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5 de outubro de 2016
São os dogmas, as crenças, as práticas que nos interessam, na medida em que
definem e deixam entrever a atitude dos homens e das mulheres da Idade
Média em relação a Deus (LE GOFF, Jacques. In: O Deus da Idade Média. p.
11).
Cristo, que nasceu de Maria, deve ser chamado Deus, e Maria deve ser
denominada ‘a mãe de Deus’. Esta conclusão harmonizava-se com a adoração
à Maria que estava crescendo naquela época. Outros fatores contribuíram
para o mesmo desenvolvimento. Dizia-se [ou se diz ainda hoje], por exemplo,
que Maria não fora contaminada pela mácula do pecado original; também se
afirmava que permanecera virgem durante toda sua vida (HÄGLUND, 2003,
p. 80).
A teologia mariana, no dizer de Le Goff, tem sua origem ligada ao fato de que a
Virgem, ao lado do Bom Deus, “com seu manto protetor”, serve de amparo aos
homens e mulheres sofredores. Aos poucos, a promoção da Virgem leva-a ao
status de divindade. Ela se “… desprendeu de sua natureza feminina para
adquirir esse status divino que era difícil encontrar em um ser feminino (…). O
tema da mãe de Deus (Theo-tókos) por muito tempo essencial em Bizâncio,
desenvolveu-se no Ocidente. (pp. 58 e 59). Também nessa linha de raciocínio, o
professor Israel Batista destaca o início do Culto Mariano por ocasião da
conversão de Clóvis, rei dos francos, ao Cristianismo, em 496. “Os francos
acreditavam em divindades femininas. O Cristianismo trazia divindades
masculinas. [Por isto] é nesta época que a Igreja Católica cria o Culto
Mariano, que é a veneração pela Mãe de Cristo. Era uma forma de tornar a
religião cristã mais acessível aos francos”[6].
Le Goff destaca a relação muito forte entre Maria e o Espírito Santo. Citando
François Boespflug, ele afirma que “… no fim da Idade Média, de um Deus
binário ou trinitário mergulhado no sofrimento com um Deus trinitário ou
mesmo quaternário exaltado na glória, marca a concordância entre as duas
imagens dominantes do deus medieval, a do Deus sofredor e a do Deus como
majestade” (In, LE GOFF, p. 55). E a Pietá [7] (Piedade), de Michelangelo,
escultura feita em 1499, apresenta a Virgem segurando seu Filho sofredor nos
joelhos.
Na Idade Média, “… a promoção da Virgem quase como quarta pessoa da
Trindade foi sancionada pela promoção da Ave Maria[8].” (LE GOOF, Op.
Cit., p. 99). Mas esse assunto merece um estudo à parte[9], tendo em vista sua
complexidade, sobretudo pelos vários títulos que são dados à Maria, pela Igreja
Católica através da história.
4. Santos, anjos, iconografia: um monoteísmo flexível
Como já vimos acima, O Deus da Idade Média é também conhecido como
o Bom Deus. Mas no entendimento do homem medieval, este Bom Deus
suscita heróis em lugar dos heróis pagãos, e estes heróis tornam-se santos,
depois da morte, e como a morte é uma condição privilegiada para o crente
sofredor, a ideia de sofrer e morrer martirizado passa a ser desejada pelos fiéis,
uma vez que “… a santidade cria uma união estreita entre mártir e santo” (p.
30).
O Cristianismo, religião continuadora do Judaísmo, embora pregue o dogma da
Trindade, não deixa de ser monoteísta. Mas na Europa Ocidental, por exemplo,
onde homens e mulheres eram acostumados a se “… rodear de
personagens [seres] sobrenaturais, para não dizer divinas” (LE GOFF, p. 28),
estas pessoas têm dificuldade de entender este monoteísmo que lhes é
apresentado. Os santos, portanto, são estes “… cristãos muito especiais (…),
intermediários entre Deus e os simples fiéis. Os santos a que Peter Brown
chamou magnificamente de ‘mortos privilegiados’ (…) Assim se constitui, com
os santos, com os bons demônios transformados em anjos, essa multiplicidade
de lugares que materializam, no mundo medieval, a onipresença de
Deus” (Idem: pp. 30 e 31).
A presença de anjos e santos na Idade Média não exclui o monoteísmo, embora
paradoxal, pois eles não estão no mesmo espaço e nível de Deus. Além dos
santos, os anjos também estão onde homens e mulheres estão. Há até o “anjo
da guarda”, um anjo especial “… ligado por Deus a cada ser humano, e
encarregado de impedir que ele seja agredido pelo diabo ou que sucumba ao
pecado” (Idem: p. 32).
Destacando a sociedade medieval, o próprio Deus, segundo Le Goff, é
frequentemente representado sob uma aparência real, pelos cristãos, e através
de imagem, um comportamento bastante diferente dos judeus e muçulmanos
que eram “anicônicos’, isto é, recusam imagens e condenam uma
representação de Deus. Mas o Deus cristão, continua Le Goff, pode ser
representado. Até o próprio Carlos Magno, principal rei (imperador) franco, no
II Concílio de Niceia, em 787, aceitou “… as imagens no cristianismo latino,
mantendo-se a igual distância de duas situações externas, a de uma destruição
das imagens, iconoclastia, e, ao contrário, a de uma adoração, de um culto de
imagens, iconodulia. Para os cristãos latinos, romanos, as imagens são um
instrumento de devoção, de homenagem a Deus” (Idem: p. 70).
Embora Le Goff utilize o termo iconodulia, no sentido de “submissão” e não
de “adoração” às imagens, não há como negar a confusão e o precedente que
estas ações doutrinárias (ou dogmas) trouxeram para a sociedade feudal,
sobretudo com a fusão dos costumes francos. Aliás, a partir da “cristianização”
dos francos, o Professor Dr. Fábio Pestana Ramos nos dá conta de que os
francos cooperaram para modificar e criar um projeto de construção da
cristandade na Idade Média. Assim, com a “cristianização” dos francos, muitas
divindades pagãs foram transformadas em santos e mártires cristãos para
conciliar os cultos locais à liturgia católica. Garantidos pela Igreja, tendo a
recompensa do paraíso nos céus, na terra, os santos se tornaram objeto de
veneração e até de culto, conduzindo a uma característica peculiarmente
feudal. O culto das relíquias sagradas e as peregrinações aos lugares santos
surgiram por esta altura, até então não era uma prática bem vista entre
cristãos. O que, posteriormente, faria a alegria dos clérigos a venderem falsas
relíquias e indulgências, aumentando seu poder perante os fiéis (Ramos:
2010).
Referências bibliográficas
BENGT, Hägglund. História da Teologia. Porto Alegre: Concórdia, 2003.
LE GOFF, J. O Deus da Idade Média: conversas com Jean-Luc Pouthier.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.. pp. 9 a 13).
OLIVEIRA, Jorge Gabriel Rodrigues de. O Deus da Idade Média: resenha.
Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro – Revista Signum, 2012, Vol. 13,
nº 2. Disponível em: <file:///C:/Users/Sr%20Alcides/Downloads/74-206-1-
PB.pdf>. Acesso em 29/06/2016.
RAMOS, Fábio Pestana. Os francos modificaram o cristianismo da
antiguidade, criando um projeto de construção da cristandade na Idade
Média. Publicação on-line, 2010. Disponível em:
http://fabiopestanaramos.blogspot.com.br/2010/08/os-francos-
modificaram-o-cristianismo.html. Acesso em 29/09/2016.
SOUSA, Raner. O Deus de Michelangelo. Disponível em:
<http://historiadomundo.uol.com.br/idade-moderna/o-deus-de-
michelangelo.htm>. Acesso em 05/10/2016.
Notas
[1] LE GOFF, J. O Deus da Idade Média: conversas com Jean-Luc Pouthier.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.. pp. 9 a 13).
[2] POUTHIER, Jean-Luc é graduado “… de Línguas Orientais (árabe),
Sciences Po Paris e Jornalistas Centro de Formação, ex-membro da Escola
Francesa de Roma, Doutor em História. Jornalista e professor, foi
Conselheiro Cultural da Embaixada da França junto à Santa Sé. Professor
no Instituto Católico de Paris (ICP), membro da comissão editorial
da revista Estudos…”. Disponível em:
<http://www.centresevres.com/enseignant/pouthier-jean-luc/>. Acesso em
30/08/2016.
[3] LE GOFF, Jacques “foi um historiador francês especialista em Idade
Média. Autor de dezenas de livros e trabalhos, era membro da Escola dos
Annales, empregou-se em antropologia histórica do ocidente medieval”.
Nasceu em Toulon, França, em 1924 e faleceu em Paris, França em 2014.
Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Jacques_Le_Goff>. Acesso
em 30/08/2016.
[4] O Cristianismo tornou-se religião oficial no ano de 392 ou 391? Embora
Le Goff afirme “… que em 392, Teodósio faz do cristianismo a religião do
Estado” (p. 19), nos livros didáticos (de História) e teológicos a afirmação é
que isto ocorreu em 391. Podemos supor, no entanto, que a oficialidade do
Cristianismo seja diferente do tornar-se “religião do Estado” referido por Le
Goff.
[5] SOUSA, Raner. O Deus de Michelangelo. Disponível em:
<http://historiadomundo.uol.com.br/idade-moderna/o-deus-de-
michelangelo.htm>. Acesso em 05/10/2016.
[6] BATISTA, Israel. Império Carolíngio. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=C3gz8tm-BBs>. Acesso em:
26/09/2016.
[7] Pietà, de Michelangelo, imagem disponível em:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Piet%C3%A0_(Michelangelo)>. Acesso em
30/09/2016.
[8] “A fórmula atual da Ave Maria, que se difundiu lentamente, foi
divulgada no breviário publicado em 1568, por ordem do papa Pio V”.
Informações disponíveis em: <http://www.a12.com/santuario-
nacional/formacao/detalhes/como-surgiu-a-oracao-da-ave-maria>. Acesso
e: 29/09/2016.
[9] Merece destaque, por exemplo, o artigo Maria (mãe de Jesus).
In:<https://pt.wikipedia.org/wiki/Maria_(m%C3%A3e_de_Jesus)#T.C3.A
Dtulos>. Acesso em: 26/09/2016.
[10] FRANCO Jr, Hilário. Somos todos da Idade Média.
Disponível em:<https://reflexoesdehistoria.wordpress.com/2011/01/31/so
mos-todos-da-idade-media-por-hilario-franco-junior/>. Acesso em
05/10/2016