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V Encontro Nacional da Anppas

4 a 7 de outubro de 2010
Florianópolis - SC – Brasil
______________________________________________________

Terras quilombolas e a preservação do meio ambiente: uma análise da


identidade cultural em face da ADI 3239/04.

Kátia Núbia Ferreira Corrêa (UNDB)


Mestre em Sociologia. Professora de Antropologia da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco-
UNDB, São Luís, Maranhão. Coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Direito e Diversidade.
E-mail: katianubiaf@bol.com.br

Ana Paula Antunes Martins (UNDB)


Mestre em Sociologia. Coordenadora do Curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom
Bosco- UNDB, São Luís, Maranhão. Coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Direito e
Diversidade. E-mail: anapaula.undb@yahoo.com.br

Laíza Braga Rabelo (UNDB)


Graduanda em Direito pela Unidade de Ensino Superior Dom Bosco- UNDB, São Luís, Maranhão.
Integrante do Núcleo de Pesquisa em Direito e Diversidade. E-mail: laíza_br@hotmail.com

Thayana Bosi Oliveira Ribeiro (UNDB)


Graduanda em Direito pela Unidade de Ensino Superior Dom Bosco- UNDB, São Luís, Maranhão.
Integrante do Núcleo de Pesquisa em Direito e Diversidade. E-mail: thayana_bosi@yahoo.com

Ruan Didier Bruzaca (UNDB)


Gradundo em Direito pela Unidade de Ensino Superior Dom Bosco- UNDB, São Luís, Maranhão.
Membro do grupo de pesquisa “Direito e meio ambiente”. Membro do “Programa de Assessoria
Jurídica Universitária Popular” – PAJUP. E-mail: ruandidier@yahoo.com.br

Isabela Daiane Silva da Silva (UNDB)


Graduanda em Direito pela Unidade de Ensino Superior Dom Bosco- UNDB, São Luís, Maranhão.
Integrante do Núcleo de Pesquisa em Direito e Diversidade. E-mail: isabeladss@hotmail.com

Mariana de Cássia Borges de Carvalho (UNICEUMA)


Graduanda em Direito pelo UNICEUMA, São Luís, Maranhão. E-mail: mariana_cbc@hotmail.com
Resumo
A Ação Direta de Inconstitucionalidade nº3239/04 põe em tela a forma de aplicação do artigo 68
do Ato Das Disposições Constitucionais Transitórias no que se refere à emissão de títulos de
propriedade definitiva das terras aos remanescentes de quilombos. A ADI em questão advoga a
inconstitucionalidade da possibilidade da definição de quilombo a partir da auto-atribuição prevista
na Convenção 169 da OIT e no Decreto Presidencial 4.887/03. Dessa forma o presente trabalho
analisando os discursos que envolvem a querela busca construir a idéia de terras tradicionalmente
ocupadas em razão da ideologia pluralista de acesso aos direitos e respeito à diversidade
cultural/social que a Constituição /88 pretende garantir. Para tanto, aborda-se a politização do
conceito de quilombo e identidade coletiva, o processo de territorialização e a perspectiva de
utilização dos recursos ambientais pelas comunidades tradicionais.

Palavras-chave

Terras tradicionalmente ocupadas, pluralismo, territorialização, meio ambiente.

INTRODUÇÃO

Dentro de um contexto histórico, percebe-se que o conceito inicial acerca da definição do


quilombo como sociedade marginal escravocrata, tem resistido no bojo do Direito contemporâneo,
ainda que a realidade social, e a própria transformação dos ideais de identidade que mantém viva
a sociedade quilombola tenham sofrido diversas mudanças.

Nesse sentido, busca-se primeiramente saber, a partir dos estudos mais pormenorizados acerca
dos quilombolas, quem são esses sujeitos e qual o seu papel dentro de uma sociedade que, de
forma oculta, tenta disseminar a idéia de uma cultura universal, pautada, principalmente, nos
paradigmas liberais ocidentais.

Nessa conjuntura antropocêntrica surge o discurso do pluralismo inserido na Constituição de 88,


que, apesar de pregar a aceitação das diversas diferenças existentes entre os indivíduos das mais
variadas sociedades, se limitou a considerá-los apenas como minorias, frente a massa que digna
como detentor de direitos, tais sejam, as sociedades brancas ocidentais.

Com o advento da Constituição de 1988, apesar de voltar a reconhecer os povos tradicionais,


passa a ocorrer no plano jurídico e por conseqüência em seu plano operacional, obstáculos para o
reconhecimento das “terras tradicionalmente ocupadas”. Nesse quadro encontra-se a ADI
3236/04 impetrada pelo Partido da Frente Liberal, atual Democratas, que visa obter a declaração
de inconstitucionalidade do Decreto nº 4.887/03, levando para discussão na Suprema Corte o
critério de auto-atribuição utilizado para identificação dos remanescentes, argumentando que o
art. 68 do Ato das Disposições Transitórias na Constituição Federal não se estende aos
descendentes, pois os que seriam detentores do direito seriam os remanescentes que estivessem
na posse das terras na época da promulgação da Constituição, remetendo a um conceito colonial
do que viria a ser o quilombo. Também levanta a questão sobre a validade do Decreto, pois este
estaria fora da sua autonomia normativa, nesse trabalho não nos atemos a esta última.

Em contrapartida aos argumentos constantes na ADI, os movimentos sociais de forma politizada


buscam uma resignificação do conceito de quilombo, forçando os estudiosos a relativizarem o que
entendem por rural/urbano, entendendo-os como sujeitos de direito baseados em como se auto-
definem e se representam em suas vidas cotidianas.

Dessa forma, o artigo tem como objetivo analisar os discursos presentes no julgamento da ADI
3239/04, no que diz respeito à concessão de terras aos povos tradicionais, bem como
compreender a tolerância do Estado brasileiro frente à diversidade de regras ambientais, que se
consolidam em diferentes maneiras de ver e explorar a natureza.

1 PERSPECTIVAS DA ADI 3236/04

O Conceito de terras tradicionalmente ocupadas é uma categoria vinculada aos instrumentos


envolvidos em questões ambientais e culturais. Assim as terras tradicionalmente ocupadas são
por vezes atreladas às noções extrativistas, como categoria de imóvel rural, dentre outros.
Observa-se a dificuldade dos operadores do direito em definir juridicamente terras tradicionais,
pois na maioria das vezes se vinculam a noção de direito de propriedade.

A democracia pluralista estabelecida na Constituição de 88 é relacionada não a uma forma de


tolerância ao outro nas suas particularidades individuais ou coletivas, mas sim no reconhecimento
do outro, no respeito à diversidade social com o devido amparo do direito as identidades, não
exclusivamente na forma liberal que pensa essas situações através da compensação a injustiças,
mas como respeito aos sujeitos de direitos que emergiram nas últimas décadas. Em face dos
ideais pluralistas é importante pensar como o direito abrange as terras tradicionais ocupadas,
como a entende e garante os seus direitos. Vale ressaltar o conflito de interesses e poder em
jogo, pois a tensão envolve a forma de se reconhecer os direitos de alguns sem desestruturar os
direitos já concedidos a outros, como José Afonso da Silva(2006, p 143) explica que:
[...] optar por uma sociedade pluralista significa acolher uma sociedade conflitiva, de interesses
contraditórios e antinômicos. O problema do pluralismo esta precisamente em constituir o equilíbrio
entre as questões múltiplas e contraditórias, em conciliar a socialidade e o particularismo, em
administrar os antagonis mos e evitar divisões irredutíveis.

O ordenamento jurídico brasileiro ao tratar da questão quilombola, observando sempre o viés do


pluralismo, encontra divergências em relação a definição do quilombo para o estabelecimento de
tÍtulo de terras. O debate sobre o conceito de terras tradicionalmente ocupadas oscila vezes pelo
critério de permanência na terra (critério histórico vinculando o quilombo a necessidade de
permanência ao natural) e vezes o conceito é ligado a possibilidade de auto-atribuição da
identidade por parte dos povos tradicionais.
A contradição acerca do assunto é representada pela Ação Direta de Inconstitucionalidade nº
3239/04 proposta pelo Partido da Frente Liberal, atual Democratas. Envolve o ato de disposição
constitucional transitória 68 e a Convenção 169 da OIT recepcionada através do Decreto
presidencial 4.887/2003. O artigo 68 da ADCT dispõe que: “aos remanescentes das comunidades
dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo
o estado emitir-lhes o títulos respectivos”.

Ocorre que em face do supracitado artigo, a expressão ocupação das terras, em conjunto com
uma interpretação liberal, leva ao entendimento do conceito de remanescentes das comunidades
de quilombo vinculados a ordem natural, como na ADI 3239/04 que requisita a habitação e
permanência nas terras a data de 05 de outubro de 1988, para a aquisição de titularidade das
mesmas.

A Convenção 169 da OIT é destinada conforme o seu artigo 1º: “aos povos tribais em países
independentes, cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da
coletividade nacional, e que estejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou
tradições ou por legislação especial”. O Decreto presidencial 4.887/2003 que regulamenta os
procedimentos administrativos para a identificação, o reconhecimento, a delimitação, a
demarcação e a titulação da propriedade definitiva das terras ocupadas por remanescentes das
comunidades dos quilombos, de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias, identifica como remanescentes de quilombos, segundo seu artigo 2º; “os grupos
étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de
relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a
resistência à opressão histórica sofrida”.

No contexto da ADI 3236/04, a visão liberal advoga contra o critério da autodeterminação para a
definição dos remanescentes de quilombolas, estabelecido pela Convenção 169/89 da
Organização Internacional do Trabalho e pelo decreto presidencial 4.887/03. Logo a discussão
perpassa a concepção de auto-atribuição e a de permanência, esta última invocada pela ADI, que
pretende arrolar a concessão de terras pela comprovação da “remanescência e não da
descendência”, ainda que esta última não seja determinante como frisa a Antropologia na
determinação de grupos étnicos (BARTH,1997,p.27 ). O reconhecimento então é pautado na idéia
de tolerância sem ressalvar aos povos tradicionais subsídios para a propagação da diversidade.

No caso em tela concernente a ótica pluralista o conflito de interesses consubstanciado na


definição do conceito de quilombo vai inferir no reconhecimento de um maior número de terras,
obstruindo a designação capitalista para as terras na reprodução da economia. Na verdade o
legislador Constituinte ao aderir o título de terra aos remanescentes de quilombos não imaginava
a dimensão da atribuição de terras, como esclarece Alfredo Wagner Berno de Almeida (2005a,
p.10):
Sem duvida nenhuma, quando os legisladores montaram isso, eles imaginaram que eram umas poucas
situações. Eles não imaginaram que seriam 30 milhões de hectares ou mais. Quando eles pensaram o
Estatuto das Terras indígenas, eles também imaginaram que o volume de terras era menor. Então o
que esta ocorrendo na sociedade brasileira é que as terras tradicionalmente ocupadas, em vez de elas
estarem refluindo sendo amarradas, elas estão em processo de expansão. Mas, é um processo de
expansão que coincide com o advento das identidades coletivas.

Verifica-se ao projetar o conceito de terras tradicionais a espontânea ligação do nome ao que se


tem como oposto do moderno e do urbano, imagina-se de imediato o rural, o distante, o atrasado,
bem como a origem dos quilombos se insere a concepção de descendentes dos escravos
refugiados. Ao se utilizar da expressão remanescentes de quilombolas a Constituição de 1988
introduz a necessidade de resignificação da categoria para aplicação de seus direitos, o que é tido
como patrimônio imaterial deve se tornar material. Para tanto no desenvolver da resignif icação
deve se ressaltar também o processo de politização com advento de nova identidade. Ao pensar o
conceito de terras tradicionais também não conseguimos visualizá-las nos limites de grandes
propriedades, ou em lugares utilizados com o fim econômico com a produção de bens ou serviços,
ou em lugares próximos dos centros urbanos. (Conforme ALMEIDA, 2005b, p. 03)

Tornam-se visíveis os movimentos dos que representam as identidades coletivas como os


quilombolas, os índios, as quebradeiras de coco dentre outros, rompendo a invisibilidade e
passando a serem sujeitos de direitos não simplesmente ligados ao natural, mas como sujeitos
políticos, e como tal devem ser trabalhados afim de se proporcionar a aplicação de seus direitos,
como alerta Alfredo Wagner Berno de Almeida aos operadores do direito: “Não dá para vocês
continuarem trabalhando com a idéia de figuras típicas, não dá para trabalharem com biologismo.
No biologismo essas figuras estão amarradas á natureza. O seringueiro não se separa da árvore.”

A partir da ruptura das pré-concepções da definição das terras tradicionais, iniciamos o pensar
essas identidades coletivas dentro das suas diversidades, cultura e costumes. E nesse aspecto o
território faz parte da identidade coletiva devendo ser estudado os processos de territorialização e
relação social com a terra, mais uma vez desmistificando o envolvimento do reconhecimento das
terras tradicionais com a concepção de reserva extrativista, uma vez que no âmbito pluralista
enfatiza-se a sustentação da diversidade social, como veremos no decorrer do trabalho.

2 QUILOMBO E IDENTIDADE

Mas o que vem ser quilombo? Tal conceito encontra-se inserido num mar de “fontes secundárias
compulsadas” (ALMEIDA, 1996a, P.11), que repetem compulsoriamente características reputadas
juridicamente como sendo as mais evidentes, ou seja, estão contaminadas pelos marcos jurídicos
do século XVIII, que impõe um suposto significado original. (conforme ALMEIDA, 1996b, p.11)

Para que se possa alcançar um novo significado de quilombo e redefinir seus instrumentos
interpretativos deve-se “depurar o mito em torno da definição jurídica congelada e tomar como
objeto os elementos que configuram um significado de quilombo para além da etimologia e das
disposições legais felipinas ou manuelinas.” (ALMEIDA, 1996c, p. 11)

Orienta-nos Alfred Wagner Berno de Almeida( 1996d, p.11), que:


A construção do campo conceitual de quilombo, compreendendo inúmeras noções operacionais
correlatas, tem como ponto de partida situações sociais específ icas e coetâneas, caracteriz adas
sobretudo por instrumentos político-organizativos, cuja finalidade precípua é a garantia da terra e a
afirmação de uma identidade própria.

Dessa forma, deve-se buscar o que os agentes e os movimentos sociais hoje caracterizam como
quilombo, o que adquire para eles o “sentido de viabilizar o reconhecimento de suas formas
próprias de apropriação dos recursos naturais e de sua territorialidade”. (ALMEIDA, 1996f, p.12)

A conceituação de quilombo, enquanto categoria histórica, passa pelo que estaria fora do mundo
de trabalho legalmente instituído, ou seja, o quilombo não se coaduna com o sistema escravocrata
característico do modelo de plantation 1, existiria na periferia dos grandes latifúndios. Assim, “os
elementos constitutivos da conceituação de quilombo abrangeriam ações em grupo, que
deliberadamente negariam a disciplina do trabalho, localizadas à margem dos circuitos de
mercado” (ALMEIDA, 1996g, p12-13). Enumera ALMEIDA (1996h,p.13), cinco características que
sempre aparecem de maneira combinada numa definição de quilombo:
a) Fuga;
b) Quantidade mínima de “fugidos” definida com exatidão;
c) Localização marcada por isolamento relativo, isto é, em „parte despovoado‟;
d) Moradia consolidada ou não;
e) Capacidade de consenso traduzida pelos „pilões‟ ou pela reprodução simples que explicitaria
uma condição de marginal aos circuitos de mercado.

Observa-se que a idéia de isolamento se apresenta como sendo umas das principais
características, no entanto, como sublinha ALMEIDA, 1996i, p. 14, ao fazer uma leitura de
Malheiro, que a busca por mantimentos nas proximidades de praças era regular, contrariando
essa idéia, pois existiam articulações quilombolas de abastecimento com produtos agrícolas e
gêneros alimentícios. Mesmo assim, tal núcleo conceitual se manteve nas legislações provinciais
após a independência 2. Na República, presumiu-se que os quilombos teriam sido extintos com a
abolição da escravatura.

Em suma, não houve, paralelamente á ação abolicionista, uma produção sistemática de conhecimentos
críticos capaz de desfazer o império do consenso histórico das categorias que organizavam o
pensamento escravocrata. No caso dos chamados quilombos o consenso repousou no inconsciente
coletivo e nele fez-se verdade, senão dogma. Inexistiram relativizações ou incorporação do repertório
de observações empíricas encontráveis em inúmeros autores dos séculos XVIII e XIX. (ALMEIDA,
1996j, p.16)

1
“imobilização da força de trabalho e sistema de monocultura agrário-exportador” (ALMEIDA,1996l, p.12)
2
“As variações, quando existentes, são de ordem numérica e se referem à redução da quantidade mínima de „fugidos‟ necessária p ara
caracteriz ar o que se denominava quilombo”.(ALMEIDA ,1996m, p.14)
Após um século e cinco meses de esquecimento jurídico a figura do quilombo volta à esfera
jurídica na Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988,
em seu art. 68 do Ato das Disposições Transitórias, versando:

Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida
a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectiv os.

Em uma primeira leitura identificamos de imediato que as antigas características continuam, o


quilombo ainda vem sendo tratado como “sobrevivência”, reiterando a conceituação do período
colonial( conforme ALMEIDA, 1996n, p.16). Já numa segunda leitura temos outra interpretação, a
de que tal dispositivo foi introduzido no texto constitucional como resultado da reivindicação de
camponeses “pelo reconhecimento formal de seu sistema de apossamento e das terras que,
centenariamente, habitam e cultivam, colide com esta leitura anterior ao recusar uma noç ão de
quilombo como resíduo ou „remanescente‟ de uma forma que „já foi‟.” (ALMEIDA, 1996o, p. 16)
Ocorre pois, uma tensão.

“De categoria de atribuição formal, através da qual se classificava um crime, quilombo passa a ser
considerado como categoria de auto-definição, provocada para reparar um dano” (ALMEIDA,
1996p, p. 16). Há que se falar, portanto, numa resignificação do quilombo, a conceituação colonial
de outrora passa a ser desfeita quando se busca atualizar o significado de quilombo.

Para que isso ocorra, deve-se primeiro reinterpretar o pensamento jurídico, ou seja, passar por
uma transformação, o quilombo não sendo mais sinônimo de desordem, periferia e crime, mas “o
quilombo como possibilidade de ser, constitui numa forma mais simbólica de negar o sistema
escravocrata. É um ritual de passagem para a cidadania, para que se possa usufruir das
liberdades civis” (ALMEIDA,1996q, p.17). Assim, tal pensamento deve ser assimilado pelos
movimentos políticos buscando sua positivação.

A identidade se fundamenta na movimentação política do dizer “somos quilombolas”, na busca da


institucionalização do grupo. “Uma vez que pertencer a uma categoria étnica implica ser um certo
tipo de pessoa e ter determinada identidade básica, isto também implica reivindicar ser julgado e
julgar-se a si mesmo de acordo com os padrões que são relevantes para tal identidade.” ( BARTH,
2000, p.32)

O art. 68, bem como o Decreto nº 4.887/2003, exige que alguém se proclame “remanescente”,
utilizando-se do critério de auto-atribuição, “só que o processo de afirmação étnica historicamente
não passa pelo resíduo, pela sobra ou „pelo que foi e não é mais‟, senão pelo que de fato é pelo
que efetivamente é e é vivido como tal”. (ALMEIDA, 1996s, p.17)
3 PROCESSO DE TERRITORIALIZAÇÃO

Intrinsecamente ligado a noção de identidade encontra-se a territorialidade, esta última


funcionando como mecanismo de identificação, defesa e força, desses povos. Existindo formas de
uso comum das terras, como salienta ALMEIDA (2006a, p. 24) :

Em termos analíticos, pode-se adiantar, que tais formas de uso comum designam situações nas quais
o controle dos recursos básicos não é exercido livre e indiv idualmente por um determinado grupos
doméstico de pequenos produtores diretos ou por um de seus membros. Tal controle se dá através de
normas específic as, cominando uso comum de recursos e apropriação privada de bens, que são
acatadas, de maneira consensual, nos meandros das relações sociais estabelecidas entre vários
grupos familiares, que compõem uma unidade social.

Os laços existentes de ajuda mútua revelam um conjunto de regras sobre uma base física
considerada comum, que incidem sobre os recursos naturais renováveis e mostram um
conhecimento aprofundado e peculiar dos ecossistemas, dessa forma, nos utilizaremos aqui da
mesma expressão trabalhada por ALMEIDA, 2006b, p. 24, “processo de territorialização”.

Assim, temos que ter consciência de que há distintos processos de territorialização, como por
exemplo os babaçuais, seringais e castanhais. Tal expressão “tenta propiciar instrumentos para
compreender como os territórios de pertencimento foram sendo constituídos politicamente através
das mobilizações por livre acesso aos recursos básicos em diferentes regiões e em diferentes
tempos históricos.” ( ALMEIDA, 2006c, p. 88)

A relação comunitária que resulta na politização da identidade coletiva aos povos chamados
tradicionais é caracterizada pela dinâmica cultural do ser tradicional rompendo a invisibilidade em
movimentos, que coadunam em formas discretas de controle estabelecidas pelo estado no
processo de reconhecimento da diversidade. O processo de territorialização envolve o
conhecimento dos agentes sociais na luta por construção autônoma da vida, de acordo com suas
praticas de lazer, religião, cultura, dentre outros, fazendo jus a existência comunitária, com direito
a acesso aos recursos básicos, como hídricos e territoriais, essenciais a existência da sua
identidade coletiva permeada pelo seu modo de vida. É a reivindicação das terras que propiciam o
seu modo de vida. É pelo direito a terras que se perpetua a afirmação da sua identidade. O direito
as terras pelo direito indissociado de ser quem são.

Como Almeida coloca sobre o processo de territorialização:

O processo de territorialização é resultante de uma conjunção de fatores, que


envolvem a capacidade mobilizatória, em torno de uma política de identidade, e
um certo jogo de forças em que os agentes sociais, através de suas expressões
organizadas, travam lutas e reivindicam direit os face ao Estado.(...). O significado
de „tradicional‟ mostra-se, deste modo, dinâmico e como um fato do presente,
rompendo com a visão essencialista e de fixidez de um t erritório, explicado
principalmente por fatores históricos ou pelo quadro geral, como se a cada bioma
correspondesse nec essariamente uma certa identidade. ( ALMEIDA, 2006d, p. 88)
Nesse sentido o direito brasileiro que almeja defender o pluralismo não pode garantir a titularidade
das terras somente aos povos que lá permanecem, já que a dinâmica das comunidades
tradicionais levam a observar a existência de pessoas que se auto-definem quilombolas que estão
fora dos padrões territoriais imaginados, e ainda a intrínseca relação da identidade coletiva com a
propagação de seus costumes via território. Já que se quer reconhecer a diversidade
cultural/social deve-se também dispor de meios que realmente concretizem a construção da sua
identidade, do seu modo de vida, que só é efetiva no caso dos povos tradicionais por via da
titularização de terras. Mas do que uma questão de propriedade a concessão de terras através da
autodeterminação infere no acesso aos direitos dos povos minoritários de ser quem são.

3 TERRITÓRIO E MEIO AMBIENTE

É necessário agora analisar a problemática que envolve os problemas de ordem ambiental


quando se desconsidera a forma de apropriação dos povos tradicionais em favor de grandes
agricultores e demais particulares. Tal permeia a questão da maximização dos recursos naturais,
resultando na inserção no processo da produção de riquezas e na extirpação do desenvolvimento
social, pois distancia-se da compreensão da utilização voltada para a sustentabilidade e para a
subsistência.

As formas de exploração dos recursos naturais no contexto brasileiro resultam em gravames de


alta escala em relação ao meio ambiente. O extrativismo exacerbado por parte de latifundiários e
empresas desconsideram o conteúdo social da terra. Corroborada por tal visão, essas atividades
aproximam-se ainda mais de uma injustiça quando da desconsideração das formas de
apropriação territoriais presentes na tradição dos povos, como é o caso dos indígenas e dos
quilombolas.

A apropriação da terra voltada, de forma essencial, para o extrativismo tolhe as relações com os
recursos naturais, diferente dos povos tradicionais, que levam em conta a relação espiritual
(ARAÚJO, BELO, 2009, p. 273). O solo, a água e o ar são utilizados da forma mais maximizada
possível para satisfazer as necessidades do mercado, intrinsecamente ligadas às atividades
extrativistas do porte latifundiário e industrial.

Diferente de tal panorama, os povos tradicionais não levam em consideração as regras de


mercado, mas sim as necessidades de reprodução física e social do grupo. Rompe com o
contexto produtivo, pois não sucumbem ao modelo em que a técnica aliena e mecaniza o
indivíduo, o que acarretaria no distanciamento em relação à natureza.

Predomina nesta forma de apropriação uma relação espiritual com a natureza. Disto decorre um
sentimento de cuidado com maior precisão em comparação às formas de exploração e
degradação dos recursos naturais presentes no pensamento individualista e imediatista dos
grandes proprietários e industriais.

Os povos tradicionais utilizam-se de “técnicas ambientais de baixo impacto e a formas equitativas


de organização social e de representação” (SANTILLI, 2005a, p. 189). A relação com a terra
resulta em atividades menos degradantes ao meio ambiente, pois movidos pela subsistência,
levando em consideração a necessidade dos envolvidos. Do contrario, o posicionamento da
maximização do uso dos recursos naturais resulta em um viés de exclusão e dominação na
sociedade.

Diferente dos ditames de uma organização pautada nas relações de produção de riquezas sociais,
os povos tradicionais formam-se de maneira equitativa. Afira-se desta forma que não se tem como
questão a subsunção de indivíduos em detrimento do outro, ou seja, que a utilização dos recursos
naturais são relacionados com a comunidade, não com particulares.

As técnicas de baixo impacto ambiental relacionam-se então com a forma de apropriação


territorial. O sentido que se atribui à terra é um dos fatores primordiais em um posicionamento
ecologicamente satisfatório, pois a depender de ser vista como uma fonte de dominação e abuso
individual ou como instrumento de fruição comunitária, a relação com natureza tenderá para a
degradação ou para a conservação desta.

Santilli (2005b, p. 190) destaca:


As populações tradicionais são também definidas pela sua ligação de relativa simbiose com a natureza,
pelo conhecimento aprofundado da natureza e de seus ciclos e pela noção de território ou espaço onde
se reproduzem econômica e socialmente.

A simbiose por parte dos povos tradicionais representa a superação de um comportamento


parasitário. Este é o retrato das atitudes formuladas pelos grandes latifundiários e industriais, pois
reconhece nos recursos naturais objetos de apropriação e satisfação de seus interesses,
desconsiderando uma relação de sustento.

O convívio pautado na simbiose permite que tanto o homem quanto a natureza possam subsistir,
pois representa um reconhecimento mutuo das necessidades e particularidades de ambos,
composto pela dialética e sem os prejuízos advindos de um comportamento pautado na
degradação desta ultima.

O reconhecimento do outro compõe as diretrizes do comportamento de tais povos, pois se


observa um saber desgarrado das relações de domínio e poder presentes na sociedade, ou seja,
propicia-se uma sabedoria desgarrado desta parcialidade, resultando no aprofundamento das
relações com a natureza.

Neste compasso, a noção territorial também é alargada em razão das relevâncias


socioeconômicas para comunidade. Destarte, não são as forças de mercado que formulam a
identidade com o território, mas sim as questões culturais e locais, evidenciando verdadeira
representação do indivíduo.

Os povos tradicionais, a exemplo dos povos indígenas, buscam táticas de controle territorial “para
reafirmar suas identidades e reclamando sua autonomia como seu direito de ser e seu direito de
território” (LEFF, 2006, p. 299). Tal questão expande-se aos quilombolas na medida em que se
evidencia a noção de tradição e memória em relação à terra, observando-se uma posição de
resguardo do meio ambiente.

Destarte, enfatiza-se o reconhecimento do sujeito na própria natureza, fazendo tanto dos


indígenas quanto dos quilombolas povos capazes de uma organização desvencilhada das noções
de dominação preponderantes no posicionamento de determinados particulares. Diferente da
dominação e subsunção dos elementos naturais, busca-se produtividade de subsistência,
superando os padrões de alienação do sujeito, provenientes do modelo de produção capitalista e
fortalecendo os laços em relação à terra.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com o exposto ao longo do artigo pode-se chegar a algumas considerações sobre a questão do
critério de auto-atribuição e do instituto das terras tradicionalmente ocupadas. A partir da
Constituição de 88 instaura-se a visão pluralista na atuação do Estado que deve garantir o
reconhecimento da diversidade cultural e social. Com isso observamos a existência de conflitos de
interesses contraditórios de grupos antinômicos, que de acordo com sua movimentação política
culminam em tentativas de delimitar os direitos e garantias uns dos outros, como no caso da ADI
3239/04. Opera-se um debate que na verdade envolve a desapropriação de uma quantidade
maior de terras aos remanescentes de quilombos.

Verificamos que o entendimento de terras tradicionalmente ocupadas se distingue do conceito


colonial de quilombo, ou de qualquer idéia referente à propriedade, ou seja, o processo de
territorialização perpetrado pelos povos tradicionais envolvem a utilização dos recursos naturais
como construção da sua própria identidade coletiva, na propagação de seus costumes, religião,
cultura, dentre outros. A concepção de terras aos remanescentes de quilombos s e encontra
estritamente ligada à própria veiculação do seu modo de vida. Entende-se, portanto que as terras
tradicionalmente ocupadas não se referem a questão temporal, como aponta a ADI 3239/04, mas
o tradicional deve ser entendido como o modo dos quilombolas ocuparem e utilizarem as terras,
em seus modos de produção, enfim, a forma como se relacionam com a terra. A terra passa a ser
o substrato físico no qual eles se reproduzem física, social e culturalmente. Assim o ordenamento
jurídico brasileiro só pode efetivar a visão pluralista que a Constituição/88 defende, através do
critério de auto-atribuição da identidade quilombola, não apenas tolerando a diversidade, mas
proporcionando os devidos subsídios de acesso aos direitos básicos para que os povos
tradicionais se definam como tal.

Referências

ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. FRECHAL Terra de Preto: quilombo reconhecido como
reserva extrativista. São Luís: SMDDH/CCN-PVN, 1996.
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