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Coleção Textos Filosóficos

- O s e r e o n a d a - E n s a io d e o n to lo g ia fe n o m e n o ló g ic a
Jean-Paul Sartre
- O p rin c íp io v id a - F u n d a m e n to s p á ra u m a b io lo g ia filo s ó fic a
Hans Jonas
- S o b re a p o te n c ia lid a d e d a a lm a - De Quantitate Animae
Santo Agostinho
- M o fu n d o d a s a p a rê n c ia s
Michel Maffesoli o
- E lo g io d a ra z ã o s e n s ív e l
Michel Maffesoli g
- P ro p e d ê u tic a ló g ic o -s e m â n tic a 0
Ernst Tugendhat e ürsula Wolf
- E n tre n ó s ~ E n s a io s s o b re a a lte rid a d e rfprqgbAh^ s
Emmanuel Léuinas
- O e n te e a e s s ê n c ia ^
Tomás de Aquino ^ o d ir e t to ^
- Im m a n u e l K a n t - T e x to s se le to s
Immanuel Kant
- S e is e s tu d o s s o b re “S e r e T e m p o ”
Ernildo Stein
- O c a r á te r o c u lto d a s a ú d e
Hans-Georg Gadamer
- H u m a n is m o d o o u tro h o m e m
Emmanuel Léuinas
- O a c a s o e a n e c e s s id a d e
Jacques Monod
- Q u e é isto - A filo s o fia ?
Martin Heidegger
- Id e n tid a d e e d ife re n ç a
Martin Heidegger

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Jonas, Hans, 1903-1993


O princípio vida : fundamentos para uma
biologia filosófica / Hans Jonas ; tradução de
Carlos Alm eida Pereira. - Petrópolis, RJ : Vozes,
2004.

ISBN 85.326.3084-7

Título original: Das Prinzip Leben : Ansátze zu


einer philosophischen Biologie

Bibliografia.

1. Biologia - Filosofia 2. Existencialismo


3. Fenom en ologia 4. Vida I. Título.

04-6476 CDD-113.8

ín d ic e s p u r a c íitá lo ç jo s is t e m á t ic o :

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0 princípio vida
Fundamentos para uma biologia filosófica

Tradução de Carlos Alm eida Pereira

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© 2004, Insel Verlag Frankfurt am Main und Leipzig 1994

Título original alemão: Das P rin zip L e b en : A n sã tze zu einer


p h ilo s o p h is ch e n B io lo g ie

Direitos de publicação em língua portuguesa:


Editora Vozes Ltda.
Rua Frei Luís, 100
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Internet: http://www.vozes.com.br
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E d itora çã o: Maria da Conceição Borba de Sousa


P ro je to g rá fic o e capa: AG.SR Desenv. Gráfico

ISBN 85.326.3084-7 (edição brasileira)


ISBN 3-518-39198-4 (edição alemã)

Biblioteca Central
0 princípio vida : fundamentos para uma
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\T. M ) \ 2 ? R S 20 71 - 10 0 7 2 0 0 0
1 i c c n c i a t u r a c m l i l o s o l u - ko. » S e m . M p . i
Sumário

* P re fá cio , 7

I r jtr o d u ç io v A temática de uma filosofia da vida, 11

1. O problema da vida e do corpo na doutrina do ser, 17

2. Percepção, causalidade e teleologia, 35

3. Aspectos filosóficos do darwinismo, 49

4. Harmonia, equilíbrio e devir - O conceito de sistema e sua


aplicação ao terreno da vida, 74

5. Deus é um matemático? - Sobre o sentido do metabolismo, 87

^^V lovim en to e sensação - Sobre a alma anjmal, 122

7. Cibernética e finalidade: uma crítica, 132

8. A nobreza da visão - üm estudo sobre a fenomenologia dos


sentidos, 159

9. H o m o p ic to r : da liberdade da imagem, 181

T R A N SIÇ Ã O - Da filosofia do organismo à filosofia do ser humano, 206

10. Do uso prático da teoria, 211

11. Gnose, existencialismo e niilismo, 233

12. Imortalidade e existência atual, 253

E p ílo g o - Natureza e ética, 271

N o ta b ib lio g rá fic a , 273

ín d ic e , 275
Prefácio

Se quisermos reduzir este livro à sua expressão mais simples, pode­


remos dizer que ele representa uma interpretação “ontológica” dos fenô­
menos biológicos. O existencialismo contemporâneo, da mesma forma
que outras filosofias que o precederam, com o que ofuscado pela visão
exclusiva do ser humano, costuma atribuir-lhe com o hom enagem espe­
cial, mas ao m esm o tem po também com o uma carga, muita coisa base­
ada na existência orgânica com o tal; com isto a com preensão do mundo
orgânico é privada das visões que a autopercepção humana lhe oferece,
ao m esm o tem po que deixa de ver a verdadeira linha divisória entre o
animal e o ser humano. Por sua vez a biologia científica, cujas regras a
mantêm presa aos fatos físicos exteriores, é forçada a ignorar a dimen­
são da interioridade, que faz parte integrante da vida; com isto ela faz de­
saparecer a distinção entre “animado” e “ inanimado” ; e ao mesm o tem ­
po o sentido da vida, quando explicado unicamente através da matéria,
torna-se ainda mais enigmático do que antesj Estes dois pontos de vista,
que desde Descartes são mantidos artificialmente separados, na verdade
se com pletam logicamente e se ajudam um ao outro.) A o buscarem con­
solidar-se isoladamente, cada um deles sofre prejuízo - tanto a com pre­
ensão do ser humano quanto a da vida extra-humana. üma releitura filo­
sófica do texto biológico pode reconquistar para a com preensão das coi­
sas orgânicas a dimensão interior - a que nos é melhor conhecida -, e as­
sim reconquistar para a unidade psicofísica da vida o lugar que ela per­
deu na teoria após a separação estabelecida por Descartes entre o men­
tal e o material. Nesse caso o ganho para a compreensão do orgânico há
de constituir um lucro também para a com preensão do ser humano.

i De acordo com isto, as considerações a seguir buscam derrubar por


um lado as barreiras antropocêntricas da filosofia idealista e existencialis­
ta, e por outro as barreiras materialistas das ciências naturais.\Efetiva-
mente, no mistério do corpo vivo as duas estão unidas. As grandes con­
tradições que o ser humano encontra em si m esm o - liberdade e necessi­
dade, autonomia e dependência, o eu e o mundo, relações e isolamento,
atividade criadora e condição mortal - já estão germinalmente prefigura-
das nas mais primitivas manifestações da vida, cada uma delas manten­
do um precário equilíbrio entre o ser e o não-ser, sempre já trazendo den­
tro de si um horizonte de “transcendência” .\Este tema, comum a toda
vida, buscaremos acompanhá-lo através do crescente desenvolvimento
das capacidades e funções orgânicas: metabolismo, movimento e apeti­
te, sensação e percepção, imaginação, arte e conceito - uma escala as­
cendente de liberdade e risco que culmina no ser humano, o qual talvez
possa chegar a uma nova compreensão de sua unicidade quando deixar
de considerar-se um ser metafisicamente isolado, j

Porém o leitor não irá encontrar aqui nada do otimismo evolucionista


de um Teilhard de Chardin, com sua grandiosa e incessante marcha da
vida rumo à mais alta perfeição, nem do princípio da novidade criadora
que sempre se realiza (e por isso sempre obtém êxito), admitido por A.N.
Whitehead com o base de todo o incessante movimento do universo.
Verá, pelo contrário, a vida considerada com o um experimento envol­
vendo apostas e riscos cada vez maiores, que com o destino do ser hu­
mano para a liberdade pode levar tanto à catástrofe quanto ao êxito. A di­
ferença entre esta visão e outras success stories metafísicas (com que
quase todas as metafísicas tradicionais se parecem ) manifestar-se-á, as­
sim espero, com o uma diferença não só de temperamento mas também
uma questão de justiça filosófica.

|Apesar de meus principais instrumentos terem sido essencialmente


a análise crítica e a descrição fenom enológica, no final não receei en­
volver-me com a especulação metafísica, sem pre que me pareceu ne­
cessário conjeturar sobre as coisas últimas e indemonstráveis (m as
que nem por isso carecem de sentido).jEste passo está m arcado com
clareza, e o leitor com mentalidade mais positivista está livre para esta­
belecer as fronteiras em cuja transgressão ele não está disposto a
acompanhar-me. Se fazer isto ou deixar de fazê-lo era uma coisa que
dependia de mim, o fato de ao ocupar-me com isto eu me haver envolvi­
do com as teorias ontológicas de Platão a Whitehead, e em questões
que vão desde a física e a biologia até à epistem ologia e à ética, era uma
coisa ligada necessariam ente ao assunto m esm o. O próprio fenôm eno
da vida rejeita os limites que geralm ente separam entre si nossas disci­
plinas e nossos cam pos de trabalho.

Originalmente os capítulos deste livro apareceram com o pesquisas


separadas entre 1950 e 1965, e todos, salvo uma exceção, foram publi­
cados primeiramente em inglês, alguns também em alemão, tendo sido
em 1966'revisados e acrescidos de apêndices e transições, e reunidos no
livro The P h e n o m e n o n o f Life - Tow ard a P h ilo sop h ica l B iolog y (N ew
York, Harper & Row, 1966). A edição alemã aqui apresentada, que em al­
gumas partes traz modificações, foi traduzida pelo Dr. Dockhorn e por
mim separadamente, da seguinte maneira: o Dr. Dockhorn traduziu a in­
trodução e os capítulos 3, 6, 7 e 8 (com os respectivos apêndices, exceto
no capítulo 8), e eu todo o resto. Em face da relação especial existente
entre o autor e sua obra, e pela circunstância de neste caso a língua de
destino ser sua própria língua materna em que ele construiu seu estilo
próprio antes de iniciar a carreira em língua inglesa, foi perfeitamente na­
tural que mais uma vez eu fizesse uma revisão estilística do cuidadoso
trabalho de meu tradutor, e que em relação ao original eu me permitisse uma
liberdade que só com pete ao autor. Tam bém nas partes de que me en­
carreguei sozinho, a “tradução” , evidentemente, teve este mesm o senti­
do. A particularidade de eu me haver “retraduzido” da língua posterior­
mente adquirida para a minha própria língua é uma experiência que só
pode ser adequadamente avaliada por um escritor que tenha tentado fa­
zer o mesmo.

No tocante à identidade substancial da publicação alemã com a in­


glesa, devem ser mencionadas - abstraindo de algumas modificações e
acréscimos - estas duas exceções: O 4o capítulo, originalmente escrito
em alemão e publicado primeiramente no S tu d iu m G en erale (1957),
não figura na publicação inglesa; em compensação, o (1 0 Q) ensaio aí pu­
blicado, sobre Heidegger e a teologia, não foi incluído na edição alemã,
por já haver sido publicado alhures em alemão (em: H e id e g g e r e a teo lo ­
g ia , ed. por G. Noller, 1967), e por não fazer falta à marcha do argumen­
to. O mesmo não se pode dizer dos capítulos 9, 11 e 12, que, embora te­
nham aparecido em alemão na K leine V a n den hoeck-R eih e com o título
“Entre o nada e a eternidade” (Zwischen Nichts und Ewigkeit), teriam dei­
xado o presente livro incompleto. - Melhor do que o título do original in­
glês, o título escolhido para a primeira edição alemã diz o que eu conside­
ro com o o tema central do livro: organismo e liberdade.
New Rochelle, York, 1972
Hans Jonas
Introdução
A temática de uma filosofia da vida

üm a filosofia da vida tem com o objeto a filosofia do organismo e a fi­


losofia do espírito. Esta é já uma primeira afirmação da filosofia da vida,
na verdade a sua hipótese preliminar, que terá de ser verificada à medi­
da que realizar-se. Pois ò apontar seus limites externos implica nada m e­
nos do que a afirmação de que m esm o em suas estruturas mais primiti­
vas o orgânico já prefigura o espiritual, e que mesmo em suas dimensões
mais elevadas o espírito permanece parte do orgânico. Das duas partes
desta afirmação apenas a segunda, não a primeira, está em consonância
com o pensamento moderno; e apenas a primeira, e não a segunda, é
adequada ao pensamento antigo. Que as duas afirmações sejam válidas
e inseparáveis uma da outra, esta é a hipótese de uma filosofia que busca
seu lugar próprio acima da qu erelle des a ncien s et des m o d ern es.

O filósofo que contemple o grandioso panorama da vida em nosso


planeta, e que se compreenda a si próprio com o uma parte do mesmo,
não se dará por satisfeito com a resposta - por mais útil que esta possa
vir a ser com o hipótese de trabalho para a ciência - de que este imenso e
incessante projeto, que através das eras avança em rodeios experimen­
tando formas cada vez mais ousadas e subtis, nada mais é do que um
processo “c e g o ” . Cego, no sentido de que seu dinamismo pode ser redu­
zido às meras permutações mecânicas de elementos indiferentes que ao
longo do caminho vão armazenando seus resultados aleatórios sob a for­
ma de espécies, e que com estas vá provocando de uma maneira igual­
mente aleatória os fenômenos subjetivos que, com o subprodutos tão
enigmáticos quanto supérfluos, acompanham aqueles resultados físicos.
Pelo contrário, uma vez que a matéria manifestou-se desta forma, isto é,
que ela efetivamente organizou-se desta maneira e chegou a estes resul­
tados, o pensamento não pode deixar de fazer-lhe justiça, reconhecendo
a possibilidade de que o que ela chegou a realizar está depositado em
sua natureza primitiva.^Esta potencialidade primordial deveria ser incluí­
da no conceito da substância física, da mesma maneira que a tendência
a uma finalidade, manifestada em suas realizações, as criaturas, deveria
estar incluída no conceito da causalidade física.^O pensador que esteja li­
vre de dogmatismos não irá reprimir o testemunho da vida; antes ele ha
de deixar-se desafiar nos dias de hoje a submeter a uma análise o modelo
convencional da realidade, assumido da ciência, modelo este que talvez
já esteja com eçando a ser superado por esta mesma ciência. (O exem plo
de Whitehead pode demonstrar que uma tal análise não precisa signifi­
car nenhum retorno a Aristóteles.)

Independentemente da história de sua origem, e por conseguinte in­


dependentemente também das descobertas sobre seu desenvolvimento,
a simultânea multiplicidade da vida, sobretudo da vida animal, se nos
apresenta com o uma seqüência crescente de degraus, do mais “primiti­
v o ” ao mais “evoluído” , em cuja escala vão se manifestando a com plica­
ção da forma e a diferenciação da função, a apuração dos sentidos e a in­
tensificação dos instintos, o controle dos membros e a capacidade de
atuação, a reflexão da consciência e a busca da verdade. Aristóteles per­
cebeu esta hierarquia a partir da vida orgânica por ele encontrada, sem
que para isso tivesse necessidade da idéia da evolução; seu livro D e a n i­
m a é o primeiro tratado de biologia filosófica. A s con d ições teóricas
sob as quais seu grande exemplo pode ser retomado em nossos dias são
muito diferentes das suas;^mas a idéia de uma construção estratificada,
de um progressivo depositar-se de camadas, cada camada mais elevada
dependendo das mais baixas, e todas as camadas inferiores sendo con­
servadas na que no momento é a mais elevada, sempre se comprovará
com o imprescindível. Esta seqüência escalonada pode ser interpretada de
duas maneiras: de acordo com os conceitos da percepção e de acordo
com os conceitos da ação (portanto segundo os conceitos do “saber” e
do “poder” ). Ou seja, primeiramente segundo a amplitude e clareza da
experiência, segundo os graus ascendentes da presença no mundo sen­
sível, que passando pelo reino animal levam à mais ampla e mais livre
objetivação da totalidade do ser no ser humano; e por outro, e paralela­
mente a isto e culminando de igual maneira no ser humano, de acordo
com o grau e a maneira de sua ação sobre o mundo, portanto segundo
os graus da progressiva liberdade de ação.jNo tocante às funções orgâni­
cas, estes dois lados estão representados pela percepção e pela mobili­
dade. A mútua relação e penetração^ destes dois aspectos - do perceber
e do agir, da variedade e exatidão de um e da amplitude e poder do outro
- é um tema constante para quem queira aprofundar-se no estudo e no
conhecimento da existência animal.

As duas séries culminam no pensamento humano, e aparecem nele


quando se pergunta: Qual o lado que existe para o outro? É a contempla­
ção para o agir, ou o agir para a contemplação? Com esta reflexão sobre
uma escolha, a biologia transforma-se em ética. Qualquer que seja a res­
posta - e a história da ética com o doutrina do b o n u m h u m a n u m tem co­
nhecimento de várias -, um aspecto incontestável da série crescente é
que em seus degraus o “reflexo” sensitivo do mundo se torna cada vez
mais claro, por conseguinte que o “saber” aumenta cada vez mais, a par­
tir da mais obscura sensação que se iniciou em algum recanto dos mais
primitivos rebentos da escala animal, ou m esm o com os estímulos mais
elementares de sensibilidade orgânica, onde de alguma maneira são “ex­
perimentados” em germ e a alteridade, o mundo e o objeto, isto é, tor-
nam-se subjetivos e provocam uma resposta subjetiva.

Nas considerações antecedentes já por duas vezes apareceu o con­


ceito de “liberdade” : relacionado com a percepção, e relacionado com a
ação. Espera-se que este conceito seja encontrado no terreno do espírito
e da vontade, mas não antes; e se em algum lugar ele for encontrado, o
há de ser na dimensão do agir e não na dimensão do receber. Porém, se
desde o início o “espírito” estiver prefigurado no orgânico, também a li­
berdade o há de estar. E o que nós afirmamos é que já o metabolismo, a
camada básica de toda existência orgânica, permite que a liberdade seja
reconhecida - ou que ele é efetivamente a primeira forma da liberdade. A
maioria dos leitores há de estranhar estas frases, e eu não haveria de es­
perar outra coisa. Pois o que poderia ter menos a ver com liberdade, o
que poderia estar mais afastado do querer e do escolher que toda com ­
preensão normal associa à palavra “liberdade” , do que o automatismo
cego dos processos químicos no interior do nosso corpo? Não obstante,
será parte dos esforços de nosso estudo mostrar que nos obscuros m ovi­
mentos da substância orgânica primitiva, dentro da necessidade sem li­
mites do universo físico, ocorre um primeiro lam pejo de um princípio de
liberdade - princípio este que é estranho aos astros, aos planetas e aos
átomos. Evidentemente, quando o conceito é utilizado para um princípio
tão amplo, todas as associações de significado têm que ser mantidas à
distância: Hiberdade” tem que designar um m odo de ser capaz de ser
percebido objetivamente, isto é, uma maneira de existir atribuída ao or­
gânico em si, e que neste sentido seja compartilhada por todos os m em ­
bros da classe dos “organism os’^ sem ser compartilhada pelas demais:
um conceito ontologicamente descritivo, que de início só possa ser mes­
mo relacionado a fatos meramente corporais)Vlesm o neste caso, no en­
tanto, ele não pode deixar de estar relacionado com o significado que
atribuímos a este conceito no âmbito humano, de onde foi tomado - pois
do contrário o empréstimo e a aplicação mais ampla passariam a ser um
simples e frívolo jo go de palavras. Apesar de toda a objetividade física, os
caracteres por ele descritos no nível primitivo constituem a base ontoló-
gica e a antecipação daqueles fenômenos mais elevados a que pode ser
aplicado diretamente o nom e de “ liberdade”, e que lhe servem de exem ­
plo manifesto: e mesm o os mais elevados destes fenômenos permane­
cem ligados aos inícios não aparentes na camada orgânica basica, com o
14 0 p-inoí')!;.- "rJ-*

condição para que sejam possíveis. Desta maneira o primeiro apareci­


mento do princípio em sua forma pura e elementar implica a irrupção do
ser em um âmbito ilimitado de possibilidades, que se estende até as mais
distantes amplidões da vida subjetiva, e que com o um todo se encontra
sob o signo da “liberdade” .

\Quando entendido neste sentido fundamental, o conceito da liberdade


pode efetivamente servir-nos de fio de Ariadne para a interpretação do que
nós chamamos de “vida”^ 0 segredo dos inícios continua cerrado para
nós. A hipótese que me parece mais convincente é admitir que já a própria
passagem de substância inanimada para substância viva, a primeira au-
to-organização da matéria em direção à vida, foi motivada por uma ten­
dência a estes mesmos modos de liberdade que se manifestam no mais
profundo do ser, e a que esta passagem abriu as portas. Esta suposição se
toca com a concepção de todo o substrato inorgânico de onde se ergue o
edifício da liberdade. Para nossas finalidades não temos necessidade de
prender-nos a esta ou a qualquer outra hipótese a respeito dos inícios,
pois onde quer que com ecem os, os “primeiros movimentos” já terão sido
realizados há müito. Porém, uma vez nos encontrando no próprio âmbito
da vida, nós não dependemos mais de hipóteses - não importando qual
tenha sido sua causa: aqui o conceito da liberdade já possui de antemão
seu lugar reservado, ele é indispensável para a descrição on tológica de
seu dinamismo mais elementar. E com o instrumento de descrição e de in­
terpretação, este conceito de liberdade há de acompanhar-nos em todo
o nosso caminho ascendente.

Mas este caminho ascendente nãu é nenhuma história unicamente


de êxitos.IO privilégio da liberdade carrega em seus ombros o fardo da
necessidade, e significa existência em riscoj Pois a condição básica para
o privilégio consiste no fato paradoxal de a substância viva, por um ato
primordial de isolamento, se haver desprendido da integração geral das
coisas no todo da natureza, de haver-se oposto ao mundo, com isto intro­
duzindo na segurança indiferente da posse da existência a tensão entre o
“ser e não-ser” . Fê-lo assumindo uma precária independência em relação
a esta mesma matéria, que nem por isso deixa de ser indispensável para
sua existência. Distinguindo sua própria identidade da de sua matéria do
momento, pela qual não deixa de ser parte do mundo físico comum. Sus­
penso, assim, entre o ser e o não-ser, o organismo é dono de seu ser ape­
nas de modo condicional e revogável. Com este duplo aspecto do metabo­
lismo - sua riqueza e sua miséria - o não-ser entrou no mundo com o uma
alternativa contida no próprio ser; e só assim “o ser” alcança um sentido
mais claro:^afetado no mais íntimo de si pela ameaça de sua própria nega­
ção, o ser tem que afirmar-se, e um ser afirmado é existência com o desejo.\
Tão constitutiva para a vida é a possibilidade do não-ser, que seu ser é,
com o tal, essencialmente um estar suspenso sobre este abismo, um traço
ao longo de sua margem. Assim o próprio ser, em vez de um estado, pas­
sou a ser uma possibilidade imposta, que continuamente precisa ser re­
conquistada ao seu contrário sempre presente, o não-ser, que inevitavel­
mente terminará por devorá-lo.

Suspenso, assim, na possibilidade, o ser é sob todos os aspectos um


fato polar, e a vida manifesta sem cessar esta polaridade nas antíteses
básicas que determinam sua existência: a antítese do ser e não-ser, de eu
e mundo, de forma e matéria, de liberdade e necessidade. Todas estas
dualidades, com o é fácil perceber, são formas de relação: viver é essenci­
almente estar relacionado com algo; e relação, com o tal, implica “trans­
cendência”, implica um ultrapassar-se por parte daquilo que mantém a
relação.JSe conseguirmos mostrar a presença de uma tal transcendência e
das polaridades que a articulam já na própria base da vida, por mais rudi­
mentar e pré-espiritual que seja sua forma, teremos tornado verdadeira a
afirmação de que o espírito se encontra prefigurado na existência orgâni­
ca com o tal. j
De todas as polaridades mencionadas, a do ser e não-ser é a mais
fundamental. A ela a identidade é arrancada em um esforço supremo e
persistente por adiar o final, que não obstante já está predeterminado.
Pois o não-ser tem a seu favor a universalidade ou igualdade de todas as
coisas. A resistência que o organismo lhe oferece tem que terminar na
submissão, em que o ser-ele-mesmo desaparece e jamais retorna com o
este ser único. O fato de a vida ser mortal constitui sua contradição bási­
ca, mas este fato é parte inseparável de sua essência, sem que seja possí­
vel sequer imaginar-se que seja possível suprimi-lo. A vida é mortal, não
apesar de ser vida, mas precisamente porque é vida segundo sua mais
primitiva constituição, pois a relação de forma e matéria em que ela se
baseia é desta espécie revogável e inafiançável. Sua realidade, paradoxal
e em constante contradição com a natureza mecânica, é no fundo uma
crise continuada, cuja superação jamais é garantida, e que sempre é ape­
nas a continuação da crise com o tal. - Entregue a si mesma e dependen­
do inteiramente de seu próprio rendimento, mas para tornar-se realidade
dependendo de condições que não estão em seu poder e que lhe podem
ser negadas. Dependente, por isso, do favor ou desfavor da realidade ex­
terna. Exposta ao mundo, contra o qual e também pelo qual ela precisa
afirmar-se. Feita autônoma em relação à sua causalidade, e no entanto a
ela submetida. Subtraída à identidade com a matéria, mas dela necessi­
tada. Livre, mas dependente. Isolada, mas necessariamente em contac­
to. Buscando o contacto, o qual no entanto pode destruí-la.. E por outro
lado não menos ameaçada por sua falta. Em risco, portanto, de ambos
os lados, pelo poder e pela fragilidade do mundo, e equilibrando-se no fio
que separa um do outro. Sujeita a ser perturbada em seu processo, que
não pode falhar. Vulnerável em sua distribuição de funções organizadas,
que só com o um todo possuem eficiência. Sempre podendo ser atingida
mortalmente em seu centro, em sua temporalidade podendo se encerrar
a cada momentorlé assim que na matéria a forma viva leva sua existên­
cia: peculiar, paradoxal, lábil, insegura, ameaçada, finita, profundamente
irmanada com a morte.\A ousadia desta existência, cheia de m edo da
morte, põe em foco a ousadia original da liberdade que a substância as­
sumiu ao tornar-se orgânica.

O imenso preço do medo que teve que ser pago desde a origem da
vida, e que aumenta na mesma escala do seu desenvolvimento para for­
mas mais elevadas, não permite que deixe de ser levantada a pergunta
pelo sentido de ato tão ousado. Nesta pergunta do ser humano, tão ousa­
da quanto a substância que tomou forma na aurora da vida, se configura,
depois de milhões de anos, o caráter originariamente questionável da vida.

É com estes assuntos que uma filosofia da vida tem que ocupar-se.
Ou seja, ela terá que ocupar-se com o organismo com o forma objetiva da
vida, mas também com sua interpretação na auto-reflexão do ser huma­
no: esta pertence ao número dos achados da vida, a que cada avanço da
reflexão acrescenta um novo dado. Os estudos aqui reunidos tratam do
-escalonamento das capacidades naturais com que os organismos, de
acordo com as capacidades de que foram dotados - metabolismo, sen­
sação, movimento, afeto, percepção, imaginação, espírito -, fazem face
às exigências do mundo, e por outro ladolcom muitas das idéias com que
no decurso de sua história o ser humano tentou encontrar uma resposta
teórica à natureza da vida e à sua própria. O último tema necessariamen­
te leva à moral e posteriormente à metafísica.|As análises examinam um
a um estes objetos, mas sem que ofereçam uma teoria completa dos
mesmos, embora esta teoria tenha estado diante dos olhos do autor, ori­
entando a concepção dos diversos estágios. Escritos com esta finalida­
de, e em parte publicados separadamente a partir de 1950, os diversos
estudos, com o acredito, expressam um ponto de vista comum e repre­
sentam diversos aspectos de uma ainda inacabada filosofia do organis­
mo e da vida. O autor não se anima ainda a apresentar os diferentes as­
pectos desta filosofia sob a forma de um projeto sistemático; mas uma
apresentação mais solta, sob a forma de ensaios, isto é, de tentativas e
análises isoladas, pode transmitir uma idéia do que está tomando forma,
e ao m esm o tem po estabelecer alguns passos no caminho que termina­
rá sendo estabelecido.
0 problema da vida e do corpo na doutrina
do ser

I - O panvitalismo e o problema da morte

Para os primórdios da interpretação humana do ser, a vida se encon­


trava por toda parte, e o ser confundia-se com o ser vivo. “Anim ism o” é a
forma amplamente difundida deste estágio, “hilozoísm o” uma de suas
formas conceituais refletidas mais tarde. A “alm a” ocupava o todo da
realidade, e ela se encontrava a si própria em toda parte. A matéria
“pura” , isto é, matéria “morta” , não fora ainda descoberta - já que esta
suposição, hoje tão familiar a todos, nada possui de evidente. Pelo con­
trário, a mais natural de todas as suposições, ainda por cima amplamen­
te apoiada pela aparência, é a de que o mundo seja vivo. Na arena terres­
tre, o palco onde se constrói a experiência, a vida predomina, preenchen­
do todo o primeiro plano aberto à percepção direta do ser humano. A
proporção da matéria claramente inanimada com que nos deparamos
nesta primeira esfera é pequena, porque quase tudo quanto hoje nós re­
conhecem os com o inanimado se encontra tão intimamente envolvido
com a dinâmica da vida que parece participar de sua natureza. Terra,
vento e água - gerando, fervilhando, alimentando, destruindo - podem
ser tudo menos paradigmas da “matéria pura” . Desta forma o pampsi-
quismo primordial, mesm o se abstraindo do fato de corresponder às
grandes necessidades da alma, era amplamente justificado pelas normas
de conclusão e demonstração dentro do espaço acessível à experiência,
sendo constantemente confirmado pela real preponderância da vida no
horizonte mais próxim o do seu lar terrestre. Na verdade, só depois que
pela revolução copernicana os horizontes do ser humano foram amplia­
dos para as distâncias do universo é que o lugar proporcional da vida no
conjunto das coisas tornou-se bastante pequeno para passar a ser aquilo
que desde então passou a constituir o conceito de “natureza” . A o ser hu­
mano primitivo, que caminhava sobre sua terra e era coberto pela cúpula
do seu céu, não havia possibilidade de surgir a idéia de que a vida fosse
uma exceção ou um fenômeno secundário no universo, e não a regra do­
minante. Para sua visão o panvitalismo era uma verdade ligada à sua pers­
pectiva, e só uma mudança de perspectiva conseguiria destroná-la. Seja
com o for, acima de tudo o ser humano estava firmemente convencido de
que a vida está presente em tudo quanto existe.

Nesta visão do mundo, o mistério com que o ser humano se defronta é


a morte, que contradiz tudo quanto ele compreende, tudo o que possui
uma explicação natural, a universalidade da vida. Na medida em que a
vida é considerada com o o estado primário das coisas, a morte destaca-se
com o o enigma que perturba. Por isso é provável que o problema da mor­
te tenha sido o primeiro a merecer este nome na história do pensamento.
Seu aparecimento com o um problema explícito revela o despertar do espí­
rito que se interroga, muito antes de que se houvesse chegado a um nível
conceituai da teoria. O natural recuo frente à morte cria ânimo a partir da
afronta “lógica” que a condição mortal faz à convicção panvitalista. Assim
toda a reflexão do ser humano primitivo luta contra o enigma da morte,
tentando dar-lhe uma resposta no mito, no culto e na religião.

Que tenha sido a morte e não a vida a primeira a exigir uma explica­
ção, isto é o reflexo de uma situação teórica que perdurou por longo tem­
po na história da espécie. Antes de espantar-se com o milagre da vida, o
ser humano espantou-se com a morte e procurou descobrir-lhe o signifi­
cado. Se o natural é a vida, se ela é a regra, o que se pode compreender,
então a morte, com o sua aparente negação, é o não-natural, o incompre­
ensível, o que não devia ser verdadeiro. A explicação que ela exige preci­
sava tornar-se com preensível em termos de vida, a única coisa que so­
mos capazes de compreender: de alguma maneira a morte tinha que ser
assimilada à vida. Por isso a questão que a morte levanta está dirigida pa­
ra trás e para a frente, para o passado e para o futuro: Quando e por que a
morte entrou no mundo, e com que ela está em contradição, uma vez
que a natureza do mundo é a vida? E para onde ela leva no contexto glo­
bal da vida? A morte é a passagem para quê, já que tudo quanto existe é
vida, e a morte em última análise não pode ser diferente? A metafísica
primitiva tenta responder a estas perguntas; ou então as põe em dúvida,
rebelando-se, revoltando-se contra a lei que não consegue compreender,
e deixando-a sem resposta. É a questão de Gilgamesh - a resposta do
culto aos mortos. Assim com o para o ser humano primitivo o saber to­
mou forma nos utensílios de pedra, assim também sua reflexão encar-
nou-se nos túmulos, que reconhecem a morte ao mesm o tempo que a
negam. Dos túmulos surgiu a metafísica, sob a forma do mito e da reli­
gião. A metafísica procura resolver esta contradição básica, de que tudo
é vida e que toda vida está sujeita à morte. Ela se expõe ao desafio radi­
cal, e para salvar a totalidade das coisas, nega a morte.
1 U v$r ^ ‘i: I ,u *‘ j 13

Todo problema, em essência, é uma colisão entre uma visão ampla


(seja uma hipótese ou uma fé) e um fato particular que com ela não se
coaduna. A visão geral é o panvitalism o primitivo, e a m orte que
eventualm ente ocorre é o fato especial: com o este parece negar a ver­
dade básica, ele próprio tem que ser negado. Querer interpretar a morte
significa, aqui, reconhecer que ela é estranha ao mundo; interpretá-la -
neste estágio da crença universal na vida - quer dizer negá-la, fazer dela
uma transformação da vida. A fé no prosseguimento da vida após a mor­
te, manifestada nas sepulturas primordiais, é uma negação deste tipo. O
culto aos mortos e a fé na imortalidade, e as especulações em que se de­
senvolvem, são a continuada discussão entre a visão da vida e a morte -
discussão que também pode voltar-se contra o ponto de vista defendido
e terminar por destruí-lo. Suprimir a contradição, resolver o enigma, de
início só podia ocorrer em favor da vida; ou o enigma permanecia, passa­
va a ser um grito sem resposta; ou se desistia do ponto de vista original,
com isto chegando-se a um novo estágio do pensamento. Mas nas duas
primeiras alternativas é atestada a primitiva dominância ontológica da
vidaf É este o paradoxo: precisamente a importância do culto aos mortos
nos inícios da humanidade, a pujança da idéia da morte no princípio da
reflexão humana, dão testemunho de um fundo mais poderoso da idéia
universal da vida: o ser só se torna compreensível e real com o vida; e a
permanência do ser que se pressente só pode ser entendida com o per­
manência da vida - para além da morte./

II - O pan-mecanismo e o problema da vida

O pensamento moderno, que teve início com o renascimento, encon­


tra-se na posição exatamente oposta: o natural, aquilo que se pode com ­
preender, é a morte, o que constitui um problema é a vida. Partindo das
ciências naturais, passou a predominar para o conhecimento da realida­
de com o um todo uma ontologia cujo substrato é a matéria desprovida
de todo e qualquer traço de vida, a matéria pura. O que no estágio do ani-
mismo nem éequer chegara a ser descoberto, transbordou entrementes
para o todo da realidade, não deixando mais espaço para qualquer outra
coisa. O universo da cosm ologia moderna, agora enormemente amplia­
do, é um campo de massas inanimadas e de forças sem finalidade, cujos
processos decorrem em obediência a leis de conservação e de acordo
com sua distribuição quantitativa no espaço. Este substrato puro de
toda realidade só pôde ser alcançado depois que todos os resultados fí­
sicos foram retirados, de forma cada vez mais completa, todos os traços
de vida, negando-se-lhes rigorosamente toda e qualquer projeção da vide
que experimentamos em nós mesmos. À medida que este processo
avançava, o veto ao antropomorfismo estendeu-se ao zoom orfism o em
2 ü v : ?í %

geral.to que permaneceu foi o que sobrou depois que tudo ficou reduzido
às meras propriedades da matéria extensa, sujeitas à medição, e com
isto à matemática. Só estas é que satisfazem ainda às exigências do que
agora é denominado conhecimento exato: tais exigências representam o
que na natureza é capaz de ser conhecido. E com o a única coisa capaz
de ser conhecida, através de uma substituição enganosa elas chegam a
ser consideradas também com o a única coisa real na realidade. O con ­
ceito do conhecimento determina o conceito da natureza/jMas isto signi­
fica que o inerte passou a ser o conhecível por excelência,\a explicação
de tudo, e assim a ser reconhecido também com o a razão d e *ser de todas
as coisas. É o estado “ natural” , da mesma forma que o estado original
das coisas. No ser físico, não só no que diz respeito às relações de quanti­
dade, mas no tocante também à sua verdade ontológica, a não-vida é a
regra, e a vida uma exceção e um enigma.

Em conseqüência, o que agora exige uma explicação no universo or­


gânico é a existência da vida, e esta explicação tem que ser dada em ter­
mos da matéria inerte. Com o caso-limite que restou na im agem física de
um mundo hom ogêneo, a vida tem que prestar contas de si própria, em
obediência ao que esta imagem prescreve. Quantitativamente um nada
na incomensurabilidade da matéria cósmica, qualitativamente uma ex­
ceção à regra das propriedades desta matéria, para o conhecimento o
inexplicado na universal compreensibilidade da natureza física, a “vida”
passou a ser a pedra de tropeço da teoria. Que exista vida, e com o algo
assim seja possível em um mundo de pura matéria, este é o problema
com que agora o pensamento terá que ocupar-se. O próprio fato de ter­
mos hoje que discutir o problema teórico da vida em lugar do da morte
atesta o status da morte com o o estado natural, com o aquilo que se ex­
plica por si mesmo.

O problema, também aqui, é o choque entre uma visão ampla e um


fato particular. Como já havia ocorrido anteriormente com o panvitalis-
mo, agora a hipótese abrangente é o pan-mecanismo; o caso da vida, em
sua raridade, realizado nas condições únicas e excepcionais do nosso
planeta, é o fato isolado e improvável que parece subtrair-se à lei básica,
sendo por isso negado em sua autonomia, isto é, tendo que ser integrado
na lei geral. Considerar a vida com o problema significa admitir sua alie­
nação no mundo mecânico que este mundo é; explicá-la - neste estágio
da ontologia universal da morte - significa negá-la, fazer dela uma varian­
te das possibilidades do sem-vida. A teoria mecanicista do organismo é
uma negação deste tipo, assim com o o culto dos mortos e a fé na conti­
nuação da vida foi uma negação da morte. No esquema moderno,
V h om m e m a ch irte, o homem-máquina, representa simbolicamente o
que no antigo foi representado pelo “hilozoísm o” : a usurpação de um se­
do conjunto do mundo corporal, cujas leis gerais constituem a regra de
toda compreensão. Aproximar desta regra a morte do corpo orgânico,
portanto diluir neste sentido os limites entre a vida e a morte; a partir da
morte, do estado de cadáver, suprimir a diferença de essência - esta é a
linha da reflexão moderna sobre a vida com o um fato do mundo. Nosso
pensamento encontra-se hoje sob o predomínio ontológico da morte.

Pode-se objetar aqui que falamos de “m orte” quando nos referimos à


indiferença da matéria pura, que é um caráter neutro, ao passo que “mor­
te” possui um sentido antitético, que só pode ser aplicado ao que é, ao
que pode ser ou ao que já foi vivo. Mas efetivamente, na visão que o ser
humano teve dele, o cosm os já foi vivo, e sua nova im agem sem vida foi
construída (ou demolida) em um contínuo processo de subtração crítica
de seu conteúdo original mais amplo: pelo menos neste sentido histórico
a concepção mecanicista do universo contém também um elemento an­
titético, ela não é simplesmente neutra. Além disso não foi a razão crítica
que pôs em andamento aquela “subtração” e que a manteve em m ovi­
mento durante muito tempo, mas sim a metafísica dualista, que possui
raízes passíveis de serem apontadas na experiência da mortalidade e no
protesto contra ela. O dualismo é o elemento de ligação que historica­
mente uniu os dois extremos, que até agora foram aqui contrapostos um
ao outro; efetivamente, foi ele o veículo para o m ovim ento que levou o
espírito humano do monismo vitalista da pré-história para o monismo
materialista da época atual, com o um resultado não intendido ou mesm o
paradoxal; e não é fácil ver com o um poderia ser alcançado a partir do
outro, a não ser por este grande rodeio.

III - O papel histórico do dualismo

A ascensão e a prolongada dominação do dualismo faz parte, em


mais de um aspecto, do número dos acontecimentos decisivos da histó­
ria intelectual da humanidade. Sua importância para o nosso contexto
consiste em que ao longo de toda sua carreira, aliás bastante variada, ele
trabalhou para retirar da esfera física os conteúdos espirituais, e por fim,
depois de sua época haver passado, deixou atrás de si um mundo priva­
do de todos estes atributos, üm dos elementos que podem ser encontra­
dos na origem e na história do dualismo é sem dúvida alguma o tema da
morte. O “ao pó hás de tom ar”, esta expressão que todo cadáver procla­
ma aos vivos, o caráter definitivo do estado que a decom posição opõe ao
efêmero da vida, de início e sempre de novo tinha que impor ao recalci-
trante olhar humano a “matéria” com o matéria pura e sem vida, constan­
temente renovando a contradição ao panvitalismo, que pôde dominar o
culto dos mortos mas não conseguiu reduzi-lo ao silêncio. Se esta contra-
1. 0 problema fia «ida e do r

dição levava a uma crise, e quando, isto dependia das circunstâncias his­
tóricas particulares com que o universal “motivo da m orte” tinha que ali­
ar-se para chegar a dominar o “ motivo da vida” . Mas quando isto aconte­
ceu, e quando o monismo ingênuo se decom pôs no dualismo, os traços
característicos da perturbadora experiência particular puderam mais e
mais difundir-se por sobre a imagem do universo físico. A morte, na reali­
dade, conquistou a realidade externa.

S om a-sem a , “o corpo - um túmulo”,festa (no orfismo) a primeira


resposta dualista ao problema da morte, que agora, da mesma forma
que o da vida, se havia transformado no problema da relação entre duas
entidades diferentes, corpo e alma.(O corpo, de p e r si, é a “sepultura da
alm a”, e a morte corporal é a ressurreição desta. A vida mora com o um
estranho no corpo, que por sua natureza é na verdade um cadáver - pa­
recendo viver graças à alma, durante o breve período em que esta se en­
contra presente -, e na morte real, abandonado pelo estranho hóspede,
ele chega à sua verdade original, assim com o ao abandoná-lo a alma
chega também à sua.

|A descoberta do “eu” , que para o Ocidente aconteceu pela primeira


vez na religião órfica e culminou com a concepção cristã e gnóstica de
uma interioridade no ser humano totalmente alheia ao mundo, exerceu
um estranho efeito de polarização sobre a im agem universal da realida­
d e a simples possibilidade de se conceber um “universo não animado”
surgiu com o oposição à ênfase cada vez mais exclusiva colocada sobre a
alma humana, sobre sua vida interior e sobre a impossibilidade de com-
pará-la a qualquer coisa da natureza\(Êsta separação trágica, que se tor­
nou cada vez mais aguda até o ponto de os elementos separados deixa­
rem de ter qualquer coisa em comum, passou desde então a definir a es-

1 . D e n tro d e s te c o n c e ito , é in s tru tiv a , p o r e x e m p lo , u m a p o lê m ic a q u e S im p líc io , u m d o s


ú ltim o s n e o p la tô n ic o s , te v e n o s é c u lo 6° c o n tra se u c o n te m p o r â n e o c ris tã o J o ã o F iló p o -
no: E le o a c u s a d e b la s fê m ia c o n tra D e u s p o r c o m p a r a r a luz d o c é u c o m o fo g o , c o m v a -
g a lu m e s , e su a c o r c o m as e s c a m a s d o s p e ix e s (S im p l., e m : Arist. de caelo, ed . H e ib e rg ,
p . 8 8 , 2 8 s s ); a lé m d is so c e n s u ra -o ta m b é m p o r c o n tra r ia m e n te a A ris tó te le s n e g a r a e te r­
n id a d e d o m u n d o , ibid ., p. 6 6 , 1 0 . T ra ta -s e d e u m a ú ltim a re v o lta d a m o r ib u n d a p ie d a d e
c ó s m ic a c o n tra a ig n o m ín ia à n a tu re z a fe ita p e la re lig iã o tra n s c e n d e n te : o re d u z ir su a h ie­
ra rq u ia a o status c o m u m d e m e r a c o is a c ria d a . Q u a s e m il a n o s a n te s A n a x á g o r a s fo i p e ­
los a te n ie n s e s a c u s a d o d e b la s fê m ia p o r c o n s id e ra r o sol c o m o u m p e d a ç o d e m e ta l o u
d e ro c h a a q u e c id a . E n tr e os d o is a c o n te c im e n to s e n c o n tra -s e a a s c e n s ã o e q u e d a d a re li­
g iã o c o s m o ló g ic a . O a ta q u e d u a lis ta fo i m a is r a d ic a l d o q u e o a ta q u e n a tu ra lis ta d o s jô -
n io s , q u e e r a m p o te n c ia lm e n te “p a n te ís ta s ”. O n a tu ra lis m o q u e s e g u iu -s e a o d u a lis m o ,
p a ra o q u a l e s te já h a v ia re a liz a d o a o b ra d e d e s d iv in iz a ç ã o d o m u n d o , isto é, o n a tu ra lis ­
m o m o d e rn o , tin h a q u e s e r m a is d rá s tic o d o q u e o a n tig o . V e r a b a ix o o c a p ítu lo 1 1 , “G n o -
se, e x is te n c ia lis m o e n iilis m o ”, e t a m b é m o m e u Gnosis und spãtantiker Geist, vo l. I, 3 a
e d . G õ ttin g e n , 1 9 6 4 , p. 1 7 6 , n o ta 2 .
sência de ambos, precisamente através desta exclusão mútua. Cada um
deles é o que o outro não é. Enquanto a alma, que se voltava para si pró­
pria, atraía para si todo o significado e toda a dignidade metafísica, e se
concentrava em seu ser mais íntimo, o mundo era despido de todas estas
exigências. Em primeiro lugar ele foi decididamente demonizado, e por
fim passou a ser indiferente quanto à questão do valor, seja para este ou
para a q u e le j

Mo ponto mais alto do desenvolvimento dualista, na gnose, a compara­


ção som a-sem a, que originalmente permanecera limitada ao ser humano,
expandiu-se para o universo: o mundo inteiro é sema, túmulo da alma ou do
espírito, daquela estranha inclusão no que de resto não tem relação alguma
com a vida. E assim permaneceu, é-se tentado a dizer, com a diferença ape­
nas de que entrementes o túmulo esvaziou-se. A volatilização crítica da
substância espiritual hipostasiada, isto é, daquilo que poderia estar encerra­
do neste túmulo ou prisão, deixou atrás de si unicamente suas paredes, mas
estas extremamente sólidas! Esta, metaforicamente falando, a posição do
materialismo moderno, que herdou o espólio de um dualismo desapareci­
do, ou o que dele restou. Assim a divisão da realidade entre o eu e o mundo,
entre o ser interior e o exterior, entre espírito e natureza, sancionada pelo
dogma religioso, preparou o terreno para os sucessores pós-dualistas.j

Assim com o o dualismo foi a primeira grande correção ao unilatera-


lismo animista-monista, também o monismo materialista remanescente
é a não menos unilateral vitória total da experiência da morte sobre a ex­
periência da vida. Neste sentido o antigo abalo teórico, que se iniciara a
partir do cadáver, transformou-se em princípio constitutivo, e em um uni­
verso que formou-se á maneira de cadáver o cadáver concreto isolado fi­
cou privado de seu mistério. Tanto mais se chocam contra a nova regra
do universo os restos não dissolvidos do organismo, que parecem
opor-se à alternativa dualista, mas também à própria alternativa dualis-
mo-monismo. O empenho por analisá-lo de acordo com as normas das
leis físicas do mundo constitui a contínua discussão com o contraditório
do ponto de vista da ontologia da morte - também ela uma discussão
onde não está descartado que se volte também contra este próprio ponto
de vista, terminando por forçar uma revisão da exclusividade que ela exi­
ge. Enquanto durou o apogeu de seu poder, quando a nova ontologia
exerceu incontestado domínio, a suspensão da contradição e a solução
do enigma só podiam ocorrer em favor da morte; ou então o enigma per­
manecia com o um resquício dualista perturbador. Em um e outro caso
manifesta-se a predominância ontológica da morte. Ela é o monismo
contrário com que a humanidade apareceu na margem oposta das
águas do dualismo em que um dia havia mergulhado com o arcaico m o­
nismo da alma.
Mas na nudez do novo monismo, de onde a vida universal havia sido
banida e que não era mais com pletada por nenhum pólo transcendente,
precisamente aí a vida finita e particular podia ser observada em seu
aquém agora sem pátria, e valorizada de acordo com suas próprias m e­
didas, depois de por tanto tem po haver sido balizada com uma medida
diferente. Tendo permanecido só, seu aqui e agora, estendido entre o iní­
cio e o fim, adquire uma predominância que lhe havia sido negada pelas
duas visões anteriores - a onipresença monista assim com o a transcen­
dência dualista da alma. O olhar para aquilo que caracteriza a vida, para
o que constitui parte dela, tornou-se mais atento, na medida em que es­
treitou-se mais ao distanciar-se da difusão animista e da extensão dualis­
ta - na medida, portanto, em que o lugar da vida no ser ficou reduzido ao
caso particular do organismo no contexto terreno que o condiciona. O
que é condicionante dentro deste contexto e que possibilita a vida é, por
sua vez, um improvável acaso do universo alheio à vida e de suas leis ma­
teriais indiferentes. Só sobre o fundo de uma ontologia da morte, a que
toda vida isolada é conquistada ou tirada à força, para por fim ser por ela
superada, é que a moderna teoria da vida torna-se compreensível.

O caminho do dualismo, aqui apenas esboçado, define a ordem cro­


nológica reversível dos dois pontos de vista, e o próprio dualismo repre­
senta o período do pensamento até agora mais importante na história do
espírito, cuja produção não pode perder-se, m esm o depois de haver sido
superada. A descoberta das esferas próprias de espírito e matéria, que
rompeu o panvitalismo do ser humano primitivo, criou para sempre uma
situação teórica nova:D a percepção laboriosamente conquistada de que
a matéria pode existir sem o espírito, o dualismo concluiu para o inverso
não observado, de que também o espírito poderia existir sem a matéria J
Independentemente da segurança ou falta de segurança da tese ontoló-
gica, a atenção voltou-se para a diferença básica entre os dois, e sua se­
paração dualista levou à mais decidida elaboração de sua dupla e mútua
peculiaridade, que daí por diante não pôde mais ser confundida. Toda re­
flexão sobre o ser que veio mais tarde não é, por sua natureza interior,
pós-dualista apenas do ponto de vista cronológico, com o a anterior era
essencialmente pré-dualista. Assim com o nesta não fora descoberta ain­
da a natureza própria e a diversidade dos dois aspectos básicos, e desta
forma o monismo vinha acompanhado de uma ingênua naturalidade
que só a experiência da morte poderia perturbar, e que aos poucos pôde
ser solapada pela técnica - até que o dualismo teórico consciente provo­
casse o fim desta e de todas as outras ingenuidades -, da mesma forma a
consideração pós-dualista do ser ocupa-se inevitavelmente com as duas
peças deixadas pelo dualismo, frente às quais ela só consegue ser monis­
ta ao preço de uma escolha ontológica entre os dois, de uma opção por
um ou por outro - pelo menos enquanto a herança metafísica do dualis­
mo ainda forçar o reconhecimento de seu caráter de alternativa. Com
esta alternativa em seu ponto de partida, portanto, todo monismo pós-
dualista implica em uma decisão por um lado ou por outro; isto é, ele pró­
prio é de natureza alternativa, e por conseguinte particular, e se defronta
com o seu oposto com o a possibilidade que ficou excluída.

* Resulta, portanto, que na situação pós-dualista existe não apenas


uma mas sim duas possibilidades do monismo, representadas pelo ma-
terialismo moderno e pelo idealismo modemo.^Ambas são de natureza
essencialmente pós-dualista, já se baseiam sobre a polarização ontológi-
ca produzida pelo dualismo, estabelecendo seu ponto de apoio em cada
um dos dois pólos para a partir dele abranger toda a realidade. São, por­
tanto, em sua origem, embora não em suas intenções, monismos parti­
culares - diferentemente do monismo integral da idade primitiva, em que
os dois lados repousavam ainda indistintamente um sobre o outro, üm
retorno a este é impossível: o dualismo não foi uma invenção arbitrária,
mas a dualidade manifestada por ele está fundamentada no próprio ser.
üm novo monismo integral, isto é, filosófico, não poderá suprimir a duali­
dade mas terá que superá-la, erguê-la a uma unidade mais elevada do
ser, de onde surgem com o lados diferentes de sua realidade ou fases de
seu vir-a-ser. Ele terá que assumir o problema provocado inicialmente
pelo surgimento do dualismo.

IV - Idealismo e materialismo como produtos da dissolução


do dualismo

O problema ainda continua o mesmo: a existência de vida sensitiva


em um mundo material que não sente, e que na morte triunfa sobre ela.
A solução dualista não satisfazendo teoricamente, os monismos particu­
lares - materialismo e idealismo -, cada um à sua maneira, evitam o seu
unilateralismo. Seu meio de unificação, isto é, de redução ao denomina­
dor escolhido, é a distinção entre realidade primária e secundária: entre
substância e função (ou “epifenôm enos” ), no caso do materialismo; en­
tre consciência e aparência, no caso do idealismo. Com o posição ontoló-
gica, isto é, com o monismo sério, cada um destes pontos de vista exige
para si totalidade e exclui o outro. Mas com o tanto em um com o em ou­
tro caso o ponto de partida é particular no que se refere à realidade inte­
gral, eles encarnam a contradição interna de cada monismo particular -
uma contradição que se torna manifesta no fracasso da tentativa de re­
duzir um elemento ao outro. Mo caso do materialismo este fracasso se dá
com a consciência, no do idealismo com a coisa em si.
É verdade que estes pontos de vista podem ocultar seu caráter mo-
nista, isto é, on tológico, e em lugar de visões totais do ser apresenta­
rem-se com o elaborações de duas parte separadas da realidade - sepa­
radas primeiramente por seus objetos diferentes, que por sua vez exi­
gem tam bém m étodos diferentes. Teríamos então a fenom enologia da
consciência e a física da extensão, e o m étodo de uma disciplina seria tão
necessariamente idealista quanto o da outra materialista. Sua separação
não será então ontológica, de acordo com os pontos de vista do ser, mas
sim ôntica, de acordo com os objetos.-'A alternativa parece não ser aqui a
relação entre ambas, mas sim a com plem entação: “ Ciências naturais e
ciências do espírito” . Mas esta coexistência pacífica pressupõe que se
trate de dois terrenos separados da realidade, que podem ser isolados
um do outro. Mas o caso justamente não é este. O fato da vida com o uni­
dade de corpo e alma, tal com o se encontra presente no organismo, tor­
na a separação ilusória. A efetiva coincidência de interioridade e exterio-
ridade no corpo força as duas formas de conhecimento a determinarem
sua relação mútua por outro ponto de vista que não o de objetos separa­
dos.] É diferente também do ponto de vista de descrever complementar-
mente o m esm o objeto sob diversos “ângulos” , que não precisaria envol­
ver-se com a questão de com o no próprio ser os aspectos abstratos pu­
dessem estar concretamente unidos. Pois uma tal ep o ch é descritiva que
possibilitasse uma neutralidade metafísica só poderia ser mantida com a
condição de ambos os campos fenomênicos, pelo menos com o fenôm e­
nos, serem fechados em si mesmos, sem se transcenderem por seu con­
teúdo próprio. Se cada um por si pudesse, portanto, ser descrito sem o
outro.jMas justamente o corpo vivo, o organismo, representa um tal auto-
transcendimento para ambos os lados, com isto levando a ep och é meto­
dológica ao fracasso. Ele terá que ser descrito tanto com o sendo extenso
e inerte, com o também com o tendo sensação e vontade - mas nenhuma
das duas descrições pode ser levada até o fim sem que seja superada a
barreira para a outra e sem prejuízo para am bas.iA descrição física exte­
rior não pode ser levada até o fim sem contestar a liberdade e com ela a
auto-atuação do interior; e a vitalista interior, sem que conteste as leis
próprias e a autarquia do extenso. Pelo dualismo, que saía de cena após
haver realizado sua obra, este extenso fora abandonado, com o desprovi­
do de vida e de sentimento; mas o corpo, inegavelmente, faz parte deste
extenso. Portanto, ou ele é essencialmente o m esm o que o universal ex­
tenso - e então, com o organismo e vida, perm anece incompreendido; ou
ele é um ente su i g en eris - e então sua condição excepcional torna-se in­
compreensível, questionando a regra geral, isto é, a interpretação mate­
rialista da substância segundo as propriedades puras do extenso indife­
rente. O m esm o vale, m u ta tis m u ta n d is, para o outro lado, para a cons­
ciência idealista. O dualismo desprezara-a com o sendo o não-corpóreo
por excelência, isto é, com o não extenso e absolutamente interior; mas o
corpo, um extenso, com o cam po da sensação da atividade voluntária,
faz parte da própria interioridade. Portanto ou ele é, com o parte do todo
da extensão aparente, apenas uma das “idéias” (cogita tion .es) externas
da consciência - e então é incompreendido com o corpo desta consciên­
cia, com o meu corpo, com o meu eu extenso e minha participação no ex­
tenso; ou então a vida e a interioridade são realmente tornadas extensas
por ele, ele é realmente “eu” - e então, embora extenso, não é uma idéia
da consciência mas sim o perímetro exterior de sua própria extensão in­
terior, que ocupa ele próprio um lugar no espaço - com isto questionan­
do basicamente a interpretação idealista da consciência com o oposição
a todo o mundo da extensão.

Assim o corpo orgânico sinaliza a crise latente de toda ontologia que


conhecemos e o critério “de toda ontologia futura que possa aparecer
com o ciência” . Com o fato da morte, foi primeiramente no corpo que se
manifestou a oposição entre vida e não-vida, oposição esta que exerceu
constante pressão sobre o pensamento e fez ruir o panvitalismo primiti­
vo, provocando a divisão da imagem do ser. O m esm o acontece agora,
de maneira invertida, com a unidade concreta que se manifesta na vida,
onde também o dualismo das duas substâncias vem a fracassar. E é
mais uma vez a mesma unidade dos dois que se transforma em escolho
submerso para cada um dos sistemas alternativos oriundos do dualismo,
logo que, com o não pode deixar de ser, eles buscam alargar-se para on­
tologias integrais. Na verdade é a própria unidade dos dois que impele a
esta ampliação, e com isto à transgressão de barreira, não lhes permitin­
do abrigar-se na aparente neutralidade de meros setores ou aspectos par­
ciais. O corpo que vive e que pode morrer, que pode possuir o mundo e a
ele pertencer com o um pedaço do mundo, o corpo que sente e que pode
ser sentido, cuja forma exterior é organismo e causalidade, e cuja forma
interior é o ser-ele-mesmo e a finalidade - é ele que à pergunta ainda sem
resposta da ontologia lembra o que é o ser, é ele que tem que ser a nor­
ma das futuras tentativas de solução, que superando as abstrações parti­
culares aproximam-se da base oculta de sua unidade, e que por conse­
guinte, para além das alternativas, não pode deixar de buscar um monis­
mo integral em um nível mais elevado.

V - O desaparecer da vida entre “consciência” e


“mundo exterior”

Assim o problema da vida é ao mesmo tempo um problema central


da ontologia, e o problema que continua deixando intranqüilas as moder­
!-• im ã c l<í* hü rr .V

nas posições antitéticas no materialismo e no idealismo. Ele é caracterís­


tico da situação teórica pós-dualista, onde o problema se apresenta hoje
com o problema da vida e não da morte: esta inversão resulta do fato de a
vida haver sido retirada do conjunto da natureza para sua condição pecu­
liar, retirada esta que teve início com os primeiros albores de esclareci­
mento dualista da não-separação. Contrariamente à enorme violação de
fronteiras do monismo inicial, que considerava a vida coextensiva com o
ser, a diferenciação crítica não podia deixar de com eçar pela descoberta
da matéria sem vida, e tinha que ir adiante ampliando a extensão do sem-
vida às custas da vida - até que, com o excesso de êxito, o sem-vida pas­
sou a ser coextensivo com o ser objetivo. Com o expressão desta situa­
ção teórica pós-dualista, a variante do materialismo é manifestamente a
mais séria e mais interessante da ontologia moderna, em com paração
com o idealismo. Pois em sua esfera objetiva ele realmente permite o en­
contro com todos os outros corpos, também com os corpos vivos, e ao
ser obrigado a submetê-lo também aos seus princípios ele se expõe à
prova real ontológica e à possibilidade do fracasso; isto é, oferece oca­
sião a si próprio para deparar-se com seu limite: permite que o problema
ontológico apareça. O idealismo consegue evitar este problema; do pon­
to de vista da consciência pura, por mais artificial que este seja, ele con­
segue sempre interpretar o corpo com o todos os demais corpos, com o
“idéia” ou com o “fenôm eno” exterior dentro de seu horizonte objetivo, e
assim negar a corporalidade própria: com isto evita o problema da vida,
da mesma forma que o da morte2.'Esta foi a razão por que de início consi­
deramos o materialismo com o representativo da ontologia pós-dualista
(da “ontologia da morte” ), e com o o que verdadeiramente se opõe à on­
tologia pré-dualista do panvitalismo. Ele é a ontologia real de nosso mun­
do desde o renascimento, o verdadeiro herdeiro do dualismo, ou melhor,
do resíduo deixado por este, e é com ele que precisamos discutir. Pois é
só no ponto de vista realista que a discussão se torna fecunda, enquanto
que o ponto de vista idealista a deixa escapar entre os dedos, v

É possível mostrar-se também que o idealismo da filosofia da cons­


ciência é apenas um fenôm eno complementar, um epifenômeno do ma-

2 . M a s n e s s e c a s o n e g a n d o (c o m o p ró p rio c o rp o ) ta m b é m os c o rp o s a lh e io s . M a s c o m o
n ós te m o s c o n h e c im e n to d a c o n s c iê n c ia o u d o “ E u ” e s tra n h o u n ic a m e n te a tra v é s d e su a
c o rp o ra lid a d e e e m g e ra l a tra v é s d e m a n ife s ta ç õ e s d o e x te n s o - d o p o n to d e v is ta id e a lis ­
ta: c o m o p a rte d e n o s sa fe n o m e n a lid a d e e d a s ín te s e q u e d e la fa z e m o s a s s im e s te p o n ­
to d e v is ta só c o n s e g u e e s c a p a r à C ila d a c o rp o r a lid a d e c a in d o n a C a rib d e d o s o jip s is m o ,
p a ra o n d e , aliás , to d o id e a lis m o c o e re n te e m ú ltim a a n á lis e n ã o p o d e d e ix a r d e le v a r. M a s
o s o lip s is m o , a p e s a r, o u p o r c a u s a , d e su a in v u ln e ra b ilid a d e ló g ic a , é a p e n a s u m tr u q u e
do p e n s a m e n to , n ã o p o s s u in d o s e rie d a d e c o m o p o n to d e v ista o n to ló g ic o - e le c h e g a
r^ e s m o a se r a n e g a ç ã o d e to d a o n to lo g ia .
0 princípio vicia

terialismo, e assim, em sentido estrito, é também uma face da ontologia


da morte. Procuremos mostrá-lo em um aspecto concreto. É só a objeti-
vação do mundo em uma exterioridade puramente extensiva, tal com o
concebida pelo materialismo, que deixa de fora e ao m esm o tem po toma
possível a consciência pura, que não participa do mundo, de sua dimen­
são e de suas funções - que já não atua sobre ele mas que apenas o con­
templa. E por outro lado é a esta consciência incorpórea, meramente contem­
plativa, que a realidade tem que passar a ser uma série de pontos do mun­
do situados lado a lado no espaço e sucedendo-se um ao outro no tempo -
pontos de extensividade, necessariamente tão exteriores um ao outro
quanto exteriores ao espaço, e que por isso só podem ser ordenados por
meio de regras de ordenação de seqüenciamento externo. E de fato, sem o
corpo, pelo qual nós mesm os som os parte do mundo e experimentamos a
natureza de força e ação sempre que a exercemos, nosso conhecimento
do mundo - um conhecimento meramente “perceptivo” , contemplativo -
seria então um mundo estritamente exterior, onde não existiria verdadeira
passagem de mim para ele, ele se reduziria realmente ao modelo de
Hume; a saber, a seqüências de conteúdos externos uns aos outros e in­
diferentes entre si, em relação aos quais não poderia surgir sequer a
suspeita de uma conexão interior que ultrapassasse suas relações espá-
cio temporais, nem poderia surgir a menor razão para que esta conexão
fosse postulada. Causalidade passa a ser aqui uma ficção sobre uma
base psicológica à qual tivesse sido retirado o chão debaixo dos pés.
A esta renúncia agnóstica a física moderna chegou, por sua vez, a
partir de seus pressupostos materialistas. No caminho para a exterioriza­
ção absoluta, estes não podiam deixar de levá-la à mesma versão cética
do problema da causalidade a que foi levada a teoria da consciência ao
buscar a interiorização absoluta. Nem uma nem outra pode ser de outra
forma, e ambas manifestam a mesma causa: a consciência pura é tão
pouco viva quanto a pura matéria que se lhe opõe. Por isso uma é tão in­
capaz de gerar a idéia de um contexto que gera a vida quanto a outra de
apresentá-la à imaginação. Am bas são produtos que se desprendem da
ontologia da morte, a que foram levadas pela anatomia dualista do ser. E
não só em relação à vida, mas já mesm o em relação à causalidade uni­
versal elas se encontram, assim, em uma situação desesperadora. Pre-
tende-se que neste cam po da causalidade m ecânica se encontre o ver­
dadeiro triunfo tanto da visão transcendente quanto da visão materialis­
ta, e que em vista deste benefício deveria contar-se com a renúncia a
uma compreensão e fundamentação da teleologia orgânica. Mas parece
que nenhuma parte de um todo pode por muito tem po lucrar com o que
a outra parte perdeu, e tam bém a causalidade universal termina por per­
der em compreensibilidade o que sob a forma de conhecimento científi­
co a eliminação da vida deveria garantir-lhe. O destino do problema da
causalidade na epistemologia idealista, por um lado, e na física materia­
lista, por outro, é um sintoma de que as duas posições, ontologicamente
consideradas, são produtos secundários e fragmentários do dualismo, e
que cada uma delas está sendo coerente quando em seu próprio ceticis­
mo reconhece o resultado do seu isolam ento, isto é, a im possibilidade
de explicar o que sua separação tornou inexplicável.iE o isolamento ar­
tificial entre res co g ita n s e res extensa, com exclusão da “vida” , na he­
rança do dualism oi- esta ontologia da morte, com sua dupla face, cria
problemas que ao m esm o tempo ela torna insolúveis.

Mas não estamos aqui diante de uma contradição? Não foi a distin­
ção entre ser vivo e sem-vida que tornou possível elaborar-se claramente
o que caracteriza a vida? E não foi isto de utilidade precisamente para o
“espírito”, quando por assim dizer ele atraiu a si o que existia de vida no
universo e em sua interioridade o concentrou na consciência? Se a maté­
ria foi por um lado abandonada com o morta, por outro lado a consciên­
cia, destacada com o herança da vitalidade animista, deveria ser o reposi­
tório da vida, ou mesm o o seu destilado. Mas a vida não admite destila­
ção; ela ocupa algum lugar entre os aspectos purificados, lá onde se en­
contra sua realização concreta. Abstrações não possuem vida. Na verda­
de, repetimos, a consciência pura vive tão pouco quanto a matéria pura
que se lhe opõe, mas em com pensação ela é também tão pouco mortal.
Vive com o vivem os espíritos desencarnados, não conseguindo mais en­
tender o mundo. O mundo também morreu para ela, assim com o ela
morreu para o mundo. A antítese dualista não leva ao incremento dos
traços vitais ao concentrar-se em um dos lados, mas sim à morte de am­
bos os lados, por terem sido separados do seu centro vivo. E esta morte
se vinga pelo fato de que - mesm o sem falar do enigma da vida - para a
interpretação da regularidade externa nos mpvimentos da matéria a ima­
gem de uma causalidade por uma força atuante não encontra mais ne­
nhuma justificativa verdadeira em nada do que acontece diretamente.

VI - A posição ontológica central do corpo e o problema


da causalidade

' Lembramos aqui a resposta dada por Kant ao ceticismo de Hume,


resposta que pretende apresentar uma razão de direito apriorista deste
tipo. Mas também a solução transcendental do problema, que mesm o
assim pretende fundamentar a causalidade e sua validade objetiva a par­
tir unicamente da consciência pura, não pode fugir à verdade de que o
concreto não pode ser deduzido de uma de suas abstrações. Seu êxito
depende essencialmente, entre outras coisas, de se provar que a causali­
dade é realmente um conceito do entendimento puro (e de acordo com
isto, de se provar em que está baseada sua validade objetiva). Mas uma
prova isenta de preconceitos mostra que a fonte da força, e com isto da
idéia de causalidade, não pode ser a razão pura, mas sim a vida corporal
concreta, no choque entre as forças que se sentem a si próprias e ao
mundo. O entendimento, em si, conhece apenas motivo e conseqüência,
não causa e efeito: estes últimos são uma concatenação da realidade por
meio da força, não da idealidade por meio da forma. A experiência da for­
ça viva, da própria força na atividade corporal, constitui a base experi­
mental para as abstrações dos conceitos universais de ação e causalida­
de, e o esquema mecânico do movimento corporal dirigido, e não da
contemplação neutra e receptiva, serve de intermediário entre o formalis­
mo do entendimento e a dinâmica do real. Assim a causalidade não é uma
base apriorista da experiência, mas é ela própria uma experiência básica.1
É alcançada no esforço que eu preciso despender para superar a resistên­
cia da matéria do mundo em meu estar ativo e para resistir ao choque da
própria matéria do mundo. Isto acontece pelo meu corpo e em meu corpo,
a um só tempo em sua exterioridade extensiva e em sua interioridade in­
tensiva, ambas aspectos genuínos do meu eu. E a partir do meu corpo, e
avançando para fora, ou mesmo progredindo corporalmente, eu construo
na imagem de sua experiência básica a imagem dinâmica do mundo - de
um mundo de força e resistência, de ação e inércia, de causa e efeito.
Assim a causalidade não é nenhum a p rio ri formal da experiência no en­
tendimento, mas sim a extrapolação universal para o todo da realidade, a
partir da experiência básica do próprio corpo. Pois se enraíza precisamen­
te no ponto da efetiva transcendência viva do eu, o ponto em que a interio­
ridade transcende ativamente para o exterior e por seus efeitos se prolonga
neste - este ponto é o corpo intensivo-extensivo, onde o eu está ao mesmo
tempo em si mesmo (intensivamente) e existe em meio ao mundo (exten­
sivamente). Causalidade é primariamente um resultado do eu prático,
não do eu teórico, de sua atividade, não de sua contemplação, é vivência
de um, não lei da outra (ver 2 o capítulo, parte I).
Mas se a extrapolação universal que se realiza a partir da própria cor­
poralidade é ou não é justificada, esta é uma questão de crítica filosófica,
que aqui tem os que deixar em aberto. Mas é primariamente uma ques­
tão ontológica, não uma questão epistemológica. Em um sentido mais
amplo, também o problema do antropomorfismo em si faz parte da onto­
logia. Levada ao extremo, a desaprovação do antropomorfismo ou do zo-
omorfismo em relação à natureza, sobretudo a absoluta proibição espe­
cificamente dualista e pós-dualista, poderia comprovar-se com o um pre­
conceito (ver 2o capítulo, parte II).lNum sentido retamente com preendi­
do talvez o ser humano seja a medida de todas as coisas - se bem que
não em virtude do seu entendimento mas sim do paradigma de sua totali­
dade psicofísica, que representa o máximo de completude ontológica
concreta que nos é conhecido,\e a partir do qual as classes do ser são re­
duzidas e diminuídas por subtrações ontológicas até se chegar ao mini-
rr.o da mera matéria elementar (em lugar de o que existe de mais com-
z.eio nesta base ser construído por acréscimos cumulativos). Sempre
5:nda perm anece em aberto a questão de saber se a vida representa uma
complicação quantitativa na ordenação da matéria, e se sua liberdade
:u teleologia é apenas um apagam ento aparente de sua clara e simples
determinação por crescimento de com plicação (mais uma questão de
nossa impotência analítica do que de sua natureza própria); ou se, ao in­
vés, a matéria “morta” deve ser entendida com o um modo deficitário das
propriedades da vida sensitiva, com o restrição da m esm a ao mínim o de
um estado germ inal infinitesimal - e neste caso o seu determinismo se­
ria uma liberdade adormecida, ainda não despertada. A razão ontológica
para esta pergunta encontra-se no fato de que o corpo vivo é a im agem
primordial do concreto, e na medida em que é o meu corpo ele é, em sua
imediatez de interioridade e exterioridade ao m esm o tempo, o único con­
creto da experiência que me é dado plenamente: sua efetiva completude
concreta ensina-me que a matéria no espaço, que em geral nós experi­
m entam os apenas de fora, pode possuir um horizonte interior, e que
por isso seu ser-extenso não é necessariamente o seu ser-total. Visto a
partir da única concretude real, a mera extensão pode perfeitamente pa­
recer uma abstração, da mesma forma que a mera interioridade.
Porém independentemente desta questão metafísica de uma unida­
de da realidade, e das teses daí derivadas, independentemente também,
pois, da questão sobre o direito das citadas extrap olações de nossa cor-
poralidade, fica de pé este fato: sem o corpo, e sem sua auto-experiên-
cia elementar, sem este ponto de partida de nossa extrapolação mais
ampla e universal para o todo da realidade, não se poderia adquirir ne­
nhuma idéia de força e efeito no mundo, e portanto da conexão atuante
de todas as coisas, por conseguinte nenhum conceito da natureza em si.
O idealismo - nisto refletindo fielmente o materialismo -, ao considerar o
corpo entre os objetos externos ou entre os fenômenos do extenso, ao
compreendê-lo com o objeto da experiência em lugar de fonte de expe­
riência, com o um dado para o sujeito em vez de com o realidade ati-
vo-passiva do próprio sujeito, privou-se da possibilidade de apreender
uma real conexão das coisas segundo sua própria natureza para além de
uma regra de ordens externas de seqüências - seja na imagem da causa­
lidade mecânica, seja na da causalidade teleológica (sobre isto, o ponto
de vista transcendental não pode ter nenhum significado fundamental).
Qualquer que seja no entanto a causalidade, nisto a crítica de Hume esta­
va certa: ela não ocorre em um ato de contemplar, e o nexo entre os da­
dos não é ele m esm o um dado, um conteúdo da contemplação. Força,
de fato, não é um “ dado” mas sim um “ ato” , presente no ser humano em
seu esforço. Mas esforço não é contem plação - e muito menos uma for­
ma de síntese da contemplação. Porém a objetivação do pensar está liga­
da à contemplação, e assim não pode atingir o que nela não está contido.
Resumo

(Assim o fato de renunciar-se à possibilidade de com preender a vida -


o preço que o conhecimento moderno acreditou ter de pagar para apre­
ender a maior parte da realidade - parece haver também tornado o mun­
do incompreensível. E quando a causalidade teleológica foi reduzida à
causalidade mecânica, por mais vantagens que isto tenha trazido para a
descrição analítica, nada se ganhou no tocante à compreensibilidade do
nexo: “objetivamente” uma é táo enigmática quanto a outra. *
Nossas observações pretenderam mostrar até que ponto o problema
da vida, e com ele o problema do corpo, tem que ocupar o centro da on­
tologia (e em certa medida também da teoria do conhecimento). Vida
quer dizer vida material, portanto corpo vivo, em suma, ser orgânico. No
corpo está amarrado o nó do ser, que o dualismo rompe mas não desata.
Materialismo e idealismo, cada um por seu lado, procuram desamarrá-lo
mas nele ficam presos. A posição central do problema da vida significa
não apenas que para julgá-lo cada uma das ontologias universais precisa
ser utilizada com decisão, mas também que para o próprio tratamento
do problema é preciso que cada vez se recorra ao todo da ontologia. Des­
te todo fazem parte as possibilidades da ontologia até agora postas em
prática, mesm o que tenham mais a ensinar sobre a colocação do proble­
ma do que sobre a sua solução. Nossas considerações mostraram que
deste testemunho ontológico do passado, que precisa ser avaliado, não
deve ser excluído nem m esm o o “animismo” , isto é, o monismo panvita-
lista dos tempos primitivos: o princípio da interpretação do ser, embora
por ele defendido de forma tão primitiva, não está propriamente resolvi­
do do ponto de vista do conhecimento m oderno3. -!À fase decisiva para o
desdobramento de nosso problema - este o resultado a que chegamos -
é representada pelo dualismo, que aliás foi também a virada mais cheia
de conseqüências na história da interpretação humana do ser e de si pró-
pridjt sob sua prolongada dominação, o problema colocado pelo parado­
xo da vida atingiu sua elaboração antitética mais aguda e foi deixado
para trás da forma que apresentava o mínimo de reconciliação. - Por últi­
mo chegou-se ao resultado de que, das duas posições pós-dualistas que
unilateralmente se apossaram da herança dualista, o materialismo,
com o palco de um encontro com o problema da vida, goza da preferên­
cia, por colocá-lo de uma forma mais difícil de ser evitada do que o idea­
lismo. Aqui também torna-se mais difícil o pensador deixar-se subornar.
No materialismo ele se defronta com sua própria negação; mas com o no
seu pensar ele próprio representa também o caso a que seu pensamento
nega o lugar, ele está menos exposto ao perigo de esquecer um lado da
questão do que do ponto de vista do idealismo, que com o primado do
pensamento já de antemão tomou partido por si próprio.

3 . B a s ta le m b r a r o p a m p s iq u is m o d e u m T e ilh a rd d e C h a rd in o u (e m u m p la n o filo s ó fic o


b e m m a is e le v a d o ) a te o ria d e W h ite h e a d d e to d a a tu a lid a d e c o m o s e n tim e n to .
Percepção, causalidade e teleologia

No primeiro capítulo nós nos deparamos com o fato de o mundo que


sobrou depois da exclusão extrema do animismo, isto é, após o expurgo
dualista, haver sido privado de toda ligação inteligível dos seus elemen­
tos, e por isso não ter mais condições de nos fornecer um conceito da na­
tureza com o um todo atuante. Percebemos com o esta situação, em que
se faz presente a vingança da negação cognitiva do corpo, se expressa
ontologicamente em suprimir da natureza as causas finais, com o primei­
ra vítima do veto ao antropomorfismo, e depois epistemologicamente,
tornando invisível também a causalidade atuante, objeto do problema da
causalidade de Hume e de Kant. No presente capítulo queremos abordar
mais de perto estes dois lados do problema, a com eçar pelo último.

I - Causalidade e percepção

1. O p ro b le m a de H u m e e de Kant: a in su ficiên cia de suas solu ções

Hume mostrou que a “causação” não está presente entre os conteú­


dos da percepção dos sentidos, e este resultado é irrefutável enquanto
com ele considerarmos a “ percepção” com o mera receptividade que re­
gistra os dados fornecidos pelos sentidos. Assim também o entendeu
Kant, ao assumir a descoberta negativa de Hume. E mais ainda quando
se sustenta, com o o fizeram tanto Hume com o Kant, que tal percepção
passiva é a única maneira pela qual o mundo exterior é “dado” original­
mente - de modo que só por meio de nossa receptividade nós próprios
temos conhecimento de nossa atividade corporal, cujas seqüências de
dados precisam primeiro ser interpretadas no sentido de ação -, então a
causalidade de fato tem que ser um acréscimo mental ao material que
primariamente nos é dadoj-e a diferença entre as teorias refere-se ape­
nas à fonte e à natureza deste acréscimo. Hume a enxergou no hábito da
associação (ela própria passiva por parte do sujeito), e Kant na estrutura­
ção pelo entendimento (q u e ; embora “ativa” , está em estrita imanência
mental).* Mas nenhuma das duas teorias positivas consegue fechar a la­
cuna aberta pelo bom êxito do argumento negativo. Por menos que se te­
nha chegado a refutar a afirmação de Hume, de que a causalidade não é
um “dado” dos sentidos, isto é, não é um fenômeno entre outros, e que,
com o o quer a definição, ela não é transitiva, sua origem espúria a partir
das associações não controladas (atrações mútuas) entre nossas idéias
- às quais em suas relações mútuas é atribuído exatamente o dinamismo
que se nega às coisas por elas representadas! - não tem com o resistir a
uma análise. Uma socialização posterior das idéias, qualquer que possa
ser o efeito, não pode conferir ao protocolo atomístico e interiormente es­
tático o caráter que de início lhe foi reservado. E embora a necessidade
ou sugestão psicológica, com o pode surgir de tal automatismo das idéi­
as, de fato possa levar reconhecidamente o pensamento a associações
tanto falsas com o vez por outra verdadeiras, o modelo das associações
desta espécie já tem que estar disponível a partir de sua própria fonte, an­
tes que se possa fazer delas, para qualquer finalidade, um uso correto ou
errado1. Sob esta condição, a reinterpretação da dinâmica mental em uma
dinâmica física é pelo menos psicologicamente plausível - ou seja, plausí­
vel com o um fato secundário, o dado primário sendo o parentesco com a
dinâmica física em si; então passa a ser possível a talvez sedutora tentação
de confundir um com o outro. Com um pouco de atenção poderemos mes­
mo fazer uma perfeita distinção entre a fortíssima persuasão da imaginação
e o fraquíssimo testemunho das coisas, com o pertencentes a esferas inteira­
mente diferentes, e corrigir a primeira à luz do último: a intensidade da im­
pressão na alma nada tem que ver com o assunto - tampouco quanto a re­
tórica em um argumento, apesar de freqüentemente uma e outra mostra­
rem-se eficazes. Por fim é perfeitamente possível que o “poder do hábito” ,
que se considera com o se manifestando na associação de idéias, se veja
obrigado a apelar para causas físicas (por exemplo, para mecanismos ce­
rebrais) a fim de encontrar sua explicação, isto é, para a realidade preci­
samente daquilo que ele apenas pretende fingir.

Não é muito melhor a alternativa de Kant, de substituir a origem psi­


cológica pela origem “transcendental” , já que o entendimento é tão pou­
co capaz de produzir a idéia de ação e influência quanto na descrição de
Hume a percepção sensitiva (ver 1Q capítulo, parte VI); o que ele produz
é algo inteiramente diferente, a saber, a idéia formal de uma “regra ne­
cessária”, onde o processo associativo produz unicamente o sentimento
concreto e irracional de uma necessidade da imaginação. Mas uma regra

1 . P o r e x e m p lo , q u a n d o n a te la d o c in e m a v e jo u m p u n h o fe c h a d o a c e r ta n d o u m c o rp o ,
e v e jo e s te c o rp o c a m b a le a r , e n tã o e u p o s s o e n te n d e r a s e q ü ê n c ia e id é tic a c o m o s<~ndo
u m a s e q ü ê n c ia d in â m ic a , p o r q u e a n te s eu já e x p e r im e n te i “n a p ró p ria p e le ” o c h o q u e
re a l d o s c o rp o s .
gação necessária e geral já pressupõe aquilo de que ela deve ser a
a. ou seja, a própria ligação, que ela própria não pode disponibili-
mas que precisa encontrar exemplificada originariamente nos casos
s de ligação determinativa, onde o que “força” a passagem de A para
: experimentado na prática (isto é, experimentado por mim mesmo,
.o um dos relacionados); este ser-forçado, dado inteiramente na ex-
ência particular, é algo totalmente diferente da “ necessidade” das re-
5 que são “obrigadas” a corresponder universalmente a estes casos
rio ri, segundo Kant - em geral: que o fazem de fato, segundo toda
eriência). A regra diz simplesmente: a) que um vínculo de necessida-
:e alguma espécie (e cujo paradigma original na experiência direta é
nas um) atua em cada mudança, m esm o quando não é por nós expe-
entado agindo nem percebendo; b) que vigora uma medida uniforme
2 o vínculo de necessidade de todas as mudanças, ou que todas as
essidades individuais são partes de uma necessidade (ou lei) geral, e
ue esta, por sua vez, é ela própria “necessária”, mas em um sentido
o: necessária não segundo a natureza da necessidade em si (e menos
: 2 da espécie particular que eu experimento em mim m esm o), mas
_:ndo a natureza da “natureza” com o um todo, isto é, caso ela deva
:m a unidade compreensível - ou do ser ou da “experiência”. A dife-
ça é clara. E no entanto este equívoco afeta amplas passagens do ar-
:ento kantiano. Quando eu descrevo com o, procurando desespera-
:ente defender-me, eu sou arrastado por uma corrente cuja força é
:o maior do que a minha, eu estou claramente falando de “necessida-
em um sentido diferente, não-categorial, do que quando falo da “ ne-
=:dade” categorial de uma lei de causalidade universalmente válida,
segundo caso eu falo de uma necessidade da necessidade - de uma
essidade abstrata de necessidades concretas, isto é, da necessidade
ue alguma necessidade ou força (transitiva) atue em cada caso isola-
e que todas estas forças juntas constituam um sistema hom ogêneo,
argumento de Kant refere-se exclusivamente a esta necessidade
>:ransitiva) de segunda ordem, e simplesmente nada tem a ver, nem
; mo implicitamente, com a questão de nossa autêntica experiência
2 usa e efeito em si. Sua negação de tal experiência antecede seu ar-
~ento segundo as premissas de Hume, isto é, segundo a visão tradi-
.al (em última análise cartesiana) da percepção com o uma procissão
:déias” = representações = imagens neutras. Mão acredito que esta
rsição (errônea) seja de vital importância para a verdadeira intenção
2rgumento de Kant. A intenção, se bem a entendo, não é fundamen-
caráter efetivo de causalidade com o tal, nem sua experiência isola-
contingente, mas sim a validade de uma lei universal da causalidade
a experiência com o um todo. Então o que se deveria provar (mas
2 qui não é tarefa nossa) é se o argumento consegue provar isto de
uma forma válida. Qualquer que seja a resposta, uma lei referente à expe­
riência jamais pode falar pela própria experiência primária.

Para retornarmos ao que as posições de Hume e Kant possuem em


com um : quer se trate de uma coerção sentida ou de uma necessidade
compreendida pelo pensamento, quer se trate de uma regra psicológica
ou racional - nem uma nem outra tem muito a ver com o impacto forçoso
das coisas a que estamos expostos fora do refúgio de nosso espírito. Cima
e outra doutrina pretende substituir a dinâmica interior pela exterior, a ori­
gem ilegítima pela legítima: ambas pressupondo que neste assunto a “per­
cepção” se cala (o que ela realmente faz quando isola o monopólio cogni­
tivo que lhe é imposto), e que por isso não existe nenhum conhecimento
direto de força, transitividade e ligação dinâmica das coisas.

2. Inversão do p ro b le m a : C om o é p o s s ível a p e rce p çã o n eutra?

Mas poderia dar-se o caso de o verdadeiro problema encontrar-se


exatamente no fato que Hume e Kant aceitam com o definitivo: o da mu­
dez causai dos p e rc e p ta , daquilo que é percebido. Se considerarmos
isto, com o o deveríamos, com o ocasião para espanto e explicação, en­
tão podem os enxergar uma interessante inversão do problema de Hume.
Diante do que nos é conhecido sobre causalidade, que está ela própria
envolvida na gênese da percepção sensível, efetivamente seu conteúdo
descausalizado abre mão de seu próprio enigma, que exacerba o enigma
mais geral de Hume no paradoxo de que um nexo causai específico - a
afecção dos sentidos - fica limitado à própria repressão imaginativa
com o parte de sua realização específica. Esta ocultação de sua gênese
no resultado m anifesto da p ercep ção, isto é, este fazer d esap arecer
seu próprio caráter causai, constitui um traço essencial daquilo que Whi­
tehead chama de “imediatez presentativa” (presen ta tion a l im m ed i-
a cy), e constitui a condição para sua função objetiva, que assim paga
seu próprio preço para alcançá-la.

A inversão do problema aqui proposta implica uma fonte indepen­


dente e legítima do conhecimento causai, cuja apresentação não é atingi­
da pelo resultado negativo da percepção; pelo contrário, tem que ser uti­
lizada tanto para a explicação da percepção mesma com o também para
completar seus resultados.
A distinção de Whitehead entre “eficácia causai” e “imediatez presen­
tativa” ( causai effica cy - p resen ta tion a l im m e d ia cy ) com o duas clas­
ses distintas e complementares da percepção oferece um importante in­
dício para o problema de Hume, mas não traz nenhuma explicação sufi­
ciente de si própria (a expressão “imediatez” pode, efetivamente, levar a mal­
entendidos). Seguindo esta pista, eu tentarei mostrar: a) com o ocorre que
os diversos sentidos, em diferentes graus, apaguem as pegadas de sua
própria constituição causai na integração de seu produto de imaginação;
b) por que a omissão do elemento causai se estende do autotestemunho
do processo atual de percepção para a imagem universal do objeto, isto
é, estende-se sobre o âmbito da “objetividade” com o tal, que é uma reali­
dade desnaturada (desativada) deste tipo, mas que de outra maneira não
seria possível; c) por que os modos objetivantes da relação com o mundo,
assim constituídos, monopolizaram o conceito do conhecimento, e seu
tipo de objeto o da realidade, com o que foram criados problemas carac­
terísticos da escolha destas fontes de conhecimento (entre outros o pro­
blema da “necessária ligação” ).
a) C om o é que os sentidos ch egam a forn ecer um conteúdo “ des-
causalizado” ? (Jma resposta com pleta exigiria ao m esm o tem po uma
análise genética e uma análise fenom enológica da atividade dos senti­
dos. Limitar-nos à última significaria desde o início com prometer-nos
com o testemunho do produto final, e assim não escaparm os ao encan­
tamento do argumento de Hume. C om o não é o lugar aqui para uma
análise detalhada2, estas rápidas observações deverão mostar a linha
da reflexão.

A pequenez das unidades de ação e reação (em termos de espaço,


tempo e energia) que atuam no estímulo dos sentidos, isto é, sua diminu­
ta ordem de grandeza em relação ao organism o, perm ite que elas se­
jam integradas glob alm en te em um efeito contínuo e hom ogêneo ( “im­
pressão” ), onde não somente os diferentes impulsos são absorvidos, mas
também o caráter do impulso é amplamente apagado e transformado no
caráter de imagem separada. Quando são percebidas qualidades sim­
ples, a matéria-prima são atividades de muitos tipos: impactos, perturba­
ções, deslocamentos em escala molecular. Por isso os organismos cujas
dimensões não ultrapassem muito esta escala não podem ter nenhuma
percepção, mas apenas a experiência da colisão. Eles teriam um “mun­
do” não de presenças mas sim de forças. Para o organismo maior, ao in­
vés, quando ele tem a experiência da força nas interações em sua própria
ordem de grandeza, ela sempre já é superior a um contínuo de presença
tranqüila, ao resultado da soma sensitiva de todas as pequenas ações
que continuamente afetam a sensação, mas que na circunscrição dos
sentidos perdem o caráter de ocorrências dinâmicas: com o presença coe­
rente e sem esforço de um conteúdo desativado, sua transcrição oferece
aquele substrato neutro do ser a que, em ocasiões especiais, a experiên­

2 . P a rte s d e u m a a n á lis e d e s t e t ip o s e r ã o o f e r e c id a s n o 8 o c a p ít u lo e n a p a r t e II d o
9 o c a p ítu lo .
cia de força é depois acrescentada, e do qual efetivamente o fenôm eno
particular se destaca. Este resultado da percepção, a aparente prioridade
do ser permanente sobre o agir ocasional, é uma inversão das efetivas re­
lações genéticas, e mais tarde a raiz do problema teórico da causalidade.
O grau em que a relação dinâmico-causal ainda se manifesta ou já
deixa de manifestar-se, e o grau em que uma seqüência de ocorrências é
interpretada com o simultaneidade de presença, pode servir para classifi­
car os sentidos no tocante à sua capacidade objetivadora. (Ver o 8o capí­
tulo sobre a nobreza do sentido da visão.) Duma análise comparada a vi­
são sobressai com o o sentido que de maneira mais com pleta realiza a
neutralização do conteúdo dinâmico, e que mais inequivocamente realiza
a deposição do objeto da função perceptiva. Em toda percepção sensí­
vel a autonegação da eficiência causai ocorre em graus diferentes: quan­
do um estímulo muito forte ultrapassa com violência a barreira, a percep­
ção é reprimida pelo sentimento .de im pacto ou de dor, isto é, ela deixa
propriamente de ser uma percepção. Sobretudo no sentido do tato tor­
na-se mais fácil distinguir com clareza a transição dos diversos passos da
apreensão da qualidade para a experiência da pressão, e posteriormente
para o mero em prego da força. Ou, para tomarmos com o exem plo outro
sentido: no caso de uma explosão próxima, a força que atua sobre o ór­
gão receptor pode ir além do terreno acústico, e em lugar de simples­
mente ouvirmos um som de determinada qualidade e intensidade, nós
nos sentimos assaltados pela violência sofrida, contra a qual som os obri­
gados a defender- nos com uma força contrária. E assim com o o barulho
pode ensurdecer, a luz pode cegar quando supera os limites da capacida­
de de acom odação do sentido. Assim o mundo, em vez de se apresentar
com clareza, também pode introduzir-se dinamicamente no testemunho
que nos dá de si m esm o e com sua causalidade atropelar a percepção.
Por isso é tarefa da percepção deixar fora de seu registro a causalidade
que participa dela própria, e seu trabalho específico depende precisa­
mente da eficiência com que o consiga fazer. No caso do sentido da vi­
são o rendimento é perfeito, graças às propriedades dinâmicas da luz e
às ordens de grandeza relativa envolvidas. A aparente inatividade e auto-
fechamento do objeto visto corresponde à aparente inatividade e fecha­
mento de quem contempla, embora os dois fenôm enos sejam o resulta­
do purificado dos processos de movimento das atividades de conexão.
Sua completa eliminação do produto da imaginação, que no perder sai
ganhando mas que nem por isso deixa de perder, introduz um elemento
de abstração - a abstração da imagem - na constituição interna da per­
cepção sensível, e com isso no conhecimento do objeto com o tal.
b) A repressão da causalidade objeto-sujeito na percepção traz consi­
go também a repressão da causalidade objeto-objeto - ou da causalidade
em geral dentro do domínio “teórico”, quando esta se forma unicamente
na analogia da percepção. Pois neste caso ela não admite em sua evidên­
cia o testemunho do sujeito que atua - aquele saber “interior” aparente­
mente inalienável da causalidade sujeito-objeto, que o ser humano, com o
agente, possui em sua interação prática com as coisas: seu testemunho só
é admitido na teoria depois de na percepção haver sido submetido à objeti-
vação, e seu conteúdo - depois de extraída dele a qualidade ativa - ter
sido transformado em uma série de dados. Pela rejeição desta evidência
em sua forma original (rejeição esta com uma longa história no cresci­
mento do ideal teórico), a compreensão privou-se da única fonte não-per-
ceptiva, a experiência da força do meu próprio corpo em ação, que por
analogia ainda poderia ter fornecido o elo dinâmico capaz de unificar os
processos observados: processos estes que só foram transformados em
objetos depois de desconectados da realidade do observador, com isto
sendo privados também das características que poderiam explicar sua li­
gação mútua. Estabelecer uma separação entre a objetivação e o sujeito
não os deixa menos separados um do outro. O caráter geralmente reprimi­
do é força, a qual não é um “dado” mas sim um “ato”, e que por conse­
guinte não pode ser “vista” , isto é, objetivada, mas apenas experimentada
por dentro, ao ser exercida ou ao ser sofrida. A neutralização primária des­
ta característica pela percepção, que transforma atualidades em dados, é
herdada dos conceitos do entendimento, que levanta seu edifício precisa­
mente sobre esta base da objetivação. O entendimento em si, quando os
desnudados objetos dos sentidos lhe são entregues unicamente para se­
rem tratados, não pode produzir aquele caráter, nem por seus próprios
meios de ligação criar um substitutivo para eles (aqui Hume tinha razão, e
não Kant). Mas ao desfrutar da vantagem oferecida pela separação na re­
lação sujeito-objeto - ou seja, da vantagen da liberdade da teoria ele pre­
cisa aceitar também a desvantagem na relação objeto-objeto.

3. L u cro e perd a na n eu tralização

c) A invisibilidade da eficiência causai é o preço a ser pago para que se


possa chegar ao ser em si mesmo, e por conseguinte à objetividade. Do
lado do lucro, a exclusão da causalidade significa uma libertação. A per­
cepção em geral, e o sentido da visão em particular, garantem aquela reti­
rada da participação causai que permite a quem experimenta a liberdade
para observar, abrindo-lhe um horizonte para a atenção seletiva. O objeto,
permanecendo dentro de seus limites, apresenta-se ao sujeito do outro
lado do fosso criado pela supressão do contexto de força. A o impacto dire­
to da realidade, ao tumulto constrangedor de sua proximidade, foi con­
quistada a distância do fenômeno. A o contrário do efeito, a “im agem ”
pode ser conservada na memória e trazida à consciência, pode ser modifi­
cada pela imaginação e livremente confrontada com outras imagens. Esta
separação entre o comedimento do fenômeno e o incômodo da realidade,
que é a realização original da percepção, prolonga-se na separabilidade
entre o ser e o existir, que se encontra na base das mais elevadas liberda­
des da teoria. No pensamento conceituai são prolongados a liberdade fun­
damental da visão e o elemento da abstração próprio da imagem; e concei­
to e idéia herdam da percepção o padrão ontológico da objetividade por
ela criado. A tranqüilidade do objeto, subtraída à agitação das forças, retor­
na amplificada na constância e na contínua disponibilidade da idéia: é
nesta que se encontra a raiz e o fundamento de toda “teoria” . Segue-se
daí que o predomínio epistem ológico dos modos de conhecimento deri­
vados da percepção - um predomínio historicamente levado até o ponto
de excluir outros m odos de conhecim ento da realidade - está intima­
mente associado à possibilidade do saber em geral, e o mesmo se pode­
rá dizer do correspondente predomínio do seu padrão objetivo na ontolo­
gia. Mas a exclusividade também tem de pagar o seu preço.
Do lado das perdas, deve-se observar que o mesm o fosso de separa­
ção entre sujeito e objeto, que fornece espaço para a liberdade da teoria,
e que se repete no fosso entre objeto e objeto, sob ambos os aspectos in­
cuba também uma classe de problemas que afligiram a história do co ­
nhecimento - problemas estes inevitáveis, uma vez que enraizados nos
pressupostos básicos deste saber. Por essa mesma razão, dentro destes
pressupostos estes problemas tornam-se insolúveis. No tocante à rela­
ção objeto-objeto, o problema de Hume da conexão necessária ( n eces-
sary c o n n e c tio rí) é um bom exemplo epistemológico. “Conexão neces­
sária” é um pálido sucedâneo para a causalidade real, e a crítica das pre­
tensas soluções do problema que isto levanta já foi apresentada mais aci­
ma. Em sua forma ontológica o problema da relação gira em torno do
conceito clássico da substância inativa fechada em si mesma - “aquilo
que não precisa de nenhuma outra coisa para existir” (Descartes) -, que
não é de maneira nenhuma uma extravagância histórica mas sim a ver­
são conceituai desta verdade perceptiva: “substância” , concebida segun­
do este modelo, só admite relações externas, por definição excluindo
toda e qualquer autotransitividade.\Libertar o “ser” deste cativeiro na
“substância” é um dos principais objetivos da ontologia contemporânea. \
Além disso o fato de a “força” não ter lugar no sistema (um aspecto do
mencionado cativeiro) levanta a questão do antropomorfismo, cujo bani­
mento do conhecimento do mundo exterior foi admitido com demasiada
naturalidade para a epistemologia da ciência.
No que diz respeito à relação sujeito-objeto, o fosso da objetivação
perceptiva cavado pelo autoritarismo é em parte responsável por aque­
les enigm as do dualismo “ consciência-mundo exterior”, que o ocasiona-
lismo, o paralelismo psicofísico e o idealismo em vão tentaram resolver.
Em vão, porque sem a autotranscendência do eu na ação, isto é, no tra­
to físico com o mundo e na vulnerabilidade do meu ser que aí se m ani­
festa, o fech am en to da esfera mental é logicam ente inatacável, e o solip-
sismo pode ser considerado com o prudência e circunspecção, e não com o
loucura3. De fato, se desejarm os falar de uma forma extrem am ente con­
cisa, podem os dizer que a negação da causalidade conduz diretamente
ao solipsismo - e por conseguinte nunca é levada inteiramente a sério.
Isto não é mais do que um precário esboço dos problemas que sur­
gem da situação perceptiva isolada, e que por ela são deixadas com o le­
gado à reflexão da teoria. Em todos estes problemas uma originária liber­
dade da vida animal, a percepção sensorial - ela mesma um rebento da
liberdade primária da existência orgânica com o tal -, deixa a fatura de
seus privilégios para a própria filha, a ainda mais elevada liberdade de
pensamento.
R e s u m o : Voltando ao tema de Hume, vem os agora que seu resulta­
do, o fato de a causação não se encontrar entre os dados da percepção, é
simplesmente o que seria de se esperar a partir da natureza e do sentido
da percepção; que com esta confirmação o resultado é a um só tempo
restringido ao cam po que lhe com pete e com isto desnudado de suas
conseqüências céticas; que o que em primeiro lugar necessita de explica­
ção não é com o apesar do vazio causai nós não obstante chegam os a
uma idéia de causa, mas sim com o acontece que precisamente a percep­
ção não a apresente, isto é, que consiga escondê-la - sendo o que causa
admiração sua ausência ali, e não sua presença em nossas idéias; que o
aspecto primário da causalidade não é a conexão regular, nem mesm o a
conexão necessária, mas sim a força e os efeitos produzidos;íque força e
efeitos são conteúdos originais da experiência, e não interpolações entre
conteúdos da experiência (= percepções) por parte de uma função sinté­
tica, seja esta a associação ou o entendimento;|que de fato a fonte desta
experiência não é a percepção dos sentidos mas sim o nosso corpo no
esforço da ação - aquela fonte que Hume sumariamente descarta sob o
nome de “ímpeto animal” ; e por último que o direito de extrapolar desta
fonte para além do âmbito direto de seu testemunho é uma questão que
precisa ser estudada pela filosofia orgânica, sem que ela precise temer a
pecha de antropomorfismo.

II - Antropomorfismo e teleologia

Em todas as listas de mandamentos e proibições que o credo científi­


co carrega consigo não pode deixar de figurar em primeiro lugar entre a
proibição da teleologia, isto é, das causas finais. Este é um ponto que de

3 . E v id e n te m e n te , n in g u é m a n ã o s e r u m lo u c o ja m a is d e fe n d e u a s é rio o s o lip s is m o : a r­
g u m e n ta r e m fa v o r d e le , s a lv o n o d iá lo g o c o n s ig o m e s m o , s ig n ific a re c o n h e c e r “o o u ­
tr o ”, c u ja c o n c o r d â n c ia se b u s c a . C o m o d iá lo g o o a r g u m e n to é frív o lo , e o m o n ó lo g o a b ­
s o lu to é p riv ilé g io d o s lo u c o s . N e n h u m d o s d o is p o d e re iv in d ic a r a v irtu d e d o rig o r c rític o
c o m q u e o s o lip s is m o d e fe n d e su a c a u s a .
maneira especial tem sido ressaltado pelos porta-vozes da ciência des­
de seus inícios no século 17, tendo de tal modo passado à condição de
artigo indiscutível de fé da atitude científica que a pergunta direta: “Por
que as causas finais têm que ser excluídas?”, encontra hoje muitos cien­
tistas desprovidos de uma resposta satisfatória. Recordar aqui as razões
poderá ser uma contribuição para retirar a aparência de evidência natural
que a máxima veio a adquirir através da posse pura e incontestada e para
trazê-la de volta às condições que justificam sua validade.
Em primeiro lugar temos que observar que a máxima se refere à teleo-
logia entendida com o um modo causai da própria natureza, e que se apli­
ca à teleologia imanente e não à transcendente, que o criador do sistema
natural que está aí talvez tenha exercido uma vez, quando a criou para ser
o que é: todo propósito final de sua parte na distribuição inicial da matéria
seria perfeitamente compatível com um modo de atuar estritamente me­
cânico desta matéria, que haveria de realizar a intenção do criador precisa­
mente desta maneira4. Com a condição de que se declare que é desconhe­
cido e em princípio inacessível ao conhecimento, que portanto não pode
ser objeto de pesquisas científicas, o admitir-se um tal propósito final em
nada fere o conceito científico do mundo. Quando a ciência nascente se
ocupou com este aspecto da teleologia, ela limitou-se a denunciar sua for­
ma grosseiramente antropocêntrica de um universo feito para proveito do
ser humano. Abstraindo disto, a idéia de um arquiteto divino dono de uma
suprema arte mas com intenções imperscrutáveis foi na realidade benvin-
da à visão mecânica do mundo durante a fase mais importante do seu pri­
meiro desenvolvimento.

1. A n e g a çã o das causas finais c o m o um a priori da


ciên cia m od ern a

O verdadeiro problema afetava as causas finais com o m od us ope-


randi na natureza e da própria natureza. Historicamente sua rejeição foi
parte da grande luta contra o aristotelismo que acompanhou o nasci­
mento da ciência moderna, e dentro deste contexto ela estava estreita­
mente ligada ao ataque às “formas substanciais” . No que diz respeito às
causas finais, é evidente que sua rejeição era um princípio m etodológico
que orientava a investigação, e não uma conclusão dos resultados da
pesquisa. Não existiu primeiro uma história de obstinados fracassos das

4 . ü m c a s o p a ra le lo a isto é a te le o lo g ia d e to d a m á q u in a fa b r ic a d a p e lo h o m e m : na dis­
p o s iç ã o d e su as p a rte s ela in c o rp o ra u m a c a u s a fin a l q u e o rie n to u se u c o n s tru to r, m a s
se u fu n c io n a m e n to o b e d e c e e x c lu s iv a m e n te às c a u s a s e fic ie n te s c u ja o p e r a ç ã o e s ta v a
p re v is ta n o p la n o . N o u tr a s p a la v ra s , a c a u s a lid a d e fin a l n ã o e s tá c o m o ta l c o lo c a d a n a
m á q u in a , m a s ela foi tra d u z id a e m u m a c a u s a lid a d e e fic ie n te , a q u e d a í p o r d ia n te es tá
c o n fia d a a re a liz a ç ã o d o o b je tiv o .
tentativas de descobrir causas finais na natureza - o que de qualquer ma­
neira haveria de justificar o axioma de que em princípio tais causas não
podem ser esperadas e de que em nenhuma hipótese elas deviam ser
procuradas aí. Com a inauguração da ciência moderna, a simples busca
de tais causas foi de repente declarada incompatível com a atitude cientí­
fica, e considerada com o um desvio na busca das causas verdadeiras. Só
então, ao se pôr em prática esta atitude, acumularam-se os resultados
negativos, que consistiam concretamente no êxito da explicação que
não recorre a causas finais, o que eqüivale a uma contínua prova de que
é possível prescindir-se delas. Repetimos mais uma vez: a exclusão da te-
leologia não é um resultado indutivo, mas sim um decreto apriorístico da
ciência moderna. Mas só o poderá ser se a teleologia estiver em contradi­
ção com o verdadeiro tipo de ser que de antemão é estabelecido para os
possíveis objetos da ciência natural, e com isto também para o conceito
de causa que corresponda a estes objetos.
(Não obstante, jamais se afirmou que “causa final” seja um conceito es­
tranho ou abstruso, ou mesmo “antinatural”. Pelo contrário, não existe coisa
que seja mais natural ao espírito humano ou mais familiar à experiência cor­
riqueira dos homens: e o que na nova atitude científica falava contra ela era
exatamente isto. O que a torna suspeita é precisamente nossa tendência a
uma explicação final. Francis Bacon considera-a um dos “ídolos tribais”
( idols o fth e tribe), um dos preconceitos inerentes à natureza humana. “E
então acontece que, tentando avançar para o mais distante, o entendimento
humano recai para o que está mais à mão - a saber, para as causas finais,
que claramente fazem parte mais da natureza do ser humano do que da na­
tureza do universo, e por sua fonte prejudicaram de maneira estranha a pu­
reza da filosofia” 5. Já nesta fase inicial a própria situação - a pouca disposi­
ção da natureza para as causas finais - é considerada com o estabelecida,
sem que seja necessário apresentar outros argumentos. Mas é significativo
que a circunstância cuja menção é considerada suficiente para ao leitor inte­
ligente desacreditar a teleologia consiste em que as causas finais fazem par­
te da natureza do ser humano e não do universo - o que implica que não se
poderia tirar nenhuma conclusão de um para o outro, por sua vez sendo
pressuposta uma diferença fundamental entre as naturezas de um e de ou­
tro. Esta é uma suposição fundamental não tanto da ciência moderna em si
quanto da metafísica moderna que lhe presta serviços. Sob o título de res
extensa , a realidade exterior foi totalmente desvinculada do mundo interior
do pensamento, passando depois a constituir um campo auto-suficiente
para a aplicação universal da análise matemática e mecânica: a própria
idéia de “objeto” teve que passar por uma transformação através do expur­
go dualista.lEstreitamente ligado a este processo está o monopólio episte­
mológico que passou a ser reconhecido para a modalidade perceptiva do

5 . F ra n c is B a c o n , Novum Organum, I 4 8 .
conhecimento, isto é, do conhecimento exterior sobretudo de acordo com o
modelo da visão: “Objetividade”, por conseguinte, passa a ser a elaboração
dos dados exteriores dos sentidos segundo suas propriedades extensionais.
Outras modalidades possíveis da relação com a realidade, com o por exem­
plo a comunicação entre vida e vida, ou a experiência do choque e da resis­
tência das coisas no esforço corporal, passaram para segundo plano em re­
lação ao ideal do conhecimento exato, deixando de ser levados em conta.
Este predomínio exclusivo da percepção distanciadora e objetivante, de par
com a separação dualista entre sujeito e objeto considerados com o dois rei­
nos heterogêneos, levou a que fosse rigorosamente rejeitada toda transfe­
rência de caracteres da experiência interior para a interpretação do mundo
exterior (embora mais tarde a violação contrária de fronteira no sentido con­
trário por parte da psicologia materialista tenha sucumbido em grau bem
menor a este tabu). Em todo caso o antropomorfismo, e mesmo o zoomor-
fismo em geral, passou a ser considerado com o uma traição à ciência. Nes­
ta constelação dualista nós nos deparamos com a “natureza do ser huma­
no” com o uma fonte de impurezas para a “filosofia” (isto é, para a ciência
natural), e a objeção levantada contra a explicação final é o fato de ela ser
antropomórfica.

2. A p ro s c riç ã o do a n tro p o m o rfis m o e suas co n se qü ên cia s


e p is te m o ló g ica s

Desta forma a luta contra a teleologia é uma fase da luta contra o an­
tropomorfismo, em si tão antiga quanto a ciência ocidental. A crítica que
teve início com a condenação jônica da personificação mitológica che­
gou agora, sob o novo impulso do dualismo científico, a descobrir nódoas
m esm o sob a forma muito mais subtil do finalismo aristotélico. Mas uma
vez posto em marcha, o argumento não parou por aqui: foi aplicado mes­
mo às causas eficientes, em favor das quais as causas finais haviam sido
banidas. Depois de Hume a idéia de força e conexão necessária passa a
ser alheia ao testemunho das coisas, nascendo de certas impressões inter­
nas do espírito referentes ao seu próprio trabalho: projetá-la sobre o que
encontramos nas coisas é, pois, mais um caso daquele projetar sobre a
natureza os aspectos da auto-experiência humana subjetiva, que havia
sido proscrito pela ciência objetiva. Mesmo não se aceitando a teoria es­
pecial de Hume sobre a origem destas idéias, continua sendo verdade
que os conceitos de força e causa surgem de um tipo de experiência que
(nas palavras de Locke) além de “impressões da sensação” , envolvem
“impressões da reflexão” , pois efetivamente aqueles conceitos usam o
conhecimento do sujeito e sua própria maneira de ser afetado (com o por
exem plo a autopercepção do esforço muscular) com o parte do conteú­
do da experiência integral do objeto. Precisamente este elemento “subje­
tivo” é suficiente para infiltrar aqueles conceitos no âmbito dos meros ob­
jetos submetidos ao veredicto geral do antropomorfismo.
« A ciência deixou-se levar pela inclinação da filosofia ao ceticismo. A
teoria física distanciou-se do conceito esclarecedor da força, por conside­
rá-lo antropomórfico e não verificável por uma mera medição da realida­
de, e restringiu suas exigências ao registrar as sucessivas posições em um
sistema espaço-temporal de coordenadas, e a formular com o “leis da na­
tureza” as regularidades quantitativas destas seqüências. Renunciou-se,
pois, à explicação a bem de uma mera descrição que, ao atribuir valores
quantitativos às posições e mudanças de posição no contínuo extenso, e ao
considerar estes valores como as próprias entidades, passa a ser uma descri­
ção puramente matemática. Desta forma renunciou-se inteiramente a buscar
as forças-motrizes, bem com o as formas substanciais - isto é, depois da
explicação final também foi para o lixo a explicação causai; na realidade a
própria idéia de uma explicação foi para o espaço quando na teoria do co­
nhecimento o movimento antiantropomórfico chegou à plenitude.;
Neste movimento manifesta-se, pois, uma dialética profunda. Foi des­
cartada em primeiro lugar a personificação mítica, e posteriormente a teleo­
logia impessoal, a fim de limpar o terreno para uma verdadeira explica­
ção da natureza: de acordo com o conceito da causa eficiente, esta expli­
cação ainda era dependente de um resquício do desprezado animismo,
isto é, da universal interpolação das idéias de força e de causa na imagem
do mundo - uma interpolação através da qual estes elementos da experiên­
cia pessoal do esforço e do movimento tornaram-se disponíveis com o um
tecido unindo os fenômenos naturais observados. Com a exclusão total do
animismo a ciência retirou de sob os seus próprios pés aquele mesmo chão
que antes, por uma repressão parcial do animismo, ela havia conquistado
para a explicação racionalJ O longo caminho do animismo primordial, que
passando pelo dualismo chegou até o materialismo pós-dualista, termina na
renúncia agnóstica à idéia do saber como uma compreensão de seus objetos.
Isto, ironicamente, ocorreu no momento em que, com a renúncia ao dua­
lismo, deixava de existir a compulsão metafísica para um modelo estrita­
mente desvitalizado da natureza. |

3. A reabertura pós-dualista da questã o

A importância da última observação para a questão da teleologia é a


seguinte: assim com o sucede com referência a outros traços “ antropo-
m órficos” , é evidente que a justificativa para as causas finais serem
excluídas a p rio ri dos efeitos exteriores encontrava-se na metafísica dua-
lista, que no ato da exclusão preservava ao mesm o tempo em seu terre­
no de origem a verdade do que havia sido excluído. O finalismo precisa
ter sua sede legítima lá onde sua idéia pôde ser derivada, e na divisão du-
alista a natureza do ser humano ou da vida, que propicia esta sede, ainda
não é negada, ela apenas é dissociada da res extensa.jMas em face da
experiência orgânica o dualismo mostrou-se insustentável^Ocasicnalis-
mo e paralelismo psicofísico foram tentativas desesperadas para salvar a
concordância da nova ontologia da ciência consigo mesma. Com o fra­
casso destas, o materialismo científico encontrou-se na incômoda posição
de dono exclusivo do terreno, já não mais protegido pelo álibi dualista, e
gravado com uma tarefa de que a anterior divisão do trabalho o havia
isentado.j[Pois quando o dualismo sai de cena e a res co g ita n s , funda­
mentada no orgânico, passa a ser ela própria parte e produto da natureza
unificada, o fato de Bacon atribuir as causas finais à “natureza do ser hu­
m ano” deixa de provocar aquele efeito eliminador que existia na configu­
ração dualista. E por fim a teoria da evolução, agora uma parte insepará­
vel do monismo moderno, dilui os derradeiros vestígios da linha divisória
em que se baseava todo o argumento do contraste entre a “natureza” e o
“ser humano” ./i

Desta forma, em uma ontologia monista o processo legal contra o an-


tropomorfismo torna-se problemático em sua forma absoluta, em princí­
pio voltando a ficar em aberto. Este processo parece levar-nos então a fa­
zer a seguinte escolha entre duas alternatives monistas: ou entender a pre­
sença da interioridade dirigida para um fim em uma parte da ordem física,
isto é, no ser humano, com o um testemunho válido para a natureza de
todo o resto da realidade que esta interioridade fez surgir de si mesma, e
aceitar o que ela em si mesma manifesta com o parte da evidência univer­
sal; ou então estender as normas da matéria mecânica até o coração da
classe de fenômenos aparentemente heterogêneos, banindo a teleologia
até mesmo da “natureza do ser humano”, a partir da qual ela contaminou
a “natureza do universo” - isto é, alienando o ser humano de si mesmo e
negando autenticidade à auto-experiência da vida.
Aspectos filosóficos do darwinismo

I - A questão das origens no pensamento moderno sobre a


natureza

O modelo mecanicista da natureza, que tomou forma no século 17,


ocupou-se primeiramente com estruturas já prontas - fossem elas o sis­
tema solar ou os corpos dos animais -, sem prender o pensador às ques­
tões inerentes à sua origem. Cada estrutura, tal com o encontrada, era
considerada com o um mecanismo em funcionamento, e a análise deve­
ria explicar através dos componentes elementares de matéria e m ovi­
mento o seu efetivo funcionamento de acordo com um m odelo uniforme.
A pergunta de com o esta estrutura poderia ter surgido no passado da his­
tória da natureza ainda não fazia parte do programa científico, embora
por vezes pudesse ser objeto de alguma especulação sumária. Esta fuga
provisória a uma questão cheia de riscos teológicos serviu de proteção à
infância da ciência moderna. Por cerca de um século as crenças teístas
pouparam a seus fundadores a necessidade de ocuparem-se com o pro­
blema das origens. Mesmo com a criança já mais robusta, o deísm o do
século 18 continuou a fornecer ainda uma moldura à nova cosm ologia
científica, embora precária. Contra a idéia de um cosmos vivo e autocria-
dor, defendida pelos panteístas, o deísmo opôs a idéia de uma imensa má­
quina, que uma vez posta em andamento continuava a funcionar por si
mesma. Mas primeiro esta máquina tinha que ser construída e posta em
funcionamento: o criador que atuava sem cessar foi substituído pelo
construtor (o “relojoeiro” ) que atuou uma única vez; e em lugar do mo-
vente imóvel que em sua eterna presença impulsiona o mundo, passa a
figurar o movente inicial, que em um primeiro m om ento transmitiu ao
mundo um determinado impulso. Por uma curiosa ironia do destino, foi a
idéia bíblica de um Deus criador fora do mundo, e da criação com o um
ato realizado “ no princípio”, que preparou o terreno para esta precária
imagem. “Que Deus é este, que se limita unicamente a impulsionar de
fora?” , protesta GoetheJMas _para o espírito^científico a idéia de uma má­
quina pronta não passava de um recurso provisório. As primeiras coisas
necessárias para a explicação não podiam deixar de ser também as pri­
meiras coisas na ordem temporal, e o estado atual tinha necessariamen­
te que ser também o último membro de uma série temporal que o liga
àqueles primeiros elementos. Se bão estes os fatos absolutamente primi­
tivos de matéria e movimento, os que não fazem parte de nenhum plano,
e se é possível derivar unicamente deles a série que leva ao estado pre­
sente, então a criação passou a ser supérflua.
Desde o com eço da especulação humana as perguntas pela origem
sempre acompanharam as interrogações mais amplas acerca da nature­
za das coisas, e nisto a filosofia mecanicista não constituiu exceção. Seus
princípios apontaram por si m esm os para duas direções distintas na in­
vestigação de todo fenômeno físico, a segunda entrando em ação logo
que o amadurecimento da ciência lhe permitiu arriscar-se a prescindir do
manto protetor do deísmo. A primeira direção, com o já foi dito, foi a de
analisar os sistemas físicos dados, isto é, explicar seus comportamentos
observados a partir dos princípios gerais da mecânica; a segunda foi a de
reconstruir um possível surgimento destes sistemas a partir de estados
prévios, e em última análise de um indefinido estado primordial da maté­
ria, que de acordo com os mesm os princípios gerais da mecânica, e sem
a intervenção de um espírito planificador, com o correr do tem po haveria
de levar por si mesm o a um sistema estável, simplesmente com o uma
fase necessária de sua história causai. Com o exemplos destas duas dire­
ções podem ser consideradas por um lado a teoria de Newton do sistema
planetário com o uma ordem subsistente, e por outro a teoria da nebulosa
de Kant-Laplace sobre a origem desta ordem 1. Faz parte da essência da
física moderna que as duas questões tenham que ser respondidas usan­
do os m esm os princípios, isto é, que a origem e a existência resultante só
se distingam com o estados anteriores e posteriores de um m esm o subs­
trato: a realidade que produz é da mesma espécie que o produto, apena^
ocupando um lugar diferente na infinita série cronológica de causa e efei­
to. Isto significa que uma coisa qualquer pode ser considerada ao m es­
mo tem po com o efeito e com o causa, isto é, com o o produto do passado
e com o o que produz o estado futuro que dela irá resultar2. A única dife­

1 . E s te s d o is a s p e c to s já se e n c o n tr a m a rtic u la d o s n a d e riv a ç ã o g e n é tic a e n a e x p lic a ç ã o


fu n c io n a l d o “c o rp o p o lític o ” fe ita p o r H o b b e s : u m a m e s m a d in â m ic a p rim itiv a - o m e d o
d a m o r te v io le n ta - d e te r m in a o e s ta d o d e s o rd e n a d o d a n a tu re z a , a tra n s iç ã o d e s te p a ra
a o r d e m d o b e m c o m u m e a m e c â n ic a p e r m a n e n te d e s te ú ltim o .

2 . U m a b o a ilu s tra ç ã o é o “c a lc u lis ta d iv in o ” d e L a p la c e , e m c u ja a n á lis e o e s ta d o a tu a l


d o m u n d o (e m v e z d e re p re s e n ta r u m a m á q u in a d e fin itiv a c o n s tru íd a d e u m a v e z p o r to ­
d a s ) a p a r e c e c o m o u m a c o n fig u ra ç ã o tra n s itó ria n a d e riv a c o n s ta n te d a s c o n fig u ra ç õ e s
q u e e m se u c o n ju n to c o n s titu e m a e x is tê n c ia d o m u n d o n o te m p o in fin ito . C o m o c o rte s
m o m e n tâ n e o s a tra v é s d a s o m a c o n s ta n te d e m o v im e n to e m a té r ia , to d a s as c o n fig u r a ­
çõ e s s ã o e q u iv a le n te s . P o r isso to d a e s c o lh a d e u m d e le s c o m o p o n to in ic ia l é tã o a r b itrá ­
ria c o m o a e s c o lh a d e o u tro c o m o p o n to fin a l, e c o m o a e s c o lh a d o e s ta d o a tu a l c o m o a
in te n ç ã o d o c ria d o r. T o d o m o m e n to n o te m p o , c o m seu s d a d o s re fe re n te s a c o rp o s , p o s i­
çõ e s e fo rç a s , fo rn e c e d a m e s m a fo r m a a b a s e d e o n d e é p o s s ív e l s e re m c a lc u la d o s os es­
ta d o s d e q u a lq u e r o u tro m o m e n to p a s s a d o o u fu tu ro . P a ra o in te le c to a n a lític o ilim ita d o
da fic ç ã o Ia p la c ia n a , a g ig a n te s c a e q u a ç ã o d e u m m o m e n to c o n té m to d a a h is tó ria p a s ­
s a d a e fu tu ra d o m u n d o . O m u n d o é d e s d e e n tã o e n te n d id o c o m o a h is tó ria g lo b a l d a m a ­
té ria , e n ã o m a is c o m o u m a d e te r m in a d a o r d e m da m a té ria .
rença qualitativa ainda admitida entre as origens em geral e suas conse­
qüências posteriores (se as primeiras têm que ser mais auto-explicativas
do que as últimas, e ássim adequadas a servir de relativo ponto de parti­
da para uma explicação) consiste em que, na ausência de uma inteligên­
cia planificadora no com eço das coisas, as origens têm que representar
um estado da matéria mais simples e mais provável do ponto de vista
aleatório. Com esta única diferença, os inícios mais primitivos e as conse­
qüências mais tardias são da mesma natureza. E com o nada é capaz de
oferecer o dinamismo de toda mudança a não ser a falta de equilíbrio,
todo estado de organização alcançado indica a medida de equilíbrio rela­
tivo que resultou da instabilidade de uma anterior distribuição de massa.
Desta forma o lugar de uma criação transcendente e construtiva passa a
ser ocupado pela série inteira em seu infinito prolongar-se. O segredo
metafísico desta nova visão se encontra na radical concepção temporal
do ser, ou na equiparação do ser com a ação e com o processo. O que ca­
racteriza esta mudança é a posição central atribuída no esquema ontoló-
gico ao movimento, em substituição a qualquer ens rea lissim um da es­
peculação anterior.

Neste novo sentido do conceito de “origens” pode-se perceber uma


completa inversão da idéia mais antiga da superioridade da causa cria­
dora sobre seu efeito. Sempre se havia suposto que na causa deveria es­
tar contida não apenas mais força, mas também mais perfeição do que
no efeito. O que produz tem que ter mais “realidade” do que o que é por
ele produzido: deve ser superior também em formalidade, para explicar o
grau de forma de que as coisas derivadas desfrutam. Ou pelo menos a
causa deveria possuir “tanto quanto”, “não menos do que” possuem as
coisas que dela surgem 3.

Torna-se claro que a espécie de dedução genética introduzida pelo


pensamento moderno inverteu totalmente esta ordem do pensamento
clássico. Se por si mesmas as situações mais elementares conseguem
produzir toda a variedade e ordem, e se as últimas são explicadas pelo di­
namismo das primeiras, então nós chegam os ao paradoxo de a causa
ser inferior ao efeito, embora não na quantidade, que é constante, mas
em sua articulação estrutural. No que se refere à origem, com o também

3 . A a titu d e c lá s s ic a c a ra c te riz a v a -s e p o r c o n s id e ra r o in fe rio r, isto é, o m a is e le m e n ta r ,


c o m o s e n d o “m e n o s ” q u e o s u p e rio r, e p o r isso m a is p o b re e m re a lid a d e , e p o s to a seu
s e rv iç o . C o m o o p r im e ir o p rin c íp io e x p lic a tiv o e ra tir a d o d a m a n e ira m a is e le v a d a d e ser,
q u e ta m b é m o n to lo g ic a m e n te era a “p r im e ir a ” , tip ic a m e n te a e x p lic a ç ã o m o v ia -s e d a
p o n ta d a e s c a la p a ra b a ix o , d e riv a n d o p o r p r iv a ç ã o as o rd e n s m a is b a ix a s a p a rtir d a s
m a is e le v a d a s . P o r e x e m p lo , o re in o d a p a ix ã o c a ra c te riz a v a -s e p e la a u s ê n c ia da ra z ã o ,
m a s u m a ve z q u e e le e x is te te m q u e p a rtic ip a r ta m b é m d o p rin c íp io d o ser, se b e m q u e
e m g ra u in fe rio r à ra z ã o . P lo tin o é o e x e m p lo e x tr e m o d e s ta lin h a d e e x p lic a ç ã o d e c im a
p a ra b a ix o , e m q u e o in fe r io r (a m a té r ia p u ra ) o c u p a o ú ltim o lu g a r.
c w<)ã

à função, o primitivo deve responder pelo articulado, o instável pelo está­


vel, a desordem pela ordem, o vir-a-ser deve explicar o ser.

II - Aplicação da idéia moderna de origem ao reino da vida

1. R esistên cia das form as uivas ao m o d e lo


m eca n icista da o rig e m

De todas as esferas do ser, foi o mundo dos seres vivos que por mais
tempo resistiu a esta idéia da origem, só no século 19 a teoria da evolu­
ção conseguindo subordinar a vida ao esquem a geral de tratamento.
Quais foram as dificuldades especiais?! Para Descartes, os corpos dos
animais eram máquinas ( “autômatos” ) construídas de forma a funcionar
da maneira com o funcionam,^ e embora, por serem automáticos, não
atue neles nem uma inteligência nem uma vontade final, sua constru­
ção parecia não obstante postular em seu autor exatamente estas quali­
dades. Mas se de acordo com esta nova maneira de ver a tarefa construti­
va deve ser atribuída à própria matéria, então no caso do organismo - di­
ferentemente da estrutura cósmica, majestosamente simples - é exata­
mente o sucesso de sua análise científica que se opõe à verificação desta
nova maneira de ver. Pois quanto mais maravilhosa se manifestou a
construção destas estruturas, tanto menos seu surgimento pareceu ca­
paz de ser entendido sem um propósito planificador; propósito este,
além do mais, que supera em tal medida toda perspicácia humana quan­
to as máquinas naturais se demonstram superiores às máquinas fabrica­
das pelo ser humano. Se não for admitido um plano ou uma meta teleoló-
gica, a probabilidade de tais organismos surgirem casualm ente não é
maior do que a do célebre experimento mental de macacos, batendo ce­
gamente nos teclados, criarem numa máquina de escrever toda a litera­
tura mundial. A com paração é válida na medida em que se pressuponha
a imutabilidade das espécies, e por conseguinte o surgimento isolado de
cada uma delas.
O problema torna-se ainda mais complexo pelo fato de que no caso
destas estruturas mecânicas, isto é, dos organismos, ao contrário das es­
truturas cósmicas mais permanentes, a todo momento nós observamos
seu evoluir nos exemplares isolados. Mais que em qualquer outro caso, a
gênese faz parte aqui da imagem completa da própria entidade; mas a gê­
nese de que falamos difere decididamente do m odelo mecanicista. Pois
no surgir constantem ente repetido de indivíduos altamente organizados
a partir de germes extremamente pequenos parece encontrar-se uma evi­
dência direta da execução de um plano de crescimento e desenvolvimento
predeterminado. Deste modo, precisamente a idéia de “evolução” , sugeri­
3 . o :* « % ' " y ò V A i

da pelo fato da reprodução, impedia a tentativa de se aplicarem ao reino


animado estas m esm as categorias genéticas, que com base nos princí­
pios mecanicistas parecem aplicáveis à realidade com o um todo. Na ver­
dade, o conceito de “evolução” referia-se de início precisamente a este fe­
nômeno da gênese individual, e não ao surgimento da espécie. “ Evolu­
ção”, no sentido literal, pressupõe pelo contrário a existência da espécie,
porque é precisamente a espécie que nos indivíduos progenitores fornece
o plano predeterminado que irá “evoluir” em cada caso individual. O que
se desenvolve não é o modelo em si, mas sim sua nova encarnação em
cada geração, do germe à maturidade: o que “evolui” estava “involuído”
no germe; sua potencialidade no germe derivava-se de sua existência em
ato no progenitor. Vistos dentro da relação causai, por conseguinte, os pro­
genitores provocam não apenas a existência do descendente mas tam­
bém sua forma - precisamente pelo fato de possuírem esta mesma forma.
Como tipo de causalidade isto é fundamentalmente diverso da cadeia me-
canicista de causa e efeito, constituindo um forte argumento em favor de
uma causa formal, além de uma causa eficiente, ou em favor da existência
de formas substanciais que do contrário permaneceriam excluídas de todo
o sistema da explicação natural. Em resumo: o conceito de evolução
com o tal, dévelopem ent, opunha-se ao da mecânica, continuando a impli­
car uma ou outra forma de ontologia clássica.

Por isso, quando a questão da origem foi estendida a estes planos de


crescimento que se reproduziam a si próprios, tratava-se de um em pre­
endimento de alto nível ontológico, cujo sucesso no sentido da ciência
natural estava destinado a completar o movimento antiplatônico do pen­
samento moderno. É certo que o pressuposto de que nossa terra não é
eterna, deduzido da cosmologia científica, continuava ainda a exigir pri­
meiros representantes na cadeia das gerações (nisto não diferindo da
doutrina da criação), mas estes não precisavam mais ser representantes
das espécies existentes, se se consideravam estas com o resultado do
tempo, em lugar de determinantes não-temporais do processo da vida. O
problema probabilístico ilustrado no caso dos m acacos ficaria então divi­
dido em duas partes, o da geração primordial das primeiras formas e o
da derivação das formas presentes a partir das primeiras, e esta divisão,
ao superar a monstruosa improbabilidade patenteada naquele exemplo,
trazia consigo o segredo do êxito.

2. S u p era çã o da resistência p o r pa rte da m od ern a d ou trin a


e vo lu cio n ista

$A “evolução” , no sentido moderno da palavra, permitiu conferir maior


confiabilidade à matéria no surgimento do reino vivo, com isto perm i­
tindo que o m onism o materialista da ciência natural desse um passo
decisivo. Isto ela conseguiu ao abandonar o significado original da pala­
vra “evolução” , desvinculando-a do processo de crescimento dos orga­
nismos individuais. A idéia de uma preformação e de um desenvolvim en­
to foi substituída pela im agem quase-mecânica de uma seqüência sem
planejamento nem direcionamento, porém progressiva, cujos inícios, di­
ferentemente da célula germinativa, nada antecipam do resultado final
nem dos passos sucessivos para alcançá-lo.fSe as formas vivas proce­
dem umas das outras e não surgiram umas independentemente das ou­
tras, com isto a pedra de escândalo para a ciência representada por toda
primeira geração transfere-se para o primeiro aparecimento da vida em
si; sua grandeza, e com ela a carga que acarreta para a teoria, diminui de
acordo com o mínimo de organização que se pressuponha para as ori­
gens mais primitivas. Por mais fortes que sejam as conseqüências do pri­
meiro passo, representado pela transição do inorgânico para o orgâni­
co, ele pode ser hipoteticamente encurtado quanto se queira para não
sobrecarregar as probabilidades de ocorrência das com bin ações ca­
suais. Toda a ulterior diversificação passa a ser confiada então ao dina­
mismo deste algo primordial; e para que a doutrina com o um todo per­
maneça científica, é essencial que o dinamismo a que se apela nada car­
regue consigo de teleologia, de disposições preformativas nem de ten­
dências para as formas mais elevadas e futuras, mas sim que ele faça
“evoluírem” aquelas formas superiores, sem que estejam em qualquer
sentido “involuídas” na forma inicial. Tudo depende, portanto, de um
conceito desta dinâmica, que por um lado seja satisfatório do ponto de
vista causai, e por outro não confira ao primitivo um conteúdo misterioso
que antecipe o mais avançado: a causalidade eficiente deve explicar o
surgimento do mais avançado a partir do primitivo, mas deve também
deixar este último tão primitivo quanto ele é na realidade. Desta forma,
ao m esm o tempo que cada arremesso de dados continua cego, do ponto
de vista probabilístico a situação se modifica de uma maneira decisiva:
uma vez já se encontrando aí a primeira e mais simples forma de vida,
todo subseqüente lançamento dos dados ocorre em corpos bem deter­
minados, com dados escolhidos e com definição das maneiras com o po­
dem ocorrer, de modo que o jo g o do acaso torna-se consideravelmente
reduzido. E também todo “arremesso de dados” é condicionado pela
soma dos arremessos anteriores, acrescentando a estes seu próprio re­
sultado, sem ter que com eçar tudo de novo.VNoutras palavras: uma vez
que a vida exista, ela vai progressivam ente determinando suas próprias
condições para o jo go das variações mecânicas, e com isto as probabili­
dades passam a ser efetivamente mais favoráveis do que no caso dos
m acacos, que a cada m om ento precisam com eçar de novo, sem se be­
neficiarem de suas realizações anteriores. \
A hereditariedade, portanto, que de início parecia ser o mais forte argu­
mento em favor da doutrina das espécies imutáveis, se transforma pelo
contrário justamente no instrumento que refuta esta teoria, os efeitos da
mutação - cada um deles acrescentado aos anteriormente adquiridos -
podem acumular-se seguindo uma mesma linha, e aos pequeninos passos
do acaso é dado crescerem até que se transformem em grandes e com ple­
xos genótipos. Além deste efeito cumulativo da mutação hereditária, o efei­
to da seleção natural sobre seus resultados parece, então, desempenhar
com perfeição o papel de princípio orientador, deixado vazio pela teleolo-
gia.\Efetivamente foi a teoria da evolução de Darwin que, ao associar a va­
riação aleatória com a seleção natural, conseguiu banir da natureza a te­
leologia. A “finalidade”, tomada supérflua até mesmo para a história da vida,
retirava-se inteiramente para a esfera da subjetividade. s.
Com o toda teoria mais ampla, também a atual teoria da evolução e da
genética é uma rede complexa, onde entrelaçam-se fatos estabelecidos,
hipóteses e deduções. A evolução com o tal pertence ao número dos fatos
estabelecidos, de que também faz parte o fato de as espécies se modifica­
rem, de haverem crescido em uma série de m odificações a partir de
formas ancestrais, e de em sua totalidade constituírem um sistema ramifi­
cado de famílias com uma origem comum, onde o simples antecede o
com plexo e as transições são paulatinas. Um outro fato estabelecido é a
ocorrência de mutações, porém não a sua natureza nem a sua causa. A se­
leção natural é uma dedução lógica destas duas premissas: a com petição
e as diferenças entre os competidores - estas, sim, fatos estabelecidos. O
caráter aleatório das mutações é uma hipótese: a possibilidade de algu­
mas delas ocorrerem por forças externas, por exemplo pela radiação, é
uma experiência comprovada em laboratório; mas a suposição mais am­
pla de que tais experiências sejam representativas de todas as mutações e
do dinamismo que lhes serve de base não passa de uma tentativa de apli­
cação da navalha de Occam; e por último, que este tipo de variação expli­
que suficientemente o aparecimento das grandes ordens taxonômicas, é
por enquanto antes uma afirmação metafísica (ou, em palavras mais só­
brias, um postulado m etodológico) do que uma hipótese científica - se
por “hipótese” entendermos a construção de um modelo capaz de funcio­
nar pelo menos mentalmente. Todos estes aspectos levantam problemas fi­
losóficos, alguns dos quais serão tratados a seguir.

III - A revolução provocada no conceito da vida pela idéia


evolucionista

Já a descoberta do mero fato da evolução teve conseqüências pro­


fundas para o conceito universal da vida, para não falar da questão espe­
cífica da origem do ser humano. A teoria de Descartes sobre a natureza
animal tinha com o ponto de partida fixo uma estrutura mecânica deter­
minada em cada caso - o tipo de organismo dado - e concebia a vida do
animal em questão com o função desta estrutura, com o o rendimento da
máquina. Aqui a estrutura determina unilateralmente a função, ao mes­
mo tempo que a explica; por isso a análise desta estrutura responde a to­
das as perguntas razoáveis que possam ser feitas com relação a uma coi­
sa viva. Já a doutrina da evolução considera este tipo estrutural dado,
que é a condição para que uma vida específica possa se realizar, com o
sendo ele próprio um produto da vida - com o resultado, ou com o uma
parada provisória de um dinamismo contínuo, que por sua vez também
merece ser chamado de “vida” . Desta forma, já nos seus simples meios,
isto é, no seu equipamento estrutural que lhe permite viver, a vida apare­
ce com o uma conquista própria, ou pelo menos com o um resultado pró­
prio, em vez de simplesmente apresentar-se com o tendo sido dotada des­
ses meios e faculdades. Esta é uma das descobertas mais fundamentais
que já foram feitas a respeito da natureza da vida. Ela completa, entre ou­
tras coisas, a eliminação das essências imutáveis, com isto sinalizando a
vitória final do nominalismo sobre o realismo, que tinha seu último bas­
tião na idéia das espécies naturais. Este é um acontecimento filosófico de
primeira linha, na medida em que constitui uma confirmação vigorosa
do antiplatonismo do espírito moderno. Se acrescentarmos ainda a au­
sência de toda orientação teleológica, o processo evolutivo apresenta-se
com o uma verdadeira aventura, com um percurso inteiramente imprevi­
sível. Esta idéia especificamente moderna da vida com o uma aventura
sem um plano nem um fim predeterminado, juntamente com o efeito co­
lateral da eliminação da essência imutável, é por sua vez uma importante
conseqüência da doutrina científica da evolução.

7. O uir-a-ser das espécies e o fim do p la to n is m o

Assim com o no cenário físico com o um todo, tam bém na história


da vida as condições tomam o lugar da essência com o princípio criador.
As condições, sob a forma de “ambiente” , passam a ser um correlato ne­
cessário ao conceito de organismo, a ponto de penetrarem na derivação
cardinal de sua existência.^Lamarckismo e darwinismo possuem em co­
mum a função constitutiva do ambiente. O organismo é considerado
com o determinado primariamente pelas condições de sua existência, e a
vida é entendida mais com o uma situação que envolve organismo e am­
biente do que com o a realização de uma natureza autônoma. |

Organismo e ambiente formam juntos um sistema, que desde então


determina o conceito básico de vida. De acordo com isto, a vida é o com ­
portamento que este sistema bipolar induz sobre um de seus pólos; e as
maneiras típicas de viver, a relativa estabilidade e peculiaridade do com ­
portamento das diversas espécies dadas, representam em cada caso o
equilíbrio alcançado entre os dois fatores que constituem a situação. Mas
o mesmo também pode ser dito da estrutura orgânica com o tal: também
ela, e não apenas o seu comportamento em cada caso, representa um
equilíbrio tem porário da situação da espécie a longo prazo; pois esta é o
resultado da atuação anterior daquela situação sobre o substrato da vida.
Noutras palavras: o fato de a espécie não ser fixa, associado ao princípio
do ambiente, despoja o sujeito da vida, em grau jamais imaginado, da
posse de determinações originárias e imanentes. Nas interações sem pla­
no da situação biológica, e com o papel formativo do ambiente, cujos
efeitos se acumulam de geração em geração, a essência criada, imutável
e característica da vida com o tal, fica reduzida a um mínimo, ao mesm o
tempo que a importância da situação global, com suas exigências e crité­
rios de seleção, passa a ter uma importância máxima. O mínimo que se
deixa à essência orginária da vida é a mera autoconservação - em analo­
gia com as leis inerciais que determinam o com portamento de uma partí­
cula. O m áxim o que é transferido à situação é a som a total das influên­
cias que, a partir da mera autoconservação (através das variações adap-
tativas aleatórias), suscitam a riqueza de superestrutura e de com porta­
mento acumulado, com que a vida, inteiramente libertada de toda predis­
posição estabelecida, por assim dizer se surpreende a si mesma - e a seu
criador, caso este exista.tO pensamento não estava previsto na ameba,
com o não o estavam também a coluna vertebral, nem a ciência ou o po­
legar oponível: cada uma destas coisas foi produzida a seu tem po - mas
não de uma maneira previsívelj- no enorme espaço da situação vital em
contínua transformação. Mas variabilidade, essencialmente, não difere
de instabilidade, o que só por si já constitui um argumento contra a exis­
tência de uma “forma substancial” predeterminada.

2. O ser h u m a n o sem essência

Este encolhimento da constituição formal da vida para o mínimo de


um mero impulso vital sem conteúdo original específico, e correspon­
dendo a isto a abertura do horizonte sem limites da situação para produ­
zir possibilidades que não existiam antes com o potencialidades, soa fa­
miliar a quem conhece as atuais doutrinas filosóficas sobre o ser huma­
no. lEfetivamente o evolucionismo do século 19, que realizou a revolução
copernicana na ontologia, é um predecessor apócrifo (juntamente com
os precursores mais oficiais) do atual existencialismo. O encontro deste
com o “nada” surge da negação da “essência” , que impediu o retorno a
uma “natureza” ideal do ser humano,\assim com o pôde na Antigüidade
ser encontrada na definição clássica do ser humano através da razão
( h o m o a n im a l ra tion a le - o ser humano com o “animal racional” ), ou na
definição bíblica com a criação do ser humano à im agem de Deus. Com
a queda da idéia da criação esta “im agem ” sumiu, juntamente com o ori­
ginal; e a razão ficou reduzida a um meio entre outros, avaliado pelo seu
rendimento instrumental4 na luta pela sobrevivência; por sua aptidão pu­
ramente formal, no prolongamento da astúcia animal, a razão não impõe
norma, sendo avaliada por padrões que independem de sua autoridade.
Se para o ser humano existe uma “vida racional” (distinta do mero uso
da razão), sua escolha só pode ser irracional, assim com o a escolha de
qualquer outro fim é irracional (se é que tais fins podem realmente ser es­
colhidos). Assim a razão não pode legislar nem mesm o sobre a escolha
de si própria, a não ser com o um simples m eio5. Mas usar a razão com o
um meio pode ser associado a qualquer fim, por mais irracional que este
seja. É esta a implicação niilista da perda pelo ser humano de um “ser”
que supere o fluxo do Vir-a-ser.\Pode-se provar que o niilismo de Nietzsche,
e sua tentativa de superá-lo, está ligado ao aparecimento do darwinismo.
Com o última alternativa, parecia não sobrar outra coisa senão a vontade
do poder, depois de a essência original do ser humano se haver volatiliza-
do com o caráter transitório e caprichoso do processo evolutivo. Com
isto não se pretende dizer que o darwinismo seja o ancestral do existen-
cialismo, mas apenas que ele se harmoniza e coopera com todos os ou­
tros fatores espirituais de cuja configuração global o existencialismo des­
ponta com necessidade lógica.IJá mencionamos o papel predominante
que com a eliminação da imutabilidade das espécies o evolucionismo de­
sempenhou na tendência antiplatônica da ciência moderna: o existencia­
lismo é a conseqüência mais radical até agora tirada da aceitação da com ­
pleta vitória do nominalismo sobre o realismo.

IV - Necessidade causai e casualidade essencial

1. A co m b in a çã o de necessidade e co n tin g ê n cia na m od ern a


im a g e m da natureza

Quando relacionamos o evolucionismo com a revolução copernica-


na, nós estam os pensando especialm ente no fato de ele haver estendi­

4 . M a s p a ra q u e d e s e m p e n h e u m p a p e l in s tru m e n ta l, a ra z ã o - isto é, o p e n s a m e n to -
d e v e p o s s u ir fo rç a c a u s a i, o q u e , a o q u e s tio n a r a a u ta rq u ia d o m a te r ia lis m o , le v a n ta to d a
a q u e s tã o d o d e te r m in is m o a e le a s s o c ia d o ; v e r a p ê n d ic e a o 7 o c a p ítu lo .
5 . C f. c a p ítu lo 1 0 , s o b re tu d o a p a rte III.
do explicitamente para o reino vivo aquela ligação entre necessidade na­
tural e contingência radical, estabelecida universalmente na cosm ologia
de Newton-Laplace com o resultado daquela revolução. A combinação de
necessidade e acaso parece ser um paradoxo. Pois o primeiro aspecto do
universo que se destacou no esquema da moderna ciência natural foi a
estrita hegemonia da lei da causalidade na ação, e por conseguinte no vir-
a-ser das coisas, e esta hegemonia parece excluir da natureza todo tipo de
contingência.

Ela o exclui também no tocante às ocorrências aleatórias, que se en­


contram fora da dependência da lei. Mas, em outro sentido, o moderno
esquema da causalidade é justamente o princípio de uma universal con­
tingência da existência com o tal; ou seja, na medida em que a necessida­
de que impera aqui para cada coisa em particular é exterior ao seu meio
pluralista, ela não procede de sua natureza interior com o uma lei autôno­
ma do vir-a-ser. Tampouco procede de um plano transcendental onde as
coisas particulares e seus destinos estivessem integrados. A necessida­
de, pelo contrário, é simplesmente a própria soma global na interação de
suas partes separadas, cada uma das quais contribui com sua quantida­
de, sendo por sua vez determinada pela distribuição das quantidades que
a rodeiam. Embora tudo quanto acontece nesta interação seja governa­
do pela lei da causalidade, as estruturas resultantes são metafisicamente
contingentes: nenhuma delas realiza um fim especial da realidade, uma
vez que na aritmética das grandezas que se adicionam umas às outras a
realidade não tem nenhuma preferência interna por este resultado em
com paração com qualquer outro. Portanto a necessidade externa desta
soma é o correlato da mais radical das contingências de todo ser particu­
lar. Se algumas das condições iniciais tivessem sido diferentes, o sistema
solar não existiria, ou teria uma com posição diferente da que efetivam en­
te tem, e a completude da natureza com o sistema em equilíbrio não so­
freria prejuízo. O lema “ necessidade mais contingência” pode expres-
sar-se aqui da maneira mais simples pelo fato de existir uma completa
concordância das causas sem que exista nenhuma razão para que o sis­
tema seja assim com o é de fato.

2. A p lic a ç ã o ao rein o uiuo

De acordo com as categories do evolucionismo, a mesma lógica vale


para a vida. A combinação de necessidade e contingência pode ser reco­
nhecida em todos os aspectos da questão com que nos ocupamos.
a) CJm destes aspectos foi a inversão da primitiva crença na superiori­
dade das origens. Como a perfeição não é nenhum padrão próprio da na­
tureza em si, a estrutura considerada “superior” pode perfeitamente sur­
gir de estruturas mais primitivas, isto é, pela ação de forças inteiramente
primitivas. Quando acontece estágios mais elevados surgirem do dina­
mismo de estágios inferiores, sua qualidade com o estágios é inteiramen­
te contingente, embora sua realidade seja necessária. A importância des­
ta idéia de origem para a compreensão da vida é evidente.

b) Outro aspecto foi a inversão da relação tradicionalmente admiti­


da entre estrutura preestabelecida e função dela dependente, e tam bém
aqui nós nos deparam os com a propriedade da contingência. A estrutu­
ra orgânica, m esm o sendo em cada caso concreto a condição para a
função específica, é ela própria por sua vez função de um dinamismo vi­
tal na série das gerações, que nada tem a ver ele próprio com a realiza­
ção de determinada estrutura, e sim com a questão da vida com o tal e
de sua manutenção. (L o g o verem os que “tem a ver com...” é apenas
uma metáfora.) A “espécie” , uma estrutura relativamente estável que
preserva sua identidade por algum tem po, é um resultado casual da his­
tória da vida, sem um estado final na criação e sem uma indicação de
aonde pode levar.fO fluxo dinâmico ocupa o lugar da essência, m arcan­
do com uma contingência radical tudo quanto parece lembrá-la. j

c) Cima terceira característica que aponta para a hegemonia de “ ne­


cessidade e contingência” , nós a encontramos na insistência sobre o
conceito de ambiente. Quando dissemos há pouco que na concepção
evolucionista os modelos de estrutura orgânica se apresentam com o
produtos da vida, não estávamos querendo dizer que a forma surgida de­
veria ser considerada com o uma realização autônoma da substância
viva, que nesta seqüência de produtos haveria de desenvolver suas pos­
sibilidades originais.\De acordo com a ontologia física que explicamos, a
ênfase da explicação situa-se, pelo contrário, nas condições externas,
com o fator mais importante da evolução. Só se o conceito de “vida” in­
cluir a interação entre organismo e ambiente é que se poderá dizer que “a
vida dá origem à espécie” . Mesmo afirmar que as formas hereditárias
que surgem são “adaptações” às condições é, de acordo com os concei­
tos darwinistas, atribuir excessiva importância ao portador da vida, caso
consideremos a adaptação com o uma realização sua.\Adaptações, pelo
contrário, representam um equilíbrio dinâmico atingido entre as condi­
ções do ambiente e as possibilidades contingentes que a instabilidade or­
gânica oferece aleatoriamente.\Obervamos aqui, portanto, o mesmo des­
locamento da substância, com suas propriedades, para a função de um
f \ i , * r * . *•

sistema plural de relações que caracterizam a im agem física do mundo,je


que levam à combinação de necessidade e contingência aqui explicada6.

3. D esvio e seleçã o: ev o lu çã o c o m o “p a to lo g ia ”

|Resta fazermos uma observação final a respeito da forma com o a cau­


salidade é distribuída entre os dois fatores evolucionários, o organismo e
seu mundo ambiente. Para o darwinismo esta divisão é a seguinte: por par­
te do organismo são as variações aleatórias (ou mutações), por parte do
ambiente é a seleção natural. A variabilidade baseia-se em última análise
sobre o fato de que na natureza nada é perfeitamente estável; e a seleção,
sobre o fato de que a vida está constantemente submetida à prova entre as
alternativas do ser e do não-ser. Qual é, então, a parte que cabe a cada
uma destas duas causas? Teoricamente, o mecanismo da seleção, onde
nenhum fim intervém, tem que ocupar o lugar da teleologia e decidir sobre
as vantagens do material contingente que lhe é oferecido, e isto de acordo
com critérios que, apesar de mecânicos, não obstante favorecem o “pro­
gresso” em determinadas direções. Deve-se observar, no entanto, que “fa­
vorecem ” por eliminação. A seleção é essencialmente um sucedâneo ne­
gativo para a teleologia: ela explica o desaparecimento de formas, não o
seu aparecimento - ela reprime, não cria. Por isso só substitui a teleologia
com o princípio orientador sob a condição de que exista material adequa­
do para escolher. Isto significa que o papel positivo, a produção de formas,
cabe inteiramente ao jo go aleatório dos desvios, que em si, com o desvios,
são todos “acidentes” , a distinção entre malformações e melhorias sendo
inteiramente decidida de acordo com critérios externos. Forçado a passar
por esta peneira - assim o vê a teoria -, o contingente torna-se construtivo;
e sem precisar da “astúcia da razão” resulta o paradoxo de que o progres­

6 . A es ta a ltu ra p o d e se r c o n v e n ie n te le m b r a r a im p o r tâ n c ia d e tu d o isto p a ra o c o n c e ito


c lá s s ic o d e “p e r fe iç ã o ”. E n q u a n to n o s e n tid o a ris to té lic o , o u m e s m o c a rte s ia n o , e x is tia
a lg o c o m o o p a d r ã o d e fin itiv o d e u m a d a d a e s p é c ie , p o d ia -s e fa la r d e re a liz a ç õ e s m a is
p e rfe ita s o u m e n o s p e rfe ita s d a e s s ê n c ia na c o n s titu iç ã o e n a tr a je tó ria d e v id a d o s in d iv í­
d u o s . P o d ia -s e c o m ra z ã o c o n s id e ra r q u e u m in d iv íd u o , e m m a io r o u m e n o r g ra u , é a q u i­
lo q u e ele e s tá d e s tin a d o a ser, u m re p re s e n ta n te d e su a e s p é c ie . “ P e rfe iç ã o ” s ig n ific a
a q u i a m a io r o u m e n o r c o m p le tu d e c o m q u e o m o d e lo d a á rv o re o u d o c ã o ou d o h o m e m
se a tu a liz a n o d e s e n v o lv im e n to in d iv id u a l d e u m e x e m p la r d a e s p é c ie . T a m b é m p a ra
c o m p a r a r as e s p é c ie s u m a s c o m as o u tra s e o rd e n á -la s s e g u n d o u m a e s c a la p u d e r a m
ser p o s tu la d a s d e te r m in a d a s m e d id a s d e p e rfe iç ã o . M a s o q u a d r o se m o d ific a q u a n d o se
a d m ite q u e as e s p é c ie s p o s s u e m e s ta b ilid a d e a p e n a s re la tiv a , e q u e e s ta e s ta b ilid a d e n ã o
é o u tra co is a s e n ã o o te m p o r á r io e q u ilíb rio e n tre as fo rç a s q u e d e m a n e ira g e ra l c a r a c te r i­
z a m u m a e s tru tu ra c o m o b e m -s u c e d id a . D e n tro d e s ta v is ã o , c a d a e s tru tu ra c o n c re ta re ­
p re s e n ta u m a e x p e riê n c ia n o d r a m a d a a d a p ta ç ã o , e e m p rin c íp io es tá a b e rta a re v is õ e s
im p re v is ív e is q u e , se le v a d a s s u fic ie n te m e n te a d ia n te , p o d e m re s u lta r e m a lg o q u e já n ã o
p o d e se r c o n s id e ra d o c o m o re a liz a ç ã o m a is p e rfe ita d e u m m o d e lo o rig in a l, m a s te m q u e
ser v is to c o m o u m a e s p é c ie n o v a .
so resulta do infortúnio, de que a ascensão procede do acaso.fA teoria ain­
da terá que mostrar que as “máquinas” orgânicas infinitamente com ple­
xas e maravilhosamente subtis, e sua série ascendente, podem realmente
ser explicadas a partir destes pressupostos.

Não é nossa tarefa responder sobre os fatos que realmente ocorreram,


mas podemos formular explicitamente o que na teoria se encontra implíci­
to. A formabilidade passa a ser aqui instabilidade, e nós nos deparamos
com a tarefa de resolver o enigma de esta última deixar a impressão de pos­
suir criatividade. Pois se é verdade que o sistema genético é o transmissor
da hereditariedade, então a estabilidade - condição para uma fiel transmis­
são - há de ser sua virtude mais essencial. Mutações, neste caso, são uma
perturbação da estabilidade, prejudicando a fidelidade da transmissão.
Pode-se presumir que a perturbação deve-se a um fator externo (por exem­
plo, à radiação) que conseguiu romper as barreiras estabilizadoras do siste­
ma, e seu efeito, quando considerado a partir do próprio sistema, nada mais
é do que uma pane mecânica.IComo se trata de uma avaria sofrida pelo sis­
tema regulador de um organismo futuro, ela há de resultar em algo que do
ponto de vista do padrão original só pode ser considerado com o malforma­
ção. Por mais que casualidade possa ser “útil”, com o desvio da norma ela é
“patológica”. Então, com o avarias semelhantes do mesmo sistema genéti­
co sempre de novo ocorrem nas gerações subseqüentes, a acumulação de
tais deformações, sob o regime premiador da seleção, pode resultar em um
padrão basicamente novo e enriquecido: mas o “enriquecimento” não dei­
xaria de ser a proliferação de uma excrescência na simplicidade original, um
fracasso da disciplina formal, com o beneplácito da seleção natural multipli­
cado por sempre novas repetições. E com isto o alto grau de organização
atingido por qualquer animal ou pelo ser humano se manifestaria com o a gi­
gantesca monstruosidade em que veio a transformar-se a ameba original ao
longo de uma longa história de enfermidades.JPor mais tendencioso que isto
possa parecer, outro não pode ser o quadro enquanto a mutação (e o que
quer que possa contribuir também para a modificação genética) for consi­
derada simplesmente com o um acidente caprichoso, cujo aspecto danoso
ou benéfico (e o danoso é de longe a regra geral) só é decidido mais tarde
na loteria da seleção natural, isto é, a partir de fora, por meio da aprovação
do ambiente (exceto quando a modificação afeta a capacidade de viver). De
acordo com este modelo, que reflete o estado conceituai da genética con­
temporânea, na verdade toda forma “superior” é a forma anormal, uma va­
riedade que em si não se diferencia da degeneração de formas “inferiores”,
mas uma variedade da qual ficou comprovado que possui um valor diferen­
ciado de sobrevivência. Com esta conclusão extrema do darwinismo, de re­
pente nós nos vemos colocados diante da questão de saber se uma biologia
mecanicista realmente é capaz de fazer justiça ao fenômeno da vida.
4. O novo dualismo: gérmen-soma

Procuremos formular esta pergunta de uma maneira ainda mais exa­


cerbada, com a seguinte consideração: ao combinar o darwinismo com a
genética moderna, combinação que constitui o cerne da teoria atual, um
novo modelo dualista substitui na interpretação da vida todo dualismo ante-
ror. Não se trata, com o à primeira vista poderia parecer, do dualismo de or­
ganismo e ambiente - este par constitui antes um sistema de interação -,
mas sim o dualismo gérm en-som a, onde o som a (o organismo atual) é ele
próprio parte do “ambiente”, ou seja, constitui o ambiente imediato para o
plasma germinal, o intermediário por onde os efeitos do ambiente mais am­
plo passam para a existência deste plasma. Mas estes efeitos, na medida
em que são transmitidos através da história de vida do som a , consistem
apenas na alternativa de admitir ou não admitir o germe para sua reprodu­
ção (isto é, para que continue a existir com o germe), ficando a última possi­
bilidade excluída. Com isto surge dentro do próprio terreno materialista uma
curiosa paródia do modelo cartesiano de duas substâncias que não se co­
municam. A teoria de Weissmann da continuidade do plasma germinal é a
expressão mais clara deste novo dualismo biológico. Tem os aí, por um
lado, o automatismo cego de uma história germinal que se desenvolve na
obscuridade do subsolo, onde não penetra nenhum raio de luz proveniente
do mundo superior; e por outro o mundo superior do som a , que vai ao en­
contro do mundo em categorias vitais, persegue o caminho que lhe foi tra­
çado, combate suas batalhas, traz em si o selo de suas vitórias e derrotas - e
tudo isto sem quaisquer outras conseqüências para o protegido oculto a
não ser sua subsistência ou sua eliminação. As ocorrências na história do
gérmen, consistindo de mutações e combinações, acontecem inteiramente
separadas das ocorrências da história do som a , sem que sofram qualquer
influência por parte de todo o drama da vida, que se desenrola no claro, em­
bora o determinem ao longo das próximas encarnações. Sob este ponto de
vista, o indivíduo macroscópico, com seu curto período de vida, manifes­
ta-se de alguma forma com o um rebento periódico do plasma germinal que
permanece, por este impelido sucessivas vezes para cima a fim de ofere­
cer-lhe o “ambiente” que o alimenta e que o protege: toda a complexidade
dos portadores temporários (com seu séquito de prazer e sofrimento) é o
cada vez mais custoso desenvolvimento desta função de serviço. Assim a
imortalidade platônico-aristotélica do gênero é substituída pela imortalidade
do plasma germinal, com o um ser contínuo em si mesmo; e, numa inver­
são da fórmula clássica, dever-se-ia dizer que o desenvolvido existe em vista
do não-desenvolvido, a árvore em vista da semente.

V - Triunfo e crise do materialismo na teoria da evolução

Em um aspecto o triunfo festejado pelo materialismo carrega em si o


germ e de sua própria superação. A importância metafísica do darwinis-
vir?

mo consistiu no relativo êxito de sua tentativa - imposta pelo com pro­


misso com a ciência com o tal - de confiar unicamente ao automatismo
da natureza material a produção das formas vitais ramificadas e ascen­
dentes. Mas ao libertar-se deste modo da necessidade dualista de contar
com um princípio criador distinto do criado, o monismo, que desta ma­
neira chegava à hegemonia, onerou a matéria, e agora somente a maté­
ria, com todo o peso de uma tarefa de que o dualismo a havia deixado li­
vre: a de, além das organizações físicas, dar conta da origem do espírito.
Pois os atributos espirituais pertencem ao número daqueles “caprichos”
que se manifestam no jo go mecânico das mutações, e esta doutrina g e ­
nética impiica em uma visão mais fundamental da relação entre espírito
e corpo. Sobre esta relação, os primeiros filósofos da ciência moderna
(embora com exceções tão significativas quanto Hobbes e Gassendi) ha­
viam concordado com uma fórmula dualística que correspondia aos
seus objetivos, e só depois de a ciência haver colhido todas as vantagens
deste dualismo foi que na doutrina da evolução universal ela os trocou
por um monismo materialista.

1. Vantagens e desvantagens do d u a lism o para


a ciên cia n atural

Recordemos quais foram os motivos que levaram a ciência natural a


primeiramente aprovar uma determinada forma de dualismo com o a
moldura ontológica mais adequada para os seus objetivos, a acom o­
dar-se na metade do todo que lhe era mais conveniente, e por fim a elimi­
nar a outra metade com o supérflua. Mais uma vez temos que fazer refe­
rência a Descartes.fA vantagem científica do dualismo consistia, para o
dizermos em poucas palavras, em que o novo ideal matemático do co­
nhecimento natural estaria melhor servido, ou só estaria bem servido,
com uma nítida separação entre os dois reinos que encarregasse a ciên­
cia natural de ocupar-se com uma res extensa pura, livre de todos os ca­
racteres ontológicos não m atem áticos! Que nem toda a realidade era
deste tipo desejado, já havia sido compreendido por Galileu: sua doutrina
da mera subjetividade das “qualidades secundárias” (expressão que pro­
cede de Locke) deu início ao processo de alijar da realidade física as qua­
lidades indesejadas. Mas os próprios sujeitos são entidades objetivas que
fazem parte da realidade, e a exclusão destas qualidades permaneceu in­
completa, na medida em que o lugar em que foram descarregadas conti­
nuava a fazer parte do mundo a ser descrito pela ciência natural. O dua­
lismo cartesiano parecia então ser a resposta perfeita a esta dificuldade.
Estávamos aqui em presença de uma substância cujo atributo essencial
e único é a extensão - cujo conhecimento, portanto, consiste essencial­
mente em medi-la e descrevê-la m atematicamente; e separada dela, e
totalmente independente, uma outra substância, cujo atributo essencial
r jnico é a consciência (c o g ita tio ). A maneira adequada de conhecer e
:escrever esta última é muito menos clara, mas o interesse por ela tam-
:em era muito menor7; o importante era mantê-la separada da outra
sustância. O isolamento da res cogitans constituiu o método mais eficaz
rsra assegurara com pleta separação ontológica entre a realidade exte-
* : : e tudo quanto não possuía extensão nem podia ser medido. Assim
ts:a divisão não apenas estabeleceu a realidade exterior com o um cam-
fechado onde a análise matemática podia ser empregada, mas ofere-
:eu também a justificação metafísica para o materialismo mecanicista
''.condicional da ciência natural moderna8. É preciso sublinhar que a jus-
iricativa encontrada consistiu em atribuir e reconhecer aos caracteres ex-
^uídos não-extensos e não-mensuráveis uma esfera separada própria, e
~.ão em negar sua realidade; consistiu, em outras palavras, no dualismo, e
~.ão no monismo, e extinguiu-se mais tarde automaticamente quando se
=òandonou o com plemento espiritual: deixado entregue a si mesmo, o
materialismo transformou-se em absurdidade.
Mão obstante, as conhecidas dificuldades teóricas inerentes ao dua-
:smo cartesiano tornaram este abandono inevitável. Seu forte do ponto
ze vista de uma ciência do mundo corporal, isto é, a ausência de relações
causais entre as duas ordens do ser, constituiu ao m esm o tempo sua fra­
queza mortal (cuja clara confissão é o “ocasionalism o” ). Em conseqüên­
cia disto, o dualismo cartesiano dividiu-se em duas alternativas; e en­
quanto o idealismo de Berkeley e a monadologia de Leibniz fizeram sua
cusada experiência com um monismo da res co g ita n s , a ciência natural
não encontrou outra alternativa senão decidir-se pelo lado da “ matéria” .
Por mais que a ciência natural deseje considerar sua escolha com o uma
questão unicamente de método, escapando assim a uma confessio fi-
dei, não deixam de ser encontrados entre seus objetos aqueles que a for­
çam a levantar a questão do materialismo no plano ontológico. Tais obje­
tos são os organismos vivos, este misterioso ponto onde as duas subs­

7 . Ma h is tó ria d a filo s o fia D e s c a rte s fig u ra s o b re tu d o c o m o o d e s c o b rid o r d o ego cogito ,


isto é, c o m o o fu n d a d o r d a filo s o fia d a c o n s c iê n c ia , q u e v e io a d e s e m b o c a r n o id e a lis m o .
M a s q u a n d o le v a m o s e m c o n ta a d e d ic a ç ã o q u a s e e x c lu s iv a d a c iê n c ia d a n a tu re z a à fu n ­
d a m e n ta ç ã o m e ta fís ic a e m e to d o ló g ic a , p o d e m o s s u s p e ita r q u e o is o la m e n to d a res co­
gitans fo i e m p r e e n d id o m a is e m fa v o r d a res extensa d o q u e p o r c a u s a d e la m e s m a .
8 / O fa to d e ta n to o id e a lis m o q u a n to o m a te r ia lis m o te r e m p o d id o s u rg ir d o c a rte s ia n is -
m o é b a s ta n te s ig n ific a tiv o p a ra es ta s d u a s p o s iç õ e s . S ig n ific a (c o m o se m o s tro u n o I o
c a p ítu lo ) q u e a m b o s s ã o e s s e n c ia lm e n te , e n ã o a p e n a s c ro n o lo g ic a m e n te , p o s iç õ e s
p ó s -d u a lis ta s - n a v e r d a d e p ro d u to s d e d e c o m p o s iç ã o d o e s tá g io fin a l d o d u a lis m o , s e m ­
pre a c o m p a n h a d o s p e la s o m b r a d e s u a o rig e m . O m a te r ia lis m o p ré -d u a lis ta d a A n tig ü i­
d a d e c o n s titu i u m p a ra le lo im p e r fe ito a o m a te r ia lis m o m o d e rn o : e le p o s s u i o e s ta d o d e
in o c ê n c ia a n te rio r à q u e d a , u m a ve z q u e s u rg iu a n te s q u e a d e s c o b e rta d o e s p írito c o m o
d is tin to d a n a tu re z a - u m a re a liz a ç ã o d o d u a lis m o - d e ix a s s e s u a m a r c a in d e lé v e l n o p a ­
n o ra m a o n to ló g ic o .^
tâncias de Descartes se encontram, embora ele próprio não admitisse
este “encontro” a não ser em um único caso.

2. Os a u tô m a to s a nim a is de D escartes

Não podemos deixar de mencionar aqui o aspecto mais extremado da


teoria mecanicista esboçada por Descartes sobre o corpo animal, um as­
pecto que só lhe foi possível defender sob a proteção do dualismo. Os au­
tômatos animais, embora inteiramente determinados pelas leis da maté­
ria, são no entanto construídos de maneira que seu funcionamento (ou
comportamento) leva o observador humano a pensar em uma interiorida­
de análoga à que lhe é própria, sem que no en ta nto eles possuam esta
interioridade. Todos os sinais de prazer e de dor que se manifestam nos
animais são fenômenos enganosos, isto é, só são considerados assim por
uma injustificada conclusão que nós costumamos tirar da ligação que em
nosso caso sempre existe entre estes comportamentos corporais e deter­
minados sentimentos. Supomos a presença destes últimos quando obser­
vamos os primeiros, mas com referência aos animais esta suposição não
tem fundamento, noutras palavras, eles são apenas corpo9. A vantagem
desta tou r de force consistia em que ela limitava a interioridade na nature­
za ao caso solitário do ser humano. Por mais misteriosa que fosse, ela ape­
nas constituía a exceção a uma regra de validade universal, deixando o
restante da natureza viva para a análise puramente mecânica. Depois de
desvincularem o “corpo” em geral de toda relação com o espírito, e de dei­

9 . C f. D e s c a rte s : Discours de la méthode , p a rte V; e ta m b é m Traité de Vhomme , e n u ­


m e ro s a s p a s s a g e n s d e s u as c a rta s . N e s ta s , p o r e x e m p lo : “T ã o a c o s tu m a d o s e s ta m o s a
im a g in a r q u e os a n im a is irra c io n a is s e n te m d a m e s m a m a n e ira q u e n ó s [h á b ito e s te p ro ­
v o c a d o p e la “s e m e lh a n ç a e n tre a m a io r ia d a s a ç õ e s dos a n im a is e as n o s s a s p ró p ria s
a ç õ e s ”: C a r ia a um desconhecido, d e m a r ç o d e 1 6 3 8 ], q u e a c h a m o s d ifíc il lib e rta r-n o s
d e s ta o p in iã o . M a s se e s tiv é s s e m o s ig u a lm e n te a c o s tu m a d o s a v e r n e le s a u tô m a to s q u e
im ita m p e rfe ita m e n te as n o s s a s a ç õ e s q u e c o n s e g u e m im ita r, e se os c o n s id e rá s s e m o s
a p e n a s c o m o a u tô m a to s , n ã o te r ía m o s a m ín im a d ú v id a d e q u e os a n im a is irra c io n a is
ta m b é m sã o a u tô m a to s ” (Carta a Mersenne d e 1 3 d e ju lh o d e 1 6 4 0 ) . J á e m u m a c a rta
a n te rio r, d e 11 d e ju n h o d e 1 6 4 0 , D e s c a rte s h a v ia e s c rito a o p a d re q u e o c o n te s ta v a : “E u
n ã o e x p lic o o s e n tim e n to d a d o r s e m a p e la r p a ra a a lm a [...] m a s e x p lic o d e s ta m a n e ira
to d o s os m o v im e n to s e x te rio re s q u e e m n ó s a c o m p a n h a m e s te s e n tim e n to : só e s tes é
q u e n ó s e n c o n tr a m o s n o s a n im a is , e n ã o a d o r e m s e n tid o p r ó p r io ”. A o u s a d ia d e s ta ú lti­
m a a firm a ç ã o c o n s e g u e d e c e rta fo r m a d e s a rm a r-n o s . N ã o c o n s e g u im o s e v ita r a p e rg u n ­
ta se fo ra d o c a s te lo e n c a n ta d o d a te o ria e le a c re d ita v a n a v e r d a d e d o seu ra c io c ín io , p o r
e x e m p lo q u a n d o e fe tiv a m e n te lid a v a c o m a n im a is . M a s D e s c a rte s s u s te n to u e s ta d o u tri­
n a a té o fim - cf. Passions de 1’âme, I p a rte , s e ç ã o 5 0 (p u b lic a d a e m 1 6 5 0 , trê s m e s e s a n ­
tes d e su a m o rte ; v e r a in d a a d e ta lh a d a e x p o s iç ã o n a c a rta a o M a r q u ê s d e N e w c a s tle , d e
n o v e m b ro d e 1 6 4 6 ). O m a te r ia l e n c o n tra -s e m a g n ific a m e n te re u n id o e m L e o n o ra C o h e n
R o s e n fe ld . From beast-machine to man-machine: animal soul in french letters from
Descartes to la Mettrie. N o v a Y o r k 1 9 4 1 .
xarem a ciência do corpo liberada de toda obrigação de ocupar-se com
os fenômenos do espírito, Descartes e os cartesianos puderam despreocu-
padamente tratar o organismo apenas com o mais um exemplo de res ex­
tensa. Assim, ao preço unicamente de um rebelde problema metafísico,
conseguiu-se apresentar com o aceitável a purificação do mundo da maté­
ria de toda e qualquer mistura com o espírito: pois os direitos do espírito ou
da interioridade ainda ficavam preservados, sendo atribuídos a uma subs­
tância à parte, com seu campo independente de fenômenos e com suas
leis próprias - mesmo sua esfera ficando restrita agora à esfera da cons­
ciência humana. O dualismo, admitido com decisão em um único caso,
deixava ao materialismo a consciência tranqüila em todos os demais ca­
sos, e o enigma não resolvido do ser humano garantia a essência misterio­
sa, se bem que sem sentido metafísico, de toda a esfera biológica extra-hu-
mana (cf. o apêndice a este capítulo).

3. A ruptura da o n to lo g ia cartesiana p e lo e v o lu cio n is m o

Torna-se fácil ver que precisamente o êxito da empresa monista que


este compromisso com o dualismo ajudara a criar levou o próprio empre­
endimento da graça salvadora a perder aquilo que por algum tempo o du­
alismo pudera conferir-lhe. Pois aquele êxito foi alcançado pela teoria evo-
lucionista, e foi justamente a evolução que veio a destruir a posição especi­
al do ser humano, posição esta que por sua vez havia dado carta branca
ao tratamento cartesiano de todo o resto. Desde então a continuidade de
procedência que unia o ser humano ao mundo animal fez com que preci­
samente neste ponto da corrente global da vida se tornasse impossível
considerar seu espírito, assim com o os fenômenos espirituais em geral,
com o a irrupção abrupta de um princípio ontologicamente estranho. Com
a última cidadela do dualismo caiu também o isolamento do ser humano,
e sua própria evidência voltou a ficar novamente disponível para a inter­
pretação daquilo a que ele pertencia. Pois se já não era mais possível con­
siderar o espírito com o em descontinuidade com a história pré-humana da
vida, então, em virtude da mesma lógica, não existia mais qualquer razão
para negar o espírito em doses proporcionais às formas ancestrais mais
próximas ou mais afastadas, e com isto a nenhum estágio da animalidade:
a evidência do entendimento ingênuo foi trazida de volta pela teoria mais
avançada - se bem que contrariando sua tendência própria.
{ Desta maneira o evolucionismo minou a construção de Descartes
com mais eficiência do que qualquer crítica metafísica seria capaz de
fazê-lo. Ma grande indignação pelo ultraje que a doutrina da descendência
animal teria feito à dignidade metafísica do ser humano, deixou-se de ver
que, segundo o mesmo princípio, devolvia-se ao reino universal da vida
um pouco de sua dignidade. Se o ser humano é aparentado com os ani­
mais, então os animais também são aparentados com o ser humano, e em
diferentes graus portadores daquela interioridade de que, com o o mais
avançado de seu gênero, o ser humano tem consciência. Após a contra­
ção, forçada pela fé cristã na transcendência e pelo dualismo cartesiano, o
reino da “alma”, com seus atributos do sentir, tender, sofrer e gozar, voltava,
graças ao princípio da gradação constante, a estender-se, a partir do ser hu­
mano, a todo o reino da vida. O que por Spinoza10 e Leibniz fora estabeleci­
do com o postulado ontológico da continuidade qualitativa, que admite na
“percepção” infinitas gradações de claridade e sombra, passou, através do
evolucionismo, a ser um complemento lógico à genealogia científica da
vida11.] O mais elevado só poderia ser atingido a partir do mais baixo pas­
sando por todos os degraus intermediários, quer estes fossem passagei­
ros quer tenham permanecido em representantes próprios. Em que ponto
do enorme alcance desta série é possível então, com fundamento, se passar
um risco, com um “zero” de interioridade do lado de lá e um “um” inicial do
lado de cá? Onde poderá ser colocado o início da interioridade a não ser no
início da vida? Mas se a interioridade é co-extensiva com a vida, então uma
interpretação puramente mecânica da vida, ou seja, uma interpretação em
conceitos de mera exterioridade, não pode ser suficiente. Os fenômenos
subjetivos escapam à quantificação, e com isto mesmo à atribuição de “e-
quivalentes” externos. Não se pode, por exemplo, substituir o apetite, com o
causa motriz de comportamentos, pelo impulso físico, nem o instinto de au-
toconservação pela força da inércia, e os primeiros não podem ser medi­
dos em termos dos segundos. O medo da morte é uma grandeza absoluta
que pode ser sentida de maneira mais ou menos aguda (de acordo com o
nível geral da capacidade sensitiva), mas nos diferentes casos ele não está
presente em quantidades maiores ou menores de uma quantidade mensu­
rável, mesm o que as forças de ação de que este temor dispõe possam ser
mensuravelmente maiores ou menores.
|Desta forma sucedeu que no momento em que o materialismo alcan­
çou sua plena vitória, por sua própria lógica interna o verdadeiro instru­
mento desta vitória, a “evolução” , rompeu os limites do materialismo e
trouxe de volta as fronteiras ontológicas - no exato momento em que pa­
recia que a questão já estava decidida.jE verifica-se que o darwinismo,
que mais do que qualquer outra doutrina é responsável pela visão evolu-
cionista que agora domina toda a realidade, foi um acontecimento pro­
fundamente dialético. Isto torna-se cada vez mais visível, na medida em
que suas doutrinas passam a ser filosoficamente assimiladas. Todas as

1 0 . C f. m e u a rtig o “S p iz o n a a n d th e T h e o r y o f O r g a n is m ” , e m Journal o f the History o f


Philosophy 3; 1, 1 9 6 5 , p . 4 3 -5 7 .
1 1 . M e s m o a h ie ra rq u ia b io ló g ic a d o s “tip o s d e a lm a ” , d e A ris tó te le s , é d e c e rta fo r m a res­
ta u ra d a so b a fo r m a d e u m a s e q ü ê n c ia g e n e a ló g ic a : o “p o s te rio r” re v o lu c io n á rio c o in c id e
e m la rg a e s c a la c o m o “s u p e rio r” a ris to té lic o .
revisões atuais da ontologia tradicional (não importando o êxito que pos­
sam até o presente haver alcançado) partem de maneira quase axiomáti-
ca da concepção do ser com o um vir-a-ser, no fenôm eno da evolução
cósmica buscando a chave para poder superar as velhas alternativas.

Apêndice - A importância do cartesianismo para a


teoria da vida

O dualismo cartesiano levou a especulação sobre a natureza da vida


a um beco sem saída: quanto mais compreensível, de acordo com os
princípios da mecânica, tornou-se na res extensa a relação entre estrutu­
ra e funcionamento - tanto mais perdeu-se na bifurcação a conexão en­
tre estrutura-mais-função e sentimento ou experiência (m odos de ser da
res c o g ita n s ), e com isto o próprio fato da vida se torna incompreensível
no exato mom ento em que a explicação de sua realização corporal apa­
rece com o garantida. Este beco sem saída tornou-se manifesto no oca-
sionalismo: seu violento recurso a uma “sincronização” divina do mundo
exterior com o interior (este último negado aos animais) padecia não
apenas de uma extrema artificialidade, enfermidade comum a todas as
construções ad h o c deste tipo, mas nem sequer por este elevado preço
ele conseguiu atingir os objetivos teóricos estabelecidos segundo seus
próprios critérios. Pois a máquina animal, c om o qualquer outra m á­
quina, apresenta, além da questão do “com o ” , a questão do “para quê”
do seu funcionamento - da finalidade para a qual seu construtor a cons­
truiu12. Seu funcionamento, por mais que careça de qualquer teleologia
imanente, tem que estar a serviço de algum objetivo, e este objetivo não
pode deixar de ser o objetivo de alguém. Pode ser que este objetivo seja
diretamente) a própria máquina, com o efetivamente Descartes susten­
tou, ao explicar que o efeito do funcionamento do autômato orgânico era
sua autoconservação. Neste caso o objetivo de seu funcionamento seria
a existência da máquina com o tal - quer com o objetivo final em si mes­
ma, quer a serviço de alguma outra coisa. No primeiro caso a máquina
teria que ser mais do que uma máquina, pois uma máquina não pode
desfrutar de sua própria existência. Mas com o, de acordo com o rígido
conceito cartesiano da res extensa, ela não pode ser mais do que uma
máquina, seu funcionamento ou sua existência teria que servir a um ob­
jetivo diferente dela mesma. No tem po de Descartes os autômatos ser­
viam mais para o entretenimento (do que para o trabalho). Mas não fica­
va bem ver-se a raison d ’être, a razão de ser do mundo vivo, em que

1 2 . 0 c o n c e ito d e “m á q u in a ”, e s c o lh id o p o r D e s c a rte s p a ra res trin g ir-se e s trita m e n te a o


c o n c e ito d e c a u s a e fic ie n te , n ã o d e ix a n o e n ta n to d e se r u m c o n c e ito fin a lis ta , m e s m o q u e
2 c a u s a fin a l n ã o se ja m a is in te rio r à co isa c o m o u m m o d o d e o p e ra r q u e lhe é p ró p rio , m a s
he seja e x te rio r, c o m o u m p ro je to p ré v io .
Deus mesmo, ou os espectadores celestes, se distraíssem com os proble­
mas de suas habilidades mecânicas - ainda mais que a mera com plexi­
dade da disposição não gera nova qualidade, e portanto nada acrescenta
à monótona uniformidade do substrato simples que pudesse enriquecer
o espectro do ser. Pois a qualidade com o tal (assim ensinava Descartes),
para além das destinações primitivas do extenso em si, é uma criação
subjetiva da sensibilidade, a confusa maneira com o a quantidade se
apresenta a um espírito imperfeito; e os espíritos puros dela não partici­
pam, por carecerem da sensibilidade e do privilégio da confusão - e com
isto do privilégio de iludir-se com suas possibilidades de prazer. E no que
se refere ao prazer intelectual - mesm o ele, privado por idêntica razão da
tensão da descoberta, não passaria de um pálido prazer para aqueles
espíritos puros, ao con siderarem o que para inteligências suficiente­
mente grandes nada mais é do que um exem plo sempre repetido das
mesmas e poucas verdades elementares (em última análise triviais).

Com isto só restava a velha idéia - tanto estóica com o cristã - de que
plantas e animais existem por causa do ser humano. Efetivamente, uma
vez que a existência de um mundo vivo é condição necessária para a
existência de cada um dos seus membros, bastaria que um só de seus
membros (= gêneros) fosse um fim em si m esm o para justificar a existên­
cia do todo. No estoicismo o ser humano fornece este fim pela posse da
razão, que o coloca no ponto mais alto da escala terrena do ser, que além
disto também possui um fim em si mesmo em todos os seus graus (= fim
com o o melhor entre muitos que, nos seus diferentes graus, são todos
eles bons); no cristianismo o ser humano representa o fim por possuir
uma alma imortal que faz dele a única imagem de Deus na criação (= fim
com o o único que importa para o todo); e o dualismo cartesiano radicali­
zou esta última posição, ao fazer do ser humano o possuidor único de
qualquer interioridade ou “alm a” de qualquer espécie - e com isto o úni­
co ser a que tem sentido atribuir-se um “fim ” , já que só ele é capaz de se
propor fins. Toda a vida restante, com o produto da necessidade física,
pode ser considerada com o um meio para o ser humano.

Esta idéia tradicional, entretanto, que com suas pretensões antropo-


cêntricas nunca foi uma boa idéia, mesmo enquanto possuiu algum senti­
do, o perdeu inteiramente no novo contexto dualista e ocasionalista. Pois o
ser humano, pretenso usuário da criação viva, isto é, de todos os outros
mecanismos orgânicos, era agora ele próprio uma inexplicável e externa
combinação de espírito e corpo, onde não se podia com clareza enxergar
qualquer importância do corpo para a existência e a vida do espírito (e
também vice-versa, evidentemente). Por isso, mesm o podendo-se mostrar
que a existência do mundo orgânico é necessária para a existência do cor­
po humano, com o de fato é, não se podia mostrar que a existência preci­
samente deste corpo seria necessária para a existência do “ser humano”
com o eu pensante13. Além do mais, mesm o o que distingue o corpo hu­
mano dentro do reino animal, isto é, o ser pelo menos em parte um órgão
do espírito - distinção esta pela qual Descartes estava disposto a assumir
o contorsionismo intelectual da teoria da glândula pineal - foi reduzida a
nada pela ficção ocasionalista de que o corpo humano é inteiramente um
autômato, não menos que todos os demais organismos. Com isto a exis­
tência de todo o reino da vida tornou-se incompreensível, tanto no tocante
ao sentido e fim com o também à sua origem e ao seu espírito criador. Um
enorme espetáculo de enganosos “com o se” fez emudecerem todas as
perguntas sobre o verdadeiro porquê no comportamento das coisas 14.
Tudo isto leva-nos a constatar que a principal debilidade, ou m esm o
o absurdo desta doutrina, consiste em que ela nega à realidade orgânica
sua principal e mais patente característica, isto é, a propriedade de que
em cada uma de suas individuações ela demonstra uma tendência pró­
pria à existência e à realização, ou o fato de que a vida se quer a si mes­
ma. Noutras palavras: ao desterrar-se do sistema conceituai da nova físi­
ca o velho conceito de tendência, juntamente com o espiritualismo racio-
nalista da nova teoria da consciência, o reino da vida ficou privado de seu
lugar no plano global das coisas. Com o exemplo para a força coercitiva
dos motivos que se encontram por trás desta concepção, serve o fato de
que, apesar de toda a sua artificialidade, ela conseguiu afirmar-se contra
o testemunho indiscutível de nossa experiência psicofísica, que em cada
um de seus atos contradiz eloquentemente a separação dualista. O dua­
lismo cartesiano criou o enigma de com o um ato da vontade é capaz de

1 3 . D e s ta s u p e rflu id a d e te ó ric a , B e r k e le y te r m in o u p o r c o n c lu ir q u e os c o rp o s n ã o p a s ­
s a m d e re p re s e n ta ç õ e s e s p iritu a is ( perceptions).
1 4 . V a le a p e n a a te n ta r-s e p a ra a p ro fu n d a m u d a n ç a p o r q u e p a s s o u o c o n c e ito d e “a lm a ”:
ela d e ix o u d e se r o p rin c íp io d a v id a , e p o rta n to da a tiv id a d e , e tra n s fo rm o u -s e e m u m p rin ­
c íp io d a p u ra s u b je tiv id a d e - m a is u m a d im e n s ã o d o q u e u m p rin c íp io - , e c o m o tal e m
a lg o q u e e s s e n c ia lm e n te c a re c e d e p o d e r. E n is to q u e d e v e m o s p e n s a r q u a n d o c o n s id e ra ­
m o s as d u a s tes es c a rte s ia n a s in te rlig a d a s e n tre si, d e q u e a “v id a ” é u m fa to u n ic a m e n te
d a fís ica , e a “a lm a ” u m fa to u n ic a m e n te d o h o m e m ; d e a c o rd o c o m a p rim e ira te s e , a v id a
é u m c o m p o r ta m e n to p a rtic u la r d o c o rp o e m c o n s e q ü ê n c ia d e u m a e s tru tu ra c o rp o ra l p a r­
tic u la r q u e d is tin g u e u m a c lass e d e o b je to s n a n a tu re z a , a dos a u tô m a to s n a tu ra is ; d e a c o r­
d o c o m a s e g u n d a te s e , a “a lm a ” - e q u ip a r a d a à c o n s c iê n c ia , q u a lq u e r q u e se ja a e s p é c ie
d e s ta , q u e r se ja a c a p a c id a d e d e se n tir, d e d e s e ja r, d e p e rc e b e r o u d e p e n s a r (anima =
mens = cogitatio) - n ã o é e x ig id a p a ra n e n h u m a e s p é c ie d e fu n ç ã o fís ica , e p o r c o n s e g u in ­
te ta m b é m n ã o p a ra a v id a ; ela es tá a u s e n te n o s a n im a is e p re s e n te n o h o m e m , m a s m e s ­
m o n o c a s o d e ste n ã o é u m p rin c íp io d e “v id a ”, q u e d e q u a lq u e r m a n e ira p e rm a n e c e u m
fe n ô m e n o e s tru tu ra l-c o m p o rta m e n ta l. C f. a c a rta d e D e s c a rte s a R eg iu s, d e m a io d e 1 6 4 1
(A d a m -T a n n e r y 111, 3 7 0 s s ), o n d e e le e x p re s s a m e n te reje ita a id é ia tra d ic io n a l d a s d iv e rs a s
e s p é c ie s d e a lm a s - a lm a v e g e ta tiv a , a lm a se n s itiv a , a lm a ra c io n a l - , e a firm a q u e as d u a s
p rim e ira s , a c a p a c id a d e d e c re s c e r e d e lo c o m o v e r-s e , q u e o h o m e m c o m p a r tilh a c o m os
a n im a is , é “ío to genere d iv e rs a d o e s p írito ” e “n ã o é o u tra co isa a n ã o s e r u m a c e rta o rd e ­
n a ç ã o d a s p a rte s d e seu c o rp o ”.
m over um membro, já que este, sendo parte do mundo extenso, só pode­
ria m over-se quando o m o vim en to lhe fosse transm itido por outro
corp o15. E, não obstante: depois de havermos aprendido pela teoria que
isto não pode acontecer, nós continuamos a sentir que som os capazes
de movimentar nossos braços “à vontade”. A o mesmo tempo que nega­
va validade a esta certeza primária, a teoria não podia deixar de expli-
cá-la. A “violência” da especulação metafísica depois de Descartes, que
desafiava a razão comum mais do que qualquer outra teoria anterior, e
por isso mesmo exigia uma maior inventividade para executar com êxito
sua coreografia, pode ser explicada em parte pela enormidade do que ela
tinha que defender16. O “problema psicofísico” - o preço a pagar pela re­

1 5 . E s te p rin c íp io q u e n e g a a e x p e riê n c ia , e q u e p a s s o u a se r a x io m á tic o p a ra a te o ria , foi


m a is c o n c is a m e n te fo r m u la d o p o r S p in o z a : “O c o rp o n ã o p o d e d e te r m in a r a a lm a a p e n ­
sar, n e m o e s p írito d e te rm in a r o c o rp o a o m o v im e n to o u a o re p o u s o o u a q u a lq u e r o u tra
co is a , se é q u e e x is te o u tra c o is a ” {É tic a III, te s e 2 ). S p in o z a p re s s u p u n h a q u e isto e ra u m a
p ro p o s iç ã o q u e p re c is a v a ser p ro v a d a a p a rtir d a s p rim e ira s v e rd a d e s (e q u e e le te n to u
p r o v a r ). M a s n a v e rd a d e a p ro p o s iç ã o é u m p o s tu la d o , e foi e m vista d e la q u e as “p rim e ira s
v e r d a d e s ” fo r a m c o n c e b id a s - o u m a is p re c is a m e n te , e m vista d e su a s e g u n d a m e ta d e ,
q u e n o fu n d o era o q u e r e a lm e n te im p o r ta v a . O a r g u m e n to rea l d e v e ria s e r o s e g u in te : se
ex istisse u m a in te ra ç ã o e n tre c o rp o e e s p írito , n ã o p o d e ria h a v e r n e n h u m a c iê n c ia d a n a tu ­
reza; m a s te m q u e h a v e r u m a c iê n c ia d a n a tu re z a : ergo n ã o p o d e h a v e r n e n h u m a in te ra ­
ç ã o e n tre c o rp o e e s p írito . - O c o m p le m e n to p o s itiv o à reg ra n e g a tiv a m o s tra o n d e se e n ­
c o n tra s u a v e rd a d e ira a p lic a ç ã o : “U m c o rp o q u e se e n c o n tra e m m o v im e n to o u e m re p o u ­
so d e v e te r sido p o s to e m m o v im e n to o u e m re p o u s o p o r o u tro c o rp o , q u e p o r su a v e z foi
d e te r m in a d o a o m o v im e n to p o r o u tro c o rp o , e a s s im p o r d ia n te , a té o in fin ito ” (ibid., le m a
3 d e p o is d a tes e 1 3 ). Pelo m e n o s n e sta a p lic a ç ã o a o m u n d o c o rp o ra l o rig o r o n to ló g ic o da
re g ra n ã o a d m ite n e n h u m a e x c e ç ã o ; e p o d e m o s a c re s c e n ta r q u e n e n h u m d o s p rin c ip a is
p e n s a d o re s d a é p o c a , a té K a n t, in c lu s iv e , q u e s tio n o u su a v a lid a d e . O s m o tiv o s q u e le v a ­
r a m a q u e es te m a is a g u d o e p e rm a n e n te te s te m u n h o d a e x p e riê n c ia c o m u m fo ss e d e c la ­
ra d o in v á lid o - isto é, q u e o m e d o o u o a m o r o u a re fle x ã o d e te r m in a m o ag ir, e p o r c o n s e ­
g u in te p o d e m s e r c a u s a de m o v im e n to d o s c o rp o s - fo r a m e x p lic a d o s n o p ró p rio c a p ítu lo :
in d e p e n d e n te m e n te d e seu d ire ito te ó ric o o u a u s ê n c ia d e d ire ito , eles c o n ta r a m c o m e n o r­
m e c o n c o rd â n c ia , e a in d a h o je e x p re s s a m a p ro fis s ã o d e fé d o s cie n tis ta s .
1 6 . E fe tiv a m e n te , n a e s p e c u la ç ã o a n te rio r n ã o e x is tia m u ita c ria tiv id a d e , e ta lv e z n ã o fo s s e
b o m p a ra a filo s o fia a p ro x im a r-s e m u ito d e la . A c ria tiv id a d e só se m a n ife s ta q u a n d o a te o ­
ria te m q u e s u s te n ta r, cu s te o q u e c u s ta r, c o m p ro m is s o s a n te rio rm e n te a s s u m id o s , c o m o
p o r e x e m p lo n o c a s o d e c e rto s p ro b le m a s le v a n ta d o s p a ra os e s c o lá s tic a s p e lo c o n flito e n ­
tre as a u to rid a d e s da re v e la ç ã o e d a ra z ã o (o u da S a g ra d a E s c ritu ra e d e A ris tó te le s ), q u e
d e a lg u m a m a n e ira p re c is a v a m se r c o n c ilia d a s . M a s e m b o ra a d o u trin a d e D e u s , d a c ria ­
ç ã o e d a re d e n ç ã o s u p e re a e x p e riê n c ia , n ã o a c o n tra d iz . F o i n o c a rte s ia n is m o q u e p e la p ri­
m e ira v e z su rg iu u m a s itu a ç ã o e m q u e a te o ria e n tra c o n s c ie n te m e n te e m c o n flito c o m a
e x p e riê n c ia ; a o e x ig ir d a te o ria u m a n o v a c ria tiv id a d e p a ra c h e g a r a u m a “re c o n c ilia ç ã o ”,
e s ta s itu a ç ã o p e rm itiu -lh e ta m b é m u m n o v o e d e s p ó tic o a b s o lu tis m o , a o d ita r-lh e su as c o n ­
d iç õ e s (u m a c o m b in a ç ã o q u e c a ra c te riz a o p e n s a m e n to d e S p in o z a e d e L e ib n iz ): a te o ria
p ô d e p e rm itir-s e u m ra d ic a lis m o c o m o n u n c a fo ra v is to a n te s . O fa to d e es te r a d ic a lis m o le­
v a r o n o m e d e “r a c io n a lis m o ” é u m a c irc u n s tâ n c ia h is tó ric a q u e e s c o n d e o e le m e n to a u to ­
c rá tic o e p e re m p tó rio d a s itu a ç ã o . A filo s o fia te m to d a ra z ã o p a ra d e s c o n fia r d a m a n e ira
d e s p ó tic a d a te o ria , e isto p o r m o tiv o s d ife re n te s d o s le v a n ta d o s p o r H u m e o u K a n t: tra ­
ta -s e d e s a b e r se o in te le c to d ita a re a lid a d e o u se lh e o b e d e c e .
volução da ciência natural - erguia-se com o um espectro por trás de to­
dos os seus esforços. Nunca a separação entre a razão e o saber imedia­
to havia chegado a tal ponto.

A o lado do enigma de nossa experiência prática, encontrava-se o


enigma dos graus de organização que o reino animal com tão grande evi­
dência manifesta, mas que claramente já não podem ser relacionados
em graus de uma interioridade que possua valor em si mesma. A nova
doutrina negava os meios para estabelecer uma relação entre a organiza­
ção física e a qualidade da vida tornada possível por esta organização: a
única coisa que a nova doutrina trouxe foi a ligação entre a organização e
o com portamento observado, isto é, a função orgânica. A riqueza de gra­
dações no reino animal, desde as estruturas mais primitivas (isto é, mais
simples) até as mais elaboradas (isto é, com plexas), não podia deixar de
ser percebida, mas tinha que permanecer desprovida de sentido. Com o
não era reconhecida nenhuma outra espécie de alma a não ser a alma ra­
cional, toda a perfeição mecânica evidenciada nos organismos animais
vinha a ser considerada com o um gigantesco logro, uma vez que um tipo
mais elevado de vida dotada de experiência não correspondia a uma
maior perfeição de realização orgânica. Desse modo, justamente a per­
feição em termos de construção e função exterior zombava de toda justi­
ficação em termos de vida vivida.

É evidente que, no tocante a estes dois enigmas, a teoria não poderia


nem levar em consideração a pura e simples ausência de qualquer rela­
ção nem recorrer à desesperada idéia de um contínuo milagre de coorde­
nação divina: as grandiosas tentativas de Spinoza e Leibniz para melho­
rar a posição cartesiana constituem engenhosas soluções para os dois
aspectos do problema psicofísico. Mas constituíam soluções do proble­
ma assim com o este fora levantado por Descartes, e assumiam os moti­
vos e determinações gerais de sua dicotomia (a que até depois de Kant
todos os pensadores ficaram presos). Precisamente esta engenhosidade,
com o já se observou - uma típica realização criativa frente a uma dificul­
dade nunca experimentada antes -, desperta nossa admiração por estes
pensadores, mas ao mesmo tempo leva-nos a suspeitar também do seu
problema. De certa forma nossa admiração por eles é com o a admiração
por alguém que realiza acrobacias com as mãos atadas nas costas.
Harmonia, equilíbrio e devir
O conceito de sistema e sua aplicação ao terreno da vida

Durante muito tem po costumou-se em pregar a expressão “siste­


m a” em primeira linha para estruturas de pensamento, e com isto para
uma determinada forma de teoria, em vista ou do resultado, isto é, da
ordem do conhecido, ou então do seu m od o de proceder, isto é, da or­
dem da aquisição de conhecimentos. As duas coisas podem coincidir.
CJma ciência ideal, com o a geom etria euclidiana, constitui um sistema
de proposições baseado em um sistema de conceitos. Quando se refle­
te sobre a maneira com o um sistema surge em uma seqüência de pas­
sos, fala-se por exem plo de sistema dedutivo, ou, avançando mais um
passo, de um sistema de dedução, de indução, de dialética, etc., com o
tal. Neste caso estam os pensando no sistema do m étodo, que não é ne­
cessariam ente o m étodo de um sistema. Quando dizemos que um m é­
todo é sistemático, no fundo nós estam os querendo dizer apenas que
ele é m étodo, e não falta de m étodo, e isto é perfeitamente com patível
com a ausência de um princípio sistemático no objeto. Em casos com o
a dedução m atem ática ou a dialética hegeliana, o sentido do m étodo
inclui na verdade a idéia de que sua sistem ática corresponde a uma
sistemática da coisa mesma, a que ela se atém, e que de certa maneira
ele reproduz em forma de processo. Isto coloca no com eço a visão pelo
menos da essência formal de seu objeto, ou o conhecim ento de seus
princípios. A indução prescinde de toda pretensão antecipatória deste
tipo, mas em geral pressupõe uma lei ou regularidade de alguma espé­
cie, que mais tarde, conform e o êxito da indução - sob a forma de hipó­
teses especiais - pode servir de base para uma dedução (o exem plo
mais com um disto é a predição). Mas são possíveis também form as in­
teiramente livres da relação entre m étodo e objeto. M esm o a mera cole­
ção pode ter sistema, com o no caso da numismática. A ordem encon­
tra-se aqui exclusivamente na classificação mental. C om o ordem m en­
tal, o conhecim ento sistemático de uma coisa é possível m esm o quan­
do esta coisa não possui em si ordem alguma, nem m esm o uma liga­
ção interna. Aquele que agrupa sistematicamente formas de nuvens
não pretende com isto imputar nenhum sistema às próprias nuvens.
Até o que por definição é irregular pode estatisticamente ser colocado
sob a forma de uma regra. As tabelas de mortalidade das companhias
de seguros são a sistematização de algo essencialm ente assistemático.

Como não nos encontramos aqui diante de nenhuma explicação dos


fatos, isto é, de uma visão da conexão das partes do todo, evidentemente
é necessário que façam os distinção entre meros sistemas de classificação
ou ordenação e sistemas de dedução ou explicação. Estes últimos visam
reproduzir a concatenação das coisas por meio de fundamentos e razões,
e por conseguinte proporcionar conhecimentos, ao passo que os primei­
ros fornecem unicamente uma visão do conjunto, mas através disto eles
podem estar preparando a partir dos princípios uma explicação para a
multiplicidade. O sistema botânico de Lineu era um sistema de ordenação,
ou uma pura morfologia, mas ao introduzir o princípio genealógico na teo­
ria da descendência ele pôde ser transformado em um sistema do segun­
do tipo, pelo menos enquanto os novos princípios de ligação não forças­
sem a corrigir as classificações anteriores. Mesmo a mera classificação é
feita de acordo com princípios, o princípio comum sendo a semelhança.
Como para esta existem tantos pontos de vista quantos se queira, utilizar
determinado ponto de vista é uma questão de livre escolha, e neste senti­
do uma questão arbitrária. Mão obstante, por uma feliz casualidade ou in­
tuição a escolha pode antecipar-se à visão da ordem das causas, e no
momento certo transformar-se nela insensivelmente1. (Jm bom exemplo
é a morfologia de Goethe. Outro é classificação dos animais em inverte­
brados e vertebrados, que, antecipando-se à teoria da descendência,
confirmou-se com o essencial no sistema explicativo desta última, e não
apenas com o útil do ponto de vista taxonômico.

Ora, enquanto a possibilidade de sistemas de ordenação pode funda-


mentar-se unicamente na capacidade e na necessidade do ser humano,
a dos sistemas explicativos revela não apenas o pensamento de onde
eles surgiram mas também o ser em que a explicabilidade está presente
sob a forma de certas propriedades. Mesmo a possibilidade de classifica­
ção do dado está, a rigor, vinculada às condições do próprio ser, por
exemplo, além da existência da mera multiplicidade, a uma repetição
das semelhanças suficientemente freqüente e a uma certa constância
das diferenças. Sem isto nem sequer seria possível uma estatística, que é
obrigada a poder definir os seus grupos. Mas enquanto o princípio da se­

1 . O m é to d o d e B a c o n , re fe rid o à n a tu re z a “e m a ç ã o ”, e r r o n e a m e n te p o s tu la v a isto, a té
m e s m o c o m o u m re s u lta d o a u to m á tic o d a o b s e rv a ç ã o rig o ro s a , d a c o m p a r a ç ã o e d a
c la s s ific a ç ã o .
melhança ou dessemelhança pode ser usado à vontade, o dos funda­
mentos ou das condições, se de alguma maneira estiver em correspon­
dência com o ser, obriga a que o pensamento assuma certos com pro­
missos, e isto quer dizer que, quando o utiliza, o pensamento ou acerta o
alvo ou não o acerta, ele só pode ser ou verdadeiro ou falso, e só um dos
dois pode ser usado, isto é, o pensamento, ao utilizá-lo, conta ao m esm o
tempo com a possibilidade de chegar ao conhecimento e com o risco de
errar. Por parte do ser, no entanto, esta condição significa que o ser está
ligado a si mesmo, que ele forma uma união ou concatenação de depen­
dências e, na medida em que esta ligação alcança, ele é um todo e não
apenas uma multiplicidade. Por isso a possibilidade de sistemas teóricos
parece pressupor a realidade de sistemas de coisas e a idéia de um siste­
ma global do saber, ou de um conhecimento sistemático do todo, a idéia
de toda a realidade com o um sistema.

r Surge agora esta pergunta, ao lado de muitas outras: Em que sentido


o ente (e o mundo todo é um ente, tanto quanto suas diferentes partes)
pode ser um “sistema”? Pois o m esm o termo só pode ser adequadamen­
te aplicado ao conceituai e ao real de uma maneira analógica - a não ser
que se adote um conceito do ser que suspenda a diferença entre ser e
conceito, transformando a analogia em identidade. Mas nossa pergunta
é feita dentro do horizonte da diferença (ingênua) entre conceito e coisa,
e por conseguinte entre sistema de pensamento e sistema das coisas; e
nós a fazemos preparando esta pergunta mais específica: em que senti­
do os objetos vivos - os organismos individuais ou os seres vivos coleti­
vos - podem ser descritos com o um sistema?

Formalmente, o sentido de “ sistem a” é determ inado pelo conceito


de conjunto, que pressupõe uma pluralidade que chegou a estar junta
pela relação do conjunto, ou que não pode existir de outra maneira a
não ser nesta relação. Sistema, portanto, é necessariamente algo múlti­
plo, mas além disto õ sentido de conjunto está em que o múltiplo possui
um princípio eficaz de sua unidade. Isto vale tanto para um sistema de
proposições com o para um sistema de coisas, só que “ eficácia” , nos dois
casos, possui significados diferentes. O conjunto das partes não significa
que as coisas estejam indiferentemente umas ao lado das outras, mas
sim que elas se determinam mutuamente, e mais uma vez de uma forma
tal que o conjunto é preservado. Mas com o no âmbito das coisas, por ou­
tro lado, toda determinação é um modo de atuar, e toda atuação implica
em certa transformação, temos que a conservação se dá através da mu­
dança, assim com o a unidade através da multiplicidade, e uma e outra
através da força, que a rigor é a única realidade física capaz de levar a
multiplicidade à unidade. Por isso também a “permanência” da unidade
é de fato um acontecer. Com o tema “sistema” nós nos encontramos as-
equilíbrio e devir 77

— no terreno dos problemas ontológicos clássicos do uno e do múlti-


: : e da permanência na transformação.

A diferença das partes não é anulada pela totalidade em que elas se


. “ em, nem a totalidade pela diferença das partes de que ela consiste.
- " a s são aspectos necessários de um sistema, uma não pode ser su-
: ‘ .T.ida em benefício da outra. Nem um simples montão de pedras nem
_ — 2 poça de água onde muitas gotas se reuniram são um sistema de
5 _ 2s partes; pois no montão de pedras a pluralidade continua sendo plu-
*2 dade, sem que seja modificada pela união - ela é pluralidade sem uni-
: - : e : e na poça d’água a pluralidade deixa de existir com o pluralidade
: -s diversas gotas - ela é unidade sem pluralidade. Mas a gota é um sis-
:e~.a dinâmico das moléculas de que é formada, por mais desorganiza­
ra mente que estas se movam, pois a forma de gota, com o tal, é em sua
~\:ação a interação de muitas forças em equilíbrio, que só admite um
~ -mero finito máximo de moléculas. O conceito de limite, que aqui entra
em cena, sugere a idéia de que não pode existir um sistema infinitamente
~ -.tiplo, e de maneira geral um sistema infinito, tampouco quanto um
s s:ema do absolutamente sim p lesfo sistema é um meio termo entre o
w
-isolutamente uno e o infinitamente plural; fazem parte do sistema a fini-
: . - e e uma espécie de fechamento, e com isto um “fora” do qual o siste-
2 se distingue. Mesmo que o universo constitua um sistema, só o pode-
"5 ser na medida em que é finito. Mas este “limite” não significa simples­
mente limitação numérica do múltiplo, ou que o sistema tenha uma de-
:e:minada quantidade, mas é também, dentro deste número, limitação
“ c tocante à ordenação, ou de ter que ter uma forma determinada; e isto
mais uma vez, dentro de uma disposição ou ordenação, limitação de
acordo com a relação de forças, ou que o sistema deve ter determinada
medida. A determinação mínima e mais geral destes limites resulta sim-
r.esmente da condição da componibilidade, ou da mera capacidade de
que o produto exista, e com o tal ela já se encontra presente nos concei-
::s da conservação, da permanência e do equilíbrio: quando é ultrapas-
ssdo um certo número de partes, ou um certo grau de desigualdade de
mrças, ou certas variações na ordenação, a com binação em questão,
puer uma gota de água ou um sistema planetário, torna-se instável e não
pede nem sequer existir com esta configuração; e isto se aplica tanto a
sistemas isolados com o também à existência de sistemas que formam
:m sistema maior, até se chegar ao sistema global do mundo. Este é um
princípio negativo de seleção do real, que não opera por eleição do que é
possível, mas por exclusão do impossível que possa ter surgido. Segun­
do este princípio, uma natureza sem qualquer propósito, em oposição a
uma arte propositada, poderia ter produzido sistemas harmônicos, ou
produzido a si mesma com o uma harmonia de sistemas harmônicos, por
força cega, isto é, pelo mero princípio da mudança com o tal, sem outros
princípios diretores além da possibilidade (no sentido de capacidade de
existência) e da ocasião (que também pode ser ocasião para o impossí­
vel). Mas ocasião que “no princípio” , antes de qualquer sistema, é obra
do acaso desordenado, desta maneira estando aberta ao número mais
amplo de possibilidades, com qualquer êxito do que a antecedeu tor­
na-se ela mesma parte das possibilidades mais determinadas, daquilo,
portanto, que já existe de “sistem ático” dentro da situação: na medida
em que isto representa decisão - de início, com o sempre, aleatória -
por uma realidade, que pelo simples fato de existir condena muitas pos­
sibilidades alternativas ao não-ser, restringe ela mesma, com o resulta­
do de seleção do passado, as possibilidades para o futuro que suas con­
dições uma vez postas permitem, assim com o as ocasiões que ainda
podem vir a ocorrer em sua própria seqüência de transform ações. O
que aconteceu no passado passa a ser lei para o que acontecerá no fu­
turo - a desordem transforma-se em lei, progredindo de um mínimo até
um m áxim o de lei. Com efeito, com o o processo se repete com cada
nova seleção destas ocasiões, elas próprias já resultado de seleção, por
um lado as condições de com ponibilidade passam a ser com rigor cada
vez maior definidas pelo todo, com isto o m ecanism o da seleção tor-
nando-se cada vez mais unívoco, e por outro as ocasiões que ocorrem ,
e com elas o material disponível para a seleção, tornando-se cada vez
mais específico - em suma, tanto a possibilidade com o a ocasião vão
se tornando mais e mais canalizadas em determinada direção, até que o
sistema, uma vez acabado, só admite sua própria possibilidade, repre­
sentando ele próprio a ocasião permanente para sua realização, isto é, a
única forma de mudança admitida é a repetição. Esta direcionalidade,
que possui todas as aparências de teleologia sem que o seja, pode ser
chamada de devir; mas a auto-repetição do movimento do sistema não.
A direção era para mais ordem e mais necessidade, isto é, para uma for­
ma mais determinada e para sua lei. O devir é, pois, um decréscimo de
casualidade e indeterminação (para evitara expressão “liberdade” ) - por
conseguinte um decréscimo progressivo de sua própria condição de pos­
sibilidade. Que relação existe entre esta direcionalidade e o conceito de
entropia, e com o os dois podem harmonizar-se, é um assunto que não
será estudado aqui. Mas dois aspectos deste quadro hipotético do senti­
do do sistema e do seu devir, tirados da mecânica ( “clássica” ) da ontolo­
gia moderna, são de particular importância para saber se o conceito de
sistema é adequado para abordar os fatos vitais, üm deles diz respeito ao
conceito de devir, o outro ao de ser. Os dois só podem ser tratados em
conjunto, com o relação entre ser e devir.
No que se refere ao devir, temos que ver com clareza que a ocasião
para o novo está presente na mesma medida em que o desequilíbrio, e
que o aproveitar desta ocasião, isto é, o efetivo devir de algo novo, nasce
unicamente do dinamismo do desequilíbrio. Mas uma vez alcançado o
equilíbrio a que este dinamismo leva, deixa de existir a “ ocasião” (ou en­
tão surge apenas de modo “antinatural” , por perturbação do equilíbrio).
Há de ser, na verdade, um equilíbrio dinâmico, e por conseguinte um sis­
tema que funciona, que se movimenta; mas o movimento é o retorno pe­
riódico de estados idênticos, e o período o tem po próprio do sistema. Isto
não significa outra coisa senão que só existe história quando o sistema
está sendo constituído ou está se desfazendo,x com o processo de form a­
ção ou dissolução, mas que o sistema, na medida em que é atual, não
possui história, a não ser com o o ocorrer de sua carência. Os aspectos da
harmonia e da historicidade se excluem mutuamente. Mas harmonia é a
medida da perfeição de um sistema, e por isso torna-se compreensível
que na ontologia antiga, que considerava o cosm os com o um sistema
harmônico, só lhe atribuindo a repetição cíclica das mesmas coisas na
medida de sua perfeição, não havia lugar para a história: é verdade que
as partes mais baixas do sistema são mutáveis na medida de sua imper­
feição, mas isto apenas com o um tributo do imutável à corruptibilidade
da matéria, portanto com o mera alternância entre o surgir e o perecer do
efêmero dentro do sempre igual. A frase: “ Nada de novo debaixo do sol” ,
expressa a profunda convicção da com preensão antiga do ser, para a
qual é um fato que o céu existe. Mas com o poderia ele ter com eçado a
existir? Com o a idéia de a ordem nascer a partir das forças da desordem,
o racional a partir do irracional, era para a antiga especulação ontológica
do helenismo (assim com o para a especulação antiga em geral, com ex­
ceção do atom ism o) racionalmente impossível, o postulado da eternida­
de do mundo constitui o com plemento necessário da idéia do cosm o
com o tal. A ordem do ser existente, o sistema existente no todo, não veio
a ser, só em seu âmbito é que ocorre o devir das várias partes perecíveis
do todo imperecível da natureza. Natureza e princípio imutável da mu­
dança são a mesma coisa. De acordo com isto, não existe uma história
do mundo ou uma história da natureza, nem mesm o uma história de par­
tes da natureza, isto é, das espécies particulares no âmbito do mutável,
mas apenas uma descrição dos modos de surgir e perecer próprios dos
indivíduos dessas espécies. Mesmo nestes é possível fazer-se uma distin­
ção conceituai entre o ser que se realiza e o destino do seu devir. Devir é
uma condição necessária e limitadora, não um caráter interno do ser; e a
razão permanente desta condição é a definitiva limitabilidade do substra­
to indiferente que se chama matéria.
A ontologia da ciência moderna modificou inteiramente esta concep­
ção, tanto em grande quanto em pequena escala, ao substituir o concei­
to da matéria passiva pelo de corpo, que com o portador de forças positi­
vas (por exemplo, do m ovim ento), e por conseguinte com o substância
real e independente, traz em si m esm o o fundamento de determinação
das configurações em que a soma dos corpos em cada caso representa o
ser. Os casos de “equilíbrio” dinâmico que na sucessão destas configura­
ções podem ocorrer na forma descrita da “seleção” (em princípio todas
de igual valor), e que em larga escala nos vêm ao encontro sob a forma
da ordem permanente de sistemas, podem na verdade ser comparadas
ao antigo modelo da harmonia - isto é, m esm o o mero equilíbrio da inte­
ração pode ser em seus efeitos, se bem que não em sua origem, conside­
rado com o harmonia (com o o fizemos acima ao utilizar esta palavra),
por pouco que o princípio da som ação mecânica tenha em comum com
o da razão imanente - mas o conceito de objetivo tem que ser substituído
pelo de mero resultado, e por conseguinte o conceito do devir pelo do
processo em si. Entre as conseqüências do moderno conceito de energia
e de sua posição central na com preensão da realidade está incluído que
o acontecer, com o transformação contínua de energia, transforma-se no
aspecto essencial do ser, e a modificação passa a ser sua expressão mais
adequada. Com isto a permanência do “sistema” perde o lugar ontológi-
co privilegiado de uma apresentação mais perfeita do ser, de que ela des­
frutava na antiga antítese entre ser e devir, passando a ser um caso espe­
cial de processo cuja dinâmica não difere da dinâmica geral, e que só pode
ser definitiva com o fim da história do ser, do contrário sendo uma fase desta
dinâmica. Se isto vale para os fenômenos da natureza em geral, no terreno
das coisas vivas nossa idéia de historicidade torna extremamente problemá­
tico estabelecer até que ponto o conceito de sistema é adequado, ou com o
é preciso modificá-lo para levar em conta sua dimensão temporal.

Apresentamos um exem plo intuitivo do que foi dito até aqui, ao mes­
mo tempo que consideramos mais detidamente a questão concreta com
que vimos nos ocupando. Sendo múltiplo, todo sistema consistirá pelo
menos de dois corpos, de que as estrelas duplas são o exemplo mais co­
mum. Foi também no sistema solar, que consiste de um pequeno núme­
ro de membros, que a astronomia forneceu à mecânica moderna o pro­
tótipo de um sistema natural plenamente analisável. Este modelo possui
diversas vantagens excepcionais para os objetivos da teoria: é um siste­
ma com um pequeno número de componentes, possui uma disposição
permanente e clara, é fechado para fora em virtude do isolamento espa­
cial, possui determinação interna completa, suas grandezas e m ovim en­
tos podem perfeitamente ser calculados. Dentre as vantagens excepcio­
nais para as finalidades da teoria que este m odelo possui, consideremos
por um momento o da perfeita periodicidade. Todo período inclui uma
série de modificações, e logo surge a questão de saber se no conceito de
unidade é necessário que à multiplicidade dos elementos se acrescente
também a multiplicidade dos estados, isto é, que se considere além da
multiplicidade no espaço também a multiplicidade no tempo. Este seria
o caso se os estados sucessivos fossem partes do todo. E o seriam, se
cada um deles, ao realizar-se, acrescentasse alguma coisa ao todo, desta
maneira completando-o; se, portanto, através precisamente da mutiplici-
dade qualitativa da série, o todo adquirisse sucessivamente sua plenitu­
de, passando a ser o todo especial que ele é. Pois a multiplicidade dos
elementos simultâneos dos quais o sistema consiste possui este sentido
de parte: aqui, qualquer “mais” ou qualquer “m enos” faz diferença para o
todo, e o sistema passa a ser diferente com a presença ou a ausência de
cada parte? Pois bem, de uma vida pode-se efetivamente dizer que ela se
com põe dos momentos em que é vivida; que no germinar, no crescer, no
florescer e no frutificar, na infância, juventude, meia idade e velhice, ela
cada vez é outra; cada uma de suas fases, ou mesm o cada um de seus
momentos, acrescenta-lhe algo de novo que não estava contido no que o
antecedeu, portanto não é apenas uma transformação da mesma coisa;
m esm o na repetição dos ciclos de experiência (com o alimentação e ex­
creção, vigília e sono, etc.), o passado já vivido - a idade do sujeito - está
presente com o um pano de fundo, e isto faz com que este momento seja
mente diferente, passe a ser elemento de uma série única e ir-
icvcioivci^ sendo assim, a vida jamais atinge sua totalidade a não ser na
série de todos os seus estados; sua identidade não consiste na equivalên­
cia dos membros de sua série temporal, mas precisamente naquilo que
confere coesão à sua multiplicidade. Todas estas coisas podem ser afir­
madas sobre a vida, mas não ser afirmadas a respeito da série temporal
de um sistema com o o sistema planetário. Pois este é imaginado precisa­
mente com o sendo plenam ente definido por seus elem entos simultâ­
neos, de maneira que qualquer seção através de sua série temporal con­
tém em sua análise vetorial o todo, já que todas as seções, isto é, todas as
simultaneidades, se eqüivalem umas às outras, qualquer uma pode ser
considerada com o representativa de toda a série. É sobre isto que se ba­
seia o fato científico de que uma configuração momentânea, se completa­
mente analisada, é suficiente para definir a série inteira e para predizermos
com exatidão qualquer posição que desejemos. Aqui, por conseguinte, os
estados mutáveis não são “partes” do todo, a série temporal não é uma
multiplicidade que se adicione à sua unidade, mas apenas a expressão
continuada de uma multiplicidade espacial dada de uma vez por to­
das. Com isto a “não-historicidade” fica determinada com mais precisão.
Qualquer destas coisas que se diga do sistema, quando aplicado à vida,
não pode deixar de provocar sérias dificuldades teóricas^
Ora, m esm o no sistem a planetário a não-historicidade, funda­
mentada na perfeita harmonia (e que se apresenta com o perfeita perio­
dicidade), poderia ser apenas uma aparência, pelo fato de se aplicarem
as escalas humanas de duração. De acordo com a lei da entropia, os as­
pectos termodinâmicos possuem caráter não-reversível, e por conse­
guinte comunicam a cada m om ento uma unicidade que está em contra­
dição com a periodicidade. Mas m esm o que não levem os isto em conta e
permaneçamos no puramente mecânico, a aparente repetição poderia
ser um atalho para uma variação deste tipo (por exemplo, se a elipse pla­
netária da lei de Kepler escondesse uma espiral imperceptível), seu cons­
tante progresso transformaria a aparente prova do equilíbrio (e da perfei­
ta componibilidade do múltiplo no uno) no seu contrário, isto é, em últi­
ma análise na prova de que o sistema é incapaz de existir. De acordo
com os conhecimentos modernos não se trata de uma mera possibilida­
de, mas para a concepção do sentido do sistema isto abre a interessante
idéia de que o que a ontologia clássica, e Leibniz em sua teodicéia, consi­
derava com o a justificativa do que existe com base na idéia do ser, e ao
m esm o tem po com o a garantia de sua existência, a saber, a existência
do sistema harmônico com o tal, é na verdade a prolongada história de
sua auto-refutação, a prova adiada da impossibilidade de existência do
“uno no múltiplo” , um caminho cheio de rodeios para o nada do igual e
do indiferenciado. O sistema seria aqui o retardamento, mas também o
caminho, de modo que à determinação anteriormente mencionada, de
que ele é um meio termo entre o simples e o infinitamente múltiplo, nós
devem os acrescentar outra mais crítica, de que o sistema é um meio ter­
mo entre o devir e o perecer, entre o ser e o não-ser/üm meio-termo, po­
rém, não no sentido indiferente de ele simplesmente se encontrar entre
duas coisas, e sim no sentido crítico de manter o equilíbrio, de que pelo
fato de existir ele detém a queda, mas que no próprio exercício de sua
função repetidora ele não pode deixar de ir caindo, já que só pela queda
pode conseguir os meios para detê-la, tendo a cada momento que repre­
sentar o “m eio” em um ponto mais rio abaixo! Vara a vida, sempre am ea­
çada pela morte a que termina por sucumbir, este aspecto do sistema
possui algo singularmente adequado; só não se deve perder de vista que
ele coloca o sentido da organização na conservação, e que só admite
algo novo no já organizado sob a forma da decadência. De fato, em face
da posição central ocupada pela autoconservação na doutrina moderna
da vida, podemos dizer que a adequação do conceito de sistema para
compreender a vida chega até onde chega o conceito da conservação, e
que compartilha de seus limites. Mossas observações finais versarão so­
bre a relação entre estes dois conceitos, relação que em última análise é
transmitida pelo conceito do equilíbrio, que constitui a versão modefna
e desencantada do antigo conceito da harmonia.
A primeira aplicação moderna do conceito de sistema aos corpos vi­
vos deve ser vista na teoria de Descartes do organismo animal com o
uma máquina ou um autômato natural, superior às criações da arte m e­
cânica unicamente pela multiplicidade e pela pequenez de suas partes. A
relação destes autômatos com o ambiente, que os diferencia do m eca­
nismo fechado do relógio, Descartes procurou explicá-la por meio de
uma teoria dos reflexos (apresentada nas “Passions de l ’â m e ”), que
para explicar a “aprendizagem” sem recorrer à teleologia chega a anteci­
par o conceito de reflexos condicionados, isto é, de conexões senso-moto-
ras modificadas mecanicamente por estímulos externos. Não obstante, a
concepção cartesiana repousa essencialmente sobre o modelo clássico
do mecanismo com o sistema individualmente fechado e isolável. O que
é significativo em relação a doutrinas mais antigas é que este mecanis­
mo pode “viver” sem “alma”, isto é, pode - e tem que - exercer todas as
funções ligadas ao processo vital graças à disposição de suas partes. O
efeito global destas funções é a autoconservação, e os sistemas foram
construídos para produzirem este efeito.

Nos dias atuais, um refinamento do modelo cartesiano foi alcançado


por uma nova visão da natureza do metabolismo, entendido com o um
processo perm anente e constantem ente renovador da com posição do
organismo - ultrapassando, pois, a analogia do fornecimento de com ­
bustível a uma máquina -, e que de fato coincide com o processo vital; e
também por uma visão do papel fundamental e não apenas ocasional da
informação externa e interna para todas as atividades do corpo vivo. Aqui
eu menciono por um lado a teoria biológica do “sistema aberto” de L. von
Bertalanffy, e por outro a teoria “cibernética” de N. Wiener e de seu grupo
tecnológico. Am bas são declaradamente teorias sistêmicas do orgânico;
e ambas também levam em conta, bem melhor do que a teoria dos autô­
matos de Descartes, a unidade entre organismo e ambiente. A “abertu­
ra” , no primeiro caso, consiste no já mencionado fato da constante e am­
pla troca de material entre o sistema orgânico e seu ambiente, ao longo
da qual o organism o mantém-se o mesmo não segundo sua substância e
sim segundo sua função dinâmica (ou não pela matéria mas sim pela
form a). A propriedade que define o sistema não é aqui uma disposição
das partes (uma estrutura), mas sim um comportamento dinâmico (um
processo), sendo considerados com o seus portadores as mais diferentes
disposições entre suas partes, que não são melhor especificados pela te­
oria. De acordo com von Bertalanffy, da propriedade da abertura, com bi­
nada com certas constantes de equilíbrio formalizadas m atematicamen­
te com o axiomas, podem ser analiticamente deduzidas, ou pelo menos
entendidas com o possíveis, outras propriedades características do orga­
nismo (entre elas as que H. Driesch considerou necessárias para o con­
ceito extracientífico de enteléquia), com o propriedades sistêmicas ima-
nentes de uma pluralidade assim definida; por exemplo: auto-regulação,
crescimento e limite de crescimento, regeneração, adaptação, capacida­
de de atingir o objetivo através de desvios. O grau de eficácia do método
não pode ser analisado aqui2. Para o nosso contexto é importante ape­
nas observar que a dinâmica reguladora de todos estes fenôm enos qua-
se-teleológicos encontra-se em um conceito especial de equilíbrio para o
qual Bertalanffy, para distinguir do equilíbrio estático, propõe o nome de
“equilíbrio fluido”.

Os conceitos de equilíbrio e regulação, tão estreitamente interligados


(já que a regulação ocorre precisamente pela dinâmica da busca do equi­
líbrio), também são conceitos centrais para o m odelo cibernético que
surgiu da moderna tecnologia da comunicação e automação, tendo em ­
prestado seu nom e ao conceito de governo ou direção ( kybernetes = o
piloto). A “ abertura” em relação à substância e à energia, que distinguiu
o modelo anterior, é completada aqui pela abertura no m odo da “infor­
m a çã o” , isto é, da percepção com o realim entação sensorial contínua
do resultado da ação, da periferia para o centro. A relação de com ple­
mentaridade com o m odelo anterior não é intencionada, mas se funda­
menta na coisa m esm ar abertura com o m etabolism o exige abertura co­
mo capacidade de sentir, esta entendida apenas com o uma função re­
guladora da notificação (não com o uma qualidade em si mesma1). E
vice-versa, toma-se fácil ver que a abertura perceptiva para o mundo
pressupõe, no seu sentido funcional, a outra abertura, já que sem esta, e
sem as necessidades do agir nelas baseadas, não existiria nenhum in te­
resse em guiar ou governar, por não existir nenhum interesse a ser alcan­
çado, e um mecanismo de direção sem algo que precise ser dirigido não
teria nenhum sentido3. A contribuição da cibernética para a concepção
sistêmica do orgânico consiste em aplicar o conceito daquilo que rece­
beu o nome de feed b a ck à interação entre aparelho de inform ação e
aparelho de realização: pela maneira com o os dois estão ligados (por
exem plo, no sistema nervoso central), a contínua realimentação senso­
rial de qualquer resultado parcial da execução transforma-se automatica­
mente em um com ando para orientar a fase seguinte, o mesmo se repe­
tindo com relação à próxima fase, e assim por diante, até que o “objeti­
v o ” da ação seja alcançado. Em vez da seqüência fixa do modelo clássi­
co da máquina, temos agora uma situação m óvel e de certa forma capaz
de improvisar uma adaptação a situações mutantes que, apesar de auto­

2 . C f. G e n e ra l S y s te m T h e o ry : A n e w a p p ro a c h to u n ity o f s c ien ce (L .V . B erta la n ffy , C .G .


H e m p e l, R .E . B lass, H . J o n a s ), e m : Human Biology , 2 3 /4 , 1 9 5 1 .
3 . A re s p e ito d is to , e d a s o b s e rv a ç õ e s fin a is e m g e ra l, cf. a e x p o s iç ã o m a is d e ta lh a d a d a
c ib e rn é tic a n o c a p ítu lo 7.
mática, possui em sua série convergente de erro e correção as caracte­
rísticas de um com portamento teleológico. De fato os cibernéticos defi­
nem o com portamento teleológico com o com portamento “controlado
por feed-ba ck”; de onde se segue que autômatos adequadamente cons­
truídos são capazes de um comportamento teleológico, e vice-versa, que
o comportamento vivo (com o em Descartes) não difere do com porta­
mento dos autômatos artificiais deste tipo a não ser por uma maior com ­
plexidade do sistema, e por conseguinte pela capacidade de rendimento.

Aqui, evidentemente, o conceito crítico é o conceito de “meta” ou


“objetivo” , que, com o na teleologia do sistema aberto de Bertalanffy, é
determinado pelo conceito de um estado de equilíbrio para o qual se diri­
ge o dinamismo do sistema; só que no modelo cibernético o sentido de
equilíbrio vai além do m odelo físico de uma relação de forças, sendo am­
pliado para a relação de “atitude” dirigida e conteúdo de “ informação” ,
cuja tensão mantém desperta a dinâmica do sistema, e com cuja iguali-
zação se detém. Diferentemente do sistema fechado da mecânica clássi­
ca, nestes modelos a função do sistema não é expressão de um equilíbrio
existente, mas sim o constante estabelecimento e restabelecimento do
equilíbrio. O fato de o restabelecimento ser necessário está ligado à pró­
pria abertura, por exemplo, no caso do metabolismo, à perturbação do
equilíbrio pela carência, que ocorre naturalmente, com o conseqüência
da própria função, e que leva à alternância entre “cheio e vazio” , já obser­
vada por Platão. O tipo de periodicidade que ocorre aqui já não é o de um
ciclo de estados equivalentes, mas sim o oscilar entre o ser e o não-ser,
um equilíbrio m óvel de devir e perecer, e neste sentido um acontecer au­
têntico. A conservação do sistema depende aqui de sua atividade, não é
simplesmente realizada com ela. A atividade de autoconservar-se atra­
vés da renovação de estados de equilíbrio, que a dependência do ambi­
ente não permite que se prolongue - conservação, pois, com o produção
contínua - , é o conteúdo do funcionamento do sistema, e com isto o sen­
tido de sua existência.
Será ela também o sentido da “vida”? É a vida definida pelo organismo
ou, pelo contrário, o organismo é definido pela vida? E conseqüentemente,
será a essência do organismo a “organização”, que se encontra presente
como um sistema de sua própria variedade, ou o “órgão” que atua através
da organização e ao mesmo tempo a serviço de um interesse submetido às
suas condições? O sistema é condição da vida, ou ele é a própria vida? Será
o dinamismo da condição o conteúdo do condicionado? Será que tensão e
distensão são o mesmo que desejo e satisfação? que o equilíbrio que ocorre
quando se alcança o objetivo é ele próprio o objetivo? que a perfeição do es­
tado do sistema é a perfeição da vida? Conservação será meio ou fim? Será
a perfeição do estado do sistema a perfeição da vida? Os modos da abertura
para o mundo - o senln, u-w i^-vTjr.- cprão aoenas um meio, ou serão o
próprio porquê da conservação? Serão aparelhos para regular e estabilizar
um aparelho, ou atuação do próprio impulso vital, que no objetivo transcen­
de o aparelho? - Estas são algumas das perguntas com que precisa ser exa­
minada a adequação e os limites do fenômeno da vida, depois que as impli­
cações conceituais de “sistema” tiverem sido esclarecidas. As observações
anteriores - que no âmbito de uma doutrina filosófica não passam de prole-
gômenos - não pretendem ser outra coisa senão uma contribuição para rea­
lizar esta última tarefa preliminar.
Deus é um matemático?
Sobre o sentido do metabolismo

I - Levantando a pergunta

“Pelo testemunho imanente de sua criação, o grande arquiteto do


universo com eça a revelar-se hoje com o um matem ático puro.” Com
estas palavras o astrônomo inglês e filósofo da natureza Sir Jam es Je-
ans1 resumiu a visão da cosm ologia contem porânea, certam ente sem
atentar (a julgar pelo “hoje” ) que estava repetindo uma observação
sem pre de novo formulada ao longo das épocas. Quando uma afirma­
ção de tal porte e com tal galeria de antepassados, e que já foi muito
querida ao coração dos filósofos, aparece em um cenário novo na boca
de um físico e astrônomo, ela está a exigir uma análise filosófica. Duas
perguntas lhe deverão ser feitas: Que diz esta afirmação? E o que ela diz
é verdadeiro? A primeira pergunta, sobre o sentido da afirmação, é ne­
cessariam ente uma pergunta histórica, porque a tradição existente por
trás da afirm ação já é uma parte constitutiva do seu sentido. Que signifi­
cavam as palavras “ m atem ático” , “ criação” , “ universo” , quando pela
primeira vez aquela idéia foi expressa? Em que, hoje, elas não signifi­
cam mais? Qual o seu significado atualmente (e com ele o da frase
com o um tod o)? O “ não m ais” no “ hoje” é parte da interpretação do
hoje. Por isso nossa primeira tarefa será ir atrás das m etam orfoses por
que passou a fonte intelectual de que a frase viveu desde suas origens
na Grécia até a ciência dos nossos dias, e assim manifestar o sentido
que lhe deve ser atribuído no contexto atual.

A segunda pergunta, que se interroga sobre a verdade da afirmação,


tem que voltar-se para o testemunho por ela própria invocado, isto é,
para o testemunho da “criação” . Com o nunca podemos considerar o
todo deste testemunho, mas com o por outro lado o que é válido para o

1 . J .H . J e a n s . The Mysterious Uniuerse. C a m b r id g e , 1 9 3 3 , p. 1 2 2 . E s ta fra s e é s e m e ­


lh a n te a m u ita s o u tra s q u e p o d e r ia m s e r c ita d a s , o riu n d a s d a c o s m o lo g ia c ie n tífic a .
todo tem que ser válido também para cada uma de suas partes, decidi
submetê-la a uma análise em vista de uma determinada espécie de ser
dentro do universo, o organismo vivo. A afirmação de Jeans levanta a
pergunta se o matemático que é o grande arquiteto do universo, grande
ou pequeno, também é o arquiteto da ameba. Terá que ser as duas coi­
sas, do contrário não será nenhuma. Pois a ameba é parte do universo, e
tem que estar incluída no princípio criativo do universo/O fato de ser pe­
quena não constitui nenhuma objeção contra sua relevância ontológica/)
Seu testemunho imanente, sendo o testemunho de uma criatura, consti­
tui parte do testemunho universal “da criação” , e não pode deixar de ser
ouvido, ainda mais que neste caso tem um sentido muito mais com pleto
de “imanência” do que qualquer outra classe de estruturas cósmicas: in­
clui o fato de se sentir sua própria interioridade. Isto confere à ameba
um preferencial valor de evidência ontológica, que desafia sua pequenez
quantitativa.?Noutras palavras, se um princípio considerado cósm ico não
consegue dar conta da vida, cuja presença no universo não se pode,ne-
gar, então este também não é um princípio satisfatório para o universcr^A
alternativa seria uma transcendência metafísica da vida, que talvez pos­
sa ser atribuída ao ser consciente do ser humano, mas que dificilmente o
será à ameba. Isto quer dizer que os instrumentos de informação do dua­
lismo fracassam quando se trata de encontrar uma explicação para o or­
ganismo. Por isso a vida material (n ão nos referim os ainda ao espírito
nem à consciência) pode servir de pedra de toque para toda interpreta­
ção que se possa oferecer da matéria de que o mundo é feito, com o tam­
bém para corrigir uma concepção de Deus construída sobre esta inter­
pretação. Neste sentido, a afirmação metafísica “ Deus é m atem ático”
pode ser reduzida a uma determinada visão ontológica, e medida por fa­
tos simples e concretos: ela desce das alturas vertiginosas das estrelas e
do espaço para a nossa experiência mais próxima e imediata, sem dei­
xar, no entanto, de ser aplicável à cosm ologia, e com isto à pergunta es­
peculativa do que Deus pode ser - se é que na verdade o mundo é capaz
de afirmar seja o que for a respeito de Deus. A frase de Jeans, quando
apela para o “testem unho” do que se pode conhecer do mundo, implica
isto. Se aqui nós aceitam os o que ele diz, isto não significa que com par­
tilhemos de sua confiança. Mas m esm o que não seja atribuído ao teste­
munho nenhum valor positivo sobre o que Deus é (muito menos sobre
se ele existe), m esm o assim haveria uma valorização negativa - sobre
aquilo que Deus não é, ou que não pode ser com exclusividade - no
mero excesso do testemunho sobre o que pode ser atribuído a um cria­
dor desta ou daquela hipotética natureza. C om o este m odo de ser foi
derivado em primeiro lugar do testemunho da criação, efetivam ente é
esta leitura que está sendo posta à prova quando se submete o conceito
de Deus à análise da experiência, a que em última análise ele apela. O
conceito de um Deus matemático, referido seriamente à realidade, m a­
nifesta as mais extremas possibilidades - tanto de sucesso com o de fra­
casso - que estão contidas na atitude ontológica ou epistemológica que
lhe serve de base. Caso isto termine em uma red u ctio ad a b su rd u m ,
m esm o assim o impossível conceito teria tido uma utilidade, se bem que
para a própria destruição.

II - Antigo e moderno sentidos de uma matemática


da natureza

A afirmação de Jeans é o fruto tardio de uma longa e venerável tradi­


ção, que coincide praticamente com a história da especulação ocidental,
üma linha direta conduz do demiurgo de Timeu ao Deus de Leibniz, que cria
o “compossível” matemático. “Podemos assim reconhecer maravilhados
com o na própria origem das coisas está em ação uma matemática divina,
ou uma mecânica metafísica, onde ocorre a determinação da quantidade
máxima”2. “Quando Deus calcula e pensa, o mundo surge”3. Já antes, no li­
miar da ciência moderna, Kepler, profundamente penetrado pela fé pitagóri-
ca em uma essência matemática das coisas, e da harmonia do mundo daí
resultante, explica que Deus, “por demais bondoso para ficar sem fazer
nada, começou a jogar o jogo das assinaturas, deixando sua semelhança
desenhada no mundo”, disto resultando que “a natureza inteira e o céu su­
blime estão simbolizados na ciência da geometria”4, üma expressão desta
geometria divina ele a encontrou nas leis do movimento dos planetas, à me­
dida que uma após outra as foi encontrando: já a procura destas leis estava
desde o início sob a inspiração deste pressuposto geométrico. Ma mesma
direção aponta a profissão de fé de Galileu, de que o grande livro da nature­
za estaria escrito em uma linguagem matemática, cujo alfabeto é constituí­
do de triângulos, círculos e outras figuras geométricas5.

Meste grandioso esboço o conceito do ser e o ideal do saber são correla-


tivos e se apóiam mutuamente. Kepler foi certamente o primeiro dos mo­

2 . De ultima rerum originatione ( 1 6 9 7 ) .

3 . De connexione inter res et verba ( 1 6 7 7 ; a n o ta ç ã o à m a r g e m d o m a n u s c r ito ).


4 . J . K e p le r. Tertium interueniens.
5.11 Saggiatore ( 1 6 2 3 ) : “A filo s o fia (is to é, a c iê n c ia d a n a tu re z a ) está e s c rita n a q u e le
g ra n d e liv ro s e m p r e a b e rto d ia n te d o s n o s so s o lh o s - re firo -m e a o u n iv e rs o m as não
s e re m o s c a p a z e s 'd e c o m p r e e n d ê -lo se a n te s n ã o a p re n d e r m o s a lin g u a g e m e os sin ais
e m q u e foi e s c rito . E s te liv ro foi e s c rito e m lin g u a g e m m a te m á tic a , e seu s c a ra c te re s sã o
triâ n g u lo s , c írc u lo s e o u tra s fig u ra s g e o m é tric a s , s e m as q u a is n ã o se p o d e e n te n d e r u m a
ú n ic a p a la v ra s e q u e r - e s e m a q u a l n ó s e rra m o s s e m d e s tin o e m u m e s c u ro la b irin to ”.
dernos a considerar a quantidade (ou a grandeza) com o essencial, e ao
mesmo tempo com o o que verdadeiramente pode ser conhecido. Conhe­
cer, de acordo com isto, significa medir e comparar. Mas medir o quê? Será
que a “natureza matemática” buscada pelo saber é a mesma que a natureza
clássica? A matemática ainda será a mesma? O aparente recurso à “geo-
metrização” pitagórico-platônica do mundo nos inícios da ciência moderna
mascarava até certo ponto uma nova abordagem, que só veio a se tornar
mais clara com a “algebraização” da descrição física. Não foi tanto a geo­
metria clássica em si, mas sim a álgebra aplicada à geometria, que passou a
ser a matemática da nova ciência natural. Só isto já sugere a idéia de que
aquela ciência nada tinha a ver com as grandezas intuitivas da especulação
ontológica grega. (Ver apêndice 1 a este capítulo.) Esta observação pode
ser utilizada com o uma pista para descobrir as diferenças mais profundas
entre o conceito moderno e o conceito clássico de uma “natureza matemáti­
ca”, e assim determinar melhor o sentido que passa a ter no contexto da fí­
sica moderna a idéia de Jeans de uma divindade matemática.

Foi o interesse primordial pelo movimento, e não a satisfação com fi­


guras, que ocasionou na física a ascensão do método algébrico: movimen­
to, em vez de proporções espaciais fixas, passa a ser o principal objeto de
medição. Isto indica uma atitude radicalmente nova. Nos primeiros tem­
pos da ciência moderna a análise do devir substitui a contemplação do ser,
e é esta mudança que se encontra por trás da introdução da geometria
analítica. O papel que “t” passa agora a desempenhar nas fórmulas físicas
é uma expressão desta nova atitude. As “formas” que são pesquisadas já
não são mais as dos produtos da natureza existente, mas sim as dos pro­
cessos contínuos da natureza. O processo com o tal é definido simples­
mente por sua forma própria, isto é, pela lei de sua série, e de nenhuma
maneira por seu termo ou objetivo (que não existe), nem por nenhum re­
sultado alcançado no caminho. Enquanto, pois, a geometria grega consi­
derava as relações de figuras imutáveis e concretas, a álgebra moderna -
na geometria analítica e no cálculo integral - tornava possível apresentar a
própria forma geom étrica com o função de variáveis, isto é, com o uma
fase em seu crescimento contínuo, e desta maneira formular as leis de
onde elas se originam. Essas leis generativas passam a ser os verdadeiros
objetos do conhecimento matemático, em substituição às formas definiti­
vas da contemplação clássica, que perderam seu stãtus independente e
autônomo, passando a ser limites de transição.

Este desenvolvimento, em si interior à matemática, não deixou de ter


aplicações na física. De fato, uma “natureza” diferente passava a poder
ser investigada por uma matemática diferente. Pois o que dentro da esfe­
ra estritamente matemática aparecia com o o estabelecimento de uma
consideração funcional, em vez da consideração estática de objetos in-
tuíveis, quando aplicado ao cam po da descrição física significava o dis­
solver as “formas substanciais” da ontologia clássica nos movimentos e
forças elementares de que eram imaginadas (e experimentalmente de­
monstradas) com o produto. A geração funcional de uma curva matem á­
tica se converte então na geração mecânica da órbita de um corpo. O
produto considerado, ou seja, a forma da órbita, não é assim uma entida­
de completa simultaneamente presente, mas sim uma seqüência, isto é,
uma série de momentos, cada um dos quais é por sua vez determinado
pela soma dos fatores parciais deste momento preciso. A forma que as­
sim vai sendo adicionada não possui nenhuma realidade própria e inde­
pendente. Todos os traços racionais que uma série com o esta, por exem ­
plo uma órbita planetária, possa mostrar quando considerada com o um
todo ideal não são atribuídos a nenhuma razão nem a nenhuma vontade
de harmonia de um princípio motor, mas sim - com o mais tarde foi de­
monstrado por Newton em sua mecânica desses movimentos - da mera
uniformidade ou constância dos fatores elementares envolvidos. Estas -
no caso exemplar da gravidade e da inércia - de p e r si haveriam de pro­
duzir unicamente um movimento retilíneo, portanto o mais simples e m e­
nos “formalizado” de todos os movimentos. Mas sua mera adição, sob a
única condição de perm anecer constante6, e sem qualquer “ interesse”
em tal resultado, não pode deixar de produzir as formas extrem am ente
racionais de geom etria astral. É este o único sentido que ainda sobra
quando se afirma que as órbitas obedecem a uma regra (matematica­
mente expressável); é esta a razão suficiente para a lei e para a ordem na
natureza; o fundamento da explicação, pois, não é mais a racionalidade
de sua ordem, a forma inteligível não representa mais a pefeição do ser,
que precisamente por isso consegue tornar-se real, de preferência a for­
mas menores, mas ela própria é explicada pelo recuo a tipos de ocorrên­
cias mais baixos, ou mais simples; e estes, longe de se transformarem ou
pelo menos se modificarem ao entrar na ordem articulada, constituem,
pelo contrário, esta ordem, meramente permanecendo em sua quantida­
de inarticulada, de certa maneira obtusa. No fundo é só isto que é real; e a
“totalidade” visível do resultado de sua soma é apenas aparente, sem
desfrutar nem epistemológica nem ontologicamente de uma própria vali­
dade integral. É este o significado da análise moderna, que transformou
a matemática celeste dos antigos na mecânica celeste dos modernos, in­

6 . O u , c a s o s e ja m v a riá v e is , a c o n d iç ã o se ria q u e p o r su a vez a v a r ia ç ã o e s tiv e s s e s u b o rd i­


n a d a a c o n s ta n te s . A p re m is s a m a is im p o r ta n te p a ra q u e as leis n a tu ra is p o s s a m ex is tir é a
p ró p ria e x is tê n c ia de c e rta s c o n s ta n te s , a d m itin d o -s e q u e elas “d iv id a m ” e n tre si o c a m p o
in te iro dos fe n ô m e n o s n a tu ra is .
teiramente diferente, ou seja, em um caso da mecânica em geral7. A har­
monia pitagórica transformou-se em equilíbrio de forças indiferentes,
que pode ser calculado a partir das condições em que ocorrem. “Massa”
e “centro” não unem mais os opostos, mas são, pelo contrário, sua inevi­
tável soma.

Deste modo a relação entre mais e menos elevado, entre mais e m e­


nos racional, entre mais forma e menos forma, é substituída pela relação
entre com posto e simples, e a velha ordem de inteligibilidade converte-se
no seu contrário. Como o todo se explica a partir das partes, a inteligibili­
dade significa agora o poder ser reduzido àquilo que, por ser mais ele­
mentar, é o menos inteligível no velho sentido, por demonstrar m enos
razão em seu próprio realizar-se, isto é, por ser mais cego. W eil es im ei-
genert Vollzug am w enigsten Verstand verrãt, d. h. am b lin d esten ist.
Numa palavra, para a moderna idéia da com preensão da natureza o m e­
nos inteligente passa a ser o mais inteligível, o menos racional o mais
conforme à razão. No fundo de toda racionalidade da ordem da natureza
se encontra o mero fato das constantes quantitativas no com portamento
da matéria, ou o princípio da uniformidade com o tal, que encontrou sua
primeira verificação na lei da inércia - o que de certo não representa ne­
nhum atestado de razão imanente.

III - A doutrina clássica e a doutrina judeu-cristã


da criação

Fica claro que os diferentes sentidos em que falamos de uma nature­


za “matemática” não podem deixar de afetar também a idéia de um cria­
dor matemático. Por conseguinte o “grande arquiteto” de Jeans, por
mais que possa ser um “puro matem ático” , é inteiramente diferente do
demiurgo de Platão. Pode-se considerar com o certo que um ponto de vis­
ta metafísico não é apenas efeito, mas é também causa de um desenvol­
vimento científico, üm fato com o a repressão da teleologia e das formas
substanciais não pode sem mais nem menos ser atribuído a uma deter­

7 . G a lile u a in d a se e x p re s s a v a “tr a d ic io n a lm e n te ” q u a n d o d izia q u e os s ím b o lo s d a lin ­


g u a g e m m a te m á tic a d a n a tu re z a e r a m triâ n g u lo s , c írc u lo s e o u tra s c o is a s d e s te tip o .
E m b o r a n a a n á lis e d in â m ic a triâ n g u lo s p o s s a m o c o rre r c o m o c o n s tru ç õ e s a u x ilia re s , e
as s e ç õ e s c ô n ic a s re s u lte m e fe tiv a m e n te d a d in â m ic a d a n a tu re z a , n o e n ta n to te ria sid o
m a is a d e q u a d o a o m o v im e n to c ie n tífic o in a u g u r a d o p o r G a lile u se e le já p u d e s s e te r d ito
q u e os s ím b o lo s e r a m as c o n s ta n te s e v a riá v e is , as fu n ç õ e s e e q u a ç õ e s - e m s u m a , a lin ­
g u a g e m d a á lg e b ra . D e fa to só D e s c a rte s , N e w to n e L e ib n iz é q u e fo r n e c e r a m a m a t e m á ­
tic a p a ra a n o v a c iê n c ia n a tu ra l. S e u m e io d e e x p re s s ã o é m a is a e q u a ç ã o d ife re n c ia l d o
q u e os te o r e m a s d e E u c lid e s .
minada descoberta ou a um conjunto de descobertas feitas no estudo da
natureza, nem mesm o à invenção de um novo método. Pelo contrário, a
revolução do próprio método, sinalizada pelo súbito envelhecimento des­
tes veneráveis conceitos, exige uma explicação. Efetivamente eram ne­
cessárias certas condições metafísicas para simplesmente possibilitar o
novo acesso à natureza por parte da ciência pós-renascentista; e com o
estamos ocupados com o tema da criação, tentaremos a partir deste
ponto de vista particular lançar alguma luz sobre estas condições.

O Deus do Timeu criou o mundo constituindo-o com o um ser vivo per­


feito, ou com o o Deus visível, animado e racional. Olhando para os m ode­
los inteligíveis, ele criou o mutável à semelhança desses modelos, e por
conseguinte enquanto possível à sua própria semelhança. Pois o inteligí­
vel e o inteligente são uma só coisa. Da matéria passiva e carente de re­
gras não se poderia esperar que na transformação preservasse as formas
e as proporções que nela haviam sido gravadas, nem mesmo que forne­
cesse a força para o movimento de mudança com o qual a beleza do m o­
delo deve imitar no tempo a eternidade. Por isso a alma é necessária com o
causa sempre espontânea do movimento, e a razão necessária com o cau­
sa do movimento racional, isto é, de um movimento que demonstre obe­
decer a determinadas leis. É este duplo aspecto da alma - o de ser causa
de movimento e o de ser causa de ordem - que faz dela um princípio uni­
versal da natureza. A alma pervade o universo em diferentes graus de di­
vindade, isto é, de racionalidade. Quanto mais constante e racional um
movimento, tanto mais elevada deve ser a razão da alma que o provoca.
Daí a superior racionalidade dos corpos celestes comparada à dos seres
terrenos, inclusive do ser humano; daí a venerabilidade do universo com o
um todo - não devido à sua grandeza, mas sim porque nele coincidem in­
teligibilidade e inteligência, que serve de base para sua beleza visível.

Compare-se com isto a con cep ção judeu-cristã que ocupou seu lu­
gar. O mundo criado do Gênesis não é Deus, nem deve ser venerado
em lugar de Deus. Ele tam bém não tem uma alma própria que explique
sua atividade e sua ordem, sim plesm ente ele é criado, em nenhum sen­
tido é criador. O m onoteísm o judeu eliminou todos os deuses naturais e
todos os seres intermediários, estabelecendo uma nítida separação en­
tre Deus e o mundo. A hierarquia cristã dos anjos e dos santos não su­
perou o fosso existente entre Deus e o mundo, mas sim o fosso entre
Deus e a alma humana, a qual - sem pertencer à ordem da natureza -
compartilhava o caráter sobrenatural daqueles seres. De fato a alma
humana é o único ser no mundo - mas não do mundo - que foi criado
por Deus, ou m esm o que foi criado de Deus, e que por isso é em certo
sentido divina, ao passo que céus e terra, e todo o seu exército, são obra
de suas mãos, e não sua im agem 8. A separação essencial entre Deus e o
mundo repete-se ou reflete-se na separação essencial entre espírito e na­
tureza. A natureza, criada do nada, carece de espírito e executa cega­
mente a vontade de Deus, por quem unicamente ela subsiste. Desta for­
ma tornou-se metafisicamente possível a idéia de uma natureza sem es­
pírito, ou “c ega ” , que não obstante comporta-se com lei - isto é, contém
uma ordem inteligível sem que possua entendimento.

A condição para isto ser possível era que a “alma” fosse riscada do
texto da natureza, e isto por sua vez só era possível na medida em que na
explicação universal da natureza a alma não fosse necessária com o causa
do movimento. De fato, a alma em uma natureza sem espírito haveria de
ser uma fonte de irracionalidade, iria favorecer não a lei mas a desordem.
Ora, o que aconteceu foi que o monoteísmo transcendente, ao abolir os
deuses naturais e as forças divinas no mundo, favoreceu de maneira deci­
siva justamente a eliminação da alma do sistema dos princípios naturais, e
o mesmo monoteísmo provocou além disto o nivelamento da hierarquia
intramundana do ser, ao reduzir toda a natureza à igualdade da “criação”:
estrelas e pó, natureza celeste e natureza terrestre, são, com o criaturas,
iguais perante Deus. Por fim, logo que o m o v im e n to foi entendido com o
um dote inicial da natureza, e que ele se conserva a si próprio sem exigir
nenhuma outra espontaneidade de sua parte, pôde surgir também a ima­
gem de uma natureza não apenas sem espírito mas também sem alma,
isto é, de uma natureza que não apenas é inteligível sem possuir entendi­
mento, mas que também se m ove sem ser viva.

IV - A colheita do dualismo: a natureza sem alma


e sem espírito

A metafísica da ciência moderna aproveitou precisamente esta pos­


sibilidade que lhe era oferecida pela fé cristã na transcendência, e que
por tanto tem po havia detido a aliança medieval entre a doutrina da Igre­
ja e o aristotelismo. É verdade que a filosofia da natureza da renascença
- este “mais pagão de todos” os interlúdios do pensamento ocidental -
procurou unir a visão do universo com um animismo panteísta, no autên­
tico estilo clássico. Mas o século 17, com seu clima espiritual mais sóbrio
e muito “ mais cristão” , retornou ao rigor do transcendentalismo ju-
deu-cristão, assumindo dele a idéia de uma natureza não espontânea

8 . Q u e es ta d is tin ç ã o re lig io s a foi in te rp re ta d a e m u m s e n tid o q u e fa v o re c e u a c iê n c ia n a ­


tu ra l m o d e r n a , to rn a -s e m a n ife s to p o r u m a c ita ç ã o d e F ra n c is B a c o n , re p ro d u z id a n a
n o ta 3 , c a p ítu lo 1 0 .
mas sim estritamente submetida à lei. Com isto a nova metafísica da
ciência colheu os frutos de um dualismo que em sua longa trajetória ha­
via esvaziado a natureza de seus conteúdos espirituais e vitais, acrescen­
tando a esta o último capítulo, ao produzir sua versão própria de dualis­
mo. Sua forma clássica é a divisão da realidade, feita por Descartes, em
substância pensante e substância extensa. Com o a “ natureza” é total e ex­
clusivamente a última, isto é, ser exterior, enquanto que a primeira em
sentido nenhum é “natureza” , esta divisão forneceu a carta magna meta­
física para um quadro puramente mecanicista e quantitativo do mundo
natural, com seu corolário do método matemático na física. Aqui o cará­
ter do dualismo, e com ele a posição da matemática, passou por uma
modificação decisiva. A polaridade clássica de forma e matéria, de alma
ativa e corpo passivo, de inteligível e sensível (onde sempre o segundo
elemento do par desigual, falho em si mesmo, exige o primeiro para par­
ticipar do “ser” ), foi substituída por um novo tipo de polaridade, indicado
por pares com o sujeito-objeto, espírito-natureza, consciência-espaciali-
dade, interioridade-mundo exterior, onde sempre o segundo membro
goza de uma realidade independente - e em última análise primária. O
conceito diretor para o imaterial não é mais o conceito transcendente e
normativo do “espírito” , mas simplesmente o do “eu” em si, e o seu cor­
relato não é mais a “form a” e sim todo “não-eu” com o tal. Nesta ampla
negação do platonismo, de início encoberta pelo p a th o s racionalista da
escola cartesiana, o destino do espírito ocidental ficou decidido: foi dis­
solvida a aliança platônica do intelecto com o inteligível, e do inteligível
com o real, e a “natureza” pôde agora ser identificada com “ matéria” , isto
é, com uma matéria que existe para si própria e que está inteiramente sa­
tisfeita consigo mesma. Isto repete a posição do atom ism o antigo, mas
sobre um fundo dualista que é estranho ao seu predecessor clássico.
Com Descartes o dualismo entrou em sua última e letal m etam orfose,
para logo em segu ida se d ec o m p o r nas alternativas igu alm en te es­
téreis do idealismo e do materialismo. Pela primeira vez em sua longa
história, aquela espécie de consciência ou subjetividade, por mais sensí­
vel ou em ocional - em suma, irracional - que fosse, foi agrupada com a
razão de um lado, e toda espécie de ser espacial, inclusive sua forma ma­
temática, isto é, racional, foi colocada do outro lado. De fato, “matéria” ,
no sentido de “corpo” , passa a ser mais racional do que “espírito”.

A partir da extremidade metafísica, nós chegam os, portanto, ao


mesm o resultado a que havíamos sido levados antes pela análise do mé­
todo: que o menos racional passou a ser o mais - ou m esm o o único -
compreensível. Pois embora Descartes afirme haver mostrado “que o es­
pírito pode ser reconhecido melhor [ou “mais facilm ente” ] do que o cor­
p o ”9, seu próprio m étodo científico desmentiu no entanto esta exigência,
na medida em que se trata de conhecimento com o um sistema dem ons­
trativo. A facilidade do saber no caso do espírito significa simplesmente a
autocontemplação direta, que não obstante também deixa o contem pla­
do inteiramente sem relações com todo o cam po do conhecível, isto é,
da res extensa °, o único onde o método funciona. Com o o espírito não
conservou nenhum lugar no sistema daqueles objetos racionais que
constituem a natureza de Descartes - o tema de sua ciência -, resulta daí
o paradoxo de que a própria razão ( ra tio ) passou a ser uma coisa irracio­
nal, que no conjunto do cientificamente conhecível a inteligência é ininte­
ligível: noutras palavras, aquele que conhece é em meio a seus objetos,
isto é, o mundo, ele m esm o.o não-conhecível por excelência.

Mas nós vimos que não apenas o espírito mas também a alma, e por
conseguinte a vida, passaram a ser supérfluos para o conhecimento da
natureza. Movimento sem alma envolve força sem tendência, de onde re­
sultam formas que não foram visadas. A “força” é em todos os casos
conservativa, isto é, uma constante quantitativa que se transmite de m o­
mento para momento, em uma série sem fim. Mas com o vida significa
movimento espontâneo e que tende para uma meta, ao passo que a
nova com preensão científica só reconhece movimento conservativo, re­
sulta ainda este outro paradoxo, de que não apenas o sem-espírito mas
também o sem-vida passa a ser o compreensível em si, e a “matéria mor­
ta” passa a ser a medida de toda compreensibilidade. Mas na medida em
que a “vida” , não obstante, é encontrada com o um fato dentro da totali­
dade dos fatos físicos, compreendê-la significa precisamente adequá-la a
este padrão, isto é, explicá-la por meio dos conceitos do não-vivo. A teo­
ria de Descartes, do organismo com o máquina, do autômato animal (a
exceção do ser humano não passa de outra inconseqüência) é, portanto,
uma conseqüência lógica e inevitável de toda a sua posição metafísica e
epistemológica, que para além do seu momento histórico delimitou o ce­
nário para a ciência moderna. O “ L’homme machine” de La Mettrie
(com o também o moderno behaviorismo) é uma herança do dualismo
cartesiano privado de sua metade espiritual. E com o a ciência moderna,
com o ciência quantitativa e de medida, continua a ser apresentada no
palco em que por primeiro apareceu, o palco de uma natureza essencial­

9 . V e r a s e g u n d a m e d ita ç ã o e m s u a s “M e d ita ç õ e s s o b re a P rim e ira F ilo s o fia ”. Siehe die


Zweite Meditation in seinen, Meditationen über Erste Philosophic .
1 0 . “T u d o q u a n to v is to d e u m a fo r m a in te ir a m e n te g e ra l es tá in c lu íd o n o c o n c e ito d a m a ­
te m á tic a p u ra , e x is te re a lm e n te n a s c o is a s c o rp o r a is ” (S e x ta M e d ita ç ã o ): n a d a s e m e ­
lh a n te p o d e ria ser d ito s o b re o e s p írito , e c o m o a m a te m á tic a re p re s e n ta o id e a l d o c o ­
n h e c im e n to , isto q u e r d iz e r q u e só e x is te v e rd a d e ira c iê n c ia a re s p e ito d o s e r e x te rio r, e
n ã o d o in te rio r.
mente entendida com o “coisa extensa” ou realidade externa, a ela não
está aberta nenhuma outra com preensão do orgânico a não ser de acor­
do com os conceitos do não-espírito e do não-vida: e isto tem que ser re­
presentado com o um sistema de grandezas mínimas no espaço e no
tempo, onde todo objeto natural dado precisa ser dissolvido para que
seja compreendido.

V - O Deus matemático volta os olhos para o organismo

Tentei mostrar o que é que no contexto moderno significa a idéia de


uma natureza matemática, e o que é que neste contexto Jeans afirma (tal­
vez mesm o sem saber) quando diz que o arquiteto do universo seria um
matemático. Estamos agora suficientemente preparados para perguntar:
Deus é um puro matemático? - e isto no único sentido que a afirmação
pode ter nesta dada situação científica (e vimos que este não é o sentido
pitagórico). Para responder a esta pergunta tentaremos ver a criação com
os olhos do Deus matemático, e descobrir que objetos ele haveria de apre­
ender, e quais ele não haveria: quais, portanto (já que seu pensar é a causa
das coisas), ele poderia criar e quais não poderia ter criado11.

Que aspecto haveria de ter o mundo do divino matemático, nós po­


demos deduzir, se não do quadro mais antigo traçado por Laplace, dos
escritos, por exemplo, do físico matemático Eddington. Pressuponho
com o conhecidas suas penetrantes descrições do soturno mundo dos
valores matemáticos em que se dissolvem os objetos sólidos de nossa
experiência, ou as popularizações parecidas do quadro da ciência. Para
com eço de conversa, aceitemos a possibilidade de que, não obstante
toda falta de concretude e de cores, este quadro que substitui os objetos
familiares por sistemas de relações quantitativas entre núcleos dispersos
da realidade seja “mais verdadeiro” do que o dos nossos sentidos. Mas
admitamos que o olhar do divino matemático repouse casualmente so­
bre um corpo vivo, um organismo, não importando se unicelular ou pluri-
celular. Que é que o Deus dos físicos “veria”?

Com o corpo físico, o organismo haveria de apresentar os mesmos


traços gerais que outros agregados: na maior parte espaço vazio, de múl­

1 1 . A o re a liz a rm o s e s te te s te , se p o d e ria o b je ta r, n ó s e s ta m o s p res o s a o e s ta d o a tu a l d a


c iê n c ia , d e c u jo s lim ite s o c o n h e c im e n to d e D e u s e s ta ria liv re. M a s o p r o b le m a n ã o c o n ­
siste e m s a b e r o n d e a c iê n c ia ta lv e z a in d a e s te ja a tra s a d a e m seu p r o g r a m a , m a s a n te s
n a r e a liz a ç ã o a n te c ip a d a d e s te p r o g r a m a . Q u e r d izer, n ã o é u m a in c o m p le tu d e a tu a l
q u a lq u e r d o s seus re s u lta d o s , m a s e x a ta m e n te su a c o m p le tu d e id e a l im a g in a d a d e n tro
d a p ró p ria m o ld u ra c o n c e itu a i d a c iê n c ia q u e d e v e ser c o n fro n ta d a c o m os fa to s o n to ló g i-
c o s d o se r o rg â n ic o . E isto p o d e a c o n te c e r p o r e x tr a p o la ç ã o d o e s ta d o a tu a l n a d ire ç ã o
e m q u e e le a p o n ta .
tiplas maneiras atravessado pela geometria das forças que partem dos
seu centros, que com o ilhas constituem a substância elementar localiza­
da. Mas tanto dentro com o fora dele poderiam ser percebidos processos
especiais que fazem sua unidade fenomenal aparecer mais questionável
ainda do que a dos corpos comuns, e que com o correr do tem po elimi­
nam quase por com pleto sua identidade material. Refiro-me ao m etabo­
lismo, à sua troca de matéria com o ambiente. Neste estranho processo
de ser, para o observador que o decom põe as partículas de matéria de
que o organismo consiste em um dado momento do tempo são conteú­
dos apenas temporários e passageiros, cuja identidade material não co­
incide com a identidade do todo por onde elas passam - ao passo que
este todo mantém sua identidade própria, a forma viva, justamente pela
passagem de matéria estranha por seu sistema espacial. Ele nunca é ma­
terialmente o mesmo, e não obstante persiste com o um ser idêntico pre­
cisamente pelo fato de não permanecer a mesma matéria. Quando real­
mente se torna uno com a mesmidade de seu todo de matéria existente
- quando dois “ cortes temporais” seus passam a ser idênticos em seu
conteúdo individual, e idênticos também com os cortes intermediários
entre eles - então ele deixou de viver: está morto (ou seu processo de
vida cessou por algum te m p o )12.

1 2 . É n e c e s s á rio n ã o p e rd e rm o s d e vis ta a in te ira g e n e ra lid a d e do m e ta b o lis m o d e n tro d o


s is te m a v iv o . A tro c a d e m a té ria c o m o a m b ie n te n ã o é u m a a tiv id a d e p e rifé ric a d e u m n ú ­
c le o p e rs is te n te : é a m a n e ira to ta l da c o n tin u id a d e (a u to c o n tin u id a d e ) d o p ró p rio s u je ito d a
v id a . A m e tá fo r a d e “s u p rim e n to e d e s c a r g a ” n ã o re p ro d u z a n a tu re z a ra d ic a l d o fa to . E m
u m m o to r n ó s te m o s s u p rim e n to d e c o m b u s tív e l e a d e s c a rg a dos p ro d u to s d e c o m b u s tã o ,
m a s as p a rte s m e s m a s d o m o to r p o r o n d e e s te flu x o p a s s a n ã o p a rtic ip a m d e le: su a s u b s ­
tâ n c ia n ã o es tá e n v o lv id a n a s tra n s fo rm a ç õ e s q u e o c o m b u s tív e l so fre a o p a s s a r p o r ela ,
su a id e n tid a d e fís ica é u m fa to c la ra m e n te s e p a ra d o , q u e n ã o está e n v o lv id o n e m n esses
p ro c e s s o s d e tro c a n e m n a p ró p ria a ç ã o p ro v o c a d a p o r eles. A s s im a m á q u in a p e rs is te
c o m o u m s is te m a in e rte a u to -id ê n tic o , c o n tra r ia m e n te à id e n tid a d e m u ta n te d a m a té r ia
c o m q u e e la é “a lim e n ta d a , e, a c re s c e n te m o s , ela e x is te c o m o p e rfe ita m e n te a m e s m a
q u a n d o to d a e q u a lq u e r a lim e n ta ç ã o d e ix a d e existir: c o n tin u a a ser e n tã o a m e s m a m á q u i­
n a e m re p o u s o . E m o p o s iç ã o a isto, q u a n d o c h a m a m o s u m c o rp o v iv o d e “s is te m a m e ta -
b o liz a n te ”, n ó s te m o s q u e in c lu ir n o s ig n ific a d o d e s ta e x p re s s ã o q u e o p ró p rio s is te m a é in ­
te ira m e n te e s e m p re o re s u lta d o d e su a a tiv id a d e m e ta b ó lic a , e ta m b é m q u e n e n h u m a p a r­
te d o “r e s u lta d o ” cess a d e ser o b je to d o m e ta b o lis m o , s e n d o ao m e s m o te m p o o re a liz a d o r
d o m e s m o . J á p o r isso n ã o é c o rre to c o m p a r a r o o rg a n is m o a u m a m á q u in a . O p rim e iro a
fa z e r isto foi D e s c a rte s , e seu m o d e lo (d e s d e o p rin c íp io p e n s a d o p r a a n im a is e n ã o p a ra
p la n ta s ) já p re v ia , a o la d o d a e s tru tu ra d e p a rte s m ó v e is , u m a fo n te a W o r ç a p a ra p ô -la s e m
m o v im e n to : o c a lo r p ro d u z id o p e la c o m b u s tã o d o a lim e n to . A s s im a te o ria d a c o m b u s tã o
d o m e ta b o lis m o c o m p le ta a te o ria m e c â n ic a d a c o n s tru ç ã o a n a tô m ic a . M a s m e ta b o lis m o
é m a is d o q u e u m m é to d o d e p ro d u ç ã o d e fo rç a , o u o a lim e n to é m a is do q u e c o m b u s tív e l:
a lé m d e fo rn e c e r e n e rg ia c in é tic a p a ra o a n d a m e n to d a m á q u in a (o q u e d e q u a lq u e r m a ­
n e ira n ã o se a p lic a às p la n ta s ), seu p a p e l fu n d a m e n ta l é o r ig in a lm e n te o d e c o n s tru ir a p ró ­
p ria m á q u in a e c o n s ta n te m e n te s u b s titu ir su as p a rte s - e es te p ró p rio vir-a-ser é ele p ró p rio
u m a re a liz a ç ã o d a m á q u in a : m a s p a ra u m a re a liz a ç ã o c o m o es ta n ã o ex is te n e n h u m a n á ­
lo g o n o m u n d o d a m á q u in a .
À primeira vista isto lembra uma espécie de objetos familiares à físi­
ca. A descrição m atem ática pode lidar com totalidades dinâmicas,
cuja “id e n tid a d e ^ o tem po é diferente da de suas partes mutantes. Se
não me engano, a onda (em um m eio material com o água ou ar) repre­
sentou o primeiro exem plo para a descrição de tais entidades de ordem
mediata. As unidades oscilantes de que ela consiste sucessivam ente em
seu progredir não participam senão momentaneamente na com posição
da onda individual; com o a forma abrangente da perturbação que se pro­
paga, isto não obstante possui sua história própria e suas leis próprias, e
estas podem tornar-se objetos independentes de análise matemática,
abstraindo-se das identidades imediatas do substrato mutante. A física
moderna ocupa-se amplamente com tais estruturas de totalidade de pro­
cessos e em prega técnicas matemáticas especiais para sua descrição.
Aqui, portanto, a forma volta ao cenário físico com um significado cogni­
tivo próprio. E esta forma transcendente, uma estrutura processual, é de
uma ordem diferente de uma estrutura cristalina, onde a forma adere in-
separavelmente ao material constante.

Mas em vista da explicação a seguir devem os observar que a estas


estruturas de processo não é reconhecida nenhuma realidade especial
que ultrapasse aquilo que esteja contido na realidade única dos proces­
sos elementares participantes e que dela possa ser derivado: hipotetica­
mente as últimas devem explicar inteiramente todo caráter das primei­
ras, isto é, tem que existir uma estrita equivalência que se deixe expres­
sar através de uma equação. Isto significa que o todo, com o tal, não pos­
sui nenhuma novidade; e para uma inteligêncra infinita o conhecimento
simultâneo e discreto de todos os componentes individuais seria ainda a
forma mais perfeita do conhecer.

Ora, poder-se-ia ter a impressão de que o m esm o também vale (com


uma complexidade enormemente amplificada) para a continuidade de
forma daquelas variedades que nós chamamos de “organismos” . Tam ­
bém aí a análise do divino matemático, do supremo calculista de Laplace,
teria que, sem se deixar perturbar pelas fluidas som ações dos sentidos,
em última análise prender-se àqueles elem entos transitórios ( “transitó­
rios” sob o aspecto do todo imaginário) que em sua própria durabilidade
são os únicos a oferecer as identidades diretas para a construção m ecâ­
nica do com plexo, e as únicas que restam com o os resíduos de sua aná­
lise. O processo vital apresentar-se-á então com o uma série, ou um teci­
do de séries de processos referentes a estas unidades permanentes da
subtância geral: elas são então os atores reais que se m ovem por causa-
ções individuais através de determinadas configurações. A configuração
especial que observamos neste momento, que nós chamamos organis­
mo, não faz nenhuma diferença nem para cada identidade individual
nem para a maneira de funcionamento de cada partícula, sendo em prin­
cípio com o qualquer outra configuração por que elas possam passar e
passageiramente ajudar a constituir. Dentro delas não reina nenhuma
causalidade diferente do que fora, e a partícula que passa segue sua tra­
jetória no encadeamento de causa e efeito que lhe é próprio, quando en­
tra, quando está dentro e quando sai novamente. Que seu lugar seja ocu­
pado por um sucessor, é um fato cuja repetição se adiciona para a conti­
nuidade de um agregado de forma, mas não modifica a particularidade
de nenhum processo parcial. Assim não existe nenhuma razão para esta
determinada forma do conjunto, com seu sistema normal de interações,
postular uma essência especial. Frente ao fluxo das partes constitutivas
momentâneas, a duração configurativa através da troca - e com isto a
continuidade do “todo” - é uma abstração. Para ilustrar isto no exemplo
da onda em uma superfície de água: a rigor não é o “seu” progredir com o
uma forma que se m ove que provoca a sucessiva entrada de novas uni­
dades no movimento conjunto que a constitui, mas sim o contrário, que
a transmissão do movimento individual de caso para caso se soma entre
as partículas elementares vizinhas na aparente forma de totalidade, que
assim graças a ela se propaga. Pela mesma razão também o organismo
deve ser visto com o uma função da matéria metabolizada, e não o meta­
bolismo com o uma função do organismo. Todo processo que disto parti­
cipa, e por conseguinte também sua soma global a cada momento, pode
e deve ser explicado no sentido do esquema geral que serve de base ao
m odelo m atem ático-m ecânico do mundo: no sentido de indiferença te-
leológica, da causa eficiente, inércia, constância, partes mínimas, quan­
tidade extensiva, etc. Em uma análise ideal e completa desta espécie,
com o a podem os esperar do observador divino, a aparente mesmidade e
individualidade do todo orgânico se dissolverá ainda mais profundamen­
te em um resultado secundário da rede de todos os processos físicos do
ambiente, mais do que costuma ser o caso em corpos com postos; e to­
dos os traços de essência autônoma aparecerão no fim com o meramen­
te fenomenais, isto é, fictícios.

VI - O testemunho contrário do corpo vivo

Mais uma vez teremos que dizer aqui que a visão do divino matemáti­
co é menos corporal e colorida do que a nossa. teremos também,
com o antes, de admitir que poderia ser mais verdadeira? Certamente
não neste caso, e aqui nós nos encontramos em solo firme, pois aqui,
graças à circunstância de nós mesmos sermos corpos vivos, dispomos
de um conhecimento a partir de dentro. Graças ao testemunho direto do
nosso corpo podem os dizer o que nenhum espectador sem corpo teria
condições de dizer: que ao Deus matemático, em sua visão analítica ho­
mogênea, escapa o ponto decisivo - o ponto da própria vida: a saber,
que ela é individualidade autocentrada, existindo para si e em oposição a
todo o resto do mundo, com um limite essencial entre o dentro e o forâ^-
apesar da troca efetiva, ou m esm o baseada nela. Para qualquer outra for­
ma de agregado pode ser correto dizer que a unidade visível que a faz
aparecer com o um todo nada mais é do que o produto de nossa percep­
ção dos sentidos, que portanto ela não possu{'status on tológico mas
apenas fenom enológico> Sua identidade com o “esta coisa” - esta pedra,
esta gota de água - baseia-se então na relativa constância da agregação
e em última análise pode ser reduzida às identidades imediatas das par­
tes: uma identidade emprestada e mediata, que desaparece quando
aquelas se separam, ao passo que a das partes primárias é imaginada
com o inalienáveí\Mas então acontece que no ser vivo a natureza espe-
ra-nos com uma surpresa ontológica, onde o acaso das condições terre­
nas traz à luz uma possibilidade de ser inteiramente nova: a possibilidade
dos sistemas materiais de serem unidades do múltiplo não graças a
uma contemplação sintética de que elas justamente são objeto, nem gra­
ças ao mero encontro das forças que unem suas partes umas às outras,
mas sim graças a elas mesmas, por causa delas mesmas e sustentadas
continuamente por elas mesmas. A integridade é aqui auto-integrativa
em realização ativa: forma não é resultado mas sim causa das acumula­
ções materiais de que ela consiste em momentos sucessivos. Unidade é
aqui auto-unitiva por meio da multiplicidade que se transforma.^Mesmi-
dade, enquanto dura, é permanente auto-renovação por meio de proces-
so, sustentada no fluxo do sempre outro. E só esta auto-integração ativa
da vida que nos fornece o conceito ontológico do indivíduo, em oposição
ao meramente fen om en ológico^

Este indivíduo ontológico, sua existência em cada momento, sua du­


ração e sua mesmidade no durar, são, pois, essencialmente função dele
próprio, interesse dele próprio, realização contínua dele próprio. Neste
processo de ser que se autoconserva, a relação do organismo com sua
substância material é de duas espécies: os materiais lhe são essenciais
segundo a espécie e acidentais segundo a individualidade; ele coincide
com sua acumulação efetiva no momento, mas não está preso a nenhu­
ma acumulação determinada na série dos momentos, mas unicamente à
sua forma, que é ele mesmo; dependem de que o material esteja disponí­
vel, ele independe de sua mesmidade com o este objeto; sua própria iden­
tidade funcional não coincide com sua identidade substancial. Numa pa­
lavra: a forma orgânica está para com a matéria em uma relação de li­
berdade necessitada. ^
VII - Forma e matéria

Consideremos este novo elemento da liberdade que aparece no orga­


nismo sob o aspecto especial de form a. Vimos que forma - isto é, forma au­
tônoma, em si real - é um caráter essencial da vida. Com isto pela primeira
vez a diferença entre matéria e forma, que em relação ao não-vivo é uma
mera abstração, se destaca no reino do ser com o uma diferença real. E isto
com uma completa inversão da relação ontológica. A forma passa a ser a
essência, e a matéria o acidente. Expressando isto ontologicamente: na
configuração orgânica o elemento material cessa de ser a substância (que
em seu próprio plano ela continua a ser), passando a ser apenas substrato.

1. A u to n o m ia e in d ep en d ên cia da form a

A autonomia da forma não significa existência separada. Evidente­


mente a unidade concreta de matéria e forma, que é um caráter do mun­
do que não pode ser suspenso, ele evidentemente também subsiste aqui,
mais exatamente no coincidir da forma com a base material de cada m o­
mento. Seu organismo é sempre, ou seja, é em cada momento a forma
de uma determinada multiplicidade de matéria. Mas enquanto no reino
da matéria, com o já ficou dito, a separação das duas e a forma em si é
uma abstração a partir do ser acidental da forma na substância, no plano
da vida, pelo contrário, a diferença das duas é o concreto, e sua igualda­
de, efetivamente realizável no corte de cada momento referido ao todo
da vida da forma, é apenas uma abstração. Pois precisamente este corte
individual ao longo da existência é ele mesmo, no ser vivo, uma mera
abstração: a realidade de sua forma está na sucessão de suas materiali-
dades momentâneas, que ela transforma em sua duração, e somente esta
é a concretude de sua unidade, não com o de um atributo lógico mas sim
com o realização produtiva. -'Enquanto o momento pontual - cada m o­
mento do tem po - de uma totalidade material a apresenta completa, po­
dendo teoricamente ser substituído por qualquer outro, o corte m om en­
tâneo de um organismo, por mais materialmente com pleto que seja,
apresenta tudo menos o que importa, a vida, cuja forma só pode ser en­
contrada no temporal e nas totalidades de suas funções^É a temporalida-
de, e não o espaço simultâneo, que constitui o meio da totalidade de forma
do ser vivo; e esta temporalidade não é um estar indiferentemente um fora
do outro, com o é o tempo para os movimentos da matéria, para a seqüên­
cia de seus estados, mas sim o elemento qualitativo da representação .da
forma mesma de vida, por assim dizer o meio de ligação de sua unidare
com a multiplicidade de seus substratos - ligação esta que no seu progres­
so dinâmico é precisamente a vida.

Tão errado com o deixar-se levar, pela possibilidade de abstrair da


matéria a forma material, à sua hipostatização com o ser em si, isto é, es­
quecer sua dependência elementar e reinterpretar momentos abstratos
com o entidades concretas (um mal-entendido ontológico que se encon­
tra na raiz de muita filosofia) - tão errado é, por sua vez, entender com o
identidade a momentânea coincidência da forma viva com seu substra­
to. Mas a auto-identidade, no ser não-vivo apenas um atributo lógico cuja
afirmação não passa de uma tautologia, é no ser vivo um caráter ontolo-
gicamente rico de conteúdo, constantemente alcançado no exercício da
função própria frente à modificação da matéria.

/rA independência da forma viva mostra-se antes de tudo em que ela


não possui sua substância material de uma vez por todas, mas que a
transaciona com o mundo ambiente em V
um constante receber e eliminar
- e nisto permanecendo ela mesm a.'Quer dizer: sua substância material
é dependente do momento, e esta dependência do momento é sua fun­
ção própria. Vista a partir da identidade fixa do material tal com o seria re­
gistrada em cada momento, a forma viva é apenas uma região espa-
ço-temporal de passagem para os materiais que temporariamente e se­
gundo leis próprias permanecem dentro de seus limites, e sua aparente
unidade não passa de um estado configurativo da multiplicidade destes
elementos transitórios. Vista, porém, a partir da identidade dinâmica da
forma, ela é o que é real na relação: não deixa que a matéria do mundo a
atravesse passivamente, mas é ela própria que ativamente a atrai e a re­
pele, e que através dela se constitui.'no ser não-vivo a forma não passa
de um estado de com posição mutante, de um acidente da matéria, que é
permanente. Mas na forma viva, ativa e organizativa, os conteúdos mate­
riais mutantes são estados do seu ser, que perm anece idêntico; a varie­
dade daqueles é o âmbito de ação de sua unidade; e em vez de dizer que
a forma viva é uma região de passagem da matéria, mais correto será di­
zer que a sucessão dos estados de matéria que em cada momento a
constituem são fases transitórias do processo da forma que se auto-
constitui. - Mas perguntar-se-á: o que pode significar dizer que uma vi­
são é “ mais correta” do que a outra, quando ambas são possíveis, isto
é, são equivalentes com o descrições do m esm o fato a partir de aspectos
diferentes? E se o são, por que a im agem física do mundo, cuja norma
é satisfeita por uma das visões, deveiTa ser perturbada ou questionada
pela outra? Esta questão será abordada mais adiante.
2. O p rob lem a da id entidade

/ A liberdade básica do organismo consiste, com o vimos, em uma certa


interdependência da forma com relação à sua própria matéria^Em uma
descrição estritamente material do mundo tal dependência ou é um absur­
do ou uma aparência enganosa.^Mas não sendo mera aparência, então o
seu ocorrer, que coincide com o da vida, significa uma revolução ontológi­
ca na história da “matéria” ; e o desenvolvimento e aumento desta inde­
pendência ou liberdade é o princípio de todo progresso na história da evo­
lução da vida, que em seu decurso apresenta outras revoluções, cada uma
delas um novo passo na direção tomada, isto é, cada uma abre um novo
horizonte de liberdade/ O primeiro passo foi a emancipação da forma, por
meio do metabolismo, da identidade imediata com a matéria. A o mesmo
tempo isto significa o emancipar-se do tipo de auto-identidade fixa e vazia
própria da matéria, em favor de uma outra espécie de identidade transmiti­
da e funcional. Em que consiste a essência desta identidade?

A partícula de massa, que pode ser identificada por sua posição no


espaço-tempo, é simplesmente e sem contribuição sua o que ela é, dire­
tamente idêntica consigo mesma, sem que tenha necessidade de afirmar
esta identidade com o um ato de seu ser. A auto-identidade do seu m o­
mento é a lógica vazia do A = A; a de sua sucessão ou duração é o vazio
permanecer, que não precisa sempre de novo ser confirmado. Que signi­
ficado tem aqui o permanecer ou o perseverar? No permanecer a partí­
cula é sucessivamente “idêntica” graças à continuidade das dimensões -
espaço e tem po - em que “sua” seqüência ocorre. Ela é esta e não aque­
la, porque esta está agora aqui e aquela agora ali; perm anece esta, isto é,
a mesma em um ponto (posterior) do espaço-tempo, porque é levada da
posição atual para a posterior pela contínua seqüência de todas as posi­
ções intermediárias, que por assim dizer a transmitem de uma posição
para a seguinte sem nunca a separarem do nexo que as une. Esta suces­
são constitui a “trajetória” da partícula, e se ela fosse descontínua - se nela
existissem lacunas - nós não teríamos nenhum meio de identificação, não
teríamos nem sequer o direito de aplicar o conceito da identidade; ela não
existiria - a não ser que dotássemos o elemento (com o o fez Whitehead)
de uma interioridade que por uma espécie de memória ultrapassasse a
descontinuidade do acontecer atual. Mas isto é uma transferência do reino
da vida, e manifestamente uma especulação. (Ver anexo 2 a este capítu­
lo.) Em uma descrição puramente física, para a “mesmidade” de alguma
coisa não se pressupõe senão a contínua presença no contínuo que a con­
tém, nem se pode pressupor menos do que isto. Assim, de acordo com os
conceitos físicos só existe este princípio exterior de uma identidade, atri­
buído ao portador a partir dos princípios de individuação (espaço e tem ­
po). Nada sabem os de um princípio interior de identidade nas meras
unidades de matéria13.

A identidade orgânica, pelo contrário, tem que ser de uma espécie in­
teiramente diferente. Na precária continuidade metabólica da forma or­
gânica, com sua permanente troca das partes que a constituem, não se
encontra à disposição com o pólo de referência da identidade exterior ne­
nhum substrato permanente - nem uma “trajetória” isolada nem um “fei­
xe” de trajetórias. Uma identidade interior do todo que ultrapasse a identi­
dade coletiva do substrato que a cada momento se faz presente e desa -
parece tem que incluir a seqüência mutante. Tal identidade interior está
implícita na aventura da forma, involuntariamente sendo induzida de
seu testemunho m orfológico exterior, o único acessível à observação.
Mas que espécie de indução é esta? E quem é que a realiza? Com o pode o
observador desprevenido deduzir o que não resulta de nenhuma análise
do conteúdo físico? Na verdade, o observador despreparado não o pode:
o observador tem que estar preparado, com o não o está o hipotético
“matemático puro” . O observador da vida tem que estar preparado atra­
vés da vida. Noutras palavras, dele se exige o ser orgânico com sua expe­
riência própria, para que esteja em condições de deduzir aquela “conse­
qüência” que de fato ele tira continuamente, e esta é a vantagem, tão tei­
mosamente negada ou caluniada, da história da teoria do conhecimento
- a vantagem de termos um corpo, ou de sermos corpo. Em suma, nós
estamos preparados por aquilo que somos, é ó por meio da interpolação
da identidade interior, que assim se torna possível, é que o fato m era­
m ente m o rfo ló g ico (e c o m o tal carente d e sen tido) da continuidade
metabólica é com preendido com o ato incessante, isto é, a continuidade
é compreendida com o autocontinuação.^ V

/A introdução do conceito de “si m esm o” (do “se/òsí” ), inevitável na


descrição até do mais elementar caso de vida, indica que a identidade en­
trou no mundo com a vida com o tal - e com ela^ conseqüentemente,
também o seu auto-isolar-se do resto da realidade) A mesmidade do or­
ganismo é caracterizada pela individualidade e heterogeneidade radical
em meio a um universo de seres hom ogeneam ente relacionados entre si.
üma identidade que se faz de momento a momento, que sempre de novo

1 3 . N o q u e se refe re à p a rtíc u la ind ivid u al,^ p o rtan to , o ú n ic o se n tid o o p e ra c io n a l d e “id e n ti­


d a d e ” é a c o n tín u a p re s e n ç a no co n tín u o , q u e p o d e ser a c o m p a n h a d a , e sua v e rific a ç ã o
c o m p le ta é a tra je tó ria s e g u id a . D e su a m a n e ira de p e rm a n ê n c ia in e rte n ã o tra n s p a re c e n e­
n h u m a m a n ife s ta e x ig ê n c ia d e u m p rin c íp io in te rio r de id e n tid a d e , c o m o p o r e x e m p lo u m a
le m b ra n ç a histórica o u u m im p u ls o a n te rio r p a ra u m a “a u to ”c o n tin u a ç ã o . E u m a ve^ q u e
n ã o existe n e n h u m ve stíg io d e a m e a ç a à sua ex istê n cia, fa lta to d a e q u a lq u e r ra zã o p a ra d o ­
ta r sua p e rm a n ê n c ia c o m u m a in te rio rid a d e co n a tiv a .
se afirma forçando as forças igualizadoras da mesmidade física, encon­
tra-se em uma tensão essencial com o todo das coisas. Na perigosa polari­
zação em que envolveu-se a vida assim surgida, aquilo que não é ò^selbst
e que se limita por fora com a região da identidade interior logo assume o
caráter de outridade incondicional. O desafio da mesmidade qualifica
com o estranho e de certa forma contrário tudo quanto se encontre além
dos limites do organismo: com o “mundo” , no qual, através do qual e con­
tra o qual ele precisa conservar-seftSem esta oposição universal da outri­
dade não seria possível existir m esm idade.vt nesta polaridade entre s{
mesm o e mundo, entre dentro e fora, que completa o que existe entre for­
ma e matéria, é dada a situação fundamental em que se encontra coloca­
da potencialmente a liberdade, com toda sua ousadia e p recaried ad e.^

VIII - Liberdade dialética

^ N o conceito da liberdade nós temos um conceito-guia capaz de ori­


entar-nos na tarefa de interpretar a vida*. O mistério do vir-a-ser em si é
para nós inacessível. Por isso ele continua a ser uma suposição - para
mim pessoalmente uma forte hipótese - que já o princípio que funda­
menta a transição de substância sem vida para substância viva foi uma
tendência nas profundezas do próprio ser designada por esta palavra.
Mas de certo logo o conceito encontra seu lugar na descrição da estrutu­
ra mais elementar da vida14.**Por conseguinte “liberdade” , neste sentido
descritivo, é um traço ontológico fundamental da vida em s ^ e também,
com o se comprova, o princípio contínuo - ou pelo menos o resultado
constante - do seu avanço para graus mais elevados, onde a cada passo
liberdade se constrói sobre liberdade, liberdade superior sobre liberdade
inferior, liberdade mais rica sobre liberdade mais simples: em termos do

1 4 . A c o n c lu s ã o d a v a lid a d e d e s c ritiv a p a ra a v a lid a d e e tio ló g ic a é u m p a s s o o u s a d o d a


e s p e c u la ç ã o . S o m o s im p e lid o s a e s te p a s s o q u a n d o e m su a p rim e ira m a n ife s ta ç ã o in c lu í­
m o s - c o m o n ã o p o d e m o s d e ix a r d e fa z e r - a ló g ic a irres istív el c o m q u e o p rin c íp io a v a n ­
ç a e m fo rm a s c a d a ve z m a is o u s a d a s , q u e o r e p re s e n ta m d e u m a m a n e ira s e m p r e m a is
p e rfe ita , e ta m b é m q u a n d o nos v o lta n d o p a ra o p a s s a d o c o n s id e ra m o s se u s a n te c e d e n ­
tes q u e s u s te n ta m o to d o . A v is ív e l m a n e ira p ro d u tiv a c o m o e s te a m p lo p ro c e s s o es tá
v o lta d o p a ra u m fim to rn a e x tr e m a m e n te im p r o v á v e l u m a p u ra “h e te ro g e n ia d o s fin s ”
e m re la ç ã o a seu c o m e ç o . D e s ta fo r m a o c o n c e ito o n to ló g ic o d a lib e rd a d e n o s a p o n ta
p a ra a m a té r ia , o n d e os fins n ã o p o d e m se r p e rc e b id o s , m a s q u e tra i su a s e c re ta p o te n ­
c ia lid a d e na g ra n d io s a e s c a p a d a d a v id a . S u a ríg id a a u to -id e n tid a d e , q u e s e g u n d o o te s ­
te m u n h o d a v id a n ã o é a ú ltim a p a la v ra , t a m b é m n ã o p re c is a ser a p rim e ira , ü m a h is tó ria
m e ta fís ic a d a “s u b s tâ n c ia ” p o d e tra n s c e n d ê -la p a ra os d o is la d o s ... A s s im n ã o c o n s e g u i­
m o s e s c a p a r a u m a in te r p r e ta ç ã o e s p e c u la tiv a do se r e m si, o n d e a m a té r ia e n c o n tra seu
lu g a r c o m o m a n e ira o u e s ta d o , c o m o fa s e o n to ló g ic a . P or e n q u a n to te m o s q u e ' o c u ­
p a r-n o s c o m u m a fa s e r ig id a m e n te fe n o m e n o ló g ic a d a v id a .
conceito da liberdade o todo da evolução pode ser interpretado de uma
maneira convincente (de que mais tarde serão dadas algumas am os­
tras); e a^tarefa da biologia filosófica seria acompanhar o desenvolvim en­
to deste germ e de liberdade nos graus ascendentes do desenvolvimento
orgânico? Para nosso objetivo neste m om ento serão suficientes umas
poucas observações para mostrar alguns atributos que já incluem em si
o estágio básico com o tal, definido pelo metabolismo, e torná-lo disponí­
vel à evolução para ulterior elaboração.

1. Liberda de e n ecessidade

uNossa primeira observação está voltada para a natureza inteiramente


dialética, com o gostamos de dizer, da liberdade orgânica, para o fato de
ela encontrar-se no equilíbrio de uma necessidade correlativa que lhe ade­
re inseparavelmente com o a própria sombra, e que por isso em cada de­
grau de sua ascensão para graus mais elevados de independência retorna
com o uma sombra mais acentuada''àá nos deparamos com este duplo
aspecto no modo primário da liberdade orgânica, no metabolismo com o
tal, que por um lado designa um poder da forma orgânica, o poder de mu­
dar sua matéria, mas que ao mesm o tempo implica também a inevitável
necessidade de fazer exatamente isto^Seu “ poder” é um “dever”, uma vez
que o realizar identifica-se com o seu ser. Já observamos que a auto-ativi-
dade da forma não significa um estar desvinculado, sua não-identidade
com o substrato não significa imaterialidade (que em toda esta fundamen­
tação referente aos graus de liberdade funcional na substância do mundo
não pode ser encontrada em lugar nenhum, uma vez que a base inferior,
por mais exaltada que seja, sempre continua a ser base). A forma viva,
existindo no tem po, é em cada m om en to m aterialm ente concreta - mas
não pode permanecer nesta concretude única consigo mesma, isto é, na
coincidência com a determinada soma de matéria do momento. Não o
pode, porque sua “liberdade” é sua necessidade, o “poder” se transforma
em “dever” quando o que importa é ser, e em toda vida é deste “ser” que
se trata. O metabolismo, portanto, a capacidade que distingue o organis­
mo, sua soberana primazia no mundo da matéria, é ao mesmo tempo sua
forçosa obrigação. Podendo o que pode, ele não pode entretanto, enquan­
to existir, não fazer o que pode. Possuindo o poder, tem que exercê-lo para
existir, e não pode cessar de fazê-lo sem que cesse de existir: liberdade
para o fazer, mas não para o omitir.

^ Assim a soberania da forma sobre sua matéria é ao m esm o tem po


sua sujeição à matéria. Inteiramente estranha ao ser auto-suficiente da
pura matéria, esta necessidade é uma característica da vida não m enos
única do que seu poder, de que ela apenas representa o outro lado: a
própria liberdade é sua peculiar necessidade. É esta a antinomia da li­
berdade nas raízes da vida e em sua forma mais elementar, a do próprio
metabolismo. *

2. O si-m esm o e o m u n d o: a tra n scen d ên cia da necessidade


/
r
Uma segunda observação vem logo a seguir. Para poder trocar maté­
ria, a forma viva tem que dispor de matéria, e esta ela encontra fora de si,
no “mundo” estranho. Com isto a vida está voltada para o mundo em
uma relação particular de dependência e poder. Seu interesse próprio de
estar ativa na aquisição da matéria nova de que tem necessidade é es­
sencialmente abertura para o encontro com a realidade externa. Necessi­
tada do mundo, está voltada para ele; voltada (ou aberta) a ele, está com
ele relacionada; relacionada com ele está pronta para o encontro; dispos­
ta para o encontro, é capaz de experiência; no provimento ativo de seu
ser, primariamente na auto-ativação do fornecimento de matéria, ela cria
perm anentem ente encontro a partir de si, atualiza a possibilidade da
experiência; pela experiência " ‘possui” o “ mundo”)vAssim o “ mundo” se
encontra aí desde o primeiro início, com o condição básica para a expe­
riência: um horizonte aberto pelo mero caráter transcendente da carên­
cia, que o fechamento da identidade interior amplia em um círculo de re­
lação vital correlativo/O ter-o-mundo, portanto a transcendência da vida,
com que necessariamente alcança para além de si e amplia seu ser para
um horizonte, já é dado tendencialmente com sua necessidade orgânica
de matéria, que por sua vez se fundamenta em sua liberdade formal da
matérià^ Assim, a dialética do fa to da vida le v a da positividade básica
da liberdade ontológica (forma-matéria) para o negativo da necessidade
biológica (dependência da matéria), e através dela mais uma vez para o
positivo mais elevado da transcendência que une as duas, e onde a liber­
dade appssou-se da necessidade e a superou pela capacidade de ter o
mundo^rSoutras palavras, o autotranscender da vida em direção ao mun­
do, que na sensibilidade o leva ao ter-presente-o-mundo, surge, com toda
a sua promessa de estágios mais elevados e mais amplos, da antinomia
entre liberdade e necessidade, radicada no ser do organismo com o tal."x

Demoremo-nos ainda um pouco no fator da necessidade, que é pe­


culiar à vida e que de uma maneira igualmente peculiar carrega seu cará­
ter com o a liberdade complementar. O depender da matéria fora dela, o
outro lado da liberdade ontológica da vida, não é, no sentido físico, um fe­
nômeno menos novo do que essa mesma liberdade. A matéria em si não
o conhece. A entidade isolada da matéria subsiste em sua simples au-
to-identidade e é suficiente em seu ser. Que ela seja, e o que ela seja,
pode na verdade ser função da totalidade material que condiciona cada
uma com o parte do todo cósmico, e por isso a possibilidade de ela ser
isolada é apenas uma abstração provisória: mas dentro desta condição
universal sua existência particular é auto-suficiente, e em toda ação de
troca com seus vizinhos é deles constantemente distinta e não-necessita-
da de matéria estranha. Mas o caráter necessitado da vida vai além da
própria subsistência e relaciona-se com o estranho com o potencialmen­
te próprio, só possuindo o próprio com o potencialmente estranho^Neste
autotranscender através da condição de necessidade fundamenta-se a
transcendência essencial de toda vida, que nos estágios mais elevados
lhe abre um mundo cada vez mais am plo/O ser-dependente indica o
campo de suas possíveis realizações, desta maneira criando a intencio-
nalidade com o um caráter básico de toda vida'.0

3. A dim en sã o da in teriorid a d e
Ç
Em terceiro lugar, esta transcendência inclui interioridade ou subjeti­
vidade, que em bebe todos os encontros que ocorrem dentro de seu hori­
zonte com a qualidade da mesmidade sentida, por mais fraca que seja
sua voz >E1a tem que estar presente, para que possa existir uma diferença
entre satisfação e frustração. Quer chamemos esta interioridade de sen­
sação, sensibilidade e resposta a estímulos, busca ou tendência - em cer­
to grau (m esm o infinitesimal) de percepção sensitiva ela abriga o interes­
se absoluto do organismo em sua própria existência e em sua preserva­
ção - isto é, ela é “egocêntrica” ao m esm o tem po que supera o fosso
qualitativo em relação ao resto das coisas através de modos de relação
eletiva, que com sua peculiaridade e urgência substituem para o organis­
mo o lugar da integração geral das coisas materiais em sua vizinhança fí­
sica. Em parte isto repete o que foi dito antes sobre a autotranscendência
da vida.^Mas o horizonte aberto significa afetabilidade tanto quanto es­
pontaneidade, expor-se ao exterior não menos que chegar ao exterior: é
só pelo fato de a vida ser sensitiva que ela pode ser ativa) No ser-afetado
por um estranho, o afetado sente-se a si próprio; sua mesmidade é esti­
mulada e com o que iluminada pela outridade do fora, desta maneira des­
tacando-se em seu isolamento. Mas ao m esm o tempo, ultrapassando o
estado de excitação meramente interior, e através dele, é sentida a pre­
sença do afetante, sua mensagem, por mais ç^scura que seja, é assumi­
da na interioridade com o a mensagem do outro>Com o primeiro desper­
tar do estítmulo subjetivo, com a mais rudimentar de todas as experiên­
cias, a do toque, abre-se uma fenda na taciturnidade do ser dividido e li­
berta-se uma dimensão onde as coisas ganham um ser novo e multiplica­
do no m odo do objeto: é a dimensão da interioridade representativa. As­
sim com o o interesse impelido pela necessidade procura o outro, assim
também a presença não-convidada do outro desperta o interesse. Mas
m esm o a presença não-convidada está prevista na prontidão do organis­
mo para o encontro em si; e m esm o a rejeição através do agir pressupõe
a apropriação (isto é, interiorização) através da sensação. É verdade
que a autotranscendência tem seu fundamento na necessidade orgânica
e por isso é uma coisa só com a compulsão para a atividade: ela é movi­
mento para fora; mas a receptividade da sensação, para o que vem de
fora, este lado passivo da mesma transcendência, coloca a vida no estado
de ser “eletiva” e “informada” , em lugar de ser apenas uma cega dinâmica.
Desta maneira a identidade interior, pelo fato de estar aberta para fora,
passa a ser pólo subjetivo de uma comunicação com coisas, comunica­
ção esta que é mais estreita que entre as unidades meramente físicas, e as­
sim, a partir do isolamento do próprio sujeito orgânico, surge o exato oposto
do isolamento'. Mais uma vez deparamo-nos aqui com a estrutura dialética
que perpassa todos os caracteres ontológicos da vida, fazendo-a aparecer
de todos os lados com o um paradoxo da existência material.

4. O h oriz on te do tem po

E uma última observação. Quando falamos de transcendência da


vida, queremos dizer que ela mantém um horizonte, ou horizontes, além
de sua identidade puntiforme. Até agora o horizonte do mundo ambiente
foi explicado através da presença de coisas ou da extensão da relação
para o espaço simultâneo. Mas o auto-interesse, impelido pela necessida­
de, abre igualmente um horizonte temporal, que abrange não o presente
exterior mas sim o estar-iminente interior: o estar-iminente daquele futu­
ro mais próximo, para onde em cada momento a continuidade orgânica
está a caminho para satisfazer a carência precisamente deste momento.
'Desta forma a face da vida está voltada tanto para a frente com o para
fora; assim com o seu aqui estende-se para o ali, assim também seu ago­
ra estende-se para o logo-mais, e a vida se encontra ao m esm o tempo
nos dois horizontes “ além ” de sua própria imediatez^Ou mesmo: ela só
olha para fora porque através da necessidade de sua liberdade olha para
a frente, de modo que a presença no espaço por assim dizer se clareia ao
ser iluminada pelo logo-mais no tempo, ambas passando para a realiza­
ção ou também para a decepção.^Desta forma o elemento da transcen­
dência, que nós encontramos na essência primordial da existência meta-
bólica, encontra sua articulação mais plena: osMois horizontes para os
quais a vida constantemente se transcende podem ser reduzidos à rela­
ção transitória da forma orgânica para com sua própria matéria/K orien­
tação interior para a fase imediatamente seguinte de um ser que precisa
manter-se a si mesm o constitui o tempo biológico; a orientação exterior
para o não-ele-mesmo igualmente presente que contém a matéria neces­
sária para sua continuação constitui o espaço biológicó.^Como o aqui se
amplia para o ali, da mesma maneira o agora amplia-se para o futuro.

^Segue-se que no horizonte interior do tempo, que a transcendência do


agora orgânico estende sobre o processo de sua continuação, a antecipa­
ção do logo-mais na busca é mais fundamental do que a sobrevivência do
acontecido na memória - portanto o futuro mais fundamental do que o
passado, üma certa medida de memória não pode deixar de estar presen­
te a toda vida, com o a forma subjetiva de sua identidade na duração. Pois
a aceitação do passado em todo novo agora que surge, isto é, a “historici-
dade” com o tal, mesmo que do mais curto período, é a condição prévia
para a continuidade interior (duração). Mas o horizonte dominante do tem­
po é o futuro, que se abre diante do impulso da vida, embora o interesse
seja o primeiro princípio de sua interioridade^v

V Segue-se ainda que o esquema temporal linear de antes e depois, de


antecedénte e conseqüente, que vigora no exterior meramente físico, não
é adequado à esfera do orgânico^nquanto aquele é inteiramente determi­
nado (ou pelo menos pode ser pensado com o determinado) por aquilo
que foi, a vida sempre já é também o que há de ser e o que se prepara para
ser: nela a ordem extensiva de passado e futuro está intensamente inverti-
da.(/É esta a raiz da natureza teleológica ou finalista da vida: “Finalidade” é
em primeira linha um caráter dinâmico de uma certa maneira de ser, que
coincide com a liberdade e a identidade da forma em relação à matéria, e
só em segunda linha um fato da estrutura ou organização física, com o
ocorre na relação finalista das partes orgânicas ( “órgãos” ) com o todo e
na aptidão funcional do organismo em si. Com esta lembrança aristotélica
nós nos voltamos novamente da análise para a discussão. ^

IX - O matemático divino: crítica de sua visão

1. In visib ilid a d e da vida na análise do extenso

i Nenhum dos aspectos que acabamos de apresentar cabe em uma


descrição matemática de objetos físicos;'e não se pode contestar que o or­
ganismo é um objeto físico, e com o tal está sujeito à uniformidade da des­
crição em categorias de extensão do espaço-tempo. Exteriormente sua or­
ganização se apresenta com o um arranjo in extenso, e seu comportamen­
to com o a mecânica extremamente subtil deste arranjo: a análise físi-
co-química da vida visa o completo desemaranhamento de uma e de ou­
tro, que não pode deixar de levar à sua completa inclusão com o um caso
especial das leis gerais dos arranjos físicos. Isto se dá porque “desemara-
nhar” significa reduzir ao elementar, que é “anorgânico”, isto é, sem vida, e
universal, isto é, igual em toda a natureza -/de m odo que com preender
cientificamente a vida significa acomodá-la conceitualmente àquilo que
não é vida> Quando plenamente alcançado, isto resultaria no desapareci­
mento da vida no exato momento em que todos os seus fenômenos exter­
nos tivessem sido explicados - não fosse a circunstância de a própria em ­
presa científica ser ela própria um ato de vida, e o estudioso um ser vivo,
por isso impedido pela experiência original da vida de esquecer que aí ain­
da se encontra “algo inteiramente diferente” . O que não haveria de aconte­
cer com o Deus matemático: se atribuímos a ele a plena posse daquilo que
é visado por um ideal reducionista da ciência humana, isto é, a análise ab­
soluta, mas lhe negamos, com o puro intelecto, a experiência orgânica, ou
seja, corporal, então a multiplicidade extensa haveria de fornecer-lhe todos
os dados para sua explicação, mas a vida mesma não se tornaria visível, e
nem sequer poderia ser percebido um vazio em seu lugar. Olho não seria
reconhecido com o olho, antena com o antena, organism o com o orga­
nismo. Pois em sros elementos materiais - no arranjo orgânico ou em ou­
tro arranjo qualquer - satisfazem todas as exigências do esquema meca-
nicista e de seus modos de explicação e descrição: partículas estão envol­
vidas em determinadas configurações, entram em certas ligações, reali­
zam determinados movimentos e outras transformações de energia, termi­
nando por sair novamente do conjunto e entrar em novas relações em ou-'
tros terrenos. Para a visão exterior ou extensiva nada existe de especial nis­
to. A complexidade maior de tal sistema em comparação com outros não
é nenhum caráter essencialmente novo. É verdade que trata-se de um sis­
tema fisicamente improvável (de acordo com as regras da entropia), mas
o improvável, quando ocorre, é tão necessário quanto o que é mais prová­
vel. E para o divino matemático, para quem todas as diferenças entre pro­
vável e improvável se dissolvem na única necessidade universal, a descri­
ção de conformidade com os conceitos gerais do esquema físico seria tão
exclusiva quanto idealmente completa: ele não somente haveria de cobrir
todos os fatos, de acordo com aquilo que neste esquema objetivo seriam
fatos - mas também, em seu fechamento, não deixaria o mínimo espaço
para o acréscimo de um princípio diferente. Assim o divino matemático,
com o físico ideal de posse de todos os dados e da perfeita capacidade de
análise, haveria de em seus padrões explicar exaustivamente este fenôme­
no com o qualquer outro no universo físico, sem precisar (e sem ser capaz)
de nenhum outro aspecto: nada lhe haveria de faltar no denso tecido, e
nada lhe escaparia.

Mas isto não é a verdade toda. Sabemo-lo com base naquela evidên­
cia que a ciência gosta de chamar de “subjetiva” . Para uma síntese da
realidade exterior esta evidência pode ser descartada com o irrelevante,
por uma das duas razões seguintes: ou porque os fenôm enos da subjeti­
vidade constituem um cam po inteiramente separado, que - qualquer
que seja seu status metafísico - não se estende além de si próprio (por
exemplo, não interage), e por isso no sistema das causas e efeitos natu­
rais é com o que inexistente; ou porque eles se encontram em uma rela­
ção de dependência unilateral para com este sistema, e por isso no máxi­
mo pode exigir uma realidade derivada e secundária, que pode ser expli­
cada pela realidade primária mas que é ela própria supérflua para a des­
crição e explicação desta última. A primeira destas alternativas é repre­
sentada pela variante cartesiana do dualismo, a segunda pelo “ epifeno-
menalism o” , isto é, a afirmação materialista de que o espírito ou a cons­
ciência, em si, não passa de um “epifenôm eno” , um efeito colateral de
processos corporais, que o b ed ecem inteiramente às suas regras pró­
prias. fDestas duas, a alternativa materialista pode com facilidade ser
descartada, porque com a autonomia da razão ela nega a validade dos
pensamentos, desta forma se desqualificando a si própria com o estrutu­
ra racional de pensamento, isto é, com o um argumento que para ser ver­
dadeiro baseia-se na força de suas razões, e não no fato de sua ocorrên­
cia no céreb ro^ V er apêndice ao 7o capítulo.) Já a alternativa dualista,
sendo isenta de contradições lógicas, tem que ser analisada por um re­
torno aos fatos, dentre os quais o fato decisivo é o “organismo” . Por isso
nós transformamos o Deus de Jeans em uma versão do Deus de Descar­
tes, que criou corpos e espíritos (egos): sua aptidão matemática se refere
então aos primeiros, enquanto seu conhecimento, evidentemente, tem
que abranger uns e outros. Por conseguinte nós o dotamos por um lado
com o conhecimento de todos os dados espaço-temporais da variedade
extensa, e por outro com o conhecimento de todas as ocorrências de “in­
terioridade” dispersas sobre aquelas sem que constituam parte delas15.
Que é que um Deus assim haveria de “ ver” no m om ento em que lan­
çasse um olhar sobre sua criação?

2 . O fracasso da co m p le m e n ta çã o dualista

Deus, em seu conhecimento criador, teria diante de si, além do mun­


do sem vida dos objetos extensos, uma ampla enxurrada de subjetivida­

1 5 . T e m o s , e v id e n te m e n te , q u e a d m itir u m a v e rs ã o e s tr ita m e n te n ã o -in te ra tiv a d o d u a ­


lis m o , c o m o im a g in a d a n a s d ife re n te s fo r m a s d o p a ra le lis m o p s ic o fís ic o , c o m a e s p e c ia l
in te n ç ã o de g a ra n tir p a ra a c iê n c ia a h o m o g e n e id a d e e o fe c h a m e n to d o re in o m a te ria l.
P o r o u tro la d o , e n te n d e m o s o re in o “m e n ta l” d e m o d o a a b ra n g e r to d a s as e s p é c ie s e g r a ­
us d a s u b je tiv id a d e , a té ô \> b s c u r o “s e n tir ” d a a m e b a ^ q u e a s s im fic a in c lu íd a n a d ic o to -
m ia p s ic o fís ic a .
de individualizada, de muitos graus de obscuridade e clareza - cada uma
delas com uma “objetividade” fenomênica (sentida, percebida etc.) de
um matiz próprio, que se modifica, mas que sempre coincide com algu­
ma secção da extensão real, por ele imaginada em uma determinada
“ perspectiva” ocasionalmente modificada dentro da variedade extensa; e
cada uma delas com uma região preferencial invariante no centro da
perspectiva variável, caracterizada com o “ pertencente” a ela com o seu
“corpo” . E eis que em cada caso esta região fenomênica coincide com
um sistema material real de arranjo próprio dentro da res extensa real!
Estes sistemas são aquilo que nós cham am os de organismo e de ser vivo
(mas eles são uma parte do sem-vida), e podem os chamá-los assim ou
por causa de seu arranjo e função física própria, ou (nós tem os a liberda­
de de escolher) por coincidirem com a região própria, a região “minha” de
uma subjetividade, que desta forma neles aparece localizada, embora
não seja ela mesma espacial. Ou uma coisa ou outra, ou coincidência ou
disposição, é tudo quanto as premissas permitem que se diga, e para es­
tes casos especiais isto permite duas descrições paralelas e com plem en-
tares daquilo que localmente é o m esm o acontecer: em conceitos ou de
interioridade ou de exterioridade, sendo que nenhuma das duas descri­
ções interfere com a outra ou é necessária para que a outra seja com ple­
ta; especificando para o nosso caso: nenhum conceito da descrição “in­
terior” é necessário ou útil para com pletar a descrição exterior.

Se esta construção, por mais artificial que seja, se com provar susten­
tável à luz dos fatos, estaremos dispostos a admitir a afirmação de Jeans,
com a única restrição (acima introduzida) de que é o “arquiteto do uni­
verso material” que aparece com o puro matemático. Mas precisamente
no caso do organism o a construção dualista cai por terra. Pois longe
de term os unicamente uma coincidência da interioridade com quaisqiipr
partes extensas indiferentes que simplesmente de fato estejam servindo
com o centros de uma periferia externamente manifestada, estas partes -
os organismos - estão manifestamente organizadas para a interioridade,
para a identidade interior, para a individualidade - e com menos clareza,
talvez, também por elas determinadas. Isto, de certo, parece claro ape­
nas para um espírito que desfrute ele próprio de existência orgânica, ou
para um sujeito corporal, mas é totalmente invisível para um intelecto
sem corpo quando ele se confronta com uma res extensa que (de acor­
do com a premissa dualista) se restringe a isto. Mas se os fatos exterio­
res do organismo, conforme as condições do experimento, se perdem
sem deixar resto no cálculo global da matemática divina, perdendo a
possibilidade de ser reconhecidos com o fatos referentes ao organismo,
então esta solução do problema de cálculo não fala unicamente em favor
da auto-suficiência do extenso considerado em si mesmo, mas sim de
que uma descrição meramente extensiva do que este aspecto espacial
manifesta é incompleta. Pois (pedindo vênia para a trivialidade) os
olhos em sua com posição física estão relacionados com o ver, e os ouvi­
dos com o ouvir, e os órgãos em geral com aquilo que eles realizam - e os
organismos, de forma mais geral ainda, com a vida. Neles isto não é sim­
plesmente um aspecto adicional, ou uma escolha deixada à livre inter­
pretação, isto é sua própria natureza teleológica/Por mais completa que
possa ser uma análise físico-química do olho e dos processos ligados à
estimulação do olho - nenhuma explicação de com o ele é construído e
de com o ele funciona teria sentido se não estivesse relacionada com a vi­
são^ E o que é claro em um caso tão específico é verdadeiro para toda a
classe de coisas materiais que nós chamam os de organismos, embora
para as finalidades da descrição física isto possa tanto mais facilmente
ser ignorado quanto mais descem os na escala da vida, isto é, quando
diminui a com plexidade da organização e a diferenciação das funções
(e, com o supomos, quando diminui a consciência).Vias no organismo
com o tal e no seu impulso para viver sempre está presente a busca do
objetivo, que já atua em todas as tendências vegetativas e desperta para
uma percepção primordial nos obscuros reflexos, nas respostas dos or­
ganismos inferiores aos estímulos; e mais ainda no impulso e empenho e
prazer e medo da vida animal dotada de movimento e de sensação; e por
último chegando ao esplendor reflexivo na consciência, vontade e pensa­
mento do ser humano - todos estes são aspectos interiores do lado teleo-
lógico na natureza da “matéria” .íDe que m aneira neste m esm o mundo
este finalism o con verge com a causalidade mecânica, cuja realidade
também não pode ser negada, é um problema que nós não podemos re­
solver sacrificando uma evidência (a busca de um fim) a um teorema (o
da exclusividade da causa eficiente) derivado de uma outra evidência,
mas só quando o tratamos com o um profundo desafio e com o um pro­
blema ainda sem solução, o que ele realmente é/Seja com o for, a dispo­
sição e o comportamento teleológico do organism o não é apenas uma
form a alternativa que nós possamos escolher para descrevê-lo, mas, de
acordo com o testemunho da nossa percepção interior, é a manifesta­
ção exterior da interioridade da substância.'7E acrescentemos esta impli­
cação: não existe organismo sem teleologia; não existe teleologia sem in­
terioridade; e a vida só pode ser conhecida pela vidaM

X - A superioridade do sujeito do conhecimento corporal

Esta é a vantagem que nós, pobres mortais, inclusive biólogos, pos­


suímos sobre o Deus matemático de Jeans: sendo seres vivos, materiais,
em nossa auto-experiência nós possuímos com o que orifícios para
olhar a interioridade da substância, e com isto termos uma idéia (ou a
possibilidade de uma idéia) não só de com o o real se desdobra no espa­
ço e se determina mutuamente, mas tam bém de com o é ser realmente,
agir realmente e padecer realmente a ação. E não obstante, por meio de
certos atos de abstração, nós podemos conseguir ta m bém ser matemá­
ticos e físicos matemáticos: “tam bém ” - pois ser “ nada mais” que físicos
matemáticos é pura contradição.

O testemunho de nossa auto-experiência é parte integrante do patri­


mônio experiencial referente à vida que nossa participação no ser nos
põe à disposição. Que tenhamos que empregá-la criticamente para evi­
tar as armadilhas do antropomorfismo, entende-se por si mesmo. Mas
ela tem que ser usada, e precisamos usá-la constantemente, por mais
que biólogos e behavioristas façam objeções. Pois do contrário a vida
que existe em tom o deles haveria de escapar-lhes inteiramente, e com
isto o próprio objeto de que desejam abstrair. Eles compartilhariam en­
tão da divina pobreza do “puro” (= nada mais do que) matemático-cria-
dor. Caso acontecesse sua inteligência geométrica absoluta, porém in-
corpórea, ocupar-se com as grimaças do mundo dos corpos, tendo dian­
te de si, sob a forma de valores matemáticos, todos os dados da varieda­
de espaço-temporal de um caso de “organism o” , com suas regras opera­
cionais, mas nada além destes dados, estes não lhe dariam nenhuma ra­
zão para ver neles, ou m esm o para apenas presumir neles mais do que
um caso muito especial, ou m esm o estranho (isto é, estatisticamente im­
provável), porém perfeitamente explicável, da morfologia geral dos agru­
pamentos materiais. O resultado da análise não permitiria que surgisse
nem sequer a suspeita de algo mais. Aquela inteligência pura poderia,
por exemplo, ter um inventário minuciosíssimo da com posição do olho,
do nervo ótico, do centro da visão no cérebro e das transformações que
ali ocorrem com os estímulos luminosos, mas desta informação “com ­
pleta” ele jamais poderia deduzir que estava presenciando um processo
de visão - pois ele nem sequer sabe o que quer dizer “ver” ; ao passo que
nós, “terráqueos” , dotados nós próprios de olhos, sabemos (e não ape­
nas concluímos) que com eles um indivíduo orgânico possuidor destas
estruturas “v ê ” , qualquer que possa ser a física do processo.

Com eçam os a suspeitar que o “material” que o Grande Arquiteto teve


que utilizar para concretizar suas idéias possuía uma natureza própria que
lhe era desconhecida e que não estava prevista em seu plano - proprieda­
des que no curso do desenvolvimento mecânico encontraram ocasião para
realizar alguma coisa das possibilidades ocultas da substância original. Mós
mesmos somos um exemplo disto. Seduzido desta forma para a construção
de uma multiplicidade que possui sua tendência própria, o matemático não
sabe o que está criando. Mão tem olhos que vejam para ele, não tem ouvi­
dos que ouçam. Assemelha-se antes ao demiurgo dos gnósticos, que criou
o mundo sem saber o que estava fazendo, com o o demiurgo de Platão,
que criou o mundo a partir da totalidade do saber.
O final de nossa pesquisa constitui apenas o limiar de tarefas muito
mais amplas que, com o acredito, hoje mais do que nunca são impostas à
filosofia. São elas: uma biologia filosófica, sem a qual não pode por um
lado existir uma filosofia do ser humano, e por outro uma filosofia da natu­
reza, e um novo exame da causa sem a qual estas três não podem ser co­
locadas sob o mesmo teto. Mas sobre o contencioso desta tentativa eu es­
pero haver demonstrado suficientemente por que, “a partir do testemunho
imanente de sua criação” , concluo que o criador deve ser diferente daquilo
que o metafísico Jeans entende - na mesma medida em que a criação,
isto é, tudo quanto existe, é diferente daquilo que o físico matemático Je­
ans imagina. Por isso nossa resposta final à pergunta “Deus é um matemá­
tico?” - ou seja, ele é essencial e simplesmente um matemático, mesmo
apenas com referência ao universo material - é um decidido “não” .

Apêndice 1 - 0 emprego da matemática pelos gregos na


interpretação da natureza

Aplicar a matemática aos fenômenos naturais, ou atribuir a estes um


caráter matemático, pode ter vários significados, conform e esteja rela­
cionado com as estruturas ou com o dinamismo da natureza, com suas
formas de organização ou com as conseqüências das modificações em
cujo decorrer eles se manifestam. A abordagem dos gregos representa o
primeiro caso. Para os pitagóricos a interpretação matemática da reali­
dade consistia em definir um todo estrutural através das relações numéri­
cas - antes de tudo das medidas espaciais - em que suas partes mais im­
portantes se encontram umas com as outras, <?u com estruturas sem e­
lhantes. Esta matriz de p ro p o rç õ e s através das quais uma variedade
aparece ligada em si mesma forneceu o caráter específico de ordenação,
sendo por isso vista com o a razão de sua integridade. A “relação” (ra tio )
é o logos de uma coisa, isto é, aquilo que faz desta coisa o que ela é. A oi­
tava, por exemplo, tem a relação 1:2; este é então o lo g o s , o seu princí­
pio de ser, que antecede a toda ocorrência isolada da oitava, e que lhe so­
brevive. Como uma mesma proporção abstrata pode se repetir em dife­
rentes coisas e nas mais diversas escalas de grandeza, tornou-se possível
estabelecerem-se analogias ou equações em todo o universo; e a desco­
berta desta possibilidade em alguns poucos exemplos impressionantes
foi suficiente para provocar a concepção universal de um lo g o s oniabra-
gente com o o princípio da “proporção em si” - um lo g o s que pervade o
universo, o qual justamente por meio dele possui seu caráter de cosm os.
Segue-se daí que o lo g o s , quando aplicado à realidade, é uma medida se­
letiva a que alguns fenôm enos satisfazem e outros não. Pois só é verda­
deira “relação” (ra tio ) aquilo que pode ser expresso em números intei­
ros, “racionais” , ao passo que as proporções incomensuráveis são “irra­
cionais” : a ausência de limites que nelas se esconde é para o espírito gre­
go uma carência, que reverencia o limite com o o selo do verdadeiro sen­
tido e com o condição prévia da possibilidade de conhecê-lo. Esta última
é de fato a razão da primeira - o mais antigo exemplo histórico para esta
inversão. A satisfação intelectual com estas relações geom etricam ente e
aritmeticamente determinadas, e sua racionalidade interior, traduziu-se
diretamente na crença de que aqui se encontra o verdadeiro ser e a ver­
dadeira perfeição. Os tons de uma determinada harmonia vão e vêm, e
ela pode ser imperfeita; mas o lo g o s que dela faz parte é imperecível, e é
o m esm o para cada vez que ressoa a imperfeita harmonia material. O lo ­
g o s , com o sua eterna verdade, é a medida e ao mesm o tem po a causa
de todos os casos isolados de harmonia temporal desta particular espé­
cie. Por isso as medidas e as relações métricas, que em última análise po­
dem ser expressas em números, são a essência das coisas.

Deixando de lado o aspecto metafísico e considerando apenas com o


a matemática é aqui aplicada aos fenômenos, nós verificamos que esta
aplicação é morfológica e não descreve o jo go dos com ponentes que
atuam, mas sim a forma das totalidades compostas. Seus objetos são
aquelas estruturas formais permanentes, que podem ser obtidas do fluxo
das coisas mas que não fazem parte deste fluxo, e que podem ser descri­
tas por meio de relações numéricas.

Sua expressão é formada por uma constatação do “quê”, e não por


uma explicação do “com o” nem do “por quê” . A teoria do céu, “teoria” no
sentido primitivo de contemplação, não fornece uma mecânica celeste,
mas sim uma síntese de sua (com o nós diríamos) fisionomia, “resultante”
de traços geométricos e aritméticos. Com o morfologia descritiva, esta ca­
racterística matemática do real é essencialmente estática; ela reúne seus
dados no “presente” da forma em repouso. Mesmo quando o movimento
faz parte dos caracteres imutáveis da imagem, com o nas estrelas em
suas órbitas, a sucessão das fases é de certa maneira registrada em um es-
tar-lado-a-lado ideal, onde aparecem com o meros momentos na auto-
realização da totalidade da forma. As durações temporais relativas são
elas próprias traços morfológicos permanentes do todo representado, que
em sua sucessão se realizam juntamente com as propriedades geométri­
cas da trajetória espacial. Efetivamente só existe o presente abrangente da
auto-realização em eterno retorno, onde todas as fases se encontram em
pé de igualdade com o partes integrantes do único e idêntico todo. Com o
prova disto pode servir o fato de não se considerar os corpos celestes
com o pontos no espaço vazio, sem relação com uma trajetória no passa­
do e no futuro, mas cada um deles ser visto com o fixado em uma esfe­
ra completa, o círculo da existência, que na simultaneidade de uma forma
sempre presente já contém sua trajetória sucessiva, a órbita.
Os pitagóricos imaginavam estas esferas celestes organizadas em re­
lações numéricas de distâncias iguais aos intervalos harmônicos da es­
cala musical, desta maneira criando a grandiosa idéia da harmonia das
esferas. Isto pode parecer-nos uma concepção antes estética do que ci­
entífica ou racional, mas não devem os esquecer que a correlação da har­
monia cósmica com a musical está baseada em razões estritamente m a­
temáticas (em bora astronomicamente erradas), de onde se concluía
para a inaudível música cósmica.

Idéias de beleza e perfeição são estranhas à física moderna, na m es­


ma medida em que eram naturais à cosm ologia grega dominante (sem ­
pre com a exceção dos atomistas). A cosm ologia aristotélica representa
outro exemplo. A perfeição do movimento celeste, então imaginado
com o circular, baseia-se sobre as vantagens e a primazia do círculo, a
mais perfeita de todas as figuras; e esta primazia da forma, que garan­
te a perm anente com pletude e m esm idade, fez do mundo das estrelas
a mais pura encarnação da natureza divina (ou racional) do universo, a
máxima aproxim ação temporal ao repouso intemporal do m otor im ó­
vel, que com o causa final mantém o universo em funcionamento. A idéia
de um ideal geom étrico com uma causalidade teleológica é mais uma
vez um pensamento para o qual não existe lugar na ciência moderna.
Mas já na época dos grandes astrônomos alexandrinos o rigor científico
havia reprimido muita coisa da fantasia especulativa do período anterior.
Mas a atitude morfológica permaneceu; m esm o a Ftolomeu não ocorreu
a idéia de ofender a integridade dos movimentos celestes reduzindo-os a
uma mecânica sublunar comum qualquer; e a perfeição do círculo ainda
presidia, com o um axioma da astronomia, ao pensamento de Copérnico.

Assim, a matemática aplicada à natureza estava inteiramente afinada


com o espírito da filosofia natural dos gregos, mantendo seu olhar voltado
para as estruturas formais completas da totalidade autônoma e moldando a
cosmologia de acordo com este padrão. O sistema do mundo era constituí­
do de todos dentro de outros todos sempre mais amplos, culminando no
próprio cosm os, o todo máximo e universal, o mais elevado “uno no múlti­
plo”, que é fim para si mesmo, com o um corpo vivo. Tudo na natureza cor­
responde a este padrão, embora em graus menos com pletos e mais m o ­
destos. Cada um faz parte de um todo maior, é um fim em si mesmo e é
um todo para suas partes. Assim o todo integral, representado pela “forma”
com o tal e realizado no cosmos com o a forma total, constituía o conceito úl­
timo da ontologia antiga, da mesma forma que, inversamente, a parte me­
nor - de matéria ou de energia - constitui o conceito último da ontologia
moderna. O que aqui é chamado de “conceito último” serve em um e outro
caso com o primeiro princípio da compreensibilidade, e por isso com o últi­
mo refúgio da explicação. O que numa ontologia é a derivação das partes e
de sua função a partir da autônoma natureza do todo vista em uma síntese
original, na outra é a derivação do todo composto a partir da interação das
partes independentes isoladas na análise anterior.

Apêndice 2 - Anotações sobre a filosofia do organismo de


Whitehead

Whitehead, que significativamente denominou sua teoria geral da


realidade de “filosofia do organism o” , transformou a diferença entre vida
e não-vida, de uma diferença de essência para uma diferença de grau.
Misto e em outras visões ele seguiu a Leibniz, com o este também não en­
contrando na versão conceituai da vida um lugar para a morte. No tocan­
te ao tema da “identidade” , com que já nos ocupamos (ver acima, parte
VII, 2), a ontologia de Whitehead resolve o problema da identidade física
(em nosso exemplo: o das partículas da matéria) integrando-o em um
princípio ampliado de identidade org â n ica - e com isto, com o um sub­
produto, libertando esta última da pergunta específica que segundo os
conceitos físicos normais ela levanta: a identidade biológica passa a ser
um caso particular de um princípio universal da continuidade do ser, que
em cada caso é dinamicamente transmitida. Este objetivo, a superação
do irritante dualismo, é alcançado por meio de um engenhoso esqüema
conceituai que abrange os dois lados da linha de separação.
A “localização simples” (sim p le lo c a tio n ) é substituída por uma gra­
dativa onipresença, a substância permanente por “ocasiões atuais” do
sentir ( a ctu a l occa sion s), com o as únicas identidades últimas, a dura­
ção da existência pelos caracteres que são transmitidos de uma ocasião
para a seguinte: esta última, ao assumir seletivamente em sua interiori­
dade a produção da anterior, recebe em herança um passado, e ao m es­
mo tem po dá início a um futuro, ao tornar-se ela própria herdável com a
com pletação de sua própria atualização. Entre um e outro encontra-se
aquilo que constitui sua contribuição própria para a herança: a posse e
apropriação de “objetos eternos” ( eternal ob jects ). O que aparece, visto
de fora, com o continuidade da existência, é na realidade uma seqüência
de “ocorrências atomares” que em cada novo presente formam uma co­
nexão (n e x u s ) com base na inclusão cumulativa do passado. Desta ma­
neira é produzida “identidade” no único sentido capaz de se harmonizar
com o sistema. É uma idéia de criação permanente, de que as leis de
conservação na física são apenas os resumos fenomênicos. Mas trata-se
de uma criação imanente (uma autocriação da natureza); e uma criação
com infinitas linhas uma ao lado da outra; e avançando em cada uma de­
las em “ passos atomares” , isto é, discretos: em todos os três aspectos di­
ferente da criação permanente postulada por Descartes, que considera­
va a matéria com o sendo a cada momento renovada em sua existência
por seu criador transcendente, isto é, de fora; o seu fiat com o cada vez
sumariamente uno para toda a matéria a cada momento da existência; e o
“cada vez” com o progredindo continuamente através do tempo: mais um
ato de confirmação repetitiva do que de criação. É a diferença entre a vi­
são teísta, que ao criado nega toda capacidade de criar - de fato a nature­
za mecanicista, entendida nesta base, é decididamente não-criativa - , e a
visão moderna imanentista, que confere a capacidade de criar à própria
natureza. Esta é a única alternativa racional que, após a perda do pólo
contrário transcendente trazido pela metafísica dualista, permaneceu
aberta ao naturalismo: só sob a proteção desta metafísica é que se tor­
nou racionalmente possível na física um “materialismo” puro.

Não é este o lugar para a explicação deste corajoso esboço de uma


ontologia fundamental da natureza, cuja força intelectual e significado fi­
losófico não têm paralelo em nossa época. Sua relevância para o nosso
problema particular está em que - ao se fazer da transmissão e apropria­
ção, ou m esm o da historicidade, o princípio universal da identidade - a
identidade biológica deixa de ser o enigma que costuma ser de acordo
com as categorias físicas normais. Tenho dúvidas se isto significa um lu­
cro. Nós m esm os sentimos a necessidade de falar de uma “revolução on­
tológica” ocorrida com o aparecimento da vida (ver acima, parte VIII). De
acordo com Whitehead isto não é necessário, uma vez que em princípio
tudo já é vital. A obliteração da diferença entre natureza animada e inani­
mada, que acarreta a difusão da interioridade até às mais baixas cam a­
das materiais, parece ser um bom preço a pagar pela atomística das
“ocasiões atuais” : é esta atomística que exige aquele caráter universal da
interioridade, a fim de evitar o inevitável isolamento monádico das atuali­
dades. O resultado é uma repressão da descontinuidade lá onde ela sur­
ge, a saber, entre a vida e a não-vida, e sua introdução lá onde ela é ape­
nas hipotética, a saber, entre as fases da duração física.

(Jma última observação: enquanto a polaridade entre eu e mundo,


com o também entre liberdade e necessidade, encontram lugar no sistema
de Whitehead, isto decididamente não ocorre com a polaridade entre ser e
não-ser - e portanto também não com o fenômeno da morte (e ainda, de
passagem, com o fenômeno do mal): mas poderá existir uma compreen­
são da vida sem uma compreensão da morte? A profunda angústia da
existência biológica não encontra lugar neste grandioso esquema. Em sua
metafísica, Whitehead, que sob este aspecto não difere de Hegel, escreveu
uma história de êxito essencialmente garantido: Todo vir-a-ser é auto-reali-
zação, todo acontecer é em si mesmo com pleto (do contrário não seria
atual), todo perecer é um selo colocado sobre o fato de uma completação
haver sido alcançada: “Morte, onde está o teu aguilhão?”
Movimento e sensação
Sobre a alma animal

No capítulo anterior foram enfocadas as antinomias envolvidas na


dialética da liberdade da vida com o relação forma-matéria, e que fazem
desta relação um ser profundamente paradoxal. A o nos ocuparmos ago­
ra com a existência animal, por conseguinte com um novo estágio de
nossas considerações, convém recordá-las mais uma vez, já que no novo
plano elas se mantêm com o temas básicos, impossíveis de ser deixados
no esquecimento.
A emancipação da forma vem acompanhada pela condição necessita­
da constitutiva da vida, que representa também um fato que dela não
pode ser separado. - A liberdade na relação com a matéria, manifestada
na existência metabólica da forma, necessariamente acarreta consigo a
dependência da matéria; e isto na mesma medida do dinamismo transfor­
mador da forma, que por outro lado é o indicador preciso de sua liberdade
ontológica. - Não-identidade com a própria matéria - do lado positivo, a
peculiaridade da forma existindo com o ela própria, do negativo a insufi­
ciência de toda materialidade de cada momento - faz com que tanto mais
a vida coincida no tem po com a matéria: não diminui, portanto, antes au­
menta no cômputo total a materialidade da forma libertada da equalização
fixa da matéria, transformando-a em forma “emancipada”. Saindo da se­
gurança (inquestionabilidade) da identidade física para a ousadia da dife­
rença e da liberdade, a forma vital se eleva acima da matéria - ao mesmo
tempo que fica exposta a toda matéria do contexto ambiental. Sacrifican­
do neste êxodo a completude simultânea à realização sucessiva, a relação
com a matéria passa a ser transitória, portanto em cada momento aciden­
tal - porém com isto por sua vez necessariamente extensa: multiplican­
do-se no tempo através da sucessão de suas materializações; ampliada
em cada agora pelo horizonte associado à matéria atual do potencial de
que justamente necessita; qualitativamente exacerbado da posse indife­
rente para a necessidade da conquista.

Duplicidade semelhante é apresentada por todos os caracteres au­


tênticos da vida, quaisquer que sejam os conceitos com que procuremos
explicar uma situação, e qualquer que seja o aspecto que nela destaque-
mos. Assim a autonomia em relação à natureza, estabelecida e afirmada
na autocausalidade do organismo - autonomia que não é mecânica -
tem seu exato preço na dependência existencial em relação à natureza,
que é totalmente estranha à estabilidade do ser da matéria sem vida.^'
Mais uma vez: o fechamento para dentro da totalidade funcional - é aber­
tura correlativa para o mundo na realização da própria funcionalidade. -
O si-mesmo da vida individual o p õ e-se a tod o o resto c o m o m undo
exterior ou estranho - e no entanto esta mesma oposição se atualiza, por
“transcendência” (que nela está baseada, e que atualiza a relação com o
outro a partir do si-mesmo), com o aceitação do exterior - com o exterior
- no interior, ou com o o estar-fora-de-si do interior no exterior. - A parti-
cularização da unidade vital com o indivíduo, sua radical separação do
universo do coordenado e intercambiável - precisamente esta particula-
rização significa capacidade de contacto com a diversidade do outro, e
isto em proporção direta: quanto mais decididamente se estabelece a in­
dividualidade, portanto o isolamento, no progresso das formas vitais,
tanto mais cresce na mesma proporção, em extensão e diversidade, o
raio de seus contactos possíveis; portanto, quanto mais centralizado e
pontual o eu da vida, tanto mais ampla sua periferia; e vice-versa, quanto
mais acolhida ainda no todo da natureza, tanto mais indeterminada em
sua diferença e tanto mais imprecisa em seu centralismo, tanto menor
sua periferia de contactos com o mundo. - A vida possui em princípio
um distanciamento em relação ao mundo, de cuja hom ogeneidade a for­
ma destacou-se, retraindo-se em sua peculiaridade: mas precisamente
este distanciamento oferece a dimensão para a referência ao mundo, en­
raizada nas necessárias relações reais, porém sem coincidir com elas, e
sim podendo ultrapassá-las até à universalidade.

Por último, a fragilidade desta existência, o outro lado de sua auto-


constituição soberana: a identidade que se constitui, precisamente por ser
de momento a momento produto funcional e não estado subsistente, é de
duração precária e revogável; a criatividade copp que luta por sua continu­
ação é um incessante evitar do apagamento^ Ela, cujo conservar-se só
pode estar no contínuo renovar-se - a forma livre em direção à matéria,
porém não livre da matéria - encontra-se desde o início sob o signo do efê­
mero, do poder ser destruída, da morte (cf. introdução desta obra).\

Os traços aqui esboçados, localizados na base do orgânico, só apare­


cem em plena luz na existência animal.

Três características distinguem a vida do animal da vida da planta:


mobilidade, percepção, sensação. A ligação necessária entre movirnen-
to e percepção é evidente, já tendo sido tratada por Aristóteles; a ligação
necessária entre movimento e sensação (em oção) necessita de um estu­
do mais minucioso; este estudo irá mostrar que as três capacidades são
a manifestação de um princípio comum.

A simultânea ocorrência de p ercep çã o e m o vim en to inaugura um im­


portante capítulo na história da liberdade, que teve início com a existên­
cia orgânica com o tal, tendo-se expressado primeiramente na primordial
inquietação da substância m e ta b o liza n te ^ a evolução, a form ação pro­
gressiva destas duas capacidades significa acesso crescente ao mundo e
crescente individuação do ser. Abertura para o mundo é condição básica
para a vida em si. Sua expressão elementar é a mera excitabilidade, a
sensibilidade aos estímulos, com o manifestada pela célula simples com o
um aspecto indispensável de sua condição de ser vivo. A excitabilidade
é o germ e, de certa forma o átomo da posse do mundo, exatamente
com o a própria célula é o germ e e o átomo do organismo maior. Cada
germ e da percepção sensorial desenvolve-se em clara e variada relação
com o mundo, da mesma forma com o as células crescem constituindo o
organismo diferenciado e com posto/Hm um e outro caso o mais com ­
plexo é também o mais individuado; em um e outro caso a forma inicial
elementar (a célula em si, a excitabilidade em si) continua sendo o que é,
mas funciona com o átomo da síntese de uma ordem mais elevada.'1 ]

A referência real ao mundo só surge com o desenvolvimento de senti­


dos específicos, de estruturas motoras definidas e de um sistema nervoso
central. A diferenciação da sensibilidade, ligada à integração central de
seus múltiplos dados, fornece os inícios de um verdadeiro mundo objetivo;
o intercâmbio ativo com este no exercício da capacidade de movimento
(que por sua vez pressupõe a centralização dos controles) submete à liber­
dade que se vai estabelecendo o mundo que se oferece aos sentidos, e que
desta forma responde em nível mais elevado à necessidade fundamental
do organismo.

As capacidades que aqui transparecem têm que ser entendidas com o


desenvolvimentos do elemento da “transcendência” , que (com o se mos­
trou no capítulo anterior) é inerente à existência metabólica com o tal. A re­
lação transitória da forma orgânica com sua matéria delimita desde o iní­
cio dois “horizontes” , “para dentro dos quais” a vida continuamente se su­
pera: para dentro o horizonte do tempo, com o a fase seguinte e próxima
de sua existência, para onde ele se dirige; para fora, o horizonte do espaço,
com o lugar do “outro” igualmente presente, de que depende a continua­
ção deste ser. Por natureza a vida está voltada ao mesmo tempo para a
frente e para fora. Mas a característica principal da evolução a n im a l, en­
quanto distinta da vida vegetal, consiste em que o espa ço, com o dimen­
são da dependência, é progressivamente transformado em uma dimensão
de liberdade, e isto pelo desenvolvimento paralelo destas duas capacida­
des: a do movimento, e a da percepção à distância. Pode-se mesmo dizer
que só através destas capacidades é que o espaço realmente se abre à
vida, ao passo que a situação inicial de excitabilidade e de excitação res­
tringe a experiência da distinção entre m u n d o in te rio r e m u n d o exterior
à mera experiência do contacto, que não confere ao exterior uma dimen­
são real, mas que o faz coincidir difusamente com a superfície sensível do
próprio organismo.

Menos clara, e por isso precisando ainda de ser explicada nas próxi­
mas páginas, é a circunstância de que, semelhantemente à outra dimen­
são da “transcendência” , o tempo, ela se torna acessível por meio do si­
multâneo desenvolvimento de outra capacidade, isto é, da e m o çã o , e isto
segundo o mesm o princípio: o da “distância” entre o si-mesmo e seu obje­
to, só que aqui se trata de distância no tempo. Isto está menos claro, entre
outras razões, porque ao contrário da sensibilidade e da mobilidade, a
emocionalidade (ou o sentimento) não possui órgãos externos pelos quais
a possamos identificar, ou por onde possa ser forçada a entrada para uma
situação concreta; e esta invisibilidade cu completa interioridade (já que
sua expressão visível é sempre um ato da capacidade de movimento) pa­
rece fazer com que a em oção tenda a ser omitida na descrição científica
do comportamento orgânico, com o antigamente foi exemplificado por
Descartes e recentemente mais uma vez pela cibernética. Tentaremos
mostrar a inseparável ligação mútua das três capacidades animais, sobre­
tudo o encadeamento entre movimento e em oção, e interpretar seu signifi­
cado no âmbito mais amplo de uma teoria geral da vida.

II

A locom oção, no animal, se volta para um objeto ou dele se afasta,


quer dizer, ou é perseguição ou é fuga. üm a perseguição mais prolonga­
da, onde o animal contende suas forças motoras com as da presa que
busca alcançar, evidencia não apenas capacidades motoras e sensoriais
desenvolvidas mas também pronunciadas forças de sentimento. Dificil­
mente estaremos errados se assumirmos que o número de estágios in­
termediários através/áos quais o propósito pode estender- se é uma m e­
dida do desenvolvimento emocional. O simples intervalo entre partida e
sucesso, representado por esta seqüência, tem que ser coberto por uma
constante intenção emocional. Por isso a ocorrência da mobilidade direcio­
nada através de longas distâncias (c o m o apresentam-na os vertebra­
dos) sinaliza o início da vida emocional. O desejo encontra-se na raiz da
caça, o m edo na raiz da fuga. Quando sob o aguilhão da necessidade o
desejo é o pressuposto básico da mobilidade, então o primeiro m ovim en­
to é a perseguição (isto é, o dirigir-se para o objeto). Busca, portanto de-
sejo, é também o que mais se aproxima do impulso pré-animalesco de
todo ser vivo, isto é, o anseio básico da vida de prolongar-se através do
exercício de seu processo metabólico. Mas embora o desejar expresso
seja a tradução deste impulso fundamental da vida para a linguagem das
condições animais, não obstante estas condições diferem efetivamente
das condições vegetativas, e o que torna a diferença visível é a mobilida­
de: ela consiste em introduzir uma distância entre o impulso e a satisfa­
ção, isto é, na possibilidade de um objetivo distante. A percepção à dis­
tância é necessária para que este objetivo seja percebido: isto envolve o
desenvolvimento dos sentidos; a locom oção controlada é necessária
para alcançá-lo: isto envolve o desenvolvimento da mobilidade. Mas para
sentir co m o meta aquilo que é percebido, e manter viva sua condição de
meta de tal modo que o movimento se prolongue através da necessária
quantidade de esforço e de tempo, para isto é necessário o desejo - e isto
envolve a evolução do sentimento. Realização que ainda não está ao al­
cance é condição essencial do desejo, e este por sua vez toma possível a
protelada realização. Assim o desejo representa o aspecto temporal da
mesma situação, cujo aspecto espacial é a percepção. Nestes dois as­
pectos a distância se apresenta e é superada: a percepção oferece o ob­
jeto com o “não aqui, e sim mais além ” ; o desejo oferece a meta com o
“ainda não, mas podendo ser alcançada”: orientada pela percepção e im­
pelida pelo desejo, a mobilidade transforma o a lém em a q u i e o ainda
nào em agora. Não fosse a tensão da distância e a dilação por ela força­
da, não existiria razão para o desejo nem para a em oção em si. O grande
segredo da vida animal se encontra precisamente no espaço que ela con­
segue manter entre desejo imediato e satisfação mediata, isto é, na perda
da imediatez, a que corresponde o ganho em espaço.

í Sensibilidade, sentimento e mobilidade são diferentes manifestações


deste p rin cíp io da m ediatez - portanto do essencial “distanciamento” da
existência animal. Se o sentimento envolve a distância entre necessidade e
satisfação, então ele tem sua razão de ser na original separação entre sujeito
e objeto, e coincide com a situação da percepção e da capacidade de movi­
mento, que envolvem também o elemento da distância. “ Distância”, em to­
dos estes aspectos, envolve a separação sujeito-objeto. Esta se encontra na
raiz do fenômeno inteiro da animalidade e do seu ramificar-se da forma v e
getativa da vida. Nosso propósito é entendera essência desta r a m if i c a ç ã o ^ V

III

Do número das propriedades básicas que constituem a existência de


uma coisa com o o organismo faz parte a relação dentro-fora, que comu-
mente se expressa através do par de conceitos “organismo-ambiente”. A
vida com o tal está em contacto com o ambiente. É necessário que se faça
cuidadosa distinção entre este fato inicial e qjaalquer precipitada tentativa
de se introduzir a dualidade de sujeito e objetò. A condição de partida é um
ambiente que se limita com o organismo: neste estágio o ambiente não é
outra coisa senão o contexto imediato com o qual ocorrem os processos
químicos de troca do metabolismo. Este contacto material representa
também a continuidade do processo de troca, e com isto o caráter imedia­
to da satisfação, acompanhado pela constante necessidade orgânica.
Nesta condição de alimentação contínua não existe espaço para desejo. A
necessidade passa por si mesma à satisfação por meio do funcionamento
constante do dinamismo metabólico. Está correto dizer que este próprio
dinamismo - que é exatamente a condição para que existam necessida­
des - manifesta o interesse básico da vida por sua própria manutenção,
que só pode realizar-se por meio de auto-renovação constant^Vlas a ma­
téria continuamente disponível de que se necessita para a renovação da
forma não oferec^ ensejo para que o anseio desta renovação tom e a for­
ma de um desejo./Ambiente e organismo ainda constituem um contexto
que funciona de maneira automática, e só quando ocorre alguma espécie
de separação entre os dois é que se pode chegar ao dçse^o e ao jem or.N \
própria vida produz esta separação: um seu ramo especial desenvolve a
capacidade e a necessidade do relacionamento com um ambiente que
não se encontra mais em contacto direto nem está de maneira imediata
disponível para suas necessidades metabólicas. j

^A separação entre relação direta e relação mediata com o ambiente


coincide com a separação entre planta e animal, devendo pois coincidir
com a diferença entre suas formas de metabolismo.'"Pela capacidade de
através da síntese transformar a matéria anorgânica diretamente em
com postos orgânicos, a planta está em condições de extrair sua alimen­
tação das reservas minerais que se encontram sem pre à sua disposição
no solo, ao passo que o animal depende da presença de corpos orgâni­
cos muito especializados, presença esta não-garantida, e inconstante.
Além disto a tomada de alimento sólido, que é a maneira animal de ali­
m entação, diferentem ente da mera absorção osmótica pela planta de
substâncias alim entares solúveis, en vo lve a introdução de um estágio
“m ecânico” auxiliar (de provimento, esmigalhamento, etc.) antes do es­
tágio químico direto de apropriação metabólicaJSob este ponto de vista,
a planta, quando comparada com o animal, apresenta antes uma superi­
oridade do que uma deficiência^Mas a posse desta capacidade de sínte­
se direta, e a auto-suficiência que ela garante, constituem precisamente a
razão para a não-posse daquelas outras características que pela precarie­
dade de seu método de metabolismo os animais foram forçados a desen­
volver. Observamos aqui que independência em si não pode ser o valor
último da vida, pois a vida é exatamente aquele modo de existência ma­
terial em que o ser ficou exposto à dependência" (cuja forma primordial
é precisamente o metabolismo), com o preço a pagar por uma liberdade
que não é acessível à independência da matéria não modificada. O ad­
quirir uma independência altamente satisfatória na esfera do metabolis­
m o pode, por conseguinte, fechar caminhos da evolução, caminhos que
do contrário aquela liberdade haveria de tomar, pagando por isso o pre­
ço de uma maior dependência.

Com as raízes a planta “inventou” o meio mais eficiente para aprovei­


tar as vantagens inerentes a um organismo dotado da fotossíntese. Pos­
suindo-a, a planta está libertada da necessidade (mas também privada
da possibilidade) do movimento. Pelo contacto contínuo com a fonte for­
necedora, a relação organismo-ambiente funciona de maneira automáti­
ca, não sendo necessário nenhum aparelho adicional para adaptar-se a
modificações de curto prazo. A imediatez é garantida aqui pela constante
contigüidade entre o órgão receptor e o estoque exterior. Na troca ininter­
rupta, a necessidade corrente, embora sempre renovada, não pode acei­
tar o gume afiado da carência. C om o a satisfação ocorre simultaneamen­
te com a atividade vital, não existe uma fresta através da qual a necessi­
dade pudesse ela mesma ser sentida e a ação tivesse que ser empreendi­
da sob o aguilhão do desejo.

IV

Analisando a situação, encontraremos três aspectos daquilo que sig­


nifica aqui a “lacuna” ou a falta. Tem os em primeiro lugar a proximidade
material imediata entre a planta e o ambiente que a alimenta: para o ani­
mal os objetos relevantes de seu ambiente sempre se encontram a algu­
ma distância. Por isso o ambiente, no caso da planta, possui um significa­
do basicamente diferente do caso do animal. Com o contexto vizinho, a
planta forma uma constante ligação em que ela se encontra integrada
tão plenamente com o o animal jamais consegue estar em seu contexto.
Com o segundo aspecto temos a continuidade ou descontinuidade tem ­
poral entre necessidade e satisfação. Tam bém aqui mais uma vez o ani­
mal é forçado a fechar uma lacuna que representa no tem po aquilo que a
distância entre ele e os objetos relevantes representa no espaço. C om o a
última lacuna é superada provisoriamente pela percepção, a primeira o é
da mesma forma pelo sentimento. Os dois modos de intenção expres­
sam a mediatez da existência animal, ou a divisão entre o si-mesmo e o
mundo: a imediatez da vida vegetal não conhece tal divisão, com isto dei­
xando de oferecer àqueles modos qualquer espaço. No caso da vida ani­
mal este tal “espaço” é formado pela lacuna que - em substituição à con­
tinuidade da planta com o ambiente - ela estendeu em torno de si.
O terceiro aspecto, uma conseqüência destas lacunas no espaço e
no tempo, é a separação entre o agir e o objetivo do agir, ou o fenôm eno
da atividade mediata nos animais. A atividade típica das plantas é parte
do próprio processo metabólico. Mas nos movimentos dos animais nós
temos uma atividade que é sustentada pelo excesso do metabolismo an­
terior e que deve mais tarde favorecer a continuação do metabolismo,
mas que ramificou-se ela própria das atividades vegetativas contínuas,
representando uma realização livremente despendida - e com isto uma
“atividade” num sentido inteiramente novo. É uma ação exterior mais
perfeita do que a ação interior do sistema vegetativo, e que em relação a
esta é parasitária: só seus resultados são destinados a continuar garan­
tindo aquelas funções primárias. Este caráter mediato da ação vital pelo
movimento exterior constitui a característica distintiva do animal. É ao
longo da cu rva tu ra deste arco que está sediada a liberdade e o risco da
vida animal. O movimento dirigido para fora é um dispêndio que só é
com pensado pelo êxito final. Mas este não é um êxito garantido. Para
que possa ser bem-sucedida, a ação encaminhada para fora tem que ser
de tal natureza que também possa falhar. Noutras palavras: tem que ser
uma atividade que disponha livremente das reservas do sistema alimen­
tar - livre, no sentido de depender aa sorte. A possibilidade de erro ou fra­
casso corresponde à do êxito sob as condições da ação mediata. As fon­
tes auxiliares para esta tornam-se disponíveis através da peculiaridade
do metabolismo animal, que ao desfazer os resultados da síntese vegetal
em suma se comporta com o um parasita das plantas. Só através desta
pilhagem é que é alcançado o excesso de energia, que então pode ser
despendido em atividade não vegetativa. Desta forma o metabolismo
animal torna possível o agir mediato; mas ao mesm o tem po ele o torna
necessário. Alimentando-se da vida existente, o animal constantemente
destrói seu fornecimento mortal, tendo que ir em busca de mais em outro
lugar. Entre os carnívoros, cujas presas possuem elas próprias mobilida­
de, esta necessidade cresce na mesma proporção, forçando a desenvol­
ver mutuamente uma agilidade de que muitas outras capacidades do
animal têm que participar.

O caráter mediato da existência animal se encontra na raiz de mobili­


dade, percepção e sentimento. Ele produz o indivíduo isolado que se de­
fronta com o mundo. Mundo este ao m esm o tempo convidativo e am ea­
çador. Ele contém as coisas de que o animal necessita, e este tem que
pôr-se a caminho e procurá-las. E contém também os objetos do medo, e
o animal, com o pode fugir, tem que fugir. Neste mundo o animal não é
uma parte inserida e estável. A sobrevivência passa a ser uma questão
de com portam ento em determinadas ações, em vez de estar garantida
por um funcionamento orgânico bem adaptado. Esta maneira precária e
exposta de ser obriga à vigilância e ao esforço, ao passo que a planta
pode dormitar. Respondendo ao atrativo da presa, de que a percepção
lhe deu notícia, a vigilância transforma-se na tensão da caça e no gozo da
satisfação: mas conhece também o incôm odo da fome, o flagelo do
medo, o esforço angustiado da fuga. Mesmo a perseguição pode termi­
nar na decepção do fracasso. Em suma: o caráter indireto da existência
animal disponibiliza em sua vigilância as possibilidades gêm eas do pra­
zer e da dor, ambas casadas com o esforço. A capacidade de ambas nas­
ce com o uma mesm a coisa na evolução, e a sujeição ao sofrimento não
é uma falha que tire um pouco da capacidade de gozar, mas sim o seu
com plem ento necessário. Por isso o sofrimento inato à existência animal
não é primariamente o da dor (que é acompanhamento ocasional), mas
sim o da falta e do medo, isto é, um aspecto do desejo da natureza com o
tal. O desejo é a forma assumida pelo interesse elementar de toda vida
em si mesma sob as condições da mediatez animal, onde ela se emanci­
pa da necessidade de ficar imersa em uma função orgânica cega, assu­
mindo uma função própria: sua função são as emoções.^O ser animal é
essencialmente um ser apaixonado.^

Medidas pela escala da mera segurança biológica, as vantagens da


vida animal em relação à vida das plantas são duvidosas e, queiramos
ou não, adquiridas a um alto preço. A capacidade de sair à procura de
alimento corresponde apenas à necessidade que sua varipdade de m e­
tabolismo im põe ao animal, e de que a planta está livre/A existência
que se locom ove é cheia "de intranqüilidade e de medo: nada disto a
vida da planta conhecé.íPAas por mais duvidosas que sejam as vanta­
gens da mobilidade em um balanço dos meros valores da sobrevivên­
cia, o próprio padrão da sobrevivência é insuficiente para se avaliar a
vida. Se o que im portasse fosse unicamente a duração, a vida nem se­
quer deveria haver com eçado. Ela é essencialm ente existência precária
e transitória, uma aventura na mortalidade, e em nenhuma de suas for­
mas possíveis é tão segura de sua duração quanto o pode ser um corpo
inorgânico. A questão aqui não é a duração com o tal, mas sim a “ dura­
ção de qu ê?’^Quer dizer: estes “ m eios” de sobrevivência, com o percep­
ção e sentimento, nunca devem ser julgados simplesmente com o m ei­
os, mas sim com o qualidade da própria vida a ser conservada, e por
isso tam bém com o aspectos do fim da conservação. É este um dos pa­
radoxos da vida, que ela em prega meios que m odificam o fim e passam
a ser eles próprios parte do fim. O animal dotado de sensação busca
manter-se com o ser que sente, não apenas com o ser que metaboliza - e
assim por diante. Sem esta capacidade haveria muito menos a preser­
var, e este m en os daquilo que deve ser conservado é a mesma coisa que
o menos com que é conservado.

Em última análise é o fato da individuaçâo que decide a disputa entre


animal e planta.1X constituição original do organismo, mesm o no estágio
unicelular, expressa a individualidade com o ousadia da liberdade com
que uma forma mantém sua identidade ao longo da mudança da maté-
ria.xV\ liberdade é compensada dialeticamente pela necessidade, a auto­
nomia pela dependência. A mesmidade, aqui desde o início sombria­
mente prefigurada, traz em si sua contrapartida na outridade do mundo.
/Acentuar mais ainda este dualismo, com toda a carga que lhe é inerente,
não é outra coisa senão acentuar a própria vida'. Sua dialética tem neces­
sariamente que transformar em faca de dois gumes todo estado que dela
se desenvolv^/É a partir deste ponto de vista que podem os perceber em
que consiste o verdadeiro progresso do desenvolvimento da animalida­
de. O caráter indireto de sua relação com o mundo é uma exacerbação
do caráter indireto que já no mais baixo nível (o do metabolismo) carac­
teriza a existência orgânica, comparada com a auto-identidade imediata
da matéria anorgânica/?Este aumento de mediatez ganha um espaço
maior, interior e exteriormente, ao preço de um risco maior, interior e ex­
terior. üm “ eu” mais pronunciado se confronta com um mundo mais di­
ferenciado. A progressiva centralização nervosa do organismo animal
enfatiza o “eu” , enquanto correspondendo a isto o ambiente torna-se es­
paço aberto onde o sujeito da sensação, possuindo liberdade de m ovi­
mento, tem que cuidar de si mesmo. A exposição maior e a consciência
mais penetrante que a acompanha, a possibilidade de ser destruída, pas­
sa a ser objeto do medo, da mesma forma com o suas possíveis satisfa­
ções tomam-se objetos do prazer. A capacidade de gozar tem com o seu
lado da sombra a capacidade de sofrer, sua solidão se compensa com a
comunicação: a vantagem não se encontra em um dos lados da balança
mas sim em os dois existirem juntos, isto é, no aumento daquela mesmi­
dade com que originalmente o “organism o” desafiou a indiferença da na­
tureza. Desde o início seu preço foi a mortalidade, e todo degrau a mais
do isolamento custa um preço em sua própria moeda - a mesma moeda
com que ele compra também sua realização. A espécie de moeda deter­
mina o valor da ousadia. O fosso aberto entre sujeito e objeto, que abre a
percepção à distância e que se reflete na exacerbação de desejo e medo,
de satisfação e decepção, de prazer e dor, jamais deve ser fechado. Mas a
liberdade da vida, em sua crescente amplidão, encontrou espaço para to­
das as formas de relação - perceptiva, ativa e sensitiva - que justificam o
fosso no momento de transpô-lo, e que através de rodeios reconquistam
a unidade perdidaV
Cibernética e finalidade: uma crítica

Em 1782 Jam es Watt patenteou o regulador centrífugo para sua má­


quina a vapor. Esta válvula consiste de duas esferas metálicas presas a
um eixo vertical girando com o movimento da máquina; as esferas ele-
vam-se ou se baixam, de acordo com a velocidade de rotação. Este m ovi­
mento de sobe-e-desce comanda uma válvula entre a caldeira e o cilin­
dro, de modo a fechá-la quando a velocidade do pistão ultrapassa um va­
lor desejado, ou a abri-la quando ela permanece abaixo deste valor. A be­
leza desta auto-regulação consiste em que ela é realizada pela própria
máquina com o parte do rendimento a ser regulado, através do excesso
ou da falta do que deve ser objeto da correção.

Consideremos aqui os dois aspectos importantes deste mecanismo


de controle. Em primeiro lugar, uma parte, mesm o extrem am ente pe­
quena, do rendim ento realizado é re d ire c io n a d o para o mecanismo de
controle mais atrás no sistema: esta disposição chama-se feed ba ck (re-
alimentação, reacoplamento). Segundo, a realimentação é tal que atua
contrariamente à atividade da máquina, isto é, ela é corretiva e não refor-
çadora: esta disposição recebe o nome de feed b a ck n eg a tivo. Se funcio­
nar corretamente, ela mantém o rendimento do sistema dentro de um in­
tervalo médio, na medida em que reage alternadamente a um desvio des­
te rendimento para mais ou para menos.

Mais de oitenta anos mais tarde, em 1868, em um tratado, O n g over-


n ors, apresentado à Royal Society, Clark Maxwell deu a primeira explica­
ção teórica desta espécie de mecanismo. E mais uma vez oitenta anos
mais tarde, em 1948, Norbert Wiener deu origem a uma nova ciência,
que ele chamou de “cibernética” , de acordo com a palavra grega kyber-
netes (piloto, guia) de onde provém a palavra govern a r.

Watt dificilmente poderia ter sonhado com estas conseqüências. Seu


regulador era um dispositivo auxiliar para a máquina a vapor, cuja finali­
dade era a produção de força mecânica para a indústria. Foi da grande
disponibilidade desta força que proveio a Revolução Industrial, ou, com o
Wiener prefere denominá-la, a Primeira Revolução Industrial. Seu aspec­
to técnico predominante foram as máquinas de força mecânica. A fun­
ção controladora do regulador limitava-se a garantir o funcionamento
contínuo da máquina, e tudo quanto Watt e seus contemporâneos po­
dem ter estado em condições de prever referia-se certamente às forças
motoras que as novas máquinas iriam fornecer, e à sua utilização econ ô­
mica no sentido da Primeira Revolução Industrial. Recentemente, porém,
os dispositivos automáticos de controle conquistaram direitos próprios,
com novas funções não mais tão subordinadas. A tecnologia moderna,
além da mera produção e aplicação de força, tende cada vez mais a asso­
ciar a máquina a mecanismos de robô - isto é, mecanismos que substitu­
em a percepção e o julgamento do ser humano na operação das máqui­
nas, assim com o a máquina substituiu os braços humanos. A diferença
não se encontra somente na função mas também na tecnologia: o con­
trole automático é um ramo da técnica da comunicação, em oposição à
técnica das máquinas. Foi o avanço destes m ecanism os operacionais e
o fato de eles substituírem funções humanas de natureza inteiramente
diferente daquelas que foram substituídas pela mera força da máquina -
noutras palavras: funções “ mais elevadas” -, que levou Wiener e outros a
falarem de uma Segunda Revolução Industrial. Exemplos conhecidos de
mecanismos operacionais são os termostatos, os pilotos automáticos
que guiam os navios em suas rotas, a direção automática do fogo de arti­
lharia na defesa aérea, os torpedos que buscam o alvo, as máquinas de
calcular eletrônicas, os dispositivos telefônicos automáticos. Em todos
estes dispositivos o fee d b a ck desempenha um papel importante.

Não havia necessidade de isto provocar nenhuma disputa. Os princí­


pios próprios destes dispositivos, e os problemas que eles levantam, exi­
gem uma teoria unificada, com autonomia e alcance suficiente para que
possa ser considerada com o uma nova ciência. Esta é uma questão a ser
decidida pelos peritos. Se a cibernética se restringisse a isto, não havia
necessidade de a filosofia se empenhar em criticá-la. Mas a cibernética
não é tão inofensiva assim. A mente humana parece ter uma forte e qua­
se irresistível inclinação para interpretar as funções humanas dentro
das categorias dos artefatos que as substituem, e para interpretar os arte­
fatos dentro das categorias das funções humanas que eles desem pe­
nham. A máquina, com suas juntas e alavancas, e com seu insaciável
consum o de combustível, era um gigantesco escravo, e vice-versa, o cor­
po humano ou animal uma máquina que consumia combustível. Fala-se
dos modernos mecanismos operacionais com o sendo capazes de perce­
ber, reagir, acomodar-se, ir em busca de um fim, recordar, aprender, to­
mar decisões; com o sendo inteligentes e por vezes até com o tendo em o­
ções (mas isto só quando alguma coisa sai errado). E por outro lado
fala-se dos homens e das sociedades humanas entendendo-os e expli­
cando-os com o mecanismos de fee d b a ck , sistemas de comunicação e
máquinas calculadoras. O consciente em prego de uma terminologia m e­
tafórica e de duplo sentido favorece esta transferência entre o artefato e
seu criador, e vice-versa. Antes estas analogias eram deixadas ao jo g o da
fantasia do escritor, e certamente não existia para ele nenhum lugar no
arsenal dos conceitos naturalistas com o tais. Mas a cibernética renuncia
precisamente às transferências deste gênero, e por isso não pode deixar
de passar por uma crítica filosófica. A literatura, que aumentou rapida­
mente desde a publicação de “Cybernetics” de Norbert Wiener em 1948,
está repleta de explicações cibernéticas do comportamento humano,
dos processos mentais do ser humano e dos organismos socioculturais.

Deparamo-nos aqui com uma coisa nova. O clássico representante


da concepção mecanicista do mundo, ao lidar com a matéria e o m ovi­
mento, limitava-se a falar da “ máquina do corpo” e a considerá-lo meto-
dologicam ente (se bem que nem sempre metafisicamente) com o Des­
cartes, o criador da idéia do “autômato animal” , que basicamente (sem
que o negasse) havia banido o espírito da esfera objetiva da ciência. Ma­
terialistas posteriores rejeitaram apenas de nome o dualismo cartesiano.
Que o espírito, com o diziam, fosse um “epifenôm eno” de processos ma­
teriais no cérebro, isto continuava a ser uma afirmação abstrata e sumá­
ria, enquanto não levasse a afirmações e transformações tais que a lin­
guagem simbólica da física conseguisse penetrar na esfera do espírito.
Hoje, pela primeira vez, nos é apresentado um modelo mecanicista que
poderia ser aplicado igualmente aos fenôm enos materiais e espirituais, e
um sistema, dizem, não apenas de equivalência mas também de identi­
dade - isto é, que não envolve transição de uma esfera para outra.

Isto significaria efetivamente uma superação do dualismo que tacita-


mente o materialismo clássico havia deixado em vigor: pela primeira vez
desde que o aristotelismo foi abandonado nós estaríamos de posse de
uma teoria unificada, ou pelo menos de um esquema conceituai unifica­
do para representar a realidade. Entende-se por si mesm o que isto é de
importância extrema para a filosofia, e nenhum escrúpulo impede os
porta-vozes da cibernética de sublinhar com veemência esta implicação.
É com este aspecto da nova disciplina, e não com a matemática e a en­
genharia da técnica de comunicação e dos controles automáticos, que
queremos ocupar-nos nas considerações a seguir. Para um estudo com o
este três temas principais se nos oferecem, indicados pelos conceitos de
“teleologia” , “informação” e “espírito” . Para esta análise escolho o primei­
ro deles, isto é, o conceito cibernético da finalidade e da teleologia. É um
conceito fundamental para todo o esquema de pensamento desta esco­
la, e já de antemão concedo que, se a cibernética satisfizer as exigências
relativas a estes fenômenos - isto é, que seu conceito seja desenvolvido
exclusivamente a partir de premissas mecânicas -, ela terá provado seu
ponto principal, e enfim superado um centenário dualismo. Mostrarei que
esta pretensa superação não passa de aparência, sendo predominante­
mente verbal.

II

Antes de entrarmos na análise sistemática, procuraremos ver atra­


vés de um exem p lo preferido da literatura cibernética com que espécie
de analogias terem os que ocupar-nos1. A problem ática analogia ocor­
re entre uma perturbação de mecânica operacional e uma perturbação
neurológica. Primeiramente o aspecto mecânico: um feed back pode ser
insuficientemente “am ortecido” e levar a supercorreções, com o que o
resultado torna-se positivo em lugar de negativo. Neste caso a máquina -
que procura, por exemplo, atingir um alvo em movimento - irá “super-
corrigir” em direções opostas numa série de oscilações cada vez mais
amplas, desta forma “errando o alvo” . Agora a analogia neurológica:
quando um paciente com um problema no cerebelo é “ s o licita d o a levar
um copo de água da mesa para a boca..., a mão que sustenta o copo irá
executar uma série de movimentos oscilatórios de amplitude tanto maior
quanto mais o copo se aproxima da boca, de modo que a água se derra­
ma e o propósito deixa de realizar-se” .

Os dois casos, assim se afirma, são “impressionantemente sem e­


lhantes” . Com o quer que isto possa ser visto de fora, pelo menos um
ponto deveria ficar claro desde o início: o paciente q u e r levar o copo à
boca, isto é, ele deseja que o copo chegue lá. Este objetivo, que desde o
início motiva a ação, está presente em todos os movimentos parciais, for­
necendo o aspecto através do qual eles são considerados com o resulta­
dos negativos, levando ao fracasso o em preendim ento inteiro. Pode-se
presumir que o paciente sofre com o fracasso de sua empresa. Mas com
referência à máquina, enquanto nos é possível julgá-la, também seria
perfeitamente possível dizermos que, em vez de experimentar dor, ela se
entrega com prazer a suas loucas oscilações, e que em vez de experi­
mentar um sentimento de frustração ela se compraz na livre realização
de seus impulsos.

1 . E s te e x e m p lo , e as c ita ç õ e s a p re s e n ta d a s n e s ta s e ç ã o , s ã o tira d o s d e u m a rtig o e s c rito


p o r A . R o s e n b lu e th , N . W ie n e r e J . B ig e lo w , “B e h a v io r, P u rp o s e a n d T e le o lo g y ” , e m : Phi-
losophy o f Science, 1 0 /1 , 1 9 4 3 , p. 1 8 -2 3 .
“Igualmente possível”, quer dizer aqui, naturalmente, o mesm o que
“nenhum dos dois” . A o m odo de operar de uma máquina manifestamen­
te não se aplica nem “dor” nem “alegria” , nem “êxito” nem “fracasso” ,
nem “realização” nem “frustração” - nem sequer co m o uma analogia
“ operacion al” , de vez que a máquina está igualmente “satisfeita” em
qualquer passo do seu comportamento, assim com o ele é realizado, por­
que o ocorrer com o tal é sua razão bastante e única. No caso da máqui­
na, “errar o alvo” significa evidentemente “ errar nosso alvo” , isto é, o
alvo para o qual ela foi por nós planejada, mas que ela mesma não “ pos­
sui”; nosso infeliz paciente, pelo contrário, na verdade erra o seu alvo, o
alvo que é dele, não por ter sido planejado para este alvo mas sim porque
ele criou este plano e o teve em mira. Estas distinções elementares, por
cuja evidência talvez incômoda eu peço desculpas, nós precisamos
tê-las em mente com muita clareza ao longo das considerações seguin­
tes. Mas o exem plo m esm o pertence a uma fase mais tardia do desenvol­
vimento lógico, à qual agora me volto.

O mencionado estudo cibernético chega ao conceito de ob je tiv o em


um processo de repetida dicotomia a que é submetido o conceito básico
de “com portam ento” . Com o “com ‘com portam ento’ se designa toda
mudança de uma coisa em relação à sua v izin h a n ça ” , toda a seqüência
lógica perm anece na esfera conceituai de suas relações externas. C om ­
portamento “propositado” aparece com o uma subseção do com porta­
mento “ativo” , e “o conceito de ‘propositado’ quer significar que o ato ou
o comportamento pode estar voltado para a consecução de um alvo -
isto é, para um estado fin a l em que o objeto que se comporta alcança
uma co rrela çã o d efin itiva no tempo ou no espaço com outro objeto ou
ocorrência” (grifos do autor). Toda a definição gira claramente em torno
do sentido e conteúdo da expressão “estado final” . Que estado deve ser
considerado com o estado final? Não podem os responder “ o estado em
que o objetivo foi alcançado” , pois é unicamente a finalidade do estado
que deve conferir sentido ao conceito de “alvo” ; este sentido não pode,
por exemplo, ser deduzido da presença antecipada e esperada deste es­
tado no início do movimento, ou de sua continuação ao longo de todos
os estágios. Só resta, portanto, entender com o estado “final” o estado
em que a ação termina, isto é, um estado de rep ou so naquele sentido re-
lativista amplo, com o manifestado pela expressão “ onde o objeto que se
comporta alcança uma correlação definitiva com outro objeto” . Isto tem
quase o aspecto de uma afirmação aristotélica, salvo que para Aristóte­
les um corpo chega ao repouso em seu lugar natural porque este é o alvo
de seu movimento, ao passo que para o nosso autor o movimento “ pode
ser interpretado de uma forma tal” que teria tido este alvo por haver ter­
minado onde terminou.
Não é esta uma diferença pequena. Aristóteles pôde fazer distinção
entre o mero terminar e o “fim ” interior de um movimento, uma distinção
sem a qual, com o ele acentua, a morte teria que ser considerada com o o
alvo da vida. Mas se nossos autores sustentam sua definição, então de
fato é a morte - a mais definitiva correlação com o ambiente que pode
ser alcançada por um organismo, e que impreterivelmente o é - o alvo de
todo o movimento da vida com o um decorrer único de “comportamento
ativo” , e não vejo nenhuma maneira de os autores escaparem a esta con­
clusão. E generalizando, podem os dizer que o “decorrer” , isto é, o au­
mento da entropia, determina a direção de todos os processos naturais;
portanto o máximo de entropia pode ser interpretado com o o alvo para
cuja realização todos os comportamentos podem ser interpretados. Nes­
te sentido, todo com portamento é propositado - de acordo com as con­
dições da definição.

Esta crítica pode não parecer correta, uma vez que não considera a
espécie de mecanismo a que, segundo a intenção dos autores, a defini­
ção deve ser aplicada, e que, pela diferença que se pode constatar em re­
lação a outras espécies “ não propositadas”, serve de exem plo para o ver­
dadeiro sentido da definição. Na verdade não estamos muito interessa­
dos aqui nas deficiências da formulação. Por isso queremos considerar
alguns exemplos apresentados para ilustrar o sentido - a com eçar pelo
de um mecanismo não propositado.

“ Para com eçar podem ser m encionados dispositivos mecânicos,


com o por exem plo a roleta, expressam ente projetados para não terem
alvo.” Para que fim o m ecanism o foi projetado por quem o produziu,
isto evidentemente é de todo irrelevante para a descrição de seu funcio­
namento, porque lhe é exterior. Fazer alusão ao objetivo do planejador
humano neste contexto desperta a suspeita de que tam bém na teoria
geral o significado humano de “fim ” é introduzido sorrateiramente em
uma descrição que pretexta trabalhar som ente com categorias de com ­
portam ento exterior. No prosseguim ento da análise verificarem os que
esta suspeita é am plam ente confirmada. No que se refere à própria ro­
leta, em cada jogada ela alcança um estado final, m esm o que este não
possa ser previsto por quem a planejou ou por quem a utiliza, sendo por
isso em si mesma “propositada” . Pode-se objetar que a roleta não está
incluída em uma definição segundo a qual com portam ento “ proposi­
tal” é uma divisão de com portam ento “ativo” , uma vez que toda a ativi­
dade da roleta recai sobre o fornecim ento direto de energia - o impulso
conferido por uma mão. Mas em lugar de perder tem po provando que a
distinção entre com portam ento ativo e passivo não é relevante para o
problema, é preferível voltarmo-nos para o próxim o exem plo, a que
esta objeção não se aplica.
/ r i ' ’

“Consideremos em seguida dispositivos com o um relógio, que de


fato foram planejados com uma finalidade, porém que realizam algo que,
apesar de regular, não é voltado paráMirria-fífialidade - isto é, não existe
nenhum estado final específico ao qual o movimento do relógio tenda.”
Este é um exem plo gritante de uma mistura ilícita de pontos de vista.
Afirmar que não existe nenhum estado final específico ao qual tenda o
movimento do relógio só é verdadeiro com o expressão do que é deseja­
do do ponto de vista do usuário humano, que então também interfere de
fato - por exemplo, dando corda regularmente - para garantir o resulta­
do por ele desejado. Entregue a si mesmo, à sua própria “tendência” , o
relógio pára: a mola atinge um máximo de distensão, o ponto de tensão
zero, ou o peso chega ao repouso, o mais tardar ao atingir o centro de
gravidade, e o estado final do relógio é aquele estar-parado, indicando
que ele alcançou o perfeito equilíbrio, ou o máximo de entropia. Eu não
consigo perceber nenhuma tendência no relógio com o mecanismo físi­
co, embora no usuário do relógio eu consiga ver uma tendência de natu­
reza inteiramente diferente, isto é, a tendêncfo de agir contrariamente à
“finalidade” própria do relógio.

Por outro lado parece arbitrário excluir o funcionamento regular do


relógio c o m o um tod o dos estados “em que o objeto que se comporta al­
cança uma correlação definitiva no tem po ou no espaço com outro obje­
to ou acontecim ento”, com isto negando-lhe a capacidade de represen­
tar o alvo do processo. A “correlação definitiva” pode perfeitamente ser
uma série, o que ocorre precisamente no caso de um relógio ao qual a
energia é continuamente fornecida (e, no plano humano, no caso daque­
las atividades que têm a finalidade em si mesmas). Assim, também sob
este aspecto o exemplo não consegue alcançar o objetivo de ilustrar o
com portamento não propositado de um mecanismo, em oposição ao
com portamento propositado. Parece que quando deixamos de lado o
sentido original de “finalidade” (p u rp o s e ) com o um propósito, com o
aquilo que alguém se p ro p õ e com o alvo de sua ação, nós som os força­
dos a atribuir a toda a çã o uma finalidade - e com isto a privar a definição
de toda e qualquer força definidora.

Voltemo-nos agora aos contra-exemplos dos nossos autores. “Muitas


máquinas, por outro lado, são por princípio interior possuidoras de uma
finalidade, üm exemplo disto é um torpedo com mecanismos de busca
do alvo. A expressão seru om eca n ism o foi cunhada precisamente para
designar máquinas com um com portamento interiormente proposital.”
Por que um torpedo que procura o alvo, ou que se autodirige, é inter­
namente propositado? Naturalmente nós precisamos ter cuidado para
não sucumbirmos à força sugestiva de palavras com o “buscar” e “auto-” .
Quando observamos o com portamento de um torpedo, sua “variação
em vista de sua vizinhança” , observamos que ele não segue simplesmen­
te seu curso original mas que ocasionalmente o modifica, e isto com o re­
sultado geral de que o alvo, que pode ser um alvo em movimento, per­
manece sob a mira. Vemos que estas mudanças ocorrem com o reações
a mudanças na posição relativa dos dois corpos, e podemos então falar
de “ação com pensadora” por parte do torpedo. Fazemos isto no pressu­
posto de que as mudanças de com portamento resultam da influência da
outra entidade, não diretamente da ação de forças, mas apenas indireta­
mente, num sentido a ser ainda especificado. Do contrário se teria que
considerar cada partícula magnética que com o deslocamento de um
pólo magnético modifica seu curso, ou também um corpo gravitacional
que modifica sua trajetória com o deslocamento relativo da fonte de atra­
ção, com o pertencendo a esta mesma categoria.

Este último exemplo é instrutivo. Pode-se dizer que um planeta reage


continuamente à mudança de posição relativa do sol, e que a curvatura
de sua órbita real é um com promisso entre duas “tendências” que se
opõem, a de prosseguir em linha reta por causa de seu momento de inér­
cia, e a de pela força de gravidade cair em direção ao sol. Cada um destes
dois fatores encarna seu “propósito” próprio, e caso o primeiro fator se
torne cada vez menor (por exemplo por uma resistência de atrito) a traje­
tória do planeta passa a ser uma espiral cada vez mais estreita, onde a
distância do “erro” em relação ao segundo “objetivo” diminui progressi­
vamente. Não obstante não diremos que o planeta “corrige” ou “ajusta”
o seu curso. A razão disto é que neste exem plo as variações são uma fun­
ção direta das forças envolvidas; sobretudo a energia que o “estímulo”
fornece (o “puxão” do sol) é a mesma que provoca a “resposta” . Noutras
palavras: aqui não podem os nem sequer fazer distinção, já que ação e re­
ação são uma mesma ocorrência.

Estaríamos diante de uma situação análoga se o torpedo modificas­


se seu curso em conseqüência, por exemplo, de uma atração magnética
direta entre ele e o alvo. Este, segundo toda interpretação razoável da de­
finição anterior, que de qualquer maneira concluímos não ser válida, se­
ria certamente um comportamento “ proposital” , mas não seria um com ­
portamento “teleológico” de acordo com a definição a que logo nos vol­
taremos. A diferença - admitindo-se que em ambos os casos atuem fato­
res magnéticos - consistiria em que no torpedo autodirigido o fator m ag­
nético não haveria de fornecer ele próprio a força para a aceleração do
sistema cujo mecanismo de direção ele influencia, e que o efeito sobre
este último não seria uma função da gra n d eza da força que atua sobre
ele. Havendo suficiente sensibilidade de recepção, esta força pode ser
tão pequena quanto queiramos, e com um acoplamento eficiente, e com
suficiente potência do motor, o efeito na medida de força pode ser tão
grande quanto desejarmos. O torpedo não é atraído pelo alvo mas sim di­
rigido para ele - é bem verdade que respondendo a uma influência que
parte do alvo, mas esta influência é da ordem de grandeza de uma “men­
sagem ” , não de uma aceleração. Desta forma é a diferença entre os ele­
mentos receptor e realizador, e o direcionam ento da realização do últi­
mo pela “com unicação” do primeiro, que distingue este tipo de com por­
tamento adaptativo. Ma esfera humana isto diz que o comportamento
proposital envolve percepção.

Evidentemente a divisão, e ao mesmo tem po também a ligação entre


órgão receptor e órgão realizador, é uma das condições essenciais para a
liberdade do agir animal: ela possibilita um agir regido por finalidade (pois
o objeto-alvo tem que ser percebido e um movimento orientado por esta
percepção tem que ser executado) - suposto que a entidade em questão
seja capaz de ter objetivos. Esta condição instrumental para o agir dirigido
para o alvo, isto é (na analogia animal), “a capacidade de movimento e a
sensação” , que não é outra coisa senão o feed ba ck do engenheiro con­
trolador, fornece ao cibernético sua definição de “comportamento teleoló-
gico”: comportamento controlado por reacoplamento negativo. Isto, por­
tanto, é uma subdivisão do “comportamento proposital”, escapando ao
vazio de sentido do conceito de espécie pelo fato de ser especificado por
um determinado padrão técnico.

Com feedback negativo, a função de um sistema é regida pela quanti­


dade da discrepância apresentada a cada momento em relação a um esta­
do definido, e isto de tal forma que est? quantidade é constantemente
compensada. Com isto o processo parece ser dirigido para um alvo. Mas
poderá ele por isso ser chamado de “teleológico”, num sentido de alguma
forma mais significativo do que uma definição verbal - num sentido que
justificasse a escolha do nome pelo grau de significado que possui antes
da definição? Esta pergunta eqüivale a perguntar se a diferença específi­
ca do feedback consegue fornecer o conceito de finalidade que o gênero
lógico não conseguiu fornecer; e isto por sua vez eqüivale à pergunta se a
condição técnica para o agir com objetivo é capaz de constituir ela mesma
este objetivo: e isto, por fim, envolve a pergunta se o equipamento realiza­
dor e receptor - isto é, só a capacidade de movimento e de percepção - é
suficiente para explicar o comportamento animal motivado.

III

Com estas perguntas em mente, vam os considerar mais uma vez o


torpedo em busca do alvo. Como seu télos, poderíamos considerar o
acertar o alvo, porque este é o resultado de seu comportamento em
caso de êxito, e o com portamento é chamado de propositado e teleológi­
co porque é capaz de se adaptar em vista deste m esm o resultado. Obser­
ve-se que com o conceito de “êxito” nós introduzimos na descrição um
elemento de avaliação humana, e que com as palavras “adaptar-se em
vista do resultado” nós tom am os ainda outra liberdade antropomórfi-
ca, uma vez que nos diversos atos de adaptação nada se refere direta­
mente ao resultado do agir com o um todo, m esm o que das adaptações
nós possamos retrospectivamente concluir que elas contribuíram para o
resultado. Toda adaptação com o tal apenas restaura o equilíbrio do m o­
mento, que segundo suas próprias condições é um estado que se basta a
si mesmo. Não quero insistir aqui sobre estes pontos, mas prefiro per­
guntar que pa rte do mecanismo esconde em si este objetivo.

Esta parte não pode ser a máquina propulsora, porque ela - quer
seja um motor elétrico alimentado a bateria, um motor a jato ou um m o­
tor de combustão interna, não importa - trabalha apenas por meio do
equilíbrio de gradientes de energia, isto é, ela é determinada pela lei da
entropia. Mas a mesma coisa se pode dizer também do sensor receptor,
cuja atividade consiste a cada momento em igualar um potencial magné­
tico ou elétrico, ou qualquer outro desequilíbrio interno; e o m esm o vale
também para a transmissão da “m ensagem ” , qualquer que seja o gênero
de transmissão, para seu reforço e para os eventuais processos de religa-
mento, e assim por diante, até chegarmos ao acionamento do próprio
dispositivo de direção. Cada uma destas atividades decorre inteiramente
dentro da rota de sua própria necessidade mecânica - é uma atividade
“cega ” , com o se diz - e também não tem relação com os passos anterio­
res ou subseqüentes de sua própria seqüência, com o ainda com as ativi­
dades dos outros elementos no sistema. Nenhuma destas ações se ocu­
pa, com o tal, com o atingir o “alvo”; a única “tendência” de cada uma de­
las é realizar seu próprio “ objetivo” segundo a lei da entropia.

Assim o objetivo predominante, não se encontrando em uma parte,


só pode encontrar-se no todo, no receptor mais executor mais acopla­
mento, e na forma de organização do sistema múltiplo. De fato é tam­
bém isto que afirmam os cibernéticos, e por isso a pergunta passa a ser
se o mecanismo é um “to d o ”, isto é, se ele possui uma mesmidade de
que se possa afirmar que é portadora de objetivo, sujeito de ação ou to-
madora de decisões.

Que não é este o caso, pode-se mostrar por meio de uma considera­
ção simples. Imaginemos que o torpedo não seja inteiramente mecani­
zado mas que seja tripulado por um piloto humano - e de imediato nós
evidentemente podem os substituir esta imagem pelo exem plo diário do
motorista que dirige o seu carro. Nós não iríamos considerar o torpedo
mais marinheiro, ou o carro mais motorista, com o uma entidade única
de propósito, tampouco quanto haveríamos de dizer que o machado par­
ticipa do propósito e do com portamento teleológico do lenhador que o
maneja. Qualquer pessoa razoável diria que, no conjunto, o marinheiro,
o motorista, o lenhador, é o portador e detentor do objetivo, o que usa os
outros elementos para seu propósito. E esta situação em nada se modifi­
ca se o piloto, por exemplo, não tiver uma percepção direta do seu alvo
mas exercer a direção com o auxílio de dados provenientes de aparelhos
receptores mecânicos, com o por exem plo o radar. Neste caso nós tería­
mos um fornecimento de feedba.ck ( in p u t) e uma realização de energia
mecânica ( o u tp u t) acoplados no ponto de controle por um elemento hu­
mano, mas isto não haveria de levar a máquina um milímetro adiante no
sentido de fundi-la com um agente humano em um único todo de propó­
sito ou de objetivo. O ser humano pode abandonar o aparelho, ir embora,
levando consigo inteira e integralmente o “objetivo”.

Em certos casos, portanto, nós p o d e m o s , dentro de um sistema pre­


dominantemente mecânico de funções interligadas, que pode incluir até
mecanismos de operação, lo ca liz a r o o b je tiv o em uma única parte que
controla o todo - admitindo-se que esta parte, este elo de ligação, seja
um ser que possua para si próprio objetivos e que atue em vista de o b je­
tivos. Então todo o resto da maquinaria é simplesmente um instrumento.
Por que, então, quando substituímos este único agente por um elo m ecâ­
nico, que considerado em si não possui objetivo, a propriedade de agir
para um objetivo haveria de se deslocar deste lugar na configuração e re­
pentinamente espalhar-se para o sistema inteiro? E por que os que até
então eram instrumentos, juntamente com o elem ento substituído, ha­
veriam de assumir o caráter de comportamento interiormente proposita­
do? Esta é uma idéia absurda. Evidentemente podemos dizer que toda a
aparelhagem, julgada a partir de fora, se comporta “com o se” fosse ca­
paz de estabelecer um objetivo; mas então nós teríamos que acrescentar
imediatamente: “Mas nós fazem os isto melhor” .

Por que o sabemos fazer melhor? Para responder a esta pergunta, con-
centremo-nos por um momento no hipotético piloto humano do torpedo
que se dirige para o alvo. Ele executa certas ações, isto é, seus membros
realizam determinados movimentos - a saber, aqueles que no caso alter­
nativo haveriam de ser executados pelo dispositivo mecânico interpolado.
Por que executa ele estas ações quando e da maneira com o o faz? A res­
posta dos cibernéticos seria que ele faz isto em resposta a determinadas
informações de seus receptores, ou que ele age determinado por estas in­
formações - noutras palavras, ele próprio funciona com o um mecanismo
de feedback.

Mas isto manifestamente não é verdade. Qualquer pessoa em perfeito


juízo irá dizer que o piloto aciona uma determinada chave não porque re­
cebeu uma determinada mensagem sensorial mas sim porque ele quer
manter o torpedo voltado para o alvo, e à luz deste prop ósito ele faz da
ocorrência de determinadas percepções ocasião para realizar certas ações
que favorecem o propósito visado. É o objetivo prévio que determina o de­
correr de toda a ação, qualificando os dados recebidos com o “mensa­
gens” , quando importantes para o objetivo. Sou eu que valorizo determi­
nadas mensagens com o “informação” , sou eu que faço com que elas in­
fluenciem o meu agir. O mero feedback dos órgãos dos sentidos não pode
motivar comportamentos; noutras palavras, sozinhas, a percepção dos
sentidos e a capacidade de movimentação não são suficientes para um
agir com objetivo - nem mesm o para o condicionamento original de refle­
xos que, uma vez estabelecidos, possam então servir de sucedâneo para
um agir proposital. O reflexo preserva em seu programa mecanizado a re­
lação vital proposital ou o interesse que atuou para o produzir. O conjunto
de feedback de um sistema receptor-executor (o que um organismo, entre
outras coisas, tam bém é) envolve-se com o agir proposital exatamente se
e quando não é um mero m eca n ism o de feedback - isto ê, quando os
dois elementos não estão diretamente acoplados mas entre eles está inter­
calada uma vontade, um interesse ou um desejo.

Mas isto implica precisamente na constatação de que o com porta­


mento proposital exige a presença de um propósito. Não se trata de uma
mera tautologia, pois a cibernética é uma tentativa de explicar o com por­
tamento proposital sem propósitos, da mesma maneira com o o behavio-
rismo é a tentativa de uma psicologia sem “psique” , ou a biologia m eca­
nicista a descrição de processos orgânicos sem “vida” .

Se tudo desta maneira vem a dar no objetivo, vamos analisar melhor o


objetivo do piloto do nosso torpedo. Dissemos que ele age desta e daquela
maneira porque quer manter o torpedo em uma determinada rota. Mas
com isto a questão não fica resolvida. Com o isto não é mais do que o obje­
tivo imediato, logo nós temos de perguntar p o r que ele deseja que o torpe­
do siga esta rota. (Jma resposta é que ele deseja que o torpedo termine por
acertar e afundar o cruzador inimigo. E por que ele haveria de desejar isto?
A pergunta tem tanto mais cabimento quanto o êxito desejado pode incluir
sua própria destruição, e nós certamente podemos esperar que o piloto te­
nha o desejo contrário de viver. A resposta pode ser que ele o deseja por
patriotismo, ou pela glória e fama, ou por ódio ou vingança ou para ganhar
uma aposta ou para realizar um suicídio sensacional. Mas em cada um
destes casos, ou numa combinação dos mesmos, nós temos mais uma
vez que perguntar pelo porquê, e com isto interrogar o que significa o bem
de sua pátria ou a honra e glória ou a vingança, e assim por diante, em
toda a economia teleológica de sua pessoa. E esta pesquisa há de le­
var-nos ao seu desejo último, aos objetivos finais pelos quais ele vive, pelo
menos no momento presente.

Mas a primeira resposta, em vez de ser “ porque ele quer afundar o


cruzador” , também poderia ser “porque isto lhe foi ordenado” , e então a
próxima pergunta seria: “Por que nesta seqüência de ações ele faz da
obediência a uma ordem o seu objetivo?” Aqui as respostas poderiam
ser que ele o faz por sentimento do dever, ou por medo de seus superio­
res, ou para ganhar reconhecimento, ou porque quer merecer o seu sol­
do ou corresponder a um modelo social. Cada uma destas respostas leva
mais uma vez a uma série ascendente e mais ampla de objetivos ou dese­
jos mediatos, e se as levarmos suficientemente adiante terminaremos de­
sem bocando em uma imagem da total determinação do ser humano
para objetivos. (N ão que eu acredite que esta imagem chegue jamais a
ser com pleta.)

O que importa é isto: por mais limitada e possivelmente heteronômi-


ca que possa ser a motivação imediata, ela só pode ser uma motivação
com base no interesse de toda vida por si mesma, por sua realização, por
seu conteúdo. Só sobre esta base pode o feed b a ck ser eficaz na direção
da ação propositada. Até o apelo à obediência e o extremamente amplo
papel do hábito, em última análise têm que haurir deste fundo de espon­
taneidade e interesse.

Mas existe mais um ponto de vista segundo o qual nossa segunda sé­
rie de respostas hipotéticas é instrutiva. O objetivo próximo é “dirigir-se
para o alvo” . Mas um objetivo apenas um pouco mais distanciado seria
“cumprir ordens” . Embora este último, com o vimos, esteja ele próprio in­
cluído no sistema universal dos próprios objetivos de vida de quem o exe­
cuta, ele também aponta para o objetivo de outra pessoa, de quem se
pode dizer que o agente executa juntamente com ele sua ação. Isto não
precisa significar que ele faça do objetivo do superior o seu objetivo pró­
prio; mas pelo menos fez de sua execução, uma vez a ele confiada, o seu
objetivo presente, e isto para os objetivos dele próprio, com o se obser­
vou antes. Mas do ponto de vista do superior os objetivos do piloto não
desempenham nenhum papel. O que a ele importa é simplesmente que
com suficiente segurança possa confiar que o agente irá executar suas
ordens, quaisquer que sejam seus motivos - de modo que em seu pró­
prio cálculo pragmático ele possa substituir suas ordens por aqueles m o­
tivos, com o única determinação eficaz para o comportamento do outro.
Isto, naturalmente, ele só poderá fazer quando souber que o esquema de
objetivos do encarregado inclui a aceitação de ordens por ele dadas, in­
clusive de ordens com o a que foi dada. Mas se esta condição geral for sa­
tisfeita, com o ocorre com todo superior inteligente, ele pode efetivamen­
te ignorar os motivos do subordinado. Pode então, com certo direito, con­
siderar a questão de tal forma com o se seu subordinado, enquanto dura
a ação, suspendesse sua própria “ pessoa” , com a espontaneidade de
seus próprios objetivos de vida - e com o se nesta medida ele tivesse
sid o m e ca n iza d o (em última análise é este um dos objetivos da forma­
ção militar). Noutras palavras: o superior, enquanto durar a tarefa, pode
usar seu piloto com o um robô, com o seu instrumento.
Considerado desta forma, de fato o piloto funde-se com o torpedo em
uma unidade instrumental, o todo representando um servomecanismo.
Mas isto significa precisamente que a combinação, assim considerada,
está despojada de um objetivo in tern o - ou m esm o que foi dele esvazi­
ada -, passando a carregar apenas o objetivo de seu usuário, um objeti­
vo para o qual m esm o o colaborador humano passou a ser mero órgão
executor. E este é identicamente o caso do torpedo “ autodirigido” não tri­
pulado. O piloto humano p o d e ser substituído por um dispositivo m ecâ­
nico. justamente porque de qualquer maneira sua própria finalidade inte­
rior foi desligada e praticamente não é considerada neste contexto: só o
que conta é o objetivo do superior, que através do “telecontrole” de suas
ordens, ou através de instruções “gravadas” com antecedência, maneja
a “ máquina” - motor de propulsão, piloto e tudo mais.

Assim existe efetivamente um sentido em que se pode dizer que uma


ação com um objetivo é realizada pelo com plexo inteiro, não importando
se em sua com posição está ou não está incluído um piloto humano. Sem­
pre estaremos em concordância com o citado axioma de que um com por­
tamento para um objetivo exige a presença de objetivos, se o objetivo aqui
presente for entendido com o o do superior, isto é, um objetivo exterior ao
sistema. Na ausência de tal finalidade, o mecanismo, mesm o realizando a
mesma coisa, passa a ser sem objetivo neste nível de consideração - em­
bora pelo simples fato de estar ativo ele inevitavelmente realize o “objeti­
v o ” interior de toda atividade mecânica, o alcançar a entropia; ou, caso in­
clua um elemento humano, este fará valer sua própria qualidade finalista e
(talvez) guiar a máquina e a si mesmo para a segurança.

IV

Por muito tem po os cientistas foram inimigos jurados do pecado


mortal do antropomorfismo. A ironia no fato de hoje eles serem extrema­
mente generosos em conferir às máquinas traços humanos só não é
maior porque a verdadeira intenção de toda esta generosidade é garantir
com mais segurança o monopólio da máquina sobre seu criador, isto é,
sobre o ser humano. Isto se reflete debaixo da camuflagem dos nomes.
Considerado do ponto de vista puramente semântico, pode-se dizer que
toda a doutrina cibernética do comportamento teleológico pode ser redu­
zida à confusão que se faz entre “servir a um objetivo” e “ter um objeti­
v o ” . Com muita naturalidade nós nos inclinamos a dizer que para realizar
um objetivo nós tem os que ter este objetivo; e em seguida, mais especifi­
camente, à confusão de que é preciso ter este objetivo e n q u a n to ele é re­
alizado; e ainda, que durante a execução é preciso tê-lo constantemente
diante dos olhos. Este pode ser o caso, mas não o é obrigatoriamente,
mesm o quando eu próprio sou o executor de minha realização. Uma vez
tendo formado meu propósito e estabelecido um programa adequado de
execução, eu posso me transformar em uma espécie de autômato e pas­
sar a executar os meus passos de forma rotineira, portanto, de certa for­
ma, “cegam en te” - não em vista dos ob jetivo s im ediatos dos meus
passos mas sim em vista de seu objetivo global. Ou então eu posso confi­
ar a execução a outros, no todo ou em parte, a outros que talvez não te­
nham nenhuma idéia deste objetivo, embora cada um conheça a tarefa
que lhe foi atribuída (e talvez também o seu objetivo próprio quando assu­
miu a tarefa). Estes executores são em grau ainda maior “cego s” em rela­
ção ao alvo, e seus objetivos são certamente irrelevantes para os meus,
assim com o os meus para os deles. Ou eu posso mesm o reduzir os passos
da execução a elementos tão primitivos que posso até renunciar inteira­
mente a executores humanos. E precisamente esta possibilidade de fazer
distinção entre objetivo e execução que nos permite distribuir de forma tão
ampla a execução a outros, a cadeias inteiras de subagentes ou mesmo de
máquinas. A manifesta organização de uma tal interconexão de ações que
se interpenetram para um objetivo, e sua efetiva realização no resultado fi­
nal, nada dizem sobre a presença ou ausência de objetivo entre seus mem­
bros, ou mesmo no sistema com o um todo, por mais sugestiva que seja a
analogia do comportamento para a mistura dos conceitos e para a contes­
tada imputação. E assim uma interconexão de ações que sem dúvida al­
guma estão “voltadas para um objetivo” de nenhum modo significa obri­
gatoriamente que o próprio sistema atuante, ou alguma parte dele, tenha
aquele objetivo, ou tenha qualquer objetivo em si. A prova disto não é a
mera execução, e menos ainda a aplicação formal de nomes. - Considera­
ções semelhantes poderiam, m u ta tis m u ta n d is, ser válidas também
para os conceitos cibernéticos de “informação e “pensamento racional” ,
onde imputações semelhantes ocorrem sob o fascínio de termos form a­
lizados. Mas a confusão semântica não pode explicar o fenômeno; sua
constatação serve apenas para diagnosticá-lo.

Ficamos mais perto de entender quando com preendem os que o ci­


bernético considera seu objeto em uma situação teórica que não é muito
diferente da situação prática em que nosso comandante considera seus
súditos - portanto em urna situação em que a distinção entre ser huma­
no e máquina deixa de ser importante e os dois podem ser substituídos
um pelo outro. Mas o superior, embora no seu convívio com a situação
dos súditos os utilize com o robôs, não se considera a si próprio com o um
- e isto apesar de ter conhecimento de que, no contexto da ação, ele é
por sua vez um robô, um instrumento para os objetivos deles - e assim
por diante. O fato de saber que é visto assim de fora, e que sempre pode
ser visto assim, não lança a mínima sombra de dúvida sobre o conheci­
mento de si próprio que ele tem a partir de dentro. A o refletir sobre isto -
se encontrar tem po - ele irá aplicar a mesma consideração ao seu súdito
e conceder que naturalmente ele não é na realidade um robô.

É esta reflexão que o cibernético nega ao seu objeto. Ele próprio não
está incluído nas condições de sua doutrina. Pensa sobre com portam en­
tos, mas não inclui o seu próprio com portam ento; fala sobre objetivos,
mas deixa de lado os próprios; sobre o pensar, mas exclui o seu próprio
pensar. Ele considera a partir de fora, e nega aos seus objetos as prerro­
gativas de sua própria reflexão. Se perguntássemos por que ele é adepto
da cibernética, ele não responderia, neste caso, com expressões ciberné­
ticas com o realimentação, circuitos fechados e controles automáticos,
mas talvez respondesse assim: “ Porque considero a cibernética verdadei­
ra, e atribuo importância à verdade” ; ou: “Porque a considero útil para al­
cançar estes ou aqueles fins, e estou interessado nos fins” ; ou: “Porque
está na moda, e eu desejo estar atualizado” ; ou o que quer que nestes ca­
sos com maior ou menor honestidade se possa responder.

Mas se for interrogado por que um grupo de pessoas (além dele pró­
prio) organiza uma conferência sobre cibernética, ele poderia responder
que nos diversos sistemas nervosos existem “muitos sistemas regenera­
tivos” que em seus circuitos conservam sinais com o “universais” , e que
“através da ligação destes laços universais eles estão relacionados entre
si” e “com isto podem ser construídos os postulados de toda... teoria...” ;
e que quando um tal “sistema relacionai de impulsos em circuitos resso­
nantes... chega a um sistema nervoso - de tal modo que a forma determi­
na sua atividade - então ele pode determinar o padrão de fogo dos neurô­
nios motores e com isto determinar de uma maneira literalmente causai e
neurológica um fato visível, objetivo, social e institucional” 2. Nada seria
mais catastrófico para esta teoria da formação da teoria do que aplicá-la
a si própria. O autor citado com razão ficaria revoltado se eu quisesse
insinuar que esta sua teoria não possui nenhum outro status lógico além

2 . E s to u citan d o F .S .C . N o rth ro p , T h e N eu ro lo g ica l an d B ehavioristic P sy ch o lo g ic al B asis o f


th e O rd e rin g o f S o c ie ty b y M e a n s o fld e a s , em: Science, 1 0 7 , abril 1 9 4 8 , p. 4 1 1 ss. É c o .it r a a s
tra n s fe rê n c ia s filosóficas d este g ê n e ro (Prof. N o rth ro p é u m filó s o fo ) q u e m in h a crítica é diri­
g id a , m u ito m a is do q u e co n tra o tra b a lh o p ro fissio n ai dos cib ern é tico s p ro p ria m e n te ditos.
daquele que se pode derivar da espécie de gênese que ele descreve; e se
no seu próprio caso eu quisesse substituir sua busca e fidelidade em rela­
ção à verdade pelo processo ali indicado.

Aqui, com o em tantos outros casos, nós nos deparamos com uma
espécie de atividade que eu gostaria de denominar a teoria da personali­
dade dividida - um fenôm eno inevitável, e que neste sentido pode ser
desculpado em alguns ramos especiais da ciência, mas que na filosofia é
inadmissível e trágico, e em medida quase igual nas disciplinas que inclu­
em o ser humano entre os objetos de suas pesquisas. Abstratamente, o
behaviorista tem que se contar a si próprio entre os objetos do seu m éto­
do. Em concreto, no entanto, ele tem que fazer tacitamente a reserva de
sua própria isenção, pelo menos no que se refere ao argumento que ser­
ve de fundamento para sua tese behaviorista - para que este argumento
possa ser considerado válido. Além disso, uma vez que deseja que seu
argumento seja avaliado de acordo com seus méritos próprios, ele tem
que eximir também aqueles a cujo critério dirige seu argumento no diálo­
go científico, mas apesar disto tem ao m esm o tem po que considerá-los
com o exemplos daqueles “outros que não eu” , para os quais o método
deve ser válido. E ele próprio é visto por eles com a mesma atitude dupla,
nunca inteiramente honesta - dentro e fora do discurso. Caso reflita sufi­
cientemente, ele pode tornar-se consciente disto tudo. A mesma atitude
dupla forçada é válida no caso do biólogo materialista, e a mesma tam­
bém no caso do cibernético. (Ver apêndice a este capítulo.)

Estes casos não precisam deixar-nos demasiadamente preocupa­


dos, uma vez que as diversas ciências isoladas não se ocupam com o
todo mas sim com aspectos isolados, por elas elaborados com renúncia
expressa à unidade com sua conceituação particular. Mas que havere­
mos de pensar a respeito de filósofos que se especializam em uma ou ou­
tra das ciências isoladas, dando uma demonstração de sua generosidade
ao renunciarem ao seu ego cogitarxs?

Este é um cam po por demais extenso para que possa ser tratado
aqui. Mas no presente caso a cibernética não pode eximir-se inteiramente
de culpa. Ela não é aquela disciplina especial inocente que por sua bele­
za passiva seduz a filosofia, sempre disposta a compreender. Desde o iní­
cio ela ousou apropriar-se do status de uma teoria unificada de m eca­
nismo, organismo, sistema nervoso, sociedade, cultura e espírito; e por
seu em prego sugestivo dos conceitos de com portam ento, finalidade,
objetivo, informação, memória, decisão, conhecimento, iniciativa, valor
e pensamento inflacionou de tal maneira suas definições, inicialmente
modestas, que seu em prego final dificilmente irá dar em outra coisa a
não ser em um ilusionismo verbal.
V

Por fim, e para uma observação destinada a não ficar restrita à crítica
meramente negativa do que até aqui foi discutido, quero escolher um se­
tor entre todos os setores da realidade com que a cibernética se ocupa: o
setor biológico. Com o leigo, e até que seja melhor avisado por alguém
que para isto possua competência, estou pronto a admitir que nos ani­
mais de fato a com binação sensor-executor representa em certos aspec­
tos um padrão de feed b a ck e, na medida em que seja este o caso, ela
corresponde ao modelo que foi desenvolvido pela cibernética. Qual é en­
tão a falha deste modelo?

A resposta pode ser reduzida a uma única constatação: os seres vi­


vos são criaturas necessitadas e agem com base em necessidades. A ne­
cessidade se fundamenta por um lado na ob riga toried a d e de constante­
mente renovar o organismo através do metabolismo, e por outro no im ­
p u ls o elementar do organismo de assim se manter precariamente na
existência. Esta preocupação fundamental de toda vida, onde a obrigato­
riedade e a vontade se unem uma à outra, manifesta-se ao nível da ani­
malidade com o desejo, m edo e outras emoções. A dor da fome, a paixão
da caça, a raiva da luta, o pavor da fuga, o estímulo do amor - foram es­
tas, e não os dados transmitidos através de receptores, que transmitiram
aos objetos o caráter de alvos (positivos ou negativos), e que fazem com
que o comportamento seja voltado para um alvo. O mero elemento do
esforço destaca a atividade corporal da classe das realizações mecâni­
cas, e o fato de o movimento exigir esforço significa que um animal só se
põe em movimento quando impulsionado por um interesse.

O modelo cibernético reduz a natureza animal aos dois fatores da


percepção e do movimento, enquanto na realidade ela é com posta pela
tríade constituída por percepção, movimento e sentimento. Mais funda­
mental do que as outras duas capacidades, o sentimento, que estabelece
a ligação mútua entre as duas, é a tradução animal do impulso básico
que já se encontra em ação no plano pré-animal indiferenciado da cons­
tante realização do metabolismo, üm mecanismo de reacoplamento
pode funcionar ou ficar parado; em um e outro estado a máquina existe.
O organismo tem que permanecer em marcha, porque, em sua precarie­
dade, isto constitui para ele a própria existência; am eaçado pelo aniquila­
mento, a ele importa que exista. Para o instinto da autoconservação não
existe nenhuma analogia na máquina, unicamente, com o antítese da au­
toconservação, a entropia final da morte.

De acordo com a cibernética, a sociedade é uma rede de comunica­


ção para transmissão, intercâmbio e armazenamento de informações, e é
isto que a sustenta. A respeito da sociedade jamais foi apresentado con­
ceito mais vazio. Nada se diz sobre o objeto da informação, e por que se­
ria importante dispor de informação. Mesmo para o mero fato de se fazer
tal pergunta o esquema não tem lugar. Qualquer teoria sobre o caráter
social do ser humano, por mais primitiva ou unilateral que seja, que o
considere com o criatura da carência e do desejo, e que se interrogue pe­
los anseios vitais, é mais adequada à questão. O velho e soturno Hobbes
mostrou-se infinitamente mais bem informado do que os especialistas da
informação, quando afirmou ter sido o m edo da morte violenta e a neces­
sidade de paz que teriam levado os homens ao estado do contrato do
bem-comum, e que além disso m antém a integridade do corpo do es­
tado. Por mais unilateral que sua teoria seja, ela está certa em atribuir o
agir humano à busca de um bem em si, mesm o que este não seja mais
do que a conservação da vida, ou m esm o unicamente o evitar um mal
maior. Sem o conceito do bem não podem os nem m esm o nos aproximar
do conceito de comportamento. O agir intencional, seja ele individual ou
social, por si mesm o está voltado para um bem. De acordo com um pon­
to de vista antigo, a escala dos bens menores ou maiores que se tornam
objeto do desejo, e com isto são capazes de motivar o comportamento,
culmina em um bem mais elevado, o s u m m u m b on u m . No caso do ser
humano isto poderia perfeitamente - num sentido muito distante do ci­
bernético - encontrar-se em estado de “form ação” .

Apêndice - Materialismo, determinismo e o espírito

Materialistas, behavioristas e cibernéticos efetivamente assumem a


posição cartesiana, sem no entanto arcarem com a carga metafísica de
sua doutrina das duas substâncias. Em si os atributos espirituais, seguin­
do o modelo, não são negados, mas apenas mantidos à distância dos re­
sultados físicos. Na visão darwinista, por exemplo, estes atributos podem
fazer parte das “variedades” que o mecanismo da mutação orgânica faz
com que venham à tona; mas na mecânica da seleção só o que conta é
seu aspecto comportamental, e isto por causa de seu valor diferenciado
de sobrevivência, e este aspecto, por ser^bservado exteriormente, é o
único com que a ciência natural se ocupa, form u lando a situação de ma­
neira mais geral: certas ações animais possivelmente, ou m esm o prova­
velmente, são acompanhadas por estados de consciência, mas estes são
cientificamente irrelevantes, de acordo com o axioma de que os proces­
sos externos devem ser explicados exclusivamente por normas externas,
isto é, físicasSQuando a cadeia de estímulo sensitivo, transmissão nervo­
sa aferente, sinapses centrais, condução eferente e estímulo muscular
pode ser construída em sua seqüência completa, não existe nem neces­
sidade nem lugar para se interpolar o espiritual com o m e m b ro em algum
lugar na cadeia, embora seja reconhecida sua ocorrência secundária “ao
lon go” da cadeia. Supérfluo para o cálculo dinâmico e não sendo sequer
um dado da observação, o espiritual permanece excluído do universo da
descrição científica. Através desta econom ia o behaviorismo consegue
gozar das vantagens da posição cartesiana e ao mesm o tem po não ser
afetado pelas desvantagens do dualismo. Mas a doutrina implícita da su-
perfluidade do espírito é ela própria uma p o s içã o m eta física , que o be­
haviorismo não pode negar.

A posição metafísica é a do materialismo, que com o doutrina geral


do ser tem que enfrentar o problema que se manifesta com o fato da vida
consciente. Ele o faz com a fórmula geral de que o que aparece com o
“espírito” é uma função do corpo, e isto de forma totalmente unilateral,
isto é, sem reciprocidade. A fórmula, evidentemente, não é uma fórmula
causai segundo as normas do próprio materialismo, e nem sequer se
adapta de maneira alguma ao esquema geral da correlação quantitativa
de causa e efeito. Foi pensada com o fim exclusivo de preservar os inte­
resses da ciência da natureza, a saber, dispor por um lado das vantagens
m etodológicas que a divisão dualista anterior havia adquirido com o fe­
chamento causai da esfera material, e por outro tornar o papel atribuído
à causação do espírito tão periférico para a própria matéria que graças
àquela divisão a pureza de seu conceito na prática não fosse prejudicada.
A este objetivo técnico serve aquela teoria do espírito que o considera
um “epifenôm eno”, isto é, um jo g o "colateral de determinados processos
materiais em determinados sistemasTmateriais (cérebros), sistemas es­
tes, no entanto, que nestes processos comportam-se inteiramente de
acordo com as leis deterministas da matéria.

O aspecto relevante do “epifenom enalism o” consiste em suas teses


negativas ocultas. Sua tese manifesta e positiva, de que a matéria seria
responsável pelo espírito, é apresentada sem qualquer tentativa de m os­
trar com o é possível se harmonizar esta realização com as propriedades
conhecidas da matéria3. Ela não é, portanto, outra coisa a não ser a afir­
mação de uma propriedade oculta. Negativamente, porém, o conceito
do epifenômeno diz algo mais. Ele designa um efeito que, ao contrário de
todos os outros efeitos da natureza, não consome a energia de sua cau­
sa, não é nenhuma transformação e propagação desta energia, e por
isso, mais uma vez contrariamente a todos os outros efeitos, não pode
ele próprio ser uma causa. É impotente no sentido absoluto, um beco

3 . E . D u B o is -R e y m o n d c o lo c a e s te p r o b le m a e n tre as q u e s tõ e s s o b re as q u a is e le p ro ­
n u n c io u se u c é le b re ignorabimus (S o b r e os lim ite s d o c o n h e c im e n to d a n a tu re z a ,
1 8 7 2 ). E m b o r a e s te ju lg a m e n to te n h a e n tã o p r o v o c a d o v e e m e n te s p ro te s to s , h o je a
m a io r ia d o s n a tu ra lis ta s q u e re fle te m c o m p a r tilh a d e su a v is ã o .
sem saída que se ramificou da estrada principal da causalidade e em que
o tráfego de causa e efeito passa ao lado com o se não existisse. Já deno­
minar o espírito uma “iridescência” do substrato da matéria seria demais,
porque no intercâmbio para ocorrer uma iridescência real no sentido físi­
co uma quantidade existente no processo físico anterior deveria ter desa­
parecido e uma outra substituiria a iridescência quando ela desapareces­
se (e estas sucessivas substituições resultariam equivalentes), ao passo
que nenhum equivalente no cálculo material tem que ser eliminado para
o epifenômeno surgir. Assim o sistema fechado da causalidade material
é protegido com a mesma eficácia que no dualismo cartesiano, e no en­
tanto, através do artifício da dependência unilateral, o espírito é feito par­
te da mesma natureza que não consegue tolerar sua intromissão. Mas o
epifenomenalismo, para não falar da grandiosa inutilidade em que a na­
tureza teria caído com o luxo da consciência, carrega consigo dificulda­
des ou mesm o absurdos que não podem deixar de ser vistos com o um
preço demasiadamente elevado para a comunidade científica, por cuja
causa ele foi inventado.

(Jm ponto facilmente esquecido é que uma “matéria” que seja obri­
gada a prestar contas pelo espírito não é mais a mesma matéria com o a
que foi assumida pela ciência natural no expurgo dualista. O materialis­
mo herdou a herança do dualismo, sem perceber com clareza que a he­
rança que recebia estava onerada por uma obrigação que ele jamais se­
ria capaz de pagar com seus recursos próprios: a obrigação de também
teoricamente explicar aqueles fenômenos que antes haviam sido contes­
tados à metade desaparecida da possessão dualista. Esta tarefa coube
inevitavelmente ao materialismo depois de ele haver tomado posse de
sua parte da herança com o monismo auto-suficiente. Seu legado foi a he­
rança secreta por uma das maiores usurpações na história do pensa­
mento. Em verdade o materialismo, segundo a lei que o constitui, jamais
pode alcançar um verdadeiro status de monismo. Pois defende apenas
uma parte isolada de um dualismo que havia dilacerado anteriormente a
unidade original. O materialismo também continua a pressupor lo g ica ­
m ente um dualismo transcendente, pois só por não confessar ter com o
fundo o “outro mundo” do dualismo é que ele consegue deixar de lado
em seu p ró p rio ca m p o a evidência do espírito e interpretar a realidade
em categorias da matéria pura, à medida que com ela se ocupa. O mate­
rialismo ingênuo viveu por isso da oculta reserva do dualismo, e seu direi­
to à vida extinguiu-se com a explícita negação de seu complemento espi­
ritual. Privado do álibi dualista, a “ matéria” solitária tem que arcar agora
com o explicar o espírito, com isto perdendo a inambigüidade da “ mera
matéria” em que de início foi concebida. Noutras palavras: já por esta exi­
gência seu conceito retraiu-se para um conceito de substância que ultra­
passa aquele aspecto retirado do materialismo sob o nome de “matéria”.
E com isto, efetivamente, mais uma vez é aberta a questão ontológica
que há pouco o materialismo havia considerado com o resolvida. A fór­
mula escorregadia do “ epifenôm eno” trai este fato através da própria
tentativa de ocultá-lo.

Abstraindo da dificuldade ontológica, o epifenomenalismo contém


uma contradição lógica pelo fato de negar a si próprio o status de argu­
mento, ao privar todo argumento deste status. Segundo sua visão, nos­
so presente argumento, não menos do que aquele com o qual ele dispu­
ta, é um epifenômeno de ocorrências físicas cujas necessidades imanen-
tes de decurso nada têm a ver com “sentido” e “verdade^. A única rela­
ção possível com a verdade de que o epifenômeno é capaz é a concor­
dância casual de seus símbolos com fatos que se encontram mais além
dos fatos cerebrais a que adere; mas os próprios debatedores, marione­
tes daquelas necessidades, não têm a mínima possibilidade de segundo
o seu direito avaliar as exigências rivalizantes, e em seguida de decidir en­
tre alternativas que são perfeitamente equivalentes entre si na factualida-
de de sua ocorrência física. Enquanto o monismo materialista da res ex­
tensa recebe assim a apropriação metodológica para a ciência natural
que havia adquirido no dualismo cartesiano, ele só evita este beco sem
saída ao preço de destruir toda possibilidade de com preender o espírito,
ou mesm o a própria idéia do espírito; ao m esm o tem po que, com o ficou
dito, enche de impurezas o claro conceito da própria matéria, ao pendu­
rar-lhe uma capacidade oculta, a de produzir o “epifenôm eno”.

Mas não deixemos de conceder pelo menos uma virtude ao epifeno­


menalismo: ele desfaz-se do conceito absurdo de um determinismo intra-
mental e faz o determinismo voltar ao lugar que lhe é próprio, isto é, o
único onde ele tem sentido - o reino da matéria. Pois o princípio da cau­
salidade, que serve de base para o pensamento científico, de nenhuma
maneira satisfaz-se com a tese banal de que toda ocorrência possui uma
causa e por sua vez provoca alguma outra coisa (o que diz simplesmente
que a existência ou o acontecer de alguma coisa tem algum significado
para o que vem depois, ou que a presença ou ausência de entidades
acarreta conseqüências para o acontecer - tudo isto já era do conheci­
mento dos homens primitivos). Mas além do princípio da “razão suficien­
te” ele exige tam bém o princípio da “equivalência quantitativa” entre
causa e efeito, o que por sua vez exige que se atribua quantidade a ob­
jetos definidos, o que implica também na mensurabilidade - e isto mais
uma vez exige todo um grupo de outras condições: que os objetos pos­
sam ser identificados isoladamente, com uma identidade separada no tempo
para cada um deles; o que exige que possam ser isolados e distintos
dos que existem contemporaneamente; o que exige que sejam exterio­
res um ao outro - e isto eles só o podem ser se estiverem distribuídos em
um contínuo extenso, com dimensões simultâneas, que forneça o meio
para a posição exclusiva (copresença plural), com o tam bém a grande­
za para a medição a ser feita; e a extensão tem que ser hom ogênea, de
modo que a medição possa ser uniforme, e a transferência de um lugar
para outro tem que ocorrer em trajetórias que possam ser acom panha­
das, com claros pontos de interseção. Numa palavra: só o es p a ço, que
satisfaz todas estas condições, é o pressuposto indispensável para a apli­
cação de uma lei causai que permita demonstração, isto é, cálculo (e
cuja prova consiste na predição). Fora destas condições, o princípio da
“razão suficiente” tem um sentido inteiramente diferente, que não ofere­
ce base para as construções de um esquema determinista nem dados in­
tuitivos para sua contemplação. (Naturalmente - por convicção metafísi­
ca, fé religiosa, inclinação geral, ou por simples superstição - sempre se
pode sustentar uma idéia qualquer sobre o determinismo em si: “Tudo
acontece com o tem que acontecer.” )

Não obstante, desde o m omento em que a idéia da regra causai su­


biu ao palco do conhecimento, não se deixou de correr atrás do fogo-fá-
tuo de uma ciên cia do determinismo intramental. Desde o início era na­
tural que o ideal do conhecimento m a te m á tico , depois de haver sido por
Descartes elevado à condição de norma universal, impelisse à aplicação
em todas as esferas de objetos, e por conseguinte também aos objetos
do sentido interior - embora a divisão dualista legitimamente tivesse que
da exigência do m étodo excetuar o próprio matemático, com o sendo um
espírito e não uma res extensa. Porém, contrariamente a qualquer outro
dualismo anterior, o dualismo cartesiano carregava em si próprio a ten­
dência (se bem que não o programa explícito) de colocar a res extensa
acima da res co g ita n s , e não existia nenhuma resistência especial contra
o estender-se o cânone do conhecimento da primeira para a última, caso
prometesse repetir-se ali o êxito do método matemático. Descartes ali­
mentou esta expectativa, mas o instinto ou a prudência preservaram-no
de colocá-la à prova.,(Suas “ Passions de l’âm e” são tudo menos uma
matemática da alm a.nÀ única tentativa radical realmente empreendida
nesta direção, a de Spinoza, foi suficiente para com seu heróico fracasso
manifestar a incongruência do método matemático para a vida da alma e
rechaçar a matemática para a esfera de sua competência, para o terreno
da natureza exterior.vA experiência não voltou a ser repetida.

Mas embora a matemática não fosse válida, pelo m enos o princípio


da ca u sa lid a d e com o tal parecia, no entanto, ter validade para as se­
qüências psicológicas, não m enos que para as físicas, pois a relação
causa-efeito (a nos orientarmos unicamente pelas definições dos con­
ceitos) parece que descreve diretamente apenas uma seqüência tem ­
poral, de p e r si não necessitando do espaço. Por que haveriam então as
seqüências temporais do mundo interior, admitindo-se que elas tenham
sua p ró p ria dinâmica, e que não apenas reflitam simplesmente a dinâ­
mica de um cam po diferente, de não estar em consonância com a regra
universal? E se a coisa pode ser determinada, isto naturalmente faz
com que seu objeto seja determinável. Por isso deveria ser possível
uma “ analítica” (análise de fator), análoga à analítica dos corpos, e por
fim tam bém uma dinâmica geral do cam po mental, de onde se pudesse
deduzir um cálculo de predição - uma dinâmica que em seu esquem a
de antecedentes e conseqüentes não excluísse o elem ento “final” m e­
nos do que o faz a dinâmica que vigora na dimensão tem poral da con­
tem plação exterior.

O fato de nem mesm o o repetido fracasso da execução deste progra­


ma haver desencorajado seus adeptos ou desconcertado o seu progra­
ma é um atestado do poder irracional da fé na razão. Que é que se pre­
tende? Alguma coisa mais ou menos deste tipo: dado (por exem plo) um
certo número de “m otivos” A, B, C... no tem po tp o motivo mais forte irá
decidir o que a pessoa terá decidido no tem po t2. (É apenas uma questão
de detalhe se o “motivo mais forte” impõe-se por meio de uma alternativa
- ou isto ou aquilo - com o determinante único, ou se todos os motivos
contribuem com o “com ponentes” para a “resultante” final, de acordo
com sua força relativa, ou se - em alguma posição intermediária - uma
com binação predominante e capaz de fundir-se irá determinar a vitória).
“M otivo” inclui tudo quanto constitui um fator na situação: impulsos dire­
tos do sentimento, expectativas de curto e longo prazo, avaliações racio­
nais, opiniões, doutrinamento social, disposições, hábito, recordações,
atitudes de ânimo... Com o posso eu então medir ponto a ponto a “força”
absoluta e relativa destes motivos? Resposta: com base no resultado. Co­
m o o estado mental agora (em t2) é constituído de tal e tal maneira, o m o­
tivo A (ou a com binação A + B...) tem q u e ter sido o mais forte, pois do
co n trá rio p o r que teria a situação t ] de haver-se desenvolvido para a situ­
ação encontrada em t2? Este círculo vicioso, que permite triunfantes vati-
cin ia ex e ve n tu , constitui em última análise todo o arsenal lógico do de­
terminismo psicológico, que atribui valores quantitativos retrospectiva­
mente. üm motivo é “avassalador” não porque irá previsivelmente supe­
rar os seus rivais por um excesso mensurável de força, mas sim porque à
luz do estado posterior pode ser apresentado com o aquele que venceu:
na realidade, quando eu atribuo ao que nele predomina em “seu” passa-
do uma grandeza que explica o fato de haver predominado no momento
atual, eu estou falando deste estado posterior: uma pseudo-explicação,
se é que existe explicação. Pois ela não permite a inversão do caminho,
isto é, medidas independentes e separadas, primeiro, confirmação do
cálculo anterior, depois. Assim o quadro de forças e de grandezas relati­
vas não é aqui um instrumento eficaz, mas apenas um ornamento piedo­
so para conferir prestígio.

Com todo este esforço, empreendido sob a hipnose da ciência natu­


ral, estranhamente se deixou de perceber (com o já foi indicado) que o
conceito científico da causalidade está indissoluvelmente ligado ao espa­
ço. No espaço os objetos podem ser isolados; ao relacioná-los com suas
coordenadas, eles podem ser medidos e seu lugar identificado; através
desta relação pode-se determinar velocidade e aceleração, e desta ma­
neira o “efeito” pode entrar em correlação q u a n tita tiva (a relação de
uma equação) com a “causa” . (Jm exem plo geom étrico é o paralelogra­
ma das forças, cuja construção necessita de um número mínimo de di­
mensões - no mínimo duas, além do tempo. Assim deixa-se de ver se o es­
quema causai deve ser transferido para o “mundo interior” , deixa-se de
ver o simples fato de que a idéia de causação eficiente, em seu aspecto
quantitativo (e este é o que é decisivo), aponta para condições de apre­
sentação e verificação que só se encontram na res extensa, e por isso
não pode realmente ser separada da possibilidade da análise matemáti­
ca. A idéia só tem sentido onde o m ovim ento está envolvido no espaço4.
O “tem p o” só, a ordem da variedade interior, não é uma dimensão em
que possamos construir seqüências: tal construção exige mais do que
uma coordenada única. Foi a não-observação desta simples verdade, ao
/

4 . C h a m a a te n ç ã o a in d e c is ã o d e K a n t n e s ta q u e s tã o . P o r u m la d o e le s a b ia , o u m e s m o
d e s ta c a v a , q u e p a ra p o d e rm o s a p lic a r as c a te g o ria s (e n tr e elas “c a u s a -e fe ito ” ) ao s o b je ­
to s n ó s te m o s n e c e s s id a d e d e “c o n te m p la ç õ e s e x te r io r e s ” , isto é, d e e s p a ç o : K ritik d. r.
V e rn u n ft. 2 a ed . p. 2 9 1 s s (v e r ta m b é m M e ta p h y s . Anfangsgründe d. Naturw. V o rre d e ,
E d . C a s s ire r, p. 3 7 3 ) . M a s na T e rc e ir a A n tin o m ia e e m s u a re s o lu ç ã o o d o m ín io d a c a u s a ­
lid a d e e s te n d e -s e com o fenômeno a o s a c o n te c im e n to s d o m u n d o in te rio r, is to é, à p s ic o ­
lo g ia : ibid. p. 5 6 0 s s . A in d e c is ã o d e v e -s e a u m a d u p lic id a d e d e s e n tid o n a a r g u m e n ta ç ã o
d e K a n t. C o m o “c o n d iç õ e s d e e x p e riê n c ia p o s s ív e l”, as c a te g o ria s têm que adaptar-se a
qualquer objeto q u a p h a e n o m e n o n , pois ser um objeto significa precisamente ser,
através da unidade transcendental da apercepção, constituído de forma a e s ta r
a d a p ta d o às c a te g o ria s . M a s no d e s e n v o lv im e n to c o n c r e to d a a r g u m e n ta ç ã o to rn a -s e
c la ro q u e isto só v a le q u a n d o es tá e n v o lv id a a “fo r m a d a c o n te m p la ç ã o e x te r io r ”, is to é, o
e s p a ç o , e n ã o p a ra os o b je to s do s e n tid o in te rio r. A s s im K a n t é o b rig a d o a a firm a r o d e ­
te r m in is m o p s ic o ló g ic o e d e p o is v o lta r a n e g á -lo im p lic ita m e n te . A ra z ã o p a ra e s ta d u p li­
c id a d e d e s e n tid o p o d e r e m o n ta r a q u e K a n t in s is te e m q u e o m u n d o in te rio r, c o m o m u n ­
d o d e “fe n ô m e n o s ” (Erscheinungen), d e v e s e r tr a ta d o n o m e s m o p la n o q u e os fe n ô m e ­
no s d o m u n d o e x te rio r, e c o m isto c o n fe rir à a u to c o n s c iê n c ia u m a p o s iç ã o p riv ile g ia d a :
isto p o r su a v e z p o d e se r a trib u íd o a o fa to d e e le tr a ta r o te m p o d a m e s m a m a n e ira q u e o
e s p a ç o , c o m o m e r a “fo r m a d e c o n te m p la ç ã o ”, e n ã o c o m o re a lid a d e ú ltim a .
7. S ilr.n rô iirs 6 ~ V 1 *; 07

se transferir ingenuamente o conceito de causa de seu cam po próprio


para um terreno estranho, que levou a este grotesco conceito do determi­
nismo psicológico, em conseqüência do qual os “ m otivos” passam a ser
tratados não com o elementos de significado em um contexto de signifi­
cado, mas sim com o causas de quantidade e grandeza vetorial mensurá­
vel em um contínuo extenso. O antiqüíssimo problema do livre-arbítrio de­
generou em um triste mal-entendido ontológico.

No fim, porém , com o aparecim ento do m on ism o materialista, foi


possível confiar tranqüilamente todo o problema do determinismo à oni­
potente matéria, onde ele cessou de ser um problema psicológico. Cons­
titui um mérito do epifenomenalismo ele haver percebido a verdade de
que o determinismo no sentido científico só pode significar uma descri­
ção da matéria, não encontrando por isso nenhuma aplicação fora dela.
Portanto, se existir determinação total (o que evidentemente ninguém
ainda provou), então o espírito só p o d e ser um epifenôm eno da matéria,
sem causalidade própria, nem exterior nem interior. A explicação “epife-
nomenalista” , ao elevado preço de si própria, dispensa seus adeptos da
tarefa impossível constituída pelo determinismo intramental, da tarefa de
representar a corrente da consciência com o um sistema causai - porque
isto já não importa: com o jo go enganador de algo que certamente é de­
terminado apenas por causas mecânicas, a “finalidade”, de qualquer ma­
neira, passa a ser uma ilusão. Mas sua completa prescindibilidade para a
série das ocorrências transforma sua vã presença em um enigma que
provoca mais vexam e do que qualquer outro de que o dualismo tenha
desistido, fornecendo ainda por cima um comentário mefistofélico ao
provérbio de que a natureza não faz nada em vão. De fato, admitir esta
prescindibilidade, que eqüivale a uma acusação de logro, significa atribu­
ir tranqüilamente à natureza o papel de um “ Deus mentiroso”, uma idéia
cujo caráter alarmante levou Descartes a confiantemente buscar refúgio
em um Deus bondoso.

Elevada à condição de onipotência, a matéria é o gênio enganador


que Descartes, antes um paladino na sua defesa, desejava evitar5. A este
gênio a ciência da vida rende homenagem. Na história do esforço da vida

5 . O p ró p rio D e s c a rte s diz n a P rim e ira M e d ita ç ã o : “N a v e r d a d e p o d e m e x is tir m u ito s q u e


p re fe re m n e g a r a e x is tê n c ia d e q u a lq u e r D e u s tã o p o d e ro s o a a c r e d ita r n a in c e rte z a d e to ­
das as o u tra s c o is a s . C o m e s tes n ã o q u e re m o s d is c u tir, c o n c e d e n d o -lh e s q u e tu d o q u a n ­
to fo i d ito s o b re u m D e u s [c o m o p o d e r d e e n g a n a r] é m e r a fic ç ã o . M a s se e m vez disto
eles a d m ite m q u e p e lo d e s tin o , o u p e lo a c a s o , o u p e la c o n tín u a c a d e ia d as c a u s a s , ou de
q u a lq u e r o u tra m a n e ira e u te n h a v in d o a se r o q u e e u s o u , n ã o o b s ta n te é v á lid o - já q u e
e n g a n a r-s e e e r r a r p a re c e se r u m a im p e r fe iç ã o - q u e q u a n to m e n o r o p o d e r d o c ria d o r
quernetrerrc r t e i r t e r i T t c t i s é queeú'ávgv?ícfv?ÀT r ç r a f í f e Mf c ? t a ?
e n g a n e ”. N o u tra s p a la v ra s , a n a tu re z a c e g a p o d e p e rfe ita m e n te o c u p a r o lu g a r d o ar-
q u i-e n g a n a d o r d iv in o .
por se entender a si própria, a biologia materialista (que recentemente
teve seu arsenal reforçado pela cibernética) é a tentativa de entender a
vida excluindo aquilo que torna possível a própria tentativa: a verdadeira
natureza de consciência e finalidade. Não se aceitando a si própria com o
testemunho de seu objeto, a tentativa se contradiz com a com preensão
que através da negação ela adquire sobre seu objeto. A o excluir-se a si
própria do cálculo, faz com que o cálculo fique incompleto, não permitin­
do que seja com pletado se para isto for preciso ultrapassar a auto-sufi­
ciência do seu princípio, graças ao qual o cálculo poderia ser fechado.
^ Desta forma a tentativa não apenas deixa de explicar a si mesma e passa
a ser inexplicável de acordo com seus próprios princípios, mas com a
desvalorização epifenomenalista ela nega valor aos seus próprios resul­
tados, negando ao pensamento em geral toda validez possível, por consi­
derá-lo essencialmente alheio a todo pensar. É o cretense afirmando que
todos os cretenses são mentirosos.^
II
A nobreza da visão
üm estudo sobre a fenomenologia dos sentidos

Desde os dias da filosofia grega, o olho tem sido celebrado com o o


sentido mais excelente. A mais nobre das atividades do espírito, a theoria,
é descrita em metáforas tiradas predominantemente da esfera visual. Pla­
tão, e com ele a filosofia ocidental, fala do “olho da alma” e da “luz da ra­
zão” . Nas primeiras linhas da “Metafísica”, Aristóteles relaciona o natural
desejo de todos os homens por conhecimento com o prazer universal com
as percepções dos sentidos, acima de qualquer outro a visão. Mas nem ele
nem qualquer outro pensador grego parece haver realmente explicado,
nos breves tratados sobre a visão que chegaram ao nosso conhecim en­
to, quais as propriedades que qualificam a visão a honras filosóficas tão
elevadas1. Nem foram realmente comparadas e avaliadas em seu valor re­
lativo as diferentes virtudes dos diversos sentidos. O sentido da visão não
apenas foi o preferido para fornecer as analogias para a superestrutura in­
telectual, mas serviu também em larga escala com o modelo da percepção
em geral, e com isto com o padrão e medida para os outros sentidos. Mas
este sentido é de fato muito especial. Por si só ele é incompleto: para exer­
cer seu ofício de reconhecer precisa ser completado por outros sentidos e
funções; suas maiores vantagens são também suas mais importantes fra­
quezas. Precisamente a sua nobreza exige o apoio de formas mais vulga­
res de convívio com a impertinência das coisas. Neste sentido, em que
qualquer eminência tem que pagar o preço de uma dependência mais ele­
vada, tentar-se-á explicar a seguir a “nobreza da visão” , üm dos resultados
da explicação há de ser que desde sempre nós encontramos a um só tem­
po confirmadas e limitadas as exigências maiores feitas à visão.

Esta distinção única da visão consiste naquilo que por antecipação


nós gostamos de chamar de im a g e m , palavra que implica três caracte­

1 . N a m e s m a p a s s a g e m , A ris tó te le s re s u m e as virtu d es do s e n tid o d a visão , d ize n d o q u e


“m a is d o q u e os o u tro s ele nos a ju d a a re c o n h e c e r u m a co isa, e m a n ife s ta m u ita s d ife re n ç a s ”
(M e t. A . 9 8 0 a 2 5 ), e e n fa tiza q u e nós nos a le g ra m o s c o m a visão p o r c a u s a d e la m e s m a ,
m e s m o s e m q u a lq u e r u tilid ad e . E sta a v a lia ç ã o s u m á ria n ã o c o n té m m a is do q u e u m ligeiro
in d ício das q u a lid a d e s q u e c o n fe re m à v is ã o a p re e m in ê n c ia so b re os d e m a is sentidos.
rísticas: 1) sim u lta n eid a d e na apresentação de uma variedade, 2) n eu ­
tralização da causa da afecção do sentido, 3) distância no sentido espa­
cial e espiritual. Com a consideração destas três características espera­
mos contribuir não apenas para a fenomenologia dos sentidos em si,
mas também para valorizar seu papel nas realizações espirituais mais
elevadas, que no caso do ser humano nelas se fundamentam.

I - A simultaneidade da imagem, ou o aspecto temporal da visão

A visão é o sentido por excelência do simultâneo ou do coordenado,


e com isto do extenso, üm ato de visão abrange muitas coisas lado a
lado, com o partes coexistentes de um único campo visual. Isto é feito em
um “ m om ento” : com o em um raio, num único relance, num único abrir
de olhos, e desvenda um mundo de qualidades presentes ao mesm o
tempo, espalhadas no espaço, escalonadas em profundidade, prolon-
gando-se à distância, e se estática uma direção é destacada em sua or­
dem, a perspectiva o faz antes distanciando que aproximando do sujeito.
O tema da profundidade irá ocupar-nos mais tarde sob o título de “distân­
cia” . A visão já é única, porque contempla uma variedade simultânea
com o tal, que pode estar em repouso. Todos os demais sentidos cons-
troem suas “unidades do múltiplo” percebidas a partir de uma seqüência
temporal de sensações, em si ligadas ao tem po e sem ligação com o es­
paço. Por isso sua síntese, sempre incompleta e dependente da m em ó­
ria, tem que ser acompanhada pelo efetivo progresso das sensações,
cada uma delas preenchendo de mom ento a momento o agora do senti­
do com sua própria qualidade fugaz. Toda qualidade agora presente é
apenas um ponto de passagem na transição da anterior para a seguinte,
nenhuma é fechada em si, e a cada momento só uma está presente.
Assim o conteúdo jamais se encontra simultaneamente presente com o
um todo, mas sempre se dá em um vir-a-ser, é sempre parcial e incom ­
pleta. Por isso estes sentidos, mais presos ao tempo, nunca conseguem
aquela separação entre o m od u s essendi do seu objeto e o seu próprio -
a separação, por exemplo, entre o persistir da existência e o acontecer
transitório da afecção sensorial - que a visão realiza em cada momento
com a apresentação de um cam po visual completo. Esta diferença pode
ser bem ilustrada pelo ouvido e pelo tato - os sentidos que de alguma
maneira merecem ser com parados à visão.

1. A a u d içã o

Com o ouvido a situação é clara: de acordo com sua própria nature­


za, o som só pode “dar” uma realidade dinâmica, jamais uma realidade
estática. As totalidades que ele consegue através da síntese de sua varie­
dade são estritamente temporais, e sua medida objetiva do tempo identi­
fica-se com o tem po de ativação do próprio sentido: a duração do som
ouvido é exatamente igual à duração do ouvir. Desta forma a extensão
do objeto e a extensão de sua percepção coincidem. O que o som revela
diretamente não é um objeto, mas sim um acontecer dinâmico no lugar
do objeto, e com isto, indiretamente, o estado em que o objeto se encon­
tra no momento deste acontecer. O rumor de um animal no mato, os
passos de um ser humano, o barulho de um carro que passa revelam a
presença destas coisas por meio de sua ação. Objeto direto do ouvir são
os próprios sons, em seguida estes mostram alguma coisa diferente, a
saber, os processos ou ações que produzem estes sons; e só em terceiro
lugar a experiência do ouvir manifesta o ser que produz o som com o um
objeto cuja existência é independente do ruído por ele feito. Fosso dizer
que estou ouvindo um cão, mas o que eu ouço é o seu latir, um som que
eu reconheço com o o latido de um cão, e com isto eu ouço o cão latir, e
com isto de certa maneira eu percebo o cão. Mas esta maneira de perce­
ber o cão nasce e morre com o ato do latir. Em si ela não revela nada
além deste ato; que exista aí um sujeito que age, que antecede o ato
acústico e que a ele sobrevive, disto eu sei por uma informação diferente
da informação acústica. A relação dos tons com o objeto não é fornecida
pelos próprios sons, ela transcende a realização do simples ouvir. Todos
os indícios de seres, de coisas persistentes para além do acontecer do
próprio som, são exteriores à sua própria essência.

Por outro lado, precisamente por causa desta fraca referência exter­
na com o objeto, e com isto da função representativa, o som é particular­
mente apto a constituir sua própria “objetualidade” imanente de valores
acústicos em si, e assim, libertado da obrigação de representar outra coi­
sa, livre para representar a si mesmo. Quando ouvimos música, nossa
síntese da variedade em uma unidade de percepção não se refere a um
objeto diferente dos conteúdos sensitivos mas sim à ordem e à cone­
xão destes conteúdos mesmos. Com o esta síntese se ocupa com dados
seqüenciados e se estende ao longo de sua seqüência, de m odo que na
presença de cada elem ento da seqüência todos os outros ou já não es­
tão mais presentes ou não estão presentes ainda, e o elemento presente
tem que desaparecer para que o próximo possa aparecer - assim a pró­
pria síntese é um processo temporal, que se realiza com auxílio da m em ó­
ria. Através desta, e através de certas antecipações, a seqüência inteira,
embora em cada momento só possa ser realizada em um de seus elemen­
tos primordiais, é unida em uma unidade ampla de experiência. O “objeto”
acústico assim criado é um objeto do tempo, que dura exatamente tanto
quanto dura o ato de sua síntese, isto é, enquanto dura a própria seqüên­
cia do ouvir (ou sua recriação na fantasia), com cuja continuação o “ob­
jeto” coincide parte por parte. Mão possui nenhuma outra dimensão
além do tempo.

E certo que também o ouvir, embora dominado inteiramente pela su­


cessão, conhece o estar lado a lado de conteúdos acústicos simultâneos
- basta pensar na polifonia da música ou nas contribuições distinguíveis
de vozes na confusão de uma festa. Pode-se até falar de uma espécie de
“espaço” intra-acústico em que uma variedade é capaz de coexistir. Mas
isto é uma metáfora. A “coexistência” é sempre a de uma comum conti­
nuação no tempo, isto é, linhas paralelas de movimento e variação; e
cuja distinção exige diferença qualitativa (em altura, timbre, etc.), cujo
continuar torna possível identificar as “linhas” : dois tons de igual qualida­
de, soando ao mesm o tempo, simplesmente se reforçam mutuamente
em um m esm o tom (abstraindo-se do efeito “estéreo” de distribuição es­
pacial das fontes sonoras). O espaço real, pelo contrário, é um princípio
de multiplicidade simultânea e discreta, independente de diferença quali­
tativa. Também a “identidade” das diversas linhas na polifonia, e com ela
a manutenção da simultaneidade discreta através do tempo, é uma função
de certas conexões figurativas (por exemplo, das que constituem uma
harmonia): estas sempre caem sob o princípio da “form a” ( Gesta.lt), por
isso fornecendo o estar-lado-a-lado do múltiplo, não com o um dado pri­
mário do a g o ra , mas sim com o realização de organização continuada -
de tal modo que o próprio estar-lado-a-lado só é um produto do vir-um-
após-o-outro. Mas também aqui os limites de uma simultaneidade que
deixe intactos os membros são bastante estreitos no reino dos sons: um
som forte afoga seus simultâneos mais fracos; torna-se difícil referir ao
m esm o tem po mais do que uns poucos deles a diferentes fontes no espa­
ço, e ultrapassado um número limitado, toda pluralidade de sons se dis­
solve em uma mistura de ruído. Acontece simplesmente que os sons são
ocorrências dinâmicas, não meras qualidades estáticas, sendo com isso
por natureza aptos a ultrapassar qualquer fronteira.

Com isto chegam os à peculiaridade que é talvez a mais importante


para nossa com paração entre o ver e o ouvir. O som, ele próprio um
acontecer dinâmico, se impõe a um sujeito passivo. Para que ocorra uma
sensação auditiva, o ouvinte depende inteiramente do fato de acontecer
alguma coisa fora do seu controle, e no ouvir ele está exposto ao efeito
deste acontecer. A única coisa com que ele pode contribuir para a situa­
ção é um estado de prontidão atenta para a eventual recepção de sons
(exceto quando produzidos por ele próprio). Ele não pode fazer com que
os ouvidos, com o faz com os olhos, percorram um cam po de possíveis
objetos de p e rc e p ç ã o que já se encon trem de prontidão c o m o m até-
rias-primas para sua atenção, nem ajustá-los ao objeto de sua escolha,
mas simplesmente tem que esperar até que um som atinja seus ouvidos,
e para isto ele não tem nenhuma escolha. No ouvir, aquele que percebe
está entregue à atividade de seu mundo ambiente, que sem pedir licença
penetra em sua sensibilidade, e pela pura intensidade decide por ele qual
das várias qualidades distinguíveis no momento é a impressão dominan­
te. O tom mais forte pode não ser o mais importante em uma determina­
da situação, mas ele simplesmente toma posse da atenção em meio aos
tons concorrentes do momento. Frente a esta pré-decisão, a liberdade
que a atenção tem para escolher é extremamente limitada.

Em face destas características, nós com preendem os por que para


nossos ouvidos nós não temos coisa alguma que corresponda às pálpe­
bras dos olhos. Não se sabe quando um som irá acontecer. Quando ele
acontecer, dará notícia de uma ocorrência no ambiente, e não de uma
existência constante: e com o uma ocorrência, isto é, uma modificação
no ambiente, pode a todo m om ento ser de decisiva importância para a
vida, os ouvidos têm que estar sempre abertos a esta possibilidade. Man­
tê-los fechados poderia ser fatal, assim com o não teria sentido abri-los ar­
bitrariamente em momentos que nós mesm os escolhêssemos. Como,
pois, toda iniciativa fica com o mundo exterior, o caráter contingente do
ouvir é inteiramente unilateral, e por isso exige uma constante prontidão
perceptiva. A razão mais profunda para esta contingência fundamental
do sentido da audição é o fato de ele estar relacionado ao acontecer, e
não ao existir, ao vir- a-ser e não ao ser. Desta forma o ouvir, ligado à su­
cessão e não oferecendo nenhuma variedade simultânea coordenada de
objetos, é inferior ao ver no que se refere à liberdade que ele garante para
quem o possui.

2 . O tato

No sentido do tato o caso é diferente, embora ele compartilhe com o


ouvido a sucessividade da percepção, e ao m esm o tem po possua em co­
mum com a visão a síntese de seus dados em uma presença estática do
objeto. Uma análise adequada do sentido do tato talvez seja a mais difícil
de todas na fenom enologia da percepção sensorial, porque o sentido do
tato é o menos especializado, e em sua fisiologia e rendimento o mais
com plexo dos sentidos. De fato, a expressão “sentido do tato” é com o
que uma folha em branco, designando todo um com plexo de funções. A
camada mais elementar deste com plexo é a sensação do toque, em que
a presença de um corpo tocado é sentida no ponto de contacto. Reservo
a uma análise posterior o importante fato de a situação do toque sempre
envolver pressão, e com isto uma certa contribuição de força, com o par­
te da experiência. Aqui o tema ficará na medida do possível limitado à
percepção das qualidades sensoriais em si. A primeira observação que
precisamos fazer é que a form a não é um dado original do toque, mas
sim uma construção surgida apenas aditivamente de uma multiplicidade
seriada de sensações isoladas ou que se transformam continuamente
umas nas outras, e isto em ligação unicamente com sensações motoras
proprioceptivas. A sensação de tato, limitada ao ponto de contacto, sem
correlação com outras de sua espécie, é por si só pobre em informação.
Já as qualidades simples do tato, com o mole e duro, e mais ainda áspero
e liso, não são verdadeiras experiências do momento, mas exigem uma
série de sensações mutantes adquiridas por pressão ou por atrito - isto é,
de maneira geral elas exigem m o v im e n to . Já em sua construção origi­
nal, por conseguinte, está em jogo, por parte daquele que percebe, uma
síntese que se estende pelo período de tempo da série perceptiva, e que
através da retenção une seus elementos numa impressão única. Os sen­
tidos do tato e da audição coincidem sob este aspecto: de seus objetos
primários, as qualidades percebidas, possuírem caráter de processo, e
por isso serem essencialmente objetos temporais. (Esta observação,
aliás, resolve a questão bastante estéril de saber se toda vida sensitiva é
dotada de memória. Sob a forma de retenção imediata de curto prazo, a
memória faz parte da constituição básica da sensibilidade, sendo por isso
tão antiga quanto esta.) Mas no ouvir, o processo é puramente passivo,
enquanto no tato ele inclui atividade corporal.

Pois a sensação tátil eleva-se a um plano maior logo que o próprio


corpo que sente passa a ser o agente proposital do m ovimento necessá­
rio para a aquisição daquela seqüência de impressões. O toque passa en­
tão do sofrer ao agir: seu progresso fica agora sob o controle de quem
percebe, podendo ser prolongado e variado com o fim de receber infor­
mação mais plena. A mera impressão de toque transforma-se, deste
modo, no ato de apalpar. Existe uma diferença fundamental entre o sim­
ples encontro de contacto e o apreender um outro co rp o apalpando-o. O
primeiro, pode-se dizer, é o átomo elementar da totalidade mais com ple­
xa do último, mas esta totalidade supera o mero resultado aditivo destas
sensações atomares de toque. É o elemento m o to r que introduz na ima­
gem uma qualidade essencialmente nova: seu exercício ativo descobre
no objeto do tato propriedades espaciais que originalmente não se en­
contravam nas qualidades táteis elementares. Pelo acompanhamento ci-
nestésico do movimento voluntário, toda a percepção é alçada a um pa­
tamar mais elevado: as qualidades do toque se coordenam em um es­
quema espacial, erguem-se à ordem mais elevada de su perfície e trans­
formam-se em elementos de form a. Esta síntese é de uma ordem mais
ÜL /l ií 1

elevada, sobrepondo-se à síntese mais primitiva que já se encontrava


presente na constituição das qualidades “simples” do tato. Estas, com o
vimos, integram cada qual uma série temporal própria de sensações tá-
teis “atôm icas” , porém agora entrando, por sua vez, com o matéria-prima
na unidade mais ampla da ordem espacial. Mesta ordem, a variedade
cresce para uma forma. A ordem mais elevada da síntese condiciona
também um intervalo de tem po maior para realizar-se; e isto envolve
algo mais da memória inerente a toda percepção. Mas o que no ouvir re­
sulta em um objeto no tempo, no apalpar resulta na presença de um ob­
jeto no espaço; os dados registrados em sucessão são registrados em
uma matriz de simultaneidade estática.

üm órgão para a verdadeira percepção de forma só existe, provavel­


mente, na mão humana, e no fato de o ser humano ter em sua mão um
órgão apalpante capaz de assumir algumas das realizações marcantes
do olho é mais do que um mero acaso. O mais elevado exercício do senti­
do do tato, ou melhor, o uso que se faz de seu conteúdo informativo, pos­
sui um lado espiritual que transcende toda mera sensibilidade, e é este
uso espiritual que traz o tato para perto das realizações visuais. Em pou­
cas palavras, é a capacidade da imagem , na denominação clássica a
im a g in a tio ou p h a n ta sia , que torna possível este em prego dos dados
fornecidos pelo sentido do tato. Só uma criatura possuidora da capacida­
de de visão característica do ser humano é capaz de “ver” também pelo
tato. O nível de percepção de forma de que uma criatura é capaz é essen­
cialmente o mesmo para ambos os sentidos, por mais incomensuráveis
que eles sejam no tocante a suas qualidades específicas. Os cegos po­
dem “ver” por meio de suas mãos, não por lhes faltar o uso dos olhos,
mas sim por serem seres dotados da capacidade universal da “ contem ­
plação” , e só acidentalmente terem sido privados do órgão da visão.

3. C om p a ra çã o co m a visão

Estamos empenhados em elaborar a peculiaridade da visão no que


se refere à simultaneidade da apresentação; nossa tese é que todos os
outros sentidos apresentam seus dados por meio de séries temporais. O
ouvido, com o vimos, permanece inteiramente dentro desta dimensão,
porque também os resultados de sua síntese, os objetos acústicos exten­
sos (com o por exemplo uma melodia), mantêm a sucessão dos elem en­
tos que a própria sucessão da experiência possuía originalmente, üma
melodia não é apenas percebida em uma sucessão, ela própria é uma su­
cessão. A extensão temporal é um aspecto essencial do co n te ú d o da ex­
periência sonora, üm dado visual, por exem plo a presença de uma cor,
pode ser de curta ou de longa duração: isto pode fazer diferença para os
interesses de quem percebe, mas não faz nenhuma diferença para o con­
teúdo da experiência em si. Esta determinada qualidade da cor não traz
em si mesma nenhuma referência ao tempo. No sentido do tato nós con­
cluímos que já a sensação “atôm ica” isolada inclui em si mesma um ele­
mento do tempo com o parte do próprio conteúdo sensível, a saber, o
tempo, sem o qual uma qualidade com o “ áspero” não pode ser “gerada”
para a experiência, e sem o qual ela não pode ser apresentada; encontra­
mos ainda que a objetalidade tátil com posta nasce de uma síntese suces­
siva destas sensações de primeira ordem. Mas o resultado da própria sín­
tese, no caso da percepção de superfície e de forma, representa uma to­
talidade espacial e não temporal, e nós temos aqui uma representação
do simultâneo por meio do sucessivo. Nesta representação, já não é im­
portante a ordem temporal original das sensações atômicas, que deixa
de ter voz no conteúdo sintético agora “ presente” . Ela foi apenas a suces­
são aleatória da aquisição dos dados, que poderia ter sido modificada à
vontade, ao passo que no ouvir a ordem temporal da aquisição dos da­
dos é a ordem do próprio objeto.

Parece, assim, que se pode fazer distinção entre os três casos na se­
guinte fórmula: audição = representação de seqüência por meio de se­
qüência; tato = representação de simultaneidade por meio de seqüência;
visão = representação de simultaneidade por meio de simultaneidade.
Esta última vale apesar do fato de a simultaneidade da representação vi­
sual conter sua própria referência a possíveis sucessões de “cumprimen­
to ” adicional, para as quais a unilateralidade, e com ela a parcialidade de
toda visão, se encontra basicamente aberta. Tam bém o aspecto visual,
sempre incompleto, é representação do simultâneo pelo simultâneo,
onde o que não é dado está intencionalmente contido no que é dado.

Segundo esta fórmula, a visão mantém sua posição única, m esm o


quando comparada com o caso supremo do desenvolvimento da realiza­
ção tátil. Podemos admitir que isto ocorre com cegos que aprenderam a
tirar plena informação sobre forma e posição de objetos a partir dos da­
dos coligidos na atividade própria do tato. Porém mesm o a mais densa
distribuição de determinantes pontuais, reunidos e inter-relacionados no
decurso de uma extensa apalpação, ainda deixa lacunas que a imagina­
ção precisa preencher. O conhecimento da forma total nasce progressi­
vamente desta série de determinações parciais, e a partir de certo ponto
ela é “com pleta” para todas as finalidades práticas. Quanto ela pode ser
completa, é possível perceber-se pelos retratos feitos por escultores ce­
gos. Mas este ser-completo é fruto de trabalhosa síntese de muitas per­
cepções isoladas que foram integradas em uma única forma simultânea:
na presença final desta forma perante o olho interior (!), a sucessão do
construí-la está esquecida2. Assim faz-se necessário distinguirmos aqui o
que no ver é uma coisa só: o que é realizado diretamente pelo próprio
sentido, e o que é realizado indiretamente pela representação em ima­
gem co m base no anterior. A segunda realização, a rigor, não é mais
uma questão do sentido do tato, mas sim uma espécie de visão (im agi­
nação) através do material heterogêneo do tato. Mas por mais numero­
sos que sejam os dados registrados na sucessão e colocados no
lado-a-lado da representação simultânea, eles jamais conseguem preen­
cher um horizonte com o o que é revelado por um único relance de olhos.
E inevitável que permaneçam espaços vazios e lacunas, com o tam bém
perm anece sem realização um horizonte de profundidade para além da
proximidade do mundo dos objetos resistentes efetivamente tocados.

4. Visão e tem p o

Tudo que eu tenho que fazer para ver é abrir os olhos - e o mundo
está aí com o sempre esteve. Nós descobrimos que no ouvir a situação é
diferente; e o tato tem que abrir-se e explorar os objetos em movimento
corporal e pelo contacto corporal, e isto reduz, a cada vez, a relação atual
com o objeto a um caso determinado: a relação atual é estabelecida pela
escolha que a antecede e de onde ela proveio: no ver, pelo contrário, a se­
leção através do voltar o olhar pode mover-se à vontade sobre o cam po
oferecido pela visão geral, e onde todos os com ponentes estão simulta­
neamente disponíveis. Desta presença simultânea, o dirigir o olhar nada
retira; sua escolha foi estabelecida pela liberdade, sem o sacrifício de ou­
tras possibilidades: estas permanecem à disposição do momento, e ne­
nhuma escolha entre elas envolve (com o no sentido do tato) a maneira
de agir que modificaria a posição entre o sujeito e o que a ele se opõe, o
ambiente. Só a simultaneidade do quadro permite que aquele que con­
templa faça com parações e perceba conexões. Ela oferece não apenas
muitas coisas de uma só vez, mas as oferece também em sua proporção
mútua. Por isso a objetividade surge predominantemente da visão.

No que diz respeito ao aspecto do tempo com o tal, a simultaneidade


da visão não é apenas uma vantagem prática, no sentido de uma econo­
mia de tem po que uma coleta sucessiva de dados múltiplos exigiria, mas
ela fornece também ao espectador o conhecimento de toda uma dimen­
são do tem po que do contrário lhe permaneceria fechada, isto é, a p re ­

2 . C f. a e x c e le n te a n á lis e d e P ie rre V illey, u m c e g o , e m : Le monde des aueugles - Essai de


psychologie. P aris, 1 9 1 4 .
sença, com o algo que ultrapassa a experiência pontual da fugacidade do
agora. Em todos os outros sentidos nenhum momento é fechado em si, e
nenhum dado momentâneo fala por si só. A sensação tem que se pro­
longar, para com seu fluir adicionar a seqüência àquilo que foi iniciado
no que antecede. Por isso dado deve seguir-se a dado, para fazer com
que as grandes unidades de experiência surjam em sua continuação. O
som existe com o seqüência, cada momento dele desaparece no que já
passou enquanto ele continua a soar: deter o fluxo e “analisar” um “cor­
te” momentâneo dele não significaria ter-se um retrato instantâneo do
som, mas sim um fragmento atômico do mesmo, a rigor nada. Por isso o
passar faz parte da essência do agora acústico, e para o ouvinte o “pre­
sente” significa aqui o m ero ser levado na corrente do processo contí­
nuo. No caso do tato a situação é semelhante, só que aqui a sucessão é
mais um processo de realização ativa do que de uma mera recepção
passiva de dados. Em nenhum dos dois casos nós tem os uma presença
estática; expressando isto platonicamente: audição e tato são sentidos
não do ser mas sim do vir-a-ser. Só a rep resen tação sim ultânea do
cam po de visão fornece-nos a coexistência com o tal, isto é, a co-presen-
ça de coisas em um ser que abrange todas elas em um p re s e n te co ­
mum. O presente, em vez de ser uma experiência pontual, passa a ser
uma d im en sã o onde coisas são contem pladas ao m esm o tem po, e ao
passear o olhar da atenção, cada uma delas pode ser relacionada com
qualquer outra. Este passeio do olhar, embora ocorra no tem po, ex­
pressa apenas o que já estava presente à primeira vista, e que durante a
visão perm aneceu inalterado. O tem po transcorrido durante a obser­
vação não é experim entado com o uma passagem de conteúdos que no
fluxo do acontecer dêem lugar a novos conteúdos, mas sim com o uma
duração dos mesm os, com o uma identidade que é a extensão do agora
mom entâneo, e portanto presença im óvel continuada - enquanto não
ocorrer uma mudança nos próprios objetos. Se isto acontecer, o m ovi­
mento aparece no cam po de visão, e então o tem po com eça visivel­
mente a passar. De fato só a simultaneidade do ver, com sua extensa
“ presença” de objetos que duram, permite que se faça distinção entre o
que se modifica e o que permanece, e com isto entre o vir-a-ser e o ser.
Todos os outros sentidos vivem da mudança e relatam mudança, sendo
incapazes de fazer aquela distinção. Por isso, unicamente a visão fornece
a base sensorial sobre a qual o espírito pode com eçar a apreender a idéia
do eterno, daquilo que nunca se modifica e que está sempre presente. A
oposição entre eternidade e temporalidade remonta, em última análise, à
idealização daquela “presença” que é visualmente experimentada com o re­
ceptáculo de conteúdos permanentes, em oposição à fugaz seqüência
das sensações não-visuais. Na presença visível de objetos, o espectador
pode repousar e desfrutar de um agora ampliado.
Além destes outros aspectos, não podem os esquecer a imensa van­
tagem que na situação biológica representa a visão momentânea de
toda a esfera de encontros possíveis. No cam po visual simultâneo, uma
variedade coordenada, ainda fora de comunicação comigo, se oferece à
escolha para o meu p ossível agir. Dentro deste contexto, simultaneidade
significa o mesm o que possibilidade de escolha, sendo com isto um dos
mais importantes fatores da mais elevada liberdade do animal capaz de
movimentar-se.

II - Neutralização dinâmica

A liberdade de escolha acima mencionada depende não apenas da


simultaneidade do estar-presente, mas também do fato de que, ao ver, eu
não estou com prometido ainda com o objeto que vejo. Posso escolher
entrar em interação com ele, mas ele pode aparecer sem que o fato de
seu aparecimento já envolva qualquer interagir. Pelo fato de vê-lo não
está decidida nenhuma escolha de minha possível relação com ele. Nem
eu nem o objeto fizemos até agora nada que pudesse determinar a situa­
ção recíproca. Ele me deixa ser, eu o deixo ser o que ele é. Nisto a visão
distingue-se decisivamente do sentido do tato e da audição. O adquirir a
experiência do tato não é outra coisa senão o aceitar a efetiva interação
com o objeto: isto é, o m ero atuar deste sentido já muda a situação exis­
tente entre mim e o objeto. Cima informação mais completa exige então
outras mudanças semelhantes, cada uma das quais afeta ao m esm o
tem po o objeto e meu corpo, ela mesma já sendo uma fase daquele co­
mércio prático com o objeto para o qual, por sua vez, minha informação
sensorial deve primeiramente preparar-me. No sentido do tato nós não
temos, portanto, aquela nítida separação entre o resultado teórico da in­
form ação e o comportamento prático (nele livremente baseado) que te­
mos na visão. Mais uma vez nós descobrimos na constituição básica de
um sentido, e em suas condições físicas, a raiz orgânica de uma elevada
distinção em nível humano: a distinção entre teoria e prática. Enquanto no
toque sujeito e objeto atuam um sobre o outro no mesm o ato em que o
objeto torna-se uma presença, a presença visual deixa-me ainda inteira­
mente livre no que se refere ao com ércio atual, pois eu vejo sem que eu
faça nada, e sem que o objeto nada faça.

Tam bém no ouvir não ocorre nenhum agir da minha parte, mas com
tanto mais razão ele ocorre por parte do objeto. As coisas não são audí­
veis por sua própria natureza, assim com o são visíveis; não faz parte do
seu ser emitirem sons, com o faz parte do seu ser refletirem luz. Por isso
eu não posso escolher ouvir alguma coisa, mas preciso esperar até que
ocorra algo a uma parte do mundo ambiente, que o leve a emitir um
som, e este som me atinge, quer eu queira quer não. E com o é um acon­
tecer de que o som me dá notícia, e não a mera existência de coisas em
sua ordenação mútua, a informação acústica prescreve-me a escolha do
agir. Alguma coisa ocorre em meu contexto, é o que o ouvido me infor­
ma, e eu tenho que reagir a esta modificação, pois, com o parte interessa­
da, ela me diz respeito, e não me é permitido o mero observar: tenho que
voltar minha atenção para o que em seguida possa vir daquela direção, à
qual estou ligado agora em uma situação dinâm ica3.

Nesta situação dinâmica, é a total ausência de qualquer penetração


causai na relação que distingue a visão dos outros sentidos. Eu não pre­
ciso fazer outra coisa senão olhar - sem que por isso o objeto seja toca­
do; e tão logo haja luz, o objeto só precisa estar aí para tornar-se visível -
e eu não sou tocado por isto: e no entanto meu estar-em-mim o percebe
no seu estar-em-si, ele me está presente sem que me atraia para a sua
presença. Mão importa que uma troca dinâmica, no sentido físico, ocorra
de fato entre a fonte de luz, o objeto iluminado e o olho que percebe: esta
conexão causai não faz parte do resultado fenomênico. A neutralização
completa do conteúdo dinâmico no objeto visual, o fato de estar excluído
dele todo vestígio de atividade causai, é uma das principais conquistas
da “função-imagem” da visão, com o a podem os chamar, que no cômpu-
to final resulta em um sutil equilíbrio de lucro e perda no balanço do co­
nhecimento do ser humano, esta criatura eminentemente ótica.

Do lado do lucro se encontra o conceito da objetividade da coisa


com o ela é em si, diferente da coisa com o ela me afeta, e desta distinção
procede toda a idéia de theoria e verdade teórica. E mais: a imagem fica
entregue à força da imaginação, que pode proceder com ela em com ple­
ta separação da presença real do objeto primitivo. Esta possibilidade de
separação da imagem, isto é, do separar a “form a” de sua “matéria” , a
“essência” da “existência” , serve de base para a abstração, e com isto
para todo livre pensar. Ma imaginação a im agem pode ser variada à von­
tade. É verdade que isto também se dá com o elemento acústico, de
onde a “im aginação” pode com por um mundo próprio de sons livremen­
te criados. Mas este não tem nenhuma relação com o mundo das coisas,
e por isso também não tem nenhuma função de reconhecimento, en­
quanto mesm o o mais livre exercício da fantasia visual conserva esta re­

3 . E a q u i n ã o se le v o u a in d a e m c o n s id e ra ç ã o q u e os so n s p o d e m se r endereçados a
m im e s p e c ific a m e n te - q u e su a m a n ife s ta ç ã o n o g rito , r o s n a d o ou d is c u rs o p o d e e s ta r
d irig id a à m in h a a te n ç ã o : n e s te c a s o a in te n ç ã o c o m u n ic a tiv a re fo rç a a e x ig ê n c ia d in â m i­
c a q u e a s itu a ç ã o a c ú s tic a c o m o tal fa z a o o u v in te . (O s sin ais v is u a is n ã o tê m e m si es ta
fo rç a in e re n te o u n a tu ra l d e fo rç a r a a te n ç ã o , e les só a d q u ir e m a lg u m a co is a d is to a tr a ­
vés d e c o n v e n ç ã o s im b ó lic a .)
lação e propriedade, podendo ao mundo exterior manifestar possibilida­
des, com o o demonstra o exemplo da geometria. Só a peculiar “indife­
rença” causai da presença visual fornece a matéria e favorece a atitude
para tais realizações do espírito.

Do lado das perdas encontra-se precisamente a propriedade que tor­


na possível estes desenvolvimentos mais elevados, isto é, o fato de o
nexo causai ser omitido do testemunho visual. A pura oferta de forma
que o ver torna possível silencia sobre sua própria origem causai, e com
isto também sobre todo aspecto causai em seus objetos, já que seu auto-
fechamento em relação ao observador se transforma em autofechamen-
to recíproco. Nenhuma experiência de força, nenhuma qualidade de im­
pulso e de causalidade transitiva encontra entrada na natureza da “ima­
g em ” , e com isto toda estrutura conceituai construída apenas sobre este
testemunho não pode deixar de mostrar a lacuna na ligação mútua das
coisas, com o foi observado por Hume. Isto significa apenas que nós pre­
cisamos completar o testemunho da visão com um testemunho de outra
origem, o que com demasiada freqüência é esquecido na exclusividade
da theoria.

Consideremos mais detalhadamente este distanciamento causai,


que faz da visão o mais livre e ao mesmo tem po o menos “realista” dos
sentidos. A realidade é atestada primariamente pela resistência, que é
parte da experiência do tato. Pois o contacto físico é mais do que o toque
geométrico; ele envolve choque. Noutras palavras, o sentido do tato é o -
único - sentido em que a percepção de qualidade normalmente vem
misturada com a experiência de força; è com o a força é recíproca, ela
não permite que o sujeito permaneça passivo. Assim o tato é o sentido
onde ocorre o encontro original com a realidade c o m o rea lidad e. O apal­
par traz consigo a realidade do seu objeto para dentro da experiência
sensorial, e isto graças àquilo que supera a pura sensação, isto é, a com ­
ponente de força presente em sua com posição original. Aquele que per­
cebe pode, por sua vez, aumentar voluntariamente esta componente por
contrapressão contra o objeto que o afeta. Por isso o tato é a verdadeira
prova da realidade: eu posso afugentar qualquer suspeita de uma ilusão
pegando o objeto suspeito e examinando sua realidade com a resistência
por ele oposta à minha tentativa de penetração. Noutras palavras: a reali­
dade exterior atinge a evidência no mesmo ato e ao m esm o tempo que a
evidência de minha própria realidade - isto é, na ação transitiva de mi­
nha parte. No sentir minha própria realidade por meio de um esforço de
qualquer espécie feito por mim, eu sinto a realidade do mundo. E um es­
forço se faz no encontro com outro-fora-de-mim.

A ausência de esforço na visão é um privilégio que com o esforço


perde também o salário do sentido menos nobre. Nem por parte do obje­
to nem por parte do sujeito o ver exige uma atividade perceptível. N e­
nhum dos dois penetra na esfera do outro: eles se deixam mutuamente
ser o que são e com o são, e desta maneira surge o objeto fechado em si e
o sujeito fechado em si. A inatividade do que é visto em relação a quem
vê não é diminuída pelo fato físico de estar em jo g o um agir de sua parte
(a emissão da luz) com o condição para que seja visto. As propriedades
singulares da luz4 permitem que toda a gênese dinâmica desapareça no
produto da percepção, de m odo que, no ver, aquele que percebe perma­
nece livre de todo envolvimento causai com as coisas a serem percebi­
das. Assim o ver garante aquele retrair-se da agressividade do mundo,
que liberta para a observação e abre um horizonte para a atenção seleti­
va. Mas o preço a pagar por isto é que ele fornece uma abstração dividida
da realidade, privada de sua força bruta. Repetindo coisas ditas anterior­
mente (capítulo 2, parte II, 2): o objeto, permanecendo dentro de seus li­
mites, defronta-se com o sujeito para lá da fenda aberta pelo desapareci­
mento da ligação de força. A distância do que é visto fornece uma “ima­
gem ” neutra, e esta; diferentemente do “efeito”, pode ser contemplada e
comparada, conservada na memória e recordada, variada na imagina­
ção e recomposta a bel-prazer. Essência, desta forma, torna-se separável
de existência, com isto fazendo com que a teoria se torne possível. É a li­
berdade fundamental da visão, e o elemento da abstração que lhe é pró­
prio, e não outra coisa, que encontra seu prolongamento no pensar; e
conceito e idéia herdam da percepção visual o padrão ontológico da ob­
jetividade que primeiramente as criou.

Se falamos da vantagem do distanciamento causai da visão, deve­


mos acrescentar que isto acarreta com o resultado também a mudez cau­
sai de seus objetos. Efetivamente a visão, mais do que qualquer outro
sentido, nega a experiência da causalidade: causalidade não é um dado
visual. E enquanto as percepções em geral ( im pressiorts a nd ideas) são
consideradas com o exemplos mais ou menos perfeitos do caso padrão
das imagens visuais, Hume está certo quando lhes nega informação cau­
sai. Mas a visão não é o caso primário e sim o caso mais sublime da per­
cepção sensorial, e repousa sobre a infra-estrutura de funções elementa­
res nas quais o intercâmbio com o mundo é sustentado em formas mais
concretas e palpáveis. Sem súditos sobre os quais reinar, nenhum rei con­
tinua rei. O testemunho da visão não falsifica a realidade ao ser com ple­
tado pelo testemunho das outras camadas da experiência, sobretudo da

4 . A p e q u e n a d im e n s ã o d a s p e rtu rb a ç õ e s d e q u e a luz é c o n s titu íd a g a ra n te to d a a im e n ­


sa v a n ta g e m d a v is ã o fre n te a o s o u tro s s e n tid o s : a d is tâ n c ia d o a lc a n c e , o d e s v in c u la -
m e n to d a s itu a ç ã o c a u s a -e fe ito , a s u b s titu iç ã o d e s ta p o r u m a im a g e m e m re p o u s o , a re­
p re s e n ta ç ã o s im u ltâ n e a d e u m a v a rie d a d e e a e x tr e m a a c u id a d e e p re c is ã o d a “p ro je ­
ç ã o ” p o n to -a -p o n to n e s ta r e p ro d u ç ã o .
capacidade de movimento e do sentido do tato; quando rejeita orgulhosa
suas exigências, sua verdade se torna estéril5.

III - Distância espacial

Nem a simultaneidade da oferta, nem a neutralidade dinâmica se­


riam possíveis sem o elemento da distância, üma multiplicidade só pode
ser representada simultaneamente quando seu acumular-se já não preen­
che minha proximidade imediata, onde qualquer elemento observado es­
conde todo o resto. E a causalidade não poderia ser neutralizada se o ob­
jeto penetrasse na esfera privada do meu corpo ou em sua vizinhança
imediata. A visão é o sentido ideal da distância. Luz propaga-se mais rapi­
damente do que som e cheiro, e qualquer que seja a distância ela não so­
fre distorção no caminho. A visão é mesm o o único sentido em que a
vantagem não está na proximidade mas sim na distância: a melhor visão
não é de forma alguma a mais próxima; para termos uma visão correta,
nós tomamos a distância correta, que pode ser diferente para os diversos
objetos e para os diversos fins, mas que sempre atua com o um traço po­
sitivo, e não com o uma deficiência na presença manifesta do objeto. Dis­
tanciando-se até certo ponto, a visão ganha em clareza de detalhe, e des­
te ponto em diante ganha em amplitude, em correção das proporções,
ou, de maneira geral, em integração. Propositadamente nós recuamos e
criamos distância para olhar o mundo, isto é, os objetos com o parte do
mundo; e também para não sermos perturbados pela proximidade ime­
diata daquilo que desejamos apenas ver; para termos a plena liberdade
de examinar e de prestar atenção.

Com os outros sentidos para a distância, audição e olfato, não ocorre


o mesmo. O olfato jamais lucra com o afastamento, ele sempre perde. E
embora dentro de um estreito círculo local de vizinhança o ouvido tam­
bém possa ter uma distância ideal e ser prejudicado pela extrema proxi­
midade (por exemplo com o grande volume de uma orquestra), mesm o
assim o afastamento maior não lhe abrirá, com o para a visão, “aspectos”
novos que com pensem a perda de clareza; o caso passa a ser semelhan­
te ao do olfato. Am bos são capazes de com êxito superar a distância, isto
é, de superar algo que em si representa uma desvantagem, mas com o
aumentar da distância eles só podem perder, e sempre hão de tender a
adquirir melhor informação diminuindo a distância.

5 . P a ra u m a d is c u s s ã o m a is m in u c io s a , cf. a c im a a p a rte “C a u s a lid a d e e P e r c e p ç ã o ” , no


2 o c a p ítu lo .
Além deste aspecto quantitativo, m erece especial destaque a m a ­
neira com o a distância é experimentada na visão. Som ou odor são ca­
pazes apenas de denunciar um objeto com o distante, mas eles nada in­
form am sobre o espaço de separação. A visão mostra-me o objeto a tra ­
vés da distância que o separa de mim, e esta distância, com todos os
seus “ passos” potenciais, faz parte da percepção. Quando eu olho um
objeto, está presente a situação daquilo que “se opõe a m im ” , eu o vejo
com o o ponto final do percurso que leva de mim até ele, e que se encon­
tra aberto à minha frente. Quando o objeto aparece a uma certa distân­
cia, a própria distância abre-se com o algo que eu consigo transpor; ela
convida a movimentar-me para a frente, põe à minha disposição o es­
paço de separação. O dinamismo da profundidade e a perspectiva
unem-me ao ponto final projetado.

Este ponto final é ele próprio arbitrário em cada caso, e meu olhar,
m esm o quando voltado para ele, inclui com o fundo o cam po aberto de
outras presenças mais além, da mesma forma que ele, com o coroa qüe
se esvai em direção às margens, inclui em si a variedade co-presente na
área. O indefinido “ etcétera” desta co-presença, de que a percepção vi­
sual está embebida, potencial sempre pronto a atualizar-se, e sobretudo
o “ etcétera” da profundidade do espaço, é o lugar onde nasce a idéia do
in fin ito , para a qual nenhum outro sentido seria capaz de fornecer base
empírica. O sentido do tato, unido à locom oção, também inclui, sem dú­
vida, a consciência da possibilidade de se avançar para o próximo ponto,
e deste para o seguinte, e assim por diante. Mas o sentido do tato não in­
terpreta estas realizações iminentes em seu conteúdo momentâneo,
com o uma zona talvez marginal a que o núcleo constantemente esteja
passando. No campo da visão, é precisamente este avançar contínuo do
foco para planos cada vez mais distantes, e seu sombreamento em dire­
ção às margens, que fazem com que o “etcétera” não seja apenas uma
possibilidade vazia: aí está presente também a prontidão do cam po para
deixar-se penetrar, um traço positivo que dirige o olhar para adiante, onde,
por assim dizer por si mesmo, um dado conteúdo passa para conteúdos
mais amplos. No tato não é dada nenhuma semelhante fusão entre conteú­
do atual e conteúdos potenciais; existe apenas a possibilidade abstrata de
substituir o conteúdo atual pelo seguinte, o todo resultando apenas parce-
ladamente do progresso aditivo de partes discretas. A visão, em todo m o­
mento dado, também contém uma variedade infinita, e suas próprias con­
dições qualitativas abrem o caminho para o que se encontra mais além. O
desdobrar-se do espaço diante dos olhos, sob o fascínio da luz, traz em si o
germ e do infinito - com o um aspecto do próprio sensível. Sua versão con­
ceituai na idéia do infinito é um passo que vai além da percepção, mas
um passo que teve com o ponto de partida esta base. O fato de podermos
olhar para a profundidade sem limites do universo é certamente de um
significado imenso para a formação de nossas idéias.

Voltando ao fenômeno da distância visual, entende-se por si m esm o


que, com esta simples am pliação do horizonte de informação, a visão
confere uma vantagem biológica enorme. Saber à distância eqüivale a
saber de antemão. O avançar ainda descom prom etido para o espaço sig­
nifica ganho de tem po para acom odação do comportamento: eu sei com
suficiente antecedência com que tenho de contar. Por isso a percepção
de objetos distantes significa um aumento imediato de liberd a d e, pelo
simples ganho no espaço de tempo para o eventual agir, permitido pela
distância do objeto da ação; do mesm o m odo que encontramos que a si­
multaneidade daquilo que se tem diante de si significa um aumento de li­
berdade por meio da possibilidade de escolha que se oferece na varieda­
de presente. Já foi dito que estes dois aspectos da liberdade da visão es­
tão intimamente ligados entre si. Unidos no m esm o e único ato, eles
constituem a conquista que, no reino dos sentidos, coroa a liberdade.

Não estaria certo dizer que na visão o distante é trazido para perto.
Pelo contrário, o distante é deixado distante, e quando a distância é bas­
tante grande, ela pode colocar o objeto observado fora da possível esfera
de interação e da possível importância ambiental. Neste caso a distância
perceptiva (no espaço) pode transformar-se em distância espiritual (na
atitude) e fazer surgir o fenômeno da observação “desinteressada” , um
acréscimo substancial ao que chamamos de “objetividade” , e da qual ou­
tra condição é encontrada na neutralidade causai.

Voltamos mais uma vez ao início, ao partido tom ado pela filosofia an­
tiga em favor de um dos sentidos do corpo. Nosso estudo mostrou algu­
mas das razões para este partidarismo nas vantagens próprias do senti­
do da visão. Chegam os mesmo a encontrar, em cada um dos três aspec­
tos sob os quais o sentido da visão foi tratado, a base para um con ceito
básico da filosofia. S im u lta n eid a d e da a p resen ta çã o fornece a idéia da
presença continuada, o contraste entre a variação e o invariável, entre
tempo e eternidade. N eu tra liza çã o d in â m ica oferece-nos a forma com o
distinta da matéria, a essência com o distinta da existência, e a diferença
entre teoria e prática. D istância, por fim, fornece-nos a idéia do infinito.

Assim a caminhada do espírito seguiu o rumo apontado pela visão.

Apêndice - Visão e movimento

A “nobreza da visão” concentrou-se sobre o não-dinamismo do mun­


do visível e sobre a transmutação “paralisante” do acontecer sensível,
através da qual consegue-se este destilado da realidade; e consideramos
também a necessidade de o conhecimento adquirido ser com plem enta­
do pelos outros sentidos, assim com o pela esfera do agir. Precisamos
acrescentar agora que esta última, isto é, a ca p a cid a d e do nosso co rp o
de m o vim en ta r-se, não procura auxílio apenas posteriormente, mas já é
um fator da constituição original da própria visão e do mundo que ve­
mos, por mais que no resultado consciente esta gênese tenha ficado no
esquecimento. Para que o próprio demorar-nos na “nobreza” contempla­
tiva de nosso produto pronto não seja visto com o um esquecimento se­
melhante de nossa parte, fazem-se necessárias algumas observações so­
bre o papel que o m o v im e n to desempenha na produção deste produto.
Estas observações, naturalmente, envolvem a questão mais geral da par­
te desempenhada pela prática na produção de uma pergunta aparente­
mente tão “teórica” quanto o mundo que percebemos, ou, de maneira
mais geral ainda, a pergunta pelo nosso papel ativo na organização dos
dados dos nossos sentidos. Nosso interesse maior está voltado aqui para
a esfera visual; mas, embora consideremos a visão com o m o d elo para
os outros sentidos, seu alto grau de separação, maior que o de qualquer
outro sentido, questiona a tese de que a percepção depende do agir, e o
que, não obstante, nós ainda possamos encontrar aí desta dependência,
deveria com mais razão valer para o resto menos privilegiado.

Kant form ulou a questão da organização de nosso material de per­


cepção para o conhecimento com o a pergunta pela parcela relativa de
“receptividade” e “espontaneidade”, a com ponente passiva e a com po­
nente ativa do nosso ser. Mas, neste contexto, a “atividade” era entendi­
da por ele unicamente com o atividade mental (o organizar formal do ma­
terial dos sentidos por meio das categorias da razão), não o agir corporal
da pessoa psicofísica em sua interação prática com o mundo. É curioso
quão pouco o poder sobre nossos membros encontrou acolhida na lon­
ga história do problema. Para Kant, o sujeito “teórico” é auto-suficiente
para a tarefa cognitiva de construir, a partir de dados primitivos, um todo
sensato da experiência, chamado “mundo” ; e o sujeito “prático” - que só
se toma tal sob o aguilhão da necessidade ou da vontade moral - atua
em um mundo e sobre um mundo já constituído pela capacidade teórica
da sensibilidade e da razão. Kant é apenas um exem plo para um ponto
de vista que por muito tem po foi predominante: a idéia de um sujeito teó­
rico separável da prática, e mais ainda a idéia da natureza passiva ou re­
ceptiva da sensibilidade “pura” e do conhecimento sensível, está profun­
damente enraizada na tradição filosófica, tendo determinado a marcha
da epistemologia. Os movimentos corretivos contra este partidarismo
(que com eçaram com a F e n o m e n o lo g ia do E spírito de Hegel e incluí­
ram o pragmatismo com o forte e decidido program a) estão expostos ao
perigo natural de se deixarem seduzir para o partido contrário. As limita­
das observações que se seguem entendem “agir” em seu sentido primá­
rio de movimento, isto é, de m over o seu corpo e de através dele mover ou­
tras coisas; e com o o “passivo” , neste contexto, é representado pela afec-
ção dos sentidos, pode-se considerar com o seu tema a relação mútua de
sensibilidade e capacidade de movimento.

Berkeley, em seu clássico “ Essay towards a New Theory of Vision”


(1709), defendeu a tese de que os dados visuais só alcançam seu sentido
espacial (tridimensional) através da correlação com os dados paralelos
do tato; ou, de uma forma mais genérica, que nossa percepção dos obje­
tos e de sua matriz espacial são o resultado de uma síntese mental dos
dados destes dois sentidos, visão e tato, com clara predominância do últi­
mo. Em sua forma autêntica - segundo a qual, em si, a “não-profundida-
de” da visão prescinde da distância do espectador, e com isto de toda re­
lação externa -, a tese de Berkeley foi refutada pela psicologia moderna,
que demonstrou experimentalmente o sentido de profundidade das sen­
sações óticas para a mais tenra idade, quando não podem ter sido ante­
cedidas por experiências de tato. Hoje não há mais dúvida de que a visão
em si mesma, isto é, independentemente de qualquer outra coisa, é este­
reoscópica e apreende a distância, portanto que a percepção do espaço
é uma realização original da visão. Porém com isto não ficou resolvida a
pergunta geral que se encontra por trás da teoria de Berkeley: qual a par­
ticipação da atividade do próprio corpo, isto é, da locom oção, na consti­
tuição sensorial do espaço ambiental? Pois foi o elemento da atividade
no tato, não sua qualidade sensível específica, que lhe conferiu a vanta­
gem da “realidade” , pela qual Berkeley pôde vir a ser quem ensinou a
doutrina da visão meramente receptiva. É aqui, isto é, no m o v im e n to ,
que se encontra um fator que, em toda espacialidade original do que ape­
nas foi visto, garante a corporalidade real das figuras da visão e a criação
do espaço independente em que elas estão distribuídas. Observe-se que,
para ter esse efeito, o movimento tem que ser uma realização minha, isto
é, tem que ser “proposital” ou “dirigido” : só com o ato intencional é que o
movimento contribui decisivamente para a organização do mundo da
percepção. Efetivamente, pode-se considerar o automovimento com o o
princípio de organização de todos os sentidos, com o também o meio da
síntese de todos eles em uma objetividade comum.

Para o tato já ficou explicado, na explanação principal, com o na ex­


ploração de um corpo por apalpamento (por exem plo, no escuro), é a
direção dos m ovim entos voluntários de meus próprios membros - com
o meu corpo com o sistema de referência - que fornece a moldura dimen­
sional das coordenadas em que as sucessivas sensações de contacto são
introduzidas. Aqui nós simplesmente repetimos que, sem este lado cines-
tésico do com plexo processo, não surgiria no processo do tato nenhuma
fusão dos dados locais isolados em uma série conexa, nem o resultado fi­
nal de sua cristalização em uma forma inteira simultânea.

O que é manifesto para o tato, parece não aplicar-se à visão, isto é,


que seu rendimento cognitivo dependa de movimento. Pois não foi preci­
samente este o ponto mais importante do capítulo, que a visão é o senti­
do por excelência da observação passiva? Que o contemplar as coisas e
o mundo com o um todo é compatível com um estado de com pleto re­
pouso, que parece constituir m esm o a condição mais favorável para a
atenção e a con tem plação visual? Não chegam os m esm o a deduzir
toda a oposição entre “teoria e prática” , e a partir daí entre “vida contem ­
plativa” e “vida ativa” , exatamente deste aspecto da visão? Tudo isto
continua de pé. E não obstante, nós não teríamos condições de “ver” se
antes não nos tivéssemos movido. Não haveríamos, por exemplo, de ver
o mundo ordenado em profundidade segundo um esquema definido,
que não tem limites e que se afasta de nós, mas que pode em toda parte
ser determinado, se não fôssem os nada mais do que criaturas que vêem,
se não fôssemos criaturas capazes também de mover-se para dentro do
espaço, e se anteriormente não tivéssemos feito isto.

O fato fundamental, evidentemente, é que o ver é parte da função de


todo o corpo, que experimenta seu envolvimento dinâmico com o ambi­
ente sentindo sua posição e suas mudanças de posição. Que nós “ pos­
suím os” um corpo do qual os olhos são parte, este é realmente o fato pri­
mário de nossa “espacialidade” : um corpo que não apenas assume g e o ­
metricamente um volume no espaço, mas que também se encontra em
permanente interação física com o mundo (por exemplo, através da sim­
ples força da gravidade). Sem este fundo de sentimentos corporais não
visuais, e sem a experiência acumulada de movimento realizado, os
olhos sozinhos não haveriam de transmitir o conhecimento do espaço,
apesar da extensão imanente do próprio campo visual.

Pode-se fundamentar esta tese em muitos planos diferentes. Pode-se


mostrar com o o pegar, o manusear e o dedilhar os objetos traz à criança
a experiência básica da corporalidade das coisas vistas e da ordem das
distâncias, que são atribuídas às sensações óticas. Ou poderíamos men­
cionar os numerosos ajustes neuromusculares que atuam no ato de ver
(o girar do globo ocular, o ajustar as lentes etc. - ações motoras mínimas
e não voluntárias), e que contribuem para as sensações óticas com sua
referência objetiva. Ou poderíamos apontar a inerente orientação espaci­
al que as “direções” físicas do corpo criam através do sentimento orgâni­
co de direita e esquerda6, de adiante e atrás7, de em cima e embaixo -
sentimento cuja atualização sempre inclui uma sugestão de movimento.
O ponto que desejo tratar é outro: a dependência da persp ectiva ótica
em relação à lo co m o çã o .

Há de concordar-se que conhecimento de perspectiva inclui cons­


ciência das alterações que acompanhariam uma mudança de posição
do observador, isto é, seu próprio movimento. A capacidade de preser­
var a identidade da distribuição dos objetos ao longo de uma sucessão
destas alterações aparentes é uma condição necessária para se com pre­
ender a deformação da perspectiva. Então poderia parecer que o que é
exigido para isto seria a recordação da experiência destes esquemas de
alterações ligados ao movimento, isto é, um passado de diferentes m ovi­
mentos no espaço. Mas esta não é a situação toda. Pois com o é que o
movimento é experimentado com o movimento, se sua evidência não é
outra coisa senão alteração visual? Torna-se evidente o círculo vicioso
epistem ológico. É aqui que passa a ser decisivo o movimento co m o
ação. (Jma semente que voasse com o vento, se fosse dotada de olhos
(mas sem seu aparato muscular), haveria de perceber no máximo uma
seqüência de variedades visuais bidimensionais sendo constantem ente
substituídas por outras, ao m e s m o te m p o qu e as figu ras a u m e n ta ­
riam ou diminuiriam de tamanho, modificando seu contorno, fechando
e abrindo suas séries, encontrando-se e separando-se novamente - uma
variedade caleidoscópica, com um padrão determinado porém sem sen­
tido, não tendo nenhuma relação com uma posição ou com dimensões
por ela definidas. Assim todas as suas migrações não a ajudariam a che­
gar a uma percepção do espaço nem a relacionar o desfile de imagens
com o espaço percorrido. A diferença entre este caso imaginário e o caso

6 . C f. o b re v e a rtig o d e K a n t “Vom ersten Grunde des Unterschieds der Gegenden im


Raum e ” [ “ D a p r im e ir a ra z ã o d a d ife re n ç a d a s re g iõ e s n o e s p a ç o ” ] (m a is d e s e n v o lv id o
e m “ Was heisst, sich im Denken orientieren ? ” [ “O q u e s ig n ific a o rie n ta r-s e n o p e n ­
s a r” ] ), o n d e ele le m b ra q u e a d is tin ç ã o d e d ire ç õ e s id e n tific á v e is no e s p a ç o v is u a l b a s e ­
ia -se e m n o s s o s e n tim e n to d e u m a d ife re n ç a q u a lita tiv a e n tre o la d o d ire ito e e s q u e rd o d e
n o s s o c o rp o : se d e u m a n o ite p a ra a o u tra D e u s tro c a s s e to d o o a s p e c to d o c é u e s tre la d o
p o r s u a im a g e m e s p e c u la r, n ó s n ã o p o d e r ía m o s p e rc e b e r a d ife re n ç a s e m a p e la r p a ra as
s e n s a ç õ e s q u a lita tiv a s do c o rp o - u m a v e z q u e a c o n fig u r a ç ã o g e o m é tric a n ã o se te ria
m o d ific a d o .
7 . C h a m a a te n ç ã o q u e a m a io ria dos a n im a is q u e se m o v im e n ta m liv re m e n te (to d o s os
v e rte b ra d o s ) p o s s u e m u m a d ire ç ã o a x ia l d o c o rp o ; q u a s e s e m p re es ta c o in c id e c o m a d i­
re ç ã o d a c a b e ç a , isto é, c o m a d ire ç ã o d e su a lo c o m o ç ã o p a ra a fre n te . A e x c e ç ã o im p o r ­
ta n te d e s ta re g ra é a a titu d e e re ta d o h o m e m . (S o b r e se u s e n tid o m a is p ro fu i .d o , cf. o e x ­
c e le n te a rtig o d e E rw in S tra u s “D ie a u fre c h te H a ltu n g ”, e m : Psychologie der menschli-
chen Welt. Ges. Schriften. B e rlim , G õ ttin g e n , H e id e lb e rg , 1 9 6 0 ; cf. ibid. s o b re o te m a
d e s te a p ê n d ic e , o a rtig o “ D ie F o r m e n d e s R à u m lic h e n . Ih re B e d e u tu n g fü r d ie M o to r ik
u n d d ie W a h r n e h m u n g ”.)
real do animal que se m ove consiste em que o último muda de lugar por
uma troca de ação mecânica com o meio resistente, através do qual ou
sobre o qual ele se movimenta. O esforço muscular exigido significa que
o movimento relativo é mais do que apenas uma alteração da posição
geométrica mútua: pelo jogo mútuo das forças, a situação geométrica
transforma-se em uma situação dinâmica, que precisamente por este ca­
ráter manifesta também o aspecto geométrico. A autopercepção cinesté-
sica ( “propriocepção” ) da atividade motora é o que guia o organismo na
sucessiva construção de distância e direção no espaço, a partir das fases
do movimento que ele realmente executa.

(Jma vez de posse do conhecimento que me foi deixado por estas ex­
periências de movimento, eu também posso efetivamente observar o
mundo a partir de minha posição de repouso, e compreendê-lo em pers­
pectiva e na ordem de suas diferentes direções. Então eu posso ser o ob­
servador estacionário e inativo, que deixa o espetáculo do mundo desfi­
lar diante de seus olhos com o em uma tela. Mas nesta situação contem ­
plativa está presente o resultado de minha atividade anterior: o fato de eu
realmente me haver movimentado através do espaço, de me haver orien­
tado para um alvo, modificado minha direção, relacionado o tem po em ­
pregado com o caminho percorrido, avaliado o esforço em com paração
com os resultados visuais da variação - todas estas ações, e a sempre
presente possibilidade de voltar a realizar os m esm os atos, servem de
base para aquela presença aparentemente estática do espaço, de que a
visão desfruta, e com seu saber a alimenta. Por isso podem os dizer que o
possuir um corpo no espaço, ele mesm o uma parte do espaço a ser ex­
perimentado, e que é capaz de automovimentar-se na interação com ou­
tros corpos, constitui a condição prévia para se ver o mundo. Com isto
nós temos o paradoxo de que é através de algo dinâmico, através de um
processo, que se constitui a moldura da experiência estática, isto é, um
sistema de coordenadas espaciais (direções), tendo meu corpo com o
origem. E o exemplo do sentido que parece ser o mais livre de tal mistura
mostra que a mobilidade, que é necessária para o próprio exercício da
percepção sensitiva, participa, por sua vez, da experiência básica da sen­
sibilidade, na medida em que esta deve ser mais do que um mero registro
de estímulos exteriores: noutras palavras, onde a recepção sensitiva pre­
cisa elevar-se à condição de percepção8.

8 . D e p a s s a g e m se g u e -s e d a í q u e a m ô n a d a d e L e ib n iz, q u e “e m p e rs p e c tiv a ” “re fle te ” o


u n iv e rs o a p a rtir d e seu p ró p rio “p o n to d e v is ta ” (o b s e rv e -s e o c a rá te r visu a l d o m o d e lo )
s e m “a fe ta r ” es te u n iv e rs o a tra v é s d e in te ra ç ã o , é u m c o n c e ito q u e se c o n tra d iz a si p ró ­
prio: faz p a rte da e s s ê n c ia d a p ró p ria p e rc e p ç ã o q u e a q u e le q u e p e rc e b e ta m b é m tem que
ser u m “a g e n te ”.
Homo Pictor: da liberdade da imagem

Perguntar qual é a essência do ser humano é o m esm o que perguntar


o que é que distingue o ser humano dos outros seres vivos, portanto do
animal. Perguntar qual é a diferença específica do ser humano é o mes­
mo que perguntar qual a característica em que esta diferença se manifes­
ta de uma maneira perceptível e convincente. Mas a pergunta por esta
característica pode ser adequadamente abordada no âmbito de rigoro­
sas con dições especialm ente estabelecidas. Cima condição ideal rigo­
rosa para um experimento heurístico é dada pela situação fictícia (hoje
não mais tão fantasiosamente fictícia) de espaçonautas que se transfe­
rem para um mundo vivo inteiramente estranho de outro planeta, e que
desejam certificar-se de que ali existem “hom ens” . A situação é ideal­
mente rigorosa, e portanto rigorosamente ideal, porque está ausente
todo e qualquer apoio de uma familiaridade m orfológica prejudicial, isto
é, todos os indícios, mas também toda e qualquer sedução da mera se­
melhança de aparência para se reconhecer o humano. O “humano” tem
que designar então alguma coisa que justifique a atribuição deste nome,
por mais extremas que sejam as diferenças físicas. Com isto é levantada
a pergunta pelos traços, isto é, pelos meios de reconhecimento, e se pos­
sível por um meio de reconhecimento privilegiado, que ateste com preci­
são a igualdade essencial do ser, ou que forneça a mesma possibilidade
de estabelecer a diferença em relação ao animal, não importando qual
seja a construção orgânica. Este meio de reconhecimento precisa ser
claro, e precisa ser primitivo. Além disso ele tem que ser um agir, ou o re­
sultado de um agir. Que é que nestas circunstâncias deve ser reconheci­
do com o evidência conclusiva, e de que esta evidência seria conclusiva?
Quer dizer: Que podem os dela aprender sobre a essência do ser humano,
além de sua validade apenas intuitiva?

O experimento heurístico completo teria que explicar os méritos rela­


tivos das diversas manifestações de vida a serem consideradas com o evi­
dências - com o utensílios, túmulos, fogueiras -, de acordo com a força
conclusiva e com a riqueza de cada uma. A escolha preliminar que ante­
cede a pesquisa que se segue será melhor justificada por seus resulta­
dos. Aqui seja suficiente dizer-se que a ela não se atribui nenhum signifi­
cado excludente, e que cada um dos três outros fenômenos menciona­
dos poderia ser tom ado com o ponto de partida. Cima certa vantagem
hermenêutica, de que queremos nos assegurar, pode ser encontrada na
relativa sim p licid a d e da natureza da imagem - comparada com a da
fala. A linguagem é certamente o fenômeno humanamente mais consti­
tutivo e central, mas em sua variedade é também o mais difícil de ser
apreendido, e também o que tem sua interpretação filosófica bem mais
discutida e onerada. Além disto, sob a condição adotada, a pergunta pela
possibilidade de reconhecimento - imposta pela indiferença física da ma­
nifestação simbólica com o tal, que não é auto-evidente - acrescentaria
um problema secundário, estranho à própria tarefa. Mas sobretudo o
conceito da “linguagem ” , com o o da “razão” ou do “pensamento” , pas­
sou a ser tão inseguro para a filosofia contemporânea, e a margem de
unanimidade que se pode pressupor tornou-se tão problemática, que já
por isso a “linguagem ” não é o mais apropriado para a intenção teórica
que aqui nos propomos. Maior esperança de um acordo preliminar existe
sobre o que é uma im agem do que sobre o que é uma palavra. De fato,
uma com preensão da capacidade da imagem, que é uma capacidade
mais simples, pode contribuir para a com preensão do problema muito
mais com plexo da fala.

I - Que é uma imagem?

Nossos pesquisadores entram em uma caverna e observam em suas


paredes linhas ou outras configurações que só podem ser de origem arti­
ficial, que não servem para nenhuma função estrutural, e que apresen­
tam uma semelhança ótica com uma ou outra das formas de vida encon­
tradas lá fora. De seus lábios irrompe esta exclamação: Foram “homens”
que fizeram isto. Por quê? Para ser válida, a evidência não precisa ter a
perfeição dos afrescos de Altamira. O desenho infantil mais tosco possui­
ria a mesma força de prova que a arte de Michelangelo. Ela prova o quê?
Prova a natureza mais-do-que-animal de quem a produziu; e que se trata
de um ser que potencialm ente fala, pensa, inventa, em suma, de um ser
“sim bólico” . E com o aqui a evidência, com o por exem plo no caso da téc­
nica (em prego de utensílios), não é uma questão de grau, unicamente
por sua essência formal ela tem que manifestar tudo quanto precisa ser
manifestado.

Para nos convencerm os espontaneam ente de que nenhum mero


animal seria capaz nem haveria de produzir uma imagem, basta em pri­
meiro lugar a ausência de utilidade de toda mera representação. Os arte­
fatos animais possuem um em prego direto para alcançar objetivos vitais,
com o alimentação, reprodução, esconderijo, hibernação. Eles próprios
são algo dentro do contexto de realização de alguma coisa. Mas a repre­
sentação de alguma coisa não modifica o ambiente nem o estado do pró­
prio organismo. Por isso um ser que produz imagens é um ser que ou se
dedica à produção de coisas sem utilidade, ou que tem outros objetivos
além dos biológicos, ou que pode perseguir estes últimos de uma outra
maneira, que é diferente do em prego instrumental das coisas. Seja com o
for, a representação imagética apropria-se do objeto de uma nova manei­
ra não-prática, e precisamente este fato, de o interesse nele poder ser ine­
rente ao seu e/dos, atesta uma relação nova com o objeto.

Antes de prosseguirmos, precisamos determinar o que é uma ima­


gem, ou quais são as propriedades que fazem com que uma coisa seja a
im agem de outra.

1) Em primeiro lugar está a propriedade da semelhança, üm a ima­


gem é uma coisa que mostra uma semelhança direta com outra coisa,
uma semelhança que possa ser reconhecida sempre que se deseje.

2) A semelhança é produzida intencionalmente: a coisa que a mostra


é, no tocante a esta propriedade, um artefato. Duas coisas que natural­
mente se igualam não fazem com que uma seja a imagem da outra1. - O
artificial, e com ele o proposital da semelhança em uma das duas coisas
semelhantes deve ser tão facilmente reconhecível com o a própria sem e­
lhança. A intenção exterior de quem produz continua a viver no produzi­
do com o intencionalidade interior - a intencionalidade da representação
que se comunica a quem a contempla. Portanto, enquanto a semelhança
com o tal é recíproca, a relação imagética que a emprega é unilateral, não
é reversível: é a coisa artificial que é imagem da natural, não a coisa natu­
ral imagem da artificial.

3) A semelhança não é completa, üma duplicação de todas as quali­


dades do original resultaria em uma duplicação da própria coisa, isto é,
em um novo exemplar da mesma coisa. Quando eu copio um martelo
sob todos os aspectos, eu obtenho outro martelo, não uma im agem do
martelo. - O caráter incompleto da semelhança tem que ser perceptível,
para que possa ser qualificada com o “mera semelhança” . Do contrário,

1 . E s ta a firm a ç ã o te m q u e s e r m o d ific a d a c o m re fe rê n c ia às im a g e n s e s p e c u la re s , s o m ­
b ra s ou c o is a s s e m e lh a n te s , ü m a re fle x ã o n a á g u a é u m a s e m e lh a n ç a n a tu ra l, n ã o a rtifi­
c ia l, e é u m a “im a g e m ” d o o b je to re fle tid o , s e m q u e a re la ç ã o p o s s a s e r in v e rtid a . M a s a
im a g e m a q u i é u m fe n ô m e n o c o n c o m ita n te d o o b je to , e n ã o o o b je to e m si, e m e s m o q u e
p o s s a s e r s e p a ra d a , c o m o p o r e x e m p lo a im p re s s ã o d e u m a fo r m a a n im a l (u m a “im a ­
g e m ” p o te n c ia l p a ra o fu tu r o p a le o n tó lo g o ), a s e m e lh a n ç a é m e m b r o d e u m a r e la ç ã o
c a u s a i, e n ã o u m a r e p re s e n ta ç ã o . É b e m p o s s ív e l q u e o jo g o n a tu ra l d a s s o m b ra s te n h a
s id o a p rim e ira co is a a fa z e r o h o m e m p e rc e b e r q u e e x is te u m a im a g e m s u b s titu tiv a , e
q u e ela p o d e s e r fix a d a d e s e n h a n d o -s e o seu p e rfil.
o espectador haveria de acreditar ter diante de si a coisa, e não “apenas 5
sua im agem ” . Um tal engano, uma auto-ocultação da im agem conr.c
imagem, frustraria seu verdadeiro sentido de representar a coisa, não ce
fingi-la. Uma semelhança pode enganar-me; o fato de a semelhança se:
apenas parcial pode escapar ao sentido ao qual ela se dirige - ao sentidc
da visão -, uma vez que ela só engana inteiramente segundo as caracte­
rísticas deste sentido. Enquanto eu não tirar do prato a maçã de cera, ela
não é para mim a imitação de uma maçã, e sim uma maçã. Quando, en­
tão, os sentidos do tato e do olfato me tiverem instruído que a semelhan­
ça é apenas parcial, e além do mais produzida, a coisa muda de catego­
ria: deixa de ser imagem e passa a ser imitação.

Pois neste caso o engano foi propositado. No caso da im agem (onde


o engano também pode ocorrer), não o é. Sua semelhança é reconheci­
damente “superficial”, na medida em que reproduz estritamente a apa­
rência superficial em si, e não com o uma pretensão de semelhança tam­
bém dà substância em que se corporifica. Em si “insubstancial” , a sem e­
lhança deixa ao meio em que se corporifica sua própria substancialida-
de. Este limitar-se da intenção representativa à superfície que aparece é o
sentido mais fundamental em que toda semelhança imagética é incom­
pleta, por ser constitutiva do gênero “im agem ” 2. Esta incompletude por­
tanto, que poderíamos chamar de ontológica, é decidida preliminarmen­
te com a intenção da imagem com o tal, no caso particular ela já não é
mais uma questão de escolha.
4) Sobre esta camada básica, a incompletude assume graus de liber­
dade diferentes. Dentro de sua dimensão própria, que é constituída atra­
vés da “incompletude ontológica” , a im agem é mais uma vez elíptica:
m esm o da aparência da superfície muita coisa foi omitida. Omissão
pressupõe escolha. Positivamente, portanto, a incompletude da sem e­
lhança da imagem significa a escolha de traços “representativos” , ou
“característicos” , ou “importantes” do objeto, isto é, de sua aparência
para o sentido a que a imagem se dirige. O limitar-se a este único sentido
com o meio de percepção da representação é ele próprio a primeira “es­
colha” que atua na produção da imagem, sua espécie sendo preliminar­
mente decidida pela predominância da visão: a natureza humana fez a
escolha prévia do aspecto visual com o representativo das coisas. O res­
tringir-se a duas dimensões acrescenta outro degrau da incompletude,
mais especial, que acarreta suas exigências seletivas próprias. Por últi­
mo, dentro destes degraus tão genericamente determinados (representa­

2 . E m ve z d e e s c o n d id a , esta e s p é c ie d e in c o m p le tu d e p o d e se r a c e n tu a d a n a m a n e ira
c o m o o m a te r ia l (p o r e x e m p lo o b ro n z e ) é u tiliz a d o n a d e te r m in a ç ã o q u a lita tiv a d a a p a ­
rê n c ia d a im a g e m .
ção visual do corpo, da superfície), ocorre uma seleção voluntária de tra­
ços representativos, a liberdade tornando-se maior ainda com o grau de
incompletude que define os degraus genéricos com o tais: é maior na re­
presentação da superfície do que na representação do corpo, uma vez
que em si a primeira é mais abstrata do que a última.

No momento, é suficiente que consideremos com o “representativos”


aqueles elementos do visível que possibilitam o reconhecimento quando
falta a completude. Quanto mais bem- sucedida a seleção, sob este ponto
de vista, tanto maior a incompletude que a representação pode se permi­
tir. O lucro se encontra não somente na economia, que simplifica a tarefa
da representação, mas também na expressividade, ao serem destacados
os traços que importam, üm menos em completude pode, desta forma,
significar um mais em semelhança essencial. Este aspecto da incompletu­
de aponta para a idealização, que não precisa necessariamente se dirigir
para a beleza. Economia e idealização também tornam claro o caráter de
imagem com o tal: dificilmente se poderia considerar a coisa real com o
uma imagem de si mesma, uma vez que no excesso do casual falta-lhe a
concentração sobre o essencial.

5) Com estas últimas observações nós passamos da dimensão da in­


completude para a da diferença positiva. Â “diferença na semelhança” ,
baseada na omissão e na seleção, acrescenta-se a alteração dos próprios
traços selecionados com o um recurso para aumentar a semelhança sim­
bólica, ou para satisfazer os interesses visuais além do puramente repre­
sentativo, ou também simplesmente com o conseqüência da falta da ca­
pacidade. A alteração pode percorrer toda a escala, desde o leve desvio
em vista de um destaque até à mais exagerada das caricaturas, e da har­
monização mais vistosa até à completa assimilação do dado em um câ­
none estilístico. Qualquer desvio deste tipo em relação ao que é dado é
inseparável do processo de sua transferência através de um meio huma­
no; e a tolerância que é permitida sob este aspecto da imagem com o tal é
indefinida: escolha livre ou compulsão, maestria ou incompetência, to­
dos têm sua margem de jo go dentro desta tolerância. As supersimplifica-
ções involuntárias e as deformações dos desenhos infantis, ou a eleva­
ção da intenção artística, podem fazer com que não restem mais do que
fracos indícios de semelhança com o objeto representado. Não obstante,
tanto para os artistas quanto para os espectadores, enquanto for possí­
vel reconhecer a intenção, estas semelhanças forçadas continuam a ser
representações do objeto em questão. Quase não existem limites para o
alcance da im aginação de que dispõe a capacidade de com preensão
simbólica. Transferida desta capacidade para além das condições origi­
nais da imagem, a função representativa pode cada vez mais basear-se
sobre o mero reconhecimento da intenção e dispensar a semelhança
real. Por fim, a representação figurativa pode ser substituída pela repre­
sentação vicária. üm grau manifesto de semelhança é necessário, de iní­
cio, para que a intenção possa ser reconhecida - é este o caso da ima­
gem propriamente dita; mas, com o desenvolvimento de uma conven­
ção simbólica, torna-se disponível um círculo crescente de abreviaturas e
substituições gráficas, emancipando-se crescentemente o caráter “ver­
bal” da reprodução, üm possível resultado deste desenvolvimento é a es­
crita ideográfica. Desde o inicio, porém, a abstração e a estilização são
inerentes ao processo imagético, porque as exigências de economia são
convergentes com a liberdade da transmissão; e precisamente no exercí­
cio desta liberdade, também a norma do que é dado pode ser inteiramente
abandonada em favor da criação de formas nunca vistas: a capacidade
da im agem abre o caminho para a invenção.
6) Objeto da representação imagética é a forma visual. O sentido da
visão garante a máxima liberdade de representação, não só através da ri­
queza dos dados disponíveis à seleção, mas também do número das va­
riáveis que permitem a identificação. Da mesma coisa existem muitas
formas visuais igualmente reconhecíveis, conforme a posição relativa e a
perspectiva dos “aspectos” ; existe a independência de cada uma destas
formas das variações de grandeza resultantes da distância; existe a inde­
pendência das variações de cor e de claridade, de acordo com as condi­
ções de luz; a independência da completude do detalhe, que pode fun­
dir-se e desaparecer com a totalidade simultânea de uma visão da coisa.
Através de todas estas variantes sensoriais, a forma permanece identifi­
cável, representando continuamente o mesmo.
Por estes traços fenomenológicos, com os quais nenhum outro senti­
do possui completa analogia, a visão sugere ela própria a idéia da repre­
sentação e, com o meio a empregar, uma idéia de “form a” , cuja identidade
baseia-se unicamente na proporção de suas partes. Por isso na imagem vi­
sual o grande pode ser representado pelo pequeno, o pequeno pe- lo gran­
de, o espacial pela área, o colorido pelo preto-e-branco, o contínuo pelo dis­
creto, e vice-versa, o completo pelo simples perfil, o múltiplo pelo simples. A
visão é o principal meio sensorial da representação secundária, porque é
não somente o principal sentido do objeto, mas também o lar da abstração.
7) A im agem é inativa e em repouso, mas pode representar m ovi­
mento e ação. Este pode ser preso em uma presença estática, porque o
representado, a representação e o representante são camadas diferentes
da estrutura ontológica da imagem. Apesar de incorporada, a semelhan­
ça é sem substância, com o uma sombra ou um reflexo. Pode representar
o perigo sem ser perigosa, o prejudicial sem causar prejuízo, o desejado
sem satisfação do desejo. O que está representado na imagem é destaca­
do da interação causai das coisas e levado a uma existência não-dinâmi-
ca, que é a existência da imagem em si - um m odo de existir que não
deve ser confundido nem com o da coisa que representa nem com a rea­
lidade representada. Estas duas últimas perm anecem no m ovim ento
do vir-a-ser. Assim com o a realidade representada continua em sua mar­
cha, também a coisa-imagem permanece, dando início a sua história
própria, permanece parte da ordem causai, em cujas transações recebeu
sua atual constituição: mas, considerada em sua função de imagem, ela
cessa de valer por si. Sua substancialidade (da qual se exige apenas que
seja estável, de m odo que preserve a im agem ) desaparece em seu as­
p ecto s im b ó lico , com ela d es a p a re c e n d o ta m b ém sua pré-história
causai. A atividade que lhe deu origem pertence ao passado, sobre o
qual a presença da im agem já não relata. Esta presença nega o status de
efeito, que sempre implica sua causa. A partir desta presença intempo-
ral, a imagem vem ao encontro do espectador, sujeito ao tempo, em uma
presença que tanto tirou de si a sombra do próprio vir-a-ser quanto per­
manece ela própria subtraída ao fluxo do vir-a-ser do espectador3.

üma pegada é um sinal do pé que a produziu, e com o efeito, ela conta


a história daquilo que a causou. A imagem é sinal não dos movimentos
do pintor, mas sim do objeto representado e da intenção a ele dirigida.
Na imagem o nexo causai foi cortado. Ela está livre para representar
qualquer situação causai, inclusive a de quem pintou a imagem: mesm o
então ela não representa a causalidade do seu próprio vir-a-ser4.
8) A diferença entre im agem e suporte da imagem, com a autonega-
ção da última na primeira, é completada pela diferença entre imagem e

3 . Isto d ife re n c ia a “im a g e m ” d a p a n to m in a e d o s im b o lis m o d a d a n ç a . A d ife re n ç a é s e m e ­


lh a n te à q u e ex iste e n tre a e s c rita e o d is cu rs o . E m u m a a p re s e n ta ç ã o m ím ic a (c o m o n o fa ­
la r), o p ró p rio c o rp o d o a p re s e n ta d o r es tá e m a ç ã o , c o m o p o rta d o r d o s im b o lis m o , e o s im ­
b o lis m o es tá p re s o a o p ró p rio a to p a s s a g e iro . A im a g e m , n a m e d id a e m q u e a s s im se d e­
s e n ro la c o m o p ro c e s s o n o e s p a ç o e n o te m p o , q u e a p re s e n ta d o r e e s p e c ta d o r c o m p a r ti­
lh a m , p e rm a n e c e fu n d id a c o m a o rd e m c a u s a i c o m u m , o n d e as co isa s a c o n te c e m e p a s ­
s a m . C o m o a c o n te c im e n to rea l ela te m a d u ra ç ã o q u e lh e é a trib u íd a n e sse te m p o ú n ic o , e
d e p o is p a ssa . P o ré m p o d e s e r re p e tid a , e nisto ela o fe re c e su a p ró p ria id e n tid a d e e id é tic a à
u n ic id a d e o b s tin a d a d o a c o n te c e r real: m a s te m q u e ser re p e tid a n o d e c o rre r rea l p a ra d e
n o v o e s ta r aí, e só “é ” e n q u a n to é p ro d u z id a . F re n te a isto, a im a g e m ( c o m o a es crita fre n te
a o d is c u rs o ) é u m fe n ô m e n o m a is tra n s m itid o e m a is a b s tra to .
4 . P o d e , no e n ta n to , traí-la e m su a té c n ic a visív el (o to q u e d e p in c e l o u d o c in z e l), a s s im
c o m o u m a es crita re v e la a a ç ã o m o to ra d a q u e le q u e e s c re v e ; e n o s d o is c a so s o e fe ito
p o d e ser p ro p o s ita l, isto é, in te n c io n a d o ju n ta m e n te c o m o p ro p ó s ito d a a p re s e n ta ç ã o .
E n tã o , a lé m d a fu n ç ã o d e re p re s e n ta r, é a trib u íd a à im a g e m u m a fu n ç ã o d e e x p re s s a r, q u e
se s o b re p õ e à q u e la , isto é, ela é m a is d o q u e im a g e m . A fu n ç ã o d a im a g e m c o m o ta l é “o b ­
je tiv a ”, e q u a n d o se c o n s e rv a p u ra , ela p e rm a n e c e a a u to -e x p re s s ã o de q u e m a p ro d u z iu ,
a u to -e x p re s s ã o q u e in e v ita v e lm e n te a a c o m p a n h a , s e m p ro p ó s ito e p o r isso s e m c h a m a r
a te n ç ã o - p e rc e p tív e l a p e n a s a u m a a te n ç ã o e x e rc ita d a . E m fa s e s s u b je tiv is ta s d a c u ltu ra ,
a a u to -e x p re s s ã o d o a rtis ta p o d e se tr a n s fo rm a r e m o b je tiv o e c h a m a r a te n ç ã o p e la e s c o ­
lha c o n s c ie n te (c o m o na té c n ic a d o p in c e l dos p in to re s b a rro c o s ou d e V a n G o g h , d e u m a
es c rita e x tr e m a m e n te p e s s o a l), e c o m isto d e s lo c a r-s e d o in te re s s e re p re s e n ta tiv o p a rr o
in te re s s e e x p re s s iv o ; o p a p e l “d a im a g e m ” c o m o tal se m o d ific a .
objeto reproduzido. A artinil^r?^ / */ *• - ^ ^ ,
reproduzido. A articulaçao completa e tríplice: o substrato pode
u u je i o
ser considerado em si, a im agem em si, o objeto da im agem em si: a ima­
gem, ou a semelhança da im agem paira com o uma terceira entidade
ideal entre as duas outras entidades reais, ligando-as na maneira única
da representação. É esta distinção dupla, ou esta tríplice camada, que
torna possível à imagem aquela presença não-causal que a subtrai ao
acaso do acontecer real.

Em particular, a diferença entre im agem e suporte físico serve de


base para a possibilidade técnica da cópia e da reprodução na arte.
Quando uma pintura ou uma estátua é copiada exatamente, nós não te­
mos na cópia a im agem de uma im agem , mas sim a duplicação da
m esm a im agem . As muitas cópias de uma fotografia, ou de uma placa
de impressão em todos os exem plares da edição de um livro não são,
de qualquer modo, muitas im agens adicionais, mas sim uma im agem ,
um a reprodução apresentada tantas e tantas vezes, por mais diferentes
que sejam as peças individuais de papel, tinta e outras matérias, que
servem apenas para dar corpo à semelhança.
Por outro lado, a diferença entre imagem e objeto reproduzido serve
de base para que possam existir diferentes semelhanças, e com isto dife­
rentes imagens de um m esm o objeto - isto é, tantas quantos são os seus
aspectos de acordo com as variáveis da aparência visual em si (ver n. 6),
e mais uma vez tantas quantas são as possíveis transcrições destes as­
pectos, de acordo com as variáveis da seleção individual (ver n. 4) e da
variação (ver n. 5). Considerando apenas uma dimensão da multiplicida­
de, a da posição, em princípio pode- se fazer infinitas fotografias de uma
mesma pessoa - e de cada uma delas infinitas cópias.
üma terceira possibilidade baseia-se ainda sobre a questão da diferen­
ça ontológica. Não apenas um objeto pode ser representado em um nú­
mero indefinido de imagens, e sim, mais tipicamente ainda, uma imagem
pode representar um número indefinido de objetos. Uma imagem do pi-
nus syluestris, em uma obra de botânica, é uma representação não deste
ou daquele pinheiro, mas sim de todo e qualquer exemplar desta espécie
determinada. O antílope do desenho na pintura boxímane é qualquer antí­
lope que é lembrado, esperado, de que se possa falar com o “ um ” antílope;
as figuras dos caçadores são qualquer grupo boxímane do passado, pre­
sente ou futuro. A representação, por acontecer através da forma, é essen­
cialmente geral. Na imagem a generalidade torna-se sensível, inserida en­
tre a individualidade da coisa-imagem e a das coisas reproduzidas.

II - A percepção da semelhança

Se são estas as propriedades da imagem, que propriedades são re­


queridas para o fazer ou o apreender imagens? As duas coisas não dife­
rem na condição básica de sua possibilidade. Fazer uma im agem pressu­
põe a capacidade de perceber algo com o uma imagem; e perceber algu­
ma coisa com o imagem, e não apenas com o objeto, também significa
ter condições de fazê-lo. Esta última é uma afirmação de essência. Ela
não diz que aquele que aprecia um quadro de Rembrandt possa, só por
isso, produzir um quadro igual. Mas diz que, quem quer que seja capaz
de apreender uma representação de imagem com o tal, é a espécie de ser
de cuja natureza faz parte a capacidade representativa, independente­
mente da dotação especial, do efetivo exercício e do grau de saber alcan­
çado. Que espécie de ser é este?
A primeira exigência parece ser a de perceber a semelhança. Mas
logo nós temos que acrescentar: de percebê-la de determinada maneira.
Tanto o ser humano com o o pássaro (admitindo-se que o efeito se baseie
no fingir um determinado ser) percebem alguma semelhança com uma
figura humana. Mas no pássaro isto significa tomar o espantalho por um
ser humano. Ele ou é enganado, ou então não existe nenhuma relação.
Entre um e outro encontra-se o estado de indecisão, que precisa resol-
ver-se para um lado ou para o outro: é simplesmente uma questão de dis­
tinção sensorial. Não assim a diferença na apreensão do pássaro e do ser
humano: não é uma maior acuidade visual que livra o ser humano de
confundir a imagem com o original, nem de menor acuidade que o faz
aceitar com o semelhança uma coisa à qual o animal nega inteiramente
este reconhecimento5. Acuidade sensorial e capacidade de distinção visu­
al nada têm a ver com o assunto, üm a semelhança aumentada, para o ob­
servador humano, não transformaria apenas a imagem em uma imagem
melhor; uma semelhança diminuída não levaria o animal à experiência do
“apenas uma im agem ” : quando o engano se esvai, nada mais resta senão
molambos, varas e palha. Onde nós percebemos mera semelhança, o ani­
mal percebe ou um mesmo ser ou um ser diferente - mas não as duas coi­
sas em u m a , com o nós fazemos quando apreendemos a semelhança.
Semelhança, portanto, tem que ser apreendida com o “mera sem e­
lhança”, e isto envolve mais do que mera percepção. De fato, a imagem
não é função do grau de semelhança sensível, mas sim uma dimensão
conceituai em si, dentro da qual podem ocorrer todos os graus de sem e­
lhança. Mesmo o maior grau de semelhança faz a imagem permanecer
uma “mera im agem ” , e mesmo o menor grau a deixa ser uma imagem do
objeto em questão, enquanto for possível reconhecer a relação intenciona­
da. Qualquer que seja o grau, a imagem, através da relação de semelhan­

5 . O u n ã o te r ía m o s q u e d izer, n o ú ltim o c a s o , n ã o q u e o h o m e m se s a tis fa z m a is fa c il­


m e n te n o to c a n te à s e m e lh a n ç a , e s im q u e ele é m a is c a p a c ita d o p a ra v ê -la , m e s m o c o m
v e s tíg io s m a is fra c o s ? M a s e n tã o o p á s s a ro se ria m a is c a p a c ita d o p a ra a p e rc e p ç ã o n o
p r im e ir o c a s o , isto é, p a ra a s e m e lh a n ç a , n ã o p a ra a d ife re n ç a .
ça, é a im agem de alguma coisa, do objeto reproduzido, com o qual mes­
mo a mais perfeita semelhança jamais se confunde6. Portanto a equação
que serve de fundamento para a experiência da semelhança precisa ser
qualificada por uma distinção que não é perceptiva ela própria.

Esta distinção, com o concluímos, é dupla: a imagem precisa distin-


guir-se de seu suporte físico, e o objeto representado distinguir-se de am­
bos. Com esta dupla distinção, a semelhança da imagem pode ser perce­
bida com o “mera semelhança”. Através da semelhança o objeto percebi­
do diretamente é apreendido não com o ele mesmo, mas sim com o repre­
sentando um outro. Ele só se encontra aí para representar um outro, e
este outro não é mais do que representado, de modo que paradoxalmen­
te o membro intermediário, ou o eidos com o tal, passa a ser o objeto real
da apreensão.

O princípio atuante aqui do lado do sujeito é a separação intencional


de forma e matéria. É esta que possibilita a presença imagética do fisica­
mente ausente, juntamente com a auto-negação do fisicamente presen­
te. Encontramo-nos aqui diante de uma situação especificamente huma­
na, e da razão por que não esperamos que animais façam nem com pre­
endam imagens. O animal tem a ver com a coisa presente. Se esta for su­
ficientemente “co m o ” outra coisa, será uma coisa da mesma espécie. A
semelhança ajuda a reconhecer o objeto de acordo com sua espécie,
mas não é ela própria objeto de reconhecimento. O que é reconhecido
pelo animal é a coisa presente apenas com o “ esta coisa”, isto é, com o fa­
miliar em determinadas propriedades. Estas, destacadas do todo da per­
cepção pela memória, fazem aparecer suas associações anteriores, que
então entram na imagem da percepção com o expectativas, e depois de o
reconhecimento haver ocorrido elas formam parte da presença da coisa.
Só isto é que está presente ao animal, substituindo apenas a si mesmo,
embora perpassado por experiência passada. Só o que conta é a realida­
de, e a realidade nada sabe de representação. Em nossa busca pelas con­
dições da possibilidade de fazer imagens nós fom os levados, assim, da
capacidade de perceber a semelhança para a capacidade mais funda­
mental de separar o eidos da existência, ou a forma da matéria.

6 . N a tu r a lm e n te , o o b s e rv a d o r p o d e a lg u m a ve z e n g a n a r-s e e c o n fu n d ir a im a g e m c o m o
o b je to re a l. M a s isto s ig n ific a a p e n a s q u e n o m o m e n to e le d e ix o u d e a p lic a r a c a te g o r ia
d e im a g e m , n ã o q u e es ta te n h a p e rd id o o s e n tid o p a ra ele . E v ic e -v e rs a , p o d e a c o n te c e r
q u e a s e m e lh a n ç a , e m e s m o a in te n ç ã o d a s e m e lh a n ç a , d e ix e d e ser p e rc e b id a , e p o r isso
o o b je to d a p e rc e p ç ã o n ã o a p a re c e c o m o im a g e m : t a m b é m a q u i a c a te g o ria d e im a g e m
d e ix a d e m a n ife s ta r-s e , d e s ta ve z p o r fa lta d e s e m e lh a n ç a (c o m o a n te s p o r e x c e s s o ), e o
re s p e c tiv o o b je to é s im p le s m e n te to m a d o p o r e le m e s m o . T a m b é m isto n ã o s ig n ific a q u e
a d ife re n ç a e n tre v e íc u lo fís ico d a re p re s e n ta ç ã o e fu n ç ã o d e r e p re s e n ta ç ã o te n h a d e ix a ­
do d e s e r v á lid a .
III - Abstração e imagem na percepção visual

Para entender esta capacidade, precisamos primeiramente considerar


a maneira com o o próprio real é dado, isto é, precisamos com eçar com a
percepção dos sentidos. Eidos, isto é, “fenôm eno”, “aparência”, é objeto
dos sentidos, mas não é o objeto inteiro dos sentidos. Na percepção, o ob­
jeto exterior é apreendido não apenas com o algo que é “assim” , mas tam­
bém com o algo que está “aí”. Os dados qualitativos que o apresentam (as
“formas”, segundo Aristóteles) são experimentados com o oferecendo-se,
com o impondo-se à percepção, e nesta afluência eles compartilham da
presença contagiante das coisas. Percepção, de acordo com sua com posi­
ção interna, é o aperceber-se desta presença, isto, a experiência da realida­
de do objeto com o coexistente com igo e aqui, e a partir de si mesma deter­
minando o estado de meus sentidos. Este elemento do encontro - o auto-
comunicar-se do objeto à minha receptividade e seu subsistir sobre si mes­
mo, apesar de encontrar-se em meu conceito de percepção - é uma parte
da evidência interna acrescentada ao conteúdo eidético da percepção, na
medida em que esta deve ser experiência do real.

Mas este paradoxo da percepção sensorial consiste em que a afetivi-


dade sentida do seu oferecer-se, que é necessária para a experiência da
realidade do real na medida em que atesta esta realidade na realidade
do próprio ser-afetado, precisa em parte desaparecer novamente, para
permitir a apreensão de sua o b jetiv id a d e, de seu auto-existir separado.
O momento do encontro é mantido em equilíbrio pelo momento da abs­
tração, sem a qual a sensação não poderia erguer-se ao nível da percep­
ção. Aqui é preciso mencionar primeiro, em um sentido um pouco ampli­
ado da palavra, a “abstração” , que se encontra no ignorar o estado da
própria excitação sensorial, por conseguinte no mero fato de se perceber
o objeto em lugar da própria afecção orgânica, üm a espécie de desenga-
jamento da causalidade do encontro cria a liberdade neutra para o dei-
xar-aparecer o outro com o ele mesmo. (A organização de nossos senti­
dos garante de antemão este desengajamento.) Neste aparecer, a base
afetiva é suspensa, e seu resultado neutralizado.

Então, em um sentido mais familiar, a p ercep ção “ abstrai” conti­


nuamente do conteúdo direto dos sentidos, ao conferir ao objeto sua
identidade, para além da mudança de seus aspectos. Nós não vem os
uma vez este, outra vez aquele com plexo de dados, mas através dos dois
e por meio dos dois nós vem os a mesma coisa. Esta abstração continua­
da das diferenças das sensações sucessivas, isto é, do material dos sen­
tidos, torna possível o que Kant chamou de síntese da recognição.

Entre todos os sentidos, a visão, no seu funcionamento normal, reali­


za mais perfeitamente este duplo efeito da “abstração” : o desligar o obje­
to fechado-em-si do estado da afecção sensitiva, e o preservar sua identi­
dade e unidade sobre toda a extensão da possível transformação de sua
aparência. Cada um deles já é em si uma variedade sintético-simultânea.
O reconhecer um objeto com o já conhecido, ou com o igual a um já co­
nhecido anteriormente, não exige, por isso, que as sensações presentes
dupliquem sensações passadas, que estas sejam lembradas por ocasião
desta duplicação e que sejam encontradas congruentes com as sensa­
ções atuais. Neste caso, o m esm o com plexo de dados visuais simultâ­
neos, e a mesma seqüência destes aspectos sintéticos, teria que repe­
tir-se, para que surgisse a recognição do m esm o ou do igual, uma condi­
ção que só em raros casos haveria de ocorrer. O que é equiparado nestes
atos de recognição não são conglomerados semelhantes de dados sen-
soriais, e sim fases variantes na constante série de transformações de
uma “figura” ou configuração. A fase sensorial disponível no momento
pode, por casualidade, identificar-se com uma experimentada antes,
mas isto seria antes a exceção que a regra. A mesmidade da configura­
ção com o tal é percebida através de toda a extensão de suas possíveis
transformações óticas - e esta série multidimensional, que tem suas leis
formais e qualitativas, apresenta ela própria uma figura de ordem mais
elevada7. A série de variações é contínua, mas a recognição ao longo
dela, caso haja suficiente familiaridade com sua lei, pode ocorrer descon-
tinuamente, isto é, na experiência real a série não precisa ser percorrida
sem lacunas.

De tudo isto segue-se uma observação importante: dentro desta am­


pla série de transformações, os “aspectos” eventualmente dados não re­
presentam aspectos isolados, mas cada um funciona com o uma espécie
de “im agem ” - uma das possíveis imagens - deste objeto. Nesta proprie­
dade eles permitem a recognição do mesm o objeto, ou da mesma espé­
cie de objeto: permitem-na, portanto, por uma semelhança que inclui
dessemelhança. Pois não apenas são semelhantes-dessemelhantes entre
si, mas a forma intencionada do objeto não coincide com nenhum deles,
nem também com a totalidade da série. De acordo com isto, cada vista
representa igualmente o objeto de uma maneira “simbólica”, embora
com o símbolo uma possa ser superior à outra e gozar da preferência
para representar o objeto (por exemplo, por ser mais familiar, ou mais in­
formativa). - Mas nós já encontramos estes mesmos caracteres na análi­

7 . C o m o fic o u d e m o n s tra d o a c im a (n . 6 ), a “fig u r a ” é d e fa to u m g r u p o in te iro d e sé ries


d e v a ria ç õ e s q u e p o d e m fu n c io n a r is o la d a m e n te , u m a ao la d o d a o u tra e d e p e n d e n d o d a
m u d a n ç a : v a ria ç õ e s d e ta m a n h o , la d o , d e fo rm a ç ã o p e rs p e c tiv a , ilu m in a ç ã o e tc . c o n s ti­
tu e m c a d a u m a sua p ró p ria s é rie c o n tin u a , c a d a u m a d e la s c o m o u m d o s a trib u to s d o es­
q u e m a v is u a l c o m p le to .
se da ontologia da imagem! Noutras palavras: abstração, representação,
simbolismo - algo da função da im agem - já é inerente à visão, com o o
mais integrativo de todos os sentidos. Em certo grau isto já pode ser atri­
buído aos animais superiores.

IV - Liberdade eidética da imaginação e da imagem

Qual, então, o passo dado pela capacidade de im agem no ser huma­


no quando ele empreende traduzir um aspecto visual para uma sem e­
lhança material? Nós vem os de imediato que neste passo é alcançado
um novo nível de mediatez, além da mediatez própria do reconhecimen­
to visual. A imagem desprende-se do objeto, isto é, a presença do eidos
torna-se independente da presença da coisa. A visão já continha em si
um retrair-se ao assalto do ambiente, garantindo a liberdade da visão à
distância8. Quando aparência é apreendida co m o aparência, diferente da
realidade, nós nos encontramos diante de um recuo de segunda ordem,
e ao dispormos com liberdade de sua presença, ela é interpolada entre o
eu e o real, cuja presença não depende de nós.

Este livre dispor é alcançado primeiramente no exercício interior da


capacidade da imaginação, pela qual - enquanto sabemos - a memória
humana difere da memória animal. Esta está ligada à sensação atual. Ela
pode atuar, por exemplo, por ocasião de uma dada percepção em que
uma percepção anterior é reconhecida com o sendo “familiar” ou “conhe­
cida” , a experiência atual estando impregnada desta qualidade. Ou, em
vez de ocorrer a repetição, a memória pode ser evocada pelo desejo, o
agir levando projetivamente à repetição desejada (por exemplo, para o
lugar “recordado” da ração de ontem), onde então a “lembrança por fa­
miliaridade” acompanha e confirma o progresso bem-sucedido da ação.
Mas nada evidencia que esta espécie de lembrança tenha seus objetos
imaginativamente presentes, e tudo fala contra a suposição de que -
m esm o se for este o caso - o sujeito possa dispor desta presença para
poder trazê-la e deixá-la ir a seu bel-prazer. A evocação do passado é g o ­
vernada pela necessidade ou pela percepção atual. Mas não se pode di­
zer com segurança se esta é imaginada com o “ passada” ou se, pelo con­
trário, ela considera o presente com o um “saber” o que agora pode ser
esperado, ou o que deve ser feito. Seja com o for, a evocação não parte
do sujeito mas sim das circunstâncias que favorecem o sujeito. A m em ó­
ria humana transcende esta recordação pela capacidade que a imagina­

8 . P a ra u m a a n á lis e m a is e x te n s a d a v is ã o e d a fu n ç ã o d e “im a g e m ” q u e lh e é in e re n te ,
v e r a c im a , c a p ítu lo 8.
ção possui de reproduzir livremente, de ter sob seu domínio as imagens
das coisas. Que também possa mudá-las, segue-se quase que necessa­
riamente de as ter separadas da sensação atual, e com isto da efetiva
obstinação do ser próprio do objeto. A imaginação separa o eidos lem­
brado do encontro individual ocorrido, desta forma libertando sua posse
dos acasos de espaço e tempo. A liberdade assim alcançada - de ponde­
rar as coisas na imaginação - é liberdade ao mesmo tempo da distância
e do domínio.

A forma recordada pode então ser traduzida pela imaginação interior


em uma im agem exterior, que por sua vez é objeto da percepção: porém
percepção não do objeto original, e sim de sua representação. É lem­
brança exteriorizada, e não repetição da experiência em si. Até certo pon­
to isto torna a experiência supérflua, ao tornar disponível algo de seu
conteúdo essencial, sem que ela esteja presente. Se a im agem é formada
diretamente de acordo com a natureza (provavelm ente uma fase mais
tardia na história da im agem ), então a lembrança é por assim dizer ante­
cipada, e antecipadamente lhe é dado um modelo duradouro para a re­
novação repetitiva. Exposta assim para fora, a imagem se opõe mais efi­
cazmente ao tempo do que em sua precária preservação interior. O que
é conquistado ao fluxo das coisas, foi confiado aqui ao fluxo do eu. N ova­
mente transferida para fora, ela permanece em si mesma, em sua pre­
sença independente das disposições e dos estímulos que ajudam a deter­
minar o trabalho da memória.

Na representação exterior, a imagem, além disto, tornou- se mediata,


posse comum de todos os que a contemplam. É uma objetivação da per­
cepção individual, comparável à que se realiza na descrição verbal.
Com o esta, ela serve à comunicação, mas ao mesm o tem po favorece a
própria percepção, ou o saber. Pois no esforço de reproduzir parte por
parte o que no aparecer é simultâneo, a visão, do m esm o modo que no
processo de descrever, é forçada a separar e relacionar o que antes en­
contrava-se unido. O artista vê mais do que o não-artista - não por ter
uma visão melhor, mas sim porque faz a obra do artista, isto é, porque re­
faz as coisas que vê: e o que alguém vê, isto ele conhece e conheceu.
Com o recriador das coisas “em sua im agem ” , o h o m o p ic to r submete-se
à medida da verdade, üma im agem pode ser mais ou menos verdadeira,
isto é, mais ou menos fiel ao original. O propósito de reproduzir uma coi­
sa reconhece esta coisa com o ela é, e aceita o veredicto de seu ser so­
bre a adequação do tributo im agético. A adequação da im agem à coisa
(a d a e q u a tio im a gin is ad re m ), que antecede a adequação do intelecto
à coisa (a d a equ a tio in tellectus ad rem ), é a primeira forma da verdade
teórica - precursora da verdade descritiva verbal, que por sua vez é pre­
cursora da verdade científica. (Ver apêndice a este capítulo.)
S. It ya*. ' *r ' í. * ^ 'it v - 1 m\

Mas o recriador de coisas é potencialmente também o criador de coi­


sas novas, o segundo poder não sendo diferente do primeiro. A liberdade
que escolheu reproduzir uma semelhança pode, da mesma maneira,
afastar-se dela. O primeiro propósito esboçado abre aquela dimensão de
liberdade, para a qual a fidelidade ao original, ou de maneira geral a um
modelo, é apenas uma questão de decisão: esta dimensão transcende a
realidade atual com o um todo, oferecendo-lhe um cam po de infinita vari­
ação, com o o reino do p os s ív e l, que pode tornar-se verdadeiro pela esco­
lha do ser humano. A mesma capacidade é guarda do verdadeiro e poder
do novo.

O agir im agético do ser humano testemunha mais outra liberdade.


Imagens, afinal de contas, precisam ser produzidas, não apenas concebi­
das. For isso sua existência exterior, com o resultado da atividade huma­
na, também manifesta um aspecto físico do poder que atua na capacida­
de da imagem: o poder que o ser humano exerce sobre o seu corpo. Pois
o poder interior sobre o e/dos, com toda sua liberdade de projeção espiri­
tual, não se tornaria atual se não possuísse também o poder de dirigir o
corpo no ato da execução. Só assim a idéia prévia ( Vor-stellung) pode
avançar para a representação (D a r-stellu n g ), mas a representação pro­
vém exatamente da idéia, e a liberdade motora aqui acionada repete
mais uma vez a liberdade imaginativa: a transição da idéia para a repre­
sentação, e mais uma vez o deixar-se-conduzir desta última, são tão li­
vres quanto o foi a própria idéia. O exemplo mais comum desta “tradu­
ção” de um padrão ou esquema eidético em movimento é a escrita; ou­
tro é a dança (segundo uma coreografia prescrita); e de maneira geral o
uso da mão evidencia a tradução motora da forma imaginada, em seu al­
cance mais amplo, com o condição para toda im agem humana, portanto
também para toda a técnica.

O que nós temos aqui à nossa frente é uma situação transanimal,


uma situação humana única: o controle eidético da capacidade de m ovi­
mento, isto é, da atividade muscular, regido não por esquemas fixos de
estímulo e reação, mas sim por uma forma livremente escolhida, interior­
mente imaginada e propositalmente projetada. Desta forma, o controle
eidético da capacidade de movimento, com sua liberdade da execução
exterior, com p leta o controle eidético da im agin ação, com sua liber­
dade de projeção interior. Sem a última não existiria nenhuma capacida­
de racional, mas sem a primeira sua posse não teria valor, porque não
seria eficaz. As duas juntas possibilitam a liberdade do ser humano.
H om o p ic to r , expressando as duas evidências em uma evidência ú nica
visível e indivisível, representa o ponto em que o h o m o fa ber e o h o m o
sapiens se unem - ou mesmo onde eles se com provam com o um e o
mesm o ser humano.
V - A universalidade do nome e da imagem

Voltemos mais uma vez para o lado espiritual. A Bíblia conta (Gn
2,19) que Deus criou os animais do campo e os pássaros do céu, mas
que entregou a Adão a tarefa de dar- lhes nome. üma h agadah a esta
passagem (Genesis Rabba XVII) diz que Deus apreciou mais a sabedoria
de Adão que a dos anjos: ao dar um nome a todas as criaturas, a si pró­
prio e até m esm o a Deus, Adão teria feito o que os anjos não consegui­
ram fazer. O dar nome às coisas é visto aqui com o o primeiro ato do ser
humano recém-criado, e com o ato eminentemente humano. É um passo
para além da criação. Aquele que deu este passo, com ele prova sua su­
perioridade sobre as outras criaturas e anuncia seu domínio futuro sobre
a natureza. A o dar um nome a “cada ser vivente” criado por Deus, o ser
humano criou os nomes genéricos para a multiplicidade a que cada um
deles haveria de multiplicar-se.

A o tornar-se desta maneira universal, o nome preserva a ordem ar-


quetípica da criação face à sua infinita repetição no individual: seu em ­
prego, em cada caso isolado, renova o ato original da criação em seu as­
pecto formal. Desta forma a duplicação simbólica do mundo por meio
dos nomes é ao m esm o tem po uma ordenação do mundo de acordo
com seus modelos genéricos. Cada cavalo é o cavalo original, cada cão,
o cão original.

A universalidade do nome é a universalidade da imagem. O caçador


pré-histórico desenhou não este ou aquele búfalo, mas sim “o ” búfalo em si
- todo búfalo possível estava ali invocado, antecipado, lembrado. O dese­
nhar a imagem é análogo ao chamar pelo nome, ou então é a forma
não-abreviada disto, já que em sua presença sensível ele expressa aquela
imagem interior de que o sinal fonético é a abreviatura, e que só por sua uni­
versalidade pode referir-se aos muitos indivíduos. O fazer imagens repete
cada vez o ato criador que se oculta no resíduo do nome: o refazer simbólico
do mundo. Demonstra o que se encontra inquestionavelmente pressuposto
no emprego do nome: a disponibilidade do eidos para além da coisa indivi­
dual, para a apreensão, a imaginação e a linguagem humanas.

VI - Resultado do experimento heurístico

Assim, pois, nossos pesquisadores, ao depararem-se com representa­


ções de imagens, sejam elas perfeitas ou pobres, podem estar certos de
haver descoberto mais do que criaturas com uma certa peculiaridade de
conduta ( “espécie X com hábitos a, b, c , ..., entre as quais se encontra a de
‘fazer imagens’ ”). Nos produtores dessas semelhanças eles podem estar
certos de haver encontrado seres possuidores da liberdade espiritual e cor­
poral que nós chamamos de humana; que também deram nomes às coi­
sas, isto é, que possuem uma linguagem. Podem ficar certos de que existe
possibilidade de comunicação com eles, que em algum momento a abs­
tração que se manifesta naquelas semelhanças pode avançar para a abs­
tração da forma geométrica e do conceito racional; e que o controle físico
demonstrado em sua produção, em conjunto com aquela abstração, pode
em algum momento levar à tecnologia. A realidade destes desenvolvimen­
tos é imprevisível, dependentes com o eles são das casualidades da histó­
ria, mas sua potencialidade é dada com a espécie de seres da qual a ativi­
dade da imagem é um sinal preliminar e inconfundível.

Encontrar semelhanças artificiais é, pois, a experiência heurística


que nós procuramos, e em suas implicações internas este critério exter­
no aponta o que constitui a “diferença” do ser humano. Observem os que
o critério não exige razão, mas satisfaz-se com a potencialidade da razão
(com o com a potencialidade da geom etria, etc.). A potencialidade ba­
seia-se em alguma coisa que não é razão ela própria, e que talvez jamais
avance até lá. Mas se o fizer, há de ser um progresso dentro do nível fun­
damentado no “algo” elementar que esteve atuante nas mais antigas ten­
tativas de representação. O estágio do ser humano é o estágio das p oss i­
bilid a d es, que são indicadas (não definidas, e certamente também não
garantidas) pela capacidade da imagem: o estágio de uma m edia tez
não-animal da relação com o objeto e de uma distância da realidade, a
um só tempo sustentada e superada pela mediatez. A existência de ima­
gens, que mostra a forma libertada do fato concreto, atesta este estágio,
e em sua ilimitada promessa é suficiente com o evidência de liberdade
humana. A especulação mais antiga era mais exigente em relação ao
que poderia ser um testemunho conclusivo para o h o m o sapierts: para o
século 18 exigia-se nada menos que figuras ilustrando teoremas geo m é­
tricos. Este é certamente um critério infalível, mas significa também exi­
gir demais. Onde ficariam os homens da floresta? O critério da rep rod u ­
ção sensível tentada (m esm o que não bem-sucedida) é mais modesto,
porém mais básico e mais amplo. E é um atestado perfeitamente válido
da liberdade transanimal de seus produtores. Esta liberdade, tanto no
sentido teórico com o no prático, da qual a razão é um desenvolvimento
específico, é o que distingue o ser humano. Enxergar sua característica
no mais tosco desenho de animais assim com o na figura do Teorem a de
Pitágoras, não significa rebaixar sua natureza. Pois o fosso entre a rela­
ção do animal com o mundo e a mais primitiva tentativa de uma repre­
sentação é infinitamente mais profundo do que entre esta última e qual­
quer construção geométrica. É um fosso metafísico, em com paração
com a qual o outro é apenas uma diferença de grau.
Apêndice - Da origem da experiência da verdade

No capítulo anterior relacionou-se a representação em im agem com


a verdade (sob a forma da fidelidade da representação). Com isto, o fazer
imagens foi incluído na classe mais ampla do empenho humano pela
verdade. Efetivamente, esta é uma das formas mais primitivas em que
este empenho é tematizado, mas ele não é o lugar original para a própria
experiência da verdade. Este lugar original é encontrado em um nível
mais primitivo, cuja escolha é menos livre. Para completar o tratamento
da esfera imagética, precisamos dizer alguma coisa sobre esse lugar pri­
mitivo e sobre a relação que tem com ele a busca da verdade na imagem.

1) Para ilustrar o sentido em que podem os falar de experiência da


verdade, podem os considerar a situação em que nos sentimos impeli­
dos a exclamar: “D e fa to isto é ass/m!” - uma exclam ação que tacita-
mente, se não m esm o explicitamente, contém em si própria seu prolon­
gam ento: “ e não assim\” A ilustração pretende patentear o caráter ao
m esm o tem po enfático e antitético da experiência da verdade, isto é, o
fato de ela destacar-se co n tra um fundo de erro e falsidade - este pró­
prio fundo sendo uma “ experiência” que só se realiza no ato de ser dei­
xado de lado pelo seu contrário. Em resumo, querem os mostrar que a
experiência da verdade, com o simultâneo desm ascaram ento da inver­
dade, inclui em si m esm a um elem ento de n eg a çã o. Segue-se daí uma
nova tese, que a capacidade para a verdade pressupõe a capacidade
para a negação, e que, de acordo com isto, só um ser que seja capaz de
manter a negatividade é capaz de dizer “ não” . E com o a capacidade da
n egação é uma parte da liberdade, ou m esm o um elem ento que a defi­
ne, a tese diz também que a liberdade é um pré-requisito da verdade, e
que a própria experiência da verdade representa o atestado e o exercí­
cio de uma certa espécie de liberdade.

2) Falsidade, em sua forma mais simples, nos vem ao encontro em


ocorrências de duas espécies: nos erros de percepção, e nas mentiras das
pessoas (deixo de fora aqui, por já não ser uma fonte “simples” , os erros
de conclusão). Em ambos os casos nós somos enganados - no primeiro
pela aparência das coisas, no segundo por palavras a respeito das coisas.
Nos dois casos, portanto, a falsidade tem o caráter de e n g a n o , com a im­
portante distinção entre o enganoso natural e o enganoso proposital: um
que parte do próprio objeto do engano, o outro através de um intermediá­
rio entre mim e o objeto - um por sua presença, o outro em sua ausência.
Mas em ambos os casos o engano parte de algo fora de mim algo que, por
assim dizer, me espreita: eu sou a vítima e não o agente, sou antes seduzi­
do ao erro do que aquele que com ete o erro.
Daí segue-se, então, uma segunda tese, a saber, que a negação, que
por primeiro torna-se atuante na experiência da verdade, possui mais ca­
ráter defensivo que ofensivo: ela deseja aparar um golpe do mundo, não
forçar a reserva do mundo - responde a uma modificação, não à mera re­
tenção, a uma ocasional mentira e não ao constante esconder-se das coi­
sas. Se isto for correto, então o acontecer da verdade tem primeiramente
o caráter do des-enganar-se (de deixar de enganar a mim m esm o), e só
muito mais tarde também o de des-cobrir ou des-ocultar (das coisas es­
condidas: esta última é a fórmula de Heidegger para o sentido original da
verdade). É a ilusão, e não a intransparência, que é a primeira pedra de
tropeço; quimera, não ignorância, o primeiro objeto do “não” na desco­
berta. Enganar é um ato determinado e positivo. O que faz o mentiroso
não é o silêncio mas sim o falar: mais do que esconder a verdade, ele co­
loca outra coisa em seu lugar e assim no-la apresenta, levando-nos a
acreditar nela. De maneira semelhante são a força de sugestão, as sem e­
lhanças eloqüentes, o múltiplo pretextar das coisas assim co m o são p e r­
cebidas, que nos fazem cair em erro, muito antes que seu silêncio e nos­
sa curiosidade nos atormentem: também nos “falam ” em muitas línguas,
e sempre de novo são apanhadas no ato de enganar-nos, pelo fato de
apresentarem-se com o o que elas não são.

Sua “taciturnidade” , em um sentido totalmente diferente, com o um


traço essencial e universal, e o segredo do ser em si, que se esconde por
trás de todas as suas manifestações, das “verdadeiras” não menos que
das “falsas” , são descobertos em um nível mais elevado da estranheza e
da curiosidade, no qual os fenômenos - já garantidos em seu próprio pla­
no, e classificados de acordo com a diferença entre enganosos e autênti­
cos - já não exigem que os corrijamos c o m o fenômenos, mas sim que,
penetrando “ atrás” deles, cheguemos a uma verdade especificamente
distinta da sua. Neste caso, a verdade, em sua qualidade de oculta p o r
sua p ró p ria natureza, confronta-se com o fenômeno, em sua qualidade
de instância que por sua própria natureza a esconde. A ingênua distinção
anterior transmite a esta diferença posterior e universal seu estilo de ne­
gação aberta, um estilo que se localiza na primitiva experiência traumáti­
ca da verdade, e que talvez não seja o mais adequado neste novo campo.

3) Das duas situações em que a primitiva experiência da verdade


pode ocorrer - manifestação enganosa para os sentidos, engano propo­
sital pela utilização de símbolos -, a primeira, com o um fato direto do
“ver” , é manifestamente mais elementar e “anterior” do que a segunda,
menos imediata. Segue-se daí outro princípio, que o lugar original de fal­
sidade e verdade é a p ercep çã o, e que por isso, se a liberdade de nega­
ção é uma condição para a experiência da verdade (princípio 1), ela deve
ser um traço particular que garante esta liberdade da percepção h u m a ­
na, e que a capacita para a experiência de falso e verdadeiro. Com isto a
essência da percepção sensorial humana e sua diferença em relação à
meramente animal, passa a ser parte integrante da pesquisa sobre a ori­
gem da experiência da verdade9.

4) Desde que primeiramente educada nos encontros involuntários


da percepção, a “ experiência da verdade” pode libertar-se do aleatório
das situações para a reação corretiva, e em vez de deixar-se levar por
uma falsa semelhança, criar ela mesma seu próprio objeto em semelhan­
ças verdadeiras propositalmente produzidas, nas quais o conteúdo esco­
lhido da percepção é preservado para uma constante recognição afirma­
tiva. Isto acontece na representação da imagem (objeto da pesquisa an­
terior), onde a com ponente afirmativa da experiência da verdade passa a
ocupar o primeiro plano. A com ponente da negação crítica continua ain­
da a viver nos atos de escolha e de rejeição que acompanham o processo
de produção, mas a da afirmação e da apropriação elevada impulsiona o
processo desde o início, insistindo em sua própria satisfação. Segue-se
daí um quarto princípio, a saber, que o fazer imagens do ser humano pri­
mitivo é uma forma primordial do empenho e esforço ativo pela verdade,
que por sua proximidade com o terreno nativo da percepção antecede à
do pensamento na “teoria” , e que a capacidade que é posta em ação
aqui, de contemplar a forma abstraindo da efetiva presença, é a primeira
expressão da liberdade positiva, que precisa completar a negativa para
que a experiência da verdade chegue à sua estatura plena.

5) Por último, em vez de se ficar parado na percepção, isto é, no que é


dado, e de submeter-se a ela, tanto a capacidade da imagem com o a liber­
dade da negação podem entrar em um acordo com a vontade ou com o
desejo, e/ou substituir a evidência da percepção pelas imagens daquilo
que se gostaria de ter (o pensar do desejo), ou então opor-se a ela com
imagens daquilo que se pretende transformar (o pensar do planejamen­
to). Portanto a força da negação e da imaginação também pode servir à in­
verdade, quando então só uma segunda negação restaura a verdade no-

9 . D e v e fic a r c la ro q u e e s ta m o s tr a ta n d o d a s o rig e n s d a e x p e riê n c ia d a v e r d a d e , n ã o d a


e x p e riê n c ia d o conhecimento: a ú ltim a é o fe n ô m e n o m a is a m p lo , u m a v e z q u e n e m
to d o c o n h e c im e n to te m a v e r c o m v e r d a d e , e m b o r a to d a v e rd a d e e s te ja c o n tid a n o c o ­
n h e c im e n to . P or e x e m p lo , a p re n d e r (o u s e ja , a d q u irir o c o n h e c im e n to ) c o m o se fa z e m
c o is a s - c o m o se fa z u m v a s o d e b a rro , c o m o se a c e n d e fo g o , c o m o se c o n s tró i u m a c a s a
- n ã o é o m e s m o q u e d e s c o b rir o q u e as c o is a s são. (C o m p a r e -s e t a m b é m c o m o “s a b e r
c o m p o r ta r -s e ”.) E n tre es ta s d u a s e s p é c ie s d e s a b e r, a q u e se o c u p a c o m o fa z e r e a q u e
se o c u p a c o m a v e rd a d e , e x is te m in te re s s a n te s re la ç õ e s , a lg u m a s d a s q u a is s e rã o tr a ta ­
d a s n o c a p ítu lo 1 0 .
vãmente, ou então à inovação, onde o agir é convocado para ajudar a
transformar verdade potencial em verdade atual. Embora estes exercícios
voluntaristas da liberdade de negar e afirmar, que nos ocupam no contex­
to da experiência da verdade, sejam de máxima importância nos assuntos
humanos - fonte tanto da ilusão crente quanto da utopia criadora eles
são mencionados aqui para mostrar os horizontes mais vastos que se en­
contram por trás da limitação de nosso tema. No que segue, queremos
analisar um pouco mais de perto o “lugar original” a que nos referimos.

A possibilidade do erro surge com a percepção mais elevada com o


tal (portanto antes do nível humano), e com ela também a possibilidade
da correção do erro. Um animal pode tomar falsamente uma coisa por
outra, e depois perceber o seu erro. Ele também pode ficar incerto sobre
a verdadeira natureza de uma coisa percebida que permite várias inter­
pretações, e terminar chegando à certeza do que esta coisa realmente é.
Mas nenhum destes casos levanta para o animal a questão da verdade
ou falsidade. Existe a indecisão da reação, ou a substituição de uma res­
posta por outra, que agora é considerada com o a adequada, depois que
uma sensação foi substituída por outra, que agora domina a situação. A
distinção entre verdade e falsidade, e com isto a idéia do con h ecim en ­
to, surge unicamente onde a percepção “errada” não é simplesmente
substituída pela “ correta” , mas é fixad a para contrapor-se à percepção
correta com o falsa; ou, de uma forma mais geral, onde duas idéias es­
tão à disposição para serem com paradas entre si, e uma delas passa a
ser a medida para o julgam ento da outra. O que há pouco eu chamei de
“ correção do erro” em animais, isto é, a revisão de uma sensação à luz
de outra posterior, apenas se liberta da impressão anterior, mas não a
conserva na presença da nova para verificar onde ela desviou-se da ver­
dade. Para que isto aconteça, o passado tem que ficar disponível na m a­
neira peculiar e descom prom etida, garantida não pela memória em si,
mas som ente pela separação entre aparência e realidade, em associa­
ção com a memória: então nós poderem os comparar, sem que precise­
mos estar alternadamente sob o domínio das presenças fenomenais, na
medida em que uma é substituída pela outra no cam po visual de nossa
mente. Disto faz parte a situação da im agem . Onde a semelhança é
considerada, é possível colocar-se a questão da concordância e diferen­
ça, o qu e )eva à pergunta: é esta uma im agem verdadeira, e em que as­
pecto não o é? Várias condições precisam ser satisfeitas para que esta
pergunta possa ser levantada e respondida; e a primeira condição - ne­
cessária para nos imunizarmos contra a força de pressão do mero dado -
é a distinção entre pretenso e autêntico. Esta distinção se nos impõe na
experiência da falsidade.
G "l

É evidente que a percepção, sobretudo o ver, cria em nós esta expe­


riência. Uma visão é considerada com o sendo a visão de certa coisa, isto
é, uma coisa é considerada c o m o sendo outra. Aquilo que uma coisa é
considerada encontra-se diante de mim; aquilo pelo que ela é considera­
da encontra-se em mim a partir de um conhecimento anterior. Pode-se
argumentar que neste reconhecimento perceptivo de uma coisa está
oculto um j u í z o , e esta era efetivamente a opinião de Descartes. Mas isto
implica uma visão atomística da percepção, segundo a qual ela consisti­
ria primeiro de “idéias” isoladas e neutras dos sentidos, cuja afirmação,
negação e relação somente seriam acrescentadas em atos secundários.
Segundo esta opinião, pode existir percepção sem uma síntese dos da­
dos em totalidades, sem a com pletação dos dados pelo que não é dado,
e sem a contribuição da memória. Se assim fosse, então o tomar um
dado sensível por um objeto já seria um acréscimo exterior ao percebido
primariamente, e isto poderia então, com uma pequena extensão da ter­
minologia, ser chamado de juízo implícito. Neste caso nós teríamos natu­
ralmente que dizer que em toda sua vida perceptiva os animais estariam
constantemente emitindo juízos, e que só a possibilidade da expressão
verbal distinguiria o “julgam ento” humano do animal. Porém, mesmo
abstraindo da desvantagem semântica de tal rarefação de significado do
nosso conceito, a idéia de uma percepção que n ão refere no m esm o ato
o conteúdo presente a um cam po mais amplo da experiência é pura abs­
tração. Percepção significa admitir o conteúdo dos sentidos em um todo
da experiência, onde ele apresenta propriedades cognitivas, com o co­
nhecido, comum, indeterminado, enigmático, incomum. Mesmo a expe­
riência do simplesmente novo, sem precedentes, que deixa aquele que
percebe inteiramente confuso sobre o q ue ele tem à sua frente, só é pos­
sível sobre o pano de fundo do costumeiro, onde sua percepção sente-se
em casa. Assim a percepção em si, tal com o se constitui em cada caso
isolado sobre o pano de fundo da experiência passada, aponta ao mes­
mo tempo para a frente, para o futuro ser-válido ou não-ser-válido: a per­
cepção seguinte pode confirmá-la, ampliá-la, corrigi-la ou eliminá- la (em ­
bora não possa, evidentemente, eliminar a própria sensação anterior). A
natureza essencialmente fragmentária de toda “visão” especial, impossí­
vel de se basear unicamente em si, exige constante integração no exercí­
cio da própria capacidade visual, e esta integração é realizada à luz da ex­
periência passada e por meio daquelas funções de totalidade, com o a
psicologia gestáltica já mostrou estarem em ação na sensação primária.
Atribuir a tudo isto o nome de “juízo” serve apenas para confundir a situa­
ção. Mas está correto dizer que a situação inclui em si as possibilidades
da confirmação e da decepção, desta maneira estando relacionada com
a questão da verdade e falsidade.
9, í r t ^ r ^ ú : : > ui* .'..lagíU'*

Das duas alternativas possíveis acima mencionadas, a da decep ção


é a mais importante para o surgimento do problema da verdade. Confir­
m ação, por via de regra, ocorre sem ser notada, com o aquilo que con­
vém , só sendo experimentada especificam ente depois de uma dúvida
preliminar, isto é, quando a primeira percepção deixou o sujeito na in­
certeza, embora já inclinado na direção correta. A decepção de uma an­
tecipação errada é de longe a experiência mais penetrante, e epistemo-
logicam ente mais importante. O animal ali encolhido se revela com o
sendo uma moita. Foi um juízo, aqui, corrigido por outro juízo? Só seria
este o caso se a primeira consideração tivesse sido questão de uma des­
coberta consciente com base em evidência insuficiente. Mas se isto me
foi im posto com a percepção imediata, sem distinguir-se desta, então
nós deveríam os falar de uma aparência enganosa, e não de um juízo er­
rado: não fui eu que com eti um erro, mas foi o objeto que me enganou.
O fato de o mundo nos poder pregar peças, ou melhor, pregar peças
aos nossos sentidos e aos padrões adquiridos por nossa experiência
perceptiva, é a base pré-lógica, pré-verbal, pré- simbólica para o fen ô­
m eno da verdade. “ Na verdade não era um bicho, na verdade é uma
m oita” : só neste opor-se à falsidade desmascarada é que a idéia da ver­
dade pode surgir, e sempre que o faz, a “verdade” é em primeiro lugar
um caráter não em mim m esm o (c o m o o seria com o verdade de juízo),
mas sim no mundo com que me confronto. O mundo foi mentiroso
quando o caminhante sedento descobre-que a fonte que ele viu é salo­
bra, quando o chão aparentemente firme revela-se debaixo de seus pés
com o um atoleiro, quando o ouro se manifesta com o mineral barato.
Em todos estes casos, coisas pareceram ser coisas que não são, fo ­
ram percebidas com o estas, para mais tarde serem desm ascaradas.
Ser verdadeiro, de acordo com isto, significa antes de tudo ser autênti­
co e confiável, não fingido. A “verdadeira” fonte é aquela que não de­
cepciona. Mas a própria autenticidade só é descoberta com a exp e­
riência do seu contrário, que além disto deve ser mantido na m ente
para com paração e contraste: o m ero “ implodir” de uma im pressão
por uma impressão subseqüente e corretora não basta.

Se levarm os as experiências descritas a uma forma propositiva, ob­


terem os frases com o estas: “ Há um bicho acocorado lá adiante” ; “ Não
é um bicho, é uma m oita” . A segunda frase c o n s e rv a a prim eira sob
o m odo de n e g a ç ã o , com o parte de seu próprio conteúdo com pleto.
A intenção do seu significado não se cum pre pelo fato de se ver a g o ­
ra apenas a moita. A consideração passada da aparência de um ani­
mal - agora reconhecida com o errônea - qualifica o novo con h eci­
m ento com o um conhecim ento verdadeiro que surgiu da aceitação nor­
mal das aparências. Mas esta nova qu alid ad e só p o d e ser apreendi­
da com o tal quando relacionada com a aparência que se manifestou
com o falsa, e isto só pode acontecer quando ela se encontra ainda dis­
ponível na memória.

Isto nos leva de volta a considerar a função da imagem. Admitamos que


o ponto da discussão não seja entre um animal agachado e uma moita,
onde a “implosão” da primeira impressão pela segunda seja completa e ter­
mine em uma revisão total. Admitamos que a discussão seja entre dois fa­
tos bastante parecidos. O vigia de uma tribo de caçadores dá notícia de que
avistou um rebanho de antílopes; membros do grupo de caça enviado afir­
mam, ao chegarem mais perto, que seriam búfalos. Se isto se confirmar
com o fato, ou se surgir uma discussão a este respeito, o vigia pode procurar
explicar (e desculpar) sua impressão original pelo fato de haver observado
estas e aquelas características que o levaram à sua versão do que avistou, e
os outros irão replicar que, se tivesse se lembrado de outras características
dos antílopes, ele haveria de concluir que não se tratava de antílopes, e se
além disso ele se tivesse lembrado de certas características dos búfalos, te­
ria reconhecido os animais com o búfalos, o que de fato eles são. Noutras
palavras, comparam-se form as - neste caso formas de imagens universais,
não de indivíduos concretos - e só com esta comparação a “visão” global
da percepção - um elemento fenomênico - é dissolvida em traços de deta­
lhes e proporções que podem ser isolados para fins de comparação.

Com isto nós chegam os de volta ao que foi objeto do capítulo anteri­
or. Pois a mesma coisa que em nosso exem plo é realizada pela fala (liga­
da ou a um apontar direto para o objeto, ou a um apelo à memória) tam­
bém é realizado essencialmente através do desenhar, do reconhecer, do
admitir ou do rejeitar uma im agem representativa, e esta circunstância
permite-nos reconhecer que o reino da palavra não é o lugar exclusivo e
necessário do fenôm eno da verdade. A representação imagética, encon­
trando-se mais próxima do mundo da percepção do que o simbolismo
abstrato da linguagem, e menos do que esta tendo a ver com os objetivos
práticos da comunicação, é um exercício fundamental do empenho hu­
mano pela verdade no que se refere ao mundo visível. Todo retratar de
coisas preserva delas um conhecimento, caindo também sob os critérios
do conhecimento, üma imagem ou é verdadeira, ou parcialmente verda­
deira, ou falsa. Enquanto não for considerada do ponto de vista estético
(ou m ágico), a im agem não tem outra razão de ser senão a relação da
verdade, ou adequação, com o objeto representado. Como formulamos
acima: o que os escolásticos, em sua definição da verdade, designaram
com o adequação do intelecto à coisa (a d a equ a tio in tellectus ad re m ),
aparece aqui na forma mais elementar da adequação da imagem à coisa
( a d a equ a tio im a g in is ad rem ).
Tudo isto refere-se ao conceito te ó rico da verdade e a suas origens
na experiência. Uma coisa inteiramente diferente é a verdade moral,
que significa veracidade no convívio com os semelhantes. Este, e não o
que diz a escola de Heidegger, foi o primeiro significado de à-Àr|Sr|Ç e
á-Âr)5£Ú£tv: não fingir ou ocultar suas intenções, por exem plo nas es-
pertezas da retórica da vida pública da Grécia: dizer o que se pensa,
sem esconder: ser aberto e sincero - aplicado a pessoas em relação a
pessoas, não a coisas em relação a pessoas, e m enos ainda a pessoas
em relação a coisas. Sob o ponto de vista puramente gramatical, o ver­
bo àÀr)S£Ú£iv n u n ca significa transitivamente “ des-ocultar” ou “des-en-
ganar” . Em seu uso pré-teórico ele sem pre teve o significado intransiti­
vo de abster-se: abster-se de esconder e de enganar, passando a ser
transitivo apenas no sentido de “tornar- verdadeira” sua promessa ou a
esperança de alguém, ou verdadeiramente predizer o que há de ser10. -
Mas o tom ar posse deste conceito em bebido de moral para a esfera teó­
rica foi um fato de extrema importância, mas um desenvolvim ento se­
cundário ocorrido nas escolas filosóficas. E difícil dizer quanto das pri­
mitivas associações da palavra (o não-ocultar, etc.) continuou vivo na
nova moldura.

1 0 . M e s m o n o u s o te ó ric o m a is ta rd io , a tra n s itiv id a d e d o v e rb o à A r]8 £ Ú £ iv re s trin g ia -s e


a o o b je to in te rio r, a o À óyoç (fa z e r u m a d e c la ra ç ã o v e rd a d e ira , fa la r c o m v e r d a d e ), a c re s ­
c e n ta n d o -s e K crrà Tivóç, so b re o u c o m re la ç ã o a a lg u m a c o is a , a p e n a s c o m a d ife re n ç a
d e q u e a g o ra o d is c u rs o d e v e s e r “fie l” , n ã o a o p e n s a m e n to d e q u e m fa la m a s s im às c o i­
sas s o b re as q u a is se p e n s a o u d e q u e se fa la ; e c o m o n o d is c u rs o te ó ric o , e v id e n te m e n te ,
n ã o se p o d e im a g in a r n e n h u m a ra z ã o p a ra q u e re r o c u lta r es ta s ú ltim a s (a o p a s s o q u e p o ­
d e m e x is tir b o a s ra z õ e s p a ra n o d is c u rs o p rá tic o se o c u lta r e m as p rim e ira s ), a s s im o a s ­
p e c to d o n ã o -o c u lta r, d a e tim o lo g ia a n tig a , d e s d e s e m p r e p e rd e u s u a p o s s ív e l a p lic a ç ã o ,
m e s m o a b s tra in d o -s e d e fa to d e q u e p o r essa é p o c a p r o v a v e lm e n te isto d e q u a lq u e r fo r­
m a já h a v ia h á m u ito c a íd o n o e s q u e c im e n to . M a s n o q u e diz re s p e ito a o “d e s -o c u lta r” , a
in te rp re ta ç ã o p re fe rid a d a e s c o la , p a ra os g re g o s a g r a m á tic a n u n c a p e rm itiu u m à A r|5 £ -
U £ iv d a s p ró p ria s c o is a s - t ò TTpáy|icrra c o m o o b je to d ire to ! - isto é, “tra z ê -la s do seu es­
c o n d e rijo p a ra a luz d a v e r d a d e ”, o u ta m b é m “a rra n c á -la s a o se u e s q u e c im e n to ” . (E le s
n ã o tê m n e n h u m a n e c e s s id a d e d e s a lv a ç ã o , m a s s im o p e n s a d o r: o À óyoç á\r\C í ç re s o lv e
u m a à n o p ía , isto é, u m a d ific u ld a d e s u rg id a n o p ró p rio d is c u rs o .) N e s ta q u e s tã o , m u ita
a s n e ira filo ló g ic a te m sid o e s c rita , n a te n ta tiv a d e fu n d a m e n ta r o s e n tid o filo s ó fic o m a is
p ro fu n d o .
Transição
Da filosofia do organismo à filosofia do ser humano

Nos últimos estudos nós ultrapassamos a linha divisória entre as es­


feras corporal e espiritual. Com o daqui para a frente nos iremos m ovi­
mentar unicamente nesta última, convém que recapitulemos os degraus
que a partir do metabolismo nos levaram a atingir este limiar.

A separação entre o eidos e a realidade, com que confrontaram-nos os


fenômenos da “im agem ” e da “verdade” , representa a transição para uma
nova elevação crítica do caráter m ediato na relação do organismo com o
mundo ambiente. Este aumento de mediatez pode ser observado ao longo
de toda a evolução orgânica. O próprio metabolismo, e portanto já a vida
vegetal, é identidade e continuidade mediada (cap. 5). A o nível animal,
que representa um passo decisivo para além da relativa imediatez da exis­
tência vegetativa, a mediatez possui os três aspectos de movimento, per­
cepção e em oção (cap. 6-7). Todos três implicam distância: ao ultrapas­
sá-la, e através das formas do perceber, do buscar e do agir, é constituído o
“mundo”, que substitui a mera vizinhança da planta. O “mundo” confronta
o sujeito com objetos concretos e fechados em si, ao passo que o ambien­
te da planta consiste de materiais adjacentes e de forças que a atingem. O
intercâmbio químico direto com a vizinhança é a maneira vegetal da rela­
ção exterior, e permanece a base de toda existência orgânica. Mas na vida
animal este plano vegetativo é servido através de um rodeio, pela relação
do organismo com objetos no espaço fora dele, que são percebidos, dese­
jados, alcançados e elaborados exteriormente (mecanicamente) antes de
entrarem no comércio químico do sistema metabólico. Assim, a liberdade
do estágio animal é a liberdade de variadas adaptações por ações que se
diferenciam do objetivo a ser alcançado, e que por isso se encontram sob
a alternativa de certo e errado, de êxito e fracasso. Graças à dialética es­
sencial da vida, esta camada sobreposta de mediatez, apesar de seu papel
instrumental para a mera conservação orgânica, constitui sua própria es­
cala de interesses, que invertem a relação fim-meio entre a função vegeta­
tiva e a função animal. As sensações de prazer e dor, que acompanham a
experiência animal com o recompensa e castigo interior do comportamen­
to, e a que se deve acrescentar a excitação da própria ação, são sinais cla­
ros de que as atividades animais são dotadas de valores e finalidades pró­
prios. O que nos animais parece não poder ainda ser encontrado é que a
p ercep çã o em si é prazerosa, ganhando o status de uma experiência bus­
cada por causa dela mesma.

Na esfera da percepção, nossa atenção voltou-se especialmente para


a contribuição dos sentidos à distância para o esquema da mediatez. En­
tre eles a visão representa o caso mais apurado de separação entre orga­
nismo e mundo, e de seu tornar a unir-se em uma relação secundária
(cap. 8). O objeto visto encontra-se entre o organismo e seu intercâmbio
orgânico direto com o mundo exterior. A partir daí, este intercâmbio é in­
troduzido, dirigido e controlado pela informação sobre coisas que se en­
contram à distância, isto é, em si fora do alcance orgânico direto. O arco
deste caminho indireto da satisfação é o lugar de liberdade e do risco na
vida animal. Na distância entre o eu e o objeto distante, ainda não engaja­
do, que o alcance da visão produz, o sentimento pode fazer sua escolha,
e ter início o movimento de longa distância. Mas a visão mesma, com o
foi mostrado no capítulo 8o, contém em si possibilidades de contem pla­
ção e de atitudes que ultrapassam o meramente animal, capazes de reali­
zar uma capacidade espiritual mais elevada.

üm novo grau de mediatez é alcançado na capacidade do ser humano


para a imagem, e a distância entre organismo e mundo ambiente aumenta
em mais um passo (cap. 9). Este novo grau consiste na extensão ideativa
da p erce p çã o , e de início quase não influencia a versão humana da em o­
ção e da mobilidade animal (embora mais tarde o faça). A nova mediatez
consiste em introduzir o eidos abstraído .e espiritualmente manipulável en­
tre a percepção e o objeto atual, semelhante ao que na mediatez animal
ocorre com o intercalar-se da percepção dos objetos entre o organismo e
sua relação primária com o mundo ambiente. Com a capacidade de imagi­
nar e de verbalizar, o ser humano deixa de ver as coisas diretamente: pas­
sa a vê-las através da tela das idéias, que ele possui a partir do convívio an­
terior com as coisas, e que é evocada pelo conteúdo atual da percepção
para deixar-se invadir por sua carga simbólica, por sua vez acrescentan-
do-lhe alguma coisa. Porém o papel maior é desempenhado pelas idéias
nos intervalos entre as experiências atuais, quando o objeto não se encon­
tra presente para percepção direta. Então as imagens abstratas, sobre as
quais o sujeito impera, fornecem em si mesmas a matéria para uma “ex­
periência” a partir de uma distância nova - a experiência simbólica, onde
o sujeito tem em suas mãos o mundo sem que este se lhe imponha por
sua presença. É nesta mediatez de terceiro grau que encontra seu lar o fe­
nômeno da verdade, com o também o da falsidade.
Mesmo isto é ainda uma vez o limiar para outra mediação. A nefasta
liberdade da objetivação, que opõe ao eu todo o potencial do “outro” , o
“mundo” , com o um cam po indefinido para possível com preensão e
ação, pode, e por fim deve, com seu carregamento de.mediatez, voltar-se
para o próprio sujeito, e por sua vez fazer dele o b jeto de uma relação que
mais uma vez faz o rodeio através do eidos. A “form a” que aqui transpa­
rece é de uma espécie diferente das formas de todo o reino da exteriori-
dade, pois atinge a relação do eu com toda exterioridade. Desenvolve-se
uma nova dimensão da reflexã o, em que o su jeito de toda objetivação
aparece a si m esm o c o m o ta l, por sua vez tornando-se objeto para uma
nova e cada vez mais auto-intermediante espécie de relação. Com o pri­
meiro formular da pergunta: “ Que é o ser humano, qual é meu lugar e mi­
nha parte no plano das coisas?” , o eu é arrastado para a distância em
que todas as coisas são mantidas em relação a ele, e de onde elas têm
que ser trazidas em atos de intencionalidade eidética. Embora esta au-
to-objetivação seja também um exercício da capacidade eidética, de for­
ma alguma ela é dada automaticamente com o exercício exterior, de que
a representação imagética é um exemplo. Surge o ser humano em seu
pleno sentido, quando ele, que desenhou o touro e o próprio caçador,
volta-se para ter sob sua mira a im agem não-representável de sua pró­
pria conduta e estado de alma. Superando a distância deste olhar de ad­
miração, de busca e de comparação, ele se constitui o novo ser chamado
“ Eu” . De todas é esta a ousadia maior da mediatez e objetivação. Empre­
gam os a palavra “im agem ” deliberadamente. O ser humano configura,
experimenta e julga seu próprio ser interior e seu agir exterior segundo
uma im agem daquilo que convém ao ser humano. Querendo ou não, ele
“vive” a idéia do ser humano: em concordância ou em conflito, em sub­
missão ou rebeldia, no reconhecimento ou na negação, com boa ou com
má consciência. A imagem do ser humano jamais o abandona, por mais
que algumas vezes ele volte a desejar a felicidade da condição animal.
Ser criado à imagem de Deus significa ter que conviver com uma ima­
gem do ser humano. A imagem elabora-se e sustém-se na comunicação
com a sociedade através da palavra, e assim o indivíduo a encontra pron­
ta e imposta a ele. Assim com o aprende dos outros a ver e discutir as coi­
sas, também aprende deles a ver a si próprio e a expressar o que aí vê, “à
imagem e semelhança” do modelo existente. Mas ao aprender isto - ao
aprender a dizer “eu” - ele potencialmente descobre também sua própria
identidade na unicidade solitária. CJma objetividade privada do eu está,
por isso, em contínua relação com a im agem pública do ser humano, por
sua própria manifestação contribuindo para sua recriação contínua: a
contribuição anônima de cada eu para a história de todos. Em completa
acom odação ele se deixa sugar para dentro do padrão universal: em ven­
cida dissidência pode retrair-se para a própria solidão; em raros casos de
grandeza ele consegue afirmar-se tão poderosamente, a ponto de colo­
car-se a si próprio com o uma nova im agem do ser humano, substituindo
os poderosos na tarefa de moldar a sociedade.
No refletir-se sobre o eu, a divisão sujeito-objeto, que teve início na
evolução animal, atinge sua forma mais extrema. Ela estende-se agora
até o centro da vida sensitiva, que desta forma torna-se dividida em si
mesma. Só através da distância incomensurável do ser-objeto-de-si-pró-
prio é que o ser humano pode-se “ possuir”. Mas ele se possui, ao passo
que animal algum se possui a si próprio. O interesse vital do sentir com o
tal, que serve de fundamento para a ousadia e o empenho de toda vida, e
que sempre gira em torno do gozo da mesmidade no encontro com a ou-
tridade, encontrou aqui, em audacioso rodeio, seu verdadeiro objeto, e
em certo sentido também seu objeto original. Com o em toda conquista
da vida, o preço a ser pago é alto. Com o a satisfação humana difere da
animal e a ultrapassa de longe na extensão das possibilidades, o m esm o
pode-se dizer do sofrimento humano, embora o ser humano também par­
ticipe da escala do sentir animal. Mas só o ser humano é capaz de ser feliz
e infeliz, graças à medida do seu ser em padrões que não se restringem à
situação imediata. Em extremo ocupado com o que é, com a maneira
com o vive e com o que ele faz de si mesmo, e voltando o olhar para si a
partir da distância de seus desejos, de seus objetivos e de suas aprova­
ções, o ser humano - e somente o ser humano - está aberto ao desespe­
ro. A palavra “desespero” leva o contexto a vibrar com a divisão do eu,
que com a profundidade do fosso sujeito-objeto emergiu para a interiori­
dade do próprio sujeito, e que faz dele a testemunha trêmula de uma rela­
ção a ser sempre novamente transmitida, em vez de objeto de posse ime­
diata. O suicídio, este privilégio exclusivo do ser humano, demonstra o
grau extremo em que o ser humano pode tornar-se objeto de si mesmo.

No fosso que se abre neste confronto do eu consigo mesmo, e no exer­


cício da relação que de uma ou de outra maneira sempre de novo tem que
ser superada, encontram seu lugar as ascensões extremas e as depres­
sões mais profundas da experiência humana. Os resultados de sua refle­
xão, que nisto não diferem dos dados dos sentidos externos, são apenas a
matéria-prima para a constante síntese e integração em uma im agem to­
tal. Este trabalho prossegue enquanto o ser humano continua vivo com o
ser humano. Q uaestio m ih i factus s u m , “passei a ser um problema para
mim m esm o”: religião, ética e metafísica são tentativas jamais acabadas
de enfrentar este problema no horizonte de uma interpretação do universo
do ser, de conseguir para ele uma resposta. Com o surgir desta possibilida­
de, a evolução passa a ser substituída pela história, e a biologia cede o lu­
gar à filosofia do ser humano.

Mas a busca da essência do ser humano tem que ser encaminhada


através dos encontros do ser humano com o ser. Estes encontros não
apenas fazem aparecer a essência do ser humano, mas na verdade eles a
constroem, porque neles ela se decide em cada momento. A própria ca­
pacidade do encontro é a essência básica do ser humano: esta é, portan­
to, a liberdade, e seu lugar a história, que por sua vez só é possível atra­
vés daquela essência básica trans-histórica do sujeito. Toda imagem da
realidade surgida do encontro histórico inclui uma imagem do eu; de
conformidade com ela o ser humano existe enquanto a imagem for a sua
verdade. Mas a possibilidade da história, colocada no ser humano - pre­
cisamente a sua liberdade -, não é ela mesma histórica, e sim ontológica;
e uma vez descoberta, ela mesma passa a ser o fato central na evidência
de onde toda ontologia se alimenta.
Desde tem pos imemoriais, tem sido acentuada, nas imagens do ser,
o “estar-entre” do ser humano: entre animal e anjo, entre passado e futu­
ro, entre condenação e salvação... Platão considerou o vir-a-ser com o um
meio-termo entre o não-ser e o ser, participando de um e de outro, e a
alma mergulhada no vir-a-ser com o estando aberta para o ser eterno no
saber da razão. O vir-a-ser, ao alcançar poder extremo, recortado do ser
eterno e racional, entregou o eu à vertigem da liberdade, e fez com que o
encontro com o ser se transformasse em encontro com o nada. O niilis-
mo moderno, pressentido por Nietzsche, forçou a recolocar a questão do
ser na era pós-platônica. Ela tem que ir atrás das razões históricas da ex­
periência niilista; precisa tentar determinar ontologicamente a essência
da liberdade humana na relação com o mundo restante da vida, ou mes­
mo com toda a natureza; e encontra na transcendência interior daquela
liberdade a instrução para tatear metafisicamente em busca de um novo
sentido de transcendência e eternidade.
Do uso prático da teoria

Em seu comentário ao tratado de Aristóteles “Sobre a alma”, Tom ás de


Aquino escreveu o seguinte:
Que toda ciência é boa, é evidente; pois bom é para cada coisa
aquilo em conformidade com o que ela possui sua perfeição [= seu
ser perfeito], e a isto tendem e buscam todas as coisas. Mas como
a ciência constitui uma perfeição do ser humano como ser huma­
no, a ciência é um bem humano. Mas dentre os bens, alguns são
valiosos, isto é, aqueles que são úteis em vista de algum fim - nós
apreciamos um bom cavalo porque ele corre bem; mas outros,
além disto, são honrosos, a saber, aqueles que subsistem por causa
deles mesmos: pois devemos honrar os fins. Dentre as ciências,
porém, algumas são práticas e outras teóricas (especulativas), e a
diferença entre elas é que as práticas existem por causa de uma
obra a ser executada, e as teóricas por causa delas mesmas. For
conseguinte, dentre as ciências, as teóricas são tanto boas como
também honrosas, mas as práticas são apenas valiosas \

Cerca de três séculos e meio mais tarde, Francis Bacon, em “A gran­


de renovação” , escreveu o seguinte:
üma advertência geral eu dirijo a todos: que considerem quais os
verdadeiros fins da ciência, e que não a busquem para o prazer do
espírito ou para a discussão ou para a superioridade sobre os ou­
tros... mas sim para vantagem e proveito da vida; e que a aperfei­
çoem e a administrem no amor ao próximo... [Do casamento do
espírito com o universo] podem surgir auxílio para o ser humano e
uma descendência de invenções, que de alguma forma podem su­
perar as necessidades e misérias da humanidade... Pois a tarefa à
nossa frente não é a mera felicidade da especulação, mas sim o
verdadeiro negócio e bem do gênero humano e todo o poder da

1 . Sancti Thomae Aquinatis in Aristotelis Librum de Anima Commentarius , L e ctio 1,3.


ação... E assim aqueles fins geminados, ciência humana e poder
humano, na realidade resultam em uma coisa só2.
Aqui se encontram duas afirmações opostas sobre o fim, e m esm o so ­
bre o sentido prim ário da ciência, e por conseguinte sobre sua relação
com o possível uso, ou com as “obras”. Sobre este velho tema queremos
tecer algumas considerações que se encontravam distantes ainda dos par­
tidos originais que se combatiam, mas que nos estão próximos à luz das
novas “necessidades e misérias” da humanidade, que hoje nos oprimem
precisamente na esteira deste uso da ciência que Bacon preconizou com o
remédio para as antigas necessidades e misérias da humanidade.

Evidentemente, Tom ás de Aquino e Bacon falam de duas coisas dife­


rentes. A o atribuírem à ciência diferentes fins, na realidade eles estão fa­
lando de diferentes espécies de ciência, que também têm com o objeto
coisas diferentes. Considerando primeiramente Tom ás de Aquino, que
naturalmente fala em favor de Aristóteles, as ciências “teóricas” (especu­
lativas) de que ele fala têm que ver com coisas imutáveis e eternas - os
primeiros princípios e as formas inteligíveis do ser -, que precisamente
por sua imutabilidade só p o d e m ser contempladas, e não submetidas a
uma ação: delas só existe Secopía no estrito sentido aristotélico. As “ciên­
cias práticas” , por outro lado, não são “teoria” e sim “arte” - o conhecer
e planejar a modificação do mutável. Este conhecer surge da experiên­
cia, e não da teoria ou razão especulativa. A função diretiva que a teoria
p o d e assumir no tocante às artes não consiste no favorecer a invenção e
a criação mental de seus métodos, mas sim em iluminar seu usuário (na
medida em que ele participa da vida teórica) no usar aquelas artes com
sabedoria, isto é, na reta medida e para os retos fins. Isto pode ser cha­
mado de utilidade prática da teoria, graças ao efeito iluminador que ela
exerce para além de sua atualidade direta sobre a pessoa de seus discí­
pulos. Mas esta utilidade não é da espécie de um “uso” que se faz da teo­
ria, e em cada caso ocupa apenas o segundo lugar em resposta à neces­
sidade humana: o primeiro lugar cabe à constante atividade do próprio
pensamento, onde o ser humano possui mais liberdade.

Até aqui Aristóteles e Tom ás. Mo esquema de Bacon, são as “neces­


sidades humanas” que ocupam o primeiro lugar: e com o arte é a manei­
ra humana de enfrentar e dominar a necessidade, mas que até agora não
desfrutou da ajuda da razão especulativa (por culpa principalmente des­

2 . D o p re fá c io a “T h e G r e a t In s ta u r a tio n ” . A s fra s e s c ita d a s e n c o n tra m -s e e m B a c o n n e s ­


ta o r d e m , m a s e m d is tâ n c ia s m a io re s . P a ra d a r u m a id é ia d a c rític a d ire ta d e B a c o n à te o ­
ria c lá s s ic a , a c re s c e n to m a is e s ta c ita ç ã o : “N o to c a n te a o seu v a lo r e u tilid a d e , d e v e -s e d i­
z er q u e a q u e la s a b e d o ria q u e n ó s r e c e b e m o s s o b re tu d o dos g re g o s re p re s e n ta a p e n a s a
m e n in ic e d o c o n h e c im e n to e p o s su i a p ro p rie d a d e típ ic a d o m e n in o : p o d e fa la r, m a s n ã o
te s te m u n h a r , p o is é fe c u n d a e m d is p u ta s m a s á rid a e m o b r a s .”
ta última), Bacon insiste em que as duas sejam colocadas em uma nova
relação, em que sua separação anterior seja superada. Isto exige uma re­
visão de ambas, mas na ordem causai primeiramente uma revisão da
ciência especulativa, que portanto tem po foi “estéril em obras” . A essên­
cia da teoria deve ser de tal forma modificada que resulte em “esboços e
instruções” para obras, ou m esm o que a “invenção de artes” passe a ser
seu verdadeiro fim, e com isto ela própria uma arte da invenção. Conti­
nua, não obstante, a ser teoria, por ser a descoberta e a explicação racio­
nal das primeiras causas e leis gerais (form as). Por conseguinte, ela coin­
cide com a teoria clássica no fato de ter com o objeto a natureza das coi­
sas e o todo da natureza. Mas é esta ciência das razões e leis, ou é uma
ciência destas razões e leis, por conferir a possibilidade de “ ordenar à
natureza em sua a çã o ” (to c o m m a n d n a tu re in a c tio n ). Ela confere
esta possibilidade, porque desde o início olha a natureza co m o ativa,
com isto alcançando um conhecimento das leis de sua ação, de m odo
que engaja a própria natureza pelo agir - isto é, pelo experimento, e por
conseguinte sob condições determinadas pelo próprio ser humano. A
teoria fornece instruções para obras, porque antes surpreendeu a natu­
reza “em ação”.

A ciência da “natureza em ação” é uma mecânica ou dinâmica da na­


tureza. Para tal ciência, Galileu e Descartes forneceram as condições espe­
culativas e o método da análise e síntese. A o criarem uma teoria com po­
tencial tecnológico imanente, efetivamente eles puseram em marcha
aquela fusão de teoria e prática com que Bacon sonhava. Antes de dizer
algo mais sobre a espécie de teoria que se presta à aplicação técnica, ou
m esm o que está intimamente orientada para esta espécie de uso, é neces­
sário se dizer alguma coisa sobre o uso.

II

Para que se usa alguma coisa? O fim último de todo uso é o m esm o
que o fim de toda atividade, que é duplo: para conservar a vida, e para
melhorar a vida, isto é, para prom over a vida que se considera boa. For­
mulando isto negativamente, com o o sugere o par de conceitos “necessi­
dades e misérias” , de Bacon, o duplo fim é evitar a destruição e superar a
miséria. Observamos o caráter de necessidade conferido por Bacon ao
esforço humano, e com ele ao conhecimento, com o parte deste esforço.
Ele fala da eliminação ou moderação de uma situação adversa ou opres­
sora, enquanto Tomás de Aquino, com Aristóteles, fala positivamente da
“plenitude do ser” , ou da perfeição. O acento negativo de Bacon encarre­
ga o conhecimento com uma espécie de urgência física e moral, inteira­
mente estranha e nova na história da “teoria” , mas que desde então pas­
sou a ser cada vez mais comum.
A diferença de acento permite, no entanto, que se perceba um terre­
no comum: caso se possa considerar com o garantida a mera conserva­
ção (que em ambos os casos tem a preferência), então sofrimento ou mi­
séria significa a negação da boa vida, e a eliminação do sofrimento ou
miséria significa uma melhora, e desta forma, de acordo com o pensa­
mento de ambos, Aristóteles e Bacon, o fim último de todo agir, além do
mínimo necessário para a conservação da “ boa vida” , é a felicidade do
ser humano. Se apesar de toda ambigüidade que a palavra não pode dei­
xar de ter, mantivermos o termo “felicidade” , então no terreno comum a
Bacon e Aristóteles poderemos constatar que o “para quê” de todo uso,
incluído o do conhecimento, é a felicidade.

Felicidade de quem? Se, com o pensa Bacon, o conhecimento deve re­


mover os sofrimentos da humanidade, então a busca do saber tem com o
fim a felicidade da humanidade. Se, com o pensa Aristóteles, o ser humano
alcança a plenitude do ser pelo conhecimento, ou melhor, no conhecimen­
to, então o que se realiza na busca do conhecimento é a felicidade daquele
que conhece. Em ambos os casos existe, então, um “benefício” supremo
do conhecimento teórico. Para Aristóteles este consiste no bem que o co­
nhecimento produz na alma de quem conhece, isto é, no próprio estado
do conhecimento, com o perfeição do ser daquele que conhece.

Só tem sentido usar este efeito enobrecedor para o conhecimento se


a teoria for o conhecimento dos objetos mais nobres, isto é, mais perfei­
tos. Efetivamente, a condição para que exista uma “teoria” , no sentido
clássico da palavra, é que tais objetos existam, e vice-versa; na falta des­
tes objetos o ideal da filosofia clássica deixa de ter sentido - passa literal­
mente a “ não ter objeto” . Se se admitir a condição positiva com o dada,
então ocorre não apenas que a “teoria” , com o comunhão intelectual
com aqueles objetos, favorece a felicidade, com isto modificando o pró­
prio estado do sujeito, mas que ela também a constitui: uma felicidade
que é chamada “divina”, e por isso na vida de cada ser humano mortal só
pode ser desfrutada por pouco tempo. De acordo com isto, posse e bene­
fício ( “uso” ) da teoria são, neste caso, uma e a mesma coisa. Se possui
algum benefício para além de sua própria realidade - com isto contribu­
indo para uma felicidade mais “humana” (em oposição à “divina” ) - en­
tão ela consiste, com o já foi dito, na sabedoria que confere à pessoa para
a orientação geral de sua vida, com o também na compreensão que a
partir do cume da especulação impregna sua concepção de todas as coi­
sas, inclusive das coisas comuns. Mas embora, por meio da sabedoria, a
teoria possa libertar aquele que a possui do fascínio das coisas comuns,
e com isto aumentar a liberdade moral em relação ao fascínio das coisas
comuns, no entanto ela não aumenta seu poder físico sobre elas, nem o
seu uso (este último ela tende antes a restringir), deixando sem alteração
o reino da própria necessidade. A partir dos tem pos de Bacon o terreno é
dominado pela outra alternativa. Para ele, e para os que vieram depois
dele, a utilidade do conhecimento consiste nos “frutos” que ele produz
em nosso convívio com as coisas comuns ou ordinárias. Para que possa
produzir este fruto, o próprio conhecimento deve ser um conhecimento
das coisas comuns - não de forma derivada, com o o era na teoria clássi­
ca, mas sim de forma primária, e ainda antes de tornar-se prático; este é o
caso, efetivamente: a teoria, que assim precisa produzir frutos, é o conhe­
cimento de um universo que, na ausência de uma hierarquia do ser, con­
siste inteiramente de coisas comuns. Como, então, a liberdade não pode
ser mais procurada na relação de conhecimento com os “objetos mais no­
bres” , o conhecimento só poderá libertar o ser humano do jugo da necessi­
dade indo ao seu encontro sobre seu próprio chão, e só produz liberdade
pelo fato de entregar as coisas ao seu poder, üm a nova visão da natureza,
não apenas do conhecimento, está na insistência de Bacon de que “o espí­
rito exerce a autoridade que lhe com pete sobre a natureza das coisas” . Em
si, para a natureza das coisas já não restou mais dignidade alguma3. Toda
dignidade pertence ao ser humano: o que não impõe respeito, disto se
pode dispor, e todas as coisas são para ser usadas. Ser senhor sobre a na­
tureza é direito do ser humano, com o único possuidor do espírito, e o co­
nhecimento, quando o coloca na condição de exercitar este direito, final­
mente leva o ser humano à posse das coisas. Esta propriedade é “o reino
do ser humano”, e consiste no uso soberano das coisas, üso soberano
significa mais uso - mais, não apenas potencialmente, mas sim atual­
mente - e, estranho de dizer-se, uso forçoso. O poder, ao tornar disponí­
veis sempre mais coisas para mais espécies de uso, envolve o usuário
em uma dependência sempre maior dos objetos exteriores. O poder não
pode ser exercido de outra maneira senão fazendo-se disponível para o
uso das coisas, na medida em que estas tornam-se disponíveis. Quando
se renuncia ao uso, o poder diminui, mas para aumentar um e outro não
existe qualquer limite. É trocar um mestre por outro mestre.

3 . “Pois c o m o to d a o b ra m o s tra o p o d e r e a rte d o seu m e s tre , m a s n ã o su a im a g e m , o m e s ­


m o se dá c o m as o b ra s d e D e u s , q u e m o s tra m o p o d e r e a s a b e d o ria d o c ria d o r m a s n ã o
sua im a g e m : e n is to a o p in iã o p a g ã d is tin g u e -se d o q u e diz a v e rd a d e s a g ra d a ; p ois a q u e le s
a c h a v a m q u e o m u n d o é u m a im g e m d e D e u s e o h o m e m u m a c ó p ia o u im a g e m re s u m id a
d o m u n d o , m a s a E s c ritu ra n u n c a c o n fe re ao m u n d o es ta h o n ra , o u s e ja, de c h a m á -lo im a ­
g e m d e D e u s , m a s s o m e n te a obra de suas màos\ n e m e la fa la ja m a is d e o u tra im a g e m d e
D e u s a n ã o se r o h o m e m ” (B a c o n . The Aduancement o f Learning, liv ro 1 1 ). L eo S trau s s
cita esta p a s s a g e m c o m o p ro v a p a ra a tes e d e q u e “a d iv is ã o d a filo s o fia e m filo s o fia d a n a ­
tu re z a e filo s o fia d o h o m e m se b a s e ia e m u m a d is tin ç ã o s is te m á tic a e n tre h o m e m e m u n ­
do, fe ita p o r B a c o n , e m d ire to c o n flito c o m a filo s o fia a n tig a ” (The Political Philosophy o f
Hobbes, its Basis and its Genesis. O x fo rd , 1 9 3 6 , p. 9 1 , A . 1 ).
Mesmo a tomada inicial do poder não é assim tão livre com o o faz pa­
recer o apelo à legítima autoridade do ser humano. Pois não apenas a rela­
ção do ser humano com a natureza é uma relação de poder, mas a própria
natureza é entendida com o um sistema de poder. Por isso a questão está
entre o dominar e o ser dominado, e ser dominado por uma natureza que
não é nem nobre, nem semelhante, nem sábia, significa escravidão, e por
conseguinte miséria. Portanto o exercício do direito inato ao ser humano é
ao mesmo tempo a resposta a uma situação de elementar e continuada
necessidade: a necessidade de uma guerra de defesa, condicionada pela
situação humana. Com o o ataque pelo conhecimento é uma defesa con­
tra a necessidade, ele próprio é uma função da necessidade, e mantém
este aspecto ao longo de toda sua trajetória, que é uma constante resposta
às novas necessidades criadas exatamente pelo seu progresso.

III

Para que seja benéfico para a condição humana, o conhecimento


precisa ser “criado e dirigido para o amor ao próxim o” . Quer dizer: quem
quer que administre o curso e o uso da teoria, tem que tomar a peito as
necessidades e os sofrimentos da humanidade. As bênçãos do conheci­
mento não recaem em primeira linha sobre aquele que conhece, mas
sim sobre seus semelhantes que não conhecem - e, para ele próprio,
apenas na medida em que é um deles. Diferentemente do m ago, o pes­
quisador da natureza não adquire em sua própria pessoa o poder nasci­
do de sua arte. O conhecimento ele quase que não o adquire na própria
pessoa, e de certo não o possui com o uma propriedade privada: com o se
trata de um empreendimento, sua parcela de contribuição vai para o ca­
pital comum, de que a comunidade científica é depositária, devendo a
sociedade com o um todo ser o beneficiário. Entre os benefícios que o co­
nhecimento confere através do poder sobre as coisas encontra-se a redu­
ção da carga de trabalho; portanto o lazer - porém não o do próprio cien­
tista - é aqui um fruto do conhecimento. O esquema clássico era o opos­
to: o lazer era uma condição para a teoria, ele foi criado predominante­
mente para fazer com que a teoria se tomasse possível, e não algo atra­
vés do qual a teoria devesse primeiramente ser criada. A moderna ativi­
dade teórica, longe de ser um uso do lazer, é ela própria um esforço e
uma parte da tribulação da humanidade, por mais que seja capaz tam­
bém de proporcionar prazer àquele que se esforça. Basta isto para pro­
var que, sob o aspecto humano, a teoria moderna não ocupa o lugar que
ocupa na teoria clássica.

Depois, a necessidade para o amor ao próximo, ou a benevolência


no uso da teoria, procede do fato de que o poder, por sua própria nature­
za, é um poder tanto para o mal com o para o bem. Mas o amor ao próxi­
mo não é ele mesmo um dos frutos da teoria no sentido moderno. Como
condição que qualifica o seu uso - de que uso se trata, a teoria não espe­
cifica, nem muito menos o garante -, ele tem que nascer de uma fonte
que ultrapassa o conhecimento garantido pela teoria.

Aqui é instrutivo se fazer uma com paração com o caso clássico.


Embora Platão não a denomine por este nome, a responsabilidade, que
força o filósofo a voltar ao “inferno” e ajudar seu semelhante que aí ficou
preso, é um análogo à caritas de Bacon, ou à compaixão. Mais uma vez,
porém - com o é diferente! Em primeiro lugar, com o na teoria, em senti­
do platônico, tanto a atividade quanto o objeto são nobres, ela mesma há
de ser para seus adeptos uma fonte de benevolência no tocante a toda
participação eventual de sua parte na vida ativa, üm agir que não fosse
benevolente estaria em contradição com a luz de que ele participa atra­
vés do seu mais elevado conhecimento. Entre as visões da ciência natu­
ral e seu possível em prego não-benevolente, esta contradição não existe.
Segundo, embora no esquema de Platão a “descida” à vida ativa não
aconteça por inclinação mas sim por dever, e o cumprimento deste de­
ver seja em primeira instância exigido pelo Estado, sua suprema sanção,
não obstante, parte do próprio objeto da contemplação, isto é, “do bem ” ,
que não é invejoso, e que impele à comunicação de si: nenhum princípio
adicional e heterogêneo que forneça a razão para a responsabilidade é
exigido. Por último, o agir do filósofo que volta ao inferno ocupa-se não
com o administrar coisas, mas sim com a ordem da vida humana; nou­
tras palavras, ele não é técnico mas político, informado pela visão da or­
dem no mundo inteligível. É, portanto, uma “aplicação” que deriva seu
motivo, seu modelo e seu padrão do que é benevolente, da teoria única
que se basta a si mesma, üma tal “aplicação” só pode ser exercida pes­
soalmente pelos autênticos adeptos da teoria; ela não pode ser delegada,
com o o pode e deve a aplicação do conhecimento (o conhecimento pro­
cessual) da ciência técnica.

Em oposição a isto, a moderna teoria não se basta a si mesma com o


fonte da qualidade humana que a toma benéfica. O fato de seus resultados
poderem ser separados dela e passados adiante aos que não participaram
do próprio processo teórico constitui apenas um aspecto da questão. Por
sua ciência, o próprio cientista não está melhor qualificado do que os outros
para reconhecer o bem da humanidade, nem mais inclinado a com ele preo-
cupar-se. Benevolência e responsabilidade têm que ser trazidas de fora para
completar o conhecimento devido à teoria. Não resultam da própria teoria.

Por que isto se dá? A resposta geralmente é expressa dizendo-se que a


ciência é “isenta de valores” , acrescentando-se que os valores não são ob­
jeto da ciência, ou pelo menos não são objetos de “conhecimento científi­
c o ”. Mas, por que a ciência distanciou-se do valor, e por que o valor é visto
com o irracional? Poderá ser porque a validade do valor exige uma trans­
cendência, de onde ele deva ser derivado? De acordo com suas regras de
evidência, o referir-se a uma transcendência objetiva encontra-se hoje fora
da teoria, ao passo que antes isto constituía a própria vida da teoria.

“Transcendência” (o que quer que esta expressão possa abranger)


implica objetos que estão acima do ser humano, e é com estes objetos
que a teoria clássica se ocupa. A teoria moderna trata de objetos que es­
tão abaixo do ser humano. Mesmo os astros, por serem coisas comuns,
estão abaixo do ser humano. Destes objetos não pode ser extraída ne­
nhuma orientação relativa aos fins. A expressão “abaixo do ser huma­
no” , que contém um juízo de valor, parece contradizer a “isenção de valo­
res” da ciência. Mas esta liberdade significa uma neutralidade, tanto da
parte dos objetos com o da parte da ciência: da parte dos objetos, sua in­
diferença em relação a todo valor que lhes possa ser “dado” . Mas aquilo
a que por si mesm o falta valor interior está submetido àquele que é o úni­
co em relação ao qual isto pode alcançar valor, e este é o ser humano e a
vida humana, a única fonte e lugar de referência do valor em si.

Mas com o ficam então as ciências do ser humano, a psicologia e so­


ciologia? Pois delas certamente não se pode dizer que os objetos da ciên­
cia estejam abaixo do ser humano. Seu objeto é o ser humano. Seria en­
tão com elas que o valor haveria de reencontrar a entrada para o univer­
so da ciência? E ocupando-se com a fonte e a referência de todos os valo­
res, não podem elas servir de ponto de partida para uma teoria válida dos
valores? Mas aqui nós precisamos distinguir: valores com o um fato da
conduta humana são efetivamente reconhecidos nas ciências humanas
- mas valores em si, não. E por mais que possa parecer brincadeira, na
medida em que elas são ciê n cia s, também seu objeto encontra-se “abai­
xo do ser humano” . Como assim? Para que seja possível uma teoria a
seu respeito, o ser humano, incluindo seus hábitos de valorização, tem
que ser determinado por leis causais - ser considerado com o um fato e
com o uma parte da natureza. É assim que o cientista o considera - mas
não a si próprio, na medida em que reclama e confirma sua liberdade de
pesquisa e sua abertura para as razões, para a evidência e a verdade.
Assim o ser humano como-aquele-que-conhece apreende o ser humano
como-estando-abaixo-de-si, assim com o toda teoria científica é conheci­
mento de coisas que estão abaixo do ser hum ano sujeito do c o n h e ci­
m ento. Só sob esta con d içã o é que eles podem ser submetidos à teo­
ria, por conseguinte ao controle, por conseguinte ao uso. Então o ser hu-
mano-que-está-abaixo-do-ser humano, com o é explicado pelas ciências
humanas - o ser humano transformado em coisa pode, segundo as ins­
truções destas ciências, ser controlado, ou mesm o manipulado, e desta
forma usado.

Por isso o bem-querer, e mesmo o am or ao próximo (com o amor à


humanidade, em vez de amor à pessoa), quando tentam transformar tal
uso em um uso útil ou beneficente, não corrigem o status de estar mais
abaixo, mas pelo contrário confirmam-no. E com o o uso daquilo que
está abaixo do ser humano só pode ser para o que é mais baixo, e não
para o que é mais elevado no próprio usuário, neste uso - quando ele se
torna oniabrangente - o que sabe e o que usa passa a ser ele m esm c
mais baixo do que o ser humano. Mas o uso torna-se oniabrangente
quando se estende sobre o ser do sem elhante e engole o ser-ilha da pes­
soa. Inevitavelmente o manipulador chega a ver-se na mesma luz que
aqueles que sua teoria tornou manipuláveis; e na auto-inclusiva solidarie­
dade com a miséria humana universal em meio ao esplendor do poder
humano, seu amor ao próximo não passa de autocompaixão, e aquela
tolerância que nasce do autodesprezo: todos nós não passamos de po­
bres marionetes, e não podemos ser outra coisa senão aquilo que so­
mos. Benevolência, então, degenera em leniência e transigência.

Mesmo quando é de uma espécie mais pura e menos ambígua, a be­


nevolência (boa vontade) sozinha é insuficiente para garantir um uso be­
neficente da ciência. Com o inclinação habitual para abster-se de prejudi­
car - portanto com o bondade universal -, a benevolência é naturalmente
tão indispensável quanto todas as demais relações humanas. Mas, do
lado positivo, boa vontade é querer o bem, e por isso ela precisa ser infor­
mada por um conceito do que é o bem. De onde este conceito pode ser ti­
rado, e se ele pode ser erguido ao estágio do “saber” , é uma questão que
não poderá ser resolvida aqui. Seja com o for, se existir algum conheci­
mento disto, não há de ser a ciência que o irá fornecer. A mera benevo­
lência não pode substituí-lo - nem m esm o o amor, se for um amor sem
respeito: e de onde poderá vir o respeito a não ser que se saiba o que é
respeitável? Porém, mesm o que tivéssemos à nossa disposição um co­
nhecimento do bem que pudesse orientar-nos, isto é, uma verdadeira filo­
sofia, esta provavelmente perceberia que seu conselho é impotente fren­
te à auto-alimentada dinâmica da ciência transformada em uso, isto é, da
tecnologia. A este tema voltaremos ainda no final. Agora é necessário
que se diga mais alguma coisa sobre a relação especificamente moderna
entre práxis e teoria, e sobre a maneira com o isto funciona, independen­
temente do objetivo para o qual trabalha.
IV

Nós falamos de usar quando empregamos um meio para algum fim.


Como o fim é diferente do meio, assim também o meio é diferente do uso
que fazemos dele. Isto significa que o meio possui em si uma existência
prévia, e que ele permaneceria o que é mesmo que nunca fosse em prega­
do. Pode-se pôr em dúvida se isto é totalmente válido também para a teo­
ria, ou para toda teoria, em relação a seu possível emprego. Mas se fala­
mos do uso da teoria, nós estamos admitindo que a teoria, com o quer que
venha a ser usada, é uma coisa em si.

Ser alguma coisa em si não significa necessariamente ser neutro em


relação a seu possível uso. Para uma coisa que pode ser empregada
com o meio, o em prego pode ser essencial ou acidental. Muitas coisas,
m esm o possuindo urri ser- próprio substancial, quando existem, existem
desde o princípio c o m o meio. üm instrumento, por exemplo, deve sua
existência puramente ao fim, fora dele mesmo, para o qual foi projetado
e produzido. Quando não utilizado para este fim, ele perde sua razão de
ser. Para outras coisas o em prego é, por assim dizer, acrescentado por
parte do usuário: para estas o em prego é acidental e exterior ao ser que
possuem segundo sua própria autonomia. Pertencem à primeira catego­
ria sobretudo coisas artificiais, com o martelos ou cadeiras, e à segunda
coisas naturais, com o cavalos ou rios. A teoria é certamente uma coisa
artificial feita pelo ser humano, e tem aplicações, mas se a aplicação é
para ela essencial ou acidental, isto pode depender da espécie em ques­
tão da teoria, com o também da espécie do em prego. A matemática, por
exemplo, é sob este aspecto diferente da física. Minha tese é que, para a
teoria moderna, a aplicação prática não é acidental e sim essencial, ou
que a ciên cia n a tu ra l é essencialmente tecnológica.

üm uso é prático quando inclui ação exterior que provoque ou que


impeça uma modificação no mundo ambiente. (Portanto, a aplicação da
matemática na física não é prática, mas sim teórica.) A ação exterior exi­
ge o em prego de meios físicos exteriores, além de uma certa quantidade
de conhecimento, que é uma coisa interior, não-física. Mas toda ação que
não seja estritamente rotina, ou que não seja puramente intuitiva, exige
mais do que isto, isto é, exige reflexão, e esta pode referir-se aos meios e
aos fins: aos fins, por exemplo, se eles são desejáveis, ou em geral se são
possíveis; aos meios, por exemplo, quais os que são apropriados, e quais
os que são disponíveis aqui e agora. Sob todos estes aspectos, o conheci­
mento, embora não necessariamente o conhecimento teórico, faz parte
das condições e da execução da ação, e nela encontra aplicação.

Obviamente, existe uma espécie de conhecim ento relacionada com


o fato de um fim ser ou não ser desejável, e outra que se ocupa com a via­
bilidade, os meios e a execução. Dentro da segunda espécie, mais uma
vez o conhecimento que julga sobre a possibilidade básica é diferente do
conhecimento que - sempre permanecendo no terreno abstrato - plane­
ja possíveis caminhos de realização, e estes, mais uma vez, são diferen­
tes do distinguir o curso mais prático da ação nestas circunstâncias. T e­
mos aqui uma escala que desce do geral para o particular, do simples
para o composto, e ao m esm o tempo da teoria para a prática, esta última
personificando o ser-composto. O conhecimento da possibilidade repou­
sa sobre os princípios universais da área, as leis que a constituem (os
pontos finais daquilo que Galileu chamou de “m étodo resolutivo” ); o co­
nhecimento dos caminhos típicos da realização, em formas causais mais
com plexas e específicas, onde estão incorporados os primeiros princí­
pios, e que podem servir de modelos para regras de produção, isto é, do
agir ( “método com positivo” ); por último, o conhecimento daquilo que
deve ser feito a gora é inteiramente particular, porque coloca a tarefa
dentro do contexto da situação inteiramente concreta. Os dois primeiros
passos permanecem dentro da teoria, ou melhor, cada um deles p o d e ter
sua teoria desenvolvida. A teoria, no primeiro caso, nós podem os cha­
mar de ciência no sentido próprio, com o por exem plo a física teórica; a
teoria no segundo caso, logicamente (se bem que nem sempre efetiva­
mente) derivada da primeira, nós podemos chamar de ciência técnica ou
aplicada - a qual, com o não podem os esquecer, sempre é ainda “teoria”
em referência ao próprio agir, porque apresenta as regras específicas do
agir com o partes de um todo racional, e não toma decisões (exemplo: as
ciências da engenharia). A execução concreta mesma não tem nenhuma
teoria própria, nem pode ter. Apesar de aplicar a teoria, ela não é sim­
plesmente derivada da teoria, mas envolve uma decisão baseada no j u l ­
g a m e n to ; e não existe uma ciência do julgamento (tam pouco quanto
uma ciência da decisão) - isto é, julgamento não pode ser substituído
por ciência, nem ser transformado em ciência, por mais que possa uti li-
zar-se dos resultados, e mesm o das disciplinas intelectuais da ciência, e
por mais que ele próprio seja uma espécie de conhecimento. Julgamen­
to, diz Kant, é uma capacidade da subsunção do particular sob o univer­
sal; e com o a razão é a capacidade do universal, e a ciência o acionamen­
to desta capacidade, o julgamento que se ocupa com o particular encon-
tra-se necessariamente fora da ciência, sendo precisamente a ponte que
liga as abstrações da razão com a concretude da vida.

No primeiro estágio, o da ciência pura, a forma de afirmação é cate­


górica: A é P, B é P, ... No segundo, o estágio aplicado, a forma é hipotéti­
ca: se for P, então há de ter sido ou A ou B ... Nas considerações do julga­
mento prático, a forma afirmativa é problemática: as coisas particulares
f, g, ... que estão disponíveis na situação, cumprem talvez (e não: cum­
prem em parte) as exigências dos universais A ou B ou...; por isso bem
que elas podem (não: elas podem em parte) ser apropriadas para produ­
zir P. Invenção é tipicamente uma tal combinação de julgamento concre­
to com ciência abstrata.

É nesta esfera do julgamento concreto que o uso prático da teoria en­


contra seu lugar. De onde se segue que o uso da teoria não fornece ne­
nhuma teoria de si mesmo: se se tratar de um uso iluminado, sua luz pro­
cede da reflexão, e não é a bondade de uma teoria que garante um bom
sentido para o particular, de que a reflexão tem necessidade. E este co­
nhecimento que é capaz de julgar o uso é diferente, não só do conheci­
mento da teoria usada no caso concreto, mas também do de toda teoria
em si, e se adquire ou se aprende por caminhos diferentes dos da teoria.
Por esta razão, Aristóteles negava que pudesse existir uma ciência de po­
lítica e ética prática; o ortde, qua n d o, para quem ... não se deixa reduzir
a princípios gerais. Assim, existe teoria e uso da teoria, mas não existe
uma teoria do uso da teoria.

Na extremidade oposta da escala encontra-se o conhecimento dos


fins, que repetidamente abordamos, e de que hoje não sabemos se ele
admite uma teoria, com o antes claramente parecia ser o caso. Só este
conhecimento permitiria que se distinguisse validamente entre uso digno
e indigno, desejável e não-desejável, permitido e não-permitido da ciên­
cia, ao passo que a ciência mesma não permite senão a distinção de seu
uso certo ou errado, adequado ou inadequado, eficaz ou ineficaz. Mas é
com esta ciência, de que não se duvida, que precisamos ocupar-nos ago­
ra, e interrogar-nos quais as peculiaridades que habilitam interiormente
este tipo de teoria ao uso do mundo das coisas.

Sobre a formação da teoria, um de seus mestres do século 19, Hein-


rich Hertz, teve a dizer o seguinte: “ Nós sempre criamos dentro de nós
imagens aparentes ou símbolos dos objetos externos, e o fazem os de tal
form a que as conseqüências logicamente necessárias das imagens
sempre sejam mais uma vez imagens das conseqüências naturalmente
necessárias dos objetos representados”4. Esta é uma afirm ação elíptica:
pois as “ imagens aparentes ou sím bolos” , qüe são criados e usados,

4 . H . H e rtz. Die Prinzipien der Mechanik in neuem Zusammenhanqe darqestellt. L e ip -


zig, 1 8 9 4 , p. 1.
não são im agens dos objetos externos imediatos, com o pedras e árvo­
res, nem m esm o de classes inteiras ou de tipos genéricos destes obje­
tos, e sim símbolos para os produtos residuais de uma análise esp ecu ­
lativa dos objetos dados e de seus estados e relações - produtos resi­
duais que não admitem outra coisa senão uma representação simbóli­
ca, mas que são admitidos hipoteticamente com o servindo de base para
os objetos, e em seguida tratados com o se eles m esm os fossem “ obje­
tos externos” , em substituição aos objetos originais.

A palavra-chave aqui é “análise” . Análise é a característica que distin­


gue a pesquisa física desde o século 17, mais precisamente a análise da
natureza em ação em seus fatores dinâmicos mais simples. Estes fatores
são expressos em valores uniformes e quantitativos, para que possam ser
introduzidos, ligados e transformados em equações. O método analítico
pressupõe, portanto, uma redução o n to ló g ica original da natureza: em
sua aplicação à natureza esta é anterior à matemática ou às outras formas
simbólicas, üma vez entregues à elaboração, os produtos residuais desta
redução (mais precisamente, suas medidas), a matemática pode então, a
partir deles, com eçar a reconstruir fenômenos complexos, de uma manei­
ra que vai além dos dados originais da experiência para fatos ainda não
observados ou ainda a ser esperados ou produzidos. (Os três casos repre­
sentam descoberta, predição e orientação técnica.) Que a natureza pres­
te-se a esta espécie de redução, foi esta a descoberta fundamental, na rea­
lidade a expectativa fundamental no início da física mecânica.

Nesta redução, as “formas substanciais” , isto é, a totalidade com o


causa autônoma no que se refere às suas componentes, e por conse­
guinte com o razão do próprio vir-a-ser, compartilharam do destino das
causas finais. Na física newtoniana, a totalidade integral da forma, sobre
a qual se baseava a ontologia clássica e medieval, foi dividida em fatores
elementares, para os quais o paralelograma das forças é um símbolo grá­
fico adequado. A presença antecipada do futuro, entendido com o poten­
cialidade do vir-a-ser, consiste agora na possibilidade de calcular a opera­
ção das forças que em uma dada configuração podem ser distinguidas
com o encontrando-se em ação. Não mais uma coisa original por direito
próprio, a forma é agora o com promisso corrente entre os processos bá­
sicos na matéria agregada. Não foi tanto a maçã a cair que foi elevada ao
grau de movimento cósmico, quanto este último que foi rebaixado ao
plano da maçã que cai. Isto estabelece uma nova unidade do universo,
porém de uma maneira diferente da cosm ologia grega: a aristocracia da
forma é substituída pela democracia da matéria.

Quando, de acordo com esta “dem ocracia” , o todo são meras somas,
então suas qualidades aparentemente autênticas são apenas o resultado
de uma combinação quantitativa mais ou menos complicada de certos
substratos e de sua dinâmica. De maneira geral, a com posição e o grau de
com posição ocupam o lugar de todas as outras distinções ontológicas.
Assim, para fins de explicação, as partes são convocadas a prestar contas
do todo, e isto significa que o primitivo deve responder pelo mais diferenci­
ado, ou, numa maneira de falar mais arcaica, o inferior pelo superior.

Se não existe uma hierarquia do ser, mas apenas disfarces de um


substrato uniforme, então toda explicação tem que com eçar de baixo
para cima, podendo de fato deixar o nível do chão. O mais elevado é o
mais baixo disfarçado, onde o disfarce é produzido pela composição: com
a análise do último, o disfarce se dissolve, e a aparência do mais elevado
fica reduzida à realidade do elementar. Da física, este esquema penetrou
em todas as províncias do saber, estando agora tão bem acomodado na
psicologia e na sociologia quanto nas ciências naturais, onde teve origem.
O reino das paixões já não ê mais caracterizado com o ausência da razão,
mas a razão caracterizada com o disfarce e com o serva das paixões. A vi­
são do mundo transcendente de uma sociedade não é outra coisa senão a
superestrutura ideológica (e com isto o disfarce) de seus interesses vitais,
que refletem necessidades orgânicas condicionadas pela constituição fí­
sica. O rato no labirinto nos diz o que nós somos. Em toda parte, o superi­
or é explicado pelo inferior, salientando-se na análise com o sua verdade.

Mas antes de qualquer efetiva aplicação, esta análise ontológica pos­


sui em si uma implicação tecnológica. Esta última só é possível graças
ao aspecto manipulativo inerente à idéia teórica de modelo da ciência
moderna com o tal. Quando se mostra com o as coisas são compostas
por seus elementos, fundamentalmente se está mostrando também que
elas podem ser compostas destes elementos. Compor, ao contrário de
criar, é essencialmente o reunir tais matérias existentes de antemão, ou o
realocar partes preexistentes. De modo semelhante, o conhecimento cientí­
fico é essencialmente uma análise da distribuição, isto é, das condições
sob as quais os elementos estão relacionados entre si, não estando, por
conseguinte, onerado com a tarefa de com preender a essência mesma
desses elementos. O tema que a ciência pode e precisa perseguir não é o
que eles são em si, mas sim com o se comportam sob estas condições es­
pecíficas, isto é, nestas relações de combinação. Esta restrição é básica
para o conceito moderno do conhecimento, pois, ao contrário das natu­
rezas substanciais, as ordenações de condições podem ser reconstruí­
das, ou mesm o construídas livremente, em modelos mentais, desta for­
ma permitindo uma compreensão. E também, diferentemente das “natu­
rezas” , elas podem de fato ser repetidas ou modificadas em uma imita­
ção humana da natureza, isto é, na técnica, desta maneira permitindo
uma manipulação. As duas coisas, o compreender tanto quanto o com ­
por, têm que ver com relações e não com essências. De fato, esta espé­
cie de com preensão é ela própria uma espécie de produção imaginária,
ou de imitação de seus objetos, e esta é a verdadeira razão que permite
a aplicação tecnológica da ciência natural moderna.

No início do século 18, Vico proclamou o princípio de que o ser hu­


mano só pode compreender aquilo que ele próprio fez. Daí ele concluiu
que não é a natureza que, com o criada por Deus, se opõe ao ser huma­
no, mas sim a história, que é criatura do ser humano, que pode por este
ser compreendida. Só um fa ctu m é que pode ser um verum - só o que
foi feito é que pode ser verdade. Porém, ao opor este princípio à ciência
natural cartesiana, Vico não percebeu a circunstância de que o princípio
- contanto que ampliado do “ter sido feito” para o “ poder ser feito” - apli-
ca-se melhor à natureza do que m esm o à história (onde de fato sua vali­
dade não é tão certa). Pois, com o mostramos, o conhecimento de um
processo natural de acordo com o esquema mecânico não tem a ver
com as partes da situação criadas por Deus - com a natureza interna das
substâncias que dela tom am parte - mas sim com as condições variá­
veis que - pressupostas as substâncias - determinam o processo. Repe­
tindo estas condições, em pensamento ou em uma manipulação efetiva,
pode-se reproduzir o processo sem produzir o substrato. De entender o
substrato o ser humano é tão incapaz quanto de criá-lo. Mas de criá-lo até
m esm o a natureza é incapaz, já que, uma vez criada em seus com ponen­
tes substanciais, daí por diante ela não pode “criar” senão manipulando
estes componentes, isto é, reagrupando as relações. Condições e rela­
ções são o veículo para as produções não criativas da natureza criada, da
mesma forma que para o conhecimento da natureza pelo ser humano
criado, e também para a imitação técnica da maneira de produção da na­
tureza. Era este o sentido da célebre máxima de Bacon, de que a nature­
za só pode ser dominada quando se lhe obedece. As maneiras quase-téc-
nicas de produção da natureza - ou a natureza com o produtora e produ­
to dela própria - são seu único aspecto que pode ser conhecido e imita­
do, enquanto as essências em si não são elas próprias reconhecíveis,
porque não podem ser produzidas. A parábola da “oficina da natureza” ,
da qual a ciência deve fornecer uma visão para descobrir sua maneira de
proceder, expressa popularmente o pensam ento de que a distinção en­
tre natural e artificial, por mais fundamental que tenha sido para a filoso­
fia clássica, deixou de ter sentido. “ Não vejo nenhuma diferença” , escre­
ve Descartes, “entre as máquinas feitas por artesãos e as diferentes espé­
cies de corpos que são com postos unicamente pela natureza... Todas as
regras da mecânica pertencem à física, de modo que todas as coisas pro­
duzidas pela arte são com isto também naturais” 5. No m esm o espírito,
Descartes pôde dizer: “ Dai-me matéria e movimento, e eu farei o mundo
novamente” - uma palavra impossível de ser encontrada na boca de
qualquer pensador pré-moderno. Conhecer uma coisa significa saber
com o ela é feita ou com o pode ser feita, e portanto estar em condições
de repetir, ou de variar ou de antecipar, o processo de produção. Não im­
porta se o ser humano, com as forças de que dispõe, sempre pode efeti­
vamente disponibilizar os fatores que constituem as condições necessá­
rias; se, por conseguinte, ele é capaz de produzir o resultado desejado. O
ser humano não pode reproduzir uma nebulosa cósmica, mas, admitin­
do-se que ele saiba com o uma nebulosa é produzida na natureza, em
princípio ele estaria em condições de produzi-la, se fosse suficientemente
grande e poderoso - e é isto o que significa ter um conhecimento das ne­
bulosas cósmicas. Expresso em forma de senha, o moderno conheci­
mento da natureza, diferentemente do antigo, é um “saber c o m o ” , e não
um “saber quê” , desta maneira tornando verdadeira a afirmação de Ba­
con de que saber é poder.

Entretanto isto não é ainda o todo do aspecto tecnológico próprio da


teoria científica. Teoria é um fato interior e um agir interior. Mas sua relação
com o agir exterior, além de meio para o fim em aplicação extracientífica,
pode ser também o contrário: isto é, tanto o agir pode ser usado a serviço da
teoria com o a teoria estar a serviço do agir. Alguma relação de complemen­
taridade entre estes dois aspectos é sugerida desde o início: é perfeitamente
possível que só possa vir a ser um meio para a prática a teoria que tenha a
prática entre seus próprios meios. Que este é o caso, fica claro quando con­
sideramos o papel do experimento no processo científico.

5 . Princípios da filosofia IV, a rt. 2 0 3 . M a s s e rã o “to d a s as re g ra s d a m e c â n ic a ” a m e s m a


c o is a q u e todas as re g ra s d a fís ic a ”? A v e rd a d e , fa c ilm e n te a d m itid a , d e q u e as re g ra s d a
m e c â n ic a “p e r te n c e m ” à fís ic a , p o d e e n c o b rir a in s in u a ç ã o b a s ta n te d ife re n te d e q u e elas
e s g o ta m o c ó d ig o d e re g ra s d a fís ic a (is to é, d a n a tu re z a ). A p a s s a g e m c o m p le ta dos
Princípios, d e o n d e p r o v é m a c ita ç ã o a c im a , é d e c a p ita l im p o r tâ n c ia c o m o a n ú n c io d e
u m p rin c íp io r e a lm e n te n o v o , q u e d e s d e e n tã o p a s s o u a d o m in a r a c iê n c ia e a filo s o fia
n a tu ra is . S u a s im p lic a ç õ e s té c n ic a s s ã o ó b v ia s . A n o v a d o u trin a d e u m a n a tu re z a u n ifo r­
m e , q u e s u rg e a q u i d o s e s c o m b ro s d o e d ifíc io m e d ie v a l d o m u n d o , a d m ite in g e n u a m e n te
a ig u a ld a d e d e m a c r o e m ic r o fo r m a s n o a c o n te c e r n a tu ra l, o q u e n ã o fo i c o n fir m a d o p e la
fís ic a m o d e rn a . P o ré m , m e s m o se a b s tra in d o d e d e s c o b e rta s p o s te rio re s , se ria p o s s ív e l -
p o d e r-s e -ia d e s d e o p rin c íp io o b je ta r - , p o r ra z õ e s ló g ic a s , q u e d o fa to d e as m á q u in a s
tr a b a lh a r e m in te ir a m e n te s e g u n d o os p rin c íp io s d a n a tu re z a n ã o se s e g u e q u e a n a tu re z a
n ã o te n h a o u tra s fo rm a s d e p r o c e d im e n to a lé m d a q u e la s q u e o h o m e m é c a p a z d e e m ­
p re g a r e m su as c o n s tru ç õ e s . M a s e ra p re c is a m e n te es ta v is ã o d a n a tu re z a (n ã o a v is ã o
in o c e n te d a m e c â n ic a h u m a n a ) q u e c o n s titu ía a v e rd a d e ira c o n v ic ç ã o d e D e s c a rte s : seu
e s p írito , q u e ia m u ito a lé m d e u m m e r o e x p e r im e n to c o m a n a v a lh a d e O c c a m , e x p lic a a
re la tiv a c o n fia n ç a d a c ita ç ã o a s e g u ir n o te x to .
A aliança antevista por Bacon entre o conhecer e o modificar o mun­
do é de fato muito mais profunda do que o conseguiria a mera delegação
de resultados teóricos para uso prático, isto é, a aplicação da ciência
p o s tfa c tu m . Se tiver que apresentar resultados de importância prática, o
próprio processo da ciência terá que ser prático, isto é, experimental. De­
vemos, diz Bacon, “forçar a natureza” e fazer alguma coisa para obrigá-la
a entregar seus segredos na resposta que nós provocamos, “já que a na­
tureza das coisas se revela mais sob a tortura da arte do que em sua natu­
ral liberdade” . Assim, sob dois aspectos a ciência moderna está ligada ao
modificar ativo das coisas: na pequena escala do experimento ela provo­
ca a variação, com o meio necessário para o conhecimento da natureza,
isto é, usa a prática para os fins da teoria; e a teoria assim adquirida está
habilitada às modificações de larga escala de sua aplicação técnica - e a
elas convida. A aplicação técnica, por sua vez, passa a ser uma fonte de
conhecimentos teóricos, que não poderiam ter sido alcançados em esca­
la laboratorial - abstraindo-se do fato de que ela fornece os instrumentos
para um trabalho laboratorial mais eficiente, que por sua vez fornece
também novos acréscimos à ciência, e assim por diante, em um ciclo
contínuo. Desta forma a fusão de teoria e prática torna-se inseparável,
numa medida que não é manifestada pelas meras expressões “ciência
pura” e “ciência aplicada” . Provocar mudanças na natureza com o um
meio para conhecê-la melhor e com o resultado deste conhecimento, são
duas coisas inseparavelmente interligadas, e uma vez que esta com bina­
ção esteja atuante, já não importa mais se a determinação pragmática
da teoria (por exemplo por parte do cientista “puro” ) é ou não é aceita ex­
pressamente. O próprio processo da aquisição do conhecimento, atra­
vés da manipulação, leva as coisas a serem conhecidas, e esta origem,
por si mesma, faz com que os resultados teóricos sejam adequados a
uma aplicação. Possibilidade esta a que não se pode resistir - até m esm o
no interesse da teoria, para não falar do interesse prático, quer estes se­
jam ou não sejam inicialmente visados.

VI

Mas ao mesmo tempo a pergunta sobre qual seja o verdadeiro fim hu­
mano, se a verdade ou a utilidade, permanece inteiramente em aberto
pelo fato de as duas andarem juntas, não sendo substancialmente afetada
pela visível preponderância no presente do elemento prático. A resposta é
determinada pela imagem do ser humano, de que nós não temos certeza.
O que é certo é o que foi aprendido antes, que se o fim é a “verdade” , não
se trata de uma verdade de pura contemplação. A descoberta moderna de
que conhecer a natureza exige que nós a forcemos - uma descoberta que
vai além da ciência natural - corrigiu em definitivo a visão “contemplativa”
de Aristóteles a respeito da teoria. Evidentemente, no ideal da contempla­
ção havia algo mais em jo go do que apenas uma concepção do método
teórico: deve estar em jo go algo mais do que uma correção da última, que
tenhamos que deixar para trás - um deixar para trás tanto mais difícil de
aceitar quanto mais for entendida sua necessidade.

A convicção de Aristóteles era que, em última análise, nós agimos


para o contemplar, e não que contemplamos para o agir - ao que moder­
namente gosta-se de comentar que isto não reflete outra coisa a não ser a
atitude de uma classe ociosa em uma sociedade de escravos. Em nossa
atmosfera pragmática, é raro que nos demos ao empenho de perguntar se
Aristóteles - quer ele tenha ou não tenha sido levado por preconceitos so­
ciais - não poderia estar com a razão. Afinal de contas, ele não era surdo
às exigências da “realidade”. Aristóteles diz expressamente que as neces­
sidades vitais precisam ser garantidas primeiro, atribuindo esta tarefa à ci­
vilização (isto é, à formação de uma sociedade de divisão do trabalho). Só
que ele via esta tarefa com o sendo finita, e não com o infinita ou irrealizá-
vel, com o poderia parecer por outras atitudes e experiências. Mesmo
com estas, porém, seria bom levar em conta as reflexões dos gregos sobre
este assunto, com o fim de colocarmos sob uma perspectiva correta o di­
namismo contemporâneo da vida ativa. Certas considerações simples ain­
da serão vistas com o acertadas. É irrefutável, por exemplo, o argumento
de Aristóteles de que nós fazemos guerra para obter paz, e se generalizar­
mos isto dizendo que fazemos o esforço a fim de obter repouso, será uma
coisa pelo menos extremamente razoável6. Obviamente, o repouso a ser
desfrutado não pode consistir na omissão de toda espécie de atividade,
mas deve ser ele próprio uma forma de vida, isto é, deve ter seu conteúdo
em uma atividade própria - que para Aristóteles é o “pensar” . - Tendo
pago a este ponto de vista o tributo que ele merece, resta ainda dizer que
ele se baseia sobre visões, tanto da civilização quanto do pensamento, que
à luz da experiência moderna tornaram-se questionáveis no tocante à civi­
lização e insustentáveis no tocante ao pensamento.
No que diz respeito à civilização, Aristóteles considera conveniente
que, quando alcançar um equilíbrio sustentável entre necessidades legíti­
mas e meios para sua satisfação, ela possa aplicar o excesso para tornar
possível a vida filosófica, a vida do pensar - o verdadeiro fim do ser huma­
no. Hoje nós temos boas razões para duvidar já da mera possibilidade de
alcançar tal equilíbrio. Por isso não vemos meio melhor para este “exces­
so”, ou não temos outra escolha, senão realimentá-lo no processo de rea­
justar o desequilíbrio, sempre novamente provocado, e cujo resultado é o
progresso: um automatismo auto-alimentado, em que a própria teoria está
incluída com o fator e com o função, e do qual não podemos ver (nem mui­
to menos lhe podemos impor) limites. Mas se o processo da civilização é
infinito, então ele exige o cuidado constante dos melhores espíritos - isto
é: sua constante ocupação na “caverna”.
Mas no que diz respeito ao próprio “pensamento”, a moderna aventu­
ra do saber corrigiu a visão grega sobre o mesmo, sob um aspecto dife­
rente do de sua possível separação da prática, e enquanto conseguimos
enxergar, o fez de maneira definitiva. Para os gregos, seja Platão ou Aris­
tóteles, o número das coisas a serem realmente conhecidas é finito, e a
apreensão dos primeiros princípios, quando alcançada, é definitiva -
m esm o necessitando periodicamente de uma revisão, ela não está sujei­
ta ao envelhecimento por uma nova descoberta ou por uma melhor abor­
dagem. Para a moderna experiência do conhecimento, não se pode ima­
ginar que um estado qualquer da teoria, inclusive o sistema conceituai
dos primeiros princípios que a regem, seja mais do que uma construção
temporária, destinada, quando todas as implicações forem comparadas
com todos os fatos, a ser superada pela próxima visão a que ela própria
abriu as portas. Noutras palavras, o caráter h ip o té tic o da ciência moder­
na qualifica cada uma de suas realizações explicativas e integrativas co­
mo ponto de partida para o levantamento de novos problemas, e não
com o garantia de uma visão conclusiva do objeto.

Na raiz desta diferença se encontra, naturalmente, a diferença entre o


moderno nominalismo, com sua compreensão do caráter tentativo de
todo simbolismo, e o realismo clássico. Para este último, os conceitos re­
fletem as formas auto-existentes do ser e se lhes assemelham, e estas não
se modificam; para o primeiro, os conceitos são criações do espírito hu­
mano, o esforço de um sujeito temporal, e por isso, com o este, sujeitos à
mudança. O elemento de infinitude na ôscopía grega refere-se à potencial
infinitude da satisfação no contemplar o eterno, o que nunca muda; o ele­
mento do infinito na teoria moderna refere-se ao caráter incompleto do
processo em que as hipóteses tentadas são refutadas e assumidas em in­
tegrações simbólicas mais elevadas. Desta forma, a idéia de um progresso
potencialmente infinito perpassa o moderno ideal do conhecimento com a
mesma necessidade que o moderno ideal da civilização7; e assim vale que,
mesmo abstraindo do mútuo envolvimento de ambos, o ideal contemplati­
vo tornou-se inválido em si, ou mesmo ilógico, pela mera ausência daque­
las pretensas coisas definitivas, dos “supremos objetos” permanentes em

7 . E , c o m o ela, p e n e tra a m o d e r n a id é ia da n a tu re z a ou re a lid a d e : já a p ró p ria te o ria d o


ser, n ã o a p e n a s a d o c o n h e c im e n to e d o h o m e m , foi a rra s ta d a p a ra o s im b o lis m o d o p ro -
* i ’V

cuja compreensão o conhecimento chega ao repouso, passando à busca


da contemplação.

VII

Parece, portanto, que prática e teoria conjuraram-se para nos entre­


gar a um incessante dinamismo, e a nossa vida, privada de um presente
duradouro, sem pre está voltada para o futuro. O que Nietzsche chamou
“o soberano vir- a-ser” , parece nos haver agarrado pelo pescoço, e a teo­
ria, longe de possuir um ponto de referência mais distante, está atrelada
ao seu carro, amarrada à sua frente ou arrastada atrás dele - qual das
duas coisas, difícil de distinguir-se na poeira do caminho, e a única cer­
teza é que quem dirige o carro não é a teoria. Muitos se rejubilam com a
onda que os arrasta, e desprezam perguntar “ para o n d e ? ” ; valorizam
a mudança pela mudança, o infindo avanço da vida para o sem pre
novo e o desconhecido, o dinamismo em si. Mas para que a mudança
seja um valor, certamente é importante saber que coisa é que está mu­
dando (m esm o abstraindo de saber para quê); e de alguma maneira a
sabedoria que lhe serve de fundamento tem que poder ser definida com o
aquela natureza do “ser humano com o ser hum ano” , que faz a realiza­
ção sem fim de suas possibilidades na mudança aparecer com o uma
empresa que com pense o esforço. Então alguma im agem se esconde
na afirmação da mudança em si. E se uma im agem tam bém uma nor­
ma, e se uma norma tam bém a liberdade da negação, não apenas a en­
trega da afirmação, esta liberdade transcendendo ela própria o fluxo e
apontando para outra espécie de teoria.
Esta teoria teria que assumir novamente a pergunta pelos fins, que
deixa em aberto a radical indefinição do conceito de “felicidade” , e onde
a ciência, entregue à aquisição dos meios para a felicidade, não tem direi­
to a ter voz. A advertência a que a ciência seja aproveitada no interesse
do ser humano, no interesse de seu maior bem, permanece vazia en­
quanto não for conhecido qual é o maior bem do ser humano.
Tendo diante dos olhos a ameaça de uma catástrofe, com o a temos
hoje em mais de um aspecto, nós podem os nos sentir dispensados de in­
vestigar os fins, já que o evitar a catástrofe é sem dúvida nenhuma um
primeiro alvo, que provisoriamente suspende qualquer discussão sobre
um fim último. Talvez nós estejamos condenados a conviver por muito
tempo com situações de tão urgente necessidade por nós mesm os cria­
das, e tudo o que podem os fazer talvez seja apenas buscar estacas de
apoio e antídotos de curto prazo, e não o planejamento para uma vida
boa. A estaca de apoio certamente não necessita da filosofia. Para en­
frentar a situação de necessidade que constantemente retorna, para isto
devia bastar a espécie de conhecimento que ajudou a criá-la, a ciência
tecnológica, pois esta sempre ajudou através do êxito com que defron­
tou-se com o que a precedeu.
Mas se confiarmos sempre totalmente na mecânica auto-reguladora
da interação ciência-técnica, ou se a ela nos entregarmos, nós teremos
perdido a batalha em torno do ser humano. Pois quando sua aplicação é
regida unicamente por sua lógica própria, na realidade a ciência não deixa
em aberto o sentido de felicidade: ela já prejulgou a resposta, apesar de
sua própria isenção dos valores. O automatismo do seu uso - na medida
em que este vai além da resposta à situação de necessidade que criou - já
estabeleceu em princípio qual é o conteúdo da felicidade: deixar-se levar
ao em prego das coisas. No cam po de forças destes dois pólos, o da neces­
sidade e o de deixar-se levar, o da inventividade e o do hedonismo, que é
formado pelo poder sempre crescente sobre as coisas, a direção de todos
os esforços, e com isto a pergunta pelo bem, corre o risco de ser decidida
de antemão. Mas não podemos deixar que esta pergunta seja decidida na
estrada da omissão.
Assim, mesmo sob a pressão das necessidades que nos ameaçam,
nós precisamos ter uma visão que as ultrapasse, para que possamos en­
frentá-las com algo mais do que apenas seus próprios pontos de vista. Já
seu próprio diagnóstico (quando não se trata de um extremo perigo)
pressupõe pelo menos uma idéia daquilo que não seria uma situação de
necessidade, assim com o a doença pressupõe uma idéia de saúde. E a an­
tevisão do êxito, inerente a toda luta contra o perigo, a miséria e a injusti­
ça, tem que olhar de frente a pergunta sobre a vida que convém ao ser
humano, depois de as virtudes da necessidade - coragem, com paixão e
justiça - haverem realizado sua obra.

VIII

Quaisquer que sejam as visões daquela “ outra” teoria a que se dá o


nome de filosofia, e o que quer que possa ser por ela aconselhado - o uso
da teoria científica não pode parar, pois deter seu em prego significa deter
a própria teoria; e o curso do saber não pode parar - se não pelos lucros
que traz, ao menos pelos custos que exigiu. E nem a honestidade nem a
lógica também deixam aberto o caminho de volta para a posição clássi­
ca. A teoria passou a ser ela mesma um processo, e, com o vimos, um
processo que envolve continuamente seu próprio uso prático; e não é
possível “ possuí-la” a não ser desta maneira. Por isso, ciência é ao mes­
mo tem po teoria e arte. Mas enquanto nas outras artes a posse e o uso da
habilidade são duas coisas diferentes, de modo que quem as possui tem
a liberdade de aplicar ou não aplicar, e de decidir quando aplicá-la; a ha­
bilidade da ciência técnica com o posse coletiva gera por si própria o seu
uso. Chega-se assim a que o hiato entre dois estádios em que julgam en­
to, sabedoria e liberdade têm seu espaço livre de ação se encolhe perigo­
samente: a habilidade toma posse do que a possui.

A teoria passou a ser uma função do uso na mesma medida em que


o uso é uma função da teoria. A partir dos resultados práticos da aplica­
ção, novas tarefas são apresentadas à teoria, as soluções mais uma vez
postas em prática no uso, e assim sucessivamente. Desta maneira a teo­
ria penetrou profundamente na prática. Com este mecanismo de feed-
b&ck a teoria trouxe h exòstenc)# d /t> s??iss?<J<7 c?<? ri<z<z<zssc-
dade - por assim dizer uma segunda natureza em lugar da primeira, de
cuja necessidade a teoria deveria livrar o ser humano. A esta segunda na­
tureza, que não é menos determinante por ser artificial, o ser humano
está tão sujeito quanto havia estado à natureza original, e a própria teoria
lhe está sujeita enquanto continua a ocupar-se com ela.

Se identificarmos o reino da necessidade com a “ caverna” de Platão,


então nem a teoria científica nos tira da caverna nem sua aplicação práti­
ca é um retorno à caverna. Desde o início a teoria jamais abandonou a
caverna. Ela é inteiramente da caverna, e por conseguinte não é nenhu­
ma “teoria” no sentido platônico. Não obstante, a possibilidade da teoria
exige, e sua realidade atesta com o condição necessária uma “transcen­
dência” no próprio ser humano. Uma liberdade para além das necessida­
des da caverna manifesta-se na relação com a verdade, sem a qual a
ciência não pode existir. Esta relação - uma capacidade, uma obriga­
ção, uma busca, em suma, aquilo que faz com que a ciência seja huma­
namente possível - é ela própria um fato extracientífico. Por isso, por
mais que em seus objetos e em seu uso a ciência seja da caverna, em sua
causa geradora na alma ela não é. Ainda continua existindo a “teoria
pura” com o dedicação à verdade e com o devoção ao ser, o conteúdo da
verdade. A ciência é a forma moderna desta dedicação.
Gnose, existencialismo e niilismo

No tratado a seguir, eu em preendo experim entalm ente a tentativa


de estabelecer uma com paração entre dois m ovim entos espirituais, ou
dois pontos de vista, ou dois sistemas, que aparecem muito distancia­
dos no espaço e no tem po, e que à primeira vista parecem incomensu-
ráveis por natureza: um deles, do mais esclarecido presente, conceituai,
subtil e em inentem ente “ m oderno” num sentido que ultrapassa o senti­
do cronológico da palavra; o outro, de um passado nebuloso, m itológi­
co e tosco - estranho até ao seu próprio tem po, e nunca acolhido na
respeitável sociedade de nossa tradição filosófica. Minha afirmação é
que os dois possuem alguma coisa em com um entre si, e que esta algu­
ma coisa é de tal natureza que seu estudo, tanto pela semelhança quan­
to pela diferença, pode levar a uma mútua e mais clara com preensão
de ambos.

Quando digo “ mútua” , estou me declarando por uma certa circulari­


dade do processo. O que pretendo dizer pode ser ilustrado por minha
própria experiência. Quando, há muitos anos, voltei-me para o estudo da
cjnose. observei que os pontos de vista, de certo modo a “ótica” que eu
havia adquirido na escola de Heidegger, colocavam -m e em condições de
ver aspectos do pensamento gnóstico que ainda não haviam sido vistos
até então. E fiquei cada vez mais impressionado com o aspecto familiar
daquilo que parecia tão estranho. Olhando para trás, inclino-me a crer
que foi a força de atração desta confusamente pressentida proximidade
que primeiro me atraiu para o labirinto gnóstico. Quando então, após
longa permanência em terras estranhas, eu retornei à minha própria ter­
ra, ao palco da filosofia contemporânea, verifiquei que o que eu havia
aprendido lá fora fez-me entender melhor as plagas de onde havia parti­
do. O haver-me ocupado amplamente com o niilismo antigo demons­
trou-se - pelo menos a mim - com o uma ajuda para determinar e classifi­
car o sentido do niilismo moderno, da mesma e exata maneira com o este
de início me havia equipado para a descoberta de seu obscuro primo no
passado distante. Ocorreu com igo que o existencialismo, que havia for­
necido os meios para uma análise histórica, ficou ele próprio envolvido
pelos resultados desta análise. A adequação de suas categorias para esta
matéria particular impelia a uma reflexão. Elas se adaptavam com o se ti­
vessem sido feitas sob medida. Não teriam, realmente, sido feitas talvez
sob medida? De início eu considerara aquela adequação simplesmente
com o um caso de sua pretensa validade universal, mostrando sua utilida­
de para explicar toda “existência” humana. Mas então surgiu em minha
mente a possibilidade de que a aplicação das categorias poderia, neste
caso, estar baseada, lá e cá, na espécie particular de “existência” - no
que havia fornecido as categorias, e no que a elas mostrou-se tão capaz
de responder.

Era a história de um adepto que se considerava dono de uma chave


capaz de abrir qualquer porta. Cheguei a uma determinada porta, experi­
mentei a chave, e eis que a chave dava na fechadura, e a porta abriu-se
amplamente. A chave, então, havia conservado sua força. Só mais tarde,
quando eu já havia desistido de acreditar em uma chave universal, foi
que com ecei a interrogar-me por que neste caso ela havia funcionado
tão bem. Teria eu acertado com a chave certa na fechadura certa? Se ti­
vesse sido este o caso, o que teria sido então que na relação de existenci-
alismo e gnose havia feito com que a última se abrisse ao toque do pri­
meiro? Com esta inversão da abordagem, as soluções em um terreno
convertiam-se em perguntas no outro, ao passo que de início pareciam
ser apenas a confirmação de uma verdade geral.

Portanto, o que havia com eçado com o o encontro entre um método


e uma matéria, terminou por conscientizar-me de que o existencialismp,
que em si pretende explicar as estruturas básicas da existência humana,
podendo assim servir como-princípio dojriétodo, era ele p i^ n o ^ a iilosa -
jia de uma determinada situação histórica da existência humana, Cima si­
tuação análoga (embora, sob outro aspecto, muito diferente) havia pro­
vocado no passado uma resposta análoga. Por isso não perde em serie­
dade a questão colocada pelo existencialismo; mas foi alcançada uma
perspectiva adequada, quando se reconheceu e se restringiu a algumas
de suas visões a situação por ele refletida.

Noutras palavras, as funções interpretativas se invertem e tor­


nam-se recíprocas - a fechadura se transforma em chave, e a chave em
fechadura. A solução “ existencialista” da gnose, tão bem justificada (ou
na medida em que é justificada) por seu êxito herm enêutico, é um con­
vite à sua contrapartida natural, à tentativa de um aleifura “gnóstica” do
existencialismo.
I - A solidão do ser humano: de Pascal a Nietzsche

Há mais de duas gerações, Nietzsche disse que estava chegando o ni-


ilismo, “o mais inquietante de todos os hóspedes” 1. Entrementes, o hós­
pede entrou em casa e deixou de ser hóspede, e no tocante à filosofia o
existencialismo tenta conviver com ele. Viver em tal companhia significa
viver em crise. Os inícios da crise remontam ao século 17, quando tomou
forma a situação espiritual do ser humano moderno.

Entre os aspectos desta situação existe um que foi pela primeira vez,
com todo o vigor de sua eloqüência, descrito por Pascal: a solidão do ser
humano no universo físico da cosm ologia moderna. “Tragado pela am­
plidão infinita dos espaços, de que eu nada sei e que nada sabe de mim,
eu estrem eço” 2. Que nada sabe de mim: mais do que o opressivo infinito
dos espaços e tempos cósmicos, mais do que a desproporção quantitati­
va, mais do que a minúscula dimensão do ser humano em sua pequenez
dentro desta imensidão, é o “silêncio” , ou a indiferença do universo em
relação ao ser humano, a ignorância das coisas humanas por parte da­
quilo onde todas as coisas humanas têm que desenrolar-se, que funda­
menta a solidão do ser humano no todo da realidade. Com o parte deste
todo, com o uma peça da natureza, o ser humano é apenas um caniço
que a qualquer momento pode ser quebrado pelas forças do universo
imenso, onde até a existência do caniço não passa de um acaso particu­
lar e cego - não menos cego do que o acaso de ele ser eventualmente es­
magado. Mas, com o caniço pensante, ele não é exatamente uma parce­
la desta soma, não pertence a ela mas é radicalmente diferente, inco-
mensurável: pois o extenso não pensa, assim ensinou Descartes, e a na­
tureza não é mais do que res extensa, isto é, corpo, matéria, dimensão
exterior. Quando esmaga o caniço, a natureza o faz sem pensar, ao pas-
sojque o caniço, o ser humano, mesm o ao ser esmagado, está pelo pen­
samento consciente de ser esm agado3. No mundo só ele pensa, não por­
que é parte do mundo, mas sim apesar de ser parte do mundo. Com o já
não participa mais de um sentido da natureza, mas apenas - através do
seu corpo - de sua condição mecânica, assim também a natureza não

1 . F . N ie tz s c h e . Der Wille zur Macht ( 1 8 8 7 ) , § 1.

2 . B . P a s c a l. Pensées. E d . B ru n s c h v ic g , fr. 2 0 5 . - Ibid.: “O e te rn o s ilê n c io d o s e s p a ç o s in ­


fin ito s m e a p a v o r a ”.
3 . Op. cit. fr. 3 4 7 : “O h o m e m é a p e n a s u m c a n iç o , o m a is fra c o d a n a tu re z a ; m a s u m c a ­
n iç o q u e p e n s a . N ã o é n e c e s s á rio q u e to d o o u n iv e rs o se a r m e p a ra o e s m a g a r: u m s o ­
p ro , u m a g o ta d á g u a , é s u fic ie n te p a ra m a tá -lo . M a s m e s m o q u e o u n iv e rs o o e s m a g u e , o
h o m e m é m a is n o b re d o q u e a q u ilo q u e o m a ta , p o rq u e e le s a b e q u e m o r r e e q u e o u n i-
participa de seus anseios internos. Precisamente aquilo, portanto, pelo
que o ser humano é superior a toda a natureza, aquilo que o distingue de
todos os outros seres, o espírito, não o_çoloca em uma posição mais ele­
vada na totalidade do ser, pelo contrário, representa antes o fosso in­
transponível que o separa do restante da realidade. Alienado da comuni­
dade do ser em um todo, precisamente sua consciência faz dele um alie­
nado no mundo, em todo ato de verdadeira reflexão dando testemunho
precisamente desta alienação.

E esta a situação do ser humano. Foi-se o cosmos, com cujo logos


imanente o meu logos podia sentir-se aparentado; foi-se a ordem do
todo, onde existe um lugar para o ser humano. Este lugar aparece agora
com o puro e incompreensível acaso. “ Espanto-me (prossegue Pascal
em fr. 205) que eu esteja aqui e não ali; não existe a mínima razão por
que aqui e não ali, por que agora e não depois.” A razão do “aqui” sem ­
pre havia existido enquanto o cosm os era a pátria natural do ser huma­
no, isto é, enquanto o mundo era entendido com o cosmos. Mas Pascal
fala deste “cantinho isolado do mundo” onde o ser humano “conside-
ra-se com o perdido” , deste “estreito calabouço em que ele se encontra -
quero dizer o universo”4. A extrema contingência de nossa existência no
todo priva do sentido do ser humano este todo com o possível sistema de
referência para a compreensão de nós mesmos.

Mas existe algo mais, nesta situação, do que o mero estado de ânimo
de quem não tem pátria, de quem está perdido e sente medo. A indiferen­
ça da natureza significa também que ela não tem qualquer relação com
fins. Excluída a teleologia do sistema das causas naturais, a natureza, ela
própria sem fins e sem objetivos, parou de sancionar qualquer possível fi­
nalidade humana, üm universo sem uma hierarquia interna do ser, com o
é o universo copernicano, deixa sem apoio ontológico os valores, e na
busca de sentido e valor o eu é inteiramente rechaçado de volta a si mes­
mo. O sentido não é mais encontrado e sim “dado” ; o valor não é mais
percebido na contemplação do ser objetivo, mas colocado com o um ato
de valor atribuído. Como função da vontade, minha única criação são os
fins. A vontade substitui a contemplação; a temporalidade do ato expul­
sa a eternidade do “ bem em si” . Esta é a fase nietzscheana da situação,

4 . Op. cit. fr. 7 2 : “se c o n s id e ra c o m o p e r d id o * n e s te c a n tin h o d is p e rs o d o m u n d o , e d e s te


e s tre ito c á rc e re o n d e se e n c o n tra - c o m is to q u e ro d iz e r o u n iv e rs o [a ele v is ív e l] - a p r e n ­
d e u ...”
* ü m a v a r ia n te d o te x to diz a p a rtir d a q u i: “n a e x te n s ã o in fin ita d a s co isa s, e e le se e s p a n ­
ta q u e n e s te e s tre ito c á rc e re o n d e ele se e n c o n tra , q u e a p e n a s lh e a b re u m a v is ta p a ra o
u n iv e rs o , q u e lhe a p a re c e e m g ra n d e z a tã o e s p a n to s a , o n d e ele m e s m o n ã o é m a is d o
em que o niilismo europeu vem à tona. Agora o ser humano se encontra
sozinho consigo mesmo.
O m u n d o - u m a p o rta
A m il m u d o s e f rio s d e s e r to s !
Q u e m p e rd e u
O q u e p e r d e s t e , n ã o p á r a e m lu g a r a lg u m .

Assim falou Nietzsche (em “ V ereinsam t” ), e concluiu a poesia com


as palavras: “Ai daquele que não tem pátria!”

Mas o universo de Pascal era ainda um universo criado por Deus, e o


ser humano solitário, privado de todos os apoios mundanos, podia ainda
estender seu coração para o Deus do além. Mas este Deus é essencialmen­
te um Deus escondido, um a gnostos theos, e não pode ser reconhecido
na estrutura da criação. O mundo criado não manifesta a intenção do cria­
dor por sua organização, nem sua bondade através da abundância das coi­
sas criadas, nem sua sabedoria pelo sentido das coisas, nem sua perfeição
pela beleza do todo - mas unicamente seu poder por sua grandeza pró­
pria, por sua imensidão no espaço e no tempo. Pois a extensão, ou a quan­
tidade, é o único traço essencial que restou ao mundo, e se de alguma ma­
neira o mundo demonstra algo de divino, isto se dá precisamente por esta
propriedade; e o que pode mostrar grandeza é poder5. Mas quando é supri­
mida a relação transcendente e o ser humano é deixado sozinho com o
mundo - e consigo m esm o -, também com o mundo, restrito agora a de­
monstração de poder, não lhe resta outra coisa senão uma relação de po­
der, o domínio. Em Pascal a contingência do ser humano, de sua existên­
cia aqui e agora, ainda é uma contingência segundo a vontade de Deus;
mas é esta vontade imperscrutável que me lança exatamente neste canti­
nho da natureza, e o “porquê” de minha existência não consegue encon­
trar uma resposta, tampouco quanto no existencialismo ateu. O deus
a b scon d itu s, de quem nada se pode predizer além da vontade e do po­
der, em seu distanciamento deixa com o herança o h o m o a b scon d itu s -
um conceito do ser humano caracterizado ainda unicamente por vonta­
de e poder, pela vontade do poder. Para esta vontade, até a natureza indi­
ferente é antes ocasião de atividade do que objeto real.

Em nosso contexto, no entanto, o ponto que importa é que, no fundo


da situação metafísica que levou ao existencialismo moderno e aos seus
aspectos niilistas, se encontra uma mudança na im agem da natureza,
isto é, do ambiente cósm ico do ser humano. Mas sendo assim, se a es­

5 . C f. P a s c a l, o p . cit. fr. 7 2 : “N u m a p a la v ra , a m a io r d e m o n s tra ç ã o s e n s ív e l d a o n ip o tê n ­


c ia d iv in a é q u e n o s s a im a g in a ç ã o p e rd e -s e n e s te p e n s a m e n to [a s a b e r, d a im e n s id ã o
sência do existencialismo é um certo dualismo, uma certa alienação en­
tre o ser humano e o mundo, surgida com a perda da idéia de um univer­
so amigo, em suma, um acosm ismo antropológico - então não é neces­
sariamente só a ciência natural moderna que pode criar esta condição.
Um niilismo cósm ico com o tal, quaisquer que sejam as circunstâncias
que o tenham provocado, forneceria as condições onde se poderiam de­
senvolver certos traços característicos do existencialismo. E a extensão
em que isto realmente se deu seria uma amostra da afirmada importân­
cia deste elemento para a posição existencialista.

Mas houve um m om ento na história ocidental, o único que me é co­


nhecido, em que, independentemente de tudo quanto se possa parecer
com ciência moderna, aquela condição tornou-se realidade e foi vivida
com a veem ência de um verdadeiro cataclisma. Este foi o m ovim ento
gnóstico em suas formas mais radicais, que impeliram os três primeiros
excitantes séculos da era cristã nas partes helenistas do Império Rom a­
no e no vizinho Oriente. Deles podem os esperar aprender algum a coi­
sa para com p reen d er o intranqüilizante fenômeno denominado niilis­
mo, e aqui eu desejo apresentar o resultado, na medida em que isto pode
ser feito com brevidade, e com todas as reservas inerentes à experiência
desta com paração.

II - A divisão gnóstica entre ser humano e mundo

Admitir uma analogia entre coisas historicamente tão distantes é me­


nos surpreendente do que de início possa parecer, se considerarmos que
em mais de um aspecto o mundo greco-romano dos primeiros séculos
Cristãos apresenta paralelos com a modernidade. Spengler chegou ao
ponto de considerar as duas eras com o “simultâneas” , no sentido de sua
teoria dos ciclos culturais. Segundo esta, nós estaríamos vivendo hoje no
início da época imperial. Seja com o for, o certo é que não é mera casuali­
dade que em muitas facetas da Antiguidade Tardia nós consigamos reco­
nhecer-nos a nós mesmos - bem mais, de qualquer maneira, do que na
Antiguidade Clássica. Uma destas facetas é a gnose. Na verdade, o reco­
nhecimento é dificultado aqui pela estranheza do simbolismo, que precisa­
mente a quem já tem algum conhecimento da gnose provoca o choque do
inesperado, porque sua fantasia exuberante parece não se adaptar bem à
sobriedade desiludida do existencialismo, nem seu caráter religioso ao ca­
ráter essencialmente irreligioso, isto é, pós-cristão, com o Nietzsche define
o niilismo moderno. Mas a comparação não deixa de ser útil.

Eu tenho que renunciar aqui a entrar nas amplas questões da pesqui-


que serve de base para o que vem a seguir não depende da resposta a es­
tas perguntas, e em parte ela pressupõe certas respostas, não se poden­
do deixar de mencionar que aquela visão global - que é a minha - não é
inconteste. Mas aceitemos isto com o uma hipótese para os objetivos do
presente estudo. Toda a variedade dos sistemas gnósticos tem que ser
ignorada aqui em favor de uma abstração do que é comum.

O traço comum que importa realçar é o clima radicalmente dualista


em que se baseia a atitude gnóstica com o um todo, e que perpassa unifi-
cadamente suas diferentes manifestações, mais ou menos sistemáticas.
As doutrinas dualistas se articulam sobre esta base prim ordialm ente
humana, e apaixonadamente vivida, de uma experiência do eu e do mun­
do. Existe o dualismo entre ser humano e mundo, e paralelamente a este o
dualismo entre mundo e Deus. Trata-se de um dualismo não de grandezas
complementares, mas sim de grandezas contrárias. E é um só, pois o dua­
lismo entre ser humano e mundo repete no plano da experiência o dualis­
mo entre mundo e Deus, dele se derivando com o seu fundamento teórico;
isto para não dizermos, inversamente, que a doutrina transcendente do
dualismo mundo-Deus procede da experiência imanente da divisão ho-
mem-mundo, com o sua base de experiência. Mesta tríplice polaridade, ser
humano e Deus estão unidos frente ao mundo, mas apesar desta comu­
nhão essencial eles estão separados exatamente pelo mundo. Para o
gnóstico isto é objeto do conhecimento revelado, e determina a escatolo-
gia gnóstica. Podemos enxergar aí a projeção de sua experiência básica,
que desta maneira criou sua própria verdade revelada. Antes de tudo en­
contramos aqui o sentimento de um fosso absoluto entre o ser humano e
aquilo onde o ser humano vive - o mundo. É este sentimento que é explici­
tado em form a de doutrina objetiva. Em seu aspecto teológico esta
doutrina afirma que o divino é estranho ao mundo e não tem nenhuma
parte no universo físico; que o verdadeiro Deus, absolutamente transmun-
dano, não é nem revelado pelo mundo nem por ele apontado, sendo por
isso o desconhecido, o totalmente outro, que não pode ser reconhecido
por nenhuma analogia mundana. Correspondendo a isto, o aspecto cos-
mológico da doutrina diz que o mundo é alheio a Deus, o alheio por exce­
lência; que ele não é criação da divindade mas sim de um princípio infe­
rior, cuja lei ele realiza. E, por último, o aspecto antropológico ensina
que o eu interior do ser humano, o pneuma ( “espírito” , em oposição a
“alma” = p s y ch e ) não é parte do mundo, não pertence à criação e ao do­
mínio da natureza, mas que dentro deste mundo ele é tão transcendente
e tão impossível de ser conhecido em categorias mundanas com o sua
contrapartida extramundana, o Deus desconhecido.

Que o mundo foi criado por alguém - por um ou por vários - é em ge-
gênese prevaleça de muitas maneiras uma necessidade quase impessoal
de um instinto sombrio. Mas quem quer que seja o criador, o ser humano
não lhe deve nenhuma devoção, nem respeito à sua obra. Sua obra, em ­
bora inclua misteriosamente o ser humano, não fornece, tampouco
com o sua vontade, a norma para o comportamento humano. Com um
poder que se afastou profundamente da divindade, e de que o ser huma­
no, com seu espírito mais próximo de Deus, pode prescindir, o criador do
mundo só conservou de Deus o poder de agir, porém de um agir sem com­
preensão e sem bondade. Assim o demiurgo criou o mundo na ignorân­
cia e na paixão.

Por isso o mundo é o produto, ou mesm o a encarnação da negação


do conhecimento. O que ele manifesta é poder não iluminado, por conse­
guinte poder mau, que surge do desejo de dominação e de opressão. A
ideologia desta vontade é o espírito do mundo, ao qual a com preensão
e o am or são alheios. As leis do universo são as leis desta dominação, e
não as da sabedoria divina. Desta forma o poder passa a ser o aspecto
mais importante do cosmos, e sua essência interior é ausência de conhe­
cimento (a g n o s ia ). O com plemento positivo de tudo isto é encontrado
no fato de o verdadeiro ser do ser humano ser o conhecimento - conheci­
mento de si e conhecimento de Deus. Isto determina sua situação com o
aquele que pode conhecer em meio à ausência de conhecimento, aquele
que brilha em meio às trevas, e esta relação constitui o fundamento de
sua alienação e de seu isolamento na amplidão sombria do universo.

Tal universo já não possui mais coisa alguma da honorabilidade do


cosm os helênico. üsam-se para ele epítetos de desprezo: “ Estes miserá­
veis elem entos” (p a u p ertin a h aec elem en ta ), “esta pequena cela do cri­
ador” ( h a ec cellu la cre a to ris )6. Ele ainda continua sendo co s m o s , or­
dem, mas uma ordem tirânica, sem parentesco com o ser humano. Seu
reconhecimento é uma mistura de temor e falta de respeito, de tremor e
desobediência. O estigma da natureza não se encontra em uma falta de
ordem, mas antes em sua totalidade que tudo penetra. A obra do demiur­
go, por menos iluminada que seja, é no entanto um sistema da lei. Mas a
lei cósmica, antes venerada com o expressão da razão, com que a razão
humana pode entrar em comunhão no ato do conhecimento, passa a ser
vista agora unicamente sob o aspecto da compulsão, que torna vã a li­
berdade do ser humano. O logos cósmico dos estóicos, que se identifica­
va com providência, é substituído pela h e im a rm e n e , destino cósmico es-
cravizador.
Este fado é exercido pelos planetas, ou em geral pelo mundo dos as­
tros, expoentes personificados da lei inexorável do universo. Melhor do
que em qualquer outro lugar, a mudança de sentimento em relação ao
cosm os é simbolizada pela desvalorização desta parte antes divinizada
do mundo visível, a esfera celeste. O céu estrelado, desde Pitágoras a
mais pura encarnação da razão no universo, e penhor de sua harmonia,
vê agora o ser humano com um olhar de poder e de estranheza. Não lhe
sendo mais aparentados, mas sempre poderosos, os astros transforma­
ram-se em tiranos - temidos, mas também desprezados, porque inferio­
res ao ser humano. Escutemos Plotino: “ Eles (assim diz ele, revoltado
contra os gnósticos), que consideram m esm o o ser humano mais baixo
digno do nome de irmão, negam indignados este nome ao sol, às estrelas
do céu e até m esm o à alma do mundo irmanada con osco!” (Enn. II 9,
18). Quem é mais “m oderno” , Plotino ou os gnósticos? “ Eles devem (diz
ele em outra passagem ) deixar de lado o drama dos horrores que estari-
am a realizar-se nas esferas celestes... Se já o ser humano possui valor
frente aos outros seres vivos, quanto mais eles (os astros), que não são
tiranos no universo, mas existem para lhe trazer ordem ( k o s m o s ) e re­
gra” (13). Ouvimos o que os gnósticos pensavam desta regra, que nada
tem a ver com a providência, e que é inimiga da liberdade humana. Sob
este céu desdivinizado e demonizado, o ser humano se conscientiza de
que está perdido. Por ele envolvido, entregue ao seu poder, mas superior
a ele pela nobreza de sua alma, ele sabe que não constitui uma parte do
sistema que o envolve, mas que é na realidade um prisioneiro.

E, com o Pascal, ele se assusta. Seu solitário ser-diferente, que se re­


vela neste estar-perdido, irrompe no sentimento do medo. Medo, com o
resposta da alma a seu estar-no-mundo, é um tema constante na literatu­
ra gnóstica. É a reação à descoberta daquela situação, ela própria de fato
um elemento desta descoberta: o medo sinaliza que o eu interior desper­
tou do sono ou da embriaguez do mundo. Pois o poder dos espíritos as­
trais ou do cosmos em si é não apenas o poder exterior da compulsão fí­
sica, mas muito mais o poder interior do sentir-se alienado ao mundo e a
si mesmo. Tom ando consciência de si próprio, o eu descobre ao mesmo
tempo que não se possui a si mesmo, mas que é o executor involuntário
de inspirações cósmicas. Conhecimento, gnose, pode livrar o ser huma­
no desta escravidão. Mas com o o cosmos se opõe à vida e ao espírito, o
conhecimento que salva não pode visar a inserção no todo cósm ico e na
obediência à sua lei, com o o faz a sabedoria estóica, que procura a liber­
dade na aceitação consciente do sentido de necessidade do todo. Para os
gnósticos, ao invés, a alienação entre o ser humano e o cosmos devia ser
levada ao extremo, a bem da redenção do eu interior, que só assim é ca­
paz de chegar a si. O mundo tem que ser vencido, e o mundo que se de­
gradou em um sistema de poder só pode ser vencido pelo poder. É ver­
dade que de forma alguma se trata de uma dominação tecnológica. Por
um lado o poder do mundo é vencido pelo poder do redentor, que chega
de fora e penetra na sua estrutura fechada, e por outro pelo poder do co­
nhecimento por ele trazido, que qual instrumento m ágico supera a força
dos astros, e através de suas ordens abre à alma uma vereda. Por mais di­
ferente que isto seja da moderna relação de poder entre o ser humano e a
causalidade do universo, no entanto existe uma semelhança ontológica
no fato formal de o confronto do poder com o poder ser a única relação
que ainda resta com o todo da natureza.

III - Colapso da doutrina da parte e do todo

Antes de prosseguirmos, perguntemos o que aconteceu aqui com a


velha idéia do cosmos com o um todo divinamente ordenado. Nada que se
parecesse com a ciência moderna participou desta desvalorização catas­
trófica e deste esvaziamento espiritual do universo. Basta observarmos
que na época da gnose este universo era profundamente demonizado.
Mão obstante, foi precisamente isto, ao lado da idéia do eu transcendente e
acósmico, que levou a peculiares analogias com os fenômenos do existen­
cialismo moderno. Se não foi a ciência e a tecnologia, o que foi então que
provocou para os grupos em questão o colapso da piedade cósmica clás­
sica, sobre a qual tanta coisa da ética antiga estava estabelecida?

Uma resposta completa a esta pergunta não é conhecida, e certa­


mente haveria de ser uma resposta complexa. Mas pelo menos um as­
pecto nós podem os indicar. O que temos diante de nós é a bancarrota da
antiga doutrina da parte e do todo, e não podem os decerto deixar de pro­
curar as causas sociais e políticas para isto. A doutrina da ontologia clás­
sica, segundo a qual o todo antecede as partes e é melhor do que elas, o
todo é aquilo para o qual as partes existem e onde elas encontram não
apenas a razão mas também o sentido de sua existência - na Antiguida­
de Tardia esta doutrina axiomática perdeu a base social de sua validade.
O exemplo vivo de um todo assim era a p ó lis , em cuja predominância a
breve duração do agir do indivíduo encontrava suas possibilidades, sua
medida e sua sobrevivência. No agir virtuoso, que do todo recebia sua
norma, o cidadão se realizava a si próprio, ao m esm o tempo que de ma­
neira excelente preservava a vida do todo. Com o desaparecimento das
cidades-estado nas monarquias hereditárias, e por fim no Império Roma­
no, a cidadania da pólis perdeu sua função construtiva e seu lugar espiri­
tual. Os novos grandes estados não se abriram a nenhuma relação sem e­
lhante. Mas o princípio axiomático sobreviveu à sua validade concreta. O
ca, substituíram a relação entre cidadão e pólis pela relação entre indiví­
duo e cosmos, com o o todo vivo maior. Com esta substituição, o princí­
pio clássico da parte e do todo foi teoricamente mantido em vigor, em bo­
ra já não refletisse mais a situação prática do ser humano. Agora o cos­
mos significa “a grande pólis dos deuses e dos hom ens” , e ser um cida­
dão do universo, um co s m o p o lite s , é a meta pela qual cada indivíduo
deve orientar-se. A causa do universo deve ser vista por ele com o sua pró­
pria causa (pois não pode mais chamar nenhuma outra de sua), ele deve
identificar-se diretam ente com ela através de todos os elos intermediá­
rios, e levar seu eu interior, seu lo g o s , a entrar em consonância com o
lo g o s do todo.

üm aspecto prático desta identificação consistia na afirmação e na


leal execução do papel atribuído pelo todo a cada um, neste exato lugar e
na qualidade exigida pelo todo. “ Desempenhar seu papel” - esta ima­
gem, assim com o a toda com paração com o teatro com que a ética estói-
ca gosta de trabalhar, mostra o caráter fictício da posição. O papel a de­
sempenhar substitui a verdadeira tarefa a ser realizada. Os atores no pal­
co agem com o se a ação fosse decidida por eles e com o se o que impor­
tasse fosse o êxito do seu agir. Mas o que realmente importa é apenas o
representar bem, e não mal, sem que exista verdadeiramente qualquer
relevância no resultado. Quando representam bem, os atores são seus
próprios espectadores.

A o se falar do papel a ser desempenhado, nisto está escondida uma


profunda resignação, e não é necessário mais do que uma mudança de
atitude para que se veja todo o grande espetáculo de uma maneira intei­
ramente diferente. Importa-se realmente o todo com a parte que eu sou?
Os estóicos, quando equiparavam o destino cósm ico com a providência,
afirmavam que sim. E significa minha parte, com o quer que eu a desem ­
penhe, realmente alguma coisa para o todo? Os estóicos afirmavam que
sim, quando com paravam o cosmos com a pólis. Mas é precisamente
esta com paração que mostra o artificialismo da construção; pois ao con­
trário do que é válido para a pólis, minha importância não é confirmada
pelo cosm os subtraído à minha influência, e minha parte nele é de uma
unilateral passividade.

Mas o esforçado p a th os com que continuava-se a afirmar a integra­


ção do ser humano no todo do ser, através de um pretenso parentesco,
era uma heróica tentativa da inteligência para com a dignidade do ser hu­
mano se preservar também uma moral positiva após a perda da pólis, e
para nas novas condições se salvar a força vital do ideal primitivo da vir­
tude. üma tentativa que ao longo dos séculos conseguiu ser bem-suced -
da. Mas as novas massas atomizadas do império, que nunca haviam par-
diferente a uma situação a que se encontravam expostas passivamente:
uma situação em que a parte não tem significado para o todo e em que o
todo é alheio às suas partes. A aspiração do gnóstico individual não era
representar o papel atribuído a ele pelo todo, mas sim ser ele mesmo,
existir “ com autenticidade” . A lei do império, sob a qual ele se encontra­
va, era a vontade de um poder exterior, o m esm o caráter que possuía
para ele a lei do universo, o destino cósmico, cujo executor terreno era o
grande Estado. Desta maneira o conceito do todo com o tal foi atingido
em todos os seus aspectos - com o lei natural, com o lei política e com o
lei moral. Com isto nós retornamos ao tema de nossa comparação.

IV - Antinomismo antigo e moderno

O solapamento da idéia da lei, do n o m o s , levou a conseqüências éti­


cas em que a componente niilista do acosmismo gnóstico, e ao m esm o
tem po a analogia com certos raciocínios modernos, tornou-se ainda
mais patente do que no aspecto cosmológico. Refiro-me ao a n tin om ism o
gnóstico, a negação do caráter da obrigatoriedade da lei. Logo de partida
devem os admitir que na gnose e no existencialismo a negação da norma
objetiva foi desenvolvida em níveis teóricos muito diferentes, e que o anti­
nomismo gnóstico nos parece primitivo quando comparado à subtileza
conceituai e à clareza histórica de sua contrapartida moderna. Em um
caso o que foi liquidado foi a herança moral de mil anos de civilização anti­
ga; e no outro acrescentam-se a isto dois mil anos de metafísica cristã
com o pano de fundo para a idéia de uma lei moral.

Nietzsche referiu-se à raiz da situação niilista com as palavras “ Deus


está m orto” ; com isto ele estava se referindo em primeiro lugar ao Deus
cristão. Os gnósticos, caso desejassem formular de maneira parecida a
base metafísica de seu niilismo, poderiam ter dito: “O Deus do cosmos
está m orto” , isto é, com o Deus - para nós ele deixou de ser divino e de
conferir orientação à nossa vida. Neste caso, obviamente, a catástrofe é
menos total, mas o vácuo deixado por ela, apesar de não ser tão inaudi­
to, era bastante perturbador. - Para Nietzsche o sentido do niilismo é
“que os supremos valores se desvalorizem” 7, e a razão desta desvaloriza­
ção é “a uisáo de que não temos o menor direito de estabelecer um além
ou um em-si das coisas que seja ‘divinamente’ a moral em pessoa”8. Jun­
to ao discurso da morte de Deus, esta frase confirma a constatação de
Heidegger de “ que, no pensamento de Nietzsche, as palavras Deus e

7 . Der Wille zur Macht, § 2 .


Deus cristão são empregadas para designar o mundo supra-sensível em
si. Deus é o nome para a esfera das idéias e dos ideais”9, üma vez que
“valores” só podem ser derivados desta esfera, seu desaparecimento,
isto é, a “morte de Deus” , significa não apenas a efetiva desvalorização
dos supremos valores, mas também a perda da possibilidade de valores
obrigatórios em si. Para citar mais uma vez a interpretação que Heideg­
ger faz de Nietzsche: “A palavra ‘Deus está m orto’ significa que o mundo
supra-sensível não tem mais força operante” 10.

Num sentido paradoxal, isto se aplica também à posição gnóstica.


Em si, naturalmente, seu dualismo extremo é o exato oposto de uma re­
núncia à transcendência. Pois o Deus extramundano a representa sob a
forma mais radical. Nele o além absoluto clama através das esferas cós­
micas. Mas, diferentemente do mundo das idéias de Platão, ou do Senhor
dos Exércitos do judaísmo, esta transcendência não tem qualquer rela­
ção positiva com o mundo sensível. Ela não é sua essência nem sua cau­
sa, mas sim sua negação e extinção. O Deus gnóstico, diferente do demi­
urgo, é o totalmente outro, alheio, desconhecido. Assim com o sua con­
trapartida humana, o pneuma, cuja natureza oculta manifesta-se apenas
na experiência negativa da outridade e da liberdade indefinível, este Deus
tem em si m esm o mais n ih il do que ens. üm a transcendência sem rela­
ção normativa com o mundo eqüivale a uma transcendência que perdeu
a força operante. Noutras palavras, no tocante à relação do ser humano
com a realidade que o envolve, este Deus escondido é uma concepção
niilista: dele não parte lei nenhuma - nenhuma lei para a natureza, e com
isto também nenhuma lei para o agir do ser humano com o parte da or­
dem da natureza.

Sobre esta base, o argumento antinomista dos gnósticos é tão simples


quanto, por exemplo, o de Sartre. Como o transcendente se cala, diz Sar-
tre, já “que não existe dele nenhum sinal no mundo” , então o ser humano
abandonado e entregue a si mesmo reclama sua liberdade, ou melhor, não
lhe resta outra alternativa senão tomá-la sobre si: ele “é ” esta liberdade, já
que o ser humano “não é outra coisa senão seu próprio projeto”, e “tudo
lhe é permitido” 11. Que se trata de uma liberdade desesperada, e que,
com o ausência de rumo, ela inspira mais medo do que alegria, esta é uma
questão por si.

Nas considerações gnósticas nós encontramos por vezes a forma anti-


convencional, meramente subjetivista, do argumento antinômico: coisa al­

9 . M . H e id e g g e r. Holzwege , p. 1 9 9 .
1 0 . O p . cit., p . 2 0 0 .
guma é por natureza boa ou má, as coisas em si são indiferentes, só na
opinião dos homens é que as ações são boas ou más. O ser humano espi­
ritual, na liberdade do seu conhecimento, tem o uso de todas as coisas.
Mas a verdadeira raiz do antinomismo gnóstico não é o relativismo; pois a
origem última de toda “opinião humana”, pela qual as ações tornam-se
boas ou más, é, na visão gnóstica, não o próprio ser humano mas sim o
mundo e seu demiurgo. Plotino reconheceu claramente a conexão entre a
falta de uma doutrina das virtudes e o desprezo do mundo dos gnósticos.
“Mais atrevidamente [do que Epicuro] contra o senhor da providência e
contra a própria providência, eles desprezam toda lei deste mundo e a vir­
tude que desde o início dos tempos foi estabelecida entre os homens”
(Enn. II 9, 15). Pois a razão última de toda pretensa lei moral é, para os
gnósticos, a mesma que a da lei natural: as duas são complementares,
com o aspecto interno e externo do único determinismo cósmico e de sua
agressão à liberdade humana. Am bas emanam do senhor do mundo
com o instrumentos do seu poder, com o se manifesta no duplo aspecto do
Deus judaico com o criador e legislador. Da mesma maneira que a lei físi­
ca, o destino, confere um lugar aos corpos no sistema do universo, assim
também faz às almas a lei moral, tornando-as dóceis ao regime demiúrgi-
co. Na medida em que o princípio desta lei moral é “justiça”, isto é, justiça
retributiva ou penal (sobretudo esta), ele possui na esfera psíquica o mes­
mo caráter compulsivo que o destino cósm ico na esfera física. Os anjos do
“criador do mundo” instituíram ‘obras justas’, para através desta doutrina
levarem os homens à servidão” (Simão M ago). Quem obedece a normas
dadas, renuncia à autoridade do seu eu.

Aqui não podem os ir atrás das conseqüências anárquicas e muitas


vezes libertinas desta doutrina. Aliás, a conseqüência prática pode ser li­
bertina ou ascética: uma renuncia seguir a natureza pelo excesso, a outra
pela abstinência, üma faz às vezes da permissão para tudo quase uma
tarefa positiva para realizar tudo sem medo, com o fim de confirmar toda
a liberdade - o núcleo da idéia fáustica, que efetivamente nós podem os
acompanhar em direção ao passado até à gnose. Em todo caso trata-se
de vida fora da norma objetiva. Liberdade por abuso e liberdade pelo
não-uso da natureza, são, assim, apenas formas de expressão alternati­
vas do m esm o acosmismo. A partir desta raiz pode-se ver que para o
gnóstico, na renúncia a toda norma, além do argumento meramente céti­
co do subjetivismo estava em jo go um interesse metafísico positivo: é a
afirmação da autêntica liberdade do eu. Mas deve-se observar que esta li­
berdade não é questão da “alm a” (p s y c h e ) mas sim do “espírito” (p n e u -
m a ). A alma é tão completamente determinada pela lei moral quanto o
corpo pela lei natural. Ela própria é uma parte da ordem da natureza, cri­
ada pelo demiurgo ou pelos planetas, para envolver o pneuma estranho,
o núcleo interior indefinível da existência. Na lei normativa, o criador
exerce controle sobre o que é seu. O ser humano psíquico, que pode ser
definido em sua natureza, por exemplo com o um ser dos sentidos ou um
ser da razão, ainda continua ser humano natural, e sua essência é tão
pouco capaz de determinar o eu pneumático quanto, na visão existencia­
lista, qualquer essência determinativa é capaz de prejulgar a existência
que se programa.
Seja-me permitido aqui fazer uma com paração com um argumento
de Heidegger. Em seu escrito “Sobre o humanismo” Heidegger objeta,
contra a clássica definição do ser humano com o a n im a l ra tio n a le , que
esta definição situa o ser humano na anim alitas, na animalidade, especi­
ficando-o apenas por uma diferença que, com o qualidade determinante,
cai no gênero a n im a i Isto, diz Heidegger, significa situar o ser humano
baixo dem ais12. Seja observado, apenas de passagem, o abuso verbal
que se faz aqui com a palavra an/ma/13. Importante para nós é que se re­
jeite toda “natureza” definível do ser humano que submeta sua existência
a uma essência predeterminada, com isto fazendo dele parte de uma or­
dem objetiva de essências no todo da natureza. Mesta concepção de uma
existência transessencial, que se auto-esboça livremente, eu vejo alguma
coisa que se pode com parar ao conceito gnóstico da negatividade trans-
psíquica do pneuma não-mundano. O que não tem natureza não tem
norma, só o que pertence a uma ordem das naturezas - por exemplo a
uma ordem da criação - é que possui uma natureza. Só onde existe um
todo é que existe uma lei. Ma concepção depreciativa dos gnósticos isto
se aplica à p s y c h e , que pertence ao todo cósmico. O p n e u m a tik o s , po­

1 2 . H e id e g g e r. Uber den Humanismus. F r a n k fu r t, 1 9 4 9 , p . 1 3 .


1 3 . “A n im a l”, n o s e n tid o g re g o (= Ç ô>ov), n ã o s ig n ific a a n im a l = bestia , m a s s im to d o
“se r a n im a d o (= v iv o ) ”, e x c lu íd a s as p la n ta s m a s in c lu íd o s os d e m ô n io s , d e u s e s , a s tro s
a n im a d o s , o u m e s m o o u n iv e rs o a n im a d o c o m o o m a io r e o m a is p e rfe ito se r v iv o (v e r
P la tã o . Timeu 3 0 c . - C íc e ro . De natura deorum, II, 1 1 -1 4 ): s e r in c lu íd o n e s ta e s c a la n ã o
sig n ific a n e n h u m r e b a ix a m e n to d o h o m e m - p e lo c o n trá rio , u m a v e z q u e a n o b re z a d iv i­
n a d o u n iv e rs o é s e r “ animal rationale ”, a tra v é s d e s ta d e s ig n a ç ã o o h o m e m p a s s a a ser
in c lu íd o n o rol d o m a is e le v a d o ; e o e s p a n ta lh o d a “a n im a lid a d e ”, c o m s u a s c o n o ta ç õ e s
m o d e rn a s , é c o m s u tile z a im p u ta d o à d e fin iç ã o c lá s s ic a . N a re a lid a d e , p a ra H e id e g g e r o
“r e b a ix a m e n to ” d o h o m e m n ã o c o n s is te e m e le e s ta r in c lu íd o n a a n im a lid a d e , m a s e m
e s ta r in c lu íd o e m qualquer o r d e m d e g ra u o u d e ser, isto é, e m u m c o n te x to d a natureza
e m si. A d e s v a lo riz a ç ã o c ris tã d e “a n im a l” p a ra “a n im a l s e lv a g e m ” (bestia), q u e e fe tiv a ­
m e n te faz c o m q u e a p a la v ra só s e ja u s a d a e m o p o s iç ã o a “h o m e m ”, é a p e n a s u m re fle x o
d a ru p tu ra m a io r c o m a p o s iç ã o c lá s s ic a - a q u e la ru p tu ra p e la q u a l o h o m e m , c o m o ú n i­
c o p o s s u id o r d e u m a a lm a im o r ta l, é c o lo c a d o fora de toda “n a tu r e z a ”. O a r g u m e n to
e x is te n c ia lis ta p a rte d e s ta n o v a b a s e (m a s c o m “h is to ric id a d e ”, e m lu g a r d e a lm a im o r ­
ta l): n a v e rd a d e o jo g o c o m a a m b ig ü id a d e d o te r m o “ a nim ar a ju d a a o b te r u m le v e ê x i­
to n a d is c u s s ã o , m a s e s c o n d e e s ta m u d a n ç a d e b a s e d e q u e a q u e la a m b ig ü id a d e d e p e n ­
de, e v ita n d o o e n c o n tro re a l c o m a p o s iç ã o c lá s s ic a , a q u e se p r e te n d e q u e o a r g u m e n to
^ r?<: v ;-,^

rém, com o não pertence a nenhuma ordem, está acima da lei, além do
bem e do mal, sendo lei para si próprio na força do seu “conhecer” .

V - Temporalidade sem presente

Mas em torno de que gira este saber, este conhecimento, próprio não
da “alma” mas do “espírito” , e onde o eu espiritual se redime da servidão
cósmica? (Jma célebre fórmula valentiniana resume da seguinte maneira
o objeto da gnose: “O que nos liberta é o conhecimento do que éramos e
do que viem os a ser; do onde estávamos e do aonde fom os jogados; para
onde corremos, de que fom os remidos; o que é nascimento e o que é re­
nascimento” 14. üma exegese verdadeira teria que mostrar todo o mito
gnóstico. Restrinjo-me aqui a algumas observações formais.

Em primeiro lugar nós observamos o agrupamento dualista dos ter­


mos em pares antitéticos e a tensão escatológica entre eles, com a mar­
cha irreversivelmente voltada do passado para o futuro. Observamos
também que as expressões sempre designam conceitos não do ser, mas
do acontecer, do movimento. É o conhecimento de uma história em que
ele próprio constitui um acontecer crítico. Entre estes conceitos de m ovi­
mento, é-nos peculiarmente familiar o de ser jogado em alguma coisa.
Em Heidegger, em O ser e o te m p o , o “ser-jogado” , com o sabemos, é
um caráter fundamental da existência e de sua auto-experiência.
Enquanto sei, o termo é originalmente gnóstico. É encontrado na literatu­
ra mandéia; a vida é lançada ao mundo, a luz às trevas, a alma ao corpo.
Ele expressa a violência que me é feita, que me fez existir, sem que eu
fosse perguntado, onde estou e o que sou, a passividade de meu encon­
trar-me no mundo que eu não fiz e cuja lei não é a minha. Mas a im agem
do lançar confere, além disso, ao todo da existência assim iniciada uma
qualidade dinâmica. Em nossa fórmula esta qualidade se manifesta na
im agem do “correr” para um alvo ou para um fim. Lançado ao mundo e
prosseguindo no ser-lançado, a vida arremessa-se para o futuro.

Isto me leva a uma observação a propósito da fórmula valentiniana,


a saber, que em suas determinações temporais não existe espaço para
um presente onde o conhecimento possa demorar-se e na contemplação
deter o impulso para a frente. Existe o passado de onde viemos e o futuro
para onde nos encaminhamos, mas o presente é apenas o m omento do
próprio conhecimento, o ponto crítico da mudança de um para o outro
na extrema crise do agora escatológico. Mas existe uma diferença decisi­
va em relação aos paralelos modernos: embora lançados à temporalida-

1 4 . C le m e n s A le x . Excerpta ex Theodoto, 7 8 , 2.
de, nós tivemos, segundo a fórmula gnóstica, nossa origem na eternida­
de, e do m esm o m odo temos também o nosso alvo na eternidade. Isto
coloca o niilismo intramundano em um horizonte metafísico inexistente
no paralelo moderno.

Retornando mais uma vez a este paralelo, permito-me apresentar


uma observação que ao leitor atento de O ser e o tem p o não pode passar
despercebida. Heidegger desenvolve aí uma “ontologia fundamental” de
acordo com as maneiras em que o ser-aí mantém seu próprio ser, com
isto constituindo os diferentes sentidos de ser em si. Estes modos são ex­
plicitados em certo número de categorias que Heidegger prefere chamar
de “existenciais” . Diferentemente das categorias kantianas, elas articu­
lam primariamente não estruturas da objetividade, mas sim estruturas de
mobilidade do tem po interior, em que o eu se “temporaliza” com o contí­
nuo acontecer no comportar-se para com alguma coisa. Por isso nos
existenciais não podem deixar de se apresentar os três horizontes do
tempo - passado, piesm te,- íuíy/p - deixandfrse, por dizer, distri­
buir entre eles. Mas quando tentamos organizar as categorias de Heideg­
ger sob estes três títulos, nós descobrimos uma coisa que chama aten­
ção. Pelo menos chamou-me a atenção quando na época, não muito
após o aparecimento do livro, eu me empenhei por fazer um diagrama,
inteiramente à maneira clássica de uma tabela de categorias. Foi a des­
coberta de que a coluna sob o título “presente” permanece praticamente
vazia - pelo menos na medida em que se consideram os modos da exis­
tência propriamente dita. Esta é uma constatação ao extremo resumida.
Na realidade fala-se muito sobre o “ presente” existencial, mas não com o
uma dimensão independente com direito próprio. Pois o presente exis-
tencialmente “autêntico” é o presente da “situação” , que é constituída in­
teiramente através da relação com o futuro e com o passado. Ele refulge
à luz da decisão, quando o projeto do futuro regressa ao passado dado
(ao ser-lançado), neste dando origem ao “ presente” - que por sua vez é
um produto dos outros dois êxtases temporais, uma função de seu inces­
sante dinamismo, e não uma dimensão própria da permanência. Mas iso­
lado, separado por este contexto de mobilidade interior, o mero “presen­
te” designa precisamente a falta de uma autêntica relação futuro-passado
no “haver-caído” no palavreado, na curiosidade, no impessoal: um fra­
casso da tensão da existência autêntica, uma espécie de debilitamento
do ser. De fato o “ haver-caído” , um conceito negativo, é o existencial que
na tabela representa o “presente” , desta maneira apresentando-o com o
um m odo derivado e deficiente da existência.

Permanece, portanto, a constatação original: todas as categorias es­


senciais da existência que fundamentam sua possibilidade de ser autênti­
ca ocorrem em pares correlatos sob os títulos de passado e futuro. A fac-
ticidade, o haver-sido, o ser-lançado; a necessidade, a culpa, são modos
existenciais do passado; o estar-aí, o auto-antecipar-se, a preocupação, o
projeto, a resolução, o caminhar para a morte, são m odos existenciais do
futuro. Não resta nenhum presente onde a existência autêntica pudesse
demorar-se. Saltando do seu passado, a existência lança-se no projeto do
seu futuro; vê-se confrontada com seu limite extremo, a morte; e deste
olhar para o nada ela retorna à sua mera facticidade, ao dado puro e sim­
ples do seu aqui e agora ter-se tornado isto, e assumindo e “repetindo” o
que chegou a ser, leva-o adiante com uma decisão impulsionada pela
morte. Não existe nenhum presente onde ela pudesse demorar-se, ape­
nas a crise entre o que foi e o que será, o instante aguçado sobre o fio da
navalha da decisão que se lança para a frente.

Este dinamismo ofegante exerceu enorme força de atração sobre o


espírito contemporâneo. Mas existe um mistério nesta debilitação do pre­
sente com o lugar dos conteúdos autênticos, no seu reduzir-se ao inóspito
ponto zero de uma decisão meramente formal. Qual a situação metafísi­
ca que se encontra por trás disto? Aqui há uma outra observação a ser
feita. Pois além da “ presença” existencial do m om ento, existe tam bém
a presença de coisas. Será que esta presença, e minha co-presença
com ela, não me garante tam bém uma presença de outra espécie? Mas
Heidegger nos ensina que as coisas primariamente estão “ à m ã o” , isto
é, de m odo a poderm os utilizá-las ou cuidar delas, p or isso referidas
ao projeto da existência preocupada, e por isso envolvidas no dinamis­
mo futuro-passado. N ão obstante elas tam bém podem ser neutraliza­
das, transformadas em objetos indiferentes, e o m odo do estar-aí é um
paralelo objetivo ao que se encontra do lado existencial, e o “haver-caí-
d o ” é uma falsa presença. O meram ente existente, o “ aí” das meras coi­
sas naturais, se encontra aí som ente para não nos deixarmos levar pela
relevância da situação existencial e do trato preocupado com as coisas.
É ser, desnudado e alienado em mero objeto. É este o sentido do ser que
permanece aqui para a natureza com o referência para a teoria - um sen­
tido deficiente do ser - e a referência em que ele assim é objetivado é um
modo deficiente da existência, seu cair no aspecto futuro da preocupa­
ção no ocioso presente da curiosidade. (Sem pre estou me referindo aqui
a O ser e o te m p o , não ao Heidegger mais tardio, que certamente não é
um “existencialista” .)

Esta desvalorização existencialista da natureza é manifestamente um


reflexo do seu esvaziamento espiritual pela ciência natural moderna, e esta
possui alguma coisa em comum com o desprezo gnóstico da natureza.
Nunca uma filosofia preocupou-se tão pouco com a natureza quanto o
existencialismo, para quem ela não conservou nenhuma dignidade.
11 e x is fc o d s iis s n G v \

O olhar sobre o que está aí, sobre a natureza com o ela é em si, sobre
o ente, foi chamado pelos antigos de th eoria , contemplação. Mas se é
conservado à contem plação apenas o existente irrelevante, ela perde a
dignidade que um dia possuiu - com o a perde também o presente no
que mantém para o contemplador pela presença de seus objetos. A the­
oria possuía esta dignidade por causa de seu pressuposto platônico -
porque nas formas das coisas apreendia objetos eternos, uma transcen­
dência do ser imutável entrevista através da transparência do vir-a-ser. O
ser imutável é presente perpétuo, e dele a contemplação pode participar
na breve duração do presente temporal.

É, pois, a eternidade, e não o tempo, que garante o presente e que lhe


confere um status próprio no fluxo do tempo; e^ éjyjerd a da eternidade
que é responsável pela perda, de um autêntico presente. Tal perda da
eternidade é o desaparecimento da “esfera das idéias e dos ideaís” , onde
Heidegger vê o verdadeiro sentido da palavra de Nietzsche “Deus está
m orto” . Noutras palavras, a vitória incondicional do nominalismo sobre
o realismo. É, portanto, a mesma causa que se encontra no fundo do nii­
lismo, no fundo também da radical temporalidade da im agem de Heideg­
ger da existência, onde o presente não é mais do que o m om ento da crise
entre o passado e o futuro. Quando não se descobrem valores na con­
tem plação do ser (com o, em Platão, o bom e o belo), mas eles são esta­
belecidos com o projetos da vontade, a existência fica efetivamente con­
denada a um contínuo futuro, tendo a morte com o meta; e uma resolu­
ção puramente formal, sem que possua um n o m o s , transforma-se na
corrida prévia do nada para o nada. Nas já citadas palavras de Nietzsche:
“Quem perdeu o que tu perdeste não pára em lugar algum.”

VI - A indiferença da natureza

Nosso estudo leva-nos mais uma vez de volta ao dualismo entre ser
humano e p h y sis com o fundo metafísico da situação niilista. Não se
pode deixar de perceber uma diferença fundamental entre o dualismo
gnóstico e o existencialista: o ser humano gnóstico foi lançado dentro
de uma natureza contrária a Deus, e por isso contrária ao ser humano; o
ser humano moderno, em uma natureza indiferente. Só esta última sig­
nifica o vácuo absoluto, o abismo verdadeiramente sem fundo. O hostil
e dem oníaco sem pre é ainda antropomórfico, familiar m esm o na alie­
nação, e o contraste, com o tal, confere direção à existência - uma dire­
ção negativa, na verdade, mas que tem atrás de si a sanção da trans­
cendência negativa, de que a positividade do mundo é a contrapartida
qualitativa. À natureza neutra da ciência moderna nem sequer se confe­
re esta qualidade antagônica, desta natureza não se pode obter nenhu-
ma orientação. Isto torna o niilismo m oderno muito mais radical e de-
sesperado do que jamais poderia ter sido o niilismo gn óstico, com to do
o seu horror ao mundo e sua.revolta contra as leis.dp m u n d o . Q ue a na­
tureza não se preocupe, é este o verdadeiro abismo. Que só o ser huma­
no se preocupe, não tendo diante de si, em sua finitude, outra coisa a
não ser a morte, que ele esteja só com sua contingência e com a ausên­
cia objetiva de sentido de seus projetos de sentido, é na verdade uma si­
tuação sem precedentes.

Mas precisamente esta diferença, que revela a profundidade maior


do niilismo moderno, questiona também sua coerência interior. O dualis­
mo gnóstico, com tudo quanto possuía de fantástico, pelo menos não
era contraditório. A idéia de uma natureza demoníaca, contra a qual o eu
precisa autoconquistar-se, possui algum sentido. Mas o que dizer de uma
natureza indiferente, que não obstante contém em seu seio aquilo para o
que seu ser possui significado? O discurso do ser-lançado ao mundo é
um resquício de uma metafísica dualista, que o ponto de vista não-meta-
físico não tem o direito de usar. Que seria o ser-lançado sem alguém que
lance, e sem um lugar de onde se seja lançado? O existencialista deveria
antes dizer que o ser humano - o eu consciente, preocupado, capaz de
sentir - é lançado pela natureza. Se o foi de maneira cega, então o que vê
é produto do que é cego, o que se preocupa é produto do despreocupa­
do, uma natureza teleológica foi produzida de maneira não-teleológica.

Não questiona, este paradoxo, o conceito inteiro de uma natureza indi­


ferente, esta abstração da ciência natural? O antropomorfismo foi tão radi­
calmente banido do conceito da natureza que mesmo o ser humano não
pode mais ser entendido antropormorficamente, uma vez que ele é ape­
nas uma casualidade dessa natureza. Com o produto do indiferente, tam­
bém o seu ser tem que ser indiferente. Nesse caso o encontro com sua
mortalidade justificaria esta reação: “Comamos e bebamos, pois amanhã
morreremos”. Não tem sentido se estar preocupado com o que não tem
atrás de si nenhuma sanção em uma intenção criadora. Mas se for correta
a visão mais profunda de Heidegger, de que em face de nossa finitude nós
achamos que o que importa é não apenas que nós existimos mas também
com o existimos, então o mero fato de em algum lugar do mundo existir
um tal interesse tem que qualificar também a totalidade que contém este
fato; e isto tanto mais se foi esta totalidade que o produziu.
Imortalidade e existência atual

As considerações a seguir partem do fato, que me parece inegável,


de que o ser humano atual está pouco inclinado a aceitar o pensamento
da imortalidade. Isto é válido com o um estado de ânimo que fica fora do
alcance de toda e qualquer objeção que o entendimento moderno possa
levantar contra ela por razões teóricas. Em si tais razões - que por moti­
vo de brevidade eu simplesmente aceito aqui sumariamente - não são
decisivas. Por ser transcendente, o objeto da idéia - a própria imortalida­
de - situa-se além de toda refutação e prova. Porém, mesm o não sendo
objeto do conhecimento, ela é não obstante uma idéia do conhecimento.
Por isso a medida única de sua credibilidade tem que passar a ser a im­
portância interior do seu sentido, e a ressonância que este sentido provo­
ca em nós permanece com o a única base que nos resta ainda para uma
possível crença, assim com o de certo a ausência desta ressonância
constitui base suficiente para uma descrença efetiva. Mas o que possui
ou não possui sentido se encontra além da mera condição de não encer­
rar contradição lógica, longe da disposição global e das visões gerais do
espírito julgador. Devemos, portanto, ouvi-las, tanto sobre sua pouca dis­
posição com o também sobre eventuais pontos de apoio em que a idéia
da imortalidade, apesar de em nossos dias obscurecida, ainda possa afir-
mar-se ou ser recuperada em nosso contexto secularizado. Desta forma,
uma análise do problema passa a ser agora ao m esm o tempo uma análi­
se do conceito da imortalidade e uma análise de nós mesmos, e m esm o
que não lance nenhuma luz nova sobre o primeiro, a respeito do qual ao
longo de mais de dois mil anos provavelmente já foi dito tudo quanto se
poderia dizer, pode, no entanto, lançar um pouco de luz sobre o estado
atual de nossa constituição mortal.

Sobre a pouca aceitação do espírito contemporâneo à idéia da imor­


talidade posso expressar-me com a máxima brevidade, já que nosso sé­
culo foi suficientemente eloqüente a este respeito, e que a base de con-
cordância é ampla e pouco contestada. Mas sobre o a cesso, menos ob­
servado e menos observável, que não obstante o espírito moderno ofere­
ce à idéia em um de seus possíveis significados, e isto precisamente em
sua inflexão moderna, irei estender-me mais. Este acesso, entretanto, só
se torna visível diante do fundo negativo sem o qual o espírito moderno
não seria o que é.

Primeiro, pois, um olhar para o lado negativo. Inicio com o mais terre­
no e o mais empírico conceito de imortalidade: a sobrevivência na imor­
talidade da fama. Na Antigüidade isto era apreciado ao extremo, conside­
rado não apenas com o ajusta recompensa pelos nobres feitos mas tam­
bém com o o que mais impulsionava os homens para eles1. Os feitos têm
que ser visíveis, isto é, públicos, para que possam ser percebidos e lem­
brados com o grandes feitos. A dimensão desta sobrevivência é a própria
dimensão em que ela foi conquistada: a comunidade política. De acordo
com isto, a fama imortal é a permanência das honras públicas, assim
com o a comunidade é permanência da vida humana. Mas já Aristóteles
observou que as honras valem exatamente tanto quanto o julgamento de
quem as tributa2. Mas então o desejo da fama, e com mais razão o desejo
de seu prolongamento na fama póstuma, e em última análise o próprio
apreço por esta espécie de imortalidade, só se justifica pela confiança
que razoavelmente podem os depositar em seu fiduciário e dispensador,
ou seja, a opinião pública: em sua perspicácia no presente, em sua fideli­
dade no futuro, e naturalmente em sua própria continuidade, isto é, na
sobrevivência sem limites da comunidade. Ora, em todas estas coisas o
ser humano moderno não consegue depositar a mesma confiança ingê-

1 . N a lite ra tu ra g re g a , d e H o m e r o a P la tã o , e m q u e m o id e a l e n c o n tra a s u p e ra ç ã o filo s ó ­


fic a m a s c o n tin u a te n d o e x p re s s ã o e lo q ü e n te n a s p a la v ra d e D io tim a : “S e q u e re s a te n ta r
à a m b iç ã o d o s h o m e n s , a d m ira r-te -ia s d o seu d e s a r r a z o a m e n to , a m e n o s q u e n ã o re fli­
tas , d e p o is d e c o n s id e ra re s q u ã o e s tr a n h a m e n te e les se c o m p o r ta m c o m o a m o r d e se
t o m a r e m r e n o m a d o s . [...] E c o m o p o r isso e s tã o p r o n to s a a rro s ta r to d o s os p e rig o s , a in ­
d a m a is d o q u e p e lo s filh o s , a g a s ta r fo rtu n a , a s o fre r p riv a ç õ e s , q u a is q u e r q u e e las se­
ja m , e a té a s a c rific a r-s e . Pois p e n s a s tu q u e A lc e s te m o r r e ria p o r A d m e to , q u e A q u ile s
m o rre ria d e p o is d e P á tro c lo , o u o vo s s o C o d ro m o r r e ria a n te s , e m fa v o r d a re a le z a d o s fi­
lhos, se n ã o im a g in a s s e m q u e e te rn a se ria a m e m ó r ia d a s u a p ró p ria v irtu d e , q u e a g o ra
nós c o n s e rv a m o s ? L o n g e d is so , disse ela; a o c o n trá rio , é, s e g u n d o p e n s o , p o r u m a v irtu ­
d e im o rta l e p o r ta l r e n o m e e g ló ria q u e to d o s tu d o fa z e m , e q u a n to m e lh o re s ta n to m a is ,
p ois é o im o r ta l q u e e le s a m a m . ( Banquete , 2 0 8 c -d , tr a d . J o s é C a v a lc a n te d e S o u z a .)
L e ia m -s e t a m b é m a c o m o v e d o r a o ra ç ã o fú n e b re d e P é ric le s p a ra T u c íd id e s , II 4 3 .
2 . Q u a n d o e x p lic a p o r q u e a h o n ra n ã o p o d e ser “o b e m ”: e la es tá m a is n a q u e le s q u e a
tr ib u ta m d o q u e n a q u e le q u e as re c e b e , e n q u a n to o b e m te m q u e se r n o s sa p r o p rie d a d e
v e rd a d e ira ; a lé m d is so n ó s a p r o c u ra m o s , isto é, a fa m a d a v irtu d e , c o m o c o n fir m a ç ã o d e
no s sa v irtu d e , p o r isso d a p a rte d a q u e le s q u e p o s s u e m c a p a c id a d e d e ju lg a m e n to e q u e
tê m d e n ó s rea l c o n h e c im e n to e p a g a m trib u to à v irtu d e - s e n d o e n tã o es ta ú ltim a o b e m
p rim á rio : Eth. Nicom., I 3 , 1 0 9 5 b 2 2 -3 0 .
VL h '^aa^ilacle o cxfctèiicir *£5

nua dos gregos. O que esta “imortalidade” possui de seletivo - o fato de


só admitir poucos e de excluir a maioria - ainda precisa ser aceito em si,
se é que podem os confiar na justiça de uma tal seleção. Mas sobre isto
sabemos muito bem com o as reputações são feitas, com o a fama é fabri­
cada, com o a opinião pública é manipulada, com o a crônica do aconte­
cer é reformada ou m esm o falsificada por encomenda dos interesses do
poder. Mesta era da disciplina partidária e das técnicas publicitárias, nes­
ta era da corrupção universal da palavra, nós temos plena consciência de
que o veículo desta imortalidade, o discurso, é no domínio público um
meio antes da mentira que da verdade, e que entre as duas cresce aplica­
damente a palavra da aparência, que não se presta nem mesm o à alter­
nativa de mentira e verdade, e devoradora em ambos os campos. Além
disto aprendemos que m esm o o heroísmo sobre-humano pode de tal for­
ma ser privado de todo conhecimento público que para efeito do mundo
é com o se jamais tivesse existido. E a velha suspeita, para usar as pala­
vras de Macbeth, de que tudo seria uma “fábula contada por um louco”
(a tale told b y an id iot), é recoberta pela suspeita ainda pior de que a fá­
bula que diz à posteridade com o as coisas aconteceram seria uma inven­
ção de uns poucos espertos.

Além do mais, se já de maneira geral premiar quem fala mais alto e


quem mais chama atenção em vez de premiar o silencioso e o oculto
ofende os nossos melhores sentimentos, então os grandes malfeitores,
de que o destino nos fez ter conhecimento hoje, confrontam-nos com a
perspectiva totalmente inadmissível de que o fam oso e o famigerado, o
glorioso e o perverso, alcancem resultados iguais em termos de imortali­
dade. Pois ninguém se engane: para a perversidade desses m alfeito­
res, e para a da posteridade por eles contagiada, mesm o sua má fama
ainda significa um êxito, e não um castigo: e assim, independentemente
do sucesso ou do fracasso, Hitler e Stalin teriam conseguido chegar à
imortalidade pelo extermínio de suas vítimas anônimas. O que acontece­
ria se aquele tivesse vencido, alcançando m esm o apenas cem anos para
o seu reino de mil anos - e contra isto o fluxo da história não nos dava a
mínima garantia -, frente à idéia e ao desfile de imortais que isto faz sur­
gir diante dos nossos olhos, a palavra não poderia senão emudecer.

Deverem os acrescentar ainda que só o vaidoso anseia pela imortali­


dade do nome, enquanto o ser humano verdadeiramente altivo e bom
fica satisfeito com a continuação anônima de sua obra? Isto leva-nos a
uma outra versão do conceito empírico: a imortalidade da ação - de cer­
ta forma a esperança de todo e qualquer esforço sério a serviço de um
fim mais elevado. Mas também aqui nós, homens de hoje, nos considera­
mos por demais experientes para considerarmos as coisas deste mundo
com o administradoras fiéis dos feitos, pois nem uma adequada avalia­
ção nem sua conservação na poeira do tem po podem nelas confiar, üm
juízo sóbrio sempre poderia ter conhecimento disto. Mas nós temos co­
nhecimentos que ultrapassam tudo isto e de que antes nunca estivemos
tão conscientes: que o próprio meio da preservação, isto é, a cultura hu­
mana, é passageira. Este novo conhecimento suprime a validade destes
dois conceitos, imortalidade do nome e imortalidade da ação - mesm o a
imortalidade das grandes obras do espírito e da arte, que mais do que
quaisquer outras resistem à extinção pelo tempo. Pois certamente aquilo
que é mortal não pode servir de meio para a imortalidade. Com a dramá­
tica exacerbação que nos últimos tempos a consciência universal moder­
na adquiriu sobre a condição efêmera das sociedades e das culturas -
pondo em risco a própria sobrevivência da humanidade -, nossa presu­
mida imortalidade, assim com o a de todos os imortais antes de nós, de
repente manifesta-se sujeita aos caprichos do momento, aos possíveis
erros de avaliação, ao equívoco ou ao descuido de um punhado de cria­
turas falíveis.

II

Voltemo-nos, pois, ao conceito não-empírico e realmente substancial


de imortalidade: a sobrevivência da pessoa em um futuro no além. Este
pensamento está menos ainda em sintonia com o ambiente espiritual de
hoje. Não levo em consideração aqui a conclusão, difícil de ser refutada,
da indubitável base orgânica da pessoa para sua indissolubilidade essen­
cial. Mas não poderíamos pelo menos prestar ouvidos às reflexões
não-empíricas que se encontram por trás deste p o s tu la d o ? As mais sé­
rias entre elas, se deixarmos de lado o mero pavor da criatura diante da
morte, recaem sob dois títulos: a justiça, e a distinção entre aparência e
realidade, de que a doutrina da mera fenomenalidade do tempo é um
caso particular. As duas possuem em comum o fato de atribuírem ao ser
humano o status metafísico de sujeito moral, e com isto o pertencer a
uma ordem moral ou inteligível à margem do sensível. Isto não pode ser
descartado sem mais nem menos. Mas o princípio da justiça, quer a justi­
ça distributiva quer a remunerativa, não apóia em sua medida própria a
exigência da imortalidade. Pois, de acordo com esta medida, os mereci­
mentos ou os débitos temporais exigem uma retribuição temporal e não
eterna, e por isso a justiça exige no máximo uma sobrevivência finita
para equilibrar a conta, mas não uma existência sem fim. E no que se re­
fere à com pensação por sofrimentos imerecidos, por oportunidades ne­
gadas ou por felicidade perdida, vale a consideração adicional de que
uma exig ên cia de felicidade (quanto dela?) já é questionável em si mes­
ma; que um cumprimento negado só pode ser com pensado em suas
próprias condições originais, isto é, em condições de esforço e de resis­
tência e de incerteza e de falibilidade, e de ocasião única e tem po limita­
do - em suma, em condições de êxito não garantido e de fracasso possí­
vel. São estas as condições necessárias de auto-redenção, que não são
outra coisa senão as condições do m undo. Tentar nelas o nosso ser e ex­
perimentar as vicissitudes de nossa tentativa sem que conheçamos de
antemão a saída - é isto o que realmente está sendo exigido. Sem estas
condições, sem a chamada do possível, sem o estímulo do desafio, sem
o medo do exame e sem a doçura da realização sob sua lei, toda felicida­
de gratuitamente concedida não passa de dinheiro falso para compensar
aquilo que se deixou passar. E careceria também de todo e qualquer va­
lor moral. Na realidade, o aqui não pode ser trocado por um lá - esta é a
atitude de espírito dos homens de hoje.

Nisto está contida também a resposta do sentimento moderno ao dis­


tanciamento entre aparência e realidade. Eu sempre tive o sentimento de
que os filósofos idealistas que a ensinam devem ter vivido tão protegidos
do impacto do mundo exterior a ponto de conseguirem considerá-lo com o
um espetáculo, com o uma representação sobre um palco. Certamente
eles não fazem completa justiça àquilo que rebaixam à condição de apa­
rência. Nós outros, filhos do agora, insistimos em que o que aparece preci­
sa ser levado a sério com o nossa realidade efetiva. Quando a percebermos
enganadora, olhemos melhor, para fazer com que sua verdade verdadeira
transpareça. A aspereza das faldas de um monte, a expressão de um rosto
iluminado, são a linguagem imediata da realidade. E quando olhamos
com horror as imagens do cam po de concentração de Buchenwald, os
corpos dilacerados e os rostos deformados, a extrema violação da humani­
dade na carne, então nós rejeitamos revoltados o consolo de que isto seja
apenas aparência, e de que a verdade seria uma coisa diferente. Nós que­
remos olhar nos olhos esta terrível verdade, que a aparência é a realidade,
e que nada é mais real do que aquilo que aqui nos aparece.

O que menos que qualquer outra coisa se concilia com a filosofia


atual é o ponto de vista de que o te m p o , em última análise, não seria real,
mas apenas a forma fenomenal sob a qual uma realidade intemporal e
inteligível aparece a um sujeito que “em si m esm o” também é parte des­
te mundo inteligível. Esta foi a ponte suspensa deixada pelo idealismo
crítico de Kant para uma possível imortalidade da pessoa. E também ela
esfacelou-se no horizonte do espírito moderno. Da descoberta da histori-
cidade fundamental do ser humano até a elaboração ontológica da tem-
poralidade mais íntima do seu ser, nós nos tornamos conscientes de que
o tempo, longe de ser uma mera forma de fenômenos, pertence peio con­
trário à essência deste ser, e que sua finitude para cada eu individual é
condição indispensável para que seu existir possa possuir autenticidade.
Em vez de negá-la, nós reivindicamos nossa condição efêmera. Não que­
remos renunciar ao medo e ao aguilhão do fim; insistimos, mesmo, em
defrontar-nos com o nada e ter a força de conviver com ele. Assim o exis­
tencialismo, este rebento extremo do clima espiritual moderno, ou da de­
sarmonia espiritual moderna, lança-se nas águas da mortalidade sem a
segurança de nenhum salva-vidas escondido. E nós, aderindo ou não
aderindo à sua doutrina, com o filhos do nosso tempo compartilhamos de
seu espírito o suficiente para ocuparmos nossa posição solitária no tem ­
po entre os dois nadas do antes e do depois.

III

E no entanto - nós sentimos que a temporalidade não pode ser a ver­


dade inteira, pois no ser humano manifesta-se uma qualidade inerente de
auto-superação, de que a existência e o tatear de nossa idéia de eternida­
de é um sinal criptográfico. Embora o durar sempre não seja um concei­
to verdadeiro, a eternidade pode ter outros significados - e ter com o
tem poral uma relação de que nossa experiência mortal, transcendendo
seu agir no fluxo do acontecer, vez por outra dá testemunho. A impene-
trabilidade do aqui e agora se clareia de tempos em tem pos com o por
uma precipitação súbita no ponto crítico. Se existir alguma transparência
com o esta do temporal para o eterno, por mais rara e breve que seja, en­
tão o fato e a espécie de sua ocorrência pode servir- nos de indício para o
que em nosso ser, mesm o que não na substância do nosso eu, se projeta
para o imperecível, com isto representando nossa participação na imor­
talidade. Em que situações e sob que formas nós nos deparamos com o
eterno? Quando é que sentimos a vibração do intemporal roçar nosso co­
ração, ao tempo subtraindo o agora? Com o o absoluto entra nos relativis-
mos de nosso ser quotidiano?

Não invocarei o testemunho de experiências místicas, que não são


as minhas, e se o fossem estariam expostas à insuperável desconfiança
do moderno espírito psicologizante. Tam pouco serão invocados os ine­
fáveis encontros do am or e da beleza, em que certamente podem os ver
um faiscar de eternidade, com o se estivessem à nossa disposição para
satisfação de quem a elas pode apelar e para vergonha daqueles a quem
não são concedidas. No espírito da existência moderna eu m e volto, ao
invés, para aquela espécie de evidência que depende de nós mesmos,
porque nelas nós somos ativos e não receptivos, somos por inteiro sujei­
tos, e de nenhuma maneira objetos.

Em momentos de d ecisã o, quando todo o nosso ser está envolvido,


nós sentimos com o se estivéssemos agindo sob o olhar da eternidade.
12.. li^;tr:Sifehí!c: r rxi&ènük. cVM ;;í-

Que significado podemos atribuir a isto - ou à nossa von ta de de que seja


assim? Podemos expressar nosso sentimento através de diferentes sím­
bolos, conforme as idéias e crenças que alimentamos, ou de acordo com
as imagens que nos são mais caras. Podem os dizer, por exemplo, que
aquilo que nós fazemos agora inscreve-se indelevelmente no “livro da
vida” , ou que deixa uma marca indelével em uma ordem transcendente;
que esta ordem, mesm o que talvez não seja nosso próprio destino, nos
afeta para o bem ou para o mal; que havemos de prestar contas perante
uma instância intemporal do direito ou - se já não estivermos mais aí
para prestar contas, por havermos sido levados na corrente do tem po -
nossa im agem eterna há de ser determinada pelo nosso agir atual, e que
som os responsáveis pela totalidade das imagens que a cada momento
resumem a soma acumulada de nossa existência vivida, e que será m o­
dificada através de nossa ação. Ou, de uma forma menos metafísica, po­
demos dizer que desejamos agir de tal maneira que qualquer que seja a
saída - o êxito ou o fracasso - no curso imprevisível das causas munda­
nas, com o espírito de nossa ação nós conseguimos viver através de uma
eternidade vindoura, ou que podem os morrer com ele no momento se­
guinte. Ou que, em um eterno retorno das coisas, estamos prontos a
ver-nos a nós mesm os quando chegar nossa vez, a estarmos novamente
em situação de escolha com o agora, cegos com o agora, inermes com o
agora - a ver-nos tomar novamente a mesma decisão, e sempre de novo
superar a prova imaginária, reafirmando s.em fim o que a cada momento
é apenas uma vez. Ou, se nos falta a certeza desta afirmação, que pelo
menos a angústia do risco infinito da alma é inteiramente nossa. E aqui a
eternidade e o nada se encontram, o agora justificando sua posição abso­
luta perante o critério de ser o último m om ento que o tempo nos conce­
de. Agir com o se estivéssemos em face do fim é agir com o se estivésse­
mos em face da eternidade - um e outro sendo então entendidos com o in­
vocação da verdade completa do eu. Mas entender o fim desta maneira
significa exatamente entendê-lo sob uma luz além do tempo.

IV

Que podem os extrair de tais sentimentos e metáforas? Que contri­


buição prestam eles, e que sinais e acenos, se os quisermos ouvir, dão
eles ao tem a da imortalidade? Ter-se- á observado que os símbolos que
utilizamos não falam de imortalidade e sim de eternidade - que não obs­
tante significa liberdade da morte, mas não necessariamente da minha,
mas que m esm o assim tem que estar em relação com minha mortalida­
de, de m odo que alguma coisa em minha existência, ou de minha exis­
tência, também pode ou deve dela participar. Que poderia ser? Observe-
mos ainda que em todos estes símbolos não é a esfera do sentimento e
sim da ação, não a matéria do prazer e da dor mas sim o espírito da deci­
são e da ação - em suma, não nossa natureza passiva mas sim nossa na­
tureza ativa - que pode estar de alguma maneira relacionada com a eter­
nidade. Acolham os este aceno. De início parece paradoxal. Pois não é o
sentimento que possui duração, que se difunde no tempo e que, com o
conteúdo que preenche o tempo, pode pelo menos em pensamento ser
imaginado com o infinitamente extenso? A o passo que a decisão é o in­
quilino mais rápido, o mais fugaz transeunte do tem po, de extensão infi-
nitesimal, inteiramente contido no m om ento e irrepetivelmente carre­
gado com o m om ento que passa? E não é o sentimento que clama por
imortalidade, que deseja durar, que diz ao m om ento: “ Espera!” - ao
passo que o ato im pele para adiante, se autoliquidando, olhando para
além de si, não desejando sequer perm anecer, mas querendo terminar?
O paradoxo, portanto, é que a relação - ainda indefinida - com a eterni­
dade precisa ser procurada no que é negativo sob o aspecto de dura­
ção, e não no que é positivo. Mas talvez o paradoxo contenha um aceno
próprio. Pois o que possui extensão pode ter dela um mais ou um m e­
nos, mas tem que terminar. A duração con som e o estoque da quantida­
de, mas fica incluída dentro de seus limites. Alimentando-se da disponi­
bilidade que tem de um contínuo sensível, ela fica ao m esm o tem po pri­
sioneira de sua própria imanência: no esgotar a duração de seu tem po,
não pode sobreviver a si própria. Já a zona crítica de separação do a g o ­
ra existencial, onde nasce o ato livre, só acidentalmente possui exten­
são, e não é por ela medido. A com pressão ou dilatação de sua presen­
ça sensível são superadas por uma transcendência de sentido, indife­
rente ao curto ou longo da duração. Assim pode muito bem ser que o
m om ento pontual, e não a extensão do fluxo, seja o elem ento que nos
ligue à eternidade: e “instante” não com o o n u n c sta n s, o agora para­
do, em que o místico se liberta do m ovim ento do tempo, mas instante
precisamente com o o que produz e impulsiona internamente aquele m o­
vimento. A o suspender o tem po no limiar da ação, mas não com o uma
pausa de descanso do tempo, ele expõe nosso ser ao intemporal, impe­
lindo-o adiante em ação e tempo, na mudança que constitui a decisão.
Logo d evorado pelo m ovim ento que p õe em marcha, o m om ento re­
presenta nossa abertura para a transcendência, precisamente por reti-
rar-nos da condição do efêmero, e neste duplo expor que constitui a es­
sência do interesse incondicional ele coloca o agente entre a eternidade e
o tempo. Deste lugar intermediário surge sempre nova a possibilidade de
um novo com eço, e com isto da verdadeira historicidade da pessoa, que
cada vez significa o salto para o aqui e agora.

Assim, para o dizermos ainda uma vez, é possível que não seja aquilo
que dura mais e sim o que dura menos, e que interiormente mais se afas-
12, #r, { /J.r*cur5a t-.fraí

ta da duração, que pode demonstrar-se com o o elo de ligação entre o


mortal e o imortal. De seu testemunho poderem os talvez obter daquilo
que se pretende dizer com o termo “imortalidade” um sentido melhor do
que do sentido literal, que se revelou insuficiente.

Buscar neste rumo um con ceito sustentável de im ortalidade está


em consonância com a atitude moderna, que nós descobrimos tão pene­
trada pela consciência da essencial temporalidade do nosso ser, de sua
referência mais íntima com a situação finita - e que manifesta tão gran­
de desconfiança contra a possibilidade, ou m esm o contra o mero sentido
de uma existência infinitamente prolongada. E em consonância também
com o aspecto mais sensato, se bem que erroneamente em pregado nas
idéias tradicionais de imortalidade. Pois era o meteoricamente breve es­
plendor da ousadia e da ação que deveria tornar-se imortal na glória do
mundo; a soma vital de propósito, ação e omissão, pela qual deve espe­
rar uma retribuição no além; nosso sentido moral, a única coisa sobre a
qual Kant acreditou poder fundamentar a imortalidade da pessoa -
com o um postulado da razão prática, não com o uma conseqüência da
razão teórica. Por mais questionável que tenham achado o veículo da
fama, por mais errônea a associação entre mérito temporal e retribuição
eterna; e por menos válido que seja também o argumento da infinita per-
fectibilidade de um pretenso direito a ela - o aspecto da ju s tiç a em si, ao
contrário da conclusão inteiramente inaceitável de uma substância in­
destrutível, ainda faz movimentar-se em nós um sim pela dignidade
transcendente atribuída à esfera da decisão e da ação. Sigamos, pois, o
que nos aponta nossa experiência de ação, nossa liberdade e responsa­
bilidade, e tentemos tomar com o fio condutor o conceito de uma “imor­
talidade dos feitos” , ao partirmos agora para interrogar mais de perto al­
gumas das imagens mencionadas, que devem haver surgido de indícios
de experiência desta espécie. Destas imagens gostaria de escolher duas:
o “livro da vida” e o “retrato” transcendente.

Que pode dizer-nos o símbolo do “livro da vida”? Na tradição judaica


ele significa uma espécie de grande livro celeste em que nossos nomes
são registrados de acordo com nossos méritos - se possível “para a
vida” , isto é, para nossa vida, a vida de cada pessoa. Mas em vez de ver
os feitos com o méritos atribuídos a quem os pratica, também podemos
considerá-los com o valendo por si mesmos - de certa forma com o “coi­
sas em si” - e então entender o conceito do livro de uma forma diferente,
a saber, que ele seria preenchido não com nomes e contas mas sim com
os próprios feitos. Noutras palavras, estou falando da possibilidade de
que os feitos se inscrevam a si próprios no registro eterno do tempo; que,
seja o que for que se pratique - para além de suas repercussões e, por
fim, de seu desaparecim ento no tecido causai do tem p o -, para todo o
futuro isto seja inserido em um reino transcendente, marcando-o segun­
do as leis de causa e efeito, que são diferentes das do mundo, acrescen­
tando sempre mais coisas ao protocolo inconcluso do ser e sempre de
novo adiando o tremendo balanço final. Ou não poderia m esm o ser, ou­
sando um passo mais além, que o que assim nós acrescentam os ao re­
gistro fosse de eminente importância - se não para o nosso próprio des­
tino futuro, pelo menos para o interesse daquela própria soma espiritual
que a lembrança unificante das coisas realiza constantemente? E que,
embora nós, agentes mortais, não tenhamos participação naquela imor­
talidade a que nossos feitos se associam, e o que por elas nós fazem os de
nossa vida, eles possam ser a aposta que uma eternidade ainda frágil e
indecisa faz em nós? E, em vista de nossa liberdade, que aposta ousada!
Seriamos nós talvez um experimento da eternidade? Será nossa mortali­
dade, de alguma forma, uma ousadia do eterno fundamento consigo
m esm o? E nossa liberdade, em previsão e risco, a ponta mais elevada
desta ousadia?

Busquemos ajuda voltando-nos para a outra parábola, a da “ima­


g em ” transcendente que surge traço por traço do nosso agir temporal.
Encontramo-la na literatura gnóstica, sobretudo do ciclo iraniano.

Uma delas é a idéia do sósia celeste da pessoa da terra, de quem a


alma que parte vai ao encontro após a morte. Em um texto mandeu se
diz: “Vou ao encontro de minha imagem e minha im agem vem ao encon­
tro de mim. Ela me acaricia e me abraça, com o se eu retornasse da pri­
são”3. Segundo esta versão, parece que cada um tem o seu a lter ego
“preservado” no mundo do alto enquanto ele se esforça aqui embaixo,
mas que, no tocante ao seu estado definitivo, o a lter e g o está entregue à
sua responsabilidade: com o o eu eterno da pessoa, ele cresce com as

3 . G in z a lin k s 3 1 (fin a l): M . L id z b a rs k i. Ginza - Der Schatz oder Das Grosse Buch der
Mandãer. G õ ttin g e n , 1 9 2 5 , p . 5 3 9 , 2 9 -3 2 . E m u m a fo n te a v é s tic a , e s ta im a g e m d irig e -s e
à a lm a c o m es ta s p a la v ra s : “S o u e u , ó jo v e m d e b o n s p e n s a m e n to s , b o a s p a la v ra s , b o a s
a ç õ e s , b o a c o n s c iê n c ia [...] tu a p r ó p r ia c o n s c iê n c ia p e s s o a l. [...] T u m e a m a s te n e s ta a l­
tu ra , b o n d a d e , b e le z a [...] c o m o m e v ê s a g o r a ” (Hadõkht Nask, 2 ,9 s s ). N o b e lo c a n to
d a s p é ro la s d o s A to s d e T o m é , o p rín c ip e q u e re g re s s a p a ra c a s a r e c o n h e c e n a ro u p a ­
g e m c e le s te q u e lh e é e n v ia d a a im a g e m d e si m e s m o ( “ E u h a v ia e s q u e c id o seu b rilh o ,
q u e c o m o c ria n ç a d e ix a ra p a ra trá s n a c a s a p a te rn a . V i-o d e re p e n te c o m o a im a g e m d e
m im m e s m o n u m e s p e lh o , vi-o in te ir a m e n te e m m im e re c o n h e c i-m e in te ir a m e n te n e le.
É r a m o s d ois, s e p a ra d o s u m d o o u tro , e n ã o o b s ta n te é ra m o s u m , e m u m a só fig u r a ” ),
s e n d o r e c o n h e c id o p o r e le “c o m o a q u e le p a ra o q u a l fu i e d u c a d o n a c a s a d e m e u p a i, e
p e rc e b ia e m m im m e s m o c o m o m in h a fig u ra ia c re s c e n d o d e a c o rd o c o m s u a s o b r a s ”
(Acta Th.omaet 1 1 2 ).
12, teiàaífccfa g exráttó,i

provações e os feitos desta, e sua forma é completada por seus esforços


- completada, ou, com o não p od em os deixar de acrescentar com o
R e tra to de D o ria n G ra y , de Oscar Wilde, por ela deformada e mancha­
da. Esta alternativa sombria, mas logicamente necessária, em geral é es­
quecida na ênfase que nossos textos colocam sobre a salvação. Mas o
encontro com o tal significa o encerramento bem-sucedido da caminha­
da terrestre da alma, culminando em uma fusão e união que com pleta o
que por algum tem po esteve separado.

Mas ao lado desta versão individual também existe uma versão cole­
tiva do simbolismo do retrato, que relaciona nossos feitos não com uma
eternidade do nosso eu particular mas sim com a perfeição do próprio eu
divino. Veja-se esta citação de um dos escritos maniqueus descobertos
em 1930 no Egito. “No fim, na dissolução do mundo, o pensamento da
vida se reunirá e configurará sua alma na forma da Última Im agem 4. [...]
Por seu espírito captará a luz e a vida que está em todas as coisas e as im­
plantará em seu corpo...” “ E se introduzirá no grande fogo e reunirá a si
sua própria alma e se formará nesta Última Imagem; e o encontrarás e
verás com o ele varre de si a impureza que lhe é estranha, mas reunirá em
si a vida e a luz que está em todas as coisas, e sobre elas construirá o seu
corpo. Quando esta Última Imagem estiver completada em todos os
membros, então ela surgirá e elevar-se-á da grande luta... (e tc .)”5. Uma
interpretação dogmática com pleta deste simbolismo iria muito além dos
limites do presente trabalho. Com o explicação, seja suficiente aqui o se­
guinte: Aquela “Última Im agem ” que se completa no final dos tem pos é,
segundo a doutrina maniqueísta, construída progressivamente ao longo
e através de todo o processo do mundo. Toda a história, da vida em geral
e da humanidade em particular, trabalha nela incessantemente e recons-
trói na figura final a totalidade original daquele ser divino, imortal porém
capaz de sofrer, que nós chamam os o “primeiro hom em ” , e cuja auto-en-
trega à obscuridade e ao perigo do vir- a-ser faz com que o universo seja
possível e ao mesm o tem po necessário. - Mas para o espírito moderno,
em sua atitude decididamente antidualista, não são aceitáveis nem as ra­
zões apresentadas porMani para esta auto-entrega primordial, nem as al­
ternativas mais subtis de outros sistemas gnósticos, nem de maneira g e ­
ral a condenação do mundo corpóreo com o tal, comum a todas as ver­
sões. Tam bém a escatologia final, que postula uma meta e um fim do
tempo, é tampouco compatível com nossa convicção de que as mudan­
ças cósmicas prosseguirão indefinidamente, nem com nossa profunda

4 . O u “da ú ltim a e s tá tu a ”: o te x to c o p ta u s a a p a la v ra g re g a à v ô p ià ç .
5 .Kephalaia, V (2 9 ,1 -6 ) e X V I (5 4 , 1 4 -2 4 ): Manichãische Handschriften der Staatli-
chen Museen Berlin, v o l. I: Kephalaia , 1; Hàlfte. S tu ttg a rt, 1 9 4 0 . É p o s s ív e l q u e o a u to r
s e ja o p ró p rio M a n i.
indisposição para acreditar que nenhum fim nele, ou provocado por ele,
coincida com a perfeição. Não obstante, o símbolo do retrato total é ca­
paz de dizer-nos alguma coisa, para além de todas as barreiras da doutri­
na e do clima espiritual. Verifiquemos o que nele é importante para nós.

De minha parte eu apresentaria o seguinte: no acontecer temporal do


mundo, cujo ser é sempre consumido por um ter-sido, uma eterna pre­
sença vai crescendo. Sua face transparece paulatinamente à medida que
seus traços vão sendo gravados através das alegrias e sofrimentos, das
vitórias e derrotas do divino nas experiências do tempo, que assim per­
m anecem e são imortais. Vão sendo agregadas a esta divindade que se
vai construindo não os agentes, que sempre perecem, mas sim suas
ações, formando sua imagem indelével mas nunca acabada. O próprio
destino de Deus está em jo go neste universo, a cujo processo inconscien­
te ele entrega sua substância, e o ser humano é o guarda mais excelente
deste tesouro supremo, sempre sujeito a ser traído. Em certo sentido o
destino da divindade está em suas mãos.

Tudo isto,'na minha opinião, tem sentido; e se aceito com o premissa


hipotética, isto pode fornecer uma razão objetiva para justificar metafisi-
camente aquele sentimento subjetivo de um eterno interesse, que nós ex­
perimentamos na voz da consciência, no momento de decisão extrema,
na entrega da ação, e m esm o no tormento da contrição - e estas expe­
riências podem perfeitamente ser os únicos sinais empíricos de um lado
imortal de nossa natureza, que m esm o em nossos dias a consciência críti­
ca está disposta a admitir com o testemunho.

VI

Mas em que metafísica completa haveria de ter lugar um fragmento


hipotético com o este?

Quando eu faço uso, com o às vezes não se pode deixar de fazer, da li­
berdade da ignorância, que nestas coisas é a sorte que nos coube, e do
recurso do mito ou da invenção da fé, que nos é permitida por Platão, eu
me sinto tentado a pensamentos com o os seguintes.

No princípio, por inescrutável escolha, o fundamento divino do ser


decidiu entregar-se ao acaso, à ousadia e à multiplicidade sem fim do vir-
a-ser. E isto sem qualquer restrição. A o entrar na aventura de espaço e
tempo, a divindade nada reteve de si; nenhuma parte permaneceu nela
inatacada e imune para a partir do além dirigir, corrigir e em última análi­
se garantir esta configuração indireta de seu destino na criação. O espíri­
to moderno insiste nesta imanência incondicional: na coragem ou no de­
sespero, seja com o for, na sofrida honestidade de levar a sério nosso es-
1 2 , k r t r > l i f h t h o cm : c :

tar-no-mundo: ver o mundo com o entregue a si próprio, sem considerar


suas leis com o uma intromissão, o rigor de sua pertença não sendo ate­
nuado por nenhuma providência extramundana. O mesm o é exigido por
nosso mito para o estar-no-mundo de Deus. Mas não no sentido de uma
imanência panteísta: se Deus e o mundo são simplesmente uma só coi­
sa, então em cada momento e em cada estado o mundo se encontra em
sua plenitude, e Deus não pode nem perder nem ganhar. Pelo contrário,
para que o mundo seja, e seja para si mesmo, Deus renunciou ao seu
próprio ser: despiu-se de sua divindade para recebê-la de volta a partir da
odisséia do tempo, carregada com a colheita casual de uma experiência
temporal imprevisível, transfigurado ou talvez deformado por ela. Nesta
auto-entrega da integridade divina ao vir-a-ser sem reservas, nenhuma
presciência pode ser admitida a não ser a das possibilid a d es que o ser
cósm ico garante através de suas próprias condições: precisamente a es­
tas condições Deus entregou sua causa, por haver-se esvaziado em favor
do mundo.
E por éones inteiros ela está presa nas mãos lentas da casualidade
cósmica e das probabilidades de seus conjuntos - enquanto continua­
mente, com o podem os presumir, vai se ajuntando uma paciente m em ó­
ria de círculos da matéria, que vai aumentando na pressentida expectati­
va com que o eterno acompanha as obras do tem po - um indeciso emer­
gir da transcendência a partir da impenetrabilidade da imanência.

E então o primeiro movimento da vida - uma linguagem nova do


mundo: e com ele um enorme aumento do interesse no campo da eterni­
dade, e um repentino salto no crescimento-para recuperar sua plenitude.
É o acaso do mundo por que a divindade em form ação esperava, e com
que a esbanjadora aposta apresenta os primeiros sinais do lucro final. Do
acumular-se de sentimento, percepção, tendência e ação, que cresce infi­
nitamente e que se ergue sempre mais variado e intenso sobre os surdos
turbilhões da matéria, a eternidade ganha força, enche-se mais e mais de
conteúdos de auto-afirmação, e pela primeira vez o Deus que desperta
pode dizer que a criação é boa.

Mas observe-se que juntamente com a vida veio a morte, e que a


mortalidade é o preço que a nova possibilidade do ser teve que pagar por
si mesma. Se a meta fosse a duração continuada, a vida nem sequer po­
deria ter com eçado, pois em nenhuma de suas formas possíveis ela pode
competir com a durabilidade dos corpos inorgânicos. É o ser essencial­
mente revogável e destrutível, uma aventura da mortalidade, que da ma­
téria durável recebe emprestados - pela breve duração do organismo
metabolizante, e aceitando suas condições - os currículos finitos dos eus
individuais. Mas é precisamente na pouca duração do auto-sentir-se, do
agir e do sofrer dos indivíduos finitos, que só da pressão da finitude retira
0 principio vicia:

toda sua urgência e com ela o frescor do sentir, que a paisagem divina
desdobra suas cores, e que a divindade chega à experiência de si mes­
ma. Se é, pois, a morte a condição básica daquela mesmidade isolada
que ao longo de toda a natureza orgânica se manifesta precisamente no
instinto da autoconservação, se é ela que estabelece este alto preço a si
mesma, e se o lucro desta mortalidade é o alimento da eternidade, e este
o sentido do paradoxo inteiro, então não é razoável que para os executo­
res instituídos, os eus auto-afirmantes, seja exigida imortalidade. Efetiva­
mente o instinto da autoconservação reconhece isto, pois a pressupõe
em seu contínuo esforço para adiar por esta vez a extinção.

Observe-se também que, na inocência da vida antes de aparecer o


conhecim ento, a causa de Deus não pode falhar. Cada espécie diferen­
te que a evolução produz acrescenta suas próprias possibilidades às do
sentimento e da ação, com isto enriquecendo a auto-experiência do fun­
damento divino. Toda dimensão nova da resposta ao mundo que se abre
em seu curso significa para Deus uma nova modalidade para experimen­
tar seu ser oculto e descobrir-se a si próprio através das surpresas pro­
porcionadas pela aventura do mundo. E toda a colheita do esforço de
seu vir-a-ser, seja ela clara ou escura, faz crescer no além o tesouro da
eternidade vivida. Se isto em si já é válido para o espectro da variedade
que se propaga, quanto mais o há de ser para o crescente despertar e
apaixonar-se da vida, que no reino animal acompanha o crescimento gê­
m eo de percepção e movimento. A sempre maior nitidez de instinto e
medo, prazer e dor, triunfo e privação, amor e mesm o crueldade - a pe­
netração de sua intensidade, de toda experiência, é um ganho para o su­
jeito divino, e seu viver vezes sem conta repetido mas que nunca se em ­
bota (já por isso a necessidade de morte e renascimento!), fornece a es­
sência purificada de onde a divindade se reconstrói. Tudo isto a evolução
disponibiliza pela mera exuberância de seu jo go e pelo rigor de seus aci­
cates. Suas criaturas, apenas na medida em que se realizam a si pró­
prias, justificam a ousadia divina. Mesmo seu sofrimento aprofunda mais
ainda a plenitude harmônica da sinfonia. Desta forma, aquém do bem e
do mal, no jo go de azar da evolução, Deus não pode perder.

Mas tampouco pode ele verdadeiramente ganhar protegendo sua


inocência, e nele cresce uma nova expectativa, em resposta à direção aos
poucos assumida pelo movimento inconsciente da imanência.

E então ele estremece, porque o ímpeto da evolução, levado por seu


próprio impulso inercial, ultrapassa o limiar em que a inocência deixa de
existir, e um critério inteiramente novo do êxito ou fracasso passa a to­
mar posse da aposta divina. O surgimento do ser humano significa o sur­
gir de conhecimento e de liberdade, e com este duplo fio extremamente
cortante a inocência do mero sujeito de uma vida que se autoplenifica
cede lugar à tarefa da responsabilidade situada sob a disjunção do bem
e do mal. Pela primeira vez a realização da causa divina está, de agora
em diante, confiada à chance e ao risco desta dimensão, seu êxito osci­
lando indeciso na balança. Com esta última mudança, a im agem de
Deus, que com eçou titubeante no universo físico e que depois com eçou a
estreitar-se nas amplas espirais da vida pré-humana, passa em dramáti­
co movimento acelerado a estar sob a questionável custódia do ser hu­
mano, para ser realizada, salva ou destruída por aquilo que o ser humano
faz de si e do mundo. E neste terrífico im pacto dos feitos do ser huma­
no sobre o destino divino, em seu efeito sobre o estado inteiro do eterno
ser, consiste a imortalidade humana.

Com o aparecimento do ser humano, a transcendência desperta


para si mesma, passando com a respiração suspensa a acompanhar o
agir humano, esperando e torcendo, com alegria e tristeza, com satisfa­
ção e decepção - e, com o eu gostaria de acreditar, fazendo-se a ele sensí­
vel, sem no entanto interferir no dinamismo do cenário do mundo. Pois
não poderia ocorrer que pelo reflexo de seu estado, a tremular com o ba­
lanço oscilante do agir humano, o transcendente lance luzes e sombras
sobre a paisagem do ser humano?

VII

É este o mito hipotético, do qual eu gostaria de acreditar que fosse


“verdadeiro” - no sentido em que um mito pode por sorte corresponder à
sombra da verdade, necessariamente irreconhecível e até mesm o inex­
primível em conceitos diretos, e que não obstante, valendo-se de auto-
manifestações em nossa experiência mais profunda, apela para nossa
capacidade de indiretamente dele prestar contas em imagens revogáveis
e antropomórficas. Na grande pausa da metafísica em que nos encontra­
mos, e antes que ela reencontre seu próprio lo g o s , temos que familiari­
zar-nos com este meio - declaradamente traiçoeiro. Quando consciente
de sua natureza experimental e de sua provisoriedade, e quando não pre­
tende apresentar-se com o doutrina, o mito, pela necessidade desta pau­
sa, pode superar o vazio. Pelo menos por esta vez eu sinto-me impelido
para ele, sob a pressão de uma tarefa a que a filosofia, em seu desam pa­
ro, não pode subtrair-se.

Da metafísica, para continuarmos no mesm o estilo especulativo, re­


sultam algumas conseqüências éticas sugeridas por meu mito. A primei­
ra é a importância transcendente de nosso agir, da maneira com o vive­
mos nossa vida. Se, no sentido de nosso relato, o ser humano foi criado
não tanto “ à” im agem de Deus quanto “ para” a im agem de Deus - se
nossos currículos de vida se tornam traços na face divina, então nossa
responsabilidade não é determinada unicamente por suas conseqüên­
cias no mundo, onde seu peso muitas vezes é pequeno, mas atinge uma
dimensão em que a capacidade de produzir efeitos se mede por normas
transcausais de natureza interna. Além disso, com o a transcendência
cresce com a terrível ambigüidade da colheita de nossas ações, a impres­
são sobre a eternidade é para o bem e para o mal. Nós p odem os con s­
truir e destruir, podemos curar e ferir, podemos alimentar a divindade ou
fazê-la definhar, completar ou deformar sua imagem. E as cicatrizes em
um caso são tão duradouras quanto o esplendor no outro. Por isso a imor­
talidade de nossos atos não é nenhuma razão para orgulho e vaidade.
Pelo contrário, nós teríamos razão para desejar que a maioria deles não
deixasse vestígios. Mas isto não nos é concedido: eles sulcaram seu tra­
ço, e este permanece. Mas não no destino do próprio indivíduo. O indiví­
duo é por natureza temporário, não eterno; e a pessoa em particular, fi-
duciária mortal de uma causa imortal, tem o gozo da mesmidade durante
o instante do tempo com o meio através do qual a eternidade se expõe às
decisões do tempo. C om o acionados no contexto do vir-a-ser, isto é, co­
m o únicos e efêmeros, os eus pessoais são apostas do eterno. Assim,
nas ocasiões irrepetíveis das trajetórias finitas de vida, o resultado preci­
sa sempre de novo ser decidido. Cima duração ilimitada haveria de em bo­
tar o fio da decisão e privar de sua urgência os apelos da situação.

Mesmo abstraindo desta consideração ontológica, o ser humano não


possui nenhum direito m o ra l ao dom da vida eterna, nem tem direito a
queixar-se de sua mortalidade. No gozo da mesmidade, por ele sempre
de novo afirmada, ele aceitou as condições sob as quais ela é concedida,
ou m esm o sob as quais é possível; e em vez de considerar sua posse
com o um direito a ter dela sempre mais, deve ele, pelo contrário, agrade­
cer pela concessão da existência com o tal - e por aquilo que a existência
tornou possível. Pois em si não existe n en h u m a necessidade de q u e o
m u n d o exista. Por que existe A lgo e não Nada? - esta irrespondível per­
gunta da metafísica deveria preservar-nos de pressupor a existência
com o um axioma e depois considerar a finitude com o uma mancha ad­
quirida, ou com o uma negação de seus direitos. Pelo contrário, o fato da
existência é em si o mistério dos mistérios - que nosso mito tentou refle­
tir simbolicamente. Renunciando à sua própria invulnerabilidade, a razão
eterna permitiu que o mundo existisse. É a esta autonegação que toda
criatura deve sua existência, com ela recebendo o que pode receber do
além. Tendo-se entregue inteiramente ao mundo em formação, Deus
nada mais tem para dar. Agora é ao ser humano que com pete dar-lhe. E
ele pode fazer isto buscando nos caminhos de sua vida que nada aconte­
ça, ou que não aconteça muitas vezes, e que não aconteça por sua cau­
sa, que Deus tenha que arrepender-se de haver permitido o vir-a-ser do
mundo. Este poderia perfeitamente ser o mistério dos “trinta e seis jus­
tos” , que segundo a doutrina judaica jamais deveriam faltar ao mundo:
que em virtude do maior valor do bem sobre o mal, que podemos atribuir
à lógica náo-causal das coisas, sua santidade oculta consiga compensar
culpas sem conta, saldar a conta de uma geração e salvar a alegria do
reino invisível.

Mas isto não é tudo. O que hoje importa, pelo contrário, é salvar toda a
aventura mortal em si, antes que se possa pensar em um eventual êxito ou
fracasso no imortal. A ameaça ao mundo vivo por parte de nossa tecnolo­
gia, de que o fantasma da bomba atômica é apenas o aspecto mais dra­
mático (e talvez o mais fácil de ser controlado), diz, para a visão aqui de­
senvolvida, que em nosso lugar do universo a imagem de Deus corre peri­
go com o jam ais correu antes, e isto no mais claro dos sentidos. Este pe­
rigo não pode ser enfrentado por nenhuma moralidade oculta da existên­
cia privada, só por um agir coletivo público de ação atual, e não é possível
prever-se que alianças com o mal terão que ser feitas pelo bem para evitar
o ainda pior, ou mesmo para impedir o inadmissível. Que aqui exista o
inadmissível absoluto, isto é, que o ser humano se destrua a si mesm o
(por exemplo, arruinando a biosfera), não se pode depreender da mera
imanência dos fatos do mundo. Do acaso cósm ico da existência do ser hu­
mano não podemos inferir nenhuma obrigação incondicional de que o ser
humano tenha que existir. A julgar apenas pela sentença cega do acaso, a
obcecada espécie pode perfeitamente perecer (e outras com ela), tão bem
com o conseguiu erguer-se a vertiginosas alturas do poder. O perecer, não
menos que o surgir, faz parte da evolução. Contra a evolução com o tal não
se pode pecar, já que, qualquer que seja o agir, o curso da evolução pros­
segue, m esm o que para o Nada. E que direito teriam as possíveis gera­
ções vivas futuras às condições da existência atual? Nenhum, pelo menos
à existência em si, antes que existissem, segundo as normas do direito pu­
ramente humano. Somente o que é tem direito a ser. Assim, na visão
atual, deixar que venha a ser não seria um mandamento, nem o não deixar
vir a ser seria um crime. Mas que aqui, juntamente com a causa temporal,
também esteja em jogo uma causa eterna - este aspecto de nossa respon­
sabilidade só pode ser uma proteção contra a tentação da apatia fatalista e
da ainda mais nefasta traição do “après nous le d élu ge”, “depois de nós o
dilúvio” . Em nossas mãos inseguras nós seguramos literalmente o futuro
da aventura divina na terra, e não podem os desapontá-la, mesmo que qui­
séssemos desapontar-nos.

Assim, à luz incerta do fim de nossa peregrinação, nós podemos dis­


tinguir uma dupla responsabilidade do ser humano. (Jma delas na medi­
da da causalidade cósmica, segundo a qual o efeito de sua ação se esten­
de a um futuro mais próximo ou mais remoto, onde termina por extin-
guir-se. E ao mesm o tempo uma outra, na medida de sua incidência na
* i r ’ C \ j í t I;

esfera eterna, onde ela jam ais se perde. Uma, na condição limitada de
nossa previsão e na complexidade das coisas do mundo, é em larga m e­
dida um joguete do acaso e da sorte; a outra tem a segurança de normas
que se podem conhecer, e que segundo as palavras da Bíblia não são es­
tranhas ao nosso coração6. Mas é um aspecto peculiar e único da atual si­
tuação do ser humano, por ela mesma provocada, que os dois aspectos
da responsabilidade moral, o aspecto metafísico do momento e o aspecto
causai do efeito futuro, confluem um com o outro, já que de repente a
ameaça do futuro total ergue a um plano mais elevado o aspecto da prote­
ção meramente física, com isto transformando a prudência preventiva a
seu serviço no dever transcendental mais urgente. Quer dizer, o “momen­
to” da decisão, neste contexto, não é mais apenas o da própria ação isola­
da e de curto prazo, mas acima de tudo o “m om ento” do gênero humano
em seu agir social global. Para a novidade desta situação, que atribui ao
conhecimento das conseqüências, e com ele ao conhecimento científico,
um papel nunca antes conhecido, nós não fom os preparados por nenhu­
ma doutrina de deveres; e aqui se encontra uma tarefa ainda a ser atacada
da teoria ética. Até que ponto os novos deveres na esfera do cálculo cós­
mico, que esta teoria irá prescrever, poderão temporariamente suspender
a incondicionalidade não calculante do “momento” pessoal, é uma questão
que aqui temos que deixar em aberto. Embora nenhuma vida eterna espe­
re por nós, nem um eterno retorno do aqui, podem os no entanto pensar
em uma imortalidade, enquanto durante o curto lapso de tem po de nossa
existência nós velarmos pelo cumprimento dos interesses mortais am ea­
çados e formos auxiliares do Deus imortal que sofre.

6 . D t 3 0 ,1 4 .
Epílogo
Natureza e ética

No início deste livro encontrava-se a afirmação de que a filosofia da


vida abrange a filosofia do organismo e a filosofia do espírito. No final, e à
luz do que aprendemos, nós podemos acrescentar uma outra afirmação
contida na primeira, mas que nos impõe uma tarefa nova: a filosofia do es­
pírito inclui a ética - e pela continuidade do espírito com o organismo e do
organismo com a natureza, a ética passa a ser uma parte da filosofia da
natureza. Tam bém esta afirmação entra em choque com a fé moderna.
Não está o ser humano sozinho? Não surge de nós mesmos todo apelo de
nosso ser moral, atingindo-nos, a partir da pretensa essência das coisas,
apenas com o um eco de nossa própria voz? Não é esta natureza muda em
si mesma? Não recebeu ela de nós todo o sentido que para nós possa ter?
Pois apenas o ser humano, assim nos foi dito há vários séculos, é a fonte
de toda e qualquer exigência ou dever a que ele possa considerar-se obri­
gado, e imputá-lo a uma natureza privada de espírito não passa de uma li­
berdade antropomórfica. Nós refletimos o ser, mas nisto refletimos a nós
mesmos, e quando terminamos por reconhecer nossa imagem assim for­
mada com o o que ela é, constatamos com orgulho nossa solidão cósmi­
ca. Seja qual for a qualidade moral que possa entrar na relação entre eu e
mundo, ela não pode ter sua origem a não ser no próprio eu.
Dois teoremas diferentes foram combinados aqui para formar uma
meia-verdade duvidosa. É verdade que não pode haver obrigação sem
uma idéia de obrigação; e é verdade que dentro do mundo conhecido a ca­
pacidade para esta, com o para qualquer outra idéia, se manifesta unica­
mente no ser humano. Mas daí não se segue que por isso a idéia tenha
que ser uma invenção, e não uma descoberta. Tam bém não se segue
que o restante do ser seja indiferente a esta descoberta. Ele pode apostar
nela, e graças a esta aposta ser mesm o a razão para a obrigação que o
ser humano reconhece para si. Nesse caso ele seria o executor de uma tu­
tela que só ele é capaz de perceber, mas que não foi criada por ele mesmo.
Em todo caso a afirmação - para o pensamento moderno quase um axio­
ma - de que qualquer coisa com o um dever só pode partir do próprio ser
humano, é mais do que uma constatação descritiva. Ela é parte de um
ponto de vista metafísico, que nunca prestou completas contas de si mes­
mo. Exigir esta prestação de contas significa reapresentar a questão onto-
lógica do ser global do mundo. A resposta final da ontologia sempre pode­
ria ainda ser a base para um dever a partir do eu do ser humano, ao qual
ela foi relegada, e para transferi-la de volta à natureza do conjunto do ser.
Pode ter sido a precipitação e o desespero que negaram à doutrina do ser
a capacidade de fornecer uma razão para a obrigação - dirigida, eviden­
temente, a seres abertos à obrigação e que precisam existir, para que a
obrigação encontre quem a assuma.

A ontologia com o fundamento da ética foi o ponto de vista original


da filosofia. A separação das duas, que é a separação entre o reino “obje­
tivo” e o “subjetivo” , é o destino moderno. Sua re-união, caso seja possí­
vel, só poderá ser alcançada a partir do lado “objetivo”; quer dizer: por
uma revisão da idéia da natureza. E é a natureza no vir-a-ser, mais do que
a natureza no permanecer, que oferece tal perspectiva. Da orientação in­
terior de sua evolução total talvez seja possível estabelecer uma determi­
nação do ser humano segundo a qual, no ato da auto-realização, a pes­
soa haveria de realizar um interesse da substância original. A partir daí re­
sultaria um princípio da ética que em última análise não teria seu funda­
mento nem na autonomia do eu nem nas necessidades da sociedade,
mas sim em uma atribuição objetiva por parte da natureza do todo (o
que a teologia costumava denominar de ordem da criação - ord o creati-
on is) -, de tal espécie que m esm o o último membro de uma humanida­
de moribunda, em sua última solidão, lhe poderia ainda ser fiel. Que na
escala cósmica o ser humano seja apenas um átomo, é um fato quantita­
tivamente pouco importante: sua dimensão interior pode fazer dele um
acontecimento de importância cósmica. A reflexão do ser no conhecer
poderia ser mais do que um acontecimento humano: poderia ser um
acontecimento para o ser em si, que afeta seu estado metafísico - na lin­
guagem de Hegel, um chegar-a-si-mesmo da substância original.

Seja como for (e esta é uma idéia reconhecidamente especulativa), só


uma ética fundamentada na amplitude do ser, e não apenas na singularida­
de ou na peculiaridade do ser humano, é que pode ser de importância no
universo das coisas. Ela terá esta importância se o ser humano a tiver; e se
ele a tem, nós teremos que aprendê-lo a partir de uma interpretação da reali­
dade com o um todo, ou pelo menos a partir de uma interpretação da vida
com o um todo. Mas mesmo sem que seja feita uma exigência extra-huma-
na para o comportamento humano, permanece de pé o fato de que uma éti­
ca que não mais se baseie sobre a autoridade divina tem que fundamen­
tar-se em um princípio que possa ser descoberto na natureza das coisas,
para que não seja vítima do subjetivismo ou de outras formas do relativis-
mo. Portanto, enquanto a investigação ontológica extra-humana puder le-
var-nos para a teoria universal do ser e da vida, ela não se terá afastado real­
mente da ética, mas terá ido atrás de sua fundamentação possível.
Nota bibliográfica

Refere-se a anteriores publicações isoladas de partes deste livro. As ci­


tações são feitas em ligação com a seqüência atual dos capítulos, sem le­
var em conta a cronologia que lhes é própria. (Muitas vezes as versões que
aparecem aqui distanciam-se consideravelmente dos artigos originais.)

Capítulo 1 - “Life, Death, and the Body in the Theory of Being” . Reuiew o f
M etaphysics, 19, 1 (1965). - “ Das Problem des Lebens und des Leibes
in der Lehre vom Sein”. Zeitschrift fü r P h ilo sop h isch e F orsch u n g , 19,
2 (1965).

Capítulo 2 - “Causality and Perception” . The J o u rn a l o f P h ilo sop h y ,


47 (1950).

Capítulo 3 - “Materialism and the Theory of Organism” . ü n iv e rs ity o f


T oron to Q uarterly, 21 (1951).

Capítulo 4 - “ Bemerkungen zum System begriff und seiner Anwendung


auf Lebendiges” . S tu d iu m G enerale, 10, 2 (1957).

Capítulo 5 - “ Is God a Mathematician?” M easure, 2 (1951).


Capítulo 6 - “Motility and Emotion”. Proceedings o f the X f 1International
Congress o f Philosophy (Bruxelas, 1953), vol. 7.

Capítulo 7 - “A Critique of Cybernetics” . S o c ia l Research, 20 (1953).


Capítulo 8 - “The Nobility of Sight” . P h ilo s o p h y and P h e n o m e n o lo g i-
ca l Research, 14 (1953/54). - Tam bém em The P h ilo s o p h y o f the
B ody. Ed. St. F. Spicker, 1970.

Capítulo 9 - “ Homo pictor und die differentia des Menschen” . Zeitschrift


fü r P h ilo s o p h is ch e F orsch u n g , 15, 2 (1961). - “ Homo Pictor and the
Differentia of Man” . S o c ia l R esearch, 29 (1962). - Em alem ão tam­
bém em Zw isch en N ich ts u n d E w igkeit, 1963.
A p ê n d ic e - “The Anthropological Foundation of the Experience of
Truth” . M em ories d e iX III C ongresso In te rn a cio n a l de Filosofia. (M é­
xico, 1964), vol. 5.
0 vida

C a p ítu lo 10 - “The Practical üses of T h eory” . S o c ia l Research, 26


(1959). Tam bém em P h ilo s o p h y o f t h e S o c ia l S ciences. Ed. M. Na-
tanson, 1963.

C a p ítu lo 11 - “Gnosticism and Modern Mihilism” . S o c ia l Research, 19


(1952). - Em alemão, em Zwischerx N ich ts a nd Ew igkeit, 1963.

C apítu lo 12 - “Immortality and the Modern Tem per (The Ingersoll Lecture,
1961)”. Harvard Theological Review, 55 (1962). Em alemão em Zivis-
chen N ichts und Ew igkeit, 1963.
índice

S u m á rio , 5

Prefácio, 7

In tro d u çã o - A temática de uma filosofia da vida, 11

1. O problema da vida e do corpo na doutrina do ser, 17


I - O panvitalismo e o problema da morte, 17
II - O pan-mecanismo e o problema da vida, 19
III - O papel histórico do dualismo, 22
IV - Idealismo e materialismo com o produtos da dissolução
do dualismo, 26
V - O desaparecer da vida entre “consciência” e “ mundo
exterior” , 28
VI - A posição ontológica central do corpo e o problema da
causalidade, 31
R e s u m o , 34

2. Percepção, causalidade e teleologia, 35


I - Causalidade e percepção, 35
1. O problema de Hume e de Kant: a insuficiência de suas
soluções, 35
2. Inversão do problema: Com o é possível a percepção
neutra?, 38
3. Lucro e perda na neutralização, 41
II - Antropomorfism o e teleologia, 43
1. A negação das causas finais com o um a p rio ri da ciência
moderna, 44
2. A proscrição do antropomorfismo e suas conseqüências
epistemológicas, 46
3. A reabertura pós-dualista da questão, 47
3. Aspectos filosóficos do darwinismo, 49
I - A questão das origens no pensamento moderno sobre
a natureza, 49
II - Aplicação da idéia moderna de origem ao reino da vida, 52
1. Resistência das formas vivas ao modelo mecanicista
da origem, 52
2. Superação da resistência por parte da moderna doutrina
evolucionista, 53
III - A revolução provocada no conceito da vida pela idéia
evolucionista, 55
1. O vir-a-ser das espécies e o fim do platonismo, 56
2. O ser humano sem essência, 57
IV - Necessidade causai e casualidade essencial, 58
1. A com binação de necessidade e contingência na moderna
im agem da natureza, 58
2. Aplicação ao reino vivo, 59
3. Desvio e seleção: evolução com o “patologia” , 61
4. O novo dualismo: gérmen-soma, 63
V - Triunfo e crise do materialismo na teoria da evolução, 63
1. Vantagens e desvantagens do dualismo para a
ciência natural, 64
2. Os autômatos animais de Descartes, 66
3. A ruptura da ontologia cartesiana pelo evolucionismo, 67
A p ê n d ice - A importância do cartesianismo para a teoria
da vida, 69

4. Harmonia, equilíbrio e devir - O conceito de sistema e sua


aplicação ao terreno da vida, 74

5. Deus é um matemático? - Sobre o sentido do metabolismo, 87


I - Levantando a pergunta, 87
II - Antigo e moderno sentidos de uma matemática da natureza, 89
III - A doutrina clássica e a doutrina judeu-cristã da criação, 92
IV - A colheita do dualismo: a natureza sem alma e sem
espírito, 94
V - O Deus matemático volta os olhos para o organismo, 97
VI - O testemunho contrário do corpo vivo, 100
VII - Forma e matéria, 102
1. Autonomia e independência da forma, 102
2. O problema da identidade, 104
VIII - Liberdade dialética, 106
1. Liberdade e necessidade, 107
2. O si-mesmo e o mundo: a transcendência da necessidade, 108
3. A dimensão da interioridade, 109
4. O horizonte do tempo, 110
IX - O matemático divino: crítica de sua visão, 111
1. Invisibilidade da vida na análise do extenso, 111
2. O fracasso da com plem entação dualista, 113
X - A superioridade do sujeito do conhecimento corporal, 115
A p ê n d ic e 1 - 0 em prego da matemática pelos gregos na
interpretação da natureza, 117
A p ê n d ice 2 - Anotações sobre a filosofia do organismo de
Whitehead, 120

6. Movimento e sensação - Sobre a alma animal, 122

7. Cibernética e finalidade: uma crítica, 132


A p ê n d ic e - Materialismo, determinismo e o espírito, 150

8. A nobreza da visão - (Jm estudo sobre a fenomenologia dos


sentidos, 159
I - A simultaneidade da imagem , ou o aspecto temporal
da visão, 160
1. A audição, 160
2. O tato, 163
3. Comparação com a visão, 165
4. Visão e tempo, 167
II - Neutralização dinâmica, 169
III - Distância espacial, 173
A p ê n d ice - Visão e movimento, 175

9. H o m o p ic to r: da liberdade da imagem, 181


I - Que é uma imagem?, 182
II - A percepção da semelhança, 188
278 a principio vida

III - Abstração e imagem na percepção visual, 191


IV - Liberdade eidética da imaginação e da imagem, 193
V - A universalidade do nome e da imagem, 196
VI - Resultado do experimento heurístico, 196
A p ê n d ic e - Da origem da experiência da verdade, 198

T R A N S IÇ Ã O - Da filosofia do organismo à filosofia do ser humano, 206

10. Do uso prático da teoria, 211

11. Gnose, existencialismo e niilismo, 233


I - A solidão do ser humano: de Pascal a Nietzsche, 235
II - A divisão gnóstica entre ser humano e mundo, 238
III - Colapso da doutrina da parte e do todo, 242
/
IV - Antinomismo antigo e moderno, 244
V - Temporalidade sem presente, 248
VI - A indiferença da natureza, 251

12. Imortalidade e existência atual, 253

E p ílo g o - Natureza e ética, 271

N o ta b ib liog rá fica , 273

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