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INSTITUTO DE PSICOLOGIA
B. F. SKINNER
SÃO PAULO
1994
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
B. F. SKINNER
SÃO PAULO
1994
Comissão Julgadora:
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São Paulo, de de
1994.
Trabalho parcialmente financiado pela CAPES, através do Programa PICD.
AGRADECIMENTOS
• Ao Prof. Dr. Luís Cláudio Figueiredo, pela orientação valiosa e pela confiança depositada ao longo da
preparação desta Tese.
• À Universidade de São Paulo, pela oportunidade de realizar gratuitamente este Curso de Pós-
Graduação.
• Aos Profs. Alex Fiuza de Melo e Léa Sales, pela colaboração na solução dos entraves burocráticos
relativos à dispensa das atividades regulares de ensino.
• A Arlene, Nazareno e Miryam, pelas diversas revisões que realizaram em manuscritos preliminares
deste texto.
• Ao Sílvio, Pedro, Denis e Olavo, pela assessoria nos complicados assuntos de informática.
• Aos interlocutores com quem tive a oportunidade de trocar idéias, pelas sugestões e pelas críticas.
(apresentado como uma postura crítica dos projetos representacionistas). A posição de Skinner é discutida
mas é problematizada a partir do reconhecimento (ou não) do caráter arbitrário e intersubjetivo dos
discursos dos indivíduos sobre o mundo e sobre si mesmos. Argumenta-se que ao abordar a ciência
Skinner faz uma articulação contraditória entre um princípio pragmatista (a funcionalidade) e elementos
os relatos que os indivíduos fazem sobre si. A posição de Skinner é interpretada, então, como a tentativa de
legitimar aprioristicamente seu programa de pesquisas e de defendê-lo do que entende ser uma ameaça de
retorno ao cognitivismo. Por outro lado, sugere-se que a noção skinneriana de linguagem permite dela
representationalism (presented as the attempt to ground true knowledge for culture) and pragmatism
scientific knowledge and self-knowledge are used to discuss Skinner's position. Skinner's proposal of a
functional criterion of truth, considered as indicating a pragmatist commitment, is discussed in terms of the
recognition (or not) of the arbitrary and intersubjective character of people's discourses about the world
and about themselves. It is argued that when approaching science Skinner establishes a contradictory link
privileged status for a type of assertion). In relation to self-knowledge it is proposed that Skinner moves to
the field of representationalism when rejecting individuals' reports about themselves. Skinner's position is
then interpreted as an attempt to set an a priori legitimacy for his research program and to defend from
what he assumes to be the danger of a return to cognitivism. On the other hand, it is suggested that
Skinner's notion of language enables to derive an entirely pragmatist behaviorist vision of the topics
examined.
pragmatisme (vu comme une position critique des projets représentationnalistes). La position de Skinner y
vérité y est considérée comme indicatrice d'engagements pragmatistes. Toutefois, cette proposition est
discutée à partir de la reconnaissance (ou non) du caractère arbitraire et intersubjetif des différents discurs
des individus sur le monde et sur eux-mêmes. On argumente que l'abordage de la science fait par Skinner
établi une articulation contradictoire entre un principe pragmatiste (la fonctionnalité) et des éléments
représentationnalistes (la preservacion à un type donné d'énoncé d'un status privilégié). Dans ce qui respect
lorsqu'il nie la valeur des rapports faits par les individus sur eux-mêmes. La position de Skinner est
interpretée, alors, comme la tentative de rendre légitime à priori son programme de recherches ainsi que de
le défendre contre ce qu'il voit comme une menace de retour au cognitivisme. De l'autre côté, on argumente
que la notion skinnérienne de langage permet une vision behavioriste intièrement prgmatiste des sujets
étudiés.
ÍNDICE
Resumo ...........................................................................................................................................................
p. V
Abstract ...........................................................................................................................................................
p. VI
Resumé ............................................................................................................................................................
p.VII
Prefácio ...........................................................................................................................................................
p. X
Introdução .......................................................................................................................................................
p. 1
3.2. Behaviorismo, Pragmatismo e Representacionismo II: Uma Matriz para a Análise do Pensamento de
Skinner ............................................................................................................................................................
p. 99
Este trabalho trata de psicologia e de filosofia. Mais propriamente, ele constitui-se, como
indicado pelo título, de uma análise epistemológica do pensamento de B. F. Skinner. Como se trata de um
autor cujas idéias têm sido objeto de inúmeras exposições e reflexões, muito do que se apresentará já foi
assinalado por outros comentadores. O caráter original desta investigação reside, então, fundamentalmente,
na abordagem particular que se oferece para as proposições de Skinner sobre o problema do conhecimento,
uma abordagem com a qual se acredita ser possível lançar luz sobre aspectos controversos e polêmicos de
sua obra. Ao caracterizar este estudo como uma discussão "epistemológica", por outro lado, o que se
pretende é evidenciar a questão central do estudo: a problemática do conhecimento humano (o termo
"epistemologia" não indica, aqui, uma versão particular de tratamento daquele problema).
Representacionismo e pragmatismo cumprem, na presente investigação, a função de
prover elementos capazes de gerar categorias conceituais para a análise do pensamento skinneriano. Foi
através de uma consideração da epistemologia a partir do debate pragmatismo-representacionismo que se
tornou possível, ao longo da realização desta pesquisa, conferir inteligibilidade a um conjunto de
problemas que se mostraram relevantes para a compreensão das relações que podiam ser estabelecidas
entre o behaviorismo skinneriano e a reflexão de ordem epistemológica.
O recurso à epistemologia, a necessidade de expor e analisar trabalhos
caracteristicamente pertencentes a este campo, foi razão de preocupação constante ao longo da elaboração
deste estudo. De um lado, porque não se teve uma formação, a nível de gradução, nesta área - uma
limitação que precisava ser vencida. De outro, porque se precisava delimitar o alcance da apresentação de
idéias elaboradas no contexto da disciplina epistemológica, de forma a não conferir-lhe uma centralidade
que se pretendia reservar à discussão do pensamento skinneriano. Com respeito à primeira preocupação,
procurou-se eleger os autores e assuntos a serem estudados no campo da filosofia, a partir de formulações
prévias dos problemas a serem abordados. Quanto à segunda, decidiu-se que a exposição do pensamento
representacionista e pragmatista seria tão extensa quanto necesssário para subsidiar a análise das
proposições de Skinner, tendo-se o cuidado de não omitir informações relevantes sobre os autores citados.
Com o texto resultante, pode-se correr dois riscos: para o leitor com formação limitada à psicologia, o de
ter sido demasiadamente extenso nos capítulos sobre representacionismo e pragmatismo; e para o leitor
familiarizado com leituras filosóficas, o de ter sido pouco abrangente na abordagem daqueles assuntos.
Espera-se, contudo, que estes dois riscos tenham sido afastados. Se o objetivo da análise contida na
primeira parte deste estudo tiver sido alcançado, o leitor-behaviorista concordará com a necessidade de
recorrer à filosofia para compreender aspectos importantes de sua própria prática profissional-científica; e
o leitor-filósofo concordará com a pertinência dos recortes efetuados para a análise desejada.
Como já sugerido acima, esta Tese está dividida em partes, ao todo três. Na Parte I
(Capítulos 1 e 2) apresentam-se as idéias de autores significativos para o desenvolvimento do pensamento
representacionista e da proposta pragmatista, com o intuito de construir categorias conceituais que
subsidiem a análise do pensamento de Skinner. Na Parte II (Capítulos 3, 4, 5 e 6) aquelas categorias são
sistematizadas e aplicadas a uma discussão das propostas de Skinner. Na Parte III (capítulo 7) procura-se
recuperar alguns elementos da oposição representacionismo-pragmatismo e assinalar o papel que o
pensamento behaviorista pode ter no quadro contemporâneo de reflexão sobre as práticas humanas
relativas ao conhecimento do mundo.
Como em toda pesquisa, este trabalho contou com inúmeros colaboradores, muitos deles
assinalados na seção de agradecimentos. No que diz respeito a seu conteúdo, no entanto, merece ser
destacado que a análise a ser apresentada dependeu em larga medida da paciente e indispensável orientação
do Prof. Luís Cláudio Figueiredo, principalmente no que diz respeito à referência a análises
filosóficas/epistemológicas. Suas observações nesta direção foram fundamentais para que se conseguisse
produzir uma interpretação do pensamento de Skinner que é crítica, no sentido de não ser mera
apresentação de suas idéias, e que se articula com um conjunto contemporâneo de reflexões sobre a
problemática do conhecimento. A análise também foi significativamente enriquecida pela interlocução
privilegiada da Profa. Tereza Sério. Ela dificilmente concordará com muitas das afirmações aqui contidas;
mas suas ponderações foram fundamentais para que se percebesse a extensão em que da complexidade do
pensamento skinneriano é possível derivar, não uma arrogância cientificista, infundada e contraditória, mas
uma atitude crítica da auto-imagem e das práticas humanas contemporâneas.
INTRODUÇÃO
O objetivo desta Tese, como indicado pelo título, é discutir as relações que se podem
estabelecer entre a psicologia behaviorista radical de B. F. Skinner e as perspectivas representacionista e
pragmatista de reflexão sobre o problema do conhecimento. O representacionismo será abordado enquanto
a afirmação da superioridade e isenção do saber científico por seu (reivindicado) caráter de representação
da realidade. O pragmatismo será tratado enquanto um projeto crítico das filosofias representacionistas. A
divergência entre as duas posições, segundo Rorty (1982), um pragmatista contemporâneo,
... é entre aqueles que pensam que a nossa cultura, ou o nosso propósito, ou nossas
intuições, não podem se sustentar a não ser através da conversação [pragmatistas], e
pessoas que ainda tem a esperança de alcançar outros tipos de sustentação
[representacionistas] (p.167).
comportamento, pouca ou nenhuma atenção poderia ser dada a eventos assumidos como privados2. Quer
dizer, Skinner estaria introduzindo a privacidade em sua filosofia behaviorista radical, ao mesmo tempo em
que a estaria excluindo (por compromissos empiristas ou pragmáticos) de sua ciência do comportamento.
Colocado o problema nestes termos, o princípio pragmático da ciência do comportamento poderia ser
considerado como determinante do conflito. Mostrou-se justificado, então, investigar, de uma forma mais
sistemática, as relações realmente existentes entre behaviorismo radical e pragmatismo.
Este problema original passou por várias reformulações, na medida em que se começou a
examinar mais detidamente as idéias pragmatistas. Embora usualmente pensado em termos de um interesse
científico (ou cientificista) na previsão e no controle de fenômenos, o pragmatismo é, no mínimo, algo
mais do que isso - ele é, sobretudo, uma postura filosófica particular com respeito às intenções humanas de
conhecer a realidade. Nesta direção, o pragmatismo intervém no debate epistemológico contemporâneo
sobre a pertinência de uma filosofia do conhecimento, de uma disciplina que estabeleça fronteiras entre o
saber legítimo e os demais conjuntos de crenças ou juízos humanos sobre a natureza ou a realidade.
Há várias maneiras de se abordar este atual debate no campo da filosofia. Rorty (1988)
caracteriza-o em termos de um confronto entre epistemologia e pragmatismo, considerando a primeira
como a tradição filosófica de tentar fundamentar o conhecimento verdadeiro e constituir-se como instância
de discernimento entre o real e o ilusório e o segundo como a crítica à possibilidade de existência de tal
fórum, neutro e capaz de julgar os diversos conjuntos de proposições humanas. A epistemologia é
abordada por Rorty (1982, 1988 e 1990) enquanto uma teoria geral da representação. Fica claro que o
termo "epistemologia" é utilizado não no sentido de uma reflexão qualquer sobre o conhecimento (no que
se aplicaria ao próprio pragmatismo), mas particularmente em referência a uma tradição filosófica que
considera o processo de produção de conhecimento como a construção de imagens capazes de representar
uma realidade que existe antes e independente do sujeito cognoscente. Sobre esta perspectiva
epistemológica, afirma Rorty (1988) que:
Conhecer é representar cuidadosamente o que é exterior à mente; portanto, compreender
a possibilidade e natureza do conhecimento é compreender o modo pelo qual a mente se
torna apta a construir tais representações. A preocupação central da Filosofia é ser uma
do conhecimento3. Alguns dos problemas centrais neste debate podem ser expressos pelos conceitos de
"realidade", "verdade", "necessidade" e "universalidade". Isto é, o cerne da discussão está na
(im)possibilidade de existência de um conhecimento não circunstancial, não contingente, capaz de
apreender uma natureza própria dos fenômenos. Bernstein (1983) resume as duas perspectivas da seguinte
forma:
Por "objetivismo" eu quero dizer a convicção básica de que há ou deve haver alguma
matriz ou sistema permanente, a-histórico, ao qual podemos, em última instância apelar
para determinar a natureza da racionalidade, do conhecimento, da verdade, da realidade,
da bondade ou da correção. Um objetivista reivindica que há ou deve haver uma tal
matriz e que a tarefa básica de um filósofo é descobrir qual ela é e sustentar a sua
reivindicação de ter descoberto esta matriz com as razões mais fortes possíveis. O
objetivismo está estreitamente relacionado com o fundacionalismo e com a busca por um
ponto Arquimediano4. O objetivista sustenta que, a menos que possamos fundamentar a
4. Expressão usada por Descartes para indicar a crença na existência de uma primeira
certeza, segura e inquestionável, a partir da qual se poderia chegar ao conhecimento
sobre os diversos fenômenos. Argumenta Descartes (1641/1979a):
filosofia, o conhecimento ou a linguagem de maneira rigorosa, não podemos evitar o
ceticismo radical.
O relativista não só nega as reivindicações positivas do objetivista como vai mais longe.
Em sua forma mais forte, o relativismo é a convicção básica de que, quando nos
voltamos para um exame daqueles conceitos que os filósofos têm assumido como os mais
fundamentais - seja o conceito de racionalidade, verdade, realidade, certo, bom, ou
normas - somos forçados a reconhecer que, numa análise final, todos estes conceitos
devem ser entendidos como relativos a um esquema conceitual, sistema teórico,
paradigma, forma de vida, sociedade ou cultura específicos (p. 8).
O presente estudo foi pautado por um conjunto de decisões que circunscrevem seus
limites e incidem, portanto, sobre seu resultado final. Tais decisões caracterizam-se como metodológicas,
na medida em que esclarecem, de alguma forma, o caminho percorrido na realização da pesquisa; elas
19895. Diante dos dois conjuntos de referências, dois critérios foram adotados para selecionar as leituras:
primeiro, foram selecionados apenas textos teóricos (de um lado, pela impossibilidade de ler, em curto
período, todas as obras e, de outro, pela suposição de que as informações buscadas estariam mais
provavelmente naqueles textos); segundo, dentre os textos teóricos, foram excluídos aqueles que não
tratavam diretamente dos problemas de interesse para esta pesquisa (por exemplo, textos sobre outros
autores).
Como o volume de leituras ainda era bastante elevado, considerando-se que muitas obras
constituiam-se de livros nos quais Skinner tratava de um conjunto variado de problemas, decidiu-se
realizar uma leitura preliminar com o único intuito de identificar os textos (ou trechos de obras) em que as
questões relevantes para esta pesquisa eram abordadas. Identificadas estas obras (que não serão aqui
listadas porque aparecem citadas nos capítulos seguintes), passou-se a uma leitura mais cuidadosa das
mesmas. Vale dizer que diversos textos precisaram ser lidos mais de uma vez, na medida em que as
hipóteses com as quais se trabalhava iam sendo redefinidas.
Intercalando com a leitura dos textos de Skinner, foram realizadas as leituras sobre
pragmatismo e representacionismo. Pela própria natureza do trabalho, como já assinalado, fazia-se
necessário passar constantemente de um conjunto de leituras a outro, até chegar-se a uma proposta de
análise que permitisse dar conta dos aspectos mais importantes da posição epistemológica de Skinner. Ao
final, elaborou-se uma matriz de análise (apresentada no Capítulo 3) e os conceitos de funcionalidade e
intersubjetividade (introduzidos no Capítulo 4) como pertinentes para a organização das informações
oriundas dos textos de Skinner. A partir destes elementos (ou categorias), passou-se à redação da Tese.
Deve-se acrescentar que ficou evidenciado que os recortes efetuados mostravam-se pertinentes para a
discussão de Skinner à luz da problemática representacionismo-pragmatismo, mas não eram capazes de dar
conta de todos os aspectos de suas formulações sobre os temas conhecimento e ciência. Esta limitação, por
outro lado, precisou ser acatada, sob pena de estender o trabalho além do razoável. Apenas não se abdicou
de discutir a posição de Skinner diante da questão da privacidade, por duas razões: primeiro, porque este
5. No Anexo 1, apresenta-se uma lista das referências obtidas através deste levantamento.
era o problema original com o qual se começou a trabalhar e pelo qual se tem um interesse particular em
razão de sua importância para a disciplina psicológica; e, segundo, porque este é claramente um tema que
permeia inúmeras discussões acerca do problema do conhecimento, e constitui-se numa via capaz de
evidenciar as possibilidades e as limitações do sistema teórico skinneriano.
O processo de leitura e de construção de referências conceituais para a análise do
pensamento de Skinner foi orientado, em diferentes etapas, por diferentes conjuntos de hipóteses. Ao
iniciar o estudo, considerava-se o pragmatismo como identificado com o interesse no controle da natureza,
o behaviorismo radical como pragmatista por seu interesse na previsão e controle do comportamento e o
pragmatismo skinneriano como a fonte dos problemas que emergem quando se trata de lidar com os
eventos privados. Em uma etapa posterior, quando se começou a abordar o pragmatismo enquanto projeto
crítico do representacionismo, considerou-se a possibilidade de o behaviorismo radical estar mais próximo
de uma doutrina representacionista, que estaria na base de sua suspeita sobre a validade dos relatos de
eventos privados. A partir de uma primeira leitura dos textos de Skinner, porém, observou-se que havia,
ali, uma noção de funcionalidade do conhecimento muito próxima daquela dos pragmatistas do início do
século, embora não se confundisse com o pragmatismo contemporâneo de Rorty. De qualquer modo, não
parecia razoável colocá-lo no campo do representacionismo. Dada a aparente ambiguidade da posição de
Skinner (uma suspeita que se fortalecia com a leitura das análises de outros autores), partiu-se para um
exame mais sistemático do pragmatismo e do representacionismo. Disso resultou uma diferenciação entre o
pragmatismo do início deste século e o pragmatismo contemporâneo; e, igualmente, uma diferenciação
entre o representacionismo cartesiano e o representacionismo contemporâneo. Passou-se, então a trabalhar
com a hipótese de que Skinner conjugava elementos de um determinado tipo de pragmatismo (ao qual se
associava sua noção de verdade) com elementos de uma dada versão de representacionismo (com a qual se
articulava sua defesa de um dado modelo de ciência). Ao analisar os textos de Skinner segundo esta
hipótese (cujas particularidades serão apresentadas nos capítulos seguintes), observou-se que a relação
entre princípios pragmatistas e representacionistas só se tornava possível no behaviorismo radical a partir
de uma contradição lógica; uma contradição que, aliás, podia ser asseverada no campo da análise das
relações entre pragmatismo e representacionismo, mesmo sem referência ao behaviorismo skinneriano. Por
outro lado, passou-se a considerar a manifestação desta contradição no pensamento de Skinner como
assentada em dois elementos: uma intenção de justificar antecipadamente seu programa de pesquisas e uma
versão particular e naturalizada do conhecimento científico. Esta interpretação foi se mostrando consistente
à exceção de dois problemas particulares, que mereciam consideração e que apontavam em direções
opostas: de um lado, dos elementos pragmatistas da visão skinneriana de conhecimento mostrou-se
possível derivar uma crítica a qualquer versão de representacionismo, o que acaba resultando na
desqualificação de certas reivindicações de Skinner; de outro, quando se trata da questão da privacidade,
mostrou-se possível interpretar a posição de Skinner como de oscilação entre a adoção de uma postura
inteiramente pragmatista, e o abandono de qualquer componente pragmatista associado à admissão de uma
versão inteiramente representacionista de conhecimento (circunstância em que os problemas relativos ao
estudo da privacidade aparecem, e o que significa exatamente o oposto da hipótese com a qual se iniciou o
trabalho).
Ao longo da realização deste estudo, as análises preliminares do pensamento skinneriano
foram deliberadamente tornadas públicas, através da apresentação de trabalhos em congressos e da
submissão de artigos para publicação, com o intuito de avaliar em que medida as hipóteses com as quais se
vinha trabalhando podiam ser consistentemente sustentadas. Este procedimento implicou uma demora
maior na conclusão desta Tese, mas propiciou, em certa medida, o rompimento do isolamento característico
da preparação de um trabalho teórico e resultou numa interlocução valiosa. As críticas e as sugestões
recebidas foram fundamentais para que se chegasse às hipóteses que orientaram a análise final.
PARTE I
REPRESENTACIONISMO E PRAGMATISMO
CAPÍTULO 1
Uma reflexão sobre a linguagem elabora-se em duas grandes direções: por um lado, sobre
o lógos como instrumento das relações sociais; por outro, sobre o lógos como meio de
reconhecimento do real. A Retórica e a Sofística exploram a primeira via forjando
técnicas de persuasão, desenvolvendo a análise gramatical e estilística do novo
instrumento. A outra via é o objeto de uma parte da reflexão filosófica: a palavra é o
real, todo o real? Tal problema se faz urgente, na medida em que o desenvolvimento
do pensamento matemático faz nascer a idéia de que o real é igualmente expresso por
números (p.55).
Os problemas demarcados pela filosofia platônica serão especialmente
influentes no pensamento ocidental que se desenvolve a partir do século XVII em
resposta à crise da filosofia cristã medieval, que culminou, entre outros, com o ceticismo
e com o movimento renascentista7. Delineam-se, no século XVII, duas vertentes
filosóficas que, apesar de divergentes, localizam-se, ambas, no campo do pensamento
representacionista, renovando-o e consolidando-o: o racionalismo e o empirismo.
... havendo já relatado como muitas sensações, que são reputadas qualidades ínsitas dos
sujeitos externos, não possuem outra existência a não ser em nós, não sendo outra coisa
senão nome fora de nós; afirmo que, [fui] levado a acreditar que o calor seja um
fenômeno deste tipo, e que aquelas matérias que produzem e fazem perceber o calor em
nós, matérias que nós chamamos com o nome geral de fogo, sejam uma multidão de
pequeníssimos corpos, com determinadas figuras, movimentadas com velocidade
enorme. (...) Mas que exista, além de figura, número, movimento, penetração e junção,
outra qualidade no fogo, e que esta qualidade seja o calor, eu não acredito; considero que
o calor seja uma característica tão nossa que, deixado de lado o corpo animado e
sensitivo, o calor torna-se simplesmente um vocábulo (Galilei, 1623/19878, p.121).
Descartes não chega a fazer uma distinção entre aparências e essências
nos mesmos termos de Galileu. Todavia, acredita que o conhecimento alcançado através
de um correto uso da razão será, irremediavelmente, um conhecimento verdadeiro,
necessário e universal. A noção de que o acesso à verdade se dá por uma forma de
intuição racional confere à doutrina cartesiana um caráter dedutivista e uma implicação
inatista para a explicação das idéias verdadeiras. A veracidade destas idéias afirma-se,
porém, por suas qualidades de clareza e distinção. Idéias claras e distintas são aquelas
que por seus atributos impõem-se de tal forma ao intelecto que os homens não podem
deixar de reconhecê-las como verdadeiras. Os fundamentos da física cartesiana, por
exemplo, são "... tão evidentes que basta entendê-los para os aceitar ..." (Descartes,
1637/1979b, p.67). Por outro lado, a certeza das idéias claras e distintas, de sua
verdadeira correspondência com a realidade, apoia-se na suposição de que Deus as
tornou acessíveis ao homem, o que não teria feito se não fossem verdadeiras.
8. A primeira data refere-se ao ano da publicação original do texto; a segunda data refere-
se ao ano da edição consultada. Este mesmo critério será utilizado em citações
posteriores. Quando apenas uma data for apresentada, trata-se da data da edição
consultada e indica que ou o texto é recente, ou a edição consultada foi a original, ou se
desconhece a data de publicação original do texto. Na seção de Referências
Bibliográficas, os textos terão entrada pela data da edição consultada.
... que as coisas que concebemos mui clara e mui distintamente são todas verdadeiras,
não é certo senão porque Deus é ou existe, e é um ser perfeito, e porque tudo o que existe
em nós vem dele. Donde se segue que as nossas idéias ou noções, sendo coisas reais, e
provenientes de Deus em tudo em que são claras e distintas, só podem por isso ser
verdadeiras (Descartes, 1637/1979b, p.50).
Embora se encontre em Descartes a noção de correspondência entre idéias
verdadeiras e realidade, é em Galileu que este problema assume, mais claramente, uma
dimensão lingüística. As leis da natureza, universais e necessárias, só podem ser
apreendidas através de uma linguagem cujos caracteres guardem correspondência com a
natureza dos fenômenos investigados. Esta linguagem é a matemática, a única capaz de
reproduzir a ordem natural e última do universo.
A filosofia encontra-se escrita neste grande livro que continuamente se abre perante
nossos olhos (isto é, o universo), que não se pode compreender antes de entender a língua
e conhecer os caracteres com os quais está escrito. Ele está escrito em língua matemática,
os caracteres são triângulos, circunferências e outras figuras geométricas, sem cujos
meios é impossível entender humanamente as palavras; sem eles, nós vagamos perdidos
dentro de um obscuro labirinto (Galilei, 1623/1987, p.21).
Em Descartes, tal como em Platão, o exercício do pensamento racional,
capaz de levar ao conhecimento verdadeiro, é conduzido por uma instância íntima e
privada, a alma. Se ainda não se tem, aqui, a idéia de mente plenamente elaborada, já se
coloca, de qualquer maneira, em uma substância (no caso, imaterial) interior do homem a
fonte do conhecimento. É acreditando nesta faculdade íntima e pessoal que Descartes
julga ser possível reconstruir, sozinho, o pensamento filosófico. Por outro lado, tanto
Descartes quanto Galileu configuram elementos subjetivos como obstáculos ao
conhecimento seguro. Em Descartes, na forma de uma alusão às paixões e aos
preconceitos, entraves ao exercício pleno da razão. E em Galileu, na caracterização das
qualidades secundárias dos fenômenos, aquelas que não podem se confundir com as
qualidades (primárias) do fenômeno em si, mas são apenas nomes para designar as
vivências dos próprios indivíduos (exemplo do calor).
Contemporâneo de Descartes, mas enfatizando a experiência como fonte
do conhecimento seguro, Bacon foi um dos iniciadores do empirismo. Seu método, tal
como o de Descartes, também recomenda uma espécie de purificação do intelecto. Sua
doutrina dos "ídolos ou falsas noções" remete ao mesmo problema dos obstáculos ao
conhecimento seguro. Em Bacon, já se observa a noção de mente como responsável pelo
conhecimento verdadeiro, mas desde que dirigida pela experiência ordenada e
sistemática.
A verdadeira causa e raiz de todos os males que afetam as ciências é uma única: enquanto
admiramos e exaltamos de modo falso os poderes da mente humana, não lhe buscamos
auxílios adequados" (Bacon, 1620/1979, p.14, af.IX)9.
9. No caso das referências a este texto de Bacon, optou-se por incluir o aforisma no qual
o trecho citado aparece.
Ao dedutivismo racionalista, Bacon opõe métodos indutivos de
investigação. Ao que denomina de "antecipações da mente", opõe uma proposta de
"interpretação da natureza". O conhecimento verdadeiro, capaz de apreender a realidade
dos fenômenos, é aquele elaborado a partir da observação dos fatos, e não como
direcionador desta observação. Isto é, o conhecimento deve ser interpretação (ou
sistematização) de fatos já observados, e não suposta10 antecipação (lógica, filosófica ou
teológica) do que deve ocorrer na natureza. "A interpretação é, com efeito, a obra
verdadeira e natural da mente, depois de liberta de todos os obstáculos" (Bacon,
1620/1979, p.89, af. CXXX)11,12.
A experiência coordenada e sistemática é o que, para Bacon, pode
conduzir ao conhecimento seguro. Sua doutrina dos Ídolos exige, contudo, que a
experiência pertinente seja precedida de uma purificação intelectual. Os Ídolos ou falsas
noções a serem eliminados, como primeiro passo do método baconiano, são de quatro
espécies: Ídolos da Tribo, relativos à natureza humana (como distorções de percepção);
Ídolos da Caverna, relativos aos indivíduos particulares (como história de vida pessoal);
Ídolos do Foro, relativos à convivência social; e Ídolos do Teatro, relativos a conjuntos
de crenças que vêm a se impor ao intelecto humano (como doutrinas filosóficas ou
pseudo-científicas). Convém observar que os Ídolos do Foro são caracterizados como "...
10. As "antecipações da mente", segundo Bacon (1620/1979), não têm origem na própria
mente, mas em experiências precárias e não sistematizadas, das quais o cientista nem
sempre se dá conta. A idéia de que a mente pode, por si só, chegar ao conhecimento é,
portanto, equivocada.
11. É possível traçar certa identidade entre esta oposição de Bacon às teorias
antecipatórias e a crítica skinneriana à teorização. O sentido em que Skinner rejeita
teorias parece ser este mesmo, isto é, teorias enquanto explicações antecipadas
(anteriores à observação e descrição) sobre a natureza dos fenômenos.
12. Observe-se que Bacon atribui algum papel à atividade intelectual na produção do
conhecimento verdadeiro. Ele não acredita, portanto, que a experiência seja o bastante
(ou via suficiente) para construir tal conhecimento. Declara Bacon (1620/1979) sobre a
conciliação entre experiência e razão:
Os que se dedicaram às ciências foram ou empíricos ou
dogmáticos. Os empíricos, à maneira das formigas, acumulam e
usam as provisões; os racionalistas, à maneira das aranhas, de si
mesmos extraem o que lhes serve para a teia. A abelha representa a
posição intermediária: recolhe a matéria prima das flores do jardim
e do campo e com seus próprios recursos a transforma e digere.
Não é diferente o labor da verdadeira filosofia, que se não serve
unicamente das forças da mente, nem tampouco se limita ao
material fornecido pela história natural ou pelas artes mecânicas,
conservado intato na memória. Mas ele deve ser modificado e
elaborado pelo intelecto. Por isso muito se deve esperar da aliança
estreita e sólida (ainda não levada a cabo) entre essas duas
faculdades: a experimental e a racional (p.63).
os mais perturbadores: insinuam-se ao intelecto graças ao pacto de palavras e nomes"
(Bacon, 1620/1979, p.28, af.LIX).
Com a referência aos Ídolos dos Foro, Bacon identifica na linguagem
alguns dos principais obstáculos ao conhecimento da natureza. É importante notar que
tais obstáculos são abordados por Bacon na perspectiva da necessária correspondência
entre palavras e objetos/fenômenos do mundo. Afirma ele:
Os Ídolos que se impõem ao intelecto através das palavras são de duas espécies. Ou são
nomes de coisas que não existem ... ou são nomes de coisas que existem, mas confusos e
mal determinados e abstraídos das coisas de forma temerária e inadequada (Bacon,
1620/1979, p.29).
Isto é, os Ídolos do Foro manifestam-se no uso da linguagem - ou através
do uso de palavras que nada representam (para as quais não há "referentes" no mundo),
ou através do uso de palavras que representam algo (para as quais há algum "referente"
no mundo) mas apenas de forma imprecisa. A ciência exige, assim, também na
perspectiva de Bacon, uma linguagem que guarde correspondência precisa com o mundo
dos fenômenos (neste caso, pensado em termos de experiências sensíveis).
Em Galileu, Descartes e Bacon institui-se, claramente, a noção de método,
enquanto via apropriada para o discernimento entre o real e o ilusório, entre o verdadeiro
e o falso. Esta noção traz consigo a idéia de objetividade do conhecimento, baseada numa
espécie de separação entre sujeito cognoscente e objeto/realidade cognoscível. Obedecer
ao método (capaz de levar ao conhecimento verdadeiro e objetivo) é exercitar
continuamente uma auto-disciplina, um auto-controle, com o intuito de eliminar o que é
pessoal (as experiências cotidianas, as paixões e ilusões, ou os Ídolos) da investigação
científica, deixando que esta se desenvolva segundo princípios (racionais ou empíricos)
que conduzem às leis dos próprios fenômenos. As idéias de objetividade e de método
aparecem, assim, estreitamente relacionadas, tendo como princípio o controle das
inclinações pessoais do cientista (sejam estas devidas à história de vida pessoal ou à
própria cultura com a qual o cientista convive).
Ainda no campo do pensamento empirista, Locke, Berkeley e Hume
podem ser destacados como pensadores que exerceram influência sigificativa na
reflexão sobre os fundamentos do conhecimento. Apesar de enfatizarem a experiência,
estes empiristas consolidam a idéia de mente como responsável pela produção do
conhecimento e discutem principalmente os processos envolvidos na representação
mental do mundo. Suas proposições, por outro lado, significarão, principalmente nos
casos de Berkeley e Hume, uma desqualificação bastante significativa da aspiração
representacionista de chegar a asserções que retratem uma natureza independente dos
sujeitos cognoscentes, dotadas, portanto, de valor diferenciado. Neste sentido, suas
proposições serão sementes para críticas posteriores dos supostos representacionistas.
Locke deu uma das principais contribuições à noção de processos
mentais (ou de "mente como espelho da natureza"). Para ele, conhecer é ter idéias
(imagens ou percepções mentais). A fonte de todas as idéias, porém, está nas
experiências dos indivíduos. As experiências que dão origem às idéias podem ser de
dois tipos: experiências sensíveis (que dão origem a "idéias de sensação", como
"quente" ou "branco") e reflexão - percepções de operações da própria mente (que
dão origem a "idéias de reflexão", como "pensar" ou "duvidar"). Isto é, as
experiências podem ser de um tipo "externo" (no qual a mente é provida com idéias
relativas a objetos externos) ou de um tipo interno (no qual a mente é provida com
idéias relativas a operações subjetivas ou internas). As experiências (externas e
internas) não são, porém, o único requisito para que se tenha idéias. É necessário que a
mente perceba tais experiências; é ao percebê-las que a mente elabora idéias
correspondentes:
Não existe percepção quando quaisquer alterações ocorridas em nosso corpo não
alcançam a mente ou quando quaisquer impressões causadas nas partes externas não
são notadas pelas internas. O fogo pode queimar nossos corpos sem outros efeitos
do que faz uma acha de lenha, a menos que o movimento se transmita ao cérebro,
produzindo na mente a idéia de dor ou o sentimento de calor, que é realmente
percepção (Locke, 1690/1978, p.175).
As idéias podem, também, ser simples ou complexas. Idéias simples
são aquelas correspondentes a sensações particulares; e idéias complexas são aquelas
formadas voluntariamente pela mente humana através da reunião de idéias simples.
Esta distinção coloca em evidência dois pontos importantes da filosofia de Locke:
primeiro, que o material básico da atividade mental envolvida no conhecimento é
constituído de percepções particulares; e, segundo, que o conhecimento é construído
através de uma operação da mente sobre aquele material. Afirma Locke (1690/1978):
13. É interessante observar que Locke atribui uma dimensão arbitrária e convencional ao
uso da linguagem. As palavras devem ser usadas em conexão clara com idéias
particulares apenas como requisito para que a fala seja funcional.
... o uso comum, por um tácito acordo, atribui certos sons a certas
idéias em todas as linguagens, limitando assim o significado deste
som que, a menos que uma pessoa o aplique à mesma idéia, ele
não fala corretamente; e deixe-me acrescentar isto: a menos que as
palavras de uma pessoa estimulem as mesmas idéias em quem as
... alguns [homens], não apenas crianças mas também adultos, falam várias palavras
de maneira não diversa da dos papagaios apenas porque as aprenderam e foram
acostumados a esses sons. Mas, na medida em que as palavras são de uso e significado,
na medida em que há uma conexão constante entre o som e a idéia, e uma designação de
que um significa a outra, sem isto a aplicação delas nada mais seria que ruído sem
significado (Locke, 1690/1978, p.225).
Os dois tipos de concordância, citados acima, constituem, também, os
critérios para atribuição de veracidade às proposições humanas. Locke estabelece,
então, uma distinção entre verdade verbal e verdade real. A verdade verbal é aquela
na qual as palavras respeitam o acordo/desacordo entre idéias. A verdade real envolve a
verdade verbal, mas acrescenta o requisito de que as idéias tenham uma existência na
natureza. Isto é, uma asserção dotada de verdade real é aquela que, além de ser
expressa por palavras ou sentenças que respeitam o acordo/desacordo entre idéias,
faz uso apenas de idéias que correspondem a objetos/fenômenos do mundo.
Por último, se Locke não discorre sobre a tradicional distinção
aparência/essência, ele reafirma o conhecimento verdadeiro como aquele que, mesmo
indiretamente (mediado pelas idéias), representa as coisas do mundo. Por outro
lado, este conhecimento verdadeiro representa as coisas do mundo tal como
percebidas pelo sujeito que conhece, o que já implica certo distanciamento do
empirismo da noção de verdade última ou absoluta.
Este distanciamento assume uma formulação radical com Berkeley,
para quem tudo o que se pode afirmar existir são as sensações. Isto é, para Berkeley,
se todas as idéias são dadas pelos sentidos, não se pode afirmar a existência do mundo
material, mas apenas das próprias percepções dos indivíduos. Todo conhecimento
representaria, então, apenas estas percepções e não o mundo propriamente dito. Daí a
máxima de Berkeley de que "ser é ser precebido". As qualidades primárias, próprias dos
fenômenos na concepção galileana, não passam de suposição cuja comprovação é
impossível. Afirma Berkeley (1710/1980):
... considerando os argumentos aduzidos para provar que sabores e cores só existem
no espírito, achar-se-á que provam o mesmo da extensão, figura e movimento -
embora deva reconhecer-se que este método de argumentar não demonstra tanto a
inexistência de extensão ou cor em um objeto externo quanto o fato de que nós não
conhecemos pelos sentidos a verdadeira extensão e a cor do objeto. Mas os argumentos
ulteriores mostram ser impossível existir a cor ou extensão ou qualquer qualidade
sensível em um sujeito não pensante, fora do espírito, ou que na verdade algo exista
como objeto exterior (p.16).
Se o mundo material não pode ser provado como existente, todo
conhecimento é expressão das sensações dos próprios indivíduos14. Isso implica
... eles contém apenas as condições de uma experiência possível em geral, enquanto
subordinada a leis a priori. Não afirmo que as coisas em si mesmas tenham uma
grandeza ... pois isto ninguém pode provar ... Portanto, a limitação essencial dos
conceitos nestes princípios é a de que todas as coisas estão sujeitas necessariamente e
a priori, como objetos da experiência, às condições mencionadas (p.45).
Havendo afirmado que a forma como os fenômenos são experienciados
é regulada por princípios apriorísticos, deve-se recuperar a segunda distinção
importante estabelecida por Kant, qual seja, a diferença entre sensibilidade e
entendimento. Afirma Kant (1781/1980b) que a sensibilidade refere-se à "capacidade
(receptividade) de obter representações mediante o modo como somos afetados por
objetos" (p.39). O conhecimento, entretanto, envolve mais do que a sensibilidade; ele
implica, também, o entendimento, aquilo que dá forma e regularidade ao material
diverso das sensações.
... pela sensibilidade nos são dados objetos e apenas ela nos fornece intuições; pelo
entendimento, ao invés, os objetos são pensados e dele se originam conceitos (Kant,
1781/1980b, p.39).
Após distinguir a sensibilidade do entendimento, Kant discute as
condições apriorísticas presentes em cada uma destas faculdades humanas. Do ponto
de vista da sensibilidade, Kant fala em duas formas apriorísticas: espaço e tempo.
Espaço e tempo não representam, assim, propriedades das coisas em si, mas condições
subjetivas inatas que antecedem e regulam toda experiência sensível; daí Kant falar
em termos de intuição sensível. Quanto à segunda faculdade, Kant refere-se a
categorias apriorísticas do entendimento, dentre as quais se identifica o princípio de
causalidade. Isto é, o conceito de causa e efeito de fato não se fundamenta na
experiência (como pensava Hume), mas existe aprioristicamente e regula o
entendimento dos fenômenos16.
16. Kant estabelece, também, uma distinção entre "percepção" e "experiência" e seus
correspondentes "juízos de percepção" e "juízos de experiência". Os juízos de
experiência propriamente ditos são aqueles nos quais as intuições sensíveis estão
organizadas segundo conceitos universais do entendimento puro, o que lhes confere
objetividade. Os juízos de percepção, ao contrário, limitam-se a organizar representações
segundo conexões lógicas do próprio sujeito, num dado momento (por exemplo, o juízo
"esta pedra me parece pesada"), o que lhes confere apenas valor subjetivo. Observa Kant
(1783/1980a):
Ao falar de "categorias apriorísticas do entendimento", Kant aponta
para as condições em que é possível à razão humana chegar ao conhecimento
universalmente válido. Embora todo conhecimento possível esteja limitado ao campo da
experiência, a objetividade é conferida a um conhecimento a partir de uma atuação da
razão humana, que subsume toda intuição sensível a juízos antecipadamente
existentes no entendimento17.
Observe-se que a investigação de Kant transfere do mundo para o
próprio sujeito a reflexão sobre a objetividade do conhecimento. Conhecer é
construir representações (a partir da intuição sensível) e submetê-las a princípios
apriorísticos (do entendimento) que lhes conferem universalidade e objetividade.
Investigar as condições do conhecimento universalmente válido, então, é investigar
condições subjetivas (no sentido de internas) dos sujeitos cognoscentes. Isto é, tais
condições são condições do próprio sujeito e existem aprioristicamente a toda
experiência. Por outro lado, se as condições de objetividade são condições do próprio
sujeito, disso resulta que as chamadas "leis da natureza", tal como pensava Hume,
não expressam relações dos fenômenos em si mesmos; elas remetem a condições do
sujeito cognoscente, que se impõem a qualquer experiência possível.
... que a legislação suprema da natureza deve estar em nós mesmos, isto é, em nosso
entendimento, e que não devemos buscar as leis gerais da natureza na própria natureza
por meio da experiência, mas, ao contrário, devemos derivar a natureza, em sua
regularidade universal, unicamente das condições de possibilidade da experiência
17. Sobre estes juízos, deve-se citar as distinções entre juízos a priori e a posteriori e
entre analíticos e sintéticos. Juízos a priori são juízos independentes de qualquer
experiência; existem aprioristicamente e têm valor necessário e universal. Juízos a
posteriori são juízos de instâncias de experiências e têm apenas valor contingente (são
juízos particulares, como "este livro é azul", ou gerais mas logicamente dependentes de
instâncias de experiência, como "um corpo desprovido de suporte cai" - cf Korner, 1987,
p.20). Um juízo analítico é aquele que não acrescenta conhecimento, mas apenas
esclarece o sentido das palavras, apoiando-se na lógica (por exemplo, "um dia chuvoso é
um dia úmido"). Juízos analíticos, assim, são sempre juízos a priori. Juízos sintéticos, ao
contrário de juízos analíticos, acrescentam conhecimento. Até aqui, pode-se afirmar que
todo juízo a posteriori é necessáriamente sintético, não-analítico. Os juízos sintéticos,
entretanto, e segundo Kant, podem também ser juízos a priori. Exemplos de juízos
sintéticos a priori são os juízos matemáticos como "2+2=4" ou princípios como "toda
mudança tem uma causa". A investigação dos juízos sintéticos a priori constitui, assim, o
centro da filosofia kantiana. Como afirma Korner (1987) "a filosofia crítica é, em
essência, um estudo da natureza e função dos juízos sintéticos a priori" (p.22).
inerentes à nossa sensibilidade e ao nosso entendimento. (...) O entendimento não
cria suas leis (a priori) a partir da natureza; mas as prescreve à mesma (Kant,
1783/1980a, p.53).
Ao transferir para o próprio sujeito as condições do conhecimento
válido, Kant, por um lado, reafirma a possibilidade do conhecimento objetivo. Por
outro, entretanto, constrói um conceito de objetividade bastante diverso daquele dos
filósofos que o antecederam. Não se trata mais de asseverar uma independência
entre objeto cognoscível e sujeito cognoscente; o conhecimento objetivo não é mais
aquele que reproduz a realidade tal como ela é em si mesma, depurada de
propriedades que são próprias dos sujeitos. Ao contrário, conhecer as coisas tal como
elas são em si mesmas é, para Kant, impossível. Mas o objetivismo kantiano traz em
comum com outras vertentes representacionistas a idéia de que é possível identificar
condições para discernimento entre crenças contingentes e conhecimento universal e
objetivamente válido. É por isso que Bernstein (1983), ao falar de relativismo e
objetivismo não aborda o último do ponto de vista estrito da independência entre
sujeito e objeto. Para ele, mesmo sem aceitar tal independência, Kant é tão objetivista
quanto Descartes ou Locke.
20. Ao lançarem mão das proposições de Hume para argumentar em favor de suas teses,
entretanto, os positivistas lógicos necessitarão ignorar ou desqualificar a noção humeana
de crença, capaz de dissolver suas pretensões representacionistas. Esta tarefa será em
parte possibilitada pela diferenciação entre descoberta e justificação, através da qual os
chamados "fatos psicológicos" podem ser apartados do problema da fundamentação do
conhecimento. Sobre esta relação dos positivistas lógicos com a filosofia de Hume,
afirma Moura (1993):
... o neopositivista vai elogiar Hume enquanto crítico da noção
"metafísica" de causalidade, para logo depois recusar qualquer
valor à teoria da crença; ela representaria o momento em que a
análise filosófica se perde no "psicológico" ... o que está fora de
lugar em uma investigação filosófica. É o lado "ruim" [para os
neopositivistas] da filosofia de Hume ... (p.100).
Se um místico afirma ter vivências que se situam sobre ou para além de todos os
conceitos, não se pode contestá-lo, mas ele não pode falar sobre isso, pois falar
significa apreender em conceitos, reduzir a fatos ... cientificamente articuláveis (Hahn,
Neurath e Carnap, 1929/1986, p.11).
Ao desvelar os equívocos lingüísticos do discurso metafísico e ao
estabelecer como dizível apenas aquilo que remete a fatos verificáveis, os positivistas
lógicos revelam a influência do pensamento de Wittgenstein, tal como ele aparece na
obra Tractatus Logico-Philosophicus (Wittgenstein, 1921/1987). De um lado,
assumindo como tarefa da filosofia o esclarecimento das proposições - "o objetivo da
filosofia é a clarificação lógica dos pensamentos" (Wittgenstein, 1921/1987, p.62,
parag.4.112)21. De outro, assumindo uma teoria referencial do significado, segundo a
qual toda proposição dotada de sentido representa um estado de coisas verificável
empiricamente22. "A proposição mais simples, a proposição elementar, afirma
assertoricamente a existência de um estado de coisas" (Wittgenstein, 1921/1987,
p.71, parag.4.21). A proposição tem sentido em termos de que ela possui um valor de
verdade; ela afirma um estado de coisas que pode ser confirmado como falso ou
verdadeiro. Adiante, conclui Wittgenstein (1921/1987) que "acerca daquilo de que não
se pode falar, tem-se que ficar em silêncio" (p.142, parag.6.54).
A interpretação verificacionista das teses de Wittgenstein aproxima o
positivismo lógico do empirismo do século XVIII. O que distingue o positivismo lógico
do empirismo é sua ênfase nos aspectos lingüísticos e lógicos do conhecimento. Isto
é, para o positivismo lógico, investigar os fundamentos do conhecimento válido é
investigar, antes de tudo, as formas lógicas e as estruturas sintáticas subjacentes ao
discurso científico. Por outro lado, ao voltar-se para estes aspectos, o positivismo
lógico sustenta haver algum tipo de correspondência entre asserções lógicas e asserções
empíricas, ou entre as formas lógicas do discurso científico e sua possibilidade de
verificação empírica. As primeiras, quando decompostas em suas "proposições
elementares" corresponderiam a asserções empíricas, relativas a fatos particulares,
portanto verificáveis, atendendo a critérios intersubjetivos. Nesta linha de raciocínio,
o positivismo lógico, tende a afirmar uma versão fisicalista do conhecimento23. Este
22. Neste caso, trata-se de uma interpretação verificacionista das teses de Wittgenstein,
não necessariamente assumidas como tal por este autor.
24. Vale assinalar que os positivistas lógicos não pensam estas formas lógicas no sentido
kantiano de juízos sintéticos a priori.
A possibilidade de conhecimento não mais se baseia em que a
razão humana imprima sua forma ao material, mas em que o
material seja ordenado de um determinado modo. Nada se pode
saber de antemão sobre a espécie e o grau desta ordem. O mundo
poderia ser muito mais ou muito menos ordenado do que é, sem
que se perdesse a cognoscibilidade. Apenas a pesquisa da ciência
empírica, penetrando gradativamente, pode-nos ensinar em que
medida o mundo é regular (Hahn, Neurath e Carnap, 1929/1986,
p.15) .
como sua articulação com as dimensões lingüísticas do conhecimento mantém a idéia
de uma instância subjetiva envolvida na construção do conhecimento. Isso porque a
elaboração de uma proposição científica pode ser entendida em termos de uma
manipulação mental de conceitos (segundo certas formas lógicas), cujos significados
são pensados em termos de conteúdos conscientes. Este tipo de leitura das teses do
positivismo lógico aparece, especialmente, na interpretação que os chamados
behavioristas metodológicos farão dos princípios operacionistas, na qual predomina
uma concepção dualista de homem e mentalista da linguagem (cf Moore, 1981;
Stevens, 1935). Ao mesmo tempo, os behavioristas metodológicos eliminarão a vida
psíquica da psicologia científica, já que o psíquico ou mental não atende aos critérios
de verificação empírica e acordo intersubjetivo.
Dos princípios relativos ao pensamento representacionista enumerados
no início desta seção, o positivismo lógico afirma claramente (embora de modo
particular) apenas a relação entre linguagem e realidade, esta última pensada em
termos daquilo que constitui o objeto da investigação científica. Indiretamente, o
positivismo lógico preserva, também, como examinado acima, a idéia de mente como
instância na qual ocorrem fenômenos importantes relativos à construção do
conhecimento. Já não se identifica, contudo, uma afirmação da dicotomia aparência-
essência, tal como inaugurada por Platão e reafirmada, entre outros, por Galileu e
Descartes. Com efeito, a tradição representacionista tende a abandonar gradativamente
a pretensão de conhecer a realidade em si mesma (e para isso as críticas de Kant
foram de fundamental importância), mantendo intocável, basicamente, a idéia de que
há, como diz Rorty (1988) "representações privilegiadas". Nesta direção, o
representacionismo possibilita uma compatibilidade entre o abandono da dicotomia
aparência-essência e a legitimação de uma disciplina (lógica, filosófica ou
psicológica) que estabeleça parâmetros para distinção entre o conhecimento válido e as
ilusões ou crenças infundadas. Um autor contemporâneo cujas idéias são
especialmente representativas desta articulação é Popper.
Popper (1972/1980) aborda o que caracteriza algumas divergências entre
teses representacionistas e pragmatistas a partir de uma oposição entre a tradição
filosófica galileana e a crítica a ela dirigida pelos instrumentalistas (para quem os
juízos humanos não representam a realidade, mas apenas funcionam como
instrumentos para nela intervir). Para Popper, não há dúvidas de que as teorias
científicas são instrumentos para lidar-se com os fenômenos do mundo, mas reduzi-las
a isto constitui grande equívoco. O engano teria como ponto de partida a rejeição da
idéia de que conhecer é apreender a essência das coisas do mundo. Ao rejeitar esta
idéia, os instrumentalistas abandonam, também, a noção de que o empreendimento
científico busca teorias verdadeiras acerca do mundo. A rejeição do essencialismo não
implica, segundo Popper, abdicar da intenção de construir teorias verdadeiras. Para
desenvolver esta tese, Popper parte daquilo que entende por "filosofia galileana de
ciência".
A filosofia galileana é abordada por Popper (1972/1980) sob o ponto de
vista de três doutrinas que a constituem: primeiro, a aspiração científica de construção
de teorias verdadeiras sobre o mundo; segundo, a crença de que tais teorias podem
ser asseguradas como verdadeiras além de toda dúvida razoável; e, terceiro, a crença
de que tais teorias apreendem a essência dos fenômenos, qualidades estas que estão
ocultas por trás de suas aparências. Popper critica as duas últimas doutrinas. Com
respeito à segunda (qual seja, a crença de que as teorias científicas podem ser
sustentadas como verdadeiras além da dúvida razoável), afirma que toda teoria
permanece sempre uma hipótese, uma conjectura que nunca pode ser conclusivamente
sustentada como verdadeira. A despeito de todos os testes a que tenha submetido uma
teoria, um cientista nunca pode ter a certeza de que novos testes não a refutarão. A
terceira doutrina (a do essencialismo) é também considerada imprópria porque
remete, necessariamente, à ideia de "explicações últimas", o que não pode ser
estabelecido com respeito a nenhuma teoria. Isto é, se não é possível ter certeza de que
uma teoria não será refutada no futuro, também não cabe supor que ela seja a última
explicação possível, apreendendo, assim, a essência dos fenômenos. Popper abandona
então um dos pilares do pensamento representacionista, a distinção aparência-essência.
Mas o abandono do essencialismo não implica, para Popper, a rejeição da primeira
doutrina enumerada acima, ou seja, a de que as teorias científicas (mais do que
instrumentos) aspiram o caráter de descrições verdadeiras do mundo, diferenciando-se,
assim, de outros conjuntos de enunciados humanos.
Para dar conta daquela aspiração científica, Popper a associa a uma tese
(por ele apontada como não-galileana) que expressa o fundamento da crítica ao
essencialismo: a idéia de que o cientista nunca pode ter certeza sobre a veracidade de sua
teoria (mesmo que a isso aspire), mas pode ter razoável certeza sobre sua falsidade.
Assim, do ponto de vista da lógica popperiana, ao elaborar uma teoria, a atividade
do cientista está dirigida para uma descrição verdadeira do mundo. Tal descrição é então
submetida a um teste cujo resultado só será conclusivo se se tratar de um
falseamento. As teorias que subsistem aos testes são então concebidas como
"conjeturas genuínas", isto é,
... suposições altamente informativas acerca do mundo que, embora não sejam
verificáveis (isto é, embora não seja possível mostrar que são verdadeiras), podem ser
submetidas a severos testes críticos. Elas são tentativas sérias de descobrir a verdade. A
este respeito as hipóteses científicas são exatamente como a famosa conjetura de
Goldbach na teoria dos números. Goldbach pensava que ela poderia ser verdadeira; e
de fato pode perfeitamente ser verdadeira ainda que não saibamos, e que talvez
nunca possamos saber, se ela é verdadeira ou não (Popper, 1972/1980, p.146).
A investigação científica a partir da qual as teorias são testadas não é
dirigida para a confirmação de um dado estado de coisas. Na lógica popperiana,
testar uma teoria é submetê-la a "experimentos críticos", a partir dos quais pode-se ou
não falseá-la. Apenas o falseamento acrescenta alguma certeza sobre a realidade.
Quando, num experimento crítico, uma teoria não é falseada diz-se apenas que ela foi
corroborada (e não confirmada como verdadeira), o que significa afirmar que ela se
sustenta diante de uma avaliação crucial, na qual algumas predições nela contidas foram
testadas. Por outro lado, o falseamento implica uma afirmação sobre a realidade, na
medida em que se estabelece com razoável certeza que a realidade não corresponde a
determinada suposição sobre sua natureza. Se, de um lado, o falseamento revela
algo sobre a realidade, de outro, deve-se reconhecer que as teorias que inspiram
novos experimentos, ao incorporar os falseamentos anteriores, buscam descrições
verdadeiras sobre esta realidade.
Popper aceita a concepção segundo a qual o verdadeiro é o que
descreve o real (cf Popper, 1972/1980, pp.147-148). Mas a investigação de uma teoria
que se pretende verdadeira, quando resulta num falseamento, afirma algo sobre a
realidade. A concepção resultante é, então, em alguma medida, verdadeira. Os
falseamentos indicam, segundo Popper (1972/1980), "... os pontos em que tocamos a
realidade, por assim dizer" (p.148). Desse modo, uma teoria assumida como a melhor
(ou mais atual) descrição de um conjunto de fenômenos é aquela que tenta incorporar
todos os falseamentos já estabelecidos com respeito àqueles fenômenos. Desta
posição resulta, por um lado, que há graus de veracidade de uma teoria, ou graus de
correspondência com a realidade, e, de outro, que tais atributos dependem
necessariamente da testabilidade de uma teoria, da possibilidade de submetê-la a
experimentos cruciais. Relaciona-se assim, uma noção de verdade como
correspondência à realidade com a afirmação de uma lógica que reconhece o
conhecimento científico como aquele dirigido para a construção de representações
verdadeiras. Além disso, a verdade de que fala Popper incorpora, necessariamente,
uma forma de historicidade; não se trata mais de uma verdade última, mas sim de uma
verdade relativa ao estágio em que determinada investigação se encontra.
A crítica de Popper ao essencialismo e sua análise acerca da possibilidade
de estabelecer-se a veracidade de um enunciado podem parecer próximas às teses
relativistas. Ao contrário disso, porém, já se observou que suas concepções de verdade e
de ciência estão mais próximas do representacionismo. Por outro lado, talvez o mais
importante a este respeito seja apontar que a filosofia de Popper justifica a existência de
uma disciplina que investigue as fronteiras entre o conhecimento voltado para a
apreensão da realidade e outros conjuntos de crenças humanas. Neste caso particular, tal
disciplina configura-se como uma investigação da lógica da ciência, ou mais
propriamente como defesa da lógica da refutação, uma versão renovada de princípios
empiristas, na medida em que resulta na atribuição de cientificidade apenas a juízos
empiricamente (ou experimentalmente) refutáveis. Nesta lógica, encontram-se os
fundamentos que dirigem (ou devem dirigir) a busca de um conhecimento verdadeiro,
não circunstancial, mesmo que a ele nunca se possa ter a certeza de ter chegado. Mais do
que os "princípios" enumerados no início desta seção, que vão sendo reelaborados ao
longo da história, a existência daquela disciplina lógica parece incorporar o que é o
"espírito" próprio do pensamento representacionista: a idéia de que a filosofia deve
oferecer à cultura, e à ciência em particular, um quadro referencial a partir do qual as
diversas reivindicações a conhecimento possam ser julgadas ou avaliadas e, em certa
medida, hierarquizadas segundo sua possibilidade de conter um valor de verdade.
CAPÍTULO 2
... é possível chegar a conhecimentos que sejam muito úteis à vida, e que, em vez dessa
Filosofia especulativa que se ensina nas escolas, se pode encontrar uma outra prática,
pela qual, conhecendo a força e as ações do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e de
todos os outros corpos que nos cercam, tão distintamente como conhecemos os diversos
misteres de nossos artífices, poderíamos empregá-los da mesma maneira em todos os
usos para os quais são próprios, e assim nos tornar como que senhores e possuidores da
natureza (Descartes, 1637/1979b, p.63).
Se o interesse utilitarista não caracteriza algo especial do pragmatismo, e
se muito menos é seu traço principal enquanto crítica ao representacionismo, o que se
deve tomar como as teses centrais desta filosofia?25. Algumas considerações podem ser
feitas a este respeito.
25. Rorty (1990), por exemplo, argumenta que o pragmatismo gradualmente afastou-se
de seus laços com o utilitarismo em direção a uma postura anti-representacionista, que
também não elege o "saber utilitário" como privilegiado.
De um modo geral, o pragmatismo surge e se desenvolve bastante
influenciado pelo desenvolvimento das ciências experimentais e pela idéia de que o
conhecimento resulta de uma manipulação intencional de fenômenos, cujos resultados
jamais podem ser interpretados em termos de uma explicação última e definitiva (ou,
verdadeira, no sentido cartesiano). É possível, contudo, traçar uma distinção entre os
argumentos centrais do pragmatismo americano do início do século XX e do
pragmatismo contemporâneo, tal como sugerido acima. No primeiro caso (do
pragmatismo do início deste século), enfatiza-se a funcionalidade dos juízos sobre a
natureza e da própria atividade de construção daqueles juízos. Isto é, de um lado, aponta-
se para o valor funcional de uma asserção científica como aquilo que lhe confere sentido
e, de outro, aborda-se a própria atividade de produção de conhecimento enquanto dirigida
para interações mais efetivas do cientista com o fenômeno de que se ocupa (no que se
observa a influência das teses darwinianas sobre seleção natural e o caráter adaptativo
dos processos biológicos, aqui aplicadas à análise das atividades intelectuais)26.
Conhecer a realidade, nesta linha de raciocínio, não é representá-la, mas produzir regras
de ação que propiciem interações efetivas com a mesma.
No caso do pragmatismo contemporâneo, observa-se que a ênfase da
argumentação recai sobre o relativismo lingüístico e cultural imputável a qualquer
conjunto de proposições27. Parte-se, aqui, da natureza convencional e arbitrária de um
sistema lingüístico e questiona-se a possibilidade de construção de um juízo qualquer que
transcenda os limites impostos por aquele sistema. Esta posição implica uma concepção
funcional da linguagem, que se oponha, inclusive, às teorias referenciais do significado.
Mas a argumentação não se esgota na funcionalidade da linguagem; ela estende-se ao
relativismo resultante da idéia de construção de um universo lingüístico demarcado pelas
vivências de um dado grupo social. Conceitos como "verdade" ou "ciência" serão, então,
interpretados em termos daqueles critérios (convencionais e arbitrários) de que um dado
grupo social se serve para chamar algo de "verdeiro" ou "científico". Nenhum enunciado,
neste caso, pode transcender aqueles limites; nem pode, portanto, espelhar uma realidade
de forma independente dos mesmos.
Ao falar-se em eixos diferentes de argumentação entre o pragmatismo do
início do século e o pragmatismo contemporâneo, deve-se notar que em ambos os casos
os dois tipos de argumentação são desenvolvidos. Isto é, tanto o pragmatismo do início
do século toca no problema da linguagem (ainda que timidamente), quanto o
pragmatismo contemporâneo parte dos argumentos funcionalistas dos primeiros
pragmatistas. Talvez a melhor forma de ressaltar a distinção seja chamar a atenção para o
26. Murphy (1990), por exemplo, reporta-se ao interesse de Peirce pelo estudo do
pensamento darwiniano, o qual o teria "estimulado grandemente" (cf. Murphy, 1990,
p.8). As relações entre o pensamento de James e o darwinismo são também analisadas
naquele texto.
Se os termos "verdade" e "falsidade" usados por você forem tomados em acepções que
sejam definíveis em termos de dúvida e crença e de curso da experiência ... muito bem;
nesse caso, você só estaria falando de dúvida e crença. Contudo, se por verdade e
falsidade você entender algo que não seja de modo algum definível em termos de dúvida
e crença, neste caso estará falando de entidades cuja existência você nada pode saber, e
que a navalha de Ocam eliminaria de imediato. Os problemas seriam muito simplificados
se, em vez de dizer que deseja conhecer a "Verdade", você dissesse simplesmente que
deseja alcançar um estado de crença inatacável pela dúvida (Peirce, 1905/1977, pp.288-
289).
Na concepção funcionalista do conhecimento esboçada por Peirce, a
questão da veracidade dos juízos seria reduzida, em princípio, a um julgamento sobre o
valor funcional de uma dada asserção. Um juízo verdadeiro seria simplesmente aquele
que propiciasse uma interação efetiva com um dado fenômeno sem produzir novo estado
28. Não o significado de qualquer tipo de signo, mas apenas o significado de que chama
de "símbolos intelectuais", dos quais a linguagem humana é representativa. A este
respeito, Peirce (1908/1975b) classifica os signos, entre outras coisas, como ícones,
índices e símbolos intelectuais. Ícones são signos que guardam semelhança de caracteres
com o objeto significado (por exemplo, o desenho de um objeto). Índices são signos que
guardam uma relação com o objeto significado por força de uma contigüidade entre os
dois (por exemplo, fumaça é índice de fogo). Já os símbolos intelectuais são signos que
denotam um objeto por força de uma convenção, sem que haja qualquer relação
naturalmente necessária entre os dois. A importância dos símbolos intelectuais reside no
fato de serem estes os signos manipulados na investigação racional.
de dúvida ou incerteza. Esta idéia aparentemente anti-representacionista assume,
entretanto, outra face quando se examina a influência do pensamento experimentalista
sobre a obra de Peirce.
Antes de tudo, Peirce enfatiza as experiências sensíveis como aquelas que
conferem sentido a uma crença. Ou seja, só é dotada de significação uma asserção que
resulte em alguma experiência sensível. Tanto assim que, ao investigar as diferenças ou
similaridades entre crenças, deve-se observar, de um lado, se levam a agir na mesma
situação sensível, e, de outro, se produzem o mesmo resultado sensível naquela situação
(cf. Murphy, 1990, Cap.3). A distinção para com o empirismo dos séculos XVII e XVIII
está apenas no fato de que o que confere significação às palavras ou proposições não é o
objeto experienciado (experiência passada), mas a vivência (ou, a qualidade) da
experiência em si (ainda que enquanto possibilidade apenas imaginada - experiência
futura). Quer dizer, por um lado, enquanto método de esclarecimento dos significados, o
pragmatismo não se ocupa da correspondência entre palavras e objetos particulares ...
O pragmatismo não pretende definir os equivalentes fenomenais das palavras e das idéias
gerais, mas, pelo contrário, elimina o elemento sensório destas e tenta definir o propósito
racional, e isto ele descobre na conduta utilitária da palavra ou proposição em questão
(Peirce, 1905/1977, p.294).
Por outro lado, o pragmatismo resgata a experiência sensível como fonte
de significação e organização da atividade intelectual, assinalando uma "conexão
inseparável entre cognição racional e propósito racional" (cf. Peirce, 1905/1977) - a
experiência sensível possível enquanto critério para atribuição de significação às crenças.
... o pensamento controlado por uma lógica experimental racional tende à fixação de
certas opiniões ... cuja natureza será a mesma ao final, por mais que a perversidade de
pensamento de gerações inteiras possa provocar o adiamento da fixação última. Se for
assim, ... o estado de coisas em que se acreditará naquela opinião última é real (Peirce,
1905/1977, p.295).
Observe-se que a concepção funcionalista acerca da produção de
conhecimento aparece agora associada a uma idéia de que a realidade pode ser
apreendida através da investigação científica, ainda que esta noção tenha um caráter
teleológico e aparência de apenas reguladora do empreendimento científico. Igualmente
importante é que a possibilidade de apreensão da realidade implicará a possibilidade de
chegar-se a uma verdade última e definitiva, tal como no pensamento representacionista.
Tal possibilidade é claramente apontada por Peirce (1877/1975c):
Há coisas Reais, cujos caracteres independem por completo de nossas opiniões a respeito
delas; esses Reais afetam nossos sentidos segundo leis regulares e conquanto nossas
sensações sejam tão diversas quanto nossas relações com os objetos, poderemos,
valendo-nos das leis da percepção, averiguar, através do raciocínio, como efetiva e
verdadeiramente as coisas são; e todo homem, desde que tenha experiência bastante e
raciocine suficientemente acerca do assunto, será levado à conclusão única e Verdadeira
(p.85).
Em outro momento, Peirce (1878/1975a) chega a reduzir o problema da
verdade a uma questão pertinente apenas à ciência. Neste caso, o empreendimento
científico é concebido como aquele capaz de traçar a fronteira entre o real e o ilusório,
entre verdade e falsidade. Afirma Peirce (1878/1975a):
O problema reside ... em saber como a crença verdadeira (ou crença no real) se distingue
de crença falsa (ou crença na ficção). Ora, ... as idéias de verdade e falsidade em seu
alcance pleno dizem exclusivo respeito ao método experimental de assentar opinião
(p.65).
Murphy (1990) fala de um "idealismo comunitário" ao referir-se ao caráter
teleológico da concepção peirceana de ciência. Este idealismo, expresso na idéia de uma
condição futura de crenças inatacáveis pela dúvida, a respeito das quais a comunidade
científica como um todo concordará, distingue o pragmatismo de Peirce daquele de seus
seguidores. Hacking (1984) aponta, por exemplo, que esta idéia de fixação de uma crença
final parecia, para James e Dewey, uma quimera. Esta seria, inclusive, uma das razões
pelas quais Peirce resistia ao pragmatismo de James que, como se verá a seguir, tem uma
versão bastante diversa do problema da verdade.
O que se revela nesta noção de um acordo final de investigadores
científicos é uma clara expressão do representacionismo na filosofia de Peirce, expressão
esta assinalada por Rorty (1990). Ao tratar deste problema, no entanto, Hacking (1984)
aponta para uma "proposta de substituição de verdade por método - que ainda garantiria a
objetividade científica" (p.60). Isto é, Peirce trataria menos de afirmar a natureza de um
juízo verdadeiro (a verdade é o que quer que resulte do acordo final), e mais de eleger o
método experimental como o único capaz de colocar os cientistas no curso de uma
investigação que pode resultar em juízos finais e definitivos acerca dos fenômenos.
Parece apenas uma outra forma de afirmar a mesma coisa, mas tem a vantagem de
chamar a atenção para o fato de que a apologia do método experimental, em Peirce,
expressa, mais do que afirmações sobre verdade e falsidade, sua crença no que se
concluiu na seção anterior ser uma caracterísitica central do pensamento
representacionista: a idéia de que a filosofia deve assumir um quadro referencial a partir
do qual se julguem as condições para asserções não contingentes às experiências
particulares de indivíduos ou culturas29.
29. Após assinalar que as contribuições de Peirce ao pragmatismo resumem-se a ter dado
um nome a esta filosofia e a ter estimulado James, declara Rorty (1982):
Peirce ... permaneceu o mais kantiano dos pensadores - o mais
convencido de que a filosofia nos deu um contexto a-histórico que
abarca tudo, no qual todas as outras espécies de discurso poderiam
ter seu lugar e posição próprios designados (p.161).
O pragmatismo deixará de ser apenas um método para esclarecimento de
significados, convertendo-se numa teoria anti-representacionista da verdade, com James.
Tal como Peirce, James advoga que o sentido de uma crença é dado pela ação por ela
ditada. Entretanto, toda crença que prescreve uma interação efetiva (ou, proveitosa) com
um fenômeno, ou parte do mundo, é verdadeira, pois seu caráter de veracidade advém
exatamente de seu valor funcional. O pragmatismo como filosofia, significa, neste caso,
uma investigação sobre a natureza da verdade encerrada em diferentes crenças.
Toda a função da filosofia deve ser a de encontrar que diferença definitiva fará para você
e para mim, em instantes definidos de nossa vida, se esta ou aquela fórmula do mundo for
a verdadeira (James, 1907/1949a, p.50).
Observe-se que James não pretende, com esta máxima, demarcar os
limites entre o verdadeiro e o falso, mas assinalar as condições de diferenciação entre
uma e outra crença que podem ser, ambas, verdadeiras. As crenças porém, só serão
distintas se, ao serem assumidas como verdadeiras, ditarem regras de ação diversas. A
este respeito, James reproduz a regra de Peirce para estabelecer os significados, apenas
substituindo "consequências práticas" por "veracidade", assumidas como equivalentes de
forma particular30.
Se não faz nenhuma diferença prática qual de duas asserções é verdadeira, então elas são
realmente uma asserção em duas formas verbais; se não faz nenhuma diferença prática se
uma dada asserção é verdadeira ou falsa, então a asserção não tem nenhum significado
real (James, 1909/1949b, p.370).
Mas o que vem a ser exatamente uma asserção verdadeira? Antes de tudo,
é "o que seria melhor para nós acreditar" (James, 1907/1949a, p.77). E, tal como pensa o
representacionismo, uma asserção verdadeira é aquela que concorda com a realidade (que
James entende existir de forma independente dos sujeitos - cf. James, 1909/1949b). Tal
concordância, porém, é pensada no sentido de propiciar aos indivíduos que as tomam
como verdadeiras - que são por elas guiados - interações efetivas.
30. Murphy (1990) trata da interpretação de James para a máxima pragmatista de Peirce
assinalando que onde o segundo se referia a um método para esclarecimento de
significados de termos abstratos (como "dureza"), o primeiro o utiliza para determinar a
"credibilidade" de proposições filosóficas. Uma outra maneira de abordar esta diferença é
salientar que a máxima pragmatista pode reduzir-se ao esclarecimento de significados ou
estender-se à investigação das condições de verdade de uma asserção - no que se afirma
que certas consequências práticas previstas em uma asserção, quando realizadas,
conferem-lhe o caráter de veracidade. Como diz Murphy (1990):
Para [um experimentalista como Peirce] o significado de um
conceito reside na sua predição de que, se um certo experimento
fosse realizado, haveria um certo resultado experimental. Por outro
lado, quando o pragmatista (como James emprega o termo)
considera a aplicação de um conceito, o significado do conceito
reside na sua implicação de que se um certo mundo possível - no
qual esta aplicação do conceito é verdadeira - fosse concretizado,
haveria certas consequências práticas (pp.48-49).
Concordar, no sentido mais amplo, com uma realidade só pode significar ser guiado
diretamente a ela ou a seus arredores, ou ser colocado em tal condição de trabalho com
ela de modo a manipulá-la ou a alguma coisa a ela conectada melhor do que se
discordássemos. Melhor intelectualmente ou praticamente (James, 1907/1949a, pp.212-
213).
Qualquer idéia que nos ajude a lidar, de forma prática ou intelectual, com a realidade ou
seus pertences, que não envolve nosso progresso em frustrações, que se ajusta, de fato, e
adapta nossa vida ao cenário todo da realidade, concordará suficientemente para atender
o requisito. Ela será verdadeira daquela realidade (James, 1909/1949b, pp.304-305).
Na filosofia de James, ao contrário do que ocorre com Peirce, a
interpretação funcional da noção de verdade é levada às últimas consequências, do ponto
de vista de que o critério apontado acima é interpretado em termos da impossibilidade de
estabelecer-se uma verdade última ou um conjunto de condições para alcançá-la. Esta
concepção de James pode ser entendida a partir da noção de que a "verdade de uma idéia
não é uma propriedade estagnada inerente a ela [idéia]" (James, 1907/1949a, p.201). Isto
é, um juízo não é simplesmente verdadeiro ou falso, ele se faz verdadeiro ou falso. Falar
de verdade é falar, portanto, de um processo, de um "processo-verdade", no qual uma
idéia é colocada sob o teste de validação intelectual e empírico. Uma idéia "... torna-se
verdadeira, é feita verdadeira pelos acontecimentos ... Sua validade é o processo de sua
validação" (James, 1907/1949a, p.201). Além disso, o processo envolve o contraste de
uma nova idéia com aquelas já assumidas como verdadeiras, aquelas já dotadas de um
valor funcional, que devem ser preservadas sob pena de produzir-se uma desorientação
em situações diversas. "Em outras palavras, o maior inimigo de qualquer das nossas
verdades pode ser o resto das nossas verdades" (James, 1907/1949a, p.78). Ou, de outra
forma, para que uma idéia venha a ser tomada como verdadeira, é necessário que ela
organize uma experiência particular de forma proveitosa, sem que implique a
desorganização de outro conjunto de experiências já regulado favoravelmente ao
indivíduo por outras verdades31.
James não ignora a noção de verdade absoluta (ou final), mas aborda-a,
antes de tudo, aplicando-lhe o método pragmático e observando as consequências que tal
crença produz (por exemplo, uma espécie de conforto). Por outro lado, chega a tratá-la
como uma possibilidade, "... aquele ponto de desaparecimento ideal em direção ao qual
imaginamos que todas as nossas verdades temporárias um dia convergirão" (James,
1907/1949a, p.223). James, entretanto, já tendo afirmado que o desenvolvimento das
ciências não sustentava esta crença32, invoca a atualidade para argumentar que não se
31. Este tipo de interpretação para o problema da verdade permitirá a James falar de
"graus" de veracidade".
32. Observe-se, aqui, o que foi afirmado no início desta seção acerca da influência do
desenvolvimento das ciências experimentais na formulação da filosofia pragmatista.
James (1907/1949a) expressa esta influência ao afirmar:
À medida, porém, que as ciências se desenvolveram, ganhou corpo
a noção de que a maioria, talvez todas, as nossas leis [científicas]
são somente aproximações. Além disso, as próprias leis tornaram-
pode simplesmente aguardar o futuro para orientar as ações presentes. Enquanto as
verdades finais não se realizam (se é que o farão) "... temos que viver hoje com a verdade
que pudermos conseguir hoje, e estar preparados amanhã para chamá-la de falsa" (James,
1907/1949a, p.223). O "estar preparado para chamá-la de falsa" remete ao fato de que a
continuidade do fluxo de experiências de um indivíduo mantém as verdades sob
constante processo de validação. Verdade e falsidade remetem, então, a algo pensado ou
sentido pelos indivíduos, a partir de um dado conjunto de experiências vividas.
Neste ponto, cabe observar que a teoria de James sobre a verdade contém,
antes de tudo, uma preocupação de ordem psicológica, em oposição à orientação
epistemológica. Afirma James (1907/1949a) que "... 'o verdadeiro' ... é somente o
expediente da nossa maneira de pensar ..." (p.222). O problema da verdade refere-se a
uma necessidade psicológica dos indivíduos - necessidade de assumir certas crenças
como "verdadeiras", a fim de orientar sua conduta. Para James, o pragmatismo não vem
satisfazer esta necessidade, mas mostrar como ela determina o que é "experienciado"
como verdadeiro, em oposição ao que "deve ser pensado como verdadeiro"33. O
representacionismo, ao ignorar aquelas necessidades ou partes da natureza humana
simplesmente transforma as verdades de que trata o pragmatismo num artigo de segunda
classe, e reafirma seu caráter legislador capaz de prover uma verdade de classe superior,
incondicionada. Nas palavras de James (1907/1949a), "Abaixo a psicologia, para cima
com a lógica, em toda esta questão!" (p.67).
A idéia de verdade como recurso para interação com o mundo e para
organização da experiência, associada a uma crítica ao monismo e ao determinismo das
filosofias representacionistas, levarão James a dar ao pragmatismo uma dimensão anti-
representacionista do ponto de vista da rejeição da idéia de "representações
privilegiadas". James será o primeiro pragmatista a atribuir igual legitimidade aos
diversos conjuntos de asserções humanas (científicas ou não) e a afirmar a funcionalidade
como o único critério para a aceitação daquelas asserções, critérios estes não fixados pela
filosofia pragmatista, mas inerentes, segundo James, ao próprio processo de interação do
homem com seu meio circundante. A expressão maior desta postura de James aparece em
sua defesa da legitimidade das crenças religiosas. Para compreendê-la cabe acrescentar
que ao monismo, James opõe o que denomina de pluralismo: a tese de que o mundo não é
um sistema fechado ou acabado, mas um sistema de possibilidades de experiências
concebivelmente infinitas. A aceitação desta tese implica reconhecer que nenhum
Se as idéias teológicas provarem ter um valor para a vida concreta, elas serão
verdadeiras, para o pragmatismo, no sentido de serem boas para tanto. Pois, o quanto
mais são verdadeiras, dependerá inteiramente de suas relações com as outras verdades
que também têm que ser reconhecidas (James, 1907/1949a, p.73).
Ao reconhecer juízos religiosos como legítimos, James apresenta outra
face de seu pragmatismo, absolutamente diversa do espírito experimentalista de Peirce: a
idéia de que há circunstâncias em que a ação humana se regula a partir de uma opção
deliberada por determinada crença - a noção de livre arbítrio. Neste caso, os sentimentos
humanos intervêm, como o que ocorre quando se crê na existência da própria verdade. O
que é esta crença, indaga James (1897/1967), "senão uma apaixonada afirmação de
desejo, em que nosso sistema social nos escora? Queremos ter uma verdade ..." (p.237).
As questões morais constituem outro exemplo, sugere James (1897/1967), de questões
... cuja solução não pode esperar por prova sensível ... A questão de ter crenças morais,
afinal, ou de não tê-las, é decidida por nossa vontade (p.246).
Em situações desta natureza, as filosofias representacionistas abdicariam
de acatar uma crença religiosa, por exemplo, mas esta é uma deliberação igualmente
arbitrária. As opções reduziriam-se, então, a acatar a crença religiosa correndo-se o risco
de que não seja verdadeira (mas tentando esta possibilidade) ou abdicar de tentar a
verdade. Segundo James (1897/1967):
... nossa natureza passional não somente pode, mas deve legalmente decidir quanto a
optar entre proposições, sempre quando é uma opção genuína que não pode, por sua
natureza, ser decidida em bases intelectuais; pois dizer, sob essas circunstâncias, "Não
decida, mas deixe a questão em suspenso", é, em si mesmo, uma decisão passional -
exatamente como decidindo sim ou não - e é atendida com o mesmo risco de perder a
verdade (James, 1897/1967, p.238).
A defesa que James faz de juízos religiosos, e de sua pertinência em
questões relativas à moral, apoia-se numa forma de radicalização da noção de
funcionalidade na discussão sobre a natureza do conhecimento válido e do processo de
produção deste conhecimento. A inspiração nas ciências experimentais, curiosamente,
converte-se na legitimação de juízos que não se apoiam (ou, pelo menos, não tem
origem) numa lógica empírico-racional. O funcionalismo de James toma, assim, a forma
de um relativismo associado à renúncia a critérios modernos de racionalidade para
aceitação de determinados juízos como legítimos. Para tanto, contribui, sobretudo, a
forma particular com que elabora princípios psicológicos e valores humanistas na análise
do conhecimento.
Dewey (s/d) resume a posição de James e a distingue de seu
"instrumentalismo" afirmando o seguinte:
34. Sobre o uso do termo "instrumentalismo", cabe observar que no Prefácio de seu livro
sobre lógica Dewey (1938/1960) informa que sua análise é efetivamente pragmatista e
que não utilizará a palavra "pragmatismo" apenas para evitar controvérsias então
existentes acerca deste termo. Em particular, Dewey não concordava com o uso que
James fazia do pragmatismo para legitimar a crença religiosa.
a de considerar a maneira pela qual pode-se estabelecer relações mais efetivas e mais
proveitosas com estes objetos no futuro ... (Dewey, s/d, p.414).
O conceito de "experiência", para Dewey, comporta muito mais do que
apenas impressões sobre o organismo através dos orgãos de sentido. Ele remete à
totalidade do episódio de interação do homem com seu meio (o que pode incluir aspectos
cognitivos, estéticos, emocionais, etc.). Ao falar de reflexão como "resposta indireta ao
ambiente", Dewey remete à interdependência entre o que é experienciado sensorialmente
e o que é pensado logicamente numa situação de investigação, ou numa experiência da
qual se pode falar em "conhecimento". A reflexão aparece como uma forma de
experiência indireta no sentido de que ela parte do que é experienciado sensorialmente
(experiência primária) e é dotada de um propósito relativo a este mesmo conjunto de
experiências.
O que é necessário é encontrar o correto curso de ação, o bem correto. Por esta razão, a
investigação é exigida: observação da composição detalhada da situação; análise de seus
diversos fatores; clarificação do que está obscuro; dedução dos traços mais insistentes e
vívidos; traçar as consequências dos vários modos de ação que se sugerem; considerar a
decisão alcançada como hipotética e experimental até que as consequências antecipadas
ou supostas que levaram a sua adoção tenham sido correspondidas com consequências
atuais. Esta investigação é inteligência. Os nossos fracassos morais têm origem em
jogo de linguagem pretende colocar em evidência que falar uma língua é parte de uma
atividade ou de uma forma de vida" (p.11).
A expressão "jogos" serve ainda para ilustrar que os diversos usos
possíveis parecem-se em diversos aspectos e diferenciam-se em outros tantos (como as
diferentes atividades a que usualmente se denomina "jogos"). Um ponto fundamental
nesta análise é que os usos da linguagem, os diferentes jogos de linguagem, não se
limitam à descrição de "objetos" ou "coisas". Eles atendem a funções as mais diversas na
vida dos indivíduos, ainda que sob a mesma forma fonética.
... qual é a diferença entre o relato ou asserção "Cinco placas" e a ordem "Cinco placas!"
- Bem, é o papel que pronunciar estas palavras desempenha no jogo de linguagem
(Wittgenstein, 1953/1988, p.10).
A linguagem assume uma dimensão funcional, na perspectiva de
Wittgenstein, a partir de convenções estabelecidas no seio de uma comunidade
lingüística, convenções que regulam os usos das palavras e que são arbitrárias, atendendo
aos interesses ou necessidades daquela comunidade em sua interação com o mundo. Ao
tratar daquelas convenções, Wittgenstein faz uso dos termos regras gramaticais e
critérios. O que vêm a ser as regras gramaticais para o uso de uma palavra? Nada mais do
que a descrição das condições que determinam seu uso, das situações em que seu
emprego é considerado legítimo (a partir daquelas convenções arbitrariamente
construídas). As regras constituem, então, uma norma para o uso da palavra, mas uma
norma arbitrária e que determina o campo de um uso funcional da palavra. Lampreia
(1992) resume esta noção de regras, citando que nela reside a concepção wittgensteiniana
de significado, afirmando:
Verdadeiro e falso é o que os seres humanos dizem; e eles concordam na linguagem que
usam. Isso não é concordância de opiniões, mas de formas de vida (p.88).
Lampreia (1992) refere-se à relação que Wittgenstein estabelece entre
linguagem e realidade a partir da noção de "constrangimento" (que remete aos limites que
a realidade impõe à construção de conceitos). Afirma ela que pode parecer ao leitor
que a 'realidade' e a 'natureza humana' não têm um papel em nossa linguagem. Mas
Wittgenstein não vai tão longe, nem faria sentido pensar assim. Existem
constrangimentos impostos pela realidade e nossa natureza biológica que não podem ser
desconsiderados. Por exemplo, dado o caráter multicolorido do mundo e nossas
capacidades perceptuais, a nossa gramática atual das cores nos é útil. Mas se o mundo
apresentasse apenas objetos de diferentes tons do que é hoje, para nós, uma única cor,
então a gramática das cores discriminaria novos conceitos, permitindo às pessoas
perceber diferenças e semelhanças que hoje, dado nosso vocabulário para as cores, nem
notamos ... No entanto, estes constrangimentos não são elementos componentes de
nossos conceitos, i.e., não são parte de suas explicações ... Os constrangimentos são parte
do quadro de referência dos nossos jogos de linguagem, mas não são parte do próprio
jogo. Se fizermos uma analogia com o jogo de tênis, podemos dizer que a lei da
gravidade possibilita este jogo; entretanto, ela não faz parte das regras do jogo. O que dá
significado ou 'define' o que é um jogo de tênis são suas regras ... (Lampreia, 1992,
pp.292-293).
Observou-se acima que a linguagem nem sempre tem a função de
representar um estado de coisas (seu uso serve a múltiplas funções, que podem ser
elucidadas a partir de uma análise da gramática das palavras). Já a posição de
Wittgenstein com respeito à relação entre linguagem e realidade sugere, por outro lado,
que mesmo quando a linguagem tem uma função de "representar" ou "descrever", ela não
representa uma realidade que existe independentemente da linguagem. O que vem a ser
representado ou descrito é constituído pela própria linguagem, pela maneira arbitrária e
convencional como os indivíduos vem a interagir com o mundo. A correspondência que
pode haver, subjacente ao uso das palavras, não é uma correspondência entre linguagem e
realidade, mas entre uso e regras (ou condições contidas nas regras). A impossibilidade
de a linguagem representar algo é colocada por Lampreia (1992) nos seguintes termos:
A filosofia 'analítica' é mais uma variante da filosofia kantiana, uma variante marcada
principalmente pela consideração da representação como mais lingüística do que mental,
e da filosofia da linguagem em detrimento da 'crítica transcendental', ou da psicologia,
como a disciplina que exibe os 'fundamentos do conhecimento'. Esta tônica da linguagem
... não altera a essência da problemática cartesiana-kantiana, e não confere
verdadeiramente uma nova imagem de si mesma à filosofia. Porque a filosofia analítica
ainda está empenhada na construção de um quadro permanente e neutro para o inquérito
e, por conseguinte, para o resto da cultura (pp.18-19).
Ao criticar qualquer tentativa de construção de uma matriz contra a qual
todo tipo de discurso devesse ser julgado, o pragmatismo de Rorty assume a forma de
uma crítica à noção de "discursos privilegiados". Isso significa a tese de que nenhum tipo
de discurso tem valor superior diante dos demais em razão de incorporar princípios
epistemológicos, lógicos ou lingüísticos. Ou seja, nenhum discurso é superior em razão
de sua própria natureza. Não se justifica, então, a existência de uma disciplina que se
ocupe da determinação das condições em que um discurso pode vir a ter valor superior.
As asserções científicas, a título de exemplo, não constituem, por si mesmas ou por
incorporarem preceitos epistemológicos ou metodológicos tidos por ahistóricos, um
discurso de tipo superior. Não cabe, portanto, a existência de uma disciplina que se
julgue independente e capaz de ditar as condições da superioridade da ciência. O discurso
científico, para usar uma expressão de Wittgenstein, é nada mais do que um jogo de
linguagem, que atende a propósitos determinados e que obedece a determinadas regras
arbitrária e convencionalmente constituídas.
A crítica de Rorty à noção de discursos privilegiados não significa que a
cultura atribua ou deva atribuir o mesmo valor a diferentes tipos de discurso (por
exemplo, científico e teológico). Ela reconhece que a cultura efetua uma valorização
diferenciada dos diferentes tipos de enunciados e que esta valorização atende às
necessidades humanas. O que Rorty sustenta é que tal valorização se pauta por critérios
historicamente determinados e que pertencem ao campo do diálogo, da conversação, e
não a instâncias transcendentais. Neste sentido, aqueles critérios não deveriam (ou não
precisariam) assumir a forma de uma "matriz epistemológica", permanente e ahistórica.
Ao citar a argumentação de um trecho de seu livro, Rorty (1988) refere-se aos projetos
epistemológicos como tentativas de eternizar um conjunto atual de critérios diante do
qual os indivíduos julgam suas crenças. Afirma ele:
... somente a imagem de uma disciplina - a filosofia - que considera um dado conjunto de
pontos de vista científicos ou morais como mais 'racionais' do que os alternativos, por
apelo a algo que constitui uma matriz neutra permanente para todo o inquérito e toda a
história, torna possível pensar que tal relativismo deva excluir automaticamente as teorias
da coerência da justificação prática e intelectual (Rorty, 1988, p.145).
A posição de Rorty é fundamentalmente a tese de que a validação do
conhecimento não pertence ao campo de uma disciplina (filosófica) particular, mas
pertence ao campo do diálogo, às condições atuais (ou futuras) em que os homens vêm a
concordar acerca de suas asserções sobre o mundo. Por isso defende o que denomina de
"filosofia edificante", uma atitude de preservação do diálogo, de reação a qualquer
tentativa de encerrar a conversação através do apelo a algo que transcende as práticas
dialógicas.
... o motivo da filosofia edificante é mais fazer prosseguir a conversação do que encontrar
a verdade objetiva. Essa verdade, do ponto de vista que advogo, é o resultado normal do
discurso normal. A filosofia edificante não é somente anormal, mas reativa, apenas tendo
sentido como um protesto contra as tentativas de encerrar a conversação mediante
propostas de comensuração universal através da hipostasiação de um conjunto qualquer
privilegiado de descrições (Rorty, 1988, p.291).
Ver a manutenção da conversação como um objetivo suficiente para a filosofia, ver a
sabedoria como consistindo da capacidade de sustentar uma conversação, é ver os seres
humanos mais como geradores de novas descrições do que como seres que esperamos ser
capazes de descrever exatamente (Rorty, 1988, p.292).
PARTE II
uma teoria mais proeminente no trabalho [de Skinner], e mais congruente com sua
filosofia da ciência é, na essência, uma versão behaviorista da teoria pragmatista de
verdade promovida por James" (p.344).
Ao defender esta tese, no entanto, Zuriff (1980) assinala que "rasgos de
uma teoria de correspondência [da verdade] são encontrados nos trabalhos de Skinner"
(p.343). Isto significa dizer que haveria, nos textos de Skinner, circunstâncias em que o
problema da verdade é abordado segundo princípios representacionistas. E Zuriff (1980)
apresenta algumas citações de Skinner para em seguida afirmar: "Todas essas passagens
... remetem a uma versão moderna da teoria de correspondência da verdade" (p.343). O
que justifica, para Zuriff (1980), a afirmação de que uma concepção pragmatista de
verdade está mais próxima do pensamento skinneriano é o fato de que ela aparece com
maior frequência em seus escritos e estaria mais coerente com sua concepção de
conhecimento. Apesar de Skinner eventualmente tratar do problema em termos próximos
aos de uma teoria de correspondência da verdade, esta não seria sua posição, até porque
"a versão de Skinner da teoria [de correspondência da verdade] é inconsistente com a
filosofia básica de seu behaviorismo radical" (Zuriff, 1980, p.343).
Na mesma direção da análise de Zuriff (1980), que coloca o behaviorismo
radical mais próximo de uma concepção pragmatista de verdade, Burton (1980) situa o
pensamento de Skinner no campo das concepções relativistas acerca do empreendimento
científico e afirma que "como os pragmatistas ... Skinner invoca um critério de utilidade
para a avaliação do conhecimento científico" (p.119).
Em contradição com a interpretação de Skinner como pragmatista, há
trabalhos que o colocam no campo do pensamento representacionista. Por exemplo, Abib
(1985), após análise sistemática dos princípios que norteiam o behaviorismo skinneriano,
caracteriza Skinner como naturalista e positivista. Smith (1989) e Lampreia (1992)
igualmente referem-se a Skinner como positivista. Malone Jr. (1975), assinala a
persistência, em Skinner, de um dualismo que é próprio das filosofias representacionistas.
Ao argumentar que tanto Skinner quanto James têm posição contrária às teorias
mentalistas acerca do conhecimento, Malone Jr. (1975) faz o seguinte comentário (na
forma de uma "ressalva"):
Devo assinalar que Skinner nunca abandonou inteiramente e com clareza o dualismo,
embora não haja razão para que ele não o faça. Por exemplo, no "The Phylogeny and
Ontogeny of Behavior" ... ele repetidamente refere-se ao ambiente como algo "real" e
anterior à experiência, e em 1964 ele escreveu que "o mundo em que nós vivemos é o
mundo da física". Sua inconsistência neste ponto já foi observada por outros ... (p.142).
Problema semelhante, na interpretação do behaviorismo skinneriano, é
encontrado nos artigos de Lamal (1983, 1984) e Woolfolk (1983), que partem exatamente
do trabalho de Rorty (1988). Lamal (1983) examina a crítica de Rorty (1988) ao
representacionismo, colocando-a em termos de uma proposta de "abandono da
epistemologia". Sua análise (de Lamal, 1983) enfatiza dois aspectos da crítica de Rorty
(1988): a rejeição da metáfora da mente como espelho da natureza e a crítica à noção de
verdade como correspondência com a realidade. Partindo destes dois problemas, Lamal
(1983) advoga a existência de uma compatibilidade entre o pensamento de Skinner e o
pragmatismo de Rorty (1988).
A rejeição da teoria da cópia e a adoção de uma concepção (pelo menos
aparentemente) pragmatista de verdade não parecem suficientes para afirmar-se uma
compatibilidade entre Rorty e Skinner, segundo Woolfolk (1983). Para ele, Lamal (1983)
busca em Rorty (1988) uma confirmação para as teses skinnerianas, o que constitui
atitude incoerente com a idéia de desconstrução da filosofia como disciplina legitimadora
de determinadas práticas científicas. A compatibilidade encontrada entre Skinner e Rorty
resume-se, segundo Woolfolk (1983), à descoberta de que os dois têm muitos inimigos
comuns (como os mentalistas). Mas para Woolfolk (1983) as objeções pragmatistas ao
mentalismo podem não ser maiores que as objeções pragmatistas ao behaviorismo
skinneriano. Woolfolk (1983) aponta, então, na filosofia empiricista a tradição intelectual
à qual o behaviorismo skinneriano estaria afiliado, e da qual, entre outras, as idéias
pragmatistas pretendem ser críticas. A análise de Woolfolk (1983) contém algumas
imprecisões na caracterização do behaviorismo skinneriano, particularmente ao não
diferenciá-lo do chamado "behaviorismo metodológico". Disso resulta, por exemplo, a
afirmação incorreta de uma relação entre o behaviorismo skinneriano e a filosofia do
positivismo lógico, que, na verdade, é refutada por Skinner. De qualquer modo, as
afirmações de Woolfolk (1983) têm o mérito de chamar a atenção para o fato de que uma
discussão epistemológica do behaviorismo skinneriano exige que se examine o modelo
de ciência skinneriano em suas relações com as doutrinas empiristas.
Lamal (1984) refuta as críticas de Woolfolk (1983), afirmando, de um
lado, que não atribui às idéias de Rorty (1988) uma confirmação das idéias skinnerianas
e, de outro, que algumas afirmações de Woolfolk (1983) aplicam-se ao behaviorismo
metodológico, e não ao behaviorismo skinneriano. Lamal (1984), porém, ignora a
questão relativa aos compromissos empiristas da ciência de Skinner. E esta é uma
questão claramente pertinente ao debate sobre a concepção skinneriana de ciência e de
conhecimento; ela merece, portanto, ser levada em conta. Ao fazê-lo, também não se trata
apenas de afirmar a existência de uma relação entre o behaviorismo skinneriano e
concepções empiristas ou positivistas sobre o conhecimento. O empirismo skinneriano
não pode simplesmente ser confundido com o de Bacon ou Hume e, aliás, sequer pode
ser confundido com o empirismo de outras abordagens psicológicas (inclusive,
comportamentais) contemporâneas. Mostra-se necessário compreender o que são as bases
a partir das quais Skinner constrói seu modelo de ciência e como se configura esta
concepção de ciência, isto é, que princípios estão presentes na sua formulação e na
regulação de seu desenvolvimento.
Um outro conjunto de análises do pensamento de Skinner igualmente
significativo é aquele que relaciona sua concepção de linguagem com a de Wittgenstein.
Por razões examinadas no capítulo anterior, a noção wittgensteiniana de linguagem pode
ser, em alguma medida, relacionada ao pensamento pragmatista (no sentido de que o
pragmatismo contemporâneo lança mão de aspectos importantes daquela formulação). E
há diversos estudos que demonstram a existência de similaridades entre as posições de
Skinner e Wittgenstein com respeito à linguagem (por exemplo, Bloor, 1987; Costall,
1980; Day, 1969; Lampreia, 1992; Waller, 1977). Alguns destes mesmos estudos (em
particular, Bloor, 1987; Lampreia, 1992), entretanto, assinalam divergências importantes
entre os dois autores. Eles sugerem, então, que é no mínimo recomendável uma certa
cautela antes de caracterizar Skinner como pragmatista a partir de sua concepção de
linguagem.
As colocações acima sugerem que um simples contraste entre
determinadas proposições de Skinner e as teses pragmatistas ou representacionistas pode
não ser suficiente para que se entenda a posição skinneriana. Esta dificuldade, aliás, fica
evidenciada quando se observa que os trabalhos citados partem de análises consistentes e
se apoiam nos próprios textos de Skinner. A contradição que eles sugerem não parece ser
o resultado, portanto, de um erro comum a todas as interpretações que colocam Skinner
em um ou outro lado do debate pragmatismo-representacionismo. O que se pode
constatar é simplesmente que as diferentes caracterizações do pensamento de Skinner
partem de uma consideração de problemas ou textos diferentes. Isto é, os estudos
mencionados não lidam com a posição de Skinner em uma mesma obra e diante de um
mesmo problema particular, chegando a conclusões diferentes; as conclusões são de fato
diferentes e aparentemente contraditórias, mas derivam da consideração de aspectos
diversificados da obra de Skinner. Isto alerta para o fato de que não se pode considerar
Skinner um pragmatista apenas em razão do que afirma sobre o que vem a ser uma
asserção "verdadeira". Como também não se pode considerar Skinner um
representacionista apenas por advogar uma ciência amparada no método experimental. A
análise que se segue leva em consideração as questões levantadas nos parágrafos
anteriores, embora sem pretender rediscutir os trabalhos citados. Ela estará
fundamentalmente dirigida para uma interpretação do behaviorismo skinneriano que não
se limite a simplesmente identificá-lo como pragmatista ou representacionista, mas que
dê conta da peculiaridade do conjunto de princípios que norteiam sua concepção de
conhecimento e de ciência. Ela buscará, nesta direção, um recurso capaz de conferir
inteligibilidade e coerência às interpretações possíveis para as idéias de Skinner.
_____________________________________
1 ----->
PA PB
<----- 2
____________________________________
Onde:
PA significa o pragmatismo de Peirce, James e Dewey, cujo traço distintivo, para fins
desta análise, é a ênfase no caráter funcional (e não representacional) das asserções
que os homens constroem sobre o mundo, e da própria atividade de construí-las.
PB significa o pragmatismo contemporâneo, do qual Rorty é representante, e cujo traço
distintivo é a crítica a toda tentativa de fundamentação do conhecimento verdadeiro e,
principalmente, a crítica à idéia de discursos privilegiados (aprioristicamente, em
função de sua própria natureza, que se supõe estar fundamentada em elementos que
garantem um tipo qualquer de relação com a realidade, portanto independentes de
constrangimentos culturais. A noção de discursos privilegiados será doravante
empregada neste sentido).
É importante observar que a posição PA, ao assinalar que os diferentes
tipos de enunciados são construídos pelos homens a partir de (e circunscritos por) uma
forma particular de interação com o mundo, implica, do ponto de vista lógico, a posição
PB. Quer dizer, se se considera aqueles enunciados a partir de sua dimensão funcional e
de sua relação com formas concretas de interação com o mundo (formas estas que
impõem configurações determinadas ao que é experienciado), então deve-se exercer a
crítica a qualquer tentativa de julgamento apriorístico sobre a validade dos enunciados
em razão de incorporarem ou não preceitos pré-estabelecidos. Uma outra maneira de
afirmar isso, é salientar que assumir a posição PA sem a crítica característica de PB
implica cair em contradição lógica. De certa forma, é isto o que ocorre com o
pragmatismo de Peirce que, ao fazer a apologia do experimentalismo, não abandona
inteiramente a noção de correspondência. Neste sentido pode-se fazer as seguintes
considerações sobre as setas da figura acima:
A seta 1 indica uma relação logicamente necessária, onde PA está associado a PB, e isso
parece ser especialmente válido para o pragmatismo de James e, mais explicitamente,
para o pragmatismo de Rorty. Mas esta coerência nem sempre é encontrada nos autores
que assumem a noção de funcionalidade do conhecimento. Peirce pode servir de exemplo
para a possibilidade de PA não estar associado a PB. O exemplo de Peirce evidencia que
a posição "PA não associado a PB" é historicamente possível, embora logicamente
contraditória.
A seta 2 indica que PB pode também conter PA, isto é, a crítica aos discursos
privilegiados (PB) pode estar associada a uma concepção funcional de conhecimento
(PA) - e esta parece ser a posição de Rorty, mas isto também nem sempre ocorre. Como
se disse anteriormente, nem toda crítica ao representacionismo é pragmatista. Neste caso,
deve-se observar que não há uma necessidade lógica na relação PB-PA (já que "PB não
associado a PA" nem sempre implica uma contradição). Trata-se, aqui, de uma relação
simplesmente possível, tanto do ponto de vista histórico quanto do ponto de vista lógico.
A possibilidade de PB não implicar PA não será relevante para a presente análise, mas
fica aqui assinalada.
Uma distinção semelhante pode ser traçada com respeito às doutrinas
representacionistas, tal como discutidas anteriormente (Capítulo 1), onde se observou que
o representacionismo tende a afastar-se da idéia cartesiana de representações últimas e
perfeitas. Neste caso, a análise possível seria a seguinte:
_____________________________________
3 ----->
RA RB
<----- 4
____________________________________
Onde:
RA significa um representacionismo do tipo cartesiano, que se pauta pela noção de
conhecimento enquanto representação exata da realidade.
RB significa uma versão de representacionismo cujo caráter distintivo é a crença na
noção de discursos privilegiados, alcançáveis a partir de condições demarcadas por uma
doutrina epistemológica.
A posição RA, a idéia de que conhecer é representar e de que certo tipo de
proposição representa com perfeição a realidade, implica logicamente a posição RB (isto
é, RA-RB é uma relação logicamente necessária). Assumir RA sem incorporar a noção
de discursos privilegiados característica de RB (supondo, por exemplo que diferentes
tipos de enunciado têm o mesmo valor relativo de conhecimento) resulta numa
contradição lógica. Por outro lado, RB não implica necessariamente RA, já que não se
pode afastar a possibilidade de uma defesa da idéia de discursos privilegiados que não se
paute pelo princípio da representação. Neste sentido pode-se considerar as setas 3 e 4 do
seguinte modo:
A seta 3 indica que RA implica logicamente RB e é isto que usualmente ocorre; ou seja
filosofias que pensam o conhecimento enquanto sistema de representação da realidade
(RA) assumem também a noção de discursos privilegiados (RB). Descartes é um
exemplo disso.
A seta 4 indica que RB pode conter RA, mas esta relação não é necessária. Quer dizer,
nem sempre a crença no valor superior de um tipo de discurso (RA) - por exemplo,
científico - está articulada com a noção de conhecimento como representação exata da
realidade. A posição "RB não associado a RA" deve ser considerada como possível, tanto
do ponto de vista lógico, quanto em termos históricos.
Quando se une os dois quadros acima numa única matriz, obtém-se o
seguinte:
_____________________________________
1 ----->
PA PB
<----- 2
____________________________________
3 ----->
RA RB
<----- 4
____________________________________
_____________________________________
1 ----->
<----- 2
37. No Anexo 2, apresenta-se uma cópia desta matriz, em folha dupla, de forma a facilitar
sua consulta no decorrer da leitura dos capítulos seguintes.
5
PA PB
____________________________________
RA RB
3 ----->
<----- 4
____________________________________
Onde:
A seta 5 apresenta uma associação entre a noção de funcionalidade do conhecimento e a
preservação da noção de discursos (que pela sua própria natureza ou origem são)
privilegiados.
A seta 6 apresenta uma associação entre uma concepção de conhecimento enquanto
sistema de representação da realidade e a crítica à noção de discursos privilegiados.
Ambas as setas revelam relações logicamente contraditórias, mas que
precisam ser consideradas como historicamente possíveis. A relação sugerida pela seta 6
parece bastante inusitada, e particularmente inapropriada para uma análise do
behaviorismo radical, já que Skinner rejeita (como mencionado acima e como será
demonstrado nos capítulos posteriores) a idéia de conhecimento como representação. O
mesmo não pode ser dito com respeito à relação indicada pela seta 5. Embora a relação
entre PA (funcionalidade do conhecimento) e RB (aceitação da noção de discursos
privilegiados) possa parecer, à primeira vista, improvável, em razão de seu caráter
contraditório, ela vem a mostrar-se não apenas historicamente possível (Peirce
exemplifica esta possibilidade), como também adequada para uma análise do pensamento
skinneriano, ou pelo menos de algumas afirmações de Skinner. Isto quer dizer que a
aparente ambigüidade do pensamento skinneriano pode ser interpretada em termos da
associação, em alguns momentos, de uma concepção funcional de conhecimento com a
suposição de que certo tipo de discurso, por sua própria natureza, está dotado de um valor
superior para a cultura. Esta relação, portanto, pode servir de recurso para tornar
inteligíveis as diferentes interpretações da obra de Skinner. Isso significa dizer que se
esta proposta de análise se mostrar justificada, então aqueles que colocam Skinner no
campo do pensamento pragmatista provavelmente o fazem a partir de sua concepção de
funcionalidade do conhecimento (PA). E aqueles que o colocam no campo do
representacionismo provavelmente partem da sua postulação de que a incorporação de
certos preceitos (metodológicos) são capazes de justificar um status superior para o
discurso científico (RB). Neste caso, todos estariam corretos, mas atentando apenas para
parte do problema e, por isso, não poderiam superar a aparente contradição de suas
análises.
Apesar desta referência às caracterizações de Skinner como pragmatista
ou representacionista, deve-se esclarecer que não será objetivo deste trabalho testar a
adequação da matriz proposta acima para a análise do behaviorismo de Skinner
contrastando-a com as análises de outros autores citadas na seção anterior. Em vez disso,
esta Tese se ocupará de duas tarefas preliminares: primeiro, examinar como Skinner
concebe o conhecimento, do ponto de vista de sua natureza e da atribuição de valor aos
diferentes tipos de asserções que pretendem expressar conhecimento; e, segundo, avaliar
em que medida a relação PA-RB (funcionalidade do conhecimento - preservação da
noção de discursos privilegiados) pode ser de fato adequada para a compreensão do
pensamento skinneriano. Day (1992) fornece um indicador da possibilidade de que o
behaviorismo radical revele, em sua concepção de conhecimento, aspectos pragmatistas e
representacionistas, tal como sugerido naquela relação, ao afirmar:
... a coisa mais importante que um(a) estudioso(a) do behaviorismo contemporâneo pode
fazer atualmente é estar certo de que compreende a relação entre a epistemologia contida
no Verbal Behavior de Skinner e as epistemologias funcionais de James e Mach (p.38).
Neste trecho, Day (1992) coloca Skinner lado a lado com um pragmatista
(James) e um positivista (Mach). Como explicar esta relação? E como relacioná-la com a
matriz proposta acima? Responder a estas perguntas corresponde à segunda das duas
tarefas a serem desenvolvidas neste trabalho, citadas acima. A resposta, a ser apresentada
nos capítulos seguintes (em especial, no Capítulo 5), fica sugerida na própria citação de
Day (1992): a relação entre Skinner e Mach, ou pelo menos a leitura que Skinner faz das
proposições de Mach. A partir desta relação, procurar-se-á evidenciar como se realiza, no
behaviorismo skinneriano, a articulação entre um princípio pragmatista (funcionalidade
do conhecimento) e um princípio representacionista (noção de discursos privilegiados).
Embora sem pretender contrastar a matriz sugerida acima com as análises
de outros autores, não se pôde deixar de observar que quando Skinner é apontado como
positivista a partir de uma discussão da questão da privacidade (por exemplo, Lampreia,
1992), a relação PA-RB tende a se dissolver. O mesmo ocorre quando se trata de apontar
os distanciamentos entre Skinner e Wittgenstein (por exemplo, Bloor, 1987; Lampreia,
1992). O próprio estudo que se procurou desenvolver sobre o tema da privaciadade
(tema, aliás, que deu origem à presente investigação) foi evidenciando que, no que diz
respeito ao problema do "auto-conhecimento", a posição de Skinner assume contornos
particulares que justificam uma consideração cuidadosa. Tanto no caso
das concepções de conhecimento em geral e de conhecimento científico, quanto no que
diz respeito à noção de auto-conhecimento, o leitor familiarizado com a concepção
skinneriana de linguagem será tentado a afirmar a estranheza de atribuir-se uma
dimensão representacionista ao behaviorismo radical. Esta atitude é compreensível, mas
ela significa apenas que Skinner nem sempre leva sua concepção de linguagem às últimas
consequências ao tratar dos problemas mencionados. Significa, por outro lado, que no
contexto de certas (su)posições behavioristas radicais, é possível superar resquícios de
representacionismo porventura persistentes nas formulações de Skinner. Estas
possibilidades serão citadas adiante, mas a análise priorizará as afirmações do próprio
Skinner, a fim de elucidar como ele próprio articula o seu sistema teórico e suas
suposições epistemológicas.
Ao utilizar a matriz acima para a análise do pensamento skinneriano, faz-
se necessário, ainda, reafirmar de que maneira as relações nela contidas devem ser
examinadas. Historicamente, pode-se identificar exemplos de quase todas aquelas
relações, mas apenas no sentido histórico elas são todas possíveis. Do ponto de vista
lógico, como observado, há certas restrições e algumas das relações indicadas assumem o
caráter de contraditórias2.
As observações acima são importantes para a análise do pensamento
skinneriano na medida em que sugerem que se Skinner de fato associa uma noção
funcional de conhecimento à preservação da noção de discursos privilegiados, então a
contradição de seu argumento para tal associação deve ficar evidenciada. Por outro lado,
se Skinner de fato desenvolve uma noção funcional de conhecimento, então é possível
derivar de suas proposições uma crítica às pretensões representacionistas do tipo RB. De
certa forma, o que a análise seguinte procurará demonstrar são estas duas questões: de um
lado, que apenas lançando mão de recursos contraditórios Skinner pode assumir um
representacionismo do tipo RB; e de outro, que levado às últimas consequências, seu
aparato conceitual permite uma postura do tipo PA-PB (o que significa relativizar o
próprio conhecimento construído no âmbito de sua ciência experimental).
Os problemas e argumentos referidos acima serão desenvolvidos, a seguir,
em três capítulos de análise do pensamento de Skinner. Inicialmente (Capítulo 4),
procurar-se-á introduzir os aspectos centrais da presente investigação, a partir do tema
"operacionismo", a fim de demarcar as condições apropriadas para uma discussão do
behaviorismo skinneriano. Em seguida (Capítulo 5), procurar-se-á desenvolver as duas
tarefas centrais sugeridas nas considerações acima: primeiro, examinar a concepção
skinneriana de conhecimento e a pertinência desta ser abordada a partir da relação PA
(funcionalidade do conhecimento) - RB (ciência enquanto discurso de valor superior); e
segundo, demonstrar de que recursos Skinner lança mão para tornar aquela relação
possível, no contexto de seu behaviorismo radical. O capítulo posterior (Capítulo 6) será
dedicado ao tema da privacidade e nele se examinará, em especial, a concepção de
conhecimento envolvida nas considerações de Skinner e a relação entre tal concepção e a
matriz de análise aqui proposta.
CAPÍTULO 4
O OPERACIONISMO SKINNERIANO.
39. O próprio Boring (1950) assinala que o "operacionismo é mais um princípio do que
uma escola" (p.653, itálico acrescentado). Em sua interpretação, porém, ele também é
"uma maneira ... de distingüir entre metafísica e ciência (p.563). De certa forma,
Bridgman (1928) permite tal interpretação, na medida em que sugere seu procedimento
como recurso apropriado para identificar asserções "sem sentido", ou quando afirma que
não devemos mais permitir-nos usar como ferramentas de nosso
pensamento conceitos para os quais não possamos dar uma
explicação adequada em termos de operações (Bridgman, 1928,
p.31).
É importante notar, entretanto, que esta última afirmação de Bridgman não se sustenta
sem justificação adicional.
1975, 1981), as definições em termos operacionais convertem-se em critério para
atribuição de significação científica a um conceito ou proposição. Isto é, trata-se de
interpretar a proposta de Bridgman enquanto um esclarecimento da natureza das
proposições elementares que devem caracterizar o discurso científico: elas devem
remeter a operações executadas pelo cientista e às quais qualquer observador tem acesso.
O que atender a este critério tem validade e confere legitimidade empírica à ciência.
Observe-se que na versão metodológica do operacionismo sustenta-se que
o conhecimento científico é dependente de um acordo intersubjetivo. Entretanto, supõe-
se que tal acordo deve ser relativo às dimensões físicas dos fenômenos estudados e,
ainda, que só pode ser alcançado com respeito aquilo que pode ser publicamente
observado. Isto é, o acordo intersubjetivo confere objetividade ao conhecimento
científico, mas "intersubjetividade" reduz-se a "observação pública". No âmbito deste
modelo de ciência não se pode falar de eventos aos quais um único indivíduo tem acesso,
pois estes remetem a fenômenos a respeito dos quais os cientistas não podem alcançar um
acordo público. A psicologia enquanto ciência, neste caso, reduz-se ao estudo do que é
publicamente observável. Definições operacionais privadas, segundo Boring (1945),
podem até existir, mas são mentais e, portanto, carecem do que é essencial para a ciência:
uma expressão fisicalista. Os chamados "eventos privados" não podem, então, ser objeto
de uma ciência psicológica. Como afirma Boring (1945) "a ciência não considera dados
privados" (p.244).
Opondo-se a esta versão do operacionismo, Skinner (1945) interpreta o
problema levantado por Bridgman em termos da necessidade de uma análise funcional
para o comportamento verbal. Isto significa abandonar as chamadas "teorias referenciais
do significado" (que se apoiam na noção de linguagem como sistema de representação do
mundo) e considerar o uso de conceitos, termos, e proposições enquanto respostas
verbais, que são, tanto quanto as respostas não-verbais, função de contingências de
reforçamento (neste caso, providas por uma comunidade verbal). A concepção
skinneriana de linguagem, bem como sua relação com o problema do conhecimento
científico, serão melhor examinadas no capítulo seguinte. A fim de esclarecer e
problematizar o operacionismo skinneriano, entretanto, é necesssário antecipar alguns
aspectos gerais daquelas posições. Skinner (1945) introduz sua proposta de análise
funcional para o comportamento verbal afirmando:
Para ser consistente, o psicólogo deve lidar com suas próprias práticas verbais
desenvolvendo uma ciência empírica do comportamento verbal (...) Ele deve se voltar ...
para as contingências de reforçamento que explicam a relação funcional entre um termo,
como uma resposta verbal, e um dado estímulo. Esta é a 'base operacional' para seu uso
de termos ... (Skinner, 1945, p.277).
Neste sentido, as asserções científicas (ou que pretendem-se centíficas)
devem ser entendidas enquanto função de contingências de reforçamento providas por
uma comunidade verbal científica . O que pode diferenciar o comportamento verbal
científico do comportamento verbal do leigo é, entre outros, o fato de que a
funcionalidade do primeiro se expressa em termos do que propicia de previsão e controle
dos fenômenos dos quais se ocupa. Definir conceitos científicos, no entanto, tanto quanto
definir as respostas verbais de um leigo, é especificar as contingências de reforçamento
das quais são função.
A funcionalidade é, também, apresentada por Skinner (1945) como um
critério de verdade, que se distingue do que denomina de "critério de verdade por
consenso público", advogado por Boring e Stevens. Opondo-se ao representacionismo
verificacionista-consensualista do behaviorismo metodológico, Skinner aproxima-se de
um critério pragmatista de verdade. Afirma ele:
O critério último para a boa qualidade de um conceito não é se duas pessoas são levadas
à concordância, mas se o cientista que usa o conceito pode operar com sucesso sobre seu
material - sozinho se precisar. O que importa para o Robinson Crusoé não é se ele está
concordando consigo mesmo, mas se está chegando a algum lugar com seu controle sobre
a natureza (Skinner, 1945, p.293).
Tal como colocado por Skinner, o que importa para o behaviorismo
radical não é a precisão de descrições fisicalistas da topografia do comportamento (que
têm importância especial para o behaviorismo metodológico), mas a descoberta de leis
que expressem relações dinâmicas entre o comportamento dos organismos e mudanças
ambientais (cf. Skinner, 1938). Neste sentido, Skinner permitia-se, desde cedo, falar em
condições internas dos organismos; por exemplo, quando referia-se ao "drive" (cf.
Skinner, 1932a, 1932b; Sério, 1990). A proposição da funcionalidade como critério já
sugere, também, que o pensamento de Skinner está no âmbito da noção pragmatista de
conhecimento identificada pelo campo PA da matriz exposta no capítulo anterior
(enquanto o critério verificacionista do behaviorismo metodológico está claramente no
campo do representacionismo indicado por RA).
Já no artigo de 1945, Skinner rejeita, também, a dicotomia físico-mental,
sustentando que os eventos privados também são dotados de dimensões físicas. "A minha
dor de dente é simplesmente tão física quanto minha máquina de escrever" (Skinner,
1945, p.294). A única distinção válida, segundo Skinner, é aquela entre eventos públicos
e privados, e o problema que se coloca para a psicologia, neste terreno, é o de examinar
como (e os limites) a comunidade verbal pode vir a ensinar os indivíduos a emitirem
respostas verbais sob controle de seus eventos internos. Mas a psicologia pode (e deve),
segundo Skinner, dar conta da privacidade. Em um trecho final de seu artigo, Skinner
(1945) ironiza a posição do behaviorismo metodológico, afirmando:
... enquanto Boring deve confinar-se a uma explicação de meu comportamento externo,
eu ainda estou razoavelmente interessado no que poderia ser chamado de Boring-por-
dentro (p.294).
Este tema da privacidade parece particularmente importante para discutir a
concepção skinneriana de conhecimento, sobretudo considerando-se que se está
examinando uma abordagem psicológica. Ele será desenvolvido, contudo, em um
capítulo posterior (Capítulo 6), no qual se abordará não apenas a possibilidade de uma
ciência do comportamento lidar com a privacidade, mas, também, a concepção de "auto-
conhecimento" envolvida nas formulações de Skinner.
Retomando a noção de operacionismo enquanto simples proposição de
uma análise funcional para o comportamento verbal (inclusive científico) e a
funcionalidade como critério de verdade, dois problemas podem ser levantados com
respeito à possibilidade de interpretar as propostas de Skinner como pragmatistas ou
representacionistas:
1. Há, pelo menos, duas maneiras de se examinar os compromissos epistemológicos de
uma proposta de ciência do comportamento. A primeira simplesmente considera o que
um cientista comportamental reivindica acerca do valor da teoria com a qual trabalha (o
campo B da matriz exposta, que inclui PB e RB). A segunda refere-se ao que sua teoria
afirma sobre o próprio comportamento do cientista, ou sobre a natureza do conhecimento
científico (o campo A, que inclui PA e RA). Poder-se-ia supor que PA está sempre
associado a PB (isto é, que uma concepção funcional de conhecimento está sempre
associada a uma crítica à noção de discursos privilegiados), e esta é de fato uma
necessidade lógica, mas nem sempre é o que acontece. Claro que se esta relação não
existir, justifica-se considerar o conjunto teórico sob análise como ambíguo ou
contraditório. No capítulo seguinte se examinará como uma relação diferente se torna
possível; por ora pode-se já assinalar "PA não implicando PB" como uma possibilidade
histórica, porém contraditória. O que se procurará argumentar é que, do ponto de vista da
maneira como Skinner apresenta seu operacionismo em 1945, esta possibilidade de
contradição não pode, de fato, ser afastada. Em parte, isso se deve ao que pode ser
apontado como o segundo problema a ser levado em conta;
2. A interpretação convencional do operacionismo apresenta uma concepção de "acordo
intersubjetivo" capaz de levar à suposição de que quando este acordo existe a proposição
é "objetiva", e, quando não existe, a proposição é "relativa" ou "subjetiva". É importante,
entretanto, observar que "acordo intersubjetivo" está, aqui, sendo identificado com
"observação pública". Neste caso, convém diferenciar "acordo intersubjetivo" de
"determinação intersubjetiva". Esta última remete à idéia de que todo uso da linguagem
contém uma determinação social, a qual pode assumir a forma de um acordo, mas não
necessariamente baseado numa observação pública de um fenômeno (muito menos
baseado numa noção epistemológica particular de "o que é observação"). Quando se fala
de uma determinação lingüística de qualquer proposição (científica ou não), está-se
apontando para a dependência social da mesma, ou para sua determinação intersubjetiva,
uma afirmação que pertence ao campo do relativismo. De acordo com esta posição, é
apenas porque os cientistas partilham um sistema lingüístico, que eles podem vir a
concordar sobre algo. Por outro lado, a negação desta determinação, supondo-se que um
cientista pode chegar a leis científicas por si mesmo (como um agente independente),
pode ser tão representacionista quanto as teses do positivismo lógico.
É necessário esclarecer estes dois problemas, antes de prosseguir com a
análise do texto de Skinner. Quando se fala na possibilidade de uma contradição entre o
que uma teoria afirma acerca da natureza do conhecimento e o status reivindicado para
sua ciência pelo cientista que opera com esta teoria, está-se contextualizando a
contradição PA-RB citada no capítulo anterior em termos das proposições de uma
abordagem psicológica do problema do conhecimento. Ou seja, o que se está assinalando
é que a proposição de uma concepção pragmatista acerca da natureza do conhecimento
em termos de uma ênfase na funcionalidade deste pode ser interpretada como
incompatível com a atribuição de um status privilegiado para a ciência amparada nesta
concepção, ou para as asserções ou leis construídas no âmbito desta ciência. Isto é, a
relação PA-RB pode ser considerada contraditória, mesmo quando elaborada segundo os
termos de uma versão psicológica (ou behaviorista) de seus elementos.
Com respeito à distinção entre "acordo intersubjetivo" e "determinação
intersubjetiva" o que se procura assinalar é que o tema da "intersubjetividade" em suas
diferentes versões, de afirmação e de negação, pode servir tanto a posições
representacionistas quanto a argumentos pragmatistas. Isto quer dizer que embora a
afirmação da intersubjetividade apareça na versão representacionista do operacionismo
(na forma do critério de verdade por consenso público), ela pode, também aparecer na
forma de sustentação de uma concepção pragmatista de conhecimento (o campo PB da
matriz implica necessariamente a intersubjetividade, só que em termos da noção de
relativismo lingüístico e cultural). Por outro lado, a negação de qualquer dimensão
intersubjetiva a um discurso (científico ou não) só faz sentido no contexto de uma visão
representacionista de conhecimento e de linguagem. Isto significa dizer que, se, ao
rejeitar o critério verificacionista do behaviorismo metodológico, contestar-se, também,
qualquer dimensão intersubjetiva das asserções científicas, estar-se-á elaborando
simplesmente uma nova versão de objetividade (isto é, uma versão de RB que é apenas
diferente do verificacionismo fisicalista do behaviorismo metodológico). Neste sentido,
enquanto o conceito de funcionalidade auxilia na reflexão sobre a posição PA, o conceito
de intersubjetividade servirá a uma melhor compreensão dos elementos envolvidos no
campo PB. Através deste conceito (intersubjetividade), o que se coloca em evidência é o
caráter intersubjetivo e arbitrário dos critérios a partir dos quais os indivíduos vêm a
atribuir validade (e, mesmo, a construir) diferentes tipos de enunciados sobre o mundo
com o qual interagem. Dessa forma, um possível compromisso pragmatista de Skinner
deve ser analisado não apenas à luz do conceito de funcionalidade, mas, também, diante
do conceito de intersubjetividade.
A possibilidade de o operacionismo skinneriano mostrar-se simplesmente
uma nova versão do discurso representacionista no campo da disciplina psicológica em
termos do status reivindicado para as asserções elaboradas em seu âmbito, fica
evidentemente sugerida nas considerações acima. Mas o que se tentará argumentar, por
ora, é simplesmente que a noção de funcionalidade, tal como apresentada no artigo de
1945, não é em si suficiente para diferenciar o behaviorismo radical do caráter
representacionista do operacionismo lógico em termos da reivindicação de valor para a
ciência do comportamento; em outras palavras, ela só caracteriza uma posição com
respeito ao campo A da matriz. Isto ocorre porque a noção de funcionalidade não é
empregada para advogar que diferentes tipos de enunciados sobre o mundo orientam
diferentes formas de interação com o mesmo, mas para argumentar que há um tipo de
enunciado cuja dimensão funcional tem valor apriorísticamente superior, isto é, um valor
instrumental independente do assentimento intersubjetivo.
Considerando-se o problema da (in)compatibilidade entre o que Skinner
afirma sobre a funcionalidade como critério de verdade e o status do conhecimento que
pode ser construído no campo de uma ciência do comportamento, a possível contradição
sugerida acima pode ser colocada em termos da associação do critério de funcionalidade
à crença de que o conhecimento produzido no âmbito de uma ciência pautada por aquele
critério alcançará a condição de objetivo. E, de fato, o que se observa é que Skinner não
deixa de acatar o projeto behaviorista metodológico de construção de uma ciência
objetiva do comportamento humano. Ele caracteriza sua versão do operacionismo, menos
como um abandono da noção de objetividade, e mais como a via apropriada para a
realização daquele propósito. Esta é, pelo menos, uma interpretação possível de suas
colocações, como se verá a seguir.
No início de seu artigo, Skinner (1945) argumenta que a proposta
operacionista ainda não avançou suficientemente, na direção de uma superação das
teorias referenciais de significado. A relação entre a linguagem científica e as operações
executadas pelos cientistas teria sido apenas sugerida, mas não esclarecida em sua
natureza. Como exemplo, Skinner (1945) lembra que o conceito de definição "é um
termo chave, mas não é rigorosamente definido" (p.270). Isto é, o operacionismo sugere
como definir conceitos (recorrendo às operações executadas), mas não esclarece o que
vem a ser uma "definição". O que falta, segundo Skinner, é uma teoria consistente da
linguagem. Seu diagnóstico, entretanto, é colocado nos seguintes termos:
A fragilidade das atuais teorias da linguagem pode ser relacionada ao fato de que uma
concepção objetiva do comportamento humano ainda está incompleta (Skinner, 1945,
p.270, itálico acrescentado).
Uma ciência do comportamento objetiva, então, é o que Skinner entende
ser capaz de prover a superação dos impasses operacionistas e das dificuldades relativas
ao uso dos chamados "termos subjetivos", tema em cuja análise se detém naquele artigo.
Colocando este propósito em termos do problema da linguagem, Skinner espera com sua
análise funcional do comportamento verbal esclarecer os processos envolvidos na
aquisição e manutenção de repertórios verbais, em especial daqueles repertórios
assumidos como descritivos de eventos internos. O tema da privacidade, reconhece
Skinner, suscita inúmeros problemas, mas ele não vê
... nenhuma razão por que uma ciência objetiva e operacional não pode considerar os
processos através dos quais um vocabulário descritivo de uma dor de dente é adquirido e
mantido (Skinner, 1945, p.294, itálico acrescentado)3.
Como o problema da privacidade será tratado em outro capítulo, o que
interessa salientar, aqui, é a manutenção do tema da objetividade, isto é, a ênfase de
Skinner na idéia de ciência objetiva como via de superação dos problemas colocados
para a disciplina psicológica. A questão que persiste é a de examinar em que medida a
noção de objetividade a que Skinner se refere pode ser tomada como não-
representacionista, diferenciando-se da noção de objetividade amparada no requisito de
observação pública. O que vem a ser a ciência objetiva com a qual Skinner espera prover
a superação do mentalismo e do dualismo na psicologia?
Do ponto de vista dos temas tratados por Skinner em 1945, só se mostra
razoável falar em objetividade a partir da noção de funcionalidade da linguagem
científica, já que este é o critério apresentado como pertinente para a caracterização da
natureza do discurso científico. Isto é, se proposições científicas são proposições
simplesmente funcionais, que propiciam um determinado tipo de interação (efetiva) com
um conjunto de fenômenos, não se pode pensar, pelo menos em princípio, o discurso
científico como objetivo entendendo-se objetividade como representação exata do
fenômeno. Por outro lado, em que medida faz sentido falar em objetividade, quando se
trabalha com uma noção funcional de discurso científico?
No artigo de 1945, Skinner só emprega o termo "objetiva" (para
caracterizar sua proposta de ciência) nos dois trechos citados acima. De qualquer modo,
aquelas citações não parecem ser gratuitas e podem ganhar sentido quando relacionadas
com o segundo problema citado acima, o da intersubjetividade. A questão fundamental a
ser considerada com respeito a este problema é se a rejeição do critério de verdade por
consenso público, em favor de um critério funcional, preserva a atribuição de uma
dimensão intersubjetiva ao discurso científico (caso em que pode implicar um
3. A objetividade, tal como colocada por Skinner ao tratar do tema da privacidade, não é
mais um problema de observação pública (do privado em si), mas de compreensão dos
processos através dos quais certas respostas verbais são adquiridas, ainda que sejam
respostas supostamente descritivas de estados internos. A subjetividade pode, então, ser
incluída em sua ciência do comportamento, mas apenas enquanto investigação das
condições em que o indivíduo vem a falar de sua interioridade. Afirma Skinner (1945):
O único problema que uma ciência do comportamento pode
resolver em conexão com o subjetivismo é no campo verbal. Como
podemos explicar o comportamento de falar sobre eventos
mentais? (p.294, itálico acrescentado).
compromisso pragmatista ou representacionista) ou não (circunstância em que implicaria
apenas em nova versão do representacionismo).
Quando se fala em comportamento verbal como um comportamento cujas
consequências são necessariamente mediadas por outros indivíduos, ou quando se aponta
para o papel da comunidade verbal na instalação e manutenção de repertórios verbais,
está-se atribuindo, inevitavelmente, uma dimensão social a toda atividade lingüística,
inclusive a científica. Mas do ponto de vista do que se postula acerca da natureza do
discurso científico, a intersubjetividade só pode ser considerada reconhecida (pelo menos
numa perpectiva relativista) quando se admite que o discurso científico está limitado pelo
aparato ou conjunto de recursos lingüísticos de que uma comunidade científica dispõe e
faz uso. Neste caso, uma proposição científica não retrata um fenômeno ou aspectos de
um fenômeno (e não pode fazê-lo), muito menos de forma naturalmente superior a outros
empreendimentos de uma cultura; ela é simplesmente uma maneira particular,
determinada social e historicamente, de falar sobre o objeto da investigação.
A maneira como Skinner apresenta, em 1945, a funcionalidade enquanto
critério de verdade não enfatiza o caráter relativo do discurso científico. Ao contrário, a
funcionalidade é defendida enquanto critério por orientar a prática científica para a
apreensão de relações regulares entre comportamentos e eventos ambientais. É apenas
porque o fisicalismo topográfico se mostra dispensável para a apreensão daquelas
relações (leis) entre eventos que ele é considerado impróprio para a ciência skinneriana.
Por outro lado, ao considerar uma asserção científica como verdadeira quando ela atende
ao critério de funcionalidade, Skinner abdica de qualquer requisito de acordo
intersubjetivo. Isto é, a funcionalidade é apresentada como um critério que pode, de
alguma forma, prescindir do acordo entre interlocutores. Considere-se, a este respeito, a
seguinte afirmação de Skinner (1945):
O filósofo chamará a isso de circular. Ele argumentará que devemos adotar as regras da
lógica a fim de fazermos e interpretarmos os experimentos requeridos por uma ciência
empírica do comportamento verbal. Mas falar sobre falar não é mais circular do que
pensar sobre pensar ou saber sobre saber. Estejamos ou não nos levantando por nossos
próprios esforços, o fato simples é que nós podemos fazer progresso numa análise
científica do comportamento verbal. Eventualmente, seremos capazes de incluir, e talvez
entender, nosso próprio comportamento verbal como cientistas. Se resultar que nossa
visão final do comportamento verbal invalida nossa estrutura científica do ponto de vista
lógico e de valor de verdade, então tanto pior para a lógica, que também terá sido
embaraçada por nossa análise (Skinner, 1945, p.277).
A referência de Skinner a Robinson Crusoé é igualmente ilustrativa do
status atribuído ao discurso funcional. Em primeiro lugar, Skinner considera o fato de
que Crusoé vive isolado e só poderia concordar consigo mesmo. O problema da
concordância, entretanto, deveria ser precedido pela questão acerca de como alguém que
vive isolado pode chegar a alguma asserção sobre os fenômenos a sua volta. A resposta a
esta questão é sugerida na referência de Skinner à análise que Boring faz da possibilidade
de uma descrição operacional privada (que para ele, Boring, não teria valor científico).
Boring (1945) afirma:
Pode haver, é claro, definições operacionais privadas. Um homem surdo e mudo em uma
ilha inabitada poderia elaborá-las e utilizá-las. Seria ainda provável que elas tivessem a
forma de auto-comunicação, mas seus termos poderiam não ser sempre "fisicalistas"
(p.244).
A referência de Skinner a esta colocação de Boring é a seguinte:
4. Adiante, será observado que para dar este passo Skinner lança mão de uma noção
particular de funcionalidade.
Como Boring admite, o habitante solitário de uma ilha deserta poderia chegar a
definições operacionais (desde que tivesse sido previamente equipado com um repertório
verbal adequado), e eu não consigo ver por que estas não seriam fisicalistas (Skinner,
1945, p.293, itálico acrescentado).
Sem entrar no mérito do fisicalismo (a respeito do que a referência de
Skinner permite interpretações diferenciadas)5, importa assinalar que Skinner reconhece
que a possibilidade de um indivíduo isolado chegar a construir asserções sobre si ou
sobre o mundo depende da existência prévia de um repertório verbal e, como este é
adquirido e mantido por contingências providas por uma comunidade verbal, depende de
o isolamento ter sido precedido por uma interação com uma comunidade verbal. Neste
caso, suas asserções são inevitavelmente dependentes daquela interação; elas não podem
ser alcançadas pelo indivíduo isoladamente. E esta dependência social circunscreve,
também, os limites de suas asserções, as quais não poderão ser consideradas,
simplesmente, como funcionais. Quando Robinson Crusoé constrói uma asserção, então,
ele não está concordando consigo mesmo, e nem esta é a única possibilidade de
concordância existente. Para que ele chegue a construir uma asserção qualquer, é
necessário que tenha interagido com uma comunidade verbal e, neste caso, há, sim, uma
concordância: aquela ditada pela própria linguagem com a qual o indivíduo opera6. Há,
portanto, uma determinação intersubjetiva (social e histórica) de qualquer asserção
construída. Tal dimensão, entretanto, é desprezada por Skinner (1945) quando afirma que
o que importa para o Robinson Crusoé é "se ele está chegando a algum lugar com seu
controle sobre a natureza" (p.293).
Se é possível afirmar que Skinner não considera (ou, pelo menos, não
enfatiza) a determinação intersubjetiva do discurso tido por funcional, então a
funcionalidade pode de fato ser interpretada em termos de uma apreensão de dimensões
próprias do fenômeno sob estudo. Trata-se, aqui, de uma versão da noção de
funcionalidade certamente compatível com a noção de objetividade. As referências de
Skinner ao projeto de uma ciência objetiva não seriam, então, gratuitas. Parece mais
razoável, entretanto, considerar o problema a partir da hipótese de que há uma
contradição entre o que Skinner postula acerca do processo de construção do
conhecimento científico (como dependente de contingências verbais e não verbais de
uma comunidade científica) e da natureza atribuída a tal conhecimento (objetivo, etc.)7.
5. Isto é, a afirmação de que aquelas descrições são fisicalistas pode ser interpretada ou
como uma referência ao controle de estímulos no comportamento operante verbal, ou
como a aceitação de que o discurso científico só faz uso de termos aos quais
correspondem objetos fisicamente identificáveis no mundo.
7. Este parece não ser o único problema do texto de Skinner de 1945. Embora sem
colocar o problema da relação entre funcionalidade e intersubjetividade, outros autores já
destacaram a dificuldade em interpretar aquele artigo. Flanagan Jr. (1980) afirma que
A discussão da funcionalidade de forma dissociada do problema da intersubjetividade é
que pode ser tomada como propiciadora desta contradição. Por outro lado, é importante
compreender que, ao falar em funcionalidade, Skinner está mais preocupado em sinalizar
a pertinência de um determinado programa de pesquisa para sua ciência do
comportamento. Este aspecto fica mais evidente quando se retorna a alguns dos primeiros
textos de Skinner, onde, aliás, a influência do pensamento operacionista é mais
enfaticamente reconhecida8.
"este artigo é confuso" (p.5) e, adiante, que parece haver uma "inconsistência genuína no
artigo" (p.7). Smith (1989) fala em "obliquidade das observações críticas de Skinner"
(p.286) no mesmo trabalho. Vale acrescentar que a inconsistência a que Flanagan Jr.
(1980) se refere diz respeito à dificuldade em compatibilizar o que Skinner afirma ser o
operacionismo e a intenção skinneriana de falar da privacidade, mesmo que
inferencialmente. A superação desta dificuldade, (pelo próprio Skinner) está assentada,
segundo Flanagan Jr. (1980), na atribuição ao operacionismo de uma tese metafísica: a
tese de que o privado tem dimensões físicas.
... podemos agora assumir o ponto de vista mais modesto de explicação e causação que
parece ter sido primeiramente sugerido por Mach e que agora é uma carcterística comum
do pensamento científico, segundo o qual, em uma palavra, a explicação é reduzida à
descrição e a noção de causação é substituída pela de função. A descrição completa de
um evento deve incluir uma descrição de sua relação funcional com eventos
antecedentes. Na descrição do comportamento, estamos interessados nas relações dentro
de uma série regressiva de eventos que se estendem do comportamento em si àquelas
mudanças de energia na periferia que designamos de estímulos (pp.337-338).
Observe-se que não se trata, para Skinner, de discutir qual a natureza
"última" do reflexo, mas de considerar o reflexo apenas nos limites de correlações
observáveis. Skinner (1931/1961a) chega a afirmar que o reflexo "é por definição uma
afirmação da necessidade desta relação [entre estímulo e resposta]" (p.338), mas
acrescenta em seguida:
A especificação de estímulo e resposta tornou-se uma questão crucial. Este artigo ... foi
um esforço para resolvê-la, apelando para a regularidade das mudanças na força do
reflexo como um critério para a especificação das propriedades (Skinner, 1935/1961b,
p.347).
Também ao longo do texto, Skinner (1935/1961b) refere-se a uma regra,
segundo a qual "o termo genérico11 ["estímulo" ou "resposta"] só pode ser usado
quando sua realidade experimental tiver sido verificada" (p.364). Pode-se, então, admitir
que a referência de Skinner a "linhas naturais de fratura" não implica necessariamente
uma naturalização de seu objeto de estudo (o reflexo), embora possa assim ser
interpretada. A este respeito, vale observar que Skinner não volta a empregar aquela
expressão ("linhas naturais de fratura") em trabalhos posteriores.
As chamadas linhas de fratura (sejam elas entendidas como naturais ou
não) remetem, fundamentalmente, ao recorte necessário para a investigação projetada por
Skinner. Neste sentido, o problema se desloca para o programa de pesquisas indicado em
1931 e para o modelo de ciência alí contido. A recusa de Skinner em discutir, em 1931, a
possível correspondência entre seu emprego do conceito "reflexo" e uma "realidade
última" do reflexo já contém (ainda que de forma diferenciada) o mesmo apelo à
"realidade experimental", com o qual procura evitar o problema da correspondência entre
conhecimento e realidade. Mas o apelo a uma realidade experimental pode, também,
assumir a forma de negação do caráter arbitrário da atividade científica e, neste caso, a
noção de "linhas naturais" não seria gratuita. A avaliação de Sério (1990) a respeito da
proposta de Skinner em 1931 exemplifica esta possibilidade com clareza. Ao discutir a
análise proposta por Skinner, afirma ela:
... mesmo reconhecendo a existência da análise e, mais que isso, reconhecendo-a como
transformadora, como produtora de um fenômeno, descaracteriza-a como tal, já que a sua
CAPÍTULO 5
Eu fui convertido à posição behaviorista por Bertrand Russell. Naquela ótima revista, o
Dial, ... Bertrand Russell revisou The Meaning of Meaning, de C. K. Ogden e I. A.
Richards. Ele referia-se a Watson e suas teorias, e ao final dizia "Será observado que as
considerações acima são fortemente influenciadas pelo Dr. Watson, cujo livro mais
recente, Behaviorism, considero massivamente impressivo". Após ler a revisão, comprei
o Behaviorism [de Watson], e cerca de um ano depois, o livro Philosophy, de Russell
(p.10).
Skinner refere-se àqueles dois livros (de Russell e de Watson) e a um livro
de Pavlov sobre reflexos condicionados como as obras com as quais começou a formar
sua biblioteca de psicologia, pois aqueles eram "os livros que tinham ... me preparado
para uma carreira na psicologia" (Skinner, 1979, p.4). Em outro trecho de sua
autobiografia, Skinner (1979) relata uma conversa com outro filósofo, Alfred North
40. O interesse de Skinner pela psicologia, vale assinalar, não surgiu com a leitura do
artigo de Russell; ele era anterior a este episódio e foi em certa medida fortalecido por
seu fracasso na carreira literária (cf. Skinner, 1970).
Whitehead, durante seu tempo de estudante em Harvard. Nesta conversa, Skinner já
indicava a relação que via entre filosofia e psicologia.
Ele [Whitehead] me disse que um psicólogo jovem deveria ficar atento à filosofia e,
lembrando Bertrand Russel, eu disse a ele que era exatamente o contrário - precisávamos
de uma epistemologia psicológica (Skinner, 1979, p.29).
Apesar de seu interesse pelo problema do conhecimento (ou exatamente
por este interesse e pela maneira como pretendia abordar aquele problema), Skinner não
via com satisfação qualquer tipo de discussão filosófica. Sua primeira experiência nos
colóquios sobre temas filosóficos promovidos em Harvard é relatada nos seguintes
termos:
... a questão em discussão era se um perfeito infinito poderia criar um imperfeito finito.
Eu sabia o que Russell diria sobre aquilo e saí mais cedo e nunca voltei (Skinner, 1979,
p.29).
O que Russell diria provavelmente corresponde ao que Skinner entendia
ser a relação pertinente entre psicologia e epistemologia: uma explicação
comportamental para o problema do conhecimento e a desqualificação dos problemas
levantados no campo da filosofia metafísica - um projeto persistente na psicologia de
Skinner e que foi inspirado em Russell. Como assinala Smith (1989),
[Pensar] que alguma cópia das contingências é introduzida no organismo para ser usada
numa data posterior é um erro "cognitivo" fundamental. Os organismos não armazenam
... dizer que uma resposta é emitida não implica [dizer] que ela estava dentro do
organismo. O comportamento só existe quando está sendo executado. Sua execução
requer um sistema fisiológico, incluindo efetores e receptores, nervos e um cérebro. O
sistema foi mudado quando o comportamento foi adquirido e é o sistema mudado que é
"possuído" (Skinner, 1974, p.137).
Skinner dedica grande parte de sua discussão acerca da natureza do
conhecimento à crítica do que intitula "teoria da cópia", a idéia de que aprender é
construir cópias do mundo e a suposição de que um organismo, quando aprende algo,
armazena as cópias do mundo em sua mente e as recupera a cada vez em que aquele
conhecimento é necessário. A crítica de Skinner a esta posição é bastante elaborada e
começa com a exposição do argumento dualista (refutado por Skinner) nos seguintes
termos:
Não conhecemos o mundo como ele é, mas apenas como parece ser. Não podemos
conhecer o mundo real porque ele está fora de nossos corpos, em grande parte à distância.
Só conhecemos cópias dele [que estão] dentro de nossos corpos (Skinner, 1969, p.247).
Uma das primeiras restrições de Skinner à teoria da cópia parte da
indagação do valor funcional de tais cópias. Isto é, admitindo-se que o organismo
construa cópias mentais do mundo a sua volta, mas considerando-se que conhecimento é
a capacidade de interagir de forma eficaz com uma dada situação, de que valeriam as
cópias? Skinner (1977) afirma:
A teoria da percepção da cópia é mais convincente com respeito a estímulos visuais. Eles
são freqüentemente copiados em trabalhos de arte, assim como em sistemas óticos de
espelhos e lentes, e, por isso, não é difícil imaginar algum sistema plausível de
armazenamento. É muito menos convincente dizer que não ouvimos o som produzido por
uma orquestra, mas sim alguma reprodução interna ... O argumento é totalmente
inconvincente no campo do sabor e do odor, onde não é fácil imaginar-se cópias
distingüíveis da coisa real ... (Skinner, 1974, pp.80-81).
Sabores e odores seriam particularmente difíceis de serem copiados, mas podem ser
considerados como estímulos de contato e, portanto, suscetíveis de serem conhecidos sem
que se copie (Skinner, 1969, p.250).
Mesmo criticando a teoria da cópia, Skinner assinala que todo
conhecimento, enquanto comportamento, pode ser interpretado como pessoal, na medida
em se refere ao repertório comportamental de um indivíduo. Isso não significa,
entretanto, afirmar que o conhecimento se circunscreve ao que é próprio de cada
indivíduo, pois conhecimento é comportamento diante de um conjunto de contingências
de reforçamento, e estas não dizem respeito a nenhum indivíduo particular, mas ao
mundo que é partilhado por outros. Nas palavras de Skinner (1974):
Um outro problema no controle de estímulos tem atraído mais atenção do que merece
devido a especulações metafísicas sobre o que "realmente existe" no mundo fora [do
organismo]. O que acontece quando um organismo responde "como se" um estímulo
tivesse outras propriedades? Tal comportamento parece indicar que o mundo
"perceptivo" - o mundo tal como o organismo o experiencia - é diferente do mundo real.
Mas a diferença é na verdade entre respostas, entre as respostas de dois organismos ou
entre as respostas de um organismo sob diferentes modos de estimulação de um único
estado de coisas (p.138).
Nós operamos em um mundo - o mundo da física. Os organismos são partes deste mundo
e reagem a ele de muitas maneiras. As respostas podem ser consistentes ou inconsistentes
umas com as outras, mas geralmente há pouca dificuldade para explicar cada caso
(p.139).
O problema se resume, para Skinner, na suposição de que o mundo que
existe é o mundo que dispõe contingências de reforçamento e conhecê-lo é operar com
eficácia diante do mesmo. Esta suposição tem implicações especiais, uma vez que sugere
a possibilidade de hierarquizar-se o conhecimento segundo a capacidade de propiciar
interação efetiva com as contingências de reforçamento dispostas em dada situação. Se a
ciência atinge esta condição, então ela tem, por sua natureza, valor superior para a
cultura. Este problema, no entanto, será examinado nas seções posteriores deste capítulo.
Antes disso, é necessário retornar ao que Skinner postula acerca da natureza do
conhecimento humano, a fim de considerar outros aspectos de sua análise. Já se observou
que Skinner trata do conhecimento enquanto comportamento, mas há outro tipo de
conhecimento, além daquele adquirido através da exposição às contingências de
reforçamento: o comportamento sob controle de regras que descrevem as contingências
dispostas em uma dada situação. Neste caso, "nosso conhecimento é ação, ou pelo menos
regras para a ação" (Skinner, 1974, p.139). Vale, aqui, a distinção que Skinner estabelece
entre comportamento modelado por exposição às contingências e comportamento
governado por regras.
A distinção regras-contingências não implica a admissão de processos
diferentes no controle do comportamento humano, mas simplesmente o fato de que, em
certas situações, os indivíuos agem sob controle não das contingências originais da
situação, mas de regras que explicitam as contingências em vigor. Também este caso
sugere a necessidade de se olhar para o comportamento buscando identificar as variáveis
das quais é função. Respostas com uma mesma topografia (e até que produzam as
mesmas consequências) podem ser diferentes com respeito às variáveis das quais são
função e constituem, portanto, operantes diferentes. Por outro lado, o conhecimento
adquirido através da exposição às contingências não implica necessariamente a
capacidade de descrever, na forma de uma regra, as próprias contingências. Além disso,
diz Skinner (1974):
A linguagem tem o caráter de uma coisa, algo que uma pessoa adquire e possui. Os
psicólogos falam da aquisição da linguagem pela criança. Diz-se que as palavras e
sentenças das quais uma linguagem é composta são ferramentas utilizadas para expressar
significados, pensamentos, idéias, proposições, emoções, necessidades, desejos e muitas
outras coisas dentro ou sobre a mente do falante. Um ponto de vista muito mais produtivo
é o de que o comportamento verbal é comportamento (Skinner, 1974, p.88)41.
O comportamento verbal é abordado por Skinner em termos de respostas
operantes, e, como tal, respostas que são função de contingências de reforçamento. O que
diferencia o comportamento verbal do não verbal é fundamentalmente o fato de que o
primeiro não opera diretamente sobre o ambiente, mas apenas indiretamente. Isto é, uma
resposta verbal opera primariamente sobre outro membro da comunidade verbal e apenas
a partir desta mediação sobre o ambiente em si. Nesta perspectiva, a linguagem (ou
comportamento verbal) refere-se a um modo de ação no mundo só possibilitado pela
mediação de outras pesssoas. Skinner (1957) exemplifica esta idéia afirmando:
Muitas vezes, ... um homem age apenas indiretamente sobre o ambiente do qual emergem
as consequências últimas de seu comportamento. Seu primeiro efeito é sobre outros
homens. Em vez de ir a uma fonte de água, um homem com sede pode simplesmente
"pedir um copo com água" - isto é, ele pode se engajar em um comportamento que
produz um certo padrão de sons que por seu turno induzem alguém a trazer-lhe um copo
com água. Os sons em si podem facilmente ser descritos em termos físicos; mas o copo
com água chega ao falante apenas como resultado de uma série complexa de eventos que
incluem o comportamento de um ouvinte (p.1, itálico acrescentado).
Três aspectos importantes (e interdependentes) da noção skinneriana de
comportamento verbal serão destacados no contexto da presente análise. Primeiro, a idéia
citada acima de comportamento verbal como forma de ação. Segundo, o verbal enquanto
estímulo sob controle do qual um indivíduo se comporta. E terceiro, as práticas da
41. A crítica à idéia de palavras e sentenças como ferramentas que são usadas pelo
homem sugere uma diferença da análise de Skinner em relação à concepção
wittgensteiniana de linguagem. Para Skinner, deve-se ter o cuidado de distinguir o
comportamento verbal de seus registros. O comportamento verbal em si existe enquanto
está ocorrendo, e sua ocorrência não é uma forma de manipulação de algo (sentenças,
palavras, significados ou referentes) que existe de forma independente do falante. Falar
de palavras como ferramentas implica, na visão de Skinner, assumir a linguagem como
algo relativo à manipulação mental de elementos, e de forma tal que independe da ação
dos indivíduos. Significa, portanto, cair nas armadilhas do cognitivismo (cf. Skinner,
1957, Cap. 1). A posição de Wittgenstein, entretanto, mesmo lançando mão da idéia de
linguagem como ferramenta, não implica a adoção do princípio cognitivista de
manipulação mental de significados.
comunidade verbal e seu status42. O primeiro aspecto permite reafirmar a crítica de
Skinner às psicologias cognitivistas. O segundo, permite abordar a noção de "regra", que
é importante para a discussão (posterior) acerca do conhecimento científico. E o terceiro,
permite indicar alguns limites da proposta de análise de Skinner.
Ao considerar a linguagem enquanto comportamento, Skinner novamente
se opõe às psicologias mentalistas e cognitivistas. Esta oposição fica evidenciada a partir
da crítica de Skinner à idéia de significado. Enquanto comportamento, uma resposta
verbal é função de contingências de reforçamento dispostas por uma comunidade verbal.
Aprender uma resposta verbal é tornar-se capaz de emitir esta resposta sob controle
daquelas contingências, e não elaborar correspondentes mentais para as palavras. De
outro lado, emitir uma resposta verbal é operar sobre o ambiente (um ambiente, neste
caso, que inclui o "ouvinte", que pode, inclusive, ser o próprio falante, no caso de
determinados tipos de operantes verbais), e não "expressar" ou "transmitir" conteúdos de
natureza mental. No contexo deste tipo de análise só seria possível falar de "significado"
de respostas verbais se com isso se pretendesse indicar as variáveis das quais aquelas
respostas são função. Isto é, o significado nada mais seria do que o conjunto de
contingências de reforçameto responsáveis pela aquisição e manutenção das respostas
verbais. Skinner indica, assim, a possibilidade de uma interpretação comportamental para
o conceito de significado. Diz ele:
Uma resposta verbal "significa" algo no sentido de que o falante está sob controle de
circunstâncias particulares ... (Skinner, 1977, p.8).
Recorde-se, agora, o que Skinner entendia ser o operacionismo: uma
proposta de definição dos significados dos conceitos científicos, mas se por isso se
entendesse a especificação das condições diante das quais aqueles conceitos, enquanto
respostas verbais, são empregados. No artigo de 1945, esta noção de significado já é
apresentada com respeito ao conceito de "comprimento", um conceito do qual Bridgman
(1928) lança mão ao apresentar seu operacionismo. Argumenta Skinner (1945):
42. Estes problemas delimitam o escopo desta exposição sobre o tratamento skinneriano
do problema da linguagem. Deve-se salientar, no entanto, que a análise de Skinner no
Verbal Behavior (Skinner, 1957), em particular sua exposição sobre os diferentes tipos de
operantes verbais, é extremamente sofisticada e evidencia a complexidade dos princípios
aqui considerados.
Até o tempo dos gregos, ninguém parece ter sabido que havia regras de gramática,
embora as pessoas falassem gramaticalmente no sentido de que se comportavam
eficazmente sob contingências mantidas por comunidades verbais, assim como as
crianças atualmente aprendem a falar sem que lhes sejam dadas regras para serem
seguidas (p.8).
Mesmo mostrando ser possível uma interpretação coerente com sua
posição para conceitos tradicionalmente pertencentes ao campo do pensamento
cognitivista, Skinner não considera ser o caso de preservar tais conceitos sob nova
roupagem. O mais apropriado seria abandoná-los, em favor de um aparato conceitual que
se mostre delimitado pela alternativa de abordar funcionalmente o problema do
comportamento verbal. Nesta sentido, Skinner (1957) assinala:
Nós poderíamos, sem dúvida, definir idéias, significados e assim por diante, de forma que
se tornassem cientificamente aceitáveis e até úteis para a descrição do comportamento
verbal. Mas este esforço para manter termos tradicionais teria um custo alto. É a
formulação geral que está errada. Nós procuramos "causas" do comportamento que
tenham um status científico aceitável e que, com alguma sorte, serão sucestíveis de
mensuração e de manipulação. Dizer que estas ["causas"] são "tudo que se quer dizer"
com idéias e significados é deturpar a prática tradicional. Devemos encontrar as relações
funcionais que governam o comportamento verbal a ser explicado; chamar estas relações
de "expressão" ou "comunicação" é correr o perigo de introduzir propriedades e eventos
alheios e enganadores. A única solução é rejeitar a formulação tradicional de
comportamento verbal em termos de significado (p.10)44.
Se uma análie funcional do comportamento verbal desautoriza qualquer
interpretação da linguagem em termos de representação do mundo, como abordar a
relação entre as respostas verbais que os indivíduos emitem e o mundo (ou o ambiente
não social) a sua volta? Em que sentido respostas verbais podem ser interpretadas como
reveladoras de conhecimento de algo? A resposta de Skinner vai na mesma direção de
sua noção de conhecimento em geral:
Os falantes não introduzem o mundo [em si] e o colocam em palavras; eles respondem a
ele em maneiras que foram modeladas e mantidas por contingências de reforçamento
especiais (Skinner, 1988/1989a, p.35).
Tal como no caso de respostas não verbais, o comportamento verbal pode
expressar conhecimento simplesmente no sentido de que respostas verbais particulares
ocorrem em situações particulares promovendo determinada interação do indivíduo com
o ambiente circundante. Disso resulta que, também no campo verbal, não se possui um
conhecimento enquanto algo armazenado. O conhecimento a que a noção de
comportamento verbal diz respeito é possuído apenas no sentido de haver um repertório
verbal, uma probabilidade de ocorrência de respostas verbais particulares em
circunstâncias particulares. Ele não existe, portanto, enquanto algo guardado, seja na
mente, seja em qualquer outro local. Acerca deste problema, Skinner assinala (1957):
44. Note-se que este argumento de Skinner para rejeitar as noções de significado, idéia e
termos correlatos exemplifica a delimitação conceitual de sua ciência ao que atende ao
propósito de buscar relações funcionais entre eventos. Apenas o que conduz àquelas
relações tem "um status científico aceitável" e instrumentaliza para a "mensuração" e
"manipulação".
ser considerado enquanto um "signo" destinado à veiculação de significados mentais.
Para Skinner (1977) "... um estímulo verbal "significa" algo no sentido de que o ouvinte
responde a ele de maneiras particulares (p.8).
Isto é, para Skinner, um estímulo verbal não "expressa", "transmite", ou
"veicula", "informações", "idéias", "pensamentos" ou "significados". Ele é simplesmente
um estímulo diante do qual, em virtude de uma história de reforçamento provida por uma
comunidade verbal, o indivíduo se comporta de maneira particular. Quer dizer, também
no campo do verbal enquanto estímulo, falar de conhecimento é falar de comportamento.
Por outro lado, é falar de um comportamento tornado possível diante daquele estímulo
verbal a partir de uma exposição prévia às práticas de uma comunidade verbal. Em
outras palavras, como diz Skinner (1988/1989a):
... por um lado, evocam respostas de glândulas e músculos lisos, mediadas pelo sistema
nervoso autônomo, especialmente respostas emocionais [por exemplo, salivar ao ouvir
"torta de maçã"]. Estes casos exemplificam os clássicos reflexos condicionados. Por
outro lado, os estímulos verbais controlam grande parte do complexo comportamento do
esqueleto, com o qual o indivíduo opera sobre seu ambiente ... Em nenhum caso, o
estímulo verbal difere em nenhum particular de outras formas de estimulação. O
comportamento de um homem como ouvinte não deve ser diferenciado de outras formas
de seu comportamento (p.34).
Algumas considerações devem ser feitas com respeito a esta citação. Em
primeiro lugar, deve-se atentar para o fato de que as respostas reflexas a que Skinner se
refere são respostas condicionadas. Tal condicionamento surge a partir de uma exposição
a contingências de reforçamento dispostas por uma comunidade verbal e a expressão
"torta de maçã", introduzida como exemplo na citação, não guarda nenhuma relação
formal com qualquer estímulo capaz de eliciar, por si mesmo, a resposta de salivação. É
apenas por força daquele condicionamento (das práticas da comunidade verbal) que o
estímulo verbal assume a condição de eliciador da resposta reflexa. Outra consideração
diz respeito à constatação de que Skinner considera que grande parte do comportamento
("do esqueleto") humano que caracteriza sua operação sobre o ambiente a sua volta (isto
é, grande parte do comportamento operante) está sob controle de estímulos verbais. Isto,
no entanto, não parece constituir problema adicional, em razão de que, segundo Skinner,
nenhuma diferença significativa deve ser buscada entre o comportamento sob controle de
estímulos verbais e o comportamento sob controle de estímulos não verbais, o que
significa dizer que o estímulo verbal não tem nenhuma condição diferenciada com
respeito ao controle do comportamento humano. Por isso é possível falar do
conhecimento a que a noção de comportamento sob controle de estímulos verbais diz
respeito nos mesmos termos (ou, referindo-se ao mesmo processo) em que se fala de um
conhecimento que diz respeito ao comportamento sob controle de estímulos não
verbais45.
Se nenhuma diferença significativa do ponto de vista do controle do
comportamento humano deve ser assinalada entre estímulos verbais e estímulos não
verbais, então os estímulos verbais nada mais são do que elementos de uma relação
(funcional, de tríplice contingência), que por força das práticas de uma comunidade
verbal assumem a condição de estímulos discriminativos naquela relação, e cujo valor
reside no que propicia de interação do indivíduo com o ambiente a sua volta.
Considerando-se a noção de comportamento governado por regra neste contexto, será
possível interpretar uma regra simplesmente como um estímulo verbal que assume a
função de estímulo discriminativo por força das práticas de uma comunidade verbal, e
numa relação que propicia a interação do indivíduo com partes de seu ambiente sem que
seja necessário sua exposição prévia às contingências originais da situação. Nesta
perspectiva, uma regra não contém nenhuma relação formal com o "mundo que dispõe
contingências de reforçamento"; em outras palavras, ela não o representa. É certo que
Skinner fala de regras como estímulos especificadores de contingências (Skinner, 1969,
Cap. 6) e como estímulos que descrevem contingências (Skinner, 1974, Cap. 8), e estes
termos, tomados fora do contexto maior de seu pensamento, podem ser interpretados
como indicando uma relação de representação entre regra e realidade. A correspondência
sugerida por estes termos, no entanto, está limitada pela noção de controle de estímulos;
uma regra corresponde a uma dada situação apenas no sentido de que compreende
respostas verbais adquiridas e mantidas por contingências de reforçamento que envolvem
estímulos particulares característicos daquela situação, assim como a resposta "livro"
corresponde ao objeto livro apenas no sentido de que é adquirida e mantida
contingentemente à presença de estímulos relacionados ao objeto livro. Esta maneira de
abordar o problema evita que se caia numa teoria referencial do significado, isto é, que se
transite para uma concepção de linguagem enquanto sistema de representação. Ainda
com respeito à noção de controle de estímulos no caso de respostas verbais, é importante
insistir no papel desempenhado pela comunidade verbal. Como diz Skinner (1974),
um referente poderia ser definido como aquele aspecto do ambiente que exerce controle
sobre a resposta da qual se diz que ele é um referente. Ele exerce este controle devido às
práticas reforçadoras de uma comunidade verbal (p.92, itálico acrescentado).
Como as práticas reforçadoras de uma comunidade verbal é que são
responsáveis pelas relações que se estabelecem entre estímulos ambientais e respostas
verbais, é neste terreno que se pode discutir a natureza da relação entre linguagem e
realidade. De certa forma, o que se precisa indagar é se as práticas de uma comunidade
verbal são arbitrárias e atendem a interesses histórico-culturais, ou se são
determinadas, de algum modo, pela própria natureza do processo humano de interação
45. As diferenças que persistem são aquelas assinaladas pela distinção entre
comportamento modelado por contingências e comportamento governado por regras. Os
vários aspectos em que estas duas instâncias se diferenciam, entretanto, não caracterizam
princípios diversos acerca das relações de controle do comportamento humano, mas a
maneira particular como aquelas relações (de tríplice contingência) vêm a se configurar
(cf. Skinner, 1969).
com o mundo. Estas duas possiblidades podem não ser de todo incompatíveis. Isto é,
pode-se admitir o processo de construção de sistemas lingüísticos como biologicamente
sustentado46, mas configurado a partir de elementos histório-culturais. De qualquer
modo, as duas possibilidades salientam o que pode ser colocado em evidência na análise
do problema da linguagem. Se aquelas práticas forem consideradas primariamente a
partir de seus componentes arbitrários, então a relação entre linguagem e realidade será
reconhecida como limitada pelos interesses histórico-culturais da comunidade verbal. Por
outro lado, se aquelas práticas forem interpretadas primariamente a partir de elementos
que dizem respeito à própria natureza humana, então a análise da linguagem permanecerá
naturalizada, sem dar conta da dimensão histórico-cultural dos sistemas lingüísticos,
ainda que se preserve uma concepção funcional da linguagem. Do ponto de vista das
proposições skinnerianas, a questão acima assume contornos bastante singulares. De um
lado, Skinner evita tratar da linguagem enquanto fenômeno de natureza biológica, o que
propicia a consideração dos elementos histórico-culturais próprios das práticas de uma
comunidade verbal. De outro lado, a concepção skinneriana de conhecimento e o método
de investigação por ela sugerido acabam por reduzir o estudo da linguagem a uma
perspectiva naturalizada. Considere-se, inicialmente, a proposta skinneriana de uma
análise funcional para o comportamento verbal, resumidamente apresentada nos
seguintes termos:
... o comportamento verbal adquirido pelo indivíduo sob as práticas reforçadoras de uma
comunidade verbal não parece ser a modificação de vocalizações adquiridas pela espécie
em função de consequências específicas que tenham valor de sobrevivência. O balbuciar
relativamente indiferenciado da criança humana, a partir do qual o comportamento verbal
vocal se desenvolve é sem dúvida um produto evolutivo, mas ele não é o tipo de
comportamento que é evocado (ou "liberado") em formas específicas em situações
específicas. O mesmo pode ser dito do comportamento não verbal. Em geral, o
comportamento operante emerge de movimentos indiferenciados, não organizados
previamente e indiretos (Skinner, 1957, p.464).
Se a evolução da cultura não é um processo biológico e se a linguagem se
insere no campo das práticas culturais, como interpretar a relação entre as práticas de
uma comunidade verbal e o mundo a sua volta? Skinner esclarece que por não operar
diretamente sobre o meio físico, o comportamento verbal pode prescindir dos
componentes deste meio e das propriedades espaciais e temporais dos mesmos.
Argumenta Skinner (1974):
[O comportamento verbal] ... está livre de relações espaciais, temporais e mecânicas que
prevalecem entre o comportamento operante [não verbal] e consequências não sociais.
(...) À parte de uma audiência ocasionalmente relevante, o comportamento verbal não
requer nenhum suporte ambiental. Uma pessoa precisa de uma bicicleta para andar de
bicicleta, mas não para dizer "bicicleta" (p.89).
Esta citação de Skinner mostra-se pertinente enquanto uma explicitação
das condições diante das quais uma resposta verbal é emitida. Ela não faria sentido,
entretanto, se interpretada em termos da possibilidade de as práticas de uma comunidade
verbal poderem prescindir em todo e qualquer instante do mundo a sua volta. O problema
relevante é como uma comunidade verbal vem a se constituir e quais as relações que,
neste processo de constituição (e de evolução), as suas práticas guardam com o mundo
com o qual interage. Ao endereçar questões que se aproximam deste problema, Skinner
evidencia as limitações de sua própria análise. Afirma Skinner (1957):
... um ambiente verbal poderia ter surgido de fontes não verbais e, na sua transmissão de
geração para geração, teria sido sujeito a influências que poderiam explicar a
multiplicação de formas e relações de controle e a eficácia crescente do comportamento
verbal como um todo (p.470).
Alguns dos problemas colocados por Skinner nesta citação são relevantes
no contexto de uma análise que procure dar conta dos aspectos histórico-culturais da
constituição e evolução de sistemas lingüísticos (ou de práticas de uma comunidade
verbal). Tais problemas, no entanto, não podem ser respondidos pela ciência skinneriana,
que se limita às relações de controle envolvidas na aquisição e manutenção de respostas
verbais. Este nível, o nível das relações de controle, circunscreve as possibilidades de
uma ciência empírica e experimental do comportamento humano. E permanecer neste
nível representa naturalizar o problema da linguagem. Esta naturalização fica evidenciada
com a análise possível da noção de significado; falar do significado de uma resposta
verbal é especificar estímulos discriminativos e reforçadores aos quais a resposta está
funcionalmente relacionada - e nada mais. Em outras palavras, ao evitar as armadilhas
cognitivistas e mentalistas, Skinner concebe a linguagem de uma forma tal que quando
subordinada à investigação experimental não pode dar conta da significação histórico-
social daquilo que os homens falam. Este tipo de significação (histórico-social), por outro
lado, é que pode evidenciar a natureza arbitrária de um sistema lingüístico, mas ele
transcende os limites da especificação de estímulos e repostas, em direção a uma
consideração do sistema de valores, crenças e interesses que orientam um padrão de
interação dos indivíduos com o mundo a sua volta. Ressalte-se, aqui, que a concepção
skinneriana da linguagem restringe o que pode ser levado em conta na análise das
práticas de uma comunidade verbal, mas apenas em sua relação com a própria noção
skinneriana de conhecimento e com o método por ela ditado. Conforme já foi observado,
a maneira como aquelas práticas são concebidas não exclui, por si mesma, a possibilidade
de consideração de seus aspectos histórico-culturais.
As leis das nações e as religiões têm existido por muitos séculos, e o que significava ser
bem governado deve ter sido debatido por um tempo igualmente longo, antes que Francis
Bacon sugerisse que o mundo natural deveria também ser governado. Suas leis eram,
devemos dizer agora, as contingências de reforçamento mantidas pelo ambiente. As leis
da ciência descrevem aquelas contingências, assim como as leis dos governos ou as
religiões descrevem algumas das normas ou regras das sociedades. (Skinner, 1988/1989a,
p.43, itálico acrescentado).
A tarefa reservada à ciência diante daquela noção naturalizada de mundo é
afirmada por Skinner da seguinte maneira:
Se a psicologia é uma ciência da vida mental ... então ela deve desenvolver e defender
uma metodologia especial, o que ainda não fez com sucesso. Se, por outro lado, ela é
uma ciência do comportamento dos organismos, humanos ou diferentes, então ela é parte
da biologia, uma ciência natural para a qual estão disponíveis métodos testados e
altamente bem sucedidos (Skinner, 1969, p.221).
Assumindo a psicologia como uma ciência natural, onde natural diz
respeito tanto às condições de seu objeto de estudo quanto ao que vem a ser o
conhecimento deste objeto, Skinner não vê necessidade de supor que sua ciência (ou
qualquer outra ciência) apreende alguma essência dos fenômenos de que se ocupa, muito
menos uma essência inacessível a outras formas de conhecimento que se diferenciem do
conhecimento científico. Afirma ele que:
É um erro ... dizer que o mundo descrito pela ciência é, de alguma forma, mais próximo
"do que realmente existe", mas também é um erro dizer que a experiência pessoal do
artista, compositor, ou poeta está mais próxima "do que realmente existe". Todo
comportamento é determinado, direta ou indiretamente, por consequências, e os
comportamentos de ambos, o cientista e o não cientista, são modelados pelo que
realmente existe, mas de maneiras diferentes (Skinner, 1974, p.127).
Isto é, a ciência, ao contrário do que supunham as filosofias
representacionistas tradicionais, não entra em contato com nenhuma essência do mundo,
inacessível ao homem comum. Ela lida com o único mundo existente, que determina
tanto o comportamento do leigo como o comportamento do poeta, do artista, ou do
cientista: o mundo que dispõe contingências de reforçamento. É necessário ter o cuidado,
porém, de não interpretar esta citação de Skinner como a afirmação de que todo tipo de
conhecimento, por ter origem na interação com o mesmo mundo, tem o mesmo valor ou o
mesmo status. Uma coisa é afirmar que o conhecimento do leigo e o conhecimento do
cientista têm origem na interação com o mesmo conjunto de elementos; outra coisa é
afirmar que o conhecimento resultante de ambos tem o mesmo valor relativo. A posição
de Skinner é a de sustentar que o conhecimento científico tem um valor diferenciado.
Afirma Skinner (1957):
Implícito em uma análise funcional está a noção de controle. Quando descobrimos uma
variável independente que pode ser controlada, descobrimos uma maneira de controlar o
comportamento que é uma função dela. Este fato é importante por propósitos teóricos.
Provar a validade de uma relação funcional através de uma demonstração atual do efeito
de uma variável sobre outra é o coração da ciência experimental. Esta prática permite-nos
dispensar muitas técnicas estatísticas problemáticas ao testarmos a importância das
variáveis (Skinner, 1953/1965, p.227).
Ao considerar o papel da comunidade verbal científica no controle do
comportamento verbal científico, Skinner dirige sua atenção para a relação entre as
contingências colocadas pela comunidade verbal e o controle das inclinações pessoais do
cientista. Não há, aqui, nada de novo. A idéia de controle das inclinações pessoais pode
ser tida como a "essência" da noção de método, desde que esta foi inaugurada por
Galileu, Bacon e Descartes; e a própria ciência não pode ser discutida fora de sua relação
com aquela noção de método. Também não parece fazer sentido argumentar contra
Skinner, recorrendo ao apelo tradicional de que "a ciência não é neutra", se por isso se
pretender enfatizar o quanto das inclinações pessoais determinam a atividade do cientista
a despeito das contingências dispostas pela comunidade científica. É óbvio que a própria
escolha de um objeto de estudo já atende a interesses pessoais de um cientista, mas
também é evidente que o método e as contingências dispostas pela comunidade científica
funcionam na limitação da interferência das inclinações pessoais na prática de produção
de conhecimento. De qualquer modo, não é ao nível das condições pessoais que se deve
colocar a discussão da objetividade, pelo menos não apenas a este nível. Interessa atentar
para as condições histórico-sociais responsáveis pelas próprias contingências de que uma
comunidade científica lança mão e para as concepções acerca do que vem a ser o objeto
de estudo da ciência e do que vem a ser conhecê-lo. Volta-se, neste caso, para o problema
levantado na seção anterior acerca de como abordar a linguagem; neste caso, trata-se de
como abordar as práticas de uma comunidade verbal científica. As limitações da análise
skinneriana da linguagem, mencionadas anteriormente, aparecerão em sua consideração
sobre a prática científica e sobre a noção de objetividade. Skinner reconhece que fatores
histórico-sociais são determinantes de um conjunto de práticas científicas (e tais fatores
podem ser vislumbrados, no caso particular do próprio Skinner, através de suas
autobiografias - por exemplo, Skinner, 1979), mas a possibilidade de estas condições
serem levadas em conta limita-se à alternativa de considerá-las de forma naturalizada,
enquanto estímulos e respostas. Observe-se como isso ocorre na seguinte citação, na qual
Skinner se ocupa primariamente de negar que a ciência diz respeito a algo pessoal do
cientista:
Uma filosofia, um clima moral, uma consciência de classe e um espírito dos tempos são
outras posses intelectuais que caem no campo do conhecimento e explicam alguns dos
padrões amplos de comportamento que são característicos de um povo, uma classe, um
período ou uma cultura. Diz-se que uma pessoa age ou fala como o faz porque é um
pragmatista, um membro do proletariado, um praticante da ética do trabalho ou um
behaviorista. Termos deste tipo classificam o comportamento que tem consequências
identificáveis sob certas circunstâncias (pp.145-146).
Quer dizer, compreender as práticas de uma comunidade de pragmatistas
ou behavioristas reduz-se a explicitar relações de controle ali identificáveis, e não refletir
sobre concepções de homem e de mundo nelas envolvidas. Fica difícil (se não
impossível), nesta perspectiva, discutir criticamente a configuração que cada conjunto de
práticas impõe à realidade e à experiência humana, e os interesses e propósitos nela
contidos.
Se tudo se reduz a contingências de reforçamento, uma ciência deve de
fato se ocupar das mesmas nos limites de seu campo de investigação; e não poderá haver
outro critério para validação do conhecimento que não seja o critério da funcionalidade,
também entendido em termos da interação com aquelas contingências. A análise de
Skinner não permite, portanto, que se questione o próprio interesse pela manipulação dos
fenômenos47, enquanto direcionador da prática científica; ao contrário, para Skinner,
qualquer limitação da ciência só será superada com uma realização mais efetiva daquele
propósito. Diz Skinner (1974):
Diz-se que o Ocidente fez um fetiche do controle da natureza. Certamente, não é difícil
apontar as consequências infelizes de muitos avanços na ciência, mas não está claro
como isso pode ser corrigido a não ser através de um exercício maior do poder da ciência
(p.140)48.
Na discussão final deste capítulo, algumas outras questões relativas à
maneira como Skinner concebe o conhecimento cientíico serão colocadas. Antes disso,
porém, cabe examinar brevemente como o problema da verdade pode ser elaborado no
contexto do pensamento skinneriano. Em seguida à exposição do problema da verdade, e
antes de partir para uma discussão final, algumas considerações sobre a filosofia de Ernst
Mach serão apresentadas com o intuito de lançar luz sobre alguns aspectos do
pensamento de Skinner.
48. Quer dizer, para Skinner, eventos indesejáveis resultantes (ou relacionados) de uma
ciência experimental não devem ser debitados à ciência em si; a solução dos problemas,
entretanto, não está em nenhum outro campo, mas no avanço da própria ciência.
Quer dizer, as práticas de uma comunidade verbal científica sugerem que
a noção de verdade torna-se pertinente no contexto da avaliação do que uma asserção
científica propicia em termos da interação com o fenômeno a que diz respeito. Se ela
propicia uma interação efetiva, então pode-se considerá-la uma asserção verdadeira; se,
por outro lado, ela não propicia uma interação efetiva, então pode-se qualificá-la como
falsa. Esta posição também indica qual a interpretação pertinente para o que os cientistas
(inclusive psicólogos mentalistas) chamam de "falso" e "verdadeiro". Isto é, mesmo
aqueles que acreditam estar tentando representar o mundo, estão na realidade falando da
eficácia de suas leis, ao qualificarem as mesmas como falsas ou verdadeiras.
Os limites das práticas de uma comunidade científica demarcam, por outro
lado, até onde se pode falar de uma asserção ou lei científica como "verdadeira". Ao
indicar estes limites, Skinner, de um lado, descarta qualquer possibilidade de chegar-se a
uma verdade "última" ou "absoluta"; e, de outro, reconhece nas práticas da comunidade
científica uma via para se chegar a asserçÕes mais "objetivas/funcionais" e, de certa
forma, mais "verdadeiras". Estes aspectos podem ser evidenciados a partir das seguintes
citações de Skinner:
Usualmente, os objetos são capazes de gerar muitos tipos diferentes de estímulos que se
relacionam de certas maneiras. Respostas a algumas formas de estimulação são mais
prováveis de serem "certas" do que respostas a outras formas, no sentido de que são
mais prováveis de levar ao comportamento efetivo. Naturalmente estes modos são
favorecidos, mas qualquer sugestão de que nos colocam mais próximos do mundo "real"
está fora de lugar aqui (p.139, itálico acrescentado).
Há um sentido em que a concepção skinneriana de verdade e objetividade
não atende ao propósito de simples avaliação e hierarquização dos diferentes tipos de
asserção: ela não é tão plástica quanto a noção de verdade em James. Isto é, enquanto
para James uma asserção religiosa pode ser tão verdadeira quanto uma asserção
científica, no sentido de que uma pode ser tão útil quanto a outra ao prover uma interação
efetiva com o mundo circundante, para Skinner esta possibilidade não faria sentido. Isto
porque no behaviorismo skinneriano a noção de funcionalidade (a que a noção de
verdade diz respeito) não tem apenas o sentido genérico de "interação efetiva". A noção
de funcionalidade implica o controle do comportamento do falante pelas contingências de
reforçamento dispostas na situação original (há, também, as contingências dipostas pela
comunidade verbal científica, mas estas, como examinado, funcionam para garantir que o
comportamento verbal científico fique sob controle daquelas contingências relativas a seu
objeto de estudo, e não de contingências externas àquela situação). Neste caso, Skinner
estaria mais próximo da posição de Peirce, da crença de que o método (experimental)
científico é a via apropriada para falar-se em verdade ou funcionalidade. Isto porque, no
contexto de algumas colocações de Skinner sobre o problema do conhecimento, apenas
uma ciência empírico-experimental estaria aparelhada para descobrir as contingências de
reforçamento relativas a um dado objeto de estudo; em outras palavras, a ciência
(experimental) estaria melhor preparada do que outros conjuntos de práticas da cultura
para prover uma interação efetiva com o mundo. Esta perspectiva evidencia que a noção
skinneriana de funcionalidade nem sempre é suficiente para colocá-lo no campo PA do
pensamento pragmatista, já que se trataria menos de reconhecer os diferentes tipos de
enunciados como dotados de valor funcional para os indivíduos e para a cultura, e mais
de circunscrever tal valor a asserções originadas da investigação experimental e capazes
de propiciar a previsão e o controle.
À propósito da referência aos pragmatistas, vale citar um trecho no qual
Skinner se refere a Peirce, James e Dewey, tocando exatamente na questão da verdade,
mas de uma maneira no mínimo original. Afirma Skinner (1969), ao tratar de regras e
contingências:
O conhecimento instintivo, involuntário, dos procesos naturais ... nasce das relações entre
os processos naturais e a satisfação de nossas necessidades. A aquisição dos
conhecimentos mais elementares não compete, sem dúvida, só ao indivíduo, ela é
preparada pelo desenvolvimento da espécie (p.13).
Mach oferece, então, uma visão naturalizada do problema do
conhecimento, já que o entende enquanto determinado pela natureza (biológica) humana
(e não construído historicamente pelo homem). Esta naturalização significa não apenas a
caracterização do conhecimento como processo biológico adaptativo, mas também, a
justificação de aspectos definidores do conhecimento a partir de necessidades
biologicamente determinadas do homem. Conhecer, para Mach, é estabelecer relações
entre fenômenos experienciados, e de forma tal que propiciem interações que sejam mais
favoráveis à adaptação. Neste caso, não "representamos" fatos em sua totalidade, mas em
termos dos aspectos relevantes para nossos interesses práticos (adaptativos).
A representação mental que formamos dos fatos nunca é uma representação do fato total,
mas só daquele aspecto do mesmo que para nós é importante; perseguimos um objeto
surgido mediata ou imediatamente de um interesse prático. Nossas representações são
sempre abstrações (Mach, 1883/1949, p.400).
Nesta visão naturalizada do conhecimento, na qual o que importa são as
relações que se podem identificar entre os fenômenos e de forma tal que facilite a
interação com os mesmos, a ciência converte-se simplesmente num "caso particular no
processo biológico total de adaptação" (Kolakowski, 1972, p.145). Ela se ocupará,
portanto, também das relações identificáveis entre os fenômenos experienciados. Não
existe, assim, uma quebra de continuidade entre o conhecimento prático e o
conhecimento teórico.
Para Mach (1883/1949), "parece ... natural admitir que a agrupação
instintiva das experiências precedeu a sua ordenação científica" (p.15). O fato de o
conhecimento primitivo preceder o conhecimento científico não implica que se está
diante de processos diferentes, nem simplesmente que se relacionam cronologicamente
nesta ordem. Ao contrário, indica uma continuidade de práticas humanas orientadas pelo
mesmo princípio adaptativo. A ciência, tal como as formas primitivas de conhecimento,
está limitada pelo conjunto das experiências humanas e se regula pelo processo
adaptativo da espécie, diante do conjunto de suas experiências. Ela se ocupa, assim, da
ordenação das experiências humanas e está limitada por estas; ela é "uma simples
continuação da mesma sistematização simbólica, resumidamente escrita, da experiência
que as pessoas buscaram espontaneamente através da história" (Kolakowski, 1972,
p.142).
A continuidade existente entre o conhecimento prático pré-científico e o
conhecimento teórico científico, entretanto, não os coloca no mesmo nível de satisfação
das necessidades biológicas do organismo humano. Estas duas instâncias de
conhecimento atendem àquelas necessidades de forma diferenciada quanto à extensão e
eficiência. Este aspecto fica evidenciado com o conceito de "economia" que Mach
introduz em sua discussão acerca do conhecimento científico.
Ainda sob influência do pensamento darwinista, Mach considera a função
adaptativa da atividade de conhecimento como orientada por um princípio econômico, o
que indica a existência de "um regulador inconscientemente proposital das atividades de
auto-preservação do organismo" (Kolakowski, 1972, p.143). Este princípio, entretanto, é
elaborado no contexto da reflexão sobre a natureza do conhecimento científico, daí Mach
empregá-lo como "economia do pensamento"49. Ele se traduz, na ciência, com a prática
A ciência natural se propõe a investigar o que há de constante nos fenômenos, quais são
seus elementos e qual é a vinculação e dependência entre eles (p.17).
É neste sentido que Mach abandona a noção de "causa" em favor da noção
de "função"; e que reduz o problema da "explicação" a uma questão de "descrição", neste
caso descrição de relações. A busca de relações funcionais entre eventos, por outro lado,
implica a identificação de relações estáveis, não acidentais e, neste contexto, a
investigação científica está limitada ao que atende ao critério de replicabilidade. Mach é
explicito a respeito deste critério. Afirma ele:
... para o uso científico, as representações mentais das vivências sensíveis devem tomar a
forma de conceitos. Só assim podem ser utilizadas na busca de uma propriedade
dependente de um fato ou completar uma propriedade parcialmente dada, mediante uma
construção quantitativa abstrata, baseada em uma apreciação abstrata da propriedade
caracterizada. Estas formas são obtidas destacando-se o que se considera mais importante
e prescindindo do que é acessório, por abstração, por idealização. A experiência decide
se tal conformação satisfaz. Sem uma idéia qualquer pré-concebida, é fundamentalmente
impossível toda experiência, pois a forma desta é dada por aquela. O quê e como
devemos experimentar, se não fizermos de antemão alguma conjectura? Das experiências
prévias [base das conjecturas] depende o modo de completar os experimentos. Os
experimentos confirmam, modificam ou refutam as conjecturas. O investigador moderno,
de modo análogo, se colocará as questões: "V é função de que?" "T é que função de V?"
(Mach, 1883/1949, p.113).
Observação e experimentação garantem, para Mach, a apreensão de
relações ordenadas, capazes de prover a adaptação e sobrevivência de forma mais eficaz
do que o conhecimento pré-científico. Isto porque abrangem um campo maior da
experiência humana, preservando-a e ordenando-a economicamente. "A ciência ...
consiste da representação mais completa dos fatos, com o menor esforço mental" (Mach,
1883/1949, p.406). A superioridade da ciência, então,
... consiste primariamente de uma maior habilidade para diferenciar e de uma maior
riqueza de qualidades observadas no mundo, algumas das quais são úteis, outras
prejudiciais (Kolakowski, 1972, p.147).
Na ciência, a experiência humana é "meramente mais efetivamente
organizada" (Kolakowski, 1972, p.147). O valor superior das asserções científicas, por
outro lado, não se pretende, para Mach, fundamentado numa suposição filosófica
apriorística; ele está assentado na natureza biológica do homem e no processo evolutivo
da espécie. Nas palavras de Lubbe (1978), "Mach é darwinista ao considerar a habilidade
teórica como o meio supremo de realização na vida" (p.92).
O problema da correspondência entre asserções científicas e uma realidade
última é considerado sem sentido para Mach, já que a ciência lida exclusivamente com o
campo da experiência humana e apenas a nível de descrições de relações entre eventos. E
é no campo da experiência humana, por outro lado, que está circunscrita a atividade de
conhecimento em seu aspecto biológico e adaptativo. Os conceitos da física, por
exemplo, "... não têm outra missão além de recordar experiências economicamente
ordenadas" (Mach, 1883/1949, p.422). Uma lei científica, para Mach, segundo Lubbe
(1978)
... não tem nenhuma possível realidade ontológica ou transcendental sui generis, que
precise de uma explicação filosófica prévia em termos das condições de sua possibilidade
(p.94).
Uma lei científica é simplesmente "a experiência economicamente
ordenada de forma a estar pronta para uso" (Mach, In Lubbe, 1978, p.94). Preservar a
discussão acerca de uma realidade última do mundo representa, para Mach, transcender
os limites da natureza humana e cair no campo da mera especulação. Esta posição de
Mach é resumidamente caracterizada por Kolakowski (1972) como "uma visão natural do
mundo, sem ingredientes metafísicos especulativos" (p.145). É como se Mach, tendo
naturalizado o problema do conhecimento numa perspectiva evolucionista, pudesse evitar
a necessidade de argumentar a favor de seu modelo de ciência para reivindicar um status
privilegiado para as asserções elaboradas segundo os critérios alí prescritos.
Um outro aspecto importante da posição assumida por Mach é que ela
afirma tanto a relatividade de todo conhecimento, quanto a superioridade da ciência. A
compreensão deste aspecto é fundamental para lançar luz sobre a possibilidade de
compatibilização de um pragmatismo funcionalista com um representacionismo que
afirma a existência de discursos privilegiados.
Segundo Mach, todo conhecimento, por estar circunscrito às experiências
humanas, encontra-se sujeito a críticas ou revisões. Não há, portanto, um conhecimento
último ou definitivo acerca de algo, nem mesmo o discurso científico é dotado desta
condição. As leis científicas, para Mach, "... não descrevem nenhuma parte necessária da
natureza ..." (Arens, 1985, p.164); elas são simples instrumentos econômicos de interação
com a mesma. Como afirma Kolakowski (1972), Mach era um anti-dogmatista radical e,
como tal "era profundamente convencido do caráter provisório de todo estágio da ciência
e de todas as asserções científicas" (p.142). Observe-se, contudo, que o anti-dogmatismo
de Mach não está assentado na constatação dos limites sócio-históricos da ciência, mas
em sua concepção de conhecimento como atividade adaptativa do organismo humano e
que, como tal, limita-se ao campo da experiência humana. O relativismo de Mach incide,
coerentemente, em sua concepção de verdade. Para ele, "verdade era uma questão de
promoção da adaptação de um indivíduo ou da espécie ao ambiente circundante" (Smith,
1989, p.272). A semelhança para com o pragmatismo de James parece evidente, e Smith
(1989) coloca esta relação com toda clareza. Afirma ele:
Mach sustentava uma visão [de verdade] estreitamente relacionada com o que mais tarde
se tornou conhecido como a concepção pragmatista de verdade, uma concepção para a
qual ele pode de fato ter contribuído através de sua influência sobre William James"
(Smith, 1989, p.272).
O positivismo de Mach mostra-se, assim, alinhado com alguns supostos
importantes do pragmatismo de Peirce, James e Dewey. Isto é possível porque Mach
parte de uma perspectiva darwinista para discutir a questão do conhecimento e chega a
uma concepção funcionalista de caráter biológico. Conceber o conhecimento enquanto
atividade adaptativa, determinada biologicamente, parece suficiente para abordar as
asserções que os homens constroem sobre o mundo como instrumentos para interação
com os fenômenos experienciados (e, no caso de Mach, para a promoção da
sobrevivência). Esta versão pragmatista de conhecimento vem a se mostrar compatível
com uma posição representacionista tanto quanto naturaliza o problema do conhecimento
e pressupõe haver um processo (natural) de sofisticação e refinamento das asserções que
os homens elaboram sobre o mundo a sua volta, que por força da natureza humana
buscam estabelecer relações funcionais entre eventos. A ciência (não qualquer ciência,
mas um modelo particular de ciência, que justifica a observação e a experimentação
como recursos apropriados) é tida como o ponto máximo desta realização da natureza
humana e, por isso, merece legitimamente a condição de "discurso privilegiado". É ela,
afinal, que de forma mais eficiente e mais econômica, concretiza o impulso adaptativo da
espécie e provê as condições mais favoráveis à sobrevivência. Para Mach, a ciência é
superior porque a evolução da espécie humana assim determinou. O princípio de
economia do pensamento, expressão da evolução humana no campo do conhecimento,
não passa de "uma descrição contingente, empírica, da adaptação biológica" (Smith,
1989, p.275).
Nem mesmo a análise histórica é suficiente para afastar Mach de uma
visão biologicista do conhecimento humano. Suas referências ao conhecimento instintivo
e ao conhecimento científico assemelham-se bastante aos estágios comtianos do
conhecimento (teológico, metafísico e positivo). Tal como em Comte, sua investigação
histórica do conhecimento sobre fenômenos físicos supõe um processo natural de
sofisticação das explicações (ou descrições) humanas, que culmina com a ciência, forma
superior (ou positiva) de explicação do mundo, regulada pelos princípios (interesses
práticos) que de fato atendem às necessidades adaptativas da espécie. Na explicação de
Kolakowski (1972) para a posição de Mach,
50. Smith (1989) enumera ao todo seis pontos de convergência entre Skinner e Mach:
suas concepções sobre a origem da ciência (continuidade entre conhecimento não
científico e conhecimento científico); a noção de economia biológica na ciência (relação
entre conhecimento científico e preservação e adaptação); as idéias de causa como
função e descrição como explicação (conhecimento como descrição de relações
funcionais); a rejeição de hipóteses e teorias (precedência da observação e da
experimentação); a noção de verdade (concepção funcionalista); e epistemologia
psicologista (abordagem empírica comportamental para o problema do conhecimento).
Como Ernst Mach demonstrou ao traçar a história da ciência da mecânica, as primeiras
leis da ciência foram provavelmente as regras usadas por artífices e artesãos no
treinamento de aprendizes. As regras poupavam tempo porque o artífice experiente podia
ensinar ao aprendiz uma variedade de detalhes em uma única fórmula. Ao aprender a
regra, o aprendiz podia lidar com casos particulares à medida que surgiam.
Em um estágio posterior, a ciência avança da coleção de regras ou leis para arranjos
sistemáticos mais amplos. Ela não apenas faz afirmações sobre o mundo; ela faz
afirmações sobre afirmações. Ela estabelece um "modelo" de seu objeto de estudo, que
ajuda a gerar novas regras, tanto quanto as regras próprias geram novas práticas de lidar
com casos particulares (p.14).
Ao entender o desenvolvimento da ciência nestes termos, a investigação histórica
dos conceitos científicos converte-se, para Skinner, num recurso para identificação das
condições de objetividade do conceito e depuração de aspectos que transcendem este
nível. É neste sentido que, como mencionado no Capítulo 4, os conceitos científicos
perdem sua historicidade; isto é, eles deixam de ser conceitos históricos quando
delimitados ao que se acredita serem as condições de objetividade da ciência. No próprio
artigo de 1931 (Skinner, 1931/1961a), Skinner indica os limites de sua análise histórica
do conceito de reflexo. Afirma ele que
Certos fatos históricos são considerados por duas razões: para descobrir a natureza das
observações que têm sido a base do conceito e para indicar a fonte das interpretações
incidentais com as quais estamos preocupados (Skinner, 1931/1961a, p.321).
Isto é, a análise histórica permite diferenciar o que se fundamenta na
observação (e constitui os limites do emprego legítimo do conceito) de interpretações que
se colocam em outro nível, especulativo e inapropriado para a ciência. No caso particular
do conceito de reflexo, os únicos fatos observados e que configuram a legitimidade do
conceito são as correlações entre estímulos e respostas.
Isto não significa, entretanto, que os cientistas estão se tornando governantes auto-
indicados. Não significa que qualquer um de posse dos métodos e resultados da ciência
pode dar um passo para fora da corrente da história e tomar a evolução do governo em
suas próprias mãos. A ciência também não está livre. Ela não pode interferir no curso dos
eventos; ela é simplesmente parte deste curso. Seria bastante inconsistente que nós
eximíssemos os cientistas da explicação que a ciência dá do comportamento humano em
geral (Skinner, 1953/1965, p.446).
f) Análise do empreendimento científico a partir dos elementos a que remete o
programa experimental de pesquisa:
Compreender em que extensão as práticas científicas correspondem a
interesses de grupos sociais particulares depende, de qualquer modo, como apontado
anteriormente, de se transcender o modelo de ciência que recomenda olhar para os
determinantes do comportamento verbal científico apenas enquanto contingências às
quais aquele comportamento está funcionalmente relacionado, em direção a uma
discussão crítica daquelas próprias contingências. A análise histórica (não experimental),
ao prover informações sobre a gênese de determinados projetos de investigação, pode ser
especialmente relevante para esta tarefa (e, diga-se, Skinner de fato lança mão dela em
inúmeros textos que caracterizam investigações não experimentais), mas novamente,
Skinner permite uma interpretação em termos da interdição desta possibilidade. Como
salientado na seção 5.3., há momentos em que a análise do comportamento científico,
assim como a análise da linguagem, reduz-se à simples enumeração de variáveis às quais
aquele comportamento estaria funcionalmente relacionado. Em outra circunstância, ao
defender a prioridade de uma ciência experimental do comportamento no planejamento
da cultura (da qual o empreendimento científico faz parte), Skinner (1948/1971a) enfatiza
que o que importa para tal planejamento é o conhecimento das relações de controle
relativas ao comportamento humano. Ele então caracteriza o estudo histórico como
irrelevante e fadado à incapacidade de lançar luz sobre os fatos comportamentais. Diz
ele:
Qualquer evento histórico singular é muito complexo para ser adequadamente conhecido
por qualquer pessoa. Ele transcende todas as capacidades intelectuais dos homens. Nossa
prática é a de esperar até que um número suficiente de detalhes tenham sido esquecidos.
É claro que as coisas parecem mais simples então! As nossas memórias trabalham dessa
maneira; nós retemos os fatos a respeito dos quais é mais fácil pensar (Skinner,
1948/1971a, p.238).
Nada confunde mais nossa avaliação do presente do que um senso de história (Skinner,
1948/1971a, p.239).
A incapacidade do estudo histórico em especificar relações precisas
envolvidas em eventos humanos passados resulta, para Skinner, na desqualificação,
também, da política e das ciências sociais, em virtude destas apoiarem-se
sistematicamente naquele tipo de investigação. Esta posição fica evidenciada na análise
realizada por Andery (1990). Afirma ela sobre as considerações de Skinner:
A história, mesmo quando encarada mais benevolamente por Skinner, como em Science
and Human Behavior, não passa de uma tentativa incipiente de descobrir aquilo que só a
ciência natural, com seus métodos, pode descobrir. É uma tentativa pré-científica de
descobrir uniformidades porque, embora possa supor como pressuposto ontológico-
epistemológico que o comportamento humano é submetido à regularidade, não pode
realmente descobrir as leis que descrevem esta uniformidade; não é capaz de produzir o
restante do arcabouço epistemológico-ontológico necessário e não pode derivar a
metodologia adequada para tal. Se a história carece desses requisitos, seu corolário
prático, a política e as ciências sociais, carecem da tecnologia adequada para transformar
seu objeto - a sociedade. Se a ciência não pode descrever adequadamente seu objeto de
estudo, a tecnologia dela derivada não o poderá controlar. A política e a história são,
assim, substituídas por Skinner pela ciência do comportamento e pela experimentação.
Ao invés de formas pré-científicas de governo e de metodologias não científicas, Skinner
propõe uma sociedade planejada segundo a ciência - ciência natural - capaz de prever e
controlar os fenômenos com precisão (Andery, 1990, p.256).
Ainda quanto à possibilidade de considerar a ciência do ponto de vista de
sua historicidade, Marr (1985) observa que
... há um tema comum que atravessa o trabalho de Mach de forma harmônica com a
"epistemologia empírica" de Skinner; [a idéia de] que a ciência não é um domínio
elevado, incorrigível e Platônico da Verdade, mas uma atividade humana, afinal,
controlada pela história, pelas circunstâncias e pelas consequências (p.137).
A sugestão de Marr (1985) de que a perspectiva histórica está contida na
noção de ciência de Skinner assume contornos particulares quando se refere à posição de
Mach. Isto é, quando inspirada na filosofia de Mach, a abordagem histórica reservada à
ciência é uma análise positivista, que restringe-se à consideração do desenvolvimento
científico como um processo progressivo e ordenado de acumulação de fatos. Também
aqui, Skinner expressa uma atitude representacionista diante da prática científica - uma
atitude que se articula com a idéia de valorização daquela prática como inerente a sua
própria natureza. Este tipo de valorização fica sugerido em sua afirmação de que a
ciência é a única instância que garante progresso em nossas formas de interação com o
mundo. Este progresso, por outro lado, é pensado como um processo cumulativo, mais ao
estilo da concepção popperiana de ciência do que da noção de revoluções paradigmáticas
a que Kuhn (1978) se refere no contexto de uma análise que busca considerar os
elementos sociais inerentes à prática científica. Afirma Skinner (1953/1965):
Os resultados tangíveis imediatos da ciência tornam mais fácil avaliar do que a filosofia,
a poesia, a arte, ou a teologia. Como indicou George Sarton, a ciência é a única a
mostrar um progresso cumulativo. Newton explicou suas enormes realizações
dizendo que se levantava sobre os ombros de gigantes. Todos os cientistas, gigantes ou
não, permitem àqueles que os seguem começar de um ponto um pouco mais adiantado.
Isto não é necessariamente verdadeiro em outras partes. Nossos escritores, artistas
e filósofos contemporâneos não são apreciavelmente mais efetivos do que aqueles da
idade de ouro da Grécia; enquanto isso, o estudante mediano de segundo grau entende
muito mais da natureza do que os maiores dos cientistas gregos. Uma comparação da
efetividade da ciência grega e da ciência moderna mal vale à pena ser feita (p.11, itálico
acrescentado).
O que se colocou acima acerca do status privilegiado de um dado tipo de
asserção provoca estranheza diante do volume de textos teóricos elaborados por Skinner,
que em pouca ou nenhuma medida atendem aos critérios experimentais de seu modelo de
ciência. Aqueles textos indicam, de um lado, que Skinner não reduz a validade de toda e
qualquer asserção a seu componente experimental. De certa forma, ele torna isso possível
ao diferenciar o behaviorismo radical da análise experimental do comportamento,
indicando o primeiro como uma filosofia que reflete sobre o objeto de estudo e os
métodos da segunda (cf. Skinner, 1969). Mas também neste terreno, Skinner por vezes
invoca aquele mesmo critério de validade para diferenciar suas asserções. Nestes casos,
ele fala de seus textos teóricos como interpretações, como se devessem ser tomados
como diferentes de seus textos científicos; e sugere que a validade dos mesmos também
deve ser auferida com base no que propiciam de previsão e controle dos eventos a que se
referem (é neste sentido que a funcionalidade pode prescindir do consenso público). Em
seu Verbal Behavior, por exemplo, explica a análise apresentada nos seguintes termos:
A ênfase é sobre um arranjo ordenado de fatos bastante conhecidos, em acordo com uma
formulação do comportamento derivada de uma análise experimental de tipo mais
rigoroso. A presente extensão ao comportamento verbal é, portanto, um exercício de
interpretação, e não uma extrapolação quantitativa de resultados experimentais rigorosos
(...) O objetivo último [do livro] é a previsão e o controle do comportamento verbal
(Skinner, 1957, pp.11-12, itálico acrescentado).
Se se ignora esta caracterização de seus escritos "teóricos", porém,
vislumbra-se em Skinner a possibilidade de uma interpretação muito mais interessante do
problema do conhecimento; uma interpretação que pode efetivamente eliminar qualquer
indicador de compromissos representacionistas em uma atitude comportamentalista
diante dos fenômenos humanos, inclusive a prática científica. Antes de considerar esta
possibilidade, no entanto, pode-se já indagar: se o caráter representacionista não é
necessário às formulações teóricas de Skinner (e, ao contrário, leva à contradição), o que
o sustenta? Já se salientou que os aspectos representacionistas que aparecem nas
formulações de Skinner assumem a forma de uma naturalização do problema
epistemológico em termos próximos aos da formulação de Mach, mas não se trata, neste
ponto, de entender como aqueles elementos são formulados, mas o que os motiva. Isto é,
em termos skinnerianos, sob controle do que Skinner se comporta ao enveredar por
supostos representacionistas?
Os aspectos enumerados acima (abordagem evolucionista para o problema
do conhecimento; naturalização do objeto de estudo; observação e experimentação como
as únicas vias apropriadas para o conhecimento do mundo; preservação da noção de
correspondência; naturalização do valor da ciência; e análise do empreendimento
científico a partir dos elementos a que remete o programa experimental de pesquisa) só
fazem sentido no contexto de uma defesa exagerada de um determinado programa de
pesquisa. Segundo o entendimento a que se chegou com a presente análise, é ao tentar
conferir legitimidade a seu programa de investigações experimentais que Skinner apela a
supostos representacionistas, incompatíveis com uma concepção funcional de
conhecimento. Abandonada esta preocupação, nenhum sentido faria buscar na evolução
da espécie ou da cultura uma justificação para o tipo de enunciado a que um modelo de
ciência permite chegar (item a). Também não seria necessário entrar em um debate
metafísico sobre a natureza última do mundo ou de um dado objeto de estudo (item b).
Não se precisaria, ainda, invocar a natureza última do mundo para justificar um método
de investigação (item c) ou reintroduzir a idéia de correspondência (item d). O valor de
um dado discurso científico, por outro lado, poderia ser reconhecido como culturalmente
contingente, em vez de naturalmente determinado (item e) e a própria prática científica
poderia ser admitida como legitimamente abordada em discursos que transcendam o nível
da especificação experimental (item f). Apenas uma preocupação exagerada em defender
um modelo de pesquisa pode explicar o apelo àqueles elementos. Um retorno às citações
de Skinner apresentadas neste capítulo, por outro lado, evidencia que aqueles elementos
sempre aparecem em momentos em que Skinner ou está justificando seu programa, ou
está tentando interpretar um problema particular (por exemplo, linguagem ou
comportamento verbal científico) de uma maneira tal que sugira se tratar de algo
acessível (ainda que precariamente) a seu programa de investigações. É isto, também, que
aparece nos textos examinados no Capítulo 4. É apenas quando pretende justificar
antecipadamente os recortes efetuados para propiciar a investigação experimental do
reflexo que Skinner invoca critérios de objetividade, obscurecendo o caráter
intersubjetivo de sua prática científica. A inconsistência dos elementos citados acima,
bem como a possibilidade de uma interpretação alternativa segundo a própria ótica de
Skinner (principalmente quando levada às últimas consequências sua própria proposta de
considerar a linguagem como um sistema não-representacional, mas funcional, de
interação com o mundo) são considerados a seguir.
O comportamento científico não ocorre em isolamento: ele tem seus antecedentes e seus
consequentes. A discussão de Skinner (1957) talvez nos dê maneiras de ligar a análise do
comportamento científico dos indivíduos com a análise sociológica da prática científica.
Há uma comunidade verbal que exerce controle sobre o comportamento de cientistas
individuais, mas aquela comunidade é um produto histórico, resultante da interação
complexa de fatores econômicos e políticos, junto com influências relativamente não
sociais. Segue-se que a probabilidade de um programa de pesquisas vir a existir está
relacionada à formação social da sociedade na qual o cientista vive. Uma vez afirmado o
núcleo do programa, ele só será adotado por um número significativo de trabalhadores
sob certas condições sociais. Estes dois requisitos para a origem de um programa de
pesquisas dependem dos antecedentes (em grande parte ideológicos) do comportamento
dos cientistas (Burton, 1980, p.119).
A idéia de arbitrariedade do discurso científico diante da realidade é
exatamente o que está implicado na posição pragmatista a que o campo PB diz respeito.
Se se retorna, agora, ao problema da análise operada pelo cientista, a que se referiu no
Capítulo 4, observa-se que só faz sentido (pelo menos logicamente), no contexto da
concepção skinneriana de linguagem, interpretar a análise como contingente a propósitos
histórica e culturalmente determinados. Ou seja, a fim de possibilitar um determinado
programa de investigações, faz-se necessário selecionar aspectos ou propriedades dos
eventos sob estudo; porém, tal recorte da realidade sustenta-se não na natureza última das
coisas, mas em fatores sociais que justificam e tornam pertinente uma maneira particular
de interagir com a realidade, à qual se relaciona aquele programa de investigações.
... se tivermos que rejeitar qualquer reivindicação absolutista para a ciência e usar, em
vez disso, um critério de utilidade, a nossa posição também implicará um relativismo
social. Isto não significa dizer que qualquer teoria é tão boa quanto uma outra, mas que [a
decisão sobre] qual teoria é mais útil depende do contexto em que é usada. Idéias, regras
e teorias são úteis por diferentes razões e para diferentes pessoas (p.119).
No contexto daquela noção de funcionalidade, eleger a previsão e o
controle como aspectos definidores do conhecimento válido implica cair em contradição.
Para manter a coerência, faz-se necessário admitir que o status conferido ao discurso que
propicia a previsão e o controle está limitado ao (e/ou é determinado pelo) contexto em
que sua validade é argumentada, vale dizer, pelos propósitos e interesses a que atende
(ou, se se preferir, pelas contingências de reforçamento das quais é função). Tais
interesses e propósitos, além de circunscreverem o âmbito da validade do critério, não
são os únicos admissíveis como legítimos para um grupo social. Numa perspectiva
behaviorista radical, pode-se dizer que as comunidades verbais dispõem diferentes
conjuntos de contingências de reforçamento relacionadas à produção de diferentes tipos
de interação com o mundo. A compatibilização e/ou hierarquização dos produtos
resultantes é função, não de uma natureza última das coisas, mas do que efetivamente
propiciam em termos de uma interação, que será reforçadora tanto quanto atenda às
necessidades e propósitos do grupo social. É neste sentido que tanto o estudo histórico,
como as "interpretações" de Skinner podem ser considerados legítimos e válidos, mesmo
numa perspectiva behaviorista radical. Ambos valem tanto quanto, com sua ajuda, pode-
se lidar, prática ou intelectualmente, como dizia James, com um determinado conjunto de
problemas. Este valor, por outro lado, não pode ser sustentado aprioristicamente, mas
apenas no debate, no confronto com discursos alternativos. Neste contexto, pode-se
argumentar a favor das "interpretações" de Skinner, por exemplo, não por estarem
assentadas em conceitos supostamente derivados da pesquisa experimental (o que pode
até ocorrer e contribuir para a consistência de sua argumentação), mas por permitirem
revelar o caráter ilusório e contraditório da concepção de homem predominante na
sociedade. O estudo histórico, por outro lado, pode ser defendido, não através da
tentativa de avaliá-lo segundo sua capacidade de gerar previsão e controle de fenômenos
humanos e sociais, mas a partir de sua capacidade em revelar valores e interesses
subjacentes àquela concepção da qual o behaviorismo pretende ser crítico (ou explicitar
as contingências sociais das quais aqueles discursos são função). É interessante
exemplificar este argumento com a oposição dirigida por Skinner aos cognitivistas.
Skinner foi provavelmente um dos mais consistentes e insistentes críticos
do mentalismo e do cognitivismo. Dentre as inúmeras ocasiões em que expôs suas
restrições a psicologias deste tipo, uma merece ser destacada pela veemência de suas
críticas e, ao mesmo tempo, pela originalidade na exposição de seu ponto de vista. Tendo
assinalado a persistência (improdutiva) das teorias cognitivas, Skinner (1985) afirma:
Em que sentido o meu trabalho é controverso? Quando sou perguntado sobre o que
considero minha contribuição mais importante, sempre digo: "a original análise
experimental do comportamenmto operante e sua extensão subsequente a casos mais e
mais complexos". Não vejo nada de controverso nisso. Ou os meus resultados foram
confirmados ou não ...
Não estou tentando colocar o meu trabalho acima de críticas. Ao contrário, como em toda
ciência, tanto as práticas de laboratório como os conceitos e princípios precisam ser
constantemente examinados, mas não vejo nenhuma razão para argumentar com aqueles
que querem fazer as coisas de uma maneira diferente (Skinner, 1987, pp.11-12)53.
Há, ainda, um outro trecho de Skinner, no qual ele coloca, com todas as
letras, sua convicção de que seu programa está acima de qualquer necessidade de
argumentação. Diz ele:
Não podemos rejeitar um programa de pesquisas com base em seus antecedentes, como
alguns tentaram fazer no caso do behaviorismo ... Fazer isso significaria rejeitar qualquer
avanço científico surgido em sociedades que não aprovamos (i.e. a maior parte da
ciência?). Os testes cruciais de uma teoria são "O que podemos fazer com ela?" e "O que
é provável de ser feito com ela?". Esta última pergunta pode incluir questões como o uso
de uma teoria para legitimar uma prática social ruim (por exemplo, o Darwinismo social).
No caso do programa de pesquisas de Skinner, os benefícios potenciais parecem
enormes, os perigos políticos consideráveis, e a utilidade atual parece, até o momento, ser
bastante boa, se não irretocável. O próprio Skinner enfatiza a utilidade prática de seu
programa. O que se precisa acrescentar a isso é um reconhecimento do relativismo social
da utilidade de um programa (Burton, 1980, p.121).
Além disso, pode-se argumentar a favor, não de uma filosofia behaviorista
radical, que sugere um fundacionalismo representacionista, desnecessário e inconsistente,
mas de uma atitude behaviorista radical que proponha a crítica da idéia de auto-
determinação e aponte, sem as restrições do experimentalismo, para os condicionantes
sociais dos diversos conjuntos de práticas e discursos humanos. Pode-se questionar se
isso continuaria sendo behaviorismo skinneriano, mas esta seria uma indagação
irrelevante. Por outo lado trata-se, sem dúvida, de uma perspectiva que vem sendo
construída no interior da própria comunidade científica identificada com a psicologia
operante de Skinner. As manifestações de Day (1992) e Czubaroff (1993) exemplificam
este fato. Dizem eles:
53. É interessante observar que, nesta citação, o próprio Skinner coloca em destaque a
palavra "argumentar".
54. Este trecho é precedido de uma referência a P. Bridgman, na qual Skinner afirma que
não poderia convencê-lo acerca do behaviorismo porque não se tratava de uma "questão
de convicção".
... tenho a expectativa de que os behavioristas radicais se tornem mais interessados em
tornar explícito o que eles entendem que Skinner está afirmando em aspectos obscuros e
controversos de seus escritos. Associado a isso, há um interesse crescente,
particularmente por parte dos membros mais jovens da profissão, pelo exame da natureza
dos passos conceituais empregados na análise behaviorista radical (...) Se este interesse
continuar a desenvolver-se, muito mais behavioristas estarão lendo muito mais livros, e
de uma abrangência consideravelmente maior do que é sugerido pela imagem de um
compromisso estreito ao experimentalismo com a qual o behaviorismo é usualmente
associado (Day, 1992, p.53).
... o que especificamente os analistas do comportamento podem fazer para construir laços
mais produtivos com outras tradições de pesquisa? Certamente uma visão pluralista da
psicologia e da ciência precisa ser cultivada na profissão. O pluralismo reconhece a
diversidade inevitável de paradigmas e tradições de pesquisa e insiste que nenhuma
tradição, por si mesma, é completamente suficiente para a compreensão da complexa
realidade humana. O pluralismo também reconhece a importância de uma interação
crítica entre tradições de pesquisa como um meio de testar e aperfeiçoar idéias.
... o pluralismo não apenas rejeita a posição dogmática e censura qualquer tradição de
pesquisa que se considere privilegiada; ele também prescreve um diálogo crítico ...
(Czubaroff, 1993, p.3).
Seguindo-se a proposta de Czubaroff (1993), pode-se defender a atitude
behaviorista, admitindo-a como delimitada por interesses e propósitos particulares e
aberta ao diálogo ou confronto com discursos psicológicos alternativos. Pode-se fazer
isso de uma forma tal em que o diálogo seja reconhecido como via de assentimento, que
abdica de fundamentos apriorísticos, mas que nem por isso resvala para o irracionalismo;
ao contrário, fornece a perspectiva de desconstrução dos discursos irracionalistas que têm
florescido às margens do precário desenvolvimento das ciências psicológicas.
CAPÍTULO 6
E AUTO-CONHECIMENTO
56. Em função do objetivo particular desta análise, e dado o fato de que diversos aspectos
da noção skinneriana de privacidade já foram abordados em um trabalho anterior
(Tourinho, 1988), as seções seguintes estarão, na medida do possível, limitadas à
discussão da dicotomia público-privado e da noção de imprecisão dos "relatos privados".
57. Este tipo de interesse, associado à versão skinneriana de funcionalidade como critério
de verdade, é que permitia a Skinner, como ressaltado no Capítulo 4, operar com
conceitos, como o de drive, que reportavam a condições internas do organismo.
colocava para dentro e argumentei que qualquer coisa que mudasse a força de um
operante deveria mudar ou o tamanho da reserva ou a relação entre ela e a taxa de
resposta (Skinner, 1989b, p.131).
No artigo de 1945 (Skinner, 1945), como assinalado, Skinner afirmava
que, ao contrário do behaviorismo metodológico, seu behaviorismo podia dar conta do
(ou, pelo menos, podia se voltar para o) que ocorria de forma privada aos indivíduos.
Dizia ele que:
... enquanto o behaviorista radical pode, em alguns casos, considerar os eventos privados
(inferencialmente, talvez, mas ainda assim de forma significativa), o operacionista [do
tipo] Boring-Stevens se colocou em uma posição na qual não pode fazer o mesmo
(Skinner, 1945, p.294).
Aqui, Skinner já introduz o advérbio inferencialmente para designar o tipo
de consideração possível da privacidade no contexto do behaviorismo radical. Este
advérbio ainda é, neste artigo, seguido do termo talvez, o que não ocorre em textos
posteriores.
No artigo de 1945, Skinner reduz o problema da privacidade a um
problema de acesso e não de natureza, contrapondo-se aos behavioristas metodológicos
que operavam com a dicotomia físico-mental. Para Skinner, todo evento, seja público ou
privado, tem dimensões físicas. A atribuição de uma natureza igualmente física aos
eventos privados cumpre, no behaviorismo skinneriano uma função fundamental, que é a
de colocar este assunto no campo dos fenômenos a respeito dos quais a análise do
comportamento tem algo a dizer. Mas é no campo da linguagem que se situa o cerne do
argumento skinneriano acerca da privacidade58. Para Skinner, um indivíduo só vem a
conhecer o que lhe ocorre de forma privada (no sentido de ser capaz de relatar aqueles
acontecimentos, ou de agir discriminativamente sob controle dos mesmos) a partir de
contingências providas por uma comunidade verbal. A noção de comportamento verbal,
no entanto, evidencia que uma resposta só pode ser colocada sob controle de um estímulo
particular quando falante e comunidade verbal têm acesso àquela condição59. A partir
deste aspecto, Skinner salienta que todo auto-conhecimento tem uma origem social e está
circunscrito ao que está acessível aos membros da comunidade verbal. Afirma ele:
... estar consciente, como uma forma de reagir ao próprio comportamento, é um produto
social. O comportamento verbal pode ser discernido, e convenientemente definido, pelo
58. Como referido no Capítulo 4, Skinner afirma, no artigo de 1945, que o único domínio
dentro do qual uma ciência do comportamento pode examinar o problema da
subjetividade é no campo verbal.
60. A funcionalidade de uma asserção "sobre si mesmo", pode ser abordada não apenas
em termos da interação do indivíduo consigo mesmo (por exemplo, se dela se deriva a
possibilidade de auto-controle), mas, também, em termos da interação do indivíduo com
o mundo, sob controle de algo que diz respeito ao próprio indivíduo (por exemplo,
quando um indivíduo "relata uma dor" e é socorrido) ainda que supostamente inacessível
a outros.
61. A expressão "relatos privados" será utilizada aqui apenas para referir-se às respostas
verbais tradicionalmente assumidas como descritivas de eventos aos quais apenas o
próprio indivíduo tem acesso. Por referir-se apenas ao tipo de resposta em exame, a
expressão será mantida (doravante sem aspas), mesmo quando se sugerir que tais relatos
podem não descrever algo de natureza privada.
conhecimento preciso sobre si mesmo. O caráter impreciso daquele tipo de asserção é
afirmado da seguinte maneira no artigo de 1945:
Asserções sobre eventos privados podem ficar sob controle dos drives, associados com
suas consequências, em vez de associados com estímulos antecedentes. A comunidade é
cética sobre asserções deste tipo e qualquer tentativa, por parte do falante, de falar
consigo mesmo sobre seu mundo privado ... está repleta de auto-decepção (Skinner,
1945, p.275).
Em textos posteriores ao artigo de 1945, as circunstâncias em que Skinner
se refere ao tema da privacidade são marcadas pela tentativa de explicar que seu
behaviorismo não questiona a possibilidade da "introspecção", mas indica a origem social
desta atividade e para as limitações daí resultantes. Novamente, entretanto, a análise de
Skinner caminha na direção da desqualificação dos relatos privados enquanto asserções
que expressem auto-conhecimento e da suspeita acerca da atribuição de alguma validade
aos mesmos (em ambos os casos por serem imprecisos). A recorrência deste tipo de
argumento pode ser vislumbrada nas seguintes citações:
Aqui, novamente, a comunidade não pode garantir um repertório verbal preciso porque a
resposta pode ser transferida de um evento público para um evento privado com base em
propriedades irrelevantes.
As técnicas que garantem a confiabilidade de um relato verbal não podem ser produzidas
para sustentar uma descrição privada (Skinner, 1953/1965, pp.259-260).
... o mundo privado dentro da pele não é claramente observado ou conhecido (Skinner,
1974, p.31).
... os behavioristas radicais podiam lidar com descrições de eventos privados, com a
ressalva de que as descrições eram imprecisas e talvez não devessem nunca ser confiadas,
e de que os eventos descritos eram físicos (Skinner, 1979, p.295).
62. Em particular, apenas o contexto social pode prover uma fonte de corrigibilidade para
o uso das palavras. Um indivíduo sozinho poderia tentar atribuir palavras às suas
sensações, mas não disporia de nenhum recurso para certificar-se de que está empregando
a palavra correta sob controle do evento correto. Em termos skinnerianos, poder-se-ia
colocar que a aquisição de uma resposta verbal sob controle de um estímulo
discriminativo particular só se torna possível a partir de contingências de reforçamento
que o indivíduo não pode prover para si mesmo, mas apenas a comunidade verbal pode
fazê-lo. E sendo toda linguagem função de contingências providas por uma comunidade
verbal, toda linguagem é pública e assentada em eventos públicos, acessíveis a todos.
indivíduo). Quer dizer, não se trata de argumentar apenas que a chamada "linguagem da
experiência privada" tem uma origem pública, mas, também, que ela não é uma
linguagem de algo peculiar do próprio indivíduo que a usa. Wittgenstein (1953/1988)
introduz o seguinte exemplo para elucidar sua posição:
Suponha que todo mundo tivesse uma caixa com alguma coisa dentro; nós chamamos a
isso de um "besouro". Ninguém pode olhar dentro da caixa do outro, e todos dizem que
sabem o que é um besouro só por olhar o seu besouro. Aqui seria um tanto possível cada
um ter uma coisa diferente em sua caixa. Alguém poderia até imaginar uma coisa tal,
constantemente mudando. Mas suponha que a palavra "besouro" tivesse um uso na
linguagem das pessoas. Se tal acontecesse, a palavra não seria usada como o nome de
uma coisa. A coisa dentro da caixa não tem nenhum lugar no jogo de linguagem; nem
mesmo como algo, pois a caixa pode até estar vazia (p.100).
Quando se substitui a palavra "besouro" por "dor", chega-se ao aspecto
central do argumento de Wittgenstein. Se cada um sabe o que é dor apenas por conhecer
sua própria dor, então a palavra "dor" não pode ter nenhum uso nos jogos de linguagem,
o que significa dizer que seu uso eventual não seria funcional. Por outro lado, se o uso da
palavra "dor" tem alguma função nos jogos de linguagem, então a gramática da palavra
"dor" envolve condições partilhadas por todos aqueles que fazem uso (funcional) desta
palavra. Note-se que a análise de Wittgenstein não implica afirmar que nada acontece no
interior dos indivíduos que fazem uso da linguagem; ela também não implica que os
indivíduos não pretendem estar falando de si mesmos quando relatam, por exemplo, uma
"dor". O que ela sustenta, fundamentalmente, é que, admitidas a origem e a função social
da linguagem, é um equívoco supor que uma palavra qualquer possa designar algo a que
apenas o falante tem acesso63.
Wittgenstein não ignora a possibilidade de que em certas circunstâncias,
por exemplo após uma queda, os indivíduos falem de "dor" sob controle de uma
estimulação interna. Esta possibilidade, entretanto, precisa ser considerada no contexto
dos diferentes usos possíveis da palavra. Antes de tudo, pode-se assinalar que apenas em
algumas circunstâncias, em particular naquelas em que a fala tem uma função de
descrição, uma estimulação interna do indivíduo pode ter alguma importância. Isto é, em
muitas outras situações falas daquele tipo podem também ser funcionais de outras
maneiras (independentemente do que eventualmente esteja ocorrendo no interior do
indivíduo), o que significa dizer que a palavra pode ser empregada em diferentes jogos de
linguagem. Por exemplo, um indivíduo pode dizer "estou com dor" para fugir de uma
Um critério ... é uma dica identificável, cuja presença é tomada como justificação para o
uso de uma palavra ou classificação. Ele é geralmente o tipo de coisa que é usada no
treino (p.41).
A noção de sintoma é a que remete ao que eventualmente ocorre no
interior do indivíduo em condições em que relata, por exemplo, uma dor. Ela indica que
um indivíduo pode observar, ao longo de sua própria experiência, uma correlação entre
as condições públicas diante das quais se admite o emprego de uma palavra (os critérios)
e uma estimulação interna à qual só ele mesmo tem acesso direto (o sintoma). O uso da
palavra sob controle de um sintoma depende, portanto, de um processo indutivo, mas
pode de fato ocorrer. Como assinalado por Bloor (1987),
Um sintoma também é uma dica para a aplicação de uma palavra, mas é uma dica que é
usada porque tem sido observada como correlacionada com um critério (p.43).
Deve-se salientar que o uso de uma palavra sob controle de um sintoma
(por exemplo, de um evento interno) implica o conhecimento dos critérios, o que
significa dizer que exige o conhecimento da gramática das palavras. A este respeito,
afirma Hacker (1986):
Eu posso ter tanta certeza das sensações de alguém, quanto de qualquer fato. Mas isto
não torna instrumentos similares as proposições "Ele está muito deprimido",
"25x25=625" e "Eu tenho sessenta anos de idade". A explicação sugere que a certeza é de
um tipo diferente.
(...) O tipo de certeza é o tipo do jogo de linguagem (Wittgenstein, 1953/1988, p.224).
Há um aspecto adicional da concepção wittgensteiniana de linguagem que
incide de forma significativa sobre o problema dos eventos privados. Trata-se da idéia de
construção lingüística da realidade com a qual se interage. Se a linguagem impõe uma
configuração particular à realidade com a qual os homens interagem, então aquilo de que
os indivíduos falam não existe em si mesmo, antes e independentemente de sua
formulação lingüística. A separação entre as coisas em si mesmas e a linguagem relativa
a elas só faz sentido no contexto de uma abordagem referencial para o problema do
significado e de uma postura dualista tipicamente cartesiana, atitudes das quais uma
versão funcional do problema da linguagem é eminentemente crítica. Sendo assim, não
faz sentido falar de uma cadeira em si mesma, que a linguagem deve descrever, mas
também não faz sentido falar de uma "dor" em si mesma que existe antes e
independentemente da linguagem da dor. A "dor" vem a se constituir com os jogos de
linguagem que a ela dizem respeito, os quais encerram os critérios ou condições para a
64. Afirmar que um indivíduo infere o estado de dor do outro a partir de seu
comportamento implicaria dizer do próprio indivíduo que é objeto da descrição, não que
ele tem uma dor, mas que ele infere ter uma dor.
existência da própria dor, pelo menos enquanto a maneira particular de os homens
interagirem com uma parte do mundo que os cerca. Nesta perspectiva, perde sentido a
separação entre público e privado; perde sentido a idéia de que existem "sentimentos",
"pensamentos", etc., enquanto eventos interiores dos homens, cuja existência independe
do que eles falam65. Lampreia (1992) refere-se a este aspecto da posição de Wittgenstein
nos seguintes termos:
A separação entre um sujeito psicológico e o mundo externo deixa de fazer sentido por
não haver mais a oposição entre o privado e o público. Tanto a constituição do privado
como o conhecimento que temos dele, seja o nosso ou o do outro, têm uma origem
pública, dada por uma linguagem também pública que é a única linguagem possível. Não
há um privado independente da linguagem, assim como também não temos um acesso
privilegiado ao "nosso privado" (p.298, itálico acrescentado).
Se não há um privado diferenciado do mundo público, e se as asserções
denominadas de "relatos privados" não descrevem algo acessível apenas ao próprio
indivíduo que fala, então a atribuição de status diferenciado a este tipo de jogo de
linguagem está equivocada. Por outro lado, se a supressão da dicotomia público-privado
e da idéia de correspondência são resultados necessários de uma concepção funcional de
linguagem, então a reintrodução destes tópicos representa um abandono daquela própria
noção de funcionalidade. Representa, assim, a restauração de problemas que só adquirem
sentido, no campo da psicologia, no contexto das teorias mentalistas e dualistas das quais
uma abordagem comportamental pretende-se crítica.
65. Observe-se, novamente, que isto não significa dizer que nada existe/ocorre no interior
dos corpos dos indivíduos, ou que o mundo vêm a existir apenas quando se fala dele.
Trata-se apenas de afirmar que à despeito da existência de um mundo real independente
da linguagem, as coisas de que os indivíduos falam vêm a existir a partir de uma
configuração imposta pela linguagem à realidade.
próprio Skinner reconhece haver, aí, um dualismo, mas lhe parece suficiente assinalar
que não se trata de um dualismo do tipo físico-mental66.
É recuperando a perspectiva da funcionalidade da linguagem que o
dualismo skinneriano fica evidenciado. Como observado acerca da análise de
Wittgenstein, se se considera a linguagem a partir de seu caráter social e de sua natureza
funcional, não faz sentido considerar nada do que é dito como descrição de algo a que
apenas indivíduos particulares têm acesso. De um lado, porque é através da própria
linguagem (e, portanto, da interação social) que se dá a construção do mundo com o qual
o indivíduo interage lingüisticamente. (Pensamentos e sentimentos não existem, então,
em si mesmos.) De outro, porque aquela produção, em virtude de sua natureza social, só
pode dizer respeito ao que a comunidade como um todo tem acesso. (Neste caso,
pensamentos e sentimentos constituem algo partilhado por todos.) Se sentimentos e
pensamentos são lingüisticamente constituídos e dizem respeito a algo partilhado, em que
sentido um relato de uma emoção, por exemplo, pode ser impreciso? E em que sentido
pode expressar ou não conhecimento de si? Do ponto de vista de uma concepção
funcional de linguagem e de conhecimento, nenhuma das respostas recorreria a uma
suposta correspondência entre o que é dito e algo acessível apenas ao próprio indivíduo.
A precisão de uma resposta diria respeito ao uso de palavras em acordo com as regras
socialmente instituídas, o que garantiria sua funcionalidade social. E é esta própria
funcionalidade que conferiria uma condição de conhecimento a qualquer asserção sobre
si mesmo. Isto é, o que é próprio do indivíduo não pode ser determinante nem da precisão
de seu uso da linguagem, nem da condição de conhecimento aí envolvida. A preocupação
de Skinner com uma correspondência, porém, o afasta desta visão funcional da
linguagem. Ou seja, é apenas abandonando sua abordagem funcional que Skinner pode
fazer da correspondência uma condição para atribuição de precisão e conhecimento aos
relatos privados.
O distanciamento que aparece entre Skinner e Wittgenstein quando se
trata de examinar a maneira como lidam com o problema do relato privado já foi
assinalado por Bloor (1987) e Costall (1980) nos seguintes termos:
67. Recorde-se que no inicío de sua carreira, o próprio Skinner permitia-se operar com
conceitos que se relacionavam a condições internas do organismo.
de pesquisas skinneriano; ela aparenta cumprir mais propriamente a função de
desqualificar aquele tipo de asserção e as propostas teóricas e metodológicas que nela se
apoiam. O que se procurará argumentar, a seguir, é sobretudo que Skinner, ao tentar
desqualificar a validade dos relatos privados (independentemente de sua funcionalidade),
pretende na verdade desqualificar uma proposta de psicologia concorrente à sua; esta
preocupação se intensifica na medida em que cresce a aceitação do cognitivismo e que tal
aceitação se caracteriza, para Skinner, como uma ameaça à sobrevivência de seu próprio
programa.
Em um de seus últimos artigos, Skinner (1987/1989e) invoca as
realizações da análise experimental do comportamento para indagar por que esta
disciplina ainda não foi reconhecida como psicologia. Sua resposta aponta para "três
obstáculos formidáveis que se colocam em seu caminho" (p.64): a psicologia humanista,
a psicoterapia e o cognitivismo. Ao tratar do cognitivismo, localiza historicamente o
crescimento de seu prestígio no ambiente psicológico. Afirma ele:
68. Além destes, há, na década de 70, o artigo "Por que Não Sou um Psicólogo
Cognitivista" (Skinner, 1977).
o cognitivismo representou a restauração da mente). Neste último artigo, por outro lado,
Skinner fornece indicadores bastante claros dos prejuízos sofridos pela análise do
comportamento com o advento do cognitivismo e da ameaça permanente em que esta
abordagem se constitui. Quanto ao primeiro aspecto, diz ele:
Apesar de minha insistência de que o comportamento deveria ser estudado como uma
função de variáveis externas, à parte de qualquer referência a estados ou processos
mentais ou fisiológicos, eu ainda não estava totalmente livre do ponto de vista
tradicional. Por exemplo, eu falava como se o comportamento estivesse dentro do
organismo antes que saísse. Dizia tradicionalmente que um reflexo era "eliciado" no
sentido etimológico de "extrair". O comportamento operante era diferente e eu tentei
enfatizar a diferença dizendo que ele era "evocado", no sentido de "provocado" ... Eu
também disse que o comportamento operante era "emitido", e mais tarde tentei justificar
aquele uso indicando que a luz emitida de um filamento quente não estava no filamento.
A "reserva de reflexo" carregava a metáfora muito adiante (...) Cerca de um ano após a
publicação do livro, eu abandonei a "reserva de reflexo", mas devia ter feito isso muito
mais rapidamente. Especular sobre processos internos foi uma violação de um princípio
básico. Uma resposta operante não era emitida; ela simplesmente ocorria (p.131, itálico
acrescentado).
Skinner é surpreendentemente claro neste trecho, com respeito a
considerar ter cometido um erro grave ao fazer uso de conceitos que remetiam a
condições internas do organismo. Falar de condições internas representava, diz ele, "uma
violação de um princípio básico". A qual princípio pode Skinner estar referindo, senão o
próprio princípio de seleção pelas consequências (ainda que não operasse, naquele
período, com esta formulação)? Sua proposta de ciência pretendia voltar-se para as
relações funcionais experimentalmente identificáveis entre condições ambientais e o
comportamento dos organismos, e implicava a idéia de que o ambiente operava sobre o
organismo de forma a modelar e alterar a probalibilidade de suas respostas. Tal
como Skinner coloca o problema no trecho citado, aceitar asserções sobre condições
internas consistia em violação do princípio que sustentava seu programa - um princípio
que colocava fora do organismo a determinação de seu comportamento. Este princípio
estava sendo violado porque, no entendimento de Skinner, asserções sobre condições
internas apontavam para uma determinação igualmente interna do comportamento, um
equívoco só explicável pela tradição da qual Skinner não conseguira, até então, se
desvencilhar.
Novamente, Skinner parece não conseguir se justificar sem cair em
contradição. Sua preocupação em descaracterizar asserções acerca de
processos/condições internas o leva a afirmar que uma resposta sequer é emitida; ela
simplesmente ocorre. Ora, se uma resposta simplesmente ocorre, uma análise funcional
deixa de fazer qualquer sentido. Isto é, ou se admite que o organismo foi alterado a partir
de sua interação com o ambiente, tornando-se mais provável que emita determinada
resposta em determinada condição, e neste caso não se pode simplesmente dizer que o
que quer que seja esta alteração ela é irrelevante, ou o paradigma da funcionalidade deve
ser abandonado, e com ele o próprio projeto de psicologia como ciência experimental do
comportamento. Tal como na desqualificação dos relatos privados, às custas do abandono
de uma concepção funcional de conhecimento, esvazia-se, aqui, o indivíduo, ainda que
isso entre em contradição com os princípios que norteiam a proposta de ciência. De
qualquer modo, parte do diagnóstico de Skinner parece estar correta - aquela que diz
respeito a uma tradição da qual ele mesmo não pôde se devencilhar plenamente - ainda
que tenha deixado os instrumentos necessários para tal.
PARTE III
A TÍTULO DE CONCLUSÃO
CAPÍTULO 7
70. Sobre este caráter contraditório do projeto de uma disciplina psicológica, afirma
Figueiredo (1991):
Constitui-se e tenta-se colonizar um novo continente: o da natureza
interna, o "íntimo". O projeto, todavia, envolve uma contradição:
justifica-se apenas porque se presume que a natureza interna seja
essencialmente hostil à disciplina imposta pelo método científico e
deva por isso ser neutralizada; por outro lado, o objetivo seria
exatamente o de submeter a natureza interna às mesmas práticas de
pesquisa - e, portanto, de controle - que se desenvolveram na
interação com a natureza externa e, inclusive, definiram seu caráter
(p.19).
A relação histórica entre psicologia e epistemologia permite supor que as
críticas ao fundacionalismo, aqui examinadas no âmbito do discurso pragmatista, devem
incidir na própria demarcação da pertinência de uma ciência psicológica. Poder-se-ia, por
exemplo, indagar: até que ponto uma ciência da "mente" ou dos "processos cognitivos"
pode manter-se justificada diante de uma concepção de conhecimento que transfere da
interioridade dos indivíduos para as relações sociais e políticas o campo da afirmação
do saber? Permanecendo-se no âmbito da problemática epistemológica, parece não
constituir-se em exagero a suposição de que a crítica ao fundacionalismo coloca em
dificuldade a pertinência de uma psicologia da mente (além, é claro, de desqualificar as
reivindicações a verdade das diferentes teorias, que passariam à contingência de
participação em um confronto dialógico como espaço de sua validação)71.
O fato de a psicologia ter surgido, enquanto campo de reflexão, no
contexto de discursos epistemológicos fundacionalistas, todavia, não a condena a uma
sobrevivência precária, condicionada à validade daqueles discursos. Ao contrário, ela
pode se ocupar exatamente da crítica àquelas concepções, a partir de uma desconstrução
da idéia de mente como espelho da natureza, para usar uma expressão de Rorty. Neste
particular, a posição skinneriana parece não apenas razoável, como valiosa enquanto
crítica tanto do representacionismo, quanto de uma concepção de homem (que envolve,
sobretudo, a noção de liberdade) tão cara à cultura ocidental moderna. Mas a crítica
skinneriana, como argumentado, nem sempre se mostra consistente. Em particular, ela
tropeça exatamente quando ignora (ou coloca de lado) que a crítica ao
representacionismo não se esgota na dissolução de uma mente cognitiva, mas se estende
ao questionamento de toda e qualquer tentativa de fundamentação apriorística de uma
reivindicação a conhecimento72. Este tipo de questionamento, por outro lado, ao
recolocar no centro da reflexão epistemológica73 os aspectos sociais da construção e
afirmação de toda proposição reconhecida como válida, sinaliza para o resgate da
dimensão política das atividades humanas dirigidas ao conhecimento da realidade e ao
julgamento de questões éticas e morais. Neste sentido, a discussão acerca do
conhecimento humano não pode deixar de ser examinada sob a ótica de uma práxis, de
uma construção e intervenção particular sobre a realidade, articuladas com as demandas
materiais e intelectuais colocadas aos indivíduos e sociedades. Uma análise nesta direção
Impressionamo-nos com o caráter especial da verdade matemática, que faz a tal ponto
parte do "pensar filosoficamente", que é difícil repelir o amplexo do Princípio Platônico.
Se, no entanto, pensarmos na "certeza racional" como uma questão de vitória
argumentativa, em vez de como uma relação com um objeto conhecido, atentaremos
mais aos nossos interlocutores do que a nossas faculdades para a explicação do
fenômeno. Se encararmos a nossa certeza acerca do Teorema de Pitágoras como a nossa
confiança, baseada na experiência em debates de tais questões, em que ninguém
encontrará objeção para as premissas das quais o deduzimos, não procuraremos então
explicá-lo pela relação da razão com a triangularidade. A nossa certeza será uma questão
de conversação entre pessoas, mais do que uma matéria de interação com uma realidade
não humana. Não veremos assim, uma diferença de gênero entre as verdades
75. Neste caso, a atitude pragmatista não pode ser fundamentada, mas apenas
argumentada.
"necessárias" e "contingentes". Quando muito, veremos diferenças em grau de
dificuldade na objeção às nossas convicções (Rorty, 1988, p.128, itálico acrescentado).
Ao remeter à conversação, ao embate argumentativo, Rorty recupera
exatamente o ponto em que a racionalidade humana deixou de ser pensada como
pertencente ao campo do diálogo e se transformou numa questão relativa ao que era
próprio do indivíduo particular ou de um reino transcendental: a filosofia platônica. Sua
proposta (de Rorty), de algum modo, é uma recuperação da noção pré-socrática de
racionalidade. Diz ele em continuação ao trecho citado acima:
Quando Aristóteles define o homem como "animal político", sublinha o que separa a
Razão grega da de hoje. Se o homo sapiens é a seus olhos um homo politicus, é que a
própria Razão, em sua essência, é política.
De fato, é no plano político que a Razão, na Grécia, primeiramente se exprimiu, constuiu-
se e formou-se. A experiência social pôde tornar-se entre os gregos o objeto de uma
reflexão positiva, porque se prestava, na cidade, a um debate público de argumentos
(p.94).
Ao realizar a crítica das doutrinas representacionistas torna-se, do presente
ponto de vista, fundamental compreender não apenas a concepção de conhecimento ali
contida, mas, principalmente, o que foi abandonado com o advento do platonismo e do
representacionismo moderno. Trata-se, neste caso, não somente do abandono da crença
de que o diálogo pode prover as condições para validação das asserções construídas pelos
indivíduos, mas também do abandono de um reconhecimento da construção daquelas
asserções como um processo político, um processo que se configura como um embate
entre concepções de mundo, de homem e de sociedade, que atendem a interesses e
valores tanto mais gerais (e menos particulares) quanto maior a extensão da comunidade
que participa em iguais condições e vem a concordar com uma postura particular
qualquer. Pode-se, acompanhando Sócrates ou Platão, objetar ao resgate desta dimensão
política, alegando que o consensualismo sugerido pela noção de conhecimento como
práxis resulta numa racionalidade interesseira e descompromissada com a verdade. Não
custa obervar, porém, que o objeto da crítica socrático-platônica, não era uma sociedade
de iguais, mas uma democracia decadente. Por outro lado, tentar fugir do conteúdo ético
e político das visões conflitantes de mundo contidas nos diferentes discursos
"restauradores da verdade" corresponde a optar por uma ilusão confortante. Confortante
porque parece garantir o solo seguro da verdade, mas ilusória porque se faz às custas de
uma crença infundada acerca da possibilidade de se transcender os conteúdos humanos e
sociais das crenças.
O aspecto político que pode ser derivado das proposições pragmatistas não
aparece de forma clara e elaborada no discurso de Rorty. Mas talvez este aspecto seja
uma das consequências mais importantes de sua argumentação. Por outro lado, pode-se
observar que, neste terreno, o pragmatismo de Rorty se aproxima de outras reflexões
contemporâneas sobre a problemática epistemológica. Bernstein (1983), por exemplo,
deriva das proposições de Rorty uma concepção de vida comunitária que se assemelha a
algo que pode também ser derivado, de um lado, do pensamento de Habermas e, de outro,
do discurso de Gadamer. Diz ele:
76. É interessante observar que Rouanet (1992) entende que uma abordagem para a
problemática da ética inspirada no pensamento de Habermas permite revisar a postura
individualista característica da filosofia da Ilustração, em direção a uma atitude que, se de
um lado reconhece o direito à realização pessoal, de outro enfatiza a condição interativa
de sua existência e de seu julgamento da realidade social. Diz ele:
A ética discursiva é uma teoria não individualista, porque ela se
baseia na hipótese de um mundo vivido lingüisticamente
compartilhado. Não obstante, consegue salvar os dois principais
temas do individualismo ético da Ilustração: o direito à felicidade e
o descentramento.
O indivíduo só existe em interação, mas essa interação pressupõe o
reconhecimento da dignidade e integridade de cada participante. O
homem tem direitos como indivíduo, que não podem ser
cancelados pelos direitos da comunidade (...)
Quanto ao descentramento, a ética discursiva o redefine,
expurgando-o de suas características individualistas. O
descentramento se dá quando os indivíduos abandonam o mundo
vivido e entram num processo de argumentação coletiva (...) ... o
Através de minha discussão de Gadamer, Habermas, Rorty e Arendt, procurei trazer à luz
as preocupações comuns que eles partilham, sem negar as diferenças importantes entre
eles. Em todos eles, nós sentimos uma corrente que nos arrasta para os temas centrais do
diálogo, da conversação, da comunicação não distorcida, do julgamento comunal, e do
tipo de persuasão racional que pode ocorrer quando os indivíduos se confrontam como
iguais e participantes. Nos tornamos conscientes das consequências práticas e políticas
destes conceitos, pois na medida em que exploramos suas implicações, eles nos arrastam
em direção ao objetivo de cultivar os tipos de comunidades dialógicas nas quais a
phronésis, o julgamento e o discurso prático se tornam concretamente incorporados em
nossas práticas cotidianas (Bernstein, 1983, p.223)77.
Os autores citados por Bernstein (1983), e suas respectivas obras, não
serão aqui discutidos em razão das limitações já citadas. Isto não impede, contudo, que se
considere a noção de "comunidade dialógica", colocada por Bernstein. Esta noção, que
Bernstein deriva, entre outros, do pragmatismo de Rorty, pode ser colocada sob suspeita
a partir de seu conteúdo utópico. Mas esta seria uma maneira muito primária de
desqualificação do problema por ela levantado. E ela envolve, antes, uma crítica das
aspirações de construção de verdades últimas em um contexto que prescinde do diálogo e
da interlocução. A noção de comunidade dialógica tem, assim, tanto uma função de
tornar possível uma crítica das condições atuais em que se supõe ser possível chegar a
verdades universais e necessárias, quanto uma função de apontar para a direção em que
faria sentido pensar numa verdade que (além de não ser universal e necessária) não
atenderia a interesses circunscritos de determinados grupos sociais. Reconhecida a
construção intersubjetiva da realidade que se torna objeto de investigação e dos critérios
assentidos para o julgamento das crenças, por outro lado, é demarcando a extensão desta
intersubjetividade que se vislumbram os limites em que as proposições são legitimamente
reconhecidas como verdadeiras.
É no momento em que as reflexões críticas (ou mesmo reformadoras) do
ideal representacionista sinalizam a pertinência ou necessidade de uma comunidade
argumentativa de iguais, que elas evidenciam um conteúdo político das concepções de
conhecimento com as quais operam e das práticas a que sinalizam. Do ponto de vista do
pragmatismo de Rorty, isto pode ser contemplado através de sua proposição de uma
77. Bernstein (1983) não ignora o quanto as condições sociais contemporâneas conspiram
contra uma vida comunal daquele tipo, mas acredita residir nesta perspectiva uma
aspiração (frustrada) "profundamentamente enraizada" (p.230) na vida humana.
cultura "pós epistemológica", na qual a interlocução e a possibilidade de produção de
novos recursos argumentativos se propõem como valores aos quais toda reivindicação a
conhecimento deve ser subjugada. Deste ponto de vista, o behaviorismo skinneriano pode
ser discutido não apenas em termos de sua crítica à noção de mente, mas principalmente
a partir de dois pontos: (a) o reconhecimento do conteúdo social e político de toda
reivindicação a conhecimento e a possibilidade de dele derivar-se o cultivo ao tipo de
comunidade argumentativa assinalada acima; e (b) a própria possibilidade daquele
conteúdo ser vislumbrado no contexto de seu modelo de ciência.
Com respeito ao item (a), a análise desenvolvida nos Capítulos 5 e 6
sugere que o pensamento skinneriano, à exceção da contradição em que envereda ao
defender seu programa de pesquisas78, permite dele derivar-se uma atitude pragmatista
com respeito a diferentes instâncias de conhecimento (conhecimento em geral,
conhecimento científico e auto-conbhecimento). Deste ponto de vista, pode-se dizer que
a postura skinneriana torna possível (ou comporta) uma consideração crítica das
reivindicações a conhecimento. Ao apontar para esta possiblidade, contudo, deve-se
reconhecer que a atitude assumida por Skinner não é exatamente a de colocar em
evidência o problema dos valores e interesses contidos nas práticas das comunidade
verbais das quais as asserções que os indivíduos constroem sobre o mundo são função79.
Em outras palavras, Skinner não reconhece as implicações éticas e políticas como o
campo de aferição da validade dos diferentes discursos com os quais os indivíduos são
confrontados. Em particular, ele pretende elevar seu behaviorismo, em diversas
circunstâncias, à condição de um discurso psicológico expurgado, ou "purificado" de
valores. Seja ao invocar o critério de "sobrevivência da cultura", seja ao enfatizar o valor
tecnológico das leis de sua ciência, Skinner manifesta o aspecto mais destacado da
tradição representacionista: a tentativa de constituir um espaço fora do dialógo como
campo de fundamentação e validação do conhecimento.
Se se assume a posição pragmatista, por outro lado, não se pode pretender
fugir ao diálogo. Os julgamentos acerca de diferentes recortes constitutivos da realidade e
da experiência humana não podem ocorrer senão através de uma explicitação das visões
de mundo neles contidas, dos interesses e propósitos a que atendem, das práticas a que
dão origem e das consequências destas para os indivíduos em particular e para a
sociedade como um todo. Alguns destes elementos podem ser vislumbrados, com
respeito ao pensamento skinneriano, na novela Walden II (Skinner, 1948/1971a), ainda
que Skinner não reconheça esta obra como impregnada de valores e princípios arbitrários
e dependentes de um assentimento intersubjetivo. Ao invocar uma espécie de "gestão
científica da sociedade", por outro lado, dissolve-se, no discurso skinneriano, o elemento
político (no sentido de que as implicações políticas e éticas de seu discurso serão de outra
78.E neste aspecto Skinner não reconhece a necessidade de (e não se dispõe ao) diálogo
argumentativo com os cognitivistas, muito menos aceita haver, aí, um confronto com
dimensões políticas.
79. E isso independe das circunstâncias em que Skinner contraditoriamente transita para
o campo do representacionismo.
ordem) assinalado acima com respeito às noções anti-representacionistas80. Não se faz
mais necessário, nem adquire nenhum sentido, a idéia de uma "comunidade
argumentativa de iguais"81, nem como condição para a emergência de práticas
apropriadas, nem como princípio regulador da noção de verdade (ou da crítica a esta
noção). Estas afirmações sobre Skinner, entretanto, se mostram válidas apenas com
respeito às circunstâncias em que ele transita claramente para o campo de supostos
representacionistas. Mas se afirmou anteriormente que é possível dele derivar uma visão
pragmatista capaz de propiciar uma análise crítica das reivindicações a conhecimento.
Como salientado no Capítulo 5, isso se torna possível quando se leva em conta a noção
de linguagem com a qual Skinner trabalha (e que desautoriza suas reivindicações
representacionistas). Se os enunciados que os indivíduos constroem sobre a realidade são
função de contingências de reforçamento providas por uma comunidade verbal, e se as
práticas de uma comunidade verbal pertencem ao campo das práticas culturais e revelam
os valores e propósitos dos indivíduos na sua interação com o mundo circundante, então
é possível, neste contexto, examinar-se criticamente qualquer reivindicação a
conhecimento, apontando a articulação existente entre o discurso e o conjunto de práticas
sociais das quais é função e no âmbito das quais adquire sentido. Por outro lado, só se
torna possível considerar a possibilidade de emergência de um discurso não contingente a
interesses de grupos sociais particulares na medida em que se possa falar da emergência
de uma comunidade verbal que se estenda para além de grupos sociais particulares, isto é,
na medida em que se possa falar de práticas de uma comunidade verbal partilhadas por
todos os indivíduos. É apenas neste sentido que uma visão crítica das reivindicações a
conhecimento inspirada no behaviorismo skinneriano pode implicar a defesa de uma
comunidade argumentativa do tipo proposto por Rorty.
Passando ao item (b), isto é, à possibilidade de o conteúdo político das
reivindicações a conhecimento ser explicitado a partir de uma análise de inspiração
skinneriana, mostra-se necessário partir do reconhecimento de que não faz sentido exigir
da psicologia skinneriana (como de qualquer outra abordagem psicológica) que dê conta
da complexidade das práticas humanas. Mas parece razoável indagar acerca da
possibilidade de a psicologia interpretar os complexos problemas humanos com o auxílio
de disciplinas que lhe podem prover os recursos indispensáveis para tal.
A proposta de ciência apresentada e desenvolvida por Skinner, concentra-
se no intento de evidenciar a natureza das relações de controle a que o comportamento do
organismo humano (ou não) se mostra suscetível. Talvez por esta razão Skinner fale da
psicologia como "parte da biologia" (Skinner, 1969) e, mais recentemente, delimite o
alcance de sua ciência ao estudo do processo de seleção pelas consequências ao nível
ontogenético - o condicionamento operante (Skinner, 1990), diferenciando-a de um lado
da etologia e de outro da antropologia. Como observado no Capítulo 5, uma ciência deste
tipo reduz a análise das práticas humanas à especificação de contingências de
80. Não se pode deixar de lembrar, a este respeito, a proposta platônica de um Estado
governado por filósofos, exemplo singular de uma cultura representacionista.
81. Ao fazer esta crítica, não se trata de desprezar a importância da ciência para o
enfrentamento dos problemas humanos, mas de desqualificá-la como dotada de isenção e
auto-suficiência.
reforçamento, não havendo nela espaço para uma reflexão crítica sobre valores e
propósitos alí contidos. Por outro lado, observou-se que abandonado o compromisso
experimentalista de Skinner e sua limitação aos processos básicos relativos ao
comportamento dos organismos, é possível buscar aquele tipo de reflexão partindo-se
exatamente de uma atitude behaviorista diante dos fenômenos humanos, caracterizada,
antes de tudo, pela rejeição do princípio de independência e auto-determinação. Em
outras palavras, a preocupação com as relações de controle pode ser de fundamental
importância para uma crítica behaviorista dos princípios representacionistas82 e para a
elaboração de uma concepção pragmatista de conhecimento, mas é apenas transcendendo
este nível que se pode chegar a uma visão crítica das reivindicações a conhecimento
elaboradas por uma cultura. Ao abandonar o experimentalismo em direção àquela
reflexão, torna-se indispensável reconhecer que a defesa de uma atitude behaviorista
diante de teorias ou propostas alternativas se coloca não no campo de uma suposta
cientificidade (o retorno ao apelo representacionista), mas no campo de suas implicações
éticas e políticas.
Um aspecto fundamental da proposta de analisar as práticas das
comunidades verbais (científicas ou não) segundo uma atitude behaviorista radical é que
se estará sempre lidando com o conhecimento enquanto fato social83 e cuja validade se
circunscreve aos limites da comunidade verbal na qual se constrói. Os confrontos entre
discursos alternativos podem ser interpretados como confrontos entre modos de ação
sobre o mundo e de configuração deste à experiência humana (como diz Wittgenstein, os
usos que os indivíduos fazem da linguagem são formas de vida; e a concordância a que
chegam, uma concordância entre formas de vida) só superáveis diante do tipo de
comunidade argumentativa derivada por Bernstein (1983) do pensamento de Rorty.
Talvez seja um exagero pretender chegar a este tipo de interpretação a partir do
pensamento de Skinner, em particular considerando-se as limitações da proposta de
ciência skinneriana assinaladas ao longo deste trabalho. Mas não se trata, aqui, de avaliar
apenas as proposições de Skinner. Trata-se, também, num esforço reflexivo, de
vislumbrar as possibilidades de uma psicologia behaviorista não limitada ao
experimentalismo. O que parece indispensável a esta tarefa parece ser menos o
julgamento do behaviorismo diante de outras abordagens psicológicas e mais uma
avaliação da possibilidade de associar-se os recortes skinnerianos aos recortes de outras
disciplinas, segundo um princípio que preserve uma coerência na abordagem dos
fenômenos humanos e evite um ecletismo frágil.
83. Seria interessante, diante desta afirmação, discutir as implicações (sobretudo com
respeito à capacidade para o julgamento ético) da proposta pedagógica de Skinner
(1968), pautada por procedimentos e recursos de ensino individualizado.
Do presente ponto de vista, não faria sentido criticar Skinner por limitar
sua proposta de investigação às relações de controle a que o comportamento está
submetido. Mas deve-se observar que Skinner pretende lidar, com sua ciência, com
fenômenos humanos complexos e também reconhece que vários problemas importantes
precisam ser abordados em um plano diferenciado da experimentação84.
Em se tratando de fenômenos reconhecidamente complexos, como
deliberações éticas e como a construção de conhecimento humano, caberia à psicologia
reconhecer que tais fenômenos só se tornam razoavelmente inteligíveis quando
submetidos a um exame que envolve os estudos históricos, sociológicos, antropológicos e
mesmo filosóficos. Circunscrever a análise de um problema daquele tipo à investigação
de relações de controle, supondo-se que tal fragmentação é necessária e legítima, sem
procurar integrá-la ao que as demais disciplinas têm investigado, pode significar
preservar uma identidade ao preço do desconhecimento e da limitação, da reprodução
(consciente ou não) de valores nem sempre eticamente sustentáveis. O problema que se
coloca na proposta de tornar a psicologia uma disciplina que em seu esforço investigativo
e reflexivo se articula com a filosofia e as humanidades é o da necessidade de uma
compreensão dos pressupostos ontológicos no contexto dos quais os diferentes discursos
se constituem e adquirem significação, de modo a identificar o que é uma articulação de
recortes complementares da realidade e o que poderia ser considerado uma articulação de
recortes contraditórios. Do ponto de vista da compreensão do behaviorismo aqui
desenvolvida, esta tarefa pode ser iniciada com a proposição de um princípio básico na
compreensão do homem: a crítica à noção de autonomia e independência humana. A
partir deste suposto, mostra-se legítimo lançar mão, por exemplo, no contexto de uma
psicologia behaviorista radical, das reflexões de Wittgenstein sobre a linguagem; ou dos
estudos históricos e antropológicos que vêm evidenciando o processo através do qual se
constituiu na sociedade ocidental moderna uma experiência particular da própria
subjetividade, ou das pulsões humanas (por exemplo, o trabalho de Elias, 1939/1990 e a
análise de Figueiredo, 1992). A proposta de lançar mão destes estudos pode parecer
inusitada para o behaviorista convencido do programa de investigações proposto por
Skinner. Entretanto, a despeito da pertinência que se possa reconhecer com respeito
àquele programa, se se trata de fazer do behaviorismo uma abordagem psicológica não há
como fugir àquela necessidade; não apenas por uma questão de limitação do aparato
teórico e metodológico, mas, sobretudo, pela natureza e complexidade do campo
reservado à constituição da psicologia como ciência independente. Trata-se de um campo
atravessado necessariamente por aquelas outras disciplinas e constituído de tal forma que
a dispersão e a pluralidade parecem inevitáveis (cf. Figueiredo, 1993). Isto confere a
qualquer abordagem psicológica uma fragilidade na constituição de sua identidade
enquanto psicologia, o que parece acentuado quando se fala da necessidade de recurso a
outras disciplinas. Mas, parodiando Rorty, talvez a cultura precise mais de uma
"psicologia edificante" do que de um sólido edifício psicológico (se é que este último é
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ANEXO 1
SKINNER, B. F. Walden II. New York: MacMillan, 1976 (Reimpressão com nova
Introdução: "Walden Revisited").
85. A ordem de apresentação das referências, bem como os dados relativos às mesmas,
correspondem à ordem e à maneira como são apresentados nos volumes examinados.
EPSTEIN, R.; LANZA, R. P.; e SKINNER, B. F. "Self-awareness" in the pigeon.
Science, 1981, 212, 693-695.
SKINNER, B. F. How to discover what you have to say: a talk to students. Behavior
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1986, 45 (1), 115-122.
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Experimental Psychiatry, 1988, 19 (3), 171-179.
ANEXO 2
MATRIZ PARA ANÁLISE DO PENSAMENTO DE SKINNER
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1 ----->
<----- 2
PA PB
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RA RB
3 ----->
<----- 4
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