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Santo Agostinho
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Michel Maffesoli g
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Hans-Georg Gadamer
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Emmanuel Léuinas
- O a c a s o e a n e c e s s id a d e
Jacques Monod
- Q u e é isto - A filo s o fia ?
Martin Heidegger
- Id e n tid a d e e d ife re n ç a
Martin Heidegger
ISBN 85.326.3084-7
Bibliografia.
04-6476 CDD-113.8
ín d ic e s p u r a c íitá lo ç jo s is t e m á t ic o :
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© 2004, Insel Verlag Frankfurt am Main und Leipzig 1994
Biblioteca Central
0 princípio vida : fundamentos para uma
Ac. 253842 -R . 784190 Ex. 1
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\T. M ) \ 2 ? R S 20 71 - 10 0 7 2 0 0 0
1 i c c n c i a t u r a c m l i l o s o l u - ko. » S e m . M p . i
Sumário
* P re fá cio , 7
ín d ic e , 275
Prefácio
O imenso preço do medo que teve que ser pago desde a origem da
vida, e que aumenta na mesma escala do seu desenvolvimento para for
mas mais elevadas, não permite que deixe de ser levantada a pergunta
pelo sentido de ato tão ousado. Nesta pergunta do ser humano, tão ousa
da quanto a substância que tomou forma na aurora da vida, se configura,
depois de milhões de anos, o caráter originariamente questionável da vida.
É com estes assuntos que uma filosofia da vida tem que ocupar-se.
Ou seja, ela terá que ocupar-se com o organismo com o forma objetiva da
vida, mas também com sua interpretação na auto-reflexão do ser huma
no: esta pertence ao número dos achados da vida, a que cada avanço da
reflexão acrescenta um novo dado. Os estudos aqui reunidos tratam do
-escalonamento das capacidades naturais com que os organismos, de
acordo com as capacidades de que foram dotados - metabolismo, sen
sação, movimento, afeto, percepção, imaginação, espírito -, fazem face
às exigências do mundo, e por outro ladolcom muitas das idéias com que
no decurso de sua história o ser humano tentou encontrar uma resposta
teórica à natureza da vida e à sua própria. O último tema necessariamen
te leva à moral e posteriormente à metafísica.|As análises examinam um
a um estes objetos, mas sem que ofereçam uma teoria completa dos
mesmos, embora esta teoria tenha estado diante dos olhos do autor, ori
entando a concepção dos diversos estágios. Escritos com esta finalida
de, e em parte publicados separadamente a partir de 1950, os diversos
estudos, com o acredito, expressam um ponto de vista comum e repre
sentam diversos aspectos de uma ainda inacabada filosofia do organis
mo e da vida. O autor não se anima ainda a apresentar os diferentes as
pectos desta filosofia sob a forma de um projeto sistemático; mas uma
apresentação mais solta, sob a forma de ensaios, isto é, de tentativas e
análises isoladas, pode transmitir uma idéia do que está tomando forma,
e ao m esm o tem po estabelecer alguns passos no caminho que termina
rá sendo estabelecido.
0 problema da vida e do corpo na doutrina
do ser
Que tenha sido a morte e não a vida a primeira a exigir uma explica
ção, isto é o reflexo de uma situação teórica que perdurou por longo tem
po na história da espécie. Antes de espantar-se com o milagre da vida, o
ser humano espantou-se com a morte e procurou descobrir-lhe o signifi
cado. Se o natural é a vida, se ela é a regra, o que se pode compreender,
então a morte, com o sua aparente negação, é o não-natural, o incompre
ensível, o que não devia ser verdadeiro. A explicação que ela exige preci
sava tornar-se com preensível em termos de vida, a única coisa que so
mos capazes de compreender: de alguma maneira a morte tinha que ser
assimilada à vida. Por isso a questão que a morte levanta está dirigida pa
ra trás e para a frente, para o passado e para o futuro: Quando e por que a
morte entrou no mundo, e com que ela está em contradição, uma vez
que a natureza do mundo é a vida? E para onde ela leva no contexto glo
bal da vida? A morte é a passagem para quê, já que tudo quanto existe é
vida, e a morte em última análise não pode ser diferente? A metafísica
primitiva tenta responder a estas perguntas; ou então as põe em dúvida,
rebelando-se, revoltando-se contra a lei que não consegue compreender,
e deixando-a sem resposta. É a questão de Gilgamesh - a resposta do
culto aos mortos. Assim com o para o ser humano primitivo o saber to
mou forma nos utensílios de pedra, assim também sua reflexão encar-
nou-se nos túmulos, que reconhecem a morte ao mesm o tempo que a
negam. Dos túmulos surgiu a metafísica, sob a forma do mito e da reli
gião. A metafísica procura resolver esta contradição básica, de que tudo
é vida e que toda vida está sujeita à morte. Ela se expõe ao desafio radi
cal, e para salvar a totalidade das coisas, nega a morte.
1 U v$r ^ ‘i: I ,u *‘ j 13
geral.to que permaneceu foi o que sobrou depois que tudo ficou reduzido
às meras propriedades da matéria extensa, sujeitas à medição, e com
isto à matemática. Só estas é que satisfazem ainda às exigências do que
agora é denominado conhecimento exato: tais exigências representam o
que na natureza é capaz de ser conhecido. E com o a única coisa capaz
de ser conhecida, através de uma substituição enganosa elas chegam a
ser consideradas também com o a única coisa real na realidade. O con
ceito do conhecimento determina o conceito da natureza/jMas isto signi
fica que o inerte passou a ser o conhecível por excelência,\a explicação
de tudo, e assim a ser reconhecido também com o a razão d e *ser de todas
as coisas. É o estado “ natural” , da mesma forma que o estado original
das coisas. No ser físico, não só no que diz respeito às relações de quanti
dade, mas no tocante também à sua verdade ontológica, a não-vida é a
regra, e a vida uma exceção e um enigma.
dição levava a uma crise, e quando, isto dependia das circunstâncias his
tóricas particulares com que o universal “motivo da m orte” tinha que ali
ar-se para chegar a dominar o “ motivo da vida” . Mas quando isto aconte
ceu, e quando o monismo ingênuo se decom pôs no dualismo, os traços
característicos da perturbadora experiência particular puderam mais e
mais difundir-se por sobre a imagem do universo físico. A morte, na reali
dade, conquistou a realidade externa.
2 . M a s n e s s e c a s o n e g a n d o (c o m o p ró p rio c o rp o ) ta m b é m os c o rp o s a lh e io s . M a s c o m o
n ós te m o s c o n h e c im e n to d a c o n s c iê n c ia o u d o “ E u ” e s tra n h o u n ic a m e n te a tra v é s d e su a
c o rp o ra lid a d e e e m g e ra l a tra v é s d e m a n ife s ta ç õ e s d o e x te n s o - d o p o n to d e v is ta id e a lis
ta: c o m o p a rte d e n o s sa fe n o m e n a lid a d e e d a s ín te s e q u e d e la fa z e m o s a s s im e s te p o n
to d e v is ta só c o n s e g u e e s c a p a r à C ila d a c o rp o r a lid a d e c a in d o n a C a rib d e d o s o jip s is m o ,
p a ra o n d e , aliás , to d o id e a lis m o c o e re n te e m ú ltim a a n á lis e n ã o p o d e d e ix a r d e le v a r. M a s
o s o lip s is m o , a p e s a r, o u p o r c a u s a , d e su a in v u ln e ra b ilid a d e ló g ic a , é a p e n a s u m tr u q u e
do p e n s a m e n to , n ã o p o s s u in d o s e rie d a d e c o m o p o n to d e v ista o n to ló g ic o - e le c h e g a
r^ e s m o a se r a n e g a ç ã o d e to d a o n to lo g ia .
0 princípio vicia
Mas não estamos aqui diante de uma contradição? Não foi a distin
ção entre ser vivo e sem-vida que tornou possível elaborar-se claramente
o que caracteriza a vida? E não foi isto de utilidade precisamente para o
“espírito”, quando por assim dizer ele atraiu a si o que existia de vida no
universo e em sua interioridade o concentrou na consciência? Se a maté
ria foi por um lado abandonada com o morta, por outro lado a consciên
cia, destacada com o herança da vitalidade animista, deveria ser o reposi
tório da vida, ou mesm o o seu destilado. Mas a vida não admite destila
ção; ela ocupa algum lugar entre os aspectos purificados, lá onde se en
contra sua realização concreta. Abstrações não possuem vida. Na verda
de, repetimos, a consciência pura vive tão pouco quanto a matéria pura
que se lhe opõe, mas em com pensação ela é também tão pouco mortal.
Vive com o vivem os espíritos desencarnados, não conseguindo mais en
tender o mundo. O mundo também morreu para ela, assim com o ela
morreu para o mundo. A antítese dualista não leva ao incremento dos
traços vitais ao concentrar-se em um dos lados, mas sim à morte de am
bos os lados, por terem sido separados do seu centro vivo. E esta morte
se vinga pelo fato de que - mesm o sem falar do enigma da vida - para a
interpretação da regularidade externa nos mpvimentos da matéria a ima
gem de uma causalidade por uma força atuante não encontra mais ne
nhuma justificativa verdadeira em nada do que acontece diretamente.
I - Causalidade e percepção
1 . P o r e x e m p lo , q u a n d o n a te la d o c in e m a v e jo u m p u n h o fe c h a d o a c e r ta n d o u m c o rp o ,
e v e jo e s te c o rp o c a m b a le a r , e n tã o e u p o s s o e n te n d e r a s e q ü ê n c ia e id é tic a c o m o s<~ndo
u m a s e q ü ê n c ia d in â m ic a , p o r q u e a n te s eu já e x p e r im e n te i “n a p ró p ria p e le ” o c h o q u e
re a l d o s c o rp o s .
gação necessária e geral já pressupõe aquilo de que ela deve ser a
a. ou seja, a própria ligação, que ela própria não pode disponibili-
mas que precisa encontrar exemplificada originariamente nos casos
s de ligação determinativa, onde o que “força” a passagem de A para
: experimentado na prática (isto é, experimentado por mim mesmo,
.o um dos relacionados); este ser-forçado, dado inteiramente na ex-
ência particular, é algo totalmente diferente da “ necessidade” das re-
5 que são “obrigadas” a corresponder universalmente a estes casos
rio ri, segundo Kant - em geral: que o fazem de fato, segundo toda
eriência). A regra diz simplesmente: a) que um vínculo de necessida-
:e alguma espécie (e cujo paradigma original na experiência direta é
nas um) atua em cada mudança, m esm o quando não é por nós expe-
entado agindo nem percebendo; b) que vigora uma medida uniforme
2 o vínculo de necessidade de todas as mudanças, ou que todas as
essidades individuais são partes de uma necessidade (ou lei) geral, e
ue esta, por sua vez, é ela própria “necessária”, mas em um sentido
o: necessária não segundo a natureza da necessidade em si (e menos
: 2 da espécie particular que eu experimento em mim m esm o), mas
_:ndo a natureza da “natureza” com o um todo, isto é, caso ela deva
:m a unidade compreensível - ou do ser ou da “experiência”. A dife-
ça é clara. E no entanto este equívoco afeta amplas passagens do ar-
:ento kantiano. Quando eu descrevo com o, procurando desespera-
:ente defender-me, eu sou arrastado por uma corrente cuja força é
:o maior do que a minha, eu estou claramente falando de “necessida-
em um sentido diferente, não-categorial, do que quando falo da “ ne-
=:dade” categorial de uma lei de causalidade universalmente válida,
segundo caso eu falo de uma necessidade da necessidade - de uma
essidade abstrata de necessidades concretas, isto é, da necessidade
ue alguma necessidade ou força (transitiva) atue em cada caso isola-
e que todas estas forças juntas constituam um sistema hom ogêneo,
argumento de Kant refere-se exclusivamente a esta necessidade
>:ransitiva) de segunda ordem, e simplesmente nada tem a ver, nem
; mo implicitamente, com a questão de nossa autêntica experiência
2 usa e efeito em si. Sua negação de tal experiência antecede seu ar-
~ento segundo as premissas de Hume, isto é, segundo a visão tradi-
.al (em última análise cartesiana) da percepção com o uma procissão
:déias” = representações = imagens neutras. Mão acredito que esta
rsição (errônea) seja de vital importância para a verdadeira intenção
2rgumento de Kant. A intenção, se bem a entendo, não é fundamen-
caráter efetivo de causalidade com o tal, nem sua experiência isola-
contingente, mas sim a validade de uma lei universal da causalidade
a experiência com o um todo. Então o que se deveria provar (mas
2 qui não é tarefa nossa) é se o argumento consegue provar isto de
uma forma válida. Qualquer que seja a resposta, uma lei referente à expe
riência jamais pode falar pela própria experiência primária.
2 . P a rte s d e u m a a n á lis e d e s t e t ip o s e r ã o o f e r e c id a s n o 8 o c a p ít u lo e n a p a r t e II d o
9 o c a p ítu lo .
cia de força é depois acrescentada, e do qual efetivamente o fenôm eno
particular se destaca. Este resultado da percepção, a aparente prioridade
do ser permanente sobre o agir ocasional, é uma inversão das efetivas re
lações genéticas, e mais tarde a raiz do problema teórico da causalidade.
O grau em que a relação dinâmico-causal ainda se manifesta ou já
deixa de manifestar-se, e o grau em que uma seqüência de ocorrências é
interpretada com o simultaneidade de presença, pode servir para classifi
car os sentidos no tocante à sua capacidade objetivadora. (Ver o 8o capí
tulo sobre a nobreza do sentido da visão.) Duma análise comparada a vi
são sobressai com o o sentido que de maneira mais com pleta realiza a
neutralização do conteúdo dinâmico, e que mais inequivocamente realiza
a deposição do objeto da função perceptiva. Em toda percepção sensí
vel a autonegação da eficiência causai ocorre em graus diferentes: quan
do um estímulo muito forte ultrapassa com violência a barreira, a percep
ção é reprimida pelo sentimento .de im pacto ou de dor, isto é, ela deixa
propriamente de ser uma percepção. Sobretudo no sentido do tato tor
na-se mais fácil distinguir com clareza a transição dos diversos passos da
apreensão da qualidade para a experiência da pressão, e posteriormente
para o mero em prego da força. Ou, para tomarmos com o exem plo outro
sentido: no caso de uma explosão próxima, a força que atua sobre o ór
gão receptor pode ir além do terreno acústico, e em lugar de simples
mente ouvirmos um som de determinada qualidade e intensidade, nós
nos sentimos assaltados pela violência sofrida, contra a qual som os obri
gados a defender- nos com uma força contrária. E assim com o o barulho
pode ensurdecer, a luz pode cegar quando supera os limites da capacida
de de acom odação do sentido. Assim o mundo, em vez de se apresentar
com clareza, também pode introduzir-se dinamicamente no testemunho
que nos dá de si m esm o e com sua causalidade atropelar a percepção.
Por isso é tarefa da percepção deixar fora de seu registro a causalidade
que participa dela própria, e seu trabalho específico depende precisa
mente da eficiência com que o consiga fazer. No caso do sentido da vi
são o rendimento é perfeito, graças às propriedades dinâmicas da luz e
às ordens de grandeza relativa envolvidas. A aparente inatividade e auto-
fechamento do objeto visto corresponde à aparente inatividade e fecha
mento de quem contempla, embora os dois fenôm enos sejam o resulta
do purificado dos processos de movimento das atividades de conexão.
Sua completa eliminação do produto da imaginação, que no perder sai
ganhando mas que nem por isso deixa de perder, introduz um elemento
de abstração - a abstração da imagem - na constituição interna da per
cepção sensível, e com isso no conhecimento do objeto com o tal.
b) A repressão da causalidade objeto-sujeito na percepção traz consi
go também a repressão da causalidade objeto-objeto - ou da causalidade
em geral dentro do domínio “teórico”, quando esta se forma unicamente
na analogia da percepção. Pois neste caso ela não admite em sua evidên
cia o testemunho do sujeito que atua - aquele saber “interior” aparente
mente inalienável da causalidade sujeito-objeto, que o ser humano, com o
agente, possui em sua interação prática com as coisas: seu testemunho só
é admitido na teoria depois de na percepção haver sido submetido à objeti-
vação, e seu conteúdo - depois de extraída dele a qualidade ativa - ter
sido transformado em uma série de dados. Pela rejeição desta evidência
em sua forma original (rejeição esta com uma longa história no cresci
mento do ideal teórico), a compreensão privou-se da única fonte não-per-
ceptiva, a experiência da força do meu próprio corpo em ação, que por
analogia ainda poderia ter fornecido o elo dinâmico capaz de unificar os
processos observados: processos estes que só foram transformados em
objetos depois de desconectados da realidade do observador, com isto
sendo privados também das características que poderiam explicar sua li
gação mútua. Estabelecer uma separação entre a objetivação e o sujeito
não os deixa menos separados um do outro. O caráter geralmente reprimi
do é força, a qual não é um “dado” mas sim um “ato”, e que por conse
guinte não pode ser “vista” , isto é, objetivada, mas apenas experimentada
por dentro, ao ser exercida ou ao ser sofrida. A neutralização primária des
ta característica pela percepção, que transforma atualidades em dados, é
herdada dos conceitos do entendimento, que levanta seu edifício precisa
mente sobre esta base da objetivação. O entendimento em si, quando os
desnudados objetos dos sentidos lhe são entregues unicamente para se
rem tratados, não pode produzir aquele caráter, nem por seus próprios
meios de ligação criar um substitutivo para eles (aqui Hume tinha razão, e
não Kant). Mas ao desfrutar da vantagem oferecida pela separação na re
lação sujeito-objeto - ou seja, da vantagen da liberdade da teoria ele pre
cisa aceitar também a desvantagem na relação objeto-objeto.
II - Antropomorfismo e teleologia
3 . E v id e n te m e n te , n in g u é m a n ã o s e r u m lo u c o ja m a is d e fe n d e u a s é rio o s o lip s is m o : a r
g u m e n ta r e m fa v o r d e le , s a lv o n o d iá lo g o c o n s ig o m e s m o , s ig n ific a re c o n h e c e r “o o u
tr o ”, c u ja c o n c o r d â n c ia se b u s c a . C o m o d iá lo g o o a r g u m e n to é frív o lo , e o m o n ó lo g o a b
s o lu to é p riv ilé g io d o s lo u c o s . N e n h u m d o s d o is p o d e re iv in d ic a r a v irtu d e d o rig o r c rític o
c o m q u e o s o lip s is m o d e fe n d e su a c a u s a .
maneira especial tem sido ressaltado pelos porta-vozes da ciência des
de seus inícios no século 17, tendo de tal modo passado à condição de
artigo indiscutível de fé da atitude científica que a pergunta direta: “Por
que as causas finais têm que ser excluídas?”, encontra hoje muitos cien
tistas desprovidos de uma resposta satisfatória. Recordar aqui as razões
poderá ser uma contribuição para retirar a aparência de evidência natural
que a máxima veio a adquirir através da posse pura e incontestada e para
trazê-la de volta às condições que justificam sua validade.
Em primeiro lugar temos que observar que a máxima se refere à teleo-
logia entendida com o um modo causai da própria natureza, e que se apli
ca à teleologia imanente e não à transcendente, que o criador do sistema
natural que está aí talvez tenha exercido uma vez, quando a criou para ser
o que é: todo propósito final de sua parte na distribuição inicial da matéria
seria perfeitamente compatível com um modo de atuar estritamente me
cânico desta matéria, que haveria de realizar a intenção do criador precisa
mente desta maneira4. Com a condição de que se declare que é desconhe
cido e em princípio inacessível ao conhecimento, que portanto não pode
ser objeto de pesquisas científicas, o admitir-se um tal propósito final em
nada fere o conceito científico do mundo. Quando a ciência nascente se
ocupou com este aspecto da teleologia, ela limitou-se a denunciar sua for
ma grosseiramente antropocêntrica de um universo feito para proveito do
ser humano. Abstraindo disto, a idéia de um arquiteto divino dono de uma
suprema arte mas com intenções imperscrutáveis foi na realidade benvin-
da à visão mecânica do mundo durante a fase mais importante do seu pri
meiro desenvolvimento.
4 . ü m c a s o p a ra le lo a isto é a te le o lo g ia d e to d a m á q u in a fa b r ic a d a p e lo h o m e m : na dis
p o s iç ã o d e su as p a rte s ela in c o rp o ra u m a c a u s a fin a l q u e o rie n to u se u c o n s tru to r, m a s
se u fu n c io n a m e n to o b e d e c e e x c lu s iv a m e n te às c a u s a s e fic ie n te s c u ja o p e r a ç ã o e s ta v a
p re v is ta n o p la n o . N o u tr a s p a la v ra s , a c a u s a lid a d e fin a l n ã o e s tá c o m o ta l c o lo c a d a n a
m á q u in a , m a s ela foi tra d u z id a e m u m a c a u s a lid a d e e fic ie n te , a q u e d a í p o r d ia n te es tá
c o n fia d a a re a liz a ç ã o d o o b je tiv o .
tentativas de descobrir causas finais na natureza - o que de qualquer ma
neira haveria de justificar o axioma de que em princípio tais causas não
podem ser esperadas e de que em nenhuma hipótese elas deviam ser
procuradas aí. Com a inauguração da ciência moderna, a simples busca
de tais causas foi de repente declarada incompatível com a atitude cientí
fica, e considerada com o um desvio na busca das causas verdadeiras. Só
então, ao se pôr em prática esta atitude, acumularam-se os resultados
negativos, que consistiam concretamente no êxito da explicação que
não recorre a causas finais, o que eqüivale a uma contínua prova de que
é possível prescindir-se delas. Repetimos mais uma vez: a exclusão da te-
leologia não é um resultado indutivo, mas sim um decreto apriorístico da
ciência moderna. Mas só o poderá ser se a teleologia estiver em contradi
ção com o verdadeiro tipo de ser que de antemão é estabelecido para os
possíveis objetos da ciência natural, e com isto também para o conceito
de causa que corresponda a estes objetos.
(Não obstante, jamais se afirmou que “causa final” seja um conceito es
tranho ou abstruso, ou mesmo “antinatural”. Pelo contrário, não existe coisa
que seja mais natural ao espírito humano ou mais familiar à experiência cor
riqueira dos homens: e o que na nova atitude científica falava contra ela era
exatamente isto. O que a torna suspeita é precisamente nossa tendência a
uma explicação final. Francis Bacon considera-a um dos “ídolos tribais”
( idols o fth e tribe), um dos preconceitos inerentes à natureza humana. “E
então acontece que, tentando avançar para o mais distante, o entendimento
humano recai para o que está mais à mão - a saber, para as causas finais,
que claramente fazem parte mais da natureza do ser humano do que da na
tureza do universo, e por sua fonte prejudicaram de maneira estranha a pu
reza da filosofia” 5. Já nesta fase inicial a própria situação - a pouca disposi
ção da natureza para as causas finais - é considerada com o estabelecida,
sem que seja necessário apresentar outros argumentos. Mas é significativo
que a circunstância cuja menção é considerada suficiente para ao leitor inte
ligente desacreditar a teleologia consiste em que as causas finais fazem par
te da natureza do ser humano e não do universo - o que implica que não se
poderia tirar nenhuma conclusão de um para o outro, por sua vez sendo
pressuposta uma diferença fundamental entre as naturezas de um e de ou
tro. Esta é uma suposição fundamental não tanto da ciência moderna em si
quanto da metafísica moderna que lhe presta serviços. Sob o título de res
extensa , a realidade exterior foi totalmente desvinculada do mundo interior
do pensamento, passando depois a constituir um campo auto-suficiente
para a aplicação universal da análise matemática e mecânica: a própria
idéia de “objeto” teve que passar por uma transformação através do expur
go dualista.lEstreitamente ligado a este processo está o monopólio episte
mológico que passou a ser reconhecido para a modalidade perceptiva do
5 . F ra n c is B a c o n , Novum Organum, I 4 8 .
conhecimento, isto é, do conhecimento exterior sobretudo de acordo com o
modelo da visão: “Objetividade”, por conseguinte, passa a ser a elaboração
dos dados exteriores dos sentidos segundo suas propriedades extensionais.
Outras modalidades possíveis da relação com a realidade, com o por exem
plo a comunicação entre vida e vida, ou a experiência do choque e da resis
tência das coisas no esforço corporal, passaram para segundo plano em re
lação ao ideal do conhecimento exato, deixando de ser levados em conta.
Este predomínio exclusivo da percepção distanciadora e objetivante, de par
com a separação dualista entre sujeito e objeto considerados com o dois rei
nos heterogêneos, levou a que fosse rigorosamente rejeitada toda transfe
rência de caracteres da experiência interior para a interpretação do mundo
exterior (embora mais tarde a violação contrária de fronteira no sentido con
trário por parte da psicologia materialista tenha sucumbido em grau bem
menor a este tabu). Em todo caso o antropomorfismo, e mesmo o zoomor-
fismo em geral, passou a ser considerado com o uma traição à ciência. Nes
ta constelação dualista nós nos deparamos com a “natureza do ser huma
no” com o uma fonte de impurezas para a “filosofia” (isto é, para a ciência
natural), e a objeção levantada contra a explicação final é o fato de ela ser
antropomórfica.
Desta forma a luta contra a teleologia é uma fase da luta contra o an
tropomorfismo, em si tão antiga quanto a ciência ocidental. A crítica que
teve início com a condenação jônica da personificação mitológica che
gou agora, sob o novo impulso do dualismo científico, a descobrir nódoas
m esm o sob a forma muito mais subtil do finalismo aristotélico. Mas uma
vez posto em marcha, o argumento não parou por aqui: foi aplicado mes
mo às causas eficientes, em favor das quais as causas finais haviam sido
banidas. Depois de Hume a idéia de força e conexão necessária passa a
ser alheia ao testemunho das coisas, nascendo de certas impressões inter
nas do espírito referentes ao seu próprio trabalho: projetá-la sobre o que
encontramos nas coisas é, pois, mais um caso daquele projetar sobre a
natureza os aspectos da auto-experiência humana subjetiva, que havia
sido proscrito pela ciência objetiva. Mesmo não se aceitando a teoria es
pecial de Hume sobre a origem destas idéias, continua sendo verdade
que os conceitos de força e causa surgem de um tipo de experiência que
(nas palavras de Locke) além de “impressões da sensação” , envolvem
“impressões da reflexão” , pois efetivamente aqueles conceitos usam o
conhecimento do sujeito e sua própria maneira de ser afetado (com o por
exem plo a autopercepção do esforço muscular) com o parte do conteú
do da experiência integral do objeto. Precisamente este elemento “subje
tivo” é suficiente para infiltrar aqueles conceitos no âmbito dos meros ob
jetos submetidos ao veredicto geral do antropomorfismo.
« A ciência deixou-se levar pela inclinação da filosofia ao ceticismo. A
teoria física distanciou-se do conceito esclarecedor da força, por conside
rá-lo antropomórfico e não verificável por uma mera medição da realida
de, e restringiu suas exigências ao registrar as sucessivas posições em um
sistema espaço-temporal de coordenadas, e a formular com o “leis da na
tureza” as regularidades quantitativas destas seqüências. Renunciou-se,
pois, à explicação a bem de uma mera descrição que, ao atribuir valores
quantitativos às posições e mudanças de posição no contínuo extenso, e ao
considerar estes valores como as próprias entidades, passa a ser uma descri
ção puramente matemática. Desta forma renunciou-se inteiramente a buscar
as forças-motrizes, bem com o as formas substanciais - isto é, depois da
explicação final também foi para o lixo a explicação causai; na realidade a
própria idéia de uma explicação foi para o espaço quando na teoria do co
nhecimento o movimento antiantropomórfico chegou à plenitude.;
Neste movimento manifesta-se, pois, uma dialética profunda. Foi des
cartada em primeiro lugar a personificação mítica, e posteriormente a teleo
logia impessoal, a fim de limpar o terreno para uma verdadeira explica
ção da natureza: de acordo com o conceito da causa eficiente, esta expli
cação ainda era dependente de um resquício do desprezado animismo,
isto é, da universal interpolação das idéias de força e de causa na imagem
do mundo - uma interpolação através da qual estes elementos da experiên
cia pessoal do esforço e do movimento tornaram-se disponíveis com o um
tecido unindo os fenômenos naturais observados. Com a exclusão total do
animismo a ciência retirou de sob os seus próprios pés aquele mesmo chão
que antes, por uma repressão parcial do animismo, ela havia conquistado
para a explicação racionalJ O longo caminho do animismo primordial, que
passando pelo dualismo chegou até o materialismo pós-dualista, termina na
renúncia agnóstica à idéia do saber como uma compreensão de seus objetos.
Isto, ironicamente, ocorreu no momento em que, com a renúncia ao dua
lismo, deixava de existir a compulsão metafísica para um modelo estrita
mente desvitalizado da natureza. |
De todas as esferas do ser, foi o mundo dos seres vivos que por mais
tempo resistiu a esta idéia da origem, só no século 19 a teoria da evolu
ção conseguindo subordinar a vida ao esquem a geral de tratamento.
Quais foram as dificuldades especiais?! Para Descartes, os corpos dos
animais eram máquinas ( “autômatos” ) construídas de forma a funcionar
da maneira com o funcionam,^ e embora, por serem automáticos, não
atue neles nem uma inteligência nem uma vontade final, sua constru
ção parecia não obstante postular em seu autor exatamente estas quali
dades. Mas se de acordo com esta nova maneira de ver a tarefa construti
va deve ser atribuída à própria matéria, então no caso do organismo - di
ferentemente da estrutura cósmica, majestosamente simples - é exata
mente o sucesso de sua análise científica que se opõe à verificação desta
nova maneira de ver. Pois quanto mais maravilhosa se manifestou a
construção destas estruturas, tanto menos seu surgimento pareceu ca
paz de ser entendido sem um propósito planificador; propósito este,
além do mais, que supera em tal medida toda perspicácia humana quan
to as máquinas naturais se demonstram superiores às máquinas fabrica
das pelo ser humano. Se não for admitido um plano ou uma meta teleoló-
gica, a probabilidade de tais organismos surgirem casualm ente não é
maior do que a do célebre experimento mental de macacos, batendo ce
gamente nos teclados, criarem numa máquina de escrever toda a litera
tura mundial. A com paração é válida na medida em que se pressuponha
a imutabilidade das espécies, e por conseguinte o surgimento isolado de
cada uma delas.
O problema torna-se ainda mais complexo pelo fato de que no caso
destas estruturas mecânicas, isto é, dos organismos, ao contrário das es
truturas cósmicas mais permanentes, a todo momento nós observamos
seu evoluir nos exemplares isolados. Mais que em qualquer outro caso, a
gênese faz parte aqui da imagem completa da própria entidade; mas a gê
nese de que falamos difere decididamente do m odelo mecanicista. Pois
no surgir constantem ente repetido de indivíduos altamente organizados
a partir de germes extremamente pequenos parece encontrar-se uma evi
dência direta da execução de um plano de crescimento e desenvolvimento
predeterminado. Deste modo, precisamente a idéia de “evolução” , sugeri
3 . o :* « % ' " y ò V A i
4 . M a s p a ra q u e d e s e m p e n h e u m p a p e l in s tru m e n ta l, a ra z ã o - isto é, o p e n s a m e n to -
d e v e p o s s u ir fo rç a c a u s a i, o q u e , a o q u e s tio n a r a a u ta rq u ia d o m a te r ia lis m o , le v a n ta to d a
a q u e s tã o d o d e te r m in is m o a e le a s s o c ia d o ; v e r a p ê n d ic e a o 7 o c a p ítu lo .
5 . C f. c a p ítu lo 1 0 , s o b re tu d o a p a rte III.
do explicitamente para o reino vivo aquela ligação entre necessidade na
tural e contingência radical, estabelecida universalmente na cosm ologia
de Newton-Laplace com o resultado daquela revolução. A combinação de
necessidade e acaso parece ser um paradoxo. Pois o primeiro aspecto do
universo que se destacou no esquema da moderna ciência natural foi a
estrita hegemonia da lei da causalidade na ação, e por conseguinte no vir-
a-ser das coisas, e esta hegemonia parece excluir da natureza todo tipo de
contingência.
3. D esvio e seleçã o: ev o lu çã o c o m o “p a to lo g ia ”
2. Os a u tô m a to s a nim a is de D escartes
Com isto só restava a velha idéia - tanto estóica com o cristã - de que
plantas e animais existem por causa do ser humano. Efetivamente, uma
vez que a existência de um mundo vivo é condição necessária para a
existência de cada um dos seus membros, bastaria que um só de seus
membros (= gêneros) fosse um fim em si m esm o para justificar a existên
cia do todo. No estoicismo o ser humano fornece este fim pela posse da
razão, que o coloca no ponto mais alto da escala terrena do ser, que além
disto também possui um fim em si mesmo em todos os seus graus (= fim
com o o melhor entre muitos que, nos seus diferentes graus, são todos
eles bons); no cristianismo o ser humano representa o fim por possuir
uma alma imortal que faz dele a única imagem de Deus na criação (= fim
com o o único que importa para o todo); e o dualismo cartesiano radicali
zou esta última posição, ao fazer do ser humano o possuidor único de
qualquer interioridade ou “alm a” de qualquer espécie - e com isto o úni
co ser a que tem sentido atribuir-se um “fim ” , já que só ele é capaz de se
propor fins. Toda a vida restante, com o produto da necessidade física,
pode ser considerada com o um meio para o ser humano.
1 3 . D e s ta s u p e rflu id a d e te ó ric a , B e r k e le y te r m in o u p o r c o n c lu ir q u e os c o rp o s n ã o p a s
s a m d e re p re s e n ta ç õ e s e s p iritu a is ( perceptions).
1 4 . V a le a p e n a a te n ta r-s e p a ra a p ro fu n d a m u d a n ç a p o r q u e p a s s o u o c o n c e ito d e “a lm a ”:
ela d e ix o u d e se r o p rin c íp io d a v id a , e p o rta n to da a tiv id a d e , e tra n s fo rm o u -s e e m u m p rin
c íp io d a p u ra s u b je tiv id a d e - m a is u m a d im e n s ã o d o q u e u m p rin c íp io - , e c o m o tal e m
a lg o q u e e s s e n c ia lm e n te c a re c e d e p o d e r. E n is to q u e d e v e m o s p e n s a r q u a n d o c o n s id e ra
m o s as d u a s tes es c a rte s ia n a s in te rlig a d a s e n tre si, d e q u e a “v id a ” é u m fa to u n ic a m e n te
d a fís ica , e a “a lm a ” u m fa to u n ic a m e n te d o h o m e m ; d e a c o rd o c o m a p rim e ira te s e , a v id a
é u m c o m p o r ta m e n to p a rtic u la r d o c o rp o e m c o n s e q ü ê n c ia d e u m a e s tru tu ra c o rp o ra l p a r
tic u la r q u e d is tin g u e u m a c lass e d e o b je to s n a n a tu re z a , a dos a u tô m a to s n a tu ra is ; d e a c o r
d o c o m a s e g u n d a te s e , a “a lm a ” - e q u ip a r a d a à c o n s c iê n c ia , q u a lq u e r q u e se ja a e s p é c ie
d e s ta , q u e r se ja a c a p a c id a d e d e se n tir, d e d e s e ja r, d e p e rc e b e r o u d e p e n s a r (anima =
mens = cogitatio) - n ã o é e x ig id a p a ra n e n h u m a e s p é c ie d e fu n ç ã o fís ica , e p o r c o n s e g u in
te ta m b é m n ã o p a ra a v id a ; ela es tá a u s e n te n o s a n im a is e p re s e n te n o h o m e m , m a s m e s
m o n o c a s o d e ste n ã o é u m p rin c íp io d e “v id a ”, q u e d e q u a lq u e r m a n e ira p e rm a n e c e u m
fe n ô m e n o e s tru tu ra l-c o m p o rta m e n ta l. C f. a c a rta d e D e s c a rte s a R eg iu s, d e m a io d e 1 6 4 1
(A d a m -T a n n e r y 111, 3 7 0 s s ), o n d e e le e x p re s s a m e n te reje ita a id é ia tra d ic io n a l d a s d iv e rs a s
e s p é c ie s d e a lm a s - a lm a v e g e ta tiv a , a lm a se n s itiv a , a lm a ra c io n a l - , e a firm a q u e as d u a s
p rim e ira s , a c a p a c id a d e d e c re s c e r e d e lo c o m o v e r-s e , q u e o h o m e m c o m p a r tilh a c o m os
a n im a is , é “ío to genere d iv e rs a d o e s p írito ” e “n ã o é o u tra co isa a n ã o s e r u m a c e rta o rd e
n a ç ã o d a s p a rte s d e seu c o rp o ”.
m over um membro, já que este, sendo parte do mundo extenso, só pode
ria m over-se quando o m o vim en to lhe fosse transm itido por outro
corp o15. E, não obstante: depois de havermos aprendido pela teoria que
isto não pode acontecer, nós continuamos a sentir que som os capazes
de movimentar nossos braços “à vontade”. A o mesmo tempo que nega
va validade a esta certeza primária, a teoria não podia deixar de expli-
cá-la. A “violência” da especulação metafísica depois de Descartes, que
desafiava a razão comum mais do que qualquer outra teoria anterior, e
por isso mesmo exigia uma maior inventividade para executar com êxito
sua coreografia, pode ser explicada em parte pela enormidade do que ela
tinha que defender16. O “problema psicofísico” - o preço a pagar pela re
1 . O m é to d o d e B a c o n , re fe rid o à n a tu re z a “e m a ç ã o ”, e r r o n e a m e n te p o s tu la v a isto, a té
m e s m o c o m o u m re s u lta d o a u to m á tic o d a o b s e rv a ç ã o rig o ro s a , d a c o m p a r a ç ã o e d a
c la s s ific a ç ã o .
melhança ou dessemelhança pode ser usado à vontade, o dos funda
mentos ou das condições, se de alguma maneira estiver em correspon
dência com o ser, obriga a que o pensamento assuma certos com pro
missos, e isto quer dizer que, quando o utiliza, o pensamento ou acerta o
alvo ou não o acerta, ele só pode ser ou verdadeiro ou falso, e só um dos
dois pode ser usado, isto é, o pensamento, ao utilizá-lo, conta ao m esm o
tempo com a possibilidade de chegar ao conhecimento e com o risco de
errar. Por parte do ser, no entanto, esta condição significa que o ser está
ligado a si mesmo, que ele forma uma união ou concatenação de depen
dências e, na medida em que esta ligação alcança, ele é um todo e não
apenas uma multiplicidade. Por isso a possibilidade de sistemas teóricos
parece pressupor a realidade de sistemas de coisas e a idéia de um siste
ma global do saber, ou de um conhecimento sistemático do todo, a idéia
de toda a realidade com o um sistema.
Apresentamos um exem plo intuitivo do que foi dito até aqui, ao mes
mo tempo que consideramos mais detidamente a questão concreta com
que vimos nos ocupando. Sendo múltiplo, todo sistema consistirá pelo
menos de dois corpos, de que as estrelas duplas são o exemplo mais co
mum. Foi também no sistema solar, que consiste de um pequeno núme
ro de membros, que a astronomia forneceu à mecânica moderna o pro
tótipo de um sistema natural plenamente analisável. Este modelo possui
diversas vantagens excepcionais para os objetivos da teoria: é um siste
ma com um pequeno número de componentes, possui uma disposição
permanente e clara, é fechado para fora em virtude do isolamento espa
cial, possui determinação interna completa, suas grandezas e m ovim en
tos podem perfeitamente ser calculados. Dentre as vantagens excepcio
nais para as finalidades da teoria que este m odelo possui, consideremos
por um momento o da perfeita periodicidade. Todo período inclui uma
série de modificações, e logo surge a questão de saber se no conceito de
unidade é necessário que à multiplicidade dos elementos se acrescente
também a multiplicidade dos estados, isto é, que se considere além da
multiplicidade no espaço também a multiplicidade no tempo. Este seria
o caso se os estados sucessivos fossem partes do todo. E o seriam, se
cada um deles, ao realizar-se, acrescentasse alguma coisa ao todo, desta
maneira completando-o; se, portanto, através precisamente da mutiplici-
dade qualitativa da série, o todo adquirisse sucessivamente sua plenitu
de, passando a ser o todo especial que ele é. Pois a multiplicidade dos
elementos simultâneos dos quais o sistema consiste possui este sentido
de parte: aqui, qualquer “mais” ou qualquer “m enos” faz diferença para o
todo, e o sistema passa a ser diferente com a presença ou a ausência de
cada parte? Pois bem, de uma vida pode-se efetivamente dizer que ela se
com põe dos momentos em que é vivida; que no germinar, no crescer, no
florescer e no frutificar, na infância, juventude, meia idade e velhice, ela
cada vez é outra; cada uma de suas fases, ou mesm o cada um de seus
momentos, acrescenta-lhe algo de novo que não estava contido no que o
antecedeu, portanto não é apenas uma transformação da mesma coisa;
m esm o na repetição dos ciclos de experiência (com o alimentação e ex
creção, vigília e sono, etc.), o passado já vivido - a idade do sujeito - está
presente com o um pano de fundo, e isto faz com que este momento seja
mente diferente, passe a ser elemento de uma série única e ir-
icvcioivci^ sendo assim, a vida jamais atinge sua totalidade a não ser na
série de todos os seus estados; sua identidade não consiste na equivalên
cia dos membros de sua série temporal, mas precisamente naquilo que
confere coesão à sua multiplicidade. Todas estas coisas podem ser afir
madas sobre a vida, mas não ser afirmadas a respeito da série temporal
de um sistema com o o sistema planetário. Pois este é imaginado precisa
mente com o sendo plenam ente definido por seus elem entos simultâ
neos, de maneira que qualquer seção através de sua série temporal con
tém em sua análise vetorial o todo, já que todas as seções, isto é, todas as
simultaneidades, se eqüivalem umas às outras, qualquer uma pode ser
considerada com o representativa de toda a série. É sobre isto que se ba
seia o fato científico de que uma configuração momentânea, se completa
mente analisada, é suficiente para definir a série inteira e para predizermos
com exatidão qualquer posição que desejemos. Aqui, por conseguinte, os
estados mutáveis não são “partes” do todo, a série temporal não é uma
multiplicidade que se adicione à sua unidade, mas apenas a expressão
continuada de uma multiplicidade espacial dada de uma vez por to
das. Com isto a “não-historicidade” fica determinada com mais precisão.
Qualquer destas coisas que se diga do sistema, quando aplicado à vida,
não pode deixar de provocar sérias dificuldades teóricas^
Ora, m esm o no sistem a planetário a não-historicidade, funda
mentada na perfeita harmonia (e que se apresenta com o perfeita perio
dicidade), poderia ser apenas uma aparência, pelo fato de se aplicarem
as escalas humanas de duração. De acordo com a lei da entropia, os as
pectos termodinâmicos possuem caráter não-reversível, e por conse
guinte comunicam a cada m om ento uma unicidade que está em contra
dição com a periodicidade. Mas m esm o que não levem os isto em conta e
permaneçamos no puramente mecânico, a aparente repetição poderia
ser um atalho para uma variação deste tipo (por exemplo, se a elipse pla
netária da lei de Kepler escondesse uma espiral imperceptível), seu cons
tante progresso transformaria a aparente prova do equilíbrio (e da perfei
ta componibilidade do múltiplo no uno) no seu contrário, isto é, em últi
ma análise na prova de que o sistema é incapaz de existir. De acordo
com os conhecimentos modernos não se trata de uma mera possibilida
de, mas para a concepção do sentido do sistema isto abre a interessante
idéia de que o que a ontologia clássica, e Leibniz em sua teodicéia, consi
derava com o a justificativa do que existe com base na idéia do ser, e ao
m esm o tem po com o a garantia de sua existência, a saber, a existência
do sistema harmônico com o tal, é na verdade a prolongada história de
sua auto-refutação, a prova adiada da impossibilidade de existência do
“uno no múltiplo” , um caminho cheio de rodeios para o nada do igual e
do indiferenciado. O sistema seria aqui o retardamento, mas também o
caminho, de modo que à determinação anteriormente mencionada, de
que ele é um meio termo entre o simples e o infinitamente múltiplo, nós
devem os acrescentar outra mais crítica, de que o sistema é um meio ter
mo entre o devir e o perecer, entre o ser e o não-ser/üm meio-termo, po
rém, não no sentido indiferente de ele simplesmente se encontrar entre
duas coisas, e sim no sentido crítico de manter o equilíbrio, de que pelo
fato de existir ele detém a queda, mas que no próprio exercício de sua
função repetidora ele não pode deixar de ir caindo, já que só pela queda
pode conseguir os meios para detê-la, tendo a cada momento que repre
sentar o “m eio” em um ponto mais rio abaixo! Vara a vida, sempre am ea
çada pela morte a que termina por sucumbir, este aspecto do sistema
possui algo singularmente adequado; só não se deve perder de vista que
ele coloca o sentido da organização na conservação, e que só admite
algo novo no já organizado sob a forma da decadência. De fato, em face
da posição central ocupada pela autoconservação na doutrina moderna
da vida, podemos dizer que a adequação do conceito de sistema para
compreender a vida chega até onde chega o conceito da conservação, e
que compartilha de seus limites. Mossas observações finais versarão so
bre a relação entre estes dois conceitos, relação que em última análise é
transmitida pelo conceito do equilíbrio, que constitui a versão modefna
e desencantada do antigo conceito da harmonia.
A primeira aplicação moderna do conceito de sistema aos corpos vi
vos deve ser vista na teoria de Descartes do organismo animal com o
uma máquina ou um autômato natural, superior às criações da arte m e
cânica unicamente pela multiplicidade e pela pequenez de suas partes. A
relação destes autômatos com o ambiente, que os diferencia do m eca
nismo fechado do relógio, Descartes procurou explicá-la por meio de
uma teoria dos reflexos (apresentada nas “Passions de l ’â m e ”), que
para explicar a “aprendizagem” sem recorrer à teleologia chega a anteci
par o conceito de reflexos condicionados, isto é, de conexões senso-moto-
ras modificadas mecanicamente por estímulos externos. Não obstante, a
concepção cartesiana repousa essencialmente sobre o modelo clássico
do mecanismo com o sistema individualmente fechado e isolável. O que
é significativo em relação a doutrinas mais antigas é que este mecanis
mo pode “viver” sem “alma”, isto é, pode - e tem que - exercer todas as
funções ligadas ao processo vital graças à disposição de suas partes. O
efeito global destas funções é a autoconservação, e os sistemas foram
construídos para produzirem este efeito.
I - Levantando a pergunta
Compare-se com isto a con cep ção judeu-cristã que ocupou seu lu
gar. O mundo criado do Gênesis não é Deus, nem deve ser venerado
em lugar de Deus. Ele tam bém não tem uma alma própria que explique
sua atividade e sua ordem, sim plesm ente ele é criado, em nenhum sen
tido é criador. O m onoteísm o judeu eliminou todos os deuses naturais e
todos os seres intermediários, estabelecendo uma nítida separação en
tre Deus e o mundo. A hierarquia cristã dos anjos e dos santos não su
perou o fosso existente entre Deus e o mundo, mas sim o fosso entre
Deus e a alma humana, a qual - sem pertencer à ordem da natureza -
compartilhava o caráter sobrenatural daqueles seres. De fato a alma
humana é o único ser no mundo - mas não do mundo - que foi criado
por Deus, ou m esm o que foi criado de Deus, e que por isso é em certo
sentido divina, ao passo que céus e terra, e todo o seu exército, são obra
de suas mãos, e não sua im agem 8. A separação essencial entre Deus e o
mundo repete-se ou reflete-se na separação essencial entre espírito e na
tureza. A natureza, criada do nada, carece de espírito e executa cega
mente a vontade de Deus, por quem unicamente ela subsiste. Desta for
ma tornou-se metafisicamente possível a idéia de uma natureza sem es
pírito, ou “c ega ” , que não obstante comporta-se com lei - isto é, contém
uma ordem inteligível sem que possua entendimento.
A condição para isto ser possível era que a “alma” fosse riscada do
texto da natureza, e isto por sua vez só era possível na medida em que na
explicação universal da natureza a alma não fosse necessária com o causa
do movimento. De fato, a alma em uma natureza sem espírito haveria de
ser uma fonte de irracionalidade, iria favorecer não a lei mas a desordem.
Ora, o que aconteceu foi que o monoteísmo transcendente, ao abolir os
deuses naturais e as forças divinas no mundo, favoreceu de maneira deci
siva justamente a eliminação da alma do sistema dos princípios naturais, e
o mesmo monoteísmo provocou além disto o nivelamento da hierarquia
intramundana do ser, ao reduzir toda a natureza à igualdade da “criação”:
estrelas e pó, natureza celeste e natureza terrestre, são, com o criaturas,
iguais perante Deus. Por fim, logo que o m o v im e n to foi entendido com o
um dote inicial da natureza, e que ele se conserva a si próprio sem exigir
nenhuma outra espontaneidade de sua parte, pôde surgir também a ima
gem de uma natureza não apenas sem espírito mas também sem alma,
isto é, de uma natureza que não apenas é inteligível sem possuir entendi
mento, mas que também se m ove sem ser viva.
Mas nós vimos que não apenas o espírito mas também a alma, e por
conseguinte a vida, passaram a ser supérfluos para o conhecimento da
natureza. Movimento sem alma envolve força sem tendência, de onde re
sultam formas que não foram visadas. A “força” é em todos os casos
conservativa, isto é, uma constante quantitativa que se transmite de m o
mento para momento, em uma série sem fim. Mas com o vida significa
movimento espontâneo e que tende para uma meta, ao passo que a
nova com preensão científica só reconhece movimento conservativo, re
sulta ainda este outro paradoxo, de que não apenas o sem-espírito mas
também o sem-vida passa a ser o compreensível em si, e a “matéria mor
ta” passa a ser a medida de toda compreensibilidade. Mas na medida em
que a “vida” , não obstante, é encontrada com o um fato dentro da totali
dade dos fatos físicos, compreendê-la significa precisamente adequá-la a
este padrão, isto é, explicá-la por meio dos conceitos do não-vivo. A teo
ria de Descartes, do organismo com o máquina, do autômato animal (a
exceção do ser humano não passa de outra inconseqüência) é, portanto,
uma conseqüência lógica e inevitável de toda a sua posição metafísica e
epistemológica, que para além do seu momento histórico delimitou o ce
nário para a ciência moderna. O “ L’homme machine” de La Mettrie
(com o também o moderno behaviorismo) é uma herança do dualismo
cartesiano privado de sua metade espiritual. E com o a ciência moderna,
com o ciência quantitativa e de medida, continua a ser apresentada no
palco em que por primeiro apareceu, o palco de uma natureza essencial
Mais uma vez teremos que dizer aqui que a visão do divino matemáti
co é menos corporal e colorida do que a nossa. teremos também,
com o antes, de admitir que poderia ser mais verdadeira? Certamente
não neste caso, e aqui nós nos encontramos em solo firme, pois aqui,
graças à circunstância de nós mesmos sermos corpos vivos, dispomos
de um conhecimento a partir de dentro. Graças ao testemunho direto do
nosso corpo podem os dizer o que nenhum espectador sem corpo teria
condições de dizer: que ao Deus matemático, em sua visão analítica ho
mogênea, escapa o ponto decisivo - o ponto da própria vida: a saber,
que ela é individualidade autocentrada, existindo para si e em oposição a
todo o resto do mundo, com um limite essencial entre o dentro e o forâ^-
apesar da troca efetiva, ou m esm o baseada nela. Para qualquer outra for
ma de agregado pode ser correto dizer que a unidade visível que a faz
aparecer com o um todo nada mais é do que o produto de nossa percep
ção dos sentidos, que portanto ela não possu{'status on tológico mas
apenas fenom enológico> Sua identidade com o “esta coisa” - esta pedra,
esta gota de água - baseia-se então na relativa constância da agregação
e em última análise pode ser reduzida às identidades imediatas das par
tes: uma identidade emprestada e mediata, que desaparece quando
aquelas se separam, ao passo que a das partes primárias é imaginada
com o inalienáveí\Mas então acontece que no ser vivo a natureza espe-
ra-nos com uma surpresa ontológica, onde o acaso das condições terre
nas traz à luz uma possibilidade de ser inteiramente nova: a possibilidade
dos sistemas materiais de serem unidades do múltiplo não graças a
uma contemplação sintética de que elas justamente são objeto, nem gra
ças ao mero encontro das forças que unem suas partes umas às outras,
mas sim graças a elas mesmas, por causa delas mesmas e sustentadas
continuamente por elas mesmas. A integridade é aqui auto-integrativa
em realização ativa: forma não é resultado mas sim causa das acumula
ções materiais de que ela consiste em momentos sucessivos. Unidade é
aqui auto-unitiva por meio da multiplicidade que se transforma.^Mesmi-
dade, enquanto dura, é permanente auto-renovação por meio de proces-
so, sustentada no fluxo do sempre outro. E só esta auto-integração ativa
da vida que nos fornece o conceito ontológico do indivíduo, em oposição
ao meramente fen om en ológico^
1. A u to n o m ia e in d ep en d ên cia da form a
A identidade orgânica, pelo contrário, tem que ser de uma espécie in
teiramente diferente. Na precária continuidade metabólica da forma or
gânica, com sua permanente troca das partes que a constituem, não se
encontra à disposição com o pólo de referência da identidade exterior ne
nhum substrato permanente - nem uma “trajetória” isolada nem um “fei
xe” de trajetórias. Uma identidade interior do todo que ultrapasse a identi
dade coletiva do substrato que a cada momento se faz presente e desa -
parece tem que incluir a seqüência mutante. Tal identidade interior está
implícita na aventura da forma, involuntariamente sendo induzida de
seu testemunho m orfológico exterior, o único acessível à observação.
Mas que espécie de indução é esta? E quem é que a realiza? Com o pode o
observador desprevenido deduzir o que não resulta de nenhuma análise
do conteúdo físico? Na verdade, o observador despreparado não o pode:
o observador tem que estar preparado, com o não o está o hipotético
“matemático puro” . O observador da vida tem que estar preparado atra
vés da vida. Noutras palavras, dele se exige o ser orgânico com sua expe
riência própria, para que esteja em condições de deduzir aquela “conse
qüência” que de fato ele tira continuamente, e esta é a vantagem, tão tei
mosamente negada ou caluniada, da história da teoria do conhecimento
- a vantagem de termos um corpo, ou de sermos corpo. Em suma, nós
estamos preparados por aquilo que somos, é ó por meio da interpolação
da identidade interior, que assim se torna possível, é que o fato m era
m ente m o rfo ló g ico (e c o m o tal carente d e sen tido) da continuidade
metabólica é com preendido com o ato incessante, isto é, a continuidade
é compreendida com o autocontinuação.^ V
1. Liberda de e n ecessidade
3. A dim en sã o da in teriorid a d e
Ç
Em terceiro lugar, esta transcendência inclui interioridade ou subjeti
vidade, que em bebe todos os encontros que ocorrem dentro de seu hori
zonte com a qualidade da mesmidade sentida, por mais fraca que seja
sua voz >E1a tem que estar presente, para que possa existir uma diferença
entre satisfação e frustração. Quer chamemos esta interioridade de sen
sação, sensibilidade e resposta a estímulos, busca ou tendência - em cer
to grau (m esm o infinitesimal) de percepção sensitiva ela abriga o interes
se absoluto do organismo em sua própria existência e em sua preserva
ção - isto é, ela é “egocêntrica” ao m esm o tem po que supera o fosso
qualitativo em relação ao resto das coisas através de modos de relação
eletiva, que com sua peculiaridade e urgência substituem para o organis
mo o lugar da integração geral das coisas materiais em sua vizinhança fí
sica. Em parte isto repete o que foi dito antes sobre a autotranscendência
da vida.^Mas o horizonte aberto significa afetabilidade tanto quanto es
pontaneidade, expor-se ao exterior não menos que chegar ao exterior: é
só pelo fato de a vida ser sensitiva que ela pode ser ativa) No ser-afetado
por um estranho, o afetado sente-se a si próprio; sua mesmidade é esti
mulada e com o que iluminada pela outridade do fora, desta maneira des
tacando-se em seu isolamento. Mas ao m esm o tempo, ultrapassando o
estado de excitação meramente interior, e através dele, é sentida a pre
sença do afetante, sua mensagem, por mais ç^scura que seja, é assumi
da na interioridade com o a mensagem do outro>Com o primeiro desper
tar do estítmulo subjetivo, com a mais rudimentar de todas as experiên
cias, a do toque, abre-se uma fenda na taciturnidade do ser dividido e li
berta-se uma dimensão onde as coisas ganham um ser novo e multiplica
do no m odo do objeto: é a dimensão da interioridade representativa. As
sim com o o interesse impelido pela necessidade procura o outro, assim
também a presença não-convidada do outro desperta o interesse. Mas
m esm o a presença não-convidada está prevista na prontidão do organis
mo para o encontro em si; e m esm o a rejeição através do agir pressupõe
a apropriação (isto é, interiorização) através da sensação. É verdade
que a autotranscendência tem seu fundamento na necessidade orgânica
e por isso é uma coisa só com a compulsão para a atividade: ela é movi
mento para fora; mas a receptividade da sensação, para o que vem de
fora, este lado passivo da mesma transcendência, coloca a vida no estado
de ser “eletiva” e “informada” , em lugar de ser apenas uma cega dinâmica.
Desta maneira a identidade interior, pelo fato de estar aberta para fora,
passa a ser pólo subjetivo de uma comunicação com coisas, comunica
ção esta que é mais estreita que entre as unidades meramente físicas, e as
sim, a partir do isolamento do próprio sujeito orgânico, surge o exato oposto
do isolamento'. Mais uma vez deparamo-nos aqui com a estrutura dialética
que perpassa todos os caracteres ontológicos da vida, fazendo-a aparecer
de todos os lados com o um paradoxo da existência material.
4. O h oriz on te do tem po
Mas isto não é a verdade toda. Sabemo-lo com base naquela evidên
cia que a ciência gosta de chamar de “subjetiva” . Para uma síntese da
realidade exterior esta evidência pode ser descartada com o irrelevante,
por uma das duas razões seguintes: ou porque os fenôm enos da subjeti
vidade constituem um cam po inteiramente separado, que - qualquer
que seja seu status metafísico - não se estende além de si próprio (por
exemplo, não interage), e por isso no sistema das causas e efeitos natu
rais é com o que inexistente; ou porque eles se encontram em uma rela
ção de dependência unilateral para com este sistema, e por isso no máxi
mo pode exigir uma realidade derivada e secundária, que pode ser expli
cada pela realidade primária mas que é ela própria supérflua para a des
crição e explicação desta última. A primeira destas alternativas é repre
sentada pela variante cartesiana do dualismo, a segunda pelo “ epifeno-
menalism o” , isto é, a afirmação materialista de que o espírito ou a cons
ciência, em si, não passa de um “epifenôm eno” , um efeito colateral de
processos corporais, que o b ed ecem inteiramente às suas regras pró
prias. fDestas duas, a alternativa materialista pode com facilidade ser
descartada, porque com a autonomia da razão ela nega a validade dos
pensamentos, desta forma se desqualificando a si própria com o estrutu
ra racional de pensamento, isto é, com o um argumento que para ser ver
dadeiro baseia-se na força de suas razões, e não no fato de sua ocorrên
cia no céreb ro^ V er apêndice ao 7o capítulo.) Já a alternativa dualista,
sendo isenta de contradições lógicas, tem que ser analisada por um re
torno aos fatos, dentre os quais o fato decisivo é o “organismo” . Por isso
nós transformamos o Deus de Jeans em uma versão do Deus de Descar
tes, que criou corpos e espíritos (egos): sua aptidão matemática se refere
então aos primeiros, enquanto seu conhecimento, evidentemente, tem
que abranger uns e outros. Por conseguinte nós o dotamos por um lado
com o conhecimento de todos os dados espaço-temporais da variedade
extensa, e por outro com o conhecimento de todas as ocorrências de “in
terioridade” dispersas sobre aquelas sem que constituam parte delas15.
Que é que um Deus assim haveria de “ ver” no m om ento em que lan
çasse um olhar sobre sua criação?
2 . O fracasso da co m p le m e n ta çã o dualista
Se esta construção, por mais artificial que seja, se com provar susten
tável à luz dos fatos, estaremos dispostos a admitir a afirmação de Jeans,
com a única restrição (acima introduzida) de que é o “arquiteto do uni
verso material” que aparece com o puro matemático. Mas precisamente
no caso do organism o a construção dualista cai por terra. Pois longe
de term os unicamente uma coincidência da interioridade com quaisqiipr
partes extensas indiferentes que simplesmente de fato estejam servindo
com o centros de uma periferia externamente manifestada, estas partes -
os organismos - estão manifestamente organizadas para a interioridade,
para a identidade interior, para a individualidade - e com menos clareza,
talvez, também por elas determinadas. Isto, de certo, parece claro ape
nas para um espírito que desfrute ele próprio de existência orgânica, ou
para um sujeito corporal, mas é totalmente invisível para um intelecto
sem corpo quando ele se confronta com uma res extensa que (de acor
do com a premissa dualista) se restringe a isto. Mas se os fatos exterio
res do organismo, conforme as condições do experimento, se perdem
sem deixar resto no cálculo global da matemática divina, perdendo a
possibilidade de ser reconhecidos com o fatos referentes ao organismo,
então esta solução do problema de cálculo não fala unicamente em favor
da auto-suficiência do extenso considerado em si mesmo, mas sim de
que uma descrição meramente extensiva do que este aspecto espacial
manifesta é incompleta. Pois (pedindo vênia para a trivialidade) os
olhos em sua com posição física estão relacionados com o ver, e os ouvi
dos com o ouvir, e os órgãos em geral com aquilo que eles realizam - e os
organismos, de forma mais geral ainda, com a vida. Neles isto não é sim
plesmente um aspecto adicional, ou uma escolha deixada à livre inter
pretação, isto é sua própria natureza teleológica/Por mais completa que
possa ser uma análise físico-química do olho e dos processos ligados à
estimulação do olho - nenhuma explicação de com o ele é construído e
de com o ele funciona teria sentido se não estivesse relacionada com a vi
são^ E o que é claro em um caso tão específico é verdadeiro para toda a
classe de coisas materiais que nós chamam os de organismos, embora
para as finalidades da descrição física isto possa tanto mais facilmente
ser ignorado quanto mais descem os na escala da vida, isto é, quando
diminui a com plexidade da organização e a diferenciação das funções
(e, com o supomos, quando diminui a consciência).Vias no organismo
com o tal e no seu impulso para viver sempre está presente a busca do
objetivo, que já atua em todas as tendências vegetativas e desperta para
uma percepção primordial nos obscuros reflexos, nas respostas dos or
ganismos inferiores aos estímulos; e mais ainda no impulso e empenho e
prazer e medo da vida animal dotada de movimento e de sensação; e por
último chegando ao esplendor reflexivo na consciência, vontade e pensa
mento do ser humano - todos estes são aspectos interiores do lado teleo-
lógico na natureza da “matéria” .íDe que m aneira neste m esm o mundo
este finalism o con verge com a causalidade mecânica, cuja realidade
também não pode ser negada, é um problema que nós não podemos re
solver sacrificando uma evidência (a busca de um fim) a um teorema (o
da exclusividade da causa eficiente) derivado de uma outra evidência,
mas só quando o tratamos com o um profundo desafio e com o um pro
blema ainda sem solução, o que ele realmente é/Seja com o for, a dispo
sição e o comportamento teleológico do organism o não é apenas uma
form a alternativa que nós possamos escolher para descrevê-lo, mas, de
acordo com o testemunho da nossa percepção interior, é a manifesta
ção exterior da interioridade da substância.'7E acrescentemos esta impli
cação: não existe organismo sem teleologia; não existe teleologia sem in
terioridade; e a vida só pode ser conhecida pela vidaM
Menos clara, e por isso precisando ainda de ser explicada nas próxi
mas páginas, é a circunstância de que, semelhantemente à outra dimen
são da “transcendência” , o tempo, ela se torna acessível por meio do si
multâneo desenvolvimento de outra capacidade, isto é, da e m o çã o , e isto
segundo o mesm o princípio: o da “distância” entre o si-mesmo e seu obje
to, só que aqui se trata de distância no tempo. Isto está menos claro, entre
outras razões, porque ao contrário da sensibilidade e da mobilidade, a
emocionalidade (ou o sentimento) não possui órgãos externos pelos quais
a possamos identificar, ou por onde possa ser forçada a entrada para uma
situação concreta; e esta invisibilidade cu completa interioridade (já que
sua expressão visível é sempre um ato da capacidade de movimento) pa
rece fazer com que a em oção tenda a ser omitida na descrição científica
do comportamento orgânico, com o antigamente foi exemplificado por
Descartes e recentemente mais uma vez pela cibernética. Tentaremos
mostrar a inseparável ligação mútua das três capacidades animais, sobre
tudo o encadeamento entre movimento e em oção, e interpretar seu signifi
cado no âmbito mais amplo de uma teoria geral da vida.
II
III
IV
II
Esta crítica pode não parecer correta, uma vez que não considera a
espécie de mecanismo a que, segundo a intenção dos autores, a defini
ção deve ser aplicada, e que, pela diferença que se pode constatar em re
lação a outras espécies “ não propositadas”, serve de exem plo para o ver
dadeiro sentido da definição. Na verdade não estamos muito interessa
dos aqui nas deficiências da formulação. Por isso queremos considerar
alguns exemplos apresentados para ilustrar o sentido - a com eçar pelo
de um mecanismo não propositado.
III
Esta parte não pode ser a máquina propulsora, porque ela - quer
seja um motor elétrico alimentado a bateria, um motor a jato ou um m o
tor de combustão interna, não importa - trabalha apenas por meio do
equilíbrio de gradientes de energia, isto é, ela é determinada pela lei da
entropia. Mas a mesma coisa se pode dizer também do sensor receptor,
cuja atividade consiste a cada momento em igualar um potencial magné
tico ou elétrico, ou qualquer outro desequilíbrio interno; e o m esm o vale
também para a transmissão da “m ensagem ” , qualquer que seja o gênero
de transmissão, para seu reforço e para os eventuais processos de religa-
mento, e assim por diante, até chegarmos ao acionamento do próprio
dispositivo de direção. Cada uma destas atividades decorre inteiramente
dentro da rota de sua própria necessidade mecânica - é uma atividade
“cega ” , com o se diz - e também não tem relação com os passos anterio
res ou subseqüentes de sua própria seqüência, com o ainda com as ativi
dades dos outros elementos no sistema. Nenhuma destas ações se ocu
pa, com o tal, com o atingir o “alvo”; a única “tendência” de cada uma de
las é realizar seu próprio “ objetivo” segundo a lei da entropia.
Que não é este o caso, pode-se mostrar por meio de uma considera
ção simples. Imaginemos que o torpedo não seja inteiramente mecani
zado mas que seja tripulado por um piloto humano - e de imediato nós
evidentemente podem os substituir esta imagem pelo exem plo diário do
motorista que dirige o seu carro. Nós não iríamos considerar o torpedo
mais marinheiro, ou o carro mais motorista, com o uma entidade única
de propósito, tampouco quanto haveríamos de dizer que o machado par
ticipa do propósito e do com portamento teleológico do lenhador que o
maneja. Qualquer pessoa razoável diria que, no conjunto, o marinheiro,
o motorista, o lenhador, é o portador e detentor do objetivo, o que usa os
outros elementos para seu propósito. E esta situação em nada se modifi
ca se o piloto, por exemplo, não tiver uma percepção direta do seu alvo
mas exercer a direção com o auxílio de dados provenientes de aparelhos
receptores mecânicos, com o por exem plo o radar. Neste caso nós tería
mos um fornecimento de feedba.ck ( in p u t) e uma realização de energia
mecânica ( o u tp u t) acoplados no ponto de controle por um elemento hu
mano, mas isto não haveria de levar a máquina um milímetro adiante no
sentido de fundi-la com um agente humano em um único todo de propó
sito ou de objetivo. O ser humano pode abandonar o aparelho, ir embora,
levando consigo inteira e integralmente o “objetivo”.
Por que o sabemos fazer melhor? Para responder a esta pergunta, con-
centremo-nos por um momento no hipotético piloto humano do torpedo
que se dirige para o alvo. Ele executa certas ações, isto é, seus membros
realizam determinados movimentos - a saber, aqueles que no caso alter
nativo haveriam de ser executados pelo dispositivo mecânico interpolado.
Por que executa ele estas ações quando e da maneira com o o faz? A res
posta dos cibernéticos seria que ele faz isto em resposta a determinadas
informações de seus receptores, ou que ele age determinado por estas in
formações - noutras palavras, ele próprio funciona com o um mecanismo
de feedback.
Mas existe mais um ponto de vista segundo o qual nossa segunda sé
rie de respostas hipotéticas é instrutiva. O objetivo próximo é “dirigir-se
para o alvo” . Mas um objetivo apenas um pouco mais distanciado seria
“cumprir ordens” . Embora este último, com o vimos, esteja ele próprio in
cluído no sistema universal dos próprios objetivos de vida de quem o exe
cuta, ele também aponta para o objetivo de outra pessoa, de quem se
pode dizer que o agente executa juntamente com ele sua ação. Isto não
precisa significar que ele faça do objetivo do superior o seu objetivo pró
prio; mas pelo menos fez de sua execução, uma vez a ele confiada, o seu
objetivo presente, e isto para os objetivos dele próprio, com o se obser
vou antes. Mas do ponto de vista do superior os objetivos do piloto não
desempenham nenhum papel. O que a ele importa é simplesmente que
com suficiente segurança possa confiar que o agente irá executar suas
ordens, quaisquer que sejam seus motivos - de modo que em seu pró
prio cálculo pragmático ele possa substituir suas ordens por aqueles m o
tivos, com o única determinação eficaz para o comportamento do outro.
Isto, naturalmente, ele só poderá fazer quando souber que o esquema de
objetivos do encarregado inclui a aceitação de ordens por ele dadas, in
clusive de ordens com o a que foi dada. Mas se esta condição geral for sa
tisfeita, com o ocorre com todo superior inteligente, ele pode efetivamen
te ignorar os motivos do subordinado. Pode então, com certo direito, con
siderar a questão de tal forma com o se seu subordinado, enquanto dura
a ação, suspendesse sua própria “ pessoa” , com a espontaneidade de
seus próprios objetivos de vida - e com o se nesta medida ele tivesse
sid o m e ca n iza d o (em última análise é este um dos objetivos da forma
ção militar). Noutras palavras: o superior, enquanto durar a tarefa, pode
usar seu piloto com o um robô, com o seu instrumento.
Considerado desta forma, de fato o piloto funde-se com o torpedo em
uma unidade instrumental, o todo representando um servomecanismo.
Mas isto significa precisamente que a combinação, assim considerada,
está despojada de um objetivo in tern o - ou m esm o que foi dele esvazi
ada -, passando a carregar apenas o objetivo de seu usuário, um objeti
vo para o qual m esm o o colaborador humano passou a ser mero órgão
executor. E este é identicamente o caso do torpedo “ autodirigido” não tri
pulado. O piloto humano p o d e ser substituído por um dispositivo m ecâ
nico. justamente porque de qualquer maneira sua própria finalidade inte
rior foi desligada e praticamente não é considerada neste contexto: só o
que conta é o objetivo do superior, que através do “telecontrole” de suas
ordens, ou através de instruções “gravadas” com antecedência, maneja
a “ máquina” - motor de propulsão, piloto e tudo mais.
IV
É esta reflexão que o cibernético nega ao seu objeto. Ele próprio não
está incluído nas condições de sua doutrina. Pensa sobre com portam en
tos, mas não inclui o seu próprio com portam ento; fala sobre objetivos,
mas deixa de lado os próprios; sobre o pensar, mas exclui o seu próprio
pensar. Ele considera a partir de fora, e nega aos seus objetos as prerro
gativas de sua própria reflexão. Se perguntássemos por que ele é adepto
da cibernética, ele não responderia, neste caso, com expressões ciberné
ticas com o realimentação, circuitos fechados e controles automáticos,
mas talvez respondesse assim: “ Porque considero a cibernética verdadei
ra, e atribuo importância à verdade” ; ou: “Porque a considero útil para al
cançar estes ou aqueles fins, e estou interessado nos fins” ; ou: “Porque
está na moda, e eu desejo estar atualizado” ; ou o que quer que nestes ca
sos com maior ou menor honestidade se possa responder.
Mas se for interrogado por que um grupo de pessoas (além dele pró
prio) organiza uma conferência sobre cibernética, ele poderia responder
que nos diversos sistemas nervosos existem “muitos sistemas regenera
tivos” que em seus circuitos conservam sinais com o “universais” , e que
“através da ligação destes laços universais eles estão relacionados entre
si” e “com isto podem ser construídos os postulados de toda... teoria...” ;
e que quando um tal “sistema relacionai de impulsos em circuitos resso
nantes... chega a um sistema nervoso - de tal modo que a forma determi
na sua atividade - então ele pode determinar o padrão de fogo dos neurô
nios motores e com isto determinar de uma maneira literalmente causai e
neurológica um fato visível, objetivo, social e institucional” 2. Nada seria
mais catastrófico para esta teoria da formação da teoria do que aplicá-la
a si própria. O autor citado com razão ficaria revoltado se eu quisesse
insinuar que esta sua teoria não possui nenhum outro status lógico além
Aqui, com o em tantos outros casos, nós nos deparamos com uma
espécie de atividade que eu gostaria de denominar a teoria da personali
dade dividida - um fenôm eno inevitável, e que neste sentido pode ser
desculpado em alguns ramos especiais da ciência, mas que na filosofia é
inadmissível e trágico, e em medida quase igual nas disciplinas que inclu
em o ser humano entre os objetos de suas pesquisas. Abstratamente, o
behaviorista tem que se contar a si próprio entre os objetos do seu m éto
do. Em concreto, no entanto, ele tem que fazer tacitamente a reserva de
sua própria isenção, pelo menos no que se refere ao argumento que ser
ve de fundamento para sua tese behaviorista - para que este argumento
possa ser considerado válido. Além disso, uma vez que deseja que seu
argumento seja avaliado de acordo com seus méritos próprios, ele tem
que eximir também aqueles a cujo critério dirige seu argumento no diálo
go científico, mas apesar disto tem ao m esm o tem po que considerá-los
com o exemplos daqueles “outros que não eu” , para os quais o método
deve ser válido. E ele próprio é visto por eles com a mesma atitude dupla,
nunca inteiramente honesta - dentro e fora do discurso. Caso reflita sufi
cientemente, ele pode tornar-se consciente disto tudo. A mesma atitude
dupla forçada é válida no caso do biólogo materialista, e a mesma tam
bém no caso do cibernético. (Ver apêndice a este capítulo.)
Este é um cam po por demais extenso para que possa ser tratado
aqui. Mas no presente caso a cibernética não pode eximir-se inteiramente
de culpa. Ela não é aquela disciplina especial inocente que por sua bele
za passiva seduz a filosofia, sempre disposta a compreender. Desde o iní
cio ela ousou apropriar-se do status de uma teoria unificada de m eca
nismo, organismo, sistema nervoso, sociedade, cultura e espírito; e por
seu em prego sugestivo dos conceitos de com portam ento, finalidade,
objetivo, informação, memória, decisão, conhecimento, iniciativa, valor
e pensamento inflacionou de tal maneira suas definições, inicialmente
modestas, que seu em prego final dificilmente irá dar em outra coisa a
não ser em um ilusionismo verbal.
V
Por fim, e para uma observação destinada a não ficar restrita à crítica
meramente negativa do que até aqui foi discutido, quero escolher um se
tor entre todos os setores da realidade com que a cibernética se ocupa: o
setor biológico. Com o leigo, e até que seja melhor avisado por alguém
que para isto possua competência, estou pronto a admitir que nos ani
mais de fato a com binação sensor-executor representa em certos aspec
tos um padrão de feed b a ck e, na medida em que seja este o caso, ela
corresponde ao modelo que foi desenvolvido pela cibernética. Qual é en
tão a falha deste modelo?
3 . E . D u B o is -R e y m o n d c o lo c a e s te p r o b le m a e n tre as q u e s tõ e s s o b re as q u a is e le p ro
n u n c io u se u c é le b re ignorabimus (S o b r e os lim ite s d o c o n h e c im e n to d a n a tu re z a ,
1 8 7 2 ). E m b o r a e s te ju lg a m e n to te n h a e n tã o p r o v o c a d o v e e m e n te s p ro te s to s , h o je a
m a io r ia d o s n a tu ra lis ta s q u e re fle te m c o m p a r tilh a d e su a v is ã o .
sem saída que se ramificou da estrada principal da causalidade e em que
o tráfego de causa e efeito passa ao lado com o se não existisse. Já deno
minar o espírito uma “iridescência” do substrato da matéria seria demais,
porque no intercâmbio para ocorrer uma iridescência real no sentido físi
co uma quantidade existente no processo físico anterior deveria ter desa
parecido e uma outra substituiria a iridescência quando ela desapareces
se (e estas sucessivas substituições resultariam equivalentes), ao passo
que nenhum equivalente no cálculo material tem que ser eliminado para
o epifenômeno surgir. Assim o sistema fechado da causalidade material
é protegido com a mesma eficácia que no dualismo cartesiano, e no en
tanto, através do artifício da dependência unilateral, o espírito é feito par
te da mesma natureza que não consegue tolerar sua intromissão. Mas o
epifenomenalismo, para não falar da grandiosa inutilidade em que a na
tureza teria caído com o luxo da consciência, carrega consigo dificulda
des ou mesm o absurdos que não podem deixar de ser vistos com o um
preço demasiadamente elevado para a comunidade científica, por cuja
causa ele foi inventado.
(Jm ponto facilmente esquecido é que uma “matéria” que seja obri
gada a prestar contas pelo espírito não é mais a mesma matéria com o a
que foi assumida pela ciência natural no expurgo dualista. O materialis
mo herdou a herança do dualismo, sem perceber com clareza que a he
rança que recebia estava onerada por uma obrigação que ele jamais se
ria capaz de pagar com seus recursos próprios: a obrigação de também
teoricamente explicar aqueles fenômenos que antes haviam sido contes
tados à metade desaparecida da possessão dualista. Esta tarefa coube
inevitavelmente ao materialismo depois de ele haver tomado posse de
sua parte da herança com o monismo auto-suficiente. Seu legado foi a he
rança secreta por uma das maiores usurpações na história do pensa
mento. Em verdade o materialismo, segundo a lei que o constitui, jamais
pode alcançar um verdadeiro status de monismo. Pois defende apenas
uma parte isolada de um dualismo que havia dilacerado anteriormente a
unidade original. O materialismo também continua a pressupor lo g ica
m ente um dualismo transcendente, pois só por não confessar ter com o
fundo o “outro mundo” do dualismo é que ele consegue deixar de lado
em seu p ró p rio ca m p o a evidência do espírito e interpretar a realidade
em categorias da matéria pura, à medida que com ela se ocupa. O mate
rialismo ingênuo viveu por isso da oculta reserva do dualismo, e seu direi
to à vida extinguiu-se com a explícita negação de seu complemento espi
ritual. Privado do álibi dualista, a “ matéria” solitária tem que arcar agora
com o explicar o espírito, com isto perdendo a inambigüidade da “ mera
matéria” em que de início foi concebida. Noutras palavras: já por esta exi
gência seu conceito retraiu-se para um conceito de substância que ultra
passa aquele aspecto retirado do materialismo sob o nome de “matéria”.
E com isto, efetivamente, mais uma vez é aberta a questão ontológica
que há pouco o materialismo havia considerado com o resolvida. A fór
mula escorregadia do “ epifenôm eno” trai este fato através da própria
tentativa de ocultá-lo.
4 . C h a m a a te n ç ã o a in d e c is ã o d e K a n t n e s ta q u e s tã o . P o r u m la d o e le s a b ia , o u m e s m o
d e s ta c a v a , q u e p a ra p o d e rm o s a p lic a r as c a te g o ria s (e n tr e elas “c a u s a -e fe ito ” ) ao s o b je
to s n ó s te m o s n e c e s s id a d e d e “c o n te m p la ç õ e s e x te r io r e s ” , isto é, d e e s p a ç o : K ritik d. r.
V e rn u n ft. 2 a ed . p. 2 9 1 s s (v e r ta m b é m M e ta p h y s . Anfangsgründe d. Naturw. V o rre d e ,
E d . C a s s ire r, p. 3 7 3 ) . M a s na T e rc e ir a A n tin o m ia e e m s u a re s o lu ç ã o o d o m ín io d a c a u s a
lid a d e e s te n d e -s e com o fenômeno a o s a c o n te c im e n to s d o m u n d o in te rio r, is to é, à p s ic o
lo g ia : ibid. p. 5 6 0 s s . A in d e c is ã o d e v e -s e a u m a d u p lic id a d e d e s e n tid o n a a r g u m e n ta ç ã o
d e K a n t. C o m o “c o n d iç õ e s d e e x p e riê n c ia p o s s ív e l”, as c a te g o ria s têm que adaptar-se a
qualquer objeto q u a p h a e n o m e n o n , pois ser um objeto significa precisamente ser,
através da unidade transcendental da apercepção, constituído de forma a e s ta r
a d a p ta d o às c a te g o ria s . M a s no d e s e n v o lv im e n to c o n c r e to d a a r g u m e n ta ç ã o to rn a -s e
c la ro q u e isto só v a le q u a n d o es tá e n v o lv id a a “fo r m a d a c o n te m p la ç ã o e x te r io r ”, is to é, o
e s p a ç o , e n ã o p a ra os o b je to s do s e n tid o in te rio r. A s s im K a n t é o b rig a d o a a firm a r o d e
te r m in is m o p s ic o ló g ic o e d e p o is v o lta r a n e g á -lo im p lic ita m e n te . A ra z ã o p a ra e s ta d u p li
c id a d e d e s e n tid o p o d e r e m o n ta r a q u e K a n t in s is te e m q u e o m u n d o in te rio r, c o m o m u n
d o d e “fe n ô m e n o s ” (Erscheinungen), d e v e s e r tr a ta d o n o m e s m o p la n o q u e os fe n ô m e
no s d o m u n d o e x te rio r, e c o m isto c o n fe rir à a u to c o n s c iê n c ia u m a p o s iç ã o p riv ile g ia d a :
isto p o r su a v e z p o d e se r a trib u íd o a o fa to d e e le tr a ta r o te m p o d a m e s m a m a n e ira q u e o
e s p a ç o , c o m o m e r a “fo r m a d e c o n te m p la ç ã o ”, e n ã o c o m o re a lid a d e ú ltim a .
7. S ilr.n rô iirs 6 ~ V 1 *; 07
1. A a u d içã o
Por outro lado, precisamente por causa desta fraca referência exter
na com o objeto, e com isto da função representativa, o som é particular
mente apto a constituir sua própria “objetualidade” imanente de valores
acústicos em si, e assim, libertado da obrigação de representar outra coi
sa, livre para representar a si mesmo. Quando ouvimos música, nossa
síntese da variedade em uma unidade de percepção não se refere a um
objeto diferente dos conteúdos sensitivos mas sim à ordem e à cone
xão destes conteúdos mesmos. Com o esta síntese se ocupa com dados
seqüenciados e se estende ao longo de sua seqüência, de m odo que na
presença de cada elem ento da seqüência todos os outros ou já não es
tão mais presentes ou não estão presentes ainda, e o elemento presente
tem que desaparecer para que o próximo possa aparecer - assim a pró
pria síntese é um processo temporal, que se realiza com auxílio da m em ó
ria. Através desta, e através de certas antecipações, a seqüência inteira,
embora em cada momento só possa ser realizada em um de seus elemen
tos primordiais, é unida em uma unidade ampla de experiência. O “objeto”
acústico assim criado é um objeto do tempo, que dura exatamente tanto
quanto dura o ato de sua síntese, isto é, enquanto dura a própria seqüên
cia do ouvir (ou sua recriação na fantasia), com cuja continuação o “ob
jeto” coincide parte por parte. Mão possui nenhuma outra dimensão
além do tempo.
2 . O tato
3. C om p a ra çã o co m a visão
Parece, assim, que se pode fazer distinção entre os três casos na se
guinte fórmula: audição = representação de seqüência por meio de se
qüência; tato = representação de simultaneidade por meio de seqüência;
visão = representação de simultaneidade por meio de simultaneidade.
Esta última vale apesar do fato de a simultaneidade da representação vi
sual conter sua própria referência a possíveis sucessões de “cumprimen
to ” adicional, para as quais a unilateralidade, e com ela a parcialidade de
toda visão, se encontra basicamente aberta. Tam bém o aspecto visual,
sempre incompleto, é representação do simultâneo pelo simultâneo,
onde o que não é dado está intencionalmente contido no que é dado.
4. Visão e tem p o
Tudo que eu tenho que fazer para ver é abrir os olhos - e o mundo
está aí com o sempre esteve. Nós descobrimos que no ouvir a situação é
diferente; e o tato tem que abrir-se e explorar os objetos em movimento
corporal e pelo contacto corporal, e isto reduz, a cada vez, a relação atual
com o objeto a um caso determinado: a relação atual é estabelecida pela
escolha que a antecede e de onde ela proveio: no ver, pelo contrário, a se
leção através do voltar o olhar pode mover-se à vontade sobre o cam po
oferecido pela visão geral, e onde todos os com ponentes estão simulta
neamente disponíveis. Desta presença simultânea, o dirigir o olhar nada
retira; sua escolha foi estabelecida pela liberdade, sem o sacrifício de ou
tras possibilidades: estas permanecem à disposição do momento, e ne
nhuma escolha entre elas envolve (com o no sentido do tato) a maneira
de agir que modificaria a posição entre o sujeito e o que a ele se opõe, o
ambiente. Só a simultaneidade do quadro permite que aquele que con
templa faça com parações e perceba conexões. Ela oferece não apenas
muitas coisas de uma só vez, mas as oferece também em sua proporção
mútua. Por isso a objetividade surge predominantemente da visão.
II - Neutralização dinâmica
Tam bém no ouvir não ocorre nenhum agir da minha parte, mas com
tanto mais razão ele ocorre por parte do objeto. As coisas não são audí
veis por sua própria natureza, assim com o são visíveis; não faz parte do
seu ser emitirem sons, com o faz parte do seu ser refletirem luz. Por isso
eu não posso escolher ouvir alguma coisa, mas preciso esperar até que
ocorra algo a uma parte do mundo ambiente, que o leve a emitir um
som, e este som me atinge, quer eu queira quer não. E com o é um acon
tecer de que o som me dá notícia, e não a mera existência de coisas em
sua ordenação mútua, a informação acústica prescreve-me a escolha do
agir. Alguma coisa ocorre em meu contexto, é o que o ouvido me infor
ma, e eu tenho que reagir a esta modificação, pois, com o parte interessa
da, ela me diz respeito, e não me é permitido o mero observar: tenho que
voltar minha atenção para o que em seguida possa vir daquela direção, à
qual estou ligado agora em uma situação dinâm ica3.
3 . E a q u i n ã o se le v o u a in d a e m c o n s id e ra ç ã o q u e os so n s p o d e m se r endereçados a
m im e s p e c ific a m e n te - q u e su a m a n ife s ta ç ã o n o g rito , r o s n a d o ou d is c u rs o p o d e e s ta r
d irig id a à m in h a a te n ç ã o : n e s te c a s o a in te n ç ã o c o m u n ic a tiv a re fo rç a a e x ig ê n c ia d in â m i
c a q u e a s itu a ç ã o a c ú s tic a c o m o tal fa z a o o u v in te . (O s sin ais v is u a is n ã o tê m e m si es ta
fo rç a in e re n te o u n a tu ra l d e fo rç a r a a te n ç ã o , e les só a d q u ir e m a lg u m a co is a d is to a tr a
vés d e c o n v e n ç ã o s im b ó lic a .)
lação e propriedade, podendo ao mundo exterior manifestar possibilida
des, com o o demonstra o exemplo da geometria. Só a peculiar “indife
rença” causai da presença visual fornece a matéria e favorece a atitude
para tais realizações do espírito.
Este ponto final é ele próprio arbitrário em cada caso, e meu olhar,
m esm o quando voltado para ele, inclui com o fundo o cam po aberto de
outras presenças mais além, da mesma forma que ele, com o coroa qüe
se esvai em direção às margens, inclui em si a variedade co-presente na
área. O indefinido “ etcétera” desta co-presença, de que a percepção vi
sual está embebida, potencial sempre pronto a atualizar-se, e sobretudo
o “ etcétera” da profundidade do espaço, é o lugar onde nasce a idéia do
in fin ito , para a qual nenhum outro sentido seria capaz de fornecer base
empírica. O sentido do tato, unido à locom oção, também inclui, sem dú
vida, a consciência da possibilidade de se avançar para o próximo ponto,
e deste para o seguinte, e assim por diante. Mas o sentido do tato não in
terpreta estas realizações iminentes em seu conteúdo momentâneo,
com o uma zona talvez marginal a que o núcleo constantemente esteja
passando. No campo da visão, é precisamente este avançar contínuo do
foco para planos cada vez mais distantes, e seu sombreamento em dire
ção às margens, que fazem com que o “etcétera” não seja apenas uma
possibilidade vazia: aí está presente também a prontidão do cam po para
deixar-se penetrar, um traço positivo que dirige o olhar para adiante, onde,
por assim dizer por si mesmo, um dado conteúdo passa para conteúdos
mais amplos. No tato não é dada nenhuma semelhante fusão entre conteú
do atual e conteúdos potenciais; existe apenas a possibilidade abstrata de
substituir o conteúdo atual pelo seguinte, o todo resultando apenas parce-
ladamente do progresso aditivo de partes discretas. A visão, em todo m o
mento dado, também contém uma variedade infinita, e suas próprias con
dições qualitativas abrem o caminho para o que se encontra mais além. O
desdobrar-se do espaço diante dos olhos, sob o fascínio da luz, traz em si o
germ e do infinito - com o um aspecto do próprio sensível. Sua versão con
ceituai na idéia do infinito é um passo que vai além da percepção, mas
um passo que teve com o ponto de partida esta base. O fato de podermos
olhar para a profundidade sem limites do universo é certamente de um
significado imenso para a formação de nossas idéias.
Não estaria certo dizer que na visão o distante é trazido para perto.
Pelo contrário, o distante é deixado distante, e quando a distância é bas
tante grande, ela pode colocar o objeto observado fora da possível esfera
de interação e da possível importância ambiental. Neste caso a distância
perceptiva (no espaço) pode transformar-se em distância espiritual (na
atitude) e fazer surgir o fenômeno da observação “desinteressada” , um
acréscimo substancial ao que chamamos de “objetividade” , e da qual ou
tra condição é encontrada na neutralidade causai.
Voltamos mais uma vez ao início, ao partido tom ado pela filosofia an
tiga em favor de um dos sentidos do corpo. Nosso estudo mostrou algu
mas das razões para este partidarismo nas vantagens próprias do senti
do da visão. Chegam os mesmo a encontrar, em cada um dos três aspec
tos sob os quais o sentido da visão foi tratado, a base para um con ceito
básico da filosofia. S im u lta n eid a d e da a p resen ta çã o fornece a idéia da
presença continuada, o contraste entre a variação e o invariável, entre
tempo e eternidade. N eu tra liza çã o d in â m ica oferece-nos a forma com o
distinta da matéria, a essência com o distinta da existência, e a diferença
entre teoria e prática. D istância, por fim, fornece-nos a idéia do infinito.
(Jma vez de posse do conhecimento que me foi deixado por estas ex
periências de movimento, eu também posso efetivamente observar o
mundo a partir de minha posição de repouso, e compreendê-lo em pers
pectiva e na ordem de suas diferentes direções. Então eu posso ser o ob
servador estacionário e inativo, que deixa o espetáculo do mundo desfi
lar diante de seus olhos com o em uma tela. Mas nesta situação contem
plativa está presente o resultado de minha atividade anterior: o fato de eu
realmente me haver movimentado através do espaço, de me haver orien
tado para um alvo, modificado minha direção, relacionado o tem po em
pregado com o caminho percorrido, avaliado o esforço em com paração
com os resultados visuais da variação - todas estas ações, e a sempre
presente possibilidade de voltar a realizar os m esm os atos, servem de
base para aquela presença aparentemente estática do espaço, de que a
visão desfruta, e com seu saber a alimenta. Por isso podem os dizer que o
possuir um corpo no espaço, ele mesm o uma parte do espaço a ser ex
perimentado, e que é capaz de automovimentar-se na interação com ou
tros corpos, constitui a condição prévia para se ver o mundo. Com isto
nós temos o paradoxo de que é através de algo dinâmico, através de um
processo, que se constitui a moldura da experiência estática, isto é, um
sistema de coordenadas espaciais (direções), tendo meu corpo com o
origem. E o exemplo do sentido que parece ser o mais livre de tal mistura
mostra que a mobilidade, que é necessária para o próprio exercício da
percepção sensitiva, participa, por sua vez, da experiência básica da sen
sibilidade, na medida em que esta deve ser mais do que um mero registro
de estímulos exteriores: noutras palavras, onde a recepção sensitiva pre
cisa elevar-se à condição de percepção8.
1 . E s ta a firm a ç ã o te m q u e s e r m o d ific a d a c o m re fe rê n c ia às im a g e n s e s p e c u la re s , s o m
b ra s ou c o is a s s e m e lh a n te s , ü m a re fle x ã o n a á g u a é u m a s e m e lh a n ç a n a tu ra l, n ã o a rtifi
c ia l, e é u m a “im a g e m ” d o o b je to re fle tid o , s e m q u e a re la ç ã o p o s s a s e r in v e rtid a . M a s a
im a g e m a q u i é u m fe n ô m e n o c o n c o m ita n te d o o b je to , e n ã o o o b je to e m si, e m e s m o q u e
p o s s a s e r s e p a ra d a , c o m o p o r e x e m p lo a im p re s s ã o d e u m a fo r m a a n im a l (u m a “im a
g e m ” p o te n c ia l p a ra o fu tu r o p a le o n tó lo g o ), a s e m e lh a n ç a é m e m b r o d e u m a r e la ç ã o
c a u s a i, e n ã o u m a r e p re s e n ta ç ã o . É b e m p o s s ív e l q u e o jo g o n a tu ra l d a s s o m b ra s te n h a
s id o a p rim e ira co is a a fa z e r o h o m e m p e rc e b e r q u e e x is te u m a im a g e m s u b s titu tiv a , e
q u e ela p o d e s e r fix a d a d e s e n h a n d o -s e o seu p e rfil.
o espectador haveria de acreditar ter diante de si a coisa, e não “apenas 5
sua im agem ” . Um tal engano, uma auto-ocultação da im agem conr.c
imagem, frustraria seu verdadeiro sentido de representar a coisa, não ce
fingi-la. Uma semelhança pode enganar-me; o fato de a semelhança se:
apenas parcial pode escapar ao sentido ao qual ela se dirige - ao sentidc
da visão -, uma vez que ela só engana inteiramente segundo as caracte
rísticas deste sentido. Enquanto eu não tirar do prato a maçã de cera, ela
não é para mim a imitação de uma maçã, e sim uma maçã. Quando, en
tão, os sentidos do tato e do olfato me tiverem instruído que a semelhan
ça é apenas parcial, e além do mais produzida, a coisa muda de catego
ria: deixa de ser imagem e passa a ser imitação.
2 . E m ve z d e e s c o n d id a , esta e s p é c ie d e in c o m p le tu d e p o d e se r a c e n tu a d a n a m a n e ira
c o m o o m a te r ia l (p o r e x e m p lo o b ro n z e ) é u tiliz a d o n a d e te r m in a ç ã o q u a lita tiv a d a a p a
rê n c ia d a im a g e m .
ção visual do corpo, da superfície), ocorre uma seleção voluntária de tra
ços representativos, a liberdade tornando-se maior ainda com o grau de
incompletude que define os degraus genéricos com o tais: é maior na re
presentação da superfície do que na representação do corpo, uma vez
que em si a primeira é mais abstrata do que a última.
II - A percepção da semelhança
6 . N a tu r a lm e n te , o o b s e rv a d o r p o d e a lg u m a ve z e n g a n a r-s e e c o n fu n d ir a im a g e m c o m o
o b je to re a l. M a s isto s ig n ific a a p e n a s q u e n o m o m e n to e le d e ix o u d e a p lic a r a c a te g o r ia
d e im a g e m , n ã o q u e es ta te n h a p e rd id o o s e n tid o p a ra ele . E v ic e -v e rs a , p o d e a c o n te c e r
q u e a s e m e lh a n ç a , e m e s m o a in te n ç ã o d a s e m e lh a n ç a , d e ix e d e ser p e rc e b id a , e p o r isso
o o b je to d a p e rc e p ç ã o n ã o a p a re c e c o m o im a g e m : t a m b é m a q u i a c a te g o ria d e im a g e m
d e ix a d e m a n ife s ta r-s e , d e s ta ve z p o r fa lta d e s e m e lh a n ç a (c o m o a n te s p o r e x c e s s o ), e o
re s p e c tiv o o b je to é s im p le s m e n te to m a d o p o r e le m e s m o . T a m b é m isto n ã o s ig n ific a q u e
a d ife re n ç a e n tre v e íc u lo fís ico d a re p re s e n ta ç ã o e fu n ç ã o d e r e p re s e n ta ç ã o te n h a d e ix a
do d e s e r v á lid a .
III - Abstração e imagem na percepção visual
8 . P a ra u m a a n á lis e m a is e x te n s a d a v is ã o e d a fu n ç ã o d e “im a g e m ” q u e lh e é in e re n te ,
v e r a c im a , c a p ítu lo 8.
ção possui de reproduzir livremente, de ter sob seu domínio as imagens
das coisas. Que também possa mudá-las, segue-se quase que necessa
riamente de as ter separadas da sensação atual, e com isto da efetiva
obstinação do ser próprio do objeto. A imaginação separa o eidos lem
brado do encontro individual ocorrido, desta forma libertando sua posse
dos acasos de espaço e tempo. A liberdade assim alcançada - de ponde
rar as coisas na imaginação - é liberdade ao mesmo tempo da distância
e do domínio.
Voltemos mais uma vez para o lado espiritual. A Bíblia conta (Gn
2,19) que Deus criou os animais do campo e os pássaros do céu, mas
que entregou a Adão a tarefa de dar- lhes nome. üma h agadah a esta
passagem (Genesis Rabba XVII) diz que Deus apreciou mais a sabedoria
de Adão que a dos anjos: ao dar um nome a todas as criaturas, a si pró
prio e até m esm o a Deus, Adão teria feito o que os anjos não consegui
ram fazer. O dar nome às coisas é visto aqui com o o primeiro ato do ser
humano recém-criado, e com o ato eminentemente humano. É um passo
para além da criação. Aquele que deu este passo, com ele prova sua su
perioridade sobre as outras criaturas e anuncia seu domínio futuro sobre
a natureza. A o dar um nome a “cada ser vivente” criado por Deus, o ser
humano criou os nomes genéricos para a multiplicidade a que cada um
deles haveria de multiplicar-se.
Com isto nós chegam os de volta ao que foi objeto do capítulo anteri
or. Pois a mesma coisa que em nosso exem plo é realizada pela fala (liga
da ou a um apontar direto para o objeto, ou a um apelo à memória) tam
bém é realizado essencialmente através do desenhar, do reconhecer, do
admitir ou do rejeitar uma im agem representativa, e esta circunstância
permite-nos reconhecer que o reino da palavra não é o lugar exclusivo e
necessário do fenôm eno da verdade. A representação imagética, encon
trando-se mais próxima do mundo da percepção do que o simbolismo
abstrato da linguagem, e menos do que esta tendo a ver com os objetivos
práticos da comunicação, é um exercício fundamental do empenho hu
mano pela verdade no que se refere ao mundo visível. Todo retratar de
coisas preserva delas um conhecimento, caindo também sob os critérios
do conhecimento, üma imagem ou é verdadeira, ou parcialmente verda
deira, ou falsa. Enquanto não for considerada do ponto de vista estético
(ou m ágico), a im agem não tem outra razão de ser senão a relação da
verdade, ou adequação, com o objeto representado. Como formulamos
acima: o que os escolásticos, em sua definição da verdade, designaram
com o adequação do intelecto à coisa (a d a equ a tio in tellectus ad re m ),
aparece aqui na forma mais elementar da adequação da imagem à coisa
( a d a equ a tio im a g in is ad rem ).
Tudo isto refere-se ao conceito te ó rico da verdade e a suas origens
na experiência. Uma coisa inteiramente diferente é a verdade moral,
que significa veracidade no convívio com os semelhantes. Este, e não o
que diz a escola de Heidegger, foi o primeiro significado de à-Àr|Sr|Ç e
á-Âr)5£Ú£tv: não fingir ou ocultar suas intenções, por exem plo nas es-
pertezas da retórica da vida pública da Grécia: dizer o que se pensa,
sem esconder: ser aberto e sincero - aplicado a pessoas em relação a
pessoas, não a coisas em relação a pessoas, e m enos ainda a pessoas
em relação a coisas. Sob o ponto de vista puramente gramatical, o ver
bo àÀr)S£Ú£iv n u n ca significa transitivamente “ des-ocultar” ou “des-en-
ganar” . Em seu uso pré-teórico ele sem pre teve o significado intransiti
vo de abster-se: abster-se de esconder e de enganar, passando a ser
transitivo apenas no sentido de “tornar- verdadeira” sua promessa ou a
esperança de alguém, ou verdadeiramente predizer o que há de ser10. -
Mas o tom ar posse deste conceito em bebido de moral para a esfera teó
rica foi um fato de extrema importância, mas um desenvolvim ento se
cundário ocorrido nas escolas filosóficas. E difícil dizer quanto das pri
mitivas associações da palavra (o não-ocultar, etc.) continuou vivo na
nova moldura.
II
Para que se usa alguma coisa? O fim último de todo uso é o m esm o
que o fim de toda atividade, que é duplo: para conservar a vida, e para
melhorar a vida, isto é, para prom over a vida que se considera boa. For
mulando isto negativamente, com o o sugere o par de conceitos “necessi
dades e misérias” , de Bacon, o duplo fim é evitar a destruição e superar a
miséria. Observamos o caráter de necessidade conferido por Bacon ao
esforço humano, e com ele ao conhecimento, com o parte deste esforço.
Ele fala da eliminação ou moderação de uma situação adversa ou opres
sora, enquanto Tomás de Aquino, com Aristóteles, fala positivamente da
“plenitude do ser” , ou da perfeição. O acento negativo de Bacon encarre
ga o conhecimento com uma espécie de urgência física e moral, inteira
mente estranha e nova na história da “teoria” , mas que desde então pas
sou a ser cada vez mais comum.
A diferença de acento permite, no entanto, que se perceba um terre
no comum: caso se possa considerar com o garantida a mera conserva
ção (que em ambos os casos tem a preferência), então sofrimento ou mi
séria significa a negação da boa vida, e a eliminação do sofrimento ou
miséria significa uma melhora, e desta forma, de acordo com o pensa
mento de ambos, Aristóteles e Bacon, o fim último de todo agir, além do
mínimo necessário para a conservação da “ boa vida” , é a felicidade do
ser humano. Se apesar de toda ambigüidade que a palavra não pode dei
xar de ter, mantivermos o termo “felicidade” , então no terreno comum a
Bacon e Aristóteles poderemos constatar que o “para quê” de todo uso,
incluído o do conhecimento, é a felicidade.
III
Quando, de acordo com esta “dem ocracia” , o todo são meras somas,
então suas qualidades aparentemente autênticas são apenas o resultado
de uma combinação quantitativa mais ou menos complicada de certos
substratos e de sua dinâmica. De maneira geral, a com posição e o grau de
com posição ocupam o lugar de todas as outras distinções ontológicas.
Assim, para fins de explicação, as partes são convocadas a prestar contas
do todo, e isto significa que o primitivo deve responder pelo mais diferenci
ado, ou, numa maneira de falar mais arcaica, o inferior pelo superior.
VI
Mas ao mesmo tempo a pergunta sobre qual seja o verdadeiro fim hu
mano, se a verdade ou a utilidade, permanece inteiramente em aberto
pelo fato de as duas andarem juntas, não sendo substancialmente afetada
pela visível preponderância no presente do elemento prático. A resposta é
determinada pela imagem do ser humano, de que nós não temos certeza.
O que é certo é o que foi aprendido antes, que se o fim é a “verdade” , não
se trata de uma verdade de pura contemplação. A descoberta moderna de
que conhecer a natureza exige que nós a forcemos - uma descoberta que
vai além da ciência natural - corrigiu em definitivo a visão “contemplativa”
de Aristóteles a respeito da teoria. Evidentemente, no ideal da contempla
ção havia algo mais em jo go do que apenas uma concepção do método
teórico: deve estar em jo go algo mais do que uma correção da última, que
tenhamos que deixar para trás - um deixar para trás tanto mais difícil de
aceitar quanto mais for entendida sua necessidade.
VII
VIII
Entre os aspectos desta situação existe um que foi pela primeira vez,
com todo o vigor de sua eloqüência, descrito por Pascal: a solidão do ser
humano no universo físico da cosm ologia moderna. “Tragado pela am
plidão infinita dos espaços, de que eu nada sei e que nada sabe de mim,
eu estrem eço” 2. Que nada sabe de mim: mais do que o opressivo infinito
dos espaços e tempos cósmicos, mais do que a desproporção quantitati
va, mais do que a minúscula dimensão do ser humano em sua pequenez
dentro desta imensidão, é o “silêncio” , ou a indiferença do universo em
relação ao ser humano, a ignorância das coisas humanas por parte da
quilo onde todas as coisas humanas têm que desenrolar-se, que funda
menta a solidão do ser humano no todo da realidade. Com o parte deste
todo, com o uma peça da natureza, o ser humano é apenas um caniço
que a qualquer momento pode ser quebrado pelas forças do universo
imenso, onde até a existência do caniço não passa de um acaso particu
lar e cego - não menos cego do que o acaso de ele ser eventualmente es
magado. Mas, com o caniço pensante, ele não é exatamente uma parce
la desta soma, não pertence a ela mas é radicalmente diferente, inco-
mensurável: pois o extenso não pensa, assim ensinou Descartes, e a na
tureza não é mais do que res extensa, isto é, corpo, matéria, dimensão
exterior. Quando esmaga o caniço, a natureza o faz sem pensar, ao pas-
sojque o caniço, o ser humano, mesm o ao ser esmagado, está pelo pen
samento consciente de ser esm agado3. No mundo só ele pensa, não por
que é parte do mundo, mas sim apesar de ser parte do mundo. Com o já
não participa mais de um sentido da natureza, mas apenas - através do
seu corpo - de sua condição mecânica, assim também a natureza não
Mas existe algo mais, nesta situação, do que o mero estado de ânimo
de quem não tem pátria, de quem está perdido e sente medo. A indiferen
ça da natureza significa também que ela não tem qualquer relação com
fins. Excluída a teleologia do sistema das causas naturais, a natureza, ela
própria sem fins e sem objetivos, parou de sancionar qualquer possível fi
nalidade humana, üm universo sem uma hierarquia interna do ser, com o
é o universo copernicano, deixa sem apoio ontológico os valores, e na
busca de sentido e valor o eu é inteiramente rechaçado de volta a si mes
mo. O sentido não é mais encontrado e sim “dado” ; o valor não é mais
percebido na contemplação do ser objetivo, mas colocado com o um ato
de valor atribuído. Como função da vontade, minha única criação são os
fins. A vontade substitui a contemplação; a temporalidade do ato expul
sa a eternidade do “ bem em si” . Esta é a fase nietzscheana da situação,
Que o mundo foi criado por alguém - por um ou por vários - é em ge-
gênese prevaleça de muitas maneiras uma necessidade quase impessoal
de um instinto sombrio. Mas quem quer que seja o criador, o ser humano
não lhe deve nenhuma devoção, nem respeito à sua obra. Sua obra, em
bora inclua misteriosamente o ser humano, não fornece, tampouco
com o sua vontade, a norma para o comportamento humano. Com um
poder que se afastou profundamente da divindade, e de que o ser huma
no, com seu espírito mais próximo de Deus, pode prescindir, o criador do
mundo só conservou de Deus o poder de agir, porém de um agir sem com
preensão e sem bondade. Assim o demiurgo criou o mundo na ignorân
cia e na paixão.
9 . M . H e id e g g e r. Holzwege , p. 1 9 9 .
1 0 . O p . cit., p . 2 0 0 .
guma é por natureza boa ou má, as coisas em si são indiferentes, só na
opinião dos homens é que as ações são boas ou más. O ser humano espi
ritual, na liberdade do seu conhecimento, tem o uso de todas as coisas.
Mas a verdadeira raiz do antinomismo gnóstico não é o relativismo; pois a
origem última de toda “opinião humana”, pela qual as ações tornam-se
boas ou más, é, na visão gnóstica, não o próprio ser humano mas sim o
mundo e seu demiurgo. Plotino reconheceu claramente a conexão entre a
falta de uma doutrina das virtudes e o desprezo do mundo dos gnósticos.
“Mais atrevidamente [do que Epicuro] contra o senhor da providência e
contra a própria providência, eles desprezam toda lei deste mundo e a vir
tude que desde o início dos tempos foi estabelecida entre os homens”
(Enn. II 9, 15). Pois a razão última de toda pretensa lei moral é, para os
gnósticos, a mesma que a da lei natural: as duas são complementares,
com o aspecto interno e externo do único determinismo cósmico e de sua
agressão à liberdade humana. Am bas emanam do senhor do mundo
com o instrumentos do seu poder, com o se manifesta no duplo aspecto do
Deus judaico com o criador e legislador. Da mesma maneira que a lei físi
ca, o destino, confere um lugar aos corpos no sistema do universo, assim
também faz às almas a lei moral, tornando-as dóceis ao regime demiúrgi-
co. Na medida em que o princípio desta lei moral é “justiça”, isto é, justiça
retributiva ou penal (sobretudo esta), ele possui na esfera psíquica o mes
mo caráter compulsivo que o destino cósm ico na esfera física. Os anjos do
“criador do mundo” instituíram ‘obras justas’, para através desta doutrina
levarem os homens à servidão” (Simão M ago). Quem obedece a normas
dadas, renuncia à autoridade do seu eu.
rém, com o não pertence a nenhuma ordem, está acima da lei, além do
bem e do mal, sendo lei para si próprio na força do seu “conhecer” .
Mas em torno de que gira este saber, este conhecimento, próprio não
da “alma” mas do “espírito” , e onde o eu espiritual se redime da servidão
cósmica? (Jma célebre fórmula valentiniana resume da seguinte maneira
o objeto da gnose: “O que nos liberta é o conhecimento do que éramos e
do que viem os a ser; do onde estávamos e do aonde fom os jogados; para
onde corremos, de que fom os remidos; o que é nascimento e o que é re
nascimento” 14. üma exegese verdadeira teria que mostrar todo o mito
gnóstico. Restrinjo-me aqui a algumas observações formais.
1 4 . C le m e n s A le x . Excerpta ex Theodoto, 7 8 , 2.
de, nós tivemos, segundo a fórmula gnóstica, nossa origem na eternida
de, e do m esm o m odo temos também o nosso alvo na eternidade. Isto
coloca o niilismo intramundano em um horizonte metafísico inexistente
no paralelo moderno.
O olhar sobre o que está aí, sobre a natureza com o ela é em si, sobre
o ente, foi chamado pelos antigos de th eoria , contemplação. Mas se é
conservado à contem plação apenas o existente irrelevante, ela perde a
dignidade que um dia possuiu - com o a perde também o presente no
que mantém para o contemplador pela presença de seus objetos. A the
oria possuía esta dignidade por causa de seu pressuposto platônico -
porque nas formas das coisas apreendia objetos eternos, uma transcen
dência do ser imutável entrevista através da transparência do vir-a-ser. O
ser imutável é presente perpétuo, e dele a contemplação pode participar
na breve duração do presente temporal.
VI - A indiferença da natureza
Nosso estudo leva-nos mais uma vez de volta ao dualismo entre ser
humano e p h y sis com o fundo metafísico da situação niilista. Não se
pode deixar de perceber uma diferença fundamental entre o dualismo
gnóstico e o existencialista: o ser humano gnóstico foi lançado dentro
de uma natureza contrária a Deus, e por isso contrária ao ser humano; o
ser humano moderno, em uma natureza indiferente. Só esta última sig
nifica o vácuo absoluto, o abismo verdadeiramente sem fundo. O hostil
e dem oníaco sem pre é ainda antropomórfico, familiar m esm o na alie
nação, e o contraste, com o tal, confere direção à existência - uma dire
ção negativa, na verdade, mas que tem atrás de si a sanção da trans
cendência negativa, de que a positividade do mundo é a contrapartida
qualitativa. À natureza neutra da ciência moderna nem sequer se confe
re esta qualidade antagônica, desta natureza não se pode obter nenhu-
ma orientação. Isto torna o niilismo m oderno muito mais radical e de-
sesperado do que jamais poderia ter sido o niilismo gn óstico, com to do
o seu horror ao mundo e sua.revolta contra as leis.dp m u n d o . Q ue a na
tureza não se preocupe, é este o verdadeiro abismo. Que só o ser huma
no se preocupe, não tendo diante de si, em sua finitude, outra coisa a
não ser a morte, que ele esteja só com sua contingência e com a ausên
cia objetiva de sentido de seus projetos de sentido, é na verdade uma si
tuação sem precedentes.
Primeiro, pois, um olhar para o lado negativo. Inicio com o mais terre
no e o mais empírico conceito de imortalidade: a sobrevivência na imor
talidade da fama. Na Antigüidade isto era apreciado ao extremo, conside
rado não apenas com o ajusta recompensa pelos nobres feitos mas tam
bém com o o que mais impulsionava os homens para eles1. Os feitos têm
que ser visíveis, isto é, públicos, para que possam ser percebidos e lem
brados com o grandes feitos. A dimensão desta sobrevivência é a própria
dimensão em que ela foi conquistada: a comunidade política. De acordo
com isto, a fama imortal é a permanência das honras públicas, assim
com o a comunidade é permanência da vida humana. Mas já Aristóteles
observou que as honras valem exatamente tanto quanto o julgamento de
quem as tributa2. Mas então o desejo da fama, e com mais razão o desejo
de seu prolongamento na fama póstuma, e em última análise o próprio
apreço por esta espécie de imortalidade, só se justifica pela confiança
que razoavelmente podem os depositar em seu fiduciário e dispensador,
ou seja, a opinião pública: em sua perspicácia no presente, em sua fideli
dade no futuro, e naturalmente em sua própria continuidade, isto é, na
sobrevivência sem limites da comunidade. Ora, em todas estas coisas o
ser humano moderno não consegue depositar a mesma confiança ingê-
II
III
IV
Assim, para o dizermos ainda uma vez, é possível que não seja aquilo
que dura mais e sim o que dura menos, e que interiormente mais se afas-
12, #r, { /J.r*cur5a t-.fraí
3 . G in z a lin k s 3 1 (fin a l): M . L id z b a rs k i. Ginza - Der Schatz oder Das Grosse Buch der
Mandãer. G õ ttin g e n , 1 9 2 5 , p . 5 3 9 , 2 9 -3 2 . E m u m a fo n te a v é s tic a , e s ta im a g e m d irig e -s e
à a lm a c o m es ta s p a la v ra s : “S o u e u , ó jo v e m d e b o n s p e n s a m e n to s , b o a s p a la v ra s , b o a s
a ç õ e s , b o a c o n s c iê n c ia [...] tu a p r ó p r ia c o n s c iê n c ia p e s s o a l. [...] T u m e a m a s te n e s ta a l
tu ra , b o n d a d e , b e le z a [...] c o m o m e v ê s a g o r a ” (Hadõkht Nask, 2 ,9 s s ). N o b e lo c a n to
d a s p é ro la s d o s A to s d e T o m é , o p rín c ip e q u e re g re s s a p a ra c a s a r e c o n h e c e n a ro u p a
g e m c e le s te q u e lh e é e n v ia d a a im a g e m d e si m e s m o ( “ E u h a v ia e s q u e c id o seu b rilh o ,
q u e c o m o c ria n ç a d e ix a ra p a ra trá s n a c a s a p a te rn a . V i-o d e re p e n te c o m o a im a g e m d e
m im m e s m o n u m e s p e lh o , vi-o in te ir a m e n te e m m im e re c o n h e c i-m e in te ir a m e n te n e le.
É r a m o s d ois, s e p a ra d o s u m d o o u tro , e n ã o o b s ta n te é ra m o s u m , e m u m a só fig u r a ” ),
s e n d o r e c o n h e c id o p o r e le “c o m o a q u e le p a ra o q u a l fu i e d u c a d o n a c a s a d e m e u p a i, e
p e rc e b ia e m m im m e s m o c o m o m in h a fig u ra ia c re s c e n d o d e a c o rd o c o m s u a s o b r a s ”
(Acta Th.omaet 1 1 2 ).
12, teiàaífccfa g exráttó,i
Mas ao lado desta versão individual também existe uma versão cole
tiva do simbolismo do retrato, que relaciona nossos feitos não com uma
eternidade do nosso eu particular mas sim com a perfeição do próprio eu
divino. Veja-se esta citação de um dos escritos maniqueus descobertos
em 1930 no Egito. “No fim, na dissolução do mundo, o pensamento da
vida se reunirá e configurará sua alma na forma da Última Im agem 4. [...]
Por seu espírito captará a luz e a vida que está em todas as coisas e as im
plantará em seu corpo...” “ E se introduzirá no grande fogo e reunirá a si
sua própria alma e se formará nesta Última Imagem; e o encontrarás e
verás com o ele varre de si a impureza que lhe é estranha, mas reunirá em
si a vida e a luz que está em todas as coisas, e sobre elas construirá o seu
corpo. Quando esta Última Imagem estiver completada em todos os
membros, então ela surgirá e elevar-se-á da grande luta... (e tc .)”5. Uma
interpretação dogmática com pleta deste simbolismo iria muito além dos
limites do presente trabalho. Com o explicação, seja suficiente aqui o se
guinte: Aquela “Última Im agem ” que se completa no final dos tem pos é,
segundo a doutrina maniqueísta, construída progressivamente ao longo
e através de todo o processo do mundo. Toda a história, da vida em geral
e da humanidade em particular, trabalha nela incessantemente e recons-
trói na figura final a totalidade original daquele ser divino, imortal porém
capaz de sofrer, que nós chamam os o “primeiro hom em ” , e cuja auto-en-
trega à obscuridade e ao perigo do vir- a-ser faz com que o universo seja
possível e ao mesm o tem po necessário. - Mas para o espírito moderno,
em sua atitude decididamente antidualista, não são aceitáveis nem as ra
zões apresentadas porMani para esta auto-entrega primordial, nem as al
ternativas mais subtis de outros sistemas gnósticos, nem de maneira g e
ral a condenação do mundo corpóreo com o tal, comum a todas as ver
sões. Tam bém a escatologia final, que postula uma meta e um fim do
tempo, é tampouco compatível com nossa convicção de que as mudan
ças cósmicas prosseguirão indefinidamente, nem com nossa profunda
4 . O u “da ú ltim a e s tá tu a ”: o te x to c o p ta u s a a p a la v ra g re g a à v ô p ià ç .
5 .Kephalaia, V (2 9 ,1 -6 ) e X V I (5 4 , 1 4 -2 4 ): Manichãische Handschriften der Staatli-
chen Museen Berlin, v o l. I: Kephalaia , 1; Hàlfte. S tu ttg a rt, 1 9 4 0 . É p o s s ív e l q u e o a u to r
s e ja o p ró p rio M a n i.
indisposição para acreditar que nenhum fim nele, ou provocado por ele,
coincida com a perfeição. Não obstante, o símbolo do retrato total é ca
paz de dizer-nos alguma coisa, para além de todas as barreiras da doutri
na e do clima espiritual. Verifiquemos o que nele é importante para nós.
VI
Quando eu faço uso, com o às vezes não se pode deixar de fazer, da li
berdade da ignorância, que nestas coisas é a sorte que nos coube, e do
recurso do mito ou da invenção da fé, que nos é permitida por Platão, eu
me sinto tentado a pensamentos com o os seguintes.
toda sua urgência e com ela o frescor do sentir, que a paisagem divina
desdobra suas cores, e que a divindade chega à experiência de si mes
ma. Se é, pois, a morte a condição básica daquela mesmidade isolada
que ao longo de toda a natureza orgânica se manifesta precisamente no
instinto da autoconservação, se é ela que estabelece este alto preço a si
mesma, e se o lucro desta mortalidade é o alimento da eternidade, e este
o sentido do paradoxo inteiro, então não é razoável que para os executo
res instituídos, os eus auto-afirmantes, seja exigida imortalidade. Efetiva
mente o instinto da autoconservação reconhece isto, pois a pressupõe
em seu contínuo esforço para adiar por esta vez a extinção.
VII
Mas isto não é tudo. O que hoje importa, pelo contrário, é salvar toda a
aventura mortal em si, antes que se possa pensar em um eventual êxito ou
fracasso no imortal. A ameaça ao mundo vivo por parte de nossa tecnolo
gia, de que o fantasma da bomba atômica é apenas o aspecto mais dra
mático (e talvez o mais fácil de ser controlado), diz, para a visão aqui de
senvolvida, que em nosso lugar do universo a imagem de Deus corre peri
go com o jam ais correu antes, e isto no mais claro dos sentidos. Este pe
rigo não pode ser enfrentado por nenhuma moralidade oculta da existên
cia privada, só por um agir coletivo público de ação atual, e não é possível
prever-se que alianças com o mal terão que ser feitas pelo bem para evitar
o ainda pior, ou mesmo para impedir o inadmissível. Que aqui exista o
inadmissível absoluto, isto é, que o ser humano se destrua a si mesm o
(por exemplo, arruinando a biosfera), não se pode depreender da mera
imanência dos fatos do mundo. Do acaso cósm ico da existência do ser hu
mano não podemos inferir nenhuma obrigação incondicional de que o ser
humano tenha que existir. A julgar apenas pela sentença cega do acaso, a
obcecada espécie pode perfeitamente perecer (e outras com ela), tão bem
com o conseguiu erguer-se a vertiginosas alturas do poder. O perecer, não
menos que o surgir, faz parte da evolução. Contra a evolução com o tal não
se pode pecar, já que, qualquer que seja o agir, o curso da evolução pros
segue, m esm o que para o Nada. E que direito teriam as possíveis gera
ções vivas futuras às condições da existência atual? Nenhum, pelo menos
à existência em si, antes que existissem, segundo as normas do direito pu
ramente humano. Somente o que é tem direito a ser. Assim, na visão
atual, deixar que venha a ser não seria um mandamento, nem o não deixar
vir a ser seria um crime. Mas que aqui, juntamente com a causa temporal,
também esteja em jogo uma causa eterna - este aspecto de nossa respon
sabilidade só pode ser uma proteção contra a tentação da apatia fatalista e
da ainda mais nefasta traição do “après nous le d élu ge”, “depois de nós o
dilúvio” . Em nossas mãos inseguras nós seguramos literalmente o futuro
da aventura divina na terra, e não podem os desapontá-la, mesmo que qui
séssemos desapontar-nos.
esfera eterna, onde ela jam ais se perde. Uma, na condição limitada de
nossa previsão e na complexidade das coisas do mundo, é em larga m e
dida um joguete do acaso e da sorte; a outra tem a segurança de normas
que se podem conhecer, e que segundo as palavras da Bíblia não são es
tranhas ao nosso coração6. Mas é um aspecto peculiar e único da atual si
tuação do ser humano, por ela mesma provocada, que os dois aspectos
da responsabilidade moral, o aspecto metafísico do momento e o aspecto
causai do efeito futuro, confluem um com o outro, já que de repente a
ameaça do futuro total ergue a um plano mais elevado o aspecto da prote
ção meramente física, com isto transformando a prudência preventiva a
seu serviço no dever transcendental mais urgente. Quer dizer, o “momen
to” da decisão, neste contexto, não é mais apenas o da própria ação isola
da e de curto prazo, mas acima de tudo o “m om ento” do gênero humano
em seu agir social global. Para a novidade desta situação, que atribui ao
conhecimento das conseqüências, e com ele ao conhecimento científico,
um papel nunca antes conhecido, nós não fom os preparados por nenhu
ma doutrina de deveres; e aqui se encontra uma tarefa ainda a ser atacada
da teoria ética. Até que ponto os novos deveres na esfera do cálculo cós
mico, que esta teoria irá prescrever, poderão temporariamente suspender
a incondicionalidade não calculante do “momento” pessoal, é uma questão
que aqui temos que deixar em aberto. Embora nenhuma vida eterna espe
re por nós, nem um eterno retorno do aqui, podem os no entanto pensar
em uma imortalidade, enquanto durante o curto lapso de tem po de nossa
existência nós velarmos pelo cumprimento dos interesses mortais am ea
çados e formos auxiliares do Deus imortal que sofre.
6 . D t 3 0 ,1 4 .
Epílogo
Natureza e ética
Capítulo 1 - “Life, Death, and the Body in the Theory of Being” . Reuiew o f
M etaphysics, 19, 1 (1965). - “ Das Problem des Lebens und des Leibes
in der Lehre vom Sein”. Zeitschrift fü r P h ilo sop h isch e F orsch u n g , 19,
2 (1965).
C apítu lo 12 - “Immortality and the Modern Tem per (The Ingersoll Lecture,
1961)”. Harvard Theological Review, 55 (1962). Em alemão em Zivis-
chen N ichts und Ew igkeit, 1963.
índice
S u m á rio , 5
Prefácio, 7