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Titulo do originol em francês

La regleet le modele - Sur la théorie de l'architecture et d'urbanisme IJ

--.-.A)
7--"-·----
-- ..\;_!L_·. ,.L _
T 1Hih1J . ....5. s 16
--~·---····~
. ---

Copyright © Éditlons du Seuil, 1980

t 1 PRECONCEITO DAS PALAVRAS .... . . ...... .

1 IS T I·:XT OS SOBRE A ARQUITETURA E SOBRE A


1 '11) /\ I)E . . . . . . . . . . . . . . . • . . . . . . . • . . . . . . . . . . • • . . 15
0 ·: 'J'cx tos Realizadores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16
1. 1. O /Je re aedificatoria, Texto Inaugural .. . .. . 16
I ,}. Os Ed ilos Comunais e o Destino de sua Argu-
llll 'III H.;iío . ............... . .•.... . .. . .•. .. 26
I , I. O N Fulsos Tratados da Renascença e da Era
( 'f(l hhiCII .. .. . .. . . .. . . .. . . ...... . . . · · · · · · · 32
' V••t d iidl'I TII'I l" J.'u (Nll'l ll lo pins . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35
J I t\ llin!•lll d..: ' 1 \ il ll iÍ~ Murus, Tcxlo Inaugural . . . 37
,,,.,,,,11 dii II !IIJIIII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 44
) l i' '1' 111' 11\ ll i\' li l'fiii'\' II N • , • • • . . . . . . . . . . . . . . . 45
1111 N'" ''' ,ll"tn//,, " /\II I•'•' ' P"\'1111 ( 'il'lll ifi c a Con-
" 1111 11111111111 48
I 1111(1111 llillllh IlM 50
' '~ ,, lo llt l ll l i ll lll lld ltll " 52
DlroitON om llnHlll\ po rtuguesa reservados à \ I , 1\ I JI ,I, • II YII~n•• d11 I •'IIJHII,'O U rbano . .... . ... . 54
E DITORA PJT!II.HI'JI!C.:'J'J VA . S./\.
' ' I 111 111 11 1111 h•~ 1'11 1 u <'onlra a Cidade ....... . 68
1

Avenidu DriJtnclolro J,ufM Antônio, 3025


01401 - Silo Pnulo - S'P - B rnsil
Te lefones : 286-83Jlll o 200-6678 ' /I/ N I 11 / t/1 11' \f' r 110 I : 1\ LBERTI OU O DESEJ.O
1985 I t I I I 1\ll't J 75
I 1\ i\ t•p ilh lll trl d11 /1 ,• lt ' ar•dij icafor ia . . . . . . . . . . . 77
1 1111 111 1 1 111111 ol11 F olll k iii,' IÍO • . . . •... . . • . • .. . . . . . . 118
t\ ll t~lil , Vl111 11 "' : l·:" ' ill'\;slimos Superestrutura is . . 127
1\ ll " ' ti ' \ll t11 1vlo : n d :tlo c Histórias no De re aedi·
/Ir 1//ll t/11 , .. , . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 136
1 I I A tq i tl lt•lu I h; ró i . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 146
1' 1'111 '/ i \ 0 11 1\ 'I'RJ\VESS IA DO ESPELHO ... . . . . . 151
1 l·rq '"''"Modelo, Modelo de Espaço: Abordagem Fe-
"' 'nlt' llo lóg:ica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 152
I . I . l!t;paço-Retrato e Espaço-Modelo . . . . . . . . . . . . 153
1.2. Um D ispositivo Universalizável . . . . . . . . . . . . . 156
1.3 . Modelo e E ternidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 161
1.4. O Pharmakon . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163
2. Es tágio do Espelho c Estógio da Utopia . . . . . . . . . . 165 ·
3. 1\ Co nstrução Mítica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 170
ti.. Morus e Platão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 179
5. Morus c as Problemá ticas do Renascimento . . . . . . . 186
' 1. 1\ POST ERIDADE DOS DOIS PARADIGMAS . . . . 191
I . O Destino dos -Tratados de Arquitetura . . . . . . . . . 191
t . l . A Primeira Geração . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 191
1.2. A Regressão Vitruvizante . . . . . . . . . . . . . . . . . . 202
1.3 . Duas Exceções : Os T ratados de Perrault e de Para Jean Choay
Scan1ozzi . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 216
2. 1\ Resistência da Figura Utópica . . . . . . . . . . . . . . . . 229
2. 1. A Utop ia Reduzida de Morelly . . . . . . . . . . . . . 229
2.2 . A Utopia Canônica: Sinapia e a Superespacia-
li7nçiio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . 231
5. UMA OVA FJOURA EM PRE PARAÇÃO: DERI VAS
E DESCONSTRVÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . 241
1. l\ Ciência c a Ulopiu Cuntru o Tra lado de Arquite-
tura: o Tratado em E::> tilhaços de Palte . . . . . . . . . . 242
2. O Pré-Urbanismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 252
6. A TEORiA DO URHANlSMO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 265
I. A Teoría corno Paradigma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 266
1.1. O Discurso Cientificista e Cientffico . . . . . . . . . 269
1.2. Medicalização e Utopia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 277
1.3 . Dinâmica da Figura de Morus : Os Falws Traços
Albertianos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 282
I .'I . O T rabalho do E u T ratadista . . . . . . . . . . . . 288
>, I l 111 111:: Teori as: de Sitte a Alexander . . . . . . . . . . . . 290
/ , 1, ( l I l isc.:11 rso Científico: Simulações e Realidades 29 1
••.'. I 'll'oll un i ufr nc.:ia das Marcas da Utopia . . . . . . . . 296
.>,I. I lu Fuh1o·1 'I' ruços Albertianos . . . . . . . . . . . . . . . 300
'.•1. V ll illlll ll''l do l itt Tratadista . . . . . . . . . . . . . . . . 303
i\ 11 1\ l<'l' llllA : ll M i 1 '1\ 1.1\ V l~ J\S ÀS COISAS .. . . . . . . . . 307
1\IIII.H H lHA PIA . . . ... . .. .. . .. . . . . .. . .. .. . 32 1
O Preconceito das Palavras

·I·

I1'

J·:sl() livro 6 consngruclo ao espaço constru ído e ~ cidade.


M u~ 11 110 ~c rc.; l"c..: n; ;10 IIIUildO concre to do m bano. Deixa de lado
\, us cd il"fc.: io:; dc.:t ivamcnlc constru ídos e trata apenas do espaço
c da cidade como coisa escri ta. Seu objeto pertence, pois, à
ord em do texto.
Paradoxo, sem dúvida, se evocarmos a urgência dos pro-
blemas atualmente suscitados por uma urbanização sem prece-
dentes do planet a. Necessidade, se nos lembrarmos do volume
da literatura que contribui diretamente p ara essa urbanização,
pretend endo fundamentá-la na razão.
Trataremos, portanto, de t extos, chamados teoria, que, no
quadro de um campo disciplinar próprio, buscam determinar as
modalidades para a concepção de edifícios ou cidades futuras.
Digam respeito à arquiteura dos edifícios ou às' relações
que eles mantêm entre si e com seu ambiente, tais escritm estão
A Regra e o Modelo tem como ponto de partida minha tese hoje submetidos à hegemonia da discip~ina dcnon:it:ada urba-
de doutoramento defendida em março de 1978. Devo especial nismo. Aparentemente, tornaram-se banms c I nmslutados . Inte-
n ·cm dJr•cimento a André Chastel, professor do College de Fran- gram esses discursos científicos, ou po t!co cicnli[i:::os, ~ue as
<'t', ,,,, .,,.irft·nle ela banéa examinadora, que me convenceu a apro- disciplinas constituídas prod uzem. Co nside rados mofenstvos e
ju/111111' u trrt/)((/ho inicial e deu-me· os conselhos da ciência e da
ortullrtlo. 'l'mu(JÚJII me foram preciosas as observações e as crí-
dependentes da competência ?os cspcci al.~s t~s.' não, têm q~ase
interesse e inquietam menos a!l1da. Sua ebcaCLa esta escondida.
tlclls rfos rlo111111s 111c:mbros da banca, fean-Tou ssaint Desanti, Paradoxalmente, seus efeitos ap enas c<1usan1 alarme e prov~c~rn
f\ifll. lll /JIIf/'ttJIItrr, JJiN re Kaufmann e Pierre Merlin. A todos
um questionamento em nome da higie~1e mental, .das trad1ç?es
fi/J.I'Iltlt <çll fl ttl ll, /JI'/11 t'OIIIO a Jean Choay, auxiliar constante, e a
culturais, da estética. Apenas são discutidos os conJuntos habita-
JlrmJt,:ol.v W1111/, 1/11' ' l1111 o l ivro na qualidade de editor e de cionais e as cidades, pudicamente designados pelo mesmo adje·
aml!jV. tivo "novo", que eles contribuem para multiplicar pelo mundo .
F.C.
11 HEGRA F. O MODELO O PRECONCEITO DAS PALAVRAS

Na realidade, como seria de pressentir por seu formidável ~ rcflcxfío a idéia de arranjo espacial. Esquecemos ainda que a
poder de impacto e de erro, tais eEcritos não são banais. Este ..:ultura árabe nunca dispôs de um único texto especializado para
livro pretende mostrat·, pela primeira vez, a estranheza de seu estruturar seus espaços urbanos, cuja complexidade ainda hoje
projeto e a singul~ridade de suas démarches. A crise do arquite- d~.:i xu maravilhados arquitetos e urbanistas ocidentais. Em outras
tura e do urbamsmo ganhará com iseo uma dimensão insus- puluv ras, ignoramos ou conhecemos mal o fato de que a consti-
peitada. . lu ic,:uo c a autorização de um discurso fundador de espaço é
Em trabalho anteriorl, vinte anos atrás, já me propusera d~.: origem recente e ocidental. Su<:~ dbscminação era inevitável
assinalar uma anomalia dos textos produzidos pelo urbanismo. dcNdc que, mercê da revolução industrial, o padrão cultural d9
Mostrava eu, então, que eles se àttibuem um estatuto científico m·lck nlc se impunha, de bom ou mau grado. Pois, somente
a que não têm direito, que suas proposições são ditadas, na u pmtir da segunda metade do século XIX é que o discurso
verdade, por ideologias inconfessas e não-assumidas. O lance de l'und nd11r de espaço enunciou suas pretensões científicas c desig-
minha demonstração era, na época, polêmico : denunciar a llllll Hcu campo de aplicação com o termo urbanismo; este termo,
impostura de uma disciplina que, num período de construção 1111 v1:1dadc, foi criado, e definida a Y<Jcação da " nova ciência
febril, impunha sua autoridade incondicional. Depois, essa prc· ''''h1111i-n odura", em 1867, por 1. Cerdà3.
venção trouxe alguns fru tos, pelo menos no plano da reflexão. No ci!IUIJ tO, não se tra ta de um verdadeiro começo. Para
Daremos aqui por pacífico que, a despeito <.le was pretensões, o'11 pl n1· 11 fur<,: u d ~.: t r u n ~g rc~~ã o c de ruptura que anima os escritos
o discruso do urban ismo continua normativo e só em caráter l•'111 lno:1 d1• urbu11 iHiliO, 6 p rcci ~o l<.: nlar nprccnder seu projeto
mediato compete a uma prática científica qualquer : seu recurso llltlll ttdtt r lll tlo;:; cl n:; dulns cu:IVCI I<.:[uuadas, em seu aparecimento
lícito e justificado às ciências do natureza e do "homem" se 11 1 oo!lldl' lo(l ,. lf\lllll'lldtt, no 11lvon.:l'cr d:.1 primeira Renascença
subordina a c~colhas éticas e políticas, a finalidades que não llld l1o1111, Nl'lli•l' l'lll·l l , r0111!l c111 mu ilos outros, uma formação
pertencem somente à ordem do saber2. dlru tt1 11 IV1o 1' 1111111 pi'IÍiil'n r ujn pulcmidado.: se atribui ao século
Neste momento, são outros os meus objetjvos. Já não é o \ 1\, , o( Ih' '"' lo11'11l lt ,o IIPilllt C11111'i gunu,:uu o.:pi~ tGm ica que teria
::aso de indagar o que não são os esc1itos do urbanismo, deter- lllllll '~ ll olll 11 dillnlt ' H' 11 11 vi1nclu du~ HÚ;u)u:; XVIII e XIX,
minando seus desvios e suas derivas com relação a um tipo discur- 111 11 11111 11 11 111111\111 111 111( 111111111 ju upc1nd u..; c urgaui:L:am domínios já
sivo conhecido, o discurso científico. Cabe descobrir o que eles d1 lli ddttN1111 I )111/1/ollt 't'// IU,
são, as intenções secretas que camuflam tanto suas pretensões l•\ 1l o•nllll o, 1<li li o•lo- 11,,, q11t.: os trat:1dos de arqu itetura italia·
explícitas quanto suas ideologias tácitas, e definir seu verdadeiro 111111 •'lollda·l.·n· rulll l'\llll u c~ pn~o ctlificmlo uma relação inaugu-
estatu to. Este novo trabalho não nasceu, como o anterior, de 1111 , A ' o•rlldnu ti~.: uu~á nc n l u tk:::;~a nova relação é datada preci-
uma indignação, mas de um. espanto rcJlctido. 11111111'1111' lll'lo pri111d ro c lllai ~ mugi:mal deles, u De r if aedificatoriu,
Para poder captar a estra nheza dos escritos elo urbanismo. iflll' l .~' llJI lloll isln 1\lb::!rli apresentou ao Papa Nicolau V em
é preciso desde logo querer c saber reconhecer o t.;adLtcr insólito 1·1'11'1 ~· cuju l l l i l l lll ~t: l'ilo , pLtblicaclo pela primeira vez por Poli-
e i1:1provável t!e SCLI pr ojeto perante os procedimentos que, no ' 1!11111 1'111 1'1H) , t.:ll1 Horcnçn, ele não cessou de refazer até sua
conJttnto das d1versas culturas e ao longo da história, permi tiram llllll'll' ( 1 · 1 7 2 ) 1~ . Esln obra lcm como objetivo exclusivamente o
aos homens organizar e construir seu estabelecimento. Atribuir l'l llll'l' Jl\'11\1, Ldlll o nuxflio de u m <.:o nj u nlo de princípios e regras ,
à edificação do espaço uma disciplina específica e autônoma du dtull lr ilo I:OilSiru fdn l'lll IHIII hJiulitlmiL:, dn casa à cidade e
é uma empresa cuja singularidade e audácia nos são mast.;arada~ 111111 o'liii,IJult.:d lllt.:II IUN 1'11 1'1\14. A o lllChi1IO lcmpo que um gênero
pela difusão planetária e banalidade atuais. . dlrH'III'rilvo 1ll'lgl11nl, " 11'11/fllfo tf,• 11/'l(llilul tu·a que, da Itália, se
Esquecemos que o sagrado e a religião foram, tradicional- 1 111 11 1 1 1 111 1' ~ Pl ll' 1nd11 11 l;umpu (HII'il l'lll'l>l11 1'111' nn Fwnça, nos
mente, os grandes ordenadores do espaço humano, através do 111 ' 1 1d1111 X V l i ,. XV 111, ouu 11'1'1'11 d1· l'lri;,·rll> t.: de perdição, o
JOIJO du ·palavra ou da escrita qu_ c, nos tempos arcaicos, expunha I lt t 1 t' lfl'tflj lo •r!lu! lu 1'1'111 ill'll 111 t'qll'lo l'll llliJil tcórit.:o e prático.
tiOim ; o~ monumentos as prescrições dos deuses. Esquecemos que, lt111 'nn 1111 u oopdl t~ hl 1111 111 lll ll''" l(lll' vu l utudur seu estatuto
i nas wc1cdudc~ sem escrita, a organização do espaço construído
era cwn petCn~: 1 u <~O mesmo tempo do conjunto elas práticas e das I 11 111 Allll 'l'o til !11 1/ull•l11/ r/tt l o llt'IH111Ii:ació11. Cf., infra, Cap. 6 ,
r rcp1·c:-;cnl nçúcs ~ociui s , sem que ao menos uma palavra designe jl ·~111\ 11 ·-·
r1 ui~~~1 1 1 '' dillll q11t1 I•' lloll'r ll 11o'.llll1o mn st:a m on ografia, Leon

1. 1.'1/r llll lll •.r:l•' , 11/ llfl/t' ~ cl r éaiités, Paris, Seul!, 1165. [Tr ad. bras. o 1/u/IIN/rt 11111111 11 1 Mlln u, 11111111 111 11:JIIL1k11, J!l"l5, à qual remetemos no q ue
Urbanismo. Vtoplo& o l lt•ftlltluclas, São Paulo, Editora Perspect.iva, 1979, 111111111 1111 t•llllll lll 11111111 111111 11111'1111\I•TI niiJcnianas.
Estudos 67.1 1\, 1'111'11 llll d IVIIt'l llll 1111 IIJ<"tllll 11 l.m cl u ç õ os sucessivas do De Ti! aecl•iJí·
2. l clcm , p. 7<1 . •ttlotl!l, 1•r. lnft'll, I'· 11, 11 11• " lllbllu1;n1f1u, p :1;;\<! ·
A Rl!XlRA E O MODELO O PRECONCEITO DAS PALAVRAS 5

1iocl 11l: li11 plll'll 11 formoçiio de uma nova categoria profissionaiS escolh eu dar a seu tratado o título de Da Edijicação7 foi real-
P' l t l '~.! tl lll fvl'l h do11 un ligos construtores. . men te para se afastar de Vitrúvio e sublinhar a extensão de seu
li () llulttdu d() Albcr ti utiliza as conquistas da matemática, domínio do qual a arquitetura enquanto ar te é apenas uma parte.
I' dn lt:urlll dtt pcr:-;pccliva e da "física" con temporâ'n cas. Leva em Se é o caso, portanto, de restituir ao De re aedijicatoria seu
li l'tll l~ ldlJruçllu e le1n como referência o conjw1to das atividades valor pioneiro, este valor só assume significado no âmbito d a
I' c cwt d u l n~ sociu is. Entretan to, não se deixa reduzir ou su bordi· configuração epistêmica a que pertence o trata do de Alberti. Em
ill tl' 11 nenhu m saber exterior, a nenhuma prática política, econô- que pese a sua especificidade, esse livro não constitui um fenô·
11 ll ilcu, juríd ica ou técnica. Para firmar sua autoridade, não recor- meno isolado. Somente podemos avaliá-lo se o recolocarmos,
11 rc Üti uprcscntações e aos ritos religiosos, aos valores transcen· desde logo, entre as pesquisas sobre o espaço conduzidas pelos
11 deitt cs d11 cidade. Fo rnecendo um m étodo racional p ara conce· arquitetos, pintores e escultores d a época, reinserindo-o em se-
1/ h~:r c rcn lizar ed ifícios e cidades, ele se dá por tarefa, e chega guida, com os trabalhos de Brunelleschi, Donatello, Piero della
11 cN iubdecc •· com o mundo construído uma relação que a Anti- Francesca, na "revolução cultural"B no fi m da qual se impôs
,,
li
l~id d nd c o 11 I dudc Média ignoram e somente a cultura européia um novo ideal de ascendência sobre o mundo e se transformaram
,, tcn'i do rnvunlc u temer idade de promover. as relações que o homem europeu m antinha com suas produções.
O ucontccimen to merece tanto mais ser salien tado quanto A medida que se enfraquece o teocentrismo medieval, os
f'o i ocult ado pelos historiadores, em proveito de outras r upt uras comportamentos sociais, discu rsivos ou não, assum em aos olhos
e ou ln rs emergências da mesma época. O papel criador dos dos cientistas uma dignidade e um in teresse novos. Ser ão dora-
"11 1\run i, Poggio, Gunrino, Gh iberti , Valia , é reconhecido: já foi vante conotados pelo conceito de criação, que se pôde apontar
li anuli:;udo como a nova relação dos documentos e monumentos com ju stica como a palavra-chave da Renascença9 . Contudo, ces-
do p u~::;ado, wm as obras e ins tituições do presen te, fê-los sam também de ser vividos na imediaticidadc, adquirindo a di-
wn~t itu i r os campos da filologia, da arqueologia, da história e m ensão d a alteridade e do enigma, sendo colocados à d istância,
du fi losofi a políticas, bem como da história da arte. Semelhan- criticados e feitos objeto de saber por formações discursivas que
l' temente, o De pictura do mesmo Alberti é considerado, como já prefiguram uma parte das chamadas ciênc~as "~umanas:' e
li o era na época, a crermos no testemunho de Filarcto ou de formam constelação. Para empregar u ma termmolog1a em Vlgor ,
G hi bcrti, o por tador de uma inovação radical e constitu tiva da diremos que, ·com respeito aos textos an teriores, essas formações
primei ra teoria do espaço icônico. Mas, a despeito da con vic- introduzem u m corte.
l' çiio de seu autor, o De re aedificatoria que in tr odllZiu, a respei- Qualquer que seja seu débito para com a trad ição de saber
to do csp~iÇO lrid imcnsiona l, uma inovação análoga, de alcance herd ada de Vitrúvio ou a tradição edilitária definida pelas co-
:><.;rll preceden tes, nu nca foi reconhecido como tal e continua munas italianas durante os séculos XIII e X IV, foi desse mesmo
u s~:r v islo como um a versão melhorada do livro de Vitrúvio. " deslocamento de atenção"10 e desse corte que provieram os
A di l'usiío tle~ lc erro n ão deixa de ter relação com o hábito primeiros tratados de arquitetura italianos . O ~lberti teórico d~
de l n.cluzil· inexa tamente o título da obra de Alberti por Da Ar· construção compartilha o mesmo processo reflexiVO qu7 ? Al~ertl
12
{JIIilctum. Com efeito, se o excelente latinista que era Alberti teórico d a vida civil e política no Momus 11 ou no De ICzarchLa •

6. Alberti e~pecifica·lhe os privilégios j á no Prólogo do De re 7. A última (e a melhor) traduçiío itnlinnn publicada até hoje <cf.
"''illjicatoria: "isto porque não convocare! um carpinteiro para com- nota 6, p. 4) conserva o titulo Da Arqul t et1r1·a. Ao que saibam os, Quatrc-
iH •~\. Jo aos maior es mestres das outras disc:plinas: a mão do operário mere de Quincy é o único au~o1· ( e n üo 6 por acaso l que r econhece a
uílo passa de u ma ferramenta" (p. 7*). Tanto no que concerne aa status originalidade do título de Alberti e, tonto om seu Dictionnaire como e~
.~odul do arquiteto quanto ao estatuto discursivo do construido, não s ua Biographie eles plus célebres arch!tcctcs, o Lrndll?: por T ratado aa
~(' poderia negar o que sua elaboração pelo Renascimento deve à Anti· Arte do C012struir.
l(lllthtclu. O quadro desse trabalho não permite abordar a histrSria com- 8. Termo devido a E . Garln.
i>lu)cn tlto11 c•onccitos de arquitetura e arquiceto, muito menos a de seu 9. E. GARI N, uoven Aoe et Rcllal.,saltcc, Pnrls, Oallimard, 1969, p. 76.
r••r""'"'" tll'orts,qlonn.l. Todavia , poder-se-á medir o alcance inovador do 10. Idem, o. 75.
J)ll 1'11 trt·tll {/1'11/nrla r.rncas à comparação q;Je o contraporá adi::mte (Cap. 11. EscrftÔ depois de 1450. CC. Mom11.q o Del Príncipe, edlç~o crítica
2, J>p . J:l'l 11 1111. l no célebre tratado de Vitrúvio onde Albertl buscou com texto tradução italionn e noLnH do G. Martini, Bolonha, 1942. Para
h•tq•Jmcllu. um paralellsmo entre o De r e ttccl·l flciLlo!ia e o Momus, cf . E. GARIN, "Il
• 'l'o(htll 11•1 uwoiiiU: citações remetem à ediçã.o crítica mais recente pensier o di L. B. Alberti nolla cultura dei Ri:1ascimen';o", in c_anvegno .
c.to 1)11 1'11 trt•II IJit·tlllll'ltt, f ,'An:hi:ettura [De re aeciificatorial (texto latino I nternaziona!e incletto ne! V Cenlcnario di Leon BaWsta Albert1, Roma.
I, o t:rndt tt;l'lo lf.Hthllm m1 1 Ptti'Hiolo. estabelecidos por G. Or landl, lntrod;.~ção Accademia Nazionale de! Llncol, 1974.
1 e noLns du l'. r•uo·l.ttHiinnt), Miliio, I! Polifilo, 1966. A versão francesa é 12. 14.66. cr. Opere volyari, edição crítica por C. Grayson, t . II, Bari,
a da ~mduçl\o do i'. ll<•l ll'f{tdn, nus Éditions du Seuil. Lat erza, 1966. ·
I) A REGRA E O MODEW O PRECOKCEITO DAS PALAVRAS 7

O pruj ~: lo du /Jr• re lll:difiçatoria é o homólogo daquele que leva dt.: t rrllll rcflcxão crítica sobre a sociedade a elaborucão imagi·
OH l',l' li lld l: ~ htrrllnlliSias elo século XV a perspectivar e sistema- 11111'111 lk: uma contra-sociedade. Contudo,' se consid~ro que a
tizrrl' o~ ll'uilu llws e os atos dos homens. ut0pi,1, como gênero literário, é um texto inteiramente instaura- .
, Ab.'J inr como os escritos destes abriram o campo de disci- dor. é lJUe ela wnstitui parte integrante das teorias de urbanis-
c lpllrru~ quc começaram a elaborar seus fundamentos teóricos no mo que ela antecede e cuja fo rma marcou com um selo indelével.
l'i11 1 do tiéculo XVlll, o livro de Alberti abn: o campo da disci- Tal afirmação já está implícita em meu trabalhol4 sobre as
plina que os teóricos do século XIX chamaram urbanismo e da relações do urbanismo com as utopias, desde que se observem
t[tllll quiseram e acreditaram fazer uma ciência. Do século XV dos csléls últimas sob uma perspectiva diversa da que era então a mi-
tnrtados no século XX dos escritos urbanísticos, novos problemas n!ul. Limitando-me às utopias do século XIX, eu as classifi-
fo ram sendo colocados em diferentes termos. Eles permanecem, ca va, com base em seus sistemas de valores, em dois grupos, que
cntn.:lanlO, circunscritos e definidos no quadro de uma mesma chamava de P_!"Ogr~sista (Fourier, Owen) e de culturalista (Mor-
ahol'dagc m, nascidn no ()uattrocento, sem equivalente anterior ris) e alinhava sob a denommaçao comum de pré-urbanismo : com
t.:lll rr enhu1na outra culturnl3, e que consiste em atribuir à organi- seus valores e seus modelos, elas prefiguravam os dois grupos
;o.uc;ilo do espaço edificado uma formação discursiva autônoma. homólogos descobertos nos escritos do urbanismo. Desse modo
l·:ssa miiOnomizuc;ão, a idéia de que a estrutura de uma cons- é que fui levada a definir o urbanismo progressista, ilustrado por
trução ou de uma cidade possa depender de um conjunto de Le Corbusier, e o urbanismo culturalista, cujo representante mais
considerações racionais doradas de lógica própria, marca o oorte des tacado é Sitte. Minha demonstração baseava-se, então, numa
tb .:isivo que impõe ao estudo dos escritos do urbanismo con- análise de conteúdo. Tratava-se de precisar a especificidade dos
[(;111[1lJI'ânco a passagem pelos tratados de arquitetura, e a consi- valmes e das figu ras de espaços que cada uma da5 duas correntes
tk:r~t vão dessas duas categorias de textos como parte de um mesmo antagonistas propunha. A démarche utópica, enquanto suporte e
conjunto com uma denominação comum. veículo de valor~s bem datados (aqui, progresso e racionalidade;
Proponho chamar de instauradores esses escritos que têm ali, organicidade cultural) promovidos no quadro de um processo
por objetivo explícito a constituição de um aparelho conceptual histórico, dizia respeito à revolução industrial..
au tônomo que permita conceber e realizar espaços novos e não· Em vez de nos limitarmos à influência ~a~ _u topias particula-
aproveitados. Essa designação, entretanto, não deve dar margem res, podemos nos interessar pelo impacto eventual da utoni$1. em
a confusão com o uso que faz av~iste~l'õ'gi;~ conceito de geral sobre os escritos urbanísticos. Podemos considerá-la não
instauração. Não s'e trata, no caso, de determinar a fundação de mais do ponto de vista de seu conteúdo, mas de sua forma,
um campo cientü'lco. Recorrendo à etimologia e ao valor concreto deslocar a questão do plano da história próxima para o da longa
original do lermo (stau ros, em grego, significa primeiramente a duração. Percebe-se então que a utopia, enquanto categoria lite-
cswca de fundação e o alicerce), pretendi, de um lado, que ele rária criada por Tomás Morus, inclui dois tracos comuns a todos
sublinhasse, por metáfora, a posição dos textos instam·adores que os escritos do urbanismo: a abordagem críticá de uma realidade
se propõem escorar e fi rmar como teoria os espaços construídos presente e a modelização espacial de uma realidade futura. Ela
c a construir, que se constituísse como seu fundamento ou seu elabora, numa perspectiva não-prática, .em termos quase lúdicos,
tdicprce, e de outro lado evocasse, por metonímia, a relação um instrumento que poderia servir efetivamente para a concep-
i.:llll'c esses textos e os ritos de fundação de cidades. ção de espaços reais.
Consideraremos, então, que o conjunto dos textos instaura- . Quando os escri tos u rbanfstkos deixam de ser interrogados
dores do espaço é fo rmado exclusivamente pelos tratados de ele um ponto de vista epistemológico que questiona sua validade,
urquilt:tura e pelas teorias do urbanismo? Parece necessário quando não mais se trata de ava liar :1 lcgilirnidadc de suas pre-
Inclui r aí uma outra categoria de escritos, as utopias. A primeira lú n ~õcs científicas, mas ele anal i:;ar su:1 organ iznçüo enquanto
vl:ilrr, lrr l d t.:~o: i sã o soa chocante e contestável. A utopia pertence ao Iex los !nslauraclorcs ele cspaçoslfl , cha mn u r.tenção sua relação
trn lvl'l'till drr fi cção, parece aquartelada no imaginário, longe de co111 a forrnn litc rCi l'ilt du ulop iu . l·:m ou l ru~ palavras, se, ao invés
hrd11 rdt"III I(T 1mí lico e, com maior razão ainda, de todo contexto de nos inlc rcssnrmos p c l n ~ opções nxiológicas opostas e não-reco-
p~·o l' lpliiOrrl ll. l'od t.:-sc argüir que nem por isso é privada de
nllccidns, su bJa c~: n l c s IIOS livros ele Lc Corbusier e Howard, nos
d ebnt çan~l OS sobre os proeodirncnl os comuns que fundamentam
\• l lv ~ ~· lr t : 11 llttrll lpllt:uçiio de Icárias na América do século XIX
JWO VIr n h 11111'1\•drtdl.i. Corno quer que seja, a edificação do mundo
14. @p. cit., Cf. Também City Planning in the XIXth Century, New
t.:Oit :.(l'trfdo IJ IIO t· 11 vtH.: uçuo da utopia, que se propõe, por meio Yorl\, Braziller, 1970.
IS. Propósito j á formulado, mas desenvolvido de maneira esquemá·
l;J, (J(, Utlj). I, tica, in "Figures d'un discours méconnu", Criti que, abril de 1973 .
o A REGRA E O MODELO n PRECONCEITO DAS PALAVRAS 9

u COIHiicklllnm a enunciação de seus respectivos projetos, a cii Hcurt-ivnH lmporimn unw presença irrevogável, que, atravessan-
utu pi11 fi lll'l\U ço mo .uma forma inerente a seu processo, que ela· do os ·t ompu:;, Wlll.inuu a manifestar-se: figuras cuja pregnância
c.~l rll l ll rll u progmma 1 independentemente de qualquer conteúdo resistida no dcHgm;tc d o~ acontecimentos, à sedimentação das
hiHiúrico. Em ta is condições, a utopia n ão pode ser alijada do mcntalidodcs, i\s ,·c cs u·u tu1·ações do saber, e cuja significância
co nju1 JfO do~;; textos instauradores . Deve ser incorporada a ele, já transcenderia a de seus conteúdos .
qu ~.: prccxi$tc às teorias do urbanismo, isto é, na totalidade de
s u u~ Jllan i[eslações, a partir . da inaugural Utopia de Tomás
Morus, homóloga ao De re aedificatoria, meio século posterior. Provar essas hipóteses exige que se estabeleçam gcncalogias,
se localizem rupturas, se indiquem e se dt:finam c0nstantes estru-
turais. Semelhante tarefa pressupõe a util\zação de uma estratégia
Admiti remos, po is, que o conjunto dos- textos instauradores metodológica que permita fugir ao engodo dos conteúdos de
é fo rm ado pclns três categorias dos tratados de arquitetura, das ~uperfície para penetrar com segurança na profundidade qo, texto.
111opius e dos c~ cri los do urbanismo , sólidarizados p.or ~eu projeto De início, procurando elucidar a· natureza de um conjunto
l'un clador d~.: espaço. Pura ir além dessa declaração de singula ri- de escritos e descobrir fatos que pertençam à ordem da escrita,
dudc . para abrir caminho na densidade de suas intenções não- a explorJlção deverá ser conduzid~ entre quatro paredes. Encer-
fo rmu ladas e dar um semido ~ s ua estranheza, meu trabalho foi rar-nos-emas uniCamente no espaço dos textos instauradores, fa-
guiado por v:h'ias hipóteses. . zendo abstração do contexto em que foram elaborados . Em
A primeira, metodológica, deu prioridade não somente ao outro;; termos, qualquer q ue seja, por outro lado, seu interesse,
c~l udo elos textos mas também ao de, sua fo rma . evitaremos interpretar tratados de arquitetura, utopias e escritos
A segunda centralizou o trabalho no tratado e na · utopia: do urbanismo através das condições culturais, econômicas e
es tariam em ação dois procedimentos típicos de criação do politicas de sua produção. A fortiori, não nos interessaremos nem
espaço edificado desde a emergência do projeto inslaurador. Um, pelas pessoas que os escrcvr.:rnm, nem . p elos edifícios concretos
claborodo pelos tratados de arquitetura 1 cQnsiste na aplicação 9ue estas construíram. Que Alberti tenha sido uma das persona-
dos princípios c das regras. O outro; fruto da utopia, consiste hdades mais sedutoras da Rel\ascença, é. coisa que não nos dirá
na reprodução de modelos. Esses dois proc:edimentos, a regra e respeito aqui. O indivíduo que, no De re aedificatoria, fala eu
o modelo, corresponderi am a duas atitudes fundamentalmente c refaz sua aventura intelectt.t-al será considerado apenas ·enquan-
di fe rentes em face do projeto consttutor e do mundo edificado. to locutor abstrato, na medida em que impée ao texto uma forma
Confor me a te rceira hipótese, os textos ins tauradores não . de .enunciação e utiliza para construí-lo as seqüências de sua
C011Sli luiri nm llJlCIHIS lll\1 conjunto lógico,- construtível 'com O biografia, conforme o mwno procedimento seguido mais tarde
auxílio de um denominador tclcológico comum. Ao longo do por tOdos os tratadistas até o século XIX, a despeito da diversi-
te mpo, eles apresentariam, crri .sua enunciação e na relação de dade dos tempos, dos lugares e das pessoas.
seus componentes semânticos, regularidades formais e uma estabi- Do mesmo modo, ao contrário dos historiadores da arqui-
Jidnde que . os transformariam numa categoria discu rsiva especí- tetura e do urbanismo, não nos preocuparemos com as relações
fi ca . Em outras palavr as, sob a cambiante diversidade qu e o suscetíveis de ligar os escritos inst auradores a espaços de fato
curso dos séculos lhes impõe, utop ias e ti·atados seriam organi- renlizados. Qualquer. que seja ó impacto efetivo do texto sobre
:mdos por figuras ou configurações textuais invariáveis, depen- o mundo construído, isso foge ao nosso propósito. Não nos cabe
dentes de um estatu to original que seus autores n ão assumira'm, determin ar a influência eventunl elo De re aedijicatoria sobre o
nem seu s leitores decifraram. Pnln zzo Rueellai, ou sobre os edif(c ios reli giosos (Sa nta Maria
Nem por isso resulta daí que essas duas organizações estru- Novclla, o Templo dos Malatcs ta, Sun t'A 11drcu de Mântua . .. )
lurniH p:::rmaneçam intactas e bem legíveis, de pon ta a ponta de reformados ou construídos sob n dircçiío dc Alberti, nem a
d um; Clllkim; tex tuais indep enden tes. Admito, ao contrário - e é inf!ut:ncia dos escritos icó ri cos cl~.: Ccrdo ou d e Le Corbusier
1Hlnh n q tr tll'fa hipótese - , que elas possam interferir: os escritos sob re ~eus p rojetos respectivos pfll'll nurcclona ou para Pessac e
Ul'h ll ll flll i!.: OH dariam a prova disso. Ma s, através de derivaçõe~ ,
Chandigarh. Tomei espceinl cu idmlo em excluir esse tipo de refe-
II'IIIIH[ot•l)lllyÕCH u sincre!ismos, tais figuras manifestariam uma re-
rllucias c explicações, snbodoro dos perigos aos quais elas expõem
bisiCildu i1w6 lilu i\ nnulação. Triunfantes ou envergonhadas , ínte-
os IJisloriadores nos casos e m q ue s:::u uso é legítimo. Uma aten-
grus o u 111111 i lll<lnfl , quais construções de pedra que . a ruína n ão
impede uc leHICilllll lhur o q ue ·so9revivem às instituições e formas çiio de rnnsiaclamcntc ccnl rudu i:iObrc a obra construída de Alberti
de saber de qu o ro rnm conlcmporâneas, as duas arquiteturas, lovo u um elos melhores cspcciulistas da arquitetura renascentist~
10 A RlllOR.A Jll O MODELO O PHECONCEITO l!lAS PALAV!tAS 11

o fazer umo lcil u1·o limitodora do De re aedijicatoria16. Eu mesma Muu uullc Hc qlll.; u constituição de um corpus se faz no
c.:vidc11cici u d i~6ocillyiio existente entre a obra construída e a ltt ltlll'" du 11111 d n.:ulo lógico. No ca~o. para poder definir os
Ob!'u c:;cril u dll Lc Corbusiet·l?, tlí tl11 llptlll tlu il'x toll IIISLII UI'!ldores, é preciso começar postulando-
u,)w wz feita a escolha de permanecer no espaço dos trata- llu•,, 11 t•x luiOIII'Iu u d r 111do-thc~ duas definições iniciais, pragmá-
d?s i11s1nurudorcs c.fazer sua leitura em diferentes níveis, cumpre 111 1111 r pw vli"'''l1111. Ntllll primeiro capítulo, comparativ.o, essas
IIIIHiu busca r os mews para alcançar tal objetivo. Meu método se d , • l llll~·~ , crl 1. -rvi ruu puru pr0vur que o De re aedificatoria e a
int;piru n_tuito livremente em procedimentos definidos por ocasião ( IIOJI {(I <II IP du l'nl u illlllii:!LII'II Ít;. Além dis~o. permitirão, sem que
de qucsllonamcntos semelhantes. Tem um débito particular para ,,,. 11'11 11.: di:wo 11 esse ufvt.:l. d ~.:sun:vcr o [unciomnnt:nto do tratado
com os trabalhos de V. Propp e de C. Lévi-Strauss sobre o conto 1: du tllopiu, dcliucnr sua cspl!cificidadc com relação aos textos
e o mit?, a semiologia textual de R. Barthes e as pesquisas pre- r11 11l llti 'luui~ t;u podur iu confund i-los . Essas duas formas discur- ·
paratónas para uma semiolingüística, iniciadas por E. Benvéniste H lvu~ scl'ltU, pui~. caracterizadas por um conjunto de traços pro-
c con tit~uadas por seus discípulos. De um lado, esforcei-me por vl sô ri o~ que todo texto pertencente a seu corpus deverá apre-
dcscobnr as umdadcs que permitem uma découpage semiótica dos llt: lllur. l nv~.:r~amc ntc, a ausência de um único desses traços será
tcx:tos. Procurei desmontar o fut}Cionamento dos tratados; das ltHIUidu uo1uo um indicador de diferença, um critério, necessário
utopius e dos escritos urbanísticos, definindo o jogo das unidades t· :ad' i\:i\:nl t·, que permitirá eliminar tOdo texto ambíguo da cate-
semânticas fixas e limitadas que servem respectivamente para l~l lrill i111llnurudo ru.
produzir suas regras generativas e seus modelos. De outro lado 11.. purlrlllllJ. ~ wn c n l c d u poi~ do primeiro capítulo que terá
tentei descobrir os modelos de enunciação singulares, inventariar~ l11 id1> 11 lul 1ur11 Helldt'llicll du /)c: re aedi{icatoria e da Utopia. A
lhes as marcas lingüísticas e ressaltar-lhes a coerência. iiiiJlllllllllt 111 (jll l~ lllrih uo 11 CS'\CS UO iS teXtOS tiCrá medida pelo
. ~it?ita~o a operações elementares de segmentação e de ''"1'"~'1 1 4J"'' ll1t·:1 tk:llit:o, qu 11sc mutadc do livro. Depois, não
chscnmmaçao, este trabalho não pretende se situar no mesmo w 1ln t ) \'111111 dt· 1\.::.111 1' 11 vul idmlu dul:i parudigrnas através de uma
plano . :netodológico que as obras nas quais se inspirou. Não rlltull:.t· nt l\l tillvu de çuclu 1111111 dn ~ obras integ rantes do corpus.
procuret transpor globalmente os procedimentos destas para um 'f'IWilillll IJIII" IIUH l'OII U;IIilll' l'\1111 SOIIdagcns, Clll Lll11 nÚmerO Jimi-
material ao qual não estão adaptadas: os tex:tos inslauradores não l.tdo de ~.:::c rilo ~ . t\ c ~co ll t 11 d uh:~ . que uonscrva uma margem
pertencem ao universo oral e anônimo do mito e do conto fan- dt: urbi ll'tll'ictludu, rui tliludu pelo dup lo cuidado em utili;zar um
tástico, nem in tegram as categorias literárias do t·omance ou da 11111lcrinl cunôniuo c signi ricativo c associar numa justa proporção
narrativa. De fato, sem procurar elaborar uma verdadeira semió- ol1r11:> l:élcbrcs, desconhecidas ou mal conhecidas. Assim se ex-
tica dos textos imtauradores, fui buscar junto aos autores citados plit:ll que tenham sido escolhidas a I dea del/'architettura uni ver-
~s _mci~s de_tana abordagem semiológica, que não permitiu de- sole de Scamozzi, tratado ao mesmo tempo superestimado e mal
fllm a tdenltdade dessas fo rmas tex:luaisl8, provar a estabilidade conhecido pela era clássica, bem como erroneamente negligen·
de sua organ ização, conferir-lhes uma dimensão semântica ausen- uiado pelos historiadores de nossa época, e Sinapia, utopia inédi·
le numa leitma convencional. 111 do século XV III, recentemente publicada na Espanha. Por
. O De/e aediffcatoria e a Utopia, os dois textos inaugurais, ~.:ssas wzões pude deixar de lado a Cidade do Sol, que faria
CUJD cmergenca defmc o quadro desse trabalho, foram utilizados pender a balança em favor das obras famosas, e um texto atípico
somente_ para estabelecer as figuras ' do tra tado de arquitetura e l:Omo L'architecture considérGe sous le rapport de l'art des
~la utop ta de que são os paradigmasl9 e para determinar o con- 111ueurs et de la législation, de Ledoux, qu e não poderia ser deci·
.runro de traços sobre cuja base fixar o corpo dos textos instau- frado segundo o método proposto sem novas pesquisas de
radorcs. · urquivo.
últimas · observações metodológicas: n dccisiio ascé tica de
110s limitarmos ao espaço dos textos instuurmlon.:s não foi seguida
111, 11.. WT'M'T<OWER , Architectu.ral Princtples in the Age of Huma- com rigor absoluto. Decerto, ele é csscnci:t l c simboliza a impor-
I!MIII, I.ot!Ch 'O!t, 'f'lmnti, 1962. Aludimos, em particular, à sua interpreta.-
lfiiiCÍa concedida à organização própl'iu dos textos do corp'us.
I.Jfltt ''''' l lltetln S nttl.'l\ndrea de Màntua.
1'1 ur 11 Vlll'hnl.o " Le Corbusier", Encyc!opaedia Britannica.
111. CJr luro~o, ( lnp. l, pp. 16 e 37, e sobretudo Ca:>. 2, pp. 137 e
~~~ lt 1!1 111 11, ,,,, , :.!'111-277. • l'llrllficawrta e da Utoplu, so ch ;u nll culiio paradi gma. Este t<lrmo não
111 1'11"''""'""" 11 IP rrlllnologla que utlllzarernos dacml por cJ!ar.te: tl puis l u tilizado no sentido quo lho dá T.S. KUHN in La Stru~ture àes
11 il'ltillilll tln lli'il llllnl.ltt'lt n 11 ul:opi:l seriio consider:1dos categorias discw-- rtlllolutions scientifiques, Pft rls , l•'lammarion, 1972. [Trad. b ras. A
iiVIIrl, 1111111 nHIIIII III II H1111\ l'l 1:u11ada [iÇJura, organização ou arquitetura l': .~ t. rntura àas Revuluçúes Clcmt!ficas, Sã.o Paulo, Editora Perspectiva,
h tiC i u ul r~, U:tll11 r1u11 m , 1111 I'OiliO podemos construir a partir do De re 11102. Debates 11.5.1
A ltJJ!CiltA E O MODELO ()PRECONCEITO DAS PALAVRAS 13

Mtlfl litl llll"tll l' IINHUllh: ~c u scutido se for transgredido, particular- E::~u:: con ~ itlernções metodológicas deveriam bastar para
111l' llll' uo :~u ht>1' de ~.:scu pu uus esporádicas para espaços escritu- ··~d n1 n ·n llll'll p m pósi to . Del:ls resulta, em primeiro lugar, que
1'(11'11•r• n ud :1 vuHius. Atisim, como acabo de dizê-ío, o primeiro l" ll l· liv n > ~: npulndl) na hisl6rin n ão é, entretanto, um livro de
l"ll pltulo u ump lu1ncutc dedicado a outros tipos de texto, na li istóriu. Suu pruh knui ti ca é, seguramente, determinada ~e!a
ml·tlldn 1: 111 que 6cu objeto é situar t ratados de arq uitetura e colocm;iio e m pers pectiva hi~t6rica que, para começar, permttlu
utupl u11 1111 deusa c complexa rede dos escri tos sobre a cidade. dn tn r c assi nal:tl' um eorlc c atribuir seu valor inaugural aos
Mui$: v i ~ audo esclarecer os liames que as unem a tais escritos e textos instau radorcs. t\dcnwis, qua ndo se tratou de controlar o
IWHiu ulur o cortc20 que autoriza a constituir os textos instaura- valor parad igmfllico das fi gu ras estabelecidas pela leitura do De
don;:J em categoria discursiva autônoma, n ão hesitei em apelar re aedifica/oria c da Utopia, abordei o corpus dos textos
puru u 1dst6ria d as idéias e das mentalidades, bem como para instauradores segu ndo a ordem cronológica de sua sucessão.
11 de seu suporte cul tural c soda!. Aconteceu-me ainda confitmar a sua interpretação pela história
A mesma referência aos contextos, d iscursivos e não-discur- das idéias e das instituições sincrônicas. O objeto de minha pes-
úvo$ , hull bém serviu j)Hra confi rmar e esclarecer, embora de quisa não era, apesar disso, nem essa sucessão enquanto tal, nem
nuu1c iru c~ porúd icu c ~omcntc sob o aspecto das análises fo rmais, as relações diacrônicas suscetíveis de unir os diferentes textos,
m; int erpretações a que conduzia uma leitura scmiótica dos textos mas sim as regularidades que eles sempre apresentaram ao longo
inslauradun:s de espaço. Dessa forma, as referências às grandes dos séculos. Não proponho aqui uma h i&tória das teorias da arqui~
descobertas, à teoria da perspectiva e ao pensamento político do tctura ou do urbanismo, cujas relações também não me pre~cupe1
século XVI vêm afiançar minha decifração da Utopia. em elucidar. Descubro, descrevo e tento compreender figuras
- · Enfim, em certos casos excepcionais, pode suceder que a di scursivas cujo valor semântico reside precisamente na sua re-
leitura faça apelo à análise de conteúdo. Esta sempre está subor- sistência à ação do tempo .
dinada à análise funciona l do texro. Presta-se apenas para deter- O estabelecimento dessas figuras não deve ser tomado por
minar a identidade ou o funcionamento de operadores ou de uma tipologia. Só o primeiro capítulo aprese?ta. alguns eleT?en tos
unidades semânticas, e não suas or igens ou significação. Destarte, tipológicos. À medida que seus traços se d~lmetam e se afu;mam
no que coneerne ainda uma vez ao De re aedificatoria, em ne- ao correr dos capítulos, o tratado de nrqUltetura e a u top1a re-
nhum momento foi preciso questionar a significação, embora mont2m a uma arqueologia21 da teoria da edificaçiío. Escavando
discutida pelos historiadores, de termos como proportio, medio- sob os estratos dos vocábulos e dos tempos, pretendi trazer à luz
r:ritas, collocalio, finilio ... Também não cuidamos do sentido as grandes formas discursivas que desafiam uns e outros e que,
exa lo da oposiçflo entre os domínios do público e do privado, do pon do-nos em confronto com uma nova importância e uma outra
sagrado c do profan o. Essas noções funcionam sem dificuldade presença do mundo edificado, tra~em matéria para um~ r7flexão
no lr:l l\JdO de Albcrti. Em contrapartida, a unidade que deno- sobre a identidade cultural do Octdcntc e podem contnblllr para
minei "axioma do edi l".íc io-co rpo", ass im como o conceito de a constituição de ttma antropologia geral .
concinnitas, pareciam cum prir funções ambíguas e não raro
múltiplas, cujo jogo pôde ser esclarecido graças a referências
exteriores. Sua significaç~o própria, entretanto, só foi abordada
dentro dessa perspectiva funci onal e formal. Não me interroguei
nt.:m sc•bre o aristotelismo de Alberti , posto em causa pela noção
de concinnitas, nem sobre a p erenidade, desde a mais longínqua
Ant iguidade até hoje, da comparação dos edifícios com os seres
vivo:; c seus corpos. T ais questões não tinham para mim qualquer
111il id ndl'. Perten cem a uma história, local ou geral , das idéias.
/\qu i 111111 me dizem resp ei to mais que as levantadas, também
t•lur• t' tlt.l'lld nis , pelas relações da Uiopia com a Reforma ou pelos
ln ~t lll dn l11 11 11do de J.-F. Blondel com o cartesianismo.

~~ Atllllll ··~ l u n11vno nn esteira de historiadores como E. Garin e E.


I'IIIIIII Hh V Nl>ll l 111 11 IHtlll 11u11 nol:á vel valor heurístico me fez ignorar
llllllllii>HI d11111 t llrl >~ll ltluil+'tl quu uhL acarret a, desde que se esqueça seu 21. Adoto este termo a pnrttr de Michel Foucauit a quem devo
•'"'~'• llll!l> llll lllltflll também . entre outras, u noção de formação discursiva.
1~ Os Textos sobre a
Arquitetura e sobre a Cidade

l' 111 11 ltt nt mh•llt ll l'll ll ltt ptll' 1'1111'1' 11 ii iH.:Jlsidudc ~ a diversidade
d11~ ~'JHtl l "ll 'Jtl t! l ttl 111 11 dp l'ltpn1;o l' du t:id<td<.:, podemos, muito
ll illl ill " líll ll'll li•, 11 11111'~' 111' JHI I' di vidi los um duas categorias: os que
V( t 111 1111 l' lt l n iH•lvl'i lltl' ll l\l IHII IItll ll) um projeto a realizar e os que
especulaç~o. Os pri-
1111 1 "" ' ' ' "' " '" l' "' I rn ll:il'tm lll'í-Ju em tema de
lllill tt>ll l'llt lf l'i lll tl'lll p1tr11 produzir o mun?o construído, para edi-
11, 111 lliiVun ll:• pn<;o:J: chumú-los-ci realizadores. Os segundos, quer
tll l vlll'llh'nl 11 Ítlllll'.inm,:üo. qut:r a paixão ou a reflexão, n~ o inten-
111111 1'111'111'1 " ' 110 u11i vc rw elo escrito ; por isso, chamá-los-ei comen-
llll h trl'tl, - ·
J1, c llll'u (J UL: o.~ t ~.:x toH i n~ I H I II'Udun,;s devem integrar a
ptlt ll t' h'tl vuI1W ll'ln . 01'11, çll l 1'<.: IOl lm1 o:; c~L: ri t os , mandamentos
dl vl tlitll , t•dllon don p d 11r lp1'1t. 1'1 '1'/llli n li l l t f!ri u~ . manuais de cons·
1111~ 111 1 ,,. qiiLI , d<•tld u 11 mlp,L'Ill d tul c ld 11d cH - elas mesmas
11 11 IHI HI' III t1 11 l 'lll' l' il11 • 11\'1' \lit'ln lt ptll'lt (11'11/ III ÍZtll' o espaço dos
l" '' "' '"'· 1111 l i!J IIi dl l~ tf,. II I'I Ji dl\' llll'll 1' 1111 lrorhlti J o urbanismo
JI II INI I IIII ' 'II tlpl' li llll 11111 )lt' fllll ' l''' lllti H·t " ljull lu, enquanto as
tll11J1l t1~, IIH' II (\ 111• Nllll l'l'lll•,•lhl lt JIII u lnutginti rio, representam
11111 11 lld P1111 il 11 liilil'l llfl('\111'11. Jl,ttlll t'llp fln lo compara tivo, destinado
11 Jll tll'l ll 11 1111 fl ll' l l iii i\IHIII ttl d 11 /Jt• rt· rtcdijicatoria e da Utopia
u 11 1 lll lll trll i'I'VI' I 11 t'lllll'l'llh•ldfl( lu du ~·urpus dos tratados e das
lll!ipllltl, d tiVI II' tl ll llllt hu·ull·l.tt h1r1 e ckterminar-lhes a diferença
111 111111 t11 1p l11 II IJH I}-11'11 1111\ 11 dorl 1ex1os realizadores, p assíveis de
11111tl il llf111 1'1 11 " 1111 11'11 1111 11111 th• nrqu il.ctura e cuja escolha, neces-
" " " '""" " ' " l lntli ltd ll . ll ll llil l'tl t'rt . loduvia, tan to o papel do sagrado
16 A Jti:;CatA Jl! O MODELO 1 OS T.I!:XTOS SOBRE A ARQUITErrURA E SOBRE A CIDADE 17

quun to o lrohu lho de racionalização que aos poucos lhe deu Esst:s ordenamentos trazem, com efeito, a marca das espe-
inicio (pl'i me i ra parlc tlu capítulo), e a dos escritos de f icção culnr,;ucs de legisladores, filósofos c médicos; dependem igual~
llll~t:t: l lv ~-: 1 s tlt: pussu r por utopias (segunda parte). 111t:11te de uma lógica edilitária bastante elabor ada e de um con-
M.t ~ o~ lcx tos comentadores não deixam de trazer sua ajuda junto de procedimentos técnicos baseados em conhecimentos de
fi t: IIIIJu ruvuo do mundo edificado. Não apenas têm o poder de geometria e de física.
lliOldw· a perce pção do espaço e de lhe deslocar ou ocultar o A epigrafia nos legou as disposições complexas que, sobre-
bl.:lltid o, mas exercem uma ação incitadora ~. ·mais ainda, alimen- tudo a partir d9 século IV a.C., regulavam, nas cidades gregas,
wm com sua substância os textos instauradores .. F. por isso que, a partilha do solo entre os domínios público e privado graças 1:1
nxluz.itlos a alguns exemplos ocidentais, eles não foram excluídos verdadeiros planos de zoning, permitiam organizar os traçados
deste panorama esq uemá tico, cuja terceira parte irão ocupar. viários e a canalização das águas potáveis, asseguravam a manu-
tenção das construções, vias e fontes, resolviam os problemas de
demarcação. Todavia, qualquer que seja a precisão das inscrições
1. OS TEXTOS REALIZADORES
[ - 1] [ - 2] de Colofão ou de Pé.rgamoS", por exemplo1 elas se
baseiam numa legislação de caráter prático e particular, não em _
O tratado de arquitetura, do gênero criado por Alberti, será
princípios abstratos e universais [ - 4 ]. Do mesmo modo, os es-
dcfi_uitlo provisoriamente por cinco traçosl. [1] F. um livro, apre-
quemas e as plantas utilizados na criação de Alexandria pelos
sentado como uma totalid ade organizada. [2] Este livro é assina-
arquitetos de Alexandre, antes que a dominação de Roma lhes
do por um autor que lhe reivindica a paternidade e escn:ve na
generalizasse o uso, não refletem qualquer teoria do espaço cons-
prime1 ra pessoa2. [ 3] Seu desenvolvimento é autônomo. Não pre-
truído, em que pese à sua natureza abstrata; são instrumentos
tende subordinar-se a nenhuma disciplina ou tradição. [ 4 J Tem
práticos.
por objeto um método de concepção, a daboração de princípios
universais e de regras generativas que permitam a criação, não Quanto aos manuais de agrimensura dos agrimensores ro-
a transmissão de preceitos ou de receitas. [5 ] Esses princípios manos [ + 1], se acatam a geometria de' Euclides (que, aliás ,
e essas regras se destinam a engendrar e a cobrir o campo total transmitiram à Idade Média6), é uma vez mais para fins exclusi-
do construir, desde a casa à cidade, da construção à ar quitetura. vamente técnicos, e não, como mais tarde os tratados de arqui-
tetura ocidentais, para colocá-la na base de uma disciplina espe-
cífica e autônoma. Outro exemplo: o saber dos engenheiros
1.1. O De re aedificatoria, Texto inaugural hidr áulicos de Roma, cuja suma Frontin nos conser vou em forma
de livro7 [ + 1], [ + 2], permanece um savoir-fairc setorial e uti-
Qu e o empreendimento de Albcrti tenha sido inaugural pa- litário.
1·ece à primeira vista inverossími l. De imediato oferece-se ao Os políticos responsáveis pela organização coerente do
espírito o con tra-exemplo : a antiguidade greco-latina, que os espaço urbano na Grécia não se preocuparam em elaborar uma
h umanistas do R enascimento tomavam por modelo em geral, e teoria sobre o assunto. Somente nos historiadores do século V
em particudar no que toca à arqu itetura e à organização urbana. é que encontramos um eco das preocupações neste particular,
Os próprios historiadores do século XX não hesitam em falar de as de tiranos como Pisístr ato e Polícrates. Clístenes não deixou
" urbar,ismo" grego3 e romano4?~uando querem designar ordena- qualquer testemunho da transformação das estruturas espaciais
mentos urbanos cuja racionalidade testemunha claramente uma da polis que acompanhou sua reforma dns instituições atenienses;
1·eflexão específica. os historiadores atuais estão reduzidos n hip ó teses no que con-
ceme à sua eventual abord agem teórica do espaço construídoB.
I. rnra a sua justificação, cf. Cap. 2. Nas páginas seguintE>~ , esses Os milésios, qu e inventaram a planta em reticulado, nada escre-
I " ' ~"" nllt> dc•signados pelo seu número de ordem colocado entre .::olchetes veram a respeito. O próprio Hipódumo, que, segundo Aristó-
" 1111 •• o>dl tl" nu não do substantivo "traço". Os sinais - ou + indicam
11 Jll o>hlll llll\ 1111 ILIINí'mr.ia dcs traços aos quais são apostos.
I A l ll l l lln ll l• !H'r->soa. Já anunciada no prin:eiro parágr afo do De re
lll'llltl111/111 hl I" " 11111 nfl.lct ivo possessivo (op. cit., p . 2), se impõe já 5. Cf. R. MARTIN, op. cit., Cnp. III, PP- 48 e ss.
1111 • Jlllll l c I'''"'H"''"· n o qual em serrc~ida Alberti exnlica a gênese
6. P. RICHÉ, Éducation et C?tltu rc rlans l 'Occídent barbaTe, Ve-Vllle
I 11 "lt llc11 llohco lu olu ~1111 III'O.Iotl, (Jdem,o p, Úi). • siecles, Paris, Seuil, 1962, pp. 109, 110, t!B.
I 1 ~ 1~ 11 1 111 l 'lltlm ll h !ll<' duns lu Grece antique, Paris, Picard, 7. Sur les aqueducs de la ville de Rome, P . Grimal (ed.l, Paris,
111111 Les Belles r.ettres, 1944.
jj 111 1r ' ' 1 1/lllfHI llll fllll lol n 1'1 l'Urbanisme ctans l'antiquité, P aris,
8. C!. P. U:Vll:QUE e p_ VIDAL-NAQUET, ClistMne l'Athénien, Paris,
All olll hllo 11 .. 1 (11 I Les Bel!es Lettres, 1964.
18 OS 'l'E:XTOS SOBRE A ARQUITETURA E SOBRE A CIDADE 19

teles. "invt·r rlou o t rm;t du p.:ur11 ~1riw das cidades e cortou o Pireu das muralhas (contra Platão) e a localização desejável dos diver-
em r·e tic ll l tr d u~ "il . dc·ixllll a pt'n<rs escritos polítkos [- 3J, rde- sos edifícios públic.:o:; ligados ao funcionamento da cidade grega.
r·crrl t' '~ o tllll pr·o.k l o de c.: omt.ituiçãolO e a r espeito dos quais se Contudo, as regras .q ue enunci:'l são suhordinadas a uma filosofia
1w licr1t ou. t tllll riizJo , "o divórcio que los] separa de [sua] obra política, referem-se apenas a um campo limitado da edificação
dc Cl J I I ~I I'll l u r c u.rbunista"ll. L- 5] e apresentam, pelo menos algumas, somente um alcance
A lilc r·:rLUr:r que os gr·egos cledicaram.a urna reflexão sobre parlic.:ular [ - 4], restrito ao mundo helênico.
11 p1·odu<,:iin do es paço . cclifi.cnclo é limitodr:, ocasion al e sempni Nutrido pelas obras de. Hipócrates e Aristóteles, informado
suhurdi nada a um campo cspe:;u[ativo estranho 110 do éonstruído. das pesquisas es'téticas dos arquitetos gregos, no entanto único em
l·.ssu subordinação e essa dispersão se devem , por certo; ao fato toda a An tiguidade, sem antecedente formal direto nem poste-
de q ue, lntdi cionalmcnre, a polis ~ primeiramente tltna conn ni- r idade, o De architeclura de Vitrúvio é o único livro que parece
dadc de indivíduos antes ele ser u m es paço ~ 2 .. O testemunho de participar · da mesma vocação-junção instau radora do De re aedi-
ll c ródu to . Tucídid cs, Pausfin ins, Ç convincente a este res peito. E ficatoria e pode, pois, pretender uma anterioridade sobre este.
se. por outro 1mlo. esses histoJ.inclorcs, como os "geógraf:::>s" 13 a Além 'disso, Albcrti' o leu e nele se inspiro~. Mas impôs-lhe uma
ptll'lir du s6ndo TV, 11 0~ 'J çgar<tlll descrições mantvill:ildm; Jas mutação que lhe alt:!rou a forma e o significado. Para evitar
J~ l'l l l rdcs obr::1s urbanas empreendidas pelas Cidades-Estado da 1·epetições, remetemos o leitor ao Cap. 216, 'onde mostraremos
Grú;ilt, niío nos forneceram mais que um comentá;:io . que o Ue architectura só pode passar por um tratado insraurador
o esboce de tml discurso instau rador u~ve :;er bu~cado se nos fiarmos nas reiteradas afirmações do autor ~ uanto
nlhurcs. Em 'primeiro lugar , junto aos médicos. En tre os tra~ados à natureza de seu empreendimento.
hipocrií ticos, Do Ar, da Agua e dos Lugara.;;14 elabora uma ver- Com efeito, os dez li vros do " tratado" tle Vilrúvio não cons·
dadeira teoria da escolha dos sítios que racionaliza tun conjunto tituem uma totalidade, pois cada um -dos quatro últimos pode ser
de observações -sobre o regi me das águes e dos vento:; , a natureza dissociado dos demais, de um lado , e dos seis primeiros, de outro
dos solos, a expodção ao sol. Mas não pàssa de uma pa t'te preli- [ - ll Vitrúvio se orgulha legitimamente de uma empresa que
mirHrr ela edificação [ - 5]. E esta é tmtada no quad ro de uma é, de fato, a primeira n o mundo gn:c.:o-latino e na qual, entre·
disL:iplina - a Medicina:_ à qual está subordinado o tratamcn· tanto, ele não desempenha o papel soberano do criador [ - 2 ) ,
lo do espaço [- 3l Uma geração depois, ArístúU::!es parece mas 'o de cqligidor e transmissor de saber. Sua iniciativa visa a
enfrentar o problema da organização urbana de maneira mais . organização e a 'classificação de um tesouro preexistente. Ademais,
global e indenendente. Mas as reg1·as que pr-opõe ~ão parte inte- a especificidade e a autonomia de sua trajetória [ + 3] estão
gnml c da rcfl cxíío sulm:: as cunstit uiy;);c:s, tema tle SLlaS Políticas. comprometidas não só por incessantes digressões, mas sobretudo
Niío porl ~· m os considrnH· como urn tratado ele edificação o breve pela autoridade sem reserva atribuída a uma tradição parcial-
Cor. VJ'I l do 1.ivr·o n. que I'CPI'CSCI1Ül a vigésima-quinta parte mente fundada numa prática religiosa. O projeto teórico [4),
dessa obra consag rada a uma tcc r:ia do Estado15 [ - 3]. Nela o proclamado com a desesperada obstinação da insatisfação, limF
Estagirita patenteia seu gênio da síntese e tlo conc.:reto, em con· ta-se a enumerar conceitos que ele não chega a constituir em
s.iderações sucessivas sobre a dimensão ótima da polis, a escolha sistema, riem fazer funcionar como algo mais que um quadro
dos sítios (retomando os trabalhos de Hipócrates), a utilidade taxionômico; cede o passo à prcocupaçiio prática e técnica que
se exprime especialmente nos Livros Vl I a X, sobre os reves·
timentos, a água, a gnomônica e a mecâ nica. Enfim, se o De
O. Política, tex~o estab elecido e treduzio por J. Aubonnet, ·Pa ris, Les architectura trata o campo da construção em sua totalidade, da
11nllcs Lettr es. 19PO. L\vro li. Ca n . VIII, p . ~ I\" est.ei r::~ ciP. Ari.~t.r.t.?.lP.S ; casa à cidade, dos edifícios privados aos públicos c às vias de
c, nrtnol de Hip6damo na concepção e na difusão da :Pll!nta m!Iesiana
lllll'etc •o l.c•r sido multo exagerado. C! . R. MARTIN, op. cit ., pp. 103 e ss. ci rculação [5] , todavia o equilíbrio do ço njunl o é rompido em
111. r,111n Aristóteles resume e critica, Pol., Livro II, Cap. VIII.
11 11 M~1·1.·rnq ""' ,.;c n. lfi.
1 ~. l ll , 11: TilP,:-.TVÉN!STE, Vocabulaire des ínsti tutions indo-eJ?TDPé·
.. provei to dos edifícios sagrados, dos templos. ta l como a tradiçãc
os elaborou, e cujo tratamento gont de prioridade absoluta.
O De arc:hílectura não é um rnanu:,tl técnico, apesar d
' 1 1 /111" ~•
1'1
l 'it d li, I~C I . <lo Minuit, 196S.
! 11 111('11:,\ IIC:O, 1J11~ Cidades da Gr écia, Citado por R. MARTIN,
estrutura dos Livros Vl ll a X, nem um tratado ligado a rit,•:.••
1111 111 , l i 'I" religiosos, a despeito da cmnJXJsi <,:~u dos Livros Jif e IV, nem
11 !1111/ 1111'• 1'1!//lfi/ M r•,i r7'l lippocrate, t r aduction avec t exte gt·ec cin um tratado instaurador, apesar da vontade expressa por Vitrúviu
~ ~ 1/IOt l llltt 1•: l,l' lttl, I' IH' h<, rn:l0-1001, vol. I. li:sse texto, verossimilmente de auton.omizar a construção como disciplina unitária. A obra
1111 1'1 •1 '1 111 I IIJ IIl ••lll •• 111" "' '" tln l:w d ns anos 4:!0 a.C. Cf. F . HEI::OU·
MIIN N, Nll/1111• 111111 1'/1 /Jtl ltl, li 11Hllóla, F. Reinhardt, 1945, p. 209.
lll Nil ~I lliltlll 1\l tllll" "" ((111 :1(), .16. Pp . 127 c ss.
<lX TJ~X'l'OS SOBRE A ARQUITETURA E SOBRE A CIDADE: 21
1\ REGRA E O MODELO

du nrqtli l ~,;l u rontn uu deve ~er ~ituada fora dessas categorias.


co nfu são que semelhante terminologia pode gerar, bem como
1~. un111 1cn1n1ivn prcmonitória, m as prematura , que não logrou us:;inalar a diferença que separa, sem q~alquer ambigüidade
se us fi 11~ n em o po deria, numa époc a não-motivada para a abor- pos~ íve l, dos tratados de arquitetura renascenti stas, essas obras
dugcm do espaço em perspectiva c do espaço construído com o que apresentam ou parecem de fato apresentar traços deles
~isl em a li smo e o desprendimex:to que, quinze ~Q.SJnais_tarde, (l i- 1], [ + 2], [ + 4 em partd, [ + 5]) .
Cll~cj arwn u <~p~ci~l!!º-..do_ tratado d~Ãl.be.rti. ~ão querendo evocar os dois principai::; " tratados" hindus,
o Arthasastra:9 e o Manasara20, contentar-me-ei aqui em tomar
como exemplo de texto prescritivo um livro chinês, o Khao Kung
Sem lograr autonomizar a organização do espaço construído Chi, que data somente da segunda metade do século I a . C. To-
a fim de constituí-lo objeto de uma discip lina independente, a davia, essa obra constitui na realidade o derradeiro marco de uma
Anliguidade havia aos pouco::; rompido as relações de depen- tradição antiga . Substitui o Chu Lz'21 de Liu Hsiang, ele próprio
dência que ligavam essa organização à religião. uma réplica Chu de um original Shang, que contém as mais
Esse deser:gajamento, iniciado já no século V a. C. por polí- antigas prescrições chinesas relativas ao espaço construído e
ticos como Périclcs, fo i seguido, graças a um diálogo apaixonado constitui o "locus classicuiJ do ordenamento urbano das capitais
com seus arquitetos, primeiro por Alexandre e, l.lt:poi::;, a partir de chinesas''22. De fato , tais prescrições visam à transcrição para o
C~::;ar, pelos imperadores romanos empenhados na transf01mação solo, em três dimensões, de uma cosmologia que, como os tra-
de sua Cid ade. Mas esses não teorizaram sua obra construída, balhos dos sinólogos demonstraram, impõe sua estrutura ao con-
sobre a qual con tinuaram a apor inscrições que demonstram a junto das práticas sociais, do religio::;u ao político, e cujo poder
fidelidade de Roma aos deuses. E, enquanto Augusto prosseguia ela teme23. As regras dos " tratados" chineses asseguram, pois, a
na obr a de coJ!strutor de César, a marca de pertença ao sagrado reprodução de uma ordem transcendente, preestabelecida L- 3].
continuava inscrita em filigrana no De architectura de seu con- Longe de permitir uma invenção permanente da cidade [ - 4].
temporâneo, Vitrúvio. elas estão a serviço de um p rocesso de duplicação, imune às
A aparente laicização da atividade construtora da Roma im- tentativas de perturbação dos indivíduos.
perial não deve ocultar es~es sinais nem fazer esquecer aqui lo Certamente, M . Granel e J. Needham insistiram, tanto um
cuja memóri a a Roma republicana conservava ritualmer..te : a , como o outro, sobre o fato de não ser preciso tomar ao pé da
origem religiosa das cidades das quais se pode afirmar, pflru-
fraseando S. Giedion, que "não podem ser estudadas senão em 19. Coletânea de preceitos relativos à organização espacial da cidade-
função do plano de fundo religioso que lhes deu origt:m"17. mode!o, contemporânea e hom ólOga do K h.ao K ung Chi , terto chinês ao
Chamarei prcscri tivos os tex tos realizadores nascidos ime. qual são detlic::adas as p áginas seguintes.
20. Comparado por P. ACHARYA a o De architectura, da ta aproxi-
ç!j.atamem e dessa rclHção originHl com o sagradQ_: eles enunciam, m adamente dn mesma época , bebe nas mesmas font~ helênicas, difere
para a organização do espaço edificado, regrns l~s dele por sua inserção na tradiçiio búdica, mas não' pode ter pretensões
depe ndentes de uma ordem transcenden te . à qualidade de texto instaurador.
-seõsao~:ümento s epigráficos de ixados pelas mais remotas 21. Em Science and Civilisat ion in Ch ina, Cambridge, 1971, vol. IV,
culturas urbanas ger almente fornecem apenas rragmentos p res- Cap. XXVIII , " Building Sc!ence In Chinese Literature", .1. Nh:l<:JJH AM
propõe a seguinte clal!sificação dos dü erentcs l.cxLos da litera Lura chine-
critivos, em alguns casos, raros é verdade, como os da Chi na c sa. que t ratam da edificação: 1) um dicioná rio (Erh Ya) ; 2) fragmentos
da (ndifl arcaicas, c01:.scrvamos contudo a memória, o vestígio ou r ituais do San Li Thu; 3) ma nuais técnicos profi ssionais entre os quais o
me~mo a reprodução de verdauciru::; livros p rcsc rili vos. Arqueó- Y?no T sao Fa Shilr. de LI CHTRH . impresso C'lll 1JO:{ c a propósito do
logos e historiadores costum am desi gná-los pelo nome de " trata- qual o aut or evoca, não sem pertlnOnclu, us 11om r:-~ elo Vlll t~rd de Hon-
necourt e Mathurin Jousse; 4) oclcs mpst~cl knH :<ob ro nq d iferentes ca-
dos de arquitetura" ou de " urb anismo"18 . Impõe-se dissipar ll pitais antigas, constituindo um g6ncro liLoc•c\l'lo quo HC poderá comparar
nos elogios de cidades m edievais, om horu dolt•:: difiram con!;ideravel·
17. Para S. GIEDIO~, trata-se da arquiteura. Naissance de z·arclll mente; 5) livros dedicados nos li LuiO>l ' ' pollnc·c•t-J elo~ funcionários, ent re
t ecture,.. Bruxelas, Ln Connaissance, 196ü. os quais o Chu Lt.
18. Cf. P. W. YErrs, ''A Chinese Treatise of Architecture", B ulletin 22. P . WHEATLY, Th e Plvol. nf lllc /o'rmr (Jrw.rters, Edimburgh Uni-
nt Schnol oj Orie ntal Studies, vol. IV, 3.• parte, Londres, 1928; ou ainda ve rsity Press, 1971, p . 411.
P. ACH!I.RYA, Tll.e Jlrchitecture O} Manasara, Allahabad, 1933. Os "trata· 23 . Cf. M. GRANE 'l' , r,c1 i't' 11Nt1c C'i t /uoisc, Paris, Albin Michel, 19~4:
dos" chineses ou indianos devem ser distingu idos ao mesmo tempo, e em especial o capítulo sobc·o o ltlll liXJ o o espaço, onde afirma que "as
nos dois casos, dos m anuais práticos da época d e uma abundantíssima técnicas da di visão e o rdtlnnnlCllllo <lo espaço (agrimensura, urbanismo.
literatura de comentários e descrições da cidade. Pnm o. China, cf. a rquitetura, geograUn polllklll o ~~ ~ especulações geométricas que elas
J. NEEDHAM, n. 21, infra; para a tndia védica, P . ACHARYA, Indian p ressupõem se vi nculam npcu·•·•ll<·m cntc às práticas do ::ulto público"
!lrchitecture, Allahabad, 1927. (p. 91J. Cf. também P . w rmATIJY, 0 7J. cit .. Cap . v .
22 A REGRA E O MODELO ();1 TI.::XTOS SOBRE A ARQUITETURA E SOBRE A CIDADE 23
') ....

letra o testemunho dos textos literários, e q ue in concreto as ~· ' ~ ?I cidade uma rica literatura de comentár ios, à qual cump re
cidades chi nesas clássicas fora m organizadas com maior libt:r· nnc:;c.:tntar as obras de historiadores como lbn Khaldun27•
dade c imprcvisibilidade do que eles deixam supor. Mas a ma- I'<Jrém a cultura urbana gCJ....lslã. não produziu qualquer texto
neira como os usullrios do espaço e seus arquitetos souberam n:at izador deespaço . Mais precisamente, a despei to da coloração
limi ta r c modular o impacto dos escritos prescritivos chineses rd igiosa que tinge o conjunto de suas práticas, dá-lhe unidade e
sobre a o rganização de suas constru ções não pode nos interes~ar pe rm ite falar de uma cultura islâmica, esta não elaborou nesse
aqui, já que tal iniciativa permaneceu empírica, sem se traduzir cam po qualquer texto prescritivu. Esse duplo paradoxo merece
em texto. refl exão e convida a interrogar sobre o processo de produção da~
Quanto à tradit,:ão literária chinesa, é forçoso constatar que cidades islâmicas e sobre a maneira oblíqua como a religião con-
ela não perfaz um empreendimento comparável ao dos tratados ~cgu e impor-lhes sua marca. Nossas observações serão necessn·
instauradores. O trabalho específico dos redatores de "tratados" ri amente limitadas e esquemáticas, dada a carência quase com·
chineses não consiste numa reflexão pessoal e/ou original, mas plcta de trabalhos científicos a respeito de tais questões28.
numa pesquisa de arquivista~. St: o autor assina seu livro, é por Essa carência deve-se, em parte, às próprias razões que
.orgulho de erudito. O que ele reivindica não é a paternidade de podem explicar a ausência de textos realizadores na cultura islâ·
uma conquista intelectual, mas o zelo e a fidelidade com que mica: tal como entre os antigos gregos, e de confOriTiiaaae com
soube volver às fontes e reconstituir as regras simbólicas de umEJ tradição fundada pelo Corão, nessa cultura a cidad~ é,_pti-
um ritual. A cidade construída ou a construir, a arquitetura, os m~::ird e fundamentah11ente, uma cpmunidade,_!i_gtcs_dc_scr um. es-
princípios de sua organização não têm, para o erudito chinês, paç<i_çç.alizado, circunscr.~ to e coru;truíJo29. Segundo e secundário
qualquer interesse em si e merecem consideração apenas na perante as relações humanas q ue enquad ra , o espaço edific.: ado
medida em que remetem a uma ordem transcenden te, onde funcio· requer uma elaboração cu idadosa na prática, mas não merece
nam como suporte de ritos e de liturgias24. ser reorizado.
A idéia de Alberti, segundo a qual "a construção foi ·i n· Como em todas as civilizações urbana:;, algumas cidades
ventada para o serviço da humanidade e deve obedecer à conve- tio h lã são criações deliberad as, nascidas da vontade elo príncipe.
niência e ao prazer tanto quanto à necessidadc"25,t os conceitos A planta circular de Bagdá, com seus fossos, muralhas e muros
de neces:;idade, de satisfação, consubstanciais aos tratados concêntricos, seu tec.:idu urbano anula r, dividido e isolável em
instauradores ocidentais, não têm curso nos textos chineses. quatro seções, e o imenso espaço vazio que o separa do núcleo
Estes ordenam incondicionalmente, em nome de u rõã}irãõca reservado ao califa e sua corte, oferece uma das imagens mais
religiosa dominante26. Embora diretamente realizadores, o Chu Li impressionantes do totalitarismo político e repgioso. Isento de
e o Khao Kung Chi não introduzem a uma disciplina autônoma. toda investidura teórica, essa planta revela as motivações do
F.stão subordi nados a rcpn::;en tações, c.: renças e ritos e fazem re· califa abássida Al Mansur e opõe sua própria particularidade à
ferência a uma literatura mais vasta, que, pelo caminho oblíquo das criEJcões de outros califas construtores.
da religião, podemos considerar como partícipe, embora indire- Cori'1 essas peculiaridades da organização espacial concertada,
tamente, da realização do mundo edificado. contrasta a identidade do~ tecidos urbanos " espontâneos", pro·
cluzidos sem regulamentação especifica, no :;t;:io da me:;ma cul-
tu ra, das margens do Atlântico às do fncli co . Tais formações
Nos países islâmicos, do século X de l bn Hawqal, de consistem na agregação de vcrd adci rn~ unidades de vizinhança.
Muhallabi e de Mugaddasi ao século XIV de Yâqut e Abu-l-Fida, Sua o rganização parece segregada. ao mesmo tempo, direta·
uma escola de geógrafos, então única no mundo, dedicou ao espa- mente pelo jogo de pl'iÍt icas inst ir ucio nai s llÜU·cscrilas, cconô·
micas, jurídicas culturais ligadas ~ csl n tl ura l'am iliul ampliada,
:1'1, J. NEEDHAM, op. cit.
:11•. Op. rit., Livro VI, Cap. I, p . 445.
: ~ 1 1' . WIH' ILI.! y viu hem este aspecto. Em sua obra consagrada IJ. 27. Cf. suAs tnmadns (lo poslçOos na M II(JIIIllli mah, tradução de E .
C'li l11n -n n •n lo'H, o·u111.m riamen te ~ ma!orla dos autores, e le pesquisa não H.osenthal, Londres. Rouêl ellJ ~o an<l K t·t;nn Pnul. 1956.
o IH'o\ polo " '' l no ~ IIILivcl da civilização ch inesa, m as o que pode repr e· 28. Esta :situação cs li\ mudando. cr. L'Espace social de la viUc
" " " ''" ' "'" " 1111111 ha •:o comum com as outras grandes cultu ras a rcaicas. arabe, atas do colóquio do nl)vcm b ro elo 1971 sobre "Espaços Sócio
N11111111 111111111111 11 IJ IIo nnalisa O caráter essencialmente r eligiOSO das culturais e Crcscimc 11lo \J I'hnno 1•0 Mundo Árabe" . p uhlicactas sob a
lll'ltiiHII IPt llhhtt t"N l l l i iW~WI na <!poca Shang- e as aproxima das cidades direção de D. ChevAilier. l'llrls . Mnisonneuve e Larose, 1979.
do I':Hil u, t il< M fii~< JJ)t • ln o u l n . csl.abelecimentos p ara os qua is " indeed 29. Cf. infra, p. 38. cr. 111mbém os trabalhos empreendidos sob a
l.ho JliiHL w n 11 lli ll'HII<llvn 111 1!1 <·onCormity with its precepts raquiraà no direçã o dos Professores S . ANO~ HSON, O. GRABAR e J . HABRACKE N
justiJi callou" WJI 11 11 . p . ~ ·1 '1 I. 10 orijo é nosso.] no qu adro do Aga Jíila11 PI'U(f i'Clm f or l.~lamtc Arclt1tecture. MIT·Harvard.
A REGRA E O MODELO 1 •11 'I' II!X'l'OS SOBRE A ARQUITETURA E SOBRE A CIDADE 25
24

c indiretamente pela aplicação de textos jurídicos30, O imenso po· ll ' il 11 1, , c Va l'rão, em particular), dR.J~otiguid?de-..gr.ega....uom~
der exercido por tais escritos, tanto sobre a criação quanto sobre 1111 ('J, , q uadro e sob o aval de uma pesquisa dorrúnada pela
a conservação do tecido urbano, autoriza a classificá-los como Idolu tno lógica [ - 3] , os doutores do século Xl ll também es-
indiretamente realizadores. j,, ,, n l tHn um arremedo teórico dos p rincípios do construir (ar-
Mos o d ireito muçulmano é essencialmente sagrado. " O ,,,luw ) que responde, aliás, sobretudo a un1a vontade de elas-
Corão deu leis à comunidade islâmica, mesmo em matéria de ~~~ h 1•\' lll l das atividades ligadas à edificação34. Suas " sumas"
guerra e em questões gerais"31. Essa comunidade não conhece ltur., t1v11 m assim diretamente, e sem discuti-los [ - 4], elementos
valores "puramen te políticos ou jurídicos (tal como o entende- 1'11 1( 1. 1i:; nos autores da AnQguidade. Aristóteles era aproveitado,
ria o Ocidente moderno", mos tão-somente valores " políticos-re- 1111111 r:ubn:tudo· Vitrúvio, cuja redesmberla e edição critica p or

ligiosos [ . .. ] que corporificam, a seus olhos, a p róp ria doutrina I • I 'u/'.gc no Renascimento não devem fazer esquecer que ele
revelada ", e estão liter almente " invisceradus nus textos alcorâni· 1, •I ,.,,nhccido, recopiado e utilizado desde a Alta Idade Média35 ,
cos e na sunna do profeta"32. Assim, os artigos e os anais re- • 11 11 , 11 11 medida em que nos recusamos a considerar o De ar-

gistrados do Fiqh (direito muçulmano) remetem, em última ' htll'clrtra como um texto instauradur d~ ~sapço, com maior
instância, a um livro, ele também indiretamente realizador de 11111 u ' o ra remos com fragmentos e citações tirados de mar.,us-
espaço, o Carão. ' li I n~ incompletos e de difícil interpretação, tanto por causa de
Nesse livro deparamos com juízos de valor (comentários) •11 11 formação quanto devido à perda das referências q~e os

sobre a cidade e apenas algumas prescrições sub-reptícias que t. 11 11 111 tornado in teligíveis e à ausência á e distandamentu dos
111 11t •l't.:s medievais com relação à cultura antiga36.
inílucnciaram a organização urbana, fixando a orientação obri-
gatória dos locais de o ração e exigindo que seja criado um r:ora dessa literatw-a apologética, apenas o célebre Album
bairro distin to para "as pessoas do livro". Finalmente, ·nele se ,1, • V i lla rd de Honnecourt37 poderia aspirar ao título de texto
descobrirá a disposição espiritual que contribui para o funcio- 1t · l ~ru rador: -Nele o autor ~xprime, com efeito, na p rimeira
namento untuoso, rcplicativo e no entanto variado, das diversas , . ...:,ua [ + 2 ] , o orgulho de criador, notável por suas invencões
prálicas sociais, e cujo papel p reponderante pode explicar que o I•' nil:as, sua cultura matemática38, sua m aturidade crítica39, Mas
tratHdo instaurador não tenha seu lugar no espaço literário de- 1111 11 procu ra dar unidade e coerência a uma matéria e a obser-

dicado pelo Islã à cidade e ao mundo 'e dificado. vu,·~ ll::i d isparatadas, emp res tadas de campos e fontes heterogê-
l ll'•'~· Se sua preocupação dominante é de ordem prática e técnica,

A Id ade Méd ia também o ferece texto susct:tível de com· :H. Cl. a definição de armatura e sua divisão em architectura coe·
lllt•ll/n rla, venustatoria no Didascalion de HUGO DE SÃO VfTOR (re-
paraçfio com um trotado de :1 rq uitetura do Renascimento. Os IIIII IIHII\ no _Spe~um de VI CENTE DE BEAUVAIS), E. DE BRUY!\"E
douturr.:s ~ n ci cl up cd i s ta s da Igreja s..c._ l i m i t auu~mat., sob 1'11111u., à 'csthéti que m édtévale, Bruges, "De tempel", 1946, t . II, p. :l8i.
umu l"o rmn mui tus vezes trun cada e fragmcntúri a, _o ç_ontc.ú_d..Q.. :111. CI., por exemplo, a influência da obra dll Vitrúvio sobre Egi·
dos textos realizadores d a Anti uidade. De I sidoro de Sev ilha 11h 111'd, considerado na época como seu intérprete mais competente (E.
1111: HIWllNE, op. cit., t . ·1, pp. 243-247).
a Hugo dt: São Vítor, e depois Vicente e- BeauvalS e I o;nas- âe
:111. Sobre esses problemas, cf., entre uma lite ratura muito numerosa
Aquino33, eles não apen~-colheram<rlffi!informaÇãÕ técnica e " " 111 1110 simplesme nte de sugestão. F . PEETE RS, " Le Codex bruxelensis
prá tica ju nto aos práticos, aos pedagogos ouaos compiladores rru•.t !11) de Vitruve et la t ra dition manuscrito du De ar chttectura" ,
MII/11111/I'S Félix Grat, t. 11, Paris, 1949 pp. 119·143; C. H. KRINSKY,
30. R. BRUNSCHVICG, 'Trbanlsme m éd léva: et drott musu!man" , "'lnv1111Ly·clght Vitruvius Manuscrip ts ", Jah1·buch f ür lVir t schaf tsgcschi·
Rcvuc des études isl ~miques, 1947, p . 127. '/ri•·. ll<,rl im, 1067, intr odução, pp. 36-70. Acontecia igualmente :;er citado
31. RACHID R IDA, citado por L. GARDET, La Cit é musulmane, vie Vll11lvio sem menção do nome. W. A. Ed en ns.<;innl rt a presença, no De
.~ociale et politiqu e, Paris, VrL"'l , 1954, p. 109. " '111111/ 111 ' winCi'fJllm (Livm II, Caps. I n IV) do São Tomás, de tr ês cita·
:!?.. L. GARDE T, op. cit ., p 8. O m esm o a utor indica que "ao Corão ~O··~ uuOnlmas tiradas de Vi húvio e ori undas de u m autor desconhecido
:IUI Ht'lll o IJt' rLence o magistério legislativo propriamente dito, e toda lei 1•11 " ih•lnL 'l'hom as Aquinas and Vitntvius" , M ecliaeval and Renaissancc
01 1 11111t•M t.ocla regulamen tação particular sempr e tende a ser apenas '1111111•·:•. Wtu-burg Institute, Univors!ty o! London , vol. I , 1950.
"' '"~>- pxpl ll'ilit<;i•o dos leis corânicas" (idem, p . 109). Remetemos igual· :1'1. Al(l ttm de Vi llar d de Jlomz~Ccourt, arcritecte du XIIIe si ecle, ma·
1111'"'"· 1)111'11 '' " " <liscussão, às a ná lises de R. BRUNSCHVICG, op. cit., na 1111"1'111 1m1Jlié cn tac-similé, anotado L . . l por J .B .A. Lassus, Paris, Laget,
fll lltl IIVfl('l l 0 :1 l.l'~l.os e ;>rocedim entos que intexvêm na ausência de lllflil.
hHII('I l~I\PII l~» l( t. lvw< uo Corão (idem. p . 248). C!., tgualn:ente, L. MA& :111 011. c#t., pl. 36 e 39. A gP.ometria de Euclides <traduzida p or
1-) ICIN O N, 1,11 I '!I .~NICln rl 'al-l/allàj, Paris, Geut.hner , 1922. IIPI~ • IO ) ftw.ln n m'te da formação dos a rquitetos j á na Alta Idade Média.
:1:1. (1 , t iii:Au .rO tJ AN, " J!interdépendence entre la scien ce scolastique 1•r 111. 1)lt! BltUYNE, Étudcs d'esth.étiquc médi évale, op. cit., t. I, p. 245.
et los WOil111fi iH•rl lll.l lllni i'O'l (X IIe, X IU e, XIVe siecle )", Contérences c!U :111, Vo•· sur.IS análises das catedrais de Laon e de Reíms {op. ctt.,
palais de kl. J)(konrnrlv, n ." 1G, janeir o de 1957. 11\ 1'/ 11 hll N9.) .
2G A REGRA E O MODELO 1til 'l'u:X.'I'Ct.'i .'-lOilltE A ARQUITETURA E SOBRE A CIDADE Z1

como o tcstcmuuhnm u~ ptíginas sobre a construção do madeira- p~tl lllll v t~ lll :1 c t'slc nde do mais trivial ao mais sublime [ + 5], da
mento. purc~.:u 1Ja ol1111lt.: exagerado qualificar de "enciclopédia 11 11\ll' lil' l ' du ddcsa à criação a~tística45 ,
pní I icn " •IO essa~ 1101as [ - 1 J ilustradas, que abrem grande espaço ( 'uw;u llundo os registros sicncnsc.>, constatamos que os
ao comc ultírio de construções existentes e terminam com uma 111\'111 1!1'\>s do Conselho se debruçam sobn: u cunjumo dos orde-
1ÍII i111u n:ccilu pura a cura de ferimentos sofridos nos canteiros IIII IIIL'Il iOS que respondem às necessidades dos habitantes, favo-
do o b n•~··'ll. H'l't.:lll a realização e desenvolvimento das atividades urbanas,
~:o ulribue m pnra o embelezamento da cidade. Vemo-los concebe-
rclll redes de adução e distribuição de água, lutarem por mt::·
I . 2. Os Editos Comunais e o Destino de sua Argumentação lilorc.; condições sanitárias ao alargar as mas existentes, proibindo
11 ullura exagerada das casas e a aglomeração de suas fachadas

Nn Europa medieval, paralelamente ao direito consuetudi- Jltl r construções geminadas4ti, criando um jardim público, hospi-
n(! ri o q ue assegurava a perpe tuação de uma ordem urbana tra- lai ~ ; elaborarem um conjun to específico de edifícios para ab ri·
tlidonal, os textos elaborados no seio das comunas contribuíram, 1:11 r ,1s diversas instâncias do poder municipa[':7; organ izarem o
no contrário, para uma edificação racional do quadro urbano e l'Spctáculo urbano pela normalização e regularização do tecido
par[l' a produção de soluções arquitetônicas inéditas. Parece que da <.:idade48 e pela edificação de monumentos. Fuce ao desenvol-
esses editos e deliberações, de vocação criadora, devem ser clas- vimento demográfico e econômico, quer se trate da criação de
sificados entre os escritos instauradores. Determinaremos seu IIOVos bairros habita<.:ionais49 ou da melhoria da rede viária, suas
estatuto com o auxílio de alguns exemplos tomados aos conse- decisões são prospectivas, inscrevem-se num programa de inter-
lhos comunais · da Itália, que foram os primeiros, já no século venção50 a longo prazo, testemunham uma vontade de raciona-
XII , a produzir este tipo de t~xtos , e não cessaram de ampliar li zação e uma estratégia de olimiza\ião qu~ visa m à escolha dos
sua diversidade e riqueza at é o século XV. eq uipamentos e dos locais de implantação. O s edis não deba-
Mesmo que não sejam tão completos como os do Consiglio lc m apenas a melhor localização dos edifícios de prestígio, como
gancrala de Siena, do qual -possuímos os livros de 3 de dezembro o Palácio Comunal (1288). Estudam também a repartição ra·
de 124? a 1.• de março de 180142, conservamos ainda grande cional das fontes pelos diven;os bairros51 , a distribuição dos
n úm~ro dos registros onde eram consignadas as decisões edilitá- nlhergues e dos hospitais pelos setores52, a preservação dos jar-
rías dos conselhos comunais e seus considerundos43. Emanem de cl ins intra-rnuros e de uma justa proporção de espaços verdes
Florença, Pisa, Parma ou Brescia, tais decisões argumentadas se dentro do tecido u rbano53,
destacam pela p articipação pessoal nominal [ ..L 2] daqueles que Termina aí a semelhança entre os tratados instauradores e
as lom<l ram c pela p rcocupaçiio de eficácia que os orienta e os os editos _comunais. A demarcação de suas diferenças s~rá
im:il11 a inven tar respostas novas [ + 4J44 para os problemas urba- visível com as relações diferentes que mantêm respectivamente
nos que lhes são subme tidos. A área de competência dos res- com o poder de concepção e o poder político.
45.Cf. G . MILANESI, Documenti per la Storia deU'arte senese,
40. J .B.A. LASSUS, op. cit., IntrodUC!íO, p. 52. I, p.
180, Siena, 1851, citado por WALEY, Rcp. I tal., op. cit., p. 151.
46. Cf. D . BALESTRACCI e G. PICCINI, op. cit., pp. ~5 e ss., onde
11. Op. cit ., pl. 64. são citados os textno; da Constittllção da comuna ele Siena de 1262 e do
12. Cf. Rcrum italicarum scriptores, Milão, L.A. Muratorl, 1723-1751, Conselho Geral (deliberações de 6 de agosto de l:J6Gl regulamentando
t. XV, 6.' parte. Para a. bibliografia (arquivos, textos editados e críticas) o ~owanço das abert•~ras para as ruas em ::unçi10 tia~ dimcm;út;s •JcsLus
dos conselhos stenenses, cf. D. BALESTRACCI e G. PICCINI, Siena ne! Para medidas Emálogas adotadas em Parma c em Dl'O:Jcln, cr. WAJ.EY, op.
Z'recento, assetto urbano e struttura edilizie, Siena, CLUSF, 1977, que dá, c:ít., p. 100.
al6m disso, uma descrição sugestiva da extensão e da natureza da 47. A construção e a implantação perl.inonl.u rio cclil'Jcios exclusiva-
co mpo~(·ncia dos membros do Conselho Geral de Slena.
mente cor..sagr&dos aos "serviços administmLivos" cluq comunas foi uma
~:1. CL, entre outros, N. OTTOKAR. verbete "Comuni" in Encyclo·
tltts rea:izações da edllidade italiana durnnt.c us sc!culos X III e XIV. Cf.
tJc•rlltt 1/ttl-ltwa, vol. XI, e sobretudo o Reru.m italicarum liCTiptc.rres, cita· D. DALESTRACCI e G. PICCINI, op. cít .. p. lO:J.
_ elo ,, 1/!)rtr, <'11)0 mnterial riquíssimo parece não ter sido explorado siste· 18. Iàcm, pp. 45-48, 60-62.
mul.loanuml.••. t4lllvo por autores como D. WALEY in Studi communali e 49. I dem, pp. 30 e ss.
f lrmm /1111, l•'lonmr;l t, 1n1B; Mediaeva! Orvieto, Cambridge, Cambriàge
50. Idem, p . 17.
Uulvul'lltl,y 1'1'!1'11!. 11)11'1.. Ct. também Les Républiques médiévales italiennes, 51. I dem, p. 145.
Pnl'lt~,JlnchoLlo. 100\J. 52. Cf. o debaLe de 27 dtl jw1uiru de 1357 sobre a implantação de
14. No ou:u> ox l11~u coincidncin com a segunda parte do trago [41, um hospital fora da. Porta de Ovile, num bairro que carecia completa.·
mas nf10 COtll 11 IH'Inwl m , quo cliz respeito à elaboração de um método n ll'nte (idem, 9?· 150-154).
universal. 53. I dem. p , 38.
20 A rt.lW ltA J!: O MODEW OS TExroS SOBRE A ARQUITEI'URA E SOBRE A CIDADE 29

As dr.:t:l~~t >cs r·cHIIzHdo ms enu nciadas e argumentada~ nos a serviço do cidadão e das exigências da sua vida religiosa55.
cd ill>S conH11111is nuo ~ e es tribam num pensamento teórico [ -...4J. - Assim, entre o início uo Trecento e a segunda metade do Quat-
1\no lillll np licfrvuiH furu do q uadro espácio-temporal em que fo- trocento , o texto argumentador realiza um equilíbrio, jamais re·
rurrr fu rnruludu~ . A despeito de seu alcance prospectivo, elas encontrado depois56, entre a cidade como realidade material e
tt11u ( .l ll'citrl ~ c. de ano para ano, são completadas e moJificl;!das como conjunto de instituições, entre ~s forças da tradição e o
l'l' l1un ll vn n1enle, levando em conta a evolução dos dados54. poder da inovação, entre a iniciativa dos indivíduos e o consenso
H l.:~ (llH r d e m i\t; situações particulares, encontradas hic et nunc da coletividade_
pur homens que não são especialistas, mas cuj a condição de Não foi por acaso que esse avatar discursivo encontrou sua
l:idad fin qualifica-os, sem distinção de das:st; sucial ou profissio- realiza cão n as cidades medievais da Itália, no mesmo solo pre-
nal , n lidar com todos os pro blemas da cidade. Para eles, ocupar- cocem~nte urbano que foi depois o berço do tratado instaurado r.
se du edificação da cidade é parte integrante de uma gestão 1\ semelhança das duas categorias de textos sofre uma relação
undc cnlrurn em jogo determinantes religiosas, sociais, cconômi- de parentesco. A emergência do tratado ihstaurador, em meados
cn ~ e téc nicas que contribuem, tát.;ita ou explicitamente , para do s6culo XV, foi preparada por uma pré-objetivação do espaço
u pr oduçf.iu do espaço urbano. Não se trata, pois, de uma auto- urbano e uma racionalização a que os escritos argumentadores o
nomiu do~ editos e decretos comunais [- 3]. Ao contrário dos submeteram num corpo-a-corpo quotidiano.
lralados de arquitetura , eles não postulam uma disciplina
especifica independente.
Por isso, é conveniente renunciar à tentação de atribuir a Dessa relação, temos urna confirmação paradoxa.L numa
esses textos o qualificativo instaurador. Todavia, na medida em época em que o texto argumentador desapareceu e em quc: o
que designam o edificado como seu campo próprio de aplicação alcance teórico do tratado instaurador parece opô-lo irremedia-
c lhes reservam um tratamento reflexivo, ~erá possível marcar velmente à ca~ualidade dos editos reais q ue tomaram o lugar
sua especificidade e seu parentesco com os tratados instaurado- dos editos comunais. Com efeito, quando, pela primeira vez, em
rcs, chamando-os argumentadores . 1705, Lamare intenta reunir os decretos publicados desde Filipe,
Da maneira como no-los transmitiram as exposições de o Belo, em matéria de "polícia urbana" em Paris, em lugar de
motivos que acompanham os ed itos dos consel hos comunais ita- uma compilação, ele os apresenta sob a forma de um Tratado57,
lianos e as atas das sessões onde eram preparados, os textos organizado como o de Alberti; não hesita em descobrir uma
argumentauores do apogeu do século XIV e início do XV nos ordem e p rincípios5B na sucessão desses textos fragmentários e,
põem frente a um modo discursivo de produção do espaço urba- com a autoridade de sua própria assinatura, em revelar a lógica
II U excepcio nalmente interessan te. Estes escritos se situam num da decisão que os engendrou.
lu gar improv::ivcl c prccíirio, entre o procedimen to autoritário dos Contudo, tal lógica é enganosa. Com o tempo, os conside-
l cx l o~ j)J'escritivos ou cons uetudinários e o processo racional
randos citados por Lamare perdem a dimensão dialética e a
dos t ratado~ in~ta u rauores . Aqueles que tomam as decisões es- polissemia próprias dos editos argumentadores que aliás, numa
França mais rural e precocemente centralizada, nunca foram tão
liio suficientemente distanciados da vida e do ·espaço urbano
para poderem traduzir os problemas que colocam em termos
de razão e eficácia. :vlas, ao mesmo tempo, a rede instituciona l autores, esta situação cria "entre cada igreja Individual e a comuna
t JUC os liga à cidade impede-os de considerá-la como objeto in- 55. D. BALESTRACCI e G. PICCINI . idem. p. 106. Se~n ndo esses
dcpeuuen te. De um lado, seu discurso somente se enuncia em umn relação de dependência na qual o elemento civil parece ficar com
v:í rias vozes, é tomado numa estrutura de diálogo. De outro a parte do leão" .
· 56. o exP.mplo e a análise dos textos arJ~Lll iJon Ladorcs poderiam con·
ladP, ~e m estar su bordinado a nenhuma, é ordenado por todas tributr pa.,.a esr.J are~er o pr oblema a tuuhnonto mn lto evocado e quase
1111 pr·,í ik lrN::;ociais. Por exemplo , embora a instituição cristã mar- sempre mal colocado da przrticipa.çlio no o rdonl\mento u rbano.
q uv () l.: ll (!ll~: u 11 r bano pelo número de igreja e conventos que seu 57. E . N. DE LAMARE, Tmité de lrt Police. E le próprio termina
pt~d t 'll o llr l' perm ite implantar, todavia ela não lhe dita sua lei. apor..as os três primeiros volum es, puhlicactos respectivamente em 1705,
1710, 1719.
:-,Ih! 011 1 1 1 11}~~~ li'lld OS leigos q ue dispõem das construções reJigio- 58. "Nesses regulamentos que t ive de percor rer descobri tanta
!11111 p11111 lnl t·wtí I n~ lr o rdem civil da cidade, enquanto edifícios sabedoria, tão grande ordem e uma ligação tão perfeita entre toda~ . as
partes da Polícia, que acreditei poder reduzir em Arte ou em Pratica
o estudo dessa Ciência. remontando até seus prtncipios" (op. cit.
61. CJt 1111 IIH Jd l tk1 ~r;l\o:1 Introduzidas r.os grandes projetos s1enense.s pref ácio verso). Aliás · caberia aproximar esse prefácio, na tot~Iidade,
OU.l S01!'Uidll to llll••dn tlo •ll ll ll(l'llfL<>< provocada pela poste negra de 1318. do Prólogo aos dez livros do De re acdificatoria.
30 A ltl!:OUA E O MODELO 01.1 TEXTOS SOBRE A ARQUITETURA .J!: SOBRE A CIDADE 31

nume rosos c nuo up rcs~ nt aram a mesma elaboração que n a lut c ntcG2 que, e m sua relação direta com o· espaço construído,
I tr.li u. l'c n111111cccm os t r~1ços com uns com o tratado instaurador, usscmclha-se aos tratados instauradores.
ll1UN n1utln u rel no,:no com o poder de decisão. Os textos empíricos, Mas Haussmann é solidário de uma aven tura histórica, a
q 11u 0 1'fllllli~.1 11ll o ~:;paço urbano hic et nunc, racionalizando-o, de Napoleão 111. Sem questionar, ele coloca seu poder de r a·
l lli'1 11111 1· H~; o up;mágio de grupos especializados, delegados pelo cionalização a serviço do poder executivo cuja arbitraried ade ele
pude r n.: ul c pulítiw, sub o nome primeiramente de Polícia59 e, está sempre disposto a justif ica r, p ela adesão tácita à lógica das
muis turdc, ele Administração. D ecisões arbitrárias, justificativas práticas sociais domi nantes.
idc oló ~,; icuti c p ropaganda podem, doravante, usar a máscara da A dupla pertinência dos e_§S:ritos de H a ussmall!l a uma ra-
uq; umc n t aç~io. cionalidade universal de superfície e a uma lógica oculta, que é
Por mais rapidamente que o evoquemos, esse encaminha- essencialmente a de uma economia, prefigura e esclarece a du-
mento, esse progressivo desvio em relação aos , textos argumen- plicidade dos textos administrativos atuais. Nesses textos, pode-
tauo rcs , permite compreender a ambivalên~;i~~~~cúta mos ler ao mesmo tempo um discurso racional, cunhado nas
de li au sslnwm, que, em sua expressão e em seu funcionamento, teorias urbanísticas63, que a administração não teme citar, e a
co nstitui o arquétipo da adm inistração moderna. Em suas expressão, que esse discurso mascara, seja de decisões políticas,
Menrórias, que se p ode ler como um comentário de seus d iscursos seja do livre jogo de instituições e p rocessos sociais não-discur-
c decretos, tanto quanto nesses últimos, ele justifica e raciona- sivos. Assim, posteridade longínqua e desviada dos editos argu·
liza todas as suas decisões. Será que essas dizem resp eito ao mentadores, uma p arte dos decretos urbanísticos atu ais ignora
ordenamento particular de um lugar particular, a cidade de Pa- tanto mais tranqüilamente o espírito desses p rimeiros textos
ris, c que não foi por s~us escritos, mas por seu resultado, a quanto lhes conservam a forma e fingt::m mesmo, no plano do
transformação de Paris, que HaussmJ.o/n_ !Jlllu~o_u_tuda_a_ conteúdo, referir-se à legislação de uma disciplina científica.
urbat1izaçã~ do_linal do-séc_ulo XlX,_e forn eceu um modelo . Não é possível precisar aqui a posição desses textos no
es trutural que se impôs .até nos Estados Unidos e fascinou igual- conjunto do direito urbanístico a que pertencem e em relação
mente o Imperador- Francisco José, 'o engenheiro Cerdà e o ao direito consuetudinário do construído cujo estudo, na era
arquiteto Burnham?61 Não deixa de ser verdade que, sob sua clássica, fazia parte da fo rmação do arquiteto64. Já nos basta ter
coerência e sua lógica superficial, nesses decretos podemos des- chamado a atenção para esses textos jurídicos. Escritos não-ins-
cobrir p rincípios, uma a titude generalizáyel. uma postura teórica tauradores, porém, embora leigos, constituem, na modema so-
ciedade ocidental, a mais imp ortante massa escrita com vistas
59. "fo'lca reservado à Policia vigiar a regularidade e a forma das à produção direta do quadro construído e pesam considcravcl·
con~ Lruções; prescrever o alinhamento, a construção e a altura d&~ ea~as; mente na problemática atual da arquitetura e do urbano.
conservar a largura e a lil.Jerdadc da via públ!ca ... " (N. DE LAMARE, j
1'raité de la Police, t. IV, Cap. II, "Título 3", publicado por Le Cler du
Brillet em 1738, p. 10).
60. Essa ambivalência não caracteriza, aliás, somente os escritos, 62. Tentamos formular sua sintese sob o conceito de "regularização"
mas também os ordenall'.entos urbanos re~lizados por Haussmann, cuja in City Planning tn t he X ! Xth. Century, New York, Brazlller, 1970. Cf.
obra, contudo, sempre deu margem a leituras monossêrnicas. Para uns também nossos artigos "Urbarúsme, théorics el réalisations", Encyclo·
ele não passa do instrumento uo poder capitalista: assim, ·as análises paedia universalis, Paris, 1973, e "Haussmann ct !c systemc dcs espaces
ele H. Lcfebvre, tão prototípicas que se poderia acreditar caricaturais, verts parisiens", La Retiue de l'Art, n.0 20, Po.r ls, .~d. du CNRS, 1975.
pretendem mostrar que "o Barão Haussmann, homem desse Estado 63. O caráter teórico dos decretos e "plnnos uluals ele..ordena·
1umnpartista que se erige acima da sociedade para tratá-la cinicamente mento urbano foi bem analisado por L. Sfo:~. em ~• m Ollra •. c;:nt1que de
c·<•n 10 o espólio [ . . . i das lutas pelo poder I ... J, substitui por longas za décision Paris, Jlihliot.hêque de l'Institut, eles Scium;cs Polltiques, 1973.
11Vmilc111 11 us 1uas tortuosas mas vivazes r. .. el fura bulevares. ordena Cf i alm~nte O. ALEXANDER, J . BOULE'I', F. CHOAY,_ T. <;"RESSET,
oiiiJIIII) I l ' l VII ZIIlS r ... não) para a beleza das perspectivas [' .. mas] para L~ger:::ent social et lt.Codélisation de la polW1/7W d es modeles a la partt-
111•111•••"' l'111'1 11 <:um metralhadoras". Le Droit à la vil/e, Paris, Anthropos, cipation, 1975, relatório de pesquisa, publicado por ARDU, Université de
1111111 l 11llll ' n1''""· c:omo Le Corbusicr, em La Ville radieuse, por exemplo, Paris VIII, Paris, 1978. . .
11111 '' llllli 'll lli<'lll" o precursor inspirado do urbanismo progressista, cf. 64. Cf. L ois des bâtiments s1tivant la Coutume •de Pans [ ·, . . J em e.'·
1111111 11 1'11 , 11 :um. Puris, VincP.nt-Fréal, 193.3, p . 120; S. GIEDION, gnées par M . Desgodets, arcltitecte du Roi dans l Éc~le de ,~ A cadém;
llru"'''• 'l 'l mo•, t11Pitl11'1'lllrc, Cambrldge, Mass .. Harvard Un1verslty Press, d'Architecture, Paris, 1748. O pt·efaciadol·, Goupy, observa que um arq
:1 • '11 , llolill, '"" p1111il'u1a t·, pp. 646-679. teto não pode cuidar com segurança da conduta de algumas constr~çO~s
11 1 1 '1 1• '"" '"l' '""'"'hl• do Viena nos anos de !880; a transformação se não for instruído das leis do costume". As atas da Academia e
11c1 11111 !'IIICIIIII u 11 1'11111111 Cil'nrml citada supra; a planta de Chicago de
Arquitetura se fazem eco dessa preocupação.
1000.
32 A REGRA E O MODELO OS TEXTOS SOBRE A ARQUITETURA E SOBRE A CIDADE 33
i•
1. 3. O~; Falsos 'J'I'Illados da Renascença e da Era Clássica _ representar, durante os séculos XVII e XVIll, a maior parte
dos "tratados". PÕrém, nem por isso são instauradores. Ciosos
O Da re aadificatoria foi o únicQ_tratado_de-ªffiJJÍtetura pu· somente do valor expressivo da coisa construída [ - 5], limitam
bl.icado no !>éc ulo XV65. Mas, a partir do século XVI, Q_g~ no domínio da estética arquitetônica o campo da edificação de-
*.il: m ult iplicou c tornou-se rapidamente o ornamento obrigatório finido por Alberti69. Além disso, na maioria das vezes estão sub-
dn biblioteca do honnête homme. A própria denominação metidos à autoridade dos modelos antigos [ - 4] e, embora os-
trHltH.lo de arquilelura encobre, então, uma realidade textual tensivamente escritos na primeira pessoa do singular, geralmente
bastante diferente. red\]zem o papel e a iniciativa do indivíduo à definição de t~c­
A atração formal do tratado teórico se fez sentir sobre cer- nicas de mensuração, reconstituição, .representação, e ao aperfei-
tos manuais técnicos c práticos: transmitindo habitidadcs (savoir- çoamento de um sistema de proporções legado pela tradi?ão
faire), já constituídas ou inovadoras, mas não as condições de [ - 3]. A essas obras chamarei tratados das ordens e, na med1da
um poder-conceber [...:._ 4] : sua coerência e o cuidado com que em que sua legislação abarca apenas um setor da edificação, eu
roram compostos, o papel principal que nele desempenha o in- as qualificarei de setoriais.
divíduo, falando na primeira pessoa [ + 2], bem como sua vonta- As Regale delle cinque ordini d'architettura70, de G. Bar-
de de invenção e de progresso, podem fadlmente iludir o leitor rozio da Vignola, oferecem a forma mais despojada do tratado
atual . No entanto, na França clássica, a Maniere de bâtir pour das ordens, protótipo indefinidamente retomado, simplificado ou
toutes sortes de personnes . de Le Muet ( 1623), a Architecture corrigido71 até o século XIX, paradigma e padrão da literatura
pratique de P. Bullet (1691), a Architecture modeme de Briseux · arquitetônica durante o período clássico, quando o conceito de
( 1728) são, para os práticos, instrumentos cujo propósito Ma- arquitetura se viti reduzido ao de estilo, por vezes mesmo ao
thurin Jousse, em seu Secret d'architecture (1642), que ele. pró- · de escrita72. Abramos "o Vignola": depois de duas páginas de
prio chama de "Tratado de arquitetura"66, situa com muita teoria, dirigidas como introdução "Ai lettori", o texto é. subor-
propriedade, opondo-o ao dos tratados teóricos que não se diri- dinado e integrado à sucessão de pranchas que descrevem e ex-
gem ao mesmo público -e não são limítaJos por um nível de saber plicam com imagens os elementos respectivos das diferentes
demasiado trivial aos olhos de seus autores: ordens, e indicam como e quando utilizá-las.
""'"i> Entre esse tipo canônico e o De re aedificatoria, encontra-se ,
· Como [ .. . l se vê todos os dias grandes e ricos Edifícios caírem embora em número pouco significativo, uma série de formas in-
em ruínas ... devido às más junções das partes, devido às más relações
das pedras entre si [ ... J. No caso de Arquitetura, é necessário saber termediárias cuja classificação às vezes é problemática. Enquanto
tudo 0 que diga respeito ao corte das pedras & aos traçados geornétri·
co:; que lhe düo a regra, pois que da igno1·ância desse ponto procede -
a perda dos Edifícios. Ora [ ... l não se encontra nada sobre isso nos 69. Redução que S. Leclerc define bem quando, no prólogo "Ao
melhores Autores de todos os antigos Arquitetos"'. Leitor" de seu Traíté ... Cop. citJ, indica: "Meu desígnio não é tratar aqui
de todas as Partes que pertencem à Arquitetura, aqui não falo de nenhum
modo da maneira mecânica de construir um Edifício como àe preparar·
No campo da literatura científica e teórica, as obras con- lhe os alicerces, de erigir·lhe as paredes ( . .. J: esses conheC'imentos
sagradas exclusivamente às ordens de arquitetura68 acabaram por [•.. J se encontram suficientemente em Vitrúvio, Palladio r ...l e vários
outros tratados de arquitetura".
"Não me apego nesta obra senão ao oue l'nnge à beleza, ao bom
gosto e à elegância das Partes principais que entrnrn na composição de
65. O tratado, ligeiramente posterior, de Filareto como os de Fran- um belo e nobre Edifício. Nela apresento as ordens elas Colunas [ ... l "
cosco di Giorgio Martini, um pouco mais tardios, permaneceram inéditos 70. Veneza, 1562.
ltl ó o século XIX. Cf. infra, Car>. l, p. 40 e Cap. 4, pp. 191 e ss. 71. Cf. LE 1\'IUET, Regles des cinq orclrcs ll'a •·chitcctw ·c ele Vignole,
Wl. Op. cit.. Prefácio, p. 5. r evues, augmentées et réduites de grand en petlt , Pads, 1632; P. NATIVEL·
ll'l. Dr pois de haver enumerado as obras dos melhores autores de LE Traité d'architecture contenant lcs ciuq nrd r·es SJ.tivant !es quat re
l l'l' ll•iloll <lo•llci<J Vitrúvio, inclusive, ele conclui que, com exceção de auteurs les plus approuvés, Vignole. Pallartto. Phili bcr t De L 'Orme et
l'lll lllin ol li• • I'Onnc, "todos esses grandes homens não nos disseram scamozzi [ . .. ] , Paris, 1729. Apesar do ULulo, esta úlUma obra faz a parte
IIIIIIIV otl llil h ll o 11 11111neira de delinear os traços geométricos necessários do leão em Vignola, cujo texto ele repro du~!~ intcgml~ente, prov~ndo·O
1111 '"" t" d nrt IIPI II'II:i " (tclem, p. 4). de um comentário. Em compensacfio, o Cours d'architectllre qm com -
1111 tlr., llol "'"''> !la França, entre outros, P. FRJ!::ART DE CHAM· prend les or dres de Vignole, avec des commentaires [ . .. ] de DAVILER
l lltA I', !'ttlltii Mr• t /1 1 l'm·•·hltccture ancienne et de la moderne, Paris, 1650; (Paris, 1641) representa uma forma intermediária entre a "tratado" das
IJ. 1'111111111 111 .'1', IJ itlt ll/tJtt m·t· eles cinq especes de colonnes, Paris, 1683; ordens e a manual prá& ico de construção.
I II~ II A/1' 1 ' 1 lllN ltJriiJ I ,1!)1(,(1, 'l'm!té d 'architecture, Paris, 1714; CHARLES 72. No século XVIII é que n metáfora da escrita foi aplicada à
1)IJ 1'\11 11 , Ntl f/ 111'1111 'l 'lltlltl <l'orc;ldtcc ture, Paris, 1762. Para uma interpre· utilização arquitetônica das ordens, particularmente por J.·F. Blondel.
LI IQIIO tltl ll\Ol'IILIIIII rl1111 l ll~ loll U , cf. Í7hjra, Cap. 4. Cf. intra, Cap. 4.
3~ A REGRA E O MODELO t !. • I 'I ~XTOS SOBRE A ARQUITETURA E SOBRE A CIDADE 35

que, a despeito de suas referências a Alberti e das "citações" que Vill ulpanda79. Apresentando traços ao mesmo tempo de comcn-
faz do f22 re aedijicatoria, a Reigle generalle d'architecture des llí rio bíblico e dt: tra tado de ar_quileüu:a, essa obr a propõe, a
cinq manieres de colonnes [ ... ] de ( Bullant73 aparece clara- L'rermos no autor, a primeira exegese correta da visão da Eze-
mente como um tratado das ordens, da mesma forma que o <! IIÍL:IUO e paralelamente à p_rimeir~on~titJJi~o exata e ilustra-
Lil;re d'architectures corzcemant /es príncipes généraux de cei du do Templo __de T2_rusalém~iifalpanda situa neste santuário a
m·t74 de G. Boffrand, Le Génie et les grands .~ecret8 de l'archi- pri gcm da arquitetura e de toda a teoria vitruviana das ordens,
tecture historique de Saint-Valêry Seheult se situa, por seu lado, l'1t11dada nas relações e nas proporções de seus elementos . Com
num nível teórico a que raramente se alça a literatura das or- d ei lo, para ele a única arquitetura racional e verdadeira é a de
dens, e apresenta todos os traços do tratado albcrtiano, exceto Vilrúvio, mas esta só pode receber a sua consagração dos textos
[5]; e, embora centralizado no problema das ordens, o Nouveau 1:ngrados, cujo testemunho ele próprio remete a desenhos lra-
Traité de toute l'Architecture75 de J.-L de Cordemoy, sem dú- ~·ndos pela próp t·i a mão de Deus. Essa preocupação em fundl'l-
vida, deve integrar-se ao corpo dos tratados instauradores. lncnlar nas Escrituras, e com tal luxo de precisões, uma cliscipli-
São igualmente setoriais os "tratados" de fortificação cujo 1111 que o trabalho de Alberti, depois dos primeiros arquitetos-
aparecimento se seguin imediatamente ao do D e re aedificatoria ld >ricos, consistira em autonomizá-la, laicizá-la, libertá-la de toda
e que se multiplicaram até o século XVIII. Aqui também, exis- luldu, não foi obra de um indivíduo isolado. Fazendo eco às preo-
tem uma série de intermediários76 entre a obra na qual a cidade '' 11 p tu,:õcs militantes da Igreja, o I n Ezechielem encontrou nume-
fortificada representa a totalidade do campo da edificação [ - 5] n >SII audiênciaBl e um prolongamento em outras obras como a
mas é objeto todavia de regras e deduções teóricas semelhantes llrdtilectura civil de Juan Caramuel82.
às dos tratados instauradores77, e formas que tendem para o ma- No entan to, essas obras p ermanecem marginais em relação
nual prático [- 4]78, 110 conjunto dos trata~os instaurador es. Com suas preocu-
~·~ >t:S essencialmente geneologistas, pendem mais para a pura
V'l[)ccnlação do que para a vontade de moldar o mLmdo, unindo
Ao lodo das obraS'setoriais, um último tipo - excepcional t >s escritos diretamente realizadores e justificand o a abordagem
- de fé!lso tratado de arquitetur~merece citação. Já vimos que, lcó rica dos tratados de arquitetura.
a despeito de seu teocentrismo e apesar do fervor da fé. que o
levou a erigir suas catedrais, o Ocidente medieval jamais pro- .l. VERDADEIRAS E FALSAS UTOPIAS
duziu qualquer trata do prescrito comparável aos da China ar- Para elaborar uma definição esquemática na utopia, utili-
caica. Ora, tardiamente, com a Contra-reforma, apareceu um m rcmos o livro de T omás Morus, da mesma fo rma que nos
g6ncro muito próximo, sob o aspecto de tratados n os quais a v11lçrnos do De re aedificatoria para definir o tratado de arqui-
rcligiiío desempen ha um papel , senfio análogo, pelo menos do- il' IIII'U. Atitude mais provocadora, porquanto redutora em relação
minante, pois a arte de organizar o espaço lhe é subordinada: 1111 uso que, à força de desvios deliberados e det'Ívns espontâneas,
Uma obra volumosa em três tomos, o In Ezechielem ex- d1'1 11 c:;:;c termo uma denotação cada vaz mais vaga e termina
planationes et appartus urbis ac Templi Hierosolymitarzi, foi pu- p,u· indu ir, numa comp reensão cada vez ma is vastall3, o exato
blicado em Roma entre 1596 e 1604, pelo jesuíta espanhol J.B. ,,,,):110 de seu signifi cad o o ri r~i n u l. Snb<.:-sc que K. Mannheim
Jll'cfurl u dooirn or po r "utopiu " , niío U ll lll c11 l.:~.:oda de livros e/ou

73. Par is, 1564. '111. ll:nt llll fllhO I'I\1;1\() t l(lltl .1 , l'mtlo, lfll ll IIIII I' IHII I" I LO":L de terminar a
74. ou De. archi t ectura liber, Paris, 1745. 111/ llltJOto 1111 IIIH'It ,
75. Paris, 1706. 110 , to'llltlt/111 111. illl t1 rm.
'((1 . Por exemplo, De l'atlaque et de la dé/ense des p laces de VAUBA~. 111 111111111 11 l lv•'ll ''" Vllhtll ll\lldn, 11 '''"''·"~ 1.11 110 (Jual foi descrito e
I(Hl&l, 1'127-1742.
'1'1. l'ol' oxemplo, F . DI GIORGIO :r.URTINI, Trattati di ar Mitettura
~ 11 1 1 • lll"'lllil\11, ,.r ,1 1/.V I<WIIIH'I', r,,,
!llfl/uu 11 tl 'il t/(111! me Paradis, Paris,
lltlllil l 111'111, 1111 l•l:t 11111,
ln(ftt(/11 111'111 o mtrftare, editados por C. e L . Maltese, Milão, Il Polifilo, 11'1 . t II/1 111\M I III/1 , 11111 1,( )111( 1\W I'I'Y,, lillofll/t!Ct11m civil recta y obli-
11111'/ , <10 quuJ podemos aproximar, mais de dois sécu los mais tarde, o (jl/11 ti!III MIIIt!i lllllt IJ 1/ll ltl 1/ltlu 101 " ' 'I 'IIIIIJJin 1/c Jerusa!em L . . J, Vigeva.no,
S011111h'<l <l'11n fOur.~ d'ar chitecture militaire, citri.le, hydraulique [. . . ), 111'/11,
l'lu'lrt, 1'/:.lO, <In n. F'OR.EST DE Bll:LIDOR. 11!1, ( 1( , P~fll lndil "!Jn" dn C I, ' " Jifllll', tl o:n Introdução à ~ua bibliografia,
'111. ()(,, 11 Ulu l o <I<J sugestão, G. DE ZANCHI, D el Modo di Fortificar In 1111111/1•11 11/ ('ln/11~ 11111111, l'iu'ht, W11l>ur, 1073: "A liter atura utóp1ca é
te clt/h, VOilll\\11, I!Uiq ; c:. l.ANTIIRI, Due dialoahi del modo di designare lllflnl ll• 1111 l ' llll no 11 1 ~1 l'lllll lll ll'l 'tl 1111 f ii'QitO científica. compreende r.ent.enas
le 1Jlantc clo/11! /."(lr/ r · n·r.:~•· .~C'('(mclu Euclide, Veneza, 1557. Para a célebre 1111 lfi.HI,OII ", Nnnru\ clnflnlono l1li.Ol lll. ont..ro outros textos, tanto os diálogos
obro. do A. Dtlmort, cr. aupm, p. 42. . 1111 J ' l lt(F,u o oJt to u:t 10 1111111< 1111 ' ' " rt~:~;i'lo cicntifica.
3G A nJECl'tA !E O MODELO OS TEXTOS SOBRE A ARQUITETURA E SOBRE A CIDADE 37

seu co nte(ldo cslx:cffico, mas um tipo de mentalidade84. Re~oman­ coordenadas espácio-temporais 1 alhures; [7] ela escapa à influên-
do implicilumcnlc cs~a ace pção, pôde um politólogo americano cia do tempo e das muda1:1ças.
nfi r111ar ussi m que " uma utopia é um objetivo realizável" e que
os c:;criloll tk Morus não revelam " qualquer fé política, qualquer
ulo piu''!Ui_ 2.1. A Utopia de Tomás Morus, Texto Inaugural
Por paradox al que pareça com relação à acep ção original
de Moru s, não se pode con testar o uso qu e fizeram da palavra O critério de ocorrência simultânea desses sete traços
utopia K. Mannheim e, antes dele, E. Bloch: uso legítimo desde permite verificar que, tal como o tratado de arquitetura, a utopia
que esses autores forneciam antes de tudo uma definição conven- é uma produção especificamente ocidental, ligada às perturba-
c ional coerente , permitindo-lhes, no caso, nomear e interpretar ções cpistêmicas do Renascimento. Regularmente se invoca a
ccrlas formas históricas e certos movimentos da consciência de Antiguidade como berço da utopia e fonte de inspiração de
classe. Depois, esse uso passou p ara a linguagem comum e Morus. Ora, se Moms leu atentamente Platão, Luciano e mesmo
uun1 Cn1ou aindn ma is a polissemia de um termo que tenderíamos, Aristóteles, nem por isso encontrou em qualquer desses autores,
por i~so mesmo, a excluir da linguagem científica. assim como Alberti também nõo encontrou em Vitrúvio, o para-
Para uós, em se tratando de uma categoria textual que digma de seu livro.
postul amos ter sido criada por Moms, que inventou um neolo- Os créditos da Utopia para com a obra de Platão serão
gismo para designá-la, era impossível recusar o termo utopia. analisados no Cap. 381, cabendo lembrar agora apenas que o
Evitamos atribuir-lhe uma acepção original e tentar circuns- filósofo grego não escreveu utopia : na República, a cidade-
crevê-la com a maior precisão possível, insurgindo-nos, assim, modelo de Platão pertence ao mundo das Idéias e não pode,
não contra as definições convencionais ulteriores da utopia qu~ pois, ser déscrita em termos de espaço [- 5 ]88, enquanto que
não nos intere3sam aqui, mas contra o emprego indeterminàdo e nas Leis, onde ela ocupa um lugar e reúne construções, não só
polivalente do termo. deixa de responder a uma crítica sistemática da polis contempo-
Sete traços discrim1natórios86 nos servirão provisotiamente rânea [- 4], mas sobretudo, longe de ser apresentada no pre-
pa ra definir a u topia: [ 1] uma utopia é um livro assinado: sente do indicativo, como uma realidade, é colocada no condi·
[2] nela um individuo se exprime na primeira pessoa do singu- cional, a título de hipótese, na lógica de um "cenário" [ - 3,
l ar, o próprio autor e/ou seu porta-voz, visitante ou testemunha - 6].
da utopia; [3] apresenta-se sob a forma de uma narrativa na Luciano, que Morus traduziu e cuja veia satírica exerceu
qua l se insere, no presente do indicativo, a descrição de uma sobre ele a mesma sedução que sobre Erasmo, não dotou sua
~;;ocic dnd t.:-modclo ; [41 essa sociedade-modelo opõe-se a uma crítica de qualquer contraposição [ - 4]. Quanto a Aristóteles,
:-;ocicdade histórica real, cuj a crítica é indissociável da descrição- mesmo que tenha abordado o problema das constituições e dos
dauoração da prime ira; [5] a sociedade-modelo tem como supor- Estados ideais, o capítulo " moderno" c o realismo de sua Polí-
te um espaço-modelo que é sua parte integrrmte e nec:e~~·ária; tica lembram mais a atituc.le dos autores de tratados de arquite-
[6] a sociedade-modelo está situada fora do nosso sistema de tura do que o processo da Utopia. O Estagirita se interessa pela
teoria do poder e das instituições políticas, sem se prender a
uma crítica sistemática hic et nunc, e sem se preocupar absolu-
84. Pnrn ele são utópicns "todas e.s idéias situacionalmente trans- tamente com a modelização do espaço [- 5).
cendentes E.•• 1 q_ue, de uma maneira oualQuer. têm um efeito de trans-
formação sobre a ordem histórico-social existente", embora as ideologias
lamlJúm "sttuac:onalme:J.te transt:e:~.dentes" estejam de acordo com essa
" ''flt·m o "jamais conseguem, de facto, realizar seu conteúdo" (ldéologie
E, em primeiro lugar, a ausência de referência ao espaço
c/ 1/lrl J•Ir·, ~md. fr. de P . Rollct, Paris, Mareei Riviêre, 1956, pp. 145 e 129). que deve também prescrever o termo utopia a propósito da
11!.. 1r 11. WH I TE, Peace among the Wi!lows, tíze Pol~ticaz Phi!osophy Cidade de Deus de Santo Agostinho, como da posteridade medie-
O/ J.' llllt'loll. lrltin, Mnrtinus Nighoff, 1968, pp. 97, 98. val tanto desta obra como dessa noção. Para o Bispo de Hipona,
1111. lf:lw. 1K·rmllc m d1stlngulr aqul os textos que serão considerados
!'llln ro 11 v..rohult·l m po~teridade moreana, áa abundante literat ura que,
que se inspira n a dupla tradição das Escrituras e do platonismo,
Jl<ll' ool ll ill•l d•• ll llt:oonl(t'tn, é chamnda de utópica. Cf. o inventário, no
o1111111to oilloltl 11ltl•'o'1m1nr\l!vo que muitos out:os, de R . FALKE , "Ve:rsuch
ulnu1' HIIJillltlllllllllo <1<11' Utop!cn", Romani ~tisch e s .rahrbuch, VI (1953· rn. Cf. pp. 151 e ss.
1VG1), 110 l(lllt l, ool\lrn ON eonto e setenta títulos que enumero porn o 88. Nas páginas seguintes, para remissão aos sete traços da utopia,
período ouolul'lw• n ltliO, 11ponns onze correspondem 1;. nossa definição adotamos a mesma convenção que havíamos seguido no = dos
de utopln. tratados.
38 A REGRA E O MODELO OS TEXTOS SOBRE A ARQUITETURA E SOBRE A CIDADE 39

a cidade de Deus 6 umn sociedade mística, tanto quanto a cidade 11111 projeto de sociedade internad onal!l7, unida por uma mesma
do Diu bo que se lhe opõe. Os membros da primeira comungam 1'6 c por uma língua única, a modelização permanece difusa, a
"no gozo dú De o ti c no gozo em Deus"89, e é seu comum amor a t.:I'Ílica não tem papel construtivo [- 4J. Enfim e sobretúdo, está
O<.: u:; qu<.: dd' inc sua pcrlinêm.:ia comum; ao passo que o& mem- nuscnte [ - · 5] o modelo espacial9~. Nem uma certa forma de
bros du sce11ncln "estão ligados pelo amor exclusivo e preponde- imaginação, nem um senso afirmado do concreto fazem com que
runl ú il s coisas lerrenas"90, Em qualquer um dos dois casos, não Lúlio, mais do que Bacon ou Dan te, possua o distanciamento
~c trota de o rganização sócio-política, muito menos de organiza· crítico e a noção de dispositivo espacial sem os quais inexiste
çflo es pacia l. utopia.
A com.:epção agostiniana da cidade como comunidade das Tt?remos de esperar o _Renascimento_ e ue uma trú>lice
almas permanece subjacente a uma obra célebre da cultura islâ· investigação_ do_ espaço_ge.9mékico, icônico e ~g!!itetôõico, per·
micn, a Jdée des hommes de la cité vertueuse, de Alfarabi91. mita constituir o mundo construído em objeto, para qüe esse,
D.ifcrcnlcmcntc de Santo Agostinho, Alfarabi não opõe à cidade sob a pena de Tomás Morus possa aparecer, pela primeira vez,
v1rluosu uma, mas várias cidades más, cuja ligação com o mun- como um meio de conversão. Con tudo, subsiste uma ilusão
do lerl'l.:strc ele assinnla com mai01: vigor. Mas o fato de que a tenaz, nutrida pelas teses e sobretudo pela terminologia de M.
t:icl:1dc virtuosa deva r ealizar-se neste mundo não desmente sua 1:3akhtin99 e D. NortoniOO, que consideram a literatura popular
n:1turca 1 teocrática 92 c a predominância absoluta de sua dimen- " carnavalcsca"101 dos "mundos às avessas" e a Pasárgada como
são espiritual: totalmente construída sobre um sistema de opo- a fonna medieval da utopia.
sições binárias [ + .<1-] , a obra n ão contém, entretanto, uma única Certamente, são mundos radicalmente diferentes [ + 6] que
indicação espacial. . · subvertem a ordem da quotidianidade. Mas, num mesmo movi·
Sem falar dos outros traços [3]. [6] e [7], essa mesma menta, Pasárgada subverte ao mesmo tempo a ordem social e o
ausência de referência ao espaço r.-
5 ] caracteriza também as curso da natureza. " Sempre o dia, nunca a noite. Nada de que-
especulações que, na Europa cristã, a partir do século XIII relas, nem de lutas [ . .. ]. Tudo é comum aos jovens e velhos,
alt:el'l'lm o conceito originai93 da cidade de Deus fazendo-~ aos fortes e fracos [ . .. ] "102. A sociedudc c suas instituições
dcsig~1ar uma cidade te~restrc, de início a Igreja (Ro~er Bacon), são antes abolidas que contestadas. O mundo subvertido ou
dcpots, com a Monarchta de Dante, um Estado que seria exem- invertido não const itui uma alternativa para o mundo quotidiano,
plar94. Mesmo el!!,. Lúlio, a propósito de quem fo i invocada mais nem um modelo [ - 4 e - 5], pois não se estriba na mesma ló-
de uma vez95 a palavra utopia e que, em seu Libre de Blanquer· gica. Pertence ao maravilhoso. Não precede de uma crítica [ - 4],
na96, adota a fo rma do I'Omancc [ + 3, + 6] , para apresentar mas de uma r uptura. Ru~tura sem J:!.rojeto, abrindo caminho a um
desregramento absoluto, a uma liberação virgem de toda contra·
II!J. 1/1. Cl.l.é de Dicu. t. XlX. Cap. XIII, Oeuvr~s de satnt Auoust:n organização, e que não é promovida por qualquer vontade indi-
trnd. G. CombCs, Paris, Descléo do Brouwcr, 1960, t. XXXVII, p. 111. cr: vidual deliberada. Além disso, de um ponto de vista mais formal,
id~m. Livro XVI, Cap . .!, t. XXXVI , p. 35. a literatura de Pasárgada só apresenta em parte os tra~;os [ 1J e
9~ . E: GI~~· !'es llfétamorpllOse.~ de la Cité d e Dieu, Paris,
Im prnncnc umversüa1re, Lo:~vain, Vri.n, 1952, p. 55. O Cap. n dessa [2]. Comporta ap enas escritos fragmentários [- 1], onde Pasár-
ob1·a fornece um comentár io esclarecedor do projeto agosLiniano. gada jamais pode ser apresentada como a invenção própria de
91. T rad . R . P. Jatissen, J. Karam, J. Chlala, Cniro, Institut français um autor [- 2], e que contrastam com a organização científica
d'arcMo!og!e, 1959. · do texto de Morus por seu caráter não-rcfleli xo e n ão-siste-
92. Cf. a fórmula de L. Massi~on para quem o ISlã conStitui "uma
teocracia laica". mático.
93. Ver a magistral análise de E. GILSON in Les M étamorplloses
rle la Cité de Dieu, op. cit.
0~-. Dan te "evidenciou, pela primeira ve7., ao que parece, a noção
do 11111 tomporal autônomo e suficiente em sua ordem. dotado de sua 97. Cf. Livro VI, onde assistimos à convocnçi1o n,nual das potências
n ül;uro~1 1 pr6pl'ia, de seu fim último próprio, e dos meios de atingi-lo do mundo inteiro para uma assembl61o p rCIJicllda p elo papa.
I . . I" ( 11:. Cii i.SON, Op. cit., pp . 14!l·l4U). Entretanto, noca o autor, 98. Mas não toda indicação espncinl: Lttlio se preocupa particular-
ILII(t ii 11HI1 lh 1 l11 L~ nrlinnte, que Dante continua impreciso no que diz m ente com a segurança dos viajantes CJII C se dirigem às assembléias
ru~po ll,o 11 t' II'H'N motos. internacionais, e nessa perspectiva mencion~ a necessidade de vigiar
or;, l 'oll 'o l lt. L•'/\IJCC ( op. cit.) , Blanquerna representa "a única os caminhos, os hospitais, as pontes, as quintas . . .
u loplu <111 l dnclo 1\fódlll". A. LLINARES (Raymond Lulle, pliilosophe de 99. L 'Oeuv r e de Fran çois Rabelais et la CUlt ure populaire, au Moyen
l'act1o n, 1'111'111, PIJ I•', lllli3) considera-o, com mais justeza, um "romance Age et sou.s la Renaissance, trad. f r., Paris, Gallimard, 1970.
pedagógico" tlu lt:u om sou nêncro. 100. L'Utopie a.nglaise, tr ad . fr ., Paris, Maspero, 1964. ·
96. Obras oriohw l.• clol !llttminat Doctor Mestre Ramon L ull, t . IX, 101. Termo utilizado por Bakhtin in op. ci t .
Palma de MnllorCil, ComL~s lón editora lulliana, 1911. 102. Poema inglês do século XIV, citado por D. MORTON, op. cit.
40 A REGRA E O MODELO OS TEXTOS SOBRE A ARQUITETURA E SOBR-E A CIDADE 41

Sem pretender negar a quota de força revolucionária que ção esl{aciaL[..±..S] buscada em vão nos textos da Antiguidade e
os escrito~ (;Urnuvuh:~cos possam ler tido, parece-nos que sua da Idade Média, e da qual Morus não seria então o inventor.
dimensão tradicional foi subestimada. Embora reconhecendo seu ' Entretanto, impõe-se aqui duas observações. De um lado, ..Q
caráter ritual c sua ligação com a festa, M. Bakhtin ignora a modelo de Gall!§forma não é nem exclusivo nem obrigatório . .
dimcnsiio funcional que estes dois aspectos revelam: o carnaval Subjuga, por sua beleza, aqueles que o descobriram, mas seu
é um a ruptura inslitudonalizada e faz parte integrante do fun- valor é_puramente inct..t.lltivo, Mal o p ríndpe t.!eduiu adotá-lo,
cionamento socia[103. Herança de uma tradição oral que realiza, ele acrescenta que desejaria vê-lo "melhor~_ds>~- possívetl07.
por ocasião de um desrecalcamento ritual verbal, mais abstrato, Longe de ser definitivo como na uJopta L- 7], o modelo é, por-
a mesma transgressão simbólica que o carnaval, a literatura dos tanto, modificável: o construir acontece no tempo e, como todas
mundos às avessas resolve, simbolicamente, tensões sociais e se as coisas humanas, está votado à martelOS, que para Filareto ~
inscreve, entre o mito e o conto popular, numa situação discur- também fonte de vida e de renovação. Por ou tro lado, o espaço
siva estranha ao domínio da utopia. de Gallisforma não é o suporte de uma construção social elabo-
rada. Não se pode contestar que, por intermédio do livro de
ouro, Filareto enuncia uma série de leis rdativas às relações entre
Uma vez admitido que a Antiguidade e a Idade Média não o judiciário e o executivo, à arrecadação de impostos e taxas, às
produziram, nem podiam produzir, utopia no sentido em que despesas dos cidadãos, à manutenção do território. . . Prevê
a definimos acima, continua Morus sendo o iniciador do gênero? igualmente um sistema penal onde as torturas são regulamenta-
Não deteria o Quattrocento italiano a anterioridade, aqui tam- das com a maior minúcia por um dispositivo espacial sofistica-
bém, como em outros setores, onde antecipou as descobertas e doL09 e, três séculos antes de Ledoux, imagina uma casa do
as criações dos humanistas do Norte? vício e da vírtude. Contudo, são proposições sociais fragmentá-
De fato, tal procedência foi atribuída especiahnente a Fila- rias, sem coerGncia global, destinadas a estimular o interesse de
reto104. Esse teria alliergado, nao sem paradoxo, uma tltOE~ no um mecenas, cujas escolhas políticas em momento algum se
fi'ãtãdo de arquitetura que, ao longo dos anos .l-4-S,O, ele escreveu pensa em contestarllO, e muito menos infligir-lhe a correção de
para ~t!_m.t_e d~ilão. Nos dois terços desse autêntico tratado,
um modelo.
concebido de maneira bastante original wmo uma simulação no A ficção de Filareto não contém, pois, nem crítLca_ genera-
curso da qual um arquitetó105 e seu príncipe formulam, expli- tiva l;:::...AJ, nem verdadejro modelo espacial: qs edifícios fantás-
<(_a m e aplicam as reg~ da edificaçª-.9, sobrevém, com efeito, um ticos de Gallisforma ~ãq soluções t ransformáveis, cujo valor
episódio Ciiriosõ. Nos locais onde se apronta para construir um exemplar, longe de situar-se em sua morfologia e sua função
porto, é descoberto, num cofre enterrado, um livro de ouro onde social, reside muito mais no procedimento e na imaginação cria·
um rei desnparecido lega à posteridnde a planta e o modo de orga- dora de seu (s) conceptor(es). É por isso q ue, apesar dos traços
nização da cidnde de Gallisforma, que outrora ocupava o sítio e
utópicos eertos111, o episódio do livro de ouro não pode ser
fora concebida de maneira exemplar. Os dois protagonistas, até
então propensos a aplicar as regras de Alberti, doravante vão
tomar como f!!~lo Gallisforma, sua plan~a e S)las instituições. 107. Idem. O próprio arquiteto não receia as adições c invenções
"Eu a quero doravante exatamente como está descrita no livro de sua lavra (idem, p. 192).
de ouro [ ... J e da mesma maneira no caso de todas as outras 188. Aliás, é por isso que o rei defunto transmite através de uma
construções de que trata o livro. Não devem ser de outra fonna", planta a Iembranca de uma obra morta e que ele sabia estar fadada
-à destruição (idem, p. 184).
diz o príncipe, falando da cidade portuária que encomenda a seü 109. Idem, pp. 282-285. Essa descrição dn prisüo 6 quo levou, sem
arquiteto106. Encontramo-nos, pois, aqui frente a essa tE-Odeliz~- dúvida, R. KLEIN a atribuir a Filareto t1ma "inupçüo ele fantasmas
esquizóides e sádicos" (op. cit., p. 312) . Entretanto, a esqulzoidla de
103. Quer seja interpretado classicamente como A. VAN GENNEP, Filareto nos parece discutível.
ou orn termos de religião como, mais recentemente, C. GAIGNEBET 110. Não há, em todo o texto, qualquer cdtico, m as duas modestas
(J,u C:anwval, P'<Lris. Payot, 1974). Cf. igualmente La Mort des pays de reservas, formuladas na linguagem dn denegação, pp. 286 e 2R7. Não
C OC(IfJIW, o brn coletiva publicada sob a direção de J. DELUMEAU, Paris, podemos concordar com a afirmaçfLO de Klein, para quem "o arquiteto
l'ubllcntlonfl do In Sorbonne, 1976. se torna legislador" (Op. cit., p. 312).
ltH . Cf., prtrllculnrrnente, L. FIRPO, "La città ideale dei Filarete", 111. No plano da forma, nota-se uma curiosa mudança de tempo
In Stml'll tn momor1a ãe Gioele Solari, Turim, 1954, e R. KLEIN, La (op. cit., p. 248) quando o arquiteto, que, na explicação que fornece da
Forma ui. l'IIII.OUI(l!blc, Paris, Gallimard, 1970, Cap. XIII: "L'urbanism€ maneira como se servirá dos desenhos· do livro de ouro, usou até
utoplotou d(l ll'll!oll'lll.., !l Valentin Andreae". então o futuro, passa de repente a empregar o presente .do incticat~vo,
105. cr. l ntl'll, Cnp. 1. e se põe a descrever a cidade projetada como se ela eshvesse efetlva-
106. 2'rattato d 'an;hU~:c t-ura, t. ~. pp. 216 (cf. infra, p. 191 n. 1). mente rcoli~da e se oferecesse à sua contemplaçao.
42 A RI!XiRA E O MODELO 0:1 'I'Jl:XTOS SOBRE A ARQUITETURA E SOBRE A CIDADE 43

classificado entre as utopias. Ver-~e-á mais adiante112 a função c, J1i • l'll lrc os espaços e ns instituições não é nova nem contesta-
que lhe cubc no tratado de Filareto. ll'itlu . A cd tica está ausente de uma representação que, em luga1
Ademais, c com boa razão, pode-se descobrir aí a origem de uto pia, propõe o tipo ideal da cidade medieval.
<!_c um gênero que prosperou durante o s~culo_XVI. c que ·a lin- Na Itália, e particularmente no final desse século, a ordem
guagem dos historiadores convert«, erroneamente em sinônimo idcul não pode mai.s ser outra senão a clássica, mas à imagem
de utopia 113: a "cidade ideaF do arquiteto,- a;sim chamada,
da cidade que apresentam as seqüências de desenhos de Vas:ui,
desde o século XVI, por alguns de seus p romotores. Trata-se
o jovem117, e de Ammanati118 não é mais crítica ou subversiva119
calão de proposições mais ou menos bem concatenadas, nas quais
que a de D ür er, e apresenta muito menos traços utópicos. No
o aparato teórico e mesmo textual desaparece diante de uma des-
crição icônica cujo valor é, explicitamente, incitativo e não- miíximo, nota-se em Vasari, o Jovem, a idéia dt: que a cidade é
normativo. Igualmente desprovidas de subversividade e de espí- um objeto total e a atenção dada ao tipo de espaço cuja emergên-
).'Íto crítico, essas cidades ideais apresentam variantes onde a refe- cia a utopia contribuirá para preparar e que, bem mais tarde,
rência das imagens às instituições e pessoas é mais ou menos lerá o nome de alojamento social.
frouxa, e onde o texto ocupa, em relação à figuração, um lugar ~o conformismo dessas "cidades ideais", que na verdade
mais ou menos limitado, podendo mesmo reduzir-se a simples n~o passam de tipos ideais, sfntese de uma ordem tradicional ou
lendas. - em curso de constituição, opõe-se ainda o anticonformismo da
Sem sentir qualquer necessidade de explicar-se Albert visão urbana dt: Leonardo da Vinci. Uma dúzia de desenhos
Dürer_ inseriu, assim, no meio de seu manual de fortif'Ícaçãoll4 magistrais, recheados de comentários lapidares, e algumas obser-
(que freqüentemente passa por tratado), - o plano comentado de vações esparsas dos Quaderni deram origem a abundantes
uma cidade ideal fortificada. Que o quadro construído constitui comentários12Ó e a interpretação que não hesitaram em transfor-
um dispositivo inigualável para o estabelecimento e ordenação mar esses fragmentos em cidade idenll21. De nossa parte, levando
das instituições e dos homens é visível imediatamente a partir
em conta o rigor que lhes confere o engenheiro e o anti-humanis!
da grande projeção geométrica de elementos quadrados e retan-
mol22 que lhes empresta o filósofo, veríamos aí, de bom grado,
gulares, modulados, que Düre~ encheu de letras e algarismos. Esse
postulado básico da utopia é expresso com a força de uma profis- a primeira "visão" de uma futurologia urbana.
são-de-fé na distribuição espacial das condições e dos offcios115.
Mais, embora a praça-forte não nomeada de Dürer não esteja
integrada a qualquer narrativa [ - 2 ] e o auto r comece, como 117. La Città ideale di Giorgio Vasari il giovane, Roma, Officina
nos tratados, por explicar como lhe escolher o sítio, dispor-lhe Edizioni, 1970. V. Stefanelli !oi o primeiro a publicar esse conjunto de
as muralhas, q ue atitudes programáticas e metodológicas adotãr setenta desenhos come!ltados e antecedidos de um !ndice e de um curto
prefácio, desenhos que o autor reunira sob o t!tuld de " Città ideale del
para a sua realização, ela não deixa entretanto de ser ao mesmo Cav.re Giorgio Vasari, inventata e disegnata l'anno 1598". Na dedica-
tempo descrita como um_ objeto real. [ + .l.]ll( Mas semelhantes tória de seu livro, Vaso.ri indica que apresenta "plantas e altos-relevos
analogias não devem dissimular, que, na cidade düreriana, a rela- que mostram, parte por parte, as coisas que são necessárias fa~er numa
cidade ao mesmo tempo bela e bem ordenada".
118. La Ctttà, appunti per w~ trattato, de BARTOLOMEO AMMA·
112. Pp. 191 e ss. NATI, Roma, Officina Edizionl, 1070. No cnso de Ammanati, o título
113. Cf. L. FIRPO, op. cit., e R. KLEIN, op. cit., p. 313, "a cidade de Città que reúne um conjunto heterogêneo de fragmentos textuais e
ideal ou utópica.". de desenhos, executados em Florença no último terço do século XVI,
114. Etlíche undemcht zu Befestigu1YJ der Stett, Schloss und não deve induzir a crer numa visão sist.crml.llcn, orgnnlzadn. O respon-
Flecker , Nuremberg, 1527; trad . fr.: I nstr-oLction sur la jortification des sável por essa edição crit.ica, M. Fossi, r econhcco flUO nela nüo se en-
vllles, bourgs et clu1teaux, avec Introduction historique et crittque por contra qualquer discurso politico ou filosófl co o flU C "a obra teórica de
11. RATIIEAU, Paris, Tanera, 1870. Ammanati se revela afinal muito tênue" ( 07J. cit .. Introdução, p. 20).
115. "Palácio dos senhor es" em tomo dos paços do colll!elho casas 110. Esse ponto é visto muito bem por V. STEFANELLI, op. cit.,
" drw J}Nl.<:On s cujos negócios levam a uma vida tranqüila" em v~lta da p . 39.
IJtroJn. <·nNns dos ferreiros, soldadores, torneiros e operários em metais 120. Encontraremos as referências m uls interessantes in E. GARIN,
uu1 l o mo (hL Cundição ~te. (op. cit., p. 51). "La città in Leonardo", Lettura Vin clana XI, Florença, G. Barbera.
I I O. " '~ J)na~ Jso cscollter uma planfcie !értll [ ... l O local do castelo 1973; cf. a nota seguinte.
devo tMII' clt•tllHlltLdO J • • • J É conveniente situar em primeiro lugar a igreja 121. E . Garin mostra mnlto bem o caráter falacioso dessa desig·
!; .. J Oupolr1 ~ 1 11 lf{r·nja ocupamo-nos das funções"; a que se contrapõe: nação ("La città .. .", p. 13). Além disso, ele se insurge contra qualquer
assimilação da obr a "urbo.nistlcn" do Leonardo à utopia (idem, p. 15).
o Ctii!Lulo <1 lrH<'ll'l\montc construido num quadrado [. . . J Do outro lado
fi~a a cum I . .. I A llhotiL situada em frente do paço do conselho é par· 122. Para o desenvolvimento ttesse conceito, cf. E. "GARIN, i dem,
blhada POl' oito OlUIUfJ Jauu!s ( . .. J" <op. cit., pp. 40-51). CO grifo é nosso.] pp. 17-18.
44 A R.EGRA E O MODEW
()H 'l'.U:X'l'OS SOBRE A ARQUITETURA E SOBRE A CIDADE 45

2.2. Depois da UtopiD 2 . 1. De Théleme a Clarens

M on1~ é, po rt~m to, o inovador: antes_ dele nenhum autor 1 ~111 contrapartida, nossa atenção se voltará para dois tipos
Coc rcveu um texto que apresente os sete traços discriminativos dw fwxtos cujo distanciamento, às vezes ligeiro, mas sempre irre-
du catego ria de que é o criador. E somente depoi~ da publicação - dufívcl, em relação à utopia, dará ocasião d~ avaliar o sentido
de: lJ lopia é que se coloca, em sua amplitude, o problema da G a importância que têm, respectivamente, primeiro o traço [5],

di.~criminac,:ão entre utopias verdadeiras e falsas: o atrativo exer- depois o tJª-ÇQ_ll,J_.


cido por esse arquétipo, no plano de sua forma como de seu Do primeiro tipo, o exemplo sem dúvida mais antigo é dado
conte údo, vai susdtar grande número de variantes e de demar- pelo capítulo de Gargantua consagrado a Théleme, e que há pouco
cações que dissociam os sete traços e os recombinam de todas fo i tomado como pg adigma da utopia:3P. ~ bem verdade que
as maneiras possíveis. Rebelais leu \forus, que ele situa nominalmente em Utopia a
Não iremos nos deter nos tipos extremo~. caracterizados uns pátria de Pantagruell31, e que o vento da crítica social sopra em
pela riqueza, outros pela pobreza de seus traços utópicos: viagens toda a sua obra. Também é verdade que a abadia fundada por
f!llll:íslicasl23 que retêm apenas as marcas formais da utopia f rei Jean graças à generosidade de Gargantua é uma sociedade
I.+ I, + 2, + 3, + 6], para aplicá-las em outra substância; crí- e um espaço cuja criação resulta de uma crítica da sociedade
ticas soctats não acompanhadas de modelos [- 3, - 4 contemporânea . Mas nem por isso Thélcmc constitui um modelo.
em parte, - 5, - 6, - 7]124; modelos sem crítica [ - 4] que
Ela difere da utopia de Morus por duap razões opostas: poJ en-
podem ser não-especializados125, ou especializados, com [ + 5]
ou sem [- 5]126 modelo espacial; crítica e modelo sem espaço
raizar-se numa mentalidade mais arcaica e por inspirar-se em
[ - 3]127, . idéias mais modernas.
Não nos eslenJerc:mos muito sobre as "simulações" onde o De um lado, a abadia pertence à tradição dos "mundos às
condicional substitt1i o indicativo [- 3] e que, tão logo se inte- avessas". Já não é u casu Jt: u dia substituir a noite, mas " foi
gre nelas o traço [4 ], se _aproximam muito mais da utopia do decretado que lá não haveria relógios nem quadrantes ... "132,
que a simulação plat~nica. É o caso da Republica Immaginaria Da mesma forma, é o escárnio que faz limpar com cuidado os
de L. Agostini, que seu mais recente editor-cc;-nslâerá "a primeíra locais que religiosos ocuparam em T héleme. Quanto ao refina-
utopia p6s-triaentina"l28. É o caso, mais tarde, do Androgra- mento do vestuário dos thelemitas, evoca muito bem "as vesti-
phe129 onde N . E. Rétif de la Bretonne desenvolve um projeto a mentas em profusão" do velho poema citado mais adiante. Em
que Fourier recorrerá para seu Falanstélio. formas mais· sofisticadas que em Pasárgada, o absurdo substituiu·

123. S . GODWIN, The 111an in the Moone, or a Discourse oj a


Voyage thithet; Londres, 1618; CYRANO DE BERGERAC, Histoire CO·
m iquP. des Etats et Empires de la Zune et du solei/, Paris, 1657. caminho entre a ficção científica. e a viagem fantástica, de modo algum
124. J. HALL. Mundus aiter, Hanover, l607. uma utopia, L'Andrographe ou les idées d'un honnête-homme sur un
projet de réglement propose à toute.~ l~s natinn s de l ' Europe pour o pé·
12j, F. PATRIZI, La città. felice, Veneza, 1553.
rer une r é{orme générale des moeurs et par elle le b onlzeur du genre
126. J. HARRINGTON, The Commonwealth of Oceana, Londres, humain L . .l , Haia, Paris, 1782, inspirado, como mais tarde o pxojeto
1656. (Entretanto, esta obra contém poucas indicações espaciais.)
1?.7. M. DE LISTONAI, 'Le Voyageur philosophe, Amsterdam, 1761;
de Fourier, pela idéia de oferecer um modelo completo que permita
L. HOLBERG, Nicolai K!imií iter subterraneum L .. l, Copenhague, 1741. tentar uma "experiência crucial" (op. cit., p. 13). contém apenas três
128. L. Agostini escreveu, entre 1583 e 1590, um di~logo que ele páginas deàicadas ao modelo espacial (pp. 107-109 ), mns algumas diS· .
intitulou L'lnfimto, cujas três primeiras partes permaneceram inéditas, posições serão retomadas por Fourier: ::;cgrct(uÇt(O tll(S gerações de
mns cuja quarta parte foi divulgada, de maneira incompleta, pela pri·
acordo com o andar cios alojamentos, jovens em <..:imu o velhos embaixo,
moll·n vez por C. CURCIO in Utopisti e ri{ormatori sociali del Cinqua- segregação profissional.
(;<'111.<>: 11 . F'. Doni, U. Foglietta, F. Patrizi, Bolonha, Zanichelli, 1941, pp.
130. Por A. GLUCKSM:ANN em Lcs Ma'i.lres per1.~eurs, Paris, Gras·
l 'lli ;!{12, 1101J o título de Republica Immaginaria. O mesmo titulo fo! re-
set, 1977.
i,(li>IIHI<I J)IH' J.. FIRPO em sua edição crítiea completa dessa 4.• parte, 131. Pantagruel, Caps. II, VIII, IX. Touuvia, cabe notar que, na se·
'l'tll'irll, 1/.untolln, 1Dei7. Entre uma série de "remédios" propostos para qüência de sua obra, Rabelais não mnis leva em conta essa localização,
1\ om· r'!l() <J {ht:; cllvorsas perversões sociais, Agostini concede lugar im-
V. L. Saulnier ("L'utopie en Frtmco, Morus et Rabelais", in Les Utopies ·
I)Ortnnl,o a 1 il tii)ONllivu~ ~>o:;paciais relativos, em particular, à morada do~ à la Renaissance, Coll. Internationule de 1'Université libre de Bruxelles,
l u~ CIIVOl'Utr((IOII (OJ). cit., pp. 84-85). ~ 1961, Paris, PUF, 1963) observa com pertinência que a carta de Gar·
UW. Htíl,lr, i':(Jr·ai1110nl.o, é classificado entre os utopistas por haver gantua a Pantagruel do Quar to L ivro, Cap. III, não é . mais datada de
escrito La IH~I'rlltlUJrU: ltnBtmle par un homme volant, 1781 (sem nome Utopia, mas "de tua casa paterna".
de autor nom cio ntll l.or'r\), q ue constitui um livro embaciado, a meio 132. RAEfELAIS, Oeuvr es completes, Paris, Seu!!, 1913, p. 191.
46 A REGRA E O MODELO OS TEXTOS SOBRE A ARQUITETURA E SOBRE A CIDADE 47

do o fanttísli co 1:t3, Thélcme permite ainda uma transgressão tilui çiio que subordina sua expressão ao respeito unicamente das
espo rádica da ordem es tabelecida: ela não está situada num alhu- liberdades coletivas139, o desejo individual não é, no Mundo de
n.:~ mi::> lcr io::>o, ma_~. aqu_i mesmo, às margens do Loirel34 longe Mt.:rcúrio, legitimado por qualquer instituição social : não existe
de sen.:m seus pns wneu os, seus habitantes apenas passam por casamento140, não há circulação de dinheiro, nenhum código rege
lú: é uma parudn L- 6, - 7] , o vestuário e a alimentação. E a arquitetura, longe de ser um ins-
Por outro lado, a liperdade yu~:: reina emJhéleme anuncia trumento ou dispositivo de controle, é apenas o modo mais exal-
a q ue ~crá dcfinicl a por Rousseau e Kant no século XVIII, e -que tante de expressão pessoal, incessantemente renovado por uma
a uto pta recusa para sempre135, A subversão thclcmiana não se destruição voluntária: " A grande fadlidade de construir essas .
faz em proveito de novas (boas) instituições, ma:s <.la ausência de casas, cujo material está à disposição de todos, faz com que os
in:sliluições. O:s empregos do tempo são negativos. Ao contrário habitantes freqüentemente construam novas, para ter o prazer
d,o~ espaços utópicos que encerram, fixam e padronizam, o pa- da variedade. Eles pedem a uma salamandra de seus amigos que
htc to que tem o nome de abadia suprime as muralhas e acolhe a lhes faca o favor de destruir sua casa"l41.
diferença. O famoso "faze o que quiseres" não dissimula mais o A, exuberância arquitetônica de Théleme e do Mundo de
ulhu o niviclcn te de Gargantua do que são totalitários os impera- Mercúrio pode ser dicifrada como o meio, positivo, de exaltar e
ti vos " bebamos", "gozemos", " vamos farrear no campo". Pressu- corroborar a liberdade individual. Podemos ver aí também o meio,
põem um verdadeiro contrato social, c que entre os thelemitas a negativo, de recusar a coerção institucional através do espaço;
única lei reinante é a do coração. Na comunidade de Tours 0 assume então o mesmo significado que a ausência de arquitetura
consenso se realiza assim diretamente, sem coerção institucio~al e de todo o quadro construído na Dé.ti.ca de Féne}Qn~ Não mais
externa, em desprezo de todo regulador espacial. utopia que a abadia de Frei Jean, a Bética propõe apenas uma
A arquitetura de Théleme também não nos deve enganar. politologia negativa. Nela não se encontra nem poder político, nem
" Cem ve~es mais magnifica" que Chambord e Chantillyl36, com propriedade privada, nem dinheiro. Elimina, ela também, toda ins-
suas goterras douradas, suas escadas de pórfiro c mármore serpen- tituição positiva. E, já q ue o ascetismo substitui na Dética o hedo-
tina, "Suas galerias pintadas de afrescos maravilhoso:s e seus 9.332 nismo rabelaisiano, é no desnudamento total, e nílo no frenesi das
apartamentos de luxo refinado, o castelo dos thelemitas só se formas, que se manifes ta a recusa de um condicionamento pe lo
presta ao prazer e ao deleite dos habitantes, não exerce qualquer espaço.
controle sobre seu comportamento, em nada participa do funcio- Na base da utopia, instituições e espaços-modelo e modela-
namento específico da abadia137 yue repousa unicamente na con- dores. Na base de Théleme, como da Bética, o trabalho interior
versão das mentalidades. das almas. Por sua recusa da coerção externa, Théleme :mtecipa
_Dois sécu los mais tarde, no quadro do aparato formal da Clarens143. Reportar-se à pequena comunidade imaginada por
uloptu L+ l l [+ 2.1 [ + 3] e no campo temático das " luzes" a
Retaliou clu Moude de Mercure138 descreve a mesma relação de
uma sociedadL_'d~ferente" com_ um espaço que lhe sérvc igual- 139. O monarca de Mercúrio só promulga as leis depois de permitir
mente para expenmentar sua liberdade. Legitimado pela Cons- a seus súditos que "representem suas necessidades ou expliquem seus
desejos", c o. mais fundamental é estabelecida sob :\ forma de juramento:
"Juro deixar às pessoas L . . J o gozo total de s ua liuerdade, de seus
bens, de seus gostos, de seus di&:ursos e de suas ações: contanto que
1~3. A : GLUCKSMANN, baseado na exper iência de Panurge, carece com isso não sofra o bem geral" (op. cit., pp. 2G e 27).
c.la dimensao humorística e derr156ria que caracteriza a obra telemita 140. Os casamentos não são duradouros, nem indissociáveis. Devem
quando invoca suas "contra-regras tão minuciosas simeLrü:a.mtmte quan. satisfazer "nosso "'OSto insuperável pela diversidade: esse desejo de
to as que elas levantam" (op. cit., p. 20). tudo conhecer e de gozar incessantemente de novos objetos" (idem,
1:14. Gargantua, ed. cit., p. 190. p . 108).
1:15. Idem, pp, 202, 203. "1'oda a sua vida é empregada não por leis 141. 1 Idem, p. 144. O maLerial em qucslf•o é uma pedra - preciosa
I I ollll'l -'<'gl.lndo seu querer ou livre-arbítrio 1. .. 1 bebem, trabalham mole, que endurece após haver recebido forma. Esta indicação, bem
tloH " u'"' q tumdo } hes vem o desejo." Trata-se aqui de um " desejo" con: como o detalhe da salamandra, mosLrnm o papel que desempenha o
1Hlloo11n Plllot m~ao e um implícito contrato social. [0 grifo é nosso.] fantástico numa obra que, como Tl1élõmc, mas tlellberadamente e sem
j ,lfl / f/IItH , jl)l. 194 e SS.
ingenuidade, assume o c;aminho do mundo às avessas".
li'/ Mtt ltt, 1111 111 vez nossa análise se afasta da de A. Glucksmo.nn, 142. "Todas as artes que concemem à arquitetura são inúteis [pa ra
111111 "''"" ' uv" l'lloll(uHu ootno uma "arquitetura anônima" (op. cit., p . 23) os habitantes da Bétical; porque eles nunca constroem casas [ . . . l"
""'' ""' u llt~ lon•" t<o\iotl tx·n~ionistas. Théleme, uma das ma is belas arqui- (T élémaque, liv. VII, Paris, Garnier-Plammaríon, eâição apresentada
IIIIIII'IIH lt ollll!ilulolit rl lho lltornl:ura, é totalmente o oposto. por J.-L. Goré, 1968, pp. 206-20'1).
l:tll, flt •otHIH II, 1'/líU. L'lllllicado sem o nome do autor, que é o 143. Residência de Julie e Wolmar, , in J.·J. ROUSSEAU, La Nou·
l'llvtllul''" tlu llo\tllunu. velle Héloise, Paris, 1761.
48 A R EGRA E O MODELO OS TEXTOS SOBRE A ARQUITETURA E SOBRE A CIDADE

Rousseau não dt.:ixu dc lançar luzes sobre a que Rabelais conce- medida dos progressos da ciência e _graças às relações secretas
beu. Isolada, Hl'w;tada das sociedades que a poderiam contaminar, que os sábios da "casa de Salomão" mantêm no exterior da ilha,
~c~provida de rcgrn >, a tebaida fundada por Wolmar é um lugar com QJ.11w1do inteiro119. O que dt:swbrem aí os visitantes postos
undc o lrab<li ho niío é conquista da natureza, mas auto-recuperação em cena por Bacon não representa, pois, senão u.!D-estado ótimo,
i11tcriorl11, undc pode assim impera r a lei do coração que se chama temporário, tomado num instante preciso, e não um modelQ. A
lihc1d<!dc, onde se estabelece o consenso graças a uma comunica- ousênçia do traço [7] é, na ficção baconiana, o indicador deter·
c,;ao diréla c vivo, pela voz e, melhor ainda, pelo contato silen- mh~ante da falta de uma verdaúeira mudelização [- 4]; desem-
do~oJ'15, Ccrl<lmente, o silêncio não reina em Théleme, nem a penha o mesmo papel que a ausência de [5] nos textos prece·
Lrau~ l\:rGnt;ia úos espaçosl46. No entanto, expresso pelos meios dentes.
cOI Iccptuais de que dispunha Rabelais, o objetivo é o mesmo de O espaço construído não tem, para Bacon, a mesma carga
Clarcns: a instauração, à custa de um contrato tácito das cons- semântica qUt:: para Rabelais, Fénelon ou Béthune. Ele não o
t;iências, de uma liberdade estrauha às instituições e às construções mostra. Comenta-se em mencionar a suntuosidade da arquitetura
da ut opia. LiberdHrlc cujo caníter ilusório e precário tanto Rabe- do~§.tica em Bensalem, a capital da ilha, e em enumerar l!.QYaS
lais como .Rousseau percebem e temem, e cujo realização é con- categorias tipológicas de construção : "câmaras de saúde", "casas
dicionada 11ão por espaços, mas por tempos. Clarens é uma estada de descobertas", " casas de perfumes", " casas de máquinas",
tc111poriíria cuja destinação só se realiza de todu na festa (al- " torres de insolação e refrigeração", donde se conclui que elas não·
ddi)117; TMlt:me é um local de passagem e sua arquitetura de têm maiores razões de ser modelos que us atividades que abrigam.
f csiH , que toca ao mesmo tempo o absurdo dos mundos às avessas Urbana, mas, para empregar a terminologia de R. Klein, despro·
c a razão dos castelos principescos de sua época, é uma antinomia vida de urbanbmul50, a Nova Atlantis não é uma utopia mas
Ju arquitetura utópica, modelar e maníaca ilustradas pelo Falans- umà visãg_otimista de antecipação. Pr~figura as felizes anteci·
lério. pações urbanasl5l que a euforia científica do final do século
XIX e começo do século XX multiplicará. ames de chegar o
lt:mpo da distopia e de suas ciditdes de apocalipse.
2.4. Da Nova Atlantis à Antecipação Científica Contemporânea A ficção científica152, da qual os especialistas não conseguem
precisar nem as origens no tempo, nem as fronteiras nu espaço
Paralelamente a essas falsas utopias que demonstram em ne· textual, conta algumas verdadeiras utopias. Porém, à medida que
gativo, e a importi\ncia do modelo espacial na verdade, e como este o século XX avança, ela parece invadida pela distopia, nn qual
é parte operante de um sistema que exclui a liberdade individual, a outra sociedade, atingida por outro espaço-tempo, não é mais
um segundo tipo de texto esclarece, também em negativo, a recusa
ut ópica da temporalidade. llustrá-lo-cmos com a Nuva Atlantis;4o
dc Francis Bacou, que fui tomada por modelo de utopia tantas 149. A cada doze anos, partem dois barcos tendo a bordo três
vezes quanto Thé h~me e a Bética. conirades da casa de Salomão, encarregados "de observar principal·
Os traços [ 1], [2], [3), [4] , [6~ estão presentes na descri- mente tudo o que diz respeito às ciências, às artes, às manuf~turos c
às invençOes de todo o universo" e de trazer "os livros, instrumentos e
ção dessa república dos sábios. Mas perct:bt:-se que, a despeito amostras suscetíveis de interessar" aos hal.Jilaules du ilha. Segundo a
ua~ intt:nções de seu fgl!_dador, Salo_m~, a Nova Atlântida está edição latina de 162'7, in Sylva Sylvarum, Londr es.
fll'CSa à COrrente da história e não pára de Se transformar na 150. Op. cit., p. 323, n. 2. Para R. Klein, urbnnismo é sinônimo de
utopia em todo o capítulo citado.
151. Cf., por exemplo, P . MANTF.GAZA, L 'auuo 3000, Milfw, Fr·atellJ
Treves, 1897. Esta antecipação El particulnrmcntu not1ívol no que' con.
J 'l1 . "O mal é o exterior e é a paixão do exterior (. .. l É entre os
cerne ao papel da informação e dos media, o (l or~1 11 1lw~iiu da medicina
"'n•u• do homem e não em seu coração que tudo degenera" (J. STARO· social. ~mo na de Bacon, o saber e a ciOncin ocupam aqui o primeiro
l~gar e não se encontra mais modclhmçlio. A urquitetura da capital,
JIIN: uu , r.a Transparence et l 'Obstacle, Paris, Plon. 1967, p. 23). Andropoli, é " btzarra e svartattsstma" (Op clt., p. 86). Em matérja de
1•111. 1111'111, p, 188.
1•111, Vnllnrmnnq nma vez mais ao notável comentário de J . Staro· alojamento, soluções muito diversa:; c dl:l Lutlus os preços são real!·
11111" hl '"'"'" 11 .lti('ILI de "um espaço totalmente livre e vazio em Rous-
zá.veis quase instantaneamente r;;rnçns u um material Uquido, análogo
th>l\11" ( /t llll/1' 1), 11f))' ao cimento armado, que se corto no local (idem, p. B7).
152. Para a bibliografia, reportar-nos-emas a Y. RIO, Science-fic-
1•1'1 I 'r 11 n.· P•••'l.o de La Nouvelle Héloise, liv. VII, com a descri·
1Jil 11 1111 "•'1111111111 • ~tl ln c l fl ele festa" em que se encontram Wolmar, seus tion et Urbanisme, Struct1tre spat iale et moctele de ville dans la lit·
t érature conjecturale moderne, tese de doutoramento de terceiro ciclo,
l11lnp1•!11"1 n 1111 t 'III IIIIO III'~cs de Clarens. Cf. também Confessions, Paris, EPHE, 19'78 (inédito), onde se encontrarão indicações interessantes,
U lll'lllul' )•'ll•lllllllillOII , l lll o'l, t I, p. 457,
1411. Pui) III'IIUnll 1)1\: illllllll, om 1627. mas onde, infelizmente, não se faz distinção entre utopia e distopia.
A REGRA E O MODELO OS TEXTOS SOBRE .A ARQUITETURA E SOBRE A CIDADE 1'õl
50

um modelo e um duplo às avessas da sociedade a que pertence o das instituições-modelo, cujo funcionamento e permanência ele
autor, mas a cari catura desta, urna imagem exasperada que in- condiciona. Entretanto, as casas ·l:oletiva::; da terra austral tam-
voca a tomada de consciência crítica, e não veicula qualquer in- bém possuem uma qimensão maravilhosa. São construídas de pe-
tenção modclizadora. Da matinal e maravilhosa Erewhon153 de dras preciosas cujo valor é simbólico159 • E esse apelo ao fantástico
S. Butlcr aos desertos urbanos de R. Bradbury ou à cidade em se deve ao fato de que o modelo societário da Terra Austral é
re ticulado154 de J. Brunner, passando pelo Admirável Mundo Novo inapropriável. Com efeito, a base da diferença entre seus habitan-
de Huxley, seria interessante estudar a parte que toca, na gênese tes e os europeus não é cultural, mas biológica: os australenses
de tais visões, à observação dos processos reais de urbanização e, são hermafroditasl60, Essa particularidade é que explica a ausência;
indiretamente, à~ utopias e às teorias de urbanismo. A distopia, entre eles, de toda p aixão destrutiva. A ordem da Terra Austral
até mesmo em suas origens, poderia muito bem, revelar-se uma é totalmente determinada por uma condição biológica mítica.
antiutopia . Quando o herói do livro acaba por ser expulso por aqueles mes-
mos que o acolheram, ele não traz para a Europa um modelo
re~lizável. .Mei.o neurótical61, meio filos6fica162, a construção de
2.5. Utopias Retóricas F~1~y se .msp1ra no fantasma de um estado biológico perdido. A
cntica. social e a reflexão. política são secundárias numa obra que
Se o critério dos sete traços pertinentes permitiu situar sem assumm ~ forma da utopia para abordar poe ticamente os proble-
dificuldade Théleme, a Bética, o Mundo de Mercúrio e Bensalem mas suscitados pelo terna arcaico do hermafroditismo original.
numa zona fronteiriça, mas fora do campo da utopia, outros textos
opõem certa resistência à análise discriminativa. Propomos chamar , 1?9. O bairro é composto de três tipos h ierarquizados de casa.a
de utopias retóricas um conjunto de escritos que apresentam os colet1vas. O Hab ("casa de elevação") é construído " de pedras diáfa nas
sete traços requeridos, mas são concebidos à maneira de um jogo. e transparentes que poderíamos comparar ao nosso mais fino cristal
de r.ocha .desde que lhe acrescentássemos algumas figuras naturais
Em seu caso, trata-se de vestir à maneira utópica, para torná-la lnestlmáveJs de azul, vermelho, verde e amarelo-dourado que ele contém
mais agradável, uma reflexão social e política desprovida de ver- com uma mistura que f orma ora pessoas humanas, ora paisagens
dadeira finalidade rnode!izadora. Falta que se trai geralmente pelo [. .. ]". O Heb ("casa de educação") é construído "inteiramente de um
material comparável ao jaspe que i or ma a ornamentação do Hab".
caráter não-sistemático da relação entre a sociedade criticada e a Somente seu teto é t ranslúcido c fornece uma ilwninação zenital. o
outra sociedade, e por um certo tom nebuloso na evocação do H2eb será de mármore branco com janelas de cristal ( op. cit., pp.
espaço-modelo. 65 e ss.).
La 'Terra austrafel56 de G . de Foigny é, sem dúvida, a mais 160. "Todos os austr a!enses têm os dois sexos: e se acontece de
u~a criança nascer com wn só, eles a sufocam como a um monstro"
insól ita das utopias retóricas. Embora ornando-a de invenções (7.dem, p. 78) . O hermafrodita realiza a nautreza humana "racional
picantes, ela parece seguir rigorosamen te o esquema de Morus. ~onachona e sem paixão" (idem, p. 97) . Uma das conseqüências mai~
Mesma relação do autor com a testemunha-viajante, mesma mise m teressantes dessa condição é que a noção de pai é desconhecida aos
en scene, mesmo papel gerador de uma crítica acerbal57, mesma australenses. "Eu. me via forçado a acreditar , p rossegue o viajante, que
esse grande poder que o l'nacho usurpara sob re a fêmea e ra mais uma
insistência na padronização das instituiçõesL18 e dos espaços, idên- espécie de tirania d o que conduta de justiça" (id em, p. !J5).
ti~.;a prioridade na descrição do quadro construído com relação à 161. Dotado de um material obsessional própr io ao autor: seu
pon~·voz , u viajante que diz "eu" no texto, r eveln tardiamente, quase
no f1m de seu relato, que ele p róp rio é he rmofm ditu e só foi admitido
153 . Londres, Trübner. 1872. na 'rerra Austral devido o. essa condição: o h er mafroditis mo p ermite
154. La ville est un échiquier (The Squares ot the City, 19G4) , que os australenses redU2am ao extremo su os :funções de' nutrição ,
Paris, Calmann-Lévy, 1973. excreção, p rocriação, julgadas igualmente indecoutos ( Os impulsos de
155. Londres, Chatto and Windus, 1923. morte dos australenses são combatidos peln obl'l finÇt'\o de viver até os
lfifl. La T erre australe cannue, c'est·à-dire la description de ce cem an6s e de p rocr iar uma vez na vidn); enfim, pássa ros gigantes,
J)(I)J~ l nccnmu 1usqu'ici, de ses moeurs et de ~ es coutumes, par Monsieur inteligentes, ferozes mas domáveis, povoam a ilha, com os quais o
1Jrul<!lt1' I ... ·r t·édui tes et m ises en lumiere ·par les soins et la conduite herói m antém uma relação ambivalcnte e verdadeiramente sexual.
!11· li. ri•· F., V1~nnc s, 1076. 162. A condição dos australenses per mit e que Sadeur coloque os
J!l'l. O her ói é "forçado a contínuas comparações daquilo que problemas da origem da vida (e de sua fabricação artificial), da agres·
érnmo11 om t·olttÇfto àquilo [que ele vial" (op. cit , p. 110). sividade, do impacto exer cido sobre o psiquismo e o comportamento
lúfl. O llOl'Lit-vo~ do autor observa a "admirável uniformidade de pelas estruturas familiais, do papel da mulhe r na sociedade. Este
lfng\11\H, llu coat wnoR, de construções e de cultura da terra que se en· questionamento, que se afasta n itidamente da forma de Morus, ante.
contrfi noxLo f(l'llll ( fO pttfs. 1!! S!tiiciente conhecer um bairro para fazer cipa em muitos aspt;ctos o de S. Butler. Aliás, E rewhon não é mais
um tufzo do totLos o.~ outros" (idem, p. 63). ro grito é nosso.] Para completamente distópico do que é p erfeitamente eutópica a Terra Aus·
Morus, "quem couho ~ o umn cidade, conl1ece a todas". trai.
52 A REGRA E O MODELO OS TEXTOS SOBRE A ARQUITETURA E SOBRE A CIDADE 53

Mns, no caso, trata-se de uma exceção e, no mais das vezes, Alguns exemplos permitiram evocar sucessivamente essas
é a uma simples reflexão sobre as instituições sociais que se rcs· duas categorias e suas funções obietivante e valorizante. No pri-
tringe o conteúdo das utopias retóricas cuja acolhida a moda uo meiro caso, quisemos mostrar como o processo objctivante serve
exotismo consagrou ao longo do século XVII[, desde a l!istoire ao projeto instaurador, contribuindo para fazer do espaço cons-
de CalevajaHi:l até a République des Philosophesl64 de Fontenelle, truído um objeto conceptual e para aumentar o peso de suas deno-
passando pelo Royaume de Dumocala165 de Stanislas Lecsinsky. tações. Limitamo-nos, então, a esboçar uma arqueologia, tentando
A evocação dt: ensaios filosóficos tão · bem disfarçados em surpreender o trabalho do texto comentador quando ele vem não
utopias tení mostrado as dificuldades que o esquematismo de nos- de sua fundação e consolidar suas ba::;es. Nu segundo caso, quise-
sa definição provisória pode provocar, mas terá também ilustrado mos mostrar como os comentários avaliativos contribuem para in-
o extraordinário poder de atração do paradigma de Morus. serir a cidade e o construído em redes de interrogações que eles
atribuem aos textos instauradores.
A divisão dos textos comentadores nessas duas categorias foi
3. OS TEXTOS COMENTADORES ditada por conveniências metodológicas. De fato, as duas funções,
objetivante e valorizante, estão quase sempre associadas, mas em
O mundo construído é um objeto estranho. Tão logo é edifi- proveito de uma ou da outra. Ficaremos convencidos do caráter
cado, parece animar-se de umn Yida independente, e, reflexo enig- ar1ificiaJ167 dessa taxionomia se nos reportarmos, por exemplo, aos
múlico de todos os seus poderes, ele exerce sobre os homens um testemunhos que nos deixaram Balzac e Engels sobre a cidade do
fascínio que p rovoca um comentário interminável. século XIX.
Sem dispor de lugar próprio, esse comentário se instalou, . "Muitíssimas vezes me espantei por ver que Balzac goza da
de há muito, por toda parte, em todas as categorias de escritos,
rel igiosos e profanos, científk;us t:: ingênuo::;, verídicos e fantás·
grande glória de observador. Sempre me pareceu queseu
mérito
principal era ser um visionário e visionário apaixorwdo"l68, Cabe
ti'cos. Vamos encontrá-lo já nos textos sagrados, ou nos anais que responder a UIDtdclgi.re_que, para Dalzac, a cidade é ao mesmu
narrom es mitos de fundacão das cidades. I ncansavelmente, esse tempo um objeto de obst::rvação cientffica e de paixão. Preso aos
comentário descreve, defo~ma, reconstrói a .obra edificada dos valores do Antigo · Regime, ele defende a obra urbana da c.ultura
homens. Mas também moraliza, apaixona-se, toma partido pró ou tradicional que é o primeiro a opor ao produtol69 da sociedade
contra a cidade, ou mesmo pró e contra, como na Bíblia onde, industrial c é o primeiro170 a colocar ao técnico o problema da
maravilhosa e fatal, Babel se ergue no horizonte da ambivalência; conservação dos bairros antigos. Mas essa tomada de posição não
onde Babilônia representa o local de todas as iniqüidades e Jeru· o impediu de deixar descrições das cidades de sua época que
sulém aparece como o sfmbolo da cidade de Deus. E ainda, o texto antecipam as da sociologia urbana.
comcn tad or pode reco rrer aos caminhos da hermenêutica, tentai' As pesquisas de Engels sobre Manchester e as cidades in-
pensar o sentido ela edificação: o questionamento do construir por dustrids da Inglaterra vitoriana não são menos precisas, já que
Heidegger 6 aqui exemplar, bt:m como - para citar apt::na::; duis inspiradas pela ideologia inversa, que leva seu autor a romper
nomes - a análise que faz Hegel, na Estética, da função simbó- definitivamente com o mundo pacífico e "vegetativo" da sociedade
lica da arquitetural66,
Nas páginas seguintes, reduzimos drasticamente a diversidade 167. C( The Country and the City, Londres, Chatto and Windus,
dos textos comentadores. Estes só nos podiam dizer respeito por 1973, no qual R. Williams analisa os textos dn litcrnturn inglesa rela·
meio das relações que mantêm com os textos instauradores. Foi tivos à cidade e ao campo e mostra quo, n cada vez, as descrições
aparentemente mais "objetivas" slío n expressão do uma ideologia
por isso que tivemos de nos limitar a obras ocidentais, mas tam- que fecha ao autor certos ângulos do campo ctou o rocnli ~ em excesso
bém consideramos apenas duas categorias. Uma reúne os escritos sobr e o~ros. •
que entendem ou procuram entender a cidade e os edifícios de 168. C. BAUDELAIRE, citado por R. CAILLOIS in "Introdução"
muneirn obje tiva. A outra congrega, inversamente, os que julgam ao Pêre Gortot, Paris, Cluh frn nçnis lln livro, 19!i2.
169. E~a oposição é desenvolvida por ocasião da descrição da
c upn;cinrn o mundo edificado. cidade de Guérande (Béatrix, In Oeuvres completes, Paris, La Pléiade,
1962, t. II, p. ~).
JG:J, () , (l ll horl., 1700 (sem local de publicação). 170. É um dos inventores do. noção de patrimônio. Diante das
Hl1. 011 111.~ / olrc fies Ajaoians (obra póstuma), Genebra, 1778. depredações que sua época cxo,·cio. sobre todo o sistema urbano (que,
Jfi!i. Jo:fll ri'/ lt·u rl' 1111 Rnmpean [sicJ a.vec un insulaire du Royaume na sua compreensão, desaparece 110 mesmo tempo que uma forma de
de D u11tOC:IIIfl, J'/01 (som local de publicação). sociedade) ele se nrrogn n m issiio de ser o "arqueólogo" de um tesouro
166. EslluJllquo, li:ILd . rr., Paris, Aubier, 1944, t. li e t. III, 1.• urbano e~ fase de desaparecimento (cf. Un début dan.s la vie, t. I.
parte. p. 600) .
52 54 A REGRA E O MODELO OS TEXTOS SOBRE A ARQUITETURA E SOBRE A CIDADE 55

pré-industrial e a militar em favor da revolução comunista, e que die175 testemunha essa g8nese düícil. Poder-se-ia datar a entrada
é a o leva a colocar a questão da moradia social, até então ignorada do termo no domínio público a partir do momento em que, na
trin! pelos meios profissionais. _ segunda metade do século XVlll, o plano geométrico, até então
exot H9jc, entretanto, parece operar-se um certa dissociação o único utilizado na figuração prática das fortificações militares,
de C entre os textos comentadores do mundo edificado. Aos poucos ~;limina definitivamente o plano em perspectiva, e fornece da
pa s ~ se constitui um conhecimento científico do objeto urbano e- do cidade uma representação sem exagero, reduzida à objetividade
espaço construído. Depois da ciência da arte cujos prolegômenos da medida e da grandeza em superfície.
utor Hegel estabeleceul71, com a geografia c a sociologia urbÜ-na A cidade concreta, como objeto de comentários escritos ou
sa d a "nova história urbana"172 se interessa. enfim pelos espaços do icônicos, começa por ser uma pessoa. O autor mantém com ela
O t:X passado e para seu estudo desenvolve o arsenal dos métodos quan- uma xelação afetiva que implica seu ser físico e sua extensão
titativos. O computador e os recursos da estatística são postos a_ apenas no plano secundário, em termos mais simbólicos que
serviço da análise de dados, enquanto a teoria da informação, os objetivos. O Liber bergaminus, poema escrito no início do sé-
3. modelos econômicos e mesmo a termodinâmica contribuem para culo XIII por Moisés de Brolo para glorificar a cidade de Bér-
a elaboração de uma teoria do desenvolvimento das aglomerações gamo, inaugura176 a linhagem desses elogios de cidades surgidos
humanasl73. Paralelamente, o mundo construído é investido da. muito cedo na Itália do Norte e que se inserem no processo
cadc sensibilidade e do imaginário contemporâneos. A cidade é o de constituição das comunas, servindo ao mesmo tempo para
mát' pano de fundo de nossa literatura, e a organização do espaço, formar e para formular o liame específico que une o habitante
fase um dos pivôs da reflexão política e social de nossa época. à comunidade urbana. .
r
á que razões de método nos obrigaram a escolher textos ··Elogio" .diz bem da finalidade passional desses escriws e
ele J em sua maioria ligados às origens dos escritos instauradores, e da personalização de suas descrições, destinadas a expressar um
reli~
todos anteriores à época atual, não se fará caso aqui nem .desse apego por meio das razões que o motivam. A exemplo de Brolo,
tico: conhecimento científico nem das ideologias hoje suscitadas pelo Bonvicino da Riva escreve o De magnalibus urbis Mediolani
nan .espaço construído e pelo urbano. Entretanto, não se pode mini- ( 1288), " para que todos os apaixonados por sua cidade [Milão]
cum mizar a contribuição que esses processos continuam a dar às glorifiquem a Deus" e " todos os estrangeiros conheçam sua no-
hon· teorias do urbanismo. breza e dignidade"l77. E Villani exalta " o poder de nossa comuna
CO DI [Florença] " (1336-1338). Muito antes que o espaço construído em
mar que se aloja, a querida comuna é, em todos esses textos, a comu-
uml 3. 1. ç1 Obietivação do Espaço Urbano nidade de seus habitantes, sua pessoa coletiva, física e moral,
su l ~ apreendida através de suas realizações passadas e p resentes, inte-
Pm·a(rnseando o que Michel Foucaultl74 escrevia a propósito
com lectuais e materiais. Sua história, ou melhor, sua genealogia mítica
das concepções de vida ou de trabalho anteriores ao século
p ~.:n . c histórica - em outras palavras, a sucessão de seus fundadores,
XVIII, podemos dizer que o conceito de cidade enquanto objeto
I Jci, santos ou herÓis, de seus hi spos e de seus príncipes e a relação de
construído não existe antes do século XV. E teríamos de esperãr
norr seus altos feitos - assegura um fundamento à sua identidade.
o séCüfo XVIII para utilizá-lo e difundi-lo fora dos círculos eru-
lica ditos. A definição da palavra "cidade" na Grande Encyclopé· Ancorada assim no tempo e do tad a de u ma memória, ela é uma
entidade demográfica178 definidn por sun pertença a um tenitó-
dos
mei· 171. Não seria demais sublinhar a divida que têm para com ele
os fundadores dessa cliscip!ina, particularmente A. Riegl, E. Panofsky. 175. O autor, J.-F. Blondel, se se oncorrn om determinações espa.·
por Cf. infra Cup. 6, p. 294 e n. 131. . · ciais, hesita entre as da cidade oxistonto o ns da cldndo ideal, e con-
b(: n 172. Ela é designada no título do livro de L. F. SCHNORE (org.), sagra a metade de seu artigo nos ptecolton do Vitruvlo.
que 1·tan.s. Prmceton, 1975. Todavia, evitaremos reduzi-la às dimensões 176. Segundo D. WALE Y, Les R!Jpu/Jliquc.~ llallemws, op. cít., p. 145.
11 1!1 1 The Ncn.o Urban History. Quan.tttattve ExploratiDn.~ by American histo· Não se pode considerar eloafos, no scntll lO elo uma categol"ia tex:Lual,
exclusivamente quantitativas que o subtítulo implica, e insistiremos os louvores de cidades episcopal :~, ~ l"IIJtlll Ontários, por vezes providos
c l lj
tnmb6m nu contribuição que novas técnicas possibilitam atualmente à de breves e fugidias notações lopo(1rá.Clcns, que observamos nas Vies
arqucolor,iu. No caso da França, na impossibilidade de escolher entre des saints do século X e nos carl.uh\ rlos <In mesma época.
os trabalhos da nova história urbana, remeteremos aos artigos e biblio- 177. Idem, p. 146; Mllúo "n!lo tom Igual no mundo L .. I ela é um
grafias dos elo?. úlLimos anos dos Annales, Paris, A: Co!in. mundo por si mesma" (Idem, p. 116).
173. SolJl'C n construção dos modelos de desenvolvimento, cf. em 178. Bonvicino. grande nmanto dos números, "porque os núme·
de particular P. MERLIN, M éthodes quantitatives et Espace 11rbain, Paris, ros falam" (WALEY, op. clt., p. 140), avalia em 200000 almas a popu·
Masson, 1973. !ação de Milão, que lhe "purocu :;uperar a de todas as outras cidades
pn1 174. Les Mots et les Choses, Paris, Gallirnard, 1966. do ·mundo".
56 A REGRA E O MODELO OS TEXTOS SOBRE A ARQUITETURA E SOBRE A CIDADE 57

rio179, mas também pelo valor, pela sobriedade ou pela fé, como permanece o adereço de uma pessoa, um traço exterior que de-
pela saúde e pela beleza180 de seus habitantes. Ela é ainda o con- pende da ordem, ainda secundária, do visual. Signo ou símbolo do
junto de suas realizações atuais, ou seja, produção1Bl , consumolB2, poder, sem ser um valor em si, evoca a nomenclatura da h ipérbole,
saber183 e, é lógico, quadro construído. mais que a descrição realista : os prt:diçados do::; edifícios citados
Brolo descreve os muros e as portas de Bérgamo . I3onvicino são quase semp re gerais, estéticos ou morais, raramente dependem
consagra um volume à "celebração de Milão por suas habitações", de uma análise visual " objetiva".
evocando suas "12.500 casas que não são superpovoadas", a lar- Somente no começo do Quattrocento é que se introduz al-
gura das ruas, as "residências nobremente adornadas [ ... que] guma di stân cia entre o louvador e sua cidade. Quando o Chan-
formam uma linha majestosa e contínua"184. Villani se extasia celer Bruni, inspirando-se num texto grego, a Panathenaica de
com as casas dos florentinos: "A maioria dos estrangeiros y_ue che- Aristides, que ele de imediato supera187, redige o Panegírico de
gavam a Florença e viam todas essas ricas moradias e os belos florer.ça 188, torna-se sem dúvida o primeiro a descrever sua ci-
palácios construídos até a mais de três milhas em volta da cidade, dade inicialmente como um espa<,:o. Começa p or situá-la em seu
pensavam que esses edifícios, corno em Roma, faziam parte do quadro geográfico, dep ois, com base nas aldeias e castelos perifé-
centro da cidade"165. Mas em todos esses elogios, como naqueles ricos, apresenta metodicamente seu espaço construído, das mura-
que, com urna defasagem temporal mais ou menos importante, lhas às ruas, praças, pontes, edifícios públicos e privados. As ins-
encontramos em outros países da Europa186, o espaço construído tituições políticas que deram motivo ao empreendimen to são
abordadas em segundo plano.
Entretanto, a despeito dessa inversão, ainda se trata de um
179. Cada um gaba o seu torrão,I claramente distinto de suas cons- elogio . A objetivação nascente não elimina os superlativos (nunca
truções. Cf. Bonvicino, que dediCll. um volume à situaç1o de MUM
onde não faz muito calor, nem multo frio, unde os alimentos produ- menos de dois e até seis por página) e as fórmulas hiperbólicas.
zidos por um solo f~rm são abundantes, a rede das águas vivas ndmi· " Esta cidade [FlorençaJ localizada na situação geográfica mais
rável (idem, p. 147) . sensata, ultrapassa a todas as outras cidades p e!o esplendor, pelo
180. Pa.rn todas essas qualidades, cf. WAJ.;EY, op. cit., p. 145 ornamento e pela limpeza"; ela é "si ngular , a única do mundo
181.- Produtos agrícolas (vinho e cerP.ais), vestuários, artesanato
(jóias), fábrica de armas <cem ferreiros em Milão). o mesmo Bon· onde nada de desagradável ofende a vi sta ou as narinas, ou im-
vicino tambtlm passa em revista as atividades das diversas profissões. pede a caminhada"; " de ponta a ponta, ela goza de todas as
182. Segundo Bonvicino, Milão possui trezentas padarias, setenta coisas que p odem fazer a ventura de uma cidade"l89,
bois são mortos na cidade a cada dia, e a população inteira de algumas
outras cidades da Itália consome menos alim~nto que os· cães de
Milão.
183. As universidades não causam menos orgulho. Cf. elogio dos o tempo e a história em relação ao espaço nesses chgios. O te.stemunho
juristas de Pádua e da Escola de Direito de Milão (idem, p. 146). visual muda de natureza, torna-se preciso e muitas vezes cifrado, quan·
184. Idem, p. 117. do, no início do século XV (14!17), Guillebert de Metz enceta a segunda
185. Idem, p . 146. parte de sua crônica: o plono de sua descriçM de Paris se divide em
186. Para Paris, o primeiro elogio não-fragmentário, concebido quatro partes correspondentes à. estrutura topográfica da cidade· conce·
como uma totalidade autônoma., é o Tractatus de laudibus parisius, bidas à maneira de um guia, elas antecedem a quinta parte' que é
de JEAN SAUDUN (1323). Exceto em certos casos (menção do nume propriamente um elogio.
das ruas onde se localizam as atividades que ele elogia), a obra con- 187. H. BARON, em seu comentário (op. cit. infr a, n. 188), subli-
centra suas breves anotações espaciais exclusivamente nos três primeiros nha a imprecisão da descrição de Aristides e Indica como essa, todavia
capítulos de sua segunda parte. Tais anotações dizem respeito, primei- permitiu que Bruni operasse uma mudança em sua abordagem d~
ramente, às Igrejas ("Em Paris, santuário privlleglado da rellgião espaço. Cf. infra, notas 227-231 c 232 do Cap. 2.
cristã, belos edifícios consagrados a Deus foram fundados em número 188. A Laudatio florentinae urbis (1403) foi odi l:-tda poln primeira
tão grande que provavelmente não existem muitas cidades, entre as vez por H . BARON em sua obra From l'e l rrz1"Nt to T.i!01•tr rclo Bruni,
mnis poderosas da cristandade, que possam orgulhar-;;e de contar tantas Studies tn Humantstic and Pollttcal Ltt emtu rc. Unlvcrslty o! Chicago
cnSttq de Deus. Entre esses palácios, a imponente igreja da glorioslsslma Press, 1968; uma nova edicão foi puhlirnfln ll'om l.radução italiana
V!rl(om Maria, mlie de Deus, brilha na primeira !ila e com justiça, justalinear da época) por G. de To!fol, Florença, Nuova Italia Edi-
comol o ROl em meio aos outros astros .. . "). Em seguida, surge o "es· trice, 1974
Jllllntl lclo l>nl•\cio [do rei) de muralhas inexpugnáveis". Depois são as 189. Op. r!"it., Toffol, ed., pp. 1?., JG, Ul. Conviria fazer o levanta·
ci.I.HWI, do loo ·mn que quem quisesse contá-\~s "trabalharia provavel- mento das vezes em que aparecem os adjetivos splendtdus, magniticens,
noonl u Pilo vl LO, mnis ou menos como aquele que tentasse contar os !los pulcher, magnus, egregius, praest an.s e os substantivos correspondentes:
do <·nlxllw• 1111 v1\ rlas cal.Jeças que os tivess!!'ln abundantes L . .J ou as splendor, magnijicentia, pulchcrittulo, magnitudo. O texto de Guillebert
folhM do 11n111 f{ l'lln d c flor esta". Citado se~d_o Paris et ses Historiem de Metz, citado supra (n. 136), se não tem a mesma qualidade
au XIVc ct X V<' siN:lc, cloc'llments écr its et originaux, recuell!is et nem o mesmo alcance do do Chanceler Bruni, contudo testemunha, no
commentes por J,,,; n.oux DE LINCY, Paris, 1867, pp. 45 e 53. O próprio quadro de um outro propósito, uma. relação mais realista e mais
título da cololt\nou do T•. n. de Lincy acusa o privilégio de que gozam "moderna" com o espaço construído.
58 A REGRA E O MODELO OS T~XTUS SOBRE A ARQUITETURA E SOBRE A CIDADE 59

Se o Yisual adquire, através da espacialidade urbana, nova de ~ ua própria cidade e a considerá-la como um objeto, segundo um
dignidade sob a pena do chonceler florentino, o mundo edificado procedimento que inicia o processo de distanciamento desenvoi-
continua sendo entendido afetivamente. A descrição ue
Bruni alia vico e sistematizado a seguir no Quattrocento. De fato, para que
ambas as dimensões, a subjetiva (interpretativa e laudatória) - se possa estabelecer um recuo e desligar a relação afetiva para
dman tc muito tempo a única con siderada nos retratos de cidades com a cidade, é preciso que o comentador não mais se confine
elaborados pelas gr andes crônicas e cosmografias impressas a par- a lugares familiares, mas, sobretudo, que se liberte suficientemente
tir elo fi nal do século XV - , e a objetiva, que será desenvolvida de um etnocentrismo que o f az sistematicamente reencontrar suas
pelo trabalho dos arqueólogos e dos viajantes-humanistas. próp rias estruturas cultu ra is llé diversidade dos lugares e <.lOS tem-
As gravuras que, com ma~or ou menor fantasia, ilustram esses pos para porler rea l i z::~r a experiência do dépaysementl93 .
" re traros" não devem nos enganar . Não ferem o privilégio do Desde que possa aten tar para o insólito sem negá-lo, sem
tempo e da memória em crônicas onde as diversos cidades da reduzi-lo à experiê ncia quotidiana ou duplicar-lhe as categorias do
Europa são, a ntes de tudo, individualizadas pelas genealogias dos maravilhoso, a estranbeat dos ~:: ~paços que ele depara ao cr uzar
santos, reis ou homens ilustres que contribuíram para a sua fun- os mares ou os séculos remete o viajante a sua própr ia e relativa
dação e suA reputação, como também pelas batalhas que souberam estranheza. O comentá~ i o àe si passa desde ent ão pelo comentário
ga nhar, pelos sítios que tiveram de enfrentar. Quando, em seu do ou tro. O jogo do eu e do outro, o choque da diferença exigem
Liber chronicarum (1498) , Schedel representa, em eleva\;ão, "vis- as comparações, a ohservação preciS<l e a medida, portanto a des-
tas" por trás de suas muralhas, as cidades mais célebres do mun- personalização tio quadro construído e sua transfmmação em
do, utilizando a mesma prancha, para figurar até sete ou oito objeto.
cidades d iferent~s, não é por incapacidade técnica (alguns retratos Dois tipos de escritos desempcnhmmn papel pioneiro nessa
são fiéis, executados in loco), mas pela desenvoltura inspirada objetivação : as primeiras descrições arqueológicas de sítios an-
por uma organização espacial, sem interesse em si , e cujo valor tigos, que são também os primeiros gu ias urbanos, de um lado, e,
reside apenas no referente sócio-histórico do qual ela constitui de ou tro lado, os primdros rdatus dt: viagem lig2dos às grnndes
o signo.. O cuidado de uma informação .exata e o cr escente in· descobertas, que constituem a prime ira literatura geográfica dos
teresse testemunhado ao espaço cons truído, de Sch edel a Sebast ian Tempos Mooernos.
Münsterl 90, se chocam com a me ntalidade arcaica das comunas,
que sofrem para ultrapassar o estádio discursivo do elogio. Q dan-
do relata os obstáculos encontrados em sua pesquisa sobre as cida- A história da Antiguidade é, pois, um dos dois eixos em torne
des191, Sebastian Münster revela pertencer ao mesmo tempo a dos qn2is se orgfmizam o dépaysement e a conceimalizaçào cor-
dm1s rrnd ições, a dos cronistas retratistas, autores de elogios, e a relati va do quadro cons truído. A leitura dos clássicos permüe que
dos arqueólogos-viajantes-humanistas, aberta por Bt'Uil.i, na qual os humanistas da primeira Rer.asccnça italiana, já que estão inte-
ele se insere resolutamente a partit' da segunda edição de' sua le::tualmen te preparados para tanto , reconstituam uma sociedade
Cosmogrujial02. desaparecida, com suas instituições e seu espaço. Os textos os auxi-
Estudando o funcionamento da democracia ateniense é que liam a descobrir-lhes os vestígios espaciais; mas, inversamente, o
Bruni foi levado a contemplar em termos novos o fu ncionamento testemunho .desses vestígios atualiza o passado .: confirma a fide-
lidade do textos. O percurso da cidadt: a tual, cumo dupla rede de
marcas sucessivamente impostas por duas cultu ras, conduz à sua
190. Cosmographia univcrsalis, 1544.
delimitação, sua decupagem, sua mcnsurnç5o.
191. "Não é possível que um homem só possa atravessar e ver
todos us lugares do m undo." Milnster indica, pois, que terá de recor· Roma, símbolo da An tiguidade, é u 1c rn:11u privih:giadu dessa
rc r a múltiplos testem unhos cuja crítica será preciso fazer. Evocando inve;;rigação arqueológica e da objcliv:u,:no corn.:laL iva do espaço
w: d ifi culdades q ue encontrou nessa investigação, olJsl:lrva que os "pre. t:rb ano que ela promove nu m jogo tk n:troaçiio com os textos
litrlon rl a Igreja nisso nos ajudaram m ais que os outros p ríncipes"
10 JIII IIH lO c:lcntif lr.o está realmente m ais bem preparado para entender
clássicos. Desde 1430, Poggio tem co ndi ~üc~ ele dar um primeiro
r :unw l l tt~n l u Larc-fa l; "as cidades também me a judar am, umas mais,
193. E . Garin e E. Panorsi'Y :tli:Jits :l'":\111 nos rr.esmos termos a
<Jt: l.:•mJ oll tulu:-1, <'Orno veremos suficientemente no livro [. . .l Da França,
rwva relação dos homeus da Ru n a~n:nça !!Om a Anliguidade. A paixão
11111io1 puolu l i mo· a n fLO ser o que se encontra em h istórias comuns ainda
por es ~a não procede mais :ic urn:L " confusão'" bár bara, mas eKprime
quo 111 1 l.lvom:n l"nccb ido algum a esperança de vlirios grondes perso·
o " recuo do crítico quo fr cqi.JenLa a escola dos clássicos não para con·
Jllll\lll lll q :m n:Hi vonm l aqui na Basilé ia" ccosmO(}Taphie univer selle,
tu:1dir-se com e:es. mas para se definir em relaçào a eles" (E. GARIN,
" Salul. 1111 h~; l ou l'" di\ Nc gunda edição, trad. f r. de 1556) . Moyen A.ge et Renaissance. op. ci!., pp. 86, 87l. Para E. :?ANOFSKY,
102. J!i!>O. tf. 1-'. DACIIMANN, .Dio alten Stiidtebilder, Leipzig, K .
w. Hie rsomnnn. lii:JO. cf. por exemplo, La Roruzissancc ct scs Avant-courrier s, trad. fr. , Pa.ris,
Flammarion, 1976, p. 94.
60 A nEGRA E O MODELO os TEXTOS SOBRE A ARQUITETURA E SOBRE A CIDADE 61

inventário sistemático dos vestígios de Roma, "outrora a mais aparência original ele se esforça por reconstituir através da ima-
bela e mnis magnífica das cidades", cujo esplendor se lhe tornou ginação, levá-lo-ão a colocar o espaço urbano como problema e
familinr por meio da leitura de Virgílio eTilo Lívio, e que, "hoje, como projeto. Sua Descriptio urbis Rumuel08 é anles de tudo um
dt:spojada de todo o seu ornamento, jaz qual gigantesco cadáver método para a transcrição gráfica da topografia romana com seus
em pu trefação, m utilado de todos os lados"l94, Tal desastre é a monumentos , em outras palavras o instrumento necessário ao pr~­
ocnsiüo para meditar sobre a fragilidade das sociedades. Quase j~::lo de conservação e renovação de Nicolau V .. Essa obra, a pn-
nada sobreviveu de Roma: "Poucos vestígios desta cidade antiga, meil'a a considetar o organismo urbano como uma totaliuade 199.,
c ainda assim meio roídos ou arr uinados pelo tempo, quase nada precede o Da ra aedijicatoria, de que constitui os prolegômenos,
intacto"195, !:>ignificativamente, Poggio. começa por levan tar as ins- ilustrando de maneira privilegiada, num único e mesmo autor, a
crições: essa memória da cidade conserva a prioridade sobre as relação que, graças à exploração arqueológica e à objetivação do
próprias construções196. A seguir, numa descrição permeada de espaço por ela ensejada, une o texto comentador ao texto instau-
reminiscências literárias que mostra ao leitor de hoje o que foi rador.
a dialética do texto e do monumento construído no trabalho dê A análise arqueológica das ruínas antigas, sobretudo as da
con s tiluiç~o da arq ueologia, da história e da teoria ua
edificação, Cidade, Roma, fará parte, durante muito tempo, da formação
ele passa em revista, por categorias, os monumentos em si. D á dos teó ricos ulteriores da arquitetura, que ela levará a uma mes-
prioridade aos templos197, dos quais às vezes nada resta, quando ma abordagem da cidade e dos monumentos modernos. Desde
edifícios cristãos os substituíram. Depois, vêm as termas, despo- ~ua~ primeiras aparições, a descrição arqueológica responde a
jadas de seus primitivos ornamentos, mas ainda trazendo os no- duas destinaçõea, confotme focalize o objeto arquitetônico ou
mes de seus fundadores e provocando a estupefação de que seme- urbano, ou os percursos a que este se presta.
lhante suntuosidade tenha sido consagrada a um uso tão vil; se- É para melhor compreender Vitrúv io, para verificar suas
guem-se os arcos de triunfo, os aquedutos, os teatros de q ue a afi rmações e dominar diretamen te as rcerns de procluçiío da ar-
ddade e~tava cheia para os jogos populares, o imenso Coliseu, quitetura antiga que Palladio mede "em suas menores partes"200
"reduzido em sua maior parte à situação de pedreira pela igno- os monumentos de Roma. Mas e~se es tudo serve apenas para
râ ncia dos romanos", e as sepulturas. nutri r o texto t: as iluslra<,:Ões t.los Quatro Livros. Leva tamMm
:a a mesma experiência que realiza o jovem humanista Leon o arquiteto a escrever as Antigttidades de Roma201. Curiosamen-
Ballista Alberti, quando em 1432 o Papa Eugênio I V o chama a te, esta obra, que foi sem dúvida até o século XV 111 o guia mais
Roma pela primeira vez. Mas ele não continuará historiador-ar- popular da Cidade, é totalmente desprovida de ilustrações. Os
queólogo. Numn mesmn escavação, descobre o espaço antigo e pré- itinerários palladianos subordinam a descrição dos sítios e vestí-
pn rn sua vocação de arqu iteto. Sua exploração curiosa e suas pa- gios monumentais à história, à exposição das instituições e ao
cienlc:s mensurações de um corpo urbano defunto e mutilado, cuja relato dos acontecimentos de qut: e~te~ foram o suporte na Anti-
guidade. Por mais consciente que seja de seu p oder sobre o es-
194. Rutnarum Rmnae descriptio, · de jortunae varietate urbis Ro· paço, Palladio conserva, na A ntichità, sua precedência ao tempo.
mae et de ruina ejusdem descriptio, que traduzimos, segundo Poggi Apesar do deslocamento a que submete a história e as ideologias,
Florc11tini oratoris clarissimi ac 3edis apo secretarii uperum, 1513, foL que não são mais as de uma individualidade viva, o guia palla-
50 e 52. A obra se apresenta como um diálogo entre Poggio e um amigo
quo pol' ocasião de uma doença do papa, visitam a cidade abandonada. diano ainda pertence à linhagem dos elog ios elas cidades.
Lembremos, ]:Xlr outro lado, que se deve a Poggio Bracciolini a desco- Ao mesmo tempq em que, práticos c profanos, os autores
berta, em 1416, de um manuscr ito de Vitrúvio, na abadia de Saint-GaJI. de "descrições" e guias objetivam a cidade. conser vam viva essa
195. Ibidem.
100. As inscrições conservarií.o durante muito tempo esse estatuto relação com o urbano que passa por sun mcmó ri:1. Con tempo-
rof<,r <·ncial priyJiegiado, como o prova o lugar que ocupam ainda nos râneo das Antiguidades de Roma, o primeiro grande guia de Pa-
J:11h11; d o <:idades dos séculos XVII e XVIII e o cuidado com que estes
1111 1'llLI'IU1HCrcvcm . Cf., por exemplo, PIGANIOL DE LA FORCE , op. cit.,
Inrm, p. <12. 198. Escrita entre 1432 e 1434. PublictLda em Opera ineáita por H .
ltn, cr. OJ!. cit.: "Castori s insuper et Pollucis uedes contiguae loco Manc:ini, Florença, Sansoni, 1800.
at·tlllll liA 11111 uncra, altera oreintem altera occidentem versus, hodie 199. Sobre a " inovação opernlória maior" que constitui a D es-
M rnlm11 llfll>tt/lt 11/!J)Cllrmt. lnclytus quondam cogendi senatus locus, ma- criptio, cf. L. VAGNE'I'l'I, "Lo Studio di Roma negli Scritti Albert1an1",
jorl 1 ~1: /1111'/t· 1'01/lt/ISru: varvis vestigiis. I n quas me saevissime contere, In Convegno .. . , op. cit., supra.
r euoqtttU/,1 ,q /uporc · quociCL1tt oppressun animum ad ea tempora, cura ibi 200. L'Architecturc de PaUadio divisáe en quatr e livres, com notas
omtor1ac sunlt•tlllrm tlit:cbant1t7' et aut L. Crassum mihi, aut Rortcnsium. de INIGO JONES, trad . fr ., 2 v., Haia, 1726, Prefácio, A.
aut ctcerorwlll OI'IIIIICtll W01JOnens". 201. L'Anttchttà di Roma. Roma, 1575.
62 A REGRA E O MODELO OS TEXTOS SOBRE A ARQUITETURP. E SOBRE A CIDADE 63

ris se intitula, semelhantemente, Les Antiquités, histories et singu- O com~ntário do~ humanistas-geógrafos ven:, por sua vez, a
laritás de la villc de Paris?.02; não contém também ilustrações e partir dos últimos anos do século XV, confirmar e acelarar o
dá prioridade, em vez do inventário dos monumentos e imcri- processo de objetivação do espaço urbano. Com efeito, dep~is das
ções, aos " gestos ocorridos nesta [cidade] desde seu começo até primeiras viagens arqueológicas no tempo, as grandes vtagens
nossos dias"203. Bem mais tarde, em meados do século XVIII, mar ítimas da época foram motivo de um clépaysement mais ra·
c depois de Brice, Lc Mairc e Sauval2o~. _Piganiol de la Force, a dical , de uma descoberta mais fulguran te. Levavam a lugares des·
despeito das inúmeras ilustrações (plantas, elevações, perspectivas) conhecidos, defrontavam com sociedades vivas, de carne e osso,
com que acompanha sua Description de Paris205, começa-a à ma- e não mais com vestígios. Quando, em sua célebre carta a Lo-
neira de um elogio e em nenhum momento dissocia-sc de uma renzo di Pier Francesco de Medici (L503), que foi , com sua carta
história. ulterior a Soderini (1504 )209, um dos maiores êxitos de livraria
B, sem dúvida, a noção ambivalente de percurso que articula do século XVI, A~érico Vespúcio, com insistência deliberada,
as du as abordagens, objetivante e memorizante, do guia urbano. qualifica de novo210 o mundo que acabarA de descobrir, dá a
Retomando a experiência tradicional da comunidade u rbana qÚe, esse qualificativo sua mais plena acepção e assinala a diferença
no quotidim10, percorre o corpo da cidade e explora-a como o que confer e a seu relato sua sonoridade pioneira: trata-se ao
u
bcbG sua mãt:, o guia desnatura essa experiência. Suprime sua mesmo tempo de terras jamais pisadas pelos europeus, de um
imccli:llicidade ancestral, recorrendo, para lhe dar sentido, à cul-
mundo de:.conhecit!u, não·p~nt:tradu pt:lu cunbtXimentu, e de uma
tura his tórica e literária. Assim distandado, o percurso se torna
nova abordagem que abre caminho a uma nova literatura211.
simulacro, jogo urbano que reifica os lugares percorridos. Seria
preciso estudar como o guia impõe progressivamente a ordem do O olhar que Vespúcio lança sobre o novo continente é, ou
olhar206, como relega os espaços sem valor ao olh ar ou à memó- pretende ser, o olhar da ciência. Formado junto aos humanistas
ria cultivada, .circunscreve e organiza os locais privilegiados a0, floreminos21.2, América rompe com abundan te litera tura de via-
sabor das aquisições da história e da história da arte, das anexa- gens anteriores2l3 cujos autores ou cediam sem cdtica ao apelo
ções da -Inoda207. Seria preciso mostrar como, depois de haver do maravilhoso, ou projetavam sobre as sociedades visitadas suas
explorado e em certa medida devolvido a vida às cidades mortas, estruturas culturais. Ele q uer ser, segundo suas próprias palavras,
os guias urbanos contribuíram para elaborar a noção de patrimô-
nio, mas mortificando a cidade viva, para alertar os práticos, 209. A primeir a, chamada Novus Mundus, e a segunda, que contém
mas enganando-os, com o finalmente insuflaram2DB nos autores o relato d:as quatro viagens de Vespúcio, foram traduzidas, do italiano
das t eorias do urbanismo as noções ambivalentes de monumento, tingido dP. hi ~n i smo em que foram escritas, para o latim e para
de cen tro da cidade, de p i lore~co e de paisagem urbana. todas as línguas européias. For am igualmente adaptadas e !a.ls1!1cadas.
Da imensa literatura atribuída a Vespúcio, re.sta.m apenas três cartas
autêntícas.
210. O termo é utilizado três vezes já no pr imeiro parágrafo onde,
202. Por GILLES CORROZET, L.• ,ed., Paris, 1532; 2.• ed.. 1550. lembrando a "descrição de todas as part.es do Novo Mundo" fP.ita nu·
203. Op. c:tt., dedicatória. ma carta anterior, ele prossegue: "Veremos, com efeito, se bem rerie·
204. Para a bibliogrd.!ia desses livros sobre Paris, cf. o prefácio de tirmos, que essa região é r ealmente um novo mundo. Não foi por acaso
PIGANIOL (op. cit.), na qual ele pass~ em revista a contribuição do que nos servimos dessas expressões 'novo mundo' porque I ... J jamais
<~onjunto de seus predecessores. os amigos dele tiveram conhecimen~o L .. J". Se(liiDdO o rac-simile r e-
205. Description de Paris, de Versailles, de Marly, nova ed., Pa.ris, produzido tn L. FIRPO, Pr!me relatíont dt nav1patori italian! suua
1742 (num pequeno formato que será o de todas as reedições se- ~coperta dell'America, Colombo, Vespucci, Verazano. Unione typogra·
guintes). fico editrice torinese 1966. [O grifo é nosso ..i Cont,ru tL opiniiw de
206. O descritor de cidade :ornará o hábito de subir ao cimo da Humboldt, que por o~tro lado reabilitou Vespúr:io (}~xamen critique de
•·nlcdrul, do campanário ou de uma torre central, a fim de apreender, la histoire et de !a géagraphie du nouveau colll1nmu, Paris, de Gide.
do 111n rclancEl, a totalidade do espaço urbano que ele quer descr ever. 18.19), G. Arc1ntegas mostrou a amplitude ela slgnificapão do term?
Gr. n duxcrição das Cidades de Flandres, particularmente Bruges e Gand, novo que, sob a pena de Vespúcio, nil.o m1\Ls tom. rclaçao . com o al!e
pw· MONJ•:T!\RIUS in VO'!iage aux Pavs-Bas, 1495, trad. fr. por M . oikhoumene ( «ÀÀ'Yj oLxoup.e:vtl ) d o. lmUguidnde, m Amer-.go and. tn.e
(;lr•uloL u M. Dclcourt. Now World, trad. americana por H . do Onls, New York:, Knopf, 1955.
:11r1. i\'1 • '•ll. i •n•l~ em data se devem à arqueologia Industrial. 211. F . ARCINIEGAS, op. ctt .. p. 167.
~011 . J<nl'! ll11udcükcr morre (1859) no momento em que o urba· 212. Estamos pensando na !urrnuçilo de Vespúcio por seu tio ~ior·
nJHmo lll\llll/1 I 'IHl l o disciplina autônoma, trinta anos antes que, em gio Antonio, em sua cultura literária e "científ~ca" e _U:mbém no mte-
Vlurm (o Hl'flllil uto lll'lmllisw Camille Sitte analise, o primeiro entre os rcssc dos humanistas florentinos pela geografta (Pol!ctano e as \'Ia·
l cól'icol:l·P•·i\tkoH do u rh1m i::.1 uo, o !unc1onarnento dos espaços urbanos gens de Diaz) . _ .
medievais o, dupoJu 111• H•llllrlc, mas com mais de um século de avanvo 213. cu.Ja.s caracteristicas ainda se manterao . du~te mmto tc~po
em relação nos lll'uriHNituml':l. proponha a idéia de bairro a salvaguardar. nas obras de parte dos viBjO.l'lteS leigos. A origmalldade de Vespucto
64 A REGRA E O MODELO OS 'rEXTOS SOBRE A ARQUITETURA E SOBRE A CIDADE

"uma testemunha fiel" e um observador crítico214. Em sua inda- tttc lh or Rgradecer a Deus a sorte dos cristãos. O desapego e a for-
gação, ele não descreve, como geógraÍo, apenas a configuração, nt ação científica221 eram, pois, exigidos desses p rimeiros "geó·
dos céus noturnos do hemisfério austra!215, o clima, a posição )';rll fos-ctnógrafos" 222. f: com a mesma preocup ação de objctivi·
das costas (o erro de Colombo), as floras e as faunas exóticas, tl:t Lk e de objetivação q ue Oti vemos estudar, nas ~ociedadcs exó-
mas tam bém os povos que e ncontrou .e suas práticas. Revela assim l icas com que se deparam, as instituições sociais e o quadro
aos leitores letrados da época, e a Morus entre eles , sociedades c~ pac ia1 de seu funcionamento. Suntuosos ou m iseráveis, quer se
onde o ouro é ao mesmo tempo abundante e inútil, onde, sem l r:t te das cidades do Peru ou do México ou do relato de J. Acos-
que se tenha de exercer o po<.kr arbitrário de um príncipe, reina tu223, ou da tenda iroquesa de q ue o Padre Lejeune descreve a "e~­
a comunidade dos bens216. A descricão de costumes diferentes trutura224, a fabricação e a montagem225, esses estabelecimentos
não está dissociada da do espaço co~struído que é seu quadro, ~ :iu descritos p elos in vestigadores com idêntica precisão: respei-
desde a grande casa de seiscentas pessoas que os índiqs de Hon- l<t ndo os addos que contribuem para abrir as p rimeiras brechas~26
uums abandonam ~m períodos fixos para reconstruí-iR dt(talhe JJaquilo que denominamos hoje o etn ocentr ism o ocidental.
por detalhe, até a pequena Veneza de quarenta e quatro casas O olho do etnógrafo revela ao p esquisador que a obra cons-
descoberta além do Yucatán, perto do Golfo do México217, truída não é uma produção inerte, mas ancora e fixa o conjunto
Assim como os elogios não focalizavam jamais suas descri- d;ts práticas sociais227. Tantas sociedades, quantos esp aços. O
ifÕes de cidades sobre o espaço construído delas, assim também proselitismo do m ission ário leva-o a privilegiar o quadro cons-
a literatura de viagens medieval era pobre em indicações es- truído como garantia do funcionamento do modelo social. Esse
paciais, que serviam essencialmente de referentes práticos218,. A
partir de Vespúdo, a tendência se inverteu; o quadro construído
dRs sociedades exóticas é objetivado por uma literatura científica 221. O Pe. Riccl exlge para a m1ssao da China (l!ill4) letrados que
cujos promotores serão as ordens evangelizadas, as quais a difun- hajam "rompido com as ciências e sejam conhecedores cln prática dos
instrumentos de observaçõo" (citado por DAINVILLE, op. cit., p. 109) .
dirão com um êxito notável. 222.. Inácio de Loiola pede a seus missionários verdadeiras pesqui·
F . -de Dainville219 mostrou como, do século XVI à segunda sas etnográficas. Em 1553, ordena ao !Je. Nóbreca que escreva "com
maiores detalhes e maior exatidão", que fale "da n!gifw, do clima, dos
me tade do século XVII, os missionários foram os criadores de graus, dos costumes dos habitantes, de suas vestimentas, de suas mo·
uma geografia mais humana que física , devido mesmo às preo- radias [. .. l " (DAINVILLE, op. cit., p. 113).
~:l;{. Op. cit., pp. 308, 292 e SS,
cupações normativas e religiosas de que ela devia ser o instru·
224. "Para conceber a beleza desse edifício, é preciso ctescrever.Jhe
menta. Era como se, para m el hor evangeliz2r os selvagens, fosse a estrutura; dela falarei com ciência: porque muitas vezes eu aJude! a
preciso conhece r com exatidão suas práticas, acumular sobre eles erguê-la", Rel :ztion de ce qui s'est passé en la No1we lle France en l'année
informavõcs que permitissem, por comparação220 com sua sorte, 1634, envoyée au Pere provincial de la Compagr..ie de Jésus en la Pro·
?;ince de France, Paris, 1635, Cap.: " Do que é Preciso Sofrer Hibernando
com os Selvagens", p . 186.
ressalta muito particularmente, ao opor-se suas cartas à carta de Co· 225. Lejeune nota a divisão do trabalho entre as mulheres que cor-
lombo (Roma, 1 4~3), que aliás não teve repercussão, ou aos diversos tam a madeira de carpintaria, os homen~ que talham a planta na neve,
relatos de viagens repertoriados IJOr G . ATKINSON in Littérature géo- com que fazem em seguida um muro; desct·cvc ns varas estruturais
grophique françai~e de la Renaissance, repertório bibliográfí~o. Paris, sobre as quais estendem cascas, as pelos quo sol·vom do portas, op. oit,
Picard, 1927. mesmo capitulo.
214. Início da carta Novus Mundus. 226. Tarefa penosa: c!. ns cliUcu l clnelo.~ qun onc:nnl.rnu Acosta para
215. Sobre a contribuição de Vespúcio para a observação o.stronô· clabomr uma taxionomia do conJunto (h •.~ c:< l,a!Ju l m; l munlu~;; Llu~cobertus
mica, cf. ARCINIEGAS, op. ctt., p. 1 9~, n . 2. no mundo não-cristão, in De rn·xunmdo Ju!lonm1 cUII 'Var~lonc (citado
216. L. FIRPO, op. cit., fac-símile Novus :Mundus, p, 88. por F.· DE DAINVILLE, op. cit.) .
217. Cjtrta a Sodcrini, cf. trad. ing!. in The Cosmographiae I ntro- 227. Acosta desmonta sislumuth:nn1otll.<l 1 ~ l'uh\(.:cLo C[ll O ur.e a orga-
clnct to O/ M artin Waldseemüller, in fac simiia, jollow eà by the Fpur ni7.ação territorial dos Ir.cas n Ntttt:t hucl.ltt tlc;llll•t p o J!llc:a s e econômicas
Vu!Jaocs uf Amer tço Vespuce .with their Translation into English, C.G. u a suas crenças. "Quando [u rutWILJ \:C it tilltl,;l,twa ulgumas cidades, ele
lTAllP: JtM/\NN (org.), New York, the Unlted States Catholic Historical dividia todas as suns tcn111< tlrn k t'l11 J•ctrLull. A primeira delas era para
l::ioot.,t.y, 100'1, pp. ff7 e 103. tL religião, e cerimônias, do ~~~~ l'o c·tnn qnu o l'uchayachaqui, que é o
2.111. Cf. P. LAVEDAN, Qu'ast-cc que l'urbanisme, Paris, Laurens, criador e o Sol, o Chuu!Jln, (Jllu •1 n 'l'riiVI\0, o Paehamama e os mortos,
HJ211. t:ILJ) . Ili. o os outros guacas e smüw\l·JoM. J,lvu:JHom cada um suas próprias terras
2 lf!. l.CL ClcJoorapl:ie des humanist es, Paris, Beauchesne e filhos, 1... .] sendo que o sanLut\d o nnlvuntnl o gemi se achava em Cuzco e
1010. :;orviu de modelo n moln du oum oldudcs e o,lgumas distantes duzc:mtas
220. Cf., PDt' llltomplo, PG . J. ACOSTA, Advertência da Ristoire na- 16guns de Cuzco [ .. . J A itO(lt tr1r1n parto das terras era para o Ingua [ .. . I
turelle et m oralo rlc.v I ndes, trad. fr., Paris, 1598 (Histeria natural de .11. terceira [ . .. l om c!acht polo In(íllll pura a comunidade" (Iíi stoir e -na-
las l r.4ias, lúOOJ. tlt•·cllc, p . 204).
66 A REGRA E O MODELO OS TEXTOS SOBRE A ARQUITETURA E SOBRE: A CIDADE m

quadro se torna para ele a pedra angular do prócesso de evange- w·a :t austeridade da Roma clássica233, ora a inocência anterior
lização. f: preciso destruir a organização espacial que aloja e ir quetla, descrita no GBnesis234. For tuitamente, chegam a ver
11:1 ausência de um quadro construído fixo e institucionalizado
corrobora os comportamentos a er radicar, e substituí-la por um
modelo tomado à - ou coucebit.lu pela - SU(;i~uad~ cristã, uu '' condição suprema da virtude. Quando o Padre Buffier faz a
ainda impor-lhe um ex nihilo , nos casos de miséria quando se a pologia do desenraizamento e da errância ("que liberdade [ .. . ]
tem contato com ·povos em estado natural. Para o Podre Lejeune, 11ao ter morada, habitação; e ser ~empre errantes como animais
por exemplo, as pequenas sociedades naturais que ele conheceu k rozes"235 ), ele envereda, ao contrário da modelização e do con-
intimamente no Canadá, ignorantes do mundo ético e guiadas lro lc pelo espaço construído, pelo caminho aberto por Fé.nelon
apenas pelo instinto e pela intuição228, não possuem leis positivas pa rn a conversão interior dos cor ações. Os padres chegam assim
a <:ontestar a sociedade cd .stã em seus costumes, suas instituições
e não podem aspirar a um habitat institucionalizado. A tenda,
po l ítica~ . jurítlicas e econômicas. Abrem o caminho a um pen-
que ele descreve tão bem, não tem direito a esse título, e os hurões
~ó serão culturalizáveis e cristianizáveis se adotarem um es t~bele­
samento leigo cuja crítica erige em modelos as sociedades exóticas
cimento fixo, elaborado para essa finalidade229. ,. se u espaço .
Entretanto, na medida em que a compnração230 lhe é inerente Vemos a relação generativa que liga os primeiros relatos
e em que se refere necessariamente, à sociedade dos p róprios ,·rcnHfico s de viagens , a primeira literatura geográfica, à utopia
descritores, que esses ten dem a considerar como outra e como r orno gênero textunl236. Esses relatos permitiram, em primeiro
objetu231, a descrição etnográfica dos missionários pode também lugar, c. criação dessa última por Tomás Morus. Com o tem_po,
transformar-se em lição de modéstia e inverter o processo de contribuíram para assegurar-lhe o desenvolvimento, no vaivém
modelização que acabamos de descrever. A Europa e sua socie- n ítico entre duas experiências igualmente induzidas por um pro·
dade cristã estão longe de serem sempre julgadas exemplares. ~:cdimento etnográfico que no ponto de partida tinha como objeto
Missionários encontraram entre os incas a sofisticação e o refina- a sociedade selvagem237. Paradoxalmen te, os primeiros rela tos
mento das sociedades antigas232 e, na simplicid~de dos hurões, l:ientíficos de viagens contribuíram, com efeito, num mesmo movi-

228. "Eu não ousaria garantir que tenha querido exercer qualquer 233. Cf. R .P. LAFITAU, M oeurs des sauvagcs américains, especial·
a to de verdadeira virtude moral a um s elvagem: eles só têm seu prazer mente p p. 105 e 456; embora reconhecendo a difer ença com o Peru e
em vista L .. I Só pensam em viver, comem para não morrer, se cobrem o México, " que podem passar por [naçOesJ policiadas ··. Lafitau descobre
p ara expulsa r o frio, não para apar ecerem " ( op. cit ., pp. 109 e 166). Paro entre os iroqucses e os hurões do Pe. Lejeune institulçOes complexas
qualU!car esse estado de imedinticidade, Lejeune r ecorreu ao conceito CJUe comp~a a instituições antigas (Senado, associação de gueueirus,
ariatotóllco de neccssidadt: (es túdio infer ior do desenvolvimento da hu- 1-!lnecocracra dos estudantes de liceus . . . ) .
mnnldado) . 234. "E les encantam uns aos outros e concor dam admiravelmente
220. I dem, Co.p . III: "Sobre os Meios de Converter os Selvagens": ontre si [ . . . J, não são vingativos entre si [ ... l dão m ostras de nada
"Não se deve espera r grandes coisas dos selvagens enquanto forem er- r1mar em, de não se ligo.rcm aos bens te:renos a fim de não se entris·
rantes". E nsinar·lhes os rudimentos da agricultura é realmente impos- t"ccrem se os perderem". Mais, " não existem pobres nem mendigos
slvel porque "não têm lugar em suas cabanas para [estocar] a ervilha r•!ttre eles . São ricos n a medida em que todos trabalham r ... l mas cá
e o trigo" (pp. 37 e 39). ··nlr c nós, ocorr e de outro modo, porque exis te mais da metade que
230. Cf., per exemplo, R. P . LAFITAU, Moeurs des sauvages améri- vive do labor de outr em" (LEJEUNE, 0 71. cit., pp. 101·107 e 33·34).
cai n s comparées aux moeurs d e not re t emps, Paris, 1724. 235. Buffie r continua: "Nada contrar io ao nmls digno do homem
231. C!. LÉVI·STRAUSS, A.nthr opologie structurale li, Paris, Cl iiC percorrer diversos lugares da torro; oh• tS todn dolo, ele o. deve
Plon, 1973, Cap. rr. o processo foi descrito já no sáculo XVIII, como lrubltar toda, tanto quanto lhe for possfvol 1.. . I Um fr·oq u!ls com sua
testemunha, por exemplo, o '"discurso preliminar " do Voyageur phila- c·nsn e mesmo sua naçiio inteira se vê ulóm tlu Hcu•ct•nl.ns ou oitocentas
~ophe [ . . . l citado supra: "Quar::do se per-correm os palses afastados, lclJ;uns sem haver deh.:ado sua pá tr ia I .. 1" ( ('our.~ ri r- .çcfcuccs sur des
t,ud o ó tão c;iifcrcnte daquilo que se está acostumado a ver no seu, que urlncipes nouveau:r et simples pow · / 0 7'11/C"t lt • l a nrmvc, l"csprit et le
Hl'l p r·imciras- observações de um viajante sobre os povos que ele con- c·oenr. àans l 'Usa{Je ordinain~ de la vil- . P•u·IH 17:1?.. p . !JB4) .
t'l ldom. vorsl\ln naturalmente sobr e o grande número de costumes bi- 236. Essa relaç~o Já foi sublinl1ndl\ JJill" u. Cl11nn.rd. Cf. L'Amérique
mrro.~ I ... 1 Os segundos nos reconduzem aos nossos, donde resultam t·l le rêve exot ique dans la liU6rat.un· frau çct l.~c. Paris. Hachette. 1914
pnm l(1IOII !lnN quais um espírito sábio e esclarecido tira tan to maior ,, J, 'E xoti sme amér icain d a ns /c' illlc'rnturc· rltr XVJe siecle. Paris. H a·
provoltu qunnlo menos vantagem tem para si" (op . cit., p . 44). W grifo d rl'lt.c. 1!!11. Sem dúvida, Chlnnrtl un h•ntln " ul.opia" nwna acep ção m ais
e no~.w . l lllll)lla que a nossa. CL f.J\mht<m . no ln :l~l<l . acima . a citacão d e Leieune.
2:l2. "!olt1 n:r Rllpüblicas dos Mexicanos e Inguas tivessem sido ce- 237 . As pesquisas do Acosl.n ou !lo Gu.rcilaso de la Vega alimen·
nhccllltls nt"liiO l.r mno cios Romanos e dos Gregos, suas leis e governos rnmm as utopias ba rrocns d o R<'c·ulo XVIII. Os Comentúlios reais,
teriam sido n1111f0 r\!1\"CC!adas por eles. Mas nós outros agora não con· •>rblicados em Mndl·ld em Hi(IH, lm duzidos para o francês em 1633,
sideramos nudn clt ~ sCl, o !'nh·amos lá pela espada, sem os ouvirmos" !lll rl.i<"ula rm ente, inspimrnm More lly. p rimeiramente na Basiliade (17531,
(ACOSTA, 07J. clt .. )) . 2'/1 .) d •JJiuis em Le Code de la ual1trc (1 75~ ) .
68 A H.EGRA E O MODELO OS TEXTOS SOBRE A ARQUITETURA E SOBRE A CIDADE ()9

menl.:>, para promover o construir eficiente de uma forma de radica-se no centro mesmo de seu pensamento. Com efeito, o que
colonizat;flo c para elaborar uma nova forma discursiva, aparente- é a cidade para elt:: st::não o local por excelência d~ sociedade, isto
mente a m:lis desprov ida de eficácia, a utopia. Mas esse duplo é, de um estado, certamente inscrito na natureza do homem, ma~
impacto rcvclu, na realidade, o parentesco estr utural dessa prática qúe não cessa também de ameaçá-la? "A sociedade deprava e
espacial c desse gênero textual, ao mesmo tempo que o poder perverte os homens"2~1 porque os expõe à desnaturação, em ou-
l atcnt~ do texto utópico. tras palavras, à perda de sua liberdade individual, da indepen-
Os dois conj untos de textos, o instaurador e o comentador, dência natu ral que lhes 6 própria, para aliená-los pela submissão
se comunicam entre si. Mas, como vimos, sua interação toma à vontade alheia. A cidade é o lugar das relações arbitrárias, o
vias específicas. Enquanto os tratados de arquite tura sofrem a local da máscara, do parecer, da falsidade.
iul'luência direta do discurso dos primeiros arqueólogos-historia- Bem entendido, trata-se aí de um risco e não de· um destino.
clorc_s, a~ utopias são articuladas sobre o dos primeiros geógrafos- O contrato social torna possível uma cidadt:: onde reinaria a liber-
-ctnografos. dade na submissão à lei unanimemente aceita. As artes e as ciên-
cias que se desenvolvem nas cidades podem ser vivenciadas como
3 . 2. Comentários Pró e Contra a Cidade progressos, desde que não se desviem de fins universalizáveis:
a perh:ctibilidadt:: es lá na natureza dos homens, ao contrário da
A relação dos textos comentadores com os textos instaura- dos outros seres vivos. "A natureza humana não n:trocede"212.
do.rcs_ l?arece menos evidente quando se considera sua função Mas essa perfectibilidade é o maiS ambíguo dos bens; e entre
ax10logtca e a forma como tomam partido pró ou contra a cida- os diferentes tipos de estabelecimentos, a cidade é o que comporta
de e o t:spaço construído. No entanto, a análise descobre uma mais riscos, porque impõe a seus habitantes as coerções e o .obs-
d imensão ética oculta, porém inerente aos textos instauradores. táculo da distância. Sua dimensão os isola, os separa, os torna
Ademais, ela reve la que o tratado de arquitetura e a utopia fazem estranhos entre si, impedindo-os de se conhecerem e se comuni-
respectivamente, desde o início, mas sem dar-lhes fo rmulacão ex- carem, aliena-os de si mesmos num tempo fracionado pelos per-
plícita, escolhas de valores, que são escolhas antagônicas.· cursos espaciais: "Passa-se metade da vida indo de Paris a Ver-
À -medida que a cultura ocidental aprofunda sua tomada
sailles [ ... ] t: de um bairro a outro•'243. Mais grave ainda, quan-
de ~on~iência .d e si através de uma reflexão sobre suas próprias do a grande cidade tenta paliar os inconven ientes da d istância
realizaçoes, a cidade tende a tornar-se seu símbolo por excelência, física multiplicando os intermediários da comunicação (hoje se
c o comentário sobre a cidade um lugar privilegiado para a ex· diria os media) cujo paradigma, na época, continua s_endo a es-
pressão de uma visão do mundo e de uma idéia de natureza hu- crita, só consegue impedir o contato vivo e direto das pessoas,
mana. Il us traremos as duas atitudes, positiva e negativa, adota-
portan to das consciência~.
da s pm a com o mu ndo constru íclo pelos escritos comentadores, e
moslr;l rc m os os laços que os prendem ao tratado de arquitetura Por isso, quando Rousseau tempera suas nostalgias e cessa
c à ut opia, toma ndo co mo tipos exemplares e antitéticos (apesar de sonha1· com uma sociedade que evoca tebaidas ideais c espaços
de algumas apmências) trechos de Rou~seau t: de Marx. vazios244, apela ao modelo fechado da cidade anliga245. Se é ne-
_ ~uas .tomadas d.e posição diante do urbano e da urbanização cessário um espaço institucionalizado, pelo menos impeçamo-lo
nao sao eptfeno menms. Comprometem sua filosofia e sua concepção de proliferar. Como vimos246, Rousseau se situa no extremo opos-
do homem. Que Rousseau estigmatiza a cídode não é anedótico to do pensamento espacializante da utopia. No entanto, desde o
niío tr~duz uma contingência biográfica23B que o inclinaria par~ instante em que o mundo construído é apreendido como obstáculo
a rura hdade ou a natureza selvagem. A atitude qut: o leva a de- e a exteriorização como queda e perd ição, está bem perto de sur-
nunciar " as grandes cidades onde reina l!flla horrível corrupção"239 gir a idéia de um modelo espacial, graças ao qua l seja possível
c 3 educar emile longe dos "negros costumes das cidades"240 deter ou frear o desenvolvimento do espaço const1·uido mediante
seu controle. Não está longe a u~opiíl.
?.~H. Me~b que, como insiste E. CASSIRER, a c:1egada. de Rous·
.~Pt lll 11 l'nrls tnnha constituído para ele um traumatismo decisivo, parti·
c·lllnm c.,nlu c•m sua relação com a temporalidade. The Que.~tinn oj Jen.n-
Jttt 't/ 111',, "'"" ·~.w·rm, trad. ingl. de Das Problem Jean-lacques ROUlilieau, 241. Idem, p. 281.
l nclhccu1 11nlvMttll.y Prcss, 1963. 242. Discours sur !'origine et les fondements de l'iné(]alité, citado
?.:Jil. IX111J11·, K o P . Richard (ed.), Garnier, Livro V, p. 601 . por CASSffiER, op. cit., p. 105.
:Nu. lflc•llt. Jl . ll ~i. GL também, no mesmo Livro V: "Adeus pois, 243. :Smtle, ed. clt .. p. 521.
Pcul~ , olrhtdn c·cllohr·,,, <:idnde do barullio, da fumaça e da lama, onde>
as mulhcwutl nlto uc:c·udiiJt m mais n a honra nem os homens no. virtude"
244. Cf. supra, p.
245. Cf.
•s. n . 146.
Émile, ed. cit., p. 9. Não sem Inconseqüência, ele assimila
(p. 444); ou nlcuht : "Nus gmndes cidades, a depravação se inir.ia com os dois casos da peQuena cidade grega CEspa:rta.l e oa gigantesca Roma.
a vida" (p. 102). 246. Cf. supra, p. 48.
70 A REGRA E O MODELO OS TEXTOS SOBRE A ARQUITETVRA E SOBRE A. CIDADE ·'11

Marx que, embora reconhecendo-lhe um valor crítico, con- um progresso e uma etapa superior em relação à cidade ainda
denou a dime nsão modelizadora da utopia, ilustra a posição in- "naturai"25l que a precedeu. De um lado, graças à variedade e
vcr:>a diante do projeto construtor. Que de denuncie as taras da ao número das populações que reúne e graças à sua exploração
me trópok: iudu~triul e retome por sua conta as conclusões das das Lécnil.:as de comunicação, ela anun cia a universalização das
comi s~õcs ele pesq uisa do Parlamento inglês247 sobre as condi- culturas. De outro lado, através da enância do proletariado,
ções de vicJa nas grandes cidades não significa condenação ou desprovido de toda. tradição, incerto a cada dia da moradia c do
dcseonfiança diante do construir, nem recuo com relação ao es- emprego, prepara o grande desenraizamento, a grande ruptura
paço ed ificado. Certamente, ele faz; o balanço da miséria e do so- desalienadora dos homens com os lugares, a li bertação dos laços
fr imento, físicos e mmais, engendrados pelos centros urbanos naturais gabados pelo " reacionário Proudhon" e que, prendendo-o
con temporâneos : barracos infectes que reduzem o homem ao esta- ao mundo animal, impedem que o homem se realize252, Final-
do de anima1 248, mas também distâncias esgotantes entre o "barra- mente, enquanto artefato, a grande cidade da era industrial, por
co" do operário e seu local de trabalho, isolamenlo e anonimato seu aperfeiçoamento e sua eficácia, não pode ser comparada a
sem recursos nuin formigueiro humano onde não existe comuni- todo espaço construído jamais produzido pelos homens: mui tas
cuçi:ío com o scmelhante249. Entretanto, para Marx, a d!stância passagens do Capital o atestam e é esta também a conclusão etno-
c a niio-comunicação não são, como em Rousseau, propriedades cêntrica do Manifesto, que relega a um comum desprezo todos os
da cidade em si . Elas apenas a caracterizam, tal como os barracos outros tipos de aglomerações, antigas e contemporâneas253:
ela classe operária, em dado momento da histúria. São taras tem- O privilégio concedido ao modo de urbanização do homem
porárias, positivas na medida em que exigem sua própria ocidental, que, p ela previsão de Marx, se difundirá pela terra
s uperação25o. inteira , radica-se em que, para ele, o homem somente se realiza
Como já o era a cidade da Idade Média, a cidade da era ao sair de si mesmo, para a exter ioridade, por meio de uma
industrial é o local por excelência dá luta de classes e, portanto, praxis254 que o força a violentar a t tlrra e transfo rmá-la em mundo
da realização da história. Berço respectivo da burguesia e do construído. A Bildung dos homens e de suas sociedades passa por
proletariado, da luta contra o feudalismo e contra o capital, a cida- ser a de seu espaço. Em ou tras palavras, quando mediante o t ra-
de medieval e a metrópole do século XIX são criações benéficas, balho o homem atua "sobre a natureza exterior " c a modifica, ele
cuja f,;;cc negativa faz parte integrante e necessária da dialética da modifica sua própria natureza c desenvolve as faculdades que "ne·
história. Mas, no duplo processo de desnaturação de si e da tena la estavam adormecidas" e "a terra [ .. . ] fornece ao lrabalho o
inerente à história dos homens, a "grande[s] eidade[s] indus- locws stundi, sua base fundamental, e à sua atividade o campo onde
trial[is] modema[s] surge[m] de um dia para o oui1'0" representa ela pode se desenvolver"255. T omadas da abertura da terceira seção
do Livro I do Capital, onde Marx opõe o trabalho da arquitetura
humana ao do inseto arquiteto, tais fórmulas256 soam como as dos
217. Cl. nnoxos do Capite<l, pnrticularmente o An~"o X, Paris tratados de arquitetura . Mais precisamente, pela maneira como
Côutllmnrct, "Bi~l. de ta Pléiude", 1963, pp. 1348 e ss. A cotejar co~ recorr~ a um relato de origem para fundar e reduzir a um denomi-
ENGELS, La s~tuatwn cte la classe laborieuse en Angleterre Paris Éd
sociales, 1960. ' ' · nador comum todas as atividades de transformação, por sua apo-
249. Of. Éco'nomie politi que et Philosophte, Paris, Alfred Gostes, \ 251. ldéologie allemande, ed. cit., p. 218. Em L a Guerra civilc en
1937, onde o cortiço do proletariado é contmposto à "residência Lumi- France, Marx toma cuidado em prevenir o contra -senso que ser ia assi-
nosn de Prometeu", pp. 51-52, milar a comuna nova à sua rudimen tar form a m edieval <Paris, l!Jditions
:l19 . Cf. também ENGELS que, já em 1844, indica: "Essa genté se sociales, 1968, p. 65) . Cf. também as páginas onde E ngels descreve a
cl'Uza correndo como se não tivesse nada em comum [ .. . J não vem ao vida dos operários antes da revolução indttstriut, as " relações patriar-
espírito de ninguém conceder a outrem mesmo que seja um único olhar. cais que aí dominam", e fala do desprezo que deve inspi rar essa "sim·
Essa indiferença brutal, esse isolamento Insensível de cada indivíduo plicidade idílica L . . J essa pacata existência vcgctnLi Vfl ct a S'ituation
no seio de seus interesses particulares são tanto mais repu!{nantes e d~ la classe laborieuse en Angleterre, ed. cit ., pp . :J7-:IU) .
Injuriosos quanto é maior o número desses indivíduos confinados ne:s- 252. Cf. também F . ENGELS, La qucstio11 clu logamcnt, ed. cit.,
tu ""Jl"c;o reduzido. E mesmo que saibamos que esse isolamento do p. 28.
hocilvlchHJ, t,.~sc egoísmo tacanho são em toda a parte o princípio fun- 253. K. MARX e F. ENGELS, Manttestc d1t 11U7't i comm1miste, Paris,
ct••moodul cln sodcdade atual, em nenhuma parte se manifestam com ~d. sociales, 1947, pp, 14-15. Bem vista pur R. WILLIAMS, op. cit.,
1111111 ltll )}l' ttd(lc1c: hl, uma segurança tão totaís quanto aqui, precisamente. p. 303.
na llltl lllll'lllcl tln t(•·nncle cidade" (Situation ... , ed. cit., p. 60). 254. Cf. K. AXELOS, Marx penscltr de la teahnJque, Paris, J',.:d.
~li() , l 'HI'Il quo scc possa realizar uma verdadeira comunidade "é Minuit, 1961.
prcc:ltco C) l w on lllolu:; necessários, iSto é, as grandes cidades indust~·iais 255. De cav ital, Liv. I , 3.• secao, Cap. VII. ed. cit ., pp, 727-735.
e m; c:Octll HJ ic•nvllu:c tiiHpondiosas e rápidas, sejam esLab~lt:cidas em pri· 256. A cum.parar com aquelas, bem anteriores, de J!iconomie poli-
m eil\) IUIJ'Ul' p o li• l ~• · nn<.lo indústria" (ldéologia allemande, ed. Alfred tiaue et Philosophie (ed . cit., pp. 31-10 ), da Idéologie al/emande (ed. cit.
Costes, Pul'lll, 'I Da'l, 11. Z~ l ) . p.- 222) e do Manifeste (ed. cit., pp . 13-15).
72 A REGRA E O MODELO OS TEXTOS SOBRE A ARQUITETURA E SOBRE A CIDADE 73

logia da dcsnatu1·a.ç ão e pela escolha das marcas mais significativas Mas pouco importam, em definitivo, os casos tratados, desde
que lhe atribui, "ateliês, canteiros, canais, estradas" ... , a passa- que tenham permilido localizar a posição dos textos instauradores
gem intciru donde são tiradas essas citações poderia alinhar-se na rede e no jogo dos escritos relativos à cidade, e facultado a
entre o::; " elogios da arquitetura" que constituem uma seqüência percepção de sua escandalosa estranheza. Era esse o objeto de
quusc obrigatória dos tratados. um capítulo que talvez tenha contribuído também para precisar
A. aproximação não é fortuita . Deixa entrever pressupostos a categoria taxionômica em que se inscreve este livro: texto ~ubre
ant ropológicos comuns, silenciados nos tratados c revelados pelo textos concernentes ao espaço edificado e à cidade, ele é comen-
texto comcntador. Para Marx, a ci~ade não tem valor enquanto tador, mas em segundo grau.
modelo de urbanização - num;él encontramos nele a nostalgia de
um tipo urbano qualquer - , mas como símbolo de confianca a
atribuir ao espaço para informar o projeto, sempre novo e 'ino-
vador, com cujo desdobramento o homem se constrói enquanto
arruína a natureza. A grande cidade industrial é superior a todas
as formas de aglomerações que a precederam no tempo e no espaço.
Mas da marca um momento da história e desaparecerá em pro-
veito UI:! uma forma superior, consagrando a "supressão da dife-
rença entre a cidade e o campo". Que as cidades ultrapassem seus
limites e que os campos se urbanizem. É o processo de urbani-
zação em si e por si, que Marx exalta, como Alberti celebrava
a edificação. A confiança que um e outro demonstram pelo
Ilomo artifex não deixa lugar à dúvida: Marx não prevê nem a
escala nem a força destruidora da urbanização anunciada por
sua famosa "supressão". Essa adesão irrestrita à invasão da terra
pelo constwir opõe-se à desconfiança que a utopia devota a to-
das as formas de exteriorização.

Os exemplos anteriores deverão ter mostrado os limites da


co n vc n ~iío que fm: dos textos insqmradores uma categoria autô-
nomu c ~.: x c l u i de nosso corpus os textos comentadorcs257, além
do~ outws textos realizadores : uns e outros não cessaram de
interferir com os tratados e as utopias, participando seja de sua
gl3ne::;e, seja de sua evolução.
Por necessidade, os exemplos foram em número limitado·
siio, portanto, esporádicos e arbitrários. No que tange aos texto~
realizadores, foi possível não lhes impor a fronteira do século
XVIII e apelar para os séculos XIX e XX. Em compensação
u comentário axiológico poderia ter sido buscado na idade clás~
sica. E_ é _ií!.uai?Jente di~cutível o ter colocado entre parênteses
11 contnbll!çao mcomparavel das literaturas romanesca e dramá-
ti cn que, n partir do século XIX, superpõe à objetivação da cidade
l l lll 1110vimcnlo inverso, de repersonalização.

~m . H ollll'!l n eficácia do texto comentador, cf. R. CAILLOIS, que


OIJ:;tii' VIl quo " o mito elo Paris [em La Comédie humamcJ anuncia estra-
'llhO~ JIOII tiiU:I !lo lllcmtllra" e que o romance "não tem pretensões a uma
bolo~u h• lt•nlJHn•nl I . .J Pretende traduzir uma realidade e!êmera e cam-
biante, quo olu p•·ocuru modifi c~" (introdução ao Pere Gor iot e às
Il!usions pordrws. p. 'll. ro ortto é nosso.J
2. "De re aedificatoria":
Alberti ou o Desejo
e o Tempo

O livro ao qual atribuí um caráter pioneiro e que, segundo


penso, rompeu com a tradição abre-se, paradoxalmente, já na
primeira frase, com uma invocação aos antepassados (majores
uostri) e com um elogio a suas realizações!. ~ esse o sinal li-
minar de uma referência ao passado que, em seguida, percorre
lodo o texto, na forma de citações de autores antigos2 e de
numerosos relatos que se abeberam tanto nas fontes da mitolo-
l'.ia3 quanto nas da história antiga', sem por isso eliminar as

1. "Multas et varias artes, quae ad vitam bene beateque agendam


Jrw1ant, summa industria et dilioentia conquisitas nobis majores nostri
t mclidcre" (op. cit., Prólogo, p. 7).
2. De Platão a Aristóteles, de Heslodo a Pitágorns, de Ptolomeu a
1-1/\Hocn, de Cícero a Plínio, o Moço. Para ns fontes literárias de Alberti,
1·r. A.V. ZUBOV, "Leon Baptista AlbcrU ot. los nutcw·s du Moyen Age",
Mt·r!Jlreval and Renaissance Stucltes, vol. IV, Wnrhlll'lt Instituto, London
unlvcrslty, 1958. Mostra. o autor quo dos nomc11 <lu 1l11lore~; que Alberti
l'lln não se pode inferir as suas vordndclrnn htltur11H. J•:nsos autores,
d o conformidndc com uma von tade "hurnnnlr<tH" (In rufllurn com o pas-
rmdo próximo, são buscndos oxc hmlvnrnonto nn Antlt: uldnde, mesmo
qu1mdo Alberti os conheceu l\tmvlln dnu roul m1 mcdlovuls que ele se
llhtll.c.lm de citar. A conclusno do :t.uhov 110 i:()nruntlc, contudo, com a
qut· desenvolvemos cssoncJnlmcmtu c1111 hn·uo d o caso de Vitrúv1o (cf.
Inf ra): ns lciturns do Albortl nno f •trN11 om nndn n originalidade de seu
1111111111110.
:1. CC. o lncllndlo do tomplu du J~ rcno pelas Amazono.s (Livr o VII,
(;1111. XI).
4. Cf. a lmp orU\nofo (10 nutot·ou como Heródoto (treze citações),
't'unf<lldcs (scto cltaçOO:J), ~usu·, T ito Llvio. Flávio Josefo (oito citações
cn(lll um) .
76 A REGRA E O MODELO
m ; R E A EDIFICATOR I A ; ALBERTI OU O DESEJO E O TEMPO 77
" histórias" mais ou menos fantasiosas que a tradição literária
antigaS transmite, nem pmibir as reconstituições h istóricas do !unia, pela antropologia e pela semiologia atuais. De um lado,
autor. M u i ~ bi:.wrro aiuda, es ta obra uedil;ada às regras da edi- p roporá uma leitura do De re aedijicatoría como teoria da edi-
fi c:~çfio está permead a de considerações sobre assuntos heteró- 1icação. De outro, tentará desvendar uma significação latente
clitos c, a parentem ente, estranhos a seu propósito. Explica a for- do texto em geral e alguns relatos mitológicos em particular.
m:~ção dos ventos, estuda as d iversas constituições políticas, ana- Com efeito, longe de constituírem um divertimento anódino, esses
lisa H ins tituição da família mononucléka, medita sobre as Llitimos parecem tr abalhar em dois níveis: superficiahnente se-
d i!'crenças q ue contrapõem proprietário rural e mercador ur- ~.:u ndo a escolha de Alber ti, e em profundidade à sua revdia.
bano. Enfim, parece confundir regras teóricas e receitas práticas: Finalmente, uma comparação estrutural en tre o De re aedi-
en uncia com o mesmo cuidado a s regras u ni versais para a es- ji.:atoria c o De architectura será cham ada a confinnar minhas
colha do sítio de u ma cidade ou o estabelecimento das fundações hipóteses e a ressaltar claramente, por contraste, a singularidade
de um m uro c aquelas cujo emprego evitará racha duras no ci- d a obra albertina.
mento, explica em detalhe como calcular as proporções das
colunus ~cgunclo as " leis" da beleza, mas tam bém como mis- I. A ARQC IT ETURA DO DE RE AEDIFICATORIA
tura r ca l c urina humana para executar o piso de um col um-
h;í rio q ue ;1tra irá imperiosamente os pombos. Os dez livros do De re aedificatoria são introduzidos por
um Prólogo de quatro páginas7 que expõe o espírito da. obra
Des ta rte, duas tarefas passam a nos ocupar. Primeiro, cabe
mos trar que o De re aedíficatoria não apre3enta uma paisagem e sua economia. E mbora comece, m odestamente, por r econhecer
errática senão ao viajante apressado que queima as etapas e não as realizações dos antepassados, ainda evocadas por várias vezes
no curso do livro, seu verdadeiro tom lhe é d ado já na nona
n :speita a ordem do encaminhamento concebida e imposta pelo
a utor: quando o detalhamos ao acaso, a riqueza do edif ício al- linha, quando de repente Alberti toma a palavra na primeira
bertiano esconde-lhe a estrutura. Deveremos provar a realidade pessoa: eu imperioso em que se encarna a razão, eu entretanto
de l.)ma organização textual sem falha cujo rigor Alberti reivin- inseparável de um tu anônimo, interlocu tor mudo (altcrcgo, lei-
dica , e mostrar q ue as exposit;ões sobre os ventos, as constitui- tor, pouco importa) que o acompanhará ao longo da obra. Ve-
ções ou a família se acham _em seu lugar, previsto, lógico e le- remos o papel essencial que representa, tanto no texto quanto
na teoria, essa dupla relação dialógica com a obr a dos prede-
gítimo, tanto quanto algumas receitas pl'áticas. Do mesmo moâo,
mostraremos que a importância atribuída por Alberti à hist ória cessores c com a outra, dupla escuta das vozes silenciosas do
e ao passado não é a m arca de um tradicionalismo, mas par te passado e d a voz vibran te do presente.
imcgrnntc de u ma visão p rospectiva e de um procedimento ino- O Pr6logo compreende três partes, de importância desigual.
vndor. : r .·al:l-sc , po is, nesse primeiro tempo, de uma análise da A primeira e p rincipal é dedicada ao elogio da edificação, en-
q uanto as du as seguintes revelam, . respectivam ente, primeiro as
c~t ru lu n1 c do fu ncioname nto manifes to do texto. A extensão e a
Iin ~.:ariJadc dessa an{l li:,c se fizeram necessárias devido à ausên- motivações que levaram Alberti a escrever seu tratado, depois o
cia de uma versão moderna e crítica do De re aedifi catoria em seu plano. Mas, m uito além desses con teúdos, o Prólogo expõe o
p róprio funcionamento do De re aedificatoria.
língua inglesa, pois a única tradução disponível continua sendo
a que Leoni publicou em Londres em 17266, a partir da tra- O elogio da edificação tem início com uma r ápida passa-
dução italiana (1 550) de. Cosimo Bartoli. gem que revela seu valor d e paradigma: para Albcrti, mais do
que qualquer outra atividade, a edificação p rova o poder cria-
Nossa segunda tarefa será interpretativa e recorrerá delibe-
dor dos homens, pois, melhor do que todas ns outras, ela sa tisfa:~;
radamente a instrumentos conceituais elaborados pela epistemo-
ao mesmo tempo as exigências dos trê; níveis em que opera o
fazer dos humanos, a necessidade!!, a comod icludc!l c o prazer
r.. Relativas, por exemplo, às sepulturas taustosas encomendadas
Rodope de Trácia. (Lino II, Cap. I!), à fon rJga sacrificada
) 11 •111 <'OI'lt·Ri'l 7. Na ediÇãO Orlandi.
u.u Hnl l ~•l nx contes de Moréia (Livro VII, Cap. li) , à proposta feita palo 8. O conceito de necessidade p crmll.o OI1J(lobnr no mesmo temp o os
lll'flll llolo lllnucmtes a Alexandre. r equisitos inpostos pela constr uçiio (:JOIIc.lur.) c os que di2em r espeito
11. ll:,.:m ru i objeoo de um reprin t ho:e esgotado, por JOSEPH à natureza. hum ana (necessiclndos ). D tl dll n importância dos pr imeiros,
t tV I<W I':II'I ', l ,oud rcs, Tiranti, 1953. Em francês a situação é pio1·, pois Alberti p or vezes substitui, por motnnhnln, o conceito de necessitas
u. ''"'"'I lom l11çli•> ó n de Jean Mar t:n (1550) que acumulo. os contra- pelos conceitos vttruv!anos de sol! tlit u~ ou de {i1·mitcs.
lit 'lli/IIJI 11 11 lllrlt•u ltlnrln de uma Hngua que se tornara arcaica. De n ossa
9. As vezes Alberti substit ui CH.so termo pelo de ut ilitas que vai
lw'K" 11ou\llrlu " '~ l n u H<>~ . li chJ.ro, tudo o que não interessava direta- buscar em Vitr úvio, m as quo oxpllcu muito menos a diversidade das
m on to h ' " 'Ci ll \l !ltlll'll lclglcu. do texto. As citações, em latim como em fl<;[lir ações p róprias a esse segundo n!vel, igualmente denotado pelo subs-
fran c/J"i, liJIIullull l lcn pliJt luus do texto latino da edição OrlamU. tunlivo commodum (objeto de comodidade) e pelo adjetivo commodus.
Commoclitas é também, ocaston nlmente, substituido por usus.
78 A REGRA E O MODELO DE RE AEDIFICATORIA: ALBERTI· OU O DESEJO E O TEMPO 79

estético. Assim introduzida, essa tríade reaparecerá cinco vezes construção traz glória a seu autor, não só peirmitindo fixar a me~
no Prólogo que, em seu desenvolvimento, especifica seu sentido mória das gerações futuras, mas também porque atrai o comen-
e começa a fazê-la atuar, antecipando o papel que é chamada a tário, esse louvor ( laus) cuja necessidade está tão profundamente
desempenhar no próprio corpo da obra. ancorada na alma do espectador quanto a paixão de construir
Heconhecído o valor paradigmático da edificacão Alberti na do construtor. De outro lado, maior será o louvor, quanto
convoca o cdifícador para uma apresentação rápid~ ;.as cheia mais rigorosa for a conformidade da obra ao que podemos cha-
de sentido. Com efeito, trata-se de autêntica certidão de re- mar, de antemão, o '"princípio de economia", segundo o qual
conhecimento e de nascimento quando Alberti contrapõe ao ar- nada pode ser-lhe acrescentado ou retirado impunemente.
tesão e confere o estatuto de nrquiteto (Architectwn ego ... O elogio da edificação termina com uma última volta à tría-
constituam) àquele que, pela força da razão e pelo poder de ue, que dá a Alberti a oportunidade de abordar o st:gundo mo-
espírito, saberá corresponder lli; exigências da necessidade, da mento, biográfico, de seu Prólogo. O D e re aedificatória é fruto
comodidade e do prazer estético. de um maravilhamento (diante das realizações da edificação) e
A seqüência do elogio da edificação é., então, diferida por · de um questionamento (quanto a seus caminhos). O reconheci-
mais um instante, em proveito de um curioso relato que, infe- mento da edificação como atividade fundamental levou Alberti
rindo de sua feliz relação wm necessidade, comodidade e pra- a indagar " de que princípios ela derivava" e como se podia
zer, faz da edificação a origem da reunião dos homens em definir-lhe os elementosll, sem se deixar arrastar pela com-
sociedade. Alberti não teme inverter aqui a ordem de consecução plexidade dos problemas que levanta a infinita diversidade das
transmitida pela tradição c f~tomada por seus sucessores, se- atividades humanas, classificáveis segundo uma série de oposi-
gundo a qual o estado de sociedade é condição prévia que ções binárias: universal/particular, público/privado, sagrado/ pro-
permite o nascimento e o desenvolvimento da arquitetura. A cau- fano. Assim, com um mesmo movimento e paralelamente, Al-
ção desse primeiro começo legitima seu empreendimento c o au- bcrti narra o itinerário intelectual que o fez empreender e
toriza a arrolar as contribuições da arte· de edificar aos três planos conceber seu livro e precisa a organização desse. A lógica da
sucessivos da tríade que começa aqui seu trabalho ordenador. gênese arquit~tônica escande as etapas crono-lógicas da refle-
O nível da necessidade, onde a construção constitui garan- xão albertiana que, seguindo a ordem seqüencial da tríade, se
tia contra os agentes naturais e resposta às necessidades de base, desenvolveu em três fases.
é tratado rapidamente. Em compensação, Albcrti detalha lon- No início da primeira fase, uma constatação, apresentada
gamente as maravilhas realizadas graças à comodidade. Respon- como um dado imediato: " Todo edifício t! um corpo" (aedijicium
dendo às demandas que o~ humanos são levados a formular no quidem corpus quoddam esse animadvertimusl2). Doravante nós
duplo campo de suas atividades públicas e particulares, a edi- nos referiremos a ele como o axioma do edifício-corpo. A seqüên-
l'i cuçíio· lrunsfonna a natureza e inventa sem cessar novos arte- cia do livro irá mostrar que Alberti entende aí um corpo vivo. Não
fa los. Colocado sob a invocação tutelar de Dédalo (palrono que um animismo ingênuo o leve a assimilar artefatos a seres
dos arquitetos), o b alanço albertiano parte da captação das águas animados. Todavia, identificando os dois termos - edifício e
selvagem e da abertura das montanhas e chega à ereção dos cor:po - Alberti vai mais longe que Aristóteles em quem sem
monumentos comemorativos, passando pela invenção das máqui- dúvida se inspi~ul3: sua fórmula não reflete apenas uma iden-
nas de guerra, pela criação das estradas e das cidades, e mos- tidade de organização, designa o edifício como um verdadeiro
trando como o ato de edificar pode evilar a desintegração das substituto do corpo-, e por isso mesmo ela contém em germe,
famílias lanto quanto a das cidades. como veremos, uma teoria estética. Desse axioma decorre ime-
Embora o prazer, esse prazer mais elevado (summa vo- diatamente um p rimeiro corolário, pouco importando à nossa
luptaslO) que é o deleite que a beleza proporciona, seja o fim análise - essencialmente limitada pela dinfimica c pelo fun·
lil ti mo da edificação, Alberti quase não se detém nesse nível, cionamento textual dos conceitos utilizados pur Alberti - que
u 11110 ::;cr para enunciar duas proposições que serão retomadas
Ll nplkudas em todo o correr do livro. De um lado, uma bela
11. "Coepimus [ ... J de ejus arte ct rcbus accuratius perscrutari,
quibusnam principiis didu.cerentur quibusve partibus haberentur atque
10, fiJ) . cll., p. 13. Se o substantivo delectatio não aparece no De re jinirentur" (p. 15).
aotllflt•lllnrllt, uu1 compensação contam-se vinte ocorrências do verbo 12. Op. ctt., p. 15.
clelcclM'U llnlt·tul lllnlo nos livl'os dedicados às regras da estética. Enfim, 13. Cf. Poética, 1450 b 35. A. CHASTEL mostrou como o. mesma
o pm;.:ur d lt: ~mlnlunl.o representa do pelo termo mais fraco de amocnitas idéia foi retomada pelos neoplatõnicos florentinos e particularmente por
(diversão) quo tll)ll l'ucu d e;, vezes nesses mesmos livros. Cf. H . K. LÜ· FICINO. em sua Th.éOlO(Jie platonicienne, Art et Humanisme fJ Flor ence,
CKE, Alberti l nlliJ.t , Muniqno, Prestel Verlag, t. 1. au temps de Laurent !e Magni f ique, 2.• ed., Paris, PUF, 1959, 1961, p . 301.
80 A REGRA E O MODELO DE RE AEDIFICATORIA: ALBERTI OU O DESEJO E O TEMPO Bl

ele ainda traga a marca do aristotelismo: a exemplo de todo nimo de espaço e com um mínimo de meios terminológicos e
corpo, um edifício consiste em forma (lineamentisl4), depen- c.:onccituais que Alberti, graças a esse Prólogo, ao mesmo tem-
dente do espírito (ab inganio), e em matéria, dependente da na- po expõe seu propósito generativu I! consegue os meios de rea.
tureza (a natura). Alberti indica que esse enunciado lhe per- Jizá-lo. Meios enunciativos de um lado, que comparam o eu
mitiu com lruir a 8eqüência das regras da edificação ao nível do teórico ao tu do leitor-espectador-cliente-colega e ao ele da
da necessidade: sucessivamente, teve de abordar aquelas que história que subsume construtores do passado. Meios lógicos de
dizem respeito à forma, à matéria (artificialmente dissociadas o utro lado, que servem para gerar as n :gras da edificação e a
pelas necessidades da análise), depois sua união no a lo de ~;uns­ ordem do livro. Chamá-los-emos operadores15. Sob a denomi-
truir. nação de principia, partes ou rationes, uns são explicitamente
No princípio da segunda fase de -sua pesquisa, Alberti se reconhecidos por Alberti. Designá-los-cmos doravante como o
viu novamente diante de uma evidência: a infinita variedade axioma da tríade (que gera o plano geral do livro), o axioma
dos usos humanos que repercu te sobre os edifícios e exige, para do edifício-corpo, o axioma da classificação dos usos. Veremos,
que não nos percamos nesse univet·so de diferenças, o estabe- com o tempo, que atuam dois outros tipos de operadores que
lecimento de uma classificação . Quanto à terceira fase, Alberti Alberti não reconhece formalmente como tais. Veremos, tam-
evoca a seu propósito apenas a pesquisa a que teve de proce- bém, que, para gerar o conjunto do texto, serão suficientes ape-
der sobre a natureza da beleza e de seus fatores (ex quo prae- nas dois operadores além dos contidos no Prólogo.
cipua pulchritudinis effectio emanerit). Mas o questionamento Um esquema permitirá apreender a arquitetura geral do
não se detém aí. Porque é. preciso, para terminar, considerar o De re aadificatoria tal como o Prólogo a projeta. Demos-lhe a
problema das reparações, procurar o modo de remediar os erros forma de um triângulo equilátero repousando sobre seu vé1iice.
do arquiteto tanto quanto os acidentes da nature~a. Dessa for- O triângulo representa o desenvolvimento da edificação no tem-
ma, esse segundo tempo de um Prólogo que começava como po e no espaço. Vê-se assim que o mundo edificado ocupa cada
canto de triunfo termina com a evocação da negatividade. Alberti vez mais espaço (eixo das abscissas) à medida que sua elabo-
não define o horizonte do construir em termos puramente posi- ração prossegue no tempo (eixo das ordenadas). O Prólogo é
tivos, no quadro de uma progressão linear. Desde o inicio, ele representado por um pequeno retângulo em cuja base repousa
situa a atividade do construtor no campo do desamparo, entre o vértice do primeiro triàngulo: sua posição indica seu caráter
o erro e a obsolescência. gerador, e sua dimen são a forma condensada sob a qual ele
Se o segundo momento do Prólogo consiste em superpor contém a maioria dos operadores do De re aedijicatoria. Sua for-
duas crono-lógicas, a de uma aventura in telectual e a da ati- ma, enfim, assinal a a homologia de seu desenvolvimento e do
vitladc çonstru tora, o terceiro momento introduz uma nova su- desenvolvimento do texto que o segue. Os dois operadores não·
perposição que, desta vez, faz corresponder termo a termo a incluídos no Prólogo são representados nos locais de seu apa-
crono-lógica da construção e a dos livros do De re aedificatoria. recimento (Livro I e Livro IX). O esquema mostra igualmente
Assim, esse sistema de reduplicação sublinha o duplo propósito q ue a obra de Alber ti, cujo espaço textual (a seqüência de suas
gerador e genealógico do tratado e indica que o espaço (livro) páginas) aparece em ordenada no mesmo eixo que o tempo da
onde se realiza metaforicamente a gênese do mundo construído construção, comporta quatro partes sucessivas. A primeira com-
c da arquitetura é, ele também metaforicamente, uma arquite- preende os Livros I , Il e II J c oferece uma teoria geral da
tura. construção. Situa-se no nível da ncccssidud e cujos regras são su-
Poderá o edifício textual de múltiplos desígnios conservar o cessivamente consideradas do ponlu de vista da fo rma (concep-
l'igor e a firmeza desse desígnio preparatório? Previamente a ção), da matéria e do emprego dl!s tu. 1\ ~cr,u nd a pu rtl! corres-
toda investigação, convém obser var que o Prólogo não é somente pende aos Livros IV e V e diz res pe ito 110 11fvcl du comod idade,
u111 <.:sboço e uma introdução: fa z parte integrante da constru- definida pelo conjunto dos u ~o::. (usrrs) qllu u d c~ujo dos homens,
Çi tlJ ui h(; r f ia na, cujos fu ndamentos ele coloca. Segundo o "prin- estimulado pela vida social, pude.; iii V(;II Iu r. o~ Livros VI, VII,
dpio (k eco nomia", que vimos surgir no elogio da edificação, VIII e IX, dedicados à bcll!za c 11 01-, o rn:un<.: ntos, dão acesso ao
c q ue 11(1111rfl ao longo de todo o De re aedificatoria, é num mí- nível do prazer e eonstitUCIH n te ree iru parte que se pode con-
siderar como a estética arq ui lc l ni<:u du Alberti. A quarta parte,
destinada aos erros e repar;~çocs, c constituída unicamente pelo
11. S(~{ ll t lll o t>nrcco. o termo lineamenta, que fe?. correr muita tint2
(ver, em pur·Ltc:uhu·, S . LANG, "De lineamentis" , Journal ot th.e Warburg 15. Operador é tomado aqui 110 ,'<cnliclo de indicador de transforma·
Institute, t. XXVJTT, IOGfi ), pode ser considerado legitimamente como a ção, de signo que permite dcrtnll· n lei de uma operação, conforme a
especificação at·quiLoLOnJcu da forma aristotélica. definição de N. DUNFORD e du J . B . S CWARTZ, in Linear operators.
82 A REGRA E O MODELO DE RE AEDIFICATORIA: ALBERTI OU O DESEJO E O TEMPO 83

Livro X, vem coroar o resto do euifído: sua posição última


traduz sua função recapitulativa e o fato de remeter ao conjunto
dos espaços então gerados; ·mas a vocação corretiva e não-cria-
dora das regras de reparação é expressa pelo pontilhado c pela
seta descendente em oposição ao movimento ascendente do li-
Il- ,,
vro. Enfim, figuramos em cinza as partes em que Alberti não
seguiu o plano do Prólogo. Assim, no Livro IX, que devia ser
I consagrado às regras dos ornamentos dos edifícios privados, os
I Cap:s. V, VI e VII lralam das leis "filosóficas" da beleza e os
I
I Caps. VIII a XI da prevenção dos erros. Da mesma forma, em
I vez de ocupar-se somente das regras de reparação; o Livro X
I dedica onze de seus dezessete capítulos a questões de hidrologia.

No lim.iar do Livro I, Alberti dedica o primeiro pa-


rágrafo do primeiro capítulo a urna exposição de método.
No plano da forma, ele tornará por regra a clareza e a simpli·
cidade; gesto de solicitude para com o leitor ou, melhor ainda,
para com o interlocutor mudo, esse tu já presente no Prólogo c
que Alberti não cessará, no curso da obra, de interpelar e tomar
por ~stemunha. No plano da matéria, Alberti distingue e clas-
sifica as três fontes de seu trabalho. São, por ordem de impor-
tância crescente, o patrimônio dos escritos sobre o domínio cons-
tntído, o próprio patrimônio construido, e finalmente seu pr6·
prio espírito. Com efeito, para extrair e fundar as regras que
se impôs como tarefa formular, a reflexão de Alberti se exer-
cerá com maior segurança sobre os edifícios do que sobre os
textos por vezes demasiado enganosos, e, melhor ainda, sobre
sua própria atividade mental, ou mais precisamente sobre as
operações intelectuais a que procede no cumprimento de seu
ofício de arquiteto.
Já na abertura desse primeiro capítulo consagrado à forma
do ato constnttivo (De lineamentis aedijiciorum), àquilo que, em
si, apresenta um valor universal (quae ad uniliersu opus perti·
nere videbantur) c pode ser separado de toda materialização, em
outras palavras, àquilo que hoje denominamos conccpçãol6, são
pois apontados tanto a importância da rcflcK~O pessoal (nostro
ingenio) - apreendida em tetmos surpreenden temente moder-
nos de trabalho (labore)1 7 , a palavra labor rcnparccendo em se-
guida a cada evocação da aventura intclcctuul c da pesquisa pes-
soal do autor - como o valor gencrativo da auto-análise do ar-
quiteto para a busca das regras do construi!·.
Alberti descobre, assim (Cap. li), que o processo de con·
cepção pode-se decompor em seis partes (partes) ou princípios
16. :.;: de concepção que se tJ:atn realmente, na medida mesma em
que n.s formas são consideradas "animo et mente, seclusa omnl mate·
ria" (Cap. I, p. 21).
17. O:> dois termos aparecem já na quinta. llnhn do capítulo, p. 19.
DE RE AEDIFICATORIA: ALBERTI OU O DESEJO E O TEMPO OS
B4 A REGRA E O MODELO

.:,~ct!cado,sublinha-se que ela exige toda a força de espírito e


(principia), sendo os dois termos empregados alternativamente. resü!~e a arte de construirl9. A cobertura, ao contrário das ou·
Estes são deduzidos de um relato de origem, que narra, em seis tras ope1·açôes, é objeto igualmente de um juízo de valor: a co-
seqüências, a gênese do primeiro estabelecimen to humano. A se- bertura é a parte " mais útil"20 do edifício. Entenda-se: é ela
cura de seu relato mostt·a bastante que Alberti se interessa ape· que, embora protegendo as outras partes da construção (mirijice
nas pela lógica desse episódio mítico. Pouco lhe importam o omne tuetur aedificium), corresponde às necessidades básicas dos
detalhe e as circunstâncias. Pouco importa, diz ele ironicamente, humanos, abrigando-os contra a noite, o sol, a chuva e seus
que seja preciso imputá-lo a Vesta, seus irmãos Henriade e diversos inimigos, ao passo que a divisão, que não está mais li-
Hipcrbo, a Gelião, Trasão ou ao Ciclope Tiffnquio. Às lendas gada às leis impiedosas da necessidade, mas às determinações
da tr~dição ele contrapõ_e o sic putolB peremptório de sua pró- do uso, consagra o jogo das diferenças humanas.
pria versão; c, enquanto inventor ou construtor desse novo re· Não entraremos no detalhe das regras geradas com o auxí-
lato, se coloca no lugar dos inventores presumidos da primeira lio das seis operações do axioma da concepção. Seu número e
habitação, relegados em hloco ao domínio da fantasia. sua variedade repousam no espírito de sistema que Alberti de-
Os seis " princípios" da concepção - hoje falaríamos de st:nvolve a fim de tentar cobrir a totalidade dos casos a con-
operações c ficaremos com esse termo para designá-los - dizem siderar. A diversidade do conjunto 6, todavia, unificada por uma
respeito, respectivamente, à região (regio), à área (area), à di- grande temática estrutural. Com efeito, o axioma do edifício-
visflo ou planta (partitiu), à parede (paries), à cobertura (tectum) corpo continua a trabalhar por meio de novos corolários segun-
c às aberturas (apertiones). Seu conjunto é constituído por AI· do os quais como nos seres vivos, as partes (membros) do edi-
bcrti como um dos operadores-chave do livro. Doravante, nós fício devem ser subordinadas ao todo e solidárias entre si (veiutí
nos referiremos a ele como "o axioma da concepção" . Desde o in animante membra membris, ita in aedificio partes partióus
relato de origem do Cap. li, esse axioma é associado ao axioma respondcant condecet21), na medida em que cumprem funções
da tríade que, por sua vez, designa os três campos de aplicação especificas e diferentes. Essa abordagem estrulural permite que
da necessidade, da comodidade e do prazer. Alberti simplifique o:; problemas, ressaltando conjunt.:>s que a
Após a dedução lógico-mítica que serve para fundamentá- prática corrente da linguagem mascara. Assim, d~:: d 10fre, a co·
las, as seis operaçõ~s básiCi:iS são rapidamente definidas, depois, luna é assimilada à parede22 em seu papel de suporte e o con-
na ordem de seu aparecimento inicial examinadas uma a uma, ceito de abertura engloba igualmente todas as passagens, isto é,
e respectivamente cruzadas com cada um dos três níveis da tría- as portas e as janelas, como também as escadarias e todas as
de que as fazem engendrar a cada vez regras específicas. canalizações de adução ou evacuação, tais como as chaminés c
Desta forma, no curso dos capítulos, o leitor aprende suces· os esgotos23. Sobretudo a divisão é colocada como uma única
sivu mcnt.c como escolher uma regi ão sadia e agradável, levando e mesma operação, qualquer que seja a escala em que ~. apli-
em wntu os ventos c o regime das águas, e praticando uma se- cada, trate-se da cidade ou da casa. :S, pois, eliminada ao nível
miologia cujos signos são levantados tanto na antropologia física dessa operação toda diferença entre a arte urbana e a arquite·
tJuanto na botânica; como adotar para as construções uma área tura: "a cidade é uma grande casa e inversamente a casa é uma
que satisfaça as exigências da topografia (inclinação, solo) e da cidade pequena"24.
geometria; como organizar a planta e articular a divisão, com o
uuxílio de uma regra de coerência que integra o programa ao 19. "Tota vis ingenii omnisque rcrum acdiflccuullrmm ars et peritia
mesmo tempo que as condições naturais e mesmo os costumes una in partitionc consumitur", p. 65. Afilm nçüo retomado no começo do
locais, cuj a "relatividade Albertí sublinha de passagem. Em se· Livro II.
guida, vêm as regras que permitem determinar a espessura das 20. Cap. XI, p. 75 ("Tect orum utWtas 01mt!rw1 t'sl pri ma ct maxi·
ma"). Juiz-o confirmado 'no Livro II (Cap. I, p. OU) .
purcdes, desde a base, distribuir os esforços no madeiramento dos 21. Livro I, Cap. IX, p. 65. A11imau/c rcnt{'lo ao corpo dos verte.
t~;t t>~. dispor as janelas para atender à higiene (ar e sol), fixar bro.dos em geral. Em Alberti n1io se cnc·ontm o antropomorfismo de
11 d i~t rib u i ~,:iío das portas em função das ligações que elas esco- Filareto ou de Francesco di Giorgfo, pn111 O!l nuals o corpo referencial
rum l' du l'l'Onomia geral do edifício de que fazem parte. para o arquiteto só pode ser o du 1tun1c"'· Dé foto, o cavalo é o ser
vivo cuja organização lllbcrti comparn do bom grado à do edifício,
A d i vi~no ocupa lugar privilegiado entre as seis operações. notadamente a propósito do udapla<.;~ lO a suus funções, na segunda parte
No t•c lnl o d~; origem, é a única que não é designada pelo nome, do De re aedificatoria.
mu ~ por tnllll lonp;n perífrase. Em seguida, no Cap. IX, que lhe é 22. Cap. X .
23. Caps. XII e XIII.
24. " Civitas L .. J maxima quacdam est domus et contra domus mi·
nima q®edam est civitas" <Cap. IX, p . 65). Da mesma forma, cada parte
18. " . . . twult'lll ,çlc puto hos fuissc condcndorum aedificiorum pri-
mos ortus 1Jrlmosoue orcllucs" { p . 23l.
86 A REGRA E O MODELO DE RE AEDIFICATORIA: ALBERTI OU O DESEJ O E O TEMPO S7

O Livro li parece ultrapassar o objeto que o plano cio Pró- priamente dita, síntese das regras da concepção (Livro 1) e das
logo lhe atribuía, isto é, o enunciado das regras próprias aos da matéria (Livro li), para apresentar as regras universais da
materiais que irão intervir na construção. Alberti começa, com construção em geral, segundo u ma ordem que reproduz a das
efeito , por consagrar os três primeiros capítulos a regras meto- seis operações. O objeto que Alberti estuda agora não é mais,
dológicas sem relação imediata com os matt::riais. Entret<mto, portanto, um caminho in telectual como no Livro I. Trata-lle da
no processo concreto da construção elas se situam realmente relação concreta com a materialidade d a edificação. Mas, na me-
entre a concepção geral e a realização. O quadro cronológico é, dida em que esta se inscreve no registro da necessidade, ela reves-
pois, muito bem respeitado. Seu conteúdo é ampliado apenas te ainda um certo caráter de abstração. As regras em questão di-
em proveito ele uma série de procedimentos que não dependem zem respeito ao construir, independentemente de sua deslinaçã9,
nem da concepção propriamente dita, e muito menos da exe- isto é, edifícios particulares e contingentes a erigir . Suas regras se
cução. Esses procedimentos têm a função comum de diferir25 o destinam "ad universorum aedijiciorum opus"32,
m omento de iniciar a obra, em proveito de uma espécie de Percorrendo rapidamente os capítulos do Livro III, parece
amadurecimento geral do projeto. O tempo, fautor de desgaste que e~~all regras comuns à totalidade dos edifícios dizem rr;;spei-
e ele decrepitude, campana também efei los positivos, pode tornar- to unicamente à parede e ao teto. Estaria errada aqui a lógíca
se uma garantia contra o erro. Para Alberri, construir é um ato de Alberti? O autor, ao cruzar materiais e axiomas , t eria omi-
!fio fundamental que não pode ser tomado irrefletidamente e tido quatro operações? Um exame atento demonstra que somente
sem o recuo que lhe dá sua solenidade. No entremeio da con- a divisão foi omitida, excluída realmente do Livro III, ao passo
ct:pção e da execução do edifício, ocorre um suplemenlo de re- que as operações relativas à região, à área e às aberturas estão
flexão sobre o projeto e as condições de realização. O arquiteto bem integradas, mas indiretamente. Com efeito, os problemas d a
deve repensar longamente todas as decisões26, reexaminar o pro- região e da área não podem ser dissociados dos colocados pelas
jeto não só por meio de desenhos e pinturas, como também de fundações da parede33. As aberturas participam do tratamento
maquettes27, as únicas que petmitem verdadeira experimentação. da parede propriamente dita34 em que são praticadas. A focali·
Deve questionar a viabilidade e o valor do programa28, testar a zação do texto sobre os "princípios" concernentes à parede e a o
competência dos operários29, experimentar suas próprias forças30 teto marca, pois, a preponderância desses sobre os outros três. A
e, sursis e prova derradeira comparar suas idéias com o julga- ausência da divisão sublinha, por outro l ado, a especificidade
mento dos peritos31 (peritorum). dessa operação e seu eslatulo 'diferente. Em nenhum lugar Al-
Só então poderá tratar, eficazmente, da escolha dos mate- berti comenta essa diferença que reflete uma articulação deli-
riais cujas regras de emprego estão ligadas a suas respectivas cada de seu sistema. Limita-se a designá-la por um silêncio cuja
propriedades, elas mesmas determinadas pelas leis da natureza. anomalia é ressaltada pelo elogio da divisão no Livro I. Ex-
Albcrti trata cada um dos materi ais suscetíveis de uso na cons- cluída do r egistro da necessidade no momento da construção
truç1io na mesma ord em lógica de sucessão que ele supõe .ter efetiva, a divisão permanece inscrita nele enquanto p rincípio de
sido a de seu primeiro emprego pelos homens. Para cada ma- es"t ruturação do espaço hum ano. Ela designa, então, uma opera·
teri al sucessivo, madeira, pedra, terra, areia, ele especifica as ção mental específica. Mas, em sua aplicação concreta , a ope-
diferentes espécies, qualidades e regras de uso. ração da divisão pertence a ou tro registro , o da comodidade :
O que lhe permite abordar no Livro UI a construção pro- seu papel é abrir e sujeitar o espaço const r uido à expressão
contingente dos usos.
d11 casa pode, por seu turno, ser considerada uma pequena casa. Essa Se Alber ti não se explica sobre a rcjciçüo da divisão for a
idéia só será retomada, de maneira tão sistem.ácica, muito mis 'arde, por do Livro UI , n o en tanto essa exclusão pa rece com:o rdar com
CERDA (cf. infra, Cap. 6, p. 265). a lógica do De re aedificatoria. Veremos adiante q ue. nos Livros
2S. "Supersedebis tempus aliquod" (Livro 11, Cap. I, p. 10) .
:lli. " B ene qui dem r.on.çulti est mnnia praecogitasse et praefini sse
rmtmo rtc mente" (Cap. r, p. 95) , ou ainda "iterum pensetimus at(Jue
a.t Mitl llr'llt m· " , " !taque modulos [ . . .l iterum atque iterum r ecognovisse" 32. Livro III, Cap. V, p . 193.
(p p , fr/ t1 f)O). 33. Of. Livro I II, Caps. I e II, pp. t 7:l, 175, 177 e o fim do Cap . II,
~·r . " N on 7J~ rsc1'iptionc modo et pictura, varum etiam modu lis p. 1111. o Cap. III, que se a bre sign\ficnl:ivamente com a regra "Diversa
exomproriiii(J1w '' (p. 97 ). igitur ti!JI erit t undati onis ratio wo l ocorwn dit•ersi t at e exequenda" , é
2R. Gnn. tl , p p . 103 e 105. totalmente dedicado à rep ercussüo da divers idade dos solos sobre as
20. l u(clo (lo Cnp. IV. técnicas d e fundação. Os t ermos m·aa e regio são empregados por várias
30. CLIP. tl , pl) . IO:l o 104. O arquiteto deve interrogar-se sobre sua vezes no decurso dos t rês prim eiros capítulos.
própr ia p orsOJH\ IIdudo, "0//'icil erit ea spectasse [ .. .J qui si s qui i d agas". 34. Cf. (Cap. VI, p. 195) a assim ilação das pa 1'tes laterais das aber·
31. Cap. III , p . 107. tura.s aos elementos por tadores da );larede.
88 A REGRA E O MODELO DE RE AEDIFICATORIA: ALBERTI OU O DESEJO E O TEMPO 89

IV e V, o mundo da divisão, em outras palavras os edifícios Nenhum princípio novo é, pois, introduzido no Li~ro_ III,
considerados sob o ângulo das diferenças e das particularidades gerado pela combinação das regras formuladas pelos do1s hvros
de suas plantas, não deixa de comportar regras universais, rela- anteriores com o axioma do edifício-corpo. Aplicando na cons-
tivas à cidade e à cnsa35. Trata-se, porém, de uma universalidade trução do livro o princípio de economia que é preconizado ao
abstrata, extraída pela análise dos casos concretos, e diferente da longo do De re aedificatoria para o domínio construído39, é
necessidade d'e que dependem as regras do teto e da parede. reduzido ao mínimo o aparelho conceitual e lógico. Essa eco-
Estas são enformadas ao mesmo tempo pela necessidade que nomia de meios discursivos se obtém gtaças à subordinação das
rege o mundo natural e por aquela que subentende o mundo diversas operações às do teto e da parede, e graças ao papel que
humano; elas integram simultaneamente os imperativos incondi- desempenha o axioma do edifício-corpo. Longe de ser apresen-
c.:iundi~ da e~tática, da física dos materiais, da estrutura do espí- tado como uma comparação aproximada, este constitui um ins-
rito ht.:mano e das necessidades de base, representadas no caso trumenlo lógico, que permite Ieduzir ao mesmo denominador
pela carência de abrigo36, todos os tipos de paredes e todos os tipos de tetos40, depois
Quanto às regras relativas à construção dos diferentes tipos estabelecer uma relação de transformação entre o teto e a pa-
de pa redes e de tetos, bem como de suas respectivas part~s. se rede41 , e conseqüentemente enunciar numa única fórmula uma
sua formalização resulta do cruzamento das cinco outras opera- lei estrutural geial. aplicável, no n ível da necessidade, ao con·
ções com as regras do emprego dos materiais, seu conteúdo ora junto do domínio construído: a inter-relação dos ossc,s, dos li-
é deduzido pela análise do patrimônio construído37, ora é in- gamentos e dos enchimentos desenha a figura fundamental da
duzido por nova aplicação do axioma do edifício-corpo. Este se qual paredes, aberturas, tetos e pisos são apenas a figura su-
apresenta, no Livro IIJ, sob uma nova figura, opondo o esque- perficial.
leto tossia) portador e os elementos de ligação, nervos e ligamen-
tos (narvi, ligamcnti) , à matéria de enchimento (complernenta), A situação muda completamente quando, no Livro lV, Al-
isto é, à carne e à pele38. Desse modo serão deduzidas as regras berti introduz o leitor no registro da comodidade, que é também
relativas a cada elemento da parede ou do teto, esgotando os aquele em que se desenvolve a faculdade que possuem os ho-
casos possíveis segundo os materiais empregados. mens de sempre formular novas demandas, propor fins sempre
novos a seu desejo. Utilizo de bom grado esse termo que Al-
35. Mais precisamenLe, trata-se de regras geradas pelo desejo uni- bcrti emprega pouco, porque ele explica duas dimensões impor-
versal dos cidadãos, incidindo sobre "quicl una univer sis [ . .. 1 corrotmiat" tantes de seu pensamento. Em primeiro lugar, indica a abertura
(p. 2'71). Esses termos são retomados no Cap. I do Livro V: "civium indefinida do nível da comodidade que se desenvolve numa
cet11i u niverso" ou "uni versorum gratia" (p. 333). São as regras uni·
vor:;ais (mus não necessárias ) da cidade, paralelamente às quais existem relação dialética com o outro. Em seguida, numa acepção mais
" u nívcr serum civium gratia" (Livro V, Cap. li, p . 339), as regras urJiver-
sais dn cosa individuo!. paredes "quo parietes i n o{jicio conti11eantur", a de braços ("quasi
36. Cf. a segunda f rase do Cap. I do Livro IV: "Nam principio brach.ia", Cap. VJI, p. 203). No segundo caso, o_ pnpel dos nervos é
qutaem r .. . l tacere opus homines coepere, quo se suaque ab adversis desenvolvido mais longamente, depois que as designações foram identi·
tempestatibus tuer entus". Alberti acrP.scenta aliás logo em seguida: ficadas com às do caso anterior: "Tecto cuivis et ossa et nervos et
"Proxime [ . . . 1 prosecuti sunt non modo velle quae ad salutem essenl comptementa et cortices et crustulas inesse aeque in muro in terprete·
necessaria (. .. 1" (p. 265). [O grifo é nosso.J mur" (idem, p. 227). Na seqüência do Livro III, AlbcrLi cessa de assimi·
37. Para Alberti, a tradição se revela particularmente importante nos !ar' diretamente o edifício a um corpo vivo c np rcsonLn o corpo como um
casos em que as regras devem levar em conta fatores escondidos e mui· paradigma. Insiste, em particular, sobre n supcrlorlclndo de sua orga.
Las vezes mal a preciáveis, como a natureza do solo. Em compensação, nização com relação à imagem com que n or lo o rcpro<lu:r. (cf. pp . 239
no caso da parede, por exemplo, é tradição que vale mais prot.:ed!o!r por e 247). Observe-se, por outr o lado, quo Albor LI nito ~o Interessa npenas
s i mesmo segundo os principias básicos. Cf., nesse sentido: "Verum alibi pelos elementos sustentadores da cons LI'uçito o que, 11 <lc:;poito de seu
I!X pP.ritisstm.orum. veterum ampli ssimi s operibus adverti varium illis papei subordinado, os enchimentos o ns opldormt•H rt'l./lm longamente
j utssc modum atque tnstJtutum complemtis tundamentis" (p. 191, sua atenção.
Cnp. V ) . 39. Cf. nesse mesmo livro, Cnp. XH. J>. :.1?.7: ··scd parstmoniae pros·
:m. A imagem diret riz do corpo enquanto ossatura e ligamentos picimus, ;.perf luum putantes, q·u /C(/ Itlcl .~enl(l/ft opf'r is Jirmitate possit
ost l'ul u•nnte dos enchimentos (coríices e infarcinamenta) é desanvol· detrahi".
vlrln om p rlmoiro lugar nas duas passagens que introduzem respecti- 40. Cap. XIII, p. 233: "Qrtac au/ 0111 fio arborcis t ectis dixtmus, eadem
VIlllW il l \1 tu• lll iP"IlS da parede propriamente dita (Cap. VI) e às do teto et in lapideis trabibus observab1wt rr r'" . JJa mesma forma, p. 235, o teto
(C(Ip. X ll l. No pl"imeir o caso, acentuam-se os elementos portadores, curvo é reduzido a um caso purLiculnr do teto ch ato: " arcum esse trabem
quo ní\<1 1:no c·lm lt llll'aclos a UIU esqueleto, mas designados como ossos, tn/lexam".
assim l'llHmncloH H(l m nmbiffiiidades ("q1we omnia ossium appellatione 41. Cf. "trabes esse in t l'llll$ucrsum positas. columMs" (p. 22.7} ~
veniun t", p . l !J:l). l'~'!Ncs ossos representam funçOes diferentes: as colu· " Testitudinum astruendarmn rallo cac/em, quae m muris, asservab1tur
nas quo supot'LCun o tolo, u üe uma espinha dorsal, os ângulos das (p. 243).
90 A REGRA E O :MOD~W DE RE AEDJFJCATORIA: ALBERTI OU O DESEJO E O TEMPO 91

~exualizada , ao nívt:l da estética, o desejo (cupiditas) leva real- Alberti começa indagando-se se, ocasionalmente, a tradição
mente ao prazer (voluptas) que, tal como um belo corpo, o nrto poderia fornecer-lhe a taxionomia procurada, sob a forma
edifício belo proporciona ao espectador. As regras em questão das classificações sociais legadas pela Antiguidade. desde os
agora não mais dizem respeito a construção ern geral, mas aos tempos mitológicos de 'J'eseu até a época de Platão _?U de Ari~tó­
próprios edifícios, em sua diversidade, e em particular ao mais tcles. Uma exame crítico o convence de que elas sao determma-
nobre deles, a cidade. das totalmente por uma finalidade política não-pertinente a seu
Desde logo, Alberti constata que, uma vez satisfeita a ne- campo de preocupações. Por isso, decide proceder à sua maneira
cessidade original do abrigo, a demanda dos homens desenvolve c por seus próprios meios, de acordo com uma lógica aprop!iada
e organiza o mundo construído ao sabor de suas invenções e ao domínio construído, que constitui seu horizonte especíhco44 •
de sua fantc;sia, num horizonte ilimitado que, por definição, Essa opção metodológica não o leva somente a estabelecer
foge às regras da necessidade. Melhor, denw1eia a falsa neces- uma classificação baseada na análise dos usos e, portanto, dos
sidade na qual deixa crer o processo de naturalização das de- usuários do mundo construído, que funcionará no Livro V, mas
mandas que o háhito transforma em carências e adorna fala- o atribuir à oposição categoria! universal/particular45 um papel
d osamcn te com o qualificativo "necessário"42. f: por isso que, essencial na geração do Livro IV e de suas regras.
no momen to em que ele pretende apesar de tudo, e mesmo que Dessa maneira, Alberti começa sua investigação pessoal co-
elas sejam de uma natureza diferente das da necessidade, es- locando imediatamente ("principio veniet in mentem"46) uma
tabelec.:er regras que integrem a comodidade, ele constata a insu- alternativa que lhe permite distinguir duas categorias de leis
ficiência dos operadores usados no campo da necessidade. f: aplicáveis ao construir no registro da comodidade. O observador,
claro, ele dispõe dos pares de categorias (universal/ particular, nota ele, pode estudar os homens quer enquanto membros da
público/privado, sagrado/profano), evocados no Prólogo em re- comunidade, quer enquanto indivíduos particulares47 . Da mes-
lação com a inesgo tável diversidade dos usos. Mas essas são ma forma, os objetos que produzem, e notadamente os das co_ns-
importantes diante da instabilidade do desejo gerador de espaços, trucõcs podem ser apreendidos seja como portadores de dife-
e dos critérios demasiado relativos e demasiado frouxos da co- renÇas,' seja como partes de um conjunto 411 . No pJimeiro caso,
modidade. Elas exigem um complemento, a intervenção de um as construções obedecem a regras particulares, no segundo a
novo operador. regras universais. Em outros termos, todo objeto construído,
Esse novo operador não poderá ser outro senão a taxionomia pode ser encarado sob o duplo ponto de vista do particular. e
dos humanos, cujo princípio o Prólogo colocava e que teremos do universal. A classifice,ção, por sua vez, somente pode functo-
agora de tentar construir a partir das várias motivações que le- nar no campo do particular, na medida em que reflete as dife-
vam os homens a construir: "quando se observa a abundância rencas intrínsecas de comportamentos exclusivos uns dos outros.
l: r.~. varicdaúc dos edifícios, cabe admitir que se devem, não à O ~esmo acontece com a oposição público/privado que cuida-
vnncdndc dos usos c dos prazeres, mas essencialmente à diversi- remos de não confundir com a oposição universal/particular da
dade dos _homcns"43. Esta· observação, bem como o conjunto do qual às vezes se aproxima bastante.
desenvolv1111ento onde ela se insere, constituiria hoje uma crítica Em termos concretos, tomemos o caso de uma determina-
pertinente ao universalismo arquitetônico e urbanístico elabo- da cidade, que poderá simbolizar a construção püblica, ou o de
rado na década 1920-1930 pelos CIAM, e cujas repercussões uma certa casa, que será símbolo da construção privada; uma
ainda não acabamos de sofrer. Leva A.lbcrti a uma pesquisa e outra podem ser alternativamente consideradas do ponto de
ton to mais árdua quanto ele trabalha em terreno virgem e sem
qualquer dos apoios que, atualmente, ofereceriam na matéria a 44. P . 269. Segundo um procedimento quo lho 6 frunilil\r, Alberti
caracterologia ou a sociologia. ·
opõe veteres e nos.
45. Os textos essenciais são: Livro IV, ClL)). I; 1.• § do Cap. II;
1?., O problema colocado no Cap. I do Livro IV é retomado e es- ú:timo § ào CSp. VIII. Cf. também Livro V, Iulclo o final do Cap. I , 1.•
<·hml<'l<ln pelo Cap. I do Livro V, quando Albert1, depois de haver tra- § do Cap. li, Cap. VI.
t;uro olns J'or:ros univer sais da cidade, se apresta para considerar as da 46. Livro IV, Cap. I, p. 269.
~;mm , I)IIIIN passagens sublinham claramente a dificuldade que pode 47. De um la~o: "una loci alicnjns !ncolas universos consideres",
.l uwor un l tllnl.liii{Ulr entre n ecessidade e comodidade: "Insunt tamen do outro: "partibus separatas rligttnctosque recenseas"; ou ainda: "in
1H" 'lt•ll 11/lt/1111<", Mloqntn commodae, quas usus et consuetudo ita vivendl qua potisstmum re alter ab altero !liflerat " (ibid.).
offlclt, 11L plll unl.tu· ponitus necessariae, ut est porticus [. .. J" (p, 337) 48. A terminologia de Albert.l não tem ambigüidade. A "quid u1Ul
e "l~t IION. (tttliiUIO g!r: aedif icationis r atio suadeat, non ita distinguemus universis" (p. 2'71) , "alúz cetui :mioorso" (p. 272} , "univer sis urbe" <p.
u t commodu 1\lJ l p~IH uucussartis segregemus" (p, 339}. [0 (}ri/o é nosso.] 2'73), "alia civium cetui universo" (p. 222). "alta unlversorum", ele opoe
4.3. Llvt·o 1V, Cop. I , p . 265. "aUa strwulorum" (p. 339} .
92 A REGRA E O MODELO
DE R~ AEDIFICATORJA: ALBERTI OU O DESEJO E O TEMPO 93

vista ~a u.niversalidade ou do ponto de vista da particularidade.


no curso da e~posição, sejam mencionados alguns edifícios pú-
No prtmexro caso, estaremos diante de rearas relativas a todas
a~ cidades e todas .as ~asas, ou, para seguk de mais perto o ra- blicos (templos, basílicas ou outros) , é unicamente de um ponto
de vista topológico, para indicar como fixar sua posição no es-
cxoctmo de Albert1, dwnte da face comum a todas as cidades
que concerne identicamente a vida pública de todos os cidadãos paço global. Quanto aos traços individuais e à forma desses edi-
e da face comum a todas as casas que diz respeito identicamente fícios, sua determinação depende de outras regras, ligadas à par-
à vida privada de todos os cidadãos; no segundo caso, estaremos ticularidade de suas funções que, por sua vez, se devem ao
tratando de regras relativas às diferenças impostas à~ ca~a:; e à~ status social de seus ocupantes e ::;6 serão enunciadas mais tarde,
cidades particulares pela diversidade dos contextos e das circuns- no Livro V.
tâncias. Q uatro gêneros de regras se apresentam, pois, segundo Será preciso, pois, esperar três livros inteiros para que, fi-
tenham relação com o público universal, o público patticular nalmente, se trate da cidade. Nesse local privilegiado, disposto
o privado universal e o privado particular. ' no próprio coração do De re aedijicatoria, ela é então apresen-
A e~col ha de Alher!i a? optar pela oposição binária parti- tada como a mais perfeita das realizações humanas. Não se deve,
cu ~ar/umversal c~mo pnme1ro operador do Livro IV equivale, no entanto, enganar-se com o alcance desse superlativo. Ele jus-
pots, a adotar a htpótese segundo a qual os edifícios, necessaria- tifica a prioridade concedida à cidade no segundo nível do livro,
mente diferenciados pelas condições de sua realização, não dei- mas não lhe confere um estatuto diferen te do dos outros t:difí-
xar~ de obedecer a regras universais. A universalidade qualifica, cios quanto à aplicação das regras do construir. Essa paridade
entao, uma forma de organização que, no mundo do uso e da diante da regra implica, de um lado, que para Alberti não existe
diferença, desempenha o mesmo papel que a necessidade no mun- diferença entre o procedimento do construtor de edifícios e o do
do dos objetos inertes e no das necessidades humanas. construtor de cidades, ou, em termos atuais, entre a arquitetura
~ ~onveniente tra.tar as regras universais antes das regras e o urbanismo. Explica, de outro lado, que a cidade não conserve
do parttc~l~r. Conse.quentemente, e tão logo resolvidos os pro- necessariamente sua posição privilegiada no curso do tratado e
blerr;as teoncos ger~Is que ocupam o primeiro capítulo, o Livro que, no terceiro nível, cujas regras lhe são igt~almcnte aplicáveis,
I~ e, ~m sua totalidade, consagrado às regras do universal pú-
ela possa obscurecer-se diante dos monumentos c não mais cons-
bltco, Isto é, às regras de construção da cidade sob seu aspecto tituir senão o pano de fundo sobre o qual eles se recortam. O
universal. fato de Alberti se impor como objetivo essencial a construção de
um sistema articulado de regras explica, ao mesmo tempo, a po-
. . Para Alberti, a cidade é o edifício público que supera em
sição central dos capítulos dedicados à cidade e sua relativa bre-
dtgntdade a todos os outros49. Contrariamente a seu método ha·
vidade. Ao contrário do que se observa nos tratadistas da era
bi tua!, c c lc.o o~sc rva muito bem, não começa por pesquisar-lhe
clássica, que enfocam a arquitetura individual dos edifícios e es-
as Ol'lf:C.ns hJslórJc::ts o u pot· decompô-la em seus elementos. Para
quecem a cidade, essa para Alberti faz parte integrante da edi-
ele, o CJdad~ é uma totalidade irred utível, da mesma forma que
ficação. Mas não tem o valor exemplar que assume em Fila-
a ~asa que c. seu analugon (privado) e não a célula de base. ~
reteSO, para quem a cidade é. o fim da edificação e a entidade
pots cons~rut1vel por meio das seis operações enunciadas no Li- a que estão subordinados todos os outros edifícios. I! por isso
vro I, CUJ?S. ~egras s~o deduzidas diretamente. Sucessivamente, que Alberti, no De re aedificatoria, pode abrir diretamente para
na or?em m.tcial do Livro I, Alberti enuncia assim as regras uni- a cidade apenas uma única janela.
vcrsa~s relattva::; à localização ou situação (Cap. li), ã área (Cap.
li f]. as paredes (Caps. III e IV), aos tetos (Cap. IV) e finalmen-
te as "abe.rturas" da cidade. Este último item, o mais rico c mais
De acordo com o plano do Prólogo, o Livro V devc1·ia de-
d?sen~olvrdo (do .Cap. V ao Cap. VIII inclusive), trata não só da
dicar-se aos edifícios particulares, isto é, segundo n terminologia
dtve rstdade das vxas de circulação intra e extra-urbanas, mas das
albertiana, às regras particulares dos ed i Hcio:; con::;idcrados sob o
pnu,;as .. da~ pontes, dos portos: essas pa-.:agens, esses meios de
ângulo de sua inscrição concreta no regist ro da comodidade. No
comunt<.: IIVJO, constituem a dimensão·chave da cidade, ao mesmo
tempo q ue se u modo de divisão. entanto, é dada uma torcida nesse programa, pois uma parte
do primeiro capítulo e todo o segundo capítulo tratam das re-
. l>ctlllhnodo essas regras de base, Alberti evita toda mode- gras universais da construção da casa51 , estabelecidas, embora
1J<'.u~·uo. Rd c.rl' .se ar?enas e tão-somente a um sistema de opera-
ções Hplld VL't ~ Jtfcnl tcamente a todas as cidades. E se ocorre que,
50. Cf. infra, Cap. 4, pp. 194 e ss.
49. "Pluc;u/ trwl Cil a ilionoribus orderi" (p. 273).
51. Referem·se essencialmente aos pórticos, vestíbulos e passagens
diversas (pp. 337 e ss.) .
94 A REGRA E O MODELO DB RR A IWI FJCATORIA: ALBERTI OU O DESEJO E O 'l'EMPO 95

muito sumariamente, da mesma maneira que as da cidade. Essa radares, privado-ptíblico e sagrado-profano, já introduzidos no
passagem do lJe re aedificatoria apresenta algumas dificuldades Prólogo. Uma vez realizaáo esse trabalho, a dedução das re-
às quais volta remos mais adiante. Todavia, é bom salientar que gras particulares do construir, aquelas que no registro da como-
ela não deixa de respeitar a arquitetura conceptual da obra ao didade dizem respeito aos edifícios singulares, não suscita maio-
estabelecer a homologia da cidade e da casa no plano das re- res dificuldades. Basta cruzar cada categoria de demanda
gras universais. Em seguida, o resto do Livro V pode ser con- sucessivamente com as seis operações do axioma da concepção,
sagrado às regras dos edifícios particulares. sempre enunciadas na mesma ordem.
Estas últimas são expostas na ordem que a taxionomia ela- Mediremos o alcance e o sentido da programação se nos re-
borada por Alherti fornece no primeiro capítulo do Livro IV. portarmos à passagem onde Alberti detalha sucessivamente, com
Essa classificação, destinada a ordenar o mundo das diferenças o mesmo cuidado e igual serenidade, os programas respectivos
humanas, a particularidade dos usos e dos edifícios, é laboriosa e, da cidade do bom príncipe e da do tirano5~: à diferença das exi-
ainda que pretenda o autor, permanece fortemente marcada pela gências corresponderá a diferença dos espaços. A tarefa do ar-
tradiç~o antiga, quamlo não é a sua simples demarcação. Alberti quiteto consiste precisamente em realizar a adequação entre uma
começa propondo uma classificação que dividiria os humanos em demanda e uma construção. f: evidente que Alberti, enquanto
três categorias hiera rquizadas, correspondentes a três tipos indivíduo moral, prefere o bom rei ao tirano, e aliás, quando,
de dons, ou seja, por ordem decrescente, o poder da no final do De re aedificatoria, evoca os problemas da deonto-
razão, a habilidade nas artes, a aptidão para acumular riquezas. logia arquitetônica, ele as~inala que ao arquiteto cabe escolher
Todavia, tendo observado que são pouco numerosos os que se seus clientes e seus programas54. Mas tais questões se colocam
sobressaem em cada uma dessas categorias, ele transforma sua tri- mun registro diferente do contexto da geração das regras da
partição inicial numa oposição binária entre "a elite pouco nume- edificação. A ordem da gênese dos espaços construídos nada tem
rosa das personagens de primeiro plano e a multidão dos peque- a ver com a ordem da é tica, ela só tem que responder ao pro-
nos". A partir daf, é essencialmente sobre a primeira que Íot;aliza grama, unicamente à demanda dos destinatá rios. Quando Alberti
seu interesse. Mas, em lugar de continuar a dividir os membros se arroga a tarefa de determinar as regras que permitam produ-
da elite de acordo com seus dons, isto é, conforme critérios psi- zir o quadro construído cap az de satisfazer as d iferentes deman-
cológicos, Alberti é. levado, através de uma série de desvios, a das dos humanos, não lhe cabe preocupar-se com o interesse ou
classificá-los em função dos critérios políticos e sociais: são as com o valor dessas demandas tanto quanto, tomando uma com-
funções que ocupam que diferenciam os cidadãos privilegiados paração atual, não cabe ao lingüista julgar · o conteúdo das mes-
da taxionomia a lbertiana. Essa contrapõe em primeiro lugar os sagens que lhe servem para estabelecer as leis da produção do
que exercem o poder sozinhos (reis e tiranos) e os que partilham discurso. Se o prático pode, e deve mesmo, tomar posição com
com ou I ros. Estes ülli mos, por seu turno, se dividem em sacer- respeito ao programa que é chamado a realizar hic et nunc, essa
dotes, senadores (qu e exercem o poder legislat ivo), jufzes, chefes atitude é proibida ao teórico. A questão que este coloca é tlm
militares e administradores diversos. como e não um por quê. Esse como resume numa palavra o
Mas essas são categorias vazias durante tanto tempo que, propósito do De re aedificatoria.
para cada uma delas, não se determina com p recis~o sua ex- Longe de querer privilegiar tal programa. urbuno ou mo-
tensão, bem como o conjunto das condutas, tarefas e objetivos numental, Alberti visa, ao contrário, sugeri r a infinil a diversidade
q ue a caracterizam e que deverão satisfazer as construções cujas daqueles que podem ser propostos ao arquilcto c que, qualquer
regras de produção se vão fo rmular. O sentido e o interesse da que seja seu conteúdo, ele realizará servindo-se do mesmo con-
tax:ionomia de Alberti é fornecer um quadro à expressão daquilo junto limitado de regras universais. No cntonlo , cs~a von tade de
q ue hoje chamaríamos programas. Esse termo, que não se encon- tratar a edificação em si e para si, como um dom fn io autônomo,
lrn no De re aedificatoria, é empregado aqui, ao mesmo título não deixou de ser mais ou menos desprezoúu pelos críticos. O
que "programação" e "programático", para facilitar a tarefa do próprio E. Garin não evitou a nmb igüidodc sobre esse ponto55.
lcilo r· uluul. Naturalmente, deve ser deSJ?ojado de toda conota-
ÇIIO ci brr n ~ l i c a c , com essa condição, designa adequadamente a
53. Livro V, Cap. VI, pp. 357 e 3511.
a r! i c ul n ~·no du demanda de espaços construídos. Essa demanda 54. Livro IX, Cap. XI.
deve ser· c~ l llhc l cc id a minuciosamente, com o máximo de exaus- 55. Scienza e vila civile nel 1·!nasctm ento italiano, Bar!, Laterza,
tividadc , cr11znndo os ngentes sociais com os dois pares de ope- 1965. Nessa. obra, a concepção da cidade atribu!da a Alberti é essencial·
menle a de um conjunlo de hwuanislas preocupados com política, tal
52. Livro JV, Cnp . I , p. 271, "paucioribus primariis ciVÍbus" e mi- como o Chanceler Bruni: "Imitare lc città. ant iche [. . .] significa obbe·
norum multit ltclllll" di re alla ragione e alla nat1lra ( . .. 1 La. città ideale nelle píetr e e neglf
96 A REGRA E O MODELO DE R E AEDIFIC;J.TORIA : ALBERTI OU O DESEJO E O TEMPO 97

A "cidade ideal" que ele atribui a Alberti se acha realmente [ ... ] parece depender da política de Aristóteles, bem mais do
proposta em obras como o DeJia Famiglia e o Teogenio. Mas que dos escritos de Platão". De fato, não se trata de oportunismo.
falar de "cidade albertiana" a propósito do De re aedificatoria O De re aedificatoria está situado fora do campo político, no in-
equivale a ignorar a "neutralidade" que confere a essa obra uma terior de um domínio independente que ele ambiciona basear na
ressonância única e assinala sua determinação de tratar as regras razão.
da edificação no quadro estrito de uma disciplina autônoma, in- 1\ssim entendido, a aproximação com Aristóteles é inexata.
dependentemente das posições próprias ao teórico que as enuncia. Contudo, essa inexatidão permite que P.-H. Michel descubra um
Causa surpresa que um dos mais profundos anali~ta~ do Renas- autentico parentesco: o interesse atribuído por Alberti ao mundo
cimento italiano, ao mesmo tempo um dos mais atentos a assi- sublunar e à extensão física se relaciona com as mesmas opções
nalar os cortes e deslocamentos que os humanistas impunham que o aristotelismo e, a despeito de todas as anexações tentadas
aos textos da Antiguidade, tenha sido levado, provavelmente por Landino c pelo círculo de Careggi60 , opõe Alberti ao pla-
atribuindo demasiada importância aos empréstimos feitos por tonismo.
Alberti a Platão56 em sua taxionomia social, a considerar adven- K realmente esse interesse teórico apaixonado pela techné
lícia a passagem-manifesto sobre a morada do bom príncipe e do aristotélica, ou, na terminologia latina, pelas artes das quais a
tirano, e a negligenciá-la em proveito do lugar concedido em se- mais nobre é a arquitetura, que lhe permite colocar entre parên-
guida a certos edifícios como a casa suburbana, os quais, segundo teses as considerações axiológicas e tentar determinar de maneira
o arquiteto tem o t.:uidado de indicar, correspondem a uma in- exaustiva os quad ros da demanda do construído, em outros ter-
clinação pessoal e têm unicamente um valor ilustrativo57. mos, elaborar uma teoria do programa. O par de operadores pri-
O mesmo desconhecimento leva P .-H. Michel a atribuir um vado-público permite, desde logo, d ividir esta em dois setores :
valor absoluto à classificação de Alberti e aos edifícios que ela cada ator social tem ao mesmo tempo uma vida pública que
permite comtruir, quando representam apenas a ilu st~ação do exige edifícios profissionais, e uma vida privada q ue se desen-
método e do funcionamento das regras albertianas58. Esse autor volve em residências pessoais61 . Três exemp los irflo permitir-nos
chega-, assim, a detectar uma dimensão utópica no De re aedifi- acompanhar o trabalho analítico da programação albertiana, e vê-
catoria. No entanto, sem temer a contradição, algumas páginas lo traduzir-se em regras de construção.
adiante, censura Alberti por não ter tomado partido politica- Para começar, consideremos o grupo dos sacerdotes, em face
mente59 e observa a propósito da mesma passagem sobre os dois das exigências de sua vida pública . Esta pode decompor-se em
príncipes, que "há [em Alberti] uma espécie de oportunismo que várias atjvidades: culto a Deus, que se realiza no templo; exer-
cício da p1edade, aquisição dos conhecimentos divinos e huma-
nos, que tem por quadro u mosteiro; realização de tarefas sociais
institut ic la città mzionale, quale i Graeci delinearono [ .. . 1 secundo que têm por locais a escola e o hospital. Não detalharemos aqui
1111 tipo che le città-stato italianc si avviano a riprodurre" (op. cit.,
p . 41;) . A mesma tendência se operou de maneira a inda m ais acentuada
os diferentes tipos de templos ou igrejas. Limitar-nos-emos a as-
por J. C. ARGAN em "Il Trat.tato de re aedificatoria" in Convegno sinalar a importância atribuída , na fom1Ulação do programa, à
Internazionale indetto nel centenario di Leon Battista Alberti Roma impressão que esses edifícios devem causar sob re os que H eles
Academia Nazionale dei Lincei, 1974. Segundo Argan, a nature~a dess~ acorrem, e o p apel que desempenham, conseq üentemente , as ope-
tratado é essencialmente política e chega mesmo a afirmar que o
o bjetivo de Alberti é "la città come forma espressiva dí un contenuto rações relativas respectivamente à local ização c iis aber turas que
storico che assume, per i moderni, valore di ideologia". permitirão, através da escolha de uma pos ição urbana apro·
56. "La stessa città clell'Alberti, p!ú ancore que medievale o pre. priada e da abertura judiciosa das janela ~. assegura r uma vista
romantica come - i: stata detta - e piena delle preocc::upaziont dt una e jogo de luz próprios p ara emocionar. Niio nos demoraremos
{Jiustizia. platonica, con le sue divisioni di classi, solídijicate in mura
[. . . 1 la città aJ.bertia.na ê costruita per scandire le difjerenze di classe, também nos diversos tipos de mosteiros c uju loculizução , por
per aclermar e nelle mura e neçli edifici in una strutura política precisa
(. .. )" (07J. cit., pp. 48, 49).
!i'/. <.:r. infra, p. DB (a villa, escolhida porque particularmente livre 60. Cf. A. CHASTEL, llfarsile Ficln et l 'A.-1., Genebra, Droz, 1954,
do llflllr'CJl'iuN em sua programação) e p. 111 (a casa suburbana, avaliada pp. 75 e ss. Cf., sobretudo, a m elhor rcfutnção do platonismo a lbertiano
po!o llll llvlr luo 1\l bHrti). in PANOFSKY, ldea, Leipzig, 1924, o particularmente not a 32 do Cap.
!ifl, ll!rra Hl lll monografia, que durante muito tempo serviu de regra, 4, p. 208, da tradução em inglês (New York, Harper and Row, 1958).
La Pcnw' <' rlt· 1.. !J . Albcrti, Pari s , Les BC'lles Lettres, 1930, pp. 265 e ss ., 61. Livro V, Cap. VI: "Cada um [daqueles que exercem o poder]
p . 2U6. ")l!ltr, IIOtwnuo a Architecture, o q ue constitui prop riamente a precisam de dois gêneros de domicllios [ duo genera domiciliil, dos quais
Repúbl1ca" (irll!11l, p. 288). um pertença a suas ocupações [ ad suum pertineat ojficiuml e o outro
59. " E ntru n munrtrquln e a democracia, ele não se define mais ® possa recebê-lo com sua !amflta [quo ~e tamtltamque suam r ec:ipiatl "
que entre a cidado o o lm]lól'io" (idem, p. 280). (p. 357).
98 A REGRA E O MODELO DE RE AEDIFICATOR IA: ALBERTI OU O DESEJO E O TEMPO 99

exemplo, diferirá segundo o nível de reclusão desejado e o sexo pois de haver utilizado as regras de localização do sítio com re-
dos religiosos. Quanto aos hospitais62, sua tipologia corrcspon- lação aos ventos e aos acidentes da paisagem, Alberti chega aos
derá ~~ da~ doenças. Com efeito, é preciso distinguir, diz Alberti, edifícios que deverão receber , uns os proprietários , os outros
entre os contagiosos, a eliminar da cidade, e os não-contagiosos os colonos.
que podem ser conservados infra muros. Estes, por seu turno, Estes últimos são, ao mesmo tempo, guardas e produtores
podem ser classificados em curáveis c incuráveis. Segundo se agrícolas, que precisam armazenar os frutos de seu trabalho. Têm
trate de homens ou de mulheres, são considerados oito tipos de necessidade, portanto, de dois grupos de construções, um dos
hospitais urbanos, que diferem ao mesmo tempo p or sua locali- quais se destina à família, o outro a suas ferramentas (mortas
zação, sua forma e sua planta. Para as esçolas, enfim, se Alberti ou vivas) e as suas colheitas. A função de guarda, alinhada ao
se inspira nas regras observadas pelos antigos para suas pales- princípio de situação, exigirá que a casa do colono seja im-
tra~ . nelas introduz contudo toda uma série de complementos, plantada perto da residência dos donos. Sua casa deve per·
concernentes, em particular, à escolha de um local, ao abrigo do mitir à sua família que se aqueça e se alimente com comodidade,
ruído, dos maus odores, dos cidadãos ociosos e da massa. e recupere as forças da maneira mais racional. Com esta fina-
Oulro problema, que, desta vez, é da competência dos ma· lidade, o jogo das operações de divisão e de abertura comandará
gislrados profanos, a prisão, Alberti começa por estabelecer uma a construção de vasta cozinha, prevenida contra incêndio, e do-
tipologia dos criminosos, que não deixa de evocar a dos doentes. tada de uma lareira, um forno e de canalizaçõe~ para a eva-
Com efeito, uns são irrecuperáveis e não se deve conservá-los cuação das águas. Um espaço autônomo será dedicado ao sono,
na cidade; os outros, ao contrário, serão mantidos em pleno ccn· cada habitante dormindo o mais perto possível de um acesso a
tro. Alojados em partes diferentes, mais ou menos secretas e in· suas ocupações particulares. O arranjo dos instrumentos de cultu-
confortáveis, segundo a natureza e a gravidade de sua trans- ra se fará em três lipos de volumes66. Os fr utos da cultura (pro-
gressão, eles ocuparão a prisão urbana, que deve satisfazer ao dutos de consumo) serão distribuídos em abrigos específicos,
mesmo tempo as exigências dos cidadãos honestos, as dos prisio- cuidadosamente elaborados e diferenciados segundo deverão re-
neiros e as dos guardas63. A segurança que exigem os primeiros ceber animais (reclassificados em sete cntegol'ias) ou vegetais,
~erá obtida se se utilizarem as operações relativas à área, à pa- que exigem uma boa aeração e urna atmosfera seca para cuja
rede, ao teto e, em parte, à abertura. As operações de abertura, obtenção se exige a aplicação das operações de abertura e de
de novo, e de divisão permitirão dar aos prisioneiros um mínimo cobertura.
de higiene (aeração, luz, evacuação), de conforto físico (aquec·i- Quanto à residência dos proprietários, deve atender às di-
me nto . possibilidade de fazer exercício ao ar livre) e moral ferentes atividades em que está dividida sua vida (recepção, au-
(cclns individunis) c fac il itar a tarefa de vigilância dos guardas tliendas, refeições e sua preparação, trabalho intelectual, vida
(abc rlurus que pcrmil mn controlar o interior das celas). sexual e sono, higiene), classificadas da mais pública à mais ín-
Úllimo exemplo, tirado da vida privada: a residência fami- tima. Essas atividades, por sua vez, &ão sobrepostos à diversidade
lial, cara ao teórico do DeUu Famiglia, e cuja construção é objeto dos membros da casa, alinhados de acordo com seu status no
de regras particularmente numerosas e detalhadas. Antes da casa interior da família (laços de parentesco) ou com relação n ela
da cidade, Albert.i dá prioridade à forma rural do domicílio pri- (visitantes diversos ou domésticos). Além disso, Albcrti concede
vado, a villa64, porque esta é despojada das coerções impostas extrema atenção à incidência dos grandes ritmo~ c ciclos na-
pela vida urbana e pode estender-se livremente pelo sulo65. De- turais sobre a vida privada: para ser comodumcnle atendida,
cada atividade exige de maneira especffica us operações de si-
62. Livro V, Cap. VIII, pp. 369 e 371. cidadãos ("quominus ipse tibi satwfaclas"), Alb!ll'tl ~·::pc·• :l rl cr• que nada
63. Livro V, Cap. XIII, p. 399. de semelliante se produz "in rusticana Cr.clllfl cfa l " ., JL<!l'Csccnta: "libe-
61. Ji:xploração agrícola, composta de uma casa ·d e senhor e de riora tlltc" (p. 401). Trata-se aí de umn (lrw pnr::.'lUJ(CIIS do livr o onde
dopontlt1nda para alojar os empregados. Cf. seu elogio, e a superiori- Alberti exprime seu gosto pessoal (cf. lnCrn, n . 1111, p. 111). Mas sistema
chtdo quu lho é atribuida em r elação à residência urbana, In Ltbrt della de regras e sistema de valor es nüo lnlorll'ttJltt o :.iío claramente dissocio·
Pmul(J/J(t , Owro Volgari, edição crítica por C. Grayson, t . I , Bari, La· dos. Cf. Della Famiglia, ed. C1t.; "T.oclale vul ctb1ta r ie i n villa piit. che in
t or:tJl , lllllll Cr•"rl<lC'inlmente pp. 198 e ss., onde Alberti indica: "Sia la mezzo aua clttà" (p. 201).
v tua 111/lt• (1//(1 smtltlL. commoda al vivere, conveniente a la jamiglia", 66. Um grande galpão nctjaconto h. co1.inha que possa receber car-
p. 200, " IUlii':J•·oni JI "tuw pruprio paradtsto"). Cf. também as 5 páginas r oças, charruas, cestos de feno, c que possu fomecer à família aldeã um
mnnul'<:l'llun IHJ h J'(t n villa descobertas por C. Grayson e publicadas no local para as festas e um abrlr::o contm o mau tempo; um volume livre
final do 11HJilll ltl volu me. para as pren sas de vinho o dn ó leo; um a brigo para arrumar, ao nível
Livro V. (;J~JJ . XTV. Depois de haver enumerado as chicanices
65. do solo, as medidas de grilos e ns ferramentas de reparação e, no alto,
<contigüidaclcs, blfJuo lm~. c~pt•ços públicos) que tolhem a liberdade dos o feno (Cap. XVII, p. 107).
10() A REGRA E O MODE LO DE RE AEDIPICATORIA: ALBERTI OU O DES EJ O E O TEMPO 101

tuação e de abertura, mas a orientação e as abertu ras que daí A mcsm<! hesitação se produz no caso da casa cujas peças
decorrem para as diversas peças irão variar segundo as estações: :;ão utilizadas, algumas pela totalidade de seus ocupantes (aedium
assim, por exemplo, são previstas salas de jantar diferentes para pars aliae universorum), outras por alguns deles (plurimorum),
o inverno e para o verão. A preocupação com o particular e a outras enfim servem apenas para indivíduos particulares (singu-
vontade de exaustão que esses progrnmas traduzem estão nas lorum). O universal designa, então, as partes públicas da casa
a~típodas da ideologia das necessidades universais que, desde o
ou pelo menos, aquelas que interessam ao maior número de
seculo XVII I, mas sobretudo desde o início do século XX, mar- pessoas. Tsto porque o operador privado-público 6 essencialmen-
cou a teoria e a prática da organização urbana. Além disso, e con- te relativo: pode tanto designar termos antinômicos quanto apli-
trariando as idéias recebidas que irão suscitar a verdadeira preo- car-se alternativamente a um mesmo espaço. Revela-se pois de
cupação com a comodidade no século XVIII, a Alberti nenhum um manejo tão delicado para Alberti quanto para os teóricos
aspecto da vida prática parece trivial ou desprezível: provam-no que continuam atualmente a empregá-lo70.
as páginas dedicadas aos celeiros, despensas, fossas negras67. Finalmente, a classificação dos humanos, tal como Alberti
No decurso dos pwgramas e das regras formuladas no Li- escolheu afinal estabelecê-la, testemunha, como vimos, um pen·
vro. V, poder-se-ia multiplicar as observações concretas que fazem sarnento que levanta um problema demasiado complexo p ara
rev1vcr em seu quadro quotidiano os meios privilegiados do ser conceptualmente formulável na sua época. Alberti, final·
Ouattrocento. Mas não é esse o nosso propósito, não mais do mente, volta a encontrar as categorias políticas da Antiguidade
que assinalar como Alberti resvala constantemente da análise da que ele desejava evitar: seus cidadãos de diversas categorias
vida contemporânea para a do exemplo que os humanis tas ha- estão mais próximos dos cidadãos da polis ou da urbs antiga
viam descoberto na literatura latina, e que não interpretavam do que dos das cidades italianas que pretende ed ificll r. São
sem fantasia. O que nos importa é mostrar como os Livros TV e classificados hierarquicamente segundo a natureza do poder que
V se articulam no De re aedificatoria e como, independentemen- detêm num determinado regime, a oligarquia, cuja escolha trai
te de_ seu conteúdo e de suas determinações concretas, o novel esporadicamente as preferências71.
operador e as regras que ele contribui . para engendrar por cru- Quaisquer que sejam seus limites. porém, essa taxionomia
zamento com os operadores se integram na arquitetura e na eco- cuja relatividade o próprio Alberti chega a ass inalar, constituÍ
nomia da obra. um dos operadores exigidos no estágio du comodidade. Pouco
Foi por isso que, nas páginas que antecedem, minimizei importa seu conteúdo, modificável posteriormente, ela ~e impõe
certo número de dificuldades que não têm incidência sobre a enquanto classificação e funciona . Funciona da mesma maneira
c~trutura c ? fun ~ionamcnto elos operadores do De re aedificato- que o par universal-par ticular que permite dar forma a um modo
nr~. Mns la.' s dJfl(;uldadcs não deixam de existir, como o pró- e~pecífico de produção do construído ·e designar, ainda inomi-
pn o Albcr1 1 o reconhece quando, no início do Livro V, previne navel no Quattrocento, a necessidade secundária que atua nas
qu~ a ques~i.ío abord.ada é "complexa, vasta e difícil" . Vimos, ubras do desejo humano. A despeito das dificuldades assinala-
ass1m, _que m terpreteJ sem ambigüidade as re~ras universais da das, Alberti soube, pois, dotar-se de operadores novos, que lhe
comodt?ade co~o necessárias. e comparáveis àquilo que hoje eram indispensáveis para poder deduzir as regras do construir
chaman~mos umversos culturais, e que sublinhei a identidÇtde de próprias ao registro da comodidade.
seu funciOnamento nos dois casos da cidade e da casa. O ra AI- Entretanto, a totalidade dos operadores inic.: iais níio deixa
bcrli tem dificuldade em colocar a homologia dos dois te;mos c!e ser indispensável e continua a ser uti lizndu ~i sl~malicamente.
do ponto de vi~ta de uma legislação universal68, e acontece mes- Vimos que o par público-privado, que não mui:; rura invocado
mo de confundir os dois conceitos de público e universal69, desde o Prólogo, intervém em todos os nfvc.:is da an{Jii sc progra-

ll7. Livro V, Cap. XVII, p . 433. 70. Cf. a forma como se tenta hoje f:UPt•r·ou· lnl>~ <IICtculdades, crian.
flll . oxistencia de leis universais da casa não aparece no primeiro
A
do-se conceitos complementares. tais como oH dt· t:S /XI(WS 1ntermedidl'ios
cnpiLu lo lt'ÕI"ico do Livro IV. É mencionada somente no Gap. I do ou espaços de transição.
Livm V <l, <J>:Lrnnhamente, depois que Albcrti declarou sem ambigüidade 71. Depois de haver assimilado don.~ nnturais e status social ele
quo l111vliL lln·rnltui(IO com a categoria do universal: "quae autem universo-
descarnba do tético para o ótico, (lmçns n um adjetivo verbal: ' "his
prmzan.ts re-zpublicae pnrt es crnmn lll f' ttr/(ls". ··cteve-se confiar os negócios
rum ldtJ/uutl om tta convenirent, absoJ.vimus" (ibid. ) .
da. República ao pequeno nümuru dos homens célebre~ e 'bem·sucedl·
(IIJ. J,lvro TV, Cap.. I: "De his ígitur rwbts dicendum est: quià una
U1livc r~i.y, (lu/r/ urwclor1tms primariis cívibus, quid minorum multitudini
dos"' (p. 272). Esse caso é pmtlcnmonto o único em que Alberti faz; uma
con.vcntut " (p. :1.'/1 J; rlls tinçiLO retomada no Livro v, Cap. I: "compertum
semelhante confusão de planos, dcvldll à tnxionomig que ele vai buscar
fecun~s alia ulvl wm cutut untvcrso, alia dignioribus, alia ignobilioribus
num sistema de valores nntlgo. Quanto ao pensamento político de Al·
deben aedif lcl"" (p. 3:m. berti, cf. seu romance Momus, o :;eu tr atado .Va tranqüilidade da: alma.
•· ;LvzcS l ~
:w.\BLIOTJ~CA ~ t.Jl'Tll~SP
~~US DJ!j BAURU
102 A REGRA E O MODELO DE RE AEDIFICATORJA: ALBERTI OU O DESEJO E O TEMPO 103

mática da cidade e da ca~a. A~ ~eis operações da concepção dificuldades futuras. De fato, retoma fôlego antes da última
servem para R transcrição dos programas no espaço e determi- etapa, a mais perigosa75, de seu trabalho , e essa parada, única
nam sua cronologia. O axioma do edifício-corpo permite a in- no desenvolvimento do De re aedifícatoria, assume o valor de
trodução de uma metáfora nova para guiar a divisão: essa pode- um novo Prólogo. Para R. Krautheimer76, tratar-se-ia de fato de
rá organizar-se em torno de um órgão central e privilegiado, um prefácio que Alberti teria escrita para uma primeira versão
análogo ao coração, o atrium para a casa, o forum para a cida- do De re aedijicatoria, num momento de decepção, após haver
de72. O processo de redução ao mesmo denominador estrutural ren unciado a est.:rever o comentário de Vitrúvio qu~ Lionello
prossegue: não só a homologia cidade-casa é retomada e desen- d'Este lhe havia sugerido. Essa h ipótese, por interessante que
volvida parte por parte, ma~ também a frota é considerada um seja, nos parece inutilmente complicada e não muito compatível
campo móvel, o mosteiro oomo o campo do sacerdote e o do com o Prólogo atual. Sobretudo, esses três primeiros capítulos
soldado como um gérmen de cidade73. se nos afiguram em pt:rf~ito acordo com o prm;t:~:so geral de um
Dedicados à comodidade c centrados sobre a cidade os tratado que, de uma ponta a outra, liga a narração dos momen-
Livros IV e V respeitam, portanto, a lógica e a economi~ do tos da edificação à da reflexão que a constrói, faz correr para-
projeto albertiano. Constituem uma articulação-mestra de sua lelamente o tempo teórico do construtor e o tempo do escritor.
arquitetura, entre o registro da necessidade e o do prazer esté- Nt:ssa perspet.:tiva, quanJo l:it: ~abt: que a reda(,:ãO do De re uedi-
tico. Ao contrário dos três livros anteriores, nõo formam um con- ficatoria se estendeu por inúmeros anos, é normal que Alberti
junto fechado, porém, embora reduzidos ao mínimo, poderiam, balize esse tempo e conte as angústias e as dificuldades inte-
por definição, ser desenvolvidos indefinidamente. Talvez seja lectuais que lhe custou a elaboração das regras últimas apresen-
através dessa potencialidade que se lê melhor o valor atribuído tadas na terceira parte do De re aedificatoria.
por Alberti ao espaço e ao construir: o primeiro sempre ofere- Mais amplo que o primeiro, . o "segundo prólogo é também
cido ao segundo, que o acomete, o diferencia e o especifica, dividido em três tempos: relato biográfico das conquistas inte-
interminavelmente, ao sabor da demanda dos homens. lectuais c dificuldades especula tivas encontradas pelo au tor (Cap .
I); definição e elogio da beleza (Cap. li); fi nalmentt: (Cap . III),
relato de origem e introdução a uma problemáti ca da beleza
O registro da comodidade, porém, constitui apenas '.tma donde decorrerá o plano dessa última parte do De re aedifica-
etapa no processo de edificação. Os espaços construídos encon- ioria.
trai!' seu verdadeiro arremate somente no quadro do t egistro su- Se o elogio da beleza, coroamento supremo da natuieza e
penot·. Em outras palavras, às regras que permitem satisfazer a das artes (artes) , d á provas de um entusiasmo quase religioso,
d~ rnandn de como_didudc devem acrescentar-se as regras que não deixa de revelar também, embora sub-reptícia, uma ambiva-
n;:;pondcn~ ao d~SCJO ?c
~clcza : o prazer estético e a beleza que lência que vai pesar sobre toda a terceira parte do De re aedi·
o pro~~ rcr~1a sHo H frn altd ade _e o c?roamento ao mesmo tempo ficatoria. Com efeito, Alberti começa mostrando que a beleza
da ed rfrcaçao e do De re aedJjtcatorza, cuja última e mais longa é igualmente perceptível por todos, sábios (periti) e ignorantes
parte lhes é dedicada. (imperiti), até os mais obtusos77, tanto nas obras da natureza
. To~avia, antes de abordar no Livro VI aquilo que ele pró- como o céu estrelado, quanto nas obras dos hum anos . A termi-
pno des1gna como a terceira parte de sua obra74, Alberti faz nologia empregada, particularmente o verbo sentir (sentire), que
u_rm~ p~usa. Nos t:ês ,Primeiros capítulos desse livro, el e toma não aparece menos de três vezt:s em uma página, rn u::;tn.l qu~ nãu
d rs t~ncta em relaçao a sua empresa, faz o balanço do esforço se trata aí de um procedimento racional, mas de uma espécie de
rcahzado e dos resultados já adquiridos, determina o g_rau das instinto universal, cuja natureza é tão difícil de npn.:t:ndcr quan-
to a da beleza. Por isso, sobre a beleza Alb crti dá 1.1mn definição
'1'2.. Livro V, Cap. XVII: "Omnium pars primaria est quam seu ca- provisória e muito curta: "a beleza de um objl: lu consiste num
l!it'/11 . tu:ât..r~m ~eu a~nu~ P!i-tes dici, nos finum appe1labimus [. .. ]. !taque
.4 1n t • ~ !>lt !S ent pnmarw m quam caetera omnia minora membra veluti
In Tm iJ llr·ullt n.erl.is torum conjluant" (p. 11~). W grifo é ~osso.] Cf. infra 75. A ponto de confessar o autor tor hos!Lndo em perseverar em seu
u •·uf.IHIII Itf•l •lu~sns l!omologias por Sitte, cap. 6, p . 302. ' projeto: "/taque anceps eram tncertusonc com!lit, vrosequerne an potius
'I:J, Liv ro V, Caps . VII, X e XII. intermUter em" (p. 443).
. '/1.. (Jr. ·~•J . '.inhns que _re:-natam o Cap. II, p. 445: "Ex tribus partibu.~ 76. "Alber ti and Vitruvius", 1'hc Rcnaissance and Mannerism, Stu-
q ua~ rnl unl n1 t snm aadr/lcatwnem pertme'.Jant, uti essent quiàem quae dies in western Art, t. II, P rlncoton University Press, 1963.
ad~trw.; rr•m tt N a({ u .mm apta. ad perpetuitatem jirmissima, ad gratiam at 77. "There ís hardley any mon so m eJancholy or so stupid Ctardum),
amo~nitatc111 )Jfll'(tll~.,lma, )Jrirnis duabus partibus abso!utis, restat tertia so r ough (rudem) or unpollshed (rus t iCJlm) , but what is very much
ommum diQnf~slnut L.• J". 10 grito é nosso.] pleased witb what is 'beautiful", t,eoni p. 112, Orlandi p. 445.
104 A REGRA E O MODEW DE RE AEDIFICATORlA: ALBERTI OG O DESEJO E O TEMPO 105

acordo [concinnitas] de todas as suas partes conf01me uma lei Essa h istória, pouco "histórica", da arquitetura, onde Al-
precisa [certa ratione] que proíbe que se acrescente, tire ou mo- berti dá mostras de uma desenvoltura 8~ comparável à de seus
difique o que qt~er que seja na beleza, sob pena de estragá-la"70. relatos de origem, lhe serve de fu ndamento para afirmar defini-
De natureza divina, tão maravilhosa quanto rara, diferentemen- tivamente a existência de leis certas (praecepta probatissima),
te do ornamento que representa uma forma de beleza auxiliar e deduzidas de um conhecimento perfeito (absoiutissima cognitio-
arlificiaf79, a beleza é inerenteSO ao objeto belo. E apesar da ne), e que lhe competirá descobrir. Essas leis se dividem em
opinião daqt1eles que lhe atribuem apenas um valor relativo e duas categorias. " Umas concernem à beleza e aos ornamentos dos
contingente, Alberti reafirma com vigor a existência de regras edifícios em geral, as ou tras dizem respeito a ~uw> diferentes
absolu tas da beleza. Essa depende, pois, e está aí a ambivalência partes tomadas individualmente_ As primeiras são extraídas da
apontada acima, tanto do instinto quanto de uma racionalidade, filosofia e permitem dar à arte (de edifícar) uma direção e limi-
própria a todas as artes (entendamos técnicas) que Alberli fun- tes precisos, as outras derivam do conhecimento de que acaba-
damenta sobre o breve relato, em três fases, de sua origem: as mos de falar e produziram a seqüência da arte"B4. Alberti ai'!,Un-
artes nasceram do acaso, depois, no curso de longo processo de cia que começará pelas regras mais técnicas da segunda cate-
amadurecimento81, foram aperfeiçoadas primeiramente pela ob- goria, ao passo que as outras ("quae uni'JJersam rem prehen-
servação ela natureza e pela experiência, finalmente pelo racio· dant") servirão de epílogo.
cínio (ratiocinatio). A fmmulação e a enumeração das regras fun damentais são,
No domínio da técnica (ars) particular que é a edificação, pois, transferidas para o final da terceira par te do De re aedifi-
essas três fases se desenvolveram sucessiamente na Ásia. na catoria: dilação surpreendente que trai, em Alberti, um embaraço
Grécia e Itália. Em outras palavras, na medida mesma em que real cuja medida poderá ser dada por esse longo resumo do
a edificação somente realiza seu conceito ao nível último da "segundo prólogo". Com efeito, vemos aí Alb erti chocar-se con-
estética, é na Itália que atinge- a beleza absoluta. Com efeito, nos tra duas d ificuldades principais. A p rimeira diz respeito ao orna-
diz Alberti, os etruscos e os romanos foram os primeiros a assi- mento. A princípio depreciado e dissociado d a beleza arquite-
milar a imitação da natureza à do animal vivo e, compreendendo tônica, é em seguida estabelecido no mesmo plano que ela,
que não há beleza separada do uso e da comodidade, chamaram quando não l he é assimilado85: de res to, é o ornam ento e não
de beleza a perfeita adaptação morfológica do animal à sua dcs· a beleza que é distinguido nos títulos dos q uatro livros da tercei-
tinaçãoB2. Graças à economia de meios assim realizada, graças a ra parte do De re aedijicator ia. A ~egunda dificuldade concerne
seu trabalho intelectual e sua prodigiosa atividade •'de constru- ao estatuto das "leis filosóficas" da beleza' e à su a relação com
tores, levaram a beleza arquitetônica à perfeição. a necessidade e a comodidade.
Em particul ar, de que forma a especificidade do terceiro
nível e de suas leis é compatível com a concepção da heler.a
'!11. " Certa cum. m tionc concinr.itas una;ersm-um partium in eo cujus
stut . '!ta ut addi aut. diminui aut immutarz possit nih.il [ .. J" (p. ·147);
como boa adaptação ? Se a beleza de um edifício, como a de
conceito ela estética a lbertiana., cuncinnitas s6 aparece· uma única vez um animal, reside ~m sua adaptação a sua finalidade, as leis da
(Livro !I) antes des.sa passagem. Em seguida, é essençialmente utilizado beleza n ão têm mais de ser fo rmuladas m.1m registro próprio.
no Livro IX. Orlandi traduz concir.nitas por "harmonia", cmboro prc· Mais, não está essa concepção " adaptativa" em contradição não
cisando que a palavra moderna mais próxima do pensamento de Alberti
seria sem dúvida organicidade. Esse termo foi tirado por Alberti do só com a concepção filosófica d a beleza argu ilctônica, m as tam-
léxico de Cícero, que se s erve dele para qualificar o estilo literário. bém com a noção de ornamento, que ela cxd ui?
79. "Quasi subsi diaria quacdam lux pulchritudinis atquc veluti com · Não er am, pois, pequenos problemas que deti nham Alberti
plementum [ ... l ajficti et compacti naturam sapere magis quam. innati"
\p . 449).
no limiar da terceira parte do De re aeclij i c:aluria. Sem ter che-
80. "[ ... l cal;itror pu!chritudinem quasi suum atqtle innatum toto gado a dar-lhe uma formulação explícita, c depois de haver
t'!I:JO por fusum corpore" (p. 449). (0 grifo é nosso.]
111 . I'a m esse papel criador do tempo em Albcrti (p . 451, os verbos 83. Cf. Sic enim m ihi f it veri slm.i'c, Livro VI, Cap. III, Orlandi
c·rt ·~ ··o n t::rcre.~ co, utilizados três vezes em. seis linhas) e (p. <:53, no p. 451. ro gr tt o ~ nosso.J
l'l•l111n do I)I'OCCdimento grego, acúmulo dos verbos de ação; papel dos 84. Cap. III, p . 457.
•ul v,l r llloll rlt> l.mn po ) Cf. também, mais adiante, e o Cap. 3.
85. Cf. Cap. li, p. 44:9: "ch·ca p nlclti'Uuclinem ornamentumque"; Cap.
11;1, 'l'o n111nclo por base de sua demonstração o exemplo do cavalo, III, p. 457, sobre as leis filosóflcns : "1mi.v c1·sam omnis aedifi cii pulchri-
m1j 11 ro''" il' t!OK 111omh!'Os (figuram m.embrorum) satisfaz ao mesmo tudinem. et ornamenta complec tnntw·"; e o início do Cap . IV, p . 459:
LOlliJlO llf l IIKl!(OnuhtH ria velocidade e as da graça (op. cit., p. 455), Alberti
"q uae in r eiJus ;JUlciLerrimi s et omuLtssimis plc;ce<:Lnt ". [O grifo é nosso.]
se ::~ ILI II L nu 11111 11• !'1)111 elo ~eu pequeno tratado anterior De equo animan· A mesma assimilaçá o ocorre no prlm eiro P rólogo, cujo plano menciona
te, quo P.·!l. Mlt:hul cltmlgna com justeza como o "esboço dE:' uma his- aliás apenas o termo ornamento .
tória naturnl dn ('llVulo" (op. cit ., p. 195).
106 A REGRA E O MODELO 11/o' lo'/·,' ;lEDIFJC,1T URIA.: ALBERTI OU O D ESE JO E 0 TEMPO 107

diferido o momento fundamental em que rrarar as leis filosóficas lllj',.li'. longe de se referir somen te à bd eza auxiliar dos urnamen-
da beleza arquitetônica, ele dedica a primeira, e de longe a mais lt o:•• I.! las dizem respeito igualmente à beleza intrínseca dos edifí-
comprida86, parte dos livros "estéticos" às regras técnicas. ' lu: •. Essa " anomalia" com relação às intenções enunciadas re-
Antes de detalhar as regras próprias às diferentes cate- '•llll n da aplicação guase obsessiva, por Alberti, de seu princípio
gorias de ornamento~ . tais como aparecem nos ediffcios particu- . 1. · ~:wnomia ou de fn~galidade, que acaba por gerar o que ~e
lares programados pela commoditas, Alberti trata no Livro VI 1., .,k1·ia chamar de estética negativa. Com efeito, de um lado,
das regras gerais válidas para os ornamentos, independentemente , :ul11 vez que o pode, Albcrti elimina a introdução de orna-
de toda especificação concreta - e por isso mesmo comparáveis uu'lll os e multiplica as li~tas de caminhos a evitar. De outro
às regras da construção (Livro VIII) - enunciadas antes de seu lud1• - e é essa a minha segunda observação - esse "less is
emprego nos programas específicos dos Livros IV e V. Já que a "'"'<'" conduz Alberti a dar prioridade à beleza orgânica, ine-
beleza pode resultar das intervenções do espírito (electio, distrí- tl' ll lr i'1 adaptação perfeita: essa beleza, que se pode ainda quali-
butio, collocatio), da mão (acerratio, afjictio . . .• expolitio) ou lio'll l' di.! adaptativa ou natural, ocupará no conjunto da estética
da p rópria natureza, ~sa~ regra~ gerais serão obtidas cruzando ui h ·rliana um lugar equivalente ao da beleza "racional" de
esses t~pos ele inter venções com as seis operações do axioma da 'I' w r k: deveria dedicar-se com exclusividade até o tratamento das
concepção. 11· 1:rns fi losóficas. Finalmente, as regras dessa beleza racional
Mas, no novo egistro da beleza, essas últimas são regidas l'll d iria de bom grado, cultural - que aparecem pela pri-
por um novo equilí ro. A primeira e a segunda operações, tão " "·ira vez somente na segunda parte do Cap. XII consagrado
longa e minuciosam nte utilizadas na primeira parte do De re "'· abe rturas, a partir de então serão fo rmuladas sempre no
aedijicatoria, aqui s .> pouco produtivas: a região c a área ofe· ·.11h ju11 livo e no imperativo, ao contrário das anteriores, expli-
recem poss ibilidade~ restritas à intervenção estética. Quanto à • .1d11s c enunciadas no presente do indicati vo. Esse traço lingüís-
di vi~ão , cujos privilt':Jios vimos na segunda parte do livro, agora "''u me auto riza a subsumi-las sob o conceito de estética dogmá-
ela não ocupa mais que um único parágrafo87: laconismo surpre- l tr'll: sem justificá-lo racionalmente, s·em di scussão possível, Al-
endente à primeira visto, mas explicável todavia. Isto porque lwrt i impõe um sistema de proporções cifradas. De fato , como
se a beleza provém, de um lado, da perfeita adaptação do edi- t• k próprio especifica no final elo Li vro VJ, AIberti foi buscar
fício a suas finalidades, a d ivisão que tem precisamente essa .,., medidas de sua es~ética dogmática na An tiguidade: não nos
tarefa, ao nível da comodidade, não pode mais gerar novas o·:. ni lo~ . sempre contestáveis, de seus autores, mos em seus mo-
regras agora: de fato, e embora a palavra concinnilas não apa· IIIII IH.:nlos, arruinados ou não, que ele estudou incansavelmente
reça na segunda parte do De re aedijicatoria, 6 realmente um ,. mediu e que, segundo veremos, passa a gozar de novo papel a
acordo dessa natureza entre as partes do edifício que o corolário p11r1i 1· tlo Livro VIl, desde o momento em que são abordadas
uo uxiumu do edifício-corpo prescreve à divisão. ,.., rq~ras concernentes aos edifícios particulares, já enformados
Em compensaçüo, o ornamento das parede~. tetos ou aber- pr l11 e< >muuidaue.
turas suscita uma abundância de regras relativas notadamente Sl.!gundo a lógica generativa do De re aedificatoria, a ordem
aos revestimentosBS e às colunas. Olhada até então como elemen- ol1u. 11wtérias então adotada é a dos Livros IV e V . Todavia, se
to portador (ossa), a coluna é apresentada agora como o orna- "'• n ttcgorias de edifícios aos qt1ais se apl icam as regras estéticas
mento mais importante: "In tota re aedijicatol}a primarium certe '111\l pruticamen te as mesmas (públicos-sagrados. pú blicos-pro-
omamentum in columni~ est"B9, Ela enfeita os cruzamentos as i n lll >~). d iferem sua importância re la tiva c os exemp los escolhi·
praças, os teatros, embeleza monumentos comemorativos e 'tro· "" ·· r: que, de um lado, os edifícios <: rígidos ))11 1'11 u comodidade
féus. O conjunto das regras do Livro VII exige três observacões 11110 exigem, todos, o ornamen to (11 estétic11 lli.!l',ll ti vu d<: /\ lberti
que se aplicam igualmente aos livros seguintes. Em primeiro " ii'Sh.:mun ha em abundânc ia) ; d~.: ou lm luclo. us nor111as da
lwil-111 dogmá tica exigem qu e sejam 111111lbndo:; 11111 míni mo de
IJG. No conjunto dos quatro livros, as regras tiradas da filosofia
oc~tpn m npcnas ci~c«? capítulos, ~u seja, 21 páginas da.~ 199 da edição o•ol lfk io:; pcrl<:ncen lcs, co mo suHs f\lllt,'lll:s 011 usos. ao passado
0 1Jandl, ou um de01mo do t otahdade dessa terceira parte. ll ll lit~o.
11'1. l'rlmolro parágrafo do Cap. V (cujo restante trata da parede e 1\ ssim, a c idmk univl.!rsul. puno ti~: l'umlo da segunda par·
do luLu).
33. Cnp11. VII e VIII. As regras do revestimento se dividem em dois
11•, 111111 ~ ma is cvocadu no l.iv lll VIl sl.!não incidentalmente,
grupou, rcmr11rmo so trate de revestimentos coloeados (crustattones in· 1111110 q lll.! po r desc..: urgo de con~c iCII~o: iu!lll c sob aspectos surpre-
ductac) QUO ompt·r r.n ns técnicas do afresco, ou de revestimentos incrus·
tados (ac/acl ac) QUO nsu us técnicas do mosaico. 1111. No Inic io do T.lvro V I r. 1\ll ou t l,i se apronta para enunciar as
89. Cop. X III, p . 521. lo•(i" ''' !1<1 tum plo quuudo, (lo o'l!(lo ll ~o . no lembra de que não poderia
108 A REGRA l<~ O MODELO
Dl!: RE AEDJFJCATORIA: ALBERTI OU O DESEJO E O TEMPO 10!1

endentes, bastante heterúditus. As regras estéticas, tema dessa


dade do termo templo, mas de fa to trai a influência, em nenhum
segunda parte, têm por objeto em primeiro lugar o número de
seus edifícios e de seus habitontes91, que devem ser o mais abun- ou tro lugar mais presente, do lJe architectura, que está centra-
dantes possível. Em seguida, vêm as técnicas de terraplenagem do efetivamente sobre os edifícios. Depois de traçar sua origem
l! de fazer seu elogio, Alberli expõe regras que permitem inten-
que ganmtern a qualidade da área escolhida92, e, para terminar,
a adaptação da planta (divisão) aos usos da cidade: para Alberri, sificar a impressão produzida pelos diferentes tipos de igrejas
~obre a alma dos fiéis95 . Mais uma vez, a exposição segue a
essa regra, que segundo minha terminologia depende da estética
"naturalista ou orgânica", não deixa de ser apresentada como a unlem das seis operações da concepção. E, como no livro an-
mais importante, aquda que proporciona "o principal ornamen- terior, a esté tica naturalista mantém seu lugar06 frente à estética
e
to das cidades"93. o caso, por exemplo, de escolher entre duas dogmática que somente começa a desenvolver suas prescrições
a partir da segunda metade do Cap. V, em relação com a coluna.
opções que reclamam um arranjo estético dife rente: classificação
e dissociação ou mistura das funções urbanas . As duas opções É então, e somente então, que no espaço du~ Cap~. V a XII é
anti téticas são evocadas num pl ano de igualdade, segundo o tratada a legislação dos ordens. Em tudo o que ressalta aí e dá
procedimento que, no Livro IV, apresentava p aralelamente a lugar, pa ra as paredes como para as aberturas e os tetos, à elabo-
cidade do tirano e a do bom príncipe. ração de terminologias específicas que farão época, Alberti adota
Quanto às regras estéticas da cidade particular, as mai~ resolutamente a atitude do a rqueólogo. De resto, essas mensura-
importante~ são as dos edifícios p úblicos sagrados que ocupam ções não são exclusivamente fo rmuladas no tempo da injunção,
o essencial do Livro VII. Mas sua nomenclatura não se superpõe mas às vezes também apresentadas à maneira de simples atesta-
à do Livro V. Alberti não menciono mais as escolas c os hospi- dos, no presente ou, melhor ainda, no imperfeito do indicativo,
tais· que devem, sem dúvida, conten tar-se com a beleza orgânica descrevendo diretamente esses caminhos e procedimentos dos
da comodidade. Em compensação, obedecendo ao mesmo tempo antigos97, como se se tratasse de reconstituir a cidade elo passado
à tradição antiga e às preocupações religiosas de seu tempo, ele com seus monumentos.
se demora longamente nas muralhas (sagradas para os antigos),
Acontece o mesmo com os edifícios p(1blicos profanos do
nas basílicas. nos monumentos comemorativos e sobretudo nas
igrejas94 (templa). Livro VIII. Cotrespondem menos aind a à nomenclatu ra homó-
Objeto de algumas rápidas páginas n o Livro V, as igrejas loga dos Livros IV e V c p~rtcnccm em sua maior parte a tipos
ocupam agora treze capítulos int eiros e parte de tr~s ou tros. O dt::Saparecidos com a Ant iguidade. Alherti os divide em duas
bem às outras ca tegorias de edifícios se justifica pela ambigüi- categorias : via>. de comunicações e edifícios propriamente ditos.
clcscquilfbrio entre as p ág inas dedicadas às igrejas e as que ca- As prímeiras não compreendem somente as vias extra-urbanas98

deixar do falar "muito rapidamente" do algumas características da cl·


dade": De moenibus !git11r et templis et basílica et monument!s nobis 95. "Et omni ex parte ita esse paratum opto. ut qui ir.gr ediantur
dicendum est, st prlusquam ista attingamus, pauca breti.~sime reteren- stupefacit tlxhnrrE'$Cant rerum àignarum admiratione" (p. 545). [Q grifo
é nosso.]
tur de ipsls urb lbus non praetermlttenda" (Gap. I , p . 533) . [0 grifa 11!
SG. Cf. par ticularmente o Cap. III, muito significui.Jvo pam a e::;tétlcu
nosso.] negativo., e o Cnp. I V.
91. :!;i esse um dos raros traços do De re aedt,ficatorla que traz a 9'1. Cf., por exemplo, o desenvolvimento elo Livro VII sobre os Cll·
marca do espírito medieval. Cf. supra, Cap. 1, p . 55. pitéis: "Dorici ettecere .. ." (0]1. r.it., p . 577).
92. Nas cidades de planície, deve-se dar à sua área uma ligeira In· 98. A categoria das vias de cumunlt:uçõo:; ú oft.:tlvnn tulllo Llrada do
clinação, necessária para facilitar o escoamento das águas e para :tnan. Livro IV, Cap. V, onde as estradas são dlvldidn:; Olll mll llttr(l:; u niw·mi·
ter a limpeza (partida, portanto, aqui da beleza e não da higiene). Nas litares e, de novo, cada uma dessas catogorh\s 11111 }Je r ll(trmn o inl.ra·
clclndes constrtúdas no alto, a regra deve ser "aplainar e igualar a lírea u rbem. As vias não-militares ext ra·urbanns :<foo ot·llnrlns pulas sP.pult u·
pnrn IL beleza. das vias e dos edlf!c!os" (ibià.) . ras. ,rne. segundo podemos constat.ur. 1\lburLI t ru ta corno espaços
IJ:I. "Mas o principal ornamento das cidades provém da Gltuação, públicos profanos. Entretamo, nota seu cnnUor rollr,loso (p. 671). Essa
<111 I!Kclf•uçíio o do posicionamento rela~ivo (col/acationes ) dos edif ícios, contradição trai a hesitação de AlbcrLl num UH>monLo em que a atitude
pot'lli lllcttl!> 11 molhor adequação ao uso, a dignidade e a comodidade de diame da morte se transforma. Os Lt·(Js <'llJ>itulos dedicados à sepultura
trul hl 1111 1 lioi11H" <:r. 535). O texto demonstra a ambigüidade do termo aparecem, contudo, como o testemunho do cluplo movimento, correia..
01"11111/llf/1111111. tivo. de laicizaç!lo e de personalilmçiiu ua morte descrito por P. Aries.
114 . "' lihll lnd•t 1\ m'Le de const.ru!r, não há tarera que requeira mais Em compensação, em Alberti, consLaLa·se a impor:;fmcia. da conotação
inloiiHIIIIniH, oulcltt(IO, hnbilidade e diligência que a construção e o orna· higienista (p. 671 : "ut sacri/icii puri tas contaminetur carrupti vaporis
monto uu l tiiU I>Io [. .. l o templo é o maior e o principal ornomonto do Jaedi tate"l que, Regundo P. Ari!ls. se desenvolverá na França sobretudo
cidade" COup. Ul. p . ú13) . · no século XVIII CEssai s sur l 'histoi1·e de la mort en Occident, Paris,
Seul!, 1975).
110 A REGRA E O MODELO 111-.' lU: AEDIFlCATORIA: ALBERTI OU O DESEJO E O TEMPO 111

e intra-urbanas99, mas os cruzamentos, as praças e, sobretudo, k ['.itimidade depende do status social do proprietário da casa:
entre essas últimas, a categoria particular das praças de degraus d e tem seu lugar nos espaços de recepção e sua importância e
que engloba todos os locais de espetáculos, teatros, anfiteatros ·,cu papel crescem com o número de hóspedes recebidos.
c circos 100. Em compensação, cúria, senado e termas fazem parte São, pois, antes de tudo, regras orgânicas que ilustram a
dos edifícios propriamente ditos. Por mais que Alberti observe ,·stélica da comtrução privada, representada por essa casa subur-
que a evocação dos costumes antigos introduz a uma análise da hnrw , tão querida ao coração do autor que foi "po:;ta de lado,
sociedade e dos usos ntunisiOl, a cidade c os programas urbanos nt •:. livros anteriores, a fim de reservá-la para esse"l04 e aí
contemporâneos estão estranhamente ausentes dos livros dedi· dda lhá-Ia à vontade. O encanto da casa suburbana, já louvado
cadus à bdeza. pm Terêncio e Marcial, pruvém da maneira como ela se insere
Aliás, ao mesmo tempo em que dá livre curso ã sua curio- na natureza e de -como sabe captar a IuzlOS, da generosidade
sidade de arqueólogo e à sua paixão de humanista para recons- de seu desenvolvimento ao nível do solo106 e não em altura, e
tituir em seu esplendor a cidade antiga, sua estt::tiea negativa o ~uhretudo da liberdade de sua plan ta107, dispensadora do prazer
leva a condenar esse faustol02 : através de uma série de inci- supremo por inte::rm~uio daquilo que Alberti já descreve como
dentes que se repetem e se misturam, constituindo uma espécie 11111 verdadeiro "passeio arquitetônico"lOO.
de manifesto, Alberti revela sua obsessão pela austeridade e sua Essa exaltação da beleza "orgânica" reconduz, muito natu-
predileção por uma beleza animal, essa beleza orgânica gerada rulmente, ao problema "filosófico" da beleza em geral (universa
pela a uapt!:u;ãu feliz do edifício à sua finalidade. Jllllchritudines ornamenturum genera109) que se foi progressi-
vamente desenhando em profundidade a partir das análises e pres-
crições "técnicas". Mas essa "investigação muito difícil"llO, dife-
. Encontra-se a. expressão final dessa estett..;a pessoal na pri- riua até esse momento quase último do Livro IX, não deixará
meira parte do L1vro IX, que trata dos edifícios privadosl03. de ser de uma brevidade surpreendente. Alberti aloja-a no c~paço
Se o Livro V (Cap. X V 1) especificava que o domicílio dos menos de três capítulos (V, VI, VII), onde forma uma espécie de en-
favorecidos pela fortuna deve sacrificar o ornamento e seus pra- dnve entre o longo desenvolvimento concedido à estética dos
z_er:s à comodidade, o Livro IX deixa entender que é esse, no edifícios privados e os quatro capítulos finais que, como vcrc-
hm1te, o caso de toda casa particular. Mais precisamente a resi- llrOs ultrapassam o registro da beleza t: w nstituem um suple-
dência p articular, qualquer que seja ela, depende em ~rimeiro me nto ao programa dos dois prólogos.
lugar de uma forma_de beleza qu: não provém da l>Ua decoração
mas da planta e da JUSta compart1mentação (membrorum concin-
uitate). Er~1 o_utrm; palavra~, o ornamento somente se justifica nos 104. P. 791. Tratava-se, anteriormente, da exploração agrícola; dessa
v••r,, unicamente da casa de r e creio. Sobre a importância e a signifi·
espaços publicos, e é por 1sso que, nos edifícios domésticos, sua .-a ~· iw desta nos meios humanistas de Florença no século XV, cf. A.
1!111\STEL, Art et Humanisme à Floren.ce au temps de Laurent le Mag-
n1flque, op. cit., pp. 148 e ss.
99 ... Elas exigem düerent~ ornamentos segundo suas partes. A c&- 105. "Plurimum admittat lucis, plurimum solis, plurimumq1Le salu-
beça < caput et quasí termmus") ex:igc portas e arcos de triunfo· u 1, ·1.1 aume" (Livro IX, Cap. 11, p. 793): aplicação dos p rincfpios de ,;i.
corpo da ru~ susc!~ as prescrições mais pessoais de Alberti no con~er­ '"' '~'iio , de área e de abertu ra.
ncnte à p!lvimentaçao, ao alinhamento das construções, à padronização JU(). E la ignora as escadailas: ..Cmll(/1/e cul s /111171/. lnl crio r em domus
de suas alturas e de suas portas. l11/cr is. non aderit ubi grad1t111 desccnc!Jssc.• " (IIJ/tl.) . l?nrn Alberti, com
100. Caps. VII e VIII. Por uma vez, Alberti encontra em ViLrúvio 1-r,.u o, a construção em alturu ó foill o h u\lll C o111 elo contexto urbano
essa redução estrutural cuja pertinência C. Sitte sublinhará bem mais 1 Cnp. 11, p. 789) .
tarde: efetivamente teatros e anfiteatros são locais de encontros e de IU7. Alberti insiste sobr e 1t rr lnllvfthldu ,. 11 (l lvnl'llf!lncl<l das plantas,
contatos análogos às praças. ,·u la única constante é a r oluçílu liii i'IIIUII IO:IIl qm· dovu unir as partes.
101. Livro V~II, Cap. I, p. 671. Cf_ de novo R . KRAUTHEIMER. 1·r.: a
particularmente, p. 795. A qllldfchulo d11 plru ll 11 ur.·rucc maior fonte
102. Cf. particularmente o Livro VIII, Cap. III, _op. cit. pp. 681 683 <h· praze r, com o no coso dn .-Jclncfu.
o u l'Osciva permanente de Alberti diante dos exemplos da ' suntuosÍdad~ 10!1. Observação multo Jn~lll 11" l 'orl oJt hc:-~ 1 conllrmada por: " Sub
untfgn, om favor do meio-termo. Essa tomada de posição figura bem l•••·/11 brgr essi in du bto .~l nt . 11/ft //111 tw t1tt l111l oratia istic residere L . . l
nn llnhn t io contraste que ele traça (Livro v, cap. Illl entre a desme- " " ullcrlom pcterc .. ( p . 'llJ:I). . _ .
dfcfn CIO~ 111onumontos egípcios c a jrugalitas a rqultetônica dos tiLruscus. IO!J. "Vam os ur,om nulll llll' lhHI'IIVI pmmossus e chegar a os pnnciptos
. lO:J. CC. os quatr·o p rimeiros capítulos, onde o domínio do privado rio onllo pro võrn todon Olt f(/lllol'l 'll 1111 ho k•·r.a c de ornamentos, ou melhor
e mdlcnlrn\Ji rtu IJPIJl;(U uo do público em matéria de ornamento (Cap. I , uh>tlll. que so rJostnca111 clu 1oclo t lp11 elo bele:Ga" (primeiras hnhas do
p. 770). Alb01'1.t ó formal: "in privatis ornamentis severissime conttnebll t'II IJ. VJ .
sese" p. 71l!i) ; 011 1ll nda : "Odi sumptuositatem" (Cap. r, p. 803) . Algumas 110. " 0 1/ji c/Hs u/ m /nlltl /ll' f tJv.vl/ y(l tiO" (p. 811). Alberti volta mais
regras dogmhtlt•(l:;, lu<.luvln, süo dadas no Cap. III. drlllll vu:t.OH nu mu~mll Jll\ lf lnu n osKu dtrfculdade.
ll2 A REGRA E O MODEL-O m: nE AEDIFICATORIA: .ALBERTI OU O DESEJO E O TEMPO 113

De um só golpe, o Ieitor se vê surpreendido pela singulari· i11 Lc rior, ou seja, pelas estruturas mentais do sujeito produtor,
dade dos três capítulos centrais e decisivos do Livro IX: de uma t\ Ibcrti tentará apreendê-la a partir do exterior, por critérios
extraordinária complexidade, eles demonstram contudo, por vcí· pe rtencentes ao objeto produzido.
rias vt:zt:~, uma pressa desconcertante que se manifesta em q ue- Descobrirá tais critérios ao final de um processo negativo
das abruptas111, e sobretudo são quase constantemeQte colocados que o leva a buscar aquele cuja supressão ou alteração aniquila
sob o aval insólito dos antigos. E claro que se deve ver em tais u bdeza do belo objeto. Três coisas (Alberti não as uesigna por
anomalias uma conseqüência das dificuldades a que a ambiçúo 11111 tc nno genérico) se revelam assim essenciais : o número (nu-
leva Alberti: já que lambém ele formula, no coração do Livro IIJ t'ru~) das partes distintas e das partes semelhantes do objeto,
IX, uma teoria da beleza que não mais concerne exclusivamente ~. 1 111 proporção (finitio) c a localização (collocatio) do próprio
à arquitetura e na qual ele parece querer resolver as incompa· uhjcto e de suas partes umas em relação L:om as outras. D a con·
tibilidades e as antinomias - pressentidas já 110 Livru vr e junçiio de numerus, finitio e collocatio resulta concinnitas, essa
subjacentes aos li vros seguintes - entre beleza natural e beleza 1•, mnde lei fundamental e absoluta da natureza e das produções
cultural, instinto e razão, entre a razão e a tradição regida pela lt unwnas. Vemos que se trata, então, dos resultados de três ope·
estética dogmática. r:u.;ões comparáveis às da wncepção, mas ·deduzidas, expl!cita-
No princípio de sua argumentação, Alberti retoma, impu· lllcnte, da observação da natureza. Nós nos referiremos a eLas
tando-o aos antigos (peritissimil> veterum), o corolário "estético" daqui por diante como às três operações do axioma do concin-
.do axioma do edifício-corpo, já enunciado no Livro Vl : " o edi- uiws.
fício é como um animai" (esse veluti animal aedijicium112). Em Alberti consagra o s~gund o tempo de s ua exposição a de-
outros termos, sua beleza tem a mesma natureza que a do ani· fiuir essas operações e suas implicações. Mas, em vez de pro-
mal: para compreendê-Ia t: produzi-la, é. preciso imitar a natu- ceucr em seu p róprio nome, ele integra agora tod a a informação
re7.a. Alberti empreende então, em seu próprio nomeL13 e no que se relaciona com isso num relato fei to no imperfei to, cujos
presente do indicativo, uma análise notável. As obras da natu· p1u lagonistas são os antigos. Frente à diversidade das obras da
reza, prossegue ele, apresentam uma grande diversidade estélica. II:Lllll"eza, estes transpuseram-lhe (transtulenmt) as leis para
A beleza é preci~amenle o denominador comum que, diante de u~ o bras dos homens. Descobriram, em parti cular, que de acordo
três helas mulheres de tipos diferentes, uma das quais recebe eom seus programas (fine et ofjicio) os edifícios deviam obedecer
nossas preferências, nos faz entretanto concordar com certeza 11 1rGs grandes furmas115 (figuras aedis exormandis), que chama-
que, independentemente de nossas opiniões pessoais, a,s, três são 1"11111 dórica, jônica e coríntia, apresentadas em termos puramente
igualmente dotadas de beleza. Como então definir esta? Ela qualitativos. As regras gerais da estética arquitetônica deviam
depende cv iclcnl cmcnte ele nosso julgamento, informado por 1csultar do cruzamento dessas três formas com as up~rar,;ões da
" uma lei (ou dispositivo) inata de nossa almo" (animis innata concinnitas. Mas Alberti não segue a lógica de suas premissas.
quaadam ralioll4). Quanto ao funcionamento dessa receptividade l>c um lado, não mais se ocupará das figuras aedis exornandis,
(cmimi sensus), elucidá-lo é ta1·efu Llllt: Alherti se recusa a as· 11 ll fíO ser esporadicamente e in extremis, no início do Cap. VII.
sum ir. E como se admirar com isso? D e fato, evitando as armn· I )c ou tro lado, em delrimenlo de numen1s e collocalio, ele privi-
dilhas do neoplatonismo, ele aca ba colocando o problema nos lq,ia <1 fi nitio11G cujo estudo começa no fim do Cap. V c termina
mesmos termos em que Kant o retomará três séculos mais tarde. uu meio do Cap. VII.
Não querendo (e não podendo) abordar a questão da beleza pelo Essa proporção apresentn, com cfcil o, 11 inliignc vantagem
d..: receber u m a expressão numérico ll 7. Os ll ll ligos, n os d iz Al-
111. Cf., p or exemplo, Cap. V, p, 813, parada brutal da pesquisa llerli, descobriram que clH o bedece em u1·qu ili..:lu ru a lrCs tipos
sobre a estrutura da sensibilidade e utilização duas vezes na mesma de regras . Umas são deduzidub d11 obscr·vn~· 11o da natureza, cujos
página de non requiro :;>ar a justificar esse abandono; idem, p. 815, pa·
rutla rllL unál15e da concinnitas; Cap . VII, p. 837, f im súbito do. jinitio
das ot-cl!•ns por "de lús hac.tem.:s"; idem, p . 837, final em três linhas Jlf>. I dem , p . 817.
dn pl':.:qult;tl "filosófica" sobre a beleza. I !li. Albertl s6 a llt:flnu lllltll,o d c lJJOI ~ tio havíHa nomeado, somente
J 1?.. Ot·Jnndi, p. 611. up•\~ hrwer tmtudo du C011Cl mdi 11 H c1 tio ru\nwro. "Finitio q uidem apud
1.1 :1. l % 1 Jn:;Mn nisso. Cf. p. S13: Credo equidem; p. 815: apud nos; ""-'' ust correspondantia (flltu•rlouJ lllwlu'u:m i.nter se, quibus quantitates
ut ~um 111l c:nm;tur. rllr111·1Jrmtur" (p. 821) . Porlottll!l/11 ( 1•1•. 1"11 .. nota da p . 814) observa com
U 4. ' "IJI lll"/"0 rln 7UllchTitudiue judlces, non optnto, verum antmts l wtl l!;ll que, se Albcr1l contllrhll"ll Jlull!o como slnOn!mo de proporção,
quaedr1111 mlln ••Jfldl•l": i dem, p. 813. [Q grifo é nosso.] A contraposição 11no ó onquan Lo rclnçl'lo du dhnom l}o:; nbst ratas, de pura quantidade,
a optnio daquilo t(ll!l nns f az j ulgar, em outras palavras, daquilo que nluH tmqunnto J"Oluçl'lo do Jlnlutll o du elementos arquitetônicos definidos.
estrutura nosllu Ju iJ{•UliUttLu, nutorlza aqui ~raduzir ratto po~ leL
11'1. Idem, p . 021.
114 A REGRA E O MODELO m: lU.: AEDIJ!'ICATORIA: ALBE RTI OU O DESEJO E O 'l.'EMl'O 115

domínios todos, dependam da visão ou da audição, são regidos Mas não será para cumprir o programa anunciado nos dois
por uma legislação (mica. Por isso, podem ser buscadas na mú- Prólogos. Com efeito, deixando deliberadamente o campo fe-
sica: as proporções das cordas, das quais resultam os diferentes c.:hado da beleza que o Livro X devia encerrar, Alberti traça um
acordes musicais, são diretamente transponíveis para os edifí- balanço, ou, mais precisamente, recapitula sob a forma de prcs-
cios118. As segundas não são mais "inerentes aos corpos e à har- c.:rições negativas o camjnho percorrido desde o começo do De re
monia" (non innata armoniis et corporibus119), mas provêm de aedijicatoria. Enuncia preceitos que permitam evitar os defeitos
''alhures" (aliunde). Alberti não especifica qual é esse alhures, c.:uja responsabilidade incumbe ao arquiteto. Não se trata, por-
mas pode-se presumir que se trata do espírito humano, criador tunto, nem de correções nem de reparos (previstos e tratados efe-
de um conjunto Je n::gras aritméticas, geométricas e musicais, tivamente no Livro X) , mas de prevenção. E, entre as regras pre-
subsumíveis sob o termo médiasl20, e elas também aplicáveis à ventivas que dizem respeito aos três registros da edificação, e
edificação. Enfim, ocorre, ilustrado por sua aplicação it coluna não exclusivamente ao do prazer e da beleza, será dado um lugar
e seu cruzamento efetivo com as três formas (das ordens), um de eleição à estética negativa, à denúncia dos ornamentos inúteis,
tcm::iro tipo híbrido. Com efeito, ele tira simultaneamente suas uo emprego do princípio de frugalidade. Alberti insiste, final-
regras de três origens. Em primeiro lugar, da observação da mente, em dois outros fa tores. De um lado, o tempo necessário
natureza, e em particular das proporções do corpo humano a para o amadurecimento dos projetosl25 que se deve evitar de
que Alberti se refere pela primeira vez nesse Cap. VII. Mas claborat depressa demais, negligenciando o prévio trabalho expe-
tais medidas não se revelam próprias a satisfazer nosso senso l'imental em maquettes. De outro lado, a consulta, em todas as
inato da belezal21. Devem ser corrigidas, de um lado pela apli- etapas da edificação, a interlocutores, cujos conselhos e julga-
cação das regras matemáticas e, de outro, pela observação do mento darão ao arquiteto a possibilidade de evitar as causas de
mundo dos edifícios construídos que impõe sempre um<t. verifi- erro.
cação senão uma retificação. Esse último tipo de regras vem, Assim, apesar das aparências, as regras preventivas do Livro
pois, de alguma forma, caucionar a posteriori a estética dogmá- IX não são assimiláveis aos preceitos corretivos do Livro X que
tica de Alberti, que, já o vimos, era a das ordens antigas. dizem respeito a edifícios já construídos. Na medida em que se
Nada mais resta, então, a Alberti senão tratar da collocaiio. siruam aquém da realização, elas têm um valor positivo e uma
Ele se desohriga disso numa página rápida e não-desprovida de autêntica função generativa. A esse título, pertencem intrinseca-
ambigüidade: a collocatio escapa à racionalização, depende da mente ao processo da edificação, ao qual trazem seu verdadeiro
intuição (Ea magis sentitur. . . qua111 intelligatur per se122) c, epílogo, que é também o do De re aedijicatoria.
ao mesmo tempo, pode ser "fundada em grande parte sobre as Essa dimensão conclusiva do Livro IX :;e manifest<t, em par-
rcgru:; du /illitio''l23. Em seguida, Alberti coloca um final lapidar ticular, nas p:íginas onde são evocados, pela primeira vez no
i\ Sita pcsq uis u " fil osófica·· sobre a beleza e ao mesmo tempo que De re aedijicatoria, os problemas que se colocam ao arquiteto
oo Cup. VJJ12'1. enquanto indivíduo. Isto porque é à sua competência e a suas
qualidades que se deve a qualidade da obra construída. Sua pes-
~oa e sua pt:rsonalidade são a base oculta do mundo ed ificado.
11!1. Sobre as relações da música e da arquitetura em .Aiberti, cf. Daí dois capítulos (X e XI) surpreendentes nos quais Alberti
u obra fundamental de R. WITTKOWER, Architectural Principies in the traça , sob a forma de regras, o pe rfil moml c intelectual do ar-
Age o{ Humanism, op. cit., especialmente o Cap.: "Musical consonnan-
ccs and thc Visual Arts", pp. 117 e ss., e o Apêndice 2.
quiteto, ser de exceção pela soma de dcsc111pcuhos que deve estar
119. Idem, p. 831. em condições de cumprir. Com cl'cito , a edil'i..:açiio, paradigma
1211. Ver particularmente a análise que faz Wittkower das "médias" da criatividade humana, só pude ser u upa11(Jgiu de um intl ivíc..luo
p!tagór lcas em Albert! e da influência do Timeu <op. cit., pp. 110, 114 propri2mente exemplar: é nesse lond d u I Jt• 1'1' uNiijic(l/uria que,
o ss.} e sua refutação ela interpretação de P.-H. Michel (Op. ctt.) .
12l. Naturae sensu animis innato, quo sentiri diximus concinnita-
fi na lmc::nte e apesar de tu do, se i n sc rev~,; 11 61ica. l ~ssa intervém
t cs... Ttlcm, p . 835, passagem essencial para a expressão da complexi- no processo de edificação npcnus por 111c.: io de seu agente, o ar-
dutlo ctu csl6Lica albertiana. qui teto, cuja virtude principul é 11 prudGn..:ia . Na articulação da
1:.1:1. /(i<-111, p, 837.
1 ~1:1 . AlhorLI ní10 tenta eludir o que poderia ser quase com;ideradu
como lllllll nnllnom in; ele próprio coloca-a em evidência: "Nam eo qui- 125. Sobre esse papel <'lptlnl rln tempo no processo criador do
riem 1111111 1 pu1'1.11 fttl jtulicium insistum natura animis homimnn retertur, :al'quiteto, cf. o último plli'ÓI ~I'Illo <I<• Cnp. VIII onde Alberti é pródigo
110 mesmo tempo nos ndv<!rble>s do' lolnpo (iterum, pri1tsquam, ter, quater,
ct mulln ut,huu IJill'lo ttnlttonts rationibus conãict". w grito é nosso.]
12•1. " 1'11111 clol.u,.onaos nqui, pois, nossa pesquisa sobre a natureza <iht etc.) e nos verbos QUO mnrcnm n dur ação da ação (repetas, perco-
da bele2n o 1111 plll'IUH om que ela consiste, sobre os números e a pro- oitatum, perconstitutum ), o ctollno uma série de seqüências temporais
porção se~,:unrlu !l orunnl~umm nossos antepassados", tãem, p . 839. lc:um intermis~is r ... t l.utn rc~111117Ji i s; a radicibus imis ad summam
usque teautaml. cr. supm. n. uo. passagem do Livro Il citado na nota 25.
JJ.It RE AEDIFIC.A:J.'ORIA: ALBERTI OU O DES EJO E O TEMPO 117
ll6 A REGRA 1!: O MODELO
breve recap itulação, o arquilelo pcxle ~er, enfim, apresentado
moral e do saber, apelando ao mesmo tempo para a prudência como o simétrico, o outro e a verdade do Eu que abria o Prólogo.
e para o conhecimento, o que denominariamos a cultura arqui- A trajetória de Alberti termina no bie triunfante do herói, essa
tetônica é objeto de longo desenvolvimento por Alberti. O arqui- terceira pessoa justifica c autentica a primeira.
teto, indica ele, só pode proceder a partit· de uma tabula rasa (o
que seria a própria ten'leridade). Todo o seu ~.:aminho, como o do
homem de letrasl26, deve esrar assentado no conhecimento do Que o Livro IX seja a verdadeira conclusão do De re aedi-
corpus dos edifícios de qualidade já construídos. Deve conhecer jicatoria é confirmado pelo onálise do Livro X. Com cer teza, esse
as obras de seus predecessores com as quais entrará n uma dupla pode iludir, em parte. Trata efetivamente os dois temas previs-
relação crítica c dialética q ue o incitará a superá-las inovando. tos pelo Prólogo: correyiíu dos defeitos e repa ro dos estragos.
Somente então, Alberti inventaria os outros conhecimentos Isto porque, nesse livro final, o tempo con tinua a agir. Mas, seja
necessários à formação do arquiteto. E nesse ponto ele se opõe o tempo das estações e dos cataclismos, seja o dos humanos, ele
a Vitrúvio q ue, seguido da maior ia dos a utores da era clássica, :1tua agora de maneira negativa, pela corrosão e pela destrui-
exige conhecimentos enciclopédicos. Para o florentino, só são real- <;üo130. ~ assim que· o espetáculo do abandono J os edifícios an-
mente necessárias a matemática e a pintura127, e ainda assim ~ tigos conduz Alberti, uma vez mais, a caminhos não-trilhados .
suficiente ter delas uma prática corrente. Uma última observa· Denuncia as " exações dos humanos", indigna-se "ao ver a incúria
çãu ética permitirá, enfim, encerrar o Livro IX com a análise de alguns (para não dizer a avareza) destruir edifícios que o
das relações do edificador com seus parceiros, isto é, as pessoas furor do b árbaro havia poupado por causa de seu TOro esplendor
que encontra na prática de sua disciplina : seus clientes128, inter- c que o próprio tempo, implacável destruidor dt: todas as coisas,
locutores privilegiados ao nível da commoclitas; seus pares, cuja parecia ter destinado à eternidadel31, e daí tira conseqüências
perícia é indispensável aos tres nfveis da edifieação e, em par- notáveis. Primeiramente, na seqüência de seu princíp io de eco-
ticular, ao da estética; seus operários, cuja competência condi· nomia, a regra âe reparação e de manutenção dos edifícios, que
ciona a qualidade de suas realizações. seus sucessores levarão cinco séculos para redescobrir 132 ; em se-
Ao mesmo tempo cativa e vitoriosa das reJes do tempo que guida, c que eu chamaria de bom grado a regra de "salvaguarda",
limitam e fundamentam seu puder, eis que surge, pois, ao tér· inspirada ao mesmo tempo pelo interesse históric.:o e pela piedade
mino do Livro IX, a figura de um herói. Os pod~res inauditos que deve ser vot ada a todo belo t rabalho humano . Essa regra de
que deté.m, ele os deve em parte ã consciê~cia que tem de sua proteção, que antecipa ao mesmo tempo ~ ?titude das Luzes e. o
tarefa e de suas responsabilidades, mas sobretudo à força e à lirismo ruskiniano, repercute o eco de vanas passagens anteno~
acuidade de seu intclccto129. A entrada em cena, em toda a sua rcs do De re aedificatoria e permite que se considere Albert1
glóri a, repercutida através do livro, elo edificador, rapidamente como o criador da noção d.e monumento histórico 133.
c ntrc v i ~ lu quando do primeiro elogio da m·quitetura, deve ser Entretanto, é preciso realmente constatar que o Livro x. ~ão
lirln como a eoncl usfto c o remate semântico, senão formal, do respeita mais as regras de construção textual do D e re aedlf rca-
De re qedificatol'ia. E também a ceno final do De re aedificatoria,
simétrica do primeira onde Alberti se expõe ao mt:~rno tempo
que seu propósito. 130. "Todas as coisas são vencidas pt:lo tmnpo (uevu) [. .. J as !n-
jürins da idade (vetustatis) não são m onos numerosas que poderosas .
Uma vez desenvolvidas, do Livro I à met ade do Livro IX, Os corpos nada podem fazer contra as lols dl\ nnluro:m quo os condenam
as regras intemporais de sua atividade, imediatamente após sua 11 envelhecer (quin senectntem subcan.t) " , Livro X , r:ap. I, p . 176. E ssas
tinhas. que evocam o Momus, trnduw m o proru1HIO J>c~sl ml smo de AI·
1Jcrti ~obre o qual se deverá consul ~t\1' o arLIJ[O flurlnlllvn do ~ · ~ARI~,
126. "Sic gerat sese ut tn studiis litterary-m taciunt", op. cit., Cap. X, " I! pcnsicro di L.B. A!bcrti ncllu cuii.111'1L dul 1t i11111H' hHl'lll.<> , m Con·
p . 857. vcgno I nternazionale incletto nel ccnl.enorlo 111 r •. lf 11 1t, •rll, dll\do supra.
127. "Penitus necessaria ex artibus [ . . , I pict·ura et muth.emattca" , 131. Ictem. Cf. também o Cap. X V. p, !11111, (lll<lo Al borti cte;mnc!a .
p . ll6l. " 11 negligt!ncia e a incúrla d os 11\li iiVIIII" 11111 nmlt\r lu de m anutençao dos
128. 11. escolha dos clien~es é particularmente importante. O arqui· o:dUicios. 'd. .
teto nr,o pode estragar seus taltmr.os. Tem necessidade de um Jnter!O· 132. Ci. ,C. ALEXANDl•!R q uo, dupnlll llo hllvor posto em. ev1 en7m .o
cutor do C'JIIIIII dndc "spl endidis et harum 1·ermn cupirlissimi~ prtnciplbus, pf\pol d o reparo nas soctoC:hUic1tt " \HJm nl\1111\tir'ns" ( Notes on tne suntnesz.~
c1v! tat'IL7n 1 . . . 1" (p. €65). of 7/orm, cambridge, Mnss.. ll arvu rcl lJillvur si t y Pr~ss. 1964), faz da re·
129. "no 7'C acm ttcatm·ia laus omnium est j ltdicarc bene quid deceat. p;u·nção sistemática um don pr lnd pi •J~ !undament ats de suas n~a:' r e-
Nam acrllflm,, ~•· Qttirl r·m necessitatís est; cammode aedifi casse cum a J: I'I\:> do construir ('l'hc 0 1'<'(1011 R:rpcrlm ent, trad. fr ., Une expenence
necessi l.ato Ir/ (f1tlclc·m tnm et ab utilitate ductum e:~t" CCap. X, p. 855). tl''llrbanism e dém.flcratl.fJn~. Hnull, l!l'l:i, 1111 . 77-89). .
Cf. tambóm (JI. H~ lll " Pl• ~sogom em que Alberti subordina o registro 133. Ci. F . CHOAY . a r lhN J11 '1 '/t,: Ilarvard Architecture ReVleW, iall.
da estética uos dt ~ n('<:C~s ldullo c da comodidade: o pior erro estético l!JU:J.
provém dtl inobsor vl\uclu clns rog1'US dos dois primeiros mve!s.
ll8 A REGRA E O MODELO IJE RE AEDJFICATORTA: ALBERTI OU O DESEJO E O TEMPO 119

toria. Ultrapassa o con teúdo lJ.Ut:: lht: dt:terminava o Prólogo e clamento e merecem tanto mais seu nome quanto não apelam
sacrifica o jogo regulamentado dos operadores do texto à an~dota à intuição. Com efeito, único na linhagem dos tratadistas ociden-
pitoresca e a uma longa digressão-dissertação, de inspiração vi- tais, e consciente das facilidades de que ele se priva dessa forma,
truvinna, sobre a água e as obras hidráulicas que ocupa mais de Alberti deliberada e explici tamenlt') renunciou a ilustrar seu tra-
dois te1ços do texto. De fato, o décimo livro se mostra um quarto l~Ju134: ato que, num tempo de inflação do visual e levando em
tlt: de~p~::jo. Pode-se compará-lo a uma janela falsa, que dá ao conta a dupla contribuição do teórico florentino à teoria da pers-
edifício a lbertiano uma aparência vitruviana, ou seja, pode-se pectiva e à car tografia, assume um peso singular .
ver nele um anexo medíocre, exterior à construção textual de Podemos formular o primeiro axioma, ou tríade albertiana:
Alberti que se impõe, ao contrário, em todas as suas partes, pelo "a edificação consiste e m três partes dependentes respectivamente
rigor c pela coerência de sua arquitetura. da necessidade, da comodidade e do prazer". ~~se ax:ioma deter-
mina três níveis (ao mesmo tempo lógicos, cronológicos e axioló-
gicos l na atividade do edificador e três tipos, muito diferentes,
2. UMA TEORIA DA EDIFICAÇÃO de regras. Serve, ademais, para estabelecer a divisão tripartite
do De re aedijicatoria e é reutilizado ao longo do tratado para
Chegando a seu termo, minha análist: d:::ve ter dissipado a~ ser cruzado com os outros operadores. Vemo-lo atuar desde o
dúviuas formuladas no início desse capítulo. A ordem seguida Prólogo onde é utilizado para estruturar o elogio da arquitetura.
por Alberti não é contingente. Cada seção do texto se acha no Pode-se formular o segundo axioma: "todo edifício é um corpo".
lugar que lhe é determinado por um conjunto de operadores. O ferece no cu rso do livro três variantes suplementares que podem
E se ocasionalmente uma receita prática se aloja nessa constru- ser consideradas como seus três corolários: " metodológico", "es-
ção teórica, é em seu lugar hierárquico, no momento da execução trutural " e "orgânico". O primeiro corolário especifica quo, "co-
do programa. Quanto à diversidade dos problemas abordados, mo todo corpo, todo edifício é composto indissociavelmente de
longe de ser digressiva ou arbitrária, é justificada pela natureza fo rma e dt: matéria". Dt:termina o plano da primeira parte do
do "segundo nível" albertiano que se desenvolve à medida que De re aedificatoria (ordem seqüer.,cial dos três primeiros livros)
se enunciam os objetivos e os desejos que ele deve sati.sfazer e e permite, por cruzamento com os axiomas 1 c 3, engendrar uma
dos qua is não pode dissociar-se. Já que é preciso ilustrar o fun- ~arte das regras da construção. O corolário 2 (estrutural) espe-
cionamento dos pares de•operadores universal-particular, público- cifica que, "como todo corpo (vivo), o edifício é compo~ tu de
privado, sagrado-profano, através de regras concretas, torna-se um esqueleto (elementos portadores), de tendões e ligamentos
necess:írio levar em conta o conteúdo das instituições sociais e/ ou (elementos de ligação) e de uma pele (enchimentos e revestimen-
dos projetos individuai3. tos)": esse corolário, convenientemente cruzado, permite engen-
C;1111 inlwndo jun to com Alberti, pudemos descobrir, além drar a:; regras estruturais da construção, do Livro III. Enfim, o
di s~o. o mnclo de cngcncl ramcnto do texto. Este revelou ser o terceiro corolário (orgânico), segundo o qual os membros são
produto de um número preciso e limitado de elementos que cha- solidários entre si e subordinados à organi7.ação do corpo inteiro,
mei operadores e cujo trabalho petnlite construir progressiva c permite gerar por cruzamento parte das regras da segunda e da
simultaneamente o livro e as regras da edificação. Vimos também terceira partes: explico ao mesmo tempo o adaptação do edifício
que Albelti não designa explicitamente, sob a denominação de aos seus objetivos e a sua harmonia. Podemos fonnulm· o terceiro
prillcipia, partes, rationes, senão uma parte dos operadores que axioma: "a diversidade dos humanos e de ~uas dema ndas n ão
ele emprega. Uma análise funcional, entretanto, permite determi- tem iimite; para ser eficazmente considerada no proc:::sso de pro-
nar-Ih~ a totalidade, das quais apresentarei uma exposição sin- gramação, ela exige ser integrada num quadro laxitlu ô mico arbi-
tét ica numa formulação mais ou menos livre com respeito à do trário". T rata-se aí de uma espécie de lllc:;lud o de i mporluncia
De re aedi/icatoria, e, ainda uma vez, utilizando minha própria que legitima os paliativos. Podemos con sidcr;~ r como corolários
tcnninologia. de~se c~xioma um conjunto de oposições bilr {l l'iu~ . gc rul / particular,
'Fmho rn essa distinção não seja estabelecida por Alberti, po- público/privado, sagrado/profano, urh:ln ü/ ruwl, depend en te do
dem o~ div idi r os operadores do De re aedijicatoria em duas ca- lazer/dependente do trnbalho, que serve m para di rigir e organi-
lcgoriii'J: uns lcó ricos, os outros práticos. Aos primeiro~ chamo zar a programação, operação [undmncntal do segundo n ível, ao
axiouuts ( ~110 ci nco, dotado~ de cÕrolários) e aos segundos, em mesmo tempo que para instituir a o rdem seqüencial dos capítulos
núrm:l'o de lrC.~. deno mino princípios. da segunda e da terceira partes do De re aedificatoria.
l:scolhi dm o no me de axiomas aos operadores te6ricos por-
que são ttp r"Uscntllclos sob a forma de proposições indiscutíveis,
originais e dotudus de um poder generativo. Constituem um fun- 134. Livro III, Cap. II. op. c!t.. p. 177.
120 A REGRA E O MODELO DE RE AEDIFICATORIA: loLBERTI OU O DESEJO E O TE MFO 121

Ao contrário dos anteriores, o quarto axioma, "da concep- Chamo, enfim, dialógicol35 o princípio que estipula que o pro-
ção", ílparece somente no Prólogo. Abrindo o Cap. II do Livro I, cesso de t:difica~u implil;a vários atores ou tipos de atores numa
pode ser formulado : " a edificação consiste em seis operações relacão verbalizada. Os peritos (periti), em outras pal avra~. os
relativas à localização, à área, à planta, à paredt:, ao teto e às out;os arquitetos e os humanistas, são cha~~dos a inte~v!r nos
abertUias dos edifícios projetados". Essas seis operações servem três niveis da edificação para .controlar e cnbcar as dectsoes ~o
para gerar, por cruzamento com os outros axiomas, o conjunto arquiteto. O cliente (ou patrão) desempenha um papel esse~cwl
das regras da edificação. Determinam, além disso, a ordem de no segundo nível, na formulação e <.liscussão do programa. Fmal-
seqüência dos capítulos dos Livros I e III e contribuem para es- mente, a comunidade social em seu conjunto tem a sua palavra.
truturar e ordenar o tratamento das matérias dos Livros IV a IX. Em suma, o outro é um parceiro completo do arquiteto na pro-
Enfim, pode-se formular o quinto axioma, do prazer, homólogo ducão do mundo construído: quer se trate da discussão do pro-
ao anterior pelo local de sua enunciação fora do Prólogo e por práma ou do julgamento de confom1idade às leis físicas e às re·
sua divisão em operações: "a beleza de um edifício resulta do gras estéticas onde /aus (o louvor) se torn~ o coroamento, e qu_ase
jogo de três operações relativas ao número de suas partes, a sua~ a finalidade, da edificação. Na construçao do tratado, a aphca-
proporções e ü sua localização". Formula do no Cap. V do Livro cão do princípio dial6gico se traduz na presença insistente e per-
!X, ele esclarece retrospectivamente os livros estéticos (VI, VII, {nanenle <.le uma segunda pessoa, o "tu" que, como havíamos visto
V111, IX, Caps. I a V) que o antecedem, mas gera efetivamente anter iormente, é o destinatário silencioso do "eu" de Alberti.
apenas o plano dos Caps. V a Vll (inclusive) e .as regras que Além dos cinco axiomas teóricos e dos três princípios prá-
esses contêm. ticos, c utros operadores, de um gênero diferente, que cha•11arei
Quanto aos três princípios práticos, que Alberti se contenta metamíticos, introduzem o Prólogo c cada uma das três grm. ·ies
em utilizar sob formulações diferentes sem designá-los ao leitor partes do De re aedificatoria. Servem para fundamentar e gera~.
como entidades abstratas, aparecem já no Prólogo para atuar ao ao mesmo tempo, o projeto global de Alberti e o conjun to do•
longo de todo o De re aedijicatoria. Assim, o princípio de fruga- axiomas, e se apresentam sob a forma de breves " relatos de ori·
lidade urdt:na que st: uptt: sempre pt:la solu~o ótima wm mt:nu- gem", livremente construídos por Alberti. Teremos ocasião . de
res despesas, devendo o edifício ser reduzido àquilo que dele não analisar seu funcior..amento e de nos interrogar sob seu sentido
pode ser tirado, trate-se de materiais ao nível da construção, de no final desse capítulo.
ornamentos ao nível da estética c, de maneira geral, dos gastos. Por enquanto, bastar-nos-á constatar - e era esse o objeto
Somente a despesa intelectual, sob a forma do trabalho de con- dessa capitulação sistemática - que seus operadores permitiram
t:epção t: dt: autot:ríLka, ~ ent:oraja~a int:ondicion almt:ntt:. Corno que Alberti construísse uma verdadeira teoria da edificação, que
vimos, esse p ri ncípio desempenha um papel pa1t icularmente im- articuia três sistemas independentes e hit:rarquizauos. Na base,
pmlan lc naquilo que chamei de estética negativa de Alberti. o sistema da construção compromete os materiais que devem ohe-
Quanto ii próprio construção do texto, a aplicação do princípio decer às leis da mecânica e da fís ical36, bem como às de uma
de l'rugu lidadc se traduz, em primeiro lugar, numa extraordinária lógica imposta pelo espírito humano : dupla pertin~nci~ que, para
t:COULlmia de mdos conceptuais e terminológicos: cinco princípios o lt:itllr mouerno, não deixa de evocar a do matenal fomco, base
teóricos somente e um vocabu lário que à su a limitação delibera- da coDstrucão de todo discurso e que depende ao mesmo tempo
da deve força e precisão. Em seguida, procede do mesmo espírito das regras· da fonética e das da fonologia. Oc fato , se a fís~ca
um conjunto de equivalências estruturais que contribui, ele tam- dos materiais ocupa um livro inteiro (Livro 11 ), i\l bcr11 dedica
bém , para reduzir o custo teórico e textual:' portas, .ianelas, saí- uma parte original de seu trabalho, que 11ada d~v~ a qual q~rcr um
das de fumaça e canalizações de água são reunidas sob a deno- de seus predecessoreS, à uefiniÇÍÍO das SCÍS UJ!l:l'a~·ucs bá~rcas da
minação de aberturas, come tetos e assoalhos sob a de cobertura. concepcão em matéria de edificaçiío. Tr:lla-sc. no caso. de uma
Da mer.ma forma, a cidade é assimilada a uma grande casa e, in- espécie. de poder de formalização in at_a. pr6priu do cérebro hu·
vcrs:nncnte, a casa a uma pequl!na cidade, o que as torna passí- mano, que participa da mesma nccc~:;,dmh.: que a::. le1s da natu-
ve is dm; mesmas regras de divisão. O princípio de duração exige
qu ~· " nlil'icação se inscreva na duração, tome tempo. Não se
135. Tomamos este tenno d e M. Drtlthlin . C!. S. TODOROV (ed.),
11'11111 I IJW ili iS de uma inscrição adequada no ciclo das estações, M. Ba.Jchtine, Le Prineipe dinlogique sul rJI de Ecrits du Cercle de Bakh·
111 1111 do d1·::dohramcnto temporal de um trabalho intelectual: todo tine, Paris, Seuil, 1981. Cf.
011. f:l t .. f.lvro I , Cap. II, p. 21; Livro IV,
pr·pjt'll' d1·ve r:~· r ll nHtdurecido, rediscutido, questionado. Não exis- Cap. I, p. 165; Livro VI, Cap. IJ, Jl 151. .
h· pl.w lrtln1l1:o ptrl'll o arquiteto que o imediatismo ou a pressa. 136. É claro que a física do AlbcrLi continua. sendo a de Aristóteles.
l l11:1~· rl'lud plo l'on l'~.:rc ;~o De re aedijicatoria seu valor metafórico Todc.via, mesmo que seus conceitos de lei e de necessidade sejam pré-~·
lileanos, o esquema teórico quo ele propOe não deixa de ser apropná-
I' dul •;l'll\ 1.111 11\l lllcHmo te mpo a espessura e a cronologia do texto.
vel pelo pensamento atual.
122 A REGRA E O MODELO m : lut AJ>DlF1CA1'0RIA: ALBERTI OU O DESEJO E O TE Ml'O 123

reza, c que permite articular os materiais (Li vro 1) e formular da e do desejo inicialmen te expostos pela linguagem, cujo poder
as regra ~ dessa articul~ção (Livro JII). Essas seis operações irre- de di!:sociaçao e de rearticulaçao, em outros tem1os a tmura de
dutíveis d ão forma, pois, a uma matéria s ubmetida a suas leis an ál i~c, nao pode ser igualado p elo texto construído.
específicas, mas que nenhuma fi nalidade humana organiza: ga- Por sua vez, o segundo nível é integrado pelas regras de
rantem sua integração no si~tema primário, que constitui a con- tll ll terceiro sistema, o da beleza, fonte do prazer (Livro VI, V ll ,
dição p révia e, por sua vez, r. "matéria" a partir da qual poder- V 1ri , I X). Diríamos hoje que esse terceiro nível é o d a poéticai40
se-á desenvolver ou exp rimir o mundo construído; isto porque em que, depois de ter sido subordinada a e ordenada pelo sistema
o sistema da construção é uma condição necessária, ma~ não su- da língua e pela semântica do discurso verbal, a arquitetura está
ficiente da ed ificação. Abre ,1 acesso ao sentido, mas não permite em condições de significar por ~eus mt:ius próprios e específicos .
seu desenvolvimento articulado tanto quanto o sistema fonológico Assim, sem pender para os anaJogismos falaciosos que a moda
não permite construir proposições significantes. É por isso que por vezes inspirou a nossos contemporâneos, Alberti coloca, p ela
as regras da primeira parte do De re aedijicatoria não dizem res- primú ra vez na história, as condições daquilo que hoje denomi-
pei to ao mundo diversificado do edifício, à paisagem urbana naríamos uma semiologia do espaço construídol41.
ou rural. A concepção de~ses três estratos articul ados entre si rep re-
Essa só é inscritível num segundo nível de articulação (Li- senta, pois, uma contribuição capital à teoria da edificação. A
vros l V e V) . Depende de um segundo sistema de regras, qm: importância disso jamais foi reconhecida plenamente: Esse não-
faz par.sar os elementos construídos do semiótico ao semântico. reconhecimento se explica em parte pelo fato de que o De re aedi-
Mus c~sa segunda articulação não é comparável à que caracteriza jicatoria foi lido tradicionalmente como um novo Vitrúvio, muito
a l inguagem verbal. Apela a um sistema semiótico externo que 111ais do qut: como abordagem teórica original. Mas é cer to tam-
é a linguagem: o primeiro sistema, o da construção, só pode ser bém que a repercussão dos trabalhos da lingüística sobre o con-
desenvolvido no espaço se for integrado pelo sistema hierarqui- junto das p esquisas antropológicas permite atualmen te uma lei-
camente superior da demanda ou do desejo expressos verbal- tura diferente do texto. Deliberadamente anacrô nica, essa não é
men te . Quando as tentativas atuais de "semiótica arquitetura!" menos possível e legitimada pelas qualidades intrínsecas da obra
s ão polarizadas so bre a noção ambígua c fugidia de função137, albertiana .
A lber ti enuncia de maneira magistral a ligayãu consubstanciai
do con~:truir com o desejo e a abertura indefinida desse último138.
Evita, aliás, a armadilha do dogmatismo e coloca desde logo que Vimos, entretanto, que o registro da beleza não apresenta
demanda e desejo de espaço construído são formalizáveis somente a mesma homogeneidade que os outros e causa uma certa per-
com o auxílio ele categodas taxionômicas arbitrárias. O sistema turbação à unidade que o projeto albertiano teria reclamado. f:
dm; reg ras programáticas q ue elabora no Livro IV é apresentado que , a despeito de uma informação, notável para a época, rela-
como uma solução possível entre ou tras: seu valor é operatório tiva tanto à cultura antiga c seus vestígios arqueológicos quanto
c se úcve ao esforço de racionalização de onde p rocede. Assim, à arte contemporânea e suas idéias diretrizes, Alberti não dis-
ao longo dos Livros IV e V, longe de ser um simples "interpre- pun h'i dos instrumentos conceptuais, elaborados mui_to mnis tar-
tantela9, a língua é primordial na origem mesm a do texto cons- de, que lhe teriam permitido senão resolver - c1nco sécul~s
truído que constitui apenas uma sua transcriyão : a recusa do mais tarde a questão continua aberta - pelo menos colocm· ma1s
desenho e da ilustração, assinalada anteriormente, sublinha esse claramente o problema da estética . Um resumo ~ i n t útico das d i-
status rcalengo da lingu agem verbal. É por isso que, nesse nível, ficuldades que, segundo m ost rou a análi::;c do Livro I X. illl iJedia rn
a espacialização numa escrita em três dimensões n ão aduz qual- que Alberti mantivesse a coerência pcrfcitn ele sr11 trn laclo, nos
quer suplemento de sentido a respeito da formulação da deman- permitirá especificar a con tribu.ição origin oI d~ 1\ lhe ri i 11 _11m~
" teoria da arte" e captar a ongcm do~ cont ra-sc11so~ habitual-
1 ~7 . Cf. U. ECO, La Structure o.bsente, Paris, Mercure de France, men te cometidos sobre as relações do /)e rc aedijiw loria com o
19TJ. l'f'rnd. bras.: A Estrutur a Au sente, São Paulo, Ep . Perspectiva,
197G.l.
J:lll. CC. T.ivru I, Cap. III, p. 23: " Quoad res prope infini ta redacta 140. Cf R. JAKOBSON, parLiculfmnonl.o "Llngutstcs and Poetlcs" In
cst ": l.l vl'l> TV, Cap. I, p. 265: " Pr o liomirmm vartetate in primis f i eri T . A. SEBESK. org., Slyle in L rml]ltaf/t:. New York, 1960. Cf. tembém I .
1tt llrl!Ji'(t i ii11N OIJCI"ll varia et muztiplicia"; ou ainda. Livro IX, Cap. VI, LOTM...\N La structure dzl text e art l.~ti quc, trad. fr ., Gallimard, 1973.
p . 70rt, nol' t"ll lt l'usa s uburbana: "Areis ver o qui dilfcrant ista i nter se,
tton cst ui. r c(cmm; S7t7lt enim mUlta ex parte arhitrio et vari a locorum
141. Da.qual ele r evela por VC"/.CS uma es-pécie à e prefi~turação em
a lgumas passagens antecipa.doras. Cf. Livro IX. Cap. X, p. 861: "verum
vi vc rult mt/rm() im11ml antm·". 71tctura et mat1zemaUca n on carer e magis poterit [trata-se d? arqu1tetoJ.
139. Cf . )1:. H I,:N VJmi STE , Problcmcs de li nguistique générale li, quam vocc ct syllabis poeta." (já. citado, p . 116, n. 127) ro qnf o é n.ossol,
Paris. Ga111mnrd . 1071. "S6miologia dE la langue". p. 855 (comparação do arquiteto com o homem de letras).
124 A REGRA E O MODELO m; 1m AEDIFICATORIA: ALBERTI OU O DESEJO E O TEMPO 125

. pensamento antigo em geral e cum o neoplatonismo em parti- "" entre duas tendências. De um lado, Alberti~continua obsecado
cular. Utilizarei minha própria terminologia, de um lado nos pdu princípio de frugalidade que lhe inspira sua estética nega-
casos em que, como para os operadores, ela permitiu designar llva c, no limite, o fa ria considerar a boa Gestalt como um ideal
noções de que Alberti se serviu sem lhes dar denominação espe- ·.ui ic iente. Mais ou menos inconscientemente, ele liga beleza cul-
cífica tbeleza orgânica), de outro lado q uando me forneceu con- Jura l c ornamento. O ornamento (sentido como perigo) é ao mes-
ceitos interpretativos (estética negativa). 1111) tempo consubstanciai à poé.tica. De outro lado, Alberti quer
Vimos anteriormente que Alberti entende a beleza sob qua- ll'l'minar de enquadrar o registro intermediário da comodidade,
tro categorias opostas duas a duas. Opõe de um lado beleza intrín- pu r leis racionais tão coercitivas quanto as leis da natureza no
seca e beleza acrescentada ou ornamento (sua terminologia); de 1q~ i stro da necessidade, mas de uma outra origem que lhe con-
outro lado, beleza orgânica naturalista e beleza dogmática cul- k ririi uma racionalidade matemática. Assim, ele é levado, sub-
tural (minha terminologia). A beleza o rgânica aparece, de fato, I 1'111 iciamente, a elaborar duas estéticas competitivas, formuladas

desde o estágio da commoditas onde resulta da feliz adaptação pii r:.lclamente ao longo do Livro IX.
de um edifício à sua destinação. Provém então de uma concinnitas Uma estética ainda naturalista, mas não redutível à da boa
particular, idêntica à do animl:ll cuja harmonia das partes é criada ll)n lla , embora dotada ela também de universalidade, se assenta
pela natureza, coextensivamente com a adaptação a suas funções. 11/ol• mais sobre o corpo animal mas sobre o corpo humano, ao
Num e noutro caso, quer se trate do edifício ou do animal, sua llll:smo tempo como ator e como modelo: o prazer engendrado
beleza é universalmente percebida por todos: em termos moder- pL" Ia leleza arquitetônica põe em jogo o corpo int(!iro (como o
nos poder-se-ia dizer que se trata de uma boa Gestalt. É essa ll's lcrnunha o exemplo do "passeio arquitetônico"l47) daquele que
a primeira descoberla de Alberti e se integra perfeitamente na •kk goza c que percebe o belo edifício como um outro corpo,
lógica de seu tratado. 1q:ido pelas mesmas proporções. Esse papel estético atribuído
Mas se Alberti tivesse se detido aí, o Da re aadijicatoria não 111 1 co rpo e as ressonâncias seJCuais dessa interpretação evocam,
teria terceira parte. Com efeito, esta repousa totalmente sobre a ,,,J!Jrcludo se as esclarecemos pelos textos de Filareto citados em
hipótese de uma articulação suplementar, que possui suas leis m ,;u Cap. 4, uma reaproximação com certas idéias de Freud148,
próprias, pertence ao mundo da cultura e constitui essa poética qu e das permitem pôr em perspectiva e desenvolver. Todavia,
da edificação que, por oposição à simples construção como "lín- •·ssa "poética du corpo" se revela mais especula tiva que nor-
gua natural", é a arquitetura, no sentido estrito de linguagem uu11iva.
"artística"142. Assim, a poética do templo, por exemplo, é regida Em compensação, a outra estética, "matemática", propõe
por d uas séries de regras. Umas concernem ao exlerior e possibi- 11111 sí~tema de normas estilísticas. Porém, como o demonstra cla-
lilam q ue ele exp l'ima a transcendência divina e a majestosa se- llllllCille a forma dogmática de sua exposição, esse sistema é em-
vcf'idndc da religião alra vés de sua implantação num sítio natural prestado: a Antiguidade greco-romana entrega-o a Alberti, em
ou num conlcxto urba no e a través do tra tamento de suas pare· '•ll ll expressão numérica que assume força de lei, e com as cono-
dcs 143 . As outras se aplicam ao espaço interior do templo para lllc,:Õcs pitagóricas que lhe estão ligadas. E foi precisamente essa
suscit ar o terror religioso144, o recolhimentol45 ou o sentimento n.Jé ti ca matemática que permitiu interpretar não só a terceira
do rn istériol46 por meio da disposição de sua planta, pelo an anjo pnrl t: mas o tratado inteiro como uma ob ra de inspiração neo-
de seu teto e de suas aberturas. pluJ õnica. A maioria dos hisloriadorcs da arquitetura, e parti-
Entret anto, essa poética, que, como tão bem assinala o De \' II I:11'111Cnte R. Wittkower, despreza ndo a COIICÍtlllilas naturalista
re aedificatoria, é própria do homem, é dramaticamente partilha- l1~: rd ada do "fisiologismo"119 aristo t61ico, se couccnlrara m sobre
11 f 'OIIcinnÍ/as malenullica e O Sistema UO!{Ill ÓIÍ t:O qUI.: e la SliSlen la
l' ~c npressa ram em fazer de /\lbcrli o pmmn1or de uma teoria
142. I. LOTMAN, op. cit., capítulo sobre "A Arte Enquanto Língua·
gem": "a arte v~rbal , embora se baseie na. ltngua natural, nela se baseia l'\clll!;ivamente matemálica c ncoplnlô nicn du arqu itetura. Para
nl)cnns para transformá·la. em sua própria linguagem secundária a
Iiii(JIIft(lem da ?~te", p. 55 [o grifo é nosso]. É realmente nessa acepção 117. C!. supra, p. 111. CC. t.t"un1J6m J,Jvro VIII, Cap. X, p. 771-773,
qno Allwrll nhhza o termo arquitetura. · '' porc urso dns termos.
11:1. T.lvru VII, Gap. II . 1111. Cl. S. FRI!::UO, 'l'rOIH J·:.~slt l .c nttr la théoric de la sexualité, trod.
141. T.lvro VII, Cap. III . p. 545. ro· . 1'1tl'ls, Cnllimard, !062. <•o i . " l dt'l'' " , 1977, p. 142; "A curiosidade
H!i. T.lvro VU, Cnp. X, p. 609. pnllo l.rnnsrormnr-su no s••nlltlll riu lll'ln quando o intere;;se não mals
14G. T.lvn) VU, Cap. XII , p. 617: "Apertiones fenestrarum in tem· 1'1111\ f·oncuntruclo un lt~ u r um l .u uohot ~~~ partes genitais, mas se estende
plis esse UJJIJr tct '111()(1/cas et sublimes unde nih.il praeter coelum spectes '"' c•rm jtwlo llo corpo". 10 (ld/o ,c tt ()t:.~o.l O texto alemão data. de 1905.
unde et aul .•ru·ntm {aci,tnt [. . . J nec quicquam a re divina mentibus 140. CC. T. TRACY, 1 1/t iJ~Io/o(Jica / Theon; and the Doctrine O/ the
distrahant11r". ~ubllnhn nn mesma passagem: " H orror, qui ex umbra nfi'lllt ltt Plato and Arl3Lvtlt', fl niiL·t'url:s, Mouton, 1969.
excttatur, natura sul auoct in animis veneraitonem" (ibid.).
126 A REGR.'\ E O MODELO ,,,.; w.; AEDIFTCATORIA: ALBERTI OU O DESEJO E O 'l'EMPO J:t'7

nós, a0 contrário, a estética dogmática aparece como uma deriva , q :ra.; dessa poética doravante dissociada tanto da construção
momentânea, em contradição com o espírito e a lógica do De re •p•unl o de to.an estética naturalista.
aedifiwturia. Certas anomalias formais aponram nesse sentido: Minha tese encontra confirmação suplementar nas análises de
os tempos verbais empregados para expor as leis da estética dog- I ' Frankl subre a arquitt:tura ·'pús-mellit:val"101 que, como sabe-
mática, o lugar do relato de fundação que as segue em vez de ' ' H '~ . ue a caracteriza por essa consciência de si que, para mim,
as preceder. Mas minha tese é corroborada, sobretudo, pelo papel ,. o ru ndamento da instauração albertiana. Segundo Frankl, a in-
e pela autoridade subitamente conferidos aos antigos, em contra- ' ,.,11 ividade manifestada pela arquitetura do Quattrocento e mar·
dição com todo o resto do livro; pelo lugar limitado ocupado, no o·.11l:o c111 par ticular por sua "corporeidade"152, decorreria da insu·
no Livro IX, pela teoria das ordens aliás entendida· sob a cate- 1 wio~ n da dos con hecimentos arquelógicos de seus promotores.
goria do ornamento; finalmente, pelo bloqueio da criatividade t\ arqueologia esterilizaria a arquitetura ao se constit~ir ~o~o dis·
poética imposto a uma teoria do tempo criador pela adoção do ··•plina científica, como o demonstra o advento smcroruco do
sistem« e~tilístiw gn::co-romano. ownçl;ossicismo. Entretanto, no caso de Alberti, devemos, parale-
Se, portanto, como mostrou minha análise, Alberti post ula l:llncntc a essa carência, aliás pardal, invocar o papel determi-
que a beleza tem duas e-aras, uma universal, a outra contingente, oo:onl c de sua estética natmalista que repousa precisamente sobre
se essa segunda cara é, para ele, função do tempo e da história, ,, axioma do edifício-corpo humano.
como explicar contudo a deriva parcial do Livro IX? Nele Albtmi i\ maneira como a estética dogmática e a legislação das
se ve às voltas com uma dificuldade insuperável, graças à forma , , ·dl:ns perturbam e falseiam o projeto de Alberti coloca, pois,
como ele autonomiza o nível da poética, conferindo a essa disso- ,·111 causa sua relação com o passado e a história e, por via de
ciaçã·) não seu valor heurístico, mas uma função normativa. Ele ,·pnscqi.iência, com Vitrúvio que encarna o poder dos ant!g?s e
pretende atribuir uma necessidade, dar o estatuto de leisl50 univer- ''" ' quem Alberti foi buscar não apenas informações arqueologtcas,
sais a regras que não constituem o gue chamaríamos um universal ,·.,mo também inúmeros de seus relatos referentes ao passado.
cultur~l. mas regras estilística;;, ligadas a valores contingentes. l'ur i~~o, ante~ de e para poder elucidar o papel da hilõtó rin e
Por definição, deve-se buscá-las, pois, na história da arquitetura. d11s histórias no De re aedijicatoria, chegou o momento de wm-
Mas esta não lhas pode oferecer a não ser que tenha produzido p:ll·ar esse tratado com o De architectura a fim de responder à
um sistema racional. Que essa referência absoluta existe decorre pngunta, formulada já em nosso _primeiro cap~tu l?, se o livro
da história esquemátk:a da arquitetura (Liwo VI. Cap. III), que .ll: /\ lberti é realmente pioneiro ou se a precedencta pertence a
Alher ti baseia no breve relato da origem das artes (Livro Vl, Cap. Vil rúv io.
li): "nascidas do acaso e da observação, nutridas pela prática e
pela cxpcrimcntaçfio, (as artes ) se aperfeiçoaram através do conhc-
cimenlo e Jo raciodn io". Ass im, a obra dos romanos assinala o /\LBERTI E VlTRúVIO : EMPRf.STIMOS
fi m th; um lungu dc~cuvolvimcnto e a poética da arquitetura ter· SUPERESTRtJTURAIS
mina em verdade.
O raciocínio deve ser desco berto, em filigrana, por trás da- O De architectura serve a Alberti de modelo ou de trampo·
quilo que o contradiz e contribui para mascará-lo: a presença im· lim? Os numerosos pontos comuns aos dois tex tos s::io superfi·
portuna da estética naturalista que se infiltra em todos os capítu- ,·inis c u estruturais? No plano fo rm:d. 11 idcnt id ncle dos
los sobre o ornamento; as aberturas e as exceções que Alberti man- procedimentos e dos motlos de cx prcssfio é real ou éliJarente?
tém à força numa dogmática t ão pouco cor.sentânea com o seu ll:i lugar para uma d iferença e nt re dois livro~ iclonticamente
senso do devir. , .~l-ritos na primeira pessoa do singulur. JX ll' do is arq uit l' IOs que
Situar bem o lugar a partir do qual se produz a deriva do l 1l\ 111l1 o mesmo o bjetivo, ou :>eja, dcl"in ir su11 arl t: c dar-lbe o
De re aedificat6ria é. tanto mais importante quanto se deve ver
a[ o início de uma inflexão decisiva da teoria estética da arquite- 1 ~ 1. P. FRANKL. Pri11CI711C'N 11/ /. 11 l tll•·t·lllt ll l l l b / Or!l. M.I.T . Press,
tura . .1 origem de posições cujas conseqüências pesam ainda hoje 1 'uonhridr,c. t9ro. T rnduzldo dn 1111'1111\o J)J1· J,: u lwlclcltmgsp hasen der
c qui!, d ura nte séculos, deviam ser adotadas pelos arquitetos oci- 11•' 11 1' 1"1'11 R att!Gtt71Sl.

dcnlai:-. : o pri vilégio da verdade atribuída à arquitetura antiga, l!i:l. Tclcm. C:tJ>. H . "rm w m ·nl !1 11 111" t•ssn corporeidade, oposta
uu •·tn•o\1!'1" n<lrco o rn rJ\I~.nd o 1111 111t•:lll111 ll ' lllJ)(J do gótico, é descrita por
o cncc 11·nno cnto consecutivo dentro de um estilo histórico, o apaná- 1•' 11111111 1•m l.cnnu:; (1111' 111 ttllld u oo 1 r.,. ,. o:o (I" Alberti: ".'\. building of the
gio rcscr vad D u um pequeno grupo de clérigos, de controlar as l l ottl phnsc l t>rlm(ll ro Ht•nu·wiii Wlll n l or post-medieval nrchitccture . is
o11 tl11" /llr<' rt 1ll(lll . Jt 111 11(11 " '"''' " In lhe earth but stands w1th xts
150. O Lornoo 11~1· ó clnns vezes mais freqüente nos livros cst6ticos 111 11"1" 111mly upon lllO 1'11 1'111'11 t•u•·rott'O I . • . I self sutficient and sel/ c'?n·
que no resto d o tmtudo. /11/111'11, 1111d .:urio wc.:cl wlllr w oval!/,;, frccly dismou ntable parts". ro
gnja
,I 1111'11111. 1
A H.I!:URA E O MOD:!!:Lú IJE Rlt JlliJJJ Ji'JCATOR I A: ALBE&TI OU O DESEJO E O TEM.PO 12~

conj un to da~ l't!gras (" omnes disciplinae rationes"153, diz Vitrú· No entanto, é significa tivo que, a despeito dessa dívida con·
vio) , que fo rmulam tais regras por meio de gerundivos, subjun· siderável, Alberti adote, no De re aedificatoria, uma a titude re~o­
tivos, adje tivos verbais o u verbos convenient~mente idêntiCOS, Jutamente crítica co m respeito ao velho autor. Censura-lhe sua
provcem-nas iden ticamente de explicações no presente do indica· linguagem, a imprecisão de seus co nceitosl!í9, suas superstições e
tivo e de relatos o u a nedo tas no passado? No plano do conte údo, :;uas digressões empolad a sl 60. A leitura comparada dos doi:; textos
que uso fHz Albe rti de empréstimos cuja importância seus suces- confirma, nesse p onto, a legit imidade du juíw alberlÍano .
sores, com o os historiado res atuaisl54, concor dam em reconhecer ? Mas não passam de deficiências superficiais, e se para Al ber ti
Po is Al berti niío tira de Vitrúvio apenas a m aio r parte de fosse o caso apenas de consertar, esclarecer ou mesmo ordenar,
sua i nform ação sobre a história ou as anedotas relativas à arqui· seria preciso classificar o De re aedíficatoria na m esmo categoria
tetura, as técnicas de construção, a tipologia dos ediffcios antigos, textual que o De architectura, do q ual seria então apenas um
as o rdens, m esmo o clima, a m eteorologia e as relações dos se res avatar de melhor cepa. Ora, não é uma melhora, mas uma m u-
vivos com seu meiol55. Ele também le u seus conselhos sobre a dança que Alberti impõe ao texto vitruviano, na med ida em q ue
fo rmaçiío elo arq uiteto 1!ifi . E lhe deve ainda a lgttns de seus opera- o utiliza. Alberti não restaura a antiga construção vitn:viana.
dores fund amen ta~s. tais como a tríade157 ou os pares taxionômi· E le a demole e emprega os materiais de demolição para cons-
cos público-privado, sagrado-profano, bem como a m aioria dos t ruir um edifício novo , de uma arquitetura jamais vista até então.
conceitos de sua estética , particularmente o de finitiol58. Esse méto do de reemprego po de ser ilustrado pelo exemplo da
tríade.
Esta surge em Vitrúvio no Cap. VI do Livro I. Depois de
153. Op. cit. , Livro I, Cap. XI. Ou ainda "praescriptiunes termina· haver explicado as noções constitutivas da arquitetura 16 1 , o autor
tas", na dedicatória do Livro I (p. 4, § 7, in tradução por A. Choisy, d ivide-a em três campos : aedificatio, gnomonice, machinatio.
nova edição, Paris, de Nobéle, 1971, que será utilizada em todas as ci· A aedijicatio, por sua vez, é redisttibuída em duas ca tego rias ,
tações que seguem).
154. Cf. particularmente P.-H. MICHEL, op. cit., e a excelente sfn· concernentes respectivamente aos edifícios p rivados de um lad o ,
t e:se de R. K&AUTHEIME&, in " Alberti and Yitruvius". R. KrautheiJuer aos muros e às co nstruções de outrol6?.. Est as últi mas, por seu
é, ao que saibamos, o único historiador que percebeu e sublinhou a turno, são repartidas en tre as três ca tegorias re lativas it de fesa,
transformação que Alberti impôs às nçções vitruvianas. Uma abordagem à religião e à oportunidade (opportunitatis163). Vitrúvio esped·
mais formalista, rontudo, nos permitiu ampliar ainda mais o campo das
diferenças que opõem os dois textos. Assim, por exemplo, o exame d l!e· fica, então, que as construções públicas devem ser realizadas
rencial do papel da primeira pessoa do singular nos dois tratados acusa levand o em co nta a solidez, a utilidade e a beleza, e define rap i-
o contrasto do empirismo vitruviano e do sistematismo albortiano e damel~te esses conceitos16<l remetendo à dispositio no caso da
pcm1itc mesmo refutar n interpretação de R. Krautheimer, que o le,•ou
11 1·on ~ l rlm·ar c:omu nmn rli grcssfto o primeiro capítulo do Livro VI.
l!:i5. :SoiJru a I"Uia~fto ctth"c o solo da região e a situação dos ani· 159. "Estil a! realmente um autor de cultura universal, mas no
nHtl:> q uo nela vivem c sobre o interesse, para a escolha da região, em entanto mutilado pela idade. A ponto de se encontrarem, em inúmeros
examinar as entt-anhas dos animais, cf. VITRúVIO, Livro I, Cap. VIII. trechos, grandes lacunas c aliás muitas imperfeições. Ademais, seu es-
pp. 33 e ss. tilo é desprovido de todo encanto e escreve de tal form::t que aos latinos
156. Após um rápido elogio da arquitetura. Vltrúvio começa seu tra· parece escrever em grego e aos gregos em latim. M as est<í claro que
tatlo por um programa de formação do arquiteto, que ele pretende seja não escrevia nem um nem o outro e que também poderia, pelo menos
"littemtus [ . . . J peritus graph.idos, eruditus geometria, opticcs non igna- no que nos concerne, jamais ter escrito, tão gmnclo ó a dificuldade em
rus, instructus arithmetica". Além disso, "historias complures noverit, compreendê-lo" (Livro VI, Cap. I, p. 441).
7>hilosophos diligenter audi veri.t, de musicam scierit, medicinae non s!t 160. Cf., por exemplo, De r e aedíf icoJ.orin, T.ivro 1. Ca p . I II, sobre
ignarus, responsa jurtsconsultorum noverit, aslrologiam coeliquf mti ones os ventos, onde Alberti se recusa a entrar nu tlulullle da meteorologia.
cooitas habeat". Após o que, comenta a significação dessas qualificações porque com Isso estaria fora do assunto; Cap. í V , ouclo sn ro'Cu:;r, n clis·
(Livro I, Cap. I, § ()). \ sertar sobre as propriedades notó.vcis da água, o (J ll so o·vil"in apenas
157. De architectura, Livro I, Gap. VI, §§ 7 e 10, pp. 26 e 27; cf. para demonstrar seus conhecimentos; Cap. VI , ~ n llm a rLt:iao, com uma
supm. p . l:J9. crítica da digressão de Vetrúvio sobre a rorl.llllll.
l!:i!l . A proporÇão de Alberti e dos autores modernos corresponde lfil. " ArchUectura autem constaL o•.-r orrl/nn /lo nc quae Graece taxis
i\ NU1111111"/I"Ia vilruviana. Cf. viTRúVIO. Livro II, Cnp. XII, § 12, p. 9, e dicitur el ex di spositi cme ( hanc atttcm Gmcci d la llwsin vocant) et eu-
r.lvro 11 1, G~tp . I , pp. 123 e ss. C. Perrault indica que não utilizou, rythmia, et symmetria ct decore ct r!islrl bnlionc quae Graece oi konomía
om :11111 l mrhl<," íiO de Vitrúvio, o termo simetria "porque simetria em àicitur" (Livro I, Cap. II, p. 17) . l~m S(~~lli rla, Vitrúvio dá as definições
fmiH"I':I 111l0 H il~ nl l i c:u o que symmetria quer dizer em grego e lat im, dessas diversas noções (Caps. lU, IV, V) .
nem u quu V l ~ nl vlv entende aqui por symmetria, que é a relação que 162. Cap. VI.
a grt\lul n~n tlu 11111 todo tem com suas partes quando essa relação é 163. Jbid. Entre as primoims: paredes, pontes, torres; entre as
semciiHtnl ú o lll 0 11t1"0 l.odo, com respeito também a suas partes, onde últimas: portos, fóruns, pórticos, banho.<;, teat.rns, passeios. .
a grande:r.a 6 <llfuwuto". <Les Di:c L-ivres cl'architecture de Vitrut~e [. .. J, 164. "Haec [ Os lugares pübllcosl ita {ieri tlebent, u t habeatttr rat10
Paris, 1604, p. Ll, n. 9) . firmitatis, utüit atis, .venust atis. Firm itatis crit habita ratio quum tv.erit
130 A REGRA E O MODELO .I DE RE AED!FlCATORIA: ALBERTI OU O DESEJO E O TEMPO 131

utilidade e à symmetria no caso da beleza. Depois dessa análise, fazem uma repetição inútil uns com os outros como eurritmia e
porém, os três termos não aparecem mais que incidentalmente, simetria170, e se superpõem mesmo aos três como conceitos anali-
em raras ocasiões, e juntos apenas umu vezHi5. E que não têm sados atrásl7l, mas não são utilizados nem para a construção
qualquer influência sobre a organização do texto, não determi- do texto nem para a da edificação172_ Não têm nem papel fun-
nam qualquer ordem cronológica ou de prioridade no tratamento dador nem generativo. A afirmução vitruviana segundo a qual
das matérias. E impossível fixar um lugar lógico aos capítulos o corpo h umano t: suas medidas estão na origem da " simetria"l73
que tratam da técnica construtival65, ou da utilidadel67, Quanto não tem mais papel produtivo. f: apenas explicativa e não pode
à beleza, Perrault observou com jusle:t.a sua onipresença no De ser assimilada ao axioma do edifício-corpo, sistematicamente apli-
architectura. cado por Alberti para a produção de regras a todos os níveis
No De re aedificatoria, ao contrário; as três noções são apre- ~ucessívos do De re aedificatoria. Essas diferenças não implicam
sentadas já no Prólogo em sua relação de seqüência temporal e que se deve negar a existência, no De architectura, de conceitos
hierárquica, que em seguida serve ao mesmo tempo para cons- operatórios. Mas estes apóiam, de fato taxionomias estáticas
truir o livro e para analisar o~ três planos su~~sivos t: hierar- (divisão dos campos da arquitetura, da construção, dos edifícios,
quicamente articulados do processo arquitetônico. Em Alberti,
os três níveis escoram um procedimento que visa fun~amentar dos templos), ditadas pela tradição ou pela oportunidade empí-
uma significação e elucidar uma gênese: solidez (aliás integrada rica, e que não são objeto de qualquer questionamento nem de
no termo mais amplo de necessidade), conveniência (mais sutil qualquer justificação, para não falar de fundação.
que utilidade) e beleza são investidas de um valor dinâmico, Esse funcionamento diferente dos mesmos conceitos acarreta
cumprem uma função de estruturação, desempenham um papel uma organização diferente das duas obras e uma outra relacão
construtivo que contrasta com sua inércia no texto de Vittúvio de encadeamt:nto entre seus livros respectivos. De um lado, c~n­
onde, longe de designar uma hierarquia de níveis, elas servem, no tigüidades aleatórias, seqüências sem ligação com a cronologia
máximo, para reagrupar as regras, _para distribuir um savoir-faire. das operações do construir, uma coleção descontínua de partt:s.
mas nunca para construí-lo. A tríade de Vitrúvio não é funcional. De outro, um encadeamento rigoroso e irreversível cujo plano foi
É anedótica, contingente, e poderia ser suprimida sem nada mu- estabelecido desde o primeiro instante e deve seguir um desen-
dar na organização e no alcance do De architectura. rolar conforme à visão generativa do propósito albertiano.
Podemos dizer o mesmo da quase totalidade das noções teó- Sabemos que cada um dos dez livros do De architectura
ricas utilizadas por VitrúYio. Tomemos os princípios constitu- começa com um proemium, espécie de introdueão literária c
tivos da arquitetura, enumerados no Livro I. Não somente care- termina com um excursus, de natureza menos decorativa, ~ue
cem de prccisfiolütl, c mesmo ocasionalmente, de pertinêncíal69,
serve para resumir o conteúdo do livro e sobretudo para situá-lo
f nnclamenlum acl soliclum deprcssio, ct quaquc cmateria copiarum sine
em relação ao do livro seguinte e ao conjunto da obra. Se os
mmritia rliliges etectio. Ulilitatis autem emendata et sine impeditione excursus são parte integrante do De architectura, cujo propósito
usus locorum dispositto. et ad reiJÍones sui cujusque generis apta et
commoda distributio. Venustatis vero cum fuerit operis spectes grata
et elcgans, mcmbrorumque, commensus justas habeat symmetriarum ra- (dividida em iconografia, ortografia e cenografia) , nüo constitui uma
tiocinationes" (Livro I, Cap. VI, §§ 7, 8, 9, pp. 26-27) . categoria do mesmo tipo que di stribu.tio , eurrit müt ele. O que Perrau1t
165. Resumo final do C:tp. VIII (Livro VI , p. 318), onde Vitrúvio mais uma vez analisa muito bem: " é ll ifí~;il fazer Clll cncler que essas
anuncia: "Quordam de venustute decvreque ante est conscriptum, nunc cinco coisas sejam cinco espécies comp r eend idas nurn ml·:;mo gênero"
cxposemus de firmitate". A associação de finnitas e venustas somente (op. cit., Livro I , Cap. II, p. 10, n. 2) .
aparece no proemium do Livro VII (p. 13). Cf. também (Livro VI, 17!1. Cf. PF.RRAULT, op. cit., Uvr·c J, Cal•· H . p . li , n. fi: "Todos os
Cap . VIII ) a associação de vemtstas à decore e usu, que aliás aqui intérpretes acreditaram que a E ur:·ilmht o a l' rnP•ll't;n ... q u•J Vilrüvio
p:trccem sinôrimos. denomina SymmetT'ia, são aqui duas cols1ts d lfon'lll t•:-J llO JTJUC , ao que
I üH. Cf. Livro I, Cap. X; Livro II, Cap. VIII; Livro III, Cap. IV; parece, ele fornece duas definições sua:;: 111 11~ •·s:~H:< llelinições, se bem
f.lvro V r, Cap. IX. as olharmos, dizem uma e a rn c>;ma t·oi::IL; tiiHa ~: outra falam, por
16'1. CC. Livro I, Cap. XII; Livro V, Caps. I , II, VIII, X, XI, XII; meio de um discurso igua lmcnl o c<mf11~o . Hp•.-nas da conveniência, d a
J .l vm V I, Cnps. I , II, III, VI, VII, VIII. correspondência e da proporçiio, quo as p rute.~ têm com o todo" .
Hlll. 'l'omamlo às vezes. aliás, duas significações, como distributio, 171. Decor é sinônimo do ul.illtm•.
cmp n •w(do o m n o sentido ewnôrnico relativo à quantidade dos dlver· 172. Com exceção d a slmoLrln quo J·cge ao mesmo tempo a orga-
sos rn •~ll ·•· ln l tl <· I• ~ somas a gastar, ora .uo sentido da divisão, da orga· nização das ordens e a das r·csl d llnc·l a~ p rivadas.
nim çnu do "IIPIII;u "m função "do uso e da condição dos que nele devem i73. Colocado d esde n dcflnlçílo desta. Cf. supra. . Cf. também Li-
se aloJLtr". l'ol' l:i.'!U, Pcr rault traduzirú esse mesmo termo, alternativa· vro UI, Cap. I , p. 123, ~ 1: "Cvnms nztm lwmi nis ita natura composuit
mente, p or " clb l r ilill tiOit" c por "économie" (op. cit., p. 14, n. 19). uti ( .. . )" ; p. 126: " s i ita 1ullm·a comtJOstti t cor pus hominis, uti pro-
169. Por oxomplo, cUsposilio, que diz respeito à reprodução ~ráfica portionib~IS memb1·a ad swmnam fígw·ation em ej us r espondeant" ; etc.
132 A REGRA E O MODELO DE RE AEDIFIC/J.TORIA: ALBERTI OU O DES:E:JO E O TEMPO l3~

eles têm a função de esclarecer os proemia, embora sirvam para outros, nem a vantagem concedida à beleza em relação à solidez
mtroduzir imlividuaimt:nte cada liv ro, têm, antes de tudo, valor e à utilidade, nem, correlativamente, o lugar desmedido que cabe
de ornamento e função de digressão. Fom.ecem dez fragmentos no texto à construcão harmoniosa dos templos. E impossível
autónomos, pequenos morceaux de bravoure literários, diretamen· traduzir a organizaÇão dó De architectura por um esquema aná-
te dirigidos a Augusto, o destinatário da obra, que ele deseja logo ao que se construiu para o De re aedi/icatoria.
encantar e distrair com esses intermezzos fora do assunto, a fim Tanto quanto o funcionamento dos grandes operad~res,
de reconduzi-lo ao tema. Assim, enquanto a economia e a lógica nosso esquema põe em evidência a função do tempo que, no livro
do De re aedificaroria tornam impossível qualquer corte num de Alberti, permite desenvolver conjuntamente e conciliar três
tratado onde cada seqüência e a maioria das anedotas sõo neces- Bildung, as do autor, de seu livro e do domínio construído.
sárias e indissociáveis de seu conjunto, uma parte considerável Ao contrário, o eixo cronológico não é utilizado por Vitr úvio
do De archilectura poderia ser sup_J;imkla :)em <tfetar o propósito senão de maneira contingente, para a exposição (realista) de
da obra. certas seqüências de regrasl75,
Apesar das aparências, o primeiro proemium não difere dos A diferença que contrapõe as duas organizações textuais _do
outros. Decerto, é para Vitrúvio a oportunidade de se apresentar De re aedijicatoria e do De architectura trai de maneira ostenstva
ao imperador, lembrando-lhe a tradição familial e os sc::rviços a diferença, tão irredutível p orém menos evidente, que contrapúe
que o ligam a ele, e Lk lht:: apre~entar uma obra <.lestiné:lua a suas motivações. Ambos pretendem entregar ao leitor um con-
fornecer-lhe critérios de jtllgamento em sua obra de construtor. junto de regras. Mas o eu teórico de Alberti, que recorre e se
Mas a biografia de Yitrúvio, destinada a colocá-lo socialmente prende a um tu anônimo e universa[l76, decidiu partir de uma
e a corroborar sua ligação com Augusto, é exterior ao texto teó- tabula rasa para descobrir e formular, de maneira progressiva.
rico do qual o primeiro proemium não dá, aliás, senão um resumo as regras da edificação por meio de operadores e de postulados
iragmentário, limitado ao conteúdo uo pdmeiro livro. Não se cujo único julgamento será o critério de validade. Ao contrário,
trata, portanto, de um prólogo comparável àquele sobre o qual para o eu social de Vitrúvio, que se dirige ao Imperador Augusto
Alberti baseia e revela a ordem de seu texto todo, de um lado cujo tu data e drcunstancia o texto, não existe o problema ~c
por meio de sua biografia, isenta de qualquer conotação social descobrir e determinar ele próprio essas regras. Basta-lhe Jr
e mundana e r eduzida a uma pura aventura intelectual, de outro buscá-las num corpo já dado, no interior do qual cabe apenas
lado graças à exposição de seus operadores e dt: st:u plano. colocar ordem e clareza: Vitrúvio não pat-te de um q uestiona-
Essa visão global do desenvolvimento de seu tratado, em mento radical , mas da tradiçãol77, tanto no que diz respeito às
nenhum momento Vitrúvio oferece-a ao leitor. Este é condenado regras prop riamente <.lilas quanto .aos princípi~s 178 por meio, ~os
a s u~:cs~ivos t·esumos fmgmcntários. Uns após outros, proemia e quais ele as esclarece. Rc;sa atttude é parhcularmeute m llda
cxcur~ns lcvnn lam balanços e anunciam novas etapas, mas sem
prcpamr em nenhum momento uma visão de conjunto. Rm duas
175. No exame dos diferentes materiais de construção do Livro II,
vezes somente, Vitrúvio chega a ligar o conteúdo de quatro Vitrúvio ao contrário de AlberLi, começa pelo tijolo, material recém·
livros: retrospectivamente no proemium do Livro IV, prospectiva- aparecido. Em compensação, procede segundo uma_ ordem cron~lógica
mente na conclusão do Livro V, a partir da qual a questão passa em sua exposição das regras r elativas ao estabelec1mento d:1s Cidades
a ser apenas as relações imediatas de encadeamento de livro a (Livro v, Caps. VII a XII, com exceção do Cap. VIII dedicado a uma
digressão sobre os efeitos do calor), ou alr.da à cunl>\ruçüo dos tem-
livro. Por mais que o arquiteto romano, de excursus em excursus, plos (Livro III, Gaps. IV, V, VI).
se esforce por afirmar o desenvolvimento de uma lógica e por 176. Tem efetivamente um alcance univers al, mc•mo C'JliC se dirija
revelar o liame necessário que une tal livro ao anterior ejou a certas cntcgorins de interlocutores e em pnrticnl:•r. <:omo vimos no
ao seguinte, no final das contas, a ordem de seqüência dos livros caso das regras estéticas, ao grupo socia l do~ h iiOIIUl isl ll.'l rios quais
m:m sempre é fundamentadal'74 porque não é fundamt:ntável e R. KRAUTHF:lME R faz, tn "Alberti and VltruvluH", u ú••h:o lnl.crlocutor
do eu albert!ano.
ncnhmna relação dinâmica solidariza suas dez partes. O Livro 177. Livro IV, Cap. VIII, p. 206: "omucs f1NIIIt111 sacrarum ratioci-
I I só node ser interpretado como um parênteses; o Livro VTI 7Ultioncs ut mihi traditae sunt cxposui" . 10 {lr!jo é nosso .] Da mesma
<lerli eudo :1 :.ígua, aoenas como um suplemento. A posição dos maneira, r elata as proporções com o "vct.cn•s L . . l e r. corpo~s . mem·
l.i vmH I X c X poderia ser invertida, e estes bem que poderiam brorum colligerunt " (Livro III, Cnp. I , p . 126} das regras a custicas a
observar para. a construção dos tcnt:·o.s (Livro V, Cap. III, com n
prrr···dc r o~ li vros consagrados à aedificatio. Nenhuma expli cação mesma r eferência a "vetere architcc!i"J, dos ginásios tais como as cons-
just ifi c11 11 pn;cmência dos edifícios religiosos sobre todos os troem os gregos (Livro V, Gap. XI}, ~: distingue <Livr os VI, Cap. III)
cinco gêneros de "ca~;is aedium".
178. Na medida. em que esles são tir ados da cultura grega, ele os
174. So])ro 11 tlotJOl'dom do De arcnitectura, c!. PERRAULT, op. ci1.,
p. 16, n. 1. domina me.l e, na impossibilidade de traduzir cer:as noções abstratas,
retoma simplesmente o termo ~rego , o que aliás lhe será censurado por
134 A REGRA E O MODELO DE RE AEDlFICATORIA: ALl:IER/rr OU O DESEJO E O TEMPO 135

quando descreve as diferentes categorias de remplos179 ou a tipo- tese da autonomia do ato construtor e o comxitu de um tempu
Jogia dos edifícios gregos1BO_ No tempo em que escreve, Vitrúvio criador. O espaçQ dessa fal ta situa dois momentos da história,
não está em condições de falar como teórico autônomo 181 do duas mentallaaóes, duas reia~oes com o saber e com o savoir-
construir. Ainda não chegou o momento de questionar a tradi· ·fatre. M. FinJey traduziu esse desvio na dimensão óa economia
çãu, de imaginar uma oróem espacia l não-reali1.acia . O ritual e mostrando que o Vltrúvio técnico, cujo savoir-jaire adlllll"a, vê
o costumeiro continuam sendo o fundamento da prática arquite- sua pnHil:a limita da pdo horizonte de uma sociedade de consumo,
. tônica. A questão que se impõe ao arquiteto romano não é que ignora as noções de produtividade e de rentabitidade1 !S;). Essa
promover a razão como instrumento de organização do espaço, análise pode ser retomada metaforicamente ao nível do livro e
tanto quanto liberar, wntrolamlu-a, a t:spuntanei<.la<.le criadora do da economia textual. O tratado de Alberti se revela, então, como
arquiteto, mas reunir, ordenar e, eventualmente, comentarl02 a máquina que o arquilelo romano não podia imaginar construir,
um conjunto de práticas construtivas. Ele próprio o reconhece da qual nenhuma engrenagem é inerte, e que se destina a fun-
ocasionalmente quando se arroga a tarefa "de explicar as regras cionar perfeitamente.
tradicionais" (tradita explicare). Nesse sentido, e como observa . Ao escrever o De re aedijicatoria, Albcrti faz coisa diferente
R. Krautheimer, o De urchitectura é um manual. de Vitrúvio. Qualquer que seja a importância de suas fontes,
Fixar os limites ao empreendimento de Vitrúvio não deve ele Ih~ transforma a significação mudando-lhe a ordem, o recorte,
ser interpretado como uma depreciação. No caso trata-se de o funcionamento. Pouco importam a identidade dos conteúdos
situar Alberti em seu devido lugar, c não de minimizar a origina· e a presença obsedantc da paisagem urbana antiga no Da rc aadi-
lidade de um autor cujo livro foi único em seu gênero na Anti· ficatoria, visto que Albcrti despede a tradição, impõe sua ordem
guidade. O primeiro, Vitrúvio, reuniu uma suma de materiais dependente unicamente da razão, propõe um método generativo
até então esparsos e tentou transformá-los numa totalidade orga- e universal. É por isso que, mesmo que tenha sido esse seu
nizada, para a glória do arquiteto. Nesse sentido, A. Chastel propósito inicial, mesmo que seu tratado tenha tido por origem
tem razão em fazer dele um " herói"183, Mas apenas nesse senti- um comentário de Vitrúvio sugerido por Lionello d'Este, é impos-
do, porq_ue o arquiteto romano não é um criador na êH.:t:pçãu sível deixar de definir o trabalho de Alberti a não ser em relação
ren ascentista e albertiana desse termo. Se não consegue liberar ao De urchitectura e não assinalá-lu como um autêntico cumeço.
o demiurgo que nele dormita184, se fracassa em sua síntese, com R. Krautheimer, que no entanto sou be decifrar a mutação que
o risco de postular uma ordem e uma lógica ausentes, é que Alberti impôs ao procedimento vitruviano, continua contudo a
sua época não lhe fomcce os meios conceptuais que lhe permi- não encarar o De re aedificatoria senão sob o ângulo da erudição
tiriam realizar seu projeto ou antes defini-lo. Três elementos humanista, como a obra de "um conselheiro em antiguidade"186.
solidários lhe fa1.em falta: o objetivo de um fundamento, a hipó- Para ele, o De architectura é um edifício devastado pelo tempo,
que é. preciso reconstruir de novo, pela interpretação de seus
AliJcJti , pois uma parte de seu trabalho sobre o texto de Vitrúvio con· vestígios: e Alberti é um arqueólogo e um restaurador genial.
siste em latinizá-lo. Sobre o êxito da opel'ação, c!. R. KRAUTHEIMER, Mas por que recusar ver que o restaurador, mesmo quando seu
"Alberti and Vitruvius", nrt . cit. desejo mais ardente fosse reconstituir o verdadeiro caminho da
179. Livro III, Cap. III. Há cinco tipos de templos: esses consti- Antiguidade, não deixa de opor-lhe sua própria teoria , a pa rt ir
tuem um dado diante do qual se encontra o arquiteto. Ele não se in-
terroga sobre o processo gerador do templo, e não mais considera que da qual poderá desenvolver-se uma nova prát ic:.~? De resto, o pró-
novas formas possam ser inventadas. Mesma observação pard. as ordens. prio Alberti definiu sua posição com rclaçfio a Vilr(tvio quando,
180. Cf. a passagem sobre o "forum" grego (Livro V, Cap. !). no Livro II do Del/a pittural87, indica que o nrqu itc lo romano
l!ll . Quando, ocasionalmente, casb único de autocitação, ocorre-lhe
mencionar uma basflica que construiu, é para ilustrar uma regra dada
transmite receitas práticas relativas, por exemplo , uos loca is onde
desde já, e na elaboração da qual ele não pode ter participado, em buscar os melhores pigmentos pa ra fazer cores. mas se most ra
qonlqucr cnso. incapaz de enunciar o método e as rcgrns de combinação dessas
1(12. Livro V, Cap. XI, p. 263.
lfl:l. .Art et H?t17Ulnisme à Florence, p. 97. 185. M. Finley observa que : " A cndn V<''l. as c ircunstâncias, e por
111•1. C.:C. o final do Livro VI, onde Vitrúvio ·volta ao status do ar- conseguinte a explicação são ou ncidc nlnls 1... 1 ou frívolas". E acres-
qultulo, '"' qual concede, com respeito aos outros homens, uma facu l- centa: "Vitrúvio não considerava dcscjllvcl nem possível o desenvolvi-
dudu pr•\po·ltl do julgamento: "Todos os homens - e não somente o mento contínuo das técnicas graças o. uma pesquisa sistemática", e
nr((ultoto podt'tn julgar o que é bom. O arquiteto não deverá, pois, observa que em todo o De arcllitcctltra nõo se e ncontro. wna única
desprO'I.UI' 1111 opluiOcs do artesão, ou de seu cliente [. . .J Mas o leigo passagem, derrisória, que consido1·o a obtenção de wna p rodutividade
só tem coullh;l'll-11 <lu julgar depois de pronto, ao passo que o arquiteto, maior. L'Economie antique, t rad. !r. por M.P. H iggs, Paris, Ed. de
antes do qualq11111' rmll7.ttÇüo, vê o edifício no momento em que o con- Minuit, 19'73, pp. 196-197.
cebeu tal como 11un\ elo ponto de vista da beleza, do uso, e da con- 186. "Counsellor at antiquity" <idem, p. 46).
veniência" ( p. :J?-1 J• 187. L. Malle, ed., Florence, Sansoni, 1950, p. 97.
136 A REGRA E O MODELO DE RE .AlWJFJCATORIA; ALBERl'I OU O DESEJO E O TEMI'Q l:rT

cores. Por que então não admitir gue, no De re w:dificatoria, Entretanto, afirmei anteriormente oue não era esse o caso
Alberti coloca o problema da edificação com a mesma segurança, e que nenhuma seqüência do De re aediticatoria era inútil, inerte.
o mesmo sistematismo, e em termos tão revolucionários como Agora preciso prová-lo, o qi.Je será uma comparação sistemática
quando, em seu Tratado da Pintura, ele tcoriza uma questão das histórias e seu papel nos textos dos dois autores. Essa com-
<.J.Ue a Anliguiúade não conseguira ver triunfar? paração mostrará que, ao contrário dos de Vitrúvio, os relatos
Para nós, a comparação dos respectivos tratados de Vitrúvio de Alberti não são dissociáveis de seu tratado.
e de Alberti provou muito bem o papel pioneiro do De re aedifi·
cataria. Além disso, confirmou a interpretação que oferecemos,
sublinhando ainda, por efeito de contraste, a singularidade de A fim de precisar o estatuto desses trechos dentro dos dois
um texto cujas partes todas trabalham e se correspondem. Servirá tratados respectivos, fui buscar na lingüística do sentido alguns
enfim, agora, para esclarecer o exame, até então diferido, da fun- conceitos. Servi-me, particularmente, da di~tim;ão que E . Benv~­
ção exercida pelo passado, pelos rdatos e pel as anedotas histó- n!ste traçou ~ntre discurso e história189_ Em seus esboços com
ricas no De te aedificatoria. v1stas a uma lmgüística da enunciação (ou semântica), ele observa
que "os tempos de verbo francês não são empregados como os
membros de um sistema único", mas " se distribuem em dois sis-
4 . ALBERTI E VITRúVJO: RELATO E HISTORIAS
temas distintos ~ oomplementares"lOO que correspondem a dois
NO DE RE AEDI FJCATORIA
planos difirentes da prática da língua, um dos quais é designado
Desde o princípio de nossa análise, nós nos espantávamos como o do discurso e o ou tro como o da história (ou do r elato
com a abundância de referências fei tas ao passado c ac tcstc- histórico) .
n:unho dos autores antigos num tratado que parecia dever l·edu- O discurso se caracteriza pela presença do leitor, ou antes
ztr-se a um l:unjunto de princípios, de regn:s, e a seu comentário. pdo ~mprego da primeira pessoa, pela relação de pessoa, e pelo
Essa profusão parece particularmente embaraçosa q uando uso de todos os tempos, com exceção unicamente do pretérito,
comparamos o tratado De re aedificatoria com o tratado Da Pin- e um papel dominante do presente. O relato histórico exclui,
tura que tentei, não sem argumentos, transformar em seu homó· ao. contrário, a primeira e a correlativa segunda pessoa, em pro-
logo teórico. Porque, se o Della pittura pretende , como o De re veito de uma te!ceira que, como bem observou E . Ben-
aedificatoria, fazer tabula rasa do passado, se o autor nele rei- véniste, era ausência de pessoal91; recusa o empreeo do
vindica, com m ais força e insistência, a exclusiva paternidade de ,presente em proveito do pretérito (apoiado pelo imperfeito,
sua obral8D; se, a partir de um pequeno conjunto de definições pelo mais-que-perfeito e pelo futuro condicional que situa
e ue pr incípios l:Ompanívcis aos do cons tr uir dele fo1mula iden· o relato fora do d iscurso, em outro espaço-tempo. Ulterior-
lic.: <um;nli. ! a~ r~gras de uma prálica específil:~, as anedotas histú- mente192, Benvéniste foi levado é! defin ir como d iscurso todo
ri<.:as ~iin .mttito menos numerosas e desenvolvidas nessa obt·a texto que comporte shifters, isto é, elementos de relacionamento
não se encon trando mesmo nenhuma no Livro r. Como entã~ com a instância de enunciação, e como história todo texto sem
j:.tstificar, no segundo tr atado, todas essas referências às' fon tes shifter. Todavia, esses critérios não são pertinentes em certos
ant~gas, todos ~sses relatos e anedotas? Por que tantos perfeitos,
casos onde aparecem combinações, teoricamente contraditórias,
m ms-que-perfettos e mesmo imperfeitos, quando eram suficientes entre o presente de base e a terceira pessoa, en tre o pretérito e
a primeira pessoa, e onde são utilizados shifters em textos de
o p_reseute indicati~o da c~msta tação e os diverso.s m odos da regu-
Iaçao, o futuro, o lmperahvo, o subjuntivo, o ge1undivo e o adje- história.
tivo verbal? Por isso, graças aos desenvolvimentos t"Cccnlc~ da lingüística
e à ênfase que ela coloca sobre a noção de c nundaçúo c sobre
Uma explicação seria interpretar todo esse ma terial wmu
niio·c~ lrutural, redundante e ornamental. Com seus relatos de
189. Cf., in Problêmes dt linouistiquc al!nl!mlc 1. Paris, Gallimard,
~ICOil l l!d m ::ntos míticos ou antigos, com ;;eus empréstimos à lite-
1968, " Estrutura das relações de pessou cum o vcr!Jo". " 111; relações de
rutu ra anl,i~a , Alberti teria pretendido dar mais distração a um tempo no verbo francês", "A natureza dos pronomes", " Da subjetivi-
p~:r<.: Ltrso ul'ldo , fazer valer sua cultura de humanista ou ainda dade na linguagem" e , in Problllmcs ela liuguistique générale Jl, Paris,
rittj•.ir t'ilL tl'ormnr-:;c ao modelo vitruviano, como quando vai bus- Gallimard, 1974, "A linguagem e a oxporicncia humana", e "0 aparelho
<.: ar nu 11rqtlilclu romano a divisão da obra em dez livros. formal da enunciação".
190. Problemes ele linguistique gé11érale TI, p. 238.
1811. c.; r. lcit' lll, J .tvru li , p. 97, e sobretudo o 1inal do Livro lll: 191. "Ninguém foln aqui, os acontecimentos parecem contar eles
"Not 1JCI'O c/ l't' tl llil'/'1"1110 ad voluptà primi avcre questo palmo, c/.'avere mesmos", PL I , p. 241.
ard1to commull(/ttn· t:lle lettere questa arte sottilissima et nob:lissima" 192. Cf. "Sém!Ologie de la Iangue" e "L'appare!l !onnel de I'énon·
(l). 114). ciation"· in Prublemes de lilzouistique générale 11, op. cit.
1:38 A REGRA E O MOPE:LO VE RE AEDIPIC.4.TORIA: ALBEnTI OU O DESEJO E O T~D'O 139

suas relações com o enunciado, J. Simonin-Grumbach193 reformu- sido amplamente utilizados por Alberti, seja sob a forma de
lou a hipótese de Benvéniste em termos diferentes, que lhe per· t.:ontribuições pessoais, seja sob a forma de empréstimos a Vitrú-
miliram definir o conceito dt: texto teórko, elaborar uma nova vio, e certos relatos part!t:em, à primeira vis la, ter sido retrans-
tipologia194 dos discursos e resolver as dificuldades colocadas t.:dtos diretamente do De architectura para o De re aedificatoria.
pela utilização dos critéri~ de tempo e pessoa associados aos Com algumas raras exceções:.::uu, os relatos ilustrativos de
shifters1 95 • Ela propõe chamar discurso "os textos em que há refe- Vitrúvio, todos tirados da tradição histórica, formam pequenos
rência com respeito à situação de enunciação (sit. <::), e história trechos independentes que se podem suprimir sem alterar a forma
os textos onde a referência não é efetuada em relação à situação do " tex:ro histórico", nem mesmo gt:ralrnen le seu conteúdo. Com
de enunciação, mas em relação ao próprio texto"l96. Ne~se último efeito, baseados nas proezas de personagens que levam o arquiteto
caso, fala-se de situação de enunciado (sit. E). Nas páginas se- romano a digredir e o moralizar, sua relação com o contexto
guintes, utilizaremos essas definições. '' teórico" do t ratado, muitas vezes, é demasiado frouxa. Assim,
A quem tenta situá-lo na tipologia dos sistemas de enuncia- us capítulos do De architectura ~.:onsagrado~ à escolha dos sítios
ção ou dos discursos no sentido amplo e não no sentido particular são ilustrados pelas biografias respectivas de Marco Hostílio que
que opõe esse termo a "relato histórico" ou "texto de·· história", deslocou a cidade de Salápis p ara subtraí-la aos malefícios dos
o De architectura contrapõe a resistência do composto, Alterna· pântanos e de Andrônico que construiu uma torre octogonal
tivameute discurso e texto histórico são, além disso, referendados correspondente à sua classificação dos ventos201. O Livro li sobre
por uma t>érit! de fragmentos autônomos que apresenta as carac- os matt!riais nos valt! as aventuras do rico Mausolo que não se
terística.s de relatos históricos. Esses fragmentos podem ser repar· dignava construir palácios de tijolos202. Hennógenes, que inven-
tidos em três categorias: relatos de origem da arquitetura, relatos tou as proporções, e Agatúrio, que pintou afrescos para a cidade
ilustrativos destinados a apoiar o propósito do teórico, relatos de Tralles203, são respectivamente os heróis de relatos encravados
edificantes geralmente situados nos proemia e sem ligaç.ã o direta nos capítulos sobre a "simetria" e sobre os ornamentos .
com o objeto do tratado. Ao contrário, os relatos ilustçativos do De re aedijicatoria
Esse último tipo, ilustrado particularmente pela história do estão estreitamente ligados a seu contextq. Muito va riados, muito
naufrágio de Aristipol97 e pela de 1\ ,-\stófanes, jurado ao concurso mais numerosos que os do De architectura, porém mais curtos e
do Rei Ptolomeu de Alexandria198, foi excluído do De re aediji- atribuindo pouco interesse a seus protagonistas, não têm qualquer
catoria199. Os dois outros tipo~ parecem, em compensação, ter independência. São indissociáveis do texto do tratado, no qual
estão integrados e literalmente absorvidos pelo jogo de shifters
que remetem tanto à situação de enunciado quanto à situação
193. Cf. "?out· une typolo~!e du d!scours", in Langue, Discours, de enunciação. Seja ela diretamente tirada da literatura antiga
Société, obra coletiva organi7ada por Emile Benvéniste, Paris, Seuil,
1!!75, pp. U5-U6, sobre o locn.l e as relações entre enunciado o enunciação ou reconstruída por ele próprio, enquanto arqueólogo, a partir
nn teoria linglilstica. dt: indídos materiais204, a referência à história, a citação do pas-
194. Aos iiscursos e extos de história, ela acrescenta, com efeito,
os textos teóricos, cujo "referente não é um referente situacional mas
um referente <l.iscurtivo" (op. cit., p. 112) e os textos poéticos que "não tura, para se polarizar sobre a máneira como, ao se despir, o arquiteto
são referenciados nem com relaçíio à situação de enunciação, nem com usou de sua beleza para seduzir Alexandre (proemium, Livro II, pp.
relação à situação de enunciado, nem com relação a um interdiscurso 59 ss.). Por outro lado, quando, por uma ou duas ve7.es Alberti, :;e
[caso do texto teóricol" (tdem, p. 114). deixa levar exceprionalmente a relatar histórias pítornscns, toma cui·
195. Op. cit., pp. 95 e Sfi.: "o presente como tempo básico da his· dado em assinalá-lo com a ironia necessária . Of. as h lst.ól'ins do Livro VI,
tório", e pp. 100 e ss.: "'eu' como 'pessoa' da história (S")". onde Alberti indica: "sed dieta haec sint anim i gmtia" (Cnp. IV, p. 167).
196. Op. cit., p. 87. 200. Onde shifters integr am a evocaçü.o do pns~ ndo no discurso
197. Livro VI. O proemium começa diretamente com esse relato: mesmo e a p ropósito dos quais não se pode, p niR, f'nlll.l' do um relato
"Tendo o f116sofo socrático Aristipo se afogado em conseqüência de hist6rico. Cf. Livro I, Cap. VIII, p. 33, ondo VHnlvlo uvoca os ritos
um naufrágio . . . ". divinatórios dos Antigos ("Majo,·es cni m, 7Jer cot·JIJus lmmolatis quac
l.!l!l. Proemtum do Livro VII: com esse exemplo, Vitrúvio quer pascebantur in his locis [. .. l inspiciel.>twt j nahwra " ) para emitir um
m o flll'lll' que sempre se deve citar suas fontes. Na seqüência dessa his- julgamento a seu respeito ("veterem, rovOCitncl nm censeo rationem").
túrlrt 11110 ú uma das mais longas de seu livro, Vitrúvlo enumera cs [o grifo é nosso.J
livniH uuo uLill~ou na redação de sua própria obra. 201. Livro I, Cap. lX; Livro [. Cup. XI.
lfl!). Com \IITIII exceção, facilmente explicável: a história de Dino· 202. Livro U, Cap. VUI. A históril\ ele Mausolo, que pretende ser
crttiOH (l llll, n)1ÓH htwox· encantado Alberti, fará a felicidade dos trata· uma contribuição ao elogio d o tijolo, prossegue com a h istória da
dlstnH uoltlolll.lt!ll. Jl!sses fundarão seu apólogo sobre a sem-ra:zão que fonte maravilhosa de Samalcis e n.<: rtventw·as de Artemísia . cujo t:mico
inspira o JJl'Qjul.u d u ddmle proposto por Dlnocrates a Alexandre, e seu laço com o que precede é sua qualidade de viúva de Mausolo.
desconhechnonto éhlH oxlgências de commoditas e necessitas. Curiosamen· 203. Livro UI, Cap. XII; LiVl'O VIII, Ca p. V.
te, Vitrúvio rol.lrou. uo contrúrio, toda conotação arquitetônica à aven· 204. Livro IH, Cap. XVI.
140 A REGRA E O MODE.L-Q JJE RE A EDIFICATORJA: ALBERTI OU O DESEJO E O TEMPO l<U

sado, serve a Alberti seja para fazer compreender a motivação rcce ainda mais claramente, se compararmos os relatos de origem
e, portanto, o sen tido de certas formas, seja para justificar ou albertianos com as versões vitruvianas de onde provieram.
explicar mais claramente certas regras. Nu primdru l:asu, dt:: 6 O De architectura conta três relatos de origem. O primeiro
levado a evocar aspectos múltiplos das condu tas humanas através narra o nascimento da arquitetura. f- anunciado no fim do
da história, descrevendo sucessivamente a cerimônia da comunhão proemium do Livro 11 onde Vitrúvio reconhece tê-lo buscado na
nos primeiros tempos do cristianismo2U5, a política hospitaleira 1rad ição, mas não exp lica o J ugar~15, com o abertura desse livro
de certos príncipes italianos206, o estado d 'alma dos viajantes sobre os materiais. Pode-se resum ir esse relato em seis &eqüên-
que percorriam os caminhos anligos20'1, ou as rilos dt:: f unuação cias ligadas entre si por um conjunto de advérbios de tempo:
das antigas cidades200. No segundo caso, que é o mais freqüente, I ) os homens viviam como animais selvagens (ut ferae) nas flo-
os exemplos escolhidos por Alberti são indiferentemente positivos restas; 2) um dia, uma tempes tade provocou ~m ir~cêncli~ e os
ou negativos, o que traduz a distância crítica tomada em re-lação fez fugi r; 3) quando retornaram, acalmada a VJolêncta do .m d:!n-
a um passado que não é exemplar, mas esclarecedor. A validade dio , descobriram a utilidade do fogo e, querendo comurucar-se
das regras do De re aedificatoria é wnfirmada, tanto pela evoca- a respeito, inventaram a linguagem e ao mesmo te.mpo a vida
ção (e condenação) da desmedida que construiu o T emplo de em sociedade; 4) em seguida, utilizaram essas capac1dadcs novas
Jerusalém209 ou ampliou exageradamente as ruas de Roma sob a fim de realizar ab rigos diversos (ninhos, tetos, grutas cavadas
as ordens de Nero210, quanto inversamente pela exposição (e no solo); 5) finalmente , de tanto progresso, construíram uma
elogio) dos métodos que os Antigos empregavam para escolher primeira cabana. Depois da quinta seqüência, o relato é interrom-
um s ítio urbano211 e pela implantação de um edifício212 , ou pido por um parênteses "etnográfico" destinado a confirmar ?
ainda pela maneira como o arquiteto do Panteão concebeu a , . ou mttJca
testemunho da tradição 1elfd ana , . d as scqucnctas
.. A4 c S216

' .
construção das paredes desse templo213. A última seqüência 6 pode então relatar o aperfeiçoamento da
Se portanto, em termos lingüísticos, as anedotas ilustrativas construcão com a invencão da "simetria", em outr as pa lavras o
de Vitrúvio são verdadeiros relatos, não se pode falar, no caso advento' da arquitetura' stricto sansu . A históri~ ~!erm i~1a, ~a
de Alberti, senão de "pseudo-relatos" na medida em que esses mesma forma abrupta como iniciou . E, sem transrçao, Y tlruvto
fazem parte integrante do discurso albertiano, inteiramente sub- aborda u tema de ~eu begundo livro, os materiais de construção.
metidos à soberania enunciadora do autor, cujo presente reina O segundo relato conta a origem das o rdens. Mais compli-
sobre seus perfeitos e seus imperfeitos. E ssa dependência deixa cado do que o anterior, consagra a anterioridade e a superiori-
também suspeitar que, além de seu papel manifesto de confir- dadt: do dórico (" primaey antiquitus Dorica est nata"). Pode-se
mação e de explicação, bem analisado pelo próprio autor214, os clividi-lo em oito períodos. 1) Doro reina sobre a Acaia e o Pelo-
relatos ilustrativos de Alberti têm uma outra função, e que, poneso; 2) manda erigir em Argos um santuário dedicado a Juno
convocantlo a h istóri a, eles convocam o tempo, o tempo das e construído casualmente com um tipo particular de colunas,
gêneses c das criações que Vitrúvio ignora, c no fluxo do qual cujo modelo serviu para a construção d e inúmeros outros tem-
se inscrevem simultaneamente a aventura de Alberti e a da plos, m as que ainda são desprovid~s de "simetria" ; 3) os ate-
edificação. nienses fu ndam treze colônias na Ásta, e fon , seu chefe su premo,
Esse duplo papel desempenhado pelo sujeito (primeira pes- cria cidades (P.feso, Mileto, Priene, Samos ... ) que VHO forma r a
soa do singular) e p ela temporalidade no De re aedificatoria apa· Jônia; 4) essas cidades constroem santu ários ~omandn .c onto mo-
delo os de Acaia e, por essa razão, os dcnomrnam tlóncos. Mas
205. Livro VII, Cap. XIII, pp. 62'7·629.
206. Livro V, Cap. VIII. p . 369. esses são, entretanto, diferentes por que suas colunas emp regam
2(]7. P . 669. um sistema Je proporções (symmetria) tirado do co rp~ do ho-
200. Livr o IV, Cap. lli, pp. 291 e ss. mem; 5) é então inventada uma coluna do nlc!'lmo 11(10, mas
209. Livro IIJ, · Co.p. V.
:1Hl. Livro IV, Cap. VI, p. ~07. Cf. também a narração da cons·
ti'UCI\o d11s janelas <demasiado estreitas) na Antiguidade (Livro VII, 215. Vitrúvi o se Jimit.P. a indicar: "Mrts ltnto:; (rml!!tnwml de chegar
c ap . xrn. à expl!cação das coisas naturais (res 7Wlu !'lllcs ). começarei (antcponam)
:111. r.Lvro I, Cap. III. por falar da invenção dos edifícios , do q un.is foram ~eu s coll?eco~ e
:11?.. Livro IV, Cap. VIII, p. 367. como se desenvolveram". Esse antepouam lapidar co:1tmua arb1trán o.
:;0:1. T.1 VI'O VII, Cap. X . 216. Podemos j ulgar que foi rcnlmcntc essa a .invenção..d?s ed~:f·
:li~ . c;r.• por exemplo, Llvro IV, Ca.p . I, p . 781: "Quorsum haec
cios pelos primeiros homens ("de anttquts tnventi ombus .aedt{tctorum ),
[trnta·HU cll\ ovocnçflo da atitude dos Antigos com respeito aos orna· segundo wna série de :r.dícios ("l:is signis") q.uc '~itrúv1o descobre na
mcnlos o 11 ovoltt;,:ílo dessa atitude) ut ex earum comparatione id sta· Célquida, em Frígia, em Ma.rseil!e (onde os h1stonadores r elatam que
tua.m lp~um quoa alio! diximus: pUWere qua.e procujusQ'Ue dig11itate foi observado um teto de ter ra batida reco·oerto de folhas) e em certos
moderen.tur". vest!&!os encontrados em Atenas e em Roma (p. 67) ·
142 A REGRA E O MODEW I11•; 'RE AEDIFICATORIA; ALBERTI OU O DESEJO E O TE.l\4FO 143

construída segundo as proporções do corpo feminino; 6) em se- lnmcnto original dos primeiros construtores: os seis momentos
guida, os sucessores desses inventores criam a coluna jôníca d1·ssc processo explicam as s~is operações do axioma 4 e dão a
que é mais esguia; 7) enfim aparece a coluna coríntia criada hasc a toda a primeira parte do De re aedijicatoria.
pela imi tação de um corpo de moça; 8) o capítel coríntio é in- O terceiro esquema, o mais curto, que abre o Cap. l do
ventado por Calímaco em seguida à morte de uma íovem coríntia. l .ivro IV, remete muito livremente à quinta e sexta seqüência
lgualmcnle atribuído à tradição, esse seguido relato de origem vilrllvianas: a gênes~ do mundo edificado não é mais apreendida
difere do primeiro por dois traços. De um lado, é melhor adap- o·1n termos de resultados técnicos, mas em termos de motivações,
tado a seu contexto pois está colocado no primeiro capítulo do 111ravés desse desejo e dessa demanda que o De re aedificatoria
Livro IV, após um desenvolvimento sobre a ordem jônica (fim trnnsformou no motor da edificação. Dizendo respeito à origem
do Livro III) e uma comparação das três ordens (início do Cap. dus o bras que satisfazem commoditas mas também volup:as, ele
I do Livro IV). Dt: outro lado, não mais ~.:oloca ern cena prota- uli ccrça a segunda parte do tratado cujas regras, como havíamos
gonistas anônimos em lt~gm·es incertos, mas personagens precisas n.: :tlmente constatado, eram também produtoras de uma beleza
(mitológicas ou históricas) num espaço geográfico determinado, 1•rgü nica, por aplicação do terceiro corolário do axioma do
n G récia. r d iJ'ício-corpo.
O terceiro e último relato de Vitrúvio é ~.:olucado no segundo Quanto ao quarto esquema, situado no final do Cap. li do
capítulo do mesmo Livro IV e diz respeito à origem dos ornatos l .ivro VI, tem em comum com a sexta s~qüGncia de Vitrúvio
dos capitéis. Muito mais curto que os anteriores, não é apresen- a penas sua conexão com a origem da "simetria", ou em termos
tado como um legado da tradição. Mas Vitrúvío não lhe reivin- alhcrtianos, a finitio que simboliza a estética racional e remata
dica a invenção, já que parece tê-lo deduzido de sua análise da u cd ifícacão . Com efeito, Albcrti dá a seu esquema um alcance
construção em madeira. 111:lis crer~! e mais abstrato: trata-se no caso, do conjunto das
Somente os dois primeiros relatos de origem vitruvianos artes "das quais a arquitetura é apenas um ca~o parllcu . Iar, e os
~;st::ígíos lendários de seu desenvolvimento são substituídos por
foram em parte reutilizados por Alberti, à custa de transforma-
lrê:; fatores abstratos: acaso, experimentação e ober vação, racio-
ções que lhe mudam a função e o sentido.
nalização. Esse esquema de três linhas parece, pois, destinado
Do primeiro longo relato vitruviano que leva da origem da a justificar o operador específico do Livro IX (quinto axioma)
sociedade à da arquitetura como arte, Alberti retoma, de fato, e a sustentar a "história da arquitetura" (Livro VI, Cap. UI)
apenas o tema do primeiro começo, cuja narração contfnua ele que, por sua vez, dá embasamento à estética dogmática de Alberti.
faz explodir em quatro breves esquemas aitiológicos217, indepen- Em relação ao primeiro r elato de origem vitruviano, os qua-
dentes c localizados em pontos decisivos do espaço do texto. l ro esquemas do De re aedijicatoria são singulares por sua abs-
O pri111 ciro, hoinólogo das lrês primeiras ~eqüências de Vi trúvio, lração e pela maneira como Alberti deles se apropria e sobretudo
~.:st(l s iLu:Hio, como vimos, no início do Prólogo; colocando de por seu papel ativo e pela função que desempenham nu texto.
maneira original a edificação na origem da vida dos humanos J ;Í assinalei a sequidão dos "relatos de origem" de Alberti. Neles

em sociedade, ele dá assim, desde logo, uma justificação e uma 11aJa subsiste do pitoresco e dos detalhes tão caros a Vitrúvio.
base ao projeto que o De re aedificatoria enuncia e realiza. !':i uprimidos os incêndios de flo restas , as mímicas, a divet:si?a~e
O segundo esquema aitiológico, situaào no comeco da pri- das primeiras tentativas de cons truç~o : os hon;ct:s ongmms
meira parte do tratado (Livro I, Cap. li), n ão é re~lmente o ocupam sítios, dividem espaços em pn vados c p11blicos, sobem
hom ólogo das seqüências 4 e 5 de Vitruvio, na medida em aue muro:;, p rotagonistas tão teóricos que se ríamos lcn lados a trans-
niío é a "cabana p rimitiva"218 que ele descreve, mas o comp~r- l'unmí-los num singular, o Homem. "Principio' ', c:;sc ' ' 11a origem"
co m q ue se inicia cada um dos qua tro ln.:c h u~ ( i ,{un lmei~lc um
" 110 princípio". Além di sso, como 110 ~.:u ~o .d.m ".re l al~~ dustra-
?.17. Fui buscar esse termo em P. Veyne que dele se serve para li vos" , Alberti se apossa de seus csqucmns ttll lOlôgll.:os, m regra-os
do:•IH• Inr os mitos e r elatos de origem utilizados pelos historiadores gre·
IWII 11 •·onutuos e cuja função "epistemológica" ele analisa em Les Grecs nu ma situação de cnunc ia<;üo c IHJ IIICSillU instante despoja-os
Ul'riUflit'lll }1:1 (t leurs myth.es?, Paris, Seuil, 1982. de se u e~t:atulo de n: lll l0 his lól'ico. l·:nl rctanto, a apropriação
~ 1 11. l'!nl l,r, maiso;~ d'Adam au Parad1s (Paris, Seuil, 1976), J. Ryk· pl:IO autor não se rcnl iza. d ~.:s~u vcz. por meio de julgamentos,
wlll'l, t't"' 'PI.•• 1 lo ~tlmbém ao~ dois l;extos de Vitrúvio e de Alberti. To- 111<\S po r uma rciviudica<;iio d...: pnt ernidade. Não sem condescen-
duvht, lliHf iiiUII.•l Pllnl J. Rykwe:-t é o caso de most:ar a constância de
unt I.OIIIIt (11111 t'('IIIH·Ont.rn em culouras estran.has à nossa e que ele con-
verto IJ"' "'I (lfl p•ldq 1lu 'iuvariante cultural, eu, ao contrário. me ói~pus a u1su< sun forma, quo p111.'tL n•l m NO tomn um indi~acto; semãnt!cu e o
nssina:m· 1111 tlf/< 't't'n<'fl.~ que separam o:s dois autores no manejo desse ust•lo ele definir um cori.O nn IILomturn dedicada à arqu1tetura e ao quo.-
tema. O que nw iu~oro!!sn niio (} o conteúdo do relato da casa original, tli'O COD.lHl'l.lido.
146 A REGRA E O MODELO m: RE Ab:DJFlCATORJA: AL.BERTI OU O DESEJO E O 'l'EMPO 1<17

enlre os Caps. V e VII onde st: mislurarn de forma insólita no "rcl'erência ao interdiscurso"226 a partir do qual se poderia, no
discurso teórico, contrariamente a todos os relatos de origem C<J:iO, considerar o mundo construído como a tace nao-livresca.
do tratado, essa narração é colocada depois das regras das ordens A biografia de Alberti, tal como a desenvolve o De re aedí-
que ela explica. Aliás, seus protagmústas não são mais os homine5 ficatoria, é no entanto coisa totalmente diferente de um referente
abstratos - o homem - dos outros esquemas, mas ma;or.?s di ~cursi vo ou mesmo situacional, no sentido estrito. A l11Storia
nostri em primeiro lugar, depois architecti, predecessores que têm tltl nutor Alberti começa com sua decisão de escrever o De re
rda\(ão com o lêrnpu Ja hblória. Longe Je ser um operador uudificatoria e prossegue à medida que surgem as dificuldades e
paramítico do texto, ~::ssa narração que historiciza, de alguma que as resolvem novas decisões que, progressivamente, engen·
forma, a lenda vitruviana, trai, ao mesmo título que a "história dram o encadeamento das partes do livro, a ordem dos p rocessos
da arquitetura", as dificuldades teóricas curn que se depara AI· dt: ed ifi cação, determinam a posição e a organização dos esque-
lllas aitiológicos, a escolha dos exemplos h istór:cos. Dessa his-
berti na parte estética do De re aedificatoria.
tória tão curiosamente destacada da história, que narra as etapas
O estudo comparativo dos relatos vitruvianos e albcrtianos dc uma pesquisa teórica c a construção de um livro, dependem
confirma, pois, minhas análises anteriores. Evidencia o papel tan to a ordem de seqüência das regras da edificação quanto a
ambíguo e decisivo desempenhado por uma história da arquite- urdem do livro. E é, em definitivo, ~obre a criatividade do
tura que não ousa e não pode ainda nomear-se, e vem perturbar do sujeito-autor do texto, que se baseia todo o projeto gener:1tivo
a relaç8o com o passarlo do De re aedificatoria. Com efeito, do De ro aedificaloria. O próprio Alberti o sugere quando assi-
torr..a-se claro daí por diante que o t ratado de Alberti é escorado lllila sua personagem de escritor a um construtor: "Itaque nos
pela oposição irredutível de uma temporalidade concreta que tJuas quasi opus faclu ri simus et manu aedificaturi, ab ipsis fun-
acolhe a criação arquitetônica e de um tempo abstrato no qual damentis seu ordiri aggrediemur"227.
é fundada em teoria essa criação aberta a um devir permanente. O desenvolvimento da edificaç ão , tal como a exolica o De
A de~peito de um emprego idêntico dos tempos do passado, re aedificatoria, é portanto comandado dessa maneira pela his-
somente os . relatos ilustrativos remetem a uma duração real. tória d e escritor. Por condensada e reduzida que ela seja, por
Convocam o passado não para valorizá-lo em si, mas pura exaltar es paçadas que sejam suas divisões, longe ue ~er secundária ou
a t:riatividade do tempo, diü1 e redih.J, quase já teticamen le, ao pedagógica, essa história lhe impõe sua ordem.
longo do De re aedificatoria. O eixo do tempo é necessário p2ra Mas que status atribuir ao De re aedijicatoria, quando ele
que se desenvolva a atividade edificadora: essa mensagem é reto· nilo aparece somente u.nificado pela enunciação de ur.1 e•t·autor,
111as bem estruturado pelo enunciado de sua história? Nnda
mada, sbtemHticamente repercutida de uma ponla a outra do
se pode falar de um discurso, de um texto t:eóric:1? Mais precisa·
livru por unw evocação maciça do passado. Vimos, porém, que, mente, tratar-se-ia de um discurso sobr-e um texto teórico, cate-
tão logu é cnunciado, cs~c pa~sado é de algum modo desativado gor ia dis;.;ursiva de que Alberti oroduziu um exemplo canônico
pela enunciação albertiana. Perde o status que um verdadeiro no Della pittura? O De re aedificatoria é efetivamente comparável
texto de história lhe daria. O eu vigilante do autor dele se :1 essa ob ra, ela tamb6m sem precedente, q ue d ife re de todos os
apropria de modo tal que o reduz a ser tão-somente uma dimensão 1nllados de pintura anteriores, qt1e exalt a o puder c ri<~ dor do
de sua própria construção, em outras palavras do seu . tratado . :1rtista "deus in natura"228 e no qual o autor niio cessa de in tervir
na primeira pessoa do sin gulor22fl, impondo sc u ponto de vista pes-
soal ao leitor, exprimindo seu orgulho de invcnt nr. t\ comparaçã~ .
5. O ARQUITETO-HEROI

O paradoxo menor não é que o eu ordenador do De re ae- 226. J . S IMONI:'o<-GRUM'Bi\CJI, op. 1'11... p. 111. l\'c ·S~It c:mwepçi'tO, "O
lnl.c,discurso pode ser o intorG ltscll rso rr11 mHrl.lt lo t':<l.rllo - o próprio
di{icatoria, o sujeito que imerpela o leitor e o remete pennanen· l.c·xl.o, .~i t. E c-:Jmum ao autor o 110:-1 Jol lonri o n o interdiscurso no
tt:lllt: lltt..: à situação de enunciação, introduza em seu tratado sua :;ontid0 omplo- os outro11 l.oxln" I .. 1.. flr1<' 111 . p. l ll).
pró pr ia história. Vimos, todavia, que somente a biografia inte· 227. Livro II, Cap. X TTT, p . IH!l.
JC\.: luu l, :1 aventura especulntiva do autor é que é evocada no 22fl. Do qual E . Prt norslry. 11:. ( lrt<·ln I! A. C:ha stel fizeram a reivin·
il lr::tçã') mais car actorJsLica rlu· r llr rlltlllll sl.a s (cf. A. CHASTEL, Marsile
livro. 1·:11tmm no texto apenas os episódios de sua experiência l•'ldn, OIJ. cit. , p . 33 ).
p assud;~ qu ~,; tCm relação com a situação de enunciado, quer st: 22fl. Desde o " io" d1t dr<lli:u ltll'lrt rt Brunelleschi e o célebre "si con·
trate dc lllllll t: lapa rt:CIL:xiva ou de uma visita do arquiteto ao .:ltf,·,·i me non chonw ma.till:mtiiiN! ·ma come pictore scriver edt queste
terreno. 1>o(lcri11 traliil'-sc r~í, portanto, de uma referência situa· t•nst•" (op. cit., p . 55) , al.<l 11 JIIUI I SIII{UllJ a seus sucessores da últi ma
cional própria fios tcx.tos teóricos, e caberia compreendê-la como p:lt:ln<L, passando po1· " .lif! lll'llo c•nnfc.,sure di me stesso: io se mai per
/ll} tJ f! Íil Ci!?'C mi tlo (t ll-11JIIl(/I' I"C • •. • '' (ú.lem , p. 81) .
l-18 A REGRA E O MODELO 111-: J'lE AEDIFICATORJA; ALBERTI OU O DESEJO E O TEMPO 149

talvez fosse ainda mais pertinente com ou tru ~x~mplo de discurso I i vro, um analogon desses relatos de fundação cujo modelo ele
sobre um textu !~úrico, o Discours de la méthode de Descartes cnwntra em Ym úvio e nos autores da Antiguidade e que, de
cujo autor uniu, para a posteridade, a exposição de sua filosofi; tan ta ironia e por uma implacável subordinação à situação de
à nanação de sua aventura intelectual e mesmo de certas cir- l·nunciação, ele despojara de sua tonalidade mítica ou religiosa.
cunstâncias de sun vida. O De re aedificatona perde então uma parte da transparência
. . ·~ nt~·etan to, .t~nto no Della pittura quanto no Discours, a t'cla qual ele se impusera à nossa atenção.
mstsl~ncia do SUJeito em referir-se a si próprio enq,uanto pessoa Certamente, a eiaboração sistemática por Alberti das regras
h1stónca concreta e em afirmar a "metafísica do homem cria- da edificação a partir de um conjunto limitado de operadores
dor"230 n~o arranha o forma do texto, nem modifica seu esta- l{>gicos continua sendo a primeira empresa desse gênero, e seu
tuto de discurso. Ora, se o De re aedijicatur ia tem realmente o prvjeto, com o duplo papel de que ele encarrega o tempo e o de-
p ropósito de mo~trar que " a atividade humana que se encama .~.;j o, é pioneiro e con tinua inigualado. No entanto, parece que
na edificação da cidade é a característica mesma do homem ao ~:~~a tt:ül'ia ramificada no real ul:upa um t::~ tratu superficial do
mesmo tempo artesão, causa e Deus l"e cuja] r uzão de ser não 1cx10, subordinada a um estrato profundo onde, graças a um
es~.~1. na contemplaçu~ de um dado, mas no fazê-lo, no produzi- r.;lato heróico escrito em filigr ana, se desenvolve uma dimensão
lo :l:n , sua fo rma trm outm coisa que não a t:mbriaguez da cria- 111i tizonte.
ção e a afirmaç~o u.~ um poder individuai. O caminho crítico Relato paródico ou mimético, composto com deliberação ou
do autor que fala na primeira pessoa e essa segunda pessoa, antl!s introduzido de maneira sub-n::ptícia pdu inconsciente do
9-ue_ a p rimeira não cessa de interpelar; o peso do presente do :1utor? Pouco importa. O essencial é a cont radição com que nos
mdtcativo, tempo básico do texto, e os indicativos fu turos, os d~,;paramos : o fato de que ele remete simbolicamente à tradição
subjuntivos e imperativos que o conlntpont!:tm na formulação contra a qual, desde logo, se inscrevia o empresa de Alberti.
d.as regras da euifi ca<,;ão; a firme expressão de '1:111 desígnio teó- Para interpretar essa falha secreta, essa face obscura de
fl CO - todo esse formidável aparelho dissimula paradoxalmente 11ma superi oridade sem sombras, é preciso tentar reportar-se aos
um texto de história que, por trás do eu do autor-teórico, abd ga lc mpos em que Alberti consagrava seu tratado a libertar a razão,
o ela de seu herói. Enquanto o Del/a pittura c o Dí:scours ele la a imaginação e os desejos num campo donde estavam excluídos,
méthode enunciam, um e outru, uma teoria que uma referência t.: que as prescrições dos deuses c da cidade limi tavam. Suprimir
à situação de enunciação ou ao passado do enunciador vem por c~~~~ antigos limites, libertar-se de toda regulamentação trans-
acaso valorizar ou esclarecer, o lJe re aedijicatoria conta como t'Gndente ou não-motivada, não constitu ía um gesto anúdino. O
u~n herói descobre as regras da edificação depois de haver prc· que era possível, embora não sem perigo232, no domínio figurado
vwmente assegu rado sua fundação, por ocasião dos q uatro mo- du pinturo se revelava impossível no campo vivido do const ruir
men t o~ em q ue culminu seu p ud er c em que constrói os esque- que compromete uma atividade prática dos humanos. Alberti
mas dc ori ge m do Prólogo , elos Livros I, IV e VI. 11ilo t:stava t:m wnJições de assumir perfeitamente uma emanci-
. A pa~avra herói não é lançada aqui inocen temente. Aponta JXIÇi'ío do ato de edificar que raiava o sacrilégio. Seu projeto sem
a smgulandade desse texto de história e a dimensão quase mí- JWCcedente, a concepção de uma legislação generativa do cons-
tica de ·seu protagonista secreto, o grão-ordenador do De re ae- tru ir, somente podia ser enunciado desde que fosse conjurado.
dijicatod a, o Arquiteto-herói cujo triunfo os últimos capítulos f: por isso que ele inventa c constrói, por seu:> úni cos e próprios
tio texto consagram. Figura excepcional e ambivalente, situada me ios, um relato ue fundação leigo em primeira pessoa, cujo
fora do tempo dos humanos e entretanto imersa em seu fluxo herói construtor escapa simultanc:1mcnlc au lcmpo da história,
por meio do "eu" de Alberti que lhe assume metaforicamente dum ina-o e sabe reconhecer-lhe a fecundid:1th:. A lransgrcssão
o papel, como edificador do livro, descobridor das regras da cometida por Alberti, quando dotou 11 edific:u,:: 1o de um~1 lcgis-
edificação e inyen tor uu:; esquem;:ts de fundação. Assim, esse lu<,;ão própria, é portanto simbo licnm cnt~ c<mjnradn por meio des-
hcn)i resolve as contradições suscitadas pela tarefa de legislar, IL' 1cxto de hisrúria insóli to que simula um mit o d~ fundação:
cumprindo as funções antinômicas de um homem chamado a roncessão derrisória, nu1s ind ispcnsftvcl 11111 a 4uc seja revelada
furmulnr flic et nunc as reg~·as dn edificação c do Arquiteto que a teoria soberana do De re lll'dijicatnria.
tem poder de fundá-las no tempo a-histórico da lógica.
ln lcp,rnndo dessa maneira seu discurso na forma de um
texto de histl>ria. 1\ lberti recompõe, ao nível mesmo de seu 2~2. A propósito do '1'1'rt/Mia tio 1'/n/urn, que, segtmdo ele subllnha,
c·•.mo nés mesmos nccrcn rl n /Jr· r;• m·rlificatoria, constitui na época um
oii1PI'CCY!Climento sem cxolli iJ)O 111 1lmlor, R. K rautheimer acresc6nt a que
230. E. GI\HJN , Moy,:u A(le ct Renaissance, op . ctt., p. 76 . I'"" ;unbiçfw se situava mo~m u 110 ltmll.o do su bversivo (Lorenza Gluberti,
231. Idem, p . l!ill. l' dnr·cl on University Prcss, I!JII:I, p . :liHJ.
3. "Utopia" ou a Travessia
do Espelho
UNE.-)!'

O segundo paradigma dos textos instauradorcs, a Utopia1


de Tomás Morus, não suscita os mesmos problemas de apresen-
tação que o De re aedijicatoria. A obra é muito mais curta, mais
familiar ao não-especialista. 8 objeto de numerosos comentários
que não desejo repetir aqui2 e cuja lição menor é não ter feito
surgir a polissemia da Utopia. Com efeito, o texto de Morus pôde
e pode ser abon.lauo através das dimensões moral, religiosa, eco-
nômica, poética. Nessa obra foi possível ler tanto a nostalgia de
uma ordem passada quanto a intuição futurista de transforma-
ções sociais futu ras, tanto o conformismo quanto a subversão e,
para retomar a terminologia de K. Mannheim, tanto a ideologia
quanto a utopia3. E:>:>as ui versas leituras, mesmo quando rec.o-

1. O título que empregamos aqui somente p rcvalc<"cu u partir da


edição da Basiléia (1563) . An teriormente, Morus ull lilm-o apenas por
elipse em seu prefácio, e c termo Utopia SUIII OII W aparc(;O no ULulo
da. segund a edição ( Basiléia, 1517): Libellus vc1·c wtrrw; ucc nduus sallt-
taris quam j estivus de optimo rcipublicac stat11 tll'f/llf! U O IJft i 11sula Uto·
pia, aut hore clarissimo viro T homa Moro [. .. 1 /1.~ dl nçílCs em latim se
refer em à edição de E. Stu rtz Ccf. infra, o. ?. ) o ns em (ra nces à tra-
duçM de M. Delcourt, Paris, Renaissancc du Liv re , 1936. As duas obras
serão designa das r espectivamente por S. o D. ·
2. Remetem os e m particula r aos dn cc' içito de E. Stur tz e J . Hexter
(MORE, Complete Works, t. IV, Now Hnvcn-Londres, Yale Universlty
Pess, 1965) n a qual iremos encontrar uma bibllografia quase exaustiva,
comentada. Desde o seu aparecimento, a única obra maior publicado. é
a interpr etação de L . MARIN, Utopiq11cs jeau:t d'espace, Paris, Ed. de
Minuit, 1973, à qual teremos cp o r tuni ~lade de nos referix· p or várias ve;,;es.
3. Cf. supra, p. 35.
152 A REGRA E O MODELO UTOPIA OU A TRAVESSIA DO ESPELHO 153

nhcccm no texto de Morus uma eficácia social, têm e m comum cutores do Livro I7. Ele próprio reconhece esse papel quando,
o fato de situarem essa efi cáciH no plano das idéias e dos scnri- no final desse mesmo livro, reage contra o ceticismo de Morus:
mentos, podendo o limite dessa atitude ser ilustrada por L. Marin
para quem a Utopia, por crítica que seja, é prisioneira para sem- Nada há de surpreendente em que penseis dessa forma já que na.o
pre de seu status de livro, e por isso mesmo afastada de toda tendes da realidade nenhuma represe·11tação [imago] que não seja falsa .
Seria preciso que tivésseis estado em Utopia comigo, que tivésseis visto
prática política1. com vossos olhos seus costumes e suas instituições tal como eu mesmo
Ao co n tr ~ r io, escolhi ler a Utopia na medida em que propõe pude fazê.Jo [11.-fores eonnn atque instituta vidisses prae._wms, ut egol . . .
um modelo de o rganização do espaço suscetível de se r r<!alizado em seus países que eu não teria desejado deixar a não ser q·Je lusse
e em que possui capacidade de transformar o mundo natural. para dar a conhecer esse universo novo. Confessaríeis então jamais ter
visto em alguma parte um povo governado por melhores leis"•.
instaurando esp aços nulos: escolha paradoxal, redutora, decerlu,
mas legítima na medida mesma em· que é transmitida pelo texto.
Renunciando, portanto, às outras leituras, começarei p or reco- 1. 1. Espaço-Retrato e Espaço-Modelo
lher, em todas HS sua> letras, o que Morus afirmavn sobre o es- Para Raphael, a Utopia está pois no espaço que, em ten;;_o~
p:u;o ut ó pico. kantianos, constitui o "esquem a" e a condição de sua expt:nt:n·
cia. Mas tem também um espaço cujas determinaçõe~ ~he confe·
rem e revelam sua particularidade. De fato, a descnçao .~e Ra-
ES PAÇO-MODE LO , MODELO DE ESPAÇO: phael faz surgirem dois t:~paçu:; utópicos. Com ~rande ~abmcladc,
ABORDAGEM FENOMENOLOGICA ela superpõe duas imagens d: !-JtOJ?ia, d~s qum~ uma e ê.l Je UIU
lugar; a outra, a de um prototlpo. A pnme1r~ ~mugem, que cha-
Para isso nos reportaremos ao Livro II, consagrado exclu- marei retrato9 por que pinta os traços cspnc1~s que faz:m d;
sivamente a essa ilha de Utopia à qual Raphael H ytboloday fez Utopia uma individualidade única, é fruto. ntl' nm parlJcllltll:t-
breves alusões no curso do Livro I. Antes de rela tar seus costu- dades de suas construções, rlas contingêno.;,hls de sun gco?rnf1~
mes e instituições, Raphacl começa descreve ndo o espaço da ilha física e de sua história. A segunda imagem, qu e denon1111at\:l
maravil hosa. Precedente significativo que se rleve à problemática modelo porque retém de Utopia apenas traç?s. espaciai~ m~il lo·
mesma do livro. Antes de tudo, para o porta-voz de Morus, deve- calizados e reproduzíveis, depende, ao contran o, exclusivamc~tc
se convencer os interlocutores do texto (e seus leitores) da exis- da ordem humana e de um estrito sis tema de normas culturms.
tência de Utopia. E para isso ele tem de mostrar-lhas, objeto c Essas duas imauens permanecem rlistintas, do começo ao fi m
conjunto de obje tos totulmcnte elaborados, tal como a !icc,;iío do relato que H.~phael conduz com método, descendo da escal~
pressupõe que ela é dada desde logo e tal como de, Raphael, do território à da cidade c da casa.
pro lago ni:>ta-lcs tc mun ha do livro, pôde autenticá-l a n o decorrer A~ primeiras palavras de Raphacl. na abertura do Livro li,
rlc 11111 a cx pc ri Gilc ia funda mental que é uma expe riência visualfi. desenham o ren·ato físico de Utopia. ~ uma ilha, separw.lti do
Da í a impo rtâ ncia do q uadro construídoü que, segundo veremos. continente por um istmo de quinze mil p assos; apresenta "o as-
condiciona tanto a conversão que engendrou a socieda<.lt: u tópica pecto de um crescente lunar", com um perímetro de qtlinhentas
quanto o fu ncionamento dessa sociedade.
milhas, cujos "dois cornos são sep arados por u1!1 braço de ma!·
Por paradoxa l que isso seja, a U topia, que n ão se encontra de cerca de onz<:: rnilhas"l0, e form a uma cspéc1c de lago man -
em parte alguma, entretanto constitui, antes de tudo, um espaço. timo, perfeitamente calmo; o acesso a esse Jngo é ohslaculizadn
Sua testemunha, Raphael, excluindo q ualquer outra qualificação,
se apresenta como um percorredor de espaços, um viajante e um
vedor , ta! como o ressaltam em três oportunidades os intcrlo- 7. Primeiramente, por ocasião do cnconuo com Rhphno:l, quando
Pierre Gilles diz a Morus que "não há nln ~uém 1111 1(·1'11< q u e lenho
tantas coisas para contar sobre os homens o os l<•1·: n:; d<:sconl!ecld:::~s"
1. "A utopia não constitui um projel.o político e social e não com· (D .. p. 9>; depois. no início do diáto~o d o cnnsPiho. qnanrlo Pr~rre lhe
pll!'ln 11111:1 <'Slratégia nem umn tática de realização" (op. cit., p. 48 ). assegura: "vós teríeis com que encant:H u c·om 'llJ:,.:;;u saber. vossa expe-
!i. S<•IH'I ' a significação epistêmica e epistemológica desse apelo à riência dos países e dos homens"' (D., p . I:l); c, fmal me~te, um poucG
vl:mo, o·l . l111ra. pp, 186 e ss. antes da abertura do Livro II, quando Morus o presswna a contar
11. ll1•111 IH'o•ooluada pelos comentários marginais apostos por Erasmo enfim sua viagem a Utopia: "Dai-nos um quaclr·o completo das culturas.
no loxl o tlol l'l'i llll'irn cdiçi10. "situs et forma· Utopiae novae i11s·ulae; dos rics, das cidades . dos home ns" rn .. p . 51;) .
locu.~ 1111/tmo ltt/ 118 unico praedis'io dejinitur; L . . l hoc plus crat quam R. D .• 54. w orito é nosso.]
isthmum /11'1'/lult·o·<·: I .. I oppida lliopiae in.~uln.e; similituno cmJ.cordiam 9. Retomando a terminolo~; ia adotada pe los gravadores da Renas·
jccit; urbluon lniC'I sr• l!lertiocrc inlervallurn; distributio agrorum I ... J" c:ença a fim de designar seus " rotroctos" das cidades (cf. Cap. lJ
!O grifO é IIQS .\0. I 10. D., p. 57.
)54 A REGRA E O MODELO UTOP!A OU A T RAVESSIA DO ESPELHO 155

por um grande rochedo, escol hos e al tas profundidades, enquanto d;, \.:idade utópÍI.;alS; finalmentt!. a ponte queli~a as duas margen~
q ue do lado oposto o litor~ l é marcado por r ecifes rochosos. Esses du Anidro .
traços natura is têm relação direta , de causa e efe ito, com um Em su:1 particularidade , Anwurola h:mbra l.ondre:>W, ta l c.:ú·
conjunto de traços construídos yut: dão su<t dim~nsão cultural 111u anteriormente n il ha de Uto pia lembmvo a Inglaterra. Vere-
ao re trato de Utopia: o istmo é o resultado dt! uma proeza técnica nlus mais adiante como inte rpretar tal referência. ao mesmo tempo
conceb ida p elo heró i f undado r Utopo para d es t~~car (expulsar) daburadtl e disfarçada. Notemos apenas, por enquanto, que inú-
a ilha do cont inente; uma fortaleza coroa o rochedo quç barra mt:ros comentadores parecem ter levantad o falsos problemas com
o entrada do golfo, sobre cujas ilhotas se erguem faróis destina- re lação a esse q uadro de um espaço individualizado cujos de-
dos a guiar os ami gos e perder os in imigos; fin11 hnente, o lado talhes Morus tirou ao mesmo tempo de sua cultura clássica c
oposto é eriçado de obras defensivas. A conjunção da natureza de sua experiência de londriuo. Como o da ilha, o rcualo de
e da cultu ra produz, portanto, uma paisagem original q ue, se Amaurota se des tina a atestar a realirlade de sua exis tência real.
não deixa de evocar o Atlântida de Plarãoll, contudo lembra de A imagem-modelo q ue se su pcrpõe ~ imagem-ren·ato apre-
maneira ma l disfarçada a Inglatena12. ~..:nl a , ao contnhio, os ele mentos d o quadro construído que, nesse
A capita l, perso na lizada pelo nom e Amaurota, se singulariza momento próprios unic amente à Utopia, são todavia universal-
po r sua vez po r uma série de traços topográficos que r<!petcute m m..:nte reprouuzíveis e desli gados de quC~!qucr dependência com
subn; o q uadro construído. Está situada '·co mo que no umbigo rdação à sua geop:rafia física c it sua hist6tia .
da ilha"I3, ao fla nco cie uma colina , próxima do m ar, atrav~ssacla Raphael começa por assinalar a padronização do q uadro
c bordejada por um g ra nde rio, o 1\nidro, c um outro menor . construído, urbano e rural, dos utopianos: cinqüenta c qu atro
que deságua no primeiro. A incli nação do terreno ..: a di srrihn i- ~:idades edificada s num m esmo plano (situs), de aspecto idl?ntico
ç~u u<Js cíguas dão origem a m elho rame n tos o rigir1ais : o d ispo- (eadem rerttm f ac:ies), e cercadas por um campo sem eado com
si tivo defe nsivo q ue converte o p~qucno rio intt:rior em re-serva- um mesmo modelo de casas familiais agrícolas. "Quem conhece
tór io de água potáve l na even tuali duue tle um ccn;o; as ci s h:~rnas uma de suas c idades conhece-as t odas, tão gl'ande é n sua ~m e­
que g<Jr untem o abastecime nto de água de ch uva a terrenos por lhnnça, tanto mais que o terreno não as disiÍIIf!.l te" 17. 1\ maurola,
onde ele se deteve por muito tempo, pode vob wr legitimamente
o nde é difícil passa r canalizaçõe:;H: a ausência de fosso (sub::.ti-
(uído pelo Anidro) num dos lados da m uralh<i ; o <tfas ra me111o
dessa do q uatlrado perfeito que é, sem dúvida, a forma modelar
ln. Amaurota é " quase quadrada" (D., p. 61). Essa figura fere qua·
r/,·aia CS., p. 116) suscitou inúmeras interpretações, entre a!> qw'll~ R de
11. No Crft1ns. Plnli.io fornece à Atlântida um relevo montanhoso L. !,[at·in para quem esse quadrado, que não o li, a~iuala pre<.:i~amtmte
cu111 !'X<'t'çao ele uma va~ta plantei e c:osLP.i ra onde se estabeleceu a capital, n utopia Pod..: se também ler o "quase quadrado" como um e:npréstimo
hron próx im;t do mar <ll3a). Quando. no T1meu. Sócrates anuncm " ~~ descrição da Jerusalém celeste por São João: "a cidade era quadran·
l.:rítins ,. o mrlo da Atlãntid<>, evoca os anais egip<.:iu::; qu~. muito mal; guiar: seu com11rimento era ir,uol à sua largura ·• I Apncolipse, 21·16). O
antigos que os dos gregos, conservaram o testemunho da preeminént:ia quase marcaria ent~o a inferioridade do status ontológico de Utopia
c da asC'P.ndência helênica das nações consideradas ot·iginuis, tal como o em relação ao da Cidade de Deus. Uma explicação mais prosa tm dessa
Egito: da mesma forma, os anais ut.opianos conservam o relato de :m· onlomnlia, pelas dificulddes que oferece, purn n constt1tçào, l llll terreno
ligo contato com o velho mnndo, de o:-~de seria originária o. Utopia C23bc). inclinado, nos parece igualmente possível.
Se n f<>rma da. capital dos Atlantes é muito diferente da de Amaurot.a, t(i. cr., p::tl·ti~n lnrmP.nte, o testemnnho rJ:t!; nntns l11ll ll~lmlls etc l•:ras·
seu núcleo inicial e insular, isolado por três fossos de ri.gua, é real· mo na cdiçãt> de Basiléia (1518): ",1rtyc/Ti /ltuuiui <lc~<'rt/llill. i<lcm fil
mcnt.P o fruto de um trabalho violento operado sobre a natureza pelo apurl Anglos in Flumini Thamysi" (corrcspond\'111<' t'l <i•·•w n•;ttu <k• fii!Xv
fundador Atlas ( 113 d); Cf. infra, p. 1!!5. c refluxo que percorre o Anidro); c a pt·opd:;itiJ tia p~tnl• · : " /11 /Jt1t' /,,m ·
12. Cf. G. RITTER, The COITUpttng ln/luence O/ Power, trad. K. W. c/imtm cum Amaurot o conve7lil". Mas tnmbt•lll lt\1 Allf\ tt litl!t 11 <·upllal so
R.iclt, Egsex, Hadleigh , 1952, e R. GERBER, "The E nglish Island Myth: romnnica com o mar por um canal. Platüu tlt ·~··••· Vt' mlmwlusanmme o
l ~pm: u ·k s on the Englishness of Utopion Piction", Critical Quarterly l si~t~ma complexo de canais circulares ele 1111\1 1!"~'11 11 ,. clc: <:;tl!ais de ini·
t 1!1511. <"i l:u~O!; por· Sturtz. As dimensões de Utopia são, em particular, gaçúo que a cax·ncterizam. Ao mesmo lcrnpo <lon· ,. ·:tt l ~ada, como o Rio
us qtu• 1' r:Pot:;rafia da época atribula à Inglaterra. Anidro, a água, de presença obsodanle, <II'M'111Jil'11ha na Atlântida um
:r. n .. Jl . 59. duplo papel de meio de separ:Jçiio tft•tto l"''" d•·us l c de comunicação
1~. J .':<~• ·r.
delnlhes traem o interesse de Morus pelas olJra::; hldráu· lfeito pelos humanos que forçam o ncC'sso ao rna r u lunç~m pontes sobre
Jiew; <' tt ''"l'"t'if•llcin direta. que delas tinha enqunnto magistrado da os ~:anais cir<.:u la res) . Sobre o perigo du mar como per1go de perdn de
cichtcl•• <Ir• 1""'11'"'· tcssas passagens técnicas são ns únicas que se pres· si na exterioridade, cf. Leis, Li vt'O LV. 705 u.
turn 11 111 1111 H ltt'Clxl mn~·ito com o livro de A!berti. De fato. Morus se vê 17. D., p . 61. "Urbi um q11i 1mmn mmt, nmnes no1writ, üa sunt. inter
nqul, COlltt1 o mrlor clu De 1·e aedificatoria, às voltas com um problema se tquatenus locl natura non obstar! c.mmtno ~ imil!:'s" (S., p. 116). (0
de invt•r,çiio. ''"l'''nclmclo pelo cruzamento de uma demando (higiene, grifo é nosso.] A tradução literal seria: "até onde a natureza do terreno
segurançu. conrurtul e de uma situação (área, regiãoJ. niro se IhB oponha" .
156 A REGRA E O MODELO UTOPIA OU A TRAVESSIA DO ESPELHO 157

considerada e tratada por Raphael como o espaço-modelo da cJ- janelas envidraçadas ca racterizam a célula fundamental Lle Uto-
dade de Utopial8. pta. Por outro lado, as portas facilmente abríveis22 dessa mesma
(;asa demonstram o antiin dividualismo, a recttsa da propriedade
privada e a aversão ao secreto: a Utopia não comporta locais es-
1 . 2. Um Dispositivo Universalizável wuuido~. luuo nela ocorre às claras. Por sua vez, a casa rural,
di$seminada nos campos, é a sede das milícias agrfcolas que asse-
Os elementos constitutivos do modelo urbano resultam de guram o consumo alimentar da ilha e cujos membros são tem-
uma escolha racional. Foram selecionados e organizados de molde porariamente agrupados em grandes "famílias" artificiais, inde-
a corresporcder às instituições-chave de Utopia. Cada um deles po.:ndentes das comunidades ur banas.
está ligado, univocamente, a uma prática social essencial c"ujo Os diversos elementos urbanos, por sua vez, estão dispostos
funcionamento ele condiciona, ao mesmo tempo que a revela di- numa organização que corresponde à mesma seleção funcional.
retamente aos leitores como aos habitantes de Utopia. Em primeiro lugar, a cidade se divide em " quatro setores
As altas e largas muralhas flanqueadéls de torres c de fortes, iguais"23. Divisão de valor político: cada "quarteirão" escolhe,
que cingem Amam·ota, garantem o status quo demográfico da com efeito, um representante ao Senado a quem cabe escolher
cidade, q ue jamais deve ter mais de seis mil famíliélsl9 numa su- o príncipe entre os eleitos. Com exceção da passagem sobre a
pt:rfície máx ima de vinte mil passos20; guardam Amaurota do localização da "sifograntia"2'i n~ r ua-padrão, é essa a única in-
mundo exterior, afirmando sua identidade e con-oborando essa dicação do livro sobre os locais do político em Utopia. Raphael
vocação de interioridade e de autopresença que a transforma co- enumera org~nismos complexos: um senado, um conselho do prín-
mo que no habitáculo de "uma única família"21 , As ruas (de dpe, assembléias do povo (comitia), "sifogra ntes1' e "tranibores".
vinte pés) flanqueadas com duas filei ra s contínuas de casas per- Não é descrito nenhum espaço como sede desses grupos.
mitem a distribuição regular, entre duas séries de quinze casas Essa estranheza já observada por E. Sturtz, mas sem comen-
de moradia, dos alojamentos dos fi/arcas que formam uma das tários, recebeu de L. Marin uma explicação que a transforma
engrenagens políticas, administrativas e morais da cidade, ao numa das ped~H angulares do (uncionamento textual da Utopia .
passo que os jardins comuns, situados atrás das casas, represen- Para ele é fundamental que a rede dos espaços político-adminis-
tam o instrumento hucólico da supressão da propriedade privada trativos se eclipse em proveit o da rede do espaço econômico . O
e servem ao lazer favorito da sociedade utopiana, a jardinagem. branco, que cobre os locais políticos no mapa de Utopia, marca
Quanto à casa de morada padrão, que se troca a cada dez precisamente o lugar, vazio, de um nó de conceitos então infor-
anos , corrcsponde à importância do papel atribuído à família : muláveis25, Sem contestar essa interpretação, pode-se todavia ob-
três andn res, paredes de tijolo ou de ped!'a, um teto-terraço e servar que a representação dos locais de assembléia em Amaurota
se tornou particularmente difícil, porque o duplo sistema das ins-

19. O fato de ser Amo.urota a capital (" prima, princepsque Tzabetur", 22. Ao contrário da das muralhas, a função das portas das casas é
D., p. 59) não muda as suas determinações. Existe aí umo. certa difi- imediatamente indicada: "Elas se abrem com um empurrão e se fe cham
culdade que Morus ignora deliberadamente. Cf. infra, p . 158. Amaul·ota do mesmo modo, deixando entrar o primeiro que chega. N a da existe
é descrit.a como Cidade-Estado, idêntica a cinqüenta e três outras, e não Já que constitua um domínio privado Ctta n•lhü 1tsquam privati est l"
enquanto sede de sua conledei·ação que posBui, por issu, funções (e espa- <D., p. 63; S., p . 120).
ços) específicas. 23. "CiviW.s omnis in quatuor aeguales partes clividitm·" (S., p. 136) .
19. Das quais nenhuma deve ter "menos de dez ou mais de d ezesseis 24. Habitação do sifogra nte, magis trado q uo rtdmhristnl trinta fa·
membros": "Essas normas sãc facilmente observadas graças à passagem milias e encarregado de r epresentá-Jus nas as!':omh l ó ln ~ po lll icns.
para uma família pouquíssim o numerosa dos membros que estão exce- 25. "Os locais de deliberação e de dc cJsilo p oJ(tJcnH silo a pagados
dentes em outra. Se, no conjunto. uma cidade tem gente demais, o exces· ou ocultados pelo jogo das r edes espaciais ela c idt1tlo f . . . I A u topia execu·
~o vai compensar a déficit em outra" <D., p. 74). A idéia do mtmerus tiva repr esenta e resume (em ncnhum11 p:u t o) 11 uiJiqll lrlatlc representa·
cltw.,·us Morus foi buscar em Platão e so impõe a comparação com us tiva (em .toda a parte ). O príncipe esLú om nouhUil lll par te como a elei-
fl l t~III'I Hnr n~ aniantados nas Le1s, onde a organização do espaço é decor- çfw popular está em tod::t a parte r ... 1 F:Rsa cmlola Cle delegações pela
rOndu tio número de 5040 chefes de família adotado para a cidade consi· qual o povo utopiano exprime s eu poclur 11rw c;ncontra condições d e se
dom<111 1'1:17 c ). inscrever no espaço referido pe lo r.liNCili'S O, :;c bem que se desenvolva
?.n. No quo diz respeito ao modelo territorial, a distância mais c se explique no discurso ccns Lil.n('JOn rtl tia Utopia, isto é, no discurso
cmttt ont.r·cr l\N r:inqi.ie nta e quatro cidades é 2<1 milhas (D., p. 58). constitutivo d a própria Utopilt t .. . 1 Presente no discurso, ausente do
~1. "1/.tt /Oltt i11.,ula velut una familia est" (S., p. 148). A função mapa ou do espaço referido p elo cliscurso, o político, por essa ausência
das mur11llru ~ Hrl 1\ <'vocada bem depois de sua desc:riçãu, primeiramenLe m es1w1, designa o processo cconOm ico que, indicado no mapa, no espaço
quando Mol'l rn h1<llcn os meios (trocas entre cidades e colonato) de man- r eferido, suporta o sentido dl: o rt~un!~.açfw política, embora se desenvol-
ter const.anlo o ntlmcl'O elas famílias, depois na seqüência sobre as vendo independentemente deln no d iscurso utópico" <op, cit., p. 169,
viagens. 17(), 171)
158 A REGRA E O MODELO UTOPIA. OU A 'l'RAVESSIA 00 ESPELHO 15(1

27
tituições políticas constitui o único e exclusivo traço pelo qual \.'1 11 toda a parte. Situação inversa da descrita por Maqtúavel :
esta cidade não pode ser considerada protótipo. Possuindo ao :1 personalidade do príncipe ou dos homens "político~" niio coma,
mesmo tempo a organização de todas as outras cidades e, além \.'~~cs não podem nem entrar em conflito com o povo, nem sobrc-
disso, sendo ela a capital de uma confederação, era totalmente tuôo iu veu lar nada. Pude-se ~unsillerar sua alividuôe cumo um
lógico que ela devesse possuir dois senados. Esse duplo estatuto ~ upiemento; uma última garantia. Proporcionam ao funcionamen-
perturbou Morus até em sua descrição das instituições, que passa to tias instituições um atm1enro de garantia tão pouco significa-
constantemente, e sem qualquer meução ao leitor, dos mecanis- I ivo, que Morus não achou ncccssãrio alojá-lo num espaço cspe-
inos locai~ aos mecanismos confederativos2G. Pode-se também se o.:il'ico; a ausência desse e~pm;o do político na descrição de Ra-
perguntar se o político está realmente "presente no discurso" de phad pode muito b~m não ser interpretada como um at.o fa lho211.
Morus-Raphael. De faro, excetuando-se o que diz respeito às · re- Outro "branco" elo espaço-modelo de Utopia não deixará
l ações exteriores, o papel das numerosas instâncias " políticas" do.: su rpieender. Como em Platão, c em consonância com pr~::ocupa­
da Utopia se reduz ao controle de um funcionamento preestabe- çõ~:s que Morus partilha com seu amigo Jean Colet29, a educação
lecido. De f ato, é o costume q ue regula as atividades econômicas, constitui uma peça essencial de Utupia onde me~mo u ~dulto. é
morai s e religiosas dos utopianos, de maneira implícita e graças submetido a verdadeira " formação pennancnte"30. OrR, mencro-
H um quadro construído imut8vel, cuja força de coerção substi- nadas uma vez apenas31, as escolas relativas às diferentes cate-
tuiu a da lei escrita e do poder executivo. Príndpt::, tranibores, ~orias de discentes, crianças, jovens, fumros letrados e o.dultos
conselheiros e deputados diversos substituem o povo utopiano, diversos, não recebem nem localização específica, nem loca1s par-
cujo consenso não l'em que se inscrever em nenhuma parte em ticulares. Podt:Ne-ia explicar essa falha pelo fato de que, para
particular, na mesma medida em que é chamado a se manifestar \llorus, a atividade pedagógica se funde nas práticas doméstica e
rcligiosa3a.
A essa ausência de redes espaciais política e educativa se
26. O papel privilegiado de Am:tmota no sistema confederativo de
Utopia é assinalado por Raphael, desde o início, ao mesmo tempo que o.:omrapõe a presença minuciosa das redes domGstica, econômica
sua posição privi legiada "no umbigo da ilha": c!. supra, p. 154. Raphael ,_. religiosa que organizam o quarteirão.
indica que os deputados das outras cidades se reúnem a cada ano ~m A primeira e a segunda estão ligadas c estrutu radas por
Amaurota, mas nada diz então sobre o loco.! de reunião de que ele .:k:mentos complementares: os ruas padronizada s c dois merca-
trata muito mais tarde, no capít u lo sobre as viagens, a propósito da
instância responsável pela distribuição dos bens de consumo, em caso dus que, implantados no centro de cada quarteirüo33, são o local
de penúria (0., p. 82). No intervalo entre essas duas passagens, as tht distribuicão, sem numerário, das mercadoria~. Num dos mer-
instituições polilicas de Amaurota se parecem com as da cidade típica. c<~ôos são "armazenados e classificados os objetos arresanais
Todavia, subsistem probl emas . Quando Raphael indica: "os duzentos produzidos na cidade pelas famílias; no outro, os gêneros alimen-
s ifogrontcs finahncutc, depois de havemm jurado fazer sua escolha do
1icios produzidos no campo pelas milícias agrícolas. Se as casas
lllnis cnprw. (quem maxime censenl rLlilem) , elegem o plincipe Cprinci-
}Jirnn 1111111n) em sufrágio sC<.;I'c Lo de uma lista de quatro nomes designa- urbanas e as grandes casas rurais são as células de produção,
ri o~ pP.:o povo. Cada um dos quarteirões da cidade propõe um nome à us dois mercados são os espaços necessários da distribuiçfío, do~
escolha do senado" (idem, p . 65), podemos nos perguntar: 1. o que acon· bens de consumo, regulada tão-somente pelo jogo da justa neces-
Lece com os •r~ outros eleitos e se não corresponderiam aos eleitos
enviados ao senado confederal.ivo, embora essa delegação seja anual e 27. Cf. lnira, P- 189.
a eleição do príncipe por toda a vida; 2. de quem e como é constituldo 28. Cf. igualmente nossa próprin. intet·prctar;no i n r 'nliiJlle, op. ci.t
o senado, acer.:-a do qual não é dito em parte alguma que seja composto 29. Que aplica seus princlplos na csculfl tlc flal nL J 'a ui rm Londres.
!>elos tran!bores como o entende Sturtz (op. cit., comentário da linha 27, ( ' f. E. GARIN, L'Education de l 'homme morlcnw, Pnrls , l•'ayard, 1968.
p. 122) : "Twenly two trantbores constitute the senate proper. In i ts legis- ~O. Cf. especialmente O., p. 68: "A cndtt d irt, \'11111 l'fl' ilu , anln.-; accs·
lative and judicial functions it ressemules the Roman senate". Por outro sívois a todos ocorrem antes do inicio elo dia. Ma ~ . nt' I IIIHiu~ <lo lodas as
lado, esse senado nã o é mais constituído por sifogmntes, se bem que profissões, homens e mulheres n c l ~<.: tt f ll ll'lll ll vn ·llll 'llil'". .
nsteja especificado (0., p. 65) que "dois sifograntcs são convocados por 31. "Todos aorendem [a a~.:rlcu l l.uml j r\ 1111 ll1l'nrw la por me10 de
p ur turno a cada sessão do senado (semper in senatur duo adciscunt)". l'llSinO dadO 113 eSCOla e da práliCil , 110.~ I' :0111jl'OI-l Vl1,1'1 IIIS U<l Cidade para
O ('Oilsvlho do príncipe seria antes composto pel'lS tranibores. Com efeito onde os alunos são conduzido:; h 1:11ltu !I•· n ·<·n·•u,:tlo" (0 ., p . 66) .
l~ltplu \l' l ··~pccifica (0. , p. 124) que "os tranibores tem uma conferência C'. Fourier não esquecen' cslu <ohst'''""'·"" ·
com n ildnc:ipc (in consilium principe veniunt) a cada três dias e mais :l ~. "As c•·in.nçns c! os nrlolt'':c·<•rlll''' l'l'l 'l'h(! m Idos sacerdotes] sua
l'r(:qllulll l' llil'lli.l• se for nece ~sário". [0 grifo ó nosso.] o temor de um pl'itnci ra instrução" (D.. p. l'llll .
conlu io <'1111'0 pnncipe e tranihores ("conjuratione principis ac tranibo- 3:3. "0 centro fde cada q unrll'l mnl ,. ocupdao por um mercado
1'11111" ) o·xpn" :;tt o·n1 D., p. 6b, tem o mesmo sentido. Note-se enfim que """c os objcws confcccionado:l c·n1 "arlot hu· süo levados c distribuídos
o SCI)ndo '''"' ' ''d('l'ntivo é designado incidentalmente, na seqüência sobre pu1· Psp~r iP.s em IOjliS" ( D .. p 'l~l . l ~tq1 11aol acrescen ta, na página se·
os magt.~l.r'II(I On. ''"""' conselho: "Ocorre que o problema seja submetido 1:ulnlc: " Aos mcrcaclus de q 11u ll<'llht• Llu Calar acresl:entam-~e c~ntros ~e
ao con:;el/w t;c·rnl 11:1 ilha (ab totius msulae consiliuml" (O .. p. 65) . :ohnsl<'dmcnto <f ora cibarin ) pnm onde são levados lcgum.:s, frutas, ~ao
10 grifO 6 IIOS.,().] ' · 1:nnbém peixes [ . . . 1 ov0s o quuclrúpedes"
160 A REGRA E O MODELO UTOPIA OU A TRAVESSIA DO ESPELHO l Sl

sidade e das decisões senatoriais. O processo do consumo alimen- l h primeiros, geridos por escravos, desse modo não poderão
tar se realiza na sala de jantar dos sifograntes. Provido de uma ·.ujar a cidade com suas exalações malsãs ou com o espetáculo
cozinha coletiva, esse espaço onde a~ refeições são tomadas em •1,· ~ungue e violência. Quanto aos segundos, em número de qua-
comum e onde se desenvolvem os Jazeres coletivos de inverno l1'\1, <.:arresponden tes aos quatro quarteirões, na meuida em que
desempenha papel essencial na formação da comunidade utopia- ·.,· des tinam a assistir os habitantes na doença e são ao mesmo
na. Aos efeitos de um Mit-sein acrescenta-se o da disposição das ft·tn po o espaço obrigatório da morte, correspondem às mesmas
mesas, q ue revela imediatamente a todos os participantes34 a r: rr.ôcs de higiene e à mesma preocupação de conjurar, subtrain-
hierarquia dos sexos e das idades e a organização social de ' lu-a ao olhar, a violência, perigo supremo, cuja última manífes-
Utopia. la\·iio continua sendo a morte, mesmo a mais serena40.
A rede de espaços religiosos se apresenta sob o duplo ponto Dispositivo topogrãfico cotado, o modelo espacial utópico,
de vista da implantação dos templos na cidade e de sua orga- q11.: possibilita colocar cada um em seu lugar próprio, pode sem
nizayãu interna. Embora Raphael não o preci~e explicitamen le, 1 ~·~lrições ser aplicado ao campo inteiro das atividades humanas.

o quarteirão é de nove aqui o quadro de distribuição dos tem- N~:s~c sentido, sua J e:; tínação G ti:ío universal quanto a das regras
plos. bn número de treze, estes são regidos por treze pontífices, nlbcrtianas, mesmo que sirva para controlar comportamentos pre-
sujeitos à autoridade de um deles, cuja sede, é fácil imnginnr, ··isos e não para acolher programas novos e inovadores e engen-
se situa no centro da cidade35, Os outros santuários seriam então dr:lr condutas imprevisíveis.
C:istrihuídos à razão de três por quarteirão36_ Ko que se refere
à arquitetura, Rapbael indica somente que são vastos e pouco
iluminados, a fim de facilitar o recolhimento. Qunnto à disposi- I . 3. Modelo e Eternidade
ção interna do templo-modelo, em frente do altar e da zona re-
servada ao sa:.:enlole, ela uelerrnina para cat.la utopiano um lugar Todavia - e reside aí, em compensação, uma limitação
específico, tal como nll sala de jantar, de acordo com sua posição fundamental - , enquanto a regra albertiana é uma operação que,
na célula famíl ia! e na filarquia. De:;sa maneira, aos olhos dos fiéis, idl:nlica a si mesma no curso do tempo, engendra, ao sabot· das
ela associa o espetáculo do culro37 e a imagem da organização o·ircunstâncias e dos dest:jos, espaços indefin idamente diferentes,
social. Portanto, o es;Paço religioso não é nem unifuncional, nem u modelo de Morus, espaço-modelo e modelo de espaço . está
verdadeiramente independente cios outros espaços. Sea nfvel de ,·on d en~do para sempre à duplicação.
elaboração testemunha o papel fundamental que a religião re- À primeira vista, no entanto, o relato de Raphael deixaria
presenta na Utopia, papel sublinhado com justeza por T. Hex- pt·nsar que a cidade·modelo e a casa t ípica de Utopia sofreram
te r~1K. c a que gera lmente a amb igüidade da religião utopiana c tr:tnsformações desde o tempo em que, segundo o testemunho
as lrovas de Raphael. sobre a tolerância deram pouca impor- oloN anuis utopianos, foram concebidas por Utopo. Não indica
tâ ncia.
l{:lphael, com efeito, que Utopo "deixou a seus sucessores o or-
Para fora dos muros da cidade29, numa extet·ioridade cono- 11:110 (orn.atum) e o acabamento (coeterumque cultum41) de Amau-
tada pela impureza, são relegados os abatedouros e os hospitais. ro tn? Não contrapõe ele à humilde cabana (aedes humiles)42 dos
34. "No lugar de honra, no meio da prirr:eira mesa, colocada per- primórdios (initio) a casa-padrão de agora (at hodie), dn qual
pendicularmente às outras duas, e bem à vista, senta-se o sifogrante com mlmira as janelas enviuraçauas c o lclo-L~.:rnrw n.:finado? Não
sua mt..:lher" (D., p. 79). O texto latino é mais vigoroso: "In medio primae
mensae qui summus locus est et qui {nam ea mensa suprema in parte t·quivale a dizer claramente que as criações de Ulopo estão su-
coenacult transversa est) totus conventus conspicitur, syphoçrantes cum jo.;ilas ao devir? Na realidade, não é nuda disso. Desde que, to-
~u:ore ::onsidet". (S., p. 142). [0 grifo é nosso. ] davia, se dê um conteúdo cspcdfiw~ i'l ttu.,:iio d~.: m1ruança. Mas,
35. Nossa ir.terpretação parece confirmada pela disposição da rede
11 o.:slc respeito, o discurso de R:1phao.:l 11 11(1 nprcsenta qualquer
religiosa de Smapia cujo autor fizera uma leitura a tenta de Morus, como
o prc vam m: merosa~ "citações "(cf. infra, cap. 4, p. 2~5 e r..> . <l'nbigüidadc.
:lu. Ol<tra indicação sobre a localização dos templos quP. se pode Utopo legou aos ulopi nllns o pl11110 w mplt:to da cidade:
h11nr,-inar inLcgrados no tecido das ruas é unicamen~ a menção feita nos "/()/am hanc urbis f iguram " 1: 1• À s go.: ruc,: u.:s ulteriores ele deixou
pontf!lco~ o H\11\S mulheres que podem substituir os dois anciãos desig-
nados pam lndoat· o si fo:;~ante e sua mulher à mesa, ::10 C:lSO em que np.:nus tarefas sccundnrius, in cs:.;c n~.;i:l is, cpifenomennis: o ves-
" temJllnm lrt•·rt SJJ)JIW(Jrr.ntUJ. situm est" (D., p. 142).
37. cr. tnrru, 11 . JGJ. 10. Cf. a maneiro como r~~ C'tll'll!lslor " esquece" os hospitais e os
3a. CC lu!m, p. 173. o·tuniLôrios em seu projolo d u I.Jt V lllc radleuse CA Cidade Radiosa)
39. "Extra w·Vew '', no caso dos matadouros, e "em tomo de cada n. n., p. 64.
cidade, um pouco t\lótn elos muros (in ambitu cinitatis paulo extra mu- 12. D., p . 120.
ros)" no caso dos hospitais \D., p. 76) . IJ:l. Ibid.
\
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152 A R!!;G.H.A 1!:: 0 MODEW UTOP!A OU 1\ TRAVESSIA DO E SPELHO i63

tir44 • a decoração, a melhoria do C0!1for!c, tE refas para as qu::.:.i,, truído. Em contraponto com a emoção musical, e!t: se situa
não lhe restava lllzer. Estas ~ntervençóes não podem modifü.:ar durunl~:: a cdebraç&o do cu\Lo, quando os fiéis contemplam os
em nada a estrutura da cidade ou da casa. Apenas contribuem NtH.:crdotes vestidos com seus mantos de pena "compostos com
para facilita= e melhorar, particularmente através de mais con- lunla habilidade e refinamento que nenhuma substância poderia
forto, o funcionamento do dispositivo original e imu táve l inv~n­ iguular a riqueza de tal obra"46, Mas, aqui também, a beleza, fruto
tado por Utu:;m. Nu plano ctc mundo construído e dos compor- da cngenhosidade humana, uão J:.H:tssa úe um refinê:lmentu ~u perfi­
tamentos que ele condiciona, elas náo suscitam ma is mudança cinl, que não muda a função dos mantos sa<.:erdotais; esses se
verdadeira gt:e as intervenções da príncipe e dos sifograntcs no d ~stinam a transmitir aos fiéis uma mensagem divina da qual
plano político . . Importa npenns o conteúdo c uão a graça dos símbolos de pena
O concó o de e~paço-mod elo é solidário de uma concep- que ser vem para tnlllscrcvê-la.
ção da histórífl e do trabalho apoiada por um sistema d~ vaiares. A:;sím, sob a p~lícula do trabalho utopiano, o espaço-objeto-
Se a estrutura exem plar elaborada por Utopo se revel::\ inalte- humano permanece 1mudado, fixo e fixado. Paradoxalmente. sua
nível, é que em Utopia o trabaH:o dos humano~ não tem papd cll!rniàade material é assegurncln com poucos custos :)01' um~ ati-
cri ador; aflo ra, sc:m feri-la, a superfície das coisas estabelecidas. vidade temporal dos utopianos. Reparações contínuâs . iniciadas
Em oulros termns, o riesejo e mesmo a demanda dos utopianos lüo logo surja a menor f<~lha nus edifícios ou nas vias de circul a-
não pod~ ri am se sobrepor ao m:)delo de Utopo. Este, subtraído ~·uo, permitem mantê-los indefinidamente idênticos a si mes-
à ação do tempo, nad a tem a ver com a commoditas albertiana mos. A finalidade das reparações descritas na Utopia niío deve
que, ao mesmo tempo, s~ desenvo!ve nu lem?O e somente pede Sl!l' confundida com c.quela que inspira o primeiro capítulo do
fazê-lu graça' a um rliálogo. A comodidade, em Utopia, se des- Li vro X do De re aedificatoria. Uma mesmu preocupação com
dobra em duas formas ilusórias: uma, im posta ao modelo por \.:cunomia17 apa rece de _fato nos dois livros: uma reparação no
Utopo, lhe é inerente c depende, pois , da ordem da necessid2de; IHOmet~to certo p~d; .evitar demolição e reconstrução . .\1as, para
a outra, acresce:1tada pelos ulopicmus, ~ ~·edund ante, sem reali- 1\lbcrll, certos edthcws devem ser conservados como as marcas
dade com respei1o ll esta comodidade contingente e essencial à du uma história em permanente devir. A incessanle inve~tida do
qual é ded icada a segunda parte do De •·e aedij icator!a. \.:S paço pela edifical,(ãu não pode prosseguir sem umn mcmó~·ia,
O mesmo raciccínio vale pa ra a beieza; suplemento in~s­ sem qu e sejam preservados vestígios construídos de um passado
sencial e inofensivo, podendo ser inrn.;duzido n8 curso do ..: de um presente a continuar. Em Utopia, onde ac conlriirio
processo de d L1plicaç8o do modelo, mas que niio lhe modifica a " raramente ocone que se escolha um novo local 1~ara nele cons~
natUI':'ZH. nem o runcionamenlo. Tcsremunh:::m-no o laconismo lruir" 48, a reparação atinge a totalidade elo quadro construído; é
..: a imprecisão das descri ções de Morus nas duas únicas passll- Í11dispensável para manter a integridace de um objeto-modelo, que
sun~cnt~ ftlllClOI~a a esse preço. Para Morus, a reparação não
gc!~ ::; clu U !Ofli<l em que é evocdcl a a quaiidade est6Lica du espaço
çonslruídu. Num caso, ~fie os jl-lrd ins, e Raphael se limita a indi- csla J?O! s a serv1ço de uma rememornçiio, mns de umél repetição:
cm que não conhece " nada mais elegante"; no outro, ele obser- I'O petJçao déis ccndutas-modc]o sob a ação elo estímulo, elerml-
va que os santuários silo "admL:áveis, de construção magní-
lllcntc presente, que é o espaço-modelo integral.
fica"45. O importante, no entanto, não é a beleza do templo, 1.4. O Pharmakon
nem o prazer que esta construção pode oferecer, mas a sua
l ocal i7.F~Çiío n:=~ cid2de e a forma como seu espaço interior obriga Quando se p~ ssam em rcv i~ li l os lllCIOS que permitem a
a praticar a re ligião e recorda aos participantes, por :.u na visão L'>SU disposilivo anula~ os cfcilus du l~.: rnpu e t\ôll'll ll lir, p..:lo condi-
imediata, a organização sodal de Utopia. De fato, o (mico L'k>namento dos usuarios, " rupwd uc,: iíu das pr(tl i<.:<~S sociais,
grande momento estético n ão se rela:.:iona com o domínio cons- ln1püe-se o comraste com os proccdi nu.: nlos n l h ~ 1·1i :JnUs ele: con-
L'~ p çiio e de engcndramcnto do ~.:spn t;u L'L•llslrufdo.
11. Atualme nte, esse mesm o papel de "•Jestitlor" é o único cue a O modelo de espaço ul ópko é lulhudu num COlltinuum
mi m inl::lmçno francesa reconhece ao arq uiteto nus decretos cunhados l'·lllrópico c homogêneo, q u ~.: ~.: 1\d u i tlu p lu m~o:nlc a diierendaçãu
pel" "' 'il'" (J il ~ organizaram a chnm&da política "dos modelos" em <nn- l' fii'II C t~ rística elos csplll,:u:; lu.:IL'nll l'l.lpiew;. Como vimos, ele igno-
w af tll' t: t.. "'' ~l l"! ""' on l;o social. Cf. Logemen.t social et Modélisation, dtado
11fl !1. f,,{ , ( ll)l . ( 16. D., p. 14!i.
'1?. lJ .. Jl . 11 ~. K l>l.url.z esclnrP.Ce a passagem com uma observação ~7 . E. SLultz indieu CJlll' o fl 'lllll rio ctr.sperd!cio na construção já se
?c .\i csp i t!'io ( (.l tlftrlt • Vwgc m) sobre a ausência de templos entre os l tllr·onLra no Progym nasmala, t·:w l'litl nntcs de Utopia, e que é r etornado
mdws bt'<tn•·n " " ' "·Jllll;t' que paro o viajante corresponde a tun branco ,,u l'nixão (op. ci t .. p. 411, 11. 1:1:n.
~ n . D .• p . 72 ( "'mrlssimc acdall 11ti t..lJva collocan~IIS a!>!l !lms ar ea
dran:átlco nas 1 11 . :1 11 11 1 ~·o!'~. Sl.n 1·~ remete igualmente ao diálogo de
Morus, Con ('C/' :1!11 (! Jl• •t r'"''S. t/t•ll(lrtlur" , S., p. 132)
\
161 á REGRA E O MODELO UTOPIA OU A TRAVESSIA DO ESPELiiO ){ifi

ra a particularidade das paisagens naturais que Alberti, ao con- superior à palavra51. Depois de Platão, ele desvaloriza o escrito.
trário, tivera como regra respeitar e reconhecer. Não mais admi- meio de transmissão do saber mecânico e frágil, COlii::J o teste-
tindo a particularidade das demandas individuais, ele recusa o munham o episódio derrisório do macaco52 e o comentário sobre
lugar em proveito do protótipo. Oriundo do universo plano do o destino do livro em Utopia53. Quanto à escrita em três dimen-
desenho geométrico, o modelo - que é. também um plano cotado sões, que é a edificação, apresenta no livro de Morus a mesma
- pode ser transposto para toda a parte, para o campo inteiro duplicidade fu ndamental que a escrita gráfica p ara Platão.
do espaço natural. É isso de fato o que significa a fórmula Antes da criação da república-modelo e fora de Utopia, aparece
segundo a qual os utopianos "em toda a partt: estão em ~:a::;a". efetivamente sob sua face maléfica, como um veneno insidioso
Por outro lado, esse modelo é limitado em suas possibili- de que se deve desconfia r. Em Utopia, ao contrário, ela desven-
dades de extensão. Amaurota cercada de muralhas que a impe- da sua face benéfica de remédio. O modelo espacial é o instru-
dirão de desenvolver-se, a política das reparações que eliminam mento jamais neutro, de um poder extraordinário, que n ão só
as novas construções, a nudez dos campos testemunham um garante o status quo eterno das instituições, como também permi-
mesmo malthusianismo: a investida sistemática e indefinida do tiu, e somente ele, quando de sua concepção por Utopo, a passa-
espaço natural pelo construir tornou-se impossível, deteve-se a gem de um estado social negativo a um estado positivo, a trans-
disseminação do mundo edificado o que o De re aedificatoria formação de uma sociedade pervertida em sociedade virtuosa que
elogia e encoraja. tem o nome de Utopia.
Enfim, o espaço-modelo se despoja de toda opacidade.
Paredes transparentes, aberturas sem portas, protótipos sem 2. ESTAGIO DO ESPELHO E ESTAGIO DA UTOPlA
mistério49 mostram-no ao olhar, imediatamente e sem resistên-
cia: para sua apropriação não há qualquer necessidade dos per- Entre os traços da definição provisória da utopia, dada no
cursos e das travessias que se realizam somente no tempo e Cap. 1, até agora enfatizei essencialmente o quinto, isto é, a
com a participação do corpo inteiro. existência de um instrumento, um espaço-modelo, parte integran-
O espaço-modelo de Utopia parece, pois, a certos respei- te e necessária de uma socicdade-modelo54. Cumpre agora estu-
tos , um antiespaço, próprio para impedir o desenvolvimento de dar as relações que esse instrumento mantém com os uutros
uma espacialização que, aos olhos de Utopo, é a conseqüência li'DÇOS, e particularmente com a crítica que o engendrou (traço 4).
direta de comportamentos mentais e práticas sociais condená- A expressão " crítica modelizadora" fala da relação que liga,
veis. A atitude de Morus-Utopo para com o construído testemu- lermo a termo, it sociedade real criticada p elo autor e a socie-
nha, assim, urna ambivalência que evoca a de Platão acerca da dade imaginária ideal que apresenta a seus leitores. A crílica ele
escrita e não deixa de ser esclarecida por ela. Morus não é apenas contestadora; não tem significação em si,
Com efeito, lembramo-nos de que, no mito do Fedro, o filó- mas como matriz de um modelo social. A cada um dos defeitos
8ofo grego apresenta a escrita como um pharmakon, remédio e inventariados por sua lente objetiva corrcspondc, como que rcflc·
vener:o ao mesmo tempo. J. Derrida50 comentou longamente tida por um espelho, uma qualidade inversa. Na Europa, e ma.is
esse duplo status. Tal como Teuth a oferece ao Rei Tamus, a precisamente na Inglaterra, reina um príncipe devo tado à arbi-
escrita é um remédio que permite p aliar a doença nativa dos lrDdedade, cercado de b ajuladores e de um conselho corrupto
homens. Ela sustém a memória e imobiliza o tempo. Mas tam- que o fazem tomar decisões imotivnclns: em Utopia, o príncipe é
bém - e é por isso que o rei (representante do pai dos deuses) assistido por. um conselho, t1m ~cn ado c umu us~c mbléia que con-
a recusa - seu espaçamento rigidifica e mediatiza inapelavel-
mente a palavra, rompe a interioridade do logos, sua presença 51. A música é a forma de Lran ::n1Ji:;~[to hlll:LIIIILII cltl mensagem re·
ligiosu: "Suu música exprime tão ficlmcnto o Holl l ill!onLo, tmdLtZ tão bem
plena c viva. ns coisas através dos sons - a ornçün , 11 ::üpl l(!ll, u 11lcgrin, a paz, a
Morus é fiel ao logocentrismo platônico. Ele também teme J)Orl:urbação, o luto, a cóter& - . o rn<,vlluunt.o clu moloclia corresponde
os Lbv ios, a exterioridade e o diferimento que o espaço como l.i\o bem aos pensamentos. que cnluva IIH H IJllltS dos ouvintes, penetra -a~
sign ifica nte impõe. At?.tes de Rousseau, ele vê na música um u us exalta com uma for ça incOJJ1pnrAvnl" (P., p. 146). ·
52. Durante r. quarta tnlYCSfl la do Hapila(;l, um macaco arrancou as
meio c.Jc ~:omunicação direto, incomparável à escrita e mesmo 1)1\r,inas do exemplar d e T(;ofrnsLo quo dovla servir oara transmitir aos
IILOpianos uma parte dn mnrliel n1t f(l 'I Wt (D., p. 105):
4H. D ., pp . lll ·ll2. E m Utopia, "nada da cabarés, nada da tabernas, 53. Os u topianos rcccbom m rlit J•:uropa a imprensa. que lhes s erviu
nada tio lilf:nros 1"11111.'1 L .. l nenhum antro", cada um está "sempre ex- pm·a mproduzir os livros cl(Lss lcn,q Lrar.lclos por Raphael, mas nunca para
posto aos o ll llll"<lH rio Lodos". ul'lm· uma ob ra original (cf. Jn fm, p . 171) . Também aqui evoca-se P latão
50. Cf. J. Ol•! rtRTDA, "La pha1macie de Platon" , in La Dissémina- u HlHt concepção da eseriLa ~:or no instrumento da mimesis.
tion, Paris, S CLIII. J!J'/2. G1. Cf. Cap. 1, p. 37.
166 A REGRA E O MODELO UTOPIA OU A TRAVESSIA DO ESPELHO 167

tro[am todas as suas decisões , que devem ser lono·amente amadu- Outra particularidade do texto poderia ainda levar a crer
recidas, conforme exige a lei. No plano religioso~ a Europa e n c1ue, :;em élpdar para a sua imaginação, Morus foi capaz de bus-
Inglaterra se caracterizam pela intolerância, pelas superstições, pe- car as instituições de sua Ctopia em sociedades reais, mr~s exó-
la suntuosidade da lilurgia, pelo cbro exclusi vament<:: masculino , liCIIS. Não estaria aí o sentido das descrições feitas por Rnphael,
celibatário, numeroso, ocioso, dotado de poderes temporais e do no ct~r~o do Livro I, de países estranhos ao Velho Mundo, que
qual uma parte se entrega à mendicidade, encuanto a outra vive dt: vtsttou antes de atracar em U topia? Senão, para que pode-
no luxo: em Utopia reina a tolerância; ignora--se a superstição, a riam ~ervir tais evoc.:Hções? No cmso dil s discussões do Livro T,
liturgia respeita a simplicidade bíblica, o~ padret;, ma!>çulinus ou R.aphael é levado a citar dois tipos de sociedades não-utópicas,
feminbos, são casados, pouco numerosos, ativos; ignoram o luxo mas longínquas, cujos t:ostumes e hmcionamento contrastam com
e são destituídos de poderes temporais, mas são responsáveis peJa os das sociedades contemporâneas do Velho MLmdo. São, de um
educação c desempenham papel importante na guC!Ta. Da mesma lado, as da Antiguidade, e particularmente Roma, cu jo sistema
forma, no plano jurídico, a Europa e a Inglaterra possuem leis de direito pena[5G ele recorda; de outro lado, ilS do Novo Mundo,
numerosas e complicndas; aplicam a pena de morte, fazem sucessivamente representadas pelos polileritas, pelos macários e
guerra sem cessar em desprezo dos tratados assinados, cot:hecem pelos acm-ianos. Foi possível interpretar as seqüências relativas
somente a propriedade privada, não exercem qualquer controle 11 esses povos como pequenas uto~ias57 preparatórias, ar.uncia·
sobre os casamentos, o que encoraja a licenciosidade e o divór- doras da granc.le utopia uo Livro II. Mas e~sa leitura desconhece
cio; em Utopia, ao con trário, poucas leis, compreensíveis a todos; a afirmação reiterada de Raphael, segundo a qua l Utopia é de
poucas guerras, sempre por motivos, e nada de tratados de paz; natur.e~a diferente~S, incomparável à de qualquer sociedade por
n ada de propriedade privada; controle dos casamentos sancões ele v~stt?~a, por tao boa que seja ela . Em compensação, parece-
contra a licenciosidade, divórcio excepcional. ' ~ me stgmbcattvo que os países dos polileritas, macários e élcoria-
nos t:,tej<lm colocados sob a invocação de Vespúcio : longe cie
'!'-- . elaboraçã~ das instituições-modelo não se faz, portanto, re meter ao universo da ficção, seus nomes de fantasia design am
ex mhtlo. Isso nao quer dtzer que não deixe lugar à invenção.
regiões reais que ainda não figuram nos mapas e ainda não re-
Mas essa somente pode intervir de maneira secundéria, a partir
~,;cbcram nomes próprios. Todavia, não é para revelar ao leitor
de um trabalho prévio sobre e contra dados reais cujo valor se
un~ Íl?Íormação etnográfica que :Ylorus cita esses países. Não
pretende inverter.
estao ltgado:; ao con teúdo d a 1Jtopi11, mns à sua forma. A escala
ou a experiência que nele~ tem Ra phael constitui uma condicão
necessár ia e prévia à experiência da Utopia. '
Esta relação em espelho entre a sociedade histórica criticaua Sob a pen2 de Morus, essas viagens simbolizam uma des-
por Mo rus c Utopia , a in timida de que as une aparecem mal no wberla mental: a descoberta ue si cÚmo obíero e como outro
tex ro. Sociedade real e soci~dade imaginária são tratadas em due~ lal como a impõe a (representantes das) sociedades européias ~
pal'lcs distin tas que não apresentam homologia formal, nem tomada de consciência da diferença das outras sociedades. As
concspondência temática. \To Livro I, o requisitório con lrél u viagens no tempo (Roma) e no espaço (Novo Mundo) . n com-
Inglaterra ~ cot~duzido caoticamente, sem ordem aparente, ado- paração es':JiÍcio-temporal com outros povos e oulrns inst itu ições
tando as smuostdades de um diálogo cujos protagonistas, muito sflo él conui~,:élo dt: uma cn1tucrítica possível.
d1ferente~ , se submetem alternativamente ao meu humcr, ao bom Somente então pode nascer o projeto de um trabalho rndical
humor, a amargura. No monólogo do Livro II, ao contrário, fi atuar scbre si m esmo. Isto porque, gtwncl o :~tra c n um U.Jf.>pía,
Raphael d~ uma desc~·ição melódica das rea lizações utópicas.
~abe ao leitor descobnr como, ponto por por.. to,· essas rem;!tem
relação com as outras nações seja aprcscntarln n o J.l vro I1 do muneiro.
s1multaneamente às críticas do Liv:·o I e à charge da ln~~!a:cn· 8 rli ret!l.. Cf.: "F.st a vida, pior que a dos esemvus, o qm• ú <·HLrcl.unto a dos
qu e Raphael desenha, por denegação5\ no fl111do de sua Úuélg~m­ operários ~m quase todos os países . cxe••l.o 1111 Utoplll" (p. em; " vós
moc!do de Utopia. mu compreendeis facilmente se qu iscnl < · ~ p <·n:;nr nu importante fracão
clu população que conti:lua inativft c•nl.ru o:; onll'<JS povos, a quase totÚii·
!i!i. l•:ss11 rloncr,ação se reveste de formas mais ou menos d:retas. Por dnde das mulheres em primeiro l llt\n•· 1 •• I 11. is~o acrescentai o bando
do sacerdotes e daqueles q•u~ sn r: h n 11111111 l'OIIgiosos, tão numeroso e tão
excrnpl:>: "<>.~ 11 i opiano~ ignoram comple tamente cs dados e todos cs
JOgo~ c.us~;,• t:<•ll ll l'< •, nbs11rdos e pei·igosos" (D., p. 68); "nada de cabarés.
or:ioso" (p. 69) . Cf. também o luxo 1n. 1:.!); us reparações (p. 71> ; o culto
110 ouro (pp. 83-84); etc.
nflcln. clf' · ll l : o •·lll< ~ . l111.<hl ele l·_tgarcs maus" (p. 181); "eles próprios não
fazer~_, 'lttal()i l< ll' ll ilO cln moeda" (p . B4); "recusam radica!r.1ente a inter-
56. Ron:a é e\·ouada uma p l'imci ru vez a propósito dos mercenár i os
vençao.dcs a clvOJ (IIdll~ qno expõem as causas co:r. demasiada habilidade' ' (n .. p. 21, depois p. :~o) .
(p. 115•. Cf. lmll llt\111 a c·twa lp. 08); a tolerância (~'P· 133 e ss.) etc: Em 57. Particularmente por L. M/\RIN.
alguns easo~ . <'11Lrl"1 111i o , pntlo acontecer ç:t:e a inversão de UtopiA ~m 58. C!. logo abaixo.
168 A REGRA E O .MODELO UTOPIA OU A TRAVESSIA DO ESPELHO 169

é realmente em sua casa que aborda finalmente o viajante. Vá- miliar. Essa inversão ou conversão radical, que, segundo vimos,
rios indícios o testemunham. Em primeiro lugar, a maneira como mexe com cada elemento significativo da prática social, poderia,
Morus contrapõe Utopia ao wnjunto de todas as outras socie- ao que parece, assumir uma infinidade de formas c jamais cessar
dades. Assim, no final do Livro 1, Raphael desculpa a incredu- de realizar-se. Ora, não é nada disso. Raphael encontra em Uto-
lidade de Pierre Giles a quem acaba de confessar seu maravi- pia apenas uma ítnica solução, o emprego de um dispo§.itivo es-
lhamcnto diante das perfeições que descobriu em Utopia; "Non pacial, ou, para dizer melhor, de um modelo espacial.
m iror [ ... ] sic videri tibi quippe qui eius imago rei, aut nulla Essa anomalia com relação às possibilidades que a expe-
succurit aut falsa"59. Trata-se de um mundo sem igual, novo ("no- riência de si como outro abre e descobre, que constitui também
vem illum orbem") mais ainda que os continel'!tes descobertos uma experiência de liberdade, permite compreender a função
por Vcspúcio, e cujo próprio nome, Nenhuma Parte, indica que do modelo espacial. Com efeito, no momento em que Morus-
é um mundo à parte e revela sua estranheza, próxima do "absur- Raphael criticou a sociedade a que pertence e que procede à
do"60. Depois, não é uma diferença banal que opõe Ulopia ao sua inversão, se expõe a riscos temerários; desorientação, dcscn-
Velho Mundo, mas uma verdadeira antinomia : "Os utopianos raizamento, mais grave ainda, deslo~,;amento de todas as suas
fazem tudo ao contrário dos outros povos"61, Finalmen1e, Ra- referências sociais, privação de toda e qualquer pertinência. Ao
phael indica que, se se quiser corrigir os defeitos da sociedade construir o modelo social de Utopia, Mol'Us se obriga a escolher
europt:ia contemporânea, a via utópica é "não só a melhor, mas um modelo social entre os muitos possíveis e, no mesmo instante,
a úníca"G2. Não são de considerar nenhum paliativo, nenhum lhe empresta uma coerência e uma individualidade visuais que
meia-medida, já que se pretende uma experiência radical, em permilem sua designação como sujeito, pur um nome próprio;
suma, uma conversão. Utopia, Amaurota. Graças ao modelo espacial, a crítica pode
A evidência dessa conversão se impõe na inversão que so- funcionar como um espelho66; em vez de operar a inversão da
frem os advérbios de luga r aqui e lá entre o final do Livro I e sociedade que ela ataca, sob a forma de conceitos impalpáveis e
o do Livro li. Com efeito, Utopia começa por ser designada sem influência, ela a cristaliza numa imagem (Morus fala de
como o mais longínquo dos confins, lá, nas antípodas do lugar imago67), dá-lhe um ~,;orpo e uma idt::ntitlaue. Isso porque o mo-
onde se situa o diálogo de Raphael e Morus, aqui e agora63. De- delo espacial de Utopia é também a imagem invertida e ideal
pois, no curso do livro, viceja a oposição entre essa Utopia, des- da Inglaterra enquanto esp aço. Essa referência, aliás, é afirmada
crita por Raphael, e seu algures, que engloba tanto o velho como claramente pelo fato de que o modelo não é dissociável do retrato
b novo mundo64. E ao término da (narração de) viagem, lá, Uto- de Utopia ao qual se superpõe e que lemhra, alusivamente mas
pia tornou-se o aqui, ao qual se opõe o alhures longínquo de com certeza, a Inglaterra68.
que faz parte a I nglaterra65. Platão procurava esclarecer o conhecimento da alma através
A ilha de Utopia n ~o resul ta, pois, de um imaginário desen- do conhecimento da Cidade. Inversamente, parece que o conhe-
freado. Leva diretamente ~ Inglaterra de que é o ideal para Mo- cimento de certos processos mentais é suscetível de fazer com-
rus-Raphael. Quando aborda finalmente em Utópia, depois das preen der a relação insólita que o cbanceler inglês mantém com
viagens prévias que lhe revelaram a singularidade da sociedade o espaço imaginário e real da cidade. Não tem razão o Íeitor atual
a que pertence e lhe ensinaram a au tocrítica, Raphael descobre em comparar a maneira como Morus constrói seu modelo, ou
a possibilidade de transformar radicalmente essa .sociedade fa- imagem espacial ideal, com a operação que, no "estágio do es-
pelho", permite à criancinha reunir um cu esparso c difuso em
sua imagem especular e, assim, estabelece r " uma relação do or-
59. s .. p. 106. W IJTI!o E! nosso.l ganismo e de sua realidade"?69 Já mostramos70 a amb ivalência
00. D., p. 105: a esse "outro mw1do" Raphael contrapõe precisa- dessa fixação que não pode ser positiva, islo 6, Lra ngi.iilizadora,
mente o dos polileritas aos quais não se pode aplicar a categoria do
absurdo. Cf. tam bém p . 10'7. se não se efetuar num momento preciso (csttír,io) do desenvol-
lll . D ., p . 84. Cf. também o Livro II, D., p . 141: "essas inStituições. vimento e em seguida deve ser abandonudu, sob pena de alie-
tão tllferentes das dos outros povos, gravam no coraçao do utop1anu
scnlimonlos e Idéias inteiramente contrários aos nossos". [0 grif o é
110/ISO. J 66. Talvez se deva ver um prC's~enl. lml'nln dessa função no título
(i2 . D., r>- 117. Cf. igualmente Livro I , p. 50. dado à primeira tradução francesa d!l IJL07Jict: A Descrição da l lha de t1
63. " Çlll() tf hlc singularum privatae sunt possessiones, illic omnúz Utopia, onde se Compreende o Espolho cllt., Repúblicas do ll!undo. [ I,
Sltnt C071111/IIIIIff " ( 1:;., p. !OU). [O (11'1/0 é nosso.] Poris, 1550.
G4. r.tvr () Il, D., pp. 71, 72, 103·104. 68. Cf. supra, p. 1fi5.
65. "JJI<- n iJt ?Jih ll privati est [. . .J nam alibi quotus quisque est 69. J . JACAN, Ecrits, Piuls , Scull, 1965, "O estágio do espelho",
qui neRcial I ... I C01Jlm hio ubi omnia omníum sunt" (S., p. 328J. W p. ~6. ITrad. bras. Escritos, São Paulo, Perspectiva, 1978.1
grifo ti uossu.J 70. Iõid.
170 A REGRA E O MODELO UTOPIA OU A TRAVE SSIA DO ESPELHO

nação. Mdo temporário de fazer fren te e afi1111ar-se na intersuh- no que L. Marin, retomando a expressão forjada por C. Lévi-
jetividade a um momento de total vulnerabilidade, ela constitui ·Strauss a propósito do mito, designi:l l:Um pertinência como uma
com o tempo uma ameaça constante de inibição e de bloqueio. •·estrutura folheada"72, e envolta numa ficção .
A imagem especul ar formada à sua maneira pelo modelo cspacia! Texto enigmático, na verdade, essa Utopia, quando o abor·
assegura da mesma fonna o reencontro de uma identidade amea- damos na e3pessura de sua formulação literária. Por que .\'lorus
çada e permi te enfrentar a mudança com serenidade. Mas apo- HÍIO assume pessoalmente nem o papel de concebedor-comtrutor
derando-se definitivamente do espelho da crítica, o modelo es- de Utopia, nem mesmo o de testemunhi:! de lJ.Ue se desobriga em
pacial condena ele também, com o tempo, ao na rcisismo e à e~ te­ proveito de Raphael? Por q ue atribui tal valor ao fazer com que es·
reotipia. Por outro lado, q uando Morus-Raphael de;enha o re- ltt constr ução imaginária pareça real , presente? Por q ue, enfim, in-
trato de Utop ia e de Amauruta l:Om grande quantidade de cavi- troduzindo o fantástico no relato de Ra phacl, transforma delibera-
dad es, orifícios e canalizações, o leitor moderno vê 1UUito bem cl umente em zombaria us arti fícios cuidadosaxuente desem·olvidos
que a const rução especular do modelo é ind issociável da imagem 11 fim de obter essa presença ? O mndelo espacial tkve, pois, ser
de um suporte fundamental , aprendido no curso de um estágio n:cclocado em questão e qu estionado ao mesmo tempo que a forma
anterior: o corpo materno71 da Inglaterra, produto da terra e li terária a catada p or Morus, essa estranha ficção integrada n.um
da tradição . discurso e que, tanto quanto o De re aedificatoria, não se deixa
Na economia do projeto de Morus, o modelo espacial pa- etiquetar entre os gêneros textuais. Para esclarece r-lhe o estatuto,
rece, poi::, responder a uma problemática da identificação que tentarei um corte formal que se baseará, ainda uma vez, no em·
surge num momento preciw da história européia. Morus desco- prego dos pronomes pessoais e dos tempos de verbo.
bre então que uma sociedade pode transfor mar-se, construir-se À primeira vista, a Utopia parece composta de dois discursos
outra que a tradição não a cristaliza. Ele opta por essa mudança iuterligados por uma relação de inclusão. Morus detém a palavra
e essa Bildung. Mas ao mesmo tempo se protege contra as ver- no primeiro, Raphael, no segundo, que começa nas últimas páginas
tigens dessa li berdade, anula-lhe a acão dissolvente. Garante-se do Livro I , quando da primeira menção de Utopia73, e termina
contra a dispersão e o desfaleciment~ da ind ivid•J a!idadc social nu evocação da eternidade utópica , pouco antes do final do Livro
I I . onde Morus retoma a palavra. Cada um dos dois discursos
a que pertence, pelo poder de recolhimento de umc imagem vi-
sual. Revelando e desenhando o modelo espacial de sua socie- contém aquilo que, junt amente com os lingüistas, denominamos
lcxto de história74, que, no caso, é uma história. Com efeito, de
dade ideal, Morus parece, pois, ter rep roduzido simbolicamente
um lado e de outro, represente ela a \-Ior.us ou a Raphael, a pri-
no plano social o processo de au toprojeção espacial gerudo no
ntci ra p essoa fu nciona par te do tempo com o pretérito e, em
plano do indivíduo pela experiência especula r. No desenvolvi-
luis casos, poderia ser substituída por ele . "A história do eu é
men to da ind ividuolidude cultural ocidental , ele elaborou assim
t:Ontada, então , como o seria a históri a de um out ro" 75. Mas,
o que chamaremos "estágio da utopia".
num e noutro caso, a verdadeira primeir a pessoa não cessa de
intervir, de remeter o leitor à situaç.ão de enu nciação, comentando
3. A CONSTRUÇÃO MfTTCA 11 história, no presen te do indicativo e aux:iliando-se com inúme-
ros shifters. O s dois pseudodiscursos apresentam, pois, a patti-
Nas páginas anteriores, a descrição de Utopia e de seu mode- cularidade comum de unir dissociavelmcnte as fo rmas do discurso
lo espacial feita por Raphael foi interpretada como se fosse reve-
lada sob a forma de um d iscurso, diretamente pelo autor. que por 72. C. LÉVI-STRAUSS, Anthi'O]JOlogi c: stnwtumlc, Parir:;, Plon, 1958,
essa razão, pôde ser designado como Morus-Raphael. A realidade " ' ?.54.
73 . Além do texto contínuo cio J.ivro H Utl.ll: "Lo1:o quo Rnphael
literária, porém, é menos simples. A estratégia usada pelo modelo llllllln ter r.l.inado esse relato"), compr<'C'II(IO porla11l.o l. r(l~ f ragm entos do
espacial está incrustada em redes textuais comp lexas; envolvida l ol vro r: "Quando cumparo os i nstin to:; utoplanoh" (!)., Jlp . 107-109); "Não
11111 sut·preendo I ... 1 perfeitnmcn l.c OI'I(IU I!:.;dno" ( J)p. l0()-111); " fl. ques tão
!lu nnt.igui dade I . . . l coisas ü Lcis" ( p. ' 11J.
. 71. MF!LANIE KLEIN, em sua " Análise Infantil" , m ostra como o R Cf. supra, pp. l37 o ss.
mlor lor elo r:orpo da mãe, onde seus jovens pacientes desejam penetra r , 'm. J. Sl MONIN-GRU::vtJJAGII . 0/J, t·!l .. p . 101. C!. todo u parágrafo
é reprcsonlnrlo r.omo uma cidade. Cf. pa:ticularmente, a p . 181 e r.ota lnlllllluclo "'Eu carno 11esson cln /1/sll!t ln H". O autor cita dois exemplos
da p . l:l:l NIIIH·o 11 "geografia do corpo materno", in Essai s de psych.a· !In ll l ~tó ria construídos com u n1 •·11 (111(' Cttz papel de ele ou ela (sem
ruz!y.wJ ( 10:\1 111:1,1), I. mel. tr. por M. Der rida, Pa r is, Payot, 1967. As formas ~ 111/lt•rsl c onde se ofc rer.c "'•t l" 't~• l hl llclttdo de repassar ao p lano do
simbólicns, C' l\ v l rlnclo~. dobros etc., banhadas de fluidos, que compõem il l ti!'III'~ O" . Mas n ã o se tru1.11 nl ( 1\1 '.111111 possibilidade oca sional que não
o r etrato de t ll.Cl!lfrl. corrrspcmdem às bocas, cantos e recantos evocados '' lll,lllv.udo esq:.temat,ica!llcnl..,, (:umo ua Utopia onde híscória e ciiscurso
por M . KLEI N, p. 12-IJ. w• tlnl.•·olnçam com f.orçtl )[(utd.
172 A REGRA E O MODELO
UTOPIA OU A TRAVESSIA DO ESPELHO 173

e da história76, e a ficção não é mais referenciável a não ser pelo


conhecimento da situação real77. O primeiro pseudodi~<.:urso po- pc seu relato no pretérito do encontro, depois da conversa com Ra·
deria intitular-se " H istória e comentário de .uma tard e passad:1 phael por uma série de discursos diretos nos quais cede o privilé-
com Raphael ". Chamá-la-ei de ficção da perspectiva (Rl). O se- gio da primeira pessoa a outros sujeitos. Além de Morus e de
gundo, que poderia ter o título de "História e comentário de umo Raphael, cinco outros interlocutores são levados, assim, a tomar
viagem a Utopia", será designado por ficção do motivo (R2). 11 palavra79. A mistura das personagens reai~ e fictícias, a multi·
pl icação das tomadas de palavra acentuam o efeito de homologia
1.m1re Morus e Raphael. Discursos e sujeitos citados são conta-
A ficção da perspectiva foi assim chamada porque coloca minados pela situação de enunciação do primeiro interlocutor,
~ ituados e perspectivados no que parece um espaço textual
em perspective. a personagem de Raphael e dessa forma opera
wna transferência de credibilidade, sobre ele e sobre suas con- ld6ntico, halizados pelos mesmos shifters. Ao termo dessas
versas. No desenvolvimento desse texto, o eu de Raphael e suas uiLcrnâncias de palavras, deixa de ser perceptível a fronteira entre
t) real e o imaginário. Raphael adquiriu a mesma espessura exis-
expressões adquirem a mesma realidade que as do autor do livro.
Resultado alcançado, de um lado, graças à ambigüidade mantida lcncial que Morus ou o Cardeal Morton, c sua Utopia a mesma
entre os dois eu de Morus. entre o sujeito do discurso e a persona· credibilidade que a Inglaterra deles.
gem da história, de outro graças à homologia, cuidadosamente cons- J. Hexter demonstrou de maneira convincente80 que a Utopia
truída, entre os eu de Morus e_ de RaphaeF8. Mais, Morus interrom- fora redigida em dois tempos. Segundo toda verossimilhança,
Morus começou a escrever em Flandres o início do Livro I e o
76. E xemplos de discurso. Morus · interlocuw'r: "Eu tinha por com·
l.i vro II. Depois, sob a pressão dos acontecimentos políticos c
panheiro. . . o incomparável C. Tunstall a quem o rei [ ... l recentemen· um seguida à visita de Erasmo, de volta à Inglaterra ele redjgiu
· te confiou os arquivos do Estado. Minha empresa não é levá-lo, não 110b a forma de diálogo a longa exposição sobre a oportunidade de
que eu tema Q!Je se recuse L . . l o testemunho da amizade, mas porque nconselhar os príncipes, que se transformou no essencial do Livro
seu caráter e seu saber l:lStâo acima de todo elog1o que poderia fazer-lhe" I . Para reduzir esse texto à redação inicial, bastou-lhe acrescentar
CD., p . 7). "0 que Raphael noo contou ter visto em cada região seria
demasiado longo a relatar L . . l Talvez faiemoo disso alhures" (p. 12) . uma frase de tr ansição ao parágrafo que introduziria diretamente
Raphael interlocutor: "Se eu mostrasse em seguida que todas essas o relato que descreve UtopiaBl, achar, graças à diatribe sobre a
ambições belicosas perturbam a~ naçOes r ... I com aquele humor. meu propriedade privada, uma ocasião de retornar aos utopianos82 e,
caro Morus, pensais que meu discurso seria escutado" (D., p. 42). "I sto l'lnalmente, terminar o Livro li com urna última intervenção sua83.
porque se desejo que prevaleça a realidade, não posso dize r o que 6
o contrário disso. Cabe ao filósofo dizer mentiras? Eu não sei, mas
em todo o caso, não cahe a. mim" (D., p. 49). "E porque penso na 1'11locação em situação histórica num pa!s estranho: " Passei aí rna In·
constituição tão sábia, tão moralmente irreprovável dos utoplanos em 11 h1Lcrral alguns meses, pouco depois da batalha em que os ingleses
quem [ . .. 1 tudo está regulado para o bem de todos" (D., pp. 51·52). "A tl!l oeste foram esmagados num:J. lamentável derroto" CD., p. 17) -
esses usos contraponho os de tantas outras nações sempre ocupadas 1•r. 11 frase liminar do livro: "0 invencível rei da Inglaterra C• • •J teve
em legislar" (D., p. 52). "Eu vos descrevi o mais e.xatamente possível l'tiContemente com o Príncipe Carlos de _Castilha uma disputa sobre
a estrutura dessa república onde não' vejo apenas a melhor, mas a IIIII':;Lões importantes. Fui ent.ão deputado orador em Flandres" (p. 7).
única que mereci': l:lSSe nome" (D., p. 147). l•lut seguida, a história de um encontro com uma personagem histórica
Exemplos de hist6ria: :É Morus quem fala: "Nós nos reencontramos t'tllll , indutora da seqüência do texto: " Contraí então uma gmndc dívida
em Bruges assim como fora combinado com os mandatários do prín· " " reconhecimento para com o Reverendo Jobn Morton, arcebispo de
cipe [ ... l" (p. 7) . "Quanto a mim, nesse ínterim, me encaminhei a An· t '11ntuária" <p. 17) - cr.: "Recebi, multus vezes, c.Iunmtc essa estada,
tuérpia" (p. 8). "Logo que Pierre terminara esse relato r ... l abordei 11111 ro outros visitantes, e bem·vindo entre todos, a Pic rrc Gi!les" (p. 8) .
Raphael [ . .. I En~ão, entramos na casa para jantar". Raphael falando: 1k•twls encontro com umll personagem fictícia, o ic.Illnl.icn. marcação no
"Delegados de Anemólia ChE'gl!.ram s Amaurota enquanto cu ru estava ln lt-lo da história fictícia: "Eu me achava po1· llí'm:n 1L sua ml'.~a no dia
[ ... l Dois dias foram suficientes aos embaixadores para verem em que '"" l'fUB aí se encontrava tam bém um leitro" (]J. IR) - cr.: "Eu me
quantidade se achava ouro lá" (D., pp. M-88). "Não precisaram nem llflllnva. um dia r.a igreja Notre-Daml:l" (p. 6). l:'hmlmenLo, Infe to do diá·
de três ar:os para se tornarem senhores da língua" (D., p. 105). "Nós l"llt> (pp. 18 e 13).
lhes mostramos volumes r. .. l impressos L .. l Eles, logo, à força de 70. Picrre Gilles, o j uris:;o, o Cnnll'HI Mort.on, o bufão, o innão
se apllcnrem nisso, adivinharam o resto" (D., p. 107). ''li'••dlconte.
77. J. Simonin-Grumbach observa com justeza que a história "é 110. ll'lore's Utopia, t he Bwqrap/111 o} nn l llca. Princeton, Princeton
também o r or,lstro da linguagem que permite a f icção •[ . .. 1 Cabe ao llitlvorsity Press, 1952. Seus UJ'I:llmontoN :>~lo Llrados das duas cartas a
interlocutm· Ocitorl interpretar uma sit. E como real ou fict!cia (e:n I' Ollles e a Erasmo que acompanhnm o Loxto da primeira edição da
função do ~~ 1111 c:onhccimel:tos, portanto de sua sit. E no sentido amplo); lltoJIIa e de uma car tll tardia do F.mmno n Hutten, sobre a vida de
ao passo quo nu discurso, é o locutor que coloca a sit . E como real" M•II'UR.
(Op. Cll ., p. lll:l). 111. D., p. 73: "Antes descjt) ou ~lnur no leitor [. . . l"
78. Assim, o lll'imcl ro grande monólogo de Raphael é construido 112. D., p. 107.
exatamente como o J'ülnLo cnt;loba;nte de Morus. Primeiramente, uma 11:1. Essa intervenção enccrrn o texto englobante, que engasta assim
I'III IIPitltnmente o texto englobnclo. l!:ht te rmina tanto o relato de Morus
l74 A REGRA E O MODELO UTOPIA OU A TRAVESSIA DO ESPELHO 1~5

Essa reconstituição confirmaria a tese do mesmo auror se- t t'llclição que toda a planta da cidade fora traçada , desde a origem,
gundo a qual a Utopia seria um livro duplo ou, mais precisa~entc. p~:lo próprio Utopo", mas n ão teve tempo de terminar e cons-
dois livros. Quanto a mim, não penso que a ad ição do diálogo lt'llir inteiramente sua obra e deixou esse cuü.lauo para a posteri-
do conse!ho, e a importância que por causa disso tomou a pri- dudc87, Utopo introduziu em Utopia a tolerân cia religiosa. De
meira parte do livro , mude a estrutura des te, que se resume na um lado, media o perigo que representavam para a paz da Repú-
relação de um texto englobante e de um texto englobado. Não só blica o fanatismo e a intolerância c, de outro, temia o dogmatismo
o alongamento do Livro 1 respeita essa relação especüica de in- do ponto ue vista do interesse da próplia religião. É por isso
clusão, mas o tex to acrescentado é constr uído de modo n reforc11r que, " uma vez vitorioso, decidiu que cada um professasse livre·
o efeito de hom'-llogia produzido pelo primeiro estado do d iscu~·so 111cnte a religião de sua escolha " B8.
englobante. ·Citando esse novo testemunho, que se origina de anais im·
A pequena frase do Livro I onde Morus revela que o único pessoais, Raphael atribui·lhe a mesma função, confirmar u ex.istên-
propósito de sua obra é relatar o testemunho de Raphael sobt·c l:Íil de Ctopia, que a palavra de RHphael desempt:nhava com rela-
a UtopiaS~ conserva, portanto, todo o seu alcance. Designa a ~,:iío ao discurso de Morus. Mas a simetria da construção é rumpida
ficção do motivu. El11 6 assim chamada, a fim de marcar, conser- pois a nova testemunha citada, o outro de Raphael, não só deixa
vando a metáfora icôn ica, tanto o li ame que a une à ficção da de tomar a palavra como também se torna explicitamente uma
perspectiva quanto a sua pregnância semântica. A ficção do moti vo pcrsougem de ficção. Essa irrupção do pretérito da lendu no
apresenta duas singularidades formais. presente realista do discurso de Raphael, à primeira vista, parece
A primeira é c comprimento do texto ocupado pela descl'i- incompreensível e absurda.
ção no presente de Utopia. As construções e as instituições dn Com efeito, por que utilizar sistematicamente o presente da
ilha não são abordadas aqui como pertencentes à história de uma ~nunciacão e demonstrar tanto cuidado em mnrcar o discu rso
viagem, mas como objetos de um discurso. Exigem o comentário pelos sÍ'Iifters apmpriados, se foi para reduzir·lhe os efeitos a
e a apreciação co locutor em relação ao qual Utopia progressi- nada mediante a intervençfío de Utopo? Não t:ra necessáno em-
vamente adq'J ire uma presença invasora85. pregar o presen te do indicativo para pintar ao leitor o quadro de
Por outro lado, a ficção do motivo contém uuas his tórias um a sociedade imaginária e fazê-lo sentir o seu valot·. Morus
de tipo d iferente. Em primeiro lugar, tal c0:110 a ficção da podia descrevê-la no condicional, como uma realização possível;
perspectiva, uma histól'Ía (R ') associada a um discurso, no caso ou mesmo transformá-la em objeto de uma simulação, como no
o de Raphael: o eu de Raphael é a personagem do viajante que l.ivro I, no cenário onde descreve a si mesmo no pn:sente como
encontrou os utopinnus tal como Morus a havia encontrado. Em conselheiro do rei de França, sublinhando com esse procedimento,
segui da, uma his tória d iferente, integr ada no discurso de Raphael , uplicado no momento pcrtinente89, a diferença do presente u tó-
mas que não r eprod uz a rclacão de inclusão anterior, pois eln pico. Podia igualmente adotar o fu turo a fim de designar Utopia
não remete a novo di scu rso e fecha a série das tomadas de pala- como solução futura. Num e noutro caso, a intervenção de Utopo
vra: essa história, na f(Jrceira pessoa, é a do herói Utopo e dos ~·1·a excluída pela lógica d!l emmci11ção.
utopianos. Pragmentada pela descrição, ela se reduz às pouca~ :f: preciso, pois, compreender por que Morus optou delibe-
e breves seqii êneias que Raphael fo i buscar na fonte dos anais rndrnnente por uma solução que nos parece con trária ii lógica
utopianos. Vamos r esumi-las rapidamente: ·o fundador de Utopi a ele sua empresa, e de que lhe serve manter a antinomia que opõe
11 história de Utopo e a de Raphael, o pas~ado fabuloso evocado
conquis ta a terra de Abraxa à qual deu seu nome. Submete-Ih:.:
ptlt· uma e a descrição realista de Utopia, feita no presente e
os habitantes ::1 quem devia em seguida civilizar, e man de: exe-
remetida a uma situação de enunciação, que a outra contém.
cuta:- um form idá vel trabalho técn ico, a abertura do istmo de Estudemos, primeiramente, a parte central da ficção do mo-
15.000 passos que separa Abraxa, emão Utopia, do continentc86. Ji vo, a lenda (R) de Utopo e dos utopianos. Pode-se lê-la como
Ulopo trammitiu aos u topianos o amor pelos jardins. "Quer a

87. P. 121.
~~·cvO('Itn :ln um acoptecimenLo do Livro I) quan~o o seu discurso. A Oll. Pp. 134-135.
u lLhnn fnwr elo Morus faz eco à pronunciada um p ouco antes por 119. Entre a descrição da I nglal<~lTn e n dn Utopia. Ess:a simulação
R r.phac l. 1"'''mlte que Mortis mostre que níio l ~nom esse ~:ênero platOnic:o, e
114 . n .. p. 'l:l: " fNcs.~e livro! relatarei somente o q·.1e Ra:;úael nos uno o empregue na Utupicl. O t't'll:'Lrio é realmente escrito no presente,
contn s niJro u:l <"n~l.un1 0~ c as instituições do povo utopiano". 1111111 precedido d a regra do j or;-o: "lmnglnai que me encontro com o
05. "Nair ••x l:;l(' r·('rl\ n não ser com relação a um sujeito" (J. Sl· I ;•I de França, participando ele um c·onsclho" m.. P- 391 (Age, ftnge
MONTN·GIWM fl i\C:rT, op. clt . p. 103) . IIJIIIIl regem esse Galiornm, atouc In cjtts considere c011Silio, S., p. 84) e
86. D., p . 511. JKJrr'.llhado de vários condiciomus. lO grifo é nosso.]
176 A REGRA E O MODELO UTOPIA OU A TRAVESSIA DO ESPELHO 177

a colocação em intercomunicação, pelo herói, de dois conjuntos que ocupam o espaço do velho continente; e mesmo imprimir em
de termos contraditórios, cujas incompatibilidades ele anula. Ulopia, que vive fora do tempo e da história, a marca de sua
Utopo faz a guerra e estabelece a pa:t; provoca uma catástrofe pussagem sob a forma de um acontecimento histórico (introdução
e uma crise ao separar violentamente os utopianos do continente do livro e da imprensa). Além disso, é através dessa viagem
e suprime toda a crise possível na ilha assim isolada; está empe- dl! Raphael que o próprio Morus é posto em comunicação com
nhado no tempo heterogêneo c movente da história e instaura Utopia, é advertido da história de Utopo, é informado de seu
o tempo homogêneo e parado de uma quase eternidade; afirma modelo espacial.
seu individualismo e a liberdade soberana de seus atos num tra- Contudo, a despeito dessas passagens, dessas transmissões e
balho de criação e promove a reprodução das condutas sociais dessas interrupções, a história de Raphael (R') n ão funciona
através de um labor repetitivo, no anonimato do consenso; auto- como um mito. Ao contrário de (R), ela é totalmente enunciada
riza a pluralidade das religiões e impõe a religião cristã90 • Em nu primeira pessoa, que o mito rejeita, e é atravessada por um
suma, Utopo joga nos dois quadros (Il) e (!2); é o mediador que presente que ele não conhece: o mito se enuncia sempre na ter·
transforma um no outro, por meio de um instrumento que em ccira pessoa e no passado.
suas mãos se tornou "magicamente" operatório: o modelo espa- Por conseguinte, como caracterizar a história de Raphael
cial, a planta de Utopia que cristaliza a inovação, converte a (R') e explicar por que ela se articula de um lado, no mito de
liberdade de Utopo em lei, põe fim às transgressões sociais do Ulopo (R) e, de outro, na ficção da perspectiva (Rl) que coloca
herói. A intervenção de Utopo, por meio de seu modelo, confere um cena seu herói como ela mesma coloca em cena o de (R)?
assim à lenda dos utopianos (R) características que C. Lévi- Vimos 'o papel que a primeira pessoa do singular desem-
-Strauss considera próprias do mito91; com efeito, ao nível sim- penhr. -:Jtl R': os termos antagônicos reconciliados por meio
bólico, ela permite resolver contradições, operar transformações, desse -eu não pertencem mais ao universo da ação mas ao
suprimir o tempo. Com o modelo espacial, Utopo realiza o desejo elo discurso. Como o ele de Utopo, o eu de Raphael se desloca
informulável e inassumfvel de Morus: realizar uma revolução nas simultaneamente em dois quadros. Mas, no seu caso, trata-se
práticas e nas instituições da sociedade a que pertence. Traduz de um jogo que, tanto pela estrutura folheada do relé das pala-
para a terminologia familiar da tradição as noções de liberdade vras que levam de Morus (em (R') ) a Utopo, quanto pela am-
e de criação individuais indispensáveis à realização da mudança bivalência imprudentemente concedida a um presente que leva
social e que Morus só podia pensar em termos de transgressão. ao mesmo tempo ao real e ao imaginário, constitui uma paródia
Mas a história de Raphael (R') na qual se insere R, que de- do mito. Porque esse eu, parte integrante de uma situação de
signarei provisoriamente como o ''mito de Utopo", permite, ela enunciação, não tem, por definição, _q ualquer poder de trans-
também, à sua maneira, resolver uma série de antinomias. O pa- fo rmar ou de suprimir uma incompatibilidade, a do real e do
pel do herói mediador, então, é cumprido por Raphael a quem , Imaginário, que ele deixa subsistir inteira e sabidamente, mesmo
em vez de ações contraditórias, cabe reconciliar modos de enun- quando a nega com a maior obstinação.
ciação e estatutos de existentes incompatíveis entre si. Raphael Este caráter lúdico é confirmado pela comparação dos ins-
é o intermediário e o fautor de comunicação entre o velho con- lt'tunentos mediadores de que se servem respectivamente os heróis
tinente e Utopia , entre Morus e Utopo, entre o real e o imagi- de (R) e de (R'). Esses instrumento:; pus:;uem a característica
nário, entre a crítica e o modelo. O instrumento que lhe permite comum de terem como referentes as descober tas espaciais do
converter os termos antagôl)icos um no outro, o operador de Renascimento: os primórdios da homogcncização do espaço do
conexão, não é. mais um percurso cristalizado, tal como o plano desenho, pelos arquitetos e p elos pintores, c do c:;paço geográ-
de Utopo, mas um percurso em ato, uma viagem92. fico, pelos primeiros cientistas-navcgadol'cs. O nwddo espacial
Essa viagem permite a Raphael ver e explorar .Utopia, qu~ lum relação com um procedimento q w.:, lend o permit ido a in-
nflo existe em ne11hum espaço, como ele viu e visitou os países venção da perspectiva artificial e a :;i~ Lc uwlizu ção da planigrafia,
11brc c<Jminho à ciência. Está também - u que confirma à sua
1111111eira o presente utilizado parn sua descrição - ligado à ex-
90. O fnto de que os problcmo.s r eligiosos estejam integrados em periência nova da subjetividade, pois o espaço teórico do5 pinto·
R cb\ pr0v1t Llo novo da importância, já assinalada anteriormente, a
I'CS e dos arqui tetos se em111 cia ao mesmo tempo que o poder dos
propósito elo locol dos templos na planta. de Amaurota, que tem esse
tema pill'll Mor us. I:Onstrutores93_ No entanto, assim como permite ao herói mítico
91. Cf. J.c ( 'm at !e Cltit, Paris, Plon, 1961, "abertura" e referên-
cias, p. :l!i.
92. Cf. M:. l';l ·:rt lll·:~ . "Discuors et parcours" , in L 'ldentité. seminá- 93. A perspectiva, segundo E . Panofsky o mostrou muito bem, re-
rio dirigido pnr- C. T.ô vi-SLi':lliSS, Paris, Grasset, 1977, pp. 38-3!l. Hilfvo iconicamente antinomias_ Nesse sentido, ela se assemelha a um
178 A REGRA E O MODELO UTOPIA OU A TRAVESSIA DO EI:WI, I,IH l

operar as tramformações necessárias, ele não é o instrumento 4. MORUS E PLATÃO


polido elaborado pelos artistas do Renascimento. "É verdadeira-
mente um instrumento operatório simbólico. Morus descobriu-lhe Mito e simulação, que Pla tão u ~a al h;rllnd nllll pl
o poder real ~em conseguir pensá-lo de outro modo a não ser des- diálogos, remetem ao p roblema das rcl ut,:m.:s lJIIl' 11 111
naturando-o e mitificando-o. O. espaço-modelo da Utopia é con- tem com a obra do filos ofo grego, qul: nHIÍinN Vl'.tl'tt 1. '
taminado pelo herói fundador. E homogêneo e isotrópico, dotado o criador da utopia como gênero tex tu;d. In 11 1'1' 11 IIJIII
de eficácia mundana. Mas, ao mesmo tempo, participa de um u propósito de pt1armakon, de subl inhar U:l uli 11ldt ll b
sistema de valores, é colocado pelo herói como verdadeiro e lVLorus a Platão. Tal como para AJbc rl i rnt 1cl11~ 1111 11
bom, determinações que não rêm sentido para o espaço dos geô- é necessário interrogar-se sobre a nul urc:w du:• l' ttiJ111 ~ ~~
metras. Esta adulteração do modelo através do trabalho do mito por Morus e perguntar-se se a Utopia ntt\> l·l' t !11 111 wl
mede a importância outorgada por Morus a este instrumento e uma versão modern!l de uma série !Jlc ní rill, d ~· 11pn tlllt
aos problemas que ele deve resolver. da por Platão que teria sido o primciru , prurnh t\l du nl l
Na hbtúria de Raphael, ao contrál'io, a viagem permanece ciar u eu dos díalogadores ao ele do hcrui 11 11 1111 1
abstrata, privada de qualquer determinação concreta. Não cor-
responde a um questionamento de Morus que dela se serve ape-
nas ludicamente. Essa viagem a bordo de navios jamais descritos, O emprego que Morus faz do con~c il u d,· lll ttd,•it,
que aportam indiferentemente em praias familiares ou fabulo- ta com que ele carrega a temporalid mk ::.u·.rl lll tn
~cts, Ga metáfora da viagem no fantasma górico que é o único qu e de uma filiação que p oderia ser definid:t comt' 11 ''' " '
pode dar a um sujeito que escreve na primeira pessoa os meios posição para a Utopia dos temas e teses do fi l<'••.u l" J' H
de resolver as antinomias enunciativas colocadas por (R'). Desde mos nos perguntar se Morus não retomou, pur:t l ' ,,ltll
que se admita essa hipótese, Morus pode dizer eu e ser um outro a concepção platônica da cidade ideal c de Sl:ll \'~ Jl' "· ' 1
nas pessoas de R aphael, depois do herói Utopo, afirmar sua o procedimento de Morus e seu modclu c~ puv11d p1 11
ignorân cia de Utopia e assumi r a paternidade de seu modelo, linha direta , da R epúblíca e das Leis, J11' izt ~ qt utl•, 11
assinar um livro sem aceitar estar implicado nele, sufocar todos inglês nunca escondeu sua predileçiío"?!l~ l'nt'll II"IJ 'tlltol
os acontecimentos, reais e imaginários, sob a ambivalência de um perguntas, reportar-nos-emas, p arl iculunlll' tt h·. lt•t • 111
idêntico presente. que tratam do Estado ideal ou ele E:;l: t d ,,~ ,·wlt<l •iul•
. A Utopia surge, então, como a integração de um núcleo vem com maior ou menor laconi~mu se u I:~ J llt ~• •. I <111
mítrco numa fo rma textual fantasmagórica que, por sua vez, blica, as Leis e Crítias.
proc ede segundo esquemas buscados no mito, mas à maneira da Para quem compara a Utopia à Nepríillh·u. 11111 " "
pa ródia c da dcrrisão. Paródia e derrisão são os únicos meios traste entre a abundância das dcscriçõe~ ,:~ pn r l l tt -. . "'
que Morus encontra para. ao e~t:rever_ na primeira pesso:1 num e sua quase-ausência de outro. As po11U1s 111J;,t' t ' ~~ ~ 11
momento decisivo para a forméição do pensamento racional e- descobrem nu diálogo de Platão são todn s IW)'. Itll l'l t 1
científico, conservar a parte de mito n ecessária à expressão de ligadas ao tema do espaço-vene no . fu ftt l .J, d i •!" 1
seu pensamento. Refinando a análise que, no primeiro capítulo, aliá~, foram retomadas por Mo rus l' llt ·.ttll I l f,•t•llt \
permitiu extrair traços discriminativos da figu ra utóoic1:1 , pude- sen volveu mais longamente d iz n ·:.pi'ÍI· • 11 11• , 1 J,j,,,
mos acrescentar agora que a Utopia é uma forma de texto origi- Estado imaginado por Sócralc~ nu I Íl' lll I \ ', d1 11 d tl 1
nal, in termedi ária entre o mito (anônimo, impessoal e simbólico) tório "ao grau em que seu cn· ~r illlt ' lllt l llll tl " llt l[" 1 1
e a simulação (assinada, assumida por um sujeito e imaginária). ser um"95: no quadro cl:1 sin11tlr••,Z h• · .J, • 11 1 1 11111 11 1
sociedade política" no Livru li , S t~ttlll' ·• 1tl>i lll lllll ol 11
operador mítico. Cf. La Perspective comme to1-me symbolique, t.rad. fr., crescimento demográfico con1 " do·• 111., l' i" tl ' , "
Paris, Ed. de Minuit, 1975. "[A perspectiva] cria uma distância entre o 11 uma perversão96_ A scp.,111 1du 1111· • t \ltl ''" d i " Hi••
homem c as coisas. [ .. . J Mas abole em compensação essa distância
fazendo om cerco sentido penetrar n~é no olho humano esse mundo
das cois:ts r:ttjiL existência autônoma se afirmava em face do homem; 94. O inventário dos 1''11t p 1·•~· ,1 1t1111'1 q 111 r\ IIIH I,. 111 " .,,. h.1h
enfim, Dia IWI\l?. o fenômeno artístico a regr::ls estáveis, de exatidão ú impressionante. Cf. L. B"l%'1 ;t•:ll . ""'"tlllllllt" ~ 1 11 1 1• ttlltl 1'1111"
matemt\Licu. ntosmo, mas de um out::o lado, ela o faz depender do r.ur Geschichte eles Human l>tlllll'l", ···IJ•,. 111 I/I Jll• til•• r """1111
!101110111, cln pn' pdo individuo. I . . . ] É por isso que temos tantas razões wisscnscr..a{t, n.o 35, TUh lt1t:•·" · 111'/11
em cnn ~:d>l't· 11 h f~ tórin ela perspectiva com:l um triunfo do senso do 95. Livro V, 42.3 r". C:l ltllll"" n ll u;ll ~tltll 11.. 1t111, 1'1 " '"·
real, cutt~IILt : Liv o rio rllstfmcia e de objetividade quanto como um triun· " Bibl. de la Plé!ade", J!l~U.
fo desse dese jo rio poclor que habita o homem L . . l" (p. 60). A pa..<;· 96. Livro II, 372 c a'/:1 lt. i\ ut"l til •n 1o d 11 d • u•tu;t• •' ''' "''
sagem intein1 l~ Hlt'ú<:o>·lt• citnçii.o. pregada para estigtnati~u1· u rtt •c•h,dufl•• 1hild11 du "- lll' '""u "
UTOPIA OU A TRAVESSIA DO ESPELHO 181
180 A REGRA E O MODELO

Goldschmidt, todo modelo visível não passa de uma ficção


objeto de alienação que os guardiães do Estado aristocrático ja- fmpialU4,
mais deverão possuir como própria, n ão mais do que nada "onde Mas, se o Platão da República man tém essa atitude com
não possa entrar quem quer que d~seje'-'9'1 . Finalmente, de I?l~- · lodo o rigor, não estaríamos com razão em descobrir um ver-
neira menos direta, o espaço a inda e posto em causa pela protbt- dadeiro modelo espacial numa obra de velhice, como as Leis?
ção de viajar que atinge e~se~ me~mus gilardiães98. Essas três Este diálogo coloca problemas práticos num espírito realista bem
imlicacões concernem, portanto, às cidades das sociedades huma- ufastado da perspectiva metafísica adotada pelos iJ1terlocutores da
nas e t errestres evocadas no decurso do processo dial~tico. Par- Hcpública. Não é, desta vez, um plano-modelo da cidade e de
ticipam do sistema de controle necessário para garantir seu fun- ~cu território que elaboram os três sábios, o Ateniense, Meguilo
cionamento. c Clínias, no decurso do debate destinado a ajudar o último na
Ora, essas cid a de~. mesmo " ideais", nada têm a ver com o missão que lhe confiaram seus compatriotas crctenses: estabele-
Estado-modelo de Platão99. Este, por definição, é estranho ao cer as leis de uma nova colônia? Para J.-P. Vernant, a resposta
mundo sensível. Pertence ao ser verdadeiro, ao mundo das for- não suscita dúvidas. Com as Leis, "a tentativa mais rigorosa de
mas, modelos de todo devir, c que não são localizáveis100 e des- lraçar o yuadro territorial da cidade de conformidade com as
critíveis em termos de espaço. Vê-se q ue Morus vai buscar em exigências de um espaço social homogêneo, estamos à frente, e
Platão o tema e o~ motivos de sua crítica ao mundo sensível Platão o diz expressamente, de um modelo. Esse modelo é ao
J us Estados políticos, mas de nenhum modo sua concepção de mesmo tempo geométrico e político. Representa a organização
modelo, que não é fisicamente visível e ao qual só se pode ter da cidade sob a forma de um ~:squema espacial. Ele a representa
acesso através do logos. Segundo Platão, é precisamente na mt:- desenhada no solo"l05. J.-P. Vernant, com essas palavras, subli·
dida em que nosso mundo espacializado é um mundo decaído 101 nha a especificidade das Leis ao empregar o termo modelo num
que o filósofo tem necessidade, para pensá-lo e vivê-lo, de um sentido inusual em Platão, já que designa no caso uma projeção
modelo. Mas não de um modelo físico cujo conceito seria espacial; construída ao cabo de uma <::xpt:riência sensfve1. Seria
inaceitáveL o caso, por outro lado, de uma entidade comparável à organização
Entretanto, pode pairar a dúvida, e subsistiu já no tempo espacial de Utopia tal como Raphael a descreve? Apesar das se-
de Morus, devido à m<::táfora da visão que Platão usa para des- melhanças evidentes, os dois "modelos' devem ser cuidadosa-
crever o contato do filósofo com as idéias. O próprio Sócrates mente diferenciados.
não se exprime inambiguamente quando tira as conclusões do Sua diferença é comandada por duas concepções do E'spaço-
m ito da caverna e idiea que "será preciso levar [os que tiverem pharmakon, cuja oposição se deve, por sua vez, em definitivo,
obtido o primeiro lugar em tudo] ao final, obrigando-os a voltar c apesar do realismo das Leis, à diferença, já evidenciada a pro-
os olhos para aquil o que fornece a luz a tudo; e, quando tive- pósito da República, dos dois estatutos respectivamente conce-
rem visto o Bem em si mesmo, a se servir desse modelo supremo didos ao espaço p or Platão c por Morus. Essas fronteiras sutis
para o Estado ... " 102, De fato, a experiência da visão é em- HC desenharão, intransponíveis, ao analisarmos em ambos os textos
pregada aqui por metáfora, a fim de q ualificar uma relação para lanto as relações respectivas rlos espaços-modelo com a situação
a qual o léxico não oferece designações, e porque ela procede úc enunci ação quanto seu lugar, seu modo de engcndramen to e
de um sentido menos materialista que o tato. Mas, Platão o diz sua importância relativa no enunciado.
explicitamente, o que está em jogo na República nõo é fisica- Primeiramente, ao contrário do espaço-modelo de Utopia, o
mente visível, pertence a uma realidade superior, de uma ordem, da cidade anônima das Leis não é culu\:auo desde logo na reali-
"o real que é o invisível "l03. Para retomar a fórmula de V.

104. Platonisme et Pensée contempomtnc, op. cll., p. 59. V. Gold·


97. Livro III, 41() d. Cf. ns portas oscilantes das casas utopianas. IIChmidt evoca o momento em que "Timou so pc•·gunl,rL se o Demiurgo
98. Livro IV. lançou seus olhos sobre o Modelo in l.f'l i J~Iv<' l ou o modelo visível". Pros·
99. Cf. Livro I X, 592 b. confirmado por Timeu, 28a, que indica que, 11ogue: "es se segundo modelo é uma pura fi ('Çito rejeitada imediatamente
tonto qunnt.o o universo vislvel, a cidade Ideal não se confunde "com c•orno ímpia. E st6. sobretudo em conLradiçi\o com iodo o platonismo:
seu m oclol() Lraçaclo no céu". 11upondo-se que seja um bom urtc~;íto, c:-~tá claro que não pode tomar
liJlJ. r.;r.. pnm toda essa an6.1ise, V. COLDSCHMIDT, La Religion de t' DtnO modelo senão a forma inll'liglvcl". G. Goldschmidt mostra admi-
Platon, Pul'ls. T'OF. HH!l, republicado em Platonisme et Pensáe contem· •·nvelmente as relações de simctri:L que ligam a ordf!m do m tmdo e :1
porainc, .1\ithlt•t·, 1!170, particularmente o capítulo "Cidade e Universo". urr.nniznçiio do. cidade com as leis cósmicas e políticas, a alma do
101. "'l'ocltL 11 c)t'(lfll n material é desacreditada em b loco" (V. GOLD llll;ndo e os governantes da Rcpú/.JliCIL. Of. também Leis, Livro X, 898 c.
SCHMID'l'. IIJl. t'/1 ., p. 10). 105. J.-P. VERNANT. M ytlw ct Pcn.~ée che2 les Grecs, Paris, :\fas·
102. 340 n lJ. il~l'O, 1965, p. 179.
103. 52!) b.
182 A REGRA E O MODELO UTOPIA OU A TRAVESSIA DO ESPELHO

dade, captado pelo locutor na imediatez de uma presença visual. dicações e~porádicas relativas às prisõesllO, aos túmulos e à
E objeto de uma simulação, designada de pronto como imaginá- ncolhida aos estrangeiroslll,
ria pelo "como se" do condicionni 106 • Em termo> contemporâ- O lugar mínimo que ocupam essas observações no texto ·
neos, os três sábios das Leis constroem um cenário a0 qual, volumoso das Leis contrasta com a abundância e cornplet~.:8m:í~:~
em nenhum momento, nem Platão m:m de~ próprios fing<:m em- dos relatos que Raphael consagra ao modelo espacial dos uto-
prestar uma existência real. pianos. Mas, sobretudo, o local da (ou das) descrição(ões) do es-
Por isso, sempre contrariamente a Amaurota que é desvelada paço-modelo difere nos dois textos. Enquanto que, na Utopia,
imediatamente na totalidade, a cidade das Leis é construída por Morus começa por mostrar o espaço onde se alojam as institui-
etapas, à medida que progriue o Jicílogo. Ouamlo se inicia seu pro- ções-modelo, que ele descreve ap enas em ~eguiu1:1 , n1:1s Leis, a
jeto, no início do Livro IV, os sábios dispõem tão-somente de' um descrição de~se espaço vem sempre em segundo lugar, depois dos
dado espacial, a situação geográfica e topográfica do futuro Estado. debates relativos às instituições e da elabor ação das leis que
Temos de aguardar, em seg:.tida, todo o Livro IV e, no Livro V, regular ão seu func ionumento. Como indica o título do diálogo,
uma série de debates sobre a questão agrária, a demográfica e a u lei está em primeiro plano. E, da mesma f01ma que a verdade
distribuif,:Í:ÍO das riquez~:~s, para que enfim sejam simuladas a do logos precede a lei escrita, que nEo pude revelar se!",ãu urna
organização territorial e a divisão parcelada da Cidade-Estadol07. forma para sempre degradada, o quadro da lei escrita precede
Qu anto à construção propriamente dita, é abordada bem mais c tem prioridade para sempre sobre o espaço construído. Essa
tarde, depois que foi estabelecida uma série de leis concernentes precedência das leis no texto platônico é um sinal suplementar
às relações sociais. Então, alguma·s rápidas páginas são dedicadas do status irremediavelmente bastardo que, de acordo com sua fi-
essencialmente ao problema das muralhas defensiva slOO e à loca- losofia, ele reserva ao t:spaço, e que, ao contrário, é reJeitado
lização hierarquizada dos edifícios. Depois desse esboço"109, a pelo triu nf~tlismo espacial da Utopia.
cidade-" modelo" das Leis não é mais evocada a não ser por in- No entanto, não foi Platão quem, nas Leis, descobriu e de-
senvolveu antes que Morus fosse aí buscá-la, a relação que liga
os esp aços às sociedades e que confirma a noção de modelo es-
lOG. "Empreendamos constituir um Estado como se fôssemos seus pacial? Não é precisamente para tornar as leis imutáveis, fixan·
fundadores originais, e, ao mesmo tempo que precederemos a um exa- do-as e enraizando-as no solo, que ele elabora o quadro espacial
me que é o objeto de nossa pesquisa, ao mesmo tempo, dela farei even-
tualmente meu proveito, eu mesmo, para a constitttiç~.o do futuro Es- da cidade-modelo, tal como Morus, quase dois milênios mais
tado" Cop. cit., Livro HI, 702 d). tarde, confiará ao espaço-modelo de Utopia a tarefa de situ ar e
107. " A cidade será dividida em doze porções, a primeira das perpetuar as instituições criadas por Utopo? Sem dúvida. Mas
quais, que receberá o nome de acrópole, será atribuida ao templo de surge m ais urna diferença. A relação entre espaços e sociedades
H estia [ .. .J; uma muralha a rodeará e é a partir do centro que se
fará, em dm.e po1·ções, o seccionamento tanto da pr6pria cidade ~uanto não é entendida da mesma forma de um lado e do outro, seus
de todo o território. As doze porções deverão ser igua:s com respeito referentes não são da mesma natureza. Morus arrancou a desco-
ao rendimento da terra [ .. . l Q'-'anto ao número de lotes a dividir, é berta de Platão de seu con texto e de seu campo original de apli-
de 5040. Por sua vez, cada um 'desses lotes se~á dividido em du::ts cação, e assim deslocou e subver teu u significado platônico do
porções, loteadas juntas e que, cada uma, estejam uma nas proximi- espaço-modelo .
dades, a outra afastada: s0ndo assim formado um lote único de una
porção que toca na cidade e de uma porção que toca nas extremida- Nas Leis, Platão trata simultaneamente o espaço da cidade-
des [ ... j Como é justo tanbém, aos doze deuses serão depois disso -modelo de duas maneiras , como etnógrafo c como místico.
atribuídos esses doze grupos de lotes de população e de terra, sendo De um lado, graças à dialética da simulação c ao término de um
que a porção que couber a cada deus levP. seu nome e lhe seja con- trabalho de rememoração por mneme, a mc móriu viv11 , ele recons-
sagrada [ .. .l A cidade, de seu lado. comporta também doze :;eções
distribuídas da mesma maneira [. .. l" (Livro V, 745 b, c , d, e). Essa li tui e descréve uma estrutura espaci al qu ~.: 6 a de uma cidade
descrição é completada pelo das aldeias (idem, 843, d, e). desaparecida, a A tenas pré-cl isteni a na, que o curso do tempo e
lOS. O Ateniense se pronuncia contra as muralhas de defesa. TO· o desejo dos homens pouco a p ouco corrompc rum. Para ser pre-
davin, se forem ahsolu~ament.e necessárias, "quando se construírem as ciso, esse esquema espacial n ão é obra e xclusivamente da mneme.
casas dos p;uticulares, lançar-se-ão de tal forma os alicerces que toda
a cicl:1clc forme un-.a única d.e:'ensa graças à uniformidade, à semelhança Ou antes, a lembrança que ela rccnw 111 ruu de um espaço que
de suns l m b!l.~tçõcs que terão todas um sólido tapume frente às vias de upoiava u m sistema de relH ções socia is e políticas, sistema de
acesso · ... 1 O nspecto exterr_o de uma única casa [seria assim] o da s~1ber e valores com dominante r~ ligi osal12 - essa lembrança foi
cidade JnLOll'lt" (trlc m, 779 b). ccampanella re~omar<!. a idéia dessa de·
lensa rto Cl l$ 1lS. ) 11 ldcnLidade das casas trai , aqui também, a desconfiança
com relação ILO l 'SP <lCO que, se prestando à expressão das diferenças e 110. 908 a e ss. no mesmo Livro IX dedicado ao direito criminal.
das singulurlcladeg, (1111'0 cominl1o à hubris. 111. Livro XIII.
109. 77B ~:. 112. V. GOLDSCHMIDT, op. cU., p. 105.
184 A REGRA E O MODELO UTOPIA OV A TRAVESSIA DO ESPELHO 185

em seguida n:daborada, simplificada, " melhorada" p or um tra- tório, redução da superfície urbana, padronização das cidades e
tamento geométricoll3. O fi lósofo obtém assim uma espécie de dos edifícios, proibição das viagensll7, condenação implícita da
organograma cujo espaço homogêneo e indiferenciadoll4 assinala un e arquitetônica 118 . Para Morus, entretanto, o modelo é um
a supen oridadc ontoiógica sobre o espaço efetivamente construí- rl!méd io, e não um veneno. É a forma de um nunca-dito e nunca-
tio e indica a função instrumental. De outro lado, por meio -visto. Enceta e marca a história, com o risco de detê-la em
desse modelo, Platão objeti va restabeh::cer em sua pureza original ~ cguida por seu poder d..; duplicação, herdado de Platão, mas
leis (igualmente reconstituídas) que os deuses doaram à cidade. uo qual Morus atribui um valor positivo . Não constitui um meio
O processo de reconstituição (tética) tem, p ois, a finalidade (reli- tk remomoração e de retificação, mas um instrumento de criação.
giosa e moral) de restabelecer uma ordem transcendente, em cuja. Na ordem ética em que ambos se inserem, o modelo de
concepção os homem; não têm qualquer participação, e que eles Platão ajuda, sob condições; o de Morus salva incondicionalmen-
têm o poder tão-somente de alterar e perverter. te. A eticácia bastarda do espaço-modelo das Leis se deye às op-
Em outras palavras, o modelo espacial de Platão serve para ções profundas da filosofia platônica, ao fato já observado de
fazer encontrar um a ordem perdida. O de Morus, ao contrário, que, para o filósofo grego, o espaço não tem de ser próprio, de
serve para promover uma ordem nova, imaginada e criada pelo que é para os homens a ocasião por excelência de sua perdição.
herói humano, Utopo. Morus desloca e subverte o modelo espa- Essa vocação maléfica do espaço, a predominância mais vi-
cial das Leis dessacralizando-o. O plano de Amaurota resulta gomsa de seu lado negativo recebem, sem dúvida, sua expressão
.• unicamente da atividade criadora de seu conceptor, o herói, po- mais vigoros!"-no mito dos Atlantes do Crítias que se deve con-
lítico e arquiteto, Utopo, que é a máscara última de Morus. Não frontar com o mito da escrita do Fedro. Comparando a austeri-
deve mais nada aos deuses115. Num caso, o modelo é restaura- dade da cidade primitiva de Posêidon, totalmente fechada em
dor; no outro, é instaurador . si mesma, com o esplendor da capital em permanente expansão
Enquanto pharmakon, esses modelos não têm, portanto, em que se tornou graças à arte dos Atlantesll9, Platão pretende
nem a mesma natureza nem a mesma eficácia. Nas Leis, tão logo úesignar e estigma tí:tar a perversidade do construir. A sofistica-
mneme realiza seu trabalho de anamnese, ela fixa e cristaliza seu ção de sua organização aberta para o futuro e a suntuosidade
resultado na lei escrita e no esquema espacial da cidade ideal. de sua arquitetura assinalam a perda de uma sociedade que sua
Mas, na própria medida em que a escrita e o construído parti- lwbris leva à catástrofel20. Para Morus, quaisquer que sejam
cipam ambos do não-ser do espaçol16, o modelo, como a lei es- seus perigos e suas miragens, o espaço é realmente ambivalente.
crita, não pode mais desempenhar senão um papel mecânico. Comporta uma face autenticamente benéfica.
Coloca em jogo apenas a hypomnesis, a falsa memória das for-
mas exteriores, e assegu ra lão-somente a indefinida duplicação
dos processos e comportamentos redescobertos pela verdadeira Voltemos aos dois termos indutores - mito e simulacão -
memória. Para Platão, o espaço continua sendo uma potência que levar am a colocar a Utopia sob a invocacão de Plarão: no
oculta e suspeita, seja ele en carado como mal ou como remédio: cu rso dos diálogos citados encontramos realmente essas duas for-
contraveneno (sob a forma de modelo), entretanto continua vene- mas cuja utilização trai um novo e irredutível afastamento entre
no. Morus, por sua conta, retoma parte das reservas de Platão para o filósofo grego e o humanista inglês.
com um espaço que, a cada instante, ameaça a interioridade do su- Em seu processo especulativo, Platão sempre separa u mito
jeito; luta contra os sortilégios do espaço com meios diretamente c o pensamento racional, com o incovenicntc de jogar al ternati-
bur.cados na Repzlblica, nas Leis e no Crítias: insularidade do terri- vamente com os dois. Para ele o mito é um modo de conhccimen·
to secun dário e uma escora da dialética. Mesmo quando lhe
113. Leis, Livro v, 746 e. 118. I dem, 950 d.
114. J.-P . mostrou muito bem a anomalia que representa
Vernan~ 119. Ao fechamento total de uma ilha isolnd!t por "verdadeiras rodas
para o "anti·Clístenes", defensor incondicional da tradição, essa repre- de terra e de mar, duas de terras c três de mnr, como se, a partir do
senl.ação do espaço "de maneira mais sistemática ainda do que em centro da ilha, [Posêidonl tivesse feito nndnr um torno de oleiro [ . . . l
Cllslcncs perfeitamente homogêneo e indiferenciado" (op. ctt., p. 181). tornando assim inacessível aos h omen::. o CU I'Il~O da fortolczn" (Cri·
115. NiLO penso em contestar o tom profundamente religioso do tias, 113 d l, Platão opõe o sistema complexo de comunicação por meio
livro de Mnms. ncerca do qual pôde J. IIeJd:er, a justo título, fazer urna elo qual os Atlantes tmem todos os locn ls elo território entre si e com
meditt\ÇÚO sobl'O o pecado, mas desejo sublinhar o fato de que a Utopia o exterior . Quanto aos próprios cdiCI::Ios, notáveis pela riqueza de seus
põe em C('IH L 11 1-mnsformação radical de uma sociedade pelo poder de materiais, estão dispostos n umn ordom hierárquica, bastante próxima
um llomum. l'HI1L Plut.iíu, a lei da cidade é e continua sendo de origem ela cidacie das Leis.
divina., como n lei <111 geometria. 120. "E cada r ei, recebendo to palácio] de outro rei, ornamentava
116. cr. J. DJ•:R.JUOA, op. cit ., pp. 125 e ss., 142. os embelezamentos anteriormente m llzados, ultrapassando sempre tanto
117. Leis. 950 d. o. quanto lhe fosse possível o seu p redecessor" (op. cit., 115 c).
190 A REGRA E O MODELO
4. A Posteridade dos Dois
funciona como o mito que ela não pode e não quer reconhecet·:
resolve antinomias e contradições no plano simbólico. Nesse sen-
tido, L. Marin denuncül'lhe a justo título o caráter livresco, o fa to
Paradigmas
de que ela curto-circuita o trabalho real e de que não é apoiada
por qualquer t:stratégia política. Nesse aspecto, a Utopia conti-
nua sendo um texto oblíquo e não-realizador, que somente uma U N ~''-' p
falsa simetria pode contrapor ao De re aadificatoria.
No entanto, o que se pode co11siderar como sendo a vocação
"ideológica" da Utopia não deve levar a negligenciar o sentido
e as consequêncías do papel que essa atribui ao espaço, poderes
exorbitantes de que ela o dota no plano do imaginário ou da
ficção. O núcleo mítico da "Utopia põe em prática o dispositivo
extraordinariamente engenhoso imaginado por Morus para reali-
zar aquilo que denominamos o estágio da utopia e que se poderia
também designar como o estágio do espelho social. O herói Utopo
é necessariamente um arquiteto. A Utopia anuncia e enuncia
uma ·nova eficiência do espaço construído cujos poderes ela per·
mitc, de novo, como no caso da liberdade, desenvolver e
suprimir.
Mas se se revelam dessa forma o valor sagrado da edificação
e ·o poder das transgressões a que pode expor seus conceptores,
uma .vez liberados da tradição, o modelo espacial concebido por
Morus não deixa de ser um instrumento realizável. No momento
azaúo, quando as sociedades ocidentais enfrentarem concretamen- Se o De re aedificatoria celebra o tempo, que carrega consigo
te os problemas que Morus se colocava de maneira abstrata, ele u vida e a morte, a criação e a destruição, se a Utopia pretende,
poderá surgir como um meio conjuratório não mais apenas sim- ut> contrário, escapar ao tempo e exalta a eternidade, cada uma
bólico, mas operatório. Lh.:ssas duas 'figuras conheceu, no curso dos séculos clássicos, o
Assim, com a Utopia, Morus t.:riou uma figura de texto para- dcstinq que, segundo ela previra, seria o dos espaços edificados:
doxal - um mito na primeira pessoa - de tal modo ajustada u degradação mevttãvel num caso, a permanência no outro.
à.s problemátícas das sociedades e da cultura ocidental que não
cessou de proliferar no tempo, até nossos dias: permanência que
testemunha ao mesmo tempo a vitalidade de certas proibições e I. O DESTINO DOS TRATADOS DE ARQUITETURA
a nossa incapacidade de nos libertar dos proct:~sos míticcs. Tsto
porque, embora ao contrário de um mito a figura utópica seja I . 1. A Primeira Geração
a criação assinada de um autor e possua pois uma versão original, Ligeiramente posteriores ao De re aedificatoria, dois outros
como no caso dos mitos, ela é parte integrante de um processo lrulndos foram escritos no século XV, o 1'rattato cl'architettura de
de reprodução. O sentido da Utopia se realiza na série das ver- l'h:ro Averlino, o Filareto, composto em MiHio entre 1451 c 1465,
sões, mais ou menos ricas e completas, produzida~ pdos sucessores u o Trattato d'architettura civile e militare ele foranccsco di Gior-
de Morus. Veremos, graças a um ültimo paradoxo e a um novo }-110 Manini, verossimilmente elaborado cn ln: 1481 c 1492. F.ssas
desvio, algumas dessas versões arrancadas de sua vocação sim- duus obras continuaram manuscritas até o século XJXl. Sua difu·
bólica para participar diretamente da instauração do mundo
construído. 1. Quando conhP.l'..eram apenas edições pnrclnls. Serão citados aqui
n 111 duns edições criticas recentes: FlLARE'I 'O, Treatise on Architecture,
11tl, cit., supra, p. 59); nossas citaçõc.'l romclcrúo à~ páginas da traduç!l.o
IIIHlosn (t. I) c aos fólios conosp onclcntos do m anuscrito sobre o qual
lllil ltfoi estab elecida, as edições em itullano, somente aos fólios do mes·
1110 manuscrito, publicado em fnc-slmlle por J. Spencer em seguida à
" 1111 Lrndução (t. li); FRANCESCO DI GIORGIO MARTINI, Architettura
••lullc a militara, t. II da edição dos Tratta.ti di arch!tettura, ingeneria
., tll'tll, estabelecida por c. Maltese e L. Maltese Degrassi, ~Iílã.o, Il Poli·
fiiOJ, 1067.
192 A REGRA E O MODELO A POSTERIDADE DOS DOIS PARADIGMAS 193

são e sua influência não foram, portanto, comparáveis às do De q ~1 C, se não são formulados com a mesma clareza que no De re
rc aedificatoria que as domina, além disso, pelo rigor da compo- cradificatorid'~, são todavia dominados pelo axioma do edifício-
sição, pelo nível de abstração, pela extensão e pela qualidade da ·corpo. Filareto o enuncia no início do .Livro I para em ~;eguida
cultura de que dá provas. t'iJareto evita as s ujeições de uma comenlá-lo longamente, ao passo que Francesco di Giurgio o
exposição teórica sistemática, escolhendo ilustrar as regras da desenvolve nos desenhos antropomórficos de colunas, igrejas e
edificação por meio de um verdadeiro " romance"2 que lhe per- cidades dos quais seu texto fornece a explicação e especifica as
mita dar livre curso à sua fantasia. Ademais, o notável conheci- correspondências, órgãos após órgão. Do mesmo modo, esses
mento da cultura contemporâm:a3 que de demonslra não se alia princípios são manuseados com soberana autoridade pelo autor-
a uma erudição histórica equivalente: no correr das })áginas, ·urqu iteto-herói, grande ordenador do mundo construído, que Fi-
descobrem-se inexatidões e ingenuidades que, sob a seriedade do lurcto compara a Deus. Meditando sobre a diversidade inesgo-
humanista introduzido na cultura grega por Filelfo, traem o túvel dos edifícios, entre os quais como no mundo das criaturas
neófito. Quanto a Prancesco d i Giorgio, ele, de seu lado, não humanas, não se descobrem jamais dois exemplares idênticos,
equilibrou os volumes respe<.:tivos da::; :;t:te parles de seu Tratta- Filareto lê neles o sinal de que, " lendo Deus feito o homem à
to4, nem uniu est as partes por meio de um verdadeiro encadea- Hua imagem e desejando que, por sua vez,. ele possa criar <.:un·
mento cronológico ou uma relação generativa, nem mesmo tentou, forme essa imagem, o homem exprime sua divindade na infinita
em nenhum lugar, dissociar teoria e práticas. diversidade de suas construções"lO.
No entanto, os tratados de Pilareto e de Francesco di Gior- Se as construcões textuais de Filarcto c de Francesco di
gio se referem, ambos, expliciti:lillente ao De re aedijicotoria6, G iorgio não acusat; a mesma perfeição que a de Alberti, pelo
inspiram-se nele e participam da mesma postura instauradora que menos revelam identicamente a história de um sujeito, contra·
esse. De parte a parte, um idêntico recurso ao relato autobiográ- ponteada pelo mesmo jogo de regras e esquemas de fundação, e
fico7 traduz o mesmo regozijo de um sujeito criador, de desejo u~sinalada semelhantemente, no plano semiótico, pela p rimeira
insaciável: "As invenções [concernentes aos templos] podem pros- pessoa do singular e seus shifters, com as alternâncias verbais
seguir infinitamente", escreve Frances<.:o, e, da mesma forma, c..: nlre um presente do indicativo, aparentemente dominante, um
"seria um processo infinito" descrever todas as fortalezas inven- possaclo insidioso e os tempos e modos (imperativo, subjuntivo,
táveis pelo espírito humanoS. Como em Alberti, o engendramento futuro do indicativo) próprios para a formulação elas regras.
do construído c sua disseminação, nunca coneluível, no espaço, Esse conjunto de traços comuns permite concluir pela exis-
são efetuados pel a aplicação do pequeno número de princípios 16ncia de uma primeira tradição tratadista no século XV, à qual
<.: uda um Jus uois lra tados posteriores ao De re aedificatoria traz
uma contribuição específica, e para nós antecipadora, na medida
2. É aliás corno um romance, c da maneira mais inesperada, que c.; m que um aprofunda, desenvolve certos aspectos da criação al-
começa esse "tratado": "Eu me achava um dia num local onde feste-
javam um senhor e várias outras pessoas", p. 4, Livro I , 1.• linha, f.• IV) . hortiana, enquan to o outro já parece desconstruí-la.
3. Cf., por exemplo, a lista dos pintores evocados a propósito da
decoração da "casa do vício e da virtude". Deplorando ll morte de Ma·
saccío, Masolino, Veneziano ... , Filareto sugere os nomes de artistas ul- Para expor a teoria da edificação a um público p retens:1meme
tramontanos ainda vivos: Van Eyck, Rogier de la Pasture, Fouquet
(Livro IX, f.O 6 gr., p. 120). muis amplo e menos letrado que o de Albertill , Filareto escolhe
4. o primeiro tem vinte e duas páginas, o quinto setenta, o sétimo
do:.:e.
5. Cf. C. MALTESE, op. cit., p. XVII: "ele apresentava a particula- O. Cf., por exemplo, os seis capftulos do primeiro livro do Tra-
ridade de não poder conceber que a exposiçií.o teórica pudesse estar 111/to de Francesco di Giorgio, e a maneira eomo, no ~cguncl o, es:se
separada de sua prática pessoal de todos os dias". l.nlta alguns dos seis prinr.íp10s de Albcrli c:omo p(atc.~ ela casa (estando
6. No que diz Iespeíto ~:. Filareto, já no inicio do Livro I, f.• 1 v. cllssociados portas. janelas, esc::ada rias, c.:ll am in 6~). 1ts quais ele acres·
Quanto às relações de Francesco di Giorgio Martini e Alberti, cf. o pre- nunta as latrinas, despensas, estrcbnrin."' c r:elcl ror;. Para Filareto, cf.,
fácio do C. MALTESE, op. cit., p. XLVI, onde este explica, em particular. on ~rc outras. ns dificuldades de sua clnssificut;ito tripartite (públicos, pri-
como 11 publicação por Poliziano, em 1485, do De Te aedi{icatoria obrigou VIlCios, sagrados) das diversas c..'l.lüt(• n·i:t~ elo cc!Hlcios.
l''rancosc:o di G!org!o a refazer inteii amente a primeira versão de seu lU. Op . cit., p. 5, f .• 5 r e v.
projc.: to do Lrntudo. 11. A seu interlocutor fict;ício no Início do livro, Filareto especifica:
7. Cf. pnrticulnrmente, de um lado, a dedicatória do Tratado dr• "I AII.Jertil é um dos homens muis eruditos de nosso tempo. L .. J Ele
Filaroto, tlopi>11< o~ inúmeras alusões a suas difP.rentes obras arquiteto· cw:rovcu seu elegantíssirno [trn.Laclo elo u rquitetural em latim [ . . . J quan·
nicas c us c:tllltllcnos rlc sua criação; de outro lado, o "Preâmbulo" de t.o n mim que não sou por demais vorlto nas letras, escrevo em italiano,
FRANCESCO DI CIJORGIO, op. cit., pp. 204-295. n ompreendo esse Lrabalho unicamente porque amo e conheço essas
8. Op. cit. "Po rochl le invenzioni possono procedere in infinito'' cllnclplinas, o desenho, a escu!Luru e a arquitetura, assim r.omo várias
(Quarto T rattnt.o. p. 'l iD . "pro cena infinito" (Q1ânto Trattato, p. 403}. n11tros coisas e porque reali:?.ei pesquisas que terei ocasião de men-
194 A REGRA E O 1'40DELO A POSTERIDADE DOS DOIS PARADIGMAS 195

pois a ficção. Finge ter encontrado, por ocasião de um banquete, ouvinte-leitor assiste 'sucessivamente, e sempre segundo o mesmo
um conviva apaixonado por arquitetura, que estaria pronto a método, à colocação da malha viária e das praçasl7, depois à
"pagar grande importância a alguém que [lhe] ensinasse como localização e à construção individual dos diferentes edifícios pú-
e a partir de que medidas se pode realizar um edifício bem pro- blicos (sagrados ou profanos) e privados, cujo conjunto forma
porcionado, quais são as fontes dessas medidas e por que se uma cidade. A cada vez, o programa é detalhado com uma mi-
raciocina e constrói dessa maneira, e também quais são as ori- núcia para a qual concorrem, por seu desenvolvimento dialético,
gens do construir"l2. Depois de indicar rapidamt:nte o:; princí- 1\ imaginação de Filareto e a vontade política dt: seu príncipe.
pios gerais de sua arte, assim como as origens e a taxionomia dos Muitas veze:;, a discussão sobre os u sos a que devem servir os
edifíciosi3, Filareto decide fazer com que seu interlocutor com- diversos edifícios é ensejo de propostas originais e inovadoras:
preençla seu manejo por meio de um exemplo concreto. Nc curso nssim, no caso dos hospitaislB, ou da escola experimentul para
de um segundo relato, que se insere no primeiro, conta-lhe então vinte e cinco criança onde cada uma possa desenvolver seus dons
como p rocedeu para a construção de uma cidade14, Sforzinda, particulares, graças a um ensino modulável que comporta ao
para um cliente privilegiado15. Esta não será descrita como um mesmo tempo as disciplinas intelectuais e as manuais19.
modelo dado como exemplo, proposto à imitaçãol6. · Serve para A aventuras20 dos protagonistas21 do Trattato de Filareto só
ilustrar um processe c a aplicação de um método; constitui, para são fantasiosas na aparência : não há um~ que não sirva para
o arquiteto, a ocasião de verdadeira simulação que, em sua or- introduz-ir, na lógica da ficção, um momento específico da expo-
dem de seqüência, retoma as etapas do processo de edificação sição das regras edificatórias, para assinalar uma das articula-
e as reproduz, repetindo simultaneamente o diálogo do arquiteto ções de um livro que, embora de maneira mais atraente, ~ no eu-
com seu "senhor": diálogo que, ao mesmo tempo, dá prioridade janto construído como o De re ·aedificatoria, com o auxilio dos
à teoria sobre a prática, e comenta os momentos sucessivos de mesmos operadores22, e cujo tempo de desenvolvimento textual
que os dois interlowtores têm a iniciativa. repete o tempo real das operações de construção. Não pretendo
Filareto relata, pois, em primeiro lugar, a concepção, depois desenvolver aqui detalhadamente a homologia das duas obras
a exposição gráfica do projeto, levando em conta um sítio cuia de Alberti e Filareto, limitar-nos-emas a assinalar quatrv parti-
escolha prévia resulta . de observações aprofundadas. Após cularidades do Trattato, relativas respectivamente à cidade, ao
discussão e aceitação do desenho executado pelo horriem da
desejo e ao prazer, ao desenho e às relaeões da estrutura miti-
arte, seguem a constmção de uma maquette, depois o armazena-
:~.ante do texto com os relatos de origem:
e
mento dos materiais a reunião da mão-de-obra necessária.· Tudo
A medida que Filareto prossegue em seu segundo relato e
está pronto, então, para empreender a fundação das paredes, que
será precedida da ·colocação da primeira pedra. Em seguida, o que se escoa o tempo da ficção, o ouvinte-leitor assiste ao engen-
dramento das mesmas categorias de edifícios urbanos23 que no
cionar mais adiante. É por isso que sou bastante presunçoso em pensar De re aedificatoria, porém mais estreitamente subordinadas à
que aqueles que não são tão eruditos ficarão satisfeitos com minha
obra e que aqueles que s!l.o mais hábeis e têm mais erudição em ma·
téria. literária, lerão os autores mencionados mais acima. [Vitrúvio e Al·
berti]" (Livro I, p . 5, f.• 2 r). 17. "Quando os muros foram terminados, ele lo senhor] me man-
12. P. 4, f.• 1 v. tlou buscar e me perguntou o que eu queria fazer em seguida. Respondi
1:~. Livro I e Livro II (ou s eja, dezoito páginas das trezentas e ttllO queria pôr a cidade em andamento, org-anizar as r uas, as praças
oito) , até o Livro I, r.u 11 r, onde começa o segundo relato. r ... ]" (p. 65, f.• 37 v) •.
14. P. 21, Livro I e início do Livro II, até o f .• 11 r : "Pretendo 18. Livro XI, especialmente p . 139, r.• BO r.
edificar uma cidade na. qual construiremos todos os edifícios necessá· 19. Livro XVII, pp. 228 e ss., f." 1~2 r.
rios, cada um segundo as ordens que lhe . convêm [ . . . l Mas antes de 20. Pescarias e caçadas, estadia improvisada om casa dos campo· .
poder construir, é preciso que converse a respeito com aquele que o\o~es serão, por exemplo, oportunidade do julr;nr ela qualidade do sítio
a.ssumirá a despesa [ ... l E antes de tudo lhe propore! tun desenho [ ... l (t~:colhido p ara a cidade e de enuncim· tL~ rcgmll que presidiram esta
Creio que descobri o meio de satisfazê-lo e vou encontrá-lo nesse m o· oncollla, enquanto que a descohmta do mfnus elo mármores introduzirá
monto em que não está ocupado demais". lt teoria d os materiais.
15. Cópirt ele Prancesco Sforza que encomendara a Filareto o hos- 21. O arquiteto, o príncipe, o fil ho deste, aos quais devemos acres·
pital ele Mlliio. ('\U1t.ar t odas as personagens sccunch\rlus que encontram (fidalgotcs, pas-
lG. F: 11111 OJTO que inúmeros comentadores hajam considerado Sfor· Lnr-os, pescadores . . . ) ou solicitnm (O anacoreta, o intér prete da corte,
zindo. como tll11tL utopia. Construída progressivamente, não sendo em 11 mulher do príncipe .. )
nenhum momo11to erigida em modelo ou proposta para transformar prá- 22. Não designados como tais pelo autor·.
ticas sociais. ao contrltrio <!~. Gallisforma do Livro de Ouro que apre- 23. A talcionomia de Fi.larct:> é mais detalhada que ·a de Alberti.
senta pelo menos alguns traços seus (cf., supra, pp. 40 e ss.), ela aadu AHnhn, entre os edifícios pmfanos "comuns", conta as tabernas, os bor-
tem a: ver com ulopl:;t. i l úl~ e os albergues auen;a dos quais seu p redecessor nada diz.
l96 A REGRA E O MODELO A POSTERIDADE DOS DOIS PARADIGMAS l97

totalidade d8 projeto urbano . Se, para Filareto, o objeto de seu mam um casal, unido por um verdadeiro amor27, onde o homem
seu fim derradeiro, como Sforzinda é o de um relato que ter- 6 o cliente, incapaz de conceber por seus p róprios m eios, e a
mina q ua:J.do, finalmente, ela se perfila inteira ao céu da Lom- mulher o arquiteto que traz consigo seu projeto comum antes
bardia. Longe de ser um momento e uma modalidade particular de pôr no mundo, como um corpo vivo28, o edifício de que ele
da edificação, a cidade, como conjunto de edifícios, ~e torna a é a "mãe"29. ·
sua expressão sintética. Nunca, até a Teoria Geral da Urbani- Isto porque, de outro lado - e é esse o segun do objeto do
zação de Cerdà, no final do século XlX, a cidade conhecer~, desejo do arquite to - o edifíc io é um corpo . A leitura do
nas obras dos teóricos, uma presença tão imperativa. Trattato de Filare to dá sentido e alcance à afirmacão de Alberti30 .
Tampouco nunca se terá marcado com tamanha força o papel lá na dedicatória a Piero de Médicis, o corpo hur;tano é culocado
do desejo e do prazer na gênese cio mnndo edificado. Alberti fo ra o ~.;omo paradigma e analogon31 O axioma do edifício-corpo, mui-
primeiro a lhes abrir o domínio do construir, mas em termos enco- to mais insistente e desenvolvido32 que no De re aedificatoria,
bertos, quase calando o nome do desejo, sem designar sua ligação aparece como o princípio fundamental da teoria e da estética
com o prazer que ele transformava no emblema do terceiro nível filaretiana, Uma segunda relação erótica dá forma , pois , ao com·
sem que se afírmc.sse claramente o papel rneJiauor do corpo nesla truir. Desta vez, ela une n~o mais Juis homt:ns, o arquiteto e
relação. Filareto, por sua vez, introduz em seu tratado o termo ~eu padrão, mas cada um deles flo belo edifício .
desejo (desiderio) com seu halo de conotações libidinais, e ap~·e­ Antecipando mais explicitamente qu e Alberti a teori:t freu-
senta a relação desejo-prazer (piacere) numa encenação dró!má- diana do belo33, Filareto implica diretamente o corpo na gênese
tica que revela todas as implicações do axioma do edifício-corpo,
particularmente a dimensão erótica da estética arquitetônica. 27·. Filareto insiste, inúmeras vezes, n a necessidade, para o cliente,
"Construir [diz ele] nada mais é que um prazer voluptuoso, não só de r espei tar mas de amar seu arquitP.t.o (p. 18, p . 200) e, para
como o de um homem apaixonado, Quem quer que faça a ex- ole, o apólogo de Din ocrates se resume no amor que Alexandre dedi·
cava ao arquiteto (p, 21) .
periência sabe que existe no ato de construir uma tal quantidade 2B. "No segundo livro, veremos como o edifício é engendrado do.
de prazer e de desejo que, por mais que um homem faça nesse mesma maneir a que o cor po do homem" (p. 15, f .• 7 r).
campo, sempre quererá mais"24. Essa declaração não é unívoca. 29. "Da mesma forma que nenhum homem pode conceber sem
uma mulher, [. . . J o edifício não pode ser concebido por um homem
Visa, de fato, dois diferentes pontos de ancoragem do desejo no fiOzinho [ . .. l aquele que deseja cons~rui: tem necessidade de um arqui·
processo do construir. t:oto. Concebe o edifício com ele e em seguida o arquiteto o carrega.
De um lado, o desejo de edificar se exprime graças à relação Quando o arquiteto dá à luz, torna.se a mãe do edifício. Antes d o
parto, deve sonhar com sua concepção, p ensar nela e examiná-la em
privilegiada que mantêm entre si o arquiteto e seu client~ e no ,;eu espírito de inúmeras maneiras, durante sete a n ove m eses, exata·
curso da qual, por sua vez, cada um exprime uma demandél que mente como umEI mulher tr az um filho em seu seio [ .. . J Qua ndo
o ou tro deve satisfazer: ao p ríncip e que exp rime seu desejo e, oco:reu o nasci:nento, isto é, quando realizou em madeira uma peque·
à demanda do arquiteto, explica e justifica seu detalhe, esse últi- nn maquette do edifício, dnndo oom precisão sua forma e suas propor-
mo responde com um projeto que integra seu próprio desGjo~5 e ç5es. então ele o mostra ao pa;" (Livro II, pp. 15·16, f ." 7 vl. Filareto
r etoma a. metáfora da concepção e da geração p ara descrever a e lab o·
ao qual, por sua vez , o príncipe deve responder, A essa relação, ração do projeto de Sforzinda. A cidade realizada tmrá o nome de seu
cujél dialGricCl escand e todo o seu livro26, Filé!reto dá , de imediaLO, pai (Sforza) ; no desenho i nicial ela se chama rá Ave rliano, do nome t~e
sua dimensão amorosa. A s~us olhos, os dois protagonist3s for- HUa m ãe (Averlino) (p. 22, f.' 11 vl .
30. Cf. supra, p. 78-79, 89·90, 125.
31. Pp. 10-ll, f." v r e v.
32. Não se encontra no De m acclificatoria r::em a metáfor a da ges-
24. Livro II, p. lG, f.• 8 r : "N on e altro lo hedificare se nane un ~nção com: suas diferen:es fases , nem a do c rescimento , da nlim entação
piacere volunptario chome quando l'huomo e innamorato chi !a pro- u da formação, quando o 1'ratta.to :ndica . por r)xomplo: "O edifício é
vató ilsa chenello hedificare et tanto piacere et desiderio che quanto ronlmente um homem (lo rl'imosterro lecli.Jic:to r·s.w.: proprio uno huomo).
JJi?i l'lwomo ta pt?i vorrebbe tare". Verás que ele de'/e comer para viver e>mtnmontu com o o homem [. . .l"
2G. "É preciso fazer-lhe diversos desenhos da concepção que ele (p . 12, Livro I, f.' 6 r). O tema da clocm;ll o ela decrepitude é t rat.ado de
elnborou com o patrão, segundo seu próprio prazer (secando !a vo- ntnneir a dramáicca por Filarcto, par ticulnrmcnte por ocasião do episó-
lula sua)" (p. J!;, f .• 7 v). tll o da descoberta de Plusiápolis CLivro XIV, p . 184) . Cf. também P· . 45:
26. Essn 1·olnçüo é descrita de forma genérica na primeira :;>arte "Uma cidade deveria ser cumo o corpo humano e, p or e ssa razão, cheiu
teórica do trn~ndo (Liv ro n, pp. 15·lfi l . Em seguida , é retomada no dnqu:to que abr e a vida ao homem [ .. . l Não há outra coisa nesse
r elato da coo~f ru~:f\o de Sforzinda, pela primeira vez f.> 11 r, p. 21, mundo se:1ão a vida e a m orte. Uma ridade dura o tempo q ue lhe foi
depois rcCornllllndo, do livro em livro, a p ar tir êo esquema inicia:, CH>ncedido".
onde o clesrjo, C)nnlq uor C'[tlo seja o do arquiteto ou o do príncipe, é 33. Cf. supra, p. 125. Cf. wmbém: "Parece-me ind iscutível que a
igualmente d<~Sil{tllldu pula "s1/.ll volunpla" . ldúill. do 'belo' tem suas roízcs nn excitação sexual, e que origina~iamente
198 A REGRA E O MODELO A POSTERIDADE DOS DOIS PARADIGMAS 199

do Bentimento estético. O edifício adquire sua beleza pelo fato do iriterrnediário gráfico é, aliás, tão bem sentida pelo cliente
de :ser construído como um corpo. E assim proporciona a cada que pede ao arquiteto que lhe ensine essa prática a fim de
um d9s dois parceiros um prazer indefinidamente renovável, ao facilitar suas relações e uma feliz gestação da cidaJe38.
mesmo tempo que· suscita indefinidamente o, desejo de novas Essa referên cia insistente ao método gráfico se completa
criações. O papel fundador que ·o Trattato atribui ao corpo, o Cl?m os desenhos que fazem parte integrante do manuscrito de
status que ele designa ao espaço terrestre, sempre ofertado ao F'tlareto. Alguns têm uma simples função narrativa, ligada à do
· de:sejo de t:dificar, o afloramento permanente do prazer carnal ''romance": um croqui fixa então uma p aisagem ou um encontro.
que ele revela como um referente do prazer de edificar, e~se ~nt.retar~to, ~ maioria das il ustrações dividem entre si três papéis
conjunto de marcas, que recusam a tese de um platonismo de Fi- md1ssoctávers no processo de produção do construído. Tais ilus-
larcto34, confirmam do mesmo modo minha interpretação da trações aparecem, em primeiro lugar, como o meio do arquiteto
estética arquite tônica de Alberti. ~lU' a entender intuitivamente, com facilidade e rapidez, a seu
· O desejo de edificar, seja o do príncipe seja o do arquiteto, Interlocutor-leitor, algumas operações que exigiriam longas expli-
não pode engendrar edifícios a não ser por meio do desenho. cnçúes ou seriam condenadas a permanecer obscuras: é o caso
Não que o construído seja tão irredutível ao desenho quanto às tanto para um relato de origem como o da abóbada39, quarH0
palavras3 5. Pilareto é o primeiro a insistir no fato de que a para um processo tecnológico como o da fabricação do ferro40.
impre~~ãu produzida por um edifício real é imprevisível a partir Depois, o desenho é o meio de testar o bom entendimento entre
áe um projeto desenhado. Mas, ao contrário de Alberti que, essen- o prático e seu cliente cujo desejo se insere em duas dimensões
cialmente preocupado com o papel da teoria na gênese do mundo untes de chegar à tridimensionalidade41. Enfim, o desenho firma
edificado, eliminou de seu texto o desenho e se limita, no caoí- 11 criatividade do arquiteto, dá-lhe fundamento e a estimula. Não
tulo dedicado à formação do arquiteto, a citar o desenho entre só é através dele que o conceito tomo forma, mas também possui
as técnicas necessárias, Filareto não cessa de referir-se à .<Jtivi- sua autonomia, seu dinamismo próprio, que desafia a espera e
dade gráfica do prático e começa por ela seu caminho teórico. dá acesso ao imprevisto. .
O diálogo mostra-o bem que, ao longo do relato da construção Vê-se, portanto, que em Filareto o desenho se afirmt~ como
de Sforzinda, alterna o " desenha-me o que vais fazer" do prín- parte integrante e instrumento indispensável da criação arqui-
cipe36 com o "vou te fazer o desenho daquilo a que correspondt: tetônica. Tanto como ilustração do texto quanto pelo lugar que
o desejo que acahas de expressar"37 do arquiteto. A necessidade nele ocupa, surg<:: como um verdadeiro meio-termo entre o verbo
c o construído. A esse respeito, a figuração gráfica de Filareto
se relaciona ao mesmo tempo com o corpo de operações é de
não designa ouLra coisa senão o que excita sexualmente" CTrois E.qsais princípios gerais que escora todo ato construtor em geral, e com
sur la sexualité, op. cit., p. 173).
34. Embora reconhecendo o interesse do traba.:ho empreendido por n operação concreta, particu];u e exemplar , que é a construç?o
J . Onians ("Aiberti and Fi:arete, a Study in their Sources", Journal ot de Siorzinda . Enquanto os tratados da era clássica atribui rão
th~ lVarburo and Courtault Institue, t. 24, 1971) para mostrar a contri· no desenho a função principal de constituir catálogos de edifícios
buição do helenista Filefo ao trabalho de Filareto, e como, em parti· Hpicos, Filareto, excluindo do Trattato toda ilu stração que não
·. cular, lhe permitiu ser o primeiro cios estadistas a privilegiar . o papel
da arquitetura grega com relação à romana, pensamos entretanto que levasse às condições hic et nunc da simulação, permanece fiel ao
J . Onians supe~estima o platonismo de Filareto (da mesma maneira que procedimento generativo de Alberti, mas desenvolven do-o e expli-
exagera a Influência do De O/t!ctis sobre o De re aedijtcatoria). Os em· cilando-u.
préstimos de Filareto aos Lrês livros de Platão '(Timeu, Crttias, Leis) s1io Finalmente, o grande rela to mitizantc do paradigma alber-
anedóticos e encontramos aliás parte deles no "latinizante" Alberti. O
sentido do livro não é dado por seus temas, mas pelo uso que deles se ti ano assume, em Filoreto, uma dimensiio nova c, graças a outros
faz e pelo propósito ao qual são ordenados e subordinados. Quanto à
analogia, alegada :;>or J . Onians, com a composição das Lets, é ainda
mais superficial e .formal. O hedonismo de Filareto, seu deleite na cria· 38. P. 104, Livro VIII, f.• 60 v; p. 92, L!Vl'O VII, f.o 53 v; e p. 93,
çfio arquitetônica se inscrevem no oposto do ascetismo platônico e não rn. 54 r.
t raem qualq~er vontade de reforma ou de modelização social . 39. Livro VIII, f.• 59 r, p. 101: "A nh !lb nda foi descober..a quando
35. O que será o edifício, depois de realizado, "nem o dei'õenho nem 11 p essoa que oonstruiu a primeira h aiJltuçüo, <.lu palha ou de outra coisa,
as paluv:·n:i nodum deixar prever" (p. 128, Livro X, ts. 74 v ) . volo n fazer a porta. Penso que ela tomou um pedaço de madeira fle-
3G. cr. " Q :tOI'CS que te diga como será [nossa cidade]? Desenhe-a .dvol, recurvou-o e faz assim um somicírculo". Todos os relatos de ori-
primeir tlmoni,o o om seguido m'plicn-sc a mim, parte por parte, com o 1{!\m de Filareto são ilustr ados . cr. AdfiO sob n chuva (Livro x, f.' 4 v),
desenho" ( L. T, n. 1.?.7, Livro X, f ." 73 r). I)U ulnda o corpo humano como rerorencla básica das formas, medidas,
37. Cf.: "Quntlllo ~umpr eendi seus desejos, pus-me rapidamente a lH'Oporções do construído (1.• 5 v).
desenhar c a dct.ormtnnr 1.1 situação e o estilo dos palácios que deviam 40. Cf. Livro XI, f.• 127 v.
ficar na PractL <los Mol'cndos" (t. I, p. 123, Livro X, f.• 70 v) . . 41. P. 99, Livro VIII, f.• 57 v: p . 105, c.• 61 r; p. 106, f.• 62 r.
200 A REGRA E O MODELO A POSTERIDADE DOS DOIS PARADIGMAS 201

procedimentos literários, fala claramente da dupla finalidade ~o Intermédio de um intercessor, o tradutor47, aparece então como
Trattato, de suas preocupações epistemológicas e de sua relaçao o fundamento ao mesmo tempo de Sforzinda (réplica de Gallis-
com o sagrado. Ue um lado, com efeito, esse trata~o se culuca forma) e do tratado. Em nenhum in stante Filar~to questiona a
de pronto como um relato histórico ao qual, ademais, os esqu_e- uutunomia de seu próprio procedimento. Mas não podendo, tanto
mas de fundação da arquitetura, da casa, da C_?lu?a. ·: e_st.ao q uanto Alberti, assumir plenamente seu papel de criador de es-
integrados claramente, sem o anteparo das referencias hterana~ paços, não contente de ter construído como seu antecessor um
que contribuem para mascarar o movimento real do De re aedr- grande relato heróico, dá a este uma tonalidade de iniciação e
ficatoria. Ue outro lado, inclui um _o utro. e estranho rela~u42 , err?,- lhe assegura um duplo alicerce suplementar na lenda e, metafo-
neamen te interpretado como uma fantasia ou uma utopta, e CttJd ricamente, na terra-mãe.
função, que nenhum intérprete de Filarcto parece ter compreen-
dido, é reiterar o relato prindpe~l e fundador p ara lhes dar, por
sua vez, uma fundação. . . . Esta vontade de fundar o ato de construir e os desvios que
Deve-se considerar com atenção essa histón a maravühosa ela toma para transgredir as leis da tradição sagrada não se en-
que começa no Livro XIV c, entrecortada pe~a seqü~ncia _do contram em Francesco di Giorgío Martini, cujos relatos de ori-
n:latu principal que conta a construção de Sforzmda, so termma gem se assemelliam mais a citações que a operadores textuais48.
no Livro XXI43. Tendo o "senhor " de Filareto desejado com- E se ele tem consciência de sua própria contribuição à prática
pletar Sforzinda com um porto que se ~h.amará Plusiápolis, o. ar- arquitetônica, se sublinha com orgulho tudo o que em seu livro
quiteto se põe à cata de um luga~ pr~p1cio e, no local escolhido, 6 de sua lavra e nada deve a Vitrúvio49, Francesco di Giorgio
descobre, enfiado na terra, um misteriOso cofre de pedra. J:'.berto, não manifesta, entretanto, com relação ao arquiteto romano a
revela vaso~. jóias, e sobretudo um Livro de Ouro, escnto em condescendência ou a desenvoltura de Alberti e de Filareto50 •
grego, que será preciso mandar t raduzir, e que relata para a po~­ Sua atitude dominante é o r~::.-peito e, muito mais do que do
teridade como uma cidade soberb a e seu porto, em tempos mul- De re aedificatoria, é do Trattato d'arch itettura civile e n•ilitare
to antigos, foram erigidos por um príncipe nesse local. que a crítica teria acertado em fazer um " novo Vitrúvio"51,
O cofre, com as inscrições de que está coberto e seu con- Certamente, Francesco não produz nem uma cópia nem uma
teúdo, é o arquétipo daquele::.-« (J:'edra gravada, cof~e de mã;- demarcação do De architectura. Mas, embora sua obra traga a
more contendo vasos e um livro de bronze) que F1lareto qUis marca de outras preocupações, não impôs ao tratado de Vitrúvio
mondar enterrar, em memorial, no solo de Sforzinda, po: oca- u mesma mutação q ue Alberti. Fora da composição, a diferença
sião da cerimônia de fundaçã~ que ele conce?eu para ~ ctdade. essencial que o separa do De re aedificatoria reside nessa relação
Além disso, a est rutura do Livro de Ouro c r~produzida. P7l? com o De architectura. Quer se trate de texto quer de cCinstru-
Trattato de Filareto, que lhe constitui uma réphca, mas slg~ufi­ çõcs52, Francesco di Giorgio continua sendo antes de tudo um
cativamente invertida quanto à pessoa de seu aut?r. A deci~ra· nrqueólogo. Seus conflitos c.:om Vitrúvio versam essencialmente
cão do manuscrito pelo intérprete revela, com efe1to, que f01 o sobre a exatidão e a fidelidade do testemunho do arquiteto ro-
príncipe desaparecido, Zogalia:s (e. não seu. ~rq':_iteto), 9uem re· mano quanto às fo rmas e às medidas dos edifícios antigos. T êm,
digiu, na primeira pessoa, a h1st6t;a da cd:f1caçno ~a C_Idade de portanto, por cartada o "levantamento" desses monumentos. A
Gallisforma. Como Filareto, Zogalla enunc1a em pnme1ro ,lugar
os princípios gerais que a presidira~, depois descreve, apOl':ndo-
se em desenhos, edifício por edifíc1o, as etapas . da construçao, e 47. O acesso ao Livr o de Ouro por meio da Lranscrlção do tradutor
reproduz sob a forma de diálogo as discussões que teve com seu pode ser interpretado com o a última das provas de um r ito de iniciação.
48. O relato de origem das cidades precede o da conslruçi•o que se
arquiteto46. _ nncontra. somente n o quarto tratado <ou livro) , consncrrndo nos tP.mptos
Essa história , disfarçada no Trattato ?nde nao se pode des- ( Archttettura civile e m i li tare. pp. 3'T.l.:l74).
cobri-la a não ser depois de passar por dms outros relatos e por 49. Por exemplo: " Mas as formas e f igums variadas dos templos,
dl\s residências privadas [ . . . l são invenções do m eu modesto espírito''
(op. cit ., p. 297 ).
42. cr. supra, cap. l , pp. 81 e ss. 50. Cf. op. cit.., dedicatória, 1.• 1 r .
13. VOI POIS da p. lTI, f.• 101 r e V à p. 295. 51. Cf. supra, pp. 127 e ss.
44. Op. c!t., p . 44, Livro IV, f.• 25. 52. C. Maltese considera com muita justiça Francesco di Giorgio
45. Annr,l'nmn ele Galenzzo, nome do filho de Francesco Sfo;t".1:a, o Mnr tini como o fundador da " tradição do arquiteto arqueólogo, ou me-
príncipe do relato de Sforzmda (p . 181). . _ . lhOr, do arquiteto arqueólogo e teórico-vulgarnador" ( op. cit., p . XIX).
· 46. Por exemplo. p. 228, r.• 132 r. Dessa m aneira, aliás, sao mt~odu· Hogundo ele, Francesco "pretende r efazer um Vitrúvio mais 'm oderno'
zidos modelos nntlr,os, m ais ou menos fantasiosos, que fornecerao a f! UC o de Alberti" (idem, p. XVIII) , objetivo sem dúvida atingido no
Filareto ensejos do '1nt01·pr etação ou de inovação.
1,1n~ da técnica da construção. l'L " ,2._.q t) ~ l
• • o ~ ....
N BLIOTJICA - UN~~
. : ··· ~A'MPUS DE BAURu
202 A REGRA E O MODELO A POSTERIDADE DOS DOIS PARADIGMAS 203

importância do papel desempenhado pelo levantamento63 no tloru no sentido mais amplo, continua a fazer coincidir as duas
Trattato d'architettura civile e militare marca a ambivalência IIJilllliS do arquiteto-autor e do arquiteto-herói.
dessa obra que, embora se inserindo no quadro da instauração Certamente, os tratados de arquitetura vitruvizantes conser-
albertiana, já lhe prepara a desintegração posterior pela cano- V/1111 ln mbém seu papel para a história e a temporalidade: alguns
nização da arquitetura antiga e pela pesquisa tipológica que cons- 11lu·1.tllriio mesmo a integrar, sob a forma de esboços ainda esque-
Ütui seu correlativo. II I M I ~;os, os elementos de uma história da arquitetura ocidentai58;
111clos se propõem contribuir para o progresso de uma disciplina
1111 1 constante desenvolvimento desde seus modestos inícios.
1 .2 . A Regressão V itruvizante
Todavi~, ,a~esar d~ss~s . traços formais e temátkos, e por um
111 lrunho artiftcto da h1stuna, se pensannos que Alberti se ser-
Paradoxalmente, longe de continuar e aprofundar a instau-
vl l'iu de Vittúvio, como mais tarde Maquiavei o faria coro Tito
ração albertiana no quadro tutelar da figura textual criada pelo l ,(vlo, para melhor tomar distância com relação à Antiguidade
autor do De re aedijicatoria, a longa linhagem dos tratados que
não cessam de se suceder a partir da segunda Renascença até o 1 li 1 1 p0~ ~ originalidade de sua própria criação, o primeiro elo
século XIX se caracteriza pelo valor paradigroático que atribuem iln lradtçao textyal de que se valem os Lraladistas a partir do
ruk ul? XVI não t: o De re aedificatoria, mas os Dez Livros de
ao De architectura e sua comum polarização sobre este livro. É tirqtutetura.
por isso que, embora os tratados de arquitetura posteriores ao
I\ ata da primeira sessão regular da Academia de Arquite-
século XV não retornem a uma mentalidade pré-renascentista e
ltlluG9, realizada em Paris a 4 de fevereiro de 1672, enuncia de
a vontade _de progresso de que estão animados impeça de tachá-
los de arcaicos, o papel central que eles atribuem ao De archi-
tectura autoriza a falar a seu respeito de regressão vitruvizante. "uhllnha que ela. é "necessária ao mundo". Cf. tamhP.m SCAMOZZI
Decerto, a grande dimensão voluntarista e racionalista con- t,'ftlrn dell'Architettura universale, Veneza, 1615, Livro I , Ca.p. I; e sobr~­
fltlln, de J.-F. BLONDEL, um dos mais b elos elogios da arquitetura no
quistada por Alberti permanece viva e afirmada com vigor, désdc tllil.llo nlbertiano. Duas frases darão o seu tom:
o tratado de Serlio (153754) até o de J.-F. Blondel (177H777). "~ a Arquitetura que faz eclodir todos os gêneros de ta lentos r eln·
Sempre segura de si quando avaliza os enunciados, a tomada l i vw1 ns necessidades dos homens, que faz nascer a emulação dos Ci·
de palavra na primeira pessoa acontece, por vezes, em Palladio55, 1111<1nos devotados às Belas-Artes L .. J.
por exemplo, a fim de sublinhar a complacência no relato auto- "So considernrm os o que devemos à Arquitetura, e todas as vanta·
biográfico. Em cada um de seus quatro livros d~. Arquitetura, o
H"'''' que dela recebemos, acharemos que os tesouros da naturza não
~ 1111 verdadeiramente nossos a não ser porque ela nos assegura uma
mestre de Vicenza reivindica suas contribuições pessoais, remete ' " '"fllllla posse desses tesouros". (Cours d'Archttecture Paris 1771·1717
a suas próprias obras construídas56 (referência que se transfor- I I, I ntrodução, pp. 118·119.) ' ' '
mará num traço constante dos tratados) e, através do elogio for- fill. Cf. PALLADIO, Livro IV, Ca:9. XVII, p. 35: a arquitetura sai das
"lo'tlvns'', "Porque, sob o pontificado de Júlio II, Bramante, o :nais
mal da arquitetura57, sempre entendida como atividade edifica- 11Jit1111Cmte dos arquitetos modernos e grandessíssímo observador dos an.
I htlill, construiu em Roma belíssimas obras; depois dele viP.mm Miche·
11111111110 Bona.roti, Giacomo Sansovino, Baldassare da S!ena, Antonio ela
53. Já nos anos de 1470 se desenvolve a "coletânea de levantamen· llillll\llllo, Michel de San Michele, Sebastiano Serlio L . . J". Cf. também
tos", g-ênero de que Sangallo oferece o exemplo mais sistemát-ico. Cf. lU IA MOZZI que. na J dea dell'Architettura universale, 1.• parte, Livro I,
A. CHASTEL, Art ct Humanisme, op. cit., pp. 143-144. I 'II IJ, V( (Alcuní architetti e scrittori moderni d'architellura), reintegra
54. Data de publicação das Regole generale sopra le cinque maniere "" 1111ouios obscuros, menciona real!zaQões anônimas c começa sua lista
degli edifici (Veneza) que se tornarão o "Terceiro Livro" de seu tratado llltlnlnnLiva com Lapi (1250) para continuar com Brunellcschi, Miche·
completo. l 11~vo , Michelozzi, Albcrti. . . Cf., enfim, J.-P. BJ.ONDF!L que introduz seu
55. Cf. o Prólogo do Primeiro Livro de Arquitetura. O pronome p es- ' 'tollrtt com um "Resumo da História da Arqu itetura", cs tmturudo pela
soal cu é empregado dez vezes na primeira página, os pronomes r efle· llllllu rio uma progressão constante, mas CJ.lll\ nntcs de dor inicio ao
xivos e pessoais quim e vezE:s. O texto comeoa por: "Um pendor natu· " o111 1111101mento da. bela arquitetura" da "funtlnçilO ua basllica de São
rnl me levou desde a adolescencla ao estudo da arquitetura". Cf. também t'l•rlo•o do Roma", não negligencia entrotnnto n Idodo Média francesa.
·Livro li, Cap. III, onde Palladio descreve s uas relações com seus p a· IHH!l nlto quer dizer que tentativas n ão l.onhnm sido feitas anteriormente
trõcs. Nossos citações de Palladío síi.o tiradas da tradução francesa dos I IIIH~n tlominio. E. Panofsky faz rcmontnr 11 J•'iliWP.to o "primeiro relato
Quattro J.ibri, por Leoni, publicada em Haia em 1726. 111<111111 Ocschichtskonstruktion" cujas ciJtpas ulteriores, para ele, teriam
56. Ji'.<:sns são postas em paralelo com as d a Antiguidade. Serlio 11liln u~<e ritas por Manettl, c depois, no s6culo XVI, pelos au tores da
inaugura csso procedimento de autocitação que se apóia essencialmente 1o11 111 11 r.eão X, La Renaissance et se.~ a vant-courriers (op. cit., pp. 25-26).
no desenho. C!. Infra. hll Na sessão inaugural, a ~1 de de:r.embro de 1671, ficou especi-
57. CC., por exemplo, a " Epístola ao Leitor" do Premier Tome de lll llilil: "Todas as quintas-feiras da semana, à mesma hora, se farão
l'architectu1'e de PHILIBERT DE L'ORME Cedít. em 1568), que !az pro· 11Mou11hl6ius particulares das pesso.'ls nomeadas por Sua :Majestade para
e
vir de Deus "a dignlclndo, n. origem a excelência da, arquitetura:', onde 1•" lrou\)ncinr sobre a arte e as regras da arquitetura e dar sua opinião
204 A REGR-A E O MODELO A POSTERIDADE DOS DOIS PAnADIGMAS 205

maneira exemplar o valor referencial desse livro que a Academia p11dc explicar-lhe cerras particularidades. Sua autoridade resulta
vai ler e reler al6 a metade da Revolução60: d11 di alética que liga o trabalho de exegese dos humanistas lfiló·
lonos, historiadores e filósofos) ao trabalho arqu~ológico dos ar-
Tendo sido colocado em deliberação qual é a autoridade de Vltrú· qullctos, para os quais as menstirações de rufnas amigas inau-
vio e quais sentimentos se deve ter acerca de sua doutrina, todos foram fllll'ndas por Alberti, arq ueólogo an tes de ser arquiteto, se tor-
de pa!eccr que se deve considerá-lo como o primeiro c o mois sábio de
todos os arquitetos, e que deve ter a principal autoridade entre eles. llllnl, como os levantamentos gráfi cos, parte integrante da for·
Que, no concernente à sua doutrina, ela é admirável no e-eral e deve ser IIIUÇiio e da prática arquitetôn.icaB4.
seguida oem dela se afastar, tanto quanLo na melhor parte do detalhe, R. Wittkowerü5 mostrou o impacto das trocas entre filóso-
cujo discernimento será feito pela assembléia. em seu tempo•'. l'oH-I'i lólogos e arquitetos sobre as características de uma arqui-
lolura que se tornou "sábia" e cita Platão. Os estudos vitr uvia-
Vitrúvio, detentor da autoridade, objeto de estudo necessfl- IIOS são vistos na mesma problemática que os estudos platônicos,
rio, r eferente obrigatório de todo trabalho arquitetônico (teórico q1111ndo a liás eles não são uma reincidência desses. Para decifrar
e aplicado), tal é realmente o credo de todos. Por exemplo, Pal- o H dez livros do De architectura, abundantes em obscuridade e
ladio, já no prefácio do primeiro livro de seu tratado, especifica IJill enigmas, os humanistas p edem a ajuda dos arquitetos e deles
que "se ·propõe tomar Vilrúvio por mestre e por guia"62, e F. ,1\l ~e rvem para elucidar o problema das r elações entre as artes
Blondel , no próprio título da primeira parte do livro, indica que lll)l.:rais e as artes mecânicas66 e colocar ao escritor romano a
neles "são explicados os termos, a origem e os princípios de ar- questão do método. Precisam circunscrever e definir o caminho
quitetura e as práticas das cinco ordens segundo a doutrina de que Vitrúvio propõe ao construtor, em seguida confirmar a jus-
V itrúvio"63, l ~·:t.o de sua análise, e eventualmente modificá-la, pelo estudo di·
Como explicar esse valimento e a influência exercida por l'l' lo dos edifícios antigos e de seus vestígios. Com este espírito
Vitrúvio, a não ser enquanto correlatos da influ ência e do vali- l• que Trissino foi o primeiro a apresen tar Palladio a Virrúvio,
menta estilísticos de que gozavam os modelqs antigos restaurados IIIII C~ o ue Daniele Barbaro o associ::~sse estreitamente 2. sua edi-
pela cultura c p ela arquitetura do Renascimento? Nesta óptica 'fil<> crítica do De re architectura, publicada em 1556.
qu e, como vimos, já é a de_ Francesco di Giorgio, Vitrúvio se Graças à curiosidade dos le tra dos c às dificuld ades de su a
torna uma testemunha privilegiada. Não só é o detentor de re- lulçrpretação, o texto de Vitrúvio troca seu valor relativo de
gras que a observação meticulosa dos vestígios da Antiguidade ll'Siemu nho por um valor ahsoluto; e, po r um processo metoní-
permite reeneontrnr com grande dificuldade, mas som ente ele IIIIW , o livro que podia oferecer a chave de uma prática desa-
lllll'ccida se torna a chave da prática contemporânea.
sobr e as matérias que forem propostas, segundo o estudo e as obser- I! significativo q ue os autores dos séculos XVII e XVII I
vações que cada um ti ver feito sobre as obras antigas e sobre os escritos rl 11s~ i fiquem os tratados modernos segundo uma h ierarquia de-
daquele~ que delas trataram [ ... l " (Proces-verbaux de l'Ac:adémle royale ltll'l1tilla da p or sua fi delidade a Vitrúvio, Rssim como pelo valor
d'architecture, t. I, p. 3). W grito é nosso.]
de sua contribuição para o entendimento do De architectura e da
60. No. scgunda-fciro., 18 de julho de 1791, "a Academia. se ocupou
de vários capítulos de Vitrúvio" (idem , t. IX, p. 179). vt•rdud eira trad ição antigo. Se a apreciação, e portanto a ordem
61. I dem, t. I, p . 6. A leitura de Vitrlivio prossegue até 28 de du classificação dos tratados, varia de autor para autor, o mesmo
fevereiro de 1672, data ~m que a assembléia decide rejtjitar seus tra· pl'i ud pio de cl assificação vale para todos. T a mbém aqu i se pode,
balhos até a publicação da tradução de Perrault, já que a de J ean Mar· H 1fluio de ilustração, remeter aos trabalhos da Academia ele
tin lhe parecia muito defeituosa. Dá início então à leitura de Palladio,
comparando a tradução de Fréart de Chambray ao texto original (idem, Al'q ll itetura que, durante as reuniões que se seguem imediata-
t. Il.
62. Op. cit., p. 1.
63. [Q grifo é nosso. ] A referência vitruviana. não implica por isso 111. Cf. o Livro III de Snl!o: " Nc qualc SIJIIIJ rtl's::r11tt e disegnati la
que Vit rúvio possa ser melhorado. Era essa a posição de Alberti antes ta mbém a oi:>scr-
l t/fi (JOI07' parte degl'edifici a11t1chi di nomn I .. . 1." C C.
dP. ~er a de Francesco di Giorgio, de Serlio e depois da Academia de VIIQI1t> s ignificativa da :ntroduç5o biogr:W<:a rhL C'd lção francesa de Palla-
ArqulteLura em 1708 Cop. clt ., t . 111, p. 285). Significat.ivamente, é sob a dlo: "Seu principal estudo foi e xan:inur t>« monumP.nt.os da antiga .R?~;
capa de Vir túvio, que, em sua t radução, e mais a inda em seu Abrégé tt o fi'?: com um cuidado e uma JX!SQ His tl Lo l al men ~e extraordmanos
des di:c llv rc.9 d'architecture de Vitruve (Paris, 1674), Perrault. exprimirá I 1 c foi escavando nus pardlelros leio.-; anllgosl que exumou as ver-
suas próp rlns idóias. Cf. as últimas linhas da advertência de A.brégé: lloorh•lrns r egras de uma a rte q ue ató 3:.Jtt época permanecera desco~.he-
"Isto por qnt' não se pode duvidar que, sendo Vitrúvio uma tão grand~ 1111111 1. .. J." O próprio Pallaclio i ncllcu quo fez das ruínas "seu pr inci~l
pe rsonag-em ~01110 ó, sau autoridade junt a à de toda a Antiguidade, que tiMIIItln" e se transportou "d~l bom l{raclo pura diversos locais I . .. 1 a f un
está en!cixuda em 110us cscl'itos, n ão seja capaz, prevenindo os Apren· 1111 I'Ocltll'.Hos a desenho" (op. cit., p. l) .
di2es e conrtt'lllltndo os Mestres, de estabelecer as boas máximas e as 110. Architectural l'rinciplcs lu l he Aga of Humanism, op. cit.
verdadeiras regrus da Arquitetura". (1(1. Of. L. PUPPI, Andrea Pnf.larlí c, r.nnd res, Phaidon, 1975, p . 1B.
206 A REGRA E O MODELO A POSTERIDADE DOS DOIS PARADIGMAS 2.07

mente à sessão inaugural, discute e estabelece a relação de pre- Por isso é uma quase-ordenação73 essa entrada na especula-
miados em função da qual será determinada a ordem de~suas yliO sobre as ordens, que obriga no mesmo impulso a renunciar
leituras: Palladio, a quem "se pode atribuir a primeira autori- i1 mundanidadc albcrtiana, à historicidade e ao universo da de-
dade entre os arquitetos modernos e [que se pode] seguir sem lllll nda e do desejo que subtendiam o projeto do autor do De re
hesitar em seus ensinamentos gerais"ll7, ocupa, na classificação 1/t•didificatoria. A elaboração de um si:;tema de regras gcnerati-
absoluta, o primeiro lugar depois de Vitrúvio, e antes de Sca- vns, a construção de um edifício metodológico de valor metafó-
mozzi, que "deve ter a segunda posição entre os modernos"63, J•k:o deixam de ser o propósito dos novos tratadistas, desde o
depois Vignola, Serlio e, longe atrás deles, Viola e Cataneo. A 1110mento em que optam pelas regras vitruvianas.
Alberti a At;ademia reconhece uma posição particular e algo con- O desapan::cimento desl:ie::> objetivos condena a figura textual
traditória, já que, depois de ter coroado oficialmente a Palladio, ~; l'i nda por Alberti a desaparecer ou, entre os numerosos autores
ela indica, durante a sessão posterior de 17 de março de 1672, quo desejarem conservá-la, a perder sua significação. A ordem
que "depois de Vitrúvio foi ele quem mais doutamente escreveu que liga os livros e os capítulos dos novos textos se afrouxa,
sobre a arquitetura"69. As~im, na melhor das hipóteses, Albel"ti qLatmdo não se !orna arbitrária. Basta reportarmo-nos aos Seie
só pode vir em segundo lugar, depois de Vitrúvio70, quando não U11ros de Serlio: Longe de constituírem uma tonalic..lade, apre-
é simplesmente ignorado71 ou relegado a um .lugar de figurante72. Hçn!am-se como uma justaposição de sete textos autônomos dos
A centralização dos novos tratadistas sobre o De architec- quais os dois primeiros, um tratado de geometria elementar e
tura é plena de conseqüências. Voltar-se para esse texlo cS tk:;- um tratado de perspectiva aplicada ao problema do teatro7 4, pro-
viar-se de Alberlí, deslocar seu propósito que era superar Vitrú- põem um método de análise e de concepção; os outros cinco são
vio indo mais longe, mas sobretudo alhures, num question~mento Inventários : uma coletânea de edifícios célebres tirados d<J Roma
e numa abertura que esperavam ser prosseguidas e desenvolvidas un tiga, da Roma moderna e do Egito, catálogos tipológicos con-
pelas gerações seguintes. O que pode, ao contrário, significar o tWgl"ados respectivamente às ordens, aos templos, às portas e en- ·
retorno a Vitrúvio, cuja informação científica ou técnica é ana- fim a edifícios variados, públicos ou privados.
crônica e cuja contribuição para uma teoria da criação arquite- Da mesma forma, os princípios e postulados, se ainda são
tônica é reduzida, senão encerrar-se numa estilística? nlCncionados75, perdem a função de operadores do texto onde
nüo mais possuem seu lugar determinado. São citados ao acaso,
COlHO que por descarga de consciência, amalgamados a d iretrizes
67. Op. cit., t. I, p. 6. pi"Micas76. O quarto axioma albertiano e suas seis operações são
68. Idem, p. 7.
1oralmente abandon ados pelos t ratadistas da era clássica. No
69. "Tendo recheado suas obras com uma infinidade da conheci·
mentos utilíssimos aos arquitetos, e que aJ?sim deve ser considerado século XV l , ainda guardam uma ressonância, confusa no.s Quatro
como um autor mais" do que como um operário de bom gosto, como
se verá mais amplamente" (idem, p. 12) . noln entrada na or dem arqilltctônica. É o inicio do gueto profissional,
70. Como é o caso nos Quattro Libri onde Palladio o cita depois tno fl·eqüentemente denunciado nesses últimos anos, onde se encerraram
de Vitrúvio, já na primeira· página de seu prefácio. Philibert de l'Ormc, C\ fi nr qui tetos.
que fr eqUentemente remete a AlbP.rf.i, parece igualmente concedér-lhé o 74. Apenas a ligação dos primeiros traços é afirmada: "havendo io
segundo lugar. Da mesma forma, Henry Wotton , que toma o De re aedí· I' atlato nel primo liln-o di geometria, senzo laqual la prospettiva non
jicatoria como modelo de seus Elements of Architecture (Londres, 1674), rw rebbe" (Tutte l 'opere d'architettura el prospetiva di Sebastiano Serli o,
indica em seu pr efácio que: "our principal mastcr is Vitruvius", para Voneza, 1619, p . 18). Somente a partir dessa intr odução ao segundo livro
acrescentar logo que a seus olhos Alberti é "the first learned architect 11 que Serlio utiliza a primeira pessoa do s ingular , que só aparecera
beyond the Alps". Incidentalmente na conclusão do prim eir o livro.
71. Serlio ignora soberbamente Alberti e não o menciona nem mes- 75. Serlio é , sem dúvida, aquele em quem a uLili;o;ação do desenho
mo em seu segundo livro sobre a perspectiva, colocado sob o signo de Implanta mais completamente o recurso aos pr incípios c lts r egras. Não
Vitrúvio. 11~ estes não engendram mai,; a cons: ruçüo do livxo, como também não
72. Scamozzi, que, como veremos mais adiante, é um dos únicos /ttlnrem mais para a dos edifidos.
a permanecer fiel ao esp!rito de Alberti, atlibui·lhe o quarto lugar de- 7fi. "'Antes de começar a constnlir , ó preciso considerar e exawJnar
pois de Filareto e Sanese, antes de Serlio, Bluon, Cataneo, PhlUbert de malcladosamente o plano e a altura do udifício que se pretende fazer.
l'Ormc o Palladio. Para F. Blondel, entre os principais seguidores de VILrüvio ensina que se tome cuidado em Lr6s coisas, sem as quais um
Vitrúvio, " os três mais hábeis arrtuitetos que escreveram entre os IHllficio , não pode ser estimado; a sabor, a comodidade, a solidez e a
modernos silO Vignola, Palladio e Scamozzi". Em seu prefácio, ele dis- ltOIO?.n"; são essas as linhas introdutórias do primeiro capítulo do pri-
tingue cs.-;c11 arquitetos, "que têm a aprovação mais universal", dos lli•Jiro livro de Palladio. Vê-se que ele C<lloca seu caminho :-netodológico
"principais lntór]>retes ou imitadores [de Vitrúviol como são Philander, nnll n autoridade de Vitnlvio, dá prioridade ao desenho sobre a análise
Daniele Barbaro, Cataneo, Serlio, Leon Baptistta Alberti e outros [ ... J". l'illlCeitual, altera a ordem lógica ele seqüência da tríade necessitas,
7:{. "A orclcmtçfio vitruviana" apresenta uma dupla face metafó- tm mmoditas, pulchritudo, mostrando por isso que ela cessou de desem·
rica, porque a ruptura com o mundo imprevisível do desejo é seguida p11nhnr um. papel na construção de seu texto.
208 A REGRA E O MODE LO A POSTERIDADE DOS DOIS PARADIGMAS 209

Livros de Palla dio, precisa no tratado de Philibert de l 'Orme, o co njunto do processo construtivo por u m juízo de valorOO, o ter·
único a conservar oper adon:s tirados direramente do De re aedi- t·o iro nível se torna o objeto privilegiado dos autores de tratados
ficatoria. Mas a regressão é impressionante, traída pelas sete o.: , ufinal, o úuico d igno dt: interesse . Os dois primeiros nívei s,
"partes" de Philibert : tendo perdido a_exaustividade c u valor por importantes que possam ser no desenvolvimento real da cons-
estrutural das seis operações albertianas, elas não servem ma is ll'l!Ção, são considerados como não-m erecedores de que neles se
para construir o texto e, além disso, são ligadas individualmente d~:tctlha o teórico: dependem d a trivialidade do q uotidiano, fun·
às "se te <:::;trelas errantes chamad as Planetas"77. uiomun por si sós, de algum modo, já q ue "tu d o o que faz a
Da mesma forma ain da, os relatos de [undação, quando não Mll ubridade, a solidt:z t: a oom od idade de uma habitação é quase
se limitam a reproduzir a carta de Vitrúvio sobre as ordens e 11~0 natu ral quanto a necessidade de nos vestir, de comer e de
as colun as, não representam mai~ que vestígios anedó tico~. pur procurar tudo o q ue nos é próprio e fugir de tudo o que nos prc-
vezes fr acamente funcionab. No máximo, servem localmente para judicn"81.
fundamentar certas regras, como é o caso em F. BlondeFB, mas No final dessa concepção resulta a exclusão pura e simples
nunca são integrados na construção do livro79. do~ duis primeiros níveis, como é o caso no tratado de Vignola82,
O impacto mais espetacular d a regressão vitruvizante sobre que trata somente das ordens. Nos outros autores, o novo esta-
a estrutu ra textual dos novos tratados é representado, no entanto, luto da beleza é mar cado por traços precisos. Em primeiro lugar ,
pela rup tura do equilíhrio elaborado por Alberti entre os três qunndo os conceitos de comodidade e de net.:t::ssidade conservam
níveis da necessid ade, comodidade e beleza, em proveito do úl- \1111 mú1imo de pertinenl:ia e de impacto sobre a organização do
timo . O n ível da fruição estética, quase totalmente absor vido livro e não são ab sorvidos e integrados no tratamento tipológico
pelas regras concernentes às ordens, deixa de ~er encarado e::m dos edifícios, constata-se uma inversão· de ordem cronológica ou
sua relação com os doi:; n íveis anteriores dos quais ele represen- f',Cnerativa na q ual o De re aedijicatoria fazia suceder-se os nês
tava a fi nali dade e o coroamento , mas sem os quais, em com- l't:gistros do construh·83. Inversão ainda mal assumida e semimas-
pensação, ele não tinha existência possível: jó oue não se pode curada em Pall adio, que aborda as orden s já no seu primeiro
obter nenhuma beleza se não forem, previamente, aplicadas e livro ded icado aos princípios gerais da edificação84, mas não
re~pei tadas as regras da solidez e da comodidade. Destacado do
BO. O p rocesso p ode ser ilustrado pela maneira como foi traduzida
77. Ê em sua "Epf~tola ao Leitor" que de l'Orme enumera as "par . ll ! dea dell'architettu:ra universale de SCAMOZZI, qciC e. Acade:nie. havia
tes [àas construções] qt:e sii<' em número de sete: a saber, paredes sem Inscrito urna primeir a vez e-m seu programa em 1681, e cuja leitura foi
as quais o edifício não pode es:ar [ ... l; portas para nele entrar; cha· roLomada em seguida até à publicação da tradução riA D'Aviler (16B5) .
minés para aquecê-lo; janela para lhe dar claridade; a ár ea e calçada lrRt.n, que con tinuará a. únice.. tradução francesa (aumentada em. 1713
para suste-lo e camin:Jar ; telhado ")nde estão as vigas e traves para 110m as adições de Snmucl du Ry, que consistem em duas páginas
fechar as salas [ ... J e quanto à última e séüma parte, as cobertur as e Idns noventa e sete) do Livro I e três páginas : das cento e vinte) do
carpintarias [ .. . J pa:a abrir e. habitação e defender os habitantes contra l.lvro n de Scamozzn, é o result.arto dA 11m corte completo operado
as injúrias do a: e os ladrões". Vê-se que os principies de situaçao c 110 Livro vr (que representa cerca de um quarto da obra total). O p re·
de divisão deAAp arP.cemm completamente, ao passo que por tas, janelas, Melo no qual D' Aviler justifica sua seleção merece ser citado porque
chaminés de um lado, ~elhado e cob ertura do outro. deixaram de ser llttclarcce o. significação e o valor novo das ordens: "julgou-se conve-
reunidos sob os principies de cober tw-a e abertu ra. Entretanto, observa nlt'nte dar ao público apenas suas ordens tiradas do Livr o VI [ ... 1
Philibe:t: "Essas diws set<~ partes, o arquiteto não pode de nenhum (1liO é a matéria r.njo emprego tem mais extensão e que é a mais pra-
modo ajuda~ separadamente e à par te ·: ... I mas aglutinando-as e acomo· J,IoiLdl.l pelos arquitetus C. . . I não se julgou oportuno t m duz!r esse sexto
dando-as juntas" (op. cit., a !, j, rect.o e verso ). livro inteiro [ . . . 1 sabe·se que tudo o que dele se tiwu ó muito belo, mas
78. cr. a descrição da cabana grega. "maneira de construção que, Llltnbóm que é pouquíssimo conveniente ao ass!mto, lni~ como inú:nere.s
com efeito, é a mais simples e a mais naLural de todas e que oo antigos hllttórias e fá?:Ju!as, tudo o que diz respeito à geogm·lia antiga e aos
arquitetos cu Grécia se pr opuseram como modelo a imitar em 1>eus r•rtclocfnios de física e de moral que são 1mm c.~7Jec1únçfio e para entre·
mais belos edifícios e se ser viram de ~odes os membrcs como p adrões trr outras pessoas c;ue nãu as da pru/issãu. Mns C]unudu foi preciso ex·
L .. I" (Cours d'Architecture , Paris, 1675-1683, 1.> parte, Livro I , Cap. I, pllcàr o que era puramente arqltitetura, sct;nln·so tiO rmtor por palavra,
p. 3 ) . Ptllno na descrição do capitel jônico". ro orlfo c! nosso.] Sobre o alcance
79. O relato de fundação conserva, excepciomt.lmente, um vestígio tlltsl.ns linhas, cf. infra, pp. 220, 222 o 11s.
de suo funçiío de operador de tex::o em Pallad!o, que justifica sua decisão 111. F . BLONDE L, op. cit., p . 7Gfi.
de tmtnr os edifícios privados antes dos públicos invocancio os primeiroH 82. Cf . supra, Cap. l, pp . 3:1 o HS.
t.emp os cln 1!11manidnde: "Sendo ainda muito ver osslmil que os primeiros 83. Cabe notar também os caso.5 (cf. Sorlio) em que o livr o sobre
homens Uvcs:;om suns rP.sirt~ncias separadas: depois conhecendo com 1111 <wdcns, foi composto em p1·imclro lugar, depois c:assificado a post e·
o tempo quo pnrn s tm comodidade e para viver felizes ( ... I a compa- 1 IM! num lugar p redeterminado.
nhia dos outros homens lhes era tão necessária q uanto natural, e les 111. Entre os quais se recon11occm. d eslocaáos, misturados . a ele·
procurai·nm un~ nos outr os e, aproximando-se entre si, formaram pri- 111omos heterogêneos e reific«dos, os ~eis princípios de Alberti, aos quais
meir·amentc aldolus q uo transformaram em cidades L. .. J" (01J. cit., p. :3l. 1'rdladlo nunca fez r eferência explicito.
210 A REGRA E O MODELO A POSTERIDADE DOS DOIS PARADIGMAS 211

chega a lhes dar o primeiro lugar enirc estes c os trata depois Outro sinal do privilé-gio dado à beleza e às ordens, a in-
das regras relativas aos materiais, da escolha do terreno e das versão da seqü€ncia albertiana é ~eguida , nos tratados pó~-alber·
fumla ~. e antes dos capítulos dedicados às galerias e qu a r rosu~. tianos, de uma redução drástica do espaço consagrado ao primeiro
abõbadas, portas, janelas, chaminés, escadas e coberturas. inver- c ao segundo níveis. François Blondel dedica apenas setenta e
são triunfante nos Blondel que e:;pecificam desde logo sua de- cinco de suas oitocentas c quarenta c duas páginas aos proble-
cisão de começar pela ''parte da arquitcrura [. .. ] mais consi· mas de construção, ao passo que, dos seis volumes de Jean-Fran-
derável [ .. . ) a que serve para a beleza dos Edifícios"81:l, ou çois, quatro e meio di:r.em res.p eito à beleza e aos problemas cria-
ainda, segundo a terminologia de Jean-François, "pela decora- dos pelas regras das ordens.
ção, antes de falar das duas outras partes [ ... J dizem respeito Não é de surpreender, em tais condições, que a cidude, en-
à distribuição e à construção"87, quanto edifício esp ecífico · e global, desapareça dos tratados da
A tomada de posição de J.-F. Blondel, no enlanlo, nãu tlt:ixa segunda Renasl:ença t: da era clássica que tendem a eliminar a
dt: ser ambígua ao leitor atento que poderia ser enganado por comodidade. A figura da cidade se esfuma por trás de certos
declarações ulteriores. Com efeito, o arquiteto que dedica o es- tipos de edifícios que, no registro doravante primeiro e quase
sencial de seu tratado a estudar como as ordens contribuem parn exclusivo da beleza, têm apenas o privilégio de representá-la .
a beleza dos edifícios, que é. o primeiro, no quadro de uma esré- No século XVI, o tratado de Palladio é o único a guardar um
tica, a tentar elaborar uma semiótica arquitt:tOnicaSB, e~te an1tti· lugar para a cidadt:, mas ~em medida comum com ayuele que
teto, todavia, coloca seus alunos em guarda contra os enganos lhe reservava o paradigma albertiano . Com o tempo, é principal-
do grande estilo : "Saberemos nos vedar a aplicação [das ordens) mente como suporte da circulação das pessoas, dos veículos e
se a construção é subalterna L••• ] enfim se o proprietário é de das águas, p or meio de rua s, pontes, aquedutos e esgotos, que a
uma condição . e de uma fortuna que não possa lho permitir cidade enquanto t otalidade conservará, em certos tratados94 , uma
[ ... ] Abusamu:; tlo:; objetu:; mais sublimes, dt:curamu~ cum eb presença específica, não exclusivamente metonírnica e estética.
até nossas casas de alugue]"89. Além disso, depois de haver desig- Na medida em que os tratados neovitruvianos tendem dessa
nado a distribuição90 como "o segundo ramo da arquitetura [ ... J forma a limitar seu propósito ao campo das ordens e da beleza,
por assim dizer ignorada de nossos antigos arquitetos" e "a úni· reduzem a exlemãu J os poderes do arquiteto e seu poder criador.
ca parte sobre a qual nossos aryuitetos [contemporâneos, que 11. despeito dos elogios da arquitetura que subsistem e constituem
lhe imprimi ram no entanto grandes progressos) menos escreve- verdadeiros achados, o demiurgo albertiano desertou esses tex-
r am"91, ele procura demonstrar-lhe a importância através de um tos. A~ organizador do quadro da vida dos humanos, ao arqui-
relato de origem que toma. como arquétipc as construções de cera teto-herói, sucede o arquiteto-artista que não tem mais transgres-
de abelhá, e declara sem sub terfúgios que "a conveniência deve oões a conjurar e pode teorizar em paz as regras da belt:za. In·
ser considerada a parte mais essencial de todas as produções clu vade os tratados uma nova temática, que vimos esboçar-se na
arquiteto"92. Entretanto, colocadas tais premissas, que evocam terceira parte do De re aedificatoria. A teoria da beleza absoluta
as prevenções de Alberti e p arecem retomar suas pcsiçõe:> sobre das ordens encerra a arquitetura e_os arquitetos num sistema esti·
a commoditas, a reflexão sobre a distribuição ocupa tão-somente trstico.
umas trinta páginas do volume p ara terminar n a análise da di s- Não é o caso d'e evocar aqui as polSmicas que opõem b eleza
tribuição tlt: castelos célebres . De fa to, as observações mais in· positiva e beleza relativa95, ordens e disposição, ordens e pro-
teressantes sobre a conveniência não est ão situadas no Li vro V. turas <398·399), aos m ercados (424-428) , lwlles (42fl·430) e açougu es (434·
mas, desp rezando a lógica, na parte do Livro I,I dedicada à "c ~l· 439). Ainda uma vez, imp õe-se a comparnçfto com a~ regr as "orgânicas"
r actcrística que conviria dar a cada gêner o de edifícios"93, de Alberti.
94. Cf. F. BLONDE L, op. cit., 5.' pmt~:, Livm I (pontes) , Livro 11
(uquedutos, cloacas): as referências aos t raba lho:; a ntigos são mais nu·
morosas que as menções às r ealizações contcmpot•l\ocas. Em J.-F. Blon-
85. Cap. XXI. Os quartos dão oporturúdade de tratar da divi são. clcl, em compensação, percebe·se a rns cinnç iio oxm·cidn no século XVIII
66. F. BLONDEL, op. ctt., Prefácio. pelos trabalhos dos engent..elros. C!. O'J). cft., Prólogo do t . II, p.
67. J.·F. BLOI\DEL, op. cit., t. I, Prefácio, p . XVII. XXXVII, ou a inda a segu_inte obscrvnçüo, a propósito ó.as r ealizações
63 . cr. infra, ):>. 211, n. 97. parisienses:· "não deixemos este local oncuntndot· sem falar de um. dos
69. l dc:r11, t. II, Prólogo, pp. XXVIII e XXIX. mnis belos empree:1dioentos q uo 90 Il ~r.oram na França néste século e
!JU . Nocito mnis restrita que a partitio de Alberti. Nun único caso,
mesmo nos séculos anteriores, qnn ó n ponte de Neu~l1" (idem, t . I,
(Livr o IV, Cap. IX), Albert1 emprega dtstrtbutio no sentido de partitio.
p. 107).
91. lclcm, t. IV, pp . 100 e 107. 95. Cf., em particular, sobre essa q uestão, W. HERRMANN, The
92. Iclcm, p. 100. ro grifo é nosso.J 'l'heory oj Claude Perrault , Londres, A. Zwemmer, 1973, que determina
93. No Cap. !J, r olnl:ivo aos ediffcios "erigidos para a u tilidade pú· tlxa:amente a situação da qw: rclu Pe~rault·Blondel. m ostrando os conh·a·
blica", assinalurcmos, om pnr tic:tlar, as páginas consagradas às manufu· llOnsos a que conduziu a noção de beleza positiva.
210 A REGRA E O MODELO A POSTERIDADE DOS DOIS PARADIGl\iiAS 211

chega a lhes dar o primeiro lugar entre estes c os trata dcpoi~ Outro sinal do pl'ivilé.gio dado à beleza e às ordens, a in-
das regras relativas aos materiais, da escolha do terreno e da:; versão da seqüência albertiana é seguida, nos tratados pó~-alber­
fm;da\fot:s, t: antes dos capítulos dedicados às galerias e qut.~noso~. lianos, de uma redução drástica do espaço consagrado ao primeiro
abóbadas, portas, janelas, chaminés, escadas e coberturas. inver- c ao segundo níveis. François B!ondel dedica apenas setenta e
são triunfante nos Blondel que especificam desde logo sua de- cinco de suas oitocentas c quarenta c duas páginas aos proble-
cisão de começar pela '' parte da arquitetura [ . .. ] mais consi- mas de construção, ao passo que, dos seis volumes de Jean-Fran-
derável [ ... ] a que serve para a beleza dos Edifícios"Bo, ou c,;ois, quatro e meio dizem respeito à beleza e aos problemas cria-
ainda, segu nd o a terminologia de Jean-françois, "peia decora- dos pelas regras das ordens.
ção, antes de falar das duas outras partes [. .. ] dizem respeito Não é de surpreender, em tais condições, que a cidude, en-
à distribuição e à construção"X7, quanto edifício específico · e global, desapareça dos tratados da
A tomada de posição de J.-F. Blondel, no entanto, não J eixa segunda Renas~;e n~; a t: Ja era clássica que tendem a eliminar a
de ser ambígua ao leitor atento que poderia ser enganado por comodidade. A figura da cidade se esfwna por trás de certos
declarações ulteriores. C:om efeito, o arquiteto que dedica o es- lipos de edifícios que, no registro doravante primeiro e guase
sencial de seu tratado a estudar como as ordens contribuem paru exclusivo da beleza, têm apenas o privilégio de representá-la.
a beleza dos edifícios, que é o primeiro, no qu adro de uma esté- No século XVI, o tratado de Palladio é o único a guardar um
tica, a tentar elaborar uma semiólica anluitt::túnit;aBS, t:~te arqui- lugar para a ddad~. mas ~t:m medida comum com aquele que
teto, todavia, coloca seus alu nos em guarda contra os enganos lhe reservava o paradigma albertiano. Com o tempo, é p rincipal-
do grande estilo: "Saberemos nos vedar a aplicação [das ordens] mente como suporte da circulação das pessoas, dos veículos e
se a construção é subalterna L... J enfim se o proprietário é de das águas, por meio de ruas, pontes, aqvedutos e esgotos, que a
uma condição . e de uma fortuna que não possa lho permitir cidade enquanto totalidade conservará, em certos tratados94, uma
[ ... ] Abusamo~ Jo~ objeto~ mais sublimes, decoramos com ele:; presença específica, não exclusivamente metonímica e estética.
até nossas casas de aluguel"89. Além disso, depois de haver desig- Na medida em que os tratados neovitruvianos tendem dessa
nado a distribuição90 como "o segundo ramo da arquitenm.l [ ... ] (orma a limitar seu propósito ao campo das ordens e da beleza,
por assim dizer ignorada de nossos antigos arquitetos" e "a úni- reduzem a extensão dos poderes Jo arquilelo e seu poder criador.
ca parte sobre a qual nos:>os arquitetos [contemporâneos, que A despeito dos elogios da arquitetura que subsistem e constituem
lhe imprimiram no entanto grandes progressos] menos escrevc- verdadeiros achados, o demiurgo albertiano desertou esses tex-
ram"91, ele procura demonstrar-lhe a importância através de um los. A~ organizador do quadro da vida dos humanos, ao arqui-
relato de origem que toma. como arquétipo as construções de cera teto-herói, sucede o arquiteto-artista que não tem mais transgres-
de abelha, e declara sem sub terfúgios que "a conveniência deve sões a conjurar e pode teorizar em paz as regras da beleza. In-
ser considerada a parte mais essencial de todas as produções do vade os tratados uma nova temática, que vimos esboçar-se na
arquiteto"92. Entretanto, colocadas tais premissas, que evocam terceira parte do De re aedificatoria. A teoria da beleza absoluta
as prevenções de Alberti e parecem retomar suas posiçõe:; sobre das ordens encerra a arquitetura e_os arquitetos num sistema esti-
a comrnoditas, a reflexão sobre a distribuição ocupa tão-somente lístico.
umas trinta páginas do volume para terminar na análise da di s- Não é o caso d'e evocar aqui as polêmicas que opõem beleza
tribuição de castelos cGlebres. De fato, as observações ma is in- positiva e beleza relativa95, ordens e disposição, ordens e pro-
teressantes sobre a conveniência não estão situadas no livro V. Luras (398-399), aos mercados (424-420), halies (4,211-430) e açougues (434-
mas, desprezando a lógica, na parte do Livro 1,1 dedicada à " ca- ·139). Ainda uma vez, impõe-se n comparnçfio <::om ns r egras "orgànicas"
racterística que conviria dar a cada gênero de edifícios"9~. de Alberti.
94. Cf. P. BLONDEL, op. cil., 5." pa1tc, Liv1·u I (pon l.cs) , Livro Il
(aquedutos, cloacas): as ref~rências aos trabalhos antigos siio mais nu-
merosas que as menções às realizações contcmporilncas. E m J.-F. Blon-
85. Cap. XXI. Os quartos dão oporh.:nidade de tratar da divisão. dol, em compensação, percebe-se n rns<::innçíío oxrrc1dn no século XVIII
013. F. BLONDEL, op. c!t., Prefáoio.
I>Clos trabalhos dos engenheiros. cr. em. clt., Prólogo do t. II, p.
07. J .·P. BLONDEL, op, cit., t. I , Prefácio, p. XVII. XXXVII, O!.! ainda a segu_inte observação, a propósito das realizações
00. Cf . infrn, p. 211, n. 9'1. parisienses: "não deixemos este locul cnca.ntodor sem falar de um. dos
89. Idem, t. II, Prólogo, pp. XXVIII e XXIX. mais belos empreendimentos que ;c f! ?.cmm na França nêste século e
BO. Noç!l.o m nis r estr ita que a partitio de Alberti. Num único caso,
mesmo nos séculos anteriores, qur. ó n ponte de NeuUlt" (i dem, t. I,
(LiYro rv. Cup. IX), Albertl emprega dtstrtbutio no sentido de part itio.
p. 107).
91. lc!cm, L. IV, Pl>· 100 e 107. 95. Cf., em particular, sobro cssn questão, w. HERRMANN, The
92. Idem, p. 100. [Q grifo é nosso.]
'l'hcory of Claude Perrault , J. ondrcs, A. Zwemmer, 1973, que determina
93. No Cap. !l, rolnUvo aos edif!cios "erigidos para a utilidade pü- uxatnmente a situação da qu~'rela Pe:rault-Biondel, mostmndo os contra·
blica", assinalurcmo:;, om particular, as páginas consagradas às ma.nufu· ocnsos a que conduziu a noção de beleza positiva.
212 A REGRA E O MODELO A POSTERIDADE DOS DOIS PARADIGMAS 213

porção. São os limites do sistema estilísth:u que estão em jugo e sional, os exemplos que permitirão descobrir e formular as re-
a margem, fraca, ae intervenção possível do arquiteto na apli- gras da arquitetura, o desenho, mais bem adaptado como está
caçao <1e suas regras. A criatividade do arquiteto dorav<tnte se ao novo propósito dos tratados, acaba suplantando o discurso
encastela no campo de uma poética~. Em outros termos, u único verbal. Com efeito, torna possíveis o confronto e a comparação
poder que lhe resta é um poder de expressão: "A arquitetura, visual imediatos dos objetos arquilelônioos. Permite analisar e
como a música e a poesia. é suscetível de harmonia e de expres- decompo~ o; membros e as unidades estilísticas dos edifícios,
sãu "U7. Transpondo-a para o campo da construção, J.-F. ~londel cuja apreensão pelo verbo é inadequadalOl, O desenho é, pois,
é, na era clássica, o primeiro teórico a dar um conteúdo elabo- o instrumento constitutivo de uma teoria figurada dos elementos
rado à célebre metáfora de Horácio, "ut poesis, pictura", c a de· arquitetônicos, que repousa ao mesmo tempo sobre essa decom-
talhar o poder de expressão da arquitetura. Ele desenhou, não posição analítica em elementos e sobre uma crítica comparativa.
sem firme:t.a, a silhm:ta do arquikto-poeta, o único suscetível de Essa dimensão crítica é essencial à postura clássica. ~ um con-
substituir e . suceder ao arquiteto-herói, como protagonista de um rronto permanente, através do desenho, das obras (gráficas e ar-
texto donde foram apagados os domínios da necessidade e da quitetônicas) dos outros arquitetos.\0?., seja entre si, seja com suas
comodidade. Esse tema não deixurú de inspiror os românticos. próprias obras (g ráficas ou arquitetônicas), que os tratad istas es-
Encontrará sua forma extrema num livro de A. Saint-Valéry tabelecem os sistemas tipológicos aos quais atribuem o valor de
Seheul t98 que wnsidera a arq ui tetun1 "a mais rÍ\.:a das lingu as "00, exemplo e que entregam à imitação de seus discípulos. Além
mas no qu al já o eu do arquiteto escritor desaparece em proveito
de uma enunciação impessoal. Discurso: persuadido de que um desenho bem feito, quer represente
/\. arquitetura, enquanto integrada nas belas-artes, tem ao um pl&no, uma elevação, um corte ou alguns desenvolvimentos des dife·
mesmo tempo como promotor e como símbolo o desenho que, rentes par:es de um Edifício, prova melhor e mais prontamente que a
narração mais satisfatória; 2.S frases mais claras substituindo mal o de-
daí por diante, ocupa um lugar codificado nos tratados: o texto senho r... l há sempre um adiferenca muito grande entre Lições pura·
remete necessariamente à imagem soberana, à qual está subor- mente especulativas, e as ajudadas pela demonstração. Quanl.as ve~es
dinado, quer ela esteja integrada ao correr das páginas quer se não sentimos qu e uma ou duas figuras levemente traçadas na ardósia,
apresente .sob a forma de um conjunto separado de ilustrações. poupavam em nossas Conf•.rrêncios uma circunlocução [ ... J O espírito
A função atribuída ao desenho, porém, é muito diferente uaqllela mais metódico algumas vezes concebe quimeras, que um desenho bem
feito destrói. Decerto é prf!ciso ser muito ver sado na Arquitetura, para
que lhe conferia Film·eto e subverte a finalidade totalmente alber- Imaginar com alguma precisão. e para explicar suas idéias aos outros
tiana que inspirava a este título. Ela não mais consiste em apreen- sem o auxílio de uma figura que fala aos olhos. Podemos dizê-lo aqui:
der operações e traduzir pt·oje.tos, mas em apresentar objetos. Vitrúvio não pareceu obscuro a s eus Comen: adores apenas porque as
Se no início é apenas o meio de fixar com precisão, intuiti· pranchas com que acompanhou suas explicações foram perdidas r. ..J" .
10 ori/O é nosso.J Francesr.o di Giorgio já di?.ia: "Mas para não rnul·
vamente e sem ambigüitlauelOO, graças a um substituto bidimen- l.lp!icar as descrições e pa;·u fu~ir ao supérfluo, eu me aplicarei 110
desenho Cal diseg;to me riferisco)" (op. cit., p. 382).
96. Cf. E. BENV~NISTE, ProblJmes li, p. 65, e também I. LOT· 101. Cf. PALLADIO, Livro III, Prólogo: "Vendo no papel vários
MAK, op. cit. exemplos das m elhores coisas e podando medir fncilmentc os edifícios
97. J.·F. BLONDEL, op. ctt., t . II. Prólogo, p. XLVI. A comparação Inteiros e separadamente cada uma c.~ suas partes, ganhar-se-á o tempo
é desenvolvida em pl'Oveltu du arquiteto, pp. 230 e 231. C!. também t. IV, que t eria sido necessá:-io a uma longa leitura e para estudar palavras
Djssertação, p. IV: "O estilo no arranjo das fachadas e na decoração que, depois de tudo, dão apenas fracas e incertas idéias das coisas, cuja
dos apartamentos é, em sentido figurado, a poesia da arquitetura, colo· escolha ainda é difícil de fazer quando se chega à execução".
r ido que co:J.tribui para tornar verdadeiramente interessantes todas as 102. A qualidade e a fidelidade de seus levantamentos são, mais
composlçOes de um arquiteto. ~ o estilo convenient.e aos diferentes !linda que a pertinência de seu discurso, o critério ele l1icrarquização dos
objetos que leva a essa variedade infinita nos diversos edifícios L . . J tratados, tanto para a Academia de Arquitetura quanto pn.ra a m aioria
Em uma palavra, o estilo de que falarr.os, semelhante ao da eloqüência, dos tratadista.s. Cf. F. BLONDEL, op. cit., Prc!ll.clo: "Acr escente! nume·
pode conseguir fazer que o arquiteto pinte o gênero sagrado, o gênero rosas pequenas coisas nas figuras q11e al.ribuo n cada uma das Ordens
heróico [ . . . l" destes Arquite:os, a fim de fazer qu.~ so com)lt'oondum mais facilmente
96. Le Genle et les urands secrets de l'architecture historique, Paris, suas intenções. Há mesmo erros ern seus dPscnhos que corrigi, porque,
1613. J)Sm dizer a ve: dade, Palladto e Sc:unoz~r.l niíu são ct.Jdadosos nem exa·
!lO. Op. clt., p. 36. Ele prossegt.:e: "É ela que empresta às línguas tos no detalhe das medidas de suas m olduras cujos algarismos muitas
vulgares umn espécie de ençanto; tem expressões doces e formidáveis, vezes têm pouca re:ação com os número.-, que deveriam ter para as
risonhas o mr luncólicas, ternas e cruéis r.. .J :E: o conhecimento dessn regras gerais. A maior dificnldadc q ue Live foi na redução das de Sca-
lingua que Cnr. o verdadeiro arquiteto" <Wtd.). Cf. igualmen~e o cap1· mozzi." Cf. também J.·F. BLONUEL !op. cit., t . III, p. XXI), em quem
tulo sob!'o o "nn~ C' I mcnto da arquitetura" q_~.;e transforma os edifícios 110 trata da "experiência ( . . . J essencial : . . . I que nos ensina a julgar pelo .
em "poomns•· (1(/em., p. 16). ••xnme dos edifícios antigvs e modor!1os da estrada que os grandes mes-
100. CL Wcm, Pl'OI:1\clo dO t.. I , p. XXVI: "Esta obra conterá !leis t.res seguiram [ ... :. E por isso que o arqui teto. chega a imitar cnm resul·
volumes, e ce r~t~ elo du~onws 1nanchas nece:;s:kiiiS ao ent.endimento c\o Indo as obras mais ctílebre~ ". W {friJo ~ nosso.]
214 A REGRA E O MODELO A POSTERIDADE DOS D OIS PARADIGMAS 215

disso, embora continuando pat'te integrante do processo de pro- se, sem dúvida, em parte, ao fato de que, na prática histórica e
dução da arquitetura, esse método de comparação gráfica e de social, os· problemas do quadro construído niío mais se colocam
análise elementar dos edifícios pelo desenho pode tornar-se o nos mesmos termos que no tempo matinal de sua .primeira teo-
auxiliar e o instrumento de :verdadeira crítica de arquitetura cujas rização.
melhores páginas, como as que St:rlio dt:dica ao Panteãol03, per- Dentre um conjunto complexo de fatores , limitar-me-ei a re-
manecem inigualadas. lembrar dois fa tos que não puderam deixar de contribuir para
Graças a seu poder analítico, que lhe permite decompor c o desenvolvimento desses tratados. São a transformação da es-
isolar com precisão os elementos das ordens, o desenho oferecia trutura do poder político nos Estados europeus onde nascc::ram
aos ncovitruvianos um instrumento privilegiado para formular as os tratados de arquitetura, e a institucionalização correlativa da
regras da bele-at. Mas, em seus- traçados, a função dominante do atividade arquitetônica.
desenho não é formular regras nem ilustrá-las (à maneira de Fi- Em primeiro lugar, não mais existe n relação que Alberti,
lareto). Nele a análise dos elementos e de suas combinacões é Filareto ou Francesco di Giorgio mantinham com seu príncipe.
sacrificada à descrição de tipos arquitetônicos. O arquite lo não Seu diálogo tnm:;~.:Úrria c::m p6 dt: igualdade:: no quadro tradicio-
procura mostrar a maneira de compor um belo objeto, apresenta nal da Cidade-Estado onde um exercia o poder político, enquan-
wna escolha de belos objetos exemplares, quer se trate de edi- to o outro descobria seu poder, homólogo, de criador. Com o
fícios inteiros quer de suas partesl04, Foi assim que se constituí- século XVI e depois o XVII, o príncipe passa a encarnar o poder
ram catálogos ou ~epertórios tipológicos, oferecidos à escolha dos do Estado nacional e o arquiteto deixa de ser um interlocutor
leitores, clientes ou práticos. Não se poderia imaginar intento cspedal, para entrar ~.:ada vez mais numa relação de submissãol06
mais estranho ao do De re uedijic:aturia, e cabe pensar que essa quanto à deteiminação do programa. )lão é mais o tempo em
função atribuída à ilustração materializava os temores que o fi- que a bela metáfora erótica de Filareto podia realmente servir
zeram proscrevê-Ia de seu próprio tratado. Em lugar -do escritor· para descrever a colaboração do plincipe c de seu arquiteto. E
herói, instala-se um produtor de imagens cuja vocação é inven- fácil conceber que, em tais condições, o arquiteto tenha sido
tar variantes, e o destino é promover wna ordem estélica, en- levado progressivamente a se desinteressar, no plano teórico, pe-
cerrada no recinto de :;eu ~.:údigo. los problemas da cidade e pelos grandes projetos de mE-lhora-
mento de que estava excluído no plano prático107, para ~ssumir
a condição do artista, desvinculado da rugosa realidade própria
Retomando o termo de Spengler105, parece possível, pois, dos registros de necessitas e commoditas108. A criação da Aca-
chamar de pseudomórficos os tratados d~:: arquitetura postetiores demia de Arquitetura por Luís XIV, o êxito da instituição e sua
ao século XV. Embora pareçam reproduzir o arquétipo discur- longevidade testemunham essa sublimação, que é ao mesmo tem-
sivo elaborado por Alberti, eles justapõem apenas signos, priva- po um isolamento, organizado pelo poder político, consentido e
dos de seu poder de significar. Sua aparente modernidade escon- gerido pelos interessados.
de uma regressão que contribui, para muitos deles, para lhes Ademais, a profissionalização, ao me:;mo tempo que con-
dar um caráter compósito e mesmo aproximá-los da categoria sagra a integração da arquitetura nas Belas-Artes, exige que se
dos manuais. A emasculação do herói alber tiano cujo horizonte especifique o novo status social do arquiteto-artistal09. Reclama
é tolhido e cujo projeto é reduzido e desviado, a deserção da ci-
dade e a fixação quase exclusiva dos tratados neovitruvianos no 106. A destinação da dedicatória dos tratados é um cl"itério enga-
registro de uma estilística arquitetônica que daí resulta devem- noso, porque esta é· quase S('mpre dirigida no príncipe, qualquer que
seja a época considerada.
107. Uma recaída desta exclusão é a subslilui~~ío dos arquitetos
103. Op. cit., Livro III , p . 50. pelos "cientistas" !savants) na elaboração dos r,ranclcs projetos de plani-
104. Cf. SERLIO, (op. cit., Livro IV), onde o texto mostra bem que ficação do século XVIII fwncês . Cf. B. FORTJErt cl aUi, La Politique
as séries de elementos ti[.Cllógicos apresentam estes enquanto objetos de !'espace parisien, Paris, 1975.
autôuomos e não, funcionalmente, enquanto unidades significativas eJe. 108. Essa afirmação reclama matil'.CS. De I'Ormc como Pallndio con-
mcnuwcs. Leremos, p or exen;p!o: "O arquiteto eminente poderá. servir-se servam uma fidelidade a .l!.lberti que os Ül'l. começar seus livros pelas
dessa porln om diferentes lugares [ ... l A porta seguinte poderá. servil· r egras relativas à salubridade e à comoclidndc. Mas, se de !'Orme afirma
a torlos os cd iffcios mencionados no início como rústicos" (pp. 131-132), que, "ver dadeiramente, é muiLo mai::; huncslo e útil saber arranjar bem
ou alnda: " O arquiteto judicioso poderá utilizar a figura anexa para um alojamento e torná·lo sadio elo que nele fazer tantos rapapés, sem
düercntcs col:;a:;" (p. 149). O papel desempenhado pelo desenho neste qualquer razão" (op. cit., p. 19), ele nüo se afasta menos do método,
tratado npnrcco no próprio título de seus livros, dos quais o quarto, ctn ordem e do equilíbrio do De re aedi/icatona. ·
aqui cilada, se lnliluln "No qual são tratadas pelo desenho (in designo) 109. Preocupação que se manifesta em de l'Orme cujo Livro I in·
caracter!Stlcas elas cinco 01 ctens". W grifo é nosso.l loiro se ocupa, de cnpítub em capítulo, em estigmatizar os pseudo-
105. L c Déclin de l'Occidente, Pru:is, Gallimard, 1948. nrquitetos P. suas obr:<s: "Existem hoje poucos arauitetos verdadeiros e
A POSTERIDADE DOS DOIS PARADIGMAS 2!7
216 A. 'REGRA E O MODELO

wriversale que, publicado em. Veneza em 161.1 por Vicenzo Sca-


u elaboração tanto de uma pedagogia quanto de seu suporte dis· mozzi, reproduz o funcionamento do arquétipo albertiano e cons·
cursivo. Os tratados neovitruvianos são concebidos em função tilui assim um caso, único ao nosso conhecimento, e de qualquer
dessas exigências. E é por isso realmente, como vimos, que têm modo excepcional; e o inclassificável Abrégé des Dix Livres d'ar·
mui:o do cursot:o de finalidade p rática imediata e do catálogo c:hitecture de Vitruve113 de Cl<mue Penaul l que, por trás da ho·
para profissionais 111. Decerto, o De re aedijicatoria era endere- menagem de titulo e dos louvores habitualmente envenenados do
çado aos prá ticos, mas era um discurso do método escorado por Pref ácio, manifesta uma fide lidade paradoxal ao espírito c à for·
um hinu à criação, um texto instaurador de sonoridade filosúfit.:a, ma albcrtianos.
um relato inaugural.

1 . 3. Duus Exceções: Os Tratados de Perrault e de Scamozzi A analogia de Perrault com A lberti está talvez no fato rl e
que, ao contrário dos outros tratadistas franceses, esse médico-
.. Deve:se concluir_ daí que ~ gênero discursivo criado por Al· l'ísico e Iingüis te possuía uma formação polivalcnte e p ertencia
bem pratlcan;ente nao sobrcv1veu a seu inventor, que &alvo o à linhctgem do~ aryuite tos-hum anis tas, e não à dos arquitetos·prá·
Tratado de Fllareto, o De re aedificatoria não teve verdadeira ticos. \lesse pequeno texto qne preten de resumir Vitrúvio, Per·
posteridade, e que sua estrutura arquetípica subsiste nos trata- r ault se descarta rapidamente de " todos essas excelentes e eurio-
distas ulteriores apenas no estado de fragmentos e avatares for- SEts pesquisas que ficmn para os Sábios que nelas en::ont ram mil
mais? No que diz respeito aos tratados evocados nas · páginaa belas coisas tiradas de uma infinidade de Autores que Vitrúvio
antenores, deve-se responder pela afirmativa. Mas podemos con- leu e cujas obras estãu perdidas atualmente", para conservar
trapor-lhes duas exceções pelo menosll2: a Idea dell'architetturu "apenas o que pode servir precisamente para a arquitetura", re·
legando para uma breve segunda parte "o que pertence h arqui·
vários que se atribuem esse nome devem ai'!tes ser chamados mestl'f!s tetura antiga" c somente nos coneerne do ponto de vista histó-
pedrei.ros" (op. cit., Prefácio); da mesma forma, é preciso den:mciar "~ rico. Assim, a primeira parte é consagrada "às máximas e pre-
teme~1dade de .vários,que. se disfarçam de arq:detos" (idem, p. 22) ; cf. ceitos que pe dem conformar-se à arquitetura moderna". Em ou·
tar!tbem o elogJo do sáb10, douto e perito arquiteto" cuja natureza das
r elações que deve manter com o senhor ou cliente é especificada llté Iras palavras, nela o autor acomoda Vitrúvio à la Perrault : " Fo-
adverLir a esLe úlLimo que deve:á "observar que [o arquiteto] não seja ram dispostas essas matérias segundo uma or dem diferente da
incomodado pelos domésticos ou parentes da sua casa, porque verdadei· de v:trúvio"ll4, indica ele modestamente, sem precisar que no
ramente isso o desvia muito de suas empresas, invenções e disposiçqes, mesmo instante restabeleceu a tr ipartição albcrtianallS, foi o pri-
como vivi por experiência em diversos locais L . .J" Cid.em, p. 11. r).
110. A vontade didática surge à evidência na relação do texto com
meiro a encarar, no capímlu da comodidade, o problema da ci·
a figura. Cf. er.tre centenas de exemplos, essas indicações de D!:l l'Orm6 dade enquanto edifício, e finalmente deu uma vers~o original e
(Livro VIII, p. 251, r): " Pnra melhor vos mostrar e fazer entender como tripartite dos relatos de origem. E sta versão comporta, em pri-
se deve acomodar as janelas, portas [ ... J por meio das ordens das meiro lugar, "a primeira oportunidade de trabalhar na arquite·
colunas, eu vos coloquei em anexo como exemplo. a face fronteiriço. do tura"ll6, que é uma gênese da edificação, apresentando a prática
ediffcio do dito castelo de Saint·Maur". A denegação do mesmo autor
no concerne:1te à formulação de certas regras é igualmente sintomá· do construtor como ponto de partida de todas as outras práticas
tica: "1\"õo importa que hoje vários se apeguem a escolas e façam pro- humanas; em seguida uma gênese do ohjeto construídoll?; e fi-
fissão de ensinar, eu teria dificuldade em escrever mais com o tempo" nalmente uma gênese do objeto arquitetônico, "terceira origem
(idem, p. 31, v). lll com F. Blondel que aparece a pr!meira rr:enção de da arquitetura que se mune dos inventores das orclens"ll8. A ori·
curso (composto para a Academia depois de ter sido ensinado publica·
mente, indica o Prefácio). J.·F . .mondei se proporá em seu Coura gem do Abrégé, ao que eu saiba , nunca [oi compreendida, nem
d'architccturc ou Traité [ ... l, melhorar o serviço de F. Blondel a "fun. mesmo por W. Herrmann119, au tur da únicn monografia consa-
dir em um só corpo de lições ~udo o que se disse de excelente sobre grada a C. Perrault. Seria importante estudar essa ubra complexa,
esse objeto [. .. J e tudo o que d1z respeito às outras arLe~ de gosto
que ela [a arquitetura.) dirige e valori~a ao se associar a elas" (Prc·
fácio). ll:J. Paris, 1674.
111. No limite, estes cntálogos de edifieios privados e públlcm 114. Op. cit., edição de l6Bl, Amslcrdnm, p . !0.
constituem tnmbém uma formR de publicidade para seus autores. 115 ~a edição citada, 22 páginus süu clcdicadas às generalidades.
112. F.nt.r c os textos n!lo evocados aqui, o Dictionnaire de QUATRE· 43 à solidez, 14 à comodidado, !i3 11. bclczn.
MÊRE DF. QUINCY ocupa. um lugar capital. Nós só descobrim os c pu· 116. Indicação margir:al ele Pcl'l'nnll.. em grifo.
demos provm· ('!! SI< :Cilinçüo depois do aparecimento de nossa obra em 117. "Os primeiros mocelos quu u arq uitetura seguiu foram racio·
francês. Cf' . nn~sn.~ r:nn'Pri:\r.('ias sobre "Co!lflicting Roles of Myth, Hl5· nais ou artificiais" (grifes murgit: uis ele Perrault).
tory and M<.: mory Ju .1\lb<.:rti, Quatremere de Quincy and Viollet-le-Duc", 118. Op. cit., p. 25.
dadas na COl·noll UnivcrsiLy em outubro de 198~ çl~nt;o das Preston H . 1:9. The T heory ot Claude Perrault, OJJ. vit.
'fbomas Memoriul Lccturcs .
A REGRA E O MODELO A POSI'ERID4DE DOS" DOIS PARADIGMAS

cá-lo ao conjunto da edificação. As regras relativas à cidade (Li- tlUú 6 da competência dos cortadores de pedral31, O Livro VUL
vro Il), aos edifícios privados (Livro 111) e às ordens (Livro VI ) 1\lrmina a seqüência imposta pela lógica aristotélica c pode, enfim,
são assim abordadas, sucessivamente, do ponto de vista da forma, prupor as regras que presidem a união da forma e da 111atéria, essa
antes que cheguc::m o Livro VII consagrado à matéria e o Livro pr1ssagem ao ato (" atto dell'edificare tutti i generi di edifici cosi
VIU que trata da passagem ao ato, ou seja, das regras da cons- Jlllblici come privati, in ogni positura di luogo"l32) que é a reali-
trução concreta. Vemos, pois, que os três primeiros livros da edi- II IÇÜO propriamente dita de todos os gêneros de edifícios. Essa di-
jicatione, dedicados "aLia speculatione delle forme"128, repetem vl8ão diferente da de Alberti, que coloca assim a construção no
parte do projeto do primeiro livro de Alberti, embora englobando I in11l do texto, não deve iludir u lt:itor. Ape:sar do~ resumos e das
uma matéria muito mais vasta. Scamozzi não retomou us :sei~ prin- 11llpses, o Livro VIII da l dea é construído segundo a ordem gené-
cípios. Em compensação, a tripartição estrutura todo o primeiro t it'o-cronológica definida na primeira parte do De re aedificato-
estágio formal da adijicatione, que começa tratando das regras da l'fal:l~; é organizado pelos mesmos operadores e, em particular,
necessidade (primeira parte do Livro li), prossegue com as da p~;lo axioma 3 (do edifício-corpo) sob suas diversas formas meta-
curnuuü.lade (segunda parte do Livro li e Livro III), para termi- ló ricasl34 qut: poderiam muito bem ter sido buscadas diretamt:ntt:
nar com as regras do prazer estético (Livro VI). Em ou Iras pa- 1lll1 Alberti.
lavras, a pirâmide do De re aedificatoria se reencontra na I dea, Finalmente, se a I daa parece construída como a primeira parte
com a reserva de que ela governa a primeira seção da edijicatione du De re aedificatoria, do qual seria uma espécie de analogon gi-
(Livros II-Vl). Nessa seção, que ocupa dois terços do tratadol29, lll lntcsco, esta construção não aloja apenas o conteúdo do primeiro
o equilíbrio albertiano é respeitado. O famoso Livro VI, tão elo- nlvcl albertiano, mas também o dos dois níveis seguintes. A des-
giado pelos teóricos franceses e apresentado por eles como a quin- peito da interpretação que dela nos transmitiram os tratadistas neo-
tessência da ldea, ocupa aqui, portanto, sem privilégio de extensão v lt ruvianos, a teoria das ordens e a estética estão longe de repre-
ou de localização, apenas o nível da beleza que depende, como no . r•cnla r na lde(l o mesmo papel que em seus próprios tratados. Nela
De re aedificatoria, do::; dois níveis anteriores. 11 registro do prazer da beleza ocupa me::;mo ti" m lugar menos im-
Os quatro livros "formais" da Idea constituem, de fato, um (lOI'lante que em Alberti. Não constitui um dos elementos maiores
conjunto textual homogêneo e uma forma de tratado autônomo, no do texto e não mais é designado como o seu coroamento. Ou me-
qual se resume, para Scamozzi, a teoria da atividade edificadora. lhO!', e sem que lhe seja mais atribuído um campo textual especí-
Não sendo a forma separável da matéria a que ela dá forma, a fico, na ldea é o registro da commoditas que tem prioridade sobre
preocupação de estabelecer um conjunto de regras abstratas e for- llll outros, acolhendo com uma generosidade nova as exigências
mais, aliás, não impede que Scamozzi evoque, no curso desses mnis humildes da vida quotidiana135.
quatro livros, um leque de problemas concretos, cuja extensão ul-
131. Cf. Livro VII, Cap. I, y. 73, onde Scamozzi distingue os dois
trapassa amplamente o quadro do segundo nível de Alberti. A dia- fi nos de formas que a matéria pode revestir: uma. é a ordem da pre-
lética aristotélica da forma e da matéria articula igualmente esse phr'rtçiio e se relaciona com o cortador de pedra, a outra é a elaboração
conjunto com os dois últimos livros da ldea. {1110 cabe ao arquiteto. seguindo Aristóteles (Ff~icn., Ca.p. nn, ::;;camm:?:i
Fiel à vontade de seu autor de se desvincular de todo manual rr11·r\ corresponder o primeiro à matéria sensível e o :segundo à matéria
profissional, rompendo com o segundo livro de Vitrúvio e mais 1111ollgível. Na lógica dessa concepção da matéria, Scamozzi vai buscar
11111~ informação científica sobre os diversos materiais e sua gênese
rigoroso mesmo que o de Alberti, o Livro VII aborda a matéria 111111 autores antigos (Aristóteles, Teofrasto, Pausãnias, Tito Lívio, Avi-
somente enquanto matéria inteliRível, objeto da ciência na tural na 1'1•111\ c mesmo Alberto Magno) cujo saber ele não questiona em momen-
qual o arquiteto deve iniciar-sel30; silenci.a sobre a ma t6ria sensível '" nlgum: cf., por exemplo, p. 79, o capítulo sobre a geração do már-
lriOt'O , cuja causa eficiente "é uma certo virtude mineral, que produz
1•11 mármores ou metais pela aglutinação na terra do úmido c do quente
(11V.MUvo !. .. l". Curiosamente, este arcaísmo é contrabalançado por
do arquiteto, que lhe dá forma em idéia e em seu espírito [. . .l". 11. llllllt Informação direta, precisa e precio~a, sobm o uso dos diferentes
passagem termina com a designação das cinco causas (genérica, especí- or111l('riais entre os diferentes povos e nas difcron~cs localidades.
fica, formal, material e final) do edifício. J32. "O ato de edificar todos os gêneros ele difícios, públicos e pri-
128. P. 173. l'lidos" (Livro vrn, Cap. I, p. 271).
129. l!: notável o equillbrio da. I dea. O primeiro volume compreende 1:13. "Começaremos pelas fundações seguindo ra construção dos
352 páginns : 97 páginas para os trinta. capítulos do Livro I, 120 páginas rHIIf!r;iosl parte por parte a~é seus Lclos."
para os trinta cnp!tu1os do Livro II; 133 páginas para os trinta capítulos 131. Sendo o edifício um corpo, suas partes ( parti) são as düeren·
do LiVl"o III. O segundo volume ocupa 370 páginas: 172 para os trinta lr •rl llCçns, seus membros (membm) as portas, janelas, chaminés, esca-
e ctnco cllplLu!os do Livro VI (que diz respeito ao mesmo tempo às rHtr•hi A; sew; ossos (Ossa) são as paredes. colunas, pilastras; os nervos
ordens e aos ornamentos), 9r páginas para o Livro VII e 100 páginas lrlt•r vl.) são as arquitraves, cornijas e tetos (p. 272). Esta. visão estru·
para o Livro VIII. lllr'lll nilo tem, evidentemente, o valor da de Alberti.
130. P. 174. l:lG. Cf. Livro VIII, Cap. J, p . ?.'75; Cap XI V, p. 318.
222 A REGRA E O MODELO A POSTERIDADE DOS DOIS PARADIGlV.LAS

Centrando a construcão da Jdea na dialética aristotélica da portante é que ele instala necessidade e beleza na mesma relação
forma e da matéria, Scaniozzi carece para sempre do rigor e da q ue Alberti, dentro do mesmo esquema operatório tripartite . Pou-
graça que sua estrutura piramidal ~.:unferia ao edifício albertiano. uo importa que o axioma do edifício-corpo não seja colocadu expli-
Mas, no caso, é apenas uma carência ou imperfeição superficial, ultamente entre os princípio~ metodológicos, se ele sustenta, de
que não impede que a Jdea apresente os traços estruturais essen- um lado a outro, a narrativa da gênese do mundo construído.
ciais do De re aedificatoria c afirme uma proposta comparável. Pouco importam também as repetições e as incoerências: que Sca-
Porque aquilo a que visa Scamozzi é realmente o processo geral lliOzzi trate por duas vezes dos deveres profissionais do arquiteto,
da edificação e suas regras. :É segundo essa perspectiva que ele que se arranje por três vezes para definir a arquitetura, que seu
reintroduz em seu texto a figura da cidade, tarefa fund <1mental primeiro capítulo sobre a ddade seja uma confusão, que sua
do arquitetol36, e q ue, perscrutando-lhe a gênese, nela descobre l~:rminologia flutue com desenvoltura no interior de um mesmo
as problemáticas novas concernentes à dcmografial37, às relações livro ou de um mesmo capítulo142. Essas falhas se devem à per-
com as outras cidades e com a regiãol38, enfim à circulação urba- »onalidade de Scamotzi que não pode ser comparado a Albcrti,
na, que ele encara, sem dúvida pela primeira vez, em termos de pois não possui seu gênio nem mesmo o espírito de método ou a
instrumento139. E é, em definitivo, para confirmar essas regras ~:l areza. A comparação dos dois arquitetos seria ociosa, e inútil
generativas que ele toca, com uma alegria sem precedentes, em um confronto dos dois textos, confronto que Sê situaria no nível
todas as teclas da temporalidadc, a fim de entrelaçar inextricavel- dessas diferenças qualitativas.
menle o relato da construção, os relatos de origem, o relato bio- Em compensação, merecem ser sublinhadas outras diferenças
gráfico e uma nova história da arquitetura. que se devem à diversidade das épocas e das mentalidades e que,
Pouco importa que Scamozzi conteste o enfoque albertiano ~em alterar a figura subjacente à I dea, marcam a superfície desse
das ordens e pretenda dar-lhes uma nova formulação gcométri- texto. Assim, vimos que Alberti, confiando mais no testemunho
cal40, ou ainda que conceba o campo da necessidade essencial- do construído que no dos escritos, freqüentemente apoiava em
mente em termos de geografia física e de "climatologia'' 141. O im- ex:emplos o seu caminho. Dava prioridade, então, nos vestígi os da
Antiguidade e, por isso mesmo, citava apenas pouquíssimos edifí-
136: Cf. Livro 1!, Cap. XVII, p. 152: "A distribuição das vias e das cios contemporâneos. O inverso vale para Scamozzi. As Jealiza-
praças, e a escolha da localização dos templos, do ~lácio do pr~n_cipe ções do passado, em geral, não apresentam para ele senão um in-
e dos edifícios administrativos e de tantos outros generos de ediftctos le resse arqueológico. Em termos de uso, não têm ·mais sentido. Ele
lümdas às circunstâncias (per opportunità) e necessidades diversas: eis dispõe, realmente, de um vasto corpo de edifícios "modernos" e
u~a série de tarefas que 1ncumbem ao arquiteto [. ..]". W grifo li nosso.]
137. Cf. Livro II, Cap. XVIII, pp. 158-159.
de uma relação refinada com a história que permite estabelecer
138. Cf. Livro II, Cap. XVII, p. 155 e Cap. XVIII, p. 160, onde Sca- um corte radkal entre antiguidade e modernidade. Cremos ouvir,
mozzi utiliza a metáfora do coração situado no meio do corpo do ani- com cinqüenta anos de antecedência, o Perrault do Abrégé quando
mal (collocato nel mezo del corpo dell'animale) para designar a melhor p Veneziano opõe os elementos da residência antiga que a tradição
posição de uma cidade no interior de seu território ("a fim de poder ll lHnteve vivos (trata-se essencialmente do átrio) c .aqueles "cuja
alimentar depressa e bem todas as suas partes"). Cf. também a impor-
tância dada às facilidades po.rn o comércio e o. circulção entre os crité· ro nna ou uso diferente fez p raticamente cair em desuso ou no
rios que servem para a escolha do local (Livro II, Cap. VIII, p. 52) . usquedmento"143. O pre~ente, Scamozz.i insiste nisso, ~.:oloca pru-
139. Cf. o Cap. XX do Livro VIII que, com exceçao de uma página: hlcmas específicos144. Construir é. questão de época e ele lugar. E o
é dedicado exclusivamente à circulação. Nesse capítulo notável, Scamozzt uutor multiplica as referências contemporâneas, variando os con-
desenvolve a classificação iniciada por Alberti. Batendo·se contm o. es·
lçxtos.
treiteza das vias herdadas da Idade Média ("dão incontestavelmente ID?a
atmosfera de tristeza a toda ~. cidade, tornam as casas escuras e, ~e~ De fato, e é aqui que ele inova, pela primeira vez nos tra-
disso, o ar que nelas níi.o ~ir~ula torna-se mais denso e rr:enos sadw , lndos Scamozzi adota uma perspectiva "comparatista", cuja am-
p. 169), ele sublinha a neces:;idade de mas melhor apr?pnadas .a seus plitude somente se encontrará no final do século XVIII com Qua-
us os diversos ("A largura da~ ruas [ ... l deve ser dedUZtda daqmlo .~ue
vai ser preciso circular nelas, char~etes, carroças, cavalo~ ~: . : 1) . e
lrcmei·e de Quincy. Já vimos que, em seu estudo elos .materiais,
insiste na importância da função rtrcula~óna ~as ruas ( ess~s . xuas olo leva em conta os usos dos diferentes povos da Europa; nota
devem ser feitas muito largas Já que a ctrcu!açao d~v_e ter pnondada IINSim não só as variações impostas pela na tureza do subsolo, mas
sobre tuclu u r esto, p. 170, o grifo é nosso), sem o~ti;: o~ problemas
do pedestre ("ruas menores L . .J reservadas aos ctda~aos , p . 169) .. . 142. Livro VIII, Caps. I e III.
140. Muito p róximo da de Perrault, à luz da análise que dela faz
143. Livr o III, Cap. XVII, p. 303.
HERRMANN, (01). ciU. . 144. Cf. Livro II, Cap. XVIII, p. 150. "A diferença de época entre
141. CL os du~csstlis primeiros capítulos do Livro II e o man?rra IHIH e os antigos acarretou grandes mudança::;, inclusive na maneira de
como Sco.m o~t.3i 1·cconhccc o.s dificuldades insuperáveis que certos srtros lll:r.Or as cidades: isto porque na Antiguidade não havia muitos habi·
apresentam (por exemplo, p . 160). t11nLcs e não reinava entre eles o desejo de dominação".
224 A REGRA E O MODELO A POSTERIDADE DOS DOIS PARADIGMAS

também as diversas maneiras, por exemplo, de empregar a pedra dual das construçõcs150. O texto c as ilustrações da Idea poderiam
em Paris, Viena, Budapest ou Strasbourg, a ardósia ~m Angers ser contrapostos aos dos tra tados neuvitruvianos pa ra mostrar !:I
ou Luxemburgol45. E, quando ele deixa o nível da necessidade diferença entre o tipo e o exemplo arqu itetônico . Basta reporrar-se
para abordEr o da comodidade, elabora, avant la lettre, uma ver- i\s autocitações151 de que Scamozzi não se priva mais do que seus
dadeira antropologia cultural da cidade e da casa1 46. A massa de contemporâneos : em nenhum momen to, elas constituem os elemen-
observações acumulada durante: sua~ viagens c.o estrangeiro147 lhe tos de um catálogo (mesmo que possam ser lidas dessa forma) .
permite evidenciar e Ilustrar, numa escala ignorada de Alberti, a Os desenhos dos edüícios que o arq uiteto construiu :sãu propostos
.diversidade dos desejos, o poder de invenção e a criatividade dos como ilustrações de um processo . São destinados a fazer compreen-
seres humanos. der, em duas dimensões, como o prático soube traduzir no espaço
Não deixa de ser significativo que o arquiteto veneziano te- em três dimensões um conjunto de necessidades e de demandas;
nha introduzido no tftulo de seu tratado o conceito de arquitetura revelam a expressão espacial de programas, indissociáveis das cir-
universal. Aliás, não se priva de criticar aqueles que não aceitam cunstâncias particulares e dos protagonistas l_!ue o:, tlítam, como
a mudança e recusam toda prática estranha à tradição de sua ci- do contexto veneziano onde geralmente se situam152. A Idea del-
dade ou de sua região, e sublinha a vantagem que ganhariam em l'architettura universale é realmente um livro relativista153 na
conhecer os legados arquitetônicos da Antiguidade1 48. Porque, na mesma medida em que descobre, desenvolve e liberta em sua
falta de regras pertencentes à commuditas, essa potle revelar, em plenitude o campo da demanda e do desejo humanos descoberto
sua pureza, certas regras universais que, Scamozzi não o diz expli- por Albení.
citamente mas todo o seu livro o deixa entender, se ligam aos re- Por outro lado, Scamozzi transforma e amp lia igualmente a
gistro~ da necessidade e do prazer. Em compensação, e paralela- concepção albertiana da história do domínio construído . A lição
mente a esse sólido núcleo de regras universais, o registro da co- de Vasari é integrada. Ao esquema de Alberti, que se assemelhava
modidade é o campo de regras relativas e particulares. Por isso a um relato de origem e excluía o período medie val, sucede, n a
é que ele pode pôr em jogo todas as histórias e todas as culturas. fdea, a história inteira da arquitemra moderna. Essa é marcada
se bem que fixe a atenção do arquiteto sobre o presente. Se ex is- pela supremacia da Itália154 e se divide em dois períodos. O pri·
tem regras constantes c gerais do construir, cada construção de- meiro é o das obras anônimas; o outro, iniciado no século XIU155,
pende também da legislação específica e flutuante da comodidade. 150. Cf. Livro VI, Cap. XXX, p. 140: "~ um proveito muito oequeno
Mede-se o p apel, já sublinhado, da comodidade pela maneira como que tiram os que estudam os desenhos dos monumentos nntigos e não
Scamozzi modula os programas em função das regiões, pela com- vêem as próprias obras: a altura maio r ou menor, a distância, o ângulo
placência com que minucia o que é desejável e varia segundo se a parLir do qual se olha o edi!iclo [ . .. l e ta..'ltos outros fatores podem
dar-lhe urna aparência totalmente diferente da r epresentada a nossos
encontre em Veneza , em Roma ou em Nápolcs149. Ao sabor dessa s olhos pelo desenho". Essa análise m ostra bem que, nEI Elbordagcm
evocações ilustrativas, compreende-se que a Idea recuse toda forma teórica adotada pela ldea, o objeto constr uído não pode ser dissociado
de tipologia. nem de seu contexto nem da experiência. Cf. também (Livro II, Cap.
Essa exclu são é confirmada pela crítica scamozziana ao de- XXVIII) a insuficiência do desenh o com relação à maquette, que per·
senho, que ele julga impróprio para apreender a realidade indivi- mite a intuição imediata e cujo uso é comparado ao do cadáver em
anatomia: "quasi a simig!i anza de!le anatomia che fano i mediei de l
corpo humano".
145. Cf. o extraordinário Cap. IX do Livro VII. 151. Cf. Livro III, Ca.p. I, p. 222 e as ilustrações correspondentes.
14fi. "Constrói-se na. Espanha. de naneira diferente que na França e 152. Sobre a especUicidacte dos problemas (parLicularm ente de po·
na Alemanha. E mesmo na Itálla, os usos de Roma slio diíere:1tes dos luição) colocados pela cidade de Veneza, c!., por exemp lo, Livro II,
de Veneza, de Nápoles, de Gênova, de Milão e de tantas outras c:dadcs" Cap. X IX, p. 163: "Veneza não soire pouco, tanto em seus portos como
(Livro III, Cap. II, p . 222) . Cf. também, sobre as diferenças entre os om sua laguna, com as imundicies e as ar eias que }mrn. ali trazem o mar
palácios nas diversas cidades da Eur opa, Livro III, Cap. VI, piJ. 241·242. o os rios"; Livro III, Cap. VI, pp. 242-243: "Da. mesm a Immeii-a que a
Existe além disso, em Scamozzi, uma antropologia dos modos de 1 ons- !onna das casas desta cidacie é difer ente da. das outras cidades, o
trução (Livro VIII, Caps. VIII e IX). modo de viver da n obreza o dos h abit nnlcs nüo ó tampouco conforme
147. Fora das viagens à Itá:ia, estas se situam em 1500 c :EOO c o ti O das outras".
levam em pnrticular a Praga e a Paris, em companhia de dois embai- 153. Aqui também deve-se observar a convergência. de Scamozzi e
xadores. Scnmozzi rel atou-~s num Tacc'llino di viag{)Ío da Parigt a Venc· de Perrault, mesmo que o tema da rela tividade seja desenvolvido pelo
zia, edilarlo o comentado por F . Barblerl, Veneza-Roma, IsLiLuLo per la tlltimo por ocasião da beleza e nf1o da. comodidade. I-lá toda razão
collabora:r.iono culLurale, 1959. nm pensar que o polig1oto Pcrrnulc tcnh n lido Scamozzi no texto antes
148. Liv1·o I, Cap. XXIII , p. 55. Aliás, Scamozzi Eltribui E1 falta d<' tln redação do Abrégé (1 .' ed. 1674). A primeira leitura do tratado de
qualidndc da nrquitcturn nos países vizinhos cia Itál:a à ignorância em Scamozzí na Academia é consagrada a extratos do Livro III escolhidos
que se encontrum seus arquitetos da tradição e dos exemplos a m igos por d'Aviler. Ocorreu somente em 1601.
( Livro VII, Cap. I, p. 273). 151. Livro I , Cap. II; Livro Vlii, Cap. I, p. 273.
119. Cf. n. HG, ncimo.. 155. Livro I, cap. VI. Cf. supra, p. 203, n. 58.
226 A R E GRA E O MOD EW A POStE RIDADE DOS D OIS PARADIGMAS 227

é o dos primeiros munumentos assinados. Também é levada em Is so não quer dizer que Alberti ou Filare1o tenham d is::;ud adu
conta a história dos escritos sobre a arquitetura156. A história mí- o quadro wnstrufdo de seu uso; eu mesm& insisti no " funciona-
tica da casa original é contin uada e completada pela história real lismo" de Alberti; o autor do De re aedijicatoria foi o primeiro
das transformações da casa durante e depois da Antiguidadel57. a afirmar a necessidade de uma adap tação das construções à suo
Entre um relato de fundação mais deta lhado que os dos textos função e propôs por modelo a morfologia do cavalo que traduz
inaugurais do século X V e uma história fundada em testemunhos o boa adaptação desse animal à <:urriua . Mas, precisamente, nes-
escritos, ele reconstitui uma pré-história da casa, comparável à sas análi~es. a ad aptação harmoniosa pedida às regras da como-
q ue Cerdà proporá dois séculos e meio mais tarde a seus lei- didade continua atestada, sobretudo, por critérios visuais, subor-
toresi59. dinada à satisfação do olho. O uso permanece ab sorvido em seus
Em compensação, 6 impossívd atribuir à integração de ati- signos.
t udes mentais novas ou de novos conhecimentos a maneira como Para Scamozzi, o axioma do edifício-corpo permite transpor
a l dea desenvolve e sistematiza o p apel do axioma do e difício- 11 superfície das aparênCias, designa um din ami smo oculto, um
co rpo como o dos modelos oferecidos p el a n atureza. Deve-se ver ~istema de práticas escondido pelos arquitetos. O emprego da
nesse naturalismo exasperado do Ve neziano a marca de sua liga- Imagem do sistema venoso pura explicar as cxigêncies da circula-
ção com o arislu lt:lbmu. Onipresente através do texto, e mais ra- ção urban a162 ou doméstica163 permite q ue Scan:ozzi avance mais
dical do que no De re aeclificatoria, a assimilação do const ruído, na via daquilo que, no sé\:ulu X IX, será a análise das funções
e particularmente da cidade, a um corpo vivo l59 o leva a fórmu- urbanasl64, '
las que poderiam iludir, como, por exemplo, quando coloca pela Essa naturalização sistemática do processo de construção
primeira vez o problema da circulação urbana em termos de cir- vale à l daa um relato de origem particular que rüncla participa,
culação sangüínea160. Longe de inspjrar-se nos trabalhos dos mé- ele também, de dois universos men tais, na medida em q ue remere
dicos contemporâneos ou de antecipar os desenvolvimentos ulte- ao mesmo tempo à his tória natural da Antiguidade e à obra crí-
riores das ciências da vida161, essa comparação apóia-se no co- tica da modernidade . Para Scamozzi, os princípios fundamentais
nhecimento transmitido por Aristóteles e na visão finalista do da prática arquitetônica rião constituem mais um dom milagroso
filósofo grego. Mas Scamozzi n unca é to talmen te prisioneiro u~ dos deuses. Não balizam mais a fronte ira intransponível que se-
uma mentalidade anacrônica, sua obra se situa na charneira de para o domínio (cons truído) dos homen s do dos outros seres vi-
dois sisremas de sab er. Assim como, em seu Livro VII, sobre os vos. For am buscados pelos primeiros homens junto aos animais
materiais, onde utiliza a " física" de Aristóteles para promover constru tores, como os pássaros ou as abelhaslil5.
um papel novo do desejo na gênese do construído, da mesma A l aicização do relato de ol"igem, como as diversas modu-
forma, em matéria de circu la ção, o vitalismo de Aristóteles 6 lações introduzidas pela p osição nova ou mai s importante que,
posto a ~erv içu de ur11a concepção contemporânea e inovador A
da commoditas, do uso das construções. Scamozzi deixa de p en- 162. "As ruas das cidades são .semelhantes cs veias do coroa hu·
sar na cidade, ou nos edifícios in dividuais, em termos estáticos mano, é por isso que nelas dP.ve haver reais e principais, grandes, co·
de morfologia, e começa a pensá-los em termos de funcionamento. muns e peque::J.as, diferindo umas das outras segundo os serviçns que
sfw chamadas a p restar."
163. "As escudos são t1io necessárias nos edifícios quanto as veias
156. Livro I , Cap. VI, p. 18; Lino VI, Cnp. V e ss. (literatura con· cavas e misseraicas nos corpos humanos: se essas servem nat-uralmente
cernente às ordens); Livro VI, Cap. XXX: essa última passagem se para distribuir o sangue R t.ncta.c; a.<; partes do corpo, as escadas prin-
mostra particularmente severa para as· gerações anteriores à de Vignola cipais e secretas niLo tem Junção diferente: servem aos ect!fíc!os a co-
e Palladio, autores que, na opiniiLo de Scamo~i. assinalam urna era nova meçar pelas par tes mais int imas" (Livro UI, Cap . XX, p. 312); [Q grifo
na reflexão teórica. é nosso.)
157. Livro III , Gap. I, p. 220. 164. Cf. Cap . 6.
158. Cf. infra, Cap. 6. 165. com efeito, Scamow.i constrói dois relatos, urr:, r elativo às
158. Cf . infra, Cap. 6. origens da casa, é apresentado como uma hipótese apoiada pelo teste-
159. Cf. Livro li, cap. X VIII , n. 159: "As cidades são como corpos munho de Plírio sobre as construções das obcU1as (op. cit., Livro III,
humanos"; Livro III, Cap. I , p. 220: "0 edifício nada n:ais é que a Cap. I, p. 221); o outro, concernente às ori.j;cns da edifi cação, revoca os
const ruçüo elo um corpo nr tüicial, de forma excelente e que niío ofe. •·elatos de Pausânias e de Pelasgo, e p rossegue: "Mas se considerarmos
rece de nenhuma par te que convém a um corpo perfeito"; Cap. VI , mais atentamente a indústril\ dos animais, podemos aprender muitas
p. 241; Livro VJ , Cap. XXX; Livro VI II, Cap. I , p. 272 etc. coisas que são outros tantos docum entos sobre a maneira de constmir:
160. Liv ru U , Cup. XX. como as andorinhas fazem seus n inhos da maneira qu e vimos todos os
161. O vilulis mo do Scamozzi op õe-se aqui ao mecanismo de Per· dias n as casas particulares d e toda a Itália, com ab ertu ras e cober turas
re.ult (cf. 1?. .lACOB . La LO{)f(; ue du vivant, Paris, Gallimard, 1970) que de raízes, os homens cios primctros t empos purteram 3eçutr o exemplo
está na vanguarcln do :;abcr contemc>orâneo, como o mostram seus tra· clcsses pássaros para edificar suas cabanas e suas pequenas casas [ . .. J"
b alhos de anatomia. (Livro VI II, Cap . I, p . 2"71) . [0 rp·if o é nosso.J
220 A REGRA E O MODELO A l'OSTERIDADE DOS DOIS PARADIGl\JIAS

na Idea, assumem a "antropologia", a história c a naturalização faces, exaltante e perigosa, em suma, escrever ainda um verda·
do processo de constr ução não deixam de marcar, mas não alte- deiro tratado instaurador.
ram em profundidade, o grande relato histórico que a I dea desen-
volve. Esta continua um texto de história habitado pelo mesmo
2. A RESISTÊNCIA bA FIGURA UTOPICA
autor-herói, história legendária do arquiteto ao mesmo título que
o De re aedificatoria, mas carregada de uma genealogia mais lon-
gal66 e de um percurso mais sinuoso num campo de competências A figura da utopia não é, de seu lado, exposLa às mesmas
mais vasto. vicissitudes que a do tratado: o projeto utópico não pode ser
ameaçado pelas decisões do poder político já que, por natureza,
Além disso a utilizacão das categorias aristotélicas permite
que Scamozzi dê uma diniensão suplementar à figura de seu he- é elaborado contra ele. A permanência da utopia corno fo rma tex-
tual se confirma, ao contrário, à medida que se afirmam, na cul-
rói. O arquiteto torna-se um rival, quase divino, da natureza 167,
causa formal do mundo edificado16B, Seu cliente é relegado, en- tura ocidental, a reflexão e a· críti<.:a sodais e políticas.
tão, à categpria de causa primária ou motriz. h possível, pois,
que não se trate mais de estabelecer com ele a relação de comple- 2. 1 . ,1 Utopia Reduzida de Morelly
mentaridade definida por Filareto. Scamozzi inverte a relação
que, a pat·tir do século XVI, tende a submeter o arquiteto ao do- Vimosl70 que, no correr do tempo, o paradigma de Morus
mínio de seu príncipe. A superioridade que lhe conferem seu sa- igualmente engendrou ou contaminou uma abundante literatura
her e sua competência vale ao construtor uma autoridade sobe- paralela que possui apenas uma parte dos traços discriminatórios
rana sobre todos os seus clientesl69. Seria errôneo imputar esse da figura da utopia.
triunfalismo e a ênfase heróica da I dca a um deslocamento epis- Ao lado do conjunto heterogêneo desses textos e das utopias
têmico e a pertinências anacrônicas. Não devemos esquecer, e ele retóricas171 que possuem os sete traços distintivos do gênero utó-
próprio se encarrega de no-lo lembrar ao longo da I~ea, que Sca- pico, mas os fazem servir apenas a fins paródicos ou lúdicos, deve-
mozzi trabalha em Veneza, num quadro que contmua sendo o
de uma Cidade-Estado. Se bem que, já na geração anterior, no
se ainda assinalar uma forma simplificada, que exclui a dimensão
narrativa do texto Je história em proveito exclusivo do discurso,
mesmo contexto veneziano, Palladio já tenha deslocado quase mas que conserva o espírito do paradigma de Morus.
totalmente o problema teórico da criação arquitetônica para o Tomaremos por exemplo o Code de la nature (1755) de Mo-
plano da estética, é sem dúvida esse contexto político e social relly. Esse livro exerceu considerável influência, particularmente
que , no limiar do século XVII, na Europa dos Estados nacionais, sobre a obra de Pourier, em benefício da qual ele é ignorado por
permite a Scamozzi encarar o ato construtor na totalidade de suas nossa época. Além disso, a relação do Code com a utopia , a re-
dimensões e na plenitude de sua liberdade, assumir-lhe as duas dução que lhe impõe podem ser esclarecidas pela comparação
com outro livro utopizante, a Basiliade (1753) 172, no gual, ao
166. Cf. proemio do Livro VI e a idéia, cara a Scamozzi, dos pro- contrário, Morclly deixa urna parte demasiado grande à ficção.
gressos que realizou a teoria do construir no curso do tempo. Cf. tam·
bém Livro VII, Cap . IV, p. 13; Cap. X, p . 30. Foi sem dúvida o desejo de aumentar o número de leitores
167. Livro VIII, Cap. I, p. 274. Cf. também "Dedicatória ao J:.eitor": que inspirou a Morelly as dimensões e a natmeza da in triga da
")!; se o homem que se coloca a serviço dos outros merece chamar-se Basiliade. T odavia, nesse texto, a crítica modelizadora se eclipsa
Deus .. ." O privlléglo do arquiteto em relação aos outros criadores se diante da ficção, que multiplica os episódios fabulososl73 e perde
exprime tão vigorosamente quanto em Alberti: cf. Livro I, Cap. XVI, p.
53: "Do.í se conclui clo.rnmcntc, pois, que a perenidade das obras da
arquitetura coloca [os arquitetos] acima de todos os outros homens".
I6R. "A causa formal, que é o arquit.eto, o qual inventa. e ordena 170. Cap. 1.
t.ouas as coisas" (Livro VIII, Cap. I, p. 274). 171. Cf. supra, pp. 44 e ss.
169. Cf. Livro VIII, Cap. I, pp. 273·274: o arquiteto deve correr em
172. Nau{ra(le des iles t loltantes ou Basiliacle clJt célebr e Pilpa",
Paris, 1753.
auxílio de seu cliente ("como de um f raco de espírito, que compreende
pouco das coisas"), submeter-se a seu julgamento que não tem m ais 173. Cf., por exemplo, o relato do catacli!,, no que isola as "ilhas
sentido que se o médico pedisse ao doente o Sflu parecer. Dai a qua- flutuantes" onde se situa a "utopia" de Morelly: "A tirania desses mons·
lidade de chefe, de guia. e mesmo urna. espét:ie de realeza, atribuídas tros prova a cólera do céu L. .. 1 Jo::le clestac a desse vasto continente. u~a
no arquiteto, numa terminologia que, para o leitor do século XX, lembra Infinidade de Ilhas levadas pelas undas, cheias de homens e de an~ma:s
a de Corbusior (cf. infra). Cf. por exemplo, Livro I, Cap. VI, p. 53: é que nelas se refugiaram [ . .. l Duas crianças, um irmão c umu Jrma,
impossível aos homens construir "sem os conselhos e a direção, de deplorável resto desse povo numeroso [. . .l se acham separadas dessa
valor univcrs 1~1. de wn excelente arquiteto" ("senila 1'lll1iversal consiglio multidão por um precipício L .1 Encontram um vale encantador" e
e commando tl'accel ente Architetto") que é comparado a. um general. tornam-se o tronco da sociedade ideal (porque conforme à naturei/.a)
[0 grifo é nosso. "I
com que se maravilhará o po1ta-voz do autor.
230 A REGRA E O MODELO A FOSTERIDADE DOS DOIS PARADIGMAS

a função de anteparo, seu papel mediador, para transformar-se tade do século XVIII, essa fo rma reduzida e " laicizada" se acres-
em divertimento. A ficção da perspectiva (Rl)l7•1 é muito ela- centa à forma canõnica criada p or Moru sl79,
borada, bem articulada à ficção do motivo (R2). Mas essa, cen-
trada na histórial75 do reino-modelo, não deixa lugar pratica- 2. 2. A Utopia Canônica: Sinapi a e a Superespacialização
mente à sua descrição. Essa imagem especular ideal de umu socie-
uadt: c.:uja imagem crítica quase não é mais detalhada aparece . Quanto às verdadehas utopias, não cessam de se suceder,
apenas sub-repticiamente e como que fora do textu, fomecida af1rmando a cada vez sua identidade discursiva através da cita-
não diretamente pelo viajante-voyeur-espectro e outro do autor ção sistemátíêa que os textos mais tardios fazem de seu s prede-
(S2), mas por um habitonte do reino de Zeinzemein, alojada uni- cessores na linhagemlao, E, apesar da transformação das mcnta-
camente no espaço de (R2), e comentada em notal76 por Morelly lia ades e das psicologias de que dependem, apesar da diversi-
(Sl). A intriga pululante e irrealista da Basiliade, onde a crítica dade das sociedades que invocam - virtuosas ou felizes, natu-
modelizante só se introduz por astúcia, não deve ser lida como r~i~- ou artifici_ais, apostando na tradição ou no progresso, na re-
uma paródia dos anteparos da utopia? Ela não designa esse arti- ligtao ou no livre-p ensament o - elas comervam e continuam a
fício à crítica das Luzes, preparando assim o leitor para a f01·ma fazer funcionar a organização textual do arquétipo de Morus.
despojada do Code de la nature? Para ilustrar a perenidade desse tipo discursivo através da
Depois desse aparente divertimento c.:uja parte nanativa dis- análise de um exemplo único, nossa escolha não foi fácil Porqu e
simula uma carga social cheia de contraposições, Morelly efeti- elas e~tão demasiado p róximas do livro de Morus no tempo e
vamente adotou uma outra forma textual no Code de la nature por seu~ temas, porque também seus espaços são desenhados
que enuncia o mesmo propósito sem rodeios, sem a medição de menos firmemente que os de Amaurota e de seu territótio, re-
folheados mitizantes. Nessa segunda obra, ele elimina somcme nunciamos aqui às u topias religiosas do século XVI e J o início
(Rl) e (R2) e se contenta em contrapor, numa estrutura de dis- do século XVII. Ape~ar do interesse que teria oferecido a deli·
cursos, as duas imagens, positiva e negativa, características da n~itação de suas diferenças, não evocaremos, portanto, nem a
utopia. Nas três primeiras partes, apresenta o quadro da socie- Circular Eudemona, capital do país de Macária, que é para Sti-
dade corrompida do século XVIII europeu e traça o balanço de blin o outro da AlemanhalBl, nem o outro "comunista" de Flo-
seus defeitos. Na quarta, a essa imagem contrapõe a de uma so- l'ença, a grande cidade de templo central descrita por Donil82,
ciedade-modelo, de um " modelo de legislação conforme às in- nem a majt::~to~ a Cristianópolis de Valentin Andreae, com sua
tenções da natureza", cujos doze tipos de leis correspondem pon-
to por ponto aos defeitos denunciados e têm por suporte uma 179. A citação não é necessar iamente n omina l. No caso de Sinapia,
organização espacial modelar regularmente ordenadal77, Enun- estudado abaixo, e que utiliza , por vezes de maneira literal, os textos
ciadas no futuro, essas "leis" prescritivas não permitem urno de Morus, Campanella e Morelly, o autor não menciona nen huma de suas
aproximação com as regras dos tratados. Trata-se de Jeis _éticas fontes.
destinadas a garantir a repetiç ão das condutas e dttphcaçao das 180. Seus em préstimos a Morus, ao nível dos gr andes Lemas (su-
pressão da proprie dade pr ivada, e rradicnçã o da ociosidade, p roibição
instituições. Basta colocar o texto no presente para obte r um equi- do luxo ves<;Imentar e cerimonial, eliminação do QSpetáculo da morte . . . )
valente da Jescrição utópica178, Assim, a partir da segunda me- como no detalhe, são consideráveis. A título de exemplo reportar-nos-
emas à descrição, p or Valei:tin Amireae , das casas de Cristianópolis Que
tem, como Amau rota, a fonna de um quadrado (figura quadrata) : "As
174.Cf. supra, Cap. 3, pp. 172 e ss. casas não são pr opr iedade de ninguém ; sí\o todas o.tr ibu!das e c oncedidns
175.Ou mais precisamente as aventuras políticas ou amorosas de para uso à queles que as utilizam (omnes in usum concessae et designa-
seus ch efes, Zeinzemein e seu pai, o Fundador. O papel do tempo e do l.ae) [ .. . l Cada casa dá, na parte tra seira, para um jardinzinho ma ntido
progresso é aliás pa rticulo.rmente importante na Basi!iade, onde é :1 com muito cuidado e elegância ( A terr;o s·lngu!"is aedibus hortuli ~ub­
jacente magna et diligentia c-ulti)" (op. cit., pp, 61 e 24). Cf. com MOR US,
marca da ideologia da s Luzes.
176. Naut rrzge des iles f l ott antes ou Bcu;iliade [. . . l, op. cit., Cap. op. cit., S ., p. 120: "nihi l usquam privati est" e "Pos teriori bus nedium
III , pp. 9 e ss. part1bus [. .. l hortus adjacet" (idem, p. 120) .
177. "Leis edis II": "Em volta de u:na grande praça de figura re- 181. G. STIBLIN, De Eudaemonensium Republica commentariolus,
gular serão erigidos, de estrutu ra uniforme e agradável, os Armazéns Ilasiléia , 1555. É permanente a compar ação da Macária e suas l.nstitui-
públicos d o todas as pr ovisões e as sa las de assembléia púb !icas", ou : Qcies com as da Alemanha, particularmente no capítulo sobr e as leis:
" No exterio:· dessa muralha serãD a linhados r egularmente os bairros da "Q1tid enim corrupt ius Zuxu hodie est quam Ger mania omnis generis
cidade, iguais , ele mesma figura, e r egularmente divididos p or ruas" (Pa· voluptatibus addictissima? U bi leones, beluones, ganeones asylum ac
ris, Ec\. Chinnrd , Clrwl'euil, 1950, III, pp. 293-294. 11r otugtum habent" <op. c!t., p . 102), A descrição da capital ocorr eu uma
178. Of. "Cnd11 tr ibo se rá composta de um número igual de famí- j)rlmeira ve~ na chegada do autor a Macá:ria , d ep ois n o final da. obra.
lias, cp_cJa drh1do do um r.1imer o igu al de tribos" ("Leis dist ributivas, i!l<: . A. F. DONl, Mondi celesíi, terrestri, e inrernali degli acaáer.~ici
11ellig rint, Vene?.a , 1552. A cidade-m odelo que os dois peregrinos desc1-e-
li", p . 287).
232 A. REGRA. E O MODELO A .POSTERIDADE DOS DOIS PARADIGMAS

tripla muralha, suas quatro p~r~as e sua c~ria ~entral 183 . Não re- histórica. A dificuldade é identicamente resolvida através da ela·
tomaremos aqui também a anahse de utoptas celebres que foram boração de uma estrutura folheada. A função de anteparo, asse-
objeto de trabalhos aprofundados. Não trataremos da deslum- gurada na Utopia pelo relé das palavras, é obtida em Sinapia pela
brante e inquietante Cidade do Soll84 de .Campanella ~~:m ?o. po- conjugação de três meios: a distância temporaJ189 em que ~e situa
pular e muito medíocre Voyage en l cane de Cabet . Ltmt~ar­ em Tasman (que viveu século e meio antes uo autor do livro),
nos-emos ao estudo de um único texto, mas quase desconhecido a língua estrangeira em que teria sido escrito seu manuscrito, o
porque permaneceu inédito até 1976186, Sinapia, " uma utopia es- estilo indiretoiSO no qual o tradutor escolheu fazer o relato em
panhola do século das Luzes". primeira pessoa de T asman.
A estrutura discursiva de Sinupiu ~ canônica. Resume-se num Mas esse "relato do motivo" (R2) formulado na terceira pes-
relato de encenação na primeira pessoa do si ngular (R 1 + S 1 ) ~ 87 soa conserva na descrição da república sinapiana (12) o presente
que engloba um relato _do m~~ivo (R2), no qu_al u~ texto _d_: h•s- e a presença utópicos graças ·à intervenção ativa do tradutor (Sl)
tória contando uma açao hermca (R) e associado a descn çao no que, remetendo-a a uma situação de enunciação e marcando-a
presente(I2) de uma soCiedade-modelo, Sinapia. (R1), (R2) ,_ (R), de shifters, penetra no papel de (S2). ·
(12) apresentam, com relação a seus homólogos da Utopza de Como a de Utopia, a imagem de Sinapia é o inverso espe-
Morus, diferenças de apresentação e/ou de conteúd?, em par~e cular191 de um referente real (Il). Todavia, a descrição da socie-
devidas à diferença das épocas em que foram escn tos o~ do1s dade criticada ~ menos desenvolvida que no texto de Morus e,
textos, mas que não alteram seu idêntico funcionamento, tanto com uma ou duas exceções192, ela procede apenas por denegação.
mab interessante de observar. . Mais que a desigualdade social, é a forma de ingerência da Igreja
No que concerne a (R1), o autor ue Sinapia. n ão. fin?e ma1s na vida dos cidadãos que é visada, os processos da inquisição,
ter um dia encontrado, por acaso, o navegador (1magmáno), tes- o obscurantismo e o despotismo de um clero plet6rico e perdu-
temunha de sua Utopia. Afirma ter encontrado por acaso o ma- lário. A imagem assim descrita em profundidade é a da Espanha.
nuscrito (imaginário) no qual um navegador real, Abel_ Tas- rndiretamente, mas claramente identificável pelo nome própriol93
man188 relatou sua viagem a Sinapia. O problema que entao se (Sinapia=Ispania) de seu inverso especular, e através dos deta·
coloca 'é o inverso daquele que Morus enfrentava : não se trata lhes de sua "imagem-retrato": Sinapia é uma península, separada
mais de dar uma sonoridade verídica ao testemunho de um pro- do resto do continente por uma alta cadeia de montanhas; sua
tagonista imaginário, mas de desfigurar o de uma personagem si tuação invertida no hemisfério austral é exatamente aquela que,
no hemisfério norte, corresponde à latitude e longitude da Penín-
vem ao narrador e que vin:m "in ·u n mundo nuovo, diverso, da qucsto" sula Ibérical94; os vegetais que nela crescem, como os animais
(p. 173) é assinalada ao mesmo tempo por seus costumes _as~ticos (~ que aí se criam, são os mesmos cantados pelos elogios tndicio-
propriedade privada não existe; o luxo é proibido; os funeTals sao supn· nais da Espanha195, e o clima também é "como o da Espanha"196.
midos, morre-se no hospital. para onde são igualmente recolh1dos os
anciãos . . . ) e pelo asp~;cLo grandioso do espaço-modelo que se descobre
em toda a sua totalidade ("Veniva a vedere in una sola volta tutta lc 189. O locutor-tradutor apresenta o relato de Tasman como o de
città", ibid.) a quem se coloca no centro do templo de cem port~s rle um contemporâneo. Está, pois, subentendido que é um intermediário
onde partem cem ruas irradiantes em direção das cem portas da Cidade. entre Tasman e o autor real do livro <Campomanes?), que, longe de rei·
(0 (JT'ifo é nosso.J vindicar sua identidade como Morus, guardou o anonimato.
183. v. ANDREAE. Rei Publicae Ch.ristianopo litanae descriptio. 190. Depois de haver indicado as razões que o fazem revelar o con·
Strasbourg; 1G19. . teúdo do manuscrito de Tasman, o autor inicia seu segundo capítulo
184. Civitas solis politica idea republicae ph.ilosophie, Frankfurt, por: "En aquel largo rodeo con que A bel Tasman dío vuelta a la Nueva
1623. Holanda, Tierra de Concordia [. . .J" (op. cit., pp. 70.71). Tasman não
185. Rapidamente evocada no Cap. 5, p. 258. mais reaparecerá pelo nome a não ser em breves ocasiões (cf. p. 114),
186. Data de sua publ!ca.ção por Mil/;11~;1 Aviles Fernandez sob o e a descrição de Sinapia terá prioridade sobre o relato de suas. aventuras.
título de Sinapia, una utopia Espaiíola del Sigl o de las Luces, com u':la 191. P. 72. Essa inversão da !mae-em especular que, para nós, assi·
introdução crítica (Madrid, Editaria Nacional, 1976) . O manuscritO nala a utopia, é marcada por M. Aviles Femandez para quem ela espe·
desse texto, que não traz nome de autor, faz parte do "l<'Ondo ~ocume~· cifica, ao contrário, que Sina:pia "não é uma utopia, mas antes uma es·
tal ri!! Dr. Carmen Dorado y ROdri!!UeZ de Gampomanes", hOJe _deJ?~Sl· pécie de antitopia" (p. 24) .
tado na Fundação Universitária Espanhola. Certo núme~o de m_dtClOS 192. Cf. p . 70 onde se evoca o que ocorre "entre nós".
levam M. Aviles Fernandez a presumir que esse texto satu da mao do 193. Da mesma forma, os vizinhos dos stnaplanos são os lagos
Conde de Compomnnes, economista e conselheiro _do Rei Carlos III e (galos) e os merganos (germanos). O nome antigo da península era Bi·
que teria sido csc1·ito durante o último terço do seculo XVIII. reia (Ibéria).
187. Para esta terminologia e estes símbolos, cf. supra, Cap. 3, parti· 194. P . 71. _
cularmenle p. 172 e ss. 195. M. Aviles Fernandez remete às Laudes hispanides de São Isido·
188. o locutor-Lrndutor apresenta o relato de Tasman como o de l'O e de Afonso X.
Nova Zelàndia. 196. P. 72.
234 A REGRA E O MODELO A POSTE RIDADE DOS DOIS PAEADIG:viAS 235

O modelo de Sinapia difere do modelo de Utopia por seu ('llpaci~l de Sinapia lembra o de Utopia por alguns de seus traços207,
conteúdo, que reflete a problemática das Luzes. Se, como na Uto- 11111s d1fere dele pela hierarquização sistemática dos espaços e sua
pia, a comunidade dos bens reina em Sinapia c se a família cons- I'IIJOrosa articulação por meio de unidades modulares.
titui aí igualmente a célula sm.:ial de base, e mesmo um paradig- Apresenta quatro tipos de unidades quadrangulares encaixa-
ma para as instituições econômicas e políticas, a religião e com du:; umas nas outras: o país, a província (nove províncias iguais,
ela o conjunto das práticas sociais que ela tinge mais completa- ruda uma com q uarenta e nove léguas sinapianas de lado), a re-
mente do que em Utopia 197 são, todavia, profundamente racio- glno~OO (quarenta e nove regiões de sete léguas de lado por pro·
nalizado~ e transformados pelo cartesianismo198 e pela filosofia vlucta) e a zona urbanâ (quarenta e nove unidades de uma légua
do século XVIII. Mais, a sociedade sinapiana t: aberla aos pro- dl.l Indo por região). A cada uma dessas entidades territoriais
gressos dos conhecimentos teórico e técnico, e parece, como a \'cJrrcsponde um tipo de aglomeração; a capital, a metrópole ou
da Nova Atlântida de Bacon, acolher a eficácia do tempo. A me- c11pi tal provincial, a cidade e a vifa209. Esta última é que constitui
dicina e as técnicas agrícolas, em particular, são submetidas aos o modelo ou a célula urbana elementar. As outras três diferem
aperfeiçoamentos. Não há inclusive modelo social que se consti- dulu somente pela escala, ou mais precisamente pelo número de
tua progressivamente199. No entanto, uma vez estabelecidu200, células que compreendem.
ele permanece tão intangível quanto no caso de Utopia, fixado A vila é, com efeito, uma entidade funcional de base, que
por uma bateria de meios que são, em parte, os mesmos que os rmrve para compor, por justaposição, as entidades urbanas dos
imaginados por Morus: Numerus clausus201 limitando a popula- nlvci_s superiores. Em compensação, os três tipos de elementos -
ção urbana; controle das viagens202 e das importações203, a que hl/mo, casa dos pais, igreja - que se articulam a fim de compor
o autor acrescenta a proibição dos livros estrangeiros, salvo sob t:~sa célula não são autônomos e não podem ser dissociados em
a forma de "traduções para a língua sinapiana por ordem do IJ\lU funcionamento. São combinados segundo um c~quema qua-
Senado"204. clnmgular muito simples. Os barrios, "unidades de vizinhança"
Quanto ao modelo espacial, seu papel pode ser medido pela Jllll'a dez famílias, estão dispostos na vila em número de oito
situação e pelas dimensões de sua descrição. Como na Utopia, a quatro nos dois lados opostos do quadrado de base. Os outros doi;
·descrição do espaço-modelo (12) precede205 a das instituições- ludos são ocupados por quatro (duas vezes duas) "casas comuns"
-modelo que nele se alojam e se enraízam, mas é muito mai:; longa ou "dos pais da vila", w jos módulos de superfície são o dobro dos
e detalhada. Oriundo de uma concepção da psicologia inspirada d(' um barrio210. Finalmente, no centro, numa praça quadrada,
pela física newtonia11a e à qual o final do século XVHI empresta
um valor científico206, elaborado com extrema minúcia, o modelo
homem futuro. Ct. Code, 3.' parte, "Analogia entre a Ordem Física e a
Mom l": '.'N<2ssa fraquez;a está em nós como uma espécie de inércia; ela
197. Cf. p. 54, o comentário de M. Aviles Fernandez. 11011 pred1spoe como o dos corpos, a sofrer uma lei geral que liga e enca-
198. P. 128. Descartes é o único autor citado favoravelmente em dl tlr\ todos os seres morais. A r azão, quando nada a ofusca, vem ainda
Stnapta. 1111\ f.q numentar a força dessa espécie de gr avitação" (pp. 244-245). Cf.
199. "Na formação dos planos e das leis dessa república, os legisla- l1unb6m, tdem, pp. 262·263, "Principal motivo de toda ação humana e
dores foram prudentes, pondo-os em prática não de uma só vez, [ ... l )lrlnclpio de toda harmonia social".
mas pouco a pouco" (p. 76). 207. Por exemplo, as duas portas das casas e os jardins comWlS.
200. A importância que assume a noção de modelo em Sinapia pode 208. Termo nosso. O autor se contenta com o mesmo termo cuadra-
ser comentada por um incidente acerbo que visa aquilo que é seu inver- rms para designar as diversas escalas de quadrados: " Cada província se
so, li.S " fanfarronadas" de Maquíavel (p. 70). tltttli"tJC a dlVtdtr en cuarenta y nueve cuadrados [ . . . l Cada partido se
201. P . 04. tlll!Jclivlde en otros cuarenta y nueve cuadrados" (p. 81) . [O grifo é nosso.)
202. P . 123. 200. Na terminologia do autor: corte, metropoli, ciudad villa.
203. Pp. 123-124. ?.JO. "Os pais da vila são quatro. Formam um conselh~, governam
204. P. 127. Idéia tirada de campane!Ia. 1111 c·n~ns comuns, presidem a jurisdição criminal em primeira instância
205. As àivisões territoriais (Cap. VI), a casa familial (Cap. VIII) , " <'I L~Li gam os pais de barrtos r. . .J" Cp. 87). Além disso, cada um possui
o barrio CCap. VIII), a vila CCap. IX), a cidade (Cap. X), a metrópole 111111r1 funções próprias. "O primeiro que tem por excelência direito ao
(Cap. XI) e a capital (Gap. XII) são descritos em suas formas espaciais llillliO de pai da vila preside o conselho"; além disso, é "encarregado da
antes que seja evocada (Cap. xn n n. "forma da república". Nã.o cabe ilt•lorm, das relações públicas, das festas , dos passaportes, da substitui-
em nosso propósito expor com detalhe o funcionamento dessa "figura onu rios cargos vacantes, da educaçãc e dos estudos" (p. H8). Os outros
piramidal da qual o povo constitui a base, os magistrados o corpo e o "lnlnlstórios" são menos polivalentes, sendo o segundo pai encarregado
príncipe o vórtice", sendo a magistratura constituída pelo "conjunto do!; "" ludos os problemas de saúde, o ter ceil"o da subsistência. da. vila (tanto
pais" de banios, do vilas. cidades e províncias. 1111 CIIIO diz respeito nos víveres quanto na conservação dos edifícios), e o
206. Quer se Inspire em sua obra ou não, o autor de Sinapia perten- lfllttr lo sendo responsável pelo tra balho e pela supervisão ao mesmo
ce à. mesma consLeluçüo epiqtêmicn que Morelly, para quem, como mais 1111111)0 dos meios e locais de t rabalho, da qualidade dos produtos e do
tarde para Fourier, n física newtoniana era o modelo de uma clêncta do 1 owportamento dos trabalhadores (pp. 88·89). As construções que tocam
236 A REGRA E O MODELO A POSTERIDADE DOS DOIS PARADIG~1AS 237

reina, uruco edifício circular de Sinapia, a igreja, que reúne os de protótipos hierarquizados, e o autor, retomando e generalizando
lugares do culto e da educação, a residência do clero e o cemi- 11 fónuuia de Morus, pode afirmar com igual pertinência, acerca
tério. O barrio apresenta, por sua vez, um plano quadrado que tlu cnsa, da igreja:na ou da entidade urbana, que "quem conhece
permite a mesma interação dos espaços público e privado: dois 11 111a as conhece todas214. A despeito de uma maior elaboração e
lados paralelos são guarnecidos de casas unifamiliais, dispostas ti~.: seu caráter modulado, o modelo espacial descrito no presente
em faixa contínua, à razão de seis de um lado, e de apenas quatro elo indicativo em Sina pia exerce, portanto, a mesma função de con-
do outro onde engastam simetricamente a "casa do pai de barrio". VIHSão e de estabilização sociais que o modelo utópico de Morus.
Es.sa é dotada de duplo tamanho modular e de um andar ~uple­ Finalmente, a identidade formal e funcional constatada no
m~::ntar, qu~:: acresc~::nta ao alujamt:nto pessoal uo
pai ue barrio n(vcl de (Rl), (R2) e (12) se reencontra para (R), a história lendá-
a sala de reunião dos habitantes da ilhota, os armazéns para estocar rlu narrada no pretérito. "A criação da admirável república de
os víveres e os instrumentos de primeira necessidade, enfim, no Siuapia" não é mais obra de um protagonista único, "é devida à
flanco da casa, as prisões: trata-se, pois, aí de um centro social u s~ociação de três heróis"215. Dois deles são persas convertidos ao
elementar, total e totalitário. O meio quadrado é ocupado pelo l'J'ÍSiianismo216, o terceiro um filósofo chinês217. Sua ação conju-
jardim retangular comum, cujas dimensõ~::s são determinadas por p;nda , que se exerceu sobre uma população que associa aos persas
um módulo correspondente ao tamanho da casa. Um outro tipo u uus chineses um fundo de malaios e dt: p~::ruano~, testemunha
de barrio, com dez casas separadas, dispostas em torno da casa o valor universal de seu modelo. Os episódios variados de sua
do pai, caracteriza os quatro quarteirões (cuartcles) de um gênero hltltória comum21B refletem o cosmopolitismo das Luzes e parti-
particular que formam o tenitório agrícola suburbano de cada t•ularmcntc o interesse testemunhado pelo século XVIII à lingüís-
vila. llcn. Mas essa história lendária (R), mais longa e complicada que
A cidade é composta de paróquias que são outras tantas vilas. 11 de Utopo, e paradoxalmente situada nos tempos hist óricos, já
Possui uma igreja central suplementar que, na metrópole, se cha- lJII C ligada ao desenvolvimento do cristianismo, conserva, clara-
mará catedral c abrigará instâncias educativas superiores . Quanto 11\Cnte afirmada, a dimensão mítica que caracteriza (R) na Utopia
à capital, metrópole e da província central, tem por especificidade du Morus.
ahrigar em suas casas comuns a academia, os arquivos ~:: os conse- Entre as variações superficiais, imputáveis a mudanças epis-
lhos da nação. Províncias, regiões e zonas urbanas são limitadas l ~ micas e que, como vimos, não alteram o funcionamento moreano
por canais bordejados de árvores e de tamanho proporcional à elo lcxto, duas diferenças, entretanto, parecem anunciar uma trans-
imçortância da unidade territorial que delimitam. As diversas fo rmação futura do paradigma.
entidades urbanas estão ligadas entre si por estradas cuja largura A primeira, mais formal, diz respeito à importância dada
varia de acordo com sua importância e que, nas aglomerações, p~.:l o autor de Sinapia à descrição do espaço-modelo. Por certo, fi-
se transformam em ruas de arcadas211. zemos de I2 um traço estmtural da figura da utopia. Mas a dife-
Essa organização complexa é, pois, construída a partir de l'crrça de proporção entre os espaços textuais que essas discrições
um número reduzido de unidades cuidadosamente definidas e ar- iH.:upam respectivamente no interior dos dois livros de Morus e do
ticuladas segundo regras idênticas. Na base, elementos indivisíveis, nnCmimo espanhol designa uma diferença funcional entre os dois
o jardim e a casa individuaJ212. Eles se combinam para formar, 1\"xlos. Enquanto a Utopia de Morus continuava um exercício es-
no segundo nível, uma unidade de tipo superior, o barrio , homó- [Wculativo, parece que a elaboração abundante e meticulosa do
logo de duas novas unidades, a casa comum e a igreja. No vértice, modelo espacial de Sinapia seja o indício de um alcance prático,
barrio, casa comum e igreja se associam, por sua vez, pnra cons-
tituir a vila, unidade última que não entrará mais em novas compo-
213. Cf. a longa descrição do templo·padrão (p. 94).
sições a não ser por duplicação. Vê-se assim aparecer uma série ?.11. "Quem viu uma vila, as viu a todM porque todllS são iguais e
'""nolbantes. E quem viu essas, viu as cidades, as metrópoles e a própria
a essas diversas funções comportam todos os mesmos apartamentos t!ltpllnl, pois diferem apenas pelo número de seus banios, pela quali·
privados destinados aos quatro pais. Quanto ao resto, "sua construc.'io 1111110 dos matertais e pelo tamanho dos seus ediffcios públicos" (p. 85).
e sua distribuição varia [ . .. J segundo o que cabe administrar" (p. 92). cr. J). 94: "quem viu um templo os viu a todos pois eles diferem apcnos
211. "Todas as ruas são retll1neas e bordejadas de pórticos de manei· pulo volume, pela riqueza dos materiais c pela abundância das pinturas
ra que em toda a parte se possa caminhar a coberto" (p. 04). u Iins esculturas".
212. "Cada cosa. possui dois níveis com dezesseis peças e no meio 215. P. 75.
um pequeno pátio com uma fonte ou um poço; duas portas abrem umn 2JG. Um prtncipe, Sinap, e um patriarca da Igreja, Godabend.
para a rua c a outra para o Jardim, Identicamente bordejados de pórLi· 217. Si-ang, cuja cultura que ele simboli2a desempenharia em
cos com uma gnlcrio ( ... J Todas as casas particulares são uniforme:: /ll nii7Jia o mesmo papel que a cultura greco-latina na Utopia de Morus.
em toda a península e todas possuem seus quartos de dormir, sua cape- tJr. p. 74, a nota 124 de M. Aviles Fernandez.
la, sua oficina, sun C07.inha e sua sala comum" <p. 92). illO. Essencialmente desenvolvida no Cap. 3.
238 A REGRA E O MODELO A POSTERIDADE DOS DOIS PARADIGMAS 239

que Sinapía tenha sido destinada a realizar-se. Hipótese confirmo- lllc não evoca aliás, mas está implícito que elas corroboram a
da pela identificação do autor com o econoPlista fisiocrata que co ncepção de todos os protótipos de edifícios. O registro da beleza,
Carlos III encarregou de um projeto de reestruturação da Anda- c l?O!tanto da arte2~5, é reservado aos edifícios públicos, civis e
luzia, o Conde de Compomanes219, r·c_hgJOsos. De um lado, seus protótipos são concluídos segundo as
O que quer que suceda com a personalidade de seu aut01·. lc1s das proporções (simmetria , no sentido vitruvia'no)226, De outro
Sinapia foi escrita no país que foi o primeiro no Ocideute e o Indo~ ao mesmo tempo, igrejas e monumen tos civis compe:tem pela
único também sistematicamente a ligar em sua prática colonizadora qualidade dos onramentos que lhes prodigalizam a pintura e a
os conceitos de espaço e de sociedade e o primeiro a impor aos c~c ultu_ra, e todo traço de modelização desaparece então de um
territórios conquistados220 modelos espaciais específicos, verdadei- procedimento estético dominado pelo individualismo227.
ros prolótipos urbanos. Hiperlrofia du muddu e~paçial (!2), papel re:;ervado ~ arte
. Essa experiência da colonização, ao mesmo tempo que a ~r11ças ~ distinção, tirada dos tratados, entre constmção e arquite-
numerosa literatura de viagens publicada a partir do sé.culo XVI, tura, ~a 1s :ão os sinais que, à superfície de Sinapia, anunciam a
confrontou o século XVIII com o poder realizador que a utopia npt·oxlmaçao de um novo destino para ó paradigma de Morus.
detém em potencial. Daí uma evolução da figura textual. Man-
l6m-se a forma original, para a qual não é realizável o advento
da sociedade ideal. Mas, paralelament~. uma forma superespacia- f':'ieu _objetivo ~ra verificar a hipótese segundo a qual as duas
lizada exprime uma nova tendência que parte do postulado inv~rso orgauiZaçot:s te~tua1s arqu~típicas teriam ~ngendrado uma posleri-
e privilegia a descrição de um espaço-modelo (12) que ela planeja d ade sec~ar. VImos as reservas que essa proposição evoca. Figura
realizar efetivamente. Embora não tenha escrito utopia no sentido quase mítlca concedida à vocação que a cultura ocidental afirma
estrito221, Mor~lly revela o espírito da figura original, quando, 6Cll1pre mais, a utopia manifesta sua funcionalidade através de
antes de expor seu "modelo de legislação" e de definir, em onze uma produção superabundante que reproduz a estrutura da versão
artigos de algumas linhas cada um, o esquema espacial de sua cnnôn!ca _e acrescenta-lhe duas variantes importantes, a ulopia
cidade-modelo, previne o leitor de que apresenta "esse esboço" rcd uztda tlustrada pelo Code de la nature de Morelly e a utopia
apenas "em forma de Apêndice como um adendo, já que infeliz t: uperespacializada, ilustrada por Sinapia. Figura de caráter miti-
mente é muito verdadeiro que seria como que impossível em rrossos zante menos afirmado e temper ado pelo jogo e pela ironia, figura
dias formar uma república semelhante"222. O pretenso Campona- pcrlurbatla desue o s~culo XVI por uma regressão vitruvizante o
nes, por leitor que seja de Morelly223, escreve com finalidade prá- I ~·utado de a_rquitetura resiste menos ao tempo que a utopia. A p~r-
111' do extenor, para quem se contentasse com um inventário for-
tica quando ilustra a forma superespncializada da utopia.
Mas essa finalidade prática se exprime também por meio de mu i, pela graça dos títulos e pela marcação unificadora do eu cons-
l l ut~r ~ I_>Cla presel?'ça dos relatos de origem e de algumas histórias,
uma segunda diferença com rel ação ao paradigma de Morus. Desta
vez, não mais se trata da hipertrofia de um traço estrunn·alutópico, (). cd1f1clo pare~:e mlato. Porém, com algumas exceções, que con-
mas da introdução, no conteúdo de (I2) de elementos estranhos ao ftrmam a degradação geral, subsiste deles apenas a fachada, por
procedimento de Morus e relativos ao papel atribuído em Sinapin Irás da 9~al _o t:xto funciona mal, ou nem mesmo funciona. O jogo
à arquitetura e ~ estética. O autor vai buscar nos tratados de dus sequencws e confuso, o tempo do construir e o do escritor não
arquitetu ra a distinção entre soliditl1$, commoditas ~ pulchritudo. t.:oincidem m~is, os relato.s de origem se tornaram inúteis, pcrdc-
1'11 111 sua fum;ao, J esue o mslante em que a edificação perdeu sua
Indica que se as casas de morada de Sinapia r elacionam-se exclusi-
vamente com o registro da solidez e da comodidade224 cujas regras nbcrtura e não mais exige estar baseada na razão.

219. Cf. o comentário de M. Aviles Fernandez, p. 64.


220. Cf. Planos de Ciudades iberoamericanas y Filipinas existentes
en el archivo de Indias, int.roducción por F. c . Goitia ·y L. Torres Balbas
Instituto de Estudlos Administracionl Local, Seminario de Urbanismo',
1951.
225. Um capítulo inteiro (XXXI) é reservado às ar tes.
226. P. 130.
221. Cl. supra, p. 229 e ss.
222. Op. cit., p. 285. [O grifo é nosso. l 227. P. 120 .. O papel do ornato é comparado ao da poesia., e os que
223. Ele se inspira diretamente em algumas passagens da Basiliatle ll1'11Ucum as diversas artes admitidas na Slnapla. artes lógica, médica,
" ru'l.c~ mecânica:; (enLre as quais se situa a arquitetura) são conside·
tcf. M. AVILES FERNANDEZ, op. cit., p. 59).
224. "A nrquitetura dos edifícios privados visa somente à comodi· t•nclos inventores. Os templos, que são os edifícios mais abertos à arte
dnclc tcomodidadl o à duração (duración, símbolo da solidez)" <p. 1301. Hno todavia considerados pelo autor como "idênticos", isto é, depen:
Cf. tAmbém, h p. !12, ns casas comuns concebidas "oara o uso e não rhmlCs, apesar da diversidade profUsa de seus ornatos, de um modelo
para a osttmtaçfw". · ••t111SLrutivo único.
5. Uma Nova Figura
em Preparação:
Derivas e Desconstrução

No início dessa obra, aventei a hipótese segundo a qual teria


uparecido um novo tipo de texto instaurador, na última metade
do século XIX, e stabelecendo os fundamentos de uma disciplina
nova, o urbanismo. O Capítulo 6 irá mostrar que os escritos do
urbanismo integram ao mesmo tempo elementos do tratado e da
utopia e que são efetivamente arrimados por uma figura compará-
vel à dos dois paradigmas.
Mas essa figura nã.o surgiu ex nihilo. Sua emergência , apa-
rentemente brutal, foi na realidade preparada ao longo de um
perfodo de transição e gestação. Período ao qual é. necessário
reportarmo-nos, mesmo rapidamente, como será aqui o caso,
para podem1os compreender em seguida a significação du amãl-
f{ama, à primeira vista dcsconccrtante, realizado pela terceira
figura instauradora.
O grande desarranjo, oculto ou manifes to , que já na segunda
metade do século XVIII sacudiu as práticas tradicionais das
sociedades ocidentais e fez surgir novas relações com o mundo
c o saber, repercute igualmente sobre a orga nização dos paradig-
mas instauradores. Tr€~ fa tores, em parlicular. contribuem para
lnnto: o desenvolvimento das ciências rísic::~s e de suas aplicações
16cnicas; a medicalização do conhecimento c das prá ticas sociais;
11 formação da " di sciplínaridade"l.
O amadurecimento da nova figura será revelado através das
dcsconstruções. das de rivas, d1::s tran sformações que os dois pa·

1. Cf. infra., p. 2.'i:l.


242 A REGRA E O MODELO UMA NOVA FIGURA EM PREPARAÇAO: DERIVAS ... 243

mdigmas sofrem então sob esse impulso, em dois coniuntos de fi t.:a ao partido estetizante da Academia6. Mas Patte é também
obras com formas não-canônicHs, os "tratados em estilhaços" e o grnnde gravador para quem o desenho, ultrapassando o campo
as "utopias" do pré-urbanismo. es tético, é antes de tudo um instrumento de investigação científl·
ca 7 • qu~ lhe permite acumular e conrrolilr conhecimentos8_ In-
teressa-se diretamente pela química, pela hidrologia, pela geolo-
1. A CI:ÊNCIA E A UTOPIA CONTRA O TRATADO DE gia, pela hi_giene, que ele pretende ver atuar na produção do
ARQUITETURA: O TRATADO EM ESTILHAÇOS quadro construído9. Fina lmente, é o autor, quatro ano~ ames
DE PATTE da Mémoire, de uma ob ra in ~ólita consagrada aos Mon.1tments
élévés à la glcire de Louis XVlD, cuja parte mais important e diz
A fachada atrás da qual o tratado de arquitetura esconde respeito a projetos não-realizados e levanta contra a capital da
sua Llt:tt:rioração interna pôde, em certos casos, graças ao acade- Fr·ança um requisitório fetozll que ant::cipa a crítica utoçizante
micismo dos meios profissionais, ser preservada até o pleno sé-
culo XIX. Em geral, ela se desmorona sob a pressão de fatores cn peu de lemps, Paris , 1754. Nesse breve optisculo, onde e le sP. suhmP.tP.
externos, e muito particularmente sob o efeito da aplicação das inteiramente às "regras qúc um uso racional consagTou e cu.io conheci-
descobertas científicas da época à organização do e~paço habi- mento o bom senso não pode sugerir , [. . . l transmitidas pelos Gregos
tado por novos atores, os cientistas2 e o~ engenheiros. o pelos Romanos" (p. 11), e onde a questão das ordens ocupa um lugar
central, Patte no entanto Já m:míf esta tanto o seu interesse pelos pro·
blemas urbanos. vistos ainda exclusivamente sob seu ângulo estético
(idem, pp. 15, 17 e ss.i , quanto seu gosto da crítica po1· opcsições bl·
O processo de dcsconstrução da figu ra do tratado · será ilus- t11irias.
trado por uma obra erroneamente negligenciada pelos historia- 6. O plano de ensino de Patte se divide em três artigos: "No primei·
ro dP.monst.rar-se-ão as prnporçõH'l gerais das cinco Orrlens, & el os mem-
dores, a Mémoire sur les obiets les plus importants de l'archi- bros de Arquitetura que têm uma relação necessária com elas. No segun-
tecture, publicado em 1769 por Pierre Patte, arquiteto do Rei Luís do, explicar-se-ão os principias gerais da Arquitetura. No te rceir o,
XV3. As múltiplas pertinências desse livro, cujo local de ins- enfim, p roceder-se-á à maneira de examinar os Edifícios antigos e mo-
crição se situa dentro e fora da tradiçã_o dos tratados, são decifrá- dernos" (idem, p. 28).
7. De 1737 a 1759, Patte dirigiu a publicação das pranchas da Ency-
veis na escala da obra inteira de Patte, escrita e gravada, que par- clopédie, que ele abandonou pela das Arts et Métiers da Academia, depois
t icipa ao mesmo tempo da literatura arquitetônica clássica, da ele haver denunciado o escfmdalo do roubo, pelos enciclopedistas, das
literatura científica e da crítica utopista. gravuras de Réaumur. Por outro lado, não cessou de advertir os arqui·
Ao contrário dos amadores esclarecidos que, tal como Lau- tetos sobre os perigos do uso do desenho em sua prática essencialmente
gier4, se aventuravam então em dissertações sobre a arquitetura tridimensionaL Cf. Mémoi?·e, p. 96.
!L Sobre as técnicas; sobre a Antiguidade; sobr e as cidad~s contem-
e o mundo edifkado, Patte é um verdadeiro arquiteto, teórico c porânea ~: Patte dirige a ilustração da Description de la ·ville lle Pari s de
prático. Per tence à linhagem dos tratadistas: depois da morte de PIGANIOL DE LA FORCE (1765).
J. -F. Blondel, foi ele que concluiu seu Cours d'architecture; 9. Além das passagens da Mémoire que aludem a essas disciplinas,
além disso, no início de sua carreira, escreveu um Discours sur cf. as passagens dos Momtments relativas às "artes mecânicas" e, entre
as ciências. a geografia, a histór ia natural e a física, a medicina e a
l'architecture5 onde ainda pratica a religião das ordens e sacri- qulmlca. Devemos nos referir também as brochuras técnicas de PATTE:
De la maniere la plus avanuLgeuse cl'éclairer les rues d'une ville pen-
dant la mui t en combinant enscmble la clarté, l 'économie et la tacilité
2. Cf. La Politiaue de l espace pariszen, op. cit., particularmente a elo service, 1766; Observationt sur ie mauvais etat du lit de la Seine
contribuição de B. Fortier. r .. .J, 1779.
3. O nome de Patte tornou-se célebre graças aos Monuments é!evés 10. O termo Monument é entendido pOr Patte no senLiclo etimoló-
à. la gloire de Louis XV, Pans, 1765, e essencialmente por causa das gra- Jtico de obra que deva permanecer para a pOsteridade. Por isso, na pri-
vurns dessa obra. Por outro lado, Patte não tem lugar na historio· meira parte dessa obra, consagrado às artes, às ciências e à liter atura,
grafia da arte do século XVIII, nem na. abundante literatura crítica 11 arquitetura r epresenta t ão-somente a primeira das artes liberais, antes
relativa aos tratados. Uma ünica monografia lhe é dedicada, Pierre Patte, elas pontes e calçadas, d::! arqnitP.tura naval, da pintura, da escultura, da
sa vie, son oeuvre, por MAHB MATHIEU, Paris, PUF, 1940. Al~m disso, gravura, e finalmente da música e da dança. A critica de Paris se situa,
essa tese que, à. custa de uma pesquisa laboriosa, pode revelar toda a um boa lógica, antes dos pwjetos de embelezamento que constituem a
informaçfto de que se dispunha na atualidade sobre ns inúmeras facetas terceira parte do livro, mas, não sem impertinência, no interior da
da personagem não tenta situar Patte na problemática de sua época e terceira seção consagrada a um balanço detalhado dos mo numento.~ da
não propõe nenhum enfoque critico do teórico. 1\l'quitetura . ·
4. Cf. iníru, p. 244, n. 12 e 245, n. 17. 11. Cf., em par ticular: "[Paris] é um amontoado de casas empilha-
5. Discow·.~ sw· l 'Architecture, ou l'on jait voir combien il serait ctas confusamente. onde parece que somente o acaso presidiu. Existem
important que l 'I11.ucl e de cet ATt jit partie de l'édueation des persomzes ln tirros imciros que quase não têm comunicação entl'e si: vêem-se
de naissance: à la suíte dmtuel on propose_ une maniê:re de l'ensetgrze-r rq>enas ruas est;reitus, tortuosas, que respiram em toda a parte a suj ei·
244 A REGRA E O MODELO UMA NOVA FIGURA E:M PREPARAÇAO: DERIVAS ... 245

de Sébastien Merderl2. E, trinta e cinco anos depois de Mémoire , páginas), às pon tes (38 páginas), aos diferentes m~tu uos paré:l
publica os Fragments de uma utopial3. "construir as platibandas e tetos das colunatas" (60 páginas) e à
colunata do Louvrel5 (23 páginas). E quebrada a hiera rquia dos
níveis albertianos, sendo a necessidade (construção ) tratada de-
O próprio título da Mémoire sur les objets les plus impor- pois da comodidade (cidade) e da beleza (ordens). O espaço
tants de l'architecture indica uma ruptura: não mais tratado de concedido à beleza é reduzido, sem dúvida por derrisão, a um
arquitetura, mas memória, que reúne, se for preciso, o heteró- terço do ocupado pelos dQis outros níveis. Quanto aos outros
clito, para tomar nota, ata, data, para fins que o superlativo in- capítulos, não estão situados no mesmo plano semântico que Ot
dica polêmicos. O espírito crítico do autor fá-lo cortar seu texto três primeiros c não apresentam qualquer relação lógica entre si.
em "estilhaços", muito diferentes das partes que Serliol4 ia bus- Sua única ligação reside na arbitrariedade do eu todo-poderoso
car na figura tradicional do tratado e justapunha, sem intenção que os reuniu e que, de acordô com o uso dos tratadistas, afirma
crítica nem desejo de questionamento. sua presença ao longo do texto e confirma-a por meio de nume-
Isto porque são realmente estilhaços, fragmentos afiados e rosos shifters.
cintilantes de um objeto irremediavelmente quebrado, os capítulos O primeiro capítulo da Mémoire, onde_s~ concentra a heran-
da Mémoire : apresentando as dimensões dos "livros" dos trata- ça do paradigma albertiano, servirá para evidenciar com maior
dos tradicionais, são consagrados sucessivamente à cidade (71 precisão a descons trução que Patte impõe à figura do tratado.
páginas), às ordens (23 páginas), a indicações didáticas sobre a Livro no livro, dividido em "artigos" que são outros tantos
construção (71 páginas). às fundações (50 páginas), aos cais (6 capítulos, esse primeiro "capítulo", dedicado à cidade, exprime
por sua situação liminar a vontade que anima Patte de devolver
ra, onde o encontro dos carros põe c-ontinuamente em risco a vida dos à comodidade, no processo de edificação, um lugar e uma signi·
cidadãos, e causa. a. todo instante embaraços. A Cidade sobretudo quase ficação censurados pela era clássical6. A constru ção da cidade é
nií.o mudou nesses três séculos [ . .. l Mas o que surpreende mais nessa abordada seqüencialmente segundo os três níveis albertianos que
Capital ~ ver em seu centro e no local mais povoado, a santa Casa que conferem sua estrutura ao capítulo-livro, e as regras e princípios
é o receptáculo de todas as doenças contagiosa~. e que, infectando urna
parte da água do rio, exala de toó.as as partes o ar mais corrompido e utilizados são avalizados por uma dupla nanativa de origem da
mais malsão [. , .l Depois do ar ruim que se respira em Paris, a falta. arquitetura e das cidades, colocada como abertura, no limiar du
de água é o mais sensível [ .. .J Os romanos [. .. l pensavam muito dife- primeiro artigo.
rentemente de nós a esse respeito [. .. J ~ão há cidade mais mal abaste- Entretanto, a ordem e o equilíbrio dos níveis albertianos são
cida de água." (segue uma estatística impressionante). op. cit .. pp. 212-213. mais bem respeitados àpcnas no conjunto da Mémoire. Embora o
12. L'An 2440 a:;:>arece em 1770, e a primeira edição de seu Tableau
de Paris data de 17Bl. Os Monuments de PATTE, em compensação, são nível da beleza conserve seu estatuto e sua especificidade, seu cam-
posteriores em doze anos ao Essai s1Lr l 'arch.itecture de LAUGIER (1.' po é de tal modo reduzido que Patte não consegue mais, nem arti-
edição, Paris, 1753) que, segundo parece, Patte retomou até nos termos: culá-lo com o da comodidade, nem designar-lhe um lugar próprio
"Nossas cidades ~ão sempre o que ~ram, um amontoado de vtl!has casas no espaço do texto . E é, tal como Laugier, em termos de reco-
empi~hadas confusamente, sem sistema, sem economia, sem desígn:c.
Em nenhuma parte essa desordem é mais sensível e mais chocante do
mendações negativas , c não de regras positivas que Patte enuncia
que em Paris. O centro dessa capital quase não mudou nesses trezentos sua estética urbanal7.
anos: vê-se sempre o mP.smo número de pequenas nras estreitas, tortuo-
sas. que somente respiram a sujeira e o lixo E: onde o encontro corn
carros causa a todo instante embaraços. [ ... J No total, Paris não é 15. Particularmente engajado, ~se último fragmento memortal!za
nada menos que uma bela cidade. As avenidas siio miseráveis, us ruas os conflitos de Levau, Perr ault e Le Bernin, n a p erspectiva de uma
mal abertas e demasiado es:reitas, as casas [ .. .l trivialmente construi- história, a fazer, da arc:uitetura .
. das. H i> praqJ.s em pequeno número [ . . . l. os palácios quase todos mal 16. Para tanto, a única realização de seu século, em matéria. de
dispostos" (op. ctt., 1.• ect, Cap. v, pp. 209·210). Note-se emretantu, q ue, comodidade, foi a maneira como se distribuíram os apartamentos priva-
a despeito de :::uas invocações à comodidade (essencia lmente reduzida dos, inventando o corredor e especiali:mndo as peças rcf. Monuments,
à circulaçíiol, u crítica de Laugier, no que diz respeito à cidade, de:;>ende p. 6: "[Anterionr.entel morava-se unicamente para representar e ignora-
ainda sobretudo da estética, e não é, como a de Patte, inspirada por va-se a arte de ha::.itar comodamente e para si, todas essas distribuições
consider~lÇÕP.s de higiene. agradáveis [ ... J qu e desobstruem os apartamentos com tanta arte L .. J
13. Nfto no sentido estrito, já que n ão propós, em particular, urn só for= inventadas em nossos dias" ).
modelo espacial. Não obstante, esses Fragments d'un ouvrage tres 17. Segundo Patte: "Para a beleza de uma Cidade, não é necessário
important qui sem mis sous presse incessamment, intiiulé l'Homma tel que seja feita com a exata simetria das Cidades do Japão ou ca China,
qu"il de'IJI"ait ilt1·e ou la necessité de le r endre constitutionnei pour .~on c que seja s empre uma reunião de quadrados, ou de pare.lelogra-
bonneyr r ... 1 esc ritos por Patte, em 1B04, na Idade de vinte· e quat:·o mos [ .. . J Convém evitar sobretudo a monotomia e a u niformidade dema-
anos, fornecem um indício que confirma nossa análise da Mémoire, siado grande na distribuição total de sua planta, mas simular ao contrá-
14. Cf. supl·a, pp. 207 e ss. rio variedade e cor..traste nas formas, a fim de que todos os difer entes
24G A REGRA E O MODELO UMA I\OVA FIGURA EM PREPARAÇÃO: DERIVAS ... 247

Quanto ao relato de origem , é reduzido a uma paródia que conservou um relato ue origem, embora reduzindo a organização
acumula as citações e, em vez do belo encadeamento tradicional, espacial unicamente às dimensões e regras das ciências e da~
coloca o acasalO como princípio gerador do constn lir . De que técnicas. ·
maneira melhor do que por meio dessa promoção do acaso, escar- Sinais de uma vontade de mudança, essas alterações delibe-
necer o operador que, no t ratado, fundamenta os regras da edifi- radas da figura do tratado são acompanhadas por transformações
cação c coloca na história a continuidade de suas operações? Daí profundas que selam o invt:stimento dessa figura tanto por um
por que, embora ele não apóit! mais a construção do texto e discurso científico quanto pela utopia. Os respectivos papéis des-
a ordem de suas seqüências, o relato paródico da Mémoire não ses dois tipos de texto se confirmam muitas vezes e .amiúde são
deixa de ter significado. Ele metaforiza a vontade que anima difíceis de dissociar .
Patte de romper com os antigos procedimentos discursivos da Quando, deliberauamenle, Patte abre sua Mémoire sobre a
organização espacial de assinalar o advento de uma nova era. cidade, já não se trata para ele apenas de uma reabilitação da
Conserva, pois, no texto de Patte, uma função que, mesmo comodidade albertiana. O título desse primeiro capítulo o indica
transviada, o opõe aos relatos inertes e absurdos que ainda se sem ambigüidade: "Considerações sobre a distribuição viciada
encontram no século XIX em numerosos tratados e manuais. Isto das Cidades e sobre os meios· de consertar os incovenientes aos
porque esse operador fundamental do paradigma albertiano se quais estão sujeitas". Ei::;-nos subitamente frente à oposição entre
revelou, talvez por causa das profundidades onde fu nciona va, u o
o bom e o mau, entre vício e a virtude, à crítica que :;empre
mais resistente à erosão do tempo, e subsiste em formas textuais acompanha a utopia e jamais teve lugar em qualquer tratadista ,
onde n ão mais desempenha qualquer papel: é o caso, por exem- nem mesmo em Filareto ou Scamozzi, a despeito do papel que
plo, das célebres Leçons d'architecturel9 onde J. N. L . Durand atribuíram à cidade como local privilegiado da expressão da
comodidade.
bair r os se assemelhem. O Viajante não deve perceber tudo com um Essa oposição percorre o capítulo inteiro, organizado por
olilar. Ill preciso que scjc. incessantemente atraído por espetáculos inte· uma estrutura especular sublinhada pelo emprego da terminolo-
r essantes, e por uma mistura agradável de praças, de edifícios públicos gia crítica e ética da utopia20, j á contraditado pela medicina21 •
e de casas particulares" (.Wémoire, p . ll ) . Segundo J.augier: "Temos Ao contrário dos prodecimentos tratadistas que se manifestam
cidades cujas ruas têm um alinhamento perfeito: L . .l reina nelas uma
insípida exatidão e uma fria uniformidade que faz lamentar a desor dem num campo e num hori zonte livres a investir, a postura de Patte
de nossas cidades ( ... l Vê-se em toda parte apenas uma tediosa repe· é, de um só golpe reacional, contraproposicional, gerada pela expe-
tição dos mesmos objetos; e todos os quarteirões se assemelham de tal riência das cidades da época que apresentam " e:n todas as partes
m odo que neles a gente se confunde e se perde L .. l" <Essa!, op. ctt., o domicílio da sujeira, da infecção c do mal-estar"22 . Cada crí-
p. :!23).
18. " A origem da Arquitetura se confunde com a do mundo. Os
tica remete a uma contraproposição que ela justifica. Entretanto,
primeiros habitantes da ter ra pensaram verossimilmente em boa hora a crítica de Patte versa sobre os espaços e não sob re a sociedade
em construir habitacões capazes de pô-los ao abrigo do ar. A medida que os utiliza. Como veremos mais adiante, é mais utopizan te
que :oram se multiplicando, os filhos ergueram alojamentos ao lado dos que utopista. Aliás, mesmo que a idéia seja abstratamente suge-
do::; pais e os panmtes constru fram s uas moradas n a vizlnnança das dos rida, pelo autor, ela não tem por destino propor um modelo es-
parentes. Tal foi a origem dos diferentes povoados que deram nasci·
menta às vilas, às cidades, nos burgos, aos lugares et c. Com o tempo, a pacial. Por mais que Patte declare, no limiar de seu segundo arti-
população aumentando demais, as famílias foram obrigadas a dispersar- go, que "apesar da multidão de cidades que foram construídas
se para encontrar novas terras de cultivo; assim é que todas :>S iJ(lrtes até agora em todas as partes do mundo, ainda não existiu uma
do mundo foram habitadas sucessivamente [ .. .l Terra gordur osa, tron· que se possa realmente citar como modelo"23, por mais que se
cos, ramos de árvores foram os primeiros m ateriais. Pouco a pou co, to·
mou-se cuidado em tornar mais sólidas as casas [ . .. l e finaimente che-
gou.se a dar-lhes elegância, tornando seu exterior mais agradável e seu
seu interior mais cômodo. Sem dúvida, não se atribui'l grar.de atençâo comodidade, e urr. "princípio de economia" que curiosamente vem subs-
em siLuar com vantagens as primeiras habitações. É de crer q·.1e !oi tituir os axiomas do prazer de Alberti. Com efeito. Durand afirma em
somente o acaao quem decidiu isso" (pp. 1 e 2). [0 f}Tifo á r.osso.l A sua Lrl&roduçiio que "agradar nunca foi o objeti'fo da arquitetura".
contingência está em toda a. parte nessa história paródica onde se impõe 20. Que contrapõe o mal (gênio ma.lfo.zcjo , p. 6), o inconveniente
somente a evidência de mr. progresso. O acaso, que "não presld.1u (pp. 7, 14), o defeito (p. 17), o vício (pp. 28, 60) , os abusos (p. 60), os
menos a distribuição geral [das cidades] que sua localização", é in· flagelos (p. 61), a desordem (p. 5) á. ordPm por meio da prevennão (o.
vocado de novo no momento em que Patte deixa o rela~o mitico parn mn, da reforma (p . 63) ou da rett!tcaçl!o (pu . 7, 34. 39, 59. 61. 64, 65, 66).
a história. verdadeira no início do artigo 2. 21. O "remédio" (p. 7) para a má "constituição física" (p. 7) das
19. Précis des leçons d'ar chitecture données à l'École polytechnique, cidades contemporânellS é assimilado a uma purga (pp. 28, 29).
Paris, t. r. ano X (1602) ; t. li, ano XIII 0 805 ). o relato de origem dessa 22. P. 6. Cf. também p. 28: as principais cidades do mundo "sem·
obra ins;, at:m dois níveis operatórios e avaliza assim dois operadores, pre continuaram sendo espécies de cloacas".
um principio do convoniêcia, que governa a solidez, a salubridade e n 23. P. 5. [O grifo é nosso. ]
UMA NOVA FIGURA E:vi PREPARAÇÃO: DERIVAS . . , 249
248 A REGRA E O MODELO

atitude que, um século depois, comandará a "regularização"30


refira muitas vezes à ou a nossa "nova cidade"24, esse recurso á
ele Paris por Haussmann. A analogia dos termos "retificm,:ão" e
nova cidade lhe serve apenas para assinalar a necessidade de
um corte radical na concepção do mundo edificado que, para ele " l'egularização" designa uma idêntica vontade de otimizar o fun-
como para os tratadistas, se baseia sempre em prü1cípios25 e rc· cionamento da cidade através da integração dos fins e dos meios
gras, e não consiste na reprodução de um objeto-modelo. postos à sua disposição pelas ciências e pelas técnicas.
De fato, a marca sólida da utopia na Mémoire é aposta Ao contráno dos utopistas, o arquiteto de Luís XV como
sobre a pessoa do locutor, a p ropósito do qual tínhamos no entt;n- o prefeito de Napoleão III dão como adquiridos os valores e
to evocado o orgulho do sujeito tratadista. Mas, simultaneam ente as instituições da sociedade onde vivem. Sua crítica versa apc·
nce~~ prim~iro capí~ulo-livro, Patte descamba para o papel d~ nas sobre os defeitos de um espaço urbano mal adaptHdo às
her?L utópu;u, subitamente mundanizado. Apresenta-se, com performances que se lhe atribuem.
efetto, como o .homem t~o corte e'dos tempos novos26, que solta As queixas de Patte contra uma "constituição fís ica" que
o passado da ctdade asstm como Utopo o continente de Abraxa. não consegue satisfazer as exigêndas da sociedade moderna po·
Anuncia o reinado da ordem que sucederá ao reinado da desor· dem ser dassific.:aduo oob duis ponlOi:i, a ·desordem e a falta de
dem .e do acaso, um .amanhã que negará para sempre o ontem e higiene.
o hoJe. Turna:se, pms, aquele que traz remédio, uma espécie de Sua análise, que se exerceu aliás sobre o caso particular
salva~~r27 , cuJa vontade, expressa por várias vezes, de "fazer de Paris, nos .'v!onuments11, antes de ser transposta parl:i o das
a ~eltctda~e dos habitantes"28, traduz uma nova vocação do ar- cidades em geral, antecipa, por sua vez, a muitos respeitos, a
qmteto (amda não urbanista): não mais preocupado em trans· crftica haussmanniana. Se a desordem urbana afeta a visão e
~:e~er a demanda d?s ~utros, deixando de suprir um· horizonte impede o prazer estético, no plano da comodidade perturba ain-
tlimllado de pussíve1s, 1mpõe aos habitantes das cidades uma da mais a circulação que constitui uma das preocupações domi·
verdade. nantcs de Patte. As vias de comunicação não formam um con-
juntij) coerente, as ruas não são racionalmente ligadas entre si;
sua morfologia é tão pouco adaptada quanto seu revestimento
Essa ver?ade. no entanto, não é a da ordem ética que per- à dupla circulação dos veículos e das pessoas. Quanto à higiene.
cerre a Utop1a. t a da ciência e de suas aplicações técnicas. é abordada ora de maneira pré-científica, quando se pretende
A "retificação" da cidade do século XVIII . que ela inspira a denunciar "o germe das doenças c da mortc"32 que as exolações
Patte, a despeito de sua sonoridade utopizante29, depende da nauseab undas difundem através da cidade, ora de forma cientí-
fica, quanrio o arqui teto deplora f racassos, às vezes completos,
no que diz respeito à distribuição da água, do ar e da luz. Os
?A. C!., ent~e outros: "A mult.iplir.idade das fontes ainda faria um
dos ornament.os de nossa cidade" (p, 14); "numa nova cidude, para eli·
~1~or os cruzamentos, e tornar a manobra dos carros mais fácil [ ... )
Vlna sempre a propósito [ ... 1" (p, 21J; "seria interessante, numa nova p. 221). Evocam-se as demolições sistemáoicas de Haussmann, porém
cidade, enfeitar as duas vias [ ... J" (p. 25); "distribtú nossa nova cidade mais ainda o Plan Voisin de l'aris da autoria de Le Corbusier. Mas
L .. 1 (p, 60); cf. também p. 23. ro orito é nosso.] Patte imagina a realização de seu projeto de forma muito menos brutal,
. 25. Por exemplo: "Pela aplicação dos princípios que tiver estabele· sem traumatismo para os habitantes, ao sabor de um processo lento e
C!do, provarei que minhas cidades [. . .] podem em muitos casos ser contínuo, realizável pela simples prolbiçâo de reparar os edifícios con·
reti~icad~s" (p. 7 ); '_'J~Igar-sc ·á. por esse cx:emplo quão fecundos er.1 apli- denados (idem e Mémoire, p. 65).
caçoes sao os p rmctp!Os que estabeleci" (p. 61). Cf. infra, pp. 250 e :l5l. 30. Cf. nossa análise desse conceito em City Planning in the X!Xth
26. C!. a importância dos advérbios "sempre", "jamats", "até aaora" Cent:ury, citado acima.
a evocação de "nossos descendenLes" que acabariam "o que tivermo; 31. A 111émoire retoma rapidame:1:e o caso de Paris. a titulo ilus·
começado" (p. 66), o desprezo que envolve, sem distinção, o conjunto trativo, pp. 61·63.
das cidades em desordem. 32. "Observareis no cenll'O dos lugares mais freqüentados os hos·
'J:I . Cf., p. 6: presta "um verdadeiro serviço". pitais e os cemitérios perpetuar.do as epidemias c exalando nas casas
28. Cf. pp, 7, 59. o germe das doenças e da morte" (p. 6); "a corrupção que sai desses
29. A noção de retificação é uma daquelas em que a conLribuição locais [hospitais e cemitérios! infecta o ar e as águas" (p. 10); esse
da utopia vem, em Patte, confirmar a da ciência. O próprio termo com- ar "infecto e corrompido" dos hospitais se encontra nas salas de espe·
porta uma nuança moral ausente na palavra regularização. Sobretudo a táculos (p. 40). As "imundícies" que "infectam", "envenenam" ou "cor·
re':ificacão rln.<: r.iciarlAA imvtica nara Patte em destr-.Jicões cuia am~ll­ rompem" as águas são também evocadas várias vezes. Essa obsessão
tude tende para a tabula rasa dos utopistas. "As casas em cima das se traduz na oposição sistemática de duas séries de conceitos: corrup·
pentes seriam suprimidas, assim como tudo o que está mal construido, ção, lixo, sujeira, putrefação, de um lado, salubridad:a (dez casos), lim·
ma: óecorndo, de uma constr ução gótica, ou cujas disposições fossem peza, de outro. Essa terminologia sel'á encontrada, mais ou menos
julgadas vic!Mas com relação aos embelezamentos projetados. Em se· !mudada, apesar do advento da era pastoriana, em Le Corbusier. para
guida, rar-se·ia gravar o conjunto geral do local de Paris" (Monuments, quem o mal urbano será co:J.otado pela podridão e pelo bolor.
250 A REGRA E O MODELO UMA NOVA FIGURA EM PREPARAÇãO: DERIVAS . .. 251

problemas da circulação, da adução de água, dos esgotos . . . são Mas essa abordagem do espaço urbano não deixa lugar às
colocados por Pattc de forma global c referem-se imp,licitnmcntc l'onlingências da demanda e dos desejos particulares dos habi·
à noção de sistema, embora este vocábulo, que mais tarde foi tão 111ntcs. Não pode ser situada no segundo nível de Alberti. O que
caro a Haussmann, não figure na Mémoire. l'uttc exige sob u nomt: dt: ~.:omodiuade é apenas uma necessidade
As soluções são formuladas sob a forma de princípios ge- hlpcrtrohada. Na Mémoire, a cidade, em parte, já se tramforma
rais33, "Dizer o que seria conveniente fazer positivamente em 11111 instrumento.
particulaT, isso quase não é possível, dado que as posições das
cidades se modificam de infinitas maneiras e o que convém
a uma não poderia convir a outra"34. Patte reconhece a ineluta· Trabalho ao mesmo tempo de anamnese e memorial, como
bilidade da mudança. Suas proposições se resumem em estraté· ,, revela duplamente seu título, Mémoire, o texto em estilhaço
gins ou esquemas operatórios, aplicáveis universalmente às cida- de Patte mostra, pois, marcas ou citações de três formas textuais
des antigas como às " novas cidades". Entre os mais gerais, um ttt iRcntes: o tratado deixa sua impressão no relato parúdico de
desses princípios exige a intercomunicação de todos os elemen· fuudação e na descrição - caótica - do processo de produção
tos urbanos. Um outro diz respeito à eliminas:ão obrigatória da s do espaço por meio de princípios geradores; a utopia apõe sua
nocividades, classificadas, por sua vez, em diversas categorias: lllltiinatura embaixo da imagem negativa da cidade contemporânea
regras particulares prescrevem, assim, a exclusão da cidade não u HObre a personagem do herói que a denuncia, embora seja im-
só dos canteiros. de obras e das indústrias poluidoras, como tam- potente para operar o seu recolamento numa imagem-moddo; é,
bém dos hospitais e cemitérios, para cuja substituição ele ima- u11fim, ao discurso da ciência e da técnica que aludem a análise
gina, de passagem, um cenário funerário tão minuciosamen te do objeto urbano contemporâneo e a exposição dos princípios
elaborado quanto o proposto por Haussmann em suas Mémoires35. qtt\l permitirão retificá-lo. Mas, alusões ou rememorações, cita-
Os princípios ou as regras mais técnicas são tiradas das pesqui· \'ucs ou vestígios, esses fragmentos arrancados de figuras ou dis·
sas relativas à geologia, à hidrologia, à resistência dos materiais. r ll rsos específicos, esses estilhaços nunca se soldam numa tota-
A retificação de Patte não passa, portanto, pelo objeto-mo- lldude. Compõem um texto não-classificáyel, inapreensível onde
delo. Contudo, seus princípios retificativos36 reacionais o levam mncci tos e estruturas se acavalam, entremeiam-se uns nos outros,
a tratar a cidade como um objeto técnico real, dependente de o udc a figura do urbano como totalidade tende a substituir a
um novo conhecimento científico. A prova disso ressalta quando, l'd ificação como projeto, onde o espaço tende a tomar o lugar
ilustrando seu método pelo caso de Paris, ele coloca esta cidade, du sociedade e a verdade científica o da verdade ética, onde o
pela ptimeira vez, como um objeto global e preconiza para cor· 1111juito arquiteto se torna herói moralizador, onde a comodidade
rigi-lo o uso de um instrumento preciso, o "plano total" ap,oiado tlr ct·istaliza em necessidade, e onde, enfim, se desenha t:m fili-
nas curvas de nívei37, esse "plano geral suficientemente detalhado wunu a abordagem instrumental e tecnocrática da cidade que
que reunisse todas as circunstâncias locais"38, que não verá a llt rll a de Haussmann.
luz do dia antes tia nomeação de Haussmann para a Prefeitura39.

Outros exemplos poderiam ilustrar, segundo outras modali-


33. "Pela aplicação dos princípios que tiver estabelecido, provarei
que nossas cidades L .. l podem a muitos respeitos ser retificadas" (p. 7); dutlcs, a desconstrução da figura do tratado. Mencionarei apenas,
"Julgar-se·á por esse exemplo quão fecundos em aplicação são os prin· n tflul o indicativo, os textos dos arquitetos "revolucionários", Le·
cípios que estq.oeleci" (p. 61). W grifo ~ nosso.] tltlux e Boullée. L'Architecture40 de Ledoux, que contém uma for-
34. Pp. 63-64. Of. a mesma idéia na p. 7. 111 11 de projeto social, sofre mais fortemente que a Mémoire a in-
35. Mémoires, t . III, Cap. XIII, pp. 435 e ss.
36. Paralelamente a seus principies retüicativos Patte conserva au. lluCncia da figura da utopia e reflete o espírito da "disciplinari-
tênticos princípios e regras albertianos, enunciados quando trata :;uces· tl ntlc".
sivamentll da local~ção , da área e da divisão da cidade, do ponto· de 1'1 surpreendente que, trinta anos após os trabaU1os pionei-
vista da beleza. 1111141, esta obra continue sem decifração e que nenhum estudo
37. Pp. 5 e ss.
38. P. 63. Deve integrar identicamente circulações, esgotos, aduções
de água (p. 55) e monumentos a conservar (p. 63). A respeito desse " in·
ventário" avant la lettre, c!. Monuments, p. 222. 40. C.-N. LEDOUX, L'Architecture considérée sous le rapport de
39. Em 1853, oitenta e quatro anos após a publico.ção da Mémoire, l'urt, tlcs moeurs et de la législation, Pnris, 1804.
Paris ainda não possui plano de conjunto confiável, estabelecido cienti· 41. Cf. E. KAUFMANN, "Die Stadt des Architekten Ledoux sur Er·
ficamentP.. Mnndn.r e~;tabe l ecer um por triangulação e nele reportar as 1111111ol nls des aut.onomem Architektur", K unstwissensclulttltcnen Fors-
curvas de nfvel é u primeira preocupação de Haussmann Ccf. Mémoires, ••/ltitJtl/1, Berlim, Frunkfürter verlags-Anstalt, t. II, 1933. Three Revolu·
t. III, Cap. I, especialmente pp. 13 c ss. llntl/larv Architects, Filadélfia, The American Philosophical Society, 1952.
252 A RI!lGRA E O MODELO UMA NOVA FIGURA EM PREPARAÇÃO: DERIVAS . .. 253

decisivo42, até esse dia, tenha sido dedicado a Ledoux escritor. 1111 ~ textos apresentam com relação ao conjunto dos. t~aços dis-
Particularmente, a atenção dos historiadore~ não parece ter si.do l' r'lminativos do paradigma de Morus. Trata-se de defm1r as per-
atraída pela dupla pertinência da Architecture às duas categonas lurbuções que in11igem à forma canônica da utopia e assim .fazer
textuais do tratado e da utopia, e pelas perturbações que essa que apareçam as diferenças entre as obras do pré-urbamsmo,
ambivalência acarreta, tanto no plano. da lógica e da coerência nlgumas das quais serão excluídas do conjunto .
semântica quando no plano da coerência c da unidade formais. 1\ despeito dessas diferenças, uma característica _çomum a
Seria necessário estudar como os enunciados, classicamente tra- todos os textos do pré-urbanismo justifica seu agrupamento. To-
tadistas, sobre o método em arquitetura, e sobre as regras apli- dos concedem ao modelo especial um lugar muito mais impor-
cáveis no domínio da estática são cortados, periodicamente, pela truttc do que o atribuído pelo paradigma de Morus. Organizados
fulgurância de uma visão, a descrição de um modelo mostrado 1k modo diferente, conforme os autores atribuam maior cu me-
no presente do indicativo. A Archit~ctuce de Ledoux com.po.rta uor importância às trocas.' à edu~açõo e . à higien~ ... , e~p~ç~s
menos estilhaços e facetas que a Memmre de Patte. No lumte, ~·o lctivos e alojamentos pnvados sao descntos com Igual mmucia
poderia ser def inida como um ajuntamel!to de trechos pertencen- 1101' Owen, Fourier, Cabet, Richardson: é a superespaciulizaçiio
tes a dois livros um tratado e uma utopia. Mas esses fragmentos, do modelo, já observada na análise de Sinapia44 .
menos heterogê~eos, nõo sõo mais articul~dos entre. si. 'l:anto Essa hipertrofia do modelo espacial assinala o momento em
quanto os da Mémoire de Patte, não compoem uma figura 1dcn qtrc a utopia se mobiliza para tentar ultrllpassar seu st~tus de
tificável. liv ro e passar à ação, isto é, à edificação de espaços reais. Sem
Menos sonora e mais bem mascarada pelo emprego do con- pi'Ocurar aprofundar as condições e as razões dessa .mudança de
dicional, a mesma dualidade aparece no Essai de Boullée43 que, (lt'Ojcto, terei necessidade, entretanto, de evocar d?I.s processos,
tanto quanto a Architecture, nõo foi analisado sob esse ângulo. 1'11jo impacto ainda hoje estamo: .s ofrendo: .sua a~alise esclarece
No entanto, seria esse o meio de dar um sentido ao mesmo tempo ,, investigação· da utopia pela pratica c faciltta o aJustamento das
mais amplo, mais preciso e menos convencional ao qualificativo perturbações infligidas por esse fato à figura moreana.
revolucionário que, doravante, os historiadores ~tilizam para de-
signar os doia arquitetos das Luzes, contemporaneos da Revolu-
ção Francesa, Ledoux e Boullée. O primeiro processo foi posto em evidência e an~lisado co.m
ucuidade por Michel Foucault. É a "extensão progressiva dos dis-
positivos de disciplina ao longo dos sécul?s XVII e ~VII,I. sua
2. O PRe -URBANISMO ntulliplicação através de todo o corpo soctal, a formaçao ao q~e
1tt' poderia chamar a sociedade disciplinar"45. O autor de Survell-
O conjunto dos textos mais tardios, que em outro local agm- lor et Punir mostra como, em cada setor onde ela se exerce, a
pei sob a denominação de pré-urbanismo, apresentam uma orga- dl~ciplinaridade se apóia numa organização espacial que é ~eu
nização mais franca. A estrutura da utopia neles é manifesta e tlttporte inevitável. Para ele a significação dessas operações re~1d~
legível. Era por isso que, em Urbanismo, Utopias e Realidades, 11 11 vontade econômica do poder, na vocação que ele se atnbu1
eu podia seguir o uso terminológico c os hábitos culturais rece- d · I'Calizar uma produtividade máxima, que tJassa pelo ordena-
bidos, e cmÍsiderar tais escritos como utopias. Hoje são aborda- tll(; tlto das pessoas c das atividad~s. P?~er-se-ia. desc?? rir ú para-
dos dentro de outra p roblem!Hica. Não é mais apenas a presença digma da disciplinaridade nas dtsposiçoes e dispostti.vo~ empre-
de traços utópicos que interessa, mas os desvios e as derivas que tlltd os na Idade Média, quando uma cidade era a tmg1da pela
1 ;~·stc46. Nesse "espaço fechado, cortado, vigiado em _ todos os
pontos, onde os indivíduos são inseridos num lu~a~ ~~xo" , Fou-
42. Esperamos muito do trabalho empreendido há longos anos por I'Uult vê a "utopia da cidade governada com perfetçao .
A. Vidler, que parece ser o único a captar o paradoxo do lue-ar desti:udo A imagem da peste é sugestiva. Fala à nossa sensibilidade.
à utopia em L 'Architecture. Não é por acaso que ele julga. necessário
esclarecer o texto de Lcdoux pela obra de Fourier. Cf., para um apanhado Jlnr. compreender os mecanismos e a eficácia da coerção atrav~s
dessas teses, Les Salines de Chau:t, dela réforme à l'utopie, Roma, Edi- 1lo espaço. Mas não manifesta uma genealogia. A pesquisa dos
zioni offlcina, a ser publir.ado A. Vidler mostrou igualmente a importân-
cia que convém atribuir à franco-maçonaria a f im de compreender a
parte utopista do livro ele Ledoux (cf. particularmente "The Architeo 11. Cf. supra, p. 237.
ture of the Lodges; Ritual Forms; Associational Life in the Late En· 45. Surveiller et Punir, Paris, GaiJimard, 1975, p . 211.
lightmen", Oppositton.~. New York, 1976). 40 "!\ peste como forma ao mesmo tempo r eal e imaginária da
43. Archttecture. Essat sur l'art . apresentado por J .·M. Pl!lROUSE tli'IWWdom- tem como correlativo m édico e político a disciplina" (idem,
DE MONTCJ.OS, Paris, Ilermann, 1966. tltl, 100-200).
254 A REGRA E O MODELO UMA NOVA FIGURA EM PREPARAÇÃO: DERIVAS ... 255

alicerces dessa coerção precisa continuar em estratos de signifi- cnxadrezamento do espaço urbano, destinado a jugular a peste,
cação mais profundos que os da economia, até chegar às próprias 11iio passa de um dispositivo temporário, econômico, unidimen-
fontes de utopia. Porque, longe de engendrar a utopia, a disci- Mional, e quase benigno com relação ao investimento total e de-
plinaridade é produzida por ela. Mctis exatamente, em frentt: da finitivo instaurado por Utopo, cujo modelo espacial ordenadu
mesma si tuação histórica, ela procede da mesma atitude m~ntal permite, como jazia a lei sagrada que ele substitui implicitamente,
e da mesma reação de defesa que a Utopia. fixar imediatamente cada um em seu lugar, sem réplica e para
Não se trata, por isso, de ignorar a importância dos fatores r;empre. Evocar a Utopia e a figura utópica a f im de compreender
econômicos que contribuíram para a gênese da operação disci- us instituições disciplinares progressivamente atualizadas e lega-
plinar. Nós rne~rnus rnustramos, durante a nossa análise dll rias à nossa é.poca pelos séculos XVII e XVIII permite reencon-
Utopia, como o papel que nela representa o espaço, por meio de l•·nr essa finalidade oculta que, ao contrário dos objetivos eco-
sua modelização, dá provas de uma vocação nova das socieda- •tômicos da disciplinaridade, não se inscreve no fio reto da his-
des ocidentais e não pode ser concebido nem compreendido fora 16ria, mas a contrapelo. Vigiar e punir constitui, tanto quanto a
do horizonte da produtividade. Mas também assinalamos o trau- ~scolha explícita de um poder temporal novo, a sugestão tácita
matismo que levou Morus a escrever seu livro. Pareceu-nos então de um poder sagrado, ameaçado de desaparecimento.
que o dispositivo utópico lhe permitia superar simbolicamente o O segundo processo, _que contribui para explicar os avatares
medo que sentia diante das possibilidades de manifestação da do figura utópica nos textos de pré-urbanismo, é a mcdicalização
.liberdade individual, num mundo que não era governado semente de que é objeto a sociedade européia a partir Elo final do ~éculo
pela lei divina. Vimos que Maquiavel enfrentava os mesmos ris- XVIII. " O nascimento da clfnica"47 exerce seu impacto em duas
cos, mas a peito nu e que sua reação, inversa, confirmava nossa direções que nos dizem respeito. De um lado, no plano epistemo·
interpretação do modelo de Morus. De qualquer modo, tratava-se lógico, as "ciências humanas", então em vias de constituição, são
então de começos. O horizonte medieval se entreabria para a marcadas pelo procedimento médico48 c se apropriam dos con-
problemática qtie iria tornar-se a problemática dos sociedades oci- cei tos de normal e patológico pelos quais doravante passará a
dentais. A experiência de um universo aberto de repente à cria- ruflexão sobre o "corpo" social. De outro lado, no plano prático
ção, e à mudança, a tomada de consciência de urna vadincia par- da organização do quadro de vida, o espaço urbano em geral é
cial da ordem sagrada eram o apanágio de um pequeno grupo submetido ao olho clínico, "a cidade com suas principais variá-
de letrados que as assumiam no plano simbólico, na escrira. veis espaciais aparece com.o um objeto a .medicar"49 , ao passo
No correr dos séculos XVI e XVII, à medida que ~se afir- que o espaço hospitalar, em particular, se torna objeto de refle-
mava o projeto ocidental, a abertura do sagrado, o abalamento xões e de estratégias novas.
das antigas proibições tácitas, o afluxo das liberdades seriam vi- As abordagens disciplinares e terapêuticas estão associadas
vidos numa escala societária. Não mais se tratava, então, de subs- um fotmas discursivas e/ou espaciais que não deixaram de con-
tituição simbólica e de jogos de escrita. A solução descrita por luminar diretamente as utopias posteriores. São, em primeiro
Morus seria transposta do plano do livro para o da quot.idiani- lu gar, certos projetos hospitalares elaborados antes da Revolução
dade concreta. Ma~ a mesma falta e as mesmas vertigens deviam Jlrancesa , depois os projetos e reali7:ações pan6pticos que se mul-
engendrar uma resposta similar: a autoridade da Lei ausente era tiplicaram no rastro da obra de J. Ben tham. Uns e outros apre-
substituída por aquilo que fora o seu símbolo no espaço social. !lCntarn traços comuns com a utopia, graças às suas origens comuns
Dispositivos espaciais serviam para impor uma ordem necessária. ç , ~em dúvida, ao fato de que a literatura utópica já pôde influen-
mas esvaziada de sua significação transcendente e apropriável \;iií-la antes de, por sua vez, sofrer-lhes o impacto.
para finalidades mundanas e contingentes, tal corno a eficiência Os projetos hospitalares, com efeito, resultam de uma críti-
econômica. A este respeito, a Utopia constitui a prefiguração li- co que os propõe como espaços-modelo. O ponto de partida de
vresca de procedimentos institucionais, próprios das sociedades lodos é uma análise da instituição hospitalar da época, cuja ima-
ocidentais, cujo sentido e funcionamento ela contribui para es- g~: m negativa serve para engendrar uma imagem-modelo. Na
clarecer. Uma mais precc~c. literária c elitista, os outras moi:; Jlrunça, e~sa abordagem nast:e com o incêndio do Hôtel-Dieu em
tardias , práticas e destinadas à maioria, a utopia e as instituições
disciplinares nasceram no mesmo solo cultural. Procedem das
mesmas necessidades de identificacão e de autoridade, mas se 17. M. POUCAULT, Naissance de la clinique, Paris, PUF, 1963.
de~envolveram independentemente, ' antes de interferir no século 48. M. Foucault mostra de maneira magistral "a importância da
XVIII. IIWdlcina na constituição das ciências do homem" <idem, p. 199).
10. Les Maclzines à guérir, obra coletiva, dossitls e documentos de
A interpretação de M. Foucault deve, pois, ser completad;l lll'I!Hltetura, Paris, Institut de l'environncment, 1976, "La politique de
pela divulgaçfto ele uma dimensão arcaica da disciplinaridade. O 111 Hnnté au XVIII siêcle", por M. FOUCAULT, p. 17.
256 A REGRA E O MODELO UMA NOVA FIGURA Ervi PREPARAÇÃO: DERIVAS . . . 257

177250 • Sem se satisfazer com in(tmeros relatórios sobre as falhas (l'a nsparência e, sem mais se especializar, oferece indiferentemente
de~se estabelecimento, Tenon examina a situação dos hospitais seus serviços a cada um e a todos os setores possíveis da atividade.
parisienses51 e empreende uma pesquisa exaustiva sobre o estado O ptóprio Bentham elaborou versões panópticas de prisão, escola,
dos hospitais europeus52 antes de elaborar um modelo. "Quando orfanato, fábrica, creche, . casa para m5es solteiras60 . É que o
criarmos os hospitais devemos de tal modo encadear a vontade esquema panóptico é aplicável " a todos os estabelecimentos em
dos homem, tanto na sua construção quanto através de seu mobi- que, nos limites de um espaço que não é demasiado extenso, é
liário, que não se deixe lugar aos abusos"53: o dispositivo espa- preciso manter sob vigilância um certo número de pessoas"61.
cial concebido pelo médico, novo avatar do herói utópico, tem A maioria dos seus intérpretes, especialmente franceses,
como finalidade uma conversão de um gênero novo, a cura. O reduziram a disciplinaridadc bcnthamiana a uma aplicação dos
e~paço hospitalar "perfeito"54, modelizado de uma vez por todas, ideais econômicos do final do século XVIII. No entanto, esses
torna-se um pharmakon no sentido médico: a própria expressão esgotam menos o sentido do que a medícalização do espaço de
" máquina de curar"55, forj ada por Tenon, dá a medida e :l parti- que ela depende igualmente. Contentar-se com essas análises é
cularidade dessa redução. esquecer que os dispositivos setoriais de Bentham se inserem num
Ao mesmo tempo, o encargo dado ao médico ou ao cientista projeto de sociedade global, c que, antes de ser o inventor da
de conceber o hospital, em detrimento ou me~mo t:um exdu~úo panóptica, Bentham é o pai do utilitarismo . Ora, o utilitarismo
do arquiteto56, despoja esse edifício de suas dimensões estéticas. ~. uma filosofia "moral", cuja realização é função precisamente
Essa "arquitetura normativa, modelo fixo e modelo de Estndo ao do panoptismo, e da qual ele é o instrumento de propagação.
qual deve curvar-se dorovante todo projeto de hospital"57, é Não tendo a moral utilitária um conteúdo específico comparável
cortada da tradiç.ão monumental. É privada de todo acesso ao uo de um projeto político, o que Bentham procura, para lhe dar
registro da beleza, quer se tra te de ~<Jti~fazer pela harmonização ~ u é! base, é um i ns trum~ nto especial sem conteúdo nem destina-
das partes, o princípio finalista da concinnitas, ou a ornamen- ção particular62, cujo valor resida unicamente em seu poder
tacão58 (vazio ou indeterminado): "meio de obter o poder, um poder
• O. "panóptico", ao qual J. Bentham deu seu nome59 e do do espírito sobre o espírito, em quantidade até então sem exem-
qual foi o mais fervoroso apóstolo e teórico, generaliza essa noção plo"63, A frase de Bentham é reveladora. O poder do in:strumen tu
de edifício-máquina de finalidade normativa. Arremata a ~ua "mágico"64 que ele propõe corrobora seu projeto de ser o
"Newton da legislação"65. De maneira geral, a autoridade atri-
buída a essa forma espacial que designa uma ausência sublinha
liO. Cf. a bibliografia de Machines à guérir. Não podendo evocar o
conjunto desse movimento ·de model izaçã.o hospitalar, escolhemos Tenon
corno figura ex,.mrla r. de um artigo publicado em i t~Jiano em Controspa:úo, outubro de 1979.
51. J. R. TENON, Mémoire sur les hôpltaux de Paris, Paris, 1788. Ot' . também .T.·A. MILLER, "Le Panopticon r:lP. BP.ntham" , Ornicar, :l,
52. Sobre as viagens de Tcnon, cuja relação se encontra em seus Paris, maio de 1975.
Papiers inéditos, cf. Machines à guérir, "Architecture de J'hôpital", por 61. Citado por M. FOUCAULT in SurveiUer et Pun ir, op. cit., p. 207;
B. FORTIER. O autor faz um balanço das pesquisas críticas análoga s .1. BENTIIAM, Panopticon in Works, Bowr ing ed., t . IV, p. 40.
conduz;idas nos outros países da Europa por H owa rd, Hunczovsky . 62. R. Evans não v ê a d imensão u tóp ica do panoptismo. Não pro·
(op . cit.. p. 72). C)ura também dar um sentido à b u5ca monoidl\ica. por Bentham, de
53. Citado por B. FORTIER, idem, pp. 79-SO. um modo de coerç ~o es:;>a c!al. Todavia, descreve com ra ra persp icácia
54. Idem, p. 76. como Bentham oper a por meio de for mas va~ias, d otadas de um poder
55. Papiers de TE NON, Bib liotheque Natior.ale , Nouvelles Acquisi· oxcepcional: o dillpositivo pnnóptico lhe parece " a catalytic agent inrlu-
tion s, 11 357, fol. 129. Sobre esse conceito. nós nos reportaremos à am\· clng humc.n goodness or ref ormation as part o,f a purely mechan:cal
lise de F. BÉGUIN, "La machine à guérir", art. cit. oparation" (op . cit., p . 24). Segundo ele , "Be ntham perceived . that an
56. Sobre esse dcs11possamento do ar quiteto pelos médicos, físicos operatíve set ot artitacts, strtpped o! meaning in t hg symbalzc sense,
e químicos, e sobre a correlativa "desqualificação do conhecimento ar. uoul d neverthele ss be t ransmit tors oj hum an intention: couid be as essen-
quitetónico clá ssico ", cf. E. F'ORTIER, "Arcl'litec:ure de J'hôpital", ci· tlally m eaningfu l as any more met aphysical system of langu age" (idem,
tado acima, pp. 72 e ss. p. 35) . ..
57. Idem, p . 71. 63. Citado por R.· E VANS i n "Bentham 's Panop tícon" . op. c~t .. p. ::n.
53. I dem, p. 85. 64. A d imensão mágica do pa nóptíco apar ece já na aber tura d a obr a:
50. Panopticon, escrito em 1787, editado em Londres em 1791, ano "A moral reform ada , a saúde conser vada, a indústria revigorada , a in&
em que é publicada uma adaptação francesa a os cuidados da Assembléill tnação difundida, os ônus públicos aliviados . .. tudo isso p or uma s im·
Naciona l, sob o titulo de Panoptique, m ém oire sur u n nouveau princípc !>los idéia de ar quitetu ra" (citado p or R. E VANS, idem , p . 24). CL tam·
pour construire des M aisons d'In spection ou des Maisons de Force. Para IJóm a s fórmulas de FOURIER, infra , p. 261, e a s de Le Cor busier , cita·
um r esumo ilustrado e uma análise crítica do Panopticon, cf. em p:u- CliiS Infra, p . 298.
ticula r o notável artigo de R . E VANS, "BAntham's Panopticon, an Inci· 6G. Assim era designado Bentham na época (idem, p . 23) . W uri,fo
dent in the Social H istory o! Architecture", Ri ba Journal, versão inglesa d nosso.]
'258 A REGRA E O MODELO UMA NOVA FIGURA EM PREPARAÇÃO: DERIVAS . .. 259

o parentesco do panoptismo com 11 utopia. Aliás, já não era panóp- As Notíciu8 de Parte Alguma69 de W. Morris também apre-
tico o plano de Utopo, imediatamente revelável ao olhar? A dife- sentam a organização canônica da utopia. Não obstante, a utili-
rença é que o panóptico tlt:: Bcntham se refere a uma sociedade zação que faz essa obra da superespacialização chega ao para-
mais complexa e traz consigo um projeto abstrato (o utilitarismo) : doxo que mais tarde o urbanismo culturalista irá encontrar: esca-
não pode mais possuir a globalidade do mundo de Morus e deve par da utopia através da utopia. Em outras palavras, o poder do
necessariamente explodir em dispmitivos múltiplos e particula- dispositivo utopista se impõe àquele mesmo que tenta fugir dele.
res. Concebidos para fins carcerários, pedagógicos, ho;;pitala- O espaço construído, como toda or todoxia, é a vedete das
res ... , os textos panúpticos são outras tantas utopias parcelares Notícias: o viajante-testemunha-herói é, desde logo, fascinado
e monossêmicas, privadas de sua mise en scene e de seus interlo- pela Londres modelar do século XXI, cuja visita lhe permite
cutores-testemunhas. denunciar as taras da Londres onde viveu. No entanto, ao contrá-
rio dos dispositivos utópicos, a nova cidade tem por vocação
deixar os habitantes expressarem suas diferenças. O enfoque reto-
A essa promoção prática dos espaços modelares e corretivos ma o de Ruskin70 que, após haver criticado a sombria padroni-
corresponde a superespacialização da figura da utopia, acusada, zação dos espaços vitoi-íanos, exclamava: "Des~aria ver, pois,
com ou sem outras perturbações, por todos os textos do pré.. nossas habitações comuns [ ... ] construídas para serem belas
urbanismo. Essa supcrespacialização sozinha não pode ser tida [ ... ], gostaria de vê-Ias com diferenças capazes de convir ao
como uma alteração do paradigma ue Morus, e urna s6rie ue caráter e às ocupações de seus hóspedes, suscetíveis de exprimi-
obras pertencentes a esse conjunto conservam, portanto, seu lugar los c de contar-lhes parcialmente a história"71 . Esse desejo se
no corpo das utopias. realiza com a Nowh~re de Morris com suas "magnfficas cons-
F: o c11so d11 V oyage en Icarie66, cujo desígnio re11lízador, truções" onde "um homem pode mostrar tudo o que tem em si,
atestado suficientemente pelas tentativas sucessivas de Cabet a e exprimir seu espírito e sua alma no trabalho de suas mãos"72.
fim de fundar cumunidadt:s "icarianas" nus Estados Uniuus67 • Não é essa a atitude de um tratadista. Sua crítica lúcida de
somente se manifesta através da hipertrofia do modelo espacial. uma certa forma de mode.lização espacial não permite aos neo-
Não será preciso lembrar como o modelo através de cuja duplica- góticos ingles~~' nt:m a Ruskin ou a Morris pensarem a instau-
ção Cabet espera transformar e salvar as sociedades, 11 metrópol_e ração do espaço em termos de projeto aberto. Seu conhecimento
de !cara, alia certos traços da Paris napoleônica a uma padrom- dos mecanismos da utopia e dos dispositivos disciplinares ou pa-
zaçãu radical dos bairros (diferenciados apenas pela cor), do nópticos lhes revelou o poder de um condicionamento pelo es-
habitat e mesmo do mobiliário. Por outro lado, o encaixe de paço construído, cujas alienações eles denunciam, mas do qual
(R1), (R2) e (R), os diferentes papéis desempenhados pot seus não vêem meios d~ escapar a não ser por um condicionamento
três protagonistas (o presumido tradutor Dufruit, substituto de inverso.
Cabet· a testemunha, Lorde Carisdall, homólogo de Raphacl Isto porque, definitivamente, em Nowhcrc, o elogio da dife-
Hythl~day; e o herúi Icar, homólogo de Utopo), a descrição de rença não deixa aos habitantes maior autonomia do que em Uto-
Icária no presente do indicativo por Lorde Carisdall e o relato pia o plano de Utopo. Desde o início, é-lhes imposta uma ordem
em terceira pessoa das façanhas de Icar são outros tantos traços totalitária: não mais 11 ordem de um herói e de seu modelo, mas
que dão prova da integridade da figura utópica. a de uma cultura (imaginária), que su bstitui a religião como
Igualmente utopia, no sentido canônico, a Hygeia68 de valor transcendente e se fixa em fo rmas (vazias) pertencentes ao
Richardson, embora tenha perdido a globalidade e a po li~semia passado .
do projeto social de Morus. Seu único objetivo é proporc ~onar A modelização espacial or iunda do paradigma de Morus
saúde aos h abitantes. A higiene é o valor único que determma a exerce, portanto, seus sortilégios a despeito de toda lógica, até
localizacão c a planta das residências privadas c dos edifício~
públicos. Hygeia n ão passa de um projeto panóptico, ampliado at~
às dimensões de uma cidade-hospital, colocado no presente uu 69. News Jrom Ncn.ohere. pub:lca d o em fo lhetim, em 1884, no
Commonweal, em livro em 1891.
indicativo e habitualmente integrado na estrutura folheada da
70. T he Poetry of Architcct·ure, Londres, 1837; The Seven Lamps ot
utopia. A1·chitecture, Londre;, 1849; The Stones of Venice, Londres, 1851-1853;
Lectures on .4rchítectur e and Painiinu, àelivered at Edimburuh in No-
66. E . CABET, Voyaga af. Avent ures de Lord William Carisdall cu vember 1853, Londres. 1854.
Icarie, tmliuit.~ de l'anr;lllis de Francis Adams par Th. Dutruít , Paris, 71. T-he Seven Lamps of Architecture, trad. :r. por G. Ewall, Paris,
Souvera in, lll10. r.numns. 1916, o. 250.
67. Cf. E. CABET, Une colonie !ccrienne aux Etats-Unis, Paris, 11J5G. 72. Trad. fr. por P. G. La Chenais, Paris, Société nouvelle de 11-
63. Hygeia, a City oj Health, Londres, Macmillan, 1876. brnirie et d'édition, 1902, p p . 244·245.
260 A REGRA E O MODELO
UMA NOVA FIGURA E M PREPARAÇAO: DERIVAS . . • 261

nas, por n 1as-galer ias qt:e são aquecidas no inverno e ventiladas no


sobre as tentativas para derrubá-la. Essas não encontram coerên- verão'>.
cia senão nos defensores do Gothic Revival, quando a modeliza-
çiio e~pacial é preconizada sob a forma do gótico, a fim de ope- O modelo espacial ordenado, este " palácio social" que se
rar LUna volta à ordem desaparecida da religiosidade medieval. chama Falanstério ...mostra assim ser o instrumento necessário, in-
Assim, inverte-se o caminho de Morus que, partindo do sagrado substituível, para garantir a conversão ao H armonismo , em se-
c de sua transcrição no espaço, chegava a dar uma autonomia c guida o funcionamento e n difusão desse sistema de "associação
um valor próprio a um puro dispositivo espacial.
composta" . O papel-chave que lhe atribui Fourier é claramente
afirmado no p rim eiro jornalzinho que lhe serve para propagar
Em outros casos, a transformação da figura utop1ca é mais suas idéias: não tem o nome d a comunidade, a Falange76, mas
profunda. Tomaremos como exemplo os escrilos ue
um autt!r que o de seu espaço, o FalanMério. Nenht1m outro edifício pode subs-
Marx, paradoxalmente, converteu, para a posteridade, num dos tiruí-Jo77. Mas, tão Jogo é construído, permite "metamorfosear su-
arautos do utopismo: Fourier. Por certo, não cabe contestar que bitamen te o mundo social"78, transformar "todo o gênero h uma-
sua obra traz a marca viva da ulopia. Por i~so, a maiuria ue no79. O mode lo age de maneira quase m ágica, como o de M orus .
O maravilhamen to de Fou rier dümte da simplicidadc80 c do po-
seus livros, que não constituem nem romances, nem discursos
filosóficos, nem textos de h istória, debuxam duas imagens de der do dispositivo espacial que permite essa conversão r adi ca l
duas sociedades, que se colocam em oposil(ão entn:: bÍ . Com uma à escala do planeta é o mesmo q ue o de Bentham . Em Nouveau
ferociúade que fazia o encanto de Marx, Fourier se devota à crí- M onda, a descrição do modelo chega a se completar com um es-
tica da sociedade mercantil do início do século XIX. Correlati- quema da mão de Fourier, que transforma em ilha o palácio har-
vamente, descreve o que seria o outro em todos os pontos dessa mônico e suas dependências . Separado da sociedade pervertida
sociedade "às avessas", o "mundo do bom senso" ou "regime por um riacho ao qual não leva nenh um caminho exterior e que
de verdade"73 que é a sociedade harmônica . nenhuma ponte atr avessa, o Falanstério é assim iconicamente
Situada não num lugar mas num tempo ou tro74, que coin-
cide com uma imobilização d a história, a Harmonia é revelada
realmente por sua testemunha no presente do indicativo, exata- 75. T héorie de l'unité untVerselle (1825), Oeuvres com pletes t. II-V
mente como a Utopia de Raphael: reedição, Paris, Bureau de la Phalan ge, 1841-1845, pp . 462 e 464. ' ro grif~
é nosso.J O fu turo ou o subjuntivo pr esente, p recedido de "convém que"
Todas as crianças, ricas ou pobres, moram no sótão [. . . l A:; ruas· ou ainda o verbo dever associado ao infinitivo substituem muitas vezes
galeri:;.s são um método de comunicação interna que sozinho basta:ia o p resente do indicativo: "03 alojamentos, plantações e estabelecimentos
par a üJ.7.P.r desprezar os palácios e as belas cidades da civilização. Uma de uma Sociedade que opera por Séries de grupos, dev em diferir prodi-
Falange que pode conter até 1600 ou 1800 pessoas, das quais várias fa. giosamente de nossas aldeias ou bur gos afetados a famüias que não têm
mílias opulentíssimas, é realmente uma pequena cidade [ . . . l . A Falange qualquer relação societária: em luga r desse caos de casinholas [ . . . l O
não t em rua exterior ou via descoberta exposta aos p rejuíws do a1·; centro do Palácio ou Falanstério deve ser deixado às funções pacíficas ,
todos os bairros do edifício homino.l podam ser per corridos numa am- às salas de refeição, de bolsa, <ie conselho, de biblioteca, de estudo ctc.
pla galeria, que r eina no primeiro andar e em todos os corpos do edi- O Falanstério ou Mansão da Falange deve cor.ter, além dos apar tamen·
fício; nas extremidades dessa ·;ia, há corredores sobre colunas, ou sub- tos individuais, muitas salas de relações públicas" (idem, pp. 456·458-459).
terrâneos ornamentados, propoiciona ndo em todas as partes e depen· [O gr if o é nosso.]
dências · do Palácio uma comunicação abrigada, e:ega:::lte e temperada 76. Este será o nome da segunda folha fuurierista, que começará a
em todas as estações po!' meio dos aquecedores ou dos ventilador es. ser publicada um ano an~es da morte de Fourier.
E ssa comunicação abrigada é tanto mais necessária na Harmonia 77. A utilização de antigos edif ícios convencionais somente pode re-
quanto os deslocamentos são muit o freqUentes , nunca durando as ses· velar falta de experiência, cf. particula rmente Nouveau M onde in dustriel
sües dos grupos mais de uma hora ou duas, de acordo com as leis das et soctétair e, Oeuv res compli~tes , Bureau de la Phalange, 2.• edição, 1841·
11: e 12.' paixões. : ... l Um harmonio.no dos mais miserá veis, um homem 1B4G, t. VI, p . 118, e prefáclo da T h.éor i e de l'unité u niverselle, op. cit.
que não tem tostão, nem real, sobe de carro num alpendre bem aquecido 78. T héorie de l'unité u niver sel!e, Oeuvres completes, t. III, p. 307.
e 'fechado; comunica-se do Palácio aos estábulos por subterrâneos ador· 79. Nouveau M onde, op. cit., advertência, p. XV.
n ados e saibrados; vai de seu alojamento às salas p úblicas, e às ofici· 80. " Uma exper iência linlltada a uma légua quadrada", idem. Cf.
também Théori e des quatre mouvements. Oeuvres com pl etes, . t . I: o Fa-
lanstério é "a invenção que vai livrar o gênero humano do caos civili·
73. Noztvcau Monde industriel et sociétaire, Oeuvr es comple t e~. r.ado", p . 29, vai " mudar a sor te do gênero humano", p . 12, porque " é
Paris, Burenu de la Phalange, 2.' eõ., 1841-:845, t . Vl, pp . 13 e 14. com um m e:o tão simples que se pode pôr um ter mo a. todas as cala-
74. A par tir do m omento em que o planeta é quase inteiramente midades sociais", p. 9; e Théori e de l'unité uni·verselle, que a transforma
explorado , o tempo substitui o espaço como "não-lugar da u topia" da na "descob erta mais preciosa pa ra a humanidade", argumento do su-
utopia. má rio, p. XX.
262 A REGRA E O MODELO UMA NOVA FIG 1J RA EM PREPARAÇAO: DERIVAS •.•

transportado para essa parte alguma consubstanciai à utopia onde A constância Lia superespacialização nos textos do pré-urba-
o autor-testemunha o teria visitado81. nismo é significativa : o modelo espacial do paradigma de Morus
Mas o desenho desse riacho, sobre o qual o texto nada diz, impõe seu valor operatório e instaurador. Por isso, mesmo quan-
é o único traço de uma mise en scene utópica, totalmente ausente. do, como em Fourier, a figura da utopia perde sua integridade
A apresentação da comunidade ideal não comporta "relato da c sua identidade, não se pode assimilar esse avatar ao estilhaça-
ficção". No Nouveau Monde, como · no resto de seus e:>critos, menta sofrido pela (igura do tratado na época de Patte. No pri-
Fourier suprimiu (R1), agora inútil por causa de sua determina- meiro caso, trata-se de uma movimentação, no segundo de uma
ção de construir realmente o Falanstério. Em compensação, con- desconstrução. A comparação de tais evoluções demonstra, mais
serva um relato, que se parece ao mesmo tempo com (R) e (R2) uma vez, a grande fragilidade do tratado de arquitetura e deixa
e com que o narrador preenche as funções dos três protagonistas pressentir o peso que terá a utopia na t.:unstituição de uma nova
da utopia (S 1) , (S2) e (S) , o autor, a testemunha e o herói. Assim figura textual instauradora .de espaço.
Fourier desempenha ao mesmo tempo os papéis de Morus e de
Raphael, como também o de Utopo, cuja pessoa verbal e lingua-
gem ele muda. A testemunha se junta o herói que, para exprimir-
se na p rimeira pessoa, toma o discurso do edificador. Liga sua
atividade de construtor à sua biografia e proje ta-a no tempo82.
Em suma, aloja-se no tempo à maneira dos tratadistas, antes de
cristali.7.á-lo à maneira dos utopistas. A figura do tratado penetra
assim na da utopia cuja coerência e estabilidade ela golpeia, pre-
tendendo confundir o eu do herói construtor com o ele do herói
mágico.
O pai do Falanstério, que condenava ele mesmo esse "so-
nho do bem sem meios de execução, sem método eficaz"83, não
escreveu, portanto, utopia. i\ distorção que ele inflige ao para·
digma de Morus depende, em parte, de um conhecimento direto
e aprofundado dos tratado~ dt: arquitetura. A prática dessa lite-
ratura, cuja marca se encontra igualmente nas exposições de Fou-
rier sobre a estética arquitetõnica, confere um valor particular
ao Nouveau Monda e à Théorie de l'unité universelle, que ilus-
tram de modo mais franco que algumas outras obras - igual-
mente não-canônicas - como as de Owen84, as possibilidades
de desvio oferecidas pelo pré-urb anismo à figura da utopia.

81. Com a ausência dos caminhos cx:ternos, contrasta a importância


das circulaÇõP,<; internas, cuidadosamente traçadas.
82. Cf., por exemplo: "Como eu não mantinha relação com nenhum
partido cientifico, resolvi apucar a dúvida às opiniões de uns e de outros
L .. J resolvi não me interessar por problemas que não tivessem sido
abordados por nenhum deles" (Oeuvras compU~tas, t. I , Théorie des
quatre mouvements, discurso preliminar, pp. 5 e 7). Ou ainda: "Não
descrevo a ordenação das plantações, que nada têm de semelhante com
as nossas; será o tema de um capí~ulo especial: estamos ~s voltas ape·
nas com cs detalhes do edifício" (Théorie de l'unité universelle, p. 461) .
83. Manuscrits de Fourier, Paris, Librairie phalanstérienne, Ano 1867·
1868, p . 356 ("Généralités sur l'équilibre en composé", 1818). Cf. também
sua "Revue des utopies", Le Phalanstere, 5 de julho de 1832 e dois nú·
meros seguintes, onde ele ·se opõe ~s diversas "sociedades utopistas",
cristã, franco-maçônica e sansimoniana.
84. C!. An Acldress delivered to the lnhabitants of New La.nark, Lon· C:orztaining. a Series of Reports L . . J, L-ondres, 1857. Como os de Fourier,
dres, 1816, e Rnpport au comüé de l'Association pour le. soulagement des t•ntcs teldos são assinalado-, pela ausência da. misc cn scimc utópica, e
classes défavurlsées emplo11ees dans l'tndustrte, 1817. publicado em A n pelo acúmulo d o s papéis de (S' ), (S') e (S ) por um interlocutor único,
Su.pplementa1·y Appendix to t1le first Volume of the Life ot Robert Owcn, n autor.
6. A Teoria de Urbanismo

Nenhum termo específico designa atualmente os escritos de


urbanismo que p retendem oferecer uma teoria da organização
do espaçol. Não estaria essa falha denunciando uma irredutível
heterogeneidade? Minha proposta é mu:;trar que a desconstrução
do tratado de arquitetura, assim como a mobilização da utopia
pelo pré-urbanismo, ao contrário, levaram à constituição de uma
nova figura textual, que subtende igualmente as obras intituladas
Teoría General de la Urbanización, Der Stadtebau, La Cíté in·
clustrielle, La Vil/e radieuse, The Disappearing City, Notes on
lhe Synthesis of Form ... Doravante, chamaremos teoria de ur-
banismo a categoria discursiva habitada por essa figura, até en-
tão não reconhecida e não nomeada. Essa denominação, inspira-
da pelo título da obra inaugural de Cerdà, assinala a pretensão,
explícita e nova, de fazer obra científica apropriando-se das me-
todologias próprias da ciência.
A despeito de suas divergências, os textos pertencentes à
categoria da teoria de urbanismo apresentam três conjuntos de
traços comuns. Em primeiro lugar, eles se autodenominam dis-
curso científico. Não é mais o caso, como o fo ra com Patte, de
buscar ajuda junto a certas disciplinas científicas e técnicas, in-

1. Estes textos não devem ser confundidos com os inúmeros ma·


nuais práticos de urbanismo que relacionam problemas e soluções téc-
nicas, produzidas pelos engenheiros desde o último quartel do século
XIX, e cujo protótipo é De;- Stadlebau, publicado por J. Stübben em
1090, um ano depois e quase com o m esmo título que Der Stiidtebau
nach seinen kiinstlerischen Grundsat:zen, a teoria de urbanismo de Sitte.
A REGRA E O MODELO A TEORIA. DO URBANISMO 267

dependentes, mas de afirmar a autonomia de \.lm do~ír..io P,róprio (llll'Hele, designa ao mesmo tempo um fato concreto, o processo
no vasto território, em emergência, das ·'ciências humana~" . Em tJ UC hoje chamamos urbanização, e a disciplina normática que
seguida, tal comu a utopia, esses textos opõem duas imagens da C o urbanismo; em outras palavras, de um lado "um grupo de
cidade, uma negativa que traça o balanço de suas desordens e tcmslruções postas em relação e em comunicação tais que os habi-
de seus defeitos, a outra positiva que apresenta um medeio espa- tunlcs possam se encontrar, se ajudar, se defender [. . . ]",e t.k
cial ordenado. Enfim, como o tratado de arquitetura, relatam uma tllllro, um "conjunto de conhecimentos, de princípios imutáveis
história cujo herói é o comtrutor. c de regras fixas"B que permitem organizar cientificamente as
Tentaremos mostrar como, sem a vontade deliberada de construções dos homens.
seus autores, sem mesmo terem tido consciência disso, certos ele- Todavia, o caráler pioneiro da T eoría não fu i reconhecido
mentos das duas estruturas textuais, que vimos aparecerem entre ncrn ao nível de conteúdo nem ao nível da forma e, ao contrário
1452 c 1516, foram conservados, integrados e articulados, num dos livros de Alberti e de Morus, esse texto não teve posteridade
discurso com pretensão científica. d ireta. Essa ocultação de uma obra excepcional pode ser ftribuí-
du, em parte, ao contexto político e cultural em que foi elabo·
rudo o Plano de Barcelona, às polêmicas e às paixões que de~en­
I. A TEORIA COMO PARADIGMA CHclcou contra seu autor9. Deve-se, sem dúvida, .principalmente
l\ própria Teoría, às redundâncias que tornam fastidiosa sua lei-
Como o fizemos no caso dos tratados de arquitetura e das tura, a sua extensão (dois volumes qe oitocentas pá,.mas
utopias, a análise da estrutura textual das teorias urbaní:sticru; cuda um) que lhe impediram a difusão e a tradução pa ra outra
será praticada numa obra paradigmática, a Teoria General de la lfngua estrangeira10. O certo é que a Teoría não foi lida pelos
Urbanización2. Essa teoria, publicada em 1867 pelo engenheiro historiadores, que, como H . Lavedan, conservaram de ·cerdà ape-
espanhol Ildefonso Cerdà, para fundamentar e justificar as deci- 11 t1S seu Plano de Barcelona, nem pelos teóricos do urbanismo.
sões que adotara em Plano de Expansão de Barcelona (1859)3, 'om exceção de seu compatriota A. Soria12, os teóricos poste-
é, com efeito, ao mesmo tempo a primeira em data e aquela que dores a Cerdà não lhe devem diretamente nada. Que seus es-
tem a forma mais perfeitamente desenvolvida4. O próplio Cerdà c ritos são trabalhados pela mesma figura textual que a Teoria,
reivindicou a novidade de sua empresa: "Vou iniciar o leitor no demonstra-o sua comum pertinência a um estrato epistêmico.
estudo de uma matéria completamente nova, intacta c virgcm"5, O paradoxo desse paradigma sem posteridade direta e a
previne ele no início de seu livro, algumas páginas antes de pro- ·mcrgência multipolar da nova figura repercutiram sobre a cons·
por, para designar essa disciplina nova, um neolugi~mo adotado tt·ução desse capítulo. Ao contrário dos capítulos consagrados ao
mais tarde universalmente, "ur banismo", ou antes seu equiva- Oe re aedificatoria e à Utopia, ele não pôde ser reservado à obra
l~nte espanhol, urbanización. Depois de justificar a adoção da <lc um único autor . Todavia, demos precedência à T eoría cuja
raiz latina urbs6, Cerdà define "a palavra urbanização"7 que, 11nálise foi feita em primeiro lugar, isoladamente. Em seguida,
çonvocamos outros textos a fim de confirmar a identidade da
2. Madrid, Imprenta Espafiola, 1867. Essa edição original foi repro· fi gura que os subtende.
duzida em fac-símile e provida de um estudo crítico de F. Estapé, Bar·
celona, E diciones Ariel y Editorial Vives, 1968, por ocasião do .centenário
da Teoría. Nas páginas seg~tintes nossas citações são tiradas da tradu-
ção francesa, La Thêorie gérzêrale àe l'?Lrbanisatíon, prêsrmtée et adap- ll. Lop., p . 83; Est., pp. 31·32.
ttie par A. Lopez de Aberasturi, Paris, Seuil, 1979, doravante designada O. Cf. A. LOPEZ DE ABERASTURI, op. cit.
Lop., cujas páginas de referência são seguidas das páginas corresponden- 10. A de A. Lopez de Aberasturi é a primeira. Não se trata de uma.
tes da edição Estapé, designada Est. Lt'lldução completa, mas de uma adaptação cuidadosa, que respeita o mo·
3. Concebido numa escala ainda hoje excepcional, esse plano foi vl•uonto da Teoría e revela seus grandes temas.
truncado no curso de sua realização. Cf. A. LOFEZ DE ABERASTURI, 11. Em sua Histoire de l'uroanisme ( t. III [Epoque contemporainel,
op. oit., primeira parte, apzesentação da obra de Cerdà. J '111'1:;, 1952, p . 239), H. Lavedan critica o Plano de Barcelona com argu-
4. Não se trata de um acaso. A obra de Cerdà não surgiu ex nihilO. """llos especiosos e dedica à Teoría apenas uma nota curta que citamos
E la assume sentido se for re-situada numa tradição ibérica que, desde 111 l'.ttenso: "Cerdà publicou mais tarde uma memória em dois \'Olumes
a Idade Média, tentou racivnalizar a organização do quadro construido. 11111'11 justificar sua obm. O torno I é uma história muito fantasiosa do
Cf. .J. ASTORKIA, tese de terceiro ciclo em curso no Institut d'urba- III' IJI.nlsmo. O tomo II contém úteis estatísticas".
nisme de Paris VIII. 12. Sua Ciudad Lincal (Madrid, E st Tipographico, 1894), em com-
fi. Lop., p. 81; Est., p, 27. " ''""nção, conheceu uma d ifusão internacional. Notadamente na França,
6. Lop., pp. 81, 82, 83; Est., pp. 29·31. 11. 110noit·Lévy deu grande publicidade a essa obra da qual Le Corbusier,
7. Em nossas citações, distinguiremos as duas acepções do termo " " tiOll lado, tirou, sem nunca citá-lo, o conceito de c idade linear. Cf.
urbanização, seguindo-a da palavra <urbanismo) quando se tratar real· é I. n.. COLLINS, "Linear Planning throughout the World", Journal ot the
mente dessa d!3ciplina. Ntw loty ot Archi!.ectural, Historians, XVIII, Fildélfia, out. 1959.
200 A REGRA E O MODELO
A TEORIA DO URBANISMO
A despeito de suas dimensões, a Teoría, tal como a Jdea de
Scamozzi, é um texLU incompleto. Seus dois volumes compreen- 1.1. O Discurso Cientijicista e Científico
dem apenas a primeira das quatro partes de um conjunto cujo
plano 1;j Cerdà nos deixou e cujos painéis faltantes, segw1do toda Embora a entidade textual que é a Teoría, na situação em
verossimilhança, teriam sido realmente redigidosl4, A primei ra que a deixou Cerdà, apresente uma síntese estrutural das figuras
p&rte pretende ser um estudo sincrônico e diacrônico do f enôme- do tratado, da utopia e do discurso científico, como no caso de
no urbano: conforme a terminologia de Cerdà, apresenta a " ur- todus as outras teori.as do urbanismo, esse último só é reconhecido
banização como fato concretc". O primeiro volume mostra uma u nssumido pelo autor. Já na introdução e no prefácio metodoló-
exr:csição geral, ilustrada no segundo com dados estatísticos re- lllt:o, Cerdà se apresenta como o criador de uma ciência nova,
.l.ativos à cidade de Barcelona15. Esse trabalho de "dissecação" du que não se enconlra vestígio antes da Teuría: "Nada, absolu-
é, para Cerdà, a condição prévia para a elaboração dos "princí- lumcnte nada, fora escrito sobre um tema de tamanha importân-
pios ~a ciência urbanizadora"16, em outros termos, para o esta- ~.:lu "21 . Não cessa de afirmá-lo no decurso da obra: "A urbaniza-
helectmento da " teoria" que "constitui o objeto da segunda par- c,HIO [o urbanismoJ reúne todas as condições necessárias para
te"1: (~aJt~nte). Vemos que Cerdà utiliza unicamen te o presente m:upar um lugar distinto entre as ciências que ensinam ao homem
do mdtcattvo para descrever as diferentes seções de sua obra, u caminho de seu aperfeiçoamento"22 , eli:l é "uma verdadeira
quer tenham sido efetivamente impressas quer não. "A terceira L'i ôncia"23.
parte (igualmente faltante) trata das aplicações técnicas"l8 e da Para o engenheiro espanhol, esta ciência inteira tornou-se
eventual inflexão dos princípios científicos pela arte, com vistas p<Jssível (nos planos do conhecimento e da "técnica) e, ao mev.no
a elaborar soluções de transiçãoi9 que levt:m em con ta contin- lllmpo, foi exigida (no plano prático) pd01 emergênda de " uma
gências existentes e não traumarizem as populações. A quarta 11ova civilização"24_ Testemunha e arauto do "mundo novo", apre-
parte, e.nfim, " ilus tra as anteriores com o exemplo concreto de r:enra-lhe "como característica distintiva [. .. ] o movimento e a
Barcelona"20 : então não mais se trata do estudo estatístico da l'lli1Hmicação"25, fruto da revolução científica que, graças à in-
~ida,de, n;,as das propostas de reestruturação e de ampliação, da II'Odução do vapor e da eletricidade, trouxe uma mudança no>
_reforma e ,do Pl_?no que deram causa ao empreendimento teó- tnmsportes e no modo de circulação das pessoas, e deu origem
riCO de Cerda, e nao se acham formal mente integrados na Teoría. hH telecomunicações26. Como bom futurólogo, Cerdà anuncia a
A prime ira parte do projeto de Cerdà, a única publi- ~ t· n da "comunicaç_ ão univer;;al".
cada, pode ser tratada, portanto, como uma entidade autônoma. Esta experiência da modernidade e o p apel atribuído ao
Especifica o método da nova disciplina e delermina as leis da tttovimento e à comunicação, na urbanização da segunda metade
"~rbanização". Pretende fu ndar uma teoria da construção das do século XIX, repercutem sobre a definição que Cerdà apre-
ctdades, de valor universal , cujo enunciado sistemático estó fal- flenta do objeto da "ciência urbanizadora". Porque, pretendendo
tando. A terceira e a quarta partes teriam sido tanto mais disso- 11c r um cientista conseqüente, ele começa por determinar o objeto
ciáveis da primeira quanto deviam somente apresentar sua apli- quo sua disciplina deverá estudar. Esse momento primeiro fá-lo
cação a casos particulares. rejeitar categoricamente a noção de cidade e suas acepçõc~J rece-

21. Lop., p. 73; Est., p . 8.


13. · Na Advertência (Lop., pp. 79, 80; Est., pp. 16, 17). 22. Lop., p, 83; Est., p. 31.
14. Cf. A. T.OPEZ DE ABERASTURI, op. cit. 23. Prólogo do c. II, Lop., p. 183; E11t.. t. l i, p. 1.
15. "[vamos mostrar! com o auxílio de um exemplo concreto e de 21. "Montada no vapor e armada com a eletricidade" (Lop., p. 70;
números indiscutlvei:; que tudo o que dissP.rnos em termos abstratos e p. 15) . Sobre essa "nova civilização", cf. particularmente a Adver·
/11~1 . ,
gerais quat;to aos elementos constiLutivos das urbes, a seu organismo, 11\ncln no Leitor e a introdução em seu co:-~junto, da qual ela constitui
a seu func10nament~ [ . . .J não constitui uma declamação en!átlca. e v~. 11 tcltmouv.
:nas um fato incontestáveL Recorremos à estatística no tocante aos :lfo. Lop., p. 73; Est., p. 8.
dados relativos à urbe s obre a qual concentramos nosso estudo [Barce- 26. "Homens da época da eletricidade e do vapor! Não tenham
iona]" (Lop., p. 179; E sl ., p. 815). Segundo a própria co:-~fi s!>âo de Cerdà, " '"do de proclamá-lo: somos uma geração nova, dispomos de novos
o segu."ldo volu.>ne é um "complemento" do primeiro, cujo conteúdo, em ntlllü<: Infinitamente mais poderosos que os das gerações anteriores; le-
condições de menor ignorância, poderia ter sido relegado "ao final da ~1 1111 08 uma vida nova [ . . . l construimos cidades novas adaptadas às
obra. como anexo" ( ibid.) . ntmruts necessidades e nossas aspil-ações" (Lop., p. 164; Est., p. 686).
!6. Lop., p. 79: E st., p . 17. ''A locomoção aperfeiçoada [a vapor! avança [ . . . l com uma re.pidez
: 7. Lop., p. 179; Esl .1 p. 814. llWtombrosa. Aliou-se à eletricidade que, por meio do telégrafo, trans-
18. Jbid. otllo Instantaneamente a vontade imperativa dos homens L . . l Estes
19. L op., p. IJO; Est ., p. 17; bem como Lop., p. 179; Est., p. 814. li'llllrJpones rápidos, econômicos, cômodos, democrádcos, abrem uma era
20. Lop., :;>. 179; Est. , p. 814. "' lVI I na. marcha progressiva da humanidade" (Lop,. pp. 176-1'17; Est. ,
jl , 1100) .
270 A TEORIA DO URBANISMO ~71
A REGRA E O MODEW

bidas, particularmente as que se baseiam em critérios numéricos Com uma acuidade que inspirará Soria, mas que não mais se
administrativos ou culturais. A urbanizacão como fato concret~ llucontrará depois antes de M . Webber30, ele percebe que as no-
supera a idéia limitada da cidade tradicio~al, para .englobar todas Vml técnicas de comunicação vão transformar completamente as
as aglomerações possíveis, quaisquer que sejam a sua extensão fo rmas de urbanização, tornar anacrônicas as antigas cidades,
ou sua dispersão. Cerdà apresenta uma sua definicão fuucional pt.mnitir modos dispersados de agrup amen to, o que: ele wgesti-
a. primeira do gênero: a urbanização reside tão-so~ente na asso~ VIIlnente chama de urbanização r uralizada31.
CJação do repouso e do mo.vimento, ou antes nos espa:;os que . Um termo particular, urbe32, é forjado por Cerdó a fim de
servem ao rep ouso e ao movtmento dos seres humanos isto é os dcs1gnar a aglomeração, quaisquer que sejam suas dimensões c
edifícios ~ as_vias de comunicação27 . Reduzindo assim 'o proc~~so tmu forma. Procedendo como cientista , ele examina e define
de orgamzaçao do espaço à combinação de abrigos tleslinatlus ~~ ludas as noções de que é chamado a se ser vir. Não teme precisar
estada e ?e vias .de comunicações, Cerdà formula pela primeira t» conteúdo de termos aparentemente tão simples quanto os de
v_ez os dots conceitos dtretores que, hoje mais do que nunca, con- l'i:gião, subúrbio, rua. Além disso, elabora uma metalinguagem33
tmuam sendo os dois pólos operacionais do urbanismo a habi- pura designar um conjunto de elementos do urbano que a Jingua-
tação e a circulação. ' ncm não soube analisar ou que as designações correntes cobriram
Anunci~, P<:is, e p rel?a ra a grande redução que a planifica- de conotações diversas e que se deve .e ncarar com o olho não-pre·
ção mbana 1mpoe às soctedades atuais. Mas descobre no movi- conceituoso do cientista.
mento uma _dimensão do urbano até então ignorada e acerca da Apesar das aparências, Cerdà continua- fiel a esse rigor lexi-
qual nossa epoca mal começa a pre~sentir que instmmentos ccn- cológico quando, com um mesmo vocábulo, urbanización, designa
ceptuais permitiriam integrá-la n uma descrição científica. Cerdà duas coisas muito diferentes, o processo de urbanizacão e o urba-
supera o estatismo da apreensão balzaquiana da cidade, apoiada uismo, que atualmente distinguimos com cuidado. 'rsto porque,
pelos modelos de pensamento de Laplace e de Cuvier. Sua ci- po ra ele, a ciência urbanizadora, o urbanismo, conforme a ter-
dade est__á ~m mo~imento : limites flutuantes, que nunca se ·detêm , minologia atual, é constituída por um conjunto de prop(mições
populaçao mtcrmmavelmen te errante. Ele antecipa a intuição, no científicas deduzidas da análise da urbanização, que as coloca
entanto quase sempre pioneira, dos romancistas de ma época, ta l necessariamente em ação, mas de forma ainda não-combinada e
como Zola, mas ainda não pode valer-se do modelo da tet·modi- "'caótica", devido à in ércia que a história lhe opõe. A urbaniza-
n âmica estatística, cujo interesse caberá mais tarde a Musil pres- ~tiio "teórica" é. detida por fatores múltiplos e imprevisíveis: as
s:ntir28. Além di~so, a importância que ele atribui à ci1'culação noções de fluxo e de inércia já anunciam, sem que Cerdà tenha
nao o .leva a negbgenciar a habitação, que para ele não se reduz çonsciência disso, os modelos explicativos da fís ica. A urbaniza-
ao aloJamento, como para a maioria dos urbanistas progressistas c,:iío é um fenômeno específico decer to, mas não-privilegiado, aces-
que lhe sucedem, mas continua sendo a exigência primeira e fun- ~ fvel ao conhecimento como qualquer outro, e portanto subme-
damental, aquela que permite o desenvolvimento da pessoa hu- lido a leis, da mesma forma que os outros fenômenos do mundo.
mana. "O ponto de partida como o ponto de chegada de todas Cabe descobrir uma racional idade sob a diversidade das forma-
as vias é sempre a habitação ou a morada do homem"29. ções urbanas de onde Cerdà, com notável fi rmeza, exclui o acaso.
"O recurso ao acaso somente se justifica pela preguiça do pes-

27. "Para dar uma idéia da urbanização no domínio da ciência, di·


re~os ~ue .seus elementos constitutivos são os abrigos, seu obj etivo o.
1110 nte ligada à da seu abrigo que, por este motivo, se designa peln
rectproctdaae dos serv1ços e seus meios as vias comuns" (Lop., p. 86;
Est., p . 44). Cf. também: " A localizaç!!D, a disposição particular das lo rmo mais significativo [ .. . : o de habitação (vtvtencta), termo que ín-
construções e as formas que assumem as vias de circulação ao se de~en· (llf'n 11ue ela é sua vida e o complemento de seu ser" (Lop., p. 85; Est.,
p , 39). Cerdà indica, na seqüência. dessa mesma. passagem, q ue, para
volverem constituem nosso único objeto, a totalidade daquilo de que
ri!'Mignar a casa, ele não utilizará prccisn.m ente o termo casa que não
devemos prestar contas" (Lop., pp. 98-99; Est., p . 207); ou ainda essa
fór mula lapidar: "'T'odo espaço óeve satisfa7.er duas· necessidades, o mo· dPnota essa função vital. Cf. ainda: Lop., p. 136; Est., p . 405.
:10. Cf. "The Urban ? lace and no:1 Place Urban Realm", Explora-
vtmento e o rep ouso. Tais necessidades silo as mesmas para o individuo
a família e as coletividades complexas" (Lop., p. 137; Est., p. 408). ' t lons in Structure, Filadélfi a, Un!versíty of Pennsylvania Press, 1964.
21!. Cf. MICHEL SERRES, Feu..t et S ignaux de brume, Zola, Paris, 31. Cí. especialmente Lop., p. 170; Est., p . 75B.
Grasset, 1975, e Hermes V, le passage du Nord·Ouest Paris Ed. do 32. "A adoção [da pate.vra. ur bcl foi necessária. porque nossa língua
Minuit, IYBO, pp. ':!7 e ss. ' ' 111to possui termo adequado a meu propósito" (Lop., p . 82; Est., p. 30).
:13. Além de urbe e urbantzaç~o (com os compos tos "urbanizar",
. 29. Lop., p..125; E st., p, 335. Cf. também o primeiro capítulo do
" lll'bllnizadora", "urbanizador"), citemos: entrevias, vias transcendentes
L1vro I , c~. J?arhcular: "[Devemos] considerar o abrigo como um tegu·
11 /lllrticttlares, sobre-solo, e todos os conceitos operatórios de seu volu-
menta a rtlftcml, um apêndice indispensável, como o complemento do
I!Hl dedicado à " estatística de Barcelona" : nós, trechos, malha, nodações.
orgamsmo humano. Por esse fato, a idéia cio homem está constan te·
272 A REGRA E O MODELO A TEORIA DO URBANISMO 273

quisador"34, afirma o engenheiro espanhol que parece visar, an- indicador cultural, o meio de locomoção39 que nele reina (pedes-
tecipadamente, as dissertações de Corbusier sobre o papel do Lre, cqücstre, de reboque, de rodas, aperfeiçoada) e, por via de
acaso na formação da::; cidades antigas. conseqüência, a estrutura do sistema ae circulação permitem de-
Assim, o urbanismo aplicado é o corolário de. uma ciência tl:rminar uma classificação das , cidades. O modo de locomoção
experimental e teórica cujo caminho Cerdà questionou ampla- dá seu significado ao desenvolvimento da urbanização. Funciona
mente35. O autor da Teoría não se contentou com uma crítica na história ccrdiana da mesma maneira que o modo de pruduçãu
e uma análise de noções. Determinou os métodos de observacão na história marxiana.
c de tratamento mais bem adaptados a seu campo de es tudo; as A Teoría e o Capital são publicados no mesmo ano. - um
disciplinas às quais podia recorrer na coleta de informação e me- c noutro caso, estamos à frente da mesma rup tura em ~·elação
lhor ainda na determinação das leis que regem e::;se domínio. nos processos históricos tradicionais, da mesma historificação dt:
formalmente, ele trata seu objeto a partir de dois enfoques, uma " ciência sociaP'. Situando a comparação no único plano
quantitativo e estrutural. A quantificação dos dados urbanos, sob onde possa ter significação, o de sua relação com o conhecimen-
a forma de estatística, constitui uma garantia indispensável de to, a analogia das duas obras merece ser levantada e desenvolvida.
cientificidade36. Além disso, uma atitude estrutural é dit::~da de A história marxiana e a história cerdiana valorizam identicamente
alguma forma a Cerdà pelas duas ciência::; independentes a que a praxis técnica, dão provas de um mesmo etnocenlrismo e são
recorre: u história, bem como a anatomia e a fisiologia37 lhe ser- uma e outra orientadas por uma teleologia revolucionária. Como
vem para construir sua teoria da "urbanização" . Marx:, Cerdà reconhece a diversidade das·culturas antigas40, de-
A seus olhos, a história é a disciplina que permite situar pois confunde a h istória universal com a do Ocidente41 ; e, para
a ciência urbana: nem finalidade em si, nem suplt:mento de sa- ele também, a ciência da história integra uma r evolução a reali-
ber, ela já é. para Ccrdà esse caminho obrigatório que, conforme zar. Mas uma revolução pacífica, a uo 4uadru construído que
nossa época descobriu, <!travessa todos os domínios da antropo- será transform<ldo pela aplicação das novas técnicas de trallsporte
logia. Para Cerdà, é impossível compreender a significação e o c de comunicação.
problema das cidades contemporâneas, sem referência à história Depois de Cerdà, a história será convocada pelo discurso
de que são o produto: "a história da urbanização é a história veredictório de todas as teorias do urbanismo: Mas ela não mais
do homem"38, Mas essa fórmula não remete a uma continuidade desempenhará o papel que lhe reservava a Teoría, onde, tomando,
do acontecimento. Levado ao mesmo tempo pela ideologia posi- de passagem, as vias da arqueologia e da etmologia42, perm_ite
tivi::;ta da época e estruturalista avant la lettre, o autor da Teorío 110 mesmo tempo construir uma nova definição da urbanização
concebe ao contrário a história como sucessão descontínua de c testar a validade de conceitos operatórios tirados das ciências
constelações de práticas sociais; a urbanização simboliza a cada da vida.
vez estas constelações, cuja face, a identidade mais diretamente
perceptível, ela revel a de alguma forma. A técnica é o catalisador 39. "A locomoção constituirá, em cada tlpoca urbana, o ponto de
que determina e acelera a informação e a transformação das ou- partida de nossas pesquisas c o meio de controle de nossas observações.
tras práticas sociais. O estabelecimento humano evolui, pois, ao 11. história da locomoção pode ser dividida em cinco períodos distintos
sabor das mudanças da !écnica. Melhor do que qualquer outro [ ... 1" CLop., p. 164; Est., p. 685). .
40. Ele conhece e utiliza ao máxrmo os trabalhos da arqueologia
do sua época..
41. Partindo da hipótese segundo a qual, na origem, "reinava uma
tínica urbanização, pois havia um ünico povo, uma única civilização e
34. Lop., p. 100; Est., p. 214. cr. também "ia urbani7.açãol cuja ori- uma única humanidade", ele mostra que, com o tempo, "as urbes che-
gem e desenvolvimento se atribuem ao acaso obedece no entanto [ ... 1 J:tn·am respectivamente a adquirir uma característica própria e distin-
a esses princípios imutáveis" (Lop., p. 83; Est., p. 32) . tiva (. . . que não permite) mais consideFcl.r globalmente a urba.nlzação
35. "A medida que me aprofundava em meus estudos e pesquisas, r.orol". ::\o1:as " com o tempo, as diversas manifestações da urbanização
compreendi [ . .. l a necessidade de me informar, de estabelecer e fixar uhegaram [ .. . 1 a se confundir. [. .. 1 Se vimos um grande centr~ _de
as b ases e princípios sobre os quais se devia construir essa ciência" ttrl.>C.11tzação de um país qua.tquer, vimo.~ todos os outros. r ... l a c~v~~:
(Prólogo do t . II, Lop., p. 103; Est., t . li, p. 1). ~.nç üo é hoje a mesma em todos os patses em que não retna a barbar: e
36. "Por esse meio todos os problemas serão postos em termos ( J.op., p. 9G; Est., p. 132. Cf. também Lop., p . 148; Est., p. 483) . CO gnj o
matemáticos e portanto não mais se poderá evocar contra nós os capri- t! 110SSO.l
chos da imaginação. Cumpre, então, admitir que todas as estimativas 42. " Indicador urbano" (Lop., pp. 116 e ss.; Est., pp. 465 c ss.) .
se baseiam na lógica irrecusável dos m.imeros" (Prefácio do t. li, Lop., <;ordà dedicou mais de cem páginas a uma análise etimológica d os ter-
p. 184; Est., t. li, p. 3). a tos urbanos, que, coniorme ele pensava, lhe permitiria reconst ituir o
37. Igunlmente designada por nós como "medicina experimental", ~mUdo origino! dos componentes da cidade. Essa hipóte~e, fruto de um
segundo a terminologia empregada na época. 11 nroque en~ontrado igualmente na mesm a época nos trabalhos de Fus-
38. L op., p. 07; E st., p. 50. IPI de Coulanges sobre a cidade antiga, não p odia todavia fornecer u
274 A REGRA E O MODEW 1\. TEORIA DO URBM'IS?viO :m
Isto porque, na Teoría, o enfoque histórico se arti cula sobre Este não fala mais como poeta ou como artista, nem somente
o enfoque biológico. Sua perspectivação não impede que o obje- como anatomista. Passados os três primeiros livros em que se
to estudado tenha relação com as metodologias próprias aos orga- limitou "a inventariar os elementos constitutivos [do org&nismo
nismos vivos, a anatomia e a fisiologia . Cerdà apela explicilam.enle urbanoJ como se se trata~sc de corpos inertes" , ele chega ao estudo
para essas duas discipiinas, seguindo e aperfeiçoando o cammho de seu funcionamento, à sua fisiologia, " dá vida a esse corpo ina-
aberto quarenta anos antes por Bnlznc, quando ia buscar ensina- nimado"47. O capítulo sobre a " funcionomia urbana" que pre-
men to junto a Cuvier e Geoffroy Saint-Hilaire, para aprender a cede e introduz o Livro IV demonstra como Cerdà se apropria,
olhar cientificamente as socied<~d~::s humanas. para o tratamento de seu domínio próprio, dos métodos e de cer-
O termo dissecação43 reaparece como uma profissão de fé tos conceitos operatórios da biologia. Após as designações gerais
nos três primeiros livros da Teoría. Cerdà pretende ser o "frio de gênero, espécie18 e orgaui~mu, é deliberadamente que utiliza
anatomista do organismo urbano"44, do grande " corpo" social, u noção de regulação · e apreende-a na análise das funções ur-
do qual ele corta, em seguida desarticula em subconjuntos os ór- banas de circulação, alimentação, digestão, evacuação49, que joga
gãos essenciais, em outras palavras os elementos. de base,. que com os conceitos de núcleo5U e de desenvolvimento, que vai bus-
encontramos em tod as as cidades e que caractenzam a c1dade car na teoria de Lamarck a .idéia de adaptação, a. qual contribui
em gernl. Assim, é levado a definir o corpo humano pela com bi- para dramatizar sua Jes~.:riyiíu do urbano.
nação de dois tipos de elementos irredutíveis, o edifício e a via Entretanto, ao mesmo tempo que trata a cidade como orga-
de circulação, cuja uposic,:ão ~ combinação podem explicaf todas nismo vivo, Cerdà não deixa de se referir à ela como a um objeto
as escalas do quadro construído, desde o sistema das cidad~s li- inanimado, um continente, um instrumentoõl , Contradição não-
gadas entre si pela " grande viabilidade universal" até :1 easa. assumida? Inconseqüência? Será este efetivamente, tnais tarde,
passando pela ilhota. Outrossim, " o que é ~ ur be'! Um conJU~to o caso de intímeros teóricos do urbanismo que, sem sentir qual-
de habilacões ligadas por um sistema de v1as [ .. . ] O que e a quer embaraço aparente, e sem se explicarem, conferirãq1al1erna·
casa? '\arla mais nada menos que um conjunto de vias e de peças livamcntc à cidade o estatuto de ser vivo e Je artefato. Assim
de habitacão, como a urbe [ ... ] A grande ur be e a ur be-casa di- é Le Corbusier, para quem a cidade é ora um " corpo organiza"..
,
ferem apenas ' d ad es que abngam
pelas dimemões e pe las soc1e ' " 4G.
do"52, suporte de uma "organização biol6gica"5.1, ora uma má-
Crer-se-ia ouvir o eco do De re aedificatoria. Aqui e lá, o quina54, e que, ocasionalmente, não recua nem mesmo diante de
modelo do corpo parece induzir a mesma análise estrutural. No
en'tanto, a metáfora do corpo e a identificação da cidade com a 47. Lo;J., p . 149; E~;t., p. 592 . SObre o v!talismo cerdiano, ver no en.
casa não têm o mesmo valor em ambos os textos. Seus significados tanto infra, p . 276.
respectivos são separados por toda a distância criada por enfo- 18. A cidade é uma espécie cujos representantes apresentam, por
definição, a mesma organização espccíficc, embora possuindo, como os
ques diferentes do corpo. As ciência.s ~o ser vivo ? ão cxi ~tiam organismos vivos, suas particularidades individuais. "Cada urbe, gene·
na época de Alberti. Elas se const1tmra~ a parlir d_:> seculo rkamente idêntica às outras, constitui, na realidade, uma entidade ori-
XVII46, já conhecem um grande desenvolvnnento e propoem seus r,.lna l e particular. A partir desses dois únicos elementos, vias e entre·
métodos e conceitos U.s ciências humanas no momento em que vins, se formam e se formarão um número int inlto de urbes, cada uma
com uma fisio:10mia particular" (Lop., p. 163; E st ., pp. 681-682) .
Cerdà escreve. 49. J.op., p . 156; E~.. pp. 645·646. "Os órgãos correspondentes a
todus as funcOes de a11mentação, digestão e excreção" da cidade se en-
contram na casa (Lop., p . 139; Est., p. 412).
Cerdà os resultados esperados, t anto devido às insuficiências cio conhe· 50. Cf. os captiu1os sobre os subúrbios e os núcleos u rbanos, em
cimento cnntemporãr.P.O qufl.nto por causa da sua própria !nconpetência pnrticular: Lop ., p. 106; Est., pp. 241 e ss.
na matéria. Entre outros exemplos (clv!s, villa, burgo > tão pouco cien· 51. Por exemplo: "A cidade constitui um todo complexo, um ins-
tlfi\:O:S, cilemos aper.as o caso de urbes que Cerdà deriva de urimm tmmento" (Lop., p . 106; Est ., p . 465) . W grifo é nosso.]
(relha de charrua) . Deve·se observar , todavia, o segu rança de intuição 52. La Ville radleuse, Paris, Vlncen t·Fréal, 1933, 4.' parte, p . 134.
com que, através dessa eti:nologia fantasiosa, Cerdà aponta o carátr.r Por simplificação, na seqüência desse capítulo, tecias as citações de te
originalmente sagrado do ato u r bani:r.ac:lor ILOp., pp. 81-82: E st ., pp. ~- Corbusier serão tiradas desso. quortn parte que constitui uma obra
30). Depois, os trabalhos de E . BEN'\tli:NISTE sobre. L~ Vocabulc:urc 1\ntõnoma, sintese de todas as idéias, e protótipo, dos livros de Le Cor-
des institutions i ndo·européermes (Paris, Editions <;te Mmmt, 1969) mos llusier. Cf. também: "A cidade viva, total, fnncionante com seus órgãos
traram . a fecundidade deste caminho. quo são os da sociedade magu1n1st.a" Ctãem, p. 40). A "Cidade Radiosa"
43. Cf. pm·ticularmcntc a Introdução, onde Cerdà evoca seu "trn· 'liiLá totalmente colocada sob o signo da vida: os termos "vida" e
balho ele dissecação" (Lop., p . 79; Est ., p. 17). "viver" (sem contar as formas v~rbais não infinitivas desse verbo e os
44. Lop.. p . 149; Est.. p . 592. 1Ld1etivos derivados ) aparecem 65 vezes nas 33 páginas do texto, cujas
45. Lop., p. 137; E st ., p. 407. Cf. também Lop., pp. 114, 129, 132, 134; !drrnulas do tipo "viver, habitar!", "viver, respirar!" ou "viver, rir!"
E st ., pp. 268, 3G3-364; 379, 3S9- 1:onstituem o destaque retórico.
46. cr. F ..TACOB, La Lo(Jique c:u .,;ivant, op. cit . 53. Idem, p. 139.
A TEORIA DO URBANI SMO 277
276 A REGRA E O MODELO
dade continua lastreada no correr do tt::mpo, e fala bastante da
formt1lações antinômicas, das quais uma das mais lapidares é a dificuldade de seu enfoque objetivo. Depois, a intenção norma-
definição da cidade como " biologia cimentadn"55 • O próprio Cer- tiva que anima a Teoría faz desviar, como _veremos adiante, os
dà reconhece explicitamente a dupla pertinência do objeto ur- enunciados de fato para uma axiologia.
bano e o problema que ela coloca . Resolve a aparent~ antinomia Feitas estas reservas, a Teoríu nos coloca na presença de
do organismo e do artefato por meio de uma concepção ousada uma série de enunciados cientificas e de uma teoria q ue os in-
qo corpo (urbano) como máquina, que se poderia hoje reatua- tegra? No que diz respeito ao primeiro ponto, e embor(l seus
lizar com o auxílio dos modelos da biologia celular e molecular: emprés timos às ciências da vida tenham por vezes levado Cerdà
assim, o subsolo da cidade se assemel ha "à primeira vista" ao a desconhecer a especificidade de seu objeto pl'Óprio, o pensa-
sistema venoso de um ser misterioso" ... Mas, na realidade, "esse mento de D arwin lhe permitiu melhor cercar a evolução do esta-
conjunto de tubos n ão constitui nada mais que um sistema de belecimento humano, que ele descreveu como pioneiro da geo-
aparelhos que mantêm o funcionamento da vida urbana"56 . grafia urbana. No que concerne ao segundo ponto, em compen-
A forma como Ccrdà recorre aos métodos e às aquisições sação, a utilização dn palavra não deve iludir. A Teoría não sa-
da história e da biologia deve levar a concluir que ele efetiva- tisfaz uma série de exigências atualmente características de uma
ment~:: !::laborou um discurso científico? Ou apenas ele se con- teoria científica: a capacidade explicativa, a capacidade de pre-
tentou em produzir marcas lingüísticas, isto é, enunciados sem visão, a transitividade e sobretudo a refutabilidade61, Quer ela
referência situacional5'1, e mesmo essa "denominação" com que se apóie sobre a história e sobre o papel que nela representa a
E. Benvénistc faz "a operação ao mesmo tempo primeira e última técnica, quer vá buscar na biologia a n1etáfora organicista, a
de uma ciência"?5B Impõe-se imediatamente algumas reservas. construção de Cerdà se situa num nível de generalidade- que faz
Em primeiro lugar, o engenheiro espanhol apela amplamente a lhe Iallar a cGmplexidade dos fenômenos de cultura. Sua margem
um imaginário pré-científico. Por exemplo, sua concepção do cor- de adesão aos fatos é limitada. As mesmas · razões, às quais de-
po urbano não é somente inovadora: ela também remete à "psi- vemos acrescentar sua dimensão normativa, privam-na de valor
cologia" aristotélica59 e à teoria cartesiana dos animai~;-máquinas. de previsão. Enfim, a " teoria" de Cerdà é,)apr~::s~ntada como
Da mesma forma, longe de acantoná-lo no campo epistemológico uma verdade fixa e imutável, em termos que podemos imputar
t1·açado por Claude Bernard, D arwin e seus contemporâneos, a a um cientificismo, mas que dependem bem mais de um enfoque
analogia organicista às vezes conduz Cerdà a reencontrar diante utopista.
do ser urbano certas formas arcaicas do vitalismo ou do animis- A parte dada pela Teoría a um verdadeiro discurso cien tí-
mo antigos e renascentes60, cuja sobrevivência trai a carga ~e fico parece, pois, afinal, muito real , mas limitada : redução subli-
mistério, quando não o peso mágico ou religioso, com que a ci- nhada, por sua vez, pela precariedade dos enunciados não-situa-
danais, permanen temente ameaçados pela intervenção em pri-
54. "A casa do homem moderno (e a cidade), máquina mngnificn· meira pessoa do enunciador.
mente disciplinada, trará a liberdade individual", La Ville radieuse (p.
143); ou ainda, p. 130, a cidade "máquina de circular ". (Parentheses de 1.2. Medicalização e Utopia
Le Corbusier.)
55. Idem, p. 111. Entre muitas outras fórmulas do mesmo tipo,
citemos apenas para lembrar as "fatalidades biológicas" e a "biologia A redução do urbano ao biológico tem como correlativo sua
mortal" que pesam sobre os "traçados errôneos" ~o p assado (pp. 13B· medicalização. Pode-se até mesmo pensar que constitui a preocupa-
139), ou ainda a "céluia humana de 14 m= por habitante", "biologica- ção primeira de terapia que levou Cerdà a tratar a cid&de se-
mente boa em si (conforme ao ser ) e suscet!vel de multlpllc~ção ao gundo procedimentos tirados das ciências do ser vivo. De qual-
infinito (de acordo com os recursos fornecidos pelas técnicas moder·
quer modo, a medicina clínka é para ele a fi nalidade da medi-
nas)" [p. 113. Parenthcsas de Le CorbusierJ.
56. Lop., p. 119; Est., p. 306. ci na experimental e o urbanista é assimilado ao mesmo tempo ao
57. Cf. J . SIMONIN·GRUMBACH, ap. cit., pp. 110 e ss. Cf. infra, fisiologista e ao médico. Com Cerdà o urbanista veste, para não
p. 138, n. 194, e p. 147, n. 226. . ma is abandoná-lo, o casaco branco do t erapeuta. A cidade está
50. Problemes de lingui~tique générale II, p. 247. Para a denolm· doente. Cabe ao prático procurar as causas da doença, fazer-lhe o
nocão na Taoría, cf. supra, pp. 2n·272.
-59. "Até agora nossa análise se prendeu exclusivamente à parte ma· diagnóstico, aplicar remédios. A terminologia mé.dica f unciona de
teria! que conforma de algum modo o corpo da cidade, fazendo quase uma extremidade à outra da Teoría62, Assim, segundo o mesmo en-
:silem:io sobre sua parte humana que constitui a alma e a vida da cidade.
islo é, sua população, ao passo que . na realidade, a p rimeira é apenas u 61. Cf. K. R. POPPER, La Lo(lique de la découvert sc1entiji que,
instrumento posto a serviço da segunda" (Lop. , p. 183; Est., t. II, p. 2). trnd. fr., Paris, Payot, 1978, pp. 36 e ss.
60. Cf., por exemplo, a passagem onde Cerdà assimila os balcões 62. Cf., para as fórmulas mais impressionantes, Lop., pp. 75, 70,
a as janela::; <.la <.:asa a "órgãos correspondentes aos olhos e à audição" '10, 152; Est., pp. 11, 12, 14, 16, 17, 606.
(Lop., p. 139; Est., p. 412).
278 A RFJGR..A F. :J MODELO
A TEORIA DO URBANlSMO 27!1

foque que dera origem ao panoptfsmo e já marcara uma parte dos especulação dos proprietários fundiários urbanos", a maneira sis-
textos do pré-urbanismo. Cerdà transporta, sem inquietude meto- temática como esses exploram o espaço para "socorrer as neces-
dológica, as noções de normal e de patológico para o campo d? sidades do mercado com frenesi" são descri tos em páginas no-
social, oc"Jlta a diferença das normatividadcs em ação na mcdt- táveis67.
cina e na antropologia, ignora que a organização do espaço Im- Nesse quadro clínico geral, o mau funcionamento do esp~ ço
mano dep ende das normas da cultma e da. étic~. _E_m sum~~ p~r tu·bano ccnstitui não só o sintoma mais visível da doença socwl,
meio da analogia médica, ele desdobra o objeto mtctal da ctencta como também seu agente68. Mais exatamente, o esp aço urbano
urbanizadora, que se transforma em dois objetos segundo o en- é o suporte de todos os cacifes sociais. É através dele que se
foque da utopia. , joga o destino da sociedade. ~ o pharmakon p latônico cuja
A ahordagem científica e cientificista do mundo construlílo
face venenosa ou, no caso, tlüt:nt~: nunc.;a foi ue~crita, antes
pela teoria do urbanismo se presta a um investimento pela utopia
na mesma medida em que uma e outra forma textual colocam da Teoría, com igual espírito de sistema. Novo Raphael Hythlo-
desde logo a cidade como objeto. O organicismo d_os tratadistas day, cujo papel de viajante e de voyeur-testemunha, Cerdà, o "ob-
oferece a prova a contrario. Se Filareto63 e Scamozzt emprr:gat:am servador-filúsofo ", arrasta seu leitor par a uma "visita imaginária"
amplamente a metáfora do corpo, e mesmo a metáfora médH.:a, graças à qual ele pintará o quadro dos traços p~tológi~os . da
sem nunca descambar para a utopia, é que se situavam numa ló- cidade contemporânea. A cidade doente é apreend1da pnmetra-
gica do projeto: o urbano era para eles um processo a instaurar, mente de modo global, numa espécie de visão longínqua e pano-
ramtca, que reve1a " um ·tmenso caos »69 , " ama'1 gamas t1'd'cttlos"
1 · 70
em nenhum momento um dado a partir do qual reagir. ~ somente
h •

fazendo da cidade um objeto de conhecimento científico que se c, de cambulhada, aberrações, contradições, danos de uma urba-
deve correlativamente convertê-la em objeto utópico. Mas nos nização "viciosa, corruptora, an tipolítica, imoral e anacrônica~'71 .
expomos efetivamente a isso quando a ciência de referênc~a tem Em seguida, a crítica detalha uma série de closc-up sucesstvos
aplicações corretivas, quando, particularme.nte, entra em .t.o~o. a sobre o ccniunto dos elementos constitutivos do urbano72 : desde
medicalização que, como vimos6 4 , contammou, desde o 1mcto, os arrabaldes e as muralhas " irracionais, funestas, tirânicas [que] .
a maioria das ciências humanas. depois de haver comprimido as forças urbanizadoras do núcleo
Para Cerdà, a articulação de um caminho "científico" com urbano, converteram em deserto uma grande extensão de terre-
um conjunto de elementos utopistas é tanto mais fácil quanto nos que poderia ter sido urbanizada com vantagens para a grande
o engenheiro espanhol não se coloca apenas como prátiC<?, mas massa das populações que sofrem a dura lei do monopólio fun-
como pensador social, que aborda os problemas da sociedade diário"73, até as casas, qpe a, ~'lógica ela exploração" transformou
ocidental em seu conjunto, e não setorialmente. Por isso, a doen- em " tugú rios repugnantes e mal~ãos"74, passando pelas vias que
ca urbana não é p ara ele, como o será para inúmeros teóricos
~ltcriorcs do urbanismo, uma patologia do espaço: ela consiste 67. Em par~icular: Lop., pp. 133 a 146; Est., pp. 388 a 464.
6B. "Vi clara e distintamente que esse urganismu [a cidade] com
numa hipertrofia do sistema econômico dominante, isto é, do os defeitos essencio.is de que ele sofre, incompleto em seus meios, mes-
capitalismo. Em nome de um liberalismo, Cerdà denuncia a ex- quinho em suas formas, sempro constrangedor e sufocante, aprisiona
ploração65 da classe operária pela classe dominante. Assi~ala em o mantém sob constantA tortura toda a humanidade que L .. l luta sem
particular seus dois aspectos estreitamente ligados entre s1: a re- cessar para romper definitivamente a tirAn!ca casca de p edra que a
ducão dos salários ao simples custo da reprodução da força de a::dsiona" (Lop., p. 76; E st., pp. 12·13 ). Compreendendo esse papel da
cidndc, Ccrdà j:IIga ter "supreendido in fragranti a ca·.1sa primordial
trabalho66 e a especulação fu ndiária. "O desejo imoderado de desse mal-estar profundo que as sociedades modernas sentem em seu
Rcio, e que ameaça sua existência" (Lop., p. 76; Est., p . 12).
69. E~t., p. 267 (não traduzido).
70. Lop., p. 1G9; Est., p. 741.
63. Cf. FILARETO, op. cit., p. 60, Livro I, f. 75. 71. L op., p. 141; Est., p. 446.
64. Supra, Cap. 5, pp. 254 e ss. 72. Cada um sofre a focalizaçãocrítica em duas vezes, <luando do
65. Esse termo, que rellparP.Ce freqüP.nt.eme:J~P. r:a Teoria (c!. ~artl­ m:ame anatômico, e depois por ocasião do exame fisiológico tratado sob
culannente Lop., pp. 143 a 146; E~t., pp. 456-465) , acab a por des1gnar l~ designação de " func!onomia".
uma classe social: "A eK:;>loração considerou a liberdade doméstica como 73. 73. Lop., p. 111; Est., p . 2G9.
um luxo supérf!uo" (Lop., p. 143; Est., p. 456). 74. Lop., p. 141; Est., p . 446. As "carências e
misérias d a casa atual"
66. O argumento é resumido no começo da M011ograjia Estatl stica que, " tratada como um artigo de comércio qualquer", "deixou . [d~ ser)
da Classe Operária em Bnr r.elona, Lop. pp. 198-199; Est., t . II. p . 560: o símbolo da morada do h omem" e "mais do q:.~e a uma hab1taçao se
"A moradia constitui a primeira necessidade do homem social, qua~quer 1~ssemelha ao antro de bestas feras" (L op., pp. 144 e 140; E st., pp. 459
que seja a classe a que ele pertença; se a satisfação_ dessa ne?ess1dade o 422) são denunciadas com violên cia, tanto do ponto de vista de seus
absorve o essencial de seus recursos, como podena fazer frente às oreitos (alojamentos como "lugares de promiscuidade e de conflito.~ " .
outras necessldodcs, ffsicas e morais, da eKistência?" Lop., p. 136; Est., p. 406), quanto de seus caracteres espaciais e fi~icos :
280 A REGRA E O MODELO A TEORIA PO URBANISMO 281

obstaculizam a "comunicabilidade" através de seus traçados, suas nho em primeira pessoa do autor. Que, ocasionalmente, ela deva
dimensões, seus revestimentos, e a higiene por sua estreiteza e pela ser completada por uma ue~cri~,:ãu de ciuaue:s antigas, o presente
altura dos imóveis que as bordejam, sem omitir as ilhotas reta- do indicativo logo se apodera dessa , relegando os tempos do pas-
lhadas, superdensificadas pela especulação e privadas de sol. sado que a teriam transformado em relato e teriam situado essas
Assim, Cerdà foi o primeiro a inserir no balanço da pato- cidades numa história 711 • De fato, a apresentação dos tipos urba-
logia urbana a rua-ccrreuor e o pálio-poço75, fu turos cavalos-de- nos do passado se superpõe, na Teoría, a uma história, propria-
batalha dos Congressos de Habitação Higiênica, de Tony Garn ier mente dita, du e~tabd~::dmentu humano. A primeira serve para
e dos. CIAM. Mas nossas poucas citações mostram bem que esse precisar e embelezar a imagem da cidade-modelo, a segunda para
quadro clínico, traçado de maneira tão pouco serena, é na reali- enegrecer a da cidade reaL
dade um qua dro crítico e que, longe de traduzir, como o quereria Não ocorre o mesmo corn o léxico dé Cerdà que não ser ve
e o pretende Cerdà, a impassibilidade do científico, trai o jufzo para a artiwlaçiío e u deslizamento uma pela outra das duas
do valor reformador. De fato', o quadro clínico da cidade moder- figuras do discurso científico e da utopia . Sem ter consciência
na resulta ao mesmo tempo de um discurso fatual e de um dis- disso, o nutor dn Teoría utiliza um vocabulário que lhe permite
curso engajado. :E: enquadrado e urganizadu pela critica corretl- tão bem jogar nos dois quadros q ue o leitor já não sabe em que
va76, característica da utopia, que engendra a imagem positiva, lugar textual se encontra. Efetivamente, como extraviá-lo melhor
oposta termo a ter mo à do objeto posto em causa. senão desviando certos vocábulos de seu uso, por exemplo apli-
A imagem positiva da cidade sadia c adaptada a suas fun- cando o conceito de verdade aos componentes ideais da cidade,
ções não deveria ter lugar nos dois volumes publicados da Teoría. c o ~e perfeição a tlma norma urbana julgada positiva? Quando
que são explicitamente consagrados à "urbanização como fato se refere a uma "urbanização perfeita" 79 e invoca a " verdade"
concreto". Logicamente, essa imagem de uma cidade que não tem de um alojamento típic_9, Ccrdà joga pela primeira vez um jogo
realidade, e acerca da qual o próprio Ccrdà diz que ainda não ele associação e de embaralhamento de que se apropriarão todos
tem existência77, somente deveria aparecer na segunda pane (fal- os teóricos do urbanismo e no qual Le Corbusier será mestre quan-
tante), dedicada à "teoria". No entanto, ela está presente, dita do emprestar à sua cidade radiosa organizações " perfeitas"80 e
no presente do indicativo, de parte a parte do texto publicado. um plano " justo, verdadeiro e exato"B1.
Cerdà não pode impedir-se de captá-la, antes do tempo, no es- Nesse movimento de vaivém que confunde o enunciado
pelho da crítica, ele invocá-la em seu detalhe à medid a que se
científico e a descrição utópica, a verdade da ciência é transfor·
precisa o quadro clfnico da qual ela é a outra e a verdade. Ver·
dade ao mesmo tempo da norma médica e do ideal utópico: esse mada em soluçãÓ salvadora radicalB2, em modelo. Cerdà condena
deslizamento que permite a superposição e a coincidência dos as soluções de compromisso83, Ele considera medidas de transi-
dois gêneros textuais faz com que a abstração constituída pelo ção somente a título diplomático e provisório, e~sencialmente no
organismo urbano tt:úrico se beneficie do mesmo esta tu to de caso de aglomerações preexistentes. Reconhece-se aí a intransi-
existente que a cidade real. Em outras palavras, a cidade ideal , gência maniqueís ta dé:! utopia, segura agora do aval da ciência que
normal c normativa, de que Cerdà não conhece exemplo, segun· cloravante torna inútil a personagem do herói, inventor do mode-
do ele próprio reconhece incidentalmente, é entretanto evocada lo, e o substitui pela J o ~,;ien tista01,
com a mesma intensidade, os rn~::smoto meios lingüísticos que a
cidade atual.
A descrição no presente do indicativo da cidade contempo-
rânea doente é reforçada por numerosos shifters e pelo testemu- 78. A mesma superpos1çao de duas cidades antigas, uma paradlg-
mát!ca, descrita no presente, a ouLra, histórica, descrita no passado,
se encontra em Sitte (cf. infra, p. 300).
79. Lop., p . ao e p. 97; E st., pp. 17 e 199.
exigüidade, plantas ruins, ausência de sol, ausência de isolamento. Note-
80. La Ville radieuse, p. 146. Cf. também os cruzamentos nas en
se a semelhança das duas primeiras fórmulas gerais com as de Marx
cruzilhadas perfeitas, p . 123.
nos Manuscritos de 11/44, trad. E. Botigelll, Paris, 1957, Editions soc!ales
81. Idem, p . 154. Cf. também pp. 149 e 153.
pp. 101, 102.
75. cr .. entre outras passagens, no caso da rua, Lop., pp. 128-129; 82. "Destinada a regenerar a urbanização e por conseguinte a so-
Est., pp. 355-356; para o pátio, Lop., p. 143; Est., p. 454 ("esses pátios ciedade" (Lop. , p. 137; Est., p. 40'7) .
83. Às quais ele opõe 2 solução que "consiste em e ntregar-se in-
se assemelham a poços profundos e sem lU?: onde se acumulam todas
Lclramente às mãos da ciência, em obedecer-lh e cegamente, faze1lrlo
as espP.c.ies de imund1c1es r.. .l").
nbslração de tudo o que e;xiste, para submeter as r ealizações a seus
76. Lop., p. 102; Est., p. 670,
pl'incípios incontcstcs" (Lop., p. 170; Est. , p. 814). [0 grifo é nosso.J
77. Lop., p. lGO; Est. , p. 741: "InfelizmeJ!te nenhuma urbe existente
B4. Of. infra, pp. 284, 287 e 303.
reúne todas essas condições".
282 A REGRA E O MODELO A TEORIA DO URBANISMO

1.3 . Dominância da Figura de Morus: Os f alsos Traços lunlo, quaisquer que sejam a natureza e a importância dessas
Albertianos 111111logias, o conjunto dos princípios e das leis cerdianas, parte
lnl cgrun te de u m método de concepção, não têm, na Teoríu,
Mas trata-se realmente de um modelo utópico? Ccrdà evoca tlcnuo um valor semântico e não-semiólico. Ao contrário dos prin·
realmente uma "cidndc-modclo"B5. No entanto, a noção de modelo 1'lpios c das regras albertianos, não só não detêm o privilégio
urbano não é unívoca na Teoría: por vezes ela designa um objeto, 1' \c lusivo de comandar a edificação, mas também c sobretudo não
em outros casos, refere-se a um método e a um sistema de regras. 1 111 qualquer efeito sobre a morfologia do texto. A arquitetma
Ora, conforme as ex.igências do paradigma moreano. ~erdà II'XIuul da Teoría é totalmente subtendida e organizada pela rc-
descreve os constituintes-modelo (normais e sãos) de uma ctdade lm;uo d ual, própria da utopia, entre uma crítica da má cidade
(ou organismo, normal e são) ponto por ponto oponível às aglo- l' xislcnte e um modelo da boa cidade destinada a substituí-la.
merações da sociedade industrial; e a cada um dos elementos
criticados da "urbanização contemporânea" , ele contrapõe ele-
mentos-modelo, vias, entrevias e alojamentos, verdadeiros objetos Todavia , podemos nos perguntar se um rela to de origem de
cuja morfologia e, se for o caso, cujas dimensões ele especifica. lipo tratadista, situado nri primeira parte da Teuría, não trabalha
· Ora, ao contrário, parece olhar para o paradigma albcrtiano: l' fuli vmnente o texto e não permite qu e Cerdà opere uma sutura,
a cidade-modelo não tem nome próprio, sua imagem permanece dn lla vez, funcional da figura do tratado com a da utopia. Com
delicada; a despeito da clareza com que são revelados seus com- l11\:ilo, Cerdà apresenta, acima de seu próprio modelo espacial
pon!ntes, ela é encarada como um problema metodológico. Cor- I'III(Cndrado por uma crítica sistemática da cidade contemporâ-
relativamente, a investida contra o espaço pelo construir assume llcu, uma espécie de arquimodelo, a urbanização ruralizada, que
em Cerdà, o mesmo valor que entre os tratadis ta~. A cidade deve ln lu tido uma existência real, mas num tempo a-histórico. O
se espalhar: "Vemos com repugnância tudo o que limita e opõe rdnlu, cujos dois painéis -ocupam respectivamente, na primeira
obstáculos ao desenvolvimento de uma cidade"85 . Acontece o p1u'lc da Teoría, todo o primeiro livro e um espaço importante
mesmo com o alojamen to individual cuja "extraordinária exlen- dll segundo, leria a função de fundar esse arquimodclo.
são"87 desde os inícios da urbanização a Teuría evoca maravi- No primeiro painel, Cerdà indica desde logo que a origem
lhada. Atitude inversa do caminho utopista, que Le Corbusier tl11 urbanização não deve ser buscada na história das nações nem
poderia ilustrar quando denuncia "a própria desnaturalização do 1111 de um povo qualquer, porque "a urbanização existia antes
fenômeno urbano" pela "expansão desmedida das superfícies que esse povo existisse". Vamos encontrá-la "na hi stória da
ocupadas" c se atribui o objetivo ue "amontoar a cidade sobre humanidade [ ... ] não nessa história como foi escrita [mas) na
si mesma"88, de "anular a distância"89. ldslória do homem primitivo, do homem natural, pois o primeiro
Qual é o significado dessa ambivalência? Quando Cerdà I/1/11/(Jm deve ter possuído necessariamente um abrigo, Ltm refú-
anuncia a seus leitores que " a cidade-moddo será construída de niu"02. Nessas hases, Cerdà reconstitui um cenário uriginal, tão
acordo com os princípios [do Tratado teórico90] " , põe em ação pouco obstruído com flo reados ou com psicologia q uanto o do
juntamente dois sistemas normativos incompatíveis, os da regra I Jr• ra aedijicatoria. "A primeira tarda [do primeiro homem . . . ]
e do modelo, tirados respectivamente dos dois paradigmas ins- 1'111 procurar um abrigo. Depois, uma necessidade inata o levou
taurados? De fato, aqui não se trat:l de regras, mas de leis, e o 11 p1·ocurar a ajuda e a companhia de seus semelhantes; os abrigos
uso, comum a Alberti e Cerdà, do termo "princípio" deixa ape- 1'11rnm postos em comunicação, e é esse processo que constitui a
nas pressentir algumas analogias entre seus cami.nhos91 . No en- llrbuni7.ação"93. Por mais simplista e r udimentar que seja esse
l'!lqucma dualista, Cerdà lhe atribui u m valor capital, e para nós
~ lnn i ficativo: "[. . . ] origem insignificante [. . . J origem da mais
85. Lop., p. 153; Est., p. 610. lliltl importância pa ra a filosofia, origem que convem à humani-
86. Lop., p . l OS; Est., p . 251. dlld(: buscar e conhecer porque a oartir daí é que foram forma-
87. Lop.. p. 94; Est., p. 114.
00. L a Ville r adieuse, p. 107. duH os princípios essenciais da ciência urbanizadora" 94.
89. I dem , p. 142. Na Cidade Radiosa, "tudo é C'.Oncentração, n ada Por isso, a despeito de uma menor complexidade, esse pri-
é disp ersão" (idem., p . 136). Inversamente, a cidade atual é estigmati- lnl•lro painel narrativo da Teoría95 é comparável aos relatos de
zada porf)ue é "aberta, espalhada, rn.mificada até os longínquos horizon-
tes '' (idem, p. 91).
00. Designa ção d a terceira p arte. faltante, da Teoría (Lop., p . 153; na. Lo)J., p . 84; Est., p. 35 . W grifo é nosso.J
Est., p . 610) . [O grifo é nosso.] 1):1, Est., p. 41 (não traduzido).
91. Cf. infra. pp. 310 e ss. 1111 Lop., p. !l4; Est., p. 35.
284 A REGRA E O MODEf D !1. TEORIA DO URBAI\ISMO 2Gfi

origem albertianos, a uma espécie de sintese entre o primeiro l'rHI Nillui, a partir da noção de natureza humana. " Q uem nos for·
relato do Prólogo e o segundo relato do Livro I , Cap. li. O epi- 11\'\'ill:íÍ as informações ?ecessárias [sobre esse tempo do qual não
sódio cerdiano está situado na mesma temporolidade a-histórictl llllh:s1~ lcm tesremunhas]? Rt:::spo:sta : o homem, sua natureza. seus
euja reeonsliluição é igualmente relvindicada pelo autor; ocupa lnH!inLos inatos, seus desejos"lOO. ·
a mesma situação liminar na soleira de uma obra cuja organi- A a nálise do que é p róprio do homem permite então a Cerdà
Zf!ção ele contribui para enformar, fornecendo os dois pólos - 1•luborar três novas scqüênciae correspondentes ao aparecimento de
repouso e movimento, alojamento ~ circulação, pela primeira vez lr'0N n~vas ~orn~as de urbanização. É, p rimeiramente, no mt::smo
dest_inados a uma atenção exclusiva - em torno dos quais, de ll'll l po 1magmáno que no Livro I, a "urb anização elementar pri·
capitulo em capítulo, sistematicamente, gravitam a história, a IJii l i ~a"lOl das sociedades que têm uma única atividade. Em
anatomia e a fis iologia da cidade . Enfim, lendo, nas primeil'as 11~\g.u Jda, ~o tempo, que se chama ao mesmo tempo his-
linh as, a celebração da urbanização96, vendo ser essa t ratada l11r1co e mocente, em que · os humanos s ut::m de sua flo-
''~lH iu . original, ocmr e a " urbanização combinada simples"l02.
com o causa e não com o conseqliência da civilização e do desen-
l • l ntlil?e~te, :_merge o arquimodelo, a urbanização ruraliza-
volvimento da bumanidade97, ·sente-se que a u rb anização aqu i
simplesmente substitui a edificação, num r elato que teria o mes- tlrt, ~ntao, nao se trata mais, para Cerdà, de definir como
llo I ,Jvt·o I, g?st.os primordiais, mas antes um verdadeiro objeto-
mo funcionamento qut:: o de Alberti. En tretanto, cabe observar
llllldclo: cons1stmdo de uma casa unifamilial, cercada de uma
que, ao contrário dos axiomas e dos princípios do De re aedifi-
l'l'dc ele veredas ou de vias públicas, e indefinidamente multi-
catoria, os princípios cerdianos supostamente não têm necessida-
plk:lível, esse modelo revela ser efeito e causa de progresso mas
de de fundação. São diretamente avalizados pela ciência c não
frunbém ponto de partida de uma queda, origem do proces~o de
desempenham q ualquer papel na estruturação du lexlo. O pri-
meiro painel não pode, pois, ter ftmção real ou declarada no dl')r,rac.lação que não cessa, depois, de atingir nosso ambiente
I'OIISil'lÚdO,
paradigma cerdinno onde se pode lê-lo como um anacronismo
ou como um ato falho . A artic~lação das três seqüências do segundo painel do es-
ll lH.:ma de ongem entre elas e eom o primeiro painel não deixa
Quanto ao segundo painel, seqüência do p rimeiro, ele se
1h· upresentar dificuldades devidas à imprecisão e à heterogenei·
inscreve, não sem dificuldades, e a despeito do plano e dos tí-
tulos explícitos de Cerdà, na primeira parte do Livro II, que
dndc da~ cronias em que se desenvolve o relato. Não está clara
11 fronteira que separa, ~m primeiro tempo, m ítico ou .imaginário,
supostamente traça o "desenvolvim ento da u rbanização" no ~
rl1: um tempo seeundan o, real e no entanto ainda inocente. A
tempos pré-históricos e históricos. Com efeito, uma vez munido
l l l'buJ~izaç~~. mr~l~~da:, por sua vez, é atribuída primeiramente
de sc~s dois princípios de repouGo e movimento, e depois de
1111 ll'l bos n:nagmanas ent.re as quais "a urbe é todo o campo
ter afumado que "a história da urban.izacão é a história do
dt· ustabclccimento dos agncultores"l03, Em seguida, "essa obra-
homem"98, Cer dà adia ainda mais a ent1·ada' na hi stória (deve-se
prl l~l~ da urbanização, a mais adequada, a mais digna, a mais
" renunciar à ajuda da história se se q uiser descrever desde suas
jll'l'i cr:ta que a ~abedoria h umana prod.uziu"l04, é apresentada, sob
orig~ns o d~senvolv.imento da urbanização"99), paro mergulhar
\111111 forma mats elaborada, como a obra de uma sociedade "vcr-
no m termédw de um tempo imaginário, que novamente ele rc-
diidciramente histórica", que soube combinar diversas atividades
Ll cujos vestígios Cerdà localiza em torno de Babilônial05. Ma~
11fl:l situa c?~ clare~a .o mome~to. em que se rompe a bela inge-
95. No registro da necessidade, ele serve para fund!'!mentar n~ sei~ llln~ude orJgmal. Lrm!ta-se a 111d1car que o processo de degra·
princípios bàsicos da edificação, ao passo que o primeiro painel d:1
Teoria só diz re:,;pelto aos dois princípios gerais (repouso e movimento) dnr.;uo começa quando os povos pussam a Grescer t:: mul tiplicar-
da t:rba:-tização.
96. "A urbanização que nasceu com ele e se desenvolveu com elo
o homem deve tudo o que ele é, tudo o que ele pode ser nesse mundo"
(Lop., p. 86; Est., p . 411.
100. Est., p. 57 (não tmdU2ido l .
_97. "A urbanização conduziu [o homerr:J ao eslado de Eociedaclc, JOl . Livro II, Cap. I. Ela compreende três fases: troglodita, clcl6-
ensmou-lhe a cultura. Ela o civilizou" (ibid.}. Cf. também: "Vcrcmo~ plr•" o tugúica (em cabanas).
102. Livro II, Ce.p. II.
como os elementos csscncinis (dll urbanização] caminham no mes:no
passo que a civilização, ou melhor, como a urbani7.::Jçã n precede·a c l03. Lop., p, 90; Est., p. 96.
prepa:-a o caminho que em seguida ela terá de seguir" (Lop., p. 87; 1114. Lop., ;>. !16; Rst., p. 122.
E~t., p. 00). 105. Lop., p. 94; Esl., p. 114. Embora a cidade que ele acaba de
os. Lop., p. 87; Est., p. 50. rh nwr·cvcl' possa "parecer uma entidade puramente ideal", Cerdà a firma,
99. R.~t., p. r,r; (niio traduzido). "'' m\lunto, que as descobertas arqueológicas confirmam sua hipótese.
280 A REGRA E O MODELO A TEORIA DO URBANISMO 287

se. Ele não especifica se se deve atribuí-lo à diferenciação das pl'llzc r. O que faz as vezes, assim, de natureza humana no De
culturas ou a uma perversão do instinto humano que, sob a n· aedijicatoria poderia ser definido como um potencial de de-
pressão do espírito de lucro e de competição, faria aglomerar as r1on1pcnhos possíveis numa multiplicidade de campos, tais como
cidades sobre si mesmas e construir em altura. Uma explicação os do construir ou da linguagem. Na Teuría, em compensação,
através do crescimento demográfico teria sido compatível com o 11 utividade original da edificação leva, desde logo, a um dado
po~ilivismu de Cerdà. Esse não a tenta jamais. Mais, esse pro- llhjctivo, o corpo humano: o homem repousa c o homem mexe-
gressista militante, esse campeão da industrialização, não hesita, rio. A natureza humana é uma substância que coloca sua marca
sem o cuidado de se contradizer , em descrever o destino do am· 110 Lexto, a:;sinalandu aí as zonas proibi das à penetração trata-
biente construído como discípulo de Rousseau106. di sta.
O segundo painel do "relato de origem" cerdiano parece, Uma vez mais, impõe-se a comparação com Le Corbusier.
efetivamente, funcionar como garante de um modelo esp acial, A natureza humana que este vai buscar "no mais profttndo"l07,
reacional e artificial, cuja forma arquetípica e "natural" ele Hob os e~tratos de artifícios em que a enterramos, o " homem de
apresenta. Afasta-se, pois, do esque::ma canônico de Alberti. Em- m:mpre", o "homem-padrão", essa "natureza eterna", essa "cons-
bora carregado de reminiscências tratadistas, não consegue man- tunte [. .. ] que praticamente nõo muda"108, é sem hesitaçãol09
ter-se na continuidade de um tempo abstrato. Não pode avalizar dufi nida como um corpo e dotada de um e~ taluto ontológico que
um modelo, e portanto uma escolha axiológica , a não ser intro· o próprio Rousseau nunca atribuiu a seu "homem da natureza".
duzindo um tempo real e ~:on tamlo a história de uma queda. O r·: com respeito exclusivo a essa entidade corporal é que o nrqui-
rela to fundador é substituído por um relato escatológico. toto empreende um drástico inventário das necessidades humanas
rt contra a corrente dessa escatologia, definitivamente tão de basellO.
pouco funcional quanto o primeiro painel du rd ato, que se deve Quanto a Cerdà, menos unidimensionaJlll, procura campa-
ir bus~:ar o garante efetivo do modelo: a noção de natureza hu- l ibilizar a desnaturalização que o tratadista reclama nele, com
mana. f: essa noção cheia de conotações cientificistas, carregada o habitat natural que o rousseauísta e o uLOpista exigem. Recusa
também de uma herança rousscauísta, que articula os dois pai- Inserir a natureza humana num corpo desenhado com demasiada
néis do relato cerdiano, explica a alividac..lt: original descrita no precisão. Todavia, a despeito de~sa engomadura, a natureza
primeiro e legitima o modelo apresentado pelo segundo. Por sua humana continua sendo, na Teoría, o acontecimento e o dado
ambivalência, p ermite a passagem do plano dos fatos p nra o plano origi nais que, aq mesmo tempo, esclarecem a hi stória e avaliam
dos valores, a confusõo e a nssimilação do enunciado e da norma. o modelo, arliculando um conjunto de traços utopistas e um
A natureza humana, tal como Cerdà pensa ser t:la depen- e nunciado que pretende ser científico. O trabalho dessa noção
dente de um caminho " científico" , é entendida em tennos subs- t:uprime a função de um relato de origem. Reduzido a uma en-
tancialistas, mais bem afinados e articuláveis a um texto utópico nlmosa aparência, lembrança inassimilável de uma tradição
do que· a um tratado. Que se reporte à descrição da edificayãu
que faz Alberti em seu relato de origem do Li.vro I do De re 107. Op. cit., p . 92.
aedificatoria_ Colocada como uma seqüência de operações, ela 108. Idem, pp. 93, 142, 97, 126.
constitui o que chamaríamos hoje um invarinnte cultural univer· 109. "Qual é o homem moderno? É uma entidade imutável (o
sol, imputável à natureza humana. Naturalmente, essa noção t•orpo), munida de uma consciência nova" (idem, p. 92) . Em "Le Corbu·
nlo1·'s COncept of Human Naturc" (Critique, III, The Coop~r Unlon
não aparece no lralac..lo de Alberti. Todavia, o intérprete atual Krhool of Art and Architecture, New York, 1974), mostramos com o Le
tem razão em ver na atividade edificadora, assim apreendida Uor busier, no curso de su.J. definição progressiva do homem moderno,,
em seu surgimento, uma competência cujo conteúdo é -indeter- ohoga a eludir completamente a definição da "consciência moderna",
minado. Cabe precisamente a (a na tureza de) o homem preenchê- rln(llmcnte esvaziada de todo conteúdo.
lo, ao sabor do que lhe é mais consubstanciai, sua demanda e seu no. "Retornemos ao próprio fundo da natureza. I nventariar suas
ll('Ccssidades. Conclusão: satisfazer a elas e somente a elas" (LE COR-
desejo, quer esse se manifeste no plano da comodidade ou do IItJSIER, idem, p, 151).
111. E m "Le Corbusier's Concept of Human Nature", p . 150, puse-
IIIOfi em evidência, no entanto, uma rápida e estranha passagem que !'A
106. "A cada progresso da humanidade, a urbanização ruralizadn, IIHMOmelha a um a to falho, onde Le Corbusier se entrega à fascinação
que é a únka verdadeiramente natural e adaptada ao homem, [. . . I 111\ desnaturalização e do artifício, para eKaltar "cidades onde n ada m ais
sempre per deu a lgo de precioso." A despeito da coer ência de seu pró· ••xiHtO do que era normal: o meio natural, mas onde reina uma outra
prio pensamento, Cerdõ. a crescenta: "Sua sorte é a da liberdade indi· lltl1'111a, sedutora, ntópica, sem limite, profundamente humana: o
vidua l que, à mediria que progrediam a cultura e a civilização, sofri<t "llpfrlto" <op. cit., p . 52). Curiosam·mte, a palavra "utópica" é usada
constantemente novas reduções" (Lop .• p. 170; Est., p . 758) . ltf numa das raras pas.o;agens do livro que não tenl a marca da utodirt.
288 A REGRA E O MODELO A TEORIA DO J;.TRBANISMO 289

textual bem conhecida de Cerdà, o pseudo-relato de origem da dl:S com relação aos progressos da técnica, o atestado da dupla
1'eoría revela-se tão inútil quanto o teria sido um relato heróico -:urllncia do conhecimento e do poder diante do problema urbano,
(ficção do motivo) que Cerdà não escreveu: primeiramente por· u decisão consecutiva de se consagrar ao es tudo do "urbanismo",
que ele não assumia a dimemão utópica da Teoria, em seguida 6 qu e são sucessivamente as etapas dessa pesquisa pessoal, que
porque, a seus olhos, é à ciência que cabe fundamentar o mo- düo seu plano ao livro . .E se, ocasionalmente, a biogr afia pareça
delo espacial. l11clinar-se para a contingência e, diferentemente da de Alberti ,
l:t:tler lugar ao detalhe conc reto, ao q uotidümo, sempre se trata
de melhor esclarecer a história intelectual do autor, permitindo
1.4. O Trabalho do Eu Tratadista l:Hpecificar, pela ~ata de seu nascimento, o con texto histórico de
Nun problemática e, pela natureza de seüs esludos, o campo de
Toda forma narrativa funcional não é, entretanto, excluída HUIIS competências. Ulteriormente, na seqüência do livro, Cerdà
da Teoría. As seqüências descritivas e o~ "discursos", como as Hublinha as dificuldades suscit;>das por seu projeto e a imensi-
reconstituições históricas que os sustêm, são englobados num dude da tarefa a cumprir, interrompe u ma descrição para comen-
grande relato que come((a na primeira linha do livro p ara ter- lti-Ja, colocá-la em perspectiva do ponto dt: vi~ta da situação de
minar na ültima. Relato formulado na primeira pessoa do sin- ununciaçãol13. Ele realiza, nesse pon to, uma homologia entre o
gular, levado ao pretérito, pontilh ado de shifters múltiplos q ue, !)e re aedificatoria e a Teoría _que fazem i_gualmente coincidir ns
como no De re aedificatoria, imprimem a marca do narrador HCqÜências da descoberta pessoal com as do método p roposto e
sobre tod as as enunciações da obra: trata-se, enfim, de uma for- c;om a marcação do livro.
ma tratadista autêntica que trabalha no texto e que, por sua vez, De outro lado, não somente o grande ordenador do urbano
neutraliza c converte em citações as tomadas-de-palavra dp eu se apresenta como o herói-salvador .que detém uma solução, até
utopista. Istci porque, outros~im, a primeira pessoa utopista da unt.ão procurada em vão , para o problema da ddade, ma~ tam-
fi cção da perspectiva perdeu sua função ao mesmo tempo que bém introduz em sua Advertência um tema estranho aos tratados,
desaparecia a ficção do motivo que lhe cabe engasun·. o do "sacrifício" . A constituicão da ciência ur banizadora e as
A articulação dos elementos da figura tratadista com os das -:onseqüências que daí pode tí~ar a .humanidade somente se tor·
duas outras fig uras postas em jogo na Teoría encontra seu lugar naram possíveis porque o au tor resolveu pagá-las ao preço Je
no relato do sujeito-herói de Cerdà, o construtor-escritor, autor Hua carreira, de seu r epouso, de ~ua vida particular, de sua for-
do livro. Sujeito capaz de assumir e fazer sua a palavra veredic- luna. O fato de que, em menos de uma página, o termo reapa-
tória da ciência, e ao mesmo tempo de absorver as duas perso- I'Cça quatro vezesll4 não deixa de ser significativo e traduz outra
nagens da ficção utopi sta, a do escritor-voyew· e a do herói- coisa que não os estados d'alma de um burguês do século XIX
realizador de cuja vocação mítica e salvadora ele se apropria. l'n::ute às perspectivas que lhe oferece a era da técnica. O sacri-
Por intermédio desse relato tratadis ta e dos deslizamentos l'fcio do herói lhe é imposto pela gravidade das transgressões a
permitidos pela sua articulação com um (;Onjunto de traço~ tira- que convida seus leitores, serve para conjurar a violência feita à
dos da figura da u topia, a Teoría trai, com muito maior clareza lcrra, que a Teoría axiom atiza.
que qualquer out ro tratado, aquilo cuja existência ele se arroga
a missão explícita de negar: a dimensão sagrada e o peso das o scnLi de novo a mesma Impressão. [ . .. l E r& prer.iso encontrar o ver-
proibições tradicionais que pe~am sobre a edificação. tlndciro objeto [ .. . J de minha surpresa r... :. O que atingira minha 1rna·
!{Inação, em a visão desses longos comboios carregando, nos dois sen·
De um lado, com efeito, Cerdà inicia seu livro com uma lidos L . . J populações int9iras [ .. . l" ("Ao Leitor", Lop., p. 71; E st.,
advertência ao leitor, seguida de uma apresentação, depois de ill1. 5-fi) .
um prefácio à primeira parte, no curso dos quais, exatamente 113. "Examine! entlio os catálogos de todas as bibliotecas nacionais
como Alberli uo Prólogo do De re aedificatoria; traça sua his t6 · " osLrangeiras, decidido a. reunir uma coleção de todos os livros que
lo~'l\t.nssem desse assunto . Mas qucl não fo i minha s•.1rpresa. quando cons·
ria intelectual nas relações que ela mantém com seu livro. O lillol que nada, absolutamente nada, fora escrito sobre wn tem:?. de ta.
choque provocado pela descoberta das aplicações práticas do V<l· lrlnnha importáncia." (idem, Lop., p. 7:J; Jtst., p . B).
porll~, a tomada de consciência do cará ter anacrônico d as cida- ll4. "Assim (en 18491 tomei a decisão de fazer esse sacrifício em
homenagem à idéia urbanizadora [ .. . ]. Co:lfe:;so que o sacrijício que
r11o pnreceu o mais difícil de todos L . . J foi o de minha carreira adqui·
112. "Ainda me lembro d a profunda impressão que senti quanó.o, l'lchr à custa de tantos esforços e onde eu havia depositado tantas espe·
muito jover.1 ainda, vi pela primeira vez em Barcelona, a aplicação do r'lmças. No entanto. saCTtftque!-a sem hesitar L . . J todos esses sacrt/!·
vapor às máquinas industriais L .. J Pouco tempo depois [. .. J no sul 11/o.q me parecem bem pequenos em comparação com a grandeza. do
da França r .. .., desmhri a aplicação do vapor à locomoção terrestre, olljotlvo [. .. ]" (Lop., pp. 73-74; Est., pp. 9-10) .
A 'l'EORIA DO URBANISMO 291
29U A REGRA E O MODELO

Na história dos textos instauradores, Cerdà é o primeiro a dante, a mais difundida, a mais lida da literatura urbanística
pronunciar esse termo, para nós esclarecedor atualmentellS: - tornou-se uma espécie de símbolo. Alexander, com uma de
sacrifício que não realizaram abertamente nem o arquiteto-herói suas últimas obras, Une expérience d'urbanisme démocratique11 9,
Alb.:rti, nem o herói lendário Utopo, sacrifício que proclama o representa tendências novas: manifesta uma vontade de ruptura
que as palavras calavam mas que dizia a estrutura mitizante dos pura com seus predecessores e reivindica uma diferença acerca
dois paradigmas, a violência da edificação. da qual é importante sa ber se permanece ou não cativa de uma
figura comum às teorias de urbanismo.

2. OUTRAS TEORi AS : DE SITIE A ALEXANDER


2.1. O Discurso Científico: Simulações e Realidades
A análise precetknte nos autoriia a falar de uma nova fi-
gura textual? A organização que vimos desenhar-se não apre- Todos os autores de teorias urbanísticas, com exceção de
set.ta mais a mesma clareza que as do tratado e da utopia. No Sitte, se valem, como Cerdà, de um discurso científico. Mas, na
entanto, o paradigma cerdiano nos pan::ce merecer esse nome quase totalidade dos casos, limitam-se a afirmar de maneira en·
na medida em que expõe tJm projeto instaurador e o exprime cantatória e sem prova a dentificidade do urbanismo em geral,
numa forma original: pois, outrossim, ele trunca o funcionamen- c de suas próprias propostas ein particular, e a produzir somente
to de um enunciado de intenção científica, encaLxando nele doi::; os indícios lingüísticos do que seria um discurso científico. Não
conjuntos articulados de traços, tirados das duas configu rações é, pois, de surpreender que esses textos miméticos não conte-
i nstalll·adoras. nham qualquer autocrítica, não sejam objeto de qualquer ques·
Mas essa figura, descoberta num texto sem posteridade di- lionamento epistemológico. Le Corbusier maneja de forma exem-
reta, somente assumirá significado se wnseguir organizar igual- plar esse terrorismo verbal : " Já se esboça uma doutrina arqui-
mente as outras temias do mbanismo. Não podendo produzir a tetônica. internacional, fundada na ciência e na técnica. [ ... ]
prova individual e detalhada para a totalidade destas, tomei a i\s provas de laboratório existem"l20. " Tudo é experimentado
decisão de me ater a uma amostragem restrita de textos signl· pelas ciências. Em todo o mundo há cálculos, traçados, gráficos,
fica tivos e de convocá-los a Lodos, para neles verificar a presença umostragens, prov11s"121 .
e a arti culação de traços pertencentes respectivamente a cada Com respeito a estas afirmações tão peremptórias quanto
um dos três conjuntos discriminativos que atuam na Teoría. Para gratuitas, a maneira com que Sitte, quase LUU século antes, man-
melhor descobrir desvios ou var iações, escolhi de bom grado lém seu Stiidtebau o mais perto possível de um discurso cientí-
obras escalonadas no tempo, muito d iferentes, e retive apenas fico, parece tanto mais notável quanto, paradoxalmente, em
uma por au tor. nenhum momento, ele invoca, de forma explícita, o aval da
Com algumas exceções, minha demonstração utiliza apenas ciência. Mas o rigor de seu enfoque não atraiu a atenção dos
Camillo Sittc, Le Cotbusier e C. Alexander. O primeiro se im- historiador es e dos críticos, aos olhos dos quais ele no máximo
punha porque seu Stiidtebau116 é a primeira teoria de urbanismo pode passar por um esteta dotado de bom senso e que integrou
significativa publicada depois da Teoría, à qual se opunha ao 1ilgumas verdade::; primeiras num método de concepção do am-
mesmo tempo pela repercussão considerável que conheceu ainda biente em escala reduzidal22.
em vida de seu autor e por seu enfoque, que a.Cas ta us problemas
da comodidade para situar-se unicamente ao nivel da beleza .
Le Corbusier, representado por La Ville radiausell7, me parece f'ath to social Refurm, de E. HOWARD , Londres, s wan, Sonnensche!n
dever ser incluído, em primeiro lugat·, porque i lustra a tendência & Co., 189G; Une cité i ndust r·ieUe de TONY GARNIE R, Paris, Vincent,
1017.
oposta à de Sitte, em seguida porque, embura não tenha tido 119. Op. cit., supra, p. 117, n. 132.
qualquer papel inaugural e se tenha inserido numa corrente 120. Op. cit., p. 93.
(progressista) já constituídall8, sua obro escrita - ~ mais abtJn- 121. Idem, p. 105. Cf. também as pp. 130·131, tfplcas para a 1nvo·
t•nçílo da fórmula cifrada e da experiência de laboratório, e sobr etudo
n breve introdução às ilustrações de La Ville radieuse (i dem, p. 156),
115. Cf. R. GIRARD, La Vtolence et le Sacré, Paris, Grasset, 1972. uprcsentadas como "produtos teór icos [que] permitiram fixar o próprio
116. Der Stiidtebau nach sein en künsLlerischen Grundsiitze, Viena. Jll"lncípio das coisas", e " sair do quadro da utopia" , graças à "teoria".
l fl89. 112. G. R. e c. COLLI NS, volume de notas criticas que acompanh~
117. Cf. supra, p. 275, n . 52. tl\11\ tradução do Sti:idtabau., Oity Planning aooo1·ding to Artistic 17mc1·
118. Da qual fazem parte a Cluda.d Ltneal, citada acima; Die Staclt Jl/t•.q, N~w York, 1965, P. G. R. COLLINS, "Camillo Sitte reappraJSCCl"'.
der Zulcunft, de T. PRITSCH, Leipzig, 1896; To Morrow, a Peaceful
292 A REGRA E O MODELO A TEORIA DO URBANISMO

É certo que as aparências enganam t:: qut::, ao contrário dos arte urbana , ela permite primeiramente, como na Teoría, assina-
outros teóricos do urbanismo, Sitte trata a cidade apenas numa lar a diferenca estrutural e o corte irremediável que separam ns
perspectiva estética, "do puro ponto de vista da técnica artís- cidades do p~·esente das do passado. O que as opõe é detalhado
tica"123, que passa por ser subjetiva. Opção deliberada: arqui- com método e objetividade. Porque, contrariamente ao que pre-
teto formado na lradit,;ãu dos tratados, ele assinala que o urba- tendeu a interpretação simplista dessa obra por S. G iedion e T.e
nismo nascente somente se interessa pelo segundo nível alber- Corbusier, o contraste sublinhado pelo arquiteto v~enense n~o
tiano, o da comodidade onde, como vimos, se insere efetivamente deve ser imputado unicamente à conta de uma atttudc noslal-
toda a obra de Cerdà. Sitte reconhece a importância desse nível gica. Sitte recusa-se a consumir-se em lamentações estéreis.
t:: saúda, de passagem , a contribuição dos engenheiros e de seus " Nada podemos mudar aí"127 é o leitmotiv q ue, ao longo do
métodos12!l, notadamente no domínio da higiene. Considera Cap_ X do Sttidtebau, acompanha a descrição da cidade con-
mesmo a possibilidade de abordar, em livro ulterior125, os pro- temporânea. Suas diferenças, com respeito às cidades do passado,
blemas da comrnoditu:;, act:n:a da qual algumas rápidas obser- se devem a uma mudança de cultura12B, a uma ~ransformação
vações126 do Stácltebau mostram que estava perfeitamente infor- irreversível das mentalid ades.
mado. Mas a primeira urgência, a seus olhos, é fazer que a nova Ademais, somente a histól"ia permite dar sentido, e sobre-
disciplina integre o registro supremo do prazer e da beleza, que tudo um fundamento objetivo, aos diferentes princípios de orga-
ela não soube reconhect::r. nização t:m ação nas dezenas de conjtJntos urbanos que Sitte
O Stiidtebau arroga-se, portanto, o objetivo de descobrir as nnalisa e cujas plantas e efeitos em perspectiva ele comp ara_
leis da construção do belo objeto urbano. Para Sitte, a questão Duas tendências, às vezes con traditórias, orientam suo pes-
é definir as estruturas específicas q ue conferem a uma paisagem quisa. De um lado, ele insiste em precisar a especificidade res-
com;truída tridimensional suas qualidades visuais e cenestésicas. pectiva dos espaços antigo, medieval, renascente, barroco e con-
A diacronia é a dimensão obrigatória da análise: somente com- temporâneo. E, a fim de designar o que faz a originalidade de
parando sistematicamente conjuntos urbanos de 6pucas diferentes cada uma dessas estruturas espaciais, utiliza o conceito de
é que será possível fazer snrgir constantes e variáveis. künstlerische GrundideeJ29 ("idéia artistica de base"). De outro
A história é tão consubstanciai para o Stiidtebau quanto o lado sob a sucessão dos diferentes tipos de paisagens urbanas
era para a T eoría. Sob a espécie de uma história morfológica da (Stadtbilde) que balizam a história estética das cidades, ele pro-
cura além disso descobrir estruturas constantes. O invariante,
comunicação inédita à Pirst International Conference on the History ot que 'deve permitlr a fonnulação dos princípio~ e d~ leis univ~r­
Urban Planninu, Londres, 1977. sais utilizáveis para a elaboração do constrUido, situa-se entao
123. S.. p. 2; W., pp. 4-5. Nnsf:as referências e citações remetem de no domínio da psicologia. Assim, o "senso artístico n.ão ~ons­
um lado à décima-se!{unda edição em lfngua alemã CViena, 1972), publi-
cada pelo Institut für Stãdtebau, Ramnphmung und Raumordnung, ciente e natural"130 qu e, desde o início dos tempos h1stóncos,
Technische Hoschschule, sob a direção do professor R. Wur~er. Acom- organizou os espaços urbanos, é para Sitte, determ~~d? ao mes-
panhada de uma introdução de R. Wurzer, essa edição retollll'l. em fac- mo tempo pelas normas cambiantes das culturas l11Stoncas e por
símile a terceira edição revif:ta por Sitte 0903 ) e oferece igualmente
uma organização psíquica estável. Sensível à crise dus. valores
o fac-símile de seu manuscrito original. De outro lado, à r er.P.nte e r:xce-
lentc trndução publicada com o título de L 'Art de bulir les vtlles, estéticos da sociedade industrial, ele a constata e a anahsa, sem
L'Urbanisme et ses tondemcnts artistiques (Paris, L'Equerre et Vincent, cair na armadilha que levou os neogoticistas ingleses a querer
19HO), por D. Wieczorek. Os dois textos são designados, respectivamente, fazer reviver mentalidades e formas doravante privadas de sig-
pelas letras s e W. Aproveitamos o P.nsejo para agradecer a D. Wieczo- nificado_ Mas essa constatação não leva Sitte, por isso, a dar
rek a contribuição que deu à nossa Interpretação do enfoque de Sitte
durante nossas discussões sobre sua tese de terceiro ciclo, C. Sílte et prioridade às leis da percepção estética que descobre em açã~,
les Débuts de l 'urbanisme moderno (inédito)_ permanentemente, sob a diversidade das estruturas culturais
124. "Seria preciso estar na mais completa cegueira para não re- específicas. Stiidtebau deve ser recolocado nesse conlexto vie-
conhecer as conquistas grandiosas do urbanismo m oderno no campo da
higiene. Aí nossos engenheiros realizaram verdadeiros milagres L . . J"
(S., p. 117; W. , p. 119; cf. também S., PP- 2, 83, 90; W. , pp. 2, 22, 85). 1?.7. "Wir konnen es ni.cht andem" (S., p . 12; W., p. 14). Sitte in-
125. Sitte projcto.vo uma segunda parte de sua obra, à qual ter.ia cUca que "se deve aceitar essas t ransformações como torças dadas c
dado o titulo de Der Stiidtebau nach seinen •wirtschaftlichen 1tnd sozra- lquel o urbanista deverá levâ·las em conta, assim como o a r quiteto lcvn
len Grunàstitze (0 Urbanismo e seus fundamentos económicos e sociaisl. <'rn conta e. resistência dos materiais" (S., p. ll!l; W ., p. 116)- W grifo
t1 nosso.l
126. Particularmenle, sobre a questão da habitação (S., 108; Vl., 109)
e sobre o problema fundiário (S., 110, 114, 135-139; 'W., 111, 117, 139· 128_ S. , p . 118. W., p. 120.
143). 129. S., p. 118;- W., p . 118.
130. S., p . 22; W. , p. 23.
A TEORIA DO URBANISMO 295
294 A REGRA E O MODEW

nense onde, pela primeira vez, no curso do último quartel do trata~o com ~es~nvoltura, como uma totalidade homogênea, mas
século XIX, foi formulada a hipótese de uma ciência da arte tam.bem o propno presente não pode, por i sso mesmo, ser apre·
(Kunstwissenschajt). A "idéia artística de base" de Sittc parti- cndtdo em sua espessura: de somente é captado através de seus
aspectos mais superficiais. No segundo caso, entre os teóricos
cipa da mesma problemática que o Kunstwollen de Riegi131.
Quanto a suas organizações espaciais invariantes, elas remetem culturalistas, apegados à tradição, é, ao contrário, a epecifici-
às pesquisas de Fechner132, e sobretudo aos trabalhos de Ehren- dade das problemáticas contemporâneas que é ignorada.
fels13~ e à psicologia da forma, então em gestação.
Alexander não evita esse último erro ao qual, no entanto,
não estão condenados os culturalistas: sem retornar ao enfoque
É permitido pensar que, explorando ao mesmo tempo esses
de Sitte, pode-se mencionar o uso que faz P. Gedde~134 de uma
dois caminhos, Sitte designa dois eixos complementares até
então geralmente dissociados em proveito exclusivo um do ~utru,
história dos açontecimentos, localizada, que permite ao urbanista
compreender a especificidade de cada caso estudado, reviver e,
que toda ciência Ja arte futura deverá investir e apropriar-se pa-
ralelamente. Assim, não só Sitte se comporta como científico,
em termos bergsonianos, prolongar o impulso criador que moldou
em cada cidade uma face igual a nenhuma outra. Alexander, ao
mas também, em seu domínio próprio, o da arte urbana, ele dá
contrário, pede à história que lhe revele leis gerais, aplicáveis
sua participação a uma disciplina em curso de elaboração, a
ciência da arte. a todos os casos e referentes essencialmente às relações entre os
realizadores e os usuários do espaço edificado. Mas, em lugar
Três quartos de século mais tarde, C. Alexander pretende de se servir dessa estrutura para marcar a história da urbanização
~m fases originais e irredutíveis, apagando suas modulações assim
ser o epistemólogo do urbanismo . Censurando seus predeces-
sores por terem deixado sua crítica derivar inteiramente para o como as diferenças culturais e epistêmicas correlativas, ele a uti·
espaço urbano, em detrimento das diligências que presidem sua liza para contrapor brutalmente dois procedimentos: o do diálogo
edificação, ele tenta peneirar seus métodos de concepção e de (participação), desenvolvido há milênios135, e o do monólogo
produção do quadro construído. Inaugurada pelas Notas sobre a tccnocrático, característico da sociedade industrial.
Síntese da Forma, essa crítica, continuada em Uma Experiência Quanto às leis relativas à produção do objeto urbano (e não
de Urbanismo Democrático, é, para Alexander, a condição pré.via mais a seus produtores), Alexander pretende descobri-las com o
para a formulação Je toda a teoria. A sua é construída, em segui· uuxílio de instrumentos tirados das ciências da vida. Ao contrá·
da, com a ajuda de métodos e de conceitos tirados essencialmente rio de autores çomo Lc Corbusier, ele tomou cuidado de infor-
de duas disciplinas, a história e a biologia, que, desde Cerdà, con- mar-se sobre as p esquisas contemporâneas em matéria de biolo·
tinuaram a reinar, de maneira mais ou menos superficial e/ou cia. Vê-se assim dotado de um conhecimento muito mais elabo·
formal, sobre o discurso veredictório das teorias de urbanismo. rado que aquele que a ciência de sua época oferecia a Cerdà.
Com efeito, seria preferível falar de dimensão histórica, em Conhece a cibernética, é informado do andamento da biologia
vez de história, para qualificar essa intervenção necessária e molecular e das contribuições que lhe trouxe a lingüística cstru·
muitas vezes derrisória da temporalidade que, conforme seja con- lural. Utiliza as noções de sistema (vivo), de crescimento, de
vocada por uma biologia progressista ou culturalista, incide sobre controle e BS transpõe para o objeto urbano cujos princípios de
o presente e o passado imediato ou sobre o passado pré-indus· "desenvolvimento orgânico" , de "crescimento fragmentado" ele
trial. No primeiro caso, em que se trata de fazer surgirem as nnuncia. Entretanto, Alcxander continua a atacar o problema da
carências do presente e a necessidade de uma transformação radi· cidade-artefato. Trata o urbano alternativamente como um orga·
cal do quadro construído contemporâneo, não só o passado é nismo136 e como uma linguagem, e essa atitude ambivalente o
impede de empregar com rigor qualquer uma dessas duas ana·

131. Cf. E . PANOFSKY, La Perspective comme forme symbolique, 134. Cities tn Evolution, Londres, Williams and Norgate, 1915.
"o conceito de Kunstwollen", pp. 197 e ss., e A. RIEGL, Grammaire hi s- 135. "A história recente da arqUitetura e da organização urbana en·
tori que des arts plastiques (tradução de E . Kallfholz do texto Histor is· IC<'ndrou a falsa impressão de que somente os arquitetos e os urbanistas
che Grammattk des bt!denden Ktlnste); Paris, Kllncksleck, 1978. Nno capazes de organizar o espaço construído. O testemunho de dois
132. G. T . FECHNER, Vorschule der Aestheti k, Leipzig, Breitkopf nu três milênios prova exatamente o contrário". <Une expérience d'urba
und m trtel, 1876. 11/sme démocratique, p . nl; cf. tam bém p . 147).
133. Cf. VON EHRENFELS, "Uber Gestaltqualitliten", Vierteljahres· 136. Idem, pp. 138 e 139. A propósito da transferência para o cam·
schri tt filr wissenschattliche Phi/osophie, XIV, 3, 1890. Sobre as relações ! Kl urbano da noção de controle, que especifica os seres vivos, indica
do Stadt ebau com essas obras e as de outros autores como Fiedler e Aloxnnder: "Trata-se de adotar uma solução quase perfeitamente idên·
Wõlfflin, cf. D. WIECZOREK, Sitte et les Deõuts de l'urbanisme moder· tlr u !l. que adota a nature1.a no caso dos Orflanlsntos " ívos"
ne, Cap. II, exC1tTS11$ .
296 A REGRA E O MODELO A TEORIA DO URBANISMO 2!17

logiasl37, inspira-lhe o uso da metáfora médica e o leva final- Daí, é apenas uin passo, transposto facilmenre, para transferir o
mente a deslizar dos enunciados de fatos para proposições tera- conc~::ito de saúde ao próprio ambiente. O autor fala de espaços
pêuticas. vivos ou mortos, sadios ou nãol42 e exige que o espaço cons-
truído seja submetido, em intervalos regulares, a um diagnóstico,
devidamente formalizado.
2.2. Predominância das Marcas da Utopia O fato de ter limitado seu propósito ao nível da estética
ajudou Sitte a não cDir diretamente nas armadill1as da medicali·
De fato, como veremos, nenhuma teoria de urbanismo es- zação, mas nem por isso o garantiu contra uma deriva para o
capa a esse deslizamento que, graças a analogias médicas, e pela normativo e a axiologia dualista que leva à imagem especular
anexação de valores duais de normal e patológico, de saúde e utopiana. Porque, no mesmo tempo em que o arquiteto vienense
doença, articula um discurso de intenção científica, e às vezes descreve as regras de criação do belo objelo urbano, não pode
mesmo verdadeiros enunciados científicos, com um conjunto de conter-se em apreciá-lo: a narina gnoseológica da Kunstwissens-
traços utopistas. chajt é então confundida com a norma axiológica da estética.
A utilização utopista da metáfora médica é tanto mais fre- Assiste-se à mesma confusão das relações que na Teoría. Mas,
qüente e insistente quanto o autor está mais afa:stado de um ver- no Stáâtebau, é o artista e não o médico que substitui o homem
dadeiro caminho científico. Le Corbusier denuncia um "mundo ele ciência, a cidade feia e a bela ci9ade é que substituem a ci-
doente", "uma cidade [Paris] crispada que se torna impotente ... dade doente e a cidade sadia. Todavia, o õlho médico se intro-
[sem] cirurgião para operar. Nem mesmo diagnóstico"; afirma: duz sub-repticiamente no texto por intermédio da pskologia que,
"Todas as cidades do mtmdo estão doentes", e no entanto "é em Sitte, desempenha o papel que tem a biologia nos outros teó-
possível um diagnóstico:. sabe-se onde, como, com que se deve ricos e sobre a qual repousa a parte naturalista ou "gestaltista"
agir"138. Essa imagística, no entanto, não é apanágio dos urba- ele sua estética. Sitte atribui a "boa forma", isto é, a beleza na-
nistas progre:ssistas: F. L. Wright, cujo organici:smo leva em pri- tural das cidades antigas, a um in~tinto de arte (Kunsttrieb143)
meiro lugar ao mundo da cultura139 e a uma filosofia naturalista cuja degradação ou mesmo desaparecimento é revelado peia mor-
muito mais que à patologia, compara as cidades contemporâneas fologia das cidades modernas: em tais condições, a beleza (ur-
a uma tumefação cancerosa que se deve curar progres~ivamente, bana) se torna uma forma natural, e ~ua ausência uma anomalia.
e afirma que "toda seção de qualquer plano de grande cidade" o efeito de uma perversão, de uma doença mentall44.
evoca "o corte de um tumor canceroso"l40, Vemos que, quaisquer que sejam a fo1ma, o teor e a impor-
A força de atração da figura utópica é tal que, apesar das lllncia do discurso científico efetivamente emitido pelo autor de
precauções epistemológicas e da extensão de seus conhecimenlos uma teoria de urbanismo, a articulação desse discurso com uma
científicos, Alexander é levadol41, como vimos, às mesmas trans- figura utópica sempre é operada pelo encaixe de um enunciado
posições. Colocar-se como libertador dos usuários graças a prin- de fatos num juízo de valor; ela passa a cada vez pelo local em
cípios (pailerns) que têm por objeto permitir-lhes exprimir seus que uma crítica utópica pod~ introduzir-se no h1gar de uma cer-
desejos no processo de elaboração do quadro construído não o Lidão objetiva e gerar a estrutura especular da utopia. E é então,
impede de impo1· a esses desejos certas norm!ls de salubridade. a cada vez, a oposição in:edutível de duas imagens antagônicas,
encadeadas pela mesma relação que, para o urbanista, exclui a
137. Cf. especialmente tt.> d!f:culdadesque encontra para propon:io- possibilidade de soluções intermediárias. L. Corbusier exige que
nar um status lingüístico a seus patterns. Sobre as antinomias que en- se faça a "toalha branca"145, e F. L. Wright pede a " eliminacão
frenta o ana1ogismo vitalis~a. cf. também, por exemplo, o texto produ- r·adical"l46 do quadro construído atual. Alexandct', que no ~n­
zido por ocasião da concepção da cidade nova do Vaudreuil CCah.iers tnnto denuncia com pertinência a ideologia da edificação ex
de l'IAURP, numéro spéciel s11.r LP. <'mldreuil. primavera de 1971). Seus
redatores u!tllzam ao mesmo tempo a noção de ger:r.e de cidade, de nihilo e da tabula rasa, coloca contudo seu leitor frente a uma
conotação embriológica, e os métodos de produções ótirr.as de um ob- escolha sem alternativa entre uma solução verdadeira e uma so-
jeto técnico, tirados da teoria do design.
13S. La Vi!le radieuse, PP- 99, 101, 102. 142. Idem, pp. 102, 144, e ss.
139. Seu conceito-r.ha.ve de arquitetura e de ambiente orgânicos
143. S., p. 23; W ., p, 25.
provem diretamente do p er:samento de Carlyle e dos historiadores ro-
mânticos. Além de seu valor ético, o orgânico em Wright é, desde logo, 144. "l!l uma doença formal em moda esta mania de liberar tudo"
(S., P- 34; W., p. 32). [Q grifo é nosso.)
estético. 145. Op. cit., p . 97.
140. Th e Livino City. New Yor~. Horizon Press, 1958, pp. 61 e 31. 146. ldem, p. 221.
141. Op. cit., p . !J3.
298 A REGRA E O MODELO A TEORIA DO URBANISMO 2llfl

lução falsa, entre seu sistema de patterns e o uso convencional •ttuln to a uma crítica multidimensional e a um proje to correia·
de esquemas di retivos:47. rl vo de sociedade: apesar das ligações que Tony Garnier man-
Esses traços comuns não significam que se precise negar os rlnltu com a multiplicic.laue:: rac.lical c.lt: L yon, ~ua Cidade Indus-
desvios que separam as diferentes teorias urbanísticas. Conforme ll'lnl corri ge defeitos essencialmente físicos e só responde a alguns
os autores, vemos variarem consideravelmente as proporções relati- ohjcl ivos elementares relativos à higiene e ao rendimento dos
va:; da descrição "científica" e da crítica, a riqueza e a precisão do llfl~11 l cs sociais. Caso excepcional, explicável por um engajamento
modelo espacial, o papel desempenhado pelo operador mitizantc. polltico anterior, Ebenezer Howard é um dos únicos teóricos
do urbanismo cujo modelo espacial se destina a instaurar, difun-
dir c f azer fu ncionar um verdadeiro modelo de sociedade .
Le Corbu~ü:r é, sem dúvida, o autor em quem a figura da Ot tnnlo ao resto, enquan to modelo social, Garden-City é compa·
u topia encontrou sua ancoragem mais sólida. A imagem clínica, t·~vcl à Cidade Industrial, como à Broadacre-City de F. L. Wright
sistemática e complacente, revelada por fo tografias ou desenhos, ou n Mesa-City de P. Soleri153. A exemplo da Cidade Radiosa,
diz respeito essencialmen te ao~ traw~ físico~ da ddadt: wntem- ludos esses estabelecimentos são objeto de descrições meticulo·
porânea. Apesar de certas fórmulas' enfáticas, procura-se em vão, tll tH, cifradas, ainda mais acreditáveis pela ilustração figuradal54
na \lilie radieuse (ou alguma outra obra do mesmo arquiteto), t' lmbalhadas pelo presente da u topia acompanhado de seus
uma visão global da sociedadel48. Correlativamente, o modelo .vltijlers: na Broadacrc-City, circula·sc "em zonas cultivadas ou
espacial absorve a imagem-modelo. Elaborada minuciosamente, hubitadas que se tornaram encantadoras com um tratamento pai ·
ilustrada por esquemas, ela usa, como ArÍ:laurota, um nome pró- rtrtgfstico, liberadas dos horríveis postes telefônicos ou telegrá·
prio, Cidade Radiosa. Essa é dotada da mesma presença que a (kos, como fios elétricos, desembaraçadas dos painéis· publici·
cidade de Moru~: "Na cidade, o pedestre jamais· encontra wn Jfl l'ios muito vivos [. . . ] , [onde] as rodas-gigantes são agora
veículo [. .. J, o solo inteiro pertence ao pedestre. [ ... ] O es- 1\1'11 nde arquitetura, [onde l as estações-serviço não são muis
porte, múltiplq, está ao pé das casas, no meio dos parques. ( ... 1 ofensas para os olhos e propõem ao viajante todas as espécies
A cidade é inteiramente verde. [ ... ] Nenhum quarto de habi- dr mercadorias [ ... ], [onde se sucedem} sem fim, séries de
tação é sem so["l49, "os caminhões pesados rodam nas auto-estra- ll trid11des diversificada:;, faz:enuas, mercados de es trada, esco1as·
das150. A Cidade Radiosa é de súbito mais real que Paris de quem jn r·dins [ . .. ] cada uma em seu próprio terreno [ . .. )"155.
é a imagem invertidal51. Melhor ainda, tem, como Amaurota,
um estatuto de pharmakon. Le Corbusier acusa essa caracterís-
tica sobrenatural quando declara que, com seus "arranjos algo Em Sitte, esses ·traços utópicos têm uma presença mais dis-
mágicos e milagrosos", ele apresenta "uma rede mégica"l 52, I' I'Ci n.Por certo, ele falo, com toda ingenuidade, da natureza
Encontram-se os mesmos traços·, mab ou menos acentuados. tr1 6pica de sua crítica quando sublinha seu valor posidvo156 e
tanto entre os urbanistas progressist:Js, como entre os cultura- l11d ica que sua fi nalidade é "a versão de todas as nossas normas
listas. De um lado e de outro, consta ta-se a mesma indigência Ide Ol'ganizaçãol em seu contrário exato" (u m "die 'Verkenmg
ti /IN gegenwà'rtig iiblichen Normen in ihr gerndes Gegentheil"l57) .
1(111 rctanto, embora a cidade do passado seja contraposta à cidade
147. Idem. p. 16.
148. Aliás, por isso é que Le Curbusier pôde propor sues soluçOes J53. Archeology, Cambriuge, Ma~s., MIT Press, 1969.
de salvamento aos soviéticos nos anos trinta. ao Marechal Pétain depois
do armistício de 1940, e ao ~overno do General de Go.ullc depois do. 151. Broadacre-City é desenhada em plano e em elevação, com es·
Libertação. i'itlnH variadas. Wright mandou construir uma maquette gigante de
I ~M I?. pés.
149. Op. cit .. pp. 93·94; cf. também o mesmo tema do pedestre p .
103: " Nunca u pedestre encontra um carro, nunca". [Q grtjo é nosso.J 1fl5. The Living Ctty, pp. llô-1111. ro grifo é nosso.l Em sue des·
~~rl(.'l\o de Broadacre, Wt·ight não sucumbi:! LotalmenLe, entretanto, à m i·
150. Idem, p. 133. Cf. também p. 113: "O habitante que possui um
automôvel encontra-o estacionado ao pé de seu elevador. Aquele quo tllf(mn do presente utôpico. Emprega muitas vezes o condicional ou o
deseja um táxi nunca percorre mais de cem metros 1... J as r'.las da ruiiii'O, restabelece por vezes a d istância da f icção mediante o imperativo
cidade são reduzidas de uma maneira su:-preendente r . .. l Pela porta de " httuff lnem", ou ainda faz preceder o quedro de um "vejo".
uma casa erztram 2.700 pessoas L . .J" etc., aul às pp. 117, la4·126, 131- lfi!l. ")lão temos a intenção [ . .. J de entoar mais uma vez lamen·
:32. [O grif o é t!OSSO.J I JI!;I'I CH sobre u tédio , já proverbial, das cidades modernas I. . . l Um tal
151. "Vocês cstõ.o no jardim de Luxem'oourg: na rue d'Assas pas· '"'rnquc, puramente negrztivo, deve ser a:oo.ndona do a essas criticas que
tin o 1:0 satisfazem cor.1 nada" (S ., p. 2; W., p. 4) . 10 gri jo é nosso.]
sa m caminhões I . .. J Isso não os incomoda [ ... l O solo inteiro da Ci·
dos rodam, pols, sob as auto·estradas [ ... l" <tbicl., p. 125) . !57. S, p .' 145; ·.v., p. 147. Ne m esma páglna, Sitte especifica ainda
111111 o "b lm:o moderno" oferece o "contrá rio exato" do que exige a
dade Radioso. é como esse jardim de Lu:xembourg. Os caminhões pesa·
152. Op. cit., pp. g3 e 153. 11111'/IJ)OCI'iva natural.
300 A REGRA E O MODELO
A TEORIA DO URBANISMO ~01

moderna, como seu outro e como um modelo, ela não é apreen-


ull's não têm todos o mesmo estatuto operatório e se revelam ora
dida enquanto objeto único e totalitário. Mais exatamente, a pri-
vndudciras regras, ora modelos autênticos, ilustrando assim a
meira metade do livro apresenta apenas cidades ou conjuntos
n 11 Jbi~i.iidade s<::mântica de sua designação159. A influência da
antigos a que Sitte opõe a cidade moderna. A cidade antiga,
\'ri iJ'Ulura utópica sobre os patterns de Alexander, além disso, é
como entidade, somente aparece na segunda parte, onde Sitte
Jlltl l'Cada por sua fonnulação no presente do indicativ0: preseme
procede a uma crítica aprofundada da cidade moderna que, por
ull! pico agressivo, que não pretende deixar dúvidas nem sobre
sua vez, rebenta em casos diversos e fragmentos urbanos. Assim,
Nlln "verdade" nem sobre a realidade de seu funcionamento.
a cidade-modelo utópica é uma abstração de contornos relativa-
O fato de ter exigido um apoio mais considerável à tradi-
mente esmaecidos, ao passo que a diversidade dos conjuntos ur-
~· no dos tratados de arquitetura não permitiu nem a Sitte nem a
banos antigos analisados e o cuidado com que Sitte estabelece
Alcxa nder que fizessem, mais que Cerd~. atua r princípios na
seus levantamt:ntos, no mais das vezes in situ, assinalam um en-
couslrução de seus textos respectivos. Princípios . de edificação,
foque cien tífico, animado pela vontade de provar a coincidência
que procuraríamos em vão nas teorias progressistas de urbanis-
dos fa tos e da teoria.
JJJOlGO, são realmente formulados nas duas obras, mas não têm
Essa discrição dos traços utópicos no Stiidtebau tem como
11( qualquer função, sua localização e sua ordem são comandadas
correlativo a supressão de algumas marcas lingüísticas: com ex-
pclu oposição especular que estrutura de igual maneira os dois
ceção de alguns pronomes (primeira pessoa do plural) e alguns
lcKlOS.
shijters, o enunciador está quase ausente da descrição da cidade-
modelo; essa não possui nome próprio; o presente do indicativo
que a revelal58 não é unívoco e serve mais freqüentemente à Já vimos que G:erdà, na Teoría, construiu um relato de ori-
análise morfológica do teórico da arte urbana do que garante J!l' lll que não mais funciona. Com o tempo, esse elemento funda·
o testemunho do viajante utopista. 111011tal da figura dos tratados, muito freqüentemente, foi esque·
l'ldo pelos autores de teorias de urbanismo. No entanto, merecem
2.3. De Falsos Traços .4lbertir:mos JIL'r citados dois relatos de alcance d ifer~nte. Um deles se asse-
lllclha a uma paródia. Acolhendo sem evasivas a lógica da
Sitte não só reabilitou o r egistro da beleza que os tratadis- ulopia, ele revela uma espécie de épura do esquema cerdiano.
tas convertiam no fim e no coroament o da edificação. Sua aná- 1\m compensação, o outro constitui uma transformação do para-
lise científica dos belos oonjuntos urbanm do passado tem por cllgma de Alberti e torna-se um operador original do texto.
objeto extrair os princípios instauradores utilizados. Ao contrá- O primeiro relato é encontrado no início de The Living
rio de um W. Morris, por exemplo, ele propõe efetivamente ( '/tyl Gl . Para Wright, a origem da edificação é dual. Deve ser
verdadeiras regras relativas ao fechamento, à diversificação, à 1111'1 hufda aos dois ramos de uma pré-humanidade ainda simiesca,
ornamentaçiio dos espaços urbanos. No· entanto, essas regras, clus quais uma, sedentária, se abrigava em buracos, e a outra,
muito mais precisas que as de Cerdà, não servem mais para es- JJI\macle, vivia nas árvores. A primeira deu origem aos h omens
truturar o texto. Como na Teoría, elas são tornadas na grande du~ t:~Jve rn as que criaram seus filhos " na sombra do muro"
estru tura binária da u topia: às boas regras que o estudo do pas- (''in the shadow of the wall") . D evem-se-lhes todas as formas
sado permite descobrir opõem-se llS más regras atualmente em dL· conservantismo, c particularmente a urbanização que de~em·
vigor. lna:ou nás cidades do século XX, afogadas na sombra dos
Embora afi rme combater a modelização em sua crítica aos III'J'On ha-céus. Do segundo ramo provieram aventureiros que vi-
esquemas diretores e outros procedimentos do urbanismo reinan-
te; embora pretenda substituir este enfoqm: "totalitarista" por lfi9. Une expérience [. . . J, p. 14, nota. do trodutor, c p. 97. A mode·
IIVJLOito dos prin~fp!os, em Alexander, surge de maneira particularmente
um "processo" baseauo num sistema de po.ttern.s, d efinido~ como nllu·u na contribuição que dev a uma pesquisa realizada pnr nós mesmos
as regras de· uma espécie de linguagem, Alexander, muito mais 11oili'O a producão da habitação social. No capíLulo que :·edigiu, Alexandex
do que Sitte, sofre a influência insidiosa da figura da utopia. t'iliO<'fl em evidência dezessete "princípios errôneos" que, no seu enten·
tl tll ', l'Cvestem atualmente a produção da morada social na França. A
Seus pattems se apresentam como "contra-rt:gras", são deduzi- 1•1mn H ele opõe dP.?:essete princípios "verdadeiros", que são os únicos a
uos, por inversão, de práticas metodológicas errôneas. Ademais, JIC I!Iur operar uma conversão CLO!lemen: social et M odéltsatton, de la PO·
111/tru c des modeles à la participation, citado acima, Cap. 1).
158. A cidade do passado, às vezes, é simpiesmente colocada em 100. Sobre Le Corbusier e a tradição tratadista, cf. acima, p. ?.87,
situação histólica. Entã.o, é evocnda., com os· tempos do distnntc. 11 . 11 J.
lfl l . Cf. pp. 21 A SS.
302 A REGRA E O MODELO f\ TEORIA DO URBANISMO

veram em ten dail e crial'am seus filhos "sob a abóbada das es- v~: lc a estr utura de uma edificação não original mas natural. En1
trelas": foram os primeiros pioneiros da democracia, os ances- 11111u página antecipadoral65, ignorada por seus historiógrafos c
trais da primitiva Usônia que prcfigura c anuncia Broadacrc· Nt:us críticos, ele descreve a atividade das çríanças que, no in·
City. Se o m odelo da Usônia requer uma comparação com a vemo, para erguer seus bonecos de neve na praça central de sua
"urbanização ntralizada" de Cerdà, a dupliddade do esquemH t·idacle ou aldeia, adotam exatamente a mesma disposição lateral
primitivo de Wright o opõe, com maior evidência do que o de que os romanos da Antigu idade ou os artis tas medievais para
Ccrdà, ao esquema tratadista. Desde logo, o relato poético de 1~ l l uar as esculturas ou monumentos diversos com que ornavam

Wright é colocado sob o signo de uma axiologia que revela sua tlcus fóruns c suas praças.
não-pettinência à figura de uma tratado : desde a noite dos tem- Trata-se realmente de um relato, inLroduzido brutalmen te
pos existem a boa c a má edificação, ainda hoje imputáveis a por um pretérito: "Como foi adotada essa implantação?" O pre-
um inslÍnto natural ou à sua perversão. Hcnte que se segue é um presente narrativo. A criança constru-
O segundo relato se encontra, muito bem dissimulado, no tora que encarna a humanidade em sua virgindade, totalmente
Stiidtebau. Destina-se a fundamentar a nocão de cidade natura l entregue a seu instinto de arte, associa com seu comportam~.:nio
e. o arquim.odelo q_ue dele propõe Sitte. Porque, para Sitte, as um jogo e um arranjo artístico. A estrutura que ela põe em ação
c~dad~ ant1gas, :seJam elas consid eradas no singular enquanto permite dar fundamento naturaJ165 a duas disciplinas em instau-
tlpo 1deal ou no plural enquanto casos particulares, são cidade~ ração, uma ciência da arte como fo rma cultural simbólica e uma
naturais162, conforme às exigências da natureza humana. Ele de- psicologia da forma. Assim, o relato ·de Sitte antecipa uma trans-
fine seu arquimodelo, comparável a o mesmo tempo à "urbani· rormação futura do antigo relato de origem tratadista e sua
zação ruralizada" de Cerdà e à legendária Usônia de Wright. upropriação pelo discun;o cien tífico que, não mais se aquarte·
Por metonímia, concluindo da parte para o todo é o fóntm ro- lundo no nível da estética, exuma, dos mais antigos sítios pré·
mano un· que c1c dcs1gna
. . como a estrutura' ongmal
ass1m . . sobre históricos, a casa e o estabelecimento dos primeiros hominídeos.
a qual se baseia u modelo - as regras estéticas de edificacão !\demais, apelando a um herói-criança, induz uma moralização
- não só da praça (medieval, renascentista ou bnrroca), b'cm de seu rel ato que pode tornar-se um operador do Stãdtebau e
como da cidade antiga. Pois, mesmo que o fórum pertença a contribuir para aí articular discurso científico e traços utópicos.
tempos menos longínquos que a pré-história onde se situa o
"urbanismo ruralizado", sua escolha é ditada pela mesma busc11 2.4. Variantes do Eu Tratadista
de pureza. ~ privilegiado, entre as formas urbanas históricas
conhecidas do autorl64, porque é a mais longínqua, e portanto O próprio Sitte, que poderíamos julgar o herdeiro dos auto·
a que, com relação ao primeiro modelo fornecido pela natureza, rcs de tratados de arquitetura, não foi mais adiante que Cerdà
menos alteração e perversões apresentará.
No entanto , ao contrário de Cerdà e de Wright, Sitte não 165. "€ digno de nota que, quando brincam, as crianças dão livre
pr.ocu.ruu relacionar esse · arquimodelo histórico à atividade dos nurso a seus instintos artísticos inatos, em seus desenhos e modelagens,
pr~n:'e1ros homens. Não tentou reconstituir seus primeiros gestos o que produzem sempre se assemelha à arte ainda rude dos povos pri·
milivos. A mesma observação se impõe quanto à maneira de dispoi
ed1ftcadores ou seus primeiros estabelecimentos. Deixando de monumentos. A brincadein, tão apreciada no inverno, dos bonecos de
lado as reminiscências tratadistas e renunciando aos relatos ele nove permite traçar esse paralelo. Os bonecos se erguem em locais pre·
origem sem função, é à psicologia infantil que ele pede que re- CJisos, onde, em outras circunstâncias, o método dos antigos deixaria
w•perar monumentos e fontes. Como essa implantação foi adotada (Wie
Jnnn nun di e Aufstellung ;w.~tande) ? Muito simples: imagine-se a praça
162 . .~obre a "cidade natural" em Marx, cf. acima, Cap. 1, p. 71. rlt•simpedida de uma. aldeia provinciana., coberta de neve espessa e, aqui
.· 1,~3:O fóntm é para a cidade o q"l!~ é o átrio para a casa: a· peça u (lli, os diferentes caminhos que traçaram transeuntes e veículos. São
pumapal ordenada com cmdado e mob!11ad2 ricamente." (S., p. 10; w.. ORsns as vias de comunicação naturais criadas pelo tráfego, e entre as
P- 6). P~de-se p~nsa~ que a metáfora do coração e as homologias cidade· (JIIIlis subsistem partes irregular mente disLl"i!Juídas e não perturbadas
;~s~ ;~rum-átrl0 sao uma lembrança do De ·re aedificatoria (cf. infra.
02
polo tráfico. É nesses !ceais que se erguem nossos bonecos de neve,
porque somente aí se encontrou a indispensável neve virgem" (S., pp.
Sitte, logicamente. deveria ter tomado como paradigmas tipo.~
IA4. ?.3-24; W., pp. 22-23 ). [O grifo é nosso. J No que di?: respeito à frase ci·
de Pr.aças anteriores ao rto fórum, mesmo que fosse a ágora que ele• I ncln P.m alemão, modificamos a tradução de D . Wieczorek ("como ex·
tambem descreve. A. preferência que concede ao fórum se explica por 11llcar essa implantação") que não explica o pretérito.
seu conhccm1ento du·eto do3 lugares romanos (ele só visitou a Grécia 166. Sobre o. problemática do. natureza humana, cf. L 'Unité de
depois da publicação de Der Stiidtebau) e por influência do De archi /"homme, invariants biologiques et universaux culturels, Paris, Seuil.
l ectum.. 11m.
A REGRA E O MODELO A 'l'EORTA DO URBANISMO 30fi

na apropriação dos traços do paradigma albertiano. A tomada- Sob es tas diversas modalidades, modesto ou triunfante, o
-de-palavra pelo herói construtor continua sendo u único ele- ou elo autor-construtor afirma nas entrelinhas que a ciência não
mento da figura do tratado que tem função nas teorias de urba- ~ a única que se acho em questão nestes textos. Ele assinala a
nismo. Mas, ainda uma vez, segundo modalidades variáveis. ungÍtstia ancestral que nasce do alo instaurador de espaço, que
Sitte se caracteriza por sua discrição. Nunca emprega a pri- bOmente o duplo ht:roísmo do inventor e do salvadorl71 pode
meira pessoa do singular. De uma ponta à outra do Sttidtebau, ~upcrar. Herói tratadista do espírito e herói utopista do poder,
o emprego dos pronomes se assemelha a o de um discurso teó- o sujeito das teorias de urbanismo desempenha ao mesmo tempo
rico. De fato, o arquiteto-herói se abriga atrás da primeira pes- esses dois papéis. A despt:itu de sua resen •a, Sitte aparece como
soa do plurall67 ou mesmo atrás do pronome "ele" e do pronome o arqueólogo de uma arte perdida cuja descoberta permite operar
indefinido. Percebe-se isso já na primeira página da introdução, um salvamento parcinl da cidade moderna. Wright se apresenta
na passagem sobre Pompéia. Sob a aparência de uma constatação, no mesmo tempo como a encarnação do arquiteto-artista-criador
de uma observação de alcance gt:ral, se dissi mula a relação de c como o anunciador e o mediador de uma novo democracia,
uma experiência na qual se pode ler a origem do livro de SittelfiH. seu " intérprete profético" 172 • Le Corbusier, novo Utopo, antes
Outros autores, ao contrário, têm um eu importuno. Tal como de tudo guia, pastor e pajl73, não exalta menos sua própria cria·
Lc Corbusier que multiplica os shiften; a cada página de La Ville ti vidadel74.
radieuse. Alguns (Sitte, Alexander) relatam sobretudo sua expe-
riência intelectual, refazem sua caminhada mental, outros se
pin tam de filantropos (Howard) ou de " videntes" (Wrightl69), Deliberadamente e~purá dic as, tais análises confirmam ao
outros ainda (Le Cor busier170) apelam aos acontecimentos de sua mesmo tempo a autonomia e ambivalência da figurn dos teorias
vida de práticos. de urbanismo : figura qtie confunde visão crítica e abordagem
clínica, normas biológicas e normas éticas, sujeito tratadista e
herói utópico, e cujas regras gencrativas se ctistalizam em mo-
167. Em Der SUtdtebau, às vezes "nós" é usado também no lugar delos, os modelos se dissolvem em processos, em normas, ou em
da segunda pessoa.
1611. "As recordações de viagem oferecem à nossa fantasia a m até·
exemplos. Pouco importa que Cerdà esteja mais próximo dos
ria mais agradável. Se apenas nós pudéssemos retornar com mais fre· nutores de tratados de nrguitctura pelo aval que ele exige da
qüência a esses lugares que não se cansa de contemplar [ .. . l. Quem história, pelo valor que atribui a uma temporalidade criadora,
quer que apreciou, ele mesmo, em sua plenitude a beleza de uma cidade
antiga dificilmente contestará a poderosa influência que exerc:e o qu adro
pela confiança que tem na espacializaçõo. Pouco importa que,
exterior sobre a sensibilidadç dos homens . As ruúms de Pompé!a dãO· cinqüenta anos mais ta rde, Le Corbusier es teja mais próximo dos
nos sem dúvida a melhor prova disso. Quem ( der}, na caída da noite, uutores de utopias por sua desconfiança com relação à expansão
atravessa, depois de uma dia de trabalho fatigante, o espaço desimpe· espacial, pelo emprego exclusivo da modelização e pelo soberbo
dido do fórum, se sente atraído irresistivelmente para os degraus do
Templo de Júpiter, para contemplar, ainda uma vez, do alto da plata-
forma, a esplêndido. disposição de onde ascende até ele uma onda de marcha na l . .. J floresta virgem [ . .. J abria novas picadas, descobria
hannonias L .. J" CS., p . 1; W., p. 3). W grifo é nosso.] A precisão dos verdades [ . . . J fundamentais . [ . . . J Mas, um belo dia, esse título R épanso
<ietalhes, particularmf!nte cronológicos, assinala aqui a lembranço h. Moscou é afundado por alguma coisa [. .. l mais profunda [. .. J se
pessoal. lntltulo. então La ViUe mdiimse" (irlem, pp. 9D·9ll.
169. As ocor rências da primeir a pessoa em The Hving City são 171. As fórmulas do Le Corbusier são reveladoras. O herói do livro
pouco numerosas c ligadas à. função de vidência do arquiteto (Cf. op. trova a luta contra o demônio (idem, p. 122): "A rua transformou-se
mt., pp. 22, 125 e ss., 206l. Em compensação, o leitor é constantemente num demOnlo desencadeado". Cf. igualmente, p. 120, a curiosa passagem
tomado à parte, seja por apóstrofes, seja pelo emprego da primeiro <1111 que L e Corbusier projeta (sem o menor humor) um monumento
pessoa do plural, completada pelo de .~hijte:rs que remetem à dimensão dedicado aos três "heróis" e "super-h omens" do urban ismo, Luís XIV,
ético·politica da situação de enundação. N'npoleão I e Napoleão III. "Por trás, em meias-tintas, Colbert e Haus-
170. As indicações biográficas recheiam a Vi Ue radieuse em todn nmnnn se estendem igualmente a. mi:io, sorriem com aquele sorriso da
a sua extensão, mas sem o rigor cr onológico que surge no De re aedi· uutlsfação da tarefa cmmprida." Essa visão surpreendente constitui o
jicatoria. O autor não deixa de com eçar por revelar o origem contin· melhor comentário d a.s citações tiradas de Pétain (idem, p . 154) e da
gente de seu livro: "Um questionário me fora enviado pelas autoridades 1\Htopt·ojeção do urbanista como chefe militar.
de Moscou. [ ... J Depois de haver ditado minha r esposta r ... l , emprc- 172. T he Living City, p . 77. Cf. também pp. 87 e 131, onde o a rqui·
cndi a execução de umas vinte pranchas" ( op. c.:it., p . 90) ; depois é o lnlo aparece como "o guia e o conselheiro da grande família americana
encaminhamento mental que se seguiu à primeira r eação: "Virando c 11 uo mesmo tempo o guardião das colheitas e dos rebanhos".
revirando em meu laboratório os elementos fundamentais constitutivos 173. Idem, pp. 138, 145, 146, 152, 154.
de uma cidade moderna, eu tocava em realidades presentes que nã o 174. Idem, por exem plo, pp. 100, 102, 103, assim como o comentá·
são mais russas que f t"ancesas ou americanas ( ... J eu continuava minh<l. 1'10 elas pranchas ilustrativas.
A REGRA E O MODELO

desdém pela temporalidade. Em ambos os casos, como nas outra~


Abertura: das Palavras·
teorias de urbanismo. está em acão uma mesma estrutu ra textual.
À revelia dos intcre~sados, ela ,dá provas de uma mesma impo- às Coisas
têncía para assumir a siLuação que eles exigem e de uma mesma
angústia que será conjurada por uma abordagem que alia, invc-
rossimilmente, as velhas armas dos primeiros livros instauradores
de espaços e as armas novas da dencia moderna.

Da leitura do que precede se extraem resultados paradoxai~.


Em primeiro lugar, essa lt::ilura, que recusava os quadros d~.
história, se presta a uma operação histórica! e abre caminho e.
uma nova estruturação da história da teoria da edificação. O con·
ceito de t exto instaurador permitiu transformar a paisagem tradi·
cional que a análise dos con teúdos e o postulado continuísta das
filiações haviam fixado, determinar nela novas unidades territo-
riais, marcá-la com uma nova hierarquia de monumentos, substi-
tuindo os antigos referenciais.
Assim, o De re aedificatoria adquiriu dimensões que jamais
lhe haviam sido reconhecidas. Doravante, ele assinala um corte
decisivo e um momento inaugmal a p artir do qual uma in~prová­
vel e nova exigência de racionalidade pôde dar origem ao projeto
instaurador e inscrevê-lo em três conjuntos textuais descontínuos
dos tratados de arquitetura , das utopias e das teorias de urba-
nismo.
O De architectura, que os historiadores costumam sitt:ar n a
origem do enfoque tratadista ocidental, foi deslocado n mon·
tante do corte albcrtianc, restabelecido em seu lugar p róprio e
original, de onde, indicador de distância, ele continua entreranto
a nos criar signo. Na medid2 em que constitui a tentativa li\ais
perfeita que foi realizada antes do D e r e aedific:atoria com vistas

l. M. ])E CERTEAU, "L'opératlon historique" in Faire de l'histoire,


obra coletiva sob a direção de J. LE GOFF e P. NORA, t. I, Paris, Gal·
J lmard, 19'74.
ABERTURA: DAS PALAVRAS AS COISAS 309
308 A REGRA E O MODELO

Em seguida, minha leitura semiológica, que deiiberadt1mente


a reunir e ordenar um conhecimento. o obro de Vitrúvio permite havia se libertado de toda e qualquer pertinência à cpistcmiolo-
avaliar a diferença que separa o trat~do de Alberti de toda a lite- gia, ahre caminho, no entanto, a uma crítica dos textos instaura·
r atura anterior consagrada ao ato de edificar. E, na medida em dores. Revela o seu verdadeiro estatuto cl.isc ursi vo e permite pre·
que fascinou Serlio, Palladio, du Cerceau, os Blondel. .. que lhe cisar as relações que, presumivelmente, eles mantêm com :.s ciên-
pediam um aval arqueológico e nele descobriam as bases de. uma cias da natureza e do homem.
estilística universal , o Da re architectura testemunha a denva e Em primeiro lugar, mostrei com efeito que todos os textos
a regressão desses autores com respeito ao alcance instau rad or instauradores são estruturados por uma figura mitizante - po-
de Alber ti. der-se-ia dizer mctamítica - que ~erve para resolver simbolica-
Pur wnseguinte, no horizonte monótono dos tratado~ vitru- mente os problemas teóricos, mas também práticos, colocados
vizantes, se destacam obras negligenciadas. A ldea de Scumozzi, pela emanl:ipação do ato de edificar. Ainda em função nas teorias
desfigurada pela leitura redutora que dela fez o século XVII, de urbanismo atuais, essa figura mitizantc não poderia ter sido
a s~urne p ela primeira vez seu valor de tratado canônico; o Abréf!,é decifrada sem o estudo prévio do De re aedificuturia e da Utopia.
.de Perrault vê restituídos uma vontade de subversão e um poder Coloquei-a em evidência nessas duas obras p11radigmáticas, sob
libcrat6rio que seu s/alus de réplica e comentár io escondia; o dua, formas que não se podem confundir e cuja diferençu escla-
Discours de Patte é chamado a limitat· o precário destino tlos tra- rece, ao l:Ontrário, o destino diferente que a história reservou ao
tados de arquitetura e torna-se o anunciatlur das t ransformações tratado de arquitetura e à uropia. O relato encantatório que, no
que desembucarão na emergência das teorias de urbanisrr.o. De re aedificatoria, parodia um mito de fundaç,:ão, conse1va um
No campo fechado dos textos instauradores, a Utopia de caráter lúdico. A maneira de uma si tua ção, ele lembra a trans-
Tomás Morus, devolvida à sua ambivalência e à sua ambivalente gressão realizada pela arquitétura e produz nas memórias fra cas
vocação simbólica e realizadora, assinala, ela também, um começo. seu esquecimento impossível. Mas não a conjura de verdade.
Reina sobre um território bem circunscrito , do qual foram elimi- Deixa a empresa albertiana exposta, sem anteparus m:m media-
ções, às exigências de wa própria audácia e às ameaças ca der-
nadas as anexações abusivas devidas às modas de nossa época. relição: mostrei a precariedade rla forma textual criada por Al-
No exterior de suas fronteiras, mas n a vizinhança imediata, loca- be:rti. A Utopia, ao contrário, é organizada em torno de um nú-
lizam-se agora tanto os escritos panúpticos, cujo parentesco com cleo mítico próprio; funciona sem distanciamento e mar:.ifesta,
us escritos utópicos não fora considerado, quanto a obra de Fou- através de suas versões sucessivas, uma produtividade comparável
rier, que, ao contrário, fo i, sem reservas, classificada muilo tlt::- à dos mitos. A teoria de u rbanismo aliou essas duas fonnas. Não
pressa entre eles. contente em fazer que fa le na primeira pessoa o arquiteto-herói
Da mesma forma, enquanto' a Teoría de Cerdá, tirad a do es- de Alberti, ao qual ele empresta agora a autoridade do científico,
quecimento, constitui doravante a certidão de nascimento e o ar- ela confere a esse sujeito os poderes do herói-arquiteto de Morus.
q ué tipo das teoria s de urbanismo, os textos produzidos oo qua- Assim, os urbanistas, e todos aqueles que hoje pretendem orga-
dro do movimento internacional da década de 20, particularmente nizar cientificamente o espaço construído, não só estão empaca-
dos no cientificismo, às voltas com as dificuldades de um conhe-
as obras de Le Corb usier, perdem o significado inaugural que
cimento não constitt1ído, como também seduzidos pela miragem
~eus hi storiógrafos lhes haviam concedido com unanimidade. Mos-
de poderes simbólicos, esses mesm os poderes m íticos com que
tram pertencer à figura discursiva elaborada durante o século Morus dotara Utopo.
XIX , à qual não trazem qualquer inovaÇão estrutural. Em com- Em scg1:1ndo lugar, !nostrei que cada uma das fi guras instau-
pensação, o Stãdtebau de Sitte, que os CIAM desqúalifkarm~1 radoras se· caracteriza fundamentalmente por u ma escolhe con-
aos olhos de duas ger ações, tachando-o de passatiista .e {le pusJ- cernente ao valor do espaço edificado e a seu modo de engcnd;a-
lii nime, aparece como o texto, ainda hoje, mais próximo· de ua1 mento . .o tratado de arquitetura exalta a construção e uma m-
questionamento dtssa fi gura das teorias de urbanismo à qual ele vcstida contra o espaço que permita aos homens realizar-se cons-
Lambém se fi lia. l.ruirrdo o mundo; para isso ele furmula regras que acolhem o
De maneira mais geral,. conforme a nova narração hi~tóri cH desejo e a b usca do prazer. A utopia, ao con trário, vê n a disse-
propos ta, as teorias do t:tbanismo aluais não mai:; poderi::~m sér minação das edifícios uma causa de desordem. Par a ela o espaço
entendidas sem refe renda a Alhetti e a Morus, cujas obr2s inau• construído só vale se for controlado c, mais ainda, controlador.
gurais as clt:tcrminam, a montante da figura cuja primeira versi:o O procedimento totaiitó rio do n odelo, estranho tantó ao desejo
Cerdà p roduziu . E a pi'Oliferação de versões ulteriores c inde- quanto ao prazer, constitui então, com respeito a socied ades con-
pendentes ela Tenría constitui um indício suplemen tar da natureza sideradas pervertidas e doentes , um instrumento, indefi nid2m ente
mitizante dn ''teoria" de urbanismo.
310 A REGRA E O MODELO ABERTURA: DAS PALAVRAS AS OOISAS
~"

reprodutível, de conversão e de cura: instmmcnto destinado o n? ~m?írico . e fo~·temente tingido de a ristotelismo, se tornaram
solu cionar as contradições sociais atrf:lvés de um simples jogo de dr~Ciplmas cte~tíflcas. Denominação hipotética no que diz res-
espaço, e que traz em si, portanto, a dissolução do político. En- per t? às, necesstdades elementares do homem, cuja dialética que
fim, a teoria de urbanismo, em parte, anexou os valores da utopia a~ hga .a demanda e ao desejo e torna tão complexa· a tarefa de
com que ela pretende realizar o sonho de normalização e de me- chscerm-las Alberti descobria muito antes da ciência mc.oderna.
dicalização sob a autoridade inapelável de lei :; científicas. s~. atu~lmente, a ecologia, a etologia, a paleubiulugia e a bioquí-
O enfoque inicial do De re aedificatoria nos propõe, aimla mtca sau, au .mesmo tempo que a termodinâmica, us ada~ para
hoje, o melhor fio condutor para traçar um balanço das certezas tentar desc?br1: alguma_s dessas leis elementares de agrupamento
a que pode pretender uma disciplina específica da edificação. O c. de orgamzaçao espacwl dos sociedades humanas, cuja cxistên·
gênio de Alberti consiste em ter cruzado os princípios, postulados cr~ o aut.or do f!e re aedificatoria foi o primeiro a postular, essas
e regras do nível da necessi dade com a demanda dos interlocuto- leis .continuam mdele~minatlas: wm respeito às intuições de Al-
res tio arq uiteto. Fez assim de seu tratado uma matriz de dupla bertl , o que consegmmos essencialmente foi ter reconh ecido o
en trada que dá à edificação um fundamento rigoroso, abrindo-a pro_bl_e~a da c~mp!exi~ade, saber que a natureza humana, cuja
ao mesmo tempo à imprevisibilidade da imaginação e do dest:ju defl~tçao pal'eciU . tao s1~1ples nos utopistas c, depois, deles, aos
dos homens. Desde logo, é deixado e designado, portanto, um tc6ncos do urbamsmo, e quase inapreensível entre as malhas en-
lugar às escolhas e aos valores. É evitada a armadilha, que de- cavaladas do ina to e do adquirido, na dialética do natural e do
nunciei muitas vezes alhures para não ter de voltar aqui, e na cultu ral através da qpal ela se constitui. .
qual caíram todos os teóricos do urbanismo, de acreditar na pos- No último caso, enfim, o da beleza, se Alberti não mais evoca
sibilidade de uma ciência normativa da edificação. Quanto aos a noção de necessidade, é que não dispõe do conceito científico
e lementos fixo~ t.!a sua matriz, sem poder dispor dos conhecimen- de .lei: _conelativam~nte, não pude atri buir a um mesmo ti po de
tos e dos conceitos que nos permitem hoje apreendê-los, Alberti, legrslaça_o e subsmmr sob uma mesma designação regras igual-
mais uma vez, os distribuiu magistralmente com relação ao~ cam- t~e~te ngo rosas, mas cuja aplicação é, para o construtor, neces-
pos do conhecimento que o ato de constrUir põe em jogo. sana num caso como o da física dos materiais, c não-necessária
Com efeito, seus princípios, condição de todo construir pos- em outro caso, o da beleza. Não deixa ·de precisar que, a fim
sível, constituem aquilo que podemos hoje denominar as regra s de poder pwporcionar o prazer estético, o mcmdo edificado deve
genera tivas do construído : regras nunca mais evocadas por qual- obedecer a um conjunto de regras fixas, que, já sublinhei, têm
quer teórico e cujo estudo mereceria, entretanto, ser aprofundado parentesco co!? ~s da " necessidade", e são impostas pelu corpo
pela pesquisa contemporânea. Todavia, se utilizo intencional- human.o. Aq~1 amda, ~ apesar dos deslizamentos que assinalei,
mente o qual ificativo de generativo para comparar implicitamen- A~bertt antectpa o cammho de uma ciência da arte cujo projeto
te o projeto de Alberti com aquele que 1\. Chomsky elaborou para foJ Iurmulado no s6culo XIX pelos teóricos vienenses e começou
a linguagem, o interesse dessa aproximação não deve escond er a ser. de5envolvido, no que diz respeito ao mundo edif icado, por
a diferença dos dois casos. Competência lingüística e competên- C. Sttte. Atualmente, nem sempre se faz a divisão entre as leis
cia de edificar não petmitem desempenhos de mesmo tipo . Par- da boa forma e as normas culturais, e ainda continua sem ~olucão
ticularmente, o ato de edificar é solitário de um material e de Ltm n dificuldade que levava Alberti a atribuir um valor absoiuto' ao
meio cuja resistência e opacidade são regulados por leis próprias, sistema de prupurçúes elaborado pelos arquitetos da Antiguidaclt:.
tão constrangedoras mas de forma diferente quanto as da subs-
tância fônica, esse meio aéreo que a palavra deixa irrealízado.
Além disso, tendo outros fins além da comunicação, o ato de último paradoxo, o preconcei to das palavras, q ue desvenda
construir deve leva r em conta um certo número de exigências uma visão nova das coisas, não concerne apenas ao mundo pro-
práticas. tegido do conhecimento. Essa leitura de textos, na maioria com
Alberti reconhece bem a carga dessas co~ções que pesam vários séculos de distância entre si, coloca questões ardentes que,
sob re a edificação. Ele as di stribuía em três categorias de regras por menos que o leitor o deseje, provocam a ação.
fi xas relat ivas aos materiais, às necessidades humanas de base Com efeito, desde que se descobriu a impostur a da cons-
e à beleza : três domínios que ele atribuía a uma ciência em devir trução metamítica em que a teoria do urbanismo se encerrou à
e qu~ ~sta , mais ta r·de, realmente atacou com maior ou me.nor sua revelia ; desde que se avaliaram os limites das certezas cientí-
sucesso. Nos dois primeiros casos, ao lhes atribuir o nível da ficas a que ela pode pretender, o que nos resta , para edificar nos-
nec:::ssidacle, marcava a inelutabilidade dessas regras que hoje sos espaços, da fabulosa herança teórica dos textos instaw·adores'?
chamamos leis. Denominação legítima no caso da mecânic?. e dél l~ssenciaímente, os dois procedimentos antitéticos da regra c du
física c.lus Illatcria is que, sucedendo-se ao conhecimento alber tia- modelo, que impõem uma escolha temerosa entre duas cunt.:t.:p!,:CH:~
312 A REGRA E . O MODELO 3l3

da edificação, uma hedonista, egútica, permissiva, a outra corre- não pôde conservar, espaços sempre já controladores das socie-
tiva, disciplinar, médica. dades tradicronais, senão a funçãu de controle, na medida em
Por enquanto, o urbanismo progressista dominante parece que a única signiticaçáo que doravante parece poder alojar-se aí
preconizar ou impor, em quase toda a parte, o procedimento do ~ a de mstrum~ntos a prOduzir, a explorar, a eonsumir c em que,
moddo. Vimo-lu integrar os planos de organização dos territó- como se dtvertla com isso sem humor Le Corbusier nossas cons-
rios, desnaturando e desumanizando ao mesmo tempo u espaço truções se. tornam máquinas, a lógica dessa tendên~ia não exige
do planeta mediante a projeção abstrata do mesmo construído. os procedimentos de modelização '!
Ele se encontra na base de nossa política de habitação em nossas No entanto, a análise do paradigma de Morus onde a teoria
cidades como em nossos antigos _campos, doravantc pontLlhados do urbanismo foi buscar seus procedimentos lerá medido o preço
de ohjetos demasiado reais e irreais, arbitrariamente implantados pago por essas seguranças e esses remédios: condicionamento to-
em menoscabo dos sítios e dos lugares. Depois de haver t!St:Orado talitário das condutas públicas e privadas em detrimento da polis
a politica colonialista do Ocidente desde o século XVI , ela d:í ~ do P?lítico, :stereotipia dos ambientes, destruição dos lugares,
hoje a base para a nova colonização do mundo não-europeu, cuja esse trrbuto nao compromete o beneficio de uma modelização
indus trialização passa pela modelização de seus espaços. Já ex- ucer~a da qual não é impossível demonstrar f.{Ut:, apt:sar dl:is apa-
pliquei bastante o por quê deste favor e ·desta resistência ao des- rênc~as, ela t::stá longe de satisfazer a lógica da eficiência e do
gaste do tempo; já mostrei bastante o pára-choque que é o modelo re~dtmento? P~tinente no que diz respeito à economia de tempo
e o dupla segurança que ele garante no uso da liberdade mo- c a padr?m.zaçao dos comportamentos de P.rodução c de consu-
derna, permitindo uma rcificação narcísico dos grupos sociais cuja mo, ela c fmalmente onerosa em espaço, em energia e financei-
identidaue é ameaçada, fazendo-os reencontrar - vazio de con- r~mente_. Mas ainda ~ no plano humano que ela se revela a mais
teúdo - o conforto do processo de duplicação do espaço próprio d~spendtosa. Mostrei o sentido e o papel que teve, no desenvol-
às sociedaqes tradicionais. Também sublinhei o valor terapêutico v•men.to das ~ociedades ocidentais, esse "estágio da utopia" que
atribuído, desde o século XVIII, com uma insistência crescente, podena tambe~ ~er denominado estágio da modclização csp~cial.
a este pharmakon que é o espaço. Mas c~m _o estagio do espelho para a gênese do eu, seu próprio
Este procedimento privilegiado pela teoria uo urbanismo, a nome mdtca uma função trans.itória. útil, talvez mesmo neces-
conjuntura atual poderia muito bem tomá-lo inelutável. Não ofe- s~rio, _aos tempos matinais de crise e de transformação, esse está-
rece a modelização, no que diz respeito ao domínio construído, gw, tao logo s~ e~erniz.a, engendra ? repetis;ão e acaba por inibir
o único meio de abordar os problemas habitacionais nos países o poder de cnaçao CUJO desenvolvimento ele devia melhor pro-
de rápido crescimento demográfico, a única resposta à mundia- mover, tanto na escala da coletividade como na do indivíduo.
. Ji7.ação do " desenvolvimento" e da urbanizacão? Não recebera Um~ vez que também a medicalização do e pelo espaço, caso
ela como uma de suas finalidades obstaculi7.ar· uma expansão de- par~Icular da medicalização geral do campo social,. é um dos me-
senfreada do construir? E não chega ela no momento prçciso a camsmos por meio dos quais se constitui progressivamente sob
assegurar o condicionamento das condutas em sociedades onde ~10s~o~ olhos essa "sociedade sem pai"3 que toma a seu cargo os
o sagrado perdeu seu poder e as instituições sociais sua autori- lndmdu~s, os materna e os confina t:m comportamentos reduzidos
dade tradicional, onde todas as ordens subitamente se tornam t; n~rmahz~dos. Todavia, esse preç_ o desmedido, igualmente con-
possíveis e convocáveis para o arbitrário do indivíduo; controlar Ncnttdo hoJe_ em todos os regimes que optaram pelo desenvolvi-
o desabrochar de uma liberdade cujas exigências nenhum poder rne_nto,_ a lett?ro de Morus, além disso, nos terá ensinado que
transcendente não mais pode moderar, diante de um horizonte tcna s1do mais elevado ainda na hip.óte~e de uma aplicação in-
infinito de possíveis? Não é a modelização espacial um remédio lc~ral, e ~~o ~ais apenas parcial, da utopia, que a ignorâm:ia ou
para as crises presentes, não dá ela o meio de curar sociedades 11 mconsciencta de alguns apresentou por vezes como a única so-
doentes ou que se julgam doentes? O melhor indício poderia ser lução para as crises atuais.
a admiração de que são objeto a utopia e as utopias: redesco- Significa isso que se deva voltar aos modos de cngcndra-
berta inconsciente do laço que une o projeto ocidental, portador mcn~o do espaço construído propostos .por Alberti, a essa con-
de venenos cujos efeitos começamos a sentir, e a utopia, seu antí- ccpçao e esses procedimentos aos quais a hist6ria reservou um
doto falacioso. destino frágil e cujo impacto sobre o mundo edificado se limitou,
Além disso, na medida em que, para as sociedades ociden- 11 1~ esse dia, a casos privilegiados? Não mostrou o Cap. 2, em
talizadas, o espaço construído perdeu seu "valor simb6lico"2 e

2. J . BAUDRILLARD. L'Economie poliüque du signe, Paris, Gal- 3. CC. A. MITSCHERLICH in Vers la sociéte sans ptre, Paris, Onl·
Jimard , 1972. llmnrd, 1969.
314 A REGRA E O MODELO .ABERTURA; DAS PALAVRAS AS COISAS at5

particular, que o caminho albertiano leva em conta três variávei~ q110 n ficção científica e a futurologia, tão férteis em imagens de
que Moms ignora e que a teoria do urbanismo também não reco- l'ldndes resplandecentes, impecavelmente aferradas - pata a sal·
nhece: a realidade dos locais, a demanda dos usuários e sua sensi- v u ~,:iio ou a danação de seus habitantt:s - ao progresso da técnica,
bilidade estética? Vimos com que amorosa preocupação as regras lliÍO tenha desenvolvido a visão, de outro modo dramática e mais
do De re aedi/icatoria esposam as exigências do terreno em des- Vl.:l'Ossímil, de um mundo inteiramente invadido por uma lepra
prezo das quais se coloca a grade dos espaços-modelo. Veriflcou- II J'banll c transformado numa _formidável lixeira de construções
se que o· segundo nível desse tratado é totalmente consagrado à 1 1b~o letas e de detritos de cimento-armado. ·
demanda e ao desejo do usuário: Filareto apresentou uma formu- Um outro perigo provém do fato de que a introduçãu livre
lação magistral e lírica desse reconhecimento que, há alguns anos. 11 ucm reservas da demanda na matriz do sistema da edificacão
os críticos da teoria do urbanismo acreditam redescobrir sob o !onde a produzir-<lhe desordem, no sentido clássico da termodi~â­
nome de participação. Finalmente, vimos que a grande despre- lllica. No espírito de Alberti, a consideração desse parâmetro
zada, cujo nome não mais é pronunciado nas escolas e se torna purmitia promover o que consideraríamos hoje corno uma desor-
sinônimo de escândalo aos ouvidos dos especialis tas, a beleza, dl.)m positiva, geradora de ordem4: integrar no processo de edifi·
com o prazer que ela proporciona e sua maneira de implicar t:nçuo a demanda e o desejo imprevisíveis dos usuários era o meio
o corpo inteiro, é julgada como fim supremo da edificação. riu desarticular ordens anacrônicas e esclerosantes em proveito
Entretanto, o respeito ao sítio representa apenas um aspecto du uma aparente confusão, prenhe de estruturas novas e não ain-
esporádico do De re aedijicatoria. E a exaltação do construir do perceptíveis. ~ muito provável também que Alberti temperasse
como processo criador tanto quanto a acolhida da demanda e do Inconscientemente a liberdade ou o arbitrário da demanda pelo
desejo humanos, que, frente ao triunfo da modelização espacial, r·cconhecimento tácito de um fundo de instituicões e de valores
simbolizam hoje a capacidade contestatória do sistema albertiano cujo autoridade e poder de controle ele não piecisava contestar.
como simbolizaram outrora sua força revolucionária frente à tra- 'l'odavia, a lógica que erige em lei a demanda e o desejo não
dição, não podem ser admitidas e aplicadas sem condição. Em 11ofre esse tipo de re::;tril;õe::; e comluz inelutavelmente à produção
seu rigor, o caminho albertiano não comporta menos perigos que (!(; espaços não-ordenados. Em termos econômicos de demanda
as atitudes e os procedimentos legados à teoria urbanística pelo uo lvível, o procedimento albertiano parece especificamente afina-
paradigma de Morus. do com a expressão do capitalismo num campo cuja lei econô-
Tais perigos - eventualmente mortais - são diferentes c Jni.ca acaba sendo o único, e paradoxal, regulador . Em termos
mais bem perceptíveis em nossa época do que na de Alberti. Uns dc lingüística, cada indivíduo ou grupo de indivíduo se exp1·ime
são inerentes ao pesadume construído enquanto substância semio- l)lltn idioleto, ininteligível aos outros e pouco a pouco o signifi-
lógica. A proliferação incontrolada do mundo edificado tem por t•udo do texto do construído se confunde. Em outros termos
horizonte a supressão letal do espaço natural. Por outro lado, <1 11lnda, a informação que podia deixar brotar a desordem se dis-
aceleração da história sempre faz caducar mais depressa a infor- riulve numa pura cacofonia. A dimensão egótica do sistema albcr-
mação transmitida pelo sistema construído. Não só não nos ilttno ameaça uma das funções essenciais do construído, a que
encontramos mais na situação de abundância do século XV onde 1\<l lllribui p ara a estabilização e a estmturação das sociedades.
pareda inesgotável o e::;paço virgem que se oferecia às experiên- 1\ realmente contra essa exposição do mundo edificado à deses-
cias do construtor, como também, uma vez atingido pela ohsoles- ll'Uturação e ao ruído que reage a teoria de urbanismo, impondo
cência, o próprio construído tende a não passar de obstrução rm construir uma ordem cuja rigidez, como vimos, é tão perigosa
inútil. Passaram-se os tempos em que Alberti podia pensar qU<.: riU medida em que bloqueia a informação e inibe a criação.
o construtor age acumulal)do para as sociedades um tesouro indefi- Querer integrar na edificação a demanda da beleza, onde
nidamente aumentável sobre o qual irá ancorar sua memória e que hoje ela ainda pode ser entendida e tomada em consideração,
ele sempre encontrará espaços onde inserir demandas e desejos xpõe aos mesmos perigos. De que beleza se trata, com efeito, em
novos. Assumindo dimensões planetárias, o mundo edificado deixa nossas sociedades aculturadas, rebentadas, que não dispõem de
de servir à memória. Mesmo na melhor hipótese de uma edifica- q!Julquer linguagem ou cabedal estético de base que lhes possa
ção exemplar que respeitasse as regras dos três albetiianos, ele 11\li'Vir de referência? No Quattrocento, quando começava a operar·
ameaça atravancá-la . Toma-se um obstáculo à expressão de 110 u divisão iníqua, a "troca desigual" dos valores estéticos que
demandas novas e a uma abertura para o presente e o futuro que rui'. da arte ocidental uma arte sábia, os Médicis e Alberti, o
somen te uma demolição sistemáticá do construído caduco nermi- pd11cipe de Sforzinda e seu arquiteto, estavam ligagos por um
tiria. Mas essa demolição, organizada pela lei no caso privilegia-
do de certos setores de grandes cidades dos Estados Unidos,
geralmente é proibida por motivos econômicos. ~ surpreendentt: 1. Cf. I. Prigogine.
316 A REGRA E O MODELO
ABERTURA: DAS PALAVRAS AS COISAS 317

sistema de valores estéticos comuns, falavam a mesma linguagem


formal. E, entre esses interlocutores privilegiados, o "terceiro promovem uma ordem rígida e totalitária, ela abre outros
nível" vinha realmente regular a expressão da demanda de como- cnminhos.
didade. Mas, desde a revolução industrial, quando o construir Sejamos precisos. Não estou preconizando aqui nem a nos-
assumiu uma dimensão societária, e na ausência de uma ciência iulgia, nem o cinismo. Não é o caso de querer fa:t.er com que ~e
da arte, sempre por vir, que pudesse ao menos revelar alguns volte aos pro~.:t:tlimentos silenciosos ou concertantes que foram o
princípios básicos, o terceiro nível não pode mais ser regido senão privilégio das belas totalidades urbanas de um passado já esque-
pela arbitrariedade individual: ideologias, gostos e prazer parti- cido. Não é caso tampouco de avalizar a urbanização selvagem,
ll()b a diversidade das formas que ela assume, desde a posse, pela
culares das admini~ trações, dos urbanistas, dos arquitetos "artis-
tas" e, às vezes, de certos usuários. Daí a coexistência, na con- uconomia dominante, dos melhores terreno~ urbanos ou das praias
cepção estética do atual quadro construído, de tendências fu tu- nlnda desertas, até a "favelização" tal como alguns teóricos oci-
ristas ou surrealistas com tendências dominantes ao "retro", dentais a transformaram em modelo6.
pilhando, com astúcia ou ingenuidade, sob a forma de citações Os modestos caminhos que, segundo imagino, poderiam ser
ou ao ~abor de uma apropriação selvagem, todos os estilos do ubcrtos deveriam ceder lugar a duas exigências, aparentemente
passado, até os mais recentes maneirismos, bebendo igualmente contraditórias: promover um certo planejamento do espaço que,
nas fontes sábias ou vernáculos, urbanas ou rurais internacio- conforme vimos, é hoje uma condição de sobrevivência das socie-
nais ou locais. Daí o duplo terrorismo de estereótipo~ destinados dndes; tornar a edificação novamente portadora de imprevisibili-
a lisonjear ~ gosto "popular"5 e de uma pseudocultura dos arqui- dnde e de prazer. Fora das vias reais ou· totalitárias que passam
tetos, associados para a produção de feiúra fabulosa e única na pela aplicação de regras ou pela reprodução de modelos; fora das
história. vias . marginais da nostalgia ou da selva do laisser-faíre, esses
Seja na urbanização de um território ou na construção de humildes caminhos poderiam conduzir a outras ~etodologias,
residências, seja na comodidade ou na beleza, acolher livremente nlgures.
a demanda e o tle~ejo dos usuários, quando esses não dispõem Um algures para o qual começa a orientar-se a descoberta
de uma linguagem comum com o construtor, nem de um fundo dn forma metarnítica dos textos instam·adores. Decerto numa
ou de um sistema fi xo de valores reguladores, só pode desaguar perspectiva crítica, traços mitizantes não são compatfv~is com
no absurdo. Por isso é que a famosa participação, atualmente, uma teoria racional da concepção do espaço construído. Tão logo
não pode ser g1ais que um logro, ou, no máximo, um jogo, uma silo detectados, convém pois eliminá-los, mas. sem por isso ceder
simulação qm: se apóia em convenções passadas ou caducas. n um positivismo ou mesmo a um racionalismo esclarecido que,
A delimitação desses escolhos, parte dos quais são inerentes li mitados a uma simples recus~ e não aceitando reconhecer sua
ao destino histórico da cultura ocidental, tenderia a deixar crer função e sua significação, se exporiam a ignorar-lhes os ensina-
que a edificação aber.ta, tal como a teorizava Alberti numa ética mentos e se privariam de uma informação capital. Com efeito, a
da criação, não é mais encanível na escala da sociedade. Conforme presença, na base das teorias de urbanismo, dessa estrutura não-
o individualismo que a inspirou, ela doravante não poderia ser nl'l'anhada pelo transcurso dos séculos vem nos lembrar, ou antes,
senão o apanágio de indivíduos. Ser-lhe-ia preciso então sofrer J~ que não mais temos a lembrança dela, vem nos falar da gravida-
a prova da miniaturização e realizar-se na intimidade dos espaços de do ato edificadm· ancestralmente realizado sob a dupla tutela
privados, por meio da bricolage, da escultura, da jardinagem. dos deuses e da comunidade social. À sua maneira, mas de forma
lno certa quanto a palavra filosófica, ela visa o privilégio ontoló·
Hlco do construir enunciado por Ileidegger7. E, ao mesmo tempo,
~ol idta a rdlexão de retornar às conseqüências do corte operado
Teria eu errado então em afirmar que minha leitura pode
incitar à ação? Afinal, não faria ela ~enão instalar a desesperança por Alberti. Sua referência a condutas esquecidas ou escondidas
chocando-se contra uma alternativa cujas duas saídas são, uma c duvc ser interpretada como uma advertência a nos lembrar que
11 ded icação da sociedade européia à eficácia e sua vocação por
outra, in~ceitáveis? Penso,· ao contrário, gue entre estas duas
1nnn história quente passam por essa relação singular com o
gran?es vias, entre os procedimentos permissivos que desposam o l'N paço, que contribuiu para a morte dos deÜses e para o advento
deseJO e servem ao prazer, mas que conduzem ao atravancamento do uma liberdade que não cansamos . de denunciar as ameaças
e ao caos, e os procedimentos corretivos e medicalizantes que quu pesam sob-re ela, mas da qual esquecemos a enormidade dos

. s_. C!. S. OSTROWETSKI, S. BORDEUIL, Y. RONCIII, La. Repro· O. Cf. J . TURNER, Report to the United Nations 011 Housi ng i11
ductzon des stvles régionaux en architecture, Département d'ethnologio / li ucloping Countries, New York, 1967.
et de sociologie, Unive r~ité d'Aix-en-Provence, COR.DA, · 1978. 7. Essats et Contérences, Paris, Gall1mard, 1958.
318 A REGRA E O MODELO A13ERTURA: DAS PALAVRAS AS COISAS 319

poderes que nos transmite, tais como os de investir e desnalunl- pnrtida, caberia a nós então desenvolver uma apropriação corpo-
lizar o espaço natural ou destruir os espaços culturais. m!LU e uma " experiência emocional do espaço"ll que passam
Escutar a palavra mitizante dos textos instauradores pode- t.umbém, sem dúvida, por uma reapropriação e~ocional do tempo.
ria, pois, incitar a devolver à edificação a seriedade e o peso de ~u mente a esse preço é que será dado talvez um conteúdo, depois
suas origens. A refazer com ela um ato não-banal, um privilégio um referente, aos conceitos de lugar, paisagem, patrimônio, con-
patrimonial. A consagrar-lhe, qualquer que ~t:ja a escala em que ceitos usados de que a moda se apropriou e que manipula em
ela se de~envolvt:, a atenção e o cuidado exigidos por uma total vão sem se aperceber de sua prt:Sente vacuidade.
consciência do poder ambivalente do mundo construído. Mundo Ma ~ se importa libertar-se das estruturas espaciais do, Re-
cujo peso, real e simbólico, não deve impedir que se h:ve em nascimento das quais Alberti contribuiu para estabelecer a teoria
conta a mobilidade dos homens, cujo valor Cerdà demonstrou u afirmar a influência, níio importa menos libertar-se do primado
de maneira decisiva, m:m esta leveza e esta precariedade da do espaço reinante desde então, isto é, apremlt:r a pensar de ou-
arquitetura são as ünicas, hoje, a testemunhar uma nova relação tro modo o valor e o poder que lhe atribuímos. Mudar o estatuto
com a morte. do espaço construído exige então uma série de reavalizações e
Mas esta vigilância nova não pode se exercer sem o suporte de reajustes locais. O passo para um espaço diferente - emblema
explícito da linguagem e da reflexão. É es te o prt:!,:U da trans- de uma sociedade diferente - reguer a integração laboriosa e
gressão perpetrada pur Alberti. Por isso, o hino à criação do De ,;ubvcrsiva de parâmetros que se chamam, particularmenre, o cor-
re aedificatoria anuncia a espontaneidade no domínio da edifi- po, a natureza, a técnica : corpo a reapropriar e a reintegrar no
cação. Houve um tempo em que o ato de construir era realizado espaço de seus percursos; natureza a reinvestir e a reaprender,
pelos homens com a mesma competência espontânea8 que o ato ntravés do corpo precisamente; técnica a desmistificar, a libertar
de falar. Mas. nas sociedades urbanas contemporâneas, a prátlC;! dos ideologias que a incensam ou a condenam sem nuan~ta nt:m
dessa atividade deixou de ser fundamental, seus pr~cedimentos 11 lternativa, ao passo que, instrumento fundamental de um novo
se nos tornaram estranhos, ininteligíveis, por falta de experiêncin (;Q n~ lruído, suas inovações devem ser expostas a todas as modu-
e devido aos anteparos culturais montados pelos especialistas. luções e, particularmente, abertas às aquisições da tradiçíio como
Ora, tal como os extraiu a leitura do De re aedi/icatoria, o~ opt:· 110 trabalho prospectivo da ciência. ·
radares albertianos permitem reencontrar os fundamentos c ~ di- Revocar o antigo primado do espaço não seria, portanto,
nâmica da edificação. Dão aos eruditos como aos profanos as desconhecer a complexidade do construir que deve continuar a
chaves para a compreensão do mundo edificado, Eimultaneamentc fi gurar, a fim de que a idéia não possa apagar-se de nossas me-
aberto à fruição e a uma crítica pertinente. Outrossim, esses ope- n1órias, a imagem redescoberta e poderosamente utilizada por Fi-
radores constituem o paradigma de uma necessária melalinguagem lun~to para escandir a ilustração de seu tratado12, a imagem do
e fornecem a base de um método de concepção. Hase que exige, lnbi rinto, símbolo da complexidade particular que o ato de edifi-
todavia, novas investigações, uma reelaboração e deveria ser pro- n u· tem o privilégio de realizar.
visória. Os caminhos que a decifração dos textos instauradores tiver
Com efeito, o De re aedijicatoria comporta uma parte de nssim indicado não são nem retilfueos, nem simples, nem dcsta-
relatividade. Diz respeito a um espaço construído organizado por l"udos do passado. Enveredar por eles poderia ter como resultado
convenções estabelecidas no Renascimento. Ora, convém não es- umn edificação jamais realizada, desmistificada e que escapa do·
quecer que sempre estamos imersos nesse espaço, cujo imperia- ,·uvn nte à hegemonia da regra como ao totalitarismo do modelo.
lismo a teoria do urbanismo só veio confirmar9. As ciências his- Assim estaria assegurada a substituição legítima dos antigos mi-
tóricas e antropológicas como a arte contemporânea nos permitem tos de fundação.
hoje tomar certa distância desse espaço perspectiva que dá form a
à nossa pt:rcepção e a nossas construções. Conhecemos o trabalho
de abstração e de sistematizacão do qual ele é o resultado. Sa- 10. Certa página de Freud pode sugerir-lhe a importância. Ele mes·
bemos, em particular, o privilégio que ele concede à visão em mo não indica que "na origem [. . . J a casa de ilabftação :eral o substi·
detrimento dos outros sentidos. Parece indicar-se a tarefa alual l.uto do corpo matemo, esta morada primeira cuja nostalgia persiste
lli'Ovnvelmente sempre, onde se es~.o.vo em segurança e onde se sentia
de desconstruir o meio elaborado no Quattrocento. Rm contra- ilclm", Malatse dans la civüization, Paris, PUF, 1971, p . 39.
11. P. KAUFMANN, L 'E:zpérlence émotiOnelle de l'espace, Paris,
Vd n, 19ô7: com mais de dez anos de antecedlbcia, esse livro !ilosófico
8. SolJ reserva das aprendizagens que ela implica num caso e no 11hl'ln caminho para aqueles que hoje procumm alternativas paro os
outro. nu\Lodos e teorias do planejamento urbano e da urbanização dirigidn.
9. A. Chassel fala de "soberania do espaço" renascente, Lc Mythc 12. F. Choay, comunicação lnédlta ao seminário de R. Barthc:s,
ae la Renaíssance, 011. cit.• p . 71. Cf. i dem, pp. 7, 3, 72. nf!hro o labirinto, Coll~ge de France, março de 19'79.

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