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Paradoxos do liberalismo no Brasil escravista
Maurício Oliveira
GRINBERG, Keila. O fiador dos mais respeitados advogados do Im-
brasileiros – Cidadania, escravidão e pério, tudo isso em plena vigência direito civil no tempo de Antonio Pe- do regime de escravidão no país. reira Rebouças. Rio de Janeiro: Edi- Essa peculiar trajetória foi recupe- tora Civilização Brasileira, 2002 rada e analisada pela historiadora carioca Keila Grinberg em O fiador Nos últimos anos de vida, dos brasileiros – Cidadania, escravi- quando já se encontrava cego, An- dão e direito civil no tempo de Anto- tônio Pereira Rebouças (1798- nio Pereira Rebouças (Editora Civi- 1880) ditou passagens autobiográ- lização Brasileira), livro originado de ficas a um dos filhos. Julgava-se sua tese de doutorado em História esquecido pelos contemporâneos e Social pela Universidade Federal pretendia ao menos assegurar algum Fluminense (UFF). reconhecimento na posteridade. Como se percebe facilmente Tinha, de fato, muito a contar. pela sucinta descrição acima, o per- Mulato, nascido em Maragogipe, sonagem seria, por si só, interessante no Recôncavo Baiano, caçula entre o suficiente para justificar uma bio- os nove filhos de um alfaiate portu- grafia. O livro vai muito além, no guês e de uma negra liberta, Rebou- entanto: a história de Rebouças e as ças ocupou relevantes cargos políti- atitudes que tomou ao longo da vida cos – foi várias vezes deputado sintetizam as contradições do Bra- provincial nas décadas de 1830 e sil oitocentista. Ao mesmo tempo 1840 – e transformou-se em um dos em que assegurava não tolerar qual-
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quer tipo de racismo e pregava aos Rebouças era um rábula, ad-
quatro ventos a igualdade entre as vogado autodidata com permissão etnias, evocando freqüentemente o para exercer a profissão em reconhe- próprio exemplo como o de um cimento ao saber que demonstrava. mulato que subiu na vida por méri- Claro que tal deferência dependia tos próprios, Rebouças não se colo- de influência política, algo que ele cava claramente contra o escra- construiu cuidadosamente desde vismo. Ao contrário, dizia-se um muito cedo – a ponto de Leo Spitzer defensor incondicional da ordem es- tê-lo retratado no livro Vidas de en- tabelecida e do direito de proprie- tremeio como um oportunista cuja dade, alinhando-se à interpretação principal habilidade seria apenas de que os escravos, comprados e estar no local certo, na hora certa, vendidos como qualquer outro para galgar posições que lhe permi- bem, pertenciam legitimamente a tissem ascender socialmente. O cui- seus senhores. dadoso trabalho de Keila Grinberg Essa mesma contradição atin- demonstra, no entanto, que a des- giu toda a sociedade brasileira – que crição de Spitzer é um tanto sim- se viu pressionada pelas idéias de plista: as escolhas de Rebouças e os igualdade e liberdade que vinham caminhos que percorreu são muito da Europa – e ainda mais particu- mais complexos do que uma análi- larmente o universo jurídico do qual se superficial faz supor. Rebouças fazia parte. Havia uma in- De origem humilde, Rebouças compatibilidade evidente entre os não tinha como bancar seus estu- ideais que ganhavam força com a dos em Coimbra, destino dos bra- modernidade e a permanência da es- sileiros de famílias abastadas que cravidão; uma enorme distância en- pretendiam se transformar em ad- tre teoria e prática. Enquanto se co- vogados naquele início de século meçava a discutir a criação de um XIX, época em que o país ainda não Código Civil no Brasil, o que sus- tinha faculdades de Direito. Seu pri- citava um inevitável debate sobre ci- meiro contato com as entranhas da profissão ocorreu aos 16 anos, quan- dadania, continuava-se privando do deixou a cidade natal para con- uma parte da população do mais tinuar os estudos em Salvador e pas- fundamental de todos os direitos: a sou a trabalhar em um cartório, liberdade de ir e vir. como assistente de escreventes. Foi
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em 1821, quando tinha apenas 23 apelidado de “miserável preto da
anos, que ele se viu pela primeira Rainha Ginga” e acusado pelos sergi- vez “no local certo, na hora certa”. panos de participar, ao que tudo in- Depois de ter uma participação im- dica sem fundamento, de uma so- portante – mas certamente longe de ciedade secreta que almejava tirar os ser decisiva – na organização da luta brancos do poder. Não foi certa- pela Independência no Recôncavo, mente a única manifestação de pre- Rebouças tratou de enaltecer a si conceito racial enfrentada por Re- próprio como um herói. Em um bouças ao longo de sua carreira relato escrito em tom épico e na ter- política e como advogado. Por con- ceira pessoa, colocou-se como líder veniência, no entanto, ele fazia ques- da resistência aos portugueses na re- tão de “esquecer” episódios do gênero. gião. Modéstia, aliás, não era o seu Rebouças permaneceu até o forte: o título escolhido por Keila fim fiel ao entendimento de que a Grinberg para o livro é uma refe- liberdade não era um direito natu- rência à forma como ele próprio se ral, mas uma conquista reservada a definiria mais tarde em uma sessão quem fizesse por merecê-la. No fi- da Assembléia Provincial da Bahia. nal da vida, consagrado como ad- Como muitas vezes a versão vogado, ele mantinha sete escravos vale mais do que o fato, o jovem em casa e só concedia liberdade passou a contar com a imediata sim- àqueles que fossem capazes de com- patia do grupo que ascendia ao po- prar a própria alforria. “Seu intuito der. Os dividendos não tardaram. real era estabelecer a renda como No ano seguinte, Rebouças foi critério eficaz de qualificação dos membro da Junta Provisória do go- cidadãos”, define Keila Grinberg. verno, trunfo para que aumentasse Para a autora, foi a dificuldade de o prestígio em sua província. Logo Rebouças em perceber e acompa- receberia permissão para advogar nhar as mudanças em curso que o em toda a Bahia. Em 1824, foi no- isolou politicamente, até o momen- meado secretário da província do to em que ele já não se alinhava a Sergipe, cargo do qual seria desti- qualquer grupo com o qual pudes- tuído um ano depois, junto com o se compartilhar seus ideais. presidente da província, Manoel Ao lidar com a questão da pro- Fernandes de Oliveira. Homem de priedade de seres humanos da mes- confiança de Oliveira, Rebouças foi ma forma que lidava com outro tipo
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qualquer de propriedade, Rebouças trado desses processos, Rebouças
perdeu a oportunidade de aderir a não demonstrava qualquer preocu- uma vertente do Direito, já em voga pação com a inserção dos escravos na época, que colocava em xeque o na sociedade ou com outras ques- arcabouço jurídico que dava supos- tões coletivas, mas apenas com o ta legitimidade à escravidão e defen- veredicto dos casos que envolviam dia a primazia da liberdade sobre o seus clientes. direito de propriedade. Irredutível Para ter condições de avaliar se ao longo dos anos, Rebouças che- a postura profissional de Rebouças gou à década de 1860 enfrentando em relação às disputas judiciais en- a questão exatamente como fazia 30 tre senhores e escravos destoava da anos antes. média, a autora dedicou-se a um Decepcionado por não ter cuidadoso levantamento do desem- conseguido a reeleição como depu- penho de outros advogados nas tado, decidiu abandonar a carreira ações de liberdade. A comparação política em 1848. A partir dali se tornou possível constatar que o fato dedicaria exclusivamente à advoca- de atuar em ambos os lados não di- cia. Seus contatos foram suficientes ferenciava Rebouças dos colegas. A para que assegurasse o direito de autora lembra que os advogados exercer a profissão em todo o país, eram muitas vezes obrigados a acei- e não mais apenas na Bahia. Assim, tar a causa, diante do direito das decidiu permanecer no Rio de Ja- pessoas classificadas como “miserá- neiro, com a mulher e os oito fi- veis” de obter curador gratuito. lhos. Entre as muitas causas em que “Defensores por excelência de se- atuou estavam as chamadas ações de nhores ou de escravos, portanto, liberdade, aquelas em que escravos esses advogados não eram. Atuavam pleiteavam, pela via legal, a alforria. em causas de liberdade como atuari- Entre 1847 e 1864, participou de am em quaisquer outras, seguindo, oito processos do gênero. Represen- aliás, a profissionalização do campo tou quatro senhores e quatro escra- jurídico que começou a ocorrer em vos, obtendo três vitórias e quatro larga escala a partir de 1832, com a derrotas (em um dos processos, foi formação das primeiras turmas das impossível para a autora descobrir Faculdades de Direito de São Paulo e o resultado). Pelo que ficou regis- Olinda”, descreve.
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A análise de 620 processos de para o qual ele ditou a autobiografia
liberdade em primeira instância na velhice, foi o primeiro negro a transcorridos entre 1806 e 1888 de- se formar em engenharia no Brasil, monstrou que não havia grandes es- em 1860. Viria a se tornar um res- pecialistas no tema – apenas cinco peitado engenheiro, responsável, ao advogados haviam participado de lado do irmão Antonio Pereira Re- quatro causas ou mais, e o recordis- bouças Filho, pelo plano de abaste- ta não passava de sete participações. cimento de água do Rio de Janeiro Na segunda instância, havia mais es- e pela construção das docas da Al- pecialização. Dez advogados tive- fândega. ram dez ou mais participações entre Mais do que sua vitoriosa tra- as 279 ações de liberdade registradas, jetória profissional como engenhei- e o recordista estava envolvido em ro, contudo, André Rebouças en- 27 casos. trou para a história da forma como Por tudo isso, O fiador dos bra- o pai poderia ter entrado: como um sileiros não é uma simples biogra- dos líderes do abolicionismo no fia. A trajetória do protagonista é o Brasil, tão destacado quanto Joa- fio condutor da ampla temática quim Nabuco e José do Patrocínio. abordada no livro: a luta pela cida- Lutou não apenas pelo fim da es- dania, o fim da escravidão e a cons- cravidão, mas pelo direito de aces- tituição de direitos civis para os afri- so a terras por parte dos libertos e canos e seus descendentes. A autora seus descendentes. Monarquista fer- também considera o livro, com ra- renho, André deixou o país depois zão, “uma porta de entrada para en- da proclamação da República. Mu- tender o mundo dos advogados no dou-se primeiro para a Europa e século XIX, seu universo jurídico e depois para a Ilha da Madeira. Foi político, suas ligações com a políti- encontrado morto aos 60 anos, à ca e, principalmente, com os gran- beira de um penhasco. Desconfia- des debates de seu tempo”. se de suicídio, embora não se possa De todas as obras de Rebouças, afirmar que ele tenha dado fim à talvez a mais importante tenha sido própria vida. Esse último e dramá- dar condições para que seus filhos tico capítulo foi o epílogo da fan- estudassem e, assim, prosseguissem tástica aventura dos Rebouças atra- com a ascensão social da família. vés do século XIX. André, nascido em 1838, o filho