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O desenvolvimento do conceito de Direito Internacional Económico

Miguel Moura e Silva

Introdução

1. A função essencial do Direito é a ordenação e a regulação da vida social


segundo princípios de Justiça. Esta asserção, sendo evidente no plano nacional onde o
Estado garante essa ordenação, torna-se problemática quando procuramos encontrar
um quadro regulamentador para as situações jurídicas que transcendem as fronteiras
de um só Estado, onde a visão prevalecente continua a ser a de uma arena onde se
defrontam vários Leviatãs, com diferentes forças e aptidões, mas nenhum
reconhecendo a superioridade do outro.1
Do ponto de vista jurídico, esta visão traduz-se nos princípios basilares do
Direito Internacional Público: a soberania e a igualdade entre Estados.2 Mesmo a
relativização da soberania, de forma a compatibilizá-la com a própria existência de
normas e obrigações que compõem o Direito Internacional Público, não é suficiente
para atenuar a forte carga jurídico-política daquele conceito.3
Num plano fáctico, são muitas as situações que invocam a necessidade de
coordenação entre entes soberanos. Os clássicos problemas ligados às externalidades
ou efeitos externos de comportamentos ou acontecimentos ocorridos no território de

1
Thomas Hobbes, após descrever o Estado da Natureza como uma guerra “as if of every man, against
every man” (sendo que “the nature of War consisteth not in actuall fighting; but in the known
disposition thereto, during all the time there is no assurance to the contrary”), afirma: “But though there
had never been any time, where in a condition of warre against another; yet in all times, Kings, and
Persons of Soveraine authority, because of their Independency, are in continuall jealusies, and in the
state and posture of Gladiators; having their weapons pointing, and their eyes fixed on one another,
(…) which is a posture of War. But because they uphold thereby, the Industry of their subjects; there
does not follow from it, that misery, which accompanies the Liberty of particular men”. Thomas
HOBBES, Leviathan, 1651, cap. XIII. Ver Ernst-Ulrich PETERSMANN, “From the Hobbesian
International Law of Coexistence to Modern Integration Law: The WTO Dispute Settlement System”,
Journal of International Economic Law, 1998, vol. 1, n.º 2, p. 175: “As Hobbes expected sovereign
rulers no to act in unnecessarily aggressive manner, he focused on well-ordered internal sovereignty of
states without envisaging international covenants among sovereign rulers and international legal
restraints on their foreign policy powers”.
2
Ver Ian BROWNLIE, Principles of Public International Law, 5ª ed., Oxford Univ. Press, Oxford,
1998, p. 289: “The sovereignty and equality of states represent the basic constitutional doctrine of the
law of nations …”. Ver ainda Karl MEESSEN, “Zu den Grundlagen des Internationalen
Wirtschaftsrechts”, ArchÖffR, vol. 110, 1985, p. 398, a p. 399: “Die grundlegende Norm des
Völkerrechts gewährleistet freilich nicht Inter-Dependenz, sondern In-Dependenz: Unabhängigkeit im
Sinne staatlicher Souveränität”.
3
Ver Ignaz SEIDL-HOHENVELDERN, International Economic Law, 3ª ed., Kluwer Law
International, Haia, 1999, pp. 19 e seguintes.

Miguel Moura e Silva – Direito Internacional Económico 1


um Estado, com repercussões noutros Estados, vizinhos ou não, ou mesmo a nível
global são bem conhecidos. O primeiro que nos ocorre é o da defesa do ambiente,
paradigmático da relativa impotência dos Estados para tratar adequadamente as suas
múltiplas vertentes. Mas antes ainda da emergência dos valores ambientais, já a
cooperação entre Estados quanto a questões económicas tinha lançado as bases para a
formação de metodologias e instituições dirigidas à resolução de questões com
implicações transnacionais, tivessem elas carácter técnico (interligação das redes
postais e de telecomunicações, segurança marítima, etc.) ou macroeconómico (onde
avultam as instituições surgidas na sequência da Segunda Guerra Mundial).

2. A necessidade de dar uma resposta internacional a este tipo de problemas está


na base do desenvolvimento dos ramos substantivos do Direito Internacional Público.
A insuficiente coerência da “comunidade internacional” e o carácter essencialmente
pactício dos processos de elaboração de normas de Direito Internacional Público
significam que a densificação destas normas substantivas só excepcionalmente se
substitui às normas nacionais. Por outro lado, os mecanismos institucionais de
aplicação das regras de Direito Internacional Público dependem, com raríssimas
excepções, do aparelho estatal.
É neste quadro que temos de considerar o desenvolvimento de uma disciplina
relativamente recente, o Direito Internacional Económico. O objectivo deste trabalho
é fornecer uma primeira aproximação à noção de Direito Internacional Económico,
apontando algumas pistas para desenvolvimento futuro. Começaremos por examinar a
discussão doutrinal em torno da definição do Direito Internacional Económico (I.).
Seguidamente, faremos uma breve análise do conceito de Ordem Económica
Internacional e sua relação com o Direito Internacional Económico (II.). Por fim,
apresentaremos um esboço das tendências recentes que marcam a evolução desta
disciplina (III.).

I. Direito Internacional Económico: uma definição de trabalho

3. A primeira dificuldade com que nos deparamos no estudo desta disciplina


respeita precisamente à sua definição. Esta questão tem sido objecto de um longo
debate doutrinal de que daremos conta neste capítulo.

Miguel Moura e Silva – Direito Internacional Económico 2


4. Comecemos pelo objecto do Direito Internacional Económico: as relações
económicas internacionais. Numa perspectiva amplíssima, este conceito compreende
todas as operações económicas, qualquer que seja a sua natureza, que apresentem um
elemento de extraneidade, i. e., que tenham uma conexão com duas ou mais ordens
jurídicas, ou que sejam regidas pelo direito internacional.4 Enquanto objecto do
Direito Internacional Económico, esta noção parece-nos mais adequada por permitir
apreender o essencial das actividades económicas internacionais.
Num sentido económico, podemos ainda definir o objecto do Direito
Internacional Económico como a criação, protecção, circulação e redistribuição de
riqueza a nível internacional. Não se trata de uma delimitação mais precisa do que a
anterior mas oferece o mérito de agrupar aquelas relações em torno de categorias
económicas homogéneas e com um sentido preciso.

5. Definido o elemento fáctico, verificamos que o mesmo releva de diferentes


disciplinas jurídicas. Com efeito, a regulação daquelas relações faz apelo, desde logo,
ao Direito Internacional Público (que impõe limites ao âmbito de aplicação das leis
nacionais, na medida em que o seu exercício colida com a esfera soberana de outros
Estados ou com os direitos destes) e ao Direito Internacional Privado (pois é
necessário determinar qual a lei aplicável aos diversos elementos da relação em
causa); mas vários ramos de direito interno das ordens jurídicas com as quais existe
uma conexão são igualmente pertinentes: o Direito Fiscal; o Direito da Economia; o
Direito do Trabalho, etc.
Perante isto coloca-se uma questão central: quais as regras jurídicas que
constituem o objecto desta disciplina. A este nível encontramos na doutrina três
correntes distintas.

6. A primeira, mais ambiciosa, procura enquadrar as regras aplicáveis às relações


económicas internacionais de forma unitária num Direito Económico Transnacional,
que agruparia as regras relevantes das diversas ordens jurídicas em causa (direito
nacional, com particular destaque para as normas de Direito Internacional Privado), as
regras de Direito Internacional Público que regem essas relações, e ainda uma

4
Num sentido próximo, ver Dominique CARREAU e Patrick JUILLARD, Droit international
économique, 4ª ed., L.G.D.C., Paris, 1998, p. 7, e Nguyen Quoc DINH, Patrick DAILLIER, Alain
PELLET, Droit international public, 6ª ed., L.G.D.J., Paris, 1999, p. 991 e ss..

Miguel Moura e Silva – Direito Internacional Económico 3


“terceira ordem”, a lex mercatoria.5 Vítima da summa divisio, tal como o seu
congénere interno (o Direito da Economia), o Direito Internacional Económico
tenderia a sofrer com a dicotomia Direito Internacional Público e Direito
Internacional Privado.6 Esta corrente, sobretudo ligada à chamada Escola de Dijon ou,
mais rigorosamente, ao Centre de recherche sur le droit des marchés et des
investissements internationaux (CREDIMI), encontra em Philippe KAHN um dos
seus maiores expoentes.7
Também na doutrina alemã encontramos autores que, com base na unidade da
economia internacional defendem um conceito de Direito Internacional Económico
capaz de englobar todos os tipos de normas que regulam as relações económicas
internacionais, independentemente da sua origem ou natureza pública ou privada.8
Para Peter BEHRENS, essa unidade da economia internacional funda-se na divisão
internacional de trabalho, na interacção das políticas económicas e nos bens públicos
internacionais e efeitos externos, sendo o Direito Internacional Económico o ramo do
Direito que regula as transacções económicas que atravessam as fronteiras nacionais.

7. Sem prejuízo de entendermos que uma adequada compreensão do


enquadramento jurídico das relações económicas internacionais exige uma estreita
articulação entre uma vertente jus-publicista e outra de matriz jus-privatista, afigura-
se-nos que tal concepção é, no mínimo de difícil concretização nos plano dogmático e
pedagógico.
De um ponto de vista dogmático, colocar regras que se dirigem ao
comportamento de particulares a par de normas que visam a conduta de Estados
soberanos parece forçar demasiado qualquer visão realista dos interesses em jogo,
5
Rejeitando tal extensão do conceito de Direito Internacional Público, SEIDL-HOHENVELDERN
propõe como definição para um Direito Transnacional Económico: “all rules capable of affecting
human relations across national borders, without regard to the national or international origin of such
rules, thus including, e.g., national rules of conflict of laws”; op. cit., p. 3.
6
Ver François RIGAUX, “D’un nouvel ordre économique international à l’autre”, in VVAA,
Souveraineté étatique et marchés internationaux à la fin du 20ème siècle – A propos de 30 ans de
recherche do CREDIMI; Mélanges en l’honneur de Philippe Kahn, Litec, Paris, 2000, p. 689, a p. 697:
“Lui-même irréductible à la division entre le droit public et le droit privé, le droit économique n’a pu
que pâtir de pareil éclatement des disciplines”.
7
Philippe KAHN, “Droit international économique, droit du développement, lex mercatoria, concept
unique ou pluralité des ordres juridiques?”, in Etudes offertes à Bertold Goldman, Litec, Paris, 1982, p.
97. Sobre a obra de Philippe KAHN ver a introdução de Jacques DEHAUSSY in VVAA, Souveraineté
étatique et marchés internationaux à la fin du 20ème siècle – A propos de 30 ans de recherche do
CREDIMI; Mélanges en l’honneur de Philippe Kahn, Litec, Paris, 2000, pp. 1 a 4.
8
Peter BEHRENS, “Elements in the Definition of International Economic Law”, Law and State, 1988,
vol. 38, p. 9; Matthias HERDEGEN, Internationales Wirtschaftsrecht, 2ª ed., Verlag C.H.Beck,
Munique, 1995, p. 3.

Miguel Moura e Silva – Direito Internacional Económico 4


equiparando interesse privado e interesse público. A título meramente
exemplificativo, refiram-se o problema da protecção de investimentos, em especial no
caso de algumas sentenças de tribunais arbitrais que aplicam o princípio pacta sunt
servanda a contratos entre Estados e investidores estrangeiros, dando a estes últimos
um estatuto de igualdade com os primeiros; 9 ou a qualificação dos usos do comércio
internacional que integram a chamada lex mercatoria entre as fontes de Direito
Internacional Económico, a par de normas criadas por e para entes soberanos. Não é
este o lugar para tomar posição sobre estas questões mas julgamos que as dificuldades
ligadas a semelhante metodologia serão evidentes.
Também a nível pedagógico se colocam sérias dificuldades na actuação dessa
noção amplíssima de Direito Internacional Económico. Desde logo porque a
complexidade e extensão das matérias em causa exigiria, no mínimo, uma cadeira
anual, ainda assim com o risco de excessiva simplificação de algumas (ou todas) as
matérias tratadas. Ao que acresce que a estruturação interna do corpo docente das
faculdades de direito nacionais tende a dificultar a articulação dos diferentes
departamentos que se ocupam das matérias a incluir em tal Direito Transnacional da
Economia.10

8. A generalidade da doutrina tem procurado uma delimitação mais rigorosa do


Direito Internacional Económico, atendendo sobretudo ao risco de querer abarcar
realidades demasiado heterogéneas com uma noção amplíssima de Direito
Internacional Económico, a exemplo das críticas dirigidas à concepção do Direito
Transnacional desenvolvida por JESSUP.11

9
Sobre a internacionalização de contratos ou os quase-tratados ver, entre nós, André GONÇALVES
PEREIRA e FAUSTO DE QUADROS, Manual de Direito Internacional Público, 3ª ed., Almedina,
Coimbra, 1993, pp. 176 e seguintes; Luís de LIMA PINHEIRO, “Joint Venture” – Contrato de
empreendimento comum em Direito Internacional Privado, Edições Cosmos, Lisboa, 1998, pp. 507 e
seguintes; e ainda FAUSTO DE QUADROS, op.cit., p. 273 e seguintes. Para uma visão
particularmente crítica desta jurisprudência, protagonizada por um autor proveniente de um país em
desenvolvimento (ainda que um dos mais avançados deste grupo), ver M. SORNARAJAH, The
International Law of Foreign Investment, Cambridge Univ. Press, Cambridge, 1994 e M.
SORNARAJAH, The Settlement of Foreign Investment Disputes, Kluwer Law International, Haia,
2000.
10
A Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa criou uma nova menção no curso de Direito –
Ciências Comunitárias e Internacionais, que agrupa cadeiras que são da responsabilidade dos diferentes
grupos, combinando assim as valências próprias de cada um na formação de juristas com especial
apetência pelos temas internacionais e comunitários.
11
Ver Philip JESSUP, Transnational Law, Yale Univ. Press, New Haven, 1956. No sentido da nossa
crítica, ver António Luciano SOUSA FRANCO, Noções de Direito da Economia, 1º vol., AAFDL,
Lisboa, 1982-1983, p. 49.

Miguel Moura e Silva – Direito Internacional Económico 5


9. A segunda grande corrente doutrinal a considerar procura integrar o Direito
Internacional Económico no âmbito do Direito Internacional público, constituindo
aquele um simples ramo substantivo deste último.12 Assim, para PROSPER WEIL,
“no plano científico, o direito internacional económico não constitui senão um
capítulo entre outros do direito internacional geral”.13 Posição semelhante adopta
SEIDL-HOHENVELDERN para quem, “international economic law is so closely
embedded in the discipline of public international law that the latter would be crippled
by such a separation. Peaceful relations between subjects of international law are,
after all, to a very large extent directly concerned with economic exchanges”.14
Veremos adiante que esta é a orientação doutrinal a que aderimos.

10. A terceira corrente que podemos identificar defende a autonomia do Direito


Internacional Económico face ao Direito Internacional Público, invocando um
conjunto de características que o tornariam distinto deste. Distinguem-se na defesa
desta tese importantes autores como John H. JACKSON, Dominique CARREAU e
Patrick JUILLARD e, entre nós, Paulo PITTA E CUNHA.15
Para John JACKSON, o Direito Internacional Económico apresenta “certas
características ou pelo menos nuances” que o distinguem do Direito Internacional
geral.16 Em primeiro lugar, a predominância de regras emanadas de fontes
12
Ver Georg SCHWARZENBERGER, “The Principles and Standards of International Economic
Law”, Recueil des Cours de l’Académie de Droit International, 1966, vol. 117, p. 1; PROSPER WEIL,
“Le droit international économique: Mythe ou réalité?”, Aspects du droit international économique,
Paris, Pédone, 1972, p. 3; Alexis JACQUEMIN, Guy SCHRANS, Le droit économique, 3ª ed., PUF,
Paris, 1982, p. 79; SEIDL-HOHENVELDERN, op. cit., p. 1; Asif H. QURESHI, International
Economic Law, Sweet & Maxwell, Londres, 1999, pp. 5 e seguintes. Entre nós, ver SOUSA
FRANCO, op. cit., pp. 48 a 50: “o Direito Internacional Económico … compreende as normas
dimanadas de fontes de Direito Internacional que regulem matéria económica. É, pois, a forma de
produção – ou, de outro modo, a origem – do Direito Internacional que primariamente o caracteriza …;
mas é-o também o respectivo âmbito de aplicação, que é a ordem jurídica internacional e não interna”.
Na opinião daquele Autor, o Direito Internacional Económico é, fundamentalmente Direito
Internacional, mas autónomo no âmbito deste. Esta concepção, a que aderimos igualmente, parece ser
partilhada por Eduardo PAZ FERREIRA, Direito da Economia, AAFDL, Lisboa, 2001, pp. 40-41.
Também Jorge MIRANDA, Curso de Direito Internacional Público, Principia, Lisboa, 2002, p. 30, se
refere ao Direito Internacional Económico como um ramo do Direito Internacional.
13
PROSPER WEIL, op. cit., p. 34.
14
SEIDL-HOHENVELDERN, op. cit., p. 1.
15
Ver John H. JACKSON, “International Economic Law”, Encyclopedia of Public International Law,
Amesterdão, 1985; John H. JACKSON, The World Trading System, 2ª ed., MIT Press, Cambridge –
Massachussetts, 1997, p. 43; CARREAU e JUILLARD, op. cit.; Paulo de PITTA e CUNHA, “Direito
internacional económico (Economia Política II/Relações Económicas Internacionais) - Relatório sobre
o programa, conteúdo e métodos de ensino”, Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, vol. XXV,
1984, p. 29.
16
Num artigo mais recente, John Jackson parece perfilhar a tese amplíssima do Direito Internacional
Económico, introduzindo uma distinção entre “transactional International Economic Law”
(correspondente ao Direito do Comércio Internacional) e um “regulatory International Economic Law”,

Miguel Moura e Silva – Direito Internacional Económico 6


convencionais, sendo escassas as normas de Direito Internacional Económico de
origem consuetudinária. Seguidamente, o grau de interpenetração entre as normas de
Direito Internacional Económico e as normas de direito interno seria superior ao
encontrado no Direito Internacional geral. O antigo Professor de Michigan destaca a
este respeito a influência do sistema constitucional norte-americano de separação e
interdependência de poderes na configuração institucional do GATT de 1947. 17 Por
último, a natureza técnica e interdisciplinar do Direito International Económico em
especial no que respeita ao papel da ciência económica: “The subject of international
economic law is, to a large extent, steered by the subjects of economics”.
Este último aspecto assume particular relevo no pensamento de Paulo PITTA
E CUNHA, um dos pioneiros desta disciplina entre nós, para quem “o que
profundamente (...) caracteriza [o Direito Internacional Económico] é a sua natureza
interdisciplinar, a conjugação, no próprio cerne da sua formação, da ciência jurídica e
da ciência económica, a qual, só por si, o torna insusceptível de subsunção a uma
disciplina integrada na estrita árvore jurídica”, concluindo, mais adiante, “o que
parece conferir especificidade ao Direito internacional económico é a visão da ordem
económica internacional, são os conceitos de interdependência e cooperação que lhe
estão subjacentes”.18

11. As três posições examinadas reflectem diferentes metodologias de abordagem


de uma mesma realidade: a primeira procura unificar um ramo heterogéneo, que se
alimenta tanto do direito privado como do público, em função da unicidade do seu
objecto; a segunda, caracteriza o Direito Internacional Económico não só em função
do seu objecto como também da fonte e natureza dessas regras, limitando o seu
âmbito ao direito aplicável aos sujeitos de Direito Internacional Público, ainda que,
como veremos de seguida, estas digam igualmente respeito aos particulares, mesmo
sem os subjectivarem enquanto destinatários directos das normas emanadas da ordem
jurídica internacional; a terceira posição procura transcender a ordem jurídica,

que corresponde ao conceito descrito no texto. Ver John H. JACKSON, “Global Economics and
International Economic Law”, Journal of International Economic Law, vol. 1, nº 1, 1998, p. 1, na p. 9.
17
Ver também Patrick JUILLARD, “Les Nations Unies et l’élaboration du Droit international
économique”, in SFDI, Les Nations Unies et le Droit international économique, Colóquio de Nice da
Société Française pour le Droit International, A. Pedone, Paris, 1986, p. 101, a p. 104, para quem o
Direito Internacional Económico deve ser um verdadeiro Direito da Economia Internacional, que
compreende simultaneamente o Direito (internacional) da Economia e os direitos internos da economia
internacional.
18
Paulo de PITTA E CUNHA, op. cit., pp. 56-57.

Miguel Moura e Silva – Direito Internacional Económico 7


mantendo-se, todavia, no lado público da regulação das relações económicas
internacionais: o Direito Internacional Económico seria então um direito autónomo
que articularia as diferentes ordens jurídicas, a internacional e as nacionais, que
enquadram aquelas relações económicas.

12. Independentemente da posição a adoptar, das diferentes definições é possível


extrair um núcleo indiscutível que integra o Direito Internacional Económico: as
regras de Direito Internacional Público que têm por objecto as relações económicas
internacionais. Esta noção é derivada daquela proposta por SEIDL-
HOHENVELDERN, para quem o DIE consiste “naquelas regras de Direito
Internacional Público que respeitam directamente às trocas económicas entre os
sujeitos de direito internacional”.19 Ao ancorar firmemente o DIE no Direito
Internacional Público, SEIDL-HOHENVELDERN fornece-nos um importante
instrumento de delimitação do âmbito daquele.

13. Esta definição peca, no entanto, por ser demasiado formal e aparentemente
ignorar o conceito de relações económicas internacionais que deve estar na base da
nossa disciplina. Com efeito, ao atermo-nos às “trocas económicas entre sujeitos de
direito internacional”, deixamos de lado domínios que claramente se inserem na nossa
disciplina mas que não respeitam a trocas em sentido próprio (e.g. protecção de
investimentos). Por outro lado, o grosso das trocas internacionais ocorre entre
operadores económicos que não são geralmente considerados sujeitos de direito
internacional. SEIDL-HOHENVELDERN ultrapassa este problema postulando uma
noção ampla de sujeitos de direito internacional por forma a nele incluir os
“operadores económicos (traders) como sujeitos, pelo menos, de direito internacional
económico”.
Sublinha-se, a este respeito, que o papel dos particulares, pelo menos na veste
de agentes económicos, tem sido reconhecido no Direito Internacional Económico. É
o caso dos investidores estrangeiros, aos quais a generalidade dos Acordos Bilaterais
sobre Investimento reconhece capacidade para demandar o Estado de acolhimento do
investimento perante tribunais arbitrais constituídos ao abrigo das regras da
UNCITRAL ou, como é mais frequente, mediante o recurso ao mecanismo da
Convenção para a Resolução de Diferendos Relativos a Investimentos entre Estados e
19
Ignaz SEIDL-HOHENVELDERN, op. cit., p. 1.

Miguel Moura e Silva – Direito Internacional Económico 8


Nacionais de Outros Estados (Convenção de Washington de 1965, concluída sob os
auspícios do Banco Mundial, de que Portugal é parte).20
Em segundo lugar, temos o importante relatório aprovado no âmbito do
Mecanismo de Entendimento sobre a Resolução de Litígios da Organização Mundial
do Comércio no caso Section 301 que reconhece aquilo a que chama de efeito
indirecto do Acordo OMC:

“A segurança e a previsibilidade em questão [no artigo 23º do Memorando de


Entendimento sobre a Resolução de Litígios] são as ‘do sistema comercial
multilateral’. O sistema comercial multilateral é forçosamente composto não
apenas por Estados mas também – na verdade sobretudo – por agentes
económicos. São estes últimos que mais padecem com a falta de segurança e
de previsibilidade. A maior parte das vezes e com cada vez maior frequência,
o comércio é conduzido por agentes do sector privado. É pela melhoria das
condições em que operam estes agentes privados que os Membros beneficiam
das disciplinas da OMC. A anulação das vantagens de um Membro que resulta
de uma violação [do Acordo OMC] é frequentemente indirecta e explica-se
pela incidência desse incumprimento no mercado e nas actividades dos
particulares que operam nesse mercado …”.21

Em terceiro lugar, encontramos a tentativa de criar normas aptas a regular os


comportamentos de certas categorias de particulares – as multinacionais. Neste ponto,
os esforços têm-se ficado por projectos ou, quando muito, por textos não obrigatórios,

20
Sobre os Acordos Bilaterais sobre Investimento ver Rudolf DOLZER e Margrete STEVENS,
Bilateral Investment Treaties, Martinus Nijhoff, Haia, 1995; entre nós, ver FAUSTO DE QUADROS,
A protecção da propriedade privada pelo Direito Internacional Público, Almedina, Coimbra, 1998, pp.
48 e seguintes. Relativamente à Convenção de Washington, ver Aron BROCHES, “The Convention on
the Settlement of Investment Disputes Between States and Nationals of Other States”, Recueil des
Cours de l’Académie de Droit International, 1972, vol. 136, p. 330; Heribert GOLSONG, “Dispute
Settlement in Recently Negotiated Bilateral Investment Treaties - The Reference to the ICSID
Additional Facility”, in Adriaan BOS, Hugo SIBLESZ, Realism in Law-Making - Essays on
International Law in Hounour of Willem Riphagen, Martinus Nijhoff, Dordrecht, 1986, p. 35; e o
recente comentário por Christoph H. SCHREUER, The ICSID Convention – A Commentary,
Cambridge Univ. Press, Cambridge, 2001.
21
Parágrafos 7.76 e 7.77 do Relatório do Painel no caso Estados Unidos – Artigos 301º a 310º da Lei
do Comércio Externo de 1974, WT/DS152/R, aprovado pelo Órgão de Resolução de Litígios a 27 de
Janeiro de 2000 (parcialmente reproduzido e traduzido em Miguel MOURA E SILVA, Direito
Internacional Económico – Jurisprudência relativa ao sistema GATT/OMC, AAFDL, Lisboa, 2002).

Miguel Moura e Silva – Direito Internacional Económico 9


o que não significa que os mesmos não desempenhem, ainda assim um papel de
destaque na condução das relações económicas internacionais.22
Pese embora este reconhecimento do papel central dos agentes económicos, o
Direito Internacional Económico continua a corresponder ao paradigma centrado nos
Estados. O acesso dos particulares a meios de resolução de litígios em caso de
violação de normas de Direito Internacional Económico é, regra geral, mediado pela
intervenção do Estado de nacionalidade, ao abrigo do princípio da protecção
diplomática e com as dificuldades que este encerra quanto à determinação da
nacionalidade, maxime no caso de pessoas colectivas e de titulares de direitos
sociais.23 O enquadramento legal das condições de acesso à protecção diplomática
depende, no essencial, de regras de direito interno, como a notória Section 301, nos
Estados Unidos, ou o Regulamento (CE) nº 3286/94 do Conselho, na União Europeia.
Para os juristas de formação europeia, esta ausência de mecanismos de
protecção directa dos particulares faz com que o Direito Internacional Económico
apareça como uma criatura bastante imperfeita por comparação com o direito
económico de integração da Comunidade Europeia, caracterizado por aquilo a que o
Tribunal de Justiça das Comunidades chama “um sistema completo de vias de
recurso” e assente num conjunto de princípios fundamentais: a autonomia, a
aplicabilidade directa, o efeito directo e o primado do Direito Comunitário.
Importa reter, contudo, que mesmo na Comunidade Europeia, os particulares
não têm legitimidade activa para demandar um Estado-Membro perante as instâncias
do Luxemburgo. Os particulares que se queiram opor (ou defender de) um
incumprimento do Direito Comunitário por um Estado-Membro têm apenas duas vias:
ou apresentam queixa à Comissão Europeia (ou a outro Estado-Membro), ficando
dependentes da boa vontade do destinatário da queixa para exercer o seu (da
Comissão ou de outro Estado-Membro) direito de interpor uma acção por
incumprimento; ou (cumulativamente ou em alternativa), recorre aos tribunais
nacionais para fazer valer os seus direitos. É esta segunda via, conjuntamente com os
22
Ver Patrizio MERCIAI, Les entreprises multinationales en droit international, Bruylant, Bruxelas,
1993.
23
Com excepção dos mecanismos convencionais que permitem a um investidor de uma parte
contratante demandar o Estado de acolhimento parte da mesma convenção. Sobre o princípio da
protecção diplomática ver, entre nós, FAUSTO DE QUADROS, op. cit., pp. 120 e seguintes e 387 e
seguintes. Quanto à questão da nacionalidade de pessoas colectivas e à aplicação do princípio da
protecção diplomática aos accionistas, maxime na sequência do acórdão do Tribunal Internacional de
Justiça no caso Barcelona Traction, ver MARQUES DOS SANTOS, “Algumas reflexões sobre a
nacionalidade das sociedades em Direito Internacional Privado e em Direito Internacional Público”, in
António MARQUES DOS SANTOS, Estudos de Direito da Nacionalidade, Almedina, Coimbra, 1998.

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princípios estruturantes a que atrás aludimos, mais do que a existência de um guardião
central da legalidade comunitária, que dá ao Direito Comunitário a sua especificidade,
sobretudo quando combinada com a original via de interacção entre o poder judicial
nacional e o Tribunal das Comunidades que é o reenvio prejudicial.
Assim, podemos concluir que, no plano das regras de Direito Internacional
Público que regem as relações económicas internacionais, os Estados são os actores
por excelência, ainda que a sua actividade se desenvolva no âmbito de organizações
internacionais por eles criadas para enquadrar essas mesmas relações.

14. Pela nossa parte, julgamos que há vantagens não negligenciáveis em manter o
Direito Internacional Público como matriz do Direito Internacional Económico, não
sendo a menor delas a coerência que daí advém para esta disciplina e o facto de se
enfatizar a importância de as relações económicas internacionais serem ordenadas por
regras que limitam a soberania dos Estados e não por meras relações de poder
(político, económico, tecnológico ou militar).24 Isto não quer dizer que
desvalorizemos a importância de uma abordagem interdisciplinar ou que ignoremos a
interpenetração do Direito Internacional Económico e do direito da economia dos
diferentes membros da Comunidade Internacional.25 Apenas defendemos que o centro
de gravidade que dita o agrupamento, sistematização e tratamento de matérias que
estudamos no Direito Internacional Económico é constituído pelo Direito
Internacional.26
Tendo, desta forma, caracterizado o Direito Internacional Económico como
um ramo especializado do Direito Internacional, afigura-se-nos que a preocupação

24
Em sentido próximo, ver Asif H. QURESHI, International Economic Law, Sweet & Maxwell,
Londres, 1999, pp. 5 e ss.
25
Como veremos adiante, o conceito de Ordem Económica Internacional é indispensável a uma
adequada compreensão do Direito Internacional Económico. Do mesmo modo, encontraremos
numerosos exemplos da influência dos regimes de direito interno em aspectos fulcrais do Direito
Internacional Económico. Quanto ao papel do direito da economia interno, pensamos que a sua
importância para o Direito Internacional Económico é bem sintetizada por QURESHI, op. cit., pp. 14 e
15: “The national legal system as it pertains to the economic phenomena is germane not only because it
is subject to IEL (International Economic Law), but also because the exigencies of the domestic
economic and legal system have a bearing on the development of IEL. Not only is the domestic system
to ensrhine international concerns, but the international dimension needs to take cognizance of it”.
26
Também definindo o DIE por referência à sua origem internacional, v. SOUSA FRANCO, op. cit.,
pp. 48-50, propondo a seguinte definição de DIE: “conjunto de normas (e/ou relações e situações
sociais juridicamente regidas e/ou a disciplina jurídica que os toma por objecto) oriundas de fontes de
Direito Internacional que regulam com uma disciplina jurídica específica (autónoma, isto é,
próprio, e coerente, isto é, inspirada por princípios comuns), relações económicas internacionais”
(destaque no texto original).

Miguel Moura e Silva – Direito Internacional Económico 11


central desta disciplina deve ser o estudo das regras que regulam as relações
económicas internacionais, na perspectiva do Direito Internacional.

15. Perante esta delimitação, quais são as matérias que integram o Direito
Internacional Económico. Vários autores, a começar por um dos pais fundadores da
disciplina, Georg SCHWARZENBERGER, procuraram elaborar listas de tópicos a
incluir no seu domínio.27 Ponderando esta questão de um ponto de vista actual,
afigura-se que o núcleo duro do Direito Internacional Económico inclui, antes de
mais, um conjunto de matérias que podem ser integradas numa parte geral constituída
pelo aprofundamento de matérias de Direito Internacional Público com particular
relevância para este ramo: os sujeitos; a soberania permanente sobre os recursos
naturais; a aplicação extraterritorial do direito económico interno, maxime o Direito
da Concorrência; os princípios e as fontes de Direito Internacional Económico, entre
outras. Encontramos depois um grupo de temas substantivos, correspondendo aos
regimes substantivos do comércio internacional, das relações monetárias, da
protecção do investimento estrangeiro, da circulação internacional de pessoas e,
arguendo, ao chamado Direito Internacional do Desenvolvimento. 28 Este último tema
merece uma análise mais detalhada a propósito da bondade da sua inclusão no Direito
Internacional Económico.

16. Nas últimas décadas assistimos à emergência de uma tentativa de construir


uma ordem económica que favorecesse os interesses dos países em desenvolvimento,
com base numa nova superestrutura jurídica a que foi dado o nome de Direito
Internacional do Desenvolvimento.29 Para muitos dos seus cultores, o Direito
27
SCHWARZENBERGER procurou identificar um elenco de matérias passíveis de inclusão no Direito
Internacional Económico; ver, op. cit., pp. 7-8. Sobre o conteúdo do Direito Internacional Económico,
ver ainda QURESHI, op. cit., pp. 12 e seguintes e Hazel FOX, “The Definition and Sources of
International Economic Law”, in Hazel FOX (org.), International Economic Law and Developing
States – An Introduction, British Institute of International and Comparative Law, Londres, 1992, p. 3.
28
VerLoren van THEMAAT propõe mesmo uma teoria geral do Direito Internacional Económico,v.
The Changing Structure of International Economic Law, Martinus Nijhoff, Haia, 1981, p. 13.
29
De entre as muitas referências bibliográficas, ver Isabella D. BUNN, “The Right To Development:
Implications for International Economic Law”, American University International Law Review, vol.
15, 2000, p. 1425; F.V. GARCIA AMADOR, El Derecho Internacional del Desarollo – Una nueva
dimension del Derecho Internacional Economico, Civitas, Madrid, 1987; Antonio CASSESE,
International Law in a Divided World, Clarendon Press, Londres, 1986, pp. 317-375; Paul de WAART,
Paul PETERS, Erik DENTERS, International Law and Development, Martinus Nijhoff, Dordrecht,
1988; Mohamed BENNOUNA, “Droit international et développement”, in Mohammed BEDJAOUI,
(Redactor geral), Droit International: Bilan et perspectives, t. 2, Pédone, Paris, 1991, p. 663;
Mohammed BEDJAOUI, “Le droit au développement”, in Mohammed BEDJAOUI, op. cit., p. 1247;
G. FEUER, H. CASSAN, Droit international du développement, 2ª ed., Dalloz, 1991; Alain PELLET,

Miguel Moura e Silva – Direito Internacional Económico 12


Internacional do Desenvolvimento seria, pela sua génese e pelo seu escopo, a antítese
de um Direito Internacional Económico de inspiração liberal.30
BÉLANGER distingue entre o Direito Internacional Económico e o Direito
Internacional do Desenvolvimento em função das suas diferentes finalidades, o
primeiro de vocação universal mas principalmente centrado nos interesses dos países
industrializados, o segundo de cariz reivindicativo na defesa das exigências dos países
em desenvolvimento.31 Ainda assim, BÉLANGER reconhece que ambos partilham o
mesmo objecto, tendendo as suas especificidades a esbater-se.32
Para outros autores, como GARCIA-AMADOR, o Direito Internacional do
Desenvolvimento constitui apenas uma nova dimensão do Direito Internacional
Económico.33
Neste ponto devemos ter presente a convergência doutrinal registada ao longo
da década de 90 em torno de um conceito de “desenvolvimento sustentável”, que
esteve no cerne das discussões das Conferências das Nações Unidas sobre Ambiente e
Desenvolvimento do Rio de Janeiro e de Joanesburgo, e o seu acolhimento em fontes
de natureza convencional, como o preâmbulo do Acordo OMC.34 Assim, a principal
justificação para a autonomia do Direito Internacional do Desenvolvimento parece ser

Le droit international du développement, 2ª ed., PUF, Que sais-je, nº 1731, Paris, 1987; G. BLANC,
“Peut-on encore parler d’un droit du développement?”, Journal de Droit International, 1991, p. 903; F.
SNYDER, P. SLINN, (orgs.), International Law of Development (Comparative Perspectives),
Professional Books, Abingdon, 1987; Philip ALSTON, “The Right to Development at the International
Level ”, in Frederick E. SNYDER, Surakiart SATHIRATHAI, (orgs.), Third World Attitudes Toward
International Law , Martinus Nijhoff, Haia, 1987, p. 811; W.D. Verwey, “The New International
Economic Order and the Realization of the Right to Development and Welfare - A Legal Survey ”, in
Frederick E. SNYDER, Surakiart SATHIRATHAI, (orgs.), op. cit., p. 825; R.-J. DUPUY,
“Communauté internationale et disparités de développement”, Recueil des Cours de l’Académie de
Droit International, 1979-VI, vol. 165, p. 9; M. FLORY, Droit international du développement, P.U.F.,
Thémis, Paris, 1977; M. VIRALLY, “Vers un droit international du développment”, Annuaire Français
de Droit International, 1965, p. 3. Entre nós, ver SOUSA FRANCO, op. cit., pp. 29 a 32; Eduardo Paz
FERREIRA, “Desenvolvimento e direitos humanos”, Revista da Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa, vol. XLI, nº 1, p. 23; Maria Manuela Dias Marques Magalhães SILVA,
Direito Internacional do Desenvolvimento - Breve Abordagem, Univ. Portucalense, Porto, 1996.
30
Ver SOUSA FRANCO, op. cit., p. 29.
31
Michel BÉLANGER, Institutions Économiques Internationales, 6ª ed., Economica, Paris, 1997, p. 4.
32
Id., p. 5.
33
GARCIA-AMADOR, op. cit., p. 64.
34
Embora se trate de uma mera referência preambular, este conceito de desenvolvimento sustentável
forneceu um importante esteio hermenêutico para a interpretação do artigo XX, alínea g) do GATT, a
qual permite justificar medidas que violam as disposições materiais do Acordo Geral, desde que
relativas à conservação de recursos naturais esgotáveis. Ver Estados Unidos – Restrições à importação
de certos camarões e produtos à base de camarão, WT/DS58/AB/R, Relatório do Órgão de Recurso
aprovado pelo ORL a 6 de Novembro de 1998, parágrafos 129 a 131 (parcialmente reproduzido e
traduzido em Miguel MOURA E SILVA, Direito Internacional Económico – Jurisprudência relativa
ao sistema GATT/OMC, AAFDL, Lisboa, 2002).

Miguel Moura e Silva – Direito Internacional Económico 13


a consideração de dimensões sociais e culturais do desenvolvimento, as quais serão de
difícil apreensão por um direito dirigido aos mercados internacionais.35
Será isto suficiente para justificar a autonomização do Direito Internacional do
Desenvolvimento como um ramo do Direito Internacional Público, a par do Direito
Internacional Económico? Julgamos que não é necessário tomar uma posição firme
nesta matéria para efeito da determinação do conteúdo daquela última disciplina.
Independentemente do mérito da autonomização do enquadramento internacional do
desenvolvimento, esta é, inequivocamente, uma matéria económica (ainda que
acompanhada, como referimos, de outras dimensões, sendo a principal delas ligada
aos direitos humanos e um emergente direito ao “bom governo” ou “good
governance”, o qual, para alguns internacionalistas, passaria por um direito a um
governo democrático).36
Por outro lado, na medida em que as considerações relativas ao
desenvolvimento, sendo preconizadas em instrumentos de “soft law”, têm sido
positivadas, elas surgem em instrumentos clássicos de Direito Internacional
Económico. Uma simples leitura do Acordo OMC e seus anexos permite identificar
uma modulação expressa das obrigações a cargo dos membros menos
desenvolvidos.37
Mas o que nos parece mais determinante é o empobrecimento que adviria para
o Direito Internacional Económico da dimensão do desenvolvimento. Pelo contrário,
o que parece indispensável é dar um “rosto humano” àquela disciplina, associando-lhe
uma das funções básicas de qualquer constituição económica: a redistribuição de
riqueza.38 Retomaremos este tema adiante, a propósito do conceito de Ordem
Económica Internacional.

35
V. Jean TOUSCOZ, “Rapport introductif”, in SFDI, Les Nations Unies et le Droit international
économique, Colóquio de Nice da Société Française pour le Droit International, A. Pedone, Paris,
1986, p. 3, a p. 5: “(...) le droit international du développement a un domaine plus large que celui du
droit international économique (car le développement est aussi un phénomène politique, social, culturel
etc.) (...).
36
Ver Friedl WEISS e Paul De WAART, “International Economic Law with a Human Face: An
Introductory View”, in Friedl WEISS, Erik DENTERS e Paul de WAART (orgs.), International
Economic Law with a Human Face, Kluwer, Haia, 1999, p. 1, a 8 a 10.
37
O que não significa que os países em desenvolvimento não tenham razões de queixa no âmbito do
sistema GATT/OMC. Ver Friedl WEISS, “Laissez-faire Be Fair!”, Legal Issues of Economic
Integration, vol. 29, nº 1, 2002, p. 1: “There is little doubt that certain trade rules are unfairly stacked
against the interests of poor countries”.
38
Na expressão feliz do título da obra de Friedl WEISS, Erik DENTERS e Paul de WAART (orgs.),
International Economic Law with a Human Face, Kluwer, Haia, 1999.

Miguel Moura e Silva – Direito Internacional Económico 14


17. Podemos agora concluir este capítulo propondo a seguinte definição de
trabalho: o Direito Internacional Económico compreende as regras de Direito
Internacional Público que têm por objecto a criação, protecção, circulação e
redistribuição de riqueza a nível internacional.

II. Direito Internacional Económico e Ordem Económica Internacional

18. A atermo-nos à noção de Direito Internacional Económico atrás apresentada,


teríamos uma visão essencialmente descritiva desta disciplina. O conhecimento do
Direito Internacional Económico seria apenas a apreensão das diferentes regras
jurídicas num dado momento ou contexto. Sucede, contudo, que as regras do Direito
Internacional Económico estão estreitamente ligadas à conceptualização de um
sistema internacional de trocas, o qual simultaneamente moldam e reflectem. Daí que,
sobretudo por influência da doutrina alemã do Ordo-liberalismo, igualmente
inspiradora da teorização do direito económico a nível nacional, o conceito e as
funções do Direito Internacional Económico apenas possam ser devidamente
compreendidos quando articulados com o conceito de Ordem Económica
Internacional.39

19. Para CARREAU e JUILLARD, a Ordem Económica Internacional, em


sentido amplo, designa “o conjunto coerente de regras jurídicas orientadas em função
das finalidades do sistema”.40 Subjacente a qualquer Ordem Económica Internacional
estaria um postulado de divisão internacional do trabalho tendente a uma
concretização diferenciada consoante posta em prática numa óptica liberal, numa

39
Ver Walter EUCKEN, Die Grundlagen der Nationalökonomie, 1969 (trad. portuguesa, Os
fundamentos da economia política, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1998). Para uma aplicação
à economia internacional, sob uma perspectiva liberal, ver Wilhelm RÖPCKE, “Economic Order and
International Law”, RCADI, 1954-II, vol. 86, p. 203 (adiante RÖPCKE, “Economic Order...”) e
Razeen SALLY, “Classical Liberalism and International Economic Order: An Advanced Sketch”,
Constitutional Political Economy, vol. 9, 1998, p. 19. V. ainda SOUSA FRANCO, op. cit., pp. 49-50,
para quem a função do DIE “consistirá em assegurar a organização e o funcionamento da economia
internacional, segundo uma regulação normativa global, ditada por fins de bem comum/interesse
público internacional. Neste sentido, que se julga preferível, o DIE tende a ser o Direito próprio da
‘Ordem Económica Internacional’ (talvez melhor: da Ordem Jurídica Internacional da Economia”).
40
CARREAU e JUILLARD, op. cit., p. 40. Definição próxima desta é dada por BÉLANGER, op. cit.,
p. 9.

Miguel Moura e Silva – Direito Internacional Económico 15


perspectiva socialista de planeamento central ou ainda numa visão terceiro-mundista
(sendo estas duas últimas de carácter dirigista).

20. Mais elaborada é a concepção de PETERSMANN41 que distingue três


acepções do conceito de Ordem Económica Internacional (OEI):
- Acepção descritiva ou empírica: OEI refere-se à realidade e à interacção dos
elementos da economia internacional;
- Acepção jurídica: OEI designa o conjunto de princípios jurídicos, regras e
instituições que moldam a OEI factual e que, ao promover a segurança jurídica
e ao reduzir os custos de transacção internacionais, contribuem para uma
afectação de recursos eficiente;
- Acepção normativa (dever-ser): OEI traduz ordens ideais ou teorias de uma
economia internacional que funcione satisfatoriamente e possa permitir
melhorias das OEI factuais e jurídicas, de modo a construir um sistema
coerente capaz de atingir os objectivos acordados (ou pelo menos geralmente
aceites) de forma ordenada.

É fácil compreender que são estas duas últimas acepções as que mais nos
interessam. A acepção jurídica marca o estudo das regras do Direito Internacional
Económico. Mas primeiro é necessário identificar a OEI na acepção normativa, o que
exige uma análise, mesmo que sumária, da evolução histórica dos sistemas de
relações internacionais.42

21. Seguindo a classificação de PETERSMANN, encontramos uma primeira fase


de desenvolvimento do Direito Internacional Económico caracterizada pela evolução

41
Ver E.-U. PETERSMANN, “International Economic Order”, in Encyclopedia of Public
International Law, p.1129 (adiante PETERSMANN, “International Economic Order”); E.-U.
PETERSMANN, “International Economic Theory and International Economic Law: On the Tasks of a
Legal Theory of International Economic Order”, in St.J.McDONALD, D.M. JOHNSTON, The
Structure and Process of International Law, Haia, 1983, p. 258; E.-U. PETERSMANN, Constitutional
Functions and Constitutional Problems of International Economic Law, Friburgo, 1991.
42
Seguimos neste ponto PETERSMANN, “International Economic Order”. Ver ainda JACKSON,
“International Economic Law”, Michael J. TREBILCOCK e Robert HOWSE, The Regulation of
International Trade, 2ª ed., Routledge, Londres, 1999, pp. 17 e ss.; a obra fundamental de Pieter
VerLoren van THEMAAT, op. cit., pp. 14 a 16; Stephen NEFF, Friends but no Allies: Economic
Liberalism and the Law of Nations, Columbia Univ. Press, Nova Iorque, 1990; e Francis N.N.
BOTCHWAY, “Historical Perspectives on International Economic Law”, in Asif H. QURESHI (org.),
Perspectives in International Economic Law, Kluwer Law International, Haia, 2002, p. 309. Entre nós,
ver SOUSA FRANCO, op. cit., pp. 23-31.

Miguel Moura e Silva – Direito Internacional Económico 16


da regulação jurídica dos aspectos privados das trocas internacionais desde a
antiguidade (jus gentium) ao período de renascimento do direito romano na Europa
(com a emergência de uma primeira lex mercatoria e dos rudimentos do direito
comercial). Esta fase assentava primordialmente na autonomia contratual das partes
envolvidas no comércio internacional e assistiu ao desenvolvimento de forma
espontânea (porque não planeada) de um conjunto de institutos que ainda hoje
encontramos no Direito do Comércio Internacional.

22. A segunda fase corresponde ao desenvolvimento do direito público da


economia, à medida que os Estados-nação se auto-definem também como espaços de
regulação do mercado, reforçando-se os elementos económicos constitutivos da
soberania.43 Aqui encontramos uma participação activa do Estado, primeiro com
intervenções unilaterais de cariz mercantilista e depois com o aparecimento dos
primeiros instrumentos bilaterais de regulação internacional das trocas comerciais,
que visavam “coordenar e liberalizar as respectivas regulamentações comerciais numa
base de reciprocidade”.44 Também neste ponto a história do Direito Internacional
Económico está intimamente ligada à evolução do Direito Internacional Público no
período posterior à paz de Vestefália.45 É desta fase que data o processo de decantação
de certas normas estruturantes das trocas internacionais: os princípios e “standards”
do Direito Internacional Económico. Estas normas, em especial a cláusula da nação
mais favorecida, permitiam que a rede de acordos bilaterais celebrados pelas
potências europeias e por alguns Estados americanos funcionasse como um sistema
multilateral, pelo menos no que respeita ao âmbito das concessões negociadas em
condições de reciprocidade.

43
Como relembram TREBILCOCK e HOWSE, op. cit., p. 18, o processo de afirmação da soberania do
Estado fez-se, em parte, pela integração económica e criação de mercados nacionais. Por outras
palavras, a liberalização das trocas internacionais seguiu-se à liberalização das trocas internas e à
adopção de um conjunto de regulamentações comerciais de carácter territorial, representando a vertente
externa do controlo político-económico dos governos centrais emergentes sobre as transacções
ocorridas no seu território.
44
PETERSMANN, op. cit., p. 1131. Após o desarmamento pautal unilateral do Reino Unido, iniciado
com a revogação das Corn Laws em 1846, foi também este Estado que iniciou um processo de
internacionalização das medidas de liberalização, ainda que a nível bilateral, com o Tratado Cobden-
Chevalier de 1860, celebrado entre aquele reino e a França.
45
Sobre a história do Direito Internacional Público ver, entre nós, André Gonçalves PEREIRA e
FAUSTO DE QUADROS, Manual de Direito Internacional Público, 3ª ed., Almedina, Coimbra, 1997,
pp. 19 e seguintes.

Miguel Moura e Silva – Direito Internacional Económico 17


23. Parcialmente abalado pelas recessões das últimas décadas do século XIX e
interrompido com a 1ª Grande Guerra, esse clima de liberalização das trocas
internacionais viria a ser posto definitivamente em causa com a depressão de 1929. 46
O regresso em força do proteccionismo tem o seu ponto mais alto em 1930, quando é
aprovado nos E.U.A. o (tristemente) célebre Smoot-Hawley Tariff Act, aumentando a
média dos direitos aduaneiros sobre as importações em 60% e desencadeando
inevitáveis retaliações por parte dos seus parceiros comerciais. Apesar de terem sido
os próprios E.U.A. a iniciar o processo de inversão desta tendência proteccionista
(com o Reciprocal Trade Agreements Act de 1934), o período imediatamente anterior
à 2ª Grande Guerra ficou irremediavelmente marcado pela vulnerabilidade da
economia internacional perante a adopção de medidas unilaterais de cariz
proteccionista. Dito de outra forma, a existência de um sistema liberal demonstrou
depender de mais do que da mera coordenação espontânea dos mercados, sobretudo
pela força que os poderes dos Estados podiam exercer uma vez dominados por
interesses proteccionistas.47 Se o comércio livre podia ser desejável, não era
decididamente inevitável.

24. As lições das décadas de 20 e 30 foram bem apreendidas pelos arquitectos da


nova ordem internacional resultante da vitória aliada na 2ª Grande Guerra. Preparada
essencialmente a nível bilateral entre os E.U.A. e o Reino Unido e depois discutida e
alargada aos seus aliados, a nova estratégia reconhecia a natureza de bem público que
representa a existência de regras estáveis para o desenvolvimento de uma economia
internacional assente em princípios liberais. Daí que as instituições nascidas nesse
período, com particular destaque para as organizações criadas pela Conferência de
Bretton Woods em 1944 – o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional,
procurassem uma difícil conjugação do liberalismo apoiado numa ordem espontânea
que coordenasse os agentes económicos e medidas de cariz dirigista tendentes,
pensava-se, a proteger o mercado de si próprio. Esta tensão dialéctica pode ainda hoje
ser vista no funcionamento daquelas organizações, bem como no âmbito do sistema

46
Isto apesar de, sob a égide da Sociedade das Nações, terem decorrido diversas conferências
económicas tendentes a estimular o desenvolvimento de regras de enquadramento da economia
mundial.
47
O conceito liberal de ordem espontânea é desenvolvido por Friederich A. HAYEK; ver
Individualism and Economic Order, Univ. of Chicago Press, 1948 e Law, Legislation and Liberty, 3
vols., Univ. of Chicago Press, 1973-1979 (em particular o cap. 10, no vol. II, quanto à caracterização
da ordem do mercado). Ver ainda RÖPCKE, op. cit..

Miguel Moura e Silva – Direito Internacional Económico 18


GATT/OMC. Arredados deste sistema ficaram os países socialistas, que procuraram,
à sua maneira, protagonizar uma ordem económica alternativa, baseada no
planeamento central, e ainda os países que tinham conseguido a independência em
resultado da descolonização.

25. Os dois traços mais marcantes desta fase parecem ser o recurso a
instrumentos multilaterais e a criação de uma complexa rede de organizações
internacionais económicas, coordenadas, formal ou informalmente, pelas Nações
Unidas. Em consonância com a ortodoxia da época, para a qual a cooperação
económica e o reconhecimento do interesse comum num sistema de trocas
internacionais era uma pré-condição para a paz, esta organização foi dotada de
poderes no domínio económico, dispondo mesmo de um órgão específico para servir
de fórum a essa cooperação, o Conselho Económico e Social.48

26. O recrudescimento da Guerra Fria e a descolonização e consequente formação


de um bloco (pouco coeso) de países do Terceiro Mundo, puseram em crise este
modelo, em particular quando os países produtores de petróleo provocaram o primeiro
choque petrolífero e um dos pilares fundamentais de Bretton Woods (o sistema de
estabilidade cambial) se desmoronou com grande alarido. Estes acontecimentos deram
alento às reivindicações dos países em vias de desenvolvimento em torno de uma
Nova Ordem Económica Internacional (NOEI), as quais tiveram a sua manifestação
mais radical na adopção da Carta dos Direitos e Deveres Económicos dos Estados
(Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas 3281 (XXIX), de 12 de
Dezembro de 1974).
Embora os países industrializados do Ocidente reconhecessem a justeza de
algumas daquelas reivindicações e o objectivo de criar uma Nova Ordem Económica
Internacional fosse relativamente consensual, era evidente que tal transformação da
ordem existente supunha uma limitação dos princípios liberais em que assentavam as
trocas internacionais (mesmo em maré alta para o proteccionismo) e exigia a
transferência de importantes poderes para uma entidade central (fosse ela a ONU ou

48
A Carta das Nações Unidas refere, entre os seus objectivos, o de “realizar a cooperação
internacional, resolvendo os problemas internacionais de carácter económico, social ...” e dedica ainda
o Capítulo IX à cooperação económica e social internacional (artigos 55º a 60º). Ver SFDI, Les
Nations Unies et le Droit international économique, Colóquio de Nice da Société Française pour le
Droit International, A. Pedone, Paris, 1986.

Miguel Moura e Silva – Direito Internacional Económico 19


outra qualquer instituição a criar para o efeito). Dado o carácter fortemente dirigista
da NOEI, pelo menos tal como decorre dos principais textos internacionais que a ela
se referem49 e, mais ainda, da Carta dos Direitos e Deveres Económicos dos Estados,
era difícil ceder às pretensões dos seus defensores sem pôr em causa o sistema liberal
que, para melhor ou para pior, tanto contribuíra para o crescimento económico do
pós-guerra.

27. Com o fim da Guerra Fria e a nova orientação económica de grande parte dos
países em vias de desenvolvimento, i.e., desaparecidas as perspectivas de uma OEI
alternativa, a OEI de cariz liberal instituída após a 2ª Guerra Mundial (ou na sua fase
final) aparece assim isolada enquanto conjunto de regras e princípios reguladores da
economia internacional. O que não significa que o modelo inicial tenha permanecido
intacto (já que incorporou, ainda que de forma mais mitigada, muitas das
reivindicações dos países em vias de desenvolvimento) ou que não tenha perspectivas
de evolução.

28. O sistema das relações económicas internacionais enfrenta agora novos


problemas, como a prossecução de um desenvolvimento sustentável, e a crescente
globalização (chavão que veio substituir a interdependência como palavra-chave em
qualquer discussão da economia internacional) cria a necessidade de aumentar a
legitimidade das regras e princípios que já não regulam apenas transacções entre
operadores económicos especializados no comércio internacional mas que tocam em
aspectos muito sensíveis do próprio funcionamento dos mercados (e.g. qualidade
alimentar, padrões de qualidade, condições de trabalho, etc.).

29. Chegados a este ponto, torna-se indispensável encontrar as finalidades do


sistema actual – os valores que, na acepção normativa atrás mencionada, devem
pautar uma OEI de cariz liberal. Ainda seguindo PETERSMANN, podemos, partindo
da caracterização de uma economia como um sistema de produção, coordenação e
distribuição, identificar três funções económicas básicas da OEI:

49
Ver a Declaração e Programa de Acção para uma NOEI aprovadas na 6ª Sessão Extraordinária da
Assembleia Geral sobre os problemas das matérias-primas e do desenvolvimento: Resolução 3201 (S-
VI) da ONU – Declaração respeitante à instauração de uma NOEI e Resolução 3202 (S-VI) da ONU –
Programa de acção respeitante à instauração de uma NOEI, ambas de 1 de Maio de 1974.

Miguel Moura e Silva – Direito Internacional Económico 20


a) Promoção de uma afectação eficiente dos recursos mundiais escassos, de
modo a maximizar a satisfação das preferências dos consumidores através da
minimização dos custos (incluindo os custos sociais decorrentes de certas
actividades, como a poluição, etc.);
b) Coordenação das actividades económicas descentralizadas sem flutuações
excessivas de preços e de ciclos económicos que possam afectar a eficiência
dos preços como indicadores da escassez de recursos;
c) Distribuição equitativa dos benefícios e dos custos.

Numa OEI liberal, que depende do mecanismo informal dos mercados para a
tomada de grande parte das decisões económicas, a sua tarefa reguladora fulcral será
“estabelecer incentivos e desincentivos que orientem o comportamento baseado na
prossecução de interesses próprios adoptado por indivíduos, empresas e Estados de
modo a prosseguir aqueles três objectivos económicos”.50 As finalidades da OEI
podem assim reconduzir-se a três valores fundamentais:
a) Eficiência: valor que inspira grande parte das regras do DIE, em especial
aquelas tendentes a permitir o funcionamento do princípio da vantagem
comparada;
b) Equidade (“fairness”): exigência decorrente da própria viabilidade do sistema,
na medida que os ganhos de eficiência decorrentes do modelo da vantagem
comparada tendem a ser repartidos, a nível nacional e a nível internacional, de
forma desigual;51
c) Estabilidade: valor ligado aos dois anteriores e que traduz uma necessidade de
previsibilidade nas decisões dos agentes económicos que reduza ou pelo
menos atenue as incertezas inerentes a um sistema assente na coordenação
pelos mercados.

50
PETERSMANN, “International Economic Order”, p. 1133.
51
À visão igualitária radical que caracterizava algumas reivindicações da NOEI (visando a correcção
das desigualdades de desenvolvimento alegadamente justificada por uma espécie de enriquecimento
sem causa dos países industrializados enquanto antigas potências coloniais) contrapõe-se hoje em dia
uma perspectiva inspirada na Teoria da Justiça de John RAWLS [A Theory of Justice, Belknap Press,
Cambridge-Massachussetts, 1971, trad. portuguesa, Uma Teoria da Justiça, Presença, Lisboa, 1993
(com edição inglesa revista em 1999)], que defende a correcção de algumas desigualdades aceitando
aquelas que levam à melhoria do bem-estar geral. Ver Thomas M. FRANCK, Fairness in International
Law and Institutions, Oxford Univ. Press, Oxford, 1995. Para uma perspectiva crítica da obra de
FRANCK ver Robert CRYER, “Franckian Fairness and International Economic Law”, in Asif H.
QURESHI (org.), Perspectives in International Economic Law, Kluwer Law International, Haia, 2002,
p. 211. O próprio RAWLS desenvolveu esta questão numa obra recente, v. John RAWLS, The Law of
Peoples, Harvard University Press, Cambridge – Massachusetts, 1999.

Miguel Moura e Silva – Direito Internacional Económico 21


30. Apesar dos benefícios económicos da progressiva integração da economia
mundial, o actual sistema do Direito Internacional Económico assenta ainda nos
pilares da igualdade soberana e da reciprocidade, sendo muitas das regras aplicáveis
às relações económicas internacionais de carácter convencional e, como tal,
facultativas (no sentido de que um Estado não aderente a uma convenção
internacional não fica por ela vinculado, valendo então os princípios gerais
decorrentes da soberania). Por outras palavras, a actual ordem económica mundial
depende do “internacionalismo esclarecido” de cada governo, em especial dos países
industrializados (mas não só, pensemos por exemplo no caso dos países que
controlam recursos estratégicos como o petróleo).
O facto de os Estados não se moverem exclusivamente tendo em vista o bem-
estar da população mundial (e a sua melhoria) pode pôr em causa o funcionamento
deste delicado sistema. As tensões inerentes à exigência de reciprocidade na abertura
dos mercados à concorrência estrangeira podem facilmente conduzir a uma escalada
de retaliações que paralise partes significativas do comércio internacional e o mesmo
pode suceder a propósito da aplicação de regras destinadas a salvaguardar outros
interesses imperativos como a protecção dos consumidores, etc.. A progressiva
institucionalização das regras que regem as relações comerciais internacionais permite
um grau de estabilidade muito superior ao verificado no período de entre as guerras
mundiais mas não elimina totalmente os conflitos económicos.52
À medida que a integração económica mundial se acentua, as expectativas dos
agentes económicos, aspecto central do funcionamento de uma ordem económica de
cariz marcadamente liberal, exigem um reforço das garantias de estabilidade, não só
quanto aos governos estrangeiros como também perante o Estado de nacionalidade. E
neste ponto a visão tradicional conduz a uma atenuação das garantias de liberdade
económica que a maior parte dos países industrializados e não só reconhece aos
agentes económicos. Daí que surja actualmente uma corrente doutrinária que defende
a necessidade de “constitucionalizar” as regras nucleares em que assenta a OEI, em
moldes similares aos aplicados pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias

52
Conflitos esses que tendem a ocorrer mesmo entre Estados que partilham ideologias económicas de
matriz liberal. Ver NEFF, op. cit.

Miguel Moura e Silva – Direito Internacional Económico 22


no que respeita à criação de um mercado comum.53 Este é um dos aspectos que
marcam as novas perspectivas do Direito Internacional Económico.

III. Direito Internacional Económico: Perspectivas de evolução

31. Após esta exposição sobre os diferentes entendimentos do conceito de Direito


Internacional Económico e quanto à relação entre este e a noção de ordem económica
internacional, concluímos este estudo com a indicação de algumas pistas para a sua
evolução futura. Este tema é, por definição, inesgotável e o nosso propósito é apenas
identificar alguns dos principais desafios que se colocam actualmente ao Direito
Internacional Económico.

32. O problema fundamental do Direito Internacional Económico não difere


significativamente daquele que caracteriza o debate sobre direito da economia a nível
interno: qual deve ser o papel do Estado e suas emanações, supra e infra-estaduais,
na ordenação e regulação dos mercados.
Não ignoramos que, com esta afirmação, perfilhamos uma orientação
fundamentalmente liberal, pelo menos no sentido da aceitação do modelo da
economia de mercado como base para qualquer construção teórica do Direito
Internacional Económico.54 Mas afirmar o primado da economia de mercado como
53
Uma vez mais, o contributo fundamental neste domínio é dado por E.-U. PETERSMANN. Ver deste
autor The GATT/WTO Dispute Settlement System, Kluwer Law International, Londres, 1997, cap. 1.
Note-se que a jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias apenas tende a
reconhecer natureza garantística às regras do Tratado de Roma que respeitam à eliminação de
obstáculos ao comércio intracomunitário, adoptando uma visão mais restritiva quanto a acordos como o
GATT/OMC. Ver Miguel MOURA E SILVA, “O GATT e a ordem jurídica comunitária”, Revista
Direito e Justiça, vol. XII, Tomo 2, 1998, p. 123. Ver ainda o Acórdão do Tribunal de Justiça de
23.11.1999 no Proc. C-146/96, República Portuguesa c. Conselho, parcialmente reproduzido em
Miguel MOURA E SILVA, Direito Comunitário I – Jurisprudência, Questões e Notas, Tomo 1,
AAFDL; Lisboa, 2000, pp. 380 e ss.
54
Tal não significa que desconheçamos as tendências críticas da doutrina que procuram dar corpo aos
movimentos anti-liberalização ou anti-globalização; mas essas posições são marginais, no sentido de
criticarem o modelo dominante sem todavia avançarem com alternativas que comprovadamente
possam contribuir para a promoção de mais bem-estar a nível universal. Para uma visão crítica do
Direito Internacional Económico, de inspiração marxista, ver Rorden WILKINSON, “The Political
Economy of International Economic Law: A Neo-Gramscian Perspective”, in Asif H. QURESHI
(org.), Perspectives in International Economic Law, Kluwer Law International, Haia, 2002, p. 193.
Também a escola dos Critical Legal Studies se tem debruçado recentemente sobre o Direito
Internacional Público e, em particular, o Direito Internacional Económico, numa visão crítica de base
feminista. V. Mary CHILDS, “Feminist Perspectives on International Economic Law”, in Asif H.
QURESHI (org.), Perspectives in International Economic Law, Kluwer Law International, Haia, 2002,
p. 163 e Fiona BEVERIDGE, “Further Feminist Readings on International Economic Law”, in Asif H.
QURESHI (org.), Perspectives in International Economic Law, Kluwer Law International, Haia, 2002,
p. 177. Uma visão diferente é-nos dada por Javaid REHMAN, “Islamic Perspectives on International

Miguel Moura e Silva – Direito Internacional Económico 23


princípio orientador da construção do Direito Internacional Económico não é mais,
hoje em dia, do que um truísmo. E, em todo o caso, esta asserção não implica a defesa
do status quo como o melhor dos mundos porque o melhor dos mundos possíveis,
para parafrasear o Doutor Pangloss.
É precisamente a indeterminação da linha de demarcação (quando ela existe)
entre Estado e Mercado que torna fascinante a disciplina de Direito Internacional
Económico, a par das suas congéneres nacionais. Fascinante e também fundamental
para as ciências jurídicas e económicas, pois da decisão sobre o ponto de ruptura entre
Estado e Mercado (ou, de forma mais positiva, sobre a articulação) dependem não só
os valores típicos deste último, como a liberdade económica, como também os valores
sociais que viabilizam as instituições sobre as quais ele se contrói: a vida, a saúde, a
defesa, a justiça, etc.

33. Partindo do ponto de vista do funcionamento dos mercados, o professor de


Economia, Alan DEARDORFF identifica três grandes justificações para a intervenção
dos poderes públicos na economia: a correcção das falhas de mercado (market
failures); a redistribuição de riqueza; e objectivos não económicos, como a segurança,
etc..55 Não é este o local apropriado para aprofundar o tema do ponto de vista
nacional. O que importa para o nosso objectivo é que todas estas políticas nacionais
podem ter um impacto a nível internacional. Ainda segundo DEARDORFF, “All
national economic policies today are international, in that they have either direct
effects on other countries or indirect effects through international trade and capital
flows”.56 As questões que se devem colocar de seguida são: quando deve o Direito
Internacional Económico intervir? Deve essa intervenção limitar, complementar ou
substituir-se à actuação unilateral dos Estados? Este é, na sua essência, um problema
de afectação (vertical mas também horizontal) de competências para a regulação da
economia internacional, como sublinha John JACKSON.57

Economic Law”, in Asif H. QURESHI (org.), Perspectives in International Economic Law, Kluwer
Law International, Haia, 2002, p. 235.
55
Alan V. DEARDORFF, “The Economics of Government Market Intervention, and Its International
Dimension”, in Marco BRONCKERS, Reinhard QUICK (orgs.), New Directions in International
Economic Law – Essays in Honour of John H. Jackson, Kluwer Law International, Haia, 2000, p. 71, a
p. 73.
56
Id. p. 72.
57
Esta é uma preocupação recorrente na obra recente deste autor. Ver, a título exemplificativo, John H.
JACKSON, “International Economic Law in Times that are Interesting”, Journal of International
Economic Law, vol. 3, nº 1, 2000, p. 1, em particular a pp. 11-12.

Miguel Moura e Silva – Direito Internacional Económico 24


Uma vez mais, para nós europeus, é inescapável o paralelo com o princípio da
subsidiariedade positivado no Tratado de Roma com a revisão operada pelo Tratado
da União Europeia.58

34. Encontramos, de facto, um fundamento para o Direito Internacional


Económico na limitação dos comportamentos dos Estados que, na prossecução dos
seus interesses nacionais, actuam ou pode ser tentados a actuar de forma tal que
prejudique o bem-estar universal.59 Em sistemas federais, como o norte-americano,
esta é uma das justificações para a centralização do poder de regular o comércio
interno e para a limitação dos chamados “poderes de polícia” dos componentes
políticos da federação por regras constitucionais que são, no essencial, normas de
integração económica.60
Para além de este tipo de actuação poder resultar de uma percepção da
eficiência económica enviesada pela óptica da economia nacional (tendo em conta a
maximização do bem-estar nacional e não uma perspectiva cosmopolita do bem-estar
universal), sucede com frequência que os Estados se deixem tentar pelo canto das
sereias do proteccionismo, evidenciando um “government failure”, como tem
sugerido a chamada Escola da Escolha Pública.61 Aliás, como sublinha Frieder
ROESSLER, a razão de ser do GATT tem provavelmente mais que ver com a
necessidade sentida pelos Estados de imporem limites externos aos seus poderes
internos, por forma a excluir do espaço estratégico dos actores económicos nacionais
organizados em poderosos “lobbies” a exigência de medidas proteccionistas.62 A

58
V. artigo 5º, nº 2, do Tratado de Roma: “Nos domínios que não sejam das suas atribuições
exclusivas, a Comunidade intervém apenas, de acordo com o princípio da subsidiariedade, se e na
medida em que os objectivos da acção encarada não possam ser suficientemente realizados pelos
Estados-membros, e possam, pois, devido à dimensão ou aos efeitos da acção prevista, ser melhor
alcançados ao nível comunitário”. Para um primeiro ensaio sobre a aplicação deste princípio ao sistema
GATT/OMC, v. Jacques H.J. BOURGEOIS, “ ‘Subsidiarity’ in the WTO Context from a Legal
Perspective”, in Marco BRONCKERS, Reinhard QUICK (orgs.), New Directions in International
Economic Law – Essays in Honour of John H. Jackson, Kluwer Law International, Haia, 2000, p. 35.
59
Antes de mais importa ter presente que, ao contrário da irredutibilidade das preferências dos
índividuos, os “interesses” dos Estados são o resultado de um processo de ajustamento de preferências
individuais e colectivas por mecanismos definidos constitucionalmente. Ver, numa perspectiva
comunitária, Francis SNYDER, New Directions in European Community Law, Weidenfeld and
Nicolson, Londres, 1990.
60
O que corresponde, nas teorias económicas da integração, à distinção entre integração positiva e
integração negativa.
61
Ver Carlos Pinto CORREIA, A Teoria da Escolha Pública: Sentido, limites e Implicações, Separata
do Boletim de Ciências Económicas, Coimbra, 1998.
62
Ver Frieder ROESSLER, “La portée, les limites et la fonction du sistème juridique du GATT” ”, in
SFDI, Les Nations Unies et le Droit international économique, Colóquio de Nice da Société Française
pour le Droit International, A. Pedone, Paris, 1986, p. 169, a p. 181.

Miguel Moura e Silva – Direito Internacional Económico 25


maior capacidade de mobilização dos meios ligados aos produtores expostos à
concorrência internacional relativamente aos consumidores cria dificuldades à
prossecução de estratégias de liberalização, que beneficiam sobretudo os exportadores
e os consumidores internos, estes últimos com óbvias dificuldades em se assumirem
como “countervailing power”, na noção de GALBRAITH.63

35. Mas o problema colocado pelo poder dos Estados não se apresenta apenas
desta forma negativa. As forças da economia internacional desafiam frequentemente
os poderes de regulação de qualquer Estado (ou espaço economicamente integrado)
individualmente considerado, mesmo no caso das maiores potências económicas
mundiais: os Estados Unidos, a União Europeia e o Japão. As instituições de Bretton
Woods são a actualização desta percepção de que os problemas económicos mundiais
exigem uma resposta internacional que não se limite a proibir determinado tipo de
actuações dos Estados lesivas da economia internacional, antes exigindo uma certa
internacionalização das políticas económicas.
Com as instituições de Bretton Woods (juntando, para este efeito, ao Banco
Mundial e ao FMI o GATT de 1947), os países participantes procuraram, num pacto
faustiano, aceitar a sujeição das suas políticas económicas externas a certas regras
(por vezes muito apertadas, como era o caso dos sistema cambial, pelo menos na
versão original e anterior à crise de pagamentos do Reino Unido de 1946, a qual
inviabilizou a divisão do fardo da convertibilidade entre as zonas do Esterelino e do
Dólar), de forma a isolar os efeitos da economia internacional na prossecução dos
objectivos de política interna.64 Hoje em dia sabemos que a fronteira entre as
dimensões nacional e internacional da economia é, quando muito, marcada por uma
ténue linha de demarcação. O que se constata é, cada vez mais, a hetero-determinação
das estruturas internas de regulação económica, seja por força de normas de Direito
Internacional Económico que adquiriram uma nova dinâmica e que colocam limites à

63
Sobre os problemas da chamada “collective action”, ver Mancur OLSON, The Logic of Collective
Action, Harvard University Press, Cambridge – Massachusetts, 1974.
64
Esta visão muito difundida da história da criação do sistema de Bretton Woods tem uma
interpretação diferente desenvolvida pelo historiador Alan MILWARD, para quem a integração
económica do pós-guerra serviu, acima de tudo, como um instrumento para permitir aos Estados-nação
prosseguirem os seus objectivos internos de política económica. Assim, de forma algo paradoxal, a
subordinação a normas internacionais de boa conduta económica e mesmo a participação em processos
de fronteiras indefinidas, como é o caso da integração europeia, vieram “salvar” o Estado-nação e não
diminuir a sua força. Ver Alan S. MILWARD, The European Rescue of the Nation-State, Routledge,
Londres, 1992 e Alan S. MILWARD, et al., The Frontier of National Sovereignty – History and
theory, 1945-1992, Routledge, Londres, 1993.

Miguel Moura e Silva – Direito Internacional Económico 26


actuação dos Estados,65 seja pela aceitação de compromissos relativamente a
actividades económicas desenvolvidas no interior das fronteiras,66 como a prestação
de serviços, seja ainda pela convergência voluntária em torno de formas de
organização da actividade económica.67

36. Será então o Estado-nação impotente para regular a economia internacional?


Deveremos abandonar o conceito de soberania como princípio estruturante da ordem
económica internacional? Importa antes de mais considerar que a própria
internacionalização das actividades económicas não atingiu ainda um ponto tal que as
faça escapar ao controlo dos Estados.68
Para SCHACHTER, o Estado desempenha ainda um papel essencial: “The
critical factor is that we have no substitute for the structures of authority and power
necessary for coping with the many conflicts that prevail in society. (...) At this time
the state system alone provides a general framework of authority that enables society
to take account of its diversity and clashes of interest”.69 O papel do Estado como
garante da satisfação das exigências de desenvolvimento económico e social não
parece, assim, encontrar a nível internacional um possível sucedâneo. Mesmo no
processo de integração europeia, a União tende a assumir-se como um macro-estado
regulador e não como um macro-estado-providência.
Esta perspectiva aponta para que o futuro desenvolvimento do Direito
Internacional Económico se faça no sentido de constituir uma superestrutura que

65
É o caso do princípio do tratamento nacional, previsto, por exemplo, no artigo III do GATT, que
aparentemente estabelece um tertium comparationis determinado pelo Estado de importação (o
tratamento concedido aos produtos nacionais), mas que, ao ser interpretado de forma a probir o recurso
a discriminações de modo a proteger a produção nacional, sujeita as medidas fiscais e regulamentações
comerciais internas a um controlo de compatibilidade à luz de critérios desenvolvidos
internacionalmente.
66
Caso dos acordos GATS e TRIPS, ver Christopher ARUP, The New World Trade Organization
Agreements, Cambridge Univ. Press, Cambridge, 2000.
67
De que constitui certamente o exemplo mais claro a tendência internacional para a privatização de
certas actividades até há pouco consideradas como reservadas ao Estado e a substituição da intervenção
deste como produtor/prestador por um novo Estado-regulador. Ver G. MAJONE, La Communauté
européenne: un État régulateur, Montchrestien, Paris, 1996.
68
Ver Grahame F. THOMPSON, “Perspectives on Governing Globalization”, in Asif H. QURESHI
(org.), Perspectives in International Economic Law, Kluwer Law International, Haia, 2002, p. 31, que
afirma a p. 37: “(...) the degree of real productive integration in the international economy remains
suprisingly low (...) The imagery of a disembedded productive capital roaming the globe for the lowest
wage cost, lowest risk and more profitable site to locate is na exaggerated one”.
69
Oscar SCHACHTER, “The Erosion of State Authority and its Implications for Equitable
Development”, in F. WEISS, E. DENTERS, P. DE WAART (orgs.), International Economic Law with
a Human Face, Kluwer Law International, Haia, 1999, p. 31, a pp. 43-44. Ver, em sentido próximo,
Peter MALANZUK, “Globalization and the Future Role of Sovereign States”, in F. WEISS, E.
DENTERS, P. DE WAART, op. cit., p. 45

Miguel Moura e Silva – Direito Internacional Económico 27


enquadra e coordena o exercício das funções reguladores dos Estados, com a eventual
centralização de algumas destas funções, a definir tendo em conta a lógica da
subsidiariedade.70 Esta é uma das linhas possíveis de evolução que conduzirá à
transformação do Direito Internacional da Economia num elemento fundamental da
ordenação jurídica da economia a nível global.
Note-se que, uma vez mais, as questões relativas à redistribuição de riqueza
são, desta forma, relegadas para um secundaríssimo plano. A viabilidade da sua
incorporação efectiva no Direito Internacional Económico sem um grau de delegação
de competências nacionais numa espécie de Estado global é um dos temas que merece
certamente aprofundamento futuro. Até lá, a composição de diferendos relativos à
redistribuição dos benefícios das trocas internacionais continuará a ser feita ao nível
das negociações entre Estados, com estes a, num segundo nível, regerem os efeitos
redistributivos a nível interno.

37. A identificação de uma função de delimitação de competências segundo


princípios de subsidiariedade, sendo uma perspectiva que interessa desenvolver no
futuro, não deixa de suscitar alguns problemas de fundo. Em primeiro lugar, a
resposta às questões suscitadas pela subsidiariedade (que poderes atribuir a que ordem
jurídica e a que entidades dentro de cada uma) exige que sejam dados à partida
objectivos comuns a prosseguir pelos componentes do sistema. Como sublinha
Jacques BOURGEOIS, “for the subsidiarity principle, designed to indicate who
should do what, to work there must be agreement on objectives in the first place”.71
Ora, no domínio do Direito Internacional Económico é difícil encontrar uma
definição desses objectivos em termos que permitam a operacionalização de um
critério delimitador de competências. Esses objectivos tendem a apenas poder ser
encontrados nas cartas constitutivas das diferentes organizações internacionais. Uma
via de investigação que poderá ser produtiva passa pela análise dos objectivos
daquelas organizações, ordenando-os em função da sua especialização material e do
sue âmbito (universal ou regional). Numa tipologia deste género, não deixariam de vir
à cabeça de uma hipotética lista os objectivos da Organização das Nações Unidas,
70
Regista-se já um crescente interesse nos mecanismos de cooperação e concorrência entre os Estados-
reguladores. Ver Joseph McCAHERY, et al. (orgs.), International Regulatory Competition and
Coordination – Perspectives on Economic Regulation in Europe and the United States, Clarendon
Press, Oxford, 1996 e Daniel C. ESTY, Damien GERADIN (orgs.), Regulatory Competition and
Economic Integration – Comparative Perspectives, Oxford Univ. Press, Oxford, 2001.
71
BOURGEOIS, op. cit., p. 37.

Miguel Moura e Silva – Direito Internacional Económico 28


talvez os únicos que se podem assumir como fornecendo uma base para a definição de
regras deste tipo. Dada a estabilidade dos textos constitutivos, a identificação desses
objectivos poderá exigir uma interpretação actualista, a exemplo do que fez o Órgão
de Recurso da OMC no caso Estados Unidos – Camarões, a que anteriormente
fizemos referência.72

38. O princípio da subsidiariedade reflecte uma lógica económica subjacente,


traduzida de certa forma por uma preocupação com a instituição de mecanismos que
permitam a “internalização das externalidades”. Daí que outra das linhas de
investigação que poderá dar um contributo essencial para o desenvolvimento do
Direito Internacional Económico seja a análise económica do direito. Embora
diversos aspectos desta disciplina tenham sido objecto privilegiado da atenção
daquela escola, em especial em áreas como os mecanismos de retaliação, a eficiência
do cumprimento de obrigações internacionais e os fundamentos (ou a ausência deles)
quanto a certas regulamentações comerciais, como é o caso dos direitos antidumping,
não existe ainda um contributo que ofereça uma estrutura alternativa para o Direito
Internacional Económico.73
Entre os princípios económicos que maior potencial oferecem para a
construção de uma teoria do Direito Internacional Económica encontra-se a Teoria da
Vantagem Comparada, a qual tem dominado o GATT desde a sua criação. 74 Mas se
esta teoria constitui uma metodologia útil para aferir o impacto do comportamento dos
Estados, bem como a influência das regras de Direito Internacional Económico na
melhoria do bem-estar universal, medido este na perspectiva da afectação óptima de
recursos a nível global, a verdade é que ela não explica todo o conteúdo daquele ramo

72
Sobre as dificuldades colocadas pela relativa desactualização dos objectivos das principais
organizações económicas internacionais e a resistência à sua revisão, ver Asif H. QURESHI,
“Perspectives in International Economic Law – An Eclectic Approach”, in Asif H. QURESHI (org.),
Perspectives in International Economic Law, Kluwer Law International, Haia, 2002, p. 9, a p. 27;
Edward KWAKWA, “Institutional Perspectives of International Economic Law”, in Asif H. QURESHI
(org.), op. cit., p. 45, a p. 49.
73
Ronald A. CASS, “Introduction: Economics and international law”, in Jagdeep S. BHANDARI, Alan
O. SYKES, Economic dimensions in international law – Comparative and empirical perspectives,
Cambridge Univ. Press, Cambridge, 1997, p. 1; Jeffrey L. DUNOFF, Joel P. TRACHTMAN,
“Economic Analysis of International Law”, Yale Journal of International Law, vol. 24, nº 1, 1999, p. 1;
Ronald A. CASS, “Economic Perspectives on International Economic Law”, in Asif H. QURESHI
(org.), Perspectives in International Economic Law, Kluwer Law International, Haia, 2002, p. 279.
74
Ver Andreas LOWENFELD, International Economic Law, Oxford Univ. Press, Oxford, 2002, p. 3.

Miguel Moura e Silva – Direito Internacional Económico 29


do direito.75 Ou seja, o entusiasmo pelo contributo da ciência económica não nos deve
limitar à consideração de visões parcelares.76

39. Outra das actuais correntes procura criar um novo Direito da Integração
Económica, tendo com principal defensor Joseph WEILER.77 As bases para esta tese
são: em primeiro lugar, a sujeição de medidas regulatórias a diversas ordens jurídicas
e a possibilidade de ela ser controlada através de diversos mecanismos de resolução
de litígios;78 em segundo lugar a convergência em termos do direito material dos
diferentes regimes do comércio internacional; terceiro, o reforço do papel dos
particulares naqueles regimes, com destaque para a União Europeia.

40. Com efeito, importa ter presente que os acordos de integração económica têm,
regra geral, uma matriz comum: o GATT de 1947. Mesmo um exame superficial
permite identificar a influência do Acordo Geral no Tratado de Roma (e.g., o artigo
30º do Tratado de Roma é decalcado do artigo XX do GATT; o artigo 90º do mesmo
tratado corresponde ao nº 2 do artigo III do GATT).79
75
Ver Alan O. SYKES, “Comparative Advantage and the Normative Economics of International Trade
Policy”, Journal of International Economic Law, vol. 1, nº 1, 1998, p. 49. Como afirma Ronald CASS,
algumas normas do GATT não encontram qualquer justificação com base em questões de eficiência,
antes servindo para a protecção de interesses de grupos específicos a nível nacional, como é o caso da
norma que autoriza os membros a aplicarem direitos antidumping; ver R. CASS, “Introduction:
Economics and international law”, in Jagdeep S. BHANDARI, Alan O. SYKES, Economic dimensions
in international law – Comparative and empirical perspectives, Cambridge Univ. Press, Cambridge,
1997, p. 1, a p. 27.
76
Neste aspecto, o estudo de CASS, op. cit., é particularmente útil porque expõe os contributos de
diferentes metodologias da análise económica do direito.
77
Ver J.H.H. WEILER (org.), The EU, the WTO and the NAFTA – Towards a Common Law of
International Trade, Oxford Univ. Press, Oxford, 2000, e os dois contributos desse Autor reunidos
naquela obra: J.H.H. WEILER, “Cain and Abel – Convergence and Divergence in International Trade
Law”, loc. cit., p. 1, afirmando a p. 4: “I am claiming that there is enough convergence to justify a
redefinition of the field – international economic law as a single field comprising its various siblings
and families and sharing a common doctrinal core – as close, perhaps, as the Common Law doctrines in
the Old British Commonwealth”; e ainda J.H.H. WEILER, “Epilogue: Towards a Common Law of
International Trade”, loc. cit., p. 201.
78
O exemplo mais claro é, provavelmente, o regime comunitário das bananas, que não só deu origem a
processos junto do GATT/OMC como suscitou inúmeros casos perante os tribunais nacionais dos
Estados-membros da Comunidade, especialmente a Alemanha.
79
A razão de ser da semelhança entre estas disposições (que não esconde as diferenças patentes, por
exemplo, ao nível da aplicação da norma sobre medidas de efeito equivalente a restrições quantitativas,
o artigo 28º do Tratado de Roma, a medidas que relevam no GATT ou do nº 4 do artigo III ou do nº 1
do artigo XI) tem que ver com a relação entre o GATT, um acordo multilateral de que eram partes
contratantes os membros fundadores das Comunidades Europeias, e os tratados institutivos dessas
comunidades. Com efeito, ao derrogarem a cláusula da nação mais favorecida, esses tratados carecem
de justificação com base no artigo XXIV do GATT (ou uma derrogação nos termos do artigo XXV, nº
5 do mesmo Acordo e, actualmente, do artigo IX, nº 3, do Acordo OMC), sob pena de os membros das
Comunidades violarem as disposições do Acordo Geral. Sobre esta questão ver Pedro Infante MOTA,
“Os Blocos Económicos Regionais e o Sistema Comercial Multilateral. O Caso da Comunidade

Miguel Moura e Silva – Direito Internacional Económico 30


Uma das áreas onde se assiste a um significativo grau de convergência é o
tratamento das medidas fiscais discriminatórias.80 Por outro lado, as considerações
jurídico-económicas envolvidas na aplicação de normas jurídicas que incidem sobre
uma mesma realidade económica tendem a aproximar regimes aparentemente
díspares, ainda que por vezes alguns procurem apressadamente retirar daí corolários
que desconhecem as finalidades específicas de cada categoria de normas. Um bom
exemplo dos riscos dessa convergência encontra-se na análise da noção de produtos
directamente concorrentes ou sucedâneos para efeitos do nº 2 do artigo III do GATT
com recurso a noções originárias do Direito da Concorrência, como é o caso da
definição de mercado relevante. A este respeito, a jurisprudência dos painéis da OMC
tem dado provas de um indiscutível bom senso, patente no seguinte trecho:

“A legislação comercial em geral, e o artigo III [do GATT de 1994] em


particular, centram-se no desenvolvimento das oportunidades económicas para
os importadores mediante a supressão das medidas governamentais
discriminatórias que põem em causa um comércio internacional equitativo.
Assim, a legislação comercial trata da questão da possibilidade de apoiar a
concorrência. A legislação antitrust centra-se geralmente nas práticas de
empresas ou modificações estruturais susceptíveis de entravar, restringir ou
eliminar a concorrência. Não é ilógico que os mercados sejam definidos de
forma mais ampla quando se trata de pôr em prática leis destinadas
essencialmente a proteger as possibilidades concorrenciais do que quando está
em causa a execução de leis destinadas a proteger os verdadeiros mecanismos
de concorrência. Em nosso entender, pode, por isso, ser apropriado utilizar,
para efeitos do nº 2, segunda frase, do artigo III, um conceito de mercado mais
amplo do que o empregue pela legislação antitrust”.81

Europeia”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XL, nºs 1 e 2, 1999, p. 71.
Para uma aplicação do artigo XXIV do GATT de 1994 a um acordo de integração económica ver o
caso Turquia – Restrições às importações de têxteis e vestuário, WT/DS34/AB/R, Relatório do Órgão
de Recurso aprovado pelo ORL a 19 de Novembro de 1999 (parcialmente reproduzido e traduzido em
Miguel MOURA E SILVA, Direito Internacional Económico – Jurisprudência relativa ao sistema
GATT/OMC, AAFDL, Lisboa, 2002).
80
Ver Marco M. SLOTBOOM, “Do Different Treaty Purposes Matter for Treaty Interpretation? The
Elimination of Discriminatory Internal Taxes in EC and WTO Law”, Journal of International
Economic Law, vol. 4, nº 3, 2001, p. 557.
81
Caso Coreia – Imposições sobre bebidas alcoólicas, Relatório do Painel, WT/DS75 e 84/R, 1998,
parágrafo 10.81. Ver, em igual sentido, o caso Chile – Imposições sobre as bebidas alcoólicas,
Relatório do Painel, WT/DS87 e 110//R, 1999, parágrafo 7.87.

Miguel Moura e Silva – Direito Internacional Económico 31


É indiscutível a utilidade de proceder a uma comparação das metodologias do
Direito da Concorrência com as do Direito Internacional Económico. Mas tal não
significa que se deva desconsiderar o espírito e a letra das normas em causa devido a
uma semelhança entre o tipo de considerações pertinentes para a aplicação das
mesmas.82

41. Qual a viabilidade desta metodologia? Como vimos, ela tem um amplo campo
de aplicação, tanto mais que os problemas a que atrás aludimos de repartição de
competências se fazem sentir não só entre Estados ou entre estes e organizações
internacionais por eles criadas, como também no interior dos próprios Estados. Resta
saber se ela nos pode oferecer mais do que uma simples visão comparativa da
aplicação de regras semelhantes em sistemas com finalidades distintas.

42. Um dos traços em comum entre os diferentes regimes do comércio


internacional é a imposição de proibições a certo tipo de intervenções do Estado, as
quais criam um campo de autonomia privada que estimula as actividades económicas.
Neste sentido, o Direito Internacional Económico pode ser visto como garante de
liberdades económicas dos particulares, oponíveis aos Estados, primeiro passo para
um Direito sem Estado, na expressão de COHEN-TANUGI.83
Encontramos aqui uma corrente que procura a constitucionalização dessas
normas proibitivas, erigindo-as em pilares da ordem económica internacional. Apesar
de ter raízes antigas, como já vimos, o grande expoente desta corrente é Ernst-Ulrich
PETERSMANN.84 Para este Autor, “Modern international economic law is citizen-
oriented and aims at limiting the traditional Hobbesian insistence on sovereign rights
of governments, border controls, mercantilist protection of domestic industries and

82
Para uma aplicação destes mesmos princípios num caso nacional de Direito da Concorrência em que
a empresa arguida alegava que a definição do mercado relevante deveria ser mais ampla do que a
contemplada pelas autoridades de concorrência, invocando jurisprudência do Tribunal de Justiça das
Comunidades ao abrigo do artigo 90º e ignorando a prática da mesma instância com base nas normas
comunitárias da concorrência, ver Decisão do Conselho da Concorrência no Processo nº 2/99, Práticas
anticoncorrenciais no mercado da cerveja, ponto 75, Relatório de Actividades, 2000, p. 127.
83
Laurent COHEN-TANUGI, Le Droit sans l’État, PUF, Paris, 1992.
84
Ver deste Autor, “From the Hobbesian International Law of Coexistence to Modern Integration Law:
The WTO Dispute Settlement System”, Journal of International Economic Law, 1998, vol. 1, n.º 2, p.
175; “From ‘Negative’ to ‘Positive’ Integration in the WTO: Time for ‘Mainstreaming Human Rights’
into WTO Law”, Common Market Law Review, vol. 37, 2000, p. 1363; “The WTO Constitution and
Human Rights”, Journal of International Economic Law, vol. 3, nº 1, 2000, p. 19. “Human rights and
international economic law in the 21st century. The need to clarify their interrelationships”, Journal of
International Economic Law, vol. 4, nº 1, 2001, p. 3.

Miguel Moura e Silva – Direito Internacional Económico 32


nationalist discrimination against foreigners which, as shown by economic theory,
hinder mutually beneficial cooperation among citizens across frontiers. It is not the
nation state and its national economy, but their global integration and deregulation for
the benefit of individual producers, traders and consumers that are the objectives of
modern international economic law”.85
Uma análise detalhada das implicações desta teoria ultrapassaria largamente
os limites de espaço e de tempo a que estamos sujeitos. Não podemos, contudo, deixar
de fazer algumas observações de índole genérica. A conceptualização das regras do
comércio internacional segundo o discurso dos “direitos fundamentais”, tendo, sem
dúvida alguma desempenhado um papel essencial na formação da ordem jurídica
comunitária, pode, paradoxalmente, minar a legitimidade daquelas regras. É que o
discurso sobre os direitos dos agentes económicos, se actuado através de doutrinas
como a do efeito directo para limitar os poderes do Estado leva a uma arriscada deriva
supranacional, num domínio onde as instituições não estão inseridas num processo
mais vasto de integração política.86
Uma viragem do actual regime do comércio internacional no sentido da
“constitucionalização” de liberdades económicas oponíveis aos Estados obrigaria a
uma refundação política do seu fundamento, sob pena de estarmos a reescrever as
constituições económicas nacionais não seguindo os procedimentos de debate
constitucional interno mas as muito menos transparentes vias diplomáticas. 87 Por
outras palavras, perdida a batalha a nível nacional por uma constituição económica
liberal, ela seria reintroduzida por via internacional. Sem prejuízo de partilharmos a
concepção liberal subjacente, parece-nos que esta é uma via procedimentalmente

85
PETERSMANN, “From the Hobbesian International Law of Coexistence to Modern Integration
Law: The WTO Dispute Settlement System”, Journal of International Economic Law, 1998, vol. 1, n.º
2, p. 175, a p. 179.
86
Para PETERSMANN, op. cit., p. 178: “If the democratic function of international guarantees of
freedoms (...) is to protect and extend the ‘private sovereignty’ of citizens rather than the regulatory
powers of their governments, precise and unconditional international rules should be ‘directly
applicable’ by the citizens concerned and should be protected by national and international courts,
especially if the international rules have been ratified by national parliaments and enlarge individual
freedom and rule of law across frontiers”. Daí que PETERSMANN proponha, como primeiro passo, a
constituição de um Conselho Económico e Social junto da OMC.
87
É claro que encontramos traços deste tipo de projecto no Tratado da União Europeia, maxime no que
respeita à União Económica e Monetária. Mas se aí ainda é possível invocar algum consenso à volta de
um projecto de integração, não encontramos nada de semelhante a nível da OMC. Além disso, o
progresso da integração económica europeia tem sido levado a cabo num contexto em que há algumas
moedas de troca (reais ou fictícias, é questão de não nos podemos ocupar agora), como é o caso da
harmonização social (uma forma escamoteada de redistribuição de riqueza daqueles que não têm
emprego para os que o têm); a política agrícola comum; os fundos comunitários, etc.

Miguel Moura e Silva – Direito Internacional Económico 33


incorrecta que contribui apenas para minar os fundamentos da ordem liberal que se
pretende construir.
A isto acrescem as resistências a qualquer perda de poder do Estado para
proceder à composição interna de interesses conflituantes. É que a História tem um
peso essencial na actual repartição internacional de competências, muitas vezes com
resultados perfeitamente irracionais de um ponto de vista económico mas que reflecte
correctamente as preferências dos indivíduos que não são meros agentes de
racionalidade perfeita. Qualquer reorganização da actual repartição de poderes para
regular a economia deve ter em conta os custos que a mesma pode acarretar. E se já
não existe remorso histórico (com algumas excepções relevantes) para a actual
repartição dos povos pelos Estados que integram a comunidade internacional, há uma
incontornável tendência para que cada indivíduo defina a sua identidade em função da
sua “pertença” a um Estado. Falar num Mercado sem Estado sem criar um centro que
redefina a identidade do sujeito parece-nos um processo votado ao insucesso.88

43. Antes de concluir esta exposição, convém ainda mencionar um último aspecto
da evolução recente do Direito Internacional Económico: a vocação hegemónica da
OMC. Ao contrário do que sucedia com a Carta de Havana que visava a criação da
Organização Internacional do Comércio, o Acordo de Marraquexe tem ambições mais
limitadas, não contemplando matérias como o investimento, a protecção social ou as
práticas comerciais restritivas.89 No entanto, a sua construção modular, com um
acordo que institui a OMC e um sistema de anexos que permite a inclusão de novos
temas abre as portas à inclusão de compromissos sobre algumas matérias que até aqui
não encontraram um enquadramento multilateral ou, pelo menos, plurilateral.
A Agenda de Doha veio demonstrar o potencial da OMC como fórum para a
discussão, negociação e aplicação de novos acordos internacionais em matérias como
a concorrência e o investimento. É ainda cedo demais para procurar antecipar o
resultado destes esforços, ou sequer para perspectivar as hipóteses de sucesso destas
iniciativas, questões que exigiriam, em todo o caso, uma análise autónoma. Mas o que
é importante registar é a tendência para que a evolução do Direito Internacional
Económico venha a passar pela OMC e, através dela, pelas metodologias herdadas do

88
Pense-se, por exemplo, na dificuldade de forjar uma “cidadania europeia”.
89
Ver, em geral, John H. JACKSON, The World Trade Organization – Constitution and
Jurisprudence, Pinter, Londres, 1998.

Miguel Moura e Silva – Direito Internacional Económico 34


GATT de 1947 – o chamado “acquis” do GATT.90 Este desenvolvimento, já visível na
integração dos serviços e dos direitos de propriedade intelectual no âmbito da OMC
com os acordos GATS e TRIPS, consolidará no futuro a “santíssima trindade” de
organizações internacionais económicas: a OMC, o FMI e o Banco Mundial. A par
destas, as organizações de cooperação económica como a OCDE e as organizações
com finalidades de integração económica, como a União Europeia (com um projecto
mais amplo, ligado a formas sui generis de integração política), o Mercosul e o
NAFTA, integrarão uma segunda linha de desenvolvimento e experimentação das
diferentes combinações de normas jurídicas de distintas fontes e naturezas como
instrumentos de regulação das relações económicas internacionais.

44. O sucesso da OMC no desenvolvimento de uma ordem jurídica coerente tem


como consequência aumentar o grau de especialização dos vários domínios que
integram o Direito Internacional Económico. Tal encerra algumas dificuldades no
acompanhamento das diferentes áreas substantivas desta disciplina, decorrentes não
só dos diferentes tipos de institutos jurídicos a tratar como, sobretudo, da dinâmica
que caracteriza a sua evolução, sendo hoje difícil evitar a tendência à concentração
numa ou outra das áreas que se situam dentro de cada uma das vertentes do Direito
Internacional Económico.91 Mesmo um dos principais nomes ligados ao Direito
Comunitário e ao Direito Internacional Público, o Professor Joseph WEILER, afirma
a propósito apenas do Acordo de Marraquexe que institui a Organização Mundial do
Comércio e respectivos anexos que “It is becoming increasingly difficult (though

90
A par deste alargamento do âmbito da actuação da OMC regista-se ainda a histórica adesão da China
àquela organização, formalizada precisamente na Conferência Ministerial de Doha, faltando apenas a
adesão da Rússia para afirmar definitivamente a vocação universal daquela organização. A tendência
hegemónica da OMC manifesta-se quer pelo seu maior grau de juridificação, que lhe confere um forte
poder de atracção de matérias até aqui dispersas em instrumentos desprovidos de eficazes vias de
resolução de litígios, quer ainda por permitir um aprofundamento do Direito Internacional Público nas
matérias sob a sua competência. Ver David PALMETER e Petros MAVROIDIS, “The WTO Legal
System: Sources of Law”, American Journal of International Law, vol. 92, 1998, p. 398; Donald
M.McRAE, “The WTO in International Law: Tradition Continued or New Frontier”, Journal of
International Economic Law, vol. 3, nº 1, 2000, p. 27.
91
Ver Francis N.N. BOTCHWAY, “Historical Perspectives on International Economic Law”, in Asif
H. QURESHI (org.), Perspectives in International Economic Law, Kluwer Law International, Haia,
2002, p. 309, que afirma a p. 325, referindo-se ao Direito Internacional Económico como limitado a
regras de Direito Internacional Público: “As an academic discipline, IEL would continue its
fragmentation into various specialisms but also maintain links that would be sufficient to hold the field
together”. A profusão de periódicos surgidos na última década e o número de monografias dedicadas a
temas relativos à regulação jurídica das relações económicas internacionais atestam igualmente a
verdadeira explosão doutrinal em torno destas matérias.

Miguel Moura e Silva – Direito Internacional Económico 35


some still make the claim) to be a true specialist in all areas of substantive law
covered by the agreements”.92

45. Concluindo, são muitos e complexos os desafios que actualmente se colocam


ao Direito Internacional Económico. Mas o que nos parece inquestionável é a
existência de uma notável evolução no sentido da juridificação das instituições que
enquadram a economia internacional: a gradual e ainda longe de acabada
transformação de um sistema “power oriented”, mera correia de transmissão de
poderes fácticos, num sistema “rule oriented”, que enquadra o exercício desses
poderes segundo regras elaboradas pelos processo de formação do Direito
Internacional.93

92
J.H.H. WEILER, “The Rule of Lawyers and the Ethos of Diplomats: Reflections on the Internal and
External Legitimacy of WTO Dispute Settlement”, Harvard Jean Monnet Working Paper 09/00,
Harvard Law School, 2000, pp. 1-2.
93
Ver John H. JACKSON, “Global Economics and International Economic Law”, Journal of
International Economic Law, vol. 1, nº 1, 1998, p. 1.

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