Eles tinham se conhecido a bordo do USS Kitty Hawk fazia três anos. Maxwell como
comandante das forças aéreas da Frota do Pacífico, Kelly como um segundo-contramestre muito
doente. Não era o tipo de coisa que um homem na posição de Maxwell pudesse esquecer com
facilidade. Kelly tinha resgatado a tripulação do Nove Um Um, cujo piloto era o primeiro-
tenente Winslow Holland Maxwell III, da Marinha dos Estados Unidos. Depois de passar dois
dias rastejando em uma região que era simplesmente perigosa demais para ser atingida de
helicóptero, voltara com o filho de Dutch, ferido mas vivo. Entretanto, Kelly pegara uma séria
infecção por causa da água contaminada. Como se agradece a um homem que salvou seu único
filho?, Maxwell se perguntava desde então. Parecia tão jovem na cama do hospital, tão parecido
com seu filho, com o mesmo tipo de orgulho desafiador e inteligência tímida. Em um mundo
justo, Kelly teria recebido a Medalha de Honra por sua missão solitária naquele rio fétido, mas
Maxwell nem se dera ao trabalho de preencher os papéis. "Sinto muito, Dutch", diria o
comandante em chefe da Frota do Pacífico. "Gostaria de atendê-lo, mas, sabe como é, seríamos
acusados de favoritismo." Assim, fez o possível para demonstrar sua gratidão.
— Fale-me de você.
— Kelly, senhor, John T., segundo-contramestre...
— Não. — Maxwell interrompeu-o, balançando a cabeça. — Não, acho que você parece
mais um primeiro-contramestre.
Maxwell ficara mais três dias a bordo do Kitty Hawk, supostamente para inspecionar
pessoalmente as operações aéreas, mas na verdade para passar mais tempo com o filho ferido e
o jovem comando que o resgatara. Tornara a ver Kelly para lhe entregar o telegrama
comunicando a morte do pai, bombeiro que tivera um ataque cardíaco durante o trabalho. E
agora, ao que parecia, chegara logo depois de outra tragédia.
Kelly voltou do banho usando uma camiseta e shorts, um pouco abatido fisicamente, mas com
algo de duro e forte nos olhos.
— Que distância você nadou, John?
— Quase oito quilômetros, senhor.
— Um bom exercício — observou Maxwell, passando uma Coca-Cola ao anfitrião. — Deve
estar com sede.
— Obrigado, senhor.
— O que aconteceu? Você não tinha essas cicatrizes no ombro.
Kelly contou rapidamente o sucedido, de soldado para soldado, porque, apesar da diferença
de idade e posto, os dois eram muito parecidos. Dutch Maxwell escutou em silêncio, como pai
adotivo que se tornara.
— Deve ter sido um golpe e tanto para você — observou o almirante.
— É verdade, senhor. — Kelly ficou por um momento sem saber o que dizer e baixou os
olhos. — Ainda não lhe agradeci pelo cartão que me mandou... quando Tish morreu. Foi muita
gentileza de sua parte, senhor. Como vai o seu filho?
— Agora pilota um 727 para a Delta Airlines. A qualquer momento vou ser avô — disse o
almirante com orgulho, percebendo imediatamente quão cruel poderia parecer o comentário
para aquele jovem solitário.
— Que bom! — exclamou Kelly, satisfeito por ouvir finalmente uma boa notícia, por saber
que alguma coisa que fizera tinha dado certo. — Mas o que o traz aqui, senhor?
— Quero discutir uma coisa com você — disse Maxwell, abrindo a pasta e desdobrando o
primeiro de vários mapas na mesa de centro.
— Oh, sim, eu me lembro do lugar. — Os olhos de Kelly se detiveram em alguns símbolos
escritos a mão. — Algumas dessas informações são secretas, senhor.
— Kelly, o assunto que vamos discutir é muito delicado.
Kelly olhou em torno. Os almirantes sempre viajavam com um assessor, em geral um jovem e
impecável tenente que carregava a maleta de documentos, mostrava ao chefe onde era o
banheiro, preocupava-se em decorar onde ficara estacionado o carro e fazia outras coisas
indignas de um tenente. De repente se deu conta de que, a não ser pela tripulação do helicóptero,
que no momento estava lá fora, o vice-almirante Maxwell se encontrava totalmente só, o que era
muito fora do comum. — Por que eu, senhor?
— Você é a única pessoa neste país que percorreu a pé a região.
— E se formos espertos, vamos deixar as coisas como estão. — As memórias que Kelly tinha
do lugar não eram nada agradáveis. Ao olhar para o mapa bidimensional, as más lembranças
tridimensionais voltaram imediatamente.
— Até onde você subiu o rio, John?
— Mais ou menos até aqui. — O dedo de Kelly percorreu o mapa. — Não consegui localizar
seu filho na primeira passagem, de modo que voltei e encontrei-o por aqui.
Nada mau, pensou Maxwell. Bem perto do alvo.
— Esta ponte não existe mais. Foram necessárias dezesseis missões, mas ela agora está no
fundo do rio.
— Sabe o que isso significa, não sabe? Eles aterraram o rio ou construíram uma ponte pouco
abaixo do nível da água. Quer que lhe diga como bloquear de novo a estrada?
— Seria perda de tempo. Nosso objetivo fica aqui. — Maxwell colocou o dedo em um ponto
marcado com tinta vermelha.
— É uma longa distância para nada, senhor. Do que se trata?
— Kelly, quando você deixou a Marinha, passou para a reserva — disse Maxwell,
calmamente.
— Que é isso, senhor?
— Calma, filho, não estou dizendo que vou reconvocá-lo. — Por enquanto, pensou Maxwell.
— Você tinha autorização para tomar conhecimento de informações secretas.
— É verdade. Nós todos tínhamos, porque...
— Este caso é muito importante, John. — E Maxwell explicou por que, tirando outros papéis
da maleta.
— Esses filhos da mãe... — Kelly levantou os olhos da fotografia aérea. — A ideia é ir lá
buscá-los, como fizemos em Song Tay?
— O que sabe a respeito de Song Tay?
— Só o que foi divulgado — explicou Kelly. — Nosso grupo conversou sobre o assunto.
Parece que foi um trabalho bem feito. Esses rapazes das forças especiais são muito
competentes. Infelizmente...
— É, infelizmente não encontramos ninguém em casa. Este sujeito — Maxwell apontou para a
foto — foi identificado como coronel da Força Aérea. Kelly, esta missão não pode ser repetida.
— Entendo, senhor. Como pretende fazer?
— Ainda não sei. Você conhece a região. Preciso das suas informações para poder analisar
as alternativas.
Kelly pensou um pouco. Ele havia passado cinquenta horas sem dormir naquela região.
— Seria muito difícil desembarcar alguém de um helicóptero. O lugar está cheio de baterias
antiaéreas. A vantagem de Song Tay é que ficava em uma região isolada, mas este campo fica
perto de Haiphong, o que torna as coisas muito difíceis, senhor.
— Ninguém disse que seria fácil.
— Se viermos por aqui, podemos nos esconder atrás das montanhas, mas teremos que cruzar
o rio em algum lugar... se for aqui, estaremos expostos ao fogo antiaéreo... e aqui será ainda
pior, de acordo com essas anotações.
— Os comandos planejavam missões aéreas, Kelly? — perguntou Maxwell, curioso.
A resposta o surpreendeu.
— Senhor, nem sempre podíamos contar com oficiais no 3º SOG. Eles morriam e não eram
substituídos. Fui o oficial de operações do grupo durante dois meses e nós todos sabíamos
planejar incursões aéreas. Tínhamos que saber, porque esta era a parte mais perigosa na maioria
das missões. Não me leve a mal, senhor, mas não é preciso ser oficial para pensar.
Maxwell ficou um pouco abespinhado.
— Eu nunca disse que era.
Kelly riu.
— Nem todos os oficiais são tão esclarecidos quanto o senhor. — Olhou de novo para o
mapa. — Uma missão deste tipo deve ser planejada de trás para a frente. Começamos com o
alvo e vamos recuando até descobrir de onde devemos partir.
— Guarde isso para mais tarde. Fale-me a respeito do vale onde fica o rio — ordenou
Maxwell.
Cinquenta horas, lembrou Kelly. Fora recolhido em Da Nang por um helicóptero, que o
depositara a bordo do submarino USS Skate, que por sua vez o transportara até o estuário
surpreendentemente profundo daquele rio fétido. Subira o rio com o auxílio de um scooter
movido a bateria, que provavelmente ainda estava lá, a menos que a linha de algum pescador
tivesse se enredado nele. Ficara debaixo d'água até o ar dos tanques acabar. Ainda se lembrava
do medo que sentira quando não pudera mais se esconder debaixo da superfície ondulada.
Ficara escondido entre os caniços da margem, observando os caminhões que passavam na
estrada, ouvindo o troar da artilharia nos morros, imaginando o estrago que alguns tiros de
37mm fariam se um escoteiro norte-vietnamita esbarrasse nele e contasse ao pai. E agora aquele
almirante estava lhe pedindo para ajudá-lo a colocar em risco as vidas de outros homens
naquele mesmo lugar, acreditando, como Pam acreditara, que ele sabia o que estava fazendo.
Esse pensamento súbito trouxe um arrepio ao contramestre reformado.
— Não é um lugar agradável, senhor. Quero dizer: o seu filho também esteve lá.
— Mas quase não saiu do lugar — observou Maxwell.
Era verdade, lembrou-se Kelly. O filho de Dutch tinha ficado escondido no meio do mato,
usando o rádio apenas de duas em duas horas, esperando que fossem buscá-lo enquanto
suportava em silêncio as dores de uma perna quebrada e ouvia as mesmas baterias antiaéreas
que tinham derrubado seu A-6 varrerem o céu em busca de outros homens que tentavam derrubar
a mesma ponte que suas bombas tinham errado. Cinquenta horas, recordou Kelly, sem descansar,
sem dormir, sozinho com o seu medo e sua missão.
— De quanto tempo dispomos, senhor?
— Não sei. Francamente, não sei nem mesmo se a missão será autorizada. Quando tivermos
um plano, será a hora de apresentá-lo. Se for aprovado, poderemos levantar os recursos, ensaiar
e executá-lo.
— Alguma restrição quanto à época do ano? — quis saber Kelly.
— A missão tem que ser executada no outono, no próximo outono, ou talvez seja tarde
demais.
— Acha que esses sujeitos jamais sairão de lá a não ser que a gente vá buscá-los?
— Não vejo outra razão para o inimigo ter montado um campo como aquele — respondeu
Maxwell.
— Almirante, tenho uma certa experiência, mas sou apenas um contramestre, lembra-se?
— É a única pessoa que esteve naquela região. — O almirante recolheu as fotografias e os
mapas. Entregou a Kelly um outro maço de fotos. — Você se recusou três vezes a entrar para a
escola de oficiais. Gostaria de saber a razão, John.
— Quer que eu seja sincero? Isso significaria ter que voltar ao Vietnã. Já abusei demais da
minha sorte.
Maxwell aceitou o argumento, desejando silenciosamente que a sua melhor fonte de
informações ocupasse um posto condizente com a experiência que possuía. Entretanto, também
lembrou-se de ter participado de missões de combate partindo do velho Enterprise com pilotos
sem patente de oficial, pelo menos um dos quais demonstrara competência suficiente para ser
comandante de grupo, e sabia que os melhores pilotos de helicóptero eram provavelmente os
suboficiais instantâneos produzidos pelo Exército em Fort Rucker. Não era hora de ser
preciosista.
— No caso de Song Tay, cometeram um erro — disse Kelly, após um momento em silêncio.
— Qual foi?
— Excesso de treinamento. A partir de certo ponto, o treinamento pode ser prejudicial.
Escolha as pessoas certas, e depois de umas duas semanas, no máximo, elas vão estar na ponta
dos cascos. Mais do que é perda de tempo.
— Você não é a primeira pessoa a dizer isso — observou Maxwell.
— Vai ser um trabalho para os comandos?
— Ainda não sabemos. Kelly, posso lhe dar duas semanas, enquanto cuidamos de outros
aspectos da missão.
— Como vou entrar em contato com o senhor?
Maxwell colocou na mesa um passe para o Pentágono.
— Nada de telefonemas. Nada de cartas. Este assunto só deve ser discutido pessoalmente.
Kelly se levantou e acompanhou Maxwell até o helicóptero. Assim que o almirante apareceu,
a tripulação começou a esquentar as turbinas do SH-2 SeaSprite. Quando o rotor começou a
girar, ele segurou o almirante pelo braço.
— O inimigo sabia do ataque a Song Jay?
Maxwell teve um sobressalto. — Por que quer saber?
— Acaba de responder à minha pergunta, almirante.
— Não temos certeza, Kelly.
Maxwell baixou a cabeça e entrou no helicóptero. Durante a decolagem, pensou mais uma vez
que seria ótimo se Kelly tivesse aceitado o convite para frequentar a escola de oficiais. O rapaz
era mais esperto do que ele pensava, e o almirante decidiu consultar o seu ex-comandante para
conhecê-lo melhor. Também imaginou o que Kelly faria se fosse ; formalmente reconvocado ao
serviço ativo. Seria uma pena trair a sua i confiança. Pelo menos, esta seria a opinião de Kelly,
pensou Maxwell j enquanto o SeaSprite tomava o rumo nordeste. Entretanto, sua primeira I
lealdade teria que ser com os vinte oficiais que provavelmente estavam sendo mantido
prisioneiros em SINAL VERDE, Além do mais, talvez Kelly estivesse precisando de uma coisa
assim para esquecer seus problemas pessoais. A ideia serviu de consolo para o almirante.
Kelly ficou olhando até o helicóptero desaparecer na bruma da manhã. Depois, foi até a
oficina. Àquela altura do dia, imaginava que estaria com o corpo doído e a mente relaxada.
Estranhamente, acontecera o oposto. Os exercícios que fizera no hospital tinham sido mais
eficazes do que esperava. Ainda não recuperara totalmente o fôlego, mas o ombro, depois de
doer um pouco durante a fase de aquecimento, aceitara o castigo com surpreendente facilidade.
Agora, depois de passar pela costumeira agonia do exercício, entrara na fase da euforia. Tinha
certeza de que se sentiria bem o resto do dia. No dia seguinte, pegaria um cronômetro e
começaria a se exercitar a sério, contra o relógio. O almirante lhe dera duas semanas, mais ou
ou menos o mesmo tempo que se concedera para recuperar a forma. E estava na hora de tomar
outras providências.

As estações navais, quaisquer que fossem o seu tamanho ou propósito, eram todas parecidas.
Havia coisas que não podiam faltar. Uma delas era a oficina mecânica. Durante seis anos a ilha
de Battery servira de base de barcos de salvamento; para fazer a manutenção desses barcos, era
necessário uma boa variedade de máquinas e ferramentas. A coleção era mais ou menos
equivalente à que existia a bordo de um destróier, e provavelmente tinha sido comprada dessa
maneira, a oficina mecânica da Marinha versão um-ponto-zero escolhida em algum catálogo das
Forças Armadas. Talvez até mesmo a Força Aérea tivesse algo semelhante. Kelly ligou uma
fresa South Bend e começou a verificar as várias peças e reservatórios de óleo para ter certeza
de que conseguiria o que queria com ela.
Ao lado da máquina havia várias ferramentas e calibres, além de gavetas cheias de peças de
aço semiprontas. Kelly sentou-se em um banco para decidir exatamente o que queria, mas
lembrou-se de que antes precisava fazer outra coisa. Tirou a automática .45 do seu lugar na
parede, carregou-a e desmontou-a antes de examinar cuidadosamente a culatra móvel e o cano,
por dentro e por fora.
— Você vai precisar de dois de cada — disse Kelly a si mesmo. Mas uma coisa de cada vez.
Prendeu a culatra móvel em um torno e usou a fresa para fazer dois pequenos furos na peça. A
máquina da South Bend era uma furadeira muito eficiente; não foi preciso nem um décimo de
volta da roda para que a pequena ponta de broca vazasse a culatra. Repetiu o processo, fazendo
um segundo furo a três centímetros do primeiro. Também não foi difícil rosquear o furo; e uma
chave de fenda terminou o serviço. Isso completou a parte fácil do trabalho e serviu para
reacostumá-lo à máquina, que não usava há mais de um ano. Um exame final da culatra
modificada mostrou a Kelly que estava tudo em ordem. Agora tinha chegado à parte difícil.
Não dispunha de tempo nem de equipamento para fazer um trabalho realmente bem-feito.
Sabia usar uma máquina de soldar, mas não tinha as máquinas para fabricar as peças especiais
necessárias para o tipo de instrumento que gostaria de ter. Tinha pensado em encomendá-las em
uma pequena fundição, mas os operários poderiam adivinhar o que tinha em mente, e esse era
um risco que não podia correr. Consolou-se com a ideia de que a perfeição era uma coisa difícil
de conseguir e que nem sempre compensava o esforço empregado.
Primeiro, selecionou uma peça de aço em forma de lata, só que mais estreita e de paredes
mais grossas. Mais uma vez, fez e rosqueou um furo, desta vez no centro da base da "lata". O
furo tinha quinze milímetros de diâmetro, como pôde verificar com um calibre. Havia sete peças
semelhantes, mas com um diâmetro externo menor. Kelly cortou essas peças para que ficassem
com dois centímetros de comprimento antes de fazer furos nas suas bases. Esses novos furos
tinham seis milímetros de diâmetro, e os objetos ficaram parecidos com pequenos copos com
furos no fundo, ou talvez diminutos vasos de planta, pensou o rapaz com um sorriso. Cada um
desses objetos era um "abafador". Tentou introduzir os abafadores na "lata", mas eram largos
demais. Kelly resmungou consigo mesmo, aborrecido. Todos os abafadores tiveram que ir para
o torno. O rapaz levou quinze minutos para reduzir o diâmetro externo das peças até que fosse
um milímetro menor que o diâmetro interno da lata. Quando terminou, recompensou-se com uma
Coca gelada antes de introduzir os abafadores na lata. Eles se encaixaram suficientemente
apertados para não balançarem mas suficientemente frouxos para escorregarem para fora com
uma sacudidela ou duas. Ótimo. Removeu-os e em seguida fabricou uma tampa para a lata, que
também teria que receber um furo rosqueado. Terminada a tarefa, colocou a tampa no lugar,
primeiro sem os abafadores e depois com os abafadores, congratulando-se pelo encaixe perfeito
de todas as peças... até perceber que se esquecera de fazer o furo da tampa. Voltou à fresa para
completar o serviço. Este último furo tinha apenas 5,8 milímetros de diâmetro, mas quando
terminou um raio luminoso podia atravessar todo o conjunto. Pelo menos, os furos tinham ficado
bem alinhados.
Em seguida vinha a parte mais importante. Kelly preparou a máquina com todo o cuidado,
verificando os ajustes não menos que cinco vezes antes de executar a última operação de
rosqueamento com um puxão da alavanca de comando... não sem antes respirar fundo. Aquilo
era algo que o rapaz observara algumas vezes mas jamais fizera pessoalmente; embora se
sentisse à vontade com ferramentas, nunca tivera um treinamento formal em uma oficina
mecânica. Terminado o trabalho, removeu o cano, tornou a montar a pistola e foi para fora com
uma caixa de munição .22.
Kelly jamais se deixara intimidar pelo tamanho e peso da Colt automática, mas os cartuchos
.45 eram muito mais caros que os cartuchos para fuzil .22; por isso, no ano anterior, comprara
um conversor que permitia que a pistola disparasse os cartuchos de rifle. Jogou a lata de Coca a
uns cinco metros de distância antes de colocar três cartuchos no pente. Não se preocupou em
proteger os ouvidos. Ficou de pé como sempre costumava fazer, relaxado, com as mãos ao lado
do corpo, e depois sacou rapidamente, ao mesmo tempo em que se agachava. Levou um susto ao
perceber que a lata encaixada no cano tinha ficado bem na frente da alça de mira. Isso era um
problema que não previra. Baixou a arma, tornou a levantá-la e apertou o gatilho sem ver o
alvo. O resultado era previsível: quando olhou, a lata continuava no mesmo lugar. Essa era a má
notícia. A boa notícia era que o silenciador funcionara muito bem. Muitas vezes representado
erradamente nos filmes e na TV como um zing quase musical, o barulho produzido por um bom
silenciador é na verdade parecido com o de uma escova de metal roçando um pedaço de
madeira polida. Os gases que saem do cartucho ficam retidos nos abafadores enquanto a bala
passa pelos furos, tapando-os e forçando os gases a se expandirem nos espaços fechados dentro
da lata. Com cinco abafadores internos — a culatra funcionava como um sexto abafador —, o
ruído do disparo ficava reduzido a um sussurro.
Tudo isso era ótimo, pensou Kelly, mas se errasse o alvo, ele provavelmente ouviria o som
produzido pelo movimento da culatra, e os sons mecânicos de uma arma de fogo dificilmente
podem ser confundidos com algo inofensivo. Errar uma lata a cinco metros de distância não era
um resultado muito animador. A cabeça humana era maior, é claro, mas os pontos vitais no
interior de uma cabeça humana, não. Kelly respirou fundo e tentou de novo, levantando a arma
em um movimento rápido, mas suave. Desta vez, puxou o gatilho no momento em que o
silenciador começou a ocultar o alvo. O resultado foi melhor: a lata caiu com um furo de 55
milímetros a dois centímetros da base. O cálculo ainda não estava perfeito. O tiro seguinte,
porém, acertou no meio da lata, provocando um sorriso. Kelly removeu o pente, carregou cinco
cartuchos de ponta oca e um minuto depois a lata já não servia como alvo, pois tinha sete furos,
seis deles agrupados no centro.
— Ainda tem a velha classe, Johnnie-boy — disse Kelly a si mesmo, travando a pistola.
Mas tinha sido à luz do dia, contra um alvo estacionado pintado de vermelho, e Kelly sabia
disso. Voltou à oficina e desmontou a pistola. O silenciador parecia em perfeitas condições, mas
mesmo assim ele o limpou e passou um pouco de óleo nas peças internas. Mais uma coisa,
pensou. Usando um pincel fino e tinta esmalte, pintou uma linha branca na parte superior da
culatra móvel. Àquela altura, já eram duas da tarde. Kelly se permitiu um almoço leve antes de
começar os exercícios vespertinos.

— Puxa, tudo isso?


— O que foi, não gostou? — perguntou Tucker. — É demais para você?
— Henry, o que você entregar eu compro — respondeu Piaggi, irritado com a arrogância do
outro, mas preocupado com o que viria a seguir.
— Vamos ficar aqui três dias! — anunciou Eddie Morello, preocupado com a sua parte.
— E daí? Não confia em sua mulher? — Tucker riu para o homem. Já decidira que Eddie
seria o próximo. Além de tudo, Morello não tinha nenhum senso de humor. Ficou vermelho
como um pimentão.
— Olhe, Henry...
— Calma, rapazes. — Piaggi olhou para os oito quilos de heroína que estavam sobre a mesa
antes de se voltar para Tucker.
— Daria tudo para saber onde você arranja o material.
— Sei disso, Tony. Vai querer ou não?
— Depois que a gente começa um negócio como esse, é difícil largar. As pessoas começam a
depender de você. É como dizer ao urso que os biscoitos acabaram, entende? — O cérebro de
Piaggi estava a mil. Tinha contatos em Filadélfia e Nova York, rapazes, como ele, fartos de
trabalhar para gente mais velha, com regras ultrapassadas. Os lucros em potencial eram
fantásticos. Henry tinha acesso a... a quê?, pensou. Tinham começado a fazer negócios há apenas
dois meses, com dois quilogramas de um material que, de acordo com a análise que mandara
fazer, tinha um grau de pureza comparável apenas à do branco siciliano, mas custava a metade
do preço, Além disso, os problemas ligados à entrega eram de Henry, não dele, o que tornava o
negócio ainda mais atraente. Finalmente, as medidas de segurança tinham deixado Piaggi muito
impressionado. Henry não era um idiota, um aventureiro cheio de entusiasmo mas com poucas
luzes. Não, ele era um homem de negócios, calmo e profissional, alguém que poderia se tornar
um valioso aliado e um sócio de confiança, pensou Piaggi.
— Meu fornecedor é confiável. Deixe que eu me preocupe com isso, cara.
— OK. — Piaggi fez que sim com a cabeça. — Só existe um problema, Henry. Não posso
levantar tanto dinheiro de uma hora para outra. Você devia ter me avisado com antecedência.
Tucker se permitiu uma gargalhada.
— Não queria assustá-lo, Anthony.
— Você me entregaria o produto em confiança? Tucker assentiu.
— Sei que você é um cara sério. — Estava pisando em terreno firme. Piaggi não
desperdiçaria a oportunidade de conseguir um suprimento regular da droga. As possibilidades a
longo prazo não eram de se desprezar. Angelo Vorano era mais imediatista, mas tinha sido
através dele que Henry conhecera Piaggi. Além disso, Angelo era agora comida de caranguejo.
— O material é tão puro como da outra vez? — perguntou Morello, deixando os outros dois
irritados.
— Eddie, acha que o cara vai nos vender fiado e nos sacanear ao mesmo tempo? —
perguntou Piaggi.
— Meus amigos, vamos deixar as coisas bem claras, está bem? Eu tenho um bom suprimento
de material de primeira. Onde consigo, como consigo, é problema meu. Tenho também um
território onde não quero que ninguém se meta, mas ainda não batemos cabeça na rua e quero
que as coisas continuem assim. — Tucker observou que os dois italianos fizeram que sim, Eddie
cegamente, mas Tony com compreensão e respeito. Piaggi falou da mesma forma:
— Você precisa de distribuidores. É aí que nós entramos. Tem seu território e pretendemos
respeitá-lo.
Estava na hora da próxima cartada.
— Não cheguei aonde cheguei bancando o trouxa. A partir de hoje, vocês estão fora desta
parte do negócio.
— Como assim?
— Chega de viagens de barco. Vocês não vão mais embalar o material.
Piaggi sorriu. Já tinha feito aquilo quatro vezes; não tinha mais graça.
— Está combinado. Meus homens podem ir buscar os carregamentos onde você quiser.
— Vamos separar o material do dinheiro. Tratar da coisa como um negócio — disse Tucker.
— Como se fosse uma linha de crédito.
— Primeiro você entrega o material.
— Muito justo, Tony. Escolha seus homens com cuidado, tá? A ideia é manter nós dois o mais
longe das drogas possível.
— As pessoas falam demais — observou Morello. Ele estava se sentindo excluído da
conversa, mas não tinha inteligência suficiente para acompanhar o que os outros estavam
dizendo.
— Os meus, não — afirmou Tucker, muito sério. — Sabem o que é bom para eles.
— Foi você que fez aquilo, não foi? — perguntou Piaggi, fazendo a ligação e recebendo um
aceno de cabeça como confirmação. — Gosto do seu estilo, Henry. Tente ser mais cuidadoso da
próxima vez, está bem?
— Passei dois anos montando esta operação e ela me custou um bom dinheiro. Quero que
continue funcionando durante muito tempo. Não pretendo correr riscos desnecessários.
Mudando de assunto: quando você vai poder me pagar por este carregamento?
— Trouxe cem redondos comigo — declarou Tony, apontando para uma mochila no convés.
Aquela pequena operação havia crescido de forma surpreendentemente rápida, mas os
primeiros três carregamentos tinham dado um bom lucro, e Tucker, pensou Piaggi, era um
homem de confiança, se é que se podia confiar em alguém naquele tipo de trabalho. Se Tucker
quisesse passá-lo para trás, já o teria feito. Além disso, a quantidade de droga de que dispunha
era grande demais para um homem distribuir sozinho. — Pode ficar, Henry. Parece que vamos
ficar devendo mais... quinhentos? Vou precisar de um pouco de tempo, uma semana, digamos.
Sinto muito, cara, você me pegou de surpresa. Leva tempo para arranjar tanto dinheiro, sabe?
— Só me deve quatrocentos, Tony. Não seria bom negócio apertar os seus amigos da primeira
vez. Vamos conquistar um pouco de boa vontade, OK?
— Oferta especial de lançamento? — Piaggi riu e jogou uma cerveja para Henry. — Você
deve ter um pouco de sangue italiano correndo nas veias, cara. Está bem! Vamos fazer o que está
dizendo. — Esse material é mesmo de primeira, Henry?, Piaggi teve vontade de perguntar.
— E agora vamos ao trabalho. — Tucker abriu o primeiro saco de plástico e despejou o
conteúdo em uma tigela de aço inoxidável, satisfeito porque era a última vez que teria que
passar por aquilo. A sétima etapa do plano de comercialização tinha sido completada. Dali em
diante, outros fariam o serviço, a princípio sob sua supervisão, é claro, mas a partir daquele dia
Henry Tucker começaria a agir como o executivo que se tornara. Enquanto misturava a droga
com os ingredientes inertes, congratulava-se pela própria inteligência. Começarão negócio da
maneira certa, assumindo riscos, mas riscos calculados, construindo sua organização de baixo
para cima, fazendo as coisas pessoalmente, arregaçando as mangas. Talvez Piaggi tivesse
começado da mesma forma, pensou Tucker. Provavelmente Tony já se esquecera desse fato e de
suas implicações. Mas isso não era problema de Tucker.
— Escute, coronel, eu era apenas um ajudante de ordens, OK? Quantas vezes vou ter que
explicar isso? Fazia as mesmas coisas que os ajudantes de ordens dos generais de vocês fazem,
todas essas coisas pequenas e sem importância.
— Então por que aceitou o cargo? — Era triste, pensou o coronel Nikolay Yevgeniyevich
Grishanov, que um homem tivesse que passar por aquilo, mas o coronel Zacharias não era um
homem. Era um inimigo, lembrou o russo a si mesmo com alguma relutância, e ele queria que o
inimigo falasse.
— Não é a mesma coisa na sua Força Aérea? Um general simpatiza com você e as promoções
passam a acontecer muito mais depressa. — O americano fez uma pausa. — Eu escrevia
discursos, também. — Isso ele podia revelar sem problemas, não podia?
— Na minha Força Aérea, quem faz isso é o oficial de política — afirmou Grishanov,
desprezando a informação irrelevante com um gesto de mão.
Era a sexta sessão. Grishanov era o único oficial soviético que podia interrogar os
prisioneiros americanos; os vietnamitas estavam sendo muito cautelosos. Vinte deles, todos
iguais, todos diferentes. Zacharias era ao mesmo tempo piloto de caça e agente do serviço de
informações, dizia o seu dossiê. Passara vinte anos estudando sistemas de defesa aérea. Tinha o
mestrado em engenharia elétrica pela Universidade da Califórnia, Berkeley. Do dossiê constava
até mesmo uma cópia recém-adquirida da tese de mestrado, "Aspectos da Propagação e Difusão
de Micro-ondas em Terrenos Acidentados", copiada da biblioteca da universidade por alguma
alma caridosa, um dos três desconhecidos que ajudaram a levantar a vida pregressa do coronel.
Atese devia ter sido tornada secreta logo depois de ser defendida, o que sem dúvida teria
ocorrido na União Soviética, pensou Grishanov. Era uma análise muito engenhosa do que
acontecia com a energia de um radar de busca de baixa frequência — e como, incidentalmente,
uma aeronave podia usar montanhas e colinas para se esconder do radar. Três anos mais tarde,
depois de servir em uma esquadrilha de caças, Zacharias fora transferido para a base aérea de
Offutt, perto de Omaha, Nebraska. Trabalhando na equipe de planejamento de guerra do
comando aéreo estratégico, ajudara a preparar os planos de voo que permitiriam que os
bombardeiros americanos B-52 vencessem as defesas aéreas soviéticas, aplicando seus
conhecimentos teóricos de física ao mundo real da guerra nuclear estratégica.
Por mais que quisesse, Grishanov não conseguia odiar aquele homem. Ele próprio um piloto
de caça, tendo acabado de servir como comandante de regimento no PVO-Strany, o comando de
defesa aérea soviético, e já designado para outro posto de comando, o coronel russo era, por
uma estranha coincidência, o equivalente exato de Zacharias. Sua missão, em caso de guerra,
seria impedir que aqueles bombardeiros arrasassem o país; na paz, de desenvolver métodos que
dificultassem a penetração dos B-52 no espaço aéreo soviético. Essa identidade de propósitos
tornava sua missão atual ao mesmo tempo difícil e necessária. Não sendo um oficial do KGB,
não tinha nenhum prazer em torturar pessoas — matá-las era algo totalmente diferente —, nem
mesmo os americanos que planejavam a destruição do seu país. Mas aqueles que sabiam como
extrair informações não sabiam interpretá-las, não sabiam nem mesmo que tipo de pergunta
deviam formular. Escrever as perguntas não adiantaria nada: era preciso olhar o homem nos
olhos enquanto estava falando. Um homem esperto o suficiente para formular aqueles planos
certamente seria suficientemente esperto para mentir com convicção e autoridade capazes de
enganar quase qualquer um.
Grishanov não estava gostando do que estava ouvindo. Ali estava um homem capaz e
corajoso, que lutara para criar os caça-mísseis que os americanos chamavam de Wild Weasels
[Doninhas Selvagens]. Era um termo que os próprios russos poderiam ter escolhido para a
missão, inspirado nos pequenos mas ferozes predadores que perseguiam a presa até o interior
de sua toca. Se os vietnamitas tinham recuperado os pedaços certos da aeronave certa, o
prisioneiro participara de oitenta e nove dessas missões (como os russos, os americanos
mantinham a bordo de cada avião um registro das suas atividades) e portanto era a pessoa certa
para fornecer as informações de que estava precisando. Talvez aquilo fosse uma lição, pensou
Grishanov, decidindo-se a escrever alguma coisa a respeito. Um ato de pura vaidade revelava
aos inimigos quem eles haviam capturado e o quanto essa pessoa sabia. Entretanto, os pilotos de
caça eram assim mesmo, e o próprio Grishanov não gostaria de esconder suas vitórias do
inimigo. O russo também tentou convencer-se de que estava protegendo o homem que estava do
outro lado da mesa. Provavelmente Zacharias tinha matado muitos vietnamitas (não simples
camponeses, mas técnicos em mísseis treinados pelos russos) e o governo do país gostaria de
puni-lo por esse crime. Mas isso nada tinha a ver com a sua missão, e não queria que a política
interferisse com suas obrigações profissionais. Seu trabalho envolvia um dos aspectos mais
científicos e certamente o mais complexo da defesa nacional. Estava encarregado de planejar a
defesa contra um ataque de centenas de aeronaves, cada uma com uma tripulação de
especialistas altamente treinados. O modo como o inimigo pensava, sua doutrina tática, era tão
importante quanto seus planos. Do seu ponto de vista, os americanos podiam matar todos os
vietnamitas que quisessem, Os pequenos e desagradáveis fascistas tinham tanto a ver com a
filosofia política do seu país quanto canibais com a cozinha francesa.
— Coronel, estou mais bem informado do que o senhor pensa — afirmou Grishanov, com
toda a paciência. Colocou na mesa o último documento que chegara. — Li sua tese a noite
passada. Gostei muito.
Os olhos do russo não se desviavam do coronel Zacharias. A reação do americano foi
imediata. Embora pertencesse ao serviço de informações, jamais sonhara que alguém no Vietnã
pudesse comunicar-se com Moscou e conseguir que alguém nos Estados Unidos realizasse um
trabalho daquele tipo. A expressão facial revelou o que estava pensando: Como podem saber
tanta coisa a meu respeito? Como conseguiram desencavar tanta coisa do seu passado? Quem
será que fez isso? Onde arranjaram alguém tão competente, tão profissional? Os vietnamitas não
passavam de um bando de idiotas! Como muitos oficiais russos, Grishanov era um estudioso da
história militar. Tivera oportunidade de ler todos os tipos de documentos antigos enquanto
esperava na sala de reuniões do regimento. Em um deles, que jamais esqueceria, aprendera
como a Luftwaffe interrogava os pilotos inimigos capturados, e era essa lição que estava
tentando aplicar no momento. Enquanto os maus-tratos tinham servido apenas para aumentar a
determinação daquele homem, um simples maço de papéis o deixara profundamente abalado.
Todo homem tinha seus pontos fortes e suas fraquezas. Era preciso saber reconhecer as
diferenças.
p — Por que seu trabalho não foi tornado secreto? — perguntou Grishanov, acendendo um
cigarro.
— Não passa de um estudo teórico — afirmou Zacharias, encolhendo os ombros magros,
recuperando parte do sangue-frio, pelo menos o suficiente para esconder o desespero que sentia.
— O interesse maior era da companhia telefônica.
Grishanov colocou o dedo sobre a tese.
— Pois eu aprendi muita coisa a noite passada. Prever falsos ecos a partir de mapas
topográficos, modelar matematicamente os pontos cegos! Isso permite planejar uma rota que
envolva o menor risco possível de detecção. Brilhante! A propósito: que tipo de lugar é
Berkeley?
— Apenas uma típica universidade californiana — respondeu Zacharias, sem pensar. Ele
estava falando. Não devia falar. Tinha sido treinado para não falar. Em seu treinamento,
aprendera o que esperar, o que fazer, como se esquivar das perguntas. Mas seus professores não
tinham previsto aquela situação. Além disso, estava cansado, assustado e farto de viver por um
código de conduta que não significava nada para a maioria das pessoas.
— Conheço muito pouco sobre o seu país. Exceto, naturalmente, o que se refere à minha
especialidade. Existem grandes diferenças regionais? O senhor nasceu em Utah. Que tipo de
lugar é Utah?
— Zacharias, Robin G., coronel...
Grishanov levantou as mãos.
— Por favor, coronel. Isso eu já sei. Também sei em que dia e em que cidade o senhor
nasceu. Não existe nenhuma base da Força Aérea americana perto de Salt Lake City. Só conheço
o seu país através de mapas. Provavelmente nunca terei oportunidade de visitar essa região...
nenhuma região do seu país. Essa região de Berkeley, na Califórnia, é muito verde, não é? Li
uma vez que está cheia de plantações de uvas. Mas não sei nada sobre Utah, a não ser que lá
existe um grande lago, chamado Salt Lake. Ele é mesmo salgado?
— É, sim. Foi por isso que...
— Como pode ser salgado? O oceano fica a mil quilômetros de distância, com uma cadeia de
montanhas no meio, não é? — Não deu ao americano tempo para responder. — Conheço muito
bem o mar Cáspio. Servi em uma base ali perto. Não é salgado. Mas esse lago de Utah é
salgado. Muito estranho. — Ele esmagou a ponta do cigarro.
Zacharias levantou a cabeça.
— Não sei exatamente por quê. Não sou geólogo. Algum resíduo do passado, suponho.
— Pode ser. Existem montanhas nas proximidades?
— As montanhas Wasatch — respondeu Zacharias, automaticamente.

Um ponto em que os vietnamitas estavam certos, pensou Grishanov, era como alimentavam os
prisioneiros. A comida era péssima, um porco só a aceitaria em caso de absoluta necessidade.
Imaginou uma dieta programada ou uma simples consequência do fato de um povo primitivo. Os
prisioneiros políticos enviados para o Gulag comiam melhor, mas a dieta daqueles americanos
diminuía a resistência, debilitava-os a tal ponto que não tinham forças para tentar resistir. Isso
era vantajoso para Grishanov. Para resistir, física ou mentalmente, era preciso energia, e era
possível ver aqueles homens perderem a sua durante os interrogatórios, observar sua coragem
se dissipar aos poucos, à medida que as necessidades físicas consumiam as reservas de energia
psicológica. Estava aprendendo a fazer a mesma coisa. Era um processo lento mas interessante,
aquele de aprender a dissecar o cérebro de homens parecidos com ele próprio.
— Vocês têm bons lugares para esquiar?
Zacharias piscou os olhos, como se a pergunta o tivesse levado a um lugar diferente.
— Temos, sim.
— É o que não vai encontrar neste país, coronel. Gosto muito de > ir, para fazer exercício e
como forma de higiene mental. Usava i de madeira, mas no último regimento que comandei meu
oficial manutenção fez para mim esquis de aço, a partir de peças de avião. De aço?
— De aço inoxidável, mais pesado que alumínio mas mais flexível, i> ótimos. Foram
fabricados a partir de um painel da asa do nosso caça, o projeto E-266.
— Que projeto é esse? — perguntou Zacharias, mostrando que não i conhecimento do novo
MiG-25.
— Aquele que vocês chamam de Foxbat. Muito rápido, projetado I interceptar um
bombardeiro B-70.
— Mas o projeto do B-70 foi cancelado! — protestou Zacharias. — Eu sei. Acontece que
com isso tivemos a desculpa para fabricar um excelente caça. Quando eu voltar para casa, vou
comandar o primeiro regimento a usá-los.
— Aviões de caça feitos de aço? Por quê?
— O aço resiste ao aquecimento aerodinâmico muito melhor do que o alumínio — explicou
Grishanov. — Além disso, pode-se fazer ótimos esquis com as peças rejeitadas. — Agora
Zacharias estava muito confuso. — Como acha que vamos nos sair com nossos caças de aço
contra os seus bombardeiros de alumínio?
— Não sei. Acho que tudo depende do... — começou a dizer Zacharias, mas interrompeu-se a
tempo. Olhou para o interlocutor, primeiro confuso, depois com ar de desafio.
Acho que me precipitei, pensou Grishanov, desapontado. Tinha levado as coisas longe
demais. Aquele coronel tinha coragem. Suficiente para levar o seu Wild Weasel oito vezes até o
"centro da cidade", como diziam os americanos. Suficiente para resistir por um longo tempo.
Acontece que tempo era o que não faltava a Grishanov.
12

PREPARATIVOS

VW 63, POUCO ROD., RAD., AQUEC...


Kelly colocou uma moeda no telefone público e discou um número, Era um sábado
escaldante; a temperatura e a umidade apostavam corrida enquanto Kelly amaldiçoava a própria
estupidez. Algumas coisas eram tão óbvias que você não conseguia vê-las até o seu nariz
começar a sangrar.
— Alô. Estou ligando por causa do anúncio do carro... — disse Kelly. — Agora mesmo, se a
senhora quiser... OK, que tal daqui a quinze minutos? Ótimo, muito obrigado. Até logo. —
Desligou. Pelo menos alguma coisa tinha dado certo. Kelly fez uma careta no interior da cabine
telefônica.
O Springer estava ancorado em um vaga para visitantes de uma das marinas do Potomac.
Tinha que comprar um carro novo, mas como iria fazer para chegar até o local onde estava o
carro novo? Se alugasse um carro para ir até lá, poderia voltar no carro novo, mas o que iria
fazer com o carro alugado? Era tão engraçado que teve um acesso de riso. Então o destino
interveio e um táxi vazio entrou na marina, permitindo que cumprisse o compromisso que tinha
assumido com uma velhinha.
— Número 4.500 da Essex Avenue — disse ao motorista. — Onde fica isso?
— Em Bethesda.
— Vai ter que pagar um extra — informou o motorista, tomando o rumo norte.
Kelly passou-lhe uma nota de dez dólares. — Vai ganhar outra igual a esta se chegar lá em
quinze minutos. — Tá legal.
i1 A aceleração comprimiu Kelly contra o encosto do banco. O táxi evitou a Wisconsin
Avenue durante a maior parte do caminho. Em um sinal vermelho, o motorista procurou no mapa
a Essex Avenue, e acabou ganhando os dez dólares a mais com uns vinte segundos de sobra.
Era um bairro residencial de classe média alta e não foi difícil encontrar a casa. Ali estava
ele, um fusca cor de cocô de bebê com alguns pontos de ferrugem. Não esperava coisa melhor.
Kelly subiu os quatro degraus de madeira e bateu à porta.
— Quem é?
O rosto combinava com a voz. A mulher devia ter uns oitenta anos. Era pequena e frágil, mas
os olhos verdes, ampliados pelas grossas lentes, tinham um quê jovial. Os cabelos brancos
conservavam alguns fios louros.
— Sra. Boyd? Falei há pouco com a senhora pelo telefone. Vim ver o carro.
— Como se chama?
— Bill Murphy — respondeu Kelly, com um sorriso inocente. — Que calor, hein?
— Trível — disse a Sra. Boyd, em vez de terrível. — Um minunho. — Gloria Boyd entrou
em casa e logo depois voltou com as chaves. Ofereceu-se para ir com ele até o carro. Kelly
segurou-lhe o braço e ajudou-a a descer os degraus. — Obrigada, meu jovem.
— Não há de quê. — Compramos o carro para minha neta. Quando ela foi para a
universidade, ficou com Ken — comentou a Sra. Boyd, esperando que Kelly adivinhasse quem
era Ken.
— O que disse?
— Meu marido — explicou Gloria. — Ele morreu faz um mês.
— Sinto muito.
— Ele estava doente há muito tempo — disse a mulher, que evidentemente ainda não se
recuperara da perda mas aprendera a aceitá-la. Passou-lhe as chaves. — Quer examinar o
carro?
Kelly destrancou a porta. Parecia o tipo de carro usado primeiro por uma estudante
universitária e depois por um homem idoso. Os assentos estavam bem gastos e havia um grande
rasgo em um deles, provavelmente produzido por uma caixa de roupas ou livros. Girou a chave
na ignição e o motor pegou imediatamente. O tanque estava cheio. O anúncio não mentira a
respeito da quilometragem: o hodômetro marcava apenas 83.000 quilômetros. Pediu permissão
para dar uma volta em torno do quarteirão e a Sra. Boyd concordou. O motor estava em boas
condições, concluiu, levando o carro de volta para a proprietária.
— Por que seu carro está tão enferrujado? — perguntou, devolvendo as chaves.
— Minha neta estudou em Chicago, na Northwestern. Muita neve, muito sal nas ruas.
— É uma ótima escola. Vamos entrar. — Kelly segurou-a pelo braço e conduziu-a para dentro
de casa. Tinha o cheiro de uma casa de gente velha, o ar pesado por causa da poeira que ela não
tinha forças para limpar e da comida estragada porque as refeições que preparava ainda eram
para dois, e não para um.
— Está com sede?
— Estou sim, senhora. Água estará ótimo, obrigado. — Enquanto ela ia até a cozinha, Kelly
olhou em torno. Havia uma foto na parede, um homem de uniforme de colarinho alto e cinturão
de oficial de braço dado com uma jovem usando um vestido de noiva muito apertado, quase
cilíndrico. Outras fotos documentavam a vida de casados de Kenneth e Gloria Boyd. Duas filhas
e um filho, uma viagem de navio, um carro, netos, tudo isso conquistado em uma vida cheia e
produtiva.
— Aqui está — disse a Sra. Boyd, passando-lhe um copo.
— Obrigado. Qual era a profissão do seu marido?
— Ele trabalhou para o departamento de comércio durante quarenta e dois anos. amos nos
mudar para a Flórida, mas ele ficou doente, de modo que agora vou ter que ir sozinha. Minha
irmã mora em Fort Pierce. Ela também ficou viúva. O marido era policial... — Interrompeu-se
por u m momento quando o gato entrou para examinar o visitante. Isso pareceu dar novas
energias à Sra. Boyd. — Vou viajar para a Flórida na semana que vem. A casa já está vendida.
Tenho que desocupá-la até quinta-feira que vem. O comprador foi um jovem médico, muito
simpático.
— Espero que a senhora goste da Flórida. Quanto quer pelo carro?
— Não posso mais dirigir por causa dos meus olhos. Catarata. Tenho que andar de táxi. Meu
neto disse que vale mil e quinhentos dólares.
Seu neto deve ser advogado para ser tão esganado, pensou Kelly.
— Que tal mil e duzentos? Posso pagar à vista.
— À vista? — Os olhos recuperaram a expressão jovial.
— Sim, senhora.
— Nesse caso, negócio fechado.
Estendeu a mão e Kelly apertou-a delicadamente.
— A senhora está com os documentos? — perguntou Kelly, sentindo-se culpado por fazer a
Sra. Boyd levantar-se de novo, desta vez para dirigir-se ao andar de cima, lentamente,
apoiando-se no corrimão, enquanto o rapaz tirava a carteira do bolso e contava doze notas
novas de cem dólares.
Deveria ter levado apenas mais dez minutos, mas em vez disso levou trinta. Kelly já havia
investigado o que fazer para transferir a propriedade do carro e, além disso, não pretendia dar
todos os passos necessários. A apólice do seguro do carro, em nome de Kenneth W. Boyd,
estava no mesmo envelope que o documento de propriedade. Kelly prometeu que cuidaria do
seguro e também das placas, é claro. Acontece que a Sra. Boyd tinha ficado nervosa com tanto
dinheiro, de modo que Kelly ajudou-a a preencher uma ficha de depósito e levou-a de carro até
o banco, onde ela pôde depositar o dinheiro no caixa automático. Em seguida, deu uma parada
no supermercado para comprar leite e comida para o gato antes de levá-la de volta para casa.
— Obrigado pelo carro, Sra. Boyd — disse, ao despedir-se.
— Para que vai usá-lo?
— Para negócios — respondeu Kelly, com um sorriso.

Naquela noite, às quinze para as nove, dois carros saíram da Interstate 95. O da frente era um
Dodge Dart e o de trás um Plymouth Roadrunner. Separados por uma distância de uns quinze
metros, dirigiram-se para Maryland House, uma área de serviço localizada entre as duas pistas
da rodovia John F. Kennedy que oferecia serviços completos de restaurante, além de gasolina,
óleo e um excelente café, mas onde, por motivos óbvios, não eram vendidas bebidas alcoólicas.
O Dodge seguiu um caminho sinuoso no interior do estacionamento e finalmente parou a três
vagas de distância de um Oldsmobile branco com placa da Pensilvânia e capota de vinil
marrom. O Plymouth estacionou na fila vizinha. Uma mulher saltou do Dodge e caminhou em
direção ao edifício de tijolo aparente, um trajeto que a fez passar pelo Oldsmobile.
— Oi, gatinha — disse um homem.
A jovem parou e deu alguns passos em direção ao conversível. O homem era branco, de
cabelos longos mas bem penteados, e usava uma camisa esporte branca.
— Henry me mandou aqui — disse ela.
— Eu sei. — O homem estendeu a mão para acariciar-lhe o rosto, gesto que a jovem aceitou
passivamente. Ele olhou em volta antes de deslizar a mão para baixo. — Trouxe o material,
gatinha?
— Trouxe.
Ela sorriu. Era um sorriso forçado, constrangido, mas nada envergonhado. Fazia vários meses
que Doris não sabia mais o que era vergonha.
— Gosto dos seus peitinhos — disse o homem, sem nenhuma emoção na voz. — Vá buscar o
material.
Doris caminhou de volta até o carro, como se tivesse esquecido alguma coisa. Voltou com
uma bolsa volumosa, que parecia mais uma sacola. Quando passou pelo Oldsmobile, o homem
estendeu a mão e pegou a bolsa. Doris continuou até o edifício e voltou logo depois com uma
lata de refrigerante, de olho no Plymouth, torcendo para que tudo tivesse funcionado a contento.
O Oldsmobile estava com o motor ligado e o motorista lhe mandou um beijo, a que respondeu
com um leve sorriso.
— Foi moleza — disse Henry Tucker, a cinquenta metros de distância, no restaurante ao ar
livre que ficava do outro lado do edifício.
— O produto é bom? — perguntou o outro homem a Tony Piaggi. Os três estavam sentados à
mesma mesa, "apreciando" a noite quente e abafada, enquanto a maioria dos fregueses preferia
ficar lá dentro, no ar condicionado.
— De primeira. Igual à amostra que dei a vocês duas semanas atrás. Da mesma remessa,
inclusive — assegurou Piaggi.
— E se o avião for apanhado? — perguntou o homem de Filadélfia.
— Não vai falar nada — garantiu Tucker. — Elas todas já viram o que acontece com as
garotas que não sabem se comportar.
Enquanto olhavam, um homem saltou do Plymouth e se sentou no banco do motorista do
Dodge.
— Muito bem — disse Rick para Doris.
— Podemos ir agora? — perguntou a jovem, trêmula, agora que o trabalho tinha terminado,
bebendo nervosamente o refrigerante.
— Claro, gatinha, eu sei o que você quer. — Rick sorriu e ligou o carro. — Agora seja
boazinha. Mostre-me alguma coisa.
— Tem gente por perto — argumentou Doris.
— E daí?
Sem dizer mais nada, Doris desabotoou a camisa (era uma camisa de homem), deixando-a
enfiada no short desbotado. Rick tocou-a e sorriu, girando o volante com a mão esquerda. Podia
ter sido pior, pensou Doris, fechando os olhos, fingindo que era outra pessoa em outro lugar,
imaginando quanto tempo levaria para morrer também, torcendo para que não demorasse muito.
— Onde está o dinheiro? — perguntou Piaggi.
— Preciso de um café. — O outro homem levantou-se e foi até o restaurante, deixando a
maleta, que Piaggi pegou. Ele e Tucker voltaram para o seu carro, um Cadillac azul, sem esperar
que o outro homem retornasse.
— Não vai contar? — perguntou Tucker, já no estacionamento.
— Ele sabe o que aconteceria se tentasse nos passar para trás. Negócios são negócios, Henry.
— Isso é verdade — concordou Tucker.
— Meu nome é Bill Murphy — disse Kelly. — Soube que tem apartamentos para alugar. —
Ele mostrou o jornal de domingo.
— O que tem em mente?
— Um sala-e-quarto seria perfeito. Só preciso de um lugar para deixar minhas roupas. Viajo
muito.
— É vendedor? — perguntou o homem.
— Isso mesmo. Fresas, tornos, coisas assim. Sou novo aqui. Mudei de área, quero dizer.
Era um velho conjunto residencial, construído logo depois da Segunda Guerra Mundial, para
veteranos, constituído exclusivamente de edifícios de três andares em uma área arborizada. As
árvores tinham sido plantadas naquela época e estavam bem desenvolvidas, o suficiente para
sustentarem uma boa população de esquilos e sombrearem os estacionamentos. Kelly fez um ar
de aprovação quando o gerente lhe mostrou um apartamento mobiliado no primeiro andar.
— Este está ótimo — disse. Examinou a pia da cozinha e outros encanamentos. A mobília era
visivelmente usada, mas estava em bom estado. Havia condicionadores de ar nas janelas da sala
e do quarto.
— Tenho outros...
— Gostei deste aqui. Quanto é?
* — Cento e setenta e cinco por mês. Um mês adiantado.
— Gás, luz, telefone?
— Pode pagar diretamente ou deixar por nossa conta. Alguns dos nossos locatários preferem
assim. Vai custar mais uns quarenta e cinco dólares por mês.
— É mais fácil pagar uma conta do que três ou quatro. Vejamos. Cento e setenta e cinco mais
quarenta e cinco...
— São duzentos e vinte — completou o gerente, satisfeito.
— Quatrocentos e quarenta — corrigiu Kelly. — Dois meses, certo?
I
Posso pagar com cheque, mas vai ser de um banco de outra cidade. Ainda não tive tempo de
abrir uma conta aqui. Aceita em dinheiro?
— Não há problema — garantiu o gerente.
— Ótimo. — Kelly tirou a carteira do bolso e fez menção de entregar-lhe o dinheiro. Mudou
de ideia. Não, é melhor eu lhe dar seiscentos e sessenta. Pretendo ficar três meses. E vou
precisar de um recibo. — O gerente, todo sorrisos, tirou um bloco do bolso e se apressou em
preencher o recibo. — Pode me arranjar um telefone? — perguntou Kelly.
— Se quiser, estará instalado na terça. Mas vou precisar de outro depósito.
— Cuide disso para mim, por favor. — Kelly passou-lhe mais algumas notas. — Minha
bagagem ainda não chegou. Onde posso comprar roupas de cama?
— Hoje está tudo fechado, mas amanhã não vai haver problema. Kelly olhou pela porta do
quarto para o colchão nu. A distância podia ver os murundus. Deu de ombros.
— Já dormi em lugares piores.
— Ex-combatente?
— Fuzileiro — respondeu Kelly.
— Eu também — replicou o gerente, surpreendendo Kelly. — Você não tem hábitos
estranhos, tem? — Não tinha razões para desconfiar do rapaz, mas o proprietário exigia que ele
fizesse a pergunta, mesmo para ex-fuzileiros. A resposta foi um sorriso tímido, tranquilizador.
— Dizem que ronco muito.
Vinte minutos depois, Kelly estava em um táxi, a caminho do centro da cidade. Saltou na Penn
Station e tomou o primeiro trem para Washington, onde outro táxi o levou até a marina. Ao
anoitecer, o Springer estava descendo o Potomac. Teria sido muito mais fácil, pensou Kelly, se
tivesse pelo menos uma pessoa para ajudá-lo. Perdia tanto tempo se deslocando de um lugar
para outro! Mas seria realmente tempo perdido? Talvez não. Tinha tempo para pensar e isso era
tão importante quanto os preparativos materiais. Kelly chegou em casa pouco antes da meia-
noite, depois de seis horas de planejamento.
Apesar de ter passado o fim de semana em atividade quase contínua, Kelly não tinha tempo a
perder. Começou a arrumar as malas. Quase toda a roupa tinha sido comprada nos subúrbios de
Washington. Tinha deixado para comprar a roupa de cama em Baltimore. A comida, também. A
.45 automática, juntamente com o conversor de .45 para .22, estava junto com as roupas velhas e
duas caixas de munição. Não precisaria de mais do que isso, pensou Kelly, e os cartuchos eram
pesados. Enquanto fabricava mais um silenciador, desta vez para o Woodsman, pensava nos
preparativos, Sentia-se em ótima forma física, quase tão boa como quando pertencia ao 39
SOG, e vinha praticando tiro ao alvo todo dia. Sua pontaria provavelmente nunca fora tão boa,
pensou, enquanto operava as máquinas quase automaticamente, agora que já tinha experiência.
Às três da manhã, o novo silenciador já estava pronto e testado. Trinta minutos depois, estava
de novo a bordo do Springer, rumando para o norte, antegozando as horas de sono que pretendia
tirar logo que passasse por Annapolis.
Foi uma noite solitária, com nuvens esparsas no céu, e sua mente divagou um pouco antes que
conseguisse se concentrar na tarefa que tinha diante de si. Embora não fosse mais um civil
preguiçoso, permitiu-se a primeira cerveja em várias semanas enquanto examinava as variáveis
do problema. O que se esquecera de considerar? A resposta tranquilizadora foi de que nada lhe
ocorria. O pensamento não tão satisfatório foi o de que ainda sabia muito pouco. Billy e seu
possante Plymouth vermelho. Um negro chamado Henry. Sabia onde costumavam trabalhar. E
era tudo.
Entretanto...
Entretanto, já combatera inimigos bem armados e bem treinados com menos conhecimento
ainda. Embora pretendesse tomar todas as precauções possíveis, no fundo tinha a convicção de
que sairia vitorioso, por duas razões. A primeira era que se julgava mais competente que o
inimigo e muito mais motivado. A segunda, Kelly percebeu, surpreso, era porque não se
importava com as consequências, mas apenas com os resultados. Lembrou-se de algo que
aprendera no colégio católico onde estudara, uma passagem da Eneida de Virgílio que definira
sua missão com quase dois mil anos de antecedência: Una salus victus nullam sperare salutem.
A única salvação para os vencidos é não esperar salvação alguma. A ironia do pensamento o fez
sorrir enquanto navegava à luz das estrelas, luz que vinha de tão longe que começara a viagem
muito antes do seu nascimento ou, mesmo, do nascimento de Virgílio.
As pílulas ajudavam a esquecer a realidade, mas não completamente. Doris não só pensou
nessa ideia como a escutou e a sentiu, parecendo reconhecer algo que não queria mas que se
recusava a ir embora. Já se tornara totalmente dependente de barbitúricos. Tinha dificuldade
para dormir e, no vazio do quarto, não conseguia evitar a si mesma. Teria tomado mais pílulas,
se pudesse, mas não lhe davam tudo o que queria, não que quisesse muito. Apenas um breve
esquecimento, uma libertação temporária do medo, isso era tudo — e era algo que não lhes
interessava. Doris podia ver mais do que eles sabiam ou esperavam, podia entrever o futuro,
mas isso não lhe servia de consolo. Mais cedo ou mais tarde seria apanhada pela polícia. Já
fora presa antes, mas não por algo tão sério, que poderia lhe valer uma longa sentença. A
polícia tentaria induzi-la a falar, prometendo proteção. Doris pretendia ficar de boca calada. Já
tinha visto duas amigas morrerem. Amigas? Tão próximo disso quanto possível, pessoas com
quem conversava, que levavam a mesma vida que ela; mesmo no cativeiro havia pequenas
brincadeiras, pequenas vitórias contra as forças que controlavam a sua existência como luzes
distantes em um céu sombrio. Pessoas que choravam junto com ela. Mas duas delas estavam
moitas, e Doris as vira morrer, ali sentada, drogada mas incapaz de dormir e esquecer de tudo,
sentindo um medo tão grande que a deixava entorpecida, olhando nos olhos das amigas, vendo e
sentindo a dor, sabendo que nada podia fazer, sabendo que elas também sabiam disso. Um
pesadelo era ruim, mas não podia atingir você. Você acordava e descobria que tudo estava bem.
Aquilo, não. Podia observar-se de fora, como se fosse um robô que se recusasse a obedecer aos
seus próprios comandos mas não aos de outras pessoas. Seu corpo não se movia a não ser que
outros ordenassem; Doris se acostumara a esconder os próprios pensamentos. Procurava não
pensar em certas coisas, com medo que eles adivinhassem o que estava pensando. Agora,
porém, por mais que se esforçasse, não conseguia deixar de pensar.
Rick estava deitado ao seu lado, respirando compassadamente no escuro. Parte dela gostava
de Rick. Era o mais carinhoso de todos, e as vezes se permitia pensar que gostava dela, pelo
menos um pouquinho, porque não batia com muita força. Tinha que se comportar bem, é claro,
porque Rick, quando irritado, era igualzinho a Billy; por isso, quando Rick estava por perto,
esforçava-se ao máximo para proceder direito. Parte dela sabia que isso era tolice, mas sua
realidade agora era definida por outras pessoas. E já vira os resultados de uma resistência de
verdade. Depois de uma noite especialmente ruim, Pam lhe contara que estava planejando fugir.
Mais tarde, Doris rezara para que tivesse conseguido escapar, apenas para vê-la chegar
arrastada de volta e assistir à sua morte, sentada, impotente, a cinco metros de distância
enquanto eles faziam com ela tudo o que lhes vinha à cabeça. Ver a vida da amiga acabar, o
corpo sacudido por convulsões devido à falta de oxigênio, com um rosto de homem olhando
para ela, rindo dela a apenas um centímetro de distância. Seu único ato de rebeldia, que
felizmente passara despercebido, fora o de escovar o cabelo da amiga, chorando o tempo todo,
rezando para que de alguma forma Pam soubesse que havia alguém que se importava, mesmo na
morte. Mas o gesto lhe parecia vazio mesmo enquanto o praticava, tornando suas lágrimas ainda
mais amargas.
O que fizera de errado? Qual a grande ofensa que cometera para que Deus a punisse daquela
forma? Como alguém poderia merecer uma existência tão triste e sem esperanças?
— John, estou impressionado — disse Rosen, olhando para o paciente. Kelly estava sentado,
sem camisa, na mesa de exames. — O que foi que você andou fazendo?
— Nado oito quilômetros por dia. É bom para o ombro. Melhor do que levantar peso, mas
faço isso, também, de tarde. E tenho corrido. Mais ou menos o que costumava fazer nos velhos
tempos.
— Gostaria de ter uma pressão igual à sua — comentou o médico, removendo o aparelho.
Tinha feito uma operação complicada naquela manhã, mas arranjara tempo para ver o amigo.
— Faça exercícios, Sam — recomendou Kelly.
— Não tenho tempo, John — disse o médico, de forma pouco convincente.
— Como médico, você devia dar o exemplo.
— Eu sei — admitiu Rosen. — Como está se sentindo?
A resposta foi apenas um olhar. Nem um sorriso nem uma careta; apenas uma expressão
neutra que revelou a Rosen tudo que ele precisava saber. Mais uma tentativa:
— Existe um velho ditado: "Antes de partir para uma vingança, é melhor cavar dois túmulos.”
— Só dois? — perguntou Kelly, com ar inocente.
Rosen fez que sim com a cabeça.
— Eu também li o relatório do legista. Não há jeito de fazê-lo mudar de ideia?
— Como está Sarah?
Rosen aceitou a mudança de assunto com espírito esportivo.
— Trabalhando com afinco no novo projeto. Não fala de outra coisa. f? Nesse momento,
Sandy O'Toole entrou no quarto. Kelly surpreendeu os dois, pegando a camiseta e usando-a para
cobrir o peito.
— Não olhe!
A enfermeira começou a rir e Sam se juntou a ela até se dar conta de que Kelly estava
realmente preparado para ir adiante com seus planos. O condicionamento, a descontração, os
olhos sérios e atentos que se tornavam brincalhões como que por um passe de mágica. Parece
um cirurgião, pensou Rosen, e era uma ideia estranha, mas quanto mais olhava para aquele
homem, mais se impressionava com a sua inteligência.
— Para alguém que levou um tiro, está com ótimo aspecto — disse Sandy, com simpatia.
— É a vida saudável que venho levando. Em mais de um mês, só tomei uma cerveja.
— Dr. Rosen, a Sra. Lott já acordou — informou Sandy. — Está passando bem. O marido
apareceu para vê-la. Também acho que vai ficar bem. Eu tinha minhas dúvidas.
— Obrigado, Sandy.
— Bem, John, você também está ótimo. Vista a camisa antes que Sandy comece a ficar
envergonhada — acrescentou Rosen, com uma risada.
— Onde se pode almoçar por aqui? — perguntou Kelly.
— Eu lhe mostraria pessoalmente, mas tenho uma conferência me esperando em dez minutos.
Sandy?
A enfermeira olhou para o relógio.
— Está quase na hora do meu almoço. Quer se arriscar com a comida do hospital ou vamos
comer fora?
— A senhora é quem manda.
Ela o levou até o restaurante self-service, onde a comida era quase de dieta, mas os fregueses
podiam acrescentar sal e outros temperos, se quisessem. Kelly escolheu algo que parecia
substancial para compensar a falta de gosto.
— Tem se mantido ocupada? — perguntou à enfermeira, depois que escolheram uma mesa.
— Sempre — assegurou-lhe Sandy, — Onde você mora?
— Perto do Loch Raven Boulevard, na divisa do condado.
Ela não mudara nada, pensou Kelly. Sandy O'Toole estava funcionando, muito bem na
verdade, mas o vazio em sua vida não era muito diferente do seu. A maior diferença era que ele
podia fazer alguma coisa, mas ela, não. Sandy estava tentando refazer a vida, era uma pessoa
naturalmente bem-humorada, mas a tristeza a espreitava em cada esquina. Uma força muito
poderosa, a tristeza. Havia vantagens em ter inimigos que você podia perseguir e eliminar. Lutar
contra uma sombra era muito mais difícil.
— É uma casa de vila?
— Não. É mais um bangalô, uma grande casa quadrada de dois andares, O terreno tem meio
acre. Isso me faz lembrar que este fim de semana tenho que aparar a grama — acrescentou.
De repente, Sandy se lembrou de que Tim gostava de aparar a grama, de que decidira deixar
o Exército, após servir pela segunda vez no Vietnã, terminar o curso de direito e levar uma vida
normal. Tudo isso lhe fora roubado por um povo pequeno em um lugar distante.
Kelly não sabia em que Sandy estava pensando, exatamente, mas não era necessário saber. A
mudança de expressão dizia tudo. O que fazer para animá-la? Era uma pergunta estranha,
considerando o que planejava fazer nas próximas semanas, — Você foi muito boa para mim
quando eu estava internado. Obrigado.
— Procuramos cuidar bem dos nossos pacientes — respondeu a enfermeira, com um sorriso
amável.
— Uma mulher bonita como você devia fazer isso com mais frequência.
— Fazer o quê?
— Sorrir.
— É difícil — observou Sandy, novamente séria.
— Eu sei. Mas já consegui fazer você rir.
— Você me pegou de surpresa.
— É por causa de Tim, não é? — perguntou, assustando-a. As pessoas não costumavam
abordar aquele assunto com ela.
Sandy olhou Kelly nos olhos durante uns cinco segundos. — Eu simplesmente não
compreendo.
— Sob certos aspectos, é fácil. Sob outros aspectos, é difícil. A parte difícil — disse Kelly,
desenvolvendo o pensamento enquanto falava — é compreender por que essas coisas precisam
acontecer, por que as pessoas fazem coisas assim. A verdade é que existem pessoas malvadas
no mundo e alguém tem que acabar com elas antes que acabem com a gente. Podemos tentar
ignorá-las, mas isso não funciona, pelo menos a longo prazo. Além disso, às vezes você assiste
a coisas que simplesmente não pode ignorar. — Kelly recostou-se no assento, em busca de
novas palavras. — A gente vê muitas coisas ruins neste país, Sandy. O que eu já vi...
— É o seu pesadelo particular?
Kelly fez que sim.
— Isso mesmo. Naquela noite, quase me mataram.
— O que você...
— Você não gostaria de saber. Falo sério. Eu também não compreendo por que as pessoas
fazem coisas assim. Talvez acreditem em alguma coisa com tanta convicção que para elas os
sentimentos não significam mais nada. Talvez desejem alguma coisa com tanta sofreguidão que
deixam de se importar com os outros. Talvez simplesmente haja algo de errado com elas, na
forma como pensam, na forma como sentem. Não sei. Mas o que fazem é real. Alguém precisa
tentar detê-las. — Mesmo quando você sabe que não vai dar certo, pensou Kelly, mas não teve
coragem de dizer. Como poderia contar a Sandy que o marido morrera em vão?
— Meu marido era um cavaleiro andante, montado em um cavalo branco? É isso que está
tentando me dizer?
— É você quem se veste de branco, Sandy. Você luta contra um tipo de inimigo. Existem
outros tipos. Alguém tem que lutar contra eles, também.
— Nunca vou entender por que Tim teve que morrer.
Tudo se resumia a isso, pensou Kelly. Não era um questão política ou social. Todos tinham
uma vida, que deveria ter um fim natural após um período de tempo determinado por Deus, pelo
destino ou por outro fator que os homens não podiam controlar. Tinha visto muitos jovens
morrerem, alguns deles por suas próprias mãos; cada uma dessas vidas era valiosa para o seu
dono e para outras pessoas. Como explicar a essas pessoas que isso era necessário? A
propósito: como explicar a si próprio? Mas estava raciocinando de fora para dentro. De dentro
para fora, era diferente. Talvez esta fosse a resposta.
— Você trabalha duro, não é mesmo?
— É verdade — concordou Sandy.
— Por que não escolhe uma atividade mais simples? Quero dizer: por que não pede
transferência para outro setor do hospital, não sei... o berçário, talvez? É um lugar alegre, não
é?
— Muito alegre — admitiu a enfermeira.
— Mas não é por isso que deixa de ser importante, certo? Cuidar de recém-nascidos pode ser
um trabalho de rotina, mas envolve muita responsabilidade, não é?
— Claro.
— Mas você não trabalha no berçário. Prefere a neurocirurgia, onde o trabalho é muito mais
difícil.
— Ora, alguém tem que...
Na mosca, pensou Kelly, interrompendo-a.
— É um trabalho difícil e que às vezes chega a ser penoso, não concorda?
— Às vezes.
— Mas você não deixa de fazê-lo.
— É verdade — disse Sandy, não como uma admissão, mas como algo muito mais forte.
— O mesmo se poderia dizer de Tim. — Kelly viu um rasgo de compreensão antes que a dor
a fizesse rejeitar o argumento.
— Para mim, ainda não faz sentido.
— Talvez os fatos não façam sentido, mas as pessoas, sim — sugeriu Kelly. Era até onde sua
imaginação podia chegar. — Desculpe. Eu não sou um padre. Apenas um velho marinheiro
alquebrado.
— Não tão alquebrado assim — protestou Sandy, acabando de comer.
— Você contribuiu muito para isso. Obrigado — disse Kelly, e foi imediatamente
recompensado com um sorriso.
— Nem todos os nossos pacientes se recuperam. Ficamos orgulhosos daqueles que o
conseguem.
— Talvez estejamos todos tentando salvar o mundo, Sandy, um pouquinho de cada vez —
observou Kelly. Ele se levantou e insistiu em acompanhá-la de volta à enfermaria. Levou cinco
minutos para criar coragem e dizer o que queria.
— Eu estava pensando, quem sabe, que tal a gente sair para jantar um dia desses? Não agora,
mas...
— Vou pensar — concedeu Sandy, em parte rejeitando a ideia, em parte sentindo-se atraída
por ela, ciente, como Kelly, de que era cedo demais para ambos, embora provavelmente não
tanto para ela. Que tipo de homem era aquele?, perguntou-se. Quais eram os perigos de
conhecê-lo?
13

AGENDAS

Era a primeira vez que punha os pés no Pentágono. Kelly se sentia pouco à vontade. Imaginou
se deveria ter colocado o uniforme caqui de suboficial, mas o seu tempo de usar uniformes já
passara. Estava vestindo um terno azul, com uma miniatura da fita da Cruz do Mérito Naval na
lapela. Chegando ao túnel para ônibus e automóveis, subiu uma rampa e procurou por um mapa
do grande edifício, que examinou rapidamente e memorizou. Cinco minutos depois, entrou no
escritório certo.
— Sim? — perguntou um suboficial.
— Meu nome é John Kelly. Tenho hora marcada com o almirante Maxwell.
Foi convidado a sentar-se. Em cima da mesinha havia um exemplar da Navy Times, revista
que não lia desde que deixara o serviço ativo. Mas Kelly conseguiu controlar sua nostalgia. As
queixas e reclamações não tinham mudado quase nada.
— Sr. Kelly? — chamou uma voz.
Kelly se levantou e entrou. Depois que a porta se fechou, uma luz vermelha se acendeu para
evitar que fossem perturbados.
— Como está se sentindo, John? — perguntou Maxwell, antes de mais nada.
— Muito bem, senhor. Obrigado.
Civil ou não, Kelly não podia deixar de ficar nervoso na presença de um oficial superior. A
sensação piorou quando outra porta se abriu para admitir mais dois homens, um em trajes civis
e outro usando um uniforme de contra-almirante. Também era um aviador, observou Kelly, e
ganhara a medalha de honra, o que era ainda mais intimidativo. Maxwell fez as apresentações.
— Já ouvi falar muito de você — afirmou Podulski, apertando a mão do rapaz.
— Obrigado, senhor — replicou Kelly, à falta de algo melhor para dizer, — Cas e eu somos
amigos de longa data — comentou Maxwell. — Eu consegui derrubar quinze — apontou para o
pedaço de fuselagem pendurado na parede — e Cas dezoito.
— Tudo muito bem documentado — garantiu Podulski.
— Eu não derrubei nenhum — afirmou Greer — mas também não deixei o oxigênio
apodrecer o meu cérebro.
Além de usar roupas civis, aquele almirante estava com a pasta dos mapas. Pegou um deles, o
mesmo que Kelly tinha em casa, mas com mais anotações. Depois tirou da pasta algumas
fotografias. Kelly reconheceu o rosto do coronel Zacharias, bem mais nítido depois que a
fotografia fora submetida a algum tipo de processamento. Era muito parecido com a fotografia
3x4 que Greer colocou ao lado.
— Eu estive a menos de cinco quilômetros desse lugar — observou Kelly. — Ninguém me
disse que...
— O campo ainda não existia. Este lugar é novo. Tem menos de dois anos — explicou Greer.
— Mais alguma foto, James? — perguntou Maxwell.
— Apenas algumas tiradas por SR-71 de grande altitude. Nada de interessante. Encarreguei
um sujeito de verificar todas as fotografias que já foram tiradas do campo. É um homem de
confiança, ex-piloto da Força Aérea. Eu sou seu único contato.
— Você vai ser um ótimo espião — observou Podulski, rindo.
— Precisam de mim aqui — replicou Greer, em tom de brincadeira, mas dando a entender
que falava a sério.
Kelly limitou-se a ficar olhando para os três. Era parecido com as brincadeiras entre os
suboficiais, só que usando uma linguagem bem menos pesada.
Greer Virou-se novamente para Kelly.
— Fale-me sobre aquele vale.
— Não gostaria de voltar lá...
— Primeiro, conte-me como conseguiu resgatar o filho de Dutch Não omita nenhum detalhe
— ordenou Greer.
Kelly precisou de quinze minutos para fazer o relato, desde o momento em que deixara o USS
Skate até o ponto em que ele e o tenente Maxwell foram recolhidos no estuário do rio por um
helicóptero e levados para bordo do Kitty Hawk. Era uma história fácil de contar. O que o
surpreendeu foram os olhares que os almirantes trocaram enquanto estava falando.
Kelly ainda não estava preparado para compreender aqueles olhares. Não pensava nos
almirantes como velhos ou mesmo como pessoas humanas. Para ele, eram almirantes, seres
superiores, sem idade definida, com poderes quase divinos, que tomavam todas as decisões
importantes e tinham a aparência que deviam ter, até mesmo o que estava à paisana. Kelly
também não pensava em si mesmo como um jovem. Estivera na guerra, o que muda um homem
para sempre. Do ponto de vista dos almirantes, porém, era diferente. Para Maxwell, Podulski e
Greer, aquele rapaz não era muito diferente do que tinham sido trinta anos antes. Para cies, era
óbvio que Kelly era um guerreiro, e ao vê-lo estavam vendo a si mesmos. Os olhares furtivos
que trocaram eram como os de um avô vendo o neto andar pela primeira vez no tapete da sala
de estar. Entretanto, esses eram passos maiores e muito mais sérios.
— Foi uma missão difícil — observou Greer, quando Kelly terminou. — Quer dizer que a
região é densamente povoada?
— Sim e não, senhor. Quero dizer: não há nenhuma cidade por perto, mas existem pequenas
fazendas. Ouvi e vi gente passando na estrada. Uns poucos caminhões, mas muitas bicicletas,
carros de boi, coisas assim.
— Não viu veículos militares? — perguntou Podulski.
— Almirante, os militares usam outra estrada. — Kelly colocou o dedo no mapa. Ele viu as
indicações das unidades do Exército do Vietnã do Norte. — Como pretendem chegar lá?
— Não vai ser fácil, John. Pensamos em um desembarque de helicóptero. Ou talvez, quem
sabe, começar com um ataque anfíbio e abrir caminho pela estrada até o campo.
Kelly sacudiu a cabeça.
— Não daria certo. Esta estrada é muito fácil de defender. Os senhores precisam
compreender que o Vietnã é uma nação em guerra. Praticamente todos os habitantes já usaram
uniforme e dar armas à população faz com que ela se sinta mais participante. Se tentarem usar a
estrada, vão encontrar uma grande resistência por parte dos camponeses armados.
— A população realmente está do lado do governo comunista? — perguntou Podulski. Era
difícil para ele acreditar, mas não para Kelly.
— Almirante, por que acha que a guerra ainda não terminou? Por que acha que ninguém ajuda
nossos pilotos abatidos? Os vietnamitas não gostam de nós. Isso é uma coisa que nos recusamos
a aceitar. Seja como for, se tentarem desembarcar fuzileiros no litoral, eles não vão ser
recebidos de braços abertos. Esqueçam a ideia de usar a estrada, senhores. Eu já estive lá. A
estrada não é tão boa como parece nessas fotografias. Basta derrubar algumas árvores para
torná-la intransitável. — Kelly levantou os olhos. — Terá que ser de helicóptero.
Pôde ver que os almirantes não tinham gostado da novidade, e não era difícil compreender
por quê. Aquela parte do país estava cheia de baterias antiaéreas. Não seria fácil passar com
um helicóptero. Pelo menos dois daqueles homens eram pilotos. Se estavam pensando na
possibilidade de um ataque por terra, o problema do fogo antiaéreo devia ser pior do que Kelly
imaginava.
— Podemos eliminar as baterias — sugeriu Maxwell.
— Você não está pensando de novo nos B-52, está? — perguntou Greer.
— O Newport News vai voltar à frente de combate daqui a algumas semanas. Já o viu em
ação, John?
Kelly assentiu.
— Já. Ele nos deu cobertura duas vezes, quando estávamos trabalhando perto da costa. O
poder de fogo desses canhões de vinte milímetros é impressionante. O problema, senhor, é o
seguinte: quantas coisas têm que funcionar bem para que a missão seja um sucesso? Quanto mais
complicada a missão, maiores as chances de que algo dê errado.
Kelly recostou-se no sofá e se deu conta de que o que acabara de dizer não se aplicava
apenas ao problema proposto pelos almirantes.
— Dutch, temos uma reunião daqui a cinco minutos — disse Podulski, com relutância. O
encontro não tinha sido o sucesso que esperava, pensou. Greer e Maxwell não pareciam tão
certos. Tinham aprendido algumas coisas. Isso fazia diferença.
— Podem me dizer por que tanto segredo? — perguntou Kelly.
— Você já adivinhou o motivo. — Maxwell olhou para Greer e fez um sinal com a cabeça.
— No caso de Song Tay, o inimigo foi informado — disse Greer. — Não sabemos como, mas
mais tarde descobrimos, através de uma de nossas fontes, que eles sabiam, ou pelo menos
suspeitavam, que alguma coisa estava para acontecer. Como não agiram a tempo, acabamos
chegando lá depois que os prisioneiros foram evacuados, mas antes que montassem uma
emboscada. Podia ter sido pior. Parece que eles esperavam que a operação PINO MESTRE
acontecesse no mês seguinte.
— Minha nossa! — exclamou Kelly. — Fomos traídos por alguém daqui?
— Seja bem-vindo ao mundo da espionagem — disse Greer, com um sorriso irônico.
— Mas por que fariam isso?
— Se um dia me encontrar com o cavalheiro, não me esquecerei de perguntar. — Greer olhou
para os outros. — Ele nos deu uma ideia. Verificar, com muita discrição, todos os registros do
plano.
— Onde estão?
— Na base aérea de Eglin, onde os participantes da operação PINO MESTRE foram
treinados.
— Quem vamos mandar? — perguntou Podulski. Kelly percebeu que todos estavam olhando
para ele.
— Senhores, eu era apenas um suboficial, lembram-se?
— Kelly, onde deixou o carro?
— Na cidade, senhor. Vim para cá de ônibus.
— Venha comigo. Depois eu deixo você em um ponto de ônibus. Saíram do edifício em
silêncio. O carro de Greer, um Mercury, estava estacionado em uma vaga de visitante perto da
entrada lateral. Fez um gesto para que Kelly entrasse e saíram em direção ao George
Washington Farkway.
— Dutch me mostrou a sua ficha. Fiquei muito impressionado, filho. — O que Greer não
disse foi que nos exames de alistamento Kelly tinha tirado uma média de 147 nos três testes de
Q.I. a que se submetera. — Todos os seus comandantes o elogiaram.
— Tive ótimos comandantes, senhor.
— Parece que sim, e três deles tentaram colocá-lo na escola de oficiais. Mas Dutch já lhe
perguntou sobre isso. O que quero saber é por que não aceitou a bolsa para a faculdade.
— Eu não queria mais estudar. Além disso, a bolsa era para natação, almirante.
— Isso é importante em Indiana, eu sei, mas suas notas eram suficientemente boas para você
pleitear uma bolsa regular. Frequentou uma ótima escola preparatória...
— Com uma bolsa de estudos, também. — Kelly deu de ombros. — Ninguém da minha
família cursou a faculdade. Papai serviu na Marinha durante a guerra. Achou que parecia uma
boa carreira. — O fato de que tinha sido uma grande decepção para o pai era uma coisa que
jamais contara a ninguém.
Greer pensou um pouco. Ainda não estava satisfeito com a explicação.
— A última embarcação que comandei foi um submarino, o Daniel Webster. Meu imediato,
um especialista em sonar, tinha um doutorado em física. Era um bom homem. Conhecia o seu
trabalho melhor do que eu conhecia o meu. Entretanto, não era um líder. Às vezes fugia às suas
responsabilidades. Você nunca fugiu de suas responsabilidades, Kelly. Pode ter tentado, mas não
conseguiu.
— Senhor, quando a gente está lá e as coisas acontecem, alguém tem que tomar uma
providência.
— Nem todo mundo pensa dessa forma, Kelly. Existem dois tipos de pessoas no mundo: os
que precisam ser mandados e os que resolvem as coisas por si próprios — sentenciou Greer.
Kelly não conseguiu ver direito o que dizia a placa da rodovia, mas não tinha nada a ver com
a CIA. Só começou a desconfiar quando viu a guarita avantajada.
— Teve contato com agentes da CIA quando estava no Vietnã? Kelly fez que sim.
— Algum. Trabalhamos... ora, posso falar à vontade. O senhor sabe do projeto PHOENIX,
certo? Trabalhamos no projeto PHOENIX.
— Qual foi a sua impressão do pessoal da CIA?
— Dois ou três deles eram muito bons. O resto... quer que eu seja sincero?
— É exatamente o que eu quero — assegurou-lhe Greer, — O resto provavelmente sabe
preparar um excelente martíni: sacudindo, sem mexer — afirmou Kelly, muito sério, fazendo
Greer dar uma sonora gargalhada.
— Tem razão. Essa turma vai muito ao cinema! — Greer estacionou em uma vaga cativa e
abriu a porta do carro. — Venha comigo, Kelly. — O almirante à paisana entrou com Kelly pela
porta da frente e lhe arranjou um passe especial de visitante, do tipo que exigia um
acompanhante.
Kelly estava se sentindo como um turista em um país distante e desconhecido. Apropria
normalidade do edifício lhe dava um ar sinistro. Embora fosse um prédio de escritórios como
muitos do governo, e relativamente novo, o quartel-general da CIA tinha uma espécie de aura,
Era quase como se tivesse deixado para trás o mundo real. Greer captou a sua expressão e
sorriu, conduzindo-o a um elevador que os deixou no seu escritório, no sexto andar. Só tomou a
falar depois que fechou a porta de madeira.
— Como está a sua agenda para a próxima semana?
— Flexível. Não tenho nenhum compromisso inadiável — respondeu Kelly, cautelosamente.
James Greer fez que sim com a cabeça, com ar compreensivo.
— Dutch me falou a respeito disso, também. Sinto muito, Kelly, mas no momento tenho que
me preocupar com vinte colegas, homens de valor que provavelmente nunca mais tornarão a ver
suas famílias a menos que a gente faça alguma coisa.
Estendeu a mão para uma das gavetas da escrivaninha.
— Agora me deixou confuso, senhor.
— Kelly, podemos fazer a coisa da maneira fácil ou da maneira difícil. Da maneira difícil,
Dutch telefona para alguém e você é reconvocado para o serviço ativo — disse Greer, muito
sério. — Da maneira fácil, vem trabalhar comigo como consultor civil. Vai ganhar mais do que
o soldo de suboficial.
— Para fazer o quê?
— Para começar, quero que dê um pulo à base aérea de Eglin. Pode voar até Nova Orleans e
completar a viagem em um carro alugado. Isto lhe dará acesso a todos os registros —
acrescentou, jogando um cartão de identificação no colo de Kelly. — O plano de operações
pode servir de modelo para o que pretendemos fazer.
Kelly olhou para o cartão. Tinha um retrato seu do tempo da Marinha, que mostrava apenas o
rosto, como em um passaporte.
— Espere um momento, senhor. Não estou qualificado...
— Na verdade, acho que está, sim, mas não queremos dar essa impressão. Não, você é
apenas um consultor sem importância recolhendo informações para um relatório de rotina que
ninguém se dará ao trabalho de ler. Caso ainda não saiba, é assim que gastamos metade do
orçamento deste maldito órgão — disse Greer, sua irritação com a CIA fazendo-o exagerar um
pouco. — Queremos que pareça uma coisa totalmente inócua.
— Estão falando sério a respeito desta operação?
— Kelly, Dutch Maxwell está disposto a sacrificar a carreira por aqueles homens. Eu
também. Se houver alguma forma de resgatá-los...
— E as negociações de paz?
Como vou explicar a este menino?, perguntou-se Greer.
— O coronel Zacharias está oficialmente morto. O outro lado nos comunicou que estava
morto. Chegaram a nos mandar uma foto do corpo. Alguém foi à casa dele, junto com o capelão
da base e a esposa de outro aviador, para dar a triste notícia à mulher. Disseram que tinha uma
semana para ir buscar as coisas do marido, apenas para tornar as coisas oficiais. Ele está
oficialmente morto — insistiu Greer. — Estou participando de negociações muito delicadas
com o outro lado e nós... — as palavras estavam saindo com dificuldade — ...nosso país não
gostaria de pôr em risco as negociações de paz por causa de um assunto como este. As fotos de
que dispomos, mesmo depois de processadas, não podem ser usadas como prova em um
tribunal, de acordo com os padrões atuais. Não podemos atender aos padrões atuais, e os
homens que os estabeleceram sabem disso. Eles não querem que as conversações de paz sejam
interrompidas, e se as vidas de mais vinte homens forem o preço necessário para acabar com
esta maldita guerra, que assim seja. Esses homens serão sacrificados.
Kelly não podia acreditar no que estava ouvindo. Quantas pessoas os Estados Unidos
sacrificavam todo ano? E nem todas eram militares, eram? Alguns estavam ali mesmo, nas
cidades americanas.
— A coisa é tão feia assim?
A fadiga no rosto de Greer era inconfundível.
— Sabe por que aceitei este trabalho? Estava pronto para passar para a reserva. Já servi à
Marinha durante muitos anos. Comandei meus navios. Cumpri minha parte. Estava pronto para
morar em uma bela casa, jogar golfe duas vezes por semana e fazer um trabalhinho ou outro de
consultoria para passar o tempo, OK? Kelly, muita gente chega a um lugar como este e a
realidade para eles é um relatório. Concentram-se no "processo" e se esquecem de que existe
um ser humano no final da papelada. Foi por isso que fiquei. Alguém tem que tentar pôr um
pouquinho de realidade de volta ao processo. Estamos considerando esta missão como um
projeto "negro". Sabe o que isso significa?
— Não, senhor.
— É um termo que foi criado há pouco tempo. Significa que ele não existe. É um absurdo.
Não devia ser assim, mas é. Posso contar com você ou não?
Nova Orleans... Os olhos de Kelly se estreitaram por um momento que se arrastou durante
quinze segundos antes que assentisse devagar.
— Se acha que posso ajudar, senhor, então o farei. De quanto tempo disponho?
Greer sorriu e deixou cair uma passagem de avião no colo de Kelly.
— Sua identidade está em nome de John Clark; vai ser fácil lembrar, O voo parte amanhã à
tarde. A passagem de volta está em aberto, mas quero vê-lo de volta na sexta-feira. Espero que
faça um bom trabalho. Meu cartão e meu número particular estão aí dentro. Vá fazer as malas,
filho.
— Sim, senhor.
Greer levantou-se e acompanhou Kelly até a porta.
— Traga recibos de tudo. Quem trabalha para Tio Sam deve fazer questão de que todas as
despesas a serviço sejam reembolsadas.
— Vou fazer isso, senhor — assegurou Kelly, com um sorriso.
— Você pode pegar um ônibus azul para o Pentágono aí fora.
Greer voltou para o trabalho enquanto Kelly deixava o edifício. Kelly caminhou até o ponto
coberto e logo depois o ônibus azul apareceu. Foi uma viagem curiosa. Metade dos passageiros
era militar e metade era civil. Ninguém falava com ninguém, como se um simples cumprimento
ou um comentário a respeito do fato de que os Washington Senators continuavam na lanterna do
campeonato constituísse uma violação da segurança. Ele sorriu e abanou a cabeça até se
lembrar dos seus próprios segredos e intenções. E no entanto... Greer tinha lhe oferecido uma
oportunidade de desistir, que não aproveitara. Kelly recostou-se no banco e ficou olhando pela
janela, enquanto os outros passageiros do ônibus olhavam fixamente para a frente.

— Eles gostaram — afirmou Piaggi.


— Não disse? Ter o melhor produto do mercado ajuda muito.
— Nem todo mundo ficou satisfeito. Tem gente guardando um estoque de produto francês e
derrubamos o preço com nossa oferta especial de lançamento.
Tucker se permitiu uma boa gargalhada. Há muitos anos que a "velha guarda" vinha
explorando os clientes, aproveitando-se do monopólio. Qualquer um teria tomado os dois por
homens de negócios, ou talvez advogados, já que havia muitos representantes das duas
profissões naquele restaurante, a duas quadras do novo tribunal. Piaggi estava mais bem
vestido, com um terno de seda italiana, e pensou consigo mesmo que talvez devesse apresentar
Henry ao seu alfaiate. Pelo menos o cara tinha aprendido a se arrumar. Pena que continuasse a
usar roupas espalhafatosas. Respeitável era a palavra certa. O suficiente para que as pessoas o
tratassem com deferência. Os que chamavam a atenção, como os cafetões, estavam fazendo um
jogo perigoso que não tinham inteligência suficiente para compreender.
— Da próxima vez, cobraremos o dobro. Seus amigos vão concordar?
— Não tenho a menor dúvida. O pessoal de Philly, então, não tem outra saída. O fornecedor
principal deles sofreu um pequeno acidente.
— É, eu vi ontem no jornal. Não foi um serviço muito bem-feito. Gente demais na equipe,
certo?
— Henry, você está ficando cada vez mais esperto. Não vá exagerar, OK? Tome isto como um
conselho de amigo.
— Está certo, Tony. O que eu queria dizer é que não devemos cometer o mesmo tipo de erro...
Piaggi relaxou e bebeu um gole de cerveja.
— Tem razão, Henry. E não me importo de dizer que é ótimo fazer negócio com alguém que
sabe se organizar. Muita gente gostaria de saber de onde vem o seu material. Estou lhe dando
cobertura. Mais tarde, porém, se precisar de mais capital...
Os olhos de Tucker faiscaram por um momento.
— Não, Tony. Nem agora, nem nunca.
— Tudo bem, tudo bem. Podemos voltar ao assunto em outra ocasião.
Tucker fez que sim, aparentemente deixando de lado a questão, mas imaginando que tipo de
golpe o "sócio" poderia estar planejando. A confiança, naquele tipo de negócio, era uma
grandeza variável. Esperava que Tony pagasse em dia. Oferecera a Piaggi condições favoráveis,
que tinham sido aceitas, e os ovos postos por aquela galinha eram o seu seguro de vida. Já
chegara ao ponto em que um pagamento a menos não estragaria a sua operação, e enquanto
dispusesse de um suprimento de heroína de boa qualidade, fariam negócio, Era por isso que os
procurara em primeiro lugar. Entretanto, não havia nenhuma lealdade envolvida, O que havia
era uma simples coincidência de interesses. Henry jamais esperara mais do que isso. Mas se o
sócio começasse a se meter com o seu sistema de abastecimento...
Piaggi estava preocupado com a possibilidade de ter pressionado j demais o sócio e
imaginava se Tucker compreendia perfeitamente o potencial do que estavam fazendo. Controlar
a distribuição de toda a Costa Leste, e fazê-lo a partir de uma organização sólida e confiável,
era como um sonho que se tornasse realidade. Certamente precisariam de mais capital no futuro
próximo, e seus contatos já estavam prontos para ajudar. Mas pôde ver que Tucker levara a mal
a pergunta e se insistisse, tentando convencê-lo de sua boa-fé, só tornaria as coisas piores.
Assim, Piaggi continuou a comer e resolveu deixar as coisas como estavam por um tempo. Era
uma pena. Tucker era um fichinha muito esperto, mas no fundo ainda era um fichinha. Talvez
aprendesse a crescer. Jamais chegaria ao topo, mas poderia se tornar um homem importante na
organização.
— Na próxima sexta-feira está bom? — perguntou Tucker.
— Ótimo. Continue a agir com prudência. Continue a agir com inteligência.
— Deixe comigo.

O voo foi sem novidades, em um 737 da Piedmont que saiu do aeroporto internacional da
Amizade. Kelly viajou na classe econômica e a aeromoça serviu um almoço leve. Voar sobre os
Estados Unidos era muito diferente de suas outras aventuras no ar. Ficou surpreso com o número
de piscinas. Por todos os lugares em que o avião passou, desde que decolou do aeroporto,
mesmo nas colinas no Tennessee, o sol se refletia nos pequenos retângulos de água azul-
esverdeada, cercados por verdes gramados. O país parecia um lugar tranquilo, confortável, até
ser visto de perto. Mas pelo menos não precisava se preocupar com as baterias antiaéreas.
O pessoal da Avis tinha um carro à sua espera, juntamente com um mapa. Descobriu que
poderia ter voado para Panamá City, Flórida, mas Nova Orleans, pensou, fora uma boa escolha.
Jogou as duas malas no compartimento de bagagem e rumou para leste. Era como dirigir o
barco, só que no meio de um trânsito um pouco mais movimentado. Um tempo morto durante o
qual podia deixar os pensamentos vagarem, examinar possibilidades e procedimentos, os olhos
atentos ao trânsito enquanto a mente via algo totalmente diverso, Foi então que começou a sorrir,
um sorriso tímido, contido, enquanto fazia uma análise fria e detalhada das últimas semanas.
Quatro horas depois de aterrissar, tendo passado pela extremidade meridional dos estados de
Mississippi e Alabama, parou o carro no portão principal da base aérea de Eglin. Parecia o
lugar ideal para treinar os participantes da operação PINO MESTRE, já que o calor e a
umidade reproduziam quase exatamente as condições do país para onde tinham sido finalmente
enviados. Kelly esperou do lado de fora da guarita até que um carro azul da Força Aérea saiu
para recebê-lo, Um oficial saltou do carro.
— Sr. Clark?
— Ele mesmo.
Entregou ao oficial seu cartão de identificação. O oficial bateu continência.
— Obrigado, senhor — replicou Kelly, à falta de algo melhor para dizer.
— Cas e eu somos amigos de longa data — comentou Maxwell. — Eu consegui derrubar
quinze — apontou para o pedaço de fuselagem pendurado na parede — e Cas dezoito.
— Tudo muito bem documentado — garantiu Podulski.
— Eu não derrubei nenhum — afirmou Greer — mas também não deixei o oxigênio
apodrecer o meu cérebro.
Além de usar roupas civis, aquele almirante estava com a pasta dos mapas. Pegou um deles, o
mesmo que Kelly tinha em casa, mas com mais anotações. Depois tirou da pasta algumas
fotografias. Kelly reconheceu o rosto do coronel Zacharias, bem mais nítido depois que a
fotografia fora submetida a algum tipo de processamento. Era muito parecido com a fotografia
3x4 que Greer colocou ao lado.
— Eu estive a menos de cinco quilômetros desse lugar — observou Kelly. — Ninguém me
disse que...
— O campo ainda não existia. Este lugar é novo. Tem menos de dois anos — explicou Greer.
— Mais alguma foto, James? — perguntou Maxwell.
— Apenas algumas tiradas por SR-71 de grande altitude. Nada de interessante. Encarreguei
um sujeito de verificar todas as fotografias que já foram tiradas do campo. É um homem de
confiança, ex-piloto da Força Aérea. Eu sou seu único contato.
— Você vai ser um ótimo espião — observou Podulski, rindo.
— Precisam de mim aqui — replicou Greer, em tom de brincadeira, mas dando a entender
que falava a sério.
Kelly limitou-se a ficar olhando para os três. Era parecido com as brincadeiras entre os
suboficiais, só que usando uma linguagem bem menos pesada.
Greer virou-se novamente para Kelly.
— Fale-me sobre aquele vale.
— Não gostaria de voltar lá...
— Primeiro, conte-me como conseguiu resgatar o filho de Dutch Não omita nenhum detalhe
— ordenou Greer.
Kelly precisou de quinze minutos para fazer o relato, desde o momento em que deixara o USS
Skate até o ponto em que ele e o tenente Maxwell foram recolhidos no estuário do rio por um
helicóptero e levados para bordo do Kitty Hawk. Era uma história fácil de contar. O que o
surpreendeu foram os olhares que os almirantes trocaram enquanto estava falando.
Kelly ainda não estava preparado para compreender aqueles olhares. Não pensava nos
almirantes como velhos ou mesmo como pessoas humanas. Para ele, eram almirantes, seres
superiores, sem idade definida, com poderes quase divinos, que tomavam todas as decisões
importantes e tinham a aparência que deviam ter, até mesmo o que estava à paisana. Kelly
também não pensava em si mesmo como um jovem. Estivera na guerra, o que muda um homem
para sempre. Do ponto de vista dos almirantes, porém, era diferente. Para Maxwell, Podulski e
Greer, aquele rapaz não era muito diferente do que tinham sido trinta anos antes. Para eles, era
óbvio que Kelly era um guerreiro, e ao vê-lo estavam vendo a si mesmos. Os olhares furtivos
que trocaram eram como os de um avô vendo o neto andar pela primeira vez no tapete da sala
de estar. Entretanto, esses eram passos maiores e muito mais sérios.
— Foi uma missão difícil — observou Greer, quando Kelly terminou. — Quer dizer que a
região é densamente povoada?
— Sim e não, senhor. Quero dizer: não há nenhuma cidade por perto, mas existem pequenas
fazendas. Ouvi e vi gente passando na estrada. Uns poucos caminhões, mas muitas bicicletas,
carros de boi, coisas assim.
— Não viu veículos militares? — perguntou Podulski.
— Almirante, os militares usam outra estrada. — Kelly colocou o dedo no mapa. Ele viu as
indicações das unidades do Exército do Vietnã do Norte. — Como pretendem chegar lá?
— Não vai ser fácil, John. Pensamos em um desembarque de helicóptero. Ou talvez, quem
sabe, começar com um ataque anfíbio e abrir caminho pela estrada até o campo.
Kelly sacudiu a cabeça.
— Não daria certo. Esta estrada é muito fácil de defender. Os senhores precisam
compreender que o Vietnã é uma nação em guerra. Praticamente todos os habitantes já usaram
uniforme e dar armas à população faz com que ela se sinta mais participante. Se tentarem usar a
estrada, vão encontrar uma grande resistência por parte dos camponeses armados.
— A população realmente está do lado do governo comunista? — perguntou Podulski. Era
difícil para ele acreditar, mas não para Kelly.
— Almirante, por que acha que a guerra ainda não terminou? Por que acha que ninguém ajuda
nossos pilotos abatidos? Os vietnamitas não gostam de nós. Isso é uma coisa que nos recusamos
a aceitar. Seja como for, se tentarem desembarcar fuzileiros no litoral, eles não vão ser
recebidos de braços abertos. Esqueçam a ideia de usar a estrada, senhores. Eu já estive lá. A
estrada não é tão boa como parece nessas fotografias. Basta derrubar algumas árvores para
torná-la intransitável. — Kelly levantou os olhos. — Terá que ser de helicóptero.
Pôde ver que os almirantes não tinham gostado da novidade, e não era difícil compreender
por quê. Aquela parte do país estava cheia de baterias antiaéreas. Não seria fácil passar com
um helicóptero. Pelo menos dois daqueles homens eram pilotos. Se estavam pensando na
possibilidade de um ataque por terra, o problema do fogo antiaéreo devia ser pior do que Kelly
imaginava.
— Podemos eliminar as baterias — sugeriu Maxwell.
— Você não está pensando de novo nos B-52, está? — perguntou Greer.
— O Newport News vai voltar à frente de combate daqui a algumas semanas. Já o viu em
ação, John?
Kelly assentiu.
— Já. Ele nos deu cobertura duas vezes, quando estávamos trabalhando perto da costa. O
poder de fogo desses canhões de vinte milímetros é impressionante. O problema, senhor, é o
seguinte: quantas coisas têm que funcionar bem para que a missão seja um sucesso? Quanto mais
complicada a missão, maiores as chances de que algo dê errado.
Kelly recostou-se no sofá e se deu conta de que o que acabara de dizer não se aplicava
apenas ao problema proposto pelos almirantes.
— Dutch, temos uma reunião daqui a cinco minutos — disse Podulski, com relutância. O
encontro não tinha sido o sucesso que esperava, pensou. Greer e Maxwell não pareciam tão
certos. Tinham aprendido algumas coisas. Isso fazia diferença.
— Podem me dizer por que tanto segredo? — perguntou Kelly.
— Você já adivinhou o motivo. — Maxwell olhou para Greer e fez um sinal com a cabeça.
— No caso de Song Tay, o inimigo foi informado — disse Greer. — Não sabemos como, mas
mais tarde descobrimos, através de uma de nossas fontes, que eles sabiam, ou pelo menos
suspeitavam, que alguma coisa estava para acontecer. Como não agiram a tempo, acabamos
chegando lá depois que os prisioneiros foram evacuados, mas antes que montassem uma
emboscada. Podia ter sido pior. Parece que eles esperavam que a operação PINO MESTRE
acontecesse no mês seguinte.
— Minha nossa! — exclamou Kelly. — Fomos traídos por alguém daqui?
— Seja bem-vindo ao mundo da espionagem — disse Greer, com um sorriso irônico.
— Mas por que fariam isso?
— Se um dia me encontrar com o cavalheiro, não me esquecerei de perguntar. — Greer olhou
para os outros. — Ele nos deu uma ideia. Verificar, com muita discrição, todos os registros do
plano.
— Onde estão?
— Na base aérea de Eglin, onde os participantes da operação PINO MESTRE foram
treinados.
— Quem vamos mandar? — perguntou Podulski.
Kelly percebeu que todos estavam olhando para ele.
— Senhores, eu era apenas um suboficial, lembram-se?
— Kelly, onde deixou o carro?
— Na cidade, senhor. Vim para cá de ônibus.
— Venha comigo. Depois eu deixo você em um ponto de ônibus. Saíram do edifício em
silêncio. O carro de Greer, um Mercury, estava estacionado em uma vaga de visitante perto da
entrada lateral. Fez um gesto para que Kelly entrasse e saíram em direção ao George
Washington Farkway.
— Dutch me mostrou a sua ficha. Fiquei muito impressionado, filho. — O que Greer não
disse foi que nos exames de alistamento Kelly tinha tirado uma média de 147 nos três testes de
Q.I. a que se submetera. — Todos os seus comandantes o elogiaram.
— Tive ótimos comandantes, senhor.
— Parece que sim, e três deles tentaram colocá-lo na escola de oficiais. Mas Dutch já lhe
perguntou sobre isso. O que quero saber é por que não aceitou a bolsa para a faculdade.
— Eu não queria mais estudar. Além disso, a bolsa era para natação, almirante.
— Isso é importante em Indiana, eu sei, mas suas notas eram suficientemente boas para você
pleitear uma bolsa regular. Frequentou uma ótima escola preparatória...
— Com uma bolsa de estudos, também. — Kelly deu de ombros. — Ninguém da minha
família cursou faculdade. Papai serviu na Marinha durante a guerra. Achou que parecia uma boa
carreira. — O fato de que tinha sido uma grande decepção para o pai era uma coisa que jamais
contara a ninguém.
Greer pensou um pouco. Ainda não estava satisfeito com a explicação.
— A última embarcação que comandei foi um submarino, o Daniel Webster. Meu imediato,
um especialista em sonar, tinha doutorado em física. Era um bom homem. Conhecia o seu
trabalho melhor do que eu conhecia o meu. Entretanto, não era um líder. Às vezes fugia às
responsabilidades. Você nunca fugiu de suas responsabilidades, Kelly. Pode ter tentado, mas não
conseguiu.
— Senhor, quando a gente está lá e as coisas acontecem, alguém tem que tomar uma
providência.
— Nem todo mundo pensa dessa forma, Kelly. Existem dois tipos de pessoas no mundo: os
que precisam ser mandados e os que resolvem as coisas por si mesmos — sentenciou Greer.
Kelly não conseguiu ver direito o que dizia a placa da rodovia, mas não tinha nada a ver com
a CIA. Só começou a desconfiar quando viu a guarita avantajada.
— Teve contato com agentes da CIA quando estava no Vietnã?
Kelly fez que sim.
— Algum. Trabalhamos... ora, posso falar à vontade. O senhor sabe do projeto PHOENIX,
certo? Trabalhamos no projeto PHOENIX.
— Qual foi a sua impressão do pessoal da CIA?
— Dois ou três deles eram muito bons. O resto... quer que eu seja sincero?
— É exatamente o que eu quero — assegurou-lhe Greer.
— O resto provavelmente sabe preparar um excelente martíni: batido, não mexido — afirmou
Kelly, muito sério, fazendo Greer dar uma sonora gargalhada.
— Tem razão. Essa turma vai muito ao cinema! — Greer estacionou em uma vaga cativa e
abriu a porta do carro. — Venha comigo, Kelly. — O almirante à paisana entrou com Kelly pela
porta da frente e lhe arranjou um passe especial de visitante, do tipo que exigia um
acompanhante.
Kelly estava se sentindo como um turista em um país distante e desconhecido. Apropria
normalidade do edifício lhe dava um ar sinistro. Embora fosse um prédio de escritórios como
muitos do governo, e relativamente novo, o quartel-general da CIA tinha uma espécie de aura,
Era quase como se tivesse deixado para trás o mundo real. Greer captou a sua expressão e
sorriu, conduzindo-o a um elevador que os deixou no seu escritório, no sexto andar. Só tornou a
falar depois que fechou a porta de madeira.
— Como está a sua agenda para a próxima semana?
— Flexível. Não tenho nenhum compromisso inadiável — respondeu Kelly, cautelosamente.
James Greer fez que sim com a cabeça, com ar compreensivo.
— Dutch me falou a respeito disso, também. Sinto muito, Kelly, mas no momento tenho que
me preocupar com vinte colegas, homens de valor que provavelmente nunca mais tornarão a ver
suas famílias a menos que a gente faça alguma coisa.
Estendeu a mão para uma das gavetas da escrivaninha.
— Agora me deixou confuso, senhor.
— Kelly, podemos fazer a coisa da maneira fácil ou da maneira difícil. Da maneira difícil,
Dutch telefona para alguém e você é reconvocado para o serviço ativo — disse Greer, muito
sério. — Da maneira fácil, vem trabalhar comigo como consultor civil. Vai ganhar mais do que
o soldo de suboficial.
— Para fazer o quê?
— Para começar, quero que dê um pulo à base aérea de Eglin. Pode voar até Nova Orleans e
completar a viagem em um carro alugado. Isto lhe dará acesso a todos os registros —
acrescentou, jogando um cartão de identificação no colo de Kelly. — O plano de operações
pode servir de modelo para o que pretendemos fazer.
Kelly olhou para o cartão. Tinha um retrato seu do tempo da Marinha, que mostrava apenas o
rosto, como em um passaporte.
— Espere um momento, senhor. Não estou qualificado...
— Na verdade, acho que está, sim, mas não queremos dar essa impressão. Não, você é
apenas um consultor sem importância recolhendo informações para um relatório de rotina que
ninguém se dará ao trabalho de ler. Caso ainda não saiba, é assim que gastamos metade do
orçamento deste maldito órgão — disse Greer, sua irritação com a CIA fazendo-o exagerar um
pouco. — Queremos que pareça uma coisa totalmente inócua.
— Estão falando sério a respeito desta operação?
— Kelly, Dutch Maxwell está disposto a sacrificar a carreira por aqueles homens. Eu
também. Se houver alguma forma de resgatá-los...
— E as negociações de paz?
Como vou explicara este menino?, perguntou-se Greer.
— O coronel Zacharias está oficialmente morto. O outro lado nos comunicou que estava
morto. Chegaram anos mandar uma foto do corpo. Alguém foi à casa dele, junto com o capelão
da base e a esposa de outro aviador, para dar a triste notícia à mulher. Disseram que tinha uma
semana para ir buscar as coisas do marido, apenas para tornar as coisas oficiais. Ele está
oficialmente morto — insistiu Greer. — Estou participando de negociações muito delicadas
com o outro lado e nós... — as palavras estavam saindo com dificuldade — ...nosso país não
gostaria de pôr em risco as negociações de paz por causa de um assunto como este. As fotos de
que dispomos, mesmo depois de processadas, não podem ser usadas como prova em um
tribunal, de acordo com os padrões atuais. Não podemos atender aos padrões atuais, e os
homens que os estabeleceram sabem disso. Eles não querem que as conversações de paz sejam
interrompidas, e se as vidas de mais vinte homens forem o preço necessário para acabar com
esta maldita guerra, que assim seja. Esses homens serão sacrificados.
Kelly não podia acreditar no que estava ouvindo. Quantas pessoas os Estados Unidos
sacrificavam todo ano? E nem todas eram militares, eram? Alguns estavam ali mesmo, nas
cidades americanas.
— A coisa é tão feia assim?
A fadiga no rosto de Greer era inconfundível.
— Sabe por que aceitei este trabalho? Estava pronto para passar para a reserva. Já servi à
Marinha durante muitos anos. Comandei meus navios. Cumpri minha parte. Estava pronto para
morar em uma bela casa, jogar golfe duas vezes por semana e fazer um trabalhinho ou outro de
consultoria para passar o tempo, OK? Kelly, muita gente chega a um lugar como este e a
realidade para eles é um relatório. Concentram-se no "processo" e se esquecem de que existe
um ser humano no final da papelada. Foi por isso que fiquei. Alguém tem que tentar pôr um
pouquinho de realidade de volta ao processo. Estamos considerando esta missão como um
projeto "negro". Sabe o que isso significa?
— Não, senhor.
— É um termo que foi criado há pouco tempo. Significa que ele não existe. É um absurdo.
Não devia ser assim, mas é. Posso contar com você ou não?
Nova Orleans... Os olhos de Kelly se estreitaram por um momento que se arrastou durante
quinze segundos antes que assentisse devagar.
— Se acha que posso ajudar, senhor, então o farei. De quanto tempo disponho?
Greer sorriu e deixou cair uma passagem de avião no colo de Kelly.
— Sua identidade está em nome de John Clark; vai ser fácil lembrar, O voo parte amanhã à
tarde. A passagem de volta está em aberto, mas quero vê-lo de volta na sexta-feira. Espero que
faça um bom trabalho. Meu cartão e meu número particular estão aí dentro. Vá fazer as malas,
filho.
— Sim, senhor.
Greer levantou-se e acompanhou Kelly até a porta.
— Traga recibos de tudo. Quem trabalha para Tio Sam deve fazer questão de que todas as
despesas a serviço sejam reembolsadas.
— Vou fazer isso, senhor — assegurou Kelly, com um sorriso. — Você pode pegar um ônibus
azul para o Pentágono aí fora. Greer voltou para o trabalho enquanto o rapaz deixava o edifício.
Kelly caminhou até o ponto coberto e logo depois o ônibus azul apareceu. Foi uma viagem
curiosa. Metade dos passageiros era militar e metade era civil. Ninguém falava com ninguém,
como se um simples cumprimento ou um comentário a respeito do fato de que os Washington
Senators continuavam na lanterna do campeonato constituísse uma violação da segurança. Ele
sorriu e abanou a cabeça até se lembrar dos seus próprios segredos e intenções. E no entanto...
Greer tinha lhe oferecido uma oportunidade de desistir, que não aproveitara. Kelly recostou-se
no banco e ficou olhando pela janela, enquanto os outros passageiros do ônibus olhavam
fixamente para a frente.

Esta era a remessa que o tornaria famoso, pensou Tucker, enquanto Rick e Billy acabavam de
carregar o produto. Uma parte seria vendida em Nova York. Até o momento, tinha sido um
intruso, um forasteiro ambicioso. Distribuíra uma quantidade de heroína suficiente para deixá-
los interessados nele e e em seus sócios — o fato de ter sócios era a razão adicional para que se
interessassem. Agora, porém, era diferente. Estava prestes a entrar para a comunidade. Seria
visto como um sólido homem de negócios, porque aquela remessa atenderia a todas as
necessidades de Baltimore e Filadélfia durante... durante um mês, calculou. Talvez menos, se a
cadeia de distribuição fosse tão boa como diziam. As sobras serviriam para atender à demanda
crescente de Nova York, que ainda se recuperava de uma grande operação de combate às
drogas. Depois de tantos passos pequenos, chegara a hora de dar um passo gigantesco. Billy
ligou o rádio para ouvir o noticiário esportivo, mas em vez disso pegou a previsão do tempo.
— Ainda bem que vamos sair agora. Vem aí uma tempestade.
Tucker olhou para fora. O céu estava claro e sem nuvens.
— Não há razão para nos preocuparmos — disse.
Ele adorava Nova Orleans, uma cidade de tradição europeia, que misturava os encantos do
Velho Mundo com a diligência americana. Rica em história, ex-colônia francesa e espanhola,
jamais perdera suas tradições, a ponto de conservar um código de direito que era quase
incompreensível para os outros quarenta e nove estados e frequentemente confundia as
autoridades federais. O que também se poderia dizer do dialeto local, pois muitos introduziam
francês no seu discurso, ou o que chamavam de francês. Os antepassados de Pierre Lamarck
eram acadianos e alguns parentes distantes ainda moravam nos igarapés de Nova Orleans.
Entretanto, costumes que os turistas consideravam excêntricos e divertidos, e que outros
encaravam como uma vida confortável, rica em tradições, não tinham nenhum interesse para
Lamarck, exceto como um ponto de referência, uma assinatura pessoal para distingui-lo dos
pares. Isso era necessário, já que sua profissão exigia um certo brilho, um talento especial.
Lamarck reforçava essa imagem com um terno de linho branco, colete, camisa de manga
comprida e gravata vermelha, traje que, em sua opinião, o caracterizava como um respeitável,
ainda que vaidoso, homem de negócios. Seu automóvel era um Cadillac branco. Desprezava os
excessos ornamentais que alguns dos outros proxenetas cometiam nos seus carros, como canos
de descarga que não tinham nenhuma função. Um suposto texano chegara a mandar colocar
chifres de boi no capô do seu Lincoln, quando na verdade nascera no interior do Alabama e não
sabia tratar direito suas mulheres.
A última qualidade era o seu maior talento, pensou Lamarck, satisfeito, abrindo a porta do
carro para a mais nova aquisição, uma menina de quinze anos recém-iniciada no sexo, dona de
um sorriso inocente e movimentos recatados que a tornavam um dos membros mais tentadores
em seu estábulo de oito mulheres. A cortesia pouco frequente do cáften se justificava, já que
naquela tarde a garota lhe prestara um serviço especial. O motor do carro de luxo pegou assim
que virou a chave. Eram sete e meia e Pierre Lamarck estava iniciando mais uma noite de
trabalho, pois a vida noturna da cidade começava cedo e durava até tarde. Havia uma
convenção na cidade. Distribuidores de alguma coisa. Muitas convenções eram realizadas em
Nova Orleans, e na verdade o ritmo dos seus negócios variava de acordo com o movimento das
convenções. Aquela prometia ser uma noite cálida e lucrativa.

Tinha que ser ele, pensou Kelly, a meio quarteirão de distância, ao volante do carro alugado
que o trouxera da base de Eglin. Quem mais usaria um terno branco completo e andaria com uma
garota de minissaia justa? Não um corretor de seguros, certamente. As joias da garota pareciam
baratas e espalhafatosas mesmo a distância. Kelly engrenou o carro e começou a segui-los. Não
era difícil. Quantos Cadillacs brancos podia haver na cidade?, perguntou-se, enquanto
atravessava o rio, a três carros de distância, os olhos grudados na presa enquanto partes
periféricas do cérebro cuidavam do resto do tráfego. Uma vez teve que avançar o sinal,
arriscando-se a levar uma multa, mas fora isso não houve nenhum problema.
O Cadillac parou na porta de um hotel cinco estrelas e Kelly viu a garota sair do carro e
entrar no hotel, com ar resignado. Não queria vê-la de perto, com medo das memórias que isso
podia despertar. Aquela não seria uma noite para emoções. Estava ali movido pela emoção, mas
não podia deixar que ela interferisse no que tinha a fazer. Aquela seria uma luta constante,
pensou Kelly, que teria que vencer se quisesse levar a aquilo a bom termo. O Cadillac andou
mais alguns quarteirões até parar no estacionamento de um bar da moda suficientemente
próximo dos hotéis e lojas de luxo pura que uma pessoa pudesse caminhar rapidamente até lá
sem se afastar da segurança e conforto da sociedade civilizada. Um movimento constante de
táxis revelava que aquele aspecto da vida local tinha uma base firme, institucional. Guardou na
memória o nome do bar e foi procurar uma vaga para o carro a três quarteirões de distância.
Havia uma dupla razão para estacionar tão longe da meta. A caminhada pela Decatur Street
lhe daria ao mesmo tempo a oportunidade de se familiarizar com o terreno e planejar o que
fazer a seguir naquela longa noite. Algumas garotas de minissaia sorriram mecanicamente para
ele quando parou na calçada esperando que o sinal abrisse, mas continuou em frente, olhando
para a esquerda e para a direita enquanto uma voz distante o lembrava do que costumava pensar
de tais gestos. Silenciou essa voz com um pensamento mais atual. Tinha escolhido uma roupa
esporte, algo que um indivíduo relativamente bem de vida poderia usar naquela atmosfera
quente, úmida e pesada. Um traje escuro e anônimo, largo e informe. Sua maneira de andar
anunciava que não estava para brincadeiras. Um homem de profissão indefinida, disposto a
passar uma noite discreta no bairro boêmio.
Entrou no Chats Sauvages as oito e dezessete. As primeiras coisas que lhe chamaram a
atenção no bar foram a fumaça e o barulho. Uma pequena mas entusiástica banda de rock tocava
no palco. Havia uma pista de dança, com uns oito metros de lado, onde pessoas da sua idade e
mais jovens balançavam o corpo ao ritmo da música; e lá estava Pierre Lamarck, sentado em
uma mesa de canto com alguns amigos. Kelly foi ao banheiro, tanto por necessidade como para
fazer um reconhecimento. Havia outra entrada, um pouco mais distante da mesa de Lamarck do
que a que tinha sido usada tanto por ele quanto por Kelly. O trajeto mais curto para o Cadillac
branco passava pelo bar e foi ali que Kelly se instalou. Pediu uma cerveja e Virou-se para
apreciar a banda.
Às nove e dez, duas garotas se aproximaram de Lamarck. Uma sentou-se no colo dele e a
outra mordiscou-lhe o lóbulo da orelha. Os outros dois homens à mesa observaram sem
interesse enquanto as duas mulheres entregavam alguma coisa ao proxeneta. Kelly não viu o que
era, porque naquele momento estava virado para a banda; não queria chamar a atenção para sua
pessoa olhando demais naquela direção. O próprio cáften se encarregou de tirar a dúvida, ao
puxar do bolso um maço de notas, ao qual incorporou, ostensivamente, o dinheiro que as garotas
lhe haviam entregado. Dinheiro fácil, como Kelly descobrira recentemente, era uma parte
importante da imagem dos proxenetas. As mulheres saíram, mas logo depois uma terceira
apareceu. Dali em diante, o movimento de mulheres não parou mais. Os companheiros de mesa
de Lamarck também eram visitados com frequência, observou Kelly, enquanto bebericavam seus
drinques, pagando à vista, mexendo com a garçonete e ocasionalmente passando a mão na moça
e depois oferecendo-lhe uma polpuda gorjeta à guisa de desculpas. De vez em quando, Kelly
mudava de posição. Tirou o blusão e arregaçou as mangas, para oferecer uma imagem diferente
aos fregueses do bar. Limitou-se a duas cervejas, que procurou fazer durar o máximo possível.
Para não se entediar com a espera, começou a observar cada detalhe. Quem ia aonde. Quem
entrava e saía. Quem ficava. Quem não saía do lugar. Em pouco tempo, Kelly começou a
reconhecer padrões de comportamento e a reconhecer indivíduos, a quem atribuiu nomes
inventados por ele. Mais do que tudo, observava Lamarck. O cáften jamais tirava o paletó e
ficava o tempo todo com uma parede pelas costas. Conversava amigavelmente com os dois
companheiros, mas a familiaridade não era de amigos. As brincadeiras eram afetadas, os gestos
exagerados. Não havia aquela descontração que se via quando as pessoas se reuniam apenas
para se divertir. Mesmo os proxenetas sofriam de solidão, pensou Kelly, e embora procurassem
outros da sua espécie, não havia amizade, mas apenas cumplicidade. Resolveu pôr de lado as
divagações filosóficas. Se Lamarck jamais tirava o paletó, é porque devia estar armado.
Pouco depois da meia-noite, Kelly vestiu o blusão e fez outra visita ao banheiro dos homens.
No reservado da privada, tirou a automática do bolso da calça e enfiou-a na cintura. Duas
cervejas em quatro horas, pensou. O fígado já devia ter eliminado o álcool da circulação, e
mesmo que isso não tivesse acontecido, duas cervejas não afetariam muito os reflexos de
alguém com o seu peso. Era uma premissa importante. Esperava que não fosse falsa.
Tinha calculado bem a hora de ir ao banheiro. Enquanto lavava as mãos pela quinta vez,
Kelly viu pelo espelho a porta se abrir. O homem estava de costas, mas usava um terno branco,
e assim Kelly esperou até ouvir o barulho da descarga do mictório. O homem se aproximou e
seus olhos se encontraram no espelho.
— Com licença — disse Pierre Lamarck,
Kelly deu um passo para o lado da pia, ainda enxugando as mãos com uma toalha de papel.
— Gostei das meninas — disse, tranquilamente.
— Hein?
Lamarck devia ter bebido pelo menos seis drinques e seu fígado não devia ser dos melhores,
mas isso não impedia que se admirasse no espelho sujo.
— Aquelas que a toda hora vão falar com você. — Kelly baixou a voz, — Elas... hum....
trabalham para você?
— Pode dizer que sim, cara. — Lamarck tirou do bolso um pente de plástico para ajeitar o
cabelo. — Por que pergunta?
— Talvez eu precise de algumas — afirmou Kelly, com ar constrangido.
— De algumas? Tem certeza de que pode dar conta do recado? — perguntou Lamarck, com
um sorriso irônico.
— Estou visitando a cidade com alguns amigos. Um deles faz anos e...
— Uma festa — observou o cáften, interessado.
— Isso mesmo.
Kelly tentou aparentar timidez, mas deu mais a impressão de que estava sendo inábil. O erro
funcionou a seu favor.
— Por que não disse logo? De quantas meninas precisa?
— Três, talvez quatro. Vamos conversar sobre isso lá fora? Estou precisando de ar fresco.
— Claro. Aguente só um instantinho enquanto eu lavo as mãos, OK?
— OK. Espero você na entrada.
A rua estava silenciosa. Por mais movimentada que fosse Nova Orleans, estavam no meio da
semana e as calçadas, embora não totalmente vazias, também não estavam apinhadas. Kelly
esperou, evitando olhar para a entrada do bar até sentir uma mão amistosa no seu ombro.
— Não há do que se envergonhar. Nós todos gostamos de nos divertir, especialmente quando
estamos longe de casa, certo?
— Vamos pagar muito bem — prometeu Kelly, com um sorriso constrangido.
Lamarck sorriu, como homem do mundo que era, para deixar à vontade aquele caipira.
— Tenho certeza que sim. Vão precisar de mais alguma coisa?
Kelly pigarreou e deu alguns passos, torcendo para que Lamarck o seguisse, o que realmente
aconteceu.
— Talvez, quem sabe, algum material para a festa, sabe como é...
— Posso cuidar disso, também — garantiu Lamarck, quando se aproximavam de um beco.
— Acho que conheci você da outra vez que estive na cidade. Na verdade, me lembro mesmo
é da garota, o nome dela era... Pam? Isso mesmo. Pam. Corpo fino, cabelos castanhos.
— Ah, eu me lembro. Era gostosinha. Não está mais comigo — declarou Lamarck,
displicentemente. — Mas vai gostar das atuais. Estou sempre renovando o estoque.
— Entendo — disse Kelly, levando a mão à cintura. — Elas estão sempre... quero dizer,
tomam coisas que as deixam...
— Alegres? Sim, senhor. Faz bem a elas. Ficam mais desinibidas. — Lamarck parou na
entrada do beco, olhando para o outro lado. Talvez estivesse preocupado com a polícia. Atrás
dele havia um túnel mal iluminado de paredes de tijolo, habitado apenas por latas de lixo e
gatos vadios, e aberto na outra extremidade. — Vejamos. Quatro meninas para o resto da noite,
e alguma coisa para a festa deslanchar... acho que quinhentos está bom. Minhas meninas não são
baratas, mas vocês não vão se arre...
— Levante as mãos — disse Kelly, segurando a Colt automática a trinta centímetros do peito
do homem.
Lamarck parecia não acreditar no que estava acontecendo.
— Meu amigo, isso é a maior tolice...
A voz de Kelly tornou-se fria como gelo.
— Discutir com uma arma é uma tolice maior ainda, meu amigo. Entre nesse beco e talvez eu
deixe você viver.
— Deve estar precisando muito de dinheiro para fazer essa bobagem — disse o cáften, em
tom de ameaça.
— Vale a pena morrer por um maço de notas? — replicou Kelly.
Lamarck avaliou as suas chances e entrou no beco.
— Pare — ordenou Kelly, depois que andaram uns cinquenta metros. Agarrou o homem pelo
pescoço com o braço esquerdo e empurrou-o contra a parede. Olhou três vezes para um lado e
para o outro. No momento, estavam sozinhos.
— Passe-me a sua arma... bem devagar.
— Eu não tenho nenhuma...
O som do cão sendo armado parecia muito alto, assim tão perto do ouvido do proxeneta.
— Está me achando com cara de bobo?
— Está bem, está bem — disse Lamarck, cuja voz tinha perdido boa parte da tranquilidade.
— Vamos com calma. É só dinheiro.
— Assim é melhor — observou Kelly. Uma pequena automática apareceu. Kelly enfiou o
indicador direito no guarda-mato. Não queria deixar impressões digitais na arma. Já estava
correndo risco suficiente, e por mais cauteloso que tivesse sido até aquele ponto, os perigos de
seu ato de repente lhe pareciam muito reais. A pistola coube confortavelmente no bolso do
blusão.
— Passe-me o dinheiro.
— Tome.
Lamarck estava começando a ficar assustado. Isso era ao mesmo tempo bom e ruim, pensou
Kelly. Bom porque era agradável de se ver. Ruim porque um homem assustado podia ser capaz
de qualquer coisa. Em vez de relaxar, Kelly ficou ainda mais tenso.
— Obrigado, Sr. Lamarck — agradeceu Kelly polidamente, para acalmar o homem.
Nesse momento, o cáften hesitou e sua cabeça se moveu alguns centímetros, enquanto o
cérebro lutava para dissipar a névoa criada pelos seis drinques que tomara.
— Espere um momento. Você disse que conhecia Pam.
— É verdade.
— Mas por que...
— Você é um dos caras que arruinaram a vida dela.
— Ei, cara, foi ela quem me pediu ajuda!
— E você a drogou para deixá-la mais desinibida, não foi?
— Que é isso, cara? Negócios são negócios! Quer dizer que você conheceu Pam e gostou de
trepar com ela, não foi?
— Gostava, sim.
— Se ainda trabalhasse para mim, eu poderia mandar chamá-la e... espere aí. Você disse
gostava?
— Ela morreu — explicou Kelly, colocando a mão no bolso. — Alguém a matou.
— E daí? Não tive nada a ver com isso!
Lamarck começou a ter a impressão de que estava sendo submetido a um exame final, sobre
um assunto que não havia estudado, baseado em regras que não conhecia.
— Eu sei — concordou Kelly, atarraxando o silenciador na pistola. Os olhos do cáften já
tinham se acostumado à escuridão o suficiente para ver o que o outro estava fazendo. Sua voz se
transformou em um gemido de desespero.
— Então por que está fazendo isso? — perguntou, assustado demais até para gritar,
paralisado pela incongruência do que acontecera nos últimos minutos, quando sua vida saíra da
normalidade do bar que lhe servia de ponto para terminar a apenas dez metros de distância, em
frente a uma parede de tijolos. Conhecer a resposta tornou-se de repente mais importante do que
uma tentativa de fuga, que de qualquer forma estaria destinada ao fracasso.
Kelly pensou por um momento. Poderia ter dito várias coisas, mas era justo, pensou, que o
homem conhecesse a verdade antes de morrer.
— Treino.
14

LIÇÕES APRENDIDAS

O voo de Nova Orleans para Washington era curto demais para um filme e Kelly já havia
tomado o café da manhã. Contentou-se com um suco de laranja e ficou olhando pela janela,
satisfeito porque o avião estava relativamente vazio. Como costumava fazer depois de cada
operação de combate, refez mentalmente todos os seus passos. Era um hábito que adquirira
quando era um SEAL. Depois de cada sessão de treinamento havia uma atividade cujo nome
variava de acordo com o comandante. "Análise Crítica" parecia ser o nome mais apropriado no
momento.
O erro que cometera tinha sido causado por uma combinação de ansiedade e esquecimento.
Ansioso para ver Lamarck morrer, aproximara-se demais, esquecendo que muitas vezes os
ferimentos na cabeça sangravam explosivamente. Pulara para trás, como uma criança evitando
uma abelha, mas não conseguira escapar totalmente do jorro de sangue. A boa notícia era que
cometera apenas aquele erro, e o fato de estar usando uma roupa escura ajudara a minimizá-lo.
Os ferimentos de Lamarck tinham causado morte instantânea. O cáften caíra no chão e não se
mexera mais. Os dois furos que Kelly tinha feito na arma serviam para segurar um pequeno saco
de pano onde tinham ido parar os cartuchos dos dois projéteis, deixando a polícia sem nenhuma
pista para investigar. Para os frequentadores do bar, nunca tinha sido mais do que um rosto
anônimo.
O lugar escolhido às pressas para a execução também se revelara adequado. Lembrava-se de
ter saído do beco e se misturado aos passantes antes de caminhar até o carro. Dirigira até o
motel, onde mudara de roupa, guardando a calça suja de sangue junto com a camisa, e até a
roupa de baixo, em um saco plástico, que colocara numa lixeira de supermercado, do outro lado
da rua. Se por acaso as roupas fossem encontradas, provavelmente julgariam tratar-se dos
refugos de um açougueiro descuidado. Não havia testemunha do seu encontro com Lamarck. O
único lugar iluminado em que tinham estado juntos foi o banheiro do clube, onde, graças à sorte
— e ao seu planejamento —, não havia mais ninguém. Na calçada estava escuro e não havia
razão para que prestassem atenção neles. Talvez um observador casual que conhecesse Lamarck
pudesse fornecer à polícia uma vaga descrição de Kelly, mas isso era um risco tolerável,
pensou o rapaz, contemplando as colinas arborizadas do norte do Alabama. Tudo indicaria
tratar-se de um assalto; levava na mala os mil, quatrocentos e setenta dólares do proxeneta.
Afinal, dinheiro era dinheiro, e se o deixasse no local a polícia ficaria sabendo que alguém
tinha um motivo pessoal para eliminar Lamarck. Para resumir, a parte material da operação (não
conseguia pensar no acontecido como um crime) transcorrera sem incidentes graves.
E a parte psicológica?, perguntou-se Kelly. Mais do que qualquer outra coisa, a aventura
servira para testar sua coragem. A eliminação de Pierre Lamarck tinha sido uma espécie de
experiência e até certo ponto estava surpreso com o resultado. Fazia alguns anos que não
participava de nenhuma operação de combate; não se surpreenderia se tivesse um ataque de
nervos depois do evento. Isso já lhe acontecera mais de uma vez, mas, embora se sentisse um
pouco trêmulo ao afastar-se do corpo de Lamarck, cuidara da fuga com a mesma frieza que
marcara a maior parte de suas operações no Vietnã. Eram tantas as lembranças! Podia enumerar
as sensações familiares que lhe tinham vindo à mente, como se estivesse assistindo a um filme
de treinamento produzido por ele próprio: os sentidos mais aguçados, como se a pele tivesse
sido lixada, expondo todos os nervos. A audição, a visão, o olfato, todos funcionando no limite
de sua capacidade. Eu estava tão vivo naquele momento, pensou. Era talvez lamentável que uma
sensação tão revigorante fosse causada pelo fim de uma vida, mas Lamarck há muito tempo
abrira mão do direito de viver. Em um universo justo, qualquer pessoa (Kelly simplesmente não
podia pensar em Lamarck como um homem) que explorasse garotas indefesas simplesmente não
merecia o privilégio de respirar o mesmo ar que outros seres humanos. Talvez ele tivesse dado
um passo errado na vida depois de ser odiado pela mãe ou espancado pelo pai. Talvez fosse o
produto de uma infância infeliz ou de uma educação deficiente. Mas isso era problema para os
psicólogos e assistentes sociais. Lamarck tinha sido suficientemente normal para agir em sua
comunidade, e a única coisa que importava a Kelly era se vivia a vida do jeito que queria. Era
evidente que sim, e aqueles que agiam incorretamente deviam ser responsabilizados pelas
possíveis consequências dos seus atos. Cada garota que ele explorava podia ter pai, mãe, irmão,
irmã ou amante que sofreria com a situação. Sabendo disso, e assumindo o risco, Lamarck
colocara conscientemente em jogo a própria vida. Quem joga está arriscado a perder, pensou
Kelly, se Lamarck havia jogado e perdido, isso não era problema dele, era?
Não, respondeu para o solo, dez mil metros abaixo. E como Kelly se sentia depois que tudo
terminara? Pensou na questão por alguns momentos, recostando a cabeça no assento e fechando
os olhos, como se estivesse dormindo. Uma voz suave, talvez a sua consciência, lhe disse que
deveria estar sentindo alguma coisa, e explorou a mente, à procura de uma emoção genuína. Não
conseguiu encontrar nenhuma. Nem tristeza, nem remorso. Lamarck nada significara para ele e
provavelmente ninguém lamentaria sua falta. Talvez suas meninas — Kelly contara cinco no bar
— ficassem desamparadas por algum tempo, mas quem sabe se isso não seria exatamente o que
alguma delas estava precisando para mudar de vida? Improvável, talvez, mas não impossível. O
realismo dizia a Kelly que ele não podia consertar todos os problemas do mundo; o idealismo o
impelia a tentar corrigir o que estava a seu alcance.
Tudo isso, porém, servira apenas para desviar sua atenção da pergunta inicial: o que sentia a
respeito da morte de Pierre Lamarck? A única resposta que lhe ocorreu foi a seguinte: nada. O
orgulho profissional de executar um trabalho bem feito era diferente da satisfação pessoal. Ao
encerrar a vida de Pierre Lamarck, removera uma coisa daninha da superfície do planeta. Isso
não o tornara mais rico — levar o dinheiro tinha sido uma tática, uma medida de despistamento,
muito mais que um objetivo. Também não vingara a morte de Pam. Quanto a isso, nada mudara.
Era como esmagar um inseto daninho — pisava-se nele e não se pensava mais no assunto. Não
extraíra nenhum prazer do seu ato, mas também a consciência não o incomodava, e isso era o
que importava no momento. A pequena experiência fora um sucesso. Depois de todos os
preparativos físicos e mentais, mostrara-se à altura da tarefa a que se propusera. Ainda de olhos
fechados, Kelly se concentrou na missão que tinha pela frente. Depois de ter matado muitos
homens melhores do que Pierre Lamarck, agora podia pensar com confiança em matar homens
piores do que o cáften de Nova Orleans.

Desta vez tinham ido visitá-lo, pensou Greer, satisfeito. A hospitalidade da CIA era bem
melhor. James Greer arranjara para eles estacionamento no setor VIP — o que no Pentágono
seria quase impossível — e uma boa sala de conferências. Cas Podulski teve a consideração de
se sentar na extremidade da mesa, perto do exaustor do ar-condicionado, onde seus cigarros não
incomodariam ninguém.
— Dutch, você tinha razão a respeito desse garoto — disse Greer, passando-lhe uma cópia
batida a máquina das notas manuscritas que recebera dois dias antes.
— Alguém devia ter encostado uma arma na cabeça dele e o obrigado a entrar para a escola
de oficiais. Teria sido o tipo de oficial que fomos um dia.
Podulski deu uma risadinha do seu lugar na ponta da mesa.
— Não admira que tenha dado o fora — observou, ironicamente.
— Eu pensaria duas vezes antes de apontar uma arma para ele — interveio Greer. — Passei
uma noite inteira semana passada examinando a ficha do homem. Ele é fera.
— Fera? — repetiu Maxwell, com um traço de reprovação na voz. — Eficiente, você quer
dizer, James?
Talvez algo intermediário, pensou Greer, antes de afirmar:
— Um vencedor. Teve três comandantes e eles aprovaram cada decisão que tomou, exceto
uma.
— Está falando da operação FLOR DE PLÁSTICO? O oficial político que ele matou?
— Isso mesmo. O tenente ficou furioso, mas se é verdade que ele assistiu a tantas
atrocidades, a única coisa que pode ser questionada é o seu juízo, invadindo a aldeia daquela
forma.
— Eu li o relatório, James. Também não teria conseguido me conter — disse Cas, levantando
a cabeça das anotações. Uma vez piloto de caça, sempre piloto de caça. — Olhe para isso! O
homem também sabe escrever! — Apesar do sotaque, Podulski tinha aprendido muito bem a
língua adotiva.
— Estudou em um colégio jesuíta — observou Greer. — Estive revendo a nossa avaliação da
operação PINO MESTRE. A análise de Kelly concorda com a oficial em todos os pontos
importantes, a não ser quando vai um pouco mais longe.
— Quem fez a análise para a CIA? — quis saber Maxwell.
— Robert Ritter. Um especialista em questões europeias. Excelente homem. Um pouco seco,
mas muito competente.
— Especialista em quê? Operações? — perguntou Maxwell.
— Exatamente — confirmou Greer. — Fez um bom trabalho na estação Budapeste.
— Por que encarregaram um sujeito desses para analisar a operação PINO MESTRE?
— Acho que sabe por quê — observou Maxwell.
— Se BUXO VERDE for aprovada, vamos precisar de um especialista em operações. Não há
como evitar. Não posso fazer tudo sozinho. Todos concordam com isso? — Greer olhou em
torno, vendo que faziam que sim com a cabeça, mas com relutância. Podulski baixou os olhos
antes de dizer o que todos estavam pensando:
— Podemos confiar nele?
— Tenho certeza de que não foi o responsável pelo vazamento da operação PINO MESTRE.
Cas, Jim Angleton está investigando o assunto, e foi ele quem recomendou Ritter. Sou novo aqui,
pessoal. Ritter conhece a burocracia bem melhor do que eu. Ele é um executor; sou apenas um
analista. Além do mais, tem bom coração. Quase perdeu o emprego para proteger um
subordinado. Tinha um agente infiltrado na GRU e estava na hora de tirá-lo de lá. Os
mandachuvas acharam que o momento não era apropriado, por causa das negociações de
desarmamento, e vetaram a operação. Ritter tirou o cara de qualquer maneira. Acontece que o
homem sabia de algo importante, e foi isso que salvou sua carreira.
— Greer deixou de dizer que o especialista em martínis do andar de cima não tinha ficado
muito bem na história, mas ele era uma pessoa que não deixara saudades na CIA.
— Um dom-quixote? — perguntou Maxwell.
— Era uma questão de lealdade. Às vezes o pessoal daqui se esquece do significado da
palavra — observou Greer.
— Parece um sujeito decente — comentou o almirante Podulski.
— Ponha-o a par de tudo — ordenou Maxwell. — Mas diga-lhe que, se um dia eu descobrir
que algum civil pôs por terra nossa chance de resgatar aqueles homens, prometo que vou
pessoalmente a Pax River, requisito pessoalmente um A-4 e bombardeio pessoalmente a casa
dele com napalm.
— Devia deixar isso por minha conta, Dutch — acrescentou Cas, com um sorriso. — Sempre
me saí melhor do que você em missões de bombardeio. Além disso, tenho seiscentas horas de
voo no Scooter.
Greer imaginou até que ponto estariam brincando.
— E quanto a Kelly? — quis saber Maxwell.
— De agora em diante, seu nome é "Clark". Se queremos que partícipe da operação, é melhor
usá-lo como civil. Ele jamais se conformará com o fato de ser apenas um suboficial, mas um
civil não precisa se preocupar com a hierarquia.
— Que seja assim — concordou Maxwell. Seria conveniente, pensou, ter um oficial da
Marinha emprestado à CIA, usando roupas civis mas ainda sujeito à disciplina militar.
— Sim, senhor. Quando chegarmos à fase de treinamento, que local sugere?
— A base dos fuzileiros navais em Quantico — respondeu Maxwell. — O general Young é
um velho amigo meu. Aviador. Ele nos entende.
— Marty e eu frequentamos juntos a escola de pilotos de teste — explicou Podulski. — Pelo
que Kelly falou, não vamos precisar de muita gente. Sempre achei que PINO MESTRE foi um
exagero. Sabe de uma coisa? Se esta operação der certo, não poderemos negar a Kelly sua
medalha.

— Uma coisa de cada vez, Cas — disse Maxwell, pondo o assunto de lado e olhando de
novo para Greer enquanto se levantava. — Promete que nos avisa se Angleton descobrir alguma
coisa?
— Prometo — garantiu Greer. — Se houver um espião entre nós, não vai escapar impune. Já
pesquei com aquele sujeito. É capaz de fisgar uma truta onde ninguém julgaria possível.
Depois que todos saíram, marcou um encontro naquela mesma tarde com Robert Ritter. Para
isso teria que adiar a entrevista com Kelly, mas Ritter era mais importante no momento; embora
fosse urgente iniciar a operação, não era tão urgente assim.
Os aeroportos eram lugares úteis, com as multidões anônimas e a abundância de telefones.
Kelly completou a ligação enquanto esperava que a bagagem aparecesse na esteira.
— Greer — disse a voz.
— Clark — replicou Kelly, com um sorriso. Parecia tão James Bond ter um nome falso... —
Estou no aeroporto. Ainda quer me ver esta tarde?
— Não. Tenho outro compromisso. — Greer folheou a agenda. — Terça-feira, às quinze e
trinta. Pode vir de carro. Diga-me a marca do seu carro e o número da placa.
Kelly obedeceu, surpreso com a mudança de planos.
— O senhor recebeu meu relatório?
— Recebi, Sr. Clark, o senhor fez um excelente trabalho. Vamos discuti-lo na próxima terça-
feira. Ficamos muito satisfeitos.
— Obrigado, senhor.
— Até terça-feira, então — disse Greer, desligando o telefone.
— Obrigado também por adiar a reunião — disse Kelly, depois de colocar o fone no gancho.
Vinte minutos depois, tinha recolhido as malas e estava indo para o carro. Uma hora mais
tarde, chegava a seu apartamento de Baltimore. Estava na hora do almoço, e preparou dois
sanduíches, que uma Coca-Cola ajudou a descer. Não tinha se barbeado naquela manhã e a
barba cerrada era uma sombra escura no seu rosto, como viu no espelho. Resolveu deixar assim
mesmo e foi para o quarto para uma boa sesta.

Os empreiteiros civis não sabiam do que se tratava, mas estavam sendo bem pagos, e isso era
o que realmente importava, pois tinham famílias para sustentar e prestações da casa para pagar.
Os edifícios que acabavam de construir eram espartanos: estruturas de concreto aparente, sem
nenhum tipo de instalações sanitárias, de dimensões estranhas, muito diferentes das construções
americanas, a não ser nos materiais empregados. Era como se o tamanho e o formato tivessem
sido tirados de algum manual de construção estrangeiro. Todas as medidas estavam no sistema
métrico, observou um operário, embora nas plantas houvesse também indicações em pés e
polegadas, como exigiam as normas americanas. O trabalho em si tinha sido fácil; quando
chegaram, o terreno já estava preparado. Muitos dos operários eram antigos combatentes, a
maioria do Exército, mas havia também alguns ex-fuzileiros. Eles se sentiam alternadamente
satisfeitos e pouco à vontade por se encontrarem naquela grande base dos fuzileiros nas colinas
arborizadas do norte da Virginia. A caminho do local da construção podiam ver os cadetes
fazendo os exercícios matutinos, Todos aqueles garotos brilhantes, de cabelo cortado à
escovinha, pensou um ex-sargento dos fuzileiros navais. Quantos concluiriam o curso? Quantos
seriam enviados ao Vietnã? Quantos voltariam para casa mais cedo em um caixão de aço? Não
era algo que ele pudesse prever ou controlar, é claro. Passara sua temporada no inferno e
voltara ileso, o que ainda lhe parecia um milagre, depois de ter ouvido tantas vezes o crac
supersônico de balas de rifle. O simples fato de haver sobrevivido já lhe parecia espantoso.
Os telhados estavam prontos. Em breve chegaria a hora de deixar definitivamente a base,
depois de apenas três semanas de trabalho bem remunerado. Semanas de sete dias, com muitas
horas extras. Alguém queria que o trabalho ficasse pronto no menor tempo possível. Havia
outras coisas estranhas. O estacionamento, por exemplo. Um estacionamento asfaltado, para cem
carros. Já estavam pintando as vagas no chão. Para que serviria? Mais estranho ainda era o
trabalho que estava fazendo no momento, porque o capataz simpatizava com ele. Um parquinho
completo. Balanços. Pontes de cordas. Uma caixa de areia tamanho família. Tudo que o filho de
dois anos um dia viria a apreciar quando tivesse idade suficiente para frequentar o jardim de
infância do condado de Fairfax. Mas eram equipamentos que tinham que ser montados, e o ex-
fuzileiro e dois outros lutavam com as instruções, como se fossem pais no quintal de casa,
tentando descobrir que peça encaixava onde. Não cabia a ele perguntar por quê, não como
contratado de uma empreiteira a serviço do governo. Além disso, pensou, não havia como
entender a Máquina Verde. O corpo de fuzileiros funcionava de acordo com um plano que estava
acima da compreensão humana. Se queriam pagar horas extras em três dias ganharia o
equivalente a uma prestação da casa. Trabalhos como aquele podiam ser malucos, mas sabia o
que fazer com o dinheiro. A única coisa de que não gostava era a distância que tinha que viajar
diariamente. Talvez inventassem alguma coisa igualmente maluca para fazer em Fort Belvoir,
pensou, enquanto acabava de instalar a ponte de cordas. A distância da sua casa até Fort Belvoir
era de apenas vinte minutos de carro. Mas o Exército era um pouco mais racional que o corpo
de fuzileiros. Tinha que ser.

— Então, quais são as novidades? — perguntou Peter Henderson. Estavam jantando perto do
Capitólio. Eram dois amigos da Nova Inglaterra, um formado por Harvard, o outro por Brown.
Um era assessor de um senador e o outro trabalhava na Casa Branca.
— Não há novidades, Peter — disse Wally Hicks, em tom resignado.
— As conversações de paz não estão levando a nada. Continuamos a matar e eles também.
Sabe de uma coisa? Acho que a nossa geração não vai conhecer a paz.
— Não diga isso, Wally — protestou Henderson, estendendo a mão para o segundo copo de
cerveja.
— Se eu estiver certo... — começou a dizer Hicks, em tom sombrio. Os dois estavam no
último ano da academia de Andover em outubro de 1962. Eram amigos íntimos e companheiros
de quarto, que compartilhavam as notas de aula e as namoradas. E juntos chegaram à maioridade
política uma certa terça-feira à noite, assistindo a uma fala tensa do presidente, em rede
nacional, no receptor de TV preto-e-branco da sala de estar do dormitório. Havia mísseis em
Cuba, dissera o presidente. Era algo que os jornais vinham comentando há vários dias, mas
aqueles eram filhos da geração TV e a realidade chegava até eles através das linhas horizontais
de um tubo de imagem. Tinha sido uma entrada assustadora, embora um pouco tardia, no mundo
real, para a qual o dispendioso internato deveria tê-los preparado melhor. Mas viviam em uma
época gorda e preguiçosa para os jovens americanos, ainda mais quando as famílias ricas os
isolavam da realidade oferecendo-lhes os privilégios que o dinheiro podia comprar, sem lhes
dar a sabedoria necessária para usá-lo adequadamente.
Ao ouvir a fala do presidente, o mesmo pensamento chocante lhes ocorreu simultaneamente: a
qualquer momento, tudo poderia acabar.
Diálogos nervosos em volta deles completaram o quadro. Estavam cercados de alvos
estratégicos. Boston a sudeste, a base aérea de Westover u sudoeste, duas outras bases do
comando aéreo estratégico em um raio de duzentos quilômetros. A base naval de Portsmouth,
que abrigava submarinos nucleares. Se os mísseis fossem disparados, não escapariam vivos; se
a explosão não acabasse com eles, não conseguiriam sobreviver à radioatividade. E nem ao
menos tinham conseguido trepar ainda. Outros rapazes do dormitório alardeavam seus feitos —
e alguns talvez estivessem falando a verdade —, mas Peter e Wally não mentiam um para o
outro, e nenhum dos dois ainda conseguira marcar um gol, apesar de algumas tentativas sérias.
Como era possível que o mundo não levasse em conta suas necessidades pessoais? Eles não
pertenciam à elite? Não eram pessoas importantes?
Foi uma noite insone, a noite daquela terça-feira de outubro. Henderson e Hicks ficaram
conversando baixinho, tentando reconciliar-se com um mundo que mudara da segurança para o
perigo sem aviso prévio. Tinham que encontrar uma forma de mudar as coisas. Depois de se
formar, seguiram caminhos diferentes. Brown e Harvard não ficavam muito longe, e tanto a
amizade como os objetivos que tinham na vida continuaram e cresceram. Formaram-se em
ciências políticas porque era um pré-requisito para entrarem no processo de mudar o mundo.
Fizeram o mestrado e, mais importante que tudo, foram notados pelas pessoas que realmente
importavam — os pais ajudaram, é claro, preocupando-se em encontrar para eles uma forma de
servir ao governo que não implicasse vestir uniforme. Quando chegaram à idade de ser
convocados para o serviço militar, a guerra ainda estava começando e um simples telefonema
para o burocrata certo foi suficiente para que fossem dispensados.
Agora, os dois ocupavam postos-chave como assessores de pessoas influentes. As esperanças
juvenis de chegar a cargos de influência antes de completar trinta anos tinham esbarrado na dura
barreira da realidade, mas na verdade estavam mais próximos do poder do que imaginavam. Ao
fazer a triagem das informações para os chefes e decidir o que estaria em cima da mesa deles na
manhã seguinte, e em que ordem, tinham uma influência real no processo decisório; e também
tinham acesso a dados abrangentes, diversificados e confidenciais. Em consequência, sabiam
muito mais do que os chefes a respeito de certos assuntos. E isso, pensavam Hicks e Henderson,
era apropriado, porque os dois frequentemente compreendiam o que era importante melhor do
que os chefes. Era tudo muito claro. A guerra era um mal a ser evitado ou, quando isso não fosse
possível, a ser encerrado o mais depressa possível. Porque a guerra matava gente e isso era
péssimo. Com a guerra fora do caminho, as pessoas aprenderiam a resolver pacificamente suas
diferenças. Era tão óbvio que os dois ficavam admirados com o fato de a maioria das pessoas
não enxergar a pureza cristalina da Verdade que ambos haviam descoberto ainda na escola
secundária.
Na verdade, havia apenas uma diferença entre os dois. Como funcionário da Casa Branca,
Hicks trabalhava dentro do sistema. Entretanto, compartilhava tudo com o ex-colega, o que não
era problema, pois ambos contavam com uma licença de acesso especial a informações
confidenciais. Além disso, Hicks sentia necessidade de trocar ideias com alguém que o
entendesse e em quem confiasse.
O que Hicks não sabia era que Henderson estava um passo à sua frente. Se não podia mudar a
política do governo trabalhando do lado de dentro, Henderson decidira, durante os dias de
protestos que se seguiram à invasão do Camboja, que precisava de ajuda de fora, de algum
órgão externo que o ajudasse a bloquear os atos do governo que punham em risco a segurança
mundial. Havia outras pessoas no mundo que compartilhavam de sua aversão à guerra, pessoas
que achavam errado obrigar uma população a aceitar uma forma de governo com a qual não
concordava. O primeiro contato ocorrera em Harvard, através de um amigo que participava do
movimento pela paz. Agora estava se comunicando com outra pessoa. Devia ter comentado o
fato com o amigo, pensou Henderson, mas o momento não lhe parecia apropriado. Talvez Wally
ainda não estivesse preparado para compreender.
— ...não diga isso, Wally — insistiu Henderson, chamando a garçonete para pedir outra
rodada de cerveja. — A guerra vai acabar. Vamos sair de lá. Os vietnamitas vão ter o governo
que quiserem. Vamos perder a guerra, e isso será bom para nosso país. Será uma boa lição.
Conheceremos os limites do nosso poder. Aprenderemos a viver e deixar os outros viverem, e
com isso a paz terá uma grande oportunidade.

Kelly se levantou depois das cinco. Os acontecimentos do dia anterior Unham sido mais
cansativos do que imaginara e, além disso, as viagens sempre o deixavam extenuado. No
momento, porém, sentia-se novo em folha. Não era para menos, depois de onze horas de sono
nas últimas vinte e quatro horas. Olhando-se no espelho, constatou que estava com uma barba de
dois dias. Excelente. Foi escolher a roupa. Velha, escura, folgada, Tinha levado uma trouxa para
a lavanderia e lavado tudo com água bem quente e água sanitária para desbotar as peças e
envelhecer o tecido. Velhas meias esportivas e tênis usados completavam a caracterização,
embora ambos estivessem em melhor estado do que a aparência sugeria, A camisa era um
número maior que o seu tamanho, o que também atendia aos seus objetivos. O toque final era
uma peruca preta, de cabelos lisos, não muito compridos. Colocou-a debaixo de uma torneira de
água quente até ficar encharcada e depois penteou-a de forma intencionalmente inepta. Mais
difícil seria deixá-la cheirando mal, pensou Kelly.
Mais uma vez, a natureza decidiu cooperar. Nuvens escuras cobriram o céu vespertino,
trazendo com elas ventos fortes e chuva que lhe deram cobertura até chegar ao Volkswagen. Dez
minutos depois, estacionou na porta de uma loja de bebidas, onde comprou uma garrafa de vinho
branco barato e um saco de papel para escondê-la parcialmente. Desenroscou a tampa e
despejou metade do conteúdo na sarjeta. Então chegou a hora de ir.
Tudo parecia diferente, pensou Kelly. Não era mais uma rua por onde ele pudesse passar,
conhecendo os perigos ou não. Agora era um lugar aonde ia procurar deliberadamente o perigo.
Chegou ao ponto onde se livrara de Billy e seu Roadrunner. Procurou no chão as marcas de
pneus, mas não conseguiu encontrá-las. Sacudiu a cabeça. Aquilo era coisa do passado; tinha
que pensar no futuro.
No Vietnã sempre parecia haver uma linha das árvores, um lugar onde se passava de campo
aberto para a floresta, e na mente dos soldados americanos ali era o lugar onde acabava a
segurança, porque o inimigo vivia na floresta. Era uma coisa psicológica, uma fronteira mais
imaginária do que real; entretanto, olhando em torno, Kelly viu a mesma coisa. Só que, desta
vez, não estava com cinco ou dez companheiros, todos usando uniformes de camuflagem. Estava
atravessando a barreira em um Volkswagen com pontos de ferrugem. Acelerou e, de repente,
sem sentir, Kelly estava de novo na selva, e de novo no meio da guerra.
Encontrou uma vaga para estacionar no meio de carros tão decrépitos quanto o seu e saltou
rapidamente, como teria feito ao sair de um helicóptero que pousasse em território inimigo.
Dirigiu-se para um terreno baldio cheio de lixo e eletrodomésticos imprestáveis. Sentia-se
totalmente alerta. Estava suando profusamente. Isso era bom, pensou Kelly. Queria transpirar e
cheirar mal. Bebeu um gole de vinho e bochechou com ele antes de deixá-lo escorrer pelo rosto,
pescoço e camisa. Abaixou-se para apanhar um pouco de terra, que esfregou nas mãos, nos
braços e no rosto. Na última hora, resolveu passar também um pouco de terra na peruca. Quando
Kelly chegou do outro lado do terreno baldio, era apenas mais um bêbado de rua, um vagabundo
como aqueles que eram ainda mais numerosos naquele bairro do que os traficantes de drogas.
Kelly acertou o passo, andando mais devagar e cambaleando deliberadamente enquanto
procurava um bom ponto para se instalar. Não foi difícil. Várias das casas daquela rua estavam
vazias, e foi só encontrar uma com uma boa visão. Isso levou meia hora. Escolheu uma casa de
esquina com sacadas no segundo andar. Kelly entrou pela porta dos fundos. Quase teve um
ataque quando viu dois ratos nos destroços do que alguns anos antes tinha sido uma cozinha.
Malditos ratos! Era uma tolice ter medo de ratos, mas os olhinhos negros e caudas peladas lhe
davam arrepios.
— Que merda! — exclamou, baixinho. Por que não tinha pensado nisso? Todo mundo tinha
medo de alguma coisa: aranhas, cobras, edifícios altos. No caso de Kelly, eram os ratos. Foi até
a porta, tentando manter a calma. Os ratos se limitaram a olhar para ele, cautelosos mas com
muito menos medo de Kelly do que ele deles. — Droga! — ouviram-no murmurar, antes de sair
da cozinha, deixando-os em paz.
Kelly estava furioso. Subiu a escada sem corrimão e encontrou um quarto de esquina com
varanda, ainda se recriminando por se deixar afetar daquela forma. Não dispunha de uma arma
ideal para lidar com ratos? O que eles podiam fazer? Unir-se para lançar contra ele um ataque
em massa? A ideia finalmente o fez sorrir no quarto as escuras. Kelly aproximou-se das janelas,
agachado, procurando avaliar o campo de visão que teria e a própria visibilidade. As janelas
estavam muito sujas e rachadas. Alguns painéis de vidro estavam faltando, mas cada janela tinha
um peitoril no qual podia se sentar confortavelmente, e a localização da casa, na interseção de
duas ruas, lhe oferecia uma boa visão na direção dos quatro pontos cardeais, já que naquela
parte da cidade as ruas tinham sido traçadas exatamente nas direções norte-sul e leste-oeste. A
iluminação da rua não era suficiente para que fosse visto da calçada. Usando aquelas roupas
escuras, dentro de uma casa em ruínas, Kelly estava praticamente invisível. Empunhou o
binóculo e começou a trabalhar.
A primeira coisa a fazer era um reconhecimento das vizinhanças. A chuva havia passado,
deixando uma certa umidade no ar, que se condensava nas lâmpadas de rua, cercadas por insetos
voadores atraídos para a morte pela luz intensa. Ainda fazia calor, uns trinta graus, talvez, e
Kelly estava transpirando. Talvez devesse ter trazido um cantil com água, pensou. Isso teria que
ficar para a próxima vez; poderia perfeitamente passar algumas horas sem água. Tinha se
lembrado de trazer goma de mascar, o que já era alguma coisa. Os ruídos da rua eram curiosos.
Na selva, estava acostumado a ouvir o zumbido dos insetos, o canto dos pássaros, o bater de
asas dos morcegos. Ali, era o ronco dos motores, o ranger ocasional dos freios, o barulho de
conversas, o latir dos cães, o tinir das latas de lixo. Analisou tudo isso enquanto observava a
rua de binóculo e planejava a missão daquela noite.
Era sexta-feira, o início do fim de semana, e as pessoas estavam fazendo compras. Aquela
prometia ser uma boa noite para o mercado de drogas. Localizou um provável traficante a um
quarteirão e meio de distância. Devia ter uns vinte e poucos anos. Vinte minutos de observação
foram suficientes para que tivesse uma boa descrição tanto do traficante quanto do seu
assistente. Os dois se movimentavam com o desembaraço que acompanhava a experiência e a
segurança, e Kelly imaginou se teriam sido forçados a lutar para conquistar aquele ponto ou
para defendê-lo. Talvez as duas coisas. Tinham um negócio florescente, baseado talvez em
fregueses regulares, pensou, observando os dois homens se aproximarem de um carro
importado, mexendo com o motorista e o passageiro antes de fazer negócio, trocando apertos de
mão e acenando quando foram embora. Os dois tinham mais ou menos a mesma compleição e
Kelly os apelidou de Archie e Inghead.
Meu Deus, como fui inocente, pensou Kelly, olhando na direção da outra rua. Lembrou-se do
idiota que tinham surpreendido fumando maconha no 35 SOG, pouco antes de partirem em uma
missão. Estava no grupo de Kelly, e embora fosse um novato recém-saído da escola de
comandos, isso não era desculpa. Kelly tinha ido falar com o homem e lhe explicara que entrar
em combate com os reflexos embotados podia significar a morte para toda a equipe. "Ei, cara,
fique frio, eu sei o que estou fazendo" não tinha sido uma resposta particularmente inteligente;
trinta segundos depois, outro membro do grupo teve que tirar Kelly de cima do ex-membro da
equipe, que foi mandado embora no dia seguinte, para nunca mais voltar.
Até onde Kelly sabia, aquele tinha sido o único caso de uso de drogas em toda a unidade.
Claro que quando estavam de folga tomavam muita cerveja, e quando Kelly e dois
companheiros voaram de licença para Formosa, passaram o tempo todo de porre. Entretanto,
Kelly acreditava, com toda a convicção, que álcool era uma coisa e droga era algo bem
diferente. Além disso, ninguém bebia cerveja antes de uma missão; era uma questão de bom
senso. Era também uma questão de orgulho profissional. Kelly não conhecia nenhuma unidade
realmente de elite que tivesse qualquer problema com drogas. O problema — e muito sério,
pelo que ouvira falar — estava principalmente nas unidades onde serviam os recrutas, jovens
cuja presença no Vietnã era ainda menos voluntária que a sua, e cujos oficiais não tinham
conseguido fazer valer a sua autoridade, por incompetência ou por se sentirem da mesma forma
que os subordinados.
Fosse qual fosse o motivo, o fato de que Kelly jamais se preocupara com o problema das
drogas era ao mesmo tempo lógico e absurdo. Mas isso não fazia mais diferença. Por mais tarde
que tivesse tomado conhecimento do problema, ali estava ele, diante dos seus olhos.
Na outra rua estava um traficante solitário que não queria, precisava ou tinha conseguido um
assistente. Usava camisa listrada e tinha clientela própria. Kelly o batizou de Charlie Brown.
Durante as cinco horas seguintes, observou e classificou mais três operações dentro do seu
campo de visão. Então chegou a hora de iniciar o processo de seleção. Archie e Inghead eram
os mais ativos, mas havia outros dois traficantes operando na mesma rua. Charlie Brown
parecia ter um quarteirão só para ele. Em compensação, havia um ponto de ônibus a alguns
metros de distância.
Dagwood e Wizard trabalhavam na mesma rua, praticamente um em frente ao outro, e ambos
dispunham de assistentes. Big Bob era maior do que Kelly, e seu assistente maior ainda. Seria
um desafio e tanto. Kelly não estava à procura de desafios — ainda.
Preciso arranjar um bom mapa da região e memorizá-lo. Dividi-lo em várias partes,
pensou Kelly. Conhecer as linhas de ônibus e a localização das delegacias. Aprender quando
são as trocas de turno dos guardas, quais as ruas que costumam patrulhar e em que ordem.
Tenho que conhecer esta área como a palma da minha mão. Um raio de dez quarteirões deve
ser suficiente. Não devo estacionar o carro duas vezes no mesmo lugar.
Você só poderá caçar uma vez em um determinado local. Isso significa que terá que
escolher com cuidado o seu alvo. Evitar a rua, exceto quando estiver escuro. Arranjar uma
arma de reserva... que não seja uma arma de fogo... uma faca, uma boa faca. Um pedaço de
corda ou de arame. Um par de luvas, luvas de borracha como as que as mulheres usam para
lavar louça. Uma jaqueta folgada, com vários bolsos... melhor ainda, com bolsos do lado de
dentro. Um cantil. Alguma coisa para comer. Barras de chocolate, que é um alimento
energético. Goma de mascar... chiclete de bola, por que não?, pensou Kelly, permitindo-se um
pouco de descontração. Olhou para o relógio: três e vinte.
O movimento lá embaixo estava diminuindo. Wizard e seu auxiliar abandonaram o posto e
desapareceram na esquina. Logo depois, Dagwood também resolveu ir embora e entrou no
carro, dirigido pelo assistente. Quando tornou a olhar para o ponto de Charlie Brown, ele não
estava mais lá. Restavam apenas Archie e Inghead ao sul e Big Bob a leste, ambos ainda
fazendo vendas ocasionais, quase todas para clientes abastados. Kelly continuou a observá-los
por mais uma hora, até que Archie e Inghead, que eram os últimos, deram o trabalho por
encerrado... e desapareceram como que por encanto, pensou Kelly, sem saber direito o que
acontecera. Mais uma coisa para investigar. Quando se levantou, estava com os membros
entorpecidos. Da próxima vez, não ficaria tanto tempo imóvel. Os olhos acostumados à
escuridão examinaram a escada enquanto descia, pé ante pé, porque havia atividade na casa ao
lado. Felizmente, os ratos também haviam ido embora. Kelly olhou pela porta dos fundos,
verificou que o quintal estava deserto e saiu da casa, andando como se estivesse bêbado. Dez
minutos depois, avistou o carro. Quando estava a cinquenta metros do veículo, Kelly percebeu
que cometera um erro, estacionando perto demais de uma lâmpada de rua. Tomaria cuidado para
que aquilo não se repetisse, pensou consigo mesmo enquanto se aproximava devagar. Depois de
olhar para um lado e para o outro e verificar que não havia ninguém por perto/entrou no carro,
ligou o motor e pôs o carro em movimento. Só ligou os faróis quando estava a dois quarteirões
de distância. Dobrou à esquerda, entrou em uma avenida e deixou a zona de perigo, rumando
para o norte, em direção ao seu apartamento.
No conforto e segurança do carro, repassou o que vira nas últimas nove horas. Os traficantes
todos fumavam, acendendo os cigarros com o que pareciam ser isqueiros Zippo, cujas chamas
prejudicavam sua visão noturna. Quanto mais tarde, menor o movimento e mais descuidados
ficavam. Eles eram humanos. Também se cansavam. Alguns trabalhavam mais do que outros.
Tudo que vira era útil e importante. Era no modo de operarem, e principalmente nas diferenças,
que estavam seus pontos fracos.
Tinha sido uma noite produtiva, pensou Kelly, passando pelo estádio de beisebol da cidade e
dobrando à esquerda no Loch Raven Boulevard. Sentia-se bem mais calmo. Chegou a pensar em
parar para tomar um copo de vinho, mas não estava na hora de ser indulgente com seus maus
hábitos. Retirou a peruca e enxugou o suor da testa. Puxa, que sede!
Teve oportunidade de saciá-la dez minutos mais tarde, depois de estacionar o carro e entrar
silenciosamente no apartamento. Lançou um olhar comprido para o chuveiro. Como seria bom
um banho, depois de passar horas no meio da sujeira... e de ratos. A última lembrança lhe deu
um arrepio. Malditos ratos, pensou, enchendo um copo de gelo antes de acrescentar água da
torneira. Bebeu vários copos, enquanto usava a mão livre para se despir. Tinha ligado o ar-
condicionado e ficou em frente à saída do aparelho, refrescando-se. Todo aquele tempo, e não
sentia vontade de urinar. Da próxima vez, não se esqueceria de levar água. Kelly tirou uma lata
de presuntada da geladeira e preparou dois sanduíches caprichados, que acompanhou com outro
copo de água gelada.
Estou precisando de um banho, pensou. Mas não podia se dar a esse luxo. Precisava se
acostumar a sentir o corpo gorduroso, como se estivesse coberto por uma camada de plástico.
Teria que gostar da sujeira, cultivá-la, pois seria uma parte indispensável da sua segurança
pessoal. O desmazelo e o mau cheiro ajudariam o seu disfarce, levando as pessoas a desviar os
olhos e manter distância. Tinha que deixar de ser uma pessoa e tornar-se uma criatura das ruas,
esquiva, invisível. A barba estava ainda , mais escura, como teve oportunidade de ver no
espelho do banheiro antes de ir para o quarto. Sua última decisão do dia foi dormir no chão.
Não .tinha coragem de sujar a roupa de cama.
15

LIÇÕES POSTAS EM PRÁTICA

O inferno começou exatamente às onze da manhã, embora o coronel Zacharias não tivesse
meio de saber a hora. O sol tropical dava a impressão de estar sempre a pino, castigando a terra
de forma inclemente. Mesmo na cela sem janelas não podia escapar dele, como não podia
escapar dos insetos que pareciam vicejar no calor. Não sabia como era possível um animal se
dar bem naquele clima, mas tudo que vivia ali era perigoso ou desagradável, e essa era uma
definição melhor de inferno do que as que aprendera nos templos da juventude. Zacharias tinha
sido (reinado para uma possível captura. Passara por um curso de sobrevivência, evasão,
resistência e escape, chamado de escola SERE. Era um curso obrigatório para qualquer um que
quisesse ganhar a vida pilotando aviões, um curso detestado pelos militares, porque fazia coisas
com os orgulhosos oficiais da Força Aérea e da Marinha que um sargento dos fuzileiros não
leria coragem de fazer com seus subordinados — coisas que, em outra situação, seriam objeto
de uma corte marcial, seguida por uma longa estada em Leavenworth ou Portsmouth. Para
Zacharias, como para muitos outros, tinha sido uma experiência que ele jamais repetiria
voluntariamente. Mas a situação em que se encontrava no momento não tinha sido de sua livre
escolha, e ele estava repetindo a experiência da escola SERE.
Sempre pensara na captura como uma possibilidade remota. Não era o tipo de coisa que se
pudesse ignorar totalmente, não depois de ouvir o horrível e desesperador róóóó eletrônico dos
transmissores de emergência, ver os paraquedas e tentar organizar uma operação de resgate,
torcendo para que um helicóptero Jolly Green Giant pudesse levantar voo de sua base no Laos
ou talvez uma "mamãezona" — como os marinheiros chamavam os helicópteros de salvamento
— chegasse de um porta-aviões. Zacharias tinha visto algumas dessas missões darem certo,
porém o mais comum era o fracasso. Ouvira os gritos assustados e tragicamente estridentes dos
homens prestes a serem capturados. "Tirem-me daqui!", suplicara um major antes que outra voz
se fizesse ouvir pelo rádio, dizendo palavras de escárnio que nenhum deles era capaz de
entender, mas mesmo assim todos entenderam, palavras cheias de ressentimento e ódio
assassino. As tripulações dos helicópteros dos fuzileiros e da Marinha faziam o possível, e
embora Zacharias fosse mórmon e nunca tivesse bebido uma gota de álcool em toda a sua vida,
já pagara muitos drinques para aqueles homens, em sinal de gratidão e respeito por sua bravura,
pois era assim que se expressava a aprovação naquela comunidade de guerreiros.
Entretanto, como a maioria dos membros daquela comunidade, jamais acreditara realmente
que um dia pudesse vir a ser capturado. A morte, esse era o revés mais provável, aquele para o
qual se preparara, Zacharias tinha sido o rei dos Weasels; ajudara a inventar aquele ramo da
profissão. Com seu intelecto e soberbo talento para pilotar, criara a doutrina e a validara na
prática. Enfrentara no seu F-105 a rede mais densa de baterias antiaéreas jamais concebida pelo
homem, atraindo propositadamente para si o fogo das armas mais perigosas e usando seu
treinamento e sua inteligência para duelar com elas, combatendo tática com tática, perícia com
perícia, provocando-as, desafiando-as, atiçando-as no que se tornara o jogo mais emocionante
do qual um homem já participara, uma partida de xadrez tridimensional jogada em velocidade
supersônica, ele pilotando um Thud de dois lugares e o inimigo no comando de radares e
mísseis soviéticos. Como um duelo entre um mangusto e uma cobra, aquele era um embate muito
particular que se repetia vezes sem conta. Confiante na própria argúcia e habilidade, Zacharias
sempre começava o dia achando que iria vencer ou, na pior das hipóteses, encontrar o seu fim
na forma de uma nuvem amarela e negra que assinalaria a morte apropriada de um aviador:
rápida, dramática e etérea.
Nunca se considerara um homem particularmente corajoso. Tinha fé. Se encontrasse a morte
no ar, poderia ver a face de Deus, comparecendo à Sua presença com humildade pela sua
posição inferior e com orgulho pela vida que levara. Porque Robin Zacharias era um homem de
bem, que nunca se desviara do caminho da virtude. Bom amigo para os companheiros e líder
consciente, preocupado com as necessidades de seus homens; chefe de família exemplar, com
filhos inteligentes, fortes e orgulhosos e, mais do que tudo, um presbítero que contribuía com um
décimo do que ganhava na Força Aérea, como exigia sua posição na Igreja de Jesus Cristo dos
Santos dos Últimos Dias. Por todas essas razões, não tinha medo da morte. O além-túmulo era
algo cuja realidade encarava com confiança. Era a vida que era incerta, e sua vida atual mais
incerta ainda, de modo que mesmo uma fé tão grande quanto a sua tinha limites impostos pelo
corpo. Aquele era um fato que não conseguia assimilar muito bem. A fé, repetia o coronel para
si mesmo, deveria ser suficiente para sustentá-lo em todas as adversidades. Costumava ser.
Deveria ser. Era suficiente, asseguraram-lhe os professores de catecismo quando era criança.
Mas aquelas aulas eram dadas em salas confortáveis, com vista para as montanhas Wasatch, por
professores que usavam camisas limpas e gravatas, tinham na mão um livro de catecismo,
falavam com a confiança de quem tem por trás de si a tradição de uma igreja e seus membros.
Aqui é diferente. Zacharias ouviu a vozinha dizer isso, tentou ignorá-la, esforçou-se ao
máximo para não acreditar, porque acreditar seria trair sua fé, e essa traição era a única coisa
que sua mente se recusava a admitir. Joseph Smith morrera por sua fé, assassinado em Illinois.
Outros tinham sofrido o mesmo destino. A história do judaísmo e do cristianismo estava repleta
de mártires — heróis para Robin Zacharias, porque essa era a palavra usada pela sua
comunidade profissional —, que resistiram às torturas nas mãos dos romanos e de outros povos
e morrido com o nome de Deus nos lábios.
Mas eles não sofreram tanto tempo quanto você, observou a voz. Alguns minutos de dor
excruciante, queimando na fogueira, um dia ou dois, talvez, pregado na cruz. Isso era uma coisa;
você podia ver o fim e, se sabia o que havia depois, podia concentrar-se nessa ideia. Entretanto,
para pensar no que o esperava depois do fim, você precisava saber onde estava o fim.
Robin Zacharias se sentia muito solitário. Havia outros americanos ali. Conseguira vê-los de
relance, mas não chegara a comunicar-se com eles. Tentara usar o código das batidas, mas não
ouvira nenhum som em resposta. Ou estavam longe demais, ou sua audição já não era a mesma,
Não podia compartilhar os pensamentos com ninguém, e mesmo as orações tinham um limite em
um cérebro tão inteligente quanto o seu. Tinha medo de rezar para ser salvo — um pensamento
que não queria admitir, pois seria uma admissão íntima de que sua fé tinha sido abalada, e isso
era algo que não podia permitir, mas parte dele sabia que, recusando-se a rezar para ser salvo,
estava admitindo por omissão sua falta de fé, porque se rezasse e não chegasse ninguém para
salvá-lo, sua fé podia começar a morrer, e sua alma com ela. Para Robin Zacharias, foi assim
que o desespero começou, não com um pensamento, mas com a recusa de pedir a Deus algo que
talvez não lhe fosse concedido.
Ele não podia saber o resto. A alimentação insuficiente, o isolamento tão especialmente
penoso para um homem com a sua inteligência e o medo da dor, porque mesmo a fé não era um
antídoto contra a dor. Era como carregar uma carga muito pesada; por mais forte que pudesse
ser um homem, sua resistência era finita, mas a gravidade estaria ali para sempre. A força
muscular era fácil de entender, mas, no orgulho e retidão que vinham da sua fé, deixara de levar
em conta que o físico tinha influência sobre o psicológico, com a mesma certeza que a
gravidade, mas de forma muito mais insidiosa. Zacharias interpretava sua fadiga mental como
fraqueza de espírito e se culpava, em última análise, por ser humano. Uma conversa com outro
presbítero teria sido suficiente para esclarecer tudo, mas isso não era possível, e ao se negar a
válvula de escape de simplesmente admitir sua fragilidade humana, Zacharias mergulhava cada
vez mais fundo em uma armadilha de sua própria criação, auxiliado e encorajado por pessoas
que estavam a fim de destruir o seu corpo e a sua alma.
Foi então que as coisas pioraram ainda mais. A porta da cela foi aberta. Dois vietnamitas
usando uniformes caqui olharam para ele como se estivesse enfeando o país com a sua presença.
Zacharias sabia por que estavam ali. Tentou enfrentá-los com bravura. Tiraram-no da cela, um
de cada lado, segurando-o pelos braços, e um terceiro logo atrás com um rifle. Levaram-no para
uma sala, mas antes mesmo que passasse da porta, sentiu a estocada de um cano de rifle nas
costas, bem no lugar que ainda doía, nove meses depois da ejeção, e gritou. Os vietnamitas não
demonstravam prazer com o seu sofrimento. Não faziam perguntas. Não parecia haver nem
mesmo um plano coerente nas suas torturas, mas apenas os ataques de cinco homens ao mesmo
tempo, e Zacharias sabia que resistir significaria a morte. Embora estivesse ansioso para que o
cativeiro terminasse, procurar a morte daquele jeito equivaleria ao suicídio, e isso ele jamais
seria capaz de fazer.
Não fazia diferença. Em poucos segundos, sua capacidade de resistir não existia mais.
Desabou no chão de concreto, sentindo os socos e pontapés se acumularem como números em
um livro-caixa, os músculos paralisados pela agonia, incapaz de mover os membros mais do
que alguns centímetros, desejando que a dor parasse, sabendo que isso não aconteceria. Acima
de tudo, ouvia as vozes dos algozes, como se fossem demônios a atormentá-lo porque era uma
pessoa correta e mesmo assim Linha ido parar nas suas mãos. E o tormento prosseguia,
incessante...
Uma voz diferente o despertou de sua catatonia. Sentiu mais um pontapé no peito e depois as
botas se afastaram. Com o canto do olho, viu os rostos dos torturadores assumirem uma
expressão servil, quando todos olharam para a porta. Uma ordem ríspida e eles deixaram o
aposento. A voz mudou. Era... era uma voz de branco? Como podia saber disso? Mãos fortes o
levantaram do chão, sentando-o de encontro à parede, e o rosto entrou no seu campo de visão.
Era Grishanov.
— Meu Deus! — exclamou o russo, rubro de raiva. Virou-se e gritou alguma coisa em
vietnamita. Imediatamente apareceu um cantil, cujo conteúdo despejou no rosto do americano.
Gritou de novo e Zacharias ouviu a porta se fechar.
— Beba, Robin, beba — pediu, levando um pequeno frasco de metal aos lábios do
americano.
Zacharias bebeu tão depressa que o líquido estava no estômago antes que sentisse o gosto
ácido da vodca. Levantou a mão, chocado, e tentou empurrar o frasco para longe.
— Não posso — murmurou. — Não posso beber, não posso...
— Robin, considere isto um remédio, não um prazer. Sua religião não pode ter nada a opor.
Por favor, amigo, você está precisando. É o melhor que posso lhe dar. Precisa beber, Robin —
insistiu o russo, com uma voz trêmula de frustração.
Talvez seja mesmo um remédio, pensou Zacharias. Alguns remédios usavam o álcool como
veículo e eram permitidos pela sua igreja, não eram? Não conseguiu se lembrar com segurança,
mas bebeu outro gole. Também não sabia que, à medida que a adrenalina que invadira seu corpo
por causa do espancamento se dissipasse, o relaxamento natural do corpo seria acentuado pela
bebida.
— É melhor não exagerar, Robin. — Grishanov removeu o frasco e começou a cuidar dos
ferimentos do americano, esticando suas pernas, usando um pano molhado para limpar-lhe o
rosto. — Selvagens! — exclamou o russo. — Malditos selvagens! Eu devia estrangular o major
Vinh por isto, quebrar o seu pescocinho de macaco. — O coronel russo sentou-se no chão ao
lado do colega americano e falou com sentimento. — Robin, podemos ser inimigos, mas também
somos homens, e até a guerra tem suas regras. Você é leal ao seu país, como sou leal ao meu.
Esses... esses indivíduos não compreendem que sem honra não existe lealdade, mas apenas
barbárie. — Ofereceu de novo o frasco. — Tome. Não posso lhe dar mais nada para a dor. Sinto
muito, amigo, mas não posso.
Zacharias bebeu outro gole, ainda tonto, ainda desorientado, e mais confuso do que nunca —
Muito bem — disse Grishanov. — Eu nunca lhe disse isso, mas é um homem corajoso, meu
amigo, para resistir a esses pequenos animais da forma como tem feito.
— Tenho que aguentar — murmurou Zacharias.
— Claro que sim — concordou Grishanov, limpando o rosto do homem com a mesma ternura
que limparia o rosto de um dos seus filhos, — Sei como se sente. — Fez uma pausa. — Que
vontade deve estar sentindo de pilotar de novo!
— É verdade, coronel. Eu daria qualquer coisa...
— Chame-me de Kolya — protestou Grishanov. — Você me conhece há tempo suficiente.
— Kolya?
— Meu nome de batismo é Nikolay. Kolya é meu... meu apelido?
Zacharias encostou a cabeça na parede, fechou os olhos e recordou a sensação de voar.
— Kolya, eu daria qualquer coisa para estar de novo no meu avião.
— Sei como se sente — disse Kolya, passando um braço de amigo em torno dos ombros
machucados e doloridos do americano, sabendo que era o primeiro gesto de calor humano que o
homem experimentava em quase um ano de cativeiro. — Meu favorito é o MiG-17. Está
ultrapassado, mas como era gostoso de pilotar! Bastava um toque no manche e pronto. Era como
se soubesse o que a gente estava pensando...
— O F-86 era assim — comentou Zacharias. — Agora também foi retirado do serviço.
O russo riu.
— É como o primeiro amor, não é? A primeira garota em quem você reparou, a primeira que
o fez pensar como um homem pensa... Mas para nós, o primeiro avião é ainda mais importante.
Pode não ser tão quente como uma mulher, mas é bem mais fácil de dirigir. — Robin começou a
rir, mas engasgou, Grishanov ofereceu-lhe outro gole. — Devagar, meu amigo. Diga-me, qual é
o seu preferido?
O americano deu de ombros, sentindo um calor agradável no estômago.
— Já pilotei praticamente de tudo, menos o F-94 e o F-89. Dizem que não perdi grande coisa.
O F-l 04 era divertido, como um carro esporte, mas não tinha muita estabilidade. Não, eu
gostava mesmo era do F-86H.
— E o Thud? — perguntou Grishanov, chamando o F-105 Thunderchief pelo apelido.
Robin pigarreou.
— Os controles são muito duros, mas em compensação tem um arranque de tirar o chapéu.
— Dizem que não é bem um caça. Está mais para um caminhão de bombas. — Grishanov
estudara com afinco a gíria dos pilotos de caça americanos.
— É verdade. Detestaria me envolver em um combate aéreo pilotando um deles.
— Mas no que toca a bombardeios... de um piloto para outro, o aproveitamento de vocês é
excelente, sabia?
— Somos um grupo esforçado, Kolya — disse Zacharias, com voz pastosa.
O russo estava surpreso com a rapidez do efeito do álcool. Aquele homem bebera pela
primeira vez na vida fazia menos de vinte minutos, era incrível como alguém podia ser
abstêmio.
— E o modo como vocês localizam os lançadores de foguetes. Não posso deixar de admirá-
los. Somos inimigos, Robin — repetiu Kolya —, mas também somos pilotos. Nunca vi tanta
coragem e habilidade. Você deve ser um jogador profissional em seu país.
— Jogador? — Robin sacudiu a cabeça. — Não, não jogo a dinheiro.
— Mas o que costumava fazer no seu Thud...
— Aquilo não era jogo. Era risco calculado. Você planeja, sabe do que é capaz e segue em
frente, tentando imaginar o que o inimigo está pensando.
Grishanov pensou consigo mesmo que não podia se esquecer de tornar a encher o frasco antes
de ir conversar com o prisioneiro seguinte. Tinha levado alguns meses, mas finalmente
encontrara alguma coisa que funcionava. Era uma pena que aqueles pequenos selvagens
amarelos não compreendessem que agredir um homem era a maneira mais garantida de reforçar
sua coragem. Com toda a sua arrogância, que não era pequena, viam o mundo através de uma
lente tão pequena quanto a sua estatura e tão estreita quanto a sua cultura. Pareciam incapazes de
aprender com a experiência dos outros. Grishanov não era assim. O método que estava usando,
por exemplo, se baseava em algo que aprendera com um oficial nazista da Luftwaffe. Era uma
pena que os vietnamitas não permitissem que outros como ele executassem aqueles
interrogatórios especiais. Talvez devesse escrever a Moscou sobre o assunto. Nas mãos das
pessoas certas, aquele campo poderia ser muito útil, Como era contraditório que os selvagens
tivessem a ideia de estabelecer aquele campo e deixassem de ver suas possibilidades! Como
era desagradável ter que viver naquele país quente, úmido, cheio de insetos, cercado de
homenzinhos arrogantes com ideiazinhas arrogantes e a simpatia de serpentes. Entretanto, as
informações que queria estavam ali. Por mais detestável que fosse o trabalho que estava fazendo
no momento, descobrira uma frase para descrevê-lo em um romance americano contemporâneo
que lera para melhorar ainda mais o seu domínio da linguagem, já notável para um estrangeiro.
Uma frase muito americana. O que estava fazendo "não era nada pessoal". Era uma forma de
encarar o mundo que não tinha dificuldade para entender. Pena que o americano que estava a seu
lado provavelmente não pensasse da mesma forma, pensou Kolya, escutando cada palavra da
sua explicação entusiástica de como era a vida de um piloto dos Weasels.

O rosto no espelho estava ficando quase irreconhecível, e isso era ótimo. Hábitos arraigados
eram tão difíceis de abandonar! Tinha enchido a pia de água quente e ensaboado as mãos antes
de se lembrar de que não devia fazer a barba nem lavar o rosto. Pelo menos escovou os dentes.
Não suportava a sensação de sujeira na boca, e para essa parte do disfarce podia contar com o
vinho. Que droga de vinho fui escolher, pensou Kelly. Doce, pesado e com uma cor muito
estranha. Kelly não era nenhum entendido em vinhos, mas sabia que um vinho de mesa decente
não podia ser cor de urina. Teve que sair do banheiro; não aguentava mais olhar para a própria
imagem no espelho.
Revigorou-se com uma boa refeição, escolhendo alimentos suaves que lhe fornecessem as
calorias necessárias sem fazer o estômago roncar. Então chegou a hora dos exercícios. Como o
apartamento ficava no térreo, podia praticar corrida estacionaria sem incomodar os vizinhos.
Não era a mesma coisa que correr de verdade, mas ajudava. Depois fez algumas flexões.
Finalmente o ombro esquerdo estava totalmente recuperado e as dores musculares eram as
mesmas dos dois lados. Encerrou com os exercícios de luta corpo-a-corpo, que praticava para
manter os reflexos em dia, além, é claro, da sua utilidade precípua.
No dia anterior, deixara o apartamento à luz do dia, arriscando-se a ser visto naquele estado
indecoroso, porque queria dar um pulo em uma loja do Exército de Salvação, onde escolheu
uma jaqueta de combate na selva para combinar com o resto do traje. Estava tão velha e surrada
que não lhe custou nada. Kelly sabia que não seria fácil disfarçar os seus músculos e o seu
condicionamento físico, mas chegara à conclusão de que se usasse roupas velhas e folgadas,
ninguém prestaria atenção nele. Aproveitou a ida à loja para se comparar com os outros
fregueses. O disfarce lhe pareceu adequado. Embora não se assemelhasse exatamente a um pária
da sociedade, certamente dava a impressão de ser muito pobre, e o vendedor que lhe dera a
jaqueta de graça provavelmente estava mais interessado em vê-lo fora da loja do que em
expressar sua compaixão. Não era um progresso? Quanto não daria, quando estava no Vietnã,
para poder se fazer passar por um camponês enquanto esperava pelo inimigo... À noite,
continuara o trabalho de reconhecimento. No caminho, ninguém lhe dirigira um segundo olhar;
era apenas mais um bêbado sujo e malcheiroso, que não servia nem para ser roubado. Passara
mais cinco horas observando as ruas das janelas do segundo andar da casa abandonada.
Constatou que as rondas policiais eram rotina e que os ônibus passavam pelo local mais
frequentemente do que imaginara.
Depois de terminar os exercícios, desmontou a pistola e limpou-a, embora não a tivesse
usado desde que voltara de Nova Orleans. Fez o mesmo com o silenciador. Tornou a montar o
conjunto, verificando se as peças estavam bem encaixadas, e carregou a pistola. Fizera uma
pequena mudança. Agora havia uma fina linha branca na parte de cima do silenciador que servia
como mira. Não seria muito precisa, mas servia para o que estava planejando. Também tinha
comprado uma faca de combate Ka-Bar Marine em uma loja de excedentes de guerra. Na noite
anterior, enquanto observava as ruas, afiara a lâmina de dezoito centímetros em uma pedra de
amolar. Muitos homens tinham mais medo de uma faca do que de uma arma de fogo. Era uma
tolice, mas poderia ser útil em uma emergência. Enfiou a pistola e a faca na cintura, lado a lado,
bem escondidas pelas dobras da camisa e da jaqueta. Em um dos bolsos do blusão, colocou um
cantil com água; no outro, guardou quatro barras de chocolate Snickers. Enrolou na cintura um
pedaço de fio elétrico número oito. No bolso da calça, colocou luvas de borracha Playtex. Eram
amarelas, uma cor indesejável do ponto de vista da visibilidade, mas foram as únicas que
conseguiu encontrar. Cobriam as mãos sem prejudicar muito o tato, e resolveu levá-las assim
mesmo. Já tinha no carro um par de luvas de algodão, que usava para dirigir. Depois de comprar
o turro, ele o limpara por dentro e por fora, esfregando bem todas as superfícies de vidro, metal
e plástico, para que não restasse nenhuma impressão digital. Kelly agradeceu aos céus por ter
visto tantos filmes policiais e rezou para que estivesse sendo suficientemente cuidadoso.
O que mais?, perguntou-se. Não estava usando nenhum documento de identificação. Tinha
alguns dólares em uma carteira velha que também conseguira na loja do Exército de Salvação.
Pensara em levar mais dinheiro, mas mudara de ideia. Água. Comida. Armas. Um pedaço de fio.
Desta vez, deixaria o binóculo em casa. Não era suficientemente útil para justificar o espaço
que ocupava. Talvez valesse a pena comprar um binóculo menor... iria pensar no assunto. Estava
pronto. Kelly ligou o receptor de TV e procurou um noticiário para saber a previsão do tempo.
Nublado, com possibilidade de chuva, mínima por volta de vinte e quatro graus. Preparou e
bebeu duas xícaras de café instantâneo enquanto esperava anoitecer. A cafeína o ajudaria a
manter-se acordado.
Sair do edifício de apartamentos era, estranhamente, uma das partes mais difíceis da
operação. Antes de se aventurar do lado de fora, Kelly apagou todas as luzes e olhou pela janela
para certificar-se de que não havia ninguém na rua. Quando chegou à porta do edifício, parou
novamente atento a qualquer movimento. Afinal, atravessou a calçada e entrou no Volkswagen.
Calçou imediatamente as luvas de algodão e só depois fechou a porta do carro e ligou o motor.
Dois minutos depois, passou pelo lugar onde havia estacionado o Scout, imaginando como devia
sentir-se solitário. Sintonizou uma estação de rádio que tocava música contemporânea, rock e
música folk, só para ter a companhia de ruídos familiares enquanto se dirigia para o centro da
cidade.
Ficou surpreso ao perceber que tinha ficado tenso no momento em que entrara no carro.
Quando chegasse ao destino, tinha certeza de que se acalmaria, mas a viagem, como o voo de
helicóptero antes de uma incursão em território inimigo, era a hora de contemplar o
desconhecido, e teve que se controlar para se manter impassível, enquanto as mãos suavam um
pouco dento das luvas. Respeitou cuidadosamente todas as leis de trânsito, parou em todos os
sinais vermelhos e ignorou os carros que passavam. Era incrível, pensou, como vinte minutos
levavam tanto tempo para passar. Desta vez, usara um percurso ligeiramente diferente. Na noite
anterior, observara de longe o lugar onde pretendia estacionar o carro, a dois quarteirões do
alvo. Automaticamente, imaginara que um quarteirão na cidade equivalia a um quilômetro na
selva, uma correspondência que o fez sorrir por um instante enquanto encostava o carro atrás de
um Chevy preto 1957. Saltou do carro e internou-se rapidamente num beco. Vinte metros
adiante, não passava de mais um bêbado de rua.
— Ei, cara! — gritou uma voz jovem. Eram três adolescentes que estavam sentados em uma
cerca, bebendo cerveja. Kelly chegou para o outro lado do beco, tentando passar o mais longe
possível dos rapazes, mas não adiantou. Um deles pulou da cerca e se aproximou.
— Que é que você quer aqui, vagabundo? — perguntou, com a arrogância insensível dos
jovens. — Puxa, como você cheira mal! Sua mãe não lhe ensinou a tomar banho?
Kelly encolheu-se e seguiu em frente. Aquilo não estava nos planos. Mantendo a cabeça
baixa, afastou-se ligeiramente do rapaz que caminhava a seu lado, mantendo o mesmo passo,
visivelmente empenhado em atormentar o vagabundo, que passou a garrafa de vinho para a outra
mão.
— Preciso de um trago, cara — disse o jovem, estendendo a mão para a garrafa.
Kelly não entregou a garrafa, porque um bêbado de rua jamais faria isso. O rapaz deu-lhe uma
rasteira, fazendo-o cair de encontro à cerca da esquerda, mas não insistiu em tomar-lhe a
garrafa. Voltou para onde estavam os amigos, rindo, enquanto o vagabundo se levantava e
continuava seu caminho.
— E não volte mais, ouviu? — gritou o rapaz, quando Kelly chegou ao final do beco. Kelly
não pretendia voltar. Passou por mais dois grupos de rapazes nos dez minutos seguintes, mas
ninguém fez nada, exceto rir. A porta dos fundos do esconderijo ainda estava aberta e felizmente
não havia nenhum rato à vista. Kelly parou do lado de dentro, escutando. Como não ouviu
nenhum ruído, endireitou o corpo, permitindo-se um suspiro de alívio.
— Cobra para Chicago — murmurou, lembrando-se do antigo nome de código. — Infiltração
completada com sucesso. Dirigindo-se ao ponto de observação. — Subiu o lance de escadas
pela terceira e última vez, chegou ao local costumeiro, no canto da casa, sentou-se e olhou para
fora.
Archie e Inghead também estavam no lugar de sempre, a um quarteirão de distância,
conversando com um motorista. Eram dez e doze da noite. Kelly se permitiu um gole d'água e
uma barra de chocolate enquanto observava a rua, atento a qualquer sinal de atividade fora do
comum, mas em meia hora de observação não viu nada de anormal. Big Bob estava no seu
ponto, acompanhado pelo assistente, que Kelly começara a chamar de Little Bob. Charlie
Brown e Dagwood também estavam trabalhando, o primeiro sozinho, o outro com um ajudante
que Kelly não se deu ao trabalho de batizar. Entretanto, não havia sinal de Wizard. Ele só
apareceu depois das onze horas, em companhia do ajudante, que Kelly chamava de Totó, porque
ficava andando de um lado para o outro com passos apressados, como o cãozinho que viajava
no cesto da bicicleta da Bruxa Malvada.
— E o seu cachorrinho, também... — murmurou Kelly consigo mesmo.
Como já esperava, o movimento domingo à noite era mais fraco do que na sexta e no sábado;
mesmo assim, Archie e Inghead tiveram muitos fregueses, bem mais do que os outros traficantes.
Talvez a clientela deles fosse um pouco mais refinada. Embora também atendessem aos
consumidores locais, Archie e Inghead eram procurados por carros de luxo cujos donos, na
opinião de Kelly, moravam muito longe dali. Talvez fosse uma conclusão errônea, mas não era
importante para sua missão. O detalhe realmente importante era algo que observara na noite
anterior e estava confirmando naquela noite. Agora era só ter um pouco de paciência.
Kelly assumiu uma posição mais confortável, sentindo o corpo relaxar depois que todas as
decisões tinham sido tomadas. Ficou olhando para a rua, ainda com os sentidos aguçados,
observando, escutando, reparando em todos os que passavam lá embaixo. À meia-noite e
quarenta, uma radiopatrulha passou por uma das transversais, apenas para dar sinal de sua
presença. Provavelmente estaria de volta alguns minutos depois das duas. O ruído do motor a
diesel dos ônibus era inconfundível, e Kelly reconheceu o ônibus de uma e dez, cujos freios
estavam precisando de uma revisão. O ranger estridente daqueles freios devia perturbar o sono
de todo mundo que morava nas vizinhanças. Depois das duas horas, o movimento caiu muito. Os
traficantes estavam fumando mais e começaram a conversar entre si. Big Bob atravessou a rua
para dizer alguma coisa a Wizard. As relações entre os dois pareciam cordiais, o que deixou
Kelly surpreso. Até aquele momento, não havia presenciado qualquer contato entre os dois.
Talvez o homem simplesmente estivesse precisando de troco para uma nota de cem. A
radiopatrulha passou na hora prevista. Kelly comeu a terceira barra de Snickers da noite e
guardou o papel no bolso. Olhou em torno. Não deixara nenhum sinal de sua presença. Nenhuma
superfície que tocara poderia guardar uma impressão digital. Havia simplesmente muita sujeira,
e tomara cuidado para não se apoiar na vidraça.
Muito bem.
Kelly desceu a escada e saiu pela porta dos fundos. Atravessou a rua e entrou em um beco
paralelo à rua principal, mantendo-se nas sombras e procurando fazer o mínimo de ruído.
O mistério da primeira noite se revelara uma bênção. Archie e Inghead tinham desaparecido
sem deixar vestígios. Estava certo de que não desviara os olhos da dupla mais do que alguns
segundos. Não tinham saído de carro e não daria tempo para caminharem até o final do
quarteirão. Na noite anterior, conseguira encontrar a explicação. Os construtores daqueles
compridos quarteirões de casas não eram idiotas. No meio de cada quarteirão, havia uma
passagem em arco que facilitava o acesso dos transeuntes ao beco. Era também uma rota de fuga
muito conveniente para Archie e Inghead, que, enquanto executavam suas transações, jamais se
afastavam mais do que alguns metros da passagem. Entretanto, também não pareciam vigiá-la.
Kelly certificou-se disso, apoiando as costas em um anexo suficientemente grande para
abrigar um Ford modelo T. Encontrando um par de latas vazias de cerveja, ligou-as com um
barbante e colocou-as na calçada de cimento que levava à passagem, para que ninguém pudesse
surpreendê-lo pelas costas. Em seguida, entrou, procurando não pisar com força, apalpando o
cabo da pistola com a mão direita. Tinha apenas uns dez metros para cobrir, mas um túnel como
aquele transmitia o som melhor ilo que um telefone e Kelly tinha medo de tropeçar em alguma
coisa e lazer barulho. Depois de evitar uma pilha de jornais velhos e algumas garrafas
quebradas, chegou do outro lado da passagem.
Vistos de perto, eles pareciam quase humanos. Archie estava encostado em uma parede de
tijolos, fumando um cigarro. Ing também estava fumando, sentado no para-lama de um carro,
olhando para a rua; a cada dez segundos, a brasa dos cigarros ficava mais forte, ofuscando-os.
Kelly podia vê-los, mas, mesmo a poucos metros de distância, eles não podiam vê-lo.
Ótimo.
— Não se mexa — sussurrou, apenas para Archie. O homem virou a cabeça, mais aborrecido
do que assustado até ver a pistola com o grande cilindro aparafusado na ponta. Olhou de soslaio
para o assistente, ainda virado para o outro lado, trauteando uma música enquanto esperava pelo
próximo freguês. Kelly encarregou-se de chamá-lo.
— Ei! — Era ainda um sussurro, mas alto o suficiente para que o homem ouvisse. Inghead
virou-se e viu a arma apontada para a cabeça do chefe. Imobilizou-se sem ser mandado. Archie
estava com a arma, o dinheiro e a maior parte das drogas.
Kelly acenou para que se aproximasse, e ele obedeceu.
— O movimento estava bom esta noite? — perguntou Kelly.
— Razoável — respondeu Archie, sem titubear. — O que você quer?
— O que acha? — replicou Kelly, com um sorriso.
— Você é da polícia? — perguntou Inghead, sem nenhuma lógica, pensaram os outros dois.
— Não, não estou aqui para prender ninguém. — Acenou com a arma. — Entrem no túnel e
deitem-se de bruços. Depressa!
Kelly fez com que entrassem uns três metros, o suficiente para não serem vistos da rua, mas
não o suficiente para que ficassem totalmente no escuro. Primeiro, revistou-os em busca de
armas. Archie estava com uma revólver .32 enferrujado, que guardou no bolso. Pegou o fio
elétrico que trazia na cintura e usou-o para amarrar as mãos dos dois atrás das costas. Depois,
virou-os de barriga para cima.
— Obrigado pela cooperação.
— Nunca mais apareça por essa bandas, cara — ameaçou Archie, aparentemente sem
perceber que não tinha sido roubado. Inghead concordou com a cabeça. A resposta de Kelly os
surpreendeu.
— Estou precisando da ajuda de vocês.
— Para quê? — perguntou Archie.
— Procuro um sujeito chamado Billy. O carro dele é um Roadrunner vermelho.
— O quê? Está querendo ver minha caveira? — protestou Archie, em tom desgostoso.
— Responda à minha pergunta, por favor — pediu Kelly.
— Vá se foder! — exclamou Archie.
Kelly apontou a pistola para a cabeça de Inghead e atirou duas vezes. O corpo foi sacudido
por espasmos e o sangue jorrou, mas desta vez não na direção de Kelly. Em vez disso, banhou o
rosto de Archie. Kelly viu os olhos do traficante se arregalarem de horror e surpresa, como duas
pequenas lâmpadas brilhando no escuro. Era a última coisa que Archie esperava. Inghead não
parecia ser um sujeito muito loquaz, e Kelly estava com pressa.
— Eu pedi por favor, não pedi?
— Pelo amor de Deus, cara! — sussurrou o traficante, sabendo que levantar a voz significaria
a morte.
— O nome é Billy. Dirige um Plymouth Roadrunner vermelho. É um distribuidor. Quero saber
onde encontrá-lo.
— Se eu lhe contar...
— Terá um novo fornecedor. Eu mesmo — disse Kelly. — E se contar a Billy que estive aqui,
vai se encontrar com seu amigo mais cedo do que gostaria — acrescentou, apontando com a
arma para o corpo ainda quente. Tinha que oferecer ao homem alguma esperança, pensou.
Talvez mesmo um pouquinho da verdade. — Quer saber por quê? Billy e alguns amigos se
meteram com as pessoas erradas e estou aqui para acertar as contas. Sinto pelo seu amigo, mas
tinha que mostrar que estava falando sério.
Archie tentou acalmar-se sem muito sucesso, embora se agarrasse com unhas e dentes à
oportunidade que lhe tinha sido oferecida.
— Escute, cara, eu não posso...
— Talvez seja melhor perguntar a outra pessoa — disse Kelly, em tom ameaçador —
Compreendeu o que eu disse?
Archie tinha compreendido, e contou tudo que sabia antes de ir fazer companhia a Inghead.
Uma revista rápida nos bolsos de Archie revelou um grosso rolo de dinheiro e uma coleção
de pequenos envelopes de drogas, que também foram parar nos bolsos da jaqueta. Kelly pulou
cautelosamente por cima dos cadáveres e voltou para o beco, olhando para trás para certificar-
se de que não pisara nas poças de sangue. De qualquer forma, seria mais seguro livrar-se dos
sapatos. Kelly desamarrou as latas de cerveja e jogou-as de volta no lugar onde as encontrara
antes de retomar seu andar de bêbado, seguindo um caminho tortuoso até o carro, repetindo a
rotina cuidadosamente ensaiada a cada passo do caminho. Graças a Deus, pensou, enquanto
dirigia de volta para casa, que esta noite vou poder fazer u barba e tomar um banho. Mas que
diabo faria com as drogas? Essa era uma pergunta que o destino iria responder.
Os carros começaram a chegar pouco depois das seis, uma hora não totalmente absurda para
começar as atividades em uma base militar. Eram quinze, nenhum com menos de três anos de
uso; todos tinham sido vendidos como ferro-velho depois de se envolverem em acidentes. A
única coisa diferente era que, embora estivessem inutilizados, ainda pareciam em condições de
trafegar. Foram transportados para o estacionamento por um grupo de fuzileiros navais
supervisionados por um sargento da artilharia que não fazia a menor ideia do objetivo daquilo.
Mas isso não era necessário. Os carros foram distribuídos pelas vagas, não em fileiras
cerradas, mas mais ou menos ao acaso, como em um estacionamento de verdade. Terminado o
trabalho, que levou noventa minutos, os fuzileiros se retiraram. Às oito da manhã chegou outro
grupo, desta vez com manequins de vários tamanhos, vestidos com roupas velhas. Os menores
foram colocados nos balanços e na caixa de areia. Os que imitavam adultos foram postos de pé,
com o auxílio dos suportes que vinham com eles. E o segundo grupo foi embora, para voltar
duas vezes por dia por um prazo indefinido e mudar os bonecos de posição de acordo com um
conjunto de instruções inventado por um burocrata idiota que não tinha mais nada para fazer.
Em suas anotações, Kelly comentou que um dos aspectos mais cansativos e demorados da
operação PINO MESTRE tinha sido a necessidade diária de montar e desmontar a réplica do
alvo. Ele não era o primeiro a observar o fato. Se um dos satélites de reconhecimento soviéticos
fotografasse aquele lugar, os russos veriam apenas um estranho conjunto de construções sem
nenhum objetivo aparente. Veriam também um parque infantil, com crianças, pais e carros
estacionados, cuja localização mudaria todos os dias. Isso ajudaria a desviar a atenção do fato
mais óbvio: aquele complexo de lazer ficava a quase um quilômetro da estrada pavimentada
mais próxima e perto de uma base militar.
16

EXERCÍCIOS

Ryan e Douglas recuaram para dar passagem aos peritos. Os corpos tinham sido descobertos
pouco depois das cinco da manhã. Ao fazer a ronda, o policial Chuck Monroe vira uma sombra
no espaço entre as casas e iluminara o local com o farol do carro. O vulto escuro podia muito
bem ser um bêbado que se deitara ali para passar a noite, mas o feixe tinha sido refletido por
algo vermelho, banhando as paredes de tijolo com uma luminosidade rósea que lhe parecera
estranha desde o primeiro instante. Monroe estacionou o carro, aproximou-se para dar uma
olhada e voltou logo depois para chamar a central. O policial agora estava encostado no carro,
fumando um cigarro e contando os detalhes do seu achado, que era para ele menos traumático e
mais rotineiro do que os civis podiam imaginar. Nem se dera ao trabalho de chamar uma
ambulância; não havia nada que a medicina pudesse fazer pelos dois homens.
— Os ferimentos na cabeça sangram muito — observou Douglas. — Não era nenhuma
informação relevante; apenas palavras para quebrar o silêncio enquanto os fotógrafos da polícia
gastavam mais um rolo de filme colorido. Parecia que alguém despejara duas latas grandes de
tinta vermelha na cena do crime.
— Qual foi a hora da morte? — perguntou Ryan ao médico-legista.
— Não faz muito tempo — afirmou o homem, levantando uma das mãos. A rigidez cadavérica
ainda não começou. Depois da meia-noite, com toda a certeza. Provavelmente depois das duas.
Não era preciso perguntar a causa da morte. Os buracos na testa dos homens eram bem
visíveis.
— Monroe? — chamou Ryan. O jovem policial se aproximou. — O que você sabe a respeito
desses dois?
— São traficantes de drogas, senhor. O mais velho, o da direita, é Maceo Donald, conhecido
como Ju-Ju. Não sei o nome do outro, mas trabalhava para Donald.
— Bom trabalho, patrulheiro. Mais alguma coisa? — perguntou o sargento Douglas.
Monroe sacudiu a cabeça.
— Não, senhor. Nada. Na verdade, tivemos uma noite muito tranquila. Passei por aqui umas
quatro vezes e não vi nada fora do normal. Os traficantes de sempre, fazendo os negócios de
sempre. — A crítica implícita na afirmação de que o tráfico de drogas era normal naquela área
foi ignorada. Afinal de contas, era uma manhã de segunda-feira e todos estavam de mau humor.
— Terminamos — declarou o fotógrafo-chefe. Ele e o auxiliar, que estava do outro lado dos
cadáveres, afastaram-se do local do crime.
Ryan olhou em volta. A luz do dia penetrava na passagem, iluminando as paredes, mas mesmo
assim o detetive acendeu uma grande lanterna e apontou-a para o chão, à procura de um reflexo
acobreado. — Está vendo algum cartucho, Tom? — perguntou a Douglas, que estava fazendo a
mesma coisa.
— Não. O assassino atirou desta direção, não acha?
— Os corpos não foram arrastados — observou o legista, sem necessidade, acrescentando:
— Sim, certamente ele estava deste lado. E os dois estavam deitados quando foram mortos.
Douglas e Ryan tornaram a examinar o piso três vezes, sem nenhuma pressa, porque eram
profissionais cuidadosos e tinham todo o tempo do mundo — ou pelo menos algumas horas, o
que dava na mesma. Uma cena de crime como aquela era difícil de se encontrar. Nada de mato
para esconder as provas, nada de móveis, apenas um corredor cimentado com menos de um
metro e meio de largura. Isso pouparia tempo.
— Não achei nada, Em — disse Douglas, depois de concluir a terceira busca.
— Acho que ele usou um revólver. — Era uma conclusão lógica. O cartucho de uma .22,
ejetado de um revólver automático, podia percorrer distâncias incríveis, e era tão pequeno que
seria muito difícil encontrá-lo. Raro era o criminoso que apanhava os cartuchos de sua arma, e
recuperar quatro pequenos cartuchos de .22 no escuro... não, não era provável.
— Foi um assalto, quer apostar? — disse Douglas.
— Pode ser.
Os dois se agacharam ao lado dos corpos pela primeira vez.
— Não estou vendo nenhum sinal de pólvora — observou o sargento, com um tom de
surpresa na voz.
— Alguma dessas casas está ocupada? — perguntou Ryan para Monroe.
— Essas aqui, não — afirmou Monroe, indicando as casas de um lado e do outro da
passagem. Mas as casas do outro lado da rua estão.
— Quatro tiros no meio da madrugada. Será que alguém pode ter ouvido?
O túnel de tijolo deve ter concentrado o som como se fosse a lente de um telescópio, pensou
Ryan, e a .22 fazia um ruído seco, muito característico, Mas quantas vezes acontecia um crime
daqueles e ninguém ouvia nada? Além do mais, os moradores daquele bairro se dividiam em
duas classes: os que não iam olhar na janela porque não estavam interessados e os que não iam
olhar na janela com medo das balas perdidas.
— Dois policiais estão perguntando de casa em casa, tenente. Até agora, nada.
— O homem tem boa pontaria, Em. — Douglas estava com um lápis na mão e apontou-o para
os orifícios na testa da vítima ainda anônima. Ficavam logo acima do nariz e a distância entre
eles era de menos de dois centímetros. — Nenhuma marca de pólvora. O assassino devia estar
de pé, a mais ou menos um metro de distância. — Douglas se levantou e estendeu o braço. Era
um tiro natural. Bastava apontar para baixo e apertar u gatilho.
— Não concordo. Talvez haja marcas de pólvora que não podemos ver, Tom. É para isso que
existe a perícia. — Ele queria dizer que os dois homens tinham pele escura e a iluminação não
era tão boa assim. Mas se havia sinais de pólvora em torno do orifício de entrada das balas,
nenhum dos dois detetives conseguia vê-los, Douglas ficou de cócoras para examinar de novo
os ferimentos.
— É bom saber que alguém dá valor ao nosso trabalho — comentou o legista, a três metros
de distância, fazendo suas anotações.
— Seja como for, Em, nosso homem tem uma mão danada de firme.
— O lápis tocou a cabeça de Maceo Donald. Os dois furos na testa, talvez um pouco mais
altos que no outro homem, estavam ainda mais próximos.
— Isso não é comum.
Ryan deu de ombros e começou a revistar os cadáveres. Embora fosse mais antigo, preferia
fazer isso pessoalmente enquanto Douglas tomava notas. Não encontrou nenhuma arma, e
embora os dois homens tivessem carteiras e documentos de identidade, através dos quais
identificaram o desconhecido como Charles Barker, vinte anos de idade, a quantia em dinheiro
encontrada nas carteiras não era nem de longe o que uma dupla ' de traficantes costumava
carregar. Também não havia drogas...
— Ei, achei alguma coisa! Três saquinhos de plástico com um pó branco — informou Ryan.
— Dinheiro trocado: um dólar e setenta e cinco. Um isqueiro Zippo de aço escovado, o modelo
mais barato. Um maço de Pall Mall no bolso da camisa... e mais um saco de plástico com um pó
branco.
— Roubo de drogas — afirmou Douglas, diagnosticando o incidente. Não era terrivelmente
profissional, mas era óbvio. — Monroe?
— Chamou, senhor? — O jovem oficial jamais deixaria de ser um fuzileiro. Quase tudo que
dizia, observou Douglas, acabava com "senhor".
— Nossos amigos Barker e Donald eram traficantes experientes?
— Conheço Ju-Ju desde que vim para este distrito, senhor. Nunca vi ninguém se meter com
ele.
— As mãos não mostram sinais de luta — declarou Ryan, depois de virá-los de bruços. —
As mãos estão amarradas com... fio elétrico, fio de cobre, isolamento branco, o nome do
fabricante está impresso, mas não dá para ler com esta iluminação. Nada indica que tenha
havido uma briga.
— Alguém pegou Ju-Ju! — Era Mark Charon, que acabava de chegar. — Eu também estava
atrás desse filho da mãe!
— Dois orifícios de saída na parte de trás da cabeça do Sr. Donald — prosseguiu Ryan,
irritado com a interrupção. — As balas devem estar no fundo dessa poça de sangue —
acrescentou, de cara feia.
— Esqueça os exames de balística — resmungou Douglas. Em primeiro lugar, as balas .22
eram feitas de chumbo macio e se deformavam com tanta facilidade que as marcas deixadas
pelas estrias do cano quase sempre eram impossíveis de identificar. Em segundo lugar, a
pequena .22 tinha um grande poder de penetração, maior até do que uma .45, e muitas vezes os
projéteis acabavam se espatifando em algum objeto atrás da vítima. No caso, o chão de cimento.
— Fale-me sobre ele — ordenou Ryan.
— Traficante de rua, com uma boa clientela. Tem um Cadillac vermelho muito bonito —
acrescentou Charon. — Além disso, é muito esperto.
— Era. O cérebro dele virou mingau.
— Foi assalto? — quis saber Charon.
— É o que parece — respondeu Douglas. — Não encontramos nenhuma arma e eles estavam
apenas com uma pequena quantidade de dinheiro e drogas. Quem fez isso sabia o que estava
fazendo. Trabalho de profissional, Em. Não foi um drogado qualquer que tirou a sorte grande.
— Concordo com você, Tom — afirmou Ryan, levantando-se. — Mark, sabe de algum ladrão
experiente que esteja trabalhando nesta área?
— Só a Dupla — respondeu Charon. — Mas eles usam uma escopeta.
— Isso está quase parecendo um trabalho da Máfia. Rendem as vítimas e... pum! — Douglas
pensou no que acabara de dizer. Não, não era bem assim. Os crimes da máfia não eram tão
elegantes. Além de não terem boa pontaria, os pistoleiros costumavam usar armas baratas. Ele e
Ryan tinham investigado vários casos de assassinato cometidos durante uma guerra entre
quadrilhas, e em geral a vítima era baleada na cabeça à queima-roupa, com todos os sinais
óbvios que acompanhavam um evento desse tipo, ou recebia tantos tiros que virava peneira.
Aqueles dois tinham sido mortos friamente por um exímio atirador. Mas quem dissera que a
investigação de homicídios era uma ciência exata? Aquele crime era uma mistura do comum
com o extraordinário. Um simples assalto, porque as drogas e o dinheiro das vítimas
desapareceram, mas uma execução a sangue-frio, porque o atirador os atingira com extrema
precisão (duas vezes cada um!) em um ponto vital. Além do mais, a Máfia não costumava lazer
passar por assaltos seus acertos de contas; pelo contrário, fazia questão de que servissem como
exemplo. — Mark, ouviu falar de alguma briga de gangues? — perguntou Douglas.
— Não. Pelo menos, nada organizado. Algumas disputas pelos pontos de drogas, mas isso
está sempre acontecendo.
— Talvez valha a pena perguntar por aí — sugeriu o tenente Ryan.
— Não há problema, Em. Vou mandar meus homens fazerem isso. Não vamos resolver este
crime tão cedo.
Talvez o criminoso nunca seja encontrado, pensou Ryan. A vida é assim mesmo. Só na TV é
que a polícia descobre o criminoso na primeira meia hora, entre dois comerciais.
— Posso ficar com eles agora?
— São todos seus — disse Ryan ao legista.
A caminhonete preta esperava e o dia já estava esquentando. As moscas começavam a chegar,
atraídas pelo cheiro de sangue. Ryan dirigiu-se para o próprio carro, acompanhado por Tom
Douglas. Outros detetives se encarregariam do trabalho de rotina.
— Alguém que sabe atirar melhor do que eu — comentou Douglas, quando partiram em
direção ao centro. Uma vez, ele chegara a fazer teste para a equipe de pistola do departamento.
— Tom, hoje em dia os atiradores de elite não são tão raros como antigamente. Talvez um
deles tenha sido contratado pelo outro lado.
— Então acha mesmo que foi um trabalho profissional?
— Digamos que tenha sido um trabalho muito competente — corrigiu Ryan. — Vamos ver o
que Mark consegue descobrir para nós.
— Mal posso esperar — resmungou Douglas.

Kelly acordou às dez e meia, sentindo-se limpo pela primeira vez em muitos dias. Tinha
tomado um bom banho de chuveiro logo que chegara em casa, Agora podia fazer a barba, e isso
compensava a falta de sono. Antes do desjejum (do almoço, na verdade), Kelly foi de carro até
um parque próximo e correu durante trinta minutos. Voltou para casa, tomou outro banho
delicioso e comeu alguma coisa. Estava de novo na hora de trabalhar. Toda a roupa que usara na
noite anterior estava em uma sacola de supermercado: a jaqueta, a calça, a camisa, a roupa de
baixo, as meias e os sapatos. Era uma pena ter que se desfazer da jaqueta, que se revelara tão
útil, especialmente por causa dos bolsos. Teria que comprar outra, ou melhor, outras. Desta vez,
tomara cuidado para não se sujar de sangue, mas as cores escuras davam margem a uma certa
dúvida. Além disso, provavelmente as roupas tinham guardado resíduos de pólvora e não estava
disposto a correr riscos desnecessários. Colocou restos de comida e pó de café por cima de
tudo e jogou a sacola na lixeira do edifício. Kelly tinha pensado em usar uma outra lixeira, mais
afastada, mas chegou à conclusão de que seria ainda mais arriscado; alguém poderia ver o que
estava fazendo e ficar curioso. Mais fácil foi livrar-se dos quatro cartuchos vazios.
Simplesmente jogou-o em um bueiro de rua quando estava | correndo. O noticiário do meio-dia
anunciou a descoberta de dois corpos, mas não forneceu nenhum detalhe. Talvez o jornal
dissesse mais alguma] coisa. Pegou o telefone.
— Olá, Sam.
— Olá, John, está na cidade?
— Estou. Importa-se se eu for aí para alguns minutos de papo? Que tal por volta das duas?
— O que posso fazer por você? — perguntou Rosen, sentado em seu escritório.
— Preciso de luvas — disse Kelly, mostrando as mãos. — Do tipo que você usa, luvas finas
de borracha. São muito caras?
Rosen teve vontade de perguntar para que eram as luvas, mas achou que não era da sua conta.
— Elas vêm em caixas de cem pares.
— Não vou precisar de tantas assim.
O cirurgião abriu uma gaveta e pegou dez sacos plásticos.
— Você está muito elegante.
Kelly estava realmente bem vestido, com uma camisa de colarinho e o terno azul da CIA,
como tinha se acostumado a chamá-lo. Era a primeira vez que Rosen o via de gravata.
— Não repare, doutor — disse Kelly, com um sorriso. — São ossos do ofício. Arranjei um
emprego, sabia?
— Que tipo de emprego?
— É uma espécie de consultoria. — Kelly fez um gesto vago. — Infelizmente, não posso
entrar em detalhes, mas exige que eu me vista a caráter.
— Está se sentindo bem?
— Muito bem. Corro todo dia. E você, como vai?
— Como sempre. Mais papelada do que cirurgias, mas tenho um departamento inteiro para
supervisionar. — Sam pôs a mão na pilha de papéis que estava em cima da mesa. A conversa o
estava deixando nervoso. Parecia que o amigo escondia algo. O pior é que preferia não saber do
que se tratava, para não ter problemas de consciência. — Pode me fazer um favor?
— Claro, doutor.
— O carro de Sandy enguiçou. Pretendia levá-la em casa, mas tenho uma reunião que só vai
terminar por volta das quatro. Ela sai do serviço às três.
— Já está permitindo que ela trabalhe no horário normal? — perguntou Kelly, com um
sorriso.
— Às vezes, quando não está dando aulas.
— Se ela concordar com a troca, por mim está bem.
Seria uma espera de apenas vinte minutos, que Kelly aproveitou para comer alguma coisa no
restaurante. Sandy O'Toole encontrou-o lá, pouco depois das três.
— Já se acostumou com a nossa comida?
— Uma salada é uma salada, mesmo em hospitais. Soube que o seu carro enguiçou.
A enfermeira fez que sim com a cabeça, e Kelly compreendeu por que Rosen a destacara para
um horário mais normal. Sandy estava muito pálida, com olheiras fundas. Parecia exausta.
— Algum problema no motor de arranque. Está no mecânico.
Kelly se levantou.
— Madame, minha carruagem está lá fora, ao seu dispor.
A enfermeira sorriu, mas foi apenas por educação.
— Nunca vi você tão arrumado — comentou, a caminho do estacionamento.
— Não se preocupe com isso. Posso tirar essa roupa num instante.
Novamente, a brincadeira não fez o efeito desejado.
— Eu não quis dizer...
— Desculpe. Você teve um longo dia de trabalho, e seu motorista tem um péssimo senso de
humor.
Sandy parou e olhou para o rapaz.
— A culpa não é sua. Tivemos uma semana péssima. Chegou uma menina. Acidente de
automóvel. O doutor Rosen fez o que pôde, mas ela estava muito ferida e morreu anteontem, no
meu turno. Às vezes eu odeio este trabalho.
— Compreendo — disse Kelly, segurando a porta para ela. — Você quer um resumo de como
é a vida? Nunca é a pessoa certa. Nunca é o momento certo. Nunca faz o menor sentido.
— É uma boa maneira de encarar as coisas. Está querendo me consolar?
Ironicamente, a observação a fez sorrir, mas não era o tipo de sorriso que Kelly queria ver.
— Nós todos tentamos consertar nossas vidas o melhor possível, Sandy. Você luta contra os
seus dragões, eu luto contra os meus — disse Kelly, sem pensar.
— Quantos dragões já matou?
— Um ou dois — respondeu Kelly, distraidamente, tentando conter-se. Não era fácil. Sandy
era um papo muito agradável.
— E isso o fez sentir-se melhor?
— Meu pai era bombeiro. Morreu quando eu estava no Vietnã. Uma casa pegou fogo. Papai
foi lá dentro e encontrou duas crianças, inconscientes por causa da fumaça. Conseguiu tirá-las
de lá, mas logo depois teve um ataque cardíaco fulminante. Dizem que estava morto antes de
chegar ao chão. Isso conta — disse Kelly, lembrando-se das palavras do almirante Maxwell, na
enfermaria do USS Kitty Hawk. A morte devia significar alguma coisa. A morte do seu pai
significara alguma coisa.
— Você já matou gente, não é verdade? — perguntou Sandy.
— Isso acontece na guerra — admitiu Kelly.
— O que representou para você?
— Se quer uma resposta completa, não a tenho. Mas os sujeitos que eu matei nunca mais
fizeram mal a ninguém.
Como FLOR DE PLÁSTICO, pensou. Os chefes de aldeia e suas famílias não precisavam
mais se preocupar. Talvez alguém tivesse tomado o lugar dele, mas quem sabe o posto ainda
estava vago?
Sandy ficou observando o trânsito, enquanto rumavam para o norte pela Broadway.
— E os que mataram Tim? Será que pensavam a mesma coisa?
— Pode ser, mas há uma diferença. — Kelly quase afirmou que nunca tinha visto um
companheiro assassinar ninguém, mas não podia mais dizer uma coisa dessas, podia?
— Se todo mundo acredita estar certo, onde ficamos? Não é como no caso das doenças.
Lutamos contra coisas que fazem mal a todo mundo. Não nos envolvemos em política, não
precisamos mentir. Não matamos ninguém. É por isso que trabalho em um hospital, John.
— Sandy, há trinta anos havia um sujeito chamado Hitler que resolveu matar pessoas como
Sam e Sarah só porque eram judeus. Era preciso acabar com ele, e foi o que fizemos. Até
demoramos demais. — Não era um bom exemplo?
— Aqui mesmo temos muitos problemas — observou a moça. Para ler certeza disso, bastava
olhar pela janela, já que o Johns Hopkins não ficava num bairro dos melhores.
— Já senti isso na carne, lembra-se?
O comentário deixou Sandy sem graça.
— Sinto muito, John.
— Eu também. — Kelly fez uma pausa enquanto procurava as palavras certas. — Há uma
diferença, Sandy. Existem pessoas de bem. Acho que elas são maioria. Mas também existem
pessoas más. Não adianta tentar esconder-se delas, e também não adianta tentar convencê-las a
serem diferentes, porque não vão mudar. Alguém tem que proteger o lado dos bons. Era o que eu
fazia.
— Mas como você consegue fazer isso sem se tornar um deles? Kelly custou um pouco para
responder. Preferia que a moça não ti vesse tocado no assunto. Não queria pensar naquele tipo
de questão, não queria ter que ouvir a própria consciência. Tudo parecia tão simples nos
últimos dias! Depois de identificar o inimigo, eliminá-lo era simplesmente uma questão de usar
seu treinamento e sua experiência. Para isso, não era preciso pensar.
— Nunca tive este tipo de problema — afirmou, afinal, evitando a pergunta. Foi então que
compreendeu qual era a diferença. Sandy e gente como ela lutavam contra uma coisa, e lutavam
bravamente, arriscando a própria sanidade para resistir a forças cujas causas não podiam
combater diretamente. Kelly e os companheiros lutavam contra pessoas, deixando a cargo de
outros a tarefa de explicar as motivações dos dois lados, mas capazes de ver, perseguir,
combater e mesmo eliminar o inimigo, se tivessem sorte. Um grupo tinha absoluta pureza de
propósitos mas jamais se sentia totalmente satisfeito. O outro tinha a satisfação de destruir o
inimigo, mas pagava o preço de ficar mais parecido com ele do que seria de se desejar.
Guerreiro e curandeiro, guerras paralelas, objetivos semelhantes, mas atos tão diferentes! Uns
combatiam as doenças do homem, outros as doenças da humanidade. Não era uma forma
interessante de encarar a questão?
— Talvez o importante não seja contra quem você está lutando, mas por que você está
lutando.
— Por que estamos lutando no Vietnã? — insistiu Sandy. Fazia a si mesma essa pergunta pelo
menos dez vezes por dia desde que recebera o funesto telegrama. — Meu marido morreu lá e até
hoje não consegui entender por quê.
Kelly começou a dizer alguma coisa, mas mudou de ideia. Na verdade, não havia como
responder. Má sorte, decisões erradas, falta de senso de oportunidade em vários níveis deram
origem a uma série de eventos que resultaram na morte de soldados em um distante campo de
batalha; mesmo para quem estava lá, não fazia muito sentido. Além do mais, Sandy
provavelmente já ouvira muitas explicações por parte do homem cuja morte agora lamentava.
Talvez fosse inútil procurar uma justificativa para a guerra. Talvez a guerra não fizesse sentido.
Mesmo que isso fosse verdade, como alguém poderia viver sem fingir que, de algum modo, suas
ações faziam sentido? Ainda estava tentando chegar a uma conclusão quando entraram na rua
onde Sandy morava.
— Sua casa está precisando ser pintada — observou Kelly, satisfeito pela oportunidade de
mudar de assunto.
— Eu sei. Não posso pagar um pintor e não tenho tempo para fazer eu mesma.
— Posso lhe dar um conselho, Sandy?
— Trate de viver a sua vida. Sinto muito pela morte de Tim, mas não há nada que você possa
fazer. Também perdi bons amigos no Vietnã. A vida tem que continuar.
Dava pena ver o cansaço no rosto dela. Seus olhos o examinaram de forma quase
profissional, sem revelar o que estava pensando ou o que sentia, mas o fato de que ela se dera
ao trabalho de esconder os próprios sentimentos era revelador para Kelly.
Alguma coisa mudou em você. Gostaria de saber o que foi. Gostaria de saber por quê, pensou
Sandy. Ele sempre fora educado, quase cômico em seu cavalheirismo extremado, mas a tristeza
que havia em seus olhos, que quase se igualavam à dor que sentia pela perda de Tim, havia
desaparecido, substituída por algo que não conseguia interpretar. Era estranho, porque ele nunca
tentara esconder o que sentia, e ela se julgara capaz de penetrar em qualquer barreira que ele
tentasse levantar. Agora podia constatar que estava errada, ou talvez não conhecesse as regras.
Ficou esperando enquanto ele saltava, contornava o carro e abria a porta do carona.
— Madame, por favor — disse Kelly, indicando a casa com um gesto.
— Por que está sendo tão gentil? Dr. Rosen...
— Dr. Rosen me disse que você estava precisando de uma carona. Foi só isso, Sandy. Além
do mais, você parece exausta.
Kelly acompanhou-a até a porta.
— Não sei por que gosto tanto de conversar com você — disse a enfermeira, chegando aos
degraus da entrada.
— Eu não sabia que você gostava. É mesmo?
— Acho que sim — respondeu Sandy, com um meio sorriso. Depois de um segundo, o sorriso
desapareceu. — John, é cedo demais para mim.
— Sandy, é cedo demais para mim também. Mas será que é cedo demais para sermos
amigos?
Ela pensou um pouco.
— Não, para isso, não.
— Vamos jantar juntos um dia desses? Já a convidei uma vez, lembra-se?
— Com que frequência você vem à cidade?
— Estou vindo sempre. Arranjei um emprego... ou melhor, uma coisa para fazer em
Washington.
— O que é?
— Nada de importante.
Sandy percebeu que ele estava mentindo, mas não com intenção de prejudicá-la.
— Que tal na semana que vem?
— Eu lhe telefono. Não conheço nenhum bom restaurante por aqui.
— Eu conheço.
— Trate de descansar — recomendou Kelly.
Não tentou beijá-la ou mesmo segurar-lhe a mão. Apenas um sorriso amigo antes de ir
embora. Sandy ficou na porta até o carro de Kelly dobrar a esquina, ainda tentando imaginar o
que teria mudado naquele homem. Jamais se esqueceria da expressão que um dia surpreendera
no seu rosto em uma cama de hospital. Entretanto, fosse o que fosse, era algo que não precisava
temer.
Kelly praguejou baixinho enquanto calçava as luvas de algodão e esfregava-as em todas as
superfícies do carro ao seu alcance. Não podia se arriscar a muitas conversas como aquela. Por
que estavam lutando no Vietnã? Como poderia saber? No campo de batalha era fácil. Você
localizava o inimigo, ou melhor, alguém lhe contava o que estava acontecendo, quem era o
inimigo e onde ele estava. Frequentemente, essas informações estavam erradas, mas pelo menos
era um ponto de partida. Por outro lado, os superiores nunca lhe diziam que aquela missão iria
mudar o mundo ou pôr fim à guerra. Coisas assim você lia no jornal, escritas por repórteres
sensacionalistas com base em entrevistas com militares que você não conhecia ou políticos que
estavam apenas interessados em fazer demagogia. "Infraestrutura" e "ideologia" eram palavras
muito usadas, mas ele havia lutado contra pessoas, e não contra uma infraestrutura. Ideologia era
uma coisa como aquelas que Sandy combatia. Não era uma pessoa que fazia coisas ruins e podia
ser caçada como um animal perigoso. E como isso se aplicava ao que estava fazendo no
momento? Kelly disse a si mesmo que precisava controlar seus pensamentos, limitar-se ao
trivial, não se esquecer de que estava caçando pessoas, como fizera no passado. Não pretendia
mudar o mundo, apenas limpar um cantinho dele.

— Ainda está doendo, meu amigo? — perguntou Grishanov.


— Acho que estou com algumas costelas quebradas.
Zacharias sentou-se na cadeira, respirando lentamente. Parecia sentir muita dor. Isso deixou o
russo preocupado. Um ferimento daqueles poderia causar pneumonia, que podia ser fatal em um
homem tão debilitado. Os guardas haviam exagerado um pouco na dose. Embora tivessem
espancado o prisioneiro a pedido de Grishanov, tudo o que o russo queria era fazê-lo sofrer um
pouco. Um prisioneiro morto não poderia lhe contar o que precisava saber.
— Falei com o major Vinh. O pequeno selvagem me disse que não há remédios no campo. —
Deu de ombros. — Pode ser até que seja verdade. Dói muito?
— Toda vez que eu respiro — respondeu Zacharias, e era óbvio que dizia a verdade. Seu
rosto estava ainda mais pálido que o normal, — Só tenho uma coisa para a dor, Robin — disse
Kolya, em tom de quem pede desculpas, oferecendo-lhe a garrafa.
O coronel americano sacudiu a cabeça, e até esse movimento pareceu doloroso.
— Não posso.
Grishanov falou com a frustração de um homem tentando convencer um amigo.
— Não seja tolo, Robin. A dor não faz bem a ninguém, nem a você, nem a mim, nem a seu
Deus. Por favor, deixe-me ajudá-lo. Por favor?
Não posso, repetiu Zacharias para si próprio. Seria trair uma promessa. Seu corpo era um
templo que não podia ser maculado pelo álcool, entretanto, o templo estava em ruínas. O que
mais temia era uma hemorragia interna. O corpo conseguiria curar-se dos ferimentos? Em
circunstâncias normais, sim, mas sabia que se encontrava em péssimas condições físicas; as
costas ainda não estavam curadas e agora eram as costelas. A dor se tornara uma companhia
constante, e a dor tornaria mais difícil evitar as perguntas, de modo que de um lado estava a
religião e do outro a lealdade à pátria. As coisas estavam ficando confusas. Aliviar a dor
facilitaria a cura e também lhe daria mais forças para resistir aos interrogatórios. Nesse caso,
qual a coisa certa a fazer? Seus olhos se voltaram para o frasco metálico. Ali estava o alívio.
Não um alívio total, mas a trégua de que necessitava para pôr os pensamentos em ordem.
Grishanov desatarraxou a tampa.
— Sabe esquiar, Robin? A pergunta pegou Zacharias de surpresa. — Sei. Aprendi quando era
criança.
— Cross-country?
O americano sacudiu a cabeça.
— Não, em encostas.
— A neve nas montanhas Wasatch é boa para esquiar? A lembrança fez Robin sorrir.
— Muito boa, Kolya. É neve seca. Parece uma areia fina. — Ah, é o melhor tipo. Tome. —
Ofereceu-lhe o frasco.
Só esta vez, pensou Zacharias. Só para diminuir a dor. Bebeu um gole. Preciso de uma trégua
para me recompor.
Grishanov viu o americano beber, viu seus olhos ficarem úmidos e torceu para que não
engasgasse. A vodca era das boas, obtida na embaixada, em Hanói. Uma coisa que não faltava
naquele país era vodca. Aquela tinha sido aromatizada com papel, do jeito que Kolya gostava.
“,<Não que o americano fosse notar; para dizer a verdade, ele próprio não . notaria depois do
terceiro ou quarto drinque.
— Você é um bom esquiador, Robin?
Zacharias sentiu o calor começar no estômago e espalhar-se pelo corpo, fazendo-o relaxar.
Com isso, a dor diminuiu e ele se sentiu um pouco mais forte. Se o russo queria conversar sobre
esquiação, não havia mal nenhum em trocar algumas palavras com ele a respeito, havia?
— Prefiro as encostas mais difíceis — afirmou Robin, orgulhosamente. — Comecei ainda
pequeno. Acho que tinha cinco anos quando papai me levou para esquiar pela primeira vez, —
Seu pai também era piloto?
O americano sacudiu a cabeça.
— Não. Advogado.
— Meu pai ensina história na Universidade Estadual de Moscou. Temos uma dacha, e no
inverno, quando eu era criança, saíamos para esquiar na floresta. Adoro o silêncio. Tudo que se
ouve é o... como é que se diz, silvo? O silvo dos esquis na neve. Nada mais. Como se houvesse
um cobertor sobre a terra, Nenhum ruído. Apenas o silêncio.
— Nas montanhas também é assim, pelo menos de manhã cedo. i Você escolhe um dia sem
muito vento, logo depois de nevar.
Kolya sorriu.
— É como voar, não é? Voar em um caça de um só lugar, em um dia p bonito, com apenas
algumas nuvens brancas no céu. — Inclinou-se para a frente, com um brilho malicioso nos
olhos. — Robin, você já desligou; o rádio por alguns minutos, para ficar totalmente só?
— Eles deixam você fazer isso? — perguntou Zacharias. Grishanov riu e sacudiu a cabeça.
— Não, mas mesmo assim eu as vezes desligo.
— Faz muito bem — disse Robin, com um sorriso, lembrando-se do passado, Estava
pensando em uma tarde em particular, em fevereiro de 1964, quando levantara voo da base
aérea de Mountain Home.
— É assim que Deus deve se sentir, não acha? Sozinho, vendo tudo de cima. Você pode
ignorar o barulho da turbina. Para mim, ele desaparece depois de alguns minutos. Acontece a
mesma coisa com você?
— Acontece, se o capacete estiver bem ajustado.
— É por isso que gosto de voar — mentiu Grishanov. — O resto, a papelada, os exercícios,
as aulas, isso é o preço que tenho que pagar. Estar lá no alto, sozinho, como no tempo em que
esquiava na floresta, só que muito melhor. A gente pode ver tão longe num dia claro de inverno!
— Ofereceu de novo o frasco a Zacharias. — Acha que esses pequenos selvagens compreendem
o que sentimos?
— Provavelmente não. — O americano hesitou por um momento. Ora, já tinha decidido que
aquilo era o remédio de que estava precisando. Outro gole não faria diferença, não é mesmo?
Bebeu mais um pouco.
— O que eu faço, Robin, é segurar o manche com as pontas dos dedos, assim. — Usou o
frasco para demonstrar. — Fecho os olhos por um momento, e quando torno a abri-los, o mundo
está diferente. Não me sinto mais parte dele. É como se fosse outra pessoa... um anjo, talvez —
disse, com ar sonhador. — Então possuo o céu como gostaria de possuir uma mulher, mas não
consigo. Acho que temos que estar sozinhos para sentir as coisas intensamente.
Este sujeito pensa como eu. Ele sabe o que é voar. — Você é poeta ou coisa parecida?
— Adoro poesia. Não tenho talento para escrever, mas isso não me impede de ler, memorizar,
sentir o que o poeta quer que eu sinta — disse Grishanov, e desta vez estava sendo sincero.
Observou que os olhos do americano começavam a perder o foco. — Somos muito parecidos,
meu amigo.

— O que aconteceu com Ju-Ju? — perguntou Tucker.


— Parece que foi assalto. Ele se descuidou e o pegaram. Trabalhava para você? — perguntou
Charon.
— Trabalhava. Quem o matou?
Estavam no edifício-sede da Biblioteca Livre Enoch Pratt, entre duas estantes, o lugar ideal
para um encontro sigiloso. Era difícil alguém se aproximar sem ser visto e quase impossível
instalar um dispositivo de escuta. Embora fosse um lugar silencioso, havia simplesmente um
número excessivo de pequenos nichos.
— Vai ser difícil descobrir, Henry. Ryan e Douglas estiveram lá, mas não conseguiram grande
coisa. Ei, você vai se deixar abalar só por causai de um traficante?
— Claro que não, mas o caso me aborreceu um pouco. É a primeira vez que isso acontece
com um dos meus homens.
— Você sabe que este é um negócio de alto risco, Henry. — Charon folheou as páginas de um
livro. — Alguém estava precisando de dinheiro ou, talvez, de drogas. Quem sabe queria abrir
um negócio próprio? Fique de olho nos novos vendedores. Ele fez um serviço muito bem-feito.
Quem sabe vocês dois não chegam a um acordo?
— Já tenho distribuidores suficientes. Além disso, aceitar o que ele fez seria mau para o
negócio. Como foi?
— Coisa de profissional. Dois tiros na cabeça de cada um. Douglas acha que pode ter sido
trabalho da Máfia.
Tucker olhou para ele. — É mesmo? Charon falou calmamente, de costas para o interlocutor:
— Henry, não pode ter sido a Máfia. Tony não faria uma coisa dessas, faria?
— Acho que não. — Mas Eddie talvez fizesse. -~ Preciso de uma coisa — disse Charon.
— De quê?
— De um traficante. O que esperava que eu pedisse, um palpite para as corridas de cavalos?
— Quase todos são meus agora, lembra-se? — Tinha sido ótimo usar Charon para eliminar os
competidores, mas à medida que Tucker consolidava seu controle do tráfico local, ficava cada
vez mais difícil encontrar operadores independentes para serem entregues às garras da lei. Isso
se aplicava especialmente aos grandes. Até então, escolhera pessoas com quem não tinha
interesse em trabalhar; os poucos que restavam poderiam se tomar aliados, se encontrasse um
meio de negociar com eles.
— Só poderei continuar a protegê-lo, Henry, se tiver o controle das investigações. Para
controlar as investigações, preciso pôr as mãos num peixe grande de vez em quando. — Charon
colocou o livro de volta na estante. Por que precisava explicar coisas como essa para aquele
homem?
— Quando?
— No começo da semana. Mas tem que ser alguma coisa quente. Quero causar boa
impressão.
— Eu volto a falar com você. — Tucker pôs o livro na prateleira e foi embora. Charon ficou
mais alguns minutos, procurando o livro certo.
Encontrou-o, juntamente com o envelope. O tenente da polícia não se deu ao trabalho de
contar. Sabia que o dinheiro estava todo ali.

Greer se encarregou das apresentações.


— Sr. Clark, este é o general Martin Young e este é Robert Ritter. Kelly apertou a mão dos
dois. O general dos fuzileiros era um aviador como Maxwell e Podulski, que não estavam
presentes. Não fazia ideia de quem era Ritter, mas ele foi o primeiro a falar.
— Gostei da sua análise. A linguagem que usou não é muito apropriada, mas tocou em todos
os pontos importantes.
— Senhor, o problema não é tão difícil assim. Para dizer a verdade, este campo se encontra
em uma situação muito vulnerável a um ataque por terra. Para começar, os sentinelas não devem
ser muito bem treinados, e provavelmente estarão preocupados com o que se passa no interior
do campo, não no exterior. Suponhamos que haja dois homens em cada torre. As metralhadoras
vão estar apontadas para dentro, certo? Vão precisar de alguns segundos para movimentá-las.
Podemos aproveitar a floresta para nos aproximarmos o suficiente e usar os M-79. — Kelly
indicou o mapa.
— Aqui estão os alojamentos. Duas portas, apenas. Aposto que não abrigam mais do que
quarenta pessoas.
— Vamos entrar por aqui? — perguntou o general Young, mostrando o canto sudoeste do
campo.
— Sim, senhor. — Para um piloto, o fuzileiro pegava as coisas depressa. — O segredo está
em nos aproximarmos o máximo possível sem sermos detectados. Podemos contar com o mau
tempo para nos ajudar. Nessa época do ano, as tempestades são frequentes. Usaremos dois
helicópteros com foguetes e metralhadoras para atacar os alojamentos. Os helicópteros de
resgate pousam aqui. Cinco minutos depois de começar o tiroteio, está tudo terminado. Isto é,
está terminada a fase terrestre da operação. O resto fica por conta dos pilotos.
— Então você acha que o grupo de assalto deve ser desembarcado diretamente no campo?
— Não, senhor. Se querem repetir Song Tay, usem um plano semelhante, façam um
helicóptero pousar no centro do campo e pronto. Mas eu estava com a impressão de que esta
seria uma operação pequena.
— É verdade — concordou Ritter. — Tem que ser pequena. Não há clima político para uma
operação de grande porte.
— Já que não poderemos contar com muitos recursos, senhor, acho melhor usarmos uma
tática diferente. Pelo menos, trata-se de um objetivo limitado. Não há muitos prisioneiros para
resgatar, nem muitos inimigos para nos atrapalhar.
— Mas a margem de segurança vai ser mínima — observou o general Young, franzindo a
testa.
— Tem razão — concordou Kelly. — Usaremos no máximo vinte e cinco soldados. Eles
descem neste vale, passam por esta colina, chegam ao campo, neutralizam as torres, derrubam
este portão. Nesse momento, chegam os helicópteros de ataque e começam a metralhar estes
dois alojamentos, enquanto o grupo de assalto penetra no campo. Os prisioneiros são libertados
e todo mundo foge para o vale.
— Sr. Clark, admiro o seu otimismo — observou Greer, aproveitando para lembrar a Kelly o
seu nome falso. Se o general Young não tivesse boa impressão de Kelly, jamais concordaria
com a operação, e Young já fizera muito por eles, usando toda a verba de obras daquele ano
para construir o campo simulado nas vizinhanças de Quantico.
— Já participei de muitas operações como esta, almirante.
— Quem vai recrutar o pessoal? — quis saber Ritter.
— Já cuidamos disso — assegurou-lhe James Greer.
Ritter recostou-se no assento e ficou olhando para as fotografias e diagramas. Como Greer e
todos os outros, estava arriscando a carreira naquela empreitada. Entretanto, a única alternativa
seria não fazer nada. Não fazer nada significaria que pelo menos um bom homem e talvez mais
vinte jamais voltariam para casa. Entretanto, esse não é o verdadeiro motivo, admitiu Ritter
para si próprio. O verdadeiro motivo era que alguém decidira que as vidas daqueles homens
não eram importantes e poderia fazer o mesmo em outras oportunidades. Esse tipo de atitude
poderia destruir sua organização. Caso se tornasse público que os Estados Unidos não
protegiam seus homens, nunca mais conseguiria contratar um agente. Manter a fé não era apenas
a coisa certa a fazer; era também a coisa mais sensata.
— É melhor adiantarmos um pouco mais o trabalho antes de pedirmos autorização — afirmou
Ritter. — Será mais fácil conseguirmos um "vá em frente" se estiver quase tudo pronto. Façam
com que a coisa pareça uma oportunidade rara. Este foi outro grande erro que cometemos na
operação PINO MESTRE. Demos a impressão de que se tratava da primeira em uma série de
operações do mesmo tipo, coisa que nunca esteve nas cogitações do governo. Desta vez, o que
temos pela frente é uma operação isolada de resgate. Posso passar essa ideia para os
meus amigos do Conselho de Segurança Nacional. Antes, porém, quero que os preparativos
estejam mais adiantados.
— Bob, isso quer dizer que está do nosso lado? — perguntou Greer. Ritter levou algum
tempo para responder.
— Quer, sim, — Precisamos de um fator de segurança adicional — observou Young, olhando
para o mapa geral da operação, imaginando como os helicópteros se aproximariam do campo.
— Sim, senhor — concordou Kelly. — Alguém tem que ir na frente para fazer um
reconhecimento da área.
As duas fotos de Robin Zacharias ainda estavam sobre a mesa. Uma mostrava um coronel da
Força Aérea, o corpo ereto, o quepe debaixo do braço, o peito cheio de fitas e asas prateadas,
sorrindo para a câmera com a família reunida em torno dele; a outra, um homem curvado,
maltrapilho, prestes a ser golpeado nas costas com a coronha de um rifle. Bolas, pensou, vai ser
apenas mais uma cruzada.
— Acho que esse alguém terá que ser eu — acrescentou.
17

COMPLICAÇÕES

Archie não sábia muito, mas revelara o suficiente para que Kelly prosseguisse com o plano.
Tudo o que precisava no momento era de um pouco mais de sono.
Seguir alguém de carro, descobriu Kelly, era mais difícil do que parecia na TV e mais difícil
do que tinha sido em Nova Orleans, a única vez em que tentara fazer a mesma coisa. Se você
seguia o cara muito de perto, corria o risco de ser visto; se o seguia muito de longe, corria o
risco de perdê-lo. O tráfego complicava tudo. Caminhões obstruíam a visão. Prestar atenção em
um carro a meio quarteirão de distância implicava, necessariamente, ignorar os veículos mais
próximos, e esses, como teve ocasião de constatar, podiam fazer as coisas mais idiotas. Ainda
bem que o carro que estava seguindo era o Roadrunner vermelho de Billy. A cor berrante o
tornava fácil de reconhecer a distância, e embora o sujeito gostasse de fazer as curvas cantando
pneus, não podia infringir muitas leis de trânsito sem chamar atenção da polícia, coisa que,
como Kelly, não tinha o menor interesse em fazer.
Kelly avistara o carro pela primeira vez pouco depois das sete da noite, perto do bar
mencionado por Archie. Fosse qual fosse o temperamento de Billy, pensou, a discrição não era
o seu forte, a começar pelo carro. Observou imediatamente que não havia nenhum vestígio de
lama. O carro tinha sido lavado e encerado recentemente. Billy parecia realmente adorar aquele
carro. Isso oferecia algumas oportunidades interessantes, que Kelly examinou enquanto o seguia,
mantendo uma distância de no mínimo meio quarteirão e procurando identificar um padrão em
seus movimentos. Logo se tomou evidente que Billy procurava evitar as vias principais e
conhecia as ruas secundárias como um rato conhece a sua toca. Isso deixava Kelly em
desvantagem. Em compensação, ele estava dirigindo um carro que não chamava a atenção de
ninguém; era apenas mais um entre as centenas de fuscas usados que trafegavam na área.
Depois de quarenta minutos, o padrão se tornou ainda mais claro. O Roadrunner fez uma
curva fechada à direita e parou no fim do quarteirão. Kelly avaliou rapidamente a situação e
seguiu em frente, bem devagar. Enquanto se aproximava viu uma garota saltar do carro com uma
bolsa na mão. Ela foi se encontrar com um velho conhecido de Kelly, Wizard, que estava a
vários quarteirões do seu ponto habitual. Kelly não viu ninguém entregar nada a ninguém — os
dois entraram em um edifício e permaneceram ocultos por um minuto ou dois até a garota sair
—, mas pôde adivinhar o que se passara. O episódio se encaixava bem ao que Pam lhe contara.
Melhor ainda: revelava quem era o fornecedor de Wizard, disse Kelly para si próprio, enquanto
fazia uma curva à esquerda, aproximando-se de um sinal fechado. Agora sabia de duas coisas
que não conhecia antes. Pelo espelho retrovisor, viu o Roadrunner passar. A garota caminhou na
mesma direção, desaparecendo do seu campo de visão quando o sinal abriu. Kelly dobrou duas
vezes à direita e avistou novamente o Plymouth, que seguia em direção ao sul com três pessoas
no interior. Ele não havia notado o homem — provavelmente um homem — agachado no banco
traseiro.
Estava escurecendo rapidamente, o que era bom para John Kelly. Continuou a seguir o
Roadrunner, mantendo os faróis apagados a maior parte do tempo, e foi recompensado ao ver o
veículo parar em uma casa de esquina feita de arenito pardo. Os três ocupantes saltaram.
Tinham feito a entrega da noite para quatro traficantes. O rapaz lhes deu alguns minutos,
estacionando o carro a alguns quarteirões de distância e voltando a pé para observar, novamente
se fazendo passar por bêbado de rua. A arquitetura local tornava tudo mais fácil. As casas do
outro lado da rua tinham escadarias de pedra na entrada, feitas de blocos largos, retangulares,
que lhe dariam uma ótima cobertura. Era só uma questão de se sentar na calçada e apoiar-se em
uma delas, e não poderia ser visto de quase nenhuma direção. Escolheu a escadaria mais
conveniente, próxima de uma lâmpada de rua, mas não muito; poderia esconder-se com
facilidade na sombra que a escada projetava. Além do mais, quem prestaria atenção a um
vagabundo? Kelly adotou a mesma postura que observara nos outros mendigos, levando
ocasionalmente aos lábios a garrafa de bebida para um gole simulado enquanto vigiava a casa
de arenito. A espera levou várias horas.
Tipos sanguíneos O+, O- e AB-, lembrou-se. O sêmen encontrado na vagina de Pam era
desses três tipos, e imaginou qual seria o tipo sanguíneo de Billy, enquanto continuava ali
sentado, a cinquenta metros da casa. Carros passavam na rua. Pessoas transitavam na calçada.
Três pessoas lhe dirigiram um olhar, mas nada mais do que isso, enquanto fingia dormir,
observando a casa com o canto do olho, atento a qualquer som que denunciasse um possível
perigo. As horas foram passando. Um traficante trabalhava na calçada, a uns vinte metros do seu
esconderijo, e podia ouvir a voz do homem. Ficou sabendo pela primeira vez como um
traficante descrevia o produto e negociava o preço. Podia ouvir também as vozes dos fregueses.
Kelly sempre tivera uma excelente audição — ela lhe salvara a vida mais de uma vez — e
aquelas também eram informações valiosas, a serem analisadas e catalogadas. Um cão vadio se
aproximou, cheirando-o com curiosidade, e Kelly não quis espantá-lo. Isso poderia parecer
estranho — se fosse um rato, provavelmente não conseguiria se controlar, admitiu para si
próprio — e era importante conservar o disfarce.
Que tipo de bairro seria aquele?, perguntou-se Kelly. Do seu lado da rua, as casas eram de
tijolo e pareciam bem modestas. Do outro lado era diferente; as casas de pedra pareciam mais
sólidas e eram no mínimo cinquenta por cento maiores. Talvez, na virada do século, aquela rua
ficasse na fronteira entre dois bairros, um com pessoas da classe operária e outro com membros
da classe média alta. A casa de pedra podia ter sido a residência de um rico comerciante ou de
um comandante de navio. Quem sabe, nos fins de semana, aquelas paredes ressoavam aos
acordes de um piano tocado pela filha do dono da casa, que tinha estudado no conservatório de
Peabody. Mas eles todos tinham se mudado para outras partes da cidade e aquela casa, como as
outras, estava vazia, um fantasma de três andares de uma outra época. Era estranho como as ruas
ali eram tão largas. Talvez pelo fato de que, quando tinham sido traçadas, o principal meio de
transporte eram carroças puxadas a cavalo. Kelly resolveu pôr as divagações de lado.
Precisava se concentrar na tarefa que tinha diante de si.
Depois de quatro horas de espera, os três finalmente saíram de casa, os homens na frente, a
garota logo atrás. Era mais baixa do que Pam e um pouco mais cheia de corpo. Kelly se arriscou
um pouco levantando a cabeça para espiar. Precisava ver bem a cara do motorista do Plymouth,
do homem que supunha ser Billy. Era um tipo quase insignificante, com mais ou menos um metro
e setenta e cinco de altura e setenta quilos de peso. Usava algo brilhante no pulso, um relógio ou
pulseira; caminhava com desenvoltura e arrogância, pensou Kelly. O outro era mais alto e forte,
mas agia como um assecla. A garota tinha um jeito ainda mais submisso, mantendo a cabeça
baixa o tempo todo. A blusa, se é que era uma blusa, não estava totalmente abotoada, e ela
entrou no carro sem levantar a cabeça, sem olhar em volta, sem mostrar o menor interesse pelo
mundo que a cercava. Os movimentos eram lentos e incertos, provavelmente por causa de
drogas, mas isso não era tudo. Havia mais alguma coisa, algo que Kelly não conseguiu definir a
princípio, mas que o deixou aflito... uma lassidão, talvez. Não era só a lentidão nos movimentos,
era algo mais. Kelly praguejou baixinho quando se lembrou de onde tinha visto algo semelhante:
na ville, durante a operação FLOR DE PLÁSTICO. Era assim que os camponeses se
comportaram quando convocados para se reunirem diante da fogueira. Movimentos resignados,
automáticos, como se fossem robôs controlados pelo major e seus soldados. Teriam caminhado
da mesma forma para a própria morte. A garota se comportava do mesmo jeito. E teria feito a
mesma coisa.
Então é verdade, pensou Kelly. Eles realmente usam garotas como mensageiras... entre outras
coisas. Enquanto olhava, Billy ligou o carro e arrancou em alta velocidade, desaparecendo ao
dobrar a esquina. Billy, um metro e setenta e cinco, magro, usando um relógio ou pulseira de
ouro no braço esquerdo, arrogante. A descrição ficou gravada no cérebro de Kelly, juntamente
com o rosto do homem. Nunca mais se esqueceria. Guardou também a fisionomia do outro, o
que não tinha nome — apenas um destino mais limitado do que podia imaginar.
Kelly consultou o relógio que levava no bolso. Uma e quarenta. O que tinham estado fazendo
naquela casa? Então se lembrou de outras coisas que Pam lhe contara. Uma festinha,
provavelmente. A garota, fosse quem fosse, provavelmente estava com sêmen O+, O- ou AB-
dentro dela. Mas Kelly não podia salvar o mundo, e a melhor maneira de ajudar aquela garota
certamente não seria libertá-la diretamente. Relaxou o corpo, apenas um pouco, esperando,
porque não queria dar a impressão de que seus movimentos estavam relacionados a alguma
coisa caso alguém estivesse reparado nele ou mesmo o estivesse observando naquele momento.
Havia luzes acesas em algumas daquelas casas, e por isso ficou onde estava por mais trinta
minutos, resistindo à sede e às cãibras, antes de se levantar e caminhar até a esquina com passos
incertos. Tinha sido muito cauteloso naquela noite, cauteloso e eficiente, e estava na hora de
passar à segunda etapa do trabalho noturno. Hora de continuar o seu plano de despistamento.
Vagou pelos becos, movendo-se devagar, permitindo que o passo cambaleante o levasse para
a direita e para a esquerda, como uma cobra — o pensamento o fez sorrir —, antes de voltar às
ruas, parando apenas por um momento para pôr as luvas de borracha. Passou por vários
traficantes e seus auxiliares enquanto procurava um alvo apropriado. O percurso que adotara
correspondia à chamada busca sistemática, uma série de curvas de noventa graus em torno do
local onde estava estacionado o seu Volkswagen. Tinha que ser cauteloso, como sempre, mas
era um caçador desconhecido, e os animais de presa não faziam a menor ideia de que alguém
pudesse encará-los dessa forma, já que se consideravam predadores. Podiam pensar o que
quisessem.
Eram quase três horas quando Kelly fez sua escolha. Um traficante solitário, como Kelly
estava se acostumando a chamar aqueles que não contavam com um assistente. Talvez fosse
novo no negócio. Era relativamente jovem, ou assim parecia a quarenta metros de distância,
contando a féria do dia. Tinha uma saliência no quadril direito, uma arma, certamente, mas
estava de cabeça baixa. Devia ter um ouvido aguçado. Pressentindo a aproximação de Kelly,
levantou a cabeça e olhou rapidamente em torno, mas ao ver que se tratava apenas de um
bêbado, baixou os olhos e continuou a tarefa interrompida.
Durante o dia, Kelly tinha ido até o barco para buscar um objeto, usando o Scout, porque não
queria que ninguém na marina soubesse que tinha outro carro. Quando estava se aproximando de
Junior — todo mundo tinha que ter um nome, mesmo que fosse por pouco tempo —, Kelly
passou a garrafa de vinho da mão direita para a esquerda. Usou a mão direita para tirar o
contrapino da ponta da arma que levava escondida na nova jaqueta, agora desabotoada. Era uma
simples vara de metal, de quarenta e cinco centímetros de comprimento, com um cilindro de
aparafusar na ponta, e o contrapino pendia da extremidade de uma pequena corrente. Segurou a
arma com firmeza, mantendo-a escondida enquanto se aproximava de Junior.
O traficante levantou de novo a cabeça, com ar de irritação. Provavelmente não sabia contar
direito e estava arrumando as notas de acordo com os valores. Talvez a presença de Kelly
tivesse perturbado a sua concentração; podia ser também que simplesmente fosse burro, o que
lhe parecia a explicação mais provável.
Kelly tropeçou e caiu na calçada, esforçando-se para parecer ainda mais inofensivo. Ao se
levantar, olhou para trás. Não viu nenhum outro pedestre a menos de cem metros, e as únicas
luzes de automóveis que! vislumbrou eram vermelhas, e não amarelas, o que queria dizer que
estavam se afastando do local. Quando olhou de novo para a frente, não havia ninguém além de
Junior, que ainda contava o dinheiro, preparando-se para deixar o ponto e voltar para casa.
Faltavam apenas três metros e o traficante continuava a ignorá-lo, como se ele fosse um
cachorro vira-lata. Kelly sentiu a euforia que sempre o acometia pouco antes de entrar em ação,
a satisfação ao perceber que estava tudo correndo da forma prevista, que o inimigo estava à sua
mercê, sem desconfiar nem de leve que sua hora havia chegado. Era o momento em que sentia o
sangue correr nas veias, em que só ele sabia que o silêncio estava para ser quebrado; era a
sensação maravilhosa de que estava mais bem informado do que o adversário. Kelly tirou a mão
direita parcialmente da jaqueta e deu mais um passo, não em direção ao alvo, mas seguindo uma
trajetória que o faria passar a uma pequena distância do traficante. Junior olhou de novo para
ele, apenas por precaução. Não havia nenhum medo em seus olhos, nem mesmo aborrecimento.
Naturalmente, continuou parado onde estava, porque eram os outros que se desviavam dele, e
não o contrário. Kelly era apenas um objeto, uma das coisas que existiam nas ruas, não mais
interessante que uma mancha de óleo no asfalto.
Na Marinha, chamavam isso de PMA, Ponto de Máxima Aproximação; a menor distância em
que um curso em linha reta faria você passar de outro navio ou de uma costa. Naquele caso, o
PMA correspondia a um metro. Quando estava a meio passo de distância, Kelly tirou a arma de
dentro da jaqueta com a mão direita. Em seguida, girou em torno do pé esquerdo e estendeu o
braço direito quase como se fosse desferir um soco, colocando todos os seus oitenta e oito
quilos de peso na manobra. A ponta mais grossa da vara atingiu o traficante logo abaixo do
esterno, de baixo para cima. A força do golpe empurrou a câmara para trás, comprimindo a
espoleta contra o pino fixo e detonando o cartucho de espingarda, praticamente encostado na
camisa de Junior.
O som foi como o de uma caixa de papelão caindo em um assoalho de madeira. Tum. Nada
mais que isso. Certamente nada parecido com o ruído de um tiro, porque todos os gases
produzidos pela detonação tinham ido parar no interior do corpo de Junior junto com os
projéteis de chumbo. A carga — um cartucho de latão cheio de chumbo de caça nº 8, do tipo
usado em competições ou talvez para caçar pombos — teria apenas ferido um homem a mais de
quinze metros de distância, mas em contato com o peito teve o efeito de uma espingarda de
matar elefantes. A força brutal do disparo expeliu o ar dos pulmões do traficante com um vuuuch
surpreendentemente forte, fazendo a boca se abrir como em uma expressão de surpresa. E na
verdade Junior estava surpreso. Seus olhos se fixaram nos de Kelly, e o traficante ainda estava
vivo, embora o coração tivesse explodido como um balão de brinquedo e a parte de baixo dos
pulmões não existisse mais. Felizmente não havia nenhum orifício de saída. O ângulo de
penetração fizera com que os projéteis e toda a energia ficassem retidos no interior do peito e a
força da explosão ajudara a manter o corpo ereto durante um segundo — nada mais do que isso,
mas para Junior e Kelly aquele momento pareceu durar horas. Então o corpo simplesmente
desabou, como um edifício depois de uma implosão. Kelly ouviu um silvo estranho quando a
queda fez o ar e os gases escaparem pelo orifício de entrada; um cheiro fétido de fumaça,
sangue e outras substâncias encheu o ar, símbolo apropriado da vida que estava se extinguindo.
Junior continuava de olhos abertos, ainda olhando para Kelly, tentando dizer alguma coisa, a
boca aberta e tremendo até que todos os movimentos cessaram sem que qualquer pergunta
tivesse sido formulada ou respondida. Kelly tirou o rolo de dinheiro da mão ainda firme de
Junior e foi embora, olhos e ouvidos atentos a um possível perigo que não se manifestou.
Chegando à esquina, foi até o meio-fio e mergulhou na água a ponta da sua arma, para remover o
sangue. Depois, deu meia-volta e dirigiu-se para o carro, caminhando sem pressa. Quarenta
minutos depois, estava em casa, com oitocentos e quarenta dólares a mais e um cartucho de
espingarda a menos.

— Quem é ele? — perguntou Ryan.


— Acredite ou não, o nome é Bandanna — informou o policial de uniforme. Era um
patrulheiro experiente, branco, de trinta e dois anos. — Trabalha com drogas. Ou melhor,
trabalhava.
Os olhos ainda estavam abertos, o que não era muito comum em vítimas de assassinato, mas
aquela vítima tinha sido apanhada de surpresa e sofrerá uma morte muito traumática, embora por
fora o corpo estivesse quase intacto. Havia um orifício de entrada de dois centímetros de
diâmetro, envolvido por um anel negro com mais ou menos três milímetros de largura. O anel,
certamente, tinha sido causado por pólvora e o diâmetro do furo sugeria um tiro de espingarda
.12. Do outro lado da pele havia apenas espaço vazio. Todos os órgãos internos foram
destruídos ou puxados para baixo pela força de gravidade. Era a primeira vez na vida que
Emmet Ryan tinha oportunidade de olhar para dentro de um cadáver, como se fosse um boneco,
não um ser humano.
— A causa da morte — observou o legista, ironicamente — foi a vaporização total do
coração. Para encontrar tecido cardíaco, teremos que usar o microscópio. Hambúrguer cru —
acrescentou o homem, sacudindo a cabeça.
— Obviamente um ferimento de contato. O sujeito deve ter encostado o cano da arma no peito
dele e puxado o gatilho.
— Ele não chegou nem a cuspir sangue — observou Douglas. Na ausência de um orifício de
saída, não havia sangue na calçada, e a distância Bandanna parecia estar dormindo, a não ser,
naturalmente, pelos olhos abertos e sem vida.
— O diafragma desapareceu — explicou o médico-legista, apontando para o buraco de
entrada. — Deveria estar aqui, logo abaixo do coração. Provavelmente vamos descobrir que
também está faltando muita coisa no sistema respiratório. Sabem de uma coisa? Nunca vi um
trabalho tão limpo em toda a minha vida. — O homem estava naquele emprego há dezesseis
anos. — Vamos precisar de muitas fotos. Esse caso ainda vai parar em um livro de medicina
legal.
— Ele tinha experiência? — perguntou Ryan ao guarda uniformizado.
— Suficiente para não ser surpreendido desse jeito.
O detetive se abaixou e apalpou o quadril direito do morto.
— A arma ainda está aqui.
— Será que foi algum conhecido? — sugeriu Douglas. — Do jeito que ele deixou o assassino
se aproximar...
— Uma espingarda não é fácil de esconder. Mesmo que seja daquelas de cano serrado. Ele
não tentou reagir? — perguntou Ryan, recuando um passo para não atrapalhar o trabalho do
legista.
— As mãos estão limpas, sem sinais de luta. Quem fez isso conseguiu chegar bem perto sem
assustar o nosso amigo. — Douglas fez uma pausa. — Bolas, espingardas fazem barulho.
Ninguém ouviu nada?
— A morte ocorreu entre duas e três horas — informou o médico-legista, baseando-se, mais
uma vez, na falta de rigidez muscular.
— A essa hora as ruas estão silenciosas — insistiu Douglas. — E um tiro de espingarda faz
um barulho dos diabos.
Ryan revistou os bolsos da calça. Como no caso anterior, não havia sinal de dinheiro. Olhou
em torno. Havia umas quinze pessoas observando a cena. Para aquela gente, qualquer coisa era
diversão; pela expressão em seus rostos, tinham tanta pena do morto quanto o médico-legista.
— Será um trabalho da Dupla? — perguntou Ryan, para ninguém em particular.
— Duvido — respondeu o legista. — O criminoso usou uma arma de cano simples. Uma
espingarda de cano duplo teria deixado uma marca à esquerda ou à direita do orifício de entrada
e a distribuição de pólvora seria diferente.
— Amém — concordou Douglas. — Alguém está fazendo o trabalho do Senhor. Três
traficantes em dois dias. Se continuar assim, Mark Charon vai acabar perdendo o emprego.
— Ainda vai levar muito tempo para que isso aconteça, Tom — observou Ryan.
Mais uma pasta, pensou. Outro assalto a um traficante, executado com muita eficiência... mas
não pelo mesmo sujeito que acabara com Ju-Ju. O modus operandi era diferente.

Mais um banho de chuveiro, mais uma barba bem-feita, mais uma corrida no parque
Chinquapin, quando aproveitava para refletir. Agora tinha um lugar e um rosto para combinar
com o carro. A missão estava tomando forma, pensou Kelly, dobrando à direita na Belvedere
Avenue para atravessar o regato antes de começar a correr no sentido contrário e completar a
terceira volta. Era um parque agradável. Não tinha muitos brinquedos, mas isso permitia que as
crianças improvisassem seus folguedos, o que várias delas estavam fazendo no momento, sob os
olhos semiatentos de algumas mães da vizinhança, muitas com livros para acompanhar os bebês
adormecidos que em breve estariam também desfrutando do gramado e dos espaços abertos.
Alguns meninos tinham organizado um jogo de beisebol. A bola escapou da luva de um garoto
de nove anos e foi parar na alameda. Kelly se abaixou sem reduzir o passo e jogou-a para o
menino, que pegou-a no ar e gritou um muito obrigado. Uma criança menor brincava com um
Frisbee, não muito bem, e atravessou o caminho de Kelly, obrigando-o a desviar-se, o que
provocou um olhar envergonhado da mãe, a que Kelly respondeu com um aceno amigável e um
sorriso.
É assim que deve ser, pensou. Não muito diferente de sua infância em Indianapolis. Papai no
trabalho, mamãe com as crianças, porque era difícil ser uma boa mãe e ter um emprego,
principalmente enquanto as crianças eram pequenas; ou, pelo menos, as mães que tinham que
trabalhar ou queriam trabalhar podiam deixar os filhos com uma amiga de confiança, certa de
que as crianças estariam livres para brincar e desfrutar as férias de verão em um espaço verde e
amplo, aprendendo a jogar bola. Entretanto, a sociedade aprendera a aceitar o fato de que para
muita gente não podia ser assim. Aquele parque era tão diferente de sua área de operações! Os
privilégios que aquelas crianças estavam usufruindo não deviam ser privilégios, porque como
uma criança pode se tornar um adulto decente sem um ambiente assim?
Aqueles eram pensamentos perigosos, disse Kelly para si próprio. A conclusão lógica era
tentar mudar o mundo, e isso estava além da sua capacidade, pensou, terminando a corrida de
cinco quilômetros com a sensação costumeira de bem-estar e caminhando um pouco para esfriar
o corpo antes de dirigir de volta ao apartamento. Podia ouvir as risadas das crianças, os gritos
zangados de você está roubando!, protestando contra uma suposta violação de regras não
perfeitamente compreendidas por um dos jogadores, e discussões a respeito de quem estava
"colado" e com quem "estava" em alguma outra brincadeira. Entrou no carro, deixando para trás
os sons e os pensamentos, porque ele também estava roubando, não estava? Estava violando as
regras, regras importantes, que compreendia perfeitamente, mas fazia isso em busca de justiça
ou do que ele considerava justiça.
Vingança?, perguntou-se Kelly. Vigilante foi a palavra seguinte que lhe veio à mente. Era um
termo melhor, pensou. Vinha de vigiles, palavra usada pelos romanos para designar aqueles que
mantinham a vigília durante a noite nas cidades, principalmente para prevenir possíveis
incêndios, se é que se lembrava corretamente das aulas de latim no Colégio Santo Inácio;
entretanto, sendo romanos, provavelmente também usavam espadas. Imaginou se as ruas de
Roma seriam seguras à noite, mais seguras que as da cidade onde estava. Talvez.
Provavelmente. A justiça romana era... severa. A crucificação não devia ser uma forma
agradável de morrer e, para alguns crimes, como assassinar o próprio pai, a pena prevista por
lei era ser amarrado dentro de um saco com um cachorro, um galo e algum outro animal e
lançado às águas do Tibre — não para se afogar, mas para ser feito em pedaços pelos animais
desesperados. Talvez estivesse desempenhando um papel equivalente ao de um daqueles
vigiles, pensou o rapaz. A ideia lhe agradava mais do que pensar que estava desafiando a lei.
Além disso, os "vigilantes" dos livros de história eram bem diferentes daqueles que apareciam
nos jornais. Antes que existisse a polícia organizada, os cidadãos tinham se organizado para
patrulhar as ruas e manter a paz à sua maneira. Não era isso que estava fazendo?
Não, não era bem assim, pensou Kelly enquanto estacionava o carro. E se fosse vingança?
Não tinha razões de sobra para isso? Dez minutos depois, outra sacola de supermercado cheia
de roupas era jogada na lixeira e Kelly tomou outro banho de chuveiro antes de dar um
telefonema.
— Gostaria de falar com a enfermeira O'Toole. Sandy? Aqui é John. Ainda está saindo às
três?
— Você escolheu bem o dia — disse ela, permitindo-se um sorriso especial. — O carro
quebrou de novo. — E os táxis estavam pela hora da morte.
— Quer que eu dê uma olhada? — perguntou Kelly.
— Gostaria que alguém fizesse um conserto decente.
— Não posso prometer nada, mas cobro barato.
— Quanto vai cobrar? — perguntou Sandy, sabendo qual seria a resposta.
— Deixa que eu lhe pague um jantar? Pode até escolher o restaurante.
— Ora, está bem... mas...
— Mas ainda é muito cedo para nós dois. Sim, senhora, já sei disso. Sua virtude não correrá
nenhum risco... prometo.
Ela teve que rir. Era incrível que um homem tão musculoso pudesse ser tão recatado. Mas
sabia que podia confiar nele e estava cansada de cozinhar para apenas uma pessoa, e também de
estar sozinha. Cedo demais ou não, sentia falta de uma companhia masculina.
— Às três e quinze, na saída principal.
— Posso usar minha pulseira de paciente, se quiser.
Sandy deu uma risada, surpreendendo uma colega que passava com uma bandeja de remédios.
— Eu já disse que sim, não disse?
— Está combinado, então. Vejo você mais tarde — disse Kelly, antes de desligar.
Estou precisando passar mais tempo com pessoas decentes, disse a si mesmo, encaminhando-
se para a porta. Primeiro Kelly foi a uma sapataria, onde comprou um par de sapatos pretos
tamanho quarenta e quatro. Depois, esteve em mais quatro sapatarias, onde fez a mesma coisa,
tentando escolher sempre modelos e marcas diferentes, mas mesmo assim acabou com dois
pares iguais. Teve o mesmo problema para comprar jaquetas estilo combate na selva. Havia
apenas dois fabricantes daquele tipo de traje e acabou comprando duas jaquetas muito
parecidas, apenas para verificar, mais tarde, que eram exatamente iguais, exceto pela etiqueta.
Estava descobrindo que diversificar os disfarces era mais difícil do que pensava, mas isso não
diminuía a necessidade de manter-se fiel ao plano. Ao voltar para o apartamento — que estava
começando a chamar de "casa" quase inconscientemente —, tirou as etiquetas e foi até a
lavanderia, onde jogou tudo na máquina de lavar, com bastante água sanitária, juntamente com o
resto das roupas escuras que comprara em liquidações. Reparou que estava reduzido a três
conjuntos completos; em breve teria que comprar mais.
A ideia o fez franzir as sobrancelhas. Como a maioria dos homens, Kelly detestava fazer
compras, especialmente agora que desenvolvera uma rotina de operações. Por outro lado,
estava ficando cansado, tanto pela falta de sono como pela tensão incessante em que passava as
horas de vigília. Na verdade, nada do que fazia podia ser considerado rotina. Tudo era
perigoso. Embora estivesse ficando acostumado com a missão, não se descuidara da segurança,
e a tensão ainda estava lá. Em parte, isso era bom, porque mostrava que aprendera a lição, mas
a tensão também podia desgastar um homem de formas sutis, difíceis de perceber, como o
aumento dos batimentos cardíacos ou da pressão arterial. Estava tentando combater esses
efeitos com exercício, pensou Kelly, mas o sono começava a tornar-se um problema. No
conjunto, não era muito diferente de trabalhar na selva no 3ª SOG, mas agora estava mais velho,
e a falta de substitutos, a ausência de companheiros para compartilhar a tensão e relaxar o
espírito nas horas de folga, estava começando a incomodá-lo. Durma, disse para si próprio,
depois de consultar o relógio. Depois de se deitar, Kelly ligou a televisão para ver o noticiário
do meio-dia.
— Hoje mais um traficante de drogas foi encontrado morto em Baltimore — anunciou o
repórter.
— Eu sei — murmurou Kelly antes de adormecer.

— O caso é o seguinte — disse um coronel dos fuzileiros em Camp Lejeune, Carolina do


Norte, enquanto outro fazia a mesma coisa, exatamente à mesma hora, em Camp Pendleton,
Califórnia. — Temos uma missão especial. Estamos aceitando voluntários exclusivamente da
força de reconhecimento. Vamos precisar de quinze homens. É um trabalho perigoso. É um
trabalho importante. É algo de que vocês vão poder se orgulhar depois. A missão vai durar dois
ou três meses. É tudo que posso dizer.
Em Lejeune, setenta e cinco homens, todos veteranos de guerra, todos membros da unidade
mais invejada do corpo de fuzileiros, ouviam atentamente as palavras do coronel, sentados nas
cadeiras de espaldar duro. Primeiro, tinham se alistado no corpo de fuzileiros — ali não havia
soldados convocados — e depois tinham feito a mesma coisa para ingressar na elite dentro da
elite. As minorias estavam presentes em uma proporção maior do que na população em geral,
mas isso era uma questão que interessava apenas aos sociólogos. Aqueles homens eram antes de
tudo fuzileiros e tão parecidos quanto os uniformes verdes que usavam. Muitos tinham cicatrizes
no corpo, porque o trabalho que faziam era mais arriscado que o dos soldados comuns de
infantaria. Sua especialidade era infiltrar-se em pequenos grupos, para observar ou para matar
com alto grau de seletividade. Muitos eram exímios atiradores, capazes de acertar na cabeça de
alguém a mais de quatrocentos metros de distância ou no peito a mais de um quilômetro, se o
alvo fizesse a gentileza de permanecer imóvel durante a fração de segundo que a bala levava
para percorrer essa distância. Eram os caçadores. Poucos sofriam de pesadelos associados ao
que faziam, e nenhum jamais foi vítima da síndrome da tensão retardada, porque se
consideravam predadores, e não presas, e os leões não estavam . sujeitos a essas fraquezas.
Entretanto, nem por isso deixavam de ser homens. Mais da metade tinha esposas e/ou filhos
que esperavam que papai aparecesse em casa de tempos em tempos; os outros tinham namoradas
e faziam planos para se casar em um futuro indeterminado. Todos já tinham servido um turno
completo de treze meses. Muitos tinham servido dois; uns poucos tinham servido três, e ninguém
desse grupo se apresentou como voluntário. Alguns deles, talvez a maioria, poderiam ter
mudado de ideia se conhecessem a natureza da missão, porque o chamado do dever era forte
naqueles homens, mas o dever pode assumir muitas formas, e eles achavam que já tinham
cumprido a sua parte naquela guerra. Agora seu trabalho era treinar os colegas mais moços,
passando adiante as lições que lhes tinham permitido voltar para casa quando muitos outros,
quase tão bons quanto eles, haviam ficado no campo de batalha; esse era o papel certo para eles
no corpo de fuzileiros, pensavam, enquanto olhavam para o coronel no palco, imaginando se
seria realmente o papel que desejavam, morrendo de curiosidade para saber o objetivo da
missão, mas não o suficiente para arriscar de novo a vida. Uns poucos olhavam furtivamente
para a direita e para a esquerda, examinando as expressões dos companheiros mais jovens,
tentando adivinhar quais deles ficariam na sala e depositariam os nomes no quepe. Muitos se
arrependeriam de não terem aceitado o desafio, reconhecendo, mesmo naquele momento, que
não saber do que se tratava, e provavelmente nunca vir a saber, deixaria para sempre um espaço
vazio na sua consciência. Entretanto, pesaram contra isso o rosto das esposas e filhos e
decidiram que não, não desta vez.
Depois de alguns momentos, os homens se levantaram e saíram. Vinte e cinco ou trinta
ficaram para trás, para se inscrever como voluntários. Seus dados pessoais seriam obtidos
rapidamente e avaliados, e quinze deles seriam escolhidos em um processo que parecia
aleatório mas não era. Certos nichos especiais tinham que ser preenchidos com habilidades
especiais. Na verdade, homens melhores e mais bem preparados do que alguns dos escolhidos
seriam rejeitados simplesmente porque outros voluntários com as mesmas habilidades já tinham
sido selecionados. Assim era a vida nos fuzileiros, e todos a aceitavam, voltando às suas tarefas
regulares com um misto de frustração e alívio. No final do dia, os homens que iriam participar
da missão foram reunidos e informados a respeito da hora da partida. Nada mais. Um ônibus
viria apanhá-los, ficaram sabendo com uma certa surpresa. Não iriam muito longe. Ainda não.

Kelly acordou às duas e lavou o rosto. A missão daquela tarde exigia boa aparência, e por
isso decidiu usar paletó e gravata. O cabelo, que ainda estava crescendo depois de ter sido
raspado, precisava de um corte, mas não dava mais tempo. Escolheu uma gravata azul para
blazer azul e camisa branca e caminhou até o local onde o Scout estava estacionado, puxando
uma pose de executivo, cumprimentando com a mão o administrador do edifício antes de sair do
prédio.
A sorte estava sorrindo para Kelly. Havia uma vaga bem em frente à entrada principal do
hospital. Ele entrou e se deparou com uma grande imagem de Cristo no saguão, com cinco ou
seis metros de altura, olhando para ele com expressão bondosa, mais apropriada a um hospital
do que ao que Kelly estivera fazendo na noite anterior. Contornou a imagem sem olhá-la de
novo, pois não estava a fim de criar dramas de consciência para si próprio. Pelo menos, não no
momento.
Sandy O'Toole apareceu às três e doze, e quando a viu se aproximar, Kelly ficou sorrindo até
observar a expressão no rosto da moça. Logo depois, compreendeu a razão. Um médico vinha
bem atrás dela, um homem baixo, moreno, vestido de verde, andando tão depressa quanto as
pernas curtas permitiam e falando alto com a enfermeira. Kelly hesitou, observando com
curiosidade enquanto Sandy parava e se virava para encarar o médico, talvez cansada de correr
ou simplesmente se curvando às necessidades do momento. O médico era da altura dela, talvez
um pouquinho mais baixo, e falava tão depressa que Kelly não conseguiu entender bem o que
dizia. Sandy ficou olhando para ele com ar de impaciência.
— Meu relatório já foi entregue, doutor — afirmou, quando o médico fez uma pausa para
tomar fôlego.
— Não tem o direito de fazer isso! — Os olhos do homem brilhavam de raiva no rosto
moreno, rechonchudo, fazendo Kelly se aproximar.
— Tenho, sim, doutor. O senhor receitou o remédio errado. Sou a chefe do grupo, e sou
obrigada a comunicar qualquer incidente desse tipo!
— Estou mandando você desistir daquele relatório! As enfermeiras têm que obedecer aos
médicos!
O que se seguiu foram palavras que não agradaram nem um pouco a Kelly, principalmente na
presença da imagem de Deus. Enquanto olhava, o rosto do médico foi ficando vermelho e ele
chegou mais perto dela, falando cada vez mais alto. Sandy ficou onde estava, sem se deixar
intimidar, o que pareceu deixar o médico ainda mais furioso.
— Com licença — disse Kelly, intrometendo-se na discussão, sem se aproximar muito,
apenas o suficiente para que soubessem que estava ali, e atraindo um olhar zangado de Sandy.
— Não sei qual é o assunto da discussão, mas se o senhor é um médico e a moça aqui é uma
enfermeira, talvez pudessem resolver suas divergências de forma mais profissional — sugeriu,
em tom conciliador.
Foi como se não tivesse dito nada. Desde os dezesseis anos de idade ninguém ignorava Kelly
de forma tão ostensiva. Ele recuou, esperando que Sandy pudesse resolver sozinha o problema,
mas o médico começou a gritar, passando para uma língua que Kelly não conseguia entender,
uma mistura de inglês e persa. Sandy não arredou pé, o que fez Kelly sentir-se orgulhoso dela,
mas seu rosto impassível não podia deixar de estar ocultando um certo medo. A resistência
passiva da enfermeira estimulou o médico a se tornar ainda mais agressivo. Foi quando a
chamou de "piranha", termo sem dúvida aprendido com algum cidadão local, que Kelly resolveu
tomar uma atitude. O punho que estava agitando a um centímetro do nariz de Sandy desapareceu,
envolvido, constatou com surpresa, pela manopla cabeluda de um homem com o dobro de seu
tamanho.
— Desculpe — disse Kelly, com toda a suavidade. — Será que há alguém lá em cima que
possa cuidar de uma mão quebrada? — Kelly tinha colocado os dedos em torno da mão do
médico, menor e mais delicada, e estava apertando, só um pouquinho.
Nesse momento, um guarda da segurança entrou no saguão, atraído pelo barulho da disputa.
Os olhos do médico se voltaram imediatamente naquela direção.
— Ele não vai chegar aqui a tempo de ajudá-lo, doutor. Quantos ossos existem na mão
humana?
— Vinte e oito — respondeu o médico, automaticamente.
— Quer ficar com cinquenta e seis? — perguntou Kelly, aumentando a pressão.
Os olhos do médico se fixaram nos de Kelly e ele viu um rosto cuja expressão não era de
raiva nem de contentamento. Estava simplesmente ali, olhando para ele como se fosse um
objeto. Sua voz educada era uma expressão zombeteira de superioridade. Mais do que tudo,
sabia que o homem era perfeitamente capaz de cumprir o que prometera.
— Peça desculpas à moça — disse Kelly em seguida.
— Não vou me humilhar diante de uma mulher! — sibilou o médico. Um pouco mais de
pressão e ele fez uma careta de dor. Mais um pouco, pensou Kelly, e os ossos começariam a se
partir.
— O senhor não tem educação. Estou lhe oferecendo uma oportunidade para aprender, mas
não vou esperar muito tempo. — Kelly sorriu. — Agora — ordenou. — Por favor.
— Desculpe, enfermeira O'Toole — disse o homem, sem demonstrar o menor
arrependimento. As palavras, porém, eram um gigantesco golpe no seu orgulho. Kelly largou a
mão. Em seguida, olhou para o crachá e leu em voz alta o nome do médico antes de olhá-lo
novamente nos olhos.
— Não está se sentindo melhor depois de pedir desculpas, Dr. Khofan? Não grite mais com a
moça, especialmente quando ela estiver certa e o senhor estiver errado, OK? E nunca mais
levante a mão para ela, ouviu? — Kelly não teve que explicar o que aconteceria se o médico
não o atendesse. Ele ainda estava flexionando os dedos para aliviar a dor. — Não gostamos
disso por aqui, está bem?
— Está bem — disse o homem, com vontade de sair correndo. Kelly segurou-lhe a mão de
novo e apertou-a com um sorriso.
— Que bom que o senhor compreendeu. Acho que agora pode ir.
O Dr. Khofan se afastou, passando pelo guarda da segurança sem nem ao menos levantar a
cabeça. O guarda olhou para Kelly, mas não se aproximou dele.
— Precisava fazer isso? — perguntou Sandy.
— Como assim?
— Eu estava me saindo muito bem sozinha — disse a enfermeira, encaminhando-se para a
porta.
— Eu sei. O que aconteceu, afinal?
— Ele receitou o remédio errado para um senhor com um problema no pescoço. Na ficha
dizia claramente que era alérgico ao medicamento — explicou a moça, falando muito depressa.
— Realmente poderia ter feito mal ao Sr. Johnston. E não é a primeira vez. Talvez o Dr. Rosen
decida mandá-lo embora, e ele queria ficar aqui. Também é muito prepotente com as
enfermeiras. Não gostamos dele. Mas eu estava me saindo muito bem sozinha!
— Está bem. Da próxima vez eu deixo que quebre seu nariz.
Ele sabia que não haveria próxima vez; isso estava claro nos olhos do médico.
— E aí, o que vai acontecer?
— Aí ele vai passar muito tempo sem poder operar. Sandy, não gosto de ver as pessoas
agirem assim, OK? Não gosto de valentões, e gosto menos ainda dos que se metem a valentões
para cima de mulheres.
— Você costuma machucar pessoas?
Kelly abriu a porta para ela.
— Não. A maioria escuta meus conselhos. Encare as coisas da seguinte forma: se ele
chegasse a bater em você, você ficaria machucada e ele muito mais. Do jeito como foi, não
houve vítimas, a não ser o orgulho do doutorzinho, talvez, e pelo que sei até hoje ninguém
morreu de orgulho ferido.
Sandy resolveu não insistir. Sentia-se um pouco contrariada, pois sabia que tinha razão; o
médico, que não era um cirurgião tão bom assim, mostrava um desinteresse quase irresponsável
pelo pós-operatório. Ele só cuidava de pacientes de caridade, e mesmo assim com problemas
menores, mas isso não vinha ao caso. Pacientes de caridade eram pessoas, e pessoas tinham
direito ao melhor tratamento que a medicina pudesse oferecer. Ele a deixara assustada. Sandy
estava agradecida pela intervenção de Kelly, mas ao mesmo tempo sentia-se roubada por não ter
oportunidade de enfrentar Khofan sozinha até o fim. Seu relatório provavelmente selaria o
destino do médico, para regozijo de todas as enfermeiras. As enfermeiras eram para os
hospitais o que os sargentos eram para o Exército; eram elas quem realmente faziam as coisas, e
pobre do médico que não as tratasse bem!
Entretanto, a briga servira para revelar uma coisa a respeito de Kelly: a expressão que
surpreendera um dia no rosto dele e nunca mais conseguira esquecer não tinha sido uma ilusão.
O olhar de John enquanto segurava a mão direita de Khofan era... era totalmente desprovido de
emoção. Não parecia nem mesmo se divertir com a humilhação do vermezinho, e isso para ela
era vagamente assustador.
— O que houve com o seu carro, afinal? — perguntou Kelly, entrando na Broadway e
rumando para o norte.
— Se eu soubesse, já estaria consertado.
— É, acho que faz sentido — concordou o rapaz, com um sorriso.
Ele tem dupla personalidade, pensou a enfermeira. Pode passar de uma para outra a qualquer
momento. O incidente com Khofan era revelador. Primeiro, tentara acalmá-lo, com toda a
educação. Logo em seguida, porém, agira como se pretendesse deixá-lo aleijado. Friamente.
Como se estivesse esmagando um inseto. Nesse caso, o que seria ele? Um descontrolado? Não,
isso não. Pelo contrário, parecia uma pessoa muito calma. Um psicopata? Era uma
possibilidade assustadora... não, isso também não era possível. Sam e Sarah eram pessoas
inteligentes, jamais teriam um amigo psicopata. O quê, então?
— Trouxe minha caixa de ferramentas. Entendo um pouco de motores. Tirando o seu
amiguinho, como foi o dia?
— O dia foi ótimo — afirmou Sandy, satisfeita por tirar da cabeça aqueles pensamentos. — A
paciente que mais nos preocupava teve alta. Uma garotinha negra de três anos que caiu do
berço. O Dr. Rosen trabalhou muito bem. Daqui a um ou dois meses ela nem vai lembrar que se
machucou.
— Sam é um bom camarada — comentou Kelly. — Não é apenas um bom médico... ele tem
classe, também.
— Ele e Sarah formam um casal muito simpático. Bom camarada, pensou a moça. É o que
Tim teria dito.
— Sarah é um anjo — afirmou Kelly, entrando na North Avenue. — Ela fez muito por Pam —
disse, desta vez sem pensar. Sandy viu seu rosto mudar de novo, assumindo uma expressão
impessoal, como se tivesse ouvido as palavras de outra pessoa.
A dor nunca vai passar, não é?, perguntou Kelly a si mesmo. Tornou a vê-la em sua mente;
por um breve e cruel segundo, enganou a si próprio que era ela quem estava a seu lado, no
banco do carona. Mas não era Pam, nunca mais seria Pam. Apertou o volante com força. Os nós
dos dedos ficaram brancos enquanto tentava se controlar. Pensamentos como aquele eram como
campos minados. Você entrava neles com toda a inocência, sem esperar que nada de mais
acontecesse, e só descobria o perigo tarde demais. É melhor não pensar nela. Preciso esquecê-
la. Mas sem memórias, boas e más, o que era a vida? Se você não pensava mais nas pessoas que
amava, valia a pena continuar vivendo?
Sandy percebeu claramente o que estava passando pela cabeça dele. Um caso de dupla
personalidade, talvez, mas não perfeitamente definido. Você não é um psicopata. Você tem
sentimentos, e eles, não... pelo menos, em relação à morte de um ente querido. O que é você,
então?
18

INTERFERÊNCIA

— Gire a chave de novo — disse Kelly. Clic.


— Pronto, já sei o que é — afirmou o rapaz. Estava debruçado sobre o capô aberto do
Plymouth Satellite, sem paletó e gravata, com as mangas da camisa arregaçadas. As mãos
estavam sujas, depois de meia hora mexendo no motor.
— Sabe?
Sandy saltou do carro com a chave na mão, o que, pensando melhor, parecia estranho, já que
o maldito carro se recusava a partir. Por que não deixo as chaves na ignição e levo um ladrão de
automóveis à loucura?, pensou.
— Já eliminei todas as outras possibilidades. Só pode ser o solenoide.
— O que é isso? — perguntou a enfermeira, colocando-se ao lado de Kelly e olhando para o
mistério que era um motor de automóvel.
— O pequeno relê que você aciona quando vira a chave não é suficiente para deixar passar a
corrente, necessária ao acionamento do motor de arranque. Por isso, ele é usado para controlar
um relê maior, que fica aqui. — Kelly apontou com uma chave inglesa. — É esse segundo relê
que deixa a eletricidade passar para o motor de arranque. Está me acompanhando até agora?
— Acho que sim, — O que era quase verdade. — Eles me disseram que preciso de uma
bateria nova.
— Alguém já deve ter lhe dito que os mecânicos têm mania de...
— Arrancar dinheiro das mulheres porque elas não entendem nada de carros? — completou
Sandy, com uma careta.
— Isso mesmo. Mas você vai ter que me pagar pelo conserto — disse Kelly, remexendo na
caixa de ferramentas.
— Quanto você vai cobrar?
— Vou ficar sujo demais para levar você para jantar fora. Teremos que comer aqui mesmo —
afirmou Kelly, desaparecendo debaixo do carro, sem ligar para a camisa social. Um minuto
depois, estava de volta, com as mãos sujas de graxa.
— Tente de novo.
Sandy entrou no carro e girou a chave. A bateria estava um pouco fraca, mas o carro pegou de
primeira. — Deixe ligado, para carregar a bateria.
— O que era?
— Um fio solto. Tudo o que fiz foi prendê-lo. — Kelly olhou para as próprias roupas e fez
uma careta. Sandy imitou-o. — Mande colocar uma gaxeta no terminal. Assim não ficará frouxo
de novo.
— Não precisava...
— Você tinha que ir trabalhar amanhã, certo? Onde é que eu posso me lavar?
Sandy entrou em casa com ele e mostrou onde ficava o banheiro. Kelly tirou a sujeira das
mãos antes de se juntar a ela na sala de estar.
— Onde aprendeu a consertar carros? — perguntou a enfermeira, passando-lhe um copo de
vinho.
— Meu pai era mecânico amador. Não lhe contei que era um bombeiro? Teve que aprender
mecânica e gostava disso. Aprendi com ele. Obrigado. — Kelly levantou o copo, como quem
faz um brinde.
— Gostava?
— Papai morreu quando eu servia no Vietnã. Teve um ataque cardíaco no trabalho. Mamãe
morreu, também. Câncer do fígado, quando eu estava na escola primária — explicou Kelly, com
simplicidade. — Foi duro para mim. Papai e eu éramos muito unidos. Ele fumava muito.
Provavelmente foi o que o matou. Eu mesmo estava muito doente na ocasião, uma infecção que
peguei em serviço. Não podia sair de onde me estava para vir ao enterro.
— Estranhei que ninguém tivesse ido visitá-lo, mas achei que não ficava bem perguntar por
quê — comentou Sandy, percebendo como John Kelly devia se sentir solitário.
— Tenho alguns tios e primos, mas raramente nos vemos.
Agora estava ficando um pouco mais claro, pensou Sandy. Kelly perdeu a mãe ainda criança,
e de forma particularmente cruel. Provavelmente sempre foi um garotão, forte e orgulhoso, mas
impotente diante do destino. Todas as mulheres de sua vida lhe tinham sido roubadas, de uma
forma ou de outra: a mãe, a esposa, a amante. Quanta amargura ele deve sentir, pensou a
enfermeira. Isso explicava muita coisa. Quando vira Khofan ameaçá-la, sentira que ali estava
alguma situação em que podia fazer alguma coisa. Ainda achava que poderia ter resolvido tudo
sozinha, mas agora compreendia um pouco melhor a atitude de Kelly. Sentia cada vez mais
simpatia pelo rapaz. Ele não se aproximara demais, não tentara despi-la com os olhos — isso
era uma coisa que Sandy detestava, embora, estranhamente, tolerasse nos pacientes, porque
sentia que era algo que os ajudava a se sentirem vivos. John comportava-se como um amigo,
como um dos colegas de Tim poderia ter feito, misturando intimidade com respeito, encarando-a
primeiro como pessoa e só depois como mulher. Sandra Manning O'Toole estava gostando do
que via. Por mais alto e musculoso que fosse, esse não era um homem para ser temido.
Parecia uma observação estranha para começar um relacionamento.
Um ruído na porta anunciou a chegada do jornal vespertino. Kelly foi pegá-lo e olhou a
primeira página antes de colocá-lo em cima da mesinha. Uma das manchetes daquele dia
preguiçoso de verão mencionava a descoberta do corpo de outro traficante de drogas. Sandy viu
quando ele leu os primeiros parágrafos da reportagem.
O controle de Henry sobre o tráfico de drogas naquela região era quase total; assim, não era
de admirar que o traficante morto trabalhasse para ele. Conhecia o homem apenas pelo apelido
e ficou conhecendo o nome verdadeiro, Lionel Hall, apenas quando leu a notícia no jornal. Não
se conheciam pessoalmente, mas alguém lhe dissera que Bandanna era um sujeito esperto, que
tinha futuro. Esperto uma ova, pensou Tucker. A escada para o sucesso naquele negócio era
íngreme, com degraus escorregadios, o processo de seleção brutalmente darwiniano, e Lionel
Hall por algum motivo não correspondera às exigências da profissão. Era uma pena, mas não
morreria de tristeza por causa disso. Henry levantou-se da cadeira e espreguiçou-se. Dormira
até tarde. Há dois dias havia recebido mais cinquenta quilos do "material", como se acostumara
a chamá-lo. A viagem de barco até o local de entrega e a volta à cidade fora cansativa. Toda
aquela preocupação com a segurança começava a incomodá-lo, pensou Tucker. Entretanto,
pensamentos como esse eram perigosos, e ele sabia disso. Daquela vez, limitara-se a observar
enquanto seus homens faziam o trabalho. E, agora, duas pessoas sabiam mais do que antes, mas
estava cansado de fazer pessoalmente o trabalho de enxada. Tinha auxiliares para isso, gente
insignificante que sabia que era insignificante e só iria para a frente se seguisse exatamente suas
ordens.
As mulheres eram melhores nisso do que os homens. Os homens tinham egos que precisavam
alimentar dentro de seus cérebros diminutos, e quanto menor o cérebro maior o ego. Mais cedo
ou mais tarde, um dos seus homens se rebelaria, se tomaria um pouquinho importante demais. As
putas que usava eram muito mais fáceis de manobrar, e ainda havia o benefício adicional de tê-
las por perto. Tucker sorriu.
Doris acordou por volta das cinco, a cabeça estourando por causa da ressaca induzida por
barbitúricos agravada pela dose dupla de uísque que alguém decidira oferecer-lhe. A dor lhe
lembrou que teria que viver mais um dia, que a mistura de drogas e álcool não fizera o trabalho
que ousara esperar quando olhara para o copo, hesitara e bebera tudo de um gole antes da festa.
O que acontecera depois do uísque e das drogas era apenas uma vaga lembrança que se
misturava com muitas outras noites semelhantes, a tal ponto que tinha dificuldade de separar o
novo do antigo.
Agora eles eram mais cautelosos, graças a Pam. Doris se sentou e olhou para a algema no
tornozelo, a outra extremidade presa a uma corrente que por sua vez estava presa a um gancho
aparafusado na parede. Na verdade, uma moça jovem e saudável como ela seria capaz de
arrancar o gancho da parede sem muito esforço. Entretanto, tentar fugir significava a morte, uma
morte lenta e sofrida, e por mais que desejasse escapar de uma vida de pesadelo, a dor ainda a
assustava. Levantou-se, fazendo a corrente chocalhar. Logo depois, Rick entrou no quarto.
— Ei, garota — disse o rapaz, com um sorriso que revelava mais interesse do que afeição.
Ele se curvou, abriu as algemas e apontou para o banheiro. — Vá tomar um banho. Está
precisando.

— Onde aprendeu a fazer comida chinesa? — perguntou Kelly.


— Uma enfermeira que trabalhou aqui no ano passado me ensinou. O nome dela é Nancy Wu.
Agora dá aulas na Universidade de Virginia. Está gostando?
— Você ainda pergunta? — Se a distância mais curta para o coração do homem passa pelo
estômago, uma dos maiores elogios que um homem pode fazer a uma mulher é repetir um prato
que ela preparou. Kelly se limitou a um copo de vinho, mas atacou a comida tão depressa
quanto sua educação à mesa permitia.
— Não está tão boa assim — afirmou Sandy, visivelmente à espera de um elogio.
— Está muito melhor do que eu jamais conseguiria fazer, mas se está pensando em escrever
um livro de cozinha, precisa de alguém com um paladar mais apurado. — Ele levantou os olhos.
— Uma vez passei uma semana em Taipé, e não comi nada melhor.
— O que foi fazer lá?
— Estava de licença. Uma espécie de férias para descansar da guerra — explicou Kelly,
laconicamente. Nem tudo o que ele e os amigos tinham feito em Formosa podia ser contado a
uma dama. Mas percebeu que já falara demais.
— É isso que Tim estava esperando... eu ia me encontrar com ele no Havaí, mas...
Kelly teve vontade de confortá-la, de segurar-lhe a mão para mostrar que compreendia o que
a moça estava sentindo, mas teve medo de ser mal interpretado.
— Eu sei, Sandy. O que mais você aprendeu a preparar?
— Muita coisa. Nancy morou comigo durante vários meses e era eu que cozinhava. Ela é uma
professora excelente.
— Acredito. — Kelly limpou o prato. — Como é o seu horário?
— Geralmente acordo às cinco e quinze e saio de casa antes das seis. Gosto de chegar ao
hospital pelo menos meia hora antes da mudança de turno para verificar como estão os pacientes
e me preparar para as novas admissões. Meu setor é muito movimentado. E você?
— Depende do trabalho. Quando vou explodir alguma coisa...
— Explodir? — repetiu Sandy, surpresa.
— Sou especialista em explosivos. A gente passa um bocado de tempo planejando o serviço
e colocando os explosivos no lugar. Em geral há alguns engenheiros por perto que se metem a
dar palpite. Eles se esquecem de que destruir é muito mais fácil do que construir. Tenho uma
marca registrada, sabia?
— Qual é?
— Quando estou trabalhando debaixo d'água costumo detonar algumas espoletas pouco antes
da explosão de verdade. — Kelly riu. — É para afastar os peixes.
A enfermeira ficou intrigada por um segundo.
— Ah... para que não saiam machucados?
— Isso mesmo. É uma mania que eu tenho.
Era incrível. Aquele homem tinha matado gente na guerra, ameaçara quebrar a mão de um
médico na frente dela e de um guarda da segurança, mas saía do caminho para proteger alguns
peixes.
— Você é uma pessoa estranha.
Kelly teve a consideração de concordar.
— Não mato para me divertir. Costumava caçar, mas larguei. Ainda pesco de vez em quando,
mas não uso dinamite. Detono as espoletas a uma certa distância do lugar da explosão, para que
não haja perigo. O barulho faz a maioria dos peixes se afastar do local. Por que desperdiçar
peixes que estão em perfeitas condições para serem pescados? — argumentou.

Foi automático. Doris era um pouco míope e as marcas pareciam sujeira quando seus olhos
estavam toldados pela água corrente, mas não eram sujeira e não saíam com sabonete. Elas não
desapareciam nunca; simplesmente migravam para lugares diferentes de acordo com os
caprichos dos homens que as infligiam. A moça esfregou-as com as mãos e a dor a fez se
lembrar do que eram, recordações das festas mais recentes, e com isso o trabalho de se lavar
lhe pareceu inútil. Sabia que jamais se sentiria limpa novamente. O chuveiro era apenas para
tirar o mau cheiro, não era? Mesmo Rick deixara isso bem claro, e Rick era o mais simpático
deles, pensou Doris, encontrando uma marca marrom que o rapaz deixara nela, já quase
apagada, e bem menos dolorida que as equimoses que pareciam dar tanto prazer a Billy.
A moça saiu do chuveiro para se enxugar. O boxe era a única parte do banheiro
razoavelmente limpa. Ninguém se dava ao trabalho de limpar a pia ou a privada, e o espelho
estava rachado.
— Melhorou muito — comentou Rick, oferecendo-lhe uma pílula.
— Obrigada.
Assim começou mais um dia, com um barbitúrico para colocar alguma distância entre ela e a
realidade, para tornar a vida, se não agradável, se não tolerável, pelo menos suportável. Ou
quase. Com um pouco de ajuda dos amigos, que cuidavam para que suportasse a realidade que
eles próprios fabricavam. Doris engoliu a pílula com um pouco d'água, torcendo para que o
efeito fosse rápido. Olhou para o rosto sorridente de Rick, que a examinava com ar de
aprovação.
— Sabe que eu gosto de você, garota — disse o rapaz, estendendo a mão para acariciá-la.
— Eu sei — concordou Doris, com um sorriso cansado.
— Esta noite vamos ter uma festa especial. Henry vem aí.

Clic. Kelly quase pôde ouvir o som quando saltou do Volkswagen, a quatro quarteirões de
distância da casa de arenito pardo, e mudou totalmente de atitude. Entrar no "campo de batalha"
já estava se tornando rotina. Entretanto, não foi muito fácil afastar do pensamento o jantar
daquela noite, o primeiro com outro ser humano em... cinco, seis semanas?
Escolheu um esconderijo do outro lado da rua, mais uma vez à sombra de uma escada de
pedra, e ficou à espera do Roadrunner. De vez em quando, levava aos lábios a garrafa de vinho
para um gole simulado, enquanto seus olhos varriam constantemente a rua para a direita e para a
esquerda, e também para cima e para baixo, vigiando as janelas do segundo e do terceiro andar.
Alguns outros carros já eram velhos conhecidos. Avistou o Karmann-Ghia que contribuíra
involuntariamente para a morte de Pam. O motorista era alguém da sua idade, de bigode, que no
momento circulava devagar pela rua à procura do seu contato. Imaginou qual seria o problema
do homem que, para mitigá-lo, se dispunha a sair de casa, onde quer que fosse, para ir àquele
lugar, arriscando-se a ser assaltado para obter drogas que só fariam encurtar-lhe a vida. Além
disso, ao contribuir com dinheiro para o tráfico ilícito, estava ajudando diretamente a corrupção
e a destruição. Ele não se importava com isso? Será que não via o que o dinheiro das drogas
estava fazendo com aquele bairro?
Entretanto, isso era uma coisa que Kelly também estava se esforçando para ignorar. Ainda
havia gente de bem tentando viver ali. Fosse à custa de um seguro-desemprego ou de um
subemprego, pessoas honestas moravam naquele bairro, em constante perigo, talvez com a
esperança de um dia conseguirem se mudar para um lugar decente. Ignoravam os traficantes na
medida do possível, e em sua mesquinha retidão também ignoravam vagabundos como Kelly,
mas não os censurava. Em um ambiente daqueles, cada um só podia pensar na própria
sobrevivência. A consciência social era um luxo que não estava ao alcance da maioria dos
moradores daquele bairro.

Havia horas em que era um prazer ser homem, pensou Henry no banheiro. Doris tinha seus
encantos. Maria, a garota burra e comprida que viera da Flórida. Xantha, a mais viciada em
drogas, a ponto de deixá-lo um pouco preocupado. E mais Roberta e Paula. Duas com menos de
vinte anos, as outras apenas um pouco mais velhas. Todas iguais e todas diferentes. Passou no
rosto um pouco de loção de barba. Gostaria de ter uma garota fixa, uma garota bem vistosa, que
os homens admirassem e as outras mulheres invejassem, mas isso era perigoso. Chamava a
atenção. Não, assim estava ótimo. Saiu do banheiro, sentindo-se revigorado. Doris ainda estava
deitada na cama, semiconsciente por causa da experiência e da recompensa de duas pílulas,
olhando para ele com um sorriso que lhe pareceu suficientemente respeitoso. A garota tinha
dado os gemidos certos nas horas certas, tinha feito as coisas que ele gostava sem que
precisasse pedir. O silêncio da solidão era uma coisa, mas o silêncio de uma loura burra na
casa era outra coisa, era um tédio mortal. Só para ser agradável ele se curvou e ofereceu um
dedo aos lábios da moça, que ela obedientemente beijou, com os olhos fora de foco.
— Deixe-a descansar um pouco — disse Henry a Billy quando saiu do quarto.
— OK. Eu tenho mesmo que pegar um carregamento hoje à noite — comentou Billy.
— Ah, é? — Tucker tinha esquecido. Ele também era humano.
— O Miúdo ficou devendo mil paus a noite passada. Deixei passar. É a primeira vez, e ele
alegou que tinha errado na conta. Vai pagar mais quinhentos como compensação.
Fez que sim com a cabeça. Era a primeira vez que Miúdo cometia aquele tipo de engano, e
sempre o tratara com o respeito devido, além de cuidar bem do seu pedaço.
— Está bem, mas deixe claro para ele que uma vez é o nosso limite. — Sim, senhor —
concordou Billy, mostrando também o respeito devido.
— E não conte para mais ninguém.
Ali é que estava o problema. Na verdade, ali é que estavam vários problemas, pensou Tucker.
Em primeiro lugar, os traficantes de rua eram gente insignificante, estupidamente ambiciosos,
incapazes de compreender que a honestidade nas transações era essencial para a estabilidade, e
a estabilidade interessava a todos. Entretanto, traficantes de rua eram traficantes de rua —
criminosos, em última análise — e ele jamais conseguiria mudar isso. De vez em quando, um
deles morreria em uma briga por causa de uma puta ou das corridas de cavalos. Alguns eram tão
idiotas que chegavam a consumir as drogas que vendiam. Henry evitava ao máximo fazer
negócios com viciados. De vez em quando, um dos seus revendedores experimentava a sorte,
fingindo estar sem dinheiro apenas para levantar algumas centenas de dólares quando estava
ganhando diariamente muito mais do que isso. Só havia um remédio para esses casos, e Henry o
usara com frequência e brutalidade suficientes para que não fosse necessário repelo por um bom
tempo. Miúdo estava provavelmente falando a verdade. A proposta que fizera de pagar uma
multa pesada era bom sinal, e também uma prova de que não queria perder o fornecedor, que lhe
vinha entregando quantidades cada vez maiores da droga nos últimos meses. Mesmo assim,
seria bom vigiá-lo de perto dali em diante.
O que mais aborrecia Tucker era ter que se preocupar com banalidades como o erro de
contabilidade de Miúdo. Sabia que isso fazia parte do processo de transição de um fornecedor
local, em pequena escala, para um distribuidor regional. Teria que aprender a delegar
autoridade, deixando Billy, por exemplo, assumir maiores responsabilidades. Mas será que ele
estava preparado para isso? Boa pergunta, disse Henry para si próprio, saindo para a rua.
Entregou uma nota de dez ao menino que tomara conta do carro, ainda pensando no assunto.
Billy tinha jeito para manter as meninas na linha. Era um rapaz branco da região do carvão de
Kentucky, sem ficha na polícia. Ambicioso. Com espírito de equipe. Talvez merecesse uma
promoção.

Finalmente, pensou Kelly. Eram duas e quinze quando avistou o Roadrunner. Fazia pelo
menos uma hora que o rapaz se preocupava com a possibilidade de que o carro simplesmente
não aparecesse naquela noite. Ajeitou-se nas sombras, endireitando o corpo, e virou a cabeça
para dar uma boa olhada. Eram Billy e um capanga, e estavam rindo de alguma coisa. O capanga
tropeçou na escada. Talvez tivesse bebido demais. Quando caiu, pequenos retângulos de papel
voaram para todos os lados.
É assim que eles contam o dinheiro que recebem?, pensou Kelly. Muito interessante. Os dois
homens se curvaram para apanhar as notas e Billy deu um tapa no ombro do companheiro, meio
de brincadeira, dizendo algo que Kelly não pôde ouvir por causa da distância.
Àquela hora da noite, os ônibus passavam a cada quarenta e cinco minutos, a vários
quarteirões de distância. As rondas da polícia eram altamente previsíveis. A rotina local
também era previsível. Às oito da noite, o trânsito normal praticamente cessava; às nove e meia,
os moradores abandonavam totalmente as ruas, abrigando-se atrás de portas com três
fechaduras, agradecendo à providência divina por terem sobrevivido mais um dia, já se
preocupando com os perigos do dia seguinte e deixando as ruas livres para o tráfico de drogas.
Como Kelly tivera ocasião de observar, o tráfico durava até mais ou menos as duas da manhã.
Depois de analisar detidamente o assunto, chegara à conclusão de que já sabia tudo que havia
para saber. Havia ainda elementos de acaso a serem considerados, mas não era possível prever
o acaso, embora pudesse preparar-se para ele. Rotas de fuga alternativas, vigilância constante,
armas de reserva eram algumas precauções recomendáveis. Alguma coisa sempre tinha que ser
deixada ao acaso e, por mais que lhe desagradasse, Kelly tinha que aceitar isso como um fato
normal — se é que havia algo de normal na sua missão.
Levantou-se, atravessou a rua e foi até a casa de arenito pardo, com o habitual andar de
bêbado. Experimentou a porta e confirmou que estava destrancada. O espelho de metal atrás da
maçaneta estava torto, observou de passagem. A imagem se fixou em sua mente enquanto seguia
caminho, já planejando a missão da noite seguinte. Ouviu de novo a voz de Billy, uma risada
que vinha da janela do segundo andar, um ruído estranho e positivamente desagradável. Era uma
voz que detestava profundamente e para a qual tinha planos especiais. Pela primeira vez, estava
próximo de um dos homens que tinham assassinado Pam. Um, não; dois, provavelmente. Não
ficou tão emocionado como imaginara. Suspirou. Teria que fazer a coisa direito.
Vejo vocês mais tarde, rapazes, prometeu, no silêncio dos seus pensamentos. Aquele seria um
passo muito importante do plano e não queria estragar tudo por pura precipitação. Afastou-se da
casa e concentrou a atenção nos dois Bobs, a quinhentos metros de distância, claramente
visíveis, graças ao seu tamanho e ao fato de que a rua era perfeitamente reta.
Aquele seria outro teste; tinha que estar muito seguro antes de atacar o alvo principal.
Caminhou em direção à dupla, mas sem atravessar a rua, porque se se encaminhasse diretamente
para eles, poderiam notar e ficar curiosos, senão alarmados. A aproximação tinha que ser feita
da maneira mais discreta possível. Mudando de rumo a todo instante, em vez de mantê-lo
constante, podia usar a cobertura das sombras projetadas pelas casas e pelos carros
estacionados. Era apenas uma cabeça, apenas um pequeno vulto escuro, nada de perigoso.
Quando estava a um quarteirão de distância, atravessou a rua, aproveitando a oportunidade para
olhar em torno. Chegou à calçada oposta. Tinha uns três ou quatro metros de largura, o que lhe
dava espaço suficiente para adernar para um lado e para o outro, com se estivesse tão
embriagado que não pudesse caminhar em linha reta. Kelly parou e levou a garrafa aos lábios
antes de prosseguir.
Pensou em outra demonstração de que era inofensivo e parou de novo para urinar no meio-
fio.
— Merda! — exclamou um dos dois. Big Bob ou Little Bob, não sabia qual, mas não fazia
diferença. O tom de desprezo na voz era suficiente para mostrar que não olhariam para ele pela
segunda vez. A verdade era que Kelly estava precisando mesmo esvaziar a bexiga.
Os dois eram maiores do que ele. Big Bob, o traficante, tinha um metro e noventa. Little Bob,
o ajudante, tinha um metro e noventa e cinco e era musculoso, mas estava criando uma barriga
por causa de muita cerveja ou excesso de comida. Os dois eram adversários respeitáveis,
pensou Kelly, pensando se devia ou não reformular o plano de ação. Seria melhor passar e
deixá-los em paz?
Não.
Mas primeiro tinha que passar por eles. Little Bob estava olhando para o outro lado da rua;
Big Bob estava encostado na parede. Kelly traçou uma linha imaginária entre os dois e contou
três passos antes de se virar para a esquerda bem devagar, para não alertá-los. Ao mesmo
tempo, enfiou a mão direita dentro do casaco novo. Quando tirou a mão, cobriu-a com a
esquerda, envolvendo o cabo da Colt automática. Baixou os olhos, acompanhando a linha
branca que havia pintado no silenciador ao mesmo tempo que levantava a arma. Esticou os
braços, um movimento ao mesmo tempo rápido e suave que apontou a pistola para o primeiro
alvo. O olho humano é atraído para objetos em movimento, principalmente à noite. Big Bob viu
o movimento e percebeu imediatamente que alguma coisa errada estava acontecendo, mas não
sabia bem o quê. Seu instinto de marginal fez a análise correta e exigiu uma reação imediata.
Tarde demais. Uma arma, pensou Big Bob, tentando sacar em vez de esquivar-se, o que poderia
ter retardado sua morte.
Kelly apertou o gatilho duas vezes, a primeira no momento em que o silenciador ocultou o
alvo e a segunda logo depois, assim que o pulso compensou o pequeno recuo do tiro de .22.
Girou o corpo para a direita sem tirar os pés do chão, um movimento que fez a arma descrever
um arco de círculo em um plano horizontal em direção a Little Bob, que, ao ver o chefe começar
a cair, levara a mão ao quadril, tentando sacar sua arma. Não teve tempo para isso. O primeiro
tiro de Kelly não foi bom; acertou mais baixo do que devia, apenas ferindo de leve o traficante.
O segundo, porém, penetrou na têmpora e ricocheteou nas partes mais grossas do crânio,
reduzindo o cérebro a mingau. Little Bob caiu sem emitir um som. Kelly certificou-se de que os
dois estavam bem mortos e foi embora.
Com esses, são seis, pensou, aproximando-se da esquina, o coração ainda aos pulos por
causa do surto de adrenalina. Guardou a arma de volta no lugar, ao lado da faca. Eram duas e
cinquenta e seis quando Kelly iniciou a rotina de fuga.

As coisas não tinham começado bem, pensou o fuzileiro da força de reconhecimento. O


ônibus alugado enguiçara uma vez e o "atalho" usado pelo motorista para compensar o tempo
perdido os levara a ficarem retidos em um enorme engarrafamento. Eram mais de três da manha
quando chegaram à base de Quantico, onde um jipe aguardava para levá-los ao destino final. Os
fuzileiros encontraram um alojamento já parcialmente ocupado por homens adormecidos e
escolheram suas camas para descansar um pouco. Fosse qual fosse a emocionante missão que os
esperava, o início foi decepcionantemente rotineiro.

Ela se chamava Virginia Charles e para ela a noite também não tinha começado bem.
Trabalhava como auxiliar de enfermagem no Hospital St. Agnes, a poucos quilômetros de casa,
e ficara até mais tarde porque a enfermeira do turno seguinte se atrasara e Virginia não gostava
de deixar a sua ala sem atendimento. Embora trabalhasse no mesmo turno há oito anos, não
sabia que o horário do ônibus mudava logo depois da hora em que costumava sair e que depois
de perder um ônibus por poucos minutos teria que esperar uma eternidade pelo seguinte. Agora
estava chegando em casa, duas horas depois da hora em que costumava ir para a cama e tendo
perdido The Tonight Show, programa a que assistia religiosamente nos dias de semana. Tinha
quarenta anos e se divorciara do homem que lhe dera dois filhos — um que estava servindo no
Exército, graças a Deus na Alemanha, e não no Vietnã, e outro ainda no ginásio — e pouco mais
que isso. O emprego, semiespecializado, lhe permitira criar bem os filhos, embora, como todas
as mães, se preocupasse com o seu futuro e suas companhias.
Estava cansada quando saltou do ônibus, perguntando-se por que não usara parte do dinheiro
economizado ao longo dos anos para comprar um carro. Mas um carro exigia seguro, e além
disso tinha um rapaz em casa que contribuiria para aumentar os gastos com combustível, além
de lhe dar mais um motivo para se preocupar. Talvez se decidisse a comprar o carro quando o
segundo filho entrasse para o Exército, que era a única esperança de lhe dar a educação
superior que desejava para ele mas jamais poderia financiar.
Caminhava depressa e com o corpo ereto. Como o bairro tinha mudado! Passara toda a vida
dentro de um raio de três quarteirões e ainda se lembrava do tempo em que as ruas eram alegres
e seguras e os transeuntes amistosos. Nas quartas-feiras de folga, que depois perdera, podia ir a
pé até a igreja metodista de New Zion sem nenhum problema. Eram apenas três quarteirões,
repetiu para si própria. Acendeu um cigarro para permanecer alerta e procurou acalmar-se.
Tinha sido assaltada duas vezes no ano anterior, por viciados em drogas que precisavam de
dinheiro para sustentar o hábito, e a única coisa boa era que pudera usar isso como exemplo
negativo para os filhos, O prejuízo não tinha sido muito grande em termos financeiros: Virginia
Charles costumava levar com ela dinheiro suficiente apenas para a passagem de ônibus e o
jantar na lanchonete do hospital. Era a sua dignidade que tinha sido ferida, mas não tanto quanto
pela transformação que sofrerá o seu bairro. Só mais um quarteirão, pensou, dobrando uma
esquina.
— Moça, me dá um trocado? — disse uma voz atrás dela. Virginia tinha visto a sombra do
homem e continuara em frente, sem virar a cabeça, ignorando-o na esperança de que a cortesia
fosse retribuída, mas esse tipo de cortesia estava ficando cada vez mais raro. Baixou a cabeça e
apertou o passo, dizendo para si mesma que a maioria dos vagabundos não era capaz de atacar
uma mulher pelas costas. Uma mão no seu ombro mostrou que estava errada.
— Passe o dinheiro, dona — disse a voz, sem nenhum rancor, em um tom autoritário que
mostrava quais eram as novas regras da vida urbana.
— Tenho tão pouco que não vai interessar a você, rapaz — disse Virginia Charles,
encolhendo o ombro para poder continuar andando, pois se sentia mais segura em movimento.
Foi então que ouviu um clic.
— Vou cortar você — disse a voz, ainda calma, explicando as verdades da vida àquela
cadela estúpida.
O ruído assustou a moça. Ela parou, murmurou uma prece silenciosa e abriu a pequena bolsa.
Virou-se devagar, ainda mais zangada do que assustada. Poderia ter gritado, e há alguns anos
teria feito alguma diferença. Alguém talvez ouvisse e se aproximasse para ajudá-la. Podia vê-lo
bem agora: era apenas um garoto de dezessete ou dezoito anos de idade. Os olhos estavam
dilatados por algum tipo de droga. Isso, e mais a arrogância desumana do poder. OK, pensou,
pague logo e vá para casa. Tirou da bolsa uma nota de cinco dólares. — Cinco dólares? — O
rapaz fez uma careta. — É muito pouco. Passe o resto do dinheiro para cá ou eu corto você. —
Foi a expressão nos olhos dele que a assustou, fazendo-a perder % compostura pela primeira
vez. Protestou, com voz esganiçada:
— Mas é tudo que eu tenho!
— Não tente me enganar!
Kelly dobrou a esquina, a menos de meio quarteirão do lugar onde deixara o carro. Não
ouvira nada até entrar na rua, mas deparou com duas pessoas, a poucos metros do Volkswagen
enferrujado, e um reflexo fugidio revelou que uma delas estava com uma faca na mão.
Seu primeiro pensamento foi: Que merda! Já refletira muito a respeito daquele tipo de
situação. Não podia salvar o mundo e não estava disposto a tentar. Combater os assaltantes de
rua seria ótimo para um programa de televisão, mas estava atrás de uma presa maior. O que não
previra era um incidente perto do seu carro.
Parou onde estava e começou a pensar furiosamente. Se acontecesse alguma coisa séria
naquele local, a polícia seria chamada, poderia passar horas ali, e Kelly tinha deixado dois
cadáveres a menos de quinhentos metros de distância. Isso não era bom, e não tinha muito tempo
para tomar uma decisão. O rapaz estava segurando a mulher pelo braço, brandindo uma faca, e
estava de costas para ele. A poucos metros, era um alvo fácil, mesmo no escuro, mas a .22 tinha
um grande poder de penetração e havia uma mulher aparentemente inocente atrás dele. Estava
usando algum tipo de uniforme e parecia bem mais velha do que o homem. Devia ter uns
quarenta anos, pensou Kelly, aproximando-se. De repente, as coisas mudaram. O rapaz cravou a
faca no braço da mulher e o sangue jorrou.
A moça deu um grito e tentou desvencilhar-se, deixando cair no chão a nota de cinco dólares.
O rapaz segurou-a pelo pescoço com a outra mão e Virginia viu em seus olhos que estava
escolhendo um local para o próximo golpe. Então pressentiu um movimento, um homem, talvez,
e tentou gritar por socorro. Conseguiu apenas chamar a atenção do assaltante. Ele viu que os
olhos da mulher estavam acompanhando alguma coisa... o quê?
Virou a cabeça e se deparou com um bêbado de rua a três metros de distância. O que tinha
sido uma reação de susto transformou-se em um sorriso preguiçoso.
Que merda! As coisas não estavam indo nada bem. Kelly manteve a cabeça baixa e ficou
olhando para o rapaz, sentindo que os acontecimentos fugiram ao seu controle.
— Será que tem dinheiro no bolso, vovô? — perguntou o rapaz, intoxicado com o poder,
dando um passo em direção à nova vítima.
Kelly não esperava aquela reação. Levou a mão à pistola, mas o silenciador ficou preso no
cinto e o rapaz interpretou corretamente o movimento. Deu mais um passo e levantou a mão que
segurava a faca. Agora Kelly não tinha mais tempo para sacar a arma; recuou e assumiu uma
postura defensiva.
Apesar de toda a agressividade, o assaltante não era muito habilidoso com a faca. Ficou
surpreso quando o vagabundo se esquivou facilmente da primeira estocada e lhe desferiu um
soco no plexo solar que o deixou sem fôlego, embora não totalmente imobilizado. Dobrou-se em
dois, enquanto desferia novos golpes às cegas com a faca. Kelly segurou-lhe a mão e torceu o
braço para trás com toda a força. Um ruído seco mostrou que o ombro do rapaz tinha sido
deslocado e Kelly continuou o movimento, derrubando-o no chão.
— É melhor a senhora ir para casa — recomendou a Virginia Charles, virando o rosto e
rezando para que a mulher não tivesse tido tempo para vê-lo muito bem. Era pouco provável
que pudesse reconhecê-lo, pensou, pois agira com muita rapidez.
A auxiliar de enfermagem abaixou-se para recuperar a nota de cinco dólares e foi embora
sem uma palavra. Kelly observou-a de soslaio, vendo-a segurar o ombro esquerdo
ensanguentado com a mão direita. Ainda bem que parecia não precisar de ajuda para chegar em
casa. Certamente chamaria alguém que a ajudasse a cuidar do ferimento. Gostaria de poder
acompanhá-la, mas os riscos estavam se acumulando muito depressa. O frustrado assaltante
começou a gemer, à medida que a dor do ombro deslocado penetrava na névoa protetora dos
narcóticos. E ele tinha visto seu rosto de perto.
Que merda, repetiu Kelly para si próprio. A verdade era que o rapaz esfaqueara a mulher e
tentara fazer o mesmo com ele. Obviamente, não era a primeira vez. Escolhera a hora errada
para assaltar aquela mulher indefesa, e erros como aquele tinham um preço. Kelly arrancou a
faca da mão do rapaz e cravou-a em sua nuca, deixando-a ali. Um minuto depois, estava
arrancando com o carro.
Com este são sete, pensou, dobrando para leste.
Que merda!
19

OS LIMITES DA PIEDADE

Estava se tornando mais rotineiro do que o café com rosquinhas que tomava de manhã, pensou
o tenente Ryan. Dois traficantes abatidos com tiros de .22 na cabeça, mas desta vez não tinham
sido roubados. Não tinham sido encontrados cartuchos nem sinais evidentes de luta. Um dos
mortos estava com a mão na arma, mas não chegara a sacá-la. Era estranho. Pressentira o perigo
e reagira a ele, embora de forma ineficaz. Logo depois, chegara a notícia de outro assassinato a
apenas alguns quarteirões de distância, e ele e Douglas tinham ido investigar, deixando detetives
menos graduados na cena do primeiro crime. De acordo com a descrição preliminar, esse
segundo crime parecia ser mais interessante.
— Epa! — exclamou Douglas, saltando primeiro do carro. Não era sempre que se via uma
faca espetada na nuca de um homem, projetando-se para cima como um mourão de cerca. —
Eles não estavam brincando!
A causa mais comum de assassinato naquele bairro, ou melhor, em toda a cidade, eram as
brigas familiares. As pessoas podiam matar parentes ou amigos íntimos pelos motivos mais
fúteis. No Dia de Ação de Graças do ano anterior, um homem assassinara o filho por causa de
uma coxa de peru. A história "favorita" de Ryan era um homicídio provocado por uma casquinha
de sir— não tanto como piada quanto pelo sentido simbólico. Em todos esses casos, os fatores
agravantes eram principalmente o álcool e uma vida infeliz, que transformavam pequenas
disputas em questões de vida ou morte. Eu não tinha intenção era a frase mais comum depois do
crime, seguida por alguma variação de por que ele não cedeu pelo menos um pouco? A
estupidez dessas tragédias era como um ácido corroendo a alma de Ryan. O pior era que os
crimes eram todos parecidos. A vida humana não devia terminar como variações de um único
tema. Era preciosa demais para isso, uma lição que aprendera nas florestas da Normandia e de
Bastogne, quando era paraquedista da 101ª Aerotransportada. O assassino típico alegava que
cometera o crime em um acesso de loucura e frequentemente confessava de imediato,
lamentando a perda do amigo ou parente, de modo que duas vidas eram destruídas, em lugar de
apenas uma. Esses eram os crimes de paixão e de irreflexão. Mas não o que estavam
investigando no momento.
— O que houve com o braço dele? — perguntou Douglas ao médico-legista. Além das
marcas de injeção, o braço parecia fora do lugar.
— O ombro da vítima foi deslocado com extrema violência — afirmou o médico, depois de
um rápido exame. — O pulso foi agarrado com tanta força que está com marcas roxas. Alguém
segurou o braço com as duas mãos e quase o arrancou fora.
— Golpe de caratê? — quis saber Douglas.
— Algo parecido. Isso deve tê-lo deixado indefeso. Você já sabe a causa da morte.
— Tenente, é melhor vir aqui — chamou um sargento de uniforme. — Esta é Virginia Charles.
Mora a um quarteirão daqui. Ela testemunhou o crime.
— Como está, Sra. Charles? — perguntou Ryan. Um paramédico examinava o curativo que a
mulher colocara no próprio braço, e o filho, um aluno do último ano da Dunbar High School,
estava ao lado dela, olhando para o corpo no chão sem nenhuma simpatia. Quatro minutos
depois, Ryan sabia muito mais sobre o crime.
— A senhora está dizendo que foi um mendigo?
— Um bêbado de rua. Ali está a garrafa que ele deixou cair — apontou.
Douglas apanhou-a com o máximo cuidado.
— Pode descrevê-lo? — perguntou.

A rotina foi tão normal que poderiam estar em qualquer base dos fuzileiros, de Lejeune a
Okinawa. Uma série de exercícios físicos, seguida por uma corrida cadenciada, puxada por um
sargento. O mais divertido foi quando cruzaram com formações de novos segundos-tenentes que
estavam fazendo o curso básico para oficiais ou exemplos ainda mais patéticos de futuros
oficiais cursando a escola de verão em Quantico. Um percurso de oito quilômetros, passando
pelo campo de tiro ao alvo e outras instalações de ensino, todas batizadas com o nome de
fuzileiros mortos, aproximando-se da academia do FBI, mas depois tomando o rumo da floresta,
em direção ao local de treinamento. A rotina matutina servia apenas para recordar o fato de que
eram fuzileiros e a extensão da corrida os caracterizava como fuzileiros da força de
reconhecimento, de quem se esperava o preparo físico de um atleta olímpico. Ficaram surpresos
ao ver que eram esperados por um general. Para não falar de uma caixa de areia e um conjunto
de balanços.
— Bem-vindos a Quantico, fuzileiros — disse Marty Young, depois que eles recuperaram o
fôlego e receberam permissão para ficar à vontade. O general estava acompanhado por dois
oficiais da Marinha, em impecáveis uniformes brancos, e dois civis. Os fuzileiros se
entreolharam e a missão de repente pareceu se tornar muito interessante.
— É como se eu estivesse vendo as fotografias — observou Cas em voz baixa, olhando em
torno. — Para que o parquinho?
— A ideia foi minha — afirmou Greer. — O outro lado tem satélites. As datas e horários de
passagem para as próximas seis semanas estão afixadas no edifício A. Não sabemos qual é a
resolução das câmeras, de modo que vou supor que sejam tão boas quanto as nossas, OK? Você
mostra o que eles querem ver ou permite que deduzam com facilidade. Todo lugar inocente
dispõe de um estacionamento.
A rotina já tinha sido estabelecida. Todo dia, os recém-chegados redistribuiriam os carros ao
acaso. Por volta das dez da manhã, tirariam os bonecos dos carros e os levariam para o
parquinho. Às duas ou três da tarde, os carros e os bonecos mudariam de posição. Suspeitavam
que o ritual seria incorporado ao folclore do lugar.
— Depois que a missão terminar, ficaremos com um parquinho de verdade para as crianças?
— perguntou Ritter, e logo respondeu à própria pergunta. — Ora, por que não? Bom trabalho,
James.
— Obrigado, Bob.
— Parece menor deste lado — observou o almirante Maxwell.
— As dimensões são as mesmas que as do campo real, dentro de uma tolerância de dez
centímetros. Nós trapaceamos — afirmou Ritter. — Conseguimos o manual de construção
soviético. Cortesia do general Young.
— Não há vidros nas janelas do edifício C — comentou Casimir.
— Observe as fotos, Cas — sugeriu Greer. — Eles estão com problemas para conseguir
vidro para janelas. Esse edifício tem apenas venezianas, aqui e ali. O outro — apontou para o
edifício B — tem barras nas janelas. Elas foram feitas de madeira, para que possam ser
removidas mais tarde. O interior não é uma cópia fiel, mas também não foi totalmente inventado.
Nós nos baseamos nas descrições de alguns ex-prisioneiros.
Os fuzileiros já estavam fazendo um reconhecimento do local. Conheciam boa parte do plano
e estavam pensando em como usar suas aulas de combate naquele parquinho simulado, onde
crianças de mentira observariam as sessões de treinamento com seus olhos azuis de bonecos.
Granadas M-79 para neutralizar os sentinelas das torres; granadas de fósforo branco
arremessadas pelas janelas dos alojamentos. Em seguida, o fogo dos helicópteros... as
"mulheres" e "crianças" assistiriam aos ensaios, mas não contariam nada a ninguém.
O lugar tinha sido escolhido por se parecer com outro. Não era preciso contar isso aos
fuzileiros; tinha que ser assim... e uns poucos olhos se demoraram em uma colina a menos de um
quilômetro de distância. Dali de cima, seria possível observar toda a região. Depois do
discurso de boas-vindas, os homens se dividiram em unidades predeterminadas para receber
seus armamentos. Em lugar dos rifles M16A1, usariam os CAR-15, mais curtos, mais indicados
para combates corpo a corpo. Os granadeiros estariam equipados com lançadores M-79, cujas
alças de mira tinham sido pintadas com tinta à base de trítio para brilharem no escuro; os
talabartes estavam carregados de granadas de treinamento, porque os exercícios com armas
seriam iniciados imediatamente. Começariam à luz do dia, para se familiarizarem com o local,
mas logo depois todos os ensaios seriam realizados à noite, fato que o general se esquecera de
mencionar. Mas não era necessário; missões daquele tipo só eram executadas depois que o sol
se punha. Os fuzileiros marcharam até o campo de tiro ao alvo mais próximo. Seis janelas já
tinham sido montadas. Os granadeiros se entreolharam e dispararam a primeira salva. Um deles,
lamentavelmente, errou. Os outros cinco começaram a zombar dele, depois de se certificarem de
que os rolos de fumaça branca das suas granadas de treinamento tinham aparecido atrás das
janelas.
— Esperem aí, eu ainda estou me aquecendo — disse o cabo, em tom defensivo, antes de
acertar o alvo cinco vezes em quarenta segundos. Estava um pouco lento, depois de passar a
noite praticamente em claro.
— O cara tinha que ser muito forte para fazer isso, não é? — perguntou Ryan.
— Não é nenhum Wally Cox — respondeu o legista. — A faca seccionou a medula. A morte
foi instantânea.
— Antes disso, já tinha aleijado o sujeito. O ombro ficou tão arrebentado quanto parece? —
Douglas perguntou, afastando-se para o fotógrafo terminar seu trabalho.
— Pior, provavelmente. Vou dar uma olhada, mas eu aposto com você que toda a estrutura
está destruída. Você não conserta uma lesão como essa, não completamente. A carreira dele de
arremessador acabou antes mesmo da faca.
Branco, quarenta ou mais, cabelo preto comprido, baixo, sujo. Ryan olhou suas anotações.
"Vá para casa, senhora", ele tinha dito a Virginia Charles.
Senhora.
— A vítima ainda estava viva quando ela foi embora — Douglas disse a seu tenente. —
Então ele deve ter tirado a faca da vítima e devolveu. Em, na semana passada vimos quatro
assassinatos muito expert e seis vítimas muito mortas.
— Quatro métodos diferentes. Dois caras amarrados, roubados e executados, revólver .22,
nenhum sinal de luta. Um cara com um tiro de escopeta na barriga, também roubado, sem chance
de se defender. Dois ontem à noite, só baleados, provavelmente uma .22 novamente, mas não
roubou, não amarrou, e foram alertados antes de serem baleados. Eram todos traficantes. Mas
esse cara é só um assaltante de rua. Não é o suficiente, Tom.
Mas o Tenente tinha começado a pensar nisso.
— Já identificamos este?
Respondeu o Sargento uniformizado.
— Viciado. Tem ficha criminal, seis detenções por roubo, Deus sabe o que mais.
— Não encaixa —, disse Ryan. — Não encaixa com nada, e se estamos falando de um cara
muito inteligente, por que deixar alguém vê-lo, por que deixá-la ir embora, por que falar com
ela — diabos, por que pegar esse cara? Que padrão se encaixa aqui?
Não havia nenhum padrão. Claro, os traficantes tinham sido abatidos com uma .22, mas era o
calibre mais comum na rua, e enquanto uma dupla tinha sido roubada, a outra não. A segunda
dupla nem foi atingida com a mesma precisão mortal, embora cada um tivesse dois ferimentos
na cabeça. Com o outro traficante assassinado e roubado tinha sido usada uma escopeta.
— Olha, nós temos a arma do crime e temos a garrafa de vinho, e de um ou de ambos vamos
obter impressões. Quem quer que seja esse cara, com certeza não foi muito cuidadoso.
— Um mendigo com senso de Justiça, Em? — disse Douglas. — Quem derrubou esse punk...
— Sim, sim, eu sei. Ele não é Wally Cox.
Mas quem é e o que é ele?
Graças a Deus pelas luvas, pensou Kelly, olhando para os hematomas na mão direita. Ele se
deixou tomar pela ira, e isso não foi inteligente! Olhando para trás, revivendo o incidente, ele
percebeu que tinha sido uma situação difícil. Se ele deixasse a mulher morrer ou acabar
seriamente ferida, simplesmente indo embora, em primeiro lugar nunca poderia perdoar a
mesmo; em segundo, se alguém viu o carro, ele seria suspeito de assassinato. Esse pensamento
provocou um grunhido de desgosto. Agora, ele era um suspeito de assassinato. Bem, alguém
teria de ser. Na volta para casa, ele se olhou no espelho, com peruca e tudo. O que aquela
mulher tinha visto não era John Kelly, não com um rosto sombreado por uma barba pesada,
manchada de sujeira, sob uma peruca longa e imunda. Sua postura vergada o fazia parecer
várias polegadas mais baixo do que era. E a luz na rua não era boa. E ela estava mais
interessada em ficar longe do que outra coisa. Mesmo assim. De alguma forma, ele deixou sua
garrafa de vinho para trás. Lembrou-se de deixá-la cair para desviar a faca, e então, no calor do
momento, ele não a recuperou. Idiota! Kelly se enfureceu com ele mesmo.
O que a polícia sabe? A descrição física não seria boa. Ele tinha usado luvas cirúrgicas e
embora permitissem que machucasse a mão, não tinham se rasgado e ele não sangrou. Mais
importante de tudo, ele não tocou a garrafa sem as luvas. Tinha decidido desde o início ter
cuidado com isso. A polícia saberia que um vagabundo de rua tinha matado aquele punk, mas
havia muitos vagabundos de rua, e ele só precisava de mais uma noite. Teria que alterar seu
padrão operacional. E a missão de hoje seria mais perigosa, mas a informação sobre Billy era
boa demais para deixar passar, e o pequeno bastardo pode ser inteligente o suficiente para
alterar seus próprios padrões. E se ele usasse casas diferentes para contar a féria da noite ou
usasse uma casa apenas por alguns dias? Se fosse assim, adiar a tarefa por uma noite ou duas
poderia tornar inútil todo o trabalho de reconhecimento, obrigando-o a começar tudo de novo
com um disfarce diferente... se conseguisse imaginar um outro disfarce tão eficiente quanto
aquele. Lembrou-se de que para chegar àquele ponto tivera que matar seis pessoas — a sétima
fora um acidente e não tinha nenhuma importância... exceto talvez para aquela mulher, fosse ela
quem fosse. Respirou fundo. Se tivesse assistido impassível ao assassinato da mulher, como
poderia olhar-se no espelho? Teve que repetir para si próprio que agira da melhor forma
possível, dentro das circunstâncias. Nem sempre as coisas correm de acordo com o previsto. O
risco aumentara, mas sua preocupação era com o sucesso da missão, e não com o risco pessoal.
Era hora de parar de pensar e começar a agir. Outras responsabilidades o aguardavam. Levantou
o fone e discou um número.
— Greer.
— Clark — respondeu Kelly. Pelo menos, ainda achava graça no fato de estar usando um
nome falso.
— Está atrasado — declarou o almirante. A ligação devia ter sido feita antes do almoço, e a
reprimenda deixou Kelly um pouco sem graça. — Não tem importância. Acabo de chegar.
Vamos precisar de você. Já começou.
Tão depressa?, pensou Kelly. Que droga!
— Sim, senhor.
— Espero que esteja em boa forma. Dutch me garantiu que está — disse James Greer, em tom
mais amistoso.
— Acho que sim, senhor.
— Conhece Quantico?
— Não, senhor.
— Leve seu barco. Há uma marina lá e teremos um lugar para conversar. Domingo de manhã,
às dez em ponto. Estaremos esperando, Sr. Clark.
— Sim, senhor — disse Kelly, antes que o interlocutor desligasse. Domingo de manhã. Mais
cedo do que esperava. Isso tornava a outra missão ainda mais urgente. Desde quando os órgãos
do governo trabalhavam com tanta eficiência? Fosse qual fosse a razão, afetava Kelly
diretamente.

— Não gosto nem um pouco, mas é assim que trabalhamos — afirmou Grishanov.
— Vocês dependem tanto assim do radar de terra?
— Robin, estão falando até em deixar o disparo dos mísseis a cargo do oficial que controla o
radar, em sua cabine no solo — disse o russo, em um tom de voz que deixava evidente sua
indignação.
— Isso é um absurdo! — exclamou Zacharias. — Vocês têm que confiar em seus pilotos!
Preciso levar este homem para conversar com o estado-maior, pensou Grishanov. Eles não
me dão ouvidos. Talvez o escutem. Seus conterrâneos tinham muito respeito pelas ideias e
práticas dos americanos, embora planejassem combatê-los e derrotá-los.
— É uma combinação de fatores. Os novos regimentos de caças vão trabalhar ao longo da
fronteira com a China, e...
— Como foi que disse?
— Você não sabia? Já lutamos com os chineses três vezes este ano, no rio Amur e mais para
oeste.
— Essa não! — Era incrível demais para o americano acreditar. — Vocês são aliados!
Grishanov fez um muxoxo.
— Aliados? Amigos? Para vocês, sim, talvez pareça que todos os socialistas são iguais. Meu
amigo, há séculos que combatemos os chineses. Não conhece história? Durante muito tempo
apoiamos Chiang contra Mao... chegamos a treinar seu exército. Mao nos odeia. Fizemos a
tolice de lhe fornecer reatores nucleares e agora eles têm armas atômicas, e você acha que os
mísseis chineses podem chegar ao meu país ou ao seu? Eles dispõem de bombardeiros TU-16;
vocês os chamam de Badgers, não é? Um Badger tem autonomia de voo suficiente para chegar
aos Estados Unidos?
— Não, claro que não.
— Pois não teriam dificuldade para chegar a Moscou, carregando bombas nucleares de meio
megaton, e é por isso que os regimentos de MiG-25 têm que patrulhar a fronteira chinesa. Robin,
já travamos batalhas de verdade com aqueles ratos amarelos, envolvendo divisões inteiras! No
inverno passado, eles tentaram tomar uma ilha que nos pertence, mas foram contidos. Antes
disso, porém, mataram um batalhão de guardas de fronteira e mutilaram os cadáveres... por que
fazem isso, Robin, por causa do cabelo ruivo ou das sardas? — perguntou Grishanov em tom
amargo, repetindo palavra por palavra um violento editorial do Estrela Vermelha.
Era irônico, pensou o russo. Estava falando a verdade e era mais difícil convencer Zacharias
do que se estivesse mentindo. — Não somos aliados. Tivemos até que parar de mandar armas
para cá de trem... os chineses roubam as remessas!
— Para usá-las contra vocês?
— Contra quem, então? Os indianos? O Tibete? Robin, eles são diferentes de nós. Não veem
o mundo da mesma forma. São como os nazistas que meu pai combateu, julgam-se melhores que
os outros homens. Consideram-se... como é que se diz?
— Uma raça superior? — sugeriu o americano.
— Isso mesmo. Eles acreditam nisso. Para eles, não passamos de animais, animais úteis, sim,
mas mesmo assim nos odeiam e querem tomar as nossas coisas. Estão de olho no nosso
petróleo, na nossa madeira, nas nossas terras.
— Como é que nunca me contaram sobre isso? — perguntou Zacharias, desconfiado, —
Conosco acontece o mesmo — argumentou o russo. — Quando a França se retirou da OTAN,
quando exigiu que as bases americanas em solo francês fossem desativadas, pensa que ficamos
sabendo? Eu estava na Alemanha na época, e ninguém se deu ao trabalho de me contar o que
estava acontecendo. Robin, a política interna de seu país é um mistério tão grande para você
quanto a política do meu é para mim. Pode ser tudo muito confuso, mas eu lhe asseguro que meu
novo regimento de MiG vai trabalhar entre Moscou e a China. Posso lhe mostrar no mapa.
Zacharias apoiou-se na parede, fazendo uma careta por causa da dor nas costas. Era difícil de
acreditar.
— Ainda dói muito, Robin?
— Dói.
— Tome, meu amigo. — Grishanov ofereceu-lhe o frasco, que desta vez foi aceito sem
resistência. Zacharias tomou um bom trago antes de devolvê-la.
— Está satisfeito com esse novo caça?
— O MiG-25? É um verdadeiro foguete! — exclamou Grishanov, com entusiasmo, —
Provavelmente é ainda mais difícil de manobrar que o Thud de vocês, mas em linha reta não tem
competidor. Quatro mísseis, nenhuma metralhadora. O radar é o mais potente jamais instalado
num caça, e ainda por cima imune a interferências.
— Mas não tem uma autonomia muito reduzida? — quis saber Zacharias.
— Menor que quarenta quilômetros — concordou o russo. — Tivemos que sacrificar a
autonomia para aumentar a confiabilidade. Tentamos conseguir as duas coisas ao mesmo tempo,
mas fracassamos.
— Estamos com o mesmo problema — reconheceu o americano, com uma careta.
— Sabe de uma coisa? Acho pouco provável que haja uma guerra entre nossos países. Acho
mesmo. Não temos muita coisa que interesse a vocês. O que nós temos, recursos naturais,
espaço, terras, vocês também têm. Mas os chineses precisam dessas coisas, e estamos logo do
outro lado da fronteira. Nós lhes demos armas que um dia serão usadas contra nós, e eles são
tantos... Gente pequena e malvada, como esses daqui, só que muito mais numerosos.
— O que vocês pretendem fazer a respeito?
Grishanov deu de ombros.
— De minha parte, tenho um regimento para comandar. Pretendo treinar meus homens para
defender o país de um ataque nuclear por parte da China. Só não sei por onde começar.
— Não é fácil. Você vai precisar de tempo e espaço para ensaiar e também de um inimigo
simulado.
— Temos os nossos bombardeiros, mas nem se comparam aos de vocês. Sabe de uma coisa?
Mesmo sem resistência, duvido que pudéssemos colocar mais de vinte bombardeiros sobre os
Estados Unidos. As bases deles ficam a dois mil quilômetros de distância da sede do meu
regimento. Sabe o que isso significa? Não teremos com quem treinar.
— Está falando da equipe vermelha?
— Para nós, ela é a equipe azul, Robin. Espero que não leve a mal. — Grishanov deu uma
risada e depois voltou a falar sério. — Mas é isso mesmo. Será tudo puramente teórico, ou
alguns caças farão o papel de bombardeiros, mas a autonomia deles é muito limitada para um
treinamento decente, — Está sendo franco comigo?
— Robin, não vou lhe pedir que confie em mim. Seria pedir demais. Você sabe disso e eu
também. Mas pergunte a si próprio: acha realmente que o seu país vai entrar em guerra com o
meu?
— Acho que não — admitiu Zacharias.
— Já lhe perguntei a respeito dos jogos de guerra? Claro que são exercícios teóricos
fascinantes e estou muito interessado neles, mas já lhe perguntei a respeito? — O tom de voz do
russo era o de um professor paciente.
— Não, você não perguntou, Kolya.
— Robin, não estou preocupado com os B-52 de vocês. O que me preocupa são os
bombardeiros chineses. É para essa guerra que o meu país está se preparando. — Grishanov
olhou para o chão de concreto, deu uma tragada no cigarro e prosseguiu. — Lembro-me de
quando tinha onze anos. Os alemães estavam a cem quilômetros de Moscou. Meu pai tinha se
juntado a um regimento de transporte, junto com outros professores universitários. Metade deles
jamais voltou para casa. Minha mãe e eu tivemos que sair da cidade e nos refugiar em uma
aldeia a leste de Moscou cujo nome não guardei... era tudo tão confuso, fazia tanto frio...
enquanto nos preocupávamos com meu pai, um professor de história, ao volante de um
caminhão. Perdemos vinte milhões de homens para os alemães, Robin. Vinte milhões. Pessoas
que eu conhecia. Pais de amigos... o pai da minha esposa morreu na guerra. Dois dos meus tios,
também. Depois de passar o que passei com minha mãe, prometi a mim mesmo que algum dia
ajudaria a defender meu país, e por isso me tornei piloto de caça. Não pretendo invadir. Não
pretendo atacar. Está me entendendo, Robin? Minha missão é proteger meu país para que outros
meninos não tenham que sair de casa no meio do inverno. Alguns dos meus colegas de escola
morreram de frio. É por isso que defendo meu país. Os alemães estavam atrás das nossas
riquezas, e agora são os chineses. — Apontou para a porta da cela. — Gente como... como eles.
Mesmo antes que Zacharias começasse a falar, Kolya teve certeza de que ele estava fisgado.
Tinham sido necessários meses de trabalho para chegar àquele momento, pensou Grishanov. Era
como seduzir uma virgem, só que muito mais triste. Aquele homem nunca mais tornaria a ver o
seu país. Os vietnamitas pretendiam matar todos os prisioneiros quando não fossem mais úteis.
Seria um enorme desperdício de talentos, e a antipatia que sentia pelos supostos aliados era
genuína — não precisava mais fingir. Desde o momento em que pusera os pés em Hanói,
testemunhara gestos de superioridade arrogante, de incrível crueldade... e de estupidez
incompreensível. Conseguira mais com palavras bondosas e menos de um litro de vodca do que
eles e seus torturadores em anos de brutalidade cega. Em vez de causar sofrimento, tratara de
compartilhá-lo. Em vez de humilhar o prisioneiro, tratara-o com dignidade, respeitara suas
qualidades, mitigara seu sofrimento, protegera-o dos algozes.
Havia um lado negativo, porém. Para conseguir o que queria, tivera que abrir a alma, remexer
nos pesadelos da infância, reexaminar as razões que o tinham levado a escolher a profissão que
amava. O que só era possível, só era concebível, porque sabia que o homem a seu lado estava
condenado a uma morte anônima, solitária — para a sua família e o seu país, já estava morto —
e seria sepultado em segredo. Aquele homem não se parecia com os nazistas. Era um inimigo,
mas um inimigo decente, que provavelmente fizera o possível para poupar a população civil,
porque ele também tinha uma família. Não se deixava seduzir pelas teorias de superioridade
racial; nem mesmo demonstrava ódio pelos norte-vietnamitas, e isso era surpreendente, porque
ele próprio, Grishanov, estava começando a odiá-los. Zacharias não merecia morrer, pensou
Grishanov, reconhecendo a maior ironia de todas.
Kolya Grishanov e Robin Zacharias tinham se tornado bons amigos.

— O que acha disso? — perguntou Douglas, sentando-se na beira da mesa de Ryan. A garrafa
de vinho estava em um saco plástico transparente, com a superfície coberta por uma fina poeira
amarela.
— Nenhuma impressão digital? — perguntou Emmet, surpreso.
— Nenhuma, Em. Zero. Nada.
Em seguida, mostrou a faca, um modelo simples de mola, também num saco plástico. — Estou
vendo alguma coisa.
— Uma impressão parcial, produzida pela vítima. Nada mais que a gente possa usar. Ou ele
se esfaqueou na nuca ou o criminoso estava usando luvas.
Estava fazendo muito calor para alguém usar luvas. Emmet Ryan se recostou na cadeira e
olhou para as provas na mesa. Depois, levantou os olhos para Tom Douglas.
— OK, Tom, prossiga.
— Tivemos quatro crimes diferentes, com um total de seis vítimas. Não foi encontrado
nenhum indício importante. Cinco das vítimas eram traficantes de drogas. Os modos de
operação foram todos diferentes, mas os crimes foram cometidos mais ou menos à mesma hora
da noite e dentro de um raio de cinco quarteirões.
— Um trabalho artesanal — concordou o tenente Ryan. Fechou os olhos, transportando-se
mentalmente para as diferentes cenas dos crimes e tentando correlacionar os dados. Roubar, não
roubar, mudar o modus operandi. Mas no último caso havia uma testemunha. É melhor a
senhora ir para casa. Por que tinha sido tão educado? Ryan sacudiu a cabeça. — A vida real
não é como um livro de Agatha Christie, Tom.
— O cara de hoje, Em. Fale sobre o método que nosso amigo usou para despachá-lo.
— Há muito tempo não vejo nada parecido. Ele deve ser danado de forte. Eu me lembro de
um caso semelhante... foi em 58 ou 59. — Ryan fez uma pausa, tentando recordar os detalhes. —
Um bombeiro hidráulico, se não me engano. Um tipo grandalhão que pegou a mulher na cama
com outro. Deixou o cara ir embora, pegou um cinzel, segurou-a pelos cabelos e...
— O cara tem que estar fora de si para fazer um coisa dessas, não acha? — perguntou
Douglas. — Simplesmente cortar a garganta tem o mesmo resultado com muito menos esforço.
— Em compensação, faz uma sujeira danada. Para não falar do barulho... — Ryan
interrompeu o que estava dizendo e começou a pensar. Até aquele momento, não lhe ocorrera
que as pessoas que tinham a garganta cortada faziam um bocado de barulho. Quando a traqueia
era seccionada, isso produzia um horrível gorgolejo; quando não era, a vítima berrava até
morrer. Além disso, o sangue jorrava aos borbotões, sujando as mãos e as roupas do assassino.
Se você quisesse acabar com alguém rapidamente, como quem desliga um interruptor, fosse
forte o bastante e a vítima estivesse indefesa, a base do crânio, o lugar onde a medula se
encontra com o cérebro, seria uma escolha muito melhor, levando a uma morte rápida,
silenciosa e relativamente limpa.
— Os dois traficantes estavam a menos de dois quarteirões de distância e a hora da morte foi
praticamente a mesma. Nosso amigo acaba com eles, segue em frente, dobra uma esquina e dá
com a Sra. Charles sendo assaltada.
O tenente Ryan sacudiu a cabeça.
— Por que não ignorou, simplesmente? Bastaria atravessar a rua. Por que se envolveria? É
um assassino de bom coração? — perguntou Ryan. Era ali que a teoria falhava. — E se é o
mesmo cara que está liquidando os traficantes, por que faz isso? A não ser pelos dois da noite
passada, o motivo parecia ser o roubo. Talvez desta vez alguma coisa o tenha assustado antes
que pudesse recolher o dinheiro e as drogas. Um carro passando na rua, um barulho qualquer,
quem sabe? Se estamos lidando com um assaltante, o caso não tem nada a ver com a Sra.
Charles e seu amiguinho. Tom, tudo que temos não passa de especulação.
— Quatro crimes diferentes, nenhum indício, um sujeito de luvas... um bêbado de rua usando
luvas!
— Não faz sentido, Tom.
— Mesmo assim, vou pedir para a delegacia começar a interrogar todos os bêbados das
vizinhanças.
Ryan fez que sim com a cabeça. Mal não faria.

Era meia-noite quando Kelly saiu do apartamento. Estava tudo agradavelmente quieto naquela
noite do meio da semana. O velho conjunto residencial era habitado por pessoas que cuidavam
da própria vida. Kelly não tivera oportunidade de apertar nenhuma mão além da do
administrador. Seu contato com os vizinhos se limitara a alguns cumprimentos de cabeça, nada
mais. Não havia crianças no conjunto, apenas pessoas de meia-idade, casais na maioria dos
casos, com um ou outro viúvo ou viúva. Quase todos trabalhavam em escritórios; a maioria
esperava o ônibus para a cidade toda manhã, assistia à televisão à noite e ia dormir entre dez e
onze da noite. Kelly deixou discretamente o prédio, pegou o VW e desceu o Loch Raven
Boulevard, passando por igrejas e outros conjuntos residenciais, passando pelo estádio da
cidade, deixando um bairro de classe média para entrar num bairro de classe pobre e depois em
um bairro decrépito, passando por edifícios de escritórios às escuras, rumo ao seu local de
trabalho de todas as noites. Aquela noite, porém, seria diferente.
Aquele noite executaria a primeira missão de verdade. Seria arriscado, mas todo aquele
trabalho era arriscado, pensou Kelly, flexionando os dedos no volante de plástico. Não gostava
das luvas de cirurgião. A borracha esquentava suas mãos, e embora o suor não fizesse as mãos
escorregarem no volante, a sensação era muito desagradável. Entretanto, não tinha alternativa, e
se lembrou de muitas coisas que detestava no Vietnã, como as sanguessugas, uma memória que o
deixou arrepiado. Elas eram ainda piores do que os ratos. Pelo menos, os ratos não chupavam
sangue.
Kelly circulou sem pressa pelo bairro, fazendo um reconhecimento preliminar. Valeu a pena.
Viu uma dupla de policiais conversando com um vagabundo, um deles bem próximo do homem,
o outro dois passos atrás, aparentemente distraído, mas a distância entre os guardas era
sintomática. Um estava dando cobertura ao outro. Eles encaravam o bêbado como um perigo em
potencial.
Estão à sua procura, Johnnie-boy, disse para si mesmo, fazendo girar o volante e entrando
em outra rua.
Mas os guardas não podiam mudar toda a sua rotina de trabalho, podiam? Localizar e
interrogar os bêbados seria uma tarefa a mais nas próximas noites. Outras missões tinham maior
prioridade: comparecer ao local de assaltos a lojas de bebidas, apartar brigas de família, até
mesmo multar os maus motoristas. Não, importunar os bêbados de rua seria apenas mais um
encargo para aqueles homens, algo que teriam que encaixar no meio de suas rondas, e Kelly já
conhecia essas rondas de cor. O risco adicional era portanto previsível. Provavelmente já
esgotara sua cota de má sorte. Depois daquela noite, mudaria de tática. Ainda não sabia como
seria a nova tática, mas se tudo corresse bem, em breve estaria de posse de informações
importantes para formulá-la.
Obrigado, disse ao destino, quando chegou a um quarteirão de distância da casa de arenito
pardo. O Roadrunner estava bem ali, e ainda era cedo, em noite de cobrança; a garota
certamente ainda estaria trabalhando. Passou pelo carro e seguiu em frente, continuando até o
quarteirão seguinte antes de dobrar à direita, seguir mais um bloco e dobrar novamente à direita.
Avistou uma radiopatrulha e consultou o relógio do carro. Estava no horário normal, com uma
margem de cinco minutos, e era um carro isolado. Não haveria outra ronda nas próximas duas
horas, pensou Kelly, fazendo uma última curva à direita e aproximando-se da casa de arenito
pardo. Estacionou o mais perto que considerou prudente, saltou do carro e caminhou na direção
oposta à do alvo, afastando-se um quarteirão antes de vestir o disfarce.
Havia dois traficantes naquele quarteirão. Ambos trabalhavam sozinhos. Pareciam um pouco
nervosos. Talvez sua fama estivesse se espalhando, pensou Kelly com um sorriso. Alguns dos
colegas daqueles homens estavam sendo eliminados, o que devia deixá-los preocupados. Passou
ao largo, divertindo-se com a ideia de que os traficantes não sabiam quão próximos tinham
estado da morte. A vida deles estava em suas mãos, naquele exato momento, e de nada
desconfiavam. Mas não devia perder-se em divagações, disse para si próprio, enquanto se
aproximava do objetivo. Parou na esquina e olhou em torno. Já passava de uma da manhã e as
coisas estavam ficando mais calmas, como costuma acontecer no final de um dia de trabalho,
mesmo de trabalho ilícito. O movimento na rua diminuíra muito, como já esperava que
ocorresse, com base nas informações colhidas nos dias anteriores. Não observando nenhum
movimento suspeito, Kelly rumou para o sul, caminhando entre as casas de arenito pardo de um
lado da rua e as casas de tijolo do outro lado. Precisou de toda a concentração para manter o
andar cambaleante. Um dos responsáveis pela morte de Pam estava a menos de cem metros de
distância. Dois deles, talvez. Kelly se permitiu ver de novo o rosto da moça, ouvir sua voz,
sentir as curvas do seu corpo. Permitiu que o seu rosto se transformasse em uma máscara de
pedra e as mãos em punhos cerrados, mas isso por apenas alguns segundos. Depois, esvaziou a
mente e respirou fundo, cinco vezes.
— Chegou a hora — murmurou, reduzindo o passo e observando a casa de esquina, agora a
menos de trinta metros de distância. Bebeu um gole de vinho e deixou que escorresse na sua
camisa. Cobra para Chicago. Objetivo à vista. Preparando para atacar.
O sentinela, se é que era um sentinela, revelou-se involuntariamente. As luzes da rua
mostraram baforadas de cigarro saindo pela porta, indicando a Kelly exatamente onde se
encontrava seu primeiro alvo. Passou a garrafa de vinho para a mão esquerda e flexionou a
direita, girando o pulso para certificar-se de que os músculos estavam relaxados. Ao chegar à
escada de entrada, tropeçou e começou a tossir. Depois, subiu até a porta, que sabia estar
entreaberta, e apoiou-se nela. Caiu no chão e se viu aos pés do homem que observara ao lado de
Billy. Com o tombo, a garrafa de vinho se quebrou, e Kelly ignorou o homem, rastejando por
cima dos cacos de vidro e da mancha deixada pelo vinho barato.
— Sinto muito, companheiro — disse uma voz surpreendentemente amistosa. — Agora é
melhor você ir andando.
Kelly continuou a lamentar-se, ainda de quatro. Tossiu mais um pouco e virou a cabeça para
ver as pernas e sapatos do sentinela, confirmando sua identificação.
— Vamos, vovô.
Foi levantado por mãos fortes. Deixou os braços penderem, um deles para trás do corpo,
enquanto o homem tentava conduzi-lo na direção da porta. Cambaleou, obrigando o sentinela a
suportar todo o seu peso. Semanas de treinamento e preparação se concentraram em um único
instante.
Kelly golpeou o homem no rosto com a mão esquerda, enfiando ao mesmo tempo a Ka-Bar
entre as suas costelas com a mão direita. Estava tão excitado que pôde sentir nas pontas dos
dedos o coração, tentando bater, mas apenas conseguindo se destruir na lâmina afiada da faca de
combate. Torceu a lâmina, enquanto o homem estrebuchava, com os olhos pretos arregalados de
espanto, os joelhos começando a se dobrar. Kelly amparou-o, ainda segurando a faca. Desta vez
tinha que se permitir um pequeno prazer. Trabalhara muito para chegar até ali; era impossível
ignorar totalmente o que estava sentindo.
— Lembra-se de Pam? — sussurrou para o moribundo.
Foi recompensado por um lampejo de compreensão antes que os olhos rolassem nas órbitas.
Cobra.
Kelly esperou, contando até sessenta antes de retirar a faca, que limpou na camisa do morto.
Era uma boa faca, e não merecia ficar manchada com sangue daquele tipo.
Descansou por um momento, respirando fundo. Já conseguira destruir o alvo secundário. O
alvo principal se encontrava no segundo andar. Tudo estava correndo de acordo com os planos.
Permitiu-se exatamente um minuto para se acalmar e recuperar as forças.
A escada rangia muito. Kelly procurou manter-se próximo à parede, para minimizar o
deslocamento dos degraus de madeira, movendo-se devagar e olhando apenas para cima, pois
não havia mais nada atrás dele para preocupá-lo. Recolocara a faca na bainha. Na mão direita
segurava a A5/.22, já com o silenciador no lugar, enquanto se apoiava na parede descascada
com a mão esquerda.
Quando estava a meio caminho, começou a ouvir outros sons além do sangue correndo nas
artérias. Um tapa, um ruído de choro. Sons distantes, animais, seguidos por uma risada cruel,
quase inaudível, mesmo quando chegou no alto da escada e dobrou à esquerda, em direção à
fonte dos sons. Depois, uma respiração rápida e pesada.
Oh... que merda! Mas agora não podia mais parar.
— Por favor... — Uma súplica desesperada que fez os nós dos dedos de Kelly ficarem
brancos em torno da pistola. Caminhou lentamente ao longo do corredor do segundo andar,
mantendo-se mais uma vez colado à parede. Um dos quartos estava iluminado. Era apenas a luz
da rua que se filtrava pelas janelas sujas, mas seus olhos já estavam adaptados à escuridão e
pôde ver sombras em uma das paredes.
— O que é que há, Dor? — perguntou uma voz masculina, quando Kelly chegou à porta do
quarto. Olhou para dentro, cautelosamente.
Havia um colchão no quarto. Uma mulher estava ajoelhada no colchão, de cabeça baixa,
enquanto uma mão apertava-lhe o seio com violência. Kelly viu a boca da mulher se abrir em
um gemido silencioso e se lembrou imediatamente da foto que o detetive lhe mostrara. Você fez
a mesma coisa com Pam, não foi, seu filho da puta? Um líquido escorria do rosto da jovem e o
homem que olhava para ela estava sorrindo quando Kelly entrou no quarto.
— Isso parece divertido. Posso brincar, também? — perguntou, em tom leve, relaxado, quase
brincalhão.
Billy virou a cabeça na direção da sombra que acabara de falar e deparou com uma enorme
pistola automática na ponta de um braço estendido. Olhou de soslaio para uma pilha de roupas e
uma sacola. Estava totalmente nu e segurava na mão esquerda um objeto que parecia uma
ferramenta, mas não era uma arma de fogo nem uma faca. Essas duas ferramentas se
encontravam a três metros dele, e olhar para elas não iria reduzir essa distância.
— Nem pense nisso, Billy — disse Kelly, em tom coloquial.
— Que diabo...
— Deite-se de bruços no chão, com os braços e pernas bem abertos, ou arranco o seu pênis
com um tiro — ameaçou Kelly. Era incrível a importância que os homens atribuíam àquele
órgão. Como era fácil intimidá-los com uma ameaça daquele tipo. E não era nem uma ameaça a
sério, porque o pênis era um alvo muito difícil. O cérebro era bem maior e muito mais fácil de
acertar. — Deite-se! Já!
Billy obedeceu. Kelly empurrou a garota para trás e desenrolou o fio elétrico da cintura. Em
poucos segundos as mãos do homem estavam amarradas atrás das costas. A mão esquerda ainda
segurava um alicate, que Kelly pegou e usou para apertar ainda mais o fio, fazendo Billy gemer.
Alicate?
Jesus!
A garota estava olhando para ele de olhos arregalados. Seus movimentos eram lentos e a
cabeça pendia para um lado. Parecia estar drogada. Tinha visto o seu rosto, estava olhando para
ele agora, memorizando-o.
Por que você tinha que estar aqui? Não estava nos planos. Você é uma complicação. Eu
devia... devia...
Se fizer isso, John, que tipo de homem terá se tornado?
Merda!
As mãos de Kelly começaram a tremer. Estava correndo um grande perigo. Se deixasse
aquela garota viver, ficariam sabendo quem ele era. Teriam uma descrição, o suficiente para
iniciar uma caçada humana que poderia impedi-lo de conseguir seus objetivos. O maior perigo,
porém, era para sua alma. Se matasse a moça, sua alma estaria perdida para sempre; disso não
tinha dúvida. Fechou os olhos e sacudiu a cabeça. As coisas estavam indo tão bem...
Imprevistos acontecem, Johnnie-boy.
— Vista alguma coisa — disse para a jovem, jogando para ela algumas peças de roupa. —
Faça isso e fique onde está.
— Quem é você? — perguntou Billy, fornecendo a Kelly uma desculpa para dar vazão a sua
raiva. O traficante sentiu uma coisa fria e arredondada comprimir-lhe a nuca.
— Se respirar com força, estouro seus miolos, ouviu?
O homem fez que sim com a cabeça.
E agora, o que vou fazer?, perguntou Kelly a si próprio. Olhou para a garota, que estava
vestindo a calcinha com muita dificuldade. A luz iluminou-lhe os seios e o rapaz ficou revoltado
com as marcas que viu.
— Ande logo — disse.
Droga, droga, droga. Kelly examinou o fio que segurava os pulsos de Billy e decidiu colocar
mais uma volta na altura dos cotovelos, machucando-o, deixando os ombros em uma posição
forçada, mas assegurando-se de que ele não tentaria resistir. Para tornar as coisas piores,
levantou Billy pelos braços, fazendo-o gritar.
— Dói um pouquinho, não é? — perguntou Kelly. Colocou uma mordaça na boca do traficante
e empurrou-o na direção da porta. — Ande. — E dirigindo-se à moça: — Você, também.
Kelly os obrigou a descerem a escada. Havia alguns cacos de vidro no caminho e Billy pisou
neles com os pés descalços, cortando-se. O que surpreendeu Kelly foi a reação da garota ao ver
o corpo na entrada.
— Rick! — exclamou, curvando-se para tocar no cadáver.
Ele tinha um nome, pensou Kelly, levantando a jovem.
— Vamos sair pelos fundos.
Chegando à cozinha, deixou-os sozinhos por um instante e foi dar uma olhada pela porta dos
fundos. Podia ver o seu carro e a rua parecia estar deserta. Teria que correr um certo risco, mas
não seria a primeira nem a última vez. Saiu com eles para a rua. A garota estava olhando para
Billy, e ele para ela, mexendo com os olhos. Kelly ficou perplexo ao perceber que a garota
estava reagindo as ameaças silenciosas do traficante. Segurou-a pelo braço e puxou-a para
longe de Billy.
— Não precisa mais ter medo dele, menina. — Empurrou-a na direção do carro, ao mesmo
tempo que manobrava Billy pelo braço.
Uma voz distante lhe disse que se a garota tentasse ajudar Billy, teria um motivo para...
Não, de jeito nenhum!
Kelly abriu a porta do carro, obrigou Billy a entrar no banco de trás, colocou a garota no
banco do carona, contornou o carro rapidamente e sentou-se no banco do motorista. Antes de
dar a partida, inclinou-se para trás e amarrou os tornozelos e os joelhos de Billy.
— Quem é você? — perguntou a garota, quando o carro se pôs em movimento.
— Um amigo — respondeu Kelly, calmamente. — Não vou machucá-la. Se quisesse fazer
isso, teria deixado você com Rick, não é?
A resposta da jovem foi lenta e entrecortada, mas deixou Kelly surpreso.
— Por que o matou? Ele era bom para mim.
Como assim?, pensou Kelly, olhando para a garota. O rosto dela estava todo arranhado e os
cabelos desgrenhados. Olhou de novo para a frente. Uma radiopatrulha cruzou com eles; depois
de um momento de susto por parte de Kelly, seguiu em frente, desaparecendo quando Kelly
dobrou a esquina.
É melhor pensar depressa, rapaz.
Kelly podia ter feito muitas coisas, mas apenas uma das opções parecia adequada.
Adequada?, perguntou para si próprio. Deve estar brincando.

Ninguém espera que a campainha da porta toque às três da madrugada. A princípio, Sandy
pensou que estivesse sonhando, mas seus olhos estavam abertos, e, da maneira como o cérebro
funciona, teve a impressão de que acordara um momento antes de ouvir o som. Mesmo assim,
devia estar sonhando, disse a si própria, sacudindo a cabeça. Tinha acabado de fechar
novamente os olhos quando o som se repetiu. A enfermeira se levantou, vestiu um roupão e
desceu a escada, confusa demais para sentir medo. Viu um vulto do lado de fora. Abriu a porta e
acendeu a luz.
— Apague essa porra! — exclamou uma voz familiar. A ordem a fez desligar
automaticamente o interruptor.
— Kelly! O que você quer? — Havia uma garota ao lado dele, uma garota com um aspecto
horrível.
— Ligue para o hospital e diga que ficou doente. Hoje você não vai trabalhar. Vai ficar aqui,
tomando conta dela. O nome é Doris — disse Kelly, falando no tom calmo mas incisivo de um
cirurgião que se encontrasse no meio de uma operação complicada.
— Espere aí! — protestou Sandy, observando Kelly com mais atenção. Ele estava usando
uma peruca de mulher... não, de mulher não, porque estava suja demais para ser de mulher. Não
fazia a barba há muito tempo, as roupas eram horrorosas e os olhos tinham um brilho estranho.
Parecia estar com raiva de alguma coisa; suas mãos tremiam,
— Lembra da Pam? — ele perguntou com urgência.
— Bem, sim, mas...
— Esta garota estava no mesmo lugar. Não posso ajudá-la. Agora não. Tenho que fazer outra
coisa.
— O que está fazendo, John? — Sandy perguntou, um tipo diferente de urgência na voz dela.
E então, de alguma forma, ficou tudo muito claro. O noticiário da TV que ela tinha na TV da
cozinha, o olhar que ela tinha visto nos olhos dele no hospital; o olhar que ela via agora,
parecido com o outro, mas diferente, a compaixão desesperada e a confiança que exigia dela.
— Alguém tem batido nela pra valer, Sandy. Ela precisa de ajuda.
— John —, ela sussurrou. — John... você está colocando sua vida em minhas mãos...
Kelly riu de verdade, um ronco sombrio que foi além da ironia.
— Sim, bem, você se saiu bem da primeira vez, não é?
Ele empurrou Doris para dentro e foi embora, sem olhar para trás.
— Eu vou vomitar — disse a menina.
Sandy empurrou-a para o banheiro do primeiro andar e chegou a tempo. A garota ficou
ajoelhada por um minuto ou dois sobre o vaso. Depois, olhou para cima. No brilho das luzes
incandescentes das paredes de azulejo branco, Sandra O'Toole viu o rosto do inferno.
20

DESPRESSURIZAÇÃO

Passava das quatro quando Kelly chegou à marina. Ele estacionou o Scout na popa do barco e
saiu para abrir a porta traseira depois de olhar a escuridão em busca de espectadores, que
felizmente não havia.
— Hop —, disse a Billy, que colaborou. Kelly empurrou-o para bordo e, em seguida, levou-o
ao salão principal. Lá, Kelly tinha correntes, ferragens comuns em barcos, e prendeu os pulsos
de Billy num encaixe do convés. Dez minutos mais e ele zarpou rumo à baía, e finalmente
permitiu-se relaxar. Com o barco no piloto automático, soltou as amarras dos braços e das
pernas de Billy.
Kelly estava cansado. Transferindo Billy da traseira do VW para o Scout tinha sido mais
difícil do que ele esperava, e tinha tido sorte de escapar do distribuidor de jornais, que jogava
seus pacotes nas esquinas das ruas para o entregador desembrulhar e entregar antes das seis.
Acomodou-se na cadeira do piloto, bebendo café e se alongando, recompensando o corpo pelos
esforços.
Kelly baixou as luzes para que pudesse navegar sem ser cegado pelo brilho do salão interno.
Fora do porto havia uns seis cargueiros ancorados no Terminal Marítimo de Dundalk, mas muito
pouca coisa em sua visão estava se mexendo. Sempre havia algo de relaxante na água em
momentos como este, os ventos estavam calmos e a superfície de um espelho levemente
ondulado que dançava com as luzes da costa. Luzes vermelhas e verdes de boias acendiam e
apagavam dizendo aos barcos que ficassem longe dos perigosos baixios. O Springer passou
pelo Fort Carroll, um octógono baixo de pedra cinza, construído pelo primeiro-tenente Robert
E. Lee, do corpo de engenheiros do exército dos EUA; até sessenta anos antes, ainda havia ali
rifles de 12 polegadas. O fogo laranja das luzes do Bethlehem Steel Sparrow’s Point Works
brilhavam ao norte. Rebocadores começavam a se mover para ajudar navios a sair de seu berço,
ou para trazer novos, e seus motores rosnavam pela superfície plana de uma forma distante,
amigável. De alguma forma, aquele ruído apenas enfatizava a paz de antes do amanhecer. O
silêncio era esmagadoramente reconfortante, como devem ser as coisas na preparação de um
novo dia.
— Que porra é você, afinal? — perguntou Billy, livre da mordaça e não conseguindo mais
suportar o silêncio. Os braços continuavam presos atrás das costas, mas as pernas estavam
livres e ele se sentou no chão.
Kelly bebeu um gole de café, ignorando o prisioneiro.
— Eu perguntei quem é você! — exclamou Billy, levantando a voz.
Provavelmente seria um dia quente. O céu estava limpo, com muitas estrelas e nem sinal de
nuvens. Não havia nenhum "céu vermelho ao amanhecer" para deixar Kelly preocupado, mas a
temperatura do lado de fora caíra para apenas vinte e cinco graus e isso não era bom augúrio
para o dia seguinte, com o sol quente de agosto para castigar a região.
— Escute aqui, seu babaca, eu quero saber quem você é!
Kelly se ajeitou no assento e tomou outro gole de café. Estava mantendo a rota um-dois-um,
como de hábito, acompanhando a margem meridional do canal de navegação. Um rebocador
muito iluminado se aproximava, provavelmente vindo de Norfolk, puxando duas barcaças, mas
estava escuro demais para ver qual era a carga. Kelly observou as luzes e verificou que estavam
todas nos lugares corretos. Isso agradaria à guarda costeira, que nem sempre aprovava a forma
como os rebocadores locais operavam. O rapaz imaginou como seria a vida de um daqueles
marinheiros que rebocavam barcaças de um lado para outro da baía. Devia ser terrivelmente
monótono fazer sempre a mesma coisa, dia após dia, para lá e para cá, a uma velocidade
constante de seis nós, vendo eternamente a mesma paisagem. Naturalmente, era um trabalho bem
pago. A tripulação incluía um piloto, um imediato, um maquinista e um cozinheiro — tinham que
ter um cozinheiro. Talvez um ou dois homens de convés, Kelly não tinha bem certeza. Todos
recebiam de acordo com a tabela do sindicato, que era bastante generosa.
— Ei, não fique aí calado. Não sei qual é o problema, mas podemos conversar a respeito,
certo?
Não parecia fácil manobrar aqueles rebocadores. Em dias ventosos, principalmente, as
barcaças deviam ficar quase incontroláveis. Não naquele dia, porém. Aquele dia não seria
ventoso, mas apenas quente como o diabo. Kelly rumou para o sul depois de passar por Bodkin
Point e podia ver as luzes vermelhas da Bay Bridge, em Annapolis. A primeira luz do dia já
começava a aparecer no horizonte. Lamentou um pouco. As últimas duas horas antes do
alvorecer eram as melhores do dia, mas poucos se davam ao trabalho de apreciá-las. Mais um
exemplo das maravilhas ocultas da natureza. Kelly pensou ter avistado alguma coisa no mar,
mas o para-brisa prejudicava a visibilidade, de modo que deixou o posto de controle e foi para
o convés. Depois de apontar o binóculo 7x50 para o local, pegou o microfone do transmissor de
rádio.
— Iate a motor Springer chamando Guarda Costeira. Câmbio.
— Aqui é a Guarda Costeira, Springer. Portagee falando. O que está fazendo por aqui tão
cedo, Kelly? Câmbio.
— Levando algumas coisas para vender, Oreza. Qual é a sua desculpa? Câmbio.
— Procurando negociantes como você que possam estar em dificuldades, e aproveitando para
praticar, o que você acha? Câmbio.
— Nesse caso, vamos à primeira lição, Guarda Costeira. Empurre essas alavancas na direção
da frente do barco, que é o lado pontudo, e ele irá mais depressa. Se fizer girar a roda que está
na sua frente, o lado pontudo irá na mesma direção. Entendido? Câmbio.
Kelly ouviu a risada do outro lado.
— Roger, Springer, vou transmitir o recado para a tripulação. Obrigado pelo conselho.
Câmbio.
— Não há de que, Guarda Costeira. Desta vez não vou cobrar nada. Câmbio.
A tripulação do cúter de quarenta e um pés estava completando oito longas horas de patrulha
e ninguém se sentia com vontade de trabalhar. Oreza tinha deixado um jovem marujo assumir o
leme e estava apoiado na parede da casa do leme, bebendo café e brincando com o microfone.
— Sabe de uma coisa, Springerf? Não é todo mundo que pode falar assim comigo e ficar
impune. Câmbio.
— Um bom marinheiro respeita os que são melhores do que ele, Guarda Costeira. É verdade
que os barcos de vocês têm rodinhas no fundo? Câmbio.
— Uuuuuu — observou um jovem aprendiz.
— Negativo, Springer. Nós tiramos as rodinhas depois que o pessoal da Marinha vai embora
do estaleiro. Não gostamos quando pessoas sensíveis como você ficam enjoadas só de olhar
para elas. Câmbio.
Kelly riu e mudou de curso para não se aproximar muito do pequeno cúter.
— É bom saber que nossas vias marítimas estão em mãos tão competentes, Guarda Costeira,
especialmente às vésperas de um feriado.
— Cuidado com o que diz, Springer, ou será abordado para uma inspeção!
— Será um bom uso para o dinheiro que pago de impostos?
— Detestaria desperdiçá-lo.
— Guarda Costeira, eu só queria ter certeza de que estavam acordados.
— Roger e muito obrigado, Springer. Estamos cansados e sonolentos. Ainda bem que
podemos contar com pessoas como você para nos manter alertas.
— Boa viagem, Portagee.
— Para você também, Kelly. Desligo. — O som da voz de Oreza no alto-falante foi
substituído por estática.
Melhor assim, pensou Kelly. Não gostaria que o amigo se aproximasse para bater papo. Não
era o momento apropriado. Desligou o rádio e desceu. O horizonte a leste já estava bem claro;
faltavam uns dez minutos para o sol nascer.
— Que conversa foi essa? — quis saber Billy.
Kelly tornou a encher a caneca de café e verificou o piloto automático. Como estava ficando
quente, tirou a camisa. As cicatrizes nas costas eram bem visíveis, mesmo à luz difusa do
amanhecer. Houve um longo silêncio, pontuado por uma respiração ofegante.
— Você é...
Desta vez, Kelly se virou para o homem despido e acorrentado.
— Isso mesmo.
— Você é o homem que eu matei! — exclamou Billy. Henry não se dera ao trabalho de lhe
contar que Kelly ainda estava vivo.
— Matou mesmo? — perguntou Kelly, olhando de novo para a frente. Um dos motores a
diesel estava esquentando um pouco mais do que o outro; era melhor verificar o sistema de
resfriamento quando voltasse ao porto. Fora isso, o barco se comportava com a docilidade de
sempre, balançando suavemente nas ondas quase invisíveis, mantendo uma velocidade constante
de vinte nós, com a proa inclinada a quinze graus. Espreguiçou-se, deixando Billy ver as
cicatrizes.
— Então é isso... Pam nos contou tudo sobre você antes de morrer.
Kelly olhou para o painel de instrumentos e depois para a carta.
Estava se aproximando da Bay Bridge; em pouco tempo passaria para a margem oriental do
canal. Agora estava consultando o relógio do barco — pensava nele como um cronômetro — de
minuto em minuto.
— Pam era uma grande trepada. Foi assim até o último momento — declarou Billy,
provocando o captor, preenchendo o silêncio com suas palavras malignas, encontrando nisso
uma espécie de coragem. — Mas era meio burra. Meio, não, era muito burra.
Logo depois de passar por Bay Bridge, Kelly desligou o piloto automático e girou o leme dez
graus para bombordo. O tráfego àquela hora era insignificante, mas mesmo assim olhou em
torno, cautelosamente, antes de iniciar a manobra. Luzes de navegação no horizonte anunciavam
a aproximação de um navio mercante, que no momento se encontrava provavelmente a doze
quilômetros de distância. Kelly podia ter ligado o radar para conferir, mas com um tempo tão
bom isso era totalmente desnecessário.
— Ela lhe falou das marcas de amor? — perguntou Billy, ironicamente.
O traficante não viu as mãos de Kelly se crisparem no leme.
As marcas nos seios parecem ter sido feitas com um alicate comum, dizia o relatório do
legista. Kelly decorara cada palavra do relatório, escrito na seca fraseologia legal, como se
tivesse sido gravado com um estilete de diamante em uma placa de aço. Imaginou se os médicos
se sentiriam tão revoltados quanto ele. Era provável que sim. Provavelmente manifestavam sua
raiva escrevendo de forma cada vez mais impessoal. Profissionais eram assim mesmo.
— Ela nos contou tudo, sabia? Que você a pegou na beira da estrada, que os dois foderam a
mais não poder. Fomos nós que ensinamos a ela, moço. Devia nos agradecer! Antes de fugir,
aposto que não contou a você, ela trepou com todos nós, três, quatro vezes cada um. Acho que
se achava muito esperta. Nem desconfiava que nós todos íamos ter mais uma chance.
O+, O-, AB-, pensou Kelly. O sangue tipo O era disparado o mais comum de todos; assim,
eles podiam muito bem ser mais de três. Qual é o seu tipo sanguíneo, Billy?
— Ela era apenas uma puta. Bonitinha, mas a única coisa que sabia fazer direito era trepar.
Foi assim que morreu, sabia? Morreu fodendo. Nós a estrangulamos, e ainda estava mexendo
aquele corpinho gostoso para cima e para baixo até começar a ficar roxa. Foi engraçado —
afirmou Billy, com um esgar debochado que Kelly preferiu não ver. — Eu também me diverti
com ela... três vezes, cara!
Kelly abriu bem a boca e respirou fundo, procurando relaxar a musculatura. O vento estava
um pouco mais forte, fazendo o barco se desviar uns cinco graus à esquerda e à direita da
vertical, e o rapaz permitiu que o corpo acompanhasse o movimento, deixando-se embalar pelas
águas.
— Não sei qual é o problema, cara. Quero dizer: uma puta morreu, e daí? Acho que a gente
pode fazer um trato. Sabe que você deu uma de trouxa? Havia setenta mil paus naquela casa, seu
babaca. Setenta mil! — Billy parou, vendo que não estava funcionando. Entretanto, as pessoas
cometem erros quando se irritam, e ele tinha certeza de que pouco antes conseguira irritar o
homem. Por isso, continuou. — Sabe o que mais? Ela era viciada em drogas. Se tivesse outro
lugar onde consegui-las, não teria pedido a sua ajuda. E depois você fez uma grande besteira,
lembra-se?
Sim, eu me lembro.
— Você realmente deu uma de otário. Nunca ouviu falar em telefone celular? Quando nosso
carro atolou, chamamos Burt, ele foi nos buscar, saímos rodando por aí e lá estava você,
naquele jipe que a gente pode reconhecer a um quilômetro de distância. A garota deve ter
deixado você doidinho, cara.
Telefone? Pam tinha morrido por causa de uma coisa tão simples?, pensou Kelly. Seus
músculos se retesaram. Kelly, você é um idiota. Em seguida, seus ombros se curvaram, apenas
por um segundo, quando se deu conta de que não fizera jus à confiança que a moça depositara
nele, e parte do seu ser reconheceu a inutilidade da vingança. Entretanto, inútil ou não, era um
direito do qual não estava disposto a abrir mão. Empertigou o corpo.
— Quero dizer, cara, um carro tão fora do comum, como é que alguém pode ser tão trouxa?
— perguntou Billy, vendo que seus esforços estavam sendo bem-sucedidos. Talvez agora
pudessem começar as negociações. — Fiquei surpreso ao ver que você ainda estava vivo.
Quero dizer: não foi nada pessoal. Acho que você não sabia que ela trabalhava para nós. Não
podíamos deixar que ela contasse tudo à polícia, não é? Mas no seu caso é diferente. Vamos
fazer um trato?
Kelly olhou para o piloto automático. O Springer estava se movendo em um curso regular e
não havia nenhuma outra embarcação à vista. O rapaz se levantou e foi sentar-se em outra
cadeira, mais perto de Billy.
— Ela disse a você que estávamos na cidade para comprar drogas? Foi isso que ela lhe
disse? — perguntou Kelly, olhando Billy nos olhos.
— Isso mesmo. — Billy estava se sentindo mais tranquilo. Ficou surpreso quando Kelly
começou a chorar. Talvez fosse uma oportunidade de assumir o controle da situação. — Puxa,
sinto muito, cara — disse Billy, com a entonação errada. — Acho que você deu azar.
Dei azar? Kelly fechou os olhos, a apenas alguns centímetros do rosto de Billy. Meu Deus,
ela estava me protegendo. Mesmo depois que eu traí sua confiança. Ela nem sabia se eu
estava vivo, mas mentiu para me proteger. Era mais do que podia suportar, e por alguns
minutos Kelly simplesmente perdeu o controle. Mas mesmo isso tinha uma utilidade. Depois de
algum tempo, parou de chorar, e quando enxugou o rosto também removeu qualquer
contemplação que pudesse ter pelo prisioneiro.
Kelly se levantou e voltou à cadeira do piloto. Não queria mais olhar para aquele filho da
puta. Ainda não estava na hora de acabar com ele.

— Tom, acho que pode ser que você esteja certo, afinal de contas — disse Ryan.
De acordo com a carteira de motorista — já tinham verificado: nenhuma prisão, mas uma
longa lista de infrações de trânsito —, Richard Oliver Farmer tinha vinte e quatro anos e não
passaria disso. A causa da morte tinha sido uma única facada no peito, que perfurara o coração.
O tamanho do orifício — em geral, ferimentos desse tipo se fechavam de tal forma que ficavam
invisíveis aos olhos de um leigo — mostrava que o assassino tinha torcido a faca até onde o
espaço entre as costelas permitira. Era um ferimento grande, indicando uma lâmina com pelo
menos cinco centímetros de largura.
— Ele não foi muito esperto — anunciou o legista. Ryan e Douglas concordaram com a
cabeça. O Sr. Farmer estava usando uma camisa branca de algodão. Havia um paletó, também,
pendurado em uma maçaneta. O criminoso limpara a faca na camisa. Três vezes, ao que parecia,
e em uma delas deixara uma impressão permanente da faca, marcada com o sangue da vítima,
que levava um revólver no cinto mas não tivera oportunidade de usá-lo. Outra vítima de um
assassino rápido e habilidoso, mas, neste caso, um pouco descuidado. O mais jovem da dupla
apontou com um lápis para uma das manchas.
— Sabem o que é? — perguntou Douglas. Era uma pergunta supérflua; ele mesmo se
encarregou de respondê-la em seguida. — É uma Ka-Bar, a faca de combate da Marinha. Eu
mesmo tenho uma igualzinha!
— E estava bem afiada — informou o legista. — Foi um corte limpo, quase cirúrgico na
forma como atravessou a pele. Ele deve ter atingido mais ou menos o centro do coração. Um
golpe muito preciso, senhores. A faca entrou exatamente na horizontal, sem esbarrar nas
costelas. A maioria das pessoas pensa que o coração fica do lado esquerdo. Nosso amigo sabia
que isso não é verdade. Houve apenas uma penetração. Ele sabia muito bem o que estava
fazendo.
— Mais uma vítima, Em. Um criminoso armado. Nosso amigo acabou com ele em um piscar
de olhos...
— Está certo, Tom, agora eu acredito em você.
Ryan fez que sim com a cabeça e subiu a escada para se juntar aos outros detetives. No quarto
da frente tinham encontrado uma pilha de roupas de homem, uma sacola cheia de dinheiro, um
revólver e uma faca. Um colchão com manchas de sêmen, algumas ainda úmidas. E também uma
bolsa de mulher. Muitos indícios para os detetives mais jovens investigarem. Tipo sanguíneo do
sêmen. Identificação completa das três pessoas — pareciam ser três — que tinham estado ali.
Até mesmo um carro do lado de fora para ser rastreado. Finalmente, estavam diante de um caso
comum de homicídio. O lugar estava cheio de impressões digitais. Os fotógrafos já deviam ter
gastado uma dúzia de rolos de filme. Para Ryan e Douglas, porém, o caso já estava resolvido.
— Conhece um cara chamado Farber, do Hopkins?
— Conheço, Em. Ele trabalhou no caso Gooding com Frank Allen. Fui eu quem marcou a
entrevista. É um sujeito esperto — reconheceu Douglas. — Um pouco esquisito, mas esperto.
Tenho que ir ao tribunal esta tarde, lembra-se?
— Está certo. Acho que posso cuidar disso sozinho. E fico lhe devendo uma cerveja, Tom.
Você descobriu a verdade antes de mim.
— Obrigado. Talvez um dia eu também chegue a tenente.
Ryan riu e acendeu um cigarro enquanto descia a escada.

— Vai tentar resistir? — perguntou Kelly com um sorriso. Tinha acabado “de voltar depois
de prender as amarras no cais.
— Por que eu haveria de colaborar com você? — perguntou Billy, em tom desafiador.
— Está certo. — Kelly sacou a Ka-Bar e aproximou-a de um ponto sensível do corpo do
traficante. — Podemos começar agora mesmo, se prefere assim.
O corpo inteiro de Billy se encolheu, mas uma parte mais do que as outras.
— Está bem, está bem!
— Ótimo. Quero que isto lhe sirva de lição, Que nunca mais faça mal a uma garota.
Kelly abriu o cadeado, mas os braços de Billy ainda estavam presos atrás das costas quando
ele se levantou.
— Foda-se, cara! Você vai me matar!
Kelly fez com que se virasse para olhá-lo nos olhos.
— Não vou matar você, Billy. Sairá desta ilha com vida. Eu juro.
A expressão de surpresa no rosto do traficante fez Kelly sorrir por um segundo. Depois, ele
sacudiu a cabeça. Estava trilhando um caminho muito estreito e difícil entre dois abismos
igualmente perigosos, e nos dois extremos estava a loucura, de dois tipos diferentes mas
igualmente destrutiva. Tinha que se desligar da realidade do momento, mas ao mesmo agarrar-se
a ela. Ajudou Billy a saltar do barco e conduziu-o na direção da oficina.
— Está com sede?
— Também preciso dar uma mijada. Kelly guiou-o até um arbusto.
— Vá em frente.
Kelly esperou. Billy não gostava de estar despido, não na frente de outro homem, não em
posição de inferioridade. Desistira de puxar conversa com o rapaz. Covarde como era, tentara
inutilmente parecer mais forte relatando (não tanto para Kelly como para si mesmo) sua
participação na morte de Pam, criando para si mesmo uma ilusão de poder, quando o silêncio...
bem, o silêncio provavelmente não o salvaria. Entretanto, daria margem a dúvidas,
especialmente se tivesse sido suficientemente esperto para inventar uma história plausível, mas
a covardia e a estupidez eram parentes, não eram? Kelly deixou-o esperando enquanto
destrancava a fechadura de segredo. Depois de acender a luz, empurrou Billy para dentro,
No meio da oficina estava um cilindro de aço, com quarenta centímetros de diâmetro,
apoiado em quatro pernas com rodas na ponta. A tampa de aço em uma das extremidades estava
fora do lugar, pendurada pela dobradiça.
— Você vai entrar aí — informou Kelly.
— Foda-se, cara!
Kelly golpeou Billy na nuca com o cabo da faca. Ele caiu de joelhos.
— Você vai entrar de qualquer jeito, inteiro ou em pedaços. Para mim, tanto faz. — Era uma
mentira, mas fez efeito. Kelly levantou-o pelo pescoço e enfiou a cabeça e os ombros do
traficante na abertura. — Não se mexa.
Foi muito mais fácil do que esperava. Kelly pegou uma chave que estava pendurada na
parede e destrancou o cadeado que prendia as mãos de Billy. Podia ver que o prisioneiro estava
tenso, à espera de uma oportunidade, mas Kelly foi rápido — teve apenas que remover o
cadeado para soltar as duas mãos — e uma estocada com a faca no lugar certo fez com que Billy
desistisse de recuar, o que seria indispensável para que pudesse esboçar qualquer resistência.
Billy era simplesmente covarde demais para aceitar a dor como preço para uma oportunidade
de fuga. Ele estremeceu mas não reagiu, apesar de todas as ideias desesperadas que lhe
passavam pela cabeça.
— Entre!
Mais um empurrão, e estava feito. Kelly levantou a tampa e aparafusou-a no lugar. Depois,
apagou a luz e saiu da oficina. Precisava comer alguma coisa e tirar um cochilo. Billy podia
esperar. A demora tornaria as coisas mais fáceis.

— Alô?
Pela voz, a moça parecia muito preocupada, — Olá, Sandy, aqui é John.
— John! O que andou fazendo?
— Como ela está?
— Doris? No momento, está dormindo. John, quem... quero dizer... o que aconteceu com ela?
Kelly apertou o fone com força.
— Sandy, quero que ouça com muita atenção, está bem? É realmente importante.
— OK, pode dizer. — Sandy estava na cozinha, olhando para um bule de café. Do lado de
fora, podia ver algumas crianças jogando bola em um terreno baldio cuja normalidade parecia
muito distante naquele momento.
— Em primeiro lugar, não conte a ninguém que ela está aí. Principalmente à polícia.
Entendeu?
— John, ela está muito machucada, é viciada em drogas e provavelmente tem problemas
sérios de saúde. Eu tenho que...
— Então fale com Sam e Sarah. Mais ninguém. Sandy, você ouviu o que eu disse? Mais
ninguém. Sandy... — Kelly hesitou. Era uma coisa difícil de dizer, mas queria que as coisas
ficassem bem claras. — Sandy, você está correndo perigo por minha causa. As pessoas que
fizeram isso com Doris são as mesmas...
— Eu sei, John. Já tinha adivinhado. — A expressão da enfermeira era neutra, mas ela
também vira a foto do corpo de Pamela Starr Madden. — John, ela me contou que você... que
você matou alguém.
— É verdade, Sandy.
Embora não fosse surpresa para a enfermeira, ela ficou chocada com a forma como o rapaz
admitiu o fato. Calmamente. Como se se tratasse de uma coisa trivial. É verdade, Sandy. Ela me
disse que você foi ao cinema. É verdade, Sandy.
— Sandy, essa gente é muito perigosa. Seria fácil para mim ter deixado Doris entregue à
própria sorte... mas não podia fazer isso, podia? Sandy, você viu o que eles...
— Eu vi. — Fazia muito tempo que Sandy não trabalhava na emergência, mas não se
esquecera das coisas horríveis que as pessoas eram capazes de fazer a outras pessoas.
— Sandy, eu preferia não ter tido que...
— John, o que passou passou, está bem?
As palavras dela fizeram Kelly refletir. Talvez fosse essa a diferença entre eles. Seu instinto
era atacar, identificar os homens que faziam coisas erradas e acabar com eles. Localizar e
destruir. O instinto dela era proteger os inocentes de uma forma bem diversa. O ex-SEAL se deu
conta de que talvez, dos dois, a pessoa mais forte fosse ela.
— Ela vai precisar de cuidados médicos. — Sandy pensou na jovem que estava no quarto de
hóspedes no andar de cima. Ajudara a moça a se lavar e ficara horrorizada com as marcas que
vira no corpo, sinais evidentes de tortura. Pior ainda, porém, eram os olhos, mortos, sem a
centelha de desafio que costumava ver até mesmo em pacientes terminais. Apesar dos anos de
experiência cuidando de pacientes gravemente enfermos, jamais desconfiara que alguém fosse
capaz de destruir o espírito de uma pessoa através de um tratamento deliberadamente cruel.
Agora ela própria corria o risco de cair nas mãos de pessoas assim, pensou Sandy, mas a
repulsa que sentia por elas era maior que seu temor.
Kelly, porém, sentia exatamente o oposto.
— Está bem, Sandy, mas, por favor, tome cuidado. Promete?
— Prometo. Vou ligar para o Dr. Rosen — fez uma pausa. — John?
— O que é, Sandy?
— O que você está fazendo... é errado, John. — Ela se odiou por ter dito aquilo.
— Eu sei — disse Kelly.
Sandy fechou os olhos, ainda vendo as crianças correndo atrás de uma bola lá fora, e depois
vendo John, adivinhando a expressão que devia estar no seu rosto. Sabia que era a sua vez de
dizer alguma coisa. Respirou fundo.
— Mas não posso censurá-lo. Compreendo você, John.
— Obrigado — murmurou Kelly. — Você está bem?
— Não se preocupe.
— Irei para aí assim que puder. Não sei o que podemos fazer por ela...
— Deixe que nós cuidamos disso. Temos experiência.
— OK, Sandy... Sandy?
— O que foi, John?
— Obrigado. — Kelly desligou.
Não há de que, pensou Sandy, desligando também. Que homem estranho! Estava matando
pessoas, acabando com as vidas de seres humanos, fazendo isso com uma cruel eficiência que a
moça não testemunhara — nem tinha intenção de testemunhar — mas que a voz dele proclamava
em toda a sua frieza, Entretanto, saíra do seu caminho, colocara a própria vida em risco para
socorrer Doris. Era difícil de entender, pensou Sandy, discando um número.

Dr. Sidney Farber tinha exatamente a aparência que Emmet Ryan imaginara: quarenta e
poucos anos, baixo, barbado, judeu, fumando cachimbo. Não se levantou para receber o
detetive; limitou-se a apontar para uma cadeira. Ryan tinha mandado as cópias de algumas
páginas do processo para o psiquiatra antes do almoço, e era óbvio que ele as lera. Estavam
todas em cima da escrivaninha, dispostas em duas fileiras.
— Conheço o seu parceiro Tom Douglas — afirmou Farber, tirando uma baforada do
cachimbo.
— Eu sei. Ele me disse que o senhor o ajudou muito no caso Gooding.
— O Sr. Gooding era um homem muito doente. Espero que esteja recebendo o tratamento
adequado.
— Este homem também é doente? — perguntou o tenente Ryan. Farber levantou os olhos.
— Ele é tão saudável quanto nós dois... até mais, fisicamente. Isso, porém, não é muito
importante. Você acabou de se referir a "este homem". Está supondo que uma única pessoa foi
responsável por todos esses crimes. Posso saber por quê?
O psiquiatra recostou-se na cadeira.
— A princípio eu não pensava assim. Tom chegou a essa conclusão antes de mim. Está tudo
na forma elaborada como ele executou as vítimas.
— Entendo.
— Estamos lidando com um psicopata?
Farber sacudiu a cabeça.
— Não. O verdadeiro psicopata é uma pessoa incapaz de lidar com a vida. Ele vê a
realidade de uma forma extremamente individual e excêntrica, muito diferente da forma como
nós a vemos. Em quase todos os casos, a doença é muito fácil de reconhecer.
— Mas Gooding...
— O Sr. Gooding é o que chamamos de "psicopata organizado". É um termo relativamente
novo.
— Está bem, mas os vizinhos não desconfiavam de nada.
— Pode ser, mas a doença do Sr. Gooding se manifestava na forma como ele matava suas
vítimas. No caso em questão, não se observa nenhum ritual. Nenhum tipo de mutilação. Nenhum
impulso sexual... como deve saber, isso se manifesta através de cortes no pescoço. Não —
Farber tornou a sacudir a cabeça. — Este homem é muito objetivo. Não está sendo movido pela
emoção. Limita-se a matar as pessoas, por uma razão que para ele deve parecer extremamente
lógica.
— Qual seria essa razão?
— Certamente não é o roubo. Algum outro motivo. Já encontrei pessoas assim no passado.
— Onde? — perguntou Ryan.
Farber apontou para a parede. Em um pedaço de veludo vermelho, emoldurado com madeira,
estavam pendurados um distintivo da infantaria de combate, asas de paraquedista e um emblema
dos comandos. O detetive não escondeu sua surpresa.
— Foi uma grande estupidez — declarou Farber, com um gesto depreciativo. — Rapazinho
judeu quer mostrar ao mundo como é valente. Acho que conseguiu — acrescentou, com um
sorriso.
— Eu não gostei muito da Europa. Acho que foi porque não consegui ver as partes bonitas.
— Onde serviu?
— Easy Company, Segunda do Cinco-Zero-Seis.
— Aerotransportada. Um-Zero-Um, certo?
— Na mosca, doutor — disse o detetive, confirmando que ele também tinha sido jovem e
impetuoso, lembrando-se de como era magro quando saltava dos C-47. — Saltei na Normandia
e em Eindhoven.
— Esteve em Bastogne?
Ryan fez que sim com a cabeça.
— Não foi muito divertido, mas pelo menos chegamos lá de caminhão.
— Pois é uma coisa parecida que o senhor está enfrentando agora, tenente Ryan.
— Como assim?
— Aqui está a chave do mistério. — Farber mostrou a transcrição do depoimento da Sra.
Charles. — Ele está usando um disfarce. Tem que estar. É preciso muita força para enfiar uma
faca na nuca de alguém. Quem fez isso não foi um bêbado qualquer. Eles têm a saúde muito
precária.
— Mas esse homem não tem um modo de operação definido! — protestou Ryan.
— Acho que tem, sim, só que não é óbvio. Pense no passado. Você está no exército, é
membro de elite de uma unidade de elite. Você não ataca sem antes fazer um reconhecimento do
alvo, certo?
— Certo — concordou o detetive.
— Agora aplique isso a uma cidade. Como fazer o reconhecimento em uma cidade? Usando
uma camuflagem. Nosso amigo resolveu disfarçar-se de bêbado. Quantas pessoas assim você vê
todos os dias? Sujas, malcheirosas, mas praticamente inofensivas. Você se acostuma a ignorá-
las. Ninguém repara nelas.
— O senhor ainda não...
— Mas como ele faz para entrar e sair da área de observação? Acha que ele pega um
ônibus... um táxi?
— Ele usa um carro.
— Um disfarce é algo que você tem que pôr e tirar. — Farber mostrou a foto tirada no local
do assassinato do rapaz que assaltara a Sra. Charles. — Ele mata dois traficantes a dois
quarteirões de distância e vai até lá... para quê?
Ali estava, bem visível, uma vaga entre dois carros estacionados.
— Minha nossa! — Ryan estava se sentindo um pateta. — O que mais eu deixei de ver, Dr.
Farber?
— Pode me chamar de Sid. Não muito mais. O sujeito é muito esperto, muda sempre de
método, e este foi o único caso em que perdeu o controle. Está me acompanhando? Foi o único
crime que envolveu alguma emoção... com exceção, talvez, do que cometeu esta manhã, mas
vamos deixar esse de lado por enquanto. Quando ele interrompeu o assalto, estava obviamente
zangado. Primeiro, aleijou a vítima; depois, assassinou-a de forma particularmente difícil. Por
quê? — Farber fez uma pausa para dar uma baforada. — Que ele estava zangado, já sabemos,
mas por que estava zangado? Tem que ter sido um crime não premeditado. Ele não contava com
a presença da Sra. Charles. Por alguma razão, teve que fazer algo que não pretendia e isso o
deixou irritado. Além disso, mandou a Sra. Charles para casa... sabendo que ela o vira de perto.
— O senhor ainda não me disse...
— Ele é um veterano de guerra. Um homem em excelente forma física. Isso quer dizer que é
mais jovem do que nós, e altamente treinado. Comando, boina-verde, algo assim.
— Por que está agindo dessa forma?
— Não sei. Vamos ter que perguntar a ele. Mas o que estamos vendo é alguém que não tem
pressa. Que observa suas vítimas. Que age sempre de madrugada, quando todos estão cansados,
quando o movimento nas ruas é menor, para reduzir a chance de ser descoberto. Ele não é um
assaltante. Pode pegar o dinheiro, mas não é a mesma coisa. Agora fale-me do crime desta
manhã — pediu Farber, em tom educado mas incisivo.
— O senhor viu a foto. Havia muito dinheiro em uma sacola no andar de cima. Ainda não
contamos, mas calculo em mais de cinquenta mil dólares.
— Dinheiro de drogas?
— Achamos que sim.
— Havia outras pessoas presentes? Ele as sequestrou?
— Duas, provavelmente. Um homem, com certeza. Podia haver também uma mulher.
Farber fez que sim com a cabeça e deu uma baforada.
— Há duas possibilidades. Ou esse homem é a pessoa que ele estava procurando ou deu mais
um passo em direção ao seu objetivo.
— Acha que matou os outros traficantes apenas para despistar?
— Lembra-se dos dois primeiros? Foram amarrados...
— ...para serem interrogados. — Ryan fez uma careta. — Não sei como não reparamos nisso!
Foram os únicos que não morreram em lugar aberto. Ele fez isso para ter mais tempo.
— Não se censure. Parecia mesmo um assalto, e vocês não tinham nenhuma pista. Quando o
caso chegou às minhas mãos, a quantidade de informações disponíveis era bem maior. — O
psiquiatra se recostou na cadeira e olhou para o teto. Ele adorava bancar o detetive. — Até isto
acontecer — ele bateu com o cachimbo nas fotos tomadas na cena do crime naquela manhã —,
vocês realmente não tinham muita coisa. Esta é a chave para todo o resto. O homem entende de
armas. Conhece táticas de guerra. É muito paciente. Espreita as vítimas, como um caçador
espreita um veado. Está mudando de método para despistar, mas hoje cometeu um erro. Perdeu o
controle, pela segunda vez, ao torcer a faca, e mostrou o tipo de treinamento que teve ao limpar
a faca imediatamente após o crime.
— Mas o senhor não acha que ele seja louco.
— Não, duvido que se trate de um doente mental. Deve ter uma boa razão para estar agindo
desta forma. Pessoas assim são muito disciplinadas, como eu e você éramos disciplinados
quando estávamos no Exército. A disciplina é evidente na forma como ele age... mas a irritação
que já demonstrou duas vezes revela que sua motivação é emocional.
— "É melhor a senhora ir para casa.”
— Exatamente! Muito bom. Por que não a matou? Era uma testemunha. Ele a tratou com toda
a educação. Mandou-a para casa... interessante... mas não revela muita coisa.
— A não ser que o homem não está matando para se divertir.
— Correto. — Farber assentiu. — Tudo que ele faz tem um motivo. É um homem altamente
treinado, que está usando todos os seus conhecimentos nesta missão. Porque se trata de uma
missão. Estamos diante de um tipo muito perigoso.
— Uma coisa é certa: ele está atrás dos traficantes — afirmou Ryan. — E a pessoa... ou
pessoas... que sequestrou?
— A mulher... se houver uma mulher... certamente será poupada. O homem, não. Pelas
condições em que encontrarmos o cadáver, poderemos concluir se era o alvo principal.
— Porque nesse caso nosso homem estará com muita raiva?
— Isso mesmo. Outra coisa. Quando a polícia for atrás desse sujeito, é bom ter em mente que
ele se sente à vontade com vários tipos de armas. Ele vai fazer tudo para parecer inofensivo.
Vai evitar ao máximo um confronto. Não quer matar pessoas inocentes, caso contrário teria
assassinado a Sra. Charles.
— Mas se nós o encurralarmos...
— Não devem fazer isso em hipótese alguma.

— Confortável? — perguntou Kelly.


A câmara de recompressão era uma das centenas fabricadas para a Marinha pela Dykstra
Foundry and Tool Company, Inc., de Houston, Texas. Pelo menos, era o que dizia a placa de
identificação. Fabricada em aço de boa qualidade, tinha sido projetada para reproduzir a
pressão encontrada pelos mergulhadores. Em uma das extremidades havia uma janela de
plexiglas de vinte centímetros. A câmara dispunha também de um pequeno compartimento
estanque que permitia a introdução de pequenos objetos, como alimentos e bebidas. No interior
havia uma lâmpada de leitura de vinte watts. O conjunto era alimentado por um potente
compressor de ar acionado por um motor a gasolina, que podia ser controlado de um assento
dobrável, ao lado do qual havia dois medidores de pressão. Um deles estava rotulado em
círculos concêntricos de milímetros e polegadas de mercúrio, libras por polegada quadrada,
quilogramas por centímetro quadrado e bars, ou unidades de medida de pressão da água do mar.
O outro medidor indicava a profundidade equivalente em pés e metros. Cada dez metros de
profundidade simulada faziam com que a pressão aumentasse de um bar.
— Olhe, eu lhe conto tudo o que quiser saber, está bem? — ouviu Kelly, no intercomunicador.
— Eu sabia que você acabaria cooperando. — Kelly deu um puxão na corda do motor,
fazendo funcionar o compressor. Depois de certificar-se de que a válvula de descompressão que
ficava ao lado dos medidores estava bem fechada, abriu a válvula de pressurização,
introduzindo ar no interior da câmara, e observou os ponteiros girarem lentamente no sentido
dos ponteiros do relógio.
— Você sabe nadar? — perguntou Kelly, observando o rosto do traficante.
Billy pareceu assustado.
— O que... escute, por favor, não vá me afogar, OK?
— Não é o que pretendo fazer. Sabe nadar ou não?
— Sei.
— Já praticou mergulho?
— Não — respondeu Billy, intrigado.
— Está bem. Você vai ver como é. Deve bocejar e engolir em seco para se acostumar com a
pressão — informou Kelly, vendo o ponteiro de "profundidade" passar dos dez metros.
— Olhe, por que não faz logo suas malditas perguntas?
Kelly desligou o intercomunicador. O medo na voz do traficante já começava a incomodá-lo.
No fundo, detestava ferir as pessoas; se continuasse a ouvir, acabaria ficando com pena de
Billy. Quando o medidor indicou uma profundidade simulada de trinta metros, fechou a válvula
de pressurização, mas deixou o motor funcionando. Enquanto o traficante se acostumava à
pressão, ligou uma mangueira ao cano de escapamento do motor e deixou a outra ponta do lado
de fora, para evitar que o monóxido de carbono se acumulasse no interior da oficina. Seria uma
longa espera. O rapaz estava se fiando na memória, o que não o deixava perfeitamente tranquilo.
Havia uma lista de instruções no lado da câmara, mas era muito resumida; a última linha
recomendava consultar um certo manual de mergulho que Kelly não tinha. Fazia tempo que não
mergulhava em águas profundas; sua última missão no mar tinha sido um trabalho de equipe, em
uma plataforma de petróleo do Golfo. O rapaz passou uma hora arrumando coisas na oficina,
cultivando suas memórias e o seu ódio antes de se aproximar de novo da câmara.
— Como está se sentindo?
— Normal, cara — respondeu Billy. Parecia muito nervoso.
— Pronto para responder a algumas perguntas?
— Pergunte o que quiser, tá? Mas depois me tire daqui!
— Está bem. — Kelly consultou uma prancheta. — Já foi preso alguma vez, Billy?
— Não. — Kelly detectou um certo orgulho na voz.
Ótimo.
— Serviu o Exército?
— Não. — Que pergunta idiota!
— Quer dizer que nunca foi preso, nunca foi fichado, nunca tiraram suas impressões digitais?
— Nunca — confirmou o traficante, sacudindo a cabeça.
— Como vou saber se está dizendo a verdade?
— Estou, sim, cara! Eu juro!
— Pode ser, mas tenho que ter certeza, OK? — Kelly abriu a válvula de descompressão com
a mão esquerda. O ar começou a escapar ruidosamente da câmara enquanto ele observava os
medidores.
Billy não sabia o que esperar e teve uma surpresa desagradável. Durante uma hora, estivera
exposto a uma pressão quatro vezes maior que a atmosférica. Seu corpo se adaptara à situação.
O ar que respirava, também pressurizado, entrara na circulação sanguínea e agora todo o corpo
estava a uma pressão de quatro atmosferas. Vários gases, especialmente o nitrogênio, tinham se
dissolvido no sangue; quando Kelly diminuiu a pressão da câmara, esses gases formaram
bolhas, cuja tendência era crescer. Os tecidos vizinhos resistiram a essa expansão, mas não
muito bem; muitas células se romperam. O sofrimento começou nas extremidades, como uma
sensação difusa mas desagradável que rapidamente se transformou na dor mais intensa que Billy
jamais experimentara. Ela chegava em ondas, no ritmo exato das batidas do coração, agora bem
mais rápidas que o normal. Kelly ouviu quando os gemidos se transformaram em gritos. De
acordo com o medidor, a pressão tinha caído para menos de vinte metros. Ele fechou a válvula
de descompressão e abriu a de pressurização; em dois minutos, a pressão era de novo de quatro
atmosferas. Com a volta da pressão, as dores desapareceram quase instantaneamente, deixando
apenas os músculos doloridos, como os de um atleta depois de um grande esforço. Mas não era
uma coisa com a qual Billy estivesse acostumado; ele não pareceu gostar nem um pouco. Mais
importante ainda: os olhos arregalados mostraram a Kelly que ele estava totalmente apavorado.
Não pareciam mais olhos humanos, pensou Kelly, com alívio.
Ele ligou o intercomunicador.
— Esse será o castigo se estiver mentindo. Achei que seria melhor você saber. Agora vou lhe
perguntar de novo: já foi preso alguma vez, Billy?
— Já disse que não!
— Nunca tiraram suas impressões digitais?
— Não, cara. Estou limpo!
— Já serviu o Exército?
— Não! Não!
— Está certo. Obrigado. — Kelly deu por encerrada a primeira série de perguntas. — Agora
vamos falar de Henry e sua organização. — Estava acontecendo outra coisa que Billy não
esperava. A partir de umas três atmosferas de pressão, o nitrogênio, o principal componente da
mistura de gases que os humanos chamam de ar, começa a exercer um efeito narcótico
semelhante ao do álcool e dos barbitúricos. Por mais assustado que Billy estivesse, também
começava a se sentir vagamente eufórico, o que facilitava o interrogatório.
Era uma das vantagens da técnica que Kelly escolhera.

— Ele deixou o dinheiro? — perguntou Tucker.


— Mais de cinquenta mil. Quando saí, ainda estavam contando — afirmou Mark Charon. Os
dois tinham se encontrado de novo no cinema. Eram os únicos ocupantes do balcão. Desta vez,
Henry não estava comendo pipoca, observou o detetive. Não era comum ver Tucker tão agitado.
— Preciso saber o que está acontecendo realmente. Conte-me o que sabe.
— Alguns traficantes foram mortos nos últimos dez dias...
— Ju-Ju, Bandanna e dois outros que não conheço. É, eu sei. Acha que há alguma relação?
— É tudo que temos, Henry. Foi Billy que desapareceu?
— Foi. Mataram Rick. Usaram uma faca?
— Alguém arrancou-lhe o coração do peito — exagerou Charon. — Uma das suas garotas
também sumiu, não foi?
— Doris — confirmou Henry. — Ele não quis levar o dinheiro... por quê?
— Talvez tenha sido um assalto que deu errado, mas não temos certeza. Ju-Ju e Bandanna
foram roubados... droga, pode ser que um caso não tenha relação com o outro. O que aconteceu
na noite passada pode ser algo totalmente diferente.
— O que, por exemplo?
— Um ataque direto à organização — respondeu Charon, pacientemente. — Conhece alguém
que tivesse interesse em prejudicá-lo? Você não precisa ser da polícia para entender que todo
crime tem um motivo, certo? — Parte dele (uma grande parte, na verdade) estava gostando de
estar, pelo menos por algum tempo, em uma posição de superioridade. — Billy sabe de muita
coisa?
— Sabe. Eu pretendia usá-lo para... — Tucker interrompeu a frase no meio.
— Está bem. Eu não preciso saber nem quero saber. Mas alguém pode estar interrogando
Billy neste exato momento, e acho melhor você começar a se preocupar com isso. — Um pouco
tarde, Mark Charon estava começando a se dar conta de até que ponto dependia de Henry
Tucker.
— Por que ele pelo menos não quis dar a impressão de que era um assalto? — perguntou
Tucker, olhando distraidamente para a tela.
— Foi uma forma de lhe mandar um recado, Henry. Não levar o dinheiro foi um sinal de
menosprezo. Quem você conhece que não precisa de dinheiro?

Os gritos estavam ficando mais fortes. Billy fizera outra excursão até vinte metros, ficando
nessa profundidade por alguns minutos. Era bom poder observar o rosto dele. Kelly viu quando
os dois tímpanos se romperam, com menos de um segundo de intervalo, e o traficante levou as
mãos aos ouvidos. Em seguida, os olhos e os seios nasais foram afetados. Em breve os dentes
também seriam atacados se ele tivesse cáries, o que era bem provável, pensou, mas não queria
machucá-lo de verdade. Ainda não.
— Billy — chamou, depois de repressurizar a câmara, eliminando a maior parte da dor. —
Não sei se devo acreditar na sua última resposta.
— Seu filho da puta! — berrou o traficante no microfone. — Eu estava lá, sabia? Vi sua
namorada morrer com o pau de Henry dentro dela, abrindo a boceta para ele, e vi você chorar
como um bebê, seu veado filho da puta!
Kelly abriu de novo a válvula de descompressão, levando Billy de volta a trinta metros,
apenas o suficiente para que começasse a sofrer. As juntas principais do corpo já deviam estar
sangrando internamente, porque as bolhas de nitrogênio tendiam a se concentrar ali. A reação
instintiva das pessoas atingidas pela síndrome de descompressão era dobrar o corpo; daí o
nome popular da doença, "dobras" (embolia gasosa). Mas no interior da câmara não havia
espaço suficiente para isso. O sistema nervoso central também estava sendo afetado; as fibras
diáfanas iam se rompendo uma a uma e o sofrimento de Billy adquiria novos matizes, desde a
dor surda das juntas e extremidades até as lancinantes em todo o corpo. Espasmos nervosos
começaram quando as pequenas fibras elétricas se rebelaram contra o que estava acontecendo
com elas; o corpo de Billy foi sacudido como se estivesse sendo submetido a descargas
elétricas. Kelly ficou preocupado com os sintomas neurológicos e aumentou a pressão, fazendo
os espasmos diminuírem.
— Agora, Billy, você sabe como Pam se sentiu? — perguntou, apenas, na verdade, para
lembrar a si próprio.
— Dói muito. — O traficante estava chorando. Levou as mãos ao rosto, mas era impossível
esconder sua agonia.
— Billy — disse Kelly, pacientemente. — Já entendeu como a coisa funciona? Quando tenho
a impressão de que está mentindo, faço a dor aumentar. Quando o que você diz não me agrada,
faço a dor aumentar. Quer que a dor aumente?
— Não! Pelo amor de Deus! — O traficante baixou as mãos. Os olhos dos dois não estavam
separados mais do que um palmo.
— Procure ser um pouco mais educado, está bem?
— ...Desculpe...
— Está desculpado, Billy, mas tem que responder às minhas perguntas, OK? — Billy fez que
sim com a cabeça.
Kelly pegou um copo d'água. Verificou o sistema de pressurização do compartimento estanque
antes de abrir a janela externa e colocar o copo no interior. — Se você abrir a janela perto da
sua cabeça, poderá beber um pouco d'água.
Billy obedeceu e pouco depois estava bebendo água através de um canudinho.
— Agora vamos falar de novo de negócios, está bem? Estou interessado em Henry. Onde ele
mora?
— Não sei.
— Resposta errada! — rosnou Kelly.
— Por favor, não faça nada! Eu não sei, nós nos encontramos em um bar da estrada 40, ele
não deixa ninguém saber onde...
— Responda direito ou o elevador vai voltar para o sexto andar. É isso que você quer?
— Nããão! — O grito foi tão alto que atravessou as paredes de aço de dois centímetros de
espessura. — Não, por favor! Eu realmente não sei!
— Billy, não tenho nenhum motivo para ser bonzinho com você. Você matou Pam, lembra-se?
Torturou-a até a morte. Usou até um alicate. Quantas horas, Billy, quantas horas você e seus
amigos se divertiram com ela? Dez? Doze? Billy, estamos conversando há apenas sete horas.
Está me dizendo que trabalha para esse cara há quase dois anos e não sabe onde ele mora? Acho
difícil de acreditar. Sobe — anunciou Kelly, com voz mecânica, estendendo a mão para a
válvula. Tudo que teve a fazer foi mexer mela. O primeiro silvo de ar foi suficiente para que
Billy começasse a gritar. — EU NÃO SEEEEEEI!
Droga! E se ele não souber mesmo?
Bem, pensou Kelly, não custa insistir um pouco, só para garantir. Descomprimir para vinte
e cinco metros, apenas o suficiente para renovar a dor sem produzir novos danos. O medo da
dor já se tornara uma tortura para Billy, pensou; se fosse longe demais, a dor se tornaria seu
próprio narcótico. Aquele homem era um covarde que muitas vezes se divertira fazendo os
outros sofrerem. Se descobrisse que a dor, por pior que fosse, podia ser tolerada, talvez
encontrasse uma nova coragem para resistir. Era um risco que Kelly não estava disposto a
correr. Ele fechou novamente a válvula de descompressão e fez a pressão subir, desta vez para
quarenta e poucos metros, com o objetivo de atenuar a dor e aumentar a narcose.

— Meu Deus! — balbuciou Sarah. Não tivera oportunidade de ver as fotos do corpo de Pam;
o marido lhe dissera que era melhor assim e respeitara a opinião dele.
Doris estava nua e estranhamente passiva. Sandy a ajudara a tomar um banho antes do exame.
Sam acabava de auscultá-la. Os batimentos cardíacos passavam de noventa por minuto. Eram
firmes, mas rápidos demais para uma pessoa de sua idade. A pressão arterial também estava
elevada. A temperatura era normal. Sandy se aproximou e colheu quatro amostras de sangue em
tubos de ensaio de 5cc para serem analisadas no laboratório do hospital.
— Quem seria capaz de fazer uma coisa dessas? — murmurou Sarah consigo. Havia várias
marcas nos seios da jovem, um hematoma antigo na face direita e edemas mais recentes no
abdome e nas pernas. Sam verificou a resposta das pupilas à luz e ela foi positiva, exceto pela
ausência total de reação.
— As mesmas pessoas que mataram Pam — respondeu o cirurgião.
— Pam? — perguntou Doris. — De onde conhece Pam?
— Sabe o homem que trouxe você aqui? — interveio Sandy. — Ele é o mesmo...
— ...que Billy matou?
— Ele mesmo — confirmou Sam, antes de se dar conta do absurdo do diálogo.

— Sei apenas o telefone dele — declarou Billy, com voz pastosa por causa da alta
concentração de nitrogênio no sangue. A cessação da dor o deixara muito mais disposto a
cooperar.
— Então diga qual é — ordenou Kelly. Billy obedeceu e o rapaz anotou o número. As
revelações do traficante já ocupavam duas páginas escritas a lápis. Nomes, endereços, alguns
números de telefone. Podia parecer pouco, mas era muito mais do que dispunha na véspera.
— Como as drogas entram no país?
Billy desviou os olhos da janela.
— Não sei...
— Vai ter que arranjar uma resposta melhor. Ssssssss...
Billy gritou, mas desta vez Kelly foi mais longe, deixando a profundidade simulada cair para
vinte metros. O traficante começou a tossir. Seus pulmões já estavam comprometidos e a tosse
só servia para aumentar a dor que agora invadia cada centímetro do seu corpo. Sentia-se como
um balão, ou melhor, como uma coleção de balões, grandes e pequenos, todos prestes a
explodir, comprimindo uns aos outros. Alguns eram mais resistentes, outros mais fracos; os mais
fracos pareciam ser os localizados em pontos vitais. Os olhos agora estavam doendo, pareciam
querer sair das órbitas, e a pressão no interior dos seios paranasais tornava as coisas ainda
piores. Teve a impressão de que o rosto iria se destacar do resto do crânio; comprimiu-o com as
mãos, tentando desesperadamente mantê-lo no lugar. Jamais conseguira infligir às suas vítimas a
dor que estava sentindo naquele momento. As pernas se dobravam tanto quanto o cilindro de aço
permitia, e as rótulas pareciam fazer mossas nas paredes de metal, de tanto que se comprimiam
contra elas. Ainda era capaz de mover os braços e agitava-os freneticamente, tentando evitar a
dor, mas só conseguindo agravá-la. Já não conseguia mais gritar. O tempo parou para Billy e
transformou-se em eternidade. Não havia luz nem escuridão, ruído nem silêncio. Tudo que
existia era a dor.
— ...por favor... por favor... — suplicou o traficante pelo alto-falante.
Kelly tornou a aumentar a pressão, parando desta vez em quarenta metros. O rosto de Billy
estava manchado, como se estivesse sofrendo de uma doença de pele. Alguns vasos sanguíneos
tinham arrebentado logo abaixo da pele, e um vaso um pouco maior se rompera no olho
esquerdo. Em pouco tempo, metade do branco do olho ficou vermelha, deixando-o ainda mais
parecido com o animal perigoso e assustado que era.
— A última coisa que perguntei foi como as drogas entram no país.
— Não sei... — gemeu Billy.
Kelly falou calmamente no microfone:
— Billy, precisa entender uma coisa. Até agora, sentiu muita dor, eu sei, mas isso não é nada
comparado com o que posso fazer. Se eu quiser, faço você sofrer de verdade.
Billy arregalou os olhos. Se estivesse em seu estado normal, poderia ter raciocinado que
tinha que haver um limite para o sofrimento, uma conclusão que seria ao mesmo tempo falsa e
verdadeira.
— Tudo o que aconteceu até agora é coisa que os médicos podem consertar, OK? — Não era
uma mentira muito grande por parte de Kelly, e o que se seguiu era a mais pura verdade. — A
próxima vez que eu deixar o ar escapar, Billy, vão acontecer coisas irreversíveis. As artérias do
seus olhos vão arrebentar e você vai ficar cego. Outros vasos dentro do seu cérebro vão
explodir, entende? E não vai ter conserto. Você vai ficar cego e vai ficar louco. Mas a dor não
vai desaparecer. O resto da vida, Billy, cego, louco e morrendo de dor. Quantos anos você tem?
Vinte e cinco? Tem muito tempo ainda para viver. Quarenta anos, talvez. Cego, louco, aleijado.
Não acha melhor parar de mentir? Agora responda: como as drogas entram no país?
Não tenha pena, disse Kelly a si mesmo. Teria matado um cachorro, um gato ou um cavalo
para que não sofresse o que estava sofrendo aquele... aquele objeto. Mas Billy não era um
cachorro, um gato ou um cavalo. Era um arremedo de ser humano. Pior do que o proxeneta, pior
do que os traficantes. Se a situação se invertesse, Billy não sentiria o que ele estava sentindo.
Era uma pessoa cujo universo tinha dimensões muito reduzidas. Continha uma só pessoa, ele
próprio, cercado de coisas cuja única função era serem manipuladas para lhe proporcionar
prazer ou lucro. Billy gostava de fazer os outros sofrerem, gostava de mostrar sua superioridade
sobre as coisas, cujos sentimentos, se existissem, não tinham a menor importância para ele. Por
alguma razão, jamais aprendera que havia outros seres humanos no universo, pessoas cujo
direito à vida e à felicidade eram iguais aos seus; por isso, humilhava os semelhantes sem ao
menos ter consciência do que estava fazendo. Azar dos que compartilhavam do excêntrico
universo de Billy, Talvez tivesse começado a aprender agora, um pouco tarde. Seu futuro seria
realmente um universo solitário, que compartilharia não com pessoas, mas com a dor.
Provavelmente nunca lhe passara pela cabeça que alguém pudesse tratá-lo da mesma forma
como tratava os outros. Mas isso também acontecera tarde demais. Tarde demais para Billy,
tarde demais para Pam e, de certa forma, tarde demais para Kelly. O mundo estava cheio de
injustiças. Era simples, não era? Billy não fazia ideia de que a justiça poderia estar à sua
espera, e no início não sofrerá nenhum tipo de castigo que lhe servisse de advertência. Por isso,
abusara da sorte e perdera. Kelly reservaria sua piedade para alguém mais merecedor.
— Não sei, não sei...
—Eu avisei, não foi? — Kelly abriu a válvula e levou-o diretamente para uma profundidade
de quinze metros. Àquela altura, os capilares da retina já deviam ter se rompido. Kelly viu uma
sombra avermelhada nas pupilas, que se dilataram enquanto Billy tentava gritar mesmo depois
que seus pulmões se esvaziaram. Joelhos, pés e cotovelos martelavam as ' paredes da câmara.
Kelly esperou um pouco antes de aumentar novamente a pressão.
— Conte-me o que sabe, Billy, senão vai piorar ainda mais. É melhor se apressar.
Ao se dar conta do que o aguardava, Billy finalmente abandonou toda a resistência. Isso era
óbvio na sua expressão. Começou a falar, com voz trêmula e claudicante, mas que, pela primeira
vez, parecia totalmente sincera. Estava atrasado apenas dez anos, calculou Kelly. As
informações eram curiosas, mas tinham que ser verdadeiras. Ninguém teria uma imaginação
suficientemente fértil para inventar uma história daquelas. A parte final do interrogatório durou
três horas; Kelly só deixou o ar escapar uma vez durante todo esse tempo e assim mesmo apenas
por alguns segundos. Repetiu algumas perguntas para ver se as respostas mudavam, mas isso
não aconteceu. Na verdade, Billy forneceu novos detalhes que o ajudaram a formar uma ideia
mais precisa do conjunto. Era meia-noite quando se deu por satisfeito. Tinha extraído tudo que
era possível da mente do traficante.
Kelly quase se deixou tomar por um sentimento de piedade quando pôs o lápis de lado. Se
Billy tivesse demonstrado alguma contemplação por Pam, talvez agisse de outra forma, porque,
como o traficante afirmara, o atentado a sua vida não tinha sido motivado por nada pessoal. Na
verdade, foi causado por sua própria estupidez, e não podia culpar um homem por tirar proveito
dos erros que cometera. Entretanto, o traficante fora além. Torturara uma jovem indefesa, a
jovem que amava; por isso, não merecia seu perdão.
Não que fizesse alguma diferença. O estrago estava feito e prosseguia lentamente à medida
que tecidos dilacerados pelo trauma barométrico passeavam pela corrente sanguínea, obstruindo
vaso após vaso. Os piores efeitos eram no cérebro de Billy. Em pouco tempo, os olhos
esgazeados anunciavam a falta de lucidez, e embora a descompressão final fosse lenta e suave,
o que saiu da câmara não foi um homem — na verdade, nunca tinha sido.
Kelly desparafusou a tampa e abriu-a. Foi recebido por um cheiro desagradável que deveria
ter previsto. O acúmulo de pressão nos intestinos e na bexiga de Billy, seguido por uma brusca
liberação, produzira os efeitos que seriam de se esperar. Vou ter que lavar a câmara, pensou
Kelly, puxando o traficante para fora e colocando-o no piso de concreto. Pensou em acorrentá-
lo a alguma coisa, mas isso não seria necessário. O corpo a seus pés estava inutilizado, as
juntas destruídas, o sistema nervoso incapaz de transmitir alguma coisa além da dor. Entretanto,
Billy ainda respirava, o que era ótimo, pensou Kelly, enquanto se encaminhava para o quarto de
dormir, feliz porque tudo terminara. Não gostaria de ter que passar por aquilo de novo. Com
sorte e cuidados médicos adequados, Billy ainda viveria algumas semanas. Se é que se podia
chamar aquilo de viver.
21

POSSIBILIDADES

Kelly ficou surpreso ao constatar que tivera uma ótima noite de sono. Não estava certo,
pensou, dormir durante dez horas ininterruptas depois de fazer o que fizera com Billy. Era um
momento estranho para a sua consciência se manifestar, disse para o reflexo no espelho
enquanto se barbeava. Era também um pouco ilógico. Se alguém sai por aí machucando
mulheres e viciando pessoas, devia estar preparado para enfrentar as possíveis consequências.
Enxugou o rosto. Não extraíra prazer do sofrimento que causara; disso estava certo. Era uma
questão de conseguir as informações de que necessitava e, ao mesmo tempo, fazer justiça de
uma forma particularmente apropriada. Ser capaz de classificar seus atos em termos familiares
ajudava a manter a consciência sob controle.
Tinha que ir a um certo lugar. Depois de se vestir, Kelly pegou uma capa de plástico e a
estendeu no convés de popa do barco. Já tinha feito as malas e levou a bagagem para bordo.
Seria uma viagem de várias horas, uma viagem maçante, quase toda na escuridão da noite.
Rumando para o sul, em direção a Point Lookout, Kelly aproveitou para observar os navios
abandonados perto da ilha Bloodsworth. Construídos para a Primeira Guerra Mundial, eles
formavam uma coleção bem variada. Alguns eram feitos de madeira, outros de concreto — o
que parecia realmente muito estranho — e todos tinham sobrevivido à primeira campanha
organizada de submarinos da história, mas não eram comercialmente viáveis nem na década de
1920, quando os marinheiros dos navios mercantes tinham se tornado bem mais baratos do que
as tripulações dos rebocadores que singravam as águas da baía de Chesapeake. Kelly foi até a
ponte de navegação e, enquanto o piloto automático mantinha o barco no rumo sul, examinou de
binóculo as velhas embarcações, porque uma delas provavelmente lhe interessava.
Não conseguiu discernir nenhum movimento, porém, e não viu nenhum barco moderno nas
proximidades do manguezal em que se transformara o cemitério de navios. Isso era previsível,
pensou. A atividade ali devia ser apenas esporádica, embora se tratasse de um excelente local
para a atividade a que Billy se dedicara até recentemente. Mudou de curso, rumando para oeste.
Aquele assunto teria que esperar. Kelly fez um esforço consciente para tirar aquilo do
pensamento. Em breve voltaria a participar de uma equipe constituída por pessoas como ele.
Uma trégua muito necessária, pensou, durante a qual teria tempo para planejar a fase seguinte de
sua operação.
Os policiais tinham ouvido apenas um relato resumido do incidente com a Sra. Charles, mas o
método usado para eliminar o assaltante tinha sido suficiente para deixá-los em guarda. Não era
necessário recomendar cautela. Tinham começado a trabalhar aos pares, embora alguns guardas
mais experientes (ou ousados) insistissem em fazer o serviço sozinhos, de uma forma que teria
deixado Ryan e Douglas irritados caso estivessem presentes. Um dos policiais abordava o
suspeito enquanto o outro se mantinha a uma certa distância, com a mão discretamente na
coronha do revólver. O primeiro policial fazia o vagabundo encostar-se à parede e o revistava
em busca de armas. Muitas vezes encontrava uma faca, mas nada de armas de fogo. Qualquer
bêbado de rua que conseguisse um revólver trataria logo de vendê-lo para comprar bebida ou,
em alguns casos, drogas mais fortes. Na primeira noite, onze suspeitos tinham sido localizados e
revistados; dois foram presos por desacato à autoridade. No final do turno, porém, nada de útil
tinha sido descoberto.
— Descobri uma coisa — declarou Charon. — Seu carro estava no estacionamento de um
supermercado, ao lado de um Cadillac.
— O que foi?
— Estão procurado um sujeito disfarçado de mendigo.
— Está brincando? — perguntou Tucker, com uma careta.
— Foi a ordem que receberam, Henry — insistiu o detetive. — E foram instruídos para se
aproximar dos suspeitos com muita cautela.
— Que besteira! — rosnou o traficante.
— Ele é branco, não muito alto, quarenta e poucos anos. Tem muita força e agilidade. Parece
que no mesmo dia em que evitou um assalto mais dois traficantes apareceram mortos. Aposto
que é o mesmo cara que está matando os traficantes.
Tucker sacudiu a cabeça.
— Rick e Billy também? Não faz sentido.
— Henry, faça sentido ou não, é o que a polícia pensa, OK? Agora preste atenção. Seja quem
for esse cara, ele é um profissional. Entendeu? Um profissional.
— Tony e Eddie — disse Tucker.
— Também pensei nisso, Henry, mas não passa de um palpite — declarou Charon,
arrancando com o carro.
Não faz sentido, pensou Tucker, saindo do estacionamento e entrando na Edmondson Avenue.
Por que Tony e Eddie tentariam... o quê? O que estava acontecendo? Não sabiam muita coisa
a respeito da operação, apenas que existia e que ele, Henry, se tornara o principal
fornecedor. Prejudicar o negócio sem conhecer a forma como obtinha o produto seria uma
atitude ilógica.
E se Billy ainda estivesse vivo? Se Billy tivesse feito um trato com alguém e Rick tivesse
concordado? Era possível; Rick tinha sido um homem mais fraco porém mais confiável do
que Billy.
Billy mata Rick, leva Doris e larga o corpo em algum lugar... Billy sabe como fazer isso,
não sabe? Billy faz contato com... com quem? Um filho da puta ambicioso, pensou Tucker.
Não é tão esperto assim, mas é ambicioso e sabe ser duro quando é preciso.
Possibilidades. Billy faz contato com alguém. Quem é que Billy conhece? Ele sabe onde o
produto é processado, mas não como entra no país... talvez o cheiro, o cheiro de formaldeído
nos sacos plásticos. No começo, tinha sido cuidadoso quanto àquele aspecto da operação; na
fase inicial, quando Tony e Eddie o ajudavam a embalar o produto, Henry se dera ao trabalho de
transferir a droga para outros sacos, só para garantir. Nas últimas duas remessas, porém...
Merda! Tinha sido um descuido imperdoável. Billy sabia onde o produto era processado, mas
conseguiria chegar lá sozinho? Não era provável. Ele não sabia muita coisa a respeito de barcos
nem gostava do mar. A navegação era uma arte difícil de aprender.
Eddie e Tony são navegadores experientes, seu idiota, disse Henry para si próprio.
Mas por que haveriam de traí-lo logo agora que o negócio estava prosperando?
Quem mais teria interesse em prejudicá-lo? Havia o grupo de Nova York. Não tivera contato
direto com eles, mas invadira o mercado, tirando vantagem de uma escassez temporária para
firmar posição. Estariam aborrecidos com isso?
E o grupo de Filadélfia? Eram os intermediários entre ele e o mercado de Nova York.
Podia ser que estivessem ficando gananciosos. Será que haviam subornado Billy?
Talvez Eddie tivesse resolvido assumir o negócio, traindo Tony e Henry ao mesmo tempo.
Havia muitas possibilidades. Fosse o que fosse que estivesse acontecendo, Henry ainda
controlava a entrada da droga no país. Entretanto, tinha que defender sua posição, seu território,
suas ligações. As coisas estavam apenas começando a funcionar. Tinham sido necessários anos
de trabalho para chegar ao ponto onde estava, pensou, dobrando à direita para tomar a direção
de casa. Para começar de novo, teria que assumir riscos inaceitáveis. Encontrar uma outra
cidade, montar uma outra rede. Além disso, a guerra do Vietnã estava esfriando. O número de
baixas, do qual dependia seu negócio, era cada vez menor. Um contratempo agora poderia
arruinar toda a operação. Se continuasse no mesmo ritmo, em dois anos poderia ganhar por
volta de dez milhões de dólares — ou mesmo o dobro dessa quantia, se soubesse aproveitar
todas as oportunidades — e passar o resto da vida vivendo de renda. Era esse o seu objetivo.
Dificilmente conseguiria começar de novo da estaca zero. Não, tinha que lutar para defender o
que era seu.
Defenda o que é seu, cara. Um plano começou a tomar forma. Tornaria público que estava
atrás de Billy e o queria vivo. Conversaria com Tony e investigaria a possibilidade de que
Eddie estivesse fazendo jogo duplo, de que tivesse algum tipo de acordo com os rivais do norte.
Usaria esses dois recursos para obter informações e agiria com base no que conseguisse
descobrir.

Ali parece um bom lugar, disse Kelly para si próprio. O Springer se movia lentamente.
Estava procurando um local que fosse habitado, mas onde pudesse desembarcar sem ser visto.
Já tinha enfrentado desafios maiores, pensou, com um sorriso. Observou atentamente a margem.
Avistou o que parecia ser uma escola, provavelmente um colégio interno. Não havia luzes nas
janelas. Logo além ficava uma cidade, pequena e sonolenta, com poucas luzes acesas. De vez
em quando passava um carro, mas pela rua principal, de onde seria impossível avistá-lo.
Deixou o barco passar por uma curva do rio onde havia uma fazenda, provavelmente uma
fazenda de tabaco, a julgar pelo aspecto. A casa principal ficava a uns seiscentos metros da
margem. Os donos deviam estar lá dentro, com o ar-condicionado ligado, vendo televisão.
Dificilmente o veriam. Resolveu arriscar.
Colocou os motores em ponto morto e lançou uma pequena âncora. Agindo com rapidez e
tomando cuidado para não fazer barulho colocou na água um barco a remo. Não foi difícil levar
Billy até a borda do iate, mas não conseguiu colocá-lo dentro do bote. Voltou correndo para
pegar um colete salva-vidas, que vestiu no homem antes de jogá-lo na água. Seria mais fácil
assim. Amarrou o colete na popa do bote e começou a remar. Levou apenas três ou quatro
minutos para chegar à margem lamacenta. Era realmente uma escola. Provavelmente mantinha
um curso de verão e certamente teria uma equipe de manutenção, que estaria ali de manhã.
Saltou do bote e puxou Billy para terra antes de remover o salva-vidas.
— Você vai ficar aqui.
— ...ficar...
— Isso mesmo.
Kelly empurrou o bote de volta para o rio. Quando começou a remar olhou para Billy pela
última vez. O ex-traficante estava totalmente despido. Não tinha nenhuma marca característica
que não tivesse sido criada por Kelly nas últimas horas. Ele lhe assegurara mais de uma vez que
a polícia não tinha suas impressões digitais. Era provável que jamais conseguissem identificá-
lo. Não viveria muito tempo, do jeito que estava. Os danos cerebrais tinham sido mais extensos
do que Kelly imaginara, e isso indicava que outros órgãos também deviam estar seriamente
afetados. Entretanto, demonstrara certa piedade, no fim das contas. Os urubus provavelmente
não teriam chance de retalhá-lo. Isso seria com os médicos.
Logo, Kelly estava subindo de novo o Potomac.
Duas horas depois, avistou a marina da base de Quantico. Manobrou com cuidado,
escolhendo uma vaga para visitantes na extremidade de um dos ancoradouros.
— Quem vem lá? — perguntou uma voz, na escuridão.
— Meu nome é Clark — respondeu Kelly. — Acho que sou esperado.
— Ah, sim. Bonito barco — disse o homem, encaminhando-se de volta para o escritório da
marina. Minutos depois, um carro apareceu vindo da base.
— Chegou antes da hora prevista — declarou Martin Young.
— Estou ansioso para começar —, senhor. — Quer subir a bordo?
— Obrigado, Sr. Clark. — O general olhou com inveja para a sala da embarcação. — Onde
conseguiu esta beleza? Faz meu barco parecer um escaler.
— Não sei o que dizer, senhor — replicou Kelly. — Desculpe.
O general Young pareceu satisfeito com o pedido de desculpas.
— Dutch me disse que você concordou em participar da operação.
— Sim, senhor.
— Não vai mudar de ideia? — Young observou a tatuagem no braço de Kelly e imaginou o
que significaria.
Passei mais de um ano na operação PHOENIX, senhor. Com quem vou trabalhar?
— Eles são todos da força de reconhecimento. Estão sendo muito duramente treinados.
— Acordam todo dia às cinco e meia? — perguntou Kelly.
— Isso mesmo. Vou mandar alguém acordar você também. — sorriu. — Queremos que esteja
em boa forma quando chegar a hora.
— Muito justo, general.

— O que pode ser tão importante? Não podia deixar para amanhã? — perguntou Piaggi,
aborrecido por ser procurado em um domingo à noite.
— Acho que alguém está me traindo. Quero saber quem é.
— Ah! — Isso tornava as coisas diferentes, pensou Tony. — Conte o que aconteceu.
— Alguém anda matando os traficantes de rua — explicou Tucker.
— Eu leio jornal — declarou Piaggi. Colocou um pouco de vinho no copo do visitante. Em
ocasiões assim, era importante preservar a normalidade. Tucker jamais faria parte da família a
que pertencia, mesmo assim era um sócio valioso. — Por que isso é importante, Henry?
— O mesmo sujeito pegou dois dos meus homens. Rick e Billy.
— Os mesmos que...
— Exatamente. Uma das minhas garotas também está sumida. — levou o copo aos lábios e
bebeu um gole, olhando Piaggi nos olhos.
— Roubaram alguma coisa?
Billy estava com setenta mil em dinheiro. A polícia encontrou tudo lá. — Tucker deu os
detalhes. — Segundo a polícia, parece trabalho de profissional — acrescentou.
— Você tem muitos inimigos? — perguntou Tony. Não era uma pergunta muito inteligente
(todo mundo naquele tipo de negócio tinha inimigos), mas tinha que fazê-la.
— Dei um jeito para que a polícia pegasse meus principais competidores.
Piaggi assentiu. Era uma prática comum no ramo, embora um pouco arriscada. Deu de
ombros. Henry às vezes era muito agressivo, o que deixava Tony e os colegas preocupados.
Entretanto, também sabia ser cauteloso quando necessário.
— Então seria uma vingança?
— Nenhum deles desprezaria setenta mil paus.
— Isso é verdade — admitiu Piaggi. — Tenho uma novidade para você, Henry. Eu também
não sou do tipo de deixar passar uma grana dessas.
Não diga!, pensou Tucker, mantendo-se impassível.
— Tony, ou o cara é maluco ou quis me dar um recado. Ele matou sete ou oito pessoas sem
ser visto. Usou uma faca para acabar com Rick. Não acho que seja um maluco, entende?
O engraçado era que os dois homens achavam que o fato de o crime ser cometido com uma
faca inculpava o outro. Henry tinha a impressão de que os italianos eram especialistas em facas;
para Piaggi, as facas eram marca registrada dos negros.
— Pelo que ouvi dizer, alguém está matando os traficantes com uma pistola... uma pistola
pequena.
— Um deles foi morto com um tiro de espingarda no peito. A polícia começou a interrogar os
mendigos, mas com muito cuidado.
— Isso eu não sabia — admitiu Piaggi. Henry parecia saber do que estava falando. Como
morava mais perto daquele bairro, era de se esperar que recebesse as informações antes de
Piaggi.
— Parece mesmo trabalho de profissional — concluiu Tucker. — Alguém realmente bom,
entende?
Piaggi concordou com a cabeça, enquanto pensava furiosamente. A existência de uma rede de
executores da Máfia era uma ficção criada pelo cinema e pela televisão. Os assassinatos
ligados ao crime organizado em geral não eram cometidos por gente especializada, mas por
homens que desempenhavam outras atividades mais necessárias e mais lucrativas. Não havia
uma classe de assassinos de aluguel que esperavam pacientemente por chamadas telefônicas,
faziam o serviço e depois voltavam a suas mansões para aguardar o próximo chamado. Havia,
sim, membros da organização que tinham mais experiência ou competência nesse tipo de
trabalho, mas não era a mesma coisa. Significava simplesmente que o indivíduo em questão não
se importava de matar — e isso queria dizer que o serviço seria executado com um mínimo de
estardalhaço e não com um máximo de requinte. Sociopatas verdadeiros eram raros, mesmo na
Máfia, e assassinatos malfeitos constituíam a regra, e não a exceção. De modo que o
"profissional" a que Henry se referia existia apenas nas obras de ficção, na imagem que a TV
fazia de um matador da Máfia. Mas como iria explicar isso a Henry?
— Não foi um dos meus, Henry — declarou, afinal.
Não precisava entrar em detalhes, pensou Piaggi, esperando a reação do sócio. Henry sempre
imaginara que Piaggi soubesse muita coisa a respeito de assassinatos. Piaggi sabia que Tucker
tinha mais experiência do que ele naquele tipo de negócio, mas isso era apenas mais uma coisa
que teria que explicar, e certamente não era o momento apropriado. Por isso, limitou-se a
observar a expressão de Tucker, tentando ler os pensamentos do outro enquanto terminava o
copo de Chianti.
Como vou saber se ele está dizendo a verdade? Não era preciso ser um telepata para
adivinhar o que estava se passando pela cabeça de Henry.
— Precisa de ajuda, Henry? — perguntou Piaggi, mais para quebrar um silêncio
constrangedor.
— Não acho que seja você. É esperto demais para fazer uma bobagem dessas — declarou
Tucker, esvaziando o copo.
— Ainda bem que pensa assim. — Tony sorriu e tornou a encher os copos.
— Eddie?
— Como assim?
— Será que um dia ele vai entrar para a família?
Tucker baixou os olhos e começou a agitar o vinho no copo, Uma das coisas que apreciava
em Tony era que ele sabia como criar uma atmosfera apropriada para uma discussão de
negócios. Talvez fosse por isso que se davam tão bem. Tony era quieto, reservado, sempre
educado, mesmo quando lhe faziam uma pergunta indiscreta.
— Isso é uma questão delicada, Henry. Não devia conversar com você a respeito. Você nunca
será da família. Sabe disso.
— Não há lugar para minorias em sua organização, hein? Não tem importância. Eu já
desconfiava. Isso não nos impede de fazer negócios, Anthony. — Tucker aproveitou a
oportunidade para sorrir, quebrando um pouco a tensão e torcendo para que assim Tony se
sentisse mais à vontade para responder. Seu desejo foi satisfeito.
— Não — respondeu Piaggi, depois de pensar um pouco. — Ninguém acha que Eddie seja
bom o bastante.
— Talvez ele esteja procurando provar o contrário.
Piaggi sacudiu a cabeça.
— Não acredito. Eddie vai ganhar um bom dinheiro trabalhando conosco. Ele sabe disso.
— Quem, então? — perguntou Tucker. — Quem mais tem conhecimento do que estamos
fazendo? Quem mais se daria ao trabalho de matar um bando de gente para encobrir um ataque
contra nós? Quem mais faria parecer trabalho de profissional?
Eddie não teria competência para isso, pensou Piaggi.
— Henry, não seria fácil nos desfazermos de Eddie, — Fez uma pausa. — Mas vou ficar de
olho nele.
— Obrigado — disse Tucker. Levantou-se e deixou Tony sozinho com o seu vinho.
Piaggi continuou sentado onde estava. Por que as coisas tinham que ser tão complicadas?
Será que Henry estava sendo sincero? Provavelmente, pensou. Ele era a única ligação de Henry
com a família, e romper essa ligação seria ruim para todos os interessados. Tucker jamais seria
um deles. Entretanto, era inteligente e cumpria suas promessas. A família tinha muitos
associados como ele, cuja importância e posição eram proporcionais à sua utilidade. Muitos na
verdade tinham mais poder que alguns membros da família, mas havia sempre uma diferença.
Em um confronto direto, ser da família contava muito... Na maioria dos casos, era um fator
decisivo.
Isso podia explicar muita coisa. Será que Eddie tinha inveja da posição de Henry na
organização? Será que sua vontade de entrar para a família era tão grande que o fazia esquecer
os interesses financeiros? Não fazia sentido, pensou Piaggi. Mas será que tudo tinha que fazer
sentido?

— Ó de bordo! — gritou uma voz.


O cabo dos fuzileiros ficou surpreso ao ver a porta da cabine se abrir imediatamente.
Esperava ter que tirar da cama aquele... aquele civil. Em vez disso, viu alguém usando roupa de
ginástica e botas de caça. Não era o uniforme dos fuzileiros, mas mostrava que aquele homem
era sério. Dava para ver o lugar de onde alguns distintivos tinham sido removidos, onde um
nome e algo mais devia estar pendurado, e isso fez com que levasse o Sr. Clark ainda mais a
sério.
— Por aqui, senhor. — O cabo fez um gesto.
Kelly acompanhou-o em silêncio,
Kelly sabia que o tratamento de senhor não queria dizer muita coisa. Na dúvida, um fuzileiro
chamaria um poste de rua de "senhor". Entrou no carro com o cabo e os dois seguiram na
direção da base, enquanto Kelly pensava que bem que gostaria de mais algumas horas de sono.
— Você é o motorista do general?
— Sim, senhor.
Nenhum dos dois disse mais nada até chegarem à base.
Havia vinte e cinco homens no pátio ainda tomado pela névoa da manhã, conversando e
fazendo exercícios de alongamento enquanto os sargentos andavam para um lado e para outro, à
procura de olhos remelentos ou atitudes relaxadas. Cabeças se viraram quando o carro do
general parou e um homem saltou. Eles notaram que Kelly não estava usando o uniforme
regulamentar de ginástica e imaginaram quem seria ele, especialmente porque não usava
nenhuma insígnia. Ele foi falar com o sargento mais antigo.
— Você é Gunny Irvin? — perguntou.
O primeiro-sargento artilheiro Paul Irvin fez que sim com a cabeça enquanto examinava o
recém-chegado da cabeça aos pés.
— Afirmativo, senhor. Sr. Clark?
Kelly assentiu.
— Pelo menos, estou tentando ser tão cedo assim.
Os dois homens trocaram um olhar. Paul Irvin tinha pele escura e parecia ser muito sério. Não
era um tipo tão ameaçador como Kelly imaginara; tinha os olhos de uma pessoa cautelosa,
ajuizada, o que era de se esperar de alguém da sua idade e com a sua experiência.
— O senhor está em boa forma? — perguntou Irvin.
— Só há uma maneira de verificar — respondeu "Clark".
Irvin deu um largo sorriso.
— Ótimo. Vou deixar que lidere a corrida, senhor. Nosso capitão sumiu. Deve estar por aí
tocando uma punheta.
Merda!
— Mas antes vamos fazer um pouco de aquecimento.
Irvin voltou até onde estavam os fuzileiros e mandou que ficassem em posição de sentido.
Kelly ocupou um lugar na segunda fila.
— Bom dia, fuzileiros!
— Recon! — responderam os soldados.
Os exercícios de aquecimento não foram exatamente divertidos, mas Kelly não precisou se
mostrar. Em vez disso, ficou observando Irvin, que estava ficando mais sério a cada minuto que
passava. Fazia os exercícios como se fosse um robô. Meia hora depois, todos estavam bem
aquecidos e Irvin colocou-os de novo em posição de sentido para iniciarem a corrida.
— Senhores, quero lhes apresentar um novo membro do nosso grupo, o Sr. Clark. Ele vai
liderar a corrida junto comigo.
Kelly se colocou ao lado do sargento e cochichou:
— Não conheço o caminho.
— Isso não vai ser problema, senhor. Pode nos seguir depois que ficar para trás — observou
Irvin, com um sorriso sardônico.
— Vamos lá, artilheiro — replicou Kelly, de um especialista para outro.
Quarenta minuto depois, Kelly ainda estava na dianteira. A posição lhe permitia ditar o ritmo
da corrida, o que era a única coisa boa no momento. Sua maior preocupação era não cambalear,
o que estava ficando difícil, já que o controle fino dos movimentos é o primeiro a ser afetado
pelo cansaço.
— Esquerda — disse Irvin, apontando. Kelly não podia saber que o sargento precisara de dez
segundos para reunir fôlego suficiente para falar. Entretanto, ele também tinha o encargo extra
de cantar a cadência. O novo caminho, apenas uma trilha de terra batida, os levou para o
interior da mata.
Edifícios.
Oh, Jesus, espero que seja o nosso destino. Até seu pensamento estava ofegante. O caminho
se tornava um pouco tortuoso, mas havia carros ali, e tinha que haver... o quê? A surpresa quase
o fez parar.
— Ordinário, marche! — comandou, por iniciativa própria, para fazer os homens reduzirem o
passo.
Bonecos?
— Grupamento, alto! — gritou Irvin. — À vontade — acrescentou.
Kelly tossiu algumas vezes, dobrando um pouco o corpo. Só sobrevivera graças as corridas
no parque e na ilha.
— Vá devagar — foi tudo que Irvin encontrou para dizer.
— Bom dia, Sr. Clark.
Afinal de contas, um dos carros era de verdade, pensou Kelly.
James Greer e Marty Young acenaram para ele.
— Bom dia. Dormiram bem? — perguntou Kelly.
— Você é um voluntário, John — observou Greer.
— Eles estão quatro minutos atrasados — declarou Young. — Mas você fez um trabalho
razoável, para um novato.
Kelly deu as costas a eles, um pouco ofendido. Levou quase um minuto para perceber o que
era aquele lugar.
— Ora, ora!
— Lá está sua colina — apontou Young.
— Aqui as árvores são mais baixas — afirmou Kelly, avaliando a distância.
— A colina também, para combinar.
— Esta noite? — perguntou. Não era difícil compreender o que o general tinha em mente.
— Está preparado?
— Acho que vamos ter que descobrir. Quando será a missão?
Greer tomou a palavra:
— Ainda não chegou a hora de você saber.
— Com que antecedência pretendem me avisar?
O funcionário da CIA pensou um pouco antes de responder.
— Três dias antes de partirmos. Daqui a algumas horas, vamos discutir os parâmetros da
missão. Até lá, observe como esses homens estão se saindo.
Greer e Young se encaminharam para o carro.
— Sim, senhor — respondeu Kelly, embora o almirante não pudesse mais ouvi-lo. Os
fuzileiros estavam tomando café. Foi se juntar a eles.
— Nada mau — comentou Irvin.
— Obrigado. Sempre achei que isso é uma das coisas mais importantes que se precisa saber
fazer em nossa profissão.
— O quê? — quis saber Irvin.
— Fugir o mais rápido e mais longe possível.
Irvin riu. Estava na hora de executar a primeira tarefa do dia, que serviria para os homens
esfriarem o corpo e também darem uma boas risadas. Começaram a mudar os bonecos de
posição. A escolha de que mulheres ficariam com que crianças já se tornara um ritual. Tinham
descoberto que podiam colocar os bonecos em diferentes posições, e os fuzileiros se divertiam
muito com isso. Dois deles tinham levado para a base biquínis exíguos, que vestiram com todo o
aparato em dois manequins femininos. Kelly observou-os, cada vez mais surpreso, até perceber
que os corpos dos bonecos tinham sido pintados, para ficarem mais realistas. Jesus, depois
dizem que os marinheiros é que só pensam besteira!

O USS Ogden era um navio quase novo, lançado ao mar em 1964, no estaleiro da Marinha em
Nova York. Tinha 175 metros de comprimento e a parte da frente possuía uma superestrutura
convencional e oito canhões de calibre suficiente para incomodar aeronaves inimigas. A parte
traseira, porém, era bem estranha: plana por cima e oca por baixo. A parte plana funcionava
como heliporto; logo abaixo ficava um convés que podia ser inundado e servia como base para
lanchas de desembarque. Ele e onze navios semelhantes tinham sido projetados para apoiar
operações de desembarque, colocando os fuzileiros na praia para as missões anfíbias que o
corpo de fuzileiros inventara na década de 1920 e aperfeiçoara na década de 1940. No
momento, os navios anfíbios da Frota do Pacífico estavam ociosos, pois os fuzileiros
desembarcavam, na maioria dos casos, transportados por jatos comerciais para aeroportos
convencionais; por isso, alguns deles estavam sendo adaptados para outras missões. Era o caso
do Ogden.
Carrocerias de caminhão estavam sendo colocadas a bordo com auxílio de guindastes.
Depois de fixadas no local, uma turma de operários instalava antenas de rádio. Outros objetos
semelhantes eram rebitados à superestrutura. A atividade tinha lugar a céu aberto — não havia
como esconder uma belonave de 17.000 toneladas —, e era evidente que o Ogden, como dois
outros navios da mesma classe, estava sendo transformado em uma plataforma de informação
eletrônica, ou ELINT. Ele partiu da base naval de San Diego ao pôr-do-sol, sem uma escolta e
sem o batalhão de fuzileiros que tinha sido construído para transportar. A tripulação de trinta
oficiais e quatrocentos e noventa marinheiros se acomodou na rotina, nos exercícios de
treinamento e outras coisas que a maioria escolhera fazer ao alistar-se na Marinha em vez de
esperar pelas incertezas de uma convocação. Quando ficou escuro, já desaparecera no horizonte
e a nova missão tinha sido comunicada a todas as partes interessadas, algumas das quais não
eram nações amigas. Com o convés de voo tomado por todas aquelas carrocerias de caminhão e
por uma floresta de antenas — e sem um fuzileiro a bordo —, o Ogden não representava uma
ameaça direta a ninguém. Isso era óbvio a todos que observassem o navio.
Doze horas depois, a trezentos quilômetros do litoral, os suboficiais reuniram os marinheiros
e lhes deram ordens para remover do convés de voo todas as carrocerias (que estavam vazias),
exceto uma, e todas as antenas. As antenas da superestrutura permaneceriam onde estavam. As
antenas foram as primeiras a serem recolhidas aos espaçosos porões.
Depois foi a vez das carrocerias vazias, o que deixou o convés de voo totalmente limpo.

Na base naval de Subic Bay, o comandante do USS Newport News planejava as missões do
mês seguinte com o imediato e o oficial de artilharia. Seu navio era um dos últimos cruzadores
de verdade do mundo, com nove canhões de oito polegadas do tipo mais avançado. Eles eram
semiautomáticos; as cargas de pólvora não vinham em sacos, mas em cartuchos de latão que
diferiam apenas em tamanho dos que qualquer caçador de veados poderia carregar no seu
Winchester .30-30. Com um alcance de tiro de mais de trinta quilômetros, o Newport News tinha
um impressionante poder de fogo, como um batalhão de norte-vietnamitas tivera a infelicidade
de constatar fazia apenas duas semanas. Cinquenta disparos por canhão por minuto. O canhão
central da torre número dois estava danificado, e por isso o cruzador podia disparar apenas
quatrocentos projéteis por minuto contra o alvo, mas isso era equivalente a cem bombas de mil
libras. A próxima missão do cruzador, de acordo com as ordens que o comandante recebera,
seria inutilizar algumas baterias antiaéreas na costa do Vietnã. Tudo bem, mas seu sonho secreto
era entrar no porto de Haiphong uma noite daquelas.
— Parece que o seu homem sabe o que está fazendo, pelo menos até agora — observou o
general Young, quando faltavam quinze para as duas.
— Não sei se devíamos exigir isso dele logo na primeira noite, Marty — protestou Dutch
Maxwell.
— Ora, Dutch, se ele quer treinar com os meus fuzileiros... Young era assim mesmo. Eram
todos "seus" fuzileiros. Ele havia sobrevoado Guadalcanal com Foss, dera cobertura ao
regimento de Chesty Puller na Coreia e tinha sido um dos responsáveis pela transformação do
apoio aéreo em uma forma de arte.
Os oficiais estavam no alto da colina que dava para o campo de treinamento construído por
Young. Quinze fuzileiros já estavam nas encostas; sua tarefa era detectar e eliminar Clark
quando este tentasse chegar ao cume. Até o general Young reconhecia que era uma prova difícil
para Clark em seu primeiro dia com o grupo, mas Jim Greer falara dele como se fosse uma
espécie de super-homem, e era preciso colocá-lo em seu lugar. Até Dutch Maxwell teve que
concordar com isso.
— Que maneira de ganhar a vida! — observou o almirante, que tinha sido responsável por
setecentos desembarques.
— Leões, tigres e ursos. — Young deu uma risada. — Minha nossa! Não espero que ele
consiga chegar aqui da primeira vez. Nossa equipe é de primeira, não é, Irvin?
— É, sim, senhor — apressou-se a responder o sargento.
— O que acha de Clark? — perguntou Young.
— Parece que sabe das coisas — admitiu Irvin. — E está em boa forma, para um civil. Além
disso, gosto de seus olhos.
— É mesmo?
— Já notou, senhor? Os olhos dele são frios. Não é nenhum principiante. — Falavam em voz
baixa. Kelly devia chegar até ali, mas não facilitariam seu trabalho, nem acrescentariam ruídos
estranhos aos sons naturais da mata. — Esta noite, porém, vai se dar mal. Já disse aos homens o
que vai acontecer se deixarem que o sujeito passe por eles logo na primeira tentativa.
— Vocês fuzileiros não sabem jogar limpo? — protestou Maxwell com um sorriso que os
outros não podiam ver. Irvin se encarregou de responder.
— Senhor, jogar "limpo" para mim é assegurar que todos os meus homens sobrevivam à
missão. Os outros que se fodam, com o perdão da palavra.
— Engraçado, sargento, eu também sempre usei essa definição. Este sujeito daria um ótimo
suboficial, pensou Maxwell.
— Tem acompanhado o beisebol, Marty? — Os homens relaxaram.
Clark não tinha a menor chance de sucesso.
— Acho que os Orioles vão ser campeões.
— Senhores, estamos perdendo a concentração — interveio Irvin, diplomaticamente.
— Tem razão. Desculpe — disse o general Young.
Os dois oficiais se calaram e ficaram olhando para os relógios, aguardando que os ponteiros
fosforescentes indicassem três horas, a hora combinada para o encerrar o exercício. Irvin
também se manteve em silêncio. A espera durou uma hora. O general dos fuzileiros se sentia
muito à vontade, mas o almirante não estava gostando de ficar tanto tempo no mato, no meio de
insetos chupadores de sangue, possíveis cobras e todo o tipo de coisas desagradáveis que não
existiam na cabine dos caças. Escutaram o som do vento nos galhos dos pinheiros, o bater das
asas de morcegos, corujas e talvez outros animais noturnos, e pouco mais do que isso.
Finalmente, os relógios marcaram duas horas e cinquenta e cinco minutos. Marty Young se pôs
de pé, espreguiçou-se e enfiou a mão no bolso para pegar um cigarro.
— Alguém aí tem um cigarro? Os meus acabaram e estou louco para fumar — murmurou uma
voz.
— Pegue aqui, fuzileiro — disse Young, o general complacente. Ofereceu um cigarro ao
desconhecido e acendeu o fiel Zippo. De repente, deu um pulo para trás. — Merda!
— Na minha opinião, general, vai ser difícil alguém ganhar de Pittsburgh. Os Orioles não têm
um bom arremessador. — Kelly deu uma baforada, sem tragar, e jogou o cigarro no chão.
— Há quanto tempo está aqui? — perguntou Maxwell.
— Leões, tigres e ursos. Minha nossa! — arremedou Kelly. — Acho que "matei" o senhor
por volta de uma e meia.
— Seu filho da mãe! — exclamou Irvin. — Você me matou, também!
— Você bem que pediu a eles para ficarem calados.
Maxwell acendeu a lanterna. O Sr. Clark — o general tinha que se esforçar para chamá-lo
assim — ficou ali parado, com uma faca de borracha na mão, o rosto pintado de verde e preto, e
pela primeira vez, desde a batalha de Midway, Maxwell sentiu um arrepio de medo. Kelly
guardou a "faca" no bolso e seu rosto se abriu num largo sorriso.
— Como conseguiu isso? — perguntou Dutch Maxwell.
— Não foi muito difícil — afirmou Kelly, abaixando-se para pegar o cantil de Marty Young.
— Mas se eu contasse, todos iam querer me imitar, não é mesmo?
Irvin se levantou e foi apertar a mão do civil.
— Sr. Clark, acho que passou no teste.
22

TÍTULOS

Grishanov estava na embaixada. Hanói era uma cidade estranha, uma mistura de arquitetura
francesa, criaturinhas amarelas e crateras de bombas. Viajar em um país em guerra era uma
aventura incomum, ainda mais em um automóvel pintado com tinta de camuflagem. Um caça-
bombardeiro americano voltando para casa com uma bomba extra ou alguns projéteis de 20
milímetros de reserva poderia muito bem resolver usar o veículo como alvo, embora isso
jamais tivesse acontecido. Por sorte, aquele era um dia nublado, cinzento, de modo que a
atividade aérea era reduzida, o que o deixara mais tranquilo, embora não o suficiente para
apreciar o passeio. Havia muitas pontes caídas, muitas estradas esburacadas, e a viagem levara
três vezes mais tempo que o esperado. Uma viagem de helicóptero teria sido muito mais rápida,
mas também muito mais arriscada. Os americanos pareciam pensar que um automóvel poderia
ser ocupado por civis... em um país no qual uma bicicleta era considerada artigo de luxo! Por
outro lado, um helicóptero era uma máquina de guerra, um alvo legítimo. Após chegar a Hanói,
fora conduzido a um edifício de concreto que nem sempre dispunha de energia elétrica (no
momento estavam sem luz) e no qual ar- condicionado seria considerado uma fantasia absurda.
As janelas abertas e as telas mal ajustadas permitiam maior liberdade aos insetos do que às
pessoas que trabalhavam e suavam ali. Apesar de tudo, valera a pena a viagem para estar ali, na
embaixada do seu país, onde podia falar a língua natal e deixar de ser um semidiplomata por
algumas horas.
— Como vão as coisas? — perguntou o general.
— As coisas vão bem, mas vou precisar de ajuda. Não posso fazer tudo sozinho.
— Isso não será possível. — O general encheu o copo do visitante de água mineral. Os
russos só bebiam água mineral. — Nikolay Yevgeniyevich, eles estão criando dificuldades
novamente.
— Camarada general, sei que sou apenas um piloto de caça e não um teórico da política. Sei
que nossos fraternais aliados socialistas estão na linha de frente do conflito entre o marxismo-
leninismo e o Ocidente capitalista. Sei que esta guerra de libertação nacional é parte vital de
nossa luta para livrar o mundo da opressão...
— Sim, Kolya — o general sorriu ironicamente, dispensando o homem que não era um
teórico da política de maiores considerações ideológicas —, todos nós sabemos que isto é
verdade. Vá direto ao ponto. Tenho uma agenda cheia.
O coronel fez que sim com a cabeça, aliviado.
— Aqueles filhos da mãe não estão nos ajudando. Estão nos usando, estão me usando, estão
usando meus prisioneiros para fazer chantagem. Se isso é marxismo-leninismo, então eu sou um
trotskista.
Era uma brincadeira que poucos poderiam fazer impunemente, mas o pai de Grishanov era
membro do comitê central e suas credenciais políticas eram impecáveis.
— O que conseguiu descobrir até agora, camarada coronel? — perguntou o general, apenas
para dar um tom de seriedade à conversa.
— O coronel Zacharias é tudo que pensávamos e mais alguma coisa. Estamos, agora,
planejando juntos como defender a rodina* dos ataques dos chineses. Ele é o líder da "equipe
azul".

* Rodina: terra natal, em russo. (N. do T.)

— O quê? — O general piscou os olhos. — Pode explicar melhor?


— O homem é piloto de caça, mas também se especializou em derrotar defesas aéreas. Na
verdade, ajudou a planejar várias missões do SAC, o comando aéreo estratégico, e a
desenvolver a doutrina de evasão e supressão de defesas do SAC. Agora está fazendo a mesma
coisa para mim.
— Posso ver suas anotações?
Grishanov fez uma careta.
— Ficaram no campo. Nossos fraternais camaradas socialistas pediram para "estudá-las".
Camarada general, o senhor faz ideia de como são importantes essas informações?
O general era especialista em tanques, e não em guerra aérea, mas era também uma das
estrelas mais brilhantes do firmamento soviético e estava ali no Vietnã para estudar as táticas
dos americanos. Aquela era considerada uma das atividades mais importantes dos militares do
seu país.
— Imagino que sejam muito valiosas.
Kolya inclinou-se para a frente.
— Daqui a dois meses, talvez menos, saberei tudo sobre o SAC. Poderei pensar como eles
pensam. Não apenas ficarei a par do que estão planejando no momento, mas terei a
possibilidade de prever suas estratégias futuras. Desculpe, não quero exagerar minha
importância — declarou, com sinceridade na voz. — Esse americano está me dando um curso
de pós-graduação em doutrina e filosofia americanas. Eu conheço os relatórios do KGB e do
GRU. Metade do que eles dizem está errado. E até agora só falei de um dos prisioneiros. Outro
me contou muita coisa sobre a doutrina americana com relação aos porta-aviões. Outro sobre os
planos de guerra da OTAN. A lista é muito grande, camarada general.
— Como consegue isso, Nikolay Yevgeniyevich? — O general era novo no cargo e só se
encontrara com Grishanov uma vez antes daquele dia, mas sabia que o oficial tinha uma
excelente reputação.
— Com muita bondade e simpatia — respondeu Kolya, recostando-se na cadeira.
— Trata assim os nossos inimigos? — perguntou o general, em tom de censura.
— Nossa missão por acaso é fazer esses homens sofrerem? — Ele apontou para fora. — É o
que eles fazem, e o que recebem em troca? Mentiras e mais mentiras. Meu departamento em
Moscou costumava ignorar quase tudo o que esses macaquinhos mandavam. Vim para cá em
busca de informações. É nisso que estou trabalhando. Estou disposto a enfrentar todo o tipo de
críticas para conseguir o que desejo, camarada.
O general assentiu.
— Nesse caso, por que está aqui?
— Preciso de ajuda! É muita coisa para um só homem. Se eu morrer, se pegar malária ou
disenteria, quem me substituirá? Não tenho tempo para interrogar pessoalmente todos os
prisioneiros. Especialmente agora, que estão começando a falar. Passo cada vez mais tempo
com cada um deles e perco energia. Perco continuidade. As horas do dia não são suficientes.
O general suspirou.
— Já tentei. Eles lhe oferecem os melhores,,,
Grishanov estava quase gritando.
— Os melhores o quê! Os melhores torturadores? Isso acabaria com o meu trabalho. Estou
precisando de russos. Homens, homens kulturny, cultos! Pilotos, oficiais experientes. Não estou
interrogando soldados rasos. Esses prisioneiros são guerreiros profissionais. São valiosos para
nós pelo que sabem. Sabem muito porque são inteligentes e, sendo inteligentes, não reagem bem
aos métodos convencionais. Sabe do que estou precisando realmente? De um bom psiquiatra. E
de mais uma coisa — acrescentou, tremendo internamente com a própria ousadia.
— Psiquiatra? Não pode estar falando sério. E duvido que seja possível enviar outro oficial
russo para o campo. Moscou está atrasando as remessas de equipamentos antiaéreos por
"motivos técnicos". Nossos aliados estão criando dificuldades novamente, como eu disse, e não
sei onde as coisas vão parar. — O general recostou-se no assento e enxugou o suor da testa. —
Qual é a outra coisa?
— Esperança, camarada general. Preciso de esperança — explicou o coronel Nikolay
Yevgeniyevich, lutando para controlar-se.
— Explique-se.
— Alguns desses homens estão a par da situação. Todos, provavelmente, suspeitam de
alguma coisa. Afinal, sabem o que costuma acontecer com os prisioneiros neste país, e também
que se encontram em um campo especial. Camarada general, o conhecimento desses homens é
enciclopédico. Anos de informações valiosas.
— Está querendo chegar a algum lugar.
— Não podemos matá-los — afirmou Grishanov, corrigindo-se imediatamente para atenuar o
impacto de suas palavras, — Pelo menos, nem todos. Alguns devem ser poupados. Eles podem
nos ser muito úteis, mas precisamos de algo para lhes oferecer em troca.
— Está falando em libertá-los?
— Depois do inferno que passaram aqui...
— Eles são inimigos, coronel! Foram treinados para nos matar! Guarde sua simpatia para
nossos conterrâneos! — rosnou o homem que enfrentara a neve para lutar nos subúrbios de
Moscou.
Grishanov fez pé firme.
— Eles são homens como nós, camarada general. Têm conhecimentos que podem nos ser
valiosos, se soubermos como extraí-los. Seria demais pedir que sejam tratados com dignidade,
que recebam algo em troca de informações que podem salvar nosso país da destruição? Acha
que é preferível torturá-los, como costumam fazer nossos "fraternais aliados socialistas", e não
conseguir nadai Em que isso ajuda nosso país?
Tudo se resumia a esse último argumento, compreendeu o general. Ele olhou para o coronel e
disse a coisa óbvia:
— Quer pôr em risco a minha carreira junto com a sua? Meu pai não pertence ao comitê
central. — Este homem seria muito útil no meu batalhão...
— Seu pai foi um soldado — observou Grishanov. — E, como o senhor, um bom soldado.
Era apenas uma frase de efeito, e ambos sabiam disso, mas o que realmente importava era a
lógica do que Grishanov estava propondo, um golpe de espionagem capaz de colocar no chinelo
os profissionais do KGB e do GRU. Só havia uma atitude possível por parte de um soldado de
verdade, leal a sua pátria.
O tenente-general Yuri Konstantinovich Rokossovskiy tirou da gaveta uma garrafa de vodca.
A marca era Starka, a melhor e mais cara. Serviu dois copos pequenos.
— Não posso lhe arranjar mais oficiais. Um médico, mesmo de uniforme, está fora de
questão. Mas vou ver se consigo alguma esperança para você, Kolya.

A terceira convulsão de Doris depois de chegar à casa de Sandy não era grave, mas mesmo
assim chegou a preocupar. Sarah aplicou-lhe uma injeção de barbitúrico, O resultado dos
exames de sangue tinha chegado; a jovem era uma verdadeira coleção de problemas. Dois tipos
de doença venérea, indícios de outra infecção sistêmica e possivelmente um princípio de
diabetes. Sarah já estava atacando os primeiros três problemas com doses maciças de
antibióticos. O quarto seria tratado com uma dieta e reavaliado mais tarde. Para a médica, os
sinais de maus-tratos pareciam algo saído de um pesadelo a respeito de outro continente e outra
geração, mas o que a deixava mais aflita eram as cicatrizes psicológicas. Estava pensando nisso
no momento em que Doris Brown fechou os olhos e adormeceu, — Doutora, eu...
— Sandy, quer fazer o favor de me chamar de Sarah? Estamos na sua casa, lembra-se?
A enfermeira sorriu timidamente.
— Está bem, Sarah. Estou preocupada. — Eu também. Ela está muito debilitada. Além disso,
temos que pensar no seu estado psicológico. Para não falar dos "amigos" „.
— Estou preocupada com John — explicou Sandy. A situação de Doris estava sob controle.
Tinha certeza disso. Sarah Rosen era uma excelente profissional, mas tendia a se preocupar em
excesso, como a maioria dos médicos realmente dedicados.
Sarah saiu do quarto. O café tinha ficado pronto. Ela sentira o cheiro e estava descendo para
a cozinha. Sandy acompanhou-a.
— Ele é um homem estranho.
— Tenho o hábito de guardar os jornais velhos por algum tempo antes de jogá-los fora. Estive
dando uma olhada nos números atrasados.
Sarah serviu duas xícaras. Seus movimentos eram muito delicados, pensou Sandy.
— Eu sei o que penso. Conte-me o que você pensa — disse a farmacologista.
— Acho que ele está matando gente nas ruas — declarou a enfermeira, com esforço.
— Eu também acho. — Sarah Rosen sentou-se e esfregou os olhos.
— Você não chegou a conhecer Pam. Mais bonita do que Doris. Muito esbelta, provavelmente
por se alimentar mal. Não foi difícil livrá-la das drogas. Não tinha tantas marcas no corpo, mas
provavelmente os traumas emocionais eram profundos. Não chegamos a conhecer toda a
história. Sam me disse que John sabe de muita coisa. Mas isso não é importante.
— Sarah levantou os olhos e a dor que Sandy viu neles era real e profunda.
— Nós tínhamos conseguido salvá-la, Sandy, quando aconteceu uma tragédia e alguma coisa
mudou em John.
Sandy olhou pela janela. Eram sete e quinze da manhã. Podia ver as pessoas saindo para a rua
de pijama ou roupão para pegar o jornal e o leite. Os primeiros assalariados começavam a sair
de carro, um processo que, naquele bairro, durava até por volta das oito e meia. Olhou de volta
para Sarah.
— Não, não acho que ele tenha mudado. Sempre foi assim. Foi mais como se abrissem a
porta de uma jaula, entende? Que homem! Parte dele é como Tim, mas existe outra parte que
simplesmente não compreendo.
— Como é a família dele?
— John não tem família. O pai e a mãe já morreram e não tem irmãos. Foi casado...
— Sim, eu sei. E depois conheceu Pam. — Sacudiu a cabeça. — Coitado.
— Parte de mim diz que ele é um homem bom, mas a outra parte...
— Sandy não concluiu a frase.
— Meu nome de solteira era Rabinowicz — revelou Sarah, tomando um gole de café. —
Minha família é da Polônia. Papai foi embora de casa quando eu era pequena demais para me
lembrar; mamãe morreu de peritonite quando eu tinha nove anos. Tinha dezoito anos quando a
guerra começou — prosseguiu. Para a sua geração, "a guerra" só podia querer dizer uma coisa.
— Tínhamos muitos parentes na Polônia. Costumávamos nos corresponder com eles. De
repente, todos desapareceram. Até hoje acho difícil acreditar que tenha realmente acontecido.
— Sinto muito, Sarah. Eu não sabia.
— Não é o tipo de coisa que a gente fique falando toda hora. — A Dra. Rosen deu de ombros.
— Mas a verdade é que alguma coisa foi tirada de mim e não havia nada que eu pudesse fazer.
Minha prima Reva e eu escrevíamos muito uma para a outra. Deve ter morrido, de uma forma ou
de outra, mas jamais ficamos sabendo exatamente o que aconteceu com ela. Na época eu era
jovem demais para compreender. Acho que fiquei mais surpresa do que qualquer outra coisa.
Mais tarde, revoltei-me... mas contra quem? Não fiz nada. Não podia. E até hoje guardo este
espaço vazio no lugar que Reva ocupava. Ainda tenho o seu retrato, uma fotografia em preto-e-
branco de uma menina de doze anos, com rabo-de-cavalo. Ela queria ser bailarina clássica. —
Sarah levantou os olhos. — Kelly também guarda um espaço vazio.
— Mas a vingança...
— Sim, a vingança — repetiu a médica, muito séria. — Eu sei. Devíamos achar que está
procedendo muito mal, não é mesmo? Talvez nossa obrigação fosse denunciá-lo à polícia.
— Não podemos... quero dizer, talvez esteja certa, mas eu não...
— Claro que não vamos denunciá-lo. Sandy, se ele fosse uma pessoa má, por que traria Doris
para cá? Ele está arriscando a vida de duas formas diferentes.
— Mas há algo nele que me assusta.
— John podia ter simplesmente ido embora — prosseguiu Sarah, sem escutá-la. — Talvez
seja o tipo de homem que acha que deve consertar o mundo sozinho. Mas agora temos que
ajudá-lo.
A última frase fez Sandy olhar para a médica, esquecendo-se temporariamente de sua
preocupação principal.
— O que vamos fazer com ela?
— Vamos cuidar de Doris até que esteja recuperada. Depois, será por sua conta. O que mais
podemos fazer? — perguntou Sarah, vendo a expressão da enfermeira mudar novamente,
refletindo o seu dilema.
— Mas o que vamos fazer no caso de John?
Sarah levantou os olhos.
— Nunca vi John fazer nada de ilegal. E você?

Era dia de treinamento com armas. O dia estava nublado, o que queria dizer que nenhum
satélite espião, nem americano nem soviético, poderia observar o que estava acontecendo na
base. Alvos de papelão foram montados e os olhos sem vida dos bonecos que estavam nos
balanços e na caixa de areia viram os fuzileiros saírem da floresta e passarem pelo portão
simulado, atirando com seus fuzis, Os alvos foram feitos em pedaços em poucos segundos. Duas
metralhadoras M-60 despejaram fogo através das portas abertas dos "alojamentos" — que já
deveriam ter sido bombardeados por dois helicópteros Huey Cobra —, enquanto o grupo de
resgate corria em direção ao "presídio" do campo. Ali, vinte e cinco bonecos ocupavam celas
individuais. Os bonecos pesavam cerca de setenta quilos — ninguém acreditava que os
prisioneiros estivessem pesando mais do que isso — e foram todos arrastados para fora do
campo enquanto o grupo de apoio dava cobertura ao trabalho de evacuação.
Kelly se manteve ao lado do capitão Pete Albie, que, para efeito do exercício, estava morto.
Ele era o único oficial do grupo, uma aberração que era compensada pela presença de muitos
suboficiais veteranos. Enquanto os dois observavam, os bonecos foram arrastados para as
fuselagens simuladas dos helicópteros de resgate. Elas estavam em carretas e tinham sido
transportadas de madrugada para o campo de treinamento. Kelly parou o cronômetro quando o
último homem subiu a bordo.
— Cinco segundos antes da hora prevista, capitão — informou Kelly, mostrando o relógio. —
Esses rapazes são ótimos.
— Só que não vamos fazer isso à luz do dia, não é, Sr. Clark? — Albie, como Kelly,
conhecia a natureza da missão. Os fuzileiros ainda não tinham sido informados, pelo menos
oficialmente, embora àquela altura já tivessem uma boa ideia do que os aguardava. O capitão
sorriu. — Tudo bem, é apenas o terceiro ensaio.
Os dois voltaram para a base. Os alvos simulados tinham sido todos destruídos, e eram
exatamente duas vezes mais numerosos do que a estimativa mais pessimista para as defesas do
SINAL VERDE. Eles repassaram mentalmente a operação, verificando os ângulos de tiro. Havia
vantagens e desvantagens na forma como o campo tinha sido construído. Seguindo as instruções
de algum manual do Bloco Oriental, ele não se adaptava ao terreno. De forma muito
conveniente, o melhor caminho de acesso coincidia com o portão principal. Optando por uma
planta que garantia segurança máxima contra uma possível tentativa de fuga por parte dos
prisioneiros, tinham facilitado um ataque externo... mas não esperavam isso, esperavam?
Kelly tornou a analisar os principais pontos do plano de ataque. O desembarque em território
inimigo colocaria os fuzileiros no vale vizinho ao do SINAL VERDE. Trinta minutos para os
soldados chegarem ao campo. Granadas M-79 para eliminar as torres. Dois helicópteros Huey
Cobra bombardeariam os alojamentos e lhes dariam cobertura aérea, mas os granadeiros do
grupo, o rapaz tinha certeza, seriam capazes de acabar com as torres em menos de cinco
segundos, jogar granadas de fósforo branco nos alojamentos e queimar os guardas vivos sem
nenhuma ajuda dos helicópteros, em caso de necessidade. Por menor e mais modesta que fosse a
operação, o tamanho do alvo e a qualidade do grupo constituíam um bom fator de segurança
contra imprevistos. Considerava isso um caso típico de overkill, termo que não se aplicava
apenas a armas nucleares. Nas operações de combate, a segurança estava em não dar nenhuma
oportunidade ao inimigo, em estar pronto para matá-lo duas, três, uma dúzia de vezes no menor
tempo possível. Combate e jogo limpo não combinavam. Para Kelly, as chances de sucesso
pareciam cada vez maiores.
— E se eles tiverem minas? — preocupou-se Albie.
— Em seu próprio território? — perguntou Kelly. — Não há nenhum sinal disso nas fotos. O
solo não foi revolvido. Nenhuma placa de advertência para manter as pessoas afastadas.
— A população civil seria avisada, não seria?
— Uma das fotos mostra cabras pastando do lado de fora da cerca, lembra-se?
Albie fez que sim com a cabeça, um pouco sem graça.
— É, você tem razão. Estou me lembrando agora.
— Não vamos ver fantasmas onde eles não existem, está bem? — disse Kelly. Ele ficou em
silêncio por um momento, pensando no fato de que jamais passara de um suboficial E-7 e agora
estava conversando de igual para igual (ou até como um superior para o subordinado) com um
capitão O-3 dos fuzileiros. Isso parecia... o quê? Errado? Nesse caso, poi que estava se saindo
tão bem, e por que o capitão estava aceitando seus argumentos? Por que ele era o Sr. Clark para
aquele oficial com experiência em combate? — Nós vamos conseguir entrar.
— Acho que tem razão, Sr. Clark. E como vamos sair?
— Assim que os helicópteros chegarem, vou bater o recorde olímpico descendo aquela
colina em direção ao ponto de recolhimento. A corrida vai levar apenas dois minutos.
— No escuro? — perguntou Albie.
Kelly riu.
— Corro melhor no escuro, capitão.

— Sabe quantas facas Ka-Bar existem?


Pelo tom da pergunta de Douglas, o tenente Ryan sabia que a resposta não podia ser
agradável.
— Não, mas suponho que esteja prestes a saber.
— A loja de excedentes do Sunny recebeu mil dessas malditas facas há menos de um mês. Os
fuzileiros devem ter calculado mal a produção e agora os escoteiros podem comprá-las por
quatro dólares e noventa e cinco. Estão sendo vendidas em outros lugares, também. Não sei
quantas foram fabricadas.
— Nem eu — admitiu Ryan. A Ka-Bar era uma arma muito grande e desajeitada. Os
assaltantes usavam facas menores, especialmente facas de mola, embora as armas de fogo
estivessem se tornando cada vez mais populares entre os bandidos de rua.
O que nenhum dos dois estava disposto a admitir era que mais uma vez tinham chegado a um
beco sem saída, apesar dos indícios aparentemente abundantes que haviam encontrado na casa
de arenito pardo. Ryan olhou para a pasta aberta à sua frente e para as vinte fotografias tiradas
no local. Era quase certo que havia uma mulher na casa. A vítima do assassinato —
provavelmente um traficante, mas mesmo assim uma vítima — tinha sido identificada
imediatamente pelos documentos encontrados na sua carteira, mas o endereço que aparecia na
carteira de motorista era de um terreno baldio. Todas as multas de trânsito tinham sido pagas
dentro do prazo, e em dinheiro. Richard Farmer tivera seus atritos com a polícia, mas nada
suficientemente sério para merecer uma investigação detalhada. A família não sabia de nada.
Para a mãe (o pai morrera há muito tempo), ele trabalhava como vendedor. Entretanto, alguém
fizera um buraco em seu coração com uma faca de guerra, e com tal rapidez e perícia que o
revólver que levava com ele na ocasião permanecera na cintura. As impressões digitais de
Farmer também não tinham servido para nada. Não constavam do registro central do FBI nem
dos registros locais da polícia. Embora estivessem sendo comparadas com outras bases de
dados, Ryan e Douglas não tinham grandes esperanças de sucesso. Três conjuntos completos de
impressões digitais de Farmer tinham sido encontrados no quarto da casa, todos no vidro da
janela, e os restos de sêmen correspondiam ao seu tipo sanguíneo, que era O. Outros restos eram
do tipo A e podiam pertencer ao assassino ou ao suposto dono do Roadrunner, ainda
desaparecido. Pelo que sabiam, o assassino podia ter aproveitado para dar uma rapidinha na
suposta mulher — a menos que fosse um caso de homossexualismo e a suposta mulher nem
existisse.
Havia também uma série de impressões parciais, uma de uma garota (provavelmente, por
causa do tamanho), mas eram tão fragmentárias que não esperavam grandes resultados. Para
cúmulo do azar, quando a equipe de impressões latentes chegara para examinar o carro que
estava estacionado do lado de fora, o sol de agosto tinha esquentado tanto o veículo que as
possíveis impressões do proprietário, um tal de William Peter Grayson, tinham se transformado
em manchas irreconhecíveis. Nem todos avaliavam o grau de dificuldade que existe para se
comparar impressões parciais com menos de dez pontos de identificação.
Uma consulta ao novo Computador de Informações Nacionais sobre Crimes do FBI não
revelara nada a respeito de Grayson ou de Farmer. Finalmente, os dois nomes não constavam
dos registros do grupo de narcóticos de Mark Charon. Não era tanto a questão de estar de volta
à primeira casa do jogo; o pior era saber que a casa número dezessete não levava a lugar
nenhum. Entretanto, muitas investigações de homicídio eram assim mesmo. O trabalho dos
detetives era uma combinação de rotina com fatos extraordinários, mas a primeira era mais
frequente. Uma coisa que tinham conseguido era a impressão de um par de tênis nos degraus de
entrada. Tênis novos em folha. Conheciam portanto a largura da passada do assassino, e a partir
daí tinham calculado que a sua altura estava entre um metro e oitenta e um metro e noventa, o
que, infelizmente, não combinava com a estimativa de Virginia Charles. Sabiam que ele era
branco. Sabiam que tinha que ser forte. Sabiam que era muito habilidoso no manejo de armas.
Sabiam que conhecia pelo menos rudimentos de defesa pessoal... não, suspirou Ryan, isso não
era obrigatório; afinal, a única luta corpo-a-corpo de que tinham conhecimento ocorrera com um
viciado sob os efeitos da heroína. Sabiam que se disfarçara de bêbado.
Nada daquilo queria dizer muita coisa. Mais da metade da população masculina estava
naquela faixa de altura. Bem mais da metade dos moradores da região metropolitana de
Baltimore era branca. Havia milhões de veteranos de guerra nos Estados Unidos, muitos dos
quais haviam pertencido a unidades de elite. Além disso, treinamento militar era treinamento
militar, e não era preciso ir à guerra para recebê-lo; há mais de trinta anos que o serviço militar
tinha sido instituído no país, pensou Ryan. Havia talvez trinta mil homens dentro de um raio de
trinta quilômetros que correspondiam à descrição do suspeito desconhecido. Seria um
traficante, como suas vítimas? Seria um assaltante? Estaria empenhado, como parecia pensar
Farber, em algum tipo de missão? Ryan simpatizava mais com a terceira hipótese, mas não
podia descartar as outras duas. Não era sempre que os psiquiatras e os detetives acertavam. As
teorias mais elegantes podiam ser demolidas por um único fato inconveniente. Droga. Não,
repetiu para si mesmo, aquele homem devia ser exatamente o que Farber afirmara. Ele não era
um criminoso. Era um matador, algo bem diferente.
— Só precisamos encontrar aquilo — afirmou Douglas, reconhecendo a expressão no rosto
do tenente.
— Aquilo — repetiu Ryan. Era um código particular dos dois. Aquilo, a pista necessária para
resolver um caso, podia ser um nome, um endereço, a placa de um carro, uma testemunha.
Sempre o mesmo, embora diferente, era para o detetive a peça crucial do quebra-cabeça que
tornava a imagem compreensível e para o suspeito o tijolo que, quando retirado da parede, fazia
toda a estrutura desabar. E estava ali, ao alcance deles. Ryan tinha certeza disso. Tinha que estar
ali, porque aquele matador era esperto, esperto demais para ficar impune. Um suspeito daquele
tipo que agisse apenas uma vez teria uma boa probabilidade de cometer o crime perfeito, mas
ele não se contentara em matar uma única pessoa. Motivado nem pela paixão nem pelo ganho
financeiro, estava comprometido com um processo, cada passo do qual envolvia múltiplos
perigos. Isso seria a sua ruína. O detetive tinha certeza disso. Por mais esperto que ele fosse, as
complexidades continuariam a aumentar até que alguma coisa importante fugisse ao seu
controle. Isso talvez já tivesse acontecido, pensou Ryan, corretamente.

— Daqui a duas semanas — declarou Maxwell.


— Já? — James Greer inclinou-se para a frente a apoiou os cotovelos nos joelhos. — Dutch,
estamos indo muito depressa.
— Acha que devíamos contemporizar? — perguntou Podulski.
— Que droga, Cas. Eu disse que estávamos indo depressa, não que isso estava errado. Mais
duas semanas de treinamento e uma semana de viagem? — perguntou Greer, recebendo um
aceno de cabeça como resposta. — E o tempo?
— É uma coisa que não podemos controlar — admitiu Maxwell. — Entretanto, o tempo
funciona para os dois lados. Torna o desembarque mais difícil, mas também prejudica o radar e
a artilharia antiaérea.
— Como conseguiu mexer os pauzinhos tão depressa? — perguntou Greer, com um misto de
incredulidade e admiração.
— Existem meios, James. Afinal, nós somos ou não somos almirantes? Damos ordens e o que
acontece? Os navios começam a se mexer.
— Quer dizer que a janela vai ser aberta daqui a vinte e um dias?
— Correto. Cas estará voando amanhã para o Constellation. Vamos começar a instruir o
pessoal do apoio aéreo. O Newport News já sabe da operação... isto é, pelo menos em linhas
gerais. Pensam que vamos atacar baterias antiaéreas na costa. Nossa capitania já está a
caminho. Eles não sabem de nada, a não ser que vão se encontrar com o grupo-tarefa TF-77.
— Tenho que explicar a operação para muita gente — confirmou Cas com um sorriso.
— E os tripulantes dos helicópteros?
— Estavam praticando no Colorado. Chegam a Quantico hoje à noite. Para eles, não haverá
novidades; as táticas são as convencionais. 0 que pensa o seu homem de confiança, o Sr. Clark?
— Agora ele é meu homem de confiança? — perguntou Greer. — Ele me disse que está
satisfeito com o andamento dos trabalhos. Gostou do jeito como eliminou vocês?
— Ele lhe contou? — Maxwell deu uma risada. — James, eu sabia que o cara era bom por
causa do que fez com Sonny, mas é diferente quando você está lá para assistir... ou por outra,
para não ver nem ouvir nada. Ele deixou Marty Young sem fala, o que não é fácil. E os fuzileiros
não sabiam onde enfiar a cara.
— Preciso de um cronograma da missão para submeter ao meu superior — afirmou Greer.
Agora estava falando sério. Sempre achara que a operação tinha seus méritos, e acompanhando
sua instalação aprendera muita coisa que precisava saber na CIA. Convencera-se de que a
missão era viável. BUXO VERDE seria um sucesso, se tivesse o apoio necessário.
— Tem certeza de que o Sr. Ritter não vai roer a corda?
— Não acho provável. Ele está do nosso lado.
— Não posso lhe fornecer um cronograma antes que todas as peças estejam no lugar —
declarou Podulski.
— Ele vai querer assistir a um ensaio — advertiu Greer. — Antes de assinar embaixo, tem
que acreditar no que estamos fazendo.
— Muito justo. Marcamos um ensaio completo para amanhã à noite.
— Estaremos lá, Dutch — prometeu Greer,
O grupo tinha sido instalado em um velho alojamento projetado para abrigar pelo menos
sessenta homens; havia espaço à vontade para todos, a tal ponto que ninguém precisava ocupar
as camas de cima. Kelly ocupava um quarto particular, daqueles que em um alojamento normal
seriam destinados aos sargentos dos pelotões. O rapaz desistira de morar no barco. Não se
integraria realmente à equipe se passasse parte do tempo longe deles.
Estavam gozando a primeira noite de folga desde a chegada a Quantico, e alguma alma
bondosa arranjara três engradados de cerveja. Havia exatamente três garrafas para cada
soldado, já que um deles bebia apenas Dr. Pepper; o sargento Irvin se encarregou de vigiá-los
para que ninguém excedesse o limite.
— Sr. Clark — perguntou um dos granadeiros —, o que vamos fazer, afinal?
Não era justo, pensou Kelly, fazê-los treinar na ignorância. Estavam se preparando para o
perigo sem saberem por quê, sem saberem com que objetivo arriscariam a vida e o futuro. Não
era justo, mas também não era incomum. Olhou o soldado nos olhos.
— Não posso lhe contar, cabo. Tudo o que posso dizer é que mais tarde terá muito do que se
orgulhar. Quanto a isso, pode estar certo.
O cabo, que com vinte e um anos era o mais jovem e o mais novo no grupo, não esperava uma
resposta, mas mesmo assim tinha que perguntar. Ele aceitou a réplica levantando a lata de
cerveja à guisa de saudação.
— Conheço essa tatuagem — comentou um fuzileiro mais antigo.
Kelly sorriu e bebeu o último gole da segunda cerveja.
— Uma noite eu tomei um porre e acho que me confundiram com outra pessoa.
— Todos os focas que eu conheço sabem equilibrar uma bola no focinho — brincou um
terceiro-sargento, acompanhando o comentário com um arroto.
— Quer que eu faça uma demonstração com uma das suas? — perguntou Kelly, sem
pestanejar.
— Essa foi boa! — riu o sargento, jogando outra lata para o rapaz.
— Sr. Clark? — Irvin apontou para a porta. Estava tão quente lá fora quanto do lado de
dentro, com uma brisa suave fazendo balançar os pinheiros e os morcegos caçando insetos no
escuro.
— O que foi? — perguntou Kelly, bebendo um gole de cerveja.
— Eu é que pergunto, Sr. Clark — replicou Irvin, com um sorriso. Então seu tom de voz
mudou. — Acontece que nós nos conhecemos.
— Ah, é?
— Terceiro Grupo de Operações Especiais. Meu grupo apoiou o seu na operação CASACO
DE ARMINHO. Para um E-6, subiu muito na vida, não acha?
— Não espalhe, mas fui promovido antes de dar baixa. Alguém mais sabe?
Irvin riu baixinho.
— Acho que não. O capitão Albie ficaria uma fera se descobrisse, e o general Young poderia
ter um troço. Que tal mantermos a coisa entre nós dois, Sr. Clark? — propôs Irvin, em tom
conspiratório.
— A ideia não foi minha... vir para cá, quero dizer. Os almirantes se impressionam com
facilidade.
— Eu não, Sr. Clark. Quase me matou de susto com aquela sua faca de borracha. Não me
lembro do seu nome, do seu nome verdadeiro, mas costumavam chamá-lo de Cobra, não é? Você
foi o cara que trabalhou na operação FLOR DE PLÁSTICO.
— Não foi um dos meus melhores trabalhos — observou Kelly.
— Devíamos apoiá-lo nessa operação, também. Acontece que o helicóptero pifou. O motor
apagou quando estávamos a três metros do solo. Ploft. Foi por isso que demos o bolo. O
helicóptero de reserva mais próximo era o do Primeira de Cavalaria. Foi por isso que levou
tanto tempo para chegar,
Kelly olhou para ele. O rosto de Irvin estava na sombra.
— Eu não sabia.
O sargento artilheiro deu de ombros.
— Vi as fotos do que aconteceu. O capitão nos disse que você fez uma grande besteira,
entrando na aldeia daquele jeito, mas na verdade a culpa foi nossa. Era para estarmos lá vinte
minutos depois que nos chamou. Se chegássemos na hora, talvez desse tempo de salvar uma ou
duas daquelas meninas. O mais irônico é que o responsável foi um simples anel de segmento do
motor. Uma pecinha quebrada, nada mais,
Kelly fez um muxoxo. O destino às vezes era caprichoso.
— Podia ter sido pior... o motor podia ter enguiçado quando estavam lá em cima e vocês
teriam virado farelo.
— É verdade. Mas é duro saber que as meninas morreram por causa disso, não é? — Irvin
fez uma pausa e olhou na direção da floresta de pinheiros, como era hábito entre os homens da
sua profissão, sempre observando e escutando. — Compreendo por que fez o que fez. Queria
que soubesse disso. Provavelmente eu teria feito a mesma coisa. Não tão bem quanto você,
talvez, mas teria tentado de qualquer maneira, e não deixaria vivo aquele filho da puta, fossem
quais fossem as minhas ordens.
— Obrigado, artilheiro — agradeceu Kelly, comovido, usando o tratamento da Marinha.
— É Song Tay, não é? — perguntou Irvin em seguida, sabendo que agora teria uma resposta.
— Alguma coisa parecida. Eles vão lhe contar a qualquer momento.
— Quero saber agora, Sr. Clark. Tenho os fuzileiros para me preocupar.
— O local onde estamos treinando é uma réplica perfeita do campo de verdade. Ei, eu vou
com vocês, lembra-se?
— Continue falando — pediu Irvin.
— Ajudei a planejar o desembarque. Com as pessoas certas, não será impossível. Os seus
homens são muito competentes. Não vou dizer que vai ser moleza ou qualquer bobagem do
gênero, mas já participei de missões mais difíceis. É isso aí. O treinamento está indo bem. Estou
otimista.
— Tem certeza de que vai valer a pena?
Era uma pergunta com um significado tão profundo que poucos a teriam compreendido. Irvin
servira em dois turnos de combate, e embora Kelly não conhecesse sua "vitrina" de
condecorações, sabia que estava diante de um homem que passara por muita coisa. Agora Irvin
estava envolvido em uma missão que poderia resultar na morte dos homens sob o seu comando.
Soldados estavam morrendo para tomar colinas que eram evacuadas no dia seguinte, apenas
para que o exercício fosse repetido seis meses depois. Havia alguma coisa no soldado
profissional que o tornava avesso a repetições. Embora o treinamento fosse exatamente isso —
tinham "tomado" o campo um sem-número de vezes —, a realidade da guerra parecia exigir
apenas uma batalha para cada lugar. Desse jeito, era possível medir o progresso. Antes de
planejar a conquista de um novo objetivo, você podia olhar para trás e ver o que já conseguira,
avaliar suas chances de sucesso a partir das realizações anteriores. Mas na terceira vez que
você via seus homens morrerem pelo mesmo pedaço de terra, não tinha mais dúvida. Sabia
exatamente como as coisas iriam terminar. O país ainda estava mandando soldados para aquele
lugar, pedindo que arriscassem a vida por um solo já manchado de sangue americano.
A verdade era que Irvin não se apresentaria voluntariamente para um terceiro turno de
combate. Não era uma questão de coragem, dedicação ou amor à pátria. Ele simplesmente
achava que sua vida era muito preciosa para ser arriscada em troca de nada. Depois de jurar
defender a pátria, tinha o direito de pedir algo em troca: uma missão de verdade, não uma
abstração, mas algo real. Mesmo assim, Irvin se sentia culpado. Achava que perdera a fé, que
traíra o lema dos fuzileiros, Semper Fidelis, Sempre Fiel. O sentimento de culpa o levara a
apresentar-se como voluntário para uma última missão, apesar de todas as dúvidas que tinha.
Como um homem cuja esposa amada dormiu com outro, Irvin não podia deixar de amar, não
podia deixar de se importar e tomaria para si a culpa que outros se recusavam a reconhecer.
— Artilheiro, eu não posso contar, mas vou contar assim mesmo. O lugar que estamos nos
preparando para atacar é um campo de prisioneiros, como você já desconfiava, OK?
Irvin fez que sim com a cabeça.
— Faz sentido. Só podia ser.
— Não é um campo comum. Os prisioneiros desse campo foram todos dados como mortos,
artilheiro. — Kelly amassou a lata de cerveja. — Eu vi as fotos. Um deles foi identificado com
certeza. É coronel da Força Aérea e os norte-vietnamitas disseram que tinha sido morto em
combate. Achamos que nenhum deles sairá de lá vivo a menos que a gente vá buscá-los. Eu
também não quero voltar, cara. Estou com medo, OK? Oh, sim, eu sou bom, sou muito bom
nesse tipo de missão. Fui bem treinado, claro, mas acho que também levo jeito. — Kelly deu de
ombros, sem querer dizer o que vinha a seguir.
— Está certo. Mas tudo tem um limite — afirmou Irvin, passando-lhe outra cerveja.
— Pensei que cada um de nós só tivesse direito a três.
— Eu sou metodista e nem devia estar bebendo. — Irvin riu. — Eles são gente como nós, Sr,
Clark.
— Estamos numa enrascada, não estamos? Há russos naquele campo, provavelmente
interrogando os prisioneiros. Eles são oficiais superiores, e achamos que estão todos
oficialmente mortos. Devem estar sendo espremidos para contar o que sabem, o que não é pouca
coisa. Sabemos que estão lá, e se não fizermos nada... o que seremos? — Kelly teve que se
conter para não ir mais longe, para não revelar ao sargento sua outra atividade, porque
encontrara alguém que podia compreendê-lo, e porque sua obsessão em vingar a morte de Pam
se tornara um peso grande demais para carregar sozinho.
— Muito obrigado, Sr. Clark. É uma missão para ninguém botar defeito — disse o primeiro-
sargento artilheiro Paul Irvin para os pinheiros e morcegos. — Quer dizer que vai ser o
primeiro a chegar e o último a sair?
— Não é a primeira vez que trabalho sozinho.
23

ALTRUÍSMO

— Onde estou? — perguntou Doris Brown, com esforço.


— Está na minha casa — respondeu Sandy. A enfermeira, que estava sentada em um canto do
quarto de hóspedes, desligou o abajur e pôs de lado o jornal que estivera lendo nas últimas
horas.
— Como foi que eu vim parar aqui?
— Um amigo trouxe você. Sou enfermeira. A médica está lá embaixo, preparando o café da
manhã. Como se sente?
— Muito mal. — A moça fechou os olhos. — Minha cabeça dói...
— Isso é normal, mas sei que incomoda. — Sandy se levantou, aproximou-se da cama e pôs a
mão na testa da jovem. Não estava com febre, o que era um bom sinal. Em seguida, tomou-lhe o
pulso. Forte, regular, embora ainda ligeiramente mais rápido que o normal. Pela forma como
apertava os olhos, Sandy deduziu que a ressaca causada pela privação de barbitúricos devia ser
terrível, mas isso já era esperado. Ela cheirava a suor e vômito. Tinham tentado mantê-la limpa,
mas era uma luta inglória, e nada importante comparada com o resto. Pelo menos, por enquanto.
A pele de Doris estava flácida e enrugada, como se a pessoa no interior tivesse diminuído de
tamanho. A moça devia ter perdido mais de cinco quilos desde que chegara, e embora isso não
fosse de todo mau, estava tão fraca que ainda não notara as amarras que lhe prendiam as mãos,
os pés e a cintura.
— Quanto tempo faz?
— Quase uma semana. — Sandy pegou uma esponja e enxugou-lhe o rosto. — Você nos
pregou um grande susto. — Não era nenhum exagero. Nada menos que sete convulsões, a
segunda das quais deixara em pânico tanto a enfermeira quanto a médica. Entretanto, a
convulsão número sete, relativamente fraca, ocorrera há mais de dezoito horas, e os sinais vitais
da paciente eram estáveis. Aparentemente, o pior havia passado. Sandy ofereceu a Doris um
pouco de água.
— Obrigada — agradeceu Doris, com um fio de voz. — Onde estão Billy e Rick?
— Não conheço nenhum dos dois — respondeu Sandy. Não estava mentindo. Quando lia os
artigos que saíam no jornal, ignorava deliberadamente os nomes; não queria saber nenhum
detalhe. Era uma defesa interna contra sentimentos tão complexos que se criasse coragem para
encará-los de frente apenas conseguiria ficar ainda mais confusa. Não estava na hora de ser
objetiva. Sarah convencera-a disso. Era hora de se deixar levar pela forma dos acontecimentos,
não pela substância. — São os homens que machucaram você?
Doris estava nua, exceto pelas amarras e pela fralda usada em pacientes incapazes de
controlar suas funções corporais. Era mais fácil assim. As marcas horríveis nos seios e no
tronco estavam desaparecendo aos poucos. Os feios hematomas azuis, negros, roxos e
vermelhos tinham se transformado em manchas difusas, marrom-amareladas. Ela era jovem,
pensou Sandy, e embora ainda não estivesse com boa saúde, chegaria lá. Com o tempo, talvez
ficasse curada de todos os ferimentos, internos e externos. As infecções sistêmicas já estavam
respondendo aos antibióticos. A febre desaparecera e o corpo da moça agora podia se dedicar a
reparos mais prosaicos.
Doris virou a cabeça e abriu os olhos.
— Por que está fazendo isso por mim? A resposta estava na ponta da língua:
— Sou enfermeira, Doris. Meu trabalho é tomar conta de pessoas doentes.
— Billy e Rick — disse a jovem em seguida, começando a se lembrar. A memória de Doris
era errática; a maioria das suas recordações estava associada à dor.
— Eles não estão aqui — assegurou-lhe Sandy. Fez uma pausa antes de prosseguir, e para sua
surpresa encontrou satisfação nas próprias palavras: — Acho que eles nunca mais vão
incomodá-la. — Havia quase um brilho de entendimento nos olhos da paciente, pensou a
enfermeira. Quase. Isso era encorajador.
— Tenho que ir ao banheiro. Por favor... — pediu, quando tentou mover-se e percebeu que
estava amarrada.
— Está bem. Espere um minuto. — Sandy desamarrou-a. — Acha que aguenta se levantar?
— Vou tentar...
Doris inclinou-se uns trinta graus antes que o corpo a traísse. Afinal, sentou-se, mas não
conseguia manter a cabeça aprumada. Ficar de pé foi ainda mais difícil. Entretanto, o banheiro
não ficava longe e a dignidade de conseguir satisfazer a suas necessidades justificava a dor e o
esforço. Sandy conduziu-a até o banheiro e ajudou-a a sentar-se. Segurou-lhe a mão enquanto
enxugava seu rosto com uma toalha.
— Grandes progressos — observou Sarah Rosen, da porta. Sandy olhou para ela e sorriu. As
duas vestiram um roupão em Doris antes de levá-la de volta para o quarto. Sandy trocou as
cobertas enquanto Sarah preparava uma xícara de chá para a paciente.
— Você está com uma aparência muito melhor, Doris.
— Não me sinto bem.
— É assim mesmo, Doris. Você tem que se sentir mal antes de melhorar. Ontem, não estava
sentindo nada. Quer tentar comer uma torrada?
— Estou com fome.
— Isso é bom sinal — observou Sandy. A expressão da jovem era tão eloquente que a médica
e a enfermeira podiam sentir a terrível dor de cabeça que daquele dia em diante pretendiam
tratar apenas com compressas de gelo. Tinham passado uma semana esperando que as drogas
fossem eliminadas do sistema e não estava na hora de acrescentar outras. — Encoste a cabeça.
Doris obedeceu, apoiando a cabeça no encosto da poltrona que Sandy comprara em uma
liquidação de fundo de quintal. Fechou os olhos e estava tão fraca que seus braços repousaram
inertes nos braços da poltrona enquanto Sarah colocava uma torrada na sua boca. Sandy pegou
uma escova e começou a pentear-lhe o cabelo. Na verdade, estava precisando ser lavado, mas
não custava nada ajeitá-lo, pensou a enfermeira. As pessoas adoentadas davam uma enorme
importância à própria aparência, e por mais ilógico que isso pudesse parecer, era um fato real, e
algo que Sandy considerava importante. Ficou um pouco surpresa quando o gesto fez Doris
estremecer.
— Estou viva? — perguntou a jovem, em tom assustado.
— Claro que está — respondeu Sarah, com um sorriso. Tomou a pressão arterial. — Doze
por oito.
— Excelente! — exclamou Sandy. Era a melhor leitura da semana.
— Pam...
— O que foi? — perguntou Sarah.
Doris levou alguns momentos para responder. Parecia ainda não estar totalmente convencida
de que estava viva.
— Quando Pam morreu... penteei o cabelo dela.
Meu Deus, pensou Sarah. Sam mencionara o fato um dia, quando estava tomando um drinque
na casa deles, em Green Spring Valley. Não precisara entrar em detalhes; a foto na primeira
página do jornal tinha sido suficiente. A Dra. Rosen se dirigiu à paciente.
— Doris, quem matou Pam? — Achava que podia fazer a pergunta sem a deixar agitada.
Estava errada.
— Rick, Billy, Burt e Henry... eles a mataram... na minha frente... — A jovem começou a
chorar e os soluços serviram apenas para aumentar a dor de cabeça que estava sentindo. Sarah
parou de lhe dar comida; não queria que vomitasse.
— Eles fizeram você olhar?
— Fizeram... — A voz de Doris parecia saída do túmulo.
— É melhor não pensar nisso agora. — O corpo de Sarah estremeceu com o tipo de arrepio
que associava à própria morte enquanto acariciava o rosto da jovem.
— Pronto! — exclamou Sandy, tentando distraí-la. — Você ficou muito melhor!
— Estou cansada.
— OK, vamos voltar para a cama. — As duas mulheres a ajudaram a se levantar. Sandy
deixou-a de roupão e colocou um saco de gelo na testa. Logo depois, Doris adormeceu.
— Vamos tomar café — propôs Sarah. — Não precisa mais amarrá-la.
— Penteou o cabelo dela? Que história é essa? — quis saber Sandy, enquanto desciam a
escada.
— Não li o relatório...
— Eu vi a foto, Sarah. Vi o que fizeram com ela. O nome era Pam, certo? — Sandy estava
cansada demais para se lembrar das coisas com clareza.
— Certo. Ela foi minha paciente também. Sam me contou que estava muito machucada quando
a encontraram. O estranho, porém, é que alguém tinha penteado o seu cabelo depois que ela
morreu. Agora sabemos que a responsável foi Doris.
— Ah... — Sandy abriu a geladeira e pegou um pouco de leite para o café de manhã. —
Entendo.
— Pois eu, não — observou a Dra. Rosen. — Não entendo como alguém pode ser capaz de
uma coisa dessas. Mais alguns meses e Doris teria morrido. Foi por pouco...
— Fiquei admirada quando você não quis interná-la no hospital — observou Sandy.
— Depois do que aconteceu com Pam, seria arriscado. Tanto para ela...
— ...como para John — concordou Sandy. — Ele está certo, sabia?
— Hein?
— Eles mataram Pam e obrigaram Doris a assistir... depois a torturaram... para eles, as duas
não passavam de objetos... Billy e Rick merecem morrer — disse Sandy, sem pensar.
— Burt e Henry — corrigiu Sarah. — Acho que os outros dois não incomodarão mais
ninguém.
As duas trocaram um olhar por cima da mesa do café. Estavam pensando a mesma coisa,
estavam igualmente chocadas com a ideia de ter esse tipo de pensamento.
— Ótimo.

— Já interrogamos todos os mendigos a oeste da Charles Street — disse Douglas ao seu


chefe. — Um guarda foi ferido a faca. Nada de sério, mas o cara vai passar unia longa
temporada de desintoxicação no Jessup. Depois de todo esse trabalho, continuamos na mesma
— acrescentou, com uma careta. — Ele sumiu, Em. Há uma semana que nada acontece.
Era verdade. A notícia se espalhara, de forma surpreendentemente lenta mas inevitável. Os
traficantes de rua estavam sendo cautelosos ao extremo. Isso podia ou não explicar o fato de que
nenhum deles perdera a vida na última semana.
— Ele ainda está por aí, Tom.
— Pode ser, mas não está fazendo mais nada.
— O que pode querer dizer que só estava atrás de Farmer e Grayson — sugeriu Ryan,
olhando para o sargento.
— Você não acredita nisso.
— Não, e não me pergunte por quê, porque não sei.
— Seria ótimo se Charon pudesse nos ajudar. Ele é ótimo nesse tipo de investigação.
Lembra-se daquela batida com a Guarda Costeira?
Ryan fez que sim com a cabeça.
— Foi uma boa, mas ultimamente ele anda meio devagar.
— Nós também — observou o sargento Douglas. — Até agora, só descobrimos que o cara é
forte, usa tênis novos e tem pele clara. Não conhecemos a idade, o peso, a altura, o motivo nem
a marca do seu carro.
— Por falar em motivo: sabemos que ele está furioso com alguma coisa. Sabemos que é um
especialista na arte de matar. Sabemos que é frio o suficiente para matar apenas para encobrir
suas atividades... e que tem muita paciência. — Ryan recostou-se na cadeira. — Paciência
suficiente para entrar de férias?
Tom Douglas tinha uma sugestão melhor.
— Esperteza suficiente para mudar de tática?
Era uma ideia interessante. Ryan parou para pensar. E se o criminoso tivesse realmente
tomado outros rumos? Se tivesse conseguido novas informações com William Grayson, e essas
informações o conduzissem para fora da cidade? Nesse caso, talvez jamais conseguissem
encontrar o responsável. Isso seria uma vergonha para Ryan, que detestava deixar casos sem
solução, mas era preciso admitir a possibilidade. Apesar de terem vasculhado a área e
interrogado dezenas de pessoas, não haviam encontrado nenhuma testemunha, exceto Virginia
Charles, e a mulher ficara tão traumatizada que suas informações não mereciam crédito... e
contradiziam a única prova técnica de que dispunham. O suspeito tinha que ser mais alto do que
ela afirmara, tinha que ser mais moço e certamente era mais forte do que um jogador de futebol
profissional. Não se tratava de um bêbado de rua, mas de alguém disfarçado como tal. Ninguém
repara nesses tipos. Alguém poderia descrever um cachorro vira-latas?
— O Homem Invisível — disse Ryan, inventando finalmente um nome para o caso. — Não
sei por que não matou a Sra. Charles. Quem será que temos pela frente?
— Alguém que eu não gostaria de enfrentar sozinho — declarou Douglas.

— Três grupos para tomar Moscou?


— Claro, por que não? — replicou Zacharias. — É o centro de liderança política do seu
país, não é? É um grande centro de comunicações, e mesmo que vocês consigam evacuar o
Politburo, eles ainda estariam de posse da maior parte dos instrumentos de controle político e
militar...
— Temos meios de proteger nossos líderes — objetou Grishanov, movido pelo orgulho
profissional e patriótico.
— Claro que sim. — Grishanov percebeu que Robin estava achando graça na afirmação.
Sentiu-se insultado, mas ao mesmo tempo confortou-se com o pensamento de que o coronel
americano agora parecia muito mais à vontade. — Kolya, nós também temos coisas como essa.
Montamos um abrigo de luxo para o congresso em Virginia do Oeste. A missão do 1º Esquadrão
de Helicópteros, baseado em Andrews, é dar fuga aos VIPs. Mas sabe de uma coisa? Os
malditos helicópteros não podem viajar até o abrigo e voltar sem se reabastecer. Ninguém
pensou nisso quando construíram o abrigo, porque foi uma decisão política. Sabe o que mais?
Nunca testamos o nosso plano de evacuação. Já testaram o de vocês?
Grishanov estava sentado no chão, ao lado de Zacharias, com as costas encostadas na parede
suja de concreto. Nikolay Yevgeniyevich baixou os olhos e sacudiu a cabeça, satisfeito por ter
conseguido extrair mais informações do americano.
— Está vendo? Está vendo por que nunca vamos entrar em guerra? Somos muito parecidos!
Não, Robin, nunca testamos o nosso plano, nunca tentamos evacuar Moscou desde que eu era
criança. Nosso maior abrigo fica em Jiguli. É uma pedra enorme. Não uma montanha. Parece
uma grande... uma grande bolha? Não conheço a palavra em inglês. Uma grande pedra redonda.
— Um monólito? Como a Stone Mountain, na Georgia?
Grishanov assentiu, Não havia nenhum mal em revelar segredos àquele homem, havia?
— Os geólogos dizem que é muito, muito resistente. Construímos um túnel no fim da década
de 1950. Estive lá duas vezes. Ajudei a supervisionar o escritório de defesa aérea quando
estava sendo montado. Esperamos (é verdade, Robin, acredite)... esperamos que as autoridades
cheguem lá de trem.
— Mesmo que consigam, não vai adiantar nada. Sabemos onde fica. Algumas bombas bem
colocadas, e pronto! — O americano tinha tomado uma boa dose de vodca. — Provavelmente
os chineses sabem, também. Mas o alvo principal é Moscou, especialmente se for um ataque de
surpresa.
— Três grupos?
— É assim que eu faria. — Os pés de Robin cobriram uma carta de s navegação aérea do
sudeste da União Soviética. — Três vetores, partindo dessas três bases, três aeronaves cada um,
duas para carregar as bombas e uma para interferir com o radar. Esta última vai na frente. Os
três grupos i chegam em linha, espaçados assim. — Ele mostrou as trajetórias prováveis no
mapa. — Você começa a descida aqui, passa por esses vales e, quando chega às planícies...
— Estepes — corrigiu Kolya.
— Já passaram pela primeira linha de defesa, certo? Estão voando baixo, a uns novecentos
metros. Talvez nem seja preciso interferir com o radar. Talvez você possa enganar as defesas.
— Como assim, Robin?
— Vocês têm voos noturnos para Moscou? Voos comerciais?
— É claro.
— Suponhamos que você pegue um Badger e instale duas fileiras de lâmpadas na fuselagem
que possam ser ligadas e desligadas à vontade. Como se fossem janelas, entende? Olhe aqui,
sou um avião de passageiros.
— Está falando sério?
— Chegamos a experimentar. Até hoje existe uma esquadrilha com essas lâmpadas instaladas.
A base fica em... Pease, se não me falha a memória. Era essa a ideia. Usar os B-47 estacionados
na Inglaterra. Se um dia chegássemos à conclusão de que vocês iam partir com tudo para cima
de nós, entende? A gente tem que estar preparado para tudo. O nome da operação era LANCE
LIVRE. Provavelmente foi parar no arquivo morto. Moscou, Leningrado, Kiev... e Jiguli. Três
pássaros reservados apenas para Jiguli, com duas bombas cada um. Para acabar com toda a
liderança política e militar de uma só vez. Olhe para mim! Sou um avião de passageiros!
Poderia funcionar, pensou Grishanov, sentindo um calafrio. Na época certa do ano, na hora
certa... um bombardeiro aparece, seguindo uma rota comercial. Mesmo em época de crise, a
ilusão de normalidade seria como uma pedra de toque enquanto as pessoas esperavam por
acontecimentos extraordinários. Talvez uma esquadrilha de defesa aérea mandasse um caça
investigar, pilotado por um jovem oficial que ficara de plantão enquanto os mais antigos
dormiam. Ele chegaria a mil metros da aeronave suspeita, mas à noite... à noite você vê o que
espera ver. Luzes na fuselagem? Só pode ser um avião de passageiros. Onde já se viu um
bombardeiro todo iluminado? Esse era um plano de que o KGB nem desconfiava. Quantos
presentes Zacharias ainda lhe reservaria?
— Se eu fosse um china, essa é uma das coisas que talvez fizesse. Pode ser que não tenham
tanta imaginação e prefiram um ataque direto, por aqui; sim, eles podem fazer isso. Isso mesmo.
Provavelmente um grupo será apenas para despistar. Eles têm um alvo de verdade também,
porém bem mais próximo do que Moscou. Estão voando a grande altitude. Mais ou menos aqui
— indicou um ponto no mapa —, fazem uma mudança radical de curso e atacam alguma coisa,
vocês podem verificar o que é importante, bons alvos é que não faltam. Os caças de vocês vão
todos atrás deles, certo?
— Da. Eles pensariam que os bombardeiros estavam se dirigindo para um alvo secundário.
— Os outros grupos vêm de outra direção, voando baixo. Um deles, pelo menos, vai
conseguir. Já ensaiamos um milhão de vezes, Kolya. Conhecemos os radares de vocês, sabemos
onde ficam as bases, conhecemos seus aviões, sabemos como vocês praticam. Não é difícil
enganá-los. E os chineses estudaram com vocês, certo? Vocês ensinaram a eles. Eles conhecem
as táticas que vocês usam e tudo o mais.
Ele disse aquilo com toda simplicidade. Não havia o menor sinal de malícia na sua voz. E
isso vindo de um homem que penetrara nas defesas norte-vietnamitas mais de oitenta vezes.
Oitenta vezes!
— Nesse caso, como podemos nos...
— Como podem se defender? — Robin franziu a testa e inclinou o corpo para examinar de
novo o mapa. — Eu precisaria de mapas melhores, mas a primeira coisa a fazer é examinar os
pontos vulneráveis, um de cada vez. Não se esqueça de que um bombardeiro não é um caça.
Não é fácil manobrá-lo, especialmente em baixa altitude. A maior preocupação do piloto é
evitar que ele se choque com o solo, certo? Não sei o que você pensa a respeito, mas isso me
deixa nervoso. Se tiver opção, vai escolher um vale espaçoso, especialmente à noite. É lá que
você tem que colocar os seus caças. É lá que você tem que colocar os seus aparelhos de radar.
Não precisa ser nada muito sofisticado. O radar vai servir apenas para dar o alarma. Então você
manda os caças atrás dele.
— Recuar as defesas? Não posso fazer isso!
— As defesas devem estar em um lugar onde funcionem, e não seguir uma linha tracejada em
um pedaço de papel. Ou você gosta tanto assim de comida chinesa? Essa sempre foi a fraqueza
de vocês. A propósito, isso também torna as linhas mais curtas, certo? Uma economia de
dinheiro e equipamentos. Outra coisa: lembre-se de que o inimigo sabe como os pilotos pensam.
Um avião derrubado é um avião derrubado, certo? Talvez haja grupos destinados a atrair os
caças para longe da base, entende? Nós mesmos desenvolvemos vários tipos de iscas para o
radar. É preciso levar isso em conta. É preciso manter os pilotos sob controle.
Eles devem ficar em seus setores, a menos que tenham uma razão muito boa para se
deslocar...
O coronel Grishanov estudava assuntos relacionados à sua profissão há mais de vinte anos.
Consultara documentos da Luftwaffe não só relacionados ao interrogatório de prisioneiros, mas
também à implantação da linha Kammhuber. O que estava ouvindo era inacreditável. Teve
vontade de imitar o prisioneiro e beber um gole de vodca, mas se conteve. Não era mais em um
relatório de rotina que estava pensando, nem em um artigo a ser apresentado perante a
Academia de Voroshilov. Não, não se contentaria com menos que um livro, um livro altamente
secreto, mas ainda assim um livro: Origem e Evolução das Táticas Americanas de Bombardeio.
Esse livro poderia lhe valer as estrelas de marechal, e tudo graças ao seu amigo americano.

— É melhor não nos aproximarmos — observou Martin Young. — Hoje estão usando
munição de verdade.
— Concordo plenamente — disse Dutch. — Estou acostumado a ver os tiros explodirem
centenas de metros atrás de mim.
— E voando a uma velocidade maior que a do som — acrescentou Greer.
— Assim é muito mais seguro, James — ponderou Maxwell. Estavam atrás de uma berma, o
nome oficial usado pelos militares para um monte de terra, a duzentos metros do campo. Era
difícil ver o que estava acontecendo daquela distância, mas dois dos cinco tinham olhos de
aviadores e sabiam para onde olhar.
— Há quanto tempo eles começaram?
— Há mais ou menos uma hora. Não deve faltar muito — afirmou Young.
— Não estou ouvindo nada — sussurrou o almirante Maxwell.
Os edifícios eram visíveis apenas por causa das linhas retas, algo que, por alguma razão, a
natureza abomina. Prestando muita atenção, também era possível distinguir os retângulos
escuros das janelas. As torres de guarda, que tinham sido instaladas naquele mesmo dia, também
eram difíceis de discernir.
— Usamos alguns truques — comentou Marty Young. — Todos os homens recebem
suplementos de vitamina A para melhorar a visão noturna. Isso pode aumentar a acuidade em
alguns pontos percentuais. A ideia é aproveitar todos os recursos disponíveis, certo?
Tudo o que ouviam era o sibilar do vento na copa das árvores. A situação tinha um quê de
irreal. Maxwell e Young estavam acostumados com o zumbido da turbina, com as luzes do
painel de instrumentos que os olhos examinavam quando não estavam varrendo o horizonte à
procura do inimigo, com o balanço suave que acompanhava o movimento da aeronave no céu
noturno. Agora, que estavam parados no chão, imaginavam um movimento que não existia
enquanto esperavam para ver algo que nunca haviam experimentado.
— Ali estão eles!
— Se conseguiu vê-los, é mau sinal — observou Maxwell.
— Senhor, SINAL VERDE não tem um estacionamento com carros pintados de branco —
protestou Kelly. A sombra fugidia fora revelada dessa forma, e de qualquer modo Kelly tinha
sido o único a vê-la.
— Acho que tem razão, Sr. Clark.
O receptor de rádio que tinham levado com eles até agora tinha transmitido apenas estática.
Nesse momento, porém, transmitiu quatro sinais longos. Eles foram respondidos a intervalos por
um, dois, três e quatro sinais curtos.
— Os grupos estão em posição — sussurrou Kelly. — Fiquem atentos. O chefe dos
granadeiros vai dar o sinal.
— Só quero ver — disse Greer, em tom de dúvida.
Logo teria motivo para se arrepender.
A primeira coisa que ouviram foi o zumbido distante dos rotores duplos dos helicópteros. O
objetivo era distrair a atenção, e embora todos os homens que estavam ali conhecessem o plano
em seus mínimos detalhes, esse objetivo foi alcançado, o que deixou Kelly radiante. Afinal de
contas, formulara pessoalmente boa parte do plano. Todos olharam na direção do som, menos
ele.
Kelly julgou entrever a alça de mira pintada de trítio do M-79 de um dos granadeiros, mas
poderia ser também o piscar de um vaga-lume solitário. Logo depois, viu o clarão de uma
granada de sinalização, seguido imediatamente pelo brilho cegante de uma granada de
fragmentação explodindo na base de uma das torres. O estrondo súbito fez os homens a seu lado
pularem, sobressaltados, mas Kelly não estava prestando atenção neles. A torre onde deviam
estar homens e armas se desintegrou. O eco ainda não se dissipara na floresta de pinheiros
quando as outras três torres foram também demolidas. Cinco segundos depois, os helicópteros
passaram a poucos metros da copa das árvores, separados por menos de vinte metros,
metralhando os alojamentos. Os granadeiros já estavam jogando granadas de fósforo branco
pelas janelas.
— Merda!
O modo como as explosões de fósforo ficavam confinadas no interior dos alojamentos
tornava o espetáculo ainda mais apavorante, enquanto as metralhadoras se concentravam nas
saídas.
— É isso aí — disse Kelly em voz alta, para se fazer ouvir. — Todo mundo lá dentro fica
carbonizado. Os que tentam sair são alvo fácil para as metralhadoras. Tranquilo.
O grupo de ataque da força de fuzileiros continuou a despejar fogo nos alojamentos e nos
edifícios de administração enquanto o grupo de resgate se dirigia para o bloco onde eram
mantidos os prisioneiros. Agora estavam chegando os helicópteros de resgate, atrás dos AH-1
Huey Cobra, pousando ruidosamente perto do portão principal. O grupo de ataque se dividiu;
metade dos homens se reuniu em torno dos helicópteros, enquanto a outra metade continuou a
castigar os alojamentos. Um dos helicópteros Huey começou a circular em torno do campo,
como um cão pastor à procura de lobos.
Os primeiros fuzileiros apareceram, carregando ou arrastando os prisioneiros simulados.
Kelly viu que Irvin estava no portão, contando o seus homens. Havia gritos agora, soldados
recitando números e nomes, lutando para se fazer ouvir acima do rugido dos motores dos
grandes helicópteros Sikorsky. Os últimos fuzileiros a subir a bordo foram os do grupo de
ataque. Os helicópteros de resgate levantaram voo e desapareceram na escuridão.
— Foi bem rápido — murmurou Ritter, quando o silêncio voltou. Logo depois, dois carros de
bombeiros chegaram para apagar os incêndios produzidos pelos explosivos.
— Ele levaram menos quinze segundos que o previsto — afirmou Kelly, mostrando o
cronômetro. — E se alguma coisa der errado, Sr. Clark? — perguntou Ritter.
O rosto de Kelly se iluminou com um sorriso irônico.
— Algumas coisas deram errado, senhor. Quatro fuzileiros foram "mortos" logo no início do
ataque.
— Um momento. Está me dizendo que talvez...
— Deixe-me explicar, senhor. De acordo com as fotos, não há razão para acreditarmos que
haja algum obstáculo entre o local de desembarque e o alvo. Não há nenhuma fazenda naquelas
colinas, certo? Mesmo assim, para o exercício desta noite, mandei eliminar quatro pessoas ao
acaso. Caso não tenha notado, esses soldados tiveram que ser carregados até o alvo e
carregados de volta. Mas temos reservas para todas as funções. Eu espero uma missão limpa,
senhor, mas compliquei as coisas esta noite só para ver o que acontecia.
Ritter fez que sim com a cabeça, impressionado.
— Esperava que neste ensaio tudo corresse de acordo com as previsões.
— Nos combates de verdade, raramente as coisas correm de acordo com as previsões,
senhor. Temos que levar isso em conta. Todos os soldados foram treinados para desempenhar
pelo menos uma função alternativa. — Kelly cocou o nariz. Ele também estava nervoso. — O
que acaba de ver foi uma missão simulada bem-sucedida apesar de complicações maiores que
as esperadas. Vamos conseguir, senhor.
— Sr. Clark, conseguiu me convencer. — O oficial da CIA virou-se para os outros. — E
quanto ao apoio médico, coisas assim?
— Quando o Ogden se incorporar ao grupo-tarefa 77, vamos transferir alguns médicos para
bordo — afirmou Maxwell. — Cas está indo até lá para combinar tudo. O chefe do grupo-tarefa
é meu chapa e não vai criar dificuldades. O Ogden é um barco de bom tamanho. Teremos a
bordo tudo que será preciso para cuidar dos prisioneiros resgatados: médicos, pessoal de
informações para interrogá-los, o diabo. Vamos levá-los diretamente para Subic Bay.
Pretendemos liberá-los o mais cedo possível. Da hora em que os helicópteros de resgate
decolarem até o momento em que chegarem à Califórnia, não terão transcorrido mais do que...
quatro dias e meio.
— OK, esta parte da missão parece em ordem. E o resto?
Maxwell se encarregou de responder:
— Todo o grupamento aéreo do Constellation nos dará apoio. O Enterprise estará mais ao
norte, trabalhando na região de Haiphong. Isso deverá atrair a atenção da rede de defesa aérea e
do alto comando. O Newport News vai passar as próximas semanas navegando ao longo da
costa e castigando as bases de artilharia antiaérea. Isso será feito de forma aleatória, e a região
em que estamos interessados será a quinta a ser atacada. Ele vai chegar a quinze quilômetros da
costa e abrir fogo com tudo de que dispõe. O grande cinturão de baterias antiaéreas está ao
alcance dos seus canhões. Usando o cruzador e o grupamento aéreo ao mesmo tempo,
poderemos abrir um corredor para os helicópteros entrarem e saírem. Na verdade, estaremos
fazendo tanto barulho que eles só vão se dar conta da nossa missão depois que ela estiver
terminada.
Ritter fez que sim com a cabeça. Tinha lido o plano de ponta a ponta e apenas queria ouvi-lo
da boca de Maxwell, ou melhor, queria ver como ele se expressava. O almirante parecia calmo
e confiante, mais do que Ritter esperava.
— Mesmo assim, é muito arriscado — afirmou, depois de ficar um momento em silêncio.
— Isso não é novidade — concordou Marty Young.
— Qual é o risco para o nosso país se os prisioneiros daquele campo contarem tudo que
sabem? — perguntou Maxwell.
Ao perceber o rumo que a discussão tomara, Kelly teve vontade de pedir licença e ir embora.
O perigo para o país era algo além da sua esfera de ação. Sua realidade estava no nível das
pequenas unidades (ou, mais recentemente, em um nível ainda menor), e embora a saúde e bem-
estar do país começassem naquele mínimo denominador comum, as grandes questões exigiam
uma perspectiva que ele não tinha. Entretanto, não havia uma forma diplomática de se retirar, de
modo que ficou e escutou.
— Quer uma resposta sincera? — perguntou Ritter. — Pois vou lhe dar uma. O risco é zero.
Maxwell recebeu a declaração com uma calma surpreendente, que ocultava a sua revolta.
— Filho, será que se importa de explicar?
— Almirante, é tudo uma questão de ponto de vista. Os russos querem saber tudo o que
puderem a nosso respeito e nós queremos saber tudo o que pudermos a respeito deles. Está
certo, esse tal de Zacharias pode revelar a eles os planos de guerra do SAC. E daí? Esses
planos podem ser mudados. Na verdade, eles são mudados todo mês. Além disso, pensa que há
alguma possibilidade de que sejam postos em prática?
— Pode ser que um dia isso seja necessário.
Ritter tirou um cigarro do bolso.
— Almirante, o senhor gostaria que esses planos fossem postos em prática?
Maxwell empertigou-se.
— Sr. Ritter, sobrevoei Nagasaki no meu F6F logo depois que a guerra terminou. Vi de perto
o que essas bombas podem fazer, e aquela era das pequenas.
— Já lhe ocorreu que os russos podem pensar da mesma forma, almirante? — Ritter sacudiu
a cabeça. — Eles não são malucos. Têm ainda mais medo de nós do que nós deles. As
informações que conseguirem extrair dos prisioneiros podem deixá-los ainda mais receosos. A
coisa funciona dessa forma, acredite ou não.
— Nesse caso, por que está do nosso... o senhor está do nosso lado?
— Claro que estou! — Que pergunta estúpida, estava implícito no tom da resposta, o que
deixou Marty Young irritado.
— Por quê? — perguntou Maxwell.
— Porque eles são nossos homens. Nós os enviamos e temos obrigação de trazê-los de volta.
Isso não é razão suficiente? Mas não venha me falar em segurança nacional. Esse argumento
pode ser bom para a Casa Branca, ou mesmo para o Capitólio, mas não serve para mim. Ou
você é leal aos que trabalham para você ou não é — afirmou o espião que arriscara a carreira
para salvar um estrangeiro de quem nem gostava muito. — Se não fizer isso, se trair a confiança
dos seus subordinados, então não merecerá ser salvo ou protegido. É assim que eu penso.
— Não sei se concordo com os seus motivos, Sr. Ritter — afirmou o general Young.
— Uma missão como esta terá como resultado o resgate de prisioneiros americanos. Os
russos vão ficar impressionados. Vão perceber que levamos certas coisas a sério, o que tornará
mais fácil o meu trabalho de colocar agentes atrás da cortina de ferro. Poderei recrutar mais
agentes e obter mais informações. É assim que consigo os dados que vocês querem, entendem?
O jogo continua até inventarmos um novo. — Ritter virou-se para Greer. — Quer que eu
explique a operação pessoalmente à Casa Branca?
— Ainda não decidi. Mais tarde eu lhe digo. Bob, isto é muito importante: está cem por cento
do nosso lado?
— Sim, senhor — respondeu o texano. Por razões que os outros não compreendiam, nas quais
não confiavam mas que eram forçados a aceitar.

— E daí? O que nós temos com isso?


— Eddie, procure entender — insistiu Tony, com toda a paciência. — Nosso amigo está com
um problema. Alguém liquidou dois dos seus homens de confiança.
— Quem fez isso? — perguntou Morello.
Ele não estava de muito bom humor. Acabara de ser informado, mais uma vez, de que não
fora aceito como membro da família. Depois de tudo o que fizera! Sentia-se traído. Como era
possível que Tony preferisse se associar a um negro a respeitar os laços de sangue? Afinal de
contas, eram primos distantes, não eram? E agora ainda queriam a sua ajuda!
— Não sabemos. Nem os meus contatos nem os contatos dele conseguiram apurar coisa
alguma.
— Não é uma pena? — Eddie voltou a lamentar-se. — Tony, ele veio falar comigo, lembra-
se? Através de Angelo, mas Angelo tentou nos trair e tivemos que acabar com ele, lembra-se?
Você não estaria nesse negócio se não fosse por minha causa, e agora o que acontece? Eu sou
ignorado e ele fica cada vez mais importante. O que vai acontecer em seguida, Tony? Ele vai
entrar para a família?
— Pare com isso, Eddie.
— Por que você não me apoiou? — quis saber Morello.
— Não depende de mim, Eddie. Sinto muito, mas não posso fazer nada.
Piaggi não esperava que a conversa fosse agradável, mas também não esperava que Eddie
reagisse de forma tão negativa. Claro que Eddie estava desapontado. Claro que esperava ser
aceito na família. Mas o idiota estava ganhando uma grana, não estava? O que era mais
importante? Ter um vidão ou pertencer à família? Henry compreendia perfeitamente. Por que
Eddie não podia compreender, também? Mas ele parecia cada vez mais indignado.
— Arranjei este negócio para você. Agora aparece um probleminha e quem você espera que
resolva? Eu! Não é justo, Tony.
Piaggi sabia o que o outro estava pensando. Do ponto de vista de Eddie, era tudo muito
simples. Tony estava se tornando cada vez mais importante para a organização. Com a ascensão
de Henry à categoria de grande fornecedor, Tony ocuparia mais do que uma posição; teria
influência. Ainda teria que mostrar respeito e obediência para aqueles que estavam acima dele,
mas a hierarquia da organização era bastante flexível e a tática de Henry de manter em segredo
seus fornecedores significava que seu elemento de ligação com a organização estaria seguro.
Segurança na organização era uma coisa rara e valiosa. O erro de Piaggi era não continuar o
raciocínio. Estava olhando para dentro, e não para fora. Tudo o que via era que Eddie poderia
substituí-lo, tornar-se o intermediário e entrar para a família, acrescentando posição à sua vida
confortável. Tudo o que Piaggi tinha a fazer era morrer na hora certa. Henry era um homem de
negócios; ele faria a troca sem pestanejar. Piaggi sabia disso. Eddie também.
— Não percebe o que ele está fazendo? Está usando você.
O curioso era que enquanto Morello começava a perceber que Tucker estava manipulando os
dois, Piaggi, um dos alvos da manipulação, não reconhecia esse fato. Em consequência, a
observação correta de Eddie foi mal interpretada.
— Eu acho bem possível que você tenha razão — mentiu Piaggi. — Que será que ele tem em
mente? Uma ligação direta com Filadélfia ou Nova York?
— Pode ser. Essa gente quer abraçar o mundo com as pernas.
— Podemos discutir isso mais tarde. O que eu quero saber é: quem foi que atacou o pessoal
do Henry? Ouviu falar de alguém de fora da cidade? Mantenha-o na defensiva, pensou Piaggi.
Faça-o comprometer-se. Os olhos de Tony sondaram um homem zangado demais para se
importar com o que o outro estava pensando.
— Não ouvi falar em porra nenhuma.
— Fique de antenas ligadas — ordenou Tony, e era mesmo uma ordem. Morello tinha que
obedecer, tinha que investigar.
— E se ele estiver traindo seus auxiliares? Acha que ele é leal a todo mundo?
— Não. Mas também não acho que esteja mentindo para nós. — Tony levantou-se e insistiu
na ordem: — Verifique.
— Claro — resmungou Eddie, de cara feia.
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OLÁS

— Rapazes, estão de parabéns — anunciou o capitão Albie, encerrando a sua análise do


exercício. Tinha havido algumas falhas menores nas manobras de aproximação, mas nada sério,
e mesmo seu olho aguçado não conseguira observar nenhum erro importante na fase de ataque. A
pontaria, em especial, fora quase perfeita, e os homens tinham tanta confiança uns nos outros que
agora estavam passando a poucos metros da linha de fogo para assumir suas posições. As
tripulações dos helicópteros Cobra estavam no fundo da sala, discutindo o próprio desempenho.
Os pilotos e artilheiros eram tratados com grande respeito pelos soldados que apoiavam, como
também acontecia com as tripulações dos helicópteros de resgate, compostas por elementos da
Marinha. A convivência estreita reduzira em muito a antipatia que costumava existir entre
homens de armas diferentes; essa antipatia estava prestes a desaparecer inteiramente. —
Senhores — concluiu Albie —, chegou a hora de conhecerem o motivo desse piquenique.
— Sen... tido! — comandou Irvin.
O vice-almirante Winslow Holland Maxwell entrou no auditório pelo corredor central,
acompanhado pelo general de divisão Martin Young. Os dois oficiais usavam seus melhores
uniformes de serviço. O uniforme de Maxwell era tão branco que chegava a ofuscar, e o
uniforme caqui de Young estava tão engomado que parecia feito de madeira. Um tenente dos
fuzileiros carregava um grande álbum, que montou em um cavalete enquanto Maxwell tomava
seu lugar na tribuna. De um canto do palco, o primeiro-sargento Irvin observava os rostos
jovens na plateia, repetindo para si mesmo que teria que fingir surpresa com as palavras do
almirante.
— À vontade, senhores — disse Maxwell. Esperou que todos se sentassem e prosseguiu: —
Em primeiro lugar, quero que saibam que me sinto orgulhoso por trabalhar com vocês.
Acompanhei de perto a fase de treinamento. Vieram para cá sem saber por quê, e mesmo assim
se esforçaram ao máximo. Agora vamos aos fatos.
O tenente virou a capa do álbum, revelando uma fotografia aérea.
— Senhores, o nome desta operação é BUXO VERDE. O objetivo é salvar vinte homens,
militares americanos que no momento se encontram nas mãos do inimigo.
John Kelly estava de pé ao lado de Irvin. Ele também olhava para os fuzileiros em vez de
olhar para o almirante. A maioria era mais jovem do que ele, mas não muito. Todos
observavam, fascinados, as fotografias aéreas. Uma dançarina nua tão atrairia a mesma atenção
que aquelas ampliações das fotos tiradas pelo Caçador de Búfalos. Os rostos estavam
inicialmente desprovidos de qualquer emoção. Eram como estátuas gregas, praticamente
imóveis nos assentos enquanto o almirante fazia sua palestra.
— Este homem aqui é o coronel Robin Zacharias, da Força Aérea dos Estados Unidos —
prosseguiu Maxwell, usando uma vara de madeira de um metro de comprimento para indicar o
oficial. — Podem ver o que os vietnamitas fizeram com ele só porque olhou para o avião que
tirou esta foto. — Ele mostrou o guarda, prestes a golpear Zacharias com a coronha do fuzil. —
Só porque olhou para o avião.
Nessa hora, todos os rostos se contraíram, observou Kelly. Era uma raiva calma, decidida,
altamente disciplinada, mas nem por isso menos mortífera, pensou o rapaz, suprimindo um
sorriso que só ele estaria em condições de compreender. E foi o mesmo que fizeram os
fuzileiros da plateia. Não era hora de sorrir. Cada um dos presentes estava bem a par dos
perigos envolvidos. Todos tinham sobrevivido a pelo menos treze meses de operações de
combate. Muitos tinham visto os amigos morrerem da forma mais horrível que o pior dos
pesadelos poderia criar. Entretanto, havia mais na vida do que o medo. Talvez fosse um desafio.
Um senso de dever que poucos podiam descrever em palavras mas todos sentiam intensamente.
Uma visão do mundo que todos compartilhavam. Todos os homens daquele auditório tinham
visto a morte em sua assustadora majestade, conheciam muito bem a fragilidade da vida.
Entretanto, sabiam também que a vida era mais do que apenas evitar a morte. A vida tinha que
ter um propósito, e um desses objetivos era servir aos outros. Embora nenhum dos presentes
estivesse disposto a abrir mão de sua vida, todos a confiariam a Deus, ou ao destino, ou à sorte,
no conhecimento de que os companheiros fariam o mesmo. Os homens retratados naquelas fotos
eram desconhecidos, mas mesmo assim eram colegas — mais do que amigos —, a quem deviam
lealdade. Por isso, estavam dispostos a arriscar a vida por eles.
— Não preciso lhes dizer que a missão é perigosa — concluiu o almirante. — Na verdade,
conhecem os perigos melhor do que eu. Entretanto, esses homens são americanos e têm o direito
de esperar que alguém neste país faça alguma coisa por eles.
— É isso aí, senhor! — gritou uma voz da plateia, surpreendendo os outros fuzileiros.
Maxwell quase chorou. É verdade, disse para si mesmo. Temos que nos importar. Com erros
e tudo, não podemos deixar de ser o que somos.
— Obrigado, Dutch — disse Marty Young, dirigindo-se para o centro do palco. — Muito
bem, fuzileiros, agora vocês sabem. Vocês se apresentaram como voluntários para treinar aqui.
Vão ter que se apresentar de novo para participar da missão. Alguns de vocês têm família,
namorada. Ninguém é obrigado a ir. Quem quiser desistir, ainda é tempo — prosseguiu,
examinando os rostos e percebendo que os insultara, não por acidente. — Podem pensar até
amanhã. Reunião encerrada.
Os fuzileiros se levantaram, acompanhados pelo ruído de cadeiras sendo arrastadas, e quando
estavam todos de pé, bradaram, a uma só voz:
— RECON!
Na sua expressão estava evidente que, para eles, recuar seria negar a própria masculinidade.
Agora havia sorrisos. A maior parte dos fuzileiros começou a trocar opiniões com os amigos;
não era a glória que os estimulava, mas o desejo de serem úteis à pátria e talvez vislumbrarem
um olhar de gratidão nos homens por quem arriscariam a vida. Somos americanos e estamos
aqui para levá-los de volta a casa.
— Sr. Clark, o seu almirante fez um belo discurso. Gostaria de tê-lo gravado.
— Que é isso, artilheiro? Sabe que não vai ser fácil.
Irvin sorriu de forma surpreendentemente travessa.
— Eu sei. Mas se acha que é uma fria, por que aceitou a parte mais difícil da missão?
— Alguém me pediu. — Kelly sacudiu a cabeça e aproximou-se do almirante para fazer um
pedido pessoal.

Doris conseguiu descer a escada apoiando-se no corrimão. A cabeça ainda doía, mas menos
do que de manhã. Entrou na cozinha, atraída pelo cheiro de café.
O rosto de Sandy se abriu num sorriso.
— Bom dia, Doris!
— Olá — disse a jovem, ainda pálida e fraca, mas com um sorriso nos lábios. — Estou
morrendo de fome.
— Espero que goste de ovo. — Sandy ajudou-a a sentar-se e foi buscar um copo de suco de
laranja.
— Vou comer até a casca — respondeu Doris, brincando pela primeira vez.
— Pode começar e não se preocupe com as cascas — disse Sarah Rosen, passando o início
de um desjejum normal da frigideira para o prato.
Estava em plena recuperação. Seus movimentos ainda eram muito lentos e tinha a
coordenação de uma criança pequena, mas as melhoras nas últimas vinte e quatro horas tinham
sido espantosas. O resultado do exame do sangue colhido na véspera era ainda mais animador.
As doses maciças de antibióticos tinham eliminado as infecções, e os últimos resíduos de
barbitúricos — resultado das doses paliativas prescritas por Sarah, que não seriam repetidas —
haviam quase desaparecido. O sinal mais positivo de todos, porém, foi a forma como comeu.
Antes de mais nada, desdobrou o guardanapo e estendeu-o no colo, sobre o roupão. Não comeu
com voracidade. Em vez disso, ingeriu seu primeiro café em meses da forma mais digna que seu
estado e sua fome permitiram. Doris estava se tornando de novo uma pessoa.
Entretanto, ainda não sabiam nada a seu respeito, a não ser o nome: Doris Brown. Sandy se
serviu de café e sentou-se à mesa.
— Onde você nasceu? — perguntou, com a voz mais inocente que pôde.
— Em Pittsburgh. — Um lugar tão distante dali quanto a face oculta da Lua.
— Tem família?
— Apenas meu pai. Mamãe morreu em 1965, de câncer de mama — respondeu a jovem,
devagar, apalpando automaticamente o interior do roupão. Pela primeira vez em muito tempo,
seus seios não doíam por causa das atenções de Bílly. Sandy observou o gesto e interpretou-o
corretamente.
— Ninguém mais? — perguntou a enfermeira.
— Tinha um irmão... morreu no Vietnã.
— Sinto muito, Doris.
— Obrigada...
— Meu nome é Sandy, lembra-se?
— E o meu é Sarah — interveio a Dra. Rosen, substituindo o prato vazio por outro cheio.
— Obrigada, Sarah. — O sorriso foi débil, mas Doris Brown já estava reagindo às coisas
que a cercavam, um acontecimento muito mais importante do que poderia desconfiar um
observador casual. Pequenos passos, pensou Sarah. Os passos não precisam ser grandes; basta
que sejam na direção certa. Médica e enfermeira trocaram um olhar.
Não havia nada como aquilo. Era difícil explicar a alguém que não tivesse passado pela
mesma experiência. Sarah e Sandy tinham aberto um túmulo e retirado aquela jovem da
sepultura. Mais três meses, calculava Sarah, talvez menos, e Doris estaria tão fraca que a menor
perturbação externa acabaria com sua vida em questão de horas. Agora, não. Agora aquela
jovem estava salva, e as duas compartilharam em silêncio o que Deus devia ter sentido quando
insuflara a vida em Adão. Tinham derrotado a morte, resgatando o presente que apenas Deus
podia oferecer. Era por isso que as duas tinham escolhido aquela profissão; momentos como
aquele compensavam de longe a dor e a revolta que sentiam pelos pacientes que não podiam
salvar.
— Não coma muito depressa, Doris. Quando a gente fica muito tempo sem comer, o estômago
encolhe um pouco — advertiu Sarah, voltando a falar como médica. Não valia a pena mencionar
os problemas e a dor que certamente afetariam o trato gastrintestinal. Nada poderia impedir que
isso acontecesse, e o mais importante, no momento, era que a moça recuperasse as forças.
— OK. Estou ficando um pouco cheia.
— Então descanse um pouco. Fale do seu pai.
— Eu fugi de casa — afirmou Doris. — Logo depois que David... logo depois que recebemos
o telegrama. Papai ficou muito perturbado e começou a descarregar em mim.
Raymond Brown era contramestre de uma das turmas de trabalho do conversor LD número
três da Jones and Laughlin Steel Company. Morava na Dunleavy Street, na encosta de uma das
colinas da cidade, em uma das muitas casas que tinham sido construídas na virada do século,
com paredes externas de madeira que tinham que ser pintadas a cada dois ou três anos,
dependendo da severidade dos ventos de inverno que varriam o vale de Monongahela.
Escolhera o turno da noite porque sua casa era especialmente solitária à noite. Nunca mais
poderia conversar com a mulher, nem levar o filho para jogar beisebol, nem se preocupar com
os namoros da filha.
Bem que tentara, fazendo tudo o que um homem pode fazer, mas era tarde demais, como
costumava ser em casos assim. A esposa descobrira um caroço no seio. Ainda era uma mulher
jovem e bonita, de menos de quarenta anos, e sua melhor amiga. Depois da cirurgia, oferecera-
lhe todo o apoio, mas aparecera outro caroço, seguido por outra cirurgia, um tratamento médico
e uma rápida decadência física. Tivera que ser forte por ela até o fim. Como se não bastasse,
seu filho, David, tinha sido convocado, enviado para o Vietnã e morto em combate duas
semanas mais tarde, em um vale anônimo. O apoio dos colegas de trabalho, a forma como
compareceram em massa ao enterro de Davey, não o impediu de refugiar-se na bebida, tentando
desesperadamente agarrar-se ao que ainda tinha, mas da maneira errada. Doris também sofrerá
muito, coisa que Raymond aparentemente não compreendia ou apreciava perfeitamente, e
quando a jovem chegara tarde em casa, com as roupas em desalinho, o pai lhe dissera coisas
cruéis. Ainda podia se lembrar de cada palavra e do ruído seco da porta da frente sendo
fechada com força.
No dia seguinte caíra em si e fora até a delegacia com lágrimas nos olhos, humilhando-se
diante de homens cuja compreensão e simpatia não estava em condições de perceber,
desesperado para ter de volta a sua garotinha, para lhe pedir o perdão que jamais poderia dar a
si mesmo. Entretanto, Doris desaparecera como que por encanto. A polícia fizera o possível, o
que não era muito. Durante os dois anos seguintes, passara a maior parte do tempo bêbado.
Afinal, dois colegas de trabalho o chamaram e falaram com ele como os amigos podem fazer
depois que criam coragem suficiente para invadir! a privacidade de outro homem. Agora, o
ministro da paróquia era um convidado frequente naquela casa solitária. Estava quase curado.
Raymond Brown ainda bebia, mas não em excesso, e estava lutando para se tornar abstêmio.
Tinha que enfrentar a tristeza daquela forma, Sabia que a dignidade em si não valia grande
coisa. Era uma coisa vazia para se agarrar, mas era tudo o que tinha. Rezar também ajudava; na
repetição das palavras muitas vezes encontrava o sono, embora não os sonhos com a família que
dividira a casa com ele. Estava rolando na cama, suando com o calor, quando o telefone tocou.
— Alô.
— Alô. Raymond Brown?
— Ele mesmo. Quem fala? — perguntou, de olhos fechados.
— Meu nome é Saran Rosen. Sou médica e trabalho no hospital Johns Hopkins, em
Baltimore.
— Sim? — O tom de voz da mulher o fez abrir os olhos. Olhou para o teto, para a superfície
branca que combinava com o vazio da sua vida. E sentiu um medo súbito. O que uma médica de
Baltimore podia querer com ele? Estava quase em pânico quando a mulher tornou a falar.
— Tenho alguém aqui que deseja falar com o senhor.
— Hein? — Ele ouviu em seguida sons abafados que poderiam ser estática, mas não eram.
— Eu não posso.
— Não tem nada a perder, querida — afirmou Sarah, passando-lhe o fone. — É seu pai.
Confie nele.
Doris pegou o aparelho, segurou-o com as duas mãos perto do rosto, e sua voz era um
sussurro.
— Papai?
A centenas de quilômetros de distância, a palavra sussurrada tinha a clareza de um sino de
igreja. Raymond teve que respirar fundo três vezes antes de responder.
— Dor?
— Sou eu, papai. Desculpe.
— Como você está, querida?
— Estou bem, papai. Estou bem. — Por mais incongruente que fosse a afirmação, era
verdadeira.
— Onde você está?
— Espere um momento.
A voz mudou.
— Sr. Brown, aqui é a Dra. Rosen de novo.
— Ela está aí?
— Está, sim, Sr. Brown. Estamos cuidando dela há uma semana. Doris passou muito mal, mas
vai ficar boa. O senhor compreende? Ela vai ficar boa.
Raymond levou a mão ao peito. Mal podia respirar.
— Ela está bem? — perguntou, ansioso.
— Não se preocupe, Sr. Brown. A sua filha vai ficar boa — assegurou Sarah. — Acredite em
mim, OK?
— Oh, meu Deus! Onde, onde vocês estão?
— Sr. Brown, ainda não chegou a hora. Vamos levar Doris até aí assim que estiver
completamente recuperada. Talvez não devesse ligar para o senhor antes que pudesse vê-la...
mas também não podia deixar de ligar. Espero que compreenda.
Sarah teve que esperar dois minutos para ouvir alguma coisa que pudesse entender, mas os
sons do outro lado da linha eram de cortar o coração. Ao abrir aquele túmulo, salvara duas
vidas.
— Ela está mesmo passando bem?
— Doris passou por maus pedaços, Sr. Brown, mas eu lhe garanto que vai se recuperar
totalmente. Eu sou uma boa médica, OK? Não lhe diria isso se não fosse verdade.
— Por favor, por favor, deixe-me falar com ela de novo. Por favor!
Sarah passou o telefone para Doris e, em pouco tempo, quatro pessoas estavam chorando. A
enfermeira e a médica eram as mais felizes, abraçando-se e comemorando sua vitória sobre as
crueldades do mundo.

Bob Ritter estacionou o carro em uma vaga da West Executive Drive, uma rua particular que
ficava entre a Casa Branca e o edifício de escritórios do Executivo. Caminhou na direção deste
último, que era talvez o mais feio edifício da capital — não por falta de concorrência — e
abrigara no passado boa parte do poder Executivo, incluindo os departamentos de Estado, da
Guerra e da Marinha. Também abrigava o Salão índio de Tratados, projetado com o objetivo de
impressionar os visitantes com o esplendor da arquitetura vitoriana e com a majestade do
governo que construíra aquela gigantesca tenda índia. Nos largos corredores ressoou o som de
seus passos no chão de mármore enquanto procurava o gabinete certo. Encontrou-o no segundo
andar; era o escritório de Roger MacKenzie, assistente especial do presidente para assuntos de
segurança nacional. Curiosamente, o fato de ser "especial" colocava-o no segundo escalão. O
assessor de segurança nacional tinha direito a um escritório de esquina na ala ocidental da Casa
Branca. Seus subordinados tinham escritórios em outros locais, e embora a distância da sede do
poder definisse a influência, não definia a arrogância associada a posição. MacKenzie tinha
uma equipe própria para se lembrar da própria importância, real ou ilusória. Embora não fosse
uma má pessoa, pensou Ritter, e se tratasse na verdade de um homem mais inteligente do que a
média, MacKenzie era muito cioso do cargo que ocupava; em outra época, teria sido o
funcionário que aconselhava o chanceler que aconselhava o rei. Só que agora o funcionário
tinha que ter um secretário executivo.
— Olá, Bob. Como vão as coisas em Langley? — perguntou MacKenzie na frente dos
auxiliares, só para mostrar que estava recebendo a visita de um alto funcionário da CIA e que os
dois eram íntimos.
— Como de costume — respondeu Ritter, com um sorriso. Vamos logo ao assunto.
— Problemas com o tráfego? — perguntou, insinuando que Ritter estava um pouco atrasado.
— Havia uma pequena retenção no GW. — Ritter fez um gesto com a cabeça em direção ao
escritório particular de MacKenzie. O outro assentiu.
— Wally, precisamos de alguém para tomar notas.
— Já vai, senhor. — O assistente executivo saiu de detrás da escrivaninha e pegou um bloco.
— Bob Ritter, este é Wally Hicks. Acho que vocês ainda não se conhecem.
— Como vai, senhor? — Hicks estendeu a mão. Ritter apertou-a, vendo mais um funcionário
ambicioso da Casa Branca. Sotaque da Nova Inglaterra, ar inteligente, muito educado, o que era
tudo que se esperava dele. Um minuto depois, estavam sentados no escritório de MacKenzie, as
portas externa e interna fechadas nos batentes de ferro fundido que davam ao edifício de
escritórios do Executivo a solidez de um navio de guerra. Hicks se apressou em servir café para
todos, como um pajem em uma corte medieval, como era de praxe na democracia mais poderosa
do mundo.
— Então, o que o traz aqui, Bob? — perguntou MacKenzie de detrás da escrivaninha. Hicks
abriu o bloco de anotações e começou sua luta para anotar cada palavra.
— Roger, surgiu uma oportunidade única no Vietnã. — Os olhos do interlocutor se
arregalaram e seus ouvidos se aguçaram.
— Do que se trata?
— Localizamos um campo especial de prisioneiros a sudoeste de Haiphong — começou
Ritter, explicando resumidamente o que sabiam e o que suspeitavam.
MacKenzie escutou-o com atenção. Na verdade, o financista recém-nomeado para o governo
também tinha sido aviador. Pilotara bombardeiros B-24 na Segunda Guerra Mundial,
participando, entre outras, da dramática mas frustrada missão de Ploesti. Um patriota com
falhas, pensou Ritter. Tentaria falar ao primeiro ignorando as últimas.
— Deixe ver suas imagens — pediu, depois de alguns minutos, usando o termo dos espiões
em lugar do mais prosaico "fotos".
Ritter tirou da maleta a pasta com as fotografias e colocou-a sobre a mesa. MacKenzie abriu-
a e tirou uma lente de uma gaveta.
— Sabemos quem é esse cara?
— Há uma foto melhor no final — explicou Ritter.
MacKenzie comparou a foto oficial com a que tinha sido tirada no campo e depois com a
ampliação.
— Realmente parece ser a mesma pessoa. Quem é ele?
— Coronel Robin Zacharias, da Força Aérea. Trabalhou muito tempo na base aérea de Offutt.
Planos de guerra do SAC. Ele sabe de muita coisa, Roger.
MacKenzie levantou a cabeça e assoviou, o que, em sua opinião, era o que devia fazer nas
circunstâncias.
— E este sujeito aqui não é vietnamita...
— Ele é coronel da Força Aérea soviética. Ainda não sabemos seu nome, mas não é difícil
de adivinhar o que está fazendo no campo. Mas aqui está a verdadeira bomba — disse Ritter,
passando-lhe uma cópia do comunicado oficial da morte de Zacharias.
— Droga.
— De repente, tudo se torna claro, não é?
— Este tipo de coisa poderia estragar as conversações de paz — pensou MacKenzie em voz
alta.
Walter Hicks não disse nada. Ninguém esperava que emitisse sua opinião. Não passava de um
acessório — um gravador humano — e só estava ali para que o chefe pudesse ter um registro da
conversa. Estragar as conversações de paz, escreveu, fazendo questão de sublinhar a frase, e
embora ninguém notasse, os dedos que seguravam o lápis perderam a cor.
— Roger, os homens que acreditamos estar naquele campo sabem de muita coisa. O bastante
para comprometer seriamente a segurança nacional. Eu disse seriamente. Zacharias conhece
nossos planos de guerra nuclear. Ele ajudou a escrever o SIOP. Este caso é muito sério. —
Simplesmente pelo fato de falar no SIOP, de mencionar o nome proibido do "Single Integrated
Operations Plan" (Plano Único de Operações Integradas), Ritter propositadamente havia
tornado a conversa muito mais séria. O próprio funcionário da CIA admirou-se com a eficácia
da mentira. Os palhaços da Casa Branca podiam não gostar da ideia de resgatar prisioneiros
simplesmente porque eram pessoas, mas tinham seus assuntos delicados, e os planos de guerra
nuclear eram o santo dos santos naquele e em outros templos do poder federal.
— Sou todo ouvidos, Bob.
— Seu nome é Hicks, certo? — perguntou Ritter, virando a cabeça.
— Sim, senhor.
— Quer nos dar licença, por favor?
O secretário olhou para o chefe, o rosto impassível implorando a MacKenzie que o deixasse
ficar, mas isso não era possível.
— Wally, vamos continuar esta conversa em particular — disse o assistente especial do
presidente, amenizando o impacto da ordem com um sorriso amistoso... e um gesto na direção
da porta.
— Sim, senhor. — Hicks levantou-se, saiu e fechou a porta sem ruído.
Que merda!, exclamou mentalmente, sentando-se atrás da sua mesa. Como poderia aconselhar
o chefe sem saber o que estava se passando? Robert Ritter, pensou Hicks. O homem que quase
arruinara negociações complexas em um momento particularmente delicado ao desobedecer às
ordens e tirar de Budapeste um maldito espião. As informações fornecidas pelo espião tinham
mudado a posição dos Estados Unidos na mesa de negociações e isso acarretara um atraso de
três meses na assinatura do tratado, porque os americanos decidiram arrancar mais um pouco
dos soviéticos. Estes, surpreendentemente, tinham se mostrado razoáveis, concordando em
voltar a discutir questões já decididas. Isso havia salvado a carreira de Ritter... e
provavelmente reforçara nele a ideia romântica de que pessoas isoladas podiam ser mais
importantes do que a paz mundial, quando a paz era a única coisa que realmente importava,
E Ritter sabia como manipular Roger, não sabia? Toda aquela história de planos de guerra era
conversa fiada. As paredes do escritório de Roger estavam cobertas de fotos dos bons tempos,
quando pilotara aquele maldito avião nos céus da Europa, fazendo de conta que estava vencendo
pessoalmente a guerra contra Hitler, mais uma maldita guerra que uma boa diplomacia teria
evitado se as pessoas abordassem de frente as questões realmente importantes, como ele e Peter
tinham esperança de fazer um dia.
O que estava em jogo não eram planos de guerra, nem o SIOP, nem os imbecis uniformizados
que todos os dias circulavam pelo seu setor de assessoramento da Casa Branca. O que estava
em jogo eram pessoas, nada mais do que pessoas. Soldados idiotas, gente com músculos demais
e cérebros de menos que não sabia fazer outra coisa a não ser matar, como se isso pudesse
tornar o mundo melhor. Além do mais, pensou Hicks, irritado, eles sabiam o risco que estavam
correndo, não sabiam? Se se dispunham a jogar bombas em um povo pacífico e amistoso como
os vietnamitas, deviam ter imaginado que esse povo poderia não gostar. Mais importante ainda,
se eram suficientemente tolos para arriscar a própria vida, estavam aceitando implicitamente a
possibilidade de perdê-la. Nesse caso, por que alguém como Wally Hicks deveria se importar
com eles quando se metessem em dificuldades? Provavelmente adoravam a ação. Ela sem
dúvida atraía o tipo de mulher que achava que cérebros pequenos eram acompanhados por paus
avantajados, que gostava de "homens" que arrastavam os nós dos dedos no chão, como macacos
vestidos.
Aquilo podia estragar as conversações de paz. Até MacKenzie reconhecia o fato.
Todos aqueles garotos da sua geração, sacrificados inutilmente. E agora o fim da guerra
poderia ser adiado por causa de quinze ou vinte assassinos profissionais que provavelmente
adoravam o que faziam. Não era justo. Que tal se marcassem uma guerra e ninguém aparecesse?
era uma das máximas preferidas da sua geração, embora soubesse tratar-se de uma fantasia.
Porque pessoas como aquele sujeito da foto, Zacharias, sempre conseguiriam convencer outros
a segui-los, sem compreender, como Hicks compreendia tão bem, que tudo aquilo era um grande
desperdício de energia. Aquilo era o mais espantoso de tudo. Não era óbvio que a guerra era
simplesmente horrível! Era preciso ser muito inteligente para entender isso!
Hicks viu a porta se abrir. MacKenzie e Ritter saíram.
— Wally, vamos sair por alguns minutos. Quer avisar ao meu compromisso das onze horas
que vou voltar assim que puder?
— Sim, senhor.
Não era incrível? Ritter conseguira o que queria. MacKenzie estava tão convencido que
falaria pessoalmente com o assessor de segurança nacional. E eles provavelmente virariam as
negociações de paz de cabeça para baixo, provocando um atraso de no mínimo três meses, a
menos que alguém fizesse alguma coisa. Hicks tirou o fone do gancho e discou um número.
— Escritório do senador Donaldson.
— Olá. Eu queria falar com Peter Henderson.
— Sinto muito, mas ele e o senador estão na Europa. Só voltam semana que vem.
— Ah, é mesmo. Obrigado. — Hicks desligou. Droga. Estava tão nervoso que esquecera.

Algumas coisas tinham que ser feitas com muito, muito cuidado. Peter Henderson nem sabia
que seu nome de código era CASSIUS. Tinha sido escolhido por um analista do Instituto
Estados Unidos — Canadá cuja paixão pelas peças de Shakespeare era tão autêntica quanto a de
qualquer catedrático de Oxford. A foto de arquivo, juntamente com o currículo de uma página do
agente, o fizera pensar no "patriota" interesseiro de Júlio César. Brutus não seria uma escolha
tão boa; na opinião do analista, Henderson não tinha suficiente grandeza de caráter para receber
o nome do assassino de César.
Seu chefe estava na Europa em uma viagem de "apuração de fatos" que tinha a ver
principalmente com a OTAN, embora pretendesse dar uma passada nas conversações de paz em
Paris apenas para gravar alguma coisa que a TV pudesse mostrar naquele outono, nas estações
de Connecticut. Na verdade, a viagem estava sendo principalmente um roteiro de compras,
interrompido por reuniões dia sim, dia não. Henderson, que desfrutava pela primeira vez de uma
viagem como assessor do senador para assuntos de segurança nacional, tinha que comparecer às
reuniões, mas estava livre para aproveitar como quisesse o resto do tempo, e tinha seus
próprios planos. No momento, visitava a torre branca, a atração principal da torre de Londres,
que há quase novecentos anos vigiava o rio Tâmisa.
— Dia quente, para Londres — comentou um turista.
— Será que aqui eles também têm tempestades de verão? — perguntou o americano, em tom
casual, enquanto observava a gigantesca armadura de Henrique VIII.
— Têm, sim — respondeu o outro. — Mas não são tão violentas como em Washington.
Henderson procurou uma saída e se encaminhou para ela. No instante seguinte, estava
caminhando no jardim da torre com o novo amigo.
— O seu inglês é excelente.
— Obrigado, Peter. Meu nome é George.
— Muito prazer, George. — Henderson sorriu sem olhar para o outro. Era como em um filme
de James Bond, e fazer isso ali, não apenas em Londres, mas na residência histórica da família
real inglesa, era simplesmente delicioso.
George era seu nome real (na verdade Georgiy, o equivalente em russo), e há muito tempo
não fazia mais trabalhos de campo. Embora tivesse sido ótimo agente do KGB, sua capacidade
analítica era tal que há cinco anos tinha sido chamado de volta a Moscou, promovido a tenente-
coronel e colocado no comando de um departamento inteiro. Agora coronel pleno, George
sonhava com as estrelas de general. O motivo pelo qual viera a Londres, passando por
Helsinque e Bruxelas, era que queria conhecer CASSIUS pessoalmente... além de fazer algumas
compras para a família. Apenas três homens de sua idade eram tão graduados quanto ele no
KGB, e a esposa jovem e bonita gostava de roupas ocidentais. Onde poderia comprá-las, senão
em Londres? George não falava francês nem italiano.
— Esta é a primeira e última vez que nos encontramos, Peter.
— Devo considerar isso uma honra?
— Se quiser. — George era extremamente bem-humorado para um russo, mas isso fazia parte
do seu disfarce. Ele sorriu para o americano. — O seu chefe tem acesso a muitas informações.
— É verdade — concordou Henderson, divertindo-se com a situação. Não precisou
acrescentar e eu também.
— Essas informações podem ser úteis para nós. O governo do seu país, especialmente com o
novo presidente... honestamente, nos assusta.
— Eu também estou assustado — admitiu Henderson.
— Mas ao mesmo tempo temos esperanças — prosseguiu George, falando em tom ponderado.
— Ele é um homem realista. Sua proposta de détente é encarada pelo meu governo como um
sinal de que podemos chegar a um acordo global. Em consequência, estamos dispostos a
considerar a possibilidade de que sua proposta de negociação tenha sido feita de boa-fé.
Infelizmente, há alguns problemas a serem contornados.
— Tais como?
— Seu presidente talvez esteja bem-intencionado. Estou dizendo isso com sinceridade, Peter
— acrescentou George. — Acontece que ele é altamente... competitivo. Se souber demais a
nosso respeito, passará a nos pressionar em certas áreas, o que talvez nos impeça de chegar ao
acordo que todos desejamos. Vocês têm elementos indesejáveis no governo. Nós também...
remanescentes da era Stalin. O segredo de negociações como as que estão para começar é que
os dois lados devem estar dispostos a ceder. Precisamos da sua ajuda para controlar os
elementos indesejáveis do nosso lado.
Henderson ficou surpreso ao ouvir aquilo. Era uma prova de que os russos podiam ser tão
francos quanto os americanos. — O que posso fazer?
— Os dois lados têm segredos que não devem ser divulgados, coisas que, se vierem a
público, prejudicarão a détente. Se soubermos demais a respeito de vocês ou vocês souberem
demais a nosso respeito, o jogo ficará desigual. Um dos lados procurará obter vantagens
excessivas; não haverá um equilíbrio, e sim uma dominação, coisa que nenhum dos dois lados
está disposto a aceitar. Está me acompanhando?
— Estou. Acho que faz sentido.
— O que estou pedindo, Peter, é que nos informe de tempos em tempos a respeito dos nossos
segredos que chegaram ao conhecimento de vocês. Não vamos lhe dizer o que, exatamente, deve
nos relatar. Confiamos no seu discernimento. Chega de guerra. A paz, se é que ela é possível,
vai depender de pessoas como você e eu. Deve haver confiança entre nossas nações. Essa
confiança começa com as pessoas. Não há outro meio. É assim que a paz deve começar.
— A paz... seria ótimo se pudéssemos alcançá-la — admitiu Henderson. — Primeiro vamos
ter que acabar com essa maldita guerra.
— Temos trabalhado para isso, como deve saber. Estamos... não pressionando, mas
encorajando nossos aliados a adotarem uma linha mais moderada. Já morreram jovens demais.
Está na hora de pôr um paradeiro nisso, de encontrar uma saída que seja satisfatória para os
dois lados.
— É bom ouvir isso, George.
— Então vai nos ajudar?
Tinham dado a volta completa no jardim e estavam agora de frente para a capela. Havia um
cepo ali. Henderson não sabia se tinha sido usado ou não para decapitar alguma figura histórica.
O cepo era cercado por uma corrente, onde no momento estava pousado um corvo, dos muitos
que eram mantidos na torre de Londres, tanto por tradição como por superstição. Ali perto, um
membro da guarda real falava para um grupo de turistas.
— Tenho ajudado você, George. — Era verdade. Henderson estava mordiscando a isca há
quase dois anos. Tudo o que o coronel do KGB tinha a fazer era adoçar a isca e ver se
Henderson a engolia junto com o anzol.
— Sim, Peter, eu sei disso, mas agora estamos pedindo um pouco mais, alguma informação
realmente sigilosa. A decisão é sua, meu amigo. Fazer guerra é fácil; difícil é conquistar a paz.
Ninguém jamais conhecerá o papel que você desempenhou. Os altos dignitários dos dois países
vão fazer acordos e apertar as mãos diante das câmeras de televisão. Gente como você e eu,
meu amigo, jamais será mencionada nos livros de história. Mas não importa. São pessoas como
nós que preparam o terreno para nossos ministros. Não posso obrigá-lo a nada, Peter. Você é
quem vai ter que decidir se está disposto a nos ajudar voluntariamente. Também vai ter que
decidir o que devemos saber. Você é um jovem brilhante e sua geração de americanos aprendeu
as lições que precisava aprender. Se quiser, pode pensar um pouco antes de me dar uma
resposta. Henderson olhou para ele. Tinha acabado de decidir.
— Não é preciso. Você tem razão. Alguém tem que trabalhar em favor da paz. Vou ajudá-lo,
George.
— O risco será grande. Você sabe disso — advertiu George. Agora que Henderson estava
engolindo o anzol, tinha que fixá-lo com firmeza.
— Acho que vai valer a pena.
— Pessoas como você precisam ser protegidas. Quando voltar para casa, alguém fará
contato. — George fez uma pausa. — Peter, tenho uma filha de seis anos e um filho de dois.
Graças ao seu trabalho, e ao meu, eles vão se tornar adultos em um mundo melhor... um mundo
em paz. Em nome deles, Peter, eu lhe agradeço. Agora tenho que ir.
— A gente se vê, George — disse Henderson, fazendo George se voltar e sorrir pela última
vez.
— É pouco provável, Peter. — George desceu os degraus de pedra que levavam ao portão do
traidor. Teve que se controlar para não rir às gargalhadas da combinação do que acabava de
conseguir com o ironia do arco de pedra gradeado que tinha diante dos olhos. Cinco minutos
depois, fez sinal para um táxi e pediu ao motorista que o levasse para a loja de departamentos
Harrods, em Knightsbridge.
Cassius, pensou. Não, Cassius não. Casca, talvez. Mas era tarde demais para mudar, e, além
disso, quem iria entender a piada?
Glazov enfiou a mão no bolso, à procura da lista de compras.
25

PARTIDAS

Uma demonstração, por mais perfeita que fosse, não era suficiente, é claro. Repetiram o
exercício nas quatro noites seguintes. Também ensaiaram duas vezes durante o dia, para que o
posicionamento dos homens ficasse bem claro para todos. O grupo de resgate deveria correr
para o bloco onde estavam os prisioneiros passando a apenas três metros da linha de fogo de
uma metralhadora M-60. A topografia do campo tornava isso inevitável. Era o detalhe técnico
mais perigoso de toda a missão. No final da semana, o grupo da operação BUXO VERDE
estava tão bem treinado quanto era humanamente possível. Os soldados sabiam disso e os
oficiais também. O treinamento não foi exatamente relaxado, mas estabilizou-se, para que os
homens não ficassem excessivamente cansados nem a rotina os fizesse perder os reflexos. O que
se seguiu foi a fase final dos preparativos. Durante os exercícios, os homens interrompiam a
ação para trocar sugestões. As melhores ideias eram encaminhadas a um suboficial ou ao
capitão Albie e frequentemente incorporadas ao plano. Era importante que todos os membros do
grupo sentissem que estavam participando do planejamento. Não havia outra forma de assegurar
a confiança, não a fanfarronice tão frequentemente associada às tropas de elite, mas o
julgamento profissional mais profundo e muito mais importante que analisava, corrigia e tornava
a corrigir até que todas as coisas estivessem nos seus lugares... e então parava.
Curiosamente, o ambiente nas horas de folga se tornara mais descontraído. Eles já sabiam
qual seria a missão, e as brincadeiras pesadas, tão comuns entre jovens soldados, diminuíram.
Assistiam à televisão, liam livros e revistas, esperavam pelo momento de entrar em ação,
sabendo que do outro lado do mundo outros homens estavam esperando, também. No silêncio de
vinte e cinco mentes humanas, perguntas estavam sendo formuladas. As coisas correriam bem?
Caso a resposta fosse afirmativa, que alívio todos sentiriam! Se fosse negativa... bem, tinham
decidido há muito tempo que, ganhando ou perdendo, não recuariam diante daquele desafio.
Havia maridos para serem devolvidos às suas mulheres, pais para serem devolvidos aos seus
filhos, cidadãos a serem devolvidos à sua pátria. Em suma: um motivo nobre para arriscar a
vida.
A pedido do sargento Irvin, o grupo foi visitado por capelães. Alguns se confessaram. Outros
escreveram testamentos (apenas por via das dúvidas, explicaram, constrangidos). Durante esse
período, os fuzileiros começaram a pôr de lado outros pensamentos e a se concentrar mais e
mais em algo identificado apenas por um nome de código escolhido ao acaso. Cada homem ia
até o local de treinamento para verificar posições e ângulos, em geral acompanhado pelo
membro da equipe que estaria a seu lado durante a operação. Os dois praticavam juntos os
movimentos que teriam que executar ao se aproximarem do campo ou depois que o tiroteio
começasse. Cada homem tinha também uma rotina pessoal de exercícios, como correr dois ou
três quilômetros, tanto para descarregar a tensão como para garantir que quando o dia chegasse
estaria em perfeita forma. Um observador treinado notaria que eles pareciam sérios mas não
tensos, concentrados mas não obsessivos, confiantes mas não pretensiosos. Outros fuzileiros em
Quantico se mantinham a distância quando viam o grupo, curiosos a respeito do local de
treinamento e dos horários estranhos, dos helicópteros Cobra e dos pilotos de salvamento da
Marinha, mas um olhar para o grupo na floresta de pinheiros era toda a advertência de que
necessitavam para engolir todas as perguntas. Alguma coisa muito especial estava acontecendo.

— Obrigado, Roger — disse Bob Ritter, na privacidade do seu escritório em Langley.


Apertou um botão no telefone e discou um ramal interno. — James? Bob. Temos sinal verde.
Pode dar a partida.
— Obrigado, James. — Dutch Maxwell Virou-se na cadeira giratória e olhou para o painel
de avião pendurado na parede, uma peça de alumínio do seu caça F6F Hellcat com várias
bandeirinhas pintadas em fileiras, cada uma representando uma vítima de sua destreza. Era a sua
pedra de toque pessoal para a profissão que escolhera. — Escrevente Grafton — chamou.
— Senhor? — Um suboficial apareceu na porta.
— Mande uma mensagem para o almirante Podulski, no Constellation: "Verde-Oliva.”
— Sim, senhor.
— Mande buscar o meu carro e depois ligue para Anacostia. Vou precisar de um helicóptero
daqui a quinze minutos.
— Sim, senhor.
O vice-almirante Winslow Holland Maxwell, da Marinha dos Estados Unidos, levantou-se e
saiu pela porta lateral que dava para o corredor do anel externo. Sua primeira parada foi em um
escritório no setor da Força Aérea.
— Gary, vamos precisar daquele transporte de que lhe falei.
— Não há problema, Dutch — respondeu o brigadeiro, sem fazer perguntas.
— Comunique os detalhes ao meu escritório. Estou de saída, mas pretendo ligar de hora em
hora.
— Tudo bem.
O carro de Maxwell estava esperando na saída do rio, com um subtenente ao volante.
— Para onde vamos, senhor?
— Para o heliporto de Anacostia.
— Sim, senhor.
O subtenente engrenou uma primeira e tomou a direção do rio, Não sabia do que se tratava,
mas devia ser alguma coisa importante. O Velho estava tão lépido quanto sua filha quando ia se
encontrar com o namorado.
Kelly estava praticando de novo na floresta, como vinha fazendo nas últimas semanas.
Escolhera as armas na esperança fervorosa de que não precisasse disparar um único tiro. A
principal era uma versão CAR-15 do rifle de assalto M-16. Levava também uma automática de
9mm com silenciador em um coldre pendurado no ombro, mas seu equipamento mais importante
era um transmissor de rádio. Na verdade, estava levando dois transmissores, por razões de
segurança, além de comida, água, um mapa e baterias de reserva. O peso total chegava a dez
quilos, sem contar os equipamentos especiais que seriam usados apenas no desembarque. Não
era um peso excessivo; descobriu que podia deslocar-se com facilidade na floresta e transpor as
colinas sem se cansar. Kelly se movia rapidamente para um homem do seu tamanho, e sem fazer
barulho. Para isso, escolhia criteriosamente o caminho, prestando atenção nos lugares onde
pisava, na forma como se desviava das árvores e arbustos, em tudo que se passava à sua volta.
Cuidado com o excesso de treinamento, disse a si próprio. É melhor não exagerar.
Aprumou o corpo e começou a descer a colina, rendendo-se aos instintos. Encontrou os
fuzileiros praticando em pequenos grupos, fingindo que disparavam as armas enquanto o capitão
Albie conferenciava com as tripulações dos quatro helicópteros. Kelly estava chegando ao
ponto de desembarque quando um helicóptero azul da Marinha pousou e o almirante Maxwell
saltou. Kelly adivinhou imediatamente o objetivo da visita.
— Vamos em frente?
— Esta noite — confirmou Maxwell, fazendo que sim com a cabeça. Apesar de todo o seu
entusiasmo, Kelly sentiu um frio na espinha. A coisa era para valer. Sua vida estava de novo em
jogo. As vidas de outros dependeriam dele. Teria que cumprir sua parte. Ainda bem, disse para
si mesmo, que sei exatamente o que fazer. Esperou ao lado do helicóptero enquanto Maxwell ia
falar com o capitão Albie. O carro do general Young também se aproximou. Os três trocaram
continências enquanto Kelly observava. Albie recebeu a notícia e suas costas ficaram um pouco
mais retas. Os fuzileiros se reuniram em torno do trio, mas sua reação foi surpreendentemente
fria. Olhares foram trocados, que logo se transformaram em simples acenos de cabeça. A missão
tinha sido aprovada. Depois de dar o seu recado, Maxwell encaminhou-se de volta para o
helicóptero.
— Acho que vai querer aquela folga rápida que me pediu.
— Foi o que combinamos, senhor.
O almirante deu um tapinha no ombro dele e apontou para o helicóptero. Lá dentro, os dois
colocaram fones de ouvido enquanto o piloto aumentava as rotações da turbina.
— De quanto tempo disponho, senhor?
— Esteja de volta antes da meia-noite.
O piloto olhou para trás. Maxwell fez um gesto para que ele continuasse no solo.
— Sim, senhor.
Kelly tirou os fones e saltou do helicóptero. Foi falar com o general Young.
— Dutch já me contou — disse Young, com um tom de desaprovação na voz. Não estava
acostumado a fazer as coisas daquele jeito. — Do que vai precisar?
— De uma carona até o barco para mudar de roupa e de outra até Baltimore, OK? Posso
voltar por minha conta.
— Escute, Clark...
— General, eu ajudei a planejar esta missão. Vou ser o primeiro a chegar e o último a sair.
Young teve vontade de dizer um palavrão, mas se conteve. Em vez disso, apontou para o seu
motorista e depois para Kelly.
Quinze minutos depois, Kelly já estava na outra vida. Desde que deixara o Springer
amarrado em uma vaga de visitante, o mundo tinha parado e ele se movera para trás no tempo.
Agora, estava se movendo para a frente por um breve período. Um rápido olhar revelou que o
supervisor do cais estava cuidando bem do barco. Tomou uma chuveirada rápida, vestiu roupas
civis e voltou para onde estava o carro do general.
— Vamos para Baltimore, cabo. Ou melhor: vou facilitar as coisas para você. Deixe-me no
aeroporto que eu pego um táxi para lá.
— Sim, senhor — disse o motorista para um homem que já estava começando a cochilar.

— Então, qual é a história, Sr. MacKenzie? — perguntou Hicks.


— Eles aprovaram o plano — respondeu o assistente especial, assinando alguns papéis e
rubricando outros para vários arquivos oficiais onde futuros historiadores poderiam anotar o
seu nome como ator figurante nos grandes acontecimentos da época.
— Pode me dizer do que se trata?
Que diabo, pensou MacKenzie. Hicks estava autorizado a lidar com informações sigilosas e
era uma oportunidade de mostrar como ele, MacKenzie, era importante. Em dois minutos, cobriu
os pontos principais da operação BUXO VERDE.
— Senhor, está falando de uma invasão — observou Hicks, o mais tranquilamente que pôde,
apesar do arrepio na pele e do súbito nó no estômago.
— Talvez eles pensem assim, mas eu, não. Se bem me lembro, eles já invadiram três nações
soberanas.
— Mas isso pode prejudicar as negociações de paz... o senhor mesmo disse isso.
— As negociações de paz que se fodam! Que merda, Wally, existem americanos lá, e o que
eles sabem é vital para a segurança nacional. Além do mais — ele sorriu —, ajudei a vender a
ideia a Henry. E se a operação der certo...
— Mas...
MacKenzie levantou os olhos. Será que o garoto não entendia? — Mas o que, Wally?
— É perigoso.
— A guerra é assim mesmo, caso ninguém tenha lhe contado.
— Senhor, tenho liberdade para dizer o que eu penso, não tenho? — perguntou Hicks.
— Claro que tem, Wally. Fale.
— As conversações de paz estão passando por uma fase delicada...
— Conversações de paz são sempre delicadas, não são? Prossiga — ordenou MacKenzie,
saboreando suas frases pedagógicas. Talvez aquele garoto pudesse aprender alguma coisa para
variar.
— Senhor, já perdemos muitos soldados. E matamos um milhão de vietnamitas. Para quê? O
que ganhamos com isso? O que adiantou? — Sua voz tinha quase um tom de súplica.
Aquilo não era exatamente novidade e MacKenzie já estava cansado de responder.
— Se está me pedindo para defender nossa entrada na guerra, Wally, perde seu tempo. Foi
uma grande bobagem, mas não foi obra deste governo, foi? Fomos eleitos com o compromisso
de sair de lá o mais depressa possível.
— Sim, senhor — concordou Hicks, como não podia deixar de fazer. — É exatamente o que
estou querendo dizer. Esta operação pode comprometer nossos esforços para pôr fim à guerra.
Acho que 6 um grande ' erro, senhor.
— OK. — MacKenzie relaxou e olhou para o subordinado com , tolerância. — Esse seu
ponto de vista pode... vou ser generoso: esse seu ponto de vista tem os seus méritos. Mas o que
vamos fazer com os prisioneiros, Wally?
— Nada. Eles sabiam o risco que estavam correndo — respondeu Hicks, com a frieza da
juventude.
— Sabe de uma coisa? Uma diferença entre nós dois é que eu estive lá e você, não. Você
nunca vestiu um uniforme, Wally, É uma pena. Poderia ter aprendido muita coisa.
O comentário deixou Hicks genuinamente irritado.
— Não sei o que, senhor. Acho que serviria apenas para atrapalhar meus estudos.
— A vida não é um livro, filho — disse MacKenzie, usando a palavra para expressar
carinho, mas soando apenas superior aos olhos do assistente. — As pessoas sangram. As
pessoas têm sentimentos. As pessoas sonham. As pessoas têm família. O que você teria
aprendido, Wally, é que elas podem não ser como você, mas mesmo assim são pessoas, e se
você trabalha em um governo democrático, não deve se esquecer disso.
— Sim, senhor. — O que mais poderia dizer? Não havia meio de ganhar aquela discussão.
Droga. Precisava conversar com alguém a respeito.

— John!
Nem uma palavra em duas semanas. Temia que alguma coisa tivesse acontecido com ele, mas
agora tinha que enfrentar a ideia contraditória de que ainda estava vivo e provavelmente andara
fazendo coisas que não devia.
— Olá, Sandy.
Kelly sorriu. Estava vestido decentemente, para variar, com um blazer azul e uma gravata. A
diferença era tão grande em relação à última vez que o vira que a moça ficou nervosa.
— Onde você esteve? — perguntou Sandy, convidando-o a entrar com um gesto urgente.
Preferia que os vizinhos não o vissem.
— Por aí, fazendo coisas — respondeu Kelly, evasivamente.
— O que, por exemplo? — perguntou a enfermeira, em um tom que exigia explicações.
— Nada de ilegal, juro — foi tudo que arranjou para dizer.
— Tem certeza?
Seguiu-se uma pausa constrangedora. Kelly ficou ali parado, na antessala, oscilando entre a
irritação e o sentimento de culpa, perguntando-se o que estava fazendo ali, por que pedira ao
almirante Maxwell um favor muito especial, não encontrando nenhuma resposta.
— John! — chamou Sarah, do andar de cima, salvando os dois dos seus pensamentos.
— Olá, doutora — respondeu John, aliviado com a interrupção.
— Temos uma surpresa para você!
— O que é?
A Dra. Rosen desceu a escada, parecendo tão desmazelada como sempre, apesar do sorriso.
— Você está diferente.
— Tenho feito muito exercício — explicou Kelly.
— O que o traz aqui? — perguntou Sarah.
— Vou viajar para longe e resolvi ver vocês antes de partir. ' — Viajar para onde?
— Não posso dizer.
A resposta gelou o aposento.
— Nós já sabemos, John — afirmou Sandy.
— Tudo bem. — Kelly fez que sim com a cabeça. — Calculei que iriam descobrir. Como está
ela?
— Está bem, graças a você — respondeu Sarah.
— John, precisamos conversar, OK? — insistiu Sandy. A Dra. Rosen percebeu que era
demais e tornou a subir a escada enquanto a enfermeira e o ex-paciente se dirigiam para a
cozinha.
— John, o que exatamente você andou fazendo?
— Ultimamente? Não posso contar, Sandy. Sinto muito, mas não posso.
— Estou me referindo... estou me referindo a tudo. O que você fez?
— É preferível que você não saiba, Sandy.
— Não quer falar sobre Billy e Rick? — disse a enfermeira, abrindo o jogo.
Kelly apontou para o segundo andar.
— Viu o que fizeram com ela? Pois não vão fazer isso com mais ninguém.
— John, não pode agir assim! A polícia...
— ...está infiltrada — afirmou Kelly. — A organização subornou alguém, provavelmente do
alto escalão. É por isso que não posso confiar na polícia, e nem você, Sandy.
— Mas existem outros, John. Existem outros que... como você sabe disso?
— Billy me contou. — Kelly fez uma pausa e a expressão que viu no rosto da moça o fez
sentir-se ainda mais culpado. — Sandy, acha que alguém vai sair do seu caminho para investigar
a morte de uma prostituta? Pois é assim que estão encarando o caso. Acha que alguém se
importa com elas? Eu já lhe perguntei, lembra-se? Você me disse que não havia nenhum
programa para ajudá-las. Você é diferente. Você se importa. Foi por isso que trouxe Doris para
cá. Mas a polícia? Não. Talvez eu consiga colher informações suficientes para desmantelar a
quadrilha de traficantes. Não sei. Não fui treinado para isso, mas é o que estou tentando. Se
quiser me denunciar, vá em frente. Não farei nada contra você...
— Eu sei! — Sandy estava quase gritando. — John, você não pode fazer isso — acrescentou,
um pouco mais calma.
— Por que não? — perguntou Kelly. — Eles matam pessoas. Eles fazem coisas horríveis e
ninguém tenta impedi-los. Que me diz das vítimas, Sandy? Quem fala por elas?
— A lei!
— E quando a lei não funciona, o que fazemos? Deixamos que morram? Lembra-se do retrato
de Pam?
— Claro que sim — respondeu Sandy, percebendo que perdera a discussão e desejando que
fosse de outra forma.
— Eles a torturaram durante horas, Sandy. A sua... a sua hóspede estava presente. Eles a
obrigaram a assistir.
— Doris me contou. Ela nos contou tudo. Ela e Pam eram amigas. Depois... depois que Pam
morreu, foi ela quem penteou o seu cabelo, John.
A reação a deixou surpresa. Ficou claro que a tristeza de Kelly estava atrás de uma porta,
uma porta que certas palavras podiam abrir a qualquer momento. Ele escondeu a cabeça e
respirou fundo antes de olhar de novo para a enfermeira.
— Ela está bem?
— Vamos levá-la para casa daqui a alguns dias. Eu e Sarah vamos levá-la de carro.
— Obrigado por tudo. Obrigado por cuidar dela.
Era a dicotomia que deixava a enfermeira aflita. Ele podia falar em matar pessoas tão
calmamente quanto Sam Rosen explicava uma complicada intervenção cirúrgica. E como o
cirurgião, Kelly se importava com as pessoas que... salvava? Vingava? Seria a mesma coisa?
Ele parecia pensar que sim.
— Sandy, o caso é o seguinte: eles mataram Pam. Eles a estupraram, torturaram e mataram...
para que servisse de exemplo, para que as outras garotas se mantivessem submissas. Vou pegar
todos eles, e se morrer no processo, paciência. É um risco que estou disposto a correr. Sinto
muito se você não aprova.
A enfermeira suspirou. Não havia nada que pudesse fazer.
— Você disse que estava de viagem marcada.
— É verdade. Se tudo correr bem, estarei de volta em duas semanas.
— Vai ser perigoso?
— Não se eu fizer as coisas direito.
Kelly percebeu que as palavras soaram falsas.
— Do que se trata?
— De uma missão de salvamento. É só que posso dizer, e, por favor, não comente com
ninguém. Parto hoje à noite. Tenho treinado para isso, em uma base militar.
Foi a vez de Sandy desviar os olhos. Ele não estava facilitando as coisas. Havia muitas
contradições envolvidas. Kelly salvara a vida de uma garota, mas para isso tivera que matar.
Amava uma outra garota, que tinha sido assassinada. Estava disposto a matar mais gente por
causa desse amor, a arriscar sua própria vida. Confiara nela, em Sarah e em Sam. Estava diante
de um herói ou de um bandido? A mistura de fatos e ideias era impossível de reconciliar.
Depois de ver o que acontecera a Doris, de trabalhar tanto para devolver-lhe a saúde, de
conversar com ela (e com o pai), as coisas tinham começado a fazer sentido. Era fácil analisar
as coisas desapaixonadamente, a distância. Não, porém, diante do principal responsável, que se
explicara de forma simples e direta, sem mentir, sem nada esconder, dizendo apenas a verdade e
esperando que ela compreendesse.
— Vai para o Vietnã? — perguntou Sandy depois de alguns momentos, contemporizando,
tentando acrescentar substância a uma coleção de pensamentos muito confusos.
— Isso mesmo. — Kelly fez uma pausa. Tinha que explicar, só um pouquinho, para ajudar a
moça a entender. — Existem algumas pessoas lá que não vão voltar para casa a menos que
alguém faça alguma coisa, e pertenço ao grupo que se reuniu para ajudá-las.
— Mas por que escolheram você?
— Por que eu? Tinha que ser alguém, e foi de mim que se lembraram. Por que você faz as
coisas que faz, Sandy? Já lhe perguntei isso antes, lembra-se?
— Que droga, John! Estou começando a me importar com você! — desabafou Sandy.
A expressão de tristeza voltou ao rosto dele.
— Não faça isso. Você pode se machucar de novo, e não quero que isso aconteça. — Era a
coisa mais errada que podia dizer naquele momento. — Sandy, as pessoas ligadas a mim
costumam se ferir.
Sarah entrou nesse momento, acompanhada por Doris, o que salvou os dois temporariamente
dos seus complexos. A moça estava irreconhecível. Seus olhos tinham uma expressão muito
mais viva. Sandy aparara seu cabelo e arranjara roupas decentes para ela. Ainda estava fraca,
mas podia cuidar de si mesma. Os olhos castanhos e suaves se fixaram em Kelly.
— É você — disse, sem levantar a voz.
— É, acho que sou. Como está?
Doris sorriu.
— Vou para casa. Papai... papai me quer de volta.
— Claro que ele quer você de volta — disse Kelly.
Ela estava tão diferente da vítima que conhecera fazia apenas algumas semanas! Talvez isso
quisesse dizer alguma coisa.
O mesmo pensamento ocorreu a Sandy. Doris era uma vítima inocente e, se não fosse por
Kelly, àquela altura já estaria morta. Nada mais poderia salvá-la. Outras mortes tinham sido
necessárias, mas... mas o quê?

— De modo que talvez tenha sido Eddie — afirmou Piaggi. — Pedi a ele para ficar de olho,
mas até agora não me disse nada que eu não soubesse.
— E nada aconteceu desde que falou com ele. As coisas praticamente voltaram ao normal —
replicou Henry, dizendo a Anthony Piaggi o que ele já sabia e apresentando uma conclusão a
que também já chegara. — E se Eddie estivesse apenas tentando agitar um pouquinho as coisas?
E se estivesse tentando bancar o importante, Tony?
— É possível.
O que levou à pergunta seguinte:
— Quer apostar que se Eddie fizer uma pequena viagem não teremos mais problemas?
— Acha mesmo que foi ele?
— Pode me dar outra explicação para o que aconteceu?
— Se acontecer alguma coisa com Eddie, vamos ter problemas. Acho que não devemos...
— Deixe-me cuidar de tudo, está bem? Tenho um plano excelente.
— Conte-me qual é.
Dois minutos depois, Piaggi fez que sim com a cabeça.

— Por que veio aqui? — perguntou Sandy enquanto ela e Kelly tiravam a mesa do jantar.
Sarah tinha levado Doris para o andar de cima para descansar.
— Queria saber como ela estava passando.
Era uma mentira e nem mesmo uma mentira especialmente inspirada.
— Está se sentindo sozinho, não está?
Kelly levou muito tempo para responder.
— Estou, sim.
A enfermeira o forçara a reconhecer um fato. Viver sozinho não era absolutamente o que
desejava, mas o destino e a sua maneira de ser tinham se combinado para lhe impor aquela sina.
Cada vez que se interessava por uma mulher, algo terrível acontecia. A vingança contra os que
haviam tornado sua vida tão solitária podia ser uma motivação, mas não era suficiente para
preencher o vazio que haviam criado. E agora estava percebendo que sua missão o distanciava
cada vez mais de outra mulher. Por que a vida era tão complicada?
— Não posso dizer que aprovo o que está fazendo, John. Salvar Doris foi uma atitude nobre,
mas não precisava matar ninguém para isso. Devia haver outro meio...
— ...e se não houvesse, o que eu devia fazer?
— Quer me deixar terminar?
— Desculpe! — A moça tomou-lhe a mão. — Por favor, tome cuidado.
— Estou tomando, Sandy. Palavra.
— O que está fazendo, o que vai fazer no exterior, não é...
Ele sorriu.
— Não, é um trabalho honesto. Com papéis oficiais e tudo.
— Duas semanas?
— Se tudo correr bem.
— Tudo vai correr bem?
— Às vezes acontece.
Sandy segurou-lhe a mão com mais força.
— John, por favor, pense no assunto. Está bem? Tem que haver outra maneira. Você salvou a
vida de Doris. Isso foi uma coisa maravilhosa. Talvez com o que aprendeu possa salvar outras
pessoas sem... sem matar mais ninguém.
— Vou tentar. — Kelly não podia dizer mais do que isso, não com o calor da mão de Sandy
na sua. — Seja como for, no momento tenho outras coisas para me preocupar. — E era verdade.
— Como vou saber, John? Quero dizer...
— A meu respeito? — perguntou Kelly, surpreso.
— John, não pode me deixar aqui sem notícias.
Kelly pensou por um momento. Depois, tirou uma caneta do bolso do paletó e escreveu um
número de telefone.
— Ligue para este cara. É um almirante chamado James Greer. Ele poderá lhe informar,
Sandy.
— Por favor, tome cuidado.
— Vou tomar. Prometo. Sou bom nisso, sabe?
Tim também era. Sandy não precisou dizer. Ele leu em seus olhos o que estava pensando e
compreendeu como podia ser cruel deixar alguém para trás.
— Agora tenho que ir, Sandy.
— Volte assim que puder.
— Vou fazer isso. Prometo. — Mas as palavras soaram vazias, mesmo para ele. Kelly teve
vontade de beijá-la, mas não pôde. Afastou-se da mesa, ainda sentindo a mão dela na sua. Era
uma mulher alta, forte e corajosa, mas tinha sido muito ferida e Kelly tinha medo de fazê-la
sofrer ainda mais. — Vejo você daqui a duas semanas. Diga adeus a Sarah e Doris por mim,
OK?
— OK. — A enfermeira o seguiu até a porta da frente. — John, quando você voltar, desista.
— Vou pensar no assunto — disse, sem virar a cabeça, porque estava com medo de olhar
para ela de novo. — Vou pensar.
Kelly abriu a porta. Já estava escuro e teria que se apressar para chegar a Quantico na hora.
Podia ouvi-la, ouvir a sua respiração. Tivera duas mulheres na vida. Perdera uma por acidente,
outra por assassinato, e agora talvez estivesse renunciando a uma terceira.
— John? — Ela se recusava a soltar-lhe a mão, e foi obrigado a se virar, apesar do medo que
sentia.
— O que é, Sandy?
— Volte.
Kelly tocou-lhe o rosto, beijou-lhe a mão e afastou-se. A enfermeira ficou onde estava
enquanto ele entrava no Volkswagen e ia embora.
Mesmo agora —, pensou ela. Mesmo agora ele está tentando me proteger.
É suficiente? Posso parar agora? O que podia ser chamado de "suficiente"?
— Pense bem — disse, em voz alta. — O que você sabe que os outros podem usar?
Já sabia de muita coisa, graças a Billy. As drogas eram processadas em um daqueles navios
abandonados. Tinha os nomes de Henry e de Burt. Sabia que um policial da divisão de
narcóticos trabalhava para Henry. Esses dados eram suficientes para que a polícia pusesse eles
todos atrás das grades por assassinato e tráfico de drogas? Henry seria condenado à morte? Se a
resposta a essas perguntas fosse afirmativa, isso seria suficiente?
Tanto quanto as dúvidas de Sandy, sua ligação com os fuzileiros o levara a fazer o mesmo
tipo de pergunta. O que pensariam se descobrissem que estavam combatendo ao lado de um
assassino? Será que compreenderiam seu ponto de vista?
— Os sacos fedem — dissera Billy. — Como cadáveres, como a porcaria que eles usam.
Que diabo queria dizer com isso?, pensou Kelly, passando pela cidade pela última vez. Viu
alguns carros de polícia. Será que eram todos dirigidos por policiais corruptos?
— Que merda! — exclamou Kelly, irritado. — Limpe sua mente, marinheiro. Há um trabalho
esperando por você, um trabalho de verdade.
Isso dizia tudo. A operação BUXO VERDE era um trabalho de verdade, e isso de repente se
tornou tão nítido e claro quanto os faróis dos carros que se aproximavam. Se alguém como
Sandy não aprovava... uma coisa era agir sozinho, apenas com seus pensamentos, seu ódio e sua
solidão, mas quando outras pessoas sabiam, pessoas que gostavam de você... quando essas
pessoas lhe pediam para parar...
O que era certo? O que era errado? Onde estava a linha divisória? Na estrada, era fácil.
Alguém pintava uma faixa amarela e você tinha que ficar do lado correto. Na vida real, porém,
as coisas não eram tão simples.
Quarenta minutos depois, estava na 1-495, a estrada de contorno de Washington. O que era
mais importante, matar Henry ou salvar as outras garotas?
Mais quarenta minutos e estava atravessando o rio para entrar na Virginia, Tinha sido ótimo
ver Doris (que nome bobo!) viva, depois daquela primeira vez em que a encontrara quase tão
morta quanto Rick. Quanto mais pensava nisso, melhor se sentia.
O objetivo da operação BUXO VERDE não era matar soldados inimigos; era resgatar
soldados amigos.
Entrou na Interstate 95, na direção sul, e quarenta e cinco minutos depois estava entrando em
Quantico. Eram onze e meia quando chegou ao local de treinamento.
— Ainda bem que você chegou na hora — observou Marty Young, de cara feia. Em vez da
costumeira camisa caqui, estava de camiseta.
Kelly olhou o general nos olhos, — Senhor, tive um dia muito cansativo. Seja camarada e
deixe-me em paz, está bem?
Young recebeu o comentário como o homem que era.
— Sr. Clark, parece que está impaciente.
— Senhor, aqueles caras do SINAL VERDE devem estar muito mais impacientes do que eu.
— Tem razão.
— Posso deixar o carro aqui?
— Com todas essas velharias?
Kelly hesitou, mas não levou mais do que um momento para decidir.
— Acho que não vou precisar mais dele. Pode jogá-lo fora com os outros.
— É melhor irmos andando. O ônibus está do outro lado do campo.
Kelly carregou sua bagagem para o carro do general. O mesmo cabo estava ao volante
quando ele se sentou no banco de trás ao lado de Young.
— O que acha, Clark?
— Acho que temos uma boa chance de conseguir.
— Sabe de uma coisa? Eu preferia que pudéssemos dizer: tenho certeza de que vai dar certo.
— Isso já aconteceu alguma vez com o senhor? — perguntou Kelly.
— Não — admitiu Young. — Mas continuo desejando que aconteça.

— Como estava o tempo na Inglaterra, Peter?


— Ensolarado. Mas em Paris choveu. Em Bruxelas o tempo também ajudou. Eu não conhecia
a Bélgica — acrescentou Henderson.
Os apartamentos dos dois ficavam a apenas dois quarteirões de distância, residências
confortáveis em Georgetown construídas no final da década de trinta para acomodar o afluxo de
burocratas à sede do governo. O de Hicks tinha dois quartos, o que compensava a sala menor.
— Qual a novidade que você queria me contar? — perguntou o assessor parlamentar, ainda
se ressentindo da diferença de fuso horário.
— Vamos invadir o Vietnã do Norte novamente — respondeu o assessor da Casa Branca.
— O quê? Ei, eu estive na conferência de paz, certo? As coisas estão caminhando bem. O
outro lado acaba de ceder num ponto importante.
— Pois pode dizer adeus à paz, pelo menos por um bom tempo — afirmou Hicks, com voz
arrastada. Sobre a mesinha havia um saco plástico com maconha e ele começou a enrolar um
cigarro.
— Você devia largar essa merda, Wally.
— Dá menos ressaca do que cerveja. Qual é a diferença, Peter?
— A diferença é que você trabalha para o governo! — observou Henderson.
— E daí? Peter, eles não escutam. Você fala, fala, fala e eles não escutam. — Hicks acendeu
o cigarro e deu uma longa tragada. — Vou cair fora. Papai quer que eu cuide dos negócios da
família. Depois que eu ganhar alguns milhões de dólares pode ser que eles me escutem.
— Não deve ser tão ansioso, Wally. Ainda vai levar algum tempo. Tudo leva tempo. Não se
pode consertar as coisas da noite para o dia.
— Não vamos consertar as coisas! Sabe com que isso se parece? Com uma tragédia de
Sófocles. Temos um defeito fatal, eles têm um defeito fatal, e quando a porra do deus vier ex a
porra da machina, o deus vai ser uma nuvem de ICBM*, e tudo vai acabar, Peter. Exatamente
como pensávamos alguns anos atrás, em New Hampshire.

*ICBM: Abreviação de Intercontinental Ballistic Missile, ou seja, míssil balístico


intercontinental. (N. do T.)
Não era o primeiro cigarro da noite para Hicks, pensou Henderson. A maconha sempre fizera
o amigo falar arrastado.
— Wally, conte-me qual é o problema.
— Eles acham que existe um campo... — começou Hicks, de olhos baixos, evitando olhar
para o amigo enquanto contava tudo que sabia.
— Isso é mau.
— Eles acham que existem outros prisioneiros, mas é apenas uma suposição. De concreto, só
têm a foto daquele sujeito. E se estivermos estragando as negociações de paz por causa de um
cara, Peter?
— Apague essa porra — disse Henderson, bebendo um gole de cerveja. Ele detestava o
cheiro de maconha.
— Não. — Wally deu outra tragada.
— Quando vai acontecer?
— Não sei. Roger não me contou.
— Wally, você tem que aguentar firme. Precisamos de pessoas como você no sistema. Uma
vez ou outra eles escutam.
Hicks olhou para ele.
— Acredita mesmo nisso?
— E se a missão falhar? E se ficar claro que você tinha razão? Nesse caso, Roger lhe dará
ouvidos, e Henry confia em Roger, não é?
— Às vezes.
Estavam diante de um oportunidade extraordinária, pensou Henderson.
O ônibus alugado se dirigiu para a base aérea de Andrews, refazendo, pensou Kelly, mais da
metade do percurso que fizera de carro. Havia um C-141 novo em folha na pista, pintado de
branco na parte de cima e de cinza na parte de baixo, com as luzes já piscando. Os fuzileiros
saltaram do ônibus e encontraram Maxwell e Greer à espera.
— Boa sorte — disse Greer a cada um dos homens.
— Boa caçada — foi o que Dutch Maxwell disse a eles. Projetado para transportar um
número muito maior de passageiros, o Lockheed Starlifter tinha sido adaptado para funcionar
como hospital; havia oitenta camas a bordo, o suficiente para acomodar todos os fuzileiros e
mais todos os prisioneiros que esperavam resgatar. Os motores foram ligados assim que a porta
se fechou.
— Espero que tudo dê certo — afirmou Maxwell, olhando a aeronave taxiar na escuridão da
noite.
— Foram bem treinados, almirante — observou Bob Ritter. — Quando vamos sair para
comemorar?
— Daqui a três dias, Bob — respondeu James Greer. — Tem vaga na sua agenda?
— Para isto? Claro que sim.
26

TRANSITO

Apesar de novo, o Starlifter era decepcionantemente lento. Unha uma velocidade de cruzeiro
de apenas 765 quilômetros por hora, e a primeira parada, após oito horas de voo, foi na base
aérea de Elmendorf, no Alasca, a 5.360 quilômetros do ponto de partida. Kelly sempre se
admirava com o fato de a trajetória mais curta ligando dois pontos sobre a superfície da Terra
ser uma curva, mas isso acontecia porque estava acostumado com mapas planos e o mundo tinha
forma esférica. O círculo máximo que ligava Washington a Da Nang faria com que passassem
por cima da Sibéria, o que, naturalmente, estava fora de questão. Quando chegaram a
Elmendorf, os fuzileiros já estavam acordados, depois de uma boa noite de sono. Saltaram da
aeronave para apreciar a neve nas montanhas não muito distantes, enquanto poucas horas antes
tinham enfrentado um calor de quase quarenta graus. A maioria aproveitou a oportunidade para
dar uma corrida de um ou dois quilômetros, o que surpreendeu o pessoal da Força Aérea, que
não tinha muito contato com fuzileiros. Passaram em terra o tempo programado de duas horas e
quinze minutos. Depois que o C-141 foi reabastecido e os mecânicos trocaram uma peça no
painel de instrumentos, os fuzileiros subiram a bordo para a segunda etapa da jornada, que
terminaria em Yokota, no Japão. Três horas depois, Kelly entrou na cabine de controle,
impaciente com o ruído e o confinamento.
— O que é aquilo? — perguntou. Na névoa distante havia uma linha verde e marrom que só
podia ser uma costa.
— É a Rússia. Estão nos acompanhando pelo radar.
— Oh, é bom saber disso — observou Kelly.
— É um mundo pequeno, e boa parte pertence a eles.
— Vocês falam com eles pelo rádio? Tipo controle aéreo?
— Não. — O navegador riu. — Eles não são muito amistosos. Estamos em contato com
Tóquio durante este trecho da viagem. Depois que decolarmos de Yokota vamos ser controlados
através de Manila. Está gostando da viagem?
— Até agora não tenho nenhuma queixa. Mas é um pouco cansativa.
— Isso é — concordou o navegador, voltando a prestar atenção em seus instrumentos.
Kelly voltou para o compartimento de carga. O C-141 era um avião barulhento, tanto por
causa do zumbido constante dos motores quanto pelo sibilar do vento do lado de fora. A Força
Aérea não gastava dinheiro, como as linhas aéreas, em isolamento acústico. Os fuzileiros
estavam usando tapa-ouvidos, o que tornava difíceis as conversas e não bloqueava totalmente o
barulho. O pior das viagens aéreas era o tédio, pensou o rapaz, e o isolamento causado pelo
ruído não contribuía para melhorar as coisas. Havia um limite para o número de horas que uma
pessoa podia dormir. Alguns dos homens estavam amolando facas que provavelmente nem
chegariam a usar, mas pelo menos isso lhes dava alguma coisa para fazer, pois um guerreiro
tinha que ter uma faca. Outros faziam flexões no piso metálico da aeronave. Os tripulantes
observavam, impassíveis, controlando-se para não rir, curiosos para saber o que iria fazer
aquele grupo obviamente seleto de fuzileiros, mas sabendo que não adiantava perguntar. Para
eles, era apenas mais um mistério. Estavam acostumados, mas todos eles, sem exceção,
desejaram sucesso aos fuzileiros em seu trabalho, fosse qual fosse.

O problema foi a primeira coisa que veio à sua mente quando acordou. O que devo fazer?,
perguntou a si mesmo, irritado.
Não era o que queria fazer, mas o que podia fazer. Já fornecera informações antes. A
princípio inconscientemente, através de contatos no movimento de paz, ele... bem, não fornecera
informações propriamente, mas participara de discussões acaloradas que se tornaram cada vez
mais específicas até que finalmente alguém lhe perguntou algo concreto demais para ser uma
indagação feita ao acaso. Ela lhe fez a pergunta de forma amistosa, e em um momento muito
íntimo, mas parecia mais interessada na resposta do que nele próprio, situação que se inverteu
imediatamente quando ele respondeu. Uma colher de açúcar, pensou, mais tarde,
envergonhando-se por ter caído em uma armadilha tão óbvia. Na verdade, não fora totalmente
enganado. Gostava dela, compartilhava de suas opiniões sobre como o mundo devia ser, e se
alguma coisa o aborrecia era o fato de ela ter considerado necessário manipular o seu corpo
para conseguir algo que a razão e o intelecto teriam obtido com a mesma facilidade... talvez.
Ela não estava mais ali. Tinha ido embora. Henderson não sabia para onde, mas tinha certeza
de que jamais a veria de novo. O que era uma pena. Ela era ótima de cama. Uma coisa levara a
outra em uma série aparentemente natural de acontecimentos que culminara com um breve
diálogo na torre de Londres; agora... agora tinha uma coisa que realmente interessava ao outro
lado. O problema é que não tinha a quem contar. Será que os russos sabiam o que estava se
passando naquele maldito campo a sudoeste de Haiphong? Era uma informação que, se fosse
usada corretamente, poderia deixá-los muito mais à vontade com relação à détente, permitindo
que recuassem um pouco, enquanto os americanos, por sua vez, também recuariam um pouco.
Era assim que tinha que começar. Era uma pena que Wally não entendesse que era preciso
começar por coisas pequenas, que era impossível mudar o mundo de uma vez. Peter precisava
convencer o amigo. Não podia permitir que Wally deixasse o governo para se tornar apenas
mais um maldito empresário, como se o mundo já não tivesse empresários de sobra. Ele era
muito mais valioso na posição que ocupava. Seu único defeito era falar demais. Isso e sua
instabilidade emocional. E sua mania de fumar maconha, pensou Henderson, olhando-se no
espelho enquanto se barbeava.
Durante o desjejum, passou os olhos pelo jornal. Ali estava de novo, na primeira página,
como quase todo dia. Uma batalha de porte médio por uma colina que trocara de mãos uma
dúzia de vezes. X mortos do lado dos americanos, Y mortos do lado dos vietnamitas. As
repercussões de um ataque aéreo nas negociações de paz. Outro editorial enfadonho e
previsível. Planos para uma manifestação contra a guerra. Um, Dois, Três, Quatro. Não
queremos sua maldita guerra. Como se algo tão pueril pudesse fazer alguma diferença. Na
verdade, pensou, servia para pressionar os políticos, para chamar a atenção da imprensa. Havia
um grupo de políticos que, como Henderson, queria pôr fim à guerra, mas não havia atingido a
massa crítica. O seu próprio patrão, Robert Donaldson, ainda estava em cima do muro. Era
considerado um homem prudente e ponderado, mas Henderson simplesmente o achava indeciso,
sempre disposto a examinar todos os aspectos de uma questão e depois acompanhar a vontade
da maioria como se não tivesse ideias próprias. Tinha que haver uma maneira melhor de agir, e
Henderson estava trabalhando nesse sentido, aconselhando o senador, torcendo as coisas só um
pouquinho, procurando conquistar a sua confiança para poder ficar sabendo de coisas que o
senador não podia contar a ninguém. Aquele, porém, era o problema dos segredos; você
simplesmente tinha que contar a alguém, pensou, saindo de casa.
Henderson ia trabalhar de ônibus. Era difícil arranjar uma vaga perto do Capitólio e o ônibus
o deixava praticamente na porta. Encontrou um lugar vazio na parte de trás, onde poderia acabar
de ler o jornal. Dois quarteirões adiante, o ônibus parou e logo depois um homem se sentou a
seu lado.
— Como estava o tempo em Londres? — perguntou o homem, em tom casual, a voz quase
inaudível por causa do barulho do motor. Henderson olhou para ele de soslaio. Era um
desconhecido. Será que eles eram tão eficientes?
— Conheci alguém lá — disse Peter, cautelosamente.
— Tenho um amigo em Londres. O nome dele é George. — Ele falava sem sotaque, e depois
de estabelecer o contato, começou a ler a página de esportes do Washington Post. — Acho que
os Senators não têm a menor chance este ano. E você?
— George disse que tinha um... um amigo na cidade. O homem olhou para os resultados do
boxe e sorriu.
— Meu nome é Marvin. Pode me chamar assim.
— Como é que nós podemos... como é que eu posso...?
— Tem compromisso para jantar esta noite?
— Não. Quer vir ao meu...
— Não, Peter, isso não seria prudente. Conhece um restaurante chamado Alberto's?
— Conheço. Fica na Wisconsin Avenue.
— Sete e meia — disse Marvin. — Levantou-se e saltou no ponto seguinte.

O trecho final da viagem começou na base aérea de Yokota. Depois de outra parada
programada de duas horas e quinze minutos para manutenção, o Starlifter rolou pela pista e
decolou mais uma vez. Estava chegando a hora. Os fuzileiros se deitaram e tentaram dormir. Era
a única forma de combater a tensão que crescia na proporção inversa da distância que os
separava do objetivo. As coisas agora eram diferentes. Não se tratava apenas de um exercício
de treinamento e seu comportamento refletia a nova realidade. Em um outro tipo de voo, em um
avião comercial, talvez, no qual pudessem conversar, teriam contado piadas e aventuras
amorosas, conversado sobre a família e os planos para o futuro, mas o ruído do C-141 tornava
isso impossível, de modo que se limitavam a trocar sorrisos de encorajamento, cada homem
sozinho com seus pensamentos e temores, sentindo necessidade de compartilhá-los mas
impossibilitado de fazê-lo no ruidoso compartimento de carga do Starlifter. Era por isso que
muitos deles faziam exercícios, unicamente para aliviar a tensão, para se cansar até que o sono
lhes trouxesse o esquecimento. Kelly os observava. Já passara por aquilo muitas vezes, mas
desta vez seus pensamentos eram ainda mais complexos.
É uma missão de resgate, disse para si próprio. O que começara toda a aventura era o desejo
de salvar Pam, e ela morrera por sua culpa. Em seguida, ele matara várias pessoas, dizendo a si
mesmo que fazia isso pela memória da moça e pelo seu amor, mas seria verdade? O que de bom
podia trazer a morte? Ele havia torturado um homem, e agora tinha que admitir para si próprio
que o sofrimento de Billy lhe trouxera satisfação. Se Sandy descobrira a verdade, o que pensava
dele? De repente, a opinião da enfermeira lhe parecia muito importante. Ela, que trabalhara
tanto para salvar aquela garota, que a alimentara e protegera, complementando seu ato muito
mais simples de libertá-la, o que pensaria de alguém que despedaçara o corpo de Billy, uma
célula de cada vez? Afinal de contas, não podia acabar com todos os males do mundo. Não
podia ganhar a guerra para a qual estava retornando e, por mais competente que fosse o grupo
de fuzileiros, eles também não iriam ganhar a guerra. Seu objetivo era outro. Seu objetivo era
nobre, porque enquanto não podia haver satisfação real em tirar a vida de um semelhante, salvar
uma vida era algo a ser lembrado com o maior dos orgulhos. Essa era sua missão agora, e
deveria ser sua missão quando voltasse para casa. Havia quatro outras garotas em poder da
quadrilha de traficantes. Daria um jeito de libertá-las... e daria um jeito de informar à polícia a
respeito das atividades de Henry; eles que fizessem o resto. Daria um jeito. Ainda não sabia
exatamente como, mas assim pelo menos estaria fazendo algo de que não se envergonharia mais
tarde.
Para isso, tudo o que tinha a fazer era sobreviver àquela missão, resmungou Kelly para si
mesmo. Muito fácil, não?
Você é um osso duro de roer, pensou, com uma confiança que soou falsa mesmo dentro dos
confins do seu crânio. Sei o que estou fazendo. Já fiz isso antes. Estranho, pensou, como o
cérebro nem sempre se lembra das partes piores até que seja tarde demais. Talvez fosse a
proximidade. Talvez fosse mais fácil encarar os perigos quando se estava do outro lado do
mundo, mas quando se chegava perto do objetivo, as coisas mudavam...
— É a parte mais difícil, Sr. Clark — comentou Irvin, em voz alta, sentando-se ao lado do
rapaz depois de fazer cem flexões.
— Concordo plenamente — respondeu Kelly, quase gritando.
— Não se esqueça de uma coisa: naquele dia você conseguiu passar por todo mundo e me
pegar, certo? — Irvin riu. — E não é fácil me pegar.
— Eles não deviam estar prestando muita atenção. Afinal, estavam em casa — observou
Kelly, depois de um momento.
— Provavelmente não estavam. Pelo menos, não tanto quanto nós dois. Bolas, eles sabiam
que você vinha. Acontece que os soldados que à noite vão para casa, para sua mulherzinha, têm
outras coisas em que pensar. Não são como nós, cara.
— Não existem muitos como nós — concordou Kelly. Ele sorriu. — Não existem muitos
idiotas como nós.
Irvin deu-lhe um tapinha no ombro.
— Tem razão, Clark.
O sargento afastou-se para ir encorajar outro homem, o que era a sua maneira de lidar com a
tensão.
Obrigado, artilheiro, pensou Kelly, deitando-se para tentar dormir.

O Alberto's era um restaurante esperando para ser descoberto, uma casa pequena, familiar,
tipicamente italiana, que oferecia uma vitela de primeira. Na verdade, todos os pratos eram
excelentes e o casal de proprietários aguardava com paciência a visita do crítico gastronômico
do Post, que lhe traria fama e fortuna. Enquanto isso não acontecia, sobrevivia graças aos
estudantes da Georgetown University, que ficava ali perto, e de uma clientela fiel de moradores
do bairro, sem a qual nenhum restaurante poderia se sustentar. A única nota discordante era a
música, fitas sentimentais de ópera italiana que os alto-falantes de segunda despejavam sobre os
fregueses. Os donos deviam tomar uma providência, pensou Henderson.
O rapaz escolheu uma mesa nos fundos. O garçom, provavelmente um mexicano ilegal que
tentava pateticamente fazer passar o seu sotaque por italiano, acendeu a vela que estava sobre a
mesa com um fósforo e foi buscar o gim-tônica pedido por Henderson.
Marvin chegou alguns minutos depois, com um jornal na mão. Era da idade de Henderson e
um tipo muito difícil de descrever: nem alto nem baixo, nem gordo nem magro, cabelos
castanhos nem compridos nem curtos, usando óculos que poderiam ser de grau ou não. Usava
uma camisa azul de manga curta e parecia mais um morador das vizinhanças que não estava a
fim de fazer o jantar.
— Os Senators perderam de novo — comentou, quando o garçom chegou com o drinque de
Henderson. — Vou querer o vinho tinto da casa — disse ao mexicano.
— Sí — respondeu o garçom, afastando-se.
Marvin tinha que ser um ilegal, pensou Peter, avaliando o homem à sua frente. Como assessor
de um membro da Comissão de Informações do Senado, Henderson fora instruído por membros
da divisão de informações do FBI. Os agentes "legais" do KGB tinham disfarces diplomáticos,
e se fossem apanhados podiam apenas ser declarados PNG — persona non grata — e expulsos
do país. Assim, estavam a salvo de serem presos e interrogados pelas autoridades americanas, o
que era uma vantagem. A desvantagem estava no fato de que também eram mais fáceis de seguir,
já que suas residências e automóveis eram conhecidos. Os ilegais, por outro lado, eram espiões
soviéticos que entravam no país com documentos falsos. Se fossem pegos, ficariam em uma
prisão federal até a próxima troca de espiões, o que poderia significar anos de cadeia. Isso
explicava o inglês perfeito de Marvin. Qualquer engano poderia ter sérias consequências. Era
incrível que ele pudesse manter uma aparência tão descontraída.
— Gosta de beisebol, hein?
— Aprendi a jogar faz tempo. Era um shortstop razoável, mas nunca consegui aprender a
acertar uma bola em curva. — O homem riu. Henderson sorriu de volta. Ele tinha visto
fotografias tiradas por satélite do lugar onde Marvin aprendera a praticar o esporte, uma
cidadezinha interessante a noroeste de Moscou.
— Como vamos nos encontrar?
— Gostei disso. Ótimo. Direto aos negócios. Não vamos fazer isso a toda hora. Você sabe
por quê.
Outro sorriso.
— Sei. Dizem que os invernos em Leavenworth são uma merda.
— Não brinque com coisas sérias, Peter — disse o agente do KGB, em tom de censura. Por
favor, que ele não seja outro engraçadinho, pensou.
— Eu sei. Desculpe. Isso tudo é novo para mim.
— Em primeiro lugar, precisamos combinar uma forma de você entrar em contato comigo.
Seu apartamento tem cortinas nas janelas da frente. Quando elas estiverem totalmente abertas ou
totalmente fechadas, é porque não tem nada para me contar. Quando tiver, deixe-as parcialmente
fechadas. Vou observar suas janelas duas vezes por semana, às terças e sextas de manhã, por
volta das nove. De acordo?
— Sim, Marvin.
— Para começar, Peter, usaremos um método de entrega muito simples. Vou estacionar meu
carro em uma rua próxima de sua casa. É um Plymouth Satellite azul, placa HVR-309. Repita
para mim. Jamais escreva esse número.
— HVR-309.
— Coloque suas mensagens aí dentro. — Passou-lhe um objeto por baixo da mesa. Era
pequeno e metálico. — Cuidado com o relógio. A caixa é imantada. Quando passar pelo meu
carro, abaixe-se para apanhar alguma coisa no chão ou apoie o pé no para-choque para amarrar
o sapato. Basta encostar a caixa na parte de dentro do para-choque. O ímã a manterá no lugar.
Aos olhos de Henderson, era uma técnica muito sofisticada, embora tudo o que acabara de
ouvir fosse elementar para um espião. O método era bom para o verão. No inverno, teriam que
usar algo diferente. O menu do jantar chegou e os dois pediram vitela.
— Tenho uma coisa para você, caso esteja interessado — afirmou Henderson ao agente do
KGB. É melhor que ele saiba logo como eu sou importante.
Marvin, cujo nome verdadeiro era Ivan Alekseyevich Yegorov, tinha um emprego regular e
todas as vantagens que vinham junto com o cargo. Contratado pela Companhia de Seguros Aetna
como especialista em prevenção de acidentes, passara por um estágio de treinamento na sede da
companhia, em Hartford, Connecticut, antes de voltar ao escritório regional de Washington. Seu
trabalho era identificar falhas de segurança nas instalações dos numerosos clientes da
companhia. Escolhido principalmente por causa da mobilidade — o cargo vinha até com um
automóvel da companhia —, o emprego oferecia a vantagem inesperada de permitir que
visitasse várias empreiteiras que trabalhavam para o governo e cujos funcionários nem sempre
se davam ao trabalho de ocultar os papéis sigilosos em que estavam trabalhando. O superior
imediato estava satisfeitíssimo com o desempenho de Marvin. Seu novo empregado era muito
observador e absolutamente perfeito para escrever relatórios. Já recusara uma promoção e
transferência para Detroit — sinto muito, chefe, mas não conseguiria viver fora de Washington
—, o que não deixara o supervisor nem um pouco aborrecido. Um sujeito com a sua capacidade,
satisfeito com um cargo não muito bem remunerado, só podia contribuir para melhorar a imagem
do seu setor. Para Marvin, o cargo significava trabalhar fora do escritório quatro dias em cinco,
o que lhe permitia encontrar-se com quem quisesse à hora que quisesse, além de dispor de um
carro — a Aetna chegava a pagar o combustível e a manutenção — e levar uma vida tão
confortável que, se acreditasse em Deus, pensaria estar no céu. Uma paixão genuína pelo
beisebol o levava ao estádio RFK, onde o anonimato da multidão era um lugar excelente para
troca de informações e outras atividades previstas no Manual de Operações do KGB. Por tudo
isso, o capitão Yegorov era um homem realizado, satisfeito com o disfarce que arranjara e com
a vida que levava, cumprindo o seu dever para com a pátria. Tivera até a sorte de chegar aos
Estados Unidos bem a tempo de pegar a revolução sexual. A única coisa de que realmente sentia
falta era de uma boa vodca, coisa que não existia nos Estados Unidos.
Não é interessante?, perguntou-se Marvin em seu apartamento. Era simplesmente hilariante
que ficasse sabendo de uma operação russa de espionagem de alto nível através de um
americano, e ali estava uma oportunidade de atingir o Inimigo Principal do seu país através de
prepostos — se conseguisse avisá-los a tempo. Também tinha que informar aos superiores que
os cretinos da Força Aérea soviética estavam fazendo algo que poderia ter graves
consequências para a defesa da União Soviética. Eles provavelmente tentariam tomar conta da
operação. Não se podia confiar aos pilotos — certamente era um oficial da Força Aérea que
estava fazendo os interrogatórios — algo tão importante como a defesa nacional. Escreveu suas
notas, fotografou-as e rebobinou o filme no pequeno cartucho. Seu primeiro compromisso no dia
seguinte seria de manhã cedo, com um empreiteiro local. Logo depois iria tomar café no
Howard Johnson, onde passaria adiante a mensagem. Ela estaria em Moscou em dois dias,
talvez três, pela mala diplomática.
O capitão Yegorov encerrou o trabalho da noite a tempo de pegar o final do jogo dos
Senators. Um homer* de Frank Howard no nono inning** não foi suficiente para evitar uma nova
derrota da equipe, desta vez diante de Cleveland, por 5 a 3. Que beleza, pensou, bebendo um
gole de cerveja. Henderson já era um contato interessante, mas ninguém se dera ao trabalho de
lhe contar — provavelmente ninguém sabia — que ele dispunha de uma fonte de informações no
escritório de segurança nacional da Casa Branca. Não era uma maravilha?

* Homer: No beisebol, golpe que possibilita ao batedor completar o circuito das


bases. (N. do T.)
**Inning: No beisebol, divisão do jogo durante a qual cada time tem oportunidade de
marcar pontos até que três de seus batedores tenham sido eliminados. (N. do T.)

Apesar da tensão causada pela proximidade da missão, foi um alívio quando o C-141 pousou
em Da Nang. A viagem durara um total de vinte e três horas monótonas e barulhentas, e isso era
muito tempo, pensaram todos, até que a realidade os atingiu de frente. Mal se abrira a porta do
compartimento de carga, sentiram o cheiro. Era o que os veteranos costumavam chamar de
perfume do Vietnã. O conteúdo das latrinas era despejado em toneis e queimado com óleo
diesel.
— O cheirinho de casa! — brincou um dos fuzileiros, suscitando olhares de reprovação em
alguns companheiros.
— Preparar para desembarque! — gritou Irvin, assim que os motores foram desligados.
Levou um certo tempo. O cansaço e a inatividade tinham tomado as reações mais lentas. Muitos
sacudiram a cabeça para afastar a tontura causada pelos tapa-ouvidos, além de bocejarem e se
espreguiçarem, no que os psicólogos chamariam de expressão não-verbal de nervosismo.
A tripulação apareceu no compartimento de carga no momento em que os fuzileiros iam
desembarcar. O capitão Albie foi falar com eles e agradeceu pelo voo, que tinha sido sem
contratempos, embora longo. Os tripulantes estavam contando com vários dias de folga depois
daquela maratona, sem saber ainda que teriam que esperar naquela região até que o grupo
estivesse pronto para voltar para casa, talvez pegando de quebra algumas viagens de ida e volta
até Clark. Em seguida, Albie e seus homens saltaram. Dois caminhões estavam à espera, e os
transportaram para outra parte da base aérea, onde duas aeronaves os aguardavam. Eram dois
C-2A Greyhounds da Marinha. Com alguns gemidos resignados, os fuzileiros escolheram seus
lugares para a nova etapa da viagem, um voo de uma hora até o USS Constellation. Chegando ao
navio, subiram a bordo de dois helicópteros CH-46 Sea Knight, que os transferiram para o USS
Ogden, onde, exaustos e desorientados por causa da viagem, foram conduzidos para
alojamentos espaçosos, reservados especialmente para eles — e com camas convidativas. Kelly
ficou vendo os soldados se organizarem em fila na porta do alojamento, imaginando o que
estaria reservado para ele.
— Como foi a viagem? — perguntou uma voz às suas costas. Virou-se e se deparou com o
almirante Podulski, usando um uniforme caqui muito amarrotado e parecendo estranhamente
jovial.
— Os aviadores devem ser todos malucos — observou Kelly, de mau humor.
— Às vezes é mesmo cansativo. Siga-me — ordenou o almirante, conduzindo-o para a
superestrutura. Kelly olhou em torno. O Constellation estava no horizonte, a leste, e ele viu um
avião decolar de um lado, enquanto outro se preparava para pousar do outro lado. Dois
cruzadores navegavam nas proximidades, enquanto vários destróieres protegiam a formação.
Era uma parte da Marinha que Kelly não estava acostumado a ver, a grande equipe azul em
ação, dominando o oceano.
— O que é aquilo? — perguntou, apontando para um vulto no mar.
— Uma traineira russa de espionagem — explicou Podulski, convidando Kelly com um gesto
a entrar por uma porta estanque.
— Oh, isso é ótimo!
— Não se preocupe. Eles são inofensivos — assegurou-lhe o almirante.
No interior da superestrutura, os dois homens subiram uma série de escadas, indo parar nos
alojamentos dos oficiais superiores, ou no que estava sendo usado para esse fim naquela
operação. O almirante Podulski ficara com o camarote principal, relegando o comandante do
Ogden a suas acomodações menores, perto da ponte. O camarote dispunha de uma confortável
sala de estar, onde encontraram o comandante do navio.
— Bem-vindo a bordo! — exclamou o capitão Ted Franks, à guisa de saudação. — É o Sr.
Clark?
— Sim, senhor.
Franks era um oficial de cinquenta anos que trabalhava em naves anfíbias desde 1944. O
Ogden era seu quinto e último comando. Baixo, gorducho e quase careca, ainda tinha o olhar de
guerreiro em um rosto que podia ser brincalhão ou extremamente sério. No momento, a primeira
alternativa era verdadeira. Convidou Kelly a sentar-se em uma cadeira perto de uma mesa onde
havia uma garrafa da Jack Daniel's.
— Isso é proibido — observou Kelly, imediatamente.
— Não para mim — protestou o capitão Franks. — Rações de aviador.
— Fui eu que arranjei para eles — explicou Casimir Podulski. — Trouxe do Connie. A gente
precisa de alguma coisa para acalmar os nervos depois de passar todo esse tempo com o
pessoal do reconhecimento aéreo.
— Nunca discuto com almirantes — afirmou Kelly, colocando dois cubos de gelo em um
copo e cobrindo-os com uísque.
— Meu imediato está conversando com o capitão Albie e seus rapazes. Eles também vão
receber uma ração — acrescentou Franks, querendo dizer que cada homem encontraria duas
miniaturas no seu beliche. — Sr. Clark, nosso navio está à sua disposição. O que quiser é só
dizer.
— O senhor é um grande anfitrião — observou Kelly. O primeiro gole de bebida o fez se
lembrar de como estava tenso. — Quando vamos começar?
— Daqui a quatro dias. Vão precisar de dois dias para se recuperar da viagem — disse o
almirante. — O submarino se encontrará conosco depois de mais dois dias. Os fuzileiros irão
para bordo na manhã de sexta-feira, se o tempo ajudar.
— OK. — Não lhe ocorreu mais nada para dizer.
— Até agora, apenas eu e o imediato fomos postos a par. Seja discreto. Contamos com uma
boa equipe. O grupo de informações já está a bordo e trabalhando. A equipe médica chega
amanhã.
— E o trabalho de reconhecimento? Podulski se encarregou de responder.
— Hoje mesmo vamos ter fotos do campo, tiradas por um Vigilante do Connie. Eles vão fazer
outra passagem doze horas antes de começar a operação. Temos também imagens de um
Caçador de Búfalos, obtidas há cinco dias. O campo ainda está lá, tão guardado quanto antes.
— E os elementos? — perguntou Kelly, usando o nome de código para os prisioneiros.
— Só conseguimos fotografar três americanos. — Podulski deu de ombros. — Infelizmente,
ainda não inventaram uma câmera capaz de penetrar em telhados.
— Certo. — A expressão de Kelly dizia tudo.
— Também estou preocupado com isso — admitiu Cas.
Kelly se virou para o comandante.
— Capitão, o senhor tem um lugar onde eu possa fazer exercícios?
— O ginásio, atrás do refeitório. Como eu disse, se quiser alguma coisa, é só pedir.
Terminou o seu drinque.
— Bom, acho que agora vou dormir um pouco.
— Você vai fazer as refeições com os fuzileiros, tenho certeza de que vai gostar da comida de
bordo — prometeu o capitão Franks.
— Ótimo.

— Dois dos seus homens não estavam usando capacete — disse Marvin Wilson ao mestre de
obras. — Vou falar com eles. Fora isso, está tudo em ordem. Obrigado pela cooperação. — Ele
fizera onze recomendações para melhorar a segurança e o dono da companhia de cimento
atendera a todas, na esperança de que o prêmio do seguro fosse reduzido. Marvin tirou o
capacete branco e enxugou o suor da testa, Embora fosse cedo, já estava fazendo calor. O clima
no verão não era muito diferente do de Moscou, mas um pouco mais úmido. Pelo menos, o
inverno era mais ameno.
— Esses capacetes seriam muito mais confortáveis se tivessem furinhos de ventilação —
observou o mestre de obras.
— Concordo plenamente — afirmou o capitão Gregory, dirigindo-se para o carro.
Cinco minutos depois, entrou em um Howard Johnson. Estacionou o Plymouth azul do lado do
prédio e, quando saltou, um freguês que estava lá dentro terminou o café e saiu do balcão,
deixando uma gorjeta de vinte e cinco cents para a garçonete. O restaurante tinha uma porta
dupla, para economizar na conta do ar condicionado, e quanto os dois homens se encontraram no
espaço entre elas, com o vidro das portas atrapalhando a visão de que quem pudesse estar
observando, o filme mudou de mãos. Yegorov/Wilson entrou na lanchonete e um major "legal"
do KGB chamado Ischenko continuou seu caminho. Aliviado do seu fardo, Marvin Wilson
sentou-se ao balcão e pediu um suco de laranja para começar. Havia tantas coisas gostosas para
comer nos Estados Unidos!

— Estou comendo demais. — Era verdade, provavelmente, mas isso não impediu que Doris
atacasse a pilha de panquecas.
Sarah não entendia a mania de magreza dos americanos.
— Você perdeu muito peso nas últimas duas semanas. Uns quilos a mais só vão lhe fazer bem
— disse Sarah Rosen à sua ex-paciente.
O Buick de Sarah estava parado do lado de fora e em breve partiriam para Pittsburgh. Sandy
tinha caprichado um pouco mais no cabelo de Doris e saíra de novo para comprar um traje para
a viagem, uma blusa de seda bege e uma saia cor de vinho que terminava pouco acima do
joelho.
O filho pródigo podia voltar para casa em farrapos, mas filha tinha que chegar com alguma
dignidade.
— Não sei o que dizer — murmurou Doris Brown, levantando-se para tirar a mesa.
— Só queremos que continue a melhorar — replicou Sarah. Foram até o carro e Doris
sentou-se no banco traseiro. Umas das coisas que Kelly lhe ensinara era ser cautelosa. A Dra.
Sarah Rosen saiu da cidade pelo caminho mais curto, dobrando ao norte em Loch Raven,
entrando no anel rodoviário de Baltimore e pegando a Interstate 70 no sentido oeste. O limite de
velocidade na nova autoestrada era de cento e dez quilômetros por hora, mas Sarah excedeu
esse limite, dirigindo seu possante Buick para noroeste, rumo às montanhas Catoctin, ficando
mais tranquila à medida que a distância entre elas e acidade aumentava. Quando passaram por
Hagerstown, acalmou-se e começou a aproveitar o passeio. Qual era o risco, afinal, de serem
descobertas em um carro em movimento?
Foi uma viagem surpreendentemente silenciosa. Tinham conversado muito nos dias
anteriores, depois que Doris voltara ao normal. Ainda precisava de tratamento para se livrar
definitivamente do vício das drogas, e também de auxílio psiquiátrico, mas Sarah já contava
para isso com uma colega da excelente Escola de Medicina da Universidade de Pittsburgh, uma
mulher de sessenta e poucos anos que se comprometera a não comentar o caso com a polícia
local depois que Sarah lhe assegurara que aquela parte da questão já estava resolvida. No
silêncio do carro, Sandy e Sarah podiam sentir a tensão aumentar. Haviam falado a respeito.
Doris estava voltando para uma casa e um pai que deixara em troca de uma vida que quase se
tornara uma morte. Durante vários meses o componente principal de sua nova vida seria o
sentimento de culpa, em parte justificado, em parte não. No conjunto, ela era uma moça de muita
sorte, algo que Doris ainda não chegara aperceber perfeitamente. Em primeiro lugar, estava
viva. Com a volta da confiança e da autoestima, em dois ou três anos estaria em condições de
continuar a vida de forma tão normal que ninguém jamais suspeitaria do seu passado ou
observaria suas cicatrizes. O retorno à saúde mudaria aquela jovem, devolvendo-a não apenas
ao pai, mas ao mundo das pessoas normais.
Talvez ela saísse da experiência ainda mais forte, pensou Sarah, se a psiquiatra fizesse um
bom trabalho. A Dra. Michelle Bryant tinha uma excelente reputação; tomara que fosse
merecida. Para a Dra. Rosen, que ainda rumava para oeste, ligeiramente acima da velocidade
permitida, aquele era um dos ramos mais difíceis da medicina. Tinha que dar alta à paciente
com o trabalho ainda inacabado. Sua experiência com viciados em drogas a preparara para isso,
mas esses casos, como o que tinha nas mãos, jamais eram encerrados totalmente. Chegava uma
hora em que simplesmente tinha que liberar o paciente, rezando para que conseguisse fazer o
resto sozinho. Talvez fosse uma situação parecida com a do casamento de uma filha, pensou
Sarah. Poderia ter sido muito pior sob vários aspectos. Ao telefone, o pai parecera um sujeito
decente, e Sarah Rosen não precisava ser psiquiatra para saber que, mais do que tudo, Doris
precisava relacionar-se com um homem honrado e carinhoso para que, no momento apropriado,
desenvolvesse uma relação semelhante que pudesse durar o resto da vida. Esse seria o trabalho
de outras pessoas, mas isso não a impedia de preocupar-se com a ex-paciente. Todo médico
pode ser uma mãe judia e, no seu caso, isso era difícil de evitar.
As colinas eram íngremes em Pittsburgh. Doris mostrou o caminho, que margeava o rio
Monongahela, até que chegaram à sua rua e ela ficou subitamente nervosa enquanto Sandy
olhava os números das casas. Ali estava. Sarah estacionou o Buick vermelho e as três
respiraram fundo.
— Você está bem? — perguntou Sarah.
A jovem fez que sim com a cabeça. Parecia muito nervosa.
— Ele é seu pai, querida. Gosta muito de você — disse Sandy. Não havia nada de notável em
Raymond Brown, observou Sarah logo depois. Parecia que estava esperando na porta há muito
tempo e também devia estar muito nervoso, pois desceu a escada de concreto apoiando-se no
corrimão com mãos trêmulas. Abriu a porta do carro e ajudou Sandy a saltar com um
cavalheirismo desajeitado. Depois, enfiou a mão para dentro do carro, e embora estivesse
tentando se mostrar corajoso e impassível, quando seus dedos tocaram os de Doris, começou a
chorar. Doris tropeçou ao saltar do carro. O pai amparou-a e abraçou-a com força.
— Oh, papai!
Sandy desviou os olhos, não para disfarçar a emoção que estava sentindo, mas para deixar
pai e filha mais à vontade. O olhar que trocou com a Dra. Rosen foi um momento culminante na
vida das duas.
— Vamos entrar, meu bem — disse Ray Brown, conduzindo a filha para dentro de casa,
ansioso para tê-la sob sua proteção. As outras mulheres o seguiram sem terem sido convidadas.
A sala de estar estava surpreendentemente escura. Como costumava dormir de dia, o Sr.
Brown colocara pesadas cortinas em todas as janelas de casa e se esquecera de abri-las. A sala
estava atulhada com pequenos tapetes de lã, móveis estofados da década de 40, mesinhas de
mogno com paninhos rendados. Havia porta-retratos por toda parte. Uma esposa morta. Um filho
morto. E uma filha perdida... quatro retratos da filha. Na segurança sombria da casa, o pai
tornou a abraçar a filha.
— Minha querida — disse, recitando as palavras que vinha praticando há vários dias. —
Não ligue para as coisas que eu disse. Eu estava errado. Completamente errado!
— Tudo bem, papai. Obrigada por... por me deixar...
— Dor, você é minha filhinha querida. — Não era preciso dizer mais nada. Aquele abraço
durou mais de um minuto e ela teve que interrompê-lo com um risinho.
— Preciso ir ao banheiro.
— Ele continua no mesmo lugar — disse o pai, enxugando os olhos.
Doris subiu a escada e Raymond Brown virou-se para as visitas.
— Eu, hum, o almoço está pronto. — Olhou para as duas, constrangido. Não era hora de boas
maneiras ou palavras polidas. — Eu realmente não sei o que dizer.
— Está certo. — Sarah dirigiu-lhe seu sorriso de médica, do tipo que dizia que tudo estava
bem, embora realmente não estivesse. — Mas precisamos conversar. A propósito: esta é Sandy
O'Toole. Sandy é enfermeira e foi a maior responsável pela recuperação da sua filha.
— Olá — disse Sandy, e todos trocaram apertos de mão.
— Doris ainda está precisando de ajuda, Sr. Brown — afirmou a Dra. Rosen. — Ela passou
por maus pedaços. Podemos conversar um pouco?
— Claro que sim. Sente-se, por favor. Quer beber alguma coisa?
— Marquei uma consulta para sua filha com uma médica de Pittsburgh. O nome dela é
Michelle Bryant. É psiquiatra...
— Quer dizer que Doris está... doente?
Sarah sacudiu a cabeça.
— Não, doente, não. Mas sofreu muito e terá uma recuperação mais rápida sob os cuidados
de um bom profissional. O senhor compreende?
— Doutora, vou fazer tudo que a senhora disser, OK? A companhia me reembolsará das
despesas médicas.
— Não se preocupe com isso. Michelle cuidará do caso por cortesia profissional. O senhor
terá que ir até lá com Doris. É importante que entenda que ela passou por uma experiência muito
desagradável. Coisas terríveis. Vai melhorar, vai recuperar-se totalmente, mas o senhor terá que
fazer sua parte. Michelle pode explicar isso melhor do que eu. O que estou tentando lhe dizer, Sr
Brown, é o seguinte: por mais horríveis que lhe pareçam as coisas que chegarem ao seu
conhecimento, por favor, não...
— Doutora — interrompeu o Sr. Brown —, estamos falando de minha filhinha querida. Ela é
tudo que tenho, e não vou... não vou estragar as coisas e perdê-la novamente. Prefiro morrer.
— Sr. Brown, isto é exatamente o que queríamos ouvir.

Quando Kelly acordou, era uma da manhã, hora local. Felizmente, a grande quantidade de
uísque que bebera não produzira uma ressaca. Pelo contrário, sentia-se perfeitamente
repousado. O suave balanço do navio embalarão seu sono, e deitado no escuro do seu camarote
de oficial ouvira o rangido do aço quando o USS Ogden dera uma guinada para bombordo. Foi
para o chuveiro, usando a água fria para acabar de acordar. Em dez minutos estava vestido e
penteado. Era hora de explorar o navio.
Os navios de guerra nunca dormem. Embora a maior parte do efetivo trabalhasse apenas
durante o dia, o ciclo imutável de vigia da Marinha significava que havia sempre homens
circulando a bordo. Nada menos que cem tripulantes estavam sempre em seus postos, e muitos
outros estavam transitando nas passagens pouco iluminadas, a caminho de pequenas tarefas de
manutenção. Outros aproveitavam as horas de lazer nas áreas comuns, lendo ou escrevendo
cartas.
Kelly estava com um uniforme de faxina listrado. Usava um crachá com o nome Clark, mas
nenhuma insígnia. Aos olhos da tripulação, isso o tornava o "Sr. Clark", um civil, e já havia
rumores de que trabalhava para a CIA... acompanhados, naturalmente, de piadas sobre James
Bond que evaporavam quando ele apontava ao longe. Os marinheiros abriam caminho para ele
passar, saudando-o com acenos respeitosos de cabeça que ele respondia, embaraçado por estar
sendo tratado como oficial. Embora apenas o capitão e o imediato conhecessem a natureza da
sua missão, os marinheiros não eram cegos. Ninguém mandaria um navio para tão longe de San
Diego só para apoiar um pequeno grupo de fuzileiros a não ser que houvesse uma razão muito
boa para isso, e o bando de brutamontes que subira a bordo parecia do tipo capaz de fazer John
Wayne pensar duas vezes Kelly encontrou o convés de voo. Três marinheiros passeavam ali. O
Connie ainda estava no horizonte, ainda lançando e recebendo aeronaves cujas luzes competiam
com a das estrelas. Em poucos minutos, seus olhos se adaptaram à escuridão. Havia alguns
destróieres a poucos quilômetros de distância. No convés do Ogden, antenas de radar giravam
ao som de motores elétricos, mas o ruído dominante era o do casco de aço cortando a água.
— Nossa, como é bonito! — exclamou, principalmente para si mesmo.
Kelly encaminhou-se de volta para a superestrutura e andou para cá e para lá até encontrar o
centro de informações de combate. O capitão Franks estava lá, acordado, como a maioria dos
comandantes.
— Sente-se melhor? — perguntou Franks.
— Sim, senhor. — Kelly olhou para a carta e contou os navios que havia naquela formação,
designada como TF-77.1. Havia muitos aparelhos de radar funcionando, porque o Vietnã do
Norte tinha uma força aérea e nada impedia que um dia tentasse fazer alguma bobagem.
— Onde está o navio espião?
— Este aqui é o nosso amigo russo. — Franks apontou para a tela principal. — Estão fazendo
a mesma coisa que nós. Os caras da informação eletrônica que embarcamos devem estar se
divertindo — prosseguiu o comandante. — Normalmente, saem em pequenos barcos. Para eles,
nós somos o Queen Mary.
— É, seu navio é bem grandinho — concordou Kelly. — E parece meio vazio, também.
— É verdade. Assim meus rapazes e os fuzileiros não vão ter que brigar por espaço, não é?
Precisa consultar algum mapa? Tenho uma coleção completa no meu camarote.
— Parece uma boa ideia, capitão. Que tal a gente tomar café, também?
O segundo camarote de Franks também era bem confortável. Um marinheiro trouxe o
desjejum. Kelly desdobrou um mapa e começou a examinar o rio que serviria de acesso ao
campo.
— A profundidade é suficiente — observou Franks.
— É verdade — concordou Kelly, mastigando uma torrada. — O objetivo fica bem aqui.
— Antes você do que eu, meu amigo — observou Franks, tirando do bolso um compasso de
ponta seca e medindo a distância.
— Há quanto tempo está neste negócio?
— Na Marinha? — Franks riu. — Eles me puseram para fora de Annapolis depois de dois
anos e meio. Eu gostava de destróieres, de modo que me deram um LST* em viagem inaugural.
Trabalhei como imediato em minha primeira missão como oficial, acredita? O primeiro
desembarque foi em Pelileu. Quando chegamos a Okinawa, eu já era comandante. Depois
vieram Inchon, Wonsan, o Líbano. Já arranhei a pintura em um monte de praias. Acha que...? —
perguntou, levantando os olhos.

*LST: Abreviação de Landing Ship Tank, um tipo de navio usado por forças
anfíbias para desembarcar tropas e equipamentos pesados em praias. (N. do
T.)

— Não viemos até aqui para fracassar, capitão.


Kelly conhecia de cor cada curva do rio. Mesmo assim, continuou a olhar para o mapa, uma
cópia exata do que estudara em Quantico, à procura de algo de novo. Não encontrou nada.
Mesmo assim, continuou a examiná-lo.
— Vai sozinho? Terá que nadar um bocado, Sr. Clark — observou Frank.
— Pelo menos, não precisarei nadar na volta, não é mesmo?
— Acho que não. Vai ser ótimo tirar aqueles caras de lá.
— Sim, senhor.
27

DESEMBARQUE

A primeira fase da operação BUXO VERDE começou pouco antes do alvorecer. O porta-
aviões USS Constellation mudou de curso ao receber uma única palavra de código. Dois
cruzadores e seis destróieres também guinaram para bombordo e os indicadores de velocidade
das nove belonaves foram colocados na posição de velocidade máxima. As caldeiras dos
navios já estavam preparadas, e assim que eles começaram a mudar de curso também
começaram a acelerar. A manobra pegou a traineira russa de surpresa. Eles esperavam que o
Connie rumasse na direção oposta, contra o vento, para começar as operações de voo, mas, sem
que soubessem, o porta-aviões tinha ordens de abandonar o local e se dirigir para nordeste a
todo vapor. O navio de espionagem também mudou de curso e aumentou a potência dos motores,
na vã tentativa de alcançar o grupo-tarefa de porta-aviões. Isso deixou o Ogden com uma
escolta de dois destróieres da classe Adams equipados com mísseis, uma precaução razoável,
tendo em vista o que acontecera recentemente com o USS Pueblo perto da costa da Coreia.
Uma hora depois, o capitão Franks viu a traineira russa desaparecer no horizonte. Deixou
passar mais duas horas, apenas por precaução. Às oito da manhã, um par de helicópteros AH-1
Huey Cobra completou um voo solitário sobre a água a partir da base aérea dos fuzileiros em
Da Nang, pousando no convés de voo do Ogden, Os russos poderiam ter estranhado a presença
de dois helicópteros de ataque em um navio que, de acordo com as informações de que
dispunham, estava em uma missão de espionagem eletrônica não muito diferente da sua. Os
técnicos de manutenção, que já se encontravam a bordo, empurraram os helicópteros para um
local protegido e começaram e examiná-los peça por peça, Membros da tripulação do Ogden
abriram a oficina do navio e a colocaram à disposição dos recém-chegados. Eles ainda não
conheciam a natureza da missão, mas estava claro para eles que algo de inusitado estava
ocorrendo. Era tarde demais para fazer perguntas. Fosse o que fosse, todos os recursos do navio
foram colocados de prontidão antes mesmo que os oficiais transmitissem essa ordem para as
várias divisões. Helicópteros de combate significavam ação, e todos os homens a bordo sabiam
que estavam muito mais perto do Vietnã do Norte do que do Vietnã do Sul. Os boatos corriam.
Unham um grupo de observadores a bordo, depois fuzileiros, e agora helicópteros. Outros
helicópteros eram esperados para aquela tarde. Os oficiais médicos receberam ordem para
reservar espaço na enfermaria do navio,
— Vamos atacar os filhos da puta — comentou um terceiro-sargento com o seu superior, um
suboficial.
— Não espalhe — respondeu de volta, de cara amarrada, o veterano de vinte e oito anos.
— A quem eu contaria isso? Ei, cara, eu estou do nosso lado, lembra-se?
Onde ficou o respeito na nossa Marinha?, perguntou-se o veterano do golfo de Leyte.
— Você, você, você! — gritou o terceiro-sargento, apontando para três marinheiros. —
Vamos dar um passeio no convés. — Começaram um exame detalhado do convés de voo, à
procura de objetos soltos que pudessem ser sugados pelas turbinas das aeronaves. Virou-se
novamente para o suboficial. — Com a sua permissão, chefe.
— Vá em frente. — Universitários, pensou, escapando de servir na tropa.
— E se eu pegar alguém fumando, enfio o cigarro no cu! — disse o terceiro-sargento aos
marinheiros.
Mas a ação real estava acontecendo no território dos oficiais, — Um monte de comunicações
de rotina — disse o oficial de inteligência aos visitantes.
— Ultimamente, temos procurado destruir os sistemas telefônicos — explicou Podulski. —
Isso os obriga a recorrer ao rádio com maior frequência.
— Boa ideia — observou Kelly. — Alguma transmissão do nosso objetivo?
— Várias, e uma delas, na noite passada, era em russo.
— É a indicação que queríamos! — exclamou o almirante. Só havia uma razão para a
presença de um russo em SINAL VERDE. — Temos que pegar esse filho da puta!
— Se ele estiver lá, não vai escapar — prometeu Albie, com um sorriso.
O ânimo dos soldados tinha mudado novamente. Repousados, e bem próximos do objetivo,
seus pensamentos passaram de temores abstratos para as realidades práticas da missão. A
confiança estava de volta — temperada com cautela e preocupação, mas eles tinham treinado
para aquele trabalho. Agora estavam pensando mais nos acertos do que nos erros.
A última coleção de fotos já estava a bordo. Tinha sido tirada por um RA-5 Vigilante que
sobrevoara nada menos que três bases de mísseis terra-ar para disfarçar seu interesse por um
local remoto e secreto. Kelly examinou as ampliações.
— As torres ainda estão guarnecidas.
— Continuam vigiando — concordou Albie.
— Não vejo mudanças — prosseguiu Kelly. — Apenas um carro. Nenhum caminhão... nada
de extraordinário nas vizinhanças. Senhores, a situação parece totalmente normal.
— O Connie vai manter sua posição a sessenta quilômetros da costa. A equipe médica chega
hoje. O grupo de comando deve chegar amanhã, e no dia seguinte... — Frank olhou para o rapaz.
— Vou sair para nadar — declarou Kelly.

O cartucho com o filme ainda não revelado ficou por algum tempo em um cofre no escritório
de um chefe de setor da sede do KGB em Washington, que por sua vez fazia parte da embaixada
soviética, situada na Rua 16, a poucos quarteirões da Casa Branca. A mansão, que servira de
residência para George Mortimer Pullman (tinha sido comprada durante o governo de Nicolau
II), continha o segundo elevador mais antigo e a maior rede de espionagem da cidade. A
quantidade de documentos gerados pelos mais de cem agentes treinados impedia que todas as
informações que entravam por aquelas portas fossem processadas localmente e o capitão
Yegorov não ocupava uma posição de destaque na organização; por isso, o chefe do setor em
que ele trabalhava não se deu ao trabalho de examinar o filme. Finalmente, ele foi colocado em
um pequeno envelope de papel pardo, que foi lacrado com cera e incluído na bagagem de um
correio diplomático. O correio voou para Paris de primeira classe, por cortesia da Air France.
Em Orly, oito horas depois, o homem pegou um jato da Aeroflot para Moscou. Passou as três
horas e meia seguintes conversando animadamente com um agente de segurança I do KGB, que
tinha sido designado para ser seu guarda-costas naquele trecho da viagem. Além de cumprir as
missões oficiais, o correio também tinha o hábito de adquirir bens de consumo em suas
frequentes viagens ao Ocidente. No momento, estava trabalhando com meias-calças, duas das
quais foram prontamente repassadas ao agente do KGB.
Depois de desembarcar em Moscou e passar pela alfândega, o correio tomou o carro que
estava à sua espera e foi para a cidade. A primeira parada não foi no Ministério do Exterior,
mas no quartel-general do KGB, na Praça Dzerjinskiy nº 2. Mais da metade do conteúdo da
mala diplomática foi descarregado ali, incluindo a maioria das meias-calças. Duas horas
depois, o correio estava em casa para um merecido repouso.
O cartucho foi parar na mesa de um major do KGB. A etiqueta informava qual era o oficial
responsável pela informação; o major preencheu um novo formulário e chamou um subalterno
para levar o filme ao laboratório fotográfico, onde seria processado. O laboratório, embora
grande, estava com muito serviço e o trabalho teria que esperar pelo menos um dia, informou o
tenente ao voltar. O major fez que sim com a cabeça. Yegorov era um oficial esforçado e estava
recebendo informações de um agente ligado ao governo americano, mas provavelmente levaria
algum tempo até que CASSIUS fornecesse alguma coisa realmente importante.

Raymond Brown saiu da Escola de Medicina da Universidade de Pittsburgh controlando-se


para não demonstrar a tristeza que sentia depois do primeiro encontro com a Dra. Bryant. Na
verdade, tudo correra bem. Doris contara como tinha sido sua vida nos últimos três anos, com
voz fina porém firme, e o tempo todo o pai lhe segurara a mão, oferecendo-lhe apoio tanto físico
quanto moral. Raymond Brown se culpava por tudo o que acontecera com a filha. Se pelo menos
tivesse controlado sua ira naquela sexta-feira fatídica... mas não o fizera. Não podia mudar as
coisas. Na época, era uma pessoa diferente. Agora estava mais velho e mais sábio, e por isso
não demonstrou seus sentimentos enquanto os dois caminhavam para o carro. Tinham que pensar
no futuro e não no passado. A psiquiatra tinha sido muito clara a respeito. O Sr. Brown estava
disposto a seguir-lhe os conselhos à risca.
Pai e filha foram jantar em um pequeno restaurante — ele jamais aprendera a cozinhar bem
— e conversaram sobre os vizinhos, sobre o que acontecera com os amigos de infância de
Doris, em uma tentativa de retomar a vida normal. Raymond procurava falar baixo, esforçando-
se para sorrir e deixar a maior parte da conversa por conta da filha. Vez por outra, Doris
interrompia o que estava dizendo e fazia cara de choro. Era sua deixa para mudar de assunto,
para elogiar a aparência da filha, talvez contar-lhe um caso pitoresco ocorrido no trabalho.
Mais do que tudo, tinha que ser forte por ela. Durante os noventa minutos da primeira consulta
com a psiquiatra, descobrira que as coisas que temera durante aqueles três anos tinham
realmente acontecido e ficara com a impressão de que coisas ainda mais terríveis não tinham
sido mencionadas. Teria que se esforçar muito para controlar sua revolta, mas para o bem da
filha querida estava disposto a se tornar uma... uma rocha, pensou consigo mesmo. Uma grande
rocha na qual a menina pudesse se agarrar, tão sólida quanto as colinas em que fora erguida a
cidade. Ela precisava de outras coisas, também. Precisava redescobrir Deus. A médica
concordara com ele nesse ponto, e Ray Brown iria cuidar do assunto, com a ajuda do pastor,
prometeu a si mesmo, olhando a filha nos olhos.

Era bom regressar ao trabalho. Sandy voltara a dirigir as coisas na sua enfermaria. Sam
Rosen tinha abonado a ausência de duas semanas como uma dispensa especial, algo que, como
chefe de departamento, podia fazer sem ser questionado. Os pacientes do pós-operatório eram a
mistura habitual de casos graves e leves. A equipe comandada por Sandy cuidava de todos eles.
Duas enfermeiras perguntaram por onde tinha andado nas últimas duas semanas. Sandy se
limitou a responder que estivera trabalhando em um projeto especial de pesquisa do Dr. Rosen,
e isso tinha sido suficiente, especialmente porque a enfermaria estava cheia e todos tinham
muita coisa para fazer. Os outros membros da equipe notaram que Sandy parecia um pouco
ausente. De vez em quando seu rosto assumia um ar distante, como se estivesse preocupada com
alguma coisa. Não sabiam o que era. Torciam para que fosse um namorado. Estavam muito
satisfeitos com a volta da chefe. Sandy sabia lidar com os médicos melhor do que ninguém e,
com o professor Rosen a apoiá-la, todos se sentiam muito à vontade.

— Como é, já conseguiu substitutos para Billy e Rick? — perguntou Morello.


— Vai levar algum tempo, Eddie — respondeu Henry. — O pior é que isso vai atrasar nossas
entregas.
— Que droga! Eu sempre achei seu sistema muito complicado.
— Calma, Eddie — interveio Tony Piaggi. — A rotina de Henry é que funciona...
— Mas é muito complicada! Quem vai cuidar de Filadélfia agora? — quis saber Morello.
— Estamos pensando no assunto — respondeu Tony.
— Tudo o que temos a fazer é entregar a mercadoria e receber o dinheiro! Pelo amor de
Deus! Eles não vão roubar ninguém! Estamos lidando com homens de negócio, lembram-se? E
com negros de rua, teve o tato de não acrescentar. De qualquer forma, a insinuação estava clara.
— Sem ofensa, Henry.
Piaggi tornou a encher os copos de vinho. Era um gesto que Morello achava superior e
irritante.
— Escutem — disse Morello, inclinando-se para a frente —, eu ajudei a fechar esse trato,
lembram-se? Se não fosse eu, talvez não tivéssemos nenhum negócio em Filadélfia, certo?
— Aonde está querendo chegar, Eddie?
— Deixem que eu cuido das entregas enquanto Henry põe as coisas em ordem. Qual é a
dificuldade? Porra, quem estava fazendo as entregas eram as garotas!
Seja ousado, pensou Morello. Mostre a eles que você vale alguma coisa. No mínimo,
serviria para melhorar o seu conceito diante dos caras de Filadélfia. Talvez pudessem conseguir
para ele o que Tony não conseguira. Isso mesmo.
— Está mesmo disposto a correr o risco, Eddie? — perguntou Henry, disfarçando um sorriso.
Aquele italiano era tão previsível!
— Estou, droga!
— Tudo bem — concordou Tony, fazendo-se de impressionado. — Pode telefonar e combinar
os detalhes.
Henry estava certo, pensou. Era Eddie o tempo todo. Que tolice! Agora teria que se livrar
dele, o que não seria difícil.
— Nada, ainda — disse Emmet Ryan, referindo-se ao Caso do Homem Invisível. — Todos
esses indícios... e nada!

— A única coisa que sabemos, Em — afirmou Douglas —, é que tudo isso fazia parte de um
plano.
Havia sempre um motivo para um crime de morte. Esse motivo podia ser difícil ou mesmo
impossível de descobrir; no caso de uma série de assassinatos cuidadosamente planejados,
porém, a história era outra. Tudo se resumia a duas possibilidades. Uma era a de que alguém
tivesse cometido uma série de homicídios para ocultar o verdadeiro alvo. O alvo tinha que ser
William Grayson, que desaparecera da face da Terra, que provavelmente já estava morto e cujo
corpo talvez jamais fosse encontrado. Alguém muito zangado com alguma coisa, muito cauteloso
e muito habilidoso. Esse alguém — o Homem Invisível — conseguira o que queria e parará por
aí.
Qual a probabilidade de que essa teoria fosse verdadeira?, perguntou-se Ryan. Era
impossível dizer, mas a sequência de crimes lhe parecia excessivamente longa para um
resultado tão sofrível. Trabalho demais para um único alvo, aparentemente sem importância.
Fosse quem fosse Grayson, nunca chefiara nenhuma organização, e se as mortes obedeciam a
uma ordem planejada, não seria lógico parar justamente com ele. Pelo menos, refletiu Ryan,
franzindo a testa, era o que o instinto lhe dizia. Aprendera, como todos os policiais, a confiar no
seu faro. Entretanto, os assassinatos tinham parado. Nas últimas semanas, três traficantes haviam
sido mortos. Ele e Douglas foram às cenas dos crimes apenas para descobrir que dois casos
eram de latrocínio e o terceiro uma briga por causa de corridas de cavalos. O Homem Invisível
estava fora da cidade ou pelo menos suspendera suas atividades; isso punha por terra a teoria
que lhe parecia ser a explicação mais razoável para os assassinatos, deixando apenas algo bem
menos satisfatório.
A outra possibilidade fazia um pouco mais de sentido, sob alguns aspectos. Os crimes tinham
sido praticados contra uma quadrilha ainda não identificada por Mark Charon e sua divisão,
com o objetivo de intimidar os revendedores, fazendo com que mudassem de fornecedor. De
acordo com essa teoria, William Grayson ocupara uma posição razoavelmente importante na
organização, e talvez tivesse acontecido mais um crime ou dois, ainda não descobertos, cujo
resultado fora a eliminação dos líderes da suposta quadrilha. Mais um salto de imaginação
levava Ryan a concluir que a quadrilha atacada pelo Homem Invisível era a mesma que ele e
Douglas estavam perseguindo em vão durante tantos meses. Nesse caso, as coisas se juntavam
para formar um todo coerente.
Entretanto, isso raramente acontecia na vida real. Os assassinatos de verdade não eram como
nos programas de televisão; raramente era possível esclarecer todos os detalhes. Quando você
descobria quem era o autor, muitas vezes jamais conseguia apurar os motivos, pelo menos não
de forma totalmente satisfatória, e o problema de aplicar teorias elegantes a fatos concretos era
que as pessoas não se comportavam da forma prevista nas teorias. Além do mais, mesmo que
aquele modelo para os acontecimentos do último mês estivesse correto, isso queria dizer que
um indivíduo extremamente frio, organizado e eficiente estava agora dirigindo um negócio ilegal
na cidade de Ryan, o que não era exatamente uma boa notícia.
— Tom, nem disso podemos ter certeza.
— Ora, se ele era um vingador solitário, por que parou? — perguntou Douglas.
— Será que ouvi direito? Não foi você quem apareceu com essa ideia?
— Foi. E daí?
— Daí que não está ajudando muito o seu tenente, sargento.
— Temos um fim de semana inteirinho para pensar no assunto. De minha parte, pretendo
aparar a grama, assistir ao jogo de domingo e fazer de conta que sou um cidadão comum. Nosso
amigo sumiu, Em. Não sei para onde foi, mas espero que esteja longe daqui. Quem sabe não é
alguém de fora que chegou aqui, fez o serviço e se mandou?
— Um momento!
Aquela era uma teoria totalmente nova. Um assassino de aluguel, como nos filmes policiais!
Essas pessoas simplesmente não existiam! Mas Douglas acabara de sair do escritório,
impedindo uma discussão que talvez demonstrasse que cada um dos detetives enxergara parte da
verdade.

O treinamento com armas foi iniciado sob os olhos atentos da equipe de comando, mais os
marinheiros que conseguiram arranjar uma desculpa para ir até a popa. Os fuzileiros pensavam
que os dois almirantes e o representante da CIA estavam tão cansados quanto eles logo depois
de chegarem; mal sabiam que Maxwell, Greer e Ritter tinham recebido um tratamento VIP,
atravessando o Pacífico em saltos mais curtos, com direito a drinques e assentos confortáveis.
Jogaram alguns objetos na água, com o navio se movendo a apenas cinco nós. Os fuzileiros
perfuraram os blocos de madeira e sacos de papel em um exercício que funcionou mais como
recreação para os soldados do que como treinamento de verdade. Kelly também participou,
disparando rajadas curtas com seu rifle CAR-15, todas no alvo. Encerrada a sessão, os homens
travaram as armas e voltaram para o alojamento. Quando Kelly estava entrando na
superestrutura, foi abordado por um mecânico.
— O senhor é o cara que vai sozinho na frente?
— Isso devia ser segredo!
O suboficial deu uma risada.
— Venha comigo.
Os dois se separaram dos fuzileiros e se dirigiram para a bem equipada oficina mecânica do
Ogden. Tinha que ser bem equipada, pois devia atender não só às necessidades do navio, mas
também às de qualquer veículo embarcado. Em uma das bancadas, Kelly viu o flutuador que
usaria para subir o rio.
— Está a bordo desde que partimos de San Diego. Eu e o eletricista passamos muito tempo
mexendo nele. Montamos e desmontamos o bichinho várias vezes. Limpamos todas as peças e
testamos as baterias. Posso assegurar que estão em perfeitas condições. Instalamos gaxetas
novas, para garantir que não vai haver nenhum vazamento. Resolvemos também fazer um teste na
água. A garantia fala em cinco horas. Deacon e eu conferimos. Ele vai aguentar no mínimo sete
horas — afirmou o mecânico, com orgulho. — Achei que gostaria de saber.
— E gostei. Obrigado.
— Agora, deixe-me ver essa arma.
Depois de um momento de hesitação, Kelly entregou-a e o mecânico começou a desmontá-la.
Em quinze segundos estava desmontada parcialmente, mas o homem não parecia satisfeito.
— Espere aí! — exclamou Kelly, quando viu o ponto de mira ser removido.
— É barulhento demais. O senhor vai sozinho, não vai?
— Vou.
O maquinista nem levantou os olhos.
— Quer que eu faça essa arma ficar silenciosa ou prefere anunciar sua presença aos quatro
ventos?
— Você não pode fazer isso com um fuzil.
— Quem foi que disse? De que distância acha que vai precisar atirar?
— Não mais que cem metros. Bolas, prefiro nem ter que usar o rifle...
— Porque faz muito barulho, certo? — O mecânico sorriu. — Pois vou lhe mostrar uma
coisa. — O mecânico levou o cano do rifle até uma máquina de furar. A ponta de broca
apropriada já estava no lugar e, sob os olhos atentos de Kelly e de dois suboficiais, ele fez uma
série de furos nos primeiros trinta centímetros do tubo oco. — É impossível silenciar totalmente
um projétil supersônico, mas você pode reter todo o gás, o que ajuda bastante.
— Mesmo que esteja usando um cartucho de alta potência?
— Gonzo, está tudo pronto?
— Está, chefe — respondeu um segundo-sargento chamado Gonzales. O cano do rifle foi
colocado em um torno, onde recebeu uma série de estrias rasas mas compridas.
— Isto aqui já estava pronto. — O mecânico mostrou um silenciador do tipo lata, com trinta e
cinco centímetros de comprimento e sete e meio de diâmetro. Aparafusou-o com facilidade em
uma das extremidades do cano. Um espaço vazio no silenciador permitiu a reinstalação do
ponto de mira, que também ajudou a segurar o silenciador no lugar.
— Quanto tempo levou para fazer isso?
— Três dias. Quando dei uma olhada nas armas que tínhamos a bordo, não foi difícil deduzir
do que o senhor iria precisar. Eu tinha algum tempo de folga, de modo que pus mãos à obra.
— Mas como soube que eu iria...
— Estamos trocando mensagens com um submarino. Não preciso ser um gênio para concluir
o resto.
— Como sabe disso? — perguntou Kelly, já sabendo qual seria a resposta.
— Já conheceu um navio que tivesse segredos? O capitão tem um ordenança. Ordenanças
falam — explicou o mecânico, completando o processo de montagem. — A arma vai ficar uns
quinze centímetros mais comprida. Espero que não se importe.
Kelly empunhou o fuzil. O equilíbrio parecia ter até melhorado. Ele preferia armas com o
cano pesado, porque eram mais fáceis de apontar.
— Muito bom.
Tinha que testá-la, é claro. Kelly e o mecânico se dirigiram para a parte traseira do navio. No
caminho, o suboficial pegou um caixote de madeira. Quando chegaram à popa, Kelly introduziu
um pente carregado no fuzil. O mecânico jogou o caixote no mar e recuou. Kelly levantou a arma
e disparou o primeiro tiro.
Pop. Um momento depois, ouviram o ruído da bala atingindo a madeira, que foi até mais alto
que o barulho do disparo. Kelly chegara a ouvir o estalido do ferrolho. O mecânico tinha feito
com um fuzil de alta potência o mesmo que o ele fizera com uma pistola .22.
O suboficial deu um sorriso triunfante.
— Agora é só termos certeza de que a pressão é suficiente para acionar o mecanismo de
repetição. Experimente o automático.
Kelly obedeceu, disparando seis tiros em rápida sucessão. Ainda pareciam tiros de fuzil, mas
o ruído tinha sido reduzido em pelo menos noventa e cinco por cento. Isso queria dizer que
ninguém os ouviria a uma distância maior do que uns duzentos metros, enquanto que para um
rifle normal essa distância era de mais de um quilômetro.
— Bom trabalho, meu amigo.
— Aonde quer que o senhor vá, tome cuidado, ouviu? — recomendou o mecânico, afastando-
se sem dizer mais nada.
— Pode apostar — disse Kelly para a água. Ele sopesou o fuzil mais algumas vezes e
esvaziou o pente no caixote antes que ele se afastasse demais do navio. As balas fizeram o
caixote em pedaços, produzindo pequenos chuveiros de água salgada.
Você está pronto, John.
O tempo também estava, descobriu alguns minutos depois. O que era talvez o mais sofisticado
serviço de meteorologia do mundo estava trabalhando para apoiar as operações aéreas sobre o
Vietnã — não que os pilotos realmente apreciassem ou reconhecessem esse fato. O
meteorologista-chefe chegara a bordo junto com os almirantes, depois de passar pelo
Constellation. Ele apontou para uma carta de isóbaras e para as últimas fotos dos satélites.
— Amanhã o tempo vai mudar, e podemos esperar chuvas intermitentes durante os próximos
quatro dias. O tempo vai continuar ruim até esta área de baixa pressão se deslocar para o norte
e entrar na China — explicou o suboficial.
Todos os oficiais estavam presentes. As tripulações dos quatro helicópteros que
participariam da missão receberam a notícia sem muito entusiasmo. Pilotar um helicóptero com
mau tempo não era exatamente divertido e nenhum aviador gostava de ouvir falar em baixa
visibilidade. Por outro lado, o ruído da chuva ajudaria a abafar o barulho das aeronaves e a
visibilidade reduzida funcionava nos dois sentidos. O perigo que mais os preocupava eram as
baterias antiaéreas leves. Elas dispunham de mira óptica, e qualquer coisa que ajudasse a
dissimular as aeronaves era uma contribuição positiva para a segurança.
— Qual a velocidade do vento? — perguntou o piloto de um dos Cobras.
— Na pior das hipóteses, rajadas de trinta e cinco a quarenta nós. A coisa pode ficar um
pouco agitada lá em cima.
— Nosso principal radar de busca também pode ser usado para detectar turbulências.
Podemos orientá-los para que escapem do pior — ofereceu o capitão Franks. Os pilotos
concordaram com a cabeça.
— Sr. Clark? — perguntou o almirante Greer.
— Para mim, a chuva vai ser ótima. A única maneira de me descobrirem na primeira fase da
missão seria pelas bolhas que vou ter que deixar na superfície do rio. A chuva vai acabar com
essa possibilidade. Isso quer dizer que vou poder me movimentar de dia, caso seja necessário.
— Kelly fez uma pausa, sabendo que o início da missão só dependia dele.
— O Skate está preparado para me receber?
— Está — confirmou Maxwell.
— Nesse caso, de minha parte, podemos começar, senhor. — Kelly sentiu um frio na espinha.
O frio pareceu envolver todo o seu corpo, tornando-o menor. Mas conseguira dizer as palavras
fatídicas.
Todos os olhos se viraram para o capitão Albie. Um vice-almirante, dois contra-almirantes e
um agente da CIA dependiam agora daquele jovem fuzileiro para a decisão final. Ele era o líder
da força principal; por isso, em última análise, cabia a ele a responsabilidade pela operação.
Parecia estranho aos olhos do jovem capitão que sete estrelas necessitassem do seu "sim", mas
as vidas de vinte e cinco fuzileiros e de talvez vinte outros homens estavam em suas mãos. A
missão era sua e tinha que dar certo logo da primeira vez. Olhou para Kelly e sorriu.
— Sr. Clark, tome muito cuidado. Acho que está na hora de começarmos.
Não houve comemorações. Na verdade, todos os homens reunidos em volta da mesa olharam
para os mapas, tentando converter os desenhos bidimensionais em realidade tridimensional.
Depois, levantaram os olhos, quase simultaneamente, e trocaram olhares. Maxwell se dirigiu
primeiro à tripulação de um dos helicópteros.
— Acho que é melhor prepararem o helicóptero. — Maxwell virou-se. — Capitão Franks,
quer se comunicar com o Skate? — Responderam-lhe com dois lacônicos sim, senhor, e os
homens ficaram em posição de sentido, como se estivessem arrependidos da decisão.
Era um pouco tarde para voltar atrás, disse Kelly a si próprio. Procurou colocar o medo de
lado e pensar nos vinte prisioneiros. Parecia estranho arriscar a vida por pessoas que não
conhecia, mas isso não era incomum. O pai passara a vida fazendo a mesma coisa e a perdera
enquanto salvava duas crianças. Se me orgulho do meu pai, pensou, esta é a melhor forma de
homenageá-lo.
Você pode conseguir, homem. Está bem preparado. Podia sentir a confiança tomar conta do
seu corpo. Todas as decisões tinham sido tomadas. Agora só lhe restava ir em frente. O rosto de
Kelly assumiu uma expressão determinada. Os perigos não eram mais coisas a serem temidas,
mas obstáculos a serem superados.
Maxwell viu o que estava acontecendo. Era a mesma coisa nos vestiários dos porta-aviões,
ele e os colegas se preparando mentalmente para a missão que os aguardava. O almirante se
recordou de como tinha sido para ele, de como os músculos se retesavam, de como tudo parecia
de repente ficar mais nítido que o normal. O primeiro a chegar, o último a sair, como acontecera
às vezes em suas missões, usando o F6F Hellcat para eliminar caças inimigos e depois dar
cobertura aos bombardeiros no caminho de volta para casa. Meu segundo filho, foi o que Dutch
de repente disse para si próprio, ele é tão corajoso e competente quanto Sonny. Mas ele nunca
tinha mandado Sonny pessoalmente em uma missão e estava muito mais velho do que no tempo
de Okinawa. Por alguma razão, os perigos reservados para os outros pareciam muito maiores e
mais assustadores do que os que você assumia pessoalmente. Entretanto, tinha que ser daquela
forma, e Maxwell sabia que Kelly confiava nele, como no seu tempo tinha confiado em Pete
Mitscher. Era uma grande responsabilidade, ainda mais porque tinha que ver o rosto que estava
mandando para território inimigo, sozinho. Kelly percebeu o olhar de Maxwell e lhe endereçou
um sorriso de compreensão.
— Não se preocupe, senhor — disse, antes de sair para pegar seu equipamento.
— Sabe de uma coisa, Dutch? — observou o almirante Podulski, acendendo um cigarro. —
Esse rapaz nos teria sido muito útil há alguns anos. — Era bem mais do que "alguns" anos, mas
Maxwell compreendeu o que o colega queria dizer. Também tinham sido jovens guerreiros, mas
chegara a hora da nova geração.
— Cas, só espero que ele tome cuidado.
— Vai tomar. Como nós aqui.
O flutuador foi empurrado para o convés de voo pelos homens que o haviam montado. O
helicóptero já estava pronto, o rotor de cinco pás girando na escuridão da madrugada, quando
Kelly transpôs a porta estanque. Respirou fundo antes de pisar no convés. Nunca tinha visto uma
plateia como aquela. Irvin estava ali, junto com três outros suboficiais dos fuzileiros, e mais
Albie, os oficiais superiores e o tal de Ritter, despedindo-se dele como se fosse Miss América
ou coisa parecida. Mas foram os dois suboficiais da Marinha que foram falar com o rapaz.
— As baterias estão com plena carga. O seu equipamento foi colocado em um saco à prova
d'água. O rifle está carregado. Todos os rádios estão com pilhas novas e dois jogos de reserva.
Se há mais alguma coisa para fazer, não sei o que é — afirmou o mecânico, gritando para se
fazer ouvir, por causa do barulho do helicóptero.
— Tudo bem! — gritou Kelly de volta.
— Boa sorte, Sr. Clark!
— Até a vista... e obrigado! — Kelly apertou as mãos dos dois oficiais e depois foi falar com
o capitão Franks. Ficou em posição de Mentido e bateu continência. — Permissão para deixar o
navio, senhor.
O capitão Franks topou a brincadeira.
— Permissão concedida,
Kelly olhou em torno. Primeiro a chegar, último a sair. Um meio sorriso e um aceno de
cabeça eram gestos suficientes para o momento, e naquele momento todos se inspiravam na sua
coragem.
O grande helicóptero Sikorsky deixou o convés. Um tripulante do navio prendeu o flutuador
no helicóptero, que em seguida se dirigiu para a popa, para escapar da turbulência causada pela
superestrutura do Ogden, voando sem nenhuma luz e desaparecendo em poucos segundos na
escuridão da noite.
O USS Skate era um submarino antigo, uma versão modificada do primeiro submarino nuclear
americano, o USS Nautilus. Aforma do casco assemelhava-se à de um navio, e não à de uma
baleia, o que o tornava um pouco lento quando estava submerso, mas os hélices duplos
aumentavam a manobrabilidade, especialmente em águas rasas. Durante vários anos, o Skate
executara missões de espionagem, navegando nas proximidades da costa do Vietnã, usando suas
antenas para captar ondas de radar e outras emissões eletromagnéticas. Também fora usado para
desembarcar mais de um comando, entre eles o próprio Kelly, alguns anos antes, embora
nenhum dos membros daquela tripulação ainda estivesse a bordo para reconhecê-lo. O rapaz viu
o submarino na superfície, um vulto negro mais escuro que a água no mar iluminado pela lua em
quarto minguante, prestes a ser escondida pelas nuvens. Antes de mais nada, o piloto do
helicóptero deixou o flutuador no convés dianteiro do Skate, onde a tripulação do submarino o
prendeu no lugar. Em seguida, Kelly e seus equipamentos foram descidos na ponta de um cabo.
Um minuto depois, o rapaz estava na sala de controle do submarino.
— Bem-vindo a bordo — disse o comandante Silvio Esteves, excitado com sua primeira
missão daquele tipo. Ainda não completara um ano de comando.
— Obrigado, senhor. Quanto tempo vai levar a viagem?
— Seis horas, mais o tempo para verificarmos se a costa está limpa. Quer alguma coisa para
comer? Um café?
— Que tal uma cama?
— Pode usar a cama de reserva da cabine do imediato. Vou dar ordens para que não seja
incomodado.
Kelly dirigiu-se para a proa, para o último período de descanso que teria nos próximos três
dias... se tudo corresse de acordo com as previsões. Estava dormindo antes de o submarino
mergulhar nas águas do mar do sul da China.

— Isto aqui parece interessante — comentou o major, colocando a tradução na mesa do


superior imediato, que era também major, mas estava para ser promovido a tenente-coronel.
— Já ouvi falar do lugar. O GRU está controlando a operação... tentando, pelo menos. Nossos
fraternais aliados socialistas não ajudam muito. Quer dizer que os americanos finalmente
descobriram, hein?
— Continue a ler, Yuriy Petravich — sugeriu o oficial mais novo.
— Que coisa! — Ele levantou os olhos. — Quem, exatamente, é esse tal de CASSIUS? —
Yuriy já vira aquele nome, ligado a uma grande quantidade de pequenas informações que
chegavam através de várias fontes da esquerda americana.
— Glazov recrutou-o como agente faz pouco tempo. — O major levou um minuto para
completar a explicação.
— Nesse caso, acho melhor ir falar com ele. Não sei por que Georgiy Borissovich não está
cuidando pessoalmente do caso.
— Acho que agora ele vai cuidar, Yuriy.
Eles sabiam que alguma coisa ruim estava para acontecer. O Vietnã do Norte dispunha de uma
rede de radares de busca ao longo da costa. O objetivo principal era alertá-los com relação aos
ataques dos porta-aviões que partiam de uma base que os americanos chamavam de Yankee
Station e os norte-vietnamitas tinham batizado com outro nome. Era comum que houvesse
interferência nos radares de busca, mas não tão forte. Daquela vez, o gerador de interferência
era tão potente que a tela de radar, fabricada na Rússia, mostrava apenas uma grande mancha
branca. Os operadores aproximaram os olhos da tela, à procura de pontos mais brilhantes que
pudessem indicar alvos de verdade no meio de todo aquele ruído.

— Nave à vista! — gritou uma voz no centro de operações. — Nave à vista no horizonte! —
Era mais um caso em que a visão humana superava o radar.
Se eram suficientemente tolos para colocar canhões e antenas de radar no alto dos morros, o
problema era deles. O controlador de direção de tiro se encontrava no "Ponto 1", a torre
dianteira de controle de tiro que podia ser considerada a parte mais elegante da silhueta do
navio. Seus olhos estavam grudados às oculares do telêmetro, construído no final da década de
1930, e que ainda podia ser considerado uma obra-prima da indústria óptica americana. Fez
girar uma pequena roda, que funcionava como o mecanismo de foco de uma câmera fotográfica,
o qual mostrava uma imagem bipartida. Apontava para a antena de radar, cuja estrutura
metálica, que não estava protegida pela rede de camuflagem, constituía excelente referência de
pontaria.
— Marcar!
O assistente de controlador a seu lado ligou o microfone e leu os números indicados no
mostrador.
— Distância Um-Cinco-Dois-Cinco-Zero.
Na central de controle de tiro, trinta metros abaixo do Ponto 1, computadores mecânicos
aceitaram os dados e comunicaram aos oito canhões do navio o ângulo de elevação correto. O
que se seguiu foi muito simples. Já carregados, os canhões giraram com suas torres de tiro,
assumindo um ângulo de elevação calculado na geração anterior por dezenas de jovens mulheres
— agora avós — usando calculadoras mecânicas. No computador, a velocidade e o curso do
cruzador já tinham sido lançados. Como estavam disparando contra um alvo estacionário, o
fator de correção seria um vetor velocidade de mesma direção, mas sentido inverso. Desta
forma, os canhões permaneceriam apontados para o alvo.
— Fogo! — comandou o oficial artilheiro.
Um jovem marinheiro apertou os botões de tiro e o USS Newport News disparou sua primeira
salva do dia.
— OK, azimute correto, aumentar o alcance em... trezentos... — ordenou o controlador de
tiro, observando as chuvas de terra através dos telêmetros com aumento de vinte vezes.
— Aumentar trezentos! — repetiu o artilheiro, e a salva seguinte reboou quinze segundos
depois. Ele não sabia que a primeira salva tinha atingido, por acaso, o comando do parapeito de
controle da estação de radar. A segunda salva atravessou o ar. — Desta vez vamos acertar —
murmurou.
Estava certo. Três dos oitos tiros caíram a menos de cinquenta metros da antena de radar,
reduzindo-a a pedaços.
— Bem no alvo — disse o controlador de direção de tiro ao microfone, esperando que a
poeira assentasse. — Alvo destruído.
— Muito melhor do que usar uma aeronave — comentou o comandante, observando da ponte.
Há vinte e cinco anos, servira como oficial artilheiro a bordo do USS Mississippi e aprendera
as táticas de bombardeio do litoral no Pacífico ocidental, o que também acontecera com o seu
fiel controlador de tiro, que agora guarnecia o Ponto 1. Aquela guerra seria certamente a
despedida das grandes belonaves da Marinha e o comandante faria tudo para que fosse uma
despedida gloriosa.
Um momento depois, alguns respingos apareceram no mar, a mil metros de distância. Só
podiam ser os canhões de 130mm que os norte-vietnamitas usavam para perturbar os navios
americanos. O comandante decidiu cuidar deles antes de destruir as baterias antiaéreas.
— Contrabateria! — ordenou o capitão à central de direção de tiro.
— Sim, senhor.
Um minuto depois, o Newport News dirigia seus canhões de tiro rápido para os seis canhões
de 130mm, que não sabiam com quem estavam se metendo.
Só podia ser uma manobra de despistamento, pensou o comandante. Estava acontecendo
alguma coisa em outro lugar. Não sabia o que, mas tinha que ser algo muito sério, para que
mandassem o seu navio ao norte da zona desmilitarizada. Não que se importasse, pensou,
sentindo o navio estremecer novamente. Trinta segundos depois, uma nuvem laranja anunciou o
fim da bateria de 130mm.

— Temos explosões secundárias — anunciou o comandante. A guarnição da ponte ensaiou


uma rápida vaia antes de voltar o trabalho.
— Aqui estamos — disse o capitão Mason, tirando os olhos do periscópio.
— Ótimo. — Bastou uma olhadela para Kelly perceber que Esteves era um artista. O Skate
estava praticamente raspando no fundo e a água lambia a parte inferior da lente do periscópio.
— Daqui para a frente, é comigo.
— Está chovendo para valer lá fora — observou Esteves.
— Melhor assim. — Kelly terminou o café, do tipo que os marinheiros gostavam, com um
pouquinho de sal. — Estava contando com o mau tempo para me ajudar.
— Vai sair agora?
— Sim, senhor — concordou Kelly. — A menos que pretenda chegar ainda mais perto —
acrescentou, com um sorriso desafiador.
— Infelizmente, não temos rodas no casco. O que vai fazer lá? Geralmente sou informado.
— Não estou autorizado a falar sobre o assunto, senhor. Uma coisa, porém, eu posso lhe
dizer: se correr tudo bem, logo saberá.
— Nesse caso, é melhor se preparar — disse o comandante, compreendendo que não
adiantava insistir.
Por mais tépidas que fossem aquelas águas, Kelly tinha que se preocupar com o frio. Mesmo
que a água estivesse apenas ligeiramente mais fria do que o seu corpo, oito horas de imersão
poderiam roubar toda a sua energia, como uma bateria em curto-circuito. Vestiu uma roupa de
mergulho de neoprene, verde e preta, usando uma quantidade duas vezes maior que a normal de
pesos no cinto. Sozinho na cabine do imediato, teve o seu último momento de tranquilidade,
rogando a Deus que ajudasse não a ele, mas aos homens que estava tentando salvar. Parecia
estranho que estivesse rezando, pensou Kelly, depois do que fizera recentemente, e pediu perdão
pelos possíveis pecados, ainda sem saber ao certo se cometera ou não alguma transgressão das
leis divinas. O momento era apropriado para aquele tipo de reflexão, mas não dispunha de
muito tempo. Dali em diante, pensaria apenas na missão. Talvez Deus o ajudasse a resgatar o
coronel Zacharias, mas teria que fazer sua parte, também. A última coisa que passou pela sua
mente antes de sair da cabine foi a imagem de um americano indefeso prestes a ser golpeado
pelas costas por um soldado norte-vietnamita. Estava na hora de acabar com isso, disse para si
mesmo, abrindo a porta.
— A comporta fica deste lado — disse Esteves.
Kelly subiu a escada, observado por Esteves e outros seis ou sete tripulantes do Skate.
— Faça um bom trabalho — disse o comandante, fechando pessoalmente a escotilha.
— Vou tentar — respondeu Kelly, no momento em que a portinhola de metal foi trancada.
Havia um aqualung a sua espera. Kelly consultou o manômetro e constatou que o tanque estava
cheio. Falou no microfone à prova d'água: — Estou preparado.
— O sonar não mostra nada, a não ser chuva forte na superfície. Nada também no visual.
Vaya con dios, Señor Clark.
— Gracias — respondeu Kelly, rindo. Colocou o microfone no lugar e abriu a válvula. O
compartimento começou a se encher de água. A pressão do ar aumentou rapidamente no espaço
confinado.
Kelly olhou para o relógio. Eram oito e dezesseis quando abriu a escotilha externa e saiu para
o convés submerso do USS Skate. Inspecionou o flutuador com uma lanterna. Estava amarrado
em quatro pontos, mas antes de soltá-lo prendeu ao cinto uma corda de segurança; não queria se
arriscar a que o veículo se afastasse sem ele. O medidor de profundidade indicava quinze
metros. O submarino estava em águas perigosamente rasas; quanto mais cedo partisse, mais
depressa a tripulação voltaria à segurança. Desamarrou o flutuador, ligou o interruptor de
partida e dois hélices blindados começaram a girar lentamente. Ótimo. O rapaz tirou a faca do
cinto e bateu duas vezes com ela no convés. Em seguida, ajustou as aletas do flutuador e se pôs
a caminho, ajustando o curso para três-zero-oito.
Agora não há mais volta, pensou Kelly. Mas para ele isso não era novidade.
28

PRIMEIRO A CHEGAR

Ainda bem que não podia sentir o cheiro da água. Pelo menos, não a princípio. Poucas coisas
podem ser tão enervantes quanto nadar debaixo d'água à noite. Felizmente, as pessoas que
tinham projetado o flutuador eram mergulhadores e sabiam disso. O comprimento do veículo era
ligeiramente maior do que a altura de Kelly. Tratava-se, na verdade, de um torpedo modificado,
dotado de controles que permitiam que um homem o dirigisse e controlasse sua velocidade,
transformando-o em um minissubmarino, embora se parecesse mais com um avião desenhado
por uma criança. As "asas" — aletas, como eram chamadas — tinham que ser controladas
manualmente. Havia um medidor de profundidade e um medidor de ângulo de subida ou descida,
além de um indicador de carga da bateria e de uma bússola, o instrumento mais importante de
todos. O motor elétrico e a bateria tinham sido projetados originalmente para fazer o torpedo
percorrer em alta velocidade uma distância de mais de dez quilômetros. Em baixa velocidade, o
alcance podia ser muito maior. Viajando a cinco nós, aguentaria de cinco a seis horas — talvez
mais, se os técnicos do Ogden estivessem certos.
Era estranhamente parecido com voar no C-141. O zumbido dos hélices não era muito forte,
mas Kelly se encontrava a apenas dois metros de distância; o ruído já o estava deixando
nervoso. Em parte, isso se devia ao excesso da café que bebera. Tinha que permanecer alerta, e
havia cafeína suficiente no seu sangue para ressuscitar um cadáver. Tantas preocupações ao
mesmo tempo! Aquele rio era relativamente movimentado. Fosse para transportar munição
antiaérea de uma margem para outra ou para conduzir a versão vietnamita de um mauricinho ao
encontro da namorada, pequenas embarcações cruzavam frequentemente as águas calmas. Se
esbarrasse em uma delas, poderia morrer de várias formas; a diferença estaria apenas na
rapidez do desenlace, não no resultado final.
O pior era a visibilidade quase nula; Kelly calculou que não teria mais do que dois ou três
segundos para evitar uma colisão. Procurou manter-se no meio do rio. A cada trinta minutos,
diminuía a velocidade e punha a cabeça para fora d'água para verificar sua posição. As margens
pareciam desertas. Aquele país já não dispunha de muitas usinas de energia elétrica e, na falta
de eletricidade para ler ou talvez para ouvir rádio, a vida para as pessoas comuns era tão
primitiva quanto era selvagem para seus inimigos. Era tudo vagamente triste. Kelly não achava
que os vietnamitas fossem especialmente belicosos, mas estavam em guerra, e seu
comportamento, como tivera ocasião de ver, não podia ser considerado propriamente exemplar.
O rapaz tornou a mergulhar, tomando cuidado para não descer mais do que três metros. Ouvira
falar de um mergulhador que morrera depois de subir rapidamente à tona depois de passar
algumas horas a uma profundidade de apenas cinco metros e não estava disposto a repetir o
feito.
O tempo se arrastava. De vez em quando, as nuvens ficavam mais tênues e o luar delineava as
gotas de chuva na superfície da água, círculos escuros que se expandiam até desaparecer, três
metros acima da sua cabeça. Em seguida, a lua ficava de novo encoberta e tudo o que podia ver
era um teto cinzento, enquanto o ruído da chuva competia com o zumbido infernal dos hélices.
Outro perigo eram as alucinações. Kelly tinha uma mente ativa e agora estava em um ambiente
desprovido de estímulos. Pior ainda: seu corpo estava sendo embalado. Encontrava-se quase
sem peso, como se tivesse voltado ao útero, e o próprio conforto que sentia era perigoso. A
mente poderia reagir criando fantasias, o que devia ser evitado a todo custo. Kelly procurou se
manter ocupado, consultando os instrumentos rudimentares, inventando pequenos desafios, como
manter o veículo perfeitamente nivelado sem consultar o indicador de ângulo, mas logo
constatou que isso era impossível. O que os pilotos chamavam de vertigem acontecia ainda mais
rapidamente debaixo d' água do que no ar, e o rapaz descobriu que em quinze ou vinte segundos
começava a desviar-se da horizontal. De vez em quando, fazia um rolamento completo, só para
variar, mas passava a maior parte do tempo alternando o olhar entre a água e os instrumentos,
até que isso também se tornou perigosamente monótono. Com apenas duas horas de viagem,
Kelly teve que se esforçar para manter a concentração, pois era difícil se concentrar em apenas
uma coisa ou mesmo duas. Por mais confortável que fosse a sua situação no momento, todos os
seres humanos em um raio de oito quilômetros não estavam interessados nele a não ser como
uma vítima em potencial. Àquelas pessoas moravam ali, conheciam a terra e o rio, estavam
familiarizadas com os sons e as paisagens. E o país deles era um país em guerra, onde qualquer
coisa fora do normal era considerada perigosa e associada ao inimigo. Kelly não sabia se o
governo pagava uma gratificação por americanos mortos ou feridos, mas não se surpreenderia
se um sistema parecido estivesse em vigor. As pessoas trabalhavam com mais empenho quando
podiam contar com uma recompensa. Imaginou como tudo aquilo começara. Não que tivesse
alguma importância. Aqueles homens eram seus inimigos; nada mudaria isso, pelo menos nos
três anos seguintes, que era até onde chegava o futuro de Kelly. Se houvesse alguma coisa
depois disso, era melhor fingir que não existia, pelo menos por enquanto.
A próxima parada programada ocorreria em uma curva em forma de ferradura. Kelly diminuiu
a velocidade e colocou a cabeça para fora, cautelosamente. Ouviu um ruído na margem direita,
a uns trezentos metros de distância. Eram vozes masculinas, falando em uma língua que sempre
lhe parecera melodiosa — mas que se tornava desagradável quando carregada de ódio. Como
as pessoas, pensou, escutando por cerca de dez segundos. Tornou a mergulhar, observando a
mudança de curso na bússola enquanto acompanhava a curva do rio. Uma estranha indiscrição,
pensou, embora tivesse durado apenas alguns segundos. Sobre que estariam conversando?
Política? Um assunto sem graça em um país comunista. Agricultura, talvez? Ou guerra? Podia
ser, pois as vozes lhe pareceram um pouco tristes. Estamos matando os rapazes deste país,
pensou Kelly, de modo que eles têm toda a razão do mundo para nos odiar; a perda de um filho é
a mesma em qualquer país do mundo. Os pais podem dizer aos vizinhos que sentem orgulho do
jovem que saiu de casa para se tornar um soldado — cozido em napalm, mutilado por uma
metralhadora ou vaporizado por uma bomba; as histórias chegavam, de uma forma ou de outra,
mesmo que fossem mentiras, o que não fazia muita diferença —, mas para eles jamais deixavam
de ser a criança que dera os primeiros passos ou dissera "papai" na língua natal.
Por outro lado, algumas dessas crianças tinham se tornado adultos como FLOR DE
PLÁSTICO, e esses Kelly não se arrependia de matar. A conversa que ouvira lhe parecia
humana, embora não pudesse compreender uma só palavra, e lhe trouxera à mente a pergunta: o
que os torna diferentes?
Eles são diferentes, seu idiota! Deixe os políticos se preocuparem com as razões. Perguntas
como essa serviam apenas para distrair sua atenção do fato de que havia vinte pessoas como ele
rio acima. Praguejou mentalmente e procurou concentrar-se na tarefa de guiar o flutuador.

Poucas coisas no mundo conseguiam interromper o pastor Charles Meyer quando estava
preparando um dos sermões semanais. Ele considerava essa talvez a parte mais importante do
seu sacerdócio, dizer às pessoas, de forma clara e concisa, o que elas precisavam ouvir. Isso
porque o rebanho costumava vê-lo apenas uma vez por semana, a menos que algo corresse mal...
e quando algo corria realmente mal precisavam dos fundamentos da fé para que os seus
conselhos fossem efetivos. Meyer tinha sido ministro durante trinta anos, toda a sua vida adulta,
e a eloquência, que era um de seus dotes naturais, fora refinada por anos de prática a tal ponto
que seria capaz de tomar qualquer passagem da Bíblia e transformá-la instantaneamente em uma
aula de moralidade. O reverendo Meyer não era um homem severo. Sua mensagem era de amor
e compaixão. Gostava de rir e de brincar, e embora seus sermões fossem sérios por
necessidade, já que a salvação era a mais séria das metas humanas, o ministro se julgava no
dever de chamar a atenção para as verdadeiras qualidades divinas. Amor. Misericórdia.
Caridade. Redenção. Ioda sua vida, pensava Meyer, era dedicada a ajudar as pessoas a
encontrarem o verdadeiro caminho depois de um desvio impensado, a fazerem as pazes consigo
mesmas e com o próximo. Para uma tarefa tão importante, valia a pena interromper a preparação
de um sermão.
— É bom tê-la de volta, Doris — disse Meyer, ao entrar na casa de Ray Brown. Um homem
de estatura mediana, a vasta cabeleira grisalha lhe emprestava um ar de dignidade e sabedoria.
Segurou as duas mãos da moça nas suas, sorrindo calorosamente. — Nossas preces foram
atendidas.
Apesar do ambiente festivo, aquele prometia ser um encontro bastante constrangedor para as
três partes envolvidas. Doris cometera muitos erros, alguns deles provavelmente de extrema
gravidade. Meyer sabia disso, mas procurava não pensar no assunto em termos punitivos, O
importante era que a filha pródiga retornara à casa paterna; se havia uma razão para Jesus
descer à Terra, a parábola resumia isso em uns poucos versículos. Todo o cristianismo em uma
única história. Os que tivessem coragem de voltar seriam sempre recebidos com alegria, por
mais graves que fossem os seus pecados.
Pai e filha se sentaram no velho sofá azul, deixando a cadeira de braços à esquerda para
Meyer. Três xícaras de chá estavam sobre a mesa de centro. O chá era a bebida apropriada para
um momento como aquele.
— Você me parece muito bem-disposta, Doris. — O ministro sorriu, tentando esconder seu
desejo desesperado de deixar a jovem à vontade.
— Obrigada, pastor.
— Foi duro, não foi?
— Foi, sim — disse a moça, em tom defensivo.
— Doris, todos nós cometemos erros. Deus nos fez imperfeitos. Temos que aceitar esse fato e
lutar sempre para melhorar. Nem sempre somos bem-sucedidos... mas você foi. Agora está de
volta. As coisas ruins ficaram para trás, e com um pouco de esforço nunca mais voltarão a
persegui-la.
— É isso que eu quero — disse a jovem, em tom decidido. — É exatamente isso que eu
quero. Eu vi... e fiz... coisas horríveis...
Meyer era um homem difícil de chocar. Os clérigos estavam acostumados a ouvir histórias
escabrosas, porque os pecadores não podiam aceitar o perdão a não ser que conseguissem
perdoar a si mesmos, uma tarefa que sempre exigia um ouvido simpático e uma voz de amor e
compreensão. Entretanto, o que ouviu a seguir deixou-o chocado. Tentou manter-se impassível.
Acima de tudo, procurou lembrar-se de que o que estava ouvindo pertencia ao passado daquela
jovem paroquiana, enquanto, durante vinte minutos, tomava conhecimento de coisas com as
quais jamais sonhara, coisas de outra geração, coisas que iam além de sua experiência como
jovem capelão do Exército na Europa. Havia um demônio no universo, algo para o qual a fé o
preparara, mas o rosto de Lúcifer não era para ser contemplado pelos olhos desprotegidos do
homem... e muito menos pelos olhos de uma adolescente cujo pai expulsara de casa em um
injustificável acesso de raiva.
Era pior do que imaginara. A prostituição já era uma coisa terrível. O dano que causava às
jovens podia durar uma vida inteira, e ficou satisfeito ao saber que Doris estava visitando
regularmente a Dra. Bryant, uma profissional muito competente, a quem já encaminhara dois
membros de seu rebanho. Durante alguns minutos, compartilhou a dor e a vergonha de Doris
enquanto o pai segurava a mão da filha e tentava conter as lágrimas.
Em seguida, a moça se referiu às drogas. Primeiro, contou como se viciara; depois, como
tinha sido usada pela quadrilha para fazer entregas. Falou com toda a franqueza, com voz
trêmula, as lágrimas escorrendo pelo rosto, encarando de frente um passado que faria o coração
mais forte vacilar. Depois vieram os relatos de abusos sexuais e, finalmente, a pior parte de
todas.
Para o pastor, era como se estivesse assistindo a tudo. Doris parecia se lembrar de cada
detalhe. A Dra. Bryant teria que usar de toda a sua habilidade para livrar a moça de tantos
fantasmas. Ela contava a história como se fosse um filme, com todos os pormenores. Era uma
coisa saudável, pôr tudo para fora daquele jeito. Saudável para Doris. Saudável até mesmo para
o pai. Entretanto, Charles Meyer tinha sido transformado, sem querer, no depositário dos
horrores que os outros estavam tentando se livrar. Vidas tinham sido sacrificadas. Vidas
inocentes... duas meninas como a que tinha diante dos olhos, assassinadas de uma forma digna
do... do castigo eterno, pensou o pastor, com um misto de ódio e tristeza.
— A maneira como você cuidou de Pam, minha querida, é uma das coisas mais corajosas de
que já ouvi falar — declarou o pastor, comovido quase até as lágrimas, quando a moça terminou
o seu relato. — Ali estava a mão de Deus, Doris. A mão de Deus, agindo através de você e
mostrando a grandeza do seu caráter.
— O senhor acha? — perguntou a moça, explodindo em lágrimas. Meyer se ajoelhou em
frente a pai e filha e tomou as mãos deles nas suas.
— Doris, Deus esteve com você e a salvou. Seu pai e eu rezamos por este momento. Você
voltou e jamais fará de novo coisas como essas.
O pastor não podia saber o que não lhe haviam contado, as coisas que Doris deliberadamente
omitira. Sabia que uma médica e uma enfermeira de Baltimore tinham cuidado da jovem. Não
sabia, porém, de que forma Doris chegara até elas. Supunha, naturalmente, que ela fugira, como
a outra moça, Pam, quase tinha conseguido. Também não sabia que a Dra, Bryant tinha sido
também aconselhada a guardar segredo. De qualquer forma, talvez isso não fizesse diferença.
Ainda havia outras jovens em poder desse tal de Billy e seu amigo Rick. Da mesma forma como
dedicara a vida a proteger as almas contra Lúcifer, considerava seu dever negar-lhe os corpos.
Tinha que ser cauteloso. Uma conversa como aquela era sigilosa, no sentido mais puro da
palavra. Podia aconselhar Doris a procurar a polícia, mas não podia obrigá-la. Entretanto, como
cidadão, e como homem de Deus, sentia-se na obrigação de fazer alguma coisa para ajudar
aquelas outras jovens. Exatamente o que, ainda não sabia. Teria que conversar a respeito com o
filho, que era sargento da polícia de Pittsburgh.

Pronto. A cabeça de Kelly estava acima da água apenas o suficiente para deixar os olhos de
fora. Levantou as mãos para tirar a touca de borracha, de modo que pudesse ouvir melhor. Os
ruídos eram os mais variados. Insetos, o bater das asas dos morcegos e acima de tudo o barulho
da chuva. Ao norte estava a escuridão, na qual seus olhos, já habituados, começavam a discernir
algumas formas. Ali estava a "sua" colina, a dois quilômetros de distância de uma colina menor.
De acordo com as fotografias aéreas, não havia nenhuma casa entre o local onde se encontrava e
seu destino. Havia uma estrada a apenas cem metros de distância, que no momento parecia
totalmente deserta. O silêncio era tão grande que poderia ouvir qualquer veículo que se
aproximasse. Estava na hora.
Kelly dirigiu o flutuador para a margem. Escolheu um lugar arborizado, para maior
segurança. Seu primeiro contato com o solo do Vietnã do Norte foi como um choque elétrico. A
sensação logo passou. Kelly tirou o traje de mergulho e guardou-o no compartimento de carga
do flutuador. Vestiu um uniforme de combate. As solas das botas tinham o mesmo desenho das
do Exército do Vietnã do Norte, para que ninguém estranhasse as pegadas. Em seguida,
camuflou-se, pintando de verde-escuro a testa, as maçãs do rosto e o queixo, e em tom mais
claro a região em volta dos olhos e as bochechas. Depois de pendurar o equipamento no ombro,
ligou o flutuador, Ele se dirigiu para o centro do rio, com as câmaras de ar abertas, e afundou.
Kelly desviou os olhos com esforço antes que desaparecesse, lembrando-se de que os comandos
não gostavam de assistir à decolagem do helicóptero do ponto de desembarque, achando que
dava má sorte. Virou-se para terra, prestando atenção a qualquer ruído na estrada. Não ouviu
nada. Atravessou rapidamente a estrada de terra e desapareceu na vegetação espessa, dirigindo-
se para a colina mas próxima.
As pessoas costumavam ir ali buscar madeira para cozinhar. Isso era perigoso (será que
apareceria alguém no dia seguinte?) mas também conveniente, porque permitia que se movesse
mais depressa. Caminhava parcialmente agachado, olhando onde pisava, olhos e ouvidos
atentos. Levava o rifle nas mãos. Os dedos apalparam a chave seletora, na posição "travado". A
arma estava carregada. Já verificara isso. Entretanto, a última coisa que Kelly queria fazer era
disparar o CAR-15.
Levou uma hora para subir a primeira colina. Parou por um instante, à procura de um local de
onde pudesse observar as redondezas. Eram quase três da manhã, hora local, As únicas pessoas
acordadas eram as que estavam trabalhando, e não deviam estar nada satisfeitas. O corpo
humano estava sujeito a um ritmo circadiano e, àquela hora da madrugada, as funções corporais
se encontravam no mínimo de atividade.
Nada.
Kelly desceu a colina. Do outro lado, encontrou um pequeno regato. Aproveitou para encher
um dos cantis, colocando no interior um tablete de desinfetante antes de fechá-lo. Escutou
novamente, já que o som se propagava melhor nos vales e sobre os rios. Nada, ainda. Levantou
os olhos para a "sua" colina, um vulto cinzento sob um céu nublado. A chuva estava apertando
quando Kelly iniciou a subida. Menos árvores tinham sido cortadas ali, o que fazia sentido,
porque a estrada não chegava muito perto. O terreno era um pouco íngreme demais para a
agricultura e, com boas terras de várzea nas proximidades, era pouco provável que aquela
região fosse explorada. Provavelmente era por isso que tinham instalado ali o SINAL VERDE,
pensou. Não havia nada em torno para atrair a atenção. Isso funcionava nos dois sentidos.
Quando chegou ao meio da encosta, pôde ver, pela primeira vez, o campo de prisioneiros.
Era um espaço aberto no meio da floresta. Era impossível dizer se se tratava de um prado
natural ou se as árvores tinham sido derrubadas por algum motivo. Um desvio da estrada que
margeava o rio contornava a "sua" colina e passava perto do lugar onde se encontrava no
momento. Kelly viu um clarão em uma das torres de vigia. Alguém acendendo um cigarro. Será
que as pessoas não aprendiam nunca? A visão humana podia levar horas para se adaptar
perfeitamente à escuridão, e uma luz como aquela era suficiente para estragar tudo. O rapaz
desviou os olhos, concentrando-se no caminho à sua frente, evitando os arbustos, procurando
espaços abertos onde o seu uniforme não roçasse nos galhos, produzindo um ruído denunciador.
Ficou quase surpreso quando chegou ao alto da colina.
Sentou-se por um momento, no mais absoluto silêncio, olhando e escutando um pouco mais
antes de iniciar a investigação do campo. Descobriu um lugar muito bom, uns cinco metros
abaixo do cume. O outro lado da colina era íngreme e ninguém conseguiria escalá-lo sem fazer
ruído. Naquele lugar, sua silhueta não seria vista por um observador situado mais abaixo.
Também estava protegido por alguns arbustos, Era ali que se instalaria. Enfiou a mão no casaco
e tirou um dos transmissores de rádio.
— COBRA chamando GRILO, câmbio.
— COBRA, aqui é GRILO, temos seu sinal claro e forte, câmbio — respondeu um operador
no interior do caminhão de comunicações estacionado no convés do Ogden.
— Instalado e pronto para começar observação. Câmbio.
— Entendido. Câmbio e desligo.
O operador levantou os olhos para o almirante Maxwell. A Fase Dois da operação BUXO
VERDE estava encerrada.
A Fase Três começou imediatamente. Kelly tirou o binóculo militar 7x50 do estojo e começou
a observar o campo. Havia guardas em todas as quatro torres, dois deles com cigarros na mão.
Isso só podia querer dizer que o oficial estava dormindo. O Exército do Vietnã do Norte
obedecia a uma disciplina rígida; os castigos eram extremamente severos. Não era raro uma
pequena transgressão ser punida com a morte. Havia um único automóvel no campo,
estacionado, como não podia deixar de ser, perto do alojamento dos oficiais. O campo estava
totalmente às escuras e não havia nenhum som no seu interior. Kelly limpou a chuva dos olhos e
ajustou o foco do binóculo antes de começar sua vigília. Sentia-se como se estivesse de volta à
base de Quantico. A semelhança era impressionante. Parecia haver algumas pequenas diferenças
nos edifícios, mas elas podiam ser causadas pelas sombras, ou talvez pela cor das paredes.
Não. A diferença estava no pátio, praça — fosse qual fosse o nome daquele espaço aberto. Ali
não havia vegetação. A superfície era plana e nua, revelando apenas o barro vermelho tão
comum na região. Açor diferente e a falta de textura emprestavam uma moldura diferente às
construções. Os tetos eram cobertos com diferentes materiais, mas os telhados tinham a mesma
inclinação. Era como estar em Quantico, e com um pouco de sorte tudo correria tão bem como
nos ensaios. Kelly se permitiu um gole d'água. Era água destilada do submarino, limpa mas
insípida, tão deslocada ali quanto ele próprio.
Quando eram quinze para as quatro, viu algumas luzes nos alojamentos, trêmulas, amareladas,
como chamas de velas. Mudança de guarda, talvez. Os dois soldados que guarneciam a torre
mais próxima de onde ele estava se espreguiçaram e começaram a conversar. Kelly podia ouvir
o zunzum da conversa, mas não as palavras. Pareciam entediados. Ossos do ofício. Podiam
reclamar, mas a alternativa era um passeio pela trilha Ho Chi Minh até o Laos e, por mais
patriótico que isso pudesse ser, apenas um idiota pleitearia a troca. Ali, tinham que vigiar uns
vinte homens, trancados em celas individuais, talvez acorrentados à parede ou pelo menos
manietados, com tanta chance de escapar do campo quanto Kelly de caminhar sobre a água. E
mesmo que conseguissem esse feito impossível, o que fariam? Homens brancos de um metro e
oitenta de altura em uma terra de nanicos amarelos, nenhum dos quais levantaria um dedo para
ajudá-los. A penitenciária federal de Alcatraz não podia ser mais segura do que aquele campo.
Por isso, os guardas não tinham praticamente o que fazer, o que certamente os deixaria
descuidados.
Boas-novas, pensou Kelly. Continuem entediados, caras.
A porta do alojamento se abriu e oito homens saíram. Não havia nenhum suboficial à frente
do destacamento, o que era surpreendentemente informal, em se tratando do Exército do Vietnã
do Norte. Eles se dividiram em duplas e cada dupla se encaminhou para uma torre. Como era de
se esperar, os substitutos subiram antes que os soldados que estavam de serviço descessem.
Após trocarem algumas palavras, os sentinelas que estavam saindo de serviço desceram das
torres. Dois deles acenderam cigarros antes de se dirigirem para o alojamento, onde ficaram
conversando na porta. Era óbvio que se tratava de uma rotina que os homens vinham repetindo
há muito tempo.
Espere. Dois deles mancavam, percebeu Kelly. Veteranos. Isso tinha vantagens e
desvantagens. Homens com experiência de combate eram simplesmente diferentes. Em caso de
emergência, reagiam com mais presteza. Mesmo que não tivessem tido nenhum treinamento
recente, os instintos entrariam em ação e eles responderiam a um ataque mesmo na ausência de
uma liderança efetiva. Por outro lado, como veteranos, tenderiam a ser mais relaxados do que
os soldados jovens, atentos a suas obrigações. Fosse como fosse, se tudo corresse a contento, o
treinamento dos soldados do campo não faria muita diferença, porque eles seriam mortos antes
que tivessem oportunidade de reagir.
A verdade era que tinham feito uma suposição errônea. Na maioria dos casos, os prisioneiros
de guerra eram vigiados por soldados inexperientes. Naquele campo havia homens que tinham
estado em combate, embora os ferimentos sofridos provavelmente os desqualificassem para o
serviço ativo. Mais algum erro de avaliação?, pensou Kelly. Não se lembrou de nenhum.
Sua primeira mensagem pelo rádio foi uma única expressão em código, que enviou usando o
código Morse.
— TEMPO FIRME, senhor — anunciou o técnico de comunicações, enquanto transmitia uma
palavra de código acusando o recebimento da mensagem.
— Boas-novas? — quis saber o capitão Franks.
— Significa que tudo está correndo de acordo com os planos, que não há novidades —
explicou o almirante Podulski. Maxwell estava tirando uma soneca. Cas se recusava a dormir
até que a missão terminasse. — Nosso amigo Clark se comunicou conosco exatamente na hora
prevista.

Como os colegas do Ocidente, o coronel Glazov não gostava de trabalhar nos fins de semana,
ainda mais quando isso se devia a um erro do assistente, que colocara um relatório na pilha
errada. Pelo menos o rapaz admitira o fato e telefonara para a casa do chefe a fim de comunicar
o erro. Não podia fazer muito mais do que repreendê-lo pela distração, pois apreciava a
honestidade e senso de dever do garoto. Saiu da dacha em seu carro particular. Chegando a
Moscou, estacionou atrás do edifício e se submeteu ao cansativo processo de identificação antes
de tomar o elevador. Em seguida, teve que destrancar o escritório e mandar buscar os
documentos no arquivo central, o que também levou mais tempo do que em um dia útil. No
conjunto, foram necessárias duas horas para que estivesse em condições de examinar os
malditos papéis que tinham dado origem àquele inoportuno telefonema. O coronel assinou o
recibo e ficou esperando que o funcionário saísse.
— Caramba! — exclamou o coronel, em inglês, finalmente sozinho no seu escritório do
quarto andar. CASSIUS tinha um amigo no Escritório de Segurança Nacional da Casa Branca?
Não era de admirar que algumas de suas informações fossem tão boas... boas o suficiente para
justificar a ida de Georgiy Borissovich a Londres a fim de consumar o recrutamento. O oficial
do KGB agora tinha que repreender a si próprio. CASSIUS guardara aquele trunfo na manga,
talvez sabendo a comoção que iria causar quando se dispusesse a revelá-lo. O seu contato nos
Estados Unidos, capitão Yegorov, levara a informação a sério, como devia, e descrevia com
detalhes seu encontro com o agente. — BUXO VERDE — leu Glazov. Apenas um codinome
para a operação, escolhido ao acaso, como era hábito entre os americanos. A questão seguinte
era se devia ou não informar aos vietnamitas. Era uma decisão política, que teria que ser tomada
sem perda de tempo. O coronel tirou o fone do gancho e discou o número do seu superior
imediato, que também estava em casa e ficou instantaneamente de mau humor.
O alvorecer foi enganador. A cor das nuvens mudou do cinzento da ardósia para o cinzento da
fumaça, como se o sol estivesse para dar o ar da sua graça, embora, de acordo com as previsões
meteorológicas, isso só fosse acontecer quando a área de baixa pressão deixasse o norte e
penetrasse na China. Kelly consultou o relógio enquanto repassava mentalmente tudo o que
observara. A guarnição era constituída por quarenta e quatro soldados, quatro oficiais... e talvez
um cozinheiro ou dois. Iodos, a não ser os oito que estavam de serviço nas torres, se reuniam
logo depois do alvorecer para uma sessão de ginástica. Muitos faziam os exercícios com
dificuldade e um dos oficiais, primeiro-tenente, de acordo com as divisas no uniforme,
caminhava com o auxílio de uma bengala. Provavelmente tinha um braço em mau estado,
também, pela forma como o usava. O que houve com você?, pensou Kelly. Um suboficial
aleijado e mal-humorado passava os soldados em revista, descompondo-os de uma forma que
revelava meses de prática. Olhando de binóculo, pôde ver as caretas que os soldados faziam
quando o suboficial lhes dava as costas. Isso tornou os guardas do campo mais humanos, coisa
que desagradou ao rapaz.
O exercício matutino durou meia hora. Quando terminou, os soldados foram comer,
assumindo postura decididamente informal, nada militar. Os guardas das torres passavam a
maior parte do tempo olhando para dentro do campo, como era de se esperar, geralmente
apoiados nos cotovelos. Suas armas provavelmente não estavam engatilhadas, uma medida de
segurança que pesaria contra eles naquela noite ou na noite seguinte, dependendo do tempo.
Kelly olhou novamente em torno. Era melhor não se concentrar excessivamente no campo. Não
pretendia mudar de posição, nem mesmo agora, quando a noite dera lugar a um dia cinzento, mas
podia virar a cabeça para olhar e escutar. Acostumar-se com o canto dos pássaros, para poder
notar imediatamente qualquer mudança. O cano da arma estava coberto com um pano verde.
Usava um chapéu mole que se confundia com os arbustos e o rosto estava pintado de verde.
Ilido isso conspirava para torná-lo invisível, parte daquele ambiente quente e úmido que...
diabo, por que as pessoas brigam por este maldito lugar?, pensou. Já podia sentir os insetos. Os
piores eram mantidos a distância pelo repelente que espalhara no corpo. Outros, porém,
pareciam imunes ao produto e a sensação de pequenos animais rastejando na pele se combinava
com a certeza de que não podia fazer movimentos bruscos. Não havia pequenos riscos em um
lugar como aquele. Deu-se conta de que esquecera muita coisa. O treinamento era útil, porém
jamais poderia substituir a situação real. Não havia como simular os perigos de verdade, a
pulsação ligeiramente acelerada que poderia deixá-lo exausto mesmo que permanecesse imóvel.
Era uma sensação que você nunca esquecia totalmente mas tinha dificuldade de recordar em
toda a plenitude.

Alimento, nutrição, força. Enfiou a mão no bolso e retirou lentamente duas barras de ração.
Não comeria aquilo espontaneamente em nenhum outro lugar, mas no momento era vital que o
fizesse. Rasgou com os dentes as embalagens de plástico e mastigou-as devagar. A sensação de
energia renovada foi provavelmente mais psicológica do que real, mas os dois fatores eram
úteis, pois o seu corpo tinha que resistir tanto à fadiga quanto à tensão nervosa.
Às oito horas houve uma nova mudança de guarda. Os soldados que saíram de serviço foram
comer. Dois homens se dirigiram para o portão, parecendo entediados antes mesmo de chegarem
lá e começarem a vigiar a estrada, à procura de veículos que provavelmente jamais chegariam
àquele campo situado no meio de lugar nenhum. Alguns dos soldados se reuniram para executar
tarefas que eram tão obviamente inúteis para Kelly quanto para aqueles que as realizavam
estoicamente e sem nenhuma pressa.

O coronel Grishanov se levantou logo depois das oito. Permanecera acordado até tarde, na
noite anterior, e embora pretendesse estar de pé mais cedo, descobrira, contrariado, que o velho
relógio despertador finalmente entregara os pontos, corroído até a morte por aquele clima
miserável. Oito e dez, disse para si mesmo, após consultar o relógio de pulso. Droga. Tarde
demais para correr. Logo estaria quente demais e, além disso, parecia que a chuva iria durar o
dia inteiro. Ferveu água para o chá em um pequeno fogareiro do tipo militar. Nenhum jornal
matutino para ler. Nenhuma notícia do futebol. Nenhuma crítica dos espetáculos de bale. Nada,
naquele país miserável, para distraí-lo. Por mais importante que fosse o seu trabalho, também
precisava de alguns momentos de lazer. Nem mesmo as instalações hidráulicas eram decentes.
Estava acostumado a tudo aquilo, mas não fazia muita diferença. Ah, como sentia saudade de
casa, do som da língua natal! De estar em um país adiantado, onde as pessoas conversavam
sobre assuntos que valiam a pena. Grishanov franziu a testa para o espelho do banheiro
enquanto se barbeava. Faltavam ainda alguns meses e estava resmungando como um soldado
raso, como um maldito recruta. Devia saber se controlar.
O uniforme estava amarrotado. A umidade atacara as fibras de algodão, fazendo a camisa
parecer mais um pijama, e já estava no terceiro par de sapatos, pensou Grishanov, bebendo um
gole de chá e examinando as anotações que fizera após os interrogatórios da noite anterior. Só
trabalho, nenhuma diversão... e já estava atrasado. Tentou acender um cigarro, mas a umidade
deixara os fósforos imprestáveis. Ora, sempre podia acender o cigarro no fogareiro. Onde
deixara o isqueiro...?
Havia compensações, se é que podiam ser consideradas assim. Os soldados vietnamitas o
tratavam com respeito, quase com reverência — exceto o comandante do campo, major Vinh, um
filho da puta sem-vergonha Os deveres de cortesia para com um aliado socialista exigiam que
Grishanov tivesse a seu dispor um ordenança, que era um camponês ignorante e caolho,
encarregado de fazer a cama e esvaziar o urinol toda manhã. O coronel podia sair de casa na
certeza de que seu quarto estaria mais ou menos arrumado quando voltasse. E tinha o seu
trabalho. Importante, profissionalmente estimulante. Mas daria tudo por um exemplar do
Sovietskiy Sport.

— Bom dia, Ivan — murmurou Kelly consigo mesmo. Podia reconhecê-lo mesmo se não
estivesse usando um binóculo. Era bem mais alto — mais de um metro e oitenta e cinco — e
usava um uniforme mais vistoso que o dos vietnamitas. O binóculo permitiu que Kelly visse o
rosto do homem, pálido e sério. Cumprimentou com a cabeça um pequeno soldado que estava à
sua espera do lado de fora do alojamento dos oficiais. Um ordenança, pensou Kelly. Um coronel
russo teria direito a certos privilégios, não teria? As asas acima do bolso da camisa revelavam
tratar-se de um piloto. Apenas um?, admirou-se o rapaz. Apenas um oficial russo para ajudar a
torturar os prisioneiros? Muito estranho. Entretanto, isso queria dizer que teriam que matar
apenas um estrangeiro, o que podia ser uma vantagem; apesar de toda a sua falta de sofisticação
política, Kelly tinha consciência de que a morte de russos não interessava a ninguém. Viu
quando o russo atravessou o pátio e foi abordado pelo oficial mais antigo dos vietnamitas, um
major.
Outro militar manco. O pequeno major bateu continência para o coronel.
— Bom dia, camarada coronel.
— Bom dia, major Vinh. — O filho da puta não consegue nem fazer uma continência direito.
Talvez ele simplesmente não saiba como tratar seus superiores. — As rações dos prisioneiros
foram providenciadas?
— Eles vão ter que se contentar com o que estão recebendo — respondeu o vietnamita,
falando russo com um sotaque carregado.
— Major, é importante que me compreenda — disse Grishanov, aproximando-se para poder
olhar o outro de cima. — Preciso interrogar esses homens. Como vou fazer isso se eles
estiverem fracos demais para falar?
— Tovarisch, temos dificuldade para alimentar a nossa gente. Como espera que eu
desperdice comida com assassinos? — argumentou o major, usando um tom que refletia ao
mesmo tempo o desprezo que sentia pelo estrangeiro e seu respeito pelos subordinados, que
teriam dificuldade para entender o que estava acontecendo. Afinal, pensavam que os russos
eram leais aliados.
— Sua gente não tem o que o meu país precisa, major. E se o meu país conseguir o que
precisa, o seu país talvez consiga mais do que precisa.
— Tenho minhas ordens, coronel. Se está encontrando dificuldade para interrogar os
prisioneiros, ofereço-me para ajudá-lo.
Idiota arrogante. Vinh não tinha necessidade de dizer aquilo; era mais uma de suas
provocações.
— Obrigado, major. Isso não será necessário — respondeu Grishanov, fazendo uma
continência ainda mais desleixada que a do irritante homenzinho. Seria bom vê-lo morrer,
pensou o russo, encaminhando-se para o bloco dos prisioneiros. Seu primeiro compromisso do
dia era com um aviador naval americano que estava quase pronto para falar.

Quanta intimidade, pensou Kelly, a centenas de metros de distância. Esses dois foram feitos
um para o outro. Sua observação do campo estava quase completa. O único perigo era que os
guardas do campo patrulhassem periodicamente as vizinhanças, como uma unidade de
vanguarda em território hostil certamente teria feito. Mas não estavam em território hostil e
aquela não era exatamente uma unidade de vanguarda. Sua mensagem seguinte para o Ogden
confirmou que o risco estava dentro dos limites aceitáveis.

O sargento Peter Meyer era fumante. O pai não aprovava, mas tolerava o vício do filho
contanto que ele o praticasse ao ar livre, como estava fazendo agora, no quintal da residência
paroquial, depois do jantar de domingo.
— Doris Brown, certo? — perguntou Peter. Com vinte e seis anos, era um dos mais jovens
sargentos do departamento e, como a maioria dos policiais daquela geração, servira no Vietnã.
Faltavam apenas seis créditos para completar o curso noturno e estava pensando em candidatar-
se à Academia do FBI. Os boatos de que a moça voltara estavam circulando na vizinhança. —
Lembro-me dela. Tinha reputação de ser uma moça fácil alguns anos atrás.
— Peter, sabe que eu não posso lhe dizer nada. É uma questão de ética. Vou aconselhar a
pessoa a falar com você, mas...
— Papai, o senhor precisa compreender. Estamos falando de dois homicídios. Duas pessoas
mortas, mais a questão das drogas. — Ele jogou no chão a guimba do Salem — É coisa muito
séria, papai.
— É pior do que isso — afirmou o pai. — Eles não se limitam a matar as moças. Praticam
tortura, abuso sexual. É horrível. A pessoa teve que se submeter a um tratamento psiquiátrico.
Sei que é preciso fazer alguma coisa, mas não posso...
— É, eu sei que não pode. Está bem, vou telefonar para o pessoal em Baltimore e passar a
eles o que acaba de me contar. Na verdade, eu devia esperar até ter algo de mais concreto, mas,
como o senhor disse, é preciso fazer alguma coisa. Vou ligar para eles amanhã de manhã.
— Será que ela... a pessoa... estará correndo perigo? — perguntou o reverendo Meyer,
recriminando-se pelo deslize.
— Acho que não — opinou Peter. — Se ela conseguiu escapar... quero dizer, eles certamente
não sabem onde está, caso contrário já a teriam pegado de novo.
— Como as pessoas podem fazer coisas assim?
Peter acendeu outro cigarro. O pai era um homem bom demais para compreender. Não que ele
compreendesse inteiramente.
— Papai, vejo coisas como essa o tempo todo e também tenho dificuldade para entender. O
mais importante é pegar os miseráveis.
— É, suponho que sim...

O rezident do KGB em Hanói tinha a patente de general de brigada e seu trabalho consistia
principalmente em espionar os supostos aliados de seu país. Quais eram seus verdadeiros
objetivos? O estremecimento com a China era real ou fingido? Cooperariam com a União
Soviética quando e se as negociações de paz fossem concluídas com sucesso? Permitiriam que a
Marinha soviética mantivesse uma base no país depois que os americanos fossem embora? A
sua orientação política era tão firme quanto afirmavam? Essas eram questões que julgava haver
respondido, mas ordens de Moscou e seu próprio ceticismo o compeliam a continuar
perguntando. Dispunha de agentes infiltrados no CPVN, o Ministério do Exterior do país, e em
outros órgãos, vietnamitas cuja disposição em fornecer informações a uma nação amiga, se
descoberta, seria provavelmente punida com a morte — embora, para salvar as aparências, a
morte fosse considerada como "suicídio" ou "acidente", já que um confronto aberto não
interessava a nenhum dos dois países. A lealdade formal era ainda mais importante nos países
socialistas do que nos capitalistas, pensou o general, porque os símbolos eram bem mais fáceis
de manipular do que a realidade.
O despacho cifrado que tinha sobre a mesa era interessante, ainda mais porque não continha
instruções precisas. Típico dos burocratas de Moscou! Sempre prontos a se meter em questões
que ele poderia resolver sozinho; neste caso não sabiam o que fazer, mas tinham medo de se
omitir. Por isso, deixavam toda a responsabilidade em seus ombros.
O general sabia a respeito do campo, é claro. Podia ser uma operação da informação militar,
mas ele era posto a par de tudo o que se passava no escritório do adido. Afinal, o dever do
KGB era espionar todo mundo. Mesmo usando métodos irregulares, o coronel Grishanov
conseguira bons resultados, melhores do que os obtidos pelos próprios agentes do general com
aqueles pequenos selvagens. Agora o coronel aparecera com a proposta mais ousada de todas.
Em vez de deixar os vietnamitas matarem os prisioneiros depois que tivessem contado tudo que
sabiam, queria que fossem levados para a Mãe Rússia. O general do KGB estava decidindo se
apoiaria ou não a proposta, que em Moscou certamente seria analisada em nível de ministério
ou talvez mesmo chegasse ao Politburo. No conjunto, achava que a ideia era boa e isso o ajudou
a tomar uma decisão quanto ao assunto que o preocupava no momento.
Por mais divertido que pudesse ser para os americanos salvar os seus soldados com essa
operação BUXO VERDE, por mais que isso demonstrasse aos vietnamitas que deviam
colaborar mais de perto com a União Soviética, que eles eram na verdade um Estado cliente, o
sucesso da operação faria com que a Rússia perdesse para sempre as informações “contidas nas
mentes daqueles americanos, e isso ele não podia permitir.
De quanto tempo dispunha? Os americanos podiam ser rápidos, mas a missão fora aprovada
pela Casa Branca há apenas uma semana. Afinal de contas, todas as burocracias eram parecidas.
Se fosse em Moscou, teria levado um tempo enorme. A operação PINO MESTRE consumiu
longo tempo e só por isso não foi bem-sucedida. Apenas a boa sorte de um agente subalterno no
sul dos Estados Unidos permitira que avisassem Hanói e, mesmo assim, em cima da hora.
Agora, porém, tinham sido prevenidos com boa antecedência.
Política! Era impossível separá-la das operações de informação. Já o tinham acusado de reter
material coletado. Ali estava uma boa chance de demonstrar sua boa vontade. Mesmo os
Estados clientes podiam ser tratados como camaradas. O general levantou o fone para marcar
um encontro. Convidaria o seu contato para almoçar na embaixada, só para ter certeza de que
teriam uma refeição decente.
29

ÚLTIMO A SAIR

Era bonito de se ver. Os vinte e cinco fuzileiros fizeram seus exercícios no convés,
terminando com uma fila indiana que serpenteava em torno dos helicópteros. Os marinheiros os
observavam em silêncio. Todos já sabiam da missão. O flutuador tinha sido visto por muita
gente e, como se fossem espiões profissionais, os marinheiros juntaram os poucos fatos de que
dispunham e os temperaram com especulações. Os fuzileiros iam para o norte. Depois disso,
ninguém sabia, mas todos tentavam imaginar. Talvez fossem tomar de assalto uma base de
mísseis e trazer de volta um equipamento supersecreto. Talvez fossem derrubar uma ponte. O
mais provável, porém, era que o alvo fosse humano. Chefes políticos norte-vietnamitas, por
exemplo.
— Prisioneiros — declarou um terceiro-sargento, enquanto comia seu hambúrguer, que na
Marinha era chamado de escorregador. — Só pode ser — acrescentou, apontando com a cabeça
para um enfermeiro recém-chegado, que comia sozinho na mesa vizinha. — Seis enfermeiros,
quatro médicos... é muita coisa, caras. Por que acham que foram chamados?
— É mesmo! — exclamou outro marinheiro, bebendo um gole de leite. — Acho que você está
certo.
— Se der certo, nós todos vamos ficar famosos — observou um terceiro.
— O tempo hoje está uma droga — comentou um segundo-sargento. — O sargento
meteorologista parecia radiante, e vi quando ele pôs os bofes para fora na noite passada. Acho
que, para ele, qualquer coisa menor do que um porta-aviões joga demais.
O USS Ogden estava realmente jogando muito, em parte por causa do modo como tinha sido
configurado para aquela missão, e navegar de lado para o vento oeste servia apenas para piorar
as coisas. Era sempre divertido ver um superior perder o jantar, mas raramente alguém ficava
feliz com condições de tempo que o deixavam enjoado. Tinha que haver uma explicação. E a
explicação era óbvia, para desespero dos encarregados da segurança.
— Espero que eles consigam.
— Vamos dar mais uma varrida no convés de voo — sugeriu o terceiro-sargento. Todos
concordaram imediatamente. Uma equipe de trabalho foi rapidamente formada. Dali a uma hora
não haveria uma ponta de cigarro na superfície antiderrapante.
— Bons rapazes, capitão — observou Dutch Maxwell, observando a faxina da ponte. De vez
em quando, um dos homens se abaixava para pegar alguma coisa, um "objeto estranho" que, se
não fosse recolhido, podia destruir uma turbina, um acidente conhecido como FOD, ou foreign
object damage (dano causado por objeto estranho). Se acontecesse alguma coisa errada naquela
noite, não seria por negligência da tripulação.
— Muitos deles são universitários — replicou Franks, olhando orgulhosamente para os
comandados. — Às vezes tenho a impressão de que meus faxineiros são mais sabidos do que
meus oficiais.
Era uma hipérbole compreensível. O comandante teve vontade de dizer algo mais, algo que
todos estavam pensando: Será que vai correr tudo bem? Procurou se conter. Seria o pior tipo
de mau agouro. Mesmo pensar nisso poderia pôr em risco a missão, entretanto, por mais que
tentasse, não conseguiu impedir sua mente de formar as palavras.
No alojamento, os fuzileiros estavam reunidos em torno de um modelo em miniatura do
objetivo. Já haviam ensaiado a missão uma vez e estavam na segunda. O processo seria repetido
mais uma vez antes do almoço e muitas outras vezes durante o dia, tanto em grupo como em
equipes individuais. Cada homem podia ver a cena de olhos fechados, lembrando-se do campo
de treinamento em Quantico, revivendo os exercícios com munição de verdade.
— Capitão Albie? — perguntou um taifeiro, entrando na sala com um papel na mão. —
Mensagem do Sr. Cobra.
O capitão dos fuzileiros sorriu.
— Obrigado. Você leu a mensagem?
O homem ficou vermelho.
— Desculpe, senhor. Sim, eu li. Está tudo bem. — Ele hesitou por um momento antes de
acrescentar um despacho de cunho próprio. — Senhor, meu departamento deseja boa sorte a
todos.
— Sabe de uma coisa, capitão? — comentou o sargento Irvin, depois que o marinheiro saiu.
— Acho que nunca mais vou ter coragem de tratar mal um taifeiro.
Albie leu a mensagem.
— Pessoal, nosso amigo já está instalado. Ele contou quarenta e quatro guardas, quatro
oficiais e um russo. O trabalho no campo é normal. Não está acontecendo nada de
extraordinário. — O jovem capitão levantou os olhos. — É isso aí, rapazes. Acho que vamos
hoje à noite.

Um dos fuzileiros mais jovens enfiou a mão no bolso e tirou um elástico comprido.
Arrebentou-o, desenhou dois olhos nele com uma caneta e colocou-o no alto da elevação que
agora chamavam de Colina do Cobra.
— Esse cara é fora de série — comentou com os companheiros.
— O pessoal de apoio não deve se esquecer de que ele vai descer correndo daquela colina
assim que nós aparecermos — advertiu Irvin. — -Seria um crime acertá-lo por engano.
— Não se preocupe, artilheiro — disse o líder da equipe de apoio.
— Rapazes, vamos comer alguma coisa. Quero que passem a tarde descansando. E comam
muitos legumes; vão precisar da visão noturna. Armas desmontadas e limpas para inspeção às
dezessete horas — anunciou Albie. — Todos sabem o que fazer. Vamos manter a cabeça no
lugar que tudo correrá bem. — Estava na hora de se encontrar de novo com as tripulações dos
helicópteros para uma última olhada nos planos de desembarque e resgate.
— Sim, senhor — respondeu Irvin, em nome dos comandados.

— Olá, Robin.
— Olá, Kolya — respondeu Zacharias, debilmente.
— Ainda estou tentando melhorar a comida de vocês.
— Isso seria ótimo — observou o americano.
— Experimente isto.
Grishanov passou-lhe um pão de centeio que a mulher lhe enviara. Já começara a criar uma
camada de mofo, que Kolya raspou com uma faca. Mesmo assim, o americano comeu com
voracidade, parando apenas para tomar um gole de vodca do frasco que o russo também lhe
oferecera.
— Ainda vou transformá-lo em russo — comentou o coronel da Força Aérea soviética, com
um riso bem-humorado. — Vodca combina bem com pão preto. Gostaria de lhe mostrar meu
país. — Só para plantar a semente da ideia, amistosamente, de um homem para outro.
— Tenho família, Kolya. Se Deus quiser...
— Sim, Robin, se Deus quiser. — Se o Vietnã do Norte quiser, se a União Soviética quiser.
Se alguém quiser.
Gostaria de poder salvar aquele homem. Gostaria de poder salvar todos os prisioneiros.
Muitos haviam se tornado seus amigos. Sabia tanta coisa a respeito deles, das esposas, dos
filhos, dos seus sonhos e esperanças! Aqueles americanos eram tão estranhos, tão abertos! —
Além disso, se os chineses um dia resolverem bombardear Moscou, já tenho um plano para
detê-los. — Desdobrou o mapa e estendeu-o no chão. Era o resultado de todas as suas
conversas com o colega americano, tudo que aprendera e analisara condensado em uma única
folha de papel. Grishanov estava muito orgulhoso do seu plano, principalmente porque se
tratava de uma representação clara de um conceito operacional altamente sofisticado.
Zacharias percorreu-o com os dedos, lendo as anotações em inglês, que pareciam deslocadas
em um mapa com legendas em cirílico. Dirigiu ao russo um sorriso de aprovação. Um sujeito
esperto, esse Kolya. Aprendera muito bem as lições. A forma como distribuíra as forças, a
forma como as aeronaves patrulhariam as principais vias de acesso. Agora cie sabia como
montar um sistema de defesa. Mísseis terra-ar na extremidade dos vales, posicionados de modo
a surpreender os atacantes. Kolya estava pensando como piloto de bombardeiro, não como um
piloto de caça. Era o primeiro passo para montar uma defesa decente. Se todos os comandantes
da Força Aérea soviética compreendessem isso, o SAC não teria como...
Meu Deus!
As mãos de Robin pararam de se mexer.
Não é dos chineses que estamos falando.
Zacharias levantou os olhos e sua expressão revelou o que estava pensando antes mesmo que
encontrasse forças para falar.
— Quantos Badgers os chineses têm?
— Atualmente? Vinte e cinco. Estão tentando construir mais.
— Vocês vão aplicar o que ensinei a outras situações.
— É claro, Robin. Os chineses não vão ficar parados. Já lhe disse isso — observou
Grishanov rapidamente, mas compreendeu que era tarde demais.
— Eu lhe ensinei tudo o que sabia — comentou o americano, olhando para o mapa. Em
seguida, fechou os olhos e seus ombros começaram a tremer. Grishanov abraçou-o, tentando
consolá-lo.
— Robin, você me ensinou a proteger as crianças do meu país. Não menti para você. Meu pai
saiu da universidade para combater os alemães. Eu tive que fugir de Moscou quando criança. Eu
perdi vários amigos naquele inverno... meninos e meninas, Robin, crianças que morreram de
frio. Isso realmente aconteceu. Eu vi acontecer.
— E eu traí minha pátria — murmurou Zacharias. A compreensão chegara com a velocidade e
violência de uma bomba aérea. Como podia ter sido tão cego, tão estúpido? Robin sentiu uma
dor súbita no peito e naquele momento rezou para que fosse um ataque do coração, desejando a
morte pela primeira vez em sua existência. Mas não era um ataque cardíaco e sim uma contração
do estômago. O ácido liberado começava a corroer-lhe o estômago, assim como sua mente
começava a corroer as defesas da alma. Era um traidor da sua fé e do seu país. Era um homem
condenado.
— Meu amigo...
— Você me usou! — acusou Robin, tentando se desvencilhar.
— Robin, você precisa me ouvir. — Grishanov continuou a abraçá-lo. — Eu amo meu país,
Robin, como você ama o seu. Jurei defendê-lo. Nunca menti a respeito disso e agora chegou a
hora de lhe contar outras coisas.
Robin tinha que entender. Kolya tinha que deixar as coisas bem claras para Zacharias, como
Robin tinha deixado várias coisas tão claras para Kolya.
— O que, por exemplo?
— Robin, você é um homem morto. Os vietnamitas comunicaram ao seu país que você morreu
em combate. Jamais permitirão que volte para casa. É por isso que não está na prisão... Hoa Lo,
o Hilton, é assim que vocês a chamam, não é?
A acusação nos olhos de Robin era mais do que o russo podia suportar. Quanto tornou a falar,
foi em tom de súplica.
— O que está pensando é injusto. Eu pedi aos meus superiores que o poupassem. Quero jurar
agora, pela vida dos meus filhos: Não vou deixar você morrer. Você não pode voltar para os
Estados Unidos, mas eu lhe darei um novo lar. Você poderá pilotar de novo, Robin! Terá uma
vida nova. Não posso fazer mais do que isso. Se pudesse mandá-lo de volta para sua Ellen e
seus filhos, não hesitaria em fazê-lo. Não sou um monstro, Robin, sou um homem, como você.
Tenho uma pátria, como você. Tenho uma família, como você. Em nome do seu Deus, homem,
coloque-se no meu lugar. O que teria feito no meu lugar? Como se sentiria no meu lugar?
Não houve resposta, a não ser um soluço de vergonha e desespero.
— Preferia que eu tivesse deixado que eles o torturassem? Seis prisioneiros já morreram
neste campo, sabia? Seis homens morreram antes que eu chegasse aqui. Mas depois que eu
cheguei, as coisas mudaram! Apenas um prisioneiro morreu depois da minha chegada... apenas
um, e eu chorei por ele, Robin, juro! Gostaria de poder matar o major Vinh, aquele torturador
sem-vergonha. Eu salvei você! Fiz tudo o que estava ao meu alcance para diminuir seu
sofrimento. Ofereci-lhe minha própria comida, Robin, as coisas que minha Marina manda para
mim!
— E eu lhe ensinei como matar pilotos americanos...
— Só se atacarem meu país. Só se tentarem matar o meu povo, Robin! Só nesse caso! Quer
que eles matem minha família?
— Não é bem assim!
— É, sim. Não compreende? Isto não é um jogo, Robin. Estamos no negócio da morte, você e
eu, e para salvar algumas vidas temos que tirar outras.
Talvez com o tempo ele acabasse entendendo, pensou Grishanov. Era um homem inteligente,
racional. Depois de examinar os fatos com calma, veria que a vida era melhor do que a morte e
talvez pudessem ser amigos novamente. No momento, disse Kolya para si próprio, o que
importa é que salvei a vida do homem. Mesmo que o americano me amaldiçoe por isso, pelo
menos ele estará vivo para me amaldiçoar. O coronel Grishanov estava orgulhoso do que fizera.
Conseguira as informações que queria e salvara uma vida no processo, como era inteiramente
apropriado para um piloto da Força Aérea soviética cuja posição diante da vida tinha sido
tomada há muitos anos, quando era uma criança assustada fugindo de Moscou para Gorki.
Estava na hora do jantar quando Kelly viu o russo sair do bloco dos prisioneiros e dirigir-se
para o alojamento. Levava nas mãos um caderno de notas, sem dúvida cheio de informações
extraídas dos americanos.
— Você não perde por esperar — murmurou o rapaz. — Vão jogar três granadas incendiárias
por essa janela, cara, e cozinhá-lo para o jantar... junto com as suas malditas notas!
Voltara a sentir o prazer secreto de conhecer de antemão o que estava para acontecer, a
satisfação quase divina de prever o futuro. Bebeu um gole d'água do cantil; não queria correr o
risco de ficar desidratado. Era difícil esperar. À sua frente estava um campo com vinte
americanos solitários, assustados e possivelmente feridos, e embora não conhecesse nenhum
deles, e só soubesse o nome de um, sua missão era mais do que justificada. Quanto ao resto, foi
buscar consolo em um frase em latim que aprendera no ginásio: Morituri non cognant. Aqueles
que estão para morrer não sabem disso. Kelly preferia assim.

— Homicídios.
— Alô. Gostaria de falar com o tenente Frank Allen.
— É ele mesmo — disse Allen. Fazia apenas cinco minutos que chegara para trabalhar
naquela manhã de segunda-feira. — Quem está falando?
— Sargento Pete Meyer, de Pittsburgh — respondeu a voz. — O capitão Dooley me deu o seu
nome.
— Não falo com Mike há muito tempo. Ele continua fanático pelos Pirates?
— Continua, tenente. Eu também torço por eles, sabia?
— Acha que têm chance de ganhar o campeonato, sargento? — perguntou Allen, com um
sorriso. Um pouco de camaradagem entre colegas não fazia mal.
— Claro que sim. Roberto está jogando um bolão. — Estava sendo um ano muito bom para
Clemente.
— Eu poderia dizer o mesmo de Brooks e Frank. — Os Robinsons também estavam bem
colocados. — Em que lhe posso ser útil?
— Tenente, tenho algumas informações para o senhor. Dois homicídios. As vítimas eram
mulheres jovens, na faixa dos vinte anos.
— Espere um momento. — Allen pegou uma folha de papel. — Quem é o seu informante?
— Não posso revelar ainda. Ele pediu segredo. Estou tentando fazê-lo mudar de ideia, mas
talvez leve algum tempo. Posso continuar?
— Pode. Nome das vítimas?
— A mais recente se chamava Pamela Madden. Foi morta há poucas semanas.
O tenente Allen arregalou os olhos.
— Jesus! O crime do chafariz! E a outra?
— O nome era Helen. O crime ocorreu no outono passado. As duas foram torturadas antes de
morrer, tenente. Além disso, sofreram abusos sexuais.
Allen inclinou-se para a frente, com o fone colado ao ouvido.
— Está me dizendo que falou com uma testemunha dos dois crimes?
— Isso mesmo, tenente. Também tenho o nome dos criminosos. Dois homens brancos, um
chamado Billy e outro chamado Rick. Por enquanto, ainda não posso lhe fornecer a descrição
deles, mas estou trabalhando nisso, também.
— OK. Quem está investigando esses crimes não sou eu. É o pessoal do centro, o tenente
Ryan e o sargento Douglas. Reconheci os nomes... os nomes das vítimas, quero dizer. São casos
quentíssimos, sargento. Sua informação é segura?
— Acho que sim. Tenho uma possível confirmação para o senhor. O cabelo da vítima número
dois, Pamela Madden, foi penteado depois que ela morreu.
Nos casos policiais importantes, vários detalhes eram omitidos das reportagens como
precaução contra os desequilibrados que se dispunham a confessar a autoria de qualquer crime
divulgado pela imprensa. A história do cabelo era tão sigilosa que nem o tenente Allen tinha
conhecimento dela.
— O que mais você tem?
— Os assassinatos estão ligados ao tráfico de drogas. As duas moças eram aviões.
— Na mosca! — exclamou Allen. — Seu informante está na cadeia?
— Eu não devia responder, mas... está bem, vou ser franco com o senhor. Meu pai é um
ministro religioso. Ele está aconselhando a garota. Tenente, isto tem que ficar entre nós dois,
certo?
— Certo. O que quer que eu faça?
— O senhor poderia passar essas informações para os detetives que estão investigando os
crimes? Eles podem se comunicar comigo aqui na delegacia. — O sargento Meyer forneceu o
número. — Trabalho aqui como supervisor. Agora tenho que sair para dar uma aula na
academia, estarei de volta às quatro horas.
— Muito bem, sargento. Vou fazer o que pediu. Obrigado pelo interesse. Em e Tom vão ligar
para você. — Jesus, nós deixaríamos Pittsburgh ganhar o maldito campeonato para botar na
cadeia esses filhos da puta.
Allen apertou um botão no telefone.
— Olá, Frank — disse o tenente Ryan. Enquanto pousava a xícara na mesa, parecia que
estava se movendo em câmera lenta. Isso mudou quando pegou uma caneta. — Pode continuar.
Estou anotando.
O sargento Douglas estava atrasado naquela manhã por causa de um acidente na 1-83.
Chegou, como era seu costume, com uma rosquinha e um copo de café, e viu o chefe escrevendo
furiosamente.
— O cabelo foi penteado? Ele disse isso? — perguntou Ryan. Tinha o olhar de um caçador
que acaba de ouvir o primeiro ruído na floresta. — OK, quais foram os nomes que ele... — O
detetive cerrou o punho v respirou fundo. — OK, Frank, onde está esse cara? Obrigado. Até
logo.
— Alguma pista?
— Pittsburgh — respondeu Ryan.
— Hein?
— Um sargento da polícia de Pittsburgh telefonou. Disse que estão com uma possível
testemunha dos assassinatos de Pamela Madden e Helen Waters.
— É mesmo?
— Deve ser a garota que penteou o cabelo dela, Tom. E adivinhe quem ela acusou dos
crimes?
— Richard Farmer e William Grayson?
— Rick e Billy. Que tal? Parece que as duas eram aviões de uma quadrilha de traficantes.
Espere... — Ryan se recostou na cadeira e olhou para o teto amarelado. — Havia uma garota
presente quando Farmer foi assassinado... pelo menos, achamos que havia — corrigiu. — É a
ligação que faltava, Tom. Pamela Madden, Helen Waters, Farmer, Grayson, todos estão
relacionados... e isso quer dizer...
— Os traficantes, também. Todos ligados, de alguma forma. Qual é a ligação, Em? Sabemos
que todos estavam no negócio de drogas.
— Mas são dois modos de operação totalmente diferentes, Tom. As garotas foram executadas
como... não, não se faz isso nem mesmo com uma vaca. Todos os outros, porém, foram abatidos
pelo Homem Invisível. O homem com uma missão! Foi o que Farber disse, um homem com uma
missão.
— Vingança — afirmou Douglas, acompanhando atentamente a análise de Ryan. — Se uma
dessas garotas fosse minha amiga... Bolas, Em, quem pode censurá-lo?
Sabiam de alguém que conhecia de perto uma das vítimas, não sabiam? Ryan pegou o telefone
e ligou de volta para o tenente Allen.
— Frank, como se chama aquele cara que trabalhou no caso Gooding? Aquele cara da
Marinha?
— Kelly. John Kelly. Foi quem encontrou a arma perto do Forte McHenry. Depois a central o
contratou para treinar nossos mergulhadores, lembra-se? Oh! Pamela Madden! Minha nossa! —
exclamou Allen, quando percebeu a ligação.
— Fale-me sobre ele, Frank.
— É um sujeito muito legal. Sossegado, um pouco triste... perdeu a mulher num desastre de
automóvel ou coisa parecida.
— Veterano do Vietnã, certo?
— Homem-rã. Demolições submarinas. É assim que ganha a vida, explodindo coisas,
geralmente debaixo d'água.
— Continue.
— Fisicamente, é bem apto. Pode cuidar de si mesmo. — Allen fez uma pausa. — Já o vi
mergulhar. Tem algumas marcas, cicatrizes, quero dizer. Já esteve em combate e foi ferido.
Tenho o endereço dele, se estiver interessado.
— Eu também tenho. Está na pasta do caso, Frank. Obrigado, parceiro. — Ryan desligou —
Ele é o nosso homem. É o Homem Invisível.
— Kelly?
— Tenho que ir ao tribunal hoje de manhã. Droga! — queixou-se Ryan.

— Prazer em vê-los — disse o Dr. Farber. A segunda-feira era um dia tranquilo para ele. Já
despachara o último paciente e tinha combinado jogar tênis com os filhos depois do almoço. Os
detetives o pegaram quando já estava saindo do escritório.
— O que sabe sobre os caras do UDT? — perguntou Ryan, andando no corredor ao lado do
psiquiatra.
— Está falando de homens-rã da Marinha?
— Isso mesmo. São durões, não são?
Farber sorriu.
— São os primeiros a chegar na praia, à frente dos fuzileiros. O que mais? — Fez uma pausa.
Estava se lembrando de uma coisa. — Agora temos algo ainda melhor.
— Como assim? — perguntou o tenente.
— Eu ainda trabalho de vez em quando para o Pentágono. Hopkins tem muitas ligações com o
governo. O Laboratório de Física Aplicada, vários projetos especiais. Vocês sabem qual é a
minha especialidade. Às vezes faço testes psicológicos para descobrir como a guerra mexe com
as pessoas. Isso é sigiloso, certo? Existe um novo grupo de operações especiais. Foi criado a
partir do UDT. Eles o chamam de SEAL... são comandos, gente da pesada, e poucos sabem de
sua existência. Não são apenas durões. Também são muito inteligentes. Treinados para pensar,
para prever situações.
— A tatuagem — observou Douglas, pensativo. — Ele tinha uma foca tatuada no braço.
— Doutor, se a garota de um desses caras do SEAL fosse brutalmente assassinada? — Era a
mais óbvia das perguntas, mas Ryan tinha que fazê-la.
— Talvez seja essa a missão que estavam procurando — declarou Farber, saindo do edifício
sem querer revelar mais nada, mesmo para uma investigação de homicídio.
— É o nosso homem. Só há um problema — comentou Ryan com o assistente.
— Já sei. Não temos nenhuma prova. Apenas um motivo tamanho família.

Caiu a noite. Tinha sido um dia desagradável para todo mundo no SINAL VERDE, com
exceção de Kelly. O pátio estava transformado em um lamaçal, com poças fétidas, grandes e
pequenas. Os soldados passaram a maior parte do dia tentando não se molhar. Os que estavam
nas torres defendiam-se do vento como podiam, mas não era fácil, porque estava sempre
mudando de direção. Um tempo como aquele mexia com as pessoas. A maioria dos seres
humanos não gostava de ficar molhada. Isso os deixava mal-humorados e embotados,
especialmente se estavam envolvidos em um trabalho monótono, como era o caso. No Vietnã do
Norte, um tempo como aquele também significava menos ataques aéreos, mais um motivo para
os homens baixarem a guarda. O calor do dia energizara as nuvens, carregando-as de vapor
d'água, que se apressaram em devolver ao solo.
Que dia miserável, estariam comentando os guardas uns com os outros durante o jantar. Todos
concordariam com a cabeça e se concentrariam na comida, olhando para baixo e não para cima,
para dentro e não para fora. A floresta estava molhada. Era muito mais fácil pisar em folhas
úmidas sem fazer ruído do que em folhas secas. Também não havia galhos secos para estalar. O
ar carregado de umidade abafava os sons em vez de transmiti-los. Em suma: era o tempo
perfeito.
Kelly aproveitou a escuridão para se movimentar um pouco. A falta de atividade já o estava
deixando com cãibras. Comeu mais duas barras de ração, bebeu água e esticou braços e pernas.
De onde estava, podia ver o local de desembarque e já escolhera o caminho para chegar até ele.
Só esperava que os fuzileiros não o confundissem com o inimigo quando chegasse correndo. Às
vinte e uma horas, fez a última transmissão de rádio.
Verde-Claro, anotou o técnico no seu bloco. Atividade Normal.
— É isso. A última coisa de que precisávamos. — Maxwell olhou para os outros. Todos
assentiram.
— A fase quatro da operação BUXO VERDE começará às vinte e duas horas. Capitão
Franks, comunique ao Newport News.
— Sim, senhor.
No Ogden, os tripulantes dos helicópteros colocaram seus trajes à prova de fogo e foram até
a popa preparar as aeronaves. Encontraram os marinheiros limpando todas as janelas. Enquanto
isso, os fuzileiros estavam vestindo suas roupas de combate. As armas foram montadas. Os
pentes receberam munição nova, tirada de caixas seladas. Os homens se Juntaram aos pares
para se pintarem com tinta de camuflagem. Não era hora de risadas ou brincadeiras. Estavam
tão sérios quanto atores na noite de estreia; a delicadeza do trabalho de maquilagem contrastava
estranhamente com a natureza da tarefa daquele noite. Com uma exceção.
— Cuidado com a sombra dos olhos, senhor — disse Irvin a um trêmulo capitão Albie, que
tinha sido acometido pelo clássico nervosismo dos comandantes e precisou de um sargento para
acalmá-lo.

Na sala de reuniões do USS Constellation, um pequeno e jovem comandante de esquadrilha


chamado Joshua Painter falou aos pilotos. Ele tinha 10 F-4 Phantoms prontos para decolar.
— Hoje vamos dar cobertura a uma operação especial. Nosso alvo: bases de mísseis terra-ar
ao sul de Haiphong — prosseguiu, sem saber nulamente do que se tratava, esperando que
compensasse o risco que ou criam os quinze oficiais escalados para voar com ele naquela noite,
ma era apenas a sua esquadrilha. Dez A-6 Intruders também participam da operação e quase
todo o efetivo aéreo do Connie subiria a costa, cobrindo o ar o máximo possível de ruído
eletrônico. Era bom que fosse tão importante quanto o almirante Podulski dissera; brincar com
as bases de mísseis não era exatamente divertido.

O Newport News estava agora a quarenta quilômetros da costa, aproximando-se de um ponto


que o colocaria exatamente entre o Ogden e a praia. Os radares estavam desligados e a estações
do litoral provavelmente não sabiam exatamente onde ele se encontrava. Depois do que
acontecera nos últimos dias, os norte-vietnamitas estavam usando os seus sistemas de radar de
costa com mais parcimônia. O capitão estava sentado na cadeira da ponte. Olhou para o relógio
e abriu um envelope pardo lacrado. Leu rapidamente as ordens que estavam guardadas há duas
semanas.
— Hummm... — murmurou consigo mesmo. Depois:
— Sr. Shoeman, mande aumentar a pressão das caldeiras um e quatro. Quero poder dispor da
potência máxima o mais cedo possível. Vamos fazer mais um pouco de surfe esta noite. Meus
cumprimentos ao imediato, ao oficial artilheiro e seus auxiliares. Quero vê-los imediatamente
em meu camarote.
— Sim, senhor. — O oficial de dia fez as notificações necessárias Com as quatro caldeiras
ativas, o Newport News podia fazer trinta e quatro nós para se aproximar o mais rápido
possível da praia e se afastar com a mesma velocidade.
— Surf City, lá vamos nós! — cantou o timoneiro assim que o capitão deixou a ponte. Era a
brincadeira oficial do navio (porque o capitão gostava dela), inventada meses antes por um
marinheiro. Significava aproximar-se da costa, da arrebentação, para dar alguns tiros. —
Cidade do surfe, nosso barco é veloz!
— Marque o seu curso, Baker — ordenou o oficial de dia, para acabar com a cantoria.
— Firme em um-oito-cinco, Sr. Shoeman — anunciou o timoneiro, balançando o corpo ao
ritmo da música. — City Surf, nos aguarde!
— Senhores, caso estejam imaginando o que fizeram para merecer a diversão dos últimos
dias, aqui está — disse o capitão em sua cabine.
Levou algum tempo para explicar. Na mesa estava um mapa da região da costa, com todas as
baterias antiaéreas assinaladas a partir de fotografias aéreas e tiradas por satélites. Os
artilheiros examinaram a situação. Havia várias colinas que serviriam como pontos de
referência para o radar.
— Beleza! — exclamou o chefe de controle de tiro. — Vamos com tudo, senhor? Os de cinco
polegadas, também?
O comandante fez que sim com a cabeça.
— Chefe Skelley, se voltarmos para Subic com alguma munição a bordo, vou ficar muito
desapontado com o senhor.
— Senhor, proponho usar projéteis luminosos e atirar visualmente o máximo que pudermos.
Era um exercício de geometria. Os especialistas em artilharia (incluindo o comandante) se
reuniram em volta do mapa e decidiram rapidamente o que fazer. A única novidade de fato era
que teriam que trabalhar à noite.
— Não vai sobrar ninguém vivo para atirar naqueles helicópteros, senhor.
O intercomunicador tocou. O comandante atendeu.
— Aqui é o capitão.
— Todas as quatro caldeiras a pleno vapor, senhor. Trinta nós no sino de popa, trinta e três no
sino de flanco.
— É bom saber que o maquinista-chefe está acordado. Muito bem. Mande soar postos de
combate. — No momento em que desligou, as sirenes do navio começaram a tocar. — Senhores,
temos alguns fuzileiros para proteger — disse o capitão, em tom confiante. Seus artilheiros eram
excelentes, tão bons quanto os do Mississippi. Dois minutos depois, estava de volta à ponte.
— Sr. Shoeman, estou assumindo o comando.
— O capitão assume o comando — anunciou o oficial de dia.
— Leme à direita, novo curso dois-meia-cinco.
— Leme à direita, novo curso dois-meia-cinco — repetiu o suboficial Sam Baker. — Leme
em posição, senhor.
— Muito bem — disse o capitão, acrescentando: — City Surf, nos aguarde!
— Sim, senhor! — concordou o timoneiro, com entusiasmo. Para um bode velho, aquele
comandante até que era animado.

Tinha chegado a hora da verdade. O que pode dar errado?, perguntou-se Kelly, no alto da
colina. Muita coisa. Os helicópteros podiam colidir em pleno voo. Podiam sobrevoar uma
bateria antiaérea não mapeada e ser derrubados. Alguma peça podia pifar, fazendo-os cair. E se
a Guarda Nacional local tivesse programado um exercício de treinamento para aquela noite?
Era impossível prever tudo. Já tinha visto missões fracassarem pelos motivos mais ridículos.
Mas não aquela, prometeu a si mesmo. Não depois de tantos preparativos. Os tripulantes dos
helicópteros, como os fuzileiros, estavam treinando intensivamente há três semanas. A
manutenção das aeronaves tinha sido feita com extremo carinho, com a ajuda dos marinheiros do
Ogden. Era impossível eliminar totalmente o risco, mas os preparativos e o treinamento, quando
bem-feitos, tendiam a minimizá-lo. Kelly verificou mais uma vez que o fuzil estava engatilhado
e ajeitou o corpo, inquieto. Não era como ficar sentado na janela de uma casa de esquina, em um
bairro pobre de Baltimore. Ali era para valer. Finalmente, conseguiria lavar a alma. A tentativa
de salvar Pam tinha sido malsucedida por sua culpa, mas talvez lhe servisse de lição. Desta vez,
não cometeria nenhum erro. Ninguém cometeria. Não estaria salvando apenas uma pessoa, mas
vinte. Consultou o mostrador luminoso do relógio. O ponteiro dos segundos parecia estar se
movendo com extrema lentidão. Kelly fechou os olhos, esperando que quando tornasse a abri-
los o ponteiro estivesse andando mais depressa. Não estava. Ele sabia que era uma ilusão. O
ex-chefe dos SEAL se forçou a respirar fundo e continuar a missão. Para ele, isso queria dizer
colocar o fuzil no colo e usar o binóculo. Sua observação do campo tinha que durar até o
momento em que as primeiras granadas M-79 fossem jogadas nas torres. Os fuzileiros estavam
contando com isso.

Talvez isso servisse para mostrar aos caras de Filadélfia como ele era importante. A
operação de Henry sofre uma pane e eu salvo a situação. Eddie Morello é importante, pensou,
alimentando o próprio ego enquanto dirigia pela estrada 40, em direção a Aberdeen.
O idiota não é capaz de fazer as coisas funcionarem direito. Não sabe escolher seus
auxiliares. Eu avisei a Tony que ele era metido a espertinho, que não era um cara
competente. Oh, não, ele é competente. Mais competente do que você, Eddie. Henry vai ser o
primeiro negro a entrar para a família. Espere só. Tony vai conseguir isso para ele. Não pode
conseguir para você. Seu primo não pode conseguir isso para você, mesmo depois que você
lhe apresentou Henry. O maldito negócio não existiria se não fosse por mim. Consegui o
negócio, mas não posso entrar para a família.
— Que merda! — rosnou para um sinal fechado. Alguém começa u atrapalhar a operação
de Henry e sou eu que tenho que investigar. Como se Henry não fosse capaz de cuidar da
própria vida. Provavelmente não é mesmo. Ele não é tão esperto quanto pensa. Mesmo assim,
está se metendo entre mim e Tony.
É isso, não é?, pensou Eddie. Henry está tentando me intrigar com Piaggi... da mesma
forma como nos intrigou com Angelo. Angelo foi seu primeiro contato. Foi Angelo quem me
apresentou Henry... apresentei Henry a Tony... Tony e eu cuidamos dos negócios com
Filadélfia e Nova York. Angelo e eu éramos um par de ligações... Angelo era a parte mais
fraca... Angelo levou a pior... Tony e eu somos outro par de ligações...
Ele só precisa de uma, não é? Apenas uma ligação com o resto da organização.
Está tentando me separar de Tony...
Merda!
Morello tirou um cigarro do bolso e apertou o acendedor do Cadillac conversível. A capota
estava arriada. Eddie gostava do sol e do vento; era quase como estar no seu barco de pesca.
Não lhe ocorrera que, viajando assim, seria mais fácil identificá-lo e segui-lo. Ao seu lado, no
chão do carro, estava uma maleta com seis quilos de heroína pura. Pelo que sabia, os homens de
Filadélfia precisavam com urgência do material e se encarregariam de diluí-lo. Era um negócio
dos grandes. A outra maleta, que no momento viajava para o sul, não continha notas menores do
que vinte dólares. Dois caras. Nada para se preocupar. Eram profissionais e mantinham uma
relação comercial estável. Não precisava temer uma cilada, mas mesmo assim levava um
revólver debaixo da camisa, espetado no cinto, no lugar mais seguro e menos confortável.
Tinha que fazer alguma coisa, pensou Morello. Acabara de matar a charada. Henry estava
tentando manipulá-los. Henry estava tentando manipular a organização. Um negro estava
tentando ser mais esperto do que eles.
E conseguindo. Provavelmente detestava os homens de sua própria raça. O desgraçado
parecia gostar de mulheres brancas. O que fazia sentido, pensou Morello. Os negros eram todos
iguais. Embora ele fosse talvez mais esperto do que a média. Sim, ele era esperto. Mas não o
suficiente. Não. Não seria difícil explicar a Tony o que estava acontecendo. Depois de fazer a
entrega, convide Tony para jantar. Seja calmo e razoável. Tony gosta de pessoas assim. Como se
ele fosse um doutor ou coisa parecida. Como um maldito advogado. Nós dois podemos cuidar
de Henry e ficar com a operação. Os negócios são assim mesmo. O pessoal não vai se importar.
Eles estão no negócio por causa do dinheiro, não porque gostam de Henry. Sim, ele e Tony
assumiriam o negócio e Eddie Morello entraria para a família.
Pronto. Tudo resolvido. Morello olhou para o relógio. Estava bem na hora quando parou o
carro no estacionamento meio vazio de um restaurante. Era do tipo antigo, montado em um
vagão de estrada de ferro — a Pennsylvania Railroad passava ali perto. Lembrou-se da
primeira vez em que comera fora de casa com o pai, em um lugar parecido com aquele, vendo
os trens passarem. A memória o fez sorrir enquanto terminava o cigarro e jogava a ponta para
fora do carro.
O outro carro chegou. Era um Oldsmobile azul, como esperava. Dois homens saltaram. Um
deles carregava uma maleta e se aproximou, não o conhecia, mas estava bem vestido, como um
respeitável homem negócios, de terno bege. Parecia um advogado. Morello evitou olhar
ostensivamente naquela direção enquanto o outro homem permanecia junto ao carro, para dar
cobertura ao primeiro. Sim, eram gente séria, logo saberiam que Eddie Morello também era um
homem sério, pensou, com a mão no colo, a quinze centímetros do revólver escondido.
— Trouxe a mercadoria?
— Trouxe o dinheiro? — replicou Morello.
— Eddie, você cometeu um grande erro — disse o homem, no momento em que ele abriu a
maleta.
— Como assim? — perguntou Morello, alarmado, com dez segundos e uma vida de atraso.
— Adeus, Eddie — acrescentou o homem, sem levantar a voz.
O olhar dizia tudo. Morello tentou sacar a arma, mas isso apenas ajudou o outro.
— Polícia! — gritou o homem, ao mesmo tempo em que um tiro perfurava a tampa aberta da
maleta.
Eddie conseguiu sacar e disparar um tiro no chão do carro, mas o policial estava a apenas um
metro de distância e não podia errar. O outro guarda já estava correndo na direção deles,
surpreso com o fato de que o tenente Charon não conseguira dominar o traficante. Enquanto ele
olhava de longe, o detetive enfiou o braço para dentro do carro, encostou o revólver no peito de
Eddie e atirou de novo, perfurando o coração.
Durante os segundos de vida que lhe restavam, tudo ficou claro para Morello. Henry
planejara tudo. Seu único propósito na vida tinha sido apresentar Henry a Tony. Não parecia
muita coisa.
— Que merda! — exclamou Charon, estendendo a mão para pegar o revólver de Eddie.
Menos de um minuto depois, dois carros da polícia estadual entraram no estacionamento, com
os pneus cantando.
— Ele parecia maluco — explicou Charon ao parceiro cinco minutos mais tarde, falando com
voz trêmula, como as pessoas costumam fazer depois de matar alguém. — Tentou atirar em mim,
mesmo com uma arma apontada para o peito.
— Eu vi tudo — afirmou o outro detetive, pensando que viu.
— É como o senhor disse — afirmou o sargento da polícia estadual, mostrando a maleta
aberta. Estava cheia de sacos de heroína. — Que achado!
— O problema — resmungou Charon, de cara amarrada — é que o desgraçado não vai poder
nos contar nada.
Era a mais pura verdade. Sucesso, pensou Charon, controlando-se para não sorrir com o
humor negro da piada. Acabava de cometer o crime perfeito, nas barbas dos colegas da polícia.
Agora a organização de Henry estava segura.

Estava quase na hora. Tinham feito mais uma mudança de guarda. Vai ser a última. Continuava
a chover. Ótimo. Os soldados nas torres estavam encolhidos. O dia feio os deixara ainda mais
entediados que o normal e homens entediados tinham reflexos mais lentos. Agora todas as luzes
estavam apagadas, até mesmo as velas dos alojamentos. Kelly varreu o campo com o binóculo,
à procura de alguma coisa fora do comum. Havia uma forma humana na janela do alojamento
dos oficiais, um homem olhando para a noite... O russo, não? Ah, é aí que você dorme? Ótimo!
O primeiro lançamento do granadeiro número três — cabo Mendez — estava programado para
aquela janela. Vamos ter russo assado. Vamos acabar logo com isso. Estou precisando de um
banho. Ei, será que eles têm outra garrafa de Jack Daniel's? Regulamentos eram importantes,
mas certas ocasiões tinham que ser comemoradas.
Embora tenso, Kelly não se considerava em perigo. O mais difícil linha sido chegar até ali.
Agora estava por conta dos aviadores e depois dos fuzileiros. Sua parte estava quase concluída.
— Comecem a atirar — ordenou o capitão.
O Newport News ligara os aparelhos de radar momentos antes. O navegador estava na central
de controle de tiro, ajudando os artilheiros a determinar a posição exata do cruzador com base
nas observações do radar. Era um refinamento talvez desnecessário, mas justificado pela
Importância da missão. A partir de acidentes geográficos conhecidos, os radares de navegação e
controle de tiro permitiam calcular a localização do navio com extrema precisão.
Os primeiros disparos partiram da bateria de cinco polegadas de bombordo. O ruído
incomodava os ouvidos, mas junto com ele acontecia dito estranhamente belo. No momento do
tiro, os canhões gêmeos produziam um anel de fogo. Parecia uma serpente amarela perseguindo
a própria cauda, ondulando no ar por alguns milissegundos antes de desaparecer. A seis
quilômetros de distância, o primeiro par de projéteis luminosos explodiu, com o mesmo
amarelo metálico que, segundos antes, enfeitara os canhões. A paisagem úmida e verde do
Vietnã do Norte tornou-se alaranjada debaixo daquela luz.
— Parece uma bateria de cinquenta e sete milímetros. Posso ver até a guarnição. — O
telêmetro do Ponto 1 já estava alinhado na direção correta. A iluminação apenas tornava as
coisas mais fáceis. O chefe Skelley usou o aparelho para medir a distância. Ela foi comunicada
imediatamente à central. Dez segundos mais tarde, oito canhões trovejaram. Mais quinze
disparos e a bateria desapareceu no meio de uma nuvem de fogo e poeira.
— Temos um impacto direto. O alvo Alfa foi destruído. — O chefe dos artilheiros recebeu a
ordem de apontar os canhões na direção do alvo seguinte.
Como o capitão, estava para se aposentar. Talvez abrisse uma loja de armas.

Era como um trovão longínquo, mas não exatamente. Lá embaixo, quase não houve reação.
Olhando de binóculo, pôde ver as cabeças se virarem na direção do ruído. Alguns comentários
foram trocados e mais nada Afinal de contas, o país estava em guerra e os ruídos desagradáveis
eram normais, especialmente os que soavam como trovões longínquos. A explosão ocorrera
longe demais para preocupá-los. Não dava nem para ver o clarão, por causa do mau tempo.
Kelly esperava que um oficial ou dois saíssem do alojamento para dar uma olhada. Era o que
ele teria feito, no lugar deles... provavelmente. Entretanto, nenhum oficial apareceu. Noventa
minutos e contando.

Os fuzileiros se reuniram no convés. Muitos marinheiros estavam lá para vê-los partir. Foram
contados por Albie e Irvin quando se dirigiam para os helicópteros.
Os últimos marinheiros na fila eram Maxwell e Podulski. Ambos tinham vestido uniformes
antigos, calças e camisas que haviam usado em outras missões importantes, peças associadas a
boas memórias e boa sorte. Os almirantes também tinham o direito de ser supersticiosos. Pela
primeira vez, os fuzileiros ficaram sabendo que o almirante pálido (era assim que se referiam a
ele) recebera a medalha de honra. A fita mereceu muitos olhares e alguns acenos respeitosos de
cabeça, aos quais respondeu, muito sério.
— Tudo pronto, capitão? — perguntou Maxwell.
— Sim, senhor — respondeu Albie, calmamente, apesar do que estava sentindo por dentro.
— Até daqui a três horas.
— Boa sorte. — Maxwell ficou em posição de sentido e bateu continência para o oficial mais
jovem.
— Estou impressionado — comentou Ritter. Ele também estava usando uniforme caqui, só
para combinar com os outros. — Espero que ludo dê certo.
— Eu também — murmurou James Greer, quando o navio se virou de frente para o vento.
Tripulantes com lanternas se aproximaram dos helicópteros para orientar a decolagem. Os
grandes Sikorskys deixaram o convés e rumaram para oeste, em direção a costa. — Agora é
com eles.
— São bons rapazes, James — comentou Podulski.
— Esse tal de Clark também me chamou a atenção — observou Ritter. — O que ele faz na
vida civil?
— Acho que no momento está desempregado. Por quê?
— Temos sempre lugar para alguém inteligente como ele. É muito esperto — insistiu Ritter,
enquanto todos se encaminhavam para o CIC. No convés de voo, as tripulações dos Cobras
estavam terminando os preparativos. Os helicópteros deveriam partir dali a quarenta e cinco
minutos.

— COBRA, aqui é GRILO. Começando na hora prevista. Responda.


— Está bem! — exclamou Kelly, em voz alta... mas não muito. Enviou três sinais longos pelo
rádio e recebeu dois de volta. O Ogden acabara de comunicar a partida dos helicópteros e
recebera sua resposta. — Faltam duas horas para vocês serem libertados — disse aos
prisioneiros do campo. O fato de que os outros ocupantes do campo não teriam um destino tão
feliz não o preocupava nem um pouco.
Kelly comeu a última barra de ração e guardou todos os invólucros no bolso da calça. Saiu
do esconderijo. Estava tão escuro que não havia mais nenhum perigo. Virou-se e procurou
apagar todos os vestígios de lua presença. Uma missão como aquela podia ser tentada
novamente; qual a vantagem de deixar o outro lado saber o que acontecera? A tensão finalmente
chegou a tal ponto que teve que urinar. Era quase engraçado, e o fez se sentir um menino,
embora tivesse bebido dois litros d'água naquele dia.
Trinta minutos de voo até o local de desembarque, mais trinta para a aproximação. Quando
eles chegarem ao alto da última colina, entrarei em contato visual com eles para dirigir o
ataque. Vamos logo com isso.
— Apontando para o alvo Hotel — anunciou Skelley. — Distância... nove-dois-cinco-zero.
— Os canhões dispararam novamente. Uma das baterias de cem milímetros estava respondendo
ao fogo. A guarnição tinha visto o Newport News destruir todas as outras baterias, e em vez de
abandonar a posição tentava pelo menos ferir o monstro que assombrava a costa.
— Lá vão os helicópteros — comentou o imediato do seu posto no CIC. Os pontinhos no
radar principal cruzaram a costa bem no local onde tinham estado os alvos Alfa e Bravo. Ele
pegou o fone.
— Aqui é o capitão.
— Aqui é o imediato, senhor. Os helicópteros já chegaram ao continente, passando pelo
corredor que abrimos para eles.
— Muito bem. Preparar para suspender fogo. Esses helicópteros vão estar de volta daqui a
trinta minutos. E fique de olho no radar.
— Sim, senhor.
— Minha nossa! — comentou um operador de radar. — O que está acontecendo?
— Primeiro nós atiramos no traseiro deles — opinou o vizinho. — Depois nós invadimos o
traseiro deles.

Faltavam apenas alguns minutos para o ataque. Continuava a chover, mas o vento amainara.
Kelly agora estava em campo aberto. Não havia perigo, ninguém podia vê-lo. O uniforme e
todas as partes expostas do corpo eram da mesma cor da vegetação que o cercava. Varreu com
os olhos a paisagem, em busca de algo fora do normal, mas nada encontrou. Sentia-se
enlameado até os ossos. O barro vermelho daquelas malditas colinas impregnara o tecido do
uniforme e cada poro de sua pele.
Os fuzileiros estavam a dez minutos do local de desembarque. O ruído vindo da costa
continuava esporadicamente, o que o tornava menos ameaçador. Parecia-se cada vez mais com o
ruído do trovão e apena Kelly sabia que se tratava, na verdade, dos disparos dos canhões de
oito polegadas de um navio de guerra. Sentou-se, apoiou os cotovelos nos joelhos e apontou o
binóculo para o campo. Nenhuma luz. Nenhum movimento. A morte se aproximava rapidamente
e eles nem desconfiavam. Estava tão preocupado em enxergar o que se passava no campo que
quase se esqueceu dos outros sentidos.
Era difícil perceber, por causa da chuva: um ronco distante, mas que não diminuía de
intensidade. Pelo contrário. Kelly levantou a cabeça, deixou o binóculo de lado, abriu a boca,
tentou descobrir o que era.
Motores.
Motores de caminhão. OK, havia um estrada ali perto... não, a estrada principal ficava na
outra direção.
Um caminhão de suprimentos, talvez. Levando comida e correspondência para o campo.
Mais de um.
Kelly voltou para o alto da colina, apoiou-se em uma árvore e olhou para o lugar onde uma
estrada secundária se encontrava com a estrada que acompanhava o rio. Viu um movimento.
Apontou o binóculo naquela direção.
Um caminhão... dois... três... quatro... oh, meu Deus...
Estavam com os faróis acesos. Os fachos eram estreitos, boa parte dos faróis tinha sido
coberta com fita isolante. Isso queria dizer caminhões militares. O farol do segundo iluminou a
carroceria do primeiro. Duas filas de homens, sentados frente a frente.
Soldados.
Espere, Johnnie-boy. Não entre em pânico. Espere um pouco... Talvez...
Os caminhões fizeram a curva no sopé da Colina do Cobra. Um guarda em uma das torres
gritou alguma coisa. Luzes se acenderam no alojamento dos oficiais. Alguém saiu,
provavelmente o major, de ceroula, gritando alguma coisa.
O primeiro caminhão parou no portão. Um homem saltou e gritou para que abrissem. O outro
caminhão parou logo atrás. Os soldados desceram. Kelly começou a contar. Dez... vinte...
trinta... mais... não era o número que importava e sim o que começaram a fazer.
Teve que desviar os olhos. Que outras peças o destino lhe pregaria? Por que não acabar logo
com sua vida? Mas não era apenas em sua vida que o destino estava interessado. Não. Era
responsável, como sempre, pelas vidas de outras pessoas. Kelly ligou o transmissor de rádio.
— GRILO, aqui é COBRA, câmbio.
Nada.
— GRILO, aqui é COBRA, câmbio.
— O que houve? — perguntou Podulski.
Maxwell pegou o microfone.
— COBRA, aqui é GRILO. Qual é a sua mensagem? Câmbio.
— Abortar. Abortar. Abortar. Responda. Câmbio — foi tudo o que eles ouviram.
— Repita, COBRA. Repita. Câmbio.
— Abortar a missão — disse Kelly, mais alto do que era seguro. — Abortar. Abortar.
Abortar. Responda imediatamente.
A resposta demorou apenas alguns segundos.
— Recebemos sua mensagem para abortar. Missão abortada. Aguarde. Câmbio.
— Entendido, aguardando. Câmbio e desligo.

— O que foi? — perguntou o major Vinh.


— Temos informações de que os americanos vão atacar o campo — respondeu o capitão,
olhando para seus homens. Estavam se dispersando de forma organizada, metade se
encaminhando para a floresta, os outros tomando posição dentro do perímetro. — Camarada
major, tenho ordens para me encarregar da defesa até chegarem reforços. Deve levar o seu
hóspede russo para Hanói, onde ele estará seguro.
— Mas...
— As ordens foram dadas pessoalmente pelo general Giap, camarada major.
Isso foi suficiente. Vinh voltou para o alojamento para se vestir. Seu ajudante foi acordar o
motorista.
Kelly não podia fazer nada a não ser continuar observando. Quarenta e cinco soldados, talvez
mais. Era difícil contá-los, porque estavam sempre em movimento. Alguns cavavam ninhos de
metralhadora; outros patrulhavam a floresta. Sabia que agora estava em perigo, mas mesmo
assim esperou. Queria ter certeza de que fizera a coisa certa, de que não entrara em pânico, de
que não era um covarde.
Vinte e cinco contra cinquenta, de surpresa e com um plano, não é difícil. Vinte e cinco contra
cem, sem o elemento surpresa... é loucura. Fizera a coisa certa. Não havia motivo para
acrescentar mais vinte e cinco nomes à lista que mantinham em Washington. Sua consciência não
tinha mais lugar para esse tipo de erro.

— Helicópteros voltando, senhor — comunicou o operador de radar ao imediato.


— É cedo demais — murmurou o imediato.
— Que diabo, Dutch! O que...
— A missão foi abortada, Cas — explicou Maxwell, levantando os olhos do mapa.
— Mas por quê?
— Porque o Sr. Clark mandou abortar — respondeu Ritter. — Ele é o observador. É ele quem
manda. Não preciso lhe explicar, almirante. Ainda temos um homem lá, senhores. Não podemos
nos esquecer disso.
— Temos vinte homens lá.
— É verdade, senhor, mas apenas um deles vai sair esta noite. E isso só se tiver muita sorte.
Maxwell olhou para o capitão Franks.
— Vamos nos aproximar da praia o mais depressa que pudermos.
— Sim, senhor.

— Hanói? Por quê?


— Porque essas são as minhas ordens. — Vinh estava olhando para o despacho trazido pelo
capitão. — Então os americanos querem vir para... Pois que venham! Se pensam que vai ser
outro Song Tay, estão muito enganados!
A ideia de se ver no meio de um combate entre americanos e norte-vietnamitas não chegava a
empolgar o coronel Grishanov. Além disso, uma ida a Hanói, mesmo imprevista, também
significava uma visita à embaixada.
— Vou fazer as malas, major.
— Não demore! — advertiu o homenzinho, de cara feia, imaginando se aquela ordem para
que voltasse a Hanói representaria algum tipo de transgressão.
Podia ser pior. Grishanov juntou todas as suas notas e enfiou-as em uma bolsa. As notas, que
Vinh tivera a gentileza de devolver, eram uma síntese do o trabalho que fizera no campo.
Pretendia deixá-las com o general Rokossovskiy. Com as notas em mãos oficiais, começaria sua
campanha pelas vidas dos prisioneiros americanos. Matá-los seria um vento funesto*, pensou,
lembrando-se da máxima dos americanos.

*Referência à frase It is an ill wind that blows nobody any good, ou seja, É um vento
funesto que não traz nada de bom para ninguém. (N. do T.)

Podia ouvi-los. Ainda distantes, vencendo com dificuldade os obstáculos naturais,


provavelmente muito cansados, mas se aproximando implacavelmente.
— GRILO, aqui é COBRA. Câmbio.
— Estamos na escuta, COBRA.
— Tenho que sair daqui. Estão vindo na minha direção. Vou para oeste. Podem mandar um
helicóptero me buscar?
— Afirmativo. Tome cuidado, filho. — Era a voz de Maxwell, ainda preocupado.
— Estou indo agora. Câmbio e desligo. — Kelly colocou o transmissor no bolso e dirigiu-se
para o alto da colina. Chegando lá, parou um momento para olhar para baixo, comparando o que
via agora com o que tinha visto antes.
Sou muito rápido no escuro, dissera aos fuzileiros. Agora estava na hora de provar. Escolheu
uma brecha na vegetação e começou a descer a colina.
30

AGENTES DE VIAGEM

Todos podiam ver que alguma coisa dera errado. Os dois helicópteros pousaram no Ogden
menos de uma hora depois de partirem. Um deles foi imediatamente recolhido. O outro, pilotado
pelo aviador mais antigo, começou a ser reabastecido. O capitão Albie saltou no helicóptero
praticamente no momento em que tocou o convés e correu para a superestrutura, onde a equipe
de comando estava à sua espera. Ele percebeu que o Ogden e sua escolta estavam rumando para
o litoral. Os fuzileiros o seguiram em silêncio, de olhos baixos.
— O que aconteceu? — perguntou Albie.
— Clark cancelou a operação. Tudo o que sabemos é que abandonou a colina; ele disse que
havia inimigos nas proximidades. Vamos tentar resgatá-lo. Para onde acha que ele foi? —
perguntou Maxwell.
— Na certa para um local onde o helicóptero possa pegá-lo. Deixe ver o mapa.

Se tivesse tempo de pensar, Kelly teria refletido sobre a rapidez com que uma situação podia
passar de ótima para péssima. Mas não tinha. A sobrevivência era um jogo de tudo ou nada e no
momento exigia toda atenção. Certamente não era um jogo monótono e, com um pouco de sorte,
também não impossível de jogar. Os norte-vietnamitas não dispunham de tantos soldados assim
para defender o campo contra um ataque. Pelo menos, não o suficiente, pelo menos por
enquanto, para organizar suas forças em patrulhas defensivas, Se estavam preocupados com
outra missão do tipo Song Tay, manteriam o poder de fogo concentrado no campo. No máximo,
instalariam grupos de observação no alto das colinas próximas. O alto da Colina do Cobra já
ficara quinhentos metros para trás. Kelly teve que reduzir a marcha para recuperar o fôlego.
Estava ofegante mais por causa do medo do que do esforço, embora os dois fatores se
reforçassem mutuamente. Transpôs o cume de outra colina e parou para descansar na vertente
oposta. Ficando bem quieto, podia ouvir o som de vozes — de vozes, não de movimento. Ótimo.
Avaliara corretamente a situação. Provavelmente havia reforços a caminho, mas quando
chegassem já estaria longe.
Se o helicóptero conseguir pousar.
Pensamento agradável.
Já estive em situações piores, proclamou o Otimismo.
Quando?, perguntou, delicadamente, o Pessimismo.
A única coisa que fazia sentido no momento era evitar que os soldados norte-vietnamitas o
pegassem. Em seguida vinha a necessidade de encontrar alguma coisa parecida com uma
clareira para que o helicóptero pudesse resgatá-lo. Não era hora de entrar em pânico, mas
também não podia perder tempo. Quando o dia chegasse, haveria mais soldados ali e, se o
comandante fosse um sujeito competente, trataria de investigar se os inimigos tinham enviado
alguém para fazer o trabalho de reconhecimento. Tinha que sair dali antes do amanhecer, caso
contrário suas chances de escapar do país estariam sensivelmente reduzidas. Explorar o terreno.
Encontrar um bom lugar. Chamar o helicóptero. Dar o fora dali. Tinha quatro horas para isso,
antes do nascer do sol. O helicóptero poderia chegar em trinta minutos. Última forma. Devia ter
duas ou três horas para encontrar o lugar e fazer o chamado. Isso não parecia impossível.
Conhecia a região em torno do SINAL VERDE das fotografias de reconhecimento. Olhou em
volta, tentando se orientar. Devia haver uma clareira naquela direção, do outro lado da estrada.
Valia a pena tentar. Arrumou a bagagem, deixando em cima toda a munição de reserva. Mais do
que qualquer coisa, Kelly temia ser capturado, ficar à mercê de homens como FLOR DE
PLÁSTICO, não poder reagir, perder o controle da própria vida. Uma vozinha lhe dizia, no
fundo da mente, que era preferível morrer. Reagir, mesmo que fosse contra um inimigo
imensamente superior, não podia ser considerada uma forma de suicídio. OK. Isso estava
resolvido. Pôs-se a caminho.

— Não vai chamá-lo? — perguntou Maxwell.


— Não, agora não. — O capitão Albie sacudiu a cabeça. — Ele nos chamará quando estiver
pronto. O Sr. Clark deve estar muito ocupado no momento.
Irvin entrou no Centro de Informações de Combate.
— E Clark? — quis saber.
— Está tentando escapar — explicou Albie.
— Quer que eu vá buscá-lo com alguns dos meus homens no Resgate Um?
Que tentariam salvar Clark era assunto decidido. Os fuzileiros detestavam deixar um
companheiro para trás.
— A responsabilidade é minha, Irvin — declarou Albie.
— É melhor o senhor ficar para coordenar a operação — argumentou Irvin. — Qualquer um
pode disparar um rifle.
Maxwell, Podulski e Greer ficaram de fora da conversa, observando e escutando os dois
profissionais que sabiam o que estavam fazendo. O comandante dos fuzileiros se curvou ao bom
senso do suboficial mais mitigo.
— Leve o que for necessário. — Albie virou-se para Maxwell. — Senhor, vamos precisar do
Resgate Um.
O subchefe de operações aeronavais passou os fones a um oficial dos fuzileiros de apenas
vinte e oito anos; com eles, estava passando o comando tático da missão fracassada. Este ato
representava o fim da carreira de Dutch Maxwell.

Era menos assustador quando estava em movimento. O movimento dava a Kelly a sensação
de que podia controlar a própria vida. Era uma ilusão, ele sabia disso, mas seu corpo aceitava a
mensagem de forma positiva, de que melhorava as coisas. Chegou ao sopé da colina, onde a
vegetação era mais cerrada. Pronto. Do outro lado da estrada havia um espaço aberto, um prado
ou coisa parecida, talvez uma área periodicamente inundada pelo rio. Parecia perfeita. Tirou o
rádio do bolso.
— COBRA para GRILO. Câmbio.
— Aqui é GRILO. Pode falar. Câmbio.
A mensagem saiu aos arrancos:
— A oeste da minha colina, do outro lado da estrada, uns três quilômetros a oeste do
objetivo, em campo aberto. Estou nas proximidades. Mandem o helicóptero. Vou sinalizar com
minha lanterna. Câmbio.
Albie olhou para o mapa e depois para as fotos aéreas. Não parecia muito difícil. Espetou um
dedo no mapa e o suboficial de controle aéreo retransmitiu a informação. Albie esperou a
confirmação para voltar a falar com Clark.
— Entendido. Resgate Um estará aí em dois-zero minutos.
— OK, GRILO. — Apesar da estática, Albie percebeu o alívio na voz de Clark. — Estou
esperando. Câmbio e desligo.

Obrigado, meu Deus.


Kelly dirigiu-se para a estrada sem pressa, procurando não fazer barulho. Sua segunda
incursão no Vietnã do Norte não seria tão longa quanto a primeira. Desta vez, não teria que fugir
a nado e, com todas as injeções que recebera antes de iniciar a missão, talvez não pegasse
nenhuma doença da água daquele maldito rio. Não se sentia propriamente calmo, mas parte da
tensão desaparecera. Como se fosse de propósito, u chuva tinha apertado, abafando os ruídos e
diminuindo a visibilidade. As coisas estavam começando a melhorar. Talvez Deus, o destino ou
> Grande Abóbora tivessem finalmente resolvido ajudá-lo. Parou de novo a dez metros da
estrada, e olhou em torno. Nada. Decidiu esperar algum minutos para acalmar os nervos.
Quando atravessasse, estaria em campo aberto, o que era perigoso para um homem sozinho em
território inimigo. Suas mãos apertaram com força o rifle, o ursinho dos soldados, enquanto se
forçava a respirar profundamente, bem devagar, para normalizar as batidas do coração. Quando
se sentiu mais ou menos recuperado, aproximou-se da estrada.

Que estrada horrorosa, pensou Grishanov. Pior do que as da Rússia! O carro,


estranhamente, era francês. Ainda mais estranhamente, andava bem, ou teria andado, se não
fosse o motorista. O major Vinh devia estar dirigindo pessoalmente. Como oficial,
provavelmente sabia dirigir, mas por ser um tolo pretensioso, deixara a tarefa a cargo do
ordenança, e aquele pedaço de asno provavelmente era incapaz de dirigir algo mais complicado
que um carro de boi. O veículo derrapava na lama. O motorista também tinha dificuldade para
enxergar por causa da chuva. Encolhido no banco de trás, Grishanov abraçou-se à mochila e
fechou o olhos. Era melhor não olhar. Só serviria para deixá-lo nervoso. Era como voar com
mau tempo, pensou, algo que nenhum piloto gostava de fazer ainda mais quando outra pessoa
estava no comando.

Kelly chegou à margem da estrada e olhou para os dois lados antes de atravessar, atento ao
som do motor de um caminhão, que seria o maior perigo naquele momento. Nada. OK, faltavam
apenas cinco minutos para a chegada do helicóptero. Enquanto atravessava, olhou para a
esquerda, para a direção de onde podiam chegar reforços para as tropas que já guarneciam o
campo.
Droga!
Poucas vezes o excesso de concentração havia conspirado contra John Kelly, mas foi o que
aconteceu. O ruído do carro que se aproximava, deslizando na superfície lamacenta, era muito
parecido com o barulho da chuva, e só percebeu a diferença tarde demais. Quando o carro fez a
curva, ele estava no meio da estrada e foi iluminado em cheio pelos faróis; o motorista não
podia deixar de vê-lo. O que se seguiu foi automático.
Kelly levantou o rifle e disparou uma curta rajada na direção do motorista. No primeiro
instante, o carro continuou em frente e ele disparou uma segunda rajada no banco do carona. De
repente, o carro saiu da estrada e chocou-se com uma árvore. A sequência completa não pode
ter durado mais do que três segundos; o coração de Kelly começou a bater de novo após um
hiato assustadoramente longo. Correu na direção do carro. Quem seriam?
O motorista tinha atravessado o para-brisa, com duas balas na cabeça. Kelly abriu a porta do
carona. O passageiro era... o major! Também tinha sido atingido na cabeça. Embora o crânio
estivesse aberto do lado direito, o homem ainda estrebuchava. Puxou-o para fora e ia começar a
revistá-lo quando ouviu um gemido no interior do veículo. Olhou para o banco traseiro e
descobriu que havia um outro homem — o russo! — deitado no fundo do carro. Kelly puxou-o
para fora, também. O homem estava agarrado a uma mochila.
A reação foi tão automática quanto os tiros. Golpeou o russo na cabeça com a coronha do
rifle, para ter certeza de que ficaria inconsciente por um longo tempo, e virou-se para revirar os
bolsos do major, à procura de documentos. Guardou no bolso todos os papéis que encontrou. O
vietnamita estava olhando para ele com o olho que ainda funcionava.
— A vida é uma merda, não é? — disse Kelly, friamente, quando o olho perdeu o brilho. — E
o que vou fazer com você? — perguntou Kelly, virando-se para o russo desacordado. — Você é
o cara que estava interrogando os prisioneiros, não é? — Ajoelhou-se ao lado do oficial, abriu
a mochila e achou um grosso maço de papéis, o que de certa forma eru uma resposta.
Pense depressa, John... o helicóptero não vai demorar.
— Estou vendo a lanterna! — exclamou o co-piloto.
— Lá vamos nós. — O piloto estava dirigindo o Sikorsky o mais depressa que os motores
permitiam. A duzentos metros da clareira, puxou o manche para trás, levantando o nariz da
aeronave, o que eliminou o movimento para a frente com tanta eficiência que ele nivelou a
apenas alguns metros do feixe de luz infravermelha. O helicóptero ficou planando, fustigado
pelo vento, enquanto o piloto da Marinha lutava com os controles, sem acreditar no que os olhos
lhe diziam, linha visto alguém se aproximar, mas...
— Eu vi duas pessoas lá fora? — perguntou, pelo intercomunicador.
— Ande logo! — exclamou outra voz pelo circuito interno. — Eles já estão a bordo. Ande!
— Estou indo! — O piloto baixou o nariz do helicóptero, ganhou altitude e acelerou em
direção ao rio. Não tinham ido buscar uma pessoa só? Resolveu deixar para lá. Ainda tinha que
pilotar o helicóptero no caminho de volta. Eram cinquenta quilômetros até o mar e a segurança.
— Quem é esse cara? — quis saber Irvin.
— Um convidado — respondeu Kelly, gritando para se fazer ouvir por causa do barulho dos
motores. Sacudiu a cabeça. A explicação era complicada e teria que esperar. Irvin compreendeu
e ofereceu-lhe um cantil. Kelly esvaziou-o de um gole. Foi então que começou a tremer. Na
frente da tripulação do helicóptero e de cinco fuzileiros, Kelly tremia como se estivesse
enregelado, de braços cruzados, todo encolhido, segurando o rifle junto ao corpo até que Irvin
tomou-lhe a arma e removeu o pente. O sargento observou que o rifle tinha sido disparado. Mais
tarde descobriria por que e contra quem. Dois fuzileiros observavam o vale, prontos para atirar,
enquanto o helicóptero acompanhava os meandros do rio, a apenas trinta metros de altitude. A
viagem de volta transcorreu sem problemas, ao contrário do que esperavam, o que tinha sido
uma constante naquela noite. Todos queriam saber por que a operação fora cancelada. O homem
que recolheram conhecia a resposta. Mas quem era o outro? Aquilo não era um uniforme russo?
Dois fuzileiros se aproximaram do homem desfalecido. Um deles amarrou-lhe as mãos atrás das
costas. Um terceiro afivelou a mochila.
— Aqui é Resgate Um. Estamos a caminho. COBRA está a bordo. Câmbio.
— Resgate Um, aqui é GRILO. Entendido. Estamos esperando vocês. Câmbio e desligo. —
Albie levantou os olhos. — Terminou, senhores.
O mais triste era Podulski. A operação BUXO VERDE tinha sido ideia sua desde o início. Se
fosse bem-sucedida, tudo podia ser diferente. O resgate dos prisioneiros poderia abrir as portas
para a operação CORNETIM CERTO, poderia mudar o rumo da guerra... e a morte do filho não
teria sido em vão. Olhou para os outros. Teve vontade de perguntar se concordariam em tentar
de novo, mas se conteve. Fracasso.
Era uma palavra amarga e uma realidade ainda mais amarga para alguém que vinha servindo
à pátria adotiva por quase trinta anos.

— Teve um dia duro? — perguntou Frank Allen.


O tenente Mark Charon parecia estranhamente jovial para alguém que acabava de matar
alguém e passar por um rigoroso interrogatório. — Aquele idiota! Não precisava se matar
daquele jeito — disse Charon. — Acho que não gostava da ideia de passar uma boa temporada
em Falls Road — acrescentou o tenente da divisão de narcóticos, referindo-se à penitenciária
estadual de Maryland. Localizado no centro de Baltimore, o edifício era tão feio que os
presidiários o chamavam de Castelo de Frankenstein.
Allen não precisava dizer muita coisa. As normas a serem seguidas eram claras. Charon
entraria de licença administrativa por dez dias úteis enquanto o departamento se certificava de
que ele não se excedera no cumprimento do dever. Na prática, seriam duas semanas de férias, a
não ser pelo fato de que podia ser chamado para responder a novas perguntas. No caso, isso não
era provável, já que vários policiais tinham testemunhado o incidente, um deles bem de perto.
— Estou encarregado do caso, Mark — afirmou Allen. — Já fiz um exame superficial. Parece
que você vai sair limpo. Acha que fez alguma coisa que pudesse assustá-lo?
Charon sacudiu a cabeça.
— Não gritei nem nada parecido até ele estender a mão para o revólver. Pelo contrário.
Procurei acalmá-lo, entende? Mas a primeira ideia do cara foi tentar reagir. Eddie Morello
morreu porque era muito burro — observou o tenente, divertindo-se por dentro com o fato de
estar dizendo a mais pura verdade.
— Não sou eu que vou chorar a morte de um traficante. As coisas então melhorando, Mark.
— Como assim, Frank? — perguntou Charon, sentando-se e filando um cigarro.
— Hoje telefonaram de Pittsburgh. Parece que temos uma testemunha do crime do chafariz
que Em e Tom estão investigando.
— Não brinca! Isso é uma ótima notícia. Quem é a pessoa?
— Pelo jeito como o cara falou, deve ser uma garota. Ela também estava presente quando
Waters foi morta. Contou o que sabia a um padre e ele está tentando convencê-la a se abrir com
a polícia.
— Muito bom — observou Charon, escondendo o frio que estava sentindo na espinha tão bem
quanto ocultara sua satisfação depois de seu primeiro contrato de assassinato. Mais uma
tagarela para apagar. Com sorte, seria a última.

O helicóptero pousou suavemente no convés do USS Ogden. Assim que parou, os tripulantes
do navio o prenderam no lugar com correntes. O fuzileiros foram os primeiros a saltar,
aliviados por estarem vivos, ma frustrados com o cancelamento da missão. Àquela hora, deviam
estar chegando com os prisioneiros resgatados. Tinham aguardado aquele momento como uma
equipe esportiva poderia antecipar as alegrias do vestiário após uma grande vitória. Mas não
era o que tinha acontecido Foram derrotados e ainda não sabiam por quê.
Irvin e outro fuzileiro desembarcaram carregando um corpo, segui dos de perto por Kelly. O
piloto do helicóptero arregalou os olhos. Havia dois corpos na clareira. Mais do que surpresa,
porém, sentiu alívio poi concluir com sucesso mais uma operação de resgate no Vietnã do Norte
— O que aconteceu? — perguntou Maxwell, no momento em que < < navio mudou de rumo,
dirigindo-se para leste.
— Vamos levar esse cara para dentro e trancafiá-lo! — exclamou Ritter.
— Ele está inconsciente, senhor.
— Então mandem chamar um médico — ordenou Ritter.
Escolheram um dos muitos alojamentos de tropas vazios do Ogden para se reunir com Kelly.
Ele teve permissão para lavar o rosto, nada mais. Um oficial médico examinou o russo e
declarou que ele está atordoado mas não tinha nenhum ferimento sério; a reação das pupilas era
normal, prova de que não houvera concussão. Dois fuzileiros foram encarregados de vigiá-lo.
— Eram quatro caminhões — contou Kelly. — Chegaram em comboio e os soldados foram
logo desembarcando e começando a cavar trincheiras. Eram mais de cinquenta. Tive que
cancelar o ataque.
Greer e Ritter trocaram um olhar. Não podia ser coincidência. Kelly olhou para Maxwell.
— Sinto muito, senhor. — Fez uma pausa. — Naquelas condições seria impossível executar a
missão. Tive que deixar a colina porque ele estavam instalando postos de observação fora do
campo. Mesmo que conseguíssemos passar por eles...
— Nós tínhamos helicópteros de ataque, lembra-se? — rosnou Podulski.
— Vá com calma, Cas — advertiu James Greer.
Kelly ficou olhando para o almirante por um longo tempo antes de responder à acusação.
— Almirante, não havia a menor possibilidade de conseguirmos levar a operação a bom
termo. Fui na frente para avaliar a situação, certo? Se tivéssemos mais efetivos, seria diferente.
O grupo que atacou Song Tay teria conseguido. Não seria fácil, mas eles conseguiriam. Nós, não
— acrescentou, sacudindo a cabeça.
— Tem certeza? — perguntou Maxwell.
Kelly assentiu.
— Certeza absoluta, senhor.
— Obrigado, Sr. Clark — agradeceu o capitão Albie, sabendo que o que acabara de ouvir era
verdade.
Kelly baixou os olhos, ainda tenso com o que acontecera.
— Está certo — disse Ritter, depois de um momento. — E o que nos diz do nosso convidado,
Sr. Clark?
— Fiz uma bobagem — admitiu Kelly, explicando que só dera pela presença do carro no
último momento. — Matei o motorista e o comandante do campo. Pelo menos, parecia ser o
comandante. Ele e o russo estavam levando um monte de papéis. — Enfiou a mão no bolso e
tirou os documentos. — Achei que talvez fossem úteis para nós.
— Alguns desses papéis estão em russo — anunciou Irvin.
— Deixe ver — pediu Ritter. — Eu sei russo.
— Precisamos também de alguém que saiba vietnamita.
— Não há problema — disse Albie. — Irvin, mande chamar o Sargento Chalmers.
— Sim, senhor.
Ritter e Greer foram até uma mesa de canto.
— Minha nossa! — exclamou Ritter, folheando as anotações. — Esse cara sabe de muita
coisa... Rokossovskiy? Ele está em Hanói? Ah, encontrei um resumo.
O sargento Chalmers, que trabalhava para informações, começou a ler os documentos que
estavam no bolso do major Vinh. Os outros aguardaram pacientemente.

— Onde estou? — perguntou Grishanov, em russo. Tentou levar a mão à venda, mas
descobriu que estava amarrado.
— Como está se sentindo? — replicou uma voz, na mesma língua.
— O carro bateu em alguma coisa... — A voz não disse nada. — Onde estou? — insistiu.
— Está a bordo do USS Ogden, coronel — respondeu Ritter, em inglês.
O corpo amarrado à cama se retesou e o prisioneiro declarou, em russo, que não sabia falar
inglês.
— Então como é que algumas de suas anotações estão em inglês?
— Sou um oficial soviético. Não tem o direito...
— Tanto direito quanto tem de interrogar prisioneiros de guerra americanos e conspirar para
matá-los, camarada coronel.
— O que quer dizer com isso?
— O seu amigo major Vinh está morto, mas ficamos com seus despachos. Tinha acabado de
interrogar os prisioneiros, certo? E os vietnamitas estavam se preparando para matá-los. Espera
que eu acredite que não sabia disso?
O palavrão que Ritter ouviu era particularmente ofensivo, mas, curiosamente, a surpresa do
russo lhe pareceu genuína. O homem estava chocado demais para dissimular. Virou-se para
Greer.
— Tenho mais alguns papéis para ler. Quer fazer companhia a esse cara?

A única coisa boa que aconteceu a Kelly naquela noite foi que, afinal de contas, o capitão
Franks não tinha se desfeito das rações de aviador. Terminada a reunião, foi para a sua cabine e
bebeu três doses em rápida sucessão. Passada a tensão, o cansaço tomou conta do rapaz. Os três
drinques o deixaram meio tonto e ele adormeceu sem nem ao menos tomar um banho.
Foi decidido que o Ogden se manteria no rumo previsto, dirigindo-se para Subic Bay a uma
velocidade de vinte nós. O grande navio anfíbio parecia um cemitério. A tripulação, preparada
para uma missão importante e cheia de emoções, não disfarçava a sua frustração. Os turnos se
sucediam, o navio continuava a funcionar como antes, mas o único barulho que se ouvia nos
refeitórios era o dos pratos e talheres. Ninguém conversava, ninguém contava piadas. Os mais
deprimidos eram os membros da equipe médica convocada para cuidar dos prisioneiros. Sem
ninguém para tratar e nada para fazer, limitavam-se a vagar pelo navio. Antes do meio-dia, os
helicópteros partiram. Os Cobras foram para Da Nang e as aeronaves de resgate voltaram para
o porta-aviões que lhes servia de base. O pessoal de informações voltou às tarefas de rotina,
monitorando as transmissões de rádio do inimigo.

Kelly só acordou às seis da tarde. Após tomar um banho, desceu para falar com os fuzileiros.
Ele lhes devia uma explicação. Alguém devia. Estavam no mesmo lugar. O modelo em escala do
campo também. — Eu estive aqui em cima — afirmou, mostrando o elástico com dois olhos
pintados.
— Quantos deles havia?
— Quatro caminhões cheios. Chegaram por esta estrada. Pararam aqui — explicou Kelly. —
Começaram a cavar trincheiras aqui e aqui. Mandaram uma patrulha escalar minha colina. Antes
de me afastar, vi outro grupo se dirigindo nessa direção.
— Jesus! — exclamou um líder de pelotão. — Exato no caminho em que devíamos chegar.
— Isso mesmo — confirmou Kelly. — Não dava para continuar.
— Por que eles mandaram reforços? — quis saber um cabo.
— Não é o meu departamento.
— Obrigado, Cobra — disse o líder do pelotão, levantando os olhos do modelo que em
breve seria desmanchado. — Foi muito azar, não foi?
Kelly fez que sim com a cabeça.
— Sinto muito, amigo. Gostaria que tivesse sido diferente.
— Sr. Clark, minha mulher está esperando um filho para daqui a dois meses. Se não fosse
pelo senhor... — O fuzileiro apontou para o modelo e fez um gesto sugestivo.
— Obrigado — disse Kelly, aceitando o cumprimento.
— Sr. Clark? — interrompeu um marinheiro, colocando a cabeça para dentro do
compartimento. — Os almirantes estão à sua procura. Lá em cima, no território dos oficiais,
senhor.

— Doutor Rosen — disse Sam, tirando o fone do gancho.


— Olá, doutor. Aqui é o sargento Douglas.
— O que posso fazer pelo senhor?
— Estamos tentando localizar seu amigo Kelly. O telefone dele não responde. Tem alguma
ideia de onde possa estar?
— Há muito tempo que não o vejo — respondeu o médico, cautelosamente.
— Pode nos ajudar de alguma forma?
— Vou tentar. O que querem com ele? — acrescentou Sam, sabendo que estava fazendo uma
pergunta indiscreta e imaginando qual seria a resposta.
— Eu... hum... eu não posso dizer. Desculpe. Espero que compreenda.
— Ahhhh. Está bem. Vou perguntar a alguns conhecidos se o viram recentemente.
— Está se sentindo melhor? — perguntou Ritter, antes de mais nada.
— Um pouco melhor — admitiu Kelly. — Quem é esse russo?
— Clark, você pode ter feito uma grande descoberta — afirmou Ritter, apontando para a
mesa coalhada de papéis.
— Eles estão planejando matar os prisioneiros — declarou Greer.
— Quem? Os russos? — perguntou Kelly.
— Não, os vietnamitas, Os russos querem os prisioneiros vivos. O sujeito que você capturou
pretendia levá-los para a Rússia — afirmou Ritter, mostrando uma folha de papel. — Aqui está
a carta que ele escreveu propondo isso.
— É uma boa ou má notícia?

Os ruídos do lado de fora tinham mudado, pensou Zacharias. Eram mais frequentes, também.
Alguém gritava ordens, embora não fosse possível dizer com que propósito. Pela primeira vez
naquele mês, Grishanov não aparecera para visitá-lo. A solidão que sentia se tornou ainda mais
aguda sua única companhia era a consciência de que oferecera à União Soviética um curso de
pós-graduação em defesa aérea continental. Claro que tinha sido sem querer. Na ocasião, não
tinha a menor ideia do que estava fazendo. Isso, porém, não lhe servia de consolo. O russo
lançara a isca r O coronel Robin Zacharias, da Força Aérea dos Estados Unidos, caíra
direitinho, enganado pela bondade e simpatia de um ateu... e pela bebida Estupidez e pecado,
uma combinação fatal de fraquezas humanas...
Não lhe restavam nem lágrimas para extravasar a vergonha que sentia, ali sentado no chão da
cela, olhando para o concreto áspero e sujo onde apoiava os pés descalços. Tinha traído o seu
Deus e a sua pátria pensou Zacharias, no momento em que alguém introduziu a refeição da noite
pela fenda na base da porta, Uma sopa rala de abóbora, sem tempero e um pouco de arroz
bichado. Continuou onde estava.

Grishanov sabia que era um homem morto, jamais o devolveriam. Duvidava que admitissem
tê-lo capturado. Simplesmente desapareceria como outros russos no Vietnã tinham
desaparecido, alguns nas bases de mísseis terra-ar, alguns fazendo outros serviços para aqueles
ingratos filhos da mãe. Por que estava sendo tão bem alimentado? Tinha que ser um navio
grande, mas era a primeira vez que viajava de navio. Mesmo a comida de boa qualidade era
difícil de engolir; jurou a si mesmo que não daria um vexame, sucumbindo à mistura de medo e
enjoo do mar. Era um piloto de caça, um bom piloto, que desafiara várias vezes a morte nos
controles de uma aeronave avariada. Lembrava-se de que na ocasião pensara na forma como
dariam a notícia a sua Marina. Era no que estava pensando no momento. Mandariam uma carta?
Os outros pilotos dariam amparo a sua família? A pensão seria suficiente?

— Está brincando?
— Sr. Clark, o mundo pode ser um lugar muito complicado. Acha mesmo que os russos
gostam deles?
— Se não gostassem, por que lhes ofereceriam armas e treinamento militar?
Ritter apagou o seu Winston.
— Nós oferecemos essas coisas a muitos países do mundo. Não são todos flor que se cheire,
mas são nossos aliados. A mesma coisa acontece com os russos, talvez em escala menor, mas
essencialmente a mesma coisa. Seja como for, esse tal de Grishanov estava fazendo o que podia
para ajudar nossos homens. — Ritter apontou para um papel. — Ele pediu que melhorassem a
alimentação... e chegou a requisitar um médico!
— O que vamos fazer com ele? — perguntou o almirante Podulski.
— Isso, senhores, é nosso departamento — afirmou Ritter, olhando para Greer, que
concordou com a cabeça.
— Um momento — protestou Kelly. — Ele estava extraindo informações dos nossos homens!
— E daí? — perguntou Ritter. — Era o seu trabalho.
— Estamos nos afastando do assunto — interveio Maxwell.
James Greer serviu-se de um pouco de café.
— Eu sei. Temos que agir depressa.
— E finalmente... — Ritter espetou o dedo em uma tradução da mensagem encontrada no
bolso do vietnamita. — Sabemos que alguém nos traiu. Vamos ter que encontrar o filho da puta.
Kelly ainda estava muito tonto de sono para acompanhar o diálogo, quanto mais para
perceber que estava envolvido no caso até o pescoço.

— Onde está John?


Sandy O'Toole levantou os olhos do relatório que estava preparando.
Seu turno já tinha quase terminado e a pergunta do professor Rosen trouxe à tona uma
preocupação que vinha tentando ignorar há mais de uma semana.
— Está fora do país. Por quê?
— Hoje recebi um telefonema da polícia. Estão procurando por ele.
Oh, meu Deus!
— Por quê?
— Não quiseram me contar. — Rosen olhou em torno. Estavam sozinhos na sala das
enfermeiras. — Sandy, eu sei que ele andou fazendo algumas coisas... quero dizer, acho que
andou fazendo, mas...
— Também não tenho notícias dele. O que devemos fazer? Rosen fez uma careta e desviou os
olhos antes de responder:
— Como bons cidadãos, deveríamos cooperar com a polícia... mas não é o que vamos fazer,
não é? Tem alguma ideia de onde ele está?
— Ele me disse, mas me pediu para não... está fazendo alguma coisa para o governo... lá no...
— Sandy não conseguiu terminar a frase, não conseguiu dizer a palavra. — Ele me deu um
número de telefone. Ainda não o usei.
— Talvez tenha chegado a hora de usá-lo — recomendou Sam, à guisa de despedida.
Não estava certo. John saíra do país em uma missão importante e na volta tinha que enfrentar
uma investigação policial. Para a enfermeira, a vida não podia cometer uma injustiça maior.
Mas ela estava errada.

— Pittsburgh?
— Foi o que ele disse — confirmou Henry.
— É conveniente ter um homem infiltrado na polícia — disse Piaggi, com admiração. —
Muito profissional.
— Ele disse que precisamos agir depressa. A garota ainda não contou muita coisa.
— Ela viu tudo? — Piaggi não teve que acrescentar que não achava aquilo muito
profissional. — Henry, manter as meninas na linha é uma coisa. Transformá-las em testemunhas
é uma coisa bem diferente.
— Tony, vou cuidar do assunto, mas precisamos agir sem perda de tempo, OK?
Henry Tucker tinha a impressão de que estava na reta final e de que a segurança e a
prosperidade o aguardavam na linha de chegada. O fato de que mais cinco pessoas tinham que
morrer, para que atravessasse aquela linha, lhe parecia secundário diante do que já fizera para
ganhar a corrida.
— Continue.
— O sobrenome é Brown. O nome dela é Doris. O nome do pai é Raymond.
— Tem certeza?
— As garotas conversam entre si. Consegui até o endereço. Você tem conhecimentos. Vamos
precisar deles.
Piaggi anotou as informações em um pedaço de papel. — Está bem. Meus amigos em
Filadélfia podem cuidar do caso. Mas não vai ser barato, Henry.
— Não esperava que fosse.

O convés de voo parecia estranhamente vazio. As quatro aeronaves temporariamente cedidas


ao Ogden haviam partido e o convés assumira novamente o papel extraoficial de praça
principal do navio. As estrelas eram as mesmas de antes, agora que o tempo melhorara, e uma
nesga de lua em quarto minguante era visível, quase a pino, naquela hora da madrugada. Os
marinheiros que não estavam de serviço já tinham ido dormir há muito tempo. Entretanto, para
Kelly e os fuzileiros, o ciclo de dia e noite fora perturbado pela mudança de fuso horário, e as
paredes de aço inoxidável dos alojamentos eram excessivamente restritivas para os seus
pensamentos. A esteira do navio tinha uma curioso brilho verde, por causa do fitoplancto
revolvido pelos hélices, que deixava no mar uma longa trilha. Meia dúzia de homens se
debruçavam na amurada de popa, olhando em silêncio para o mar.
— Podia ter sido muito pior, você sabe.
Kelly se virou. Era Irvin. Tinha que ser.
— Também podia ter sido muito melhor, artilheiro.
— Não foi por acaso que eles receberam reforços, foi?
— Não sei o que devo dizer. Satisfeito com a resposta?
— Sim, senhor. Jesus disse: "Perdoai-os, Senhor, porque eles não sabem o que fazem.”
— E se eles souberem?
Irvin deu um muxoxo.
— Acho que sabe o que eu penso. Afinal, podiam ter matado todos nós.
— Artilheiro, só desta vez, só uma vez, eu gostaria de ter acabado uma coisa que comecei —
disse Kelly.
— Entendo. — Irvin pensou um pouco e acrescentou: — Por que alguém faria uma coisa
dessas?
Um vulto escuro se aproximou. Era o Newport News, uma silhueta graciosa, a apenas dois
quilômetros de distância, claramente visível a despeito da ausência de luzes. Ele também estava
deixando a frente de batalha, o último dos grandes cruzadores da Marinha, um animal pré-
histórico, voltando para casa depois do mesmo fracasso que Kelly e Irvin haviam testemunhado.

— Sete-um-três-um — atendeu a voz feminina.


— Alô. Posso falar com o general James Greer? — disse Sandy para a secretária.
— Ele não está.
— Sabe quando vai voltar?
— Sinto muito, mas não sei.
— É muito importante.
— Pode me dizer o seu nome?
— De onde fala?
— Escritório do almirante Greer.
— Onde fica isso? No Pentágono?
— A senhora não sabe?
Sandy não sabia e a pergunta deixou-a atrapalhada.
— Por favor, preciso de ajuda.
— Quem está falando?
— Por favor, preciso saber onde você está.
— Não posso lhe dizer — replicou a secretária, sentindo-se como uma das muralhas que
protegiam a segurança nacional dos Estados Unidos.
— Está falando do Pentágono?
A isso, pelo menos, podia responder.
— Não, não estou.
E agora?, pensou Sandy. Respirou fundo.
— Um amigo meu me deu este número. Ele trabalha para o almirante Greer. Disse que eu
podia telefonar para saber notícias dele.
— Não estou entendendo.
— Escute aqui. Eu sei que ele foi para o Vietnã!
— Minha senhora, eu não posso dizer onde o almirante Greer está no momento! — Quem
será que violou a segurança?, pensou. Teria que fazer um relatório a respeito.
— Não estou falando do almirante! Estou falando de John!
Calma. Desse jeito, você não vai ajudar ninguém.
— John de quê? — perguntou a secretária.
Respire fundo. Engula em seco.
— Por favor, dê um recado ao almirante Greer. Aqui é Sandy. Quero saber notícias de John.
Está bem? Ele vai entender. É muito importante — a enfermeira deu o número de casa e do
trabalho.
— Está bem. Vou fazer o possível — disse a secretária, antes de desligar.
Sandy teve vontade de gritar. Então o almirante também tinha ido para o Vietnã! Melhor
assim. Ele estava perto de John. A secretária não deixaria de dar o recado. Pessoas como ela,
quando você dizia é muito importante, não tinham coragem de se omitir. Não precisava se
preocupar tanto. Onde John estava, a polícia jamais conseguiria pegá-lo. Mesmo assim, durante
o resto do dia, e durante todo o dia seguinte, o ponteiro dos segundos do relógio de pulso mal
parecia se mover.

O USS Ogden entrou na base naval de Subic Bay no início da tarde. A manobra de atracação
pareceu levar um tempo enorme no úmido calor tropical. Finalmente, cabos foram jogados e
uma prancha instalada no costado do navio. Um civil subiu a bordo antes mesmo que a manobra
tivesse sido completada. Pouco depois, os fuzileiros entraram em um ônibus que os levaria a
Cubi Point. Os tripulantes do navio se despediram deles. Alguns apertos de mão foram trocados
e todos queriam guardar uma boa recordação da experiência, mas "valeu a tentativa" não
parecia adequado e "boa sorte" seria quase ofensivo. O C-141 estava esperando os fuzileiros
para levá-los para casa. O Sr. Clark, porém, não se encontrava entre eles.
— John, parece que você tem uma amiga que está preocupada — disse Greer, passando a
mensagem ao rapaz. Era o mais pessoal dos despachos que o funcionário da CIA trouxera de
Manila. Kelly examinou-o enquanto os três almirantes liam os seus.
— Tenho tempo para ligar para ela, senhor? Gostaria de tranquilizá-la.
— Deu a ela o telefone do meu escritório? — perguntou Greer, com um leve tom de
contrariedade na voz.
— O marido dela morreu na guerra, senhor. Ela se preocupa — explicou Kelly.
— Está bem. — Greer deixou de lado seus problemas por um momento. — Vou pedir que
Barbara avise a ela que você está bem.
As outras mensagens não foram muito bem recebidas. Os almirantes Maxwell e Podulski
estavam sendo chamados a Washington para se explicar sobre o fracasso da operação BUXO
VERDE. Ritter e Greer tinham ordens semelhantes, mas pelo menos guardavam um ás na manga.
O K-135 que os levaria aos Estados Unidos estava à espera na base aérea de Clark. Um
pequeno avião os transportaria para o outro lado das montanhas. A melhor notícia no momento
dizia respeito ao ciclo de sono dos americanos. A viagem de volta à Costa Leste dos Estados
Unidos os deixaria em casa na hora certa.
O coronel Grishanov saiu para a luz do dia junto com os oficiais. Estava usando um uniforme
emprestado pelo capitão Franks — tinham mais ou menos o mesmo tamanho — e era escoltado
por Maxwell e Podulski. Kolya não tinha nenhuma esperança de conseguir escapar, não em uma
base naval americana em solo de um aliado dos americanos. Ritter conversava com ele
baixinho, em russo, quando os seis homens entraram nos carros. Dez minutos depois, subiram a
bordo de um bimotor Beechcraft C-12 da Força Aérea. Meia hora mais tarde, a aeronave taxiou
ao lado de um jato da Boeing, que decolou menos de uma hora depois de deixarem o Ogden.
Kelly escolheu um assento bem confortável, afivelou o cinto e estava dormindo antes que o
avião de transporte sem janelas começasse a rolar na pista. A parada seguinte, pelo que lhe
haviam informado, seria em Hickam, no Havaí, mas não pretendia estar acordado para ver.
31

O CAÇADOR VOLTA PARA CASA

O voo não foi tão repousante para os outros. Greer conseguira responder u algumas
mensagens antes da partida, mas ele e Ritter eram os mais atarefados. A aeronave — que a
Força Aérea emprestara para a missão, sem fazer perguntas — pertencia à base aérea de
Andrews e era usada frequentemente nas viagens dos congressistas. Isso queria dizer que havia
um bom sortimento de bebidas alcoólicas abordo. Embora os americanos estivessem bebendo
café puro, as xícaras do russo eram temperadas com conhaque, apenas um pouquinho, a
princípio, mas depois em doses cada vez maiores.
Ritter se encarregou da maior parte das perguntas. Sua primeira tarefa era explicar a
Grishanov que não pretendiam matá-lo. Sim, eles trabalhavam para a CIA. Sim, Ritter era um
agente — um espião, se preferisse — com uma grande experiência atrás da Cortina de Ferro —
desculpe-me por espionar os povos amantes da paz do bloco socialista, mas esse é o meu
trabalho, como você, Kolya, importa-se se o chamar de Kolya?, tem o seu trabalho. Agora, por
favor, coronel, pode nos fornecer os nomes dos nossos homens? (Já tinham encontrado a lista
dos nomes entre as anotações de Grishanov.) Seus amigos, você diz? Sim, estamos gratos pelos
seus esforços ara mantê-los vivos. Eles todos têm famílias, você sabe, famílias como a lu. Mais
café, coronel? Sim, esse café é ótimo, não é? É claro que vamos mandá-lo para casa, para a sua
família. O que acha que somos, bárbaros? Grishanov teve o bom senso de não responder à
última pergunta É uma merda, pensou Greer, mas Bob é bom nesse tipo de coisa. Não tratava de
coragem ou patriotismo, mas de humanidade. Grishanov devia ser um tipo durão, provavelmente
um piloto de primeira — que ia que não podiam pedir a ajuda de Maxwell e, especialmente, de
Podulski! —, mas, no fundo, era humano e seu caráter trabalhava contra ele. Não queria que os
prisioneiros americanos morressem. Isso, mais u tensão da captura, mais a surpresa do
tratamento cordial, mais o conhaque, tudo conspirava para destravar sua língua. Ainda mais
porque Ritter não estava falando de coisas que colocassem em risco a segurança nacional do
Estado soviético. Ora, coronel, eu sei que não vai nos revelar nenhum segredo. Por que perderia
tempo perguntando?
— Seu homem matou Vinh, não foi? — perguntou o russo, a meio caminho do Pacífico.
— É verdade. Mas foi um acidente. Ele...
O russo interrompeu Ritter com um aceno de mão.
— Fez muito bem. Ele era um nekulturny, um pequeno filho de uma puta. Queria matar aqueles
homens, assassiná-los friamente — acrescentou Kolya, com a ajuda de seis conhaques.
— Pois é, coronel, é exatamente isso que estamos tentando evitar.

— Neurocirurgia — atendeu a enfermeira.


— Eu queria falar com Sandra O'Toole.
— Um momento, por favor. Sandy?
A enfermeira que estava de serviço no balcão passou o telefone à enfermeira-chefe.
— Aqui é Sandra O'Toole.
— Srta. O'Toole, aqui é Barbara, do escritório do almirante Greer.
— Sim?
— O almirante Greer me pediu para lhe dizer que John está bem e logo estará em casa.
Sandy virou a cabeça para um lado onde não havia ninguém para ver suas lágrimas de alívio.
Um alívio misturado com preocupação, mas mesmo assim um alívio.
— Pode me dizer quando ele vai chegar?
— Amanhã. É tudo que sei.
— Obrigada.
— Disponha — disse a secretária, antes de desligar.
Já é alguma coisa. Imaginou o que aconteceria quando John soubesse que a polícia estava
querendo falar com ele. Pelo menos, estava vivo. Em mais do que Tim conseguira.

O pouso brusco em Hickam — o piloto estava exausto — acordou Kelly. Um sargento da


Força Aérea sacudiu-o amistosamente enquanto a aeronave taxiava em direção a uma parte
remota da base para se reabastecer e passar por uma revisão. Kelly aproveitou o tempo para
saltar e dar uma volta. Fazia calor, mas não era o calor opressivo do Vietnã. Estavam em solo
americano e as coisas eram diferentes...
Claro que sim...
Só esta vez — lembrou-se de ter dito. Sim, vou salvar as outras garotas do mesmo jeito que
salvei Doris. Não deve ser muito difícil. O próximo que vou pegar é Burt. Quero ter uma
conversa com ele. Pode ser até que eu deixe o cara viver. Não posso salvar o mundo inteiro,
mas... por Deus, vou salvar uma parte dele!
Encontrou um telefone na sala dos visitantes e discou um número.
— Alô? — disse a voz sonolenta, a oito mil quilômetros de distância.
— Olá, Sandy. Sou eu, John.
— John! Onde você está?
— Acreditaria se eu dissesse que estou no Havaí?
— Você está bem?
— Um pouco cansado, mas em perfeita forma. Nenhum furo de bala — afirmou, com um
sorriso. Só de ouvir a voz dela sentiu-se com o dia ganho. Mas não por muito tempo.
— John, estamos com um problema.
O sargento da recepção viu a expressão do visitante mudar. Então ele se virou de costas e
tornou-se menos interessante.
— Certo. Deve ter sido Doris — disse Kelly. — Além dos médicos, é a única que sabe e...
— Não fomos nós — assegurou-lhe Sandy.
— Eu sei. Acho melhor você telefonar para Doris e... e...
— Dizer para ela tomar cuidado?
— Isso mesmo!
Kelly tentou acalmar-se e quase conseguiu.
— Estarei aí dentro de... oh, nove ou dez horas. Vai estar no trabalho?
— É meu dia de folga.
— Ótimo, Sandy. Até logo.
— John! — chamou a enfermeira.
— O que é?
— Eu quero... eu quero... — não concluiu a frase.
Kelly sorriu novamente.
— Podemos conversar quando eu chegar aí, querida.
Talvez não estivesse simplesmente indo para casa. Talvez estivesse indo encontrar alguém.
Kelly recapitulou rapidamente tudo o que fizera. Ainda conservava no barco a pistola
adaptada e outras armas, mas tinha jogado fora todas as roupas que usara nos trabalhos
noturnos: sapatos, meias, calças, camisas, até mesmo a roupa de baixo. Não deixara nenhuma
prova de sua presença. A polícia podia estar interessada em falar com ele. Ótimo. Não era
obrigado a falar com a polícia. Era uma das vantagens da Constituição americana, pensou Kelly,
enquanto se encaminhava de volta para o avião.
Kelly sentou-se ao lado dos oficiais da CIA enquanto a nova tripulação ligava os motores.
Observou que o russo estava roncando.
Ritter riu.
— Ele vai acordar com uma ressaca dos diabos.
— O que foi que vocês deram a ele?
— Começamos com conhaque de primeira e acabamos com uma droga da Califórnia.
Conhaque me deixa imprestável no dia seguinte — acrescentou Ritter, com voz cansada, quando
o KC-135 começou a rolar pela pista. Estava bebendo um martíni, agora que o prisioneiro não
podia mais responder perguntas.
— Então, qual é a história? — perguntou Kelly.
Ritter contou o que sabia. O campo tinha sido realmente criado para agradar aos russos, mas
parecia que os vietnamitas não tinham sabido usá-lo e agora estavam pensando em eliminá-lo
juntamente com os prisioneiros.
— E isso por causa do ataque?
Oh, meu Deus!
— Correto. Mas fique frio, Clark. Você nos trouxe um russo que pode ser muito útil. Sabe de
uma coisa, Sr. Clark? — disse Ritter, com um sorriso. — Gosto do seu jeito.
— Como assim?
— Mostrou um grande espírito de iniciativa, ao trazer o russo. E a forma como cancelou a
missão sem hesitar revela um admirável bom senso.
— Escute, eu não... quero dizer, eu não podia...
— Tomou a decisão correta, o que não era fácil, nas circunstâncias. Ainda está interessado
em servir ao seu país? — perguntou Ritter, com um sorriso estimulado pelo álcool.

Sandy acordou às seis e meia da manhã, o que era tarde para ela. Pegou o jornal, fez café e
decidiu comer apenas uma torrada, olhando para o relógio da parede da cozinha e pensando que
ainda era muito cedo para ligar para Pittsburgh.
A manchete da primeira página falava de um tiroteio ligado às drogas.
Um policial acabara matando um traficante. Bem feito, pensou. Seis quilos de heroína "pura",
dizia a notícia. Era muita coisa. Imaginou se seria o mesmo bando que... não, Doris tinha dito
que o chefe daquela quadrilha era um negro. De qualquer forma, mais um traficante passara
desta para melhor. Olhou de novo para o relógio. Ainda era cedo para telefonar. Foi até a sala
de estar e ligou a televisão. Já estava começando a fazer calor. Tinha ido se deitar muito tarde
na véspera e custou para voltar a dormir depois da conversa com John. Tentou assistir ao Today
Show e seus olhos foram ficando pesados...
Quando tornou a abrir os olhos, já passava das dez. Aborrecida consigo mesma, sacudiu a
cabeça e voltou para a cozinha. O número de Doris estava ao lado do telefone. Discou e ouviu o
telefone tocar... quatro... seis... dez vezes, sem resposta. Droga. Será que ela saiu para fazer
compras? Para ver a Dra. Bryant? Tentaria de novo dali a uma hora. Enquanto isso, ensaiaria o
que dizer. O que estava fazendo podia ser considerado ilegal? Obstrução da justiça, talvez? Até
que ponto estava envolvida? O pensamento foi como uma surpresa desagradável. Não podia
negar que estivesse envolvida. Ajudara a salvar aquela menina de uma vida perigosa e não
podia parar agora. Diria a Doris para não denunciar as pessoas que a tinham ajudado e para
tomar muito, muito cuidado. Por favor.

O reverendo Meyer estava atrasado. Recebera um telefonema na casa paroquial e na sua


profissão não ficava bem dizer que tinha que desligar por causa de um compromisso. Ao se
aproximar da casa dos Browns, observou que um caminhão de entrega de flores subia a colina.
O caminhão dobrou à direita e desapareceu no momento em que o reverendo estacionava na
vaga deixada por ele. Estava um pouco preocupado. Tinha que convencer Doris a conversar
com seu filho. Peter lhe assegurara que “criam extremamente cautelosos. Sim, papai, podemos
protegê-la. Tudo o que tinha a fazer agora era dar o recado a uma jovem assustada e a um pui
cujo amor sobrevivera ao mais rigoroso dos testes. Já tivera que enfrentar problemas mais
delicados, pensou o ministro. Como evitar divórcios. Negociar tratados entre nações não podia
ser mais difícil do que salvar um casamento ameaçado.
Mesmo assim, a subida até a porta da frente parecia muito íngreme, pensou Meyer, apoiando-
se no corrimão enquanto galgava os velhos degraus de concreto. Havia alguns baldes de tinta na
varanda. Talvez Raymond estivesse reformando a casa, agora que abrigava novamente uma
família. Um ótimo sinal. Apertou o botão e ouviu a campainha de dois tons tocar lá dentro. O
Ford branco de Raymond estava parado na porta. Sabia que estavam em casa... mas ninguém
apareceu para abrir a porta. Talvez um deles estivesse se vestindo e o outro no banheiro...
Esperou um minuto e tornou a apertar a campainha. Foi então que reparou que a porta estava
entreaberta. Você é um ministro, disse para si próprio, e não um ladrão. Empurrou a porta,
timidamente, e pôs a cabeça para dentro.
— Alguém em casa? Raymond?... Doris? — chamou, suficiente mente alto para ser ouvido
em qualquer ponto da casa. A TV da sala estava ligada e mostrava um programa de auditório. —
Olááááá!
Era estranho. Entrou na sala, quase contra a vontade, imaginando qual seria o problema.
Havia um cigarro queimando em um cinzeiro quase no filtro, e a trilha vertical de fumaça era
uma clara advertência de que alguma coisa estava errada. Um homem comum teria recuado, mas
o reverendo Meyer não era um homem comum. Viu uma caixa de flores no tapete, aberta, cheia
de rosas. Rosas não tinham sido feitas para ficar no chão. De repente, lembrou-se do tempo em
que servira no Exercito e como era desagradável, mas ao mesmo tempo gratificante, atender às
necessidades dos homens na hora da morte. Imaginou por que razão o pensamento lhe ocorrera
de forma tão vivida; a ideia de que tivesse alguma relação com a situação presente fez seu
coração disparar. Atravessou a sala de visitas e foi até a cozinha. Não encontrou ninguém, mas
havia uma panela no fogo com água fervendo, xícaras e saquinhos de chá na mesa. A porta do
porão estava aberta e a luz acesa. Não podia parar agora. Começou a descer a escada. Estava
no meio do caminho quando viu as pernas.
Pai e filha estavam deitados de braços no chão de cimento e o sangue dos ferimentos na
cabeça se misturava para formar uma poça na superfície irregular. O reverendo sentiu um aperto
no peito. Ficou ali parado, sem fôlego, olhando para os dois paroquianos cujo funeral presidiria
dali a dois dias. Reparou que estavam de mãos dadas. Tinham morrido juntos, mas o consolo de
que aquela dupla trágica agora estava na companhia de Deus não impediu um grito de fúria
contra aqueles que tinham estado ali fazia apenas alguns minutos. Depois de alguns segundos,
Meyer se recuperou o suficiente para descer o resto da escada e se ajoelhar ao lado dos corpos,
tocando nas mãos entrelaçadas e pedindo a Deus que tivesse misericórdia de suas almas. Disso
tinha certeza. Doris podia ter perdido a vida, mas não a alma, diria Meyer no funeral, e o pai
recuperara o amor da filha. Fazia questão de que os paroquianos soubessem que ambos tinham
sido salvos. Agora, estava na hora de ligar para o filho.

O caminhão de flores roubado foi deixado no estacionamento de um supermercado. Dois


homens saltaram, entraram na loja e saíram pela porta dos fundos, perto de onde o seu carro
estava parado. Tomaram o rumo sudeste e entraram na Pennsylvania Turnpike para uma viagem
de três horas de volta para Filadélfia. Talvez a viagem durasse mais de três horas, pensou o
motorista. Não queriam encrencas com a polícia rodoviária. Os dois homens tinham recebido
dez mil dólares pelo serviço. Não sabiam nada sobre o caso. Não precisavam saber.

— Alô, Sr. Brown?


— Não, quem está falando?
— Aqui é Sandy. O Sr. Brown está?
— Qual sua relação com a família Brown?
— Quem está falando? — perguntou Sandy, assustada.
— Aqui é o sargento Peter Meyer, do departamento de polícia de Pittsburgh. E a senhora,
quem é?
— Fui eu que levei Doris de volta... o que aconteceu?
— Pode me dar seu nome?
— Eles estão bem?
— Parece que foram assassinados — respondeu Meyer, de forma pacientemente cruel. —
Agora quero que me diga seu nome e...
Sandy apertou o gancho com o dedo, cortando a ligação. Não queria ouvir mais nada. Suas
pernas estavam trêmulas. Não era possível, pensou. Como alguém podia saber onde Doris
estava? Certamente ela não tinha ligado para as pessoas que... não, não era possível.
— Por quê? — murmurou, em voz alta. — Por que, por que, por quê? Ela não faria mal a
ninguém... não, faria, sim... mas como eles souberam?
Eles têm alguém na polícia, lembrou-se das palavras de John. Ele estava certo, não estava?
Mas isso era secundário.
Não tinha sido tempo perdido. Era a sua missão na vida, cuidar das pessoas doentes. Tinha
orgulho disso. Não tinha sido tempo perdido, 'linha sido tempo roubado. Tempo roubado, duas
vidas roubadas, Começou a chorar e teve que ir ao banheiro para enxugar os olhos. Olhou-se no
espelho e viu olhos que jamais contemplara antes. E com isso finalmente compreendeu.
A doença era um dragão que combatia quarenta horas ou mais por semana. Uma enfermeira e
professora competente, que se dava bem com os cirurgiões de sua unidade, Sandra O'Toole
lutava contra os dragões à sua maneira, com profissionalismo, bondade e inteligência, ganhando
mais do que perdendo. E a cada ano as coisas ficavam melhores. O progresso nunca era
suficiente, mas era real e podia ser medido; talvez vivesse o suficiente para ver o último dragão
de sua unidade ser eliminado de uma vez por todas.
Entretanto, havia mais de um tipo de dragão, não havia? Alguns não podiam ser combatidos
com bondade, remédios e dedicação profissional. Derrotara um dragão, mas outro matara Doris.
Para matar dragões como aquele era preciso uma espada nas mãos de um guerreiro. A espada
era uma ferramenta, não era? Uma ferramenta necessária, se você queria matar aquele tipo de
dragão. Talvez jamais fosse capaz de usá-la, mas isso não a tornava menos necessária. Alguém
tinha que empunhar aquela espada. John não era um criminoso; estava apenas combatendo outros
dragões.
Sandy lutava com os seus dragões; John lutava com os dele. Era a mesma luta. Tinha
procedido mal ao condená-lo. Agora compreendia, vendo nos próprios olhos a mesma emoção
que observara nos olhos dele. Sentiu o ódio passar, mas não totalmente, e a determinação tomar
conta do seu ser.

— Felizmente, tudo acabou bem — afirmou Hicks, passando uma cerveja ao amigo.
— Como assim, Wally? — perguntou Peter Henderson.
— A missão foi cancelada a tempo. Ninguém se machucou no processo, graças a Deus. Já
estão a caminho de casa.
— Boas-novas, Wally! — exclamou Henderson, com toda a sinceridade. Ele também não
queria que ninguém morresse. Como Wally, estava interessado apenas em que aquela maldita
guerra terminasse. Sentia pena dos prisioneiros daquele campo, mas certas coisas não tinham
solução. — O que aconteceu, exatamente?
— Ninguém sabe ainda. Quer que eu descubra?
Peter fez que sim com a cabeça.
— Vá com cuidado. Quando a CIA faz uma besteira dessas, a comissão de informações tem
direito de saber. Posso ajudá-los a obter a informação. Mas você precisa ser discreto.
— Não se preocupe. Estou aprendendo a lidar com Roger. — Hicks acendeu o primeiro
cigarro de maconha da noite, o que deixou o amigo irritado.
— Sabe que pode perder o emprego por causa disso?
— Nesse caso, terei que me juntar ao papai e ganhar alguns milhões em Wall Street, não é?
— Wally, você quer mudar o sistema ou ajudar a conservá-lo?
— É, você tem razão — concordou Hicks.

O vento favorável tinha ajudado o KC-135 a fazer a viagem do Havaí até Washington sem
escalas para reabastecimento e o pouso foi suave. O ciclo de sono de Kelly estava de volta ao
normal. Eram cinco da tarde e dali a seis ou sete horas estaria de novo com sono.
— Posso tirar um ou dois dias de folga?
— Está bem, mas queremos você de volta em Quantico para uma análise completa da missão
— afirmou Ritter, com o corpo doído por causa da longa viagem.
— Quer dizer que não estou sob custódia ou coisa parecida? Ótimo. Será que dá para me
arranjarem um carro para Baltimore?
— Verei o que posso fazer — disse Greer, no momento em que o avião parava na pista.
Dois funcionários da CIA subiram a escada móvel antes mesmo que a porta do compartimento
de carga fosse aberta. Ritter acordou o russo.
— Bem-vindo a Washington.
— Vão me levar para a minha embaixada? — perguntou Grishanov, com ar inocente.
Ritter teve vontade de rir.
— Ainda não, mas prometo que vai ficar bem instalado.
O russo estava tonto demais para protestar. Levou a mão à cabeça e pediu uma aspirina.
Desceu com os funcionários da CIA e os três embarcaram num carro que os levaria a uma casa
discreta perto de Winchester, na Virginia.
— Obrigado pela tentativa, John — agradeceu o almirante Maxwell, apertando a mão do
rapaz.
— Desculpe o que eu disse. Você estava certo — afirmou Cas, apertando também a mão de
Kelly.
Havia também um carro à espera dos dois. Kelly ficou na porta do avião, vendo-os partir.
— O que vai acontecer com eles? — perguntou a Greer.
James deu de ombros e começou a descer a escada com Kelly. Era difícil ouvir o que dizia,
por causa do barulho dos outros aviões.
— Dutch estava na fila para uma promoção, talvez para o cargo de chefe de operações
navais. Acho que agora não tem a mínima chance. A operação foi ideia dele e não funcionou.
Sua carreira está liquidada.
— Não é justo! — exclamou Kelly, indignado.
Greer olhou para ele.
— Não, não é justo, mas é assim que são as coisas.
Também havia um carro esperando por Greer. Ele mandou que o motorista seguisse para o
quartel-general do regimento, onde arranjou um carro para levar Kelly a Baltimore.
— Descanse um pouco e ligue para nós quando estiver preparado. Bob estava falando sério.
Pense na proposta que ele fez.
— Sim, senhor — respondeu Kelly, dirigindo-se para o carro azul da Força Aérea.
A vida é curiosa, pensou, quando, cinco minutos depois, o sargento entrou em um rodovia
interestadual. Há menos de vinte e quatro horas, estava a bordo de um navio, aproximando-se de
Subic Bay. Trinta e seis horas antes disso, estava em solo inimigo. Agora, viajava no banco
traseiro de um Chevy oficial; a única coisa que o ameaçava eram os outros motoristas. Pelo
menos por enquanto. Ali, tudo era familiar: as placas da estrada pintadas em um agradável tom
de verde, a segunda metade da hora do rush local. Tudo em volta proclamava a normalidade da
vida, quando três dias antes tudo era estranho e hostil, O mais espantoso é que se adaptava à
nova situação.
O motorista não disse uma palavra a não ser para perguntar o caminho, embora devesse estar
curioso a respeito daquele homem que chegara em voo especial. Talvez faça muitos trabalhos
semelhantes, pensou Kelly quando o carro encostou no Loch Raven Boulevard, tantos que
deixou de se interessar por coisas que não lhe diziam respeito.
— Obrigado pela carona — disse Kelly.
— Não há de que, senhor.
O carro foi embora e Kelly se dirigiu a pé para seu apartamento, divertindo-se com o fato de
que levara as chaves para o Vietnã. Será que as chaves sabiam que tinham ido tão longe? Cinco
minutos depois, estava no chuveiro, essa experiência tipicamente americana, passando de uma
realidade para outra. Mais cinco minutos e saía do apartamento em traje civis, calça e camisa
esporte. Entrou no Scout, estacionado a uma grande distância, e em mais dez minutos
estacionava perto do bangalô de Sandy. A caminhada até a casa dela foi outra transição. Pela
primeira vez, tinha alguém a sua espera.
— John — Foi surpreendido pelo abraço e mais ainda pelas lágrimas da enfermeira.
— Está tudo bem, Sandy. Voltei inteiro, como pode ver. — Levou algum tempo para
compreender a natureza daquele abraço, tão agradável era o que estava sentindo. Mas a moça
começou a soluçar e ele percebeu que algo estava errado.
— O que houve?
— Eles mataram Doris.
O tempo parou novamente. Pareceu partir-se em vários pedaços. Kelly fechou os olhos e no
mesmo instante estava no alto da colina, vendo os reforços chegarem ao SINAL VERDE; estava
em uma cama de hospital, olhando para uma fotografia; estava do lado de fora de uma aldeia
anônima, ouvindo os gritos das crianças. Voltara para casa, sim, mas para os mesmos terrores
que deixara para trás. Não, para os terrores dos quais jamais conseguira se livrar, que o
seguiam aonde quer que fosse. Não conseguira se livrar deles porque jamais conseguia terminar
o trabalho que se propusera a fazer, nem ao menos uma vez. Nem ao menos uma vez. Entretanto,
ali estava também um elemento novo, a mulher que o abraçava e sofria da mesma dor que lhe
dilacerava o peito.
— O que aconteceu, Sandy?
— Ela ficou boa, John. Nós a levamos para casa. Hoje liguei para lá, como você
recomendou, e quem atendeu foi um policial. Ele me contou que Doris tinha sido assassinada.
Ela e o pai.
— OK. — Kelly conduziu-a até o sofá. Tentou afastá-la de si, para acalmá-la, mas não
conseguiu. Sandy se agarrou a ele, dando vazão aos sentimentos que sufocara por tanto tempo, e
deixou que a moça apoiasse a cabeça no seu ombro em silêncio por vários minutos. Afinal,
perguntou:
— Sam e Sarah já sabem?
— Ainda não. — Ela levantou a cabeça e olhou para Kelly, olhos esgazeados. Depois,
reassumiu o controle. — E você, como está?
— Um pouco cansado da viagem — respondeu, mecanicamente. Entretanto, logo percebeu
que não adiantava esconder a verdade. — A missão foi um fracasso. Tivemos que desistir. Eles
ainda estão lá.
— Não entendi.
— Estávamos tentando libertar prisioneiros do Vietnã do Norte, mas uma coisa imprevista
aconteceu. Fracassei mais uma vez — acrescentou, com um suspiro.
— Foi perigoso?
— Foi, sim, Sandy, mas consegui escapar são e salvo.
Sandy pôs o assunto de lado.
— Doris disse que havia outras garotas. Que elas ainda estão lá.
— É verdade. Billy disse a mesma coisa. Vou tentar libertá-las — Kelly observou que a
enfermeira não reagiu ao ouvir o nome de Billy.
— Libertá-las não vai fazer diferença, a menos que...
— Eu sei.
Os terrores que o perseguiam, pensou Kelly. Só havia uma forma de acabar com eles. Não
adiantava correr. Tinha que parar e enfrentá-los.

— Henry, aquele trabalhinho foi feito esta manhã — informou Piaggi. — Numa boa.
— Eles não deixaram nenhuma...
— Henry, eles são profissionais! Fizeram o serviço e já estão em casa, a trezentos
quilômetros de distância. Não deixaram nada, a não ser dois cadáveres.
O telefonema tinha sido muito claro. Um trabalho fácil, já que as vítimas tinham sido
apanhadas totalmente de surpresa.
— Então está tudo terminado — observou Tucker, satisfeito. Enfiou a mão no bolso e tirou um
gordo envelope. Entregou-o a Piaggi, que tinha adiantado o dinheiro, como bom sócio que era.
— Com Eddie fora do caminho e esse problema resolvido, as coisas vão voltar ao normal.
Foram vinte mil bem gastos, pensou Henry.
— Henry, e as outras garotas? — lembrou Piaggi. — Você agora é um homem de negócios.
Não deve correr mais esse tipo de risco. Livre-se delas.
Guardou o envelope no bolso e saiu da mesa.

— Os dois foram mortos com tiros de .22 na nuca — declarou o detetive de Pittsburgh pelo
telefone. — Procuramos impressões digitais na casa inteira... nada. Investigamos a caixa de
flores... nada. Investigamos o caminhão... nada. O caminhão foi roubado na noite passada ou na
madrugada de hoje. O florista tem outros sete. Conseguimos encontrá-lo antes mesmo de
colocarmos no ar a mensagem de busca. Parece coisa de profissionais. E o trabalho foi muito
limpo para os talentos daqui. Nenhuma palavra nas ruas. Provavelmente já estão fora da cidade.
Duas pessoas viram o caminhão. Uma mulher viu dois caras se aproximarem da casa. Achou que
estavam entregando flores e além disso estava do outro lado da rua, a meio quarteirão da
distância. Nenhuma descrição, nada. Não se lembra nem de que cor eles eram.
Ryan e Douglas estavam escutando na mesma linha e seus olhos se encontravam de vez em
quando. Pelo tom de voz do homem, sabiam exatamente do que se tratava: do tipo de caso que
os policiais temem e odeiam. Nenhum motivo aparente, nenhuma testemunha, nenhuma pista.
Nada para começar e nada para prosseguir. A rotina era tão previsível quanto inútil.
Interrogariam os vizinhos em busca de informações, mas era um bairro da classe operária e não
havia muita gente em casa na hora do crime. As pessoas só reparavam em coisas fora do
comum; um caminhão de flores não era suficientemente fora do comum para atrair o tipo de
atenção que resultava em uma boa descrição.
Cometer um crime perfeito não era na verdade muito difícil, um segredo conhecido da
fraternidade de detetives e escondido pelos romances policiais, que os transformavam em entes
sobre-humanos que não tinham a menor pretensão de ser. Algum dia talvez o caso viesse a ser
resolvido. Um dos assassinos podia ser apanhado por outro crime e confessar aquele como
parte de um acordo com a polícia. Ou, o que era menos provável, alguém podia falar demais na
frente de um informante. Nos dois casos, levaria tempo, e a trilha, que já estava fria, ficaria
ainda mais fria. Era a parte mais decepcionante do trabalho policial. Pessoas inocentes tinham
sido assassinadas e não havia ninguém para falar por elas, para vingar a sua morte. Novos casos
surgiriam e os policiais trocariam aquele por outros mais recentes; de vez em quando, alguém
abriria a pasta, daria uma olhada e tornaria a colocá-la no arquivo dos casos pendentes, onde
ficaria mais grossa apenas por causa dos papéis que anunciavam que ainda não havia nenhuma
novidade sobre o caso.
Para Ryan e Douglas, era ainda pior. Mais uma vez tinham vislumbrado a possibilidade de
resolver dois dos seus casos pendentes. Muita gente se importava com Raymond e Doris Brown.
Tinham amigos e vizinhos. Sentiriam falta deles; as pessoas pensariam: coitados! Por outro
lado, as pastas que estavam na mesa de Ryan falavam de gente com a qual ninguém se
importava, a não ser os policiais, e isso os tornava ainda mais dignos de pena, porque alguém
devia prantear os índios além dos policiais que eram pagos para isso. Pior ainda: era mais um
modus operandi em uma série de homicídios a que estavam todos ligados, mas não de forma que
fizesse sentido. Aquilo não parecia obra do Homem Invisível. Sim, a arma tinha sido uma .22,
mas por duas vezes ele tivera a oportunidade de matar uma pessoa inocente. Poupara a vida de
Virginia Charles e saíra perigosamente do caminho para salvar Doris Brown. Provavelmente ele
a tirara das mãos de Farmer, Grayson e mais alguém...
— Detetive — perguntou Ryan —, em que condições foi encontrado o corpo de Doris?
— Como assim?
Pareceu-lhe uma pergunta absurda no momento em que a formulou mas o homem do outro
lado da linha entenderia.
— Qual era o seu aspecto?
— A necropsia vai ser amanhã, tenente. A moça estava toda vestida, com o cabelo penteado.
No geral, estava com bom aspecto. — A não ser por dois buracos na nuca, não foi preciso
acrescentar...
Douglas adivinhou o que o tenente estava pensando e fez que sim com a cabeça. Alguém se
deu ao trabalho de arrumá-la. Era um ponto de partida.
— Gostaria que nos comunicasse qualquer novidade. Faremos o mesmo — assegurou-lhe
Ryan.
— Alguém queria muito vê-los mortos. Não é todo dia que temos que investigar crimes como
este. Não gostei nem um pouco — declarou o detetive.
Era uma conclusão pueril, mas Ryan compreendeu perfeitamente. O que mais havia para
dizer?
Todos a chamavam de casa segura e era realmente segura. Ficava em um terreno de quarenta
hectares nas colinas da Virginia, onde havia também um estábulo com doze baias, metade das
quais ocupada por cavalos de caça. A propriedade estava em nome de uma pessoa, mas essa
pessoa era dona de outro terreno nas vizinhanças e alugava aquele à CIA (na realidade, a uma
firma fantasma que existia apenas como um pedaço de papel e uma caixa postal) porque
trabalhara no OSS, o escritório de assuntos estratégicos, e, além do mais, o aluguel era muito
bem pago. Do lado de fora não havia nada fora do comum, mas uma observação mais cuidadosa
revelaria que as portas e alizares eram de aço e as janelas ficavam permanentemente fechadas.
Era tão segura contra ataques externos e tentativas de fuga quanto uma prisão de segurança
máxima, porém bem mais agradável aos olhos.
Grishanov encontrou roupas para vestir e instrumentos para se barbear, que funcionavam, mas
com os quais não poderia se ferir. O espelho do banheiro era de aço e o copo de papel. O casal
que cuidava da casa falava um russo passável e o tratava com muita gentileza. Eles sabiam que
o novo hóspede não tinha ido parar ali por livre e espontânea vontade. Estavam mais
acostumados com desertores, mas todos os visitantes eram "protegidos" por uma equipe de
quatro guardas de segurança, que iam para lá quando tinham "companhia", e mais dois que
residiam na casa do caseiro, perto do estábulo.
Como era de se esperar, o recém-chegado estava fora de sincronismo com a hora local e sua
desorientação e constrangimento o deixavam muito loquaz. Receberam com surpresa uma ordem
para limitar as conversas a assuntos triviais. A mulher preparou um desjejum, a melhor refeição
em caso de dúvida, enquanto o marido iniciava uma discussão a respeito de Pushkin, depois de
descobrir, com satisfação, que, como muitos russos, Grishanov se interessava por poesia. O
guarda de segurança se apoiou no umbral da porta e ficou apenas observando.

— As coisas que eu tenho para fazer, Sandy...


— John, eu compreendo — afirmou a moça. Os dois ficaram surpresos com o seu tom
determinado. — Antes, eu não entendia, mas agora, sim.
— Quando eu estava lá — fazia apenas três dias? —, pensei em você. Quero lhe agradecer
— disse Kelly.
— Agradecer por quê?
Kelly baixou os olhos para a mesa da cozinha.
— É difícil explicar. Tenho que fazer coisas muito perigosas. É bom quando a gente pode
pensar em alguém. Desculpe. Eu não queria dizer... — Kelly interrompeu a frase no meio. Ele
queria dizer aquilo, sim. A frente divaga quando as pessoas estão sozinhas, e a mente do rapaz
havia , divagado.
Sandy segurou-lhe a mão e sorriu carinhosamente.
— Eu tinha medo de você.
— Por quê? — perguntou Kelly, surpreso.
— Por causa das coisas que você faz.
— Eu jamais faria mal a você — afirmou, sem levantar os olhos.
— Agora eu sei disso.
Apesar das palavras da moça, Kelly sentiu necessidade de se explicar. Queria que ela
entendesse; não percebia que ela já entendera. O que fazer? Sim, tinha matado, mas por um
motivo. Como se tornara o que era? O treinamento era parte da resposta, os meses de trabalho
duro passados em Coronado, o tempo e esforço gastos para inculcar respostas automáticas, as
mais mortíferas de todas, e para aprender a virtude da paciência. Junto com isso aprendera uma
nova forma de ver as coisas... e a entender por que às vezes era necessário matar. E com esse
entendimento aprendera um novo código de conduta, uma modificação, na verdade, do que
aprendera com o pai. Suas ações tinham que ter um propósito, em geral definido por outros, mas
sua mente era suficientemente ágil para tomar as próprias decisões, para adaptar seu código de
conduta a um contexto diferente, para aplicá-lo com cautela... mas aplicá-lo. Produto de muitas
coisas, ele às vezes se surpreendia com o que era. Alguém tinha que tentar e, frequentemente,
era ele quem estava em melhores condições para...
— Você se entrega por inteiro, John — afirmou a moça. — Nisso, é parecido comigo.
As palavras fizeram com que o rapaz levantasse a cabeça.
— Perdemos pacientes no meu andar. Isso acontece toda hora... e fico furiosa! Detesto estar
lá quando a vida vai embora. Detesto ver a família chorar e saber que não pudemos fazer nada.
Nós nos esforçamos ao máximo. O professor Rosen é um grande cirurgião, mas nem sempre
conseguimos vencer a luta; detesto quando perdemos. No caso de Doris... tínhamos ganhado,
John, mas alguém a tirou de nós. E não foi uma doença nem um acidente de automóvel. Alguém
fez isso de propósito. Ela era minha e alguém a matou. Por isso compreendo o que sente. De
verdade.
Meu Deus, ela realmente compreende... melhor do que eu.
— Todos os que conheceram Pam e Doris, incluindo você, estão correndo grande perigo.
Sandy fez que sim com a cabeça.
— Acho que tem razão. Doris me falou de Henry. Eu sei que tipo de pessoa ele é. Vou lhe
contar tudo que ela nos disse.
— Tem ideia do que vou fazer com essas informações?
— Claro que sim, John. Tome cuidado, por favor. — Depois de uma pequena pausa, explicou
por que devia tomar cuidado. — Quero você de volta.
32

A PRESA VOLTA PARA CASA

A informação mais útil que conseguiram em Pittsburgh foi um nome. Sandy. Sandy levara
Doris Brown para a casa do pai. Apenas uma palavra, nem mesmo um nome próprio, mas às
vezes os casos eram resolvidos com menos do que isso. Era como puxar a ponta de um
barbante. Às vezes indo o que você conseguia era um pedaço arrebentado, mas às vezes a coisa
não parava até que todo o novelo estivesse desembaraçado. Alguém chamado Sandy, uma voz
feminina, jovem. Desligara antes de dizer qualquer coisa, embora parecesse pouco provável que
tivesse algo a ver tom os assassinatos. Os criminosos às vezes voltavam ao local do crime não
era apenas uma lenda —, mas telefonar seria ridículo.
Como as coisas se encaixavam? Ryan recostou-se na cadeira e olhou para o teto enquanto sua
mente treinada repassava os fatos conhecidos.
A hipótese mais provável era de que a finada Doris Brown estivesse diretamente ligada à
mesma quadrilha que assassinara Pamela Madden e Helen Waters e que incluía entre seus
membros Richard Farmer e William Grayson. John Terrence Kelly, ex-UDT e provavelmente
também ex-SEAL, de alguma forma conheceu e ajudou Pamela Madden. Algumas semanas
depois, telefonou para Frank Allen, mas não contou muita coisa. Algo deu errado — para
encurtar a história, ele fez alguma besteira — e a consequência tinha sido a morte de Pamela
Madden. As fotos do corpo eram algo que Ryan jamais esqueceria. Kelly tinha sido gravemente
ferido. Ele era um ex-comando cuja namorada fora brutalmente assassinada, repetia Ryan para
si mesmo. Cinco traficantes eliminados como se James Bond, de repente, tivesse aparecido nas
ruas de Baltimore. Um crime diferente, no qual o assassino interrompera um assalto de rua por
razões desconhecidas, Richard Farmer — "Rick"? — eliminado com uma faca, na segunda
possível demonstração de ódio (e a primeira não contava, observou Ryan a si mesmo). William
Grayson, provavelmente sequestrado e morto. Doris Brown, provavelmente libertada na mesma
ocasião, tratada durante algumas semanas e mandada para casa. Isso sugeria algum tipo de
atendimento médico, não? Provavelmente. Talvez, corrigiu-se. O Homem Invisível... podia ter
feito isso pessoalmente? Doris foi a garota que penteou o cabelo de Pamela Madden. Havia uma
ligação.
Espere aí.
Kelly era namorado de Pamela Madden, mas a garota tinha sido tratada por um casal: o
professor Sam Rosen e a esposa, que também é médica. Kelly liberta Doris Brown; a quem
levaria a garota? Ali estava um ponto de partida! Ryan tirou o fone do gancho.
— Alô.
— Doutor, aqui é o tenente Ryan.
— Não me lembro de ter lhe dado o meu número particular — disse Farber. — O que deseja?
— O senhor conhece Sam Rosen?
— O professor Rosen? É claro. Ele é chefe de departamento e um excelente cirurgião. De
classe internacional. Não o vejo com frequência, mas se um dia precisar de uma operação na
cabeça, ele é a pessoa certa.
— E a mulher dele? — Ryan ouviu o outro mastigar o cachimbo.
— Eu a conheço bem. O nome é Sarah. É farmacologista. Faz pesquisas e também trabalha
com nossa unidade de abuso de drogas. Eu também fiz parte desse grupo e nós...
— Obrigado — interrompeu Ryan. — Mais um nome. Sandy.
— Sandy do quê?
— É tudo que tenho — admitiu o tenente Ryan. Podia imaginar Farber naquele momento,
inclinando-se para trás na cadeira de couro de espaldar alto, com uma expressão contemplativa
no rosto.
— Vamos deixar as coisas bem claras, OK? Está me pedindo para investigar dois colegas
como parte de um processo criminal?
Ryan pensou se valia a pena mentir. Afinal, o sujeito era psiquiatra. Seu trabalho era
adivinhar o que se passava nas mentes das pessoas. Era muito bom nisso.
— É isso mesmo, doutor — confirmou o detetive, depois de uma pausa suficientemente longa
para que o psiquiatra pudesse adivinhar a razão.
— O senhor vai ter que se explicar — anunciou Farber. — Sam e eu não somos exatamente
íntimos, mas tenho certeza de que ele jamais faria mal a outro ser humano. E Sarah é um anjo
para os jovens problemáticos que temos aqui. Ela deixou de lado pesquisas importantes para
fazer esse trabalho, pesquisas que a tornariam famosa. — De repente, Farber se deu conta de
que Sarah tinha se ausentado muito nas últimas semanas.
— Doutor, estou apenas tentando colher informações, OK? Não tenho razão para acreditar
que qualquer dos dois esteja envolvido em algum tipo de ato criminoso. — As palavras eram
excessivamente formais; sabia disso. Experimentaria usar outra tática. E talvez estivesse
falando a verdade, quem sabe? — Se minha especulação for correta, podem estar correndo um
grande perigo.
— Dê-me alguns minutos — pediu Farber, antes de desligar.
— Nada mau, Em — declarou Douglas.
As possibilidades de êxito eram pequenas, pensou Ryan, mas, afinal, já não tinha mais o que
tentar. Os cinco minutos que se passaram até o telefone tocar de novo pareceram levar uma
eternidade.
— Ryan.
— Farber. Não encontrei nenhuma médica na neurologia com esse nome, mas há uma
enfermeira, Sandra O'Toole. É a chefe das enfermeiras do setor. Não a conheço pessoalmente,
mas sei que Sam a tem em alta conta. Pelo menos, foi o que a secretária dele me disse. Também
apurei que andou fazendo algum trabalho especial para Sam. Ele teve que mexer nos registros
de pagamento.
Farber já tirara suas próprias conclusões. Sarah tinha estado ausente na mesma ocasião.
Deixaria a polícia descobrir isso por sua conta. Já fora longe demais. Afinal de contas, eles
eram seus colegas e aquilo não era um jogo.
— Quando foi isso? — perguntou Ryan, em tom casual.
— Há duas ou três semanas. Durou dez dias úteis.
— Obrigado, doutor. Voltaremos a nos falar.
— Achamos uma ligação — observou Douglas, depois que o outro desligou. — Quer apostar
que ela conhece Kelly, também?
Naturalmente, o sargento estava apenas manifestando uma esperança remota. Sandra era um
nome muito comum. Entretanto, estavam investigando o caso, a infindável série de assassinatos,
há mais de seis meses, e depois de passarem tanto tempo sem nenhuma pista, aquilo lhes parecia
um presente dos deuses. O problema era que já estava escuro; hora de ir para casa jantar com a
mulher e os filhos. Jack voltaria para o Boston College dali a uma semana, pensou Ryan, e
precisava passar mais tempo com o filho enquanto podia.

Não havia um modo fácil de organizar as coisas. Sandy teve que levá-lo de carro até
Quantico. Era a primeira vez que ela entrava em uma base dos fuzileiros, se bem que por pouco
tempo. Foram diretamente para a marina. Era irônico; quando finalmente voltava para casa
sincronizado com o ciclo local de dias e noites, logo se via forçado a quebrá-lo. Sandy ainda
não estava de volta à 1-95 quando Kelly deixou o cais e rumou para o meio do rio, ajustando os
aceleradores para a velocidade máxima de cruzeiro assim que pôde.
A inteligência da moça estava à altura da sua coragem, pensou Kelly, enquanto saboreava sua
primeira cerveja em muito tempo. Talvez ter uma boa memória fosse um pré-requisito para ser
uma boa enfermeira. Henry, ao que parecia, se tornava loquaz em certas ocasiões. Uma delas
era quando tinha uma garota sob seu controle direto. Um fanfarrão, no sentido exato da palavra.
Ainda não dispunha de um endereço para combinar com o número de telefone, mas conseguira
mais um nome. Tony alguma coisa, Peegee, ou algo parecido. Branco, italiano, dirigia um
Lincoln azul. Sandy também lhe fornecera uma boa descrição. Provavelmente estava ligado à
Máfia, como membro ou como candidato. Havia também um homem chamado Eddie, mas Sandy
acreditava tratar-se do mesmo sujeito que, dias antes, fora morto por um policial. Kelly tirara
suas conclusões: e se aquele policial fosse o homem de confiança de Henry? Parecia estranho
que um homem experiente como um tenente da polícia se envolvesse em um tiroteio. No
momento, não passa de especulação, mas valia a pena conferir... só que ainda não sabia
exatamente de que forma. Tinha toda a noite para desenvolver um plano e uma superfície de
águas tranquilas para refletir seus pensamentos da mesma forma como refletia as estrelas. Logo
estava passando pelo ponto onde deixara Billy. Pelo menos alguém recolhera o corpo.
O solo ainda estava se assentando sobre a sepultura, em um lugar que alguns ainda chamavam
de Campo do Oleiro, uma tradição que remontava a alguém chamado Judas. Os médicos do
hospital público onde o homem tinha sido tratado estavam intrigados com o laudo fornecido
pela Escola de Medicina da Virginia. Barotraumatismo. No último ano, tinha havido menos de
dez casos graves desta doença em todo o país, e todos em regiões costeiras. Não era de admirar
que não tivessem chegado ao diagnóstico correto. Entretanto, como o relatório deixava bem
claro, isso não teria feito muita diferença. A causa direta da morte tinha sido um fragmento de
medula óssea que se alojara em uma artéria cerebral, obstruindo-a e provocando um derrame
fatal. Na verdade, porém, outros órgãos estavam tão danificados que a morte certamente
ocorreria em poucas semanas. A presença de fragmentos de medula óssea na corrente sanguínea
sugeria uma grande variação de pressão, da ordem de 3 bars ou mais. A polícia ainda estava
investigando a respeito de mergulhadores do rio Potomac, que era bem profundo em alguns
trechos. Tinham esperança de que alguém reclamasse o corpo, cuja localização constava dos
registros do administrador do condado. Mas não muita.

— Como não sabe? — explodiu o general Rokossovskiy. — Ele trabalha para mim! Preciso
saber onde está!
— Camarada general — replicou Giap, irritado — Já lhe contei tudo que consegui apurar!
— Quer que eu acredite que o responsável foi um americano?
— Conhece os relatórios da inteligência tão bem quanto eu.
— As informações que esse homem possui são muito importantes para a União Soviética.
Acho difícil acreditar que os americanos tenham executado um ataque cujo único resultado foi o
sequestro do único oficial soviético em toda a região. Sugiro, camarada general, que faça um
esforço mais sério para localizá-lo.
— Estamos em guerra!
— Eu sei disso — observou Rokossovskiy, secamente. — Por que pensa que estou aqui?
Giap teve vontade de dizer um palavrão para o homem mais alto que estava de pé diante da
sua mesa. Afinal de contas, era o comandante das forças armadas do país. O general vietnamita
engoliu o orgulho com dificuldade. Precisava das armas que apenas os russos podiam fornecer;
o bem da pátria justificava certas humilhações. De uma coisa, porém, estava certo: os resultados
conseguidos com o campo não compensavam, nem de longe, os transtornos que causara.

O mais estranho era que a rotina se tornara relativamente amena. Kolya não estava mais lá;
disso tinha certeza. Zacharias estava tão desorientado que tinha dificuldade para medir a
passagem dos dias, mas já dormira quatro horas desde que ouvira pela última vez a voz do
russo, mesmo do lado de fora. Durante o mesmo período, ninguém aparecera para torturá-lo.
Sua vida agora se resumia a comer, pensar e dormir. Para sua surpresa, isso tornara as coisas
melhores e não piores. Compreendia agora que as visitas de Kolya tinham se transformado em
um vício mais perigoso que seu flerte com o álcool. O seu real inimigo tinha sido a solidão e
não a dor ou o medo. Educado em uma família e comunidade religiosa que valorizavam a
amizade, abraçara uma profissão que adotava os mesmos padrões. Ao se ver sozinho, entrara
em pânico. Bastara acrescentar um pouco de dor e medo, e qual o resultado? Era algo muito
mais fácil de enxergar do lado de fora do que do lado de dentro. Kolya, por exemplo, não tivera
nenhuma dificuldade para perceber. Como você, era o que dizia toda hora. Como você. Tinha
sido assim que fizera o seu trabalho. E com muita habilidade, reconheceu o coronel. Embora
não estivesse acostumado a cometer erros, não era imune a eles. Cometera uma imprudência
quase fatal quando estava aprendendo a pilotar, na base aérea de Luke; cinco anos mais tarde,
resolvera investigar como era o interior de uma nuvem de tempestade e por um triz não atingira
o solo com a violência de um raio. Acabara de se enganar pela terceira vez.
Zacharias não sabia por que o tinham deixado em paz. Talvez Kolya I estivesse fora, contando
aos superiores tudo o que descobrira. Fosse qual fosse o motivo, tivera uma oportunidade de
refletir. Você pecou, disse Robin a si próprio. Você foi muito ingênuo, mas não cairá de novo na
mesma armadilha. Não disse aquilo com muita convicção; teria que praticar um pouco.
Felizmente, tinha tempo para isso. Se não era uma confissão, pelo menos era um começo. De
repente, sentiu-se tenso, como se estivesse iniciando uma missão de combate. Meu Deus,
pensou, eu tinha medo de rezar pedindo perdão... e no entanto... Os guardas ficariam surpresos
se vissem o sorriso em seus lábios, especialmente se soubessem que estava rezando. A oração,
para eles, era uma farsa. Azar o deles, pensou Robin. A prece podia ser a sua salvação.

Não podia telefonar do escritório nem queria fazê-lo de casa. A chamada teria que atravessar
um rio e uma divisa estadual e ele sabia que, por razões de segurança, os telefonemas que
partiam do Distrito de Columbia mereciam atenção especial; eram gravados em fita de
computador. Era o único lugar dos Estados Unidos onde isso acontecia. Havia um procedimento
correto para o que pretendia fazer. Em primeiro lugar, teria que conseguir aprovação oficial.
Para isso, precisaria discutir o caso com o chefe da seção e depois com o chefe do
departamento; provavelmente, u questão chegaria aos "mandachuvas" do sétimo andar. Ritter
não queria esperar tanto tempo, não quando havia vidas em jogo. Tirou o dia de folga,
explicando que precisava descansar da viagem. Foi até a cidade e dirigiu se ao Museu de
História Natural do Smithsonian. Passou pelo elefante do saguão de entrada e consultou o mapa
na parede para descobrir unde ficavam os telefones públicos. Introduziu em um deles uma
moeda e discou 347-1347. Era quase uma brincadeira oficial. Todos conheciam o número do
rezident do KGB, o chefe da filial do órgão do espionagem em Washington, D.C. Eles sabiam, e
sabiam que as pessoas interessadas sabiam que eles sabiam. As atividades de espionagem, às
vezes, chegavam às raias do surrealismo, pensou Ritter.
— Sim? — disse uma voz.
Era a primeira vez que Ritter fazia aquilo, de modo que se sentiu invadido por uma conjunto
inteiramente novo de sensações: seu próprio nervosismo, a incerteza da voz do outro lado da
linha, a emoção do momento. O que tinha a dizer, porém, estava programado de tal forma que
nada poderia fazê-lo voltar atrás.
— Aqui é Charles. Tenho algo que lhe interessa. Precisamos nos encontrar para conversar a
respeito. Estarei no Jardim Zoológico daqui a uma hora, em frente ao cercado dos tigres
brancos.
— Como vou reconhecê-lo? — perguntou a voz.
— Estarei carregando um exemplar da Newsweek na mão esquerda.
— Vejo-o daqui a uma hora — resmungou a voz.
Ele provavelmente tinha uma reunião importante naquela manhã, pensou Ritter. Não era uma
pena? O agente da CIA saiu do museu e entrou no carro. No banco do carona estava um
exemplar da Newsweek que comprara em uma drugstore a caminho da cidade.

Táticas, pensou Kelly, rumando para bombordo, depois de finalmente contornar o Point
Lookout. Podia escolher à vontade. Ainda dispunha de uma casa em Baltimore, com nome falso
e tudo. A polícia estava interessada em falar com ele, mas ainda não o localizara. Pretendia
deixar as coisas nesse pé. O inimigo não sabia onde ele estava. Aquilo seria seu ponto de
partida. A questão fundamental era o equilíbrio entre o que sabia, o que eles não sabiam e como
poderia usar o primeiro ponto para o segundo. O terceiro elemento, o como, era a tática a ser
usada. Podia se preparar para o que eles ainda não sabiam. Ainda não estava pronto para agir,
mas sabia exatamente o que fazer. Chegar a esse ponto exigia apenas uma abordagem estratégica
do problema. Entretanto, sentia-se frustrado. Quatro mulheres dependiam de uma atitude de sua
parte. Um número desconhecido de pessoas seria assassinado se não agisse logo.
Eles eram movidos pelo medo, pensou Kelly. Medo de Pam, medo de Doris. Medo suficiente
para levá-los a matar. Imaginou se o assassinato de Edward Morello teria sido também
provocado pelo medo. Parecia evidente que eles matavam para se sentir mais seguros e agora
provavelmente se sentiam perfeitamente seguros. Isso era bom. Se agiam movidos pelo medo,
agora tinham menos razão para agir.
O que mais o preocupava era a questão do tempo. Não podia esperar indefinidamente. A
polícia estava chegando perto. Embora tivesse certeza de que jamais conseguiriam provar algo
contra ele, a simples suspeita era suficiente para incomodá-lo. A outra preocupação era a
segurança das quatro jovens. Na sua experiência, uma operação, para ser bem-sucedida, não
devia levar tempo excessivo na fase de preparativos. No caso em questão, porém, tinha que ser
paciente e esperar por uma coisa. Se tivesse sorte, apenas por essa coisa.

Há anos não entrava no zoológico. Ritter pensou que talvez estivesse na hora de voltar ali
com os filhos, agora que já tinham idade para aproveitar um pouco mais a visita. Passou algum
tempo contemplando a caverna dos ursos. Eram animais interessantes. Para as crianças, não
passavam de versões ampliadas dos brinquedos de pelúcia que levavam à noite para a cama.
Não para Ritter. Para ele, eram a imagem do inimigo grandes e fortes, bem menos desajeitados e
muito mais inteligentes do que pareciam. Uma boa coisa para lembrar, pensou, encaminhando-se
para a jaula dos tigres. Ficou olhando para os grandes felinos, enquanto segurava a Newsweek
enrolada na mão esquerda. Não se deu ao trabalho de consultar o relógio.
— Olá, Charles — disse uma voz a seu lado.
— Olá, Sergey.
— Não nos conhecemos — observou o rezident.
— Esta conversa é extraoficial — explicou Ritter.
— Não são todas? — replicou Sergey.
Começou a caminhar. Era possível instalar microfones em qualquer lugar, mas não no
zoológico inteiro. Na verdade, o americano poderia estar usando uma escuta, mas isso não
estaria de acordo com as regras do jogo. Ele e Ritter foram até a jaula seguinte, acompanhados
de perto pelo guarda de segurança do rezident.
— Acabo de voltar do Vietnã — afirmou o agente da CIA.
— Lá deve estar fazendo muito calor.
— Não no mar. No mar a temperatura está agradável.
— Qual foi o motivo da viagem? — perguntou o rezident.
— Uma visita. Uma visita de surpresa.
— Ouvi dizer que foi um fiasco — disse o russo, não em tom sarcástico, mas apenas para que
"Charles" soubesse que ele estava bem informado.
— Podia ter sido pior. Trouxemos alguém conosco.
— Quem poderia ser essa pessoa?
— O primeiro nome é Nikolay. — Ritter passou-lhe o contracheque de Grishanov. — Seria
embaraçoso para seu governo se viesse a público que um oficial soviético esteve interrogando
prisioneiros de guerra americanos.
— Nem tanto — afirmou Sergey, examinando rapidamente o contracheque antes de guardá-lo
no bolso.
— Sou forçado a discordar. Afinal, as pessoas que ele estava interrogando foram declaradas
mortas em combate pelos seus amiguinhos.
— Não compreendo. — Estava sendo sincero; Ritter teve que lhe explicar o que acontecera.
— Nunca ouvi falar nisso — declarou Sergey, quando o outro terminou.
— É verdade, eu lhe asseguro. Poderá confirmar através das suas fontes.
O russo faria isso, é claro. Ritter sabia disso e Sergey sabia que ele sabia.
— Onde está o coronel?
— Em lugar seguro. Está sendo mais bem tratado que os nossos homens.
— O coronel Grishanov não jogou bombas em ninguém — observou o russo.
— É verdade, mas participou de um processo que terminará com a morte de prisioneiros
americanos. Como já disse, pode ser embaraçoso para seu governo.
Sergey Voloshin era um observador político muito astuto; não era [necessário que o jovem
agente da CIA o alertasse para as possíveis consequências. Também podia prever aonde o outro
queria chegar.
— Qual é a sua proposta?
— Que o seu governo convença Hanói a "ressuscitar" esses homens. Para isso, basta mandá-
los para a mesma prisão onde estão os outros prisioneiros e comunicar oficialmente ao nosso
governo que houve um engano e na realidade eles não morreram em combate. Em troca,
prometemos devolver o coronel Grishanov, sem interrogá-lo.
— Vou encaminhar essa proposta a Moscou — afirmou Sergey. Pelo tom, era óbvio que
recomendaria que ela fosse aceita.
— Por favor, não demore. Temos razões para acreditar que os vietnamitas pretendem fazer
alguma coisa drástica para evitar possíveis embaraços. Isso seria uma complicação muito grave
— advertiu Ritter.
— Acho que tem razão. — O russo fez uma pausa. — Com posso ter certeza de que o coronel
Grishanov está vivo?
— Posso levá-lo à presença do coronel em menos de... em menos de quarenta minutos, se
quiser. Acha que eu mentiria em uma situação como esta?
— Não, suponho que não, mas certas perguntas têm que ser feitas.
— Sim, eu sei disso, Sergey Ivan'ch. Não temos nenhum desejo de fazer mal ao coronel.
Parece que ele tratou nossos homens com decência Também foi muito hábil nos interrogatórios.
Estamos com suas anotações. Se faz questão, posso levá-lo à presença dele — repetiu Ritter.
O russo hesitou antes de responder. Se concordasse com a oferta, mais tarde teria que haver
algum tipo de retribuição, porque era assim que as coisas funcionavam. Ao insistir para falar
com Grishanov, estaria criando um compromisso para o seu governo, algo que detestaria fazei
sem autorização. Além do mais, a CIA não tinha nenhuma razão paru mentir, Aqueles
prisioneiros já eram dados como mortos. Apenas a b vontade da União Soviética poderia salvá-
los.
— Vou aceitar sua palavra, Sr...
— Ritter. Bob Ritter.
— Ah! Budapeste!
Ritter sorriu amarelo. Depois de tudo o que fizera para tirar seu agente da Cortina de Ferro,
jamais poderia trabalhar de novo no exterior pelo menos nos lugares que interessavam, isto é, a
leste do rio Elba.
O russo espetou o dedo no seu peito.
— Fez um bom trabalho daquela vez. Admiro quem é leal aos seus subordinados.
— Obrigado, general. E obrigado por ouvir minha proposta. Quando acha que terá uma
resposta?
— Vou precisar de dois dias... quer que eu ligue?
— Não, pode deixar que eu ligo. Voltaremos a nos falar daqui a quarenta e oito horas.
— Está combinado. Tenha um bom dia.
Apertaram-se as mãos como profissionais que eram. Voloshin foi-se juntar ao
motorista/guarda-costas e os dois se dirigiram para o carro. O passeio terminara em frente ao
cercado do urso Kodiak, um animal grande, castanho, majestoso Seria coincidência?, pensou
Ritter.
No caminho para o carro, começou a refletir sobre as implicações do episódio. Dependendo
da forma como os russos reagissem à proposta, Ritter poderia ser promovido a chefe de seção.
Embora a missão de resgate tivesse fracassado, estava negociando uma importante concessão
com os russos, graças à presença de espírito de um homem mais jovem, que, mesmo perseguido
e acuado, fizera a coisa certa. Era de gente assim que a CIA precisava; agora teria suficiente
influência para contratá-lo. Kelly se mostrara evasivo durante o voo de volta; provavelmente
seria necessário insistir um pouco. Teria que conversar a respeito com Jim Greer, mas Ritter
decidiu, naquele momento, que sua primeira missão seria trazer Kelly do frio, ou do calor ou de
onde quer que fosse.

— O que a senhora sabe sobre a Sra. O'Toole? — perguntou Ryan.


— Ela é viúva — disse a vizinha. — O marido foi para o Vietnã logo depois que compraram
a casa e não voltou. Era um rapaz tão simpático... Ela não está metida em alguma encrenca,
está?
O detetive sacudiu a cabeça. — Não, senhora. Até agora, só ouvi elogios a seu respeito.
— Ela ultimamente tem levado uma vida muito agitada — prosseguiu a vizinha. Ryan parecia
ter encontrado a testemunha perfeita: uma viúva de sessenta e cinco anos, sem nada para fazer,
que compensava o vazio de sua vida acompanhando de perto a vida de todo mundo.
Tranquilizada pelas palavras do detetive, parecia disposta a contar tudo que sabia.
— Como assim?
— Havia alguém morando com ela. Toda hora tinha que sair para fazer compras. É uma moça
muito trabalhadora, sabe? Foi uma pena o que aconteceu com o marido. Acho que devia se casar
de novo. Gostaria de dizer isso a ela, mas tenho medo de que me chame de metida. Além disso,
ainda recebia uma visita quase todo dia.
— Quem era essa visita? — perguntou Ryan, entre dois goles de chá iludo.
— Uma mulher, baixinha como eu, porém mais gorda, com o cabelo despenteado. Chegava
sempre num carro grande, um Buick vermelho, penso eu, com um adesivo engraçado no para-
brisa. Oh! É isso mesmo!
— O quê? — perguntou Ryan.
— Estava lá fora cuidando das minhas rosas quando a garota saiu. Foi aí que vi o adesivo.
— Garota? — perguntou Ryan, em tom casual.
— As compras eram para ela! — exclamou a mulher, satisfeita consigo mesma por ter
chegado a essa súbita conclusão. — Aposto que Sandy comprou roupas para ela. Eu me lembro
das sacolas da Hecht Company.
— Pode me descrever a garota?
— Devia ter uns dezenove ou vinte anos. Cabelos escuros. Muito pálida. Parecia doente. Foi
embora... quando foi mesmo? Ah, já me lembrei. No dia em que o viveiro entregou minhas rosas
novas. Dia 11. O caminhão chegou de manhã cedo e eu estava lá fora trabalhando quando elas
saíram. Acenei para Sandy. Ela é uma moça tão boazinha... Não conversamos muito, mas tem
sempre uma palavra gentil. É enfermeira, o senhor sabe. Trabalha no Johns Hopkins e...
Ryan terminou o chá sem demonstrar sua satisfação. Doris Brown voltara para casa em
Pittsburgh na tarde do dia 11. Sarah Rosen tinha um Buick e certamente usava um adesivo de
estacionamento livre no para-brisa do carro. Sam Rosen, Sarah Rosen, Sandra O'Toole. Eles
tinham cuidado da Srta. Brown. Dois deles também tinham cuidado da Srta. Madden. Também
tinham cuidado do Sr. Kelly. Depois de meses de frustração, o tenente Emmet Ryan estava
começando a fazer progressos.
— Ali está ela — disse a mulher, fazendo-o voltar à realidade com um sobressalto. Ryan
Virou-se e viu uma jovem alta e vistosa, carregando um saco de compras.
— Quem seria aquele homem?
— Que homem?
— Ele esteve na casa dela na noite passada. Talvez um namorado, quem sabe? Alto com o
senhor, cabelos escuros... grandão.
— Grandão?
— Como um jogador de futebol, o senhor sabe. Mas parece simpático. Vi quando Sandy o
abraçou. Isso aconteceu na noite passada.
Graças a Deus, pensou Ryan, existem pessoas que não gostam de TV.

Para a nova missão, Kelly escolhera um Savage modelo 54, versão leve do rifle Anschutz.
Era uma arma cara: com o imposto preço chegava a cento e cinquenta dólares. A mira
telescópica Leupold custara quase outro tanto. O rifle parecia bom demais para o fim a que se
destinava, a caça de pequenos animais, e vinha com uma coronha de nogueira que era coisa fina.
Pena que teria que mexer nela; não se atrevia, porém, a desprezar os conselhos de um certo
mecânico de bordo.

Para se livrar de Eddie Morello, Henry tivera que se desfazer de uma grande quantidade de
heroína pura, seis quilos que agora estavam em poder da polícia. Era preciso repor esse
material. Filadélfia estava pedindo mais e seus contatos em Nova York queriam aumentar a cota,
agora que tinham experimentado e gostado. Prepararia mais um remessa no navio. Seria a
última. Tony estava montando um laboratório à altura do negócio florescente que tinham nas
mãos, em um lugar discreto e de fácil acesso, mas ele ainda não estava pronto. Henry não iria
pessoalmente; decidira deixar a tarefa por conta dos auxiliares.
— Quando? — perguntou Burt.
— Hoje à noite.
— Está certo, chefe. Quem vai comigo?
— Phil e Mike. — Eram dois homens cedidos pela organização de Tony: jovens, inteligentes,
ambiciosos. Ainda não conheciam Henry e não trabalhariam na distribuição local, mas podiam
cuidar de remessas para outras cidades e estavam dispostos a fazer o trabalho braçal que era
parte daquele negócio, isto é, misturar e embalar a droga. Encaravam a tarefa,e com uma certa
razão, como um rito de passagem, um ponto de partida para voos maiores. Tony lhe assegurara
que eram homens de absoluta confiança e Henry aceitara a palavra do sócio. Ele e Tony estavam
cada vez mais íntimos. Aceitaria os seus conselhos, agora que confiava nele. Mudaria o sistema
de distribuição, eliminando a necessidade de usar garotas e portanto a necessidade de que as
garotas continuassem vivas, tira uma pena, mas depois de três deserções estava claro que a
situação começava a ficar perigosa. As garotas tinham sido úteis durante a fase de expansão do
negócio, mas agora não precisava mais delas.
— Quanto? — perguntou Burt.
— O suficiente para manter vocês ocupados durante muito tempo — respondeu Henry,
apontando para as geladeiras de isopor. Quase não havia lugar para as latas de cerveja. Burt
carregou-as para o carro, não de modo displicente, mas também sem o menor nervosismo. Com
tranquila inocência, do jeito que todo mundo devia trabalhar. Talvez devesse promovê-lo a
segundo em comando. Era leal, respeitoso, duro quando tinha que ser, muito mais confiável do
que Billy e Rick, e um irmão de raça. Era engraçado. Billy e Rick tinham sido necessários no
começo do negócio, já que os grandes distribuidores eram todos brancos e ele os conservara
por força do hábito. O destino se encarregara de corrigir esse erro. Agora eram os brancos que
precisavam dele...
— Leve Xantha com você.
— Chefe, vamos estar muito ocupados — objetou Burt.
— Você pode deixá-la lá quando terminarem. Talvez fosse melhor cuidar de uma garota de
cada vez.

A paciência não era natural em Kelly, mas uma virtude que aprendera por necessidade.
Sentia-se muito melhor quanto estava empenhado em algum tipo de atividade física. Montou o
fuzil no torno, arranhando a coronha antes mesmo de fazer alguma coisa de útil. Ajustou a
máquina de furar para alta velocidade e começou a fazer uma série de furos a intervalos
regulares na ponta do cano. Uma hora depois, estava pronto para montar o silenciador e a mira
telescópica. A modificação não devia afetar a precisão da arma, pensou.

— É um caso difícil, papai? — perguntou o filho durante o jantar.


— Estou trabalhando nele há onze meses, Jack — respondeu Emmet. Tinha chegado em casa
na hora, o que era muito raro.
— Está se referindo aqueles assassinatos horríveis? — quis saber a mulher.
— Não vamos falar nisso na mesa, está bem, querida?
Emmet fazia o possível para manter aquela parte da sua vida fora de casa. Olhou para o filho
e resolveu comentar uma decisão que o filho tomara recentemente.
— Quer dizer que vai entrar para os fuzileiros, hein?
— Papai, eles pagam os últimos dois anos da universidade!
Era típico do filho preocupar-se com coisas com aquela, com o custo da educação dele e da
irmã, ainda no segundo grau e fora de casa no momento. E, como o pai, Jack ansiava por um
pouco de aventura antes de assumir o lugar que a vida reservara para ele.
— Meu filho, um milico — resmungou Emmet, carinhosamente. Na verdade, estava
preocupado. A guerra do Vietnã ainda não terminara, podia não terminar até que o filho se
formasse, e, como a maioria dos pais de sua geração, imaginava por que diabos arriscara a vida
lutando contra os alemães... para que o filho tivesse que fazer a mesma coisa, combatendo um
povo de quem jamais tinha ouvido falar quando tinha a idade do filho.
— O que é que cai do céu, papai? — perguntou Jack com um sorriso de universitário,
repetindo algo que os fuzileiros gostavam de dizer.
Aquela conversa também não agradava a Catherine Burke Ryan, que se lembrava do dia em
que Emmet partira para a guerra, que se lembrava de passar o dia inteiro rezando na igreja de
Santa Elizabeth em 6 de junho de 1944, e em muitos outros dias subsequentes, apesar das cartas
dizendo que estava tudo bem. Lembrava-se da espera. Sabia que aquela conversa estava
deixando Emmet preocupado, embora não exatamente da mesma forma.
O que é que cai do céu? Problemas! O detetive quase respondeu ao filho, pois a
aerotransportada também era um grupo orgulhoso, mas o pensamento morreu antes de chegar-lhe
aos lábios.
Kelly. Tentamos nos comunicar com ele. Pedimos à Guarda Costeira para dar uma olhada na
ilha onde mora. O barco não estava lá. O barco não estava em lugar nenhum. Para onde teria
ido? Agora, de acordo com a vizinha da enfermeira, Kelly estava de volta. Os crimes tinham
parado depois do incidente com Farmer, Grayson e Brown. O pessoal da marina se lembrava de
ter visto o barco, mas ele partiu no meio da noite — daquela noite — e simplesmente
desapareceu. Qual a ligação? Onde esteve o barco? Onde estava agora? O que é que cai do céu?
Problemas.
Era exatamente o que acontecera. Os crimes simplesmente caíam do céu.
Começavam e paravam.
A mulher e o filho viram acontecer de novo. Ryan mastigava a comida com os olhos
focalizados no infinito, incapaz de prestar atenção ao que acontecia em torno, enquanto
analisava e tornava a analisar as informações de que dispunha. Kelly não é muito diferente do
que eu costumava ser, pensou. Um-Zero-Um, as águias destemidas da 101s Divisão de Infantaria
(aerotransportada), recém-saídos das fraldas. Emmet começara a guerra como soldado raso e
acabara como tenente. Lembrava-se do orgulho de ser alguém muito especial, da sensação de
invencibilidade que estranhamente acompanhava o medo de saltar de um avião, de ser o
primeiro em território inimigo, no escuro, carregando apenas armas leves. Os homens mais
valentes com a missão mais difícil. Missão. Tinha sido como Kelly. A diferença é que ninguém
matou a mulher que amava... o que teria acontecido, em 1946, se alguém fizesse mal a
Catherine?
Nada de bom.
Kelly salvou Doris Brown. Deixou-a com pessoas de sua confiança.
Visitou uma delas na noite passada. Sabe que Doris está morta. Ele salvou Pamela Madden.
Ela morreu e ele foi parar no hospital. Semanas depois, os traficantes começaram a ser
assassinados por alguém que entende de armas. Apenas algumas semanas... o suficiente para
recuperar a forma. De repente, os crimes pararam e Kelly desapareceu.
Agora ele está de volta.
Alguma coisa vai acontecer.
Não era algo que pudesse levar a um tribunal. A única prova material de que dispunham era a
impressão de um sola de sapato. Uma marca comum de tênis; centenas eram vendidos todos os
dias. Nada. Tinham um motivo, mas quantos assassinatos aconteciam todo ano, e quantas
pessoas tentavam vingar a vítima? Tinham a oportunidade. Kelly dispunha de álibis
convincentes? Nem ele, nem um montão de pessoas. Era difícil explicar isso a um juiz, pensou o
detetive. Não, alguns juízes entenderiam, mas jamais um júri ficaria do seu lado, não depois que
um rapazinho recém-saído da escola de direito explicasse algumas coisas a eles.
O caso estava resolvido, pensou Ryan. Ele sabia. Mas não tinha nada a seu favor a não ser a
certeza de que alguma coisa estava para acontecer.

— Quem acha que é? — perguntou Mike.


— Algum pescador — respondeu Burt, da cadeira do piloto. Manteve o Henry's Eighth a uma
distância segura do iate branco. Estava quase anoitecendo. Mal teriam tempo para chegar ao
laboratório com a luz do dia. Burt olhou na direção da outra embarcação. O sujeito com a vara
de pescar acenou para ele, um gesto que retribuiu antes de rumar para bombordo — para a
esquerda, como ele chamava. Tinham uma longa noite pela frente. Xantha não seria muito útil.
Bem, talvez um pouco, quando parassem para comer. Tinha pena dela. Não era má garota,
apenas muito desligada, viciada em drogas até a alma. Talvez fosse a melhor maneira de acabar
com ela: deixá-la provar o produto puro antes de jogá-la na água amarrada em um bloco de
cimento. Seria uma pena, realmente, mas não era ele quem decidia.
Burt sacudiu a cabeça. Tinha coisas mais importantes para se preocupar. Como Mike e Phil se
sentiriam trabalhando sob suas ordens? Teria que usar de muito tato, é claro. Eles
compreenderiam. Com tanto dinheiro envolvido, teriam que compreender. Ajeitou-se na cadeira,
bebeu um gole de cerveja e começou a procurar a luz vermelha da boia.

— La vão eles — murmurou Kelly. Era muito fácil; Billy lhe contara tudo que precisava
saber. Tinham um esconderijo ali. Chegavam de barco vindos do lado da baía, geralmente à
noite, e partiam na manhã seguinte. Usavam como referência uma boia com uma lâmpada
vermelha. Seria difícil localizá-los, quase impossível no escuro. Isso para quem não conhecesse
muito bem a região. Não era o caso de Kelly. Ele enrolou a linha de pesca, que não tinha nem
isca, e olhou de binóculo. O tamanho e a cor conferiam. O nome do barco era Henry's Eighth.
Certo. Viu quando seguiu para o sul e depois dobrou para leste na boia vermelha. Kelly fez uma
marca no mapa. Doze horas, no mínimo. Teria muito tempo O problema com um lugar tão seguro
como aquele era que dependia fundamentalmente de um segredo que, depois de revelado, se
tornaria uma vulnerabilidade fatal. As pessoas nunca aprendiam. Um só caminho para entrar, um
só caminho para sair. Mais uma forma original de cometer suicídio. Esperaria pelo pôr do sol.
Enquanto esperava, Kelly pegou uma lata de tinta e pintou faixas verdes no seu escaler. Depois,
pintou o interior de preto.
33

ENCANTO VENENOSO

Geralmente levavam a noite inteira, dissera Billy. Kelly teria tempo suficiente para comer,
descansar e preparar-se. Ancorou o Springer perto do objetivo. A refeição que preparou era
constituída apenas por sanduíches, mas mesmo assim bem melhor do que a que tivera no alto da
"sua" colina há menos de uma semana. Meu Deus, há uma semana eu estava no Ogden,
preparando-me para desembarcar, pensou, sacudindo a cabeça. Como a vida podia ser tão
cheia de imprevistos?
O pequeno escaler, agora camuflado, foi para a água depois da meia-noite. Kelly instalara um
pequeno motor elétrico no escaler e esperava que a carga da bateria fosse suficiente para ir e
voltar. Não podiam estar muito longe. O mapa mostrava que aquela área não era muito grande e
o esconderijo devia estar no centro, para o máximo de isolamento. Com o rosto e as mãos
pintados de preto, penetrou no labirinto de cascos abandonados, dirigindo o escaler com a mão
esquerda enquanto olhos e ouvidos procuravam alguma coisa fora do comum. O céu estava
ajudando. Não havia lua e a luz das estrelas era suficiente apenas para mostrar algas e plantas
aquáticas do manguezal que tinha sido criado quando os cascos foram deixados ali, assoreando
aquela parte da baía e transformando-a em um santuário de pássaros no outono.
Sentia-se como se estivesse revivendo uma experiência. O zumbido do motor era muito
parecido com o do flutuador que usara no Vietnã. Manteve a velocidade em menos de dois nós,
poupando energia, guiando-se, desta vez, pelas estrelas. A vegetação atingia quase dois metros
acima do nível da água. Era fácil compreender por que preferiam chegar ali com dia claro.
Kelly observou as estrelas, sabendo quais devia seguir e quais devia ignorar, enquanto sua
posição mudava no céu. Era tudo uma questão de hábito. Eles eram da cidade, não eram marujos
como ele, e mesmo que se sentissem seguros no lugar que escolheram para preparar a droga,
não estavam à vontade naquele lugar de criaturas selvagens e caminhos tortuosos. Vocês estão
em meu território, pensou Kelly. Agora estava mais escutando do que observando. Uma brisa
suave agitava o capim alto, acompanhando o canal mais largo. Sinuoso como era, parecia ser o
único caminho possível. Os cascos cinquentenários à sua volta pareciam fantasmas de uma outra
época, como na realidade eram, relíquias de uma guerra vitoriosa, refugos de um tempo muito
mais simples, alguns deles inclinados em ângulos estranhos, brinquedos esquecidos da criança
gigantesca que o país tinha sido antes de se transformar em um adulto cheio de problemas.
Uma voz.
Kelly desligou o motor e girou a cabeça, tentando descobrir de onde vinha. Estava certo
quanto ao canal. Havia uma curva à direita logo adiante e o ruído também vinha da direita. Fez a
curva devagar. Ali havia três cascos abandonados. Talvez tivessem sido rebocados juntos. Os
pilotos dos rebocadores provavelmente tinham tentado deixá-los alinhados por questão de
orgulho pessoal. O que estava mais a oeste tinha adernado ligeiramente para bombordo. A
silhueta era do tipo antigo, com uma superestrutura baixa, cuja chaminé tinha sido há muito
tempo destruída pela ferrugem. Havia uma luz na ponte. Ouviu música, rock contemporâneo
tocando em uma estação que procurava manter os motoristas de caminhão acordados durante a
noite.
Kelly esperou alguns minutos, estudando a cena e planejando uma rota de aproximação. Seria
melhor chegar pela popa, pois o próprio navio o ocultaria dos ocupantes. Agora podia ouvir
mais de uma voz. Barulho de risos. Alguém provavelmente tinha contado uma piada. Parou de
novo, à procura de um vulto na amurada no navio, um sentinela.
Nada.
Tinham sido espertos ao escolher aquele lugar; era ignorado até mesmo pelos pescadores
locais. Mesmo assim, tinham sido imprudentes ao dispensar um sentinela, porque nenhum lugar
é totalmente seguro... lá estava o barco. Muito bem. Kelly reduziu a velocidade para meio nó,
mantendo-se junto ao casco do velho navio até chegar ao barco dos traficantes. Amarrou o
escaler ao cunho mais próximo. Uma escada de corda levava ao convés do navio abandonado.
Kelly respirou fundo e começou a subir.

O trabalho estava se revelando tão tedioso e sem atrativos quanto Burt linha dito que seria,
pensou Phil. Misturar a lactose era a parte mais fácil. Bastava peneirar os componentes em
grandes recipientes de aço inoxidável, como farinha de trigo para fazer um bolo, e mexê-los
bem, para assegurar uma distribuição homogênea. Lembrou-se do tempo de criança, quando
costumava ajudar a mãe na cozinha, observando-a e aprendendo coisas que um menino esquecia
assim que descobria o beisebol. As memórias agora voltavam à sua mente, o barulho da
peneira, o modo como os pós se misturavam. Era uma excursão agradável a uma época remota,
na qual não precisava acordar cedo para ir à escola. Entretanto, aquela era a parte fácil. Em
seguida, vinha o serviço monótono de colocar quantidades precisamente medidas da mistura em
pequenos sacos plásticos que tinham que ser grampeados, empilhados, contados e embalados.
Trocou um olhar impaciente com Mike, que se sentia da mesma forma. Burt provavelmente
também estava entediado, mas não deixava isso transparecer. Tivera a cortesia de levar algumas
distrações para eles. Havia um rádio tocando o tempo todo e quando paravam para descansar
podiam contar com Xantha, meio tonta por causa das pílulas, mas... submissa, como todos
tinham tido oportunidade de comprovar no intervalo da meia-noite. Agora, estava dormindo num
canto. A próxima parada para descanso estava prevista para as quatro horas. Era difícil
permanecer acordado e Phil se preocupava com todo aquele pó, parte dele no ar. Será que
estava respirando a droga em quantidade suficiente para afetá-lo? Se tivesse que fazer aquele
serviço de novo, usaria uma máscara. Gostava da ideia de ganhar dinheiro vendendo a droga,
mas não tinha a menor vontade de experimentá-la. Ainda bem que Tony e Henry estavam
montando um laboratório na cidade; aquelas viagens eram muito cansativas.
Phil terminou mais uma fornada. Era um pouco mais rápido que os outros; estava ansioso para
acabar o serviço. Foi até a geladeira de isopor e pegou mais um saco de um quilo. Sentiu o
mesmo cheiro que das outras vezes, um cheiro forte de produtos químicos, como o que
costumava sentir nas aulas de biologia do ginásio. Formaldeído ou coisa parecida Abriu o saco
com um canivete, despejou o conteúdo na primeira tigela, acrescentou uma quantidade já pesada
de lactose e começou a mexer com uma colher, à luz de uma das lamparinas.

— Olá.
De repente, havia alguém na porta com uma pistola na mão. Usava um uniforme de combate; o
rosto estava pintado de verde e preto.
Não havia necessidade de manter silêncio; a própria presa era responsável por isso. Kelly
tinha convertido novamente o Colt para .45 e sabia que, aos olhos dos outros, o buraco na frente
da automática parecia suficientemente grande para estacionar um carro. Apontou com a mão
esquerda.
— Por aqui. Deitem-se de bruços no convés, com as mãos atrás da nuca, um de cada vez.
Você primeiro — disse ao homem da tigela.
— Quem é você? — perguntou o negro.
— Você deve ser Burt. Não faça nenhuma bobagem.
— Como sabe meu nome? — quis saber Burt, enquanto Phil se deitava no convés.
Kelly apontou para o outro branco, mandando que se deitasse ao lado do amigo.
— Eu sei de muita coisa — respondeu Kelly, aproximando-se de Burt. Foi então que viu a
garota dormindo no chão. — Quem é ela?
— Adivinhe, seu babaca!
Kelly apontou a .45 para o rosto do traficante, a um metro de distância.
— O que foi que você disse? — perguntou, sem levantar a voz. — Deite-se no convés.
Agora!
Burt obedeceu sem protestar. Kelly viu que a moça continuava dormindo. Não tinha pressa em
acordá-la. A primeira coisa a fazer era revistá-los em busca de armas. Dois estavam usando
revólveres. O outro levava apenas uma pequena faca.
— Quem é você? Talvez a gente possa conversar — sugeriu Burt.
— Vamos fazer isso. Fale sobre as drogas — ordenou Kelly.

Eram dez da manhã em Moscou quando o despacho de Voloshin chegou do departamento de


decodificação. Como membro graduado da primeira diretoria do KGB, estava em ligação direta
com vários funcionários do primeiro escalão, um dos quais um acadêmico lotado no serviço 1,
um especialista nos Estados Unidos que estava servindo de consultor para a liderança do KGB
e o Ministério do Exterior em relação à nova política que a imprensa americana chamava de
détente. Aquele homem não ocupava um posto paramilitar dentro da hierarquia do KGB, era
provavelmente a melhor pessoa para conseguir uma decisão rápida, embora uma cópia da
mensagem tivesse sido enviada ao vice-diretor, ao qual estava subordinada a primeira diretoria.
Era curta e objetiva, como os despachos de Voloshin. O acadêmico ficou estarrecido. A redução
das tensões entre as duas superpotências, no meio de uma guerra, era o de milagroso e,
chegando como chegava em paralelo com uma oximação dos americanos em relação à China,
podia significar uma nova era das relações internacionais. Tinha dito isso ao Politburo em um
extenso relatório, fazia apenas duas semanas. A revelação de que um oficial soviético estivera
envolvido em algo assim poria tudo a perder. Que cretino do GRU tinha concebido um plano
daqueles? Isso supondo que fosse verdade, algo que teria que verificar. Para isso, ligou para o
vice-diretor.
— Yevgeniy Leonidovich? Estou com um despacho urgente de Washington.
— Eu também, Vanya. Alguma recomendação?
— Se o que os americanos estão alegando é verdade, precisamos fazer alguma coisa antes
que o caso venha a público. Pode verificar as acusações?
— Da. E se for verdade... recorremos ao Ministério do Exterior?
— Isso mesmo. Os militares levariam tempo demais para agir. Será que eles vão entender?
— Nossos fraternais aliados socialistas? Eles vão entender uma remessa de mísseis. Estão
reclamando uma faz muito tempo — replicou o vice-diretor.
Que ironia, pensou o acadêmico. Para salvar a vida de americanos vamos mandar armas que
serão usadas para matar outros americanos e o governo deles vai entender. Uma loucura! Ali
estava um bom exemplo de por que a détente era necessária. Como as duas superpotências
podiam cuidar dos próprios negócios quando ambas estavam envolvidas, diretamente ou não,
nos negócios de países menores? Isso as desviava desnecessariamente de questões mais
importantes.
— O assunto é urgente, Yevgeniy Leonidovich — insistiu o acadêmico. Embora o vice-
diretor estivesse muito acima dele na hierarquia, tinham sido colegas de turma, no passado
distante, e seus caminhos tinham se cruzado muitas vezes.
— Concordo plenamente, Vanya. Volto a falar com você esta tarde.

Só podia ser um milagre, pensou Zacharias, olhando em torno. Fazia meses que não saía da
cela; poder sentir o perfume do ar, mesmo quente e úmido, lhe parecia um presente divino.
Contou os outros, dezesseis homens em fila indiana, homens como ele, da mesma faixa etária, e
tentou reconhecer os rostos à luz difusa do crepúsculo. Havia um de quem se recordava
vagamente, alguém da Marinha. Trocaram um olhar e sorrisos tímidos enquanto outros faziam o
que Robin estava fazendo. Seria maravilhoso se os guardas os deixassem conversar, mas a
primeira tentativa rendeu a um dos prisioneiros uma bofetada. Entretanto, simplesmente ver
outros rostos amigos era suficiente. Não estar mais sozinho, saber que havia outros prisioneiros
ali, era suficiente. Uma coisa tão simples! Uma coisa tão importante! Robin se empertigou o
máximo que as costas machucadas permitiram, estufando o peito enquanto aquele oficialzinho
dizia alguma coisa para os soldados, que também estavam enfileirados. Não conhecia
vietnamita suficientemente bem para compreender suas palavras rápidas.
— Este é o inimigo — dizia o capitão aos comandados. Em breve levaria sua unidade para o
sul; depois de todas as aulas e treinamentos de combate, ali estava uma oportunidade inesperada
para que conhecessem o inimigo de perto, — Não são tão perigosos assim, esses americanos.
Vejam, não são tão altos e musculosos, são? Podem se ferir, podem quebrar ossos, podem
sangrar... e com facilidade! E esses são a elite, aqueles que jogam bombas no nosso país e
matam a nossa gente. Esses são os homens que vocês vão combater. Continuam a temê-los? Se
os americanos forem suficientemente tolos para tentar resgatar esses cachorros, teremos logo a
oportunidade de praticar a arte de matá-los. — Com essas nobres palavras, dispensou os
soldados, mandando-os para os seus postos de vigia noturna.
Não havia nenhum problema em fazer isso, pensou o capitão. Em pouco tempo, não faria
nenhuma diferença. O comandante do regimento lhe contara que havia um boato de que assim
que conseguissem a aprovação dos líderes políticos, o campo seria fechado de forma definitiva
e seus homens teriam realmente a oportunidade de treinar um pouco antes de serem enviados
para a trilha de Ho Chi Minh, onde enfrentariam americanos armados. Até que chegasse a
autorização para executar os prisioneiros, não custava nada exibi-los como troféus de guerra
para diminuir o medo dos soldados e atiçar o ódio, pois esses eram os homens que tinham
bombardeado o seu belo país, transformando-o em um deserto. Escolhera os recrutas mais
aplicados e competentes... dezenove deles, para que sentissem o gosto de matar. Iriam precisar
disso. O capitão de infantaria imaginou quantos ele levaria de volta para casa.

Kelly parou para abastecer no cais da cidade de Cam bridge antes de rumar de volta para o
norte. Tinha tudo agora... bem, se não tudo, pelo menos o suficiente, pensou. Tanques cheios, o
cérebro repleto de conhecimentos Úteis, e pela primeira vez incomodara realmente os filhos da
puta. Duas semanas, talvez três, do produto. Isso iria deixá-los malucos. Poderia ter se
controlado e usado a heroína como isca, mas não, não podia fazer isso. Só queria distância da
droga, especialmente agora, que achava ter descoberto como era introduzida no país. Vinha de
algum ponto da Costa Leste, era tudo o que Burt sabia. Quem quer que fosse esse tal de Henry
Tucker, a paranoia trabalhava a seu favor; compartimentalizara a operação de uma forma que,
em outras circunstâncias, teria merecido a sua admiração. Mas era heroína asiática e os sacos
em que chegava à Costa Leste cheiravam a morte. Quantas coisas com cheiro de morte eram
enviadas da Ásia à Costa Leste dos Estados Unidos? Kelly só podia pensar em uma, e o fato de
que conhecera homens cujos corpos tinham sido processados na Base Aérea de Pope só
contribuía para aumentar a sua ira e determinação em ir até o fim. Dirigiu o Springer para o
norte, passando pela torre de tijolos do farol da ilha Sharp, no caminho de volta para uma
cidade onde o perigo podia vir de mais de uma direção. Só mais uma vez.
Havia poucos lugares tão sonolentos na Costa Leste dos Estados Unidos quanto o condado de
Somerset. Uma região de fazendas de grande extensão e baixa densidade populacional, o
condado inteiro dispunha de apenas uma escola secundária. Havia também uma única rodovia
importante, que permitia que as pessoas atravessassem a região rapidamente e sem parar. As
estradas para Ocean City, a praia mais frequentada do estado, não passavam por ali, e a rodovia
interestadual mais próxima ficava do outro lado da baía. Era também uma região com um índice
de criminalidade tão baixo que era quase inexistente, exceto para aqueles que prestavam
atenção em um aumento de um ponto percentual em alguma classe especial de transgressão da
lei. Um simples assassinato podia ocupar as manchetes dos jornais locais por várias semanas e
roubos não eram frequentes em uma área em que o dono da casa geralmente recebia os visitantes
noturnos com uma espingarda na mão. O único problema era o modo como as pessoas dirigiam,
e para isso existia a polícia estadual, que patrulhava as estradas em seus carros pintados de
amarelo berrante. Para combater a monotonia, os carros dispunham de motores de alta potência,
que usavam para perseguir os infratores. Estes, na maioria das vezes, tinham visitado alguma
loja de bebidas, em uma tentativa de tornar a região um pouco mais animada.

O patrulheiro de primeira classe Ben Freeland estava no meio da ronda diária. Uma vez ou
outra ocorria uma emergência e ele achava que era sua obrigação conhecer a área centímetro
por centímetro, cada fazenda, cada cruzamento, para, em caso de necessidade, saber como
chegar o mais depressa possível ao local do chamado. Nascido em Somerset e formado há
quatro anos pela Academia de Polícia, em Pikesville, Freeland estava pensando em sua
promoção a cabo quando viu um pedestre na Postbox Road, perto de um povoado com o nome
improvável de Dames Quarter. Aquilo não era comum. Ali, ninguém andava a pé. Até as
crianças aprendiam muito cedo a andar de bicicleta e começavam a dirigir antes de terem idade
para isso, uma das violações mais graves que ocorriam no condado. Avistou-a a quase dois
quilômetros de distância — a região era muito plana — e não deu muita importância ao fato até
se aproximar. A moça — agora tinha certeza de que se tratava de uma mulher — caminhava com
passos incertos. Chegando um pouco mais perto, teve certeza de que não estava vestida como os
locais. Ficou intrigado. Era impossível chegar ali, a não ser de carro. Além disso, ela estava
andando em ziguezague; até mesmo a largura da passada era irregular, o que indicava que podia
estar bêbada, uma grave infração, pelos padrões locais, pensou o patrulheiro, com um sorriso.
Era melhor encostar o carro e dar uma olhada. Parou o Ford no acostamento a quinze metros da
mulher e saltou da forma como aprendera na academia, colocando na cabeça o Stetson do
uniforme e ajeitando o coldre.
— Olá — disse, em tom cordial. — Aonde está indo, mocinha?
A jovem parou e olhou para ele com olhos que não eram deste planeta.
— Quem é você?
O patrulheiro se aproximou. Não sentiu cheiro de álcool. Os viciados em drogas ainda não
tinham chegado ao condado. Talvez isso estivesse para mudar.
— Como você se chama? — perguntou, em tom mais incisivo.
— Xantha, com xis — respondeu a jovem, sorrindo.
— De onde você é, Xantha?
— Tenho andado por aí.
— Responda à pergunta.
— De Atlanta.
— Você está muito longe de Atlanta.
— Eu sei disso, seu bobo! — A moça riu. — Ele não sabia que eu tinha mais. — Parecia
achar aquilo muito engraçado. — Estavam escondidos no sutiã.
— Do que está falando?
— Das minhas pílulas. Estava escondidas no sutiã e ele não sabia.
— Posso vê-las? — perguntou Freeland, imaginando uma porção de coisas.
A moça deu uma risada.
— Então não chegue perto.
Freeland obedeceu. Não havia razão para assustá-la mas, só por precaução, levou a mão ao
revólver. Enquanto observava, Xantha enfiou a mão dentro da blusa, já quase totalmente
desabotoada, e tirou um punhado de cápsulas vermelhas. Então era isso! O patrulheiro abriu a
mala do carro e pegou um envelope.
— Por que não as põe aqui dentro para não correr o risco de perdê-las?
— Está bem! — concordou a jovem, entusiasticamente.
— Posso lhe oferecer uma carona?
— Claro! Estou cansada de tanto andar.
— Então entre aqui.
O regulamento exigia que em casos como aquele o suspeito fosse algemado, e foi o que
Freeland fez, depois de ajudar a jovem a entrar no banco traseiro. Ela pareceu não se importar
nem um pouco.
— Para onde vamos?
— Xantha, você precisa se deitar para descansar um pouco. Vamos arranjar um bom lugar
para isso, está bem?
Era no mínimo um caso de posse de drogas, pensou Freeland, enquanto arrancava com o
carro.
— Burt e os outros dois também estão descansando, só que não vão acordar.
— O que foi que você disse, Xantha?
— Ele acabou com eles, bum, bum, bum! — disse a jovem, fazendo um gesto característico
com o indicador. Freeland viu o gesto pelo espelho retrovisor e quase saiu da estrada.
— De quem está falando?
— De um cara que apareceu de repente. Não sei o nome dele, mas acabou com os três, bum,
bum, bum! Minha nossa!
— Onde?
— No barco. — Aquele sujeito estava mesmo por fora!
— Que barco?
— O barco, ora!
— Está falando sério?
— O mais engraçado é que ele não levou as drogas. Não, o mais engraçado é que a cara dele
era verde!
Freeland não fazia a menor ideia do que estava acontecendo, mas pretendia descobrir. Para
começar, acendeu as luzes giratórias e acelerou o carro ao máximo, dirigindo-se para o quartel
"V" da polícia estadual em Westover. Devia ter comunicado o caso pelo rádio, mas não
conseguiria muita coisa, exceto convencer o capitão de que o drogado era ele.

— Iate Springer, dê uma olhada a bombordo.


Kelly pegou o microfone.
— Alguém que eu conheça? — perguntou, sem olhar.
— Por onde você andou? — quis saber Oreza.
— Viagem de negócios. Por que pergunta?
— Senti sua falta. Diminua a velocidade.
— É importante? Tenho um compromisso, Portagee.
— Ei, Kelly, de um marujo para outro, faça o que eu estou dizendo, OK?
Se não conhecesse o homem... não, era melhor obedecer, fosse quem fosse. Kelly reduziu a
marcha, permitindo que o cúter o alcançasse em poucos minutos. Parecia que Oreza pretendia
subir a bordo, o que tinha lodo o direito de fazer; tentar escapar não resolveria nada. Sem que o
outro pedisse, colocou os motores em ponto morto. O cúter fez o mesmo e Oreza pulou para
bordo.
— Olá, chefe — disse o homem, à guisa de saudação.
— Como vão as coisas?
— Estive na sua ilha duas vezes nas últimas semanas para uma cerveja, mas você não estava
em casa.
— Sabe que não deve beber em serviço.
— Isto aqui fica muito monótono sem ninguém com quem implicar.
De repente ficou claro que ambos estavam pouco à vontade, mas nenhum dos dois conhecia a
razão do outro.
— Por onde andou?
— Tive que sair do país a negócios — respondeu Kelly, deixando claro que não diria mais
nada.
— Entendo. Pretende ficar aqui por algum tempo?
— Pretendo.
— OK. Talvez eu apareça por lá na semana que vem para você me contar algumas mentiras a
respeito de como é a vida de um suboficial.
— Os suboficiais não mentem. Está precisando de conselhos profissionais?
— Estou porra nenhuma! Devia inspecionar seu barco agora mesmo!
— Pensei que fosse uma visita de cortesia — observou Kelly, e os dois homens ficaram ainda
menos à vontade.
Oreza tentou disfarçar com um sorriso.
— OK, por essa vez passa. — Não funcionou. — Até a semana que vem, chefe.
Apertaram-se as mãos, mas alguma coisa tinha mudado. Oreza acenou para que o cúter se
aproximasse e pulou para bordo com a destreza de longos anos de prática. O barco se afastou.
Isso até que faz sentido, pensou Kelly, prosseguindo a viagem.
Oreza ficou olhando de longe para o Springer, imaginando o que estaria acontecendo. Tive
que sair do país, disse ele. Certamente o barco tinha passado algum tempo fora da baía de
Chesapeake... mas onde? Por que a polícia estava tão interessada? Kelly, um assassino?
Devia ter feito alguma coisa para merecer a Cruz do Mérito Naval. Trabalhava em demolição
submarina. Fora isso, Oreza só sabia que era um bom companheiro para tomar uma cerveja e um
marinheiro competente, a seu jeito. As coisas ficam muito complicadas quando você troca as
missões de busca e salvamento por um trabalho de detetive, pensou o contramestre, rumando
para sudoeste em direção a Thomas Point. Tinha que dar um telefonema.

— Então, o que aconteceu?


— Eles sabiam que estávamos para chegar, Roger — respondeu Ritter, com convicção.
— Como, Bob? — perguntou MacKenzie.
— Ainda não sabemos.
— Vazamento?
Ritter enfiou a mão no bolso e tirou a cópia de um documento, que entregou a MacKenzie. O
original estava em vietnamita. A fotocópia continha também a tradução em inglês, onde
apareciam as palavras "buxo verde".
— Eles conheciam até o nome de código?
— Foi uma grave falha de segurança de nossa parte, Roger, mas a resposta é sim.
Provavelmente pretendiam confrontar nossos fuzileiros com essa informação, caso
conseguissem capturá-los. É o tipo da coisa que pode quebrar a resistência de um prisioneiro.
Mas nós tivemos sorte.
— Eu sei. Ninguém se machucou.
Ritter fez que sim com a cabeça.
— Mandamos um cara na frente. Um SEAL da Marinha, muito bom no que faz. Estava de olho
quando os reforços chegaram. Foi ele quem cancelou a missão. Depois, simplesmente desceu da
colina. — Era sempre mais dramático minimizar as coisas, especialmente para alguém que já
passara por situações semelhantes.
Isso merecia um assovio, pensou MacKenzie.
— O sujeito deve ser frio como gelo.
— Ainda tem mais — afirmou Ritter. — No caminho de volta, arranjou tempo para capturar o
comandante do campo e o russo que estava interrogando nossos homens. O russo está em
Winchester. Vivo — acrescentou, com um sorriso.
— Foi assim que conseguiu o despacho? Pensei que tivesse sido coisa do nosso serviço de
informações. Esse homem deve ser um mágico.
— Em suas próprias palavras, ele é frio como gelo. — Ritter sorriu. — Essas são as boas
notícias.
— Acho que não quero ouvir as más.
— Temos indícios de que o outro lado pretende matar todos os prisioneiros e desativar o
campo.
— Minha nossa! Henry está em Paris agora mesmo — disse MacKcnzie.
— Má ideia. Se ele levantar a questão, mesmo em um encontro informal, eles simplesmente
vão negar e talvez se assustem e comecem a eliminar todas as provas.
Todos sabiam que naquelas conferências o trabalho de verdade era feito nos bastidores e não
quando as pessoas tinham que discutir formalmente em torno da mesa de negociações.
— Tem razão. Nesse caso, o que vamos fazer?
— Estamos tentando sensibilizar os russos. Temos um contato para o serviço. Estou
envolvido pessoalmente na negociação.
— Gostaria que me mantivesse informado.
— Pode deixar.

— Obrigado por me receber — disse o tenente Ryan.


— De que se trata? — perguntou Sam Rosen. Estavam no escritório Ml cirurgião, que não era
grande. Os quatro ocupantes não se sentiam muno confortáveis. Sarah e Sandy estavam ali,
também.
— Tem a ver com um ex-paciente seu, John Kelly. — Ryan observou que o médico não
parecia muito surpreso. — Preciso falar com ele.
— O que o impede? — quis saber Sam.
— Não sei onde ele está. Tinha esperança de que um de vocês pudesse me dizer.
— Quer falar com ele a repeito de quê? — perguntou Sarah.
— A respeito de uma série de assassinatos — respondeu Ryan, sem pestanejar, na esperança
de deixá-los chocados.
— Assassinatos de quem? — a pergunta veio da enfermeira.
— Doris Brown, por exemplo.
— John não teve nada a ver com a morte dela! — exclamou Sandy, antes que Sarah Rosen
tivesse tempo de segurar-lhe a mão.
— Então você sabe quem é Doris Brown — observou o detetive, um pouco depressa demais.
— John e eu nos tornamos... amigos — explicou Sandy. — Ele passou as últimas duas
semanas no exterior. Não podia ter matado ninguém.
Touché, pensou Ryan. A notícia era ao mesmo tempo boa e ruim Tinha sido precipitado em
sua conclusão, mas a enfermeira também reagira à acusação de forma exagerada. De qualquer
maneira, uma de suas especulações acabava de ser confirmada.
— No exterior? Onde? Como é que você sabe?
— Não posso dizer onde ele esteve. Eu nem devia saber.
— Como assim? — perguntou o detetive, surpreso.
— Simplesmente não posso dizer. Desculpe. — O tom de voz da enfermeira era de quem
estava sendo sincero, e não se esquivando da pergunta.
Que diabo queria dizer aquilo? Não havia como descobrir no momento, de modo que Ryan
resolveu continuar.
— Alguém chamado Sandy telefonou para a casa de Doris em Pittsburgh. Foi você, não foi?
— Ainda não entendi muito bem por que está fazendo todas essas perguntas — interveio
Sarah.
— Estou tentando colher informações e quero que avise a seu amigo que preciso falar com
ele.
— Está trabalhando em uma investigação policial?
— Estou, sim.
— E veio nos interrogar — observou Sarah. — Meu irmão é advogado. Será que devo
chamá-lo? Tenho a impressão de que está nos perguntando o que sabemos a respeito de
assassinatos. Isso me deixa nervosa. Diga uma coisa: algum de nós é suspeito?
— Não, mas seu amigo é. — Se havia alguma coisa que Ryan não queria, era um advogado
presente.
— Espere um momento! — interrompeu Sam. — Se acha que John fez alguma coisa errada e
veio pedir nossa ajuda para encontrá-lo, é porque desconfia que sabemos onde ele está, certo?
Isso não nos tornaria... cúmplices?
Vocês são?, Ryan teve vontade de perguntar. Em vez disso, optou por:
— Eu disse isso?
— Nunca fui interrogado dessa forma. Não estou gostando. Chame seu irmão — disse o
médico à mulher.
— Escutem, não tenho nenhum motivo para pensar que algum de vocês tenha feito algo de
errado, mas existem alguns indícios que incriminam Kelly. O que estou dizendo é o seguinte:
fariam um favor a ele pedindo que entre em contato comigo.
— Quem a polícia acha que ele matou? — perguntou Sam.
— Alguns traficantes de drogas.
— Sabe qual é o meu trabalho? — perguntou Sarah, em tom agressivo. — Sabe quais são os
pacientes a quem dedico a maior parte do meu tempo?
— Sei. A senhora trabalha com viciados.
— Se John está realmente fazendo isso, talvez eu devesse lhe comprar uma arma!
— É duro perder um paciente, não é? — perguntou Ryan, preparando o terreno.
— Claro que sim. Não estou neste negócio para perdê-los!
— Como se sentiu quando perdeu Doris Brown? — Sarah não respondeu, apenas porque teve
controle suficiente para ficar calada. — Kelly lhe pediu que cuidasse da moça, não foi? A
senhora e Sandy trabalharam duro para curá-la. Acha que as condeno por isso? Acontece que
antes de deixar a moça com vocês, ele matou dois homens. Estou convencido de que foi Kelly.
Provavelmente esses homens ajudaram a matar Pamela Madden e era neles que estava realmente
interessado. Seu amigo Kelly pode ser um herói de guerra, mas não é tão esperto como pensa.
Se se entregar agora, será uma coisa. Se nos obrigar a pegá-lo, será diferente. Digam isso a ele.
Estarão lhe fazendo um favor, entendem? Estarão fazendo um favor a vocês mesmos, também.
Não acredito que tenham cometido nenhum ato ilegal até agora, mas se fizerem mais alguma
coisa por ele exceto o que eu recomendei, poderão se ver em apuros. Não costumo fazer esse
tipo de advertência — disse Ryan, em tom severo. — Sei que não são criminosos. O que
fizeram por aquela moça é digno de louvor, e sinto muito que as coisas tenham acabado do jeito
que acabaram, mas Kelly está por aí matando gente, e isso não está certo, entendem? Estou lhes
dizendo isso caso tenham se deixado levar pela emoção. Também não gosto de traficantes. A
investigação da morte de Pamela Madden, a moça do chafariz, é responsabilidade minha. Eu
quero encontrar os assassinos; se depender de mim, vão todos para a câmara de gás. Assegurar
que seja feita justiça é meu trabalho. Meu trabalho, não dele. Estão entendendo?
— Acho que sim — respondeu Sam Rosen, pensando nas luvas de borracha que dera a Kelly.
Agora era diferente. Naquela época, estava distante das coisas, emocionalmente perto da parte
trágica, mas afastado do que o amigo estava fazendo, aprovando seus atos como se estivesse
lendo no jornal o resultado de uma partida de futebol. Agora era diferente, mas não podia deixar
de se envolver. — Diga-me uma coisa: acha que pode encontrar logo os homens que mataram
Pam?
— Temos algumas pistas — respondeu Ryan, sem perceber que com essa resposta estragara
tudo, depois de chegar tão perto.

Oreza estava de volta a sua mesa para a parte do trabalho que detestava e uma das razões
pelas quais não tinha vontade de chegar a suboficial; a promoção implicaria ter um escritório só
para ele e tornar-se parte da "administração", em vez de ser apenas um piloto de barco. O sr.
English estava de férias e o segundo em comando, outro suboficial, tinha saído para fazer
alguma coisa na rua, de modo que era o mais antigo de serviço. Fosse como fosse, era o seu
trabalho. Procurou o cartão de visita em cima da mesa e discou o número.
— Homicídios.
— Posso falar com o tenente Ryan?
— Ele não está.
— Com o tenente Douglas?
— Ele foi ao tribunal.
— Está bem. Eu ligo mais tarde.
Oreza desligou. Olhou para o relógio. Passava das quatro da tarde; estava na estação desde a
meia-noite. Abriu uma gaveta e começou a preencher os formulários relativos ao combustível
que gastara naquela dia ajudando a tornar a baía de Chesapeake mais segura para os bêbados
que eram donos de barcos. Dali a pouco iria para casa jantar e dormir um pouco.

O problema era dar sentido ao que a moça dizia. Um médico foi chamado no consultório do
outro lado da rua e diagnosticou intoxicação por barbitúricos, o que não era exatamente uma
surpresa. Disse também que teriam que esperar que o organismo eliminasse a droga, cobrando
ao condado vinte dólares por sua opinião. Horas de interrogatório só serviram para deixá-la
alternadamente eufórica e deprimida, sem que mudasse nada de essencial na sua história. Três
pessoas mortas, bum bum bum. Ela parecia estar achando o caso cada vez menos engraçado.
Começara a se lembrar de como era Burt e ele não parecia boa coisa.
— Se essa garota estivesse mais alta, estaria lá na lua com os astronautas — disse o capitão.
— Três homens mortos em um barco — repetiu o patrulheiro Freeland. — Nomes e tudo.
— Você acredita?
— A história continua a mesma, não é?
— É. — O capitão levantou os olhos. — Você gosta de pescar naquela região. O que acha,
Ben?
— A coisa deve ter acontecido em algum lugar perto da ilha Bloodsworih.
— Vamos mantê-la detida até amanhã por embriaguez em público... Temos um flagrante de
posse de drogas, não temos?
— Capitão, bastou eu pedir que ela me deu as cápsulas!
— Está bem. Pode processá-la.
— E depois?
— Gosta de andar de helicóptero?

Desta vez, Kelly escolheu outra marina. Não teve nenhuma dificuldade em conseguir lugar;
com tantos barcos saindo para pescar ou a passeio, esta marina em particular tinha muitas vagas
para hóspedes de passagem, que durante o verão viajavam para cima e para baixo ao longo da
costa, parando no caminho para comer, dormir e se reabastecer, como os iatistas faziam. O
administrador do cais viu quando ele manobrou com para ocupar a terceira maior vaga
temporária, o que nem sempre acontecia com os proprietários dos barcos maiores. Ficou ainda
mais curioso ao ver como era jovem.
— Quanto tempo pretende ficar? — perguntou o homem, ajudando-o com as amarras.
— Uns dois dias. Tudo bem?
— Claro.
— Importa-se se eu pagar em dinheiro?
— Não há problema — assegurou o administrador.
Kelly separou as notas e avisou que dormiria a bordo naquela noite. Não disse o que
pretendia fazer na noite seguinte.
34

TOCAIA

— Nós deixamos passar uma coisa, Em — anunciou Douglas às oito e dez da manhã.
— O que foi, desta vez? — perguntou Ryan. Deixar passar alguma coisa não era exatamente
uma novidade naquele tipo de trabalho.
— Como foi que souberam que Doris estava em Pittsburgh? Liguei para o sargento Meyer e
pedi a ele para conseguir a conta telefônica da casa de Brown. Sabe o que ele descobriu? No
último mês, não houve nenhum telefonema interurbano.
O tenente apagou o cigarro.
— Provavelmente nosso amigo Henry sabia onde ela morava. Depois que duas garotas
fugiram, era natural que se interessasse em conhecer o endereço das outras. Não, você tem razão
— admitiu Ryan, depois de pensar melhor. — Ele deve ter suposto que Doris estava morta.
— Quem sabia que ela estava lá?
— As pessoas que a levaram. Elas certamente não contariam a ninguém.
— Kelly?
— Ontem eu soube que ele estava fora do país na ocasião.
— Ah, é mesmo? Onde?
— Sandy, a enfermeira, diz que sabe mas não pode dizer. Que tal? — Fez uma pausa. —
Vamos voltar a Pittsburgh.
— O caso é que o pai do sargento Meyer é um ministro religioso. Ele estava aconselhando a
garota e contou ao filho o pouco que sabia. OK. O Sargento relatou o caso ao seu superior, um
capitão. O capitão conhece Frank Allen e o sargento ligou para ele a fim de saber quem estava
cuidando do caso. Frank nos indicou. Meyer não falou sobre o assunto com mais ninguém. —
Douglas acendeu um cigarro. — Como foi que nossos amigos ficaram sabendo?
Aquilo era perfeitamente normal, embora um pouco constrangedor. Agora os dois homens
achavam que o caso começava a ser esclarecido. Entretanto, as coisas estavam acontecendo
depressa demais para que pudessem encaixar as peças nos seus lugares.
— Como já desconfiávamos há muito tempo, eles têm um informante na polícia.
— Está pensando em Frank? — perguntou Douglas. — Ele nunca esteve ligado a este caso.
Não tem nem acesso às informações relevantes. — O que era verdade. O caso Helen Waters
começara no Western District, com um dos detetives subordinados a Allen, mas o chefe o
transferira logo depois para Ryan e Douglas, por causa da violência envolvida. — Podemos
chamar isso de progresso, Em. Agora temos certeza. Existe um informante no departamento.
— Mais alguma boa notícia?
A polícia estadual tinha apenas três helicópteros, todos Bell Jet Rangers e ainda estava
aprendendo a usá-los. Conseguir um deles não era fácil, mas o capitão que comandava o quartel
"V" era um oficial antigo e seu condado um lugar muito tranquilo — menos graças a sua
competência do que ao tipo de moradores que abrigava, mas os escalões superiores davam mais
valor aos resultados do que ao modo de consegui-los. A aeronave chegou ao heliporto do
quartel às quinze para as nove. O capitão Ernest Joy e o patrulheiro Freeland estavam à espera.
Era a primeira vez que andavam de helicóptero e ficaram um pouco nervosos quando viram
como era pequeno. Os helicópteros sempre parecem menores quando vistos de perto e ainda
menores quando vistos de dentro. Usado principalmente em operações de resgate de saúde, o
aparelho dispunha de um piloto e de um paramédico. Ambos eram oficiais da polícia estadual e
usavam vistosos trajes de voo que combinavam muito bem, em sua opinião, com os coldres a
tiracolo e os óculos de aviador. A aula-padrão de segurança levou exatamente noventa segundos
e foi dada tão rapidamente que se tornou incompreensível. Os passageiros afivelaram os cintos
e o helicóptero decolou. O piloto achou melhor ir com calma. Afinal, havia um capitão a bordo
e, além disso, limpar vômito no banco de trás era uma amolação.
— Aonde vamos? — perguntou, pelo intercomunicador.
— Para a ilha Bloodsworth — disse o capitão Joy.
— Entendido — respondeu o piloto, baixando o nariz da aeronave rumando para sudeste.

O mundo não parece o mesmo quando é visto de cima e as pessoas que viajam pela primeira
vez de helicóptero reagem sempre da mesma forma. A decolagem, que lembra a partida de um
carro de montanha-russa, provoca um sobressalto, mas logo começa o deslumbramento. O
mundo se transformou diante dos olhos dos policiais. Era como se tudo de repente começasse a
fazer sentido. Podiam ver as estradas e fazendas estendidas a seus pés, como em um mapa.
Freeland foi o primeiro a perceber. Conhecendo seu território como conhecia, logo se deu conta
de que sua imagem mental não correspondia à realidade; a posição relativa dos acidentes
geográficos era sutilmente diferente. Estava apenas trezentos metros acima do solo, uma
distância que seu carro poderia percorrer em poucos segundos, mas aquela perspectiva era
totalmente nova, e começou imediatamente a interpretá-la.
— Foi ali que encontrei a moça — disse ao capitão, pelo intercomunicador.
— Ainda estamos longe do nosso destino. Acha que ela percorreu toda essa distância a pé?
— Não, senhor. — Mas ficava perto da costa, não ficava? A uns três quilômetros de
distância, avistaram o ancoradouro de uma fazenda que estava à venda, e que por sua vez ficava
a menos de oito quilômetros da ilha de Bloodsworth, ou seja, cerca de dois minutos de voo. A
baía de Chesapeake agora era uma larga faixa azul, escondida aqui e ali pela né voa da manhã.
A noroeste ficava o Centro de Testes Aéreos da Marinha, em rio Patuxent, e podiam ver os
aviões decolando; uma preocupação para o piloto, que ficou imediatamente alerta. Os pilotos de
caça da Marinha às vezes gostavam de dar voos rasantes.
— Lá está, bem na nossa frente — disse o piloto.
O paramédico apontou, para que os passageiros soubessem do que ele estava falando.
— Como é diferente, visto aqui de cima! — observou Freeland, com uma admiração infantil
na voz. — Costumo pescar nesta área. Lá embaixo, parece um pântano.
O que estavam vendo de uma altitude de trezentos metros era o que em princípio parecia ser
uma série de ilhas ligadas por areia e vegetação. Quando chegaram mais perto, as ilhas
assumiram formas regulares e se transformaram em navios cobertos de capim e plantas
aquáticas.
— Puxa, não sabia que eram tantos! — observou o piloto, que sobrevoara a região poucas
vezes e quase sempre à noite, em missões de salvamento.
— São navios da Primeira Guerra Mundial — explicou o capitão. — Meu pai me contou que
são sobras da guerra, aqueles que os alemães não conseguiram afundar.
— O que exatamente estamos procurando?
— Não sei. Um barco, talvez. Ontem pegamos uma jovem drogada. Disse que havia um
laboratório por aqui, com três cadáveres dentro — disse o capitão.
— Fala sério? Um laboratório de drogas? Aqui?
— Foi o que moça disse — confirmou Freeland, no momento em que descobria mais uma
coisa. Por mais inexpugnável que a massa de navios parecesse quando vista da superfície, havia
canais serpenteando entre eles. Um excelente lugar para pegar caranguejos, pensou. Do convés
do seu barco de pesca, parecia uma ilha compacta, mas não dali. Interessante!
— Estou vendo um reflexo. — O paramédico mostrou ao piloto um ponto à direita do
helicóptero. — Parece um pedaço de vidro.
— Vamos investigar. — O piloto empurrou o manche para a frente e para a direita, fazendo o
Jet Ranger descer um pouco.
— É, estou vendo um iate perto daqueles três navios.
— Chegue mais perto — sugeriu o paramédico, com um sorriso.
— Certo. — Era uma boa chance de demonstrar suas habilidades. Pilotara um Huey na 1ª de
Reconhecimento Aéreo e adorava brincar com a aeronave. Afinal, qualquer um era capaz de
voar em linha reta. Primeiro, descreveu alguns círculos, para avaliar força e direção do vento.
Depois, desceu mais um pouco, nivelando o helicóptero a menos de sessenta metros da água.
— É um iate de dezoito pés — afirmou Freeland. Podiam ver a linha de náilon que prendia o
iate a um dos navios.
— Desça um pouco mais — ordenou o capitão. Em poucos segundos, estavam quinze metros
acima do convés do navio abandonado. O barco estava vazio. Havia uma geladeira de isopor e
outros objetos perto da popa, mas era tudo. Dois pássaros saíram da superestrutura enferrujada
do navio e o piloto manobrou instintivamente para se desviar deles. Bastava um corvo ser
sugado pela turbina para que se tornassem parte daquele pântano artificial.
— O dono do barco deve ter saído — disse o piloto pelo intercomunicador. No banco de
trás, Freeland imitou três tiros com o dedo indicador. O capitão fez que sim com a cabeça.
— Acho que você está certo, Ben. Pode marcar a posição exata em um mapa? — acrescentou,
dirigindo-se ao piloto.
— Está bem. — Considerou a possibilidade de descer mais ainda e deixá-los no convés. Era
o que faria se ainda estivesse no Reconhecimento, mas parecia perigoso na situação atual. O
paramédico pegou um mapa e fez a anotação pedida. — Já viram o suficiente?
— Já. Vamos voltar.
Vinte minutos depois, o capitão Joy estava ao telefone.
— Guarda Costeira.
— Aqui é o capitão Joy, da polícia estadual. Precisamos de ajuda. — Levou alguns minutos
para explicar do que se tratava.
— Vai levar uns noventa minutos — disse o suboficial English.
— Tudo bem.

Kelly chamou um táxi, que o pegou na entrada da marina. Sua primeira parada do dia foi em
um desacreditado estabelecimento comercial chamado Kolonel Klunker, onde alugou um
Volkswagen 1959, pagando um mês adiantado, com quilometragem livre.
— Obrigado, sr. Aiello — disse o homem a Kelly, que estava usando a identidade de um
morto. Ele voltou de carro para a marina e começou a descarregar as coisas de que iria
precisar. Ninguém prestou muita atenção e, quinze minutos depois, tornava a sair da marina.
Kelly aproveitou a oportunidade para passar pelo bairro onde pretendia fazer sua caçada.
Constatou que o movimento de carros era pequeno. Era a primeira vez que visitava aquela parte
da cidade, cortada por uma avenida industrial chamada O'Donnell Street, um lugar onde
ninguém morava e poucos teriam vontade de morar. O ar estava carregado com os odores de
vários produtos químicos, poucos deles agradáveis. A região parecia ter conhecido melhores
dias, pois vários prédios estavam fechados. Além disso, havia espaços abertos, áreas planas
sem calçamento que os caminhões usavam para manobrar. Crianças brincando nas ruas e casas
de moradia não eram vistas e, por isso, o bairro não era patrulhado por carros de polícia. Seus
inimigos tinham sido espertos ao escolher aquela vizinhança, pensou Kelly. O lugar em que
estava interessado era um edifício isolado com um cartaz semidestruído na entrada. A parede
dos fundos não tinha portas nem janelas. Havia apenas três portas; embora ficassem em duas
paredes diferentes, podiam ser todas observadas de um único ponto e, atrás de Kelly, havia
outro prédio vazio, uma estrutura de concreto com muitas janelas quebradas. Concluído o
reconhecimento preliminar, o rapaz dirigiu-se para o norte.

Oreza estava indo para o sul. Já estivera ali antes, executando uma patrulha de rotina e
imaginando por que a Guarda Costeira não montava uma miniestação na margem oriental, ou
talvez no farol de Cove Point, onde já havia um pequeno posto para os caras que mantinham
acesa a lâmpada no alto da torre. Era um trabalho quase insignificante, mas o garoto que
cuidava do lugar ficaria satisfeito. Afinal de contas, a mulher acabava de ter gêmeos e a Guarda
Costeira era uma corporação que valorizava a família.
Estava deixando um dos marinheiros pilotar o barco enquanto apreciava a manhã do lado de
fora da casa do leme, bebendo uma xícara de café feito em casa.
— O rádio está chamando — disse um dos tripulantes. Oreza entrou e pegou o microfone.
— Aqui é Quatro-Um Alfa.
— Quatro-Um Alfa, aqui é English na base de Triomas. A sua carga está em um cais em
Dame's Choice. Você vai ver os carros da polícia. Já sabe a que horas vai chegar?
— Daqui a vinte ou vinte e cinco minutos, sr. E.
— Entendido. Câmbio e desligo.
— Vamos lá — disse Oreza, consultando o mapa. A água parecia suficientemente profunda.
— Rumo um-meia-cinco.
— Rumo um-meia-cinco.

Xantha estava mais ou menos sóbria, embora se sentisse um pouco fraca. A pele morena tinha
uma palidez acinzentada e ela se queixava de uma terrível dor de cabeça que não havia
analgésico capaz de aliviar. Agora estava consciente de que recebera voz de prisão e sabia que
a sua folha pregressa chegara pelo teletipo. Tinha sido suficientemente esperta para exigir a
presença de um advogado. Estranhamente, a polícia parecera não se importar.
— Minha cliente está disposta a cooperar — declarou o advogado.
Tinham levado apenas dez minutos para chegar a um acordo. Se contasse tudo o que sabia e
não estivesse envolvida em nenhum delito grave, a acusação de posse de drogas seria retirada,
contanto que concordasse em se submeter a um programa de tratamento para viciados. Como
logo se tornou óbvio, era o melhor trato que alguém oferecia a Xantha Matthews em muitos
anos.
— Eles iam me matar! — exclamou a jovem, assim que o advogado lhe deu permissão para
falar. Agora que não estava mais sob a influência dos barbitúricos, podia lembrar-se de tudo.
— Quem são "eles"? — perguntou o capitão Joy.
— Eles morreram. O rapaz branco atirou nos três e depois foi embora sem as drogas. Nem
quis saber delas.
— Fale sobre o rapaz branco — pediu Joy, com um olhar para Freeland que devia ser de
descrença mas não era.
— Um cara grande, como ele — apontou para Freeland —, mas com o rosto verde como uma
folha. Ele colocou uma venda nos meus olhos e depois me deixou no cais e me disse para pegar
um ônibus.
— Como sabe que ele era branco?
— Os pulsos eram brancos. As mãos eram verdes, mas só até aqui — afirmou a moça,
mostrando os próprios braços. — Estava usando um uniforme listrado, como um soldado, e
tinha na mão uma grande .45. Eu estava dormindo quando ele atirou. O barulho me acordou,
entende? Ele mandou que eu me vestisse, me levou para a costa, me deixou no cais e foi embora.
— Como era o barco dele?
— Era branco e muito grande. Devia ter uns trinta pés.
— Xantha, como você sabe que eles iam matá-la?
— O rapaz branco me disse. Ele me mostrou as coisas que eles iam usar.
— Que coisas?
— Uma rede de pescar e blocos de cimento. Disse que já tinham feito isso antes.
O advogado achou que estava na sua vez de falar.
— Senhores, minha cliente tem informações a respeito do que pode ser uma grande operação
criminosa. Vai precisar de proteção. Além disso, já que se dispõe a cooperar com a polícia,
gostaríamos que seu tratamento fosse financiado pelo Estado.
— Meu amigo — declarou Joy —, se isso for o que estou pensando, pago o tratamento dela
do meu bolso. O que acha de a mantermos presa por enquanto? Para sua própria segurança?
O capitão da polícia estadual estava tão acostumado a negociar com advogados que
começava falar como um deles, pensou Freeland.
— A comida daqui é uma merda! — protestou Xantha, de olhos fechados por causa da dor.
— Vamos dar um jeito — prometeu Joy.
— Acho que ela está precisando de cuidados médicos — observou o advogado. — O que me
diz disso?
— O doutor Paige estará aqui depois do almoço para vê-la. É evidente que a moça no
momento não está em condições de cuidar de si mesma. Todas as acusações contra ela serão
retiradas assim que confirmarmos sua história. Você vai ter tudo que pediu. É o máximo que
posso oferecer.
— Minha cliente concorda com suas condições e sugestões — disse o advogado, sem
consultá-la. O condado pagaria até seus honorários. Além do mais, sentia-se como se estivesse
fazendo uma boa ação. Era muito melhor do que pagar a fiança de motoristas bêbados.
— Há um chuveiro ali. Por que não a leva para tomar um banho? Acho que também está
precisando de roupas decentes. Mande-nos a conta.
— É um prazer fazer negócio com o senhor, capitão Joy — disse o advogado, enquanto o
comandante do quartel ia buscar o carro de Freeland.
— Ben, você cuidou muito bem do caso. Não vou me esquecer. Agora mostre-me do que essa
belezinha é capaz.
— Falou, capitão. — Freeland ligou as sirenes antes de passar de setenta. Chegaram ao cais
no momento em que o barco da Guarda Costeira estava saindo do canal principal.
O homem estava usando divisas de tenente, embora se intitulasse capitão, e Oreza bateu
continência para ele quando subiu a bordo. Os dois policiais receberam coletes salva-vidas
para vestir porque, de acordo com o regulamento da Guarda Costeira, eles eram obrigatórios em
pequenas embarcações. Em seguida, Joy mostrou-lhe o mapa.
— Acha que seu barco pode chegar até aqui?
— Não, mas nossa lancha pode. Do que se trata?
— De uma suspeita de homicídio, provavelmente envolvendo drogas. Sobrevoamos o local
esta manhã. Vimos um barco de pesca.
Oreza fez que sim com a cabeça, impassível, e assumiu pessoalmente o leme, acelerando ao
máximo. Estavam a menos de dez quilômetros do cemitério (era assim que Oreza chamava o
lugar) e em pouco tempo reduziu novamente a velocidade.
— Não podemos chegar mais perto? A maré está alta — observou Freeland.
— Esse é que é o problema. Em lugares como esse a gente só entra quando a maré está baixa,
porque se o barco encalhar a maré se encarregará de fazê-lo flutuar de novo. Daqui em diante,
teremos que usar a lancha.
Rodas estavam girando em sua mente enquanto os tripulantes lançavam ao mar a lancha de
quatorze pés. Lembrava-se de uma noite de tempestade, fazia alguns meses, quando o tenente
Charon, de Baltimore, lhe falara a respeito de traficantes de narcóticos que trabalhavam na baía.
Gente da pesada, dissera a Portagee. Oreza imaginou se haveria alguma ligação.
Entraram no pântano, propelidos por um motor de dez cavalos. O suboficial observou a
correnteza, seguindo por um canal que serpenteava na direção genérica do objetivo indicado no
mapa. Estava tudo muito quieto e Oreza se lembrou do tempo em que trabalhara na operação
MERCADO ABERTO, um esforço da Guarda Costeira para ajudar a Marinha no Vietnã. Sua
missão tinha sido dirigir barcos Swift fabricados em Annapolis pelo estaleiro Trumpy. Era uma
situação parecida, pensou; o capim alto podia esconder muitos inimigos armados. Os policiais
tinham sacado seus revólveres e Oreza se perguntou, tarde demais, por que não trouxera um
Colt. Não que soubesse usá-lo. Seria bom se Kelly estivesse ali. Desconfiava que ele era um
dos SEAL, com quem trabalhara por pouco tempo no delta do Mekong. O rapaz não ganhara a
Cruz do Mérito Naval à toa e aquela tatuagem não estava no seu braço por acidente.
— Ora, ora — murmurou Oreza. — Parece um Starcraft de dezesseis... não, dezoito pés. —
Pegou o rádio portátil. — Quatro-Um Alfa, aqui é Oreza.
— Pode falar, Portagee.
— Achamos o barco. Fique na escuta.
— Entendido.
De repente, a tensão aumentou. Os dois policiais trocaram um olhar. Pareciam arrependidos
por não terem trazido mais gente. Oreza encostou a lancha no Starcraft. Os policiais subiram a
bordo.
Freeland apontou para a popa. Joy fez que sim com a cabeça. Ali estavam seis blocos de
cimento e uma rede de náilon enrolada. Xantha não estava mentindo. Havia também uma escada
de corda. Joy foi o primeiro a subir, com o revólver na mão direita. Oreza limitou-se a olhar
enquanto Freeland seguia o companheiro. Quando chegaram ao convés, os homens seguraram as
armas com as duas mãos e se dirigiram para a superestrutura, desaparecendo por um período de
tempo que pareceu uma hora, mas na realidade não passou de quatro minutos. Alguns pássaros
levantaram voo, assustados. Quando Joy tornou a aparecer, seu revólver não estava visível.
— Temos três corpos lá em cima e uma grande quantidade do que parece ser heroína. Chame
seu barco e peça para eles avisarem ao meu quartel que vamos precisar de um legista.
Marinheiro, você acaba de inaugurar um serviço de transporte.
— O departamento de caça e pesca tem barcos mais apropriados para este tipo de trabalho.
Quer que eu entre em contato com eles?
— Boa ideia. Mas depois eu gostaria que você desse uma circulada por aí. A água não está
muito turva e a garota nos contou que aqueles caras jogaram alguns corpos nesta região. Está
vendo o material que encontramos no barco de pesca?
Oreza olhou na direção indicada e notou pela primeira vez a rede e os blocos de cimento.
— Minha nossa!
— Está bem, vamos dar uma volta.
Foi o que fizeram, depois que Oreza falou com seus homens pelo rádio.

— Olá, Sandy.
— John! Onde está?
— No meu apartamento da cidade.
— Um policial esteve aqui ontem perguntando por você.
— Ah, é? — Os olhos de Kelly se estreitaram enquanto mastigava o sanduíche.
— Disse que era melhor procurá-lo o quanto antes. Para o seu próprio bem.
— Que bonzinho! — observou Kelly, com ironia.
— O que pretende fazer?
— Você não gostaria de saber, Sandy.
— Tem certeza?
— Tenho.
— Por favor, John, por favor, pense bem no que ele disse.
— Já pensei, Sandy. Sério. Tudo vai dar certo. Obrigado pela informação.
— Alguma coisa errada? — perguntou outra enfermeira, depois que Sandy desligou.
— Não — respondeu Sandy, mas a amiga logo percebeu que estava mentindo.

Hum! Kelly acabou de beber a Coca. Isso confirmava suas suspeitas a respeito da visita de
Oreza. As coisas estavam se complicando, mas também tinham estado complicadas na semana
anterior. Estava indo para o quarto quando alguém bateu à porta. Não podia deixar de atender;
tinha aberto as janelas para arejar o apartamento, de modo que era evidente que havia alguém
em casa. Respirou fundo e abriu a porta.
— Andou sumido, Sr. Murphy — disse o administrador, para alívio de Kelly.
— Passei duas semanas trabalhando no Meio-Oeste e depois fui descansar uma semana na
Flórida — mentiu Kelly.
— Onde está o seu bronzeado?
— Passei a maior parte do tempo dentro de casa — explicou o rapaz, com um sorriso
amarelo.
O administrador achou graça.
— Há gosto para tudo. Bem, eu só vim ver se estava tudo bem.
— Está tudo ótimo — assegurou-lhe Kelly, fechando a porta antes que o homem tivesse tempo
de perguntar mais alguma coisa.
Precisava dormir um pouco. Parecia que seu destino era trabalhar à noite. Era como se
estivesse do outro lado do mundo, pensou Kelly, deitando-se no colchão empelotado.

Fazia calor no jardim zoológico. Seria melhor se tivessem combinado se encontrar no


cercado dos ursos-panda, sempre cheio de visitantes dispostos a se maravilhar com o magnífico
presente da República Popular da China, ou China Comunista, como dizia Ritter. O lugar tinha
ar condicionado e era muito confortável, mas os agentes do serviço de espionagem não se
sentiam à vontade em ambientes fechados, e por isso ele agora estava se dirigindo para o lago
avantajado onde ficavam os cágados das Ilhas Galápagos. Ou será que eram tartarugas? Ritter
não sabia a diferença, se é que havia alguma. Também não sabia por que precisavam de uma
área tão grande. Parecia um desperdício para uma criatura se movia com a rapidez de uma
geleira.
— Olá, Bob.
— "Charles" era agora um apelido desnecessário, embora Voloshin tivesse ligado
diretamente para a mesa de Ritter, como que para mostrar como era esperto. No caso de uma
ligação dos russos, o nome de código deveria ser "Bill".
— Olá, Sergey. — Ritter apontou para os répteis. — Eles fazem lembrar a forma como
nossos governos trabalham, não acha?
— Não sou assim. — O russo bebeu um gole de refrigerante. — Nem você.
— OK. O que Moscou tem a dizer?
— Esqueceu-se de me contar uma coisa.
— O quê?
— Que vocês também capturaram um oficial vietnamita.
— E daí? — perguntou Ritter, em tom casual, tentando esconder sua irritação, como o
interlocutor podia ver claramente.
— É um complicador. Moscou ainda não sabe.
— Nem precisa saber — observou Ritter. — Como você mesmo disse, é um complicador.
Posso lhe assegurar que seus aliados também não sabem.
— Como pode ter certeza?
— Sergey, você me revelaria suas fontes de informações? — replicou Ritter, encerrando
aquela fase da discussão. Era preciso ter cuidado com o que dizia, por mais de uma razão. —
Escute, vocês gostam daqueles filhos da puta tanto quanto nós, certo?
— Eles são nossos fraternais aliados socialistas.
— Claro, e nós temos baluartes da democracia em toda a América Latina. Está aqui para um
curso relâmpago de filosofia política?
— A vantagem em lidar com inimigos é que a gente sempre sabe de que lado eles estão. Nem
sempre se pode dizer o mesmo dos amigos — admitiu Voloshin. Isso também explicava por que
seu governo se sentia à vontade para negociar com o atual presidente dos Estados Unidos. Podia
ser um filho da puta, mas pelo menos sabiam exatamente o que ele queria, A verdade, admitiu
Voloshin para si próprio, era que os vietnamitas não tinham muita importância. O centro das
ações estava na Europa. Sempre tinha sido assim. Sempre seria. Havia séculos que o curso da
história era decidido na Europa, e nada podia mudar isso.
— Vai comunicar esse boato a seus superiores? Pedir uma investigação? Adiar nosso
acordo? Por favor, general, não podemos nos dar a esse luxo. Se alguma coisa acontecer aos
nossos homens, a presença de seu oficial no Vietnã não poderá mais ser mantida em segredo. O
Pentágono sabe de tudo, Sergey. Eles querem aqueles homens de volta e estão cagando para a
détente. — A expressão grosseira mostrou o que Ritter realmente sentia.
— Você se importa com a détente. O seu departamento se importa.
— Ela certamente tornará nossa vida bem mais simples. Onde estava em 1962, Sergey? —
perguntou Ritter, conhecendo a resposta e imaginando o que o russo diria.
— Em Bonn, como sabe muito bem, vendo as forças de vocês entrarem em alerta porque
Nikita Sergeyevich resolveu ir em frente com aquela brincadeira ridícula. — Como ambos
sabiam, ignorando tanto os conselhos do KGB quanto os do Ministério do Exterior. — Nunca
vamos ser amigos, mas pelo menos podemos jogar de acordo com certas regras. Não é para isso
que estamos aqui?
Ele é um homem sensato, pensou Voloshin, com agrado. Homens sensatos tinham um
comportamento previsível, e isso, acima de tudo, era o que os russos queriam dos americanos.
— Está quase me convencendo, Bob. Tem certeza de que nossos aliados não sabem que um de
seus oficiais foi sequestrado?
— Tenho. Minha oferta para que tenha um encontro com o seu agente ainda está de pé —
acrescentou.
— Sem direitos recíprocos? — perguntou Voloshin.
— Para isso, vou precisar de permissão dos meus superiores. Posso tentar, se você insistir,
mas isso também seria um complicador — afirmou Ritter, colocando o copo de plástico vazio
em uma lata de lixo.
— Eu insisto — declarou Voloshin, laconicamente.
— Está bem. Vou ver o que posso fazer. O que oferece em troca?
— Em troca, prometo examinar sua proposta — concluiu Voloshin, afastando-se sem dizer
mais nada.
Peguei você!, pensou Ritter, dirigindo-se para o local onde deixara o carro. Estava envolvido
em um jogo sutil. Havia três possíveis fontes de vazamento de informações sobre a operação
BUXO VERDE. Visitara cada uma delas. Na primeira, dissera que tinham conseguido resgatar
um prisioneiro, mas ele morrera pouco depois. Na segunda, que o russo estava seriamente
ferido e talvez não sobrevivesse. Entretanto, reservara a melhor isca para a fonte mais provável.
Agora tinha certeza. A busca estava reduzida a quatro suspeitos: Roger MacKenzie, seu
assistente e duas secretárias. A rigor, aquele era um trabalho para o FBI, mas Ritter nilo queria
mais complicações e uma investigação de espionagem no escritório do presidente dos Estados
Unidos seria uma coisa muito complicada. De volta ao carro, decidiu procurar um amigo na
Diretoria de Ciência e Tecnologia.
Ritter tinha muito respeito por Voloshin. Um homem inteligente, muito cuidadoso e metódico,
coordenara o trabalho dos agentes em toda a Europa ocidental antes de ser enviado a
Washington. Manteria sua palavra, e para ter certeza de não ser mal interpretado pelos
superiores, agiria estritamente de acordo com as regras severas da sua organização. Ritter
estava contando com isso. Se a sua estratégia desse certo, além do outro golpe que estava
preparando, a que altura conseguiria chegar? Melhor ainda, estaria subindo graças aos próprios
méritos, não através do pistolão de algum político, mas como o filho de um guarda-florestal do
Texas que trabalhara como garçom para conseguir se formar em Baylor.
Era uma coisa que Sergey teria apreciado, como bom marxista-leninista que era, pensou
Ritter, manobrando o carro para entrar na Connecticut Avenue. Garoto da classe operária
consegue subir na vida.

Era uma forma diferente de conseguir informações, tão agradável que Kelly não se importaria
em usá-la outras vezes. Estava sentado em uma mesa de canto do Mamma Maria's, degustando
sem pressa o segundo prato — não, obrigado, não posso beber vinho, estou dirigindo. Vestido
com o terno da CIA, bem penteado, usando um corte de cabelo moderno, era alvo dos olhares de
umas poucas mulheres desacompanhadas e de uma garçonete que tinha ficado positivamente
caída por ele, especialmente por seu jeito educado de tratá-la. A qualidade da comida explicava
por que o lugar estava sempre cheio, e o fato de estar sempre cheio explicava por que Tony
Piaggi e Henry Tucker tinham decidido se encontrar ali. Mike Aiello concordara imediatamente
com a ideia. Na verdade, Mamma Maria's pertencia à família Piaggi, que há três gerações,
desde o tempo da Lei Seca, vinha fornecendo comida e outros serviços menos legais à
comunidade. O proprietário era um bon vivant que recebia pessoalmente na porta os fregueses
antigos e lhes mostrava suas mesas com a hospitalidade do Velho Mundo. Também sabia se
vestir, pensou Kelly, lembrando-se do rosto do homem, dos seus gestos e maneirismos, enquanto
saboreava mais uma lula. Um homem negro entrou. Usava um terno impecável e parecia
conhecer muito bem o lugar; sorriu para a recepcionista e esperou por alguns segundos até que o
proprietário o avistasse.
Piaggi levantou os olhos e se dirigiu para aporta, parando no caminho apenas por um
momento para apertar a mão de alguém. Fez o mesmo com o homem negro; em seguida, os dois
passaram pela mesa de Kelly e subiram a escada dos fundos, onde ficavam os salões
particulares. Ninguém reparou neles. Havia alguns casais de cor no restaurante, que eram
tratados da mesma forma que os outros fregueses. Esses negros eram honestos, pensou Kelly.
Procurou concentrar-se no seu objetivo. Então esse é Henry Tucker. O homem que matou Pam.
Ele não parecia um monstro. Muitos monstros eram assim.
Para Kelly, era mais um alvo do que qualquer outra coisa. Procurou gravar na memória seus
traços fisionômicos, juntamente com os de Piaggi. Ficou muito surpreso quando baixou os olhos
e descobriu que o garfo que tinha nas mãos estava torto.
— Qual é o problema? — perguntou Piaggi. Como bom anfitrião que era, serviu para cada um
um copo de Chianti, mas logo que a porta se fechou, a expressão de Henry deixou claro que algo
muito sério acontecera.
— Eles não voltaram.
— Phil, Mike e Burt?
— Isso mesmo! — concordou Henry, com uma careta.
— OK, vamos com calma. Estavam com muito material?
— Vinte quilos, cara. A ideia era mandar uma parte para Nova York, outra para Filadélfia e
deixar o resto aqui.
— É muita coisa, Henry. — Tony fez que sim com a cabeça. — Talvez tenham simplesmente
se atrasado.
— Já deviam estar de volta há muito tempo!
— Escute, Phil e Mike ainda estão aprendendo. Devem ter ficado atrapalhados, como Eddie e
eu ficamos na primeira vez... bolas, Henry, eram apenas cinco quilos, lembra-se?
— Mesmo assim — insistiu Henry.
— Não sei por que você está tão preocupado — disse Tony, bebendo um gole de vinho e
procurando aparentar uma calma que não sentia. — Até agora conseguimos resolver todos os
problemas que apareceram, certo?
— Alguma coisa está errada, cara.
— O quê?
— Não sei.
— Quer pegar um barco e ir até lá para ver?
Tucker sacudiu a cabeça.
— Levaria muito tempo.
— Só vamos nos encontrar com os outros caras daqui a três dias. Fique calmo.
Provavelmente eles estão a caminho.
Piaggi podia entender o nervosismo de Tucker. Tratava-se de uma operação de grande porte.
Vinte quilos de heroína pura podiam ser transformados em uma grande quantidade de droga, e o
fato de que estavam vendendo o produto já diluído e embalado era tão conveniente pura os
fregueses que eles haviam concordado em pagar um preço especial. Aquele era o grande golpe
que Tucker vinha planejando há anos. Não era de admirar que estivesse tão tenso.
— Tony, e se estávamos errados ao suspeitar de Eddie?
— Foi você quem disse que só podia ser ele, lembra? — replicou Piaggi, com irritação.
Tucker achou melhor não discutir. Usara uma desculpa para eliminar o homem, por considerá-
lo uma complicação desnecessária. Sua ansiedade se devia em parte ao vulto do negócio, como
Tony pensava, mas havia outra razão. As coisas que tinham acontecido no verão, as coisas que
tinham começado sem motivo aparente e parado sem nenhuma explicação... acabara se
convencendo de que eram obra de Eddie Morello, mas apenas porque queria acreditar. Na
ocasião, uma voz interior lhe dissera outra coisa; agora, a mesma voz estava de volta, e desta
vez não havia nenhum Eddie para servir de alvo para a sua ansiedade e o seu ódio. Um homem
saído do nada, que chegara até ali graças a uma combinação complexa de inteligência, coragem
e instinto, confiava mais nesta última qualidade do que nas duas primeiras. Agora ela lhe dizia
coisas incompreensíveis. Provavelmente Tony estava certo. Como eram inexperientes, tinham
levado mais tempo do que o previsto para processar o material. Essa era uma das razões pelas
quais estavam montando um laboratório em Baltimore. Agora podiam se dar a esse luxo; dali a
uma semana, teriam até mesmo um negócio legítimo para servir de fechada. Assim, bebeu o
vinho e deixou que o álcool acalmasse seu instinto exacerbado.
— Vamos esperar até amanhã.

— Como foi? — perguntou o timoneiro.


Uma hora ao norte da ilha de Bloodsworth, achou que esperara tempo suficiente para
perguntar ao primeiro-sargento, que estava a seu lado, em silêncio. Afinal, tinha o direito de
saber.
— Jogaram alguém na água para ser comido pelos caranguejos! — contou Oreza, —
Embrulharam o sujeito em uma rede de pesca e usaram alguns blocos de cimento como
contrapeso. Não sobrou muita coisa além dos ossos!
Àquela altura, os peritos da polícia ainda deviam estar discutindo como recuperar o corpo.
Tinha sido uma cena que Oreza levaria anos para esquecer, aquele crânio ainda com restos de
carne, mexendo de um lado para outro por causa das correntes, ou talvez por causa dos
caranguejos. Não olhara tempo suficiente para ter certeza.
— Que coisa horrível! — comentou o timoneiro.
— Sabe quem eu acho que é?
— Quem, Portagee?
— Em maio passado, quando aquele tal de Charon estava a bordo, procuramos por um barco
com uma vela listrada. Acho que é o dono desse barco.
— Ah, eu me lembro. Pode ser que esteja certo, chefe.
Tinham deixado que visse tudo, uma cortesia que, em retrospecto, deveria ter recusado, mas
que na ocasião fora impossível evitar. Não podia recuar na frente dos tiras, já que, afinal,
também era uma espécie de tira. Por isso, subira a escada depois de contar a eles a respeito do
corpo que encontrara a apenas cinquenta metros do velho navio, e vira mais três homens, todos
deitados de bruços no convés do que tinha sido provavelmente a sala de jantar do cargueiro,
todos mortos com um tiro na nuca. Os ferimentos tinham sido bicados pelos pássaros. A visão
quase o fizera perder o controle. Os pássaros tinham sido suficientemente ajuizados para se
manter longe das drogas.
— Estou falando de vinte quilos daquela merda... pelo menos, foi o que os tiras disseram.
Deve valer alguns milhões — explicou Oreza.
— Eu sempre disse que tinha escolhido a profissão errada.
— Os tiras ficaram muito excitados, especialmente o capitão. Acho que vão passar a noite
inteira naquele barco.

— Wally?
A qualidade da gravação deixava muito a desejar. As linhas telefônicas eram muito antigas,
explicou o técnico; não havia nada que pudesse fazer. A central telefônica daquele prédio tinha
sido instalada quando Alexander Graham Bell ainda fabricava aparelhos de surdez.
— Eu mesmo. O que você quer?
— Aquela história do oficial vietnamita. Tem certeza?
— Foi Roger que me contou.
No alvo!, pensou Ritter.
— Onde ele está?
— Em Winchester, provavelmente, junto com o russo.
— Mas você tem certeza?
— Absoluta. Também foi uma surpresa para mim.
— Achei melhor confirmar antes de... você sabe.
— Tudo bem, cara.
O telefone ficou mudo.
— Quem é ele? — quis saber Greer.
— Walter Hicks. Frequentou as melhores escolas, James... Andover e Brown. O pai é um
banqueiro que usou a sua influência política e... olhe aonde o pequeno Wally foi parar. — Ritter
cerrou o punho. — Quer saber por que aqueles homens ainda estão em SINAL VERDE? Por
causa dele, meu amigo.
— O que pretende fazer?
— Não sei. Mas não vai ser nada legal.
A gravação não era; o grampo tinha sido instalado sem ordem judicial.
— Não faça nada precipitado, Bob — advertiu Greer. — Eu estava lá também, lembra-se?
— E se Sergey não concluir o acordo a tempo? Esse miserável terá sido responsável pela
morte de vinte americanos!
— Também não gosto dessa ideia.
— Eu não gosto nem um pouco!
— Traição ainda é um crime capital, Bob.
Ritter levantou a cabeça.
— Como não podia deixar de ser.

Mais um longo dia. Oreza estava começando a invejar o homem que tomava conta do farol de
Point Light. Pelo menos, passava o tempo todo com a família. Ali estava Oreza, com a menina
mais inteligente do jardim de infância, e raramente conseguia ficar com ela. Talvez acabasse
aceitando aquele cargo de professor em New London, pensou Portagee, só para poder desfrutar
por um ano ou dois de uma vida familiar. Isso o obrigaria a conviver com meninos que um dia
seriam oficiais, mas pelo menos eles aprenderiam as artes náuticas da maneira correta.
Estava sozinho com seus pensamentos. A tripulação já se recolhera para dormir, mas Oreza
ficara para trás, atormentado pelas imagens recentes. O homem devorado por caranguejos e os
três indivíduos bicados por pássaros o privariam do sono a menos que tirasse aquilo da sua
consciência... e tinha uma desculpa, não tinha? Remexeu na mesa até encontrar o cartão.
— Alô.
— Tenente Charon? Aqui é o primeiro-sargento Oreza, de Thomas Point.
— Sabe que horas são? — perguntou Charon. Quando o telefone tocou, ele se preparava para
ir para a cama.
— O senhor se lembra daquele dia de maio em que saímos à procura de um veleiro?
— Claro que me lembro. Por quê?
— Acho que encontramos o homem. — Oreza teve a impressão de que podia ouvir os olhos
do outro se arregalarem.
— Como assim?
Portagee descreveu o que acontecera com todos os detalhes e sentiu que o mal-estar o
deixava, quase como se estivesse sendo transmitido para a outra extremidade da linha. Não
tinha como saber que era exatamente isso que estava acontecendo.
— Quem é o capitão encarregado do caso?
— O sobrenome dele é Joy. Trabalha no condado de Somerset. O senhor o conhece?
— Não.
— Ah, mais uma coisa — lembrou-se Oreza.
— Sim?
— Conhece o tenente Ryan?
— Conheço. Trabalha no centro, como eu.
— Ele me pediu para localizar alguém, um sujeito chamado Kelly. O senhor o conhece de
vista.
— É mesmo?
— Na noite em que estávamos procurando o veleiro, cruzamos com ele, pouco antes do
amanhecer. Mora numa ilha, perto de Bloodsworth. O Tenente Ryan precisa falar com ele. Fui
até lá, mas não havia ninguém em casa. Podia dar esse recado ao tenente?
— Claro — respondeu Charon, cujo cérebro estava funcionando a mil por hora.
35

RITO DE PASSAGEM

Mark Charon estava consciente de que se encontrava em uma situação difícil. Podia ser um
policial corrupto, mas isso não queria dizer que fosse estúpido. Na verdade, era dotado de
raciocínio claro e preciso, Quando cometia erros, sabia reconhecê-los. Era o que fazia naquele
exato momento, deitado na cama, desligando o telefone após a conversa com o sargento da
Guarda Costeira. Henry não ia gostar nada quando soubesse que perdera o laboratório e três dos
seus homens. Pior ainda: parecia que grande quantidade de heroína fora apreendida; mesmo o
estoque de Henry era finito. O pior de tudo, porém, era que o responsável pelo desastre não
tinha sido identificado e ainda estava à solta, fazendo... o quê?
Sabia quem era Kelly. Revendo os fatos, chegara à conclusão de que, por incrível
coincidência, ele dera carona a Pam Madden no mesmo dia em que Angelo Vorano tinha sido
eliminado. A moça estava a bordo do iate de Kelly naquela noite de tempestade em que o barco
fora abordado pelo cúter da Guarda Costeira. Agora, Ryan e Tom Douglas estavam interessados
no rapaz, a ponto de pedirem à Guarda Costeira para procurá-lo. Por quê? Se quisessem apenas
esclarecer alguma dúvida com uma testemunha, podiam fazer isso por telefone. Em e Tom
estavam trabalhando no caso do chafariz, juntamente com todos os outros que haviam começado
algumas semanas depois. Dissera a Henry que Kelly era um "vagabundo de praia", mas os
principais detetives do departamento estavam à sua procura, ele estivera envolvido diretamente
com uma moça da organização de Henry, era dono de um barco e não morava muito longe do
laboratório onde as drogas eram processadas. Tratava-se de uma longa e improvável série de
coincidências, complicada pelo fato de que Charon não era mais um policial investigando um
crime, mas um criminoso que participara dos crimes que estavam sendo investigados.
O pensamento deixou o tenente chocado. Por alguma razão, jamais pensara em si mesmo
nesses termos. Charon estava acostumado a se considerar acima dos outros mortais,
observando, agindo ocasionalmente, mas sem jamais se envolver diretamente com os traficantes.
Afinal de contas, podia se orgulhar da maior série de sucessos da história da divisão de
narcóticos, coroada com a execução de Eddie Morello, que fora talvez o golpe mais inteligente
de sua carreira: eliminara um traficante, cometera um assassinato premeditado na frente de nada
menos do que seis outros policiais e fora declarado inocente, o que lhe valera uma licença
remunerada, além do que Henry lhe pagara. Aquilo lhe parecera um serviço particularmente
divertido e não muito diferente do trabalho que a sociedade lhe pagava para fazer. Os homens
vivem de acordo com suas ilusões, e Charon não era diferente dos outros. Não que tentasse se
convencer de que o que estava fazendo era certo; simplesmente concentrava toda a atenção nas
informações que Henry lhe fornecia a respeito dos outros traficantes, tirando assim das ruas os
possíveis concorrentes. Manipulando sua equipe de detetives, conseguira a façanha de entregar
todo o mercado local ao único fornecedor a respeito do qual não havia nenhuma informação nos
arquivos da polícia. Isso permitira a Henry ampliar as operações, atraindo a atenção de Tony
Piaggi e suas ligações na Costa Leste. Em breve seria forçado a permitir que seus homens
prendessem alguns membros menores da organização. Dissera isso a Henry, e Henry
concordara, sem dúvida depois de se aconselhar com Piaggi, que era sofisticado o bastante para
entender as sutilezas do jogo.
Entretanto, alguém jogara um fósforo nessa mistura altamente volátil. As pistas de que
dispunha apontavam numa certa direção, mas não eram suficientes. Teria que investigar um
pouco mais, certo? Charon refletiu por um momento e depois tirou o fone do gancho. Precisou
de três ligações para descobrir o número correto.
— Polícia estadual.
— Aqui é o tenente Charon, da polícia municipal de Baltimore, Estou procurando o capitão
Joy.
— Tenente, o senhor está com sorte. Ele acaba de chegar. Um momento, por favor.
Não teve que esperar muito.
— Capitão Joy — disse uma voz cansada.
— Aqui é o tenente Charon. Mark Charon, da polícia municipal. Trabalho na divisão de
narcóticos. Soube que vocês apreenderam uma grande quantidade de heroína.
— É verdade.
Charon pôde ouvir o homem sentar-se na cadeira com um misto de satisfação e fadiga.
— Pode me fazer um resumo? Talvez eu possa contribuir com algumas informações.
— Quem lhe contou a respeito?
— O cara da Guarda Costeira que levou vocês até lá. O nome dele é Oreza. Trabalhamos
juntos em alguns casos. Lembra-se daquela fazenda no condado de Talbot onde foi encontrada
uma plantação de maconha?
— Foi você? O crédito ficou com a Guarda Costeira.
— Eu não quis aparecer, para não comprometer meu informante. Escute, se quiser conferir
minha história, é só ligar para eles. Eu lhe dou o número. O chefe da estação se chama Paul
English.
— Está certo, Charon. Você me convenceu.
— Em maio passado, passei um dia e uma noite com eles no mar procurando um suspeito. Ele
jamais foi encontrado. Nem ele nem o barco. Oreza me disse...
— O homem dos caranguejos! — exclamou Joy. — Alguém jogou um corpo no mar. Parece
que isso aconteceu há algum tempo. Pode me dizer quem é ele?
— Angelo Vorano. Morava aqui na cidade. Um pequeno traficante que estava tentando subir
na vida.
Charon forneceu uma rápida descrição.
— A altura confere, mas vamos verificar a arcada dentária para ter certeza. Obrigado,
tenente. Como posso retribuir?
— Conte-me tudo sobre o caso. — Charon passou alguns minutos fazendo anotações. — O
que fizeram com essa tal de Xantha?
— Foi detida como testemunha, com a aprovação do advogado. Ficamos preocupados com a
segurança da moça. Estamos lidando com uma turma da pesada.
— É o que parece — concordou Charon. — Está bem, vou ver o que consigo descobrir para
vocês.
— Mais uma vez, obrigado pela ajuda.
— Minha nossa! — murmurou Charon, depois de desligar. Um homem branco... um grande
iate branco. Burt e os dois homens que Tony evidentemente designara para a operação, mortos
com tiros de .45 na nuca. Execuções como aquela não estavam ainda na moda no negócio de
drogas. A frieza com que o crime fora cometido deixou Charon arrepiado.
Mas não era frieza e sim eficiência, certo? Como no caso dos outros traficantes. Como no
caso que Tom e Em estavam investigando. Agora queriam falar com o tal de Kelly, um homem
branco, dono de um grande iate branco, que morava não muito longe do laboratório. Era muita
coincidência.
Pelo menos, podia telefonar para Henry sem problemas. Sabia quais os telefones que estavam
sendo grampeados e nenhum deles pertencia à organização de Tucker.
— Sim?
— Burt e seus amigos foram assassinados — anunciou Charon.
— Como assim? — perguntou uma voz sonolenta.
— Você ouviu o que eu disse. A polícia estadual levou os corpos para Somerset. Também
encontraram o que sobrou de Angelo. O laboratório já era, Henry. As drogas sumiram e Xantha
está sendo mantida sob custódia.
O tom de voz de Charon não era exatamente pesaroso. Seu treinamento de policial fazia com
que o desmantelamento de uma operação criminosa lhe trouxesse uma certa alegria íntima.
— Que diabo está acontecendo? —, perguntou Henry, quase histérico.
— Acho que sei a resposta. Precisamos nos encontrar.

Kelly resolveu dar outra olhada no esconderijo que escolhera, da janela do fusca alugado,
antes de voltar para o apartamento. Sentia-se cansado, embora satisfeito com o excelente jantar.
A sesta que tirara tinha sido suficiente para mantê-lo desperto depois de um longo dia, mas a
razão principal era dissipar um pouco a raiva que estava sentindo. Para o rapaz, dirigir tinha
esse efeito calmante. Agora, conhecia o homem que estrangulara Pam com um cadarço de
sapato. Teria sido fácil acabar com ele ali mesmo. Kelly nunca matara ninguém com mãos nuas,
mas sabia como fazê-lo. Em Coronado, na Califórnia, instrutores de primeira tinham passado
muito tempo ensinando-lhe os fundamentos até que, no momento em que olhava para uma
pessoa, aplicava mentalmente a ela um papel milimetrado, este golpe neste lugar, aquele golpe
naquele lugar... e deixando claro para ele que, sim, tudo aquilo valia a pena. Valia a pena correr
o risco e valia a pena enfrentar as consequências... mas isso não significava que fosse obrigado
a aceitá-las, da mesma forma que pôr a vida em perigo não era a mesma coisa que jogá-la fora.
Aquele era o reverso da medalha.
Agora, porém, podia ver o fim da longa caminhada e tinha que começar a pensar no que fazer
em seguida. Muito bem, os tiras sabiam quem ele era, mas não dispunham de provas. Mesmo
que aquela garota, Xantha, resolvesse contar tudo que sabia, não podia identificá-lo, pois tivera
o cuidado de pintar o rosto com tinta de camuflagem. O único perigo era de que tivesse
observado o número de registro do barco depois que a deixara no cais, mas isso era uma
possibilidade remota. Sem provas, jamais poderiam levá-lo a julgamento. Sabiam que odiava
algumas pessoas... e daí? Podiam até descobrir que tinha sido treinado para matar... e daí? Seu
jogo tinha certas regras; o jogo deles tinha outras. No conjunto, as regras trabalhavam a seu
favor, e não a favor deles.
Olhou pela janela do carro, avaliando ângulos e distâncias, traçando um plano preliminar e
analisando algumas variações. Eles tinham escolhido um lugar onde havia poucos carros da
polícia e muitos espaços abertos. Ninguém podia se aproximar facilmente sem ser visto. Se
fosse necessário, destruiriam as provas antes de serem apanhados. Era uma solução lógica para
um problema tático, mas havia um senão: tinham deixado de levar em conta um outro conjunto
de regras.
O problema não é meu, pensou Kelly, dirigindo de volta para seu apartamento.

— Meu Deus... — Roger MacKenzie empalideceu e sentiu um nó no estômago. Estavam de pé


no quintal da sua casa, em um subúrbio de Washington. A mulher e a filha tinham ido fazer
compras em Nova York para a temporada do outono. Ritter chegara de surpresa às seis e quinze,
com uma notícia que não combinava com a brisa agradável da manhã. — Conheço o pai dele há
trinta anos.
Ritter bebeu um gole de suco de laranja, embora o ácido também não estivesse fazendo muito
bem a seu estômago. Aquilo era traição da pior espécie. Hicks sabia que seus atos podiam
prejudicar cidadãos americanos, um dos quais conhecia pelo nome. Ritter já o julgara e
condenara mentalmente, mas Roger precisava de tempo para pensar.
— Estivemos juntos em Randolph. Fazíamos parte do mesmo grupo de bombardeiros —
estava dizendo MacKenzie. Ritter resolveu deixá-lo desabafar, mesmo que isso levasse algum
tempo. — Tivemos vários negócios em comum... — terminou o homem, olhando para o
desjejum ainda intocado.
— Não posso condená-lo por recebê-lo no escritório, Roger, mas o garoto é culpado de
espionagem.
— O que pretende fazer?
— Espionagem é crime, Roger — observou Ritter.
— Estou de viagem marcada. Fui convidado para viajar por todo o nordeste na campanha
pela reeleição.
— Tão cedo?
— Jeff Hicks pretende coordenar a campanha de Massachusetts, Bob. Estarei trabalhando
diretamente com ele. — MacKenzie olhou para o outro lado da mesa, falando aos arrancos. —
Bob, uma investigação de espionagem no nosso escritório... seria um desastre. Se o que
fizemos... se o público tomar conhecimento daquela operação... quero dizer, se souberem o que
aconteceu, o que deu errado...
— Sinto muito, Roger, mas aquele filho da puta é um traidor da pátria.
— Posso demiti-lo...
— Seria muito pouco — afirmou Ritter, friamente. — O que ele fez pode custar a vida de
muita gente. Não pode escapar impune.
— Tenho autoridade para...
— Obstruir a justiça, Roger? — observou Ritter. — Ocultar um crime?
— Não podia grampear o telefone dele sem autorização judicial.
— Era uma questão de segurança nacional. Estamos em guerra, lembra-se? As regras são um
pouco diferentes. Além do mais, tudo o que precisamos fazer é mostrar-lhe a gravação. Ele vai
confessar tudo.
— E correr o risco de envolver o presidente? Na atual conjuntura? Acha que isso vai ajudar
o país? E as nossas relações com os russos? Estamos passando por um momento decisivo, Bob.
Não era o que os políticos sempre diziam?, Ritter teve vontade de comentar. Em vez disso,
limitou-se a dizer:
— Vim procurá-lo em busca de orientação.
— Não podemos permitir uma investigação que leve a um julgamento público. Isso seria
politicamente inaceitável — declarou MacKenzie, dando a conversa por encerrada.
Ritter agradeceu e foi embora. A viagem de volta para seu escritório em Langley não foi
muito agradável. Embora fosse mais fácil agir por conta própria, Ritter agora estava diante de
algo que, embora desejável, não queria que se tornasse um hábito. A prioridade agora era tirar o
grampo. O mais cedo possível.

Depois de tudo o que acontecera, foi o jornal que colocou as coisas em movimento. A
manchete de quatro colunas, abaixo da dobra, anunciava um triplo assassinato associado ao
tráfico de drogas no sonolento condado de Somerset. Ryan devorou a reportagem e nem chegou
à página esportiva que em geral ocupava quinze minutos da sua rotina matinal.
Tem que ser ele, pensou o tenente. Quem mais deixaria para trás "uma grande quantidade" de
drogas, junto com os três cadáveres? Naquela manhã, saiu de casa quarenta minutos mais cedo
que de costume, surpreendendo a esposa.
Sandy tinha terminado a primeira ronda da manhã e estava conferindo alguns formulários
quando o telefone tocou.
— Srta. O'Toole?
— Sim?
— Aqui é James Greer. Acho que já falou com Barbara, minha secretária.
— É verdade. Em que posso ajudá-lo?
— Detesto incomodá-la, mas precisamos muito falar com John. Ligamos para a casa dele,
mas ele não estava.
— Eu sei. Acho que está na cidade, mas não sei exatamente onde.
— Se John se comunicar com a senhora, peça a ele para me telefonar, está bem? Ele tem o
meu número. Fico muito agradecido — disse o homem, com toda a educação.
— Pode deixar. — O que será que está acontecendo?, pensou a moça. Era estranho. A polícia
procurara por John; contara a ele, que pareceu não se importar. Agora alguém mais estava
querendo falar com ele. Por quê? Foi então que bateu com os olhos na manchete do jornal que o
irmão de uma de suas pacientes estava lendo no saguão:
TRAFICANTES ASSASSINADOS EM SOMERSET.
— Todo mundo está interessado nesse cara — comentou Frank Allen.
— Como assim?
Charon visitara o Western District a pretexto de acompanhar a investigação administrativa da
morte de Morello. Dissera a Allen que gostaria de ler as declarações dos outros policiais e das
três testemunhas civis. Como Charon abrira mão do direito de se fazer representar por um
advogado e todos os depoimentos o inocentavam, Allen não viu nenhum mal em atender ao
pedido, contanto que a leitura fosse feita na sua frente.
— Logo depois daquele telefonema de Pittsburgh a respeito da garota que acabou sendo
assassinada, Em ligou para falar sobre ele. Agora é você. Por quê?
— Alguém mencionou o nome. Ainda não sabemos ao certo do que se trata. O que sabe a
respeito dele?
— Mark, você se esqueceu de que está de licença?
— Está me dizendo que não vou voltar a trabalhar qualquer dia desses? Quer que eu desligue
o meu cérebro, Frank? Será que deixei de ler um artigo de jornal que dizia que os bandidos
também tiraram uma licença?
Allen teve que concordar.
— Estou começando a desconfiar que há alguma coisa errada com esse sujeito. Devo ter
alguma coisa sobre ele. Já volto.
Allen se levantou e foi até a sala do arquivo. Charon fingiu que estava lendo as declarações
das testemunhas até o outro voltar. Uma pasta foi colocada no seu colo.
— Aqui está.
Era a pasta de Kelly, mas não continha muitas informações relevantes, como Charon pôde
constatar ao folheá-la. Incluía os diplomas de mergulhador, suas avaliações como instrutor e
outros dados do mesmo tipo. Charon levantou os olhos.
— Ouvi dizer que ele mora numa ilha.
— É verdade. Uma vez conversamos a respeito. Mas você ainda não me disse o que ele fez.
— Nada, que eu saiba. O nome dele apareceu em uma investigação que eu estava fazendo e
fiquei curioso.
— Na verdade, eu devia ter mandado esse material para Em e Tom, mas me esqueci.
Que sorte.
— Vou passar lá perto. Quer que eu entregue a eles?
— Você faria isso para mim?
— Claro.
Charon colocou a pasta debaixo do braço. Sua primeira parada foi em uma papelaria, onde
tirou fotocópias dos documentos. Depois, procurou uma loja de fotografia, onde, depois de
mostrar o distintivo, conseguiu que fizessem, em menos de dez minutos, cinco ampliações da
foto 3x4, Deixou as cópias no carro quando passou na delegacia para entregar a pasta. Podia ter
simplesmente ficado com ela, mas seria mais prudente continuar a agir como um policial normal
fazendo um favor a um colega.

— Então, como foi? — perguntou Greer, depois de fechar a porta do escritório.


— Roger disse que uma investigação teria consequências políticas adversas — respondeu
Ritter.
— Ora essa! O que vamos fazer?
— Ele me pediu para cuidar do assunto — acrescentou Ritter. Não com essas palavras, mas
era isso que queria dizer. Era melhor não complicar a questão.
— Cuidar como?
— O que acha, James?

— De onde isto veio? — perguntou Ryan, quando a pasta foi parar na sua mesa.
— Foi entregue por um detetive — respondeu o jovem policial. — Disse que era para você.
— OK. — Ryan dispensou o guarda e abriu a pasta, deparando pela primeira vez com uma
foto de John Terrence Kelly. Ele entrara para a Marinha duas semanas depois de completar
dezoito ano. e ficara durante... seis anos, antes de passar para a reserva como suboficial. Era
evidente que se tratava de uma versão simplificada de sua folha corrida, o que era de se
esperar, já que o departamento estava interessado principalmente nas suas qualificações como
mergulhador. Ali estava a data em que se formara na escola de UDT. Também eram
mencionados os cursos de mergulho que ministrara enquanto estava na Marinha. As três vezes
em que fora avaliado obtivera 4, o grau máximo, e havia também uma floreada carta de
recomendação assinada por um almirante três estrelas. O almirante tivera a ideia de anexar uma
lista das condecorações de Kelly, para impressionar ainda mais a polícia municipal de
Baltimore: Cruz do Mérito Naval, Estrela de Prata, Estrela de Bronze com "V" de Combate
concedida mais de uma vez, Purple Heart, a condecoração para feridos, também concedida mais
de uma vez...
— Puxa, o cara é mesmo tudo o que eu pensava!
Ryan pôs a pasta de lado, depois de observar que fazia parte do arquivo do caso Gooding.
Isso queria dizer que tinha sido enviada por Frank Allen. Ligou para ele.
— Obrigado pelas informações a respeito de Kelly. Pensei que tivesse desistido de encontrá-
las.
— Mark Charon esteve aqui para conversar sobre aquele tiroteio — explicou Allen. — Disse
que o nome de Kelly apareceu em um dos casos que está investigando. Desculpe, mas eu tinha
me esquecido completamente dessa pasta. Mark se ofereceu para entregá-la a você. O processo
dele está quase concluído. Com todos os depoimentos favoráveis, é só questão de tempo para
que... — continuou a falar, mas Ryan não estava mais interessado.
Isso está indo depressa demais. Charon. Sempre Charon...
— Frank, tenho uma pergunta para lhe fazer. Quando aquele tal de sargento Meyer telefonou
de Pittsburgh, comentou o caso com alguém?
— O que está insinuando, Em? — perguntou Allen, levemente ofendido.
— Não estou acusando você de ligar para os jornais, Frank.
— Foi no dia em que Charon matou o traficante, não foi? — Allen procurou lembrar-se. —
Posso ter comentado com ele... pensando bem, acho que foi a única pessoa que esteve comigo
naquela tarde.
— OK. Obrigado, Frank.
Ryan procurou no catálogo o número do quartel "V" da polícia estadual.
— Capitão Joy — atendeu uma voz cansada. O comandante do quartel teria dormido em uma
cela se fosse necessário, mas por tradição o quartel da polícia estadual dispunha de um
alojamento e ele encontrara uma cama confortável para suas quatro horas e meia de sono. Joy já
estava rezando para que o condado de Somerset voltasse ao normal, embora o episódio pudesse
muito bem lhe render uma promoção para major.
— Aqui é o tenente Ryan, da divisão de homicídios da polícia municipal.
— Parece que de repente todos os policiais da cidade começaram a se interessar por nós —
comentou Joy, ironicamente. — O que deseja?
— O que quer dizer com isso?
— Quero dizer que a noite passada um dos seus colegas telefonou para cá. Tenente Chair, ou
coisa parecida. Não anotei o nome. Disse que talvez pudesse identificar um dos corpos... eu
anotei o nome dele em algum lugar. Desculpe. Acho que estou virando um zumbi.
— Pode me colocar a par do que aconteceu? Não precisa entrar em detalhes. — Mesmo
assim, havia muito para contar. — A mulher está sob custódia?
— Está.
— Capitão, não a deixe sair daí até que eu ligue de novo, está bem? Tome conta da garota,
por favor. Pode ser a testemunha-chave de vários homicídios.
— Pensa que eu não sei?
— Estou me referindo a outros crimes, que venho tentando desvendar há mais de nove meses.
— A moça não vai a lugar nenhum no futuro próximo — prometeu Joy. — Temos muita coisa
para perguntar a ela e o advogado está querendo negociar.
— Não sabem mais nada a respeito do assassino?
— Apenas o que eu já disse: é um homem branco, de um metro e oitenta, pintado de verde.
Joy não havia falado nisso no seu relato original.
— O que disse?
— A garota mencionou que o rosto e as mãos do criminoso eram verdes. Tinta de
camuflagem, suponho. Mais uma coisa — acrescentou Joy. — O cara é um excelente atirador.
Os três homens foram mortos com um único tiro na nuca, disparado de uma certa distância.
Ryan tornou a abrir a pasta. No final da lista de condecorações de Kelly apareciam duas
medalhas de tiro, uma para fuzil, outra para pistola.
— Voltaremos a nos falar, capitão. Parece que está fazendo um excelente trabalho para
alguém que raramente precisa cuidar de homicídios.
— Prefiro as multas de trânsito — afirmou Joy, antes de desligar.
— Chegou cedo hoje — observou Douglas, que estava atrasado. — Já viu as manchetes?
— Nosso amigo está de volta — disse Ryan, passando-lhe a foto.
— Hoje ele parece bem mais velho — comentou o sargento.
— O que esperava? O homem foi ferido três vezes em combate. — Ryan contou a Douglas
tudo que tinha conseguido apurar. — Quer ir a Somerset conversar com a garota?
— Acha que ela...
— Sim, acho que ela pode ser a testemunha que faltava. Também acho que sei quem é o
delator.
Explicou ao amigo por que suspeitava de Charon.

Kelly telefonara apenas para ouvir a voz da moça. Estava tão perto do objetivo que se dava
ao luxo de pensar no futuro. Não era exatamente uma atitude profissional, mas, com todo o seu
profissionalismo, o rapaz não podia deixar de ter um lado humano.
— John, onde você está?
A voz da enfermeira soava ainda mais preocupada do que na véspera.
— Em um apartamento na cidade — foi tudo que se dispôs a dizer.
— Tenho um recado para você. James Greer pediu para ligar. Disse que sabe o número.
— OK. — Kelly fez uma careta. Devia ter telefonado para Greer na véspera, mas se
esquecera.
— Aquela notícia no jornal. Foi você?
— Do que está falando?
— Dos três traficantes que apareceram mortos!
— Ligo mais tarde — prometeu ele, assim que recuperou a fala. Kelly não assinava nenhum
jornal, por motivos óbvios, mas agora precisava de um. Lembrou-se de que havia uma banca na
esquina. Só precisou ver a manchete.
O que ela sabe a meu respeito?
Era tarde demais para se censurar. Teve que enfrentar o mesmo problema no caso de Doris. A
garota estava dormindo, mas acordara com o barulho dos tiros. Kelly a levara para o continente,
explicara que Burt pretendia matá-la e lhe dera dinheiro suficiente para pegar um ônibus
interestadual. Em vez disso, tinha ido parar numa delegacia. Como aquilo foi acontecer?
Esqueça o como, filho, os tiras a pegaram.
De repente, tudo mudava de figura.
E agora, o que vou fazer? Foi esse pensamento que ocupou sua mente enquanto caminhava de
volta para o apartamento.
Para começar, tinha que se livrar da .45, mas isso já resolvera fazer de qualquer forma.
Mesmo que não tivesse deixado nenhuma pista, a arma era uma prova. Quando terminasse a
missão, mudaria totalmente de vida. Mas agora precisava de ajuda, e onde consegui-la a não ser
com as pessoas para quem trabalhava?

— Posso falar com o almirante Greer? Meu nome é Clark.


— Um momento, por favor.
Logo depois, o almirante atendeu:
— Por que você não ligou ontem?
— Posso estar aí em duas horas, senhor.
— Então venha logo.

— Onde está Cas? — perguntou Maxwell, preocupado a ponto de usar o apelido. O


secretário compreendeu.
— Já telefonei para a casa dele, senhor. Ninguém atende.
— Engraçado.
Não era nada engraçado, mas o secretário compreendeu isso, também.
— Quer que eu mande alguém até lá?
— Boa ideia — concordou Maxwell.
Dez minutos depois, um sargento da polícia de segurança da Força Aérea entrava no
complexo residencial usado pelos oficiais superiores que serviam no Pentágono. A placa na
porta dizia contra-almirante CP. Podulski e mostrava um par de asas de aviador. O sargento
tinha apenas vinte e três anos e não gostava de se meter com oficiais, mas ordens eram ordens.
O jornal continuava na varanda. Havia dois automóveis na garagem, um deles com um passe do
Pentágono no para-brisa, e ele sabia que o almirante e a esposa viviam sozinhos. Reunindo toda
a sua coragem, o sargento bateu à porta, com firmeza, mas sem fazer muito barulho. Nada. Em
seguida, experimentou a campainha. Nada. E agora?, pensou o rapaz. Como a base inteira
pertencia ao governo, tinha o direito de entrar em qualquer casa; além disso, estava ali para
investigar e o tenente provavelmente apoiaria sua decisão. Abriu a porta. Não ouviu nenhum
som. Revistou o andar térreo, mas não encontrou nada fora do lugar Depois de chamar várias
vezes, sem resultado, decidiu subir a escada. Foi o que fez, com a mão na coronha do revólver...
Vinte minutos depois, o almirante Maxwell estava lá.
— Ataque cardíaco — declarou o médico da Força Aérea. — Provavelmente durante o sono.
O mesmo não se podia dizer da esposa, que jazia a seu lado. Tinha sido uma mulher muito
bonita, lembrou-se Dutch Maxwell, até a perda do filho deixá-la arrasada. O copo d'água pela
metade estava sobre um lenço para não manchar a mesinha de cabeceira. Ela chegara a
recolocar a tampa do vidro de pílulas antes de se deitar ao lado do marido. Dutch olhou para o
cabide. A camisa branca do uniforme estava ali, pronta para outro dia de serviço para a pátria
adotiva, as asas de ouro sobre a coleção de fitas, a primeira das quais era azul-claro, com cinco
estrelas brancas. Tinham uma reunião marcada para falar da sua reforma. No fundo, Dutch não
estava surpreso.
— Que Deus tenha pena de sua alma — murmurou Dutch, olhando para as únicas vítimas
americanas da operação BUXO VERDE.

O que vou dizer?, perguntou-se Kelly, atravessando o portão. O guarda acompanhou-o com os
olhos, apesar do passe, talvez imaginando que a CIA devia estar pagando muito mal a seus
agentes. Estacionou o velho fusca em uma vaga para visitantes, mais bem situada que as vagas
dos funcionários, o que lhe pareceu ligeiramente estranho. Ao entrar no saguão, foi recebido por
um oficial de segurança, que subiu com ele. Sentiu-se pouco à vontade ao caminhar pelos
corredores monótonos, frequentados por pessoas anônimas, mas apenas porque aquele prédio
estava prestes a se tornar uma espécie de confessionário para alguém que ainda não sabia se era
ou não um pecador. Nunca tinha estado no escritório de Ritter. Ficava no quarto andar e era
surpreendentemente pequeno para alguém tão importante.
— Olá, John — disse o almirante Greer, ainda abalado com a notícia que Dutch Maxwell lhe
dera meia hora antes. Convidou-o a sentar-se com um gesto e a porta foi fechada. Ritter estava
fumando, o que deixou Kelly contrariado.
— Está feliz em voltar para casa, sr. Clark? — perguntou o agente.
Havia um exemplar do Washington Post na sua escrivaninha e Kelly ficou surpreso ao
constatar que ali, também, os assassinatos do condado de Somerset apareciam na primeira
página.
— Sim, senhor, acho que se pode dizer que sim. — Os outros dois perceberam a
ambivalência. — Por que queriam me ver?
— Eu lhe disse no avião. Pode ser que sua decisão de trazer o russo tenha salvado a vida dos
prisioneiros. Precisamos de gente com iniciativa, como você. Estou lhe oferecendo um emprego
permanente.
— Para fazer o quê?
— O que lhe pedirmos para fazer — respondeu Ritter.
Ele já parecia ter alguma coisa em mente.
— Não tenho nenhum diploma universitário.
Ritter mostrou-lhe uma grossa pasta.
— Mandei buscar isso aqui em St. Louis. — Kelly reconheceu os papéis. Eram os seus
registros completos na Marinha. — Você devia ter aceitado aquela bolsa de estudos. Seu
quociente de inteligência é ainda maior do que pensávamos. James e eu podemos dispensar o
diploma.
— Uma Cruz de Mérito Naval não é de se desprezar, John — explicou Greer. — O que você
fez, ajudando a planejar a operação BUXO VERDE e depois a executá-la, também não é de se
desprezar.
O instinto de Kelly se debatia contra a razão. Acontece que não sabia que parte dele estava a
favor do quê. Chegou à conclusão de que alguém teria que saber a verdade.
— Há um problema, senhores.
— Qual é? — perguntou Ritter.
Kelly estendeu a mão para a escrivaninha e pôs o dedo na notícia da primeira página no
jornal.
— Acho que devem ler isso.
— Eu li. E daí? Alguém fez ao mundo um favor — afirmou o agente, em tom despreocupado.
Então percebeu a expressão nos olhos de Kelly e sua voz se tornou grave. — Continue falando,
sr. Clark.
— Fui eu que fiz isso, senhor.
— Do que está falando, John? — quis saber Greer.

— A pasta não está aqui, senhor — afirmou o funcionário pelo telefone.


— Como assim? — protestou Ryan. — Tenho as cópias de algumas páginas na minha frente!
— Pode esperar um momento? Vou chamar a supervisora.
O telefone começou a tocar uma música, algo que o detetive odiava. Ryan olhou pela janela
com uma careta. Tinha ligado para o arquivo central das Forças Armadas, localizado em St.
Louis. Os papéis relativos a todos os homens e mulheres que algum dia tinham vestido um
uniforme eram guardados ali, em um complexo seguro e bem vigiado, cuja natureza era uma
curiosidade, mas uma curiosidade útil para o detetive, que mais de uma vez telefonara para lá
em busca de informações.
— Aqui é Irma Rohrerbach — disse uma voz, depois de alguns trinados eletrônicos. O
detetive visualizou imediatamente uma mulher pálida e obesa sentada diante de uma mesa cheia
de papéis.
— Sou o tenente Emmet Ryan, da polícia municipal de Baltimore. Preciso de informações a
respeito de um ex-combatente...
— Senhor, a pasta não está aqui. Meu funcionário já lhe disse isso.
— Como assim? As pastas não podem sair em hipótese alguma, eu sei disso.
— O senhor está enganado. Existem exceções. Esta é uma delas. A pasta foi emprestada e
será devolvida, mas não posso dizer quando.
— Quem está com ela?
— Não estou autorizada a revelar, senhor. — O tom de voz da burocrata revelava sua falta de
interesse. A pasta não estava ali e, até que fosse devolvida, não tinha nada ver com o assunto.
— Posso arranjar uma ordem judicial. — Isso geralmente impressionava as pessoas.
— Sei que pode. Deseja mais alguma coisa, senhor? — Ela também estava acostumada com
esse tipo de ameaça. A chamada era de Baltimore e uma carta de um juiz a mil e trezentos
quilômetros de distância parecia uma coisa remota e trivial. — Quer anotar o nosso endereço?
Na verdade, Ryan estava blefando. Ainda não dispunha de provas suficientes para convencer
um juiz. Assuntos como aquele em geral eram resolvidos sem necessidade de recorrer à lei.
— Não será necessário, obrigado.
— Nesse caso, tenha um bom dia. — A despedida soou como o ponto final em uma
interrupção desagradável.
Ele esteve fora do país. Por quê? Trabalhando para quem? O que há de tão diferente neste
caso? Ryan sabia que havia muitas peculiaridades naquele caso. Quantas, talvez jamais
chegasse a saber.

— Foi isso que fizeram com ela — concluiu Kelly. Era a primeira vez que contava toda a
história em voz alta; ao relatar os detalhes do relatório do legista, foi como se estivesse ouvindo
a voz de outra pessoa. — Por causa do passado de Pam, a polícia nunca se interessou realmente
em investigar o caso. Consegui libertar mais duas garotas. Uma delas foi assassinada. A outra...
— Apontou para o jornal.
— Por que a abandonou na beira da estrada?
— Queria que eu a matasse, sr. Ritter? Era isso que eles pretendiam... — afirmou Kelly,
ainda de cabeça baixa. — Estava mais ou menos sóbria quando a deixei. Eu não tinha tempo a
perder. Agora percebo que foi um erro.
— Quantos foram?
— Doze, senhor — respondeu o rapaz, compreendendo que Ritter queria saber quantos
homens matara.
— Meu Deus! — exclamou Ritter.
Por dentro, estava achando graça. Havia um plano secreto para envolver a CIA em operações
contra os traficantes. Ele era contra, pois achava que o assunto não era suficientemente
importante para ocupar o tempo de homens que deveriam estar protegendo o país de ameaças
mais sérias à segurança nacional. Mas não podia rir; o assunto era sério. — A reportagem fala
em vinte quilos da droga. É verdade?
— Provavelmente. — Kelly deu de ombros. — Não me dei ao trabalho de pesá-la. Ah, acabo
de me lembrar de outra coisa. Sei como as drogas são introduzidas no país. Os sacos cheiram
a... a fluido de embalsamar. E a heroína é asiática.
— E daí? — perguntou Ritter.
— Não entende? Heroína asiática. Fluido de embalsamar. Os sacos chegam em algum lugar
da Costa Leste. Não é óbvio? Estão usando os corpos dos nossos soldados para trazer a maldita
droga!
Tudo isso e também é capaz de raciocinar como um detetive?
O telefone de Ritter tocou. Era a linha interna.
— Eu disse que não queria ser interrompido — rosnou o agente.
— É "Bill", senhor. Disse que é muito importante.

Não podia ter escolhido uma hora melhor, pensou o capitão. Os prisioneiros foram levados
para fora na escuridão. Não havia eletricidade, mais uma vez, e a única iluminação vinha de
lanternas a pilha e uns poucos lampiões que o sargento conseguira reunir. Todos os prisioneiros
tinham os pés acorrentados e as mãos e cotovelos amarrados atrás das costas. Todos
caminhavam ligeiramente inclinados para a frente. Não era apenas para evitar uma fuga. A
humilhação era importante, também, e cada prisioneiro era acompanhado por um soldado,
encarregado de escoltá-lo, aos trancos e barrancos, até a praça central do campo. Os homens
mereciam isso, pensou o capitão. Tinham treinado com afinco e estavam prestes a iniciar a
longa marcha em direção ao sul, para completar a tarefa de libertar e reunificar o país. Os
americanos estavam confusos, claramente assustados com a quebra da rotina. A última semana
tinha sido calma para eles. Não gostava da ideia de reuni-los; isso poderia gerar alguma forma
de solidariedade entre eles. Entretanto, a instrução dos soldados estava em primeiro lugar.
Aqueles homens em breve estariam matando americanos às dezenas, o capitão tinha certeza
disso, mas tinham que começar em algum lugar. Gritou uma ordem.
Como se fossem um único homem, os vinte soldados escolhidos golpearam os vinte
prisioneiros no abdome com as coronhas dos rifles. Um americano conseguiu permanecer de pé
depois do primeiro golpe, mas não depois do segundo.
Zacharias estava perplexo. Tinha sido o primeiro ataque direto contra a sua pessoa desde que
Kolya intercedera a seu favor, fazia alguns meses. O impacto o fez perder o fôlego. Caiu de
lado, o corpo tocando o de outro prisioneiro, tentando dobrar as pernas para proteger-se. Os
pontapés começaram. Como os braços estavam amarrados, nem ao menos podia defender o
rosto. Foi então que viu o inimigo. Era apenas um menino; não podia ter mais que dezessete
anos. As feições eram delicadas, quase femininas, e o olhar era o de um boneco, os mesmos
olhos vazios, a mesma ausência de expressão. Não havia sinal de emoção; chutava-o como uma
criança chutaria uma bola, porque era uma forma de passar o tempo. Não podia odiar o rapaz,
mas podia desprezá-lo por sua crueldade, e mesmo depois que o primeiro pontapé quebrou-lhe
o nariz, continuou a olhar. Robin Zacharias conhecera as profundezas do desespero, depois de
perceber que cedera às pressões psicológicas e revelara ao inimigo quase tudo que sabia.
Entretanto, também tivera tempo para se perdoar. Não era um herói, mas também não era um
covarde, repetiu para si mesmo, cerrando os dentes; era apenas um homem. Suportaria a dor
como uma punição pelo erro anterior e continuaria a rezar para que Deus lhe desse forças. O
coronel Zacharias fixou os olhos, agora cercados por manchas roxas, na criança que o torturava.
Vou sobreviver. Já sobrevivi a tratamentos piores. Mesmo que eu morra, terei sido um homem
melhor do que você jamais será, foi o que disse, em pensamento, ao pequeno soldado.
Sobrevivi à solidão e não existe nada pior, garoto. Não tinha mais esperança de ser libertado.
Quando a morte viesse, saberia encará-la de frente, como encarara sua fraqueza e seus erros.
O capitão gritou outro comando e os soldados recuaram. No caso de Robin, houve um último
pontapé, desferido com violência. Ele estava sangrando, com um dos olhos quase fechado, e o
peito era sacudido pela dor e pela tosse, mas ainda estava vivo, ainda era um americano e
sobrevivera a mais uma prova. Olhou para o capitão. Ao contrário do que acontecia com os
soldados, seu rosto tinha uma expressão de ódio. Robin gostaria de saber por quê.
— Façam os prisioneiros se levantarem! — gritou o capitão.
Dois dos americanos estavam inconscientes e tiveram que ser carregados. O capitão teve
vontade de matá-los, mas as ordens que tinha no bolso proibiam isso, e seu exército não
tolerava qualquer desobediência.
Robin agora estava olhando de perto para o menino que o agredira. Os rostos se encontravam
a menos de vinte centímetros de distância. Não conseguiu detectar nenhum sinal de emoção, mas
continuou olhando, e também não havia nenhuma emoção nos olhos do coronel. Era um pequeno
e muito particular confronto de vontades. Nenhuma palavra foi dita enquanto os dois se
encaravam, ofegantes, um por causa do esforço físico, o outro por causa da dor.
Gostaria de tentar de novo um dia desses? De homem para homem? Acha que pode me
dobrar, filho? Não se envergonha do que fez? Valeu a pena? Isso o tomou mais homem, garoto?
Acho que não. Pode tentar disfarçar, mas nós dois sabemos quem ganhou este assalto, não
sabemos? O soldado se colocou ao lado de Robin, ainda impassível, mas apertava com força o
braço do americano e Robin encarou isso como uma vitória. Apesar de tudo, o garoto estava
com medo. Zacharias era um dos que vagavam pelo céu, odiado, talvez, mas certamente temido.
Afinal, a tortura era a arma dos covardes e aqueles que a usavam sabiam disso tão bem quanto
os que eram submetidos a ela.
Zacharias quase tropeçou. Sua postura tornava difícil levantar os olhos, e por isso só viu o
caminhão quando estava a poucos metros de distância. Era um modelo russo muito antigo, com a
carroceria coberta com arame farpado, tanto para impedir a fuga como para deixar a carga à
mostra. Estavam sendo levados para outro lugar. Robin não fazia a menor ideia de onde se
encontrava nem para onde ia. Nada podia ser pior do que aquele lugar; mesmo assim,
conseguira sobreviver, pensou o coronel, enquanto o caminhão acelerava. O campo desapareceu
na escuridão, e com ele a maior provação de toda a sua vida. Baixou a cabeça e murmurou uma
prece de agradecimento, e depois, pela primeira vez em meses, rezou para que o cativeiro
terminasse, de uma forma ou de outra.

— Devemos isso ao senhor — afirmou Ritter, depois de colocar o fone no gancho.


— Não planejei as coisas exatamente dessa forma — protestou Kelly.
— Eu sei disso, mas podia muito bem ter matado aquele oficial russo, em vez de capturá-lo.
Ritter olhou para o almirante Greer.
Kelly não percebeu o leve aceno com a cabeça que anunciava a mudança em sua vida.

— Gostaria que Cas estivesse aqui para saber.


— O que é que eles sabem? — perguntou Henry.
— Eles pegaram Xantha, viva, e a colocaram em uma cela no condado de Somerset. O que é
que ela sabe? — replicou Charon.
Tony Piaggi também estava presente. Era a primeira vez que ele e Charon se encontravam.
Tinham decidido se reunir no laboratório de Baltimore, prestes a ser inaugurado.
— Isso é um problema — observou Piaggi —, mas podemos resolvê-lo. O principal é não
deixar de entregar a mercadoria aos nossos amigos.
— Mas nós perdemos vinte quilos, cara! — lamentou-se Tucker, que pela primeira vez estava
conhecendo o medo.
— Você tem mais?
— Tenho uns dez quilos na minha casa.
— Guarda o produto em casa? — perguntou Piaggi, com um tom de incredulidade na voz. —
Que loucura, Henry!
— A garota não sabe onde eu moro.
— Ela sabe o seu nome, Henry. Podemos fazer muita coisa com apenas um nome — observou
Charon. — Por que acha que venho fazendo tudo para manter meus homens longe dos seus?
— O jeito é reconstruir toda a organização — afirmou Piaggi, calmamente. — Podemos fazer
isso, certo? Vamos ter que mudar muita coisa. Henry, o seu produto chega em outra cidade, não
é? Mande transferir a entrega para cá e nós nos encarregaremos do resto.
— Vou perder o mercado local...
— O mercado local que se foda, Henry! Pretendo assumir a distribuição para toda a Costa
Leste. Use a cabeça! Você perde talvez vinte e cinco por cento do que pretendia arrecadar.
Podemos recuperar isso em duas semanas.
— Nesse caso, tudo que temos a fazer é apagar os nossos rastros — interveio Charon,
interessado nos planos de Piaggi para o futuro. — Xantha é apenas uma pessoa, uma viciada.
Estava drogada quando a apanharam. Não vão conseguir condenar ninguém apenas com o
depoimento dela.
— Livre-se das outras garotas. Já! — ordenou Piaggi.
— Com a morte de Burt, fiquei sem ninguém para fazer o serviço. Só se eu ligar para alguns
conhecidos...
— De jeito nenhum, Henry! Quer envolver mais alguém, logo agora? Vou falar com
Filadélfia. Eles cuidarão do caso para nós. — Henry concordou com a cabeça. — Mas o
importante é não desapontar os nossos amigos. Vamos precisar de vinte quilos do material,
processado e embalado, o mais depressa possível.
— Mas eu só tenho dez quilos! — protestou Henry.
— Posso arranjar mais alguma coisa, e você também, não é verdade, tenente Charon?
A pergunta deixou o policial tão chocado que ele se esqueceu se contar aos outros dois algo
que o estava preocupando.
36

DROGAS PERIGOSAS

Era hora de refletir. Nunca tinha feito algo parecido por encomenda a não ser no Vietnã, onde
as condições eram totalmente diferentes. Fora necessária uma viagem de volta a Baltimore, o
que envolvia um grande risco. Dispunha de uma nova identidade, mas ela pertencia a um homem
já falecido, se alguém se desse ao trabalho de verificar. Lembrou-se quase com carinho do
tempo em que podia dividir a cidade em duas zonas, uma relativamente pequena e perigosa,
outra muito maior e perfeitamente segura. Agora era diferente. Havia perigo em toda parte. A
polícia conhecia o seu nome. Provavelmente logo teriam a sua descrição, o que queria dizer que
em todos os carros de polícia (a cidade parecia estar cheia deles) haveria pessoas capazes de
identificá-lo. Pior ainda, não poderia se defender, pois jamais seria capaz de matar um policial.
E agora isto... As coisas estavam ficando muito confusas. Fazia menos de vinte e quatro horas
que vira o que pensara ser o seu último alvo, mas agora começava a se perguntar se um dia
conseguiria parar.
Talvez houvesse sido melhor se jamais tivesse começado, se aceitasse com resignação a
morte de Pam e seguisse seu caminho, esperando pacientemente que a polícia resolvesse o caso.
Mas não, eles jamais teriam descoberto os culpados, jamais se disporiam a gastar tempo e
energia para investigar a morte de uma prostituta. As mãos de Kelly apertaram com força o
volante. Os assassinos de Pam teriam ficado impunes.
Como eu poderia passar o resto da vida com isso na consciência?
Enquanto rumava para o sul, entrando na rodovia Baltimore-Washington, lembrou-se das
aulas de literatura a que assistira na high school. As regras da tragédia de Aristóteles. O herói
tinha que ter um defeito fatal, algo que o perseguiria até o final inexorável. O defeito de Kelly...
ele amava demais, se importava demais, investia demais nas coisas e pessoas que tocavam sua
vida. Não podia virar o rosto. Embora pudesse salvar-lhe a vida, virar o rosto significaria
envenená-la para sempre. Por isso, tinha que arriscar e levar sua missão até o fim.
Esperava que Ritter compreendesse, compreendesse por que estava fazendo o que tinham lhe
pedido para fazer. Simplesmente não podia virar o rosto. Não quando se tratava de Pam. Não
quando se tratava de prisioneiros de guerra. Sacudiu a cabeça. Não podia se recusar, mas
preferia que tivessem pedido a outra pessoa.
A estrada se transformou em uma via urbana, a New York Avenue. O sol já havia se posto há
muito tempo. Estava chegando o outono; o calor úmido do verão daria lugar a temperaturas mais
amenas. Em breve começaria a temporada de futebol, terminaria a temporada de beisebol e a
vida prosseguiria como de costume.

Peter estava certo, pensou Hicks. Tinha que continuar trabalhando dentro do sistema. O pai
acabava de se tornar a mais importante das criaturas políticas, um arrecadador de fundos e
coordenador de campanha. O presidente seria reeleito e Hicks ganharia um cargo mais
importante. Então poderia realmente influir nos acontecimentos. Denunciar o ataque ao campo
de prisioneiros tinha sido a melhor coisa que jamais fizera. Sim, sim, estava tudo dando certo,
pensou, acendendo o terceiro cigarro de maconha da noite. O telefone tocou.
— Como vão as coisas? — Era Peter.
— Tudo bem, cara. E você?
— Posso ir até aí? Precisamos conversar. — Henderson sentiu vontade de dizer um palavrão;
pela voz arrastada, podia perceber que Wally estava de novo sob os efeitos da maconha.
— Que tal daqui a meia hora?
— Combinado. Tchau.
Não havia se passado um minuto sequer quando alguém bateu à porta. Hicks apagou o cigarro
e foi atender. Não podia ser Peter. A polícia, talvez? Felizmente, não era.
— Walter Hicks?
— Ele mesmo. Quem é você? — O homem tinha mais ou menos a sua idade, mas parecia
meio bronco.
— John Clark — respondeu, olhando nervosamente para o corredor. — Temos um assunto
muito importante para discutir.
— Do que se trata?
— Da operação BUXO VERDE.
— O que disse?
— Há algumas coisas que precisa saber — explicou Clark.
No momento, estava trabalhando para a CIA, de modo que seu nome era Clark. Por alguma
razão, isso tornava as coisas mais fáceis.
— Pode entrar, mas só disponho de alguns minutos.
— Tudo bem. Eu não vou demorar.
Clark entrou na sala e sentiu imediatamente o cheiro doce no ar. Hicks apontou para uma
cadeira em frente à sua.
— Quer tomar alguma coisa?
— Não, obrigado — respondeu Clark, tomando cuidado para não tocar em nada. — Eu estive
lá.
— Onde?
— Em SINAL VERDE. Semana passada.
— Você fazia parte do grupo? — perguntou Hicks, curioso, sem se dar conta do perigo que
estava correndo.
— Isso mesmo. Fui eu que capturei o russo — respondeu o visitante, com toda a calma.
— Você sequestrou um cidadão soviético? Por que foi fazer essa bobagem?
— Isso não vem ao caso, sr. Hicks. Gostaria apenas que tomasse conhecimento de que um dos
documentos que ele estava carregando era uma ordem para matar todos os prisioneiros daquele
campo.
— É uma pena — afirmou Hicks, sacudindo a cabeça mecanicamente. Oh... seu cachorro
morreu? Que pena!
— Não está nem um pouco chocado? — perguntou Clark.
— Claro que estou, mas eles sabiam do perigo que estavam correndo. Um momento. — Hicks
fez uma pausa e Kelly percebeu que ele estava tentando se lembrar de alguma coisa. — O
comandante do campo também não foi capturado?
— Não. Eu o matei pessoalmente. Mentimos para o seu chefe porque estávamos querendo
descobrir quem foi o traidor que sabotou a missão. — Clark inclinou-se para a frente. — Foi
você, Hicks. Eu estava lá. Quase conseguimos. Neste momento, os prisioneiros podiam estar
aqui, com suas famílias.
Hicks deu de ombros.
— Eu não queria que eles morressem. Escute, como eu já disse, eles sabiam do perigo que
estavam correndo. Só que arriscaram a vida pela causa errada. E agora, o que pretende fazer?
Mandar me prender? Qual seria a acusação? Pensa que sou idiota? Foi uma operação ilegal.
Não pode me acusar em público sem colocar em risco as negociações de paz; a Casa Branca
jamais permitiria isso.
— Tem razão. Estou aqui para matá-lo.
— O quê?
—Você traiu a pátria. Traiu vinte homens.
— Agi de acordo com a minha consciência.
— É o que estou fazendo agora, Hicks.
Clark tirou do bolso um saco plástico. No interior estavam as drogas que encontrara no corpo
do seu velho amigo Archie, uma colher e uma agulha de injeção. Jogou o saco no colo de Hicks.
— Não vou fazer isso.
— Como quiser. — Mostrou ao outro a faca Ka-Bar. — Pode ser assim, também. Aqueles
vinte homens deviam estar em casa. Você é o responsável pela morte deles. A escolha é sua,
Hicks.
Ele agora estava muito pálido, com os olhos arregalados.
— Não acredito que você tenha coragem de...
— O comandante daquele campo era um inimigo do meu país. Você também é. Vou lhe dar um
minuto.
Hicks olhou para a faca que Clark tirara da cintura e compreendeu que não tinha nenhuma
possibilidade de escapar. Nunca vira olhos como aqueles que o fitavam do outro lado da mesa,
mas sabia o que significavam.
Enquanto esperava, Kelly recordou o que se passara na semana anterior. Viu-se de novo
sentado na lama, a menos de um quilômetro de vinte homens que agora deviam estar em
liberdade. A lembrança tornou as coisas mais fáceis, mas esperava nunca mais ter que executar
aquele tipo de missão.
Hicks olhou em torno, ainda sem acreditar no que estava acontecendo. O relógio sobre a
lareira pareceu parar enquanto fazia uma análise da situação. Tinha sido em Andover, em 1962,
que encarara teoricamente pela primeira vez a possibilidade de morrer. Dali em diante, passara
a viver de acordo com o mesmo modelo teórico. Para Walter Hicks, o mundo era uma equação,
algo a ser controlado e ajustado. Percebia agora, tarde demais, que ele era apenas mais uma
variável, não o sujeito com um pedaço de giz olhando para o quadro-negro. Pensou em pular da
cadeira, mas o visitante já estava se inclinando para a frente, exibindo a faca, e seus olhos se
fixaram na fina linha prateada da lâmina de aço. Ela lhe pareceu tão afiada que teve dificuldade
para respirar. Olhou de novo para o relógio. Deu-se conta de que o ponteiro dos segundos,
afinal de contas, tinha mudado de posição.

Peter Henderson não estava com pressa. Era dia de semana e os moradores de Washington
iam cedo para a cama. Todos os burocratas, assessores e assistentes especiais tinham que
levantar cedo e precisavam estar descansados para poder cuidar com eficiência dos negócios
do país. Por isso, as calçadas de Georgetown, onde as raízes das árvores levantavam os blocos
de cimento do passeio, estavam praticamente desertas. Cruzou com um casal idoso que levava
um cãozinho para passear, mas só tornou a encontrar outro pedestre no quarteirão onde Wally
morava. Era um homem mais ou menos da sua idade, a uns cinquenta metros de distância,
entrando em um carro que, pelo som do motor, só podia ser um fusca, provavelmente um fusca
muito antigo. Aqueles malditos carrinhos pareciam ser indestrutíveis. Segundos depois, estava
batendo na porta de Wally. Ela estava entreaberta. Wally era muito descuidado; jamais daria um
bom espião. Henderson abriu a porta. Tinha aberto a boca para repreender o amigo quando se
deparou com ele, sentado na cadeira da sala.
Hicks tinha arregaçado a manga esquerda da camisa. Levara a mão direita ao colarinho, como
que para respirar melhor, mas o verdadeiro motivo estava na veia do braço esquerdo. Peter não
se aproximou do corpo. Por um momento, ficou parado onde estava. Depois, compreendeu que
tinha que dar o fora.
Tirou um lenço do bolso e limpou a maçaneta. Fechou a porta e foi embora, controlando-se
para não vomitar.
Que diabo, Wally!, queixou-se Henderson. Eu precisava de você. E morrer assim... por
excesso de drogas! A irreversibilidade da morte era tão clara para ele quanto era inesperada.
Entretanto, seus ideais continuavam os mesmos, pensou Henderson, enquanto se dirigia para
casa. Eles, pelo menos, continuavam vivos. E pretendia mantê-los assim.

A viagem levou a noite inteira. Cada vez que o caminhão passava por um buraco, ossos e
músculos gritavam em protesto. Três dos homens estavam mais machucados do que ele, dois
deles inconscientes, e não havia nada que pudesse fazer com mãos e pés amarrados. Entretanto,
havia algum consolo. Cada ponte destruída que tinham que contornar representava uma vitória
para eles. Alguém estava reagindo; alguém estava incomodando aqueles filhos da puta. Uns
poucos prisioneiros trocavam sussurros que o guarda na parte de trás do caminhão não podia
ouvir por causa do barulho do motor. Robin gostaria de saber para onde estavam sendo levados.
O céu nublado lhe negava a referência das estrelas, mas com o alvorecer teve uma indicação de
onde ficava o leste e se tornou evidente que estavam indo para noroeste. Não queria nutrir falsas
esperanças, pensou Robin, mas a verdade era que não havia limites para a esperança.

Kelly ficou aliviado quando tudo acabou. A morte de Walter Hicks não lhe trouxera nenhuma
satisfação. Ele podia ter sido um traidor e um covarde, mas devia haver uma maneira melhor de
resolver o caso. Estava aliviado por Hicks haver concordado em tirar a própria vida, porque
não sabia se teria tido coragem de matá-lo com uma faca... ou de qualquer outra forma. De uma
coisa, porém, estava certo: Hicks teve o que merecia. Mas não é isso que acontece com todos
nós?, pensou Kelly.
Guardou as roupas na mala, que era suficientemente grande para conter toda a sua bagagem, e
levou-a para o carro alugado, dando assim por encerrada sua permanência naquele apartamento.
Passava da meia-noite quando dirigiu novamente para o sul, para o centro da área perigosa,
pronto para agir pela última vez.

As coisas tinham se acalmado para Chuck Monroe. Ainda era chamado para cuidar de
arrombamentos e outros crimes, mas a onda de assassinatos de traficantes no bairro terminara.
De certa forma, considerava aquilo uma pena, o que não tinha vergonha de admitir aos outros
patrulheiros durante o almoço que, no seu caso, acontecia às três da manhã.
Monroe estava fazendo a ronda de costume, sempre atento a qualquer coisa fora do comum.
Observou que dois novos traficantes tinham tomado o lugar de Ju-Ju. Teria que aprender seus
apelidos, possivelmente através de um informante. Os policiais da divisão de narcóticos deviam
aparecer ali com mais frequência, imitando o exemplo daquele desconhecido, pensou Monroe,
rumando para oeste. Um vagabundo de rua. O pensamento o fez sorrir. O nome informal
aplicado ao caso parecia tão apropriado! O Homem Invisível. Era incrível que os jornais não
tivessem aproveitado a deixa. A noite estava muito tranquila. As pessoas tinham ficado
acordadas até tarde para ver os Orioles derrotarem os Yankees. Monroe sabia que muitas vezes
o crime nas ruas estava ligado de perto aos clubes esportivos e suas atividades. Os Orioles
tinham uma boa chance de conquistar o campeonato, graças ao taco de Frank Robinson e à luva
de Brooks Robinson. Os bandidos também gostavam de beisebol, pensou Monroe, com uma
certa perplexidade. Não havia muito o que fazer, mas não se importava. Teria tempo para rodar
à toa, observar, aprender, pensar. Já conhecia os frequentadores habituais da madrugada e agora
estava aprendendo a reconhecer pequenos detalhes, a distinguir, com olhos de policial, o que
merecia ser investigado mais de perto. Assim seria capaz de evitar os crimes, em lugar de
simplesmente reagir a eles, pensou Monroe consigo mesmo.
O limite da sua área de patrulha era uma rua que corria na direção norte-sul. Um lado era seu,
o outro de outro policial. Estava a ponto de entrar nessa rua quando viu alguém. O homem lhe
pareceu vagamente familiar. Cansado de dirigir e aborrecido por não ter feito nada a noite
inteira, encostou o carro no meio-fio. — Você aí! Fique onde está!
O homem continuou andando, devagar, com passos incertos. Talvez estivesse bêbado. Mais
provavelmente, era alguém cujo cérebro tinha sido permanentemente danificado por longas
noites cheirando drogas baratas. Monroe enfiou o cassetete no anel do cinturão, saltou do carro
e foi atrás dele. Estava a poucos metros de distância, mas era como se o vagabundo fosse surdo;
ignorou até mesmo o ruído das suas botas na calçada.
— Eu disse para você parar.
O contato com o estranho mudou tudo. O ombro era firme, musculoso... e tenso. Monroe
simplesmente não estava preparado para aquilo. Estava cansado, entediado, certo de que se
tratava apenas de um vagabundo, e embora o cérebro gritasse imediatamente Homem Invisível!,
o corpo não estava pronto para agir. O mesmo não acontecia com o oponente. No momento
seguinte, viu o mundo girar loucamente, mostrando-lhe primeiro o céu, depois a calçada e
depois novamente o céu, mas desta vez sua visão das estrelas foi bloqueada por uma pistola.
— Por que não ficou no seu maldito carro? — perguntou o homem, em tom irritado.
— Quem...
— Silêncio! — O estranho encostou a pistola na testa de Monroe, fazendo-o calar. Ou quase.
Foram as luvas cirúrgicas que o denunciaram e forçaram o policial a quebrar o silêncio.
— Minha nossa! — A exclamação saiu em um sussurro respeitoso. — Você é ele!
— Sim, sou eu. E agora, o que vou fazer com você? — perguntou Kelly.
— Não vou suplicar. — O nome do homem era Monroe, observou Kelly, olhando para o
crachá. Não parecia um tipo capaz de suplicar.
— Não será necessário. Deite-se de bruços. Já! — O policial obedeceu. Kelly tirou as
algemas de seu cinto e algemou-o. — Não se preocupe, Monroe.
— O que quer dizer com isso? — perguntou o homem, com voz normal, conquistando a
admiração de Kelly.
— Quero dizer que jamais mataria um policial — respondeu Kelly, colocando-o de pé e
empurrando-o na direção do carro.
— Isso não muda muita coisa — observou Monroe, tomando cuidado para não levantar a voz.
— Vamos ver. Onde estão suas chaves?
— No bolso direito.
— Obrigado.
Kelly pegou as chaves e colocou o policial no banco traseiro do carro. O veículo dispunha de
uma grade para impedir que os passageiros incomodassem o motorista. O rapaz ligou a
radiopatrulha e dirigiu até um beco, onde estacionou o veículo.
— Como estão as suas mãos? As algemas ficaram muito apertadas?
— Que é isso? Eu estou ótimo! — respondeu o guarda, com voz trêmula.
Devia ser de raiva, pensou Kelly. Era compreensível.
— Acalme-se. Não quero que se machuque. Vou trancar o carro e jogar as chaves fora.
— Espera que eu lhe agradeça? — perguntou Monroe.
— Não fui eu que comecei, fui? — Kelly sentiu uma vontade irresistível de se desculpar pela
humilhação a que submetera o policial. — Você tornou as coisas fáceis para mim. Da próxima
vez tome mais cuidado, Monroe.
Enquanto se afastava a passos rápidos, a liberação da tensão acumulada quase o fez dar uma
gargalhada. Graças a Deus, pensou, dirigindo-se novamente para oeste. Então eles ainda
estavam interrogando vagabundos! Depois de um mês, era de se esperar que já tivessem
desistido. Mais uma complicação, pensou Kelly, procurando manter-se na sombra dos becos.
Era uma fachada como Billy descrevera e Burt confirmara, uma loja abandonada com casas
vazias à direita e à esquerda. Kelly observou-a do outro lado da rua. O térreo parecia deserto,
mas havia uma luz no andar de cima. A porta da frente estava trancada com um grosso cadeado.
A porta dos fundos, também, provavelmente. Teria que recorrer à força bruta. Não dispunha de
muito tempo. Aqueles guardas deviam chamar regularmente a central. Mesmo que não fosse
assim, mais cedo ou mais tarde alguém mandaria Monroe tirar o gato de alguém de cima de uma
árvore, o sargento começaria a se preocupar com a falta de resposta, e logo haveria policiais
por toda parte à procura do colega desaparecido. As ruas seriam vasculhadas. Essa era uma
possibilidade na qual Kelly não queria nem pensar e esperar demais só faria piorar as coisas.
Atravessou a rua correndo, expondo pela primeira vez o seu disfarce, depois de pesar prós e
contras e chegar à conclusão de que estava na hora de cometer uma loucura. Pensando bem, toda
a sua campanha contra os traficantes não tinha sido uma loucura? Primeiro, olhou em volta para
se certificar de que estava sozinho. Não vendo sinal de vida, tirou a Ka-Bar da bainha e
começou a atacar a massa de vidraceiro que segurava o vidro da vitrine. Talvez os ladrões não
tivessem a sua paciência, pensou, ou talvez fosse mais esperto... ou mais idiota, disse Kelly a si
próprio, usando as duas mãos para remover os pedaços de massa. Seis intermináveis minutos se
passaram, à luz de uma lâmpada de rua que ficava a menos de três metros de distância, antes que
fosse capaz de remover o pesado vidro, cortando-se duas vezes no processo. Praguejou
baixinho, olhando para o corte profundo na mão esquerda. Depois, entrou pela abertura e
dirigiu-se para os fundos da loja. Um pequeno estabelecimento familiar, pensou, agora
abandonado, provavelmente porque o bairro inteiro entrara em decadência. Podia ter sido pior.
O chão estava empoeirado, mas não tropeçou em nada. Ouviu ruídos no andar de cima.
Encontrou uma escada e começou a subi-la, com a .45 na mão.
— Foi bom enquanto durou, meu bem — disse uma voz masculina.
Kelly ouviu uma risada, seguida por um choro feminino.
— Por favor... você não pode...
— Desculpe, meu anjo, mas não temos escolha — disse outra voz.
Kelly chegou ao corredor. Novamente o piso estava desobstruído, embora sujo. O chão de
madeira era antigo, mas tinha sido recentemente... ...começou a ranger...
— O que foi isso?
Kelly ficou imóvel por uma fração de segundo, mas não tinha tempo nem lugar para se
esconder, de modo que correu para a porta, jogou-se no chão e rolou para dentro do quarto.
Havia dois homens lá dentro, ambos de vinte e poucos anos. Para Kelly, não passavam de
formas, pois seu cérebro treinado deixara de lado os detalhes irrelevantes para se concentrar no
que realmente importava: tamanhos, distâncias, movimentos. Um deles chegou a sacar uma arma
do cinto antes de ser atingido por um tiro no peito e outro na cabeça. Antes mesmo que o corpo
começasse a cair, Kelly já estava apontando para o outro.
— Meu Deus! Pare! Pare!
Um pequeno revólver cromado foi jogado no chão. Alguém começou a gritar no quarto da
frente, mas Kelly ignorou o ruído enquanto se levantava, sem desviar a arma do segundo homem.
— Eles vão nos matar. — A voz era surpreendentemente fina, assustada mas pastosa por
causa de alguma droga.
— Quantos são? — perguntou Kelly.
— Apenas esses dois, mas vão nos...
— Acho que não — afirmou Kelly. — Qual delas é você?
— Paula.
— Onde estão Maria e Roberta?
— No quarto da frente — informou Paula, assustada demais para se admirar com o fato de
Kelly conhecer os nomes. O outro homem interveio.
— Elas apagaram, cara. — Vamos conversar, pareciam dizer os olhos do homem.
— Quem é você? — Há alguma coisa em uma .45 que faz as pessoas falarem, pensou Kelly,
sem saber a expressão que seus olhos tinham assumido atrás da arma.
— Frank Molinari. — Um sotaque, e a súbita compreensão de que Kelly não era um policial.
— De onde você é, Frank?... Fique quieta! — disse a Paula, apontando para ela com a mão
esquerda.
— De Filadélfia. Ei, cara, vamos conversar, está bem? — O homem estava trêmulo, os olhos
fixos na arma que deixara cair ao chão, tentando compreender o que estava acontecendo.
— Por que alguém de Filadélfia estaria fazendo um serviço sujo para Henry?
Kelly pensou um pouco. Dois dos bandidos do barco tinham o mesmo sotaque. Tony Piaggi.
Claro, a ligação com a máfia e Filadélfia...
— Já esteve em Pittsburgh, Frank? — perguntou, instintivamente.
Molinari tentou adivinhar a resposta certa e errou redondamente.
— Como é que você sabe? Para quem está trabalhando?
— Matou Doris e o pai dela, certo?
— Foi um trabalho, cara, apenas um trabalho!
Kelly lhe deu a única resposta possível e ouviu outro grito no quarto ao lado enquanto
baixava a arma. Tinha que ser rápido; o tempo estava passando. Aproximou-se de Paula e
obrigou-a a se levantar.
— Está me machucando!
— Venha comigo. Vamos buscar suas amigas.
Maria estava apenas de calcinha e drogada demais para se importar com qualquer coisa.
Roberta estava consciente e assustada. Kelly obrigou as três a descerem a escada e sair para a
rua. Estavam todas descalças e a combinação de drogas e sujeira e cacos de vidro as fez
caminhar com dificuldade, gemendo e chorando. Kelly empurrou-as, ralhou com elas, fez o que
pôde para apressá-las, temendo nada mais grave do que um carro passando, o que seria
suficiente para estragar tudo que fizera. A rapidez era vital. Foram dez minutos tão longos
quanto os que gastara para descer a colina que ficava ao lado de SINAL VERDE, mas o carro
da polícia estava no mesmo lugar onde o deixara. Kelly abriu a porta dianteira e mandou as
mulheres entrarem. Ele mentira a respeito das chaves.
— Que merda! — protestou Monroe.
Kelly entregou as chaves a Paula, que parecia ser a que estava em melhores condições para
dirigir. Pelo menos, conseguia manter a cabeça em pé. As outras se aninharam no banco da
direita, tomando cuidado para não esbarrar com as pernas no rádio.
— Monroe, essas moças vão levá-lo para a delegacia. Tenho algumas instruções para você.
Está prestando atenção?
— E eu tenho escolha, seu babaca?
— Quer bancar o durão ou prefere receber algumas informações valiosas? — perguntou
Kelly.
Dois pares de olhos inteligentes se enfrentaram por um momento. Depois, Monroe pôs o
orgulho de lado e fez que sim com a cabeça.
— Vá em frente.
— Você deve procurar o sargento Tom Douglas. Não fale com mais ninguém. Essas moças
sabem de muita coisa. Podem ajudá-lo a resolver vários casos importantes. Mas ninguém mais
deve saber. Apenas ele. Entendeu? — Se fizer alguma bobagem, voltaremos a nos encontrar,
pareciam dizer os olhos de Kelly.
Monroe tornou a balançar a cabeça.
— Entendi.
— Paula, você dirige. Não pare para nada, diga ele o que disser, está bem? — A garota fez
que sim com a cabeça. Acabava de vê-lo matar dois homens. — Agora vá!
Na verdade, a moça estava tonta demais para dirigir, mas Kelly não tinha escolha.
A radiopatrulha se afastou lentamente, roçando em um poste antes de sair do beco. Depois,
dobrou a esquina e desapareceu. Kelly respirou fundo e correu para onde estava seu carro. Não
conseguira salvar Pam, não conseguira salvar Doris, mas salvara aquelas três, e Xantha,
também, arriscando a própria vida para isso. Sua missão estava quase terminada.
Quase.

O comboio de dois caminhões teve que seguir um caminho ainda mais tortuoso do que o
planejado, de modo que só chegaram ao destino depois do meio-dia. Estavam na prisão de Hoa
Lo. O nome significava "lugar de cozinhar" e sua reputação era bem conhecida dos americanos.
Depois que os caminhões pararam no pátio central e os portões foram fechados, os prisioneiros
começaram a saltar. Mais uma vez, cada um foi escoltado por um guarda, que o levou para o
interior do edifício. Receberam um gole d'água e nada mais antes de serem conduzidos para as
celas individuais. Afinal, chegou a vez de Robin Zacharias. Na verdade, pouca coisa havia
mudado. Escolheu um bom lugar no chão e sentou-se, cansado da viagem, apoiando as costas na
parede. Levou alguns minutos para ouvir as batidas.
Barba e cabelo, setenta e cinco centavos.
Barba e cabelo, setenta e cinco centavos.
Abriu os olhos. Precisava pensar. Os prisioneiros de guerra usavam um código muito simples
e antigo para se comunicar. Um código alfabético...

tap-tap-tap-tap pausa tap


...pensou Robin, esquecendo o cansaço. Letra Q. Muito bem.
2/3, 3/4, 4/2, 4/5
tap-tap-tap-tap-tap-tap... Robin interrompeu para responder.
4/2, 3/4, 1/2, 2/4, 3/3, 5/5, 1/1, 1/3
tap-tap-tap-tap-tap-tap
1/1, 3/1, 5/2, 1/1, 3/1, 3/1
Al Wallace? Al? Ele está vivo?
tap-tap-tap-tap-tap-tap
COMO VAI?, perguntou ao amigo de quinze anos.
VOU LEVANDO, foi a resposta, seguida por:
1/3, 3/4, 3/2, 1/5, 1/3, 3/4, 3/2, 1/5. 5/4 1/5
Vinde, vinde, santos...
Robin engoliu em seco. Não estava mais ouvindo as batidas, mas sim o coro, a música, tudo
que ela significava, tap-tap-tap-tap-tap-tap
1/1, 3/1, 3/1 2/4, 4/3, 5/2, 1/5, 3/1, 3/1, 1/1, 3/1, 3/1 2/4, 4/3, 5/2, 1/5, 3/1, 3/1
Robin Zacharias fechou os olhos e deu graças a Deus pela segunda vez em um dia e pela
segunda vez em mais de um ano. Tinha sido tolo, afinal, em pensar que não havia mais
esperança. Parecia um lugar estranho para isso, e as circunstâncias eram mais estranhas ainda,
mas havia um companheiro mórmon na cela ao lado, e sentiu o corpo estremecer enquanto sua
mente ouvia o mais querido dos hinos, cuja linha final não era absolutamente uma mentira, e sim
uma afirmação.
Está tudo bem, está tudo bem.

Monroe não sabia por que a garota, a tal de Paula, se recusava a obedecê-lo. Tentou
argumentar, tentou intimidá-la, mas ela continuava a dirigir, se bem que seguindo suas
instruções, arrastando o carro pelas ruas desertas a dez quilômetros por hora, e, mesmo assim,
mantendo-se na mesma pista apenas raramente e com grande dificuldade. A viagem levou
quarenta minutos. A garota se perdeu duas vezes, confundindo a esquerda com a direita, e teve
que parar o carro uma vez para que outra das mulheres vomitasse para fora da janela. Pouco a
pouco, Monroe começou a perceber quem elas eram. Foi uma combinação de fatores, mas
principalmente o fato de que teve tempo para pensar.
— O que aconteceu? — perguntou.
— Eles... eles iam nos matar, como mataram as outras, mas aquele cara chegou e atirou neles
— respondeu Paula.
Essa não!, pensou Monroe. Será possível?
— Paula?
— Sim?
— Você conheceu uma moça chamada Pamela Madden?
Paula balançou lentamente a cabeça para cima e para baixo enquanto voltava a se concentrar
no volante. Já estavam chegando à delegacia.
— Minha nossa! — suspirou o policial. — Paula, vire à direita no estacionamento, está bem?
Pode entrar em qualquer vaga... isso mesmo... aí está bom. — O carro parou com um solavanco
e Paula começou a chorar convulsivamente. Não havia nada que Monroe pudesse fazer a não ser
esperar até que se acalmasse. No momento, estava mais preocupado com as jovens do que com
ele próprio. — Está bem. Agora, quero que me deixe sair.
Paula abriu a porta do motorista, saltou do carro e foi abrir a porta traseira. O guarda teve
dificuldade para se levantar, mas a moça ajudou-o instintivamente.
— A chave das algemas está junto com as chaves do carro. Você pode abri-las para mim?
Na terceira tentativa, a moça conseguiu — Muito obrigado.

— É melhor que seja alguma coisa importante! — rosnou Tom Douglas. O fio do telefone
roçou no rosto da esposa, acordando-a.
— Sargento, aqui é Chuck Monroe, do Western District. Estou com três testemunhas do crime
do chafariz. — Fez uma pausa. — E o Homem Invisível matou mais dois homens. Ele me disse
para só falar com o senhor.
— Hein? — O detetive franziu a testa — Ele quem?
— O Homem Invisível. Pode vir até aqui, senhor? É uma longa história.
— Não fale sobre isso com mais ninguém. Com mais ninguém, entendeu?
— Foi o que ele me recomendou, senhor.
— Quem é, amor? — perguntou Beverly Douglas, agora tão desperta quanto o marido.
Fazia oito meses que uma jovem triste e miúda chamada Helen Waters tinha sido assassinada.
Depois foi a vez de Pamela Madden. Em seguida, Doris Brown. Agora ia pegar os desgraçados,
pensou Douglas.
Estava enganado.

— O que está fazendo aqui? — perguntou Sandy para o vulto que estava de pé ao lado do
carro, o mesmo que consertara há tempos.
— Vim me despedir — respondeu Kelly.
— Como assim?
— Vou ter que sair da cidade. Não sei por quanto tempo.
— Aonde vai?
— Não posso dizer.
— Vietnã, de novo?
— Talvez. Eu mesmo não sei. Juro.
Não era uma hora apropriada, pensou Sandy. Como se houvesse uma hora apropriada. Tinha
que chegar ao trabalho às seis e meia e, embora não estivesse atrasada, não havia tempo
suficiente para tudo que gostaria de dizer.
— Pretende voltar?
— Se você quiser.
— Eu quero, John.
— Obrigado. Sandy...
— Consegui salvar quatro delas.
— Quatro?
— Quatro garotas, como Pam e Doris. Uma está em Westover e as outras três aqui na cidade,
em uma delegacia. Mande alguém cuidar delas, está bem?
— Está bem.
— Digam o que disserem, eu voltarei. Acredite em mim, por favor.
— John!
— Agora tenho que ir. Voltarei assim que puder — ele prometeu, antes de se afastar.

Nem Ryan nem Douglas estavam usando gravata. Os dois bebiam café em copos de isopor
enquanto os técnicos faziam mais uma vez o seu< trabalho.
— Dois tiros — estava dizendo um deles. — Um na cabeça. A morte foi instantânea.
Trabalho de profissional.
— Eu já esperava — murmurou Ryan para o companheiro. Era uma .45. Tinha que ser.
Nenhuma outra arma fazia um estrago daqueles. Além do mais, havia seis cartuchos vazios no
chão, circulados com giz para Wrem fotografá-los.
As três mulheres estavam em uma cela do Western District, vigiadas por um policial
uniformizado. Ryan conversara rapidamente com Douglas, o suficiente para saber que agora
dispunham de testemunhas contra um assassino chamado Henry Tucker. Apenas nome e
descrição, mas muito mais do que dispunham até aquele momento. Pretendiam procurar primeiro
nos registros da polícia, depois nos registros do FBI e finalmente nas ruas. Consultariam os
arquivos do departamento de trânsito, em busca de uma licença de motorista com aquele nome.
Era só questão de tempo; conseguiriam apanhá-lo, mais cedo ou mais tarde. Enquanto isso,
havia aquela outra pequena questão para cuidar.
— Os dois são de fora? — perguntou Ryan.
— De Filadélfia. Francis Molinari e Albert d'Andino — confirmou Douglas, lendo os nomes
nas licenças de motorista. — Quanto quer apostar...
— Nada de apostas, Tom. — Virou-se, com uma fotografia na mão — Monroe, este é o
homem?
O patrulheiro tirou a fotografia 3x4 da mão de Ryan e examinou-a à luz mortiça do
apartamento. Sacudiu a cabeça.
— Eu não saberia dizer.
— Como assim? Vocês estiveram frente a frente!
— O cabelo era mais comprido. Além disso, quando ele me rendeu, tudo que vi foi o cano de
um Colt. Foi tudo muito rápido.

Era um trabalho perigoso, como de costume. Havia quatro automóveis estacionados. Não
podia fazer nenhum ruído, mas era a maneira mais segura de agir, com aqueles quatro carros
parados na frente do prédio. Kelly subiu ao peitoril de uma das janelas dos fundos e estendeu a
mão para o cabo telefônico. Esperava que ninguém estivesse usando o telefone no momento em
que cortou os fios, ligando-os ao cabo que trouxera. Em seguida, desceu da janela e caminhou
ao longo da parede de trás do edifício, desenrolando o cabo. Dobrou a esquina, deixando o
carretel pender da mão esquerda como uma lancheira. Caminhou pela rua quase deserta com
passos firmes, como se fosse um morador do bairro. Mais cem metros e estava de volta ao
esconderijo. Tornou a sair e foi até o carro alugado para buscar o que faltava, incluindo o velho
cantil e um suprimento de Snickers. Feito isso, concentrou-se na tarefa que tinha pela frente.
A mira do fuzil não estava perfeitamente calibrada. Por mais estranho que parecesse, a
melhor solução era usar o edifício em frente. Sentou-se, levou a arma ao ombro e examinou a
parede, em busca de um alvo apropriado. Decidiu-se por um tijolo um pouco diferente dos
outros. Kelly prendeu a respiração, com a mira telescópica ajustada para o aumento máximo, e
apertou suavemente o gatilho.
Atirar com aquele fuzil era uma experiência diferente. Os cartuchos de .22 não fazem muito
barulho e, com o silenciador que instalara, pôde ouvir pela primeira vez na vida o pinnnnnnng
musical do percussor, juntamente com o pop abafado do disparo. A surpresa quase impediu que
ouvisse o som muito mais alto do impacto da bala no alvo. Uma pequena nuvem de poeira
apareceu dois centímetros acima e cinco centímetros à esquerda do ponto para onde apontara a
arma. O rapaz ajustou a mira e atirou de novo. Perfeito. Kelly abriu o ferrolho, colocou mais
três cartuchos no pente e recolocou a mira na posição de aumento mínimo.
— Ouviu alguma coisa? — perguntou Piaggi, com voz cansada.
— O que disse? — Tucker levantou os olhos. Há mais de doze horas que trabalhava sem
parar, fazendo o serviço pesado que julgara ter deixado para trás de uma vez por todas. Ainda
não tinham chegado nem na metade, apesar da ajuda dos dois homens de Filadélfia. Tony
também não estava nada satisfeito.
— Parecia alguma coisa caindo — afirmou Tony, sacudindo a cabeça antes de voltar ao
trabalho. A única coisa de bom que podia extrair do episódio era que lhe valeria o respeito dos
sócios. Anthony Piaggi é um homem sério. Quando tudo dá errado, arregaça as mangas e põe
mãos à obra. Não deixa de fazer nenhuma entrega. Podemos confiar em Tony. Naquele negócio,
era importante gozar de uma boa reputação, mesmo que fosse preciso trabalhar duro para
conquistá-la.
Tony abriu outro saco. Sentiu mais uma vez o cheiro forte de remédio, mas não lhe deu
importância. O fino pó branco foi parar na tigela. Depois, foi a vez da lactose. Começou a
misturar as duas substâncias com uma colher. Tinha certeza de que havia uma máquina para
fazer essa operação, mas ela devia ser grande demais, como as usadas nas padarias. Não
gostava de fazer um serviço como aquele, que era coisa para fichinhas. Entretanto, aquela
entrega era muito importante e não havia mais ninguém para ajudá-los.
— O quê? — insistiu Henry.
— Esqueça — disse Piaggi. — Onde estariam Albert e Frank? Já deviam ter voltado há muito
tempo. Consideravam-se especiais só porque eram os encarregados das execuções.

— Bom dia, tenente.


O sargento que tomava conta do depósito central da polícia era um ex-guarda de trânsito cuja
motocicleta tinha sido abalroada por um motorista imprudente. Isso lhe custara uma perna e o
relegara a serviços administrativos, o que não desagradava ao sargento, que tinha sua mesa,
suas rosquinhas e seu jornal, além das tarefas burocráticas que consumiam talvez três horas de
trabalho para cada turno de oito horas. Era a chamada aposentadoria no emprego.
— Como vai a família, Harry?
— Bem, obrigado. O que posso fazer pelo senhor?
— Preciso verificar os números de identificação das drogas que apreendi semana passada —
explicou Charon. — Alguém pode ter trocado as etiquetas. De qualquer maneira — ele deu de
ombros —, tenho que dar uma olhada.
— OK. Já vou buscar.
— Não precisa, Harry. Eu sei onde estão — disse Charon, dando-lhe um tapinha no ombro.
Era proibido deixar alguém entrar sozinho no depósito, mas Charon era tenente, Harry tinha
apenas uma perna e a prótese, como sempre, estava lhe dando problemas.
— Foi um bom trabalho, Mark — observou o sargento, da sua mesa. Que diabo, pensou.
Mark foi o homem que matou o traficante que estava com a droga.
Charon olhou em torno para certificar-se de que não havia mais ninguém no depósito.
Pretendia cobrar um bom dinheiro por aquele trabalho. Estavam falando em transferir as
operações para outro lugar. Teria que voltar a viver como antigamente, caçando traficantes...
bem, não seria de todo mau. Economizara uma quantia razoável, o suficiente para calar a boca
da ex-mulher e educar os três filhos que tivera com ela, além de guardar um pouco para si
próprio. Provavelmente seria promovido em breve, por causa dos bons resultados que vinha
conseguindo na repressão ao tráfico.
Os dez quilos que apreendera no carro de Eddie Morello estavam em uma caixa de papelão,
na terceira prateleira. Pegou a caixa e abriu-a. Cada um dos sacos de um quilo tinha que ser
aberto, testado e lacrado. Até o momento, o técnico encarregado do serviço se limitara a
etiquetar os sacos e sua rubrica era fácil de imitar. Charon escondera na calça e na camisa sacos
plásticos de açúcar com a mesma cor e consistência que a heroína. Apenas a sua divisão tinha
acesso à droga. Dali a um mês, prepararia um relatório recomendando que as provas fossem
destruídas, já que o caso tinha sido encerrado. O capitão certamente assinaria embaixo.
Queimaria a droga na presença de várias pessoas e ninguém jamais ficaria sabendo. Parecia
muito fácil. Três minutos depois, estava de volta à mesa do sargento.
— Os números conferem?
— Conferem. Obrigado, Harry — disse Charon, despedindo-se com um aceno.

— Alguém vá atender a esse maldito telefone — rosnou Piaggi. Um dos rapazes de Filadélfia
se levantou e foi até lá, aproveitando para acender um cigarro.
— Alô. — O homem virou a cabeça. — Henry, é para você.
— Quem será? — murmurou Tucker, intrigado, antes de pegar o fone.
— Olá, Henry — disse Kelly. Ele havia ligado um telefone de campo à outra extremidade da
linha. Para chamar, usara uma manivela. Podia ser primitivo, mas funcionava.
— Quem está falando?
— Aqui é Kelly. John Kelly.
— O que você quer?
— Pam foi morta por quatro homens. Só resta você, Henry — disse a voz. — Já cuidei dos
outros. Agora chegou a sua vez.
Tucker olhou em torno, como se estivesse à procura do dono da voz. Seria algum tipo de
brincadeira?
— Como... como conseguiu este número? Onde você está?
— Bem perto de você, Henry.
— Escute, não sei quem você é, mas...
— Já lhe disse quem eu sou. Você está aí com Tony Piaggi. Vi os dois no restaurante dele,
uma noite dessas. A propósito: como estava a comida? A minha estava ótima.
Tucker se empertigou e apertou o fone com força.
— O que pretende fazer, rapaz?
— Não espere um beijo no rosto, rapaz. Peguei Rick, peguei Billy, peguei Burt e agora vou
pegar você. Faça-me um favor. Deixe-me falar com Piaggi — pediu a voz.
— Tony, é melhor você vir aqui — chamou Tucker.
— Quem é, Henry? — Piaggi derrubou a cadeira ao levantar-se. — Estou exausto. Acho bom
aqueles filhos da puta de Filadélfia não demorarem para pagar.
Henry passou-lhe o fone.
— Alô?
— Sabe os dois caras do barco, aqueles que você emprestou a Henry? Fui eu que acabei com
eles. Esta manhã cuidei dos outros dois.
— Quem está falando?
— Adivinhe. — A linha ficou muda.
Piaggi olhou para o sócio, e como não podia conseguir uma resposta do telefone, tentou
conseguir uma de Tucker.
— Henry, o que está acontecendo?

Muito bem, vamos ver o que consegui com meu telefonema. Kelly se permitiu um gole
d'água e um Snickers. Estava no terceiro andar. Era uma espécie de depósito, pensou, uma
construção sólida, de concreto armado, um bom lugar para se estar quando a bomba explodisse.
Era um problema tático interessante. Não podia simplesmente invadir o esconderijo dos
traficantes. Mesmo que tivesse uma metralhadora — e não tinha —, quatro contra um era uma
grande desvantagem, especialmente quando não sabia o que havia lá dentro, especialmente
quando não podia pegá-los de surpresa, de modo que tentaria outros métodos. Nunca fizera algo
parecido, mas da sua janela podia cobrir todas as portas do edifício. As janelas do fundo tinham
sido tapadas com tijolos. As únicas saídas estavam bem à vista, e a menos de cem metros de
distância. Esperava que tentassem usá-las. Kelly colocou o rifle no ombro mas manteve a
cabeça levantada, varrendo a cena com os olhos, de forma metódica e paciente.
— É ele — afirmou Henry, baixinho, para que os outros não ouvissem.
— Ele quem?
— O cara que matou todos aqueles traficantes. O cara que pegou Billy e os outros. O cara que
acabou com o nosso laboratório no barco. É ele.
— De quem está falando, Henry?
— Eu não sei, porra! — Tinha falado mais alto e os outros dois levantaram a cabeça. Tucker
tentou controlar-se. — Disse para a gente sair daqui.
— Ah, é? Espere um minuto. — Piaggi levantou o fone mas não ouviu o ruído de discar. —
Que merda é essa?
Kelly ouviu o zumbido e atendeu.
— Alô.
— Quem é você?
— Tony? Por que você tinha que matar Doris, Tony? Ela não representava nenhum perigo.
Agora vou ter que acabar com você, também.
— Não fui eu que...
— Sabe o que eu quis dizer, mas obrigado por mandar chamar aqueles dois. Não esperava ter
a chance de pegá-los tão cedo. A essa altura, devem estar no necrotério.
— Está tentando me assustar?
— Não, apenas tentando matá-lo — respondeu Kelly.
— Que merda! — exclamou Piaggi, batendo com o fone no gancho.
— Ele disse que nos viu no restaurante. Disse que está aqui perto.
Àquela altura, os outros dois tinham certeza de que havia alguma coisa errada. Ficaram
olhando para os dois superiores, desconfiados, sem conhecer a causa de tanta agitação.
— Como é que ele pode saber... oh! — exclamou Piaggi, atinando de repente com a verdade.
— Foram eles...
Havia apenas uma janela de vidro transparente. As outras tinham tijolos de vidro, blocos
translúcidos que deixavam passar a luz mas não podiam ser quebrados facilmente por vândalos.
Também impediam que alguém olhasse para fora. A única janela transparente dispunha de uma
alavanca para abrir a veneziana. O escritório tinha sido provavelmente montado por alguém que
não queria que as secretárias olhassem pela janela. Piaggi tentou abrir a veneziana, mas o
mecanismo enguiçou antes que conseguisse fazê-lo totalmente.
Kelly observou o movimento e pensou em anunciar sua presença de forma mais direta, mas
mudou de ideia. Melhor deixar como estava, pensou. Eles ficariam mais nervosos se não
soubessem o que estava acontecendo. O mais interessante é que já eram dez da manhã de um dia
ensolarado de verão. Caminhões trafegavam na O'Donnell Street, a apenas meio quarteirão de
distância, e alguns carros particulares também. Talvez os motoristas vissem o edifício onde
Kelly se encontrava e imaginassem, como ele, para que teria sido construído. Ao se deparar
com os quatro automóveis estacionados na porta da antiga companhia de transportes, chegariam
à conclusão de que alguém se interessara novamente pelo negócio. Entretanto, esses
pensamentos logo seriam postos de lado, pois as pessoas tinham outras coisas para fazer. O
drama estava se desenrolando à luz do dia, mas apenas os atores sabiam.
— Não vejo porra nenhuma — afirmou Piaggi, inclinando-se para olhar para fora. — Não há
ninguém por perto.
Foi o cara que matou os traficantes, pensou Tucker, mantendo-se afastado da janela. Cinco ou
seis deles. Matou Rick com uma faca...
Tinha sido Tony que escolhera o prédio. Oficialmente, pertencia a uma pequena companhia de
transportes, cujos donos eram ligados à máfia. Um lugar perfeito, pensara, perto das principais
rodovias, em um bairro sossegado, pouco visitado pela polícia, apenas um prédio anônimo
fazendo um trabalho anônimo. Perfeito, pensara Henry ao conhecê-lo.
Oh, sim, é perfeito...
— Deixe ver. — Não era hora de recuar. Henry Tucker não se considerava um covarde. Já
matara muita gente e não apenas mulheres. Levara anos para se firmar e a primeira parte do
processo tinha sido particularmente violenta. Além do mais, não queria dar parte de fraco na
frente de Tony e dos dois homens de Filadélfia. — Nada — concordou.
— Vamos tentar uma coisa. — Piaggi foi até o telefone e tirou-o do gancho. Não ouviu o
ruído de discar, mas apenas um zumbido...
Kelly olhou para o telefone de campanha e deixou-o tocar. Embora tivesse planejado a
situação, suas opções eram limitadas. Falar, não falar. Atirar, não atirar. Sair dali, ficar onde
estava. Com apenas três escolhas para fazer, tinha que medir cuidadosamente seus atos para
conseguir o efeito desejado. Aquele não era um combate material. Como a maioria dos
combates, era uma coisa psicológica.
Estava esquentando. Os últimos dias de calor antes que as folhas começassem a cair. Devia
estar fazendo uns trinta graus. Enxugou o suor no rosto e continuou a vigiar o edifício, ignorando
a campainha do telefone, deixando-os suar por outro motivo além do calor do dia.
— Que merda! — exclamou Piaggi, colocando o fone no gancho. — Vocês dois!
— Sim? — respondeu Bobby, o mais alto.
— Dê uma volta em torno do edifício...
— Não! — protestou Henry. — E se ele estiver lá fora? Não dá para ver muita coisa dessa
maldita janela. Ele poderia estar de tocaia. Quer correr esse risco?
— Do que está falando? — perguntou Piaggi.
Tucker começou a andar de um lado para outro, respirando um pouco mais depressa que o
normal, tentando pensar. Como é que eu faria?
— Estou dizendo que o filho da mãe cortou o fio do telefone, ligou para nós, nos assustou e
agora pode estar nos esperando do lado de fora.
— O que você sabe sobre esse sujeito?
— Sei que matou cinco traficantes e quatro dos meus homens...
— E quatro dos meus, também, se está dizendo a verdade...
— Temos que ser mais espertos do que ele, entende? Alguma ideia?
Piaggi parou para refletir. Nunca tinha matado ninguém. Não tinha sido necessário. Entretanto,
teve que assustar algumas pessoas, chegara a machucá-las muito, e isso era alguma coisa, não
era?
Como é que eu faria? A ideia de Henry tinha uma certa lógica. Bastaria ficar escondido em
algum lugar, do outro lado da esquina, na sombra, em um beco, e esperar que saíssem. A porta
mais próxima, aquela que usavam normalmente, abria para a esquerda, e isso era visível do
lado de fora por causa da posição das dobradiças. Também era a que ficava mais próxima dos
carros. O cara devia estar esperando que saíssem por ela.
Isso mesmo.
Piaggi se virou para o sócio. Henry estava olhando para cima. O teto falso tinha sido
removido. Bem ali, no teto, havia um alçapão. Estava fechado com uma tranca manual, para
impedir que algum ladrão o utilizasse. Seria fácil abri-lo e chegar ao telhado, caminhar até a
borda, olhar para baixo e atirar em quem estivesse do lado de fora, perto da porta da frente.
Isso mesmo.
— Bobby, Fred, venham aqui — chamou Piaggi. Explicou-lhes a situação. Àquela altura, já
sabiam que o caso era sério, mas pareceram aliviados quando Piaggi lhes assegurou que a
polícia nada tinha a ver com o assunto. Os dois estavam armados, eram espertos, e Fred matara
um homem uma vez, para resolver um problema familiar em Filadélfia. Arrastaram uma mesa
para baixo do alçapão. Fred estava ansioso para mostrar que era um cara de coragem e assim
conquistar as boas graças de Tony, que também parecia um cara de coragem. Subiu na mesa. A
altura não era suficiente. Colocaram uma cadeira em cima da mesa, o que permitiu que chegasse
ao telhado.
Ah! Kelly viu quando o vulto apareceu. Na verdade, apenas a cabeça e o peito estavam
visíveis. Levantou o fuzil e apontou para o rosto. Quase apertou o gatilho. O que o deteve foi a
forma como o homem apoiou as mãos nas bordas do alçapão, o modo como olhou em torno,
examinando o telhado plano antes de se aventurar mais. Ele pretende sair. Acho que vou esperar
um pouco, pensou Kelly enquanto um caminhão passava ruidosamente na rua, a cinquenta metros
de distância. O homem subiu no telhado. Olhando pela mira telescópica, pôde ver que ele estava
armado com um revólver. O homem olhou em torno mais uma vez e se dirigiu para a parte da
frente do edifício. Não era uma má ideia. Sempre se deve fazer um bom reconhecimento... oh,
então é isso que estão pensando! Azar o deles.
Fred tinha tirado os sapatos. O cascalho fino machucava-lhe os pés e o calor que se irradiava
das juntas de piche não era nada agradável, mas não queria fazer barulho e, além disso, era um
sujeito durão, como alguém tivera oportunidade de aprender um dia, na margem do rio
Delaware. Seus dedos apertaram com força o cabo do Smith de cano curto. Se o filho da puta
estivesse lá embaixo, seria um alvo fácil. Tony e Henry arrastariam o corpo para dentro,
jogariam água na calçada para lavar o sangue e tratariam de continuar o trabalho, porque aquela
entrega era muito importante. Fred se aproximou do parapeito, debruçou-se, apontou a arma e...
nada. Varreu a calçada com os olhos.
— Que merda! — Virou a cabeça para trás e gritou: — Não há ninguém lá embaixo!
— O quê? — Bobby pôs a cabeça para fora do alçapão para olhar, mas Fred agora estava
examinando os carros estacionados na porta do prédio. Talvez houvesse alguém de tocaia atrás
de um deles.
Kelly repetiu para si mesmo que a paciência era quase sempre recompensada. O pensamento
o ajudara a combater a ansiedade que dele se apossava sempre que tinha alguém na mira de sua
arma. Assim que a visão periférica captou um movimento perto do alçapão, apontou o fuzil
naquela direção. Um rosto, branco, jovem, olhos escuros, olhando para o outro, com uma pistola
na mão direita. Um alvo perfeito. Vai ser o primeiro. Kelly apontou para o nariz do homem e
apertou suavemente o gatilho.
Plof. Fred olhou para trás ao ouvir um som que era ao mesmo tempo úmido e explosivo, mas
não viu nada. Logo depois, houve um ruído lá embaixo, como se Bobby tivesse caído da
cadeira. Nada mais, mas, sem motivo aparente, sentiu um frio na espinha. Recuou da beira do
telhado e olhou rapidamente em torno. Nada.
A arma era nova e Kelly teve um pouco de dificuldade para carregar o segundo cartucho.
Apontou-o para o segundo alvo. Dois pelo preço de um. Agora parecia assustado. Havia medo
naqueles olhos. Sabia que estava em perigo, mas não sabia o que esperar. Encaminhou-se para o
alçapão. Kelly não podia permitir que chegasse lá. Apertou de novo o gatilho. Pinnnng.
Plof. O som do impacto foi muito mais forte que o pop abafado do disparo. Kelly ejetou o
cartucho usado e carregou outro no momento em que um carro entrava na O'Donnell Street.
Tucker ainda estava olhando para o rosto de Bobby quando o baque do que só podia ser outro
corpo fez sacudir as vigas do teto.
— Oh, meu Deus.
37

ORDÁLIO

— Está com ótimo aspecto, coronel — disse Ritter, em russo. O guarda de segurança se
levantou e saiu da sala de estar, para que os dois ficassem mais à vontade. Ritter carregava uma
maleta, que colocou em cima da mesinha de centro. — Que tal a comida?
— Não tenho queixas — respondeu Grishanov, desconfiado. — Quando vou poder voltar
para casa?
— Esta noite, provavelmente. Estamos esperando uma coisa. — Ritter abriu a maleta. O gesto
deixou Kolya nervoso, mas ele procurou ocultar o fato. Podia muito bem haver uma pistola ali
dentro. Por mais confortável que fosse o seu cativeiro, por mais amistosas que fossem as
conversas com as pessoas que moravam ali, encontrava-se em solo inimigo, em poder de
inimigos. O pensamento o fez lembrar-se de outro homem, em um lugar distante, em
circunstâncias muito diferentes. As diferenças o deixaram envergonhado de sua covardia.
— O que estão esperando?
— A confirmação de que nossos homens foram transferidos para a prisão de Hoa Lo.
O russo baixou a cabeça e murmurou alguma coisa que Ritter não conseguiu ouvir. Grishanov
olhou para ele.
— Fico satisfeito de saber.
— Sabe de uma coisa? Acredito em você. A correspondência que trocou com Rokossovskiy
deixa isso bem claro. — Ritter se serviu de chá e também encheu a xícara de Kolya.
— Tenho sido bem tratado — comentou Grishanov, à falta do que dizer.
— Temos muita experiência com hóspedes soviéticos — afirmou Ritter. — Você não é o
primeiro que recebemos aqui. Sabe montar?
— Não. Nunca andei a cavalo.
— Hmmmmm. — Kolya observou que a maleta estava cheia de papéis. Imaginou o que
seriam. Ritter pegou dois cartões e uma almofada de tinta. — Pode me emprestar suas mãos?
— Não compreendo.
— Não se preocupe. — Ritter segurou-lhe a mão esquerda, sujou as pontas dos dedos de tinta
e comprimiu-as contra os retângulos de um dos cartões, uma de cada vez. Depois, fez o mesmo
com o outro cartão. Repetiu o processo com a mão direita. — Pronto. Não doeu nada, não é? É
melhor lavar a mão antes que a tinta seque. — Ritter colocou um dos cartões na pasta, em lugar
do que acabara de remover. Fechou a maleta, levou o cartão antigo até a lareira e ateou fogo
nele com um isqueiro que tirou do bolso. Ele queimou depressa e as cinzas foram se juntar às da
fogueira que os caseiros costumavam acender noite sim, noite não. Grishanov voltou do
banheiro com as mãos lavadas.
— Ainda não entendi.
— Não precisa entender. Simplesmente me ajudou a resolver um problema, isso é tudo. O que
acha de almoçarmos agora? Depois poderemos nos encontrar com um conterrâneo seu. Fique à
vontade, camarada coronel. Se o seu lado respeitar o acordo, em menos de oito horas estará a
caminho de casa. Prometo!

Mark Charon preferia não ter que voltar ali, embora o lugar fosse relativamente seguro, pois
mal começara a ser usado. Bem, isso não levaria muito tempo. Estacionou o Ford chapa fria na
frente do edifício, saltou e caminhou até a porta da frente. Teve que bater. Quem abriu foi Tony
Piaggi, com uma arma na mão.
— O que é isso? — perguntou Charon, assustado.
— O que é isso? — perguntou-se Kelly. Não esperava que outro carro chegasse e estava
carregando mais dois cartuchos quando o homem estacionou e saltou. O fuzil estava tão duro
que teve dificuldade para armá-lo, e quando conseguiu apontá-lo, o homem andava depressa
demais para um tiro certeiro. Naturalmente, não sabia quem era. Ajustou a mira para aumento
máximo e observou o carro. Um modelo barato... uma antena especial... carro da polícia? A luz
refletida o impedia de ver o interior. Droga. Cometera um erro. Esperava alguns momentos de
sossego depois de pegar os dois no telhado. Não tome nada como certo, seu burro!, recriminou-
se, com uma careta.
— Que diabo está acontecendo aqui? — perguntou Charon. Então viu o corpo no chão, com
um pequeno furo ligeiramente acima e à esquerda do olho direito.
— Foi ele! Ele está lá fora! — gritou Tucker.
— Ele quem?
— O mesmo que matou Billy, Rick e Burt...
— Kelly! — exclamou Charon, virando-se para olhar a porta fechada.
— Sabe o nome dele? — quis saber Tucker.
— Ryan e Douglas estão à procura dele... querem prendê-lo por assassinato.
— Pois ele acaba de cometer mais dois — afirmou Piaggi. — Bobby aqui e Fred no telhado.
— Foi até a janela. Ele tem que estar do outro lado da rua...
Charon sacou a arma, sem nenhum motivo aparente. Por alguma razão, os sacos de heroína
tinham começado a parecer extremamente pesados. Colocou o revólver de serviço em cima da
mesa e retirou os sacos de dentro da camisa e da calça, colocando-os perto dos outros, ao lado
da tigela, dos envelopes e do grampeador. Em seguida, ficou parado, olhando para os outros
dois. Foi então que o telefone tocou. Tucker foi atender.
— Está se divertindo, seu chupador de pau?
— Divertiu-se muito com Pam? — perguntou Kelly, friamente. — Quem é seu amigo? O
guarda que está na sua folha de pagamento?
— Você pensa que sabe tudo, não é?
— Está enganado. Não sei como um homem pode ter prazer em matar garotas, Henry. Você se
importaria de me explicar?
— Vá se foder!
— Quer vir aqui me dizer isso pessoalmente? — Tucker bateu com o telefone com tanta força
que Kelly torceu para que ele tivesse resistido. O traficante simplesmente não compreendia qual
era o jogo e isso era ótimo. Quem não conhece as regras não consegue jogar bem. Havia um
toque de fadiga em sua voz e também na de Tony. O cara do telhado estava com a camisa
amarrotada, observou Kelly, olhando pela mira telescópica. A calça tinha vincos do lado interno
dos joelhos, como se tivesse passado a noite inteira sentado. Seria apenas um tipo relaxado?
Não parecia provável. Os sapatos que deixara perto do alçapão estavam bem engraxados.
Provavelmente passaram a noite toda acordados, pensou Kelly, depois de refletir alguns
segundos. Estão cansados, estão assustados e não sabem qual é o jogo. Excelente. Tinha sua
água, suas barras de chocolate e o dia inteiro para esperar.
— Se você sabia o nome do filho da puta, por que não... que merda! — exclamou Tucker. —
Você me disse que ele era apenas um boa-vida. Eu me ofereci para acabar com ele no hospital,
lembra-se? Mas não... Você me convenceu de que não valia a pena a gente se preocupar!
— Procure se controlar, Henry — disse Piaggi, o mais calmamente que pôde. O cara que está
lá fora é perigoso. Já matou seis dos meus homens. Seis! Não devemos nos apavorar.
— Temos que fazer alguma coisa, certo? — Tony coçou o queixo com a barba por fazer,
tentando achar uma saída, tentando raciocinar. — Ele tem um fuzil e está naquele prédio branco,
do outro lado da rua.
— Está pensando em ir até lá acabar com ele, Tony? — Tucker apontou para a cabeça de
Bobby. — Veja o que ele fez!
— Já ouviu falar em noite, Henry? Há uma lâmpada lá fora, bem acima da porta. — Piaggi foi
até a caixa de fusíveis, examinou o diagrama que havia do lado de dentro da porta e
desatarraxou um dos fusíveis. — Pronto. A lâmpada não vai mais acender. Podemos sair depois
que escurecer. Ele não vai conseguir acertar todos nós. Se andarmos depressa, não vai
conseguir acertar ninguém.
— E a mercadoria?
— Um de nós pode ficar aqui para tomar conta. Os outros vão até lá, cuidam do filho da puta
e depois a gente termina o trabalho, OK? — Era um plano viável, pensou Piaggi. O cara não era
onipotente. Não podia atirar através das paredes. Tinham água, café e tempo para esperar.

As três histórias eram praticamente iguais, mais semelhantes do que seria de esperar naquelas
circunstâncias. Ele as interrogara separadamente, assim que se recuperaram do efeito das
pílulas o suficiente para falar; o estado de agitação em que se encontravam facilitara ainda mais
as coisas. Nomes, o lugar onde acontecera, o fato de que o tal de Tucker agora estava mandando
a droga para fora da cidade, algo que Billy comentara a respeito do cheiro dos sacos...
confirmado pelo "laboratório" que tinham descoberto no barco. Agora tinham o número da
carteira de motorista e o possível endereço de Tucker. O endereço podia ser falso, mas também
conheciam a marca do carro e até o número da placa. Já podia considerar a investigação como
encerrada. Chegara a hora de ficar em seu canto e deixar as coisas acontecerem. O aviso geral
estava sendo transmitido pelo rádio naquele exato momento. Em breve, o nome de Henry
Tucker, a placa e a descrição de seu carro chegariam ao conhecimento dos patrulheiros, que
eram os verdadeiros olhos da força policial. Era apenas questão de tempo até o homem ser
preso, julgado e condenado a apodrecer na cadeia, caso a Suprema Corte não tivesse o bom
senso de sentenciá-lo à morte. Ryan cuidaria para que aquele filho da mãe recebesse o que
merecia.
E no entanto...
No entanto, Ryan sabia que se encontrava um passo atrás de outra pessoa. O Homem Invisível
agora usava uma .45 sem silenciador; mudara de tática, dando preferência a mortes rápidas,
limpas... não ligava mais para o barulho... extraíra informações das vítimas antes de executá-las,
de modo que provavelmente sabia mais do que ele, Ryan. O tipo perigoso que Farber lhe
descrevera estava nas ruas, agindo à luz do dia, mas Ryan desconhecia seu paradeiro.
John T. Kelly, ex-suboficial da Marinha, ex-SEAL. Onde você está? Se eu fosse você... onde
estaria? Aonde iria?

— Ainda estão aí? — perguntou Kelly quando Piaggi atendeu.


— Ainda, cara. Estamos almoçando. Quer nos fazer companhia?
— Experimentei um prato de lulas outro dia no seu restaurante. Estava ótimo. Foi a sua mãe
quem fez? — perguntou Kelly, alegremente, imaginando o que o outro iria responder.
— Fo— confirmou Tony, no mesmo tom. — É uma velha receita de família, trazida do Velho
Mundo pela minha bisavó.
— Sabe de uma coisa? Estou surpreso com você.
— Por que, Kelly?
— Esperava que me propusesse um acordo. Foi o que os outros fizeram, mas eu me recusei a
negociar com eles — explicou Kelly, deixando transparecer sua irritação.
— Por que não aceita o meu convite? Podemos discutir o assunto durante o almoço.
Kelly desligou. Excelente.
— Pronto. Isso dará o que pensar a esse desgraçado — afirmou Piaggi, servindo-se de mais
uma xícara de café. A bebida estava velha e rançosa, mas a cafeína ajudaria a mantê-lo
acordado e alerta. Olhou para os outros dois com um sorriso confiante.

— Triste o que aconteceu com Cas — comentou o superintendente com o amigo.


Maxwell assentiu.
— O que posso dizer, Will? Ele não era exatamente um bom candidato à aposentadoria, era?
Sem família... A vida dele era aqui, e estava para acabar, de uma forma ou de outra. — Nenhum
dos dois quis falar no que a esposa fizera. Talvez dali a um ou dois anos pudessem ver a
simetria poética que havia na morte de dois amigos, mas não agora.
— Soube que você também pediu reforma, Dutch. — O superintendente da Academia Naval
dos Estados Unidos estava curioso. Todos diziam que Dutch era forte candidato a um comando
de frota na primavera. Fazia poucos dias que os boatos tinham cessado, e ele gostaria de saber
por quê.
— É verdade. — O próprio Maxwell ficara surpreso. A ordem, disfarçada de "sugestão",
viera da Casa Branca, através do chefe de operações navais. — Estou ficando velho, Will. A
Marinha precisa de sangue novo. Nós, sobreviventes da Segunda Guerra Mundial... ora, acho
que devemos dar lugar aos mais jovens.
— Sonny está bem?
— Ele me deu um neto.
— Parabéns!
Pelo menos havia uma boa notícia no ar quando o almirante Greer entrou, usando uniforme,
para variar.
— James!
— Belo escritório — observou Greer, dirigindo-se ao superintendente. — Olá, Dutch.
— A que devo a honra? — perguntou o superintendente.
— Will, vamos precisar de um dos seus veleiros. Tem algum seguro e confortável, que possa
ser manejado por dois almirantes?
— Vários. Que tal um iate de vinte e seis pés?
— Perfeito.
— Vou ligar para o departamento de navegação e reservar um para você.
Fazia sentido, pensou o almirante. Os dois tinham sido amigos amigos de Cas, e quando você
diz adeus a um marinheiro, não há melhor modo de fazê-lo do que no mar. Fez a ligação e os
dois foram embora.

— Sem ideias? — perguntou Piaggi. A voz agora era de desafio. A dúvida tinha passado para
o outro lado da rua, pensou. Por que não?
— E vocês, que nunca tiveram uma que valesse a pena? Parece que têm medo da luz do dia.
Vou lhes mostrar uma coisa! — rosnou Kelly. — Observem.
Pôs de lado o telefone e pegou o rifle, apontando-o para a janela.
Pop.
Crás!
— Seu babaca! — disse Tony ao telefone, mesmo sabendo que ele estava desligado. — Estão
vendo? Ele sabe que não pode nos pegar. Sabe que o tempo está do nosso lado!
Duas janelas tinham sido quebradas. O telefone tocou. Tony esperou um pouco antes de
atender.
— Errou, seu idiota!
— Você não vai a lugar nenhum, porra! — gritou Kelly, tão alto que Tucker e Charon puderam
ouvi-lo a três metros de distância.
— Devia dar o fora enquanto pode, Kelly. Se não o pegarmos, a polícia fará o serviço para
nós. Ouvi dizer que estão atrás de você.
— São vocês que estão encurralados.
— É o que você pensa.
Piaggi fez questão de desligar primeiro, para mostrar quem estava por cima.

— Como vai, coronel? — perguntou Voloshin.


— Foi uma viagem interessante. — Ritter e Grishanov estavam sentados nos degraus do
Lincoln Memorial, dois turistas cansados após um dia quente, em companhia de um terceiro
amigo e vigiados por um guarda de segurança a dez metros de distância.
— E o seu amigo vietnamita?
— O quê? — perguntou Kolya, surpreso. — Que amigo?
Ritter começou a rir.
— Um pequeno truque que eu usei. Ajudou-nos a localizar a fonte do vazamento.
— Logo vi que tinha sido você — observou o general do KGB, com uma careta. Uma
armadilha tão óbvia e ele caíra direitinho. Isto é, quase. A sorte o ajudara e provavelmente
Ritter não sabia ainda.
— O jogo prossegue, Sergey. Vai chorar por um traidor?
— Por um traidor, não. Por alguém que acreditava na causa de um mundo pacífico, sim, Você
é muito esperto, Bob. Deu-se bem. — Mas não tão bem quanto julga, pensou Voloshin.
Conseguiu matar Hicks, mas CASSIO continua trabalhando para nós. Você foi muito impulsivo,
meu jovem amigo americano. Fez o serviço pela metade e não sabe disso, não é mesmo?
— E os nossos homens? — perguntou Ritter.
— Foram transferidos para o outro campo, conforme combinado. Rokossovskiy já confirmou.
Aceita minha palavra?
— Aceito.
— Muito bem, há um voo da PanAm de Dulles para Paris hoje à noite às oito e quinze. Vou
levar o seu amigo diretamente ao aeroporto. Pode mandar alguém esperá-lo em Orly.
— Combinado — disse Voloshin, à guisa de despedida.
— Por que ele foi embora? — perguntou Grishanov, mais surpreso do que alarmado.
— Coronel, ele acredita na minha palavra, como eu acredito na dele. — Ritter se pôs de pé.
— Temos algumas horas para matar...
— Matar?
— Desculpe. Maneira de falar. Faltam algumas horas para o voo e não temos nenhum
compromisso oficial. Gostaria de conhecer Washington? Há uma rocha lunar em exibição no
Smithsonian. As pessoas gostam tocá-la, por alguma razão.

Cinco e meia. O sol estava batendo direto em seus olhos. Kelly tinha que enxugar o rosto com
mais frequência. Olhando pela janela parcialmente quebrada, não via nada a não ser uma
sombra ocasional. Talvez estivessem dormindo. Isso não era bom. Tirou o fone do gancho e
girou a manivela. Mais uma vez, eles custaram para atender.
— Quem é? — perguntou Tony. Ele era o engraçado do grupo, pensou Kelly, quase tanto
quanto julgava que era. Uma pena.
— Seu restaurante faz entregas em casa?
— Está ficando com fome? — Pausa. — Talvez esteja interessado em fazer um trato conosco.
— Venha para fora e estou disposto a conversar — disse Kelly.
A resposta foi um clic.
Está chegando a hora, pensou Kelly, vendo as sombras se moverem do outro lado da rua.
Bebeu o resto da água e comeu a última barra de chocolate. Fazia algum tempo que decidira o
que fazer. De certa forma, a decisão não fora sua. Havia um relógio em ação, marcando um
tempo que era flexível mas finito. Ainda podia recuar, se quisesse, mas... não, não podia. Olhou
para o relógio. Ia ser perigoso, e esperar mais um pouco não mudaria isso. Eles estavam
acordados há vinte e quatro horas, talvez mais. Kelly os assustara e depois os deixara pensar
que o pior havia passado.
Escorregou para trás no piso de cimento, sem se preocupar em recolher os objetos que
trouxera. Não precisaria mais deles. Levantou-se, esfregou a poeira da roupa e verificou a
pistola Colt automática. Uma bala na câmara, sete no pente. Espreguiçou-se por um momento e
depois compreendeu que não podia esperar mais. Desceu a escada com a chave do fusca na
mão. O carro pegou de primeira, apesar do súbito temor de que se recusasse a funcionar. Deixou
o motor esquentar enquanto observava o movimento de veículos na rua. Depois, arrancou,
incorrendo na ira ruidosa de um motorista que passava mas conseguindo um lugar no trânsito,
que àquela hora era pesado.
— Viu alguma coisa?
Charon fora o primeiro a observar que, de onde estava, Kelly não podia ver o interior de todo
o prédio. Iriam atrás dele. Não tinha previsto essa possibilidade, anunciou Tony. Podia ser
esperto, mas eles eram mais ainda; quando escurecesse, sairiam para a rua. Não podia falhar.
Ele seria pego de surpresa, e então...
— Nada.
— Não chegue perto demais da janela, cara.
— É isso aí — disse Henry. — E a entrega?
— Temos um ditado na família, cara, antes tarde do que nunca!
Charon era o mais nervoso dos três. Talvez fosse apenas a proximidade da droga. Coisa
diabólica! Não acha que é um pouco tarde para você pensar assim? Será que ainda havia alguma
saída?
O dinheiro do seu pagamento estava bem ali, em cima da mesa. Tinha uma arma no bolso.
Morrer como um criminoso? Olhou para os companheiros, à esquerda e à direita da janela.
Os criminosos eram eles. Não fizera nada contra o tal de Kelly. Bem, nada de que tivesse
conhecimento. Tinha sido Henry quem matara uma das garotas e Tony quem mandara matar a
outra. Ele era apenas o policial corrupto. Para Kelly, aquilo era um caso pessoal. Compreendia
o que estava sentindo. A morte de Pam tinha sido um ato estúpido e brutal. Dissera isso a Henry.
Podia sair dali como herói, por que não? Recebera uma denúncia anônima e fora investigar.
Envolvera-se em um tiroteio. Talvez até depusesse a favor de Kelly. E nunca, nunca mais se
envolveria em nada parecido. Ficaria com o dinheiro, conseguiria a promoção e usaria o que
sabia para acabar com a organização de Henry.
Depois disso, nunca mais teria que se preocupar com dinheiro, certo? Tudo o que tinha a
fazer era pegar o telefone e argumentar com o homem. Exceto por um pequeno detalhe.
Kelly dobrou à esquerda, andou um quarteirão para oeste e depois dobrou novamente à
esquerda, rumando para o sul em direção à O'Donnell Street. Suas mãos estavam suando. Eles
eram três; teria que ser muito, muito bom. Mas sabia que era bom e tinha que terminar o
trabalho, mesmo que o trabalho acabasse com ele. Parou o carro a um quarteirão de distância,
saltou, trancou-o e foi a pé para o edifício. Os outros negócios já tinham fechado àquela hora —
contara três funcionando o dia inteiro, totalmente alheios ao que estava acontecendo... um deles
bem do outro lado da rua.
Você planejou tudo direitinho, não foi?
Pode ser, Johnnie-boy, mas agora é que vem a parte difícil.
Obrigado. Ficou parado na esquina, olhando em todas as direções. Do outro lado seria mais
fácil... Foi até o canto onde passavam os cabos elétricos e de telefone e usou o peitoril da janela
para chegar ao telhado, tomando cuidado para não tocar nos fios elétricos.
Muito bem. Agora é só atravessar o telhado sem fazer nenhum ruído.
Pisando em piche e cascalho?
Havia uma alternativa que não lhe ocorrera antes. Kelly ficou de pé no parapeito. Observou
que tinha no mínimo vinte centímetros de largura. Caminhou sobre ele para perto do alçapão,
imaginando se eles estariam tentando chamá-lo ao telefone.
Charon tinha que agir sem perda de tempo. Levantou-se, olhou para os outros e se
espreguiçou teatralmente antes de se aproximar. Estava sem paletó, com a gravata frouxa e um
Smith de cinco tiros no bolso direito da calça. É só atirar nos filhos da puta e me entender com
Kelly pelo telefone. Por que não? Eles são bandidos, não são? Por que eu deveria morrer pelo
que fizeram?
— O que está fazendo, Mark? — perguntou Henry, sem perceber o perigo, preocupado que
estava com a janela.
Ótimo.
— Eu me cansei de ficar sentado. — Charon tirou o lenço do bolso direito da calça e enxugou
o rosto enquanto avaliava ângulos e distâncias; depois, olhou para o telefone, onde residia sua
única esperança.
Piuggi não gostou do que viu nos olhos do policial.
— Por que não se senta de novo e tenta relaxar? Daqui a pouco vamos precisar de toda a
nossa energia.
Por que ele está olhando para o telefone? Por que está olhando para nós?
— Deixe-me em paz, Tony, OK? — disse Charon, em tom desafiador, fazendo menção de
colocar o lenço no bolso. Não sabia que os olhos o haviam denunciado. Seus dedos mal
chegaram a tocar o revólver antes que Tony atirasse no seu peito.
— Queria bancar o esperto, hein? — disse Tony ao moribundo. De repente, notou que havia
uma sombra no retângulo luminoso projetado pelo alçapão do teto. Piaggi ainda estava olhando
para a sombra quando ela desapareceu, substituída por um borrão que sua visão periférica mal
conseguiu captar. Enquanto isso, Henry estava olhando para o corpo de Charon.
O tiro o assustou — era natural que pensasse que tinha sido dirigido contra ele —, mas não
podia mais recuar, de modo que mergulhou no alçapão. Era como pular de paraquedas.
Mantenha os pés juntos, os joelhos dobrados, as costas retas, e role quando chegar ao chão.
O impacto no piso de cerâmica sobre concreto foi violento, mas suas pernas absorveram a
maior parte do choque. Kelly começou a rolar, ao mesmo tempo em que estendia o braço. O
mais próximo era Piaggi. Apontou para o peito do traficante e atirou duas vezes. Depois,
levantou um pouco mais a arma e baleou-o no pescoço.
Trocar de alvo.
Rolou de novo, como tinha sido treinado para fazer. Henry sacou a arma e fez pontaria. Seus
olhos se encontraram e, por um tempo absurdamente longo, os dois ficaram imóveis, frente a
frente, caçador e presa. Kelly foi o primeiro a reagir. Apertou o gatilho, atingindo Tucker no
peito. O Colt pulou na sua mão. Seu cérebro agora estava funcionando tão depressa que viu o
extrator deslizar para trás, ejetando o cartucho vazio, depois projetando-se para a frente e
carregando novamente a arma, enquanto baixava o braço e atirava pela segunda vez no peito do
homem. Tucker caiu sem um gemido. Ou escorregara no chão liso ou o impacto dos dois tiros o
derrubara.
Missão cumprida, disse Kelly a si próprio. Pelo menos conseguira concluir um trabalho,
depois de todos os fracassos daquele verão fatídico. Levantou-se e aproximou-se de Henry
Tucker, chutando a pistola para longe dele. Queria dizer alguma coisa enquanto ainda estava
vivo, mas as palavras lhe faltaram. Talvez Pam agora estivesse se sentindo melhor, mas isso não
lhe parecia provável. Os mortos estavam mortos e não sabiam ou não se importavam com o que
ficara para trás. Provavelmente. Kelly não tinha opinião formada a respeito, embora
frequentemente pensasse no assunto. Se os mortos ainda viviam na superfície da Terra, era na
memória dos entes queridos, e tinha sido em nome dessa memória que matara Henry Tucker e
todos os outros. Talvez Pam não estivesse se sentindo melhor, mas ele certamente estava. Kelly
percebeu que Tucker abandonara o mundo dos vivos enquanto ele pensava em Pam, enquanto
fazia um exame de consciência. Não, não se arrependia de ter matado aquele homem, nem os
outros. Kelly travou a pistola e olhou em torno. Três homens mortos, e a melhor coisa que podia
dizer era que se alegrava por não ser um deles. Saiu da sala. O carro estava a um quarteirão de
distância e ainda tinha um serviço para fazer, uma vida para tirar.
Missão cumprida.
O barco ainda estava no mesmo lugar. Kelly estacionou o carro, uma hora depois, e saltou
com a maleta. Trancou o carro com a chave dentro, porque não pretendia usá-lo de novo.
Durante a viagem até a marina, não pensara praticamente em nada. Dirigira mecanicamente,
manobrando o carro, parando em alguns sinais fechados, avançando outros, tomando a direção
do mar, ou da baía, um dos poucos lugares onde se sentia à vontade. Sopesou a maleta,
caminhou pelo cais em direção ao Springer e subiu a bordo. Tudo parecia em ordem; em dez
minutos, estaria longe de tudo que aprendera a associar à cidade. Abriu a porta do
compartimento principal e teve um choque quando sentiu cheiro de fumaça e logo depois ouviu
uma voz.
— Você é John Kelly, certo?
— E você, quem é?
— Emmet Ryan. Conhece meu parceiro, Tom Douglas.
— O que deseja? — Kelly pôs a maleta no chão e lembrou-se da Colt automática que estava
nas costas, por baixo da jaqueta.
— Gostaria de saber por que matou tanta gente — respondeu Ryan.
— Se acha que fui eu, então sabe por quê.
— Tem razão. No momento, estou à procura de Henry Tucker.
— Aqui é que ele não está.
— Achei que talvez pudesse me ajudar.
— A esquina de Mermen com O'Donnell talvez seja um bom lugar para procurá-lo. Ele não
vai a parte alguma.
— O que vou fazer com você?
— E aquelas três garotas? Elas...
— Estão num lugar seguro. Vamos cuidar delas. Você e seus amigos fizeram o que era
possível por Pam Madden e Doris Brown. Não são responsáveis pelo que aconteceu. Bem,
talvez um pouquinho. — O policial fez uma pausa. — Sabe que vou ter que prendê-lo.
— Qual é a acusação?
— Assassinato.
— Não. — Kelly sacudiu a cabeça. — Assassinato é matar gente inocente.
Os olhos de Ryan se estreitaram. Na verdade, só podia ver a silhueta do homem contra a
claridade do céu, mas ouvira suas palavras e tinha vontade de concordar com ele.
— Não é o que diz a lei.
— Não estou pedindo perdão pelo que fiz. Não vou lhe trazer mais problemas, mas também
não pretendo ir para a cadeia.
— Não posso deixá-lo em liberdade.
O policial ainda não sacara a arma, observou Kelly. O que isso queria dizer?
— Poupei a vida de Monroe.
— Obrigado por isso — reconheceu Ryan.
— Não mato por matar. Fui treinado para isso, mas precisa haver uma razão. Nesse caso,
havia uma razão.
— Pode ser, mas o que acha que conseguiu? — perguntou Ryan. — O problema das drogas
não vai desaparecer.
— Henry Tucker nunca mais vai matar uma garota. Foi isso que eu consegui. Para mim, seria
suficiente, mas também acabei com aquela quadrilha de traficantes. — Kelly fez uma pausa.
Havia mais uma coisa que aquele homem precisava saber. — Há um policial naquele prédio.
Acho que era cúmplice deles. Tucker e Piaggi o mataram. Talvez possa sair disso como herói. O
lugar está cheio de heroína. Talvez desse jeito fique melhor para o seu departamento. — E
graças a Deus não tive que matar um tira... mesmo um tira corrupto, pensou. — E tem mais.
Descobri como Tucker importava a droga.
Kelly explicou rapidamente o método usado pelo traficante.
— Não posso deixá-lo em liberdade — repetiu o detetive, a contragosto. Embora
compreendesse a posição de Kelly, sua vida tinha regras, também.
— Pode me dar uma hora? Prometo que não vou tentar fugir. Uma hora. Será melhor para todo
mundo.
O pedido pegou Ryan de surpresa. Vai contra tudo o que defendo... mas não se podia dizer o
mesmo dos monstros que Kelly matara? Nós lhe devemos alguma coisa... teríamos conseguido
resolver aqueles casos sem ele? Além do mais, o que poderia fazer de errado em uma hora?
Ryan, você ficou maluco? É, talvez tenha ficado...
— Tem uma hora. Depois, posso recomendar-lhe um bom advogado. Quem sabe? Com um
pouco de sorte, talvez consiga absolvê-lo.
Ryan se levantou e saiu sem olhar para trás. Parou na porta apenas por um segundo.
— Você poupou pessoas inocentes, mesmo sabendo que podiam comprometê-lo, Kelly. Foi
por isso que concordei. Sua hora já começou.
Kelly não perdeu tempo. Assim que Ryan saiu, ligou os motores e deixou-os funcionando em
ponto morto. Uma hora deveria ser suficiente. Foi até o convés, desfez as amarras, deixando-as
presas às estacas do cais, e quando voltou à sala de controle os motores já estavam aquecidos.
Manobrou para fora do porto; assim que chegou ao canal, puxou os aceleradores até o fim,
fazendo com que o Springer atingisse a velocidade máxima de vinte e dois nós. Quando o
caminho à frente ficou desimpedido, ligou o piloto automático e começou a fazer os
preparativos necessários. Quando chegou a Bodkin Point, usou a rota mais curta. Tinha que fazê-
lo. Sabia quem mandariam atrás dele.

— Guarda Costeira, Thomas Point.


— Aqui é da polícia municipal de Baltimore.
O segundo-tenente Tomlinson recebeu o recado. Recém-saído da Academia da Guarda
Costeira, em New London, estava ali para ganhar experiência, e embora fosse hierarquicamente
superior ao suboficial que dirigia a estação, os dois sabiam que na prática as coisas eram
diferentes. Com apenas vinte e dois anos de idade, tão jovem que as divisas douradas de oficial
ainda conservavam o brilho original, estava na hora de mandá-lo numa missão, pensou Paul
English, mas apenas porque Portagee iria com ele para garantir. Um dos barcos de patrulha da
estação, o 41-Bravo, já estava pronto e com os motores aquecidos. O jovem tenente chegou
correndo, como se tivesse medo de que partissem sem ele, o que arrancou um sorriso do
suboficial English. Cinco segundos depois que o rapaz vestiu o colete salva-vidas, o 41-Bravo
deixou o ancoradouro, rumando pura o norte antes de chegar ao farol de Thomas Point.
O homem não estava brincando, pensou Kelly, vendo o cúter se aproximar, vindo de boreste.
Pedira uma hora e uma hora tinha sido o que recebera. Sentiu vontade de ligar o rádio para uma
mensagem de despedida, mas achou que não seria correto. Um dos motores a diesel estava
ficando superaquecido. Isso não faria muita diferença.
Estavam envolvidos em uma espécie de corrida, e havia uma complicação, um grande
cargueiro francês que se dirigia para mar aberto. Em breve, Kelly ficaria imprensado entre ele e
a Guarda Costeira.

— Aqui estamos — disse Ritter, dispensando o guarda de segurança que os seguira como uma
sombra durante toda a tarde. Tirou uma passagem do bolso. — Primeira classe. A bebida é
grátis, coronel. — Graças a um telefonema, não tinha sido necessário passar pelo controle de
passaportes — Obrigado pela hospitalidade.
Ritter deu uma risada.
— O governo dos Estados Unidos transportou você do Vietnã até aqui. Acho que a Aeroflot
pode completar o serviço. — Ritter fez uma pausa e continuou, em tom mais formal. — A
maneira como tratou os prisioneiros foi a mais correta possível, dentro das circunstâncias.
Obrigado por isso.
— Meu desejo é que voltem para casa. São bons homens.
— Você também. — Ritter acompanhou-o até o portão de embarque, onde um ônibus o
esperava para levá-lo até um Boeing 747 novo em folha.
— Venha nos visitar. Gostaria de lhe mostrar mais algumas atrações turísticas em Washington.
— Ritter esperou que embarcasse e virou-se para Voloshin.
— Sergey é um bom homem. Será que isso vai prejudicar a carreira dele?
— Sabendo o que sabe? Duvido.
— Ainda bem — comentou Ritter, antes de ir embora.

O equilíbrio era quase perfeito. O outro barco tinha uma ligeira vantagem, já que estava na
frente e podia escolher o caminho, enquanto o cúter precisava de sua vantagem de meio nó para
se aproximar lentamente. Era um questão de habilidade, e nisso, também, a diferença entre os
dois era mínima. Oreza viu quando o outro colocou o barco na esteira do navio, usando a
marola gerada pelo cargueiro para ganhar uma vantagem momentânea de meio nó. Teve que
admirá-lo. O homem estava pilotando o barco montanha abaixo, desafiando as leis do vento e da
água. Mas não havia nada de engraçado, havia? Não com os homens no convés, de armas na
mão. Não quando era obrigado a fazer isso com um amigo.
— Pelo amor de Deus — disse Oreza, desviando o barco para boreste —, cuidado com as
armas!
Os outros tripulantes guardaram as pistolas nos coldres. — Ele é um homem perigoso —
observou um deles.
— Não, não é! Não para nós!
— E as pessoas que ele...
— Na certa fizeram por merecer! — Oreza acelerou um pouco e desviou o cúter novamente
para bombordo. Pretendia usar a marola do cargueiro para ganhar alguns metros em relação a
sua presa. Era uma corrida emocionante, mas, no íntimo, estava triste, porque o objetivo da
corrida não lhe agradava nem um pouco.
— Talvez fosse melhor a gente...
Oreza nem virou a cabeça.
— Sr. Tomlinson, acha que alguém é capaz de pilotar um barco melhor do que eu?
— Não, suboficial Oreza — disse o primeiro-tenente, em tom formal.
Oreza fez uma careta. — O que acha de chamarmos um helicóptero da Marinha? — perguntou
Tomlinson, humildemente.
— Para quê? Aonde acha que ele vai? Cuba? Temos mais combustível do que ele, meio nó a
mais de velocidade e ele está apenas trezentos metros à frente. É só fazer as contas. Vamos
alcançá-lo em menos de vinte minutos, faça ele o que fizer.
— Mas ele é perigoso — observou Tomlinson.
— Nem tanto. Veja... — Oreza desviou o cúter para bombordo, entrando na esteira do navio,
usando a energia gerada pelo cargueiro para ganhar velocidade. Interessante, é assim que os
golfinhos fazem... com isso, vou ganhar quase um nó de velocidade... Ao contrário de tudo o que
devia estar sentindo, Manuel Oreza sorriu. Acaba de aprender algo de novo sobre pilotagem,
por cortesia de um amigo que estava tentando prender por assassinato. Pelo assassinato de
homens que mereciam morrer, pensou, imaginando qual seria a atitude dos advogados.
Não, tinha que tratá-lo com respeito, deixá-lo disputar a corrida, deixá-lo lutar pela
liberdade, por menos chances que tivesse. Fazer menos que isso seria diminuí-lo, admitiu
Oreza, e diminuir a si próprio. Mesmo quando tudo o mais falhava, ainda havia a honra. Era
talvez a última lei do mar, e Oreza, como sua presa, era um homem do mar.
O combate continuava diabolicamente equilibrado. Portagee era um piloto exímio e tornava
cada vez mais difícil para Kelly executar o que planejara.
Ele havia tentado tudo o que sabia. Usar a esteira do navio de carga para ganhar velocidade
tinha sido uma brilhante manobra, mas o sargento da Guarda Costeira não ficara atrás. Os
motores do barco de Kelly estavam superaquecidos e o maldito cargueiro ameaçava deixá-lo
para trás. Por que Ryan não esperou mais dez minutos?, pensou. O botão da carga explosiva
estava a seu lado. Cinco segundos depois que fosse acionado, os tanques de combustível iriam
pelos ares, mas não tinha coragem de fazer isso com o cúter da Guarda Costeira a menos de
duzentos metros de distância. E agora?
— Ganhamos mais vinte metros — observou Oreza, com um misto de satisfação e tristeza.
Kelly tinha parado de olhar para trás. Ele sabia. Não podia deixar de saber. Eu o admiro,
pensou Oreza, lamentando o incômodo que estava impondo ao rapaz, mas ele tinha que
compreender que aquilo era um jogo entre dois homens do mar. O modo como se comportara até
o momento era uma prova de consideração. Certamente estava armado e poderia ter atirado para
distrair e retardar os perseguidores. Não o fizera e Oreza sabia por quê. Isso significaria violar
as regras da corrida. Competira lealmente e, quando chegasse a hora, reconheceria a derrota;
haveria orgulho e tristeza para os dois homens compartilharem, mas cada um ainda teria o
respeito do outro.
— Logo vai estar escuro — observou Tomlinson, interrompendo os devaneios de Oreza. O
rapaz não entendia o que estava acontecendo, mas ele era apenas um jovem segundo-tenente.
Ainda tinha muito que aprender.
— Ainda temos tempo, senhor.
Oreza olhou em torno. O cargueiro de bandeira francesa ocupava aproximadamente um terço
do horizonte. Era um navio imponente, pintado de novo, cuja tripulação não fazia a menor ideia
do que estava acontecendo. Uma embarcação moderna, observou o primeiro-sargento; a proa
bulbosa produzia uma marola característica, que a outra embarcação estava usando em proveito
próprio.
A solução mais simples seria atrair o cúter para o lado direito do cargueiro, passar de
surpresa para o outro lado e depois explodir o barco... mas... havia um meio melhor...
— Agora! — Oreza girou o leme uns dez graus, desviando para bombordo e ganhando
cinquenta metros em poucos segundos. Em seguida, inverteu o curso, passou por cima de outra
onda de dois metros é preparou-se para repetir a manobra. Um dos marinheiros mais jovens deu
um grito de entusiasmo.
— Está vendo, Sr. Tomlinson? Nosso casco tem uma forma mais apropriada para este tipo de
manobra. Ele pode ser um pouco mais rápido em águas calmas, mas em um mar batido como
este nós levamos vantagem.
Dois minutos depois, a distância entre as embarcações caíra para a metade.
— Tem certeza de que quer que esta corrida termine, Oreza? — perguntou Tomlinson.
Ele não é tão bobo, hein? Bem, ele era um oficial e os oficiais, de vez em quando, dão uma
dentro.
— Todas as corridas terminam, senhor. Há sempre um vencedor e um perdedor — observou
Oreza, esperando que seu amigo também soubesse disso. Tirou um cigarro do bolso da camisa e
acendeu-o com a mão esquerda enquanto com a direita (na verdade, apenas com as pontas dos
dedos) acionava o leme, fazendo os pequenos ajustes determinados pela parte do seu cérebro
que observava e reagia a cada ondulação na superfície. Prometera a Tomlinson que alcançariam
o fugitivo em vinte minutos. Tinha sido pessimista. Em menos tempo do que isso estaria tudo
terminado.
Oreza examinou novamente a superfície. Havia vários barcos nas proximidades, a maioria
rumando para terra e nenhum deles desconfiando de que uma corrida estava em andamento. As
luzes de polícia do cúter não estavam ligadas. Oreza não gostava de usá-las; achava que eram
um insulto a sua profissão. Quando um cúter da Guarda Costeira dos Estados Unidos abordava
uma embarcação, não devia precisar de luzes de polícia. Além do mais, aquela era uma corrida
particular, vista e compreendida apenas por profissionais, como devia ser, porque os
espectadores só serviam para atrapalhar, para distrair a atenção dos jogadores.
Estava emparelhado com o cargueiro e Portagee engolira a isca... bem a tempo, pensou Kelly.
O cara sabia pilotar um barco. Mais dois quilômetros e se colocaria ao lado do Springer,
reduzindo suas opções a zero. Agora, porém, tinha uma saída, pensou, contemplando a proa
bulbosa do navio, parcialmente exposta. Um tripulante estava olhando para ele da ponte, como
acontecera naquele primeiro dia com Pam, lembrou, com um vazio no estômago. Fazia tanto
tempo... Tantas coisas tinham acontecido... Procedera bem ou mal? Quem podia julgar? Kelly
balançou a cabeça. Deixaria a decisão nas mãos de Deus. Olhou para trás pela primeira vez na
corrida, tentando avaliar a distância, e ela era muito menor do que gostaria.
A popa afundou na água, inclinando o cúter para cima uns quinze graus, enquanto o casco
cortava as águas revoltas. O barco balançou para a esquerda e para a direita, descrevendo um
arco de vinte graus, ao mesmo tempo em que os possantes motores a diesel rugiam como
grandes felinos. Estava tudo nas mãos de Oreza, leme e aceleradores na ponta dos dedos
habilidosos enquanto seus olhos observavam e mediam. Kelly fazia exatamente o mesmo,
aproveitando cada revolução dos motores do seu iate, usando de habilidade e experiência.
Entretanto, Portagee dispunha de mais recursos; fizesse o que fizesse, não conseguiria escapar.
Nesse momento, Oreza viu o rosto do homem, olhando para trás pela primeira vez.
Chegou a hora, meu amigo. Vamos acabar logo com isso. Talvez você consiga uma pena
leve.
— Desligue o motor e vire para boreste — ordenou Oreza, mal reconhecendo a própria voz,
e todos os homens de sua tripulação estavam pensando exatamente a mesma coisa, felizes de
saber que eles e o comandante haviam interpretado os fatos da mesma forma. Tinha sido uma
corrida de apenas meia hora, mas o tipo de aventura que todos guardariam para sempre na
memória.
O homem tornou a olhar para trás. Oreza estava agora apenas a meio barco de distância.
Podia ler com facilidade o nome na popa e não havia sentido em prolongar a perseguição. Fazer
isso seria estragar a corrida. Mostraria uma animosidade que não combinava com o mar. Era
coisa para iatistas, não para profissionais.
Foi então que Kelly fez algo inesperado. Oreza percebeu o que ele pretendia e seus olhos
mediram a distância uma vez, duas vezes, uma terceira vez. A resposta foi sempre a mesma.
Correu para o transmissor de rádio.
— Não faça isso! — gritou o primeiro-sargento.
— O quê? — quis saber Tomlinson.
Não faça isso!, pensou Oreza, subitamente só em um pequeno mundo, lendo os pensamentos
do outro e revirando-se com o que via. As coisas não podiam acabar assim. Não era um final
decente.
Kelly aliviou o leme para a direita, prestando atenção ao talha-mar do cargueiro. Quando
achou que estava na hora, inverteu o curso. Alguém gritou alguma coisa pelo rádio. Kelly
reconheceu a voz de Portagee e sorriu. Era um grande sujeito. A vida não teria a mesma graça
sem pessoas como ele.
A manobra radical fez o Springer inclinar-se para boreste; a inclinação aumentou ainda mais
quando o iate foi colhido pela marola produzida pela proa do cargueiro. Kelly conservou a mão
esquerda no leme e usou a direita para pegar um tanque de ar, ao qual amarrara seis pesos de
chumbo. Jesus, pensou, quando o Springer adernou ainda mais. Não chequei a profundidade. E
se a água aqui for muito rasa? Oh, Jesus, oh Pam...
O barco virou para bombordo. Oreza estava observando a cena a menos de menos de 100
metros de distância, mas era como se estivesse a cem quilômetros, pois nada podia fazer.
Adivinhou o que aconteceria em seguida. Já inclinado para a direita por causa da curva fechada,
o iate foi atingido em cheio pela proa do cargueiro e virou de cabeça para baixo. Em poucos
segundos o casco branco desapareceu no mar espumante.
Não era assim que um marinheiro devia morrer.
O 41-Bravo da Guarda Costeira freou o mais que pôde, balançando violentamente à
passagem da marola do cargueiro. O cargueiro parou três quilômetros adiante, e a essa altura
Oreza já estava na operação de busca no local do naufrágio. Os holofotes foram acionados, e os
olhos dos tripulantes estavam consternados.
— Guarda Costeira 41, Guarda Costeira 41, aqui é o veleiro da Marinha dos Estados Unidos
a bombordo, precisam de ajuda? Câmbio.
— Podem nos auxiliar na busca. Quem está a bordo?
— Uma dupla de almirantes. Quem lhes fala é um aviador, se é que isso ajuda.
— Bem-vindo, senhor.

Ele ainda estava vivo. Era uma surpresa tão grande para Kelly quanto teria sido para Oreza.
A água ali era tão profunda que ele e o tanque de ar mergulharam vinte metros até chegar ao
fundo. Kelly lutou com o tanque sob a violenta turbulência do navio que passava lá em cima e
lutou para sair do caminho do que, segundos antes, tinha sido um caro iate. Só depois de dois ou
três minutos aceitou o fato de que sobrevivera àquele ordálio. Pensando bem, tinha agido como
um louco, mas sentira a necessidade de entregar a vida a um poder maior, preparado para
aceitar as consequências. E tinha sido absolvido. Kelly avistou o cúter da Guarda Costeira, a
leste de onde estava... e a oeste, um veleiro. Rezou para que fosse o veleiro que imaginava.
Kelly descartou quatro pesos e nadou em direção a ele.
Chegou à superfície atrás do veleiro, suficientemente perto para ler o nome. Mergulhou de
novo. Levou mais um minuto para aparecer ao lado da embarcação.
— Olá!
— Jesus... é você? — exclamou Maxwell.
— Acho que sim. — Bem, não exatamente.
Estendeu a mão. O decano da aviação naval ajudou-o a subir a bordo.
— Quarenta-e-Um, aqui é o veleiro da Marinha... a situação aqui não está nada boa,
companheiro.
— Entendido, Marinha. Podem ir embora, se quiserem. Vamos ficar mais um pouco — disse
Oreza.
Tinha sido muita gentileza deles ajudá-lo a vasculhar a superfície durante três horas. Para
uma dupla de oficiais superiores, era uma ajuda incomum. Pareciam até capazes de manobrar
um veleiro de forma razoável. Em outras circunstâncias, teria levado a ideia mais longe e feito
uma brincadeira sobre a competência da Marinha. No momento, porém, estava apenas
interessado em continuar a busca, que infelizmente seria infrutífera.

O caso chegou às manchetes dos jornais, mas não de uma forma que fizesse sentido. O
detetive Mark Charon, seguindo em particular uma pista — estava afastado temporariamente do
serviço ativo, depois de se envolver em um tiroteio —, descobrira um laboratório de drogas e
perdera a vida ao tentar prender os bandidos, mas não sem antes matar dois deles, Ao mesmo
tempo, a fuga de três mulheres resultara na identificação de um dos traficantes baleados por
Charon como um assassino cruel, o que explicava o empenho de Charon e ao mesmo tempo
encerrava vários casos pendentes de uma forma que os repórteres policiais acharam muito
conveniente. Na página seis, uma pequena nota falava de um acidente com um iate.
Três dias depois, uma funcionária pública de St. Louis ligou para o tenente Ryan a fim de
avisar que a pasta de Kelly estava de volta. Ryan agradeceu a gentileza. Ele já encerrara o caso
e nem mesmo se deu ao trabalho de mandar pedir a ficha de Kelly no FBI. Assim, Bob Ritter
não precisou substituir as impressões digitais pelas de alguém que provavelmente jamais poria
de novo os pés nos Estados Unidos.
A única coisa que deixou Ritter preocupado foi um telefonema. Entretanto, até mesmo os
criminosos tinham direito a um, de modo que se viu forçado a atender ao pedido de Kelly. Cinco
meses mais tarde, Sandra O'Toole pediu demissão do emprego no Johns Hopkins e se mudou
para a costa da Virginia, onde assumiu a chefia de todo um andar do Hospital Universitário, por
conta de uma carta de recomendação do professor Sam Rosen.
Epílogo

12 DE FEVEREIRO DE 1973

"Estamos honrados pela oportunidade de servir nosso país sob circunstâncias difíceis", o
capitão Jeremiah Denton disse, pondo fim a uma declaração de trinta e quatro palavras que fez
soar o "Deus abençoe a América" do outro lado da rampa na base aérea de Clark.
"Olhem isso", disse o comentarista, partilhando a experiência como era pago para fazer.
"Bem ali atrás do Capitão Denton está o Coronel Robin Zacharias, da Força Aérea. Ele é um
dos cinquenta e três prisioneiros dos quais não tínhamos nenhuma informação até muito
recentemente, junto com ... "
John Clark não ouviu o resto. Ele olhou para a TV em cima da cômoda da esposa no quarto,
para o rosto de um homem a meio mundo de distância, de quem tinha sido muito próximo
fisicamente e mais ainda de espírito não muito tempo antes. Ele viu o homem abraçar a esposa
após cinco anos de separação. Ele viu uma mulher que envelheceu de preocupação, mas agora
rejuvenescia de amor para o marido que ela pensava morto. Kelly chorou com eles, vendo o
rosto do homem pela primeira vez como uma coisa de animação, vendo a alegria que realmente
podia substituir a dor, não importa quão funda. Ele apertou a mão de Sandy com tanta força que
quase a machucou, até que ela a descansou em sua barriga para que ele pudesse sentir os
movimentos do primogênito. Nesse momento, o telefone tocou; Kelly ficou aborrecido com a
interrupção até reconhecer a voz.
— Espero que esteja orgulhoso do que fez, John — disse Dutch Maxwell. — Conseguimos
libertar todos os vinte. Queria que você soubesse. Devemos isso a você.
— Obrigado, senhor. — Kelly desligou. Não havia mais nada a dizer.
— Quem era? — perguntou Sandy, segurando-lhe a mão.
— Um amigo — respondeu Clark, enxugando os olhos antes de beijar a esposa. — Um amigo
de outra vida.
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