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Marcos Ramos
Texto publicado no Jornal A Gazeta, 27 de fevereiro de 2016
Vinte anos depois da morte de Caio, sua obra está mais vigorosa do que
nunca. Seus livros têm sido continuamente reeditados, seus textos montados no
teatro e encenados no cinema, seus contos se tornaram objeto de análises das
mais diversas perspectivas críticas e sua vida se transformou em tema de livros
e documentários. Já se passaram dois decênios e agora temos a distância
suficiente que requer a crítica para afirmar, sem grande risco, que a obra de Caio
Fernando Abreu integra hoje um quadro canônico de autores do século XX. Em
2006, quando fui apresentado ao Caio, intrigava boa parte dos meus professores
na universidade que não compreendiam como um autor responsável pela
autópsia dos anos 80 poderia interessar a minha geração. É evidente que ele
continua interessando aos jovens, principalmente. E a propósito da dúvida
latente, talvez a resposta seja a mesma. Por um lado, a força literária de sua
obra se atualiza, por outro, nossos conflitos ainda são muito similares.
Caio começou a publicar muito jovem e é possível perceber um claro
paralelismo entre o autor de origem interiorana (Santiago do Boqueirão – Rio
Grande do Sul), que constrói inicialmente personagens habitantes de um espaço
sobretudo subjetivo – da reflexão solitária que não raro se materializa em fluxos
de consciência –, tributário à sua herança clariceana e ao realismo mágico latino-
americano;; e o autor que aos poucos adentra às grandes metrópoles (Porto
Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro) para construir uma radiografia do que
convencionou-se chamar sujeito pós-moderno. A escrita de seu primeiro
romance, “Limite Branco”, e de seu primeiro livro de contos, “Inventário do
irremediável”, ainda nos anos 70, marca essa primeira fase da obra do autor;; na
segunda fase, a partir da década de 80, momento em que tanto o autor quanto
seus personagens adentram os limites da urbe, “Morangos mofados”, “Os
dragões não conhecem o paraíso” e “Onde andará Dulce Veiga (seu segundo e
último romance) são os livros mais significativos. Mas sua obra está longe de se
limitar a isso, Caio publicou mais de uma dezena de livros, escreveu e encenou
peças teatrais, colaborou com crônicas em diferentes jornais, traduziu, e deixou
uma infinidade de cartas que ainda não foram integralmente publicadas.
O que sabemos de Caio é que ele foi um escritor obsessivo, escreveu
durante toda a vida. Sua obra nunca se restringiu a uma literatura de gênero
como já foi dito, e se seus temas foram vistos em algum momento como restritos
a uma literatura de geração, o crescente interesse pela sua obra prova o
contrário. Os conflitos encenados por Caio ainda são atuais. Seus personagens
são habitantes das cidades e em parte se livraram dos grilhões que os prendiam
às tradições (família, religião, propriedade), mas ao contrário do que previam,
essa “liberdade” não os legou modos de vida que implicassem certezas,
garantias e seguranças subjetivas e materiais. As transformações operadas no
seio da sociedade moderna criaram um novo mal-estar (Freud falou a respeito).
São as diferentes faces desse tema que constituem a sua obra.
Caio nos oferece um espelho, seus personagens estão em condições
para transitar nas cidades, mas parecem destinados a uma condição subjetiva
entre a melancolia latente e a fragilidade dos laços afetivos, porque habitam
quase sempre espaços efêmeros e tateiam possibilidades apenas fugazes. Nada
se mantém por muito tempo. Esperava-se que o sexo, depois do desbunde das
gerações de 70 e 80, preenchesse a lacuna da alteridade, admira perceber, no
entanto, que tenha crescido sua capacidade de gerar frustrações e de exacerbar
a própria sensação de estrangulamento que se esperava que curasse. O que
ocorre em boa parte dos contos de Caio é um esvaziamento, pois a vitória de
Eros na grande guerra da satisfação é, na melhor das hipóteses, uma vitória de
Pirro. A satisfação imediata garantida em uma noite não é sinal do fim, mas de
recomeçar.
Quem são esses personagens encenados por Caio Fernando Abreu? Não
paira muita dúvida e isso é muitas vezes doloroso. Os consumos que a cidade
nos oferece não remediam a frustração que ainda parece dominar a cena
textualmente inscrita. Como toda grande literatura, a obra de Caio não se
restringe ao faz-de-conta;; sua leitura é uma possibilidade de expansão da
experiência do real – dos sentidos da realidade, do sentir o mundo com
profundidade. Sem mais delongas, vamos aos textos.